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introdução
O operador feminino
Este não é um livro sobre as mulheres, ainda que nele se fale, freqüentemente, de mulheres
gregas – e, isso, bem antes dos últimos capítulos, consagrados ao estudo de algumas figuras
femininas paradoxais.
E eis que já preciso me explicar quanto a este ou: o que farei – o que passo a fazer, após
certas precisões.
«A pólis são os homens»: se esse topos, tantas vezes repetido, está certo – se, portanto, a
pólis grega realmente equivale ao grupo de seus homens viris (ándres) –, então os modernos
historiadores da Antigüidade (que, quanto a eles, preferem falar em «clube de homens») se sentem
autorizados a inverter a proposição, e caracterizar a pólis, sobretudo quando ela é democrática 1, e o
político, quando está mais próximo da forma através da qual os gregos o «inventaram», pela
«exclusão das mulheres». Fórmula abrupta, que se poderia modular – seria, inclusive, forçoso fazê-
lo, apesar da abundância de comentários que suscitou – mas que considerarei como
suficientemente exata, desde que nossa atenção se volte, menos para a realidade institucional da
pólis, do que para as representações que dão ao político seu fundamento. Assim, trata-se, de fato,
1
Sabe-se que a exclusão é mais radical em Atenas do que em Esparta. Que essa exclusão seja igualmente em
outras épocas «um elemento estrutural da democracia» é o que Geneviève Fraisse demonstra (Musa da razão.
A democracia exclusiva e a diferença dos sexos. Aix-en-Provence: Alinea, 1989, p. 199. Ver também a p. 14, a
respeito de Sylvain Maréchal, redator do Manifesto dos Iguais do babouvismo). Cf. ainda «La peur et la
confusion entre les sexes», ibid, p. 197.
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do feminino, e não de mulheres. Do feminino, na medida em que o político grego (e, mais
geralmente, o político?) – eis nossa hipótese – se constitui sobre uma negação: a negação reiterada
e, a cada vez, (re)fundadora, dos benefícios que tiraria o homem em cultivar dentro de si uma parte
feminina. Seria decorrente do «medo da confusão entre os sexos»? Desejo de separação sem
retorno, para melhor atribuir ao anér a coerência pura de um modelo? Pois a cidadania se diz,
habitualmente, sob o modo da andreía, da virilidade como nome da coragem e, para melhor se
atacarem, os adversários políticos do século IV antes de nossa era tratar-se-ão, mais de uma vez,
um ao outro, de «mulher» – veja-se, por exemplo, as amabilidades trocadas entre Ésquino e
Demóstenes.
Mas, muitas são as evidências que dissimulam, sob o óbvio, questões precocemente
encerradas. Por trás da exaltação do anér, eu decifro a preocupação em definir o homem-cidadão
por meio de uma virilidade que nada de feminino poderia macular. E, nessa preocupação, vejo o
esforço durável do político, para colocar à margem uma tradição adversa ou, ao menos, outra.
Outra tradição, igualmente grega; e que, da epopéia homérica à legenda heróica, postula que um
homem digno deste nome é mais viril quando abriga dentro de si a feminilidade.
Do cidadão a seu outro, a seus outros, há, sem dúvida, mais de um discriminante. Mas, na
medida em que não se aceita a oposição entre o mesmo e a alteridade – ainda que, esta, qualificada
de «radical» – como a última palavra da reflexão dos gregos (afinal, Platão sabia, melhor do que
ninguém, que o Mesmo participa do outro), é impossível não perceber que o feminino é o mais rico
dos discriminantes, operador que, por excelência, permite pensar a identidade como virtualmente
trabalhada pelo outro. O que significa que, quando se é um homem grego, quando se lê os gregos,
se deve proceder a operações de pensamento bem mais complexas do que a verificação repetitiva de
um quadro de categorias antitéticas.
Sem mais tardar, um exemplo. Seja o Sócrates de Aristófanes, às voltas com o rude
Estrepsíades, que deseja ser seu discípulo. A título de primeira lição, o sábio propõe um exercício
sobre os gêneros gramaticais e a forma, masculina ou feminina, das palavras, na medida em que ela
se adequa – ou deve se adequar – à coisa designada. A questão trata do masculino, a palavra
examinada é alektrúon, nome do galo e, como tal, citada por Estrepsíades na rubrica dos
masculinos. Sócrates, então, exclama: «Vês o que te sucede? A fêmea, tu a chamas “galo”,
exatamente como o macho, já que dizes alektrúon, em um caso, assim como no outro». E
Estrepsíades, estarrecido, descobre que, para designar a «fêmea», seria preciso recorrer a
alektrúaina, que Sócrates acaba de forjar para as necessidades da causa 2. Sem dúvida, o espectador
2
Aristófanes. As Nuvens, 659-666: note-se, aliás, que o galo só figura nessa lista por uma bobeada de
Strepsíades, que deveria fornecer exemplos de quadrúpedes; o galo é bípede, o que o aproxima ainda mais do
homem. Alektrúaina é uma invenção de cômico, tanto quanto he alektrúon, que pode ser encontrado entre os
poetas cômicos, ou alektorís. Esses empregos obedecem sempre a um projeto de burlesco, e é portanto pouco
sensato afirmar que alektrúon é «empregado também no feminino, no sentido de "galinha" (Pierre Chantraine,
Dictionnaire étymologique de la langue grecque – Histoire des mots. Paris: Klincksieck, 1968, s.v. aléxo).
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ateniense devia rir alto e em bom tom; mas pode-se desconfiar que risse menos da estultice de
Estrepsíades do que do absurdo de um filósofo querer atribuir um feminino à palavra galo. Pois
há, no mundo animal, muitos nomes de forma masculina que, munidos do artigo feminino, podem
designar uma fêmea: assim, kúon, nome do cão, ao qual estão associados esses valores tão
negativos que são os da cadela 3; e Estrepsíades havia, justamente, mencionado kúon, em sua lista
de masculinos. No entanto, quanto ao galo, da mesma forma que o carneiro, o bode e o touro,
machos definitivamente designados no masculino, não poderia haver forma feminina. Ora,
Sócrates desprezou kúon, que admite, efetivamente, uma separação entre o gênero da palavra e o
sexo do animal, e escolheu alektrúon, concedendo, assim, ao galo, uma “gala” – o que implica
desfazer a idéia de que um galo é um galo. Sem nenhuma dúvida, Aristófanes quer fazer o público
ateniense rir às custas de um sábio tão insensato, e a receita é bastante boa. Mas a análise que,
buscando maior compreensão, ganhar certo recuo, decerto adivinhará, sob o burlesco, uma questão
teórica de dimensão inteiramente diferente: o debate autenticamente socrático que, até os limites
do impossível, desdobra o feminino sobre o masculino. Platão, certamente, não se esqueceria…
É bem verdade que, no que tange ao discurso grego sobre a diferença dos sexos, é sempre
possível contentar-se com idéias bem nítidas. Quem teme a ambivalência verá, na passagem das
Nuvens, uma simples brincadeira do cômico. Assim, freqüentemente, as análises só fazem
comprovar que o esquema de oposições funciona sem anomalias. E, de fato, nada impede – como o
demonstram todos os textos que se limitam a reafirmar, pura e simplesmente, a oposição – que se
sustente que os gregos sabiam manter, até o fim, a divisão entre os sexos, sobretudo quando faziam
do sexo, como se afirmou, «não somente… um órgão desempenhando uma função determinada,
mas, também, um signo, indicando qual o papel (quais os papéis) que cabe, em um sistema
determinado, ao indivíduo que dele é provido» 4. Chame-se o sistema de «sociedade», e o caminho
estará aberto para um investimento total e imediato do sexual, percebido em sua dimensão
fisiológica, no social. Foucault não está muito longe disto, com seu «princípio de isomorfismo entre
relação sexual e relação social», do qual faz a chave do comportamento sexual dos antigos gregos 5;
mas o maior alívio é o dos antropólogos da Grécia, a quem os papéis sociais vêm, bastante
oportunamente, liberar de qualquer preocupação em relação ao sexo como uma terra incógnita.
Basta recobrir a diferença dos sexos com a divisão dos papéis: uma vez realizado o gesto, tudo
estará – é o que se afirma – esclarecido. Talvez até em demasia.
Aléktor, o «defensor», o «combativo» serviu «como uma espécie de apelido para designar o galo» (Chantraine,
ibid.).
3
Ver infra, p. 239.
4
Luc Brisson, «Neutrum utrumque. La bisexualité dans l’Antiquité gréco-romaine», in L’Androgyne. Les
cahiers de l’hermétisme. Paris: Albin Michel, 1886, p. 32 (sobre sexus, derivando da raiz *sec-, de onde seco,
«cortar, separar, dividir»); a necessidade de estabelecer uma boa distância entre os sexos: p. 33-35.
5
Michel Foucault, Histoire de la sexualité. 2 – L’usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984, p. 237.
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Assim, dando-se a separação por definitivamente estabelecida, o que se ganha é algo como
uma evidência, por exclusão da dificuldade. Mas corre-se um risco, intelectual, de tomar ao pé da
letra os discursos mais edificantes – como o Econômico, de Xenofontes, que, instalando cada sexo
devidamente em seu posto, inspira tantos textos sobre a mulher grega, ou sobre o anér9. Mas, na
medida em que nos fixamos sobre o terreno da separação, até mesmo os textos menos ideológicos –
como a Ilíada, ou as gestas heróicas – admitem leitura a partir do drástico esquema de papéis
sociais. Designa-se, então, o «indivíduo heróico» pelo nome de Aquiles – sem contudo conceder a
esse indivíduo paradigmático as lágrimas que de fato verte o herói da Ilíada, ou, quando do
anúncio da morte de Patrocles, o irresistível desespero que, não fôra a intervenção de um de seus
companheiros, o teria conduzido a cortar a própria garganta. E atribui-se ao herói épico a «bela
6
Françoise Héritier-Augé, «Le sang du guerrier et le sang des femmes. Notes anthropologiques sur le rapport
des sexes», Cahiers du GRIF, 29 (hiver 1984-1985: L’Africaine. Sexes et signes), p. 13. O «calor» do homem:
ver infra.
7
Ver Geoffrey Lloyd, Science, Folklore and Ideology. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 58-111,
e, quanto à declaração de Apolo, Loraux, L’invention d’Athènes. Histoire de l’oraison funèbre dans la «cité
classique». Paris-La Haye: Éditions de l’EHESS/Mouton, 1981, p. 129 e 144.
8
«Práticas de si»: Michel Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., 184 p. 18. Ver também p. 64: «questão de
medida e de controle… e não de interdito ou permissão»). A misoginia: quem pretende denunciá-la vai direto
em Aristóteles, para sublinhar seus «preconceitos» (Said, 1982: 96) Ver também Sissa, em S. Campese, P.
Manuli, G. Sissa, Madre Materia. Sociologia e biologia della donna greca. Turim: Boringhieri, 1983, p. 83-
145 e o artigo bastante sutil de S. Georgoudi, «Le masculin, le féminin, le neutre», a ser publicado em 1990 em
Arethusa.
9
Em último lugar, Michel Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., p. 167-183. Lembremos, tal como o faz
Suzanne Saïd («Féminin, femme et femelle dans les grands traités biologiques d’Aristote», in E. Lévy (éd.), La
femme dans les sociétés antiques. Actes des colloques de Strasbourg (maio de 1980 e março de 1981).
Strasbourg, 1982, p. 99), que no Econômico, Xenofontes «define a mulher unicamente em termos negativos».
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Na verdade, a epopéia jamais estabelece distinções e, isso, até o fim: masculino e feminino
se apresentam aí como dois determinantes essenciais, que repartem entre si a dominância e que
são, no entanto, inseparáveis. Para verificá-lo, basta reparar tudo que, secretamente, assemelha
Aquiles à Helena ou, então, atentar para Andrômaca, «mulher ideal da Ilíada», mas notavelmente
dotada de um nome de Amazona e que sofrerá, em seu luto, como morre um guerreiro 11. O que
relembra as «contínuas trocas» que, da Índia védica à Grécia, a tradição indo-européia mantém
«na religião, como na legenda, entre o domínio da guerra e o da feminilidade» 12: dos ornamentos
femininos de Arjuna às túnicas de Héracles, ou à «pele macia» dos guerreiros da Ilíada.
Mas chega o dia em que, para tentar superar o seu objeto – e, portanto, ao adotar certo
distanciamento – o historiador da «pólis clássica» é obrigado a tomar outro rumo, para aquém ou
para além, nem que seja somente para poder, no caso de a ele retornar, introduzir um pouco mais
de jogo nas peças bem azeitadas do sistema. Minha opção, se cabe dizer, foi de retornar ao universo
da epopéia clássica. Após estudar a oração fúnebre como gênero cívico onde ándres e andreía
coincidem, já que esta coincidência é um dever para com a pólis e, portanto, ao concluir uma
reflexão sobre as operações de pensamento às quais procede o autóctone, na pólis de Atenas,
quanto à exclusão das mulheres, a volta à Ilíada (uma vez por ano, conforme o conselho de
Dumézil) – Ilíada onde o guerreiro digno do nome anér conhece, inevitavelmente, o medo, treme,
chora e se faz tratar de mulher sem perder a virilidade 13 – convenceu-me da necessidade, para os
que se interessam pelas formulações gregas da diferença dos sexos, de submetê-las ao registro da
troca. Todas as trocas entre os sexos, e não somente as que caracterizam uma inversão – onde, no
final, tudo tornará a seu lugar, para maior glória da pólis (voltarei ao tema) – nem tampouco
apenas aquelas que misturam os opostos, confundindo as fronteiras.
10
Jean-Pierre Vernant, L’individu, la mort, l’amour. Soi-même et l’autre en Grèce ancienne. Paris: Gallimard,
1989, p. 217.
11
David Bouvier, «Mourir près des fontaines de Troie. Remarques sur le problème de la toilette funéraire
d’Hector dans l’Iliade», Euphrosyne, 15 (11987), p. 18-19, 20 e seg. (desenvolvendo uma sugestão de Segal
1971)
F. Vian, Les origines de Thèbes. Paris: Klincksieck, 1963, p. 163. Túnicas de Héracles: ver infra, cap. 7. Pele
12
Mistura, inversão: dois procedimentos que não esgotam, longe de lá, o registro grego da
troca entre os sexos.
Não há dúvida de que, através dessas figuras e de outras ainda, os gregos tentaram «pensar
o corpo sexuado dos mortais», em uma «anatomia do impossível» que produz unidades
«autárquicas»16. Mas também é bastante provável que, encerradas como estão em si mesmas, tais
figuras só conduzam a um «cortejo de limitações», imobilizando, ao mesmo tempo, o pensamento,
em uma visão medusada. É possível que só se possa ver o corpo à condição de não nos limitarmos
ao corpo. Eu lanço a hipótese de que os gregos, que imaginaram esses corpos bloqueados, saídos da
mistura e do curto-circuito, também tenham compreendido que um duplo registro – como, por
exemplo, o da metáfora – servia mais ao pensamento do que aquele, ao mesmo tempo muito
disparatado e muito homogêneo, da monstruosidade. E, assim, apostemos que foi nessa escola que
Freud, a partir da «diferença anatômica entre os sexos», teorizou uma sexualidade «ampliada» ao
psiquismo, e uma bissexualidade ao mesmo tempo generalizada e constitutiva do gênero humano,
14
1) Hipócrates, Dos ares, das águas, dos lugares, com as observações de A. Ballabriga, «Les eunuques scythes
et leurs femmes. Stérelité des femmes et impussance des hommes en Scythie selon le traité hippocratique Des
airs» in: Métis, 1, 1 (1986), p. 121-138; 2) Hipócrates, Do regime, 27-29; 3) Platão, Leis, VIII, 836 b 1.
15
Ver, em geral, Luc Brisson «Neutrum…», op. cit. (p. 58: «possessão…»); Maurice Olender 1985, p. 45: (o
«cúmulo»); I. Chirassi Colombo, «L’inganno di Afrodite», in I labirinti, op. cit., p. 111.
16
Olender, «Aspects de Baubô. Textes et contextes antiques», Revue de l’Histoire des Religions, 202, 1
(1985), p. 51-55; todas as citações são retiradas desse estudo, de cujas conclusões eu compartilho.
Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias
«de tal forma que o conteúdo das construções teóricas da masculinidade pura e da feminilidade
pura permaneça incerto 17.
A mistura era uma questão grega. É debaixo da categoria de inversão que os modernos
interpretam a troca entre os sexos, situando sua realização em ritos sociais que são as festas
religiosas e as práticas iniciáticas: festa argiana das hubristiká, onde homens e mulheres trocam
suas vestimentas; ocasião em que os efebos, na véspera de sua promoção à condição de anér,
vestem-se com indumentárias femininas e dramatizam, assumindo por um tempo a pele de mulher,
a passagem para a plena virilidade; costumes espartanos do casamento, onde a jovem esposa,
sacrificando sua cabeleira, se masculiniza para acolher o esposo, que, assim, lamentará menos a
volta imediata à sociedade dos homens: tais são os exemplos mais correntemente invocados pelos
adeptos da interpretação iniciática. Observe-se que a noção de inversão é reconfortante, na medida
em que não introduz nenhuma brecha na repartição binária das categorias gregas: uma vez que se
procedeu a essas práticas sempre tradicionais, a distribuição canônica se refaz, intocada, e a ordem
cívica se reafirma ao acomodar, no interior de seu funcionamento regulado, inversões provisórias,
que em nada ameaçam seus fundamentos. Mas as dificuldades teóricas se fazem evidentes, quando
se procura generalizar a inversão como única figura do imaginário grego e, sob a ameaça de uma
extrema simplificação 18, aplica-se esta chave de leitura aos textos. E como seria possível tudo
unificar através de uma «lei de inversão simétrica» quando, nesses ritos, a inversão é sobretudo
marcada por uma dissimetria essencial, que só beneficia os homens? 19
É, pois, preciso acompanhar Froma Zeitlin, que, para deslocar essa figura tão mecânica,
analisa o travestismo no seio de gêneros literários tradicionais do teatro grego, em plena época
clássica, e no espaço da pólis. Tragédia, comédia: aí o travestismo é central, porque, por definição,
os papéis femininos são representados por homens; e, também, porque a intriga pode introduzir o
travestismo como recurso da ação – só que, nesses casos, a volta atrás não está assegurada (as
trocas pretensamente provisórias acabam mal na tragédia e, na comédia, só beneficiam as
mulheres, sendo sempre possível imputar-lhes o registro de meta-teatro: como não refletir sobre o
jogo do real e da ficção quando um ator, assumindo um papel feminino, deve representar uma
mulher que se disfarça em um homem?). No teatro de Atenas, são certamente os ándres que fazem
tudo: representar, escutar, julgar. Mas, através da vestimenta feminina que tal cidadão ator carrega,
nos acessórios bastante marcados que, assim como a longa veste tradicional, constituem o costume
17
«Ampliar o conceito de sexualidade»: prefácio de Freud à quarta edição (1920) dos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1991, onde Freud afirma que «a sexualidade ampliada da
psicanálise aproxima-se do Eros divino de Platão». Bissexualidade: «Quelques conséquences psychiques de la
différence anatomique entre les sexes» (1925), em La Vie sexuelle. Paris: PUF, 1969, p. 131-132.
18
Sobre o «perigo da simplificação» que reside na estrita aplicação de uma lógica da polaridade, e acerca de
uma outra série de oposições (jovem/adulto, selvageria/cultura): Stella Georgoudi, «Les jeunes et le monde
animal: éléments du discours grec sur la jeunesse», in Historicité de l’enfance et de la jeunesse, Actes du
colloque international, Athènes, 1986.
19
Froma Zeitlin, «Playing the Other: Theater, Theatrically and the Feminine in Greek Drama»,
Representations, 11 (1985), p. 85
Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias
teatral, pode-se identificar a clara manifestação da relação que o teatro estabelece com a
feminilidade, como tantos indícios servem para demonstrar, a começar pela «androginia» do
patrono, Dionísio20. E, não restam dúvidas, são ainda os homens que retiram daí todo prazer e
benefício, em razão deste «paradoxo final»: «que o teatro vise o feminino para imaginar um
modelo mais completo do eu masculino».
Interrompo aqui a citação para observar que também se pode, igualmente, valorizar a
importância do gesto que introduz um enclave feminino ao lado da virilidade: o rígido esquema de
oposições acaba por perturbar-se um pouco. É claro que o homem permanece sendo o destinatário
das práticas sociais e das operações de pensamento, mas, durante a representação dramática, o
campo da feminilidade revelou-se essencial, e foi o feminino que veio modular, e sustentar a
necessária virilidade dos ándres. Agora posso reabrir as aspas e concordar com a idéia de que
«representar o outro» é o que abre a identidade masculino do cidadão «ao terror e à piedade,
emoções habitualmente banidas»21.
Deixemos, por hora, o teatro. Mas voltaremos ainda a encontrar esse testemunho essencial
como o lugar privilegiado de um lógos que, nos tempos áureos da pólis clássica e na legitimidade
cívica, fala uma língua que não é a língua política, com sua intocável taxionomia de papéis e de
lugares.
Talvez seja a hora de enunciar claramente o que o leitor já terá adivinhado, ao longo deste
preâmbulo, no qual pretendi enumerar as vias que não seguiria, fornecendo as razões pelas quais
escolhi outras, ainda a desbastartar: minha preocupação será o feminino como o objeto mais
desejado pelo homem grego.
Sem mais tardar, investiguemos certos procedimentos que visam à apropriação, pelo
pensamento, de algumas das grandes experiências da feminilidade, das quais sonha-se fazer
beneficiar – sobretudo? – o corpo. O que significa dizer que os procedimentos estudados serão da
ordem da incorporação, do englobamento, em uma palavra, da lógica da inclusão. E, isso, não só
por se tratar de interiorizar o feminino, mas também porque, para pensar de maneira global, a
inclusão é a operação teórica que, por excelência, permite superar os esquemas de oposição. Assim,
em um outro terreno e a respeito de um objeto completamente diferente, Charles Malamoud,
estudando a relação entre o vilarejo e a floresta na prática e no pensamento védico, reflete sobre a
função do sacrifício, que não é de «separar definitivamente o vilarejo e tudo que ele não é, mas de
distinguir»; «privilegiar os habitantes do vilarejo, para que eles possam mostrar sua superioridade
sobre o mundo da floresta que o rodeia, sua aptidão… a captar, a englobar a floresta», «mas
também a propiciá-la, abrindo-lhe um espaço no interior do vilarejo» 22. Coloquemos o anér no
lugar do vilarejo, e façamos do feminino o substituto da floresta: eis-nos do centro da questão. E
20
ibid.
21
ibid, p. 80. Hipóteses avizinhadas em N. Loraux, Façons tragiques de tuer une femme. Paris: Hachette,
1985, p. 98-102.
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Idealmente, o anér exemplar é o modelo da virilidade. Mas, quando o único sentido para
andreía é «coragem», de tanto se mostrar exemplar, o homem-cidadão acaba se tornando como
assexuado. Para usar a linguagem da escola de Praga, dir-se-ia que, na dupla homem-mulher, ele é
o elemento não marcado. Digamos, ao menos, que o modelo de homem finalmente desencarnado
que a oração fúnebre ateniense exalta não possui corpo. Simples suporte de condutas cívicas, sôma
pertencia à pólis, e a morte do cidadão não é mais do que pagamento dessa dívida.
Por força de não encontrar jamais o outro, o homem masculino – esse sujeito do político –
não tem corpo. O corpo – inclusive o ser sexuado – estaria, inteiramente, do lado das mulheres,
como se só houvesse «um sexo, o feminino»? Como se a mulher fosse «tudo do sexo e o homem
tudo do gênero» (o homem é humano, a mulher seria a representação mesmo da diferença dos
sexos»): e é exatamente isso que, estonteados pela catástrofe, os mortais, separando-se dos deuses,
viram aparecer, sob a forma de uma jovem noiva chamada Pandora 24.
Distingo aí pelo menos dois registros – o prazer e a dor – onde essas interrogações,
recentemente formuladas acerca de uma época ainda próxima de nós 25, encontram verificação na
Grécia antiga.
Seria o caso de falar em prazer no feminino? Não é certamente o que aprendemos com os
estudos consagrados ao discurso grego dominante na matéria. Toda uma construção tende, de
forma bastante oficial, nas cidades-Estado, a provar que o gozo sexual é, por direito, a prerrogativa
22
«Village et forêt dans l’idéologie de l’Inde brahmanique», em Charles Malamoud, Cuire le monde. Rite et
pensée dans l’Inde ancienne. Paris: La Découverte, 1989, p. 99, 101 (eu sublinho).
«La brique percée. Sur le jeu du vide et du plein dans l’Inde brahmanique», em Ch. Malamoud, Cuire le
23
dos machos, as mulheres estando votadas a dar a luz e a se preparar para tal, devendo se contentar
com a parte cuidadosamente limitada que, no casamento, a austera Hera concede, a contragosto, a
Afrodite26. Mas não é esta versão do problema que o mito de Tirésias apresenta.
Como se sabe, antes de ser o adivinho cuja história acaba por se cruzar com o caminho de
Édipo, Tirésias – é uma das versões do mito – foi mulher. Ou, ao menos, durante algum tempo, por
ter batido, ferido ou morto (em todo caso, por ter separado) serpentes que copulavam, ele viveu
num corpo de mulher. É claro que, atacando, de novo, um casal de serpentes, Tirésias um dia
voltou a ser homem. Mas, desta passagem pela feminilidade, sobrou-lhe esta experiência dos dois
sexos (dos dois «caráteres», das duas «naturezas», dos dois «prazeres», ou das duas «formas») dos
quais, de um texto a outro, os autores gregos e latinos falam à exaustão 27. Ora, eis o que sucedeu:
Um dia em que Zeus se querelava com Hera, sustentando que, no ato sexual, a mulher tinha
muito mais prazer, enquanto Hera defendia o contrário, eles resolveram chamar Tirésias
para colocar-lhe a questão, já que ele tinha feito a experiência de uma e outra condição. À
questão que lhe é colocada, Tirésias responde que, se houvesse dez partes [de prazer], o
homem gozaria de uma, e a mulher de nove .28
Isso desperta a cólera de Hera, guardiã da ortodoxia do casamento e furiosa por ver assim
revelado o pouco caso que, confrontadas a Afrodite, as mulheres lhe dedicam. Para se vingar, ela
cega Tirésias, mas Zeus, que se satisfez plenamente com a resposta, o faz adivinho.
Mas como não é o mago que me interessa aqui, eu deixo de lado o fim dessa história para
me ater ao Tirésias que, por ter experimentado um e outro sexo, sabe o que é o gozo feminino, a
despeito das certezas oficiais. Protetora do casamento cívico, Hera tinha toda razão de ficar furiosa:
bastou esse homem que outrora fôra mulher, para destruir a reconfortante construção que,
colocando as esposas à margem do prazer, reconduzia os ándres a uma virilidade sem desmentidos
e sem surpresas. Mas, tal como os cômicos atenienses (assim o Aristófanes em Lisístrata), o mítico
Tirésias sem dúvida pensava – ele o sabia por experiência própria – que, nos prazeres da cama, as
mulheres são excelentes «cavaleiras», menos passivas do que afirmam todos aqueles que, da
oposição entre atividade (sempre masculina) e passividade (das mulheres), fazem o essencial do
pensamento grego a respeito da sexualidade 29.
26
Marcel Detienne, Les jardins d’Adonis. Paris: Gallimard, 1972. Como, aliás, observa Ileana Chirassi Colombo
(«L’inganno di Afrodite», in I labirinti dell’Eros. Florença: Libreria delle Donne, 1984, p. 111) Afrodite
tranquiliza os homens «exibindo a certeza de que a dimensão do éros», quando se tem a sorte de ser homem,
«era puramente masculina».
27
Experiência: peirâsthai, expertus esse; sexo: sexus; caráter: trópos; natureza: phúsis e natura; prazer:
Vênus; forma: morphé.
28
Flegon de Trales (=A1), na tradução de L. Brisson (Le mythe de Tirésias. Essai d’analyse structurale. Leyde:
Brill, 1976), de cujo precioso dossiê lanço mão; a experiência de Tirésias: ver também A2 (Higino), A3
(Lactâncio), A4, A6 (Ovídio), A8 (Eustáquio), A11 e A13.
29
Por exemplo, I. Chirassi Colombo, «L’inganno di Afrodite», in I labirinti, op. cit., , p. 110 (citando Foucault);
Michel Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., p. 98-99) pensa que essa opinião é, para um grego, mais
essencial do que a do masculino e feminino. Confesso não estar convencida disso.
Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias
Concedo muita importância ao Tirésias que, em uma outra versão, a do poeta helenístico
Calímaco, foi, ao mesmo tempo, tornado cego e adivinho por Atenas, por haver infringido toda
proibição ao admirar o corpo nu da deusa 30. Decididamente, os segredos do feminino são bem
guardados e devem sê-lo: em um caso, como no outro, os olhos mortos de Tirésias testemunham
que ele já não tem mais necessidade de ver, pois ele sabe.
É esse Tirésias que tomo por epônimo – e não o mediador generalizado ao qual alguns
querem reduzi-lo31. Colocando este livro sob o signo de Tirésias, não me escapa que, como
paradigma do anér arrebatado pela feminilidade, se falará aqui muito mais de Héracles, de suas
vestes e de seu poderoso corpo atravessado de dores agudas. Talvez fosse suficiente que, pelo
menos uma vez, o feminino não estivesse imediatamente associado ao sofrimento, que lhe é, de
hábito, mais facilmente concedido do que o gozo – mas, paciência! a dor terá também sua hora, em
breve e fartamente. Essa escolha obedece a uma outra razão, talvez mais «séria», seguramente mais
teórica: pelo que experimentou, assim como por sua função posterior de adivinho, Tirésias é a
própria figura do saber. O canto XI da Odisséia precisa que somente em seu caso Perséfone
concedeu conservar após a morte as faculdades intelectuais, o que lhe permite manter, em meio às
sombras do esquecimento, a posse memória e consciência; e estas qualidades são preciosas para
introduzir a estudos sobre o operador feminino. Pois trata-se menos de repertoriar atos ou práticas
efetivas, do que seguir o pensamento acerca da diferença dos sexos, tal como ela atua nas operações
intelectuais (seria o caso de dizer psíquicas?) realizadas sobre o elemento do feminino.
Pela mesma ocasião, o anér se apropria de algo da maternidade. Na Grécia, isso não se
passa como em Roma, sobre o terreno do direito, onde «a palavra técnica para dizer mãe como
parturiente, parens, toma… o sentido contrário, de “pai”, ou descendente em linha paterna» 33, e a
apropriação do feminino se opera discretamente, sem que se vá até o ponto de formular enunciados
30
Ver infra, cap. 12.
31
Luc Brisson, Le mythe de Tirésias, op. cit e «Neutrum…», op. cit., p. 57-59.
32
Ver infra, cap. 1 e 2.
33
Yan Thomas, «Le "ventre". Corps maternel, droit paternel», Le genre humain, 14 (1986: La valeur), p. 213.
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tão delicados como o fantasma medieval nomeado «Jesus nossa mãe» 34. De toda forma, Pausânias
viu, em Alifeira de Arcádia, um altar de Zeus Lekheátes (do parto), pois foi lá, contaram-lhe os
habitantes, que o deus soberano deu nascimento a Atenas 35.
Famosas são as «maternidades» de Zeus, engolindo Métis para dar a luz à deusa guerreira,
ou para realizar a cosmogonia dos órficos 36. É quase um apólogo, a história hesiódica de Métis (sem
maiúscula, mêtis é, habitualmente, o apanágio das condutas femininas), engolida por Zeus que
temia que ela desse a luz um filho mais poderoso do que ele. Pois tudo vai na direção dos desejos do
Pai: Zeus repete, embora com maior sucesso, sobre Métis grávida, o gesto de seu pai Kronos que,
habitado por igual temor, devorava, calmamente, seus filhos, guardando-os em sua nedús (seu
ventre, mas a palavra também pode designar, e freqüentemente designa, a matriz) 37. Ao incorporar
em si a mãe, Zeus evita o filho, substituído por uma filha inteiramente devotada aos direitos do
anér. Vale a pena delongar-se um pouco na gestação de Zeus, muitas vezes representada pelos
ceramistas atenienses: verifica-se, então, que se, do ponto de vista de uma sexualidade limitada aos
«atos», a penetração passa por ser o «ato-modelo» aos olhos dos gregos 38, é sob o registro feminino
da completude de um corpo fechado sobre a criança que ele carrega 39 – no caso, o de Zeus, que
absorveu uma divindade feminina – que se imagina, na Grécia, a forma de evitar um poder mais
forte do que o de um deus forte.
Para verificá-lo, confronte-se, rapidamente, esta história com o relato védico que descreve
como Indra evitou o nascimento de um ser mais forte que ele, saído dos amores do Sacrifício com a
Palavra. Foi «esgueirando-se no abraço dos dois amantes» que Indra, «fazendo-se embrião,
penetra na matriz e ocupa seu lugar. Ao fim de um ano, ele nasce e toma o cuidado de arrancar, ao
nascer, a matriz que o envelopava». Palavra não mais dará a luz. «Seu único filho – comenta
Malamoud, que relata a história que transcrevo – é esse embrião divino que a violentou
subrepticiamente, e que escolheu renascer dela apenas para mutilá-la» 40. O confronto é instrutivo:
certamente, não foi entre os gregos que se fantasmou a penetração (acompanhada dessa mutilação
que é como sua contrapartida brutal). O método de Zeus é mais suave, ou mais sutil: ele engole e,
como entidade feminina, Métis não existe mais, senão nele e, em virtude de uma alquimia própria
ao ventre divino, o filho temido nascerá uma filha viril…
Marie-Christine Pouchelle, «Le corps féminin et ses paradoxes: l’imaginaire de l’intériorité dans les écrits
34
médicaux et religieux (XII è-XIVè siècle), in La condición de la mujer en la Edad Media. Madrid: Ed.
Universidad Complutense, 1986, p. 319-320.
35
Pausânias, VIII, 26, 6. Sobre a raiz de lókhos e de lekhó, ver infra, p. 32-34.
36
Marcel Detienne, «Zeus. L’Autre. Un problème de maïeutique», in Bonefloy 1981, p. 554; L. Brisson
«Neutrum…», op. cit., p. 49-50.
37
No tratado hipocrático Da arte (10, 1 e 3: 12, 1), nedús tem o sentido mais geral de «cavidade interna do
corpo»; mas, entre o ventre e a matriz, o jogo de palavras é freqüente.
38
Michel Foucault, Histoire de la sexualité… op. cit., p. 237.
39
Giulia Sissa, Le corps virginal. La virginité féminine en Grèce ancienne. Paris: Vrin, 1987, p. 181-185.
40
«Lumières indiennes sur la séduction» in Ch. Malamoud, Cuire le monde…, op. cit., p. 177.
Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias
Ao analisar novamente esta história, a idéia não é, certamente, «enfrentar esse deus
masculino que usurpa o parto» 41. À crítica de Marcel Detienne, contestando que se possa falar, no
caso, de «denegação da maternidade das mulheres» (o que se dá, aceite-se ou não), responder-se-á
que nunca é inútil compreender como se constrói um fantasma, sobretudo quando o ator essencial
é o pai dos deuses e dos homens. E o parto masculino é um fantasma bem grego, ainda que o
objetivo final não seja sempre o de guardar (ou de se assegurar) o poder 42. Ainda que não se
constitua numa «usurpação» em ato, esse fantasma implica, para quem escuta tal mito, em se
apropriar, como Zeus, de uma das manifestações mais reconhecidas da feminilidade, para reforçar
a virilidade, sem dúvida mais ameaçada do que poderia parecer.
No outro pólo do horizonte deste livro, gostaríamos de situar Platão e o uso que faz da
metáfora feminina da reprodução, com esse paradoxo que, deslocando a reprodução para o lado da
criatividade espiritual do filósofo, Platão faz da gravidez a causa ou, ao menos, a preliminar
obrigatória do amor. M. F. Burnyeat, que identificou, com muita sagacidade, tal estranheza, a
respeito de uma passagem do Banquete, acrescenta que, nesse desenvolvimento e ainda em outros,
a concepção parece sempre já ter-se dado, sem outra origem a não ser ela própria, sem que
nenhuma união sexual metafórica a tenha prenunciado na alma 43. Que Platão se recuse a pensar no
momento de conjunção entre masculino e feminino na alma do filósofo é um fato bastante
significativo, mas meu projeto não é, aqui, o de interpretar esta ausência pela invocação da
homossexualidade de Platão. Mais vale estudar – o que será apenas sugerido pelas páginas
seguintes – o uso bem pouco figurado da palavra odís (nome dos partos, e não, como dizem todos
os dicionários, da angústia) no Banquete e no Fedro; ou ainda, neste último diálogo, as condições
através das quais a alma sofre a entrada do germe e dá à luz, enfim, sob o efeito do desejo 44: melhor
seria reler o Teeteto e interrogar as dores de parto estéreis do epônimo do diálogo.
Ao menos, observe-se que Platão não é, nem o primeiro, nem o único pensador grego que
inverte assim a rede metafórica do feminino em favor do macho, e a seu serviço – mesmo que
somente ele o faça de uma maneira tão deliberadamente sistemática. Por isso, hesito em deduzir,
como já se fez, Aristóteles e a representação da fêmea como macho defeituoso dessa operação
platônica de «instalação metonímica da mulher no filósofo» 45. Mas é bem verdade que a estratégia
platônica é complicada: num perpétuo movimento de oscilação, ela se dedica, em certos textos, a
reabsorver o feminino no anér filosofante, enquanto que, em outros diálogos, o esforço volta-se
inteiramente para a tarefa de torcer o conjunto das representações do político, inclusive a exclusão
Marcel Detienne, in G. Gissa e Marcel Detienne, La vie quotidienne des dieux grecs. Paris: Hachette, 1989, p.
41
236.
42
Desse ponto de vista, o livro de R. Zapperi, L’homme enceit (Paris: PUF, 1983) parece em redutor.
43
Page DuBois, Sowing the Body. Psychoanalysis and Ancient Representations of Women. Chicago:
University of Chicago Press, 1988, p. 169-171; Miles F. Burnyeat, «Socratic Midwifery, Platonic Inspiration»,
Bulletin of the Institute of Classical Studies, 24 (1977), p. 8 (sobre O Banquete, 206 e) e p. 13.
44
Ver Fedro, 251 d-e.
45
P. DuBois, Sowing the Body…, op. cit., p. 183.
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do feminino e a rigorosa separação dos sexos, em benefício do homem filósofo. Não é, por certo,
apenas uma coincidência, se essa segunda operação acaba por se realizar integralmente no Fedon,
diálogo sobre a alma. Entretanto, que, na construção de um modelo masculino «puro», o
paradigma evocado seja o herói Héracles, sobremacho e misógino, mas bastante ligado ao feminino,
eis aí, sem dúvida, um volteio a mais nessa estratégia retorcida, como procuraremos demonstrar 46.
Que seja. Mas afirmar, como alguns (algumas) o fazem, que assim a mulher é esquecida e o
homem está pronto para assumir uma posição de domínio inconteste, seria desconhecer
gravemente a natureza das operações psíquicas, que é exatamente a de nunca se efetuarem
impunemente: elas deixam uma marca, não ocorrem sem deixar vestígios e acarretar perdas. Se o
corpo mortal, no éros e na reprodução 49, é experimentado no feminino, e se a alma é vivida sob o
modo do corpo é porque há, indesalojavelmente, corpo na alma. E, há, portanto, na alma do
filósofo, ainda que à sua revelia, algo de mulher que, antes de encontrar repouso nas dores de parto
das quais também fala a República50, vagou, tal como Io grávida das obras de Zeus, aguilhoada pelo
moscardo que a persegue. Por mais que Platão proíba o teatro a seus guardiães e proscreva
qualquer imitação de uma mulher – sobretudo quando ela está «doente, apaixonada, ou grávida» 51,
suas almas de filósofos já não se anteciparam a eles, seguindo por esse caminho?
Já é tempo de deixar Platão, mas não sem antes observar que a definição da pólis como
«comunidade de prazer e de pena» («quando… todos os cidadãos se regozijam ou se afligem,
46
Ver infra, cap. 8 e 9.
47
Como o faz DuBois, Sowing the Body…, op. cit., p. 183 p. 178.
48
M.-C. Pouchelle, «Le corps féminin et ses paradoxes: l’imaginaire de l’intériorité dans les écrits médicaux et
religieux (XII è-XIVè siècle), in La condición…, op. cit., p. 316, p. 319-321.
49
I. Chirassi Colombo, «L’inganno di Afrodite», in I labirinti, op. cit., p. 115.
50
República, VI, 490 b (légein odînos).
51
República, III, 395 d-e (odínousan).
Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias
Da alma, voltemos, uma última vez, à pólis, para verificar que a estrita separação entre
feminino e masculino não encontra, na verdade, outro lugar, outras fronteiras senão as do político.
Ou, mais exatamente, as da ideologia do político. Pois, na Grécia antiga, o político é
indubitavelmente mais abrangente do que sugere o seu discurso oficial, singularmente edificante,
que fala do funcionamento irênico da pólis dos ándres. Basta, no entanto, questionar levemente a
pertinência real de tal discurso 53, para que se descubra que, do político, o conflito interior apresenta
uma definição senão adversa, ao menos igualmente essencial – quando, sob o nome de stásis
(sedição), ele é incessantemente recusado, rejeitado da pólis, em cujo centro deveria encontrar seu
lugar. Quando, em uma palavra, ele é negado. Emerge, assim, o projeto de confrontar essas duas
negações, a do conflito, e a do feminino (em cada caso, o termo marcado do binômio) as duas
operando a serviço dos homens e da paz civil.
E, de fato, na medida em que a ordem cívica se rompe, surgem as mulheres. Viris, como
Clitemnestra, o «tirano» que encarna a única versão possível da assimilação do masculino por uma
mulher, sempre situada – seria surpresa? – junto à ameaça da tomada de poder; em resumo, é o
tempo da ginecocracia54. A menos que a divisão, generalizada, não cinda a pólis em duas, a guerra
civil alastrada: então, através da brecha aberta na bela totalidade, as mulheres irrompem,
freqüentemente em grupo. Elas sobem aos telhados, se agitam em prol de uma facção, lançam
pedras e telhas sobre os inimigos. E o historiador grego que deve lhes conceder um lugar em seu
relato, interroga-se sobre a verdadeira natureza das mulheres 55: hábil, audaciosa como a das
mulheres-homens do tratado Do regime? Ou acovardada, como deve ser a fêmea, desde que a
andreía pertence exclusivamente aos homens? Nos dois casos, quando mulheres bem reais
induzem a que se pare de fantasmar o feminino, para tentar pensar a noção em meio a uma pólis
em crise, é sobre o terreno do conflito que cabe, sob a pressão da urgência, articular diferença dos
sexos e político.
O que equivale a dizer que, entre a reprodução e o combate, entre o prazer e a pena e uma
coragem que não encontra denominação, o feminino é duplo, mas também como que clivado.
52
República, V, 462 b (mesmo tema que em Eumênides, 9984-986). A comunidade de mulheres: 446-461.
Observe-se que, a única diferença natural consistindo no fato de que o homem engendra e a mulher pare (445
e), mulheres e homens também dividem os mesmos trabalhos. Platão, mais complicado do que, em geral, seus
adversários querem crer!
53
Ver «Repolitiser la cité», in Revue L’Homme, Anthropologie: État des lieux. Paris: Navarin/Le Livre de
Poche), 1986, p. 263-283 e N. Loraux, «Le lien de la division», Le Cahier du Collège international de
Philosophie, 4 (1987), p. 101-124.
Pierre Vidal-Naquet, «Esclavage et gynécocratie dans la tradition, le mythe, l’épopée», in Le chasseur noir.
54
Formes de pensée, formes de société en Grèce ancienne. Paris-La Haye: Èd. de l’EHESS/Mouton, 1981, p. 267-
288.
55
Ver infra, cap. 13.
Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias
Complexo, para não dizer contraditório, como são os operadores mais férteis. Operador do qual se
espera que permita, ao mesmo tempo, ganhar algum recuo em relação às taxionomias cívicas e
articular o político com aquilo sobre o qual o político não quer nem sequer ouvir falar .
homens gregos que convém reconhecer por sua mais justa designação, como «desejo de
gravidez»57: o desejo de se emprenhar de sensações penetrantes que, por sua intensidade tão
feminina, deveriam, precisamente, ser proibidas ao cidadão paradigmaticamente viril. Em outros
termos, por haver tentado compreender o que o áner, afirmado como sujeito do político, pode
fantasmar a respeito do feminino, talvez se tenha encontrado uma antiga versão da reflexão sobre
«essa catástrofe… de ser homem» da qual Lou Andréas-Salomé falava, em suas cartas, a Freud 58. O
que não significa que eu tenha procurado verificar a idéia de uma «realização» que levaria cada
sexo «às fronteiras do outro» 59. Programa que não deixa de ser fascinante: só que o historiador
trabalha com o que tem às mãos, e, na representação das mulheres gregas, o feminino, sendo
cobiçado pelo outro sexo, mostrou-se mais dividido – ou, no mínimo, menos constituído – do que
se poderia pensar, sem uma real abertura para o masculino. E como, aliás, poderia ser diferente?
Em um universo de representações à medida dos ándres, poder-se-ia esperar outra coisa, além de
um acesso subterrâneo ao discurso oficial, proclamado, de uma ponta à outra, por um locutor
genérico que fala em nome dos homens, se dirigindo aos homens 60?
Do ponto de vista do objeto, estes eram os limites compulsórios. Quanto aos resultados, o
leitor que avalie. Ao menos, no que tange ao método, concebi a referência à psicanálise como um
suplemento de liberdade. Menos como um empréstimo de teses, ou como vontade de aplicá-las a
qualquer preço, do que como um convite à construção. Construção para satisfazer a pulsão de
compreender e para abordar o objeto em sua especificidade. Construi operações de pensamento
gregas a respeito da condição, indissociavelmente psíquica e corporal, de ser sexuado. Espero ter,
assim, discriminado a parte que cabe à história e a que cabe ao invariante.
É possível – risco ao qual se expõe todo aquele que trabalha com fronteiras – que eu não
contente, finalmente, nem os historiadores, nem os psicanalistas. Os primeiros, porque eles
preferem que os helenistas se restrinjam prudentemente a seu território, reservando-lhes o glorioso
pónos da interpretação; os últimos, porque eles desconfiam de qualquer trabalho que suponha
construções, exigindo do pesquisador que intervenha em sua pesquisa com tudo que é – e, antes de
tudo, com suas próprias opções. Só me restava acreditar que valeria a pena assumir estes riscos.
Antes de dar a palavra a meu livro, uma precisão ainda me parece necessária. Ao recusar
qualquer psicanálise aplicada (de forma que não nos interessamos por Héracles em função de sua
relação com Hera, mas para melhor analisar o que, no pano de fundo dessa relação de submissão
Sobre essa expressão, ver M.-C. Pouchelle, «Le corps féminin et ses paradoxes: l’imaginaire de l’intériorité
57
dans les écrits médicaux et religieux (XII è-XIVè siècle), in La condición…, op. cit., p. 319.
58
A esse respeito, ver as observações de Marie Moscovici em Il est arrivé quelque chose. Approches de
l’événement psychique. Paris: Ramsay, 1989, p. 139.
59
Lou-Andréas Salomé, L’amour du narcissisme. Paris: Gallimard, 1980, p. 193.
60
Descobri, em um artigo de que só tomei conhecimento após a redação deste prefácio, as reflexões de Maurice
Olender acerca do mito de Tirésias e do fato de que a mulher «se funde em uma cosmogonia viril, na qual deve
assumir uma posição em, por e contra o imaginário masculino». («De l’absence de récit», in Le récit et sa
représentation. Paris: Payit, 1978, p. 178.
Nicole Loraux . Les expériences de Tirésias
revoltada, o imaginário grego do anér podia bordar) eu também renunciei à interpretação das
intrigas a partir do ponto de vista de seus atores. Apesar das amigáveis pressões, eu não acreditei
dever dizer o que Tirésias «realmente» viu, pois o poema de Calímaco, em sua discrição, sugere
somente que ele viu – se posso me permitir tal neologismo – o «invoyable». E, apesar da sugestão
que foi feita, também não julguei dever afirmar que, ao ver a nudez de Atenas, é a mãe que Tirésias
acreditou ver nua 61, porque a mãe de Tirésias era amiga da deusa e que, projetando sobre Atenas a
figura materna, o jovem homem decifrava, nela, a nudez. Do inconsciente de Tirésias, nada há a
saber, mas muito sobre as construções gregas acerca de sua cegueira. E muito sobre o que, nessa
história, um leitor (um auditor) grego podia ser levado a pensar sobre a feminilidade de Atenas.
Assim, evitei recorrer a interpretações que, de pronto, teriam fixado sentidos para nós – o que
poderíamos chamar de técnica do “é isto”, e que sempre convém evitar: é a mãe, é a
homossexualidade dos gregos, etc., e eis que nos imobilizamos aí, nos dando já por satisfeitos…
Não que a questão não deva ser levantada, quando ela é minimamente formulada em grego: ver N. Loraux ,
61
«Matrem nudam: quelques versions grecques», L’écrit du temps, 11 (1986: Destins des mythes), p. 35-54.
Sabe-se, por outro lado, que a própria Atenas era oficialmente «mãe» em Élis: mas o que se poderia retirar
dessa informação localizada?