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I) Introdução
Desde os tempos mais remotos, o homem lançou mão de vários recursos destinados
a evitar ou combater as doenças. Guiado instintivamente como os animais, distinguia
plantas comestíveis daquelas que podiam curar, cicatrizar ou aliviar. Esses conhecimentos
empíricos adquiridos, transmitidos de geração em geração, são a origem das práticas
médicas primitivas conhecidas (1).Assim, a utilização de plantas como meio de cura ou
prevenção de doenças, com a moderna denominação de fitoterapia, ocorreu em todas as
regiões do globo, apenas variando regionalmente por influência de características culturais
da população, assim como de sua flora, solo e clima (2).
No território brasileiro, diante da enorme diversidade de vida vegetal, a
possibilidade de encontrarem-se plantas medicinais sempre foi significativa. Como atentos
observadores da natureza, os indígenas conheciam bem a flora da região e não
desperdiçaram a oportunidade de sua benéfica utilização. Infelizmente, nem todas as
plantas conseguiram sobreviver até nossos dias, vítimas de sucessivas devastações
cometidas contra a natureza, desde os tempos mais remotos do período colonial.
Não obstante, várias drogas em uso corriqueiro na vasta e diversificada farmacopéia
atual são originárias de nossas plantas nativas. A “sabedoria das selvas”, portanto, acabou
por tornar-se proveitosa para toda a humanidade e faz do Brasil, ainda hoje, uma importante
fonte de recursos naturais.(3, 4).
Diante de uma natureza diversa, rica, praticamente intocada, e não por isso menos
aterrorizante, os europeus desde os primórdios da colonização, interessaram-se pelo uso
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medicinal das plantas. Passando a viver em ambiente para eles hostil, tal aprendizado
poderia simplesmente significar sua sobrevivência. Não por acaso, encontramos diversas
citações de vegetais cuja ação consistiria em antídoto a envenenamentos, freqüentes em
meio às matas. Desta maneira, os colonizadores acabariam sendo os responsáveis pela
transmissão destes conhecimentos indígenas.
São vários os autores que descreveram uma grande variedade de espécies vegetais.
Alguns de passagem – aventureiros - e outros abdicando de sua terra natal para aqui se
estabelecerem, seus relatos atestam o uso medicamentoso de variadas espécies. Todos
estavam transmitindo os ensinamentos indígenas e serviram involuntariamente como meio
para que tais informações chegassem até nossos dias. Nem sempre as indicações
terapêuticas destas plantas se mantiveram ao longo do tempo. Conhecidos exemplos são do
guaraná, originalmente prescrito para combate às disenterias e do maracujá, para febre.
Testemunhos de viajantes e cronistas são de fundamental importância, mas neste
âmbito, os jesuítas merecem especial destaque. Já na Europa, tradicionalmente plantavam-
se herbários nos mosteiros, permitindo o estudo e manipulação de drogas que seriam
prescritas à população carente de auxílio. Além disso, profissionais médicos eram
praticamente inexistentes na Colônia, tornando estes clérigos responsáveis no cuidado aos
doentes. Desprovidos de seus medicamentos conhecidos, no Novo Mundo rapidamente eles
absorveram os apontamentos nativos. Cada botica em seus colégios conservava uma
Coleção de Receitas, manuscritos onde copiavam as fórmulas terapêuticas mais indicadas e
as de melhores resultados. (5)
Viajantes e cronistas da época, apesar de apresentarem algumas particularidades
quanto ao conteúdo de seus relatos, são praticamente unânimes ao elogiar algumas plantas
usadas para fins medicinais em terras brasílicas. Nem todos serão aqui mencionados, mas
os fitoterápicos que mais lhes chamavam a atenção, estão reproduzidos na tabela 1.
Jean de Léry, missionário calvinista que conviveu entre os tupinambás, em 1563
descrevia o uso do hiyuaré (Hinuraé), empregado pelos indígenas contra o pian, também
denominada bouba, doença endêmica freqüentemente confundida com a lues. Menciona
também o petyn, posteriormente identificado como tabaco, que permitia, segundo ele,
mitigar a fome em períodos de guerra e também “destilar os humores supérfluos do
cérebro”, denunciando a persistência de remotas teorias médicas (6).
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“... não há enfermidade contra a qual não haja ervas em esta terra, nem os índios
naturais dela têm outra botica ou usam de outras medicinas (11).”
“Finalmente chegou a vez de tratarmos destas decantadas e salutíferas raízes que, além da
faculdade purgativa pelas vias superiores e inferiores, são ótimo antídoto contra qualquer veneno. Nem
creio que possam facilmente achar nestas terras remédio mais prestante contra muitas doenças causadas
por longas obstruções e, sobretudo, para curar fluxos do ventre... Existem duas espécies... ambas são de
uso cotidiano, mas preferem a diluição, porque a maceração durante uma noite ao ar livre, ou pelo
cozimento na água, comunica abundantemente aos licores a sua virtude medicinal. Depois, conservada a
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raiz morta e de novo preparada de idêntico modo, serve para o mesmo uso; porém é menos eficaz para
purgar e fazer vomitar, mas é mais adstringente... Por isso é guardada religiosamente pelos índios, os
primeiros que nos revelaram suas virtudes”.(13)
Não se surpreenda o leitor com o uso de tão aberrantes substâncias, incluídas nos
“remédios de paulistas”. Longe de ser exceção, a prática de oferecer aos doentes elementos
hoje por nós considerados estranhos e até repugnantes, foi utilizada por toda a “civilizada”
Europa durante longo período. A utilização de excrementos era recomendação européia
pois os indígenas desprezavam totalmente os dejetos
A medicina tinha ainda um longo caminho a ser percorrido para, com base
científica, apresentar soluções eficazes no tratamento de seus doentes. Os médicos que
migraram para o Brasil eram em sua maioria formados na universidade portuguesa,
trazendo consigo um ranço medieval, que persistiria na medicina européia por longos anos.
Conseqüentemente, curandeiros, cirurgiões, barbeiros, boticários, eventualmente presentes,
exerceram durante o Brasil-Colônia o ofício de curar ao mesmo tempo em que médicos
desempenhavam atividades realmente muito próximas a eles (18). A ausência destes
profissionais formados foi absolutamente indiferente à população brasileira de então, pelo
pouco que podiam contribuir para sua saúde.
O interesse nos “remédios de paulistas” está na constatação de uma
verdadeira “confusão medicamentosa”, um misto da medicina popular portuguesa e práticas
ameríndias. Esta última não seria mais utilizada como nos primeiros anos da colonização,
porém, ela jamais desapareceu. Esteve inserida nas panacéias coloniais, disfarçada e
algumas vezes renomeada em português. A sabedoria dos pajés pode ter sido rotulada como
resultado da ignorância ameríndia, depreciação imposta pelos colonizadores,
principalmente àqueles ligados à medicina oficial, mas sobreviveu, foi e continua a ser
posta em prática. Alguns daqueles “chás da vovó” ou nas “garrafadas” utilizadas no norte e
nordeste do Brasil contemporâneo, contém plantas medicinais de nossa herança indígena e
a população rural mais afastada dos grandes centros, ostensivamente ainda faz uso delas.
(19).
A flora brasileira despertou nos cientistas dos séculos XIX e XX, a necessidade de
catalogar, colher e estudar quimicamente a vida vegetal. Estas expedições tornaram
possível o conhecimento de várias plantas medicinais brasileiras na velha Europa. Muitas
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Tabela 1: Algumas plantas medicinais utilizadas pelos indígenas, descritas pelos colonizadores portugueses.
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18) Marques, V.R.B. Natureza em Boiões. Medicinas e Boticários no Brasil Setecentista. Campinas, São Paulo. Editora
da Unicamp.Centro de Memória- Unicamp, 1999.
19)Borrás, Maria Rosa Lozano. Plantas da Amazônia: Medicinais ou Mágicas? Plantas Comercializadas no Mercado
Municipal Adolpho Lisboa. Págs 30-55; Editora Valer/ Governo do Estado do Amazonas; Manaus; 2003.
20) Gilbert, B.; Alves L.; Ferreira, J.L.P A Base Científica da Fitoterapia. Ciência & Ambiente 25, 129-135; Julho –
Dezembro de 2002.
21) Carvalho J.C.T; Almança C.C.J. Formulário de Prescrição Fitoterápica. São Paulo. Editora Atheneu, 2003.