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TRABALHO E ESTRANHAMENTO:

SAÚDE E PRECARIZAÇÃO DO
HOMEM-QUE-TRABALHA

1
RICARDO ANTUNES
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
GIOVANNI ALVES
Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Rede de Estudos do Trabalho (RET)
SERGIO AUGUSTO VIZZACCARO-AMARAL
Rede de Estudos do Trabalho (RET)
ANDRÉ LUÍS VIZZACCARO-AMARAL
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Rede de Estudos do Trabalho (RET)
EDITH SELIGMANN-SILVA
Universidade de São Paulo (USP — Aposentada)
MARGARIDA BARRETO
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-Santa Casa-SP)
MARIA ELIZABETH ANTUNES LIMA
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
JOSÉ ROBERTO MONTES HELOANI
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
SANDRA FOGAÇA ROSA RIBEIRO
Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE)
RENATA PAPARELLI
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
LUIZ SALVADOR
Advocacia Trabalhista e Previdenciária
Asociación Latinoamericana de Abogados Laboralistas (ALAL)
OLÍMPIO PAULO FILHO
Advocacia Trabalhista e Previdenciária
FRANCISCO JOSÉ TRILLO PÁRRAGA
Universidade de Castilla — La Mancha — España (UC-La Mancha-España)
DANIEL PESTANA MOTA
Advocacia Trabalhista e Previdenciária
Rede de Estudos do Trabalho (RET)
JOSÉ ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA SILVA
Juiz de Direito (TRT-15)
HEILER IVENS DE SOUZA NATALI
Procurador do Trabalho (MPT-12)
SANDRO EDUARDO SARDÁ
Procurador do Trabalho (MPT-12)
JORGE LUIZ SOUTO MAIOR
Juiz de Direito (TRT-15)
Universidade de São Paulo (USP)

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GIOVANNI ALVES
ANDRÉ LUÍS VIZZACCARO-AMARAL
DANIEL PESTANA MOTA
Organizadores

TRABALHO E ESTRANHAMENTO:
SAÚDE E PRECARIZAÇÃO DO
HOMEM-QUE-TRABALHA

3
R

EDITORA LTDA.
 Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571


CEP 01224-001
São Paulo, SP — Brasil
Fone (11) 2167-1101
www.ltr.com.br

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: RLUX


Projeto de Capa: FABIO GIGLIO
Imagem da Capa: DIEGO RIVERA “INDÚSTRIA MODERNA”
Impressão: DIGITAL PAGE

LTr 4675.5
Outubro, 2012

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Trabalho e estranhamento : saúde e precarização


do homem-que-trabalha / André Luís
Vizzaccaro-Amaral, Daniel Pestana Mota, Giovanni
Alves , organizadores. — São Paulo : LTr, 2012.

Vários autores.
Bibliografia
ISBN 978-85-361-2361-5

1. Ambiente de trabalho 2. Danos (Direito


civil) — Brasil 3. Direito do trabalho — Brasil
4. Precarização do trabalho 5. Trabalhadores — Saúde
I. Vizzaccaro-Amaral, André Luís. II. Mota, Daniel
Pestana. III. Alves, Giovanni.

12-13377 CDU-34:331.822(81)
Índice para catálogo sistemático:

1. Brasil : Precarização do trabalho e saúde do


trabalhador : Direito do trabalho
34:331.822(81)

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Sobre os autores

ANDRÉ LUÍS VIZZACCARO-AMARAL


É Graduado e Mestre em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade
Estadual Paulista (FCLAs-UNESP: http://www.assis.unesp.br) e Doutorando em Ciências Sociais
pela Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília da UNESP (FFC-UNESP: http://
www.marilia.unesp.br). Atualmente, é Professor Assistente junto ao Departamento de Psicologia
Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina (DEPSI-UEL: http://www.uel.br),
Membro Colaborador da Rede de Estudos do Trabalho (RET: http://www.estudosdotrabalho.org),
Pesquisador Assessor da Associação para a Defesa da Saúde no Trabalho (ADESAT: http://
www.adesat.org.br) e Pesquisador dos Grupos de Pesquisa “Estudos da Globalização” (GPEG-
FFC-UNESP/CNPq) e “Trabalho, Educação e Sociedade” (GPTES-UEL/CNPq), atuando nas
áreas temáticas da Psicologia Social do Trabalho, Sociologia do Trabalho, Saúde Mental do
Trabalhador, Subjetividade e Desemprego.
andre.vizzaccaro@uol.com.br

DANIEL PESTANA MOTA


É Graduado em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR: http://www.unimar.br) e Mestre
em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília da Universidade Estadual
Paulista (FFC-UNESP: http://www.marilia.unesp.br). Atualmente, é Advogado Trabalhista,
Assessor Jurídico da Associação para a Defesa da Saúde no Trabalho (ADESAT: http://
www.adesat.org.br) e Membro Colaborador da Rede de Estudos do Trabalho (RET: http://
www.estudosdotrabalho.org), atuando nas áreas de Direito do Trabalho e Processual do
Trabalho, Direito Social e aspectos jurídicos relativos à Saúde do Trabalhador.
danielpestanamota@hotmail.com

EDITH SELIGMANN-SILVA
É Graduada em Medicina pela Universidade Federal do Pará (UFPA: http://www.portal.ufpa.br)
e Especialista em Saúde Pública e Doutora em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP:
http://www.usp.br). Professora e Pesquisadora aposentada pela Universidade de São Paulo
(http://ww.usp.br), atualmente vem desenvolvendo trabalhos com temáticas nos campos da
Saúde Mental do Trabalhador, Psicopatologia do Trabalho, Sociedade, Cultura e Saúde.

FRANCISCO JOSÉ TRILLO PÁRRAGA


É Docente de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social junto ao Departamento de Derecho de
Trabajo y Trabajo Social de Ciudad Real, da Facultad de Derecho y Ciencias Sociales da
Universidad de Castilla La Mancha, na Espanha (FDCS-UCLM: http://fdcs.uclm.es).
FcoJose.Trillo@uclm.es
GIOVANNI ALVES
É Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR: http://www.unifor.br),
Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP: http://
www.unicamp.br), Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP e Livre-Docente em Teoria
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Sociológica pela Universidade Estadual Paulista (UNESP: http://www.unesp.br). Atualmente, é
Professor Adjunto na Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília-SP da UNESP (FFC-UNESP:
http://www.marilia.unesp.br), Bolsista Produtividade Nível II pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenador Geral da Rede de Estudos do
Trabalho (RET: http://www.estudosdotrabalho.org) e autor de vários livros e artigos na área de
Trabalho, Sindicalismo e Reestruturação Produtiva.
giovanni.alves@uol.com.br

HEILER IVENS DE SOUZA NATALI


É Procurador do Trabalho, atuando junto à Procuradoria do Trabalho do Município de
Londrina-PR – 09ª Região (PRT12: http://http://www.prt9.mpt.gov.br), órgão vinculado à
Procuradoria Geral do Trabalho do Ministério Público do Trabalho do Brasil (PGT-MPT:
http://www.pgt.mpt.gov.br), e Coordenador do Projeto Nacional de Adequação das Condições
de Trabalho em Frigoríficos.
heilernatali@gmail.com

JORGE LUIZ SOUTO MAIOR


É Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM: http://
www.fdsm.edu.br), Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito pela Universidade de São Paulo
(FD-USP: http://www.direito.usp.br) e Pós-Doutor em Direito pela Université Panthéon-Assas
(Paris II: http://www.u-paris2.fr). Atualmente é Juiz Titular na 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí-
SP e Professor Associado Livre-Docente no Departamento de Direito do Trabalho da Faculdade
de Direto da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em
Direito do Trabalho, atuando principalmente nas temáticas do Direito do Trabalho, Processo
do Trabalho, Justiça do Trabalho, Procedimento Sumaríssimo e Cooperativa de Trabalho.
jorge.soutomaior@uol.com.br

JOSÉ ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA SILVA


É Juiz do Trabalho, Titular da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara-SP, Juiz Convocado na 4ª
Câmara do TRT de Campinas-SP (TRT15: http://http://www.trt15.jus.br) no período de
setembro de 2011 a agosto de 2012, Gestor Regional do Programa de Prevenção de Acidentes do
Trabalho instituído pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST: http://www.tst.gov.br), Mestre
em Direito das Obrigações pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca-SP, da
Universidade Estadual Paulista (FCHS-UNESP: http://www.franca.unesp.br), Doutor em Direito
Social pela Facultad de Derecho y Ciencias Sociales da Universidad de Castilla La Mancha, na
Espanha (FDCS-UCLM: http://fdcs.uclm.es), Membro do Conselho Técnico da Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Subcomissão de Doutrina Internacional) e Professor
do CAMAT Cursos Jurídicos (CAMAT: http://www.camat.com.br) em Ribeirão Preto (SP).
jaribeiro10@terra.com.br

JOSÉ ROBERTO MONTES HELOANI


É Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP: http://www.usp.br) e em Psicologia
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP: http://www.pucsp.br), Mestre em
Administração pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP: http://eaesp.fgvsp.br),

6
Doutor em Psicologia pela PUC-SP, Pós-Doutor em Comunicação pela USP e Livre-Docente
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP: http://www.unicamp.br). Atualmente é
Professor Titular na UNICAMP e Professor Conveniado junto à Université de Nanterre (Paris
X: http://www.u-paris10.fr), atuando nas áreas temáticas de Violência no Trabalho (Assédio
Moral e Sexual) e na área da Gestão Pública em Saúde e Educação.
roberto.heloani@fgv.br

LUIZ SALVADOR
É Advogado Trabalhista e Previdenciarista em Curitiba-PR, Ex-Presidente da Associação Brasileira
de Advogados Trabalhistas (ABRAT:http://www.abrat.adv.br), Presidente da Asociación
Latinoamericana de Abogados Laboralistas (ALAL: http://www.alal.com.br), Representante
Brasileiro no Departamento de Saúde do Trabalhador da Associação Luso-Brasileira de Juristas
do Trabalho (JUTRA: http://www.jutra.org), Assessor Jurídico de entidades de trabalhadores,
Membro Integrante da Comissão de “Juristas” responsável pela elaboração de propostas de
aprimoramento e modernização da legislação trabalhista no Brasil, Membro do Corpo de
Jurados do Tribunal Internacional de Liberdade Sindical (TILS/México), do Tribunal Mundial
de Liberdade Sindical (TMLS/Colômbia) e do Corpo Técnico do Departamento Intersindical de
Assessoria Parlamentar (DIAP: http://www.diap.org.br).
luizsalv@terra.com.br

MARGARIDA MARIA SILVEIRA BARRETO


É Graduada em Medicina pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (BAHIANA: http://
www.bahiana.edu.br), Especialista em Obstetrícia pela Associação Maternidade São Paulo
(Residência Médica), em Homeopatia pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em
Homeopatia, em Medicina do Trabalho pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de
São Paulo (FCM-Santa Casa: http://www.fcmscsp.edu.br) e em Higiene Industrial pela Faculdade
SENAC de Educação em Saúde (SENAC: http://www.sp.senac.br) e Mestre e Doutora em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP: http://www.pucsp.br).
Atualmente é Vice-Coordenadora do Núcleo de Estudos Psicossociais da Dialética Exclusão/
Inclusão Social, do Departamento de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (NEXIN-PUC-SP: http://www.pucsp.br) e Professora Convidada da Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de São Paulo, no Curso de Especialização em Medicina do Trabalho,
desenvolvendo as temáticas de Assédio Moral e Violência Moral no Trabalho, Saúde do
Trabalhador e Trabalho e Suicídio.
megbarreto@uol.com.br

MARIA ELIZABETH ANTUNES LIMA


É Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG: http://
www.ufmg.br), Mestre em Administração pela UFMG e Doutora em Sociologia do Trabalho
pela Université de Paris Dauphine (Paris IX: http://www.dauphine.fr). Atualmente, é Professora
Associada na Universidade Federal de Minas Gerais, atuando junto ao Laboratório de Estudos,
Pesquisa e Extensão em Psicologia do Trabalho (LABTRAB: http://www.fafich.ufmg.br/labtrab),
e nas áreas de Psicologia do Trabalho, com ênfase em Saúde Mental no Trabalho. Vem
pesquisando as temáticas dos Transtornos Mentais no Trabalho, Segurança no Trabalho, Lesões
por Esforços Repetitivos, Alcoolismo no Trabalho e Ergoterapia.
antuneslima15@gmail.com
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OLÍMPIO PAULO FILHO
É Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR: http://www.ufpr.br), em
Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR: http://www.pucpr.br) e é Pós-
Graduado em Docência do Ensino Superior pela Faculdade “Leocádio José Correia” (http://
falec.br). Atualmente é Assessor Jurídico de entidades de trabalhadores, com atuação centrada
no Direito do Trabalho e Previdenciário.
olimpio_paulo@uol.com.br

RENATA PAPARELLI
É Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP: http://www.ip.usp.br),
Especialista em Saúde do Trabalhador pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do
Município de São Paulo (CEREST-SP), Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano pela USP e Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Atualmente é Professora
e Supervisora de Estágio do Curso de Psicologia da PUC-SP (FP-PUC-SP: http://www.pucsp.br/
psicologia) no campo teórico-prático da Saúde do Trabalhador, atuando também como Perita
Judicial na 77ª Vara do Trabalho de São Paulo-SP. Tem experiência na área de Psicologia, com
ênfase em Saúde do Trabalhador e Psicologia Social do Trabalho.
rpaparel@uol.com.br

RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES


Graduado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP:
http:// http://portal.fgv.br), Mestre em Ciência Política pelo Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP: http://www.unicamp.br),
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP: http://www.usp.br), Visiting Research
Fellow na University pf SUSSEX, na Inglaterra, (US: http://www.sussex.ac.uk), Professor Titular
de Sociologia e Livre-Docente pelo IFCH-UNICAMP. Recebeu o Prêmio Zeferino Vaz da Unicamp
(2003) e a Cátedra Florestan Fernandes da CLACSO (2002). É pesquisador do CNPq. Publicou,
entre outros, os seguintes livros: Adeus ao Trabalho?, 13 ª ed., Ed. Cortez, publicado também na
Itália, Espanha, Argentina, Colômbia e Venezuela; Os Sentidos do Trabalho, Ed. Boitempo, 9ª
edição, Boitempo, publicado também na Argentina e Itália; A Desertificação Neoliberal, Ed.
Autores Associados. 2ª ed.; A Rebeldia do Trabalho, Ed. da UNICAMP, 2ª edição; O Novo
Sindicalismo no Brasil, Ed. Pontes e O que é o Sindicalismo, Ed. Brasiliense. Atualmente coordena
as Coleções Mundo do Trabalho, pela Boitempo Editorial e Trabalho e Emancipação, pela
Editora Expressão Popular. Colabora regularmente em revistas no exterior e no Brasil. Atua
principalmente nos seguintes temas: trabalho, nova morfologia do trabalho, ontologia do ser
social, sindicalismo, reestruturação produtiva e centralidade do trabalho.
rantunes@unicamp.br

SANDRA FOGAÇA ROSA RIBEIRO


É Graduada em Psicologia pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC: http://www.umc.br),
Especialista em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo em Bauru-SP (USP-Bauru: http:/
/www.bauru.usp.br), Mestre em Saúde Pública pela Faculdade de Medicina de Botucatu da
Universidade Estadual Paulista (FMB-UNESP: http://www.fmb.unesp.br) e Doutora em Educação
pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP: http://
www.fe.unicamp.br). Atualmente é Orientadora de Pesquisa pelo CNPq/PIBIC e Docente da
8
Universidade do Oeste Paulista em Presidente Prudente-SP (UNOESTE: http://www.unoeste.br),
na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação/Mestrado em Educação. A ênfase da sua
atuação é em saúde mental e trabalho, políticas públicas em educação e saúde.
sandrafogacarr@gmail.com

SANDRO EDUARDO SARDÁ


É Graduado em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa
Catarina (CCJ-UFSC: http://www.ccj.ufsc.br). Atualmente é Procurador do Trabalho, atuando
junto à Procuradoria do Trabalho do Município de Chapecó-SC – 12ª Região (PRT12: http://
www.prt12.mpt.gov.br), órgão vinculado à Procuradoria Geral do Trabalho do Ministério
Público do Trabalho do Brasil (PGT-MPT: http://www.pgt.mpt.gov.br), e Gerente do Projeto
Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos.
sandrosarda@hotmail.com

SERGIO AUGUSTO VIZZACCARO-AMARAL


É Licenciado em História pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual
Paulista (FCLAs-UNESP: http://www.assis.unesp.br), Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP: http://www.pucsp.br) e Doutor em Saúde Coletiva
pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP:
http://www.fcm.unicamp.br). Atualmente é Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Estudos da
Globalização” do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e do Departamento de
Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista
(GPEG-PPGCS/DSA-FFC-UNESP-Marília-SP/CNPq: http://www.marilia.unesp.br), Membro
Colaborador da Rede de Estudos do Trabalho (RET: http://www.estudosdotrabalho.org) e
Professor de Cursos de Pós-Graduação no Interior de São Paulo e do Paraná, desenvolvendo
trabalhos nas áreas de Saúde Pública e Coletiva, Ciências Sociais, Subjetividade, Filosofia
Contemporânea, Psicologia Institucional, História do Brasil e da Arte, Cidadania e Ética e
Metodologia de Pesquisa.
sergiovizzaccaro@uol.com.br

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10
Sumário

Apresentação ........................................................................................................................ 13
Giovanni Alves
André Luís Vizzaccaro-Amaral
Daniel Pestana Mota

Prefácio ................................................................................................................................. 15
Giovanni Alves
André Luís Vizzaccaro-Amaral
Daniel Pestana Mota

Capítulo Introdutório — As formas da alienação e do estranhamento no capitalismo


contemporâneo ..................................................................................................................... 17
Ricardo Antunes (UNICAMP)

SEÇÃO 1
DIMENSÕES SOCIAIS E HUMANAS DO TRABALHO NO SÉCULO XXI
Capítulo 1 — Produção do capital e a degradação da pessoa humana — notas críticas
sobre a barbárie social e a precarização do homem-que-trabalha ..................................... 25
Giovanni Alves (UNESP)
Capítulo 2 — Desejo, “trabalho” e morte: algumas palavras sobre o “homem” ............. 44
Sergio Augusto Vizzaccaro-Amaral (RET)
Capítulo 3 — Trabalho, saúde e estranhamento na primeira década do século XXI ....... 68
André Luís Vizzaccaro-Amaral (UEL)

SEÇÃO 2
SAÚDE E PRECARIZAÇÃO DO HOMEM-QUE-TRABALHA
Capítulo 4 — A precarização contemporânea: a saúde mental no trabalho precarizado .... 87
Edith Seligmann-Silva (USP-Aposentada)
Capítulo 5 — O mundo do trabalho contemporâneo e saúde do homem-que-trabalha ... 112
Margarida Barreto (PUC-SP/FCM-SANTA CASA-SP)
Capítulo 6 — As LER/DORT e as novas formas de precarização do trabalho ................. 125
Maria Elizabeth Antunes Lima (UFMG)
Capítulo 7 — O sofrimento psíquico do trabalhador do SUS frente à morte do usuário
no processo de trabalho interdisciplinar ............................................................................. 140
José Roberto Montes Heloani (UNICAMP)
Sandra Fogaça Rosa Ribeiro (UNOESTE)
Capítulo 8 — Perícias judiciais de saúde mental relacionada ao trabalho: notas sobre o
trabalho precarizado ............................................................................................................. 156
Renata Paparelli (PUC-SP)

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SEÇÃO 3
TRABALHO PRECÁRIO E DIREITO DO TRABALHO NO SÉCULO XXI
Capítulo 9 — O trabalho como instrumento de efetiva dignificação do ser humano ...... 171
Luiz Salvador (Presidente — ALAL/OAB)
Olímpio Paulo Filho (Advocacia Trabalhista e Previdenciária — Curitiba-PR)
Capítulo 10 — Apuntes sobre la dimensión colectiva de la precariedad laboral ............... 199
Francisco José Trillo Parraga (UNIVERSIDAD DE CASTILLA — LA MANCHA — ESPAÑA)
Capítulo 11 — Breves notas sobre a precarização da atividade judicante ......................... 212
Daniel Pestana Mota (ADESAT/RET)
Capítulo 12 — Limitação do tempo de trabalho e proteção à saúde dos trabalhadores:
uma análise dos sistemas jurídicos brasileiro e espanhol .................................................... 217
José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva (JUIZ DE DIREITO – TRT15)
Capítulo 13 — Trabalhe trabalhe trabalhe mas não esqueça: vírgulas representam pausas ... 236
Heiler Ivens de Souza Natali (PROCURADOR DO TRABALHO — MPT-09-LONDRINA-PR)
Sandro Eduardo Sardá (PROCURADOR DO TRABALHO — MPT-12-CHAPECÓ-SC)
Capítulo 14 — Mecanismos jurídicos para preservar o direito ao descanso .................... 258
Jorge Luiz Souto Maior (JUIZ DE DIREITO — TRT15/USP)

12
Apresentação

Trabalho e Estranhamento: saúde e precarização do homem-que-trabalha é uma


obra coletiva que inicia o processo de consolidação epistêmica do Movimento Fórum
Trabalho e Saúde (MFTS), enquanto manifestação ético-política, de entidades e de
atores sociais, em prol da saúde do trabalhador deste início de século XXI. Este livro
soma-se a outro, bastante caro ao movimento (e que marcou o início de sua dimensão
epistêmica), publicado em 2011 sob o título de Trabalho e Saúde: a precarização do
trabalho e a saúde do trabalhador no século XXI, por esta mesma editora.
O MFTS, por sua vez, resulta das ações coordenadas pela Rede de Estudos do
Trabalho (RET: <http://www.estudosdotrabalho.org>), um amplo coletivo
dedicado ao Mundo do Trabalho, como um todo, formado por entidades, grupos
de pesquisa, pesquisadores e atores sociais diversos, tendo à sua frente o Grupo de
Pesquisa “Estudos da Globalização”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais e ao Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de
Filosofia e Ciências de Marília-SP, da Universidade Estadual Paulista (GPEG-PGCS/
DSA-FFC-UNESP-Marília-SP/CNPq).
Esta obra reúne e amplia as discussões realizadas ao longo do III FÓRUM
TRABALHO E SAÚDE: SAÚDE E PRECARIZAÇÃO DO HOMEM QUE
TRABALHA (3FTS2011), promovido pela RET em parceria com a Associação para
a Defesa da Saúde no Trabalho (ADESAT: <http://www.adesat.org.br>) e com a
Universidade Estadual de Londrina (UEL: <http://www.uel.br>), ocorrido entre
os dias 10 e 11 de agosto de 2011 no Campus da UEL, em Londrina-PR, e que contou
com o importante apoio de entidades locais, regionais, nacionais e internacionais.
Dentre os parceiros institucionais, o 3FTS2011 recebeu o importante apoio de
entidades internacionais como a Asociación Latinoamericana de Abogados
Laboralistas (ALAL) e o Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde
em Saúde Ocupacional (OMS). No cenário nacional, o evento foi contemplado com
recursos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), além do reiterado
apoio da Fundação “Jorge Duprat Figueiredo” de Segurança e Medicina do Trabalho
(FUNDACENTRO), vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego do Governo
Federal (MTE/Governo Federal), e da Associação Nacional dos Procuradores do
Trabalho (ANPT), pelo segundo ano consecutivo. Na esfera regional, contou com o
fomento da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico do Paraná (FUNDAÇÃO ARAUCÁRIA), vinculada à Secretaria da
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Governo do Estado do Paraná (SETI/
GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ), e teve o apoio e a colaboração da
Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 9ª Região (AMATRA IX), da

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Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (EJ-TRT-09) e da
Federação dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado do Paraná
(FTIA-PR). No âmbito local, contou, ainda, com a parceria, o apoio e a colaboração
do Instituto de Tecnologia e Desenvolvimento Econômico e Social (ITEDES), da
Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual de Londrina (PROEX-UEL), do
Departamento de Psicologia Social e Institucional do Centro de Ciências Biológicas
da Universidade Estadual de Londrina (PSI-CCB-UEL), da ELO Consultoria —
Empresa Júnior de Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (ELO
CONSULTORIA-UEL) e do Curso de Especialização em Psicologia Organizacional
e do Trabalho, vinculado ao Centro de Ciências Biológicas e à Pró-Reitoria de Pesquisa
e Pós-Graduação da Universidade Estadual de Londrina (PÓS-POT-PROPPG-UEL).
Por ser o resultado ampliado das discussões realizadas no 3FTS2011, e fruto
dos esforços do MFTS e da RET, este livro, ora apresentado, aliado à obra anterior,
representa um segundo registro documental e o início de um processo de consolidação
de um Coletivo que, desde 2009, efetivamente, preocupa-se em reunir diferentes
perspectivas multidisciplinares em torno do eixo temático “trabalho-saúde”.

Giovanni Alves
André Luís Vizzaccaro-Amaral
Daniel Pestana Mota

14
Prefácio

O fim da primeira década do século XXI instiga-nos a uma reflexão mais


cuidadosa acerca dos rumos que o mundo do Trabalho tomará num futuro próximo,
sobretudo após a emergência de um cenário de instabilidade econômica, política e
social, de amplitude generalizada, que se agravou no final dos anos 2000.
O livro Trabalho e Estranhamento: saúde e precarização do homem-que-trabalha
dá continuidade ao esforço do Movimento Fórum Trabalho e Saúde (MFTS) de
resgatar o Trabalho como categoria central na ontologia do ser social e na análise
crítica da sociedade contemporânea. Nesta oportunidade, o Trabalho é pensado
numa relação direta com uma importante chave conceitual do pensamento
marxiano: o Estranhamento. Enquanto processo que se descobriu distinto da
alienação, o Estranhamento ocupa, nesta obra, papel de destaque na compreensão
da relação do trabalho com a saúde do homem-que-trabalha.
No Capítulo Introdutório, Ricardo Antunes (Universidade Estadual de
Campinas) aborda o conceito de Trabalho Estranhado para tratar das formas da
alienação e do estranhamento no capitalismo contemporâneo, construindo, com isso,
as bases elementares sobre as quais o livro, posteriormente, sustenta-se.
Tal como no livro anterior, esta obra se dividiu em três seções, no intuito de
congregar três grandes áreas do conhecimento em torno, nesta oportunidade, do
eixo temático trabalho-estranhamento, em sua relação com a saúde do homem-
-que-trabalha: (1) ciências humanas e sociais; (2) ciências da saúde; e (3) ciências
jurídicas.
Na primeira seção, Giovanni Alves (Universidade Estadual Paulista), Sergio
Augusto Vizzaccaro-Amaral (Grupo de Pesquisa “Estudos da Globalização”, da
Universidade Estadual Paulista) e André Luís Vizzaccaro-Amaral (Universidade
Estadual de Londrina), tratam das dimensões humanas e sociais do trabalho no
século XXI, promovendo, por vezes, aproximações das ciências sociais e humanas
com a filosofia e, ao final, com as ciências da saúde.
A seção seguinte analisa a relação entre a saúde e a precarização do homem-
que-trabalha e é introduzida por Edith Seligmann-Silva (Universidade de São Paulo),
que analisa a precarização contemporânea e a saúde mental no trabalho precarizado.
Em seguida, Margarida Barreto (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo), Maria Elizabeth Antunes
Lima (Universidade Federal de Minas Gerais), José Roberto Montes Heloani
(Universidade Estadual de Campinas e Fundação Getúlio Vargas de São Paulo), em
parceria com Sandra Fogaça Rosa Ribeiro (Universidade do Oeste Paulista), e Renata

15
Paparelli (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) abordam a relação entre
Trabalho e Saúde, em suas dimensões físicas e mentais, aproximando o campo das
ciências da saúde com o das ciências jurídicas no final.
A terceira e última seção é introduzida por Luiz Salvador (Asociación
Latinoamericana de Abogados Laboralistas), em parceria com Olímpio Paulo Filho
(Advocacia Trabalhista e Previdenciária), e complementada por Francisco José Trillo
Parraga (Universidade de Castilla — La Mancha, España), Daniel Pestana Mota
(Advocacia Trabalhista e Associação para a Defesa da Saúde no Trabalho), José
Antônio Ribeiro de Oliveira (Juiz de Direito, TRT-15), Sandro Eduardo Sardá
(Procurador do Trabalho, MPT-12), em parceria com Heiler Ivens de Souza Natali
(Procurador do Trabalho, MPT-09), e Jorge Luiz Souto Maior (Juiz de Direito, TRT-
15, e Universidade de São Paulo), analisando a relação entre o trabalho precário do
início do século XXI e o campo do direito trabalhista, por meio da discussão de seus
efeitos para a saúde do trabalhador.
A multidisciplinaridade presente nesta obra, que se produziu coletivamente a
partir dos esforços de importantes protagonistas e de novos pesquisadores e atores
sociais envolvidos com a temática do “trabalho e saúde”, reflete a multidimensiona-
lidade do Trabalho para uma sociedade que a partir dele se constituiu, se organiza e
se desenvolve.

Giovanni Alves
André Luís Vizzaccaro-Amaral
Daniel Pestana Mota

16
Capítulo introdutório

AS FORMAS DA ALIENAÇÃO E DO ESTRANHAMENTO


NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Ricardo Antunes

Ao pensar nesse tema proposto, para esboçar uma sistematização acerca desta
problemática, ocorreu-me fazer algumas indicações que me parecem decisivas hoje,
se queremos entender o problema da alienação.
Uma contribuição decisiva de Marx é a constatação de que o trabalho, no
capitalismo, acaba assumindo a forma de trabalho alienado ou estranhado. Vou
deixar aqui o debate entre as similitudes e diferenças entre Entäusserung e
Entfremdung em Marx, frequentemente (e erroneamente) traduzidos como
sinônimos. (Ver Mészáros, 2006; Ranieri, 2001; e Antunes, 2010 e 2012.)
Erro que cometeram grande parte das traduções francesas, inglesas, com
algumas exceções importantes em língua italiana e também no espanhol. Felizmente
para nós, as traduções mais recentes têm procurado tratar dessa disjuntiva e dessa
polêmica de modo mais preciso.
Pretendo realizar, aqui, um recorte bastante didático, de modo a atender a
proposta multidisciplinar do livro, que congrega autores e leitores de áreas bastante
diversificadas, e a introduzir a temática geral que será discutida nas seções seguintes.
O trabalho é estranhado para Marx na medida em que o estranhamento expressa
a dimensão de negatividade sempre presente do processo de produção capitalista,
onde o produto do trabalho não pertence ao seu criador. Essa é, para Marx, a primeira
expressão do estranhamento. (Marx, 2004. Ver também, Marx, 1978.)
O segundo (uma vez que são quatro) momento constitutivo do processo de
estranhamento — ou alienação — em Marx é: o trabalho que não se reconhece no
produto do seu trabalho, e que dele não se apropria, é um trabalho que não se
reconhece no próprio processo laborativo em que ele se realiza. Ele não se realiza,
mas ele se estranha, se fetichiza no próprio processo de trabalho.
Isso leva ao terceiro momento: o ser social que trabalha não se reconhece
enquanto individualidade nesse ato central da sua vida, e isto leva à quarta dimensão

17
ou quarto momento constitutivo da alienação/estranhamento do trabalho: quem
não se reconhece como indivíduo não se vê como parte constitutiva do gênero
humano.
Essa, digamos de modo muito sintético e breve, é a formulação presente nos
Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Não posso, aqui, me alongar nesse
desenho introdutório, para não comprometer minha exposição.
E em O Capital, nas várias partes em que Marx trata do fetichismo da mercadoria
(Marx, 1971) e do problema da reificação ou da coisificação, na sua concretude no
mundo fabril, o problema do estranhamento ganha ainda muito mais densidade do
que na obra de 1844, que é uma primeira incursão sobre a temática. Vale reiterar: os
Manuscritos Econômico-Filosóficos são a primeira incursão de Marx na economia
política, ainda muito preliminar e bastante filosófico. Marx era um filósofo que estava
rompendo com a tradição alemã da qual era herdeiro, o hegelianismo de esquerda.
É este o verdadeiro momento de ruptura em Marx e não outro. Ele faz essa
ruptura, essa crítica ontológica, quando salta do idealismo hegeliano para o
materialismo histórico e para construção de seu projeto dialético. O que se efetiva
quando ele elabora a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel — em fins de 1843 e
começos de 44 — e escreve um texto magistral chamado a Introdução.
Desde o final de 1843 e começos de 1844, Marx começa a empreender a sua
formulação com os adensamentos ontológicos materialistas que desenvolveu ao longo
de sua obra. Porque este — a Introdução — é um texto de nascimento e não de
consolidação da sua nova concepção. Nele, por exemplo, não há ainda a teoria da
mais-valia...
Nesse texto de 1843/44, Marx não havia sequer desenvolvido sua teoria da
alienação, que aparecerá nos Manuscritos de 1844, mas só uma preliminar menção
dela, bem como tudo o que veio depois na construção marxiana, frequentemente
com apoio decisivo de Engels. (Uma nota adicional: se a estatura de ambos é desigual,
isso não é um demérito ao Engels, mas é um reconhecimento do caráter magistral da
obra de Marx). A contribuição engelsiana foi, entretanto, decisiva. Bastaria citar
aqui dois textos que tiveram um papel central: o Esboço da Crítica da Economia
Política, texto que Marx lê muito cedo, quando ainda não tinha se dado conta da
dimensão fundante da economia política, mas estava começando, pela sua atividade
jornalística, a tratar dessa questão ao refletir sobre temas como roubo de lenha, a
greve dos operários da Silésia, a questão da habitação etc., temas que remetiam à
esfera da economia política.
E o texto A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra — recentemente
republicado em nossa coleção Mundo do Trabalho (Boitempo), numa edição sob os
cuidados de José Paulo Netto, Engels demonstrou concretamente quem era o
proletariado que Marx ainda tratava num plano muito filosófico e abstrato (como
na Introdução de 1844).
18
Muito bem, se assim era na sociedade do século XIX, no século XX ela não só
manteve as alienações típicas do século anterior, mas elas se intensificaram e se
complexificaram. Isso porque o capitalismo não é um sistema paralisado e linear.
E o século XX foi marcado por um duplo processo de alienação/estranhamento;
ainda que mantenha essencialmente os seus traços ontológicos fundamentais já
resumidamente indicados, há novas particularidades e singularidades na forma de
ser da alienação contemporânea.
Quais foram os dois modos de ser dessa alienação/estranhamento no século
XX? E nos inícios do século XXI?
Iniciemos pelo binômio taylorismo/fordismo, forma pela qual o capitalismo
se desenvolveu ao longo de todo o século XX. Quem lê com cuidado os capítulos de
O Capital, quando Marx se refere à transição da manufatura para a grande indústria,
verá que o taylorismo e o fordismo têm muito mais elementos de continuidade do
que de descontinuidade em relação à grande indústria do século XIX.
Vivenciávamos um processo, para usar uma expressão de Lukács, de
“desantropomorfização do trabalho”, que é muito acentuado desde os inícios da
Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX, e depois se consolida ao longo do
século XX.
O que tipificaria a alienação ou o estranhamento do trabalho na sociedade
capitalista do século XX moldada pela indústria tayloriano/fordista?
O magistral Tempos Modernos, de Chaplin, é a expressão, no plano fílmico,
mais genial deste complexo. Mas eu poderia lembrar também dois grandes autores
que deram fotografias muito felizes dessa processualidade.
O primeiro deles é Lukács, num livro marcante, publicado em 1923, em que
há um capítulo chamado A Coisificação e a Consciência do Proletariado, que antecipa
teses que estavam nos então desconhecidos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de
Marx, de 1844, livro que, entretanto, só foi publicado em 1932. Aliás, vale lembrar,
muitos dos textos de juventude de Marx foram publicados com a participação de
Lukács, que estava na União Soviética, exilado, no início dos anos 1930 e fora
chamado por Riazanov para participar desse processo de organização e publicação
das obras originais do filósofo alemão.
E o outro grande autor que percebeu com uma astúcia excepcional os modos de
ser do trabalho taylorista/fordista e suas repercussões na subjetividade do trabalho,
foi Antônio Gramsci. No ensaio Americanismo e fordismo mostrará que o taylorismo
e o fordismo, ou o “americanismo”, como denominava Gramsci, criava uma
concepção do homem integral para o capital.
Fundamentalmente, o trabalho tayloriano-fordista, embora seja um trabalho
relativamente regulamentado, relativamente formalizado — tem todo o capítulo
19
das lutas sociais do trabalho, exigindo a regularização, a formalização do trabalho,
os direitos do trabalhador, a redução e a regulamentação da jornada de trabalho, o
descanso semanal, tudo aquilo que as lutas operárias dos séculos XIX e XX, como os
levantes de 1848, a Comuna de Paris em 1871, 1848, as revoluções socialistas do
século XX etc, que aqui não podemos desenvolver. Apesar dessa regulamentação do
trabalho, tratava-se de um trabalho maquinal, parcelar, fragmentado, fetichizado,
coisificado e alienado. Este é o trabalho que Chaplin genialmente caricatura.
Lukács escreveu em História e Consciência de Classe que a fragmentação taylorista
do trabalho penetrava até a “alma do trabalhador”, dando os contornos mais gerais
do complexo da coisificação e do estranhamento, numa complexa articulação entre
o mundo da materialidade e o mundo da subjetividade operária.
Gramsci desenvolveu a ideia do homem integral para o capital, através do controle
até da sexualidade dos trabalhadores na fábrica moderna e a projeção, dessa forma,
da dominação que nasce na fábrica e se amplia para sociedade. A Classe Operária vai
ao Paraíso, de Elio Petri, também fotografa muito bem isso no contexto do “outono
quente” das lutas de classe na Itália dos anos 1969-70.
Não é por acaso que Taylor dizia que os trabalhadores seriam uma espécie de
“gorilas amestrados”. Ou seja, operava uma certa desconsideração do intelecto, da
subjetividade do trabalho. O trabalhador era considerado quase como “um animal”,
ainda que “dócil” (o gorila educado, de Taylor). Mas o trabalho taylorista-fordista,
o trabalho capitalista da era da indústria do automóvel e dos seus prolongamentos
ao longo de todo o século XX, era um trabalho marcado por uma alienação/
estranhamento, por esse caráter parcelar, fragmentado, da indústria seriada, da
produção em série.
No binômio taylorismo/fordismo, a concepção e a elaboração são
responsabilidade da gerência científica; a execução (manual) é responsabilidade dos
trabalhadores. Marx dizia no século XIX (e isso se manteve no taylorismo), que a
fábrica só pode funcionar com um exército de feitores controlando o trabalho, num
despotismo fabril acentuado.
Por isso, o século XX se caracterizou como uma variante da sociedade do trabalho
alienado, típico da era taylorista-fordista.
Mas a partir do final do século XX, especialmente a partir dos anos 1970/80, o
mundo capitalista sofre mutações no seu interior. É evidente que o mundo da empresa
flexível, como diz o capital, ou o mundo da acumulação liofilizada, o mundo da
empresa capitalista não alterou a forma de ser do capital, mas alterou, em muitos
pontos, os mecanismos do padrão de acumulação do capital. E isso teve consequências
na própria subjetividade, nas distintas manifestações do fenômeno da alienação e
do estranhamento. Até porque a alienação e o estranhamento não podem jamais ser
reduzidos ao mundo da economia.

20
Quem conhece uma fábrica no modelo taylorista-fordista e vê uma fábrica
hoje, percebe que a diferença é visível no seu desenho espacial, no espaço do trabalho,
na organização sociotécnica e de controle do trabalho. Não tem mais as divisórias.
Não tem mais o restaurante do “peão” e o restaurante da gerência. Ela é aparentemente
mais “participativa”, aparentemente mais envolvente e só aparentemente menos
despótica.
Em contrapartida, o trabalho é mais desregulamentado, mais informalizado,
mais precarizado, mais intensificado, mais “polivalente”, mais “multifuncional”,
seguindo critérios de “metas”, “competências” etc. É feito em equipe, em que a
competição é terrível entre os trabalhadores e as trabalhadoras. O toyotismo só
pode viver — e as formas distintas de empresa flexível — com base no envolvimento,
na expropriação do intelecto do trabalho. Então certamente o Taiichi Ohno
(engenheiro fundador desse receituário no Japão) não concordaria com a máxima
do Taylor de que o trabalhador é só um “gorila amestrado”.
Isso configura uma alienação que é mais interiorizada. O trabalhador e a
trabalhadora têm que se envolver no ideário e na pragmática da empresa. Eles
passam a ser definidos como “colaboradores ou colaboradoras”, “consultores” etc.
A alienação/estranhamento é aparentemente — atenção!, aparentemente —
menos despótica, mas intensamente mais interiorizada. Acentua-se o processo do
que Marx denominou como personificações do capital. Porque é assim que o toyotismo
pode procurar “envolver” ainda mais a classe trabalhadora e suas engrenagens
perversas da alienação e do estranhamento. E para que ocorra o “envolvimento”,
tem que fazer algumas concessões, senão não há base para o envolvimento.
Na fábrica taylorista e fordista tradicional, portanto, o despotismo é explicito.
Na planta flexível, eu usei no livro Adeus ao Trabalho? a seguinte fórmula: as empresas
querem converter os trabalhadores em déspotas de si mesmos!
Estamos longe da apologética do capital, ao afirmar que o mundo produtivo
eliminou a alienação/estranhamento, tese que não se sustenta. Nós temos, então,
que compreender essas formas mais interiorizadas e mais complexificadas da
alienação e do estranhamento. É o que venho procurando desenvolver em minhas
pesquisas em seu estágio atual.

BIBLIOGRAFIA

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? 16. ed. São Paulo: Cortez, 2012.
_______. Os sentidos do trabalho. 12. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
GRAMSCI. A. Escritos políticos. v. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

21
LUKÁCS, G. História y conciencia de clase. Barcelona: Grijaldo, 1975.
_______. Ontologia dell’essere sociale, II/2, Roma: Riuniti, 1981.
MARX, Karl. O capital, v. 1/1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1971.
_______. Extractos de lectura — James Mill. In: Obras de Marx y Engels. OME 5. Manuscritos de
Paris y Anuários Franco-Alemanes 1844. Barcelona: Grijalbo, 1978.
_______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx, Boitempo Editorial, São Paulo, 2006.
RANIERI, Jesus (2001). A câmara escura: alienação e estranhamento em Marx. São Paulo:
Boitempo, 2001.

22
Seção 1

DIMENSÕES SOCIAIS E HUMANAS


DO TRABALHO NO SÉCULO XXI

23
24
Capítulo 1

PRODUÇÃO DO CAPITAL E A DEGRADAÇÃO


DA PESSOA HUMANA — NOTAS CRÍTICAS SOBRE
A BARBÁRIE SOCIAL E A PRECARIZAÇÃO
DO HOMEM-QUE-TRABALHA

Giovanni Alves

Nosso objetivo é apresentar algumas notas críticas sobre a nova forma de


produção do capital e seus impactos sociometabólicos. Trata-se de apreender na
perspectiva dialética as características essenciais do mundo social do capital nas
condições históricas do capitalismo global em sua etapa de crise estrutural. É
importante situar o significado candente dos fenômenos sociais da precarização do
homem-que-trabalha no bojo do movimento contraditório do capital em processo.
Num primeiro momento, iremos expor o conceito de maquinofatura, categoria
social capaz de explicar a vigência do espírito do toyotismo nas práticas
sociometabólicas do capital e a predominância do sociometabolismo da barbárie
explicitado no processo de precarização do homem-que-trabalha. A degradação da
pessoa humana — elemento categorial que buscamos resgatar numa perspectiva
radical — tornou-se hoje, em pleno século XXI, um traço essencial da dinâmica
sociometabólica do capital(1).
Ao tratar da produção da mais-valia relativa no capítulo 13 da Seção IV do
livro I de O Capital, Karl Marx nos apresenta as formas sociais da produção do
capital: manufatura e grande indústria. Podemos considerá-las formas sócio-
-históricas no interior das quais se desenvolve o modo de produção capitalista.
Entretanto, manufatura e grande indústria não são apenas categorias críticas da
economia política do capital, mas categorias sociológicas que implicam um determinado
modo de controle sociometabólico, que emerge com a civilização do capital.

(1) Este ensaio é uma versão adaptada do texto intitulado “Maquinofatura – breve nota teórica sobre a
nova forma de produção do capital na era do capitalismo manipulatório”, publicado no livro Trabalho e
sociabilidade — Perspectivas do capitalismo global. Bauru: Praxis, 2012.

25
A cada forma social de produção do capital exposta por Karl Marx corresponde
um modo de subsunção da força de trabalho ao capital adequado ao modo de produção
de mais-valia propriamente dito, que, por conseguinte, diz respeito a uma determinada
dialética histórica do metabolismo social. Enquanto a subsunção formal do trabalho
ao capital corresponde à manufatura, a subsunção real do trabalho ao capital
corresponde à grande indústria. É com a grande indústria que emerge o modo de
produção capitalista propriamente dito.
Para ir além da mera crítica da economia política, desvelando, em seu interior,
as dimensões sociológicas propriamente ditas do movimento do capital, deve-se
apreender, em suas múltiplas determinações, o padrão sociometabólico que diz
respeito a cada modo de produção de mais-valia ou modo de subsunção da força de
trabalho ao capital.
A lógica histórica de Marx exposta em O Capital é uma lógica dialética, o que
significa que o desenvolvimento das formas sociais no interior das quais ocorre a
produção do capital não é meramente linear e contínua. O que Marx expõe na Seção
IV de O Capital não são apenas etapas da produção do capital, onde, por exemplo,
a grande indústria se seguiria à manufatura de forma literalmente contínua e
consecutiva. Sob a grande indústria, embora a manufatura não esteja mais posta
como forma predominante da produção social do capital, ela está pressuposta —
como pressuposto negado. A rigor, no plano lógico (e ontológico), a grande indústria
contém a manufatura como pressuposto negado. Ou ainda: a grande indústria
conserva a manufatura num patamar superior.
Deste modo, Marx utiliza, na Seção IV do Livro 1 de O Capital, um conjun-
to de pares dialéticos que explicam o desenvolvimento histórico da civilização
do capital. Por exemplo, mais-valia absoluta e mais-valia relativa; subsunção
formal e subsunção real do trabalho ao capital; manufatura e grande indústria.
Enquanto pares dialéticos, eles incorporam, em seu movimento, a lógica catego-
rial das determinações reflexivas da sintaxe dialética posição e pressuposição
(Fausto, 1989).
Portanto, podemos apreender, no plano da essência, o movimento contra-
ditório da produção do capital a partir das categorias de modo de produção
capitalista e formas históricas de produção social do capital, constituída pela
manufatura, grande indústria e — como iremos sugerir — maquinofatura, com
seus respectivos modos de controle do metabolismo social. Tratar dos modos de
controle do metabolismo social significa investigar, por um lado, as relações sociais
de produção do homem com a Natureza, isto é, do homem com outros homens
e do homem consigo mesmo; e, por outro lado, investigar a relação do homem
com a técnica como elemento mediador ineliminável desta relação homem-na-
tureza.

26
1. TRABALHO COMO METABOLISMO SOCIAL

Diz Marx, logo no início do capítulo 13 do livro I de O Capital:


“O revolucionamento do modo de produção toma, na manufatura, como
ponto de partida a força de trabalho; na grande indústria, o meio de
trabalho.” (Marx, 1996)
Nesta pequena e interessante passagem, Marx salienta os “pontos de partida”
dos revolucionamentos do modo de produção capitalista. Trata-se de uma colocação
ontológica da forma de ser da produção social do capital. Como Marx e Engels
salientaram no Manifesto Comunista, de 1848, o modo de produção capitalista é
caracterizado pelo constante revolucionamento das condições de produção social
que, por conseguinte, revoluciona a sociedade. Dizem eles: “A burguesia não pode
existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por
conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais.” (Marx e
Engels, 1998)
A ânsia de revolucionar o modo de produção do capital é um traço ontogené-
tico da burguesia como classe social. Como os próprios autores observam, numa
passagem anterior, “a própria burguesia é o produto de um longo processo de de-
senvolvimento, de uma série de transformações no modo de produção e de circula-
ção.” Ou ainda: “A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente
revolucionário.” (Marx e Engels, 1998)
A burguesia como persona do capital revoluciona o modo de produção e de
circulação, isto é, “os instrumentos de produção, e por conseguinte, as relações de
produção e, com isso, todas as relações sociais.”. Ao dizer “todas as relações sociais”,
Marx e Engels salientam que o revolucionamento do modo de produção capitalista
significa revolucionar a totalidade social, isto é, o modo de controle do metabolismo
social.
Deste modo, as categorias manufatura e grande indústria não implicam apenas
o revolucionamento do modo de produção de mercadorias propriamente dito, mas
sim o revolucionamento do modo de controle do metabolismo social. O que significa
que têm um caráter radicalmente sociológico na medida em que, ao revolucionar o
modo de produção propriamente dito, o capital revoluciona também as relações
sociais do homem com a Natureza — tanto natureza como natura naturans
(“natureza criando”, natureza como atividade vital dos homens mediada pelas
relações sociais do homem com outros homens e do homem consigo mesmo); ou
natureza como natura naturata (“natureza criada”, natureza como “corpo inorgânico
do homem”, como diria Marx).
Noutros termos, diríamos que, ao revolucionar o modo de produção
propriamente dito, o capital revoluciona o processo de trabalho, que, como observa
Marx no capítulo 5 da Seção III do livro 1 de O Capital, é “um processo entre o

27
homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media,
regula e controla seu metabolismo com a Natureza.”. Nesse caso, Natureza é, para Marx,
matéria natural como uma força natural. A própria corporalidade, braços e pernas,
cabeça e mão do homem — isto é, o homem em si e para si — pertencem às forças
naturais que o homem tem que pôr em movimento a fim de apropriar-se da matéria
natural numa forma útil para sua própria vida. Nos Manuscritos de 1844, Marx observou:
“O homem vive da natureza, significa: a natureza é o seu corpo, com o qual tem que
permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida fisica e mental do homem
está interligada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está
interligada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza.” (Marx, 2004).
Portanto, ao dizer que o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza,
Marx quer nos dizer que o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza
externa a ele como matéria natural, isto é, o objeto e seus meios de trabalho; e entre
o homem e a Natureza interna a ele, a natureza que o constitui como homem — sua
vida física e mental que permitem que ele exerça uma atividade orientada a um fim;
tendo em vista que o homem é um animal social, a vida física e mental do homem
implica, por conseguinte, um processo metabólico entre o homem e si mesmo, isto é,
o homem e outros homens e o homem consigo mesmo (o que expõe, deste modo, o
caráter sociometabólico do trabalho como atividade vital).
Na medida em que a vida física e mental do homem-que-trabalha está
interligada com a Natureza externa e interna — tal como a descrevemos antes — o
revolucionamento das formas de produção social, isto é, formas de produção de
mais-valia, significam também o revolucionamento radical das instâncias de
reprodução social. Em O Capital, Marx diz: “Ao atuar, por meio desse movimento
sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua
própria natureza [o jovem Marx diria: “sua vida física e mental”— Giovanni Alves.
Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu
próprio dominio.” (Marx, 2004)
Deste modo, a categoria de trabalho não diz respeito apenas à produção
propriamente dita, isto é, o local da exploração ou produção de mais-valia — o
local de trabalho propriamente dito. Ela implica a própria atividade vital ou processo
entre o homem e a Natureza — 1) matéria natural que ele se apropria para dar-lhe
uma forma útil para sua própria vida e a 2) sua própria vida física e mental
(corporalidade, braços e pernas, cabeça e mãos), elementos postos não apenas no
interior do território da produção propriamente dita (por exemplo, a fábrica, a
loja ou o escritório), mas também nas instâncias da reprodução social.
O trabalho como um processo metabólico entre o homem e a Natureza implica
regulação e controle social historicamente determinados. O modo de produção
capitalista é um modo de organização do processo de trabalho, isto é, um modo de
regulação e controle social deste processo metabólico entre o homem e a Natureza
caracterizado pelo trabalho alienado/estranhado [Entfremdung Arbeit].
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Ao revolucionar o modo de produção capitalista, o capital revoluciona os
elementos do processo de trabalho que são a atividade orientada a um fim — no caso
do modo de produção capitalista, a atividade vital estranhada, tendo em vista que
ela possui um telos estranhado; e seu objeto e seus meios técnicos (ou tecnológicos) que
aparecem como capital propriamente dito ou condições objetivas do processo de
produção de mais-valia. A sociedade do capital ou sociedade moderna é a sociedade
do trabalho alienado/estranhado. A organização social das atividades humanas,
seus objetos e meios, isto é, o modo de controle do metabolismo social, incorporam
o caráter do trabalho alienado.
Na medida em que a atividade vital do homem ou a produção da sua vida física
e mental imprescindível para a produção da mais-valia relativa corresponde a ins-
tâncias sociais que operam, por exemplo, no território do consumo e lazer, o revo-
lucionamento do modo de produção implica cada vez mais o revolucionamento do
modo de vida, isto é, todas as relações sociais (o Marx de 1844 diria: o revoluciona-
mento da “vida do gênero” [Gattungsleben] na sua forma abstrata e alienada (diz
ele: “A vida mesma aparece só como meio de vida” — eis o verdadeiro sentido do
trabalho assalariado).
Esta é um característica ontológica da sociedade do capital como sociedade do
trabalho alienado. Ao revolucionar o modo de produção, revoluciona as condições
sociais. Portanto, as categorias de manufatura e grande indústria são categorias
sociológicas que contêm, em si e para si, um modo de vida social (o comunista
Antonio Gramsci, em Americanismo e fordismo, explicitou, com vigor genial, as
derivações ontometodológicas da constatação marxiana: trabalho e vida estão
interligados). (Gramsci, 1984)
Portanto, o desenvolvimento do processo de produção do capital é o movimento
de explicitação sucessiva da interligação entre vida e produção de valor. É a afirmação
candente do processo de trabalho como um processo entre o homem e a Natureza —
Natureza que não se reduz a matéria natural — objetos e meios, mas, cada vez mais,
Natureza que incorpora a vida física e mental do homem-que-trabalha. O que significa
dizer que o capital em processo implica cada vez mais a dimensão da atividade vital no
processo de produção de valor. Aprofunda-se, na ótica do Marx de 1844, a alienação da
vida do gênero. Eis, portanto, o sentido do conceito de maquinofatura como terceira
forma social da produção do capital. É o que veremos a seguir.

2. MANUFATURA E GRANDE INDÚSTRIA

Marx diz, no início do capítulo 13 do livro I de O Capital: “O revolucionamento


do modo de produção toma, na manufatura, como ponto de partida, a força de
trabalho; na grande indústria, o meio de trabalho”. (Marx, 1986)

29
O ponto de partida do revolucionamento do modo de produção capitalista na
manufatura é a força de trabalho. O ponto de partida do revolucionamento do
modo de produção capitalista na grande indústria é o meio de trabalho. Portanto,
a cada forma social da produção do capital — manufatura e grande indústria —
corresponde um “ponto de partida” deste revolucionamento do modo de produção
capitalista com implicações estruturais nas relações sociais de produção da vida
social salientadas anteriormente (homem-natureza/homem-técnica).
Na manufatura, foi o revolucionamento da força de trabalho que caracterizou
o desenvolvimento daquela forma social de produção do capital. Por exemplo, o
capital em processo criou, por meio da expropriação dos camponeses, a massa de
força de trabalho, a disposição das manufaturas em ascensão no século XVIII. Por
outro lado, a manufatura incorporou a divisão do trabalho no processo produtivo,
degradando as habilidades artesanais da força de trabalho, isto é, sua relação com o
instrumento de trabalho herdado do modo de produção anterior. Dessa forma, o
capital criou a força de trabalho como mercadoria que nas condições da manufatura
apareceu como trabalhador parcelar. Ao invés de intervir em todas as etapas da
produção de mercadoria, o operário manufatureiro é obrigado a intervir apenas
numa parte do processo de trabalho.
O trabalhador parcelar é alienado do seu ofício e, por conseguinte, do seu
espaço domiciliar de produção. Na medida em que concentrou no território da
manufatura a força de trabalho alienada de seus meios de produção, a manufatura
reordenou o espaço da produção como espaço de cooperação e território do controle
despótico do capital. Antes, o campones e o artesão exerciam o trabalho cotidiano
e seu ofício no espaço da gleba e da oficina domiciliar, respectivamente. Com a
manufatura, que concentra, numa mesma dimensão territorial, a massa de operários,
a lógica do capital subsume formalmente o trabalhador assalariado por meio do
controle da força de trabalho como mercadoria. O trabalho vivo é reconfigurado
no novo espaço territorial da produção do capital como trabalhador coletivo
constituído por um complexo de trabalhadores parcelares. A reordenação territorial
do espaço do trabalho acompanha a instauração da divisão manufatureira do
trabalho que aliena o operário artesanal do seu ofício. Nos primeiros séculos do
capitalismo moderno, a manufatura tornou-se o novo espaço-tempo do modo de
produção capitalista em ascensão. Mas o trabalhador assalariado está subsumido
apenas formalmente ao capital na medida em que preserva habilidades manuais
oriundas do ofício artesanal. Ele ainda mantém uma relação efetiva com o meio de
trabalho, embora tenha se tornado trabalhador parcelar.
Foi nas condições históricas da manufatura capitalista que se instaurou a
problemática moderna do adoecimento laboral. Por exemplo, foi nessa época que o
médico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714) criou a Medicina Ocupacional.
Foi o seu livro sobre doenças ocupacionais intitulado De Morbis Artificum Diatriba
(Doenças do Trabalho), que relacionava os riscos à saúde ocasionados por produtos

30
químicos, poeira, metais e outros agentes encontrados por operários em 52 ocupações,
que se tornou um dos trabalhos pioneiros e base da medicina ocupacional. Portanto,
a produção do capital em ascensão histórica significou a produção de corpos-mentes
doentes.
O que significa que o revolucionamento da força de trabalho como ponto de
partida da manufatura significou a degradação da vida física e mental do homem-
-que-trabalha. Com a manufatura, alterou radicalmente o espaço-tempo da
produção de mercadorias, alterando a relação tempo de trabalho/tempo de vida dos
trabalhadores assalariados. A produção do capital sob as condições do predominio
da mais-valia absoluta significava que as jornadas de trabalho eram extensas.
Portanto, a concentração territorial, a divisão manufatureira do trabalho e
a redução do tempo de vida a tempo de trabalho eram elementos compositivos do
revolucionamento da força de trabalho sob a manufatura que visavam aumentar o
controle da força de trabalho com a finalidade de extrair mais-valia absoluta. O
princípio da manufatura que se incorporou na lógica de desenvolvimento capitalista
é o princípio do controle laboral por meio da reorganização territorial (o capital
constitui o trabalhador coletivo), reorganização das habilidades manuais (o capital
constitui um novo nexo psicofísico do trabalho) e reordenamento do tempo de vida,
reduzindo-o a tempo de trabalho. Entretanto, o “modelo manufatureiro” não
alterou radicalmente a relação homem-técnica. O homem ainda dominava a técnica.
O meio de trabalho era meio de trabalho no sentido do instrumento parcelar,
extensão do homem. Por outro lado, a subsunção formal do trabalho ao capital
significava que a produção de mais-valia absoluta restringia-se aos locis das
manufaturas e a relação-capital não se tornara totalidade social.
Entretanto, o princípio da cooperação e manufatura — o revolucionamento
da força de trabalho — é um elemento compositivo da ontologia da produção do
capital. Mesmo com a grande indústria, cujo princípio é o revolucionamento do
meio de trabalho, o princípio da divisão do trabalho e manufatura repõem-se no
sentido da subsunção formal do trabalho vivo à lógica territorial do capital. Ao ser
negado pela grande indústria, a manufatura apenas elevou-se a um estágio superior
de desenvolvimento.
Com a grande indústria, a produção do capital repõe o controle laboral
integrando-o ao sistema de máquinas. Na grande indústria, o ponto de partida do
revolucionamento é o meio de trabalho, ou seja, a técnica como tecnologia. É um
momento de subsunção real do trabalho vivo ao capital como trabalho morto que
se impõe ao homem-que-trabalha. Ao alterar radicalmente a relação homem-técnica,
instaurando a forma-tecnologia, a grande indústria alterou a relação homem-
-natureza, na medida em que, com o sistema de máquinas-ferramentas, aboliu-se as
habilidades artesanais do operário, transformando-o num mero apêndice da
maquinaria. Na verdade, a grande indústria desnudou o trabalhador assalariado.
Tal como a manufatura, ela revolucionou a força de trabalho a partir do
31
revolucionamento do meio de trabalho. Ao revolucionar o meio de trabalho, a
grande indústria revolucionou a atividade vital do homem. Ao ser revolucionado, o
meio de trabalho (o instrumento) se interverte em máquina-ferramenta e o homem
interverte-se em mero apêndice do sistema de máquinas.
A posição do homem como apêndice da máquina significou a vigência do
adoecimento do corpo na epidemiologia laboral. A corporalidade viva torna-se
apêndice da maquinaria. A máquina impõe uma racionalização da produção e do
trabalho (o taylorismo é expressão suprema do princípio ideológico da grande
indústria). Apesar disso, como diz Gramsci, “o operário continua ‘infelizmente’
homem, e inclusive, ele, durante o trabalho, pensa demais...” (Gramsci, 1984). A
racionalização taylorista absorve o corpo, mas não a mente. O sistema de máquinas
consome o homem como força natural — corporalidade, braços e pernas, cabeça e
mãos.
Ao contrário da manufatura, a técnica de produção da grande indústria
expande-se para a totalidade social, imprimindo a sua marca na reprodução social.
A modernidade do capital torna-se modernidade-máquina. O sistema de máquina
coloniza a vida social, alterando a percepção espaço-tempo do homem moderno.
Nas condições históricas da grande indústria, instaura-se com plenitude a disputa
tempo do trabalho estranhado versus “tempo livre”.
A produção em massa impõe consumo de massa. O “tempo livre” interverte-se
em tempo de consumo e lazer. Por isso, nas condições da produção da mais-valia
relativa, a luta pela redução da jornada de trabalho tornou-se eixo político da luta
de classes, inclusive no plano da consciencia de classe contingente. Torna-se mais
perceptível que o tempo é campo de desenvolvimento humano, como diria Marx; e,
mais ainda, campo de disputa do capital. Tempo de vida e tempo de trabalho tornam-
-se equações fundantes do movimento do ser social da modernidade do capital.

3. A MAQUINOFATURA

Sob as condições da terceira modernidade do capital, constitui-se, como


desdobramento da própria grande indústria, a terceira forma de produção do capital,
que denominamos “maquinofatura”, em que a dialética homem-técnica e homem-
natureza é revolucionada num patamar superior. O ponto de partida da maquinofatura
não é o revolucionamento da força de trabalho (como na manufatura), nem o
revolucionamento da técnica (como na grande indústria), mas sim o revolucionamento
do homem-e-da-técnica, ou o revolucionamento da própria relação homem-técnica.
Com a maquinofatura, é a relação homem-técnica que se coloca como ponto
de partida do revolucionamento do modo de produção capitalista. Na verdade,
com a grande indústria, o homem incorporou-se à técnica como tecnologia. É o
sentido da apendicização do homem como trabalho vivo à maquinaria. Trabalho

32
morto subsume trabalho vivo. Apesar disso, o operário continua “infelizmente”
homem. O homem é extensão problemática do sistema de máquinas. Ele, durante o
trabalho, pensa. Incapaz de impedir que o homem-apêndice pense, o capital-
-máquina visa constituir um novo nexo psicofísico e metabolismo social que permita
a constituição de homens com pensamentos mais conformistas. Portanto, com a
maquinofatura, constitui-se o homo tecnologicus (eis o sentido do conceito de ciber-
hominização).
O termo “maquinofatura” que utilizamos não diz respeito ao conceito utilizado,
por exemplo, por Raphael Kaplinski(2), que o considera meramente um modelo de
organização industrial (por outro lado, outros autores se aproximaram do sentido
do conceito de maquinofatura tal como o utilizamos, como, por exemplo, Ruy Fausto,
com o conceito de “pós-grande indústria” (Fausto, 1989); Francisco Teixeira, com
“cooperação complexa” (Teixeira e Frederico, 2008) e Fernando Haddad, com
“supergrande indústria” (Haddad, 1997).
Na verdade, utilizamos o termo “maquinofatura” tendo em vista a junção das
palavras “máquina” e “manufatura”. Com a maquinofatura, a forma-manufatura
repõe-se no interior do sistema de máquinas. Tal como na manufatura, o ponto de
partida do revolucionamento do modo de produção capitalista na maquinofatura
é a força de trabalho. Entretanto, não apenas força de trabalho como mercadoria,
mas a força de trabalho-subsumida-ao-sistema-de-máquinas. Isto é, trabalho vivo
reduzida a força de trabalho nas condições históricas do capitalismo manipulatório.
Deste modo, a maquinofatura, como a manufatura e a grande indústria, na
ótica marxiana, não seria apenas um “modelo” de organização da produção de
mercadorias, mas principalmente um modo de controle estranhado do metabolismo
social. É uma forma de produção social no interior da qual ocorreria o
desenvolvimento da produção do capital.
A maquinofatura coloca um novo ponto de partida para o revolucionamento
do modo de produção capitalista. Ela conclui o ciclo dialético de evolução da
produção do capital composto pela manufatura — grande indústria —
maquinofatura (no plano categorial expressaria a tese-antítese — síntese).
O surgimento da maquinofatura nos últimos trinta anos de desenvolvimento
do capitalismo histórico decorreu de processos históricos de luta de classes e de

(2) Raphael Kaplinski no texto “Industrial restructuring in LDCs: the role of information technology”,
apresentado no Seminário internacional “Padrões Tecnológicos e Processo de Trabalho — Comparações
internacionais”, Convênio USP/BID, São Paulo, em maio de 1989, fala da transição de um modelo
organizacional do tipo “maquinofatura” para um modelo de tipo “sistemofatura”; nessa transição, mais
que uma mera transformação da base técnica, de eletromecânica para micro-eletrônica, verificam-se
mudanças organizacionais internas e externas à empresa. A alteração nos padrões de organização da
produção vem associada à mudança das relações industriais e à tendência à cooperação no plano das
relações inter-empresariais.

33
mutações técnicas no processo de acumulação capitalista com a III Revolução
Industrial e suas revoluções tecnológicas (Alves, 2011). A maquinofatura implica
tanto processos históricos de dessubjetivação de classe, quanto o processo de
desenvolvimento da nova base técnica informacional no capitalismo global. Na
medida em que o capitalismo tardio constitui uma nova base técnica para a grande
indústria, com o aparecimento da máquina informacional (o que denominamos
como “pós-máquina”), põe-se os elementos de “negação” da grande indústria no
interior da própria grande indústria (Alves, 2002).
Com a maquinofatura, surgiu um novo momento de produção do capital em
que se coloca a necessidade candente de revolucionar o metabolismo social da
produção do capital, implicando, deste modo, alterar a relação social homem-
natureza, visando reconstituí-la e reordená-la de acordo com a base técnica adequada
ao novo patamar de acumulação do capital. A maquinofatura repõe a subsunção
formal no interior da subsunção real do homem ao capital. Deste modo, é nas
condições da terceira modernidade do capital que a nova base técnica exige um
novo metabolismo social capaz de promover um novo patamar de acumulação
capitalista sob as condiçõres críticas da crise estrutural do capital.
Se a grande indústria aboliu o processo de trabalho na medida em que o meio
de trabalho tornou-se ferramenta e o homem tornou-se mero apêndice da máquina,
com a maquinofatura repõe-se — num plano virtual — a máquina como instrumento
e o homem como vigia da máquina. Na verdade, tendo em vista que se trata de
reposição meramente virtual, isto é, posição de possibilidades contraditórias contidas
na nova base técnica, o novo homem que surge como “homem tecnológico” é um
feixe de contradições reais (o virtual é um modo de ser do real efetivamente
contraditório).
Com a maquinofatura, repõe-se o processo de trabalho abolido pela grande
indústria. Entretanto, os termos do processo de trabalho (ato teleológico, meio e
objeto) que eram postos na manufatura, sofreram alterações qualitativamente novas
com a maquinofatura. Por exemplo, o ato teleológico na maquinofatura continua
tendo uma teleologia alienada, mas a dimensão manipulatória esvaziou-o do sentido
estranhado (é a “consciência feliz” de Herbert Marcuse); o meio de trabalho na
maquinofatura repõe-se como instrumento e não apenas como ferramenta que
desloca o telos do homem (a máquina informacional é a “pós-máquina”); entretanto,
ele aparece apenas como instrumento virtual, tendo em vista que o sistema de
máquinas-ferramentas continua posto como horizonte teleológico da atividade
vital).
É a vigência da terceira forma de produção do capital — a maquinofatura —
que explica, por exemplo, a presença enquanto momento predominante da
reestrutura produtiva do capital, da “captura” da subjetividade do homem-que-
-trabalha e as novas formas de estranhamento que dilaceram o núcleo humano-
-genérico. Nesse caso, o capital atinge o seu limite radical, isto é, o capital atinge a sua
34
própria raiz, o homem, ou melhor, as relações sociais no sentido da constituição/
deformação do sujeito histórico como homem-que-trabalha.
O toyotismo como ideologia orgânica da produção de mercadorias surgiu no
seio da maquinofatura, na medida em que a “captura” da subjetividade do homem-
-que-trabalha pelo capital tornou-se seu nexo essencial (Alves, 2011). O capitalismo
manipulatório inaugura a era da maquinofatura como derivação lógica (e ontológica)
da grande indústria.
Ao mesmo tempo, a epidemiologia laboral nas condições históricas da
maquinofatura caracteriza-se pelo predomínio do adoecimento da mente, na medida
em que o que está sob tensão é — como na manufatura — o homem integral.
Entretanto, enquanto na manufatura o que está posto é o homem como força de
trabalho, na maquinofatura o que está posto em questão é o homem como trabalho
vivo. Nas condições do capitalismo manipulatório opera-se de modo radical, a
redução do trabalho vivo a força de trabalho (2009).
Deste modo, a redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria,
um traço do capitalismo moderno, assume dimensões qualitativamente novas. Ao
mesmo tempo, a tensão trabalho estranhado versus lazer não se põe mais como na
grande indústria, tendo em vista que o próprio lazer é erodido na medida em que a
produção do capital torna-se totalidade social. O lazer torna-se meramente um
momento da subjetivação estranhada do capital que antes só ocorria no tempo de
trabalho. Lazer é consumo. Lazer é entretenimento. Na era do hiperconsumismo e
dos valores-fetiche, que caracterizam o capitalismo manipulatório, o estranhamento
alarga-se para esferas do lazer e do consumo.
Portanto, o que se coloca como campo de disputa do capital com a terceira
forma de produção social do capital, a maquinofatura, é a disputa pela subjetividade
no sentido radical. Coloca-se como problemática central do nosso tempo o problema
da praxis humana capaz de fazer história ou ir além da pré-história humana
caracterizada pelas sociedades de classes.
O “homem tecnológico” é o homem rendido à manipulação/ “captura” da
subjetividade pelo capital, cuja disputa íntima o dilacera (o que explica o surto de
adoecimentos mentais no mundo do trabalho). Põem-se, nesta etapa de desenvolvimento
da maquinofatura, processos ideológicos de dessubjetivação de classe e a corrosão radical
do ser genérico do homem (o sociometabolismo da barbárie). Instaura-se, deste modo,
a crise da pessoa humana em sua dimensão radical. Coloca-se como questão estratégica
da emancipação humana a centralidade da formação da classe e a necessidade do controle
social.

Maquinofatura como barbárie social: a degradação da pessoa humana

O capitalismo global, a nova etapa histórica de desenvolvimento do modo de


produção capitalista, com sua dinâmica de acumulação flexível e regime de
35
acumulação predominantemente financeirizado, constituiu nos últimos trinta anos
(1980-2010) — os “trinta anos perversos”, o que denominamos de sociometabolismo da
barbárie, caracterizado pela precarização estrutural do trabalho numa dimensão ampliada
e intensa. Desemprego e trabalho precário ampliam-se na medida em que as economias
capitalistas não conseguem absorver o contingente imenso de força de trabalho disponível
para a produção social, principalmente nas condições de crise financeira.
Nas condições de crescimento do emprego por conta de retomada da economia,
a qualidade dos postos de trabalho não corresponde ao trabalho digno e seguro. Na
verdade, amplia-se o trabalho precário por conta da flexibilização da legislação
trabalhista e a redução dos direitos dos trabalhadores. Os programas de ajustes
neoliberais exigidos pelos mercados financeiros significam cortes em direitos
históricos das classes trabalhadoras.
Numa perspectiva histórica, observamos a redução e não a ampliação de
direitos sociais, apesar da crescente produção e acumulação de riqueza numa escala
inédita no plano mundial. Pelo contrário, como se constata por indicadores sociais,
aumentou nas últimas décadas nos países da OCDE, a concentração de renda e a
desigualdade social nos países capitalistas mais desenvolvidos. Na verdade, não se
trata de mera contingência da nova dinâmica capitalista capaz de ser corrigida por
políticas sociais compensatórias, mas sim um traço estrutural do capitalismo global
cuja superação efetiva exige alterações radicais no modo de controle do
sociometabolismo impossível de ocorrer nas condições de dominação política do
capital financeiro.
O capital financeiro tornou-se fração hegemônica da dinâmica de acumulação
capitalista não por acaso, mas sim em virtude de contradições materiais do processo
de valorização do valor e da dinâmica da luta de classes, onde a derrota sindical e
política do trabalho organizado, principalmente na década de 1970, fortaleceu, numa
situação de crise estrutural, as frações conservadoras capazes de promover um
processo radical de reestruturação capitalista, visando restaurar novos patamares
de acumulação de valor (o que se verificou na década de 1980 com a construção da
hegemonia política neoliberal no interior da ordem burguesa mundial).
A partir da década de 1980, e nos últimos trinta anos de desenvolvimento do
capitalismo mundial, consolidou-se a incrustação dos interesses das finanças na
morfologia social da ordem burguesa, esvaziando, desde modo, a plataforma política
de forças socias-democratas ou socialistas imbuídas de teleologia política voltada
para a preservação do Estado de Bem-Estar Social nos moldes da economia capitalista
baseada na hegemonia do capital produtivo (o que explica a crise da social-
-democracia europeia nas últimas décadas, cada vez mais identificada com o ideário
neoliberal). O próprio capital produtivo incorporou-se às novas finanças.
O novo metabolismo social que se constitui na era de hegemonia do capital
financeiro possui como traço característico o processo de desefetivação das

36
individualidades pessoais de classe. Esse processo de desefetivação do ser genérico do
homem — como diria Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos — é o
estranhamento, que se caracteriza pelo desmonte da pessoa humana como sujeito
humano-genérico capaz de “negação da negação”. O maior desafio histórico nos
tempos de barbárie social é criar estratégias político-coletivas de defesa e afirmação
da pessoa humana.
Sob a crise estrutural do capital tornou-se mais explícito a incompatibilidade
entre o desenvolvimento da pessoa humana e o capitalismo. Deve-se entender
capitalismo como modo de organização da produção social e modo de controle do
metabolismo social. Ele se constituiu historicamente em sua forma industrial há pouco
mais de dois séculos, assumindo hoje uma dimensão planetária. O capitalismo tornou-
-se um padrão civilizatório global que está cada vez explicitando seus limites.
A pessoa humana caracteriza-se por três atributos fundantes e fundamentais:
(1) Individualidade; (2) Subjetividade e (3) Alteridade. Vejamos como o movimento
do capital enquanto disseminação do trabalho estranhado nas condições de sua
crise estrutural corrói os atributos ontogenéticos da pessoa humana.

Individualidade

A individualidade se constitui na medida em que o homem como espécie


humana se apresenta como ser-em-si. A individualidade humana é uma construção
histórica. É produto do processo civilizatório como processo de individuação e
desenvolvimento histórico do ser humano-genérico que constituiu indivíduos
concretos, prenhes de unicidade, que afirma a singularidade do homem. O homem
como indíviduo pessoal é único. Na verdade, cada individualidade humana preserva,
em si, uma biografia social e um acervo de experiências singulares que constituem
sua identidade humano-pessoal. Cada individualidade humana conserva em si e
para si uma história de vida/história do trabalho.
É parte do processo de individuação como processo de desenvolvimento
humano-genérico a elaboração da memória individual e memória coletiva, plasmada
no sonho como “experiência expectante” (o que denominamos como sendo a
capacidade de expectativas, aspirações e utopias pessoais e coletivas).
O em-si único e singular do indivíduo social constitui-se sob o estágio mais
desenvolvido do processo civilizatório caracterizado pela redução das barreiras
naturais, a nossa natureza humano-pessoal, o caráter e a personalidade. O homem
em-si tem uma natureza humana intrinsecamente histórico-pessoal, social, coletiva
e idiossincrática com seus apetites anímicos, racionalidades e sociabilidades. Nós
não somos uma natureza, mas, sim, nós temos uma natureza que nos constitui como
individualidade pessoal — e nas condições do capitalismo histórico se manifesta
como individualidade pessoal de classe.

37
Na sociedade do capital, que tende a reduzir as individualidades pessoais a
individualidades de classe, a individualidade humana degrada-se em puro indivi-
dualismo. Ao reduzir-se a mero particularismo pessoal, a dimensão pessoal do homem
amesquinha-se. Com a presentificação crônica, perde-se os laços pessoais com a me-
mória pública e individual e oblitera-se a dimensão do sonho como transcendência
do hic et nunc.
Nas condições do processo civilizatório estranhado, o indivíduo pessoal re-
duz-se ao individuo-mônoda que se basta a si próprio. A lógica do capitalismo
neoliberal, na medida em que coloca na ordem do dia, a supremacia do mercado,
incrementando a concorrência e os valores da competitividade, tende a corroer as
individualidades pessoais, massificando-as e apagando do horizonte de sua auto-
percepção, a dimensão da unicidade. Este é um elemento de desvalorização/perso-
nalização humano-genérica. Ao mesmo tempo, o capitalismo flexível corrói o caráter
das individualidades pessoais com impactos na dimensão moral.
A vida reduzida, ou, ainda, vida líquida (Bauman) ou ainda vida nua (Agamben)
expressam aspectos da degradação da individualidade pessoal do homem nas
condições históricas do capitalismo global. Elas atingem o “em-si” da pessoa
humana, isto é, a base ineliminável para a formação de sujeitos pessoais de classe
capazes de negação da negação. O resgate da individualidade humano-social e a
reconstituição de sua unicidade histórico-biográfica (memória e utopia social) são
elementos fundamentais para a afirmação dos demais aspectos da pessoa humana:
subjetividade e alteridade.

Subjetividade

A subjetividade representa o ser-para-si-mesmo do homem. É próprio da


pessoa humana dispor de sua “natureza” humana caracterizada pela dimensão
anímica, racional e social. Essa disposição de Si é o que caracteriza a subjetividade
do homem-que-trabalha, o modo de ser sujeito que realiza efetivamente sua
individualidade pessoal, manifestando-se como singularidade pessoal. Dispor-se da
própria vida pessoal no tempo e espaço (território da existência pessoal), sendo
capaz de negação da negação, é o que caracteriza como sujeito, as individualidades
pessoais. Na sociedade do capital, que desenraíza a pessoa humana do seu em-si (a
individualidade), a corrosão da subjetividade ou a deficiência do homem tornar-se
sujeito pessoal capaz de “negação da negação”, torna-se irremediável. Por isso, a
subjetividade é uma construção problemática na ordem sociometabólica do capital.
Não existe para-si sem o em-si. Com a corrosão da subjetividade, o homem torna-se
incapaz de dispor de si e de sua natureza humana. Aliena-se de Si próprio e perde o
controle de sua vida pessoal.
A “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha pelos valores-fetiche do capital
no capitalismo global é um aspecto da corrosão da capacidade subjetiva do homem,

38
que se dobra às injunções da ordem do capital. Na medida em que não se afirma
como ser-para-si-mesmo torna-se ser-para-outrem, o Outro estranhado abstrato e
fetichizado (o capital). Ocorre um processo de desterritorialização subjetiva do
homem que, alienado do seu território de existência autêntica, onde se afirmaria
como ser em-si-para-si, projeta-se noutro território — o território da existência
inautêntica das implicações subjetivas fetichizadas e estranhadas do capital.

Alteridade

A alteridade se expressa pela dimensão de ser-com-o-outro que caracteriza as


pessoas humanas. Somente na relação com alguém se é pessoa humana. Esta quali-
dade de altericidade que caracteriza as individualidades pessoais como sujeitos hu-
manos explicita o ser social de homens e mulheres. É o homem como zoon politikon
no sentido pleno, elemento pressuposto do desenvolvimento da individualidade e
subjetividade. Na instância da alteridade é que se põem, como elemento ontologica-
mente constitutivo, as relações sociais e humanas que assumem historicamente for-
mas particulares.
A afirmação do Outro é condição sine qua non para a constituição da pessoa
humana como individualidade e sujeito capaz de dispor de si e intervir na sociedade.
A experiência da pessoa humana como alteridade implica relacionar-se efetivamente
com o Outro como diferença, apreendendo o Outro não como meio para fins
egoísticos, nem o reduzindo a seus papéis sociais. Na sociedade do capital, a
experiência da alteridade — o Outro como Próximo de Si — torna-se problemática
na medida em que as individualidades pessoais são intrinsecamente individualidades
pessoais de classe. A “classe” social subsume a pessoa humana — a classe como
condição de proletariedade.
Com a sociedade de massa e as redes sociais que propiciam a intensificação da
interação social, o que prolifera são simulacros de Outros. Multiplicam-se as
interações sociais e esvaziam-se as relações sociais humanas. O Outro como Próximo
de si implica necessariamente sociabilidade e território de existência autêntica prenhe
de relações sociais humanas (que se distinguem das relações humanas instrumentais).
Entretanto, o que se impõe pelo modo de controle do metabolismo social
hegemônico é a corrosão da alteridade na medida em que, diante da desefetivação
do Outro como Próximo de Si ou, ao mesmo tempo, a exacerbação particularista
do Si, desaparece efetivamente o polo reflexivo da individualidade pessoal.
Após essa exposição, como pensar hoje, sob o capitalismo global, os modos de
estranhamento que contribuem para a corrosão da pessoa humana e portanto para
a degradação da individualidade, a desefetivação do sujeito humano-genérico e a
invisibilidade do Outro como Próximo de Si?
39
Primeiro, vamos partir da seguinte observação de Karl Marx que diz que
“o tempo é o campo de desenvolvimento humano”. Nesse caso, o “humano” trata-se
da pessoa humana. Marx salienta isso no contexto da discussão sobre a importância
da luta pela redução da jornada de trabalho. Para ele, nas condições de vigência da
mais-valia relativa, a luta pela redução da jornada de trabalho assume uma centralidade
política e social na medida em que contribui para evitar que o capital em processo, na
medida em que reduz tempo de vida a tempo de trabalho, promova o estranhamento
e portanto obstaculize o desenvolvimento de homens e mulheres capazes de “negação
da negação”.
Trata-se da luta pela preservação — no caso das sociedades de transição à
modernidade — ou constituição — no caso das sociedades plenamente modernas
— de “territórios da existência autêntica”, trincheiras contra a voracidade do capital
que degrada o homem-que-trabalha. Portanto, a questão do controle e organização
do tempo de vida em funções do desenvolvimento de carecimentos pessoais é a
questão-chave para a preservação do sujeito histórico.
Numa perspectiva histórica, no decorrer do século XX, tivemos a redução da
jornada de trabalho nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas. Foi uma
conquista política da luta de classes que permitiu fortalecer o polo organizado do
trabalho em sua luta contra o capital em sua etapa histórica de ascensão,
principalmente nos trinta anos dourados do capitalismo fordista-keynesiano.
O “território da existência autêntica” tendeu a incorporar, no decorrer do
século XX, na medida em que reduzia-se a jornada de trabalho sob a pressão da
legislação trabalhista e a organização do trabalho, a forma social do mundo das
mercadorias, replicando na esfera do lazer e consumo, a lógica da alienação. O
tempo de vida liberado pela redução da jornada de trabalho interverteu-se em tempo
de consumo estranhado. O desenvolvimento intenso e ampliado do mundo das
mercadorias sob a vigência da grande indústria com sua carga manipulatória estava
contido na própria lógica da produção de mais-valia relativa e acumulação do capital
com suas crises e contradições no plano do mercado mundial. A intrusão da
mercadoria no território da existência autêntica e sua interversão em existência
inautêntica e a constituição da sociedade de consumo de massa ressignificou o
problema da organização do tempo de vida ou tempo liberado do trabalho alienado.
A afirmação marxiana de que o tempo é o campo do desenvolvimento humano
mantém a sua validade ontolológica. Entretanto, a centralidade política da redução
da jornada de trabalho, apesar de seu valor político irremediável para a luta da
classe trabalhadora, precisa ser melhor qualificada na perspectiva da reconstituição
de territórios da existência autênticas não subsumidos à lógica da mercadoria.
Deste modo, o estranhamento que ameaça o desenvolvimento humano sob o
capitalismo global vincula-se não apenas à dimensão da produção e organização do
processo de trabalho, mas vincula-se também à dimensão do consumo e lazer, isto é,
40
o tempo do não-trabalho propriamente dito. O território da existência autêntica
tendeu a ser “colonizado” pela forma-mercadoria na medida em que a sociedade
burguesa tornou-se efetivamente uma imensa coleção de mercadorias.
Não se trata de pressupor a possibilidade de territórios de existência autêntica
no mundo do capital, mas sim de identificar, com o avanço do modo de produção
capitalista e a vigência da forma-mercadoria, a abertura de territórios de existência
inautêntica clivado por candentes contradições entre o metabolismo social do capital
mediado pela forma-mercadoria/forma-Estado, posto pelo desenvolvimento
civilizatório do capital, e as individualidades pessoais de classe, pessoas humanas
suprassumidas pelo modo de organização social hegemônico.
Deve-se salientar a contradição viva como sendo o traço constitutivo do
território de existência inautêntica. Não se trata, deste modo, de uma inautenticidade
muda e passiva, mas, sim, de uma inautenticidade incisivamente inquieta e impassível.
É o que caracteriza a “consciência intranquila” do toyotismo.

1. Fordismo-taylorismo e a ascensão histórica da grande indústria

Na etapa do capitalismo histórico do pós-guerra, os “trinta anos gloriosos” do


desenvolvimento capitalista no núcleo orgânico do sistema mundial do capital,
quando se afirma a vigência do fordismo-taylorismo no campo da produção
capitalista, dissemina-se nos locais de trabalho, e na vida social, o trabalho
estranhado/alienado com pouca densidade fetichista e o consumo fetichizado.
Prolifera, pelo menos para o conjunto da classe trabalhadora organizada, coberta
pelo Welfare State, a “consciência tranquila”.
O trabalho fordista-taylorista possuía pouca densidade fetichista na medida
em que o controle capitalista no local de trabalho era bastante visível e expressamente
insatisfatório. A presença do despotismo de chefias e a monotonia e rotina da linha
de produção expunha a dimensão estranhada da dominação do capital. A loucura
da organização do trabalho capitalista era compensada pelas contrapartidas salariais
na ordem do consumo fetichizado.
No plano da ideologia da sociedade industrial, aceitava-se a ordem burguesa
na medida em que fruía-se do consumo fetichista de mercadorias. O consenso social-
-democrata construiu-se na troca tácita — nada perene, diga-se de passagem —
entre insatisfação no trabalho e satisfação no consumo e lazer fetichizado.

2. Toyotismo e a posição da maquinofatura

Na etapa do capitalismo global, o fetichismo da mercadoria desdobra-se para


múltiplas formas sociais de fetichismos, como, por exemplo, a vigência do fetichismo
do trabalho capitalista que se reorganiza como trabalho pós-fordista de feição
41
toyotista. Nesse caso, o capital altera o modo de implicação subjetiva na organização
do trabalho, articulando inovações no modo de gestão e na base tecnológica do
sistema de produção de mercadorias.
Com o espírito do toyotismo, exacerba-se o poder da ideologia visando recompor
o consentimento da força de trabalho e trabalho vivo às injunções do capital em
processo. A produção toyotista imiscui-se na vida social. Sob a vigência plena do
capitalismo manipulatório, trabalho e consumo estranhado tornam-se densamente
fetichizados. Ao mesmo tempo, a crise da social-democracia e dos arranjos políticos e
sociais do Welfare State sob a ofensiva neoliberal, ampliam a precariedade salarial e a
legitimação social da ordem burguesa pelo consumo de massa.
A crise da classe média ou crise da social-democracia no núcleo orgânico do
sistema do capital interverte a consciencia tranquila em consciência intranquila. A
intranquilidade ou sentimento de indignação dos proletários pós-modernos deriva
da agudização das contradições sociais no capitalismo global no plano do
sociometabolismo. O processo de precarização do homem-que-trabalha ocorre no
bojo dos territórios de existência inautêntica. A vida reduzida e a corrosão da pessoa
humana nas instâncias da individualidade, subjetividade e alteridade ativam um
campo problemático e contraditório no plano do metabolismo social.
A sociedade global é intrinsecamente intranquila. As individualidades pessoais
de classe sob a condição de proletariedade são obrigadas a dar resposta sob pena de
irem à ruína. Agudiza-se a tensão classe e pessoa humana de forma ampla e intensa.
A ideia da corrosão da pessoa humana por meio da vida reduzida baseia-se
efetivamente no processo de redução do tempo de vida a tempo de trabalho. Temos,
deste modo, a escassez do tempo e a deriva do Self. É um aspecto fundamental da
precarização do homem-que-trabalha que pode ser expressa na formulação do que
poderíamos denominar de diminuição da composição orgânica do ser genérico do
homem, determinada pela relação tempo de vida/tempo de trabalho.
Na verdade, o processo de modernização é o processo de constituição do tempo
de vida em territórios de existência inautêntica e redução do tempo de vida em
tempo de trabalho estranhado e fetichizado.
O trabalho estranhado fetichizado é o trabalho dominado intransparente e
perverso que ocupa o tempo de vida. Com a sociedade em rede, ele flui nos interstícios
sociais. É o trabalho abstrato fictício que invade o território da existência inautên-
tica colonizada pelo consumo fetichizado. Na medida em que, sob o capitalismo
fordista, o consumo fetichizado ocupou o tempo de vida e lazer, criaram-se as con-
dições sociometabólicas para que o tempo de vida esvaziado de conteúdo se tornasse
tempo de trabalho estranhado e fetichizado nas condições do capitalismo toyotista.
Portanto, antes de ser reduzida a trabalho abstrato fictício, a vida foi esvaziada de
conteúdo efetivamente humano pelo consumo fetichista.
Com o capitalismo global, o fetichismo da mercadoria com sua carga mani-
pultória penetra na produção, ampliando o território da existência inautêntica. O

42
toyotismo como ideologia da produção de mercadorias contém em si uma dimen-
são fetichista de alta intensidade, visando a “captura” da subjetividade do trabalho
pelo capital. Por isso, o trabalho toyotizado é trabalho estranhado densamente
fetichizado no sentido de ocultar com sutileza a exploração e dominação do capital
envolvendo objetivamente, com seus dispositivos linguístico-organizacionais, o tra-
balhador assalariado e o homem-que-trabalha.
Ao mesmo tempo, a derrocada do compromisso fordista-keynesiano e a crise
da sociedade de consumo (crise da “classe média”), com a persistência do consumo
densamente fetichizado devido à exacerbação da manipulação com a crise do capital,
ampliaram e intensificaram a carga de estranhamento, fazendo surgir a consciência
intranquila que caracteriza o proletariado pós-moderno.
Apesar da intensificação e ampliação da carga de estranhamento e fetichismo
social, dissemina-se, na mesma proporção, o mal-estar da hipermordenidade ou
consciência intranquila. É ela que permite recompor, de forma contraditória, a
classe do proletariado com demandas radicais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo


manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.
________. A condição de proletariedade. Bauru: Praxis, 2009.
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FAUSTO, Ruy. A pós-grande indústria nos grundrisse (e para além deles). In: Lua nova, novembro
de 1989, n. 19. São Paulo: Cedec.
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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais. Tempo social. São Paulo: USP, 1997.
KAPLINSKI, Raphael. Industrial restructuring in LDCs: the role of information technology.
Seminário internacional. Padrões tecnológicos e processo de trabalho — comparações internacionais.
São Paulo: Convênio USP/BID, 1989.
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
TEIXEIRA, Francisco; FREDERICO, Celso. Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2008.

43
Capítulo 2

DESEJO, “TRABALHO” E MORTE:


ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O “HOMEM”

Sergio Augusto Vizzacaro-Amaral

O ensaio a que nos propomos aqui abordará, como eixo fundamental, alguns
pontos trabalhados por Michel Foucault entre os anos que se seguiram ao longo da
primeira metade da década de 1960. Tal periodização se explica pela atenção dada
pelo autor aos problemas relacionados com a linguagem, a morte e as condições de
possibilidade das ciências humanas. Problemas, portanto, que se encontram
delimitados em livros como Nascimento da clínica, Raymond Roussel, As palavras e as
coisas e textos específicos como, por exemplo, “Prefácio à transgressão” e “O
pensamento do exterior”.
Nosso interesse é fazer articular, por meio da relação entre a morte e o surgimento
do homem, aquilo que Foucault detectou como sendo o “sono antropológico” — tão
característico do pensamento do século XIX, e que ainda ressoa até os dias atuais —
com algumas questões envolvidas na abordagem do “trabalho” enquanto espaço
determinante na produção do “humano”, ou da “humanização”.
E dentre essas questões, uma se destaca tanto pelo alcance quanto pela
intensidade de suas consequências: a humanização do homem pelo trabalho,
trazendo à tona a negatividade como seu fundamento. Obviamente, estaremos nos
enveredando em terras hegelianas, portanto, dialéticas.
Por outro lado, não desejamos uma discussão essencialmente hegeliana. Isto é,
Hegel, “em si”, não nos mobilizará. Diferentemente disso, traremos um texto bastante
interessante de Alexandre Kojéve — “A ideia de morte na filosofia de Hegel” — e, a
partir dele, traçaremos um caminho que terá como pontos de apoio alguns textos de
Georges Bataille (mas um “Bataille” de Foucault), e, fundamentalmente, Michel
Foucault. E, se Foucault anima nossa discussão, é com Nietzsche que estaremos, em
última instância, nos relacionando. Pois se há um “sono antropológico”, acordar
desse sono é apostar na “morte do homem”. Daí, pensar numa humanização do
homem pelo trabalho torna-se algo a ser superado.

44
1. KOJÉVE, HEGEL E A IDEIA DA MORTE

No escrito “A ideia da morte na filosofia de Hegel”, Kojéve inicia a discussão


apontando como seu “objetivo principal” mostrar como a ideia da morte assume
papel fundamental na filosofia de Hegel. A partir daí, o eixo central do texto estará
contaminado pela afirmação de que a filosofia, como disse Hegel, deve,
principalmente, exprimir o “verdadeiro” não como “substância”, mas como “sujeito”.
(Kojéve, 2002, p. 495)
Assim, sendo sujeito e não substância, o Ser passa a ser expresso em sua realização
enquanto “homem” e “mundo histórico”, trazendo à luz, por esse meio, a ruptura
diante da “tradição” filosófica, até então cativa, de acordo com Hegel, de uma
abstração das relações “reais” do próprio Ser. O que significa: “o filósofo não lida
apenas com o Ser-estático-dado (Sein) ou com a substância (objeto do discurso),
mas também com o sujeito do discurso e da filosofia”. (Kojéve, 2002, p. 496)
Em outras palavras, a filosofia não deve se contentar em explicar as bases
ontológicas da realidade natural, “ela deve buscar a realidade humana, que é a única
capaz de se revelar pelo discurso”. (Idem) É, portanto, em termos de uma
“Antropologia” que na filosofia, a partir de Hegel principalmente, mostra-se à
efetivação de um olhar voltado para o “Ser-revelado-pelo-discurso-em-sua-
realidade”. Realidade que é humana, histórica e que se revela pelo sentido dado no
e pelo trabalho do discurso (logos).
Consequentemente, como explica Kojéve (p. 496), “ao analisar as características
específicas da realidade humana, Hegel descobre a estrutura dialética do Ser e do real,
e a categoria ontológica da negatividade que se encontra na base dessa dialeticidade”.
Dessa forma, se o Ser pensado enquanto Ser-dado (Sein), ou substância, não resolve
o problema da totalidade do Ser (já que fica aquém da realidade humana e histórica,
e, portanto, também discursiva), na relação entre Ser e realidade pode-se instalar,
nesse entre, a partir do negativo, o sujeito enquanto negação desse Ser-dado.
Portanto, o sujeito, ou se quisermos, o homem, só é objetivamente real “pela negação
do Ser-dado (natural) que lhe serve de ponto de partida”. (Idem, p. 497)
Nesse momento, é importante destacarmos algumas questões: (1) o Ser-dado,
natural, estático, abstraído da realidade, fica aquém de qualquer possibilidade do
verdadeiro; (2) o Sujeito implica, como condição de sua própria existência, a ação
negadora do Ser-dado natural; (3) na ação negadora do Sujeito diante do Ser natural,
instaura-se, pela dialeticidade dessa ação, o humano; e, por último, (4) pela
negatividade, o Homem é resultado de um “afirmar-se”, ou de um “criar-se” e,
principalmente, o homem é devir.
Podemos dizer, como consequência dos pontos levantados anteriormente, que
o que está em jogo é, essencialmente, a “humanização” do Homem; isto é, o
aparecimento do homem como separação do Ser puramente natural do seio da

45
natureza; ou, ainda, que o jogo se faz pela oposição entre homem e natureza e pela
superação dessa oposição através da negação: movimento dialético do homem. Na
verdade, o homem só é “objetivamente-real” como movimento dialético ou como
resultado de “um longo processo ativo que começa por opor o homem à natureza da
qual ele fala e que ele nega por sua ação”. (Idem, p. 497. Grifo nosso)
Mas a filosofia é fundamentalmente descrição do verdadeiro, e o verdadeiro,
por sua vez, é a unidade entre o Ser e o Real. Assim, de um “primeiro momento”,
pelo qual se dá a oposição entre Ser e natureza, segue o processo dialético em direção
à “adequação perfeita e definitiva do Ser (substância) ao discurso (sujeito)”. (Idem,
p. 497) Em outras palavras, o verdadeiro é o “ser-revelado-pelo-discurso-em-sua-
realidade” (Idem, p. 495) Ora, como escrito antes, o homem, ao opor-se à natureza,
fala; e, ao falar, o Ser é Sujeito e é discurso em devir (é sentido). De acordo com
Kojéve (p. 497):
Essa filosofia, por um lado, é esse discurso revelador da totalidade. Mas
essa totalidade implica o discurso que a revela, assim como o processo do
devir desse discurso. Desse modo, quando se chega ao final da descrição
filosófica, é-se remetido para o seu início, que é a descrição de seu devir. O
termo-final desse devir descrito é o advento da filosofia absoluta.
Temos, então, por esse movimento, o sentido do sentido, o processo direcionado
por uma ação teleológica. Ação fundamentada na negatividade fundamental do
Sujeito em seu processo dialético. Por fim, no fim dos tempos, quando o homem
cessa de criar-se, de afirmar-se, retoma-se o percurso desde seu início, numa descrição
circular: totalidade acabada ou fechada do movimento dialético real (verdade
absoluta).
Dessa maneira,
O homem — que só difere essencialmente da natureza na medida em
que é razão (logos) ou discurso coerentemente dotado de um sentido
que revela o Ser — não é um Ser-dado, mas ação criadora (= negadora
do dado). O homem só é movimento dialético ou histórico (= livre),
revelador do Ser pelo discurso, porque vive em função do futuro, que
se apresenta sob a forma de um projeto ou de um objetivo a realizar
pela ação negadora do dado, e porque só é real como homem na
medida em que ele se cria por essa ação como obra (Werk). (Kojéve,
2002, p. 498-99)
Ainda com Kojéve, as consequências da dialeticidade do ser é que “o saber só é
objetivamente-real e só pode ser exposto como ciência ou como sistema”. (Idem,
p. 499) Além do mais, se temos a “totalidade acabada”, efetivada no fim dos tempos
por meio desse “sistema” enquanto “verdade absoluta”, o que vem à tona, no
Absoluto da verdade, é o Espírito (Geist).

46
A entidade-espiritual (das Geist) é “em e para si”: “Afirmar que o absoluto é
Espírito equivale a afirmar a estrutura dialética do Ser e do real, considerados no
conjunto, ou como totalidade integrada”. (Idem, p. 500) Enfim, o Espírito é, ao
mesmo tempo, Ser-em-si (identidade, tese, Ser-dado, natureza) e Ser-para-si
(negatividade, antítese, ação, homem), ou melhor, Ser-em-si-e-para-si (totalidade,
síntese, obra, história — movimento). E essa “totalidade” implica tanto o mundo
natural quanto o mundo humano ou histórico e o universo do discurso: sujeito e
objeto, pensamento e Ser, natureza e homem, seriam meras abstrações se
considerados isoladamente. Portanto, “somente o conjunto da realidade, revelada
pelo conjunto do discurso, é uma realidade objetiva; e esse conjunto, no duplo
aspecto, isto é, o mundo natural que implica o homem que dele fala, é precisamente
o que Hegel chama de Espírito”. (Idem, p. 500)
Porém, se a totalidade, se o movimento dialético do Ser e do real e se a realidade
revelada são o Espírito, somente o são sob a condição fundamental de que o homem,
ou o Sujeito, é finito, mortal; isto é, somente há a criação de si do homem,
historicamente determinada, se o homem morre. Contra a “tradição antiga”, que
tinha o homem como ser puramente natural (idêntico a si mesmo) e mais próximo
da tradição “pré-filosófica” judeu-cristã, que tem o homem essencialmente diferente
da natureza (homem que é criado e que se cria), Hegel estabelece o ser espiritual ou
dialético em termos necessariamente temporal e finito. Isto porque se o ser aparece
como infinito, ele, em última instância, não se liberta do Ser-dado-natural
(eternamente idêntico a si mesmo), o que seria o mesmo que a renúncia à liberdade,
à historicidade e individualidade verdadeira do homem. Assim, para que o homem
se realize, para que o ser apareça em sua realidade histórica ou espiritual, é necessário
que ele seja “limitado no tempo, isto é, essencialmente mortal”. (Idem, p. 502) Em
outras palavras, Hegel “compreendeu que o homem só podia se um indivíduo
histórico se fosse mortal” (Idem, p. 503), isto é, finito no tempo e, principalmente,
consciente de sua finitude.
É, portanto, a finitude do homem, e a consciência desta finitude, que permite
ao homem realizar-se. E do mesmo modo que se afirma o homem como aquele que
morre, nessa morte a que o homem deve deparar-se para ser realmente o que é,
também se tem, juntamente com ela, a morte de Deus: não há possibilidade da
finitude do homem sem a morte de Deus. Pois o homem só é real “na medida em que
vive e age no seio da natureza; fora do mundo natural, ele é puro nada”. (Idem, p. 503)
(...) negar a vida após a morte é, de fato, negar o próprio Deus. Pois
afirmar que o homem, que transcende efetivamente a natureza na medida
em que a nega (pela ação), se aniquila assim que se situa fora dela, aí
morrendo como animal, equivale a dizer que não há nada além do mundo
natural. O mundo não-natural chamado transcendente ou divino é na
realidade o mundo transcendental (ou que fala) da existência histórica
humana, que não vai além do âmbito temporal e espacial do mundo

47
natural. E Deus só é objetivamente real no interior desse mundo natural,
onde existe apenas sob a forma do discurso teológico do homem.
E se o homem é mortal, Deus só é possível existir no seio do mundo natural,
enquanto discurso teológico do próprio homem. Então o Espírito-absoluto não
pode ser Deus, mas sim a “totalidade espaciotemporal do mundo natural que implica
o discurso revelador desse mundo e de si mesmo”: o Espírito é, especificamente, o
Homem-no-mundo: “homem mortal que vive num mundo sem Deus e que fala de
tudo o que existe e de tudo o que ele cria, inclusive ele próprio”. (Idem, p. 503) O
homem-no-mundo, sem Deus, é aquele que morre e sabe que morre. É, pois, aquele
que, ao saber que morre, aceita essa sua morte, a encara e se põe, livremente, a ela
sem recuo, sem desvio e, às vezes, a procura voluntariamente.
Mas a morte é o que existe de mais terrível, e sustentar-se diante dela exige
“a maior força”. (Idem, p. 505) E o Espírito “só é essa força na medida em que ele
contempla o negativo bem-de-frente (ins Angesicht schaut) e ainda se instala perto
dele”. (Idem) E instala-se numa “estada-prolongada” que “transpõe o negativo em
Ser-dado (Sein)”. (Idem) Eis o “trabalho” do Espírito que, diante da morte, diante
da negatividade, prolonga esta negatividade num negar o Ser-dado.
Dessa maneira, é na negação do dado, do natural, que entra em jogo a
possibilidade da separação entre o animal e o homem, ou separação entre o Sujeito
(do discurso) e a natureza estática, dada. Na verdade, o que temos aqui, é algo que
separa o homem do animal e da coisa, mas o separa por meio do discurso, pois o
homem é aquele que se separa da natureza e fala dela. Mas o discurso só é discurso
coerente (logos), se por ele, na força da oposição-negação da natureza, tem implicado
o entendimento humano. Em suma, na ação do entendimento, que age pela negação
do dado, temos a morte do animal e o início da vida do homem, mesmo que esta
vida esteja já colocada diante da sua própria morte.
Em última instância, o entendimento é essa força absoluta, que se manifesta na
e pela “atividade da separação”. Ou, ainda, o entendimento é força ou potência de
abstração que se encontra no homem. (Idem, p. 506) E essa capacidade “não é nada
fictícia ou ideal. Porque é separando reunindo coisas em e por seu pensamento
discursivo que o homem formula seus projetos técnicos que, uma vez realizados pelo
trabalho, transformam realmente o aspecto do mundo dado, nele criando um mundo
cultural. (Idem, p. 507)
A “separação”, a negação, o instalar-se diante do negativo, da morte, ações
somente possíveis pela “força absoluta” do entendimento, nos dá a dimensão
essencialmente humana, pela qual o homem diz e se diz, isto é, dimensão discursiva,
por onde passam os conceitos. Não há, portanto, conceito sem abstração, sem
negação, sem separação entre mundo natural e mundo humano, entre homem e
coisa, ou, o que seria o mesmo, entre Sujeito e Objeto.

48
Assim, o conceito é a própria entidade real, só que destacada, separada de
seu hic et nunc, de seu suporte material; suporte este determinado de maneira
unívoca pelo resto do universo espaciotemporal. E nessa abstração, efetuada
pelo entendimento, que forma o conceito, tem-se a coisa mesma, a própria
entidade real só que em sua essência. Essência que é também “ideia” ou “sentido”.
Porém, “o conceito não é um sentido ou uma ideia, mas uma palavra-que-tem-
sentido, ou um discurso coerente (logos)”. (Idem) Isto porque o sentido não paira
num vazio; ou melhor, o sentido existe sempre por meio de uma palavra, de um
discurso, que estão, por sua vez, sempre num mundo espacial e temporal. Enfim, “a
força absoluta do entendimento só separa a ideia-essência de seu suporte natural
para ligá-la, como ideia sentido, ao suporte específico de um discurso, que, por sua
vez, está aqui e agora (já que ele só é discurso-dotado-de-um-sentido na medida em
que é compreendido por um homem concreto)”. (Idem)
Por fim, o entendimento age contra a natureza, nega o dado tal como é dado,
separa a essência da existência, de seu suporte natural, encarnando tal essência
enquanto ideia ou sentido numa palavra, ou discurso coerente. Por esse processo,
tem-se, pois, a existência empírica própria da essência, agora em sua liberdade
separada. Isto porque, enquanto ideia ou sentido encarnado na palavra-discurso a
essência não mais está sujeita à necessidade que a rege quando ainda se encontra
ligada a seus suportes naturais, determinados de maneira unívoca por seu aqui e
agora. (Idem, p. 509) Eis o que Hegel chama de “milagre da filosofia”, que é,
justamente, separar a essência e encarná-la no sentido do discurso.
Por outro lado, se temos a explicação da possibilidade do discurso, falta explicar
porque o discurso se torna real, isto é, “como e por que se consegue efetivamente
‘destacar o sentido do ser’ e encarná-lo num conjunto de palavras que nada tem em
comum com esse sentido e que foram criadas apenas para essa encarnação”. (Idem)
E tal “falta” Hegel a explica por meio da “categoria ontológica fundamental da
negatividade”, ou da “entidade-negativa-ou-negadora”. Para Hegel, como explica
Kojéve, a negatividade é a “energia do pensamento”, do “Eu-abstrato” puro, que
gera o entendimento e seu discurso. (Idem, p. 510) De acordo com Kojéve, se o
discurso “expressa um pensamento que pertence a um Eu, esse Eu tem necessariamente
uma existência-empírica no mundo espaciotemporal natural, sendo um Eu humano.
O que é Eu-abstrato (Ich) no plano ontológico (sendo esse Eu a forma sob a qual
subsiste a negatividade na identidade ou no Ser-dado) é Eu-pessoal (Selbst) humano
no plano metafísico: é o homem que, no plano fenomenológico, aparece como
indivíduo livre histórico que fala”. (Idem)
Na verdade, o homem é a própria negatividade encarnada. Negatividade que
efetiva sua separação da natureza, ou de seu “suporte animal”, e que faz dele um Eu
que pensa e que fala. No plano ontológico, a negatividade se atualiza como ato
negador ou criador, subsistindo como Eu-abstrato; no plano metafísico, temos o
“ser verdadeiro” do homem enquanto “ação”, pela qual ele se faz “objetivamente-

49
-real”; já, no plano fenomenológico, temos a “ação” da luta pelo reconhecimento,
trazendo o homem à tona, e temos, também, e tão fundamental quanto, a ação do
trabalho, implicando em seus relacionamentos, um processo que é essencialmente
marcado e determinado pelo tempo que efetivamente engendra seu próprio fim. O
que permite afirmar que o homem é ação, mas ação negativa aparecendo como
morte: “o homem é, em sua existência humana ou que fala, uma morte mais ou
menos adiada e consciente de si”. (Idem, p. 512)
Nesse ponto, é importante destacar o homem-no-mundo, em sua existência
humana, como homem que fala. Pois o homem aceita, pensa e fala de sua própria
morte: o discurso é o que nasce no homem que se opõe à natureza, ou que nega pela
luta o animal dado que é ele próprio, e nega pelo trabalho o mundo natural que lhe
é dado. (Idem) É desse dilaceramento do real em homem e natureza, portanto, que
nascem o entendimento e seu discurso.
Mais especificamente, o homem é “a morte que vive uma vida humana”. (Idem,
p. 513) É morte adiada, é afirmação do nada pela negação do dado; o ser humano é,
pois, negação da imediatidade natural: e é, por isso, ação que mediatiza. No plano
metafísico, o Ser que se revela a si mesmo é o homem-no-mundo, essencialmente
finito, que se cria no tempo pela negação ativa do Ser e que, sendo negação ou
negatividade, aniquila a si mesmo depois de haver perdurado. (Idem, p. 514) “Em
resumo, o homem é a doença mortal da natureza. Por isso, ao fazer parte
necessariamente da natureza, ele é essencialmente mortal” (Idem, p. 518)
E se o homem se dá na negação da natureza, nessa ação que o separa do
simplesmente dado, tal negatividade pode ser identificada enquanto liberdade: “A
liberdade consiste no ato de negar o real em sua estrutura dada e manter a negação
sob a forma de uma obra criada por essa negação ativa”. (Idem) E sendo a
negatividade o nada que se manifesta na morte, a liberdade é também morte e não
há liberdade sem morte: “só o mortal pode ser livre”. (Idem) O que nos permite
afirmar que a morte voluntária ou aceita com pleno conhecimento de causa é a
manifestação suprema da liberdade, pelo menos da liberdade abstrata do indivíduo
isolado. Portanto, a liberdade é autonomia em relação ao dado, é possibilidade de
negá-lo, e “só pela morte voluntária o homem pode escapar do domínio da condição
dada”. (Idem, p. 519)
Porém, a liberdade não pode ser absoluta, pois é puro nada e morte. Sendo
negação do dado, a liberdade somente é real quando se dá como criação do novo ou
como obra realizada. (Idem, p. 520) Ou, ainda, a liberdade somente se realiza como
história: “A história é transcendência (aqui na Terra). É supressão dialética do homem
que se nega (como dado) conservando-se (como ser humano) e se sublima (= progride)
por sua autonegação conservadora”. (Idem, p. 521) E ao negar-se-conservando-se,
o homem conserva a universalidade da ação individual, embora haja, nessa ação, a
aniquilação ou a morte do indivíduo. (Idem) A história, portanto, é movimento
dialético, implicando na finitude do que se move, isto é, na “morte dos homens que
criam a história”. (Idem)

50
Em suma, a “base última da existência-empírica humana, (...), a fonte e a origem
da realidade humana, é o nada ou a força da negatividade, que só se realiza e se
manifesta pela transformação da identidade dada do ser em contradição criadora
do devir dialético ou histórico, no qual só há existência na e pela ação (que é realidade-
-essencial ou a essência do homem), e no qual o agente não é o que é (como dado) e
é o que ele não é (desde toda eternidade)”. (Idem, p. 535)
E, por fim, o homem é “o nada que nadifica (como ação ou tempo real histórico)
ao suprimir-dialeticamente o que é e ao criar o que não é”. (Idem)

2. KOJÉVE, HEGEL, O DESEJO, O TRABALHO E A MORTE

Se o homem é a morte adiada, ou se o homem é a morte que vive uma vida


humana e se a morte entra como a negatividade pela qual, na ação de negar o dado,
faz do animal o humano, esta ação da negatividade se faz, no plano fenomenológico,
essencialmente, pelo desejo. “É o desejo que transforma o Ser revelado a si mesmo
por si mesmo no conhecimento (verdadeiro) em um objeto revelado a um sujeito
por um sujeito diferente do objeto e oposto a ele”. (Idem, p. 11) É pelo desejo que o
homem ultrapassa o animal e se torna consciência de si, isto é, se constitui e se revela
a si e a outros como um Eu, essencialmente diferente e oposto ao não-Eu. Em outras
palavras, o Eu humano é o Eu de um — ou do — desejo. (Idem, p. 12)
O desejo torna o homem “in-quieto” e o leva a ação: mas ação que somente
pode satisfazer o desejo pela negação (destruição/transformação) do objeto. Isto é,
toda ação é negadora, é destruição do dado, senão em seu Ser, ao menos em sua
forma dada. Por isso, toda negatividade-negadora, em relação ao dado, é
necessariamente ativa. (Idem, p. 12) Porém, mesmo sendo uma atividade que implica
na destruição do objeto, ela não chega a ser totalmente destrutiva; isto porque,
nessa atividade que destrói, há a criação de uma realidade subjetiva: se o Eu do
desejo é um vazio, ele recebe, pela satisfação destruidora desse desejo, o conteúdo
positivo real ao assimilar o não-Eu, o objeto.
Mas o Eu criado tem a mesma natureza das coisas desejadas. Sendo assim, se o
Eu se dirige ao objeto natural, o Eu que deseja também será um Ser natural criado
pelo desejo: será apenas um “Eu-coisa”, um Eu apenas vivo, um Eu animal, e nunca
atingirá a consciência de si. Portanto, e fundamentalmente, para que haja a
possibilidade da consciência-de-si, é preciso que o desejo se dirija a um objeto não-
-natural, isto é, algo que ultrapasse a realidade dada, o Ser-dado natural. (Idem) E a
única coisa que ultrapassa o real dado é o próprio desejo, porque o desejo, enquanto
desejo antes de sua satisfação, é apenas um nada revelado, um vazio irreal: presença,
portanto, da ausência de uma realidade.
Assim, quando o desejo desloca-se do objeto natural, acionando para sua
satisfação um outro desejo, considerado, neste caso, enquanto desejo mesmo, ele
51
cria, por essa ação negadora e assimiladora, um Eu completamente diferente do Eu
simplesmente dado, ou animal. “Esse eu, que se alimenta de desejos, será ele mesmo
desejo em seu próprio Ser, criado na e pela satisfação de seu desejo”. (Idem)
E o desejo do desejo é, essencialmente, desejo humano, cuja condição é de que
haja não um, mas uma multiplicidade de desejos: “O homem, portanto, só pode
aparecer na Terra dentro de um rebanho”. (Idem, p. 13) Por outro lado, para que o
rebanho se torne uma sociedade (humana, portanto), é necessário que os desejos de
cada membro busquem — ou possam buscar — os desejos de outros membros. A
sociedade só é humana como desejos desejando-se mutuamente enquanto desejos.
(Idem) Como explica Kojéve, “o desejo que busca um objeto natural só é humano na
medida em que é mediatizado pelo desejo de outrem dirigido ao mesmo objeto”,
isto é, “é humano desejar o que outros desejam, porque eles o desejam”: “A história
humana é a história dos desejos desejados”. (Idem)
Dessa maneira, é possível afirmar que o desejo quando tem por “objeto” um ou
mais desejos, sem se importar com a questão biológica em si, tem caráter
antropogênico — é humanizante. Diferentemente do desejo animal, que visa para
sua satisfação apenas a assimilação de coisas reais, o homem supera o dado ao negá-
-lo/assimilá-lo na satisfação de seus desejos, e o supera, justamente, por ter nessa sua
satisfação uma multiplicidade de desejos implicados.
Mas o desejo do desejo é, também, desejo de um valor. Portanto, se no caso do
animal, o valor supremo consiste na conservação de sua vida animal, para o homem
o valor deve, para se ter aí o homem, superar a conservação da própria vida, ou
melhor, para que o homem seja homem, ele deve arriscar a vida animal que possui
em função de seu desejo humano: “É nesse e por esse risco que a realidade humana se
cria e se revela como realidade; e nesse e por esse risco que ela se confirma, se
demonstra, se verifica e se comprova como essencialmente diversa da realidade
animal, natural”. (Idem, p. 14) Falar da consciência-de-si (do homem) é falar do
risco de morte em vista de um objeto não-vital.
E o valor que também se deseja, entra como valor que se deseja ser para um
outro desejo, ou melhor, é desejar que o valor que eu sou ou que eu represento seja
valor desejado por outro: “desejo que ele [o outro] reconheça meu valor como seu
valor, quero que me reconheça como um valor autônomo”. (Idem, p. 14) Nas palavras
de Kojéve, “todo desejo humano, antropogênico, gerador da consciência-de-si, da
realidade humana, é, afinal, função do desejo de reconhecimento. E o risco de vida
(sic) pelo qual se confirma a realidade humana é um risco em função desse desejo.
Falar da origem da consciência-de-si é, pois, necessariamente falar de uma luta de
morte em vista do reconhecimento”. (Idem)
E é justamente esta luta de morte em função do reconhecimento do outro, ou
por puro prestígio, que torna possível o homem: “Somente nessa e por essa luta a
realidade humana se engendra, se constitui, se revela a si própria e aos outros”.
(Idem) No entanto, a luta não pode terminar na morte de um ou dos dois adversários.

52
Neste caso, quando a morte se efetiva realmente de um lado ou de outro, o
reconhecimento torna-se impossível, pois a morte de um dos adversários implica no
desaparecimento desse outro desejo que era buscado pelo desejo (humano). Assim,
“para que a realidade humana possa constituir-se como realidade reconhecida, é
preciso que ambos os adversários continuem vivos após a luta”. (Idem, p. 15) E a
vida conservada deve estabelecer uma desigualdade entre os envolvidos na luta: um
deve ceder, deve recusar-se a arriscar a vida em nome da satisfação do seu desejo de
reconhecimento.
Nesse processo de “recusa” em arriscar a vida diante da possibilidade da morte,
há, também e fundamentalmente, a necessidade de que essa recusa se reverta em
reconhecimento do outro, isto é, a conservação da própria vida implica diretamente
no abandono do próprio desejo em função da satisfação do desejo do outro. É,
também, reconhecimento do outro sem ser reconhecido por ele, e “reconhecê-lo
assim é reconhecê-lo como senhor e reconhecer-se (e fazer-se reconhecer) como
escravo do senhor”. (Idem, p. 15) Nesse sentido, “o homem nunca é apenas homem.
É, necessariamente e essencialmente, senhor ou escravo”. (Idem)
A sociedade só é humana se envolver, entre seus membros, relações de
dominação e sujeição, pelas quais se estabelecem, por sua vez, existências autônomas
e dependentes. Dominação e sujeição, autonomia e dependência, senhor e escravo,
promovem, pela interação entre si num movimento dialético, a consciência-de-si.
Na verdade, a consciência-de-si tem sua origem em tais relações desiguais e de
dominação e sujeição.
Entretanto, a consciência-de-si só existe se for reconhecida; isto é, só existe
enquanto entidade-reconhecida. Ora, se a relação é essencialmente — e precisa ser
—, desigual, a consciência-de-si, que foi subjugada, reconhecerá a do outro, que,
pelo seu caráter dominante, não a reconhecerá em contrapartida: temos, então,
nessa relação, a efetivação de dois extremos (que se enfrentam) em que um é apenas
entidade-reconhecida e o outro é apenas entidade-que-reconhece.
Além disso, há ainda, a questão da objetividade da ideia que o homem faz de si
mesmo. Ou seja, para que essa ideia apareça como uma verdade, “é preciso que ela
revele uma realidade objetiva, isto é, uma entidade que vale e existe não apenas para
si, mas também para realidades outras (que não sejam ela)”. (Idem, p. 17) Um
homem, portanto, para ser, de fato e verdadeiramente um homem, precisa impor a
ideia que faz de si mesmo aos outros: “deve fazer-se reconhecer pelos outros (no
caso-limite ideal: por todos os outros)”. (Idem)
Nesse “impor”, nessa ação que se encarna na desigualdade resultante da luta
por prestígio, tem-se a revelação de uma verdade subjetiva em uma verdade objetiva,
a partir do reconhecimento dos outros. Logo, tal verdade objetiva é o reconhecimento
da “certeza puramente subjetiva que cada um tem de seu próprio valor”, o que
significa que o homem deve ter em si a certeza de ser reconhecido pelo outro. (Idem,
p. 18)
53
O escravo perde sua autonomia ao reconhecer o senhor. Perde-a por não ter
arriscado sua vida até o fim e, principalmente, por ter aceitado a vida concedida
pelo outro, dependendo, pois, desse outro que lhe permitiu que vivesse. Em suma, o
escravo preferiu a destruição de sua autonomia, preferiu a dependência, a escravidão
à morte. O senhor, diferentemente, ao subjugar o outro sem aniquilá-lo
completamente, existe para si, enquanto consciência mediatizada consigo mesma
por uma outra consciência. Mediação esta que se dá por meio do escravo, ou melhor,
por meio do trabalho do escravo.
No entanto, o escravo também tem sua autonomia, mas na “coisidade” e como
Ser-dado autônomo. Ele também se relaciona com a coisa de uma maneira-negativa-
-ou-negadora, ao suprimi-la dialeticamente; o que o escravo não pode fazer e não
faz, é consumi-la, dando ao senhor tal possibilidade. Ao escravo somente é dada a
possibilidade de transformar a coisa pelo trabalho, preso que está ao desejo do
senhor: a atividade da consciência servil é a atividade própria da consciência do
senhor. (Idem, p. 23) O senhor, por outro lado, consegue dar cabo da coisa e
satisfazer-se na fruição. O senhor é livre em relação à natureza, pois se libertou de
sua própria natureza ao arriscar a vida na luta.
Mas há um “impasse existencial” na dialética senhor-escravo. Impasse trazido pela
insuficiência inerente à situação do senhor: o reconhecimento não consegue ultrapassar
o limite de ser unilateral. Isto porque, mesmo que o escravo reconheça o senhor, este não
reconhece o escravo, esvaziando, assim, o próprio valor do reconhecimento pelo qual o
senhor arriscou sua vida. Ou, ainda, o senhor, ao buscar outro desejo, tornou-se senhor,
mas apenas de um escravo. O escravo, por não ser reconhecido como homem, é tido
apenas como um animal ou coisa, “logo, o senhor é reconhecido por uma coisa”. E se o
reconhecimento buscado na luta é o prestígio diante de outros homens, no final, quando
a dominação passa a ser encarnada pelo escravo-coisa-não-homem, tem-se o desejo de
reconhecimento nunca satisfeito do senhor.
Há, então, na relação entre o senhor e o escravo, como realidade-essencial
dessa relação, a “imagem-invertida-e-falseada” da dominação: “a verdade da
consciência autônoma é a consciência servil”. (Idem, p. 24) Como o senhor só pode
fazer-se reconhecer pelo escravo, ele “não está subjetivamente seguro do Ser-para-si
como de uma verdade [ou uma verdade objetiva revelada]”. (Idem) Em suma,
O escravo se submete ao senhor. Aprecia, reconhece o valor e a realidade
da autonomia, da liberdade humana. Mas não a vê realizada nele. Só a vê
no outro. E essa é a sua vantagem. O senhor, por não poder reconhecer o
outro que o reconhece, acha-se num impasse. O escravo, ao contrário,
reconhece desde o princípio o outro (o senhor). Basta-lhe pois impor-se
a ele, fazer-se reconhecer por ele, para que se estabeleça o reconhecimento
mútuo e recíproco, o único que pode realizar e satisfazer plena e
definitivamente o homem. É certo que, para que isso aconteça, o escravo
deve deixar de ser escravo: ele tem de transcender-se, de suprimir-se como
54
escravo. Mas, se o senhor não tem nenhum desejo — logo, nenhuma
possibilidade — de suprimir-se como senhor (já que para ele isso
significaria tornar-se escravo), o escravo tem todo interesse de deixar de
ser escravo. Aliás, a experiência dessa mesma luta que fez dele escravo o
predispõe a esse ato de auto-supressão, da negação de si, de seu Eu dado
que é um Eu servil. (Idem, p. 25)
Nesse sentido, o escravo “é devir histórico desde a sua origem, em sua essência,
em sua própria existência”. (Idem) E, como dito antes, se a única possibilidade de
um reconhecimento mútuo recai sobre o escravo, é sobre ele, também, que se aloja,
na ação de “suprimir-se”, a abertura à mudança. O escravo, que sentiu a angústia da
morte e experimentou a dissolução de tudo o que é fixo-e-estável, pode, agora,
encarnar a própria transcendência, a trans-formação, a educação. Já o senhor, ao
contrário, está fixado em sua dominação e não pode, a não ser pela morte efetiva,
superar tal condição de senhor.
Entretanto, se o escravo possui a “predisposição” à mudança, tal predisposição
é realizada, fundamentalmente, pelo trabalho efetuado a serviço do senhor. Isto
porque, “ao trabalhar, o escravo torna-se senhor da natureza”. (Idem, p. 26) O
trabalho liberta o escravo da natureza, “o liberta de si próprio, de sua natureza de
escravo: liberta-o do senhor”. (Idem) Se no mundo natural (bruto/dado) o escravo
é escravo do senhor, “no mundo técnico, transformado pelo seu trabalho, o escravo
reina — ou ao menos reinará um dia — como senhor absoluto”. (Idem) Dessa
maneira, o futuro passa a pertencer ao escravo que, “ao transformar pelo trabalho
o mundo dado, transcende o dado e o que nele está determinado por esse dado; ele
se separa, superando também o senhor que está ligado ao dado que ele deixa —
porque não trabalha — intato”. (Idem) Assim, se a angústia perante a morte
(encarnada no senhor durante a luta) funciona como condição do progresso histórico
(por arrancar a consciência servil de qualquer fixidez), é somente pelo trabalho que
o escravo pode realizar o progresso. Pois “pelo trabalho, a consciência chega a si
mesma”. (Idem, p. 27)
Enquanto para o senhor, que não produz nada e apenas destrói o trabalho do
escravo, a satisfação é basicamente esvaecimento, é satisfação imediata do desejo,
consumo, fruição ociosa, para o escravo, o trabalho é “um desejo reprimido, um
esvaecimento impedido”, é, em outras palavras, ação que “forma-e-educa”. (Idem)
E educa porque reprime o instinto de consumir imediatamente o objeto bruto: “ao
trabalhar, ele [o escravo] se transcende; ou, se preferirem, ele se educa, cultiva,
sublima seus instintos ao reprimi-los”. (Idem) Enfim, no trabalho, o escravo transforma
a coisa, ao mesmo tempo em que se transforma. E essa transformação de si é possível
porque
a relação negativa-ou-negadora com o objeto-coisa se constitui em uma
forma desse objeto e em uma entidade-permanente, exatamente porque, para
o trabalhador, o objeto-coisa tem autonomia. Ao mesmo tempo, esse meio-

55
-termo negativo-ou-negador, isto é, a atividade formadora do trabalho, é a
particularidade isolada ou o Ser-para-si puro da consciência. Esse Ser-para-
-si penetra agora, pelo trabalho, naquilo que está fora da consciência, no
elemento da permanência. A consciência que trabalha chega assim a uma tal
contemplação do Ser-dado, que ela contempla a si mesma. (Idem)
O trabalho, portanto, humaniza o homem, o escravo, cria um mundo objetivo,
um mundo não-natural, um mundo cultural, histórico — um mundo humano. É,
portanto, processo que liberta o escravo da angústia que o ligava à natureza dada e
à sua própria natureza inata e animal. Mas o trabalho não possui um sentido
exclusivamente positivo, como ação criadora do mundo técnico essencialmente
humano: “O ato-de-formar a coisa pelo trabalho tem também uma significação
negativa-ou-negadora dirigida contra o primeiro elemento-constitutivo da
consciência subordinada, ou seja, contra a angústia”. (Idem, p. 28) Isto é, o escravo
supera a angústia, ao se reconhecer a si mesmo no trabalho e na obra que é sua.
Assim, o homem que trabalha “reconhece a si mesmo; vê aí sua própria realidade
humana; descobre e revela aos outros a realidade objetiva de sua humanidade”.
(Idem, p. 29)
Em suma, o escravo, que passa pela renúncia de sua autonomia diante da ameaça
da morte, livra-se da morte em si, mas não, necessariamente, da própria ameaça. É
a morte que se arrasta totalizando o sentido de sua existência, sem que seja realmente
efetivada. É a angústia diante da possibilidade da morte, portanto, que envolve o
escravo em sua condição de subjugado pelo senhor. Porém, tal angústia é superada
pela “educação” advinda do trabalho, quando o escravo torna-se “senhor” da
natureza que ele nega a si, como consumo imediato, e a nega pelo seu trabalho ao
transformá-la. E, ao transformar a natureza, através de sua atividade-negativa-
-negadora, ele nega, também, sua própria natureza servil, já que consegue ver, na
obra de seu trabalho, a objetivação de si mesmo. O escravo, ou a consciência servil,
no e pelo trabalho, ao exercer a ação negadora da natureza dada, transforma a
natureza ao mesmo tempo em que se transforma; tal relação cria, pela negação do
dado, uma consciência que é em-si-e-para-si, pois, ao negar, ele se reconhece na
objetivação de sua atividade-negativa-negadora: “por este ato-de-encontrar a si
por si, a consciência que trabalha torna-se portanto sentido-ou-vontade própria;
ela se torna isso precisamente no trabalho, no qual ela parecia ser apenas sentido-
-ou-vontade estranha”. (Idem, p. 29) Em suma, “é ao servir o outro, ao exteriorizar-
-se com os outros que alguém se liberta do terror escravizante provocado pela ideia
de morte. Por outro lado, sem a formação-educadora pelo trabalho, a angústia
permanece interna-ou-íntima e silenciosa, e a consciência não se constitui para si.
Sem o trabalho que transforma o mundo objetivo real, o homem não pode
transformar realmente a si”. (Idem)
Aliás, a transformação puramente subjetiva não é suficiente, pois não implica
na comunicação aos outros dessa transformação; ela não se objetiva e não pode ser

56
reconhecida e nem fazer-se reconhecer. Somente o trabalho põe em acordo a ideia
subjetiva e o mundo objetivo.
Diferentemente do senhor, que apenas vive na fruição do trabalho do escravo,
estático e fixo nesse seu lugar de domínio sem nada poder criar, o escravo, no e pelo
trabalho, transforma o mundo, cria o mundo e, portanto, cria a si mesmo por meio
dessa ação negadora-criadora, criando, também, novas condições objetivas “que lhe
permita retomar a luta libertadora pelo reconhecimento que, anteriormente, ele
recusou”. (Idem, p. 31) Por fim, “todo trabalho servil realiza não a vontade do senhor,
mas a — inconsciente no início — do escravo, que — afinal — consegue vencer naquilo
em que o senhor — necessariamente — fracassa. Portanto, a consciência inicialmente
dependente, que serve e é servil, é que realiza e revela no fim das contas o ideal da
consciência-de-si autônoma, e que é assim a sua verdade”. (Idem)
A discussão apresentada neste item serve-nos, principalmente, para
introduzir algumas questões que serão retomadas, agora, no próximo item do
texto. Questões estas que podem ser trazidas sob a ressonância que o Hegel de
Kojéve, com todas as suas nuances e cores, exerceu sobre certos trabalhos ou sob
certas consequências do pensamento de Bataille. Obviamente, também nos
moveremos em direção a Foucault, pois é com ele que olharemos tanto Bataille
quanto o Hegel de Kojéve. Por outro lado, e já que nosso problema chega-nos via
a relação entre a morte, o trabalho e o surgimento do homem, com toda a carga
negativa que se pode vislumbrar por entre tais espaços, Agamben exerce, aqui, um
papel tangencial, mas, ao mesmo tempo, crucial, por atrair sentidos, produzindo
uma espécie de som de fundo, capaz de impor alguns de seus ritmos aos outros
autores, incluindo aí o próprio Foucault.
Assim, como chegamos ao ponto onde Hegel, por meio de Kojéve, assume o
papel de nos demarcar o espaço, tanto fenomenológico quanto metafísico, do
problema do surgimento, ou emergência, do homem, faz-se necessário, agora, partir
para o que chamaremos, juntamente com Foucault, as condições de possibilidades
dessa emergência humana, tão marcada pelo negativo, pela morte, pela ausência e
pelo vazio.
Se o homem, como pudemos ver, é a morte que vive uma vida humana; se o
homem, por ser essa morte e por estar essencialmente posto diante de sua própria
finitude; e se, finalmente, pelo homem passa, inevitavelmente, a dominação, a
repressão, a ameaça e o recalque de seus desejos, então, ao pensarmos esse homem,
precisamos perguntar-nos, como o fizerem Nietzsche, Foucault, Agamben e tanto
outros, que modo esse “nada que nadifica” o mundo pode passar a existir e,
fundamentalmente, se esse “lugar” humano já não se tornou demasiadamente
humano. Certamente, nossa pergunta não vai além do que já foi dito e escrito, mas
tentaremos, assim mesmo, excursionar por esses espaços de solo tão batido.

57
3. FOUCAULT, O HOMEM E A MORTE: FINITUDE

Trata-se da morte, portanto... Trata-se da morte de Deus e, pela mesma linha,


da morte do homem. Certamente, quando Deus sai de cena, e justamente por esta
“saída”, sobe ao placo, em seu vazio deixado às vistas, a finitude do próprio homem.
No item anterior, Kojéve nos mostrou que Hegel condiciona o surgimento do homem
à morte de Deus: é somente pela morte de Deus que o homem pode aparecer. Por
isso, nessa morte, nesse afastamento dos deuses, no vazio deixado por eles, o sujeito
toma seu lugar e se impõe munido de seu “projeto” histórico, inerente à própria
condição de ser sujeito histórico e, portanto, finito.
Em seu livro sobre Foucault, Deleuze (2005) fornece, para o nosso caso, de
maneira bastante exata, a possibilidade de delimitarmos nossa pergunta de agora:
como se deu o surgimento do homem e qual sua relação com a morte? Isto é, Deleuze,
nesse momento, permite-nos uma exatidão com relação à nossa questão, que não
teremos receio em recorrer a sua fala.
Para Deleuze, o aparecimento do Homem, como pensou Foucault, somente
foi possível quando as forças no homem começaram a afrontar-se “com as forças do
de-fora, que são as forças de finitude”. (Deleuze, 2005, p. 170) Em outras palavras,
“é preciso que a força no homem comece por afrontar e estreitar as forças de finitude
enquanto forças do de-fora: é fora de si que ela tem de haver com a finitude. Em
seguida, e só em seguida, num segundo tempo, faz dessa finitude a sua própria finitude,
toma dela consciência como se da sua própria finitude”. (Idem, p. 171)
Tais forças do “de-fora” podem ser entendidas como forças que compõem a
vida, o trabalho e a linguagem: a “tripla raiz da finitude”. (Idem, p. 170) Ora, é a
partir dessa “tripla raiz” que se crava na série infinita da representação — o
pensamento clássico do século XVII — uma profundidade, ou mesmo uma espessura,
pela qual o volume, em ruptura com a superfície dos quadros expostos pela História
Natural, pela Gramática e Análise das Riquezas, constitui objetos e, com estes, o
espaço empírico onde a economia, a biologia e a linguística encontrariam, mais
tarde, sua condição de possibilidade. Mas a questão, aqui, é a finitude. Finitude esta
que inaugura a possibilidade do surgimento de uma forma-homem. Nas palavras de
Deleuze, as “forças do homem conformam-se ou dobram-se nessa nova dimensão de
finitude em profundidade, que então se torna a finitude do próprio homem”. (Idem,
p. 173)
A trama da profundidade, do volume e das empiricidades exposta anterior-
mente ainda não será trabalhada aqui; entretanto, posto isto, resta-nos especificar-
mos outro problema: “quando a forma-homem aparece, ela não o faz sem englobar
já a morte do homem”. (Idem, p. 175) E é esta “exatidão” do problema formulado
por Foucault que fomos procurar em Deleuze, o que devemos seguir, mas a partir de
agora com o próprio Foucault.

58
3.1. O “sono antropológico”

Trata-se do homem, portanto... De acordo com Foucault, “antes do fim do


século XVIII, o homem não existia. Não mais que a potência da vida, a fecundidade
do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. É uma criatura muito recente
que a demiurgia do saber fabricou com sua mãos há menos de 200 anos: mas ele
envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele espera na sombra, durante
milênios, o momento de iluminação em que seria conhecido”. (Foucault, 1995. p.
324) E o homem só pôde vir à tona, justamente, porque houve entre as superfícies
dos “quadros” desenhados pela representação — por onde se movimentavam os
seres vivos, as riquezas e as palavras —, o traçado em direção a certa profundidade,
escavando, nessas superfícies, uma concretude que pode ser traduzida pelas dimensões
do volume.
O “volume” indica o objeto em sua independência. Já não é mais ao nível dos
signos que as coisas são postas em ordem, e o homem já não mais se dá “ao lado” dos
outros seres, ou das outras coisas do mundo. O homem, quando se modifica as
relações do conhecimento, surge no distanciamento e, ao mesmo tempo, no
pertencimento com os objetos, as coisas. Isto é, o homem aparece enquanto sujeito
e objeto de sua própria compreensão. (Dreyfus; Rabinow, 2010. p. 35)
Mas o volume do objeto em sua concretude, posto pela profundidade, só pôde
existir quando, na quebra das superfícies, a ordem do mundo deixou de ser dada por
Deus. Como havíamos escrito antes, com Deleuze, é na emergência da finitude que
no desaparecimento de Deus o homem toma forma. É sem Deus, portanto, que o
mundo se constitui através do problema do homem enquanto sujeito e objeto de seu
próprio conhecimento. Ora, sem Deus, o que nos chega por essa ausência é a certeza
de que o homem só é homem porque morre, porque está determinado em sua finitude.
E quando o homem morre porque Deus se ausenta, em vez da análise das
representações, temos, em seu lugar, a analítica da finitude:
A morte que corrói anonimamente a existência cotidiana do ser é a mesma
que aquela, fundamental, a partir da qual se dá a mim mesmo minha vida
empírica; o desejo que liga e separa os homens na neutralidade do processo
econômico é o mesmo a partir do qual alguma coisa me é desejável; o
tempo que transforma as linguagens, nelas se aloja e acaba por desgastá-
-las, é esse tempo que aloja meu discurso antes mesmo que eu tenha
pronunciado numa sucessão que ninguém pode dominar. (Idem, p. 331)
Assim, inserido que está no embaraçamento entre sujeito que compreende e
objeto pelo qual a compreensão se dá, o homem passa ao mesmo tempo em que se vê
finito, a estabelecer a condição dessa sua finitude como fundamento sobre o qual
erige seu conhecimento. O que é o mesmo que dizer que a “finitude do homem se
anuncia — e de forma imperiosa — na positividade do saber; sabe-se que o homem

59
é finito, como se conhecem a anatomia do cérebro, os mecanismos dos custos de
produção ou o sistema de conjugação indo-europeia.” (Idem, p. 329) Ou, ainda,
“cada uma dessas formas positivas, em que o homem pode aprender que é finito, só
lhe é dada com base na sua própria finitude”. (Idem, p. 330)
Como explicam Deyfus e Rabinow (2010, p. 38), “a modernidade começa com
a incrível e finalmente inexplorável ideia de um ser que é soberano precisamente pela
virtude de ser escravizado, um ser cuja finitude lhe permite tomar o lugar de Deus”.
E, ao tomar para si esse lugar, ao se ver soberano na “escravidão” imposta pela
finitude, o homem também estabelece, para si, a partir de seus próprios limites, o
fundamento de seu saber. Vemos, aqui, o que Foucault denuncia como a repetição
do empírico no transcendental:
Vê-se como a reflexão moderna, desde o primeiro esboço dessa analítica,
se inclina em direção a certo pensamento do Mesmo — onde a Diferença
é a mesma coisa que a Identidade — exposição da representação, com sua
realização em quadro, tal como ordenava o pensamento clássico. É nesse
espaço estreito e imenso, aberto pela repetição do positivo no fundamental,
que toda essa analítica da finitude — tão ligada ao destino do pensamento
moderno — vai desdobrar-se: é aí que se verá sucessivamente o
transcendental repetir o empírico, o cogito repetir o impensado, o retorno
da origem repetir seu recuo; é aí que se afirmará, a partir dele próprio,
um pensamento do Mesmo irredutível à filosofia clássica. (Foucault, 1995.
p. 331)
Com relação ao “trabalho”, é com Ricardo que ele adquiriu uma
“interioridade”, ou melhor, uma ordem que é dada por leis próprias dentro dessa
sua interioridade. (Idem, p. 329) Ao contrário de Adam Smith, que via o trabalho
como uma medida constante responsável pela relação entre os valores das coisas,
para Ricardo o trabalho deixa de ser signo para tornar-se valor: é por ele, como
atividade de produção, que se tem o próprio valor das coisas. (Idem, p. 268-269)
Assim, “se as coisas valem tanto quanto o trabalho que a elas se consagrou, (...), não
é porque o trabalho seja um valor fixo, (...), mas sim porque todo valor, qualquer
que seja, extrai sua ordem do trabalho.” (Idem, p. 269) Portanto, o trabalho passa
a ser o conceito fundamental para se explicar a troca, o lucro e a produção. A partir
disso, Foucault apresenta três consequências: (1) o trabalho organiza-se segundo
uma causalidade que lhe é própria; (2) a noção de raridade; e (3) a evolução da
economia. (Idem, p. 271-275)
Com relação à primeira consequência, pela autonomia causal encontrada no
processo de trabalho, entra em cena a possibilidade de se articular a economia com
a história. Isto é, as riquezas organizam-se e acumulam-se, agora, numa cadeia
temporal: “todo valor se determina não segundo os instrumentos que permitem
analisá-lo, mas segundo as condições de produção que o fizeram nascer” (Idem,

60
p. 271) Enfim, a reflexão econômica passa, então, a ser envolvida pelo tempo
concretizado pelos modos de produção sucessivos na história.
Já com relação à segunda consequência, vemos a noção de que é na ameaça da
morte que surge o trabalho; isto é, o trabalho surge quando não há mais possibilidade
de subsistência sob outras formas. Nas palavras de Foucault:
A cada instante de sua história, a humanidade só trabalha sob a ameaça
de morte: toda população, se não encontra novos recursos, está fadada a
extinguir-se; e inversamente à medida que os homens se multiplicam,
empreendem trabalhos mais numerosos, mais longínquos, mais difíceis,
menos imediatamente fecundos. Como a pendência da morte se faz mais
temível à proporção que as subsistências necessárias se tornam de mais
difícil acesso, o trabalho, inversamente, deve crescer em intensidade e
utilizar todos os meios de se tornar prolífico. (Idem, p. 272)
Em outras palavras, a economia encontra seu princípio onde a vida afronta a
morte. E nesse enfrentamento da morte, aloja-se um vão antropológico: a
positividade da economia se dá por estar, fundamentalmente, ligada à ideia de
carência, mas de uma carência existente com todo o peso da ameaça da morte. O
homem, portanto, “é aquele que passa, usa e perde sua vida escapando a iminência
da morte”. (Idem, p. 272) Assim, se o homem luta contra a ameaça da morte, e se
essa morte se concretiza na inevitabilidade da carência adiada pelo trabalho, tem-
-se, então, o mecanismo pelo qual a economia tenta dar à finitude suas formas
concretas. Em suma, desde Ricardo, a positividade da economia repousa sobre uma
antropologia da finitude.
Com a terceira consequência, temos a noção de evolução da economia. E tal
noção, também, assenta-se na finitude natural do homem: “Só há história (trabalho,
produção, acumulação e crescimento dos custos reais) na medida em que o homem
como ser natural é finito”. (Idem, p. 274) Na verdade, a finitude insere, na cadeia da
evolução econômica, uma espécie de final inevitavelmente disposto diante do
aniquilamento; o que é o mesmo que dizer que “quanto mais o homem se instala no
cerne do mundo, quanto mais avança na posse da natureza, tanto mais fortemente
também é acossado pela finitude, tanto mais se aproxima de sua morte”. (Idem) Eis
o pessimismo de Ricardo: no fim, no desenrolar de um tempo já comprometido pela
“erosão da História”, quando a carência e a falta instalam-se de maneira absoluta,
conferindo, assim, um “ponto-limite”, a finitude “aparecerá enfim em sua pureza”.
(Idem, p. 275)
Por outro lado, se o pessimismo de Ricardo é uma maneira de “percorrer as
relações entre antropologia e História, tais como a economia as instaura através das
noções de raridade e de trabalho” (Idem, p. 276), há a possibilidade aberta por
Marx, como uma espécie de “solução” ao impasse do aniquilamento no tempo. Para
Marx, a solução para o impasse possui sua condição na ideia da História desempenhar

61
um papel essencialmente negativo: ao passo que as condições de pressão sobre o
homem se intensificam pela miséria, pela carência ou pela iminência do desemprego
crônico, quando, enfim, “repelida pela miséria até aos confins da morte, toda uma
classe de homens faz, como que a nu, a experiência do que sejam a necessidade, a
fome e o trabalho”, então, “naquilo em que os outros atribuem à natureza ou à
ordem espontânea das coisas”, tal “classe de homens” reconhece “o resultado de uma
história e a alienação de uma finitude que não tem essa forma. É essa verdade da
essência humana que eles podem, por essa razão — e que só eles podem — reassumir
a fim de a restaurar. O que só poderá ser obtido pela supressão ou, ao menos, pela
reversão da História tal como ela se desenrolou até o presente: somente então
começará um tempo que não terá mais nem a mesma forma, nem as mesmas leis,
nem a mesma forma de transcorrer”. (Idem) Eis a promessa revolucionária de Marx.
Assim, se o pessimismo de Ricardo incorre num fim da história dramático,
com a possibilidade de “afrouxamento indefinido” ou da “reversão radical” da
História em seu fim, abre-se espaço para o ressurgimento, no século XIX, de utopias,
mas com a característica própria dessas se referirem mais ao “crepúsculo” do tempo
do que à sua “aurora”. (Idem, p. 277) De qualquer forma, independentemente do
drama experimentado pelo homem enquanto “homem”, tais utopias serviram para
reanimar o humanismo. Em suma, “o escoar do devir, com todos os seus recursos de
drama, de alienação, será captado numa finitude antropológica que aí encontra em
troca sua manifestação iluminada. A finitude com sua verdade se dá no tempo; e
desde logo é a utopia dos pensamentos causais, como o sonho das origens era a
utopia dos pensamentos classificatórios”. (Idem, p. 278)
Por fim, como diz Foucault, “a antropologia como analítica do homem teve
indubitavelmente um papel constituinte no pensamento moderno, pois que em grande
parte ainda não nos desprendemos dela”. (Idem, p. 357) E tal antropologia, que tem
em sua essência a questão kantiana “o que é o homem”, não por Kant, mas pelo
desenvolvimento dessa questão, impôs ao pensamento moderno aquilo que podemos
chamar de “reino humano” que, em última instância, trata-se do problema da
reduplicação empírico-transcendental, ou, também, de uma reflexão de nível misto.
E nessa “reduplicação”, através da qual se tenta “fazer valer o homem da
natureza, da permuta ou do discurso como fundamento de sua própria finitude”
(Idem), a filosofia dorme um sono antropológico. Mas se a filosofia ainda possui
muito desse seu sono se arrastando por entre o pensamento moderno e
contemporâneo, por outro lado, e principalmente a partir de Nietzsche, também
muito se fez para destruir, na filosofia, tais raízes antropológicas. Pois é na experiência
de Nietzsche que se encontrou “o ponto onde o homem e Deus pertencem um ao
outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e
onde a promessa do super-homem significa, primeiramente e antes de tudo, a
iminência da morte do homem”. (Idem, p. 358)

62
3.2. A morte, a linguagem e o estatuto do “sujeito”

Trata-se da morte de Deus e do Homem, portanto, trata-se do desaparecimento


do sujeito... Se Deus e o homem pertencem um ao outro, como disse Nietzsche, e se
na morte de Deus o homem também anuncia seu fim, esta morte de Deus, já
experimentada em Hölderlin, quando, na figura de Empédocles, os deuses se afastam,
instala-se sobre a Terra o fim do infinito. Foucault indica esta questão já em seu livro
O nascimento da clínica (1998, p. 228-229) e o retomará, sob diversas outras formas,
em muitos de seus textos seguintes, como, por exemplo, em A linguagem ao infinito
de 1963, Prefácio à transgressão, também de 1963, ou em O pensamento do exterior,
este de 1966. E dentre essas diversas formas, o que podemos notar é o estreito vínculo
existente entre o desaparecimento dos deuses e a experiência moderna e
contemporânea da erosão do sujeito, que se esvai num vazio cravado na linguagem.
Em o Não do Pai, de 1962, em que Foucault aborda algumas questões sobre a
obra e a ausência de obra em Hölderlin, o autor marca, seguramente, um “corte”
que se mostra claro: “é proclamando os deuses que Empédocles os profana, e lança
no coração das coisas a flecha de sua ausência”. (Foucault, 2009. p. 181) E em sua
ausência, ou numa presença dessa ausência, instala-se um espaço vazio na cultura
europeia, pelo qual vai aparecer tanto a finitude do homem quanto o retorno do
tempo. (Idem, p. 183) Porém, juntamente com essa finitude, que, como vimos,
alicerça os fundamentos das positividades do saber do e sobre o homem, é na
linguagem onde se sentiu com maior força tal vazio. Por outro lado, se o vazio se faz
sentir na linguagem, o faz de modo a trazer a própria linguagem ao lugar de sua
autonomia: “A linguagem então tomou uma estatura soberana; ela surge como
vinda de alhures, de lá onde ninguém fala; mas só existe obra se, remontando seu
próprio discurso, ela fala na direção de sua ausência”. (Idem)
Autonomia que vem, também, envolvida numa autorreferência, onde o sujeito
já não consegue mais fazer-se existir, simplesmente porque não tem mais lugar nessa
linguagem. Autorreferência, por sua vez, que trazida à tona pelo limite da morte,
abre-se para um espaço infinito, a partir do qual ela se reflete a si mesma num relato
do relato interminável. Foucault, ao referir-se a Homero em A linguagem ao infinito
(Idem, p. 48) descreve tal movimento como um dos “grandes acontecimentos
ontológicos da linguagem”, que seria, nas palavras do autor, “sua reflexão em espelho
sobre a morte e a constituição a partir daí de um espaço virtual onde a palavra
encontra o recurso infinito de sua própria imagem e onde infinitamente ela pode se
representar logo atrás de si mesma, também para além de mesma”. (Idem, p. 48-49)
E a importância dessa questão é que por ela se chega, no refletido infinito do espelho,
ou no relato do relato inacabado, ao murmúrio da própria linguagem quando esta
entra em relação com a morte. Murmúrio, portanto, que se alastra, sem sujeito, sem
“Eu”, sem parada sobre um espaço desprovido de qualquer designação que não seja
a própria palavra.

63
E se Hölderlin marca a ausência dos deuses, a obra de Sade, a seu modo, abre a
linguagem para a um “estranho limite, que ela, no entanto, não para de transgredir”.
(Idem, p. 54-55) Limite, portanto, que a obra não para de se apropriar, subtraindo,
por esse movimento, não apenas seu sentido, mas também seu ser: “nela, o jogo
indecifrável do equívoco não é nada mais do que o sinal, muito mais grave, dessa
contestação que a força a ser o duplo de toda linguagem (que ela repete queimando-
-a) de sua própria ausência (que ela não cessa de manifestar)”. (Idem) Repetição,
portanto, alimentada pelo murmúrio do “já dito”, espaço definido pela biblioteca,
por onde a linguagem se entrega a si mesma, “devotada a ser infinita porque não
pode mais se apoiar na palavra do infinito”. (Idem, p. 58)
Do mesmo modo, em “Posfácio a Flaubert”, de 1964, Foucault mostra como,
no século XIX, com a “descoberta de um espaço de potência da imaginação”, o
quimérico não mais nasce de uma “noite da razão”, mas de um desdobrar-se na
biblioteca. Como escreve Foucault, “para sonhar, não é preciso fechar os olhos, é
preciso ler”. (Idem, p. 80): “São palavras já ditas, recensões exatas, massas de
informações minúsculas, ínfimas parcelas de monumentos e reproduções de
reproduções que sustentam na experiência moderna os poderes do impossível”.
(Idem) Flaubert, no caso, assim como Manet na pintura, leva a obra literária para
junto dos livros, da biblioteca, do murmúrio do já escrito. (Idem, p. 81)
Assim, somente quando a linguagem se desloca sobre si mesma, num desdobrar
no vazio e no murmúrio impessoal do já dito, é que se pode pensar em literatura
como a conhecemos hoje. Pois a literatura, em última instância, “se caracteriza por
um redobramento”, por um movimento este, que “lhe permitiria designar-se a si
mesma”. (Idem, p. 220) Movimento, que além desse desdobramento, também marca
a direção da linguagem por uma “passagem para o fora”. Em O pensamento do
exterior, lemos:
“é a linguagem se colocando o mais longe possível dela mesma; e se, nessa
colocação ‘fora de si’, ela desvela seu ser próprio, essa súbita clareza revela
mais um afastamento do que um clarão, mais uma dispersão do que um
retorno dos signos sobre eles mesmos. O ‘sujeito’ da literatura (...) não
seria tanto a linguagem em sua positividade quanto o vazio em que ela
encontra seu espaço quando se anuncia na nudez do ‘eu falo’”. (Idem, p.
221) É que o “eu falo” funciona em sentido contrário ao “eu penso”.
Enquanto o primeiro se dá numa “fala da fala”, num espaço exterior
“onde desaparece o sujeito que fala”, pois se está no domínio do “ser da
linguagem”, o segundo se reflete numa dobra do pensamento, ou melhor,
num “pensamento do pensamento”, que nos conduz “à mais profunda
interioridade”. (Idem)
Nesse ponto, no ponto do “eu falo”, pelo qual o sujeito se desfaz, e que é o
movimento próprio da linguagem quando ela se relaciona consigo mesma, indica o

64
motivo pelo qual a filosofia hesitou, por tanto tempo, “em pensar o ser da linguagem:
como se ela tivesse pressentido o perigo que constituiria para a evidência do ‘eu dou’
a experiência nua da linguagem”. (Idem) Ou, em outras palavras, “o ser da linguagem
só aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito”. (Idem, p. 222)
O “pensamento do exterior”, como experiência da linguagem, que tem em
Sade e Hölderlin seu lugar no “fora” da reflexão filosófica do século XVII-XVIII,
tempo de Kant e Hegel, em que “a interiorização da lei histórica e do mundo jamais
foi tão requisitada pela consciência ocidental”, reaparece por volta da segunda
metade do século XIX, por meio de nomes como o de Nietzsche, Mallarmé, Artaud,
Bataille ou Klossowski. (Idem, p. 223)
E é necessário levar tudo isso ao limite. A linguagem deve estar voltada, não
numa confirmação de uma interioridade, mas para uma “extremidade em que lhe
seja preciso sempre se contestar”, ela deve ir em direção ao vazio, “aceitando se
desencadear no tumor, na imediata negação daquilo que ela diz, em um segredo que
não é a intimidade de um segredo, mas o puro exterior onde as palavras se desenrolam
infinitamente”. (Idem, p. 224)
Linguagem que Foucault encontra nas palavras de Blanchot, que ao invés de
seu uso dialético, preso à interiorização do negado levado à sua objetivação num
exterior que não chega a libertar-se dessa interiorização, sempre passam, num
movimento de negação de seu próprio discurso, ao fora de si mesma.
Porém, se a questão aqui é estabelecer, por meio da experiência da linguagem,
a dissolução daquele sujeito que encontramos no jogo dialético, jogo este exposto
por Hegel e desencadeado por Marx, terminamos com algumas referências a Bataille,
mas o Bataille exposto nos escritos de Foucault.
Em Bataille, Foucault relaciona a sexualidade com a linguagem e a morte de
Deus: “Talvez a importância da sexualidade em nossa cultura, o fato de que desde
Sade ela tenha estado tão frequentemente ligada às decisões mais profundas de nossa
linguagem, consistam justamente nesse vínculo que a liga à morte de Deus”. (Idem,
p. 30) Morte esta que se efetiva na experiência de supressão do “limite do Ilimitado”,
instaurando, assim, o “ilimitado do Limite”. É no “reino do ilimitado do Limite”,
quando da ausência de Deus, que se tem a possibilidade aberta de uma experiência
interior e soberana. Isto é, na morte de Deus, quando o “Ilimitado” deixa de se
impor enquanto nosso limite exterior, o que vem por essa ausência é justamente a
possibilidade de lidarmos com um limite que se refere, constantemente, somente a
nós mesmos. Para Bataille, portanto, essa abertura para o ilimitado do Limite é
também uma abertura para o pensamento: “Matar Deus para libertar a existência
dessa existência que a limita, mas também para conduzi-la aos limites que essa
existência ilimitada apaga (o sacrifício)”. (Idem, p. 31) Ou, ainda, matar Deus para
que essa morte nos constitua a um “mundo que se desencadeia na experiência do
limite, se faz e se desfaz no excesso que a transgride”. (Idem)

65
E o mais forte, aqui, para o nosso caso, é que na ação da transgressão, inaugurada
na ausência de um limite exterior ao ser, e estabelecida pelo jogo do limite ilimitado,
nada de negativa se instaura. Porque a transgressão “não é violência em um mundo
partilhado (em um mundo ético) nem triunfa sobre os limites que ela apaga (em um
mundo dialético ou revolucionário)”. (Idem, p. 33) Nada é negada na transgressão,
ela apenas afirma o ser limitado, “afirma o ilimitado no que ela se lança, abrindo-o
pela primeira vez à existência”. (Idem) E isto porque, ao afirmar o ser limitado e ao se
recusar a negar qualquer que seja um conteúdo em função de um outro, a transgressão
também se faz sem nenhuma possibilidade de se encontrar por ela alguma positividade.
Assim, se a transgressão se faz, ela se faz ao ir até o núcleo do vazio.
E se, como explica Foucault, na abertura efetuada por Kant, quando se articula
a reflexão com os limites da razão, o próprio Kant encerra esta abertura quando
apresenta, em sua interrogação crítica, a questão antropológica: “o que é o homem?”.
De certa forma, esse movimento se desencadeou numa linguagem filosófica ligada
fortemente ao “sono confuso da dialética e da antropologia”, e que, para nos despertar
desse sono, “foram necessárias as figuras nietzschianas do trágico e de Dionísio, da
morte de Deus, do martelo do filósofo, do super-homem que chega pouco a pouco e
do Retorno”. (Idem, p. 35)
De qualquer forma, “a filosofia de nossos dias se mostra como um deserto
múltiplo”. Não que ela tenha chegado ao seu fim, mas que ela tenha chegado às
“bordas dos seus limites: em uma metalinguagem purificada ou na densidade de
palavras encerradas em sua noite, em sua verdade cega”. (Idem, p. 37) Sendo assim,
imerso nesse “deserto múltiplo”, o filósofo, por essa experiência limite, descobre-se,
com afirma Foucault, ao lado de “uma linguagem que fala e da qual ele não é dono”,
e descobre, também, e sobretudo, que “no lugar do sujeito falante da filosofia (...)
escavou-se um vazio onde se ata e desata, se combina e se exclui uma multiplicidade
de sujeitos falantes”. (Idem, p. 38)
Portanto, se na linguagem filosófica o que se repete é o suplício do filósofo
enquanto ser falante da filosofia, e se nesse suplício se insere o “vazio desmesurado
deixado pelo sujeito exorbitado” (Idem, p. 41), então “não somente a sabedoria não
pode mais valer como figura da composição e da recompensa; mas uma possibilidade
se abre fatalmente, no vencimento da linguagem filosófica (...): a possibilidade do
filósofo louco”. (Idem, p. 39-40)
Nas palavras de Foucault,
Talvez a emergência da sexualidade na nossa cultura seja um acontecimento
com valor múltiplo: ela está ligada à morte de Deus e ao vazio ontológico
que esta deixou nos limites de nosso pensamento; está também ligada à
aparição ainda vaga e hesitante de uma forma de pensamento em que a
interrogação sobre o limite substitui a busca da totalidade e em que o gesto
da transgressão toma lugar do movimento das contradições. (Idem, p. 45)

66
Por fim, como pudemos ver em Foucault ao longo desse item, na relação entre
a morte de Deus e o homem, o que se tem é a instauração de imenso vazio por onde
o próprio homem é arremessado diante de sua própria morte, ou finitude. E se, por
um lado, essa finitude estabelece as positividades do saber do e sobre o homem,
inaugurando assim a mistura empírico-transcendental que é o pensamento
antropológico, por outro lado, a morte de Deus arrasta a linguagem ao vazio, espaço
por onde ela passa a se referir a si mesma e a trazer, por esse vazio, a possibilidade
tanto na literatura quanto na filosofia de uma experiência em que o sujeito, e
portanto o homem, se desfaz.
De qualquer forma, se o homem pode ser exposto ao seu desmantelamento na
experiência moderna e contemporânea da linguagem, seja ela literária ou filosófica,
e se esse seu desmantelamento implica no questionamento da interioridade, da
subjetividade filosófica, da contradição dialética, o movimento que inaugura esse
homem, com suas positividades trazidas pela relação entre a morte, a vida, o trabalho
e a linguagem, então tais positividades precisam passar pelo mesmo questionamento.
No nosso caso, que focamos o trabalho, vindo desde o Hegel de Kojéve até as
conclusões de Foucault, entendemos que tal categoria, quando disposta pela relação
com a finitude e a negatividade, “resolvendo” o homem a partir da dialética, mais
que expressar uma possibilidade de “libertação”, ou “emancipação” que seja, no
final das contas feitas, como diria Nietzsche, o que ela expressa, nessa busca do
homem livre e emancipado, com toda sua força, é a morte do homem.

BIBLIOGRAFIA

DREYFU, H; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica. São Paulo: Forense
Universitária, 2010.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
________. O nascimento da clínica. São Paulo: Forense Universitária, 1998.
________. Estética: literatura e pintura, música e cinema. São Paulo: Forense Universitária,
2009.

67
Capítulo 3

TRABALHO, SAÚDE E ESTRANHAMENTO


NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI

André Luís Vizzaccaro-Amaral

INTRODUÇÃO

Em termos gerais, segundo as estimativas da Organização Internacional do


Trabalho (OIT), a primeira década do século XXI encerrou-se com realidades
catastróficas para o mundo do Trabalho. No ano de 2010, que encerra o período,
havia cerca de 3,3 bilhões de trabalhadores no mundo, dos quais: 1,1 bilhão estava
desempregada e/ou vivendo abaixo da linha da pobreza (com menos de US$2/dia)(1);
330 milhões sofreram algum tipo de Acidente do Trabalho (AT: típico, de trajeto ou
adoecimento ocupacional)(2); 215 milhões eram trabalhadores infantis e, dentre eles,
115 milhões eram crianças trabalhando em condições perigosas(3); 105 milhões
migraram de seus países de origem para poder trabalhar(4); 21 milhões eram vítimas
de trabalho forçado(5); e 2,2 milhões morreram em decorrência direta do trabalho(6),
resultando em cerca de 01 morte, dentre os trabalhadores, a cada 15 segundos.
A realidade não difere muito no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), o Ministério da Previdência Social (MPS), o
Ministério da Justiça (MJ), o Ministério do Trabalho (MTE) e o Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS), em 2010, havia cerca de 100 milhões de trabalhadores
no país(7), dentre os quais: 16,2 milhões estavam desempregados e/ou vivendo abaixo

(1) Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120124_oit_desemprego_dg.


shtml>. Acesso em: 30 maio 2012.
(2) Disponível em: <http://www.protecao.com.br/conteudo/anuario_brasileiro_de_protecao/J9yJ>.
Acesso em: 30 maio 2012.
(3) Disponível em: <http://www.dw.de/dw/article/0,16016798,00.html>. Acesso em: 30 maio 2012.
(4) Disponível em: <http://www.unric.org/pt/actualidade/27856-novo-estudo-da-oit-pede-melhor-
proteccao-dos-trabalhadores-migrantes>. Acesso em: 30 maio 2012.
(5) Disponível em: <http://www.oit.org.br/node/846>. Acesso em: 30 maio 2012.
(6) Disponível em: <http://www.protecao.com.br/conteudo/anuario_brasileiro_de_protecao/J9yJ>.
Acesso em: 30 maio 2012.
(7) DIEESE. Anuário dos trabalhadores: 2010/2011, 11. ed. Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Socioeconômicos. São Paulo: DIEESE, 2011. Disponível em: <http://www.dieese.org.br/anu/
AnuTrab2010/Arquivos/ANUARIO_TRABALHADORES_2010 _2011v.pdf >. Acesso em: 30 maio 2012.

68
da linha de pobreza (R$ 70 mensais)(8); 4,3 milhões eram crianças e jovens que
trabalhavam com idade entre 05 e 17 anos(9), dentre eles, 2,2 milhões trabalhando
em situações perigosas(10) e 1,2 milhão de crianças que trabalhavam com idade entre
10 e 14 anos (11) ; 1,5 milhão era de trabalhadores estrangeiros (12) ; 701,5 mil
trabalhadores sofreram algum tipo de Acidente do Trabalho (13) ; 4,1 mil
trabalhadores foram escravizados(14); e cerca de 2,7 mil morreram diretamente em
virtude do trabalho(15), o que equivale a quase 1 morte, dentre os trabalhadores, a
cada 3 horas.
Das cerca de 2,2 milhões de mortes que ocorrem, anualmente, no mundo, em
consequência direta do trabalho, 1,6 milhão resulta de algum tipo de adoecimento
ocupacional, 355 mil de acidentes típicos e 158 mil de acidentes de trajeto. A situação
se agrava considerando que os dados são subnotificados e que dos 330 milhões de
ATs que ocorrem no mundo, todos os anos, 160 milhões referem-se a novos casos de
adoecimentos ocupacionais(16).
No Brasil, dos 701,5 mil ATs registrados pelo MPS, em 2010, 415 mil foram
considerados como acidentes típicos, 94,8 mil como acidentes de trajeto, 15,6 mil
como doenças ocupacionais e 176,2 mil não foram registrados por meio da
Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT)(17). No entanto, cerca de 92% dos

(8) Disponível em: <http://www.jb.com.br/economia/noticias/2011/05/03/governo-define-linha-de-


pobreza-abaixo-dos-r-70-por-mes/>. Acesso em: 30 maio 2012.
(9) Disponível em <http://www.direitoshumanos.etc.br/index.php?option=com_content&view=article
&id=11487:trabalho-infantil-perigoso-afeta-115-milhoes-de-criancas-no-mundo&catid=17:crianca-e-
adolescente&Itemid=163>. Acesso em: 30 maio 2012.
(10) Disponível em: <http://www.feaac.org.br/noticias/49-crianca-e-adolescente/1637-trabalho-infantil-
de-risco-atinge-115-milhoes>. Acesso em: 30 maio 2012.
(11) Disponível em: <http://mpt-prt07.jusbrasil.com.br/noticias/3149729/fortaleza-e-a-3-capital-do-pais-
onde-mais>. Acesso em: 30 maio 2012.
(12) Disponível em: <http://www.indicadorbrasil.com.br/2012/02/numero-de-trabalhadores-estrangeiros-
no-brasil-cresceu-57-em-2011/>. Acesso em: 30 maio 2012.
(13) Disponível em <http://www.protecao.com.br/noticias/estatisticas/acidentes_de_trabalho_matam_
quatro_mil_por_ano_no_pais/ J9jyAcji>. Acesso em: 30 maio 2012.
(14) DIEESE. Anuário dos trabalhadores: 2010/2011, 11. ed. Departamento Intersindical de Estatística
e Estudos Socioeconômicos. São Paulo: DIEESE, 2011. Disponível em: <http://www.dieese.org.br/anu/
AnuTrab2010/Arquivos/ANUARIO_TRABALHADORES _2010_2011v.pdf >. Acesso em: 30 maio 2012.
(15) Disponível em: <http://portal.mpt.gov.br/wps/portal/portal_do_mpt/comunicacao/noticias/
conteudo_noticia/!ut/p/c4/04_ SB8K8xLLM9MSSzPy8xBz9CP0os_iAUAN3SydDRwOLMC8nA89Qz
zAnC1dzQycvc_2CbEdFANihpkc!/?WCM_GLOBAL_CONTEXT=/wps/wcm/connect/mpt/portal+do
+mpt/comunicacao/noticias/mortes+por+acidentes+do+trabalho+aumentam+cerca+de+40+no+ce+
segundo+dados+do+ministerio+da+previdencia>. Acesso em: 30 maio 2012.
(16) Disponível em: <http://www.protecao.com.br/conteudo/anuario_brasileiro_de_protecao/J9yJ>.
Acesso em: 30 maio 2012.
(17) Disponível em: <http://portal.mpt.gov.br/wps/portal/portal_do_mpt/comunicacao/noticias/conteudo
_noticia/!ut/p/c4/04_ SB8K8xLLM9MSSzPy8xBz9CP0os_iAUAN3SydDRwOLMC8nA89QzzAnC1dz
Qycvc_2CbEdFANihpkc!/?WCM_GLOBAL_CONTEXT=/wps/wcm/connect/mpt/portal+do+mpt/
comunicacao/noticias/mortes+por+acidentes+do+trabalho+aumentam+cerca+de+40+no+ce+segundo
+dados+do+ministerio+da+previdencia>. Acesso em: 30 maio 2012.

69
Benefícios Acidentários pagos pela Previdência Social brasileira, em 2010, decorreram
de doenças ocupacionais (registrados por meio do código B91— Auxílio-Doença
Acidentário), ou seja, aquelas institucionalmente reconhecidas como sendo
relacionadas ao trabalho.
Atualmente, ainda no Brasil, dentre os adoecimentos ocupacionais que mais
afastam os trabalhadores de seus postos de trabalho, estão: (1º) as Lesões por Esforço
Repetitivo/Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (LER/DORT); (2º)
as Lesões Traumáticas; e (3º) os Transtornos Mentais e Comportamentais, cuja
origem, em grande parte dos casos, está no chamado “estresse ocupacional”,
decorrente de fatores como o cumprimento de metas abusivas, a alta competitividade
entre os trabalhadores(18) e a insegurança em relação à volatilidade do emprego e/ou
da renda.
A depressão é a principal causa, dentre os Transtornos Mentais e Comporta-
mentais, de afastamento do trabalho, no Brasil, respondendo por cerca de 50% dos
casos, seguida pela ansiedade (e pela síndrome do pânico), em segundo lugar, e pelo
abuso de álcool e drogas, em terceiro. Contudo, nos últimos anos, tem havido um
exponencial aumento de casos de síndrome de “burnout”, caracterizada pelo esgo-
tamento profissional(19).
Essa situação se agrava na medida em que estudos relacionam os transtornos
mentais e comportamentais às ocorrências de um outro tipo de morte que, desde a
década de 1950, aumentaram cerca 60% no mundo todo, segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS): o suicídio. Estima-se que, no mundo, cerca de 1,1 milhão
de pessoas tiram suas próprias vidas todos os anos(20), o que equivale a 1 morte a cada
30 segundos. No entanto, em função do estigma e da criminalização do suicídio
(como ocorre na Índia), os números são nitidamente subnotificados, podendo chegar
a algo em torno de 20 milhões a 30 milhões de suicídios por ano no mundo. Estudos
britânicos relatam, ainda, que cerca de 80% a 90% das mortes por suicídio no mundo
têm relação com problemas mentais, sendo a depressão e a ansiedade dois dos mais
frequentes(21).
Dados brasileiros de 2007 apontaram que o aumento relativo no número de
suicídios, em 20 anos (1987 a 2007), foi de 36%, partindo de 3,44 suicídios por 100 mil

(18) Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/empregos/ultimas-noticias/2012/06/14/transtornos-


mentais-sao-terceira-causa-de-afastamento-do-trabalho-saiba-quais-sao-eles.jhtm>. Acesso em: 14 junho
2012.
(19) Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/empregos/ultimas-noticias/2012/06/14/transtornos-
mentais-sao-terceira-causa-de-afastamento-do-trabalho-saiba-quais-sao-eles.jhtm>. Acesso em: 14 junho
2012.
(20) Disponível em: <http://saudefloripa33pj.wordpress.com/2010/08/17/taxa-de-suicidios-no-pais-sobe-
36-em-10-anos/>. Acesso em: 30 maio 2012.
(21) Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/09/070904_doencasmentais
_pu.shtml >. Acesso em: 30 maio 2012.

70
habitantes, em 1987, para 4,68, em 2007(22). No entanto, em números absolutos,
considerando o crescimento populacional no mesmo período, os suicídios aumentaram
de 4,8 mil mortes/ano, em 1987 (quando o país possuía uma população de 138,6
milhões de habitantes) para cerca de 8,8 mil suicídios/ano, em 2007 (cuja população
era de 187,6 milhões de habitantes). Isso representaria, praticamente, 1 suicídio a cada
hora, sendo que, mais uma vez, a depressão aparece como principal fator de risco.
Nesse cenário, como vimos, o trabalho é responsável, diretamente, por 2,2 milhões
de mortes no mundo e, indiretamente, por 1,1 milhão de suicídios (como fator de
risco tanto para os adoecimentos psíquicos que levam ao suicídio, como para o próprio
suicídio em si). Nesse sentido, no Brasil, ele tem responsabilidade direta em 2,7 mil
mortes e, indireta (como um fator de risco significativo), em 8,8 mil suicídios,
anualmente. Tais dados equivalem a 1 morte, relacionada direta ou indiretamente ao
trabalho, a cada 10 segundos, no mundo, e a cada 1,5 hora, no Brasil.
As condições aviltantes do trabalho, em pleno início do século XXI e do milênio,
atingem não apenas aqueles que vivem, diretamente, do trabalho, mas, também, a
sociedade como um todo e das mais variadas formas, considerando os impactos
para suas famílias, para o mercado de trabalho e para o Estado.
Dentre aqueles que vivem-do-trabalho daremos atenção, neste breve ensaio, a
três categorias que vêm ganhando destaque na literatura científica e nos noticiários
impressos, televisivos e virtuais neste início de nova década: (1) a dos trabalhadores
formalizados; (2) a dos trabalhadores desempregados e/ou precarizados; e (3) a
uma nova categoria que vem se avolumando, infelizmente, sobretudo no Brasil, e
que aqui caracterizaremos como sendo a de “trabalhadores desamparados e/ou
negligenciados” pelo empregador e/ou pelo Estado, em decorrência de situações
limítrofes e/ou de condições de saúde que os impossibilitam de voltar a trabalhar e,
ao mesmo tempo, de serem incluídos nas normas relativas à seguridade social.

A SAÚDE DOS TRABALHADORES FORMALIZADOS

Não existe, na literatura brasileira, um consenso em relação à definição de


trabalho formal (Ulyssea, 2006. p. 597). O mais próximo de uma delimitação
conceitual refere-se àquele trabalho que possui registro na Carteira de Trabalho e
Previdência Social (CTPS) o que, por conseguinte, pressupõe a contribuição ao
Regime Geral da Previdência Social (RGPS). (Ulyssea, 2006. p. 597) Mais
recentemente, uma discussão vem sendo realizada quanto à inclusão de quaisquer
trabalhadores que contribuem para o RGPS, independentemente do registro na
CTPS, o que incluiria, portanto, trabalhadores autônomos. No caso de trabalhadores

(22) Disponível em: <http://saudefloripa33pj.wordpress.com/2010/08/17/taxa-de-suicidios-no-pais-sobe-


36-em-10-anos/ >. Acesso em: 30 maio 2012.

71
do setor público, trata-se do trabalho amparado por leis, estatutos e/ou normas
complementares que regem seu contrato de trabalho e seu regime previdenciário.
Desta feita, podemos definir o trabalho formal como sendo aquele que possui proteção
social por meio do amparo jurídico e previdenciário.
Metade dos cerca de 100 milhões de trabalhadores brasileiros era formalizada,
em 2010. Dos 49,7 milhões de trabalhadores formalizados, segundo o Cadastro
Central de Empresas (CEMPRE), do IBGE, 43 milhões eram assalariados e 6,7
milhões eram sócios ou proprietários que, juntos, receberam R$ 908,8 bilhões em
salários e outras retiradas, com uma remuneração média de R$ 1.650,30. Destes,
37,2 milhões eram trabalhadores empregados nas 4,6 milhões de entidades
empresariais cadastradas, 9,2 milhões vinculavam-se às 19,1 mil organizações da
administração pública e 3,2 milhões de trabalhadores estavam nas 509,6 mil entidades
sem fins lucrativos. A Região Sudeste foi responsável por 45,9% das novas vagas
geradas entre 2007 e 2010, e o Estado de São Paulo foi o que mais absorveu os
assalariados, com 29,6%, enquanto que o Estado de Roraima foi o que menos
absorveu, com apenas 0,2%. O comércio liderou a geração de empregos, entre 2007
e 2010, em 04 das 05 grandes regiões brasileiras, sendo superado pela Construção
Civil apenas na Região Nordeste(23).
O panorama referido (à parte os dados sobre os ATs que já mencionamos)
oculta, por outro lado, uma dinâmica de relações de trabalho marcada por políticas
organizacionais agressivas que extrapolam os limites da iniciativa privada e invadem,
também, o setor público e o “terceiro setor”, imprimindo uma organização do
trabalho aviltante para o trabalhador e onerosa para a sociedade.
No intuito de dar visibilidade à relação direta entre as tais políticas organiza-
cionais e seus impactos para os trabalhadores, selecionamos alguns casos que foram
expostos nos noticiários internacionais e nacionais, como os casos das empresas
Renault e France Télécom, na França, e da General Motors, no Brasil, além de ou-
tros dois que mantivemos em sigilo com o propósito de preservar as vítimas e seus
familiares.
O alerta emitido por Christophe Dejours (Conservatoire National des Arts et
Metiers, de Paris, França), endossado por Elisabeth Grebot (Universidade de Reims),
de que o estresse profissional estaria por trás da tragédia ocorrida na Renault, na
França, entre outubro de 2006 e fevereiro de 2007(24), que culminou no suicídio de 03
trabalhadores em 04 meses, é bastante emblemático.

(23) Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia


=2135&id_pagina=1>. Acesso em: 30 maio 2012.
(24) A notícia dos suicídios dos três trabalhadores da Renault, entre os meses de outubro de 2006 e
fevereiro de 2007 foi amplamente divulgada pelo mundo todo e, no Brasil, ganhou amplos alcances por
meio do Jornal O Estado de S. Paulo, em 24 de fevereiro de 2007. Disponível em: <http://
www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/5030-onda-de-suicidios-na-renault>. Acesso em: 30
maio 2012.

72
O caráter emblemático de tal alerta consiste, justamente, em dar visibilidade a
tal tragédia e correlacioná-la a uma política organizacional de reposicionamento de
mercado operada pela Renault, e denominada “Contrato 2009”, que se baseava em
metas e resultados. O objetivo de tal política, implantada em 2006, era aprimorar os
resultados financeiros da empresa até 2009 por meio do lançamento de 27 novos
veículos em 03 anos.
A força econômica, que sustenta uma política organizacional agressiva como
esta, pode ser observada e sentida no “sucesso de vendas” que a Renault atingiu fora
da própria França, como foi o caso do Brasil. O grupo Renault-Nissan, liderado por
um brasileiro desde àquela época, vem comemorando cada vez mais sua participação
junto ao mercado nacional. Com o lançamento, no Brasil, dos veículos Logan,
Sandero e Duster, que representaram 68% das vendas da Renault no primeiro
quadrimestre de 2012, a marca aumentou em 73,6% sua participação no mercado
nacional e hoje ocupa a quinta posição entre as montadoras no país, atrás apenas da
Fiat (1ª), da Volkswagen (2ª), da General Motors (3ª) e da Ford (4ª), todas já
instaladas no Brasil desde antes da abertura econômica realizada na década de 1990.
Em 2009, a Renault detinha apenas 3,90% da participação no mercado de automóveis
e comerciais leves e, no primeiro quadrimestre de 2012, saltou para 6,77%. Já a
Nissan, saltou de 0,77%, em 2009, para 3,53% no primeiro quadrimestre de 2012,
um crescimento de 358,4%, posicionando-se em 11º lugar entre as montadoras que
comercializam seus automóveis e comerciais leves no Brasil(25).
Associado, direta ou indiretamente, todavia, a tal fenômeno econômico da
Renault, está o suicídio de um engenheiro de 39 anos, um dos responsáveis pelo
projeto “Logan”, no dia 20 de outubro de 2006, que se atirou do quinto andar do
prédio envidraçado da sede da Renault de Guyancourt, na cidade francesa de Yvelines,
nos arredores de Paris. Segundo testemunhas, o suicídio ocorreu no meio da manhã,
em frente a dezenas de colegas. Outro episódio, no final de janeiro de 2007, envolveu
um funcionário, de 44 anos, de um centro de documentação técnica do núcleo de
desenvolvimento do novo “Twingo” e, em fevereiro de 2007, um técnico de 38 anos
que seria promovido, suicidou-se deixando uma carta em que dizia que o “trabalho
é duro demais para suportar”(26).
Os casos da Renault, na França, não são isolados. Segundo estatísticas do
governo francês, ocorrem, anualmente, na França, cerca de 300 a 400 suicídios dentro
dos locais de trabalho, com uma média que pode chegar a mais de um suicídio por
dia dentro das companhias francesas.

(25) Dados divulgados pela Revista Quatro Rodas, da Editora Abril, na edição de junho de 2012 (ano 51,
edição 631, p. 147).
(26) Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/5030-onda-de-suicidios-
na-renault>. Acesso em: 30 maio 2012.

73
Numa mesma perspectiva, em 14 de julho de 2009, em Marselha, também na
França, um funcionário da France Télécom escreveu em sua carta suicida: “Eu me
suicido por causa do meu trabalho na France Télécom. É a única razão. A
desorganização total da empresa me deixou totalmente perturbado. Eu me tornei
um destroço. É melhor acabar com tudo”(27). A France Télécom foi privatizada em
2004 e, em 2006, implementou uma política de reestruturação que previa a demissão
de 22 mil trabalhadores em 03 anos e a transferência obrigatória de funcionários
para outros cargos e outras regiões geográficas. Ao longo dos anos de 2008 e 2009,
foram registrados 32 suicídios entre seus trabalhadores, ou seja, mais de 01 morte a
cada mês(28). Mesmo após a demissão do Vice-Presidente da empresa, em outubro de
2009(29), responsabilizado pela “política do terror”, implementada na empresa após
sua privatização, outros 25 suicídios foram registrados pelos sindicatos franceses no
ano de 2010(30), demonstrando claramente tratar-se de um “sintoma” associado à
política organizacional da France Télécom e não a quem a personifica.
No Brasil, situações como as descritas na França, vêm ocupando espaços cada
vez maiores na literatura científica e nos meios de informação de determinadas classes
de profissionais da saúde. É o caso, por exemplo, de um trabalhador da General
Motors do Brasil que, na manhã do dia 13 de abril de 2009, subiu na portaria principal
da empresa e ameaçou se jogar, denunciando as pressões sofridas no trabalho, sendo
demovido, todavia, de sua intenção pelos bombeiros (31). Ou o caso de uma
trabalhadora do setor bancário, de 44 anos, que atuava no litoral paulista e que
acabou suicidando-se após um longo período de assédio moral que sofreu, em razão
do cumprimento das metas estabelecidas após a fusão do banco em que atuava com
outra instituição financeira (Heloani & Barreto, 2011. p. 181).
Há evidências de que tais situações se deslocam também para o setor público,
sobretudo quando este passa a adotar e a reproduzir modelos de gestão que se
aproximam daqueles adotados pela iniciativa privada. É o caso de um professor
universitário de uma universidade pública federal brasileira, que se atirou do prédio
em que atuava, em 2011, deixando registrado, em seu blog, antes: “na academia, o
lema é publicar ou perecer: e assim pilhas de palavras, gráficos e equações são
produzidas apenas para aumentar a quantidade das coisas que irão, rapidamente,
para o lixo da história, inflando por algum tempo o ego e a reputação local de
alguns” (Heloani & Barreto, 2011. p. 181).

(27) Notícia veiculada pela BBC Brasil e pelo Estadão.com.br/Internacional, em 09 de setembro de 2009.
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,empresa-de-telefonia-vive-onda-de-
suicidios-na-franca,432119,0.htm>. Acesso em: 30 maio 2012.
(28) Notícia veiculada pela BBC Brasil em 26 de abril de 2011. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/
portuguese/noticias/2011/04/ 110426_suicidio_france_telecom_df.shtml>. Acesso em: 30 maio 2012.
(29) Notícia veiculada pela BBC Brasil em 23 de outubro de 2009. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/
portuguese/noticias/2009/10/ 091023_france_telecom_suicidios_rw.shtml>. Acesso em: 30 maio 2012.
(30) Idem à nota 6.
(31) Conselho Regional de Psicologia 6ª Região (São Paulo). Jornal do Psicólogo. Número 160, abril/maio
de 2009.

74
Os casos aqui mencionados trazem evidências contundentes do lugar que ocupava
o trabalho na vida desses trabalhadores a ponto de buscarem, no suicídio, uma saída
possível frente às denúncias, em grande parte ignoradas e/ou incompreendidas, que
faziam acerca das pressões sofridas.
Por esta razão, é importante compreender, aqui, que o suicídio, na tradição
filosófica, é concebido tanto como (1) um caráter condenatório quanto como (2)
um caráter lícito. Ele é considerado condenatório por 05 razões: (1ª) por ser contrário
à vontade divina (Santo Agostinho e São Tomás de Aquino); (2ª) porque não chega
a separar a alma do corpo, uma vez que o suicida quer a vida, embora esteja
descontente com as condições que lhe couberam e, nesse sentido, não é o corpo que
permite a partida da alma e, sim, a paixão, por meio do tédio, da dor ou da ira
(Plotino e Schopenhauer); (3ª) porque é transgressão de um dever para consigo
mesmo (Kant); (4ª) porque é um ato de covardia (Fichte), para suportar uma vida
(embora possa ser um ato de coragem, também, se executado com premeditação,
por expressar o domínio da razão sobre a natureza); e (5ª) porque é injusto para a
comunidade à qual o suicida pertence (Aristóteles). Por outro lado, o suicídio pode
ser considerado lícito por 03 razões: (1ª) porque renunciar à vida pode ser
considerado um dever quando se torna impossível cumprir o dever enquanto vivo
(Cícero e os estóicos); (2ª) porque afirma a liberdade do homem contra a necessidade
(Epicuro e Sêneca); e (3ª) por ser a única saída para salvar a dignidade e a liberdade
(Hume, Jaspers e Sartre). (Abbagnano, 2000. p. 928-929)
Independentemente da concepção do suicídio para os trabalhadores vitimados,
e seus familiares, fica evidenciado o impacto da organização do trabalho em suas
vidas, bem como os reflexos para a sociedade, para o Estado e para o próprio mercado
de trabalho.

A SAÚDE DOS TRABALHADORES PRECARIZADOS E DESEMPREGADOS

Em outra oportunidade (Vizzaccaro-Amaral, 2011), detalhamos algumas de


nossas considerações envolvendo a concepção do desemprego. Cabe ressaltar, aqui,
que consideramos como desemprego e trabalho precário aquela condição em que o
trabalhador deixa de ter acesso direto à proteção social e ao amparo jurídico e
previdenciário, aproximando-se dos conceitos de desemprego e de desemprego oculto
propostos por Pochmann (2001).
Nesse sentido, não obstante a gravíssima relação, direta e indireta, entre
trabalho e adoecimentos físicos/psíquicos e entre trabalho e mortes, tanto por ATs
quanto por suicídio, na outra ponta, o desemprego também é associado aos problemas
de saúde física e mental que, por sua vez, possuem relação direta e/ou indireta com
situações que levam à morte e ao suicídio.

75
O estudo de Giatti, Barreto & César (2008), na Região Metropolitana de Belo
Horizonte-MG, apontou que o trabalho sem proteção social e o desemprego de curta
e de longa duração estão associados à pior condição de saúde, independentemente
da idade e da escolaridade. Essa relação não se estabelece apenas numa dimensão
psíquica, mas, também, se estende à saúde física do homem-que-trabalha. A “cirrose
hepática”, no estudo referido antes, foi mais fortemente associada à situação no
mercado de trabalho, por exemplo, sendo sua prevalência mais alta entre aqueles
que trabalham sem proteção social e entre desempregados de longa duração.
Segundo Monteiro & Abs (2009), dificuldades econômicas associadas ao
desemprego vêm trazendo aos trabalhadores: (a) afetações das relações conjugais e
familiares; (b) sofrimento psíquico e desestruturação dos laços afetivos, bem como
propiciando sentimentos de ansiedade e de depressão que influenciam no uso e no
abuso de álcool e/ou substâncias psicoativas; (c) criminalização de jovens; (d)
sentimentos de depressão, ansiedade, baixa autoestima, angústia, desânimo, medo
frente ao futuro, frustração, vergonha, culpa, incompetência e inutilidade entre
pessoas com ensino superior completo, afetando a identidade profissional e
fragilizando a autoimagem, entre outros problemas.
As investigações difundidas por Monteiro & Abbs (2009) corroboram os dados
epidemiológicos coletados e analisados por Coutinho, Almeida-Filho & Mari (1999),
que associaram ao desemprego situações como: (a) perda da autoestima; (b)
instabilidade emocional; (c) depressão geral; (d) depressão reativa; (e) distorção da
percepção temporal; (f) perda do moral; (g) perda da autoconfiança; e (h) perda do
prestígio — todas elas fortemente relacionadas às denominadas Morbidades
Psiquiátricas Menores (MPMs).
Um aprofundamento nesse sentido pode ser encontrado em Seligmann-Silva
(2011), que não apenas reúne uma gama significativa de trabalhos que estabelecem
a relação entre recessão econômica/desemprego e saúde física/psíquica, com estudos
longitudinais realizados em diferentes momentos históricos associados a períodos
marcados pela recessão econômica e pelo desemprego (como as crises econômicas
de 1929 e da década de 1970), como também promove uma discussão ampliada
acerca dos elementos envolvidos na chamada “psicopatologia da recessão e do
desemprego”. (Seligmann-Silva, 2011, p. 401-491)
Dentre os resultados obtidos pelos diferentes estudos reunidos por Seligmann-
Silva (2011), podemos perceber relações significativas entre o desemprego e:
(a) doenças cardiovasculares e coronarianas (Brenner & Mooney, 1982; Timio, 1980;
Laurell & Serrano, 1982); (b) câncer (McQueen & Siegrist, 1982); (c) doenças e
distúrbios psicossomáticos (Echeverria, 1982 apud Seligmann-Silva, 2011); (d) danos
psíquicos, depressão e outros transtornos psíquicos e psicossociais (Jahoda,
Lasarsfeld & Zeisel, 1933/1975; Benoît-Guilbot & Gallie, 1992); (e) risco de suicídio
(Fried, 1966; Philippe, 1990).

76
No que concerne ao risco de suicídio entre trabalhadores desempregados, taxas
de tentativas de suicídios foram quatro vezes maiores entre homens desempregados
e mulheres jovens e duas vezes maiores entre mulheres desempregadas, mas que
também desempenhavam o papel de “mãe de família”, do que, respectivamente,
para os mesmos grupos de gênero na população em geral. A diferença das taxas
entre mulheres jovens e mulheres “mães de família” foi explicada pelo “estatuto
profissional”, que se refere “ao grau de valorização atribuída pelo indivíduo à
ocupação desempenhada” (Seligmann-Silva, 2011. p. 435), uma vez que as mulheres
possuem um “estatuto alternativo”, bastante valorizado, no papel de “mãe de
família”. Os estudos que verificaram tais relações foram realizados na França em
dois momentos distintos (1980 e 1986-1988) e em áreas geográficas diferentes,
contudo, apresentaram resultados bastante similares. (Philippe, 1990 apud
Seligmann-Silva, 2011. p. 435)
Dados semelhantes também foram coletados no Brasil, durante o período de
recessão do início da década de 1980. Em entrevistas realizadas com pessoas que
tentaram suicídio e que foram atendidas pelos serviços de pronto-socorro de São
Paulo-SP, ficou evidenciado que, ao longo dos anos de recessão, aumentou o
percentual dentre aqueles que atribuíam ao desemprego a causa para a tentativa.
(Angerami, 1986)
A morte e a efetivação do suicídio em decorrência do desemprego também
foram analisadas por meio de dados epidemiológicos coletados em períodos e em
locais distintos. Brenner & Mooney (1982) analisaram dados dos Estados Unidos e
da Inglaterra e constataram haver relações entre os períodos de recessão, em que se
consideram o desemprego de tempo prolongado, e (a) o aumento da mortalidade
infantil (notado com mais ênfase até dois anos após a instalação da crise econômica),
(b) o aumento da mortalidade por doenças cardiovasculares (mais visivelmente
notado até três anos após a instalação da crise econômica) e (c) aumento dos índices
de morbidade e de mortalidade relacionadas à psicopatologia (já percebido no
primeiro ano da instalação da crise econômica). Condições similares foram
constatadas por Brenner (1987a e 1987b) a partir da análise dos dados
epidemiológicos da Suécia (no período de 1950-1980) e da Escócia (no período de
1952-1983). (Seligmann-Silva, 2011. p. 403)
A relação imediata entre a crise econômica/desemprego e o aumento da
morbimortalidade relacionada à psicopatologia é bastante relevante, mas também
chama a atenção os índices relativos à pós-crise. Os mesmos estudos de Brenner &
Mooney (1982), após “... examinar as fases pós-recessão, (...) concluem que o período
inicial de recuperação da economia pode ser um momento especialmente tensiógeno
para os desempregados que realizam esforços de reintegrar-se ao mercado”. (Brenner
& Mooney, 1982 apud Seligmann-Silva, 2011. p. 402)
Outro dado relevante refere-se à constatação de Philippe (1990), em seus estudos,
de que com a “banalização do desemprego”, ou seja, nas fases em que se intensifica o

77
desemprego, há uma diminuição na proporção de tentativas de suicídio. Ainda que
com o aumento do desemprego perceba-se, também, um aumento do número
absoluto de tentativas de suicídios há, por outro lado, uma diminuição da proporção
de tentativas de suicídios em relação ao número total de desempregados. (Philippe,
1990 apud Seligmann-Silva, 2011, p. 434).
Tal constatação é consoante aos dados da OMS e da Associação Internacional
para a Prevenção do Suicídio (AIPS) que registram uma maior concentração de
suicídios em regiões em desenvolvimento. Há, portanto, uma possível correlação
entre o índice de suicídios e situações de instabilidade econômica, seja ela em relação
à recessão, ou em relação ao início da recuperação econômica ou, ainda, em situações
de desenvolvimento, como é o caso do Brasil, atualmente.

A SAÚDE DOS TRABALHADORES “DESAMPARADOS” E “NEGLIGENCIADOS”

Entre os trabalhadores formalizados e os desempregados e/ou precarizados


vem crescendo, no Brasil, uma nova categoria de trabalhadores que se situa
exatamente na linha do “contorno” (Demazière, 2006) que os divide. Por esta razão,
ficam, por um lado, desamparados quanto às proteções sociais e, por outro,
negligenciados pelas organizações em que atuam e/ou pelo Estado.
Os “trabalhadores desamparados” e/ou “negligenciados” são aqueles que,
mesmo formalizados, após serem vitimados pelo trabalho (por meio dos ATs) ou
acometidos por problemas diversos que os tornam “incapacitados” para o trabalho,
seja de modo temporário ou permanente, são afastados de suas atividades laborais
e encaminhados para a seguridade social para serem avaliados quanto ao usufruto
dos benefícios aos quais têm direito, enquanto submetidos a tratamento de saúde, e,
imediatamente ou após um período determinado, veem tal benefício indeferido ou
cessado, em função da determinação do órgão previdenciário, sem que possam
retornar ao trabalho, por ainda se sentirem ou estarem incapacitados, segundo até
mesmo os profissionais da saúde que os avaliam, permanecendo, por conseguinte,
sem qualquer forma de remuneração e de amparo trabalhista e previdenciário.
Essa situação é motivada por um instrumento gerencial, por parte do órgão
público previdenciário brasileiro, comumente denominado de “alta programada”.
Antes denominada “Cobertura Previdenciária Estimada” (COPES), foi
redenominada para “Data de Cessação do Benefício” (DCB) por meio da Orientação
Interna 130/2005-INSS/DIRBEN (Diretoria de Benefícios), de 13 de outubro de 2005,
que estabelecia o prazo máximo de 180 dias de benefícios, dependendo da gravidade
do problema. Contudo, foi revogada pela Orientação Interna 138/2006-INSS/
DIRBEN, de 11 de maio de 2006, mantendo a DCB como um dos três tipos de decisão
médico-pericial: “Tipo 1: Contrária”; “Tipo 2: Data de Cessação do Benefício (DCB)”;

78
e “Tipo 3: Data da Comprovação da Incapacidade (DCI)”. A Orientação Interna
138/2006-INSS/DIRBEN possibilitou a Concessão do Benefício por até dois anos,
dependendo da gravidade do problema. Em seguida, o Decreto n. 5.844/2006, da
Presidência da República, de 13 de julho de 2006, acresceu parágrafos ao art. 78 do
Regulamento da Previdência Social (outrora aprovado pelo Decreto n. 3.048/1999,
de 6 de maio de 1999), dando liberdade para o INSS estabelecer prazos que entender
suficientes para a Concessão de Benefícios.
Embora o INSS tenha a “liberdade” de estabelecer prazos que entender
necessários para a Concessão de Benefícios, os casos cada vez mais frequentes dos
trabalhadores desamparados e/ou negligenciados, e o termo popularizado como
“alta programada”, sugerem a disseminação de antigas práticas, como as orientadas
pela COPES, sobretudo em função do constante déficit orçamentário vivenciado
pela instituição.
Em dados divulgados pelo próprio MPS brasileiro, totalizando o ano de 2010,
a arrecadação previdenciária brasileira foi de 5,63% do Produto Interno Bruto (PIB)
do país, enquanto que as despesas foram de 6,76%. Não obstante os dados de 2010,
o mês de março de 2012, último mês totalizado antes do encerramento deste texto,
encerrou-se com uma arrecadação de R$ 18,8 bilhões e com o pagamento de R$ 23,9
bilhões em benefícios.
Como consequência desse cenário, de 2006 até fevereiro de 2011, havia 31 ações
coletivas contra a “Alta Programada” do INSS, movidas, em grande parte, por Sindicatos,
pela Defensoria da União e pela Procuradoria Geral da República. Outras 180 mil ações
foram movidas individualmente apenas no Estado de São Paulo.(32) Até março de 2011, o
INSS era réu em 5,8 milhões de processos, dentre os quais estimava-se que algo em torno
de 50% a 70% fossem relativos aos auxílios, entre eles o auxílio-doença.(33)
São casos como o de Dona Antônia Xavier da Silva, arrumadeira de um hotel
no centro de São Paulo, que de 2005 a 2010 ficou incapacitada para o trabalho, em
virtude de uma osteoartrose do joelho, e que em outubro de 2010 teve seu benefício
cessado em razão da “alta programada”, enquanto aguardava na fila do Sistema
Único de Saúde (SUS) o momento de uma cirurgia para a colocação de uma prótese.
Em reportagem veiculada nacionalmente pelo programa televisivo “Fantástico”(34),
da rede Globo de Televisão, na noite do domingo de 20/02/2011, relatou:

(32) Notícia veiculada no programa televisivo “Fantástico”, da Rede Globo, em 20.2.2011, e no seu site
em 25.2.2011. Disponível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0, MUL1648949-
15605,00-BRASILEIROS+COM+PROBLEMAS+DE+SAUDE+NAO+TEM+AUXILIODOENCA.html>.
Acesso em: 20 maio 2012.
(33) Notícia veiculada pela Gazeta do Povo, em 25 de março de 2011. Disponível em: <http://
www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/ conteudo.phtml?id=1109360>. Acesso em: 30 maio 2012.
(34) Notícia veiculada no programa televisivo “Fantástico”, da Rede Globo, em 20.2.2011, e no seu site em
25/02/2011. Disponível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1648949-15605,00-
BRASILEIROS+COM+PROBLEMAS+DE+SAUDE+NAO+TEM+AUXILIODOENCA.html>. Acesso em:
20 maio 2012.

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Eu prefiro trabalhar, que com meu trabalho, eu como, eu bebo, eu visto,
eu faço tudo. E, no dia do seu pagamento, você recebe seu pagamento,
você sabe o que você vai fazer. Agora, eu espero que um filho vem me dar
R$ 100, outro me dá R$ 60. O que pode me dá R$ 100. O que não pode, me
dá metade, ou então traz uma cesta de alimento. É assim. Hoje mesmo,
uma veio deixar dois pacotes de café para mim.
Ou o caso de Jucélia Rodrigues da Silva, faxineira e mãe de cinco filhos, de Porto
Alegre-RS, que contribuiu por 25 anos ao INSS e que ao precisar do benefício do
instituto, por problemas de depressão, teve o mesmo cortado após 2 meses, sem que a
organização em que atuava permitisse seu retorno ao trabalho, devido ao problema
de saúde que ainda persistia. Na mesma reportagem citada, lamentou:
Já faz seis meses que eu estou dependendo do INSS, precisando e agora já
venceu o prazo do aluguel. Eu estou saindo de casa. Ela era uma casa
simplezinha, mas era onde eu vivia com meus filhos. (...) Sempre passei
por essas dificuldades, mas sempre trabalhando. Sempre honestamente.
Mas agora, no momento que eu mais preciso, não tenho nada. A gente
trabalha com carteira assinada, fica feliz. Tenho uma carteira assinada,
contribuindo e tudo. Não adiantou de nada.
O argumento, por parte do INSS, é claramente amparado por um discurso
gerencialista e que, por esta razão, se constitui de modo racional, distanciado e
generalista, corroborando as decisões de suas perícias, em prol da manutenção das
práticas, tal como destaca a mesma reportagem em questão, ao entrevistar o
presidente do órgão, o Sr. Mauro Luciano Hauschild:
Logo no início da implantação do modelo, nós tínhamos 1,666 milhão de
pessoas com benefício do auxílio-doença, previdenciário ou acidentário.
Hoje nós temos 1,385 milhão de pessoas. Considero o sistema eficiente.
Quando eu tenho 60% de satisfação dos beneficiários do auxílio-doença
sem pedido de prorrogação, me parece e me deixa bastante satisfeito, à
primeira vista, que a Previdência presta, sim, um bom serviço na área de
perícia médica. (...) Obviamente que o nosso papel é aperfeiçoar, nosso
papel é melhorar. Mas a situação atual, ela é bastante positiva, sempre,
claro, passível de pontualmente a gente ter um problema que, às vezes,
está associado a pessoas e não é próprio à instituição e que a gente precisa,
sendo notificado, buscar, identificar qual o problema e construir soluções.
O resultado para os trabalhadores nessas condições são drásticos, pois,
desamparados, sujeitam-se à cronificação de seus problemas de saúde, à sensação de
desamparo perante o Estado e ao desalento, afetando suas vidas e a de seus familiares
e amigos.
Se por um lado a Previdência Social brasileira supostamente “melhora seu
desempenho” administrativo, por outro, a Saúde Pública é onerada pela cronificação
80
dos problemas desses trabalhadores, o Mercado de Trabalho perde, temporária ou
permanentemente, seu principal fator de produção (o trabalhador), o Sistema Judiciário
é soterrado por avalanches de ações previdenciárias e trabalhistas e a sociedade é
convocada a pagar o preço, sendo vítima e “ré”, nesse processo, sofrendo os impactos
dessa realidade aviltante e, ao mesmo tempo, pagando impostos para suportá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados e as informações que procuramos reunir neste breve ensaio, que


estavam dispersos pela ainda fragmentada ação de controle social relacionado ao
contexto do Trabalho, continuam a denunciar o “novo (e precário) mundo do
trabalho” (Alves, 2000), após o término da primeira década do século XXI.
As condições aviltantes a que o trabalhador está exposto, hoje,
independentemente se formalizado ou não, e cujos reflexos são sentidos em sua saúde
física e mental, decorrem das novas formas de estranhamento no capitalismo
contemporâneo e ratificam o que Marx (2004) já analisara nos fins do século XIX:
O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,
quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador
se torna mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a
valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção
direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). (...) ...
quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (Ausarbeitet), tanto
mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (Fremd) que ele cria
diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, e
tanto menos o trabalhador pertence a si próprio. (Marx, 2004, p. 80-81)
Em épocas em que as referências se perdem, como no trabalho estranhado, o
cenário fica propício a um campo de batalhas. Pior do que estar numa guerra,
entretanto, é ser levado até ela por forças que se tornam invisíveis em função de
relações mediadas que se nos escapam em decorrência das demandas que urgem
num cotidiano coisificado.

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Seção 2

SAÚDE E PRECARIZAÇÃO DO
HOMEM-QUE-TRABALHA

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Capítulo 4

A PRECARIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA: A SAÚDE


MENTAL NO TRABALHO PRECARIZADO(*)

Edith Seligmann Silva

Existe atualmente a psicomanipulação. Ou seja, não só a mais-valia é extraída do


trabalho; há a perda do seu “ser” em detrimento do bom desempenho profissional,
tendo com única finalidade a rentabilidade.
Maurício Tragtenberg, 1980 (p. 29).

I — INTRODUÇÃO

As grandes mudanças e turbulências políticas, sociais e econômicas em curso no


mundo contemporâneo mantêm relação, certamente, com o impressionante aumento
dos registros de transtornos psíquicos. Antes de abordar os reflexos mentais destas
mutações profundas, vale contemplar sucintamente algumas dimensões e interfaces
do processo de precarização que culminou na presente conjunção de crises. Estas
dimensões exigem que tanto a crise quanto a precarização sejam contempladas sob a
perspectiva das degradações que, de modo interarticulado, vêm ferindo a ética, o meio
ambiente, a sociedade (precarização social), o mundo do trabalho e a saúde humana.
Trata-se, portanto, de considerar a crise ética, a ambiental, a social, a do trabalho
e a da saúde. No âmbito desta última, deveremos aqui concentrar nossa atenção nos
impactos sobre a saúde mental. Impactos que são indissociáveis dos que atingem as
outras dimensões citadas e que consubstanciam o desgaste mental no contexto de uma
precarização geral que persiste em ampliação. Ao mesmo tempo pretendemos
identificar algumas resistências e perspectivas de superação deste processo destrutivo.
Não temos a pretensão de analisar aqui as raízes macropolíticas e macroeconômicas
da precarização social e do trabalho — tarefa já assumida por vários cientistas sociais e
economistas críticos (Chesnais; 2004; Azkenazy , 2004 ). A agitação inquietante e o sobe
e desce das bolsas espelham e espalham uma perda de estabilidade que atinge finanças e
economia — e, que pode ser entendida como precarização das mesmas. Chesnais (2008),
no início da crise financeira que logo se desdobrou sobre a economia mundial, fez um
pronunciamento incisivo e revelador, no qual vincula a crise econômica, a política e a
ambiental, identificando uma crise mais ampla — a crise da humanidade:

(*) Este texto corresponde, com pequenas mudanças e acrésicmos, ao que foi apresentado no 3º Congresso
Internacional sobre Saúde Mental no Trabalho, promovido pelo Instituto Goiano de Direito do Trabalho
(IGT) e pelo Fórum Saúde e Segurança no Trabalho do Estado de Goiás, em Goiânia, outubro 2008.

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A crise irá desenvolver-se de modo que a primeiras e realmente brutais
manifestações da crise climática mundial que estamos vendo irão
combinar-se com a crise do capital enquanto tal. Entramos em uma fase
que delineia realmente uma crise da humanidade, dentro de complexas
relações nas quais estão também envolvidos os acontecimentos bélicos,
porém o mais importante é que, incluindo o rompimento de uma guerra
de grande amplitude, que no presente só poderia ser uma guerra atômica,
estamos enfrentando um novo tipo de crise, uma combinação desta crise
econômica que teve início com uma situação na qual a natureza, tratada
sem a menor contemplação e golpeada pelo homem no marco do
capitalismo, reage agora de forma brutal. Isto é algo que tem estado quase
excluído de nossas discussões (econômicas), porém irá impor-se como
um fato central. (tradução e grifos nossos).
Existe uma crise social, na qual a disseminação do medo e da insegurança
aumentou a desconfiança e fragilizou todos os tipos de laços da sociabilidade — fora
e dentro dos ambientes de trabalho. Essa crise social tem uma de suas marcas na
instabilidade que atravessa o mercado de trabalho e nas inserções laborais precárias.
Outra marca é, em muitos países, o retrocesso das instituições e legislações destinadas
à proteção social — previdência, assistência social e saúde — com especial
estreitamento da proteção efetiva à saúde dos trabalhadores.
O estímulo à competição exacerbou o individualismo e dilacerou laços de
companheirismo e solidariedade. Ao mesmo tempo, dissolveu os laços de confiança
— especialmente nos ambientes de trabalho. Mas essa dissolução contaminou
também o cotidiano e até a vida familiar.
O isolamento social, expresso no temor do contato com o outro, é bem
demonstrado na preferência de muitos pelo contato virtual, sem aproximação entre
pessoas. A virtualidade assumiu um papel central no cotidiano de homens, mulheres
e mesmo das crianças. O outro se tornou ameaça, pois foi instaurado o reinado da
competição generalizada. E isso estimulou não apenas o distanciamento entre as
pessoas, mas também uma regressão: o recolhimento de cada um dentro de sua concha
narcísica. A generosidade tornou-se rara e a gratidão mais rara ainda — ao mesmo
tempo em que a ética foi diminuindo no cotidiano social e, de modo marcante, nos
ambientes de trabalho que se transformaram em arenas de competição permanente
e muitas vezes cruel.
Existe, entretanto, uma face dessa problemática que permanece obscurecida
aos olhos da população geral — a “produção” de adoecimento psíquico dentro
dos contextos de trabalho, e, especialmente, nas situações de trabalho precarizado
e exposto à violência. Estas face, analisada pelos pesquisadores da SMRT (1) ,

(1) SMRT — Sigla adotada para designar Saúde Mental Relacionada ao Trabalho — o campo de
conhecimentos em que situamos os estudos voltados aos processos, de saúde e adoecimento mental
relacionados ao trabalho e ao desemprego. (Seligmann-Silva, 2011)

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revela que, além do trabalho, também a falta de trabalho é um motor nessa produção
de agravos mentais.
Precarização tornou-se uma palavra chave que deve ainda ser explicitada nesta
introdução. Afinal, no que consiste a precarização aqui tematizada? Precarização
deriva de precário, do latim precarius, que significa instável, frágil, insuficiente.
Portanto, a precarização social é a fragilização dos laços sociais — que atinge os
vínculos humanos e dilacera o tecido social. Está se processando no mundo
contemporâneo, em inúmeras instituições e de modo muito marcante nas situações
de trabalho. Em nossa apresentação, o foco será a forma como, no contexto do
conjunto de precarizações, vem sendo produzida a precarização da saúde mental
para aqueles que vivem do próprio trabalho.
Tentaremos, de modo sintético, esclarecer nesta exposição porque tem sido
ressaltada a precarização nos estudos contemporâneos de Saúde Mental Relacionada
ao Trabalho (SMRT). Lembrando que a precarização do trabalho vem acompanhando
a reestruturação produtiva a partir dos anos 80.
Os reflexos da precarização na saúde geral e mental têm sido largamente
estudados em vários países e também no Brasil — Appay e Thébaud-Mony, 1997;
Druck e Franco, 2007; Seligmann-Silva, 1997 e 2001; Franco, Druck e Seligmann-
-Silva, 2010, além dos numerosos estudos de outros como os de Phillipe Davezies e
Bernard Doray, na França; Miguel Matrajt, no México; Thomas Elkeles e Uwe
Lenhardt na Alemanha

Saúde geral e mental dos assalariados na reestruturação produtiva

A precarização do trabalho vai repercutir negativamente sobre a saúde mental,


como veremos, especialmente a partir de transformações das relações de poder e da
organização do trabalho. Mas uma degradação das condições físicas, químicas e
biológicas dos ambientes de trabalho também tem ensejado desproteção e ocorrência
de acidentes e impactos sobre todo o organismo — conduzindo, deste modo, ao
aumento de doenças pulmonares, de pele e outras, inclusive do câncer ocupacional
— que não examinaremos nesta exposição, muito embora esses adoecimentos possam
levar a desgaste e sofrimento psíquico. (Thébaud-Mony, 2008)
No que diz respeito à saúde mental, o predomínio do conjunto de diagnósticos
referentes a quadros depressivos, — constatado no Brasil, — corresponde ao que
acontece no plano mundial, conforme os dados mais recentes apresentados pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) Também em outros países, a identificação
da relação entre trabalho e depressão levanta enorme perplexidade e o desafio de
aprofundar investigações que possam definir qual a relação existente entre a
“epidemia” de depressões vinculadas causalmente ao trabalho e a preocupante
escalada mundial destes agravos mentais. No caso brasileiro, acredita-se na existência

89
de uma prevalência bem maior do que a apresentada pelos registros, tanto no que se
refere aos quadros de depressão quanto, de modo mais amplo, aos outros tipos de
distúrbios psíquicos relacionados ao trabalho, ao desemprego intermitente ou
prolongado e a múltiplas formas de precarização do trabalho. Pois mesmo com o
aumento dos registros de diagnósticos psiquiátricos (grupo F da Classificação
Internacional de Doenças — CID-10) nas estatísticas do Instituto Nacional de
Seguridade Social (INSS), torna-se indiscutível que ainda existe um importante déficit
de reconhecimento da causalidade laboral destes agravos.(2) Destacamos como causas
prováveis deste sub-registro de transtornos psíquicos reconhecidos quanto ao nexo
com o trabalho:
a) o presenteísmo — Um fenômeno que diz respeito ao fato de muitos
assalariados, mesmo adoecidos, não revelarem seus sintomas no ambiente de trabalho
nem procurarem benefícios pelo temor de perda do emprego ao terminar o período
de afastamento. Procuremos resumir as origens deste fenômeno:
A injunção de excelência incrementa a negação e a repressão do mal-estar e
assim favorece que se trabalhe mesmo adoecido — deflagrando desse modo o
presenteísmo. A partir do discurso empresarial e das chefias, o assalariado absorve a
ideia de que, nas “organizações de excelência”, a obrigação de ser perfeito inclui a de
ser saudável. É negada, assim, a necessidade de buscar ajuda médica ou psicológica.
Tal elevação da auto-exigência, além de prejudicar a detecção e o tratamento precoces
é certamente caminho para o agravamento e, no que diz respeito à saúde mental,
isto é, marca o itinerário pelo qual muitos transtornos psíquicos e psicossomáticos
irão se desenvolver — mesmo que o adoecimento inicialmente ocultado tenha, por
exemplo, aparecido sob forma de dores nos membros superiores ou nas costas. Dores
que já correspondiam ao desenvolvimento de uma tenossinovite ou uma dorsalgia
mas que eram interpretadas pelo trabalhador como “naturais”, algo que “logo deve
passar”.
Muitas vezes, fortes mecanismos de negação psicológica dos sintomas fazem
com que nem os próprios assalariados tomem consciência dos mesmos, impedindo
assim que reconheçam os prejuízos sofridos por sua saúde. Deste modo, os processos
mórbidos evoluem e se agravam. Às vezes, a patologia é revelada pela piora dos
sintomas e/ou episódios agudos que impossibilitam totalmente as atividades laborais.
O mais frequente é que o desgaste físico e/ou psíquico permaneça ocultado, num
processo de cronificação. Mas em geral torna-se impossível disfarçar por muito tempo
a queda de vitalidade, o desaparecimento do entusiasmo pelo trabalho, as limitações
funcionais (físicas e mentais) que irão se revelar na queda de desempenho, que é
acompanhada quase sempre pelo apagamento de criatividade. Funções cognitivas —
como atenção, memória e raciocínio — são em geral atingidas. Ao mesmo tempo,
desaparece a capacidade de tomar iniciativas. A qualidade dos relacionamentos e

(2) Texto de Maria Maeno, em publicação nos Anais do Congresso de Saúde Mental no Trabalho de
2008, IGT, Goiânia.

90
das comunicações interpessoais sofre empobrecimento, reflete o desgaste. Quase
sempre é difícil esconder dos demais o desânimo, o esvaziamento do interesse pela
atividade e o crescente mal-estar. Para alguns, torna-se extremamente penoso o
esforço para controlar o extravasamento da irritabilidade.
O presenteísmo tornou-se um fenômeno amplamente reconhecido e
preocupante nas organizações. Entretanto, por enquanto só conhecemos análises
mais pormenorizadas a respeito fora do Brasil. Mas os depoimentos daqueles que,
mesmo adoecidos, permaneceram trabalhando, enquanto é (ou era) possível
aguentar, fazem parte da experiência cotidiana dos profissionais que atuam na área
de Saúde do Trabalhador. A atividade clínica demonstra o agravamento dos quadros
clínicos e a associação de outros agravos — mentais ou psicossomáticos, ou mesmo
acidentes de trabalho típicos — vinculados a esse presenteísmo. Entre os
desdobramentos psiquiátricos, um dos mais frequentes é a procura de bebidas
alcoólicas “para suportar continuar trabalhando”, correndo o risco de desenvolver
dependência. Outros conseguem acesso a tranquilizantes ou antidepressivos e
utilizam doses inadequadas que podem precipitar acidentes de trabalho. Têm sido
detectados os riscos aumentados de acidentes de trânsito quando esses trabalhadores
são condutores de veículos.
O Brasil começa a falar do assunto, mas em geral, as empresas tratam do
mesmo sem vinculá-lo à questão da saúde. Visualizam o presenteísmo sob o aspecto
único de constituir um estorvo para o alcance das metas empresariais, sem perceber
que as pessoas estão em processo de adoecimento ou já apresentando patologias que
são ocultadas. Essas afecções podem ser dos mais variados tipos, porém se destacam
as psíquicas, as osteomusculares (LER/DORT) e diferentes agravos de ordem
psicossomática.
Na União Europeia — com destaque para a Alemanha — estudos sobre o
problema fortaleceram propostas preventivas aos adoecimentos, enfatizando em
particular a saúde mental e recomendando a detecção e tratamento precoces.
b) desempregados — Trabalhadores desempregados encontram em geral fortes
barreiras para acesso à perícia previdenciária. Desta forma, deixa de ocorrer o
registro destes agravos. Dois sub-grupos podem ser aí destacados: 1 — o dos que
adoeceram no trabalho e foram dispensados antes de recorrerem ao INSS . A dispensa
do trabalhador mentalmente adoecido muitas vezes é categorizada como “por justa
causa”, alegadamente por distúrbios da disciplina ou falhas de desempenho que
ocorrem em decorrência dos sintomas. Exemplo: as explosões de agressividade de
trabalhadores intoxicados por mercúrio — que também podem se manifestar em
outros agravos psíquicos, por exemplo, no transtorno de estresse pós-traumático
(TEPT) e no burn-out .
2 — Trabalhadores temporários, que apresentam intensificação dos sintomas após
término do contrato de trabalho, quando já estão sem acesso à Seguridade Social.
91
c) Trabalhadores informais — Os trabalhadores que trabalham na
informalidade e não possuem direito a benefícios do INSS — quando adoecidos e
incapacitados para exercer suas atividades de trabalho.
Observações e pesquisas convergem atualmente para um consenso relacionado
com a alta rotatividade dos trabalhadores submetidos a relações de trabalho precárias
(terceirização; trabalho temporário; entre outros): a rápida sucessão das
intermitências entre emprego e desemprego gera permanente insegurança e
ansiedade.
Corpo, vida relacional e pensamento: O pensamento se enraíza no corpo e na
relação que oferece o suporte simbólico ao ser. Essa inserção se dá, segundo Bernard
Golse (2001) no ponto de encontro do corpo com o vínculo significativo (vínculo ao
outro e o vínculo social). As restrições ao livre pensar e fantasiar podem ser impostas
por uma modelização comportamental autoritária que inibe os potenciais psíquicos
da criança — e assim enseja empobrecimento da vida mental, o que o autor demonstra
estar comprovado a partir de diferentes estudos e observações. O que faz com que o
Golse declare que se desejamos que a modernidade seja centrada na liberdade de ser
e de desenvolver se em relação com o mundo, precisamos manter-nos em alerta face à
modelização da vida psíquica e relacional dos bebês, para escapar o mais rapidamente
possível do que os levará inevitavelmente ao sofrimento, aos distúrbios da sexualidade
e mesmo à morte. O estudo de Golse se volta às crianças pequenas. Entretanto,
considerando a natureza humana e a do próprio psiquismo — capaz de sofrer
regressões em situações de privação relacional — podemos entender o embotamento
afetivo e o decréscimo das elaborações do pensamento nas situações em que os
relacionamentos se burocratizam e a mobilidade subjetiva é paralisada. Isto é, são
inibidos os fluxos das fantasias, sentimentos e elaborações do livre pensar, pois o
bloqueio da própria inteligência também acontece quando a autenticidade é
bloqueada pela disciplinação rígida e pelo medo. (Golse, 2001)

II — ÉTICA , DIGNIDADE E A QUESTÃO DA LIBERDADE

No desgaste mental e em suas expressões mórbidas é a subjetividade do


indivíduo que é atingida. E a subjetividade é construída ao longo das experiências
sociais da existência de cada ser humano e através dos mecanismos de interiorização
em que os valores da cultura passam a ser constitutivos da identidade e do mundo
psíquico. Este é o processo denominado subjetivação — que tem sido ponto de encontro
entre estudos dos cientistas sociais (sociólogos e antropólogos) que contemplam as
esferas do coletivo e os psicólogos que estudam a vida mental e o mundo subjetivo.
Phillipe Davezies (1997), médico do trabalho que tem realizado na França
análises importantes para a psicopatologia do trabalho, apontou o desgaste ético no
núcleo dos fenômenos atuais de precarização da saúde dos trabalhadores.

92
Diferentes investigações, realizadas por pesquisadores em diversos países,
vem produzindo conclusões semelhantes quanto ao apagamento ético revelado
no centro dos processos de ruptura da sociabilidade e de desestabilização da
economia psicossomática e da saúde mental. Os autores descrevem diversos
processos acionados ou mediados por essa perda, que altera as dinâmicas subjetivas
e intersubjetivas. A importância assumida, nestes processos, pelos ataques à
dignidade, é ressaltado por Doray, que desvendou e analisou em profundidade os
traumas éticos que eclodem em tais circunstâncias. Tanto o que quebra a ética da
organização quanto os traumas éticos que atingem os indivíduos, fazem emergir
sentimentos negativos (medo, raiva, impotência, vergonha e ressentimento) que
resultam na deterioração da sociabilidade. (Davezies, 1997; Doray, 2006; Dejours,
2008; Matrajt, 2005; Seligmann-Silva. 1994)
A coação ao fingimento — A imposição ideológica da excelência é uma injunção
onipresente à perfeição geral e individual em muitos ambientes de trabalho. E ela
leva a uma estranha obrigação — a obrigação de fingir. Trata-se, portanto, da coação
ao fingimento, — um estranho imperativo anti-ético que , ao ser disseminado, mantém
o mito do êxito permanente, conseguindo deslumbrar (e cegar ) com o esplendor do
ufanismo (somos os melhores em tudo). Faz parte deste ufanismo o que denominamos
ideologia da saúde perfeita. (Seligmann-Silva, 2001)
A economia moderna afastou-se da ética, lamenta o economista Amartya Sen. O
autor identifica, nas publicações da economia moderna, “o descaso pela influência
das considerações éticas sobre a caracterização do comportamento humano real.”
(p. 23) Sen contrasta uma vertente da economia que é profundamente vinculada à
ética e tem raízes no pensamento de Aristóteles, à corrente agora dominante, centrada
na logística, na atenção aos meios de alcançar a riqueza, deixando de lado as
finalidades humanas da economia. (Sen, 1999) Certamente, essa tendência
identificada por Sen tem relação com as diretrizes empresariais que prevaleceram a
partir dos anos 80, na definição dos processos decisórios quanto às opções de produção
e administração de pessoal.

A liberdade existencial (liberdade de ser integralmente)

Já que a proposta é situar o assunto na atualidade, torna-se necessário levar em


conta a correlação das forças, de distinta natureza, que hoje atuam de modo
simultâneo, tensionando a liberdade de ser e de manter uma identidade social. Será
impossível aprofundar essas questões, mas elas inevitavelmente se colocam dentro
de nossa temática.
O mundo do trabalho — subordinado a correlações de poderosos interesses
políticos e forças econômicas num cenário em que a organização das forças sociais se
fragilizou em grande parte do mundo — indiscutivelmente, se tornou um poderoso

93
centro de irradiação de mal-estar. Nele se origina grande parte dos impactos
desestabilizadores e deformantes que, ao atingirem mentalidades e sensibilidades,
vão ferir todo o tecido social.
Encaramos atualmente uma precarização do trabalho já mundializada, embora
em graus diferenciados. E, no caso brasileiro, acresce o fato de que já tínhamos uma
precariedade anterior, pré-existente à reestruturação produtiva — e que era bastante
evidente em várias áreas. Algo que não deixa de ter implicações importantes na
atualidade. Mesmo sendo impossível examiná-las agora, vale instigar as reflexões
com uma pergunta: para populações que ao longo de várias gerações atravessaram
situações precárias, de grande carência e desproteção, — na vida e no trabalho —
como é percebido o discurso sedutor da inclusão na modernidade — mesmo em um
emprego de vínculo precário — e auferir possibilidades de consumo que parecem
ilimitadas diante das ofertas de crédito disponíveis para quem tem um emprego? As
respostas são várias — uma delas está na longa lista de pessoas inadimplentes, entre
outras, aquelas que contraíram dívidas com os próprios empregadores, passando a
sofrer exploração em um novo tipo de cativeiro, como tivemos ocasião de constatar
em estudos de caso. (Seligmann-Silva, 1994)
Raízes ideológicas da precarização: As concepções de inexorabilidade que
originaram as propostas de reestruturação produtiva expressam a mesma ideologia
que moldou a ideia da existência de uma globalização inexorável. As duas concepções
correspondem a uma só construção ideológica e germinaram a partir da mesma
matriz — também ideológica — do neoliberalismo. A imposição dessa conjunção
originou uma retórica imperativa que no decorrer dos anos 80 propagou nas empresas
uma injunção poderosa: era preciso garantir sobrevivência na globalização. E as
palavras de ordem eram: competitividade e flexibilidade. Em outras palavras: a adoção
de novos paradigmas organizacionais deveria ser feita, para a instauração de uma
competição essencial para a sobrevivência — o que só poderia ser conseguido através
de empresas ágeis e enxutas. Assim, foi imposta uma racionalidade na qual o
economicismo passou a dominar e preceder qualquer consideração à natureza —
tanto dos seres humanos que trabalham quanto a do próprio planeta.

Uma cegueira deliberada a respeito de uma precarização evidente

Pode ser visto com perplexidade que a percepção dos dirigentes de grande
parte das empresas fechou-se para a percepção de evidências — sobre a nocividade de certas
situações de trabalho para saúde e, de modo especial, para a mente humana —
comprovadas por pesquisas consistentes e incontestáveis. Esse fechamento da
consciência espanta e contraria tudo o que o pensamento filosófico tem construído,
a partir de Spinoza, que no século XVII apontou para o objetivo de que o
desenvolvimento da inteligência humana se mantivesse fundamentado em uma

94
percepção capaz de iluminar o aperfeiçoamento da vida e dos seres humanos. (Spinoza,
1677 / 2004)
Tal fechamento representa um imenso desafio para as áreas de Saúde e Segurança
do trabalho. Pois, no Brasil, a maioria das empresas ainda possui reduzida
oportunidade de debater aspectos da organização do trabalho que já foram
identificados pelas pesquisas como fonte de riscos à saúde mental. Torna-se assim
evidente a necessidade de assumir o desafio à transformação de um estado de coisas
em que vemos o conhecimento científico já acumulado ser desacompanhado de um
reconhecimento das situações concretas que exigem mudanças efetivas — isto é,
traduzidas em novas práticas organizacionais e preventivas.
A cisão entre conhecimento existente e sua aplicação na ação preventiva tem
raízes ideológicas historicamente constituídas. E torna-se bastante preocupante
constatar que, ao longo do domínio do pensamento neoliberal, generalizou-se uma
veiculação de ideias, concepções e atitudes contrárias a uma ética que respeita a
saúde como valor maior. Diante da intensificação do trabalho — favorecida pela
conjunção de novas tecnologias de administração e de produção/comunicação
(micro-eletrônica etc.) — essa cisão assume enorme gravidade.
Em suma: no cenário brasileiro, um dos maiores obstáculos ao progresso da
prevenção nos ambientes e trabalho é de ordem cultural e ideológica, que decorre de
uma mentalidade empresarial e gerencial ainda predominante. Mentalidade que
guarda resquícios de uma fase colonial de nossa história; é marcada pela desconfiança
em relação aos empregados e se caracteriza por grande resistência à aceitação de
todas as evidências que comprovam a vinculação entre diretrizes e modos de
administração, por um lado, e agravos à saúde do empregados, pelo outro. E entre
estes agravos, vêm se destacando de modo marcante os que atingem a esfera mental
e os processos psicossomáticos e psicossociais conectados a essa esfera.
A liberdade humana sob novas tensões e desafios: A questão da liberdade
voltou a colocar-se para os trabalhadores e para toda a humanidade. Quais as formas
de liberdade que devem ser assumidas nas sociedades modernas — e, por conseguinte,
também no mundo do trabalho — para possibilitar, simultaneamente, a justiça e a
realização pessoal dos indivíduos? Essa indagação é objeto de um profundo estudo
filosófico empreendido por Axel Honneth (2007). Não poderemos analisar aqui a
complexidade desta questão. Mas assinalamos que ela se torna fundamental para o
enfrentamento dos riscos de disseminação de novas formas de servidão na
contemporaneidade.
A falsa liberdade com aumento de responsabilidade: O controle é aspecto que tem
sido alvo de especial atenção nos estudos de SMRT, pois frequentemente configura uma
pressão coercitiva. Os princípios tayloristas continuam muito presentes na atualidade,
— não obstante todos os discursos sobre autonomia dos “colaboradores”, conforme
múltiplas análises já revelaram. Dentro do clima geral de desconfiança e insegurança,
95
tornaram-se mais agudos os pressuposto de Taylor sobre a não confiabilidade dos
empregados, isto é, a ideia de que não é possível confiar nos trabalhadores, que precisariam,
por isto, ser submetidos a controle permanente. Os modos de controle é que se
tornaram mais refinados, unindo aplicações da eletrônica a técnicas administrativas
que procuram harmonizar avaliação e incentivos — como prêmios por produção, por
exemplo. Deste modo, o controle é exercido concomitantemente à pressão direcionada
para incrementar a produtividade. Nestas situações, sentir-se vigiado gera sensação de
trabalhar sob ameaça permanente e mesmo ideias de perseguição — o que pode vir a
configurar quadros do que Marie Pezé(2008) denomina paranóia situacional.

Liberdade programada ou autonomia controlada

A liberdade real e o espaço de autonomia foram sempre reconhecidos em sua


conotação positiva para o desenvolvimento humano e para a saúde mental.
Quando escrevemos o livro “O desgaste mental no trabalho dominado”
(Seligmann-Silva, 1994) havíamos identificado uma liberdade ilusória que descrevemos
como liberdade programada. Tratava-se de uma falsa liberdade, extremamente limitada,
mas que foi apregoada pelo poder empresarial como consistindo em uma autonomia
ampla. Já no final dos anos 80, tal mensagem — direcionada às mídias e aos próprios
empregados — podia ser identificada no discurso empresarial, como sendo uma das
grandes vantagens que a modernização oferecia aos empregados.
A generalização de uma falsa autonomia nas situações do trabalho “modernizado”
vem sendo agora examinada. Trata-se aspecto resultante do mascaramento da
dominação. Beatrice Appay (2005) designou o fenômeno com a expressão autonomia
controlada. Referiu-se, assim, a uma autonomia que é autorizada e estimulada em
tudo o que favoreça de modo imediato o alcance das metas empresariais — contanto
que se restrinja a estes propósitos. Portanto, uma liberdade delimitada e ilusória.
Essa liberdade pode mostrar-se inclusive perigosa, ao implicar, muitas vezes, na
“liberação” do autocontrole de impulsos agressivos e de tendências perversas até
então submetidas à autocensura — desde que essa “liberação” possa, no plano
imediato, estar a serviço das metas de competitividade e excelência da empresa.

III — A PRECARIZAÇÃO VINCULADA ÀS TRANSFORMAÇÕES


ORGANIZACIONAIS

Mutações na organização do trabalho: A desregulamentação dos contratos de


trabalho e a adoção da flexibilidade foram assumidas na reestruturação produtiva
em nome da modernização, mas seu objetivo real era maximizar a competitividade.
Esses aspectos se tornaram também princípios centrais nas estratégias empresariais
adotadas e nos modismos organizacionais que se sucederam: reengenharia; qualidade
total e outros mais, que Heloani (2003) examinou em uma revisão abrangente dessa

96
sucessão. Desejamos chamar a atenção, aqui, para o estrondoso otimismo com que
a introdução de cada uma dessas transformações foi apregoada por uma certa
literatura e pelos gurus da administração que rodaram o mundo, nos anos 90,
disseminando estas receitas de sucesso. A ideologia de excelência — que impregnou
estas concepções e suas práticas, — foi reconhecida mais tarde como algo que agravou
os efeitos desastrosos da reestruturação de cunho economicista que se refletiu na
precarização do trabalho e da saúde. (Monroy, 2000)
Para a incorporação dos novos parâmetros, as empresas tiveram que proceder
a mudanças profundas na organização do trabalho. Procuraremos, mais adiante,
tecer algumas considerações a respeito. Antes, pra melhor entendimento, cabe
sintetizar as categorias de análise que se tornaram importantes para o entendimento
das relações entre Organização do Trabalho (O.T.) e Saúde Mental Relacionada ao
Trabalho (SMRT). Considerando, aqui, a impossibilidade de separar, na análise, a
O.T das políticas de pessoal adotadas pelas empresas.
Os principais aspectos que costumam ser analisados na O.T. são: a estruturação
hierárquica e o modo pelo qual o controle é exercido; os tempos de trabalho (estrutura
temporal do trabalho); a divisão das atividades, fluxos e qualidade da comunicação; os
conteúdos das atividades, no que consistem e que tipos de esforços exigem; as relações
interpessoais e intergrupais; as formas e critérios de avaliação dos empregados. Todos
estes aspectos — que necessitam ser apreciadas de modo contextualizado e em suas
articulações — têm sofrido mudanças que convergem para a precarização da saúde
geral e mental.
Nas políticas de pessoal (Gestão de Pessoas) merecem especial atenção, em
princípio, aspectos de ordem geral quanto à posição adotada pelas empresas face
aos mais fortes imperativos da ideologia neoliberal que se tornou dominante:
a) As relações sociais de trabalho — isto é, a desregulamentação dos vínculos
empregatícios.
b) Gestão da competitividade nos vários patamares — mas principalmente nos
internos: estímulo à competição entre setores/equipes/gerências/pessoas.
c) Modos adotados para a incorporação do princípio da flexibilidade.
Na análise de um aspecto de importante alcance psicopatológico — a
intensificação do ritmo — não pode ser esquecido que, longe de ser apenas de ordem
temporal, ela decorre de um intrincado conjunto de determinações de ordem política
e econômica. E, no caso de cada empresa, o grau de intensificação é modulado por
decisões realizadas em estratos superiores da hierarquia — que são, portanto, também
da natureza das relações de poder, isto é, políticas.
Por conseguinte, existe sempre um poder que decidiu e impôs as pressões de
tempo, que, como se sabe, em geral, constituem importante fonte de ansiedade.

97
Na precarização conjugada — do trabalho e da saúde — merecem atenção a
posição e as estratégias adotadas pelas empresas ao incorporarem o paradigma da
flexibilidade nos contratos de trabalho, na organização dos tempos (jornadas; turnos;
ritmos, pausas; intervalos interjornadas; folgas; férias etc.); conteúdos das atividades
(polivalência); exigências de produtividade, bem como nas práticas de treinamento,
controle e avaliação.
Trabalho em turnos: A dissociação entre os biorritmos que são próprios da
fisiologia humana e aqueles exigidos por certos regimes de trabalho é estudada há
muito tempo. A professora Frida Marina Fisher, presente neste Congresso,
desenvolve já há três décadas importantes estudos no Brasil sobre os biorritmos e a
saúde relacionados ao trabalho em turnos e no trabalho noturno. Na exposição que
faz neste congresso, ela aponta de que modo vem ocorrendo os prejuízos à saúde no
decorrer do período mais recente.
Tensões na flexibilização do trabalho: Verificamos que as visões e a linguagem
(retórica) referentes à flexibilização podem diferir bastante: o que é considerado
como flexibilização modernizadora nos meios gerenciais é vivenciada por assalariados
como superexploração, incerteza quanto ao futuro e mesmo como ameaça de exclusão.
Torna-se desafiante, após uma reestruturação aparentemente horizontalizadora,
identificar os focos de poder a partir dos quais diferentes pressões são desenvolvidas
sobre os empregados, entre as quais aquelas voltadas para maximizar a intensificação
do trabalho e o controle/dominação que atingem quem o executa.
As tensões e conflitos gerados diante do conjunto destas e de outras questões
colocadas pela desregulamentação têm indiscutível repercussão nos processos
psíquicos, podendo ou não exercer papel na gênese de patologias — transtornos
psíquicos ou psicossomáticos, na dependência de outras condições.
Sennett (1999) alerta que a atual flexibilização do tempo, “embora parecendo
prometer maior liberdade (...) está, ao contrário, entretecida numa nova trama de
controle”. (p. 67) Pois em muitas organizações, o que se exige é um estado de
sobreaviso permanente para o empregado que está fora do local de trabalho. Esta
disponibilidade continuada comprime as possibilidades de participação social,
inclusive na vida familiar, já que torna impossível planejar e assumir compromissos,
uma vez que um chamado pode vir a qualquer momento. Mesmo para o trabalho
realizado à distância da firma, o controle constante muitas vezes prejudica a qualidade
da vida privada e os relacionamentos familiares. As frustrações e conflitos daí
decorrentes variam, conforme idade, gênero, posição na constelação familiar e outras
variáveis. É bastante conhecido o drama vivenciado por mães que, “gozando a
liberdade de trabalhar na própria casa”, para garantir a produtividade, sentem-se
impossibilitadas de atender os chamamentos de seus filhos pequenos.
A intermitência entre trabalho e desemprego é uma das marcas da precarização.
Essa intermitência é vivida por grande parte da população trabalhadora em muitos
98
países como também acontece no Brasil. E as fases de atividade correspondem, para
muitos, a um trabalho degradado e potencialmente desgastante. Ao mesmo tempo,
aumentam cada vez mais a rotatividade e o desemprego intermitente para milhões
de assalariados — o que se faz acompanhar de fortes sentimentos de insegurança. A
autodesvalorização é agudamente vivenciada pelos assalariados que tiveram uma
experiência anterior de emprego estável acompanhada por desenvolvimento
profissional e que agora se encontram na situação de informalidade ou de
subcontratados através de empreiteiras e muitas vezes sem oportunidade de aplicar
as próprias capacidades.
Trabalho relacional e afetivo: A maneira pela qual a precarização vem
atingindo o trabalho relacional e afetivo merece séria e urgente atenção.
A precarização dos vínculos interpessoais e da comunicação significativa
alcança a vida familiar, o lazer e as várias modalidades de participação social — o
que acontece pela compressão dos “tempos de conviver”, pela fadiga e por inúmeros
mecanismos que transformam sentimentos, modos de conviver e de compartilhar.
O reconhecimento da existência de atividades que podem ser entendidas como
de ordem predominantemente afetiva ainda é bastante obscurecido nas organizações
brasileiras. Assim, qualidades especiais requeridas no trabalho afetivo feminino —
embora sejam fortemente exploradas — também constituem “pontos cegos” nas
práticas organizacionais, como já foi mencionado. A saúde e o trabalho das
professoras do ensino fundamental, em todo o país, vêm sendo gravemente afetado
por estes aspectos, que tem igualmente forte incidência nas atividades do setor saúde.
A densidade e intensidade das atividades cognitivas têm ressonâncias na vida
afetiva. A intensificação geral dos ritmos de trabalho, as exigências de ordem cognitiva
(atenção; raciocínio, etc.) e o acúmulo do cansaço atuam, conjuntamente, no
sufocamento da vida subjetiva. Em suma — os sentimentos têm sido colocados sob
compressão e às vezes levados a um verdadeiro embotamento. É o que foi constatado,
no Brasil, em diferentes pesquisas, que revisamos para apontar este denominador
comum que muitas vezes conduz às síndromes de insensibilidade. (Seligmann-Silva,
1994 e 2004). Além de diferentes estudos sobre trabalhadores bancários, podemos
lembrar, a respeito do assunto, uma investigação sobre analistas de sistema
desenvolvida por Lys Rocha (1996) e outra no setor petroquímico, em estudo de
Tânia Franco (2003), realizado na cidade de Salvador.
Torna-se necessário considerar a existência e importância do trabalho afetivo,
que, para ser realizado, demanda que o trabalhador utilize e insira na prática
cotidiana seus sentimentos , emoções e mesmo paixões. A dimensão afetiva é inerente
a qualquer atividade que envolva relacionamento humano — isto é, o que tem sido
denominado atividade relacional. Mas existe também em outras atividades, pois
sentimentos como responsabilidade com outros seres humanos podem ser fortes e
mobilizadores. Os exemplos são numerosos. Podemos citar pesquisadores e técnicos

99
da área de saúde que, mesmo sem terem contato com os pacientes, vivenciam a
responsabilidade com outras vidas, que é contida em suas atividades. Mas recordo
também um trabalhador siderúrgico, operador de ponte rolante, cuja entrevista
me fez perceber seu profundo sentimento de responsabilidade com respeito à necessidade
de evitar erros ou que poderiam implicar em um acidente catastrófico — o derrame
da gusa fervente sobre todos os operários que trabalhavam debaixo da ponte que ele
operava.
Podemos dizer que, no Brasil, é ainda mínima a valorização dos esforços
daqueles que estão voltados a atender exigências laborais de natureza afetiva. Este
obscurecimento pode ser notado especialmente quando diz respeito a trabalho
desenvolvido por mulheres.
Um consenso entre os que estudam a temática é a existência de qualidades
especiais no trabalho afetivo feminino — qualidades que são exploradas — mas
também deliberadamente ignoradas — quando se trata de traçar políticas salariais,
planos de carreira e critérios de avaliação. Esta desconsideração de algo extremamente
valioso é efetivada através da naturalização de capacidades desenvolvidas a partir da
socialização e durante a experiência de vida das mulheres. Trata-se de capacidades
de cuidar e consolar, proteger, ensinar e persuadir, etc. Na Universidade de Berkeley,
pesquisas e publicações de Arlie Russell Hochschild, ao longo de mais de 25 anos,
apontam as exigências culturalmente colocadas às mulheres de diferentes ocupações
e os danos mentais e sociais advindos das concepções e práticas gerenciais injustas
(Hochschild, 1983 e 2003).
Os estudos existentes sobre o tema do trabalho afetivo foram recentemente
retomados com bastante ênfase na sociologia do trabalho e na SMRT voltada às
atividades no setor saúde, na educação e no serviço social — em profissionais que
são genericamente estudados sob a denominação de cuidadores e que, neste Congresso,
são objeto de apresentações de alguns outros expositores.
Pode entretanto se verificado que, no tema dos conteúdos afetivos do trabalho,
ainda são poucas as pesquisas voltadas para os profissionais das chamadas áreas de
recursos humanos. Acreditamos que deveriam ser mais lembrados, no estudo do
assunto, as/os assistentes sociais, psicólogas/os e médicos/as que trabalham nas áreas
da gestão e desenvolvimento de pessoas. As pressões exercidas sobre estes profissionais
partem de direções diferentes e conduzem a exigências distintas. Diretrizes vindas do
topo da pirâmide hierárquica frequentemente colidem com as necessidade e
demandas colocadas pelos empregados a esses profissionais. Quando se trata de
empresas do setor privado, as equipes do setor de pessoal costumam enfrentar
constrangimentos e sobrecargas mentais de trabalho em situações onde incidem
pressões hierárquicas vindas do alto e que compelem à maximização de
produtividade e competitividade. Cada vez mais, também no serviço público, esse
tipo de gerenciamento se faz sentir — antepondo produtividade e economicismo
aos próprios objetivos sociais que constituem a missão original destes serviços e de
100
seus funcionários. Missão que, anteriormente, estava em sintonia com a identidade
profissional destes funcionários administrativos , assim como com a dos que realizavam
o atendimento direto aos cidadãos. Missão que conferia sentido ao trabalho que
realizavam, fortalecendo a dignidade e o auto-respeito de cada servidor público.
Em suma: a identidade e a ética profissional vêm sendo duramente pressionadas
também no contexto da administração, — especialmente da administração de pessoas
— em situações que vão além das aqui evocadas. Estas pressões perturbadoras se acirraram
em todo o mundo , multiplicando os impasses éticos que repercutem na vida psíquica (e
na saúde) dos profissionais de diferentes setores da administração de pessoas.
Vale apontar que os sentimentos também são estrangulados durante alguns
transtornos psíquicos relacionados ao trabalho. Assim, no transtorno de estresse
pós-traumático, a transmissão de afeto e a sensibilidade ao outro são substituídas
pelo entorpecimento e pela irritabilidade exacerbada que prejudicam gravemente
os relacionamentos e a próprio convívio familiar. Em alguns destes trabalhadores
pudemos constatar que um grande sofrimento psíquico deriva da percepção de tratar
com rispidez e agressividade as pessoas mais próximas e queridas, rechaçando-as e
buscando o isolamento “para não machucar ninguém”.
Temos observado em nossa experiência clínica que um intenso sofrimento
psíquico decorre da percepção da impossibilidade de controlar a irritabilidade. Isso
pode acontecer em situações de trabalho que correspondam a uma sobrecarga mental
continuada, sem pausas ou tempos de repouso suficientes. Mas acontece
principalmente quando o esgotamento profissional já se instalou (burnout). No
caso dos cuidadores atingidos pelo burnout, o descontrole emocional leva-os a
direcionar a irritação justamente às pessoas a quem antes dedicavam seu trabalho e
seus cuidados — alunos (no caso das professoras); pacientes (no caso de enfermeiras/
os e outros profissionais de saúde).

IV — AS PASSAGENS: PRECARIZAÇÃO SOCIAL, DO TRABALHO E DA SAÚDE

Tânia Franco, em sua exposição neste Congresso, aponta várias “passagens”


importantes entre as várias precarizações que considerou na sistematização apresentada.
Desejamos pontuar alguns fluxos e interações relacionados a essas passagens.
1 — Passagens entre as instabilidades da economia mundializada e as
organizações nacionais. Como já apontamos no início deste texto, este estudo vem
sendo realizado há vários anos por alguns economistas de visão crítica.
O que temos a considerar nessas passagens é a insegurança transmitida a partir
das instabilidades do sistema econômico internacional, através de interações
continuadas com as economias nacionais. Os fluxos de incertezas do âmbito externo
atingem a esfera interna das organizações, onde indivíduos e suas subjetividades são
envolvidos pela inquietação e às vezes pelas ameaças de catástrofe, fracasso e mesmo
101
falência da empresa. Isto porque empresários, gerentes e assalariados percebem e
reagem ante o que captam e interpretam a partir das instabilidades e ameaças presentes
no contexto mundial ou do país, ou de um dado setor da economia. As pessoas buscam
entender os significados do conjunto de mudanças em processo para o contexto de seu
país, ramo de atividade e empresa, assim como para sua própria posição na firma,
carreira ou a manutenção do próprio emprego — o que é a preocupação de todos.
Outros reflexos se apresentam para os que trabalham no setor público de diferentes
países, com maior gravidade naqueles que apresentam maior retrocesso econômico,
social e, em alguns casos, político (retração da democracia). Assim, em muitos
contextos, os servidores públicos ativos e os aposentados vêm sofrendo imensas perdas
de toda ordem em seus proventos e em seus direitos sociais. Assim, como veremos
adiante, modificações de diretrizes, regulamentos e normas administrativas têm sido
às vezes anunciadas publicamente e ocasionado inquietação e protesto dos atingidos.
Em outros países, tais mudanças são implantadas de modo velado e surpreendem
individualmente, por exemplo, aqueles que, em situação de perda da saúde ou do
emprego, buscam a proteção da seguridade social.
Para os jovens que pretendem ingressar no mercado de trabalho, a percepção
da incerteza sobre a obtenção deste objetivo está mergulhada, já para muitos, em uma
incerteza maior — a do futuro de seus países e do mundo. Tais percepções têm sido
cruciais do ponto de vista existencial, da formulação de um projeto de vida que
parece, às vezes, como impossível de ser traçado e estão na raiz de movimentos
sociais novos que se alastram na atualidade, como os dos indignados.
Para os desempregados de todas as idades, a captação da imprevisibilidade da
economia e dos mercados de trabalho aumenta a inquietação e criam desnortea-
mento.
Evidentemente, muitas distorções da realidade — especialmente midiáticas,
mas também outras — ocorrem ao longo destes processos.
2 — A passagem entre o Estado e os seres humanos que vivem do próprio
trabalho é feita de fluxos múltiplos e também foi atingida pela precarização e, mais
marcadamente após 2008, pela crise.
Vale lembrar, por exemplo, que as estruturas e legislação dos Sistemas de
Seguridade Social (Previdência, Saúde, Assistência Social), foram transformadas sob
as pressões do neoliberalismo. Essa fragilização representou uma passagem pela qual a
precarização se estendeu aos grupos que mais necessitavam desses serviços, aos mais
carentes de amparo social. Deste modo, a ansiedade e às vezes o desespero tem eclodido
em numerosos conflitos envolvendo os que demandam benefícios previdenciários ou
de assistência social e se confrontam com a “blindagem” inscrita em inovações da
regulamentação. No Brasil, uma blindagem real foi instituída em agências do INSS
onde se realizam as perícias dos segurados que buscam benefícios por adoecimento ou
outros motivos. Surgiu assim, em muitos países, uma compressão de direitos que já

102
pareciam consolidados. Isto é, um intenso retrocesso do respeito aos direitos sociais.
O que concorreu para novos impactos psíquicos, experimentados desta vez pelos
trabalhadores que se percebiam ameaçados pelo desamparo.
Desse modo, a precarização social se aprofunda e avança sobre a vida de milhões de
pessoas que estão afastadas ou perderam seus empregos. A vulnerabilidade da carência
aumenta, nestas situações, a possibilidade de rupturas e impactos que repercutirão de
forma a aumentar os riscos psíquicos. Riscos que são indissociáveis da crise social.
Essas passagens da precarização, no trânsito entre Estado e o mundo do
trabalho, também assumem um papel de imensa relevância na precarização social e
da saúde — sem considerar aqui os novos desdobramentos de crise política e
econômica que podem vir a alimentar. Mas vale lembrar os impactos humanos que,
em muitos países, já resultaram da precarização dos sistemas de proteção social
(Previdência e Assistência Social) e da Saúde Pública, conforme analisado por Robert
Castel (1998; 2003; 2009) e outros sociólogos.
3 — As passagens entre direção e estruturas que articulam o poder dentro das
empresas. No interior dos vários tipos de organização empresarial, a direção decide
as políticas e práticas de gestão. Estas decisões percorrem fluxos e múltiplas passagens
pelas complexas engrenagens da estrutura técnico-administrativa. Trata-se de fluxos
(decisões, regulamentações, “ordens de serviço”, que se fazem por diferentes passagens
e que são moduladas por variados interesses e conflitos de poder. E, neste percurso,
geram mudanças e pressões que irão repercutir nos relacionamentos/sociabilidade,
nos sentimentos e na saúde de todos os empregados — os próprios administradores
e outros executivos.
4 — A interface trabalho/família. Esta é outra passagem que também sofreu
mutações importantes no contexto da reestruturação precarizadora. O tema tem
inúmeros desdobramentos que tivemos oportunidade de abordar tempos atrás,
quando já foi possível constatar o surgimento de novas tensões nesta passagem de
mão dupla entre o trabalho e a convivência familiar — com repercussões na saúde
de cônjuges e filhos. (Seligmann-Silva, 1994; 1997; 2001 e 2011)
Ao longo de mais de três décadas de reestruturação continuada, todas estas
“passagens” vêm sendo profundamente afetadas pela precarização.

V — OUTROS IMPACTOS NA SOCIABILIDADE E NA ÉTICA

Os relacionamentos humanos na reestruturação produtiva:


Tragtenberg (1980) foi pioneiro na identificação da manipulação psicológica
nas organizações, assinalando o que denominou psicomanipulação: “Existe atualmente
a psicomanipulação.Ou seja, não só a mais-valia é extraída do trabalho; há a perda do
seu ‘ser’ em detrimento do bom desempenho profissional, tendo com única finalidade a
rentabilidade.” (p. 29)
103
Ao invés dos antigos burocratas, o autor constatou que a cena empresarial
agora era ocupada por psicocratas. O autor, no mesmo livro, identifica a empresa
como aparelho ideológico que produz o que denominou inculcação ideológica. Ao
examinar o que ocorria nas empresas, ainda nos primeiros anos da reestruturação
produtiva, Tragtenberg (1980) assinalou, também pioneiramente, o alastramento
do participacionismo.
Antunes (1999), analisando os reflexos sociopolíticos das transformações da
economia que se articularam às transformações organizacionais, apontou para as
pressões que, ao intensificarem as atividades, ao mesmo tempo dissolvem e alteram
a sociabilidade e o próprio sentido do trabalho.
O sentido assumido pelo tipo de atividade para o indivíduo que a realiza é um
aspecto extremamente relevante para a saúde mental, pois tem profunda relação
com a autoimagem e autoestima, isto é, com a identidade. Imposições
organizacionais pelas quais o indivíduo deixe de encontrar sentido no seu trabalho
repercutem negativamente na subjetividade. Pois quando alguém é impedido ou
prejudicado quanto a valorizar o que faz isto implica geralmente em que o indivíduo
desvalorize a si mesmo. Quando estas imposições são feitas de forma humilhante,
mais graves são as repercussões. Em verdade, é evidente a relevância que a humilhação
assume na agressão à dignidade — o que pode acontecer de modos os mais variados
assumindo inclusive implicações de ordem médico-legal. No Brasil, por exemplo, já
são reconhecidos no plano jurídico os danos morais que ocorrem no chamado assédio
moral e no assédio sexual.

A escalada da desconfiança na sociedade e nos ambientes de trabalho

Muitos analistas têm diagnosticado a dissolução da confiança na origem e nos


desdobramentos recentes da atual crise econômica. A degradação da ética, por sua
vez, é a origem maior da perda de confiança. A disseminação da desconfiança
decorre também da exacerbação da competição generalizada, que, concomitante-
mente também tem atropelado a ética. Desta forma, brotou uma desconfiança que,
qual erva daninha, se alastrou corroendo os vínculos humanos em toda parte e, em
especial, em todos os espaços e níveis hierárquicos das estruturas do mundo do trabalho.
No plano individual, a desconfiança ofende a dignidade e geralmente humilha.
Por exemplo, ao presumir, a princípio e sem qualquer fundamento objetivo,
desonestidade ou falsidade por parte do empregado, o chefe agride moralmente e
fere os sentimentos do assalariado, desmobilizando seu interesse e derrubando suas
expectativas de justo reconhecimento — o que pode ser ponto de partida para
vivências e esvaziamento, perda de sentido do trabalho e mesmo para depressões. A
dor psíquica da humilhação possui ainda diferentes desdobramentos na dinâmica
psicoafetiva e nas interações humanas. A busca das bebidas alcoólicas, drogas ilícitas,

104
ou medicamentos psicotrópicos pode ser outro meio procurado para compensar a
perda ou anestesiar a dor psíquica. O que pode levar a dependências.
No plano da administração, a desconfiança incrementa formas de controle
que por vezes assumem características humilhantes ou invasivas — o que acontece
de várias maneiras, como ao registrarem conversas particulares, ou imagens de
aspectos íntimos, por exemplo, através de câmaras de vídeo instaladas em banheiros.
Mas o sofrimento mental desgastante, assim como outros tipos de ataque à
saúde, podem ainda derivar de muitas formas de desvio ético que passam pela
desconfiança sistemática. Um exemplo, infelizmente comum, é o representado pela
desconfiança em relação a queixas de quem refere dores e outras manifestações de
lesões por esforços repetitivos (LER, DORT), em que a ofensa à dignidade se faz
através do menosprezo com que muitas vezes se desqualifica estas queixas.
A formulação de elevadas exigências de produtividade em ambientes nos quais
domina a desconfiança e onde as pessoas temem falar de seu mal-estar ou revelar
quaisquer sintomas, impossibilita a prevenção primária assim como a prevenção
secundária. Isto é, prejudica o êxito das equipes de saúde que buscam estabelecer,
a partir da detecção precoce, um tratamento eficaz. Pois a desconfiança envolverá
mesmo a figura dos profissionais de saúde e dos próprios técnicos de segurança no
trabalho — alguns já bastante sensibilizados para as questões de Saúde Mental.
Vale acrescentar que, em tais circunstâncias, o risco de demissão percebido
pelo trabalhador, além de abafar a queixa, muitas vezes produz a negação psicológica
do próprio mal-estar — o trabalhador esconde de si mesmo seu sofrer. Esta negação
psicológica também pode prejudicar seriamente estudos sobre psicopatologia no
trabalho realizados através de instrumentos como questionários e mesmo de
entrevistas estruturadas em que não haja oportunidade de uma interação que
propicie a empatia e a confiança entrevistador/entrevistado e assim possibilite
“desmontar” as respostas defensivas e evasivas.
A precarização, ao atingir todos os âmbitos da sociabilidade, isola os indivíduos
e repercute de modo importante na vida afetiva e na subjetividade de cada um.

VI — IMPACTOS NA SAÚDE MENTAL

1. Uma constelação nociva para a saúde mental: controle exacerbado + desconfiança


intensa + reponsabilização centrada nos indivíduos

Foram mencionadas as armadilhas da “liberdade programada ou autonomia


controlada”. Vimos também que a intensificação e sofisticação do controle constitui
um aspecto central de uma nova dominação, expressando um poder coercitivo que se
tornou extraordinário e no qual o medo prolifera. Por isso, esse aspecto tem merecido
especial atenção nos estudos de SMRT.

105
Não obstante todos os discursos sobre autonomia dos “colaboradores”, os
princípios tayloristas continuam muito presentes na atualidade, conforme múltiplas
análises já revelaram. Assim, dentro de um clima geral de desconfiança e insegurança,
— um verdadeiro clima de guerra, como foi bem caracterizado por Aubert e Gaulejac
(1991) — tornaram-se mais agudos os pressuposto de Taylor sobre a não
confiabilidade dos empregados, isto é, reativou-se a ideia preconceituosa de que não é
possível confiar nos trabalhadores. E de que, por isso, eles deveriam ser submetidos
a controles permanentes. Os modos de controle é que se tornaram mais refinados,
unindo aplicações da eletrônica a técnicas administrativas que procuram sintonizar
avaliação e incentivos — como prêmios por produção, por exemplo. Desse modo, o
controle exercido torna-se inseparável da pressão que visa incrementar a
produtividade. Nestas situações, sentir-se vigiado gera sensação de trabalhar sob
ameaça permanente e suscita ideias de perseguição — o que pode vir a configurar
quadros do que Marie Pezé(2008) denomina paranoia situacional.
Aumento da violência social e da violência no trabalho: O aumento da
violência na precarização social atinge muitos trabalhadores. É o caso do aumento
de assaltos e agressões que produzem impactos em trabalhadores do comércio e
trabalhadores do setor de transportes — principalmente motoristas de transportes
coletivos e de caminhões, assim como cobradores de ônibus. No âmbito jurídico
existem estudos mostrando a ocorrência de trauma secundário em advogadas que
defendem os direitos de mulheres vítimas de violência doméstica. O mesmo tem sido
observado em trabalhadores sociais (assistentes sociais e outros) que permanecem
longo período prestando assistência a pessoas vítimas de grandes catástrofes
(terremotos, enchentes e outras).
A identidade e a ética dos profissionais são pressionadas, conjuntamente, no
trabalho contemporâneo. Diferentes pesquisas qualitativas, com estudos de casos,
têm revelado esses impasses éticos que repercutem subjetivamente e sobre a saúde
mental de diferentes profissionais: em especial os que atuam na educação ou
prestando assistência/cuidando de adultos ou crianças, assim como dos que estão
envolvidos em desenvolvimento de pessoas e em outras atividades voltadas aos
funcionários das empresas — conforme já mencionamos.
O aumento da violência psicológica também se manifesta assumindo diferentes
formas na precarização. O assédio moral — pessoal ou organizacional — é a forma
de violência psicológica que tem sido mais estudada em vários países, inclusive no
Brasil — onde o assédio sexual — embora existente — tem sido menos estudado do
que nos Estados Unidos e em outros países. Mas, além do assédio, outras modalidades
de violência psicológica são frequentes nas situações de trabalho, aumentam
conjuntamente com a exacerbação das tensões laborais da precarização e podem
também conduzir ao adoecimento.
Temos observado em nossa experiência clínica que um intenso sofrimento psíquico
decorre da percepção da impossibilidade de controlar a irritabilidade e a impulsividade
agressiva. Isso acontece tanto em trabalhadores atingidos pela fadiga crônica, quanto

106
nos casos de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e burnout. Nestes últimos,
e de forma muito característica nos trabalhadores que apresentam esgotamento
profissional (burnout) o descontrole emocional leva-os a direcionar a irritação
justamente às pessoas a quem antes dedicavam seu trabalho e seus cuidados — alunos,
pacientes, pessoas atendidas em serviço social ou outros usuários de serviços públicos.
No atendimento clínico, os/as pacientes frequentemente mencionam a irritabilidade e
perdas que sofrem por causa da mesma — que em geral denominam “nervoso” ,
“nervosismo” ou “perda de paciência”. Registramos muitas vezes, durante os anos
mais recentes, ao atender trabalhadores que se sentiam sobrecarregados, relatos como:
“Não tenho mais paciência, tenho medo de explodir. Por isso nem fico mais junto da
família.” ou “Por causa do nervoso, acho que estou perdendo o amor da minha família!”
ou, ainda: “Pelo motivo da irritação, evito sair, já não encontro com os amigos”.
Os transtornos mentais decorrentes da violência psicológica têm merecido
estudos em muitos países e inclusive no Brasil. Ela pode estar associada à de ordem
física — como em casos de agressões físicas em assaltos sofridos no trabalho.
A violência nas situações de trabalho, no Brasil, têm sido estudada principalmente
em pesquisas qualitativas e estudos clínicos (estudos de casos). Ainda faltam, no país,
estudos epidemiológicos que analisem a psicopatologia decorrente dos vários tipos de
violência que se acentuaram durante a precarização social e do trabalho.
Os principais transtornos psíquicos que têm sido caracterizados nos
desdobramentos clínicos da violência laboral são os seguintes:
• Depressões de diferentes categorias reconhecidas pelo CID-10;
• Síndromes com aspectos paranoides (paranoia situacional, segundo Pezé (2008);
• Transtornos de estresse pós-traumático (TEPT);
• Esgotamento profissional (burnout);
• Dependência de bebidas alcoólicas ou drogas.
Desdobramentos da evolução clínica podem assumir características de psicose,
especialmente em casos de TEPT(3).
A reação aguda ao estresse é o transtorno mais frequente no período imediato
após o trauma e tem em geral curta duração. Depressões e TEPT podem ser outras
derivações da experiência traumática.
Repercussões mentais dos acidentes de trabalho: Essas repercussões têm
duas origens que, na prática, frequentemente se apresentam entrelaçadas —
o dano orgânico e o dano psíquico. Existem as decorrências dos traumas que
acarretam danos orgânicos ao cérebro e assim originam, por exemplo, o déficit
cognitivo. Alterações psicoafetivas e transtornos mentais pós-traumáticos merecem

(3) Para detalhamento atualizado a respeito dos transtornos psíquicos relacionados com a precarização
e a violência, ver Seligmann-SiIva (2011).

107
atenção por sua frequência. O principal é aquele em que o CID rotula como
transtorno de estresse pós-traumático. A reação aguda ao estresse é o transtorno
mais frequente no período imediato após o trauma e tem em geral curta duração. A
experiência traumática do acidente, em muitos casos, é seguida pelo desenvolvimento
de depressões. Em nossa experiência clínica, constatamos casos em que as dificuldades
encontradas para a obtenção de benefícios previdenciários e/ou as barreiras à
reabilitação e volta ao mercado de trabalho contribuíram fortemente na dinâmica
que conduziu ao quadro depressivo. (Seligmann-Silva, 2011; Pezé, 2002)

VII — CUSTOS FINANCEIROS/ECONÔMICOS E HUMANOS DA


PRECARIZAÇÃO DA SAÚDE NO TRABALHO PRECARIZADO

No Brasil ainda estamos no início de uma efetiva avaliação dos custos das
situações de trabalho que acarretam acidentes típicos e adoecimentos.
Deve ser notado que em nosso país ainda não se realiza, como na Alemanha,
Canadá, Austrália e em alguns outros países, a estimativa ampla de custos do
adoecimento vinculado ao trabalho, sendo em geral realizados unicamente cálculos
referentes aos benefícios previdenciários e gastos com tratamento.
Nos países que nos últimos anos se detiveram na análise destes custos e esperado
que os espantosos montantes que têm sido revelados possam se refletir de modo
favorável à prevenção. É o que estudos de Azkenazy (2004) revelam já estar
acontecendo, ao apontar exemplos nos Estados Unidos.
As depressões e a dependência de bebidas alcoólicas estão entre os transtornos
mentais relacionados ao trabalho para os quais encontramos maior número de
referências quanto a realizações de avaliações dos custos que representam para o
setor público, para as empresas do setor privado, e para a economia de cada país
estudado (em termos de PIB).
Os custos sociais e os advindos do sofrimento dos trabalhadores e de suas
famílias, em geral são considerados — pela dificuldade de sua aferição — como
intangíveis. Embora incalculáveis estes custos humanos são certamente imensos.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Ingredientes da Esperança: uma Formação Inovadora e da Disseminação Ampla


dos Conhecimentos em SMRT

Desejamos encerrar essa exposição refletindo um pocuo sobre a esperança que


pode ser depositada em inovações que incorporem os conhecimentos da SMRT à
formação de diferentes profissões onde eles se fazem necessários. Consideramos
igualmente a importância da disseminação de tais conhecimentos a toda a sociedade,

108
através do próprio sistema educacional. Para viabilizar isso, é necessário que os
professores de todos os níveis tenham acesso a tais conhecimentos.
O papel da Universidade brasileira, em relação ao desenvolvimento da
formação e da pesquisa em SMRT é da maior importância, principalmente nas
unidades que realizam a formação dos profissionais de saúde e do preparo dos futuros
gestores da administração pública e privada. Imaginamos que nas Faculdades de
Direito a SMRT também venha iluminar o entendimento das novas questões que
emergem ameaçando e ferindo a ética e a saúde no mundo do trabalho.
Da mesma forma, assinalamos a validade de inscrever os conteúdos da SMRT
na formação dos profissionais de Serviço Social, lembrando as múltiplas instituições
em que irão atuar junto a diferentes instâncias, grupos e pessoas — no
desenvolvimento e implementação de políticas públicas, lidando com questões de
trabalho, desemprego e precariedade social.
Outro aspecto que desejamos destacar nessas reflexões é o que diz respeito aos
trabalhadores já adoecidos.
Na realidade brasileira, o imenso número de trabalhadores cuja saúde mental
já foi afetada pela precarização do trabalho também exige que, da forma mais
imediata possível, sejam instituídas políticas e ações voltadas para oferecer o
tratamento, além de programas e recursos voltados à reabilitação psicossocial e,
quando necessário, também profissional destes trabalhadores.(4) Torna-se, portanto,
urgente a instituição de uma política pública que contemple, de modo conjunto, a
prevenção, o tratamento e a reabilitação dos portadores de transtornos psíquicos
relacionados ao trabalho.
Existe necessidade premente de estabelecer tal política, tanto pelos custos huma-
nos quanto pelos custos financeiros que estão sendo ocasionados pela ausência da
mesma. Existe base, na experiência internacional, para estimar que um estudo amplo
e profundo destes custos poderá oferecer fundamentos ao Ministério à uma política de
reabilitação, de modo articulado ao desenvolvimento de planos e programas voltados
à prevenção. É essencial, ainda, que se obtenha a intersetorialidade necessária para o
desenvolvimento de ações coordenadas e integradas — no contexto da Seguridade
Social e com as demais políticas públicas — em especial as que dizem respeito à educa-
ção, ao trabalho, ao emprego e à comunicação social.

(4) Reabilitação Profissional. Nos casos de transtorno psiquiátrico relacionado ao trabalho, muitas vezes se
impõe a necessidade de reabilitação profissional. Isso pode e deve ser avaliado o mais cedo possível, para que esta
reabilitação possa ter início — sempre que indicado e de forma articulada aos tratamentos inistituídos. É o que
acontece, por exemplo, com trabalhadores que desenvolveram TEPT (transtorno do estresse pós-traumático)
em decorrência de evento traumático vivenciado no trabalho. Se estes trabalhadores voltarem a estar expostos
à violência por suas funções ou por situação de desproteção, será indicada a reabilitação profissional.

109
Reabilitação e reinserção no trabalho constituem, no Brasil, um aspecto
extremamente crítico. Acreditamos que uma política voltada à reabilitação
certamente interessará às empresas que desejam recuperar funcionários que já foram
objeto de investimentos em capacitação e que desenvolveram muitas vezes
conhecimentos e técnicas significativos.
A capacitação em SMRT, direcionada a profissionais de reabilitação que
possam conhecer aspectos de SMRT essenciais para planejar e implementar a
reabilitação em todas as suas vertentes, e incluindo aí, sempre que indicado,
articuladamente à reabilitação psicossocial, também a profissional — será um passo
inicial e essencial na efetivação da política pública aqui proposta.
Acreditamos que também os juristas que estudam e atuam na esfera dos Direitos
Humanos, na Justiça do Trabalho e no Ministério Público do Trabalho — muito
terão a contribuir num processo em que a incorporação dos conhecimentos da SMRT
possa — na contemporaneidade — oferecer fundamentos para a legislação e a
formulação de julgamentos e sentenças, bem como às ações voltadas à ética no
trabalho.

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111
Capítulo 5

O MUNDO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO


E SAÚDE DO HOMEM QUE TRABALHA

Margarida Barreto

INTRODUÇÃO

A historicidade do capitalismo nos tem apontado a forte inter-relação que


existe entre as suas crises, as reestruturações, políticas de gestão, novas formas de
organizar o trabalho e aumento da morbidade dos trabalhadores. Não constitui
novidade admitirmos que o advento da era industrial ampliou, de forma direta,
os acidentes do trabalho. Com efeito, sua passagem para a fase pré-monopolista
deu-se com aumento de patologias relacionadas ao trabalho. O estágio atual de
desenvolvimento capitalista caracteriza-se pela inovação e incorporação de novas
tecnologias, mudanças estruturais dos processos produtivos associados a intenso
cruzamento de fronteiras do produto, novas formas de contrato de trabalho e
aumento das terceirizações. Aqui, as enfermidades e acidentes dispararam, apesar
das subnotificações e ocultamento que persistem. Somente no ano de 2010, foram
registrados na Previdência 701.496 acidentes do trabalho e 2.712 mortes, o que
significa que, diariamente, perdem a vida oito trabalhadores por acidente de
trabalho.
Só esse aspecto nos aponta um grave problema nas condições do trabalho
contemporâneo, novos adoecimentos e aumento das mortes, mesmo que em nova
configuração. Dizendo de outra forma: as velhas doenças convivem com novas
patologias e essas atingem o mais íntimo de cada trabalhador ou trabalhadora,
alcançando o indivíduo e o coletivo em sua subjetividade. Esta se revela cada vez
mais precarizada e enlaçada aos novos modelos organizacionais. Exemplo
emblemático constitui o aumento dos afastamentos por depressão, transtorno
mental e estresse laboral, decorrente do trabalho contemporâneo, o que nos revela
a dramaticidade destas ocorrências no âmbito da família e socialmente.
Não nos surpreende que analistas de diferentes países e continentes, ligados a
sistema financeiro, tentem restabelecer uma possível confiança entre as nações e
continentes, recomendando, de forma quase ingênua, terapêuticas inspiradas em
modelos que foram responsáveis pelas crises anteriores. Sugerem remédios para algo

112
que se sabe incurável, ou melhor, essa terapia inadequada levará todos ao caminho
de maior servidão (Antunes, 201), manutenção da corrupção e fortalecimento de
burocratas corruptos que, apoiados em novas leis, justificam gastos constantes em
nome da população. E assim, ineficiência, injustiça, mentiras e decomposição
continuarão de mãos entrelaçadas. A gravidade está em usar as crises, em especial a
de 2008 e a atual, para justificar as mudanças nas condições de trabalho,
determinando uma nova densidade organizativa — incluindo aqui, a atividade de
trabalho e o uso do tempo pelo capitalista, as demissões massivas e sobrecarga de
trabalho. Nesse rearranjo flexível pró-capital, novos riscos surgiram, ou seja, os
denominados riscos emergentes a que homens e mulheres estão expostos em sua
cotidianidade fabril.
Estudiosos em ciências políticas e sociais como Heloani (2003), Freitas (2012),
Antunes (2011), Mészáros (2011), Orellano (2005), Dejours (2003; 2009), entre
outros, associado ao nosso convívio cotidiano com obreiros de diferentes categorias
e setores da economia, nos permitem esboçar algumas opiniões sobre o mundo do
trabalho contemporâneo; sobre o adoecer e morrer da classe trabalhadora, o que
nos permite pensar que as mudanças nas formas de administrar e organizar o
trabalho impactou direta e objetivamente a saúde dos trabalhadores.
Poderíamos proferir, sem medo de errar, que o esforço dos analistas ligados ao
mercado associado à ofensiva do sistema financeiro ocasionou nefastas consequências
para todos os trabalhadores e trabalhadoras, a saber: quebra de direitos sociais,
reformas no contrato de trabalho, crescimento do setor informal e trabalho em casa
(home work); baixos salários e sobrecarga de trabalho; aumento do subemprego e
flexibilização do contrato de trabalho.
Reafirmo que os novos regimes e regras impostas à execução do trabalho
(enquanto criador de valores e propiciador da atividade cotidiana) impactaram a
construção do Eu e do outro, alterando a imagem da identidade de si. É claro que
novos discursos foram formulados e acrescidos à história da saúde dos
trabalhadores e das doenças e morte no e do trabalho passam a ser analisadas
como responsabilidade de cada um, em presença de um mundo em constante
mutação. Mundo do trabalho esse cujo traço dominante do processo produtivo é
a sua destrutividade, na medida em que se apropria das riquezas, do excedente do
trabalho, estimula a competitividade, o individualismo e o consumismo
desenfreado, sendo este o que alimenta e conserva o metabolismo social do próprio
capital (Mészáros, 1989).
Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT) as mudanças na
organização do trabalho associadas ao avanço tecnológico nos locais de trabalho
contribuíram de forma decisiva para o surgimento dos novos riscos no ambiente de
trabalho, trazendo desafios à área de Saúde e Segurança no trabalho em tempos
globalizados.

113
Assim, pode-se dizer que os novos riscos convivem lado a lado com os velhos e
estão concentrados em três categorias: 1) as novas tecnologias e processos de
produção, advindos como, por exemplo, com a nanotecnologia, a biotecnologia; 2)
as novas condições de trabalho, ou seja, as jornadas prolongadas, a intensificação
do trabalho, o aumento do setor informal etc., 3) por último, as novas formas de
emprego, como o emprego independente, parcial, em casa, a subcontratação, os
contratos temporários e tantas outras formas de contrato.
Esse novo ciclo expansivo dos riscos vem de longe, ou seja, sua exterioridade
está ancorada na globalização neoliberal, em sua forma dominante e hegemônica
que desvaloriza bens e serviços ao mesmo tempo em que desqualifica e deprecia
aqueles que não seguem a regra mercantilista da maximização das metas, dos lucros
e consumo. Os elementos de continuidade estão ancorados na diversificação do
mercado externo e ampliação do mercado de consumo. Contudo, há contradições,
na medida em que a interioridade do trabalho nasce das reestruturações do processo
produtivo vinculado às reformas, as tentativas de neutralização de resistências e
intensificação da exploração, que, por sua vez, necessita da construção e elaboração
de um forte discurso colaboracionista.
Para Sousa Santos (2009), a globalização neoliberal não somente modifica o
lugar de homens e mulheres na produção, mas constitui
“... um novo regime de acumulação do capital, um regime mais
intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado,
dessocializar o capital, libertando-o dos vínculos sociais e políticos que
no passado garantiram alguma distribuição social e, por outro lado,
submeter à sociedade no seu todo à lei do valor, no pressuposto de que
toda a atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma
de mercadoria e de mercado”.
Isso significa que ao longo das últimas quatro décadas de transformações, fusões
e reestruturações, a globalização gerou precarização no/do trabalho, demissões
massivas, aumento do desemprego e subemprego, tanto masculino como feminino,
perda de direitos sociais, favorecendo o surgimento de novas formas de expropriação,
cujas consequências ficam evidenciadas na sucessão de eventos sociais combinados,
na qual se destaca a distribuição desigual dos custos e oportunidades no interior do
próprio sistema neoliberal, originando um duplo movimento: o aumento das
desigualdades entre os países ditos ainda desenvolvidos e países pobres; a repetição
deste fato no contexto de cada país, leva ao acirramento das desigualdades entre as
classes sociais e, simultaneamente, entre as relações sociais que são assinaladas pelo
autoritarismo e abuso de poder; das relações de gênero e de raça/etnia,
frequentemente mascaradas pela “homilia” da necessidade de colaboração dos
trabalhadores com o capital; também da forte política de controle e disciplina dos
corpos e emoções por parte do patronato.

114
Vê-se que o capitalismo em seu estágio atual de desenvolvimento, além de
monetarizar a força de trabalho a preços vis, desvalorizando-a ao máximo,
igualmente passou a organizar o tempo de ocupação do trabalhador, sua vida em
família e até mesmo seu raro lazer. E quando este acontece, está na esfera do consumo
e, consequentemente, dos gastos e falsa recreação em shopping center.

AS RELAÇÕES LABORAIS SOB O CONTEXTO DO NOVO (VELHO)


MUNDO DO TRABALHO

Decifro como um deus a obra doutro:


A promessa escondida na semente.
Saramago, 2005

A nova realidade do mundo do trabalho nos assinala para novas e precárias


relações dos trabalhadores, consequência da consolidação das novas práticas de divisão
do trabalho e elevação sistemática da política de metas. Se não bastassem essas exigências,
os trabalhadores convivem lado a lado com múltiplos riscos, em jornadas prolongadas
e exaustivas, responsáveis pelo aparecimento de novas doenças que, por sua vez,
coexistem com as velhas enfermidades. Surgem novas causas de morte, quer pela
presença dos novos riscos como, por exemplo, nas indústrias de biotecnologia — que
abrangem tanto trabalhadores da saúde que participam na “elaboração de novos
produtos e organismos geneticamente modificados” (OIT, 2010) como os trabalhadores
da agricultura, os criadores de gado e tantos outros que trabalham na área rural,
correm um risco particular: desenvolver infecções por exposição a microbactérias,
leptospira, bacilos anthracis e alérgenos biológicos no local de trabalho.
No agronegócio, por exemplo, têm sido amplamente utilizadas as novas
substâncias químicas, livre de qualquer controle à vida e saúde dos trabalhadores. A
própria OIT reconhece que nos “últimos vinte anos, o número de produtos químicos
utilizados no ramo industrial aumentou consideravelmente e muitos sequer foram
testados de maneira adequada” (2010), ou seja, não se sabe que malefícios ocasionam
à saúde e à vida dos trabalhadores e trabalhadoras. A verdade é que muitos desses
novos agentes químicos podem ocasionar “câncer, pôr em risco a reprodução e
afetar negativamente o sistema nervoso, imunológico ou hormonal”, segundo
relatório da OIT (2010).
Por outro lado, a nova organização de trabalhos e as mudanças que daí
decorreram, intensificou a política de terceirizações e quarteirizações de riscos,
impondo aos trabalhadores novas enfermidades. O resultado dessa convergência é
que o lugar do trabalho se mostra cada vez mais incerto e mutável, apesar da
aparência de empresa saudável, responsável e ética.
As condições precárias de trabalho (exposição a múltiplos riscos, baixos
salários, jornadas prolongadas e exaustivas, empobrecimento das tarefas, monotonia
115
e alto ritmo), associadas às exigências e mecanismos de controle cada vez maiores,
como o uso de GPS em celulares ou microcâmaras ao longo do processo produtivo,
interferem na execução do trabalho, aumentem a tensão, o que reflete nas relações
sociais fora do trabalho, ou seja, na vida familiar, muitas vezes pela introjeção do
vivido na empresa, passando a exigir em casa uma forma de viver e organizar as
relações afetivas. Instaura-se uma onda de autoimposição e necessidade de impor
um novo comportamento na relação com os filhos, vigiando-os e controlando-os.
São condições determinadas por aquilo que vivem no trabalho e que favorece os
transtornos psíquicos e o sofrimento, na medida em que o vivido no trabalho —
precarização e exigências — alcança o mundo externo, seu entorno e as relações
afetivas.
Quanto ao mercado informal os trabalhadores não são regulamentados, não
têm proteção legal, adoecem de forma invisível, sem faltar ao trabalho apesar de
doentes e com atestado no bolso. Não há notificação do acidente, predominando a
ocultação e até mesmo a morte no trabalho, pode ser ocultada se não houve, no
momento do acidente, emissão de comunicação de acidente do trabalho. Muitos
são demitidos sem aviso prévio, trabalham em condições perigosas e insalubres,
expostos a riscos sem qualquer controle do adoecer e morrer. Trágico é o que ocorre
com muitos trabalhadores migrantes: são mais explorados, têm acesso precário à
saúde e muitas vezes o que ganham mal dá para sobreviver. Exemplo são os
trabalhadores bolivianos que vivem em São Paulo, que trabalham clandestinamente,
presos em salas quase sem ventilação, até o final da jornada, em pleno exercício do
trabalho escravo.
São esses novos riscos associados aos velhos que constituem as condições de
trabalho que atravessam, entrecruzam, monopolizam e usurpam a vida cotidiana
dos/das trabalhadores/as, quer no âmbito individual ou coletivo, em meio às mudanças
repentinas da organização, aos níveis extremos de exigência laboral, de fluxos pobres
de informação, do péssimo relacionamento dispensado pela alta hierarquia aos seus
“colaboradores”. Aqui, o medo do desemprego emerge como fonte de sofrimento e
sujeição, impondo exigências emocionais elevadas. É neste confronto de exigências
abusivas da organização do trabalho no cotidiano laboral que encontraremos as causas
das doenças, as novas patologias, os acidentes e mortes, medidas e fundamentadas pela
política de metas, maior lucratividade graças ao rearranjo constante do processo
produtivo e do trabalho. A desatenção com as relações sociais do trabalho e uma nova
subjetividade sequestrada e precarizada podem constituir um fator de ocultamento
das formas de assujeitamento e dominação.

O CONTUNDENTE MUNDO DO HOMEM QUE TRABALHA

É quase impossível na atualidade falarmos em condições de trabalho sem


pensarmos e avaliarmos as vivências subjetivas dos trabalhadores na organização e

116
os fatores psicossociais que perpassam as relações. Assim, flexibilidade, polifunção,
intensificação do ritmo, densificação do trabalho, ameaças e humilhações públicas
ou privadas, controles e exigências acima do suportável são elementos fundamentais
do processo de trabalho, responsáveis pelo desgaste e aumento do adoecer e morrer
dos trabalhadores.
Neste “todo” estruturado que é o mundo do trabalho, encontramos pessoas
fragmentadas, em sofrimento mental, adoecidas, com alto nível de culpabilização
ou consciência culposa, determinante de sentimentos contraditórios como
embotamento afetivo e insensibilidade ao próprio sofrimento. Sua vontade de fazer
está associada aos sentimentos de impotência e insatisfação. Se um colega que
ultrapassou a política de metas foi homenageado e premiado, o coletivo “não
produtivo” é punido e ridicularizado de diferentes formas: dançando a dança da
laranja, da garrafa, da cadeira, da tartaruga, do siri, do mico, entre tantas outras
temáticas musicais. Ou ficando de castigo, como, por exemplo, sentado na cadeira a
um canto da sala ou impedido de usar o banheiro.
Nestas “comemorações”, o tema que prevalece é o erótico sensual, cantadas em
50,39% das atividades empresarias para motivar ou disciplinar; em segundo lugar
está a temática marcial, sobressaindo às músicas populares brasileiras, com 25, 20%
(Forster, 2011), cujo objetivo é humilhar e ridicularizar.
O ato de humilhar afirma simultaneamente o poder e a obediência, a disciplina
coletiva e a culpa individual, negando o outro como legítimo outro na convivência
(Maturama, 1998). Gesta emoções tristes que se relacionam com a natureza do desejo
por não ser reconhecido em sua individualidade como trabalhador.
Deste modo, as músicas usadas exercem uma função sociopsicológica
importante, na medida em que induz a integração dos trabalhadores aos valores da
empresa, fazendo-os crer (em especial os que cumpriram a meta) que compõem o
“cimento social” da empresa (Forster, 2011). Integração que ocorre pela captura
das emoções, desejos e pensamentos dos trabalhadores que assistem ou mesmo que
se sujeitam, quer pelo ritmo repetitivo e ao qual todos devem obedecer ou pelo
medo e ameaças de ser o próximo a ser ridicularizado ou demitido. Pelo caminho da
música, a empresa institui uma função pedagógica e disciplinadora ao coletivo, com
ares de brincadeiras. Para Heller (2008), a humilhação mostra o “poder de tornar o
outro sujeito em um simples objeto”, o qual “cada vez mais humilhado e maltratado
‘manifesta’ sempre sua subjetividade” .
O trabalho pode constituir fonte de prazer ou sofrimento. E as humilhações e
ameaças sofridas nos ajudam a compreender a origem da rivalidade que aparece
entre colegas em vista fundamentalmente de quatro aspectos: a) estímulo exacerbado
à competitividade e individualismo; b) deficiências na política de Recursos Humanos
— na qual não há autonomia para decidir ou sugerir em prol dos trabalhadores;
c) os estilos de supervisão são autoritários (reveladores de abuso de poder); d) a
falta de ética e valores morais nas relações laborais, apesar do discurso empresarial.
117
As mudanças na forma de gestão e organização não alteraram a falta de
autonomia, o tempo para descansar, o controle e imposição de disciplina. Estes atos
acontecem em um ambiente no qual os trabalhadores devem aprender a lidar com a
pressão a que estão submetidos para satisfazer as exigências da vida cotidiana
moderna da classe dominante. A historicidade deste cotidiano fabril nos desvenda o
tempo do trabalho interferindo nas relações sociais e tempo do lazer, causando o
que Dejours nomeia de a “ideologia do sofrimento”.
Segundo Netto (2011), a vida cotidiana em Luckács é o Alfa e o Ômega da
existência de todo e de cada indivíduo, sendo por isso um mundo em que sobressaem
alguns componentes, como: 1) heterogeneidade, ou seja, compreende os variados e
diversos aspectos da vida (trabalho, a vida familiar, a vida política, laços afetivos
etc.); 2) imediaticidade: estamos em constante atividade, respondendo de forma
imediata e direta as demandas que nos são impostas ou aquelas que nos impomos ou
que cada um impõe a si próprio; 3) a superficialidade extensiva, na qual os trabalhadores
mobilizam todas as suas forças e atenções para dar conta das múltiplas exigências.
O cotidiano significa que o trabalho, a linguagem, a divisão das tarefas, o
isolamento e exigências, as metas e as relações afetivas que sucedem no meio ambiente
do trabalho, constituem o social internalizado em nós. Ou seja, todos os
componentes presentes em uma dada realidade são vivenciados, reproduzidos,
reelaborados e atualizados cotidianamente por cada um de nós, instituindo de certa
forma o metabolismo entre a sociedade e o ser social. Ou, dizendo de outra forma, a
relação com o real vivido aprendido e apreendido em sua totalidade nos permite
refletir e conhecer, aceitar ou transformar, pois é o “ser social” que determina nossa
consciência.
Consequentemente, não importa a configuração do discurso que a alta gestão
produza ou utilize para convencer seus colaboradores e sequestrar sua subjetividade.
Importa-nos as ações práticas que ocorrem no contexto do trabalho. Interessam-
-nos as causas da violência e uso do poder nesta relação entre classes; importa-nos
compreender as novas estratégias de controle e colonização do imaginário, inteligível
em normas e códigos de conduta e que visam a instituição de corpos dóceis e
obedientes; importa-nos a apregoada ética empresarial e sua homilia de empresa
cidadã, responsabilidade social, sustentabilidade. Trindade esta plena de gozo,
desejos, perversão, ganância e destrutividade.
O acesso a essas informações nos permite compreender as consequências do
trabalho à vida e saúde da “classe-que-vive-do-trabalho” (Antunes, 2011). Permitem-
-nos pensar seu labor durante o qual gestos e movimentos são vigiados atentamente
por câmaras, são impedidos de conversar, de satisfazer suas necessidades fisiológicas.
São punidos e ridicularizados se não cumprem as metas de produção, que, por vezes,
assumem aspectos surrealistas e inenarráveis, suscitando medo, desconforto,
agitação e transtornos nos diversos domínios da produção. A patologia do medo
imposto nos locais de trabalho tanto induz a condutas de dominação como
118
igualmente a sujeição, o que favorece um clima de permanentes ameaças e estímulo
à competição, suportável somente pela perspectiva da manutenção do emprego.
Permite-nos compreender que nas práticas de assédio moral, por exemplo, poder e
violência se cruzam, tornando impossível e incompatível a existência da afetividade
ética e laços de camaradagem no local de trabalho.
Em busca da utilização máxima da classe-que-vive-do-trabalho de trabalho,
as empresas unificam e trabalham cinco noções com os trabalhadores, definidores
da harmonia entre capital e trabalho. São informações que, ao lado da intensidade
e densidade das condições de trabalho, abarcam e se difundem por todo o coletivo,
causando impactos variados nos diversos setores produtivos, ao mesmo tempo em
que propiciam entrega quase total aos valores da empresa, cujo aumento da carga
de trabalho, mais pressão por metas conduz ao desgaste precoce do trabalhador. É
um clima que favorece ao desencadeamento de múltiplos e repetitivos atos de
violência moral que atinge a todo o coletivo, mesmo quando sua manifestação é
individual. Poderíamos sintetizar estas informações em:
1 — Hipnotizar e seduzir todos os trabalhadores, “manipulando sua subjetividade”,
capturando seus desejos e colonizando seu imaginário, fazendo-os crer que são parte
importante da empresa, o que implica em ser flexível e colaborar intensamente, ou
seja, cumprir as metas, independente da intensificação do trabalho e aumento do
desgaste (Heloani, 2003; Giovanni, 2011). Muitas vezes, os fazem crer que o estado
dos acontecimentos é imutável e, portanto, deve ser mantido; outras, que deve ser
alterado, afinal o “sucesso da empresa é o sucesso do colaborador”. E este aspecto
constitui o episódio mais significativo na vida de cada colaborador, pois deve aderir
a essa nova orientação sem restrições. Assim, a gestão por resultados cultiva três
tipos de crendices discursivas: que todos são colaboradores; a insistência na
flexibilidade e dedicação full-time; o apelo às competências e necessário desempenho
que avaliará a atividade executada, fato que pode resultar em desqualificação do
profissional, rebaixamento e desligamento da empresa, ante o veredito: “Você já
não tem mais o perfil apropriado. Envelheceu”.
2 — Corrupções, cooptação e mentiras — a ação de expropriar e explorar a
classe-que-vive-do trabalho, usando como estratégia pagar altos salários e
premiações a todos os gestores do alto escalão e intermediários, que, desse modo,
continuam e agravam o submetimento dos trabalhadores da produção.
3 — Intimidações — apresentar a empresa como saudável e responsável
socialmente no extramuros ao mesmo tempo em que ameaça com castigos
disciplinares toda tentativa de mudar a ordem reinante, ou seja, quando não se alcança
a meta exigida o que significa colocar em risco a gestão por resultados. Citamos uma
das maiores loja de venda no varejo do país, situada no Rio de Janeiro que
discriminava seus trabalhadores/as de acordo com as áreas de atuação. Por exemplo:
quem trabalhava na Baixada, para o gestor era um grupo de “merdas” pobres e, por
isso seriam chamados de “Merdança”. Já os trabalhadores dos shoppings eram um

119
grupo de ricos e deveriam ser apelidados de “Merdouro”. Frequentemente, o gestor
encaminhava mensagens eletrônicas e memorandos, orientando os trabalhadores
que “se fosse para agradar ao cliente era para ‘dar para ele’...”.
Dessa maneira, as micropolíticas da sujeição e humilhação combinam
ferramentas variadas, fundamentadas no constrangimento individual e coletivo, na
exigência de férrea disciplina e obediência sem questionamentos. Deste modo, é
comum punir trabalhadores, colocando-os na “boca do caixa” porque não atingiram
a meta ou de castigo em sala ou quartinho por cinco horas ou mais, isolado de todos
seus pares, por ter realizado uma venda em desacordo com as normas da empresa. A
combinação do isolamento e punição, impedida de produzir, apesar de ser exigida a
meta ao final do mês, traz graves consequências à saúde e identidade dos
trabalhadores, determinando um modo de vida regredido e infantilizado, revelando
um mundo do trabalho unipolar nas exigências e esquizofrênico na imagem que
passa de si para o extramuros.
Nada é mais cauteloso que a seleção do exército de trabalhadores ou guerreiros
da produção, os quais devem apresentar e manter uma saúde perfeita, o que significa
não se ausentar da produção, não adoecer e sequer ir a médicos. Se adoecem, seus
direitos são sonegados, ocultam o nexo de causalidade, são demitidos ou colocados
isolados, esvaziados de tarefas, até que desistam do emprego. São esses elementos
que constituem e formatam os colaboradores-guerreiros.
Há quase cem anos, Tolstói ao analisar os submissos, dizia que aquele que se
submete “não é por ter julgado o problema desapaixonadamente, pesando as vantagens
e as desvantagens, senão por ter-se colocado, por assim dizer, sob a influência de uma
sugestão hipnótica (...). Negar-se a submissão requer um raciocínio independente
além do esforço, esforço que alguns homens são incapazes de realizar” (2010).

A SAÚDE DO HOMEM QUE TRABALHA

Não podemos falar de saúde onde não haja certo grau de liberdade para
expressar e agir, pois a saúde é resultante de condições de convivência solidária e do
meio onde predomina a confiança e respeito mútuo, a afetividade fraterna entre
“iguais” e diferentes. Encontra-se numa certa margem de confiança e tolerância entre
a convivência com o outro e os acontecimentos vividos ou que virão. A nossa potência
para agir e pensar se altera, quando vivemos condições de incompreensão e não
reconhecimento de nossos valores (Spinoza, 1994). Deste modo, discutir a saúde do
homem que trabalha pressupõe compreender sua vida no trabalho, a atividade que
realiza e a exposição aos novos riscos; é compreender como (e para que) se organiza
a produção; é refletir as novas configurações das relações laborais no tempo da
produção; é recordar o falado e analisar o que ocorre no cotidiano produtivo em
sua constante relação com a reprodução econômica; é repensar a produção e
120
reprodução social a partir da escuta atenta dos trabalhadores, pois são estes
“fabricantes de valores” que adoecem e morrem no e do trabalho.
Logo, discutir a saúde do homem que trabalha pressupõe compreender sua
vida no trabalho, a atividade que realiza e a exposição aos novos riscos; é compreender
como (e para que) se organiza a produção; é refletir as novas configurações das
relações laborais no tempo da produção; é recordar o falado e analisar o que ocorre
no cotidiano produtivo em sua constante relação com a reprodução econômica; é
repensar a produção e reprodução social a partir da escuta atenta dos trabalhadores,
pois são estes “fabricantes de valores” que adoecem e morrem no e do trabalho.
A vida na organização moderna não permite o bem-estar, o tratamento
respeitoso, o apoio e autonomia, a confiança e reconhecimento. O que predomina
na organização moderna é a desumanização do trabalho, a precariedade, a violação
de direitos, a injustiça e irresponsabilidade empresarial, em especial quando o
significado do trabalho está centrado na produtividade, no acúmulo de riquezas.
Portanto, um trabalhador desprovido do poder de controlar o seu próprio tempo
de trabalho, que não pode se expressar, não tem autonomia para opinar e criar, não
é reconhecido naquilo que faz, sente-se um zero, um ninguém, um nada. Desmotivado
e domado, quando sabe que a manutenção ou não do seu emprego depende da
efetivação da sua produção.
O medo do desemprego ao mesmo tempo em que precariza a sociabilidade
humana, causa o “desatrelamento dos antigos pertencimentos” (Castel, 1998: 133),
de tal modo que um trabalhador frente ao possível desemprego sente-se confuso,
indeciso, perturbado, perdido e desvinculado, fatores esses que podem gerar ideias
suicidas com mais facilidade.
Reafirmamos que o nosso olhar biológico permite afirmar que a vida pode ser
traduzida como uma atividade normativa do ser, ou seja, todo ser vivo deve ser
capaz de recolher informações de seu meio, assimilar e reagir a estas informações,
respondendo ao meio ambiente (Canguilhem, 2006). Entretanto, sabemos que o ser
vivo não é determinado a priori. Ele possui plasticidade e é essa plasticidade que lhe
permite instituir suas próprias normas.
Desse modo, a morbidade antecipada e pré-sentida em emoções tristes como a
incerteza, a tristeza, o terror, a angústia, a mágoa, a desonra e a vergonha, vai sendo
construída, reforçada e assentada na organização do trabalho que pressiona para
produzir, nas exigências e controles, no individualismo e competição entre equipes,
nas jornadas prolongadas e horas extras reais ou virtuais, camufladas em banco de
horas; no trabalho em turno e noturno que se prolongam ou mesmo na calma
indiferença entre pares o rompimento da confiança e compreensão diante do
sofrimento alheio. Afinal, mostrar aquilo que se tem é mostrar aquilo que se é: um
Eu fragmentado, despedaçado, exposto em relações desengajadas.

121
Portanto, as relações que se constituem na negação do outro e se sustentam no
abuso de poder, intolerância, desconfiança, mentiras e indiferença, não podem ser
geradoras de alegria, prazer, respeito mútuo. Mas, de infelicidade e doenças, de
submissão e passividade, de tristeza e desgaste que impõem sofrimento.

SUJEIÇÃO EM VISTAS DE HUMILHAÇÕES INENARRÁVEIS

As denúncias de assédio moral e outros atos de violência no trabalho vêm


crescendo a cada dia quer no Ministério Publico do Trabalho quer na Superintendência
Regional do Trabalho, revelando um mundo pouco conhecido da maioria da
população. Mundo esse transversado por hostilidades, humilhações repetitivas e
inenarráveis, discriminações e abuso de poder que causam sofrimento, lesam a
dignidade, violam direitos da personalidade, da honra, do nome, da intimidade,
identidade e privacidade.
Ação que todos testemunham, outros conhecem e têm medo de viver, sentindo-
-se impotentes e sem coragem para enfrentar. Muitos evitam posicionar-se contra
esses atos que torturam psicologicamente, que golpeiam a autoestima pelo uso
reiterado de métodos que desvalorizam, sobrecarregam de tarefas inúteis, sonegam
informações ou castigam, não lhe dando trabalho, deixando-o inativos, ou expondo-
-os ao ridículo, mantendo-os sob constante ameaça de demissão.
Se a ideia é submeter os que denunciam e não se submetem, que criticam e
procuram seus direitos — por isso são considerados insubordinados — e se assim é,
devem deixar a produção. Ante essa realidade, poderíamos perguntar: por que a
maioria dos que são humilhados preferem a obediência à insubordinação, ante os
atos de violência sofrido ou testemunhados?
Chegamos ao final deste artigo reafirmando algumas reflexões, dados, e
pergunta do sociólogo argentino Atílio Boron (2011) e com a qual nos identificamos
a cabalmente. “Depois de cinco séculos de existência, o que o capitalismo tem a nos
oferecer? A população mundial é de 7 bilhões de pessoas; 1bilhão e 20 milhões são
desnutridos crônicos (FAO, 2009); 2 bilhões não têm acesso a medicamentos
(<www.fic.nih.gov>); 884 milhões não têm acesso a água potável (OMS/UNICEF
2008); 924 milhões “sem teto” ou vivendas precárias (UN Habitat 2003); 1600
milhões não tem eletricidade (UN Habitat, “Urban Energy”); 2500 milhões sem
sistema de drenagens ou esgotos (OMS/UNICEF 2008); 774 milhões de adultos são
analfabetos (<www.uis.unesco.org>); 18 milhões de mortes por ano devido a
pobreza, a maioria crianças menores de 5 anos (OMS); 218 milhões de crianças,
entre 5 e 17 anos, trabalham em condições de escravidão, em tarefas perigosas ou
humilhantes, como soldados, prostitutas, serventes, na agricultura, na construção
ou indústria têxtil (Información sobre el trabajo infantil, OIT, 2010). Os 10% mais
ricos acrescentaram mais às suas fortunas, passando de dispor de 64,7% para 71,1%
122
da riqueza mundial. Esse 6,4% de aumento da riqueza dos mais ricos seria suficiente
para duplicar a renda de 70% da população mundial, salvando inumeráveis vidas e
reduzindo as penúrias e sofrimentos dos mais pobres”.
Adverte Atílio Boron: “se a humanidade tem futuro, será claramente socialista.
Com o capitalismo, em compensação, não haverá futuro. Nem para os ricos e nem
para os pobres. Nenhuma sociedade sobrevive quando seu impulso vital reside na
busca incessante do lucro e seu motor é a ganância. Mais cedo que tarde provoca a
desintegração da vida social, a destruição do meio ambiente, a decadência política e
uma crise moral”.
Sabemos que hoje é mais difícil pensarmos em sujeitos sociais e políticos
engajados na luta e resistência. Todavia, é na ontologia da vida cotidiana que nascem
os sonhos possíveis. E nesse processo, podem florescer ideias que, transformadas em
ações, apontem para a superação deste tempo que nos foi imposto e que no mundo
do trabalho fere, adoece e mata trabalhadores e trabalhadoras. Ainda temos tempo
apesar das dificuldades e um “coração que à espera desespera”.

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124
Capítulo 6

AS LER/DORT E AS NOVAS FORMAS DE


PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

Maria Elizabeth Antunes Lima

INTRODUÇÃO

Ao tratar desse tema, é sempre bom relembrar que os sintomas que compõem
o quadro que denominamos hoje como LER/DORT não foram identificados
recentemente. No seu livro, As doenças dos trabalhadores, escrito em 1700, Ramazzini
(1999), o pai da medicina do trabalho, já descrevia com minúcias um quadro
identificado por ele em escribas e notários e que poderia ser perfeitamente
diagnosticado nos dias de hoje como LER/DORT. Em uma época em que contava
com recursos escassos, o genial médico atribuiu a doença que acometia esses
trabalhadores a três fatores: 1) “a contínua vida sedentária”; 2) “o contínuo e sempre o
mesmo movimento da mão”; e 3) “a atenção mental para não mancharem os livros e
não prejudicarem seus empregadores nas somas, restos ou outras operações aritméticas”.
(p. 235) Ele descreveu com precisão os movimentos que levariam esses trabalhadores
a desenvolver seus sintomas: “A necessária posição da mão para fazer correr a pena
sobre o papel ocasiona não leve dano que se comunica a todo o braço, devido à constante
tensão tônica dos músculos e tendões, e, com o andar do tempo, diminui o vigor da mão.”
(p. 236) Os sintomas foram também descritos com perfeição: grande lassidão em
todo o braço que não melhorava com remédio algum e, finalmente, uma completa
paralisia do braço direito. Sobre um paciente, afirmou: “a fim de reparar o dano,
tentou escrever com a mão esquerda; porém, ao cabo de algum tempo, esta também
apresentou a mesma doença.” (p. 236)
Ao entrar em contato com essa detalhada descrição feita ainda no século XVIII,
aqueles que vêm pesquisando as LER/DORT no decorrer dos séculos XX e XXI, não
podem deixar de se surpreender com as semelhanças entre seus achados e aqueles
relatados por Ramazzini. No entanto, apesar da importância dessa coincidência de
resultados, é essencial que se tente compreender as especificidades de cada época, isto
é, embora os dois quadros sejam de fato muito semelhantes, os fatores que estão na
sua gênese são fundamentalmente diversos. Além disso, ainda que estejamos lidando

125
em termos gerais com o mesmo fenômeno, sua gravidade e suas formas de
manifestação têm mudado no decorrer dos séculos, sobretudo em função das
mudanças ocorridas nos processos de trabalho e nas tecnologias ali empregadas.
Uma ilustração perfeita a esse respeito foi oferecida pela pesquisadora
australiana G. Bammer (1) ao apresentar resultados de pesquisas em torno da
incidência dessas afecções em contextos tecnológicos diferentes. Segundo ela, verificou-
-se um aumento progressivo de casos de LER/DORT entre pessoas trabalhando com
máquinas de escrever tradicionais, com máquinas elétricas e com terminal de
computador. Ou seja, foi observado um aumento progressivo dessas afecções ao
mesmo tempo em que a tecnologia avançava.
Ora, diante de tais resultados, uma pergunta parece inevitável: se a tecnologia
veio para nos oferecer mais conforto, como é que se explica que os casos de LER/
DORT aumentem enquanto ocorre maior incremento tecnológico nos locais de
trabalho? Nesse caso, não seria mais lógico que houvesse maior incidência dessas
afecções entre aqueles que trabalham com sistemas mecânicos do que com sistemas
informatizados?
Quem ofereceu excelentes pistas para obtermos uma resposta para essa questão
foi o psiquiatra francês Le Guillant (1984). Embora esse teórico jamais tenha feito
qualquer referência a essa forma de adoecimento, sua obra contém elementos
essenciais para compreendermos a epidemia de LER/DORT observada a partir das
últimas décadas do século XX em todo o mundo industrializado.(2)
Ao pesquisar a gênese das queixas relativas à fadiga nervosa, Le Guillant (1984)
constatou que os processos de trabalho que se disseminavam cada vez mais na França
do pós-guerra evoluíam em direção a uma redução progressiva dos esforços
musculares, mas comportando, em contrapartida, altas exigências de velocidade,
atenção e precisão. Nos seus próprios termos: “quanto mais um ato é simplificado,
facilitado pelos dispositivos mecânicos e pela organização do trabalho, mais rapidamente
ele pode ser efetuado.” (p. 340) E acrescentou: “na prática, pode-se observar que a cada
redução do esforço muscular (e da complexidade das operações), corresponde um aumento
da velocidade”. (p. 342) Ou seja, segundo ele, “a noção de ritmo tende a predominar
sobre a de esforço” (p. 342), sendo que
“a máquina automática exige do operário apenas algumas operações fáceis,
mas rápidas, precisas, ininterruptas, inexoráveis, que coloca todo o seu sistema

(1) Conferência realizada em Belo Horizonte (MG) em 1998.


(2) Na verdade, as LER/DORT não representavam um grave problema à sua época, uma vez que Le
Guillant realizou grande parte de suas pesquisas entre o final da II Guerra Mundial e meados dos anos 60.
Nessa época, o grande problema que desafiava os pesquisadores era a fadiga nervosa, um transtorno
mental que apresentava um caráter epidêmico nas indústrias e nos setores de serviços.

126
nervoso sob pressão constante. Não é ele mais que se impõe à máquina, mas
a máquina que se impõe a ele. Ela lhe retira a energia de uma forma nova e
terrível, através de meios e numa quantidade que não se pode mais medir,
nem definir.” (p. 342)
Ele ressaltou, sobretudo, o que chamava de “formas atuais de intensificação do
trabalho” (p. 343) contra as quais admitia não ser fácil lutar. O problema do tempo,
afirmava ele, parecia tornar-se cada vez mais essencial, assim como a “estrutura qualitativa
do trabalho (sua repartição, seu ritmo, as pausas e suas condições psicofisiológicas)”. (p. 343)
Sua conclusão era a de que “o desenvolvimento do maquinismo conduzia a novas formas
de exploração dos trabalhadores” e que as condições de trabalho oferecidas à sua época
estavam criando “em um número cada vez maior de trabalhadores, um estado físico e
moral se não semelhante, pelo menos equivalente ao dos operários das manufaturas do
último século (...)” (337) Em outros termos, ele constatava que as horas de trabalho
haviam diminuído e os trabalhos executados à sua época eram fisicamente menos
penosos do que nos séculos precedentes, mas a fadiga profissional ao invés de diminuir,
aumentava. Finalmente, propôs uma síntese perfeita da questão ao dizer que: “Certo
conforto, a climatização, a redução dos ruídos, a decoração dos locais de trabalho” vinham
“paradoxalmente, permitir uma maior rapidez e uma maior fadiga.” (p. 343)
Embora essas constatações datem dos anos 50 do século XX e não estejam se
referindo às LER/DORT, concluímos que dificilmente encontraríamos melhor
definição das condições laborais que permitiram a disseminação dessas afecções no
decorrer das últimas décadas, permanecendo até nossos dias.

1. O CARÁTER EPIDÊMICO DAS LER/DORT: ALGUMAS RAZÕES POSSÍVEIS

A epidemia de LER/DORT que vem sendo observada nos contextos de trabalho,


a partir das últimas décadas do século XX, tem sido objeto de considerável polêmica.
O aspecto central dessa discussão gira em torno da veracidade desse caráter
epidêmico, mas discute-se também a pertinência dos diagnósticos bem como sua
relação com o trabalho.
Talvez a maior evidência de que estamos, de fato, diante de uma epidemia, esteja
nos dados revelados recentemente pelo Nexo Técnico Epidemiológico (NTEP). Em uma
publicação recente em torno do tema, Todeschini & Lino (in Machado, J.; Soratto, L. &
Codo, W., 2010) concluem que “o boom do NTEP é mais expressivo no setor econômico de
serviços com grande número de doenças osteomusculares, ou seja, as LER/DORT.” (p. 27)
Segundo os autores, o registro realizado antes do NTEP — que já era bastante
significativo, com cerca de 18.000 casos, passou a ser a 117.000 em um ano de aplicação
do nexo. E constatam que os afastamentos gerais por incapacidade, antes do NTEP,
sempre foram significativos em LER/DORT, ou seja, quando existiam 2,1 milhões de
benefícios por incapacidade temporária, 641 mil estavam relacionados a essas afecções.

127
Mas caberia nos interrogar sobre as verdadeiras causas dessa epidemia, isto é,
como explicar os níveis alarmantes dessas afecções no decorrer das últimas décadas
em todos os países desenvolvidos ou em desenvolvimento?
No nosso entender, ela é resultante de processos que já estavam em curso no
mundo do trabalho há várias décadas, mas que tendem a ser cada vez mais reforçados
nos últimos anos, no contexto do que vem sendo chamado de reestruturação
produtiva, tais como: introdução maciça da informática nos ambientes laborais;
exigências crescentes de qualidade e de produtividade, tendo por suporte o chamado
“gerenciamento por stress”; mudanças nas formas de se trabalhar, no ritmo imposto
aos trabalhadores, nas pressões que se tornam cada vez maiores, principalmente se
considerarmos os impactos da chamada globalização da economia, no mundo de
trabalho; acirramento da competição entre as empresas, em um mercado
progressivamente mundializado, impondo a busca de respostas a exigências inéditas
de melhorias na qualidade dos produtos e serviços, de redução de custos, de prazos
e de aumento nos padrões de produtividade.
Todas essas mudanças vêm sendo introduzidas nos contextos de trabalho sem
a devida preocupação com as medidas que poderiam prevenir ou minimizar possí-
veis problemas de saúde, tais como: o estabelecimento de pausas, de rodízios, o
enriquecimento das atividades, as mudanças nos estilos de supervisão, o fortaleci-
mento dos coletivos de trabalhadores, permitindo-lhes mais autonomia e controle
sobre suas atividades. O que temos constatado é, no máximo, uma preocupação
com a melhoria das condições físicas do trabalho, o que se traduz, geralmente, em
equipamentos e mobiliário que proporcionem mais conforto. Mas é importante
ressaltar que, em geral, todo esse conforto é recuperado pelos fatores patogênicos
presentes na organização do trabalho, o que pode levar ao adoecimento ainda
mais rápido, conforme verificou Le Guillant (1984) ainda nos anos 50 do século
passado.
Além disso, diante das altas taxas de desemprego em grande parte do mundo
industrializado, os assalariados ficam impossibilitados, inclusive, de diversificar suas
atividades, trocando eventualmente de atividade e modificando o tipo de desgaste
provocado pelo trabalho. Ao tentar responder às novas exigências que se lhes
apresentam, preservando, assim, seus empregos, muitos adoecem, sendo que as LER/
DORT se encontram entre as afecções mais frequentes.

2. O DESCRÉDITO EM TORNO DAS LER/DORT

Diante do que foi exposto até agora, uma questão nos parece inevitável: se
essas afecções já foram identificadas desde o século XVIII e suas causas já estão bem
descritas na literatura sobre o assunto, bem como seu caráter epidêmico já
evidenciado pela maioria das pesquisas, então, por qual motivo ainda se levantam
tantas dúvidas a respeito das queixas apresentadas pelos trabalhadores?
128
Sobre isso, temos constatado um paradoxo interessante: à medida que crescem
as evidências científicas de que estamos de fato diante de uma epidemia de LER/DORT
em vários contextos de trabalho, crescem também as tentativas de provar a origem
emocional dessas queixas bem como as manifestações de que os trabalhadores estariam
apresentando falsos sintomas nos consultórios e, sobretudo, nas perícias médicas.
As tentativas de desqualificação dessas afecções, sobretudo, aquelas voltadas
para retirar delas seu caráter ocupacional, têm se manifestado de formas diversas. A
partir da divulgação dos primeiros estudos comprovando o aumento crescente de
casos de LER/DORT em certos espaços laborais, surgiram também autores
empenhados em demonstrar que essas afecções não tinham relação direta com as
atividades ali desenvolvidas. Assim, constatamos que, paralelamente aos estudos
pioneiros realizados por G. Bammer na Austrália emergia um discurso visando
desqualificar esses resultados, ao afirmar que as LER/DORT tratavam-se, na verdade,
de um fenômeno relacionado com a estrutura histérica dos indivíduos. À frente
desse esforço de desqualificação, temos Lucile Yolandê, psiquiatra australiana, cuja
adepta mais conhecida, no Brasil, foi Maria Celeste Almeida (1995). Esta adotou a
mesma perspectiva, ao negar a existência da “lesão” e propor um entendimento do
problema como sendo de origem emocional. Assim, em um artigo prolífico em
equívocos de toda ordem, Almeida (1995) admitiu adotar o termo LER apenas por
ser a forma “mais usual” de se referir a essa doença, no Brasil, mas, ao mesmo tempo,
advertindo ao leitor:
“Quero salientar que existem alguns estudiosos do assunto, como por
exemplo, Lucile Yolandê (Medical Journal of Australian, 1986) que não
considera a doença como ‘lesão’ e, portanto, para ela seria inadequada esta
terminologia. Lucile entende o problema como emocional, ou seja, como um
sintoma histérico.” (p. 29)
Almeida (1985) prossegue no seu esforço de demonstrar esse “caráter emocional”
das LER/DORT por meio de argumentos frágeis e inconsistentes, tais como o fato de
ter conhecimento de pessoas que trabalham com digitação por muito tempo sem
terem sintomas da doença enquanto outras apresentam queixas após algum tempo
de exercício da atividade. Além disso, completa ela, se a “tenossinovite fosse causada
pelo esforço repetitivo” todos aqueles que trabalham em linha de montagem “teriam a
doença”, o que, segundo ela “não é uma realidade dos meios fabris”, já que “somente a
partir de algumas décadas é que passou-se a ter praticamente uma epidemia de LER.” (p.
31) Ao expor esses argumentos, ela revela seu total desconhecimento do caráter
singular de toda e qualquer forma de adoecimento, ou seja, o fato de ocorrer de
forma epidêmica nos contextos de trabalho, não implica que essas afecções atinjam
os indivíduos de forma homogênea. Além disso, revela desconhecer que a identificação
desse tipo de afecção ocorreu bem antes da primeira linha de montagem.
Ao adotar essa visão equivocada a respeito do problema, a autora decide,
então, buscar as causas das queixas no próprio trabalhador, sendo estas tratadas
129
separadamente dos problemas relativos ao trabalho. É o que se propõe a fazer, ao
concluir que para alcançar uma compreensão “melhor” e “mais abrangente” a respeito
da origem dessas afecções torna-se necessário “deixar de um lado a questão do
trabalhador e de outro a questão do trabalho em si”. (p.31) A partir daí, todo seu
esforço será no sentido de demonstrar a importância central dos fatores individuais
no surgimento das LER/DORT.
Almeida (op. cit.) irá se apoiar na psicanálise e na sua experiência clínica no
atendimento a bancários para tentar explicitar o que considera como fatores
individuais presentes na origem das LER/DORT. Em uma sucessão notável de
equívocos, sendo alguns relativos à própria teoria psicanalítica que, no entanto, ela
diz embasar suas conclusões, a autora tenta levar a cabo a demonstração de sua tese
de que essas afecções teriam uma origem essencialmente emocional, decorrente da
“estrutura de personalidade do indivíduo, de uma estrutura neurótica, histérica.” (p. 33)
Assim, ela se afasta progressivamente das questões relativas ao trabalho e das
exigências que este impõe aos assalariados para privilegiar o indivíduo e suas
características pessoais na compreensão da gênese dessas afecções. Ao se referir à
repetição dos gestos — apontada por grande parte dos estudos como um dos
principais fatores na gênese das LER/DORT —, ela prefere focalizar o problema sob
outro ângulo, diferente daquele tratado pelos “engenheiros e ergonomistas”, já que
estes se referem apenas à “repetição mecanizada, consequência do avanço tecnológico e
do ritmo de um trabalho que impõe um número mínimo de toques por minuto.” (p. 34)
Dessa forma, nossa autora se sente livre para se dedicar exclusivamente ao que
considera como “determinantes emocionais” das LER/DORT. Nesse sentido, a
repetição dos gestos deixa de ser uma imposição da organização do trabalho e passa
a ser “determinada pela necessidade de compreensão de algo que ainda não foi transposto
ao registro do simbólico.” (p. 34-35) A doença seria decorrente, em última instância,
do acúmulo da pulsão em “um ponto qualquer, elegendo um ‘órgão de choque’”,
permitindo a emergência da “somatização” como “sintoma”. (p. 41) As queixas passam
a ser entendidas, portanto, como uma forma de “sintomatização”, sendo o sintoma
percebido como “uma comunicação” de “transtornos ocultos”, “pura realização de
desejo”. (p. 43) E o fator central que explicaria o fato de um trabalhador se submeter
às exigências impostas pela empresa, enquanto outro resiste, seria a necessidade
apresentada pelo primeiro de “ser tudo” para os patrões “vistos aqui como projeções
da mãe”. (p. 51)
Dentro dessa mesma perspectiva encontramos um estudo realizado por um
grupo de pesquisadores de um hospital de cirurgia de mão na França.(3) Este grupo,
sob coordenação de M. PEZE, (cf. PEZE, M. et al, 1996), doutora em psicologia e
psicanalista, apresentou os resultados de uma pesquisa realizada com pacientes

(3) A descrição desse estudo foi extraída de outro artigo no qual tratamos de forma mais aprofundada a
respeito do viés psicologizante observado no tratamento das LER/DORT. (Cf. Lima, 2001)

130
acolhidos nesse hospital. Tratava-se de mulheres atingidas pela Síndrome do Túnel
do Carpo (STC) e que apresentavam um quadro considerado pelos autores como
“uma constelação patológica” que não tinha “mais nada em comum com a lesão inicial”.
Segundo eles, “estas manifestações são tanto a consequência de uma dor que se tornou
rebelde quanto das interferências com as dificuldades psicológicas pré-existentes.” (p. 7)
Inicialmente, fazem referência à maior frequência de manifestações digestivas
na década de 70-80 e, em seguida, ao predomínio posterior das disfunções musculo-
-esqueléticas (LER/DORT), interrogando-se sobre “o deslocamento das somatizações
em direção ao aparelho locomotor”. (p. 8) Assim, desde o início, deixam claro que o
tratamento que será dado ao problema situa-se no campo da psicossomática. Eles
admitem de forma basicamente correta, no nosso entender, a diversidade dos fatores
etiológicos (fatores profissionais e individuais) no caso das STC, afirmando que no
contexto profissional, as LER que atingem os membros superiores “são frequentemente
o resultado de exigências biomecânicas às quais são submetidos os elementos anatômicos.”
E acrescentam que “certas formas de trabalho provocam microtraumatismos iterativos
desencadeando uma patologia do desgaste ou da superutilização corporal.” (p. 8) Além
disso, admitem que “No que concerne ao canal carpiano, os esforços importantes e
contínuos, associados à repetitividade dos gestos, aumentam em cinco vezes o risco de
uma compressão.” E completam dizendo que:
“As exigências biomecânicas de um posto de trabalho podem se revelar
superiores às capacidades funcionais individuais e provocar um desequilíbrio.
(...) Se os processos fisiológicos de reparação não corrigirem este desequilíbrio,
os sintomas serão de gravidade crescente e cada vez menos reversíveis.”(p. 9)
No entanto, sua análise muda totalmente de direção quando passam a descrever
o que chamam de fatores individuais presentes na etiologia das STC. Antes de tudo,
é importante ressaltar que sua amostra restringiu-se a um grupo de mulheres na
faixa etária de 40 a 60 anos e que procuraram o hospital para uma consulta cirúrgica,
o que demonstra por si só o viés do estudo. Adotando uma abordagem que eles
próprios chamam de “psicossomática”, os autores concluíram, a partir de entrevistas
com esse grupo de pacientes, que o quadro apresentado por elas “Não pode ser
exclusivamente uma questão de tendões, nervo mediano ou cubital, (...), mas de uma
mulher que apresenta uma mão-sintoma, (...) que incomoda em todos os trabalhos
ditos femininos, e é dolorosa no trabalho.” (p. 12) E acrescentam que a sintomatologia
não aparece em qualquer época da vida dessas mulheres, concluindo que existe uma
“função inconsciente do seu sintoma”. (p. 12) Segundo eles, o momento da consulta
coincide, para a maioria das pacientes, com o momento da saída dos filhos de casa,
constituindo em “um verdadeiro luto materno”, além de ser para muitas a fase da
menopausa ou a vivência da “extinção de toda vida genital”. (p. 15) E continuam sua
análise, afirmando que:
“Seria ilusório pensar que a paciente deseja apenas a cura. A mão é um órgão
profundamente implicado na relação com o outro, na relação com o trabalho.
131
Juntamente com o rosto, é a única parte do corpo que apresentamos nua ao
outro, na nossa sociedade, e é o único órgão do nosso corpo que vemos na
relação com o outro.” (p. 15)(4)
Além disso, segundo eles, essas pacientes viveram muitos lutos na infância,
perdendo pais ou irmãos de forma violenta e, por isto, tendem a apresentar suas
mães de “forma idealizada, sem recuo crítico, sem nuance”, revelando “uma idealização
da instância maternal, arcaica e jupiteriana, admirável e intocável.” (p. 16) Além disso,
prosseguem, o medo de perda do laço com a mãe é onipresente nas anamneses, pois
“a faixa etária das pacientes as coloca em risco direto de perda parental e abala uma
estrutura psicológica construída sob um modo fusional.” E concluem, a partir daí, que
“essas pacientes têm a necessidade da fazer bem feito para satisfazer uma mãe descrita
como todo-poderosa.”(grifo dos autores) E se interrogam: “como sobreviver sem ela,
sem sua proteção, suas gratificações, seu modelo?” (p. 16)
O sintoma maior, considerado pelos pesquisadores como “onipresente” nas
observações clínicas dessas pacientes é a angústia:
“A angústia dessas estruturas depressivas não é uma angústia de castração, de
culpa edipiana, dirigida para um objeto interno e erotizado, mas uma angústia
de perda deste Objeto, numa relação de grande dependência a um Outro.
Esta angústia é difusa e se descarrega por vias somáticas: cãibras, bolha
esofágica, taquicardia...”(p.16)
Sua análise distancia-se cada vez mais da situação de trabalho ou do que
chamam de “fatores profissionais”, para se concentrar nas causas psicológicas dos
sintomas. Assim, a “hiperatividade” apresentada pelas pacientes não é consequência
(ainda que parcialmente) das exigências do trabalho, mas o resultado da sua tentativa
de controlar a angústia e evitar a depressão:
“O risco de cair na depressão é constante. As defesas utilizadas para lutar
contra este risco são do tipo comportamental. Habituadas com a ‘fuga para
adiante’ como forma de não pensar, com modos de expressão ligados ao agir
(atividades domésticas compulsivas, mas não obsessivas, [...], hiperatividade
motora, trabalhos manuais ditos femininos feitos de forma repetitiva), essas
pacientes utilizam o movimento que permite sustentar o funcionamento
energético e eliminar as representações mentais angustiantes. O gesto ajuda
a controlar a excitação interna.” (grifo dos autores) (p. 16)
Assim, a STC seria uma consequência da “superutilização” do aparelho
locomotor, mas esta “superutilização” não decorre das exigências impostas pelo
trabalho e sim da necessidade dessas pacientes de se defenderem psicologicamente da

(4) Mais adiante, completam esta ideia dizendo que “a mão é o órgão do reconhecimento no mundo do
trabalho. Ela é a ferramenta principal de obtenção de uma avaliação do fazer pelo olhar do outro e,
portanto, de construção da identidade.” (p. 26)

132
angústia e da depressão. A hiperatividade antecede a situação de trabalho, pois
consiste em um “sistema de defesa” contra uma “angústia difusa” cuja origem é bem
anterior: (p. 16)
“É evidente que a superutilização iterativa do aparelho locomotor como sistema
de defesa privilegiado coloca essas pacientes expostas a um risco e pode
desencadear disfunções musculoesqueléticas.” (p. 16)
A partir do momento em que a doença se instala, a capacidade de descarga
motora fica reduzida e aí ocorre o que os autores chamam de “círculo vicioso”:
“angústia difusa — superinvestimento — superutilização do aparelho locomotor como
via de descarga — patologia de desgaste — somatização — barreira para a via defensiva
— aumento da angústia difusa.” (p. 17)
Fica evidente que a situação de trabalho não atua diretamente nessa “superuti-
lização do aparelho locomotor”, mas aparece apenas como um meio de descarga da
angústia difusa, cuja origem está na história pessoal das pacientes, especialmente,
nos seus traumas infantis. Observa-se que o trabalho e suas exigências ficam cada vez
mais distantes, enquanto aumenta a importância atribuída à dimensão psicológica
na gênese da doença.
Mas o que entendemos como viés psicologizante, presente na análise desses
pesquisadores, não se esgota aqui. Eles ainda abordam o que consideram como “ganhos
secundários” observados nas pacientes em questão. Segundo eles, o sintoma orgânico é
de utilização cômoda e transforma o seu modo de vida e suas relações com o meio:
“Estas transformações podem responder a desejos inconscientes da paciente”. (p. 20)
E acrescentam:
“Para algumas pacientes, adoecer é um grave transtorno no equilíbrio da vida
quotidiana. Para outras, é um alívio, a vida é muito difícil. O acidente ou a
doença oferecem uma boa ocasião para se ‘retirar’, se ocupar de si mesmas.
Este afastamento involuntário lhes oferece a possibilidade de se subtrair a
uma vida profissional ou relacional insatisfatória. (...) Essas pacientes, sempre
a serviço dos outros, se autorizam, assim, a serem cuidadas. (...) O status de
doente autoriza todas as queixas, todas as demandas, todas as exigências. Sob
a proteção das lesões e dos cuidados que elas implicam, a submissão de todos
pode ser exigida. (...) O status de doente é, portanto, com frequência,
conscientemente ou não, mais valorizado do que o de trabalhadora na
estrutura social (creche, cantina etc.). A paciente reencontra, assim, uma
aparência de identidade...” (p. 20/21)(5)

(5) É importante fazer uma ressalva às observações desses pesquisadores sobre o que consideram como
“ganhos secundários” obtidos pelos portadores de LER/DORT. Nosso contato com esses pacientes nos
conduzem a conclusões bastante diversas: a doença provoca graves distúrbios identitários (ao invés de
possibilitar a construção de uma nova identidade, ainda que “aparente”). O sofrimento causado pela
perda da saúde é da tal forma intenso que leva a quadros graves de depressão e a ideias suicidas (quando

133
Mesmo quando decidem tratar da situação de trabalho, nossos autores não
conseguem escapar do viés que impregna toda sua análise. Eles admitem que essas
pacientes sofrem um desgaste mental e físico no exercício de suas atividades, mas isto
resulta de uma ação da organização do trabalho sobre sua “economia psicossomática”.
Tal ação se dá em dois níveis: pelo conteúdo do trabalho, que definem como “conteúdo
simbólico da tarefa a cumprir” que “permite ao indivíduo passar sua mensagem”; e
pelos gestos e posturas “que regem a economia do corpo no trabalho”. Pois estes gestos
“não são apenas atos de eficácia. Eles são também atos de expressão de postura psíquica
e social do sujeito dirigida ao outro.” (p. 23) E acrescentam que o trabalho repetitivo
cria um sofrimento provocado pelo fato de que o indivíduo não encontra no olhar
do outro “um julgamento narcisicamente reparador”, devido à pobreza manual e
mental de sua tarefa. O movimento automatizado, repetitivo, leva ao uso de
“automatismos num divórcio total entre a mão e o imaginário. (...) A subutilização do
potencial criativo é uma fonte fundamental de sofrimento, de desestabilização da economia
psicossomática ou até mesmo de descompensação da doença.”(p. 23) Eles só não explicam
como é que tudo isso conduz a uma lesão!!!
E finalizam, revelando de forma inequívoca a sua visão excessivamente
reducionista e psicologizante da questão. Para eles, “a somatização” é uma das saídas
encontradas pelas pacientes para o sofrimento vivido no trabalho:
“Por ser apenas uma peça na engrenagem cujas tarefas perdem seu significado
em relação ao conjunto da atividade de um serviço, essas mulheres
desenvolvem um vivência de tédio e de inutilidade. (...) Pouco observadas, a
não ser pelos superiores hierárquicos, na maioria femininos, pouco
reconhecidas no quotidiano dos seus gestos, nossas pacientes se encontram
numa continuidade repetitiva das feridas narcísicas da infância. (...) Existe
um encontro entre a miséria narcísica (...) da infância de nossas pacientes e o
não reconhecimento de suas aspirações no trabalho. A repetição nos locais de
trabalho do sofrimento infantil pode provocar severas desorganizações
psicossomáticas. A distância entre as necessidades de um indivíduo e a
organização prescrita do seu trabalho pode fragilizar o sistema imunitário.”
(p. 25)
Decidimos reapresentar aqui o trabalho desses autores por julgarmos que
ilustra perfeitamente o que chamamos tentativas de desqualificação das LER/DORT
enquanto doenças de origem ocupacional. Não é difícil perceber nos trechos expostos
o aumento crescente da importância atribuída às dimensões psicológicas nessa gênese
e a desconsideração progressiva das exigências impostas pela situação de trabalho.

não leva a tentativas reais de suicídio). Mesmo quando a pessoa encontra nessa situação uma oportunidade
de se conhecer melhor e reconstruir sua vida, isto se dá dentro de um contexto complexo, que não pode
absolutamente ser assimilado a essa fórmula simplista dos chamados “ganhos secundários”. Parece-nos
que esses são os mesmos resultados relatados por outros pesquisadores. (Cf. BONNETTI & OLIVEIRA.
Apud CODO, W. & ALMEIDA, M. C. 1995, op. cit. e SATO, L. et al, 1993).

134
O caráter especulativo de suas considerações finais revela também um grande
distanciamento das situações concretas de trabalho no mundo industrializado
contemporâneo (a informatização crescente, as exigências abusivas de produção, a
competitividade excessiva, os sistemas absurdos de avaliação), levando-os a cair em
afirmações vazias e destituídas de qualquer base científica, tais como: “A repetição
nos locais de trabalho do sofrimento infantil pode provocar severas desorganizações
psicossomáticas.”(!!!) Ou ainda: “A distância entre as necessidades de um indivíduo e a
organização prescrita do seu trabalho pode fragilizar o sistema imunitário.”(!!!)
Uma publicação recente no campo da medicina veio reforçar ainda mais essas
tentativas de desviar as atenções dos contextos de trabalho para os “fatores
individuais”, além de trazer novos elementos que permitem concluir que esse esforço
de desqualificação das LER/DORT, enquanto doenças de origem ocupacional, ainda
permanece e pode estar assumindo um caráter ainda mais explícito. Trata-se do livro
intitulado A simulação na perícia médica — a arte e a ciência de investigar a verdade
pericial, escrito por um médico perito, Luiz Philippe Cabral de Vasconcellos (2010).
Apesar de o autor alertar, de início, que a importância atribuída ao tema da
simulação não tem conotação revanchista, sectária, ideológica ou preconceituosa
contra indivíduos que se submetem a uma perícia médica, é exatamente essa a
impressão que fica no leitor após finalizar a leitura do livro. Ou seja, mesmo
admitindo que a maioria das pessoas que passam pelas perícias médicas estão
legitimamente motivadas por anseios de justiça e necessitando dela, o que fica patente
é que empenhou seu esforço não a essa “maioria”, mas aos que, segundo ele, tentam
mostrar um quadro clínico irreal para o perito.
Assim, dedica sua publicação aos futuros médicos ou aos que se formaram
recentemente nos quais percebe uma grande ingenuidade e credulidade no trato de
documentos, falas e suspeitas. Com argumentos que traduzem um extremo
reducionismo e uma hipersimplificação do problema, ele tenta definir o que chama
de simulação entre os seres humanos, dizendo que esta não difere do que se passa na
natureza onde identifica exemplos de simulação na forma de mimetismo protetor,
em que animais e plantas usam de artifícios simuladores variados para sua
sobrevivência e reprodução. Segundo ele, a borboleta mente ao mostrar suas asas
com grandes olhos e assim afastando seu predador e entre os humanos não é diferente,
pois
“não é por outro motivo que o homem simula qualidades que não possui,
virtudes que não cultua, sentimentos que não tem, agindo de conformidade
com o meio em que se criou e vive, o qual impele para a mentira, para a
simulação, ensinando-lhe a se servir da palavra para ocultar o pensamento.”
(p. 18)
É diante disso, diz ele, que o médico perito terá de intervir “surpreendendo o
sofisticador, desmascarando-o com todos os (seus) conhecimentos semiológicos e recursos

135
de (sua) imaginação e inteligência.” (p. 19) Dessa forma, prossegue usando expressões
bastante reveladoras do real espírito que move seus argumentos, referindo-se à
necessidade de “perseguição aos simuladores através de procedimentos médicos”, às
ideias de “vantagem”, de “ganho secundário”, de “impunidade” ou “de mentira pura e
simples”, para concluir que “cabe ao médico perito encontrar a verdade, em um ambiente
que as incertezas, as falsidades, as coisas obscuras são postas a serviço daquele que quer
algo mais do que merece.” (p. 20) E tudo isso, mesmo admitindo que tais problemas
se devem à situação de oposição ou de confrontação entre o médico perito e o
examinando colocados, segundo ele, indevidamente, em lados opostos, com
propósitos divergentes, em um verdadeiro “jogo de esconde-esconde ou de queda de
braço”. (p. 20)
Mas é interessante observar que, apesar de lamentar esse fato, é o próprio
autor quem deixa claro que o papel do perito não é o de oferecer uma assistência ao
indivíduo que o procura, mas sim de uma permanente atitude investigativa, baseada
na constante suspeita de que estaria ocorrendo uma simulação. Para isso, se esforça
em definir com precisão em que consiste essa simulação, posta como “um
comportamento intencional e consciente de um indivíduo psiquicamente normal,
falseando, aumentando, diminuindo, omitindo situações para que lhe resulte outra
favorável ou vantajosa.” (p. 21) Em outras palavras, ele falseia, aumenta, diminui,
esconde ou produz sintomas e sinais físicos ou psíquicos de doenças com a finalidade
de obter vantagens diretas ou indiretas, qualificadas como ganhos secundários.
No que diz respeito às LER/DORT, o autor discorre longamente sobre o que
chama de simulações físicas, classificadas como “lesões inexistentes”, isto é, seriam
situações em que, embora não haja lesões, o examinando insiste conscientemente na
sua existência. Nesse caso, ocorreriam, segundo ele, lesões independentes da situação
de trabalho, alegadas como pretexto já que preexistem ao emprego; lesões
parcialmente dependentes do trabalho, isto é, agravadas pelo interessado e/ou
prolongadas pelo mesmo, através de omissões ou desvios de tratamento.
Com base nisso, ele propõe uma série de medidas a serem tomadas pelo médico
perito para não ser enganado pelo simulador, partindo das listas de sinais de alerta,
tais como proximidade da aposentadoria ou de uma demissão; contratos provisórios
ou período probatório; problemas financeiros; mudanças frequentes de médicos
assistenciais.
Em seguida, estabelece as estratégias para realizar a anamnese e um contato
constante com o examinando, desde o encontro na sala de espera, passando pela sua
entrada no consultório, até sua saída do consultório, aproveitando todos os
momentos “para não ser enganado”. Em outras palavras, toda a conduta do médico,
incluindo aquela de deixar o examinando falar visando obter informações mais
precisas a respeito do seu trabalho, consiste sempre no esforço de identificar
comportamentos de simulação. Para isso, o autor recorre aos mais diversos tipos de
artifícios, inclusive manobras não convencionais adotadas no exame, além de estratégias
136
visando distrair e/ou confundir o periciando, a fim de flagrá-lo no ato simulatório.
Dessa forma, o descrédito que se instala em torno desses indivíduos só não é maior
do que a desumanidade com a qual são tratados em um espaço onde deveriam, pelo
contrário, ser acolhidos, cuidados e, acima de tudo, respeitados.
Mas nosso autor não se contenta com isso. Ele impulsiona seu esforço de
teorização, trazendo outras definições, segundo ele, para tornar seu conceito mais
abrangente e seguro. Assim, expõe uma lista de definições: “simulação: é o ato de
mostrar o que não é”; “dissimulação: é o ato de ocultar aquilo que é”;
“metassimulação: é o ato de exagerar situações reais”; “supersimulação: é o acúmulo
de sinais e sintomas de doenças diferentes, porém afins”; e “retrossimulação ou pré-
simulação” que é “aquela feita com interesse a priori do ato simulatório principal”
(p. 22)
Para ilustrar como essas atitudes podem coexistir em um mesmo momento, no
mesmo indivíduo, ele exemplifica recorrendo mais uma vez à comparação com o
animal ao dizer que tudo se passa como um camaleão que, através do mimetismo, se
esconde da presa (dissimulação) e se mostra como uma casca de árvore (simulação),
insuflando suas membranas e aumentando sua área corporal (metassimulação). E
conclui que, na prática pericial, a atitude mais frequente é a metassimulação, ou
seja, o aumento da intensidade/gravidade, pois há a coexistência de sintomas
verdadeiros e falsos entremeados.

À guisa de conclusão

Os argumentos apresentados pelos autores citados não resistem a uma análise,


mesmo preliminar. Em Almeida (id. ib.) vemos distorções graves provocadas,
sobretudo, pela separação que ela promove entre o que chama de determinantes do
trabalho e determinantes individuais (ou emocionais), deixando ao encargo dos
“engenheiros e ergonomistas” a compreensão dos primeiros para se dedicar quase
exclusivamente aos segundos. Em Pézè et alii (id. ib.) ocorrem distorções igualmente
graves, aparentemente encobertas por um discurso cientificista. Embora considerem
alguns elementos relativos ao trabalho na gênese das LER/DORT, eles acabam por
privilegiar os fatores psicológicos, concluindo que essas lesões consistiriam,
fundamentalmente, em um processo psicossomático.
No caso de Vasconcellos (id. ib.), fica evidente, de imediato, que toda sua análise
se encaixa perfeitamente nas definições que ele próprio ofereceu para as atitudes dos
periciandos, ou seja, percebe-se que estamos lidando com uma clara tentativa de
simulação de suas reais intenções. Isso aparece, por exemplo, quando afirma estar
em busca da verdade de duas partes em litígio e, na realidade, se dedica a verificar
essa “verdade” em apenas uma das partes, a do trabalhador. Ou seja, ao final da
leitura, fica evidente que ele não dedicou qualquer esforço no sentido de identificar
137
as inúmeras estratégias adotadas pelas empresas para simular, dissimular ou
metassimular as doenças produzidas pelos seus processos de trabalho.
O autor recorre também à dissimulação ao tentar ocultar o que de fato
representa sua publicação: um mero exercício de preconceito e de pré-julgamento
mal camuflado pela ideia de “apuração da verdade” de ambas as partes baseado em
“interesse investigativo e preparo científico”.
Mas a análise dos seus argumentos torna visível igualmente a prática da
metassimulação, definida pelo autor como o ato de exagerar situações reais. Tal
prática pode ser identificada na sua afirmação de que os casos de simulação se situam
entre uma minoria já que a maioria dos indivíduos que procuram as perícias “está
legitimamente motivada por anseios de justiça e necessitando dela”. Nesse caso, caberia
questionar as razões para se dar tamanha visibilidade a essa minoria e se, ao fazê-lo,
não estaria praticando exatamente o que chamou de metassimulação.
Finalmente, ao colocar nas primeiras páginas do seu livro que a simulação não
é o caso da maioria e que sua intenção não é revanchista, ele parece recorrer
exatamente ao que chamou de retrossimulação ou pré-simulação, isto é, no nosso
entender, esse tipo de advertência feita ao leitor teria a finalidade de encobrir o ato
simulatório principal.
Em suma, essa publicação produz, no nosso entender, o único efeito de
alimentar ainda mais a guerra já instalada entre médicos peritos e trabalhadores.
Sob a camuflagem de obra científica e que visa exclusivamente buscar a verdade, o
autor incita a desconfiança e cria uma barreira ainda maior para que trabalhadores
lesionados ou portadores de outras doenças ocupacionais tenham acesso ao
reconhecimento do nexo entre seus problemas de saúde e o trabalho, tendo seus
legítimos direitos reconhecidos.
Todas as discussões propostas pelos autores citados no decorrer deste ensaio
acabaram por provocar um viés na visão do problema, vindo a contribuir
consideravelmente para diminuir as dificuldades de se apreender a gênese das LER/
DORT e, portanto, de se estabelecer medidas eficazes para sua prevenção.

BIBLIOGRAFIA

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VASCONCELLOS, L. P. W. C. A simulação na perícia médica — a arte e a ciência de investigar a
verdade pericial. São Paulo: LTr, 2010.

139
Capítulo 7

O SOFRIMENTO PSÍQUICO DO TRABALHADOR


DO SUS FRENTE À MORTE DO USUÁRIO NO
PROCESSO DE TRABALHO INTERDISCIPLINAR(*)

José Roberto Heloani


Sandra Fogaça Ribeiro

INTRODUÇÃO

Diante do tema deste livro, saúde e precarização do homem que trabalha, é


imprescindível discorrer sobre a saúde do homem/trabalhador que cuida da saúde
dos outros homens, os trabalhadores e trabalhadoras da saúde. No universo imenso
que se tem de trabalhadores da saúde, fez-se um recorte, apresentando-se uma amostra
dessa realidade por meio dos resultados de uma pesquisa recente (Ribeiro, 2011)
com os trabalhadores do SUS, especialmente os (as) Agentes Comunitários (as) de
Saúde, componentes da equipe da Saúde da Família. Este programa é reconhecido
pelo governo federal como a principal política de atenção básica, mediante ação
integralizada de equipe, atenção territorializada, melhor compreensão da família
na atualidade e intervenções baseadas no estabelecimento de vínculos entre o
trabalhador de saúde e a população usuária destes serviços (Brasil, 2006).
A complexa tarefa de produzir saúde e as condições de trabalho adversas
acarretam aos trabalhadores de saúde um estado de sofrimento e desgaste da sua
própria saúde, pela instabilidade e precarização ou tensão a que estão expostos. É
uma contradição o fato de aqueles que estão trabalhando para a produção da saúde
da população não a tenham. Especialmente, ao atender o trabalhador em geral,
usuário do SUS, o trabalhador de saúde se depara com essa contradição de forma
mais acentuada, pois é sua responsabilidade cuidar do outro, e nem sempre está em
boas condições de saúde.
A importância dada à saúde do trabalhador em geral pode estar aquém do que
se deve na prática, mas está legalmente garantida desde 1988. Já a saúde do
trabalhador de saúde só foi legalmente apoiada no final de 2011, quando foi aprovada

(*) Texto referente à tese de Doutorado da segunda autora “Sofrimento psíquico e privacidade
do agente comunitário de saúde”, disponível no endereço: http:bibliotecadigital.unicamp.br.

140
a portaria que regulamenta os cuidados aos trabalhadores de saúde do SUS (Brasil,
2011). Diferentemente de áreas como a saúde do idoso, da criança e outras, a
incumbência do trabalhador de saúde no que se refere à saúde do trabalhador em
geral foi instituída pela Constituição Federal (BRASIL, 1988), garantindo que “ao
Sistema Único de Saúde (SUS) compete (...) executar as ações de Saúde do
Trabalhador (...), colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o
do trabalho”. A saúde do trabalhador inclui-se, assim, no âmbito do direito à saúde,
que deve ser garantido pelo Estado por meio do SUS.
Retomando, são os trabalhadores do SUS, em foco neste capítulo, que estão
com a incumbência de cuidar da saúde do trabalhador/usuário. Diante disso, deve
se levar em consideração que o ganho no cuidado a saúde destes trabalhadores do
SUS terá como repercussão a melhoria do atendimento aos trabalhadores em geral.
Por outro lado, as dificuldades e a falta de condições de trabalho para os trabalhadores
de saúde acarretam repercussões deletérias na saúde do trabalhador em geral. Tais
considerações ressaltam a importância, complexidade e amplitude de tal tema. Neste
texto, será abordada uma situação grave, a morte de alguns trabalhadores, usuários
do SUS, desencadeada em grande parte por dificuldades vivenciadas pelos
trabalhadores de uma unidade de Saúde da Família.
Para discorrer sobre a saúde mental do trabalhador de saúde no SUS é pertinente
fazer uma retomada histórica desse campo de trabalho. Assim como as pessoas, a
saúde pública tem sua história. Ela se confunde, por diversas vezes, com a nossa,
enquanto pessoas, brasileiros e brasileiras.
Walter Benjamim (1980), filósofo, legítimo representante da escola de
Frankfurt, vítima da perseguição nazista, deu cabo de sua vida tragicamente, numa
última tentativa de fuga na alfândega francesa. Ele remete-se ao estudo da história
enquanto ciência ou história de vida de cada um, da forma que o leitor é convidado
a se debruçar sobre a história da saúde pública. Ele diz que escrever a história não é
uma mera descrição do passado “como de fato foi”, mas a sua retomada salvadora
na história presente.

HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA: DESTAQUE DE ALGUNS MARCOS

João Cunha e Rosani Cunha (2001) contribuirão na reconstituição da história


da saúde pública, retomando os principais marcos dessa história, intimamente
relacionados com a evolução dos processos de produção no país.
Na época do Brasil Colônia, não havia nenhum interesse de Portugal em manter
serviços em saúde no Brasil, que ficava por conta dos boticários (farmacêuticos) ou
das ervas e chás que as próprias pessoas produziam e utilizavam. O interesse pela
saúde no Brasil só se deu quando o país se tornou produtor de café, mas restrito ao

141
cuidado com a saúde das pessoas nos portos para não comprometer a exportação.
Bem mais tarde, a construção das estradas de ferro desencadeou a preocupação com
a saúde dos trabalhadores ferroviários do interior do país. Estes fatos apontam a
estreita relação entre a saúde, trabalho e a produção capitalista, pois na lógica
capitalista, o trabalho não atende interesses e desejos nem do trabalhador, nem do
usuário, mas do mercado e do capital, tornando o trabalho sem sentido, instalando-
-se um processo perverso de alienação (MARX, 1844/2004).
Um marco importante dessa época foi o “Sanitarismo Campanhista”, de
Oswaldo Cruz, na luta contra a febre amarela. A queimada de colchões provocou a
revolta da população por causa de atitudes agressivas dos guardas campanhistas.
Foi o que se denominou “A Revolta da Vacina”.
Num salto no tempo, nos anos 1920/1930, a saúde continuou atrelada ao
trabalho pela relação direta entre saúde e previdência. Isso se viabilizou através das
Caixas de Aposentadorias e Pensões. Essa foi uma iniciativa dos próprios
trabalhadores, visto que depois que parassem de trabalhar não teriam como subsistir
financeiramente, nem teriam assistência à saúde. Depois de algum tempo, os
empregadores tomaram para si a administração dessas caixas, não permitindo que
o gerenciamento delas permanecesse nas mãos dos trabalhadores, o que significou
um desmonte no movimento genuinamente dos trabalhadores.
Nos anos sequentes (30/45), o destaque na relação entre saúde e trabalho foi a
promulgação da Primeira Legislação Trabalhista por Getúlio Vargas. Depois dessa
legislação o governo também passou a fiscalizar as caixas de pensão inicialmente
organizadas pelos trabalhadores, que passaram a denominarem-se Instituto de
Aposentadorias e Pensões (IAP). Mais adiante, no governo de Juscelino Kubitschek,
o enfoque deixa de ser as políticas sociais de previdência e passa a ser a indústria, com
a manutenção do que já havia sido definido anteriormente.
Uma mudança drástica ocorre em 64, com o golpe militar. Houve um
impedimento radical de participação dos trabalhadores no gerenciamento da
Previdência, originariamente as caixas de pensões. Contraditoriamente, aqueles que
iniciaram o movimento da previdência são excluídos da sua administração. Num
período de autoritarismo, há uma unificação de várias IAPs, surgindo o Instituto
Nacional de Previdência Social (INPS).
O desenrolar da história logo após o ano de 64 até a década de 70 foi uma
desmobilização dos movimentos populistas anteriores. A ênfase era de uma atenção
individual e assistencialista, em detrimento da saúde pública, da prevenção e de
interesse coletivo. Fortalecia-se cada vez mais a regra: só quem trabalha tem
assistência à saúde.
Nessa fase, a crise na saúde pública foi acompanhada pela predominância de
um modelo assistencial privatista, com as seguintes características: a) estado

142
financiador; b) setor privado como prestador; c) setor privado internacional como
provedor de insumos (equipamentos médicos e medicamentos). O avanço gerado
foi que a crise desencadeou novamente a participação popular. Mobilizados pelas
dificuldades impostas, os trabalhadores de saúde e os usuários iniciaram discussões,
que consistiram no embrião da Reforma Sanitária Brasileira. Ao mesmo tempo,
houve a criação do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) e Associação
Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO). Ambas participaram
das propostas de mudanças e sistematização do novo modelo. Os primeiros encontros
dos secretários municipais de saúde passaram a ocorrer.
A década de 80 foi marcada por um fato político importante, as “Diretas Já”. O
Brasil vivenciou crises ideológicas, financeiras e políticas, tais como: processo
inflacionário sem controle e tentativas de redefinições nos processos de
redemocratização pós-ditadura, e derrota do partido do governo federal nas eleições
para governador na maioria dos estados. Em meio a todo esse cenário, houve um
fortalecimento dos movimentos dos trabalhadores de saúde, com a meta: “Saúde
para todos até o ano 2000” e a criação do Prev-Saúde, projeto que incorporou
pressupostos de hierarquização, participação comunitária, integração dos serviços,
regionalização e extensão da cobertura, mas esse plano não chegou a ser
implementado. O Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária
(CONASP) se fortaleceu e fez propostas racionalizadoras, com mecanismos de
auditorias e corte de custos. Apesar das propostas racionalizadoras, cresceu o
movimento oposicionista e reformador, com força na descentralização e na atenção
municipalizada à saúde.
Ainda na década de 80, o Conselho Consultivo da Administração de Saúde
Previdenciária (CONASP) foi materializado através do aparecimento das Ações
Integradas em Saúde (AIS) que passaram a ter a participação de instâncias colegiadas,
participação de usuários nos serviços de saúde.
Todos esses movimentos culminaram na VIII Conferência Nacional de Saúde,
em 1986, consolidação da Reforma Sanitária Brasileira com a transferência dos
serviços realizados pelo INAMPS para os estados e municípios. Um ano depois,
legislou-se o Sistema Único de Saúde (SUS) na constituição federal com os princípios
da universalidade, equidade, integralidade e organizado de maneira descentralizada,
hierarquizada e com participação popular.
Nos anos seguintes, durante a década de 90, o modelo neoliberal foi ganhando
terreno em todos os âmbitos, inclusive na saúde publica. Segundo Ribeiro, Pires e
Blank (2004), a Reforma do Estado iniciada nos anos 1990, em vigência até hoje, têm
diminuído a autonomia do trabalhador. Os movimentos de coletividade dos
trabalhadores de saúde foram perdendo força, diante de um modelo que privilegiava
a individualidade e a competitividade.
Em detrimento dessa falta de espaço para movimentos em coletividade, surgiu
a necessidade do trabalho em equipe, um desafio em saúde pública. A regulamentação

143
do SUS na Constituição Federal de 1988 foi um avanço e uma conquista do movimento
da reforma sanitária. Entretanto, o modelo de assistência em saúde vigente não era
suficiente para operacionalizar o novo projeto. Assim, a Saúde da Família foi sendo
reconhecida como uma medida para tornar realidade os princípios do SUS na
Atenção Básica, privilegiando o trabalho em equipe, desde a sua implantação, com
um documento oficial do Ministério da Saúde em 1994 até hoje (BRASIL, 2006).
Segundo Romano (1999), psicóloga da saúde da USP/SP, o trabalho em equipe
ou a interdisciplinaridade tem enfrentado diversas dificuldades na sua prática; alguns
profissionais são pessimistas e dizem que a única expressão interdisciplinar na atenção
em saúde é o prontuário do paciente. (Falsetti 1983 apud Romano, 1999) Já outros
afirmam que, mesmo não querendo, os profissionais de saúde não conseguem
trabalhar isoladamente, dependendo sempre do outro nas suas intervenções
(Fagundes, 2004).
A percepção da diferença de atuação de cada área é importante. Entretanto,
isso pode ocorrer enquanto complementaridade, competição ou contribuição. O
problema é quando a tônica dessa relação interdisciplinar é a competição. Segundo
Romano (1999) para evitar tal problema, é necessário adotar algumas atitudes:
escuta do outro, humildade, respeito e disponibilidade para aceitar intervenções
nas próprias ideias. Trabalhar junto implica em relações sociais interpessoais,
ideológicas, filosóficas, afetivas. É necessário um tempo junto para que os profissionais
se conheçam em todos esses níveis. Também existe a questão do poder inerente às
relações intersubjetivas que nunca devem ser desconsideradas. A carência de uma
formação mais comprometida com a realidade nacional dificulta, e muito, uma
“práxis” efetiva.
A opinião de Romano(2001) é otimista, afirmando que apesar destas
dificuldades os profissionais são capazes de perceber que não sabem tudo, sendo esse
o ponto de partida para desenvolvimento do trabalho em equipe, até conseguirem
compreender que podem agir sem medo do não reconhecimento, ou de serem
descartados pelo outro.
Corroborando com essas concepções sobre trabalho em equipe, Peduzzi &
Palma (1996) apresentam o trabalhador de saúde como um “agente do trabalho” e
não qualquer recurso humano. O entendimento que se faz é que o agente do trabalho
coloca-se
como elemento constituinte do processo de trabalho, colocando em
evidência as relações do agente com os demais elementos deste processo
[...] permite a apreensão da dimensão transformadora do trabalhador
em sua condição de sujeito histórico, que, no trabalho e por meio do
trabalho e por meio da ação, faz a finalidade social de sua intervenção
realizar-se (PEDUZZI; PALMA, 1996, p. 237).
Essa configuração e posicionamento do trabalhador como “agente do
trabalho” não é facilmente assumida. Requer um envolvimento de toda a equipe,

144
enquanto um grupo, em contraposição ao que já foi exposto dentro de um modelo
neoliberal, fincado na individualidade.
Martins (2003) explicita as condições do processo grupal, baseada em Martin-
-Baró, tornando evidente o quanto um trabalho de uma equipe de saúde se configura
num grupo, permeado por características favoráveis ou não ao processo de trabalho,
dependendo de como se desenvolveu sua identidade, suas relações de poder e o caráter
de sua atividade (para que ele existe, qual a sua produção). Para o entendimento
desses parâmetros é necessário que se tenha claro o processo histórico do grupo,
que se constrói num determinado espaço e tempo, fruto das relações que
vão ocorrendo no cotidiano e, ao mesmo tempo, que traz para a
experiência presente vários aspectos gerais da sociedade, expressos nas
contradições que emergem no grupo (MARTINS, 2003, p. 203).
Essa concepção do processo grupal indica caminhos para se compreender o
trabalho de equipe em saúde, dentro da lógica capitalista. As repercussões das
determinações histórico-estruturais do contexto neoliberal e do modelo biomédico
no trabalho em saúde se impõem como limitações, inviabilizando algumas tentativas
de superação. O entendimento de que há um processo grupal a ser considerado evita
que recaia sobre o trabalhador a responsabilidade de sucesso ou fracasso em seu
desempenho ou tentativas frustradas de trabalho em equipe (MARTINS, 2003;
RIBEIRO, PIRES, BLANK, 2004).
Retomando as concepções de Peduzzi (2000), apresenta-se uma tipologia do
trabalho em equipe, definindo-o em duas formas: equipe agrupamento e equipe
integração. Para a passagem da equipe agrupamento para a equipe integração é
necessária uma reconstrução diária dos agentes do trabalho na equipe enquanto
sujeitos, donos de seu próprio destino. Mas como esses destinos intercruzam-se, as
conquistas individuais só se tornam possíveis se constituídas junto à coletividade.
A psicologia social tem discutido amplamente essa constituição coletiva do ser
humano, que só se faz pelo atravessamento da cultura, mesmo que permeado por
experiências de sofrimento (CODO, SAMPAIO, HITOMI, 1993). Não é um
empreendimento fácil e requer disponibilidade para uma prática comunicacional
com tolerância, permeabilidade ao novo e abertura para conhecermos e respeitarmos
o trabalho alheio (PAIM, 2001). Apesar da posição otimista de Romano (1999),
apresentada antes, este último aspecto é exatamente o que os trabalhadores têm
dificuldade em fazer, desestruturando o trabalho em equipe.
Nessa mesma direção, o Conselho Federal de Psicologia afirma que “é importante
ressaltar que a identificação de tais situações (dificuldades de trabalho em equipe)
na atividade do psicólogo deve ser vista também como um alerta para o
desencadeamento de ações preventivas (especialmente a vigilância em saúde) no
sentido de evitar que outros trabalhadores permaneçam expostos às mesmas
condições”. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008).

145
É compreensível que essas dificuldades e mudanças na implementação de novos
modelos de produção de saúde também são causadores de ansiedade frente à
necessidade de reestruturação e dos riscos associados a ela. Tanto a coordenação da
equipe quanto seus membro, sofrem nesses empreendimentos reinventivos,
inovadores e criativos (RIBEIRO, PIRES, BLANK, 2004). É exatamente esse o eixo
norteador desse capítulo: a saúde mental precarizada dos trabalhadores de saúde,
repercutindo desfavoravelmente na atenção à saúde daqueles que são atendidos por
eles, gerando efeitos deletérios em grande escala. A seguir, um dos aspectos sobre
esse sofrimento será apresentado.

UM ASPECTO DESESTRUTURANTE NA SAÚDE DO TRABALHADOR DE


SAÚDE: O SUICÍDIO DO USUÁRIO

Da pesquisa citada inicialmente (Ribeiro, 2011) com trabalhadores do SUS


resultou o estudo de vários aspectos desestruturantes na saúde do Agente
Comunitário de Saúde, especialmente por causa do vínculo exacerbado que
desenvolvem com a população atendida. Neste momento, um desses aspectos que
será apontado é a dor pela morte do usuário, pois revela dois lados da precarização
do homem que trabalha: por um lado, o do trabalhador de saúde que sofre pela falta
de condições de assistir favoravelmente o usuário, e, por outro, o trabalhador/usuário
que morre em decorrência da precariedade dos serviços prestados. Além disso, as
vicissitudes acerca da morte do usuário, relatadas na pesquisa, envolveram
dificuldades no trabalho em equipe, exatamente um das dimensões básicas retomadas
no histórico da saúde pública.
A pesquisa foi realizada por meio de grupos focais, com os agentes comunitários
de saúde de todo o município, complementada com observação participante em
uma das unidades de Saúde da Família de uma cidade de médio porte do interior
paulista.
Dentre as mortes dos usuários (pacientes que estavam em atendimento na
Unidade Saúde da Família), a maioria relatada foi por suicídio. Um tema como
esse, morte/suicídio do usuário em meio a condições precárias de trabalho da equipe
da Saúde da Família, merece um aprofundamento, considerando o aumento
assustador de casos de suicídio, principalmente nessa cidade onde se realizou a
pesquisa, que teve o acréscimo de 4 para 22 casos no ano de 2009. A implantação do
Centro de Valorização da Vida (CVV) concretizou-se por esse motivo.
Essas situações ocorreram dentro do processo de atendimento realizado pelas
Agentes Comunitárias de Saúde, como experiências dolorosas e de sofrimento no
trabalho. Cabe refletir como essas vivências repercutiram no trabalhador que assistiu
essa cena trágica, a morte do usuário, como co-participante daquele momento,
como aquele que assiste de forma impotente algo que imaginava que poderia evitar.

146
Dentre as diversas situações, uma Agente Comunitária de Saúde diz:
“Eu sentia incapaz de ajudar aquela pessoa, fazer com que ela volte a vida,
isso não existe, até que chega uma hora que a pessoa vinha a morrer, porque
pensava que sendo agente você poderia ajudar aquela pessoa, realmente o ser
humano não vale nada.”
Enquanto os relatos sobre morte ocorriam, uma Agente Comunitária de Saúde
manifestou muito incômodo no decorrer do grupo focal, tossia muito e pedia para
ir embora. Mas quando a pesquisadora/coordenadora do grupo focal lhe pediu
para falar o que estava pensando sobre o assunto exposto, contou o que lhe
incomodava, chorou e conseguiu ficar até o final, conforme se apresenta a seguir:
“— Eu também tive um paciente que morreu, se matou, logo que eu comecei,
ele se enforcou, nesse dia mesmo ele tinha conversado com meu marido,
(agente comunitário de saúde para de tossir) ele se enforcou à noite, logo
que eu entrei, você se sente mal, ele tinha conversado com meu marido, meu
marido não tinha percebido nada, naquele dia ele se matou a noite, você se
sente impotente, não tinha como prever o que ele ia fazer.
— Faz quanto tempo?
— Faz uns três anos. (voz embargada)
— Mas ainda é difícil?
— É como se tivesse acontecendo agora, a gente se sente impotente porque a
gente podia ter percebido algum sinal, a gente não percebeu nada que ele ia
fazer aquilo.
— Você tinha estado com ele naquele dia?
— Sim, Naquele dia.
— Você morava perto?
— Morava perto, é zona rural mas é perto (continua com voz embargada)
— Você conhecia?
— Conhecia, ele era ex marido de uma amiga minha, separaram e seis
meses depois ele se matou.”
Vários outros depoimentos se fizeram sobre morte e suicídio dos usuários,
com grande manifestação de emoção no grupo, com expressão de desejo de terem
impedido as mortes e os suicídios. A culpa pela morte ou suicídio foi uma das
manifestações que se fizeram numa dessas situações.

147
“— O outro (caso) foi de uma paciente minha que o filho se suicidou (abaixa
muito a voz).
— Por que foi difícil?
— Foi difícil porque eu tenho contato com ele e com a filha dele, conversava
muito com ele. Tanto que no dia que ele se suicidou, eu saí da casa chorando.
— Ele era seu amigo?
— Era, foi bem difícil. Eu chegava em casa... (interrompe a frase, suspira),
eu não aguento mais esse serviço... É tudo na minha cabeça”.
A seguir, o relato de outro caso de suicídio, uma usuária de 22 anos, em
atendimento por outra agente comunitária de saúde:
“— então, ela foi na padaria, comprou pão, cortou a cordinha do varal e se
enforcou.
— Você tinha falado com ela recentemente?
— Com ela não, com a filha dela porque ela tinha brigado no posto porque
ela queria Berotec, e não pode oferecer essa medicação, e ela já tava em
acompanhamento psiquiátrico. Berotec a gente não fornece no posto, muito
menos prá uma paciente em acompanhamento psiquiátrico. No dia, as
consultas foram todas “desagendadas”, de maio foi jogada prá julho. A dela,
do dia 19 de maio foi prá 31 de julho. E eu levei lá (o recado da troca de
consulta), e me senti culpada... Ela tava precisando da consulta, se ela foi lá
é porque ela tava precisando... Isso foi na quarta-feira, quando foi no sábado,
ela cometeu suicídio. (fala baixo)
— E por que você falou em se sentir culpada?
— Ah, não sei... O paciente tava precisando daquela consulta, aí eu falei,
nossa será que foi por isso?
— Mas você, teria como antecipar essa consulta?
— Não, depois pensando... se nem Deus interferiu no livre arbítrio dela na
hora que ela quis se matar, por que eu teria alguma culpa, se a gente olhar
por esse lado tira um pouco do orgulho de querer poder interferir em tudo, se
nem Deus interfere... A gente tem que fazer o que a gente pode.
Ainda outro caso é apresentado, com o agravante de a agente comunitária de
saúde ter recorrido à ajuda da equipe para atender o caso, pois suspeitara do suicídio,
pela história de vida da usuária, mas não teve apoio no entendimento do caso. Sua
opinião sobre a gravidade da situação foi desconsiderada.
A agente comunitária de saúde relata o caso, ao responder à pergunta da
pesquisadora/coordenadora do grupo focal:
148
— Falem outras questões que afetam vocês no atendimento à comunidade.
— Levar o profissional (na visita) pelo que você observou e sentiu na visita
porque a pessoa não tá bem, você chega na unidade e convence a pessoa
(profissional) que a pessoa (usuária) não tá bem, explica o que aconteceu na
visita, e na hora que a pessoa (profissional) chega lá você sai e a pessoa
(profissional) diz: você acha mesmo que a pessoa tá com tudo isso, você reparou
que as unhas dela tá feita, você acha que quem tá com depressão do jeito que
ela fala e que diz que vai se matar tem tempo prá fazer a unha? Resultado da
história, ela se matou.
— Quando?
— Foi agora, neste começo de ano. Ela era da V. (outra agente comunitária
de saúde) e ela (a usuária) mudou prá minha área e a V. me contou a
história e fui fazer uma visita prá ela, a menina tava em prantos, chorando,
desesperada, contou a vida inteira dela...
— Você conhece a pessoa?
— Só de ser paciente, porque ela não ficou muito tempo lá. Daí eu conversei
e ouvi toda a história anterior dela, da infância dela, a mãe se suicidou na
frente dela, o pai foi assassinado na frente dela, ela foi criada pela tia...
— Outras participantes comentam: olha a vida da menina! É uma vida que...
— Ela tava afastada do serviço, tava em tratamento psiquiátrico, já teve outras
tentativas de suicídio, tava num relacionamento novo, afetivo, tava meio
doentia, morava sozinha, num cômodo, morava com um filhinho dela de
cinco anos, daí eu fiz a visita e ela chorou bastante,
— O que você sentiu quando ela chorou?
— Eu me coloquei no lugar dela, tudo que ela passou e vivenciou, ela tinha
22 anos só, com um filho de 5 anos prá criar sozinha, ela era muito bonita
mesmo, tava acabada, destruída por dentro, e com o histórico dela eu fiquei
preocupada a manhã inteira, eu fui prá casa almoçar, fui direto para o posto,
não fiz hora de almoço inteira, fiquei lá desesperada, não via a hora que a
médica chegasse prá eu falar com ela, passei o caso e fomos fazer a visita...
Levei a médica no mesmo dia e ela (a médica) saiu e falou: você acha que ela
vai se matar? Você reparou na mão feita? Você reparou no sei no quê? Mas eu
pensei comigo mesma, ela tá num relacionamento novo, ela quer aparecer
mais bonita para o namorado, se arrumar, e eu levei mais a sério o que eu
ouvi, o que eu escutei dela...
— Na hora que a médica foi ela também chorou?
— Chorou, a médica passou um remédio que fazia bem prá ela e a psiquiatra
tinha tirado, a médica falou, eu vou passar esse remédio prá você, daqui a um
149
mês eu quero que você volte a trabalhar, se você não voltar eu vou retirar o
remédio, ela foi uma vez na unidade porque ela já tava melhor, tava marcado
prá ela voltar a trabalhar, nessa semana que ela ia voltar a trabalhar, ela veio
na unidade com uma crise, a médica não estava na unidade, ela foi embora,
isso foi numa quinta-feira à tarde, no sábado ela se matou. Ela mandou o
menino prá casa do avô... e... (voz embargada e em seguida pausa)
— Como você se sentiu?
— Acabada!
Compreende-se que frente à pressão organizacional, a Agente Comunitária de
Saúde se vê enredada por um sofrimento psíquico, profundamente identificada com
a paciente que cometeu o suicídio, ao afirmar: “Eu me coloquei no lugar dela, tudo
que ela passou e vivenciou...”. A pressão é para que se execute o trabalho, mesmo sem
reconhecimento da opinião da trabalhadora, que inutilmente a expressa, alertando
para a gravidade do caso, antes do ato consumado do suicídio. Isso ficou claro no
seguinte trecho: com o histórico dela eu fiquei preocupada a manhã inteira, fui direto
para o posto, não fiz hora de almoço inteira, fiquei lá desesperada, não via a hora que a
médica chegasse prá eu falar com ela, passei o caso e fomos fazer a visita... Segundo a
Psicodinâmica do trabalho, o não reconhecimento no trabalho pode intensificar a
dimensão patogênica da paciente, relacionando-se também a aspectos identitários.
Pois quanto menor a autonomia no trabalho e mais rígidas as suas prescrições, o
modo da realização da tarefa tende a se configurar como patogênico (HELOANI,
2011; DEJOURS, 1994). A forma que a agente comunitária descreve essa situação é
notoriamente patogênica, contundente, sentiu-se “ACABADA”. É possível pensar
que essa palavra, acabada, pode ter um sentido, mesmo que simbólico, de morte, de
sentir-se acabada profissionalmente, frustrada por não conseguir desempenhar seu
trabalho, com a autonomia e o reconhecimento esperados.
Talvez a visão psicossocial expressa pela agente comunitária de saúde, quando
diz que a usuária “tava afastada do serviço, tava em tratamento psiquiátrico, já teve
outras tentativas de suicídio, tava num relacionamento novo, afetivo, morava sozinha,
num cômodo, morava com um filhinho dela de cinco anos” tivesse que ter sido
compartilhada por toda a equipe, elucidando que o não deixar transparecer o
sofrimento, o suposto “estar bem, de unhas e cabelos arrumados”, escondiam de
fato um profundo desespero, identificado pela agente comunitária de saúde,
infelizmente desconsiderado.
Para além de todo o desgaste do trabalhador de saúde, a usuária vítima do
suicídio foi radicalmente prejudicada, uma triste situação que demonstra claramente
o que Seligmann-Silva (2011) apontou sobre o que ela denomina de multiplicação
social dos danos para a vida cotidiana. O prejuízo pela falta de trabalho em equipe,
a solidão e falta de credibilidade na Agente Comunitária de Saúde pela equipe
acabaram por resultar num fim trágico, o suicídio.

150
Corrobora nesta questão a pesquisa de Gonçalves (2009, p. 98): “A falta de suporte
da equipe como um todo é relatada pelos agentes comunitários de saúde como um
fator negativo para o atendimento da população e para o trabalho em equipe”.
Para compreender a dor da Agente Comunitária ao se deparar com o suicídio
da usuária, é pertinente recorrer a algumas considerações sobre a dificuldade do
trabalhador de saúde em lidar com a morte, neste caso, violentamente provocada.
Segundo Pitta (2003), os trabalhadores de saúde reconhecem que, mesmo que a
trajetória entre o adoecer e morrer seja escrupulosamente acompanhada, a
dificuldade de lidar com a morte é de tal ordem que ela não chega sem
comprometimentos para todos que a cercam, tanto profissionais como familiares.
A autora se pergunta se haveria uma formação melhor que permitiria aos
trabalhadores de saúde “domesticar” esses momentos tão dolorosos, talvez novos
rituais, inspirados pelo progresso das Ciências Humanas.
Dejours & Bègue (2010, p. 20) compreendem o suicídio como “uma conduta
endereçada”, uma última e desesperada estratégia contra o medo, mas de forma
mais abrangente contra toda expressão de sofrimento. Assim é que o suicídio se traduz
em expressões como: “um homem deve suportar o sofrimento sem pestanejar (...)
um homem não reclama, não choraminga (...) é digno o homem que não deixa
transparecer o seu sofrimento”. Provavelmente esse “não deixar transparecer o
sofrimento” foi o que a usuária quis expressar, ao estar “bem arrumada e de unhas
feitas”. Lamentavelmente, a percepção da Agente Comunitária de Saúde, para além
desta aparente superação do sofrimento, foi desconsiderada.
Combinato e Queiroz (2006) apontam a necessidade de proporcionar uma
visão psicossocial aos profissionais de saúde sobre o viver e o morrer, refletindo
sobre os significados da morte para eles mesmos e para cultura, preparando-os para
interagir com o processo de morte e morrer na sua atividade profissional. Afirmam:
Quando discutimos sobre a dificuldade dos profissionais de saúde em
lidar com o paciente terminal, em sua integralidade, devemos analisar
essa dificuldade no seu processo de construção, na sua historicidade e na
sua essência, processo esse que vai além de uma experiência imediata e da
história individual desse profissional. (...) É preciso, portanto,
entendermos o sentido e o fazer do profissional a partir do significado de
morte atribuído pela cultura, assim como a influência dessa cultura na
sua formação profissional (COMBINATO E QUEIROZ, 2006, p. 214).
Barreto e Venco (2011, p. 230) discorrem sobre o suicídio como “complexo
e tipicamente humano, resultado de múltiplos e distintos fatores, o que lhe
confere uma multiplicidade discursiva, tornando-o de alguma forma um conceito
polissêmico”. Essas considerações sobre a complexidade do fenômeno reforçam
a necessidade de formação ampla dos trabalhadores de saúde que lidam com o
suicídio, para além de um entendimento estritamente biomédico do processo
saúde-doença.
151
Marquetti (2001, p. 199) menciona dois tipos de suicidas, o contumaz e o
eventual. Parece que a usuária era do tipo contumaz, pela história de vida colhida
pela agente comunitária de saúde. Nas palavras da autora:
“existem dois tipos de suicidas por eles (bombeiros) identificados: o suicida
contumaz e o eventual. O contumaz é aquele que vem de um longo processo
de distúrbios mentais, com intervenções psiquiátricas e no qual a tentativa
de suicídio se repete. (...) Na situação do suicida eventual, não se sabe que
tipo de pessoa está se abordando, nem mesmo se sabe o porquê de ele
estar tentando o suicídio.”
Segundo estudo realizado na mesma cidade em que esta pesquisa se realizou,
“o agente comunitário de saúde não tem sido visto com a devida
importância na equipe e os difíceis casos encontrados nas visitas
domiciliares não são abordados com o valor que precisariam ter,
culminando assim na falta de resolutividade do serviço e no baixo suporte
para o agente comunitário de saúde” (GONÇALVES, 2009, p. 98).
A fragmentação do trabalho em equipe tem sido uma das indicações do quanto
a lógica neoliberal está infiltrada nas políticas públicas de saúde. O trabalho não
atende mais interesses e desejos do trabalhador, como conceito apresentado na
introdução. Também não atende as necessidades do usuário, mas do mercado e do
capital, tornando o trabalho sem sentido (MARX, 1844/2004; MERHY, 2002;
CAMPOS, 1998). A resposta dada pela Agente Comunitária no final do relato sobre
o suicídio, ao ser questionada sobre como se sentia, expressou essa falta total de
sentido no seu trabalho: estava ACABADA!

CONCLUSÃO

Para que experiências de transformações nas políticas de saúde se sustentem é


necessário que experiências de Educação Permanente em Saúde, fortalecendo o
trabalho em equipe, sejam concebidas num contexto coletivo, com comunidades que
congreguem ou reúnam os saberes científicos (universidades e profissionais) e do
senso comum (usuários, população, familiares).
Os questionamentos filosóficos sobre política pública apresentados por Arendt
(2005), filósofa da escola de Frankfurt, reforçam a compreensão do que vem a ser
política pública: “é o agir projetado no futuro” (Arendt apud Schimidit, p. 55). As
metas estão sempre mudando, são balizas que orientam a ação, mas não constituem
o fundamento da ação. O sentido é a própria atividade política, expressa no agir
coletivo. Segundo a autora, o esvaziamento do sentido do que seja política é que faz
com que tenhamos de falar numa política pública. Porque política sempre é pública.
Na medida que tem que ser resultado de uma construção coletiva.
152
É exatamente nesse ponto que atualmente se observa um problema: a falta de
sentido na política. Isso desarticula o trabalho realizado ao longo da história da saúde
pública pelos trabalhadores e usuários, que bravamente lutaram para implementação
do SUS. Hoje é comum ouvir os próprios trabalhadores rechaçando o SUS, como se
ele não fosse resultado de uma conquista do próprio trabalhador. O fracasso na
implementação é atribuído ao próprio sistema e não às conjunturas macroeconômicas
que permeiam sorrateiramente todas as formas de operacionalização de ações em
saúde. As políticas sociais estão à mercê da produção capitalista e de uma política
econômica a serviço dele. Deveria ser o contrário. As políticas econômicas é que
deveriam responder aos programas sociais, de educação e de saúde.
Numa busca de mudança e esperança de que dias melhores virão, que os
casos de suicídio não continuarão aumentando, cabe citar palavras de dois
compositores contemporâneos da música popular brasileira que expressam sua
indignação e propostas de mudanças para o Brasil, através do seguinte trecho de
uma música(1):
“Quantas vezes minha esperança será posta a prova?
Quantas vezes minha esperança vai esperar no cais?
Vou confiar, mais e outra vez...
Minha esperança é imortal!
Sei que não dá para mudar o começo, mas sei que se a gente quiser vai dar
prá mudar o final!”

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(1) CD do show Ana Carolina e Seu Jorge gravado no Tom Brasil, SP, faixa 11: “Brasil corrupção” —
agosto de 2005.

153
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155
Capítulo 8

PERÍCIAS JUDICIAIS DE SAÚDE MENTAL


RELACIONADA AO TRABALHO: NOTAS
SOBRE O TRABALHO PRECARIZADO

Renata Paparelli

Temos presenciado o aumento da incidência e/ou do reconhecimento dos


transtornos mentais relacionados ao trabalho nos últimos tempos. Esse aumento
verifica-se nos dados de afastamento e aposentadoria por invalidez do INSS (Brasil,
2011), nas demandas dos (as) trabalhadores (as) que buscam os Centros de Referência
em Saúde do Trabalhador (CEREST), nos problemas relatados por aqueles que
procuram os sindicatos com questões de saúde etc. No meio jurídico, identificamos
inúmeros processos judiciais em que se solicita o trabalho de perícia para avaliar a
presença de transtornos mentais relacionados ao trabalho. É do interior desse lugar
pouco abordado, o da perícia judicial, que pretendemos abordar condições de
trabalho em que viceja o desgaste mental. Para tanto apresentaremos, nesse capítulo,
a estrutura de laudos produzidos a partir das perícias judiciais que realizamos desde
2010 para a 77ª Vara do Trabalho de São Paulo-SP, detendo-nos no laudo de Sandra(1),
teleoperadora que desenvolveu transtornos mentais relacionados ao trabalho.

O LAUDO PERICIAL

Em linhas gerais, peritos(as) em saúde mental relacionada ao trabalho são


nomeados por juízes (as) das Varas do Trabalho para: realizar o psicodiagnóstico do (a)
Reclamante (é o/a autor/a do processo contra a empresa); verificar a presença de nexo
causal entre esse diagnóstico e o trabalho realizado pelo(a) Reclamante; estimar a
existência de danos ao(à) Reclamante em sua capacidade laboral. Tendo em vista

(1) Mudamos o nome da trabalhadora para preservar o sigilo.

156
a escassez de referências bibliográficas sobre os laudos dessa espécie, acabamos por
criar uma forma de compor esses documentos, que apresentaremos a seguir.
Realizamos o estudo do processo judicial como um todo, identificando as
afirmações, questionamentos das partes e o histórico clínico documentado (no caso
desse último, arrolamos todas as informações no laudo).
Sabemos que entender o desgaste mental(2) relacionado ao trabalho implica
em conhecer a organização do trabalho do (a) Reclamante (DEJOURS, 1992).
Sabemos também que essa só pode ser conhecida através do acesso ao conhecimento
prático dos(as) trabalhadores(as) acerca de seu próprio trabalho (SATO, 1995).
Justificamos assim o principal procedimento para a realização da perícia, que
denominamos Entrevista Clínico-Psicodiagnóstica com o(a) Reclamante, realizada
em consultório psicológico apropriado para esse fim.
A Entrevista Clínico-Psicodiagnóstica baseia-se na “Abordagem Pluridimensional”
(LIMA, 2002; LIMA, ASSUNÇÃO & FRANCISCO, 2002), que, para o estabelecimento do
diagnóstico e do nexo causal exige o levantamento de dados da história de vida, da história
laboral do/a trabalhador/a, do seu histórico de adoecimento e de dados epidemiológicos
acerca do padrão de desgaste da saúde da categoria profissional em questão.
Além do estudo do processo judicial e da entrevista, também procedemos a
uma pesquisa na literatura científica sobre os fatores de desgaste mental apresentados
como relacionados ao trabalho da categoria profissional em questão, comparando-
-os com aqueles referidos pelo/a Reclamante.

SANDRA, A OPERADORA DE TELEWORK

1) Dados gerais e diagnósticos/pareceres médicos recebidos pela Reclamante


— 9.4.2007 — Atestado de Saúde Ocupacional Pré-Admissional: Apto
— Admitida dia 23.4.2007 como teleoperadora de atendimento na Reclamada.
— 1º.10.2008 — Exame de Eletroencefalograma. Resultado: sem anomalias
PRIMEIRO AFASTAMENTO PROLONGADO:
— Em 24.11.2008, aproximadamente 1 ano e 6 meses após a contratação, foi
afastada do trabalho com diagnóstico de transtorno mental (F 41.2, Transtorno
ansioso-depressivo).
— Último dia de trabalho — 5.11.2008. Retornou ao trabalho em 31.6.2009
(aproximadamente 7 meses depois)

(2) Entendemos por desgaste mental a definição construída por Seligmann-Silva (1994): “Se há perda
e deformação, ou seja, se há transformações negativas de um estado anterior mais satisfatório, pode-se
entender o processo como desgaste mental, processo constituído de ‘experiências que se constroem,
diacronicamente, ao longo das experiências de vida laboral e extralaboral dos indivíduos’ (p. 80).

157
SEGUNDO AFASTAMENTO PROLONGADO:
— Em 19.8.2009, 2 meses depois de seu retorno ao trabalho, foi afastada
novamente. Último dia de trabalho — 18.8.2009. Retornou ao trabalho em 05.10.2009
(aproximadamente 2 meses depois).

DEMISSÃO:
— Pedido de demissão — 1º.12.2009
— Atestado de Saúde Ocupacional Demissional — 8.12.2009 — Apto
PROBLEMAS DE SAÚDE APÓS A DEMISSÃO:
— 19.7.2010: Boletim de Alta do Hospital Psiquiátrico.
— Internação: 1º.7. 2010 — 19.7.2010 (18 dias). Estado Psiquiátrico: Humor
distímico, apatia, ideia de morte e isolamento social. Diagnóstico F-33 (transtorno
depressivo recorrente).
2) Histórico de vida e laboral da Reclamante e Condições de Trabalho na
Reclamada
Sandra tem 29 anos, é casada pela segunda vez e tem um filho com 8 anos de
idade gerado em seu primeiro casamento (gravidez tranquila, parto normal). Nasceu
no interior de Minas Gerais e ali morou até os 18 anos. Ela é a penúltima filha de uma
família com 6 filhos (dois homens e quatro mulheres), sendo o mais velho deles do
sexo masculino.
Sua mãe era “do lar” e seu pai era fazendeiro de gado e trabalhava com vendas
em loja de roupas de propriedade da família. Financeiramente viviam bem. Tinha
bom relacionamento com os irmãos e os pais foram casados a vida toda. Afirma ter
tido uma infância tranquila com primos próximos. Não tem antecedentes familiares
de depressão e considera a sua família bastante saudável e longeva (seu pai morreu
com 98 anos devido a uma fratura no fêmur).
Depois que chegou a São Paulo, aos 19 anos, casou-se (que também era de
Minas Gerais), indo residir com ele na casa de sua sogra. Aos 22 anos, separou-se do
primeiro cônjuge e começou a namorar o segundo marido, casando-se com ele aos
24 anos de idade. Afirma ter um bom convívio com o ex-marido e com a ex-sogra.
Seu primeiro emprego foi na Reclamada, embora já tivesse trabalhado de modo
informal, ajudando o pai a vender roupas e realizando essa mesma atividade em
sociedade com o primeiro marido. Conta que lidava com o público e que nunca teve
nenhum problema de saúde relacionado àquelas atividades laborais.
A Reclamante afirma que seus problemas de saúde se iniciaram após ter
ingressado na Reclamada e atuado como teleoperadora. Seu trabalho consistia em,
fazendo uso de headfone e terminal de computador, prestar informações aos clientes,

158
vender e remarcar as viagens dos clientes, acomodar e cancelar viagens etc. Relatou
que a pressão que sofreu nessa atividade foi bastante intensa:
— há rígido controle do tempo de atendimento, que tem uma duração máxima
padrão que desconsidera a diversidade de atendimentos;
— o ritmo do trabalho era intenso, “tinha uma ligação atrás da outra”, com
poucas ou inexistentes pausas entre elas;
— as ligações eram monitoradas e avaliadas continuamente;
— há clientes que ofendem, humilham, gritam, falam mal do trabalhador,
atribuindo a ele responsabilidades por ações que não são de sua alçada, o que
configura um importante fator de desgaste;
— o supervisor tem a incumbência de fiscalizar de perto o trabalho,
pressionando para que o tempo de atendimento não seja ultrapassado, para que a
produtividade se eleve etc.
Além disso, também laborou no chat da Reclamada, quando, além desses fatores
de desgaste mental, tinha que se relacionar com vários clientes simultaneamente.

3) Queixas da autora à época do aparecimento/sintomas iniciais


Sandra contou que após seis meses de trabalho na Reclamada começou a sentir
dores de cabeça fortes e constantes, sintomas que não tinha apresentado
anteriormente. Seu humor começou a mudar, não tinha mais paciência, tinha crises
nervosas. Dependendo da maneira que os clientes falavam com ela, tinha fortes
crises de choro e de angústia e suas dores de cabeça se intensificavam.
Em busca de entender o que estava acontecendo, procurou ajuda médica. Fez
exames solicitados pelo médico neurologista, que, ao constatar a inexistência de
problemas neurológicos, encaminhou-a para o psiquiatra, que diagnosticou um
quadro de “cefaleia tensional”, dores desencadeadas por tensão. Segundo a periciada,
o psiquiatra solicitou mudança de função, a qual foi negada. O psiquiatra a afastou
do trabalho e mandou uma carta para a empresa pedindo que ela mudasse de setor
e então a colocaram no chat de atendimento ao cliente.
Passou a ir ao Pronto Socorro tomar injeções para as dores de cabeça e pegava
atestados médicos de um dia inteiro. Devido a isso, alega que seu supervisor passou
a destratá-la, não era tratada como os outros funcionários. Afirma que “pessoas
com atestado não sobem de cargo”; sendo assim, não seria promovida. Os
afastamentos do trabalho por motivo de doença aumentaram a pressão, sendo,
segundo a autora, motivo de preconceito por parte da empresa e de outros colegas
(muitos falavam que era “frescura” de Sandra), embora tenha havido outros casos
de trabalhadores com transtornos mentais que realizavam essas mesmas atividades
laborais. No interior desse cenário, passou a sofrer maior pressão do supervisor, o
que colaborou para a piora de seu quadro emocional.

159
A Reclamante definiu o trabalho na Reclamada como dois anos em que
“vegetou, não viveu”; afirmou que a pressão da empresa fazia com que ela tivesse
ideações suicidas. Essas ideações tornaram-se ações: Sandra tentou o suicídio três
vezes (fazendo uso de medicação em excesso), sendo que na última foi internada em
hospital psiquiátrico. Imediatamente antes dessas tentativas, lembra-se de que estava
com “a cabeça cheia do trabalho, não estava bem, estava para explodir. Já tinha
chorado muito, achava-se um estorvo na vida dos outros. Sentia-se pra baixo, que o
mundo não prestava pra ela”. Seu supervisor piorava a situação.
Seu esgotamento culminou no pedido de demissão, ação de que se arrepende e
que considera ter sido fruto das pressões que sofria para sair da empresa por parte de
superiores e de funcionários do setor de Recursos Humanos da Reclamada.

4) Sintomas atuais
Atualmente está em tratamento com medicamentos e psicoterapia, o que vem
trazendo bons resultados: já consegue conversar e não chora tanto como quando
estava em crise. Alguns sintomas estão presentes, tais como tristeza, angústia e
mágoa, mas não com a mesma intensidade de antes.
Por conta dessa melhora, está tentando se reinserir no mercado de trabalho,
tendo conseguido, há dois meses, um contrato de experiência em uma companhia de
turismo como agente de turismo (oportunidade conseguida através da indicação de
um amigo que é gerente da unidade). Ali trabalha 6 horas por dia e é registrada.
Sente o trabalho como um “refúgio” que está fazendo bem a ela, ajudando a controlar
os sintomas e a superar a situação de isolamento em que ficou devido ao adoecimento.
Sandra fala de sua dificuldade financeira em função dos medicamentos e das
consultas mensais com psiquiatra e psicólogo. Quanto ao adoecimento, afirma ser
“uma marca que vai levar pra sempre como lição de vida”.

7) Pesquisas que analisam a penosidade no telework


O trabalho como teleoperador/a tal como organizado nas empresas atualmente
é reconhecido pela literatura acadêmico-científica como sendo extremamente
penoso. Tanto que isso suscitou a necessidade de publicar um número da Revista
Brasileira de Saúde Ocupacional exclusivamente sobre o tema(3). Já no Editorial da
Revista, Jackson Filho e Assunção (2006) apontam que:
O traço comum dos artigos que compõem este número temático da Revista
Brasileira de Saúde Ocupacional (...) é certa estupefação quanto às formas
de organização existentes nos serviços de teleatendimento, cujos modos
de gestão são voltados para impedir o desenvolvimento da inteligência,

(3) Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 31 (114), 2006.

160
da emoção, da sociabilidade humanas em atividades de trabalho. Fica
exposto o paradoxo: de um lado, a natureza do trabalho, que diz
respeito à interação usuário-teleatendente; do outro, as regras rígidas
de gestão, as quais cerceiam as expressões necessárias à interação inerente
ao processo de comunicação humana... Diante desse paradoxo
organizacional, como não adoecer? Ao contrário da esperada qualidade
no contexto vivo do trabalho, observam-se, nos ambientes virtuais, o
empobrecimento do trabalho e o sofrimento das pessoas envolvidas. (p. 4)
A separação física existente na relação de serviço estabelecida entre o usuário
e o trabalhador de empresa de prestação de serviço público (ou privado)
ou de empresa subcontratada é um componente do trabalho de
teleatendimento que perturba a interação entre os dois polos da
comunicação. A interação, agora por telefone, traz consigo consequências
aos trabalhadores que se encontram na interface (front office) entre a
prestadora dos serviços e os usuários, mas não possuem necessariamente os
meios para resolver os problemas dos usuários, uma vez distantes dos serviços
técnicos propriamente ditos (back office) e submetidos a controle estrito da
hierarquia. Além disso, para ter vantagens salariais ou receber prêmios,
são levados a oferecer aos usuários serviços e produtos de eficiência duvidosa
ou desnecessários. O trabalhador vive a contradição entre, por um lado,
interagir e não poder interagir, dado o intenso controle do tempo e da
própria interação, e, de outro, a perda de sentido de seu trabalho, uma vez
que, para ganhar a vida (e os prêmios estimulados pela gestão) é preciso
prejudicar outrem e sofrer os efeitos negativos contra si mesmo dos atos
realizados nas operações (a mentira, por exemplo). (p. 5)
Venco (2006) pesquisou empresas terceirizadoras de serviços localizadas em
São Paulo. Realizou entrevistas em profundidade, a partir de um roteiro semi-
estruturado, visando a captar a percepção da atividade pela ótica de operadores de
telemarketing, gerentes operacionais e de recursos humanos e dirigentes sindicais,
representantes tanto de trabalhadores como do patronato. Ao referir-se à penosidade
do trabalho em questão, a autora afirma que um dos principais problemas é a pressão
sofrida pelos trabalhadores:
— pressão de um conjunto de regras “que visam determinar certos
comportamentos e a disciplina para o trabalho”, interdições que se referem “a comer,
fumar, conversar, fazer ou receber ligações no trabalho e sair do seu posto de
atendimento”;
— dos supervisores, cuja “palavra de ordem é sempre bater a meta”. As coações
descritas pelos trabalhadores são diversas;
— todos os operadores ouvidos na pesquisa “voltavam às pressões por
produção, repetindo continuadamente a expressão dos supervisores: ‘Vamos bater
a meta’.”

161
— da ameaça de desemprego sempre colocada pela gestão, tanto como forma
de pressão disciplinar quanto como expediente para induzir pedidos formais de
demissão voluntária;
— outras formas de pressão são aquelas referentes ao cumprimento de metas e
a atuação direta da supervisão no controle da produção;
— a pressão, enfim, é o que define o trabalho como teleoperador, já que se
(...) desencadeia em efeito cascata por todos os grupos hierárquicos: o
cliente externo pressiona a empresa terceirizada pela ampliação das
vendas, a gerência geral do call center faz o mesmo com o coordenador,
que recai sobre o supervisor e a monitoração e, estes, sobre os operadores.
É uma pirâmide de coações com efeito cumulativo que determina o ritmo de
trabalho, ações agressivas de vendas e atendimento racionalizado. (p. 13)
Outra temática relevante é a do assédio moral:
As entrevistas realizadas ressaltam os constrangimentos diários a que são
submetidos os operadores e suscitam indagações teóricas acerca dos limites
que separam a pressão no trabalho e o assédio moral. Entende-se que as
diversas formas de intensificação do trabalho geram pressão no trabalho,
tanto pela cadência e velocidade com que os trabalhadores são obrigados
a imprimir a suas ações, quanto por determinadas práticas gerenciais
voltadas prioritariamente para o estímulo à produção, e é nesse aspecto
que está a linha tênue entre as duas situações. (p. 13)
Essa forma de organização do trabalho leva à alta incidência de síndrome do
pânico e depressão. Daí os altos índices de rotatividade e absenteísmo que
caracterizam a atividade.
Assunção, Marinho-Silva, Vilela e Guthier (2006) realizaram uma pesquisa
sobre trabalhadores de teleatendimento originada das queixas espontâneas dos
trabalhadores ao sindicato da categoria. Apontam as formas de avaliação e controle
extremamente rígidas a que estão sujeitos os teleoperadores:
Os mecanismos que operam o controle da atividade são múltiplos: registro
manual de cada atendimento em formulário específico por setor e registros
eletrônicos e em tempo real da duração dos atendimentos pelos monitores
presentes fisicamente em uma sala especial, em que analisam, entre outros,
gravações dos atendimentos cujo conteúdo, tom de voz e agilidade no
atendimento são considerados pelo supervisor presente em cada célula de
atendimento. Além do controle eletrônico, existe o controle da hierarquia,
que consolida em fichas especiais os horários de chegada, saída, duração
real da única pausa permitida, absenteísmo. Mensalmente são emitidas
fichas que avaliam a qualidade do atendimento de acordo com os parâmetros
da empresa: autodesenvolvimento, aspectos disciplinares e produtividade.

162
Os tempos são rigidamente controlados, adotando-se o próprio aparato
técnico como meio para obter os valores necessários ao controle dos
critérios estabelecidos. Os dados armazenados pelo sistema abastecem as
fichas de controle e, além desse mecanismo de avaliação baseado na
performance obtida em tempo real, o monitor do terminal de vídeo exibe
sinais luminosos anunciando que o tempo está se esgotando. (p. 52)
As pausas mostram-se insuficientes frente às exigências do trabalho e os
intervalos para a recuperação entre os atendimentos são curtos, quando
existem (...) O controle dos resultados é exercido de várias formas, sendo
a tentativa de difundir entre os funcionários alguns valores e regras da
empresa, um mecanismo geral e abrangente, realizado por meio da
distribuição de um cartão, no qual são exaltados alguns valores:
“Meritocracia”, a “Paranoia pelo resultado” e a “Busca de Excelência”,
por meio “da transparência das informações e da padronização de
processos e métodos”. (p. 54)
Não se valoriza, no entanto, o alto custo do estresse sobre a saúde dos
trabalhadores originado da avaliação contínua e dissimulada, do
constrangimento da gravação e do controle dos diálogos, como explicitam
as queixas registradas junto ao sindicato e aos órgãos públicos (...). A
tentativa de definir formatos fixos para o diálogo, por meio de scripts
predeterminados, contrapõe-se à referência empresarial de que haveria
“variação do trabalho para cada produto”, contradição vivenciada em
tempo real pelos teleatendentes no cumprimento de sua tarefa. Insiste-se
nas diferenças de uma empresa para outra, na diferença e na especificidade
dos scripts, contrariamente, porém, à afirmação dos trabalhadores sobre
a homogeneidade dos procedimentos utilizados. (p. 55)
Em síntese, vários autores reiteram com suas pesquisas o caráter patogênico de
uma organização do trabalho que coincide com a descrita pela Reclamante:
— estudos evidenciam situações nocivas de trabalho, como: manutenção de
posturas inadequadas, utilização contínua da voz, exposição aos sons gerados pelos
fones de ouvido e pelos ruídos do ambiente, desconforto térmico, iluminação
deficiente e restrições à satisfação das necessidades fisiológicas (SINTTEL-MG, 2001;
TORRES, 2001; TOOMINGAS, 2002; FERREIRA & SALDIVA, 2002).
— a presença constante de queixas e sintomas de estresse e o alto absenteísmo
(TORRES, 2001) são evidências de desgaste resultante de regulações cognitivas, altas
exigências afetivas e psíquicas num ambiente sonoro desconfortável, utilizando-se
de mobiliário precário (ABRAHÃO et al., 2003).
— Glina e Rocha (2003) mostraram associação entre os conflitos qualidade/
quantidade, a fila de clientes em espera, a falta de controle sobre o trabalho, o
monitoramento eletrônico do desempenho, entre outros fatores, e a tensão
163
psicológica, a ansiedade, a depressão e a fadiga em operadores de empresa de telefonia.
As autoras confirmaram a existência de elevada sobrecarga emocional, cognitiva e
física no trabalho dos operadores de telemarketing. Foram descritas relações claras
entre a atividade de trabalho e os sintomas apresentados pelos telefonistas estudados,
incluindo fadiga visual, distúrbios do sono, sintomas digestivos e gerais, distúrbios
da personalidade e da vida relacional.
8) Diagnóstico
Sandra teve diagnosticado por médicos um quadro de depressão com presença
de ansiedade. Concordamos com esse diagnóstico, acrescentando a ele o nexo com o
trabalho, conforme argumentaremos a seguir.
Os episódios depressivos (segundo o Manual de Doenças Relacionadas ao
Trabalho, BRASIL, 2001) caracterizam-se por humor triste, perda do interesse e
prazer nas atividades cotidianas, sendo comum uma sensação de fadiga aumentada.
O/a paciente pode se queixar de dificuldade de concentração, pode apresentar baixa
auto estima e autoconfiança, desesperança, ideias de culpa e inutilidade; visões
desoladas e pessimistas do futuro, ideias ou atos suicidas. O sono encontra-se
frequentemente perturbado, geralmente por insônia terminal. O/a paciente se queixa
de diminuição do apetite, geralmente com perda de peso sensível. Sintomas de
ansiedade são muito frequentes. A angústia tende a ser tipicamente mais intensa pela
manhã. As alterações da psicomotricidade podem variar da lentificação à agitação.
Pode haver lentificação do pensamento. Os fatores de risco de natureza ocupacional
conhecidos são os seguintes:
— decepções sucessivas em situações de trabalho frustrantes;
— perdas acumuladas ao longo dos anos de trabalho;
— as exigências excessivas de desempenho cada vez maior, no trabalho, geradas
pelo excesso de competição, implicando ameaça permanente de perda do lugar que
o trabalhador ocupa na hierarquia da empresa;
— perda efetiva, perda do posto de trabalho e demissão.
O diagnóstico de episódio depressivo requer a presença de pelo menos cinco
dos sintomas abaixo, por um período de, no mínimo, duas semanas, sendo que um
dos sintomas característicos é humor triste ou diminuição do interesse ou prazer,
além de:
• marcante perda de interesse ou prazer em atividades que normalmente são
agradáveis;
• diminuição ou aumento do apetite com perda ou ganho de peso (5% ou mais
do peso corporal, no último mês);
• insônia ou hipersonia;
164
• agitação ou retardo psicomotor;
• fadiga ou perda da energia;
• sentimentos de desesperança, culpa excessiva ou inadequada;
• diminuição da capacidade de pensar e de se concentrar ou indecisão;
• pensamentos recorrentes de morte (sem ser apenas medo de morrer), ideação
suicida recorrente sem um plano específico ou uma tentativa de suicídio ou um
plano específico de suicídio.
Tendo em vista os diagnósticos anexados ao processo, os dados obtidos na
Entrevista Clínico-Diagnóstica, os dados epidemiológicos apresentados e os
parâmetros para diagnóstico de depressão relacionada ao trabalho, pode-se concluir
que a Reclamante apresenta sintomas compatíveis com um quadro de depressão
desencadeado pelas condições nas quais exerceu o trabalho como teleoperadora
na Reclamada.
9) Danos à Reclamante
Se considerarmos os parâmetros de avaliação de incapacidade apresentados
no documento de referência para o diagnóstico e prevenção de agravos à Saúde
relacionados ao Trabalho no Brasil, temos o seguinte:
— presença de limitações em atividades da vida diária: Sandra apresentou, durante
certo período de tempo, limitações em atividades de vida diária, especialmente
naquelas referentes à comunicação interpessoal, e ao exercício de atividades sociais
e recreacionais;
— Sandra apresentou danos ao exercício de funções sociais, ou seja, teve
prejudicada a sua “capacidade de interagir apropriadamente e comunicar-se
eficientemente com outras pessoas” durante certo período de tempo;
— a pericianda teve prejuízo de sua concentração, persistência e ritmo,
considerados como elementos imprescindíveis para a manutenção da “capacidade
de completar ou levar a cabo tarefas”;
— a trabalhadora sofreu de deterioração ou descompensação no trabalho, ou
seja, pode-se afirmar que existe uma incapacidade adquirida de adaptar-se a situações
estressantes e presentes no trabalho como teleoperadora.
De acordo com o que pudemos verificar na Entrevista Clínico-Diagnóstica,
Sandra sofreu danos em todos os aspectos (limitações em atividades da vida diária;
danos ao exercício de funções sociais; concentração, persistência e ritmo; deterioração
ou descompensação no trabalho). Desse modo, entendemos que há incapacidade
total e permanente para o trabalho como teleoperadora.

165
10) Conclusões
Em virtude da perícia psicológica realizada, concluímos que:
— quanto ao psicodiagnóstico, temos que a Reclamante sofre de um quadro
depressivo desencadeado pelas condições nas quais desempenhava seu trabalho como
teleoperadora (sintomas compatíveis com F32/CID-10);
— quanto aos prejuízos adquiridos pela Reclamante em sua capacidade laboral,
pode-se dizer, com base na Entrevista Clínico-Diagnóstica, que a Reclamante sofre
de incapacidade total e permanente para laborar como teleoperadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho como perita judicial coloca-nos diante de novos desafios. Tendo


em vista a escassez de material bibliográfico para apoio, abre-se um campo de
construção e pesquisa importante para os profissionais da área da saúde mental
relacionada ao trabalho. Há que se incorporar e articular as dimensões individual e
social do desgaste mental, destacando os fatores de desgaste à saúde mais importantes
na trajetória de vida-trabalho do(a) periciando(a). Há que se produzir laudos sem
necessariamente recorrer a procedimentos tradicionalmente utilizados em perícias
psicológicas (os testes psicológicos), já que esses pouco alcançam a participação do
trabalho na determinação do processo saúde-doença dos(as) trabalhadores(as).
Entendemos que a Teoria do Desgaste Mental (SELIGMANN-SILVA, 2011) e
as discussões metodológicas de Le Guillant que levam à proposição da Abordagem
Pluridimensional (LIMA, 2006) representam contribuições especialmente
importantes para essa tarefa, conforme procuramos apontar no presente capítulo.

BIBLIOGRAFIA

ABRAHÃO, J. I.; TORRES, C. C. Entre a organização do trabalho e o sofrimento: o papel de


mediação da atividade. Rev. Produção, v. 14, n. 3, p. 67-76, 2004.
ASSUNÇÃO, A. A. MARINHO-SILVA, A. M. VILELA, L. V. D. E; GUTHIER, M. H. “Abordar
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trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde, DIAS, E.C.; ALMEIDA, I. M. et al.
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33, n. 2, p. 147-153, 2002.

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atendimento telefônico de um Banco em São Paulo. Rev. Bras. Med. Trab., v. 1, n. 1, p. 34-42, 2003
JACKSON FILHO, J. M. J. e ASSUNÇÃO, A. A. Trabalho em teleatendimento e problemas de
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SATO, L. A Representação Social do trabalho penoso. In: SPINK, M. J. P. (org.) O conhecimento no
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Cortez Editora, 1994.
SINTTEL-MG. Cartas enviadas por trabalhadores por via eletrônica e postal. Belo Horizonte, 2001.
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Stockholm: National Institute for Working Life, 2002.
TORRES, C. A atividade nas centrais de atendimento: outra realidade, as mesmas queixas. 2001.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) — Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
VENCO, S. Centrais de atendimento: a fábrica do século XIX nos serviços do século XXI. Revista
Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 31 (114), 2006.

167
168
Seção 3

DIREITO DO TRABALHO E
VIOLAÇÃO DA SAÚDE DO
TRABALHADOR NO SÉCULO XXI

169
170
Capítulo 9

O TRABALHO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVA


DIGNIFICAÇÃO DO SER HUMANO

Luiz Salvador
Olimpio Paulo Filho

INTRODUÇÃO

Ao deixar a condição de nômade, domesticar os animais, lançar raízes à Terra


e colher os primeiros frutos, o trabalho acompanha a dinâmica trajetória do homem.
Sem trabalho não há como produzir; não há vida digna.
Nos primeiros agrupamentos, o trabalho é dever solidário: enquanto uns
produzem bens para o coletivo, outros fazem o equilíbrio espiritual, a harmonia do
agrupamento. A sociedade de então se divide em castas: a sacerdotal, detentora de
conhecimentos esotéricos, formadora das elites, e a dos súditos que trabalham, a
exemplo dos sumérios, egípcios, persas e demais povos antigos.
Com o fluir do tempo, a sociedade cresce, e crescem os privilégios. Para que
uma classe tenha privilégios, outra é privada de privilégios, e é essa a que trabalha.
Este modesto trabalho tem a pretensão de revisitar a história e seguir a trajetória
do homem ao longo do tempo, e registrar sua luta permanente pelo efetivo
reconhecimento do trabalho como instrumento de dignificação da pessoa humana.

1. A PRIMEIRA GRANDE ONDA: A CIVILIZAÇÃO AGRÍCOLA

A humanidade, segundo Toffler, pode ser dividida em três grandes ondas


revolucionárias. A primeira delas consiste na civilização agrícola, com
preponderância do trabalho braçal, de escravos e servos. A segunda tem início com
a Revolução Industrial, e a terceira se inicia na segunda década do século XX, que se
acelera a partir de 1980 com a popularização de microcomputadores e programas
cada vez mais dinâmicos, que tornam obsoletos os antigos meios de comunicação e
de produção(1), e é sobre a primeira dessas ondas que se passa a discorrer.

(1) TOFFLER, Alvim. A terceira onda. Trad. João Távora. 26. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 18-19.

171
Como visto, separadas as classe — clero e comunidade —, os membros do
clero escolhem um dirigente que se impõe a todos, de início um sacerdote, que se
acredita filho de deuses, e de sua linhagem surgem os futuros governantes. Essas
comunidades têm necessidade de expansão territorial, e invadem as terras fronteiriças,
dando início às guerras de conquista. O povo conquistado é escravizado e passa a
produzir para o conquistador. Há trabalho livre e escravo, com predominância
deste último.
No período chamado homérico (900 a 750 a.C.), a mentalidade se encontra
estruturada no duplo ideal a ser atingido por todos os gregos livres: sabedoria e
poder de ação, sublimado pela bravura, que tem que ser moderada pela reverência.
O grego não tem temor, medo; seus feitos são grandiloquentes; respeita os deuses,
faz-lhes oferendas e, ao mesmo tempo, os desafia, e até os vence com a ajuda de
outros deuses. Pela sofrosine(2) mantém o equilíbrio entre o pensamento e a ação
heroica.
A economia nesse tempo é eminentemente rural, e trabalho está a cargo dos
inimigos escravizados. A produção se limita a cereais, óleos, horticultura, pastoreio,
tecelagem, fiação, artesanato de cerâmica e metais(3).
Nesse contexto, nem todos defendem que a prática do trabalho deva ser
atribuição apenas de escravos. No século VIII a.C., o poeta Hesíodo defende a
dignidade da prática do trabalho:
“Hesíodo associava à concepção de homem a noção de que apenas pelo
trabalho se atingia a virtude. O trabalho — apesar de árduo e difícil —
não devia ser visto como uma carga, mas como uma forma profundamente
humana e absolutamente necessária de se atingir a virtude. Assim, em vez
de pensar o homem como um guerreiro, pensava-o como um trabalhador.
Não associava o trabalho à acumulação desenfreada de riquezas e não o
associava com a miséria do trabalho mal pago, mas apenas com a
dignidade da produção de uma existência virtuosa.(4)”
Os epígonos não o seguem; adotam normas, costumes e tradições que repelem
seus ensinamentos; entregam-se ao ócio, escravizam os povos conquistados e apenas
fiscalizam suas propriedades. O trabalho é ultrajante para a elite, que apenas se
dedica aos negócios de Estado e fiscaliza suas propriedades rurais.
Em Esparta, no século VI a.C., há o predomínio da arte militar, com os
espaciatras, estimados em 9.000 indivíduos, com acesso ao conhecimento da arte

(2) A sofrosine consiste no domínio dos desejos e das paixões pela razão. Consiste no equilíbrio de
pensamento e ação, exigido pelo ideal de reverência. In: PILETTI, Nelson; PILETTI, Claudino. História
da educação. 7. ed. 4ª reimpressão. São Paulo: Ática, 2003. p. 28.
(3) ADERY, Maria A.P. A. et al. Para compreender a ciência. 9. ed. São Paulo: Espaço e Tempo, 2000. p. 25.
(4) Ibidem, p.28.

172
militar, 100.000 periecos (artesãos, comerciantes) e 220.000 hilotas (escravos que
trabalham na agricultura). Todos formam a organização militar, mas só os
espaciatras representam a elite espartana, e só a eles é concedido o privilégio da
educação formal(5). Já em Atenas, a educação infantil até os sete anos está sob o
encargo de amas e escravos, e, após os sete anos, o menino é a confiado a um escravo
mais capacitado, chamado pedagogo:
“Os pedagogos eram escravos ou servos a quem os atenienses confiavam
as crianças. A palavra pedagogo (de pais, paidós = criança; agein =
conduzir) designa em sua origem o condutor de meninos; por isso eram
chamados de pedagogos os escravos encarregados de guiar as crianças à
escola”(6).
A discriminação é então normal — direito do vencedor. Alexandre amplia seu
reino; conquista o Egito, o Império Persa, a Ásia Central e avança pela Índia. Seus
inimigos são escravizados; são os trabalhadores que produzem para o seu reino.
César amplia de modo formidável o Império Romano, escraviza os inimigos
derrotados, aproveita alguns e vende outros. A sorte do escravo pouco importa;
não é sujeito de direito, é coisa — bem descartável. Plutarco diz ter aconselhado o
discípulo Alexandre que “tratasse só aos gregos como homens e o resto dos seres humanos
como animais”.(7)
No ano 325 d.C., o Império Romano incorpora o Cristianismo como religião
do Império; seus deuses se tornam deuses cristãos. Constantino introduz a hierarquia
e concede proteção estatal à Igreja. Nomeia padres e bispos, cria seminários, e
fortalece o Império pela fé(8).
A escravidão perde força, suaviza, e surgem os feudos. Com o feudo, o senhor
feudal tem a propriedade da terra e dos servos, e a discriminação continua. Não há
mais escravos; há servos. A propriedade é do senhor feudal, que, “bondoso”, concede
um pequeno pedaço de terra ao servo para cultivar, com a condição de este adquira
ferramentas, cultive e colha toda a produção das terras do Senhor.
Na análise fria, amortecida pelo tempo, numa viagem ao presente de um certo
passado, pouca diferença se constata. O ideal de Hesíodo continua distante, e só se
renova, em tese, com o advento da mentalidade do Iluminismo, precursor das
bandeiras da Revolução Francesa. Aí, num passado que se torna presente —
metaponto —, renasce o conceito de dignidade do homem — e do trabalho —, cristalizada
na trilogia Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

(5) LUCKESI, Cipriano C. Filosofia da educação. 19. ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 80.
(6) PILETTI, Nelson; PILETTI, Claudino. Op. cit., p. 30.
(7) MIR, Luiz. Guerra civil — Estado e trauma. São Paulo: Geração Editorial, 2004. p. 920.
(8)Disponível: <http://www.netforall.com/users/d/i/g/digitalmatos/EBOOCKS/concilio_de_niceia.pdf>.
Acesso em: 13.3.2012.

173
2. A SEGUNDA GRANDE ONDA: A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Na tela do tempo, se vê as imagens dos primeiros agrupamentos humanos até


advento do chamado Iluminismo, e o trabalho é eminentemente braçal, penoso,
com predomínio da agricultura, pastoreio e artesanato. O braço escravo é
fundamental também nas embarcações, no remo. Há trabalho mais nobre, também
escravo, como o dos professores — filósofos gregos capturados.
Nos estertores do Medievo, o intelecto humano gesta e traz à luz novas ideias
que estruturam o chamado Iluminismo, um momento novo, imposto pelo ritmo
universal transformador, que leva a humanidade ocidental ao início da chamada
Revolução Industrial.
A mudança de paradigma ocorre quando se chega no chamado ponto de
mutação da filosofia — I Ching:
“Ao término de um período de decadência sobrevém o ponto de mutação.
A luz poderosa que fora banida ressurge. Há movimento, mas este não é
gerado pela força... O movimento é natural, surge espontaneamente. Por
essa razão, a transformação do antigo torna-se fácil. O velho é descartado,
e o novo é introduzido. Ambas as medidas se harmonizam com o tempo,
não resultando daí, portanto, nenhum dano.”(9)
Capra explica:
“A ideia de um ritmo universal fundamental também foi expressa por
numerosos filósofos dos tempos modernos. Saint-Simon via a história das
civilizações como uma série de períodos “orgânicos” e “críticos” que se
alternavam; Herbert Spencer considerava que o universo passa por uma
série de “integrações” e “diferenciações”; e Hegel entendia a história humana
como um desenvolvimento em espiral, que parte de uma forma de unidade,
passa por uma fase de desunião e desta para a reintegração num plano
superior.
Com efeito, a noção de padrões flutuantes parece ser sempre extremamente
útil para o estudo da evolução cultural.
Depois de atingirem o apogeu de vitalidade, as civilizações tendem a
perder seu vigor cultural e declinam. Um elemento essencial nesse colapso
cultural, segundo Toynbee, é a perda de flexibilidade. Quando estruturas
sociais e padrões de comportamento tornam-se tão rígidos que a sociedade
não pode mais adaptar-se a situações cambiantes, ela é incapaz de levar
avante o processo criativo de evolução cultural. Entra em colapso e,
finalmente, desintegra-se. Enquanto as civilizações em crescimento exibem

(9) CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Trad. Álvaro Cabral. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

174
uma variedade e uma versatilidade sem limites, as que estão em processo
de desintegração mostram uniformidade e ausência de inventividade. A
perda de flexibilidade numa sociedade em desintegração é acompanhada
de uma perda geral de harmonia entre seus elementos, o que inevitavelmente
leva ao desencadeamento de discórdias e à ruptura social(10).
Lentamente se gesta a mudança, e a estrutura antiga começa a ruir. A
mentalidade do Medievo não mais se sustenta, e cede diante da força do novo; tudo
começa a mudar, e o engenho humano cria as máquinas a vapor, as de tear mecânico,
as de fiar, e outras, como relata Faoro:
“O tear individual cedeu lugar ao tear coletivo, a roca foi substituída pela
máquina de fiar — a produção perde o caráter individual, entregue a
forças coletivas, que convertem o trabalho em mercadoria, degradando-
-o à condição de coisa, perdida a identidade do homem na índole anônima
de seus produtos”(11).
A luta capital x trabalho é da dinâmica do temporal, e evolui na medida em
que há liberdade, como evolui o conhecimento do homem sobre próprio homem.
Embora sem condições dignas de trabalho, a Segunda Onda traz efetiva
transformação e progresso, como destaca Toffler:
“A Segunda Onda impeliu a tecnologia até um nível totalmente novo.
Produziu um grande número de gigantescas máquinas eletromecânicas,
peças, móveis, correias de transmissão, mangueiras, rolamentos e
parafusos de porca — tudo matraqueando e catracando em marcha. E
estas novas máquinas fizeram mais do que aumentar o músculo bruto. A
civilização deu à tecnologia órgãos sensores, criando máquinas que
podiam ouvir, ver e tocar com mais cuidado e precisão do que os seres
humanos. Deu à tecnologia um útero, inventando máquinas destinadas a
darem nascimento a novas máquinas em progressão infinita — isto é,
máquinas ferramentas. Mais importante, combinava máquinas em
sistemas conjugados sob um único teto para criar a fábrica e, finalmente,
a linha de montagem dentro da fábrica”(12).
Nesse contexto, os servos migram do ambiente rural para as cidades; abandonam
os feudos e se tornam os primeiros proletários nas últimas décadas do século XVIII.
A vida desses despossuídos da sorte pouco difere da de um servo, ou de um
escravo:

(10) Ibidem. p. 18.


(11) FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro. v. 1.
São Paulo: Publifolha, 2000. p. 21.
(12) TOFFLER, Alvim. Op. cit., p. 29-30.

175
“A condição igualmente desafortunada das classes trabalhadoras no Velho
Mundo não devia causar surpresa, pois uma sociedade cobiçosa explora
qualquer um que tenha força de trabalho a oferecer e nenhum poder para
se proteger. Por exemplo, os pobres da Inglaterra, nesse mesmo período
colonial, tornaram-se servos dependentes e vendiam seus filhos como
aprendizes. Os aprendizes eram tratados com crueldade na Inglaterra
elisabetana e dos Stuart. Açoites e marcações a ferro eram comuns. Os
pobres eram oprimidos quase tão furiosamente quanto os escravos. Sem
trabalho e sem direitos, eles perambulavam pelas estradas, olhados com
desprezo e medo. Os andarilhos, disse Wiliam Perkin, um dos pegadores
puritanos da Inglaterra no Século XVII, ‘geralmente não pertenciam a
nenhuma sociedade civil ou corporação, nem a nenhuma Igreja em
particular: e são como pernas e braços podres que pendem do corpo (...)
Percorrer de um lado a outro, ano após ano, estas paragens, para buscar
o sustento do corpo não é nenhuma vocação, mas vida de animal’(13)”.
A Revolução Francesa se faz sob a bandeira da trilogia Liberdade, Igualdade e
Fraternidade. Altera o topo da pirâmide social, mas não altera as condições de vida
do trabalhador. A queda da monarquia e ascensão da burguesia é marco
transformador. Mesmo com a queda de Napoleão, o mundo não é mais o mesmo; é
diferente, mas o trabalhador continua submetido a condições degradantes de
trabalho, como as descritas por Émile Zola em O Germinal — quadro horroroso do
dia a dia nas minas.
As organizações operárias se fortalecem e se tornam foros de debates sobre
condições de trabalho de então e socialismo, doutrina que então se fundamenta nos
escritos de Saint-Simon, sobre uma nova sociedade, como uma imensa fábrica, onde
não haveria exploração do homem pelo homem; a administração seria coletiva e a
propriedade privada seria extinta. Os jovens Engels e Marx descobrem a doutrina, e
a assumem(14); mais tarde, desprezam alguns fundamentos, acrescentam outros, e
lançam, em 1848, O Manifesto Comunista, com pouco impacto no início, mas
surprendente com acolhimento crescente pelas massas trabalhadoras nos anos
subsequentes (15) .
As estruturas tremem.
A Igreja, sempre ao lado dos poderosos, enxerga o perigo: é preciso ceder,
jogar água fria na fervura, e vem à luz, em 1891, a Encíclica Rerum Novarum.

(13) MELTZER, Milton. História ilustrada da escravidão. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 290.
(14) HUNT, Tristam. Comunista de casaca. Trad. Dinah Azevedo. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 80-90.
(15) BROWN, Archie. Ascensão e queda do comunismo. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record,
2011. p. 38-39.

176
3. AVANÇOS E RECUOS NO SÉCULO XX

No início do século XX, as organizações sindicais estão impregnadas da


ideologia anarquista, estruturada pelo russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunin, no
século XIX, na obra Estadismo e Anarquia. Bakunin diverge de Marx; não concorda
com a “ditadura do proletariado”, nem com o dirigismo pelo partido comunista
como o único representante das massas trabalhadoras, em face do autoritarismo da
proposta.
Em novembro de 1917, a Rússia, integrada à Entente(16), dá combate às forças
da Alemanha na Primeira Grande Guerra, enquanto que a facção política
bolchevique, liderada por Lênin, com o apoio dos marinheiros da fortaleza de
Kronstadt, em São Petersburgo, aproveita o caos reinante, e, num golpe de estado,
destitui os membros do Governo Provisório e assume o poder em nome dos
proletários. O novo governo abandona a guerra, e os soldados retornam aos seus
lares com a esperança de um futuro promissor.
Finda a Guerra, as nações se reúnem em Paris, no início de 1919 para discutir
uma paz duradoura. Com uma pauta extensa e interesses contraditórios, os Estados
Unidos, França e Inglaterra impõem as condições, unificam países, ampliam
territórios de uns, diminuem de outros e criam novos países, como, por exemplo,
Iugoslávia e Tchecoslováquia(17), além de países do Oriente Médio.
As relações de trabalho estão na pauta de negociações, e a Conferência
tenta estabelecer condições mínimas e dignas de trabalho. As deliberações
resultam na criação da Organização Internacional do Trabalho, como
disciplinado na parte XIII do Tratado de Versalhes (arts. 387 a 389), assinado
em Paris, em junho de 1919.
A OIT faz a I Conferência Internacional em 1919 e adota algumas convenções
(uma limita a jornada em 8 horas diárias e 48 horas semanais; outras se referem à
proteção à maternidade, à luta contra o desemprego, à definição da idade mínima
de 14 anos para o trabalho na indústria e à proibição do trabalho noturno de
mulheres e menores de 18 anos(18)). Dois anos antes, em fevereiro de 1917, o México
promulga, sob influência anarquista, a primeira constituição de um país soberano a
reconhecer a prevalência dos direitos humanos, e do direito da coletividade sobre o
individual: a propriedade privada é abolida e as terras são entregues aos
trabalhadores (art. 1º); a administração das fábricas, usinas, ferrovias e outros meios

(16) Entente: aliança militar formada por aproximadamente 25 países contra a Alemanha, Itália e
Áustria-Hungria. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/e/
entente.htm>. Acesso em: 13.3.2012.
(17) MACMILLAN, Margareth. A paz em Paris. Trad. Joubert O. Brízida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2004. p. 127-142, 255-270.
(18) Disponível em: <http://www.oit.org.br/content/hist%C3%B3ria>. Acesso em: 2.3.2012.

177
de produção, é entregue aos trabalhadores (art. 2º); os bancos são estatizados (art.
3º); todos têm trabalho, que é obrigatório para todos (art. 4º).
Comparato diz:
“A Carta Política mexicana de 1917 foi a primeira a atribuir aos direitos
trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais, juntamente com as
liberdades individuais e os direitos políticos (arts. 5º e 123). A importância
desse precedente histórico deve ser salientada, pois na Europa a consciência
de que os direitos humanos têm também uma dimensão social só veio a se
firmar após a grande guerra de 1914-1918, que encerrou de fato o “longo
século XIX”. A Constituição de Weimar, em 1919, trilhou a mesma via da
Carta mexicana, e todas as convenções aprovadas pela então recém-criada
Organização Internacional do Trabalho, na Conferência de Washington
do mesmo ano de 1919, regularam matérias que já constavam da
Constituição mexicana: a limitação da jornada de trabalho, o desemprego,
a proteção da maternidade, a idade mínima de admissão nos trabalhos
industriais e o trabalho noturno dos menores na indústria”.(19)
Enquanto isso, os bolcheviques dão continuidade às reformas na Rússia: a
propriedade privada é extinta e trabalhadores ligados aos bolcheviques são nomeados
para gerir as indústrias. A carnificina que se segue, com a eliminação física da burguesia
e de agricultores considerados abastados, os chamados kulaks, é impiedosa(20). A maioria
dos que não são fuzilados sumariamente perecem nos campos de trabalho forçado —
Gulags —, chamados eufemisticamente de campos de educação pelo trabalho(21).
O mundo ocidental se assusta, e tem início a formação de grupos paramilitares
para combater as propostas comunistas. Aliados ao poder econômico e à Igreja,
esses grupos radicais fazem propostas de melhoria das condições de trabalho;
dominam algumas organizações sindicais, exaltam a raça, as tradições, e perseguem
impiedosamente as esquerdas.
Em março de 1919, em Milão, Mussolini funda o movimento fascista, cujos
fundamentos são incorporados pelo Nazismo na Alemanha e por países como
Hungria, Romênia e Áustria (22) . Embora sinalize proteção aos direitos dos
trabalhadores, a proteção, a rigor, é do capital.
A Espanha faz curta experiência democrática em 1931 e amplia os direitos da
classe trabalhadora. A Frente Popular — Governo Republicano — é composta por

(19) COMPARATO, Fabio Konder. A Constituição Mexicana de 1917. Disponível em: <http://
www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/mex1917.htm>. Acesso em: 2.3.2012.
(20) FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. Trad. Valéria Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.
774-780, 915-922, 989-1006.
(21) DEUTSCHER, Isaac. STALIN — Uma biografia política. Trad. Luiz S. Hemriques. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006. p. 319-355.
(22) MANN, Michael. Fascistas. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 42-43.

178
membros dos sindicatos, dos partidos de esquerda e dos demais partidos
democráticos, mais ou menos como vem a ocorrer mais tarde no Chile, com Salvador
Allende. Há uma convulsão social. O governo republicano desapropria bens da
Igreja, de fazendeiros e nacionaliza bancos. Num país com forte tradição religiosa,
uma Igreja ainda envolta nas brumas do feudalismo, saudosa da Inquisição, mexeu-
-se num vespeiro. O clero, os banqueiros, os fazendeiros, os industriais e os militares
se revoltam e o país se envolve numa insana guerra civil. Os revoltosos vitoriosos
impõem uma ditadura nos moldes fascistas e asfixiam as relações de trabalho, agora
disciplinadas no decreto Fuero del Trabajo:
“O decreto mais importante foi o Fuero del Trabajo, ou Direito do Trabalho,
uma combinação da doutrina social da Igreja encerrada na encíclica Rerum
Novarum com os 26 pontos da Falange e alguns elementos da Carta del
Lavoro fascista italiana. Acima de tudo, decretava o desaparecimento da
luta de classes na Espanha, que seria substituída por uma associação vertical
de administradores e trabalhadores. Também enfatizava o desejo do regime
de exercer um controle totalmente dirigista da economia”(23).
Em Portugal, Antonio de Oliveira Salazar, Ministro das Finanças desde 1928,
torna-se Presidente do Conselho de Ministros em 1932, e com a ajuda do aparato
militar, cria o chamado Estado Novo — um regime corporativista(24). As relações de
trabalho da ditadura Salazar incorpora alguns princípios da Rerum Novarum e da
Carta del Laboro.
“O Estatuto do Trabalho português copiava trechos da Carta del Lavoro
e fragmentava a sociedade em grupos de interesses profissionais, cujas
diferenças seriam mediadas pelo Estado. Um conselho presidido pelo
inquestionável Salazar — sempre um bom cristão — governa o país como
o grande pai a tomar as melhores decisões para todos os filhos, que juntos
formam a nação”(25).
Em 1974, a Revolução dos Cravos destrona Marcelo Caetano, então ocupante
do poder.
No mundo todo o conflito é o mesmo, sempre radicalizado: esquerda x direita.
No Brasil, após mal sucedido atentado comunista em 1935 (Intentona
Comunista), em que se planeja a tomada dos quartéis e consequente mudança de
regime, Getúlio Vargas aproveita o clima de instabilidade política que se segue e, em
10 de novembro de 1937, fala à nação sobre um suposto complô comunista,

(23) BEEVOR, Antony. A batalha pela Espanha. Trad. Maria B. Medina. Rio de Janeiro: Record, 2007.
p. 473.
(24) Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_Novo_(Portugal)>. Acesso em: 2.3.2012.
(25) MAGNOLI, Demétrio; BARBOSA, Elaine S. O mundo em desordem. Rio de Janeiro: Record, 2011.
p. 250.

179
descoberto pelos órgãos de segurança — Plano Coehn —, e impõem um golpe de
estado à nação brasileira(26); fecha o Congresso Nacional, e outorga ao país uma
constituição antidemocrática.
Vargas governa por decretos; impõe censura a rádios, revistas, jornais,
atividades teatrais, cinema e música; persegue e prende opositores e inimigos políticos;
reprime protestos, greves e passeatas.
Vargas é amado e odiado; as esquerdas o odeiam; a direita o exalta.
O legado de Vargas é imenso: para os trabalhadores, a CLT é sua presença
perene, intocável.
Inúmeros doutrinadores atribuem à CLT defeito de origem que a macula,
atrelada aos princípios da Carta del Laboro, principalmente no Capítulo “Da
Instituição Sindical”.
Sussekind luta quase solitário contra essa vertente mal informada, que dia a
dia incorpora mais adeptos, até que, em 2007, a magistrada gaúcha, Magda
Biavaschi, vai a campo, pesquisa as fontes, faz entrevistas e demonstra de modo
inconteste que a CLT não tem origem espúria(27).
A CLT vem se mantendo, alterada e remendada.
Enquanto existia o temor do perigo vermelho, de extinção da propriedade
privada, de controle dos meios de produção pelos trabalhadores, havia concessões,
que permitiam a ampliação dos direitos sociais. Só que em 1989 surge novo ponto de
mutação: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se desintegra, e, como pedras
de um dominó, caem todas as repúblicas comunistas do leste europeu, e reassumem
o capitalismo.
Sem o perigo vermelho, ocorre o fenômeno chamado globalização que extingue
e flexibiliza direitos, como pontua Medeiros:
“A mudança agressiva e sem rosto, sem digital, traduz a princípio uma
outra imposição precoce e ousada, consubstanciada na reformatação
institucional e normativa, impondo uma desregulamentação e
flexibilização de normas trabalhistas com o intuito de traduzir maior
e melhor dinamismo às empresas”(28).
Na década de 90, a flexibilização entra em moda; tudo é flexibilizado. Os salários
são corroídos, vantagens são extintas, e greves são reprimidas pela ação da Justiça
do Trabalho, que passa a impor condições absurdas e multas escorchantes. Enquanto

(26) Ibidem. p. 306.


(27) BIAVASCHI, Magda B. O direito do trabalho no Brasil — 1930-1942. São Paulo: LTr, 2007.
(28) MEDEIROS, Benizete Ramos de. Trabalho com dignidade. São Paulo: LTr, 2008. p. 44.

180
existe o perigo vermelho, o governo, as empresas e os tribunais fazem concessões,
estimulam o ganho real direto e indireto. Sem esse contrapeso, não há ganho; há perda.
O capital migra para a China, porque lá só se exige trabalho, não importa em
que condições, e a baixo custo, como didaticamente expõe Chaves perante o XI
Congresso Nacional dos Procuradores do Trabalho:
“Lembrando um pouco do Capital, de Marx, trabalho é uma mercadoria
como outra qualquer, como pão, como leite. Se estiver sobrando, a
tendência é sua queda. E aí está, só para que vocês tenham ideia do que
nós estamos falando: o salário de um maquinista nos Estados Unidos
gira em torno de US$ 3 a 4 mil por mês. E na China? US$ 150. Essa é uma
das razões pelas quais a China cresce 10% ao ano. Oferece mão de obra
barata, o Estado oferece uma infraestrutura cada vez maior. Também
isso é importante, a infraestrutura para receber a empresa, mas o preço
do trabalho, isso é fundamental”(29).
A China se torna gigante, e para lá se transferem os grandes conglomerados em
busca de mão de obra barata, disciplinada e controlada pelo Estado. Condições
precárias; produção intensa. O que importa é produzir, e se produz de tudo.
Com jornada de trabalho massacrante, 60 horas semanais, às vezes até 70, o
suicídio se torna corriqueiro na China, e não há nem mesmo constrangimento na
utilização mão de obra infantil:
“Mas além do trabalho infantil e da contaminação há também outros
sérios problemas envolvendo seus trabalhadores diretos ou indiretos. O
primeiro diz respeito à superexploração da força de trabalho, como se
pode ler no site da Revista INFO na matéria acima citada: ‘Esta não é a
primeira vez que a Apple é citada em acusações que envolvem a
superexploração de trabalhadores na Ásia. Há dois anos, a companhia
foi denunciada por contratar integradores que mantinham operários
trabalhando mais de 70 horas por semana. Na China, a jornada de trabalho
legal é de 60 horas por semana.’
Os trabalhadores chineses são forçados a uma longa jornada de trabalho
(60 horas por semana, no Brasil é de 44 horas) e no caso da Apple ainda
são submetidos a uma acréscimo de 10 horas por semana. 70 horas de
trabalho significam trabalhar os sete dias da semana numa jornada de 10
horas, ou de aproximadamente 11h30 em seis dias.
Como decorrência do esgotamento físico e mental e das pressões por
produção, os suicídios completam o caos. Muitos trabalhadores nestas

(29) CHAVES, Luciano A. Evolução dos Direitos Fundamentas na Justiça do Trabalho e no Ministério
Público do Trabalho. In: CORDEIRO, Juliana V.; CAIXETA, Sebastião V. (orgs.). O MPT como promotor
dos direitos fundamentais. São Paulo: LTr, 2006. p. 60-61.

181
empresas, em decorrência das longas jornadas de trabalho, dormem na
própria fábrica. Os tablets que consumimos felizes carregam histórias de
vida e de morte nada aprazíveis.
Como resposta aos suicídios os gerentes pretendem separar os
trabalhadores em grupos de 50 para reduzir o contato, além de instalar
redes circundando as torres de produção nos andares mais baixos para
evitar os saltos, conforme publica o jornal Estadao.com.br em 28 de maio
de 2010. Nada de reduzir a jornada, apenas paliativos”(30).
A Presidente Dilma Rousseff esteve na China em 2011, e voltou de lá com a
promessa de que a Foxconn faria um investimento de US$ 12 bilhões no Brasil.
Agora, em fevereiro de 2012, o Presidente da empresa, o taiwanês Terry Goun, diz
ostensivamente que os brasileiros não são muito chegados ao trabalho porque vivem
num paraíso(31).
É evidente que as condições de trabalho no Brasil e na China são diferenciadas.
Aqui, em alguns setores, são precárias; lá são degradantes; extremamente
degradantes. Aqui, temos belezas naturais, algumas preservadas; lá até monumentos
foram destruídos. Aqui, em que pese o avanço das terceirizações, jornada mínima
de 60 horas e trabalho infantil é lembrança da barbárie; lá é dinâmica produtiva.
Os US$ 12 bilhões são bem-vindos; o retorno ao trabalho escravo ou
semiescravo não.
Hoje, a China serve de bálsamo para o descumprimento da legislação protetiva:
“Ah, mas a China não tem Direito do Trabalho! Tem, tem um Código do
Trabalho, aliás Código muito bem feito, código outorgado pelo partido,
mas um código muito bom. Eu tenho esse código em casa, ele fixa horas
extras com 100% de adicional. Mas quem observa? Não tem procurador
do trabalho na China? Não. E Junta? Não. Você anuncia direitos porque
isso é agradável para os discursos políticos na organização mundial do
comércio, mas você não os efetiva, de maneira tal que o problema hoje é
você enfrentar essa distorção. Muitas empresas brasileiras estão abrindo
sucursais na China porque a solução é produzir ou fechar. Esse é o grande
desafio. O discurso sobre o custo do trabalho no Brasil, porque incide
muitos direitos, disfarça a nossa verdadeira dificuldade. É a integração
sem tecnologia, num mundo onde a produção manufatureira é hoje o
fato mais desprezível do mundo capitalista. Eu vou desenhar um tênis da

(30) Disponível em: <http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=10432>. Acesso em:


9.3.2012.
(31) Folha de S. Paulo, 24.2.2012. Caderno Mercado. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
fsp/mercado/27506-brasil-so-oferece-mercado-local-diz-foxconn.shtml>. Acesso em: 9.3.2012.

182
Nike, mas eu produzo em qualquer lugar. Eu vou desenhar um novo
celular, mas a produção? Eu produzo onde for mais barato”(32).
Esse é o desafio. A China fez uma revolução em nome da classe trabalhadora.
Agora abriga o capital, que se fortalece, transcende fronteiras, impõe seu preço,
humilha e descarta os trabalhadores acidentados ou vítimas de doenças ocupacionais.
Há uma espécie de divórcio entre a Organização Mundial do Comércio (OMC)
e a comunidade jurídica. O que ocorre na China é incompatível com o princípio de
dignidade do ser humano. Trindade, Juiz da Corte Internacional de Direitos
Humanos, ao prefaciar um Trabalho de Piovesan diz:
“O Direito dos Direitos Humanos não rege as relações entre iguais; opera
precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas relações entre
os desiguais, posiciona-se a favor dos mais necessitados de proteção. Não
busca obter um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos
do desequilíbrio e das disparidades. Não se nutre das barganhas da
reciprocidade, mas se inspira nas considerações de ordre public em defesa
de interesses superiores, da realidade da justiça. É o direito de proteção
dos mais fracos e vulneráveis, cujos avanços em sua evolução histórica se
têm devido em grande parte à mobilização da sociedade civil contra todos
os tipos de dominação, exclusão e repressão. Neste domínio de proteção,
as normas jurídicas são interpretadas e aplicadas tendo sempre presentes
as necessidades prementes de proteção das supostas vítimas”(33).
O horizonte que se descortina é cinzento, e é preciso mudar; nada é estático. O
reconhecimento do princípio da dignidade do ser humano, conquista efetiva da
dignidade, não pode ser esquecido só porque a exploração ocorre lá na China.
Enquanto o mundo político, por comodismo, não reage, é preciso se insurgir com
os meios ao nosso alcance. Não se pode e não se deve aceitar tudo de modo passivo.
O mínimo que se espera é que a sociedade civil se mobilize e passe a rejeitar
sistematicamente todo e qualquer produto de trabalho escravo, ou semiescravo,
mesmo mais barato. É difícil, quase utópico, mas não impossível.

4. O TRABALHO NO BRASIL COLÔNIA E IMPÉRIO

No Brasil Colônia e Império a força de trabalho é o braço escravo. José


Bonifácio bem que tenta, sem êxito, extinguir esse opróbio já na primeira Constituição
do Império. O braço escravo é fundamental no Brasil agrário. Há trabalhadores
livres e escravos libertos que exercem algumas atividades, como barbeiros, doceiros,

(32) CHAVES, Luciano A. Ob. cit., p. 61.


(33) TRINDADE, Antonio A. C.; PIOVESAN, Flávia. Os direitos humanos e o direito constitucional
internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. Prefácio.

183
sapateiros etc.; poucos. As mulheres na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
Gerais fazem de “doces, bolos, alféloa, frutos, melaço, hortaliças, queijos, leite,
marisco, alho, pomada, polvilhos, hóstias, obreias, mexas, agulhas, alfinetes, fatos
velhos e usados”, e trabalham como quitandeiras, nas tavernas e nas vendas(34).
Na Constituinte do Império, em 1823, Jose Bonifácio de Andrada e Silva
apresenta importante projeto a abolição do tráfico de escravos africanos e atrai a ira
incontida dos fazendeiros e comerciantes negreiros.
Alguns breves trechos merecem destaque:
“Não se trata somente de sermos justos, devemos ser penitentes; devemos
mostrar à face de Deus e dos outros homens que nos arrependemos de
tudo o que nesta parte tem obrado há séculos contra a justiça, e contra a
religião, que nos bradam acordes que não façamos aos outros o que
queremos que não façam a nós. É preciso pois que cessem de uma vez
por todas os roubos, os incêndios, e guerras que fomentamos entre os
selvagens da África. É preciso que não venham mais a nossos portos
milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão de nossos
navios, mais apinhados do que fardos de fazenda; é preciso que cessem de
uma vez todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos
e flagelamos ainda esses desgraçados em nossos próprios territórios. É
tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com o tráfico tão bárbaro
e carniceiro...”
“O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da
indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A
escravidão, Senhores, a escravidão, porque o homem, que conta com os
jornais de seus escravos, vive na indolência, e a indolência traz todos os
vícios após si...”
“A sociedade civil tem por base primeiro a justiça, e por fim principal a
felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a
liberdade de um outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e
dos filhos destes filhos?”(35)
O Patriarca é visionário, e percebe um horizonte novo, um Brasil fraterno,
integrativo, mas seu discurso é apenas uma impactante metáfora com força cogente
de transformação no tempo, porque aceitá-lo naquele momento implicaria em
alterar pela raiz a estrutura econômica, como descreve Mir:

(34) FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: PRIORI, Mary D. (org.). A história das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,1997. p. 144.
(35) WALDVOGEL, Luiz. Homens que fizeram o Brasil. Santo André-SP: Casa Publicadora Brasileira,
1953. p. 15-16.

184
“A escravidão, como modelo econômico, precedeu a qualquer outra
discussão ou formulação. Tudo era determinado pelo escravismo: o código
tributário, o papel da terra e da agricultura, comércio e relações
internacionais, instituições políticas e sociais, aparatos policiais e máquina
administrativa, partidos políticos e sistemas de representação, tudo,
absolutamente tudo”(36).
A família imperial não tem escravos; os ainda não emancipados são
assalariados:
“Os empregados do palácio que tinham acesso à família imperial eram
assalariados (inclusive os escravos) e se dividiam em diferentes níveis de
hierarquia. Os “moços da câmara” eram em geral jovens de boas famílias,
que prestavam serviço direto ao imperador, à imperatriz e às princesas,
que também contavam com suas damas de honra. Hospedavam-se no
próprio palácio, ou na Casa dos Semanários, atual Palácio Grão-Pará
situado ao fundo da praça atrás do Museu”(37).
A história só é viva se contextualizada. Aí, num voo ao tempo, num certo
passado, as contradições do sistema são, de certo modo, toleradas até pelos críticos
da escravidão. O abolicionista André Rebouças, engenheiro, é negro, e sua família
liberta seus escravos na década de 70 do século XIX; liberta, mas continua a fazer uso
de mão de obra escrava nas obras sob sua responsabilidade:
“Principiaram a embaraçar-me com empenhos; a Marquesa de Olinda
escreveu hoje a meu pai, pedindo-lhe que conservasse nas obras da
Alfândega seis escravos seus. Uma senhora, que se disse parenta do
Conselheiro Beaurepaire Rohan, teve a simplicidade de mandar-me
chamar com a maior instância para pedir-me que um preto seu passasse
de servente a pedreiro”(38).
Numa decisão corajosa, a Regente Isabel assina em 13 de maio de 1888 a chamada
Lei Áurea, e extingue a escravidão no Império Brasileiro. Seu ato soberano contraria
interesses da nobreza rural que dá suporte ao Império. Dezoito meses depois, o
Império é derrubado pelo Exército, que cerca o Palácio e depõe e bane o Imperador
e sua família.
O Decreto n. 1, de 15.11.1889, do Governo Provisório, proclama a República
como forma de governo:

(36) MIR, Luiz. Op. cit., p. 38.


(37) Disponível em: <http://www.museuimperial.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=
category&layout=blog&id=12&Itemid=62>. Acesso em: 3.3.2012.
(38) PESSANHA, Andréia S. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as ideias de André
Rebouças. Rio de Janeiro: Abreu — Centro Universitário, 2005. p. 34.

185
“Proclama provisoriamente e decreta como forma de Governo da Nação Brasileira a República
Federativa, e estabelece as normas pela quais se devem reger os Estados Federais”(39).

5. BRASIL: O ESTADO DE INOPERÂNCIA DA LEGISLAÇÃO AFIRMATIVA

O trabalho é instrumento de autorrealização, de efetiva dignidade a quem o


exerce, como diz numa bela poesia o professor Maury Rodrigues da Cruz, advogado,
sociólogo, museólogo e poeta paranaense:
“Bom irmão,
Atente para a responsabilidade da mudança.
Quando a pobreza fizer presença em sua vida, trabalhe.
Se a riqueza for abundante, trabalhe.
Quando as responsabilidades fizerem opressão, trabalhe.
Se a angústia, a tristeza, a injustiça e as decepções aparecerem, trabalhe.
Se a capacidade de sonhar, de saber esperar, estiverem enfraquecidas, trabalhe.
Quando surgirem dúvidas, indecisões, problemas, trabalhe.
Se, por diversas razões, a fé estiver em crise e a razão não responder, trabalhe.
Se todo bem que conseguiu fazer teve como resposta o mal, não desanime,
trabalhe.
Caro irmão,
Não há contradição, problema, que o trabalho não resolva.
Na Terra, o grande bálsamo é sempre o trabalho. É o agente do
engrandecimento do homem e da humanidade.
O trabalho foi, é e será sempre o remédio para o corpo e para o espírito.
Crer na força do trabalho é fazer permanentemente relação da existência com
o Creador.
No trânsito terreno, a vida será sempre melhor pela aplicação ao trabalho”(40).
Tornar efetiva a mensagem filosófica é tarefa tão árdua; lembra o incansável
(41)
Sísifo , a pesada carga sobre os ombros, a montanha, a queda da carga, a volta, o
retorno à montanha, o incessante sobe e desce: a certeza inabalável de se alcançar o
objetivo.
No Império Brasileiro, dependente do braço escravo, uma lei de 1831 proíbe o
comércio transatlântico de escravos, porque os tratados estabelecidos com a

(39) BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora,
2002. p. 624-625.
(40) CRUZ, Maury R. Amor — A linguagem silenciosa da vida. Curitiba: SBEE, 1997. p. 45-46.
(41) Na mitologia grega, Sísifo é condenado pelos deuses a fazer um trabalho inútil por toda a eternidade:
tem que carregar, sem descanso algum, uma enorme pedra até o alto de uma montanha; ao se aproximar
do alto, a pedra escapa, rola encosta abaixo, e Sísifo volta para buscá-la e reinicia sua tarefa. Disponível
em: <http://caminhodomeio.wordpress.com/2008/01/16/a-historia-de-sisifo/>. Acesso em: 13.3.2012.

186
Inglaterra exigem a extinção desse infame tráfico. A lei se torna conhecida entre nós
como “lei para inglês ver”(42), porque acalma a frota britânica sem que nada mude, e
continua a irradiar seus efeitos.
A legislação brasileira tuitiva incorpora os princípios filosóficos de dignidade
do ser humano, tratados da OIT e subordina os interesses do capital à sua função
social. Porém, no dia a dia, o que se vê é que tudo não passa de “lei para inglês ver”.
Aquele que atua na defesa de trabalhadores sabe que a legislação afirmativa
ainda é, infelizmente, um faz de conta, leis para inglês ver. Se há alguma efetividade,
logo se flexibiliza a norma cogente, ou a interpreta de modo a ajustá-la à conveniência
do capital, mesmo em prejuízo do bom senso. Basta um exemplo: o Tribunal Superior
do Trabalho, após o advento da Constituição Federal, editou a Súmula n. 310 com
o verbete:
“O art. 8º, inciso III, da Constituição da República, não autoriza a substituição processual pelo
sindicato”.

Não é preciso ginástica mental para se perceber o distanciamento da Súmula


no confronto com o texto constitucional:
“Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

I — ...

II — ...

III — ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria,
inclusive em questões judiciais ou administrativas”.

Não basta a clareza cristalina da lei. O contido na Súmula n. 310 do TST,


enquanto norma, atenta contra a literalidade do texto legal, e assim permanece por
duas décadas, até que em 1º.10.2003 é cancelada, e só é cancelada porque o Supremo
Tribunal Federal, ao julgar o Mandado de Injunção n. 347-5, reconhece a legitimação
ampla dos sindicatos. A Suprema Corte profere várias decisões mantendo a mesma
coerência, o que força o TST a rever o seu obtuso entendimento(43). Agora, pelo
menos esse dispositivo constitucional, não é “só para inglês ver”.
O princípio da dignidade da pessoa humana está expresso no art. 1º da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, editado sob a égide da ONU, em
1948 (“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas
de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade”) e é cláusula pétrea do Estado Democrático Brasileiro — Art. 5º da
Constituição Federal/1988:

(42) PESSANHA. Andréa S. Op. cit., p. 30.


(43) PINTO, Raymundo A. C. Súmulas do TST comentadas. 11. ed. São Paulo: LTr, 2010. p. 241-245.

187
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade”.

Em tese, todos são iguais perante a lei, e se autorrealizam pelo trabalho. A


dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho estão expressos no art.
1º, III e IV da Constituição Brasileira. Os objetivos fundamentais estão no art. 3º “a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, da
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais”. No art. 4º, a
Constituição assegura a prevalência dos direitos humanos, e, no inciso XXIII do art.
5º, diz que “a propriedade atenderá a sua função social”. No art. 6º, garante os
direitos sociais, como “a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência
aos desamparados”, e ainda incorpora um rol de direitos trabalhistas no art. 7º, em
34 incisos, que não são exaustivos. Portanto, sem dúvida, é uma constituição
afirmativa da dignidade da pessoa humana. Mas é preciso mais, é preciso meios de se
tornar efetivos os direitos, e é aí que as coisas se complicam; não avançam.
Se o trabalho dignifica, e, se na vida, “o grande bálsamo é sempre o trabalho”, as
condições de trabalho não podem ser degradantes, mas, infelizmente, isso sói ocorrer
com relativa frequência, tanto que o trabalho escravo ainda é realidade no Brasil, e
não há vontade política de erradicá-lo, como se constata da notícia que se transcreve:
“Durante a campanha eleitoral do ano passado, 29 candidatos a cargos
majoritários (Presidência da República e governos estaduais) assinaram a
Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo, que estabelece diretrizes e
obrigações relacionadas ao combate a esse tipo de crime.
Firmaram o documento a presidenta Dilma Rousseff (PT) e outros 12
chefes do Executivo estadual que venceram o pleito. Passados mais de seis
meses das cerimônias de posse, a Repórter Brasil assumiu a tarefa de
checar o grau de cumprimento das promessas assumidas na época em que
os concorrentes ainda estavam disputando os votos de eleitores.
O resultado da apuração foi frustrante. Apenas se manifestaram: a
governadora Roseana Sarney (PMDB), do Maranhão; os governadores Beto
Richa (PSDB), do Paraná, e Jacques Wagner (PT), da Bahia; além de
representantes de pastas do governo federal da presidenta Dilma.
Nove governadores não responderam aos pedidos de informações enviados
pela reportagem, que entrou em contato diversas vezes por telefone e por
e-mail com as respectivas assessorias. São eles: André Puccinelli (PMDB), do
Mato Grosso do Sul; Marcelo Déda (PT), do Sergipe; Marconi Perillo (PSDB),
de Goiás; Omar Aziz (PMN), do Amazonas; Cid Gomes (PSB), do Ceará;
Ricardo Coutinho (PSB), da Paraíba; Geraldo Alckmin (PSDB), de São Paulo;
Wilson Martins (PSB), do Piauí, e Simão Jatene (PSDB), do Pará.

188
Para além da mera ausência de respostas, há situações mais graves de
choque frontal com as cláusulas do compromisso público proposto pela
Frente Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e pela Comissão
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) — como a
nomeação de secretários envolvidos em flagrantes de trabalho escravo e
a extinção de programas e pesquisas estaduais especialmente dedicados à
temática”(44).
Enquanto esse quadro de horror não é superado, toda a legislação afirmativa
brasileira é tida como “para inglês ver”, um faz de conta.

5.1. Trabalho insalubre

“Não há contradição, problema, que o trabalho não resolva”. Logo, o trabalho


tem que ser exercido com dignidade, e, com frequência, não são oferecidas condições
dignas, ou, pelo menos, razoáveis.
Nos ambientes tidos como insalubres, a vetusta CLT, no art. 192, assegura
pagamento de um adicional de 40% para o grau máximo, 20% para o grau médio e
10% para o grau mínimo, incidente sobre o salário mínimo, e não sobre o conjunto
da remuneração ou sobre o salário base.
Nos anos 40 se justificava a incidência sobre o salário mínimo, porque, criado
em 1º.5.1940, o valor, naquele tempo, é, de certo modo, representativo; tem poder
de compra. Hoje não; é irrisório.
Com o advento da Constituição Federal/1988 (Art. 7º, IV) não se permite mais
a vinculação do salário mínimo para qualquer finalidade. Proíbe a vinculação, mas
garante o direito ao adicional de insalubridade (Art. 7º, XXIII). Com a proibição de
vinculação do salário mínimo, e não existindo outra base legal para a incidência do
adicional de insalubridade, na lacuna da lei o intérprete teria que decidir “por analogia,
por equidade, e outros princípios e normas gerais do direito, principalmente do direito do
trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado”, com amparo
no art. 8º da CLT, interpretação coerente que recomenda que se aplicasse o mesmo
princípio do art. 193, § 1º, da CLT, que assegura, em caso de periculosidade, adicional
sobre o salário base, e não sobre o mínimo legal. Aí, o Supremo Tribunal Federal
edita a Súmula Vinculante n. 04, e pacifica entendimento de que a incidência do
adicional é sobre o salário base, e não sobre o mínimo. Porém, para evitar o
ajuizamento de milhares de ações com pleitos de diferenças no período imprescrito,
impõe um corte temporal arbitrário, e diz que o entendimento vale apenas a partir
de 9.5.1988:

(44) Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1908>. Acesso em: 6.3.2012.

189
“SÚMULA N. 228 TST — ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO: “A partir
de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante n. 4 do Supremo Tribunal Federal,
o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado
em instrumento coletivo.”

É decisão salomônica que dura pouco, porque, insatisfeita, a Confederação


Nacional das Indústrias — CNI — propõe uma ação (RCL 6266) que pede a
suspensão da eficácia da Súmula, e, rapidamente, em 15.7.2008, o Ministro Gilmar
Mendes defere a liminar determinando que a base legal continue a ser o salário
mínimo; e aí o contido no art. 7º da Constituição Federal, inciso IV, se torna “lei
para inglês ver”.
Não há dúvida de que, se o ambiente de trabalho é insalubre, há efetivo risco
abalo à saúde, à higidez física e mental, de adoecer, temporária ou definitivamente,
e até de morrer mais cedo, mas basta um percentual sobre o irrisório salário mínimo
que o risco de doença ou de morte está pago. Se adoecer ou morrer, está pago.
“Não há contradição que o trabalho não resolva”, mas o Judiciário precisa
reconhecer a eficácia da legislação social, de respeito à dignidade humana.

6. ACIDENTES DE TRABALHO E DOENÇAS LABORAIS

O Anuário Estatístico de 2012 do INSS, Seção IV, Acidentes de Trabalho,


registra que em 2008 ocorreram 441.925 acidentes de trabalho típicos com CAT
(Comunicação de Acidente de Trabalho) emitidas, mais 204.954 acidentes sem
CAT emitidas, e 20.356 casos de doenças laborais. No ano de 2009, ocorreram 424.498
acidentes típicos com CAT emitidas, 199.117 sem CAT e 19.570 casos de doenças
laborais. Por último, no ano de 2010, ocorreram 414.824 acidentes típicos com CAT
emitida, 176.290 sem CAT emitidas, mais 15.593 casos de doenças laborais.
As regiões Sul e a Sudeste são responsáveis por 76,4% dos acidentes (Sul =
22,4%; Sudeste= 54%).
São números estarrecedores. Seiscentos a setecentos mil casos de acidentes e
doenças laborais por ano leva o Brasil a um cenário de guerra civil. Segundo o gráfico
estatístico de acidentes de trabalho do INSS, de 1998 a 2008 ocorreram 31.723 casos de
acidentes de trabalho com morte, o que dá uma média de 3.327 mortes por ano.
Numa comparação as perdas americanas no Iraque em nove anos de
intervenção militar, de março de 2003 a dezembro de 2011, foram pouco de 4.000,
enquanto que no Brasil, só de acidentes de trabalho foram 31.723, o que torna a
tragédia brasileira num cenário de efetiva guerra civil.
Nesse cenário de horror, o número efetivo de acidentes e doenças ocupacionais
subnotificados é incalculável, e o quadro é ainda mais grave porque há uma
mentalidade de deixar tudo como está, de varrer a sujeira para debaixo do tapete.

190
Acidentes de trabalho ou doenças ocupacionais costumam ocorrer diante de
condições inseguras de trabalho, que colocam em risco, além de máquinas e
equipamentos, também a integridade física e mental dos trabalhadores. Nas empresas
de telecomunicações, nas casas bancárias, nas indústrias montadoras e nas indústrias
da carne (frigoríficos), as lesões por esforços repetitivos (LER/DORT) assumem
proporções assustadoras. Nas indústrias químicas e de extração de petróleo, a
contaminação é reiteradamente denunciada pelas entidades sindicais, com
ocorrência frequente de dermatoses, leucopenia, neutropenia, eosinofilia, e até o
temido câncer.
No Brasil, ainda há empresas que usam o amianto, que tem como matéria-
-prima o “asbesto”, mineral responsável por diversas doenças como asbestose, de
alto potencial carcinogênico:
“O amianto ou asbesto é uma fibra mineral natural sedosa que, por suas
propriedades físico-químicas (alta resistência mecânica e às altas
temperaturas, incombustibilidade, boa qualidade isolante, durabilidade,
flexibilidade, indestrutibilidade, resistente ao ataque de ácidos, álcalis e
bactérias, facilidade de ser tecida etc.), abundância na natureza e,
principalmente, baixo custo tem sido largamente utilizado na indústria.
É extraído fundamentalmente de rochas compostas de silicatos hidratados
de magnésio, onde apenas de 5 a 10% se encontram em sua forma fibrosa
de interesse comercial.
Os nomes latino e grego, respectivamente, amianto e asbesto, têm relação
com suas principais características físico-químicas, incorruptível e
incombustível.
Está presente em abundância na natureza sob duas formas: serpentinas
(amianto branco) e anfibólios (amiantos marrom, azul e outros), sendo
que a primeira — serpentinas — correspondem a mais de 95% de todas as
manifestações geológicas no planeta.
Já foi considerado a seda natural ou o mineral mágico, já que vem sendo
utilizado desde os primórdios da civilização, inicialmente para reforçar
utensílios cerâmicos, conferindo-os propriedades refratárias”(45).
A Dra. Fernanda Gianassi, engenheira e auditora-fiscal do Ministério do
Trabalho e Emprego, tem percorrido o país alertando para os riscos do amianto, e
propondo o banimento definitivo, porque comprovadamente o amianto ou asbesto
é uma matéria-prima cancerígena, e o Brasil tem utilizado esse material na confecção
de telhas, de caixas d’água de cimento-amianto (as marcas mais conhecidas são a
Brasilit e a Eternit). A Dra. Fernanda encontra sempre feroz resistência, inclusive

(45) Disponível em: <http://www.abrea.com.br/02amianto.htm>. Acesso em: 11.3.2012.

191
nos meios políticos, mas não se dobra. Para ela, a vida não tem preço, tem valor. Por
sua luta, tem recebido homenagens em inúmeras cidades, aclamada por sindicatos,
câmaras municipais e assembleias legislativas. Seu nome transcende as nossas
fronteiras, tendo recebido homenagens até no Japão, em Tóquio, pelo Tajiri Muneaki
Memorial(46).
Se na Europa o amianto está definitivamente banido, por que aqui não se bane
também? O dinheiro é tão importante assim, que se sobrepõe à vida? A indignação
da Dra. Fernanda Gianassi é também a nossa, e a de todas as pessoas de bem, que
prezam a vida humana. Impor ao trabalhador que se submeta a trabalho tão
degradante é criminoso, tanto que em 16.2.2012, o tribunal de Justiça de Turim
condena dois ex-diretores da multinacional Eternit a 16 anos de prisão por terem
causado a morte de mais 3.000 pessoas com o uso do amianto no material que
produziram(47).
No Brasil, se o trabalhador adoece, a sociedade banca a conta. O empregador
não comunica a ocorrência de doença ocupacional, subnotifica e segue produzindo
vítimas. A maioria das empresas, de médio e de grande porte, encobre as evidências
de doenças laborais, e, não raro, contam com a conivência de médicos do INSS e até
de peritos nomeados pelo judiciário trabalhista. Há casos tão graves que os resultados
laboratoriais e de tomografias chegam a ser alterados a pedido de médicos da
empresa(48), e tudo isso porque, se, numa determinada empresa, o índice de acidentes
de trabalho, ou de doenças laborais, for alto, terá que pagar valores mais elevados
para o sistema SAT — Seguro Acidente de Trabalho. Na ocorrência de acidente de
trabalho típico ou de doença laboral, o trabalhador vitimado tem garantia de
emprego mínima de um ano após cessação do auxílio doença previdenciário (art.
118 da Lei n. 8.213), e tem direito de pleitear uma indenização pelos danos sofridos.
Mas, com a subnotificação não há garantia de emprego, e trabalhador lesionado
pode ser despedido.
Com certa frequência, tem-se constatado que quando ocorre a emissão de CAT
em casos de acidente de trabalho ou de doenças ocupacionais, faz-se uma certa
malandragem para inviabilizar o reconhecimento do NTEP. São comuns fraudes
nos informes cadastrais encaminhados ao INSS (CNIS), com falseamento do ramo
de atividade (CBO, CNAE), fazendo constar um código incompatível com a doença.
Por exemplo, o trabalhador bancário, que trabalha em meio ambiente impróprio
quanto às exigências de ergonomia, tem forte probabilidade de vir a sofrer lesões

(46) Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2004-nov-22/militante_anti-asbesto_homenageada


_japao>. Acesso em: 13.3.2012.
(47) Disponível em: <http://exame.abril.com.br/economia/meio-ambiente-e-energia/noticias/ex-
diretores-da-eternit-condenados-por-uso-de-amianto>. Acesso em: 11.3.2012.
(48) No processo 0521900-41.2006.5.09.0896, o médico responsável por um conceituado laboratório de
imagens e tomografias de Curitiba compareceu em juízo e confessou ter alterado o resultado a pedido do
médico da empresa.

192
osteomusculares (LER/DOR). Ou então, aquele que trabalha na indústria, onde há
exigência de reiterados movimentos repetitivos. Mas, se o informe das reais funções
desempenhadas é adulterado dificulta e até inviabiliza o reconhecimento do nexo
causal. Se um trabalhador da indústria, do setor de produção, vier a sofrer de doença
ou lesão compatível com o trabalho que exerce, e tiver o informe do código de sua
função alterado no cadastro, como, por exemplo, como vigilante, ou comerciário,
isso irá tornar muito difícil e até inviabiliza o cruzamento do nexo, e aí o disposto no
Decreto n. 6.042, de 12.2.2007, de cruzamento da doença incapacitante indicada no
CID (Código Internacional de Doenças) e com o CNAE (Código Nacional de
Atividade da empresa) se torna letra morta. Quando isso ocorre, o INSS entende
que a atividade é incompatível com a doença descrita, e não acolhe a CAT; concede
o benefício B31, que se refere a adoecimento sem vinculo com o trabalho.
Quando a subnotificação é denunciada ao judiciário, este nomeia os médicos
cadastrados na vara do trabalho como peritos, que passam a validar as
subnotificações. Há exceções, honrosas exceções, peritos dignos, responsáveis, mas
o que se tem constatado, no exercício da advocacia, é que um número expressivo
desses médicos não está preocupado com a verdade. Para eles, as doenças são sempre
degenerativas, mesmo sendo evidentes as concausas apressadoras da doença, tratam
de sustentar uma causa externa, que inocente a empresa. O art. 21-A da Lei n. 8.213/
1991 permite o reconhecimento do nexo causal quando a atividade desenvolvida na
empresa possa, em tese, desencadear a patologia ou produzir a lesão, mas dificilmente
os peritos reconhecem o nexo, e os juízes do trabalho, por comodismo ou por
acúmulo de processos, acatam o contido nos laudos, alguns tão vergonhosos que
atentam contra a classe médica em geral. É raro um juiz que despreze o laudo e
forme sua convicção pelas evidências contidas nos autos, como autorizado pelo
Art. 436 do Código de Processo Civil, mas é possível encontrar decisões de juízes que
efetivamente confrontam o laudo com a prova existente e afastam a conclusões do
laudo por inconsistentes, como, por exemplos, nas seguintes decisões do TRT da
9ª Região:
TRT-PR-00637-2008-068-09-00-7 (RO).
“Com efeito, o perito não é concludente acerca da inexistência de nexo causal. Em sua palavras:
Esta perícia não pode afirmar com convicção que a atividade laboral tenha relação com o quadro
apresentado”. Ora, se inexiste convicção, a mim não me parece que o nexo epidemiológico
notório na categoria tenha sido elidido por prova convincente (Lei n. 11.430/2006 e Decreto
n. 6.042/2007). De fato, há vários documentos e atestados que induzem à conclusão de que a
reclamante está acometida por LER-DORT, doença ocupacional típica na categoria. Dessa forma,
com base no art. 436 do CPC, concederia à autora os reflexos do nexo de causalidade inerentes à
doença ocupacional.” Rel. Des. Rosalie M. B. Batista(49)
TRT-PR-07714-2008-664-09-00-3 (RO)
TENTATIVA DE SUICÍDIO. TRANSTORNO MENTAL. TRABALHO COM BENZENO E
HIDROCARBONETOS. NEXO TÉCNICO PREVIDENCIÁRIO. ÔNUS DO EMPREGADOR

(49) DJEPR 22.11.2011. <http:/www.trt9.jus.br/internet_base/plc>.

193
DE AFASTAR A PRESUNÇÃO DONEXO DE CAUSALIDADE. A exposição por anos
ininterruptos às substâncias químicas benzeno e hidrocarboneto ocasiona transtornos mentais e
de comportamento, sendo o nexo de causalidade entre a doença e o labor presumido, por força do
Decreto n. 3.048/99 e da Instrução Normativa INSS/PRES n. 31. No caso concreto, ausente prova
suficiente para afastar a presunção legal, bem como a existência de ato ilícito pela reclamada, qual
seja, deixar de fornecer e fiscalizar o uso de EPIs, o que deveria ser observado com maior rigor, ante
a natureza de risco da atividade. A opinião de perito não é suficiente para elidir a presunção, diante
das provas robustas existentes nos autos em sentido contrário. Inteligência do art. 436, do CPC.
Presentes, pois, o ato ilícito, o nexo de causalidade presumido e o dano (incapacidade para o trabalho)
devida a responsabilização civil do empregador. Rel. Des. Ricardo Tadeu Marques da Fonseca.

É um caminho, uma luz, que, quem sabe, sensibilize os juízes a perceber as


incoerências nos laudos, que os peritos não são assim tão de confiança, e passem a
decidir com suporte no art. 21-A da Lei n. 8.213/1991 e Instrução Normativa
INSS/PRES n. 31. Se houver essa mudança de postura, os abusos com certeza diminuirão.
Processos que envolvem acidentes de trabalho e doenças ocupacionais preocupam
tanto que, em maio de 2011, o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro
João Orestes Dalazen, expede uma recomendação conjunta, subscrita também pelo
Ministro José Antônio Barros Levenhagen, Corregedor-geral da Justiça do Trabalho,
que orienta os desembargados e juízes do trabalho a dar prioridade de tramitação e
julgamento aos processos que envolvam acidentes de trabalho, e o faz em face da
constatação da OIT de que em 2009 ocorreram 723.542 casos de acidentes de trabalho,
que resultaram em 2,5 mil mortes, ou sete mortes por dia.
É louvável a iniciativa de priorizar ações que envolvam acidente de trabalho e
doenças ocupacionais. É um grande avanço. Porém é preciso avançar mais. A Justiça
do Trabalho não pode continuar refém de médicos que fazem perícia sem respeitar
efetivamente o compromisso legal. É preciso que os tribunais passem a contar com
quadro próprio de peritos, de modo a tornar mais confiáveis as perícias médicas e
ambientais.
Em Pinhais e em São José dos Pinhais, no Paraná, sob a justificativa de celeridade,
se adota procedimento perigoso, capaz de deixar o trabalhador ainda mais
desamparado. É que nessas varas trabalhistas, num procedimento pioneiro, a perícia
é feita em plena audiência e as partes se manifestam na própria audiência. Manifestar-
-se sobre laudo pericial médico em audiência é jogar no lixo o direito do trabalhador.
Seria ótimo se os peritos fossem confiáveis, mas a prática revela que não são confiáveis,
e aí o advogado tem que se manifestar sobre um tema que não é da sua formação
profissional e não tem condições sequer de buscar elementos para uma impugnação
razoável. Assim o processo caminha rápido, rumo à improcedência.

7. A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO

O Ministério Público do Trabalho tem feito um trabalho preventivo muito


bom, de grande relevância social; faz o possível para resgatar a dignidade do
194
trabalhador; instaura inquéritos, investiga, colhe provas, propõe ajuste de condutas
e ajuíza ações civis públicas nos casos mais graves. Mas, são apenas algumas indústrias
as investigadas, as maiores. O MPT precisa de estrutura para ampliar sua ação. Por
enquanto, faz o possível.
A constatação de que a precariedade das condições de trabalho compensa, dá
mais lucro, leva à resistência de investir em segurança, e de oferecer um meio ambiente
de trabalho salubre e seguro, que contribua para evitar acidentes ou doenças
ocupacionais. O Desembargador Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, conferencista
num encontro jurídico sobre saúde do trabalhador, em agosto de 2011, na
Universidade Estadual de Londrina, relata episódio de sua atuação como membro
do Ministério Público do Trabalho em Campinas, quando teria tomado
conhecimento de que uma empresa rural, de plantação e cultivo de laranjas, estaria
submetendo seus trabalhadores braçais a um inusitado banho de agrotóxico, para
evitar a contaminação dos laranjais. Para se adentrar nos pomares, a administração
da fazenda exigia que o trabalhador se submetesse a esse estranho banho. Aí, o então
Procurador Ricardo dirigiu-se à fazenda, onde o médico do trabalho lhe afirmou
que o tal banho seria absolutamente inofensivo: — Se é inofensivo — diz ao médico
—, eu quero ver se é verdade; eu quero tomar esse banho. — Não, doutor; o senhor não
pode. — Por que não pode, se eles podem? — O senhor é doutor, não pode... Então, o
dinâmico Procurador Ricardo Tadeu submeteu-se ao banho, e a reação foi a única
possível: baixou hospital para se recuperar da intoxicação. Assim são os abusos, por
mais exagerados que sejam.

8. CARNE E OSSO — AS IMAGENS DA TRAGÉDIA

De 9 a 10 de agosto de 2011, aconteceu no Anfiteatro Maior do Centro de


Letras e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Londrina importante fórum
sobre saúde do trabalhador, prestigiado pelo TRT da 9ª Região, oportunidade em
que foi lançado pela LTr Editora, o livro Trabalho e saúde: a precarização do trabalho
e a saúde do trabalhador no século XXI, organizado por Giovanni Alves, André Luís
Vizzaccaro-Amaral e Daniel Pestana Mota. Na pré-abertura do evento, os presentes
assistiram a um documentário, com duração de 65 minutos, que mostrou a rotina
de trabalho nas indústrias frigoríficas(50), que chocou pela simplicidade e crueza das
imagens; mostrou a vida das famílias dos trabalhadores, as pequenas vilas, o início
do trabalho, o abate de bois, porcos e aves, o corte da carne, a desossa, a separação,
o embalamento, os movimentos repetitivos, os acidentes e mutilações, as
subnotificações e o abandono de trabalhadores lesionados, às vezes, mutilados, à
própria sorte. Havia entrevistas com magistrados, procuradores do trabalho,
médicos e fisioterapeutas. Terminada a apresentação, o espectador foi é tomado

(50) CARNE E OSSO. Realização: REPORTER BRASIL. Prod. HASHIZUME, Maurício. 2011.

195
daquele sentimento de angústia, de impotência, de inconformismo e de sede de
justiça. O filme foi apresentado também na Universidad Arcis, em Santiago, no
Chile, em 29.11.2011, num evento jurídico internacional promovido pela ALAL —
Associação Latinoamericana de Advogados Trabalhistas —, e causou o mesmo
impacto e indignação.
Os tribunais do trabalho deveriam adquirir uma cópia e exibir para seus juízes,
mesmo porque é uma produção que conta com o apoio da ANAMATRA. Talvez, os
juízes se sensibilizem um pouco diante da tragédia real a que tem a oportunidade de
assistir, refletir e formar juízo de valor.
Bom seria se os produtores do documentário não parassem aí, e dessem
prosseguimento ao projeto, e focassem também outras áreas, como indústrias
metalúrgicas, de montagem, inclusive automobilística, e indústrias químicas, a
indústria do petróleo.

9. CONCLUSÃO

Ao término deste mergulho na história e retorno a 2012, a reflexão traz angústia,


dúvida e esperança. O princípio da dignidade do homem não admite retrocesso,
mas a legislação empaca, existe no papel, existe de modo virtual, e não consegue vida
efetiva no universo das relações de trabalho, em que pese o empenho e dinamismo
do Ministério Público do Trabalho. Os fortes ventos de degradação do valor do
trabalho que vem da China fortalecem ainda mais a mentalidade que repele a
legislação afirmativa da dignidade do trabalho e do trabalhador, e é esse o desafio
atual. Como enfrentar o mar agitado, as ondas colossais e as avarias no barco da
dignidade? Ele é forte, suporta os vendavais, tem a força cogente do MPT e permite
a esperança. Em terra firme, ao lombo de Rocinante, na luta contra dragões e
moinhos, a batalha é contra um conjunto de forças insanas que se articula para
destruir o arcabouço do conhecimento humanista e os direitos fundamentais
duramente conquistados e consolidados. Na angústia e na dúvida, resta um
enigmático “será?” dos belos versos da melodia de Dado Villa-Lobos:
Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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mercado-local-diz-foxconn.shtml>. Acesso em 9.3.2012.
9) Império Romano assume o Cristianismo: <http://www.netforall.com/users/d/i/g/digitalmatos/
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10) Jornada de trabalho e suicídios na China: <http://www.controversia.com.br/
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11) Médico confessa ter alterado exame: Processo 0521900-41.2006.5.09.0896. <http://
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15) Trabalho escavo no século XXI: <http://reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1908>. Acesso
em: 6.3.2012.

198
Capítulo 10

APUNTES SOBRE LA DIMENSIÓN COLECTIVA


DE LA PRECARIEDAD LABORAL

Francisco José Trillo Párraga

1. TRANSFORMACIONES EN EL MUNDO DEL TRABAJO Y PRECARIEDAD


LABORAL

El momento actual resulta muy sugerente para el estudio de las relaciones


laborales y del conjunto de normas que ordenan — y desordenan — la relación
entre empresario y trabajador. Más aún, la crisis sistémica a la que asistimos desde el
año 2008 impulsa la necesidad de indagar sobre la configuración de una sociedad
que se dice fundamentada en las relaciones de producción capitalista. Esto es, en la
consideración de que la sociedad se conforma por individuos que se insertan en
grupos en función de la posición que ocupan en el sistema de producción capitalista.
Posiciones que, como se sabe, autorizan una desigualdad social desde el momento en
que la relación de trabajo por cuenta ajena aparece caracterizada por la
subordinación del trabajador respecto del empresario. Esta subordinación jurídica,
también económica y social, se configura políticamente como contrapartida necesaria
del sistema por la cual el trabajador accede a una serie de derechos individuales y
colectivos que le otorgan el status de ciudadano.
Las posiciones identificadas tradicionalmente en las relaciones laborales
aparecen, pues, ligadas al hecho de la propiedad y a su intercambio: la propiedad de
los medios de producción y la propiedad de la fuerza de trabajo. De este modo, se ha
dado acomodo a las categorías sociales de empresario y trabajador y se han creado
las condiciones para el establecimiento de un contrato social por el cual el empresario
mantiene una posición dominante en la sociedad capitalista a cambio de la garantía
de la denominada ciudadanía laboral de los trabajadores. Hoy, sin embargo, estas
posiciones sociales no atienden exactamente a aquella distinción clásica entre
propietarios de los medios de producción y propietarios de la fuerza de trabajo, ni
como derivada al intercambio entre una y otra.
Del lado del empresario, se asiste a la disolución de la noción clásica de empresa
centrada en la reunión de tres elementos fundantes: organización productiva
autónoma; empresa empleadora y; empresa como centro de decisión sobre un
199
capital(1). La ruptura de la identidad de estas tres manifestaciones de la noción de
empresa ha introducido dosis altas de desestabilización del corpus normativo llamado
Derecho del Trabajo que tiene por objetivo la canalización del conflicto social y la
búsqueda del bienestar de las clases trabajadoras. Tratemos de desbrozar
sintéticamente los factores de ruptura de los diversos elementos constitutivos de la
noción de empresa.
La empresa organización productiva autónoma, donde se materializa la reunión
colectiva de trabajadores en torno a la producción de un mismo bien o servicio,
aparece descompuesta en una pléyade de relaciones complejas entre empresas para
la producción de un determinado bien o servicio. Dichas formas de organización
compleja comparten una base común, el dilema entre producir en la empresa o
contratar en el mercado determinadas fases de la producción. El presupuesto común
de este dilema, el incremento del beneficio empresarial, concentra la atención sobre
los denominados costes transaccionales, dando paso a una relación entre beneficio
empresarial y constante disminución del coste de una fuerza de trabajo igualmente
descompuesta (2) . Esta descomposición del lugar de trabajo, como se tendrá
oportunidad de profundizar más adelante, comporta fuertes consecuencias en la
toma de conciencia de la solidaridad, organización y movilización de los trabajadores.
La empresa centro de decisión sobre un capital ha dejado de ser el paradigma
mayoritario para, producto de la aparición de la figura de la “empresa compleja”,
dar paso a una pluralidad de centros decisionales sobre un capital que redimensionan,
por lo demás, el carácter privado del mismo. En efecto, la relación entre empresa y
Estado, hoy, va más allá de los límites de intervención del último sobre la economía.
Se asiste a una relación donde un determinado capital se conforma, promiscuamente,
por lo público y lo privado. En este sentido, en su cara más peyorativa, basta echar
un vistazo a los escándalos de corrupción que ponen en relación los espacios públicos
con los intereses privados o al modo en que la deuda privada se convierte en pública.
Por su parte, la empresa empleador ha asistido a fuertes convulsiones producto
igualmente de la aparición de la figura de la empresa compleja, que encuentra su
origen en la figura del empresario persona jurídica(3). A este respecto, la problemática
se presenta en términos de representación y apoderamiento de los intereses
empresariales en la figura de la persona del empleador con la cual el trabajador
concluye un contrato de trabajo. Así, se asiste a una situación cada vez más
generalizada donde el empleador con el que el trabajador estipula su contrato de

(1) J. FREYSSINET, “Quels acteurs et quels niveaux pertinents de représentation dans un système
productif en restructuration? Revue de L'ires, n. 47- 2005/1, p. 321.
(2) Cfr. R. COASE, “La naturaleza de la empresa”, en La empresa, el mercado y la ley. Madrid: Alianza,
1994. p. 33-49.
(3) Una lectura imprescindible y anticipatoria, en VARDARO, G. “Prima e dopo la persona giuridica:
sindacati, imprese di gruppo e relazioni industriali”. GDLRI, n. 38, 1998, p. 203 ss.

200
trabajo no posee la capacidad de organización y dirección vista su dependencia
financiera y organizativa respecto de otra u otras empresas.
El alejamiento entre sí de estos tres elementos fundantes de la noción de empresa
actúa de modo decisivo en la eficacia de su par antagónico, identificado en el Derecho
del Trabajo. Más allá de este hecho objetivo, el desajuste entre realidad social y
normativa laboral es, a nuestro juicio, uno de los factores desencadenantes de la
llamada precariedad laboral. O lo que es lo mismo, la ruptura entre las nociones de
empresa capital, empresa empleadora y empresa centro autónomo de organización
de una determinada producción de bienes y/o servicios provoca en la práctica que
las reglas del Derecho del Trabajo, diseñadas sobre la noción clásica de empresa,
aparezcan ineficaces en el momento actual.
En el ámbito de la noción de trabajador, la insatisfacción del criterio jurídico
dominante(4) para la incardinación de aquél en una determinada posición social, ha
arrastrado consecuencias de gran calado en la eficacia de la tutela de la normativa
laboral y en la entronización de la sociedad salarial. De este modo, se verifica una
situación de fragmentación — dentro y fuera del concepto más formal de trabajador —
tendente a la degradación de las condiciones de trabajo y vida de las personas que
ocupan una posición en la sociedad donde su modo de integración pasa únicamente
por el trabajo que prestan en régimen de subordinación. Así resulta muy familiar
oír hablar de diversas categorías de trabajadores, por cuenta ajena con una relación
común o especial; trabajadores autónomos dependientes económicamente; falsos
autónomos etc.
En otro orden de cosas, aunque estrechamente relacionado con esta tendencia a
la estratificación de la noción de trabajador, la categoría formal de trabajador por
cuenta ajena se descompone, incluso institucionalmente en una serie de subcolectivos,
como los trabajadores jóvenes, las mujeres trabajadoras, los trabajadores migrantes,
los trabajadores indefinidos, los trabajadores temporales etc. Situación que responde
paradójicamente a procesos paralelos de integración y exclusión sociolaboral. Es decir,
a través de aquella estratificación, se fija como objetivo la inclusión de personas
trabajadoras que padecen dificultades de acceso y permanencia en el mercado de trabajo
a la vez que dicha integración se produce con niveles de tutela sensiblemente inferiores.
Debemos convenir, después de una lectura conjunta de las tendencias que se
están materializando en el ámbito de las nociones de empresa y trabajador, que el
trabajo en su sentido ontológico ha sufrido un desplazamiento político y social a
través de los cambios introducidos sucesivamente en el campo de las relaciones
laborales. Con ello, se fomenta una máxima capitalista identificada con tácticas
militares y que se resume en el principio de actuación divide et impera. Una división
entre colectivos de trabajadores, con ocasión de las transformaciones de la empresa

(4) Vid. W. SANGUINTETI RAYMOND, “La dependencia y las nuevas realidades económicas y sociales:
¿Un criterio en crisis?, TL, n. 40, 1996, p. 53 ss.

201
y/o de los trabajadores, funcional a la degradación progresiva de la concepción de la
Sociedad Salarial. A la precarización de la sociedad del trabajo.
La precariedad laboral que exuda esta fragmentación de las clases trabajadoras
y capitalistas provoca la presencia de trayectorias laborales y vitales bien distintas
que, a su vez, implican diferentes modos de estar en sociedad. El efecto inmediato de
la precariedad laboral y vital, se puede resumir en la ausencia de participación,
representación e integración social de todos aquellos trabajadores que ven
precarizados sus proyectos laborales y vitales. Esta ausencia de participación,
representación e integración social conforma sin lugar a dudas la voluntad del
individuo afectado por tal panorama. Se trata, pues, de componentes de la sociedad
que viven únicamente en el presente, donde se desprenden de su pasado y no se
proyectan hacia el futuro, puesto que éste no presenta posibilidades de cambio.
Dicho de otro modo, la precariedad laboral provoca un efecto de inmovilismo social
y político vista una determinada representación del individuo de sí mismo en una
Sociedad muy distante de su materialidad laboral y vital.
En última instancia, la realidad del precario arma, o al menos permite armar una
explicación de la precariedad laboral — también social — como parte de un
movimiento social que, lejos de tender a la individualización de las relaciones sociales
como suele afirmarse categóricamente, expresan, reformuladas, solidaridades entre
trabajadores, entendidos éstos en su sentido ontológico, que no deja de ser también
material. O lo que es lo mismo, no cabe esperar que la precariedad laboral arme una
solidaridad en torno al trabajo, cuando es éste precisamente el elemento que distancia
al trabajador de la Sociedad. Por mucho que, en ocasiones, se despliegue un silogismo
del tenor siguiente: quien padece una situación injusta — en nuestro caso, la precariedad
laboral — debería mostrar una conducta reactiva contundente en sentido opuesto y
de la misma intensidad que la recibida — movilización y protesta social.
La problemática resulta mucho más compleja desde el momento en que una
gran parte de la Sociedad son trabajadores precarios, en el mejor de los casos, que no
han conocido otra situación distinta. Es más, su identificación con el calificativo de
precarios deviene imposible por la inconsciencia de su propia situación. Repárese
que para saber identificar una situación laboral como precaria, se necesita saber
igualmente qué situación laboral no lo es. Muchos trabajadores no hemos conocido
otra situación que la de la precariedad laboral, aunque tal noción no la hayan tenido
que contar otros(5).

(5) Resulta muy enriquecedor el texto de ANISI, D. Creadores de escasez. Del bienestar al miedo. Madrid:
Alianza, 1995. p. 15 ss. “Debo comenzar recordándome a mí mismo, y también a ti lector occidental,
que en el caso de que el que lea estas páginas tenga alrededor de veinte años su memoria personal sólo
podrá referirse a tiempos de crisis. Ese lector estará acostumbrado a convivir con el desempleo, con la
marginación y la pobreza. Un trabajo fijo será para él una meta imposible, y probablemente ya habrá
trabajado por cuenta ajena sin ningún tipo de contrato legal. Sabrá que conseguir una vivienda es algo que
de momento no puede plantearse, y no extrañará cuando vea cómo se privatiza la educación y la sanidad.

202
2. PRECARIOS Y TRABAJO: IDENTIDADES MÁS ALLÁ DEL TRABAJO

El trabajador precario, como se ha tenido ocasión de comprobar, no es


consciente de su propia condición. Tal vez porque no exista dicha categoría de
trabajadores (precarios), sino que ésta se localice de forma transversal en las relaciones
laborales. O tal vez porque éste no ha experimentado otra existencia laboral que no
sea la precariedad. En cualquier caso, el trabajador que padece situaciones de
precariedad mantiene una relación distante, en ocasiones ajena, al mundo del
trabajo. No en vano, padece una suerte de exilio hacia los confines laborales, muy
próximo, en ocasiones, a la propia exclusión social. Dicho de otro modo, la identidad
que habitualmente se forja a través de la inserción en el trabajo no se puede esperar
de un colectivo de trabajadores — cada vez más importante cuantitativa y
cualitativamente — que se coloca extramuros de la propia condición de trabajador.
Así las cosas, se podría llegar a la conclusión, de forma algo apresurada, que la
dimensión colectiva del trabajo deja paso a un proceso progresivo de
individualización de las relaciones sociales. Con ello, el desarme de las clases
trabajadoras y la simplificación política de la llamada cuestión social, reduciendo el
trabajo subordinado a una visión esencialmente mercantil y patrimonialista. Sin
embargo, lo cierto es que una afirmación de este tipo se debe confrontar con la
diáspora de identidades emergentes y fragmentadas con la que los trabajadores
aparecen comprometidos al día de hoy: el género, la nacionalidad, la edad… Todas
estas solidaridades que no tienen como centro gravitatorio exclusivo al trabajo sí
que, como contraposición, se forjan y desarrollan en el ámbito de las relaciones
laborales, dando paso a una reformulación de la tradicional visión de la solidaridad
entre trabajadores.
Ahora bien, el sujeto representativo clásico de la solidaridad obrera, el Sindicato,
cuenta con especiales dificultades a la hora de internalizar dicha reformulación de
aquella solidaridad entre trabajadores. El resultado, es una pérdida de centralidad
de la representatividad de aquél y la aparente sensación de disolución de la identidad
del trabajo. Si a ello se unen los efectos que provocan la precariedad laboral en su
vertiente más material, la exclusión social, la consecuencia inmediata aparece
disfrazada de una pérdida de centralidad del trabajo y de sus representantes.
Esta última situación, la aparente pérdida de centralidad del trabajo en la
conformación de las sociedades capitalistas, guarda estrecha relación con uno de los
factores que explican, desde una óptica política, la crisis actual y que resulta uno de

Estará tan acostumbrado, a los “vigilantes jurados” que no verá en ellos la privatización, también, de parte
de lo que fue un importante servicio público. No se escandalizará cuando se hable de “flexibilizar el
mercado de trabajo”, puesto que él ya se encuentra suficientemente “flexibilizado” desde que tiene uso
de razón. Y cuando oiga hablar de los problemas de las pensiones de jubilación le parecerá simplemente
que el tema no va con él. Voy a tratar de contar aquí, a ese lector, que las cosas no fueron así siempre”.

203
los fenómenos menos destacados desde el ámbito de las Ciencias Sociales y Jurídicas:
la relación entre trabajo y vida analizada desde la polarización entre rentas del
capital y rentas del trabajo a la que se asiste en la actualidad y, que en última instancia
tiene que ver con aquel contrato social resumido en la ciudadanía laboral que acepta
como contrapartida la subordinación de ciertos grupos sociales respecto de otros.
Veamos alguna serie de datos que permitan expresar mejor esta situación.
Para ello tomaremos como ejemplo a EE.UU. En primer lugar, cabe destacar
cómo para encontrar resultados tan llamativos en las rentas del capital y del trabajo
hay que remontarse a los años posteriores a 1929. En segundo lugar, a comienzos de
la década de los años 80, el uno por ciento de la población que pagaba impuestos en
EEUU recibía el 8% de la renta nacional. Tal proporción, para el año 2007, ha
experimentado un incremento hasta llegar al 18% de la renta nacional. En resumidas
cuentas, existe una enorme concentración tanto de la renta como de la propiedad,
en los sectores superiores de renta del país, alcanzando una polarización sin
precedentes desde la Gran Depresión(6). En general, se puede afirmar que el siglo XX,
continúa en la misma línea el XXI, ha finalizado con record histórico en materia de
desigualdades y polarización de rentas. Un tercio de los habitantes del planeta
concentra todos los recursos, mientras que los dos tercios restantes no tienen
prácticamente nada(7).
Esta situación, por muchas razones técnicas que se puedan argüir al respecto,
solo se puede explicar desde el fenómeno de una determinada repolitización de la
economía.

3. REPRESENTACIÓN DE LOS TRABAJADORES: EL SISTEMA ESPAÑOL

La prolongación de unas relaciones laborales autoritarias, consecuencia de la


larga noche del franquismo, han contribuido sensiblemente al diseño del marco sindical
y de la representación colectiva, pasando de una desorientación generalizada en los
primeros momentos de la transición política a un impulso firme, desde los años 80
del siglo pasado, del modelo español de representación de los trabajadores en los
lugares de trabajo.
En efecto, el Estatuto de los Trabajadores de 1980 colocó los cimientos de dicho
modelo dual, atravesado por el criterio de la audiencia electoral como “medidor” de
la representación en los lugares de trabajo y de la representatividad sindical. De este
modo, el voto expresado por los trabajadores tiene como finalidad dilucidar la
concreta representación de los trabajadores en los lugares de trabajo (delegados de

(6) V. NAVARRO, “Las causas políticas de la crisis mundial”, en Nueva Tribuna, de 6 noviembre 2009.
(7) Así, al día de hoy se cuenta con un coeficiente global de Gini que arroja una desigualdad del 0,67%.
Vid. PISARELLO, G. Los derechos sociales y sus garantías. Elementos para una reconstrucción. Madrid:
Trotta, 2007. p. 11 ss.

204
personal y comités de empresa) así como contrastar la representatividad de las
diferentes opciones sindicales en los diferentes ámbitos territoriales y sectoriales(8).
De este modo, el marco de representación colectiva queda materializado en
dos tipos de representaciones, unitaria y sindical.
a) La representación unitaria se ha erigido tradicionalmente en un organismo
normalmente sindicalizado abierto a todos los trabajadores, que se materializa
en la asamblea como lugar de debate y toma de decisiones. El sistema de elección
de esta representación se construye a partir del sufragio personal, directo, libre
y secreto, en el que se debe alcanzar al menos un 5% de los votos por cada
colegio de electores (art. 71.2 ET). De tal forma, que los componentes que
determinan esta representación unitaria son la circunscripción electoral (centro
o lugar de trabajo) y la unidad electoral (trabajadores).
b) La representación sindical, por el contrario, se caracteriza por ser de base
asociativa. En ella se agrupan la totalidad de trabajadores de una empresa,
grupo de empresas o centro de trabajo afiliados a un determinado sindicato.
Pueden así coexistir tantas representaciones sindicales (secciones sindicales)
como sindicatos estén implantados en una misma unidad productiva. Así, por
una parte, las secciones sindicales se erigen en instancias organizativas internas
del sindicato, manteniéndose éstas unidas al sindicato a través de su integración
directa; por otra, las secciones sindicales se muestran como representaciones
externas a las que la ley les confiere determinadas ventajas y prerrogativas,
siempre que éstas cuenten con implantación en la representación unitaria o
pertenezcan a sindicatos representativos o más representativos. Con todo, la
constitución de secciones sindicales es un derecho de titularidad individual que
corresponde a los trabajadores afiliados a un sindicato.
En definitiva, se puede afirmar que el modelo español de representación de los
trabajadores en los lugares de trabajo se caracteriza por la absoluta centralidad de
la audiencia electoral.

Tasa cobertura
Tasa de Afiliación Tasa de Representación
negociación colectiva
2,8 millones 8,7 millones trabajadores 11 millones trabajadores
19,7% población asalariada 56% población asalariada 74% población asalariada
CCOO: 1,2 millon 6,6 millones población asalariada. Composición mesas
UGT: 0,9 millon 76% audiencia electoral entre negociadores: CCOO, 39,45%;
CCOO y UGT UGT, 16,93%

(8) La Ley Orgánica 1/1985, de Libertad Sindical introdujo, perdurando hasta el día de hoy, tres niveles
de representatividad sindical: a) sindicatos más representativos a nivel estatal (art. 6.2 LOLS); b) sindicatos
más representativos a nivel de comunidad autónoma (art. 7.1 LOLS) y; c) sindicatos representativos en
un determinado sector y ámbito territorial Dicha representatividad sindical otorga una especial posición
jurídica a aquellos sindicatos que hubieran alcanzado un determinado porcentaje de la audiencia electoral
según el ámbito de la representatividad.

205
Esta dualidad de la representación de los trabajadores en los lugares de trabajo
converge, sin embargo, cuando se trata de negociar en la empresa o centro de trabajo,
ya que el ordenamiento jurídico español exige, de cara a la composición de la
comisión negociadora y a la posterior adopción del acuerdo, que las secciones
sindicales legitimadas inicialmente -aquéllas con presencia en la representación
unitaria o de sindicatos más representativos- sumen la mayoría de los miembros de
la representación unitaria.
Así, se puede afirmar que el modelo de legitimación negocial en el ámbito de la
empresa se encuentra atravesado también por el criterio de la audiencia electoral,
excepto en lo que atañe a la negociación de convenios de franja, donde el voto de los
representados a una o varias secciones sindicales se constituye en el criterio de
legitimación para negociar estos convenios de franjas de trabajadores(9).

4. REPENSANDO LOS CONCEPTOS DE TRABAJADOR Y LUGAR DE TRABAJO

La representación de los trabajadores en los lugares de trabajo exige un análisis


que, por un lado, aborde aquellos aspectos relacionados con el modo, contenido,
ejercicio y garantías de la labor de representación y, por otro, resulta imprescindible
una reflexión sobre el significado y alcance del concepto de lugares de trabajo y de
trabajador.
El concepto de lugar de trabajo, con mucha probabilidad, ha sido una de las
cuestiones más descuidadas en los estudios del iuslaboralismo, debido
fundamentalmente a su imbricación con el Derecho Mercantil y con la forma-
organización de la empresa. De este modo, la aparición del empresario persona
jurídica (10) no ha provocado en el ámbito del iuslaboralismo un correlativo
repensamiento del concepto de lugar de trabajo, como tampoco ha espoleado al
estudio de esta materia situaciones cada vez más frecuentes en las relaciones laborales
como la descentralización productiva, grupos de empresa, deslocalizaciones o,
finalmente, la existencia de trabajadores transnacionales. En definitiva, todas aquellas
transformaciones operadas sobre la empresa fordista, descomponiéndola en una
pléyade de unidades, pero concentrando contemporáneamente el poder económico,
constituyen un reto tanto para el Sindicato como para la normativización de las
relaciones laborales.
Este comportamiento de la doctrina iuslaboralista parece haber contagiado
igualmente los espacios de (no) reflexión en el seno del Sindicato, dotándose éste de

(9) Esta convergencia entre representación unitaria y sindical no se produce curiosamente en los
denominados convenios colectivos de franja, dirigidos a grupos de trabajadores con perfil profesional
específico, donde estarán legitimadas para negociar las secciones sindicales que hayan sido designadas
mayoritariamente por sus representados a través de votación personal, libre, directa y secreta (art. 3. Uno
RD-Ley 7/2011, de 10 de junio, de medidas urgentes de reforma de la negociación colectiva).
(10) VARDARO, G. Prima e dopo la persona giuridica…

206
una estructura y organización en los lugares de trabajo típicamente fordista, donde
la representación de los trabajadores se realiza en la empresa sin advertir las relaciones
de interdependencia con otras empresas que conforman un entero proceso de
producción. Además, la representación de los trabajadores se expresa y materializa
en relación con la adscripción de la empresa a una determinada rama de actividad,
descuidando de nuevo uno de los aspectos más relevantes y novedoso como es la
reunión en un mismo lugar de trabajo de diferentes ramas de actividad que, además,
se adscriben contractualmente a diferentes empresas.
Por otra parte, el significado y alcance del concepto de lugar de trabajo alberga
una reflexión, algo más metafísica, relacionada con las transformaciones subjetivas
operadas en el proceso de producción. A este respecto, se pretende evidenciar cómo
la representación de los trabajadores en los lugares de trabajo implica una selección,
incluyente y excluyente al mismo tiempo, de las situaciones en las que la persona del
trabajador aparece protegida por la labor de representación sindical. Esto es, el
momento de la biografía laboral que selecciona la representación de los trabajadores
es aquel en el que el trabajador se inserta en la empresa bajo una lógica estrictamente
productivista.
Las biografías laborales actuales, caracterizadas tanto por las constantes
transiciones del empleo al desempleo como por el carácter temporal del vínculo de
adscripción del trabajador a la empresa, cuestionan un modelo de representación
de los trabajadores que solo atiende a aquellos momentos en los que el trabajador
aparece inserto en la producción de bienes o servicios. O lo que es lo mismo, se
verifica una ausencia de representación de los trabajadores en todas aquellas fases en
las que los trabajadores, manteniendo materialmente su condición como tal, no se
insertan en la dinámica del proceso de producción.
Este hecho constituye uno de los mayores retos para la representación de los
trabajadores y para el propio Sindicato, ya que, en última instancia, se trataría de
profundizar en la vertiente sociopolítica de éste. A este respecto, la representación
de los trabajadores debería adoptar una plataforma reivindicativa más rica y variada
que de cuenta de las diferentes identidades sociales que, si bien, no tienen su ámbito
de expresión en el lugar de trabajo guardan una estrecha relación con la persona que
trabaja. Nótese que aquellos trabajadores con una relación esporádica con el trabajo,
con transiciones constantes del empelo al desempleo o aquellos otros con relaciones
laborales de carácter temporal, difícilmente pueden entablar un diálogo con la
representación de los trabajadores en el sentido clásico del término.
La representación de los trabajadores en los lugares de trabajo, además de
erigirse en instrumento básico de desarrollo de la acción sindical en la empresa,
desarrolla un papel protagonista en el proceso de creación, conformación y aplicación
de reglas en el espacio empresa. Esto es, la representación de los trabajadores en los
lugares de trabajo implica obligatoriamente entablar una determinada dialéctica
con el proceso de conformación del conjunto de reglas que ordenan las relacionas
207
laborales en la empresa. Y ello, con independencia de la visibilidad concreta que la
labor de representación de los trabajadores pueda alcanzar en el proceso posterior
de formalización, autónomo y/o heterónomo, de dichas reglas.
La función de representación de los trabajadores llena, pues, de contenido el
proceso de creación y aplicación de normas a través fundamentalmente de la acción
colectiva y el conflicto, creando una trabada relación de dependencia entre capacidad
de representación, articulación del conflicto y juridificación de las relaciones laborales
en la empresa. Este rico e interesante diálogo entre representación, conflicto y
creación/interpretación de reglas no agota su potencialidad en el espacio empresa,
sino que tiende a ocupar un lugar, más o menos indeterminado, en el intrincado
espacio de la regulación sociojurídica de las relaciones laborales, llegando a
desarrollar mediaciones entre los diferentes ámbitos de creación normativa.
De este modo, la emanación de una normativa laboral de aplicación general,
como por ejemplo aquélla que suele derivar clásicamente de una situación de crisis
económica, se encuentra siempre condicionada, tanto en el momento de gestación
como en el de aplicación concreta, por el binomio representación/conflicto en los
diferentes lugares de trabajo. Sin embargo, a la hora de analizar el momento de
creación normativa, particularmente en momentos de recesión económica, se suele
adoptar un análisis unívoco y vertical de la correlación de fuerzas imperante en un
determinado momento, anulando artificiosamente la variedad de las resultantes de
fuerza presentes en los lugares de trabajo.
Así, la hegemonía política y cultural imperante en las relaciones laborales en
un dado momento no puede — ni debe — confundirse con la inexistencia de una
variedad y complejidad de situaciones de fuerza que pueden estar operando
contemporáneamente en diferentes espacios. Una lectura uniformadora de la
correlación de fuerzas, identificada con el pensamiento hegemónico imperante,
puede traer como resultado la sensación de incapacidad de la acción colectiva en
aquellos momentos especialmente hostiles a ésta, cuando precisamente las
posibilidades de cambio y transformación política y cultural suelen aparecer en
espacios donde la resultante de fuerzas no se alinea plenamente con aquella hegemonía
política y cultural.
A nuestro modo de ver, resulta decisivo un tipo de análisis que de cuenta de la
variedad y complejidad de lo que se denomina correlación de fuerzas, de cara, por
un lado, a afrontar el debate de la articulación de estrategias sindicales en momentos
donde la hegemonía política y cultural muestra una sensible hostilidad hacia la
acción sindical; por otro, en relación con la identificación de los distintos ámbitos
desde los que intervenir con la finalidad de subvertir, o al menos suavizar, aquel
pensamiento hegemónico.
La representación de los trabajadores en los lugares de trabajo, y sus
instrumentos de acción — fundamentalmente la articulación y expresión de los

208
conflictos sociolaborales que surgen en la empresa —, resulta de vital importancia
en la construcción de correlaciones de fuerza que resistan, o incluso transformen,
realidades jurídicas adversas y contrarias a los intereses de los trabajadores.
Por todo ello, la función de representación de los trabajadores en los lugares de
trabajo constituye un acicate imprescindible en la construcción normativa de las
relaciones laborales como resultado, normalmente, del planteamiento y desarrollo
de conflictos sociolaborales.

5. ALGUNAS REFLEXIONES FINALES: PRECARIEDAD


Y TRABAJADORES JÓVENES

Los procesos paralelos de deconstrucción y construcción del modelo de sociedad


donde el trabajo ha sido pretendidamente alejado de su relación con la ciudadanía,
han arrojado como consecuencia un sentimiento de extrañeza de los trabajadores
más jóvenes respecto del trabajo. A dicha situación se le debe unir la precariedad
laboral que azota con intensidad a este colectivo, dificultando cualquier posible
vínculo identitario entre los jóvenes y el trabajo. La combinación de, por un lado, la
artificiosa separación entre trabajo y ciudadanía a través del fomento de un consumo
financiado, más allá de las condiciones de empleo y trabajo, junto a la
sobreexplotación de este colectivo repercute en última instancia en su condición de
ciudadanos. Más aún en el momento actual donde el consumo vuelve a indexarse
mayoritariamente con las condiciones de trabajo y empleo. Por ello, con carácter
general, cualquier reforma en este ámbito debe tener como objetivo la recuperación
de la relación entre trabajo y ciudadanía, ya sea en la dimensión de la estabilidad en
el empleo como en la de la mejora de las condiciones de trabajo.
Estrechamente relacionado con lo anterior, se debe insistir en la transformación
de la consideración del colectivo de trabajadores jóvenes como una especie de
potenciales ciudadanos en sociedad, que en tanto y en cuanto no adquieran la
condición de trabajadores adultos no verán reconocida plenamente su condición de
ciudadanos. Repárese en que casi un 7% de los hogares en España, unos 16,1 millones,
tienen como responsable de la vivienda a una persona menor de treinta años. Cifra
ésta que crece exponencialmente cuando se trata de jóvenes que trabajan, donde la
mayoría viven en sus casas, ya sea en viviendas de alquiler que en propiedad(11).
En el ámbito más estricto del trabajo, la consideración de los trabajadores
jóvenes mantiene todavía reminiscencias de tiempos pasados donde los jóvenes y las
mujeres eran vistos como fuerzas medias. De tal forma, que el trabajo a desarrollar
por tales fuerzas medias era exactamente igual que el de los varones, cabezas de
familia, pero su reconocimiento retributivo y social era sensiblemente inferior.

(11) Fuente: Encuesta de Condiciones de Vida (2007).

209
Situación muy relacionada con el denominado salario familiar, donde el padre
aportaba al hogar la fuente principal de ingresos, mientras que el salario de mujeres
y jóvenes constituía un modo de completar aquella fuente de ingresos. Este hecho
constituía — y constituye — un fuerte obstáculo, como se sabe, en la emancipación
tanto de mujeres como de jóvenes. Por tanto, cualquier iniciativa en este ámbito
consistente en la reducción del estatuto jurídico de los trabajadores jóvenes como
fórmula de atracción de este colectivo hacia el empleo redunda, con carácter general,
en la consideración de este colectivo como casi trabajadores o ciudadanos
disminuidos. De ahí que las propuestas que hasta ahora se han escuchado al respecto
deban ser rechazadas contundentemente. Aquella que tiene que ver con la
potenciación del trabajo a tiempo parcial para este colectivo de trabajadores parece
que tiene como destinatario a todos aquellos jóvenes que estando en un momento
formativo deciden combinar estudios y trabajo, con lo que no se puede reputar una
medida que venga a paliar el desempleo masivo que padecen los trabajadores más
jóvenes. Por su parte, la propuesta de la patronal es el paradigma exacerbado de las
prácticas empresariales mantenidas durante décadas: trabajo sin derechos. O lo que
es lo mismo, la patrimonialización absoluta de las relaciones laborales.
Después de una larga experiencia en la relación entre trabajo y empleo después
de treinta años de reformas laborales, se está en condiciones de afirmar que la creación
de empleo no puede defenderse a cualquier precio. La aceptación de que el empleo
juvenil implique necesariamente importantes mermas en el conjunto de derechos y
deberes que conforma su estatuto jurídico, insiste en el rumbo dispuesto hasta el
momento que nos ha llevado a los niveles de precarización de las condiciones de
trabajo que conocemos.
De lo dicho hasta ahora, se deben destacar dos tipos de acciones para contribuir
a la mejora del colectivo de trabajadores jóvenes, una vez se dé por superado este
momento de crisis.
Por un lado, atajar el fenómeno de la temporalidad del trabajo juvenil, evitando
que la causa de la contratación temporal se reduzca a la edad del trabajador. Un
mayor control por parte de la Inspección de Trabajo y de la Seguridad Social sobre
las causas que habilitan la contratación temporal, con el objetivo final de ir
desechando aquella cultura empresarial fraudulenta. Los trabajadores jóvenes, pese
a lo que se suele pensar, no están en edad de soportar lo que les echen, por lo que su
acceso al empleo no tiene que pasar necesariamente por la temporalidad. Nótese
que, con carácter previo a la crisis, la tasa de temporalidad entre los trabajadores
jóvenes llegó durante el año 2007 hasta el 44%(12). Casi la mitad de los trabajadores
jóvenes que acceden al mercado de trabajo, lo hacen como trabajadores temporales.
De no producirse un control sobre estas prácticas ilegales en materia de contratación
temporal, cuestión del todo deseable en aras a introducir dosis de racionalidad en la

(12) Encuesta de Población Activa, 2007.

210
cuestión del empleo, se deberá abrir un debate sobre la protección social de estos
trabajadores, particularmente de aquéllos que se instalan en la temporalidad y su
biografía laboral se llena de contenido a través de las constantes entradas y salidas
del empleo.
Por otro lado, se debe hacer hincapié en las condiciones de trabajo de los jóvenes,
recuperando para este colectivo el principio de a igual trabajo, igual remuneración.
Nótese que las diferencias salariales entre trabajadores jóvenes y adultos resultan en
ocasiones muy llamativas, sobre todo cuando la legalidad vigente solo autoriza dicha
diferencia retributiva a la baja en el ámbito de los contratos formativos. No se puede
insistir sobre la idea de que los trabajadores jóvenes deban soportar desigualdades
salariales por el mero hecho de su edad. Esta situación, lejos de ser un hecho puntual
que afecta a este colectivo, implica al conjunto de trabajadores desde el momento en
que, de alguna forma la posibilidad de fuerza de trabajo a un precio sensiblemente
inferior degrada los niveles salariales del conjunto de trabajadores. En esta misma
línea, se ha de destacar la importancia de la regulación de un tiempo de trabajo que
no impida el desarrollo de los tiempos de vida de estos trabajadores. Aspectos como
la formación y el libre desarrollo de la personalidad resultan decisivos en este colectivo
de trabajadores. Más allá de la regulación convencional al respecto, el trabajo juvenil
padece de una lacra consistente en el unilateralismo en la fijación de las condiciones
de trabajo, derivada de su condición de trabajador temporal. Este sin duda es el reto
más importante en relación con los trabajadores jóvenes.

211
Capítulo 11

BREVES NOTAS SOBRE A PRECARIZAÇÃO


DA ATIVIDADE JUDICANTE

Daniel Pestana Mota

Do que vale uma justiça moderna se não se faz cessar o crescimento dos conflitos
sociais?
A resposta a tal indagação permanece, nos tempos atuais, como a sombra que
permeia a evolução das políticas de modernização da jurisdição contemporânea.
Com o advento da CF de 88, o direito de ação tornou-se um dos pilares daquilo
que se convencionou chamar de Constituição Cidadã (abre-se aqui um parêntese,
pois praticamente na mesma época, no início da década de 90, um pequeno livro de
autoria do jornalista Gilberto Dimenstein, com o título O cidadão de papel, dava
algumas notas sobre o que mais tarde viria a se evidenciar: os inúmeros direitos —
humanos e sociais — trazidos com a Constituição de 1988 não seriam capazes de se
efetivar senão no papel).
No plano da busca formal dos direitos investia-se na estratégia de tornar a
jurisdição popular. Buscar uma forma de inclusão cidadã por meio do alargamento
do direito de ação. Apostar na jurisdição como meio eficaz de garantia dos direitos
positivados.
É bom que se diga, aliás, que a Constituição Federal de 1988 se prestou a ir
onde as Constituições anteriores não foram, ampliando o princípio da proteção
jurisdicional. Referido princípio veio à lume apenas na Carta de 1946, ao dispor que
a lei não poderia excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito
individual (art. 141, § 4º).
Posteriormente, tal princípio foi repetido na Constituição de 1967 (art. 150, § 4º)
e na Emenda Constitucional n. 1 de 1969 (art. 153, § 4º).
A novidade é que a Carta Cidadã ampliaria a proteção jurisdicional ao incluir
a ameaça de direito como sendo objeto de prestação jurisdicional obrigatória.
E mais: numa alusão ao fim de uma época permeada pelo liberalismo
constitucional, a Carta de 1988 não mais falaria em direito individual, evidenciando

212
a opção do constituinte pela proteção jurisdicional agora também dos chamados
direitos meta-individuais, dos quais são espécies os direitos individuais homogêneos,
coletivos e difusos.
Nesse quadro, pouco tempo após a promulgação da Constituição, fazia-se a
conceituação de tais direitos pela via ordinária, optando-se pela utilização de uma
conceituação já expressada no Direito Consumerista através do Código de Defesa
do Consumidor, Lei n. 8.078/90, verbis:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em
juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I — interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias
de fato;

II — interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais,
de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou
com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III — interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem


comum.

Tomava corpo a nova ideia de garantia de uma jurisdição ampla, avançando


em relação às concepções individualistas.
O amadurecimento jurisprudencial e doutrinário do período posterior à
promulgação da Constituição de 1988 caminharia no sentido de tornar efetiva a
nova ordem constitucional.
De simples resposta às postulações (resposta ao pedido) caminhava-se para o
entendimento segundo o qual a jurisdição deve ser justa, rápida e efetiva. Passou-se
a falar de um tal devido processo legal substancial, aquele que
diz respeito à limitação ao exercício do poder e autoriza ao julgador
questionar a razoabilidade de determinada lei e a justiça das decisões
estatais, estabelecendo o controle material da constitucionalidade e da
proporcionalidade. (Nesse sentido, CRUZ E TUCCI, José Rogério.
Constituição de 1988 e processo. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 15)
A nova cláusula do Devido Processo Legal (agora justo, substancial), teria ao
centro, nas palavras de Dinamarco,
(...) em primeiro lugar, o direito ao processo tout court — assegurado
pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional que a
Constituição impõe mediante a chamada garantia da ação. (...) Garantido
o ingresso em juízo e até mesmo a obtenção de um provimento final de

213
mérito, é indispensável que o processo se haja feito com aquelas garantias
mínimas (...)de meios, pela observância dos princípios e garantias
estabelecida, (...) e de resultados, mediante a oferta de julgamentos justos,
ou seja, portadores de tutela jurisdicional a quem efetivamente tenha
razão. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual
civil. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 94)
No entanto, muito embora a preocupação sobre a garantia de um maior acesso
à jurisdição (jurisdição universal), e sobretudo à uma jurisdição justa (devido
processo legal substancial/substantivo), tenha permitido que se avançasse, a busca
pelo processo célere, a par das alterações constitucionais que se seguiram,
apresentava-se como necessária a fim de consolidar as grandes virtudes do novo
constitucionalismo.
Preocupação esta que já vinha contida na Convenção Americana dos Direitos
e dos Deveres do Homem, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica,
adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana de
Direitos Humanos (OEA), realizada na cidade de San Jose da Costa Rica, em 22 de
novembro de 1966, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, que estabelecia,
em seu art. 8º, as garantias judiciais a serem observadas pelos Estados-parte no
instrumento, verbis:
Art. 8º — Garantias judiciais

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável,
por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por
lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus
direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

Finalmente, no bojo de mais uma reforma constitucional, a celeridade, então,


veio inserida como cláusula constitucional por meio das alterações promovidas pela
Emenda 45, que acrescentou o inciso LXXVIII, no já extenso rol de direitos e garantias
fundamentais, verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LXXVIII — a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do


processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

A Emenda Constitucional n. 45/04 teria trazido inegável avanço ao inserir um


direito público subjetivo, direito a um processo célere. Notadamente pela cultura
da eternização dos conflitos judiciais, tão arraigada entre nós, a celeridade formaria
o tripé necessário para se combater o crônico problema da morosidade na solução
dos litígios. Processo justo, efetivo e agora célere.

214
O Brasil avançaria, assim, no caminho da conjugação de fatores essenciais para
a garantia de uma jurisdição justa, efetiva, e também célere.
No entanto, no discurso da celeridade se podia notar a presença de um viés
economicista, sobrepondo-se à uma necessidade latente de se distribuir justiça à
medida que se agudizava os conflitos sociais.
O mal contemporâneo do processo estaria representado pelo binômio custo-
-duração; daí a imperiosa urgência de se obter uma prestação jurisdicional em tempo
razoável, através de um processo sem dilações, mesmo porque o processo não pode
ser tido como um fim em si mesmo, mas sim instrumento eficaz de realização do
direito material.
A doutrina que postulava a necessidade de dar maior celeridade ao processo
continha, como visto, forte componente calcado no binômio custo-benefício, o que
permite dizer tenha o viés economicista (decorrente dos custos da eternização de um
processo) sido um dos pilares de tal argumento.
A preocupação com a efetividade da jurisdição, em termos de celeridade, dividia
espaço, agora, com a preocupação financeira que representa a tramitação processual.
Afinal, Time is Money!
Nesse mesmo quadro, novas configurações contribuiriam a emprestar corpo e
densidade na ruptura do antigo modelo de jurisdição e controle constitucionais.
Assim é que a mesma reforma constitucional que veio a trazer, expressa na
Constituição, uma norma que garantia a duração razoável do processo trouxe,
também, uma nova ideia de gerenciamento e desenvolvimento da estrutura do Poder
Judiciário através da criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Concebido como um órgão voltado à reformulação de quadros e meios no
Judiciário, sobretudo no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa
e processual, visa à coordenação, ao controle administrativo e ao aperfeiçoamento
do serviço público na prestação da Justiça, sempre em busca do tripé moralidade,
eficiência e efetividade (na consecução de suas diretrizes estão: planejamento
estratégico e proposição de políticas judiciárias; modernização tecnológica do
judiciário; ampliação do acesso à justiça, pacificação e responsabilidade social, além
da garantia do efetivo respeito às liberdades públicas e execuções penais).
Aos olhos da sociedade é possível dizer, empiricamente, que em pouco tempo o
CNJ destacou-se por abrir novas frentes de moralização da atividade judicante.
Foram realizados inúmeros mutirões inspecionando-se instalações prisionais, e ainda
mutirões para redução da carga de processos pendentes de julgamento.
Foram traçadas metas a serem alcançadas: por primeiro, em 2009, foram
traçadas dez (10) metas, com ênfase na Meta 2, que determinou aos tribunais que
identificassem e julgassem os processos judiciais mais antigos, distribuídos aos

215
magistrados até 31.12.2005 (o próprio órgão reconhece que com a Meta 2 o Poder
Judiciário começaria a se alinhar com o direito constitucional de todos os cidadãos
brasileiros que estabelece a duração razoável do processo na Justiça).
A Meta 2 continua, ainda, a ser uma das principais demandas do CNJ, e sob tal
aspecto há críticas que merecem ser consideradas. É que se, por um lado, a fixação de
metas para se diminuir o déficit de demandas represadas, sem julgamento, tenha
atingido em grande parte seus objetivos, por outro lado, o esvaziamento da
possibilidade de se aprofundar a atividade pensante-filosófica ficou evidente diante
da necessidade de se proferirem inúmeras decisões num curto espaço de tempo.
Agrava o quadro a ausência de investimento na contratação de servidores, ou
mesmo a falta de uma política de valorização salarial dos quadros atuais. Também
a manutenção do número de juízes, ao passo que a busca pela jurisdição se
universaliza, constitui um dado a ser considerado. Nesse ponto, o próprio CNJ
realiza pesquisa anual que mede a relação juiz/habitante, sendo que em 2011 a relação,
na Justiça Estadual, seria a de seis juízes para cada cem mil habitantes, e na Justiça
Federal menos de um magistrado para igual número de habitantes.
Nessa seara intensificam-se estratégias como a busca pela conciliação, mediação
e arbitragem. E ano a ano, a meta de se julgar mais processos pendentes do que o
número de novas demandas ajuizadas permanece. Assim como agudizam-se os
conflitos!
A jurisdição, pois, não foge à lógica perversa do capital. Adotou uma visão
gerencialista de um processo que possui, como jurisdicionado, o ser humano
desprovido de ferramentas aptas a conferir-lhe confiança numa justiça célere, eficaz
e escorreita. De nada adianta a tão sonhada busca pela pacificação social se restarem
mantidas as lógicas impostas pela ordem capitalista moderna justamente num setor
que visa, precipuamente, amenizar as mazelas que a desigualdade social impõe.
A saúde da jurisdição corre riscos; não é de todo despropositado dizer que sua
precarização, agora, deriva mais da sua ânsia por metas, números, do que sua busca
pelos ideais de justiça numa época social em que se agudizam os conflitos sociais.

216
Capítulo 12

LIMITAÇÃO DO TEMPO DE TRABALHO E PROTEÇÃO À


SAÚDE DOS TRABALHADORES: UMA ANÁLISE DOS
SISTEMAS JURÍDICOS BRASILEIRO E ESPANHOL(*)

José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva

1. A SAÚDE DO TRABALHADOR COMO UM DIREITO


HUMANO FUNDAMENTAL

O objetivo principal deste pequeno artigo é a investigação sobre o tempo de


trabalho, no que diz respeito a sua limitação e sua relação direta com a proteção à saúde
dos trabalhadores, fazendo uma comparação dos sistemas jurídicos brasileiro e espanhol.
Fita Ortega(1) observa que a ordenação do tempo de trabalho possui íntima
relação com três vertentes de estudo: a) a ordenação como elemento de organização
das empresas; b) como instrumento de proteção à saúde e segurança dos
trabalhadores; c) e ainda, como elemento de política de emprego. Destas vertentes,
portanto, a atenção estará voltada para a segunda, ou seja, à análise da correlação
entre jornadas de trabalho extensas e os prejuízos à saúde dos trabalhadores.
Para começar, recordo o fundamento pelo qual se deve proteger a saúde dos
trabalhadores: a saúde do trabalhador trata-se de um direito humano fundamental, ou
seja, de um direito imprescindível ao trabalhador. É possível sustentar, com
segurança, que os direitos ao trabalho, à saúde, à educação e à seguridade social são
direitos sociais sem os quais não se pode falar em Estado social, que na Espanha está
garantido no art. 1º de sua Norma Fundamental. Nesse contexto, não se pode olvidar
que a saúde dos trabalhadores também deve ser considerada um direito social, ou, ainda
mais, um direito fundamental ou humano, já que é componente das necessidades
básicas da pessoa do trabalhador, como espécie da saúde em geral.
De fato, o direito à saúde do trabalhador, como espécie da saúde em geral, é
um direito humano. Por isso, é um direito inalienável, imprescritível e irrenunciável.
E é um direito natural de todos os trabalhadores, em todos os tempos e lugares,

(*) Apresentação feita no 3º Seminário Internacional da Amatra XV, realizado em Montevidéu, de 9 a


12 de setembro de 2010.
(1) FITA ORTEGA, F. Límites legales a la jornada de trabajo. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 24.

217
ainda que sua positivação tenha ocorrido tardiamente. Se a saúde do trabalhador é
algo inerente a ele, imanente, em respeito a sua dignidade essencial, inclusive para
uma boa prestação de serviços ao empregador, trata-se de um direito natural, pois
intrínseco à conformação de sua personalidade e de seu desenvolvimento como pessoa.
É um direito imprescindível para o trabalhador. Essa é, portanto, sua natureza
jurídica: trata-se de um direito humano, fundamental ou não, ou seja, positivado nas
constituições de cada país ou não, não havendo qualquer necessidade de outras
adjetivações. De modo que assim se insere no continente maior dos direitos humanos,
como conteúdo deles, vale dizer, como um dos valores fundamentais do sistema jurídico,
sem o qual a dignidade da pessoa humana estará seriamente ameaçada.
Quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana, é o ápice da construção
jusfilosófica na evolução cultural da humanidade, e se encontra bem conformado na
doutrina atual. Barbagelata(2) afirma que a dignidade humana é um meta-valor e, na
análise do bloco de constitucionalidade, afirma que os direitos humanos laborais —
entre os quais a saúde do trabalhador — “abarcam disposições e princípios que
constituem parte dos direitos e garantias inerentes à personalidade humana. Por
conseguinte, são indisponíveis, não só para o legislador, como também para o
próprio constituinte”.
Penso que a dignidade humana significa dizer que a pessoa está dotada de direitos
essenciais, sem cuja realização não terá forças suficientes para a conformação de sua
personalidade e seu pleno desenvolvimento enquanto pessoa. Esses direitos
compreendem a vida e uma gama de liberdades essenciais, mas também alguns
direitos de igualdade (sociais) sem os quais as liberdades não passam de mera retórica.
Tanto é assim que até os economistas e os doutrinadores mais liberais reconhecem
que alguns bens jurídicos mínimos devem ser assegurados para a satisfação das
necessidades básicas das pessoas. O sentido dos direitos humanos é a defesa da
dignidade humana, dignidade esta que se manifesta na corporeidade (vida e saúde)
e na liberdade(3).
Dada a complementaridade entre os direitos humanos, sua tutela significa a
proteção a bens jurídicos básicos, como a vida, a integridade físico-funcional (inclusive
moral), a saúde, a liberdade, a igualdade, que se consubstanciam em diversos direitos
positivados no sistema jurídico, sejam de primeira, de segunda ou terceira geração.
E sempre o direito à saúde figura em todos os catálogos de referidos direitos. Assim
que, em definitivo, a saúde dos trabalhadores compõe o chamado conteúdo essencial da
dignidade humana, não podendo jamais ser postergada sua preservação e, em caso

(2) BARBAGELATA, Héctor-Hugo. El particularismo del derecho del trabajo y los derechos humanos
laborales. 2. ed. atual. e ampl. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 2009. p. 250.
(3) FERNANDEZ, M. E. Los derechos económicos, sociales y culturales. In: MEGÍAS QUIRÓS, J. J.
(Coord.). Manual de derechos humanos: los derechos humanos en el siglo XXI. Navarra: Aranzadi, 2006.
p. 120.

218
de doença, o tratamento mais adequado deve ser o mais pronto possível. Por isso
mesmo, está assegurada no art. XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
e, de forma mais enfática, no art. 12 do PIDESC — Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.

2. A EFICÁCIA HORIZONTAL DO DIREITO À SAÚDE DO TRABALHADOR

Sendo a saúde dos trabalhadores componente do chamado conteúdo essencial


da dignidade humana, não há falar em colisão de princípios(4) ou direitos fundamentais
quando estão em cotejo a saúde do trabalhador, de um lado, e a liberdade de empresa,
de outro, até porque a dignidade é um atributo exclusivo da pessoa humana. Ainda
que a liberdade de empresa também esteja garantida como direito fundamental nas
constituições, penso que a saúde do trabalhador é um bem jurídico que está acima
deste direito.
O problema é que há uma constante colisão de princípios no contrato de
trabalho, havendo realmente uma difícil convivência entre os direitos fundamentais da
pessoa do trabalhador e os poderes empresariais do empregador, razão pela qual
“a relação jurídica obrigatória nascida do contrato de trabalho constitui o banco
de prova da eficácia horizontal dos direitos fundamentais de caráter personalíssimo”,
na feliz síntese de Valdés Dal-Ré(5). Se há uma colisão real e os direitos são equivalentes,
o problema deve se resolver à luz do juízo de ponderação ou do princípio da
proporcionalidade, com suas três vertentes: 1ª) juízo de adequação; 2ª) juízo de
necessidade ou tese de indispensabilidade; 3ª) juízo ou tese de proporcionalidade em
sentido estrito(6). Estas teses são sempre comentadas quando se fala na eficácia horizontal
dos direitos fundamentais, chamada na doutrina jurídica alemã de “Drittwirkung”.
Não obstante, é possível trazer para o debate a respeito da eficácia de referidos
direitos, diante dos particulares ou grupo de particulares, outra ideia. Ainda que
haja uma preferência pelo estudo dos direitos fundamentais, partindo-se de sua
positivação constitucional, a concepção jusnaturalista dos direitos humanos —

(4) De acordo com Alexy, para solucionar a colisão de princípios, há a necessidade de se estabelecer um
juízo de ponderação de bens jurídicos, através da máxima da proporcionalidade, com o auxílio de suas três
máximas parciais, as quais são: da adequação, da necessidade (postulado do meio mais benigno) e da
proporcionalidade em sentido estrito (o postulado de ponderação propriamente dito). Da máxima de
proporcionalidade em sentido estrito extrai-se que os princípios “são mandados de otimização com
relação às possibilidades jurídicas. Por outro lado, as máximas da necessidade e da adequação decorrem do
caráter dos princípios como mandados de otimização com relação às possibilidades fáticas”. ALEXY, R.
Teoría de los derechos fundamentales. Tradução da primeira edição de Theorie der Grundrechte por
Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, tercera reimpresión,
2002, p. 111-113.
(5) Valdés Dal-Ré, F. Contrato de trabajo, derechos fundamentales de la persona del trabajador y poderes
empresariales: una difícil convivencia. Relaciones laborales, núm. 22, ano XIX, nov. 2003, p. 1-3.
(6) Ibidem, p. 12-14.

219
enquanto direitos indissociáveis da pessoa humana e imprescindíveis à sua dignidade
pessoal —, permite uma valoração maior dos chamados direitos fundamentais do
trabalhador. O que se propõe é que haja uma diferença ontológica ou deontológica
entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, ou seja, há direitos fundamentais
de grupos, coletividades, e até mesmo de empresas — ainda que se diga que de
titularidade do empresário — que, não obstante, não são direitos humanos, porque
não pertencem à pessoa enquanto tal (7) , e há direitos humanos que não são
fundamentais, porque ainda que necessários à dignidade humana, não se encontram
inscritos nas constituições, como os direitos a imigrar e a não ser assediado
moralmente. Desta diferença, a partir da ideia de que a pessoa humana ocupa um
lugar central no sistema jurídico, conclui-se que todo o universo jurídico tem como
função valorizar e garantir os direitos essenciais da pessoa humana.
Sendo assim, não há que recorrer à boa-fé contratual ou ao juízo de ponderação,
os quais podem levar a resultados de limitação ou ainda de negação dos direitos
humanos fundamentais da pessoa do trabalhador. Isso se mostra relevante quando
o que está em jogo é a saúde do trabalhador, eis que nenhuma liberdade de empresa,
nenhum poder empresarial pode prevalecer diante da saúde, em uma eventual colisão
de direitos fundamentais. A saúde, como expressão da vida e da integridade física e
moral do trabalhador, deve ser garantida e receber efetiva proteção sempre, não
havendo nenhum espaço para teste de ponderação ou juízo de proporcionalidade entre
esse direito e os poderes empresariais.
Em definitivo, a eficácia horizontal dos direitos humanos fundamentais dos
trabalhadores deve ser compreendida sob outro prisma. Fala-se muito da
“Drittwirkung”, insistindo-se demasiadamente em demonstrar a eficácia dos direitos
fundamentais de liberdade do trabalhador frente ao empresário, no entanto, à luz
da doutrina da fundamentalidade material dos direitos, esquecendo-se que a
centralidade da pessoa humana reclama a aceitação de direitos prévios não somente
ao contrato de trabalho, mas também à própria ordem jurídica estatal, direitos
esses inseparáveis do princípio-guia da dignidade humana. Nessa ordem de ideias,
sempre que se tratar de direitos indispensáveis à conformação e desenvolvimento da
personalidade, da vida, da saúde e também das liberdades essenciais do trabalhador,
não há que submetê-los a nenhum teste de ponderação e tampouco a modulações de
acordo com o princípio da boa-fé.

(7) Pérez Luño aponta o erro de se confundir duas categorias conceitualmente distintas: os direitos
humanos e os direitos fundamentais. Ele esclarece que os direitos humanos possuem uma dimensão
deontológica, pois se trata daquelas faculdades inerentes à pessoa. Quando se consegue o reconhecimento
destas faculdades pelo direito positivo, aparecem os direitos fundamentais. Agora, o direito positivo tem
reconhecido personalidade jurídica também aos entes coletivos (associações, corporações, sociedades,
instituições, fundações). Não obstante, apenas os indivíduos podem ser sujeitos titulares de direitos
humanos, à medida que os entes coletivos só podem ser sujeitos titulares de direitos fundamentais e de
outros direitos, mas nunca de direitos humanos. PÉREZ LUÑO, A. E. La tercera generación de derechos
humanos. Navarra: Editorial Aranzadi, 2006. p. 235-237.

220
Em suma, a saúde do trabalhador é um bem jurídico que está acima de qualquer
direito fundamental do empregador no exercício de seus poderes empresariais. De
modo que nenhuma liberdade de empresa pode prevalecer diante da saúde do
trabalhador, até porque o empresário é devedor de segurança, na síntese de Aparício
Tovar(8). Por isso, não há dúvida de que o principal destinatário da normativa pertinente
à matéria é o empregador, o qual tem a obrigação intransferível de garantir condições
de trabalho saudáveis e seguras ao trabalhador.

3. CONTEÚDO ESSENCIAL DO DIREITO À SAÚDE DO TRABALHADOR

Resta, portanto, definir o que se entende por saúde dos trabalhadores ou, pelo
menos, seu conteúdo essencial, para que seja de fato respeitada e se possa exigi-la
tanto do empregador como do Estado. Para isso, é importante recordar que, segundo
a OMS, a saúde é o mais completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a
ausência de doenças.
Na Espanha, a busca do conteúdo essencial do direito em questão deve guiar-se
pelo caminho da interpretação sistemática que abarque a Constituição espanhola, a
Lei de Prevenção de Riscos Laborais (LPRL) — Lei n. 31/1995 — e também a
normativa internacional, incluindo as diretivas da Comunidade Econômica
Europeia, sobretudo a Diretiva-marco 89/391/CEE, de 12 de junho de 1989. Daí se
pode extrair um alcance constitucional ou até supranacional da proteção à saúde dos
trabalhadores.
Por isso, a matéria é estudada sob a perspectiva do binômio prevenção-reparação,
na prevenção de acidentes do trabalho e, em caso de ocorrência destes, em sua pronta
reparação. Nesse contexto, em uma interpretação sistemática da CE — Constituição
Espanhola —, obtém-se uma conjugação entre os direitos à vida e à integridade física
com o direito à saúde — arts. 15, 40.2, 41, 43.1 e 2, 45.1 e 3 e art. 49 da CE —, pois o
direito à vida é o mais elementar e prévio, que por isso serve de fundamento a todos
os demais direitos. E a saúde tem estreita relação com o direito à vida, como decidido
pelo Tribunal Constitucional espanhol em inúmeras sentenças (acórdãos). De modo
que proteger a saúde do trabalhador significa tutelar seu direito humano à vida e à
incolumidade física e psíquica. Assim, a proteção é parte integrante do conteúdo
essencial da saúde dos trabalhadores. O direito à saúde, ora comentado, tem uma
dimensão objetiva que, colocada em destaque pelo art. 40.2 da CE, deixa clara uma
dupla proteção à vida e integridade física do trabalhador: a primeira é a obrigação do
Estado de velar pela segurança e higiene no trabalho; e a segunda é sua obrigação de
garantir o descanso necessário para proteger a saúde do trabalhador, proteção que o

(8) APARICIO TOVAR, J. Las obligaciones del empresario de garantizar la salud y la seguridad en el
trabajo. Civitas Revista española de Derecho del Trabajo, Madrid, n. 49, set./out. 1991, p. 706.

221
próprio texto constitucional concretiza em três vertentes — a limitação da jornada
de trabalho, o estabelecimento de férias periódicas remuneradas e a promoção de
centros adequados(9).
Deve-se ter em conta que a proteção à saúde dos trabalhadores, como qualquer
direito fundamental, envolve dois aspectos — um negativo e outro positivo, o primeiro
ligado a abstenções tanto da parte do Estado como do empregador, e o segundo
aglutinando inúmeras prestações que podem ser requeridas diante de um e de outro.
Daí que a saúde do trabalhador é de um direito humano fundamental de natureza negativa
e positiva, exigindo tanto do empregador como do Estado não somente a abstenção de
práticas que ocasionem a enfermidade física ou mental do trabalhador, como também
uma positividade, ou seja, a adoção de medidas preventivas de doenças. Aí estão os
aspectos essenciais de referido direito: a) o direito à abstenção; e b) o direito à prestação,
que, por sua vez, é subdividido em direito à prevenção e direito à reparação.
Esse conteúdo é muito extenso e, no momento, o que interessa é sua vertente de
abstenção, no que concerne ao fator tempo de trabalho, que é o objeto de minha
explanação. Assim, penso que são essenciais as seguintes abstenções pelos
empregadores: 1ª) a não exigência de realização de horas extraordinárias de forma
habitual, sobretudo dos trabalhadores noturnos e em turnos ininterruptos de
revezamento; 2ª) a não exigência de trabalho nos descansos intra e entre jornadas; e
3ª) a não exigência de trabalho nos dias de descanso semanal e feriados, tampouco
nos períodos de férias. De se notar que estas obrigações estão inscritas na própria
Declaração Universal, em seu art. XXIV, o qual descreve a limitação razoável das
horas de trabalho com um direito humano fundamental.
E não é demasiado recordar os fundamentos pelos quais se deve proteger a saúde
do trabalhador: a) o combate à fadiga; e b) o combate ao estresse laboral. Ora, vários
estudos científicos têm mostrado que a melhor forma de prevenir a fadiga é dar a
devida atenção às condições de trabalho, apontando como medidas preventivas, entre
outras, a distribuição adequada das horas de trabalho, bem como a previsão de
períodos adequados de descanso e de férias.
Por isso, a busca pela proteção à saúde do trabalhador desenvolveu-se
inicialmente na luta pela redução da jornada de trabalho. Süssekind(10) pontifica que os
fundamentos para a limitação do tempo de trabalho são os seguintes:
a) de natureza biológica, pois que visa combater os problemas psicofisiológicos
oriundos da fadiga e da excessiva racionalização do serviço;
b) de caráter social, pois que possibilita ao trabalhador viver, como ser humano,
na coletividade à qual pertence, gozando dos prazeres materiais e espirituais

(9) GONZÁLEZ LABRADA, M. Seguridad y salud en el trabajo y responsabilidad contractual del


empresario. Barcelona: Cedecs, 1996. p. 121-123.
(10) SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. v. 2, 16. ed. atual. por Arnaldo
Süssekind e João de Lima Teixeira Filho. São Paulo: LTr, 1996, p. 774.

222
criados pela civilização, entregando-se à prática de atividades recreativas,
culturais ou físicas, aprimorando seus conhecimentos e convivendo, enfim,
com sua família;
c) de índole econômica, pois que restringe o desemprego e acarreta, pelo combate
à fadiga, um rendimento superior na execução do trabalho.
Com efeito, o combate à fadiga não serve de fundamento apenas para a
limitação do tempo de trabalho no que se refere aos aspectos social e econômico,
mas também para a proteção direta à saúde do trabalhador. Analisando os
fundamentos descritos por Süssekind, verifica-se que prepondera, pelo menos no
que concerne à saúde do trabalhador, o de natureza biológica, porque não há dúvida
de que o excesso de trabalho gera inúmeros problemas, sendo de graves consequências
a fadiga, que prejudica o equilíbrio homeostático da pessoa humana.
Sebastião Geraldo de Oliveira(11) pondera que o esforço adicional, como ocorre no
trabalho constante em horas extraordinárias, aciona o consumo das reservas de energia
da pessoa e provoca um aceleramento da fadiga, que pode levar à exaustão e ao
esgotamento. O organismo humano depende de energia para seu funcionamento
equilibrado, sendo que o excesso de atividade — o excesso de trabalho, por exemplo —
resulta em que a recomposição de energia não acompanhe o ritmo despendido, surgindo
a fadiga. Com efeito, a fadiga traduz um processo de cansaço e esgotamento físico e
psíquico, e quanto maior o esforço, maior a produção de ácido lático no organismo,
substância esta que inibe a atividade muscular. Se a pessoa insiste no esforço empreendido,
sobrevêm adormecimentos e câimbras até que haja a necessidade de parar o trabalho ou
a atividade desempenhada. De tal modo que quanto maior a fadiga, mais se reduz o
ritmo de trabalho, a atenção e a formulação do raciocínio. Nesta situação, o trabalhador
produz menos, além de estar sujeito a cometer mais erros e a sofrer acidentes.
Demais, a fadiga prolongada leva inexoravelmente a um processo de estresse.
Investigações têm revelado um crescente índice de estresse, sobretudo a partir da
década de 90, quando ocorreram grandes mudanças no sistema organizacional das
empresas, sendo que tais reestruturações vêm provocando ameaças de desemprego e
ocasionando uma sensação de insegurança, o que contribui para gerar uma
“ansiedade relacionada com o trabalho”, a qual, ainda que evidente, é muito difícil
de ser quantificada(12). No Japão existe um fenômeno conhecido como Karoshi, palavra
que significa morte por excesso de trabalho. O Karoshi trata-se de um grande problema
social no Japão, porque os japoneses trabalham muitas horas a mais do que os
trabalhadores dos países ocidentais industrializados(13).

(11) OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 4. ed. São Paulo: LTr,
2002, p. 159.
(12) BEATON, R. D. Ansiedad relacionada con el trabajo. In: Enciclopedia de Salud y Seguridad en el Trabajo.
4. ed., p. 5.12. Disponível em: <http://www.mtas.insh/EncOIT/index.htm>. Acesso em: 2 jun. de 2011.
(13) HARATANI, T. Karoshi: muerte por exceso de trabajo. In: Enciclopedia de Salud y Seguridad en el
Trabajo. 4. ed., p. 5.20-5.21. Disponível em:<http://www.mtas.insh/EncOIT/index.htm>. Acesso
em: 2 jun. de 2011.

223
No Brasil, uma pesquisa revelou que os transtornos mentais afastam mais de
100.000 trabalhadores por ano. Segundo pesquisadora do Laboratório de Saúde do
Trabalhador da Universidade de Brasília, aproximadamente 100.000 trabalhadores
necessitam retirar-se do trabalho anualmente por causa de problemas relacionados
à saúde mental, sendo que as doenças mentais responderam por 9,8% do total de
benefícios de auxílio-saúde concedidos em 2004(14).
Diante disso, a conclusão é a de que a proteção à saúde do trabalhador passa
necessariamente não só pela prevenção da fadiga, mas também pela prevenção do
estresse laboral, sendo que a limitação do tempo de trabalho é, sem dúvida, a melhor
forma de tornar efetiva a referida proteção.

4. A ORDENAÇÃO DO TEMPO DE TRABALHO — FLEXIBILIZAÇÃO


ESPANHOLA E BRASILEIRA

Conquanto inconteste a conclusão anterior, as grandes mudanças levadas a


efeito na organização das empresas, sobretudo a partir da década de 1990, com uma
intensa reestruturação do sistema produtivo e uma forte flexibilização das relações
trabalhistas, principalmente na ordenação do tempo de trabalho, têm provocado
um aumento considerável do estresse laboral, bem como de outras doenças do
trabalho. Tudo isso conduz à conclusão de que há uma necessária relação entre a
limitação do tempo de trabalho e a saúde dos trabalhadores. Isto quer dizer que o
trabalho em condições precárias, principalmente em jornadas extensas, deságua em
maior taxa de acidentes trabalhistas.
Basta notar o que as estatísticas demonstram: a) a Espanha, que tem uma
quantidade muito menor de trabalhadores que o Brasil, teve muito mais acidentes
do trabalho nos últimos anos, principalmente nos contratos temporários, sendo
que em 2006 houve mais de 911 mil (911.561) acidentes e enfermidades relacionadas
ao trabalho; b) no Brasil, país que tinha mais de 31 milhões de trabalhadores formais,
houve 503 mil (503.890) acidentes e doenças do trabalho em 2006(15). Não obstante,
no Brasil houve um aumento de mais de 48% de acidentes em apenas cinco anos,
de 2001 a 2006. Dessa forma, pode-se afirmar que houve um aumento considerável de
acidentes do trabalho à medida que a flexibilização espanhola e brasileira se
aprofundaram.
Tudo isso atenta contra os princípios constitucionais fundamentais de nossos
sistemas jurídicos, não se podendo olvidar que Espanha e Brasil são signatários do

(14) BARBOSA-BRANCO, A. Transtorno mental afasta 100 mil por ano. Folha de S. Paulo, São Paulo,
11 de fevereiro de 2007. Empregos, Caderno F.
(15) Essa pesquisa foi feita em 2008, por ocasião da elaboração da tesina – uma espécie de dissertação de
mestrado, defendida naquele ano na Espanha —, sendo que de lá até esta parte os estudos foram
aprofundados, mas ainda são inéditos, fazendo parte da tese de doutorado que foi defendida no primeiro
semestre, junto à Universidad Castilla — La Mancha.

224
PIDESC, cujo art. 2.1 estabelece o princípio da não regressividade. Veja-se que tanto a
Constituição espanhola quanto a brasileira estabelecem uma nítida vinculação da
proteção à saúde dos trabalhadores com a limitação do tempo de trabalho. Tanto é
que a brasileira fixa uma duração máxima da jornada diária em oito horas e da
semanal em 44 horas. A Constituição espanhola, por sua vez, garante aos
trabalhadores, em seu art. 40.2, “o descanso necessário, mediante a limitação da
jornada de trabalho”. De modo que se pode afirmar que há nas Normas
Fundamentais um princípio de limitação do tempo de trabalho, que não pode ser olvidado
pelo legislador.
Não obstante, a normativa infraconstitucional espanhola sobre tempo de trabalho,
sobretudo a partir da transposição das diretivas europeias a respeito, cada vez mais
tem se distanciado do referido princípio de limitação. E também a legislação
infraconstitucional brasileira tem seguido o mesmo caminho, como se verá nos
parágrafos seguintes.

4.1. Limite semanal ou anual da jornada de trabalho na Espanha

Nesse contexto, cabe apontar, de início, que desde a década de 80 e, sobretudo


a partir da de 90, a Espanha tem promovido uma forte flexibilização das normas de
proteção aos direitos básicos dos trabalhadores, acompanhando, por certo, uma
tendência dos países do primeiro mundo, com claras repercussões nos países em
desenvolvimento, incluindo o Brasil.
Quando da reforma de seu Estatuto dos Trabalhadores, levada a efeito pelo
Real Decreto Legislativo n. 1/1995 — que incorpora a Lei n. 11/1994, pontapé inicial
da reforma —, propôs-se uma revisão do sistema de relações trabalhistas, presidido
em grande medida pelo critério da flexibilidade, com o argumento da necessária
adaptação dos recursos humanos às circunstâncias produtivas das empresas,
principalmente em termos de ordenação do tempo de trabalho, que é, sem dúvida, um
dos instrumentos mais significativos da flexibilização. “Os objetivos, valorados em
termos de competitividade e garantia de conservação dos postos de trabalho, são os
argumentos que, desde as concepções legais, fundamentam o recurso à flexibilidade
como critério inspirador da reforma nessa matéria”(16).
Uma das matérias do direito do trabalho que tem sido mais afetada pela onda
de flexibilidade, que a partir da década de 90 tem ameaçado destruir praticamente
todos os institutos mais importantes de proteção aos trabalhadores, sem dúvida, é a
relativa à ordenação do tempo de trabalho. Por isso, Valdéz Dal-Ré(17) aponta com

(16) PRADOS DE REYES, F. J. La ordenación del tiempo de trabajo en la Reforma del Estatuto de los
Trabajadores. Relaciones laborales, n. 8, ano 12, Madrid, 23 de abril 1996, p. 12.
(17) VALDÉZ DAL-RÉ, F. La flexibilidad del tiempo de trabajo: un viejo, inacabado y cambiante debate.
Relaciones laborales, Madrid, n. 2, ano 15, 23 janeiro de 1999, p. 1.

225
maestria “que o termo flexibilidade, aplicado no âmbito dos sistemas de relações
laborais, tem se convertido no Leviatã das sociedades pós-industriais”.
Prados de Reyes(18) já havia destacado que a revisão do sistema de relações
laborais na Espanha foi presidida “pelo critério da flexibilidade e a capacidade de
adaptação dos recursos humanos às circunstâncias produtivas da empresa”, sendo
que a ordenação do tempo de trabalho tem sido um dos instrumentos mais significativos
de tal flexibilização. Acrescenta que os objetivos que constavam no Preâmbulo da Lei
n. 11/1994 — incorporada ao Real Decreto Legislativo n. 1/1995 (ET), de 24 de
março de 1995 — visavam permitir uma maior competitividade das empresas e,
com isso, garantir a conservação dos postos de trabalho, o que fundamenta, assim,
o recurso à flexibilidade como critério inspirador da reforma.
Não obstante, o caminho seguido pela Espanha foi demasiado extenso, eis que
fez desaparecer o limite da jornada diária de trabalho, a maior conquista dos
trabalhadores de todos os tempos, comemorada ainda no século XIX, quando se fixou
um limite de 10 horas diárias, e no início do século XX, no momento em que a
nascente legislação internacional de proteção aos trabalhadores estipulou um limite
de oito horas de trabalho por dia (Convenção n. 1 da OIT). É certo que já havia uma
relativa flexibilidade neste aspecto, com a permissão de realização de horas extras e
também com a autorização de compensação do horário de trabalho, de modo a
ampliar a jornada em alguns dias da semana, para que não se trabalhasse em outro,
em geral no sábado — semana inglesa de trabalho, de segunda a sexta-feira. No
entanto, a extensão deste regime de compensação a períodos de referência superiores
ao semanal, em uma escala ampliada, até que foi alcançada, finalmente, a referência
anual — a anualização do tempo de trabalho —, constitui verdadeira negação daquela
conquista histórica.
Ademais, para tais compensações havia um limite diário, de modo a evitar
abusos por parte dos empregadores na exigência de trabalho além do ordinário. Na
Espanha, havia um limite de nove horas diárias de trabalho efetivo, “como um limite
de ordem pública e indisponível pelas partes”, que deveria ser respeitado por toda
negociação coletiva sobre distribuição irregular de horários de trabalho. Ocorre
que a Lei n. 11/1994 fez desaparecer tal limite, de modo que, a partir daí, “a referência
das nove horas ordinárias de trabalho efetivo já não tem um caráter de ordem
pública”. Portanto, agora são as partes, em atenção ao princípio da autonomia da
vontade, individual ou coletiva, que determinam a duração da jornada de trabalho,
como expressa o art. 34 do ET — Estatuto dos Trabalhadores —, desde que se observe
o limite máximo de 40 horas semanais de trabalho efetivo, em média, na contagem
anual, bem como o descanso mínimo de 12 horas entre jornadas (§ 3º do art. 34)(19).

(18) PRADOS DE REYES, F. J. La ordenación del tiempo de trabajo en la Reforma del Estatuto de los
Trabajadores, p. 12.
(19) FITA ORTEGA, F. Límites legales a la jornada de trabajo, p. 41-42.

226
Assim, a Espanha, que tem levado a flexibilidade do tempo de trabalho às
últimas consequências, não tem mais limite diário, fato que tem dado aos períodos de
descanso um significado extraordinário. Não obstante, há que se levar em conta que
a autorização para distribuir irregularmente a jornada de trabalho ao longo do ano
agora fica reservada exclusivamente à negociação coletiva, mediante acordos entre
a empresa e os representantes dos trabalhadores (20) . Todos os doutrinadores
ressaltam, entretanto, que em nenhum caso a autonomia coletiva poderá fixar uma
distribuição do tempo de trabalho de modo que ignore o período do tempo de
descanso necessário entre jornadas de 12 horas, no mínimo, pelo que se verifica da
análise do art. 34.3 do ET, 1º e 2º parágrafos.
Ocorre que essa disciplina legal possibilita que o empregador, autorizado pela
negociação coletiva — incluindo acordos entre o empresário e os representantes dos
trabalhadores —, possa contratar, a título de mero exemplo, duas equipes de
trabalhadores para ocupar todas as horas semanais, fazendo funcionar sua empresa
em 12 horas diárias continuamente, sem que tenha que fazer a compensação por
descanso dentro dos quatro meses seguintes, nem mesmo proceder ao pagamento
das horas extraordinárias. Para clarificar a ideia: a primeira equipe trabalharia 12
horas diárias de segunda a quarta-feira e mais quatro horas no domingo; a segunda
equipe trabalharia 12 horas por dia de quinta-feira a sábado e mais quatro horas no
domingo; de modo que a jornada dos trabalhadores jamais ultrapassaria o limite de
quarenta horas semanais; no entanto, eles teriam que se dedicar ao trabalho em
extenuantes jornadas de 12 horas diárias, ainda que não o fizessem em todos os dias
da semana. Isso, certamente, resultaria em prejuízo à saúde de referidos trabalhadores,
aumentando o risco de acidentes do trabalho. Além disso, esses trabalhadores
poderão contratar com outro empregador um sistema equivalente, para o trabalho
nos dias de descanso do primeiro contrato, quando então nem folga semanal teriam.
Ademais, se não se observa o módulo quadrimestral — e sim o anual autorizado
pela legislação espanhola —, deve-se observar que isso possibilita ao empregador a
utilização de mão de obra segundo seus exclusivos interesses, exigindo o trabalho de
seus empregados em até 12 horas diárias em um determinado período, invariavelmente
quando haja excesso de produção, maior demanda, entre outras coisas, para
compensar as horas de “sobrejornada” em períodos posteriores, de situações inversas às
apontadas anteriormente.
Ocorre que tal exagerada permissão pode levar o trabalhador a se dedicar ao
trabalho por até 66 horas semanais (respeitado o descanso de um dia e meio, na
Espanha) em certos períodos do ano, o que é um verdadeiro absurdo. Por exemplo,
pode-se exigir do trabalhador que se ative em 12 horas diárias — em respeito ao
descanso mínimo de 12 horas entre jornadas — durante 17 semanas (quatro meses),

(20) PRADOS DE REYES, F. J. La ordenación del tiempo de trabajo en la Reforma del Estatuto de los
Trabajadores, p. 16-17.

227
cuja somatória alcança a impressionante cifra de 1.122 horas; ocorre que se fosse
respeitada a jornada semanal de 40 horas; em tal período o trabalhador não haveria
trabalhado mais do que 680 horas, o que permite a conclusão de que nesse período
de referência o trabalhador pode chegar a trabalhar 65% além da jornada normal,
o que é, evidentemente, algo desumano. Depois, o empregador promoverá a
compensação do excesso absurdo quando melhor lhe aproveite.
Tudo isso viola a Constituição espanhola, mais precisamente seu art. 40.2, que
garante aos trabalhadores a limitação da jornada de trabalho, para que tenham o
descanso necessário a fim de preservar sua saúde.

4.2. Limite semanal ou anual da jornada de trabalho no Brasil

No Brasil há um limite de oito horas diárias de trabalho, limite este que é


reduzido para seis horas diárias no trabalho em turnos (art. 7º, incisos XIII e XIV,
da CR/88).
Poder-se-ia objetar que o inciso XVI do mesmo dispositivo constitucional
autoriza a realização de horas extras sem limites, ao prever apenas que a remuneração
do serviço extraordinário deve ser superior, no mínimo, em 50% à normal.
Entretanto, não se deve fazer interpretações de normas de maneira isolada, e sim
com a utilização do método sistemático, analisando todas as normas que tratam da
mesma matéria no sistema jurídico, como um todo, principalmente dentro do mesmo
repertório legal — tomada aqui a expressão “lei” em sentido amplo. E esta
interpretação leva, sem dúvida, à conclusão de que só existe permissão para o trabalho
extraordinário se, ordinariamente, forem respeitados os limites diário e semanal de
duração do trabalho. Não há espaço, assim, para a exigência de horas extraordinárias
“habituais” dos trabalhadores brasileiros, prática que implica manifesta afronta à
norma constitucional de limitação do tempo de trabalho. A única maneira de
prorrogar diariamente a jornada de trabalho, autorizada pela própria Constituição,
é a permissão de compensação de horários, mediante acordo ou convênio coletivo de
trabalho, faculdade esta não estendida para os trabalhadores do regime de trabalho
em turnos ininterruptos de revezamento. É suficiente uma interpretação sistemática
dos incisos XIII e XIV do art. 7º da Constituição da República de 1988 (CR/88) para
se chegar a esta obviedade(21).
Ocorre que a compensação de horários, prevista na Consolidação das Leis do
Trabalho desde 1943, é apenas e tão somente a efetuada por meio do módulo semanal.
Não obstante, a flexibilidade que vem dominando o cenário europeu e, sobretudo, o
espanhol, atravessou o Atlântico e veio aportar em terras brasileiras, porquanto o
legislador brasileiro gosta muito de trasladar experiências de países europeus ao

(21) Em sentido contrário, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (Súmula n. 423).

228
sistema jurídico nacional, quase sempre sem observar a cultura e as práticas
nacionais, o que é, muitas vezes, causa do retumbante fracasso da “transposição”
inadequada. Assim é que o art. 6º da Lei n. 9.601/98, em vigor desde 22 de janeiro de
1998, promoveu uma alteração do § 2º do art. 59 da CLT, que passou a permitir a
perversa compensação quadrimestral de horários, denominada de “banco de horas”.
Isso permite que o empregador exija horas suplementares aos trabalhadores,
armazenando-as em um banco de dados — sem que haja disposição legal
estabelecendo as regras que serão observadas para isso —, para depois compensá-
-las quando lhe for mais propício, visto que as negociações coletivas não têm, salvo
raras exceções, fixado limites para essa prática.
Como se não bastasse, finalmente foi adotada pelo Brasil a ainda mais perversa
compensação, a anual — anualização do tempo de trabalho —, segundo a qual o
excesso de horas trabalhadas pode ser objeto de compensação no período máximo
de um ano, desde que seja observado o limite máximo de dez horas diárias(22). Ficou
estabelecido, assim, o cômputo anual da jornada de trabalho também no Brasil.
Entretanto, parte da doutrina brasileira, com reflexos na jurisprudência, tem
rechaçado tal instituto, porque o denominado “banco de horas”, que passou a ser
objeto de negociação coletiva em diversas categorias profissionais e econômicas, se
apresenta, em verdade, como um completo desvirtuamento do instituto da compensação
aqui analisado. Permitir que o empregador exija trabalho suplementar dos
empregados durante vários meses do ano, ou a faculdade de compensar a
“sobrejornada” com a redução do horário de trabalho em outros dias — quase
sempre da maneira que melhor lhe convier —, significa, simplesmente, a transferência
dos riscos da atividade econômica para o trabalhador, em manifesta violação da norma
de ordem pública prevista no caput do art. 2º da Consolidação. A toda evidência, o
capitalista exigirá a prestação de horas suplementares nos períodos de “pico” de
produção ou de vendas e as compensará nos períodos de baixa produtividade ou
de escassez nas vendas.
De tudo isso resulta que o trabalhador terá duplo prejuízo com o chamado
“banco de horas”: primeiro, porque prestará inúmeras horas extras ou suplementares
sem receber o adicional correspondente; segundo, porque essa prestação continuada

(22) Por meio da Medida Provisória n. 1.709, publicada em 7 de agosto de 1998, foi novamente alterado
o § 2º do art. 59 da CLT, para que ganhasse a seguinte redação: “Poderá ser dispensado o acréscimo de
salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for
compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período
máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite
máximo de dez horas diárias”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 9 maio de
2011. A última redação deste dispositivo, idêntica à atribuída pela MP n. 1.708, foi dada pela Medida
Provisória n. 2.141-41, de 24 de agosto de 2001, que teve sua vigência indeterminada, por força do art. 2º
da Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de
direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2005. p. 865.

229
de horas extras ou suplementares certamente afetará a sua saúde. Não resta, portanto,
alternativa que não seja a de acusar a flagrante inconstitucionalidade da Medida
Provisória n. 2.164-41, de 24 de agosto de 2001, a qual deu nova redação ao § 2º do
art. 59 da CLT, para permitir o banco de horas no período de um ano. Neste sentido,
Souto Maior(23) assevera que, por mais que se queira ver no “banco de horas” uma
boa intenção,
[…] é irresistível considerá-lo inconstitucional, por ser um incentivo à
utilização do trabalho em jornada extraordinária, contrariando o ideal
maior de favorecer o pleno emprego, fixado como princípio da ordem
econômica no inciso VIII do art. 170 da Constituição Federal.
A permissão do banco de horas vem se tratar, pois, de uma violação
irresponsável da Constituição pelo Governo, tanto à norma particular a respeito da
compensação (semanal) como aos princípios que são a base da sociedade brasileira,
porque se não há dignidade da pessoa humana trabalhadora, se não há respeito a
seus direitos laborais mínimos, tudo está perdido: não há dignidade, vida ou liberdade
que se respeite.
Em definitivo, há rigorosos limites diários à jornada de trabalho no Brasil,
estampados na Constituição, ainda que, na prática, os empresários brasileiros não
cumpram a normativa a respeito, com a conivência do Estado, principalmente ao
não incrementar o número de auditores fiscais do trabalho, a fim de que haja uma
fiscalização rigorosa das condições de labor, no que se refere ao tempo em que o
trabalhador permanece no estabelecimento do empregador.

4.3. A limitação das horas extraordinárias

Igualmente, para a proteção da saúde do trabalhador torna-se imprescindível uma


limitação das horas extraordinárias.
Isso porque a hora extraordinária, exatamente por sê-lo, jamais poderia ser
habitual. Segundo os léxicos, extraordinário é o que não é ordinário, ou seja, o que
é “fora do comum, excepcional ou anormal”, o que é “raro, singular”, ou ainda o
que “só ocorre em dadas circunstâncias, não rotineiras, imprevistas”(24). Daí que se
verifica que a prestação de serviços em “sobrejornada” jamais poderia ser uma prática
comum, que ocorre todos os dias. Muito pelo contrário, as horas extraordinárias
somente poderiam ser exigidas do trabalhador na ocorrência de situações excepcionais
que, portanto, não ocorrem no cotidiano da atividade empresarial.

(23) SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo:
LTr, 2000. p. 329.
(24) FERREIRA, A. B. de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed., rev. e aum., 23. impr. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 746.

230
Assim, para o trabalhador há uma motivação puramente econômica em sua
realização. Entretanto, a aparente vantagem pode se tornar muito prejudicial, pois
tal prática resulta em aumento da fadiga e da tensão no trabalho, cujas consequências
mais graves podem ser a perda, ainda que temporária, da saúde e da segurança dos
trabalhadores. Isso ocorre quando as horas realmente trabalhadas por semana
excedem, por uma ampla margem, às quarenta e oito, havendo, assim, um uso
excessivo das horas extras(25).
Por todo o exposto, é imprescindível uma limitação das horas extraordinárias.
Isso porque a regulação das horas normais passa a ter pouco efeito prático quanto
ao número real de horas de trabalho se não há um limite razoável para a realização
das horas extras. Por certo que algumas horas extras são necessárias. No entanto, se
o trabalhador efetua frequentemente muitas horas extras, isso pode virtualmente
anular os efeitos das disposições legais ou negociadas sobre as horas normais de
trabalho, alcançando “níveis de horas reais excessivos e prejudiciais para a saúde, a
seguridade e o bem-estar dos trabalhadores”(26).
Na Espanha, existe um limite muito estrito à realização das horas
extraordinárias, que “não poderá ser superior a oitenta ao ano”, de acordo com o
art. 35.2 do ET. Não obstante, o próprio dispositivo citado estabelece que não se
computam para estes efeitos nem as horas extraordinárias “que tenham sido
compensadas mediante descanso dentro dos quatro meses seguintes à sua realização”,
nem o excesso das trabalhadas para “prevenir ou reparar acidentes ou outros danos
extraordinários e urgentes”, conforme o § 3º do mesmo dispositivo legal. Contudo,
os casos de acidentes e danos extraordinários, bem como a realização de serviços
impostergáveis, são justamente as hipóteses em que se deve permitir a realização das
horas extraordinárias. De modo que permitir a realização de horas extraordinárias
mediante sua compensação por descanso, ainda que ao longo dos quatro meses
seguintes, é lançar por terra a própria limitação, que assim não passa de retórica.
O que ocorre é que a própria lei retira praticamente todo o efeito da limitação
anual das horas extraordinárias, quando permite sua compensação por descanso nos
quatro meses seguintes à sua realização. Por isso, Alarcón Caracuel(27) adverte que o
limite de 80 horas extraordinárias ao ano pode desaparecer, a se considerar que a
retribuição delas pode ser feita mediante compensação com descansos, e que as horas
assim compensadas não são computáveis para efeito do máximo autorizado.
Definitivamente, há mesmo um farisaísmo na legislação espanhola, eis que
estabelece um limite de 80 horas extraordinárias ao ano, mas, por outro lado, permite

(25) CLERC, J. M. Introducción a las condiciones y el medio ambiente de trabajo. Ginebra: Oficina
Internacional del Trabajo, 1987, p. 122-123.
(26) Ibidem, p. 120.
(27) ALARCÓN CARACUEL, M. R. Tiempo de trabajo en la reforma laboral. Relaciones Laborales, n.
17-18, 1994. p. 64.

231
sua compensação por descanso no período de referência de quatro meses, e estabelece
que não se computam para esses efeitos algumas situações (art. 35.5 do ET e art. 20
do RD 1561/1995, por exemplo), admitindo também a contratação de horas
complementares sem considerá-las horas extraordinárias (art. 12.5 do ET).
Situação pior ainda existe no Brasil, onde não há um limite expresso à realização
de horas extraordinárias. Pelo contrário, pesquisas demonstram que cerca de 25%
dos trabalhadores brasileiros formais realizam horas extras frequentemente(28), o
que é uma violação de outro direito humano fundamental — o direito ao trabalho.
Com base nessa pesquisa nacional, tem-se, portanto, em um cálculo rápido, que em
31 de dezembro de 2004(29) havia cerca de 8.000.000 de trabalhadores brasileiros
formais trabalhando, habitualmente, em horas extras. Admitindo-se que cada um
deles realizava uma hora extra por dia, tem-se que 1.000.000 de trabalhadores
brasileiros não conseguiram emprego em 2004 porque aproximadamente oito
milhões de empregados realizavam, pelo menos, uma hora extra por dia — a cada
oito trabalhadores trabalhando uma hora extra por dia, tem-se um desempregado.
Considerando-se os trabalhadores informais, os quais, normalmente, não têm
qualquer limite de jornada de trabalho, estes números serão muito superiores.
No Brasil, essa violação dos limites de jornada tem sido uma prática diuturna,
com o beneplácito dos sindicatos, dos inspetores do trabalho, e, por que não, da
própria Justiça do Trabalho. Tanto que esta criou a tese da “sobrejornada” habitual
para efeito de pagamento de reflexos de horas extras em outras verbas laborais(30).
Há, então, uma cultura nacional de horas extras. No entanto, têm sido propostos
limites para referida prática, ainda que não referendados pelo legislador.
Finalmente, se não podem ser terminantemente proibidas as horas extras, elas
devem ser limitadas ao máximo, pois o efeito danoso que provocam à saúde dos
trabalhadores é incontestável.

4.4. Limitação da jornada no trabalho noturno e em turnos de revezamento

De fato, se deve haver um limite às horas extraordinárias, a fortiori deve existir


proibição ou limitação muito mais rigorosa no que concerne à exigência de horas

(28) Realmente impressiona o resultado da pesquisa realizada pela CUT — Central Única dos Trabalhadores
—, pois que do universo total de trabalhadores, 77,8% dos entrevistados afirmam trabalhar em horas
extras, o que significa afirmar que, de cada 10 trabalhadores, oito se ativam em sobrejornada. E desse total
25% afirmam realizar horas extras frequentemente. CUT. Hora Extra: o que a CUT tem a dizer sobre
isto. Secretaria de Política Sindical de la CUT – Brasil. São Paulo: CUT Brasil, 2006. p. 163.
(29) Foram considerados os números de 2004 porque a pesquisa da CUT foi realizada em 2005.
(30) Súmula n. 347 do Tribunal Superior do Trabalho: “O cálculo do valor das horas extras habituais, para
efeito de reflexos em verbas trabalhistas, observará o número de horas efetivamente prestadas e a ele
aplica-se o valor do salário-hora da época do pagamento daquelas verbas”. E há inúmeras súmulas e
orientações jurisprudenciais do TST que fazem menção a horas extras “habituais”.

232
extras no período noturno e no trabalho em turnos ininterruptos de revezamento, nos
quais o desgaste físico e psíquico do trabalhador é muito mais intenso, levando a
situações de fadiga.
A fadiga decorrente da alteração do ritmo vigília-sono ocorre porque os seres
humanos, em sua grande maioria, têm atividades durante o período diurno,
enquanto durante o período noturno apresentam uma maior disposição para o
repouso (sono), inclusive por causa das alterações de sua temperatura corporal.
Por isso, nem todos os trabalhadores se adaptam ao trabalho noturno, pois as
mudanças no modelo já referido normalmente levam a alterações de comportamento,
principalmente em relação ao sono, o que se torna um fator de risco para o aumento
de acidentes e para as doenças do trabalho.
Estudos recentes, com avaliações por meio de polissonografia, demonstram
que os trabalhadores em turnos de revezamento têm uma redução de duas horas ou mais
por dia no tempo total de sono(31).
Na Espanha, o art. 36.1 do ET diz que “se considera trabalho noturno o
realizado entre as dez da noite e as seis da manhã”, estabelecendo que o empregador
que recorra regularmente à realização de trabalho noturno deverá informá-lo à
autoridade trabalhista. No entanto, a norma mais importante, no que se refere à
saúde dos trabalhadores, é a que disciplina que “a jornada de trabalho dos
trabalhadores noturnos não poderá exceder de oito horas diárias, em média, em um
período de referência de quinze dias”, e, ainda mais, que “ditos trabalhadores não
poderão realizar horas extraordinárias” (segundo parágrafo do art. 36.1 do ET).
Ocorre que as limitações impostas pelo art. 36.1 do ET acabam por perder
grande parte do efeito protetivo diante das exceções introduzidas pelo art. 32 do RD
1561/1995. Este dispositivo legal traz exceções aos limites de jornada dos trabalhadores
noturnos, permitindo a realização de horas extraordinárias ou a ampliação do
período de referência de quinze dias previsto no § 1º do art. 36 do ET, nos casos ali
previstos, incluindo o trabalho em turnos de revezamento, em caso de irregularidades
no revezamento dos turnos por causas não imputáveis à empresa. Isso se trata, em
verdade, de uma permissão que desnaturaliza a norma protetiva do art. 36.1 do ET.
No Brasil é ainda pior, eis que não há limitação de jornada para os trabalhadores
noturnos, nem sequer proibição de horas extraordinárias para esses
trabalhadores.
Com efeito, seria muito mais benéfico aos trabalhadores que o ordenamento
jurídico brasileiro contivesse norma como a do art. 36.1 do ET espanhol, fixando

(31) DE MELO, M. T.; SANTOS, E. H. R.; TUFICK, S. Acidentes automobilísticos, direção e sonolência
excessiva. Coletânea de textos técnicos. v. 1. In: Seminário em ergonomia e qualidade de vida no setor de
transportes. Brasília: Confederação Nacional dos Transportes, Sistema SEST/SENAT, 2007, p. 14-15.

233
um limite de oito horas diárias para os trabalhadores noturnos, bem como a
proibição da realização de horas extras por eles, em lugar de ficções legais que
somente burocratizam as relações laborais, como as dos §§ 2º e 5º do art. 73 da CLT.
No que se refere ao trabalho em turnos, não há, na Espanha, uma normatização
suficiente sobre essa matéria, até porque se permite a redução do descanso entre
jornadas para até sete horas, quando do revezamento dos turnos (art. 19.2 do citado
RD 1.561/1995). Ainda que se devam compensar as horas trabalhadas no período de
descanso diário de doze horas nos dias imediatamente seguintes, trata-se de outra
norma que põe por terra a norma de proteção excepcionada. De modo que o empregador
deveria ser estimulado a contratar mais equipes de trabalho e não ser autorizado a
utilizar o trabalho de seus empregados nos períodos mínimos de descanso ou no
momento das trocas de turnos, em manifesta violação ao direito fundamental à
saúde no trabalho.
No Brasil, como já mencionado, a Constituição de 1988 limitou a jornada de
trabalho a seis horas diárias para quem trabalha em regime de turnos, de acordo
com o art. 7º, inciso XIV. Essa limitação se faz necessária porque a mais importante
medida de promoção da saúde para quem trabalha nesse regime é a concernente à
redução ou limitação do tempo de trabalho. Não obstante, a jornada de seis horas
para o trabalho em turnos de revezamento não foi fixada como limite insuperável,
posto que se adicionou a expressão “salvo negociação coletiva”. De modo que a
doutrina e a jurisprudência brasileiras, admitindo a flexibilização do tempo de
trabalho neste caso, sempre acatou acordos e convenções coletivas que estipulam
jornadas superiores a seis horas diárias no trabalho em regime de turnos.
Não obstante, penso que, numa interpretação sistemática dos incisos XIII e
XIV do art. 7º da CR/1988, a conclusão é a de que nem sequer se admite compensação
de horários mediante negociação coletiva neste sistema de trabalho — também com
base numa interpretação teleológica, diante dos malefícios à saúde e à vida familiar
e social do trabalhador, como já apontado. Mais recentemente, a jurisprudência
tem mitigado aquela interpretação extensiva, para exigir uma contrapartida do
empresário para que seja possível o incremento da jornada no trabalho em turnos
de revezamento, levando em consideração os prejuízos à saúde laboral
proporcionados por esse sistema de trabalho. E ainda tem admitido a limitação de
jornada (seis horas diárias) para os trabalhadores que não trabalham nas 24 horas
do dia, mas apenas em dois ou três turnos, de oito ou seis horas, respectivamente.

5. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, tem-se que os períodos de descanso diário, semanal e


anual, e as pausas intrajornadas, são, ainda, a retaguarda da defesa da dignidade do
trabalhador na temática da limitação do tempo de trabalho, com vistas à proteção
da saúde laboral. Por isso, a OIT advertia, já no final da década de 1980, que é

234
essencial organizar o tempo de trabalho de modo que o trabalhador disponha de
períodos suficientes de descanso, a fim de garantir sua segurança, sua saúde e seu
bem-estar, propugnando por pausas mais longas para as refeições, bem como por
um descanso diário e semanal.
Não obstante, tanto as diretivas comunitárias quanto a legislação espanhola
não têm dado a devida importância às pausas intrajornada, estabelecendo um período
de descanso de duração de apenas quinze minutos, via de regra, e somente para as
jornadas superiores a seis horas diárias, tempo absolutamente insuficiente para a
finalidade a que se destina o período de descanso referido. Por isso, sustenta-se que
no Brasil há uma condição mais favorável, no que se refere ao descanso intrajornada,
pois que os trabalhadores brasileiros têm direito a uma pausa de quinze minutos nas
jornadas superiores a quatro horas, e de uma hora nas jornadas cuja duração exceda
de seis horas diárias (art. 71, § 1º, da CLT). No que se refere aos descansos diários e
semanais, não há diferença significativa entre os sistemas jurídicos brasileiro e
espanhol (arts. 34.3 e 37.1 do ET; arts. 66 e 67 da CLT). Destaca-se, apenas, que o art.
37.1 do ET permite o acúmulo do tempo de descanso semanal por períodos de até
quatorze dias, o que se mostra um risco grave à saúde e segurança dos trabalhadores.
Finalmente, as férias anuais remuneradas, que permitem ao trabalhador eliminar as
toxinas acumuladas ao longo do ano de trabalho, também encontram normativa
similar na Espanha e no Brasil. Assim é que, em geral, em ambos os países a duração
das férias anuais é de trinta dias (art. 38.1 do ET; arts. 129 e 130 da CLT), não sendo
possível a compensação econômica de mencionadas férias, ante sua finalidade
principal, que é a proteção à saúde do trabalhador.
A conclusão, pois, em modo de síntese, é a de que a limitação do tempo de
trabalho deve ser vista não somente como uma medida de organização do trabalho,
senão também — e principalmente — como uma forma eficaz de garantir a saúde do
trabalhador, que é um direito humano fundamental e condição necessária para o
desfrute de outros direitos fundamentais assegurados pelo positivismo estatal. Para
que isto seja de fato realizado, mister que os governos e os empregadores entendam
que a saúde do trabalhador é um bem jurídico imprescindível à propagada dignidade
humana, estando, assim, acima dos direitos fundamentais dos empresários.
Em definitivo, faz-se necessário implantar uma cultura de solidariedade, de modo
que a liberdade empresarial e a busca de lucro inerente ao capitalismo encontrem
freio quando se esteja diante de bens cuja satisfação compreenda o rol das necessidades
básicas do ser humano, como é o caso da saúde dos trabalhadores. Em suma, se o
século XIX foi o século do capitalismo e o século XX o do socialismo (de certa forma,
pelo menos nos Estados de bem-estar social), é necessário que o século XXI seja o
século do solidarismo, o único capaz de propiciar uma nova sociedade, em que os
direitos humanos sejam respeitados e se construa uma nova humanidade.

235
Capítulo 13

TRABALHE TRABALHE TRABALHE MAS NÃO ESQUEÇA:


VÍRGULAS REPRESENTAM PAUSAS

Heiler Ivens de Souza Natali


Sandro Eduardo Sardá

INTRODUÇÃO

O título do presente artigo foi extraído de uma campanha publicitária do


Citibank, veiculada em outdoors espalhados pela cidade de São Paulo no ano de 2006(1).
A frase acima não continha qualquer erro de pontuação em sua escrita original.
Entretanto, como versa este artigo sobre condições de trabalho em frigoríficos, o
título, da forma como ora redigido, retrata, com mais propriedade, a realidade
vivenciada pelos empregados deste setor.
Foi com o objetivo de melhorar as condições ambientais de trabalho e assegurar
saúde e dignidade aos empregados que se ativam em frigoríficos deste país que foi
instituído, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, em maio de 2011, o Projeto
Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos.
Para atingir os fins a que foi proposto, o Projeto encontra-se assentado em
bases de atuação prioritária. Essas bases dizem respeito à redução do ritmo, ao
estabelecimento de pausas de recuperação durante a jornada, a melhorias no
mobiliário, a redução do tempo de exposição aos agentes nocivos à saúde e a análise
e adequação das condutas médicas.
O presente artigo não tem a pretensão de retratar a realidade do trabalho no
interior dos frigoríficos. Essa realidade pode ser melhor apreendida por meio de
documentários independentes, disponíveis na rede mundial de computadores e
outros produzidos por instituições sérias, como é o caso do premiado documentário
Carne&Osso, da ONG Repórter Brasil, realizado com o apoio institucional da
Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho e da Associação Nacional dos
Magistrados do Trabalho. A pretensão deste artigo se limita, portanto, a apresentar

(1) Nesta época ainda não vigia a proibição municipal de publicidade por meio de outdoors.

236
uma sombra da realidade — lembrando que “sombra” vem do latim umbra o mesmo
radical de “sombrio” — e das ações até aqui realizadas no âmbito do Projeto, para
alterar esse quadro.

O MEIO AMBIENTE DE TRABALHO

O interior de um frigorífico de aves difere em muito do interior de um frigorífico


de bovinos ou de suínos.
Não há no primeiro nenhum impacto visual capaz de incutir qualquer
pensamento repulsivo quanto ao ambiente onde os empregados exercem suas funções.
É possível dizer, sem receio, que um frigorífico de aves em determinados momentos
se parece com um grande laboratório, onde os produtos são manipulados por
pessoas trajadas de um branco reluzente da cabeça aos pés, e com as mãos
devidamente calçadas de luvas.
Para os ilustres visitantes que adentram em um frigorífico de aves — e os
visitantes são ilustres porque, afora os compradores e inspetores nacionais e
internacionais que não dão a mínima para as condições de trabalho das pessoas, em
geral só com poder de fiscalização ou ordem judicial se adentra em uma unidade
destas — a impressão geralmente não é das piores. E há uma boa razão para que
assim seja.
Até bem pouco tempo atrás, tanto no âmbito do Ministério Público, quanto
do Poder Judiciário, a cultura predominante era o de valorar apenas os indicadores
de acidente de trabalho como referências para formação de um juízo em torno de ser
ou não determinada empresa cumpridora das normas de saúde e segurança do
trabalho.
Em que pese o fato de os indicadores de afastamentos por acidente de trabalho
não serem, de modo algum, desprezíveis, para o segmento de abate e processamento
de aves são os indicadores de afastamentos por adoecimentos que evidenciam a
nocividade do modelo de trabalho implementado.
Ao proceder a análise dos dados de afastamentos do trabalho em todos os
frigoríficos inspecionados nas forças-tarefas realizadas no âmbito deste Projeto,
independentemente de fruição ou não de auxílio-doença, tem-se verificado, em 100%
dos casos, a existência de um contingente enorme de adoecimentos decorrentes de
sobrecarga muscular dos membros superiores.
Essa sobrecarga muscular, nos frigoríficos de aves, não tem como fator
preponderante o emprego da força na realização da tarefa em razão do pequeno
peso das peças manuseadas. A sobrecarga muscular reside na imposição de um ritmo
de trabalho absolutamente incompatível com a condição humana.
237
Qualquer pessoa desavisada que “passear” pelo interior de sala de cortes de um
frigorífico de frangos — e se essa pessoa for alguma autoridade com poder de sanção
invariavelmente haverá redução expressiva da velocidade das esteiras durante este
passeio — corre o risco de não perceber essa sobrecarga e de acreditar, como até
bem pouco tempo atrás se diziam nas peças defensivas de boa parte das empresas do
setor, que a síndrome do túnel do carpo acometida ao trabalhador decorria do fato
de lavar roupa ou pilotar uma moto.
Em um frigorífico de bovinos, o impacto visual do ambiente de trabalho chama
tanta atenção que se essa mesma pessoa desavisada “passear” pelo interior das salas
de abate, bucharia, triparia e graxaria de uma planta destas, nem vai perceber que lá
o ritmo excessivo, porém um pouco mais reduzido, é compensado com o emprego
de força que, dependendo da atividade, chega a patamares absolutamente elevados
e aviltantes.
Entre essas duas realidades fica situado um frigorífico de suínos, pelas
características visuais que apresenta, bem mais próximas aquelas existentes em um
frigorífico de bovinos e o ritmo mais acelerado, tão característico de um frigorífico
de aves.
Esses fatores todos reunidos acabam ocultando a situação dramática vivenciada
pelos trabalhadores do setor de abate e processamento de carnes.
O adoecimento gerado pela sobrecarga muscular estática e dinâmica de
membros superiores, independentemente do fato de sua causa raiz ser
preponderantemente gerada pelo ritmo ou pela força, é agravado pelas deficiências
de mobiliário.
A inadequação das bancadas de trabalho, excessivamente altas e/ou largas,
por vezes, contribuem para o agravamento dessa sobrecarga.
No caso específico da coluna e dos membros inferiores, a ausência de cadeiras
para alternância de posições, quando possível a realização de trabalho sentado, é
uma realidade comum a todas as plantas, sendo dramática nas plantas de abate e
processamento de bovinos e suínos a ponto de, em várias forças-tarefas, se encontrar
cadeiras acorrentadas às bancadas de trabalho como forma de impedir que outros
empregados desprovidos de cadeiras façam uso delas.
Como se não fosse suficiente o labor em condições sobre-humanas de ritmo
e/ou força intensos e ao labor, boa parte das vezes exclusivamente em pé e com
adoção de posturas inadequadas para separar cada grama de carne dos ossos e das
vísceras, muitos empregados ainda tem que conviver com o frio ou o calor excessivos,
com ruído intenso e ininterrupto e com fezes, vísceras, sangue ou penas de animais.
A sujeição a esse conjunto de fatores de risco, que deveria estimular a restrição
voluntária, pelas próprias empresas, do tempo de exposição aos agentes ostensivos
de risco, tem, ao contrário, se dado muito além do módulo de 8h diárias e 44 h
semanais.

238
São corriqueiras as jornadas de 10h diárias, muitas vezes, sem compensação
aos sábados, e vez por outra se observam jornadas superiores a 12h diárias, havendo
registros de até 16h.
As jornadas excessivas, que em alguns casos tem contribuído para a
caracterização do trabalho como degradante, nos termos do art. 149 do Código
Penal, além de obviamente aumentar o tempo de exposição aos demais fatores de
risco, representa em si um fator de risco. Isso porque, após longas horas de trabalho
é visível a diminuição da destreza e do estado de alerta do empregado, sendo
imperativo ter em mente que na maioria dos casos esse empregado tem na faca
afiadíssima seu instrumento de trabalho.
Conscientes de todo esse contexto, o mínimo que se poderia esperar de um
médico da empresa que recebesse em sua sala um empregado com queixas de dor em
membros superiores é o imediato afastamento do funcionário do trabalho,
determinando-se o retorno após a avaliação minudente de seu quadro e do próprio
posto de trabalho onde atua. Ao invés disso, mesmo constatando no exame clínico
quadro de inflamação, muitos desses profissionais simplesmente prescrevem um anti-
inflamatório e determinam o retorno imediato ao trabalho.

O ENFRENTAMENTO DA REALIDADE

Todos os fatores de risco que envolvem a prestação de serviços no interior de


um frigorífico convergem para a violação de um direito base, de matiz fundamental:
o direito à saúde.
A proteção jurídica desse bem é assegurada em todos os níveis do ordenamento
jurídico.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. XXV, reconhece
a todos o direito a um padrão de vida saudável. Por sua vez, o Pacto Internacional
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é signatário, estabelece
no art. 12 que “Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda
pessoa ao desfrute do mais alto nível possível de saúde física e mental”.
No plano constitucional, o direito à saúde foi reconhecido como direito
fundamental, de feição social (art. 6º). A Constituição estabelece ainda como dever
do Estado promover políticas sociais e econômicas que visem a redução dos riscos de
doença e outros agravos à saúde (art. 196).
Nesse contexto de proteção ampla do direito à saúde, cuja tutela é
compartilhada por todos os entes federativos (CRFB, art. 23, inciso II), houve por
bem o legislador infraconstitucional explicitar os principais fatores determinantes
para a adequada fruição do direito à saúde. Estes fatores encontram-se insculpidos

239
no art. 3º da Lei n. 8.080/90 e tem no trabalho um de seus maiores expoentes,
porquanto é ele que provê os meios de acesso a boa parte dos demais elementos
destacados nessa norma(2).
Entretanto, um desses fatores e condicionantes essenciais não pode ser obtido
com a simples prestação de trabalho pelo empregado. Trata-se do acesso ao meio
ambiente de trabalho(3) saudável e equilibrado.
Cabe ao empregador o dever de prover os meios necessários para assegurar
que a prestação de serviços se dê de modo a não gerar riscos à saúde dos empregados.
Estes riscos, na quase totalidade dos casos, são absolutamente negligenciados
no interior dos frigoríficos brasileiros.
Isso porque, embora muito bem providos de quilos de papel confeccionado
para atender às exigências formais da lei, de um modo geral a realidade em nada
condiz com a documentação exibida ou, nas vezes em que condiz, não há propostas
de medidas de natureza coletiva para sua regularização.
O mais representativo instrumento deste descompasso é o LAUDO
ERGONÔMICO. Via de regra tem-se observado que este mecanismo, exigido pela
Norma Regulamentadora n. 17 do Ministério do Trabalho e Emprego, tem sido
utilizado por ignorância do profissional encarregado de sua elaboração acerca do
método ergonômico adequado para análise do posto de trabalho, ou má-fé, para
mascarar a verdadeira condição de trabalho a que estão submetidos os empregados.
A estratégia normalmente utilizada pelas empresas se dá com o emprego de
métodos de análise ergonômica que se atém a descrição das posturas estáticas
assumidas pelos membros e à sua avaliação. Quando isso ocorre, ao se proceder a
análise do posto de trabalho de um desossador de sobrecoxa de frango, por exemplo,
a atividade será descrita como realizada normalmente em pé, com os braços
levemente estendidos e com uma das mãos apoiando uma faca utilizando pega do
tipo “grip”. Com base nesta descrição, de fato, a conclusão é a de que o posto de
trabalho não oferece grandes riscos à saúde. Entretanto, quando se considera que
este trabalhador desossa 4 sobrecoxas em um único minuto e em cada uma realiza
em torno de 18 ações técnicas, como muito bem retratado no Documentário

(2) Lei n. 8.080/90. Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o
transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a
organização social e econômica do País.
(3) A inserção do meio ambiente de trabalho dentro do espectro de abrangência do conceito de meio
ambiente é reconhecida não apenas pela doutrina, como a que se extrai do magistério de José Afonso da
Silva (In: Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 2), mas também e,
principalmente, pela própria Constituição, ao incluir expressamente a colaboração com “... a proteção do
meio ambiente, nele compreendido o do trabalho” no rol de competências do Sistema Único de Saúde
(CRFB, art. 200, inciso VIII).

240
Carne&Osso, fica fácil concluir que é impossível desconsiderar os fatores de risco
provocados pelo ritmo, frequência, força e estereotipia da atividade.
Para realizar essa análise global dos fatores de risco que atuam sobre o posto de
trabalho afigura-se indispensável a utilização de métodos ergonômicos que levem
em consideração a dinâmica da atividade. Desse modo, devem ser analisadas não
apenas as posturas estáticas assumidas, mas a mecânica dos movimentos realizados
por cada um dos segmentos corporais, a força empregada, a duração do ciclo da
atividade, a frequência de realização, o número de movimentos realizados dentro
do ciclo, a estereotipia e a presença de fatores complementares de risco, como a
exigência de movimentos bruscos, emprego de ferramentas inadequadas,
impossibilidade de controle do ritmo de trabalho por ser o mesmo determinado
pela máquina etc.
Considerada a sobrecarga muscular dos membros superiores, tão ínsita às
atividades realizadas no interior dos frigoríficos, é necessário optar por métodos de
avaliação ergonômica que privilegiem a análise dos movimentos realizados pelas
mãos, punhos, ombros, braços e cotovelos no contexto amplo dos fatores de risco
acima identificados.
Dentre os métodos recomendados pela normativa internacional ISO 11228-3
(HAL, OCRA e MOORE & GARG), indiscutivelmente, o que melhor se adapta ao
exame dos postos de trabalho em frigoríficos é o método OCRA, por ser o único a
proceder à análise global dos riscos incidentes sobre a mão, o punho, os ombros e os
cotovelos e por ser o único, dentre todos os métodos, que fornece ferramentas para
reprojetação dos postos de trabalho deficientes(4).
É por essa razão que tanto a Coordenação deste Projeto, quanto os peritos do
Ministério Público que acompanham as Forças-Tarefas, bem como diversos
Procuradores do Trabalho e Auditores Fiscais do Trabalho, tem se capacitado para
aplicação do método em questão.
Desse modo, o enfrentamento do gravíssimo quadro de adoecimentos decorrentes
do trabalho desenvolvido no interior dos frigoríficos não se dá apenas com suporte no
ferramental jurídico, mas também com base em conhecimento técnico fortemente
embasado nos laudos periciais produzidos durante as Forças-Tarefas.

ANÁLISE DOS PRINCIPAIS FATORES DE RISCO

Esse conhecimento técnico tornou possível a conclusão no sentido de que, muito


embora permaneça a inadequação generalizada do mobiliário como um problema

(4) O método HAL se dedica ao estudo dos fatores de risco apenas sobre as mãos e o método MOORE &
GARG (ou Strain Index) se concentra mais no estudo da incidência desses fatores sobre as mãos e o
punho.

241
importante a ser enfrentado, assim como o emprego exagerado de força física em
determinadas atividades, o ruído excessivo, o excesso de umidade etc., é o ritmo de
trabalho a principal causa de adoecimentos no segmento das indústrias de abate e
processamento de carnes.
A análise das filmagens realizadas sobre os postos de trabalho tem comumente
revelado a execução de 50 a 120 ações técnicas por minuto, a depender do tipo de
atividade exercida e do tipo de frigorífico (aves, bovinos ou suínos) inspecionado.
Apenas para se ter um parâmetro do que significa a execução regular desse
quantitativo de ações técnicas por minuto, uma das referências mais importantes
utilizadas internacionalmente, Kilbom (1994), estabelece que o número de 25 a 33
movimentos por minuto não deveria ser excedido quando se deseja evitar transtornos
para os tendões.
Em decorrência deste fato, o que se tem observado invariavelmente em todas as
operações realizadas em frigoríficos é a relação direta entre o elevado ritmo de
trabalho imposto e o patamar absurdo de afastamentos, superiores e inferiores a 15
dias, vinculados a distúrbios osteomusculares (CID Grupo “M”).
Em relação aos afastamentos inferiores a 15 dias, não tem sido raro encontrar
casos em que, em apenas um ano, o equivalente a totalidade dos empregados que
trabalham no frigorífico tenha se afastado do trabalho por causa relacionada a
distúrbios osteomusculares dos membros superiores.
Embora não seja verdadeira a afirmação que todo e qualquer afastamento nas
circunstâncias acima esteja relacionado com o trabalho, o fato é que esta circunstância
há de ser presumida não apenas em função do ritmo absurdo, do mobiliário
inadequado, do frio, do emprego de força, da escassez de pausas e da exigência regular
de horas extras, mas também porque assim estabelece a lei.
Neste sentido o art. 21-A da Lei n. 8.213/91 estabelece a obrigação legal de se
adotar o nexo técnico epidemiológico quando da avaliação dos afastamentos
incapacitantes do trabalho. O art. 337, caput e § 3º, do Decreto n. 3.048/99, também
se reporta ao nexo técnico epidemiológico como o ferramental apropriado para o
estabelecimento da presunção entre o agravo à saúde e sua vinculação com a atividade
desenvolvida. Em ambos os casos, a intenção primitiva da norma é promover ou
não o enquadramento como acidente de trabalho para fins de pagamento de benefício
acidentário. Isso, todavia, não elide o estabelecimento dessa mesma presunção para
afastamentos inferiores a 15 dias, porquanto o médico da empresa está obrigado a
emitir CAT em caso de suspeita de nexo entre a doença e o trabalho, nos termos do
art. 3º, da Resolução CFM n. 1.488/98. Em se tratando de suspeita de LER/DORT,
esse dever é reforçado pela Instrução Normativa n. 98/2003 do INSS, ao estabelecer
que “Havendo suspeita de diagnóstico de LER/DORT, deve ser emitida a
Comunicação de Acidente do Trabalho — CAT. A CAT deve ser emitida mesmo nos
242
casos em que não acarrete incapacidade laborativa para fins de registro e não
necessariamente para o afastamento do trabalho”.
Além da referida instrução normativa contendo esta determinação específica,
há ainda a Portaria GM/MS n. 104/2011, do Ministério da Saúde, que determina a
notificação compulsória do Sistema de Saúde nos casos de LER/DORT. Para tanto,
é utilizado o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN).
Em recente publicação, o Ministério da Saúde (Dor relacionada ao trabalho:
lesões por esforços repetitivos (LER) : distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho
(Dort) / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de
Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. — Brasília: Editora do
Ministério da Saúde, 2012) traz como orientação técnica que, caso o paciente
apresentar quadro clínico característico, a anamnese ocupacional não permitir
identificar fatores de risco para a ocorrência de LER/Dort, mas se o ramo de atividade
ou a função forem conhecidos pela existência de fatores de risco para a ocorrência de
LER/Dort (pois há evidência epidemiológica), “o caso deve ser notificado ao Sistema
de Informações de Agravos de Notificação (Sinan) e à Previdência Social como LER/
Dort.” Ao mesmo tempo, os órgãos de vigilância sanitária devem ser notificados,
para que haja confirmação diagnóstica de LER/Dort.
Havendo, portanto, determinação de emissão de CAT em caso de suspeita de
nexo, deve o médico da empresa se valer do quadro constante da lista “C” do Anexo II
do Decreto n. 3.048/99 a fim de presumir ou não a vinculação entre a patologia em
exame e sua vinculação com o trabalho. Essa presunção pode ser afastada e a CAT
deixar de ser emitida caso o médico, por meio de exame clínico ou exames laboratoriais,
concluir pela ausência de correlação entre o agravo à saúde e o trabalho.
Portanto, tudo que o médico da empresa não pode fazer — e infelizmente é
exatamente isso que boa parte deles faz — é simplesmente presumir a ausência de
nexo do afastamento inferior a 15 dias com o trabalho e deixar de emitir CAT mesmo
sabendo que a maior parte dos empregados que apresentam queixas de dor nos
membros superiores são justamente aqueles que se ativam nos postos de trabalho
mais críticos.
Por esse motivo, também integra o núcleo das ações prioritárias do Projeto
Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos a análise da
conduta médica da empresa.
A ausência de uma verdadeira política de vigilância em saúde, consistente em
um conjunto integrado de ações que visem a identificação precoce dos riscos de
agravo à saúde e a adoção dos mecanismos necessários para adequação do meio
ambiente de trabalho de modo a permitir a prestação dos serviços de forma segura
e saudável, tem sido apontada pela Coordenação de Projeto como uma das grandes
causas para a pouca efetividade das iniciativas fragmentadas adotas no interior dos
frigoríficos nesse particular.
243
Para a implantação de uma política de vigilância em saúde não basta a
identificação formal dos agentes físicos, químicos e biológicos do posto de trabalho,
como determina a NR-9 que trata do Programa de Prevenção dos Riscos Ambientais,
nem tampouco a constatação acerca da presença de riscos ergonômicos, nos termos
da NR-17. É indispensável que se estabeleça a correlação entre os agravos à saúde
que acometem os empregados e os respectivos postos de trabalho.
Essa correlação fundamental entre os principais agravos à saúde e o posto de
trabalho não tem sido identificada nos Programas de Controle Médico de Saúde
Ocupacional — PCMSO. Embora a NR-7 determine expressamente que “o PCMSO
deverá ter caráter de prevenção, rastreamento e diagnóstico precoce dos agravos à
saúde relacionados ao trabalho, inclusive de natureza subclínica, além da constatação
da existência de casos de doenças profissionais ou danos irreversíveis à saúde dos
trabalhadores” (item 7.2.3), normalmente os agravos decorrentes dos riscos
ergonômicos (dentro dos quais se encontram abrangidos o ritmo acelerado, a força
empregada, a estereotipia, a ausência de pausas, o uso de ferramentas, etc) são
absolutamente negligenciados neste instrumento.
Quando se tem em mente que em um frigorífico de aves, por exemplo, o risco
de acometimento de síndrome do túnel do carpo em razão da exposição do
empregado a um ritmo de trabalho incompatível com sua condição humana é 743%
(setecentos e quarenta e três) por cento maior do que aquele a que está sujeito o
restante da população(5) fica fácil concluir que é chegada a hora de encarar esse
problema de frente.
Torna-se, assim, necessário o mapeamento completo da relação posto de
trabalho x agravos à saúde, para que o médico da empresa, com o apoio dos demais
integrantes do SESMT e da CIPA, possa estabelecer os parâmetros necessários para
adequação dos postos de trabalho de forma a elidir ou minimizar os riscos de novos
adoecimentos.
Vale ressaltar que, embora existam ferramentas avançadas de ergonomia, como
o método OCRA, que permitem a reprojetação dos postos de trabalho a partir da
análise detalhada dos principais agentes de risco que incidem sobre o posto em
questão, é preciso reconhecer que esta ferramenta, como as demais, tem sua atuação
limitada aos fins a que se propõe e não é capaz de identificar uma série de outros
agentes ostensivos de risco presentes em boa parte dos frigoríficos, como os riscos de
depressão, os decorrentes do trabalho permanentemente em pé, de contato contínuo
das mãos diretamente com a água, do transporte de cargas, do contato com agentes
biológicos, do labor em ambiente frio, etc.

(5) OLIVEIRA, Paulo Rogério Albuquerque. Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário NTEP, Fator
Acidentário de Prevenção FAP: um novo olhar sobre a saúde do trabalhador. 2. ed. São Paulo: LTr, 2010.
p. 133-229.

244
Portanto, enquanto esse mapeamento não vem, e até que sejam implementadas
as ações necessárias para elidir os riscos de agravos à saúde, medidas de caráter
conservativo devem ser empregadas. Tais medidas são mais úteis quando adotadas
em conjunto e dizem respeito, principalmente, à redução do tempo de exposição, a
introdução de pausas e ao rodízio de funções.
A redução do tempo de exposição como medida de caráter conservativo da
saúde do empregado não representa nenhuma novidade no meio jurídico. Isso porque
são vários os casos em que esse expediente é utilizado. Talvez o exemplo mais conhecido
seja o adotado pelos operadores de teleatendimento e telemarketing, cujo tempo de
exposição efetivo na atividade encontra-se limitado a 6 horas diárias(6). Entretanto,
há diversos outros casos de redução do tempo de exposição, como se observa em
relação aos agentes ruído(7), calor(8), frio(9), ao trabalho em condições hiperbáricas(10)
e ao trabalho de processamento eletrônico de dados(11).
Particularmente em relação ao agente de risco frio (e o frio é expressamente
definido como agente de risco para LER/DORT pela IN n. 98/2003 do INSS), tão
presente nos frigoríficos, a NR-29 estabeleceu em 6h40min o tempo máximo de
exposição, em temperaturas entre +15oC, +12oC ou +10oC (conforme a zona climática
estabelecida no mapa oficial do IBGE), e -17,9oC, mesmo com o uso dos equipamentos
de proteção.
Os parâmetros de frio adotados nesta norma e aplicáveis aos trabalhadores do
segmento portuário que se ativam em ambientes dessa natureza, diga-se de passagem,
foram dados pelo parágrafo único do art. 253 da CLT, que determina exatamente
essa faixa de temperaturas positivas para estabelecer o conceito de ambientes
artificialmente frios e definir a necessidade de pausas de 20min para cada 1h40min
trabalhados(12).
Assim como a redução do tempo de exposição, a introdução de pausas para
descanso durante a jornada não se traduz como novidade. O exemplo mais conhecido
de pausas de descanso dentro da jornada é o do art. 71 da CLT, que determina a
concessão de intervalo mínimo de 1h, para repouso e alimentação para jornadas
superiores a 6 horas. Com a finalidade exclusiva de recuperação de fadiga, a previsão
mais antiga que se conhece também data da promulgação do Decreto-Lei n. 5.452/43
é está contida no art. 72 da CLT, que estabelece intervalo de 10min para cada 90min

(6) Item 5.3 do Anexo II, da NR-17.


(7) Anexo I, da NR-15.
(8) Anexo III, da NR-15.
(9) Item 29.3.16.2 da NR-29.
(10) Item 13.5 do Anexo VI, da NR-15.
(11) Item 17.6.4, alínea “c”, da NR-17.
(12) A partir da publicação da Portaria SSSTb, n. 21, de 27.12.1994, foi adotado o Mapa Clima do IBGE
como referência para as zonas climáticas referenciadas nesta norma.

245
trabalhados em atividades hoje extintas, como mecanografia e datilografia. Esse
modelo, todavia, encontra-se superado pela NR-17, cujo item 17.6.4, alínea “d”,
estabelece pausas de 10min para cada 50min trabalhados em atividades de entrada
de dados.
Registre-se, por oportuno, que para as atividades de processamento de dados,
além da adoção das pausas durante a jornada, é limitado em 5 horas o tempo de
exposição (item 17.6.4, alínea “c”).
Além da redução do tempo de exposição e da introdução das pausas, como
dito anteriormente, outra medida conservativa diz respeito à realização de rodízios
de tarefas.
A eficácia do emprego de rodízio para fins de redução da sobrecarga muscular
depende, naturalmente, da alternância dos grupos musculares quando de sua
realização. No caso do labor em frigoríficos, considerada a característica da atividade
que sobrecarrega quase exclusivamente membros superiores, notadamente braços,
mãos, punhos e cotovelos, a realização de rodízios eficientes, com alternância efetiva
de grupos musculares, tem representado um grande desafio para o setor, ainda sem
perspectiva de superação.
Por essa razão, o modelo que melhor se adapta a realidade dos frigoríficos,
enquanto, repita-se, estiverem presentes os fatores ostensivos de risco de agravos à
saúde, é aquele que, a exemplo dos empregados que exercem atividades de
processamento de dados, conjuga a introdução de pausas com a redução do tempo
de exposição.

AS DIRETRIZES DO PROJETO NACIONAL DE ADEQUAÇÃO DAS


CONDIÇÕES DE TRABALHO EM FRIGORÍFICOS PARA ATUAÇÃO
EM JUÍZO E FORA DELE

No plano extrajudicial, em suas atividades de campo, a Coordenação de Projeto


realiza a filmagem dos postos de trabalho, valendo-se de metodologia apropriada à
captação dos movimentos realizados, a identificação das ações técnicas operadas
dentro do ciclo, a determinação da frequência, a presença de eventuais pausas de
recuperação dentro do ciclo, a análise das posturas assumidas de mão, braços, punhos
e cotovelos, a determinação dos fatores de risco complementares presentes na
atividade e a avaliação da presença de estereotipia.
Dados adicionais como presença de eventuais pausas, duração da jornada,
realização de horas extras habituais e números de produção também são levantados.
Com base nesses elementos é possível determinar o risco da atividade exercida
pelo operador no seu posto de trabalho.

246
Também é possível determinar o nível de redução de velocidade das nórias no
momento da realização das filmagens — prática fraudulenta extremamente comum
adotada pelos frigoríficos para mascarar o risco dos postos de trabalho — através
dos dados de abate do SIF, dos dados históricos de abate por hora, antes e durante
a inspeção e ainda a estimativa do número de abates a partir da contagem da passagem
das carcaças por pontos fixos seguida de confrontação com as planilhas de previsão
de abate do dia.
Esses dados, além de corroborar eventual demanda de reparação por danos
morais coletivos fundada em fraude na coleta de provas técnicas para embasamento
de ação civil pública e repercutir penalmente, nos termos do art. 10 da Lei n. 7.347/
85, permitem, quando necessário(13), a correção dos índices de risco do posto.
Juntamente com a documentação audiovisual dos postos de trabalho para fins
de avaliação de risco de sobrecarga dos membros superiores, também são realizadas
filmagens e registros fotográficos das bancadas de trabalho a fim de confrontá-las
com as especificações contidas na NR-12 (que trata da segurança de máquinas e
equipamentos) e da própria NR-17 (que trata de ergonomia).
Também são inspecionados os sistemas de refrigeração por amônia, adotando-
se como parâmetros de referência as informações constantes da Nota Técnica n. 3/
2004 do MTE.
Paralelamente a esses levantamentos, que, a depender do tamanho da unidade
inspecionada, podem levar mais de uma semana, são analisados inúmeros
documentos requisitados pela Força-Tarefa, dentre os quais o PPRA, o PCMSO, o
LAUDO ERGONÔMICO, CATs emitidas, atestados médicos, ACTs/CCTs, registros
de temperatura e controles de jornada.
Ao final, a Coordenação de Projeto tem por metodologia preestabelecida
proceder reunião de encerramento da operação, juntamente com os representantes
da unidade, apontando todas as irregularidades encontradas.
Nessa ocasião, normalmente as partes entram em consenso quanto aos prazos
e formas de adequação das questões envolvendo mobiliário de modo a evitar a
judicialização de demanda nesse particular.
Questões envolvendo introdução de pausas também tem sido objeto de
entendimento na esfera extrajudicial.
Embora o melhor antídoto para os agravos à saúde que decorrem da sujeição
ao labor em ritmo acelerado seja justamente a redução desse ritmo a níveis

(13) Diz-se, quando necessário, porque, mesmo manipulando, por vezes, descaradamente, a velocidade
das nórias e esteiras, a aferição de risco do postos de trabalho atinge seu patamar máximo mesmo com a
fraude, tamanho o ritmo de trabalho imposto.

247
compatíveis com a dignidade humana, a introdução de pausas para recuperação de
fadiga, como visto, é fundamental para evitar a piora dos níveis de adoecimento do
setor.
Por esse motivo, dentre as iniciativas extrajudiciais que podem ser citadas no
âmbito do Projeto(14), aquela que merece maior destaque diz respeito ao Acordo
Nacional de Pausas firmado entre esta Coordenação e o Grupo Seara Marfrig,
firmado em 13.2.2012. Neste acordo, que abrange todos os setores de 13 plantas
industriais de aves, o modelo de pausas estabelecido é o de 50min para jornadas de
até 7h20min e de 60min para jornadas superiores a esse patamar, com acréscimo de
10min de pausa a cada 50min trabalhadas em caso de prorrogação do trabalho(15).
Consta deste acordo que a distribuição das pausas se dará por meio do método
OCRA; os prazos de implantação gradual das pausas variam de julho de 2012 a
janeiro de 2014 e partir de julho deste ano iniciam-se as tratativas de ampliação
deste acordo para as plantas de suínos e bovinos.
Nos casos de limitação dos acordos a questões envolvendo mobiliário, a
ausência de ajuste em relação as pausas torna necessário o ajuizamento de demandas.
Nesses casos, a estratégia da Coordenação de Projeto amplia-se para abarcar, quando
cabível em razão da localização geográfica, outro agente de risco além do ritmo,
qual seja, o frio.
Consoante já explicitado neste artigo, o frio é classificado como agente de risco
para a ocorrência de LER/DORT. Essa classificação é dada por meio da Instrução
Normativa n. 98/2003 do INSS e o parâmetro de enquadramento de ambiente como
sendo artificialmente do frio é fornecido pelo parágrafo único do art. 253 CLT.
Desse modo, ao incorporar o agente de risco frio como linha de atuação, onde
aplicável, no sentido da introdução de pausas de 20min a cada 1h40min trabalhados
em ambientes artificialmente frios, como determina o art. 253 caput e parágrafo
único da CLT, a Coordenação do Projeto também acaba, por esta via, perseguindo
a antídoto das pausas para recuperação de fadiga nesses locais.
Essa atuação, tecnicamente, é bastante simples porque independe de qualquer
tipo de perícia, na medida em que a temperatura dos ambientes artificialmente frios
é controlada pelo Serviço de Inspeção Federal — SIF, existente em cada frigorífico(16), e

(14) Mesmo fora do âmbito do Projeto Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos,
diversos colegas tem firmado Termos de Ajustamento de Conduta com previsão de pausas para recuperação
de fadiga, nos patamares defendidos por esta Coordenação.
(15) Excluem-se desse acordo as chamadas unidades que operam exclusivamente com Griller, cujas
pausas inicialmente estabelecidas são de 40 min, sujeitas a complementação após estudos da atividade
pela Coordenação.
(16) Quando não há Serviço de Inspeção Federal no Frigorífico, por não exportar produtos para outros
estados ou países, haverá Serviço de Inspeção Estadual, para o caso de se exportar produtos apenas para
outros estados ou Serviço de Inspeção Municipal, quando limitado a comércio entre municípios.

248
não pode exceder os limites estabelecidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento — MAPA — fixados em patamares variáveis, porém não
superiores a 12oC.
Nos locais onde o art. 253 da CLT é de difícil aplicação, na medida em que a
temperatura de referência da zona climática é inferior a 12oC, como ocorre em quase
toda a região sul do país, a atuação do Projeto se concentra na introdução de pausas
de recuperação de fadiga, nos termos do item 17.6.3 da NR-17.
O parâmetro aplicável para as pausas em frigoríficos defendido pela
Coordenação de Projeto é o mesmo aplicável para as atividades de entrada de dados,
ou seja, de 10min para cada 50min trabalhados. Isso porque a sobrecarga
osteomuscular dos membros superiores é muito maior nas atividades realizadas no
interior de frigoríficos, ante a conjugação do ritmo absurdo (presente em ambas as
atividades), com a força (praticamente inexistente na digitação), o frio (reconhecido
como agente de risco para LER/DORT e inexistente na digitação), a adoção de
posturas inadequadas dos braços (apoiados na digitação e sustentados estaticamente
nos postos de trabalho dos frigoríficos), a impossibilidade de controle do ritmo de
trabalho (possível na atividade de entrada de dados, mas não nos postos de trabalho
em geral dos frigoríficos, cujo ritmo é ditado pela esteira ou pela nória) e a utilização
de ferramentas que obrigam uma ou ambas as mãos a permanecer em regime de
preensão (cuja pega é inexistente na digitação e presente o tempo todo nas atividades
em geral dentro de frigoríficos).
O parâmetro legal de referência acima não destoa do modelo europeu. A
normativa europeia EN 1005-5:2007, ao avaliar o risco por manipulação repetitiva
de alta frequência dispõe, no tópico que trata de pausas e períodos de recuperação,
que “Para tareas repetitivas, la condicion de referencia está representada por la
existencia, para cada hora de tarea repetitiva, de pausas de trabajo (durante las
quales uno o varios de los grupos de músculos, generalmente implicados en la tarea
de trabajo, están basicamente inactivos) de, al menos, 10 minutos consecutivos o en
una proporción de 5:1 entre el tiempo de trabajo y los períodos de recuperación”.
No campo doutrinário, Daniela Colombini, pesquisadora do Centro de
Ergonomia da Postura e Movimento da Universidade de Milão e uma das maiores
referências do mundo no campo da ergonomia, observa que “Uma indicação a este
respeito vem da experiência australiana para prevenção de doenças osteomusculares
relacionadas ao trabalho (DORT). Um documento específico da Heath and Safety
Commission Autraliana (Victorian Occ. HSH, 1988), estabelece principalmente que
não podem ser considerados aceitáveis períodos de trabalho com movimentos
repetitivos que se prolonguem, sem períodos de recuperação, por mais de 60 minutos.
Dentro deste contexto é, por outro lado, fornecido um critério geral pela qual a
relação entre tempo de trabalho (com movimentos repetitivos) e tempo de
recuperação deve ser pelo menos de 5:1. Uma indicação similar é fornecida também
em documentos redigidos nos USA pela ACGH (ACGH, 2000) onde são
249
recomendados interrupções de cerca de 10 minutos por hora para trabalhos manuais
repetitivos. (...) No caso de trabalho de trabalhos repetitivos, as tarefas cujas ações
técnicas são prevalentemente constituídas por movimentos (e não por manutenções),
são obviamente mais frequentes. Partindo das indicações acima mencionadas, em
caso de trabalho repetitivo é aconselhável ter um período de recuperação a cada 60
minutos com uma relação de 5 (trabalho) 1 (recuperação); resulta que a relação
ideal de distribuição do trabalho repetitivo e recuperação é de 50 minutos de trabalho
repetitivo e de 10 minutos de recuperação”(17).

LAUDOS PERICIAIS

Em juízo, sobretudo nos locais onde o art. 253 da CLT não se aplica, é recorrente
a solicitação de perícias por parte dos frigoríficos, nas demandas movidas pelo
Ministério Público com a finalidade de introdução de pausas da NR-17 nos patamares
acima estabelecidos.
Essas perícias judiciais tem reconhecido a presença de riscos nas atividades e a
necessidade de adoção de pausas segundo o modelo aqui apresentado em
praticamente todos os postos de trabalho.
Nesse sentido, considerando que para a determinação dos riscos dos postos de
trabalho é necessário avaliar não apenas o ritmo, mas diversos outros fatores como
o mobiliário, as ferramentas, a duração normal da jornada, etc., a perícia a ser
realizada demanda amplo levantamento técnico, traduzindo-se em atividade
altamente complexa.
Não obstante, os resultados acabam convergindo sempre para os mesmos
pontos de constatação, na medida em que são ínsitos ao modelo de processo
produtivo atualmente em vigor em todos os frigoríficos.
Em duas perícias judiciais realizadas nos autos dos processos n. 00601-2008-
015-12-00-1 e n. 00229-2009-015-12-00-2 , as constatações em torno dos postos de
trabalho analisados foram basicamente as seguintes:
• Do ponto de vista das atividades de trabalho: as tarefas são caracterizadas
como sendo monótonas e repetitivas; altas cargas de trabalho determinadas
pela cadência elevada da linha de produção; trabalho desprovido de autonomia
e pobre em decisão; escassez de pausas de recuperação da fadiga; ciclos de
trabalho considerados muito curtos; jornadas de trabalho prolongadas pela
prática de horas extras.
• Do ponto de vista das posturas de trabalho: posturas corporais mantidas
rigidamente por períodos prolongados de tempo; execução de movimentos

(17) Método Ocra — Para análise e a Prevenção do Risco por Movimentos Repetitivos, Daniela Colombini,
Enrico Occhipinti, Michele Fanti — São Paulo: LTr, 2008. p. 133/134.

250
com os membros superiores afastados do tronco e, por vezes, muito elevados;
tronco em frequente flexão e torção; cabeça mantida em flexão constante;
esforço muscular elevado dos membros superiores; movimentação manual de
cargas em situações desfavoráveis.
• Do ponto de vista do ambiente de trabalho: microclima desfavorável (ruído,
frio, calor e umidade); estações de trabalho fixas sem possibilidades de ajustes
ergonômicos; localização de equipamentos conflitantes com a postura do tronco
e do alcance dos membros superiores; espaços de trabalho reduzidos e por
vezes impróprios para o trabalho adequado.
No tocante às conclusões, nos autos do Processo n. 00229-2009-015-12-00-2,
após fazer a avaliação dos postos de trabalho segundo o método OCRA, o expert
recomendou o que segue:
• Introdução de pausas de recuperação de fadiga na proporção de 5:1 (a cada
50 minutos trabalhados, 10 minutos de pausa), ou seja, 5 pausas de 10 minutos
para a jornada de trabalho adotada pela empresa(18);
• Limitar a frequência de ações técnicas dos membros superiores em 30 ações
técnicas por minuto;
• Evitar a realização de picos de força (movimentos bruscos associados ao uso
de força) durantes as atividades de trabalho;
• Evitar atividades que exijam o uso de força de grau moderado ou superior
(acima de 3 pontos segundo a escala de Borg) durante períodos de tempo
superiores a 1/3 do ciclo das atividades de trabalho;
• Evitar posturas extremas (que se distanciam muito das posições neutras das
articulações) durante períodos de tempo superiores a 1/3 do ciclo das atividades
de trabalho;
• Evitar a presença de estereotipia (gestos de trabalhos idênticos durante quase
todo o tempo) nas atividades de trabalho;
• Evitar temperaturas extremamente baixas no ambiente de trabalho;
• Melhor adequação dos instrumentos de trabalho e equipamentos de proteção
dos postos de trabalho, às características biomecânicas dos trabalhadores;
• Acompanhamento sistemático da saúde dos trabalhadores, para permitir a
identificação precoce de possíveis riscos associados aos postos de trabalho.
Essa intervenção de caráter preventivo incluiria não só a identificação e análise
dos riscos associados com tarefas individuais, mas a busca de medidas técnicas
e organizacionais de mitigar o risco;
• Evitar ao máximo a realização de horas extras por partes dos trabalhadores
da linha de produção.

(18) Neste processo a jornada adotada pela empresa era de 7h20min.

251
Nos autos do Processo n. 00601-2008-015-12-00-1 as conclusões foram
praticamente as mesmas do processo acima referido e ambas contém, em razão das
entrevistas realizadas com trabalhadores, inúmeros depoimentos alarmantes de
queixas de dor.

A RESPOSTA DO PODER JUDICIÁRIO

A resposta do Poder Judiciário tem se dado normalmente à altura da gravidade


das condições de trabalho no interior de frigoríficos.
Essa reação diz respeito tanto a tutela jurisdicional de salvaguarda de aplicação
do intervalo de 20min para cada 1h40min trabalhados em ambientes artificialmente
frios, nos termos do parágrafo único do art. 253 da CLT, quanto de imposição de
intervalos de recuperação de fadiga nos termos da NR n. 17.
No primeiro caso, o TST tem pacificado em sete de suas oito turmas(19) o
entendimento da aplicabilidade do intervalo do art. 253 da CLT não apenas em
relação a câmaras frigoríficas, mas também nos ambientes artificialmente frios com
temperaturas mantidas, conforme a zona climática, abaixo de 15oC, 12oC e 10oC,
nos termos do parágrafo único do preceptivo em causa.
Com isso, além de conferir sentido ao texto expresso da lei, a decisão que
determina a concessão de pausas para recuperação térmica nestes ambientes onde
são empregados os maiores contingentes de trabalhadores dentro de frigoríficos,
acaba por viabilizar a recuperação de fadiga também.
Nesse sentido, são os acórdãos abaixo transcritos, in verbis:
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. 1. INTERVALO PARA
RECUPERAÇÃO TÉRMICA. AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO. ART. 253 DA CLT. O
art. 253 da CLT, dispositivo que visa proteger a saúde de todos os trabalhadores submetidos
habitualmente a baixas temperaturas em seu ambiente de trabalho e, por conseguinte, conferir
efetividade à norma inscrita no art. 7º, XXII, da Constituição Federal, garante o direito ao intervalo
para recuperação térmica àqueles que exercem suas atividades em ambientes artificialmente frios,
ainda que o empregado não labore em câmara frigorífica propriamente dita, nem em trânsito
frequente entre o ambiente frio e o ambiente quente ou normal. Precedentes. 2. ADICIONAL
DE INSALUBRIDADE. Segundo o Regional, a perícia confirmou que o trabalho do reclamante
era insalubre. Entendimento contrário ao adotado pela Corte de origem esbarraria no óbice da
Súmula n. 126/TST, que impede, nesta instância extraordinária, o reexame do acervo fático-
probatório existente nos autos. Agravo de instrumento conhecido e não provido. Processo: AIRR
— 68600-07.2009.5.24.0021 Data de Julgamento: 07.12.2010, Relatora Ministra: Dora Maria da
Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 10.12.2010.

(19) A exceção da 8ª Turma, que oscila entre acompanhar ou não o pensamento amplamente majoritário
na JUSTIÇA DO TRABALHO, todas as demais turmas convergem no sentido da aplicação do art. 253 da
CLT tanto para ambientes frios quanto artificialmente refrigerados.

252
RECURSO DE REVISTA. TRABALHO EM AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO. TEMPO
DE INTERVALO PARA REPOUSO. RECUPERAÇÃO TÉRMICA. INTELIGÊNCIA DO ART .
253 DA CLT. O trabalho em ambiente considerado frio para a respectiva zona climática autoriza
o direito ao intervalo de vinte minutos a cada uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo,
na forma prevista no art. 253 da CLT, haja vista a finalidade maior da norma, que é preservar a
saúde do trabalhador exposto de forma habitual a baixas temperaturas. O texto do parágrafo único
do precitado dispositivo encerra uma cláusula legal de caráter geral e aberta à interpretação, que
comporta, nesse exercício de compreensão do direito posto, a consideração de que ela se dirige
também à proteção do trabalho realizado em ambiente artificialmente frio para a respectiva zona
climática, — no caso dos autos, segundo o quadro fático delineado no acórdão regional, o setor de
desossa do frigorífico reclamado, onde trabalhava a autora da reclamação. Precedentes desta Corte
nesse sentido, firmados no exame de situações análogas. Recurso de revista conhecido, por
divergência jurisprudencial, e não provido. Processo: RR — 207200-82.2008.5.18.0191 Data de
Julgamento: 16.6.2010, Relator Juiz Convocado: Flavio Portinho Sirangelo, 7ª Turma, Data de
Publicação: DEJT 17.12.2010.
RECURSO DE REVISTA. JORNADA DE TRABALHO EM AMBIENTE FRIO . APLICAÇÃO
DO ART. 253 DA CLT. O trabalho em jornada de oito horas em ambiente com temperatura
abaixo de 15°, sem proteção adequada e sem intervalo, assegura o direito de o empregado receber
o período, nos termos do art. 253 da CLT . No caso, a reclamante tem direito de receber como
horas extraordinárias o período não usufruído de 20 minutos de intervalo para repouso, porque
comprovado que trabalhava em ambiente que variava de 7oC a 10oC, considerado artificialmente
frio , nos termos da Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego. Recurso de revista conhecido
e desprovido. Processo: RR — 309100-21.2006.5.15.0011 Data de Julgamento: 27.10.2010, Relator
Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 3.12.2010.
AMBIENTE DE TRABALHO ARTIFICIALMENTE FRIO. INTERVALO PARA RECUPERAÇÃO
TÉRMICA. ART. 253, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CLT. Para os empregados que trabalham no
interior das câmaras frigoríficas e para os que movimentam mercadorias do ambiente quente ou
normal para o frio e vice-versa, depois de uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo, será
assegurado um período de vinte minutos de repouso, computado esse intervalo como de trabalho
efetivo (inteligência do art. 253, caput, da CLT). O art. 253 da CLT trata de situações não
cumulativas, sendo o intervalo nele previsto devido àqueles que trabalham em câmaras frigoríficas
propriamente ditas, ambientes artificialmente frios, e àqueles que movimentam mercadorias do
ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa. Recurso de Revista que se conhece e a que se
dá provimento. ( RR — 103400-92.2008.5.24.0022 , Relator Ministro: João Batista Brito Pereira,
Data de Julgamento: 14.4.2010, 5ª Turma, Data de Publicação: 23.4.2010)
RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE. INTERVALO PARA RECUPERAÇÃO
TÉRMICA. EXTENSÃO DA VANTAGEM PARA ALÉM DAS HIPÓTESES DO CAPUT DO ART.
253 DA CLT. INTELIGÊNCIA DA NORMA DO SEU PARÁGRAFO ÚNICO. I — Da
interpretação sistemática do caput e do parágrafo único do art. 253 da CLT sobressai a certeza de
o legislador ter pretendido estabelecer clara equivalência entre o trabalho prestado no interior de
câmaras frigoríficas e o trabalho prestado em ambiente artificialmente frio, a fim de beneficiar os
empregados que laboram num e noutro local com o intervalo de vinte minutos de repouso depois
de uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo. II — Efetivamente, se não houvesse essa
consentida correlação, não haveria razão para que se acrescesse ao art. 253 da CLT o seu parágrafo
único, pois bastava a norma do caput daquele preceito para se concluir que a vantagem ali
contemplada o teria sido apenas em benefício dos empregados que trabalhassem no interior de
câmaras frigoríficas e daqueles que movimentassem mercadorias do ambiente quente ou normal
para o frio e vice-versa. III — Tendo por norte a assertiva do Regional de que o reclamante exercia
a função de — auxiliar geral — no setor de limpeza industrial, laborando em ambiente resfriado
artificialmente (temperatura inferior a 12oC), ressai incontrastável o seu direito ao intervalo de 20

253
minutos de repouso depois de uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo, na confomidade
do art. 253 da CLT e seu parágrafo único. Nesse sentido, precedentes desta Corte. Recurso provido.
( RR — 70000-59.2008.5.24.0096 , Relator Ministro: Antônio José de Barros Levenhagen, Data
de Julgamento: 10.3.2010, 4ª Turma, Data de Publicação: 19.3.2010).

RECURSO DE REVISTA. 2. HORAS EXTRAS. AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO.


INTERVALOS. ART. 253, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DA CLT. 1. Em que pese o fato de o
caput do art. 253 da CLT assegurar o intervalo de vinte minutos, a cada uma hora e quarenta
minutos de trabalho contínuo apenas para os empregados que laboram no interior das câmaras
frigoríficas e para os que movimentam mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e
vice-versa, o dispositivo autorizará interpretação extensiva, englobando os trabalhadores que,
durante toda a jornada de trabalho, submetem-se a ambientes artificialmente frios, tendo em vista
os limites de temperatura fixados no parágrafo único do artigo em questão. 2. A estrutura normativa
do Direito Individual do Trabalho parte do pressuposto da diferenciação social, econômica e
política entre os partícipes da relação de emprego, empregados e empregadores, o que faz emergir
direito protetivo, orientado por normas e princípios que trazem o escopo de reequilibrar,
juridicamente, a relação desigual verificada no campo fático. Esta constatação medra já nos
esboços do que viria a ser o Direito do Trabalho e deu gestação aos princípios que orientam o ramo
jurídico. O soerguer de desigualdade favorável ao trabalhador compõe a essência do princípio
protetivo, vetor inspirador de todo o seu complexo de regras, princípios e institutos. 3. Além dos
princípios específicos de valorização do trabalho (art. 1º, IV, e 170, caput, da CF), não se pode
olvidar que a Constituição Federal, orientada pela corrente filosófica do pós-positivismo, tem
como viga principal o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto, de forma explícita, no
art. 1º, III, da Carta Magna. 4. Não se pode perder de vista, ainda, a proteção do meio ambiente do
trabalho, assegurada nos arts. 7º, XXII, 200, VIII, e 225 da CF, como objeto de realização do direito
à saúde do trabalhador (art. 6º da CF). 5. O Ministério do Trabalho e Emprego, em cumprimento
ao art. 200, V, da CLT, editou as Normas Regulamentadoras n. 15 e 29 da Portaria n. 3.214/78,
estatuindo que — as atividades ou operações exercidas no interior de câmaras frigoríficas, ou em
locais que apresentem condições similares, que exponham os trabalhadores ao frio, sem proteção
adequada, serão consideradas insalubres em decorrência de laudo de inspeção realizada no local de
trabalho — (Anexo 9 da NR 15). 6. Ainda que a Norma Regulamentadora n. 29 do MTb se refira
à Segurança e Saúde no Trabalho Portuário, deve-se observar o regime de -tempo total de trabalho
no ambiente frio de 6 horas e 40 minutos, sendo quatro períodos de 1 hora e 40 minutos
alternados com 20 minutos de repouso e recuperação térmica fora do ambiente de trabalho —,
previsto na tabela anexa ao item 29.3.16.2, para a situação em que qualquer trabalhador é submetido
a ambiente artificialmente resfriado, com temperatura inferior a 12oC, pois em consonância com
o limite estabelecido pelo parágrafo único do art. 253 da CLT. 7. Precedentes desta Corte. Recurso
de revista não conhecido. (RR — 47200-54.2009.5.03.0074 , Relator Ministro: Alberto Luiz
Bresciani de Fontan Pereira, Data de Julgamento: 25/08/2010, 3ª Turma, Data de Publicação:
3.9.2010).
AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA.
INTERVALO INTRAJORNADA PARA RECUPERAÇÃO TÉRMICA. CÂMARA FRIGORÍFICA.
AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO. Esta Corte pacificou seu entendimento no sentido de
que os intervalos intrajornada para aquecimento térmico, previstos no art. 253 da CLT aplicam-se
aos empregados que laborem em qualquer ambiente artificialmente frio, e não apenas àqueles que
trabalhem em câmara frigorífica. Precedentes. Agravo não provido. (A-AIRR — 86940-
59.2007.5.24.0056 , Relator Juiz Convocado: Flavio Portinho Sirangelo, Data de Julgamento:
15.9.2010, 2ª Turma, Data de Publicação: 24.9.2010)
RECURSO DE REVISTA. HORAS EXTRAS. AMBIENTE DE TRABALHO ARTIFICIALMENTE
FRIO. INTERVALOS. ART. 253, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CLT. O art. 253 da CLT prevê o
intervalo de vinte minutos, a cada uma hora e quarenta minutos de labor contínuo, para os

254
empregados que trabalham no interior de câmara frigorífica ou para aqueles que movimentam
mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa. Por outro lado, o parágrafo
único esclarece que o preceito inserto no caput dirige-se ao trabalho realizado em ambientes
artificialmente frios e que provocam choque térmico. No caso concreto, o Tribunal Regional
admite que o reclamante trabalhava em ambiente frio, qual seja o setor de desossa, cuja temperatura
era inferior a 12oC — quarta zona, fazendo jus ao intervalo pleiteado. Recurso de revista conhecido
e a que se nega provimento. (RR — 119700-75.2008.5.18.0191 , Relator Ministro: Walmir Oliveira
da Costa, Data de Julgamento: 14.10.2009, 1ª Turma).

Ainda no âmbito do TST, a SEÇÃO DE DISSÍDIOS INDIVIDUAIS firmou


entendimento na mesma linha de seus órgãos fracionários internos, consoante
acórdão que segue:
RECURSO DE EMBARGOS. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. LAUDO PERICIAL.
DEFERIMENTO DE HORAS EXTRAORDINÁRIAS REFERENTES AOS 20 MINUTOS DE
INTERVALO NÃO UTILIZADOS. JORNADA DE TRABALHO EM AMBIENTE FRIO.
APLICAÇÃO DO ART. 253 DA CLT. VIOLAÇÃO DO ART. 896 NÃO RECONHECIDA. A baixa
temperatura no local de trabalho da reclamante confirmada por laudo pericial, e as circunstâncias
apresentadas, quais sejam, não-utilização de agasalho adequado e permanência no local de trabalho
por período superior ao legalmente permitido, caracterizou a insalubridade. Nos termos do art.
253 da CLT, a reclamante tem direito de usufruir 20 minutos de intervalo para repouso. O trabalho
em jornada de oito horas em ambiente com temperatura abaixo de 15°, sem proteção adequada e
sem intervalo, assegura o direito de o empregado receber o período como horas extraordinárias.
Embargos não conhecidos. (ED-RR — 719679-58.2000.5.03.5555 , Relator Ministro: Aloysio
Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 02/06/2008, Subseção I Especializada em Dissídios
Individuais, Data de Publicação: 6.6.2008).

Em relação aos intervalos para recuperação de fadiga propriamente ditos,


embora, como dito alhures, seja comum as empresas do setor pugnar pela realização
de perícia, em decisão antecipatória de tutela, a MM Juíza Lisiane Vieira, da Vara do
Trabalho de Joaçaba, determinou, nos autos do Processo n. 1327-2009-012-12-00-0 a
concessão imediata de intervalos de 8min a cada 50 trabalhados, independentemente
de perícia.
Em sede de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, a SDI do TST
reformou a decisão de segundo grau que suspendeu provisoriamente a eficácia da
liminar concedida, recobrando seus efeitos, valendo-se, para tanto, dos fundamentos
constantes da ementa que se reproduz in verbis:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DOENÇAS OCUPACIONAIS.
PAUSAS PARA DESCANSO. SEGURANÇA E SAÚDE DOS TRABALHADORES. MEIO
AMBIENTE DO TRABALHO. PREVALÊNCIA. PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS QUE
AUTORIZAM O DEFERIMENTO DE MEDIDA LIMINAR. 1. O Estado, como produto da razão
humana, tem suas origens nas chamadas teorias contratualistas ou pactistas, também conhecidas
como teorias racionalistas de justificação do Estado, desenvolvidas a partir do estudo das primitivas
comunidades, em estado de natureza. 2. O homem delega ao Estado os direitos necessários à
manutenção da paz e da segurança de todos, conservando, por outro lado, o direito à vida, à
propriedade e à liberdade (direitos naturais inalienáveis). 3. A busca pela concretização de tais
valores fez com que o Estado assumisse o compromisso de elaborar e tornar efetiva a aplicação de
normas adstritas ao conceito de sociedade justa e solidária, livre de desigualdades e de preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º da Constituição

255
Federal). 4. No âmbito da proteção jurisdicional, —a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito — (CF, art. 5º, XXXV), sendo certo que a tutela definitiva
implica cognição formada com base no contraditório e na ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da Carta
Magna), ao passo que a tutela provisória, como espécie de providência imediata e de urgência, deita
suas raízes na efetividade do processo, de modo a assegurar que os envolvidos não venham a sofrer
danos em razão da demora na prestação jurisdicional (CF, art. 5º, LXXVIII). 5. Assim é que, ante
o possível confronto entre a segurança jurídica e a efetividade (cognição sumária), cabe ao julgador,
atento às circunstâncias do caso concreto e com o desígnio de preservar os bens e valores prevalentes
à luz do Direito, deferir a medida liminar. 6. A constatação da ausência de precauções para que
trabalhadores deixem de sofrer graves e reiteradas lesões sustenta o comando liminar, ao mesmo
tempo que degrada o pretenso direito líquido e certo da Impetrante. Recurso ordinário em mandado
de segurança conhecido e provido. (SDI-2 TST-RO-62-36.2010.5.12.0000, data de julgamento
24.5.2011, Rel. Min. Alberto Bresciani)

A resposta do Poder Judiciário, importante dizer, não tem se limitado ao


reconhecimento do direito as pausas do art. 253 da CLT e da NR 17. A jurisprudência
tem caminhado no sentido de condenar as empresas do setor que ao longo de décadas
tem negado no interior das fábricas um ambiente de trabalho digno. Os primeiros
passos ainda estão sendo dados, mas é certo que a resposta tem sido a altura do
sacrifício impingido à saúde dos empregados e do porte econômico do ofensor.
Nesse sentido o exemplo mais eloquente foi dado por meio da sentença proferida
pela MM Juíza, Zelaide de Souza Philippi, da 4ª Vara do Trabalho de Criciúma/SC,
nos autos do Processo n. 01839-2007-055-12-00-2, que não só determinou ao
frigorífico demandado a concessão de pausas do art. 253 da CLT e limitou a jornada
de trabalho de boa parte dos empregados que se ativam em ambientes frios, como o
condenou a pagar indenização por danos morais coletivos no valor de R$
14.610.000,00 (quatorze milhões, seiscentos e dez mil reais).

AS EXPECTATIVAS PARA O FUTURO

A multiplicidade dos fatores de risco que incidem concomitantemente sobre a


maior parte dos postos de trabalho vinculados à produção no segmento de
frigoríficos demonstra a necessidade de se persistir na busca por medidas que visem
a proteção efetiva da daqueles que, em troca dos parcos salários, têm entregue muito
mais do que sua força de trabalho. Esteiras e nórias tem carregado país afora a saúde
e a integridade física e psíquica de um contingente enorme de empregados.
Uma pequena parcela dessa realidade, como ressaltado anteriormente, pode
ser assimilada em documentários como o Carne&Osso, da ONG Reporter Brasil,
produzida com o apoio da Associação Nacional de Procuradores do Trabalho e da
Associação Nacional de Magistrados Trabalhistas. Outra parcela pode ser
assimilada a partir da leitura de autos de infração detalhados, lavrados por
Auditores Fiscais do Trabalho devidamente capacitados para atuar em frigoríficos.
Também uma porção da realidade pode ser extraída com a leitura de perícias
judiciais incontestáveis.
256
Nada disso, entretanto, supera o testemunho ocular dos fatos com o olhar
capaz de enxergar além da nuvem de assepsia de uma sala de cortes de um frigorífico
de frangos e do impacto visual de uma sala de abate de bovinos e suínos.
É o olhar sobre o ritmo; o olhar sobre o olhar de cansaço do trabalhador no
final de sua jornada exauriente e que ainda será elastecida; o olhar sobre os quase
imperceptíveis movimentos a olho nu realizados durante a jornada e melhor
observados através de softwares de exibição de imagens em câmara lenta; o olhar
sobre uma fila interminável de pessoas dispostas lado a lado, mas que não se conhecem
nem se falam, muitas vezes porque o barulho não permite o diálogo e sempre porque
a velocidade das esteiras e nórias impedem o desvio do próprio olhar. Esse olhar,
que não contém esperança porque sempre foi assim, é o que motiva a Coordenação
do Projeto e todos os Colegas Procuradores do Trabalho deste país que prestam seu
apoio e participam das operações a mudar essa realidade.
Esse trabalho, que também vem contando com o respaldo do Poder Judiciário,
o apoio e incentivo de parcela do movimento sindical preocupada com a melhoria
das condições de saúde dos empregados de sua categoria e de um grupo ainda seleto
de Auditores Fiscais capacitados e compromissados com essas mudanças poderá
contar em breve com uma NR específica para o setor, a qual, espera-se, mantenha
em seu texto a proposta atual de adoção de sistema adequado de pausas e redução de
tempo de exposição como ferramentas-chave para assegurar a higidez física e
psíquicas dos empregados em frigoríficos.
Quem sabe com o prosseguimento do trabalho realizado pelos diferentes órgãos
e poderes do Estado encarregados de fiscalização, ação e tutela jurisdicional e o
apoio da sociedade civil organizada e, ainda, com a própria mudança gradual de
paradigmas das empresas do setor seja possível um dia passear pelas ruas de uma
grande cidade e ver estampado em outdoor mensagem publicitária de algum grande
frigorífico com os dizeres semelhantes ao do título do presente artigo, com as devidas
vírgulas e sem tantas repetições de verbo.

257
Capítulo 14

MECANISMOS JURÍDICOS PARA


PRESERVAR O DIREITO AO DESCANSO

Jorge Luiz Souto Maior

Falar do não trabalho em um mundo que tem como traço marcante a


inquietação com o desemprego parece, em si, uma contradição insuperável,
apresentando-se como tal também a perplexidade diante do avanço tecnológico,
que, ao mesmo tempo, rouba o trabalho do homem e o escraviza no trabalho.
Somadas as duas circunstâncias, de inquietação com o desemprego e avanço
tecnológico, o prazer da informação transforma-se em uma necessidade de se manter
informado, para não perder espaço no mercado de trabalho.
Com tudo isso, se o trabalho dignifica o homem, o trabalho sem direitos, sem
finalidade e sem limites extrai a dignidade do homem.
Surge daí a necessidade de se atribuir valor jurídico ao não-trabalho, que seria
um direito cujo titular não é só quem trabalha, mas, igualmente, a própria sociedade,
atingindo àquele que não consegue trabalho porque outro trabalha excessivamente
e aos que são privados da presença humana daquele que está imerso no trabalho.
Não é simples essa tarefa na medida em que remexe com conceitos jurídicos e
culturais que estão há muito arraigados à nossa tradição. Fruto de uma concepção
formada na sociedade dita industrial, o trabalho aparece como identificador da
própria condição humana. Como diria o cantor Fagner: “...e sem o seu trabalho, o
homem não tem honra...” Durante muito tempo, portar a Carteira de Trabalho era
a demonstração cívica de não ser um “vagabundo”, o que significava — e ainda
significa — fator de marginalização da pessoa. Vale lembrar, a propósito, que a Lei
de Contravenções Penais, vigente desde 1942, ainda prevê o crime de Vadiagem:
“Art. 59 — Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter
renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante
ocupação ilícita:
Pena — prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.
Parágrafo único — A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes
de subsistência, extingue a pena.”(1)

(1) Interessante notar que nos termos deste dispositivo legal, não se preserve o valor trabalho, mas a
subsistência. Assim, tendo uma pessoa, por qualquer modo, meios de subsistência, pode ela se dedicar ao
ócio. D’onde se pode concluir que, para a lei, o ócio é um direito dos ricos.

258
Mesmo nos dias atuais, que se notabiliza pelo desmantelamento da ordem
produtiva capitalista, ou pela desordem provocada pelo neoliberalismo, que se funda
na idéia do desmanche do Welfare State e no abandono da rede de segurança
proporcionada pelo mundo do trabalho, gerando, como resultado, o desemprego
em massa (ou estrutural, como preferem alguns), situação esta que se potencializa
pela reforma da concepção produtiva, isto é, o denominado abandono do modelo
fordista de produção, que tinha como linha de conduta a noção da inclusão social,
passando-se ao modelo que se baseia na pulverização das fábricas, gerando, por
conseqüência, a quase extinção do contrato de trabalho com plenos direitos e do
contrato à vida, forçando o advento de contratos de trabalho precários e o aumento
da prestação de serviços por trabalhadores “autônomos” ou “independentes”, mesmo
nesses dias, em que o fato de não possuir uma Carteira de Trabalho assinada passa a
ser até normal, não ter uma ocupação, um trabalho, seja lá qual for, ainda agride os
membros da sociedade, sociedade esta que, queira-se ou não, tem como fundamento
o contrato social, que, por sua vez, apóia-se na idéia da divisão do trabalho.
O trabalho, mesmo com todo o quadro que se desenha no mundo do trabalho
e que nega por si só o seu valor (e a prova disso é a constante diminuição dos níveis
salariais), ainda é extremamente significativo para as pessoas, a ponto de se manter
uma postura social discriminatória com relação a quem não trabalha, mesmo
sabendo-se, como se sabe, das extremas dificuldades para encontrar uma ocupação.
Por isto, nos vemos forçados ao trabalho até mesmo para não sermos discriminados
pela sociedade. Uma sociedade que ao mesmo tempo, sob este aspecto, é,
extremamente, hipócrita, pois no fundo o que todo mundo quer mesmo é ficar rico
sem trabalhar ou mesmo ficar rico trabalhando, mas almejando parar de trabalhar
o quanto antes. Como diria o Barão de Itararé(2), “O trabalho enobrece o homem,
mas depois que o homem se sente nobre não quer mais trabalhar”.
De todo modo, impera, culturalmente, a idéia do trabalho como fator
dignificante da pessoa humana e como elemento de socialização do indivíduo,
tornando-se um grande desafio falar em direito ao não-trabalho, ainda mais sob o
prisma da efetiva proteção jurídica deste bem.
Esclareça-se que o não-trabalho aqui referido não é visto no sentido de não
trabalhar completamente e sim no sentido de trabalhar menos, até o nível necessário
à preservação da vida privada e da saúde, considerando-se essencial esta preocupação
(de se desligar, concretamente, do trabalho) exatamente por conta das características
deste mundo do trabalho marcado pela evolução tecnologia, pela deificação do
Mercado e pelo atendimento, em primeiro plano, das exigências do consumo.
É bom que se diga, também, que não é o caso de se amaldiçoar o avanço
tecnológico. Este é inevitável e, em certa medida, tem sido benéfico à humanidade

(2) Aparício Torelly, jornalista; cf. José Roberto Torero, Folha de S. Paulo, ed. de 15.9.98.

259
(em muitos aspectos). O desafio, sob este prisma, é o de buscar com que a tecnologia
esteja ao serviço do homem e não contra o homem.
A tecnologia fornece à sociedade meios mais confortáveis de viver e elimina, em
certos aspectos, a penosidade do trabalho, mas, fora de padrões responsáveis pode
provocar desajustes na ordem social, cuja correção requer uma tomada de posição a
respeito de qual bem deve ser sacrificado, trazendo-se ao problema, a responsabilidade
social. Claro que a tecnologia, a despeito de diminuir a penosidade do trabalho, pode
acabar reduzindo postos de trabalho e até eliminando alguns tipos de serviços manuais,
mas isto não será, para a sociedade, um mal se o efeito benéfico que a automação possa
trazer para a produção, para os consumidores e para a economia, possa refletir também
no acréscimo da rede de proteção social (seguro-desemprego e benefícios
previdenciários). Recorde-se, ademais, que a própria tecnologia pode gerar novas
exigências em termos de trabalho e neste sentido a proteção social adequada consiste
em fornecer à mão de obra possibilidades em termos de “inovação”, “deslocamento”,
“reabsorção”, e de “requalificação profissional”(3).
Sem a perspectiva de uma verdadeira responsabilidade, cujos limites devem ser
determinados pelo Estado e não pelo livre-mercado, evidentemente, a evolução
tecnológica a despeito de gerar conforto pode produzir um desastre na vida dos
trabalhadores.
E o Direito, apesar de se apresentar como protetor do trabalho e da dignidade
humana, da forma como tem sido interpretado e aplicado, muito tem contribuído
para o incremento de uma lógica produtiva supressora da condição humana do
trabalhador, sobretudo quando “monetizou” o direito fundamental à limitação da
jornada de trabalho.
Os juristas em vez de buscarem eficácia normativa para eliminar o excesso de
trabalho somente conseguem vislumbrar a questão na perspectiva das denominadas
“horas extras”.
As horas extraordinárias, prestadas de forma ordinária, como se instituciona-
lização na jurisprudência trabalhista nacional, é um desvirtuamento do direito ao
não-trabalho. Trata-se de uma esdrúxula prática que interfere, obviamente, na saúde
dos trabalhadores(4) e mesmo na ampliação do mercado de trabalho. Aliás, traz
consigo uma enorme contradição traduzida pela constatação de que no país do
desemprego empresas se vejam autorizadas, pelo direito, a exigirem de seus empre-
gados, de forma habitual, a prática do trabalho em horas extras, sendo que em muitas
situações, como se sabe, sequer efetuam o pagamento do adicional respectivo(5).

(3) O inciso XXVII, do art. 7º, da Constituição Federal brasileira prevê, como direito dos trabalhadores,
a “proteção em face da automação, nos termos da lei”.
(4) Estudos revelam que o maior número de acidentes do trabalho se dá no momento em que o trabalhador
está cumprindo horas extras.
(5) Repare-se, a propósito, que a maioria das reclamações trabalhistas versa sobre trabalho em hora extra
não remunerado.

260
O ato de uma empresa que exige horas extras, sem o respectivo pagamento, aos
seus empregados, em princípio é apenas uma agressão aos direitos individuais desses
empregados, cuja satisfação, portanto, deve ser buscada pelas vias normais da ação
individual, ainda que em litisconsórcio ativo (dissídio plúrimo). Mas, se vista a
situação por outro ângulo, considerando a repercussão do custo da produção e a
concorrência desleal que essa atitude provoca com relação a outras empresas do
mesmo setor, que não se utilizam da mesma prática, as horas extras habituais (pagas,
ou não) revelam-se como uma autêntica agressão consciente da ordem jurídica,
surgindo o interesse social em inibi-la.
De um ponto de vista estritamente jurídico, a limitação ao adicional de 50%,
para o pagamento das horas extras, somente tem sentido quando as horas extras
são, efetivamente, horas extras, isto é, horas além da jornada normal, prestadas de
forma extraordinária (não habitualmente). Quando as horas extras se tornam
ordinárias deixa-se o campo da normalidade normativa para se adentrar o campo
da ilegalidade e, neste sentido, apenas o pagamento do adicional não é suficiente
para corrigir o desrespeito à ordem jurídica.
Ressalte-se, neste sentido, o teor do Enunciado “1.9”, aprovado no “XV
Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — CONAMAT”,
realizado em Brasília/DF, no período compreendido entre 21/04 e 01/05/2010, que
assim dispõe sobre o tema:
HORA EXTRAORDINÁRIA ORDINÁRIA. INCOMPATIBILIDADE. A hora extraordinária é
uma supressão excepcional ao limite constitucional da jornada de trabalho. O efeito do adicional
previsto em lei ou em acordo/convenção coletiva vale apenas para as horas que a lei considera como
extras, ou seja, as que não ultrapassem o limite de duas diárias e se exerçam excepcionalmente. As
horas trabalhadas além desse patamar representam uma ilicitude, devendo ser remuneradas no
mínimo de forma dobrada, sem prejuízo de reparação por dano pessoal e intervenção do Ministério
Público do Trabalho para eliminação da prática antijurídica.

O Direito do Trabalho sempre se caracterizou por dispor em lei os efeitos


econômicos das condutas indesejáveis. Assim, o empregador que exige trabalho além
do limite diário deve pagar ao empregado um adicional de 50% sobre o valor da
hora normal, referente ao tempo do trabalho em sobrejornada e assim se dá em
outras situações, tais como: trabalho em condições insalubres ou perigosas; prazo
para pagamento das verbas rescisórias; trabalho em horário noturno etc.
Em conformidade com os artigos acima citados, independentemente de se
considerar estar o empregador no exercício de um direito ao exigir serviço em certas
condições de trabalho, obrigando-se apenas a uma contraprestação determinada
por lei, seu ato pode se configurar como ato ilícito quando exercer seu direito
abusivamente, isto é, fora dos limites impostos pelo fim econômico ou interesse
social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, dando origem à obrigação de pagar uma
indenização, que não se limitará, evidentemente, ao valor fixado na legislação

261
trabalhista, vez que a expressão pecuniária que esta contém não é o valor pré-fixado
de eventual lesão que venha a sofrer a pessoa humana no exercício de trabalho por
conta alheia.
Assim, o empregador, que exige de seu empregado a prestação de serviços em
regime de horas extras de forma ordinária abusa de seu direito, agredindo o interesse
social e mesmo econômico, comete, portanto, ato ilícito, cuja correção, evidentemente,
não se dará pelo mero pagamento do adicional de horas extras. O dano do trabalhador,
aliás, não depende de prova, pois que se configura pelo próprio fato em si do trabalho
em horas extras de forma ordinária (ainda mais quando não remuneradas
devidamente), na medida em que a própria lei estabeleceu o limite das horas de trabalho
para proteção da saúde do trabalhador (questão de ordem pública) e também para
ampliar o acesso ao mercado de trabalho (também questão de ordem pública).
Se o empregador exigiu do empregado o trabalho de forma ordinária em horas
extras, que se considera por lei, uma situação extraordinária, como o próprio nome
sugere, o valor a ser pago por essas horas não pode se limitar ao da previsão legal,
pois o direito à limitação da jornada, considerado direito fundamental dos
trabalhadores, não está à venda.
O valor da indenização mede-se pela extensão do dano (art. 944), mas isto não
inibe o caráter punitivo da indenização, como forma de desestimular a continuação
da prática do ato ilícito, especialmente quando o fundamento da indenização for a
extrapolação dos limites econômicos e sociais do ato praticado, pois sob o ponto de
vista social o que importa não é reparar o dano individualmente sofrido, mas impedir
que outras pessoas, vítimas em potencial do agente, possam vir a sofrer dano análogo.
A reparação do dano, nestes casos, tem natureza individual e social. Não é,
portanto, simplesmente, do interesse de ressarcir o dano individual que se cuida. É
neste sentido, aliás, que o art. 944, estabelece que a indenização mede-se pela extensão
do dano, pressupondo, assim, o exame de ser o dano meramente individual ou possuir
importante repercussão social.
E, pior que a hora extra prestada de forma ordinária é a hora extra prestada de
forma ordinária, sem o respectivo pagamento. Se as horas extras, ainda que
esporadicamente realizadas, não foram pagas em tempo oportuno, conforme prevê
a lei, seu valor não poderá mais ser apenas aquele fixado em lei. Dito de outra forma,
a hora extra paga não pode equivaler à hora extra não paga, pois que essa equivalência
elimina a característica do ilícito cometido.
O ilícito não está, propriamente, na exigência da hora extra com o pagamento
do adicional correspondente. A lei confere esse direito ao empregador. Mas, a lei
não confere ao empregador o direito de não pagar pelas horas extras trabalhadas,
assim como não confere ao empregador o direito de exigir que as horas extras sejam
habitualmente prestadas e mesmo que se realizem horas extras além do limite de
duas diárias (art. 59, da CLT).
262
Não se pode esquecer que o Direito do Trabalho representa o valor social,
institucionalizado pela sociedade democrática, conferido ao trabalho prestado pelo
trabalhador, a partir do reconhecimento de é do trabalho que toda a riqueza advém,
considerada não só a que adquire o empregador em sua atividade econômica, mas a
que atinge toda a sociedade, afinal é da produção que se extraem, inclusive, os fundos
necessários para as atividades do Estado voltadas à satisfação dos mais diversos
objetivos (inclusive tipicamente burgueses). Assim, quando o empregador não paga
ao seu empregado o trabalho por este prestado, que se destinou à produção da
riqueza nacional, trata-se da própria quebra do pacto de solidariedade estabelecido
pelo Direito Social, a qual todos estamos juridicamente vinculados. Não se trata,
pois, de um problema individualizado.
Além disso, se considerarmos que no capitalismo o trabalho alienado foi
transformado em mercadoria e que ele está, pelo efeito monetário que lhe fora
atribuído, inserido na coisa produzida, quando o empregador comercializa a coisa
com um terceiro, está comercializando o trabalho do trabalhador, cabendo-lhe a
obrigação, decorrente do projeto instituído pelo Direito Social, entregar ao
trabalhador o valor que lhe pertence. Neste sentido, a falta do pagamento do integral
efeito social pelo trabalho prestado por parte do empregador representa, quando a
coisa produzida é de fato comercializada, representa a apropriação de algo que não
lhe pertence. Trata-se, portanto, de um furto, ou, mais tecnicamente, de uma
apropriação indébita. Deve-se, assim, atingir, com urgência, o aspecto do efeito
penal que o ilícito representa, ou, no mínimo, a possibilidade concreta da prisão
civil por dívida trabalhista, considerada, quase sempre, de natureza alimentar(6).
O não pagamento sistemático de horas extras, examinado com os olhos não
impregnados pela epidemia da precarização, não é simplesmente um inadimplemento
contratual. Trata-se de um ilícito grave, pois além de representar um furto no que
tange ao patrimônio alheio ainda fere preceitos fundamentais da livre concorrência
e do desenvolvimento do tão preconizado capitalismo socialmente responsável. E,
esse ilícito, por óbvio, deve ter efeito específico.
O trabalho em horas extras de forma ordinária com ausência do pagamento
correspondente ou até mesmo com o pagamento respectivo se prestadas as horas extras
de forma ordinária, o que é incentivado por uma política de baixos salários, é uma
enorme disfunção no sistema de produção capitalista regulado pelos limites sociais.
Além disso, é de suma importância reconhecer que as horas extras não são um
instituto jurídico. Trata-se do efeito econômico que se atribui ao trabalho realizado

(6) Cf. TOLEDO FILHO, Manoel Carlos; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. In: “A prisão civil por dívida
trabalhista de natureza alimentar”, Disponível em: <http://www.anamatra.org.br/hotsite/conamat06/
trab_cientificos/teses/pris%C3%A3o%20civil%20por%20d%C3%ADvida%20trabalhista%20de%20car
%C3%A1ter%20alimentar.rtf.>. Acesso em: 8 out. 2010.

263
além do limite legal, a partir de uma consideração absolutamente excepcional. Ora,
se fosse possível a realização de horas extras de forma habitual, o limite da jornada
de trabalho não seria de oito horas, mas dessas acrescidas das horas extras. A
limitação da jornada de trabalho não seria uma questão de ordem pública, mas
apenas um problema de natureza econômica.
Aliás, da forma como se vem entendendo a questão sequer limite para o
trabalho haveria, na medida em que não se vê qualquer limitação para as horas
extras, elas próprias. Ou seja, seria legítimo o exercício do trabalho durante 24
horas por dia, com o único efeito da necessidade do pagamento, com adicional de
50%, das horas trabalhadas além da oitava. A questão de ordem pública, como
dito, não seria mais que uma questão matemática. E mesmo o valor não seria um
empecilho para a prática, pois partindo-se de uma base salarial muito pequena,
como ocorre em geral na realidade brasileira, ter-se-ia a fórmula jurídico-econômica
eficiente para que uma pessoa prestasse serviços a outra durante quase todo o dia
mediante o recebimento de um valor nem tão expressivo, retomando-se, assim, as
bases da formação da Revolução Industrial.
As fórmulas brandas, criadas para possibilitar o trabalho em hora extra, sem o
respectivo pagamento, portanto, não podem sobreviver diante dos pressupostos
jurídicos ora fixados.
Neste contexto, a compensação da jornada de trabalho, prevista constitucio-
nalmente, só pode ser vista como uma facilitação do trabalho em favor do trabalhador
e nunca como um permissivo para o não pagamento das horas extras.
Assim, o banco de horas, instituído por lei infraconstitucional, não tem amparo
na Constituição Federal, na medida em que permite que uma dívida trabalhista (o
salário-hora com acréscimo de 50% pelo trabalho exercido além da hora normal)
seja paga com prazo de um ano e, pior, em valor inferior ao efetivamente devido,
pois que autoriza a compensação de uma hora extra com uma hora normal, isto sem
falar nos efeitos perversos que a incerteza de horários de trabalho provoca no
cotidiano dos trabalhadores.
É evidente que o propósito da lei, que criou o banco de horas, de preservar os
empregos em épocas sazonais, só poderia se concretizar com a fixação da regra de
que primeiro se concedessem as folgas, para que depois estas se compensassem com
horas extras, preservando-se sempre a diferença quantitativa entre a hora normal e
a hora extra.
O denominado regime de 12x36 também fere, frontalmente, a Constituição. A
ordem jurídica trabalhista não permite trabalho em horas extras de forma ordinária,
repita-se. E, se houver trabalho em hora extra, a jornada não pode ultrapassar a 10
horas (art. 59, da CLT). No regime de 12x36 há trabalho freqüente além de oito
horas diárias trabalho com jornada superior a 10 horas.

264
O descanso a mais que se dá, com a folga no dia seguinte, primeiro não retira a
ilegalidade e segundo, sob o aspecto fisiológico, não repõe a perda sofrida pelo
organismo, ainda mais sabendo-se, como se sabe, que no dia seguinte o trabalhador
não descansa, ocupando-se de outras atividades e mesmo vinculando-se a outro
emprego. Uma jornada de 12 horas vai contra a todos os preceitos internacionais de
Direitos Humanos.
Mesmo com a participação do sindicato, não se pode conferir validade a uma
jornada de trabalho de 12 horas, primeiro, porque extrapola o limite legal (que é de
10 horas), segundo, porque fere preceito constitucional baseado na necessária
eliminação dos riscos à saúde no trabalho.
Historicamente, fixou-se a premissa das 8 horas de trabalho, 8 horas de lazer e
oito horas de descanso, reconhecendo-se que o trabalho, sobretudo aquele que é
prestado para proveito alheio, além de oito horas diárias gera danos à saúde, além
de ser o principal fator de acidentes no trabalho, na medida em que o trabalhador,
após oito horas trabalhando, perde a necessária diligência, diante da fadiga.
Não foi por mero capricho, ou arbitrariedade, que se fixou, então, a jornada
máxima de trabalho como sendo de oito horas, isto não só no Brasil, mas no mundo
ocidental praticamente inteiro.
E não foi por acaso, portanto, que se fixou que o trabalho além desse limite,
primeiro, deve ser excepcional (daí o nome, horas extraordinárias) e, segundo, deve
ter um acréscimo remuneratório, que ao mesmo tempo compense o esforço maior
do empregado e desestimule, economicamente falando, a sua exigência por parte do
empregador.
E não foi à toa, finalmente, que se estipulou, na lei, que em hipótese alguma se
admitiria o exercício de trabalho além de 10 horas diárias.
Como se vê, sob todos os aspectos, jurídico-formais, jurídico-filosóficos, ou
jurídico-sociais, não se pode considerar válida a fixação de uma jornada de trabalho
de 12 horas, extremamente prejudicial à saúde do trabalhador.
Acrescente-se que, de fato, trabalhando em dias revezados, o trabalhador está
vinculado ao trabalho em todos os dias da semana, e como sua jornada é de 12
horas, está praticamente durante todo o dia submetido ao trabalho
Vejamos, concretamente, a partir de um exemplo hipotético de um trabalhador
que trabalhe das 7 às 19h, em regime de 12x36:

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A situação se torna ainda mais complexa se considerarmos o necessário tempo


de deslocamento de casa para o trabalho e vice-versa. O trabalhador, em tal sistema,
não tem, de fato, tempo livre do trabalho, visto de forma útil, pois que trabalha a
cada semana em dias diversos e durante todo o dia, praticamente. E a irregularidade
aumenta quando domingos e feriados restam integrados ao regime de compensação
como dias comuns, o que representa a pura e simples anulação da especialidade de
tais dias, como de fato são, conforme previsto legalmente.
Sem uma resposta jurídica adequada, efetivamente protetora da dignidade
humana, o regime de 12 x 36 acabou “dando cria”, surgindo, agora, os malfadados
sistemas de 6 x 1; 5 x 1; 4 x 2 ou 5 x 2. Ou seja, o que já era ruim piorou.
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Vejamos a vida de um trabalhador em regime de 6 x 1, submetido a uma jornada
de 12 horas.

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E, para demonstrar a necessidade de reversão da atual compreensão jurídica


sobre a limitação da jornada, que meramente monetizou o direito fundamental ao
descanso, tem-se apresentado na realidade, sobretudo nas atividades de vigilância,
regimes de trabalho de 4x2, 5x1 e 6x1, com jornadas de 12 horas, em sistema de
turnos alternados, dia e noite, com variação constante dos locais de trabalho.
Um trabalhador submetido a tais condições simplesmente não tem vida e a
experiência judicante demonstra que o fato mencionado não é mais freqüente do
que se possa imaginar.
Em suma, é facílimo perceber, para quem quer perceber, que muitos
trabalhadores estão atuando em jornadas que remontam aos primórdios da
268
Revolução Industrial, sendo plenamente incompatível com a ordem jurídica
protetora da dignidade humana que se incrementou sobretudo a partir do final da
2ª Guerra mundial.
A questão, portanto, não está em saber se são devidas horas extras e em qual
quantidade quando se deparam com situação como tais. A questão é, de fato, eliminar
de nossa realidade sistemas de trabalho como estes acima delineados.
Para tanto, as fórmulas jurídicas que se têm difundido, presentemente, são,
primeiro, a consideração de que um dano de ordem pessoal pelo trabalho contínuo
em horas extras, potencializando-se o dano quando essas horas não são remuneradas,
e, pior ainda, quando deixam de ser pagas com a implementação de estratégias para
fraudar as anotações dos cartões de ponto.
Chega a ser mesmo impressionante a inércia jurisprudencial diante de empresas
que reiteradamente deixam de pagar horas extras e que fraudam os registros de
ponto, efetuando-se condenação que se limita ao aspecto do pagamento das extras,
não atingindo, pois, a esfera dos danos pessoais experimentados pelo trabalhador e
do ilícito da elaboração de documento falso e sua apresentação nos autos de um
processo judicial.
O dano pessoal em questão se apresenta, igualmente, quando as horas extras
são prestadas em grande quantidade ou em sistemas de revezamento (ou
compensação) que, praticamente, tomam conta de toda a vida do trabalhador.
No segundo aspecto, o social, compreende-se, presentemente, que há um dano
social, com repercussões no modo de produção capitalista, pela prática reiterada de
horas extras (com ou sem o pagamento correspondente — o segundo mais grave,
por óbvio).
Diante da constatação do fato, permite-se ao trabalhador, submetido a tal
situação, ser reparado pelo dano pessoal experimentado, que, por óbvio, vai muito
além do valor restrito das horas extras (e seus reflexos). As horas extras, no máximo,
pagam o trabalho realizado além da jornada normal. Se o trabalho em horas extras se
torna habitual, a situação invade outros valores jurídicos e, por óbvio, o adicional
pago não é suficiente para esse efeito correlato das horas extras. Os valores humanos
que se desenvolvem, necessariamente, fora do trabalho, ou, no tempo livre do trabalho,
e que foram evitados pelas horas extras, precisam, portanto, de reparações específicas.
Na perspectiva social, cumpre ao Judiciário, constatando a situação, impor,
de ofício, isto é, mesmo sem pedido específico, multa à empresa pelo “dumping
social”, sem prejuízo da ordem da obrigação de fazer no sentido de paralisar a prática.
Neste sentido, a Ementa a seguir:
EMENTA: DANO SOCIAL (“DUMPING SOCIAL”). IDENTIFICAÇÃO: DESRESPEITO
DELIBERADO E REITERADO DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA. REPARAÇÃO:

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INDENIZAÇÃO “EX OFFICIO” EM RECLAMAÇÕES INDIVIDUAIS. Importa compreender
que os direitos sociais são o fruto do compromisso firmado pela humanidade para que se pudesse
produzir, concretamente, justiça social dentro de uma sociedade capitalista. Esse compromisso,
fixado em torno da eficácia dos Direitos Sociais, se institucionalizou em diversos documentos
internacionais nos períodos pós-guerra, representando, também, um pacto para a preservação da
paz mundial. Esse capitalismo socialmente responsável perfaz-se tanto na perspectiva da produção
de bens e oferecimento de serviços quanto na ótica do consumo, como faces da mesma moeda.
Deve pautar-se, também, por um sentido ético, na medida em que o desrespeito às normas de
caráter social traz para o agressor uma vantagem econômica frente aos seus concorrentes, mas que,
ao final, conduz todos ao grande risco da instabilidade social. As agressões ao Direito do Trabalho
acabam atingindo uma grande quantidade de pessoas, sendo que destas agressões o empregador
muitas vezes se vale para obter vantagem na concorrência econômica com relação a vários outros
empregadores. Isto implica dano a outros empregadores não identificados que, inadvertidamente,
cumprem a legislação trabalhista, ou que, de certo modo, se vêem forçados a agir da mesma forma.
Resultado: precarização completa das relações sociais, que se baseiam na lógica do capitalismo de
produção. O desrespeito deliberado, inescusável e reiterado da ordem jurídica trabalhista, portanto,
representa inegável dano à sociedade. Óbvio que esta prática traduz-se como “dumping social”,
que prejudica a toda a sociedade e óbvio, igualmente, que o aparato Judiciário não será nunca
suficiente para dar vazão às inúmeras demandas em que se busca, meramente, a recomposição da
ordem jurídica na perspectiva individual, o que representa um desestímulo para o acesso à justiça
e um incentivo ao descumprimento da ordem jurídica. Assim, nas reclamações trabalhistas em que
tais condutas forem constatadas (agressões reincidentes ou ação deliberada, consciente e
economicamente inescusável de não respeitar a ordem jurídica trabalhista), tais como: salários em
atraso; salários “por fora”; trabalho em horas extras de forma habitual, sem anotação de cartão de
ponto de forma fidedigna e o pagamento correspondente; não recolhimento de FGTS; não
pagamento das verbas rescisórias; ausência de anotação da CTPS (muitas vezes com utilização
fraudulenta de terceirização, cooperativas de trabalho, estagiários, temporários, pejotização etc.);
não concessão de férias; não concessão de intervalo para refeição e descanso; trabalho em condições
insalubres ou perigosas, sem eliminação concreta dos riscos à saúde etc., deve-se proferir condenação
que vise a reparação específica pertinente ao dano social perpetrado, fixada “ex officio” pelo juiz da
causa, pois a perspectiva não é a da mera proteção do patrimônio individual, sendo inegável, na
sistemática processual ligada à eficácia dos Direitos Sociais, a extensão dos poderes do juiz, mesmo
nas lides individuais, para punir o dano social identificado. (TRT/15ª Processo no. 0001087-74-
2010-5-15-0138 — RO — 6ª T — 11ª Câmara — Rel. Jorge Luiz Souto Maior)

São Paulo, 14 de maio de 2012.

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