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Maurício Dottori, editor

Anais do
VI SIMCAM
Simpósio de Cognição e Artes Musicais

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Escola de Música
Marcos Nogueira, coordenador geral

Rio de Janeiro, 25 a 28 de maio de 2010


VI SIMCAM
Simpósio de Cognição e Artes Musicais
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escola de Música
Programa de Pós-Graduação em Música

Rio de Janeiro, 25 a 28 de maio de 2010

Comissão Executiva de V SIMCAM


Marcos Nogueira (Coordenação Geral)
Maurício Dottori
Rael Bertarelli

Comissão Científica:
Maurício Dottori e Marcos Nogueira

Pareceristas:

Beatriz Ilari (UFPR) Ney Rodrigues Carrasco (UNICAMP)


Beatriz Raposo de Medeiros (USP) Patrícia Lima Martins Pederiva (UnB)
Daniel Quaranta (UFPR) Rael Bertarelli Toffolo (UEM)
Diana Santiago (UFBA) Regina Antunes Teixeira dos Santos
Graziela Bortz (UNESP) (UFRGS)
Indioney Rodrigues (UFPR) Rita de Cássia Fucci Amato (USP)
Leomara Craveiro de Sá (UFG) Rosane Cardoso de Araújo (UFPR)
Marcos Nogueira (UFRJ) Sonia Ray (UFG)
Maurício Dottori (UFPR)

Associação
Brasileira de
Cognição e
Artes
Musicais C A P E S
Realização:
ABCM – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE COGNIÇÃO MUSICAL
Maurício Dottori (UFPR), Presidente
Diana Santiago (UFBA), Vice-Presidente
Graziela Bortz (UNESP), Secretária
Ricardo Dourado Freire (UnB), Tesoureiro
Marcos Nogueira (UFRJ), Relações Públicas
Beatriz Ilari (UFPR), Representante do Comitê Editorial

UFRJ – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


Aloísio Teixeira, Reitor
Sylvia da Silveira Mello Vargas, Vice-Reitora

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pequisa


Angela Uller, Pró-Reitora
Decano do Centro de Letras e Artes
Leo Soares
Escola de Música e Artes Cênicas
André Cardoso, Diretor
Marcos Nogueira, Vice-Diretor
Roberto Macedo, Diretor Adjunto de Ensino de Graduação
Eduardo Biato, Diretor Adjunto do Setor Artístico-Cultural
Miriam Grosman, Diretor Adjunto de Extensão
Marcos Nogueira, Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Ermelinda Paz Zanini, Coordenadora do Curso de Licenciatura

Webmaster:
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo

VI SIMCAM www.abcogmus.org/simcam
Anais do
VI SIMCAM
Simpósio de Cognição e Artes Musicais
ii

Apresentação
Prezados colegas,
Neste ano de 2010, o Programa de Pós-Graduação em Música da UFRJ completa 30
anos de existência e o comemora com muita honra recebendo o VI Simpósio de Cog-
nição e Artes Musicais, evento pioneiro na área de Cognição Musical no país.
O conceito de pós-graduação em Música em nosso programa contempla a produção
artística e a bibliográfica em medidas iguais. Contudo, nesses 30 anos de trajetória
quase 350 trabalhos foram defendidos e é flagrante a presença maciça de pesquisa e
produção nas áreas artísticas. Nos últimos 10 anos, entretanto, a produção bibliográ-
fica se intensificou nessas áreas, o que pode ser entendido também como consequência
da interação com investigações em duas outras áreas emergentes no Programa: Mu-
sicologia e Educação Musical. A consolidação de estudos musicais no âmbito das ciên-
cias cognitivas, nos últimos 20 anos, nos parece um campo notavelmente fértil para o
aprofundamento dessas interações entre procedimentos metodológicos de todas as su-
báreas que constituem a pesquisa em Música, o que pode ser reconhecido no crescente
interesse que a comunidade acadêmica musical vem demonstrando pelos recursos de
construção do conhecimento oferecidos pela pesquisa em Cognição. Assim sendo, ma-
nifestamos nossa satisfação com a realização de mais este SIMCAM e a aproximação
cada vez maior de pesquisadores da nova área.
A concretização deste VI Simpósio só foi possível graças à colaboração de inúmeros
colegas que acreditam, por razões variadas, neste projeto. Gostaria de fazer alguns
agradecimentos especiais a Sonia Ray e Mauricio Dottori, coordenadora do último
SIMCAM e presidente da ABCM, pela presença constante, a Rael Toffolo, pelo es-
forço incansável de conduzir o SIMCAM, numa primeira experiência, pelos cami-
iii

nhos ainda tortuosos dos sistemas on line, às coordenadoras dos Grupos de Estudo,
Beatriz Ilari, Clara Piazzetta, Sonia Ray e Beatriz Raposo, e aos membros desses
GEs, que deram um primeiro impulso essencial para a consolidação dessa iniciativa
inovadora da Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais para esta edição do
SIMCAM, e aos conferencistas e membros de mesas-redondas que gentilmente acei-
taram os convites para dividirem conosco um pouco dos resultados de suas pesquisas.
Gostaria de enfatizar ainda o apoio incondicional da direção da Escola de Música,
aqui representada pelo diretor geral, André Cardoso, e pelo diretor artístico-cultural,
Eduardo Biato, a gentileza dos artistas que aceitaram o convite para integrar a pro-
gramação de concertos do SIMCAM6, e por toda a equipe técnico-administrativa do
Programa de Pós-Graduação em Música e do Setor Artístico-Cultural.
Tenho convicção de que os esforços empreendidos nos últimos meses serão plenamente
recompensados com a realização de um encontro científico fértil e prazeroso. Sejam
muito bem-vindos ao Rio de Janeiro!

Marcos Nogueira
Coordenador-Geral do VI Simcam
iv

Nota do editor
É um enorme prazer ver que nossa Associação começa o seu segundo lustro de existên-
cia num simpósio em minha cidade, na mais antiga escola de música de nosso país.
E que este nosso encontro servirá a um balanço do que atingimos nos seis anos con-
secutivos de Simpósio de Cognição e Artes Musicais. Os seguidos SIMCAM tem se
demonstrado um foro privilegiado para as discussões sobre como nossas mentes e nossos
cérebros (cuja fronteira de distinção constitui-se também em um importante tópico
de debates) relacionam-se com a música em que vivemos. Este ano, em especial, há
inúmeros trabalhos muito interessantes, o que mostra a gradativa consolidação da
área.
Nesta direção esperamos também que a novidade que representam nossos Grupos de
Estudos, que pela primeira vez acontecem, tenham um futuro muito profícuo.
Por outro lado, o próprio modelo de nosso SIMCAM, em que a organização local e
a coordenação científica, são realizados, de modo em grande parte independe, pela
universidade sede e pela associação, vem se mostrando de tal modo eficaz que a
própria Anppom, desde seu congresso em Curitiba no ano passado, decidiu-se por
segui-la. E a tendência, espera-se, será a de tornar o trabalho científico cada vez mais
eficiente. Para isto, nossa associação conta agora com um domínio e uma página
própria na internet, o que a liberta dos vínculos sempre frágeis com computadores de
universidade e nos possibilitou a instalação e o uso de software de administração de
conferências e da nossa revista. O pioneirismo em usar o software cobrou um certo
preço este ano; mas, à medida que nos habituemos, teremos uma facilitação imensa
do trabalho necessário.
v

Lancemos também um olhar para o futuro científico de nossa Associação. Do ponto


de vista da coordenação científica, pude observar que os trabalhos apresentados sob o
tema de Artes Musicais e Cognição Social foram aqueles cujo número mais cresceu
desde o primeiro simpósio em Curitiba, quando só alguns poucos trabalhos foram
apresentados nesta área. E que por isso, como disse, para contemplar as discussões
necessárias sobre a propriedade dos estudos sobre Consciência e Música que ora se
fazem em todo o mundo, talvez seja necessário incluir um novo tema de Filosofia
Cognitiva e Música, e subdividir o tema "A mente e a Produção das Artes Musicais"
em dois pois os estudos se avolumaram, seja quanto ao aspecto de Criação Musical
quanto ao de Performance.
Finalmente um agradecimento muito especial ao Marcos Nogueira, Coordenador
Geral deste simpósio, e ao Rael Toffolo que realizou a implantação online de nossa
associação.

Maurício Dottori — Editor, Presidente da ABCM


ÍNDICE

vi a mente e a percepção das artes musicais


Contextualização Musical no Treinamento Auditivo:
Transferindo Memórias à Prática Musical 1
Graziela Bortz
Memória e Imitação na Percepção Musical 9
Ricardo Dourado Freire
Crítica às teorias representacionalistas da percepção musical 18
André Villa
A relação entre intérpretes e ouvintes na percepção das emoções em música 32
Christian Alessandro Lisboa
Expressões de tempo e de espaço na música 43
Yahn Wagner F. M. Pinto
Percepção e Processamento Musical em Usuários de Implante Coclear 54
Scheila Farias de Paiva Lima, Cecília Cavalieri França & Stela Maris
Aguiar Lemos
Critérios analíticos perceptivos para a o estudo da textura
baseados em correntes auditivas e sua relação com a forma musical 73
Jorge Alberto Falcón
Estudo sobre possibilidades da concepção neurocientífica
da percepção rítmica na análise de estruturas musicais 84
Pedro Paulo Kohler Bondesan dos Santos
O ouvido absoluto: prevalência e características em duas universidades brasileiras 93
Patricia Vanzella, Mariana Benassi-Werke, Nayana G. Germano &
Maria Gabriela M. Oliveira
Dos coloridos sonoros na música ocidental
proporcionados pelos diferentes semitons 100
Edmundo Hora
Música e Cognição: a percepção musical do ritmo
em crianças entre 3 e 7 anos numa perspectiva piagetiana 108
Filipe de Matos Rocha
a mente e a produção das artes musicais
A valorização de parâmetros musicais na preparação
de uma obra romântica por estudantes de piano 112
Cristina Capparelli Gerling, Regina A. Teixeira dos Santos & Catarina vii
Dominici
Atribuição de Causalidade na Performance Musical 120
Ana Francisca Schneider
A influência do espaçamento entre notas nas relações de consonância e dissonância 128
Orlando Scarpa Neto
Coordenação motora e simplificação do movimento.
Uma estratégia técnico-cognitiva para otimizar a ação pianística 146
Maria Bernardete Castelan Póvoas & Alexandro Andrade
Padrões de pensamento:
aplicação da Técnica Alexander à execução musical 156
Yara Quercia Vieira
Diretrizes para a Elaboração de Dedilhados na Performance Violonística 164
Bernardo Pellon de Lima Pichin
O Processo Criativo da Composição Musical: Uma Visão Sistêmica e Evolutiva 177
Marco Antônio Corrêa Varella, José Henrique Benedetti Piccoli
Ferreira, Leonardo Antonio Marui Cosentino & Eduardo Ottoni
O instrumentista e sua obra metamórfica:
por um paradigma aberto para a performance musical 193
Cristiano Sousa dos Santos
Sem Fronteiras: Implicações da Performance
no Ensino e Aprendizagem da Música Popular 202
Juliana Rocha de Faria Silva & Maria Cristina Cascelli de Azevedo
Investigação e auto-regulação na preparação de uma obra pianística 214
Regina Antunes Teixeira dos Santos & Cristina Capparelli Gerling
Cogito ergo jazz: improvisational transformations
in Joe Henderson’s “No Me Esqueça” 221
Mtafiti Imara
A linguagem de sinais para improvisação Soundpaiting:
sinalizando uma nova ferramenta para a formação musical 237
Thenille Braun Janzen & Ronald Dennis Ranvaud
O papel do dedilhado na expressividade cravística:
aspectos cognitivos no ensino e preparação para a performance 246
Nivia Gasparini Zumpano & Edmundo Pacheco Hora

viii
artes musicais, lingüística, semiótica e cognição
Musilinguagem: a música na fala e a fala na música 257
Patrícia Pederiva & Elizabeth Tunes
O conceito peirceano de Interpretante
como fundamento para a compreensão do campo da interpretação musical 264
Marcus Straubel Wolff
Representação e Sociedade 271
Indioney Rodrigues
Interações entre Ritmo Lingüístico e Ritmo Musical no Contexto da Canção 279
Cássio Andrade Santos & Beatriz Raposo de Medeiros
Aspectos prosódicos de quatro emoções na voz falada 292
Aline Mara de Oliveira &Beatriz Raposo de Medeiros
Memória de Curto Prazo para Melodias: Efeito das Diferentes Escalas Musicais 301
Benassi-Werke, M. E., Queiroz, M., Germano, N.G., Oliveira, M.G.M.
Mario de Andrade e o Prazer Musical 305
Luciana Barongeno

tecnologia, artes musicais e a mente


Desenvolvimento do processos composicionais eletroacústicos
a partir da relação entre live-electronics e redes neurais artificiais 308
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo
Som, sinal, movimento: novas modalidades do fazer/pensar música 317
Guilherme Bertissolo
A Ontomemética e a Evolução Musical 330
Marcelo Gimenes
Análise Particional:
uma Mediação entre Composição Musical e a Teoria das Partições 343
Pauxy Gentil-Nunes
PARSEMAT: uma ferramenta para a Análise Particional 355
Pauxy Gentil-Nunes
o desenvolvimento paralelo da mente e das artes musicais
Apofenia Musical e Emoção Extrínseca em Música 358
Bernardo Pellon de Lima Pichin
Desenvolvimento de habilidades musicais e aquisição da leitura e escrita: ix
estudos de intervenção e correlação com crianças pequenas 369
Caroline Brendel Pacheco
A Experiência Incorporada: Corpo e Cognição Musical 383
Wânia Mara Agostini Storolli
Cognição musical, especialização cerebral e o desenvolvimento
da independência e coordenação motoras 393
Antenor Ferreira Corrêa
Processos de criação musical e constituição do sujeito:
objetivando uma ética e estética na/da existência 400
Patrícia Wazlawick & Kátia Maheirie
Musicalidade na Educação a Distância: Reflexões sobre os usos
das Tecnologias de Informação e Comunicação 408
Luciane Cuervo
A Construção da Escala Natural no Teclado: significando sons e teclas 419
Caroline Cao Ponso
Aprendizagem cooperativa:
a diversidade como recurso facilitador na aprendizagem do instrumento 426
Tais Dantas, Simone Braga & Marcus Rocha
A motivação no processo de ensino e aprendizagem musical
realizado a partir de aulas coletivas: relato de pesquisa concluída 437
Tais Dantas
Processos de ensinar & aprender: música, cognição e formação profissional 448
Patrícia Wazlawick, Glauber Benetti Carvalho &Viviane Elias Portela
O Aprendizado de Música por Crianças com Necessidades Educacionais Especiais 458
Joana Malta Gomes
Educação Musical e Ludopoiese: vivenciando a aprendizagem musical 472
Maristela de Oliveira Mosca
O Ensino de Música para Pessoas com Doença Mental: a desconstrução
da figura do louco e a construção de possibilidades de inclusão social 482
Thelma Sydenstricker Alvares
‘Musicalidade em Ação’ e Processos Cognitivos na Musicoterapia 492
Clara Márcia Piazzetta
Aplicação do Conceito de Emoção Extrínseca em Música 506
Bernardo Pellon de Lima Pichin
x

artes musicais e cognição social


Música e interdisciplinaridade: bases epistemológicas e exploração de uma interface 517
Rita de Cássia Fucci Amato
Coral e trabalho: o canto em conjunto como atividade de lazer e o coro
como organização produtiva de bens e serviços culturais 540
Rita de Cássia Fucci Amato
Problemas Sociais do Adolescente em Cumprimento de Medida Sócio-Educativa
que Interferem na Cognição Musical 555
José Fortunato Fernandes
Música erudita e cognição social: assim se cria um repertório universal 567
Eliana M. de A. Monteiro da Silva
Identidades sociomusicais na Canja de Viola em Curitiba 580
Grace Filipak Torres
Música e acordeom: discutindo experiências de educação musical na Maturidade 595
Jonas Tarcísio Reis & Esther Beyer
A construção do conceito de harmonia tonal através de aulas particulares de acordeom
na região metropolitana de Porto Alegre - RS: três estudos de caso 606
Jonas Tarcísio Reis
Ensino coletivo de instrumentos musicais: auto-estima e motivação
na aprendizagem musical realizada em grupo 619
Tais Dantas
O Espaço Musicoterapêutico como Campo do Representacional:
Representações Sociais, Música e Musicoterapia 631
Fernanda Valentin, Leomara Craveiro de Sá &
Magda de Miranda Clímaco
Idosos independentes versus Idosos institucionalizados: as diferenças
na capacidade cognitiva entre grupos da terceira idade 642
Mackely Ribeiro Borges
A motivação dos alunos para continuar seus estudos em música 651
Janaína Condessa
Estimulação da memória pelo canto como base de educação musical na maturidade:
um aspecto cognitivo social 663
xi
Celina Amalia Vettore Maydana &
Maria de Fátima Machado Brasil
A referência do outro: aquisição do conhecimento através da interação 672
Simone Braga & Tais Dantas
Saraus Musicais Escolares: Projeto de Cidadania 681
Caroline Cao Ponso & Maria Helenita Nascimento Bernál
a mente e a percepção das artes musicais

Contextualização Musical no Treinamento Auditivo:


Transferindo Memórias à Prática Musical 1
Graziela Bortz
gbortz@uol.com.br
Universidade Estadual Paulista.

Resumo
A pesquisa em andamento consiste em explorar as investigações empíricas em cognição
musical aplicadas ao treinamento auditivo para propor novas abordagens dos métodos
de ensino na área de percepção musical. Os problemas apontados por Covington & Lord
(1994) no ensino objetivista da disciplina e suas idéias de ensino construtivista são usadas
aqui de maneira crítica para propor estratégias distintas, mas complementares, onde a
coexistência das duas abordagens é possível. Os objetivos do trabalho incluem a revisão
da literatura na área de cognição musical e treinamento auditivo e a elaboração de estra-
tégias de abordagem dos métodos tradicionais combinados com métodos novos. Coving-
ton & Lord (1994) descrevem o treinamento auditivo tradicional como essencialmente
behaviorista e objetivista, ou seja, baseado na transmissão e repetição de conhecimentos
específicos e bem demarcados, e tendo seus procedimentos de avaliações mensurados
aritmeticamente. Como vantagens do ensino objetivista nessa disciplina, o artigo assinala
a aquisição da habilidade de resgatar as informações adquiridas no treinamento dentro do
contexto limitado dos exercícios feitos em classe. Os autores argumentam que, em longo
prazo e no contexto real de trabalho, os resultados não são tão convincentes e que os
estudantes tornam-se inábeis em transferir os conhecimentos de um universo a outro ao
serem treinados em condições simplificadas como se fossem reais. Propõem o uso de
um laboratório de informática em que aplicam o que denominam “explorações controla-
das”, onde os estudantes podem acessar várias sub-tarefas enquanto buscam o objetivo
maior proposto, desenvolvendo a capacidade de planejarem em seu próprio tempo e à
sua maneira. Usando gravações de extratos reais de músicas, os estudantes gravam dife-
rentes linhas da partitura em faixas de um sequencer. A coexistência das abordagens ob-
jetivista e construtivistas, ao contrário do que pensam Covington & Lord, não são, na
opinião da autora desta proposta, necessariamente excludentes. O problema da aborda-
gem exclusivamente objetivista está na falta do exercício da transferência de um domínio
a outro, no que, de fato, consiste a crítica daqueles autores ao objetivismo, ou seja, a falta
de contextualização. Esta pesquisa propõe, portanto, a coexistência, o equilíbrio e a inter-
face entre as duas abordagens.

Introdução
De acordo com Covington & Lord (1994), enquanto as pesquisas em cognição mu-
sical têm se desenvolvido consideravelmente nos últimos anos, o treinamento audi-
tivo em sala de aula tem sido frustrante para professores e alunos. Estes últimos de-
monstram dificuldades em aplicar o conteúdo aprendido — que se concentra prin-
cipalmente no estudo de alturas e ritmo, com a quase que total exclusão de outros
aspectos musicais — a seu cotidiano musical, onde a complexidade do material en-
2 volve uma gama de possibilidades muito maior que a oferecida durante os estudos
de percepção.
Os autores descrevem o treinamento auditivo tradicional como essencialmente be-
haviorista e objetivista, ou seja, baseado na transmissão e repetição de conhecimentos
específicos e bem demarcados. Como os conhecimentos, os procedimentos de ava-
liações também são mensuráveis aritmeticamente. Assim, quando a capacidade dos
alunos em reconhecer determinados intervalos isolados, por exemplo, é colocada a
prova, tem-se uma possibilidade de avaliação quantitativa. Covington & Lord ob-
servam que o método objetivo de ensino e avaliação tem sido aplicado em todas as
disciplinas de conhecimento humano. No entanto, enquanto em outras áreas a edu-
cação tem sido fortemente influenciada por pensadores construtivistas, o mesmo
não ocorre na disciplina de percepção musical.
Como vantagens do ensino objetivista nessa disciplina, o artigo assinala três pontos
principais, a saber: (1) a aquisição de conhecimentos e habilidades específicas; (2) a
habilidade de resgatar as informações adquiridas no treinamento; (3) “sucesso dentro
do contexto limitado dos exercícios de treino auditivo isolados”, de onde se pode in-
ferir que “aqueles alunos que se desempenham bem parecem desenvolver um tipo
de rede esquemática ou um sistema de expertise desejado” (Covington & Lord, 1994,
p. 162). No entanto, o texto acrescenta que, em longo prazo e no contexto real de
trabalho, os resultados não são tão convincentes.
O fato de um estudante ser capaz, por exemplo, de decodificar um intervalo de trí-
tono isolado não significa que ele automaticamente desenvolva a capacidade de di-
ferenciar esse mesmo intervalo num contexto musical em que ele apareça formado
pelo quarto e sétimo graus, exercendo a função de dominante com sétima, ou entre
o segundo e sexto graus em modo menor, exercendo a função de harmonia inter-
mediária (acorde de II grau como subdominante).
Elementos isolados de seu contexto natural enfatizam a separação dos elementos
mais que sua integração. . . . De fato, pesquisas em outros domínios têm demons-
trado que tal treinamento pode, na verdade, desenvolver barreiras entre tipos de
esquema ao invés de desenvolver a consciência de sua interconexão (Covington
& Lord, 1994, p. 162).
Os autores do artigo consideram ainda que o aprendizado de intervalos condicio-
nados a uma determinada peça pode ser prejudicial, pois o caminho para recuperar
a informação é lento. Talvez se possa comparar este exemplo ao aprendizado da lei-
tura da clave de fá condicionada à clave de sol. Decodificar diretamente uma clave
qualquer a partir da visualização das distâncias formadas entre linhas ou espaços é
mais eficiente que recuperar a informação indireta na transferência de uma leitura à
outra.
A pesquisa de Burns & Ward (1982, p. 264-265), embora reconheça que a percepção
de intervalos é uma ferramenta analítica importante para a transcrição de melodias,
confirma a teoria de que o treinamento da memorização de intervalos isolados frag- 3
menta a cognição melódica. Comentam que “a percepção de intervalos melódicos
isolados pode ter pouca relação com a percepção da melodia.” Mais tarde, acrescen-
tam que “há evidência considerável de que melodias são percebidas como Gestalts
ou padrões, e não uma sucessão de intervalos individualizados e que a magnitude
intervalar é apenas um pequeno fator na percepção total.”
Da mesma maneira, Deutsch (1982, p. 287-291) demonstra como padrões de con-
torno melódico são reconhecidos no discurso musical como equivalentes, ainda que
se preserve apenas o contorno, e não os intervalos exatos. Afirma que, em longo
prazo, a memória tende a reter informações classificadas hierarquicamente em níveis
mais profundos de abstração, lembrando que este modelo se aproxima da teoria ana-
lítica de Heinrich Schenker (1868-1935), que utiliza um modelo de escuta, onde o
nível da superfície funciona como um “prolongamento” dos níveis estruturais mais
profundos.
Edlung (1974, p. 7) vê como necessidade premente a contextualização musical no
treinamento auditivo quando afirma que, “para que as relações tonais nas melodias
sejam entendidas de maneira apropriada, deve ser requisitado [no treinamento] mais
do que a mera facilidade em cantar intervalos melódicos isolados”. Pode-se recuperar
mais prontamente, na música tonal, a memória da função de uma altura em relação
a outras hierarquicamente mais importantes numa tonalidade do que o intervalo
exato formado entre duas notas. A escuta dirigida às funções melódicas, tais como:
uma nota que funciona como ornamentação, dirigindo-se por salto a outra for-
mando uma escapada, ou de uma nota que funciona como conexão de outras sepa-
radas por terça (nota de passagem), ou ainda uma bordadura, esclarece o discurso
musical, ao invés de fragmentá-lo. Em música não-tonal, os intervalos tampouco se
apresentam como elementos isolados. Alguns compositores preferem sonoridades
formadas por grupos de notas que se tornam familiares ao ouvido à medida que
façam parte do treinamento contextualizado. Edlung (1963) trabalha sempre com
grupos intervalares, nunca individualizados, na música não-tonal, à maneira seme-
lhante com que Berkowtiz et al (1960) e Edlung (1974) apresentam intervalos a
partir de sua função na música tonal.
Neste sentido, é pertinente a crítica ao ensino exclusivamente objetivista da percep-
ção musical. Faz-se necessária a contextualização constante para que os níveis de
abstração sejam percebidos e relacionados e para que a ocorra a transferência de co-
nhecimentos do treinamento auditivo à prática real. Intervalos podem ser trabalha-
dos em melodias tonais ou não-tonais globalmente.
Objetivos
Embora se busque uma visão ampla no enfoque da disciplina percepção neste tra-
balho, a ênfase é dada à percepção de alturas. Logicamente, o contexto rítmico e tex-
tural não são excluídos, mas a título de limitar o objeto de pesquisa, o enfoque recai
4
nos parâmetros de altura (melodia e harmonia).
São utilizados dados de experiências na área de cognição musical, tais como: Deutsch,
(1982, 2006), Krumhansl (1990,2006), Sloboda (2008), Levitin (2006, 2007), Co-
vington & Lord (1994), entre outros, para elaborar novas abordagens e estratégias
de ensino na disciplina de percepção musical.
Os objetivos desta proposta são:
Fazer uma ampla revisão da literatura na área de cognição musical aplicada ao trei-
namento auditivo de alunos de nível de graduação, incluindo trabalhos que tenham
foco em outras práticas musicais, mas que possam contribuir indiretamente para o
estudo da percepção (improvisação, estudos de memória para instrumentistas, piano
complementar, o estudo de harmonia no teclado, entre outros).
Propor uma nova abordagem dos exercícios de solfejo e ditado melódicos em con-
textos tonais e não-tonais, procurando um diálogo constante com os diversos tipos
de métodos: trabalhos com melodias escritas especialmente para solfejo e ditado
(estruturas simplificadas) combinadas com melodias do repertório organizadas em
métodos de solfejo (estruturas intermediárias), além de exercícios de solfejo e ditado
a partir de contextos musicais reais (estruturas complexas — um extrato de uma sin-
fonia ou de uma sonata, por exemplo), buscando transferir constantemente as asso-
ciações obtidas em contextos simplificados e intermediários àqueles mais complexos.
Propor, para o trabalho de solfejo, a análise prévia das estruturas melódicas apresen-
tadas de maneira a antecipar os desafios propostos nas estruturas simplificadas, in-
termediárias e complexas, buscando conectar a teoria à prática (de fato, a teoria à
percepção que, embora comumente associadas nas grades curriculares, resultam se-
paradas na tradição do ensino objetivista).
Finalmente, buscar uma visão holística da disciplina de percepção, evitando distor-
ções conseqüentes do trabalho com materiais exclusivamente abstratos (intervalos
fora de contexto musical, por exemplo). A proposta visa, através da constante con-
textualização prática e analítica, integrar as diferentes atividades musicais dos alunos
e do curso de graduação em música, de modo a tornar a disciplina menos árida.

Método
Covington & Lord emprestam os conceitos de well-structuredness e ill-structuredness
(Spiro et. al. apud Covington & Lord, 1994, p. 163-164) de estudos em educação
para descrever o primeiro como o contexto localizado da aula de percepção tradi-
cional e o segundo como a obra musical real. “Compositores podem utilizar dife-
renças contextuais como meio de manipulação das expectativas dos ouvintes. . . . A
música como é percebida auditivamente não é absolutamente previsível”.
Nesta pesquisa, as expressões: estruturas simplificadas e estruturas complexas serão
utilizadas para descrever o contexto de aula onde o conhecimento é filtrado (well- 5
structured) e aquele em que o estudo da música real (ill-structured) ocorre. Será uti-
lizada, ainda, a expressão ‘estruturas intermediárias’ para se referir àquelas em que
uma camada de uma estrutura complexa (uma melodia, harmonia ou um ritmo, por
exemplo) apresenta-se isolada da textura musical original. Embora seja, por essa
razão, mais simples, pode apresentar desafios particulares que merecem o tratamento
diferenciado. Enquanto os termos: estruturas simplificadas, intermediárias e com-
plexas serão utilizados para determinar os materiais empregados, duas estratégias
serão aplicadas para a abordagem desses materiais: análise e montagem/remonta-
gem.
Enquanto as ferramentas de estruturas simplificadas utilizam a idéia de seleção, a
abordagem de estruturas complexas explora a idéia de montagem (“assembly”) ou
remontagem (“reassembly”) ao explorar conhecimentos adquiridos anteriormente
e remontá-los num novo contexto (Covington & Lord, 1994, p. 165). Para os auto-
res, a perspectiva construtivista, ao contrário da objetivista, oferece a possibilidade
de tornar a prática da percepção útil ao estudante através da montagem. Eles acre-
ditam que a experiência particular de cada aluno, quando transposta a um novo con-
texto de estrutura complexa, “não é simplesmente recuperada intacta; é, antes,
reconstruída especificamente para o caso em questão”. Assim, o produto final é
menos importante que o “processo de aplicar a experiência pré-existente em novas
situações”.
Os autores crêem que os recursos para os estudos em cognição musical precisam ser
aprimorados e que as pesquisas nessa área explicam melhor a aquisição de conheci-
mento em estruturas simplificadas que em complexas, embora o aprendizado seja
oposto nessas diferentes condições. Acrescentam que os estudantes tornam-se iná-
beis em transferir os conhecimentos de um universo a outro ao serem treinados em
condições simplificadas como se fossem reais. Sugerem que uma grande “variedade
de dimensões abstratas” deva ser aplicada para que se promova essa habilidade de
transferência (Spiro et. al. apud Covington & Lord, 1994, p. 165).
Propõem o que eles chamam de “explorações controladas”, onde “se pode acessar vá-
rias sub-tarefas enquanto se busca um trabalho maior e mais abrangente, provendo
[o aprendiz] não somente de uma vivência variada, como também da oportunidade
de planejar estratégias para completar o trabalho por inteiro, ou seja, controlando
o aprendizado” (Covington & Lord, 1994, p. 166). Em seu laboratório de tecnolo-
gia musical, eles descrevem sua experiência com os estudantes da Universidade de
Kentucky. Usando gravações de extratos reais de músicas, pedem aos estudantes que
gravem diferentes linhas da partitura, por exemplo, o baixo, a melodia ou outra linha
de algum instrumento qualquer, em outras faixas do sequencer. Para isso, os estu-
dantes têm a seu dispor, teclados midi, computadores e softwares individuais, além
de fones de ouvido. Relatam os resultados como extremamente positivos tanto na
6 aquisição e transferência de habilidades e conhecimentos, quanto no envolvimento
dos alunos na tarefa. Algumas dificuldades comuns, como ouvir e recuperar na me-
mória a linha do baixo, são superadas através do esforço e aplicação de estratégias
pessoais de acordo com a experiência e velocidade particular de cada aluno. Além
disso, é possível que o estudante sinta-se menos pressionado por não ter suas difi-
culdades expostas e comparadas com aqueles que têm maior facilidade.
Estratégia 1: Análise
Ao iniciar uma leitura à primeira vista, o estudante muitas vezes se depara com ‘sur-
presas’ no decorrer do solfejo. O olhar analítico antes de se iniciar o exercício é de
suma importância para que se possam prever os desafios inerentes ao extrato em
questão. Com a experiência, as dificuldades são superadas e a leitura se torna pouco
a pouco fluente. É importante que o professor utilize diferentes materiais de leitura,
embora possa adotar um material-base. Berkowitz, Frontier & Kraft (1960) e Ott-
man (1995) são materiais com estruturas particulares previstas para cada seção.
Assim, os primeiros capítulos abordam somente melodias diatônicas, inserindo to-
nicizações e modulações à dominante e outras harmonias cromáticas pouco a pouco.
São excelentes materiais-base, mas é importante inserir alternativas a essas estruturas
previsíveis para que o estudante desenvolva a versatilidade e capacidade de previsão
anterior à leitura. Edlung (1974) oferece um material misto de estruturas previsíveis
e não-previsíveis nas diferentes seções e pode ser uma boa opção para esse propó-
sito.
No extrato abaixo, a primeira frase da melodia se encontra em Lá menor, modulando
à dominante na segunda parte da frase seguinte. A terceira frase se inicia com a
mesma melodia que a primeira, no entanto, dirige-se à subdominante da tonalidade
original através de sua dominante individual, usando, ainda, o rebaixamento do se-
gundo grau para acessá-la. Em seguida, na quarta frase, retorna-se a Lá menor através
da dominante para voltar a esta última harmonia na semicadência. O extrato é in-
terrompido na harmonia de tônica maior.
7

Figura 1.1 — Extrato do repertório (Haydn) como apresentado no livro de solfejo


Modus Vetus de Lars Edlung, p. 112
O uso das ferramentas de análise é imprescindível para que o estudante possa prever
os caminhos por onde a melodia poderá encaminhá-lo durante a leitura. Além da
pura conscientização teórica, é necessário que ele ouça esses caminhos antes de ini-
ciar o solfejo. Pode-se inclusive cantarolar as alterações, por exemplo, da sensível da
dominante e do segundo grau rebaixado seguido da V/ IV para ‘sentir’ essas altera-
ções e localizar as funções melódicas desses graus alterados.
Estratégia 2: Montagem e remontagem: Escuta de estruturas complexas
— Uma abordagem construtivista
Esta é a estratégia descrita por Covington & Lord (1994) como vivência direta com
as estruturas complexas e que os autores chamam de montagem (assembly) e remon-
tagem (reassembly). Uma vez que os estudantes tenham a oportunidade de escolher
a ordem e as estratégias particulares usadas para decodificar o material, são orienta-
dos a gravar numa faixa do sequencer o que ouviram.

Conclusões
A coexistência das abordagens objetivista e construtivistas, ao contrário do que pen-
sam Covington & Lord (1994), não são, na opinião da autora desta proposta, ne-
cessariamente excludentes. O problema da abordagem exclusivamente objetivista
está na falta do exercício da transferência de um domínio a outro, no que, de fato,
consiste a crítica daqueles autores ao objetivismo. Uma fórmula aritmética não é, em
si, um problema ao estudante de matemática. O problema é não ser oferecido ao
aluno o conhecimento de sua origem, a informação: ‘de onde vem?’ Se, ao contrário,
como professores e pesquisadores, oferecermos aos alunos a possível conexão às tex-
turas complexas da música, respeitando suas próprias experiências e dirigindo-as de
maneira que eles mesmos possam aplicá-las em seu treinamento auditivo, o estudo
da percepção pode se tornar menos árido e mais interessante. Esta pesquisa se en-
contra em andamento, sendo aplicada aos alunos de primeiro e segundo anos de gra-
duação em música do Instituto de Artes da Unesp.
Agradecimentos
À FUNDUNESP, por financiar a apresentação desta pesquisa no Simpósio de Cognição e
Artes Musicais (SIMCAM VI).

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Ottman, Robert W. Music for Sight Singing. Upper Saddle River: Prentice Hall, 1995.
Memória e Imitação na Percepção Musical
Ricardo Dourado Freire
freireri@unb.br
Departamento de Música, Universidade de Brasília 9

Resumo
O processo cognitivo da percepção musical acontece mediado pelas maneiras como a
memória atua no registro e processamento das informações auditivas. A abordagem da
percepção musical como processo cognitivo aceita que a memória pode atuar de diversas
maneiras durante o processo de identificação e escrita musical. O presente artigo tem
por objetivo estabelecer uma relação entre os diferentes tipos de memória e propor mo-
delos de imitação compatíveis com as formas de funcionamento de cada tipo de memória
apresentado: (1) memória de longa duração, (2) memória de curta duração / memória ope-
racional e (3) memória sensorial / neurônios espelho. De acordo com o modelo clássico
de Attkinson & Shiffrin (1971 apud Sternberg, 2000) a memória pode ser processada de di-
versas maneiras: (1) armazenamento sensorial, períodos de tempo muito breves, (2) arma-
zenamento de curto prazo, e (3) armazenamento de longo prazo. Baddeley e Hitch (1974
apud Werke 2008) propuseram o modelo de memória operacional que compreenderia e
substituiria o conceito clássico de memória de curto prazo. O conceito memória sensorial
pode ser revisto e ampliado a partir das pesquisas de Rizzolatti (2004) sobre neurônios
espelho. No trabalho de percepção musical a imitação é uma ferramenta fundamental
para o processo de aprendizagem. Cada tipo de memória pode ser desenvolvido por
meio de um tipo específico de imitação que irá promover uma forma de processamento
da informação musical. São propostas as denominações de imitação longa relacionada à
memória de longa duração; imitação curta, relacionada à memória de curta duração, imi-
tação operacional relacionada à memória operacional e imitação espelho relacionada ao
funcionamento de neurônios espelho. O trabalho demonstrou a potencialidade de se con-
ceber a imitação como ferramenta para o desenvolvimento da memória no contexto da
percepção musical.

Memória e Imitação
A percepção musical pode considerar tanto os aspectos fiscos da vibração dos sons
quanto os complexos processos de identificação e significação de eventos sonoros
que possam ser semanticamente considerados como música. O processo cognitivo
da percepção musical acontece mediado pela duração temporal das informações
apresentadas e em conseqüência pelas formas como a memória atua no registro e
processamento das informações auditivas. A abordagem tradicional do ensino de
percepção centrado no conteúdo musical pressupõe que o aluno deva memorizar
trechos musicais para ser capaz de escrever ditados musicais. No entanto, a aborda-
gem da percepção musical como processo cognitivo complexo deve observar os di-
ferentes tipos de memória que atuam de diversas maneiras durante o processo de
identificação e decodificação musical. A partir da análise dos tipos de memórias en-
volvidos no processo e suas relações com os processos de imitação propostos é pos-
sível direcionar as práticas de percepção musical realizadas em atividades pedagógi-
cas.
Os estudos inicias sobre a Psicologia da Música realizados por Seashore (1938) co-
10 locavam a memória como um dos aspectos fundamentais da aprendizagem.
O processo de aprendizagem em música envolve dois aspectos principais: aqui-
sição e retenção de informações e experiências musicais, e o desenvolvimento de
habilidades musicais. Estes dois aspectos podem ser incluídos no uso comum do
termo “memória”; assim sendo, nós possuímos uma memória consciente, que é
a capacidade de tornar acessível a informação e habilidades armazenadas, e tam-
bém uma memória subconsciente ou automática, que é um tipo de hábito, de-
monstrado nos vários tipos de habilidades musicais durante a performance.
(Seashore, 1938, pag. 149)
Ao refletir sobre as idéias de Seashore podemos verificar que ele propõe que na
aprendizagem estão presentes a aquisição de informações musicais, que podem ser
realizadas por meio da imitação e a retenção da informação, característica funda-
mental da memória musical.
De acordo com Costa (1997), a “memória auditiva caracteriza-se pela capacidade
de ouvir os sons internamente, ou seja, pensar os sons na ausência de fonte sonora”.
Seashore (1938) refere-se a esta memória interna a partir do conceito de imaginação
musical (auditory imagery) como “a capacidade de ouvir música na lembrança, no
trabalho criativo, e para suplementar os sons físicos atuais na audição musical”. Uti-
lizou analogias com os processos de pintura e escultura para exemplificar seu con-
ceito. Descreveu também que as imagens auditivas operam durante a audição da
música, na reconstrução (recall) da música ou no processo de criação musical. Gor-
don (1997) definiu o processo cognitivo de audição interna a partir da criação de
um novo termo teórico: audiação (audiation) que “acontece quando é possível assi-
milar e compreender em nossas mentes, músicas que estejam sendo executadas, que
foram executadas no passado, ou para a qual o som não esteja fisicamente presente.”
Também definiu tipos e estágios de audiação que incluem: (1) ouvir, (2) ler, (3) es-
crever, (4) lembrar e tocar, (5) lembrar e escrever, (6) criar e improvisar na perfor-
mance, (7) criar e improvisar durante a leitura, e (8) criar e improvisar durante a
escrita. Lehman, Sloboda e Woody (2007) argumentaram que a performance mu-
sical pode ser considerada, principalmente, como uma habilidade mental e não ape-
nas uma atividade física. Utilizaram o conceito de representação mental como a
reconstrução interna do mundo externo vinculado às várias habilidades musicais.
Imitação pode ser considerada como um dos procedimentos pedagógicos básicos
utilizados no processo de aprendizagem musical. Processos tradicionais de ensino
instrumental e vocal, seja em conservatórios europeus ou em culturas de tradição
oral, utilizam a imitação de trechos musicais como elemento de aprendizagem. Na
abordagem de Edwin Gordon (1997), o autor estabelece o processo de imitação de
padrões melódicos e padrões rítmicos como elemento fundamental da aprendizagem
a partir da qual serão estabelecidos os procedimentos de instrução musical.
O processo de imitação pode ser abordado de diversas maneiras, desde a imitação
de notas individuais, imitação de intervalos musicais (2 notas), imitação de acordes
(grupos de três notas simultâneas), imitação de linhas melódicas curtas, imitação 11
de frases musicais, até a imitação de peças musicais completas. No entanto, quais
sãos as relações que podem existir entre memória e imitação e de que maneira a es-
truturação da imitação contribui na organização da memória.
Tipos de Memória
Na área de música existem várias abordagens para o estudo da memória. Principal-
mente nos processos de memorização musical de peças musicais nas quais estão re-
lacionados elementos da memória mecânica/cinestésica, memória auditiva, memória
visual e memória analítica. (Costa, 1997)
Neste trabalho, será observada, como referência inicial, a abordagem da psicologia
cognitiva que de acordo com o modelo clássico de Attkinson & Shiffrin (1971 apud
Stenberg, 2000) a memória pode ser processada de três maneiras: 1) armazenamento
sensorial, 2) armazenamento de curto prazo, e 3) armazenamento de longo prazo.
A partir de um estímulo externo a informação pode ser registrada pelo sistema sen-
sorial tanto visual quanto auditivo. A partir do registro sensorial, criador de uma
memória sensorial, a informação pode ser registrada na Memória de Curta Duração,
controlado pelos processos de ensaio, codificação, decisão e estratégias de recupera-
ção da informação. A fixação permanente da informação irá produzir a Memória de
Longa Duração.
Baddeley (2004) explica o modelo de memória operacional que pressupõe a exis-
tência de um sistema executivo central que gerencia e atua no controle da atenção
das ações armazenadas. Este sistema é auxiliado pela alça fonológica ou articulatória
(phonological loop) que terá a função de manter na memória, por poucos segundos,
as informações da linguagem funcional, como um ensaio silencioso das informações
armazenadas a partir de referências verbais. O exemplo da alça fonológica pode ser
observada quando uma pessoa repete silenciosamente um número de telefone, ou
um endereço, por várias vezes, até ter certeza da memorização. O esboço vísuo-es-
pacial (visuospatial sketchpad), um segundo sistema auxiliar, têm a função de arma-
zenamento temporário e manipulação de informações visuais e espaciais.
De acordo com Sternberg (2000) a memória sensorial é caracterizada pelo armaze-
namento rápido que ocorre nos milisegundos seguintes a apresentação de uma in-
formação. Funciona como um repositório inicial, propiciado pelos sentidos, de um
conjunto de informações que serão selecionadas e que ingressam nos armazenamen-
tos de curta e longa duração. O conceito de memória sensorial pode ser revisto e
ampliado a partir das pesquisas de Rizzolatti (2004) sobre neurônios espelho que
identificou em macacos a presença de neurônios com funcionamento específico para
ativar ações musculares são executadas e quando as mesmas ações são apenas obser-
vadas ou escutadas, sendo que este funcionamento também está presente nos hu-
manos. Desta maneira, tornou-se possível verificar que a mente é capaz de realizar
12 representações mentais de ações físicas de maneira muito rápida e quase que simul-
taneamente enviar estímulos para a reprodução das ações musculares observadas.
Gallese e Goldman (2000) realizaram pesquisas sobre neurônios espelho investi-
gando as questões de leitura mental de macacos e observaram que a atuação de neu-
rônios espelho facilitam a ação de grupos musculares dos sujeitos observadores em
relação aos sujeitos atores. Neste caso, os dados indicam que neurônios espelho
podem funcionar de acordo de uma perspectiva de uma teoria da estimulação na
qual os sujeitos observadores conseguem adotar a perspectiva dos sujeitos atores por
conseguirem estabelecer um funcionamento cerebral semelhante ao original.
O presente artigo tem por objetivo estabelecer uma relação entre os diferentes tipos
de memória e propor modelos de imitação compatíveis com as formas de funciona-
mento de cada tipo de memória apresentado: 1) memória de longa duração, 2) me-
mória de curta duração, 3) memória operacional e 4) memória sensorial / neurônios
espelho. Neste processo são caracterizadas as maneiras de utilização dos tipos de me-
mória e as formas como estas memórias podem ser usadas nas atividades de percep-
ção musical. Nesta contextualização do uso da memória faz-se necessário articular
os tipos de funcionamento da memória e as possibilidades de exercícios de percepção
musical.
Discussão Teórica
A memória musical atua como um processo de acúmulo de informações que devem
ser processadas durante o reconhecimento e transcrição de trechos musicais. A me-
mória pode funcionar de uma maneira positiva ao criar hierarquias e grupamentos
de notas ou de maneira negativa ao interferir na identificação dos elementos musicais.
Deutsch (1999) indica que “a memória na música precisa ter o funcionamento de
um sistema heterogêneo, no qual as várias subdivisões se diferenciam a partir da pré-
existência de elementos que irão reter a informação.” Assim, na atividade de percep-
ção, o funcionamento da memória envolve vários aspectos que compõem esse
sistema complexo e diversificado de estímulos e processos de decodificação da in-
formação.
Entre as discussões sobre as similaridades e diferenças entre a memória de curta du-
ração e a memória operacional, destacamos alguns estudos. De acordo com Kenrick
(1994, p. 220 apud Engle et al.2000) a memória de curta duração é usada para reter
informações por períodos curtos. No entanto, a definição de memória operacional
refere-se a um construto mais complexo, definido como um conjunto de elementos
da memória ativados aos processos centrais de execução (Cowan apud Engle et al.
2000).
Os conceitos tradicionais de memória estão sendo revistos atualmente com novas
propostas de construtos teóricos. Ericsson e Kintsch (1995) apresentam estudos
propondo a necessidade de ampliar o conceito de memorial operacional para situa-
ções de longo prazo. A partir da análise dos processos cognitivos presentes na leitura
e compreensão de textos, performance de alto nível e na atividade de jogadores avan- 13
çados de xadrez, os autores refletem sobre os processos de armazenamento de infor-
mações que precisam ser constantemente acessadas para realização de tarefas
complexas. Em atividades que exigem perícia, “a aquisição de habilidades de memó-
ria permitem que informações importantes sejam armazenadas na memória de longa
duração e acessadas pela memória de curto prazo” (Ericsson e Kintsch, 1995).
Na área de música, Mariana Werke (2008) investigou se a memória operacional é
capaz de lidar igualmente com sons verbais (números e pseudopalavras) e não-ver-
bais (tons).O estudo observou indícios de que material melódico tem características
diferentes do material verbal, pois a manipulação de seqüências melódicas na me-
mória operacional parece ser mais difícil do que a manipulação de seqüências verbais
para os três grupos experimentais. Os resultados indicam que pode existir uma alça
fonológica exclusiva para o conteúdo musica e indica demonstra são necessárias
novas pesquisas para caracterizar melhor as condições em que sequências melódicas
são armazenadas e manipuladas na memória operacional. A hipótese da existência
de uma alça musical, ou o treinamento de uma operação musical, permite a elabo-
ração de atividades que possam se beneficiar de um funcionamento rápido ao acesso
das informações musicais.
Overy e Molnar- Szakacs (2009) propuseram que os neurônios espelho podem estar
ativos em situações musicais como uma sequência de ações motoras que precedem
os sinais musicais, e que o sistema humano de neurônios espelho permite a co-re-
presentação e troca de experiências entre músico e audiência. Neste contexto, foi
proposto que a imitação, a sincronização, e o compartilhamento de experiências
podem ser elementos que promovam o sucesso na realização de atividades musico-
terápicas e com crianças com necessidades especiais. Neste caso, o funcionamento
de neurônios espelho permite uma comunicação direta entre os participantes do
processo, atividades de espelhamento permitem trocas significativas entre os parti-
cipantes das experiências musicais, valorizando aspectos sociais e afetivos envolvidos
no processo.
Em trabalho anterior, Freire (2008) investigou a relação da imitação em tempo-real,
e as imitações simultâneas de atividades musicais que foi caracterizada, a princípio,
como ação simultânea que após revisão será considerada como uma atividade espe-
lho:
O processo de Ação Simultânea (espelho) está presente em várias atividades co-
letivas, de uma forma direta e produtiva para líderes e participantes de grupos
musicais ou de atividades esportivas. Uma aula de ginástica aeróbica é um bom
exemplo de uma situação em que os participantes conseguem seguir em tempo
real, as indicações dos movimentos corporais do professor de educação física.
Nestas aulas, o movimento é observado e repetido simultaneamente com a mú-
sica, sendo que o estímulo visual do professor é observado, copiado e reproduzido
como em um espelho ao mesmo tempo em que é apresentado pelo instrutor.
14 Nesta situação, o estímulo visual é o fator que permite a ação simultânea entre
os movimentos dos instrutores e os movimentos dos alunos. Um Coral de Leigos
é um bom exemplo de situação musical na qual as pessoas conseguem acompa-
nhar a performance musical, mesmo sem saber a leitura musical. Nesta situação
os participantes seguem as indicações musicais do regente e os líderes de naipe,
ouvindo, olhando os movimentos labiais, seguindo a letra da música, sendo que
muitas partes da música não estão memorizadas e necessitam de exemplos musi-
cais (colegas, piano, instrumentos, regente) para que as pessoas possam acompa-
nhar e participar da performance musical. (Freire, 2008)

Resultados
O processo de imitação consiste na repetição de uma determinada informação. No
trabalho de percepção musical a imitação é uma ferramenta fundamental para o pro-
cesso de aprendizagem. Cada tipo de memória pode ser trabalhada por meio de um
tipo específico de imitação que irá promover uma forma de processamento da in-
formação musical. Desta maneira são propostas as categorias: imitação longa, rela-
cionada à memória de longa duração; imitação curta, relacionada à memória de
curta duração; imitação operacional, relacionada à memória operacional e imitação
espelho, relacionada ao funcionamento de neurônios espelho. (Fig. 1)

Memória de Longo Prazo Imitação Longa


Memória de Curto Prazo Imitação Curta
Memória Operacional Imitação Operacional
Memória Sensorial/Neurônios Espelho Imitação

Figura1 — Correlação entre tipos de memória e tipos de imitação


A imitação longa, relacionada à memória de longo prazo, pode ser trabalhada por
meio de atividades nas quais os sujeitos possam memorizar trechos musicais longos,
após diversas audições, e tentar decodificar verbalmente por meio de solfejo, ou
transcrever os trechos musicais. (Fig. 2) A característica deste tipo de imitação está
em permitir uma visão do contexto musical de maneira completa, de forma que o
sujeito possa descobrir os detalhes a partir do todo. Neste contexto, a aprendizagem
ocorre da macroestrutura para a microestrutura.
Figura 2— Atlântico (Ernesto Nazareth — Domínio Público)
Trecho para imitação longa. 15
A imitação curta, vinculada à memória de curto prazo, pode ser trabalhada por
meio de atividades nas quais os sujeitos podem memorizar trechos musicais curtos,
após poucas audições, e tentar decodificar verbalmente por meio de solfejo, ou trans-
crever os trechos musicais. (Fig. 3) Neste caso, os trechos a serem imitados são de
curta duração (um ou dois compassos) e cada trecho pode ser imitado várias vezes
antes de outro trecho ser apresentado. Neste caso a ação de ouvir e imitar trechos
curtos reforça a memória de curta duração, que a partir do armazenamento de di-
versos trechos pode construir uma memória de longa duração.

Figura 3 — Atlântico (Ernesto Nazareth — DP)


Trecho para realização de exercícios de imitação curta.
As memórias de longo e curto prazo são tradicionalmente trabalhadas em atividades
de percepção musical, sejam em ditados ou em procedimentos que músicos popu-
lares e eruditos usam para aprender novas músicas a partir de gravações. A memória
operacional apresenta características distintas das anteriores, pois faz-se necessário
acessar e relacionar pequenas quantidades de informação que serão trabalhadas em
tempo real. Por exemplo, quando um violonista acompanha de ouvido uma música
nova, ele necessita ouvir e memorizar partes da melodia e ao mesmo tempo criar re-
cursos para verificar qual o acorde deverá ser utilizado. Esta complexa operação da
memória de trabalho é processada pelo sistema executivo central ao lidar com o ar-
mazenamento de informações novas (melodia) e sua relação com um conhecimento
adquirido (acordes) a partir da atenção do material sonoro, capacidade de resumir
melodias e planejamento das opções harmônicas. A imitação operacional pode ser
trabalhada a partir da repetição de pequenos grupos de três ou quatro notas, que
precisam ser imitados imediatamente, para que as informações sejam mantidas ou
ensaiadas mentalmente. A imitação operacional se diferencia da memória de curto
prazo por depender da repetição imediata e da relação entre as informações que estão
sendo armazenadas em tempo real. Outro exemplo de atividade de imitação opera-
cional é a divisão de um trecho musical em pequenos motivos que podem ser apre-
sentados em rápidas sequências. (Fig. 4)

16

Figura 4 — Atlântico (Ernesto Nazareth — DP)


Trecho para ser realizado como imitação operacional
A característica dos neurônios espelho é promover uma imitação imediata, ou es-
pelhada, da atividade principal. A ação e imitação ocorrem quase que simultanea-
mente, pois a imitação ocorre frações de segundo após a ação principal. Por exemplo,
quando uma pessoa tenta cantar uma música que não conhece com outra pessoa que
esteja cantando. A pessoa tenta acompanhar a outra cantando “um pouco depois” e
muitas vezes completando as frases já iniciadas. Esta atividade pode ser adaptada
para atividades de percepção musical, quando uma linha musical é apresentada,
sendo imitada imediatamente. Neste caso uma nota precisa ser realizada e imitada
antes da nota seguinte. (Fig. 5) Na imitação espelho a aprendizagem ocorre a partir
da microestrutura, da identificação de cada nota apresentada. A princípio, é neces-
sário uma curta fração de segundo antes da imitação, mas o tempo de resposta pode
ser reduzido consideravelmente a partir de um treinamento progressivo. Pode-se ca-
racterizar que a função da imitação espelho seja uma ação que permite a interação
musical em tempo real cujo estímulo e resposta musicais ocorrem tão rápido de ma-
neira que sejam percebidos como uma reverberação sonora, ou seja, algo semelhante
ao efeito de delay de aparelhos de amplificação.

Figura 5 — Atlântico com valores aumentados (Ernesto Nazareth — DP)


Trecho para ser realizado como imitação espelho
A relação entre memória e imitação pode direcionar o trabalho pedagógico de per-
cepção musical com sujeitos de diversas idades. A escolha de um tipo de imitação,
que implica no uso de um determinado tipo de memória, possibilita compreender
melhor qual o modo de aprendizagem envolvido nas diferentes atividades.

Conclusão
Esta pesquisa demonstrou a potencialidade de se conceber a imitação como ferra-
menta estratégica para o desenvolvimento da memória no contexto da percepção
musical. Cada tipo de memória pode ser trabalhada por meio de um tipo de imitação,
que irá promover uma forma específica de processamento da informação musical. A
imitação de trechos longos, com 4 a 8 compassos, reforça o uso da memória de longa
duração enquanto a repetição de frases musicais de dois a quatro compassos utiliza
a memória de curta duração. Em casos nos quais são apresentados padrões musicais 17
de quatro a seis notas, imitados logo em seguida, estará usando a memória opera-
cional. O uso da memória sensorial/neurônios espelho, por meio da imitação espe-
lho, que tenta reproduzir simultaneamente a informação apresentada. O uso de
estratégias diversificadas de imitação permite a articulação entre os modos de assi-
milação da informação musical e seu processamento pelos diferentes tipos de
memória.
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Crítica às teorias representacionalistas da percepção musical
André Villa
avandrevilla@gmail.com
18 Departamento de música — Universidade de Paris 8
MSH Paris Nord

Resumo
A grande maioria das atuais teorias de modelização da percepção musical estão inseridas
num paradigma representacionalista da cognição e trabalham predominantemente com
exemplos baseados em músicas tonais. Estas teorias postulam que nossa percepção realiza
uma extração de gestalten do continuum sonoro para formar um grupamento em unida-
des perceptivas e que, em seguida, nós organizamos estas unidades em uma hierarquiza-
ção seqüencial. Nesta perspectiva, esta organização perceptiva é vista como uma
segmentação da superfície musical. Evidentemente, o principal — e por vezes o único —
elemento musical morfofórico ( i.e. portador de forma) levado em consideração em tais
modelos é a altura musical ( i.e. pitch, hauteur, Tonhöhe). Este texto desenvolve uma análise
baseada na percepção de músicas não-tonais e em alguns exemplos extraídos da etno-
musicologia e propõe uma inversão dos modelos teóricos em questão. Em ressonância
com a fenomenologia, a hermenêutica, a fisiologia da ação, a enação e as epistemologias
construtivistas, eu entendo a percepção não como um tratamento passivo de informações
dos estímulos de um mundo pré-estabelecido, mas como uma ação constitutiva do fe-
nômeno percebido. Neste sentido, perceber as estruturas que compõem uma obra musical
é visto não como a realização de uma análise que extrai descontinuidades de uma unidade
funcional global, mais uma atividade que faz emergir um continuo articulado à partir dos
elementos discretos que formam os “postulados musicais”.

Introdução
A grande maioria das atuais teorias de modelização da percepção e da cognição mu-
sical estão inseridas num paradigma representacionalista da cognição. Expressões e
conceitos como “representações mentais”, “linguagem do pensamento”, “tratamento
das informações”, “sistema interno”, “codificação simbólica”, “emergência”, “universais”,
entre outros, são freqüentemente utilizados nos textos científicos que trabalham
sobre as questões da cognição musical. Entretanto, ao meu entender, estas utilizações
não refletem nenhum questionamento sobre a origem e os fundamentos filosóficos
e epistemológicos que servem de alicerce ao paradigma representacionalista da cog-
nição. Este texto sugere um olhar crítico sobre estas questões.

Paradigmas representacionalistas e ciências cognitivas:


as origens
Uma grande parte das teorias e dos modelos de percepção musical disponíveis na
literatura especializada se dividem basicamente como pertencendo à dois diferentes
paradigmas: o cognitivismo e o conexionismo. No entanto, ambos estão inseridos
numa abordagem computacional e representacionalista da cognição humana. Isso
quer dizer que ambos paradigmas consideram os indivíduos como sistemas que
tratam as informações pré-estabelecidas pelo mundo exterior e que, de uma certa 19
forma, em certas partes do nosso córtex existem ativações neuronais ou “estados
mentais” que representam os dados do mundo percebido. Evidentemente, em uma
tal abordagem, existe uma relação de causa e efeito entre o mundo (pré-determinado)
e as representações mentais que nós fazemos deste (a vectorização sendo obrigatoria-
mente neste sentido mundo ⇒ percepção). De uma maneira extremamente resu-
mida, a distinção entre os dois paradigmas pode ser apresentada da seguinte forma:
O cognitivismo “clássico” admite a existência de estados mentais considerados
como idênticos e dependentes de um dado estado físico (concepção fisicalista
do mundo) e supõe a existência de representações mentais simbólicas que são con-
cebidas como enunciados de uma linguagem formal interna ao sistema. Esta lin-
guagem formal — também chamada de linguagem do pensamento — possui
assim uma estrutura lógico-sintáxica (nível simbólico) que pode ser avaliada se-
manticamente (nível representacional). Os processos cognitivos são entendidos
como processos computacionais (“cálculos”) efetuados sobre símbolos e repre-
sentações segundo um sistema de regras formais pré-estabelecidas. Os símbolos
podem fazer referências às situações do mundo (fenômenos externos) e formam
entidades estáveis. Eles podem ser estocados em memória e transformados se-
gundo as citadas regras (o paradigma cognitivista é também chamado de sim-
bólico). Estes “cálculos” são conduzidos sequencialmente — em um processo
basicamente bottom-up — sob a direção de centros de controle (top-down) a um
alto nível do processo cognitivo. O processo ocorre portanto de maneira interna
ao sistema que é assim apresentado como sendo linear. O cognitivismo é decla-
radamente e abundantemente inspirado dos trabalhos sobre o computaciona-
lismo e os sistemas formais que deram origem à informática, ao computador e
aos primeiros projetos de pesquisa em inteligência artificial (IA). Este paradigma
considera assim as relações entre o físico e o mental como similar ao modelo das
relações entre software e hardware em informática: o nível computo-represen-
tacional de descrição dos estados e processos mentais (i.e. a cognição humana)
é amplamente autônomo em relação ao nível físico do sistema interno no qual
o nível computo-representacional se desenvolve (i.e. o córtex humano). “Pensar
é calcular” torna-se a máxima que exprime o pensamento cognitivista e a “má-
quina de Turing” transforma-se no principal modelo da mente humana.
O conexionismo se desenvolveu principalmente à partir da chamada segunda ci-
bernética e considera a cognição como a emergência de estados globais internos
ao sistema, sendo este sistema composto por uma rede de componentes simples
(e.g. os neurônios humanos, os neurônios formais da informática). O sistema é
considerado como sendo dinâmico complexo (logo, não-linear) e os “cálculos”
são efetuados em paralelo — tratamento das informações de forma massiva —
em múltiplas interações locais efetuadas pelos elementos que compõem a rede,
o que implica em uma ausência de centros de controle. Os estados do mundo não
são mais representados por símbolos como no cognitivismo, mas por estados
emergentes da rede conexionista (paradigma sub-simbólico). Esta emergência
20 produz estados estáveis e ocorre de forma auto-organizável, baseada nos “pesos”
das conexões locais e na formação de conjuntos atratores no espaço do sistema.
Vista como o surgimento auto-organizável de singularidades em sistemas natu-
rais e baseada nos substratos materiais, a emergência conexionista também é ba-
sicamente bottom-up. Neste sentido, o conexionismo — assim como o
cognitivismo — é fisicalista (i.e. tese ontológica segundo a qual os constituintes
da realidade são entidades físicas ou são determinadas exclusivamente por estas)
e sustenta uma espécie de realismo semântico numa fórmula que consiste em rei-
ficar — por vezes hipostasiar — o sentido concebido como entidade objetiva au-
tônoma, independente do fato de ser apreendido ou não pela “mente” humana.

A percepção como ação constitutiva


do fenômeno percebido
Como crítica ao paradigma computo-representacional, eu utilizo uma abordagem
em ressonância com a fenomenologia, a hermenêutica, a fisiologia da ação, a enação
e as epistemologias construtivistas.

A fenomenologia como base metodológica


A característica essencial da metodologia própria à fenomenologia husserliana é de
priorizar descrição das estruturas fenomenais que caracterizam a forma pela qual
os objetos se apresentam. A fenomenologia não se refere às diferenças entre duas
substâncias “fechadas” em si mesmas (dualismo cartesiano), e propõe uma superação
da oposição entre internalismo/externalismo. Ela prioriza a análise das estruturas que
fazem a “correlação” entre as duas instâncias fundamentais de um mesmo fenômeno:
um ato intencional (a noesis, ação doadora de sentido) e o objeto correlato deste ato
(o noema, subordinado à noesis, mas independente pois é a unidade — ou plurali-
dade — objetiva das determinações). Como cita Jean-Luc Marion, a conquista fun-
damental da fenomenologia de Husserl é que “fenômeno [Erscheinung] não se diz
nem primeiro, nem somente do objeto que aparece, mas também da experiência vivida
na qual e pela qual ele aparece.” (Marion, 1989, 85).
Husserl — e, mais explicitamente, Heidegger e Merleau-Ponty — chama nossa aten-
ção sobre o fato que é nossa atividade, nossa interação com o mundo que nos dis-
tingue dele e que o dota de sentido para nós. A percepção participa assim ativamente
da constituição do mundo ao nosso redor. A estrutura enquanto organização própria
de um objeto percebido (e.g. uma obra musical) emerge no carrefour da correlação
noesis-noema. A fenomenologia também desenvolve de forma aprofundada muitas
questões sobre os objetos temporais e pode assim funcionar como uma potente e
frutuosa “máquina filosófica” para analisarmos a percepção musical (Villa, 2005 e
2008).
Emergência, hermenêutica e enação
O termo emergência é polissêmico. A significação que eu atribuo a este termo se 21
aproxima sensivelmente do conceito de enação sugerido e introduzido em ciências
cognitivas graças ao trabalho de Francisco Varela.
O termo enação é uma tentativa de “traduzir” a nova designação do termo herme-
nêutica adotada por Martin Heidegger. Para ele, a hermenêutica não se refere apenas
à disciplina da interpretação de textos antigos. Com Heidegger e seu discípulo Ga-
damer, a hermenêutica passa a designar “o fenômeno da interpretação como um todo,
entendido como a enação ou fazer-emergir [enactment or bringing forth] da signifi-
cação sobre um fundo [from a background] do entendimento” (Varela, Thompson e
Rosch, 1991, 149). Esta hermenêutica “heideggeriana” pressupõe o conhecimento
do mundo circundante como inseparável do ser que o percebe e de suas experiências
vividas.
Esta noção de emergência da significação como uma ação encontra-se já germinada
nos fragmentos de Heráclito onde a palavra grega φυσιζ [phusis ou physis] designa o
processo perpétuo de emergência pelo qual as coisas — a natureza — vêm à “ser”
para o ser que percebe (Heidegger, 1958, 326). Este processo de emergência, nos es-
creve Jean-Michel Salanskis, desenvolve um “sentido” cada vez que por ele ou nele
há a produção da aparição-estabilização de uma morfologia (Salanskis, 2003, 93).
Esta morfologia que, na finalização desta emergência, se impõe à este mesmo ser que
percebe. Esta definição de “sentido” nos propõe a interpretação do comportamento
cognitivo como a constituição ou a síntese do significado. O termo “sentido” é aqui
utilizado como a emergência produzida e organizada de uma morfologia e é assim
desviado e ampliado de seu uso exclusivamente lingüístico.
Outro argumento originário do pensamento heideggeriano e utilizado como crítica
ao representacionalismo nas ciências cognitivas — e principalmente na sua aplicação
nas pesquisas de IA — é a leitura que Heidegger faz da situação
ou do homem situado no mundo (Heidegger, 1997; Dreyfus, 1979). A hermenêutica
heideggeriana nos evidencia assim que as construções do sentido, da significação, da
funcionalidade e mesmo da decisões que possibilitam as constituições percebidas
como ontológicas dos objetos do mundo — e do próprio ser-no-mundo e da sua
pre-sença (Dasein) — são intrínsecas ao contexto, à rede social, a cultura, em outras
palavras, à situação onde estes objetos e os sujeitos que os percebem evoluem e inte-
ragem. Este pensamento, de uma certa forma, foi igualmente postulado por Mer-
leau-Ponty no conceito de “arco intencional” (Merleau-Ponty, 1945, 158).
Intersubjectividade, neurologia e fisiologia da ação
A intersubjectividade é o conceito da fenomenologia que tenta designar o que hoje
costuma-se chamar de cognição social. Em outras palavras, como nós percebemos e
compreendemos o que os outros sujeitos percebem e compreendem.
22
Os neurônios espelhos fazem parte dos dados recentes em neurologia (Rizzolatti e
al., 1995; Rizzolatti e Sinigaglia, 2008) que podem ajudar na compreensão da in-
tersubjectividade por meio de fatores biológicos, numa espécie de “naturalização”
da fenomenologia. Estes neurônios se encontram principalmente no córtex pré-
motor dos grandes primatas — macacos e homens — e se ativam tanto quando um
animal realiza uma determinada ação que quando este observa outro animal (nor-
malmente da mesma espécie) realizar a mesma determinada ação. Assim, os neurô-
nios espelhos podem nos ajudar à explicar como nós percebemos e compreendemos
as interações dos sujeitos que nos circundam com o mundo que nos envolve à todos.
Se a percepção é interdependente da ação e está situada, a intersubjectividade é sem
dúvida um fator primordial na construção cognitiva do mundo que nos envolve.
As recentes pesquisas em fisiologia da ação (Berthoz e Petit, 2006; Berthoz, 2008)
são esclarecedoras neste assunto e revelam o quanto uma abordagem fenomenoló-
gica da percepção pode se mostrar pertinente com os dados produzidos nas recentes
pesquisas em fisiologia. Alain Berthoz, em ressonância com a fenomenologia, pos-
tula que o pensamento não vem antes da ação nem vice-versa: a ação contém todo
o pensamento.

Algumas implicações da utilização


do conceito de representação mental
Varela chama a nossa atenção para a seguinte evidência: “somente um mundo pré-
determinado pode ser representado mentalmente” (Varela, 1989, 92). A simples hi-
pótese da existência de representações mentais pressupõe uma concepção dualista
do mundo. Isto implica em aceitar a hipótese que o mundo à ser representado não
depende nem do ser que o percebe, nem do contexto onde ocorre o ato perceptivo.
O mundo é assim dotado de estabilidade ontológica separada em duas substâncias
estáticas e independentes: o sujeito e o objeto. Temos como conseqüência um rea-
lismo que permite uma especulação sobre a universalidade dos objetos do mundo
(i.e. um objeto guarda sua ipseidade onde quer que ele se encontre no mundo) e “au-
toriza” uma procura pelos universais em música.
Em seguida, a relação entre uma representação R e a entidade representada E de-
pende de elementos exteriores à R e E. Além disso, uma representação exata, no sen-
tido que todas as propriedades de uma entidade E estejam presentes em uma
representação R (i.e. R = E) contradiz o próprio conceito de representação. Assim,
o que faz com que, dentro de um paradigma representacionalista, minhas represen-
tações correspondam ou representem de maneira adequada as realidades externas?
Formulando de uma outra maneira, quais são os elementos ou regras exteriores às
realidades percebidas e suas respectivas representações mentais que servem de ancora
à adequação dos símbolos sobre os quais minhas representações mentais se portam?
Se no paradigma representacionalista o mundo está separado em duas substâncias 23
ontologicamente independentes, como ocorre esta ponte entre estas duas substâncias
e, principalmente, o que me assegura a adequação entre R e E ? Ou ainda, como fugir
deste solipsismo e chegar à um consenso sobre os objetos do mundo se não for de
maneira pública?
As representações como funções operatórias:
o exemplo da composição musical
Eu não excluo a hipótese que possam haver atividades de uma forma representacio-
nal — e portanto simbólica — nas experiências cognitivas cotidianas. Por exemplo,
compor uma obra musical escrevendo sobre uma pauta, dedilhando sobre um violão
ou programando em um computador. Dentro de um paradigma representacionalista,
tais atividades representacionais reenviam rapidamente ao que Jacques Bouveresse
chama (baseado nas análises de Wittgenstein sobre a “linguagem privada”) de “o
mito da interioridade” (Bouveresse, 1976). De uma maneira resumida, é este “mito”
que faz com que nós acreditemos que as “idéias musicais” nascem prontas e de ma-
neira isolada na cabeça do compositor — como representações mentais — e que, em
seguida, ele às exterioriza, seja sobre uma pauta, um instrumento ou um computador.
Ora, as idéias musicais nascem justamente da interação do compositor com tais uten-
sílios. Mesmo Beethoven não tinha suas idéias musicais prontas em sua cabeça. Seus
sketchbooks nos mostram como a interação do compositor com seus cadernos é que
estruturaram seu pensamento e, por conseguinte, suas composições. A utilização de
um instrumento musical durante a composição deixa ainda mais evidente esta inte-
ração. Quanto ao computador, esta questão torna-se explicita nos argumentos de
Winograd e Flores que nos evidenciam que os conceitos emergem antes da interação
que na máquina ou na cabeça do utilizador (Winograd e Flores, 1986).
Eu entendo assim estas possíveis representações que nós podemos efetuar em relação
ao mundo como sendo de uma ordem operatória. Elas participam à uma “troca” in-
terativa que o sujeito — o ser vivo em geral — opera com seu habitat. Estas atividades
se encontram imersas em uma rede de processos operatórios que Maturana e Varela
(1980) chamam de “acoplamento estrutural” (structural coupling). Sem esta interação,
sem este estatuto operatório, os símbolos não adquirem sentido e não podem cons-
truir nenhuma informação. Tanto no ato composicional como na audição de uma
peça musical, somente elementos participando a um “acoplamento estrutural”
podem se tornar elementos musicais morfofóricos (i.e. portadores de forma musical).
A memória sem representações
Após tais considerações, algumas questões sobre a memória se impõem: como po-
demos estocar dados e informações em memória sem a utilização de símbolos e de
representações mentais? Ou ainda, como, em tal contexto, podemos hierarquizar
24
perceptivamente eventos como os graus tonais e suas funções quando escutamos
uma música tonal?
Israel Rosenfield desenvolve uma visão crítica sobre a memória entendida como es-
tocagem permanente de imagens em nosso cérebro (Rosenfield, 1994). Em uma re-
leitura dos dados fundadores da neurologia no século XIX — obtidos com pacientes
com lesões cerebrais (e.g. Charcot, Broca, Dejerine) — e os confrontando com novas
abordagens da percepção e da memória propostas por Gerald Edelman, Rosenfield
nos mostra como a idéia de comparar o funcionamento do nosso cérebro com o
computador se revela inadequada. O cérebro, escreve Rosenfield, “parece capaz (. . .)
de criar suas próprias generalizações do mundo sem programas específicos integrados,
nem informações pré-gravadas.” Ao contrario do que propõe a abordagem computo-
representacionalista, nosso córtex não funciona como um disco rígido que estoca
símbolos e representações.

As mudanças de “paradigmas musicais”


e o conceito de altura musical
Wittgenstein desenvolve em seus textos as noções de aspectos e de ver . . . como (Witt-
genstein, 2008). O exemplo típico é o da figura ambígua do pato-coelho. Nós pode-
mos olhar o mesmo estímulo (a figura pato-coelho) e vê-lo como um pato ou vê-lo
como um coelho. Existe assim aspectos de um objeto percebido que são determinados
pelo pensamento e por associações.
Epistemologicamente, estas noções também podem ser aplicadas às transformações
de “coletivos de pensamento” (Denkkollectiv), conceito introduzido por Ludwik
Fleck e depois retomado, transformado e, segundo Bruno Latour, reduzido1 por
Thomas Kuhn na forma de “paradigmas científicos” (Fleck, 1992; Kuhn, 1983; La-
tour, 2005). Como no experimento em que Aristóteles viu “somente” uma pedra
(sustentada por um fio), Galileu viu um pêndulo. Ambos “viram” o “mesmo objeto
pêndulo”, mas deram interpretações e tiraram conclusões completamente diferentes.
Em outras palavras, eles dotaram o “mesmo objeto” de dois aspectos diferentes, ou
seja, de sentidos e significações completamente diferentes.
Estas noções wittgensteinianas podem ser aplicadas à percepção musical na sua ver-
são escutar . . . como. Assim, parte da minha análise é baseada nas principais trans-
formações ou mudanças de “paradigmas musicais” ocorridas durante o século XX
(Villa, 2008). Especialmente com o aparecimento de novas estruturas sonoras, novos
conceitos do “sonoro-musical” e, principalmente, novos elementos musicais mor-
fofóricos. Os exemplos são múltiplos: o princípio de abandono da funcionalidade
em música (que se manifesta desde o atonalismo de Schöenberg) e que mais tarde
desenvolve o que Daniel Charles chama de “mudança de função da função” (Charles,
1979). O desenvolvimento da potencialidade do “timbre” como elemento portador
de forma musical. O exemplo da pluralidade de sons que nos princípios de la musi- 25
que concrète eram percebidos simplesmente como barulho e que hoje são usados co-
tidianamente como sons musicais em composições contemporâneas e eletroacústicas
(i.e. o objeto sonoro de Pierre Schaeffer assume assim o lugar da nota como elemento
morfofórico musical). Ou ainda, a síntese sonora proposta pela elektronische Musik:
o compositor passa à compor não apenas com sons mas os sons em si mesmos. Sem
contar a dissolução da noção de forma musical e as transformações geradas pelo ad-
vento da informática musical.

A altura musical como fenômeno emergente


Como nos sinala o compositor Horacio Vaggione, não é a macro-forma de uma obra
musical que é o “lugar” ou a “sede” da emergência (Vaggione, 2008). Uma peça mu-
sical constitui uma situação multi-local onde a emergência é, em potência, onipre-
sente. Ou seja, ela se encontra em todos os níveis do sonoro musical. A emergência
se constrói assim como um conjunto de vetorizações multi-direcionais, dentro de
um espaço constituído — o que se tornou ainda mais evidente após o desenvolvi-
mento da informática musical (e.g. estratégias de information-hiding) — como uma
rede de múltiplas escalas de duração. Ela se produz seja numa melodia ou num mo-
tivo musical assim como na nota, no ritmo, no timbre, nas diferentes ornamentações,
na espacialização sonora, na nuvem granular, no grão que da origem à nuvem, no
envelope espectral do grão, enfim: o som percebido como musical é um fenômeno
construído como emergente à partir de redes multi-estratificadas.

A altura musical como construção cognitiva


Ao contrário do axioma predominante no pensamento computo-representaciona-
lista da percepção musical, eu não entendo a altura musical como um objeto estável,
presente no mundo de forma objetiva e universal. A noção ou conceito de altura do
som como nós ocidentais a entendemos é uma construção cognitiva diretamente re-
lacionada à um processo histórico-cultural determinado.
A musicóloga Marie-Elisabeth Duchez nos mostra como a determinação de um ele-
mento portador de forma — a altura do som — vem a ter dois aspectos diferentes de
expressão entre duas civilizações musicais diferentes como na música grega antiga
instrumental e na música litúrgica do início da Idade Média. Enquanto na música
grega antiga a alteração da “altura do som” foi obtida pela mudança da tensão — o
Tonus — e o comprimento das cordas da lira (referências quantificáveis), “no canto
gregoriano dos dez primeiros séculos, a percepção auditiva e a emissão vocal de variações
de grave-agudo se faziam sem referência físicas, segundo as sensações sinestésicas e suas
conexões quinestésicas.” (Duchez, 1988, 287). Assim, na Idade Média, a noção de “al-
tura do som” foi desenvolvida como uma noção abstrata (sem referências quantifi-
cáveis) para ajudar a aprendizagem do canto e orientar a sua execução de forma eficaz.
26 Na música grega antiga, a idéia de um elemento responsável pela forma musical (du-
namis) permitiu um acordo relativo — porém fixo — dos instrumentos e a possibi-
lidade de se poder tocar juntos (e.g. flautas que eram acompanhadas por liras).
Ambas situações histórico-culturais tornaram possíveis as transformações e o de-
senvolvimento destas duas diferentes realizações do elemento musical morfofórico.
Porém, a musicóloga nos adverte: “a noção de altura do som, não é um dado imediato
da percepção, mas uma construção racional tardia à partir de uma percepção privile-
giada, a do caráter musical preferencial grave-agudo sobre a qual ela se superpõe con-
ceptualmente” (Duchez, 1988, 288).
O conceito de altura musical é o desenvolvimento de uma construção cognitiva de
uma abstração que funciona como um procedimento ou um modo operatório para
combinar as ações que o músico pode exercer sobre o som (e.g. a tensão das cordas
vocais ou da corda do instrumento) à um dos múltiplos aspectos do fenômeno so-
noro percebido (o som e suas graduações grave-agudo baseadas numa freqüência
fundamental e sua série de Fourier). Aspecto este que foi privilegiado — de maneiras
diferentes — como morfofórico nestes dois exemplos de “coletivos de pensamento”:
o grego antigo e o medieval. Esta representação intermediária, escreve Duchez, “é
heterogênea à percepção e à imaginação auditivas (o conceito de altura não é um conceito
sonoro, mas geométrico).” (Duchez, 1988, 301).

Questões sobre os fatores físicos da altura musical


O som sobre o qual nos construímos nossa percepção da altura é constituído fisica-
mente por uma rede multi-estratificada e multi-escalar — temporal — de diferentes
parâmetros (e.g. os transitórios de ataque, os aspectos dinâmicos, o envelope espectral,
a duração do som, assim como uma possível freqüência fundamental e sua série de
Fourier). Porém, em uma abordagem baseada na nota musical, a altura se constitui
como um fenômeno emergente estável, à uma escala temporal macro e conserva sua
qualidade independente das transformações à uma escala micro. Em um contexto
de escuta ocidental, uma nota “do” tocada ao piano conserva esta qualidade de “do”
durante toda a sua ressonância, mesmo com todas as transformações que ocorrem
no interior deste fenômeno dinâmico (e.g. redistribuição de energia nos parciais,
transformações do envelope global, extinção progressiva da ressonância)2. Em certos
contextos de escuta “não ocidentais” (e.g. música tibetana para trompas
dung chen, certas músicas indígenas para flautas “à bloco”) são justamente estas trans-
formações múltiplas no interior do som (e.g. transformações espectrais) que são
constituídas e percebidas como elemento musical morfofórico.
A altura musical como fenômeno situado
Um exemplo notável sobre esta questão é ilustrado pela gravação efetuada pelo eth-
nomusicólogo Simha Arom de um músico Ngbaka da África central (Arom 1967,
Levy, 2005). Nicolas Masemokobo interpreta nesta gravação de 1967 uma ária de
27
caça em seu arco musical Mbéla (“berimbau de boca”). Como em um berimbau, o
músico ataca a corda com um baqueta fina e, com o intuito de modificar o som emi-
tido, ele diminui o comprimento da corda com uma faca que lhe serve de manchão.
Masemokobo transforma o espectro do som emitido abrindo e fechando a cavidade
de ressonância que é constituída pela sua boca — adicionada ao seu crânio — colo-
cada contra a corda. Como nos sinala Fabien Levy:
“Esta obra foi apresentada em diversas conferências de músicos profissionais, compo-
sitores, musicólogos, estudantes em faculdades européias e americanas. Uma vez co-
locada a questão : “quantas notas vocês escutam nesta melodia ?”, todos os auditores
responderam ter percebido, à primeira escuta, um motivo de duas notas [como as
duas variações principais “típicas” produzidas por um berimbau em um toque de
capoeira], às vezes ornamentadas de uma variação espectral do timbre. Uma escuta
da obra feita com mais atenção nos revela portanto um motivo não de duas mais de
cinco notas, eventualmente oitavadas, e dissimuladas no interior do complexo sonoro.
A melodia, composta por muitos sub-motivos com um certo parentesco, está efetiva-
mente construída sobre uma escala pentatônica anemitônica, como é de costume nos
diferentes repertórios musicais da África central.” (Levy, 2005, 7).
O sonograma (análise espectral feita por FFT) da ária africana em questão (Levy,
2005, 8) nos mostra que a evolução pentatônica dos parciais acentuados pela boca
do músico são mais “visíveis” — logo, “objetivamente falando”, são mais “sonoros”
— que os dois sons “fundamentais” que nós ocidentais privilegiamos na escuta. Já o
“coletivo de pensamento” do qual Masemokobo e sua tribo participam privilegia a
escuta desta escala pentatônica típica desta região da África.
Eu entendo assim que a percepção do que nós ocidentais chamamos de altura mu-
sical reflete um fenômeno que pode — ou não — emergir da interação entre o ser, si-
tuado, que escuta de forma intencional um fenômeno sonoro e esta rede
multi-estratificada que compõem fisicamente o fenômeno em questão.

O conceito de “música” e a etnomusicologia


Vários estudos antropológicos, lingüísticos e etnomusicológicos (Feld, 1990; Grat-
ton, 1996; Canzio, 1989; Nattiez, 1989, Lortat-Jacob, 1994) enfatizam o fato que
a palavra genérica correspondendo ao nosso termo “música” não existe em diversas
culturas. Os exemplos são numerosos: o Awash é uma “forma de música” coletiva
do Alto Atlas marroquino, mas também determina a festa onde ela ocorre. Entre os
índios Bororos do Brasil, o termo roia (traduzido geralmente por canto) significa
algo mais próximo de uma atividade ou maneira de agir e ilustra a função do texto
em suas cerimônias. Os jogos vocais dos povos Inuits se assemelham mais à uma forma
de brincadeira infanto-juvenil. Existe ainda o ritual fúnebre Gisaro entre o povo Ka-
luli. Este ritual, como nos explica o antropólogo Steven Feld, integra certas “estru-
turas musicais” e “sons da natureza” de uma forma isenta de ideologia estética: o
28 conceito — que Feld nomeou de lift-up-over sounding — que rege toda a “expressão
musical” Kaluli solicita um continuum de superposições de qualidades sonoras cons-
tituído por uma busca coletiva de se evitar o uníssono. Isto porque, no entender
deste povo, escreve o antropólogo, na natureza “todos os sons são densos, multi-estra-
tificados, sobrepostos, alternados e interconectados” (Feld, 1990, 265).
Ora, estes e muitos outros exemplo mostram que não é apenas a palavra “música”
que não existe nestas culturas. É o próprio conceito de “música” como nós o gene-
ralizamos e o concebemos no ocidente que é inexistente entre tais povos. Isto,
mesmo se entre eles existem práticas culturais que nós, sob um prisma ocidental,
chamamos de “música”. Este constato sugere que o conceito de música pode ser com-
preendido como uma forma simbólica no sentido que Ernest Cassirer atribui ao
termo (Cassirer, 1972). Ou seja, a música participa de uma “lei de produção” que
gera as obras artísticas, e que estas obras só adquirem funções simbólicas ou funções
culturais (e.g. valores estéticos, valores sacros, valores lúdicos) quando dentro de uma
determinada cultura. Não é apenas o conceito de música ou a maneira de compô-la
ou toca-la que não é universal. A percepção musical também é construída como
sendo em grande parte determinada pela função social que a “música” adquire en-
quanto forma simbólica. Em outros termos, a prática de uma expressão sonora em
todos os seus aspectos e a importância que esta exerce em uma determinada cultura
não pode, por definição, ser universal. Como, dentro desta óptica, nós podemos
pensar em “música” como sendo um objeto “real” pré-estabelecido, universal e do
qual nos extraímos informações para podermos representa-lo mentalmente?

Conclusão
A percepção musical, nos contextos acima descritos, não constrói necessariamente
os mesmos mundos percebidos segundo os mesmos “dados físicos”. As interações
do sujeito com as formas ou funções simbólicas propostas pela sua cultura, dentro
de um Denkkollectiv, é o que determina, ou melhor, possibilita as maneiras deste su-
jeito construir seu mundo musical e assim perceber o sonoro que o envolve como
sendo — ou não — “musical”. Nós nem atribuímos a mesma importância e nem pro-
jetamos da mesma forma nossa intenção de escuta sobre o sonoro. Em outras palavras,
nós não compomos, não tocamos e não escutamos baseados nos “mesmos aspectos
do sonoro” pois estes aspectos — em um sentido wittgensteiniano do termo — não
são pré-determinados. Eles são justamente o que nos falta à construir em nossa in-
teração com o “real”. Este “real” que, em termos musicais, se apresenta como uma
rede multi-estratificada, um noema enquanto múltiplo das determinações. Estes as-
pectos não são portanto passíveis de nenhuma representação mental. Eles emergem
da interação entre o sujeito que percebe — e da soma de suas experiências vividas —
e os fenômenos sonoros do mundo que o envolve. Aceitarmos a hipótese que o
mundo é pré-definido significa retiramos-nos todas as possibilidades de “fazermos
emergir” o mundo percebido. 29
Porém, nada impede que dentro de certos contextos e de certas redes sócio-culturais
nós possamos produzir percepções concordantes, estruturadas e baseadas, por exem-
plo, em nossas intersubjectividades e em nossos “coletivos de pensamento”. Neste
sentido, perceber as estruturas que compõem uma obra musical é visto não como a
realização de uma análise que extrai descontinuidades de uma unidade funcional
global. Unidade esta que seria uma representação mental reificada em uma realidade
física pré-determinada numa espécie de realismo semântico. Perceber o sonoro como
musical refere-se mais a uma atividade que faz emergir um continuum articulado à
partir dos elementos discretos de redes sonoras multi-estratificadas. Redes estas que
foram por exemplo propostas por um compositor ou um músico executante e que
formam o que nós — por vezes — concordamos em chamar de música.

1 Latour nos interpela sobre o fato de que assimilar o Denkkollectiv de Fleck aos paradigmas
de Kuhn é um erro. Segundo ele, Kuhn retira todo o interesse do conceito de Fleck e retêm
para seu paradigma somente “aquilo que não pode ser pensado de outra forma.” Latour nos es-
creve: “
Kuhn (. . .) re-racionalizou e profundamente dessocializou o que Fleck tinha inventado. Passar
do estilo coletivo ao paradigma é esvaziar o surgimento do pensamento de todas as suas in-
terações, é fazer dele um banal épistèmè à la manière de Foucault. Com Kuhn, nos voltamos à
Kant e a Durkheim. Com Fleck, nós íamos totalmente em um outro rumo.” (Latour, 2005).
2 Roger Shepard e Jean-Claude Risset nos mostraram que com diferentes manipulações entre
as freqüências fundamentais de um som e seu envelope espectral, nós podemos criar ilusões
sonoras (sons que sobem ou descem infinitamente) que demonstram que a altura como nós
ocidentais a percebemos esta baseada em ao menos dois aspectos do sonoro bem diferentes:
a altura tonal e a altura espectral (Shepard, 1964; cf. as obras Fall e Mutations de Risset).

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A relação entre intérpretes e ouvintes
na percepção das emoções em música
Christian Alessandro Lisboa
32 Christian.lisboa@gmail.com
Núcleo de Música, Universidade Federal de Sergipe

Resumo
Este artigo discute elementos presentes nos estudos sobre emoções em música como,
por exemplo, a questão das emoções básicas e resume alguns dos resultados obtidos
através de uma experiência realizada para a tese de doutorado intitulada “A intenção do
intérprete e a percepção do ouvinte: um estudo das emoções em música a partir da obra
Piano Piece de Jamary Oliveira”, cujo objetivo era investigar a transmissão de emoções
em música. O experimento contou com a participação de três pianistas e 105 ouvintes,
que utilizaram um software especialmente desenvolvido para este experimento, a fim de
registrar em tempo real as emoções dos ouvintes ao ouvirem a peça Piano Piece (1984)
de Jamary Oliveira. Os resultados trazem informações sobre a influência do intérprete na
transmissão de emoções e dados sobre a percepção dos ouvintes.

Introdução
Desde o fim do séc. XIX estudos como os de Gilman (1892, 1892a) e Downey
(1897) procuram entender como e quais emoções os ouvintes percebem nas obras
musicais. Apesar da importância destes trabalhos por seu pioneirismo, o modelo
descritivo de Gilman e Downey focava no individuo, fornecendo uma grande ri-
queza de informações sobre quais emoções eram percebidas e como o ouvinte “pensa”
a música, porém, não possibilitava registros quantitativos como, por exemplo, o grau
de coincidência na percepção das emoções entre diversos ouvintes, ou a relação entre
as emoções que um intérprete pretende transmitir e a percepção destas pelos
ouvintes.
Os avanços tecnológicos do séc. XX permitiram o aparecimento de estudos que
fazem uso de equipamentos eletrônicos para quantificar elementos presentes nas
pesquisas sobre emoções em música. Um exemplo pode ser encontrado no trabalho
de Nielsen (1983) que registrou a tensão percebida pelos ouvintes ao longo de uma
música através de uma espécie de pinça com uma resistência de mola no centro ligada
a um potenciômetro. Durante o experimento os ouvintes deveriam pressionar mais
ou menos a pinça, de acordo com a tensão que percebiam. Este tipo de experimento
possibilitou traçar relações entre diferentes ouvintes e entre a estrutura da peça e a
tensão percebida. Mais recentemente, com o desenvolvimento da informática, au-
tores como Namba et Al (1991), Salgado (2006) e Lisboa (2008) passaram a utilizar
softwares de computador para medir e compreender a relação entre as emoções pre-
tendidas pelo intérprete e as emoções percebidas pelos ouvintes.
São muitos os conceitos e referenciais teóricos envolvidos no estudo aqui relatado
(Cf. Lisboa, 2008), porém para que se tenha um entendimento básico sobre os re-
sultados obtidos e de como se desenvolveu o experimento, basta que se tenha o co-
nhecimento do que são as emoções básicas.
Segundo as pesquisas no campo da psicologia, o ser humano possui emoções inatas 33
e emoções aprendidas. As emoções inatas são chamadas de emoções básicas, primá-
rias ou fundamentais, e as emoções aprendidas, também chamadas de secundárias e
terciárias, são aquelas que derivam de uma ou mais emoções básicas. Plutchik (1980)
em sua teoria sobre emoções básicas cria uma metáfora entre cores e emoções que
nos ajuda a entender a diferença entre emoções básicas, secundárias e terciárias, na
qual podemos considerar as emoções secundárias e terciárias como um refinamento
das emoções básicas, ou seja, se imaginarmos as emoções como cores, as emoções
básicas seriam o vermelho, amarelo e azul, e as emoções secundárias e terciárias se-
riam o verde, vermelho claro, vermelho escuro, vinho, alaranjado, etc.
Não existe um consenso entre os autores de quais emoções são básicas. Isto ocorre
devido às diferenças metodológicas e conceituais que envolvem questões semânticas
e relativas à origem das emoções básicas (biológica ou psicológica). As questões se-
mânticas estão ligadas tanto ao problema de tradução entre diversas línguas, como
também à própria definição de emoções através de palavras. Por exemplo, as palavras
alegria e felicidade podem estar se referindo à mesma coisa, apenas com palavras di-
ferentes, pois alguns dicionários se referem a elas como sinônimos, porém, se anali-
sarmos as mesmas palavras de um ponto de vista mais filosófico, a felicidade poderia
ser encarada como algo mais amplo (por exemplo, a felicidade no trabalho, no ca-
samento, na vida, etc.) e a alegria seria algo mais imediato, como quando se revê um
amigo, ganha-se um presente, ou recebe-se uma boa notícia. Esta interpretação, por
exemplo, desqualificaria completamente a felicidade como uma emoção, pois as
emoções são por definição reações breves e intensas, o que tornaria a felicidade um
afeto1, e a alegria uma emoção. A origem das emoções também divide os autores,
enquanto alguns acreditam que as emoções básicas têm origem biológica e estiveram
presentes ao longo da história do homem por uma necessidade de sobrevivência,
como, por exemplo, o “medo” necessário para identificar e fugir dos perigos, outros
dão a elas um caráter mais psicológico, sugerindo que as emoções básicas são aquelas
que podem ser reconhecidas em qualquer cultura, independente de sua utilidade
para a sobrevivência.
Parece-nos imprescindível que qualquer estudo que pretenda analisar a transmissão
de emoções deva trabalhar com um conjunto de emoções predefinidas, pois caso
contrário a experiência pessoal de cada ouvinte tanto emocional quanto gramatical
irá gerar um conjunto de adjetivos muito grande, o que dificulta, ou até mesmo im-
possibilita o estudo da inter-relação entre ouvintes, ou a relação entre ouvintes e in-
térpretes. Devido à necessidade de escolher um conjunto de emoções, nos parece
lógico a opção por um conjunto de emoções básicas, ao invés de um conjunto alea-
tório. Diante disto, optamos para o nosso experimento, pelas emoções básicas pro-
postas por Paul Ekman: alegria, tristeza, raiva, medo, surpresa e nojo .
Paul Ekman, em suas pesquisas, utilizou figuras de rostos com diversas expressões,
34 estas figuras foram mostradas em diferentes culturas e foi pedido às pessoas que
identificassem a emoção que aquele rosto estava sentindo. As emoções elencadas por
Ekman são as que foram reconhecidas igualmente em todas as culturas pesquisadas
(Cf. Ekman, 1973, 1992, 1992a, 1993, 1999, 1999a, 1999b).
Acreditamos ser impossível generalizar qualquer experimento com emoções para
todos os seres humanos, diante das diferenças culturais, de percepção, de memória
emocional, etc. Mas, para podermos ampliar as possibilidades de uma “pequena” ge-
neralização, acabamos optando por utilizar o conjunto de emoções básicas proposto
por Paul Ekman. A escolha deste conjunto levou em conta três elementos: o primeiro
é o fato da metodologia empregada por Paul Ekman, que, como mencionado, pro-
cura definir as emoções baseado no reconhecimento destas por diversas culturas, o
que a nosso ver contribui para a generalização. O segundo elemento foi a realização
de uma pré-experimentação na qual as emoções mais citadas para a música proposta
se encaixavam em sua maioria nas emoções propostas por Ekman. O terceiro motivo
foi a grande relação entre as emoções citadas pelos pianistas envolvidos neste traba-
lho e as emoções propostas por Ekman.
Além da escolha de um conjunto de emoções, necessitávamos também escolher uma
obra musical para compor o nosso experimento, e para isto levamos em conta alguns
elementos:
As escolhas interpretativas em peças do repertório erudito normalmente têm grande
influência de clichês interpretativos2 relativos ao período histórico-musical em que
a peça foi composta, e da memória auditiva que o intérprete e o ouvinte possuem
daquela peça. Da mesma maneira, as emoções pretendidas pelo intérprete, e as emo-
ções percebidas pelo ouvinte, estão muito ligadas à memória, ou seja, um ouvinte
muitas vezes associa uma música ou um estilo musical a um fato ou um momento
da sua vida, além de que o cinema e a televisão contribuem para isso associando mú-
sica a imagens que se traduzem em emoções. Diante disto, procuramos uma peça
pouco conhecida tanto dos pianistas como dos ouvintes em geral, para que não exis-
tissem associações prévias desta peça com emoções na memória dos sujeitos deste
estudo. Definimos também que deveria ser uma peça do séc. XX, período este que
não possui ainda um clichê interpretativo3. Desta forma, a peça exige que o execu-
tante monte toda a sua interpretação apenas na partitura e nas impressões sonoras,
assim como o ouvinte, que terá menor referência emotiva em relação à peça.
Outro ponto importante na escolha da música foi a duração. Procuramos uma peça
que não fosse muito curta, e que tivesse trechos musicais que apresentassem elemen-
tos (velocidade, altura, intensidade, etc.) diferentes, para que pudéssemos ter mais
de uma emoção presente ao longo da música. Como iríamos trabalhar com uma
peça do séc. XX, optou-se também por escolher uma que usasse a escrita musical
convencional (sem bulas), a fim de facilitar o estudo dos intérpretes. Diante disto,
optamos pela Piano Piece (1984) de Jamary Oliveira (cf. Behágue, 2008), por ser
uma peça de um compositor baiano mundialmente conhecido, e de reconhecida 35
qualidade técnica e musical, além de conter todos os pré-requisitos que desejáva-
mos.
O Experimento
No experimento aqui relatado, foi desenvolvido um software para computador que
chamamos de PAE (Programa de Avaliação das Emoções), para registrar em tempo
real a emoção percebida por 105 ouvintes na peça Piano Piece (1984) de Jamary Oli-
veira. As telas do software, que foram apresentadas aos ouvintes de maneira seqüen-
cial, podem ser observadas na figura 1.

Figura 1 – Telas em seqüência do software PAE.


No experimento foi pedido a três pianistas que estudassem e gravassem a peça. Os
pianistas então ouviram sua própria gravação e com o auxílio do software, marcaram
as emoções básicas de Paul Ekman que julgavam estar transmitindo aos ouvintes du-
rante sua performance. Ao utilizar o software, os pianistas eram direcionados dire-
tamente para a última tela, na qual existem seis botões com os nomes das emoções
básicas, conforme a figura 1. A marcação de um dos pianistas pode ser observada no
gráfico da figura 2.
36

Figura 2 – Gráfico das emoções pretendidas – Pianista 2.


No gráfico da Figura 2, temos no eixo x o tempo da gravação em segundos, e no eixo
y a emoção que o pianista julgava estar transmitindo.
O mesmo software foi aplicado aos ouvintes, porém com algumas etapas a mais. No
procedimento dos ouvintes, o programa exibia primeiro um pequeno questionário,
no qual os ouvintes deviam prestar as seguintes informações: nome, idade, sexo, es-
tilos musicais que costuma ouvir, se já estudou música e caso afirmativo durante
quanto tempo, e a formação escolar. Estas informações foram utilizadas para traçar
um perfil dos sujeitos pesquisados. Após o questionário os ouvintes passaram por
uma tela de informações e em seguida deviam ouvir a gravação da peça Piano Piece
de um dos pianistas e escrever, no espaço apropriado do software, durante a audição,
todas as emoções que percebiam nesta música. A única limitação era a necessidade
de que cada emoção fosse descrita em apenas uma palavra, podendo os ouvintes listar
quantas emoções desejassem. Após esta audição, e o surgimento de uma nova tela
de informações, os ouvintes visualizavam uma tela com seis botões, cada um com o
nome de uma emoção básica das propostas por Ekman. O programa então executava
a gravação novamente, devendo desta vez o ouvinte com o auxilio do mouse do com-
putador pressionar o botão4 da emoção básica que julgavam corresponder ao trecho
que estavam ouvindo, mantendo o botão da emoção pressionado até que esta emoção
não existisse mais, ou que tivesse mudado para outra. Quando julgassem que não
existia nenhuma emoção, ou que a emoção que percebiam não se encaixava em ne-
nhuma das básicas, não deviam pressionar nenhum dos botões. Para cada ouvinte,
as seis emoções propostas mudavam de botões aleatoriamente para evitar a prefe-
rência por uma determinada posição do botão. O procedimento com os ouvintes
foi repetido até que se obteve 35 ouvintes para cada interpretação, totalizando 105
ouvintes nas três interpretações. Vale ressaltar que cada ouvinte teve contato apenas
com uma das interpretações.
Além do registro do software, elaboramos também uma tabela de comparação das
execuções dos três pianistas, na qual registramos as diferenças de interpretação (ar-
ticulação, fraseado, dinâmica, pedal, etc.) entre os pianistas, para verificarmos como
estas diferenças influenciaram na percepção dos ouvintes. Os três pianistas apresen-
taram interpretações muito diferentes desta peça, e esta diferença fica clara na dura- 37
ção das gravações. Enquanto o Pianista 1 levou 10 minutos e 29 segundos (629
segundos) para executar a peça, o Pianista 2 levou 9 minutos e 1 segundo (541 se-
gundos) e o pianista 3 levou 7 minutos e 47 segundos (467 segundos). Apesar de
termos utilizado a duração das gravações como exemplo, por ser este o elemento que
nos permite uma fácil visualização das diferenças sem o auxílio da tabela de compa-
rações, cabe ressaltar que em todos os outros elementos (articulação, fraseado, di-
nâmica, pedal, etc.) houveram muitas diferenças entre as três interpretações. Uma
amostra do início da tabela de comparações pode ser observada na Figura 3.

Figura 3 – Tabela de comparação de execuções


Um fato interessante que ocorreu durante a marcação das emoções básicas, é que al-
guns ouvintes relataram a necessidade de pressionar mais de um botão ao mesmo
tempo para descrever a emoção que estavam percebendo. Como não existia esta pos-
sibilidade em nosso software, orientávamos a pressionarem o botão da emoção que
julgassem ser mais forte. Apesar de alguns ouvintes não nos consultarem sobre isto,
foi possível observar que estes ouvintes em determinados trechos alternavam o clique
entre dois ou três botões “enlouquecidamente”. A nosso ver, este fato reforça a idéia
de que em certos trechos os ouvintes estavam tentando representar emoções secun-
dárias a partir da união de emoções básicas, o que está de acordo com a teoria de
Plutchik, de que as emoções secundárias seriam uma união de emoções básicas.
Os dados do experimento foram compilados e submetidos a procedimentos estatís-
ticos. Além disto, elaboramos outro software para analisar o grau de coincidência
na marcação dos ouvintes. Este software analisou a marcação das emoções dos ou-
vintes segundo a segundo, e fez uma comparação semelhante à utilizada em testes
de DNA, para verificar o grau de semelhança na marcação dos ouvintes. A partir
dos resultados foram elaboradas redes como a da Figura 4, na qual cada ponto re-
presenta um ouvinte. Quando um ponto está unido a outro, significa que estes dois
ouvintes marcaram as mesmas emoções, exatamente nos mesmos segundos da obra,
em mais de 50% de todas as marcações ao longo da peça.

38

Figura 4 – Rede de ouvintes do Pianista 1.


A primeira conclusão que obtivemos ao observar os gráficos das emoções marcadas
pelos ouvintes, é que sempre temos uma ou duas emoções em destaque. Quando
temos apenas uma emoção em destaque é porque o trecho musical estava desper-
tando nos ouvintes uma das emoções básicas propostas, porém quando tínhamos
duas emoções em destaque, provavelmente o trecho despertava uma emoção secun-
dária, que acabou sendo representada por duas emoções básicas. A partir disto, ao
somarmos o percentual de ouvintes que marcaram as duas emoções mais destacadas,
verificamos que durante toda a peça, a concordância na escolha das emoções entre
os ouvintes é de aproximadamente 70%. Esta porcentagem de concordância está em
linha com outros estudos, o que sugere que existe um padrão de reconhecimento de
emoções por parte dos ouvintes não apenas nesta peça, mas na música de forma geral.
Verificamos também que a estrutura da composição é determinante na percepção
das emoções que uma peça pode transmitir. Esta influência pode ser verificada, por
exemplo, nos gráficos de Tristeza representados na Figura 5. Nestes gráficos5, temos
no eixo x o tempo da gravação, e no eixo y a porcentagem de ouvintes que pressionou
o botão Tristeza em cada segundo.
39

Figura 5 – Gráficos da marcação de Tristeza feita pelos ouvintes


para a interpretação de cada pianista.
Não foi possível quantificar a contribuição do compositor e do intérprete para a per-
cepção das emoções de uma peça, porém, a partir da Figura 5, fica claro que a in-
fluência do intérprete é bem pequena em relação à do compositor. Vale lembrar que
as interpretações foram muito diferentes, e os ouvintes que marcaram as emoções
40 de cada gravação foram pessoas diferentes. Apesar disto, os gráficos para a gravação
dos três pianistas foram muito similares, o que indica que a composição é a maior
responsável pelas emoções que uma peça desperta no ouvinte. Porém, as diferenças
de percepção dos ouvintes em alguns trechos, aliadas às diferenças interpretativas
notadas, sugerem que mesmo que em menor intensidade, o intérprete influencia na
percepção do ouvinte. A influência do intérprete se deu tanto enfatizando e disfar-
çando as emoções da estrutura, quanto adicionando novas emoções. Os executantes
que planejaram as emoções que desejavam transmitir tiveram mais êxito do que
aquele que não planejou, o que sugere que mesmo os intérpretes não tendo cons-
ciência de quais elementos musicais devem ser manipulados para melhor transmitir
uma determinada emoção, o simples fato de planejarem as emoções favorece que
manipulem estes elementos de forma a transmitir as emoções com mais eficiência.
Ao descreverem livremente as emoções na primeira audição da peça (no próprio
programa de computador), os ouvintes utilizaram 178 adjetivos diferentes. Esta va-
riedade comprova a necessidade de se utilizar um conjunto predefinido de emoções
neste tipo de estudo. É interessante notar, que com exceção do Nojo, que não foi ci-
tado espontaneamente, e teve participação irrelevante na marcação dos ouvintes,
todas as outras cinco emoções básicas de Ekman estão entre as 10 emoções mais ci-
tadas espontaneamente. Esta posição em destaque na lista de 178 emoções sugere
que estas emoções realmente podem ter algo de básico.
Foi observado também, que a maioria dos ouvintes identifica a emoção de um trecho
musical num tempo de seis a oito segundos após o evento musical desencadeante.
Sendo que alguns ouvintes identificam com apenas quatro segundos de música.
Diante destes, e outros elementos presentes em nosso estudo, concluímos que o re-
conhecimento das emoções que uma peça pode despertar pode ser uma valiosa fer-
ramenta para o músico tomar decisões interpretativas. A nosso ver, o intérprete não
deve planejar as emoções de uma peça aleatoriamente, mas baseado nas emoções
que a própria composição desperta. Isto é importante, pois verificamos que a menos
que o intérprete desconfigure inteiramente a composição, ele nunca irá modificar
completamente a emoção inerente a composição. Desta forma o estudo e reconhe-
cimento das emoções de uma peça musical seguem os mesmos caminhos dos diversos
tipos de análise musical, no qual o executante procura entender as intenções do com-
positor a fim de ressaltar ou esconder determinados elementos da estrutura. Acre-
ditamos que com o aprofundamento dos estudos de emoções em música, poderemos
identificar os mecanismos e elementos responsáveis pela definição da emoção que
será percebida pelo ouvinte, para que compositores e intérpretes possam manipular
estes elementos conscientemente.
1 Segundo Oatley e Jenkins (apud Juslin & Zentner, special issue 2001/2, p. 6) a palavra afeto
é considerada um termo mais geral, que inclui diferentes fenômenos como preferência musical,
emoção e humor. Já a palavra emoção refere-se a reações mais breves e intensas, que levam a
mudanças relevantes no estado da pessoa. 41
2 Entendemos como clichês interpretativos alguns modelos que passam a ser reconhecidos
como característicos de um tipo de música ou período musical. Por exemplo, existe o clichê
de que a música do período barroco não deve ser executada com rubatos, enquanto a do pe-
ríodo romântico deve possuir muitos rubatos.
3 Mesmo na música do séc. XX alguns clichês se formam em torno de um compositor ou uma
obra, porém, diferente de outros períodos da história da música, a grande variedade de estilos
presentes no séc. XX não permite a definição de clichês que definam a música de todo este
período.
4 Os botões mudavam sua cor para verde enquanto permaneciam pressionados.
5 Os gráficos foram desenhados no mesmo tamanho, apesar de cada gravação ter uma duração
diferente. Se fôssemos desenhar os gráficos na mesma proporção, baseados no tempo do eixo
X, o gráfico do Pianista 3 ficaria mais curto que o do Pianista 2, que por sua vez ficaria mais
curto que o do Pianista 1. Isso foi feito propositadamente, pois desta forma ao compararmos
os gráficos visualmente (sem atentar para o tempo no eixo X), os traçados que se encontram
nas mesmas posições em cada gráfico correspondem aproximadamente ao mesmo trecho mu-
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Expressões de tempo e de espaço na música
Yahn Wagner F. M. Pinto
yahn.wagner@terra.com.br
Departamento de Música, Universidade Candido Mendes 43

Resumo
O campo das expressividades musicais tem sido alvo de inúmeras discussões nos estudos
da música e da estética. Sob a luz das ciências cognitivas, principalmente a partir das áreas
da filosofia, da psicologia e da semiótica, propomos uma revisão de conceitos pertinentes
a essa discussão. Assim, sugerimos dois tipos básicos de expressões musicais, a expressão
de tempo e a expressão de espaço, as quais constituem um primeiro nível representativo
dos objetos musicais, enquanto entidades passíveis de representar algo diferente do som
que os produz. É através da diferença entre estes dois tipos de expressão que entendemos
um objeto musical, sobretudo sua relação com o ouvinte. Desse modo poderemos clas-
sificar a experiência com o objeto musical de modo mais interiorizada ou mais exteriori-
zada e, assim, discutir as possibilidades representativas da música.

Introdução
No histórico da evolução humana, a habilidade de comunicação parece ter tido um
papel fundamental para a permanência do homem como espécie macroscópica do-
minante. No geral, toda espécie animal que tem a habilidade de viver em comuni-
dade depende de algum tipo de comunicação, seja ela baseada em química (como
os feromônios dos insetos sociais) ou em ondas sonoras (como fazem as baleias e os
homens). Comunicar é tornar algo comum, ou seja, fazer com que se tenha a sensação
de que disponibilizamos para outros indivíduos da comunidade nossas idéias, emo-
ções, conceitos, etc. Assim, estes indivíduos passam a ter uma experiência comum e,
com isso, se tem a sensação de que algo é transmitido.
É freqüente encontrarmos discussões acerca da música como um tipo de comunica-
ção. Muitos são os que defendem a idéia de que algo é comunicado com a música,
ou seja, algo que o compositor idealizou, sentiu e conceituou seria “transmitido” até
o ouvinte, de algum modo. Como se tivéssemos um código musical comunicante
claramente estabelecido.
Este artigo trata de algumas possibilidades expressivas da música. O centro de nossa
investigação é a possibilidade de algo ser musicalmente expressivo de uma mesma
coisa para várias pessoas. O conceito de expressão está intimamente ligado ao con-
ceito de representação, pois tudo o que é expresso não passa de representação, assim
como também é representação este algo que desejamos expressar.
Representação como permanência
Entendemos por representação, o resultado cognitivo da atuação de um organismo
no ambiente, ou do ambiente sobre o organismo. Nossa percepção do mundo só é
possível pelas representações que fazemos dele. Nossos sentidos nunca atuaram de
44
modo passivo no mundo, pois sempre estiveram ligados a um corpo que os conduzia
às experimentações desse mundo. Assim, qualquer percepção de um organismo sobre
o mundo sempre será ativa.
No histórico das ciências cognitivas temos inúmeros experimentos que comprovam
essa afirmação. Podemos citar como exemplo o clássico estudo realizado por Held e
Hein (1958) com filhotes de gatos expostos à luz em condições controladas. Os
gatos eram divididos em dois grupos, o primeiro podia circular livremente pelo am-
biente arrastando um carrinho que continha um filhote do segundo grupo. Estes fi-
cavam imóveis, mas compartilhavam das mesmas experiências visuais que os do
primeiro grupo. Depois de algumas semanas os gatos foram soltos e, enquanto os
filhotes do primeiro grupo se comportavam normalmente, os filhotes do segundo
grupo se comportavam como se fossem todos cegos. Tropeçavam nos objetos, caiam
pelas escadas, etc. Este estudo nos mostra a necessidade da ação para a formação da
percepção e, por conseqüência, da representação.
É bem provável que o primeiro esquema de representação tenha surgido como algo
que confere ao corpo a possibilidade de dar à percepção a sensação de continuidade,
pois embora nossa experiência com o mundo seja contínua, nossa consciência regis-
tra os eventos de maneira pontual e distinta em um plano espaço-temporal. Quando
realizamos uma ação, realizamo-la em um tempo determinado e, assim, nos expres-
samos sobre esta ação de forma pontual. Contudo, necessitamos da sensação de con-
tinuidade em nossa percepção, pois é essa continuidade que nos possibilita a sensação
de permanência em nossa consciência. Ou seja, se não pudéssemos perceber uma ex-
periência de forma contínua nós não poderíamos ter uma consciência permanente,
quer dizer, teríamos um corpo dotado de vários momentos distintos de consciência
e não conectados. Desse modo, essa representação do contínuo parece ser uma es-
pécie de “inferência lógica” que o corpo faz do mundo, através de duas ou mais ex-
periências pontuais.
A propriedade de permanência é fundamental para concebermos a idéia de tempo e
para a constituição da memória. Segundo Immanuel Kant “o permanente (. . .) é a
substância do fenômeno, quer dizer, o seu real, real que permanece sempre o mesmo
como substrato de toda mudança” (Kant 2005,196).
Dizemos também que quando há permanência há duração. Para Henri Bergson, o
tempo é dado pela consciência e a memória é a duração dessa consciência, já que a
memória é a progressão orgânica do passado para o presente e não um mero meca-
nismo de recordação que intui o presente segundo uma regressão ao passado.
Bergson faz distinção entre dois tipos de duração: duração espacializada e duração
pura (Bergson 1927, 82). Os fenômenos que envolvem grandezas extensivas, ou seja,
grandezas que podem ser medidas, necessitam de uma espacialização do tempo para
que haja a percepção de duração. Parafraseando seu exemplo, para saber da hora
quando escuto as badaladas de um relógio, preciso contar quantas são as badaladas. 45
É necessário representar as badaladas em um espaço para que possamos contá-las.
O ato de contar necessita então de uma percepção espacializada, pois, embora os ba-
dalos sejam percebidos em momentos temporais diferentes, o simples fato de per-
ceber intervalos vazios entre os batimentos nos diz que é no espaço que a operação
de contagem, no caso, se efetua, no contrário, seriam apenas pura duração e, dessa
forma, contínuas e indistintas.
De forma diferente, os fenômenos que envolvem grandezas intensivas, ou seja, não
mensuráveis, propiciam em nós a percepção de duração através de uma “penetrabi-
lidade” das partes. A esse tipo de duração, Bergson denomina de duração pura. Um
de seus principais exemplos sobre o conceito de duração pura é, curiosamente, o da
nossa percepção acerca da duração de uma música ou melodia. Assim, para que notas
musicais tornem-se melodias, devo percebê-las
uma na outra, penetrando-se e organizando-se entre si (. . .), de maneira a formar
o que chamaremos de uma multiplicidade indiferenciada ou qualitativa, sem
qualquer semelhança com o número: obterei assim a imagem da duração pura,
mas também me terei afastado por completo da idéia de um meio homogêneo
ou de uma quantidade mensurável (. . .). Logo, é preciso admitir que os sons se
compunham entre si e agiam, não pela sua quantidade enquanto quantidade, mas
pela qualidade que a sua quantidade apresentava, isto é, pela organização rítmica
do seu conjunto. (ibid., 75-76)
A idéia de duração pura está diretamente relacionada ao conceito de memória aqui
utilizado. É a memória que garantirá a penetrabilidade das partes que formam uma
música. Ela é que propiciará que a primeira nota da música ainda esteja presente, de
algum modo, na última nota dessa mesma peça.
Desse modo, podemos entender a concepção de tempo bergsoniano como movi-
mento intuído, em oposição ao paradigma tradicional que considera o tempo como
ordem mensurável do movimento. Assim, Bergson determina que a intuição do mo-
vimento, ou seja, sua percepção clara e imediata, é possível apenas porque há persis-
tência do passado sobre o presente. O tempo é, portanto, manifestação da memória,
pois o passado sempre carregará as potencialidades ou virtualidades que se atualiza-
rão e serão intuídas no presente.
Uma melodia só dura porque percebemos movimento nela. Não percebemos o en-
trar e sair de notas como se fossem desconectadas, mas sim um fluxo contínuo que
se desloca no tempo e no espaço virtualizado das alturas sonoras. É como um filme,
no qual não percebemos os quadros e sim o movimento das imagens.
Nossa experiência no mundo resulta em representações. De acordo com Bergson,
nossa interação com a matéria parece ter a propriedade de construir sistemas isoláveis.
Assim, em suas palavras:
Os contornos distintos que atribuímos a um objeto, e que lhe conferem sua in-
46 dividualidade, não são mais que o desenho de um certo tipo de influência que
poderíamos exercer em determinado ponto do espaço: é o plano de nossas ações
eventuais que é devolvido aos nossos olhos, como que por um espelho, quando
recebemos as superfícies e as arestas das coisas. (Bergson 2005, 12)
É essa característica que nos faz pontuar eventos em nosso contínuo de experiências
e, assim, é o que possibilita que eventos sejam percebidos como durações espaciali-
zadas.
Kant utiliza o conceito de representações a priori como aquelas que fundamentam
toda e qualquer representação. Para ele, essas representações a priori são de tempo e
de espaço. Segundo Kant, a intuição empírica se relaciona com os objetos, determi-
nando-os, por meio da sensação, e os fenômenos são as indeterminações do objeto
nessa intuição (Kant 2005, 65). Desse modo, o tempo é a representação do “eu mesmo”
como objeto. É o nosso sentido interno. Por sua vez o espaço é a representação gerada
pela intuição sensível de objetos que não pertençam ao “eu mesmo”. É o que possibi-
lita a configuração, a relação e a grandeza do objeto. Apresenta-se como nosso sentido
externo (ibid., 68-71).
Todos os nossos sentidos operam em conjunto com outros, para poderem nos dar
as percepções olfativas, palatinas, táteis, visuais e auditivas. Quando apreciamos o
sabor de uma comida estamos, também, categorizando como gosto algumas impres-
sões que são olfativas. A percepção visual também lida com informações provindas
de outras fontes sensoriais. Segundo Varela, Thompson e Rosch, cerca de 80% do
que as células do NGL (Núcleo Geniculado Lateral) recebem – região do tálamo
que atua na percepção visual juntamente com o córtex visual –, provém de outras
regiões do cérebro e apenas cerca de 20% provém da retina (Varela et al. 2003, 107).
Assim, grande parte do conteúdo de nossa percepção é uma construção baseada no
histórico de atuação de nosso corpo com o mundo.
As representações parecem, portanto, ser as realizações das imagens que nosso corpo
absorve do mundo. Essas imagens são interpretadas como objetos e para tal neces-
sitam do intercruzamento de informações de ordens diversas, gerando uma realidade
referente à ação de um corpo com todos os corpos ou com o mundo.
Como menciona Peirce, representar é “estar no lugar de, isto é, estar numa tal relação
com um outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como
se fosse esse outro” (Peirce 2003, 61). Desse modo, pode-se considerar que nosso
organismo possui representações do mundo, ou até mesmo podemos considerá-lo
essencialmente como um núcleo de representações do ambiente. Enquanto nosso
organismo vive e interage com a estrutura total do mundo, nosso pensamento está
condenado a entender o mundo pelas representações. O mundo só tem capacidade
de existir para nós na medida em que temos a possibilidade de representá-lo.

Expressão musical
47
Nossa ação no mundo, ou seja, nosso processo de produção de representações é uma
forma de expressão. A matéria se exprime, ou melhor, é exprimível como um sistema
com tendências a um fechamento, normalmente algum tipo de objeto (na acepção
mais ampla que esse termo possa ter). Entendemos por fechamento, o limite que
nossa consciência constrói nas representações da matéria, ou melhor, nas represen-
tações da experiência. As interações entre as ações da matéria terminam desenca-
deando imagens (no sentido bergsoniano) que são essas primeiras formas de
expressão da matéria. A matéria se revela de alguma forma, ela assume os contornos
que delimitam a ação de outro objeto sobre ela (Bergson, 2005). Tais contornos são
determinados pelos fechamentos. Conseguimos delimitar o fechamento de um ob-
jeto e o início de outro por percebermos, de alguma forma, sentidos próprios e in-
dependentes que emergem desses diferentes objetos.
O termo expressão possui variadas conceituações em diferentes doutrinas e correntes
de estudo. No campo da semiologia, ele é cunhado por Louis Hjelmslev, ocupando
o sentido anteriormente definido por Saussure como significante. Para Ferdinand
Saussure o signo é entendido como uma entidade psíquica bilateral, formado por
um conceito (significado) e uma imagem sonora (significante). Em Hjelmslev temos o
signo sendo formado pela associação do conteúdo (antes significado) com a expressão
(antes significante). Ele ainda propõe uma noção de estratificação do conteúdo e da
expressão em três níveis: forma, substância e matéria (Nöth 1996, 57-58). Assim, o
estrato de substância projeta a forma, na matéria. Por exemplo, a matéria de expressão
é formada pelas possibilidades expressivas (fonéticas, gráficas, gestuais, etc.) do ser
humano, enquanto que a substância de expressão é constituída pelas possibilidades
fonéticas ou gráficas e ortográficas de uma língua específica. Já a forma de expressão
é a transformação da substância de expressão em forma pura. Assim, “a língua falada
e sua transcrição fonética um a um são duas substâncias manifestando uma forma”
(ibid., 65), ou seja, a manifestação de uma língua específica. Hjelmslev utiliza então
o termo expressão como algo que se refere a um conteúdo dentro do próprio signo e
não a um conteúdo externo.
Peter Kivy apresenta, em seu livro The corded shell (1980), uma teoria sobre expres-
sividade musical, mais precisamente sobre a expressividade emocional. Kivy realiza,
em sua teoria, uma distinção fundamental entre dois modos de utilização do termo
expressão, que ele denomina “expressar” (algo) e “ser expressivo de” (algo) (Kivy 1980,
13). Assim, um compositor pode querer expressar uma determinada emoção em sua
música, como tristeza, e, no entanto, essa música pode não ser expressiva dessa emo-
ção. Assim, ser expressivo de é, em nossa acepção, a possibilidade que um dado objeto
ou sinal tem de significar algo. Esses dois modos de utilização refletem uma postura
diversa da expressão em relação ao intérprete. Essa distinção fica muito clara nos
exemplos por ele utilizados. Em suas palavras:
Se, sob as circunstâncias apropriadas, eu estiver incitado pela angústia a gritar e
48 cerrar meu punho, eu poderia corretamente dizer que expressei minha emoção;
e os atos de gritar e de cerrar o punho são corretamente ditos como o expressar
ou expressões de minha angústia (. . .). Quando, ao contrário, nós descrevemos o
rosto do São-Bernardo como um rosto triste, nós não estamos dizendo que ele
expressa tristeza, mas, no entanto, que é expressivo de tristeza. (ibid., 12)
Com isso, podemos dizer que um objeto ou sinal pode ser formado em decorrência
da expressão de um ou vários signos. Essa relação é similar à descrita por Roland
Barthes como fundamento do processo de conotação. Para ele, a conotação é um
signo secundário que tem como expressão (no sentido de Hjelmslev) um signo pri-
mário, denotativo, formado por uma expressão primária e um conteúdo primário
(Nöth 1996, 134-135). Assim, quando temos a expressão de angústia, citada acima,
com o grito e o cerramento do punho, estamos lidando com dois signos primários
com significações inicialmente denotativas. O som do grito é sua expressão primária
que se relaciona ao seu conteúdo inicial “grito”. A imagem visual do punho cerrado
é sua expressão primeira e relaciona-se ao seu conteúdo inicial “mão fechada” ou
“punho cerrado”. No entanto, a totalidade desses dois signos gera a expressão do signo
secundário que tem como conteúdo (secundário) “homem angustiado”, pois foi atra-
vés do punho cerrado e do grito que o homem angustiado expressou sua emoção.
Todavia, esses dois signos, ou melhor, esses dois atos podem não ser expressivos da
mesma emoção que fora expressa. Por exemplo, vamos imaginar que estamos assis-
tindo a um filme que mostrasse o punho cerrado de algum homem juntamente com
o som de seu grito e, em seguida, a cena nos mostrasse que este homem acabou de
ganhar na loteria. Constatamos que esses atos não eram a expressão de angústia, em-
bora talvez num primeiro momento eles pudessem ser expressivos dessa emoção, mas
sim atos de expressão de euforia, alegria e felicidade.
Quando as expressões em questão não são inteiramente codificadas, ou seja, não têm
um significado (conteúdo) previamente estipulado através da consolidação de este-
reótipos, como é muitas vezes o caso da música de concerto, não temos como garantir
que a emoção, idéia ou conceito que queremos expressar produza um resultado que
seja expressivo desse mesmo conteúdo para qualquer outra pessoa. Também não se
tem como garantir que pessoas de hábitos culturais semelhantes considerem uma
música, ou trecho dela, como expressivos de um mesmo tipo de conteúdo. Contudo,
existe uma tendência a formação de estereótipos que ficam mais fortes conforme os
hábitos culturais e sociais sejam mais semelhantes. Tais estereótipos não são neces-
sariamente códigos, entretanto, estes são formados por estereótipos de alto grau. Nas
palavras de Edson Zampronha:
O estereótipo é um grau avançado de cristalização de hábitos interpretativos que
resultam de um processo inteligente (não mecânico) de adaptação e ajuste, ou,
se quisermos, de autocorreção, para a realização de construções mentais hipoté-
ticas e falíveis do ambiente à nossa volta. (Zampronha 2000, 165)
Além dos elementos culturais, que possuem grande importância no processo de co-
municação, existem também alguns elementos expressivos trans-culturais. Estes ele- 49
mentos retratam um estágio da comunicação ainda desprovido de códigos
aprendidos e fundamentam a base de toda comunicação possível. A delimitação que
fazemos, em objetos, das imagens que chegam a nós ocorre porque a matéria se ex-
pressa, ou melhor, é expressiva dessa mesma forma, inicialmente, para todos os seres
de uma mesma espécie. É o que nos diz o princípio do Inatismo, bastante utilizado
na psicologia da Gestalt. A esses elementos expressivos trans-culturais chamaremos
de modos inatos de percepção.

O objeto musical e os modos inatos de percepção


Para Bob Snyder, a principal questão a ser solucionada para a compreensão do fun-
cionamento do sistema auditivo é o de saber como uma única variação contínua de
pressão do ar que chega a cada um de nossos ouvidos pode se transformar em repre-
sentações de distintas fontes sonoras presentes no ambiente (Snyder 2000, 31). O
que observamos que acontece com as imagens que chegam a nós, tanto as visuais
quanto as auditivas, é que elas são agrupadas, de algum modo, para gerar em nós a
percepção de objetos distintos. Tal agrupação é, ainda nas palavras de Snyder, “a ten-
dência natural do sistema nervoso humano de segmentar as informações acústicas
do mundo externo em unidades, cujos componentes estejam relacionados formando
algum tipo de todo” (ibidem). Assim o fenômeno da agrupação é entendido como
inerente à estrutura de funcionamento da mente humana. Snyder diferencia esse
tipo de agrupação, ao qual denomina também de agrupação primitiva, de outros
tipos, chamados de agrupações aprendidas. Esse outro tipo de agrupação seria for-
mado por uma grande influência de nossa memória aprendida (de curto e longo
prazo), ao passo que a agrupação primitiva teria certa independência desses processos
de memória, ela estaria ligada à memória da espécie, ou seja, a estrutura orgânica
perpetuada durante a existência da espécie humana.
Uma das correntes de pesquisa que busca explicar os processos de agrupação, como
descritos por Snyder, é o estudo com bases na Psicologia da Gestalt. Os psicólogos
da Gestalt propuseram leis que visavam explicar como a percepção está organizada
(Gardner 2003, 126). Estas leis foram formuladas com bases em inúmeros estudos
que puderam explicar a “aparência fenomênica” de certas “qualidades da forma” atra-
vés de processos cerebrais análogos (ibidem). Bregman (1999) descreve os principais
elementos da Gestalt além de relacioná-los à percepção auditiva. Contudo, não cabe
ao âmbito do presente artigo uma discussão detalhada sobre os princípios de agru-
pação da Gestalt. Este já é um material bastante explorado por estudiosos do campo
de cognição musical e foge ao escopo de nossa discussão principal. No entanto, cabe
enfatizar que procedemos nossas observações tendo em consideração as proprieda-
des de agrupação desenvolvidas por essa vertente de estudo.
A todo o momento somos bombardeados por imagens, sejam elas de procedência
50 visual, auditiva, ou relativa a algum outro sentido perceptivo. Para todas essas ima-
gens construímos contornos e limites, que transformam a imagem do mundo em
imagem dos objetos que compõem o mundo. Certa imagem visual só se torna ima-
gem de algo quando passa a reter características do objeto ao qual ela corresponde,
tornando-se assim uma representação. Essas são frutos de nossa ação sobre esses ob-
jetos.
No caso das experiências auditivas lidamos com algo que não é material, o som. O
som existe no mundo material e é produzido e difundido pela matéria, mas não é
matéria e sim um efeito provocado por um tipo de movimento dela. O aparato au-
ditivo é constituído de tal forma que capta esse tipo de movimento. O movimento
de outros objetos excita as moléculas de ar que chegam a nós retransmitindo o tipo
de “movimento sonoro” do objeto. Nesse caso então temos a sensação de que as ima-
gens se dirigem ao nosso corpo trazendo-nos os objetos. Mas que objetos são estes?
Na percepção visual temos a sensação (reforçada pelos outros sentidos) de que o ob-
jeto tem correspondência com a matéria, mas na percepção auditiva o objeto não
tem como representar, de imediato, o mundo material. Ele pode até ser uma carac-
terística da ação de outros tipos de objeto, no mundo material, como exemplo o
tique-taque de um relógio é decorrente da ação de seu pêndulo, mas se o pêndulo
estiver em repouso não haverá o objeto sonoro do tique-taque. A matéria possui a
potencialidade de gerar um som e para realizá-lo é necessária a ação entre proprie-
dades do mundo material, que são entendidas como ações entre objetos materiais.
Para a escuta de um fonograma, o som é produzido pela ação da membrana dos alto-
falantes no ar. Contudo, ao ouvirmos o som de um violino, escutamos e compreen-
demos este como fruto da ação do arco sobre a corda, mesmo numa gravação, o que
gera para nossa percepção uma fonte material virtual. Mesmo quando não conhe-
cemos a fonte virtual produtoras de um determinado som têm a tendência de expe-
rimentá-lo de acordo com nossas experiências passadas de ação sobre objetos
materiais.
A grande diferença entre a percepção visual e a percepção auditiva, em relação aos
seus respectivos objetos, é que na primeira eles se confundem e se integram nas fontes
materiais e na segunda eles não coincidem com suas fontes. Ao perceber o movi-
mento de um objeto visual constatamos que há locomoção de sua fonte material,
como um carro, por exemplo. Na percepção de movimento do objeto sonoro, a mu-
dança espacial da fonte sonora não influi tanto na percepção do movimento do ob-
jeto, porém a mudança de alguns parâmetros qualitativos, como altura de nota,
espectro harmônico e intensidade, geram a clara percepção de movimento do objeto.
Quando escutamos uma ambulância passando por nós, percebemos o movimento
da fonte sonora (ambulância) passando, por exemplo, da nossa esquerda para a nossa
direita, no entanto o principal movimento realizado pelo objeto sonoro é o “subir”
e “descer” característico de qualquer sirene. É importante, portanto, entender e pre-
servar a distinção entre movimento do objeto sonoro e movimento da fonte sonora. 51
Este último poderá ser também entendido como movimento do objeto sonoro que,
por sua vez, não implica a locomoção de sua fonte.
Um estudo semântico da música de certo deve levar em consideração as possibili-
dades expressivas dos objetos sonoros utilizados. Todavia, tais possibilidades expres-
sivas são extremamente particulares e imprecisas. Um mesmo objeto pode ser
expressivo de algo para alguém num dado momento e num momento seguinte passar
a ser entendido como expressivo de outro algo para este mesmo alguém. Assim a
única possibilidade de um estudo semântico trans-cultural é o estudo dos objetos
que darão suporte às significações. Só com o entendimento de tais objetos é que será
realmente possível compreender que tipos de padrões de organização entre os obje-
tos tenderão a possuir certa significação para certa cultura, ou certo estilo musical,
ou certa pessoa.
A música, num escopo mais amplo, é desprovida de códigos comunicacionais, ou
pelo menos ela não possui códigos com o mesmo grau de objetividade que a comu-
nicação oral ou verbal. Todavia, a experiência musical nos parece ser carregada de
muitos sentidos. Estes são os sentidos que transformam os objetos sonoros em ob-
jetos musicais, ou seja, a possibilidade de se referenciar a outras experiências é o que
confere a um objeto, inicialmente apenas sonoro, a capacidade de ser também um
objeto musical.

Expressões de tempo e de espaço


Quando percebemos algum objeto musical, temos, a princípio, a percepção de pro-
priedades de objetos materiais. Embora o som não possua matéria, quando escuta-
mos e percebemos algo – nos níveis de expressões de tempo e de espaço – estamos
atribuindo a ele qualidades da matéria. Esse entendimento irá possibilitar a relação
metafórica entre as idéias de tempo e de espaço geradas pela percepção do objeto so-
noro e as idéias de tempo e espaço que julgamos associáveis a tal percepção. A partir
desse ponto, os sentidos começam a ser muito mais afetados pela faculdade de jul-
gamento individual.
Como visto anteriormente, possuímos como representações a priori o tempo e o es-
paço. O tempo é o nosso sentido interno, a representação daquilo que julgamos ser o
“eu mesmo” ou o self. O espaço é nosso sentido externo, a representação daquilo que
julgamos que não pertença ao “eu mesmo”. Assim, que tipo de representações nós
formulamos durante nossas experiências com a música? De acordo com o mencio-
nado aqui, as expressividades, em analogia às durações, se categorizam em dois tipos:
as expressões de tempo e as expressões de espaço. Em cada uma dessas expressões irá
predominar, respectivamente, as representações que geram nosso sentido interno e
as que geram nosso sentido externo.
52 A expressão é uma espécie de registro que as ações executadas pelas coisas acabam
produzindo. Desse modo, quando falamos de expressões de tempo, estamos tratando
de uma tentativa de comunicação que tem por objetivo exteriorizar as representações
de tempo do ser que realiza o ato expressivo. Em contrapartida, tais expressões so-
mente tornar-se-ão expressivas de tempo se forem intuídas como duração pura e,
assim, aquele que as intui incorporará tal percepção para um sentido interno, somará
tal intuição ao que ele determina como o “eu mesmo”. Desse modo irá intuir tal ex-
periência não como um objeto exterior, uma nova sensação, mas sim como uma nova
vivência, algo que somente ele tem condições de experimentar e sentir.
Já as expressões de espaço, são tentativas de uma comunicação que visam exteriorizar
as representações daquilo que não é percebido como o “eu mesmo” do sujeito que
realiza o ato expressivo. Todavia, para que estas expressões de espaço se tornem ex-
pressivas de tal dimensão elas têm que ser intuídas como durações espacializadas.
Assim o agente que irá “receber” estas expressões terá que interpretá-las à luz de suas
representações a priori de espaço, o que significa entender os objetos assim percebi-
dos como exteriores e, dessa forma, sendo compreendidos como objetos comuns a
outros indivíduos.
Desse modo, as representações que formulamos durante a experiência musical osci-
lam entre as representações dos sentidos internos e externos, tempo e espaço. Por-
tanto, oscilamos nossa percepção entre uma experiência de vivência individual,
egocêntrica, que contribuirá para a nossa construção do “eu mesmo”, e uma expe-
riência com objetos exteriores, com sensações entendidas como compartilháveis, que
contribuem para a nossa sensação de que há algo que se torna comum durante a ten-
tativa do ato comunicativo.
A percepção de mudança está claramente implícita na percepção de “duração espa-
cializada” ou das expressões de espaço. Para que haja a possibilidade de uma percep-
ção de “duração espacializada” é necessária a percepção clara de grupos, ou blocos,
isolados que ocupem lugar no tempo e/ou no espaço. Com isso, a “duração espacia-
lizada” ganha uma percepção de movimento, ou então, a percepção de um movi-
mento entre coisas diferentes gera a percepção de uma “duração espacializada”. É
interessante notar que, embora o movimento esteja associado aqui à “duração espa-
cializada”, é o sentido interno que abriga o ideal de movimento. Quando algo se
move, ocorre sempre em relação ao “eu mesmo”. Aquilo que não se move em relação
ao “eu mesmo” está, devidamente, estático. Entretanto, se a consciência de um indi-
víduo tiver a noção que esse “eu mesmo” está em movimento, as coisas que estão
juntas ao “eu mesmo” tenderão a ser percebidas em movimento relativo a um mundo
externo, parado. Por exemplo, quando vejo um avião no ar tenho a percepção de seu
movimento, no entanto embora o traçado de seu movimento possa ser descrito em
vias espaciais, a sua percepção se dá em relação ao “eu mesmo”, em seu sentido interno.
Assim, a percepção do movimento é uma espécie de ação individual sobre um espaço
coletivo. Nosso corpo é um “centro de ação”. Ele recebe e devolve os movimentos, 53
nessa mutua relação entre ser e ambiente.
A partir dessas dimensões espaço-temporais, em suas formas expressivas, é que tere-
mos as possibilidades de associações semânticas com outros domínios de experiência,
como emotivas, ideológicas ou até mesmo referentes a outros tipos de sensação,
como a visual, por exemplo. São essas estruturas que possibilitam à música soar não
apenas como conjuntos de sons sintaticamente organizados, mas sim como uma ex-
periência que possui formas análogas às nossas vivências com um mundo real. A pes-
quisa cognitiva nos oferece uma perspectiva real de investigação dos processos de
significação musical que fundamentará futuras pesquisas para além das representa-
ções a priori aqui discutidas.

Referências bibliográficas
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Zampronha, Edson S. 2000. Notação, representação e composição. São Paulo: Annablume/Fa-
pesp.
Percepção e Processamento Musical
em Usuários de Implante Coclear
Scheila Farias de Paiva Lima
54 scheilafplima@yahoo.com.br
Cecília Cavalieri França
poemasmusicais@terra.com.br
Programa de Pós- Graduação em Música, ESMU-UFMG
Stela Maris Aguiar Lemos
smarislemos@yahoo.com.br
Departamento de Fonoaudiologia, ESME-UFMG

Resumo
A presente pesquisa investiga as relações existentes entre a percepção da linguagem oral
e a percepção da música em surdos adultos, pós-linguais, usuários de Implante Coclear
tendo como base os parâmetros de freqüência e duração, utilizados na programação das
estratégias de codificação de fala e processamento do som nos aparelhos de Implante
Coclear (IC). Possui como objetivos: avaliar o processo perceptivo-musical de um adulto
com surdez pós-lingual, usuário de Implante Coclear; descrever seu desempenho nas ati-
vidades de percepção musical referentes à discriminação de pitch, timbre e duração utili-
zando como meio a apreciação musical e compará-lo à literatura pesquisada visando
uma melhor forma de proporcionar a prática da apreciação musical ao mesmo. Embora
os implantes cocleares sejam projetados objetivando a percepção da fala, atualmente a
percepção da música apesar de um desafio, torna-se uma possibilidade viável e impres-
cindível no aprimoramento na tecnologia do implante coclear e das estratégias de pro-
cessamento dos mesmos. A percepção e a apreciação da música se constituem desafios
a serem superados pelos usuários desta tecnologia, que permite a recuperação da audição
para pessoas com surdez total. A partir da caracterização dos antecedentes musicais e
fonoaudiológicos do indivíduo, por meio da coleta de documentos específicos como au-
diometria tonal e mapeamento do implante coclear, avaliação do processamento auditivo
e preenchimento de questionário específico pelo participante do estudo, será delineada
a avaliação da percepção musical do mesmo. A pesquisa adota uma abordagem experi-
mental, na qual as mudanças perceptivo-musicais apresentadas pelos indivíduos estudados
possam ser observadas, a partir de registros realizados nas aulas de apreciação. Um as-
pecto importante no estudo da percepção da música em usuários de IC é a possibilidade
de, diante dos resultados, viabilizar propostas de treinamento para o aperfeiçoamento das
habilidades auditivas e cognitivo-musicais.
Palavras-Chave
Apreciação Musical, Processamento Musical, Implante Coclear
Introdução
Por ser tão difundida e importante para a sociedade, a música desperta o interesse
de neurocientistas que buscam entender o modo pelo qual ela é processada, desde
os órgãos sensoriais até o córtex.
55
Descobertas recentes da neurociência, educação, psicobiologia, psicologia do de-
senvolvimento e psicologia da música vêm fomentando um interesse crescente acerca
do desenvolvimento cognitivo-musical do ser humano (Gardner, 1997; Ilari, 2002;
Swanwick e Tillman, 1986). Apesar disso, ainda se sabe pouco sobre as possibilidades
e benefícios da música em relação às pessoas com Deficiência Auditiva.
A Neurociência Cognitiva da Música estuda os processos cognitivos relacionados à
percepção e à apreensão de sons e melodias, observando-se os circuitos neurais en-
volvidos na criação e/ou processamento da música (Altenmüller, 2004).
Atualmente, a área encontra-se em grande destaque e refere-se ao funcionamento
do cérebro ao ouvir e produzir música, bem como à identificação dos procedimentos
mentais relacionados ao processamento musical por parte dos indivíduos. Embora
existam textos seculares sobre o processamento musical, somente nas últimas décadas
esta se tornou uma área de estudo sistematizada, em que se destaca a procura de en-
tendimento sobre a organização cerebral, mental, do músico para a música. Como
parte das neurociências cognitivas, encontram-se análises sobre os déficits clínicos
da percepção e/ou performance musical e investigações das correlações anátomo-
funcionais, por meio de imagens cerebrais de humanos. Para Oliveira e colaborado-
res (2005), pesquisas na área da audição, envolvendo a complexidade das vias
auditivas na transmissão de estímulos sonoros, da percepção ao processamento em
regiões complexas do cérebro, tornam-se base para o estudo da percepção, bem como
do desempenho musical.
Segundo Ilari (2005), nas últimas décadas tem ocorrido um crescente interesse pelo
desenvolvimento cognitivo musical, devido a recentes descobertas no campo da neu-
rociência. Distinções como alturas, timbres e intensidades, iniciam a partir do dé-
cimo mês de vida e tornam-se refinados ao longo da mesma, bem como as
preferências musicais. A relação entre Música e Cognição contempla processos cog-
nitivos relacionados à atividade musical que subsidiam as recentes descobertas no
campo da neurociência cognitiva. A compreensão destes processos pode beneficiar
professores de música em bases educativas e performáticas, bem como contribuir
para a compreensão do funcionamento do cérebro por parte dos neurocientistas.
Zatorre (2003) chama a atenção para a necessidade de definir bem o aspecto espe-
cífico da função musical a ser estudado e, quando possível, identificar os componen-
tes cognitivos associados a essa função. O mesmo autor declara que a Neurociência
Cognitiva da Música é uma área muito recente em pesquisas, apesar de um extenso
volume de pesquisas na área, que pode ser comprovado pelos dois volumes dos Anais
da Academia de Ciência de Nova York dedicados exclusivamente ao tema (Peretz,
Zatorre, 2001; Avanzini, 2003). Em recente artigo, Peretz e Zatorre (2005) relatam
a situação atual das pesquisas em Neurociência e alertam que este é um campo rico
e fecundo de investigação sobre percepção, memória, emoção e performance musi-
56 cal.
“A música e a fala são formas de comunicação humana através de sons e compar-
tilham semelhanças no que se refere ao seu processamento cerebral, à localização
espacial no cérebro e às propriedades acústicas como altura, ritmo e timbre, que
podem ser traçadas no decorrer de toda a vida.” (Trainor, 1996; Trevarthen, 2001
e Marin e Perry, 1999).
Assim como na música, o meio mais importante da linguagem oral é o som. Se ou-
vidos isoladamente, sejam eles da fala ou de instrumentos, os sons, com suas carac-
terísticas físicas e acústicas, são simplesmente sons. Ao realizarmos algum tipo de
combinação com essas estruturas sonoras, iniciamos a existência da linguagem. De
acordo com Sloboda (1997), o que os torna linguagem é a capacidade que o cérebro
humano tem de organizá-los.
Cutietta (1996) encontrou uma estreita relação entre o aprendizado destas duas for-
mas de comunicação humana por sons. Em sua pesquisa, alunos musicalizados de-
monstraram um desempenho superior ao de seus colegas não musicalizados para
tarefas de percepção e articulação da fala. Um estudo realizado por Thompson
(2003) sugeriu que os músicos possuem uma habilidade superior aos não-músicos
na percepção da prosódia na fala, tanto em frases faladas como em frases musicais
análogas (Thompson, Schellenberg e Husain, 2003). Os pesquisadores afirmam que
tal habilidade se estende à interpretação do conteúdo emocional, que é transmitido
através da prosódia contida tanto na fala quanto na música.
Cervellini (2003) ressalta em sua obra que a música, como uma forma de comuni-
cação, é fundamental ao ser humano porque carrega em seu bojo a possibilidade de
viver, sentir e expressar emoções. Sendo a música uma das formas de lazer mais co-
mumente descritas, se torna imprescindível a tentativa de propiciar a percepção mu-
sical satisfatória aos usuários de Implante Coclear (IC), visando proporcionar
melhor qualidade de vida e socialização dos mesmos.
Assim como a fala, a música comunica-se transmitindo mensagens afetivas e expres-
sivas importantes. Entretanto, a música é finalmente abstrata e sua interpretação é
altamente subjetiva, dependendo de fatores tais como o treinamento musical, prática
auditiva da música e contexto cultural.
Sobre a percepção musical, Krumhansl (2000) ressalta que esta possui uma longa e
distinta história, como tópico de investigação psicológica, e afirma que a percepção
musical tem se tornado objeto de estudo por meio de metodologias diversificadas,
bem como recebido atenção praticamente em todas as abordagens teóricas da psi-
cologia, desde a psicofísica à neurociência. A autora explica que a psicologia cogni-
tiva é o principal impulso para as recentes pesquisas devido à sua ênfase na influência
do comportamento sobre a percepção, pois envolve estímulo, interpretação e
esquemas cognitivos (como padrões de ritmo e altura), por meio de experiências
anteriores.
Sabe-se atualmente que, assim como o processo de desenvolvimento da linguagem, 57
o desenvolvimento auditivo tem como ápice para aquisição das habilidades auditivas
e as distinções entre alturas, timbres e intensidades, o período entre o nascimento e
o décimo aniversário. (Werner e Vandebos, 1993). É também nessa época que o in-
divíduo desenvolve suas preferências e memórias musicais, e que se inicia o desen-
volvimento cognitivo-musical através de processos, como impregnação e imitação,
que estão normalmente associados às funções psicossociais como a comunicação,
inclusive de emoção, o endosso de normas culturais e étnicas, e o entretenimento.
(Ilari e Majlis, 2002; Ilari e Polka; Trainor, 1996; Trehub e Schellenberg, 1995; Gre-
gory, 1998; Huron, 1999 e Trevarthen 2001). Por este motivo, pessoas que se tor-
naram deficientes auditivas após este período e realizaram o IC, obtendo benefícios
na percepção da fala, possuem grandes chances de retomar a apreciação musical
como prática auditiva.
Conforme mencionado, a música e a fala compartilham diversas similaridades. Não
obstante, o presente estudo objetiva analisar apenas a percepção da variação de fre-
qüência – pitch – e a percepção de modificação na duração e no timbre. Tais ele-
mentos, comuns à utilização de estratégias para o processamento do som nos
equipamentos de IC, também se fazem presentes e essenciais em situações de apre-
ciação musical.
Em relação à prática da apreciação musical, Wuytack (1995) salienta que ensinar os
alunos a ouvir, de forma analítica, uma obra musical, é um dos objetivos da educação
musical. Assim, é possível levá-los a apreender e compreender os vários elementos
musicais (timbre, dinâmica, tempo, ritmo, forma, etc.) no decurso da unidade tem-
poral, bem como de suas múltiplas divisões.
A apreciação musical é uma área do conhecimento, uma forma de se relacionar com
a música que envolve muitas maneiras de ouvir e comportar-se perante o estímulo
sonoro. Embora existam diversos estudos sobre os benefícios do IC para a percepção
de fala, a percepção da música ainda se constitui um vasto campo de estudo para os
profissionais da área e, ao mesmo tempo, um dos maiores desafios para os usuários
do implante.
Deste modo, faz-se necessário investigar as relações existentes entre a percepção da
fala e a percepção da música, a fim de contribuir com usuários de IC em suas tenta-
tivas de prática e apreciação musical, não só no contexto sócio-cultural, mas também
como forma de desenvolvimento perceptivo-musical dos mesmos; bem como con-
tribuir com Educadores Musicais, Musicoterapeutas e Fonoaudiólogos, ao sugerir
propostas para sua prática de apreciação musical.
Processamento Auditivo e Implante Coclear
a) Neurofisiologia da Audição
A audição é uma modalidade sensorial dominante, um sentido especializado na per-
58 cepção dos sons. É por meio da audição que o ser humano desenvolve várias habili-
dades, dentre elas a aquisição e manutenção da linguagem e da fala (Iório,1995). O
ouvido, órgão fundamental para a audição, é encontrado em todos os animais ver-
tebrados e, no caso da espécie humana, seus receptores se localizam no ouvido in-
terno, que é o responsável não apenas pela audição, mas também pelo equilíbrio do
corpo. Para compreender o processo de condução e percepção do som, é preciso co-
nhecer o sistema auditivo.
O Sistema Nervoso Auditivo é composto por duas partes: Sistema Nervoso Auditivo
Periférico (SAP) e Sistema Nervoso Auditivo Central (SAC). O SAP é responsável
pela condução e transformação do som, modificando o estímulo auditivo de mecâ-
nico para estímulo elétrico, e possui como principais componentes: Orelha externa
(que compreende o pavilhão, o canal auditivo e a membrana timpânica), Orelha
média (que compreende os ossículos: martelo, bigorna e estribo) e Orelha interna
(cóclea, sáculo, utrículo e canais semicirculares). (Fig.1)

Figura 1.1 — Anatomia e fisiologia do Sistema Auditivo Periférico


A informação auditiva, captada pela orelha externa, é conduzida à orelha média,
onde se encontra a cadeia ossicular (Fig. 1), composta pelos ossículos martelo, bi-
gorna e estribo. Estes ossículos têm como funções principais a transmissão das vi-
brações sonoras do meio aéreo, no ouvido médio, para o meio líquido, no ouvido
interno. No ouvido interno, a energia é transformada em impulsos neurais pela có-
clea, iniciando a análise sonora de freqüência e intensidade. Estes impulsos elétricos
são transmitidos do nervo auditivo ao cérebro, onde são interpretados como som.
As funções do SAP incluem recepção, detecção, condução e transdução do sinal
acústico em impulsos neuroelétricos.
Os impulsos nervosos originados no ouvido interno são enviados para o córtex au-
ditivo pelo ramo coclear do nervo auditivo, percorrem as fibras até o tronco ence-
fálico e chegam aos hemisférios direito e esquerdo, onde serão processados e 59
interpretados, completando o trajeto por todo o SAC (Aquino e Araújo, 2002 p.
25-27).
Pickles (1985) enfatizou que o córtex auditivo é importante na discriminação de
ordens temporais de eventos acústicos e na discriminação da duração de estímulos
acústicos curtos. Existem indícios de que a música tem base biológica e que o Sistema
Nervoso Periférico e Central apresenta uma organização funcional para o seu pro-
cessamento, seja apoiando a percepção (apreensão da melodia e discriminação de
timbre), seja provocando reações emocionais (envolvendo a participação das áreas
sub-corticais e do lobo frontal). A importância e participação dos lobos temporais,
especialmente o lobo temporal direito, na discriminação de timbre e no processo de
harmonia, também já é conhecida.
Tabela 1.1 — Vias Auditivas e sua Função no Processamento Auditivo

Sabe-se que a resposta para a música no SAP e no SAC é diferenciada. No final da


década de 1980, McKenna e Weinberger contestaram o conceito de que “células da
via auditiva responsáveis por uma dada freqüência sempre responderiam da mesma
forma quando essa freqüência era detectada”. Estudando o contorno melódico e a
variação de amplitude nas diferentes freqüências dos neurônios individuais do córtex
auditivo de gatos, observaram que o número de descargas das células variava de
acordo com o contorno apresentado e dependia da localização de um dado som den-
tro da melodia. Dessa forma, concluem que o padrão de uma melodia faz diferença
no processamento da informação auditiva: as células do SAC podem responder com
mais intensidade para uma determinada freqüência (F0) quando o mesmo é prece-
dido por outros sons do que quando ele é o primeiro. Além disso, as células reagem
de maneira diferente ao mesmo som quando ele faz parte de um contorno ascen-
dente do que quando é descendente ou mais complexo (Weinberger, 2007).
b) Percepção Auditiva/ Processamento Auditivo
De acordo com Borchgrevink (1982c, 1985) e Gerken (1985), a percepção não é a
recepção passiva do estímulo, mas sim um processamento cerebral ativo envolvendo
habilidades de atenção e diversas estratégias de cognição que resultam em: sensação,
60 discriminação, identificação, detecção de mensagem e função simbólica.
Para Musiek e Pinheiro (1987), a discriminação de diferentes seqüências de freqüên-
cias se inicia com a localização destas na membrana basilar da cóclea, que mantém
esta representação tonotópica através de todas as vias auditivas centrais. O reconhe-
cimento consciente destas seqüências ocorre no córtex auditivo primário do lobo
temporal, em ambos os hemisférios cerebrais, chegando primeiramente no lobo tem-
poral contralateral à orelha estimulada.
Frota e Pereira (2006) explicam que o processamento auditivo é a percepção auditiva
que se dá via sentido da audição. Katz e Wilde (1999; p.486) definem Processamento
Auditivo como a construção realizada pelo ouvinte, a partir do sinal auditivo, tor-
nando esta informação acústica funcionalmente útil. Este processo envolve a per-
cepção dos sons e as habilidades que utilizamos com esta informação sonora (Katz
et. al., 1992; Katz e Wilde, 1994; Ferre,1997).
Para Jacob (2000), o processamento auditivo é um conjunto de operações que o sis-
tema auditivo realiza como: receber, detectar, atender, reconhecer, associar e integrar
os estímulos acústicos para, posteriormente, programar uma resposta, analisar e in-
terpretar os padrões sonoros. Refere-se ao conjunto de habilidades auditivas neces-
sárias para decodificação, interpretação, análise e organização das informações
acústicas envolvendo, além da percepção do som, estruturas do Sistema Auditivo
Periférico e Central.
Pinheiro e Musiek (1985) afirmaram que todas as funções do sistema auditivo cen-
tral são influenciadas pelo tempo, porque todos os eventos acústicos correm no
tempo. Gil et al. (2000) relatam que muitos processos perceptuais e auditivos, como
a percepção correta das variações dos elementos acústicos e da ordenação temporal
dos mesmos, estão envolvidos no reconhecimento e na identificação dos padrões
auditivos.
Sobre o Processamento Auditivo Temporal, verificamos no documento emitido pela
ASHA em 1996 informações complementares, mencionando que o mesmo pode
ser dividido em quatro categorias: ordenação temporal, integração temporal, mas-
caramento temporal e resolução temporal (Asha, 1996).
Schinn (2003) define Processamento Auditivo Temporal como a capacidade da per-
cepção ou alteração do som com um tempo de domínio definido e está intimamente
relacionada à percepção da fala, bem como à maioria das habilidades do processa-
mento auditivo visto que, de alguma forma, as informações auditivas se relacionam
com o tempo. Santos e Russo (2007) descrevem processamento temporal como o
processamento do sinal acústico em função do tempo de recepção que se relaciona,
dentre outras etapas, com a percepção de fala e a duração das consoantes.
Hirsh (1959), em seus relatos, afirmou que o processamento temporal constitui a
habilidade de realizar uma variedade de tarefas auditivas, dentre elas a percepção de
fala e a percepção de música. No caso da música, de perceber a ordem de uma se- 61
qüência melódica, levando em conta a altura da nota. No caso da fala, as diferenças
entre as palavras levam em consideração a discriminação da duração da consoante e
a ordem temporal do final das duas consoantes em cada palavra. Ex: boots e boost.
Em sua pesquisa, o autor ainda afirma que a essência da percepção auditiva temporal
encontra-se nas mudanças acústicas dentro de um tempo e, por este motivo, relata
que intervalos de tempo entre os estímulos sonoros são suficientes para o ouvinte
perceber a ordem dos mesmos, independente do tipo de estímulo e mesmo que seja
por poucos milissegundos.
Campos et. al. (2008) realizaram um estudo com dois grupos de indivíduos para in-
vestigar as habilidades de ordenação temporal em indivíduos usuários de IC multi-
canal, por meio dos testes de Padrão de Freqüência e de Padrão de Duração. Os
autores utilizaram a metodologia comparativa de um grupo controle e de um grupo
experimental e concluíram, a partir dos resultados obtidos, que os indivíduos usuá-
rios de IC avaliados neste estudo apresentaram semelhante desempenho no teste de
ordenação temporal (padrão de freqüência e de duração), quando comparados ao
grupo de indivíduos com audição normal.
c) Percepção e processamento da música

As semelhanças entre a construção da linguagem musical e da linguagem verbal en-


volvem processos auditivos muito semelhantes na produção e na percepção do som.
Com o intuito de esclarecer como o sistema auditivo processa e decodifica estes si-
nais, muito se tem pesquisado sobre este assunto nas últimas décadas (Bang, 1991).
De acordo com Schochat (1996), as atividades periféricas são responsáveis pela sen-
sação, enquanto as centrais são responsáveis pela percepção. Por este motivo, cabe
ressaltar que, no presente estudo, o termo Percepção Auditiva refere-se a uma ativi-
dade auditiva central, diferente do termo sensação auditiva, que seria a sensação da
audição em nível periférico.
Sobre o processo perceptivo musical, Duarte e Mazzoti (2006) afirmam que, por
meio da percepção e da criação, a informação sonora é selecionada e re-contextua-
lizada. A seleção e a re-contextualização propiciam ao sujeito um novo valor e sig-
nificado aos elementos selecionados, além de explicarem porque pode haver, em
diferentes grupos, diferentes representações para o mesmo objeto musical. Os au-
tores afirmam ainda que esta seleção e re-contextualização possuem como resultado
a organização dos elementos selecionados, a criação de imagens sonoras e a formação
de cognições centrais. Esta informação perceptiva é assimilada aos esquemas, facili-
tando a organização dos eventos sonoros em padrões e gerando expectativas de even-
tos futuros (Krumhansl, 2000).
Cuddy (1992) afirma que a percepção auditiva, apesar de diferente, é parte inte-
grante da atividade musical e questiona o objetivo de isolar-se a percepção auditiva
62 para realizar estudos especializados ou interpretações de dados coletados em expe-
rimentos. Segundo a autora, ainda existe muito para ser descoberto sobre as relações
entre a estrutura perceptiva e o processo de compreensão musical. Ela descreve que,
em relação à utilização de testes auditivos para o estudo da percepção musical, o pro-
pósito destes é a descoberta de influências da compreensão musical na percepção de
eventos auditivos. Por este motivo, também sugere a utilização e adequação do termo
“Percepção Musical”, em detrimento de “Percepção Auditiva”, pois a ênfase da des-
coberta não está focada no ouvido, mas na mente.
Tendo se comprovado que a percepção musical não se relaciona apenas com um dos
hemisférios cerebrais, mas com uma rede neural, esta é ativada durante a escuta (Al-
tenmüller, 2001; Peretz, 2002). A música proporciona uma maneira complexa na
organização cerebral devido á sua relação direta entre música-movimento e percep-
ção-ação. De acordo com Janata e Grafton (2003), esta relação consiste em seqüên-
cias de movimento e som que proporcionam múltiplas experiências em toda a mente.
Conforme descrito, a partir do aprendizado musical ocorre uma intensa reorgani-
zação plástica cerebral, resultando na alteração das áreas sensório-motoras corticais
(Pantev, 2003).
Pascual-Leone (2001) selecionou indivíduos de diversas idades, tendo como critérios
que os mesmos não tocassem nenhum instrumento musical, não soubessem datilo-
grafar usando todos os dedos e nem tivessem empregos que exigissem habilidades
manuais. Eles foram orientados, ainda, a estudar uma seqüência de notas para mão
(conforme alguns métodos tradicionais para o ensino do piano e teclado) por duas
horas diárias, obedecendo a critérios estabelecidos pelo pesquisador. Em uma se-
gunda etapa, o grupo foi dividido em dois subgrupos, sendo que apenas um conti-
nuou a treinar. O autor demonstrou que estas modificações neurais, decorrentes do
aprendizado musical, não ocorrem apenas em processos de formação cerebral (em
torno dos cinco a nove anos), mas que, conforme Sloboda (2003), os seres de todas
as idades têm a capacidade de processar o material sonoro tanto absoluta quanto re-
lativamente, e que essas habilidades podem ser desenvolvidas com o treino em qual-
quer idade.
Quando um adulto ouve uma peça musical atentamente e compreende esta lingua-
gem, as informações são processadas em grande quantidade e velocidade. Grande
parte deste processamento é automática, abaixo do plano consciente de análise, de-
vido à impossibilidade de refletir detalhadamente enquanto ouve a música. Neste
caso, é necessário ouvir mais de uma vez, pois, mesmo atento, o apreciador não con-
segue compreender todos os significados envolvidos, visto que os elementos da sen-
tença musical são processados mais rapidamente. Porém, existe uma aprendizagem
perceptual que é obtida no contexto de sua cultura particular e que, comprovada-
mente, influencia na aquisição de habilidades cognitivo-musicais (Dowling,1999).
d) Percepção da música e Implante Coclear
63
De acordo com Campos et. al. (2008), indivíduos com deficiência auditiva apresen-
tam prejuízo na sensação sonora que permite a discriminação entre sons graves/agu-
dos, fortes/fracos e longos/curtos. Os autores também alertam que a perda auditiva
neurossensorial distorce a percepção do som, resultando em redução na sensibilidade,
crescimento anormal da sensação de intensidade, redução na seletividade de fre-
qüências e redução na resolução temporal. Com o comprometimento da capacidade
de resolução de freqüências, há dificuldade na percepção de fala, principalmente
diante de ruído competitivo. O envelope temporal da fala, que codifica informações,
encontra-se distorcido em um sistema auditivo alterado, resultando em distorção
na percepção de fala. Bevilacqua (2004) destaca que o processador de fala analisa
continuamente o sinal acústico da fala e dos sons ambientais e proporciona a codi-
ficação desses sons, preservando as características importantes do espectro e da in-
formação temporal dos sons da fala. As informações de espectro do sinal acústico
são codificadas pela estimulação de diferentes eletrodos e a informação temporal é
codificada pelo controle temporal das descargas nas fibras do nervo auditivo.
Ao contrário da prótese auditiva convencional, que apenas amplifica o som recebido
para a cóclea, o implante coclear capta a onda sonora através do microfone (um com-
ponente externo) e a transforma em impulso elétrico através dos eletrodos (um dos
componentes internos) estimulando diretamente o nervo coclear, realizando a fun-
ção das células ciliadas da cóclea que estão danificadas ou ausentes. Os avanços na
tecnologia dos implantes cocleares e as formas de processamento do som têm mos-
trado excelentes benefícios para a percepção de fala na maioria dos usuários de IC,
contudo a percepção e a apreciação da música ainda se constituem os maiores desa-
fios. (Fig.2)
O microfone é responsável pela captação do som; o processador do sinal de fala con-
verte o som em sinais elétricos, que são enviados por meio de um sistema de trans-
missão, via radiofreqüência, para o receptor interno e, posteriormente, para o feixe
de eletrodos inseridos na cóclea.
O funcionamento dos eletrodos depende do projeto do eletrodo, ou seja, do número
de eletrodos e de sua configuração. O tipo de estimulação pode ser analógico ou pul-
sátil. A ligação da transmissão pode ser transcutânea ou percutânea. O processa-
mento do sinal é responsável pela representação da forma da onda.
O hábito de ouvir e apreciar música varia significativamente entre os usuários de IC.
Embora os implantes cocleares sejam projetados objetivando a percepção da fala,
atualmente a percepção da música é vista como uma possibilidade viável e impres-
cindível no aprimoramento na tecnologia do implante coclear e das estratégias de
processamento dos mesmos.

64

Figura 2 — Componentes do implante coclear:


1) Microfone e processador da fala (captura sons do meio e os converte em sinais di-
gitais enquanto o processador manda sinais digitais para os componentes internos,
através de uma bobina receptora externa); 2) bobina interna e o implante que fica
sob a pele num nicho fresado no osso temporal; 3) fio com eletrodos (anéis) do im-
plante localizado dentro da cóclea. Converte os sinais digitais do processador em
energia elétrica; 4) Nervo auditivo que é estimulado pela energia elétrica e envia sinais
ao cérebro para o processamento da audição.

Com a utilização do IC, o som percebido pode se diferenciar radicalmente dos pa-
drões acústicos normais. Para proporcionar uma audição completa ao usuário de
implante coclear, é necessário desenvolver habilidades auditivas além da detecção
sonora proporcionada pelo aparelho (Lima e Santos, 2007).
Atualmente, muito se tem avançado na tecnologia dos implantes cocleares e suas
formas de processamento do som têm mostrado excelentes benefícios. Embora exis-
tam diversos estudos sobre os benefícios do Implante Coclear para a percepção de
fala, a percepção da música ainda se constitui um vasto campo de estudo para os
profissionais da área e ao mesmo tempo um dos maiores desafios para os usuários
de IC.
Os prováveis benefícios oferecidos aos usuários de implante coclear por meio de ati-
vidades de apreciação musical dirigida, certamente nortearão futuras pesquisas na
área, bem como contribuirão para seu desempenho na percepção e produção da fala
e na inserção e\ou re-inserção destes indivíduos no mundo da música e na fruição
da mesma como prática social.
Cervellini (2003) ressalta em sua obra que a música, como uma forma de comuni-
cação, é fundamental ao ser humano porque carrega em seu bojo a possibilidade de
viver, sentir e expressar emoções. Sendo música uma das formas de lazer mais comu- 65
mente descritas, se torna imprescindível a tentativa de propiciar a percepção musical
satisfatória aos usuários de implante coclear, visando proporcionar melhor qualidade
de vida e socialização do mesmo.
Na tentativa de identificar relações existentes entre habilidades musicais e habilida-
des psico-acústicas, foram realizados estudos sobre a plasticidade cerebral de adultos
(Gil et al., 2000; Brennan e Stevens 2002). Por meio do treinamento perceptivo de
intervalos, ritmo e outros, a prática musical estimula o desenvolvimento da percep-
ção auditiva melódica e harmônica.
Estudos constataram que é possível generalizar os benefícios do treinamento audi-
tivo, realizado para um tipo de estímulos sonoros, para outras situações de escuta
(Oxenham et al., 2003).
O IC foi projetado, principalmente, para permitir a boa percepção de fala em am-
bientes silenciosos. Embora bem sucedido nesta área, seu desempenho no que se re-
fere à percepção da música tem sido muito inferior ao ideal. Os usuários de IC
relatam ter a música como o segundo estímulo acústico mais importante em sua vida,
perdendo somente para a compreensão da fala; entretanto, a maioria destes se queixa
de não conseguir sucesso nas tarefas perceptivo-musicais.
Para entender o motivo do implante não codificar bem a música, é necessário com-
preender como o sistema auditivo de um normo-ouvinte codifica música. Um dos
elementos fundamentais da música é a melodia. De acordo com Limb (2006), o
processamento de melodias e sons musicais exige estruturas altamente especializadas
e diferenciadas desde e captação dos sons pela orelha externa, sua condução na orelha
média e transdução na orelha interna, até a discriminação no córtex auditivo pri-
mário, envolvendo as habilidades de resolução temporal, resolução de freqüência
(ou espectral) e codificação da intensidade. Por este motivo, o autor considera que
o reconhecimento da música seja uma das condições mais desafiadoras e difíceis
para o usuário de IC.
Estudos recentes têm mostrado a dificuldade dos usuários de IC para reconhecer a
música, apesar de a maioria apresentar excelentes resultados nos testes de reconhe-
cimento de fala em conjunto aberto. Por conta da necessidade de se avaliar aspectos
da audição que vão além do reconhecimento de fala, Nommons et al., (2008) de-
senvolveram um protocolo computadorizado, denominado “Clinical of Music Per-
ception test”, para avaliação quantitativa do desempenho desses indivíduos em
discriminar e reconhecer padrões melódicos. A administração é realizada em campo
livre com medidas padronizadas. A avaliação engloba as habilidades de discrimina-
ção de pitch, identificação de timbre e identificação de melodias, e dura, aproxima-
damente, 45 minutos.
Gfeller et. al (2007) avaliaram a habilidade de discriminação de pitch em função do
tamanho do intervalo de freqüência e as relações dos resultados com os dados de-
66 mográficos, bem como a capacidade de reconhecimento de melodia em 114 indiví-
duos implantados. Os pacientes com inserção completa do feixe de eletrodos longo
foram significativamente pior que os indivíduos usuários de implante de feixe curto
que usavam Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI) convencional con-
comitante. Houve uma correlação significativa entre a habilidade de discriminação
de pitch e o reconhecimento de melodias familiares.
Looi et al. (2008) estudaram o reconhecimento de 38 pares de ritmo; a escala de
Pitch em intervalos de freqüências de uma oitava, meia oitava e um quarto de oitava;
o reconhecimento de 12 instrumentos e o reconhecimento de melodias familiares
em indivíduos usuários de AASI convencionais e em usuários de IC. Não houve di-
ferença entre os grupos na tarefa de reconhecimento dos padrões rítmicos e no re-
conhecimento de instrumentos musicais, porém houve diferença estatisticamente
significante entre os grupos no teste de reconhecimento de pitch e de melodia, com
as médias dos indivíduos usuários de IC piores em relação aos usuários de AASI.
Com relação ao método para o estudo do reconhecimento musical em usuários de
AASI ou IC, a literatura internacional, com freqüência, apresenta os testes para a
percepção do timbre (reconhecimento de instrumentos musicais), do Pitch (escala
de intervalos de oitava), de músicas familiares (gravações tradicionais) ou melodias
(sons musicais tocados em algum instrumento, ex: Flauta ou Piano) – Looi et al.
(2008); Nimmons et al. (2007); Sucher e McDermont (2008); Gfeller et al. (2007).
Outros realizaram a avaliação por meio de questionários como PMMA (Primary
Measures of Music Audition) (Filipo et al. 2008; Lassaletta et al. 2008; Brockmeier
et al. 2007).
Em seus estudos, Sucher e McDermont (2007) e Laneau et al. (2006) sugerem que
o baixo desempenho de usuários de IC para reconhecer a música reside na dificul-
dade de discriminação de pitch, habilidade que está preservada em normo-ouvintes.
A percepção dos intervalos pelo ouvido humano é logarítmica. Isto significa que
uma progressão exponencial de freqüências é percebida pelo ouvido como uma pro-
gressão linear de intervalos, o que poderia ser prejudicado pelo filtro utilizado na
estratégia de codificação de fala (ECF) utilizada no IC. Já Haummann et al. (2007)
atribuem a dificuldade com música não só à limitação na percepção do pitch, mas
também do timbre.
Para Vongpaisal et al. (2006), as dificuldades em perceber as características funda-
mentais para o reconhecimento da música derivam do fato do processador de fala
ainda ser insuficiente na codificação espectral, filtrando muitos detalhes importantes.
Gfeller et al. (2006) acreditam que a preservação de resíduos auditivos nas freqüên-
cias graves seria um fato importante e que poderia auxiliar no reconhecimento da
música popular.
Em média, os indivíduos implantados não apresentam dificuldades em identificar
o ritmo, porém, independente da estratégia de processamento de fala e do modelo
do implante utilizado, o reconhecimento de melodias, especialmente aquelas sem 67
pista verbal, é muito reduzido. A percepção do timbre geralmente também é insa-
tisfatória e os usuários tendem a relatar uma qualidade de som pobre e pouca satis-
fação ou prazer em escutar música (McDermoott, 2004).
O estudo de Silva et al. (apud Silveira et al. 2002) demonstrou que o treinamento
musical favorece a eficácia das habilidades auditivas como atenção e discriminação
de freqüências, intensidade e duração de estímulos sonoros, otimizando assim as ha-
bilidades de processamento auditivo.
Tendo a plasticidade do sistema nervoso auditivo central como comprovação com-
portamental, neurofisiológica e fundamento para o desenvolvimento auditivo de
adultos, o treinamento auditivo melhora a percepção de sinais acústicos complexos,
proporcionando seu aprimoramento no que se refere a elementos como timbre, du-
ração e freqüência, contidos na audição tanto da fala quanto da música (Schochat
et al. 2002, Roth 2001, Lin 2002).
Recentemente, Vongpaisal et al. (2004a) avaliaram as habilidades para o reconhe-
cimento de música em um grupo com 10 usuários de IC entre 8-18 anos de idade.
Juntamente com estes, havia também um grupo controle com pessoas de audição
normal. Ao contrário de outros estudos que utilizavam canções familiares ou can-
ções folclóricas tradicionais, os autores optaram pela utilização de canções populares.
Cada canção possuía quatro versões, sendo estas: Gravação original (voz e instru-
mental), somente instrumental (sem voz), Somente Melodia no piano e Melodia
no contra baixo acompanhada com bateria. Os autores perceberam que não houve
nenhum sucesso nas tarefas para o reconhecimento somente com as versões instru-
mentais. Outro estudo, utilizando crianças e adolescentes, objetivou o reconheci-
mento de temas musicais dos programas de televisão favoritos dos participantes
(Vongpaisal et al., 2004b). Foram oferecidas diferentes versões para realização da
tarefa, que envolveu a música original, versões instrumentais e versões melódicas.
Os autores obtiveram o mesmo resultado do estudo mencionado anteriormente: so-
mente as versões originais e com voz foram reconhecidas pelos usuários de IC.
Objetivando replicar o estudo de Vongpaisal et al. (2004b) com crianças japonesas
e verificar seu desempenho diante da particularidade do ensino musical e da expo-
sição musical desde a tenra idade no Japão, Nakata (2005) realizou o estudo utili-
zando versões originais, instrumentais e com a melodia realizada por uma flauta
sintetizada. O autor concluiu que as crianças japonesas puderam identificar os temas
musicais de seus programas prediletos com mais facilidade e sucesso que seus pares
canadenses.
Um aspecto importante no estudo da percepção da música em usuários de IC é a
possibilidade de viabilizar, diante dos resultados, propostas de treinamento para o
aperfeiçoamento desta habilidade (Galvin et al., 2007). Fu e Galvin (2007) desen-
volveram um programa computadorizado de treinamento auditivo com o objetivo
68 de direcionar a reabilitação auditiva em casa. Tal recurso mostrou-se efetivo e me-
lhorou a habilidade de reconhecimento de fala e de música dos indivíduos implan-
tados que fizeram seu uso correto.

Considerações Finais
A presente pesquisa intencionou realizar um levantamento bibliográfico referente
ao processo de percepção dos sons da fala e da música em pessoas usuárias de IC,
bem como conceituar e relacionar a percepção sonora com o processamento auditivo,
para tarefas que envolvem habilidades para o processamento temporal utilizando
os parâmetros de freqüência e duração.
Estudos sobre a percepção auditiva com adultos usuários de IC conquistam, a cada
dia, um espaço significativo na literatura médica. No entanto, a maioria destas possui
sua origem de interesse no funcionamento e na programação do equipamento de
IC. Tal fato aponta para a necessidade de pesquisas voltadas à realização e elaboração
de programas para ao treinamento auditivo do usuário de IC, a fim de possibilitar a
otimização das habilidades auditivas por meio da realização de atividades que esti-
mulem a plasticidade cerebral para a percepção de estímulos auditivos, principal-
mente da música.
Em relação às informações obtidas sobre a percepção musical com o IC, é impor-
tante ressaltar que não foram encontrados, na literatura, dados referentes à percepção
musical de usuários de IC na população brasileira. Os estudos encontrados referem-
se apenas a indivíduos da América do Norte, Europa, Ásia e Japão, o que sugere um
vasto campo a ser explorado em nosso país, tanto por Fonoaudiólogos quanto por
Musicoterapeutas e Educadores Musicais que desejam contribuir com o campo das
Artes Musicais nas Neurociências. Um aspecto importante no estudo da percepção
da música com usuários de IC é a possibilidade de viabilizar propostas de atividades
musicais que contribuam para o treinamento e aperfeiçoamento, não só das habili-
dades auditivas, mas também cognitivo-musicais.
Acredita-se que, por meio desta pesquisa, seja possível avaliar a percepção da música,
a partir da utilização de parâmetros de duração e freqüência, comuns entre o pro-
cessamento do som pelo equipamento de IC e a produção musical; verificar estra-
tégias para o aprimoramento do reconhecimento de timbres utilizando
instrumentos musicais variados, bem como otimizar o desempenho auditivo dos in-
divíduos participantes para atividades cotidianas, principalmente para as tarefas de
audição e apreciação musical.
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Critérios analíticos perceptivos para a o estudo da textura
baseados em correntes auditivas
e sua relação com a forma musical
Jorge Alberto Falcón 73

jorgef@musician.org
PPGM – Universidade Federal do Paraná

Resumo
Sugerem-se aqui alguns critérios analíticos para a análise das texturas em música. A abor-
dagem para o trabalho se realiza com base em princípios cognitivos, primordialmente na
interpretação perceptiva das cadeias auditivas que geram planos sonoros e os tipos de
vínculos que se produzem entre eles para conformar texturas. Analisando a matéria sonora
e os critérios de organização dos materiais, podemos estabelecer alguns princípios (inte-
gração, independência e subordinação) que estruturam sistemicamente a arquitetura mu-
sical. Finalmente considera-se a variável complexidade-simplicidade e sua resultante
perceptiva de tensão-relaxamento e a variável permanência-mudança em função da evo-
lução temporal na relação da textura com a forma musical. Há exemplos de aplicação
destes conceitos.
Palavras chave
Análise musical, cadeias auditivas, textura, cognição, Gestalt.

Este estudo sobre textura musical visa propor critérios analíticos que consigam, por
meio da análise perceptiva, estabelecer conceitos sólidos para a categorização da ma-
téria sonora e sua organização, e da interpretação pelo cérebro em unidades de sen-
tido.
Primeiramente devemos estabelecer uma definição do objeto a estudar. Para isto
usaremos uma definição ampla e genérica de Textura, baseada nos conceitos de En-
rique Belloc:
Textura é a resultante da qualidade da matéria sonora e os modos de organização
a que esta é submetida.
Para o estudo da matéria sonora se aproveitarão os trabalhos de P. Schaeffer (1988)
e M. Chion (2009) sobre a tipo-morfologia do objeto sonoro.
Os modos de organização referem-se a:
1. Quantidade de planos sonoros;
2. Hierarquias existentes entre os planos sonoros;
3. Critérios de relacionamento entre eles;
4. Evolução e comportamento no tempo das unidades texturais (doravante de-
nominadas UT).1
É necessário definir plano sonoro da maneira mais exata possível, porque este con-
ceito será fundamental para todo o trabalho.
Chamaremos plano sonoro — doravante PS — ao som ou conjunto de sons que por
causa da sua constituição psicoacústica (natureza da sua conformação tipo-morfo-
74 lógica) ou sua função (sons de diferentes características tipo-morfológicas que se re-
lacionam por igualdade ou semelhança de comportamento ou principio de ação) são
percebidos como uma unidade funcional e de sentido dentro da textura da música.
Em alguns instrumentos, como a bateria, é possível reconhecer perceptivamente a
coexistência de mais de um PS devido a ser um instrumento formado, por sua vez,
por vários instrumentos de características tímbricas diferentes como se pode ver na
figura 1:

Fig.1 — dois primeiros compassos da bateria da música Kashmir de Led Zeppelin.


Neste fragmento, é possível reconhecer quatro planos superpostos, correspondendo
a (1) prato de ataque (crash), (2) chimbal (hi-hat), (3) caixa (snare drum) e (4)
bumbo (kick drum). Todavia devem-se fazer algumas considerações já que é possível
observar que ocupam diferentes espaços registrais, além de ser possível agrupá-los
em dois pares de planos sonoros por questões de espessura, riqueza e cor tímbrica :
(1) PSs 1 e 2 e (2) PSs 3 e 4.
Assim reconhecem-se PSs de características diferentes. Isto é possível porque inter-
pretamos e segregamos as diferentes correntes auditivas devido às características
tipo-morfologicas dos sons que a constituem. Bregman (apud Levitin, 2007) chama
isto de encadeamento perceptivo pelo timbre (streaming by timbre, no original em
inglês).2 Nosso cérebro segrega ou integra em duas ordens: simultânea e sucessiva-
mente. A integração ou segregação na simultaneidade representa a maneira pela
qual discriminamos sons que se manifestam, por motivos de harmonicidade ou cons-
tituição espectral, como eventos diferenciados que conformam, ao se desenvolverem
no tempo, correntes auditivas espectrais coerentes.
1. Modos de organização da matéria sonora: quantidade de planos sonoros.
Nosso cérebro tem a capacidade de reconhecer e diferenciar a quantidade de PSs
existentes num trecho musical. É possível ter de um a centenas de PSs superpostos,
porém a informação sobre quantidade de planos se apresenta mais significativa se
associada ao tipo de vínculo relacional existente entre estes PSs.
A menor quantidade possível de PSs é um. Este tipo foi denominado tradicional-
mente de monofonia ou monodia. Todavia é possível percebermos, em algumas si-
tuações monódicas, a existência virtual de mais de uma corrente auditiva ou PS. Este
fenômeno é chamado de polifonia figurada ou virtual. Este recurso é muito usado
por músicos barrocos em obras para instrumentos solos, como as suítes para cello
de J. S. Bach e por guitarristas como Angus Young em Thunderstruck e outros mú-
sicos de hard rock ou classic rock como Ingwie Malmsteen ou Ritchie Blackmore.
2. Modos de organização da matéria sonora:
hierarquias existentes entre os planos sonoros. 75

Nem todos os PSs se apresentam à nossa percepção com a mesma importância. Al-
guns planos parecem estar numa posição superior de hierarquia perceptiva que ou-
tros. Isto se pode ser explicado de várias maneiras:
• Um PS aparece ressaltado à nossa percepção quando possui informação em
maior quantidade ou de melhor qualidade comparativamente com outro de
quantidade e qualidade de informação menor ou mais pobre. Belkin (1999)
afirma que complexidade, novidade, volume e riqueza tímbrica são dimensões
que usualmente hierarquizam um PS superiormente a outro.
• Nosso cérebro tem tendência à economia de esforços. Unidades gestálticas mais
compactas, claras, fechadas e simples tendem a ser percebidas com mais facili-
dade.
• O que a Gestalt chama de experiência anterior faz com que um objeto conhecido,
que aparece junto a um material menos familiar, se perceba como mais impor-
tante, pela associação ao objeto já assimilado previamente. Desta maneira o cé-
rebro não tem que fazer um esforço de interpretação extra, recuperando as
significações extraídas do objeto numa oportunidade previa. Isto parece con-
traditório, com a idéia de Belkin exposta anteriormente, sobre a novidade do
material, assunto que será esclarecido mais adiante.
• No caso da música, por ser um fenômeno que precisa do tempo para acontecer,
também podemos acrescentar a variável evolução temporal. Krumhansl (2000)
afirma que a organização perceptiva de padrões temporais só é possível sem ne-
cessidade de apelar à memória numa faixa limitada de tempo (até 5 seg.).3 Assim,
gestalts que duram mais do que este período de tempo são processadas mais de-
moradamente e com maior dificuldade, perdendo seu lugar de figura hierarqui-
zada, enquanto figuras dentro desses limites temporais são interpretadas mais
fácil e rapidamente.4
• Quando estamos frente a um exemplo como um lied de Schubert, podemos
comprovar que os PSs que incluem texto possuem um nível semântico diferente
ao carregar em si a significação da palavra. Isto é, visto de outra maneira, um PS
com informação diferenciada quantitativa e qualitativamente.
Para organizar os critérios hierárquicos entre PSs utilizaremos a abreviatura Hier1
para o PS mais importante, Hier2 para o segundo em importância perceptiva e assim
por diante, sendo o último da numeração o menos hierarquizado.
Assim, é muito freqüente a superposição de vários PSs com diferentes hierarquias.
As relações hierárquicas entre PSs de um trecho musical não são fixas, definitivas,
nem estáticas. É muito freqüente a troca de hierarquias de um PS passando de uma
Hier1 a outra menos importante. Na textura chamada tradicionalmente de polifonia,
e sobretudo na polifonia contrapontística da alta Idade Média e do Renascimento,
são muito comums texturas com vários PSs trocando de hierarquia permanente-
mente sem definir claramente um plano hierarquizado por sobre os outros. Os pri-
76 meiro 20 segundos na interpretação de The Consort of Musicke do madrigal Gioite
voi col canto de Carlo Gesualdo, do V Libro dei Madrigali, é um exemplo de cinco
PSs que alternam permanentemente hierarquias e predominâncias perceptivas.
3. Modos de organização da matéria sonora:
vínculos e critérios de relacionamento entre PSs num trecho musical.
Quando num trecho musical coexistem dois ou mais PSs podemos ter duas situa-
ções: as hierarquias perceptivas entre PSs serão diferentes ou iguais.
Na primeira situação, algum deles se apresentará ressaltado perceptivamente. Aquele
que tiver informação mais interessante quantitativa ou qualitativamente, gestalts
mais claras e fáceis de apreender, novidade, ou referência a algo conhecido5 será prio-
rizado por nossa percepção como mais importante do que outro. Esta configuração
textural será chamada de figura-fundo, analogamente a fenômenos perceptivos vi-
suais.
Denominaremos assim, então, de subordinação ao critério de relacionamento no
qual uma figura se apresenta hierarquizada (Hier1) por sobre o fundo, subordinado
perceptivamente à figura principal (Hier2).
Quando as hierarquias entre os PSs são iguais se apresentam duas situações: (1) os
PSs são muito parecidos tipo-morfologicamente e/ou compartilham algum modo
de ação ou comportamento que os unifica; ou (2) se manifestam como objetos in-
dependentes tipo-morfologicamente e/ou diferem no modo de ação ou comporta-
mento.
No primeiro caso estamos frente a uma situação de integração. Este critério descreve
vários PSs agindo uniformemente de uma maneira articulada e em plano de igual-
dade. A situação mais freqüente se apresenta quando os PSs (isotímbricos ou não)
se articulam simultaneamente. Os primeiro 14 segundos da Boemian Rhapsody do
Queen, a secção A da música Flagolet do grupo Oregon, o Ach wie flüchtig, ach wie-
nichtig, BWV 26 de J. S. Bach e os primeiros 12 compassos da “Grande porta de
Kiev” de Quadros de uma exposição de M. Mussorgsky são exemplos de textura de
blocos sonoros em diferentes contextos: tonal-livre6 (Queen), atonal (Oregon),
tonal-contrapontístico (Bach), tonal-modal (Mussorgsky).7 Outras situações textu-
rais de integração, como no caso de tramas, movimento de linhas integradas ou mas-
sas sonoras, envolvem PSs caracterizando movimentos horizontais simultâneos, sem
que nenhum deles seja a priori hierarquizado perceptivamente.8
Quando os PSs manifestam-se como hierarquicamente iguais, embora seja percep-
tivamente clara a diversidade material ou de comportamento, temos um tipo de tex-
tura onde os PSs estão vinculados pelo critério de independência. O começo do
supracitado moteto de C. Gesualdo, a secção B da música Flagolet do grupo Oregon,
os compassos 52 a 65 da Grosse Fugue op. 133 de L. van Beethoven são exemplos de
independência de PSs em música modal (Gesualdo), atonal (Oregon) e tonal (Beet-
hoven).
Assim chegamos a identificar três critérios de relacionamento entre PSs que servirão 77
como eixo do nosso trabalho sobre texturas: (1) o de integração (Cint), (2) o de in-
dependência (Cind) e (3) o de subordinação (Csub).
Baseados nesta idéia de critérios de relacionamentos, pode-se desenvolver uma ti-
pologia de texturas básicas e uma de texturas derivadas que consideram: critério de
relacionamentos entre PSs e hierarquias entre eles. Apresentam-se, nas tabelas se-
guintes, os tipos básicos e derivados de texturas e sua correspondente exemplificação
em músicas existentes, além de uma referência à terminologia tradicional.9
Tabela 1.1 — Texturas básicas
Critério de Definição: Terminologia Exemplos
relacionamento Tipo textural tradicional
Yesterday – The Beatles
Melodia acompanhada/
Figura-fundo Lachen und Wienen, de F.
Textura homofônica
Schubert
Subordinação (Csub) Esh Dany Lik (Shaby Marro-
Textura homofônica
por variações simultâ- quí), de Douglas Felis
Figura-fundo
neas ou por tratamento
heterofônico
Integração (Cint) Blocos sonoros Homorritmia/textura Secção A de Flagolet, Oregon.
acordal Prelúdio no. 4 para violão, de
H. Villa Lobos
Trama Quarteto no. 1 de K.
Penderecki
(3:14 a 3:39 min.)
Massa sonora Micropolifonia Atmospheres, de G. Ligeti
A Nightingale Sang in Berkeley
Square na versão de Manhattan
Transfer.(0:00 a 0:49 min.)
Linhas integradas Textura polifônica Because, de Lennon e MccCart-
ney, na versão do remix LOVE,
de G. Martin
Linhas Contraponto/Textura Gioite voi col canto de Carlo
independentes polifônica Gesualdo (como citado ante-
riormente)
Independência Camadas – Coro, de L. Berio
(Cind) superpostas
Gruppen, de K. Stockhausen.
Canto esquimó,
segundo J. J. Nattiez.10

Chamamos texturas derivadas a aquelas que são variações de alguma textura básica
ou que combinam mais de um critério de relacionamento.
Tabela 1.2 — Texturas derivadas

Definição: Definição tradicional Critério de Exemplos


Tipo textural relacionamento
O arpejo tem gênese de bloco Prelúdio no. 1 do Cravo bem
78 sonoro, mas ele se encontra des- Temperado de J. S. Bach
Bloco-linha Arpejos dobrado no tempo.
Podem ser ressonantes ou não.11

Linhas independentes Heterofonia Superposição mais ou menos in- Música de jivaros (Ecuador)
na organização, mas de- dependente dos mesmos mate- como no CD Voices of the world,
pendente nos materiais. riais (independência de modo de faixa 2.
ação ou comportamento e inte-
gração por similitude dos mate-
riais)
Linha multidimensional Klangfarben-melodie, Linha que perceptivamente se Five Pieces for Orchestra (Op.
ou heterogênea melodia de timbres, po- desloca entre planos de diferen- 16) de A. Schoenberg
lifonia obliqua tes características materiais Five Pieces for orchestra, op. 10
de A. Webern.
Pontilhismo “Nuvens” de sons pon- Tipo de trama esparsa e irregu- Mode de valeurs et d’intensités de
homogêneo tuais. lar, com pouca ou nenhuma va- O. Messiaen
riedade tímbrica Variations for piano, op. 27 de A.
Webern
Pontilhismo heterogê- Combinação entre os As linhas se estabelecem entre Tone twilight zone, de Cornelius.
neo dois últimos dimensões sonoras ou PSs dife-
rentes.
Textura cumulativa — Superposição progressiva de PSs. Bolero, de M. Ravel
Birinites nigths, de Beat dada
(2:10 a 3:41 min.)

Combinações de texturas
Freqüentemente nos encontramos com situações texturais mais complexas do que
os tipos descritos até o momento. Esta complexidade é dada por dois motivos:
As texturas superpostas podem ser analisadas como
a superposição de mais de um tipo básico, de mais
Superposição de texturas básicas de um tipo de derivado, ou a superposição de bási-
cos e derivados.

É freqüente nos encontramos com misturas de tex-


turas que não obedecem a algum tipo de textura de-
terminado ou que apresentam características de
Mistura de texturas / mudanças permanentes de textura que não permi-
texturas homogêneas tem estabelecer algum tipo de padronização e con-
seqüentemente uma descrição sistemática e
orgânica.12 Chamaremos estas situações texturais
de texturas mistas ou heterogêneas.

4. Modos de organização da matéria sonora:


O comportamento da matéria sonora e sua organização na variável tempo.
Quando uma situação textural se apresenta à nossa percepção como definida, clara,
estável, reconhecível como uma unidade de sentido durante um período considerável
de tempo será chamada de Unidade Textural (doravante UT). A primeira seção do
segundo movimento da Sonata no. 2 de L. V. Beethoven se apresenta como uma
UT uniforme, já na primeira secção do primeiro mov. da sonata op. 53 (Waldstein)
é possível reconhecer quatro UTs sucessivas diferenciadas. 79
Quanto ao comportamento no tempo das texturas podemos considerar duas cate-
gorias:
• Unidades texturais estáveis (doravante UTe);
• Unidades texturais dinâmicas (doravante UTd).

As UTe são unidades de sentido que mantém sua conformação de materiais e sua
organização.
As UTd são aquelas unidades de sentido que, por meio da transformação dos mate-
riais ou dos processos organizacionais, conduzem a uma constituição textural dife-
rente.
Wishart (1996) propõe uma classificação semelhante a nossa: (1) sistemas estrutu-
ralmente estáveis; e (2) sistemas estruturalmente instáveis. Os primeiros definidos
como secções com “pequenos desvios das condições iniciais que conduzem a pe-
quenos desvios no final (outcome) da secção”; e os segundos como possuindo “pe-
quenos desvios das condições iniciais que conduzem a finais de secção
completamente diferentes”. Não encontramos em Wishart referência alguma a sis-
temas que possuam pequenos ou grandes desvios que retornam à configuração ori-
ginal. Para nossa classificação utilizaremos a acepção de UTd de características cíclicas.
Relação das UTs com processos formalizadores
A relação permanência/mudança em relação a texturas é um fator importantíssimo
na estruturação formal de uma peça musical, e a decodificação destes comportamen-
tos é chave para nosso trabalho e função primordial da ferramenta de análise textural
aqui criada.
Freqüentemente unidades formais como secções, temas ou partes de músicas pos-
suem uma ou mais UTs. Algumas peças como o coral Ach wie flüchtig, ach wienichtig,
BWV 26 de J. S. Bach, Yesterday, o prelúdio Op. 28 No. 1 de Frederic Chopin ou
“Catacombae” de Quadros de uma exposição de M. Mussorgky são constituídas por
um único tipo de UT.
Músicas como Flagolet do grupo Oregon tem duas UT diferentes. A primeira parte
(secção A) corresponde ao tipo textural de blocos sonoros como classificada ante-
riormente, enquanto a segunda parte (B) responde ao critério de linhas indepen-
dentes. O retorno ao conceito de blocos sonoros em 3:58 minutos indica uma
recorrência textural e a determinação de uma estrutura formal baseado no critério
da análise textural tripartita: A-B-A.13
É possível estabelecer um critério formalizador baseado no uso das texturas em obras
de maiores dimensões. “A grande porta de Kiev” da citada obra de Mussorgky, Close
to the edge do grupo Yes ou Tubular Bells de Mike Oldfield servem como exemplos
de obras nas quais cada nova UF apresenta um tipo de textura diferente ou uma va-
80 riação em algum parâmetro das UTs originais que caracteriza a mudança de uma
secção a outra. A obra de M. Oldfield tem como particularidade formal ser uma
peça em duas partes (com duração aproximada de 45 minutos) que não apresenta,
em nenhum momento, qualquer tipo de recorrência, nem de materiais nem de or-
ganização, sendo assim uma obra com continuidade de UTs diferentes, estáveis ou
dinâmicas, que se configuram em unidades de sentido, se transformam ou mudam
abruptamente, porém nunca se repetem.

Discussão
O estudo das texturas oferece um vasto campo de pesquisa, tanto na relação textura-
forma — considerando a variável de evolução temporal para a compreensão e for-
malização de uma obra musical e suas implicações significantes para o ouvinte — ,
quanto no estudo da relação complexidade-simplicidade e suas conseqüências per-
ceptivas. UTs com maior quantidade de PSs, maior quantidade de critérios de rela-
cionamento simultâneos, ou com quantidades ou critérios que mudam
perceptivelmente em curtos períodos de tempo oferecem maior dificuldade de
apreensão que UTs com menor quantidade ou menor variação de PSs e critérios de
relacionamento. Esta relação complexidade-simplicidade configura-se como um ele-
mento importante na relação perceptiva de tensão-distensão (relaxamento) no plano
formal de uma obra. O Bolero de M. Ravel é um exemplo de complexidade crescente
a través do aumento quantitativo da textura (conjuntamente com outros parâmetros
– dimensões). A Grosse Fugue op. 133 de Beethoven se apresenta como um claro
exemplo da variedade complexidade-simplicidade em relação a critérios formaliza-
dores, toda vez que esta mudança quantitativa e qualitativa produz uma resultante
perceptiva de altos e baixos de tensão que conduz nossa atenção ao longo da peça.
Temperley (2001) afirma que “padrões irregulares produzem texturas irregulares em
vários níveis.” Pode-se inferir então que a complexidade interna de um trecho musical
terá conseqüências em níveis formalizadores superiores, quer dizer, que os elementos
constitutivos de um trecho musical transferem suas características individuais a ní-
veis de estruturação formal superiores. Trechos com PSs complexos resultam em
texturas perceptivamente complexas.
A relação permanência-mudança é um fator fundamental para interpretarmos a
forma musical. Quando se percebe alguma mudança na textura, esta mudança se
manifesta como um elemento significante que modifica a relação do trecho com o
seu contexto todo, de maneira sistêmica. Uma unidade formal e de sentido ressalta
suas características quando confrontada a outra de diferentes características.
A forma se estabelece assim como resultado do confronto das características de cada
parte, gerando assim uma relação estrutural que se constrói a traves da memória.

Considerações finais
81
Este trabalho sugere alguns princípios analíticos baseados na idéia de correntes au-
ditivas por timbre. Estas correntes constitutivas do fluxo sonoro comportam-se
como planos sonoros que, num contexto polifônico, se interrelacionam por inte-
gração, subordinação e independência. Estes critérios surgem da combinação das ca-
racterísticas tipo-morfológicas da matéria e dos modos de organização a que estão
submetidas, mas são estruturadas pelo nosso sistema cognitivo de maneira de po-
dermos interpretá-las para lhes atribuir sentido e se constituírem em elementos sig-
nificantes. Assim, a análise texturas surge como resultado dos critérios de
relacionamento entre PSs permitindo estudar construções sonoras que não se ajus-
tam aos modelos tradicionais, gerando uma tipologia dinâmica e aberta, porém com-
pleta e consistente que funciona como uma ferramenta analítica bastante precisa
para o estudo da evolução temporal da matéria sonora, interpretada como a forma
musical.

1 Denominaremos Unidades Texturais (UT) a trechos mais ou menos estáveis onde se aprecia
uma conformação textural definida estável ou um processo em andamento, orgânico e fun-
cional de transformação da uma textura dada.
2 Stream no original representa uma noção psicoacústica que se refere a padrões e objetos so-
noros que são sucessivamente agrupados numa única unidade perceptiva.
3 Miller (1956, apud Bigand, 2001) considera sete o numero de segundos, com uma variabi-
lidade de mais ou menos 2 segundos. Fraisse (1974, apud Bigand ibid) acrescenta que este li-
miar de tempo pode ser extendido se os elementos são organizados em chunks ou sub-grupos.
4 Melodias extensas que superam os 5 segundos como as do Bolero de M. Ravel ou The mad
hatter rhapsody de Chick Corea oferecem dificuldades para a memorização e reprodução.
5 Isto parece à primeira vista contraditório, como observado anteriormente, porém depen-
dendo das circunstancias pode ser que um ou outro critério, indistintamente, justifiquem a
prioridade perceptiva. Por exemplo: num contexto de informação redundante um elemento
novo se destaca como objeto hierarquizado, como o tema das cordas na Rhapsody in blue de
G. Gershwin, e, contrariamente, numa situação de muita informação diversificada e/ou nova
um elemento conhecido pode chamar a atenção por ser uma unidade de sentido com infor-
mação extra (lei da experiência anterior), como na recapitulação dos temas numa sonata do
período neoclássico.
6 Chamaremos de tonal-livre ao uso não estrito de algumas regras do sistema Harmônico tra-
dicional no tratamento vertical das alturas que existe na música popular de origem europeu
(como construção de acordes por superposição de intervalos de terças, uso de fórmulas ca-
denciais, entre outros).
7 É necessário fazer algumas considerações sobre a idéia de hierarquias nestes exemplos. Os
exemplos de Queen e Oregon apresentam claramente uma igualdade de hierarquias entre
todos os PSs. Já nos exemplos de Bach e Mussorgsky é clara a existência de um plano mais
hierarquizado à nossa percepção: o da voz superior. Existem duas maneiras de interpretar
isto: histórica e biologicamente. Historicamente é possível justificar devido a que toda a mú-
sica a partir aproximadamente de 1600 nasce sobre a idéia tradicional de textura homófona,
82 onde uma figura é estruturalmente mais importante que o resto, portanto a voz superior (no
caso particular e freqüentemente em grande parte da música tradicional ou da pratica comum)
destaca-se por uma necessidade cultural de inserção no meio histórico: toda música deste pe-
ríodo tem uma estrutura melódica com Hier1 “obrigatória”. Sloboda (2008) explica que numa
situação textural como a que estamos estudando (o caso de existir uma suposta semelhança
de materiais e comportamento ou igualdade de qualidade e quantidade de informação entre
os PSs) a linha superior aparece como mais saliente, seguida pela linha mais grave e por último
as intermediarias. A explicação do autor nos sugere que na voz superior há menos mascara-
mento que nas outras vozes (pag. 226).
8 Serve aqui a consideração feita na nota de rodapé anterior de que a música da prática comum
requer, por questões sócio-culturais e estilísticas, uma linha melódica hierarquizada. A música
dos séculos XVII a XIX é uma “luta” de forças horizontais e verticais com destaque para
uma(s) linha(s) diferenciada(s) como figura(s).
9 Serão usadas neste trabalho indistintamente a terminologia tradicional e a terminologia es-
pecífica proposta quando necessário, já que não existe interesse em substituir uma pela outra.
10 No canto esquimó acompanhado por tambor relatado por Nattiez (1984), a batida não é
isócrona, e se se gravar o canto mais de uma vez não se obtêm as mesmas batidas.
11 Um arpejo ressonante é aquele no qual pode ser sustentada mais de uma nota simultânea,
como um piano ou um órgão, enquanto não ressonantes são aqueles que cada nota se articula
quando termina a anterior, criando a sensação de uma única linha.
12 Muitas vezes os compositores/produtores/arranjadores não consideram a textura como
um elemento estruturador do discurso sonoro que possa ser planejado ou organizado. As tex-
turas resultantes desses procedimentos possuem características aleatórias, instáveis ou desar-
ticuladas, sem julgamento de valor de nossa parte.
13 Observa-se que este tipo de estruturação formal tem estreita relação com a relação textura-
forma nas aberturas francesas do período barroco e em particular as das suítes orquestrais de
J. S. Bach.

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83
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Young A., Young, M. , Thunderstruck AC/DC, in The razors edge, USA, Atco Records, 1990,
91413-2.
Estudo sobre possibilidades da concepção neurocientífica
da percepção rítmica na análise de estruturas musicais
Pedro Paulo Kohler Bondesan dos Santos
84 ppsantos@usp.br
Departamento de Música da ECA, USP – Universidade de São Paulo

Resumo
Estudo comparativo em progresso que visa examinar possíveis ambiguidades entre a per-
cepção do ritmo musical do ponto de vista da neurociência e estruturas utilizadas inten-
cionalmente na construção musical por compositores e arranjadores, explicitadas em
partituras e gravações. Com base no conceito neurocientífico de beat induction, associado
a partituras e gravações, apresenta um estudo da compreensão do pulso através da per-
cepção. Na conclusão, demonstra a viabilidade da aplicação do modelo de regras de
preferência na dedução do beat musical.
Palavras-chave
Percepção musical; cognição ; beat induction; neurociência; percepção rítmica

Introdução
O estudo da percepção do ritmo musical é parte de um corpus de pesquisa que desde
o século XIX, com os trabalhos pioneiros de Helmholtz, vem cada vez mais se apre-
sentando como uma área interdisciplinar, recorrendo a outras áreas do conheci-
mento para a construção de um perfil da percepção humana dos sons. A tentativa
de se explicar as sensações subjetivas de consonância e dissonância, por exemplo,
moveu parte da pesquisa sobre a psicologia do som, que recorreu não somente a fa-
tores genéricos cognitivos, mas também aos mecanismos sensórios auditivos, tendo
reunido fatores culturais presentes na percepção. Nesse contexto, à medida que são
estudadas relações entre questões da recepção do fenômeno sonoro e as propriedades
físicas dos sons, foi surgindo a denominação psicoacústica (Parncutt 1989: 19).
Outra importante referência utilizada é a psicologia. Nesse campo, destacamos a
orientação de um modelo de percepção das alturas dos sons na musica ocidental por
princípios da Gestalt, em que os mesmos princípios gestálticos anteriormente apli-
cados à percepção visual (princípios de agrupamento: proximidade, similaridade,
good continuation e common fate) podem ser analogamente voltados à percepção
auditiva (Shepard, 1999: 32-34).
A busca por modelos computacionais de reconhecimento sonoro levou ao estudo
da percepção auditiva humana também na questão da rítmica musical, objeto de
nosso estudo. Havia a convicção de que a habilidade de reconhecer e sincronizar rit-
mos seria uma capacidade exclusiva dos seres humanos, sujeita a uma seleção natural
exercida pela cultura, inclusive através da atividade musical. Até que neurocientistas
realizaram experiências demonstrando existir esta habilidade presente também em
animais (Patel 2008). Assim, constatou-se que haveria algo maior na percepção re-
lacionado ao reconhecimento e à sincronização de ritmos.

A percepção do ritmo musical 85

Quando se fala em ritmo, a palavra refere-se ao tempo de espera entre a ocorrência


de um fenômeno e sua respectiva repetição. Em termos musicais, falamos não so-
mente da variação de eventos sonoros no tempo, mas também da mínima unidade
de tempo (implícita ou explícita) de onde esses eventos sonoros também podem ser
múltiplos de alguma maneira.
A essa capacidade de identificar e sincronizar movimentos rítmicos com o pulso de
um trecho musical vem sendo fortalecido o uso da expressão beat induction1 que
significa a indução da percepção métrica do ritmo, com seus tempos acentuados ca-
racterísticos (Desain & Honing 1999). Apesar de ser uma ferramenta cognitiva fun-
damental para a música, o conceito relacionado à expressão vem sendo mais
estudado por sua aplicação em modelos computacionais de reconhecimento de
ritmo do que por sua utilização no campo musical efetivamente.
Neurocientistas de diversas tendências da área, chegaram a um consenso sobre seis
fatores (Temperley & Bartlette 2002), que orientam o processo de beat induction.
Estes fatores atendem a um modelo de regras de preferência:
• Preferência por beats que coincidem com ataques de notas;
• Preferência por alinhar beats com as notas mais longas (para evidencia psicoló-
gica dessa afirmação, ver Povel & Essens, 1985);
• Preferência pela regularidade dos beats;
• “Agrupamento”: tendência a considerar o beat forte no início de uma série de
notas que formam um grupo ou uma frase (Povel & Essens, 1985);
• Harmonia: tendência a associar beats com os pontos de mudança na harmonia
(Temperley, 2001);
• Paralelismo: termo usado para descrever o desenho de uma série de notas que se
repetem. Em música, pode se referir a um arpejo ou a um ostinato, por exemplo
(ou riff, seu equivalente na linguagem da música pop).
Tomando esses fatores de preferência como um modelo para a determinação da in-
dução do beat, chegamos ao propósito de analisar a percepção do relacionamento
entre a rítmica de superfície e o pulso de um trecho musical, comparando-a poste-
riormente à expressão da intenção do compositor ou arranjador, traduzida material-
mente na partitura ou na gravação.
Nesse contexto, a perspectiva da análise musical a partir do acréscimo do conceito
beat induction se altera na medida em que o foco tende a se concentrar na instância
da recepção, ou seja, na percepção do ouvinte.
Além da análise de estruturas rítmicas percebidas, comparadas às suas respectivas
partituras, pretendemos confrontar gravações de versões da mesma música para es-
tilos diferentes. Entendemos que o processo de transposição de estilo musical, co-
86 mumente utilizado na música popular, além de demonstrar preferências de ordem
estética, pode revelar também, em alguns casos, diferentes modos de percepção do
ritmo.
Os trechos musicais pertencem ao grupo da música instrumental da tradição oci-
dental de natureza tonal e a canção popular brasileira. A escolha desses grupos se
deve ao fato de representarem um repertório de grande conhecimento público, ou
seja, consideramos que se trata do material mais exposto ao fenômeno da recepção
que pretendemos estudar.

Análises de gravações comparadas a partituras


Pretendemos analisar alguns trechos musicais, reescrevendo-os ritmicamente e com-
parando-os com as respectivas partituras que os originaram.
Seguindo a estratégia de aplicar o modelo das regras de preferência, esperamos en-
contrar indícios da razão da aparente ambiguidade surgida da comparação entre o
modo como percebemos o ritmo dos compassos iniciais do primeiro movimento da
Sinfonia nº 5, op. 67, em dó menor, de Beethoven (Figura 1.1) e a maneira utilizada
pelo compositor na estruturação de seu pensamento musical.

Figura 1.1 — Beethoven, Sinfonia nº 5, op. 67 em Dó menor:


Allegro con brio (comp. 1-5).
Sabemos, pela partitura, que o compositor explicitou sua construção musical de
modo binário. Porém, não é incomum percebermos a articulação rítmica do motivo
principal como quatro notas em uma estrutura ternária com repouso na quarta nota.
E essa percepção nos leva a conjeturar a respeito de um caráter ambíguo entre a emis-
são e a recepção da idéia rítmica proposta. Na abordagem dessa suposição, baseamos
nossa investigação, a partir das questões de ordem interpretativa e aplicando as seis
regras de preferência mencionadas anteriormente.

Questões interpretativas
Gunther Schuller (1997: 122) analisou cerca de noventa gravações da Quinta Sin-
fonia e encontrou apenas nove maestros que regeram de modo a transmitir a per-
cepção do ritmo como ele foi escrito. Tal pesquisa demonstra que em noventa por
cento das gravações o caráter ambíguo dos primeiros compassos foi valorizado por
maestros como Toscanini, Furtwängler, Abbado, Ashkenazy, Bernstein, Karajan e
Böhm, entre outros. Suas respectivas performances ainda mantinham a duvida em
relação à figura de três notas do primeiro compasso representar auditivamente um
gesto não acentuado (anacruse) ou uma figura mais calcada no tempo forte. Esta- 87
riam eles interpretando equivocadamente a partitura de Beethoven?
Veremos que alguns fatores decorrentes da própria escrita do compositor reforçam
a ambiguidade contida na interpretação e na recepção do trecho de cinco compassos
em questão.
Em primeiro lugar, o andamento extremamente rápido (mínima = 108), faz com
que cada beat se encontre contido dentro de um único compasso, praticamente ob-
rigando a regência em “um” (Schuller, 1997 : 110). Em segundo lugar, a própria es-
crita dificulta a perfeita articulação da anacruse do motivo que inicia o primeiro
movimento da obra e em seguida o apoio em uma nota longa com fermata (Figura
1.2).

Figura 1.2 — Beethoven, Sinfonia nº 5, op. 67 em Dó menor:


Allegro con brio (comp. 1-10): grade orquestral.
Do ponto de vista da interpretação, a solução apontada por Schuller seria a ligeira
acentuação da segunda nota do motivo. É uma solução aparentemente simples, den-
tro dos preceitos da teoria musical tradicional, onde as cabeças de tempo são ligei-
ramente mais acentuadas e os tempos impares também, nas estruturas rítmicas
binárias ou quaternárias.
Entretanto, esta atitude encontra difícil realização frente a outros fatores relativos
ao trecho, como o andamento extremamente rápido e o apoio quase que instantâneo
em uma nota longa com fermata.
Existem alguns aspectos a serem considerados:
A cristalização de uma interpretação considerada importante em um período, passa
a ser referência. Então se por um lado o grande número de interpretações disponíveis
modernamente em gravações cristalizaram a realização ternária do motivo inicial,
fazendo desta prática uma referência, por outro lado poderíamos supor também que
88 Beethoven tinha consciência da ambiguidade rítmica contida em sua proposição de
escrita.
O próprio desenvolvimento motívico desta Sinfonia demonstra uma transformação
da célula rítmica colocada explicitamente em compasso ternário no terceiro movi-
mento a partir do compasso 19 (Figura 1.3).

Figura 1.3 — Tema do 3º movimento Allegro – Quinta Sinfonia de Beethoven –


Op.67
Tal fato, propõe um leitura da ambiguidade do motivo original desta Sinfonia, uma
vez que o compositor retoma uma idéia inicial e incorpora a nova possibilidade rít-
mica. Reforçando outro caráter possível dentro de seu discurso grandemente in-
fluenciado pelas idéias da retórica setecentista.
Retórica esta que ao organizar as maneiras de convencer o interlocutor, estava pro-
fundamente preocupada com os efeitos da recepção das idéias sobre o público.
Como sabemos, estas preocupações são fundamentais para o pensamento musical
setecentista, que pensa a linguagem musical segundo a gramática (correção e clareza
do discurso) e a retórica (efeito persuasivo do discurso junto ao ouvinte).
Do ponto de vista das regras de preferência, esta estrutura – a figura de três notas –
tende a induzir um tempo forte na cabeça da primeira nota (regra 1) e a nota longa
tende a induzir outro beat (regra 2). E pela regra 4 (agrupamento) temos mais um
reforço na percepção do beat sobre a primeira das nota de figura inicial de três notas
(Figura 1.4).

ou

Figura 1.4 — Duas hipóteses para os primeiros cinco compassos.


A estes indícios somam-se a falta de um referencial representando o silêncio na ca-
beça do primeiro tempo e o apoio nas fermatas dos compassos 2 e 5.
Análises comparadas de gravações
Outra vertente de nosso trabalho, também aplicando o modelo de regra de prefe-
rência, consiste em um estudo comparativo de versões da mesma canção, que re-
presentem a transposição de fronteiras culturais e / ou étnicas. Para tanto, tomamos
89
como exemplo a gravação original de Caetano Veloso da canção Beleza Pura, reali-
zada em 1979, comparada à versão da mesma canção em gravação da Banda Skank,
de 2008.
À primeira vista, a comparação revela um fenômeno muito comum na canção po-
pular: a chamada “transposição de estilos”.2
Temos então uma gravação realizada com a chancela do próprio autor em 1979 e
outra “transposta” para um estilo pop, bastante diverso em relação ao primeiro.
Em princípio, o procedimento não é novo e vem sendo realizado pelo menos desde
que a tradição da musica ocidental registra a passagem do renascimento do “cinque-
cento” italiano para o período Barroco como a era da consciência do estilo na musica
(Bukofzer, 1947 : 4). O tempo em que os compositores começaram a escrever musica
à maneira da prima ou seconda prattica, submetendo melodias por exemplo, à ma-
neira determinada pela música eclesiástica ou ao estilo considerado moderno (da
melodia acompanhada), utilizando seus respectivos procedimentos próprios de har-
monia, ritmo e instrumentação.
Em nossa visão, a transposição de estilo não constitui um procedimento meramente
técnico, mas revela a formação de um estilo de recepção auditiva, ou seja, conjetu-
ramos que a recepção auditiva do repertório seja modelada por um jogo entre duas
percepções distintas : a percepção do musicólogo e a percepção natural do ouvinte
(Nattiez 1990: 154). O compositor enquanto musicólogo detém o conhecimento
de procedimentos e técnicas, ainda assim estaria sujeito à sua própria percepção na-
tural de ouvinte. Assim o procedimento revela uma “cópia” alterada pelo senso es-
tético e cultural de quem copia.
Seguindo esse raciocínio e aplicando o modelo das regras de preferência, nosso ob-
jetivo é analisar a maneira como as concepções rítmicas estão colocadas, nos dois
arranjos:
1. na concepção original do compositor
2. na concepção dos intérpretes
A neurociência prevê, ainda, que “nossa percepção é moldada por estímulos extrín-
secos e interpretação intrínseca, assim a experiência da percepção do ritmo, depende
da sua interpretação métrica, onde cada um ouve o beat” (Iversen 2009: 58). Nesse
sentido, a percepção envolve uma dimensão étnica. (Drake & Heni 2003). Sobre
esse último aspecto, podemos afirmar que há considerável diferença de interpretação
métrica na comparação entre as duas concepções da mesma canção.
Melodicamente existe importante diferença na sua articulação dentro do beat de
cada versão. Enquanto na versão original de Caetano Veloso a melodia principal ini-
cia junto com o beat da seção rítmica com o agogô e o tambor rumpi (atabaque) e
terminando a primeira frase em tempo fraco (off-beat) com a nota ré (Figura 1.5
90 compasso 15), a versão da Banda SKANK posiciona a mesma frase iniciando em off-
beat e terminando no beat do compasso seguinte (Figura 1.6 compasso 9-10).
A diferença entre a colocação rítmica de uma e de outra melodia representa uma
mudança significativa na acentuação da letra cantada em relação aos outros instru-
mentos do arranjo. Em relação ao ritmo harmônico (articulação das mudanças dos
acordes que acompanham a melodia), a versão de Caetano Veloso antecipa a mu-
dança para o acorde de ré menor que acompanha o último ré da frase inicial (última
colcheia do compasso 15). Já na outra versão, a mudança para o acorde de ré menor
acontece no inicio do compasso seguinte em tempo forte, ou no beat. Como ocorre
tradicionalmente no rock e em grande parte do repertório da música popular.

Figura 1.5 — Caetano Veloso, Beleza Pura (comp. 15-18),


transcrição parcial do arranjo original.

Figura 1.6 — Beleza Pura, versão SKANK (comp. 9-13),


transcrição de melodia e bateria.
Nesse último quesito, Beleza Pura apresenta também uma “ base harmô-
nica simples em estrutura circular (sequencializada em DÓ / LÁm / RÉm / SOL7),
com destaque para os acentos rítmicos no contratempo.” (Tatit 1996: 301)
A estes acentos rítmicos no contratempo, corresponde a função ritmo-harmônica
desempenhada pelo violão em figura que representa a alteração rítmica da mesma
estrutura circular presente na introdução de Brejeiro de Ernesto Nazareth composto
em 1893.
Na figura 1.7 a articulação do violão é a mesma nas duas músicas, porém em Beleza
Pura ela aparece adiantada em uma colcheia fazendo com que na nova linha de
acompanhamento do instrumento, os acordes e a nota fundamental do baixo caiam
em off-beat, ou seja fora da acentuação natural do compasso.
91

Figura 1.7 — transcrição das linhas de violão de Brejeiro e Beleza Pura


A nova configuração faz com que o elemento acompanhador deste arranjo, mude
radicalmente seu caráter em relação ao outro composto por Nazareth. Este elemento
também atende parcialmente à regra de preferência 6 (paralelismo), por se tratar de
uma espécie de ostinato. Apresenta ainda caráter ambíguo, posto que posiciona a
fundamental do acorde sempre em antecipação aos tempos 1 e 3 considerados fortes
no compasso.

Conclusão
Pudemos demonstrar que algumas das possibilidades da aplcação do con-
ceito neurocientífico de beat induction na análise de algumas estruturas musicais é
bastante válida na medida que desnuda algumas ambiguidades presentes na percep-
ção do ritmo musical.
Esperamos encontrar mais ambiguidades no material rítmico da obra de Beethoven.
A diferença intercultural ou étnica surgida da comparação entre versões diferentes
de uma mesma canção ainda carece de aprofundamento, falta ainda esclarecer os
elementos étnicos presentes na concepção da gravação de Caetano Veloso, mas
aponta para a eficácia do procedimento e no nosso entendimento, abre boas pers-
pectivas para próximas análises.

1 A não tradução da expressão beat induction se deve ao fato da noção de beat estar relacionada
ao metro, medida do número de pulsos que ocorre dentro de uma recorrência de acentos mais
ou menos regulares (Cooper & Meyer 1960, 4). O pulso representa mais uma unidade de
medida temporal mínima enquanto o beat, a acentuação desses pulsos dentro do compasso.
2 Denominamos transposição de estilo o procedimento em que uma canção popular é adap-
tada a outro contexto musical. Em nosso caso, a canção foi concebida originalmente sobre
padrões harmônicos e rítmicos próprios da cultura afro-baiana e dos seus músicos, tendo sido
posteriormente adaptada a procedimentos próprios da cultura pop e do rock da juventude
brasileira do início do século XXI.
Referências
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Cooper, G. W. & Meyer, L. B. 1960. The Rhythmic Structure of Music. Chicago: University
of Chicago Press.
92
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Music Perception 20, nº 2 (Winter): 117-149.
O ouvido absoluto: prevalência e características em duas
universidades brasileiras
Patricia Vanzella
pvanzella@yahoo.com 93
Departamento de Música, Universidade de Brasília
Mariana Benassi-Werke
marianawerke@yahoo.com.br
Departamento de Psicobiologia – Universidade Federal de São Paulo
Nayana G. Germano
nayanager@hotmail.com
Departamento de Música, Universidade Estadual Paulista
Maria Gabriela M. Oliveira
mgabi@psicobio.epm.br
Departamento de Psicobiologia – Universidade Federal de São Paulo
Resumo
Este estudo investigou, através do uso de questionários, a prevalência de ouvido absoluto
entre 263 estudantes de música universitários de duas diferentes regiões brasileiras (130 da
Universidade de Brasília – UnB e 133 da Universidade Estadual Paulista – UNESP). Além
disso, investigou: particularidades da percepção auditiva entre aqueles que declararam ser
portadores de ouvido absoluto (com relação à percepção de diferentes timbres); a relação
entre ouvido absoluto e idade de início do treinamento musical; o tipo de treinamento
musical recebido por portadores e não portadores de ouvido absoluto quando do apren-
dizado da notação musical e de solfejo; a presença desse traço cognitivo em membros
da família dos estudantes que declararam possuir ouvido absoluto. Os resultados obtidos
em cada uma das universidades foram comparados e não diferiram estatisticamente. A
prevalência encontrada na amostra total foi de 7,22% (8,27% na UNESP e 6,15% na UnB).
Foram observadas variações significativas na habilidade dos estudantes em identificar e
produzir alturas musicais, especialmente com relação à acurácia em diferentes timbres. Em
ambas universidades a idade de início do treinamento musical no grupo de portadores de
ouvido absoluto revelou-se significativamente inferior à idade de início de não portadores.
Enquanto os portadores iniciaram o treinamento musical por volta dos 7 anos, os não por-
tadores iniciaram por volta dos 11 anos de idade. Nas duas instituições pesquisadas, não
foi possível estabelecer nenhum tipo de relação entre a aquisição desse traço cognitivo
e o tipo de treinamento recebido durante o aprendizado da leitura musical e do solfejo.
Não houve, igualmente, diferença no número relatado de familiares com ouvido absoluto
entre os grupos de estudantes com e sem ouvido absoluto. Nossos resultados de preva-
lência de ouvido absoluto são semelhantes a resultados relatados na literatura norte-ame-
ricana. O presente estudo também confirma investigações anteriores que mostram que a
prevalência de ouvido absoluto é maior entre aqueles que iniciaram o treinamento musical
até os 7 anos de idade.
Introdução
O ouvido absoluto é uma habilidade cognitiva rara e intrigante na percepção auditiva.
A literatura geralmente descreve o portador de ouvido absoluto como sendo um in-
divíduo capaz de identificar, através de rótulos (dó, ré, mi, etc), qualquer altura mu-
94
sical sem a necessidade de uma referência externa prévia para comparação. Entre
músicos, a prevalência desse traço cognitivo varia entre 5 e 50% (Wellek, 1963;
Chouard e Sposetti, 1991), sendo que os maiores índices encontram-se entre estu-
dantes de música asiáticos (Gregersen et al., 1999; Deutsch et al., 2006).
Há evidências de que o ouvido absoluto se desenvolve em tenra infância, durante
um período crítico para sua aquisição (Ward, 1999). Músicos que começam o trei-
namento musical antes dos seis anos de idade têm maior propensão a manifestar
esse traço cognitivo (Sergeant, 1969; Takeuchi e Hulse, 1993). A idéia de que a aqui-
sição do ouvido absoluto aconteça apenas durante um estágio específico de amadu-
recimento é corroborada pelos altos índices de incidência de casos de ouvido
absoluto adquiridos mais tardiamente por indivíduos cujo desenvolvimento mental
ocorre mais lentamente, como autistas (Brown et al., 2003) ou indivíduos acometi-
dos pela Síndrome de Williams (Lenhoff et al., 2001).
Essa habilidade, contudo, pode variar entre seus portadores. Alguns estudos descre-
vem diferenças significativas entre indivíduos com ouvido absoluto na maneira de
perceber alturas musicais tanto no que se refere à sensibilidade à diferentes timbres
e registros como no grau de precisão na identificação e produção de diferentes alturas
(Bachem, 1937; Takeuchi & Hulse, 1993). Enquanto alguns portadores são capazes
de identificar, sem referência externa, qualquer altura em qualquer timbre e registro,
outros conseguem nomear tons somente em timbres e/ou registros específicos. En-
quanto uns são absolutamente precisos, outros cometem eventuais erros de semitom
ou de oitava (Bachem, 1937). Além disso, quando solicitados a cantar uma deter-
minada altura musical, nem todos os sujeitos que conseguem identificar alturas mu-
sicais de forma absoluta são capazes de produzi-las vocalmente (Vanzella et al.,
2008).
Se, por um lado, sabe-se que a experiência musical precoce é fundamental para a
aquisição do ouvido absoluto, por outro, no entanto, nem todos os músicos que ini-
ciam cedo o treinamento musical chegam efetivamente a desenvolvê-lo. Uma pos-
sível explicação para esse fato seria a inexistência, nesses indivíduos, de algum fator
genético facilitador para a aquisição do traço. Há relatos na literatura sobre uma
concentração de ouvido absoluto entre membros de uma mesma família. Esses es-
tudos sugerem a existência de um componente genético necessário para a transmis-
são dessa habilidade (Profita & Bidder, 1988). Um grupo de pesquisadores da
Universidade da Califórnia vem se dedicando intensivamente, há mais de dez anos,
ao estudo dessa hipótese com vistas a identificar o gene ou do grupo de genes en-
volvidos na transmissão dessa estranha habilidade cognitiva (Athos et al., 2007;
Theusch et al., 2009).

Objetivos
95
O presente estudo buscou (1) investigar a  prevalência de ouvido absoluto entre es-
tudantes universitários de música de duas diferentes regiões brasileiras (Sudeste e
Centro Oeste); (2) verificar a existência de particularidades da percepção auditiva
entre os alunos que declararam ser portadores de ouvido absoluto (com relação à
percepção de diferentes timbres e registros, bem como ao tempo de reação e à pre-
cisão na identificação e produção de tons); (3) verificar a possibilidade de se estabe-
lecer uma relação entre ouvido absoluto e idade de início do treinamento musical;
(4) investigar se o tipo de treinamento musical recebido por portadores de ouvido
absoluto quando do aprendizado da notação musical e de solfejo teve algum impacto
na aquisição dessa característica; (5) verificar a presença desse traço cognitivo em
membros da família dos estudantes que declararam possuir ouvido absoluto; (6)
comparar os resultados obtidos nas duas universidades pesquisadas para verificar a
existência ou não de diferenças regionais.

Participantes e Método
Participaram desta investigação 263 alunos regularmente matriculados nos cursos
de graduação em música da Universidade de Brasília (n=130) e da Universidade Es-
tatudal Paulista  (n=133). Cada um dos 263 alunos-voluntários, após consenti-
mento livre e esclarecido, respondeu a um questionário, contendo perguntas tanto
objetivas (estilo múltipla-escolha) como abertas (permitindo respostas descritivo-
narrativas), sobre formação musical, histórico musical familiar e características pes-
soais da percepção auditiva.
Os questionários foram aplicados durante os anos letivos de 2007 (na UnB) e 2008
(na UNESP), em horários solicitados previamente aos professores das disciplinas
coletivas oferecidas naqueles anos.
O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Uni-
versidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (UNIFESP – EPM)
e pelas Chefias dos Departamentos de Música da UnB e da UNESP.

Resultados
8,27% dos alunos da Unesp e 6,15% dos alunos da UnB matriculados nos cursos de
graduação em música declararam ter ouvido absoluto. Estatisticamente, não houve
diferença entre as duas universidades (x2 = 0.65, p > 0.05). Somando-se os resultados,
a prevalência na amostra total foi de 7,22%.
Em ambas instituições os portadores de ouvido absoluto reportaram variações sig-
nificativas em suas habilidades de emitir e identificar notas musicais. Cerca somente
de um terço dos estudantes com ouvido absoluto declarou não ter nenhum tipo de
limitação em sua habilidade. Os demais reportaram limitações relativas a timbre, re-
96 gistro e produção vocal.
Tanto na UnB como na UNESP, a idade mediana de início do treinamento musical
entre os alunos com ouvido absoluto revelou-se menor (7.18 ± 2.61) do que a idade
de início de não portadores (11.55 ± 4.02) (F=21,18; p0,05).
Não foi possível estabelecer uma relação entre o tipo de treinamento musical com
relação aos aprendizados de leitura musical e de solfejo e a aquisição do ouvido ab-
soluto. Tanto na UnB como na UNESP, a maior parte dos estudantes com e sem
ouvido absoluto utilizou os mesmos métodos para o aprendizado de solfejo (dó fixo)
e de leitura musical (escrevendo o nome das notas próximo às mesma nas pauta).
Em nenhuma das duas universidades houve diferença no número de familiares com
ouvido absoluto entre os grupo de estudantes com e sem ouvido absoluto.

Discussão e conclusões
O resultado de prevalência de ouvido absoluto entre estudantes de música univer-
sitários obtido nesta investigação é semelhante ao resultado encontrado por inves-
tigação realizada por Gregersen et al., em 1999, nos Estados Unidos. Os resultados
do atual estudo podem ser comparados aos resultados da pesquisa norteamericana
uma vez que ambos adotaram parâmetros equivalentes na investigação: os sujeitos
estudados foram estudantes de música de universidades e a metodologia selecionada
para fazer o levantamento da prevalência de ouvido absoluto foi a utilização de ques-
tionários. Os números encontrados pela pesquisa norteamericana foram os seguin-
tes: dentre 1.996 estudantes de música de diferentes universidades americanas, 146
eram portadores de ouvido absoluto – proporção que corresponde a 7,3% dos in-
vestigados. Nosso estudo, semelhantemente, encontrou um índice de 7,22% de por-
tadores de ouvido absoluto entre estudantes de música universitários recrutados em
duas universidades brasileiras de regiões distintas do país. Seria interessante ampliar
essa investigação para outras áreas geográficas para observar se esses resultados ten-
dem ou não a se repetir e para verificar possíveis particularidades no ensino e na prá-
tica musical regionais que eventualmente poderiam contribuir para uma maior
prevalência de indivíduos com ouvido absoluto numa determinada região.
Nosso trabalho também confirmou investigações anteriores que mostraram que a
prevalência de ouvido absoluto é maior entre aqueles que iniciaram o treinamento
musical em tenra infância. Uma investigação conduzida por Sergeant (1969) cons-
tatou que 87,5% dos músicos que iniciaram o treinamento musical por volta dos 5,6
anos de idade eram portadores de ouvido absoluto, enquanto entre aqueles que co-
meçaram o treinamento após os 9 anos nenhum apresentava esse traço cognitivo.
Outros estudos também confirmam essa tendência (Miyazaki, 1988a, 1988b; Ta-
keuchi, 1989; Bachem, 1940, 1955; Gregersen et al., 2000; Costa-Giomi et al., 2001;
Chin, 2003).
Os resultados obtidos na presente investigação também corroboram dados da lite- 97
ratura que descrevem diferenças significativas entre portadores do traço cognitivo
em questão. Alguns estudos mostram que mesmo entre sujeitos com ouvido absoluto
pode haver variações substanciais tanto na extensão da sensibilidade a timbres e re-
gistros como no grau de precisão e consistência na identificação e produção de tons
(Bachem, 1937; Takeuchi e Hulse, 1993). Em nosso estudo, apenas cerca de um
terço dos estudantes com ouvido absoluto declarou não ter nenhum tipo de limita-
ção em sua habilidade. Os demais estudantes reportaram limitações especialmente
relativas à percepção e identificação de alturas em diferentes timbres (alguns timbres
específicos foram citados com mais frequência como sendo mais difíceis, tais como
aqueles emitidos pela voz humana ou por fontes eletrônicas). Investigações mais
aprofundadas sobre essas variações perceptivas são desejáveis, uma vez que poderiam
contribuir para um melhor entendimento de como o cérebro percebe e processa al-
turas geradas por diferentes fontes sonoras.
Apesar de Gregersen et al. (2000) terem relatado que estudantes norteamericanos
que usaram solfejo dó-móvel tinham maior probabilidade de apresentar ouvido ab-
soluto, não pudemos observar no presente estudo nenhuma relação entre o tipo de
treinamento de solfejo e a presença da habilidade em questão. Aparentemente, de
acordo com nossos resultados, um tipo específico de treinamento musical não é su-
ficiente para garantir a aquisição dessa habilidade. É possível simplesmente que os
participantes com treinamento em dó-móvel da investigação de Gregersen et al. te-
nham tido um treinamento mais intensivo ou mais precoce do que os participantes
com treinamento em dó-fixo. Resumidamente, se o treinamento com um ou outro
sistema de solfejo tem algum impacto no desenvolvimento do ouvido absoluto per-
manece uma questão aberta.
Embora alguns estudos relatem a existência de uma concentração de portadores de
ouvido absoluto em determinadas familias (Baharloo et al., 1998, 2000; Gregersen
et al., 2000), não verificamos em nosso estudo diferenças significativas entre grupos
de portadores e não-portadores de ouvido absoluto no que se refere ao número de
familiares com ouvido absoluto.
UnB e UNESP apresentaram resultados semelhantes em todos os tópicos analisados.
Não foi possível, portanto, identificar nenhuma particularidade institucional ou re-
gional no que se refere ã prevalência e às caracteristicas especificas dos alunos com
ouvido absoluto.
Referências
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Dos coloridos sonoros na música ocidental
proporcionados pelos diferentes semitons
Edmundo Hora
100 ephora@iar.unicamp.br
IA – UNICAMP

Resumo
Um dos aspectos significativos para a expressão na música ocidental refere-se à qualidade
das “cores” nas diferentes tonalidades. Desde a sua sedimentação por volta do século
XVI, o “novo” campo tonal passou a definir características particulares aos repertórios e
aos sons, impulsionando os compositores nas escolhas de suas obras. Assim, a escolha da
tonalidade foi um dos pontos relevantes para a composição musical. Ainda que o sistema
igual de temperamento musical tenha sido conhecido já há muitos séculos atrás, podemos
afirmar que, sua utilização prática somente se fixou como padrão em tempos modernos
(séc. XX). Dividir a oitava em semitons iguais (1/12 da coma Pitagórica ou 1200 cents) tornou
possível a modulação pela utilização da enarmonia, mas, como o próprio nome do tem-
peramento sugere, igualou as características próprias de cada tonalidade, ao tempo em
que reduziu para duas, as possibilidades modais, padronizando em dois os modos (Maior
e menor).
Palavras-chave
Semitom; coloridos sonoros; afeto musical; Musicalische Temperatur; Das Wohltemperirte
Clavier.

Introdução
Em meados do século XVII, autores de diversas regiões européias, propuseram di-
ferentes soluções de temperamentos1 – hoje conhecidas como “desiguais” – bus-
cando se aproximar ao máximo das purezas intervalares2, ocasionando em seguida
o desenvolvimento do tópico: Características das Tonalidades3. Largamente utili-
zado, o tema incentivou diferentes teóricos do século XVIII e de boa parte do século
XIX com destaque para Louis Hector Berlioz (1803-1869) com o seu Grand traité
d’instrumentation et d’orchestration modernes publicado em Paris (1843/44?).
Por outro lado, as doze notas do teclado tradicional (brancas para os in-
tervalos diatônicos e, pretas para os cromáticos – ou vice-versa em alguns teclados
dos séculos XVII e XVIII), simbolizaram importantes “conceitos” na teoria musical
dos períodos Renascentista e Barroco4. Importante notar que, como exemplo, as
notas Sol e Sol #, não eram vistas como notas diferentes, como alguns acreditam hoje
em dia, mas como cores diferentes de uma mesma nota, ao contrário de suas equi-
valentes enarmônicas: Sol # e Lá b, que eram notas diferentes uma da outra.
101

Fig. 1— Página título do Musicalische Temperatur de Andreas Werckmeister.


Fonte: Utrecht: The Diapason Press 1983 TTL 1
Em seu Musicalische Temperatur de 1691, Andreas Werckmeister (1645-1706) pro-
pôs diferentes possibilidades de sistemas de afinação desigual. Ele os nomeou com
algarismos romanos e, a proposta com número III, é a atualmente mais conhecida
por suas qualidades práticas de utilização, como também pela facilidade de sua rea-
lização. Nele, quatro quintas ascendentes são estreitadas. Às três primeiras quintas
estreitadas: Dó-Sol, Sol-Ré, Ré-Lá, seguem-se duas quintas puras: Lá-Mi e Mi-Si, e
a próxima quinta: Si-Fá #, recebe o mesmo estreitamento que as três iniciais, com-
pondo assim, o número total das quatro estreitadas. Todas as demais outras serão
puras, fechando o círculo de quintas. Este sistema prático deve ser considerado como
“Bem temperado”, uma vez que possibilita a utilização de todas as vinte e quatro to-
nalidades. Embora seu centro tonal esteja em Dó, quanto mais longínquo estiverem
as tonalidades dele, mais característico serão sua cores tonais, devido as qualidades
de suas terças maiores, que vão se abrindo até seu ponto máximo, a terça Pitagórica.
Bach, certamente, utilizou em algum momento este sistema, pois sabe-se que em
102 sua biblioteca particular havia um exemplar do Musicalische Temperatur de Werck-
meister.
A figura a seguir traz a página título da obra publicada em Quedlemburg, mencio-
nando diferentes instrumentos de teclado.
Uma afinação com intervalos puros consonantes, não pode ser realizada, uma vez
que a pureza de alguns intervalos resultará sempre na impureza de outros. Nos ins-
trumentos de teclado este problema deve ser resolvido de forma a se temperar, ao
menos alguns dos intervalos consonantes. Werckmeister afirmou: “Portanto, um
temperamento na afinação musical é um pequeno desvio da perfeição de sua razão
musical, no qual a conexão das progressões toma lugar corretamente e a escuta é sa-
tisfeita” . 5
Na definição para o Semitom no verbete do Dictionnaire de Musique de Jean-Jacques
Rousseau (Paris, 1768, p. 427) lemos:
SEMI-TOM. s.m. É o menor de todos os intervalos admitidos na Música moderna;
ele, mais ou menos, vale a metade de um tom. Existem diversas espécies de Se-
mitons. Na prática musical, nós distinguimos dois. O Semitom maior e o semitom
menor. (. . .) O Semitom maior é a diferença entre a Terça maior e a Quarta, como
mi e fá. A sua razão é de 15 à 16, e ele forma o menor de todos os intervalos dia-
tônicos. O Semitom menor é a diferença entre a terça maior com a terça menor;
ele se encontra sobre o mesmo grau por um Sustenido ou por um Bemol. Ele
forme um intervalo Cromático, e sua razão é de 24 a 25.
Os diagramas a seguir, ilustram as composições dos diferentes semitons. No primeiro
sua direção pelo sentido anti-horário compondo o semitom diatônico.

Fig. 2 — Diagrama ilustrativo para a construção do semitom diatônico.


Este é o semitom encontrado nas escalas diatônicas: as duas notas sempre têm nomes
diferentes, por exemplo: Si-Dó, Mi-Fá, etc.
Aqui, o semitom cromático tem sua composição pela direção do sentido horário.

103

Fig. 3 — Diagrama ilustrativo para a construção do semitom cromático.


Este semitom cromático não é encontrado nas escalas diatônicas: as duas notas têm
sempre o mesmo nome, por exemplo: Fá-Fá #.
Sobre as controvérsias pela aceitação do temperamento Igual no século XVII, Pa-
trizio Barbieri em seu artigo Il Temperamento equabile nel periodo Frescobaldiano
apresenta uma carta de Giambattista Doni (c.1593-1647) a Marin Mersene (1588-
1648)6, contrária à atitude de Girolamo Frescobaldi (1583-1643) pela introdução
do temperamento Igual em Roma. Assim lemos:
[. . .] Esteve aqui um velho, o qual – depois de ter vivido a maior parte de sua vida
na Calábria e Sicilia, estabeleceu-se em Roma – procurou introduzir, como in-
venção bela e nova, a igualdade dos semitons no cravo, e encontrou alguns de
nossos músicos (tantos são os ignorantes) que lhe deu crença. Porém, ao final, re-
conhecendo a imperfeição desta afinação e não querendo que os bons cantores
cantassem acompanhados por tais instrumentos (como eu tinha previsto), a
abandonou e tudo terminou em anedota. A isto contribuiu ainda o vosso livro
francês, porque eu fiz ver ao Mons. Card. Barberini o que o senhor disse de um
chamado Sig. Gallé – que tinha tentado introduzir a mesma coisa, mas sem su-
cesso, uma vez que os vossos músicos não concordaram com a rudeza de suas ter-
ças e a pequenez do semitom diatônico na parte do soprano da cadência fá, mi,
fá.7
Dessa forma, fica evidente que diferentes opiniões se contrapuseram e que o sistema
Igual – aceito hoje em dia como padrão – já tinha os seus admiradores antes mesmo
da fixação do conceito tonal para a produção musical no mundo ocidental.
No entanto, o que iremos perceber é que há, em diferentes períodos da história, uma
sistemática busca pela emissão intervalar mais próxima possível de suas purezas. Uma
tentativa ilusória, visto que, é impossível se afinar todos os intervalos puros no padrão
escalar. Portanto, a utilização de qualquer temperamento se fará necessária, em
acordo a estética da obra em questão.
Por outro lado, um fato comum e bem difundido entre os músicos nos dias de hoje,
é de que a expressão Bem Temperada refere-se a um tipo ‘igual’ de afinação divulgado
104 musicalmente por J. S. BACH através da sua coleção de Prelúdios e Fugas intitulada
Das Wohltemperirte Clavier (O Cravo Bem Temperado?) de 1722. Uma inverdade,
na medida em que, embora ele provavelmente a conhecesse, não fez qualquer men-
ção a este sistema em seus poucos escritos sobreviventes.

Fig. 4 — O frontispício autógrafo de Bach com o arabesco


para o “Cravo Bem Temperado”.
Fonte: Ed. Facsimilar.
Recentemente, Bradley Lehmann (2004), decifrou o arabesco relacionado ao autor,
revelando ao mundo um novo esquema de afinação, totalmente contrário àquele até
então aceito, qual seja, o da afinação Igual (a divisão da oitava em 12 partes iguais).
Lehmann decodifica os diferentes tipos de laços simples, duplos e triplos, corres-
pondendo-os aos graus de estreitamento das quintas para a composição do sistema 105
de afinação. Por se tratar de diferentes tipos de laços, entende-se assim uma proposta
“desigual” para o temperamento Bachiano.
O nosso exemplo musical ilustrativo refere-se a Variatio 25 a 2 Clav. uma das varia-
ções contidas na IV (Quarta parte) do Clavier Übung de J.S.Bach (1685-1750),
BWV 988, que tem seu título: “Exercício para o teclado compreendendo uma Ária
e diferentes variações para um cravo com dois manuais. Composto para o proveito
dos amadores, para a recreação de seu espírito, por Johann Sebastian Bach, etc.”.

Fig. 5 — Adagio. Variatio 25 a 2 Clav. J. S. Bach. Compassos 1 a 3.


Fonte: Ed. Facsimilar
Com bases nas informações históricas a proposta desta demonstração é:
a) tornar audível, a criação dos semitons: maior e menor;
b) perceber sua aplicação na expressividade musical (por meio da utilização do
cravo – instrumento propício a essas variações de afinação), evidenciando suas
nuances dinâmicas no repertório cravístico o Adagio de J. S. Bach, com seus cro-
matismos característicos;
c) contrapor esses “novos semitons” ao semitom do temperamento igual, muito
conhecido na prática atual, e o recém descoberto temperamento Bachiano iden-
tificado por Bradley Lehmann (2004), com base no Diagrama do Das Wohl-
temperirte Clavier (1722).
A título de lembrança mencionamos: o tom diatônico tem 203.90 cents (no tempe-
ramento igual 200 para o tom) e o semitom diatônico apenas 90.22 cents. (ou e 100
cents para o semitom). Portanto, uma proporção totalmente diferente da que esta-
mos acostumados a ouvir nos dias de hoje.

Considerações finais
A experiência auditiva, única, proporcionada pelos diferentes tamanhos dos semi-
tons enfatiza os coloridos sonoros e os afetos musicais. Os diferentes sistemas desi-
guais de afinação para os instrumentos de teclado tiveram seus apogeus durante todo
o século XVIII, projetando-se em grande parte no século XIX. Autores de diferentes
regiões européias contribuíram sobremaneira para a expressividade das obras musi-
106 cais, ainda que o sistema igual de afinação tenha tido caminho paralelo aos “desiguais”,
dividindo a preferência de alguns teóricos visionários. Embora controvertido, o tema
necessita ser mais revisitado e difundido – uma vez que, devido as suas possibilidades
enarmônicas – comumente se confunde sistema “Bem temperado” com o sistema
Igual, adotado como o padrão no século XX.

1 Temperar foi uma iniciativa deliberada dos estudiosos da época na esperança de encontrar
soluções “toleráveis” à não possibilidade de emissão perfeita dos intervalos no mundo tonal.
Maiores detalhes ver: “O porquê do Temperamento” In: As obras de Froberger no contexto do
Temperamento Mesotônico. Edmundo Pacheco Hora. TESE (Doutorado em Música). Insti-
tuto de Artes. Universidade Estadual de Campinas. 2004.
2 Um intervalo é a relação entre dois sons quanto à sua freqüência.
3 Menciono aqui o trabalho significativo de Rita Steblin. A History of Key Characteristics in
the 18th and Early 19th Centuries. UMI Research Press (1983).
iv O arranjo formal para o padrão do teclado musical com base na escala de Dó, por exemplo,
remete-se ao século XV (o Órgão de Nicholas Farber, construído em 1361 e remodelado em
1495). O desenho típico para o teclado tem sua primeira ilustração proposta por M. Praetorius
no Syntagma Musicum (1619). Note-se que a tecla alterada para a nota Si b aparece como
parte da transposição do Hexacorde transposto a partir do Fá.
5 Darum ist die Temperatur in der Musicalische Stimmung, ein kleiner Abschnitt von der
Vollkommenheit der musicalische proportionen, wodurch die Zusammenbindung der pro-
gressen füglich geschieht und das Gehör vergnügt wird.
6 Mersenne, Marin. Harmonie universelle, contenant la théorie et la pratique de la musique.
Paris, 1636.
vii [. . .] Il y a eu icy um vieillard, lequel, après avoir demeuré la pluspart de sa vie en Calabre
et en Sicile , s’estant retiré à Rome, a tasché d’y introduire, comme une belle et nouvelle in-
vention, l’esgalité des semitons en l’espinette et a trouvé quelqu’un de nos Musiciens (tant
sont ils ignorants) qui luy ont adjosté foy. Mais en fin recognissant l’imperfection de ceste
accord et ne voulant les bons chantres chanter dessus ces instrumens (comme j’avois predict)
l’ont abandonné, et tout s’est tourné en rissé. A cela a contribué encores vostre livres françois,
car j’ay faict voir à Monseig.r le Card.l Barberin ce que vous dite d’un nommé le Sieur Gallé
qui avoit cherché d’introduire la mesme chose, mais sans fruict , pource que n’a point agrée
à voz Musiciens la rudesse de ces tierces et la petitesse du semiton aux cadences du superius fa,
mi, fa.

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Calvisii]. (Reedição The Diapason Press 1983 (R.Rasch).
Música e Cognição: a percepção musical do ritmo
em crianças entre 3 e 7 anos numa perspectiva piagetiana
Filipe de Matos Rocha
108 filipiano@hotmail.com
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Resumo
O presente trabalho discute o tema Música e Cognição, no que diz respeito aos aspectos
de percepção musical do ritmo e suas implicações no processo de ensino e aprendizagem
numa perspectiva piagetiana, com crianças entre 3 e 7 anos. Com base em minha expe-
riência pessoal no ensino de ritmo para crianças nessa faixa etária, abordo na primeira
parte do texto algumas características cognitivas do pensamento pré-operatório apresen-
tadas por Piaget, e na segunda parte estabeleço um paralelo entre as quatro condições
necessárias para a fundamentação de uma teoria cognitiva musical, defendidas por Beyer
(1988), e o ensino do ritmo da maneira como propomos. O método de pesquisa utilizado
foi um levantamento teórico sobre os estudos piagetianos e uma aplicação desses co-
nhecimentos na analise do desenvolvimento musical no que se refere à percepção do
ritmo. Tive como objetivo geral expor alguns aspectos cognitivos da teoria piagetiana en-
volvidos no processamento do ritmo em crianças entre 3 e 7 anos e, considerar algumas
condições para uma possível fundamentação da teoria cognitiva em música. Por meio
desta fundamentação teórica coloco à prova minha metodologia do ensino de ritmo à
crianças nessa faixa de idade, o que me leva a concluir se esta maneira de ensinar é cog-
nitivamente viável ou não.

A percepção musical do ritmo em crianças entre 3 e 7 anos


A mais primitiva de todas as percepções sensoriais humanas é a auditiva. Experiên-
cias mostram que no vente materno o bebê já é capaz de ouvir os sons que o cercam,
e ao nascer ele já adquiriu a capacidade de reconhecer a voz da mãe. Neste sentido,
a percepção auditiva encontra-se em vantagem em relação às outras percepções sen-
soriais. (Beyer, 1988, p. 70)
Piaget propõe quatro estágios no desenvolvimento cognitivo humano: Período Sen-
sório-motor (0 a 2 anos), Período Pré-operatório (2 a 7 anos), Período Operacional-
concreto (7 a 11, 12 anos) e Período de Operações-formais (12 anos em diante).
No período em questão, pré-operatório, aprimora-se cada vez mais a percepção. E é
nessa fase que o individuo se torna apto a captar mais profundamente as proprieda-
des das qualidades do som, pois já foram desenvolvidas estruturas de pensamentos
que são capazes de exercer essa função mais apuradamente (Beyer, 1988, p. 71).
Percepção do Ritmo Musical no Período Pré-Operatório
Com base em minha experiência pessoal no ensino de ritmo para crianças entre 3 a
7 anos, abordarei algumas das características cognitivas do pensamento pré-opera-
tório apresentadas por Piaget.
109

Característica Concreta do Pensamento


A manipulação dos símbolos é a grande conquista deste período e, em se tratando
de ritmo, os símbolos trabalhados aqui são o “curto” e o “longo”, que como dois “es-
quemas simbólicos” representam experiências sensório-motoras já internalizadas.
Nessa fase a criança possui a capacidade intelectual de representar um significador
(o som) por um significado (conceito de curto e longo). E esses símbolos, que re-
presentam a duração do som, são representados da seguinte maneira: _ _ _ _ _
(curto) e _______________ (longo).
Irreversibilidade do Pensamento
Em relação à irreversibilidade do pensamento, a noção de proporção ainda não foi
construída nessa faixa etária. A duração é mais subjetiva e por comparação. Nessa
idade, a criança não consegue retroceder seu pensamento ao ponto de origem. É
possível que uma criança possa entender que se ligarmos dois sons curtos criaremos
um longo, mas fazer o caminho inverso (um longo menos um curto é igual a um
curto) está fora de sua capacidade cognitiva.
Egocentrismo do Pensamento
A criança, aqui, ainda não é capaz de “ver” (ou “perceber”) do ponto de vista de um
outro, ela freqüentemente fala usando termos que tem referências idiossincráticas e
usa associações algumas vezes não relacionadas com nenhuma estrutura lógica dis-
cernível. Por exemplo, uma criança ao se referir a um som longo diz: “É como o som
da campanhinha!”, enquanto, a um som curto diz: “É como o som do relógio des-
pertado”. Essas frases refletem as experiências dela que podem ser diferentes das ex-
periências de outra criança.
Em sendo a duração subjetiva, como já foi citado, é bom, também, que o padrão de
“certo” e “errado” não seja rígido.
Centralização
É importante trabalhar com as qualidades de som separadamente, pois nessa faixa
de idade a criança centra sua atenção num pormenor de um acontecimento e ainda
não tem a flexibilidade de desviar sua atenção para outro aspecto de uma situação.
E aos poucos, quando a criança for adquirindo a habilidade de descentralização, será
possível unir duração, altura, intensidade e timbre, num mesmo exercício.
Quatro condições para uma teoria cognitiva
Em paralelo com as quatro condições necessárias para a fundamentação de uma teo-
ria cognitiva musical, defendidas por Beyer (1988), podemos verificar se o ensino
de ritmo da maneira como propomos aqui possui respaldo.
110
Primeira Condição
“A ontogênese musical [deve ser] paralela à filogênese musical” (Beyer, 1988, p. 62),
ou seja, o desenvolvimento musical do sujeito deve reeditar a história musical da ci-
vilização (Beyer, 1988).
No aspecto filogenético podemos ver que, historicamente, as primeiras figuras que
simbolizavam o ritmo se chamavam Longa e Breve. Isso se coloca em paralelo com
a ontogênese ao vermos que uma criança primeiro produz sons que podem ser longos
ou curtos antes de adquirir a fala.
Segunda Condição
O desenvolvimento deve ser gradativo como produto da interação entre a ação do
sujeito e a sua carga hereditária. (Beyer, 1988, p. 65).
Podemos ver que existem crianças que possuem grande facilidade para perceber e
reproduzir ritmos. Essa facilidade inata associada ao estudo potencializará essa ha-
bilidade. O que essas crianças executam ritmicamente será relacionado posterior-
mente ao conhecimento da articulação que demora mais ou menos, abrindo
caminho, assim, para uma maneira de pensar mais formal e complexa.
Terceira Condição
Deve ser dada “ênfase para os processos intelectuais em oposição a uma ênfase sobre
o afetivo” (Beyer, 1988, p. 66). Nesse sentido, é necessário que os processos intelec-
tuais utilizados na música sejam descobertos e considerados, para que uma teoria
cognitiva se efetive (Beyer, 1988).
Ao trabalhar com sons longos e curtos, o foco principal é a capacidade intelectual
da criança de processar essa informação. O fator afetivo é considerado, mas deve-se
cuidar para que não haja uma hipervalorização desse aspecto. Para mantermos algum
equilíbrio entre o aspecto afetivo e o intelectual podemos utilizar, entre outros, re-
cursos como sons onomatopaicos de eventos do dia-a-dia da criança. Por exemplo:
“o som da moto”, “o som do avião”, “o som de animais”, etc.
Quarta Condição
Esther Beyer considera “a existência de estágios sucessivos e gradativos em comple-
xidade” (Beyer, 1988, p. 67), que se enquadram na última condição necessária, se-
gundo ela, para a fundamentação de uma teoria cognitiva em música.
Tomando por base essa perspectiva e minha experiência de ensino, proponho os se-
guintes estágios da aprendizagem perceptiva do ritmo:
Tabela 1.1 — Estágios sucessivos e gradativos de complexidade da aprendizagem
perceptiva do ritmo
111
Notação Não-Conven- Duração subjetiva: 1. Sons curtos e longos
cional (traços) 2. Sons curtos, longos e muito longos

Duração objetiva (pulsos): 3. Sons curtos – um pulso; longos –


dois pulsos e; muito longos – quatro
pulsos

Notação Convencional Duração objetiva (pulsos): 4. Sons curtos – um pulso; longos –


(figuras de notas) dois pulsos e; muito longos –
quatro pulsos
5. Semínima, Mínima, Mínima
pontuada e Semibreve.

Duração objetiva (divisão e 6. Duas colcheias, três colcheias e


subdivisão dos pulsos): quatro semicolcheias.
7. Síncopes, Contratempos e
Quiálteras

Por meio desta fundamentação teórica coloquei à prova minha metodologia do en-
sino de ritmo à crianças entre 3 e 7 anos de idade, o que me leva a concluir que esta
maneira de ensinar é cognitivamente viável.
Esse foi o primeiro passo para um estudo crítico mais profundo sobre minha própria
maneira de fazer educação musical. Esse é um campo intensamente vasto e seria pre-
tensão ter a intenção de esgotar o assunto nesta pesquisa. Trabalhos futuros podem
contemplar uma abordagem cognitiva da percepção da altura, intensidade e timbre.
Bem como além do aspecto perceptivo da cognição, não podemos deixar de men-
cionar os aspectos de produção e execução musical que representam outra vertente
cognitiva importante a ser explorada em futuras pesquisas.
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51-75.
a mente e a produção das artes musicais

A valorização de parâmetros musicais na preparação


112 de uma obra romântica por estudantes de piano
Cristina Capparelli Gerling
cgerling@ufrgs.br
Regina A. Teixeira dos Santos
jhsreg@adufrgs.ufrgs.br
Catarina Dominici
catarina@catarinadomenici.com
Programa de Pós-Graduação em Música – UFRGS

Resumo
O objetivo do presente trabalho foi investigar a correlação entre parâmetros de acuidade
e de expressão musical a partir da avaliação quantitativa por árbitros e a valorização
desses parâmetros por estudantes na preparação de uma obra pouco conhecida do pe-
ríodo romântico (Anhang do Op. 12 de R. Schumann). Em delineamento semi-experi-
mental (N=8), a preparação da peça foi monitorada em três etapas: (i) Registro e entrevista
sobre a preparação em um intervalo de 9 semanas. (ii) Avaliação da execução dos es-
tudantes registrada em vídeo por três árbitros (professores de piano), utilizando os se-
guintes parâmetros: contorno, articulação, andamento, timing, dinâmica, gestos, coerência
global. e (iii) Prática suplementar da obra por duas semanas com o registro de duas per-
formances e atribuição da hierarquia dos parâmetros na preparação desta peça. Os dados
foram tratados por métodos estatísticos: análise de correlação, análise de agrupamentos
(clusters) e escalonamento multidimensional (MDS).

Introdução
Um dos aspectos mais relevantes na performance musical é a habilidade de execu-
tar de forma expressiva (vide, por exemplo, Juslin e Laukka, 2004; Laukka, 2004;
Lindström et al. 2003), de maneira a comover os ouvintes. Uma performance ex-
pressiva é talvez aquilo que comumente faz com que pessoas prefiram um intér-
prete ao invés de outro. A maioria dos intérpretes e ouvintes define a expressão
musical em termos de comunicação de emoções (vide, por exemplo, Lindström et
al., 2003; Laukka 2004). Assim, o domínio a habilidade da expressão emocional
em música é uma meta importante para o intérprete. Dada a importância da ex-
pressão na performance musical, é razoável esperar que professores devotem um
tempo considerável no desenvolvimento dessa habilidade. Contudo, ao contrário,
a literatura de educação musical tem evidenciado que a expressão vem sendo ne-
gligenciada (veja, por exemplo, Tait, 1992), provavelmente por ser freqüentemente
considerada como uma habilidade que reflita talento, e portanto, não pode ser
aprendida (Sloboda, 1996), ou porque o conhecimento da expressão é na maioria
das vezes tácito, e portanto, difícil de ser verbalizado em palavras (Hoffren, 1964).
Em estudos anteriores, investigamos meios de sensibilização e conscientização de 113
estudantes de piano quanto à importância da intencionalidade expressiva na pre-
paração de uma dada obra musical por alunos de bacharelado, mestrado e douto-
rado em música (Gerling e Santos, 2007, Gerling et al. 2008a, 2008b, 2009a, 2009b;
2009c). No decorrer desta fase da pesquisa na qual os alunos receberam uma obra
pouco conhecida do período romântico (Anhang, obra descartada das Peças Fan-
tásticas Op. 12 de R. Schumann) tornou-se evidente que a atribuição de emoção ou
caráter, tanto na prática quanto em execuções, não parece ser valorizada. Em ex-
tensão e aprofundamento a esse estudo, investigamos a correlação entre parâmetros
de acuidade e de expressão musical a partir da avaliação quantitativa por árbitros e
a valorização desses parâmetros por estudantes na preparação de uma obra. Os pa-
râmetros considerados foram acuidade de leitura, contorno (frase), articulação, an-
damento, timing, dinâmica, gestos, textura e coerência global.

Metodologia
As coletas foram realizadas no Laboratório de Execução Musical (UFRGS). Os alu-
nos (N=8) não receberam instrução de seus professores nem informação sobre a
obra em si. Foi-lhes apenas fornecido o significado das expressões Feurigst (fo-
goso/ardente) e Rascher (mais veloz) contidas na partitura. A preparação da peça
foi monitorada em três fases: (i) Registro e entrevista de três execuções em um in-
tervalo de 9 semanas; (ii) avaliação da execução dos estudantes registrada em vídeo
por três árbitros (professores de piano) e (iii) prática suplementar da obra por duas
semanas com o registro de duas performances e atribuição da hierarquia dos parâ-
metros na preparação desta peça. Os dados foram tratados por métodos estatísti-
cos: análise de correlação, análise de agrupamentos (clusters) e escalonamento
multidimensional (MDS).
Os critérios de avaliação do produto de execução musical, para nossas pesquisas,
são compreendidos como:
contorno (das frases): grau de coerência sobre o direcionamento das linhas me-
lódicas, tendo em vista características do padrão sonoro global, resultante em
termos de sua inclinação, seu desvio e reciprocidade (contorno em arco, on-
dulante, em degraus, descendente, por exemplo);
articulação: grau de coerência sobre expressão de indicações de articulação explí-
citas na obra (legato, staccato, portato, por exemplo). A função da articulação é
conectar ou separar notas isoladas ou em grupos, deixando o conteúdo inte-
lectual da linha melódica inviolável, mas determinando sua expressão;
andamento: grau de velocidade relativa dos eventos (usualmente medida em nú-
mero de batidas por minuto), cujos pulsos são sucedidos repetidamente;
timing: manipulação da velocidade relativa entre os eventos nas de estruturas tem-
114 porais, mantendo as proporções da subdivisão métrica e com finalidade ex-
pressiva;
dinâmica: referindo-se a três princípios: (i) mudanças graduais de intensidade
para indicar padrões de tempo forte e tempo fraco assim com a direção do mo-
vimento dentro dos agrupamentos; (ii) contraste para articular fronteiras entre
agrupamentos; (iii) demarcação de eventos estruturais significativos, (acentos
métricos, picos melódicos, mudanças harmônicas, entre outros) (Clarke,
1989);
coerência global: expressão global da peça quanto ao relacionamento entre even-
tos musicais.

Resultados e Discussões
A Figura 1 representa o grau médio atribuído pelos árbitros a cada estudante (A-
F) para a performance do Anhang de Schumann, segundo sete parâmetros investi-
gados.

Figura 1. Grau médio atribuído aos diversos parâmetros de execução musical para
7 estudantes de música. A, B e C: graduandos de 1º semestre. D: graduando de 6º
semestre. E: graduando de 7º semestre. F: Mestranda.
Os dados da Figura 1 revelam ampla dispersão de graus atribuídos ao mesmo estu-
dante, sugerindo a valorização relativa de certos parâmetros em detrimento de ou-
tros. Os valores de correção de Pearson obtidos para os escores dos parâmetros
musicais avaliados variou entre 0,009 e 0,893. No presente caso, todos os valores ob-
tidos são positivos (o que significa uma relação diretamente proporcional), com 115
exceção da relação entre gestos e dinâmica (0,009) que foi muito próxima de zero,
sugerindo ausência de correlação. A relação forte encontrada encontra-se entre as
notas atribuídas a contorno e coerência (r = 0,893). Correlações fortes foram tam-
bém observados pelas relações entre contorno-andamento (0,712), contorno-ti-
ming (0,719), andamento-timing (0,725), andamento-coerência global (0,765),
timing-coerência global (0,779).
Uma outra maneira de analisar a relação entre os parâmetros é através da análise de
agrupamentos (clusters), que apresenta um escalonamento entre os parâmetros em
estrutura hierárquica. A Figura 2 ilustra o dendrograma resultante da avaliação dos
árbitros, referente a parâmetros investigados na performance do Anhang de Schu-
mann.

Figura 2. Dendrograma por análise de clusters dos parâmetros musicais avaliados


por três árbitros na performance do Anhang do Op. 12 de Schumann por estudan-
tes de piano (N = 6).
Esse dendrograma sugere haver muito pouca proximidade entre a maioria dos pa-
râmetros avaliados. Entretanto, esses dados confirmam a proximidade entre con-
torno e coerência global.
De posse desses dados, questionamos aos participantes a hierarquia entre os parâ-
metros durante a preparação. Este questionamento resultou em coerência entre
valor atribuído e grau médio atingindo. A Figura 3 exemplifica a relação da hierar-
quia entre os parâmetros segundo a perspectiva de um estudante de graduação (1º
semestre) e as respectivas notas dos árbitros.
116

Figura 3. Relação entre a hierarquia dos parâmetros musicais do estudante A e o


grau médio atingido segundo avaliação de árbitros.
De acordo com a Figura 3, existe tendência decrescente entre a nota atribuída pelo
árbitro e a ordem relativa de relevância atribuída pelo estudante em cada parâme-
tro. Na justificativa, a estudante mencionou:
“Parece-me que coerência global envolve todos os outros critérios. Timing e con-
torno ajudam a justificar a escolha de andamento, dinâmica e articulação. Então,
eu acho que esses dois últimos são também importantes. O andamento é uma
ferramenta para a execução, não a finalidade em si. Quantas vezes a mesma peça
é executada em andamentos totalmente diferentes, mas é bonita igual? (estu-
dante de graduação C, 1º semestre).”
Em continuidade ao tratamento desses dados, foi utilizado o escalonamento mul-
tidimensional (MDS), que é um método de estatística inferencial exploratória, um
conjunto de procedimentos que utiliza, na elaboração de uma representação espa-
cial da estrutura de relação, medidas de proximidade entre os parâmetros (vide por
exemplo, Hair et al., 2009; Silva et al., 2009). O MDS é tradicionalmente feito atra-
vés de dados de similaridade (ou dissimilaridade) que indicam, através de medidas
numéricas ou por ordenação, o quanto são próximos ou percebidos como seme-
lhantes os objetos (estímulos) em estudo.
Este método permite obter o mapa perceptual. Os dados dos escores dos três árbi-
tros, referentes à performance do Anhang do Op. 12 de Schumann, foram subme-
tidos a esse método porque, nesse ponto da investigação, nossas inferências
dependem mais da percepção dos árbitros do que de hipóteses prévias. Assim, o ca-
ráter Feurigst (ardente) foi analisado por MDS, conforme representação na Figura
4.

117

Realização

Figura 4. Mapa percentual de proximidades dos parâmetros musicais avaliados


na performance do Anhang do Op. 12 de Schumann.
Nesse tipo de técnica estatística multivariada exploratória, a interpretação das di-
mensões fica a cargo do pesquisador. A distribuição obtida por essa técnica, no to-
cante à dimensão da ordenada, revela três grupos de parâmetros com
distanciamento próximo: (i) Feurigst, dinâmica e articulação; (ii) andamento, ti-
ming e gestos; (iii) coerência e contorno. O conjunto desses três grupos levou-nos
a sugerir que a ordenada (eixo Y) representa uma dimensão vinculada à comuni-
cação/percepção da expressão. Com relação à dimensão da abscissa (eixo X), ob-
serva-se a proximidade entre caráter Feurigst e andamento ou dinâmica e contorno,
provavelmente revelando uma dimensão que busca descrever o grau de realização
na performance.
Na Figura 4, os parâmetros ‘coerência global’ e ‘contorno’ foram os mais salientes
para os estudantes. Conforme estudos anteriores (Gerling et al., 2009), apesar do
potencial de expressividade, coerência global parece ser um parâmetro bem assi-
milado e menos dependente do nível de expertise musical. Aparentemente, para
esse grupo investigado, a coerência global está mais próxima do contorno do que os
demais parâmetros, ou seja, o conjunto de alunos valorizou o delineamento de cada
uma das frases mais do que o contexto de sua execução.

Considerações Finais
Os estudantes aceitaram o desafio de preparar uma peça, sem auxílio do professor.
O contorno das frases parece estar bem assimilado por esse grupo de estudantes,
mostrando ser menos dependente do nível de expertise. Contudo, a maioria de es-
tudantes teve um modesto grau de sucesso, uma vez que a grande maioria dos graus
atribuídos pelos árbitros ficou numa faixa de 4 a 7. Uma das razões desse resultado
parece ser o pouco cuidado com a leitura de uma peça, e a tendência de relativa de-
118 pendência de sugestões externas (professor) para avançar o aprofundamento da
compreensão musical. Esse grupo de estudantes parece ainda muito restrito à re-
solução de aspectos técnicos ao longo da preparação. Além disso, poucos foram
aqueles que buscaram informações complementares durante a preparação da peça.
Considerando que o contorno parece ser um indício de coerência global, esses es-
tudantes acabam não percebendo a importância da deliberada manipulação de as-
pectos musicais de natureza expressiva (andamento, timing, articulação e dinâmica,
por exemplo) ao refinarem suas concepções visando a coerência global de obra em
preparação.
Agradecimentos
C.C. Gerling e R.A.T. dos Santos agradecem ao CNPq pelas bolsas PQ e Pós-Doutorado,
respectivamente.

Referências
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Atribuição de Causalidade na Performance Musical
Ana Francisca Schneider
francisca.schneider@gmail.com
120 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo
Este trabalho relata uma pesquisa de mestrado em andamento desenvolvida no âmbito
do Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de Profissionais em Música (FAPROM), sob
a orientação da Prof. Dra. Liane Hentschke. A pesquisa investiga as causas atribuídas por
bacharelandos em música para situações consideradas de sucesso e fracasso em per-
formance musical pública. Objetiva assim identificar as causas para tais situações e ana-
lisá-las de acordo com as variáveis demográficas: idade, sexo, instrumento musical,
universidade e semestre do curso. De acordo com a teoria da atribuição de causalidade
buscar causas para explicar ações é natural do ser humano e essa busca de respostas se
dá principalmente quando a situação vivida era considerada importante, ou o resultado
foi inesperado. Buscando entender estas causas, há mais de cinco décadas, teóricos vem
desenvolvendo estudos com um enfoque na percepção do indivíduo sobre suas ações.
Um exemplo é a Teoria da Atribuição de Causalidade que explica o fim do processo mo-
tivacional e pretende entender as percepções do indivíduo e as suas concepções sobre
as causas para o sucesso ou o fracasso. Seguindo esta linha de pensamento, dentro da
psicologia social cognitiva, Weiner se destaca como o principal autor que desenvolveu
e a expandiu a teoria. A teoria da atribuição de causalidade observa uma seqüência cau-
sal aonde a partir de um resultado (de sucesso ou de fracasso) o indivíduo busca uma
causa, gera um sentimento positivo ou negativo em relação a ela, que interfere na ma-
neira como a pessoa age frente a uma nova situação. A pesquisa utiliza o método sur-
vey cuja amostra consiste em alunos de bacharelado em instrumento, que estão
matriculados a partir do terceiro semestre de cursos de música do estado do Rio Grande
do Sul. Para a coleta de dados, foi desenvolvido um questionário a partir da adaptação
de outros dois, já validados nos Estados Unidos e em Portugal. Após o termino da coleta
de dados, estes serão analisados através de cálculos estatísticos bem como a literatura
existente nas áreas da motivação em música, educação musical e práticas interpretati-
vas.

Atribuição de Causalidade: aspectos introdutórios


Atribuir causas é um tendência humana, sejam para o sucesso ou fracasso. Em nosso
cotidiano buscamos causas para todas as situações em que vivemos, pois estas atri-
buições dizem respeito às interpretações individuais de um determinado evento.
Estas crenças individuais sobre as causas de determinadas situações segundo Wei-
ner (1991) influenciam a motivação.
Segundo Bzuneck (2001, p.9) a motivação pode ser entendida como fator ou como
um processo. Para este trabalho a motivação será abordada como um processo, se-
guindo as pesquisas mais recentes da área que adotam uma perspectiva social cog-
nitiva da motivação e dão destaque para os pensamentos, crenças e percepções in-
dividuais deste processo (Boruchovitch e Martini, 2004). Assim, sabemos que “o
processo motivacional dá início, dirige e integra o comportamento, sendo um dos
principais determinantes do modo como uma pessoa se comporta.” (Boruchovitch
e Martini, 2004, p.13). 121
Este processo pode ser entendido como uma seqüência motivacional que pode ser
explicada por diversas teorias da motivação, como, por exemplo, a teoria de metas,
auto-eficácia e expectativa-valor. A teoria que explica o fim da seqüência motiva-
cional é a teoria da Atribuição de Causalidade, desenvolvida por Heider em 1944
e tendo como principal teórico Bernard Weiner (1985, 2004). A intenção desta
teoria é mostrar como as situações de sucesso e fracasso são interpretadas pelo su-
jeito da ação. Cabendo ao próprio sujeito julgar se foi uma situação de sucesso ou
fracasso.
A teoria da Atribuição de Causalidade “integra o pensamento, o sentimento e a
ação” (Boruchovitch e Martini, 2004, p.32) e para explicar resultados já obtidos
segue uma seqüência causal de acordo com o esquema a seguir:

Observamos assim que o primeiro passo para o entendimento das atribuições de


causalidade é identificar a orientação motivacional. Esta orientação é entendida
como a localização da motivação, que pode ser interna ao sujeito, chamada de mo-
tivação intrínseca ou externa ao sujeito, chamada de motivação extrínseca.
A motivação intrínseca, de acordo com Guimarães (2001), “refere-se à escolha e
realização de determinada atividade por sua própria causa, por esta ser interessante,
atraente ou, de alguma forma, geradora de satisfação” (Guimarães, 2001, p.37). Esta
orientação mostra que a motivação está no sujeito, sendo uma propensão inata e na-
tural dos indivíduos. Assim, se os alunos estão interessados no seu próprio processo,
a aprendizagem pode ser facilitada e a satisfação é maior. Já a motivação extrínseca
é aquela que vem de fora do sujeito, está fora do seu controle e pode ser represen-
tada por prêmios e elogios dos pais e professores. Esta orientação se apresenta
quando o sujeito realiza a tarefa para obter recompensas externas, visando o reco-
nhecimento social (Guimarães, 2001).
Weiner (2004), ao revisar a Teoria da Atribuição de Causalidade, percebe que a
diversidade cultural, assim como as influências do meio são fundamentais para as
atribuições causais. O autor em suas pesquisas observa que resultados semelhantes
são interpretados de maneira diferente dependo do contexto social em que o sujeito
está inserido e de sua trajetória de vida. Assim, coloca a localização da motivação
como principal fator para a compreensão das causas atribuídas a situações consi-
122 deradas de sucesso ou de fracasso, separando a teoria em duas perspectivas: Intra-
pessoal e Interpessoal.
Na perspectiva atribucional Intrapessoal o sujeito é visto como um cientista que
busca entender suas ações e seu meio para agir de acordo com seu conhecimento. O
sujeito da ação considera apenas o seu sentimento em relação a seqüência causal
que é iniciada por um resultado e traz na atribuição as concepções do indivíduo
sobre sucesso ou fracasso e sua experiências prévias. Dentro desta perspectiva cada
causa atribuída, observando as suas dimensões, apresenta “conseqüências psicoló-
gicas, sendo relacionadas tanto para a expectativa quanto para a afetividade” (Wei-
ner, 1985, p. 566).
Já na perspectiva atribucional Interpessoal, o resultado que desencadeia a seqüên-
cia causal é analisado e interpretado por outras pessoas como professores, familia-
res ou pares que observam a ação. Estas pessoas fazem um julgamento de valor e
consideram o sujeito responsável ou não pelo sucesso ou fracasso em determinada
situação.
As causas atribuídas pelos alunos são muitas e não são estáticas, podem mudar de
acordo com o amadurecimento e a própria situação. Mas, segundo as pesquisas de
Weiner (1985) e Martini (1999), algumas causas são mais freqüentes. São elas: in-
teligência, esforço/falta de esforço, dificuldade da tarefa, sorte, influência do pro-
fessor, influência de outras pessoas e cansaço.
Na área da educação musical, algumas pesquisas vêm sendo realizadas utilizando a
motivação e suas teorias como referencial teórico (Pizzato, 2009; Vilela, 2009; Ca-
valcanti, 2009). Mas alguns espaços de ensino ainda são pouco abordados, como o
ensino superior de instrumento musical.
O ensino superior de instrumento no Brasil acontece em universidades públicas e
privadas em todas as regiões do país e visa formar Bacharéis em Música, para atua-
rem em diversos espaços sócio-culturais. A formação do bacharelando em música
é heterogênea, mudando de instituição para instituição. As pesquisas nesta área
mostram que se cultiva uma visão distorcida deste estudante, como relata Schroe-
der (2004) que
numa visão que poderíamos qualificar de “senso comum”, os músicos (e os ar-
tistas de modo geral) têm sido freqüentemente tratados como seres humanos
especiais, dotados naturalmente de um atributo – definido genericamente como
“dom” ou “talento” – que os diferencia da maioria das pessoas comuns. Essa visão
um tanto quanto estereotipada, contudo, não é exclusiva, como se poderia pen-
sar, de pessoas que estão fora do campo musical ( os chamados “leigos” em mú-
sica). Ao contrário, é no próprio campo que as idéias mitificadoras do músico
vêm sendo reforçadas a todo momento, seja através da crítica especializada, dos
próprios músicos ou mesmo de muitos educadores (nesse caso, sobretudo pela
adoção de procedimentos pedagógicos fundamentados em determinadas pers-
pectivas de desenvolvimento musical) (Schroeder, 2004, p.109).
123
Assim, ao optar em seguir a carreira de músico profissional, o estudante tem que
constantemente lidar com a imagem de genialidade que é colocada sobre ele e mui-
tas vezes mantê-la para não interferir na sua imagem de auto-eficaz. Este misticismo
sobre a carreira do músico profissional acarreta uma pressão em sempre obter per-
formances musicais consideradas de sucesso. O sucesso em performance musical
não é somente aquela em que o músico não erra notas, mas principalmente aquela
aceita pelos seus pares, que observam estilo, andamento, dinâmica, etc.
Com isso, a performance musical pública se torna uma situação importantíssima
para a formação do músico profissional, pois é neste momento em que ele se avalia
e é avaliado por outros. Cabe ao estudante, neste momento, se preparar para di-
versos resultados e observar as causas que o levaram ao sucesso ou ao fracasso na
apresentação musical.
As pesquisas que utilizam a Teoria da Atribuição de Causalidade nos dão as causas
para as situações de sucesso e fracasso. Entretanto, nos mostram com isso a visão das
crenças dos estudantes, que seriam as suas concepções de sucesso e fracasso sobre um
determinado evento, assim como o quanto ele está envolvido com o seu processo
de aprendizagem. Legette (2002) afirma que uma das maiores contribuições da
Teoria é mostrar que a motivação é influenciada pelas crenças individuais sobre o
sucesso e o fracasso em atividades. As pesquisas da área mostram que as causas atri-
buídas pelos sujeitos a estas situações de sucesso ou fracasso influenciam as expec-
tativas para as próximas atividades.
Desta maneira, se faz necessário pesquisas que revelem as atribuições causais dos
bacharelandos em música sobre situações consideradas de sucesso e fracasso em
apresentações musicais públicas, revelando assim as suas concepções.
Na área da música, o interesse em entender o que leva os alunos a estudarem mú-
sica, suas metas, suas crenças e concepções, assim como o quanto se sentem aptos a
realizar atividades musicais, fez com que diversos pesquisadores realizassem pes-
quisas em diferentes contextos de ensino e aprendizagem de música.
Nos últimos anos algumas pesquisas na área da educação musical foram realizadas
utilizando teorias da motivação (Hentschke et al., 2009; Cavalcanti, 2009; Pizzato,
2009; Vilela, 2009; Cereser, 2009; Araújo; Pickler, 2008; Papageorgi; Hallam;
Welch, 2007; Fredrickson, 2007; Schivitsa, 2007; Mcpherson; Mccormick, 2006;
Mcpherson; Mccormick, 2000).
A performance dentro da perspectiva motivacional pode ser vista de diferentes ma-
neiras, seja analisando as metas individuais dos instrumentistas e metas de bandas
de alunos ou a ansiedade gerada por exames e performances públicas. As pesquisas
também buscam entender o papel do professor de música na motivação dos alunos.
Utilizando a teoria da Atribuição de Causalidade, Austin e Vispoel (1992) inves-
tigaram as respostas de crianças de 5-8 anos frente a situações hipotéticas de su-
124 cesso e fracasso em música. Essas crianças demonstraram melhores resultados
quando recebiam um feedback dos professores com novas estratégias de estudo do
que quando recebiam um feedback de habilidade.
McPherson (2004, p.229) diz que:
a atribuição de esforço para o sucesso é melhor relacionado com o auto-con-
ceito musical; estudantes que apresentam um baixo conceito em relação a mú-
sica tendem a não atribuir o resultado ao esforço enquanto os que apresentam
um auto-conceito moderado ou alto o atribuem.
Outra pesquisa foi realizada (Austin & Vispoel, 1998) com o objetivo de investi-
gar as atribuições de causalidade de adolescentes para situações de sucesso e fracasso
na aula de música. Nesta pesquisa participaram 153 alunos de 12-13 anos de uma
escola nos Estados Unidos, que responderam que as causas para seu sucesso, em
ordem de importância, são: influência do professor, influência dos pares, influên-
cia da família, sorte, habilidade, metacognição, persistência, esforço, estratégia, in-
teresse e dificuldade da tarefa. Já as causas para seu fracasso, em ordem de
importância, são: influência da família, habilidade, sorte, persistência, estratégia,
dificuldade da tarefa, influência dos pares, metacognição, interesse, influência do
professor e esforço.
Esta pesquisa traz dados não tradicionais para as pesquisas de atribuição de causa-
lidade, colocando causas como, por exemplo, influência da família em evidência,
dados estes que sugerem um aprofundamento em outras pesquisas.
O ensino superior é abordado em pesquisas que utilizam a perspectiva atribucional.
Legette (2002) investiga os licenciandos em música e conclui que as principais cau-
sas atribuídas para o sucesso e o fracasso em música são a habilidade e o esforço. As
atribuições de instrumentistas e de vocalistas são diferentes, mas ainda não se tem
dados suficientes para análises mais aprofundadas. Hewitt (2004) realizou uma pes-
quisa com bacharelandos em música sobre suas atribuições e auto-percepções em
performances musicais solo. Observou que a avaliação destas performances por
professores é de fundamental importância, pois os alunos tem um feedback de seu
desempenho.

Método
Esta pesquisa será quantitativa, com caráter descritivo e exploratório. Por se tratar
se uma pesquisa que estude o comportamento de seres humanos, o projeto seguirá
as orientações Éticas próprias de pesquisa com seres humanos. Para isso os alunos
deverão assinar o termo de Consentimento Informado.
Para a realização deste projeto, o método escolhido foi o Survey por ter a caracte-
rística e o objetivo de: descrever, explicar e explorar certa amostra (Babbie, 1999).
Este método vem ao encontro do meu objetivo de pesquisa que pretende investi-
gar as atribuições de causalidade assim como descrevê-las. O Survey é um método
de pesquisa quantitativa que traz três pré-requisitos: especificação exata do obje- 125
tivo da pesquisa, a população alvo e os meios disponíveis para a realização (Cohen
& Manion, 2007).
A escolha deste método se dá por atender a este pré-requisitos e por me propor-
cionar maior abrangência na coleta de dados, uma vez que será realizado um censo
com estudantes de diferentes instituições de ensino superior da região Sul do Brasil.
Para este estudo, será selecionada uma amostra não probabilística de 150 alunos de
ambos os sexos, dos cursos de bacharelado em instrumento ou canto de universi-
dades do estado do Rio Grande do Sul, que estejam matriculados a partir do terceiro
semestre de curso.
A escolha por alunos do curso de bacharelado se fez por ser este um momento de
formação profissional e de muitas escolhas e pesquisas mostram que por estarem na
fase adulta tem maior discernimento de causa, podendo atribuir mais corretamente
do que uma criança ou um adolescente. (Martini, 1997)
Para esta pesquisa será utilizado um questionário auto-administrado. Esta técnica
me permitirá a coleta de informações, pois possibilita conhecer as causas e orienta-
ções motivacionais do aluno. A escolha de um questionário surge da possibilidade
que esta técnica permite de coletar as informações com rapidez e com respostas di-
retas.
O questionário a ser utilizado será a adaptação de dois outros questionários já va-
lidados em Portugal (Sousa; Rosado; Cabrita, 2008) e nos Estados Unidos (Austin;
Vispoel, 1998). O primeiro analisa dados demográficos, dados da situação em que
o sujeito será remetido ao responder o questionário e doze perguntas que anali-
sam as três dimensões da causa. O segundo analisa as atribuições de causa: habili-
dade, esforço, persistência, estratégia, interesse, sorte, dificuldade da tarefa,
influencia do professor, influencia da família e influencia dos pares.
O questionário está dividido em três partes, a primeira referente aos dados demo-
gráficos e informações sobre a trajetória musical do bacharelando. A segunda refe-
rente a uma situação de sucesso em performance musical pública solo e a terceira
em relação a uma situação de fracasso em performance musical pública solo.
Foi realizado um Estudo Piloto, com o objetivo de testar o questionário a ser utili-
zado na pesquisa. Participaram deste estudo 19 bacharelandos de instrumento ou
canto, matriculados a partir do terceiro semestre do curso. Após a coleta, os dados
foram submetidos a uma análise estatística descritiva, que comprovou a validade e
adequabilidade das questões.
No momento, a pesquisa está em fase de coleta, obedecendo a seguinte ordem: con-
tato com as universidades; contato com os alunos; procedimentos éticos e aplica-
ção dos questionários.
Após o termino da coleta de dados, estes serão analisados através de cálculos esta-
126 tísticos bem como a literatura existente nas áreas da motivação em música, educa-
ção musical e práticas interpretativas.

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4.
A influência do espaçamento entre notas nas relações
de consonância e dissonância
Orlando Scarpa Neto
128 orlandoscarpa@gmail.com
Universidade Federal do Paraná

1. Resumo
Em sua obra The Craft of Musical Composition, Paul Hindemith expõe parte de seu sis-
tema de composição. Hindemith dedica boa parte de seu livro à harmonia e à análise dos
intervalos musicais, e cria um sistema sintetizado em uma tabela para analisar o grau de
dissonância de um acorde qualquer. Nesta tabela, Hindemith cria 6 grupos, cada um com
dois ou três sub-grupos, ordenados por grau de dissonância. Com esta tabela seria pos-
sível, teoricamente, analisar qualquer acorde baseado no número de intervalos disso-
nantes do mesmo. Hindemith não leva em consideração o espaçamento entre as notas
do acorde, de acordo com sua tabela uma segunda dó3-dó# 3 teria o mesmo valor de uma
segunda dó 3-dó# 7. Porém, o espaçamento entre as notas muda consideravelmente a
dissonância ou consonância de um intervalo, uma oitava dó2-dó7 soa ligeiramente mais
dissonante, do que uma segunda dó2-dó# 7 . Muitos compositores já se utilizaram desta
propriedade do espaçamento suas obras, alguns exemplos são Prokofiev, nos primeiros
compassos de Aleksandr Nevskij, e Ligeti, no segundo e quinto movimento de Musica Ri-
cercata. Em ambos os exemplos, intervalos de oitava soam quase dissonantes devido ao
grande espaçamento entre as notas.
O objetivo deste trabalho é analisar de que maneira o espaçamento interfere na conso-
nância ou dissonância de intervalos e investigar como a articulação do espaçamento
pode complementar o sistema do Hindemith. Primeiramente foram detalhados alguns as-
pectos da teoria de Hindemith, que poderiam ser complementados com o uso do espa-
çamento. Em seguida, foram abordados alguns conceitos da discussão da psicoacústica
a respeito das relações de dissonância e consonância. Foi visto de que maneira idéias
dos autores David Huron, Alexandre Torres, Richard Parncutt e Hans Strasburger aju-
dam a explicar a influência do espaçamento em relações de consonância/dissonância. Em
seguida, foi discutido de que maneira as relações de consonância e dissonância foram in-
terpretadas ao longo da história. A última parte deste trabalho advém da própria com-
posição musical. Foram utilizadas análises de compositores que usaram o espaçamento
em suas obras (Ligeti, Dallapiccola e Prokofiev) que tem a articulação do espaçamento
como um elemento central. Por último, foi discutido de que maneira a discussão da psi-
coacústica e da composição musical se aplicam ao sistema de Hindemith no que diz res-
peito à articulação do espaçamento.

Introdução
Em sua obra The Craft of Musical Composition,1 Hindemith expõe parte de seu sis-
tema de composição. Dedica boa parte de seu livro à harmonia e à análise dos in-
tervalos musicais. Para Hindemith, existe uma hierarquia natural dos intervalos, e
“o valor de um intervalo musical é determinado pelo agrupamento de seu som re-
sultante”2. Quando tocamos duas notas musicais em qualquer instrumento, sons
adicionais são gerados. Uma categoria deste sons adicionais são os sons da séria har-
mônica, a outra são os chamados sons resultantes3. Segundo Hindemith “a fre-
qüência do som resultante é sempre igual a diferença entre as freqüências 129
diretamente produzidas pelos sons do intervalo”4 Os sons resultantes são sons reais,
sujeitos as mesmas leis acústicas que sons convencionais, portanto produzem seus
próprios sons resultantes chamados de sons resultantes de segunda ordem. Teori-
camente, existem sons resultantes de terceira ordem, quarta ordem, quinta ordem,
etc., porém estes sons vão ficando cada vez mais fracos e, na prática, não se percebe
sons resultantes acima dos de segunda ordem. Hindemith conclui que, depois da oi-
tava, a quinta justa é o intervalo que tem uma relação mais estável ou de maior valor
com seu som resultante. Os intervalos que se seguem são, em ordem de maior valor:
quarta justa, terça maior, sexta menor, terça menor, sexta maior, segunda maior, sé-
tima menor, segunda menor, sétima menor. O trítono é diferente de todos os ou-
tros intervalos, e só pode ser analisado conforme o contexto em que aparece.
Hindemith não é muito claro em relação a o que maior ou menor valor significa-
ria exatamente, dando a entender que o valor de um intervalo se relaciona com sua
estabilidade, consonância e relação com a série harmônica. Hindemith também
cria uma tabela5 de análise de acordes, que teoricamente seria capaz de classificar
qualquer acorde em termos de dissonância. O autor divide os acordes em acordes
com e sem trítono, e cria seis grupos (numerados com algarismos romanos) de acor-
des. Os acordes com números pares (II, IV e VI) são os que contém trítono, e os ím-
pares (I, II e V), os sem trítono. Quanto maior o número do acorde, mais dissonante
ele é.
Estes grupos são: I – acordes sem segundas ou sétimas; II – acordes com trítono,
sem segundas menores ou sétimas maiores; III – acordes com segundas e/ou séti-
mas; IV – acordes com trítono, com segundas menores e/ou sétimas maiores; V –
acordes indeterminados; VI – acordes indeterminados com predominância do trí-
tono. Cada um destes grupos (com exceção dos grupos V e VI) possui 2 ou 3 sub-
grupos. Mais será dito sobre os grupos e subgrupos adiante.
Hindemith não leva em consideração o espaçamento entre as notas do acorde, de
acordo com sua tabela uma segunda dó3- dó# 3 teria o mesmo valor de uma segunda
dó3-dó# 7.6 Porém, o espaçamento entre notas muda consideravelmente a disso-
nância ou consonância de um intervalo; uma oitava dó2-dó7 soa ligeiramente mais
dissonante do que uma segunda dó2-dó# 7. O próprio Hindemith, apesar de não
levar isto em consideração em boa parte de seu livro, reconhece o fenômeno:
“Os intervalos no qual as notas estão separadas por distâncias tão grandes que
parecem ser transposições de oitava de quintas, quartas, etc., apresentam dispo-
sições de sons resultantes mais infelizes do que seus protótipos. […] Até mesmo
a oitava, que está acima e além de qualquer discussão de valores intervalares,
perde boa parte de seu valor quando aparece na forma 1:4 que, como sua estru-
tura de sons resultantes confirma, mal se compara à quinta justa em termos de
clareza. Na forma 1:8 […] é ainda mais fraca, e na forma 1:16 o intervalo se torna
completamente dissonante”7
130
Hindemith afirma ainda que quanto mais instável for o intervalo mais rapidamente
ele perderia o seu valor à medida que o espaçamento aumentasse. Apesar de reco-
nhecer que o espaçamento influencia na relação consonância/dissonância de um in-
tervalo ou acorde, Hindemith afirma que espaçamentos tão grandes acontecem
com pouca freqüência e podem-se “tratar os intervalos espaçados exatamente como
seus protótipos. Isto é o suficiente para as necessidades práticas da composição mu-
sical”8. No entanto, quem determina a freqüência em que estes intervalos espaça-
dos ocorre é o próprio compositor, pois as necessidades práticas da composição não
são fixas.
Muitos compositores já se utilizaram desta propriedade para dar forma suas obras,
alguns exemplos são Prokofiev, nos primeiros compassos de Aleksandr Nevskij, e
Ligeti, no primeiro e segundo movimento de Musica Ricercata. Em ambos, inter-
valos de oitava soam quase dissonantes devido ao grande espaçamento entre as notas.
Como já foi dito, o próprio Hindemith em The Craft of Musical Composition re-
conhece que intervalos consonantes ficam dissonantes caso o espaçamento entre
as notas seja muito grande. Na mesma obra, Hindemith aborda vários aspectos das
relações de consonância e dissonância. Uma das idéias fundamentais do sistema de
Hindemith é a de que intervalos possuem uma nota fundamental9. Isto acontece
porque, segundo o autor, os sons resultantes de alguns intervalos reforçam uma de
suas notas, seja em uníssono ou uma oitava abaixo. Na oitava, os sons resultantes,
por serem mais graves, reforçam a nota inferior do intervalo, Hindemith então con-
sidera a nota inferior da oitava a fundamental. Na quinta justa, a fundamental é
também a nota inferior, assim como na terça maior. Na sexta menor e na quarta
justa, a fundamental é a nota superior do intervalo. Os intervalos de terça menor e
sexta maior não produzem nenhum som resultante que reforcem qualquer uma de
suas notas por oitava ou uníssono: os sons resultantes de primeira ordem produzi-
dos na terça menor tem uma relação de quinta justa duas oitavas abaixo com a nota
mais aguda do intervalo, e na sexta maior uma relação de quinta justa com a nota
mais grave do intervalo, sendo o som resultante a nota grave da quinta. Os inter-
valos formados pelos sons resultantes de segunda ordem são os mesmos em ambos
os casos, só que uma oitava acima. Hindemith argumenta que é mais vantajoso tra-
tar os intervalos de terça menor e sexta maior como tratamos os de terça maior e
sexta menor, e que isto se torna um problema apenas quando estamos escrevendo
música a duas vozes. Algo parecido ocorre com as segundas e sétimas: “não faz di-
ferença quais das notas consideramos a fundamental. Os sons resultantes não apon-
tam para conclusões definitivas”10. Hindemith considera a nota superior como a
fundamental das segundas e a nota inferior como fundamental das sétimas. O que
leva ele a estas conclusões são motivos históricos, já que nossos ouvidos estão acos-
tumados com a nota superior das sétimas resolvendo de forma ascendente na tônica,
assim como a nota inferior das segundas. O curioso é que Hindemith, mesmo
usando argumentos da acústica para justificar a existência das fundamentais em in- 131
tervalos, sempre usa como prova final a história da música e a nossa própria escuta.
Para Hindemith, assim como intervalos possuem fundamentais, todo acorde pos-
sui uma fundamental. A fundamental do acorde no sistema de Hindemith não tem
nenhuma relação direta com a fundamental de acordes no sistema de Rameau. Se-
gundo o autor:
“Se há uma quinta justa no acorde, então a sua nota inferior é a fundamental do
acorde. Assim como a nota inferior de uma terça ou sétima (na ausência de qual-
quer intervalo melhor) é a fundamental do acorde. De forma oposta, se uma
quarta, sexta ou segunda for o melhor intervalo do acorde, então a sua nota su-
perior é a fundamental do acorde.”11
Hindemith afirma que, de maneira geral, o espaçamento entre as notas do intervalo
que possui a fundamental não interfere em nada.12 Em casos de espaçamento ex-
tremo, em que os intervalos a princípio consonantes se tornam dissonantes, o autor
sugere “levar em consideração as influências melódicas . . . ao invés de se basear in-
teiramente nas analises harmônicas.”13 O autor também afirma que o espaçamento
geral de um acorde pode influenciar na sua tensão14, e que esta influência é mais
presente em acordes com muitas notas. Acordes mais simples, com tensão mode-
rada, não perdem a sua essência quando suas notas são espaçadas. Já acordes mais
complexos perdem suas particularidades.
Curiosamente, Hindemith não comenta nada sobre a influência do espaçamento
em sua tabela de análise de acordes. Diether de la Motte, em sua obra Harmonia,15
afirma que apesar de Hindemith não abordar a questão em seu trabalho teórico, o
seu trabalho enquanto compositor explora mudanças no espaçamento. Para o autor,
as variações de tensão do ponto culminante de Versuchung des heiligen Antonius
(de Mathis der Maler) são em grande parte geradas por variações no espaçamento.16
No campo da psicoacústica não foi encontrado nada que trate especificamente da
influência do espaçamento na consonância/dissonância de acordes, porém as dis-
cussões sobre fusão tonal, rugosidade e dissonância sensorial tratam indiretamente do
assunto. Mais será dito sobre estes conceitos adiante.

Os diferentes conceitos de consonância e dissonância


Para conseguir entender como o espaçamento entre notas influência as relações de
consonância e dissonância, primeiramente é preciso definir o que se entende por
estes conceitos. Panteleimon Vassilakis sintetiza bem ambos:
“Dissonância e consonância são conceitos multidimensionais que descrevem os
níveis de agradabilidade/irritabilidade de um som, ou o grau no qual um som se
relaciona com outros em um contexto musical maior. O fator determinante
para a presença de dissonância/consonância é a presença/ausência de rugosidade,
respectivamente . . . Dentro da tradição da música ocidental, a presença de ru-
132 gosidade equivale a dissonância sensorial ou acústica.”17
O termo rugosidade18 foi criado por Hermann Helmholtz, e se refere a uma certa
aspereza presente em sons dissonantes. O termo, de acordo com Alexandre Porres,
faz uma analogia com “a sensação tátil, e diz respeito a percepção de pequenas ir-
regularidades no som”19. Um som livre de rugosidade é, na música ocidental, quase
sempre considerado um som consonante. Fisicamente, a rugosidade é flutuação de
amplitude, e a taxa de flutuação de amplitude entre dois sons é dada pela diferença
em Hertz entre eles. Taxas abaixo de 20Hz produzem variações de amplitude len-
tas, percebidas como batimentos, e “flutuações mais rápidas são responsáveis pela
sensação de rugosidade, e ocorrem para uma diferença em freqüência entre 20Hz
e um valor que varia de acordo com o registro da escuta”.20 Estas flutuações rápidas
estão presentes em sons dissonantes não só entre as freqüências das notas funda-
mentais, mas também entre os harmônicos. Quando o espaço entre as freqüências
é grande o suficiente para não ocorrem flutuações de amplitude ou quando os har-
mônicos entre dois sons coincidem, temos a consonância sensorial. A presença de
rugosidade implica em dissonância sensorial, mas a dissonância sensorial não é a
única forma de dissonância. De acordo com James Tenney, dissonância e conso-
nância significaram pelo menos cinco coisas diferentes ao longo da história da mú-
sica ocidental.21 O autor chama essas diferentes percepções de consonância e
dissonância de Conceito de Dissonância e Consonância 1, 2, 3, 4 e 522 (ou CDC-1,
2, . . .).
O CDC-1 diz respeito à dissonância/consonância monofônica ou melódica, sons
consonantes são aqueles que são afináveis melodicamente por possuírem uma co-
nexão ou relação forte23. O conceito vem da Grécia antiga, porém ecos dele estão
presentes nas harmonias do século XVIII, nos saltos de quarta e quinta justa do
baixo e até nas idéias de Hindemith quando ele afirma que as oitavas, quartas e
quintas são intervalos que possuem mais valor que os outros.24 Richard Parncutt
e Hans Strasburger25 também remetem ao CDC-1 quando dizem que os acordes
criam relações entre si devido a similaridades entre alturas26 de ambos. Para os au-
tores, existem outras duas formas de acordes criarem relações entre si: a proximi-
dade das fundamentais dos acordes no ciclo das quintas e os dois acordes
pertencerem a uma mesma tonalidade historicamente definida. Segundo os auto-
res, o problema da primeira hipótese é que, muitas vezes, acordes que têm uma re-
lação forte entre si têm fundamentais bastante ambíguas, e o problema da segunda
é que ela não explica relações entre acordes em um contexto atonal e/ou extrema-
mente cromático. A terceira forma seria a da similaridade entre alturas: percebemos
os acordes de ré menor e dó maior como harmonicamente relacionados pelo fato
de possuírem harmônicos em comum. Os acordes não possuem notas em comum
(dó-mi-sol e ré-fá-lá), mas possuem vários harmônicos em comum: mi é o terceiro
e sol o sétimo harmônico de lá. Adiante, o acorde de ré menor não tem apenas as
notas ré-lá-fá, mas também a nota sol “que tem como terceiro harmônico ré, sé- 133
timo harmônico fá e nono harmônico lá”27. A aplicabilidade da hipótese dos au-
tores na composição musical é discutível, mas o objetivo aqui é demonstrar que eles
pensam em progressões harmônicas em termos de similaridade entre notas, o que
seria uma extensão do CDC-1 do âmbito da melodia para o âmbito da harmonia.
CDC-2 diz respeito ao aspecto sonoro de díades, independente de qualquer con-
texto musical. A diferenciação entre dissonância melódica e intervalar começa a
surgir por volta do século XI, época em que Guido d’Arezzo faz uma separação
entre díades que são consonantes por soarem suaves e como apenas um som (CDC-
2) e intervalos melódicos com notas com uma certa afinidade entre si (CDC-1).28
No século XX, a discussão que mais remete ao CDC-2 é a de fusão tonal. O con-
ceito de fusão tonal foi desenvolvido pelo psicólogo alemão Carl Stumpf e, segundo
Torres, Stumpf “liga a sensação de consonância com a sensação de ouvintes perce-
berem dois tons como uma entidade única”.29 O trabalho de Stumpf se provou ine-
ficiente para explicar o fenômeno de consonância musical em sua totalidade como
pretendia o autor, mas “seu trabalho foi explorado no século XX em estudos que
consideram a fusão tonal como um fenômeno psicoacústico/cognitivo”.30 Um dos
autores que trata a fusão tonal como fenômeno cognitivo é David Huron, que
afirma que Johann Sebastian Bach preferia intervalos “na proporção inversa ao grau
que promovem dissonância sensorial e na proporção inversa ao grau que promovem
fusão tonal . . . Bach queria produzir sons ‘suaves’ sem o risco de soarem ‘como um
só’ ”.31 Para o autor, Bach evitava intervalos que tendem a ter mais fusão tonal com
o objetivo de manter a independência entre as vozes.
Com o surgimento da polifonia renascentista o CDC-2 se tornou ineficiente para
servir como base às novas práticas. Surge então o CDC-3, que é baseado na clareza
melódica e textural das vozes em um contexto contrapontístico. A quarta justa
passa a ser considerada ora consonante ora dissonante, dependendo do contexto
em que aparece, e surge o conceito de consonância perfeita (quintas e oitavas) e
consonância imperfeita (terças e sextas). É importante acentuar que a idéia de que
a consonância/dissonância de um intervalo varia de acordo com o contexto é algo
que surge com o CDC-3.32
Posteriormente, com a ascensão da harmonia de Rameau, no fim do século XVIII,
surge o CDC-4. A idéia de consonância e dissonância é estendida, e aparece a noção
de acordes e notas dissonantes. Todo acorde passa então a possuir uma fundamental,
que pode ser rastreada decodificando as notas em sobreposições de terças: o acorde
dó-mi-lá, que antes era considerado um acorde de dó com terça e sexta, passa a ser
considerado um acorde de lá menor na primeira inversão (com a terça no baixo). Se
este acorde tivesse uma sétima menor sol, a nota sol seria considerada a nota disso-
nante do acorde. E os acordes também passam a ser considerados como mais ou
menos consonantes/dissonantes, e a consonância/dissonância a ser associada com
134 estabilidade (sem a necessidade de resolução) e instabilidade (tendência a movi-
mento, necessidade de resolução).33
É apenas no século XX, com o CDC-5, que surge o termo rugosidade. No CDC-5
um intervalo dissonante é aquele que possui uma certa rugosidade, e à medida que
um intervalo qualquer fica menos rugoso (ou mais suave), ele fica mais conso-
nante.34 O surgimento do CDC-5 não descarta os outros CDCs e as várias concep-
ções sobre o assunto se acumulam ao invés de se anularem. Diversos autores se
utilizam de vários CDCs em um mesmo trabalho, o que evidencia que as discussões
sobre consonância/dissonância são, antes de tudo, semânticas. Apesar do CDC-5
ser o mais recente, nem sempre na música contemporânea a dissonância sensorial
é tratada como a única forma de dissonância. Um exemplo de compositor que in-
corpora vários conceitos de dissonância em sua produção é Maurício Dottori, que
em sua sonata para piano trata o espaçamento entre notas como o fator determi-
nante da consonância ou dissonância de um intervalo qualquer.35
Quando analisamos as dissonâncias que surgem com o aumento do espaçamento é
preciso entender qual a natureza delas. A hipótese inicial era que, devido ao espa-
çamento muito grande entre as fundamentais, havia pouca ou nenhuma coinci-
dência de harmônicos, que isso acarretava em um aumento na rugosidade. Esta
explicação é reforçada pelas hipóteses de Valentina Daldegan.36 Para ela, uma oitava
dó2-dó6 soa estanha ou áspera porque temos um reforço muito grande nos harmô-
nicos superiores de dó2. A hipótese de Daldegan ajuda também a explicar a falta de
aspereza de segundas espaçadas. Para a autora, quando reforçamos os harmônicos
superiores de dó por uma segunda espaçada, temos o alinhamento dos primeiros
harmônicos da nota aguda com os harmônicos acima do 9º da nota grave, o que
ajuda a amenizar a aspereza.

O espaçamento em Ligeti e Prokofiev


O segundo movimento de Musica Ricercata de Ligeti (figura 1)37 se baseia inteira-
mente no fenômeno descrito acima, e o compositor se utiliza do espaçamento para
criar oitavas dissonantes durante quase todo o movimento. O movimento, que dura
aproximadamente três minutos e meio, começa com o tema composto apenas pelas
notas mi #4 e fá #4. No quinto compasso o tema é apresentado, mas agora com as oi-
tavas dobradas da seguinte maneira: mi #5 e mi #6 são tocados simultaneamente
com mi#1 e mi#2, o mesmo acontece com a nota fá #. O compositor consegue criar
uma textura dissonante utilizando apenas oitavas, que soam estranhos devido ao es-
paçamento.
O primeiro movimento de Musica Ricercata (figura 2) contém apenas duas notas:
lá e ré. O ré aparece apenas nos 4 últimos compassos, e o restante do movimento
tem apenas lá em diferentes oitavas. Ligeti se utiliza de variações no espaçamento
e dinâmica para criar a flutuação harmônica do movimento, e isto fica mais evi-
dente nos últimos nove compassos, em que Ligeti cria uma harmonia dissonante 135
juntando a oitava lá -1-lá1 com lá6-lá7. As quatro notas são tocadas cada vez mais
rápidas até que resolvem em um salto de quarta justa para a oitava ré4-ré5. O salto
de quarta justa faz com que percebemos as oitavas dissonantes como dominantes
da oitava ré4-ré5.

Figura 1 — compassos 1 a 6 do segundo movimento de Musica Ricercata

Figura 2 – compassos finais do primeiro movimento de Musica Ricercata


Nos primeiros compassos de Aleksandr Nevskij (figura 3)38 temos mais uma vez oi-
tavas dissonantes. O tema é introduzido pela madeiras, metais e cordas, e o reforço
harmônico e falta de coincidência entre harmônicos gerados pelo espaçamento
entre as notas é tão grande que gera uma textura dissonante. O trecho foi composto
136 como trilha sonora do filme de mesmo nome e aparece logo na primeira cena, que
mostra a Rússia medieval sob o jugo mongol.
As consonâncias imperfeitas (terças, quartas e sextas) sofrem mais ou menos as
mesma transformações que as perfeitas quando são espaçadas. A fusão tonal destes
intervalos é menor que a das oitavas e quintas, e com espaçamentos de duas ou três
oitavas ele já começam a ser percebidos como dissonantes. As segundas e sétimas são
intervalos que apresentam grande dissonância sensorial, e o que mais chama aten-
ção neles é alta rugosidade e a ausência de fusão tonal. Quando espaçamos segun-
das (menores ou maiores) de uma oitava, a flutuação de amplitude causado pela
diferença de freqüência das fundamentais desaparece, e temos a flutuação apenas
nos harmônicos. Quando as espaçamos de duas oitavas, a rugosidade é ainda menor,
e depois de aproximadamente quatro oitavas, as flutuações de amplitude estão pre-
sentes apenas na relação entre a fundamental da nota superior do intervalo e os
harmônicos superiores da nota inferior. Nestas condições, percebemos as segundas
como quase consonantes. O estranhamento causado pelas oitavas espaçadas, sem
alinhamento de harmônicos é maior que o causado por segundas sem flutuação de
amplitude, e faz com que as segundas sejam percebidas como menos dissonantes
que oitavas, desde que ambos os intervalos estejam bastante espaçados. As sétimas,
por serem inversões das segundas, se transformam da mesma maneira com o au-
mento do espaçamento. O trítono, por soar consonante em contextos dissonantes
e dissonante em contextos consonantes, tem uma relação diferente com o espaça-
mento. O trítono perde parte do seu impacto quando espaçado, mas a natureza
deste impacto e o quão espaçado ele precisa estar dependem completamente do
contexto em que aparece.

A tabela de acordes de Hindemith


Uma vez definido o que se entende por consonância e dissonância, e as particula-
ridades de cada intervalo espaçado, podemos ver como a tabela de acordes de Hin-
demith pode ser estendida. Relembrando, os acordes são divididos em acordes sem
trítono (grupo A) e acordes com trítono (grupo B). No grupo A temos os sub-gru-
pos I, III e V; no B os sub-grupos II, IV e VI. Quanto maior o número do grupo de
um acorde qualquer, maior a dissonância deste acorde. O grupo I é formado por
acordes sem sétimas ou segundas, e é dividido em dois subgrupos. I1 contém as tría-
des maiores e menores, e I2 os acordes de terça e sexta e quarta e sexta39. Estes acor-
des têm um caráter altamente conclusivo40. A nomenclatura dos grupos é de acordo
com seu valor ou consonância, e para Hindemith o sub-grupo I-1 é mais conso-
137

Figura 3 — primeiros compassos de Aleksandr Nevskij.


Versão reduzida a partir do original.
nante e conclusivo que o I-2. Isto não é necessariamente verdade. Se analisarmos os
acordes dó4-mi4-sol4 e dó4-mi4-lá4, o primeiro é percebido como ligeiramente mais
consonante pelo fato de uma fusão tonal um pouco mais presente. Porém, uma vez
espaçada a quinta justa dó-sol do primeiro acorde, esta fusão tonal em parte desa-
parece, igualando o ao acorde do grupo I2. De maneira geral, quanto menos espa-
çadas as notas de uma acorde do grupo 1, mais consonante ele vai ser41. Entre dois
acordes igualmente espaçados, as tríades perfeitas tendem a ser um pouco mais con-
clusivas que os acordes de quarta e sexta e terça e sexta.
O grupo II da tabela é formado por acordes sem segundas menores, sétimas maio-
res e com trítono. É dividido em 4 sub-grupos, II-a contém acordes com sétimas me-
nores e sem segundas maiores, II-b é composto por acordes com segundas maiores
e/ou sétima menores e é subdivido em mais três grupos. II-b1 contém acordes em
que a fundamental e o baixo são idênticos, II-b2 contém acordes em que a funda-
mental fica acima do baixo, e II-b3 contem acordes com mais de um trítono. Exem-
plos de cada um dos acordes se encontram na tabela original de Hindemith,
traduzida e anexada no fim deste trabalho. Os acordes deste grupo são menos está-
veis que os do grupo I. A diferença entre os acordes dos subgrupos II-b2 e II-b3 é mí-
nima, e mais uma vez depende mais do espaçamento entre as notas do que na
posição da fundamental.
O grupo III é formado por acordes com segundas e/ou sétimas, sem trítono. É sub-
divido em III1 e III2, sendo que em III-1 o baixo e a fundamental são idênticos e em
III2 a fundamental fica acima do baixo. Para Hindemith estes acordes são ásperos,
dependentes da melodia e difíceis de conectar com outros acordes42. Quando igual-
138 mente espaçados, os acordes do subgrupo III2 tem estas características mais ressal-
tadas que os do subgrupo III2. Uma vez que aumentamos o espaçamento entre as
notas, a dissonância das sétimas e segundas é amenizada, e um acorde espaçado do
subgrupo III2 soa menos áspero que um acorde não espaçado do subgrupo III1.
O grupo IV é formado por acordes com qualquer número de sétimas maiores, se-
gundas menores e trítonos, e é novamente subdividido em IV1 (fundamental e
baixo idênticos) e IV2 (fundamental acima do baixo). Segundo Hindemith, este
acordes são altamente coloridos e expressivos, e quando possuem um menor nú-
mero de notas são mais estáveis e se tornam mais fáceis de encadear com outros
acordes43. Além de diminuir o número de notas, outra maneira de domar estes acor-
des seria espaçar as notas dissonantes presentes e aproximar as consonantes, au-
mentando a fusão tonal e diminuindo a rugosidade. As relações entre IV1 e IV2 se
modificam com o espaçamento da mesma maneira que os acordes dos grupos III1
e III2.
Por último temos os acordes dos grupos V e VI. Estes grupos são formados por
acordes com sobreposições de intervalos iguais. O grupo V contém acordes sem trí-
tono, e fazem parte deste grupo acordes com duas terças maiores sobrepostas (e
conseqüentemente uma quinta aumentada) sem nenhum dobramento (p. ex dó-
mi-sol#) e acordes com duas quartas sobrepostas sem nenhum dobramento (p. ex.
dó-fá-si b), com apenas a nota superior da quarta inferior dobrada (p. ex. dó2-fá3-fá4-
si b4), ou com a nota mais aguda dobrada acima ou mais grave abaixo (p. ex. dó2-
dó3-fá3-si b3 e dó2-fá2-si b2-si b3). Apesar do primeiro acorde conter uma sexta menor
(quinta aumentada) a fundamental não pode ser definida, segundo Hindemith,
pelo fato das notas da sexta menor estarem presentes em todos os intervalos do
acorde; o mesmo acontece com as quartas justas do segundo acorde.44 O grupo VI
contém acordes indeterminados com o trítono predominante, e os únicos acordes
deste grupo são os formadas por sobreposições de duas ou mais terças menores e,
usando a terminologia da harmonia tradicional, suas possíveis inversões. Dada a
natureza incerta dos acordes dos grupos V e VI, é difícil generalizar como o au-
mento do espaçamento os altera. Dobrando as quartas no extremo agudo e ou ex-
tremo grave nos acordes do grupo V conseguimos deixá-lo comparativamente mais
dissonante, e espaçando as terças dos acordes do grupo VI conseguimos o mesmo
efeito.
Outro elemento fundamental do pensamento harmônico de Hindemith é a rela-
ção entre as vozes extremas. Segundo o autor, para que a música fique clara e inte-
ligível “os contornos de sua moldura a duas vozes precisam ser limpos e planejados
de forma convincente”.45 O autor ressalta que as vozes extremas são completamente
independentes das outras notas do acorde, e a influência das vozes internas na vozes
extremas é tão sutil que pode ser comparada a influência do “baço ou fígado na apa-
rência externa de um homem”. O autor sugere que o compositor planeje bem os in-
tervalos formados pelas vozes extremas, e que como regra geral pode-se afirmar que 139
terças e sextas são intervalos doces e agradáveis, mas usados em excesso soam ente-
diantes. Já as segundas e sétimas “dão força e tensão para a escrita a duas vozes, mas
o uso contínuo torna a escuta maçante e insensível aos charmes mais sutis dos in-
tervalos mais satisfatórios”.46 O espaçamento entre as vozes extremas de um acorde
pode ofuscar as dissonâncias das vozes extremas, desde que cautelosamente plane-
jado. Nos primeiros compassos de Quartina (figura 4, último movimento de Qua-
derno Musicale di Annalibera)47, temos um exemplo deste procedimento. No
compasso 5 temos um acorde que tem como fundamental fá#, no último tempo do
compasso temos o adiantamento de mi1, que é a fundamental do acorde da har-
monia seguinte. No compasso 6, temos um fá# 6 no contratempo do primeiro
tempo, que age como um retardo, e soa um tanto dissonante. A dissonância deste
retardo seria consideravelmente maior caso ele fosse duas oitavas abaixo, mas o es-
paçamento dilui um pouco a tensão. O retardo é resolvido em si5, e só quando da
resolução percebemos a real dissonância da harmonia anterior.

Figura 4 — compassos 1 à 9 de Quartina.


Hindemith chama de Flutuação Harmônica48 as variações de dissonância, tensão e
cor causadas pelas progressões de acordes de diferentes grupos de sua tabela. Para
descrever a flutuação harmônica, o autor faz uma analogia com um tijolo sendo
empurrado. O tijolo pode ser empurrado de tal maneira que o lado em contato
com a superfície se mantém o mesmo durante todo o movimento, ou ele pode ser
empurrado de forma abrupta de forma que o lado que encosta na superfície está
constantemente variando. O segundo tipo de movimento “corresponde a mudan-
ças na gravidade harmônica”.49
140 Para o autor, é impossível ter-se algum tipo de flutuação harmônica com acordes do
mesmo grupo. Porém, mudanças no espaçamento, desde que um tanto extremas,
conseguem causar forte flutuação harmônica, e servir como intermédio para
transições que seriam abruptas, como de acordes do grupo III a acordes do grupo
VI. Hindemith não cria muitas regras ou procedimentos padrões para a flutuação
harmônica, e este é um dos poucos assuntos que o autor evita fazer generalizações.
Uma das poucas generalizações que faz com mais convicção é que “os acordes in-
determinados dos grupos V e VI introduzem um elemento de incerteza . . . a intro-
dução de acordes indeterminados é como um passo em direção à lama ou areia
movediça”.50
Uma maneira um pouco mais segura de se realizar progressões com acordes destes
grupos é aproximando os intervalos que possuem mais fusão tonal e espaçando os
intervalos mais dissonantes. No primeiro movimento de Musica Ricercata temos
um exemplo de flutuação harmônica através de mudanças no espaçamento, e nos
compassos 5 e 6 de Quartina temos um exemplo claro do espaçamento amenizando
o que seria, de acordo com o sistema de Hindemith, uma flutuação harmônica de-
sajeitada.
Além da flutuação harmônica, existem mais três aspectos do pensamento harmô-
nico de Hindemith que podem ser alterados com o espaçamento: as progressões
das fundamentais, acordes arpejados e centros tonais. Hindemith afirma que em
progressões harmônicas deve-se sempre estar atento aos intervalos formados pelas
fundamentais dos acordes,51 e que quando as fundamentais progridem em inter-
valos de quinta ou quarta justa, elas são mais valiosas52 (termo do autor) que pro-
gressões de sétima53. O trítono, por ser um intervalo que tem uma presença
facilmente identificável, tende a criar tensão quando usado em progressões de fun-
damentais. Espaçando as fundamentais de acordes diferentes conseguimos ameni-
zar as características específicas de cada intervalo.
Os centros tonais e acordes arpejados estão bastante relacionados. Quando escu-
tamos as notas dó-mi-sol sendo tocadas sucessivamente, passamos a escutar esta se-
qüência de notas como harmonia, e a nota dó como sendo o cento tonal, devido ao
dó ser a fundamental da quinta justa dó-sol.54 Em alguns casos, como no baixo de
Alberti, o acorde formado e seu centro tonal são óbvios, mas em outros as relações
entres as notas não são tão claras. Hindemith sugere várias maneiras de se criar cen-
tro tonais. Uma delas é criando acordes quebrados nas progressões das fundamen-
tais, e quanto mais consonante for o acorde criado pelas fundamentais, menos
ambíguo será o centro tonal. Outra maneira é resolver progressões de acordes com
trítono (grupo B) em acordes sem trítono (grupo A), fazendo com que a funda-
mental do acorde do grupo A seja o centro tonal55. Variações no espaçamento po-
deriam ser usadas para enfraquecer a força tonal dos acordes dos grupos I. Também
podem ser usadas para deixar o trítono, intervalo que segundo Hindemith quase
sempre requer algum tipo de resolução, menos presente. As discussões sobre cen- 141
tros tonais e acordes arpejados têm pouco utilidade no âmbito teórico, e as manei-
ras que o espaçamento poderia complementar estes conceitos só podem ser
descobertas através da prática da composição musical.
A — Acordes sem Trítono B — Acordes com Trítono
I. Sem segundas ou sétimas II. Sem segundas menores ou sétimas maiores — o trítono subordinado
1. Fundamental coincide com o baixo a. Com uma sétima menor apenas (sem segunda maior) — Fundamental coincide com o baixo

& ww b www & b www b www


w
w
2. Fundamental acima do baixo b. Contendo segundas maiores ou sétimas menores ou ambas — Fundamental coincide com o baixo

& b b ww n n www w b ww 1. Fundamental coincide com o baixo

w ww w w
& b wwww b www
w b wwww b wwwww b n b wwww # www # wwww b ww
ww # wwww
2. Fundamental acima do baixo

& b b ww b b b www b n www # www n b www # b www # www b b www # ww b ww b b b www


w w w w w w w w w w w
3. Contendo mais de um trítono

& # # wwww # b wwwww # # wwww # # # wwwwww


III. Contendo segundas ou sétimas ou ambas IV. Contendo segundas menores ou sétimas maiores ou ambas — um ou mais trítonos subordinados
1. Fundamental coincide com o baixo 1. Fundamental coincide com o baixo
bw bw bw # ww
& ww ww ww b ww n ww www
w w w w w w wwww w b w b w
www www b www b wwww wwww & b wwww b www # www b n www w
# wwww # # n wwww
w
w w w ww
n www # ww n ww
w w bw
& b b wwww b n wwww n wwww wwww b b wwww b www b b wwww w w w www b ww
w
2. Fundamental acima do baixo
w w
bw w bw
& n b www b b wwww # # wwww b b n www w # wwww b n www
w w nw w ww
w bw nw w
2. Fundamental acima do baixo

& www www wwwwb bb wwww bb wwww n b wwww b wwww n wwww ww b www n www b wwww

V. Indeterminado VI. Indeterminado. O trítono predominando

& # www b ww & b b www b n www b n www b b n wwww


w

Figura 5 — a tabela de acordes; original em Paul Hindemith, The Craft of Musical


Composition (Londres: Schott, 1945), 224. Tradução de Maurício Dottori.

Considerações finais
Alguns autores, apesar de considerados importantes para as discussões sobre con-
sonância e dissonância no século XX, foram deixados de lado. Este autores não
foram abordados por discutirem os conceitos de dissonância e consonância, na
maior parte das vezes, fora de qualquer contexto musical. O principal destes é Her-
mann Helmholtz, um dos fundadores do CDC-5. E sua obra On the Sensation of
Tone, ele inaugurou as discussões sobre dissonância sensorial e rugosidade ao afir-
mar que a dissonância máxima de um intervalo surge quando temos uma diferença
de 40 Hz entre as fundamentais56. Reiner Plomp e Wilhelm Levelt ampliaram as
discussões sobre rugosidade ao afirmar que, como a banda crítica tem tamanhos di-
ferentes conforme a tessitura, a diferença mínima e máxima (em hertz) entre fun-
damentais necessária para que haja dissonância sensorial não é fixa. Os autores
afirmam que a dissonância sensorial máxima ocorre quando intervalos estão sepa-
rados por ¼ de banda crítica57, que corresponde à 30-40Hz apenas na região entre
500Hz e 1000Hz58.
Os motivos que levam as dissonâncias a serem percebidas como consonantes (e
vice-versa) estão diretamente relacionados com as discussões sobre rugosidade,
142 fusão tonal e sons resultantes, e este trabalho demonstrou exatamente quais relações
são estas. A tabela de Hindemith fica ainda mais completa quando a relacionamos
com as diversas discussões sobre dissonância e espaçamento, assim como outros fa-
tores de seu pensamento harmônico.
Um trabalho que discute os aspectos teóricos da composição musical só pode ser
comprovado uma vez que pelo menos parte do conhecimento produzido seja apli-
cado, por este motivo uma peça para flauta, clarinete, piano, viola e contrabaixo foi
escrita com base nas idéias apresentadas. Este trabalho acaba sendo um pouco in-
completo por não abordar em detalhes a composição, para isso seria necessário
outro artigo. No entanto, a parte publicada têm a sua importância como um tra-
balho teórico de pré-composição e revisão bibliográfica.

1 Paul Hindemith, The Craft of Musical Composition (Londres: Schott, 1945).


2 Hindemith, 74. “. . . the value of a harmonic interval is determined by the grouping of its
combination tone”.
3 No original, combination tones.
4 Hindemith, 61. “The Frequency of the combination tone is always equal to the difference
between the frequencies of the directly produced tones of the interval”.
5 A tabela, traduzida por Maurício Dottori, está anexada no fim do trabalho.
6 Neste trabalho o dó4 (261,626 Hz) é considerado o dó central.
7 Idem, 73. “Those intervals whose tones are separated by such great distances that they seem
to be octave transpositions of fifths, fourths, etc., present much less happy dispositions of
combination tones than their prototypes [ . . .] Even the octave, which stands above and be-
yond all calculation of interval values, loses so much of its value when it appears in the form
1:4 that, as its combination-tone structure shows, it is hardly equal to the fifth in clarity. In
the form 1:8 . . . it is still less strong, and in the form 1:16 the composite becomes completely
dissonant.”. .
8 Idem, 75. “. . . handle the spread intervals exactly like their close prototypes. This is quite
sufficient for the practical purposes of composition.”
9 Idem, 68-72.
10 Idem, 79. “. . . it makes no difference which of the tones we take as the root. The combi-
nation tones do not point to definitive conclusions”.
11 Idem, 97. “If there is a fifth in the chord, then the lower tone of the fifth is the root of the
chord. Similarly, the lower tone of a third of a seventh (in the absence of any better inter-
val) is the root of the chord. Conversely, if a fourth, or a sixth, or a second is the best inter-
val of the chord, then its upper tone is the root of the chord.”
12 Idem.
13 Idem, 98. “take melodic influences . . . into account, rather than to rely exclusively upon
harmonic analyses.”
14 Idem, 100.
15 Diether de la Motte, Armonía. Trad. Luis Romano Haces (Barcelona: Idea Books, 1998),
276. 143
16 Idem.
17 Panteleimon Nestor Vassilakis, “Perceptual and Physical Properties of Amplitude Fluc-
tuation and their Musical Significance” (tese de doutorado, Universidade da Califórnia,
2001), 271-272. “Consonance and dissonance are multidimensional concepts describing
the degree of pleasantness/annoyance of a sound, or the degree to which a sound fits to other
sounds within a larger musical context. The primary acoustical cue determining conso-
nance/dissonance is the absence/presence of roughness respectively . . . Within the West-
ern musical tradition, the presence of roughness is equivalent to acoustic or sensory
dissonance”.
18 Em inglês roughness, às vezes também traduzido como aspereza.
19 Alexandre Torres Porres, “Processos de Composição Microtonal por meio do Modelo de
Dissonância Sensorial” (dissertação de mestrado, Campinas: Unicamp, 2005), 29.
20 Idem, 30. 21 Tenney, 4.
22 Do inglês Consonance and Dissonance Concept.
23 Em inglês relatedness. 24 Tenney, 16.
25 Richard Parncutt e Hans Strasburger, “Applying Psychoacoustics in Composition: Har-
monic Progressions of Non-harmonic Sonorities” Perspectives of New Music, 32, No 2
(1994): 88-129.
26 Em inglês pitch relatedness. 27 Parncutt e Strasburger, 95.
28 Tenney, 18-20. 29 Porres, 49.
30 Idem.
31 David Huron, Tone and Voice: A Derivation of the Rules of Voice-Leading from Per-
ceptual Principles, Music Perception, 19, No2 (2001):1-64, 21. “. . . in inverse proportion to
the degree to which they promote sensory dissonance and in inverse proportion to the de-
gree to which they promote tonal fusion . . . Bach was eager to produce a sound that is
‘smooth’ without the danger of it sounding ‘as one’.”
32 Tenney, 39-44. 33 Idem, 65-56.
34 Idem, 87.
35 Maurício Dottoti, Sonate für Pianoforte, 2006.
36 Valentina Daldegan, comunicação oral, 30 de julho, 2009.
37 György Ligeti, Musica Ricercata (Londres: Schott), 1995.
38 Sergei Prokofiev, “Alexander Nevsky” in Four Orchestral Works, ed. Lewis Roth (Nova
Iorque: Dover Publications, 1974), 281-444.
39 Hindemith afirma que não existem inversões de acordes, pois um acorde é completamente
alterado quando seus intervalos, baixo e fundamental são modificados. Logo, o autor não
considera os acordes de terça e sexta (p. ex. mi-sol-dó), e quarta e sexta (p. ex. sol-dó-mi),
como inversões de uma tríade perfeita qualquer (p. ex. dó-mi-sol).
40 Hindemith, 104.
41 Uma exceção a regra é quando temos um acorde com muitas notas, em que a nota mais
grave e a mais aguda do acorde estão bastante espaçadas, entre as duas existem muitas outras
144 notas.
42 Hindemith, 103. 43 Idem.
44 Idem, 104.
45 Idem, 114. “. . . to sound clear and intelligible, the contours of its two-voice framework
must be cleanly designed and cogently organized”.
46 Idem. “. . . add strength and tension to two-part writing; yet their continuous use would
dull the ear and make it insensible to the subtler charms of the more satisfactory intervals”.
47 Luigi Dallapiccola, Quaderno Musicale di Annalibera (Milão: Suvini Zebroni, 1953).
48 No inglês Harmonic Fluctuation. 49 Idem, 115. “. . . shift of harmonic gravity”.
50 Idem, 119. “. . . the indeterminate chords of groups V and VI introduce an element of un-
certainty into harmonic developments . . . the introduction of the indeterminate chords is
like a step into mud or quicksand”.
51 Idem, 121-123
52 Valioso neste contexto se refere mais à clareza das progressões do que ao valor musical.
53 Idem. 54 Idem, 132.
55 Idem, 132-136.
56 Hermann L. F. Helmholtz, On the Sensation of Tone, trad. Alexandre J. Ellis (Londres:
Longman’s, Green and Co., 1895), 171.
57 Reiner Plomp e Wilhelm Levelt, “Tonal Consonance and Critical Bandwidth”, Journal
of the Acoustical Society of America (1965): 560.
58 Uma tabela completa com os diferentes tamanhos da banda crítica está disponível em
Porres, 33.

Referências
Hindemith, Paul. The Craft of Musical Composition. Londres: Schott, 1945.
Huron, David. Tone and Voice: A Derivation of the Rules of Voice-Leading from Percep-
tual Principles, Music Perception, 19, No2 (2001):1-64,Hermann L. F. Helmholtz. On
the Sensation of Tone, trad. Alexandre J. Ellis. Londres: Longman’s, Green and Co., 1895.
Motte, Diether De la. Armonía. Trad. Luis Romano Haces. Barcelona: Idea Books, 1998.
Parncutt, Richard e Hans Strasburger. “Applying Psychoacoustics in Composition: Har-
monic Progressions of Nonharmonic Sonorities”. Perspectives of New Music, 32, No 2
(1994): 88-129.
Plomp, Reiner e Wilhelm Levelt, “Tonal Consonance and Critical Bandwidth”. Journal of
the Acoustical Society of America (1965): 548-560.
Tenney, James. A History of “Consonance” and “Dissonance”. Nova Iorque: Excelsior Music,
1998.
Torres Porres, Alexandre. “Processos de Composição Microtonal por meio do Modelo de
Dissonância Sensorial”. Dissertação de mestrado, Campinas: Unicamp, 2005.
Vassilakis, Panteleimon Nestor. “Perceptual and Physical Properties of Amplitude Fluc-
tuation and their Musical Significance. Tese de doutorado, Universidade da Califórnia,
2001.
145
Partituras:
Dallapiccola, Luigi. Quaderno Musicale di Annalibera. Milão: Suvini Zebroni, 1953.
Ligeti, György. Musica Ricercata. Londres: Schott., 1995.
Prokofiev, Sergei. “Alexander Nevsky”. In Four Orchestral Works, Lewis Roth (ed.), 281-
444. Nova Iorque: Dover Publications, 1974.
Coordenação motora e simplificação do movimento.
Uma estratégia técnico-cognitiva para otimizar a ação pianística
Maria Bernardete Castelan Póvoas
146
bernardetecastelan@gmail.com
Alexandro Andrade
d2aa@udesc.br
Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo
Este ensaio trata de parte da pesquisa “ação pianística e coordenação motora – relações
interdisciplinares” que considera o movimento corporal o ato motor como o elemento
meio que possibilita a realização músico-instrumental. Situações técnico-musicais em que
são necessários deslocamentos de média e longa distância ocorrem com frequência na
ação pianística. Partindo-se da premissa de que determinados movimentos complexos
podem ser simplificados em sua concepção inicial, propõe-se, como estratégia técnico-
cognitiva de otimização da ação pianística a ser utilizada durante a prática, a simplifica-
ção do movimento por redução de distâncias (SMRD) entre eventos musicais aplicada
em correspondência com os ciclos de movimento (Póvoas, 1999; 2002) como recurso
técnico-pianístico de flexibilização corporal. São objetivos deste trabalho: 1. investigar a
coordenação motora relacionada a correção, duração e eficiência do movimento pia-
nístico; 2. descrever e analisar as relações teóricas e aplicadas entre situações de de-
sempenho músico-instrumental e o recurso SMRD. O método é interdisciplinar, revisando
a literatura sobre técnica pianística, neuromotricidade, psicomotricidade, aprendizagem e
controle motor, psicologia do esporte e biomecânica, subáreas da ciência do movimento
humano. Um estudo empírico, de abordagem qualitativa e quantitativa com pianistas jo-
vens e experientes ocorrerá, utilizando análise qualitativa de imagem e quantificação dos
movimentos realizados através de técnicas biomecânicas e videográficas. Os estudos e
análises iniciais permitem antecipar que há benefícios para o desempenho global do pia-
nista durante a prática instrumental quando: a) movimentos utilizados são previamente pla-
nejados em função do texto musical; b) ocorre orientação técnica voltada à otimização
da coordenação motora através do seu aprimoramento. As conexões resultantes do diá-
logo interáreas constituem-se num campo de investigação aberto para a área da teoria
e prática interpretativa em música.
Palavras-chave
Ação pianística; técnica; cognição; simplificação do movimento; desempenho motor;
controle motor e aprendizagem.

Apresentação
A pesquisa “ação pianística e coordenação motora – relações interdisciplinares” e
seus desdobramentos tiveram sua origem no pressuposto de Garhammert (1991:
183) de que o desempenho humano é “a expressão de vários componentes deno-
minados fatores do desempenho”, que são interdependentes. A coordenação mo-
tora é um desses fatores e intervêm diretamente na ação pianística, cuja operacio-
nalização ocorre por meio do movimento corporal, uma ação físico-motora.
Neste trabalho, parte da referida pesquisa, trata-se sobre a simplificação do movi-
mento por redução de distâncias (SMRD) entre eventos musicais (notas no sentido 147
vertical) e sua aplicação como estratégia técnica musical na prática pianística de si-
tuações musicais específicas. Propõe-se utilizá-la como estratégia auxiliar dos ciclos
do movimento (Póvoas 1999, 2006). Os objetivos concentram-se na investigação
teórica sobre o fator do desempenho coordenação motora, relacionada a correção,
duração e eficiência de movimentos, na realização de conexões teórico-práticas
entre aspectos relacionados à SMRD nos ciclos de movimento e sua aplicação na
ação pianística.
Contexto
O contexto teórico refere-se a abordagens da área pianística e de áreas que tratam
do movimento humano em pressupostos que nos permitem estabelecer conexões
entre a ação pianística e a coordenação motora, com vistas à proposta de que mo-
vimentos complexos podem, em sua concepção inicial, ser simplificados.
Dentro de uma concepção espacial de organização de movimentos ao piano, pos-
tula-se que possam ser otimizados se levarmos em conta a ocorrência de padrões, o
nível de regularidade entre eles (Bayle 1985; Fink 1995), a velocidade prevista, a
possibilidade de agregar o um maior número de eventos por intervalo de tempo
dentro de conjuntos de movimentos encadeados em ciclos e que a realização sonora
de eventos ocorre na continuidade do texto musical durante a execução instru-
mental. (Deppe, in Kochevitsky 1967; Matthay 1912, 1985; Fink 1995, 1997).
Nesse contexto, aplica-se investigação por estratégias de estudo para uma prática
pianística mais saudável. Na área do controle motor, a simplificação do movimento
é tratada como um tipo de prática parcial no treinamento de determinadas habili-
dades, para que a dificuldade em algum aspecto da tarefa-alvo seja reduzida.
(Schmidt & Wrisberg 2001).
A redução do tempo de um movimento e a certeza de realizá-lo minimizando o
gasto de energia são qualidades de proficiência motora determinantes para o seu
sucesso (Schmidt & Wrisberg 2001). Atos voluntários transformados em automa-
tismos são reflexos de hábitos adquiridos, produto final da aprendizagem motora.
“Do ponto de vista da execução instrumental, a aquisição e posterior reorganização
dos hábitos” (Kaplan 1987: 45) estão na base da construção da técnica. A indivi-
dualização de movimentos discretos e sua posterior reorganização constituem-se
em hábitos motores essenciais à execução de movimentos complexos. Esse tipo de
treinamento é eficaz porque simplifica conceitos intelectuais e a coordenação mo-
tora. (Knapp 1989; Magill 2000; Schmidt & Wrisberg 2001).
Na base da estrutura do recurso ciclo estão os pressupostos de que a ação pianística
se caracteriza como uma ação essencialmente dinâmica e que os movimentos são
propulsionados em deslocamentos constantes na extensão do teclado (Ortmann
1912; Fink 1995). Assim sendo, “o impulso, que é um fenômeno mecânico e uma
148 das fases componentes do movimento, se estabelece como o elemento de ação que
precede, integra e pode auxiliar na definição de gestos na ação pianística. (Jaëll 1897;
Matthay 1912; Kochevitsky 1967)”. (Póvoas 2006: 665).
Um ciclo corresponde a um gesto desde seu impulso inicial (I) até o início de outro
e pode agregar um ou mais eventos musicais. Como recurso técnico de flexibiliza-
ção, a trajetória do movimento deve ser operacionalizada mais no sentido parabó-
lico do que retilíneo. A eficiência motora pode ser otimizada “por meio da regulação
(controle) da força de impulso (. . .), do tipo de trajetória dos segmentos (relação im-
pulso-movimento) e do impacto (tipo de ataque ou toque)”. (Póvoas: 666, 2006).
A objetividade do movimento diminui o somatório de distâncias percorridas, o que
significa carga de trabalho e desgaste físico-muscular menores. (Wilson 1988; Tatz
1990; Perrot apud Rasch 1991; Fink 1995; Meinke 1998). Se a realização do design
requer acentuação inicial e intensidade em decrescendo, a execução deve iniciar de
uma posição mais baixa dos segmentos, a partir de um apoio no teclado (impulso
inicial). O movimento deve seguir no sentido ascendente, auxiliando a diminuir o
peso sobre o teclado e a realizar o efeito sonoro adequado, conforme as setas (li-
nhas) mostradas na Figura 1a (côncava) e 1b (convexa).

Figuras 1a e 1b — Setas para movimentos com per-


1a
curso ascendente,
a: côncava e b: convexa.

1b

Para a realização de escrita musical inversa à anterior, é aconselhável iniciar a exe-


cução de uma posição mais alta dos segmentos, para abaixá-los na medida em que
a sonoridade deve aumentar. Nesse caso, o sentido das linhas que orientam os seg-
mentos segue a trajetória conforme mostrado na Figura 2a e 2b.

2a Figuras 2a e 2b — Setas para movimentos com


percurso descendente,
a: côncava e b: convexa.
2b
Questões técnico-musicais é que determinam o número de eventos inclusos em
cada ciclo e seu delineamento na continuidade do texto musical. Na prática pianís-
tica há situações de execução instrumental em que são necessários deslocamentos
dos segmentos de curta, média e longa distância. Os ciclos aplicam-se à realização de
eventos nas três situações e a prática da SMRD serve, sobretudo, para otimizar a exe- 149
cução de seqüências de eventos afastados entre si, auxiliando na definição da traje-
tória do movimento.

Método
Experimento biomecânico deverá ser realizado, com a aquisição de imagens de mo-
vimentos realizados por pianistas (sujeitos) durante a execução de trecho musical
selecionado, análise de dados obtidos e comparação dos resultados entre dois gru-
pos: experimental (GE) e controle (GC). Como método de análise utilizar-se-á a
cinemetria que conta com software para captação de imagens e posterior análise de
dados biomecânicos, fornece resultados matemáticos e permite acompanhar a tra-
jetória de movimentos nas coordenadas x, y e z. O experimento será realizado no La-
boratório de Biomecânica do Centro de Educação Física, CEFID-UDESC.
A População de sujeitos (Ss) será de alunos dos cursos de Bacharelado em Instru-
mento-Piano e Pós-Graduação do CEART/UDESC. Todos deverão assinar termo
de consentimento permitindo o uso das imagens e resultados em pesquisa cientí-
fica. O protocolo experimental seguirá o seguinte roteiro: entrega de cópia da par-
titura do Étude XII de Debussy, Pour les Accords; orientação inicial em data comum
para os grupos: rotina de 15 a 20 minutos de treinamento diário do prelúdio, com
destaque aos trechos analisados e andamento final entre 63 e 66 a semínima; o GE
será orientado pelo grupo de pesquisa em oito sessões de 40 minutos em média,
para o estudo do trecho musical selecionado que será executado durante o proce-
dimento experimental; o GC será instruído a trabalhar utilizando-se de seus pró-
prios critérios, com possibilidade de orientação.
Em cada sessão o GE deverá seguir uma rotina de dez minutos para praticar exer-
cícios respiratórios, de alongamento (membros superiores) e de consciência cor-
poral (tensão-relaxamento) com a finalidade de desenvolver uma consciência do
relaxamento e tensão muscular relativos; cinco minutos para discussão sobre a prá-
tica relacionada à proposta; vinte minutos para treinamento de um trecho musical
conforme modelo seguinte (Figura 3). A Figura 3 ilustra um dos trechos do citado
estudo, compassos [1]-[5], onde se aplica o recurso SMRD entre eventos1 com o ob-
jetivo de dar mais comodidade que os deslocamentos para realizá-los, sempre ob-
servando os detalhes de articulações e com menor dispêndio de energia física.
Assim como em muitas outras obras, no caso do estudo em destaque as figurações
musicais são repetidas, razão pela qual é necessário planejar e utilizar procedimen-
tos que objetivem a sua realização, antecipando novos progressos e com direta in-
fluência na segurança do executante. Como uma das etapas na construção da pri-
meira parte do estudo, para a construção de um ciclo mais funcional as distâncias
podem ser reduzidas com a execução da(s) oitava(s) na mesma altura do(s)
150 acorde(s) ou suprimindo-se a nota superior da oitava (m.d.) e inferior (m.e.). A se-
gunda colcheia, nota Lá da pauta inferior, pode ser executada com o terceiro dedo;
da pauta superior com o quinto e, em uma segunda etapa, ambas com o primeiro
dedo.

Figura 4 — Modelo de redução do movimento por supressão de oitavas.


Ciclos de movimento. Étude XII, “Pour Les Accords”, compassos [1]-[3].
Fonte, Debussy, 1972, p.25.
Na figura seguinte o Lá da linha para a mão esquerda encontra-se em oitava, ainda
aproximada. Nesse caso, já há maior deslocamento para a executá-la.

Figura 5 — Modelo de redução do movimento por supressão de oitavas.


Ciclos de movimento. Étude XII, “Pour Les Accords”, compassos [1]-[3].
Fonte, Debussy, 1972, p.25.
Tal procedimento viabiliza a realização de movimentos com maior plasticidade e
de maneira mais natural. Tais gestos simplificados pela aproximação entre eventos
permitem alcançar maior velocidade no encadeamento dos deslocamentos nos ân-
gulos X, Y e Z e estabelecer relações espaciais que facilitam a posterior execução
dos eventos na altura em que estão escritos originalmente. As reduções permitem
estabelecer referenciais para a projeção de movimentos ao realizar eventos distan-
tes entre si.
Resultados Preliminares
Um experimento foi realizado em condições equivalentes ao que ora propomos
neste trabalho. A Figura seguinte (2) ilustra o trecho musical utilizado no experi-
mento que contou com a participação de dez sujeitos divididos em dois grupos de
151
cinco, GE e GC. Para planejar os ciclos, foi aplicado o SMRD por supressão da oi-
tava superior, conforme Figura 4 (modelo 1a). Neste ensaio foram levantados dados
das imagens obtidas dos movimentos realizados pelos sujeitos durante a execução
pianística dos compassos [15]-[17] do Prelúdio 18 de Chopin. A realização das
quatro colcheias inicia a partir de um movimento de baixo para cima, ou seja, segue
no sentido de um deslocamento dos segmentos no sentido côncavo para cima e
para a direita, executando-se os dois acordes, seguido por outro movimento ou
queda para baixo em direção à oitava acentuada (acento >). Do apoio nas colcheias
dá-se um novo impulso e do aproveitamento deste vai ser executado o próximo
acorde em stacatto (.), seguindo-se um novo ciclo.

Figura 6: Ciclos de movimento – SMRD - supressão de oitavas (modelo 1a).


Fonte: Chopin (1996, p.37). Prelúdio 18 (compassos [15]-[17]).
Em uma primeira etapa do treinamento as colcheias, correspondentes às oitavas de
cada grupo de duas, puderam ser tocadas sem deslocamento das mãos e, numa se-
gunda etapa, com o primeiro dedo da mão direita e quarto ou quinto da esquerda.
Na figura seguinte mostra-se o trecho musical completo e gráfico das trajetórias do
punho e metacarpo direitos de sujeito do GE, eixo x, em correspondência com a
execução do trecho musical. Os eventos devem ser realizados evitando-se um ex-
cessivo movimento do punho para baixo quando da execução dos acordes. Proce-
dimento contrário deve causar um maior dispêndio de energia, pois aumenta a
trajetória e diminui a velocidade do movimento.
152

Figura 7 — Ciclos de movimento e gráfico de trajetórias: punho e metacarpo direi-


tos de sujeito do GE, eixo x, (modelo 1b). Fonte: Chopin (1996, p.37).
Prelúdio 18 (compassos [15]-[17]).
Se operacionalizados de forma contínua e evitando-se um movimento de punho
para baixo na execução dos acordes em stacatto, os ciclos possibilitam realizar cada
dois eventos em uma única inflexão (seta). Tal organização permite desenvolver
maior velocidade de execução devido à otimização da trajetória dos movimentos.
Os dados adquiridos na cinemetria foram trabalhados por sistemas de digitalização
e processamento computacional. A velocidade de execução varia entre os sujeitos
e, por essa razão, uma parte dos gráficos foi normalizado no tempo. Os sinais do sis-
tema Peak foram convertidos para os programas MatLab (versão 5.3) e Origin (ver-
são 6.0), usados para desenvolver rotinas que permitem a análise de dados e a
construção de gráficos para visualizá-los.
Assim como na Figura 7, nos gráficos cada sujeito é representado por uma cor. Os
gráficos seguintes mostram as trajetórias percorridas pelo III Metacarpo da mão
direita durante a execução do trecho musical (Figura 7). O primeiro gráfico (Fi-
gura 8) refere-se ao GC e o segundo (Figura 9) ao GE. Os gráficos aqui apresenta-
dos não foram normalizados no tempo.
153

Figura 8 — Gráfico - Trajetória dos sujeitos do GC na curva X,


III Metacarpo da mão direita.

Figura 9 — Gráfico - Trajetória dos sujeitos do GE na curva X, III Metacarpo da


mão direita.

Uma comparação entre os gráficos permite dizer que o GC realizou mais inter-
rupções de movimentos, sobretudo ao final do trecho musical quando os gestos
para a direita e para a esquerda são bastante interrompidos. O GE manteve maior
continuidade dos movimentos. O aproveitamento do impulso pode melhorar o
desempenho da execução devido à possibilidade de aumentar a velocidade durante
os deslocamentos. É possível observar que a trajetória do GE foi mais homogênea,
podendo significar um percurso no eixo X (extensão do teclado) mais objetivo e
econômico. O gráfico do GC apresenta maiores oscilações, que podem significar
ação menos econômica do movimento.
No Quadro 1, as médias por segmento e por grupo: na primeira coluna os seg-
mentos; nas três seguintes, as médias do GC nas coordenadas x, y e z; e nas demais
colunas estão descritas as médias das trajetórias percorridas pelo GE. Os resulta-
dos quantitativos indicam um desempenho do GE mais eficiente, com menores va-
lores nas médias dos eixos e segmentos, com significativa diferença nas trajetórias
em seu favor.
Quadro 1 —Médias por segmento e por grupo (GC e CE) nas coordenadas x, y e z.
Ensaio 2

154

Conclusões Parciais
Os argumentos teóricos aqui levantados, bem como as correlações empíricas reali-
zadas, permitem antecipar que movimentos utilizados durante a prática pianística
quando previamente planejados em função do texto musical, podem beneficiar o
desempenho global do pianista. A consideração de aspectos inerentes à coordena-
ção, aliada à aplicação da SMRD e em conexão com os ciclos na prática instrumen-
tal, em suas fases de treinamento e de desempenho, pode melhorar a eficiência das
habilidades técnico-musicais, beneficiando o desempenho global do pianista.
A pesquisa, formulação e aplicação de recursos técnicos em situações específicas de
execução auxiliam no desenvolvimento de estratégias de treinamento e ampliam
as possibilidades de melhoria no desenvolvimento técnico e musical do pianista. O
recurso SMRD é uma estratégia que pode auxiliar o sistema nervoso central a criar
referências através da aproximação entre eventos originalmente distantes entre si.
Os modelos apresentados podem servir para realizar situações técnico-musicais
equivalentes ou, a partir deles, organizar novas propostas.
Os resultados têm permitido também avaliar aspectos interdisciplinares relaciona-
dos ao controle, aproveitamento e aprimoramento de movimentos, no sentido de
torná-los mais objetivos. Poderão ainda contribuir para maior atenção, consciên-
cia e eficiência da execução, melhor rendimento do estudo em termos de tempo,
com menor desgaste físico-muscular e aumento do índice de desempenho. Para as
práticas interpretativas em música, o diálogo interáreas e as conexões dele resul-
tantes constituem-se em música num amplo campo de investigação.

1 Cada evento corresponde a um ou mais sons no sentido vertical.

Referências
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Wilson, F. R. 1988. Teaching hands, treating hands. The Piano Quarterly 141: 34-41.
Padrões de pensamento:
aplicação da Técnica Alexander à execução musical
Yara Quercia Vieira
156 yvieira@smail.ufsm.br
Departamento de Música, Centro de Artes e Letras
Universidade Federal de Santa Maria

Resumo
A Técnica Alexander é considerada auxiliar na busca de procedimentos eficientes do
uso do corpo em campos ligados à execução musical. Diversos artigos foram escritos
por professores da Técnica que trabalharam com músicos ou por profissionais da música
que buscaram auxílio na Técnica. Grande parte dos artigos encontrados na literatura
trata de relatos de experiências individuais. Apesar de serem de algum interesse, o leitor
não consegue extrair destes relatos aplicações úteis ao seu desempenho. Estes artigos
concentram-se em relatar a sensação física libertadora que é imediatamente vivida por
músicos em seu primeiro contato com a Técnica Alexander. Além disto, esta experiên-
cia estaria vinculada à assistência de um professor treinado na Técnica. Ben-Or (1987)
afirma que focalizar a atuação da Técnica Alexander na sensação de leveza e facilidade
na execução é uma maneira simplista de ver o uso da Técnica aplicada à execução mu-
sical. Seu artigo traz à luz princípios da Técnica Alexander que possibilitam a aplicação
de disciplina mental que leva a uma melhor execução. Jones (1967) destaca que a Téc-
nica Alexander trata principalmente da não divisão de mente e corpo assim como de
corpo e ambiente. Ressalta o hábito entre músicos de automatizar a execução, alie-
nando a mente da tarefa, o que tornaria a interpretação estereotipada e inconsciente,
portanto incapaz de mudar. Afirma, ainda, que o melhor estado para a execução musi-
cal é “alerta e desperto”. Neste estado a percepção e a propriocepção acontecem si-
multaneamente. Segundo Jones, a ferramenta para atingir este estado seria a Técnica
Alexander. Com base nestes autores, concluímos que o uso da Técnica como motiva-
dora do estado de consciência plena da atividade musical (e não apenas seus benefícios
físicos) seria a melhor maneira de aplicá-la à execução musical.

Introdução
A Técnica Alexander tem sua popularidade associada à idéia de eficiência e con-
forto na execução de qualquer tarefa física. Em áreas em que o aprimoramento re-
quer dedicação intensa e demanda psicomotora, como na área da execução musical,
a possibilidade de otimizar procedimentos é imensamente atraente. Se conside-
rarmos a enorme competição e a busca pelo aumento de qualidade do desempenho
dos artistas, a possibilidade de trabalhar intensamente sem danos físicos se torna
fator determinante de sobrevivência.
No campo da execução musical, o interesse pela Técnica Alexander e suas possibi-
lidades pode ser verificado pelo número de artigos disponíveis que tratam da apli-
cação da Técnica Alexander à performance musical. A revista “Direction”, espe-
cializada em técnica Alexander, publicou em setembro de 1991 um número inteiro
dedicado aos músicos. Em 1992 foi publicado pela N.A.S.T.A.T. (Associação
Norte-Americana de Professores de Técnica Alexander) um índice comentado in-
titulado From Stage Fright to Seat Hight que cobre o período entre 1907 e 1992 e 157
apresenta textos sobre Técnica Alexander associada à prática da música. Atual-
mente diversos artigos encontram-se disponíveis em páginas especializadas na in-
ternet (no site www.alexandertechnique.com/musicians.htm encontram-se 43
artigos).
Grande parte dos artigos encontrados na literatura trata de relatos de experiências
individuais. Quem escreve são músicos que dão seu testemunho dos benefícios sen-
tidos após uma série de sessões com professores de Técnica Alexander, ou são pro-
fessores relatando seu trabalho com músicos.
Poucos artigos se destacam por irem além dos benefícios físicos advindos da apli-
cação da Técnica Alexander à execução musical. O conteúdo desses artigos pode ser
de grande valia para os músicos executantes, uma vez que encoraja a aplicação da
Técnica Alexander em diversos aspectos da preparação da execução musical. O ob-
jetivo desta revisão é trazer à luz o conteúdo desses artigos que, apesar de não serem
recentes, permanecem singulares em demonstrar como a Técnica Alexander pode
ser útil à construção da performance musical de modo profundo e eficaz.

Princípios da Técnica Alexander


A técnica Alexander propõe que o uso equilibrado e coordenado do corpo se dá
por meio de busca consciente e ativa. A atividade mental envolvida nessa busca tem
duas etapas: 1. Inibição e 2. Direção. Pressupõe-se a existência de conjunto de re-
flexos inato aos vertebrados que se nomeou Controle Primário.

Inibição
O conceito de Inibição na Técnica Alexander trata da eliminação da resposta este-
reotipada a qualquer estímulo. Consideremos o estímulo de pegar uma garrafa de
água na geladeira. Se ela está mais vazia ou mais cheia do que imaginamos, o movi-
mento dimensionado a priori será ineficiente para cumprir a tarefa. A Inibição
seria a contenção da resposta automatizada ao estímulo; seria parar a intenção de
utilizar aquela força projetada para levantar a garrafa de água antes que aquela in-
tenção deflagre a ação muscular.

Direção
O conceito de Direção na Técnica Alexander trata da opção de responder ao estí-
mulo com uso do corpo alterada por uma idéia: a de que não se deve interferir na
relação da cabeça com o tronco ao executar qualquer tarefa. Voltemos à garrafa de
água na geladeira. Depois de inibir a resposta automatizada, posso optar por le-
vantar a garrafa de água sem interferir na relação da cabeça com o tronco enquanto
executo a tarefa. Essa experiência quase sempre causa espanto quando é executada
158 pela primeira vez: o uso do corpo é completamente diferente do habitual.

Controle primário
Controle Primário é o conjunto de reflexos envolvidos na habilidade neuromus-
cular do ser humano de se manter ereto. Teóricos da Técnica Alexander acreditam
que esse conjunto de reflexos que regem a relação da cabeça com o tronco é inato
aos vertebrados, e existe em resposta à força de gravidade. Esse conjunto de reflexos
aparentemente tem influência na coordenação periférica dos membros (braços e
pernas). Teóricos da Técnica Alexander preconizam que interferir na relação da
cabeça com o tronco prejudica a atuação do Controle Primário, o que prejudicaria
em conseqüência o desempenho de qualquer atividade motora consciente.

Técnica Alexander e conforto na execução instrumental


O estudo da técnica instrumental em música nunca deve ser abordado por meio
de procedimentos mecânicos e impensados. Apesar de isso parecer óbvio, pensar
assim pode não ser suficiente para garantir o melhor uso do corpo. Muitos músicos
instrumentistas se frustram quando percebem que estão sendo vitimas do mau uso,
algumas vezes tarde demais, quando já se instalou alguma lesão.
A Técnica Alexander oferece uma disciplina mental que propõe o controle cons-
ciente de todos os aspectos envolvidos na atividade, o que leva a um melhor de-
sempenho físico. O conforto fisico é uma consequência positiva e bem-vinda dessa
disciplina mental.
Reconsiderar a técnica instrumental sob a luz da Técnica Alexander significa ree-
ducar movimentos específicos aplicando a atenção consciente. Ao reeducá-los, mo-
vimentos de mão e braços acontecem, no contexto da execução instrumental, com
esforço apropriado. O excesso de tensão em qualquer articulação, principalmente
entre cabeça e tronco, pode interferir na desenvoltura de todo o corpo. Por meio de
processo gradual, eliminando os procedimentos mecânicos e estereotipados ado-
tados por tantos instrumentistas, fica cada vez mais claro que a atenção consciente
empregada na Técnica Alexander oferece recursos apropriados para a desenvoltura
da execução instrumental (Vieira 1996).
O resultado imediato da aplicação da Técnica Alexander à execução instrumental
é uma ruptura no ciclo vicioso de tensão. É uma experiência poderosa e inesperada:
a pessoa sente a ausência da resposta muscular associada ao excessivo e inapropriado
uso de força para tocar o instrumento. Um período de confusão e surpresa se segue,
à medida que a pessoa percebe que o tocar pode ser associado a uma sensação de
pouco esforço. A coordenação melhora, passagens que eram difíceis se tornam mais
fáceis, como se elas tocassem por si. A qualidade sonora melhora e a expressividade
sai natural e espontaneamente (Vieira 1996). Nesse ponto, o instrumentista passa
a acreditar que tocar o instrumento é possível sem ter de se exercitar de maneira 159
mecânica. “Como é possível que uma peça musical, ou uma passagem nela, seja di-
fícil para uns e fácil para outros. . . Na realidade, a peça não é nem difícil nem fácil,
mas se torna um ou outro dependendo de como o instrumentista a percebe” (Ben-
Or 1987). Dessa forma, a importância recai sobre a percepção do texto musical,
mais do que a atividade física envolvida em realizar esse texto.
Não se quer dizer com isso que a coordenação específica necessária para tocar uma
obra musical viria sem a prática de repetições. A coordenação precisa ser desenvol-
vida. O estudo no sentido tradicional não pode ser dispensado. No entanto, os efei-
tos da repetição insensata podem ser minimizados com a aplicação da atenção
consciente que resulta do aprendizado da Técnica Alexander, o que será tratado a
seguir.

Essência e subproduto
Nelly Ben-Or, pianista internacional, professora de piano do Guildhall School of
Music em Londres e professora de Técnica Alexander, escreve, em artigo de 1987
intitulado The Alexander Technique in Preparation and Performance of Music, que
o alívio físico é freqüentemente considerado o principal benefício da Técnica Ale-
xander. A importância do processo mental consciente que define a melhoria física
pode passar despercebida ou ser minimizada. “Quando isso acontece, a Técnica
Alexander permanece limitada pela idéia de que causa melhoras posturais, o que é,
de fato, o motivo da sua popularidade” (Ben-Or 1987). Segundo Ben-Or, “isso seria
tomar o subproduto pela essência”, e causa mais um equívoco, “o de que a Técnica
Alexander seria uma espécie de tratamento, e não um modo de trabalho, aplicável
a todo o processo de preparação para a performance” (Ben-Or 1987). Para Ben-Or,
a essência da Técnica Alexander é a inibição e a direção.
Ainda segundo Ben-Or, a grande contribuição da técnica Alexander para o músico
executante seria a utilização de atenção consciente e assim como uma clareza de
percepção. “Estes seriam também os fatores mais importantes na preparação da exe-
cução musical. Eles são os melhores meios para adquirir uma técnica de execução
criativa: a técnica com a qual a intenção musical se manifesta instantaneamente em
som, e se apóia na atenção e direção conscientes” (Ben-Or 1987).
Para ilustrar, Ben-Or toma como exemplo aspectos da execução pianística, como a
obtenção de velocidade em um trecho musical, e defende que os procedimentos
comumente utilizados para ganhar velocidade em passagens, tais como interminá-
veis repetições e variações rítmicas, reduzem a tarefa a um desafio unicamente para
o corpo. O aspecto mental da velocidade fica negligenciado. No entanto, enquanto
o material musical não está mentalmente na velocidade desejada, qualquer esforço
físico será um desperdício de energia. Ben-Or ressalta que, enquanto o corpo tem
limitações, tal como tamanho de mão, ou comprimento de dedos, a mente não tem
160 limite.
A clareza na percepção do texto musical e a realização mental desse texto seriam a
tradução da essência da Técnica Alexander aplicada à performance. A eficiência na
realização física da execução musical se torna o bem-vindo subproduto do processo
mental.

Padrões de pensamento
“A Técnica Alexander pode ser de grande auxilio para o músico por aliviar ten-
sões corporais desnecessárias e levar a uma coordenação melhorada. Mas acima
de tudo [a Técnica Alexander] deve mostrar [ao músico] como os PADRÕES DE
PENSAMENTO em música precisam ser mudados, dos habituais para novos [pa-
drões de pensamento]” (Ben-Or 1987, grifo original da citação).

Automatismo e criatividade
Frank Pierce Jones, que por 25 anos conduziu pesquisas sobre a Técnica Alexander,
escreveu, em seu artigo The Organization of Awareness, de 1967, que estar alerta aos
eventos do momento não é um objetivo comum das pessoas. Há quem se sinta mais
à vontade quando é capaz de fazer automaticamente as atividades do dia a dia, tais
como dirigir para o trabalho. Assim, a pessoa pode pensar em coisas mais úteis, ou
mais interessantes. Quando uma atividade está treinada à exaustão, a mente pode
abstrair da tarefa, que ainda será cumprida a contento.
Embora aparentemente isso seja uma vantagem, este tipo de treinamento engessa
a atividade, que se repete sem variações, e só funciona se não for mudada. A auto-
matização na performance musical e sua conseqüente alienação mental certamente
tolhe a interpretação. Jones considera que o automatismo é responsável por per-
formances musicais inconscientes e estereotipadas.

Consciência e atenção
Jones propõe um método para organizar a atenção consciente de forma que não
haja tal prejuízo. Para isso, Jones utiliza os termos consciência (awareness) e aten-
ção (attention). Segundo ele, consciência é uma “condição em que a pessoa está
desperta e alerta ao que quer que esteja acontecendo, sem se concentrar em nada em
particular” (Jones, 1967). Atenção é um estado em que o foco se fecha em um as-
pecto particular, e pode ser comparada a um spot de luz no palco.
A concentração é um conceito bastante valorizado. Estar concentrado equivale a
dar toda a atenção ao que acontece sob o spot de luz. Qualquer outra coisa passa a
ser ignorada. Pela proposta de Jones, quando estamos envolvidos em uma atividade,
devemos ampliar o foco da atenção. Aquele spot de luz continua brilhante, mas o
resto do palco não está completamente às escuras, e sim levemente iluminado.
161 161
Percepção e Propriocepção
Jones escreve que o organismo é freqüentemente subdividido em partes e catego-
rias: corpo e mente, os cinco sentidos, sistemas (vascular, digestivo, nervoso, etc.).
Essas divisões são úteis para fins de estudo, mas quando se trata de comportamento
humano, é comum reforçar-se que o corpo funciona como uma unidade.
“Há uma divisão, no entanto, que é raramente questionada: a divisão entre ser e am-
biente. É comumente aceito que a atenção deve ser dirigida ou para fora, para o am-
biente, ou para dentro, para si mesmo” (Jones 1967). Jones se utiliza da
terminologia de Gibson (apud Jones 1967), que emprega percepção para a atenção
dirigida ao ambiente e propriocepção para a atenção dirigida para dentro de si
mesmo. Percepção e propriocepção parecem incompatíveis ou excludentes.
Quando estamos absorvidos em uma atividade, perdemos a noção do uso de nosso
corpo — isso é tão evidente quando utilizamos o computador. Inversamente, se
queremos dar atenção ao nosso estado físico, procuramos excluir o mundo exterior,
até mesmo fechando os olhos, para sentirmos melhor o nosso corpo.
Jones defende uma abordagem unitária, contestando a separação entre ser e am-
biente, e a conseqüente atuação excludente nas capacidades de percepção e pro-
priocepção. O cérebro humano tem a habilidade de processar informações sobre o
ambiente ao mesmo tempo em que obtém dados sensoriais sobre posição, tônus
muscular e movimentos da cabeça, tronco e membros. Trata-se de incorporar os
dados do feedback proprioceptivo aos dados da atividade, como se clareássemos o
palco com uma luz tênue, suficiente para se perceber os contornos importantes,
sem perder o brilho do spot de luz, que abarcaria o centro da ação.

No palco
Ulfried Tölle, músico, ex-primeira trompa da Orquestra Sinfônica de Zurique e
ex-professor de Técnica Alexander da Musikhochschule em Stuttgart, escreveu um
artigo intitulado Stage Fright. Neste artigo, Tölle aborda a aplicação da Técnica
Alexander no contexto de minimizar os sintomas do que se costuma chamar medo
de palco. Sendo professor de Técnica Alexander, Tölle trata da relação da cabeça
com o corpo, estados da mente e hábitos, aspectos geralmente associados à prática
da Técnica. No entanto, ao ler o texto deparamos com idéias singulares e sur-
preendentes, tais como escolha, controle e responsabilidade.
Ao abordar sua experiência com os sintomas do medo de palco, Tölle apresenta
um relato de descoberta de padrões de pensamento contraproducentes que esta-
riam diminuindo a sua capacidade de atuar, e das estratégias que elaborou para mi-
nimizar as conseqüências negativas que aqueles padrões de pensamento
proporcionam. Tölle comenta que, no palco, no momento da performance, des-
162 perdiçava grande energia desejando estar em outro lugar. Além disso, ele desejava 162
estar no controle da situação. Esses desejos não podiam ser satisfeitos. Então a ati-
tude a tomar, segundo Tölle, seria escolher estar onde se está, e escolher estar fora
de controle. Com essa escolha, assume-se a responsabilidade sobre os hábitos cau-
sadores dos sintomas, e tomando essa simples atitude cessa a necessidade de reagir
a esses sintomas. Há uma mudança de opção de comportamento, de reação para
ação. A partir dessa mudança, Tölle opta por entrar no palco, afinar a trompa, ouvir
a orquestra em preparação para sua próxima entrada e tocar ativamente.
Estar completamente ciente (aware) de onde se está (no palco), e do estado em que
se está (fora de controle) implica em manter percepção e propriocepção atuando
concomitantemente da maneira sugerida por Jones (1967) e descrita anteriormente
neste trabalho. Tölle afirma que a Técnica Alexander “é um método brilhante para
entrar no domínio do agora. Através da união [da mente] com o corpo no presente
momento obtém-se a consciência de fisicamente estar lá, agora” (Tölle 1991).

O professor da Técnica Alexander


O professor de técnica Alexander esclarece seu aluno sobre Inibição e da Direção,
e com isso pode guiar mudanças no padrão de pensamento de seu aluno. No en-
tanto, o aluno músico precisa, ele mesmo, fazer a conexão dos princípios da Técnica
Alexander com as “demandas do instrumento e da música” (Ben-Or 1987). Ao
propor esta idéia, Ben-Or encoraja o aluno a tomar posse do seu aprendizado e apli-
car os princípios da Técnica além do auxilio do professor.
A rigor, a Técnica Alexander poderia ser aprendida sem professor. F. M. Alexander,
criador da Técnica, não tinha um professor para auxiliá-lo. F. M. Alexander levou
muitos anos para dominar a técnica. O papel do professor é facilitar o processo, que,
sem professor, seria muito demorado. Em contrapartida, relatos de pessoas que
têm uma longa história com a Técnica, dão conta de que, mesmo com auxílio de
professores, o aprendizado é longo e a cada dia é um recomeço. Ben-Or, com 27
anos de experiência, afirma que a ilusão de aprender tudo sobre a Técnica Alexan-
der está definitivamente afastada. A Técnica Alexander é um experimento para
toda a vida.

Conclusão
Com base no exposto acima, concluímos que a contribuição mais relevante da Téc-
nica Alexander para a execução musical é a atenção consciente que motiva a cons-
ciência plena em atividade. Nas etapas da construção da interpretação musical, a
atenção consciente estrutura o treinamento mental a partir da compreensão do
texto musical. No momento da performance, a atenção consciente situa o músico
no momento presente e livre para exercer sua criatividade. Utilizando a atenção
consciente, a mente se mantém em contato com estados do corpo, apesar de o foco 163
da atenção estar voltado para a atividade musical. A mente permanece constante-
mente avaliando a atuação física, no decorrer do estudo ou do desempenho artís-
tico, e ao mesmo tempo em conexão com o mundo exterior.
A Técnica Alexander pode trazer questionamentos profundos a respeito de pa-
drões de pensamento destrutivos. Sua atuação pode proporcionar mudanças em
campos do comportamento e do estado psicológico. A atitude mental de optar pela
experiência representa assumir a responsabilidade sobre a experiência, sobre o pró-
prio aprendizado e sobre si mesmo.
Apesar de os benefícios físicos serem os responsáveis pela popularidade da Técnica
Alexander, a essência da Técnica está nos padrões de pensamento envolvidos no
procedimento. A integração do corpo e mente, assim como a simultaneidade da
percepção e propriocepção permitem um estado de atenção consciente e clareza de
percepção, que propiciam uma performance espontânea e criativa.

Bibliografia
Ben-Or N. 1987. The Alexander Technique in the preparation and performance of music.
Alexander Memorial Lecture, panfleto disponibilizado pela S.T.A.T. Books.
Jones, Frank P. 1967. The organization of Awareness: a technique for musicians. Acessado em
14/04/2010. Disponível em www.alexandertechnique.com/musicians.htm.
Tölle U. 1991. Stage Fright. Direction: A journal on the Alexander Technique: Music and
Musicians (1-6): 320-322.
Vieira YQ. 1996. Principles of Alexander Technique as applied to selected aspects of violin
performance. DMA Essay University of Iowa.
Diretrizes para a Elaboração de Dedilhados
na Performance Violonística
Cristiano Sousa dos Santos
164 cristiano.sousa.santos@gmail.com
PPGMUS/Escola Música, Universidade Federal da Bahia

Resumo
Este artigo propõe diretrizes gerais e específicas para a elaboração de dedilhados em
violão e é um recorte de uma pesquisa de mestrado já finalizada que estudou o processo
de elaboração de dedilhados na Aquarelle para violão solo, composta por Sérgio Assad
(1988). Analisamos e comparamos as digitações de mão esquerda elaboradas pelo pró-
prio compositor da peça com nossas propostas de dedilhados; e utilizamos as gravações
de Eduardo Isaac e Aliéksey Vianna como parâmetros para a comparação de mudança
de timbres nos dedilhados de mão direita. As ferramentas utilizadas para a análise e ela-
boração de dedilhados em mão esquerda foram: a noção de posição e o conceito de
alcance natural; translado, com dedo guia e salto livre; apresentações, longitudinal e trans-
versal; distensão e contração; e o conceito de ponto de apoio, que consideramos ser a
peça fundamental do processo digitatório de mão esquerda utilizado neste estudo. Já as
ferramentas utilizadas em mão direita foram: noção de posição e conceito de alcance
natural, apresentação, translado e salto livre, abertura e contração, mudanças de timbre.
As diretrizes gerais para a elaboração de dedilhados foram: a) a “viabilização da execu-
ção musical”; b) a “interpretação musical”. As diretrizes específicas de dedilhados de mão
esquerda foram: a) a “definição de posição”; b) a “definição dos pontos de apoio”; c) “al-
teração da posição e do âmbito de alcance da mão esquerda”. Já as diretrizes específi-
cas de mão direita foram: a) “definição do posicionamento em sentido longitudinal ou
transversal”; b) a “alteração da posição e do âmbito de alcance da mão direita”; c) final-
mente, “escolha de recursos de mudança de timbre”. Esta pesquisa contribui para o de-
bate na área ao apresentar uma maneira sistemática de produzir dedilhados no violão.

Introdução
A digitação é uma sub-área da técnica violonística. Ela é, ainda, uma ferramenta
fundamental tanto para tornar uma peça musical “executável” quanto para sua in-
terpretação musical. O Harvard Dictionary of Music (Apel, 1982, p. 315) define
digitação como sendo “o uso metódico dos dedos na execução instrumental”. Por
tal conceito, a digitação seria o setor da técnica responsável pela utilização crite-
riosa dos dedos para a performance. Sendo assim, ela não aborda apenas a simples
indicação digital em determinada passagem, mas também a qualidade de sua utili-
zação. Vislumbrada desta forma, a elaboração de dedilhados pode ser tratada de
maneira ainda mais complexa, exigindo que o violonista pondere sobre o resultado
sonoro de seu uso e sua capacidade de viabilizar a performance de determinada peça
musical. A execução de determinado trecho musical pode ser realizada, tanto em
mão direita quanto em mão esquerda, de diversas formas. Há a possibilidade de se
tocar uma nota de mesma freqüência em diversas posições do braço do instrumento,
com diversos tipos de ataques de mão direita. Isto faz dos dedilhados em violão,
uma peça chave para a interpretação musical. Carlevaro (1966, p. 3) observa que
“no violão não se concebe uma execução correta sem uma correta digitação”. Con- 165
cordamos em parte com esta sentença. Acreditamos que a digitação é o meio de se
atingir determinado objetivo musical. Estes são muitos e diversos, por isso, são mui-
tas e diversas as possibilidades de dedilhados. Assim, não haveria apenas “uma cor-
reta digitação”. Na execução violonística, uma mesma passagem pode ser realizada
de diferentes maneiras. Assim, a digitação pode variar de um instrumentista a outro,
dependendo dos diferentes pontos de vista sobre a questão. Ainda sobre a afirma-
ção de Carlevaro, uma digitação desconexa, que não formule de maneira coerente
as conexões entre as passagens, obviamente tornaria a execução ao violão uma ta-
refa árdua de realização. Não raro, observamos tanto alunos quanto intérpretes de-
dicarem o tempo de estudo para a prática repetitiva de trechos isolados.
Acreditamos que o exame e elaboração de digitação apropriada para tais trechos de
dificuldade possam otimizar a resolução do problema.
Infelizmente, poucas publicações dedicam atenção focalizada à digitação. Isso re-
flete uma falta de preocupação com o tema. Por causa da escassez de bibliografia
que apresente uma teoria técnica especificamente voltada à produção de dedilha-
dos, os violonistas recorrem às performances gravadas, em vídeos ou áudios, e à aná-
lise de partituras que contenham digitação. Há também a possibilidade de se
adquirir conhecimentos de procedimentos de dedilhados através de aulas com vio-
lonistas mais experientes, tanto periodicamente quanto nos conhecidos master-
classes. Entretanto, talvez seja justamente a prática da oralidade, tanto no ensino
quanto na prática violonística, que venha comprometendo a pesquisa e o registro
deste conhecimento em violão.
Metodologia
Para nos ajudar a entender o processo de criação de dedilhados, escolhemos estu-
dar a Suíte Aquarelle de Sérgio Assad, composta em 1988. Analisamos e compara-
mos a digitação de mão esquerda elaborada pelo compositor (Assad, 1992) com
digitações alternativas elaboradas por nós. A mão direita não foi informada pelo
compositor na edição, por isso, comparamos duas possibilidades de digitações nos-
sas. O objetivo era o de apresentar diretrizes para a formulação de dedilhados e en-
tender um possível processo de elaboração.

Procedimentos de dedilhados de mão esquerda


Mostramos, na tabela a seguir, os termos de mão esquerda e suas abreviações (sem-
pre em letras maiúsculas, para diferenciar das abreviações de mão direita, em mi-
núsculas). Apresentamos a discussão sobre seu funcionamento em seguida.
Tabela 1.1 — Abreviações dos termos de mão esquerda
utilizados nos nossos exemplos.
POS Posição
166
APL Apresentação Longitudinal
APT Apresentação Transversal
PA Ponto de Apoio
PAM Ponto de Apoio Mantido
PAA Ponto de Apoio Antecipado
GA Dedo Guia Ativo
GSI Dedo Guia Semi-inativo
AB Abertura
CON Contração
SL Salto Livre

De acordo com Carlevaro (1979, p. 94), posição “é a colocação da mão esquerda


com relação às divisões ou espaços que existem no braço do instrumento”. A cons-
ciência do posicionamento no violão é fundamental para seleção apropriada do re-
curso a ser utilizado para o translado, além de ser indispensável para se estruturar
a performance na memória com maior segurança. Para que se possa achar a posição
onde a mão esquerda se encontra em determinado trecho, deve-se levar em conta
a noção de “alcance natural”. Os dedos possuem uma distância “natural” de um se-
mitom entre si. Por exemplo, na corda Å, a distância do dedo 1 (posicionado na
nota Lá) para o dedo 2 (posicionado na nota Lá #) seria considerada natural, o
mesmo seria aplicado aos dedos 3 e 4 consecutivamente. Segundo Carlevaro (1987),
a mão esquerda, no seu alcance natural, não extrapola o âmbito de quatro casas (um
tom e meio). Qualquer alteração deste conceito implicaria na realização de disten-
são ou contração. Em nossos exemplos a posição de mão esquerda é encontrada
considerando sempre o posicionamento do dedo 1.
Os violonistas possuem duas maneiras de modificar o âmbito de alcance natural de
mão esquerda: a abertura (ou distensão) e a contração. A abertura implica em uma
ampliação da possibilidade de alcance da mão esquerda. Já a contração é a redução
desse alcance.
O translado significa a mudança de uma posição à outra. Este termo é muitas vezes
vinculado às grandes distâncias. Entretanto, aqui, qualquer mudança de posição
será tratada por translado. Tais mudanças devem ser pensadas com cuidado para
que não prejudiquem o argumento musical. Muitas vezes é necessária a mudança
de posição no meio de uma frase e, para que ela não tenha uma ruptura em seu fra-
seado, é preciso que o executante faça escolhas satisfatórias para realizar essa troca.
Os recursos comumente utilizados para facilitar a execução do translado são: a uti-
lização de corda solta e o uso de dedo-guia. Ainda sobre os translados, é comum o 167
uso do termo “salto”, onde o violonista retira a mão das cordas colocando-a na nova
posição. Esta ação resulta em desprendimento de energia que, por sua repetição,
pode causar fadiga muscular. Sua utilização pode ser arriscada pela necessidade de
reposicionar a mão no braço do instrumento, por isso, alguns instrumentistas dão
atenção especial ao seu estudo. O salto implica necessariamente em translado, en-
tretanto, o translado não requer obrigatoriamente um salto. Dessa forma, preferi-
mos o termo salto livre para designar o translado sem nenhum meio que facilite a
ligação entre as posições. Apresentação de mão esquerda pode ser definida como “a
maneira na qual os dedos são colocados em relação ao braço do instrumento como
resultado de uma ação determinada do complexo motor mão-braço” (Carlevaro,
1979, p. 77). No violão o conceito de apresentações é útil para a decisão no processo
de digitação. Tal importância se deve ao fato de que cada tipo de apresentação fa-
vorece determinado posicionamento dos dedos. As apresentações podem ser de
dois tipos6: longitudinal ou transversal. Temos a apresentação longitudinal quando
os dedos estão em direção paralela às cordas. Se colocarmos cada dedo em uma casa
consecutivamente (posição natural), teremos um exemplo deste tipo de apresen-
tação. Já a apresentação transversal é obtida quando pelo menos dois dedos estão si-
tuados em cordas diferentes e em uma mesma casa. O ponto de apoio na mão
esquerda é o uso sistemático da pressão exercida pelos dedos. O violonista, ao exe-
cutar determinado trecho, escolhe o dedo que servirá de apoio para que os demais
se movimentem com maior flexibilidade. Dessa forma, o dedo apoiado recebe maior
pressão que os demais. Para um melhor entendimento do conceito de ponto de
apoio
na mão esquerda, partiremos da relação de forças exercidas entre os dedos da mão
esquerda (polegar, 1, 2, 3 e 4). O procedimento realizado pelo polegar, exercendo
uma pressão no braço do violão, e pelos demais dedos da mão esquerda, exercendo
por sua vez uma pressão contrária, gera o equilíbrio necessário à performance vio-
lonística. No entanto, o uso inadequado da pressão nos dedos pode gerar descon-
forto ao executante. Assim, o violonista deve escolher um ponto de apoio, caso
contrário, há a tendência de exercer pressão indiscriminada no braço do instru-
mento, causando cansaço e dores. Em todo momento da execução existe a necessi-
dade de estabelecer um ponto de apoio e são muitas as formas de utilização deste
recurso, que sempre dependerão do contexto e da individualidade do instrumen-
tista.
Procedimentos de dedilhados de mão direita
A mão direita é a mão responsável pela produção, emissão, do som ao violão. En-
tretanto, ela é, muitas vezes, ignorada tanto nas edições de partituras quanto nas pu-
blicações que discutem o tema digitação. A falta de sistematização dos
168
procedimentos de dedilhados de mão direita pode levar o instrumentista a dificul-
dades na execução musical (Brouwer e Paolini, 1992). A mão direita também sofre
influência de fatores fisiológicos individuais, tal como ocorre com a mão esquerda.
Assim, o formato das unhas bem como a qualidade de cada dedo contribuem para
a escolha de dedilhados. Mostramos na tabela abaixo os termos de mão direita, e
suas abreviações, que foram utilizados em nossos exemplos. A discussão sobre seu
funcionamento virá em seguida. Atentamos para o fato de que, para evitar possíveis
confusões com os termos em comum com a mão esquerda, foram colocados em
letra minúscula.
Tabela 1.1 — Abreviações dos termos de mão direita
utilizados nos nossos exemplos.
pos Posição
apt Apresentação transversal
apl Apresentação longitudinal
ab Abertura
con Contração
ap Toque com apoio
Sl Salto livre

Tal como a mão esquerda, para a mão direita também é importante a noção de po-
sicionamento para que os translados sejam realizados de maneira consciente. Iremos
considerar “posição natural” apenas a relação entre os dedos i (indicador), m
(médio) e a (anelar), já que o p (polegar) possui uma especificidade anatômica. O
polegar é capaz de movimentar-se com maior independência que os demais dedos.
Assim, a mão direita estará em posição natural quando os dedos i, m e a estiverem
posicionados em cordas consecutivas. No sentido transversal, com exceção do po-
legar, que pode trabalhar de forma mais livre e independente, os demais dedos (i, m,
a) obedecem uma ordem conjunta. Dessa forma, cada dedo está pronto para tocar
uma corda consecutivamente. Se o dedo i está sobre a corda Sol (É), a posição “na-
tural” do dedo m será na corda Si (Ç) e o dedo a será sobre a corda Mi (Å). Já no
sentido longitudinal, a posição aceita como natural é a próxima a região da boca,
antes do cavalete.
Assim, podemos mapear quatro posições básicas no sentido transversal (iniciando
da corda Å até a corda Ü). A ampliação do âmbito de alcance natural da mão di-
reita será realizada mediante a utilização de translados transversais e aberturas.
A mão direita pode transladar em dois sentidos, o longitudinal e o transversal. No
primeiro caso, a mudança é realizada com o intuito puramente interpretativo: o de
obter diferença timbrística através de toques em diferentes regiões do violão. Já o
translado transversal é realizado, de maneira geral, por uma necessidade técnica de
se tocar as notas pressionadas em diferentes cordas pela mão esquerda.
Distinguimos dois tipos de apresentação na mão direita: longitudinal e transversal. 169
A primeira nos dá um ângulo de 45° em relação às cordas e obedece a colocação
“natural” do braço diante das cordas. Já para realizar a apresentação longitudinal, ou
perpendicular, devemos flexionar o punho fazendo com que a mão tenha um ân-
gulo em torno de 90° em relação às cordas. A apresentação transversal será tomada
como padrão em nossa execução, enquanto que a apresentação longitudinal será
adotada apenas em casos excepcionais.
Similarmente à mão esquerda, há uma abertura na mão direita quando o âmbito de
alcance natural, que é de uma corda, entre os dedos i, m e a, é elevado. Quando esse
alcance é reduzido, chamaremos de contração.
São muitas as possibilidades de se obter variações de timbre através da mão direita.
A escolha de determinados dedos por suas características específicas, pode propor-
cionar, além de conforto na execução, diferença na sonoridade. A utilização da di-
gitação i-m para a realização de escalas pode promover grande velocidade em sua
execução (apesar de que pode ser ruidosa nos bordões por causa do atrito das unhas),
possibilitar o emprego de apoio em ambos os dedos (i e m), além de proporcionar
um caráter “incisivo” ao trecho executado. David Russell (Contreras, 1998, p. 45)
nos dá uma outra opção: “para escalas rápidas nos bordões é muito boa digitação (
sic) p-i ”. Tal indicação pode ser muito útil para evitar os ruídos ocasionados pelo
atrito das unhas nas cordas, além de proporcionar um timbre diferente por causa
do uso do dedo p que tem uma sonoridade mais “pesada” que o dedo i. Ainda, o uso
de p-i (ou p-m, similarmente) em escalas, pode ser útil tecnicamente: em um trecho
onde a escala é finalizada com um acorde plaquê, ganha-se agilidade tocando a úl-
tima nota da escala com o p e as notas do acorde com os dedos restantes (i-m-a).
Há ainda a possibilidade de se digitar i-a. O violonista deve, obviamente, examinar
a aplicabilidade destes procedimentos em cada caso.
As diferenças timbrísticas entre corda presa e corda solta, bem como entre cordas
diferentes, podem ser compensadas através de mudança de posição da mão direita
em sentido longitudinal. Este recurso é amplamente utilizado pelos violonistas pro-
fissionais que muitas vezes não condicionam a digitação de mão esquerda à quali-
dade timbrística das cordas. Com isso é comum em interpretações que o violonista
use cordas diferentes, inclusive cordas presas e soltas, na condução de uma linha
melódica.
Além da mudança de timbre por uso de cordas diferentes na digitação de mão es-
querda e por mudança de posicionamento da mão direita, há também a possibili-
dade da utilização de diferentes tipos de toques pela mão direita. Os maiores re-
presentantes desse artifício são a utilização de toques com ou sem apoio. Noad
(1999, p. 24) usa o termo toque apoiado “quando o dedo de mão direita completa
seu movimento descansando sobre a corda adjacente inferior”. O toque apoiado
170 produz um som de natureza mais “cheia”, com uma projeção maior que o toque
sem apoio e a nota apoiada é fatalmente enfatizada. Já o toque sem apoio redunda
em um som de curto alcance, entretanto, esse toque é mais rápido e pode ser usado
para dar dinamismo a uma determinada passagem.

Das diretrizes gerais


Tomamos como ponto de partida o artigo de Daniel Wolff (2001) que é dedicado
exclusivamente à formulação da digitação violonística. Este autor elencou quatro
fatores dos quais a elaboração da digitação dependeria: dificuldade técnica, carac-
terísticas individuais (anatomia das mãos, nível técnico, sonoridade do instru-
mento), estilo da obra e interpretação (fraseado, articulação, timbre, etc.).
Os fatores “dificuldade técnica” e “características individuais” propostos por ele
podem ser agrupados, devido sua proximidade. Entendemos que ambos os itens
mencionados fazem parte de uma categoria maior, já que servem para tornar a per-
formance viável no nível técnico-motor. Através dos exemplos comparados entre
as digitações de mão esquerda estabelecidas pelo compositor e as nossas propostas,
vimos que em muitos casos, a dificuldade técnica pôde ser superada (pelo menos em
favor de nossas “características individuais”). Já o fator “estilo da obra” será facul-
tado a cada intérprete, já que este tem autonomia para a realização de sua inter-
pretação. Por isso, os fatores “estilo da obra” e “interpretação” sugeridos por Wolff
serão agrupados em um só. Portanto, a digitação prescinde, em nossa concepção,
de dois fatores essenciais: a) O primeiro critério é a “viabilização da execução mu-
sical”, ou seja, a digitação deve proporcionar uma performance segura e sem esforço,
para que o discurso musical não tenha seu fluxo comprometido. Aqui, os fatores de
“dificuldade técnica” encontrados em determinada peça devem ser submetidos às
“características individuais” (anatomia das mãos e sonoridade do instrumento1).
Note que eliminamos o item “nível técnico” mencionado por Wolff, pois enten-
demos que a elaboração de dedilhados é o meio de se alcançar o “nível técnico” ne-
cessário para realizar a performance de determinada peça. Portanto, tal
característica individual não pode servir de parâmetro limitador para a elaboração
de dedilhados. Mesmo o instrumentista destituído de maiores agilidades motoras
ou mesmo, de resistência muscular, pode alcançar uma performance satisfatória
por meio de uma elaboração de dedilhados adequada à sua realidade técnica.
Por outro lado, a anatomia das mãos pode interferir de maneira positiva ou nega-
tiva para a formulação da digitação. Obviamente, uma mão grande pode obter
maior facilidade na execução de determinados tipos de dedilhados, como os que
possuem aberturas, mas talvez encontre dificuldade em realizar determinadas con-
trações. Daí que o violonista deve estar ciente de sua especificidade anatômica para
escolher dedilhados que otimizem suas possibilidades de performance; b) O outro
critério é a “interpretação musical”, ou seja, a preocupação com o seu resultado so-
noro. As escolhas de dedilhados devem ser tomadas para alcançar determinado fim 171
auditivo. A digitação é, portanto, uma ferramenta (ou sub-ferramenta, já que a di-
gitação é parte do aparato técnico disponível ao violonista) que pode ser utilizada
de diferentes maneiras, em uma mesma peça e em uma mesma performance2. Agru-
pamos os fatores “estilo da obra” e “interpretação” em um só. De acordo com Abdo
(2000) há três correntes de interpretação musical: a reevocadora, a “conciliadora” e
a desconstrucionista. A primeira, estabelece que o instrumentista deve “reevocar”
a idéia original do compositor através da performance historicamente embasada e
execução das indicações apresentadas na partitura. A segunda corrente admite a
pessoa do intérprete enquanto agente criativo e considera-o co-autor ao lado do
compositor. Já a corrente desconstrucionista abandona o conceito autoral e esta-
belece que o intérprete é o principal sujeito de sua atividade. Acreditamos que ao
intérprete é facultado o direito de escolha entre as correntes apresentadas. Desta
forma, sua digitação irá obedecer suas inclinações interpretativas promovendo a
variedade entre diversas performances musicais.
Assim, observamos que os dois critérios apresentados acima devem ser considera-
dos de maneira dialética, pois a “interpretação musical” idealizada pelo instru-
mentista carece de um aparato técnico adequado para sua viabilização. E, por outro
lado, a “viabilização da execução musical” advém de determinados fundamentos
ou metas de “interpretação musical”. Entretanto, as possibilidades técnicas pare-
cem ser finitas e restritivas se comparadas às possibilidades de interpretação musi-
cal. Não é raro nos depararmos com poucas opções de dedilhados para a execução
de determinado trecho e nenhuma delas corresponder aos nossos ideais de inter-
pretação musical.

Diretrizes específicas de dedilhados: mão esquerda


As diretrizes utilizadas para a análise e produção das digitações de mão esquerda
na peça Aquarelle foram:
Primeira, a definição de posição através da escolha do dedo que deverá tocar de-
terminada nota. A relação deste dedo com o alcance natural do dedo 1 indicará a
posição. Dessa forma, o dedo 1 é quem define o posicionamento da mão esquerda,
mesmo que não participe do trecho em questão.
Segunda, a definição dos pontos de apoio. Eles darão estabilidade tanto para a exe-
cução de uma passagem que mantém o mesmo âmbito natural e uma mesma posi-
ção, quanto possibilitará “apoio” para o aumento ou diminuição deste âmbito ou
à realização de translados. Mesmo quando a mão esquerda permanece em uma
mesma posição, e com o âmbito natural de alcance, há a necessidade de se estabe-
lecer pontos de apoio, pelo fato de que ele permite estabilidade na execução, detém
sobre si a maior carga de força, o que possibilita maior agilidade aos demais dedos
172 e permite com que a força seja empregada de maneira otimizada. Assim, os pontos
de apoio estão, de maneira geral, em notas de maior duração.
Terceira, a alteração da posição e do âmbito de alcance da mão esquerda é orientada
de acordo com os seguintes procedimentos: translados (com o uso de dedos-guia
que são pontos de apoio), aberturas e contrações (com o auxílio de pontos de apoio
e apresentação apropriada). Observamos que a mão esquerda em alcance natural
gasta menos energia na execução musical, além de possibilitar o fraseado mais fluído.
Por isso, a formulação de dedilhados apresentada em nosso estudo privilegiou a
mão esquerda em âmbito natural.

Diretrizes específicas de dedilhados: mão direita


As diretrizes utilizadas para a análise e produção das digitações de mão direita na
peça Aquarelle foram baseadas nas mesmas diretrizes de dedilhados de mão es-
querda, com as devidas especificidades:
A primeira é a definição do posicionamento em sentido longitudinal ou transver-
sal. O posicionamento longitudinal diz respeito a fatores estritamente interpreta-
tivos, enquanto que o posicionamento transversal obedece questões técnicas – a
definição das notas pressionadas pela mão esquerda ditarão o posicionamento em
sentido transversal de mão direita. O dedo a orienta o posicionamento da mão di-
reita, sempre com relação ao âmbito natural de alcance (como na mão esquerda), e
esta posição ocorre de maneira alheia ao dedo p, que se movimenta de maneira in-
dependente. Dessa forma, a mão direita se movimenta dentro de 4 posições possí-
veis (pos 1, pos 2, pos 3 e pos 4). Observamos que a importância em se estabelecer
as posições, bem como translados e mudanças de âmbitos de alcance em mão direita
é similar àquela da mão esquerda. O fraseado desejado deve orientar esses procedi-
mentos. Obviamente, um fraseado realizado com dedilhados em âmbito natural
pode ser mais cômodo e “fluído” em sua execução que um dedilhado repleto de
translados.
A segunda diretriz diz respeito à ampliação do âmbito de alcance e mudança de po-
sição. Além da possibilidade do uso de aberturas e contrações, e saltos livres, é pos-
sível realizar translados por meio de mudança de apresentação. O único artifício
encontrado para facilitar o translado entre as posições em mão direita foi a utiliza-
ção do polegar. Enquanto o polegar executa uma nota, os demais dedos mudam de
posição. Este procedimento é similar a utilização de corda solta para a realização
do translado, e serve para evitar lacunas auditivas na execução do translado. Infe-
lizmente, não encontramos um procedimento similar aos dedos-guia na mão es-
querda para os translados de mão direita.
Finalmente, deve-se escolher, de acordo com o contexto musical e as orientações in-
terpretativas de cada intérprete, os momentos de realizar os translados longitudi-
nais, toques com apoio ou sem apoio e mudanças de apresentação (que mudam o 173
ângulo de ataque nas cordas).

Aplicação
A alteração realizada na digitação de mão esquerda do compasso 10, que exclui o uso
da pestana, se deu por dois motivos: o primeiro foi o de manter o legatto na voz su-
perior – o uso da pestana interromperia o som na passagem da nota Ré, dedo 4,
para a nota Sol, dedo 3; o segundo motivo foi a possibilidade de se manter a ho-
mogeneidade de timbre na voz intermediária (compare as duas figuras).

Figura 1 — Valseana, cc. 9 e 10, dedilhado da edição.

Figura 2 — Valseana, cc. 9 e 10, dedilhado nosso.


Analisando duas possibilidades de dedilhados de mão direita elaboradas por nós, é
possível ver como diferentes escolhas podem refletir diretamente a condução do
fraseado. Na figura 3, observamos que é possível executar todo o trecho entre os
compassos 26 e 30 utilizando o p na melodia no baixo, sem realizar nenhum trans-
lado de mão direita. Entretanto, notamos que este procedimento causa um atraso
na execução desta melodia no bordão. Outra opção de digitação seria realizar a me-
lodia no bordão com o p e o i. Apesar desta digitação ser teoricamente mais difícil,
por apresentar translados de mão direita, ela beneficia a execução da melodia no
bordão, já que, ela será tocada alternadamente pelos referidos dedos.

174

Figura 3 — Valseana, cc. 26 a 30. Digitação de mão direita sem mudança de posição.

Figura 4 — Valseana, cc. 26 a 30. Digitação de mão direita


com mudança de posição.

Conclusão
Reiteramos que o instrumentista, mesmo na elaboração de questões técnicas de
execução, parte de orientações individuais para o exercício de sua atividade. Ao tra-
balharmos com uma peça musical complexa e composta por um violonista concei-
tuado, Sérgio Assad, demonstramos que cada intérprete apresenta formas distintas
de trabalho. O instrumentista, ao posicionar-se de maneira aberta, pode utilizar
suas ferramentas – timbre, dinâmica, tempo, articulação e técnica instrumental – 175
de forma a proporcionar uma obra interpretativa sempre nova.
Acreditamos que os gráficos utilizados neste estudo aproximam-se ao que de fato
acontece no momento da performance. A partitura, mesmo que dotada das tradi-
cionais indicações numéricas de dedilhados, deixa, sob muitas maneiras, a desejar
na representação do que realmente acontece na atividade instrumental. Alguém
poderia argumentar que é tarefa do instrumentista a criação dos dedilhados e que,
por isso, a notação deva apresentar-se de maneira limitada, ou mesmo inexistente.
Entretanto, a ausência de publicações especializadas que discutam os problemas de
digitação, bem como a carência de partituras que tragam comentários sobre as es-
colhas de dedilhados presentes em edições de partituras, contribuem para obscu-
recer as pesquisas em execução ao violão, além de não difundir o conhecimento. O
investigador não tem outro meio de entender os procedimentos de dedilhados a
não ser através de análises de vídeos e das indicações numéricas, nem sempre con-
tidas nas edições. Dessa forma, o aspirante a instrumentista encontra dificuldades
na execução ao instrumento. Por isso, a partitura isenta de indicações de digitação
serve apenas àquele indivíduo já dotado dos conhecimentos digitatórios necessários
à execução ao instrumento. Portanto, é preciso que novas pesquisas sejam efetua-
das no sentido de proporcionar o aperfeiçoamento da notação existente. Nesse sen-
tido, acreditamos ter contribuído para o enriquecimento da literatura através não
só da criação de um conjunto de nomenclaturas, que podem ser enriquecidas e
adaptadas, mas também da sua representação gráfica que pode servir de apoio à exe-
cução, tanto para a análise de partituras, quanto como “guias para performance”.
Uma prática comum no meio musical violonístico, mais precisamente entre peças
criadas por compositores não violonistas, é a colocação na edição da partitura dos
créditos do violonista que criou a digitação. Um exemplo dessa prática pode ser
visto nas várias edições de músicas comissionadas por Andrés Segóvia e Juliam
Bream. Uma conseqüência disso é a cópia deliberada de tais digitações sem a aná-
lise crítica de seu funcionamento e conveniência. Por isso, esta pesquisa serve de
exemplo para o fato de que, mesmo quando o compositor é um exímio violonista
– como o é o caso de Sérgio Assad – não está descartada a possibilidade de se exa-
minar, questionar e reelaborar a digitação, dinâmica, timbre, ou articulação. Dessa
forma, recomendamos a busca de dedilhados alternativos.
Finalmente, em resposta à questão do nosso estudo – como ocorre o processo de
criação de dedilhados ao violão? – podemos afirmar que o violonista parte de dire-
trizes de elaboração de dedilhados que são regidas por dois fatores: a “viabilização
da execução musical” e a “interpretação musical” que atuam de forma dialética;
essas diretrizes são confrontadas com uma demanda musical (em nosso caso, a suíte
Aquarelle); cada mão possui um aparato de ferramentas que devem ser utilizadas de
maneira inter-relacionada; as diretrizes de elaboração de dedilhados para a mão es-
176 querda são o estabelecimento de posicionamento, definição de ponto de apoio, e al-
teração de âmbito de alcance e posição; já as diretrizes de elaboração de dedilhados
para a mão direita são a definição de posição, a alteração de âmbito e posição, e uti-
lização dos recursos de mudanças de timbre.

1 Podemos substituir “sonoridade do instrumento” por “características físicas do instru-


mento”. Assim, levaríamos em conta não só a qualidade de seu som emitido, mas também, as
limitações apresentadas por seu corpo físico, tais como, tamanho dos trastes, distância das
cordas em relação ao braço, tensão das cordas, etc.
2 O violonista espanhol Andrés Segóvia é um exemplo de violonista que utilizava digitações
diferentes para um mesmo trecho.

Referências
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Musi 1, p. 16-24.
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Wolff, Daniel. 2001. Como digitar uma obra para violão. Violão Intercâmbio, São Paulo, n.
46, p. 15-17.
O Processo Criativo da Composição Musical:
Uma Visão Sistêmica e Evolutiva
Felipe Kirst Adami
felipekadami@gmail.com 177
Departamento de Música
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo
Este artigo aborda a composição musical enquanto processo, em uma visão sistêmica que
leva em consideração não só os processos de geração da obra até a obtenção do su-
porte físico (como a partitura ou arquivo de música eletrônica), mas também processos
de difusão: a execução, a apreensão, pelo público e pelo próprio compositor, e a teori-
zação, assim como o retorno do conhecimento gerado em um novo ciclo composicio-
nal ou no próprio ciclo criativo da composição apresentada. Uma compreensão mais
ampla do processo criativo da composição deve levar em conta que existem diferentes
elementos envolvidos – cognitivos, perceptivos, técnicos e estéticos – formando siste-
mas em diferentes níveis, interligados em um macrossistema que forma um ciclo de de-
senvolvimento contínuo. Serão abordados, portanto, de forma complementar, estudos
área da psicologia, da psicologia da música, e da composição musical levando em conta
elementos como motivação, inspiração, concepções e a utilização de modelos de pro-
cesso criativo por psicólogos e compositores. Conclui-se que existem ciclos criativos
contínuos que lançam o processo composicional em diferentes níveis, desde o processo
de criação da obra em si até os processos que o integram ao ambiente que o cerca e
que o realimentam, levando o processo a um novo ciclo, em um desenvolvimento con-
tínuo. Dentro destes ciclos, existem estruturas fixas, como a teoria dos estágios de Wal-
las, mas também existem estruturas em transformação, pelas novas concepções estéticas
e novos conhecimentos técnicos adquiridos pelo compositor em sua interação com o
ambiente.

Introdução
A literatura sobre composição musical é constituída em grande parte por livros ge-
rados a partir de um conhecimento retrospectivo, a partir da análise e estudo his-
tórico, centrando-se no conteúdo e na estrutura da composição. Existem, no
entanto, relatos de experiências de compositores sobre suas concepções estéticas e
seus processos composicionais, eventualmente abrangendo o processo de criação
em si, tratado pela maioria dos compositores intuitivamente e através de conheci-
mento empírico e auto-analítico. Segundo Sloboda, existe “um vasto corpo de es-
critos publicados sobre as composições musicais de maior realce em nossa cultura
artística, mas a maior parte deles tratam do produto final da composição, e não da
composição enquanto processo.” (Sloboda, 2008, p. 135). É nesta composição mu-
sical enquanto processo que estará centrado este artigo1, levando em consideração
tanto teorias desenvolvidas na área da psicologia e psicologia da música, quanto
pontos de vista de compositores.
O processo criativo da composição musical inclui todos os procedimentos de ação
do ato da criação musical, desde a motivação até a obtenção do produto final, mas
178 vai além, pois se seguem processos “externos” ao ato de compor. Traldi e Manzolli
(2008) apresentam uma visão sistêmica da criação musical que integra também o
intérprete e o ouvinte. De acordo com a função de cada integrante, classificados
como agentes, os autores classificam os sistemas como abertos, mediados ou fecha-
dos. Os sistemas fechados são aqueles em que “a partitura representa um processo
dinâmico desenvolvido a priori”. O compositor tem as funções de observador, idea-
lizador e articulador, o intérprete de observador e mediador, e o espectador de ob-
servador. Os sistemas mediados são aqueles onde o compositor dá margem ao
intérprete para “atuar também como agente articulador” (como na improvisação).
Nos sistemas interativos, o espectador também assume os papéis de articulador e
mediador, como o intérprete, que está “atrelado aos desdobramentos dinâmicos
produzidos pela ação do espectador” (p. 166). Os autores consideram que a mú-
sica funciona como um sistema sonoro auto-organizado, estando caracterizadas as
“relações sistêmicas auto-organizadas” nos momentos de articulação. Nele “o agente
idealizador ao imaginar o sistema não consegue domínio completo sobre ele, mas
‘decide’, orienta, impulsiona e controla a auto-transformação do organismo rumo
a um nível de complexidade superior.” (p. 167).
Pode-se dizer então que o processo composicional não depende exclusivamente do
compositor. Estão presentes também outras etapas, que correspondem à execução,
e a apreensão, seja esta por parte do compositor, do intérprete ou do espectador.
Pode-se ainda acrescentar que, após a apreensão da obra, por meio da fruição artís-
tica ou analítica, seja possível uma etapa de teorização. A partir da apreensão e/ou
teorização, o compositor obtém um retorno sobre sua obra, e a informação apreen-
dida passa a fazer parte então de um novo ciclo. Este retorno da obra terá interfe-
rido nas composições futuras do compositor, e talvez sobre a própria composição
em questão.
A definição clássica de Bertalanffy (1973, p. 63-64), em que sistemas fechados são
considerados “isolados de seu ambiente”, enquanto um sistema aberto é aquele em
que existe “um contínuo fluxo de entrada e de saída” e que “conserva-se mediante
a construção e a decomposição de componentes”, permite classificar a música, sob
certos aspectos, como um sistema fechado, pois, conforme Meyer (1956, p. vii),
“não utiliza sinais lingüísticos” e “não emprega sinais ou símbolos referentes ao
mundo não-musical dos objetos”, mas também como um sistema aberto, pois existe
comunicação com o meio através de “significados emocionais, estéticos e intelec-
tuais” (id.). Chaves (2008), ao comparar dois diferentes manuscritos do “Trio 1953”
de Armando Albuquerque, um datado de 1953 e outro datado de 1975, conclui
que a “recomposição no texto musical do manuscrito de 1975 (. . .) denota a rea-
bertura do processo criativo numa obra aparentemente encerrada e leva o Trio
1953 para uma nova conformação interna, alterando radicalmente sua fisionomia
externa” (p. 211-212). Vendo por este ponto de vista, pode-se considerar a música
classificada como sistema fechado por Traldi e Manzolli (2008) também como um
sistema aberto, já que permite transformações a posteriori, inclusive após a morte do 179
compositor, como ocorre na orquestração pontilhista de Webern (1935) para o
Ricercare a seis, da Oferenda Musical de J. S. Bach, que pode ser quase classificada
como uma nova obra. É claro que neste caso, o agente da transformação seria outro
que não o compositor da obra, mas o ciclo criativo da obra continuaria.

1. As etapas do processo criativo em composição musical:


do todo às partes
O processo de criação da composição pode ser dividido em duas etapas principais:
a geração, ou seja, os processos criativos intrínsecos ao compositor; e a difusão, os
processos extrínsecos ao compositor, que pode ser subdividida em execução, teori-
zação e apreensão. O suporte físico da composição aparece como um elo de ligação
entre as etapas, já que é o resultado final do processo de geração, bem como o ponto
de partida para a difusão. Sendo o processo composicional entendido sistemica-
mente, apesar de seguir certa cronologia temporal, estas etapas devem ser pensadas
não linearmente, mas em constante interação. O esquema a seguir (fig. 1) resume
o processo de criação em composição.

Figura 1 – O processo criativo da composição musical: geração e difusão.


A geração da composição consiste nos processos restritos ao compositor, embora
tenha influência de fatores externos vivenciados por ele, como audições de outras
músicas ou experiências vividas no seu cotidiano. Depende principalmente dos re-
ferenciais estéticos adquiridos ao longo de sua formação, da experimentação feita
durante o período de composição e da relação do compositor com a própria obra,
em uma espécie de diálogo entre criador e criação, que tem um fluxo contínuo em
que o compositor cria uma idéia musical formando aos poucos a obra, enquanto a
obra em geração retorna ao compositor se reestruturando em sua mente e freqüen-
temente gerando novas idéias em um ciclo de retroalimentação. O produto resul-
tante é o suporte físico que permite a execução da obra – a partitura, arquivo de
música eletrônica, gravação ou equivalente – e serve como intermediário entre os
processos de geração e difusão.
Na fase de difusão, ocorre a execução da obra, na qual se dá a interação entre com-
posição, intérprete e público. Neste momento o compositor recebe o retorno sobre
sua obra, julgando os resultados de seu trabalho a partir do resultado obtido pela
execução e da recepção do público, que sempre trará algum impacto sobre o com-
180 positor, mesmo quando este não tem necessariamente a pretensão de obter aceita-
ção. A próxima etapa, que não ocorre necessariamente em todos os processos de
difusão, consiste na teorização sobre os processos, técnicas e materiais utilizados na
obra, num conjunto de obras ou dentro de um determinado grupo de composito-
res. A etapa final do processo consiste na apreensão que, na verdade, está inserida
em todas as etapas. O compositor sempre está apreendendo o que está criando, mas
no final do processo, ele tem condições de apreender o processo como um todo, po-
dendo, como afirma Villar (1974, p. 269), descobrir “elementos estéticos que ha-
viam passados despercebidos no ato criador”, e todo o conhecimento gerado neste
percurso retornará ao compositor para o início de um novo ciclo criativo, bem
como influenciará o seu meio, pelo que foi apresentado, numa rede de relações con-
tínuas. O próprio material teórico gerado servirá como suporte para suas idéias e
para as idéias de outros compositores, os quais por sua vez, gerarão novos elemen-
tos a serem acrescentados aos já existentes. Freqüentemente, a própria obra que já
estaria concluída, volta a sofrer alterações a partir deste momento de apreensão, o
que pode explicar as diferentes versões existentes de uma mesma obra musical.
Existem processos psicológicos relacionados às diferentes etapas mencionadas: a
emoção e os processos criativos, perceptivos e cognitivos (fig. 2). A emoção seria um
momento de inspiração, algum sentimento ou algum fato que estimule a criativi-
dade do compositor. Villar comenta, quanto ao processo criativo artístico em geral,
sobre um “estado de ânimo especial”, que pode ser ampliado quando existe alguma
motivação maior (1974, p. 279). A esta etapa, segue-se o processo criativo em si, a
transformação da idéia abstrata em música, o que implica obviamente na existên-
cia de processos perceptivos, já que o compositor necessita perceber os elementos
musicais para transformá-los no suporte para a execução da obra. Os processos per-
ceptivos também fazem parte da execução da obra por um intérprete, bem como da
assimilação por parte do público. Os processos cognitivos são inerentes aos per-
ceptivos, já que tudo o que é percebido poderá ser assimilado e transformado em co-
nhecimento, e se tornam ainda mais importantes no momento em que se faz uma
teorização sobre o que foi criado ou uma análise do produto composicional, o que
pode ser feito pelo próprio compositor ou por outros teóricos, mas que retorna
então ao compositor, ou a outros compositores fechando o ciclo (e ao mesmo
tempo iniciando um novo ciclo). É importante frisar que, novamente, os proces-
sos estão presentes em todas as etapas, ao mesmo tempo, embora em cada momento
um dos processos se destaque.
Figura 2 – processos psicológicos envolvidos no processo criativo da composição
181
O pensamento do processo criativo por etapas pode ser associado, no campo da
psicologia, à teoria dos estágios de Wallas (1926). Esta teoria tem sido uma das mais
aceitas no campo da psicologia da criatividade. Nela, o processo criativo está divi-
dido em preparação, incubação, iluminação e verificação. Na preparação, se inves-
tiga o problema de diferentes maneiras, como através de pesquisa, leituras e
conversas. A fase seguinte, incubação, ocorre quando o problema está lançado, mas
permanece sem solução, o indivíduo sabe que algo está operando dentro de si ten-
tando resolvê-lo. Esta fase caracteriza-se como um estado de tensão psíquica (Vil-
lar, 1974, p. 276) e, durante este período, o inconsciente estaria trabalhando na
resolução do problema. Quando se obtém a resolução do problema, a etapa de ilu-
minação foi atingida. Nesta etapa, a solução do problema foi resolvida pelo in-
consciente apresentando-se a nós “de maneira súbita e inesperada, como um raio em
uma noite serena” (Villar (1974, p. 278). Nem sempre esta solução se apresenta de
forma nítida, sendo normalmente uma espécie de esboço de forma e conteúdo. A
verificação é a fase em que o indivíduo dá forma ao produto de sua iluminação. O
produto será verificado a partir de seus cânones estéticos, “mas não só estéticos,
como éticos, políticos, religiosos, etc.”, podendo ser rechaçado ou admitido e, no se-
gundo caso, colocado em prática. É importante ressaltar que estas quatro fases for-
mam um ciclo que desencadeia novos ciclos criativos, pois a solução de um
problema origina um ou vários novos problemas a serem resolvidos.
Alguns compositores também dividem o processo criativo em etapas. Koellreutter
(1985) o divide em quatro etapas: conscientização da idéia, concepção formal, es-
colha do repertório dos signos musicais e estruturação, ainda como pré-composi-
ção. Estas quatro etapas, no entanto, não mostram o processo como um todo, que
aparece no fluxograma a seguir (fig. 3).
O gráfico de Koellreutter pode ser pensado como complementar ao apresentado no
início desta seção: vem do mundo extramusical, passa pelo processo criativo do
compositor e retorna ao mundo extramusical, enquanto o outro parte do compo-
sitor, passa ao mundo extramusical e retorna ao compositor.
Para Reynolds (2002), o processo de composição também ocorre em diferentes eta-
pas. Segundo ele,
uma obra musical é realizada gradualmente ao longo do tempo, de maneira que,
sem dúvida, varia para cada compositor: parte descoberta, parte construção e,
até mesmo, parte artimanha.(. . .). Mas, na maioria dos casos existe um necessá-
rio (embora de forma alguma uniforme) estagiamento envolvido no processo
de completar uma composição musical (2002, p. 4).
182

Figura 3 – O processo criativo conforme Koellreutter (1985).


O primeiro estágio seria o reconhecimento de uma intenção expressiva a ser utili-
zada na peça, que uma vez definida, leva a três importantes questões: qual formato
global se apropria à obra; quais os materiais apropriados; e quais os processo de ela-
boração serão melhores para trabalhar com os materiais em direção a forma em
larga escala. A forma global da composição seria, ao mesmo tempo, o ponto de par-
tida e de chegada do processo composicional, pois o compositor entende que antes
de começar a manusear os materiais, deve ter uma boa idéia do desenho formal para
o qual a obra deve evoluir. A partir do que Reynolds chama de impetus e da “in-
tenção expressiva” que ele gera, o compositor cria verdadeiros desenhos formais na
elaboração da estrutura da obra, num processo gradual de transformação da imagem
inicial do impetus em direção à estrutura e depois aos materiais sonoros. Este mé-
todo pode ser observado nos esboços da Sinfonia Mythos, inspirada nas pedras Fu-
tami Ga Ura, do Litoral Japonês (fig. 4 a 7).
183

Figura 4 – Foto das Ilhas Gêmeas japonesas e primeiro


esboço estrutural da sinfonia2.

Figura 5 – Esboço estrutural inserindo proporções de seções a partir de logaritmos.

Figura 6 – Esboço estrutural do primeiro movimento, com maior detalhamento


das proporções entre seções e materiais musicais.
184

Figura 7 – Detalhamento da primeira seção, incluindo proporções e desenhos


gráficos dos gestos musicais, já prevendo a orquestração.
Os diferentes esboços gráficos da estrutura da Sinfonia Mitos mostram como a com-
posição é gradualmente visualizada pelo compositor, e em como o processo se di-
reciona da macro para a microestrutura. O passo seguinte é o momento em que a
estrutura é preenchida pela notação musical retornando da microestrutura à ma-
croestrutura para preencher o todo.
No caso de Reynolds, não existe um número de estágios fixo, como na teoria dos es-
tágios de Wallas. Provavelmente os estágios de Wallas se repetem em cada um dos
estágios do processo criativo de Reynolds.

2. Motivação e inspiração
Koellreutter e Reynolds incluem elementos de motivação para a composição da
obra como parte importante do processo criativo, a qual pode ser relacionada à ins-
piração. Koellreutter se refere a esta motivação como o mundo extramusical, ou
campo das idéias e Reynolds como o impetus. Segundo Reynolds, o impetus é “a es-
sência concentrada, radiante, da qual o todo pode jorrar e para a qual, uma vez ini-
ciada a composição, o todo em evolução é continuamente feito responsivo, ou
mesmo responsável”. O impetus guia “a coerência do todo e simultâneamente dirige
a integridade dos detalhes que se acumulam” (Reynolds, 2002, p. 8). Este seria então
um dos pontos de partida para o processo criativo, o qual se expande através de di-
ferentes etapas, como também se propõe em algumas abordagens psicológicas.
Segundo Deci e Ryan (2000, p. 69), “motivação diz respeito à energia, direção, per-
sistência e equifinalidade – todos aspectos de ativação e intenção” e tem sido “um
problema central e perene no campo da psicologia”, mas talvez o mais importante
sejam suas consequências: “motivação produz”.
Em sua Teoria da Autodeterminação, estes autores classificam a motivação em duas
categorias principais: motivação intrínseca e motivação extrínseca. A motivação
intrínseca é considerada a mais forte, e segundo eles, “talvez nenhum fenômeno 185
simples reflita o potencial positivo da natureza humana como a motivação intrín-
seca, a tendência inerente de procurar novidades e desafios, de ampliar e exercitar
as próprias capacidades, de explorar e aprender” (Ryan e Deci, 2000, p. 70). Esta
motivação é considerada inata, mas pode ser intensificada ou diminuída por dife-
rentes fatores ambientais. Os principais fatores identificados pelos autores são com-
petência, autonomia e relacionamento. O indivíduo deve ter a sensação de ter
competência e autonomia para que tenha sua motivação intrínseca estimulada, mas
a sensação de estar ligado a um contexto de relações na sociedade também colabora
(Ryan e Deci, 2000, p. 70-71). Em compensação alguns fatores externos, como a
“pressão social para fazer atividades que não são interessantes e para assumir uma
variedade de novas responsabilidades”, podem diminuir este tipo de motivação,
principalmente por minar o sentimento de autonomia. Estes fatores são caracteri-
zados como motivação extrínseca e se referem “à performance de uma atividade
para obter um resultado separável, portanto, contrasta com a motivação intrínseca,
a qual se refere a fazer uma atividade pela satisfação inerente da atividade em si”
(Ryan e Deci, 2000, p. 71). No entanto, nem sempre a motivação extrínseca é con-
siderada negativa. Deci e Ryan criaram um continuum de diferentes tipos de moti-
vação, indo desde a amotivação, passando por diferentes tipos de motivação
extrínseca, de acordo com o estilo regulatório, até chegar na motivação intrínseca
(fig. 8). O tipo de motivação mais próximo da intrínseca é o das “regulações inte-
gradas”, no qual “as regulações identificadas são completamente assimiladas ao ego,
o que significa que elas foram avaliadas e levadas à congruência com outros valores
pessoais” (Ryan e Deci, 2000, p. 73).

Figura 8 – Continuum de autodeterminação (fonte: RYAN e DECI, 2000, p. 72).


Alguns tipos de motivação extrínseca na composição musical são: compor com o
objetivo de ganhar um concurso por uma premiação (regulação externa) ou em
busca de prestígio (regulação introjetada); utilização de uma determinada técnica
ou estrutura com objetivo de desenvolvimento técnico pessoal (regulação identifi-
186 cada); a utilização de uma concepção estética norteadora para a composição (re-
gulação integrada).
No livro Muse that sings (McCutchan, 1999), os relatos dos compositores nos dão
uma excelente visão do quão pessoal é o pensamento dos compositores sobre seu
processo criativo, e como a motivação pode diferir entre eles. Algumas passagens do
livro foram selecionadas para demonstrar tal variedade de pensamentos:
Corigliano: Eu odeio ter de me confrontar com minhas impropriedades. Quando
começo uma peça e ainda não fiz minhas decisões, tudo que eu estou tentando
fazer parece ruim (. . .) Eu realmente odeio compor. Eu amo ter composto.
Quando uma peça está perto do fim, eu me sinto bem, porque eu construí esta
coisa, e eu posso ver isto. Mas até ver isto, eu não sei se eu poderei construir
qualquer coisa novamente. (p. 35).
Bolcom: Eu não sei como eu componho – eu somente faço isto. (p. 24).
John Adams: o ato de compor tornou-se associado em minha mente com meu de-
senvolvimento como ser humano (. . .). Eu sinto que, se eu fico por um período
significativo sem compor, de alguma forma eu perdi algo irrecuperável. Para
mim, o trabalho criativo é um espelho de minha evolução espiritual. . . (p. 64).
Corigliano parece centrar a sua motivação na obtenção do produto final da com-
posição, não obtendo satisfação até que este produto seja alcançado, o que parece
diminuir sua motivação intrínseca no processo de composição. Contrastando, para
Bolcom o processo parece ocorrer naturalmente, caracterizando uma total inte-
riorização da motivação. John Adams manifesta a existência de regulações integra-
das, neste caso, a idéia da associação do processo composicional com o seu
desenvolvimento espiritual.
A motivação pode ser associada também à inspiração. O livro Music and Inspira-
tion (Harvey, 1999) está centrado especialmente no papel da inspiração envolvida
no processo composicional. Justamente a definição do que é a inspiração é algo que
é deixado de lado pela maioria dos compositores, talvez por ser uma experiência
“difícil de descrever, embora relativamente fácil de identificar” (Harvey, 1999, p. x).
Uma resposta mais genérica é dada já na introdução do livro: “inspiração pode ser
definida como aquilo que causa, provoca, força o artista a criar – é o catalisador do
processo criativo”. Mas o autor adverte que esta resposta não tem a “verdade com-
pleta”, pois “exclui um elemento essencial para qualquer definição de inspiração: o
elemento de mistério” (p. ix). Este tipo de inspiração é repentina e “chega miste-
riosamente” – é “a qualidade impredizível que marca a genuína inspiração do com-
positor” e que cria soluções que “parecem inicialmente não relacionadas ao seu
entorno”, “mas que traz uma solução satisfatória aos problemas previamente expe-
rienciados” (p. xiv) e pode ser associada ao inconsciente. Harvey afirma que “a maio-
ria dos compositores tem admitido que requerem a ajuda da inspiração inconsciente
para completar uma obra para sua satisfação pessoal” (1999, p. 8) e que a “inspira-
ção é freqüentemente resultado de uma colaboração entre a mente inconsciente e 187
a mente consciente” (1999, p. 4).

3. Do todo às partes e das partes para o todo:


inconsciente, intuição e intelecto
O inconsciente é, portanto, uma importante ferramenta no processo composicio-
nal, responsável por essa inspiração e motivação inconsciente, e também por man-
ter uma unidade na continuidade das obras do compositor, já que a iluminação do
artista “já está de certa forma canalizada a partir dos estratos mais superficiais do in-
consciente” e não lhe ocorre senão o que mais se encaixa em “suas preferências es-
téticas” (Villar, 1974, p. 282).
Arnheim apresenta idéia semelhante ao afirmar que “a cognição estabelece uma
distinção entre as metas desejáveis e as hostis, e enfoca aquilo que é relevante em ter-
mos vitais. Ela escolhe o que é importante, e assim reestrutura a imagem a serviço
das necessidades do perceptor”. (1989, p. 18). Segundo o autor, ligado à psicologia
da Gestalt, a intuição seria a responsável pela seleção de aspectos importantes do
todo, de acordo com objetivos individuais, ou “forças determinantes, cognitivas
tanto como motivacionais” (id.), e por sua reestruturação de acordo com a neces-
sidade.
A psicologia da Gestalt se torna altamente relevante aqui, pois tem sido um campo
freqüentemente utilizado na área de criação artística. Na visão gestaltista,
a criatividade é vista como a procura de uma solução para uma gestalt, ou forma
incompleta. O indivíduo criativo perceberia o problema como um todo, as for-
ças e tensões dentro da dinâmica do problema, e tentaria achar a solução mais
elegante para restaurar a harmonia do todo (Wechsler, 1998, p. 29).
O processo criativo viria de um impulso inato para obter uma gestalt completa e o
indivíduo criativo estaria sempre buscando soluções para as falhas de uma gestalt in-
completa através da analise de suas relações internas (como segregação, unificação
ou centralização). A solução do problema vem como um insight (Wechsler, 1998,
p. 29-30). Existe aqui uma relação clara entre a teoria dos estágios e a Gestalt, pois
este insight se aproxima muito do estágio da iluminação e, como na teoria dos es-
tágios, é resultado de um processo de resolução de problemas que, como se deduz
da afirmação de Arnheim, está condicionada ao conhecimento e à motivação do
artista. Assim, o que o autor chama de intuição, permite que o artista tenha uma
idéia global da obra de arte que criou ou está criando, percebendo a inter-relação e
o equilíbrio entre as partes que a constituem e molde a obra dentro de seus para-
digmas estéticos, sem que seja necessário tomar consciência deles sempre que deseje
criar. No entanto, existe certa limitação no pensamento intuitivo: cada elemento
de uma situação pode “parecer diferente cada vez que surge num contexto dife-
188 rente”, tornando a generalização, que é um “suporte fundamental da cognição”, “di-
fícil ou até mesmo impossível” (Arnheim, 1989, p. 18). É neste ponto entra em
ação o intelecto.
O intelecto preenche a função da classificação de elementos, agrupando as variações
“sob uma denominação comum”. Assim podemos “reconhecer o que foi percebido
no passado” e “aplicar ao presente o que aprendemos antes”. Para que isto se torne
possível, o pensamento racional isola os elementos importantes do todo, e lhes dá
“a estabilidade que permite a sua persistência através das mudanças caleidoscópicas
do ambiente” (Arnheim, 1989, p. 18-19). Porém o intelecto só pode lidar com os
elementos que constituem um todo linearmente, como num cálculo de matemática.
Na composição musical, é muito importante este processo de subdivisão, pois é ele
que torna possível colocar em prática uma idéia musical obtida intuitivamente.
É comum um compositor criar, intuitivamente, uma imagem mental do todo que
será gradualmente transformada no produto artístico. Ferneyhough diz que a idéia
inicial para uma peça, pode variar de peça para peça, mas que geralmente ele
tende a perceber uma massa, uma quase tangível massa escultural ou esculpida,
em algum tipo de espaço imaginado, (. . .) Pode ser uma massa de cores instru-
mentais indiferenciadas, pode ser um determinado registro, pode ser algum tipo
de transformação de um tipo ou estado em outro, de alguma forma congelado
em uma experiência momentânea. (Ferneyhough, 1995, p. 260).
Sloboda, a partir de relatos pessoais de Mozart, Beethoven, Richard Strauss e Roger
Sessions conclui que existem dois estágios dentro de seus processos composicio-
nais: a “inspiração”3, na qual uma idéia ou tema aflora à consciência em forma de
esqueleto, e a “execução”, “durante a qual a idéia é submetida a uma série de pro-
cessos mais conscientes e deliberados de extensão e transformação”. Estes proces-
sos fazem parte de um repertório de recursos composicionais adquiridos pelo
compositor. O estágio de inspiração pode ser comparado então ao pensamento in-
tuitivo de Arnheim, e o de “execução” ao pensamento intelectual. O “esqueleto” ou
“massa escultural” obtido intuitivamente deve passar por processos intelectuais para
tornar possível a geração do suporte físico da composição.
Voltando ao processo composicional de Reynolds, podemos dizer que o composi-
tor, ao criar cada novo gráfico, resolveu um problema composicional, que consistia
em preencher o gráfico anterior. Cada espaço preenchido no gráfico foi obtido atra-
vés de procedimentos intelectuais, mas a sua adaptação e enquadramento em rela-
ção ao todo foram condicionados à sua percepção intuitiva da relação entre as partes.
Ou seja, a cada passo do processo, a intuição mantém a imagem do todo como re-
guladora dos procedimentos do intelecto, fazendo com que se vá continuamente do
todo às partes e das partes ao todo.

4. O processo criativo em evolução


189
Na composição de uma obra, o processo criativo ocorre em diferentes etapas e estas
etapas ocorrem também em diferentes níveis dentro do ciclo criativo de uma obra,
como se observa, por exemplo, no caso relatado de Reynolds. Podemos ampliar
ainda este processo ao ciclo criativo completo, incluindo as etapas de geração e di-
fusão e o desenvolvimento histórico do compositor.
Conforme Manzolli, na composição o “desenvolvimento estrutural está vinculado
a uma estratégia de escolha, que é contextualizada dentro do próprio escopo da
obra, e é derivada da experiência sonora, musical e cultural do compositor”. Ao co-
meçar a obra “seus elementos estruturais começam a tomar forma. A composição
sofre influências ambientais, que fazem com que cada processo criativo seja único”.
Esta história única, no entanto, está interligada ao desenvolvimento histórico do
compositor, já que “entre o domínio sonoro e a estratégia de escolha encontram-se
os métodos de estruturação musical e este conhecimento faz parte da bagagem teó-
rica e/ou prática do compositor” (1997, p. 2).
A idéia de desenvolvimento vital do processo criativo foi incluída, no campo da
psicologia, pela “teoria dos sistemas emergentes” de Gruber, que nasceu de uma
pesquisa do autor sobre a personalidade criativa de Darwin (Gruber, 1980). Se-
gundo esta teoria, o processo criativo deve ser analisado através de sua evolução e
transformações ao longo da história, ou de um período significativo de tempo, do
indivíduo, considerando tomadas de decisões erradas e falsos começos, bem como
o surgimento de novos objetivos (que resultam nos sistemas emergentes). Isto nos
leva de novo à importância do material descartado de uma obra acabada, e traz a
idéia de evolução contínua do processo criativo ao longo da vida do compositor,
adquirida pela transformação de sua personalidade e aquisição de conhecimentos
através da interação com o ambiente.

5. Teorias unificadas
Webster (1989) criou um modelo de pensamento criativo em música envolvendo,
além de elementos de teorias já discutidas aqui, a presença dos pensamentos con-
vergente e divergente da teoria cognitiva desenvolvida a partir de estudos de Guil-
ford4. Nesta teoria, a criatividade é normalmente atribuída ao pensamento
divergente, no qual existe uma formulação de várias alternativas para a solução de
um problema. No pensamento convergente ocorre uma formulação de conclusões
lógicas a partir das informações e a procura da melhor resposta para o problema
(Wechsler, 1998). Segundo Wechsler, existe uma tendência atual de criarem-se es-
tratégias unindo os dois tipos de pensamento para se obter a melhor solução para
um problema, propondo a utilização do pensamento divergente, explorando novas
possibilidades e procurando múltiplas respostas e depois o pensamento conver-
gente, que ajuda a avaliar qual dessas possibilidades é a mais eficaz, ou mais ade-
190 quada à situação. A tensão entre os dois tipos de pensamento levam à avaliação “dos
pensamentos verbal e funcional baseados nos conceitos de fluência, flexibilidade,
elaboração e originalidade” (Webster, 1989, p. 42). O diagrama criado por Webs-
ter (fig. 9) mostra como diferentes teorias sobre o processo criativo são comple-
mentares e formam um “processo dinâmico de alternância entre pensamentos
divergente e convergente, movendo-se em estágios ao longo do tempo, possibilita-
das por certas habilidades (tanto inatas como aprendidas) e por certas condições, e
resultando em um produto final” (Webster, 1989, p. 66).

Figura 9 – Modelo de processo criativo segundo Webster (1989, p. 67)

Um estudo importante que também sintetiza diferentes teorias da psicologia foi


feito por Collins (2005). O autor pesquisou o processo criativo em um composi-
tor ao longo de três anos, considerando materiais utilizados e descartados, além de
relatos regulares do compositor nas diferentes etapas da composição, constatando
a presença dos procedimentos da teoria da Gestalt em complementaridade com a
teoria dos estágios. Também constata que, no processo “em larga escala” existe uma
“proliferação e ramificação de problemas e subseqüentes soluções” (p. 211), dentro
da perspectiva dos sistemas emergentes de Gruber. 191

Considerações finais
O processo criativo da composição musical consiste em uma complexa rede de ele-
mentos, envolvendo aspectos técnicos musicais e aspectos psicológicos e sociais. En-
quanto algumas teorias aceitas da área da psicologia analisam o processo criativo
identificando estruturas fixas de ações ou procedimentos padronizados, como a
teoria dos estágios ou a teoria da Gestalt, os compositores tendem a considerar as-
pectos mais pessoais do processo. Os aspectos fixos podem ser considerados meca-
nismos mentais padronizados que se nutrem de elementos adquiridos ao longo do
desenvolvimento vital do compositor, o que permite a evolução do processo cria-
tivo pessoal. Na área da composição esses elementos estão associados ao conheci-
mento teórico e às concepções estéticas individuais do compositor, que estão
mudando freqüentemente ao longo de sua vida.
Existem muitos trabalhos que levam em consideração apenas o período de criação
de uma obra, porém o processo se estende além disso, consistindo de ciclos em di-
ferentes níveis, incluindo não só a geração da obra, mas também o processo desen-
cadeado após sua difusão, o qual permite uma continuidade, através da troca entre
o compositor e o seu meio. O processo criativo da composição a nível macroscópico
é, portanto, um sistema aberto, que permite uma constante mudança ao longo do
desenvolvimento do compositor e, porque não, no desenvolvimento histórico da
música.

1 O artigo consiste de parte de meu projeto de pesquisa no doutorado em composição da


UFRGS, sob orientação de Celso L. Chaves, no qual esta questão é aprofundada.
2 Figuras extraídas de Reynolds (2002), p. 17-25.
3 O termo inspiração utilizado aqui por Sloboda já inclui a presença de uma definição es-
trutural incipiente, e novamente existe uma classificação em estágios.
4 Guilford (1967) propôs o estudo da mente humana em três dimensões, as operações en-
volvidas no ato de pensar (incluindo os pensamentos convergente e divergente), o conteúdo
sobre o qual se pensa, e os produtos resultantes deste processo.

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O instrumentista e sua obra metamórfica:
por um paradigma aberto para a performance musical
Cristiano Sousa dos Santos
cristiano.sousa.santos@gmail.com 193
PPGMUS/Escola de Música, Universidade Federal da Bahia

Resumo
Este artigo aborda a natureza da produção dos performers, bem como seus possíveis
desdobramentos. Os instrumentistas que interpretam obras alheias, principalmente os
classificados como eruditos, confrontam-se com a seguinte questão ao deparar-se com
a partitura: até que ponto é permitido criar sobre um texto musical? A questão que apa-
renta ser trivial revela-se muitas vezes polêmica. Infelizmente, a idéia de que o instru-
mentista é um meio que liga a vontade do compositor até o público ainda perdura na
manifestação musical erudita. A legitimação de determinado intérprete, a premiação em
concursos de música, as pesquisas musicológicas, enfim, várias situações referentes a
essa atividade são fundadas em pressupostos aceitos, por vezes, acriticamente. É preo-
cupante que o pensamento de que o intérprete está a serviço da partitura – ou do com-
positor, ou de determinada prática musical legitimada por pesquisas ou modismos – seja
reproduzido no ensino de música. Como resultado, temos, inevitavelmente, uma padro-
nização da interpretação musical. Assim, neste trabalho discutimos a natureza da atividade
do instrumentista e propomos um direcionamento possível, embora muitas vezes igno-
rado na prática. Partindo da idéia de que a informação estética é primordialmente psíquica,
defendemos que a sua realização depende da percepção que seu leitor-executor, o ins-
trumentista, faz dela. Ele toma tal informação estética, registrada em partitura, composta
por si ou por outrem, como a matéria-prima de sua atividade, fazendo uso de ferra-
mentas para compor sua interpretação. Como produto desse processo, temos a obra do
instrumentista. Este produto pode ser do tipo acabado e definitivo, ou tomar um caráter
metamórfico. Segundo Umberto Eco, há dois tipos de abertura em uma obra de arte. No
primeiro tipo, a obra foi concluída por seu autor e mostra-se formada à disposição de di-
versas fruições. O segundo tipo de abertura descrito por Eco, a obra em movimento, di-
fere-se por possuir sua forma aberta, inacabada, mutável. Os instrumentistas raramente
utilizam este paradigma, que pode ser renovador e instigante, principalmente para o pú-
blico, que poderá desfrutar de uma performance nova (mesmo que da mesma peça) a
cada apresentação.

Introdução
É acalorado o debate sobre o papel que o instrumentista deve ocupar na manifes-
tação musical. Teorias não faltam entre os partidários de cada ponto de vista, sejam
eles reacionários e tradicionais, ou vanguardistas liberais. Os primeiros defendem
que as intenções do autor devem ser preservadas com fidelidade no ato da perfor-
mance. Já as teorias “liberais” apontam para a individualidade do instrumentista
no ato da interpretação. Entretanto, esta discussão parece estar restrita a determi-
nado gueto intelectual, o da Estética. Mesmo a Performance Musical, área direta-
mente interessada no assunto, parece estar apartada desta discussão. Se
visualizarmos a área de Educação Musical, mais especificamente, veremos que os
194 seus agentes participam passivamente do processo de ensino e aprendizagem ao uti-
lizar um mesmo e velho modelo. Este modelo foi importado de outro contexto, o
Europeu, e tem sido aceito sem maiores questionamentos na academia, ignorando
a individualidade daquele que aprende e a realidade mercadológica para a qual este
modelo prepara.
O paradigma da obra acabada é utilizado comumente pelos instrumentistas tanto
em apresentações como no ensino. O seu processo consiste basicamente no ensaio
sistemático de sua peça até dominar sua execução a ponto de que possa reproduzir
sempre da mesma forma, tal qual foi planejado previamente. Temos, então, uma
obra finalizada, concluída. Assim, a cada nova performance em público, as peças soa-
rão iguais. Esse modelo tem como prejuízo a conseqüente monotonia causada ao
público, já que, não haverá novidades significativas nos próximos recitais realizados
por aquele instrumentista. Por isso, na era das novas mídias, estabelecidas tanto
pelos CDs, quanto pela acessibilidade da internet, o instrumentista que executa
suas peças sempre de maneira acabada, pode ser vítima de desinteresse.
Portanto, a necessidade dos professores de instrumento repensarem suas práticas de
ensino, bem como os próprios instrumentistas, se justifica ao confrontarmos a rea-
lidade de mercado de trabalho com o tipo de formação oferecida nas instituições de
ensino, além da necessidade de se formar instrumentistas capazes de se auto-reno-
varem, instrumentistas metamórficos.

Sobre a atividade do instrumentista


Copland identifica três fatores distintos e mutuamente complementares naquilo
que ele chama de “fato musical” (Copland 1974, 158): o compositor, o intérprete
e o ouvinte. Entretanto, sua visão coloca o acontecimento musical em uma relação
de interdependência, onde o processo criativo é determinado pelo compositor, me-
diado pelo instrumentista e tem seu fim no ouvinte. Encontramos em Mario de
Andrade (Andrade 1995, 55) uma proposição mais abrangente e flexível do acon-
tecimento musical, onde o autor encara a obra como entidade distinta e relativiza
a dependência de cada um dos componentes:
“Pode-se dizer que a manifestação musical é uma fusão de quatro entidades dis-
tintas: o criador, a obra-de-arte, o intérprete e o ouvinte. As três entidades sub-
jetivas desta enumeração podem muitas vezes serem (sic) fundidas umas nas
outras, o criador ser ao mesmo tempo intérprete e o intérprete ser ao mesmo
tempo ouvinte. Isso não impede que sejam entidades perfeitamente distintas,
igualmente importantes.”
Tendo situado a atividade do instrumentista no quadro geral da música tradicio-
nal no Ocidente, passemos agora a refletir a atividade em si mesma. O ofício do ins-
trumentista é constituído de quatro partes: a “matéria-prima”, uma composição
criada por si mesmo ou alheia, onde será realizado o seu trabalho de interpretação;
suas “ferramentas” (timbre, dinâmica, articulação, fraseado, tempo e técnica ins- 195
trumental) que serão operadas sobre a matéria-prima; sua “filosofia de atuação”,
que são os pressupostos que guiarão a utilização das ferramentas sobre a matéria-
prima, ou seja, seu modo de interpretação; e, finalmente, a “obra interpretativa”,
produto final deste ofício, sua performance musical.
Podemos identificar no campo de atuação profissional duas categorias de instru-
mentista, considerando, como critério de classificação, a natureza da matéria-prima
trabalhada. Assim, essas categorias seriam: a dos instrumentistas intérpretes, ou seja,
aqueles que não produzem suas matérias-primas, mas coletam-nas através de lei-
tura de determinado texto, seja ele em forma de partitura (o método mais comum
no meio acadêmico), tablatura, cifras ou de percepção auditiva; o outro tipo é o
instrumentista compositor, que cria sua própria matéria-prima, além de interpretá-
la. Poder-se-ia argumentar ainda, que os instrumentistas de música étnica consti-
tuem em outro tipo de intérprete. Entretanto, seguindo nosso critério de
classificação, baseado na natureza da matéria-prima utilizada, esses instrumentistas
se enquadrariam em uma das categorias listadas acima, já que ou compõem sua ma-
téria-prima ou pegam-na de outrem, como do imaginário popular, por exemplo.

Da natureza da obra de arte: materialidade e virtualidade


A obra de arte existe noutro âmbito que não seja o material? A questão que pre-
tendemos levantar se refere à natureza daquilo que freqüentemente atribuímos o
status de obra de arte. O neo-idealista Benedetto Croce (apud Abdo 2000, 17) acre-
dita que sim, a obra de arte existe noutra dimensão que não aquela captada objeti-
vamente por nossos sentidos. O autor italiano defende que a obra de arte em si
mesma, é de natureza psíquica, sendo restrita, em um primeiro momento, apenas
ao seu autor. Dessa forma, o objeto que experimentamos enquanto obra – como,
por exemplo, um quadro, uma escultura, uma performance musical, uma fotogra-
fia – seria uma realização material daquilo que foi concebido na consciência de seu
criador:
“Como se sabe, Croce define a arte como ‘síntese de sentimento e imagem’, cria-
ção cuja essência se esgota na integridade do espírito e que, assim sendo, nada
tem de corpóreo ou físico. Não que o conhecimento filosófico ignore a necessi-
dade de exteriorização em um corpo físico, mas considera-a como uma etapa se-
cundária em relação ao momento produtivo, importante apenas para fixar e
comunicar o que, de outro modo, ficaria restrito à memória do autor.”
Dessa forma, aquilo que apreciamos é o resultado final de algo que existia previa-
mente na mente do artista. Max Bense (apud Campos 1977, 135) chega ao mesmo
ponto e denomina
“[. . .] o signo ‘ser imperfeito’, e avança então a tese da correalidade da informa-
ção estética, da obra de arte. Esta é correal pois sua realidade é referida a outra
196 realidade que lhe serve de suporte. É o que Bense chama de extensão ou mate-
rialidade da informação estética.”
Por esse prisma, a obra de arte, ou a informação estética, vale-se de um corpo ma-
terial, um ser representante. A obra de arte, como fato espiritual, deve ter uma ma-
nifestação material e extensional para ser percebida como tal. Igor Stravinsky
(Stravinsky 1996, 111) toma posicionamento a esse respeito e filia-se ao grupo que
considera a música como um fenômeno existente, também, na mente das pessoas:
“é necessário distinguir dois momentos, ou melhor, dois estados da música: música
potencial e música real. Tendo sido fixada no papel ou retida na memória, a música
já existe mesmo antes de sua performance efetiva [. . .]”.
A idéia de que a obra de arte seja algo referente, a priori, à mente, sendo o objeto ma-
terial resultado de um processo a posteriori, suscitou uma tese discutível quanto à
interpretação da obra artística. A tese de “reevocação” do significado original do
autor foi o que resultou da idéia de “psiquez estética”. O próprio Croce (Croce
apud Abdo, 2000, 17) foi defensor da fidelidade a essa idéia autoral, que seria a pró-
pria obra artística. Assim, o instrumentista – executor de uma determinada peça
musical alheia – deveria prover uma performance impessoal e calcada na pesquisa
hitórico-estilística, para que a idéia autoral, que seria a própria obra, pudesse ser
vislumbrada. Essa tese coloca o compositor como componente fundamental no
processo artístico, levando intérpretes e demais fruidores1 a uma busca da idéia ori-
ginal, do sentido e visão “verdadeiros” da obra. Entretanto, tal pensamento causa
limitações quanto à maneira pela qual se dá o processo artístico como um todo. Na
relação compositor-obra-fruidor, a redução do campo interpretativo, causada pela
idéia de reevocação do sentido original idealizado pelo compositor, conduz, na ma-
nifestação musical, o primeiro a uma posição privilegiada e o último, o instrumen-
tista, a condição alienante. Pretendemos, portanto, como primeira meta, contestar
a referida tese, tendo ainda como base, entretanto, a teoria de co-realidade da in-
formação estética. Seria, assim, válido afirmar que a obra de arte existe mesmo que
não seja manifestada exteriormente?
Para tratarmos dessa questão parece ser útil o modo como Marcos Nogueira (No-
gueira 1999, 57) toma o conceito de texto: “[. . .] existem diversas manifestações
textuais: um poema, uma fotografia, uma escultura, uma peça musical é um texto”.
Tal acepção possui preceitos de cunho semiótico, donde “texto” é um signo mais ou
menos complexo, integrado por sua vez por outros signos. Admite-se, portanto,
que tanto partitura como a execução sonora de uma peça musical sejam textos –
mesmo que tenham características diferentes. Visto dessa forma, a obra de arte,
mesmo que não aconteça comunicativamente por meio de execução, isto é, ainda
sob a forma mental, existe e acontece. Portanto, “[. . .] texto tem origem no verbo
‘tecer’, é um ‘tecido de signos resultante daquelas relações estabelecidas por seu lei-
tor-autor com as realidades, no ato da ‘leitura original’, ou seja, aquela que tem lugar
no ato mesmo da criação.” (Nogueira 1999, 57). Por esse prisma mesmo o autor 197
no momento em que concebe a obra, ou mesmo após esse momento, é também um
leitor dela. Assim, a obra artística é um fenômeno de cunho psíquico e que exerce
sua materialidade, como forma de comunicação, através de uma exteriorização. Fi-
nalmente, em ambos os contextos, interior e exterior, a obra de arte é texto, passí-
vel de leitura tanto no ato genitor quanto nos demais momentos.

Da percepção da obra de arte: a composição interpretativa


Tendo em vista que a obra de arte possui seu lugar, antes de qualquer outro, na
mente, mesmo para seu autor e depois de ser exteriorizada, devemos passar agora a
uma importante questão: o que é a interpretação de uma obra de arte? Muito se
tem discutido sobre esse assunto, portanto são várias as tentativas de explicá-lo. Al-
gumas dessas são de teor conservador, buscando sempre a manutenção do status
privilegiado do autor e da obra sobre intérpretes (instrumentistas) e demais frui-
dores (ouvintes), outras tentam a conciliação, argumentando que tanto autor como
intérprete são autor e co-autor, respectivamente, da obra e que devem trabalhar em
comunhão. Há ainda, outra corrente, que nega a presença do autor e atribui valor
demasiado sobre o intérprete. Portanto, procuraremos mostrar os argumentos prin-
cipais de cada uma dessas correntes.
A primeira corrente, aquela que atribui a primazia da obra de arte ao compositor
primeiro, deixando o papel do intérprete a um segundo plano, e colocando o frui-
dor – público em geral– a um terceiro plano, é uma visão ainda em voga, tanto nos
conservatórios, quanto nos centros de pesquisa em música.2 Tal ideologia, conhe-
cida como “reevocação” – pelo fato de que deriva da idéia de “espiritualismo esté-
tico” de Benedetto Croce – prega que a função do intérprete é a de resgatar e
transmitir a idéia primeira do compositor. Seu fim primeiro é o de “reevocar” fiel-
mente o significado original através de “[. . .] uma execução tão impessoal e obje-
tiva quanto possível, respaldada no exame da partitura e na investigação
histórico-estilística.” (Croce apud Abdo 2000, 17). Tal ponto de vista, que ainda
impregna a atividade musical, é responsável por uma série de problemas relaciona-
dos à relação entre os participantes dessa atividade. Além disso, a admissão dele sig-
nifica um cerceamento da atividade do instrumentista cujo papel acaba por
tornar-se diminuído, secundário, quando não desnecessário. Isso se dá porque o
instrumentista passa a ser mero meio de comunicação da idéia do autor primeiro
para o público. O performer, enquanto veículo difusor, não tem outro procedi-
mento senão o técnico-motor, já que o fazer artístico de forma geral está sob o do-
mínio de outro indivíduo, o compositor. Nesse sentido, aparecem premonições
quanto a sorte da classe instrumentista que, com a possibilidade de gravação da per-
formance e, principalmente, com o uso de meios eletrônicos para a produção sonora
– esses oriundos principalmente das pesquisas de música eletrônica – passaram a ter
198 sua importância questionada: “Em tese a precisão do intérprete para que a mani-
festação musical se realize torna a música a mais precária e a mais prejudicada de
todas as artes e como conseqüência deste pensamento o intérprete deveria desapa-
recer.” (Andrade 1995, 62). Walter Benjamin (1975) observa que com o advento
do aparato de reprodução, como a possibilidade de gravação e comercialização de
uma performance, tornou-se necessária uma nova visão das artes. Desta maneira, o
instrumentista tem de se reafirmar enquanto agente artístico para que não tenha
como única função a comunicação de uma idéia alheia. Mesmo esta função é, mui-
tas vezes, recusada por compositores que encontram nos recursos eletrônicos ho-
diernos uma possibilidade de satisfazer seus anseios criativos sem a preocupação de
vê-los “traídos” no momento da performance.
Dessa forma, resta ao instrumentista dedicar-se ao aparta técnico. Assim, a mais
nova forma de fetichismo na música é o culto à apresentação perfeita, aquela que
serve como modelo de excelência. As apresentações fora do paradigma exigido são
descartadas como produtos impróprios para o consumo (Adorno 2005, 86):
“O ideal oficial da interpretação, que predomina em toda parte na esteira do tra-
balho extraordinário de Toscanini, ajuda a sancionar um estado de coisas que –
para usar uma expressão de Eduard Steuermann – pode-se denominar “barbá-
rie da perfeição”. [. . .] Reina aqui uma disciplina férrea. Precisamente férrea. O
novo fetiche, neste caso, é o aparato como tal, imponente e brilhante, que fun-
ciona sem falha e sem lacunas, no qual todas as rodas engrenam umas nas outras
com tanta perfeição e exatidão que já não resta a mínima fenda para a captação
do sentido do todo. A interpretação perfeita e sem defeito, característica do
novo estilo, conserva a obra a expensas do preço da sua coisificação definitiva.
Apresenta-a como algo já pronto e acabado desde as primeiras notas; a execução
soa exatamente como se fosse sua própria gravação no disco. A dinâmica é de tal
forma predisposta e pré-fabricada, que não deixa espaço algum para tensões.”
Já a segunda corrente, que denominamos conciliatória, procura fundir a impor-
tância tanto do compositor quanto do intérprete, através do argumento de que o
papel do instrumentista seria o de “traduzir” a obra de arte proposta. Dessa forma,
admitir-se-ia, então, a subjetividade do executante ante a obra de outra pessoa, fa-
zendo com que uma nova obra seja criada numa espécie de co-autoria com o com-
positor primeiro Marília Laboissière (2007, 16):
“Defendemos aqui o conceito de interpretação musical como atividade recria-
dora, na medida em que a música – arte da produção, performance e recepção
individuais, arte subordinada a diferentes fatores sociais, ideológicos, estéticos,
históricos e outros – caracteriza-se pela impossibilidade de reconstruir sua ori-
gem legítima, ou seja, qualquer outra imagem de estabilidade.”
Finalmente, a terceira corrente, denominada “desconstrucionista”, radical do lado
oposto à primeira corrente vista anteriormente, não admite qualquer conciliação
entre autor e instrumentista. Tal ponto de vista coloca ênfase sobre o destinatário
da comunicação, assim, é o instrumentista quem cria o sentido e não o compositor
primeiro. Partindo da idéia de que toda obra de arte é um texto a ser lido, buscare- 199
mos suporte na fenomenologia para argumentar que a informação artística tem fa-
talmente seu sentido realizado por seu fruidor. Husserl (Galeffi 2000) coloca o
indivíduo, e sua consciência, como agente principal do ato cognoscente. Assim, é
o fruidor quem dá sentido àquilo que é percebido por ele. Nogueira (1999, 76) re-
corre a Berlo para chamar atenção para o fato de que quem dá o sentido às coisas é
o receptor – ou intérprete – “o sentido não se encontra nas palavras, na materiali-
dade dos traços do papel ou nos sons da fala: não se encontra na mensagem e sim
no receptor. Se os sentidos estivessem nos objetos ou coisas (como as palavras), qual-
quer pessoa compreenderia qualquer código”. Dessa forma, mesmo o autor pri-
meiro, ao criar seu texto, forma nessa primeira leitura a sua visão, a interpretação de
como tal objeto deve ser. Queremos dizer que tal percepção é forjada por seu leitor-
compositor, mas que não é algo da obra em si. A obra, como pretendem alguns
compositores, não carrega em anexo sua interpretação, mas necessita que alguém a
componha. Daí temos que a notação dos elementos interpretativos, nada mais é
do que a interpretação desse compositor grafada. Compositores do século XX como
Stravinsky, que indicou instruções de interpretação com detalhamento incomum,
e Stockhausen, que serializou cada aspecto da interpretação, não pretendiam con-
ceder espaço à criação do instrumentista. Entretanto, ao se apresentar a outrem, a
obra adquirirá fatalmente nova interpretação.

Da composição interpretativa: a obra em movimento


Umberto Eco (1971) explica o que seria a abertura na obra de arte. Segundo ele,
toda obra de arte possui, em maior ou menor grau, um teor de abertura a aprecia-
ção do fruidor. Dessa forma, são várias as visões que uma pessoa pode ter do mesmo
objeto artístico. Por exemplo, diversas pessoas têm, ao ouvir uma sinfonia de Beet-
hoven em um mesmo auditório, reações e entendimentos diferentes daquela mesma
obra, fruída naquele mesmo momento (Eco 1971, 63):
“[. . .] num nível mais amplo (como gênero da espécie em ‘obra em movimento’)
existem aquelas obras que, já completadas fisicamente, permanecem contudo
‘abertas’ a uma germinação contínua de relações internas que o fruidor deve des-
cobrir e escolher no ato de percepção da totalidade dos estímulos.”
O tipo de abertura aqui avaliada é o que podemos chamar de primeiro grau. Nesse
caso, a obra foi concluída por seu autor e mostra-se formada à disposição de diver-
sas fruições. No caso que pretendemos aqui tratar em especial, a composição de
uma execução instrumental, tal definição de abertura não exaure todas as possibi-
lidades de seu acontecimento.
Baseado em exemplos de diversas manifestações artísticas de cunho inacabado, tais
como obras de Berio, Stockhausen e Boulez, Eco chama atenção para outro tipo
de abertura, mais radical do que o anteriormente aqui mencionado. Trata-se da
obra em movimento. Esta se difere da outra por possuir sua forma aberta, inacabada,
200 ou, melhor dizendo, mutável. Portanto, levando em consideração que o instru-
mentista é um indivíduo criador, e não um mero meio de comunicação das idéias
de outro artista, e que o resultado de sua relação com a obra depende primordial-
mente de seu entendimento, não haveria razão para que o instrumentista realizasse
uma execução musical sempre da mesma maneira. Ele poderia, a cada execução,
apresentar uma configuração musical completamente diferente. Encontramos
como exemplo o violonista Eliot Fisk (Apro 2000, 44):
“Há dois tipos de artistas: um deles pinta a Mona Lisa em sua casa, vai à palco e
mostra a tela acabada para o público. Eu até gostaria de ser este tipo de artista,
mas estou condenado ao temperamento daquele outro tipo: o que vai ao palco
com uma tela em branco e a pinta na frente do público. Para mim, este tipo de
corda-bamba é o que caracteriza uma apresentação ao vivo.”

Considerações Finais
Podemos, portanto, visualizar o trabalho do instrumentista através de um ponto de
vista mais abrangente. Gostaríamos de frisar que a essa atividade constitui impres-
cindível uma orientação estética. Por detrás do fazer do intérprete há sempre tais
orientações, sejam elas conscientes ou não, sejam elas produtos de uma tradição
imposta ou complacentemente aceita. Ele, tal qual o compositor de peças, ou o es-
critor, ou escultor, possui seu processo produtivo próprio. Compositores como
Stravinsky e Schönberg, ao prescrever em suas partituras todas as nuances de dinâ-
mica, andamento, fraseado, ritmo e expressão, reduzem a função do instrumentista
a de uma máquina, como foi apontado por Dart (2002, 67). Vale lembrar que foi
prática comum, nos primeiros séculos da música Ocidental, a improvisação do ins-
trumentista sobre as obras executadas. Tal prática foi paulatinamente abandonada,
até chegarmos ao momento de execução exata da partitura. É preciso repensar a
atividade do instrumentista para que este não fique restrito a modelos determinis-
tas. Dessa forma, acreditamos que tanto ensino quanto prática musical serão enri-
quecidos com a valorização e ampliação do universo criativo do intérprete.

1 Todo indivíduo, de um modo geral, que contempla uma obra de arte pode ser tido como
fruidor.
2 Graziela Bortz (2007, 85), em seu artigo Três aspectos da cognição na performance musi-
cal faz referência à situação do instrumentista atual: “ [. . .] os instrumentos de formação eru-
dita do século XXI, especialmente os orquestrais, cuja educação deixou no passado (exceto
em escolas que mantêm a tradição da chamada música antiga) quase toda a tradição da im-
provisação e se debruçou veementemente sobre a ‘correta’ interpretação da partitura, estu-
dam escalas com exclusivo propósito técnico, repertório e trechos orquestrais de dois
compassos repetidamente.”
201
Referências
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Benjamin, Walter. 1975. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In Os Pen-
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Bortz, Graziela. 2007. “Três aspectos da cognição na performance musical.” Anais do III
Simpósio de Cognição e Artes Musicais, maio 21-25, em Salvador, Brasil.
Campos, Haroldo de. 1977. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. São Paulo: Edi-
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Copland, Aaron. 1974. Como ouvir (e entender) música. Rio de janeiro: Editora Artenova.
Galeffi, Dante Augusto. 2000. O que é isto — a fenomenologia de Husserl? Ideação 5, 13-36.
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Eco, Umberto. 1971. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São
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Laboissière, Marília. 2007. Interpretação musical: a dimensão recriadora da “comunicação”
poética. São Paulo: Annablume.
Nogueira, Marcos. 1999. Condições de interpretação musical. Debates 3, 57-80.
Stravinsky, Igor. 1996. Poética musical (em 6 lições). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Sem Fronteiras: Implicações da Performance
no Ensino e Aprendizagem da Música Popular
Juliana Rocha de Faria Silva
202 julianasilv@gmail.com
Escola de Música de Brasília
Departamento de Música, Universidade de Brasília

Maria Cristina Cascelli de Azevedo Carvalho


criscarvalho@abordo.com.br
Departamento de Música, Universidade de Brasília

Resumo
Este trabalho apresenta o relato parcial de uma pesquisa de mestrado cujo objetivo é in-
vestigar como os professores sistematizam, organizam e justificam os conhecimentos e
habilidades do piano popular em suas práticas docentes. A metodologia adotada foi o es-
tudo de caso cuja unidade de caso são os professores de piano popular do Núcleo de
Música Popular do Centro de Educação Profissional – Escola de Música de Brasília
(CEP/EMB). As questões da pesquisa pretendem discutir quais as habilidades e conheci-
mentos musicais os professores de piano popular consideram relevantes para a forma-
ção de músicos populares; em que situações estes conhecimentos e habilidades são
trabalhados na sala de aula; que procedimentos de ensino e aprendizagem os professo-
res utilizam para ensiná-los e por que; qual é a fonte social destes procedimentos; que
conhecimentos e habilidades da performance e da experiências profissional como mú-
sico popular são mobilizados na sala de aula. Para responder tais questões foi realizado
um estudo piloto com um professor de contrabaixo do Núcleo de Música Popular do
CEP/EMB, com o intuito de verificar a pertinência dessas questões como a metodologia
da pesquisa,. Neste artigo apresentamos um recorte da análise do estudo piloto em que
se destacam as habilidades e conhecimentos da performance em música popular, o seu
processo de aprendizagem e a forma como são mobilizados na sala de aula, ou seja,
como o performer organiza e sistematiza a sua práxis para ensinar. O desenvolvimento
do ensino e aprendizagem em música popular é relevante para a discussão sobre os es-
tudos a performance em música, uma vez que, no âmbito da cognição, as pesquisas têm
abordado, principalmente temátivas relacionadas com a questões conceituais da perfo-
mance, a revisão da literatura, a análise estilística e técnica, os procedimentos de inter-
pretação do repertório e os aspectos corporais, psicológicos e neurológicos do performer
voltados para a música erudita (Ray, 2007). Para fundamentar este trabalho, os dados
foram discutidos sob a perspectiva teórica de Green (2001) que trata das práticas infor-
mais de aprendizagem dos músicos populares; de Couto (2008) que aborda a prática
pedagógica dos professores de piano popular e de Maranesi (2007) e Faour (2006) que
discutem a transcrição “de ouvido” e seus usos pedagógicos. A análise dos dados apon-
tou para o emprego de diferentes conhecimentos informais utilizados pelos músicos po-
pulares no âmbito de suas aprendizagens no ensino do instrumento e da música popular.
Introdução
No Brasil, as pesquisas sobre performance na área da cognição, de modo geral, visam
compreender como o performer aprende e interpreta seu repertório, as suas emoções
no momento da performance, o preparo do recital, o desenvolvimento de suas ha-
203
bilidades e os procedimentos utilizados para aprender. Alguns trabalhos que tratam
do piano, por exemplo, as temáticas destacam o estudo da música erudita européia
e nacional e a maneira como os performers aprendem, executam e interpretam seu
repertório destacando: a comunicação da expressividade e da emoção na execução
(Gerling; Santos, 2007); a análise do rubato em diferentes gravações de uma mesma
obra (Gerling, 2007); os efeitos de exercícios corporais na preparação para o reci-
tal (Oliveira, 2007); conhecimentos musicais envolvidos na preparação de reper-
tório em curso de graduação de piano (Santos; Hentschke, 2007); a ação pianística,
coordenação motora e desempenho técnico (Póvoas et. all, 2007).
Na análise de alguns trabalhos sobre a performance e seu ensino e aprendizagem
apresentados nos Simpósios de Cognição e Artes Musicas (SIMCAM), percebe-
mos que a performance da música popular não tem sido contemplada como objeto
de estudo da cognição musical. Sob essa perspectiva este artigo pretende discutir
como as características da performance na música popular, em seus aspectos inter-
pretativos, perceptivos e analíticos, são organizados e sistematizados como proce-
dimentos de ensino e mobilizados na aula de instrumento popular. Essa discussão
faz parte de uma dissertação de mestrado cujo objetivo é compreender como os
professores de piano popular do Núcleo de Música Popular do Centro de Educa-
ção Profissional – Escola de Música de Brasília (CEP/EMB) sistematizam, orga-
nizam e justificam os conhecimentos e habilidades do piano popular em suas
práticas docentes. A pesquisa empregou o estudo de caso como opção metodológica
na qual a unidade de estudo é o Núcleo de Música Popular do CEP/EMB. Os ins-
trumentos de coleta de dados adotados foram a entrevista semi-estruturada e a ob-
servação não-participante. O roteiro de entrevista teve como pontos principais
conhecer a formação do entrevistado como músico e como professor, as concepções
sobre o perfil do aluno de música popular e as características das suas aulas de con-
trabaixo. A análise dos dados foi qualitativa e procurou revelar categorias de aná-
lise que permitissem compreender a formação musical e docente, bem comoos
procedimentos de ensino da música popular. Foi realizada uma primeira entrevista
para levantar informações sobre a formação musical e docente do professor, a sua
atuação profissional e as suas aulas de instrumento; em seguida foi realizada a ob-
servação de aulas e, para finalizar foi feita uma segunda entrevista para aprofundar
informações e esclarecer dúvidas, observações e conclusões sobre a temática inves-
tigada.
Neste artigo apresentamos uma análise parcial do estudo piloto que revelou os co-
nhecimentos e habilidades o professor mobiliza de sua prática como músico para
ensinar o contrabaixo popular. Entendemos que trabalhos dessa natureza são rele-
vantes para se discutir processos de ensino e aprendizagem da música bem como as
maneiras que performer organiza a sua práxis para ensinar. O artigo apresenta a se-
guinte estrutura: estudos sobre os conhecimentos e habilidades na performance em
204 música popular e a análise do estudo piloto.

Performance em música popular – conhecimentos


e habilidades
De modo geral, tradicionalmente, os estudos na área de música têm enfatizado a
pesquisa e a sistematização do ensino e a aprendizagem do repertório erudito. Se-
gundo Green (2001), na tradição formal de ensino há o predomínio de alguns prin-
cípios fundamentais, valores e objetivos compartilhados pelos professores no ensino
e aprendizagem do instrumento na música erudita. Essa prática docente enfatiza o
desenvolvimento rigoroso da técnica e sua aplicação minuciosa e sensível na inter-
pretação de um limitado repertório de peças. A expectativa dos professores de mú-
sica está centrada no estudo regular do instrumento com o predomínio de um
regime de ensino e prática em que há um balanço entre os exercícios técnicos – es-
calas, arpejos ou estudos – e as peças musicais. Neste tipo de ensino, os professores
podem abordar conteúdos musicais gerais como forma musical, história da música,
teoria, desenvolvimento do instrumento e do seu repertório, porém, o foco central
é o avanço técnico, a expressividade e o repertório do instrumento em si (Green,
2001).
Os estudos e as pesquisas que tratam da música popular e os seus processos de en-
sino e aprendizagem são recentes e ainda escassos apesar de existirem, no Brasil, há
mais de 20 anos cursos técnicos, de graduação e de pós-graduação como, por exem-
plo, os cursos oferecidos pela Universidade de Campinas desde 1989 e o curso de
piano popular do CEP/EMB existente desde 1990. A ausência de estudos na mú-
sica popular e o crescente desinteresse dos jovens pela aprendizagem da música eru-
dita mobilizaram Green (2001) a questionar os processos de ensino e aprendizagem
da música erudita e a estudar como os músicos populares aprendem. A pesquisadora
buscou sistematizar e organizar procedimentos de aprendizagem, considerados
como parte das práticas informais dos músicos populares. Embora algumas práti-
cas de aprendizagem do campo informal possam ser identificadas também no en-
sino formal da música erudita,
Green (2001) afirma que há diferenças significativas entre o formal e o informal
para o ensino e aprendizagem da música no que diz respeito ao contexto que os en-
volvem e as atitudes e os valores que os acompanham. Ao detalhar essas diferenças
entre o ensino formal e as práticas informais de aprendizagem dos músicos popu-
lares, Green (2005), destacou cinco categorias emergentes em sua pesquisa com
músicos de bandas de rock da Inglaterra. De acordo com o relato desses músicos,
suas aprendizagens ocorreram:
1. por meio da escolha da música, em geral a música escolhida para estudo ou
objeto de estudo é a música deles ou com a qual eles se identificam e estão fa-
miliarizados; 205
2. pela cópia de gravações de ouvido sem a orientação de um professor ou a pre-
sença de uma partitura com notação tradicional ou de melodia e cifras;
3. de maneira muitas vezes autodidata;
4. pela aprendizagem em grupo, entre os amigos no ensaio de uma banda, por
exemplo,envolvendo a discussão, a atenção, a escuta e a imitação entre os
pares;
5. pela assimilação de habilidades e conhecimentos às vezes de forma inconsciente,
que irão caracterizar uma performance pessoal.
Os processos de aprendizagem musical informal têm também depertado o inte-
resse de pesquisadores brasileiros. Nesse sentido, os estudos brasileiros têm encon-
trado resultados muito semelhantes aos de Green (2001). Corrêa (2009) ao
investigar os procedimentos de aprendizagem informais e extra-escolares de jovens
identificou que seus processos de autoaprendizagem no violão envolviam o “tirar
música” de ouvido ou por imitação; a experimentação de cifras encontradas na In-
ternet ou nas “revistinhas”; a prática de partes da música para memorizá-la e a troca
de idéias com amigos ou pessoas próximas que tocam violão. Nos estudos de Mar-
ques (2006), as aprendizagens extra-escolares são incentivadas pelos pais, pelo mer-
cado de trabalho, pela vontade de saber mais sobre o seu instrumento e pelo prazer
de tocar em grupo. As maneiras como os jovens investigados aprendiam música in-
cluiu a observação de outros músicos, a experimentação de copiar e/ou imitar os
seus “ídolos” e as pesquisas de estilos e de formações e/ou grupos que envolviam o
seu instrumento e os de músicos da atualidade.
Com relação à prática docente em música popular, o trabalho de Couto (2008) in-
vestigou a prática pedagógica dos professores de piano popular dentro das escolas
formais de música e de que forma os seus procedimentos de ensino se relaciona-
vam às práticas informais de aprendizagem dos músicos populares. Os resultados do
seu trabalho revelaram que, embora os professores demonstrassem ter conheci-
mento sobre a importância das práticas de aprendizagem informal para o desen-
volvimento do trabalho com o repertório popular, nem todos as utilizavam nas suas
aulas e que alguns professores ainda mantinham um pensamento atrelado aos mol-
des de aula tradicional de piano.
Dentre as habilidades e procedimentos de aprendizagem do músico popular se des-
tacam os estudos relacionados à transcrição de partituras “de ouvido”. Para Mara-
nesi (2007) e Faour (2006), a transcrição não deve ser um fim em si mesma, mas um
treinamento para que o aluno desenvolva mais tarde o seu próprio estilo musical.
Para Maranesi (2007), esse procedimento é utilizado na performance da música po-
pular desde que surgiram as primeiras instituições de ensino e no estudo da im-
provisação tonal que utiliza como fonte as transcrições de solos de grandes
206 expoentes da música popular. Os benefícios da transcrição para a aprendizagem do
repertório popular vão desde o entendimento das tradições da música oral até o
desenvolvimento das habilidades de criação e de improvisação, além de ampliar a
produção de partituras de música popular. Segundo Maranesi,
“a transcrição figura em estudos etnomusicológicos modernos como um dos prin-
cipais meios analíticos para a compreensão da música de tradição oral e tam-
bém constitui uma das bases importantes no ensino da música popular na
contemporaneidade. As transcrições, especialmente em forma de melodia ci-
frada, constituem um material tradicionalmente utilizado no aprendizado e na
prática performática usado no dia a dia de músicos populares para o treinamento
da criatividade e o exercício do improviso” (Maranesi, 2007, p. 2; 57).
Os estudos de Faour (2006) destacam também a transcrição como uma ferramenta
pedagógica para a análise e execução do repertório da música popular. Para ela, além
de prover material didático-pedagógico, a transcrição tem o objetivo de prover sub-
sídios ao intérprete para capacitá-lo a traduzir as idéias do compositor. A impor-
tância de se estudar e transcrever os acompanhamentos, por exemplo, deve-se ao
fato de que a prática da execução da música popular está baseada na transmissão
oral ou na imitação e, os símbolos tradicionais da notação musical não são sufi-
cientes para a interpretação do repertório desse instrumento. Gomes (2008) destaca
ainda a transcrição como uma das habilidades requeridas do instrumentista que
executa o repertório popular porque ela possibilita a aquisição de vocabulário mu-
sical próprio para interpretar estilos e subestilos da música popular.
Os estudos apresentados destacam a necessidade de se desenvolver um equilíbrio
entre os conhecimentos teóricos e técnicos da performance com a aquisição de ha-
bilidades e conhecimentos musicais informais música popular. Dentre esses co-
nhecimentos e habilidades se destacam o “tirar de ouvido”, a imporvisação, a leitura
de diferentes grafias musicais, a autoaprendizagem e a aprendizagem entre os pares.

O músico e o professor Paul


Paul é músico popular que toca contrabaixo elétrico e acústico. Ele tem 40 anos e
a sua formação musical começou com aulas particulares no baixo elétrico e depois
no baixo acústico. A sua formação acadêmica compreende a Licenciatura em Mú-
sica e especialização e mestrado em jazz no exterior. É professor de contrabaixo elé-
trico do CEP/EMB desde 2003. A sua formação musical e sua prática docente
envolveram: 1) a sua aprendizagem musical; 2) a influência dos parentes e amigos;
3) a complementariedade entre aprendizagens formais e informais da música; 4) a
aquisição do vocabulário e dos clichês e a incorporação dos estilos musicais; 5) a
sua formação docente; 6) as concepções sobre o papel do professor; 7) o “ser mú-
sico” popular; 8) a aprendizagem do repertório popular e; 9) os procedimentos de
ensino e aprendizagem da música popular.
207
1. A complementariedade das formações
entre a aprendizagem formal e informal
As aprendizagens formais de Paul foram consideradas aquelas ligadas ao aprendi-
zado da música erudita como a leitura de partituras, o domínio técnico do instru-
mento e o conhecimento sobre harmonia. Na vivência musical de Paul, as práticas
formais de aprendizagem musical que ele adquiriu nas suas aulas formais de con-
trabaixo acútisco – leitura de partitura, domínio técnico, harmonia - se fundiram
às aprendizagens informais fora da escola. O domínio técnico se refere principal-
mente ao desenvolvimento de habilidades de manejo do arco que contribuiram
para a afinação e a sonoridade do instrumento. Com relação aos conhecimentos de
harmonia, Paul destaca a importância do conhecimento de condução de vozes e os
seus benefícios para a performance da música popular: o pensamento harmônico
horizontal e o vertical. O pensamento ou encadeamento vertical, ou seja, o racio-
cínio dos acordes em blocos é o que normalmente os músicos populares usam para
analisar, elaborar e perceber a harmonia. Já o pensamento horizontal é mais utili-
zado no repertório erudito, pois envolve a percepção da linha melódica e do con-
traponto.
“A música erudita trabalha as duas coisas: a condução de vozes tem a parte ver-
tical que é aquela onde o acorde é formado naquele momento, mas tem a parte
horizontal que são aquelas vozes que vão se contraponto e como elas vão criando
as harmonias [. . .] Isso [a condução de vozes] na música popular, você não tem
tantos instrumentos, você tem ali um trio clássico: baixo, piano e bateria. Claro
que tem a condução do baixo e do piano. Mas a gente não trabalha com essa
coisa da condução de vozes que a música erudita tem o tempo inteiro. A gente
pensa mais verticalmente, naquele bloco de acordes que vão se movimentando.
Claro que tem encadeamentos e uma série de coisas, mas é bem menos” (EPP, p.
4).
Para Paul, o pensamento horizontal serve como base para o aprendizado da mú-
sica popular porque enriquece a elaboração dos acordes e a construção das melodias
nos diversos instrumentos do grupo popular. Outro aspecto que complementa a
formação musical do performer, na opinião de Paul, é a influência de músicos po-
pulares e eruditos. Segundo ele, ouvir e tocar repertórios variados enriquece e ex-
pande o vocabulário musical para quem quer atuar na esfera popular porque o
músico adquire e absorve os “clichês” destes dois mundos.
2. O “ser músico” popular e ensinar a “ser músico popular”
Na experiência de Paul, ser músico popular é conhecer e executar diferentes estilos,
improvisar, adquirir a técnica e o domínio no instrumento, leitura de partituras em
notação tradicional e de cifras, tirar músicas “de ouvido”, transcrever solos de outros
208
performers e de outros instrumentos. Estes conhecimentos e habilidades são im-
prescindíveis para o músico popular se inserir no mercado de trabalho.
Paul relata que adquiriu o conhecimento de diferentes estilos musicais por meio
da prática profissional, ouvindo gravações e aprendendo com outros músicos. As
suas experiências profissionais como músico popular possibilitou a sua participação
em muitos shows, acompanhando cantores e atuando em diferentes formações ins-
trumentais com diferentes músicos. Além de ampliar o seu repertório, Paul incor-
porou muitos estilos em sua prática. A maneira como os ritmos e estilos foram
incorporados e mobilizados na performance é explicado por Paul:
“(. . .) quando eu vou tocar jazz, eu não sou só aquele músico de jazz, sou aquele
que também toca blues, que também toca samba, pop – eu adoro música pop –
que também toca Beatles. Então eu incorporo um pouco isso. Eu acho que tam-
bém é um pouco. Não é que agora eu liguei o botão e sou o Paul jazzista, agora
eu liguei outro botão e sou o Paul pop, o Paul . . . Não! Você leva os mundos,
uma coisa puxa a outra, eu não vou conseguir tirar isso de mim. Isso está asso-
ciado, está incorporado. A gente incorpora estes estilos e usa da melhor maneira
possível. Eu sempre vou levar contribuições de coisas que eu herdei do rock para
o mundo do jazz e vice-versa para o mundo da música brasileira” (EPP, p. 11).
Segundo os dados coletados, o mercado de trabalho da música popular é amplo e
tende a crescer. Dentre as atividades musicais do músico popular se incluem: tra-
balhar em um estúdio de gravação, acompanhar cantores, ser band leader. Paul con-
sidera que o aluno deve vivenciar diversos estilos na aula para aprimorar este
conhecimento na prática, bem como se inserir no mercado de trabalho. Em suas pa-
lavras:
“[. . .] você tem de dar uma gama de estilos para o aluno, seja música nordestina,
forró, frevo, maracatu, afoxé, seja música ligada mais para o sul e o sudeste que
é samba, bossa nova, pagode tradicional. (. . .) a gente acaba abrangendo tudo
isso: uma gama de estilos que é para deixar o aluno pelo menos conhecedor,
ainda que seja pouco conhecimento, mas ele já vai saber, ele terá noção daquele
mundo, saber o que é um maracatu, saber o que é uma bossa, a diferença da bossa
e um samba, de um samba-canção e uma bossa. Só para ter uma noção. Para o
aluno também ter acesso a isso, muitas vezes passa uma vida musical que ele até
nunca vai tocar determinado estilo, pode ser que ele passe e nunca venha a tocar
o maracatu na vida dele inteira. Pelo menos se aparecer essa necessidade ele já se
confrontou com isso aqui” (EPP – p. 6).
Além de conhecer uma diversidade de estilos musicais e executá-los, a improvisa-
ção no estilo também é considerada uma competência significativa para o músico
popular. Para Green (2001), a improvisação juntamente com a criação está con-
tida na composição. Paul também considera que o conceito de improvisação apro-
xima-se da composição, ou seja, é uma composição em tempo real. Quanto aos pro-
cedimentos de ensino realizados por Paul para trabalhar a improvisação na sala de
aula, se destaca a escrita musical tradicional das idéias musicais. O professor justi-
fica sua ação pedagógica pela necessidade de trabalhar a sistematização das idéias 209
musicais no improviso, pois os alunos nesta fase do estudo têm dificuldade de exe-
cutar no instrumento as idéias musicais ao mesmo tempo em que as formula em sua
mente, daí a necessidade de sistematizar e escrever para desenvolver a “construção
melódica”. Paralelamente, Paul trabalha técnicas de composição como o motivo, o
contraste de motivo, o desenvolvimento de motivo, a modulação, a pergunta e res-
posta e materiais sonoros usados para improvisar como escalas, as escalas bebops, os
arpejos, a sucessão de acordes. As atividades em sala de aula, por exemplo, podem
ser estruturadas da seguinte forma: criação de motivos melódicos, seu desenvolvi-
mento, expansão e contraste seguidos de exercícios técnicos de improvisação como
análise harmônica, função e substituição de acordes, uso de escalas para cada acorde
e centro tonal. Observa-se nos procedimentos didáticos de Paul a preocupação em
trabalhar a técnica instrumental aplicada ao contexto musical sendo o treinamento
das escalas não um fim em si mesmo, mas um estudo consciente melódico e har-
mônico realizado concomitante ao estudo das “levadas” que caracterizam os dife-
rentes estilos musicais. Ele justifica sua ação da seguinte forma:
“[. . .] fazer a escala com a divisão de samba já que eu estou com dificuldade em
fazer o samba, ele está com dificuldade, então faz a escala com samba. [. . .] Ou
se for baião, a divisão que vai fazer. [. . .] E assim vai, e isso para qualquer estilo
e na minha aula eu sempre procuro juntar as duas coisas, a prática com a parte
técnica e teoria” (EPP, p. 12).
O ensino e aprendizagem de um instrumento de modo geral e especificamente na
música popular exigem o domínio técnico e expressivo do instrumento para o de-
senvolvimento de habilidades musicais como compor em tempo real, executar uma
“levada” rítmica ou melódica e improvisar. Paul explica que se o pensamento estiver
somente nas notas, na divisão rítmica ou no dedilhado não será possível improvi-
sar, nem fazer uma “levada” ou explorar a sonoridade do instrumento. A técnica
precisa ser desenvolvida para que o músico “não pense” em todos esses aspectos en-
quanto está tocando, mas execute expressivamente e musicalmente a música.
Com relação ao domínio da grafia musical, Green (2001) afirma que os músicos
populares em estágios inicias de aprendizagem desenvolvem o conhecimento sobre
vários tipos de notação – partituras convencionais, tablatura de violão, notação de
bateria e símbolos de acordes. Em suas práticas musicais, a grafia está relacionada
com as práticas aurais e é utilizada mais como suplemento do que como fonte pri-
mária de aprendizagem Em sua atuação docente e musical Paul concebe a grafia
musical da mesma forma. Assim, ele, trabalha a leitura musical associada à sua au-
dição em gravação:
“Porque a gravação, às vezes a gente só coloca o papel entre aspas. Coloca o papel
e ele acha que a música vem dali. Não, é só uma facilidade pra ele, já tem todas
as notas escritas e os acordes, mas ele tem que entender o contexto todo e o que
dá o contexto todo é a gravação. Daí você vê todos os instrumentos interagindo
ali na gravação, como a melodia tá sendo tocada em relação com os outros, como
210 o improviso está sendo, no caso, vestido pelos outros músicos” (EPP, p. 24).
A ênfase dada à compreensão do “contexto todo”, como explica Paul, é observada
em suas aulas. Durante a pesquisa, em uma das observações realizadas Paul utili-
zou a audição de gravações do repertório a ser aprendido para que o aluno apreen-
desse o ritmo escrito na partitura. Em alguns momentos da aula observada, as
dúvidas e dificuldades de compreensão da leitura musical eram sanadas também
com demonstrações musicais realizadas pelo próprio professor.
As atividades de leitura musical também são trabalhadas para desenvolver a me-
morização musical. Paul relata que utiliza melodias cifradas para auxiliar o aluno a
memorizar a forma e/ou as sessões da música e as progressões harmônicas. O do-
mínio do texto musical contribui para a performance consciente, permitindo liber-
dade e confiança para acompanhar, transpor e improvisar. Os conhecimentos
harmônicos relacionados com a grafia musical são abordados juntamente com prá-
tica para desenvolver conhecimentos e habilidades que são necessários para a im-
provisação e para a transposição em outros tons. Para Paul o conhecimento
harmônico na música popular é fundamental para o desenvolvimento de outras
habilidades e conhecimentos musicais.
“Duas coisas, primeiro você visualizando o grau, você muito mais do que saber
que nota você tá usando. Você por saber o grau, você já sabe a nota, tá implícito
isso. Mas você já tá sabendo a função daquela nota no acorde, quando você pensa
em grau, você não tá pensando que tá tocando um Do, não, to tocando . . . Se o
acorde no caso for um La menor, você tá tocando a terça do acorde, então é
muito mais, é um conhecimento além da nota em si. Você não tá. . . você tá en-
tendendo o que tá acontecendo na harmonia e melodia, por isso que eu gosto de
pensar em graus porque você cria consciência daquela nota. [. . .] Agora você já
tá nesse contexto. Pensando já que ela é a terça do acorde. Isso pra qualquer
coisa e no caso da música popular às vezes a gente vai se deparar com momen-
tos que a música vai ser tocada em outra tonalidade [. . .] como essa música que
a gente tava tocando na aula anterior [Samba de Orly]. Aí a cantora fala “não
esse tom pra mim Do Maior é muito alto tem que ser La Maior”. Então você tem
que transpor na hora. “Não esse tom aqui, Lá também não ficou bom, vamos pra
um outro, vamos pra Fa, né”, aí vai pra Fa. Ou seja, você pensando em graus, eu
já sei o que tá acontecendo. Do no primeiro grau, vou pra 4ª aumentada fazendo
II, V pro III, vou pro VI, aí caio II, V pro IV grau aí IV grau menor né, III, VI,
II, II, V, I. Então eu penso em grau, fica fácil pra eu transpor, eu não tenho mais
que pensar: “vai pro Do eu agora fui pra La Maior, do La eu vou pro Re suste-
nido” não, eu já tenho isso em graus que me dá tudo isso” (EPP, p. 25-26).
O conhecimento teórico na música popular não desvaloriza o “tirar de ouvido”,
habilidade considerada essencial para o músico popular. “Tirar de ouvido” significa
reproduzir uma música enquanto a escuta, memorizar uma música e reproduzi-la,
reproduzir estilos musicais suas “levadas” e idiomas estilísticos. A reprodução aural
envolve um nível de compreensão musical que, muitas vezes a partitura não trans-
mite. Além disso, em muitas situações de performance não há partituras, ficando a 211
aprendizagem restrita a reprodução e imitação aural e visual Nesse sentido, Paul in-
centiva seus alunos desde os níveis básicos a ouvir variados repertórios e perfor-
mances com o intuito de aprender por meio da audição, da imitação e da transcrição.
O trabalho de transcrição musical é realizado inicialmente a partir da transcrição
do baixo de uma música da preferência dos alunos. O processo de ouvir e transcre-
ver visa despertar o interesse pela transcrição, considerada habilidade relevante para
a formação do músico popular. Quando alguns alunos se sentem inseguros e com
dificuldades para encontrar a nota ou o ritmo e escrevê-los corretamente na parti-
tura, Paul acompanha os exercícios dos alunos na aula comentando e acrescentando
à aprendizagem aural os conhecimentos teóricos:
“(. . .) a gente vê “olha essa nota aqui tá errada, vamos ver aqui, vamos ver que
acorde que é aqui, vamos tentar descobrir” (. . .) desde o início eu já tento colo-
car coisa da questão da harmonia na linha de baixo pra eles terem uma noção:
“olha, é um acorde maior, que terça que ele tá usando aí”, “é maior também”, “há,
legal”. “E quinta, o que ele tá usando mais aí, que graus ele tá usando e se está
nesse acorde” (EPP - p. 16).
Para Paul, o procedimento de tirar “de ouvido” deve estar integrado à teoria, o que
permite que o aluno não reproduza simplesmente, mas que ele descubra auditiva-
mente, tenha consciência e seja autônomo:
“Não só reproduzir, ele faz a coisa muito mecanicamente às vezes no dia-a-dia e
se você começa a perguntar para o aluno: “o que você tá usando, ou então no caso,
o que ele tá usando na gravação”? E o aluno descobre por si mesmo, não fui eu
que falei. Ele tocou e descobriu só que ele não teve consciência daquilo, ele tirou
de ouvido. Aí quando ele começa a fazer as três coisas: consegue tirar de ouvido,
consegue executar e consegue entender o que tá fazendo; aí é maravilhoso, aí ele
sai daqui, ele sai realizado mais do que eu” (EPP – p. 16).
A transcrição nas aulas de Paul também envolve “tirar” os solos de outros instru-
mentos musicais. Segundo o professor, esta prática fez parte da sua formação e ele
a desenvolve com os seus alunos. A transcrição de um solo de saxofone, por exem-
plo, inclui o estudo de fraseado, de respiração e de articulação, conteúdos impor-
tantes para desenvolver as habilidades expressivas e interpretativas. A experiência
da transcrição inclui ainda “tirar” melodias em outros instrumentos, o que é mais
complexo, pois envolve a transferência da melodia original para o contrabaixo elé-
trico. O objetivo principal das atividades de transcrição não é o desenvolvimento
da escrita, mas desenvolver a expressão do aluno.
“É uma coisa que é vital para o ensino da música popular, é a parte de percepção
e tirar de ouvido, e a ente não se atém muito pelo menos aqui, eu falo muito
para os alunos “olha não me interessam as notas, interessa como vocês vão tocar
essas notas, eu quero exatamente. . . a respiração, eu quero o fraseado, eu quero
a ligadura da nota como ele tocou”. Então eu to muito mais interessado na ex-
pressão, na expressividade da frase do que as notas certas que você vai tocar na
212 transcrição” (EPP – p. 17-18).

Conclusão
Neste breve relato, nota-se que a perspectiva desse músico sobre a performance o
ensino e aprendizagem da música popular está estreitamente interligado à sua pró-
pria experiência como performer. De certo modo, as conclusões deste estudo con-
tradizem os resultados de Green (2001) e de Couto (2008) que afirmam que os
músicos populares em uma situação de ensino não valorizam as suas práticas in-
formais de aprendizagem. Por um lado, a concepção de música popular que nasce
dos professores do CEP/EMB é direcionada para mercado de trabalho e voltada
para a formação do aluno para atender à demanda deste mercado. Por outro lado,
Paul considera as suas experiências de autoaprendizagem no ensino do instrumento
nas suas aulas de música. Essas experiências envolvem a prática, o tirar “de ouvido”
e a transcrição. Para ele formar o performance em música popular é passar para o
aluno as habilidades e os conhecimentos que foram importantes na sua própria for-
mação como músico. Percebemos o quanto a auto-perceção, a auto-estima e a au-
toconsciência das habilidades performáticas que o professor vê em si mesmo
modifica a maneira como ele concebe, estrutura e modifica a sua prática docente.
Quando o músico se valoriza enquanto
performer provavelmente será um professor que trabalhará motivado e procurará
desenvolver no seu aluno o prazer e a motivação do fazer musical. Sugerimos que
os estudos no campo da cognição contemplem a performance na música popular e
o ensino e aprendizagem da música popular.

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Investigação e auto-regulação
na preparação de uma obra pianística
Regina Antunes Teixeira dos Santos
214 jhsreg@adufrgs.ufrgs.br
Cristina Capparelli Gerling
cgerling@ufrgs.br
Programa de Pós-Graduação em Música – UFRGS

Resumo
A preparação do Ponteio no. 22 (Triste) de Guarnieri foi preparada por estudantes de
graduação e pós-graduação em piano (N = 15), sem auxílio de seu professor de instru-
mento. A preparação foi monitorada através de registros de performances e de entre-
vistas sobre a preparação ao longo de 16 semanas. Os resultados foram analisados de
forma a extrair indícios de procedimentos de investigação e de auto-regulação, que
foram parametrizados e avaliados por dois árbitros. Os resultados sugerem que para esse
grupo, a maioria dos estudantes mais auto-regula que investiga com vistas a um apro-
fundamento da obra. Ao longo da preparação, observa-se também que a maioria dos
estudantes incrementa a taxa de auto-regulação em detrimento aos procedimentos de
investigação.

Introdução
A literatura em psicologia educacional e de educação musical tem empregado o
construto de auto-regulação para referir aos esforços sistemáticos para direcionar
pensamentos, sentimentos e ações na realização de certo objetivo direcionado por
metas (Schunk, 1995; Zimmerman, 2000; McPherson, Zimmerman, 2002, 2008;
Gollwitzer, Gawrilow e Oettingen, 2010).
Especificamente, a literatura de educação musical tem relatado estratégias de auto-
regulação usadas por estudantes de música em diferentes contextos de aprendiza-
gem, revelando vários aspectos relacionados à forma como eles aprendem ou
dominam a aprendizagem de uma nova peça (vide, por exemplo, Nielsen, 2001;
Hallam, 2001; McPherson e Renwick, 2001; Austin e Berg (2006); Leon-Guer-
rero 2008; Bartolome, 2009). Por exemplo, Hallam (2001) entrevistou músicos
profissionais e estudantes em relação a sua prática instrumental e concluiu que es-
tudantes são capazes de usar processos auto-regulatórios, incluindo planejamento,
monitoramento e estratégias de avaliação durante a prática. Contudo, resultados de
McPherson e Renwick (2001) e Austin e Berg (2006) sugerem que processos auto-
regulatórios são empregados em maior e menor grau na prática de estudantes, in-
dicando que alguns estudantes tendem a seguir uma prática com rotina não efetiva.
Em trabalhos anteriores, após estudos de casos envolvendo estudantes de piano, foi
possível demonstrar que a mobilização de conhecimentos musicais na preparação
de repertório instrumental (piano) ocorre por meio de uma dinâmica cíclica de
movimentos intencionais denominados de disposições experienciais de investiga-
ção e de auto-regulação (Santos 2007). Assim, o construto de investigação foi adi-
cionado àquele de auto-regulação para complementar a compreensão sobre o 215
processo da preparação (Santos, 2007; Santos e Hentschke, 2009). Conduta ou
disposição à investigação sob essa perspectiva envolve formas de pensamento in-
dutivo e dedutivo, e abarca postura deliberada de busca de meios e recursos exter-
nos para aprofundar a compreensão e o conhecimento de uma peça em preparação.
A dinâmica cíclica da mobilização de conhecimentos musicais compreende etapas
de organização, gerenciamento e supervisão que, nos casos investigados, mostra-
ram-se ser qualitativamente diferenciados quanto ao equilíbrio atingido entre ações
aprendidas e atividades criativas.

Figura 1 — Ciclo de disposições experienciais de investigação e auto-regulação


(organização, gerenciamento e supervisão) para produção musical final na
preparação (Santos, 2007).
Em decorrência dessa proposta, um estudante mais avançado e, com uma leitura e
compreensão musical mais apurada, deveria percorrer esses (sub-)ciclos de investi-
gação e auto-regulação de forma mais eficiente e veloz que um iniciante. Nessa hi-
pótese, o deslocamento cíclico se realizaria mais rapidamente ainda que, em um
número maior de vezes. Assim, em extensão ao modelo de mobilização de conhe-
cimentos musicais (Santos, 2007), surgiu-nos alguns questionamentos. Como
ocorre a dinâmica cíclica da preparação de um repertório pianístico em termos de
produção musical qualitativamente diferenciada? Qual é o grau de dependência
entre o nível de expertise dos estudantes de piano?
O objetivo geral dessa pesquisa foi investigar a dinâmica cíclica da prática em ter-
mos de aplicação de procedimentos de auto-regulação e investigação na prepara-
ção do repertório inserido na tradição da música clássica ocidental.
Metodologia
Em um delineamento semi-experimental, estudantes de graduação e pós-graduação
em piano (N = 15) participantes do Laboratório de Execução Musical (UFRGS)
receberam uma peça curta (Ponteio no. 22 de Guarnieri) para preparem ao longo
216
de 16 semanas, sem auxílio de seu professor de piano. A coleta se desenvolveu em
3 etapas, conforme representação no Esquema 1.

Esquema 1 — Representação da metodologia de coleta dos dados.


De acordo com o Esquema 1, os dados foram coletados ao longo de 16 se-
manas, e em três etapas. A primeira foi destinada à coleta sobre a preparação. Nesta
etapa foram realizados três encontros individuais, onde ocorreram as entrevistas
sobre a preparação (entrevistas semi-estruturada e registro de performance). O ro-
teiro para as entrevistas contemplou: tempo de prática, problemática enfrentada,
características do estudo (organização (?), planejamento(?), auto-monitoramento
(?)), estratégias de prática e de performance, (possíveis) hipóteses/idéias para avan-
çar a preparação. Em uma segunda etapa, ocorreu a entrevista de estimulação de
recordação, onde os estudantes escutaram seus respectivos registros e escolheram o
melhor deles. Na terceira etapa ocorreu a apreciação pelos próprios estudantes de
seus produtos em registro em áudio e áudio-video.
As entrevistas foram transcritas e os dados categorizados. Em algumas situações,
dependendo da natureza dos dados, tratamentos estatísticos (correlação, escalona-
mento multidimensional e análise de clusters) foram utilizados. Para a presente co-
municação serão discutidos apenas os dados das duas primeiras etapas.
Resultados e Discussão
A sistematização dos dados das entrevistas permitiu categorizá-los em termos de:
(i) decisões básicas (escolha de dedilhado, delimitações de frases, por exemplo), (ii)
decisões de expressão (andamento, dinâmica, timing, por exemplo), (iii) monito-
217
ramento sobre prática (iii) metas para a prática/ problemática de performance, (iv)
especulação intencional sobre estrutura musical. A Tabela 1 apresenta exemplos
sobre a categorização dos dados.
Tabela 1 — Indícios de investigação e auto-regulação, interpretadas a partir dos
depoimentos dos estudantes.
Manipulação de estratégias básicas Decisões sobre:
• Dedilhado/divises de mãos
• Estruturas rítmicas
• Delimitação de frases
Indícios de Auto-regulação

• Precisão do controle motor


Manipulação de estratégias expressivas Decisões sobre:
• Andamento e timing
• Dinâmica: intensidade e sonoridade
• Direcionamento das frases (contorno)
Monitoramento sobre a problemática Sem foco
Dificuldades em colocação de problemas
Ficar íntimo da partitura
Metas claras para continuar a prática
Realização de diário
Especulação intencional sobre estrutura musical Análise da estrutura musical em nível bá-
sico (estrutura rítmica)
Análise da estrutura musical em nível bá-
sico (melodia)
Indícios de Investigação

Análise da estrutura musical em nível bá-


sico (harmonia)
Exploração/ hipótese sobre as implicações
das indicações de dinâmica
Implicações do direcionamento das frases
(contorno) e a exploração do fluxo dos
eventos (timing)
Manipulação de recursos em áudio
Reflexões sobre o sentido e caráter da pala-
vra “triste”
Reflexões sobre textos publicados discu-
tindo os Ponteios de Guarnieri

No presente grupo investigado, cerca de 50% dos estudantes demonstrou possuir


mais procedimentos de auto-regulação do que de investigação, contra 25% que
apresentou comportamento inverso. Apenas 25% da amostra demonstraram um
balanço entre investigação e auto-regulação. A relação entre esses dois aspectos pode
ser acompanhada ao longo das três etapas de coleta. A Figura 2 apresenta esses re-
sultados expressos em termos dos valores atribuídos à razão auto-regulação/inves-
tigação. Na legenda abaixo, as letras U e G, referem-se, respectivamente a graduando
e pós-graduando. O número corresponde ao ano em que se encontra. No caso de
mais de um estudante na mesma condição, esses foram diferenciados pelas letras
minúsculas a, b e c. Assim, por exemplo, U2c representa um estudante de gradua-
218 ção, que se encontra no segundo ano e corresponde ao terceiro estudante, nesse
mesmo nível acadêmico.

(a)

(b)

(c)
Figura 2 — Taxa entre os valores atribuídos às condutas de auto-regulação e
investigação: (a) alunos cuja capacidade auto-reguladora cresce durante a
preparação; (b) estudantes cuja capacidade de investigação aumenta durante a
preparação e (c) estudantes cujos procedimentos de auto-regulação e de
investigação são mantidas de forma equilibrada durante a preparação.
Com base nas entrevistas e nas performances (avaliadas por dois árbitros), os estu-
dantes foram avaliados em uma escala de 0 a 5, para ambos as modalidades:
(i) investigação: de (0) – ausente a (5) – aquisição conceptual de recursos inter-
pretativos.
219
(ii) auto-regulação: de (0) – ausente a (5) – ajuste deliberado de recursos expres-
sivos de acordo com os resultados da performance.
De acordo com a Figura 2, diferentes parâmetros podem ser extraídos da popula-
ção investigada. A maioria dos estudantes tende a empregar mais procedimentos de
auto-regulação ao longo de sua preparação (a). Em um número menor de estudan-
tes, a investigação cresce com o passar do tempo (observe que o denominador, in-
vestigação cresce com o tempo, e portanto, a razão – ordenada – decresce). Apenas
dois estudantes dispuserem de um equilíbrio praticamente constante entre esses
dois tipos de procedimentos ao longo de toda a preparação. Cabe salientar que a ca-
tegorização da população investigada nesses três grupos mostrou ser independente
do nível de expertise (graduação ou pós-graduação).

Considerações Finais
A coleta de uma população relativamente maior de estudantes permitiu apontar
aspectos complementares a serem ponderados na revisão do ciclo da preparação
proposto inicialmente por Santos (2007). As disposições experienciais de investi-
gação que alavancam a preparação são, na maioria dos casos, de natureza tácita: es-
tratégias e formas de pensamento musicais parecem surgir mais de incursões no
instrumento do que a partir de um recuo sobre o fenômeno da preparação e dos
eventos musicais contidos na obra. Por outro lado, a análise das entrevistas e a ob-
servação dos produtos da preparação apontam como fator relevante o sentimento
de competência para a realização, que por sua vez afeta tanto o nível da conduta de
investigação (ousar a hipotetizar), como o nível de engajamento para uma conduta
auto-regulada frente a um produto parcial.
A eficiência na aproximação inicial (decodificação em nível básico) foi satisfatória
para quase todos (13 dentre os 15 participantes), mas qualitativamente distinta em
função do nível de expertise dos estudantes. O percurso perseguido, após a etapa
preliminar de aproximação, é múltiplo, e parece depender das peculiaridades de
cada participante, em função de fatores tais como: disponibilidade de tempo para
estudo, familiaridade e afinidade com a obra, entre outros. Finalmente, de uma
forma geral, evidencia-se o sentimento de necessidade de auxílio externo (conse-
lhos do professor) para avançar a perspectiva sobre a preparação.
Os dados revelaram que a maioria dos estudantes mais auto-regulam do que inves-
tigam em suas práticas. A complexidade da realização parece exigir mais ajuste sobre
produtos atingidos do que investigação em sentido heurístico. Na amostra obser-
vada, a investigação restringiu-se ao nível da experiência sensível, ou seja, o nível de
expertise do aluno.

Agradecimentos
220 R.A.T. dos Santos e C.C. Gerling agradecem ao CNPq pelas bolsas Pós-Doutorado e PQ,
respectivamente.

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Zimmerman, B.J. 2008. Investigating self-regulaton and motivation: Historical background,
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Journal 45, pp. 166-183.
Cogito ergo jazz: improvisational transformations
in Joe Henderson’s “No Me Esqueça”
Mtafiti Imara
mimara@csusm.edu 221
California State University San Marcos

Abstract
If improvisation is at the heart of jazz performance, and the ability to improvise is an in-
dication of cognitive processes, then jazz performance is a measure of the embodiment
of thinking. Arguably, the major distinguishing factor between composition and improvi-
sation is “the pre-existence of a large set of formal constraints which comprise a ‘blue-
print’ or ‘skeleton’ for the improvisation.”1 Given the relatively fixed parameters of the
great jazz saxophonist Joe Henderson’s composition “No Me Esqueça”2; in what ways
would young musicians (ages 18-24) align themselves with, and subsequently deviate from,
the melody while responding to relatively fixed rhythmic and harmonic accompaniment
upon which the original melody is based? What does this “subsequent” development en-
tail cognitively? Several cognitive components are at play in this experiment such as me-
mory, attention and the perception of patterns/sequences. If we assume that there are
basically three categories of response, i.e. imitation/repetition, silence, and variation (wit-
hin a musical form predicated upon a call and response paradigm) - as well as three basic
types of melodic contour, i.e. arc, inverted arc, and stationary, then what degree of co-
herence to the melodic contour can be measured over time in these “solos”3?

Introduction
This shameless appropriation of Descartes’ already flawed statement serves two
functions. The first thing is its catchiness; not unlike heralding devices used by
many jazz performers who “quote” a well-known melody or execute a “lick” from
an equally well-known predecessor. The intent is to get you, the reader or listener,
to pay attention; take notice of what is to follow. The second, and most important
function of this title is to suggest a deconstruction of its common associations4 and
have the reader (re) consider possible new meanings and associations, especially as
juxtaposed with the notion of improvisation. Joe Henderson’s composition, which
has become a jazz standard, actually has two titles – both in Portuguese. No Me
Esqueça translates “don’t’ forget me”, while the more common reference to the
same composition Recorda Me translates as “remember me”. Deciphering the sub-
tle differences in meaning of these titles is not within the scope of this paper, but
it is indeed these very subtleties that point to one of the most challenging issues in
cognitive science, i.e. understanding the nature of memory. The basic argument
here is that musical memory (as well as attention and expectation) is cultivated by
juxtaposing the original (prototype) with the new, and that improvisational trans-
formations are the result an embodied process that necessitates a social milieu. Im-
provisation, although a formidable study within music/cognitive science, presents
a methodological in-road or a means to challenge this narrative of Cartesian dual-
ism. This process will entail: 1) mapping (or comparing) the individual student’s
222 improvisation against the melody to reveal the level of coherence; 2) mapping the
students’ transcription with herself to reveal transformations; and 3) comparing all
the students’ transcriptions against each other to reveal tendencies (if any).

Improvisation
The ability to improvise is not only determined by how well a performer remem-
bers, but the storehouse of learning experiences she has actively engaged in and (re)
constructed. Improvisation is a progressive, yet coherent, set of musical behaviors
or actions taken in order to achieve the particular end of making new music in real
time. The quality and degree of improvisation in a given musical performance may
vary from artist to artist, and from culture to culture as the paradigms and param-
eters upon which the musical style are based also vary, [but] “there is always a model
that determines the scope within which a musician acts” (Randel 1986: 393). This
model may consist of elements internal to the music, e.g. harmonic structure,
melody, and rhythmic patterns. It may also be made up of elements and organiz-
ing principals determined by group and collective behaviors, e.g. the social-cultural
dynamics of an Indonesian gamelan or Dixieland jazz ensemble. In either case, the
model serves both as a basis of reference and a point of departure for improvisation.
The act of musical improvisation occurs in many, if not all, of the world’s musics.
For example: Indian classical music – Hindustani and Carnatic - dating back to
the 5th century utilizes the raga-tala as the chief organizing principles for extem-
pore transformations. Within Arabic-Persian music cultures many of the tradi-
tional forms are structured around the “maqam phenomenon” (Touma 1996). The
use of diminutions in Western art music beginning with the Ars nova of the 14th
century, mark an important performance practice that reached its apex during the
baroque period (1600-1750), then a precipitous decline at the dawn of the 20th
century. Most, if not all, Afro-Cuban son-based musics utilize the clave as the cen-
tral organizing principle [Example 1].

Example 1 — Rhythm Patterns, No me esqueça, M. Imara


All of these models, systems, and/or procedures are derived from generations of
practice and observation, which suggests that there is a dialectic and tension that
characterizes the process of modeling. The philosopher and statesman Kwame
Nkrumah summed up this dialectic process in the statement, “Theory without
practice is empty. Practice without theory is blind” (Nkrumah 1970:78). In addi- 223
tion to other cultural imperatives and historical exigencies that necessitate this cou-
pling of thought (theory) and practice - such as survival and human progress on a
collective level - there also seems to be an inherent drive in each individual for nov-
elty or newness. In his discussion of neophilia5, Geoffrey Miller states: [it] “is so in-
tense that it drives a substantial proportion of the global economy, particularly the
television, film, publishing, news, fashion, travel, pornography, scientific research,
psychoactive drug, and music industries” (Wallin 2001: 345). He suggests that
music functions as a “creativity indicator”, or a means by which humans strive to
form and maintain relationships with sustained interest and attraction. He also
states that this indicator “could be tested by seeing whether the capacity for musi-
cal improvisation and innovation correlates significantly with intelligence and cre-
ativity according to standard psychological measures” (Wallin 2001: 346).
Codifying and documenting the model in the form of the musical score has its var-
ied theoretical and practical purposes, but according to Derek Bailey “there is [also]
something central to the spirit of voluntary improvisation which is opposed to the
aims and contradicts the idea of documentation” (Bailey 1992:ix). In other words,
there is a human need to improvise.

The essence of jazz performance


Jazz is an established genre with a range of modeled performance practices making
up its 100-year (recording) history. One need only examine performers on one in-
strument - the tenor saxophone - to discern the diversity of approach from Lester
Young and Pixinguinha (1930’s and 40’s); to John Coltrane and Sonny Rollins
(1950’ and 60’s); to Joe Henderson and Hermeto Pascoal (1970’s and 80’s); and fi-
nally to Leo Gandelman and Branford Marsalis (1990’s to the present) to note
both improvisational divergence and aesthetic coherence. The tenor saxophone
can thusly be considered: 1) an artifact that commonly indexes a musical form; 2)
a broad set of performance practices or languages derivative of its practitioners; 3)
a medium for artistic standards derived from a decidedly closed community; and
4) an icon that captures the imagination of listeners while cultivating specific mean-
ing and a particular attitude toward life itself. The thread that connects the afore-
mentioned artists with otherwise disparate voices is more than the horn however.
It is improvisation.
Analogous to speech/language
There have been many analogies drawn between music and speech, including be-
tween improvisation and “spontaneous speech” (e.g. Deutsch 1982; Sloboda 1985;
Pressing 1988). Speech can be viewed as a model for music as grammatical para-
224
digm, and the laying out or situating of various forms of a word (e.g. conjugating a
verb, deconstructing sentences and parts of speech). If we consider, for example,
reading a given text as analogous to an imitative rendering of a specific melody,
then the analogy holds. [Figure 1] But most readers, as with musical artists, “are
more concerned with maintaining coherence6 than with reproducing faithfully what
has been read” (De Beaugrande 1981:291). This is especially true in one-to-one
conversation where gestures also contribute to meaning. Improvisation, like ex-
temporaneous speech may involve tangential deviations, some of which may en-
rich the conversation, while some of what is played (or spoken) may actually diverge
from what is intended or desired. In this sense, an extensive musical vocabulary
may be either a source of clarity or at the other extreme, obfuscation. As with
speech, syntax and meaning are as much a reflection of skill as it is a will or inten-
tion to communicate (Hallam 2008:25). If the focus upon the anatomy and tech-
nique of the music is not in the service of communication, then what do we have
left? Cecil Taylor commenting on John Coltrane’s playing once said: “His tone is
beautiful because it is functional. In other words, it is always involved in saying
something. You can’t separate the means that a man uses to say something from
what he ultimately says. Technique is not separated from its content in a great artist”
(Taylor 1959).
Figure 1 — Analogy between Language and Music
Language Music

Reading Reading

Writing Composing

Extemporaneous speech Improvising

Improvisation compared/contrasted with composition


Improvisation as compared and contrasted with composition is an equally reveal-
ing, important, yet incomplete analogy. Here we have a modeling of archetype
(composition) and prototype (improvisation). These notions are often used syn-
onymously, but there are subtle and important differences. An archetype is a per-
fect and immutable form that we can approach but never duplicate. A prototype
is a model of precedent that can be refined and used as a point of departure. When
we base our aesthetic upon the archetype, we invariably fall short, but the beauty
(for some) may be in the faithful rendering. An aesthetic sensibility aligned with
prototypes, on the other hand, tends to celebrate the striving and revelation of sin-
gular human voices. In other words, “the aesthetics of imperfection is humanistic”
(Hamilton 2007).
But there is a dialectic, and potentially symbiotic relationship between composing
and improvising as well, as Bailey suggests: “There is scarcely a single field in music 225
that has remained unaffected by improvisation, scarcely a single musical technique
or form of composition that did not originate in improvisatory practice or was not
essentially influenced by it. The whole history of music is accompanied by mani-
festations of the drive to improvise” (Bailey 1992:x). I would add that composi-
tion (the archetype) also informs improvisatory performance practice. For example,
reading the score for its graphic content, and realizing the sonic possibilities of per-
mutations of melodic shapes is a common practice amongst advanced players. [Ex-
ample 2]

Example 2 — Permutations, No me esqueça.


Different cultures value improvisation differently. Within Western art music his-
tory improvisation was arguably valued more in earlier periods (e.g. the Baroque
1600-1750) and less so in subsequent periods as the written composition (and in-
dividual composer) rose in importance and cultural value. This transition in value
was also influenced by political-economic factors as well (Attali 1992). Ironically,
it is within a decidedly western society (the United States) that an art form (jazz)
developed that would celebrate “the aesthetics of imperfection”. Too often this de-
velopment has been oversimplified and characterized as a ‘melding of European
harmonies with African rhythms’.
From the New York Sun, in 1917:
“Jazz music is the delirium tremens of syncopation. It is strict rhythm with out
melody . . . the music of contemporary savages taunts us with a lost art of
rhythm. . .for jazz is based on the savage musician’s wonderful gift for progres-
sive retarding and acceleration guided by a sense of swing”.
Or from the Times-Picayune, in 1918:
“There is first the great assembly hall of melody – where most of us [whites] take
our seats. . . in the house there is however, another apartment, properly spea-
king, down in the basement, a kind of servants’ hall of rhythm.”
226 These writers were obviously shortsighted, if not outright racist, inferring and
“modeling” a complex of cultural relationships and correspondences of identity [Fig-
ure 2].
Figure 2
European African
Melody/harmony Rhythm
Composition Improvisation
Literacy Orality
The Mind The Body

Unfortunately, many of these essentialist notions continue to exist in the current


century. But they are being challenged and made impotent by redefining not only
what constitutes elemental aspects of music (such as melody and rhythm), but the
integral role of the body in cognitive processes (e.g. Iyer 2002; Joy & Sherry 2003;
Hallam 2008; Kraus 2008). The body or one’s physicality is not something to be
construed as either subordinate or greater than the mind. Where, after all, does the
brain reside? Moreover, the further assertion that certain of the world’s people’s
have a natural affinity for, or propensity to express specific musical elements – in-
dependent of any enculturation process, is problematic.
In assessing the general state of improvisational research Richard Ashley observes
that: “The complex relationship of the human body’s ability to real-time music-
making has rarely been explored” (Hallam, Cross & Thaut 2009: 414). Part of the
difficulty in approaching this research is in developing methodologies that will help
document and assess this process, including (but not limited to) interviews, musi-
cian testimonies, and the study of transcriptions. These challenges are similar to
those faced by the performer herself. She must, “make use of the implicit knowledge
of musical structure possessed by listeners in order to make their in-the-moment
compositions coherent and stylistically appropriate” (Hallam, Cross & Thaut 2009:
414). An understanding of structure is not sufficient however, unless by “under-
standing” one means having the ability to rearticulate or translate musical knowl-
edge in real time, as Ashley suggests: “The knowledge one uses should be encoded
in procedural (know-how-to) rather than declarative (know about) form” (Hal-
lam, Cross & Thaut 2009: 415). In regard to integrating pattern in jazz perform-
ance V.J. Iyer has examined the cognitive processes of real time considerations of
coordinating performance with other musicians, often in the range of 40 millisec-
onds or less. (Iyer 2002) His work, amongst other things, strongly suggests the need
to establish research methodologies that involve an assessment of collective music
making. Coherence in musical improvisation is therefore, not only when a per-
former aligns their playing with, and/or deviates from a given melody, harmonic
structure and rhythmic feel of a given composition; but when she does so creating
logic that is consistent with the group.
Coherence in linguistics is what makes a text semantically meaningful. Robert de 227
Beaugrande defines coherence in his discussion of textuality, or music as text: “It is
the principal that connectivity should obtain among the underlying concepts and
relations” (De Beaugrande 1981:296). Moreover, it reflects a “continuity of senses”
(Luo 2003). Although a player may not play all of the right notes, “pointing to” or
being referential can, according to Ian Cross, create meaning. (Hallam, Cross &
Thaut 2009:25) Roland Wiggins also underscores the difficult, yet importance of
coherence by noting it is a “historic” moment when a musician successfully merges
or “connects” the kinesthetic, semantic and syntactical aspects of music. (Lateef
1981: preface) [Figure 3]
Figure 3
Kinesthetic Physical/body relationship to instrument
Semantic Emotional content, meaning, personal conviction, cultural context
Syntax Ordering, analysis, synthesis - signification

Formal Music Constraints


One of the tendencies of the culture of academia is to seek universals or archetypes.
In our quest for universals, specifically a theory of improvisation, we should si-
multaneously consider juxtaposing the local and the global. This is not problematic
if we consider the possibility of the co-existence of models that determine, if not
strongly influence, the real time performance outcomes with idiomatic or cultur-
ally determined preferences. We must not confuse the pedagogical need and socio-
economic propensity for classification with the biological and psychological
imperatives that are revealed and become illustrated by way of experimentation.
For example, the constraints within the (local) idiom of jazz may at once comply
with a range of acceptable aesthetic preferences (like the differences between
Coltrane and Kenny G), yet fit into what Gjerdingen calls “a topology of five
higher-level musical constraints” (Jones 1992:227).
Figure 4 — Gjerdingen’s Topology7
• A preference for filling in melodic gaps
• A preference for continuing melodic lines
• A preference for an arch-like melodic contour
• A preference for pitch variety
• A (weak) preference for the important pitches in each modal scale
Informal Cultural Constraints - aesthetics
Why do we like and choose to listen to the music we do? From the perspective of
the improviser: why do we choose to play a certain way? Or do we play what we pre-
fer to hear? Preferences are the choosing, or giving advantage to one thing over an-
228
other, yet they are broadly speaking, short-term commitments, i.e. “the music,
whether a style or piece, that people like and choose to listen to at any given mo-
ment and over time” (Price 1986). Taste, on the other hand, is a relatively stable
valuing. Here we move into the domain of aesthetics, especially considering the
guiding principles derived from a given historically definable “jazz” community or
“the local”. In his discussion of a dialectic and continuum between composition and
improvisation, Andy Hamilton notes, “the aesthetics of imperfection finds virtues
in improvisation which transcend the errors in form and execution” (Hamilton
2007:196). Both the challenge and cultural constraints for jazz musicians are to
find solace and motivation in the process of music making, while being viable within
broader “global” communities that value the end product.

Coherence:
considering the formal and informal constraints
Coherence, and I would argue effectiveness, is proportional to the repertoire of pro-
cedures or options a musician has under her control. Some of these procedures are
- as stated above - formalized constraints of the music, while other restrictions are
external, i.e. aesthetics. Within the formal domain: “It is clearly not enough for an
improviser to know his or her performance must be structured. The improviser
must have rapid access to a large and well-organized body of knowledge” (Deutsch
1982: 484). If we assume that all musical structures are determined by a tonal-spa-
tial factor and a rhythmic-temporal factor, then we must not privilege one over an-
other. Within the informal domain, “control” may be marked by an awareness and
access to culturally specific languages or musical vernaculars. In certain music’s (e.g.
maqam performance) pitch organization may dominate. In others (e.g. hip hop)
rhythmic preferences and its subsequent attention, may reign supreme. But what
happens when rap - a western musical derivative - “invades” or influences musics of
the Middle East?8
Not only is there a need to re-attend, but also assume that other aspects of cogni-
tion (e.g. expectation and discrimination) are also potentially confounded. The
ability of the improviser to produce a desired or intended result (i.e. efficacy) within
this new cultural context is largely determined by her control of both the formal
and informal domains of constraints. In their discussion of musical preferences La-
mont and Greasley state that: “motivations for music listening are context-de-
pendent” (Hallam, Cross & Thaut 2009:164). This must also be true of improvisers,
if we assume that “culture should not be treated as a variable but rather as the
medium through which all real-life experiences are mediated” (Hallam, Cross &
Thaut 2009:165-6).
Musical cognition of an improviser involves a consistency of attention, cohesion in
establishing expectation, and a clarity of discrimination within a framework of for- 229
mal and informal constraints. The freedom of improvising actually means playing
FREEly within, and because of, a DOMain. It is precisely this domain (i.e. the con-
straints) that provides the point of departure and frame of reference for meaning
and “intentionality”, especially in a group context (Hallam, Cross & Thaut 2009:
24-25). As the bassists Chuck Israel reflects:
“People never understood how arranged Bill Evan’s music really was. Sure, it was
free and improvised. But the reason we could be so free is that we already knew
the beginning, the middle, and the ending.” (Berliner 1994: 289)

Cognitive processes as ‘call and response’


Several cognitive components are at play in the experiment that is improvisation.
How does one simultaneously “pay attention” to a bass line, a chord played by the
pianist, or one’s own sound and intonation? How does one concentrate on the
patterns being played on the ride cymbal? What is involved in processing and ex-
ecuting ii-V-I patterns? Can I remember the form simply by audiation9? It is a
daunting task for the young musician who is just learning the basic properties of
their instruments. Moreover, this coincides with learning to feel comfortable in a
group setting while being charged to invent anew. They are being asked to “take a
risk”, to do something that seems antithetical to just “reading the lines and dots”.
According to the researcher Csikszentmihalyi: “such risk-taking ventures trans-
form individuals through. . .a flow experience, defined as a pleasurable somatic state
induced by focused attention on an intense activity” (Joy and Sherry 2003:260).
“Cognitive ability” is thus acquired, in part, by not only juxtaposing the old/known
with the new/unknown, but also by a performative response to the “call” of a spe-
cific musical milieu. Embodied (cognition) thinking, the acquisition of knowledge
through the senses, or through physical activity, is not a linear process however.
When a jazz musician utters, “I hear you” or when one member of a group uses an-
other performers’ “lick” as a point of departure and thematic development, there
is cyclical intentionality. There is the potential for shared thinking or social cogni-
tion, i.e. a conversation based on a ‘call and response’ trope. Embodiment can thus
be viewed at the cognitive level, as well as the phenomenological level. It is the
kinesthetic experience of musiking. According to Joy and Sherry (2003) [it is] “sen-
sorimotor and other bodily oriented inference mechanisms [that] inform their
processes of abstract thought and reasoning”. Jazz performance is evidence, if not
a measure, of the embodiment of thinking because thought processes are linked to
movement and a sensual acuity of the present moment. Although this experiment
only “points to” the linkages, it is supportive of other research that underscores the
importance of a laboratory that studies group dynamics of improvisation.

230

Example 3 — Joe Henderson, No me esqueça.

No Me Esqueça
There exist “a large set of formal constraints which comprise a ‘blueprint’ or ‘skele-
ton’ for improvisation; some determined by “common practice” [and hence global]
and some determined by individual [or local] artists (Sloboda 1985:13). No Me
Esqueça is exemplary of formal constraints. It is a jazz standard that has been
recorded no fewer than 70 times by various artists. The “experiment” is to deter-
mine in what ways would young musicians (ages 18-24) align themselves with, and
subsequently deviate from, the melody while responding to relatively fixed rhyth-
mic and harmonic accompaniment upon which this melody is based. Harmoni-
cally, No Me Esqueça [Example 3] presents a series of ii-V-I patterns in a descending
sequence, after eight measures of modal harmony on A Dorian and C Dorian:
Cm7-F7-Bbma7 / Bbm7-Eb7-Abma7 / Abm7-Db7-Gbma7 / Gm7-C7-Fma7. It
then culminates in an E7#9 chord (split third). The melodic contour largely con-
sists of arc and inverted arc structures, with a tessitura of a tenth [C0 to Eb1].
Contexto histórico
Jazz and other musics of the African Diaspora exhibit what Olly Wilson refers to
as “six tendencies” (Floyd 1985:262). Amongst them:
“There is a tendency to create musical forms in which antiphonal or call-and- 231
response musical structures abound. These antiphonal structures frequently
exist simultaneously on a number of architectonic levels.”
This notion is also articulated in the work of Anthony Braxton (1985) who suggests
that there is a cognitive “feedback loop” predicated upon reflexive performance
practice, i.e. constructing models based upon self-referential terms. Jazz, like other
musics of the African Diaspora10, are musics born of a particular historical speci-
ficity, i.e. Within historically definable communities and “cultures” (Becker 2004).
Jazz, like other world musics, began as a local expression. It has flourished and be-
come a vehicle to/for many musicians across space-time (as mentioned above).
Questions of essentialism not withstanding, “call and response”, although pro-
foundly articulated as paradigmatic of African Diaspora music cultures, has re-
mained a central organizing principle wherever “jazz” is performed. Any
methodology used in examining the nature of jazz/improvisation should therefore
consider “the importance of studying cognition as the interaction of a person [the
performer] with a milieu” (Becker 2004:6).
For Joe Henderson (1937-2001) the harmonic rhythm was not the only constraint
or parameter employed in his playing. For example, the melodic contour played as
a real sequence was a common device he employed to generate both variety and co-
hesiveness in a piece. This was done not only in response to the internal logic of
the harmony, but always as a response to the sonic exigencies presented by the
rhythm section. According to the bassist Rufus Reid, he would “take all kinds of lib-
erties in his solo. He’d take things outside, playing notes from chords superim-
posed on the original chords of the piece” [but] “no matter the direction in which
he stretches it, nor how far, Henderson never allows it to break, but returns it al-
ways to form” (Berliner 1994:226).

Methodology
The composition was taught by: demonstration, sheet music, directed listening of
recordings, and an analysis of the harmonic rhythm. This information was pre-
sented in the following manner:
• Teach the scale-chord theory specific to the composition [Example 4]
• Teach the basic rhythm patterns: 2:3 clave, cascara, timbao, pulse [Example 1]
• Have students [at minimum] demonstrate the memorization of the melody,
harmonic rhythm, and basic rhythm [percussion] patterns
• Have students perform [in rehearsal] improvisations of two choruses once each
week
• Record student “improvisations” over 6 week period
• Transcribe student performances.
232

Example 4 — J. Henderson, No me esqueça, scale-chord.

Analysis
Figure 5 — Comparisons.
Original melody Individual student improvised melody
Individual student improvised melody (initial Individual student improvised melody (perfor-
performance) mances over time)
Individual student melody (performances over Aggregate of group performances
time)

The transcriptions reflected a movement from fragmented melodies to typical


melodic constructions, i.e. arch, inverted-arch, and static lines – all of which ad-
hered to, or are found in No Me Esqueça. Initially the improvised melodies tended
toward a static type with relatively low tessitura; range of a 3rd to a 4th
below/above the original melody pitch. But there was also a propensity toward as-
cending lines rather than descending after initiating a phrase. The phrases11 of the
composition were four measures. Student phrases were generally short (less than
two measures) compared to the original melody, especially when traversing the ii-
V sequences (Ex.1. m.9-16). These preliminary results suggest a propensity toward
arc-like melodic structures, i.e. a preference for an arch-like melodic contour
(Jeppeson 1935). The conscientious and controlled use of embellishing tones12 and
ornaments is an indication of coherence. However, the student-performers rarely
employed “dramatic devices” such as: trills, shakes, mordents, or even purposeful
use of silences (Baker 1988:12-19). Students became more comfortable with the
process as the semester progressed. Their willingness to “go first”, or be recorded
more than once in a session grew with the process. They began to talk about and de-
velop strategies for “soloing” on/over certain harmonies using more of the rhythms
played by the percussion section. The reflective aspect of critiquing themselves per-
forming has proven useful as they begin to note: 1) what they were “pointing to” or
trying to reach, hence know specifically what they need to practice; and 2) how 233
their sound may differ from their peers, but contains its own logic – and can thus
be appreciated accordingly.

Conclusions
At minimum, my students have come to realize that being a “jazz” musician is not
as easy as common perception and popular narratives may project. They sense now,
as Derek Bailey has suggested, “that there is no musical activity which requires
greater skill and devotion, preparation, training and commitment” (Bailey 1992:x).
They made many comparisons with being an athlete, as well as statements regard-
ing specific physical challenges to executing rapid passages (dexterity); slow pas-
sages/phrases across the bar (breath control), and the need to simultaneously hear
one’s self and others, i.e. concentration. The ability to improvise and the concor-
dant cognition are not unlike a good basketball or soccer player, who practices both
individual technique and set group plays ad infinitum. She is then exposed to real
game situations where she cannot afford to “think” outside of time constraints, but
must “see” and “feel” a play unfold. The exigencies of the moment allow for an ex-
pression of relevant technique that has been thoughtfully, if not unconsciously,
embodied (as in the Latin, incorporare). The question remains as to whether there
are musical tendencies generated in these early stages of improvising that can in-
form the learning process. Are their tendencies that are only expressed within a
group context? A much larger sample must be taken, and over a longer period of ob-
servation.
Perhaps it is an obvious point that the more one practices, e.g. scales, arpeggios, and
other melodic patterns – the better one will play. Embodiment infers that the per-
former has internalized the scale, the chord, or the pattern, i.e. ‘remembered’ them
in her body. But this is no guarantee of proficiency or efficacy as an improviser. This,
of course, would be analogous to someone memorizing subject-specific vocabulary
with the expectation of giving extempore speeches on that given subject. This may
be the case of a necessary, but insufficient condition of preparation. A sufficient
condition would include intentionality, or a purpose for constructing a model or
an image. According to Fela Sowande: “Imagination really means the ability to give
birth to images” (Cole 1976: 186). Although there are noticeable tensions, anxiety,
and resistance to improvising, even in the “safe” environment of the classroom, it
is in fact, this type of musical milieu that helps cultivate a sense of order, syntax,
and a raison d’être for our imagination. Part of the challenge for educators and mu-
sicians is to deconstruct and replace “common associations” that are practiced or
learned in one space-time (the practice room) in favor of the new sonic environ-
ment. Jazz performance is evidence of the tendency, effort, and striving for co-
herency and efficacy within a group (or social) context. Much to my delight, my
234 students are forming a music community as a result of, and part of this reflexive
process. Their “aesthetic sensibilities” are tending toward a realization of their “sin-
gular human voices” by way of hearing them expressed in a group. This marks an
important cognitive transformation.
For these young learners, there was indeed a tendency toward alignment with the
original melody, [while] for mature performers, like the great Joe Henderson13,
there was a propensity to not deviate from the constraints of the composition, but
to elaborate upon the musical conversation based upon lived experience, i.e. form
a greater coherence. This ontological notion may be analogous to the history and
evolution of jazz-improvisational performance practice itself; from an early New
Orleans’ emphasis on melodic variations and polyphonic interplay, as exemplified
in the saxophonist Sidney Bechet – to the denser structures and imaginings of John
Coltrane, that arguably embodied the “language” of all of his predecessors. One of
my composition professors once said, “Music is mankind’s greatest accomplish-
ment.  It’s an untranslatable language, a world in itself.” 14 I respectfully disagree
with my mentor and offer up the aforementioned reasons. This also prompts me to
re-imagine Descartes’ famous statement to read: “I am, and this is confirmed by a
milieu, and that’s how and why I am able to think”.

1 Sloboda, John A. (1985) The Musical Mind: The Cognitive Psychology of Music. Oxford:
Clarendon Press, p. 13
2 Portuguese trans. “Don’t forget me”. Also known as Recorda me = “Remember me”
3 Improvisation within jazz traditions is often referred to inaccurately by this term. The phe-
nomenon of creating melodic variations in real time is more related to group/collective dy-
namics.
4 “Cogito ergo sum” (I think, therefore I am) forms the basis of a dominant narrative wit-
hin Western philosophical thought that assumes a separation between mind-body, as well
as situates the “mind” as primary.
5 An acute interest in novelty and variety.
6 In the sense of clarity, unity, forming a whole image (vs. a focus on disparate parts).
7 Gjerdingen’s work is an assessment of a range of other researchers in this area, including:
Jeppesen 1935, Meyer 1989, and Dahlhaus 1990.
8 Consider for example, the very popular Ceza (Bilgin Özçalkan) the Turkish rapper.
http://www.myspace.com/ceza
9 The process of mentally hearing and comprehending music, even when no physical sound
is present.
10 The African Diaspora, especially in the Americas has produced many forms that may in-
clude some degree of improvisation: e.g. samba (Brazil), son (Cuba), blues (U.S.), rara
(Haiti), reggae (Jamaica), and calypso (Trinidad).
11 A melodic unit typically, four to eight measures long, which expresses a complete musi-
cal thought 235
12 Pitch(s) that serve as a connection between or a decoration of the more important pitches
of a melodic line, e.g. types include: passing, escape, anticipation, retardation, suspensions.
13 I was fortunate to have studied privately with Mr. Henderson from 1979-1981.
14 David Sheinfeld. http://www.creativefilms.com/Sheinfeld/David_Sheinfeld/
Biography.html

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A linguagem de sinais para improvisação Soundpaiting:
sinalizando uma nova ferramenta para a formação musical
Bruno Coimbra Faria
brunocfaria@gmail.com 237
Departamento de Artes e Design
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo
Este trabalho apresenta em caráter introdutório o que é a linguagem de sinais para im-
provisação, Soundpainting, seus mecanismos básicos de funcionamento, e aponta pos-
sibilidades para o uso da mesma como ferramenta para formação musical,
acompanhando, portanto, as discussões que abordam o papel da criatividade no pro-
cesso de desenvolvimento do músico. O surgimento e desenvolvimento desta linguagem
se deu majoritariamente na área da performance, especialmente através do trabalho de
profissionais ligados ao jazz, e apenas recentemente a mesma passou a integrar a agenda
de práticas e reflexões do meio acadêmico. Dentre as várias formas possíveis de se ex-
plorar a linguagem Soundpainting, focamos nossa atenção no uso da mesma como uma
ferramenta para promover o desenvolvimento musical através da criação e acreditamos
que assim podemos propiciar aos estudantes experiências que não seriam possíveis atra-
vés de meios tradicionais. Relataremos brevemente nossa experiência com o uso da
mesma com alunos do curso de bacharelado em música da Univerisdade Federal de Juiz
de Fora.
Palavras Chave
Soundpainting, improvisação, formação musical.

O surgimento da linguagem Soundpainting


Em meio à efervescência cultural (e experimental) da segunda metade do século
XX, surge nos Estados Unidos da América a linguagem de sinais para improvisação,
Soundpainting, criada pelo compositor e saxofonista Walter Thompson (b.1952).
Os primeiros sinais foram por ele elaborados na década de 1970, em Woodstock,
para estruturar seções de improvisos em composições de sua autoria (Thompson
2009: 77). O trabalho de Thompson resulta da confluência de várias correntes cria-
tivas com as quais teve contato: inicialmente, no âmbito familiar, Thompson foi
influenciado pela arte e pelos processos criativos de seu pai, Ron Thompson, pin-
tor participante do movimento expressionista abstrato liderado por Jackson Pol-
lock (1912-1956); posteriormente, Thompson sofre influência direta do
compositor Anthony Braxton (b.1945), com quem estudou composição e saxo-
fone por sete anos; outras influências foram compositores com os quais Thomp-
son teve contato através de workshops promovidos pela
Creative Music School, fundada em Woodstock por Ornette Coleman (b.1930),
como por exemplo, John Cage (1912-1992), Ed Blackwell (1929-1992), Carlos
Santana (b.1947), Carla Bley (b.1936), Don Cherry (1936-1995) e outros. Os anos
de formação com o Sr. Braxton, cujo trabalho é marcado por uma pluralidade cria-
238 tiva e pela resistência à rotulações, foram significativos para a ampliação dos hori-
zontes de Thompson que considera a linguagem Soundpainting como diretamente
descendente de percursos musicais que vinham sendo traçados por Charlie Parker
(1920-1955), Miles Davis (1926-1991), Ornette Coleman e Anthony Braxton.
Além das influências que Thompson sofreu, ele aponta sua frustração com o free
jazz e com os rumos que tomavam as seções de improvisação em suas composições
como motivos que o levaram à desenvolver esta linguagem de sinais, explorando os
sinais como uma tentativa de estruturar os momentos de improvisação de suas peças
de acordo com o que havia planejado previamente e registrado em partituras
(Thompson 2009: 77; Duby 2006: 6-3). Para Duby, “deveria ser evidente que a na-
tureza [da linguagem] Soundpainting é de interrogar algumas das pretensões e fron-
teiras de gênero do jazz, assim com da música experimental”. (Duby 2006: 6-4, grifo
meu)
A natureza questionadora que Duby identifica na linguagem Soundpainting re-
sulta não só do contexto no qual esta surgiu e das motivações de Thompson para
cria-la, mas também da maneira como suas engrenagens a colocam em funciona-
mento, relativizando as fronteiras que demarcam os papéis do intérprete, do com-
positor e do regente. Duby considera que a linguagem Soundpainting “pode ser
vista como um tipo de desconstrução das relações de poder da música sinfônica do
século XIX” (Duby 2006: 1-11). Em Soundpainting não cabe ao performer apenas
interpretar uma linha musical previamente elaborada por um compositor e con-
duzida por um regente, mas sim criar sua própria linha a partir da interpretação
que faz dos gestos indicados pelo soundpainter/compositor; quanto à este último,
não cabe a ele dirigir a performance de uma peça pré-composta, mas sim criar uma
nova peça de acordo com sua interpretação das respostas sonoras improvisadas pelo
grupo para cada gesto ou grupos de gestos indicados no decorrer da composição.
Na experiência com a linguagem Soundpainting, performer (s) e soundpainter (s)
interagem, percebendo, criando e interpretando simultaneamente. Operformer é
intérprete de sua própria voz e, através da improvisação, identifica possibilidades de
expressão ao mesmo tempo que percebe necessidades de aprimoramento e desen-
volvimento musical. Já o soundpainter, indivíduo que frente ao grupo dá forma à
composição através dos sinais, é um compositor que manuseia o material improvi-
sado pelo grupo de performers, definindo os rumos da obra a partir da colaboração
criativa com o conjunto, improvisando e, por oras, assumindo também um papel
similar ao de um regente ao estabelecer alterações de tempo, dinâmica e intenções.
Em Soundpainting, portanto, a criação está no espaço entre o gesto e aquilo que o
gesto não impõe, sugere. As fronteiras que delimitam os papéis do intérprete, com-
positor e regente na música de concerto são questionadas e, em Soundpainting, se
tornam assim elásticas, vazadas, transpassadas em um campo que não se fecha no gê-
nero, mas que se abre na experiência de atravessar o momento pelas vias da perfor-
mance criativa. 239

Soundpainting e suas engrenagens


Apesar de ter sido direcionada inicialmente apenas para a música, a linguagem
Soundpainting, hoje, é multidisciplinar e seu vocabulário supera 1000 gestos
(Thompson 2009: 77). Estes gestos estão codificados e organizados em categorias
e funcionam através de uma sintaxe própria. As categorias identificam os gestos
como Sculpting-Escultores e de Function-Função, e a sintaxe organiza os sinais que
indicam quem deve tocar - Who (indicadores), que tipo de material explorar - What
(de conteúdo), de que forma fazê-lo - How (modificadores), quando iniciar ou parar
- When (de início ou fim), além dos gestos <Modes-Modos> (parâmetros que afe-
tam gestos) e <Palettes-Paletas> (trechos de material previamente ensaiado)
(Thompson 2006). Dentro desta estrutura, estudantes e profissionais da música,
dança, teatro e artes visuais improvisam a partir da interpretação dos sinais que lhes
são apresentados pela figura do soundpainter.
O ambiente gestual da linguagem Soundpainting gera uma variedade de sonorida-
des que resultam dos parâmetros sonoros atribuídos a cada sinal, sendo que o grau
de especificidade do resultado sonoro é variado. Há, por exemplo, os gestos <Long
Tone - Nota Longa> (ex. fig. 1) que geram notas longas em alturas que variam de
acordo com a posição em que o soundpainter preparou o gesto; outros que produ-
zem sonoridades de caráter mais aleatório, como o gesto <Pointillism - Ponti-
lhismo> (ex. fig. 2), cuja improvisação será baseada em grupos de notas de caráter
predominantemente curto em alturas variadas da tessitura do instrumento; outros
como o <Minimalism - Minimalismo> (ex. fig. 3) que estabelece a improvisação
de padrões rítmico-melódicos; além de gestos como <Scanning – Escaneando>
que, quando utilizados sem nenhum gesto adicional, geram resultados inesperados,
pois fica a critério do performer qual conteúdo explorar quando o gesto o torna
ativo no momento da performance. Cabe ao performer saber explorar de forma va-
riada cada parâmetro sonoro embutido em cada gesto e, ao soundpainter cabe saber
lidar com as sonoridades apresentadas pelo grupo, avaliar o material que soa a cada
momento da composição e definir os rumos da mesma explorando os diferentes
graus de especificidade inerentes a cada gesto.
240

Figura 1 — <Whole Group - Todo Grupo> <Long Tone - Nota Longa>

Figura 2 — <Whole Group - Todo grupo> <Pointillism - Pontilhismo>

Figura 3 — <Whole Group - Todo Grupo> <Minimalism - Minimalismo>


Seguindo a sintaxe da linguagem, é preciso sinalizar respectivamente quem parti-
cipará da performance, que conteúdo deve ser explorado naquele momento da
composição, como abordar aquele conteúdo (em que dinâmica/tempo) – este gesto
pode ser utilizado ou não pelo soundpainter, e quando/de que forma começar.
Como exemplo, temos abaixo figuras (1 à 6) dos gestos utilizados na frase <Whole
Group – Todo Grupo>, <Long Tone – Nota longa> (altura média), <Volume
Fader (piano) – Volume “piano”>, <Play – Toque>.

241

1. Whole group. 2. Long tone. 3. Long Tone (2).

1. Volume fader. 2. Play. 3. Play (2).


(Todas as imagens tiveram sua reprodução autorizada por Walter Thompson)

A linguagem Soundpainting não utiliza, portanto, a notação musical tradicional e


explora majoritariamente a improvisação baseada em parâmetros sonoros isolados,
embora seja possível também utilizar outros tipos de improvisações. Estes dois as-
pectos são pontos importantes para que habilidades musicais possam ser trabalha-
das na prática de conjunto, muitas vezes de forma lúdica, sem a interferência de
medos e tensões, independentemente da área de atuação do músico e do estágio
técnico-musical em que se encontra. Para Marc Duby, a prática de Soundpainting
cria “um ambiente musical, de alguma forma, menos ameaçador do que o de uma
orquestra” (Duby 2006: 1-20) no qual crianças ou músicos não habituados à leitura
de partituras podem participar. Da mesma forma, como não se trata de uma im-
provisação idiomática como no jazz, por exemplo, músicos eruditos também
podem improvisar sem desconforto. Swanwick aponta situações comuns nas quais
“um improvisador talentoso a quem se pede para tocar música grafada e com-
posta por outra pessoa pode sentir-se constrangido ou sob pressão, incapaz de
desenvolver as idéias musicais livremente. Nessa situação, as oportunidades para
funcionar de uma maneira musical com entendimento podem ser diminuídas
em vez de expandidas, pelo menos inicialmente. De igual modo, um executante
fluente e sensível pode se sentir perdido se for solicitado a compor ou improvi-
sar, e pode demonstrar um nível no qual a compreensão musical não seja reve-
lada nem ampliada”. (Swanwick 2003: 95)
A partir da linguagem Soundpainting cria-se, então, um ambiente que ameniza estes
desconfortos gerados pelo contato com um meio desconhecido, desconfortos mui-
242 tas vezes potencializados pelo fator “erro”, que se torna um elemento bloqueador.
Para Thompson, “um dos aspectos mais importantes do aprendizado de Sound-
painting é se acostumar com a filosofia Soundpainting que diz ‘Não existe tal coisa
como um ‘erro’” (Thompson 2009: 82). O erro em Soundpainting é considerado
como um elemento que acarretará uma “oportunidade para nova exploração”
(idem). Para Nachmanovitch, “os erros e acidentes podem ser grãos de areia que se
transformarão em pérolas; eles nos oferecem oportunidades imprevistas, são em si
mesmos fontes frescas de inspiração. Aprendemos a considerar nossos obstáculos
como ornamentos, oportunidades a serem aproveitadas e exploradas” (Nachma-
novitch 1993:87).

Soundpainting como ferramenta para formação


As três características básicas da linguagem Soundpainting (não utilizar notação
musical tradicional, a possibilidade de trabalhar a improvisação a partir de parâ-
metros musicais outros que não relações harmônico-escalares e considerar o erro
como um elemento importante para o processo de desenvolvimento musical), nos
levam a considerá-la uma ferramenta apropriada pedagogicamente para ser utili-
zada com músicos que não tiveram um contato prévio consistente e contínuo com
a improvisação e, sendo assim, acreditamos ser possível criar um quadro diferente
daquele identificado por Swanwick, permitindo que a “compreensão musical” seja
“revelada” e “ampliada”. Através da improvisação estruturada e coletiva promovida
por esta linguagem, propomos que cada aluno busque complementar, transformar
e confirmar os saberes que estão em construção nas aulas de instrumento e demais
disciplinas oferecidas no decorrer de um curso de música. Segundo Costa, esta im-
portante parcela do processo formativo que acontece através da improvisação, “se
caracteriza pela transformação de estruturas, ou formação de novas relações estru-
turais, de fragmentos já assimilados anteriormente, criando um mundo de novas re-
lações a partir de elementos já conhecidos que rodeiam o sujeito, surgindo daí uma
nova reconstituição de possibilidades” (Costa 2005: 367).
Nas atividades já realizadas com alunos do bacharelado em música da Universidade
Federal de Juiz de Fora, propomos que os mesmos vivenciem esta experiência
Soundpainting sob duas perspectivas: enquanto performer, improvisando como
membro de um grupo, e enquanto soundpainter, estruturando e compondo em
tempo real a partir de sua percepção das improvisações do grupo. Dessa forma, per-
cursos diferentes se abrem para que o aluno des(cubra) (Amador e Fonseca 2009:
32) maneiras de se expressar e se aprimorar. Seja na atuação como performer ou
soundpainter, a aproximação com a metáfora cartográfica na idéia de traçar um per-
curso e neste encontrar respostas nos posiciona como acompanhadores “de pro-
cessos em curso”, neste caso a improvisação, que nos convoca para “um exercício
cognitivo peculiar [. . .] que requer uma cognição muito mais capaz de inventar [im-
provisar] o mundo, [. . .] invenção que somente se torna viável pelo encontro fe- 243
cundo entre pesquisador [músico] e campo [de] pesquisa [performance-
improvisação-soundpainting], pelo qual o material a pesquisar passa a ser produ-
zido e não coletado.” (Amador e Fonseca 2009: 31, grifo meu) Na percepção e in-
teração com o ambiente sonoro gerado em atividades de Soundpainting o
músico-pesquisador se posiciona “como aquele que vê [ouve] seu campo de pes-
quisa de um determinado modo e lugar em que ele se vê compelido a pensar e a ver
[e, neste caso também, agir] diferentemente, no momento mesmo em que o que é
visto [ouvido] e pensado se oferece ao seu olhar [ouvir]” (idem).
Para a situação em que o aluno atua como performer, buscamos organizar frases de
Soundpainting que explorem diferentes aspectos musicais e dificuldades particula-
res de cada instrumento e acompanhamos o desenvolvimento das respostas im-
provisadas, a adaptabilidade e comunicabilidade entre os membros do grupo e a
sonoridade geral. Para a situação na qual o aluno atua como soundpainter, buscamos
perceber como o mesmo se relaciona com as sonoridades improvisadas pelo grupo,
delimitamos, como exercício, quais e quantos gestos devem ser utilizados nas com-
posições e avaliamos as decisões que este faz para estabelecer o andar da composi-
ção. Outro exercício utilizado é uma espécie de ditado de Soundpainting,
desenvolvido pelo soundpainter Vincent Le Quang, professor do Conservatório de
Paris, no qual uma frase é apresentada ao aluno que, após ouvi-la, tenta reproduzi-
la enquanto soundpainter, utilizando os gestos correspondentes às sonoridades can-
tadas, trabalhando assim sua percepção.
Dada a história da linguagem Soundpainting que surgiu, foi desenvolvida e explo-
rada predominantemente na área da performance e, uma vez que a natureza desta
linguagem flexibiliza os papéis e a atuação de instrumentistas, compositores, re-
gentes, obscurecendo a linha divisória entre composição, performance e improvi-
sação, torna-se necessário adaptar ou criar métodos para observar e investigar os
processos gerados por esta prática musical enquanto ferramenta de formação. Uma
base que utilizamos para avaliar e compreender o trabalho em desenvolvimento na
UFJF com a linguagem Soundpainting, provem dos métodos de investigação pro-
postos por Sloboda (2008) e apontados por Fogaça (2009: 382):
1.“Exame da história de uma determinada composição, conforme os manuscritos
do compositor.”
2. “Análise daquilo que os compositores dizem a respeito de seus próprios méto-
dos de composição.”
3. “A observação ‘ao vivo’ dos compositores durante sessões de composição.”
4. “Observação e descrição de execuções improvisadas: o compositor é o executor,
que produz um enunciado musical sem nenhuma premeditação em contexto
público.”
No adaptação para o contexto Soundpainting tratamos estes pontos da seguinte
244 forma:
1. Exame do planejamento das composições dos alunos/soundpainters, conforme
os rascunhos que fazem de combinações de sinais da linguagem Soundpainting.
2. Análise daquilo que os alunos/soundpainters dizem a respeito de seus próprios
métodos de composição e de performance – das escolhas quanto à organização
dos sinais no momento de elaboração dos rascunhos e as adaptações necessárias
e/ou possíveis no momento da realização da composição.
3. Observação ‘ao vivo’ da atuação dos alunos/soundpainters e performers.
4. Observação e descrição das performances, das realizações da composição: o
soundpainter e o performer são executores, que em contexto público produ-
zem um enunciado musical com ou sem alguma premeditação e que, no caso
de ter havido uma premeditação, adapta suas escolhas no decorrer da compo-
sição.
A partir destas atividades buscamos explorar a linguagem de sinais Soundpainting
como uma ferramenta para a formação musical, unindo à variada prática musical
que dela resulta reflexões sobre o ensino e aprendizagem de música.

Conclusão
A linguagem de sinais para improvisação Soundpainting surgiu e foi explorada ma-
joritariamente na área da performance, mais precisamente na performance ligada
ao jazz, e, por isso, a pesquisa com esta linguagem no meio acadêmico se encontra
ainda em fase inicial. Observando o conjunto de práticas possíveis de serem reali-
zadas com a mesma, notamos que o exercício da improvisação estruturada proposto
com Soundpainting possibilita mudanças de perspectivas que podem trazer bene-
fícios para a formação musical do indivíduo. O aluno deixa de ser apenas um ins-
trumentista que cumpre com sua agenda de exercícios e com um repertório de peças
compostas por compositores de diversas épocas e passa a ser também um criador,
capaz de ouvir, pensar e lidar com a música de outras formas. Com essa experiên-
cia, esperamos contribuir para que os processos de desenvolvimento musical sejam
mais amplos e diversificados, que ofereçam ao aluno outros meios para expressar sua
musicalidade.

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O papel do dedilhado na expressividade cravística: aspectos
cognitivos no ensino e preparação para a performance
Nivia Gasparini Zumpano
246 niviazum@hotmail.com
Edmundo Pacheco Hora
ephora@iar.unicamp.br
UNICAMP/Campinas

Resumo
O presente trabalho trata de um estudo de caso com cravistas e investiga as vantagens
de uma abordagem simultânea dos aspectos técnicos e expressivos, especialmente no
tratamento dos dedilhados, e sua relação com aspectos cognitivos. O estudo foi realizado
a partir da observação das aulas e sessões de estudo de três alunos de graduação do De-
partamento de Música do IA/UNICAMP, nas disciplinas de Cravo e Instrumento Com-
plementar, durante o segundo semestre de 2009. Observou-se que os alunos costumam
priorizar os aspectos técnicos e a decodificação dos elementos da partitura escrita, mui-
tas vezes negligenciando as questões expressivas em sua abordagem inicial do repertó-
rio. Tais resultados, embora obtidos em caráter preliminar e com número reduzido de
alunos, estão em consonância com pesquisas realizadas no contexto do ensino de te-
clados (especialmente o piano), e ressaltam a necessidade de uma maior reflexão sobre
o assunto por parte dos professores desta área. Assim, este trabalho estrutura-se da se-
guinte maneira: inicialmente, é apresentada uma abordagem do conceito de expressivi-
dade musical ressaltando seu caráter transitivo; na seção seguinte, passa-se às indicações
de dedilhado no tratado de Carl Phillip Emanuel Bach e a forma como este autor aborda
a relação entre este fator e a expressividade, para então serem analisadas duas de suas
indicações; em seguida, apresenta-se uma discussão sobre as vantagens da abordagem
simultânea dos aspectos técnicos e expressivos desde o primeiro contato dos estudan-
tes com o repertório, e sua relação com aspectos cognitivos. Por fim, são comentados
os resultados obtidos no estudo de caso com os alunos cravistas e apresentadas as con-
siderações finais. Este trabalho constitui parte de uma pesquisa de doutorado, em anda-
mento, em que se pretende realizar um estudo sobre as diferentes abordagens da
expressividade musical, aplicando-as aos contextos do ensino e preparação para a per-
formance cravística. A pesquisa é financiada pela Capes.
Palavras-chave
Expressividade Musical e Cognição; Cravo; Dedilhados em Teclas; Ensino de teclados.

Introdução
Em música, o termo expressividade geralmente é utilizado para designar os ele-
mentos de uma execução relacionados às respostas pessoais ou subjetivas dos ou-
vintes, as quais podem variar entre diferentes interpretações de uma mesma peça
(Baker, N. K. & Scruton, R., 1980, p.326). Estes elementos da execução normal-
mente relacionam-se à dinâmica e ao fraseado. Se, por exemplo, um professor de ins-
trumento aconselha seu aluno a tocar de forma mais expressiva, normalmente o
aluno focalizará sua atenção em aspectos como a articulação, o andamento, o fra-
seado e a dinâmica, de modo a obter o resultado sonoro adequado para transmitir 247
a emoção ou idéia pretendida. Neste contexto, a expressividade está relacionada à
execução musical ou performance.
Na área da crítica musical, entretanto, o termo expressividade apresenta sentido
diverso; neste caso, costuma-se afirmar que a própria peça expressa uma emoção ou
idéia. Mas o que significa dizer que uma composição é expressiva de certos estados
mentais? Este é um problema que tem provocado constantes debates na filosofia e
estética contemporâneas.
Considerando que a peça musical pode ser expressiva por si própria, parece natu-
ral perguntar: o que ela expressa? Revela-se, então, o caráter transitivo direto da ex-
pressividade musical: ser expressiva equivale a expressar algo. Contudo, no exemplo
anterior do professor de instrumento, a questão é abordada por uma perspectiva di-
ferente, do ponto de vista do intérprete, o qual poderia se perguntar: o que desejo
expressar para os ouvintes? Aqui, revela-se o caráter transitivo direto e indireto da
expressividade: expressar algo para alguém.
Portanto, destacam-se dois aspectos da expressividade musical: o transitivo direto
(TD), considerando a peça composta, e o transitivo direto e indireto (TDI), que se
refere à execução ou performance (Baker, N. K. & Scruton, R., 1980, p.327). Neste
trabalho será abordado apenas o aspecto relacionado à execução, tendo em vista o
objetivo de apresentar um estudo sobre alguns dos elementos ligados ao ensino e à
performance cravística.
Numa execução musical, normalmente as metas a serem alcançadas são a superação
das dificuldades técnicas e a conquista de níveis de excelência em termos de sono-
ridade e expressão. Observa-se, porém, que durante a preparação do repertório ge-
ralmente estes parâmetros são abordados de forma apartada, principalmente pelos
alunos de instrumento. Não é raro encontrarmos estudantes que, na fase inicial de
leitura e estudo do repertório, dedicam-se primeiramente à resolução dos proble-
mas técnicos, ocupando-se das questões expressivas somente em momento poste-
rior. Estudos recentes (Gerling, C. C., 2009, p.51) têm demonstrado que a
preocupação com a emoção a ser comunicada não costuma ser priorizada pelos es-
tudantes de música em geral.
A princípio, esta abordagem centrada na superação das dificuldades técnicas pode
parecer eficiente, pois sugere um certo grau de controle das etapas de estudo; porém,
em alguns casos, tal metodologia poderá resultar em problemas de difícil resolução
(Jorgensen, H., 2004, p.89). Cuidar dos aspectos expressivos somente nos estágios
mais avançados da preparação do repertório pode levar à descoberta de que algumas
escolhas feitas inicialmente não favorecem o caráter expressivo que se deseja im-
primir ao trecho. Neste caso, poderão ser necessárias alterações substanciais em ele-
mentos como, por exemplo, o dedilhado. Entretanto, nos estágios mais avançados
do estudo o intérprete provavelmente encontrará dificuldade para incorporar tais
248 modificações, uma vez que deverá primeiramente desaprender o que havia auto-
matizado para, depois, reaprender o trecho de forma a transmitir a idéia ou emo-
ção musical pretendida.
Assim, o presente trabalho procura trazer algumas considerações sobre as vanta-
gens de uma abordagem simultânea dos elementos técnicos e das intenções ex-
pressivas desde a primeira leitura do repertório, no caso particular do estudo de
dedilhados no cravo, e os aspectos cognitivos relacionados a este tipo de aborda-
gem. Como texto central para a reflexão foi utilizado o tratado de Carl Phillip Ema-
nuel Bach (1753, tradução de W. J. Mitchell, 1949) em seu capítulo dedicado aos
dedilhados. Pretende-se investigar a maneira como este autor trata a relação dedi-
lhado-expressividade e, com isso, obter elementos que possam auxiliar uma análise
das vantagens de uma abordagem simultânea destes fatores na prática e no ensino
cravísticos. São comentados, ainda, os resultados da observação dos três alunos de
cravo, cujas aulas e sessões de estudo foram analisadas durante o segundo semestre
de 2009, no Departamento de Música do IA/UNICAMP.

As indicações de dedilhado no tratado de C. P. E. Bach


O tratado Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen – Ensaio sobre a ma-
neira correta de tocar teclados – constitui-se de duas partes: a primeira, editada ori-
ginalmente em 1753, possui uma introdução e três capítulos (1. Dedilhados; 2.
Ornamentos e 3. Performance); na segunda parte, editada pela primeira vez em
1762, o autor apresenta uma introdução e quatro capítulos (1. Intervalos e cifras;
2. Baixo cifrado; 3. Acompanhamento e 4. Improvisação). Na presente pesquisa
foi utilizada uma reimpressão da edição em língua inglesa de William J. Mitchell, de
1949.
Inicialmente, observa-se que o título original do tratado não traz nenhuma menção
específica a um determinado instrumento ao qual seria aplicado. Isso permite con-
siderar que as indicações de dedilhado podem ser utilizadas de forma ampla para os
diversos tipos de teclado, como o cravo, o clavicórdio e, também, o fortepiano, todos
de uso corrente no período em que foi publicado o tratado.
No início do capítulo referente aos dedilhados, o autor afirma que geralmente existe
apenas um bom sistema de dedilhado para cada trecho musical, embora algumas
passagens permitam a utilização de dedilhados alternativos; encontra-se, também,
a indicação de que nada pode ser expresso por meio de um dedilhado incorreto
(Bach, C. P. E., 1753/1949, p.41). Na mesma seção, há referências sobre a impor-
tância do dedilhado para uma boa performance. Verificam-se, assim, as primeiras
observações do autor no que diz respeito à relação entre expressão e dedilhado.
C. P. E. Bach faz, também, uma comparação entre o dedilhado utilizado na época
anterior a seu pai (meados do século XVII) e em sua época (meados do século
XVIII). No sistema antigo, os polegares eram empregados somente quando os tre- 249
chos continham intervalos que assim o exigissem; porém, já no início do século
XVIII, em razão das gradativas mudanças no gosto musical, cresceu a necessidade
de conceber-se um dedilhado mais compreensivo, ampliando-se o uso do polegar.
Em diversos momentos do texto, fica evidente a preocupação do autor com a ques-
tão do relaxamento muscular das mãos. Numa destas passagens, afirma que os dedos
devem estar curvados e os músculos relaxados ao tocar, pois a tensão ou dureza di-
ficulta o movimento (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.43).
O autor aconselha, também, que sejam evitados movimentos e gestos desnecessá-
rios; atento a isso, o instrumentista será capaz de tocar as passagens mais difíceis de
forma que o movimento de suas mãos seja quase imperceptível. Conseqüentemente,
o trecho soará como se não houvesse nenhum obstáculo. Observa-se, nesta passa-
gem, o destaque dado à relação entre o gesto e a sonoridade obtida, podendo-se
supor que as questões expressivas constituem um pano de fundo para o discurso
apresentado no tratado.
Referindo-se à prática diária no instrumento, o autor relembra que através do es-
tudo diligente a execução se tornará mecânica e que, a partir deste estágio, a aten-
ção poderá se voltar totalmente para a expressão (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.44).
Nota-se, portanto, que se na etapa final do estudo a atenção pode se voltar total-
mente para a expressão, então antes dessa etapa pelo menos uma parte da atenção
já estaria ocupada com isso, enquanto a outra estaria cuidando de outros aspectos,
como as dificuldades técnicas, por exemplo. Portanto, conclui-se que mesmo nas
etapas iniciais do estudo, uma parte da atenção já deve estar voltada para as ques-
tões expressivas.
Após estas observações iniciais, o autor passa a apresentar sua escola de dedilhados.
Cabe ressaltar que o tema é desenvolvido de forma gradativa e didática, ficando
claro o objetivo de avançar nos tópicos de maneira que as dificuldades aumentem
progressivamente.
Primeiramente, o autor esclarece o sistema de numeração a ser utilizado no tratado
(polegar como 1º e dedo mínimo como 5º). A partir de então, apresenta uma regra
geral: as teclas alteradas raramente serão tocadas com o 5º dedo, e somente quando
necessário com o polegar (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.45). Neste ponto, observa-
se que o autor apresenta uma regra geral, mas não existe qualquer proibição com re-
lação ao uso dos dedos mencionados nas teclas alteradas, devendo-se apenas evitar
esse tipo de dedilhado, se possível.
Na seqüência, são apresentadas as duas principais formas de possibilitar que gran-
des extensões do teclado sejam percorridas: 1. a passagem do polegar; 2. o cruza-
mento dos dedos. O autor adverte, ainda, que alguns movimentos devem ser
evitados, pois resultam em tensão excessiva.
250 Continuando suas indicações, o autor sugere que um bom treinamento de dedi-
lhado seria a prática de escalas e, a partir daí, passa a descrever todas as tonalidades
com os dedilhados apropriados, alguns de uso corrente e outros alternativos. É cu-
rioso notar que nas tonalidades sem acidentes (e também com poucos acidentes)
como, por exemplo, Do Maior e la menor, os dedilhados antigos sejam apresenta-
dos como preferenciais. Todavia, C. P. E. Bach também apresenta outras opções e
em momento algum proíbe o uso dos dedilhados modernos. Nota-se, ainda, que à
medida que os acidentes aumentam, as opções de dedilhado diminuem, ou seja, nas
tonalidades mais acidentadas somente há um dedilhado considerado bom (Bach,
C. P. E., 1753/1949, p.58).
Ao concluir a apresentação das escalas, o autor explica que as passagens do polegar
e os cruzamentos devem ser aplicados de forma que as notas envolvidas possam
fluir suavemente. Destaca-se, aqui, sua preocupação com a regularidade do toque e
a sonoridade, mesmo num estudo que pode parecer puramente técnico, como o
das escalas.
Percebe-se no discurso, ainda, um caráter de aconselhamento, não havendo impo-
sições de regras consideradas absolutas. Isto pode ser verificado em diversas passa-
gens como, por exemplo, quando o autor menciona que se o instrumentista achar
mais confortável utilizar um dedilhado diferente daquele que recomenda, poderá
fazê-lo sem problema, contanto que o conforto não seja apenas imaginário (Bach,
C. P. E., 1753/1949, p.59). Esta observação sobre a questão do “conforto imaginá-
rio” pode levar-nos a uma reflexão sobre nossa atitude como intérpretes, se costu-
mamos nos analisar durante os estudos, se estamos abertos a novas abordagens, etc.
Aqui, pode-se considerar que já neste tratado do século XVIII está presente a noção
acerca da importância do aspecto metacognitivo no estudo e preparação do reper-
tório. Isto permite traçar, neste ponto, um paralelo entre as indicações do autor e
as pesquisas atuais sobre expressividade na performance (Jorgensen, H., 2004, pp.97-
98).
Depois de apresentar os dedilhados para todas as escalas, o autor passa a recomendá-
los para diversas situações musicais. Analisando pequenas seqüências melódicas, o
autor afirma que as notas repetidas devem ser tocadas alternando-se os dedos, o que
proporciona um melhor resultado sonoro. Para ele, a utilização do mesmo dedo
em notas repetidas causa um desligamento excessivo. Esta observação exemplifica
e destaca a importância da escolha do dedilhado para a obtenção da sonoridade de-
sejada num determinado trecho.
A abordagem do dedilhado para os intervalos harmônicos e melódicos também é
feita de forma gradativa no tratado, começando pelos intervalos com notas mais
próximas (terças), e passando pelos demais até chegar à oitava.
O autor discute, também, os possíveis dedilhados para acordes com três notas, or-
ganizando sua exposição de acordo com os tipos de intervalos que constituem os
acordes. Assim, primeiramente apresenta os acordes que contêm intervalos de 3ª e 251
4ª, depois acordes com intervalos de 5ª e, em seguida, aqueles com intervalos de 6ª,
7ª e oitava. Destaca-se, novamente, a organização didática do texto, buscando faci-
litar a compreensão por parte do leitor.
Após tratar dos acordes com três notas, são expostos os dedilhados para os acordes
com quatro notas e, da mesma forma que antes, organiza-se a seqüência segundo os
intervalos contidos nestes acordes. Neste trecho, a preocupação central do autor
se volta para o conforto das mãos; assim, se necessário, poderá ser utilizado o pole-
gar ou o 5º dedo nas teclas alteradas, de forma a evitar uma tensão excessiva. Nota-
se, portanto, que as regras anteriormente sugeridas são flexíveis, prevalecendo a
questão do conforto e do relaxamento.
Na parte final do capítulo, o autor relaciona o grau de clareza da execução com a
uniformidade do toque, e afirma que não se pode esperar o mesmo resultado de
um dedo fraco e de um mais forte (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.69). Deste trecho,
pode-se deduzir que uma execução clara, nos instrumentos de teclado, depende da
coordenação dos movimentos e do controle da força nos dedos; utilizar dedos mais
frágeis em notas de destaque seria, segundo esse apontamento, inadequado. Assim,
ressalta-se que a escolha do dedilhado deve levar em consideração, entre outros fa-
tores, as intenções expressivas pretendidas para o trecho.
Com relação ao ensino de teclados, o autor afirma que existem duas maneiras ina-
dequadas de abordar os dedilhados: a primeira seria aquela totalmente baseada nos
costumes antigos, proibindo a utilização do polegar, pois nesse caso haveria um
rigor excessivo; a segunda seria o ensino completamente livre, sem diretrizes nem
princípios, pois nesse caso haveria excesso de liberdade (Bach, C. P. E., 1753/1949,
p.70). Revela-se, portanto, um posicionamento intermediário por parte do autor
com relação ao ensino dos dedilhados, procurando evitar extremismos.
Por fim, pode-se destacar uma última observação a respeito da técnica e sua in-
fluência na expressão. Segundo o autor, o cruzamento necessário das mãos em al-
gumas passagens não seria apenas motivado pela facilidade que proporciona à
execução das mesmas, mas principalmente porque sem esse recurso a expressivi-
dade das linhas poderia ficar prejudicada (Bach, C. P. E., 1753/1949, p.78). Aqui,
observa-se que o autor menciona explicitamente a relação entre um elemento que,
à primeira vista, pode parecer puramente técnico, com o resultado expressivo que
se pretende obter.
A abordagem da relação dedilhado-expressividade
no tratado
Na seção anterior foram apresentadas algumas indicações do tratado relacionando
252 o dedilhado aos propósitos expressivos. Nesta seção, serão destacadas duas destas
indicações para fins de uma análise mais prolongada.
Primeiramente, destaca-se o trecho em que o autor afirma que numa etapa avançada
dos estudos a atenção do intérprete poderá ser dirigida totalmente para as questões
expressivas. Como já observado anteriormente, não há no capítulo estudado ne-
nhuma referência ao aprendizado dos dedilhados com finalidade apenas técnica;
ao contrário, o autor deixa claro que a escolha deve sempre ser pensada em termos
do resultado sonoro e expressivo que se pretende obter. Segundo seus ensinamen-
tos, no estágio inicial de preparação da peça apenas uma parte da atenção poderá
estar voltada para as questões expressivas, pois ainda não foram superadas as difi-
culdades técnicas e nem automatizados os movimentos necessários à execução. O
trabalho cognitivo do instrumentista estaria, portanto, dividido entre estas tarefas.
Assim, somente depois de alcançar a automatização dos movimentos, a atenção do
intérprete poderá se voltar completamente para os aspectos expressivos. Conclui-
se, portanto, que mesmo nos estágios iniciais de leitura e preparação do repertório,
é aconselhável pensar não somente na resolução dos problemas técnicos, mas tam-
bém em que medida as escolhas para resolvê-los poderão influenciar no resultado
expressivo final pretendido.
Segundo Schott, H. (2002), além de preparar a mão para mover-se de uma posição
à outra no teclado, o dedilhado tem outro papel fundamental, que seria o de ajudar
o cravista a encontrar a inflexão apropriada da linha melódica, influenciando a ar-
ticulação e o fraseado. Para este autor, o dedilhado correto nunca deve ser resul-
tado de puro acaso, mas produto de uma reflexão aprofundada. O autor adverte,
ainda, que nenhum dedilhado deve ser escolhido por motivo de conveniência, mas
sim por se ajustar melhor para a realização de um determinado objetivo musical.
Ou seja, o dedilhado deve estar a serviço da expressividade.
De acordo com pesquisas dedicadas à performance musical (Jorgensen, H., 2004 e
1998), as intenções expressivas para uma peça devem fazer parte da estratégia de
estudo e, apesar de existirem diferentes abordagens sobre a questão, uma escolha
prévia do que se pretende expressar na execução pode tornar o estudo mais eficiente.
Isto permite traçar, portanto, um paralelo entre as indicações contidas no tratado
e nas pesquisas atuais voltadas para os aspectos cognitivos da execução instrumen-
tal, no que se refere à abordagem inicial das questões expressivas no estudo dos te-
clados.
Como segunda indicação do tratado a ser analisada, destaca-se a regra geral que de-
saconselha a utilização do 1º e 5º dedos em teclas alteradas. Embora seja apresentada
como uma regra, na verdade ela própria contém uma ressalva, pois o autor men-
ciona que tais notas raramente serão tocadas com estes dedos, somente quando for
necessário. Assim, quando uma peça exigir a utilização destes dedos em teclas alte-
radas com certa freqüência, a regra será desrespeitada diversas vezes. Fica clara, por-
tanto, a flexibilidade com que o autor aborda a questão. Embora indique qual seria 253
o dedilhado preferível em diversas situações musicais, não há nenhuma proibição
explícita. Certamente, haverá ocasiões em que um único dedilhado se mostrará ade-
quado; mas, em geral, não havendo prejuízo para o resultado sonoro e expressivo, a
escolha do dedilhado pode ser realizada de maneira flexível.
Segundo Kroll, M. (2004), a escolha do dedilhado é um dos elementos estruturais
da técnica tecladística, tendo impacto direto na interpretação da peça. Este autor
recomenda, ainda, que os intérpretes não devem ser obsessivos com relação à ado-
ção de um dedilhado considerado autêntico, nos moldes dos dedilhados antigos,
pois o principal fator que deve direcionar a escolha é a sonoridade produzida. Para
Kroll, se o efeito expressivo for conseguido por outro caminho, não há obrigato-
riedade alguma em utilizar-se este ou aquele sistema de dedilhados. Observa-se, por-
tanto, que o princípio da flexibilidade das regras permanece presente nas
publicações atuais sobre o tema.

O dedilhado como recurso expressivo no estudo de caso:


ensino dos teclados e aspectos cognitivos
Com base nas considerações apresentadas, pode-se afirmar que a adoção de uma
abordagem simultânea de questões técnicas como o dedilhado e das intenções ex-
pressivas é de fundamental importância para uma boa execução musical, além de fa-
cilitar a comunicação das emoções numa performance. Certamente, a maioria dos
intérpretes utiliza este tipo de abordagem em seu cotidiano como musicistas, de
forma consciente ou não. No presente estudo, entretanto, procurou-se salientar
sua importância não somente na preparação do repertório pelos instrumentistas
profissionais, mas também no contexto do ensino e aprendizado dos instrumentos
de teclado, especialmente o cravo.
Com o objetivo de levantar informações preliminares sobre a forma como tal abor-
dagem tem sido aplicada no aprendizado do instrumento, foram observados três
alunos do curso de graduação em música da Unicamp, durante as aulas e sessões de
estudo de cravo1. Durante a observação, os alunos foram alertados sobre a inten-
ção de realizar-se uma pesquisa sobre o ensino do instrumento e o método de estudo
adotado por eles, não sendo feita qualquer referência sobre a questão interpreta-
tiva/expressiva. No final do período os alunos foram questionados, informalmente,
sobre seus propósitos com relação ao instrumento, seus objetivos relacionados à
performance das peças estudadas, a maneira como decidem a respeito do dedilhado
e o que pensam sobre o aspecto interpretativo e de comunicação de emoções.
A partir destas observações, foi possível constatar que há uma preocupação inicial
dos estudantes em tocar corretamente as notas, no andamento considerado cor-
reto, e que a escolha do dedilhado volta-se principalmente para a questão da con-
254 veniência e do conforto das mãos, raramente sendo associada ao aspecto expressivo.
No estágio inicial de leitura do repertório, os elementos expressivos são, de certa
forma, negligenciados. Isso acontece, muitas vezes, mesmo depois dos professores
demonstrarem a importância do dedilhado e sua influência no resultado sonoro
final.
Durante as observações foi constatado ainda que, em diversas ocasiões, o dedilhado
utilizado nas primeiras leituras ocorre ao acaso. Houve situações, também, em que
mesmo após o aluno refletir sobre a melhor escolha para o dedilhado e anotá-lo na
partitura, durante execuções posteriores a escolha não foi mantida e o dedilhado foi
conduzido aleatoriamente.
Os resultados das observações, embora obtidos em caráter preliminar e com nú-
mero reduzido de participantes, estão em concordância com dados encontrados
em pesquisas recentes sobre a abordagem das questões interpretativas no ensino
instrumental (Gerling, 2009 e Karlsson, 2008), as quais concluíram que o ensino
tem sido focalizado geralmente na técnica e na decodificação da partitura escrita,
havendo uma falta de metas claras com relação ao desenvolvimento da comunica-
ção e expressão das emoções. Ainda de acordo com essas pesquisas, a preocupação
com a expressão das emoções em música não parece fazer parte da prática diária da
maior parte dos estudantes de instrumento.
Numa tentativa de compreender as razões que poderiam contribuir para este ce-
nário, os estudantes foram questionados informalmente sobre suas perspectivas
com relação ao instrumento, seus objetivos frente à preparação do repertório e a
forma como pensam a respeito do aspecto interpretativo. Foi constatado, entre os
motivos mencionados pelos estudantes, que há um destaque principalmente para
a falta de objetividade no tratamento da expressividade por parte dos professores,
para a valorização do conteúdo escrito na partitura, e que sua meta principal frente
ao repertório é a de tocá-lo corretamente (notas/alturas, articulação e andamento).
Com isso, a expressividade/interpretação é considerada como algo não obrigatório
num primeiro momento. Curioso notar que, apesar de todos os alunos referirem-
se à articulação, este fator é percebido mais como um aspecto obrigatório da técnica
cravística, e sua associação com a questão interpretativa não se dá logo de início.

Considerações finais
Tendo em vista as questões discutidas anteriormente, percebe-se que uma aborda-
gem simultânea do dedilhado e das intenções expressivas é fundamental tanto na
preparação do repertório para uma performance, como também no estudo e apren-
dizado dos teclados. Tal abordagem pode evitar que correções e alterações sejam
necessárias num estágio avançado de preparação das peças, poupando tempo e es-
forço por parte de instrumentistas e estudantes.
Sendo assim, as decisões acerca do dedilhado podem ser consideradas como mais 255
um recurso expressivo para os instrumentos de teclado, sobretudo para o cravo,
uma vez que auxiliam o instrumentista a obter a articulação, a inflexão e o fraseado
adequados.
Pelas observações realizadas no decorrer desta pesquisa e nos demais trabalhos rea-
lizados sobre o tema, foi possível constatar que os estudantes costumam trabalhar
os aspectos expressivos somente num momento em que o estudo do repertório es-
teja bem avançado, ou então simplesmente se esquecem desse aspecto, focalizando
a atenção apenas na decodificação da partitura e menosprezando a questão expres-
siva e de comunicação de emoções.
Um ponto a ser considerado é que, especificamente no caso do cravo, as respostas
obtidas dos participantes podem ter alguma relação com as características do re-
pertório/partituras que os mesmos costumam estudar, uma vez que as peças nor-
malmente não trazem indicações explícitas sobre articulação, dinâmica, fraseado,
andamento, etc, diferentemente do que ocorre nas edições para piano. Este fator
pode, de certa forma, contribuir para que a associação entre os aspectos da leitura
inicial e a expressividade sejam pouco relacionados pelos estudantes, principalmente
devido à importância dada àquilo que está escrito. Curioso notar, entretanto, que
nas demais pesquisas citadas (Gerling, 2009 e Karlsson, 2008) os resultados foram
obtidos a partir da observação de alunos de piano, viola e violão, cujo repertório
costuma apresentar indicações exaustivas com relação à dinâmica, fraseado, anda-
mento, etc, e ainda assim a expressividade permanece, quando muito, em segundo
plano na abordagem dos estudantes.
Embora os dados preliminares obtidos neste trabalho sejam insuficientes para for-
necer resultados conclusivos sobre a questão, em parte devido ao número reduzido
de alunos observados até o momento, mostraram-se em consonância com pesqui-
sas mais amplas já realizadas sobre o assunto. Desta forma, torna-se evidente a ne-
cessidade de uma maior reflexão sobre as questões aqui levantadas, principalmente
por parte dos educadores musicais ligados ao ensino dos teclados, a fim de que pos-
sam ser esclarecidas as dúvidas que porventura existam com relação ao tema e dis-
cutidas possíveis formas de conquistar a atenção dos estudantes que ainda não
estejam familiarizados com a abordagem simultânea da técnica e da expressão, nem
convencidos de suas vantagens.

1 Os três alunos foram acompanhados semanalmente.Tendo em vista o caráter preliminar


desta observação, as aulas e sessões de estudo não foram gravadas ou filmadas, a fim de evi-
tar qualquer alteração comportamental por parte dos estudantes.

Referências
256
Bach, C.P.E. ([1753]/1949). Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen . Trad. Wil-
liam J. Mitchell, Essay on the true art of playing keyboard instruments. New York: Nor-
ton.
Baker, Nancy K. & Scruton, Roger. (1980). Expression. In: Stanley Sadie (Ed.), The New
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Gerling, Cristina C. et al.(2009). A comunicação das intenções interpretativas no repertó-
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Kroll, Mark.(2004). Playing the Harpsichord Expressively. Maryland: Scarecrow Press Inc.
Schott, Howard. (2002). Playing the Harpsichord. New York: Dover.
artes musicais, lingüística, semiótica e cognição

Musilinguagem: a música na fala e a fala na música


257
Patrícia Pederiva
patped@fe.unb.br
Elizabeth Tunes
bethtunes@gmail.com
Universidade de Brasília

Resumo
Este artigo trata da relação entre linguagem falada e música. Essa relação é aqui deno-
minada como sistema musilinguístico. Analisa-se, primeiramente como ambas, em sua
forma natural, na filogênese, são uma e a mesma expressão. Na comunicação animal e
primitiva, expressão musical e “fala” (podendo ser aqui entendida como vocalizações ou,
ainda, como sonorizações) são um só e o mesmo processo, o que não significa que os
animais possuam a propriedade da fala, mas tão somente a possibilidade de sonorizações
de acordo com as sua anatomia. O seu papel, nesse contexto, é de expressão de esta-
dos afetivos. A expressão musical, em seu estágio elementar, é igualmente o veículo co-
municativo de expressão das emoções. Isso está presente e se afirma no percurso
filogenético. A fala seria (Bannam, 2006) um modo de comunicação serial em que os in-
divíduos se revezam na troca de representações com propriedades recursivas. O ato de
cantar permitiria, igualmente, o compartilhamento de uma atividade simultânea entre seres
humanos e que, como canto grupal, pode ter desempenhado importante papel na natu-
reza pré-lingüística da comunicação humana. Na evolução da comunicação vocal hu-
mana, estariam presentes os seguintes elementos: desenvolvimento de um sistema
auditivo; postura ereta, que implica a natureza da laringe humana e as capacidades de
ressonância do aparelho vocal; desenvolvimento da respiração voluntária, neotenia do
crânio adulto, mandíbula inferior e queixo ortognátos; dimensões da nasofaringe, pro-
cessamento cerebral para percepção e produção musical; desenvolvimento de centros
específicos para a fala e funções relacionadas ao canto; lateralidade e integração dos sen-
tidos; dentição onívora; desenvolvimento dos tubos de Eustáquio e sinus. O processa-
mento musical possui um papel fundante em relação à fala. Na altura, duração e a
capacidade de variar timbres seriam parâmetros de uma comunicação potencialmente
significativa presentes na fala e no canto, o que não seria uma simples coincidência. Na
história cultural do homem, música (expressão musical) e linguagem falada são organi-
zadas em pólos opostos de um mesmo espectro mas, que, todavia, conservam aspec-
tos comuns. Brown (2001), Geissman (2001) e Mithen (2006) também auxiliam nessa
discussão. Na fala e na música, os níveis significacionais são governados por diferentes
tipos de sintaxes de sistemas, ou seja, diferentes combinações frasais, podendo ser dife-
renciadas mais por sua ênfase do que por sua espécie, que são representadas por meio
de sua localização em um espectro. As diferentes interpretações dos padrões sonoros
de comunicação são representadas pelos pólos desse espectro. Cada sistema permite a
criação de novas formas significacionais. Enquanto a linguagem falada enfatiza o refe-
rencial significacional do som, a música enfatiza o seu significado emotivo, a marca re-
gistrada da música. A metodologia utilizada é a análise genética de Vigotski. Conclui-se
que a linguagem falada é um sistema referencial do mundo, importante para a sobrevi-
vência na cultura, enquanto a música organiza-se para ser o pólo referencial da particu-
258
laridade das emoções humanas (aspecto que se constitui nos diversos modos de enformar
as diferentes músicas) função também vital para a sobrevivência d homem em socie-
dade.
Palavras-chave
Musilinguagem, história-cultural, desenvolvimento psicológico

Introdução
A expressão musical e a fala possuem um papel fundante no desenvolvimento hu-
mano e na compreensão da musicalidade humana. Antes da história cultural, na fi-
logênese, ou história natural do homem, a expressão sonora, podendo ser entendida
aqui como expressão musical, e a fala eram o mesmo fenômeno de expressão co-
municativa. Mas, a história cultural está sujeita a novas leis, para além das leis bio-
lógicas. Na cultura, ambos os planos, biológico e cultural, influenciam-se e
modificam-se constante e mutuamente, o que significa que, nela, o homem conti-
nua também se desenvolvendo (Vygotsky, 1996). Entretanto, é um novo tipo de de-
senvolvimento que acontece no homem cultural, o que requer uma compreensão
das leis histórico-culturais.
Luria (1991) destaca em seu estudo sobre a atividade consciente do homem e suas raí-
zes histórico-culturais, em concordância com Vygotsky (1996), que uma das condi-
ções, além do surgimento do trabalho e da ferramenta, condição que leva à
formação da atividade consciente de estrutura complexa do homem é o surgimento
da linguagem. Luria (1991) define-a como “um sistema de códigos por meio dos
quais são designados objetos do mundo exterior, suas ações, qualidade, relações entre
eles, etc.” (Luria, 1991, p. 78, itálicos do autor). A palavra cadeira designa, por exem-
plo, um tipo de móvel que serve para assento. Dormir e correr designam ações.
Sobre e juntamente designam relações diferentes entre objetos. Unidas em frases, as
palavras conservam informações, permitindo a transmissão da experiência acumu-
lada por gerações a outras pessoas. Os animais possuem apenas meios de expressão
de seus estados, que são percebidos por outros animais, podendo ou não exercerem
influência neles. É somente no homem que surge essa linguagem que designa coi-
sas do mundo exterior, que permite generalizações e que distingue ações e qualida-
des. Assim, as condições de surgimento da linguagem devem ser buscadas e
compreendidas nas condições sociais do trabalho, cujo surgimento remonta ao pe-
ríodo de passagem da história natural à história da cultura humana.
É na forma grupal de atividade prática do homem, de acordo com Luria (1991),
que surge nele a necessidade de transmissão de informações a outras pessoas e que
não pode restringir-se à expressão de estados subjetivos. Deve, de outra forma, re-
ferir-se a objetos da atividade conjunta. “[. . .] os primeiros sons que designam ob-
jetos surgiram no processo do trabalho conjunto” (Luria, 1991, p. 79). Os sons
começavam a indicar alguns objetos, mas não existiam autonomamente. Estavam 259
embrenhados na atividade prática. Gestos e entonações expressivas os acompa-
nhavam. Seu significado só podia ser interpretado conhecendo-se a situação em
que eles surgiam. Poder-se-ia chamá-los de protovocábulos. Os atos e gestos eram
mais determinantes na atividade, constituindo os elementos de uma linguagem
ativa. Só mais tarde os sons iriam possuir papel igualmente determinante que pro-
piciariam a base da linguagem de sons. A separação entre ação prática e sons só
aconteceu depois de muitos milênios, quando apareceram as primeiras palavras au-
tônomas que designavam objetos e, posteriormente, ações e qualidades de objetos.
Surge, então, a língua, como sistema de códigos independentes.
Três mudanças essenciais na atividade consciente do homem acontecem com a lin-
guagem. Ela permite a discriminação de objetos, a direção da atenção para eles e a
sua conservação na memória. Isso possibilita lidar com as coisas do mundo exte-
rior, mesmo que elas estejam ausentes. A linguagem permite a conservação da in-
formação recebida do mundo externo, duplicando o universo perceptível e criando
um campo de imagens interiores. O surgimento desse mundo interior de imagens
pode ser utilizado pelo homem em sua atividade. A abstração e generalização das
coisas também é outra significante contribuição da linguagem à formação da cons-
ciência. As palavras de uma língua indicam e abstraem as propriedades delas, rela-
cionando as coisas perceptíveis em dadas categorias. Com as relações e abstrações
possibilitadas pela linguagem, ela se torna, para além de um meio de comunicação,
o veículo mais importante do pensamento, assegurando a transição do sensorial
para o racional no que diz respeito à representação do mundo. Ela é também o meio
de transmissão de informações que cria uma fonte de evolução dos processos psí-
quicos e permite ao homem a assimilação da experiência. “Com o surgimento da lin-
guagem surge no homem um tipo inteiramente novo de desenvolvimento psíquico
desconhecido dos animais, e que a linguagem é realmente o meio mais importante de
desenvolvimento da consciência” (Luria, 1991, p. 81, itálico do autor).
Novas leis de percepção são criadas e reorganizadas pela linguagem. A percepção
aprofunda-se, relacionando-se com a discriminação dos indícios essenciais do ob-
jeto. A linguagem modifica os processos de atenção do homem e cria condições
para ele dirigir arbitrariamente a sua atenção. Ela modifica também os processos
de memória, possibilitando uma atividade mnemônica consciente. O desligar-se
que possibilita também cria condições para o surgimento da imaginação, que, por
sua vez é base para o ato criativo como forma complexa de abstração e de generali-
zação. O surgimento da linguagem eleva os processos psíquicos a um novo nível e
reorganiza também a vivência emocional. Forma vivências e longos estados de es-
pírito que, não se limitando às reações afetivas imediatas, não se separam do pen-
samento. Formas de atividade consciente podem também surgir por meio de regras
estabelecidas com o auxílio da linguagem. Em síntese, os processos de atividade
260 consciente do homem são imensamente plásticos e dirigíveis. Como bem afirmou
Leontiev (2004), cada indivíduo aprende a ser um homem pela apropriação da
cultura.

A Musilinguagem
Após uma longa etapa evolutiva, em que não havia uma separação entre som mu-
sical e som falado, tendo ambos sido uma só coisa, uma musilinguagem, como de-
nomina Brown (2001), inicia-se na cultura uma nova etapa do desenvolvimento
do comportamento humano, ou seja, a separação entre expressão da musicalidade
e fala. Essa separação demanda características estruturais próprias bem como o apa-
recimento de novas funções para esses processos. Brown (2001) afirma que exis-
tem dois níveis de funcionamento, tanto na música, quanto na fala, que seriam o
nível fonológico (unidades sonoras, por exemplo, P, T. etc.) e o nível significacio-
nal (sentido). Ambos derivam do processo de formação de frases, que envolve uma
discreta unidade que combina sintaxe (processo combinatório das frases) e frase
expressiva (que utilizaria graves e agudos e enfatizaria determinadas partes da pa-
lavra com a intenção de chamar a atenção para ela). O nível fonológico seria o nível
acústico (modos de propagação do som), que é governado por um tipo de sintaxe
fonológica na unidade entre alturas sonoras (grave e agudo) e fonemas (unidades
sonoras). Em uma unidade funcional, combinam-se os morfemas (unidades gra-
maticais, por exemplo, in), que nutrem o nível significacional de cada um dos sis-
temas.
Na fala e na música, os níveis significacionais são governados por diferentes tipos
de sintaxes de sistemas, ou seja, diferentes combinações frasais, podendo ser dife-
renciadas mais por sua ênfase do que por sua espécie, que são representadas por
meio de sua localização em um espectro. As diferentes interpretações dos padrões
sonoros de comunicação são representadas pelos pólos desse espectro. Cada sis-
tema permite a criação de novas formas significacionais. Enquanto a linguagem fa-
lada enfatiza o referencial significacional do som, a música enfatiza o seu significado
emotivo. Um grande número de funções ocupa uma posição intermediária nesse es-
pectro, incorporando o referencial da linguagem falada e a função do som emocio-
nal presente na música. Uma canção verbal possuiria uma função intermediária,
motivo pelo qual, segundo o autor, ela tem ocupado uma posição central na ex-
pressão humana ao longo do tempo (Brown, 2001). A seguir, apresentar-se-á o mo-
delo de espectro proposto por Brown (2001) em que se pode observar em um pólo
o modelo acústico musical, enfatizando o significado emotivo do som e, no outro,
a linguagem, destacando o seu significado referencial. O centro do espectro é ocu-
pado pela canção verbal, que é o ponto de encontro entre música e linguagem.

261

Fonte: Brown (2001, p. 275)


Figura 1 – Níveis de funcionamento da música e da linguagem
No processo de separação entre música e linguagem, de acordo com Brown (2001),
ambas enfatizariam tipos singulares de interpretação e comunicação de padrões so-
noros. A linguagem falada contém um sistema semântico de significados (sentido
e aplicação das palavras). Inserida em uma gramática, ela desenvolve uma espécie de
sintaxe (processo combinatório das frases) capaz de especificar as relações entre su-
jeito e objeto em uma frase. Isso envolve organização hierárquica e recursiva. A mú-
sica, por sua vez, leva à formação de modos acústicos. A dimensão acústica e o
repertório de alturas (grave e agudo) se expandiram e, em sua gramática própria,
complexidade e hierarquia semântica, transformaram-se em um sistema que tem
por base a combinação de padrões de alturas. Isso possibilitou a criação de diversos
tipos e formas polifônicas (várias vozes e melodias), bem como a combinação de
timbres complexos (qualidades das fontes sonoras, por exemplo, som/timbre do
metal ou som/timbre da madeira). A propriedade de combinação de alturas possi-
bilitou a emergência de diversas fórmulas categóricas para a expressão de estados
emocionais. Também levou às várias formas de emoção sonora, que foram e são
utilizadas na criação musical coerente e em um significado emotivo nas frases mu-
sicais. No aspecto rítmico, a música assumiu a característica de organizar o tempo
em pulsos regulares (duração do som), o que identificaria a cultura ocidental na
busca por sua sincronicidade. A capacidade humana de manutenção de uma pul-
sação rítmica e de externar batidas está na base da função métrica do pulso (batida
regular), o que permitiu, na estrutura musical, a hierarquização rítmica em dimen-
sões horizontais e verticais, incluindo também a polirritmia.
262
A diferenciação evolucionária levou música e linguagem a interagirem em outro
plano, criando novas funções que envolvem ambos os sistemas. Exemplo disso é o
metro na poesia e a canção verbal que refletem a evolução dos dois sistemas de modo
interativo (Brown, 2001). A música envolve uma delicada capacidade lingüística
assim como a linguagem, a capacidade musical. Esse sistema musilinguístico tor-
nou-se o referencial emotivo da vocalização humana. Seus níveis diferenciados le-
varam à maturação do sistema lingüístico e do modelo acústico musical. Apesar
disso, transformadas na cultura, ambas continuaram mantendo um vínculo musi-
linguístico. O aspecto emocional delas é constituído pelo uso de níveis tonais e con-
tornos de altura na comunicação referencial. Também se constituem
musilinguisticamente pelo desenvolvimento de frases significacionais que foram
geradas por regras combinatórias e elementos frasais que possuem níveis de modu-
lação e que contém regras contextualizadas para modulações expressivas, bem como
intensidade de expressão. No nível semântico, o sistema musilinguístico é um ins-
trumento referencial sofisticado de comunicação emotiva que gera dois níveis de
significado. O primeiro, na relação de elementos justapostos, um nível local, e o se-
gundo, em um nível global, um contorno total de significados associados. A dife-
renciação entre ambas, música e fala, ocorre devido à elaboração dos sons, ou como
um significado referencial ou como significado emocional. Diferem em sua ênfase
mais que em sua espécie. A linguagem tem por base e propõe o estabelecimento da
relação entre o ator e sua ação, enquanto a sintaxe musical tem por base a combi-
nação de alturas e a relação de sons emocionais (Brown, 2001).

Palavras finais
A atividade musical é característica da convivência humana em grupos e cria con-
dições de possibilidade de promover identidade, coordenação, ação, cognição e ex-
pressão emocional, além da cooperação, coordenação e coesão. Envolveu, nas
primeiras tribos humanas, de acordo com Brown (2001), a participação do grupo
social, bem como de indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades. O fazer gru-
pal é característica principal da atividade musical e reflete as regras desse grupo e
seus modos de organização. Por isso, musicalidade e atividade musical também ti-
veram um importante papel na evolução e na sobrevivência humana. Como es-
trutura musical, a combinação de alturas e a organização rítmica fazem parte dessa
história. Enquanto a fala demanda a alternância entre falantes, a música promove
a manifestação simultânea de diferentes pessoas por meio de seu aspecto estrutural
de combinação simultânea de sons e ritmos, capacidade desenvolvida na história na-
tural do homem. Em sua dimensão vertical, ela possibilita a cooperação de grupos
em performances comuns, bem como a harmonização interpessoal. O ritmo musi-
cal, por sua vez, pode promover a coordenação grupal e cooperação no trabalho.
Exemplo disso são os cantos de trabalho encontrados em todas as partes do mundo
e que são utilizados com o fim de organização da atividade de produção conjunta. 263

Ao ser transformado na cultura em uma diversidade de formas e em novas estru-


turas e funções, a atividade musical transforma também as estruturas e possibili-
dades na expressão sonora, por meio de contágio de estados afetivos, assumindo na
cultura um novo significado psicológico. A emoção continua presente no estágio da
musicalidade na cultura. Porém, trata-se de uma musicalidade que, apesar de sua
universalidade, que possui por base o fator biológico, nesse momento da história
cultural do homem, assume formas diferenciadas e se concretiza na música como
ferramenta das emoções. Esse é o principal papel da expressão musical em termos
psicológicos e que demanda cada vez mais a necessidade de novas pesquisas neste
âmbito.

Referências
Brown, Steven; Merker, Björn; Wallin, Nil (2001). An introduction to evolutionary bio-
musicology. In: The origins of music. London: MIT press, pp. 3-24.
Leontiev, Alex (2004). O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro.
Luria, Alexander. Romanovich (1991) Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, vol. 1, 2ª. ed.
Vygotski, Lev. Semionovich; Luria, Alexander. Romanovich (1996). Estudos sobre a história
do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes médicas.
O conceito peirceano de Interpretante como fundamento
para a compreensão do campo da interpretação musical
Marcus Straubel Wolff
264
m_swolff@hotmail.com
Escola Superior de Música, Universidade Candido Mendes-NF, RJ

Resumo
A contribuição da semiótica de base peirceana para o campo chamado pelo semioticista
J. L. Martinez de interpretação musical possibilita uma superação do positivismo e de sua
defesa da neutralidade do intérprete, sem cair no subjetivismo total, uma vez que o es-
tudo da semiose musical, de acordo com a teoria geral dos signos, revela que sua reali-
dade depende necessariamente do modo como se dá o processo de semiose (ação dos
signos) na mente do intérprete, mas também que este depende das ações dos signos e
seus objetos.
Nesta concepção, a interpretação de um signo musical é vista como o campo de estudo
da ação dos signos musicais em relação a seus interpretantes, envolvendo primeiramente
a percepção e a cognição, mas também outros subcampos dentro desse, tais como a
performance, a chamada “inteligência musical” (análise, crítica, ensino, teorização) e a
composição, já que todos esses subcampos dizem respeito ao terceiro elemento da se-
miose, o Interpretante.
Neste artigo procura-se esclarecer primeiramente o conceito peirceano de interpretante,
para a partir dele demonstrar-se como ocorre esse processo de interpretação, que num
sentido peirceano implica a ação do signo musical numa mente existente ou potencial,
individual ou coletiva. Por outro lado, estabelecendo-se uma ponte com as ciências
sociais, a história e a sociologia, procura-se demonstrar também como essa interpreta-
ção musical não poderia ser vista como uma instância única do intérprete, sendo de fato
um elo numa teia onde signos estão entrelaçados e geram novos signos num processo
contínuo que gera significados, sejam eles puramente musicais ou não.

O Conceito Peirceano de Interpretante


Ao longo da imensa obra de Charles Peirce (1839-1914) podem-se encontrar di-
versas definições do termo interpretante. Tal conceito, como é sabido, refere-se ao
terceiro elemento da tríade estabelecida pelo filósofo americano, referindo-se à re-
lação que o signo estabelece com o objeto que representa. Assim, se numa de suas
definições do signo, o autor afirmou que é aquilo que, sob certo aspecto, representa
um objeto para alguém, por outro lado este signo criará na mente desse intérprete
um signo equivalente a ele mesmo ou vai gerar, como o autor estabeleceu poste-
riormente, um efeito determinado nessa mente, que foi viso também como um
signo mais desenvolvido do que o primeiro. Então, na terminologia da semiótica
peirceana, este segundo signo, criado na mente do intérprete recebe o nome de in-
terpretante, enquanto a coisa representada é chamada de objeto.
Mas, como se dá o processo de interpretação? Ou, colocando-se em termos peir-
ceanos, como ocorre este processo de semiose no qual os signos atuam numa mente?
Em primeiro lugar, é preciso observar que o interpretante é algo que resulta tanto
da ação do signo quanto da do objeto, o qual geralmente é compreendido como
um fenômeno ou evento concreto e identificado. Segundo J. Teixeira Coelho Netto, 265
é o objeto do signo que “determina uma base ou Primeiro (o signo) através do qual
se chega a um terceiro (o interpretante)” (1999:67). O objeto, que na semiótica
peirceana ocupa um lugar mais importante do que em outras correntes semióticas,
aqui é visto como aquele que dirige a interpretação para sua materialidade especí-
fica. Por isso, o interpretante será fruto dessa dialética entre o signo e seu objeto.
O modo como signo e objeto interagem de modo a gerar um interpretante pode ser
melhor compreendido através de alguns exemplos tomados de nossa vivencia no
campo da música. Assim, quando um estudante de música escuta uma obra pela
primeira vez, sem possuir referencias anteriores da mesma, e tenta descobrir, atra-
vés da escuta atenta das qualidades acústicas da obra executada, o estilo musical no
qual se insere a mesma, dá início a um processo de semiose no qual deverá consi-
derar tanto as características do objeto representado (o estilo) quanto as do signo
(a obra) para que possa chegar a uma conclusão acerca dela (o interpretante).
A teoria peirceana admite uma divisão bipartida do objeto, podendo-se falar num
objeto contido no signo (isto é, o objeto tal como o signo o representa, que no exem-
plo acima seria o estilo tal como representado e condensado numa obra específica)
e num objeto tal como é, independente de qualquer aspecto seu mais particular (no
caso anterior, o estilo em si, como toda a sua abrangência) que só poderia ser reve-
lado por meio de um estudo mais aprofundado e ampliado. Observando tal dis-
tinção entre os tipos de objetos, o primeiro (aquilo que se supunha ser o objeto)
recebe a denominação de objeto imediato, ao passo que o objeto dinâmico seria
uma representação real do objeto, tal como um estudo musicológico e histórico
mais aprofundado poderia revelar.
Essa distinção entre os dois tipos de objetos tornou-se necessária na medida em que
se observou que o objeto imediato poderia levar a um interpretante equivocado
que se afastaria daquilo que realmente é. J. T. Coelho Netto, ao analisar tal distin-
ção entre os objetos chega a levantar a questão acerca da possibilidade do processo
de semiose poder ou não dar origem a um conhecimento “capaz de revelar a reali-
dade sobre esse objeto” (1999:69). Seria possível, então, alguém afastar-se de seu
próprio processo de formação de significações para comparar a noção subjetiva que
possui do objeto com o objeto real ou dinâmico, ou seja, como aquilo que o objeto
real e objetivamente é?
Para responder a essa questão, que traz consigo o problema da existência de uma rea-
lidade exterior ao homem, isto é, de uma realidade objetiva, é preciso compreender
que Peirce segue a filosofia do pragmatismo que não é uma corrente de pensamento
positivista nem tampouco determinista, como alguns autores a compreenderam
equivocadamente. Para o pragmatismo, o universo é verdadeiro ou real apenas na
medida em que pode ser conhecido e modificado pela atuação humana.
De acordo com Milton Singer (1984), Peirce não exclui o sujeito empírico de sua
266
doutrina, mas, ao mesmo tempo, evita uma concepção idealista do “self”. Locali-
zando a existência e o desenvolvimento do ego empírico no próprio processo de
comunicação, externo e interno (ou seja, consigo próprio), lançou as bases para
uma teoria social da linguagem, da mente e do “self” (o interacionismo simbólico),
que foi desenvolvida de diferentes formas por William James, J. Dewey, G. H. Mead,
C. H. Cooley, Jean Piaget e Charles Morris.
Embora esse desenvolvimento posterior da semiótica conduza a uma visão mais
restrita do próprio conceito de interpretante, ele tem por base algumas colocações
e questões levantadas pelo próprio Peirce acerca da inter-relação entre os conceitos
e os hábitos, através dos quais se manifestam:
“O mais perfeito relato de um conceito que as palavras podem realizar consis-
tirá numa descrição do hábito que se espera que tal conceito produza. Mas como
pode, de outro modo, um hábito ser descrito senão através de uma descrição do
tipo de ação que surge com a especificação das condições e do motivo?”
Esta formulação particular da máxima pragmática, como observa Morris, coincide
com a definição de Peirce do interpretante final de conceitos intelectuais e acerca
da possibilidade de se chegar a um conhecimento definitivo da realidade. Para que
se compreenda como o autor chega a tal conclusão é preciso considerar que o pro-
cesso de semiose (de geração dos signos numa mente) é um processo transformador
dos fenômenos existentes no universo real da experiência, na medida em que as in-
terpretações sucessivas podem levar a uma fusão entre o objeto imediato e o objeto
dinâmico do signo. No ex.anterior, isso ocorreria quando o estudante de música,
incorporando outras informações (outros signos) acerca do estilo musical poderia
chegar a uma visão mais apurada (novos interpretantes) acerca das características
estilísticas contidas naquela obra particular que analisou.
Em outras palavras, há aqui uma afirmação da possibilidade de se chegar a um co-
nhecimento ilimitado e definitivo, ou seja, a uma “interpretação final”, o que afasta
a semiótica peirceana do subjetivismo de outras correntes que tenderam a se afas-
tar da questão do objeto e da realidade dos fenômenos, compreendendo o processo
de significação como um processo apenas interno ao signo e completamente sub-
jetivo.
Nesta concepção, a semiose é um processo dinâmico em que um signo esforça-se por
representar, ao menos em parte, um objeto que pode ser visto, num certo sentido,
como causa ou determinante do signo. Mas a tríade teria ficado incompleta se
Peirce não tivesse desenvolvido o conceito de interpretante, nem tivesse observado
que este correlato “por ter sido criado pelo signo, foi também criado de modo me-
diato e relativo pelo objeto do signo”, como salientou Coelho Netto (1999: 70).
Geralmente o interpretante é compreendido como um conceito ou imagem men-
tal gerada pela ação dos signos, mas Peirce observou a necessidade de separar tam-
bém três tipos de interpretantes – os imediatos, os dinâmicos e os finais. De modo
semelhante àquele em que distinguiu os diferentes tipos de objetos, observou a ne- 267
cessidade de distinguir o interpretante imediato, ou seja, “o interpretante repre-
sentado ou significado no signo, do interpretante dinâmico, ou efeito produzido na
mente pelo signo. (CP 8.343). Segundo J. L. Martinez (1997), o interpretante ime-
diato constitui-se das variadas possibilidades de interpretação enquanto o inter-
pretante dinâmico consiste na interpretação a qual se chega após um processo que
considerou todas as possibilidades e escolheu uma delas. Mas, retomando-se o ex.
anterior pode-se melhor compreender o que seria o interpretante final. Quando o
estudante escuta uma obra pela primeira vez, por um tempo limitado, pode abrir
um leque de possibilidades de interpretação, ao considerar a realidade da obra, suas
características acústicas e o processo de semiose. Mas ao chegar a um certo estágio
de consideração do signo e de seu objeto, tenderá a decidir qual a melhor interpre-
tação após uma consideração mais aprofundada do assunto.
No campo da música, mais do que no dos signos verbais, a ação dos signos pode ca-
minhar por diversas vias.1 A semiótica peirceana, talvez por não ter como base o
modelo lingüístico, reconhece a existência e a importância dos interpretantes emo-
cionais e energéticos, ao lado dos lógicos (geralmente privilegiados na semiologia
que partiu de Saussure e estabeleceu uma relação diádica mais restrita entre signi-
ficante e significado). Cumpre esclarecer que os interpretantes imediatos emocio-
nais seriam as possibilidades de qualidades de sentimentos geradas pelos signos,
enquanto os interpretantes energéticos seriam as possibilidades de ações ou movi-
mentos que poderiam ser realizados pelo intérprete e suscitados pelas qualidades
do signo ou do objeto. Já os interpretantes lógicos seriam os possíveis pensamentos
(ou outros signos mentais) gerados a partir da atuação dialética do signo e do ob-
jeto. Ao serem realizadas, essas possibilidades conduzem à formação de interpre-
tantes dinâmicos (emocionais, energéticos ou lógicos).
Neste sentido, é possível afirmar que um ouvinte pode interpretar dinamicamente
um signo musical de diferentes modos. Ao interpretá-lo como pura qualidade de
sentimento estará gerando um interpretante emocional, mas se o signo gerar uma
ação psicossomática ou um movimento corporal teremos um interpretante ener-
gético; mas se o efeito causado pelo signo-objeto for uma construção intelectual
(seja ela uma análise harmônica, melódica, rítmica ou estética de uma obra) teremos
um interpretante lógico.
O estudo da ação dos signos no campo da música é algo tão amplo que o composi-
tor e semioticista J. L. Martinez definiu três campos de investigação, ao estruturar
sua semiótica da música segundo a semiótica peirceana (1997). Partindo da con-
cepção da ação do signo como processo triádico, Martinez dividiu os estudos de
significação musical em três áreas: a da semiose musical intrínseca, a da referencia
musical e aquela que chamou de “interpretação musical”, termo que compreendeu
num sentido muito amplo, abrangendo as subáreas da percepção, da execução (ou
268 performance) e a da “inteligência musical” (incluindo aí a análise, a crítica, o ensino,
a teoria, a semiótica da música e a composição). Cumpre esclarecer que tal divisão
baseia-se na própria lógica da semiose, que por sua vez reflete as categorias univer-
sais de Peirce (primeiridade, secundidade e terceiridade). Portanto, o campo da se-
miose musical intrínseca trata do signo como uma primeiridade, isto é, em sua
relação mais próxima com a realidade, na qual se torna uma qualidade (que no caso
dos signos musicais seriam os parâmetros do som). Assim sendo, neste campo se
lida com a significação musical interna, as qualidades musicais e, portanto, neste
nível relativo à primeira tricotomia (o signo visto em relação a ele mesmo), os ob-
jetos dinâmicos seriam sempre de natureza acústica.
Já o segundo campo de investigação, o da referencia musical, lida com a segunda
tricotomia (a relação dos signos com seus objetos), ou seja, com as diferentes for-
mas de representação, estudando-se como um signo se refere a seu objeto e tam-
bém as relações possíveis entre os objetos imediatos e dinâmicos e os possíveis
objetos dinâmicos (acústicos e não-acústicos) representados pelos signos musicais
em seus diferentes modos de ser (classificados como ícones, índices ou símbolos).
Mas será no terceiro campo de investigação, o da chamada interpretação musical.
Que se irá analisar o signo musical em relação a seus interpretantes (terceira trico-
tomia), tratando-se da ação dos signos numa mente. Aqui as questões básicas dizem
respeito à natureza do interpretante musical (se emocional, energética ou lógica), à
atuação do signo e do objeto sobre a mente de modo a gerar diferentes tipos de in-
terpretantes (imediatos, dinâmicos ou finais).
Na terminologia de Lady Welby, explicitada por Coelho Netto (1999), o inter-
pretante imediato corresponde ao que ela chamou de sentido, ou seja, ao efeito
total que o signo produziu sem qualquer reflexão prévia, podendo ser considerado
também como sendo a interpretabilidade peculiar do signo. O significado ou in-
terpretante dinâmico, já seria “o efeito diretamente produzido no intérprete pelo
signo” (1999: 72), isto é, aquilo que é realmente experimentado em cada ato de in-
terpretação; enquanto a significação seria “o efeito produzido pelo signo sobre o
intérprete” (idem, ibidem) em condições que permitiriam ao signo exercitar seu
efeito total. Dito de outro modo, a significação seria, tal como compreendeu Coe-
lho Netto, o resultado interpretativo (ou o interpretante final) a que se está desti-
nado a chegar se o signo e o objeto receberem uma consideração aprofundada.
Transpondo-se a classificação dos interpretantes para o campo da música, é preciso
considerar que, devido à especificidade dos signos musicais, a compreensão do pro-
cesso dialógico que ocorre numa mente individual ou numa coletividade (por exem-
plo, na mente coletiva que reúne os fans de um cantor famoso) deve estar atenta ao
fato de que os três campos de análise estão, na realidade, contidos uns nos outros
de forma que o terceiro (a interpretação) contém o segundo (a referencia musical)
que, por sua vez, contém o primeiro (da semiose musical intrínseca), na medida em
que o interpretante resulta da relação entre sujeito e objeto e que tal relação apóia- 269
se sobre as qualidades intrínsecas do signo musical. Assim, o interpretante (espe-
cialmente o interpretante final, isto é, a significação) é resultante da natureza dos
signos e daquilo que representam (seus objetos) num sistema musical e cultural
mais amplo, que pode ser visto semioticamente como uma rede de significações.
Evitando por um lado o paradigma cartesiano e por outro o subjetivismo contem-
porâneo, a semiótica aplicada de matriz peirceana possibilita que se estabeleça uma
ponte com as ciências sociais e os estudos culturais, como perceberam Thomas Tu-
rino e Milton Singer, já que compreende que o signo musical (seja ele uma partitura
ou mesmo um instrumento musical) não está isolado, mas inserido na rede semió-
tica mais ampla dos signos que compõem uma cultura ou certa tradição cultural.
Sendo assim, uma determinada interpretação de uma partitura, considerada por
certa comunidade de intérpretes como sendo a melhor, pode ter sido causada por
uma transmissão dos signos interpretativos desde o próprio compositor da obra ou
de alguém muito próximo dele. Mas a essas relações históricas poderiam se somar
preferências individuais ou algum acontecimento específico ocorrido ao acaso que
interferiu, a partir de certo momento, no modo como a obra passou a ser interpre-
tada.
Haveria, então, uma interpretação mais correta de uma obra? As opiniões neste
campo, mesmo entre os semioticistas, parecem divergir. Martinez, ao contrário de
Coelho Netto, não compreende o interpretante final como sendo o mais correto ou
mais verdadeiro, preferindo vê-lo como sendo uma tendência do signo de crescer
ou expandir-se, como sendo sua teleologia, tomando como exemplo fenômenos de
grande magnitude, como “a possibilidade de que a multiplicidade dos fenômenos
musicais existentes, todas as músicas de todas as culturas, estivesse simultaneamente
revelando-se e convergindo num futuro que nunca virá” (1997: 78). Assim, afasta-
se da visão positivista e cartesiana, já que para o pragmatismo só se pode conhecer
o que se passa dentro do “self” a partir de suas manifestações externas (seus atos e
realizações) que podem ser verificadas empiricamente. Segundo Peirce (apud Sin-
ger 1984),
“Primeiro vemos as coisas azuis e vermelhas. É uma descoberta quando vemos
que o olho tem algo a ver com as cores e é uma descoberta ainda mais recôndita
quando percebemos que existe um ego atrás do olho, a quem tais qualidades
pertencem”.

1 É bom lembrar que as qualidades de sentimento são as bases da escuta musical, sobretudo
para ouvintes leigos, sem formação intelectual nesse campo. T. Turino (1999) acrescenta
também que o poder da música de criar respostas emocionais e materializar identidades pes-
soais e sociais baseia-se no fato de que os signos musicais são menos mediatizados, atuando
num nível mais físico e emocional do que os signos verbais.
270
Referências:
Martinez, José Luiz (1997). Semiosis in Hindustani Music. Imatra: International Semio-
tics Institute.
Coelho Netto, J. Teixeira (1999). Semiótica, Informação e Comunicação. São Paulo: Pers-
pectiva.
Peirce, Charles S. (2000). Semiótica. São Paulo: Perspectiva.
Singer, Milton (1984). Man’s Glassy Essence: explorations in semiotic anthropology. Bloo-
mington: Indiana University Press.
Turino, Thomas (1988). Signs of Imagination, Identity and Experience – a Peircean semiotic
theory for music. Urbana-Champaign: University of Illinois.
Representação e Sociedade
Indioney Rodrigues
indioney@gmail.com
Departamento de Artes, Universidade Federal do Paraná 271

Goldsmiths College, University of London

Resumo
Nomear é um processo composto, realizado através da criação e adaptação de sinais e
símbolos inteligíveis (perceptíveis). Esse processo, fundamentalmente motivado pela ne-
cessidade de comunicar experiências, permite que indivíduos socialmente relacionados
compartilhem um determinado entendimento da realidade. A criação e adaptação de si-
nais e símbolos são especialmente influenciadas por demandas sociais que motivam a evi-
denciação de aspectos da realidade que podem ser coletivamente compartilhados,
compondo sistemas sociais de referências reflexivos. Nomes são mensagens. Compor-
tam idéias que, se por um lado podem ser conhecidas individualmente, por outro lado não
existem isoladamente, trazendo consigo valores e costumes, filosofias e cosmogonias,
identidades. Esse processo pode, no entanto, eventualmente implicar o esforço de reve-
lar aspectos inefáveis da experiência individual, ou mesmo o esforço de proteger a re-
velação dessa inefabilidade. Nomear o indizível, seja no sentido do insight revelador ou
do mistério protetor, aparenta ser uma ocupação comum ao artista e ao shaman. Con-
trastando com o questionamento iluminador da metafísica, artes e ritos aparentam divi-
dir um gosto similar pelo obscurantismo do mito, da ilusão, da metáfora, o gosto pelo
encantamento e pela poesia.

Inefabilidade
O mundo significa através da idealização e nominação de suas partes.1 Nominar,
nesse caso, implica um processo de criação e adaptação de sinais e símbolos2 sufi-
cientemente precisos, permeáveis e comunicadores. Precisos no sentido da poten-
cialidade de definição da idéia ou aspectos da idéia. Permeáveis no sentido da
potencialidade de revelação dessa definição, da sua perceptibilidade.3 E comunica-
dores no sentido da potencialidade de expressão da definição da idéia segundo sua
revelação. Quando um nome suficientemente define e viabiliza a comunicação de
uma idéia, ele a transforma num bem social, disponibilizando sua influência, in-
tercâmbio e transformação. Dessa maneira, mais do que objetivamente significar
através da nominação de suas partes, o mundo indiretamente significa segundo um
processo de socialização das idéias de mundo disponibilizadas por sua nominação.
Assim, por necessidade, há tantas realidades distintas quanto sociedades. Esse pro-
cesso, fundamentalmente guiado pela necessidade de compartilhar experiências,
possibilita a indivíduos socialmente relacionados dividirem um mesmo entendi-
mento do mundo: aquilo que é sentido ou imaginado, recordado ou desejado, suas
qualidades, cores e sabores, peso e profundidade, sua atividade ou passividade, suas
formas, lugares, tempos e motivos.
Cada nome pode ser interpretado como uma mensagem social e, conseqüente-
mente, cultural. A criação e adaptação de sinais e símbolos aparentam ser sempre
272
cercada por demandas sociais e culturais que salientam aspectos da realidade que
podem ou devem ser compartilhados coletivamente, compondo sistemas reflexi-
vos de referencias. Nomes certamente encerram idéias individuais, visões indivi-
duais moldadas por experiências individuais, mas idéias, visões e experiências que
quando nomeadas extrapolam a esfera do domínio individual, pois cada nome
herda e projeta a sociedade que o engendra, carregando seus valores e costumes, fi-
losofias e cosmogonias, sua identidade. Esse processo pode, no entanto, eventual-
mente implicar o esforço de revelar aspectos inefáveis da experiência individual, ou
mesmo o esforço de proteger a revelação dessa inefabilidade. Nomear o indizível,
seja no sentido do insight revelador ou do mistério protetor, aparenta ser uma ocu-
pação comum ao artista e ao shaman. Contrastando com o questionamento ilu-
minador da metafísica, artes e ritos aparentam dividir um gosto similar pelo
obscurantismo do mito, da ilusão, da metáfora, o gosto pelo encantamento e pela
poesia.
O rito da inefabilidade, dos aspectos indizíveis do viver, da experiência individual,
tem um importante papel na caracterização e diferenciação de contextos sociais.
Grupos de indivíduos caracterizam-se por seus meios rituais preferidos: alguns irão
evocar a respiração das florestas, outros o trabalho divinatório de espíritos, outros
ainda irão cantar lendas sobre deuses estelares ou irão preferir meditar e ouvir. A im-
portância do rito na caracterização social talvez se deva ao fato de que ele com-
preende uma representação dramática que, se não propriamente e precisamente
comunica uma idéia, antes anuncia a possibilidade de uma idéia, opondo-se ao pro-
cesso de nominação no sentido de sua temporalidade.
Se o anunciado não pode efetivamente significar uma parte objetiva da realidade
do contexto social, algo dele poderá ao menos ser indistintamente provado através
de sua ritualização, a qual deverá ser suficientemente aberta a ponto de potencial-
mente contemplar a totalidade dos indivíduos socialmente relacionados. De fato, a
própria escolha individual do rito é definida socialmente, pois ele é uma forma de
encontro na qual o indivíduo compartilha com seu grupo uma mesma espécie dea-
nunciação, uma mesma via de acesso ao indizível e inefável.
Entre as artes, a música se oferece, ela mesma, como um rito. Ela oferece vias sin-
gulares de acesso ao indizível e inefável. A significação e simbolização pretendidas
num enunciado musical, são, em si, qualitativamente diferentes de qualquer outro
processo de nominação, e somente podem ser projetadas e recebidas por meios mu-
sicais. Numa outra perspectiva, a musica é também o resultado de uma escolha co-
letiva. Indivíduos aglomeram-se em torno de estilos e compositores específicos, de
novas e antigas composições e intérpretes preferidos. Diferentes indivíduos são de
alguma maneira igualmente tocados por um mesmo enunciado musical. Qual seria
a razão da escolha individual e coletiva pela mesma mensagem musical? O que seria
efetivamente comunicado em tal mensagem se inefável, e como?
273
Pode-se argumentar se a comunicação pretendida pelas artes em geral, mesmo no
caso da intenção de se comunicar algo indizível, poderia mesmo ser mediada pela
criação e manipulação de sinais e símbolos, estando ela descomprometida com as
noções de precisão e permeabilidade. Como seria possível comunicar algo senão
por intermédio de sentidos precisos? No entanto, a comunicação realizada no do-
mínio artístico, ao contrário de ser determinada por sinais e símbolos objetiva-
mente referenciáveis por indivíduos socialmente relacionados, pode ser vista como
primordialmente caracterizada pela busca por processos criativos e adaptativos,
entre um grande número de opções socialmente significativas, que possam ajudar
a atenuar tal determinação, multiplicando suas possíveis interpretações. A grande
poesia é talvez aquela que, usando sinais e símbolos simples e compreensíveis, atinge
a universalidade, não tanto pela precisão de suas idéias, ou equilíbrio e beleza de
seu ritmo, mas especialmente devido a seu potencial de alcance, por sua ideal inde-
terminação. A potência de qualquer metáfora pode ser medida por seu poder de
descontinuidade e inconseqüência, sua elusividade e reticência.

Meaning
Entre as artes, a música naturalmente oferece uma grande elusividade. Incontáveis
pensadores, desde os helenos e antes, têm buscado compreender esse princípio elu-
sivo, a despeito do poder comunicativo da música e sua importância na esfera in-
dividual e social, questionando principalmente a respeito do real significado da
música em tais esferas. Poderíamos propor um caminho sugerindo que encontra-
mos potencialmente na música a pura poesia, a pura reticentidade, sendo a música
uma abertura ao indizível, ou, ao menos, um caminho singular para a expressão e
compartilhamento de paradigmas e complexidades indizíveis que moldam e são
uma parte importante de nossa humanidade. Mas a despeito de seu engajamento
simplista, tal proposição estaria longe de ser suficiente. Nossa responsabilidade deve
ainda repousar na mesma curiosidade a respeito dos motivos e significados, mas
significados que talvez possam e devam ser investigados e abordados de maneira su-
tilmente diferente.
Tenho proposto que o processo de nominação do mundo é composto por duas eta-
pas complementares, não necessariamente mutuamente implicadas. Por um lado,
uma etapa criativa, na qual o indivíduo buscaria projetar – ou introjetar – novos si-
nais e símbolos em vocabulários sígneos ou simbólicos reais ou potenciais, com-
partilhados ou idealmente compartilhados por determinado grupo social. Por outro
lado, por uma etapa adaptativa, na qual o indivíduo buscaria assimilar sinais e sím-
bolos socialmente e culturalmente herdados, que poderiam ou não ser reinterpre-
tados, renovados e novamente socialmente compartilhados. Nesta concepção, o
processo individual de nominação é essencialmente dependente de, ou ao menos
fortemente influenciado por, uma espécie de economia de sinais e símbolos prati-
274 cada entre indivíduos socialmente relacionados. O social, e o cultural, seriam o meio
para a troca franca de significados.
Semelhantemente, grupos de indivíduos socialmente identificados criariam (con-
cordam) e adaptariam (conformam) vocabulários de sinais e símbolos específicos,
projetando-os sobre seus atores, compondo simultaneamente um amplo cenário
cultural. Tais vocabulários conteriam, primariamente, os códigos morais e éticos
que, por um lado, ajudam a delimitar as estruturas e hierarquias sociais e, por outro,
a caracterizar e discriminar globalmente a identidade cultural. No nível puramente
social, a criação e adaptação de sinais e símbolos seria amplamente influenciadas
por aspectos políticos e tecnológicos significativos, entre eles o próprio tipo de es-
tratificação social, a organização dos meios produtivos, a distribuição da riqueza ou
o acesso ao conhecimento.
Esta visão encontra suporte nas idéias de Noam Chomsky4, que propõe que o pen-
samento seria estruturado a posteriori, através de etapas lingüísticas diferenciadas.
Chomsky sugere que o pensamento seria gradualmente formalizado, primeira-
mente segundo constantes gramaticais de ordem mais geral e mais abrangente, e,
conseqüentemente, segundo constantes sintáticas e fonêmicas de ordem mais es-
pecífica, hierarquicamente até sua forma lingüista final resultante. A linguagem que
usamos para comunicar nosso entendimento da realidade seria construída sobre e
a partir do pensamento puro.
Assimilando e interpretando as idéias de Chomsky segundo uma abordagem so-
ciológica, pode-se dizer que o pensamento, em sua projeção social, além de ser gra-
dualmente estruturado lingüisticamente, é também continuamente modelado,
individualmente e coletivamente, por tais etapas criativas e adaptativas constituti-
vas do processo de nominação, sendo individualmente modelado no sentido de
ser (ou não ser) socialmente incorporado e significativo, e, de maneira reflexiva e
complementar, também sendo socialmente modelado no sentido de compor (ou
não compor) uma linguagem compartilhada. De acordo com esta interpretação,
tais etapas criativas e adaptativas, individuais e coletivas, teriam, respectivamente,
uma forte influência na geração das constantes gramaticais e sintáticas formadoras
da estrutura da linguagem expressiva do pensamento puro.
Assim, em potência, a gramática como conceito e processo estruturador resultaria
principalmente de tais etapas criativas orientadas, ou até mesmo regradas, social-
mente e culturalmente. Em potência, no sentido de que qualquer gramática seria
fundamentalmente uma interface social, mesmo no caso de uma gramática musi-
cal. É importante salientar, especialmente considerando o domínio artístico, que o
emprego, aqui contextualizado, do termo gramática não sugere uma categoria lin-
güística específica, mas somente um nível criativo genérico no qual, de acordo com
Chomsky, o pensamento puro ou original seria primeiramente modelado. No caso
das linguagens naturais, o pensamento aparenta ser realmente estruturado por ca-
tegorias lingüísticas especificas, compartilhadas por um determinado grupo social, 275
especialmente porque, nesse contexto, significar o pensamento coletivamente é algo
naturalmente desejado. Mas, nas artes, e especialmente na música, tais categorias
lingüísticas específicas não se mostram igualmente úteis e desejáveis, considerando-
se que as artes seriam primariamente dedicadas à comunicação de inefabilidades.
Em resumo, propõe-se que a gramática, como conceito e processo estruturador,
seria de ordem mais abrangente, compreendendo artes e linguagens naturais sob
uma mesma hierarquia. Propõe-se que linguagens naturais e linguagens artísticas
compartilham o mesmo espaço estruturador no interior da gramática, como uma
alternativa à tendência de buscar-se adaptar e constranger a amplitude da linguagem
artística, naturalmente propensa à indeterminação da poesia, aos padrões e cate-
gorias lingüísticas derivados do estudo das línguas naturais. O pensamento certa-
mente pode ser estruturado, modelado e projetado por, e através de, um número
preciso de categorias, tais como substância, qualidade, ação, posição, duração, etc.,
tal como normalmente ocorre quando buscamos comunicar o significado do pen-
samento. Mas o pensamento também aparenta ser estruturado, modelado e proje-
tado por, e através de, outras maneiras, tais como a razão lógica matemática, da qual
podemos deduzir o senso de proporção tão caro às artes em geral; ou as ações e rea-
ções instintivas comunicadas durante a experiência direta das relações humanas,
das coisas e das idéias, algumas vezes tão relevantes psicologicamente e base para
importantes respostas emocionais; ou a emoção ela mesma, e além a intuição de
algo indefinível e indizível encontrado nos enunciados artísticos.
Muito embora apresentem similaridades, uma absoluta correlação entre as lingua-
gens naturais e as linguagens artísticas aparenta ser fundamentalmente contradi-
tória. Tais similaridades, no entanto, podem ser entendidas como uma
conseqüência do fato de que tanto as linguagens naturais quanto as artísticas ocu-
pem e compartilhem do mesmo nível criativo estruturador do pensamento, reali-
zando trocas de processos modeladores. O gesto musical pensado ou ouvido pode
aparentar ocupar a mesma posição que um nome
ou uma preposição ocupam em uma sentença, mas não exatamente porque tal gesto
pode em si comunicar a mesma idéia que tais categorias lingüísticas comunicariam.
Tal impressão aparenta ser derivada simplesmente do fato de que as linguagens po-
tenciais, através das quais o pensamento se disponibiliza, incluindo-se aqui tanto a
linguagem artística quanto a natural, são igualitariamente disponíveis na esfera gra-
matical, igualitariamente no sentido de que tais linguagens representariam, tão so-
mente, diferentes qualidades da mesma função intelectual primal.
Por outro lado, em potência, a sintaxe, como conceito e processo estruturador, pode
também ser entendida segundo aspectos sociais e culturais determinantes, muito
embora aparente por sua vez ser relacionada a processos adaptativos. A comunica-
ção do pensamento seria dificultada na ausência de um ato criativo primordial, cuja
276 resultante seria sua gramatização. No entanto, o ato criativo seria igualmente difi-
cultado na ausência da percepção das forças contrastantes instaladas entre vocabu-
lários de sinais e símbolos e a realidade por eles referenciada. Tais forças aparentam
ser primordialmente manipuladas pela maneira através da qual elas são ou não são
relacionadas em termos de significado. Um sinal natural ou convencional, uma pa-
lavra falada ou escrita, sua inflexão e posição numa frase, um simples desenho ou
uma sofisticada escultura, uma peça musical, a maneira, tempo e lugar em que ela é
apresentada ou interpretada, etc., significam e comunicam mensagens diretas: um
trovão é um trovão, um sorriso é um sorriso, esta [palavra] é uma palavra, e assim
uma pintura é uma pintura, e uma peça de música é uma peça de música. Há em tais
exemplos uma objetividade essencial, um poder de significado fundamental, eles
são exatamente aquilo que nos permite percebê-los, individualmente e coletiva-
mente. Quando, por contraste, sinais ou símbolos são percebidos na sua intenção
de significar outra coisa, quando no domínio da metáfora, eles, bem como seus res-
pectivos significados objetivos, trocam naturezas. A palavra [Guernica] pode sig-
nificar uma pintura, e esta pintura um sentimento de tragédia, e tal sentimento a
recordação de todas as tragédias, da sua amargura, e a amargura em si mesma a re-
cordação da canção triste, da solidão ou compaixão, do desejo de celebração, e tal
desejo a lembrança do amigo, do sorriso, do contentamento [. . .]
A sintaxe, composta por todos os sinais e símbolos potenciais que constituem um
determinado vocabulário, bem como seus elementos internos fundamentais, suas
variações fonéticas e formais, é assim interpretada como a conseqüente etapa da
modelação do pensamento já gramaticizado, do pensamento gramatical, o qual, ao
contrário de ser socialmente e criativamente projetado, receberia agora as deter-
minantes sociais delimitadoras, sendo socialmente adaptado e preparado para ser
amplamente aceito e entendido. No caso do domínio artístico, no entanto, a sin-
taxe, como conceito e processo estruturante, pode ser vista como uma busca por
forças contrastantes, sendo qualitativamente determinada por uma espécie de aber-
tura e reticenticidade, por uma essencial indeterminação, necessária à desejada plu-
ralidade de interpretações da obra de arte. A sintaxe artística seria uma matéria
menos densa do que aquela contemplada nas linguagens naturais. No domínio ar-
tístico, a sintaxe deveria ser medida no seu poder de exponencialmente apresentar
e representar outros significados, no seu poder de desvio, de multiplicação, e assim,
em seu poder de anunciação, em sua elusividade.
Assim como nas linguagens naturais, a sintaxe artística seria uma matéria social-
mente regulada. De fato, não raramente é possível observa-se a sugestão e, em mui-
tos casos, a própria imposição de vocabulários artísticos sobre seus atores. Voca-
bulários estes que, não raramente, são originados ou mesmo fundamentados em
mitos e lendas socialmente significativas, no que se faz notar mais uma vez a inter-
seção das artes e dos ritos.
277
Um simples círculo, por exemplo, pode encerrar um grande número de significados
singulares dependendo do contexto social a que ele se aplica. Ele pode representar
inclusão, totalidade, perfeição, centricidade, foco, unidade, iniciação, conclusão,
etc., e, como se faz facilmente notar, também pode encerrar uma quantidade de ou-
tros derivativos conceituais implícitos e relativos à uma classe de pensamento espe-
cífica, como por exemplo o pensamento temporal que pode referir o círculo como
um símbolo das idéias de infinitude, ciclo, revolução ou mobilidade.
Não seria por demais controverso sugerir que sociedades inteiras tendem a orien-
tar seus atores em termos dos potenciais significados de determinados vocabulá-
rios de sinais e símbolos, e tal coordenação aparenta ser igualmente válida tanto no
caso das linguagens naturais quanto nas artísticas. Parte desta interpretação baseia-
se na idéia da existência de classes de pensamento, significando que o pensamento
em si nunca seria qualitativamente neutro, mas sim orientado à natureza do seu
objeto, diferindo conforme difere a realidade e em coordenação com a sintaxe so-
cialmente disponível para representar tal objeto. No caso do pensamento tempo-
ral, a idéia de tempo ela mesma seria socialmente modelada de acordo com
determinantes simbólicas presentes nos vocabulários socialmente disponíveis, de
acordo com uma sintaxe do tempo.
Neste caso, sendo socialmente modelado, o pensamento temporal seria segura e
objetivamente comunicado segundo um conjunto preciso de sinais e símbolos tem-
porais compartilhados pelo grupo social. Considerando-se então a expressão artís-
tica desse mesmo pensamento, a sintaxe artística do tempo deve diferir no sentido
que ela é desejada em sua potência de reticenticidade. O discurso sobre o tempo
pode usar diferentes terminologias. Ele pode ser estritamente lógico e basear-se na
observação da natureza material, na física. Ele pode fundamentar-se na psicologia,
na fenomenologia ou metafísica. Mas ele também pode ser poético. Como dife-
rentes sociedades possuem seus próprios modelos poéticos do tempo, assim pode-
mos encontrar uma quantidade de diferentes representações do tempo, e, por
necessidade, diferentes representações musicais do tempo.
Em todo caso, o sentido, o significado dessa e de qualquer outra representação ar-
tística, musical ou não, aparenta confundir-se com sua função anunciadora, com sua
natureza processual indeterminada. Ao longo deste artigo levantaram-se questões
naturalmente controversas relativas a classes de pensamento, gramáticas e sintaxes
artísticas, vocabulários sígneos e simbólicos, criatividade e adaptabilidade, socie-
dade e cultura, num intuito positivamente argumentativo e alternativo. Percebe-se
agora que a nominação do mundo é uma entre muitas outras razões do nomear.
Que atribuir um nome é também uma construção, uma interferência. Que o re-
presentar traz em si uma irrealidade, que representar é também dar nome ao ine-
xistente. Percebe-se agora um equilíbrio entre a representação do mundo e a
representação de algo que se realiza através das diferentes concepções culturais e so-
278 ciais da realidade. Percebe-se nesse algo indizível, que se busca ser representado, um
desejo de nominação, não do mundo, mas dos fundamentos de nossa humanidade.

1 Mitchell, W. 1995, “Representation”, in F Lentricchia & T McLaughlin (eds), Critical


Terms for Literary Study, 2nd edn, University of Chicago Press, Chicago.
2 Um sinal é uma entidade que significa uma outra entidade. Sinais podem ser naturais, es-
tabelecendo uma relação causal com a entidade significada (como no caso do raio e o trovão),
ou convencionais, estabelecendo um acordo de sentido entre significante e significado (como
no caso do ponto final e o fim da sentença). Símbolos por sua vez contrastam com sinais
pois denotam diretamente a coisa significada (como no caso da bandeira e da pátria). Há
coisas que são somente coisas e não são sinais. Há coisas que são também sinais de outras
coisas. Há coisas que são sempre sinais (como as linguagens e outros símbolos não verbais, tais
como as cerimônias e ritos).
3 Sinais são perceptíveis principalmente através da audição e visão, mas podem ser também
percebidos através da gustação, olfato, tato, e sensos de equilíbrio, direção, aceleração, calor,
movimento e dor.
4 Noam Chomsky (1957). Syntactic Structures. The Hague: Mouton.
Interações entre Ritmo Lingüístico e Ritmo Musical no
Contexto da Canção
Cássio Andrade Santos
279
cassio.santos@usp.br
Beatriz Raposo de Medeiros
biarm@usp.br
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
Universidade de São Paulo

Resumo
Teorias de percepção e produção da fala, atreladas a pesquisas cognitivas influenciaram
na questão do ritmo nas línguas, questionando a dicotomia proposta por Lloyd James
(1941) e Abercrombie (1967) (Stress-timed e Syllable-timed). A Teoria Motora da Percep-
ção da Fala (Lieberman & Mattingly, 1985) e a Fonologia Articulatória (Browman & Golds-
tein, 1986) observam o sinal acústico da fala para responder a perguntas fonológicas,
tomando o gesto, o movimento, como sua unidade lingüística. Cummins (2009), tomando
a fala como movimento, afirma que o ritmo nela presente é um ordenador temporal tal
os presentes na dança ou no caminhar. Buscando observar a realização do ritmo lin-
güístico na fala, resolvemos nos ater a fala-cantada e observar como a estrutura musi-
cal influencia sua realização.

Introdução
Os sons da fala são um interessante objeto de estudo lingüístico também quando
inseridos no contexto da canção. O trato vocal precisa se adaptar a realização dessa
fala então cantada, o que resulta, devido principalmente a estrutura melódica, num
som não mais como aquele da fala stricto senso (não cantada) (Medeiros, 2002).
A estrutura rítmica da canção também se mescla com a da fala de forma a também
interferir nessa. Mais do que isso, passa a formar, junto com ela, uma única coisa, um
terceiro objeto de estudo, que já não é mais simplesmente “língua” ou simplesmente
“música”. Desenvolvemos um estudo tendo a fala cantada como objeto, buscando
observar aspectos ligados a sua realização rítmica. Baseamos-nos no conceito de
ritmo apresentado por Cummins (2009), para quem ritmo é aquilo que possibilita
o entrosamento entre dois osciladores.
O presente trabalho apresenta um estudo piloto, no qual analisamos a duração de
unidades denominadas de grupo inter-perceptual-center (GIPC) (Barbosa 1994,
2000), unidades que se iniciam nos momentos da fala em que o ouvinte se ancora
para perceber o ritmo. Buscamos observar, na variação da duração dessas unidades,
a diferença da realização do acoplamento da fala-cantada de um sujeito cantando
ora em conjunto com um metrônomo e ora com a gravação original de duas can-
ções do repertório popular brasileiro, uma construída com ritmo sincopado e outra
com ritmo não sincopado.

280
O ritmo lingüístico como osciladores acoplados
Buscando uma definição de ritmo que não fosse apenas aplicada às línguas, mas aos
fenômenos naturais como um todo, Cummins (2009) apresenta idéias baseadas no
comportamento humano e seus movimentos. Para o autor, ritmo é um fenômeno
“onipresente” em toda a natureza e de central importância para diversas atividades
humanas.
Em suas idéias principais, Cummins (2009) afirma que, como há ritmo em tudo o
que fazemos, há ritmo também na fala. Para o autor, ritmo é um mecanismo coor-
denativo responsável por gerar estabilidade numa organização temporal do com-
portamento de indivíduos. Ele não é propriedade de um sinal acústico ou de um
estímulo visual, mas “an affordance for movement” , interligando ações e estímulos.
Em uma pista de dança onde indivíduos carregavam consigo fones de ouvido liga-
dos a um de dois DJ’s presentes, Cummins percebeu que os movimentos de dança
dos que ouviam o DJ “X” eram semelhantes entre si e que os movimentos dos que
ouviam o DJ “Y” eram também parecidos entre si, como se o ritmo agisse como
“cola que organiza cada um dos dois grupos dentro de uma unidade coordenada”
(Cummins, 2009, p. 1).
O artigo escrito pelo autor apresenta um título curioso: “Rhythm as an affordace for
the entrainment of movement”. Traduzir para o português tal título não é tarefa tão
fácil quanto parece. O próprio autor afirma que affordance e entrainment não são
termos muito comuns, inclusive a foneticistas. Assim, explicando o conceito de tais
palavras, Cummins apresenta seu ponto de vista sobre a noção de ritmo.

Affordance e Entrainment
Usando a definição de Chemero (2003), affordances são as relações entre as habili-
dades de um organismo e as características de seu meio. Seguindo o exemplo dado
por Cummins, a possibilidade de um copo ser considerado “agarrável” reside na re-
lação entre o copo e a ação que possibilita ao “agarrador”, agarrá-lo; ou seja, não se
trata de uma característica nem do copo e nem de quem, ou o que, agarra tal copo,
mas sim da relação existente entre eles. Assim, affordance representa essa idéia de
“tornar possível”, baseada na relação existente entre dois sistemas distintos.
Entrainment, por sua vez, pode ser definido como a relação entre dois sistemas os-
cilatórios, até que seus períodos de oscilação entrem em fase, tornando-se relativos
um ao outro. Usando dois pêndulos de exemplo, o resultado de um entrainment
seria o alinhamento de suas fases. Esse alinhamento pode se dar no momento rela-
tivo à metade do ciclo de um dos pêndulos (one half cycle difference), ou seja, quando
um pêndulo está no meio de seu ciclo, o outro está (re)iniciando o seu; ou os dois
pêndulos podem estar relacionados de forma que seus ciclos se iniciem no mesmo
momento (zero phase difference). 281

Cummins ressalta ainda que entre sistemas que estejam com grandes diferenças de
freqüência (muito defasados) pode haver também uma coordenação relativa, como
descreveu von Holst (Kelso, 1995), pois há tensão entre a estrutura dinâmica in-
trínseca de cada um dos sistemas e aquilo que os torna ligados um ao outro.
Pensando em ritmo como “an affordance for the entrainment of movement”, Cum-
mins (2009) nos lembra, por exemplo, da sincronia dos músicos de uma orquestra,
de um bando de búfalos ou de um cardume de peixes, em que entrainments são evi-
dentes, mesmo não havendo periodicidade. Cita-se ainda um estudo de Patel et al.
(2008), no qual se demonstrou que cacatuas são capazes de se movimentarem rit-
micamente a partir das batidas subjacentes de uma peça musical. Com essas afir-
mações, o autor busca provar que o ritmo é uma forma ou um meio com a qual se
pode obter sincronia dos movimentos entre dois sistemas distintos.
Assim, se imaginarmos a fala como um movimento, podemos também afirmar que
o ritmo nela presente é um meio de se obter sincronia. Cummins (2002, 2003) ob-
servou que os sujeitos /falantes conseguiam obter sincronia (assincronias médias
de 40 ms eram consideradas normais) com outros sujeitos /falantes no ato de dizer
um texto. A partir desse experimento, o autor afirma que uma das interpretações
possíveis para tal fenômeno é enxergar a fala de cada um dos sujeitos como um sis-
tema autônomo, que serve como estímulo externo capaz de modular a produção en-
dógena da fala dos outros falantes.

Fala como movimento


Cummins (2009) parte do pressuposto de que a fala é um movimento. Tal afirma-
ção é também um dos pilares da Fonologia Articulatória (FAR), baseada numa teo-
ria chamada de Dinâmica de Tarefa, proposta por Kelso, Saltzman e Tuller (1986)
e Kugler e Turvey (1987). A Fonologia Articulatória toma como unidade foné-
tico-fonológica o chamado gesto articulatório que segundo Albano (2001) é “uma
oscilação abstrata que especifica constrições no trato vocal e induz os movimentos
dos articuladores (p. 52)”.
Somando as afirmações de Cummins (2009) ao proposto pela Fonologia Articula-
tória, pode-se pensar em ritmo como uma maneira de sincronizar os articuladores
do trato vocal na produção da fala.
Barbosa (2001) afirma ainda que:
“o contínuo da chamada implementação fonética, a articulação, se dá quando da
enunciação, pela interação que ocorre entre as pautas gestuais e um sistema du-
plamente oscilatório, o rítmico, que define uma grade em torno da qual se as-
sociam gestos segmentais e gestos prosódicos em geral. Tal sistema é aqui
considerado paralinguístico e comum a outros movimentos corpóreos oscila-
tórios (braços e pernas no andar, no correr, no remar). (p. 31).
282

O ritmo na música
Na música, o ritmo se dá através da relação temporal entre uma nota e outra, le-
vando-se em conta a diferença de acento, intensidade e duração dessas notas. Para
se entender bem o conceito de ritmo, faz-se necessário também entender os con-
ceitos de pulso, metro e acento. Cooper & Meyer (1960) apresentam de forma clara
essas definições.
Para eles, um pulso é um estímulo sonoro dentro de uma série regular de tempo.
Assim, cada uma das batidas de um relógio ou de um metrônomo é um pulso. Por
estarem organizados em intervalos regulares de tempo, esses pulsos, mesmo depois
de cessados, tendem a causar expectativa na mente e na musculatura daqueles que
os ouvem. Metro é a medida da regularidade dos acentos em determinados pulsos,
ou seja, o metro diz com que regularidade aparecem pulsos acentuados.
Três fatores influenciam para determinar se um pulso é ou não acentuado: a in-
tensidade com que esse pulso é tocado, a duração desse pulso e a sua localização
(mais grave ou mais agudo). Pulsos acentuados tendem a ter maior duração e maior
intensidade em relação aos pulsos não acentuados. Quando um pulso está inserido
num contexto métrico ele é chamado de batida (beat) e caso seja acentuado recebe
o adjetivo “forte” em oposição às batidas “fracas”, as não acentuadas. Embora o
metro tenda a ser regular, irregularidades podem ocorrer sem destruir a sensação de
organização métrica, pois essas irregularidades tendem a ser temporárias.
Finalmente, ritmo é definido pelos autores como sendo o modo como uma ou mais
batidas fracas são agrupadas em relação a uma batida forte. Tais autores afirmam
serem cinco os ritmos básicos: o iambo, o anapesto, o troqueu, o datílico e o anfí-
braco. Curioso notar que eles usam termos usados pela métrica poética clássica. Tal
fato se explica com o argumento de que na Grécia Antiga, local e época onde sur-
giram os primórdios das teorias musicais empregadas hoje no ocidente, a música
era usada exclusivamente como acompanhamento para poesias. Assim, os metros
e ritmos musicais receberam o mesmo nome de metros poéticos.
O iâmbico é formado por uma batida fraca seguida de uma forte. O anapesto, de
duas fracas seguidas de uma forte. O ritmo troqueu consiste de uma batida forte se-
guida de uma fraca. O datílico, de uma forte seguida de duas fracas e o anfíbraco de
uma fraca, uma forte e outra fraca. Comparando essas estruturas com as métricas
musicais usadas hoje em dia podemos assemelhar o troqueu a um compasso 2/4,
que é formado por uma batida acentuada seguida de outra não acentuada; e o da-
tílico com o 3/4, que é formado por uma batida acentuada seguida de duas não
acentuadas.
Discutindo sobre acento, Cooper & Meyer (1960) afirmam que é impossível defi-
nir-lo em parâmetros quantitativos, pois se trata de um conceito relacional, ou seja,
283
para os autores só existem notas acentuadas se existirem notas não-acentuadas. A
diferença entre elas reside no fato de que a batida acentuada, entorno das quais se
agrupam batidas átonas, ser o foco principal no desenvolvimento rítmico de uma
peça.
Na música ocidental, principalmente depois da era romântica, tornou-se comum
entre os compositores o uso de compassos cujo acento sempre caísse em sua pri-
meira nota. Para Copland, um compasso pode ter a segunda ou a terceira batida
acentuada, ao invés da primeira, como é comumente usado hoje em. Muitos dos
ritmos que se originaram de ritmos africanos não são possíveis de serem notados se-
guindo-se tal critério, pois as notas acentuadas nem sempre estão na primeira nota
do compasso. Esse deslocamento do acento é chamado de síncope na teoria musi-
cal ocidental. Muitos ritmos tidos como “populares”, como o jazz, o samba, a bossa-
nova, o reggae, entre outros, são sincopados, ou seja, possuem deslocamento de
acento na sua estrutura rítmica básica.

Metodologia
No universo da canção, ou seja, da fala cantada em geral, seja ela acompanhada de
instrumentos ou não, encontramos canções compostas segundo critérios de célu-
las rítmicas sincopadas e canções compostas segundo critérios rítmicos de células
não-sincopadas. São exemplos destas células, as encontradas no rock, na valsa, na
marcha, no blues; sendo as do samba1, a da bossa-nova, as do jazz2, do reggae, do
forró, exemplos de células de ritmos sincopados, ou seja, com seus acentos deslo-
cados.
Desenvolvemos um experimento, sob a forma de um estudo piloto, buscando ob-
servar a realização da fala cantada em dois universos: o das canções cujo ritmo é sin-
copado e o das canções cujo ritmo não é sincopado. Esse experimento é parte de
dissertação de mestrado que observa justamente as características rítmicas da fala
cantada. Nesse estudo desenvolvemos um experimento que observa a fala cantada
realizada por dois sujeitos e tomamos a fala de cada um deles como um oscilador.

Corpus
Para compor o corpus escolhemos duas canções, uma delas construída com a célula
rítmica do rock, ou seja, não-sincopada; e a outra com a célula rítmica da bossa-
nova, célula esta construída com deslocamento de acento. São elas Gita (rock), de
Raul Seixas, e Corcovado (bossa-nova), de Tom Jobim. Como principais critérios
para a composição desse corpus, tomamos aqueles que se relacionam à estrutura rít-
mica da música, o que justifica nossa divisão acima proposta: ‘sincopadas’ e ‘não-sin-
copadas’. Atentamos-nos também a certas características dos compositores e dos
intérpretes das canções. Assim, as canções deviam ser compostas e interpretadas
284 por brasileiros, falantes do português brasileiro como primeira língua. Julgamos
ainda ser necessário escolher composições de épocas históricas próximas, o que nos
fez decidir por canções compostas na segunda metade do século XX, século de con-
solidação da canção popular no Brasil (Tatit, 2004). Ressaltamos, ainda, que as can-
ções são do repertório popular, gênero em que o português realizado pelo cantor se
aproxima mais do português falado quando comparado ao erudito, pois neste úl-
timo movimentos como abaixamento do maxilar, menor avultamento da língua,
exigências da técnica erudita, acabam por tornar o som produzido um tanto quanto
distantes daquele da fala stricto senso (Medeiros, 2002); o que argumenta a favor da
escolha de canções do repertório popular.
Segmentamos a fala cantada realizada pelo sujeito em Grupos-inter-perceptual-cen-
ter (GIPC) e comparamos os sessenta primeiros, nomeando-os de GIPC 1 (as v),
GIPC 2 (ez), GIPC 3 (es v), GIPC 4 (oc)3 e assim por diante. Fizemos o mesmo
com a canção Corcovado. Utilizamos somente os sessenta primeiros apenas por
motivo de recorte. Julgamos não ser necessário, já que se trata de um estudo piloto,
medir a canção em toda sua extensão. Recortamos, ainda, para obter a mesma quan-
tidade de GIPCs em todas as condições. Usando as duas canções obteríamos dife-
rentes quantidades de unidades, já que a canção Gita é mais longa que Corcovado.

Sujeito
Um falante do Português Brasileiro cantou as canções acima citadas ora tentando
cantar junto ao metrônomo ora junto à gravação original da respectiva canção.
Tanto o metrônomo quanto as gravações originais foram dispostas ao sujeito via
fone de ouvido estéreo. O sujeito, brasileiro, é aluno do curso de pós-graduação do
curso de Letras da USP. Na área musical atua como músico prático, com oito anos
de experiência como vocalista, violonista e baixista em bandas de rock, samba e
MPB. No canto erudito, o sujeito é classificado como tenor, a mais aguda das vozes
masculinas, assim como Raul Seixas e também João Gilberto, intérpretes das can-
ções que usamos. Frisamos isso para lembrar que assim o sujeito não teve dificul-
dade em acompanhar as alturas das notas cantadas pelo cancionista nos
osciladores-guias.

Protocolo experimental
Dispusemos então o sujeito em uma cabine isolada do Estúdio Multimeios do Cen-
tro de Computação Eletrônica da USP, com um microfone Shure SM58, de capi-
tação dinâmica, e um fone de ouvido Philips, modelo SBCHP460. Utilizou-se o
software Soundforge Sony para captação e digitalização do som.
O sujeito deveria cantar então as canções seguindo as seguintes condições:
Condição Com cancionista4. Nela o sujeito foi instruído a cantar a canção ao 285
mesmo tempo em que ouvia a gravação original da canção, buscando acompa-
nhá-la, ou seja, buscando estar em fase com ela. Como usamos duas canções
nesse estudo, subdividimos essa condição em duas: Com cancionista-Gita,
quando o sujeito deveria cantar junto com Raul Seixas, ou seja, com a gravação
original da canção Gita; e Com cancionista-Corcovado, quando o sujeito deve-
ria cantar junto com João Gilberto interpretando Corcovado. As cópias das
canções originais foram obtidas diretamente de álbum original em formato
Compact Disc (CD) e transmitidas via fone de ouvido ao sujeito. Dispusemos
ainda ao sujeito cópia da letra das canções. Como ambas as gravações não se
iniciam diretamente com canto, mas com introdução instrumental, no caso de
Corcovado, e introdução com instrumentos musicais e texto falado em Gita, o
sujeito tinha um período determinado, justamente o dessa introdução, para se
ajustar ao andamento da gravação, o ‘oscilador-guia’, já que terminada a intro-
dução, o sujeito deveria obrigatoriamente começar a cantar, assim como na gra-
vação do CD.
Condição Com metrônomo: nessa tarefa, o sujeito devia cantar a canção ao mesmo
tempo em que tinha disposto, também via fone de ouvidos, um metrônomo,
este com andamento ajustado o mais próximo daquele da gravação contida no
álbum original. Para Gita ajustamos o metrônomo em moderato (especifica-
mente em 110 batidas por minuto (bpm)), e para Corcovado em andante (100
bpm). Sub-denominamos também essa condição em com metrônomo-Gita, em
que o sujeito deveria cantar Gita e em com metrônomo-Corcovado, quando de-
veria cantar Corcovado, dispondo ao sujeito as respectivas partituras das canções.
Cada condição (com metrônomo-Gita, com metrônomo-Corcovado, com cancio-
nista-Gita e com cancionista-Corcovado) foi repetida três vezes e chamamos de
“tomada” cada uma das vezes.
Em ambas as condições denominamos o sujeito de ‘oscilador-sujeito’ e de ‘oscila-
dor-guia’ o que a ele foi disposto via fone de ouvidos: o metrônomo ou a interpre-
tação original dos álbuns.
Na condição com metrônomo observamos a realização da fala cantada como um os-
cilador que se guia por outro oscilador, de andamento fixo. Já na condição com can-
cionista, o sujeito devia buscar cantar com um oscilador composto por uma gravação
da interpretação da canção, cujo andamento não é fixo. Movimentos de interpre-
tação, como rallentando e accelerando, tornam o andamento da canção variado, o
que pode vir a dificultar a tarefa de entrosamento a ser realizada pelo sujeito. O me-
trônomo, modelo D’accord, foi desenvolvido pela D’accord Music Software.
Além desse fato, os osciladores-guias da condição com cancionista são constituídos
por vários osciladores, e não apenas um, pois cada instrumento presente na grava-
ção (baixo, bateria, trompete, por exemplo) pode ser visto com um oscilador.
As gravações originais usadas foram “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho, inter-
pretada por Raul Seixas e banda no álbum Gita (1974) para a condição com can-
286
cionista-Gita; e Corcovado, de Tom Jobim, interpretada por João Gilberto e banda
no álbum “O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960), para a condição com cancionista-
Corcovado. Na condição com metrônomo-Gita usou-se partitura de Chediak (2004)
e na condição com metrônomo-Corcovado, de Chediak (1990).
Lembramos que o processo popular de composição é em certos pontos diferente do
processo erudito. Tradicionalmente, o processo de composição e de divulgação de
obras eruditas é sempre atrelado à partitura. Já a canção popular brasileira, em geral,
não recebe notação musical no momento de usa composição, e acaba sendo trans-
mitida oralmente, por exemplo, através de violão, pandeiro e voz. As canções por
nós utilizadas foram compostas, transmitidas e publicadas sem partitura, através
de gravações, e divulgadas através de transmissões de rádio e televisão principal-
mente e da venda de álbuns em LP, K-7 ou CD. O evento das partituras de Che-
diak deve ser entendido como um processo posterior ao da criação e divulgação das
obras populares. O cancionista Raul Seixas, por exemplo, nunca chegou a ver a par-
titura que aqui utilizamos, pois a elaboração desta deu-se já depois do falecimento
do artista.

Segmentação do corpus: P-Center e GIPC


O conceito de perceptual-certer ( p-center) foi apresentado por Morton, Marcus &
Frankish (1976). Trata-se de um conceito psico-acústico referente ao ponto no
sinal acústico da fala em que o ouvinte se ancora para perceber a regularidade sonora
desta. Esse ponto está localizado no onset das vogais pronunciadas. A definição da
localização do p-center argumenta ainda a favor da idéia de que a produção da fala
se dá através da superposição de dois mecanismos de certa forma independentes: a
produção contínua de vogais e a produção intermitente de consoantes. (Fowler,
1983).
A distância entre o onset de duas vogais consecutivas foi chamada de GIPC (grupo
inter-perceptual-centeres) por Barbosa & Bailly (1994). Observou-se que tais uni-
dades são as que melhor caracterizam o ritmo em português brasileiro (Barbosa,
1996). Assim, segmentamos o corpus em GIPCs. No sintagma “um cantinho”,
por exemplo, tem-se um GIPC entre os on-sets de /u/ e o de /a/, ou seja, tem-se um
GIPC formado pelos fones /um k/. O /a/ pertence já ao GIPC seguinte: /ant/.
287

u m k ã
Figura 1 — GIPC /um k/ (entre cursores), de “um cantinho um violão”
Tivemos, no entanto, que adaptar essa unidade ao contexto da canção. Processos de
ditongação, freqüentes também na fala comum, como em “por que é que eu sou tão
calado” colocam duas vogais, e portanto dois on-sets de vogal, realizados na mesma
nota na melodia da voz. Nesses casos tomamos o ditongo como um único GIPC, já
que uma das vogais passa assim a ser uma semivogal.

por k i E k i ew s o w
Fig. 2 — GIPC /i E k/ (entre cursores) de “por que é que eu sou”

Hipótese
Hipotetizamos que haveria menor acoplamento entre os osciladores em questão
nas condições cuja canção utilizada fosse sincopada, ou seja, nessas condições es-
perávamos maior variação da duração (em milissegundos) dos GIPCs.
Levantamos ainda a hipótese de que o uso de metrônomo nas condições com me-
trônomo-Gita e com metrônomo-Corcovado tornaria a fala cantada mais “quadradi-
nha” quando comparada à respectiva realização guiada pelo cancionista.
Medidas
Medimos a duração dos GIPC’s usando o software “Praat 5.1.17”. Excluímos da
comparação consoantes de início de palavra antecedidas de pausa/ silêncio, já que
288 elas não formam um GIPC. As vogais seguintes a essas consoantes foram incluídas,
já que fazem parte do GIPC seguinte. Excluímos também da comparação ondas
com intensidade menor que 30 dB. O valor dos GIPCs pode ser visto no anexo I.
Extraímos a média das durações das três realizações de cada GIPC e em seguida ob-
tivemos o desvio padrão dessas médias. No valor do desvio padrão observamos o
quanto variou a duração dessas unidades em cada uma das condições, ou seja, o
quanto o sujeito variou na duração de cada segmento de sua fala cantada. De cada
condição, extraímos o desvio padrão médio, ou seja, obtivemos quatro valores, um
de cada condição.

Resultados
Nas gravações cuja canção era sincopada, os valores de desvio padrão são significa-
tivamente superiores quando comparados aos valores encontrados nas condições
com a canção não sincopada, indicando assim maior variação da duração das uni-
dades daquela condição. Enquanto nas condições com a canção Gita (não sinco-
pada) o maior valor de desvio padrão encontrado foi inferior a 60 mili-segundos,
têm-se desvios superiores a 100 ms, chegando-se a 238 ms nas condições com a can-
ção Corcovado.
Nos gráficos abaixo pode ver o valor do desvio padrão de cada GIPC. No eixo “x”
tem-se distribuídos os GIPCs, ou seja, o “1” representa o “GIPC 1”, o “2” o “GIPC
2” e assim por diante. No eixo “y”tem-se a duração desses GIPCs em milissegundos.
No GIPC 51 das condições com a canção Corcovado, constituído pelos fonemas
/or k/ do trecho “o redentor que lindo”,
pode-se ver um alto valor de desvio padrão. Na condição Com cancionista-Corco-
vado pode-se ver o valor de 234 ms como desvio padrão da referida unidade. Tal
289
GIPC corresponde na partitura a uma colcheia de início de compasso. Por defini-
ção musical são as primeiras notas de cada compasso sempre acentuadas, como já
explicamos anteriormente. Por ser uma bossa-nova porém, em alguns momentos a
canção apresenta deslocamento de acentos, ou seja, tais primeiras notas são reali-
zadas sem acento. O GIPC em questão ocupa justamente essa posição: a primeira
nota de um compasso e tende a ser, portanto, uma nota acentuada. Por tratar-se de
uma canção sincopada, no entanto, tal nota pode ser realizada sem acentuação. A
possibilidade de essa nota ser ou não acentuada justifica, assim, a grande variação na
duração do GIPC correspondente a ela, já que a duração é um dos principais tra-
ços que definem acento, tanto de uma nota (musicalmente falando) quanto de uma
sílaba5 (linguisticamente falando).
Ainda na condição com metrônomo-Corcovado pode-se ver grande variação tam-
bém na duração do GIPC 1 (um cantinho), que não corresponde a uma nota acen-
tuada, mas é o primeiro GIPC da canção. O desvio padrão encontrado é de 232 ms.
Na fala stricto senso as sílabas de início de frase tendem a ser acentuadas pelo falante.
Assim, pode-se justificar a grande variação da duração desse primeiro GIPC tam-
bém pela possibilidade ou não de acentuação, pois ele tende a ser musicalmente
não acentuado, mas fonologicamente tende a receber acento, por ser inicio de frase.
Observa-se ainda que nas condições com a canção sincopada, a variação dos valo-
res dos desvios padrões é maior que nas condições com a canção não sincopada.
Além de se poder ver o quanto variou cada repetição dos GIPCs, pode-se também
através dos gráficos observar que nas condições com a canção sincopada, os valores
dos desvios padrões variam, por exemplo, de 238 ms (GIPC 21) a 1 (GIPC 8) (na
condição com metrônomo Corcovado), ou seja, os pontos no gráfico se distribuem de
forma menos retilínea quando comparados aos dos gráficos da condições nas quais
utilizou-se canção não sincopada. Isso resulta nos maiores valores do desvio padrão
médio nas condições com canção sincopada, como se vê em seguida:
Tabela 1 — Desvio-padrão médio.
Condição Desvio padrão médio
Com metrônomo-Gita 15,58 ms
Com cancionista-Gita 19,60 ms
Com metrônomo-Corcovado 50,96 ms
Com cancionista-Corcovado 34,76 ms
Conclusão
Os valores acima mencionados afirmam que se obteve maior variação de duração de
GIPC’s na condição com metrônomo-Corcovado e menor variação na condição com
290 metrônomo-Gita. Nas condições com a canção Gita o menor desvio padrão médio
é a da condição com metrônomo-Gita.
De início tínhamos de fato isso como hipótese, pois criamos que o uso de partitura
e metrônomo tenderia a tornar as interpretações do sujeito mais ‘quadradas’, com
menor variação, o que argumenta a favor de maior entrosamento com o oscilador
guia. Diante do encontrado nas condições com a canção Corcovado nos questio-
namos, no entanto, a respeito da influência do metrônomo, pois no entrosamento
com essa canção, o oscilador-guia mais eficiente foi aquele em que usamos a grava-
ção do cancionista e não o metrônomo. Acreditamos que a diferença se deve justo
ao fato de a canção ser sincopada, ou seja, permitir variação na realização do acento.
Esperávamos maior variação na condição com cancionista-Corcovado, crendo que o
uso do metrônomo e da partitura na condição
com metrônomo-Corcovado tornasse as interpretações do sujeito mais “quadradas”.
Pelo observado, no entanto, concluímos que o uso de partitura e metrônomo difi-
cultou o exercício de entrosamento. Acreditamos que isso se deva a dois fatores: 1)
as batidas do metrônomo são sempre iguais em intensidade e freqüência (pitch), o
que torna o metrônomo um oscilador-guia sem referência a não ser por marcar o
andamento. A gravação da canção é um oscilador-guia mais eficiente, pois a fala
cantada facilita o exercício de entrosamento, já que o sujeito se utiliza antes de tudo
da voz do intérprete para se guiar. A presença ainda do violão, que se ouve clara-
mente na gravação, marca a batida tão característica da bossa-nova, o que também
facilita a tarefa de entrosamento, já que a batida tem contida em si o ritmo básico
que “puxa” a canção.

1 O samba-enredo tem sua célula rítmica diferente da célula do samba-canção, que é dife-
rente da do samba de partido-alto.
2 Cada especificidade do jazz e construída em cima de uma célula rítmica. Assim o Ragtime
tem uma célula diferente da que dá base ao Dixiland, que é diferente da usada no Cool Jazz,
etc. . .
3 “às vezes você me pergunta (. . .)”: início da canção Gita.
4 cancionista: termo que se atribui a Tatit (1996) e que designa o compositor-intérprete da
canção popular brasileira.
5 No nosso caso, GIPC.
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Aspectos prosódicos de quatro emoções na voz falada
Aline Mara de Oliveira
alinem@usp.br
292 Departamento de Lingüística, Universidade de São Paulo
Beatriz Raposo de Medeiros
beatrizrap@gmail.com
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Letras
Universidade de São Paulo

Resumo
Existem componentes na fala que não se limitam aos segmentos vocálicos ou conso-
nantais, e por não serem segmentais, são estudados no campo da prosódia. Tais com-
ponentes são chamados de suprassegmentos e representam diversos fenômenos
acústicos da fala, como altura, intensidade, duração, pausa, velocidade de fala, acento e
ritmo. Scherer (1984, 2001) propôs uma teoria que relaciona as variações fisiológicas do
trato vocal e o comportamento acústico no tocante às emoções humanas. A fim de en-
tender melhor os parâmetros acústicos envolvidos na prosódia da emoção, realizou-se
um estudo baseado no comportamento da curva da frequência fundamental (F0) ao
longo de um texto lido e interpretado por três atrizes brasileiras (com experiência pro-
fissional entre 20 a 30 anos). O texto de Vaz (1983), composto por 126 palavras já foi uti-
lizado em outros trabalhos como no de Figueiredo (1993). As emoções interpretadas pelas
atrizes foram as emoções consideradas básicas pela literatura emotiva: a alegria, a tris-
teza, a raiva e o medo (Ekman, 1999). As médias da F0 da alegria são significativamente
maiores que da tristeza, para todos os sujeitos. A fala alegre tem a tendência de varia-
ção de F0 numa faixa de frequência mais agudas que a tristeza. O estudo demonstrou
que o comportamento da F0 contribuiu para a diferenciação acústica das emoções es-
tudadas. A análise dos dados foi feita à luz da prosódia da fala pretende contribuir como
ponto de referência para estudos da prosódia emocional da fala cantada.

Introdução
A definição e a classificação das emoções humanas são bastante controversas na li-
teratura. A teoria discreta das emoções, proposta por Ekman (1999), defende a exis-
tência de algumas emoções “básicas”, ligadas aos problemas da vida, como a raiva,
que corresponderia a situações de competição, o medo, que estaria ligado ao perigo,
a alegria, que envolveria a cooperação, e a perda, que despertaria a tristeza (Power
e Dalgleish, 1997 apud Laukka 2001).
Como não é objetivo deste trabalho aprofundar possíveis definições de emoção, já
propostas, ou não, na literatura, julgamos suficiente a classificação das emoções
ditas básicas para justificarmos a escolha, para esse estudo, das emoções acima
mencionadas.
É importante saber que existem componentes na fala que não se limitam aos seg-
mentos vocálicos ou consonantais, e por não serem segmentais, são estudados no
campo da prosódia. Tais componentes são chamados de suprassegmentos e repre-
sentam diversos fenômenos acústicos da fala, como altura, intensidade, duração,
pausa, velocidade de fala, acento e ritmo; estão associados aos estudos das emoções 293
humanas.
Os estudos acerca da fala emotiva mostram que existem relações entre as emoções
e a frequência fundamental (doravante, F0). Por exemplo, nas situações de medo,
F0 tende a ser mais baixa com relação à fala neutra1, em oposição às situações de
alegria, que geralmente apresenta F0 alta (Banse e Scherer, 1996).
Além dos aspectos acústicos, as emoções também possuem outros componentes
como a experiência subjetiva ou a sensação, a resposta neurofisiológica (no sistema
nervoso central e autônomo) e a expressão motora (na face, na voz e nos gestos)
(Banse & Scherer, 1996).
Dessa forma, Scherer (1984, 2001) propõe uma teoria que relaciona as variações
fisiológicas do trato vocal e o comportamento acústico no tocante às emoções hu-
manas. No caso da raiva, por exemplo, ocorre o aumento da tensão na musculatura
laríngea acompanhada do crescimento da pressão do ar subglotal (Laukka, 2004,
apud Spencer, 1857), o que altera a produção do som.
O que determina as variações vocais que acompanham as emoções são as modifi-
cações fisiológicas que, por sua vez, induzem a alterações nos sistemas de produção
vocal. A alteração de um dos desses componentes produz alterações no outro com-
ponente. Por exemplo, numa situação em que se exige um padrão respiratório maior,
aumenta a necessidade do suporte de oxigênio, que vai afetar a expressão facial
(forma da boca) e a expressão vocal (alterações na pressão subglotal), bem como
um número de parâmetros fisiológicos periféricos (Correia, 2007).
Além disso, as emoções são acompanhadas por várias respostas adaptativas do sis-
tema nervoso autônomo e somático (Johnstone e Scherer, 2000). Essas respostas
proporcionam modificações no funcionamento parcial ou total do sistema de pro-
dução de fala, como na respiração, na vibração das pregas vocais e na articulação.
Os principais sinais acústicos analisados para a expressão vocal das emoções são: o
contorno da frequência fundamental (que reflete a frequência da vibração das pre-
gas vocais), a energia acústica presente na voz (amplitude e intensidade vocal); a
distribuição da energia no espectro de frequência (especialmente a energia envol-
vendo as regiões de alta e de baixa frequência, afetando a percepção da qualidade de
voz ou do timbre); a localização dos formantes (F1, F2, relacionados com a percep-
ção da articulação) e uma variedade temporal dos fenômenos, incluindo duração e
pausas (Banse e Scherer, 1996; Gustafson-Capková, 2001).Assim como na fala, na
voz cantada também a relação entre as emoções expressas e os sinais acústicos tam-
bém é estudada. A fala cantada gera um sinal acústico, que reflete seu estado emo-
cional e produz efeitos perceptivos nos ouvintes e, muitas vezes, simboliza noções
abstratas da emoção (Sherer, 1995).
Morozov (1996) estudou os principais componentes acústicos do canto e identifi-
cou alguns parâmetros importantes, como o tempo, o ritmo, a dinâmica, a duração
294
das sílabas e das micropausas, as características do vibrato, a afinação, a dicção, a
pronúncia e o timbre. O autor observou que ao manipular o timbre da macro-es-
trutura, modifica-se a amplitude e a frequência dos formantes, já na micro-estrutura
ocorrem alterações nos harmônicos. Com isso, as frequências do formante do can-
tor sobem quando nas emoções como a alegria ou a raiva, e descem, quando as emo-
ções são a tristeza ou o medo. Ele ainda identificou modificações na extensão do
vibrato e do timbre da voz para algumas emoções.
Embora o presente estudo não trate especificamente da fala cantada e a emoção
que esta pode veicular no canto, servirá, certamente, de apoio a estudos voltados
para aspectos emocionais ligados à acústica do canto. Em Medeiros (a sair) escolhas
de alocação de alturas na melodia da canção foram comparadas a contornos en-
toacionais próprios da fala, revelando que a composição cancional é o lugar de en-
tendimento perfeito entre aspectos musicais e lingüísticos, no qual alternam-se
predominâncias das restrições de um sobre outro.

Objetivos do estudo sobre a fala emotiva


A fim de entender melhor os parâmetros acústicos envolvidos na prosódia da emo-
ção, realizou-se um estudo baseado no comportamento da F0, portanto trata-se de
um estudo fonético acústico, tendo como objeto um texto lido e interpretado por
três atrizes brasileiras.
As emoções-alvo deste trabalho são a alegria, a raiva, o medo e a tristeza, pois são,
como já vimos, as emoções consideradas “básicas” na literatura. O estudo da F0
nas emoções da voz falada pode fornecer subsídios para os estudos que tem como
objeto a fala cantada.
Para Damásio (2003), as emoções básicas como o medo, a raiva, a surpresa, a tris-
teza, a felicidade ou a aversão/repugnância são caracterizadas por uma programação
inata, ao passo, que existem emoções mais complexas, reconhecidas como emoções
sociais, por exemplo, a simpatia, o embaraço, a vergonha, a culpa, o orgulho, a in-
veja, a gratidão, a admiração e o desprezo.

Método
1. Corpus
O estudo do comportamento da F0 ao longo de um texto possibilita um dos as-
pectos prosódicos das emoções. O corpus proposto foi um texto de Vaz (1983) (ver
Anexo 1), composto por 126 palavras, e já utilizado em outros trabalhos como no
de Figueiredo (1993). O texto possui estilo científico e o mais árido possível, a fim
de evitar emoções implícitas.
A fim de compreender melhor o contorno entoacional das emoções nesse texto, foi
necessário selecionar frases que constituíssem uma unidade linguística. Para isso, 295
utilizou-se a proposta de Nespor e Vogel (1986), que organiza os constituintes pro-
sódicos de uma maneira hierárquica.
A hierarquia dos constituintes prosódicos abrange desde a sílaba (o constituinte
prosódico basilar) até o enunciado fonológico (o constituinte prosódico mais
amplo), categorizado numa hierarquia crescente: a sílaba; o pé métrico; a palavra fo-
nológica; o grupo clítico; a frase (ou sintagma) fonológica; a frase (ou sintagma) en-
toacional e o enunciado fonológico. Os constituintes mais baixos (a sílaba e o pé)
estruturam as informações fonológicas, os constituintes mais altos da palavra fo-
nológica até o enunciado fonológico estruturam-se com as informações fonológi-
cas e com outros planos linguísticos.
Para analisar as curvas entoacionais, o constituinte que trata especificamente desse
domínio é a frase entoacional. Frase entoacional (I) é uma constituinte importante
no estudo da prosódia dos enunciados. Nespor e Vogel (1986) definem essa cons-
tituinte prosódica como:
A regra básica de formação de frase entoacional fundamenta-se na noção de que
a frase entoacional é o domínio de um contorno de entoação e que os fins de
frases entonacionais coincidem com posições em que pausas podem ser intro-
duzidas (1986)
O respaldo teórico permitiu que as frases fossem segmentadas, respeitando os li-
mites fonológicos e sintáticos, visto que a teoria possibilita a interação entre os as-
pectos fonológicos e os aspectos de outros subsistemas gramaticais como o
morfológico, o sintático e o semântico.
Dentre as frases entoacionais do texto, as escolhidas para esse trabalho foram:
Sentença 1: As células do sangue que fabricam anticorpos, são individualizadas.
Sentença 2: As células do fígado são provavelmente iguais entre si.
Sentença 3: Este conjunto constitui um clone linfocitário.
A primeira frase está localizada no início, a segunda está no meio e a terceira está no
final do texto. A escolha das frases considerou tanto a localização das mesmas,
quanto a classificação sugerida por Nespor e Vogel (1986) das frases entoacionais.
É sabido que a localização de um dado constituinte numa frase tem a tendência de
receber F0 maior ou menor. Um exemplo disso é a frase afirmativa, que tende a ini-
ciar-se com F0 alto e terminar com F0 baixo (melodia descendente). No caso do
texto lido pelas atrizes, apesar de ele representar uma unidade lingüística maior que
a sentença, hipotetizou-se que, por ser lido sem interrupção, poderia trazer carac-
terísticas entoacionais da frase afirmativa, produzindo um contorno de tendência
sempre descendente, ainda que houvesse variações em algumas localidades. Assim,
escolheram-se três frases distribuídas ao longo do texto e não apenas as iniciais ou
finais, já que fazer as medidas de todas as sílabas do texto completo seria um traba-
lho por demais demorado.
296
2. Sujeitos
Os sujeitos da pesquisa foram três atrizes brasileiras (com experiência profissional
entre 20 a 30 anos), que leram o texto, interpretando as emoções solicitadas ante-
riormente. As emoções estudadas foram as consideradas básicas pela literatura: a
alegria, a tristeza, a raiva e o medo. As atrizes interpretaram cinco repetições para
cada emoção, totalizando 60 repetições. Além disso, todas as atrizes leram o corpus
de maneira neutra.
As análises iniciais das gravações dos sujeitos já mostraram que existem diferenças
intra-sujeitos importantes para serem consideradas. Por essas razões, as atrizes serão
analisadas individualmente a fim de identificar diferenças e semelhanças entre si.

3. Análises dos dados


Para extrair os valores da F0, foi utilizado o programa livre Praat 5.1.23 e scripts
correlacionados. Nessa etapa, as sentenças foram segmentadas para unidades ainda
menores (sílabas) e identificado o valor de F0 para cada unidade.
Inicialmente, os dados foram submetidos à estatística descritiva e ao Teste-t pro-
porcionados pelo programa Excel 2007. No futuro, esses dados serão analisados
pelo programa estatístico R.

Figura 1— Refere-se à média da F0 das cinco repetições da primeira frase falada pelo
sujeito 2.
Resultados
As atrizes foram estudadas caso a caso e em seguida, foram levantadas as diferen-
ças e semelhanças encontradas. Nesse estudo, foram analisadas as emoções alegria,
raiva, medo e tristeza. As gravações da fala neutra foram desconsideradas. 297
Na Figura 1.1, podemos observar o comportamento da F0 a longo termo, ao longo
da segunda sentença, comparando as emoções alegria, raiva, medo e tristeza entre
si.
Ao visualizar a figura 1.1, nota-se que o medo apresenta valores de F0 consideravel-
mente mais altos (235 e 153 Hertz (Hz)) que as demais emoções. Já a tristeza tem
valores mais baixos de F0, variando entre 204 e 118 Hz.
Os parâmetros de F0 para a alegria e para a raiva, visualmente, parecem estar pró-
ximos, no entanto, houve diferença significativa no que se refere à variação de F0. Na
fala alegre, a variação de F0 (entre o mínimo e o máximo) foi em torno de 82 Hz, en-
quanto que na fala irritada variou entre 222 Hz.
Tabela 1 — Estatística descritiva de todos os sujeitos da pesquisa, referentes à
segunda sentença do corpus, na emoção alegria.
ALEGRIA

Sujeito 1 Sujeito 2 Sujeito 3

Média 214 237 246

Desvio padrão 46 58 63

Máximo 307 422 451

Mínimo 125 139 159

Coeficiente de variação 22 24 25

Tabela 2 — Estatística descritiva de todos os sujeitos da pesquisa, referentes à


segunda sentença do corpus, na emoção tristeza.
TRISTEZA

Sujeito 1 Sujeito 2 Sujeito 3

Média 137 172 182

Desvio padrão 49 24 32

Máximo 239 211 248

Mínimo 90 78 91

Coeficiente de variação 36 14 18
Além disso, os valores máximos de F0 são consideravelmente maiores na alegria, em
contrapartida com os valores mínimos de F0 que são mais baixos. Assim, a fala ale-
gre tem a tendência de variação de F0 numa faixa de frequência mais agudas que a
tristeza.
298
Tabela 3 — Médias, de todas as repetições, dos valores da F0 para as emoções alegria
e tristeza e o resultado do Teste-t.
Alegria Tristeza S

Sujeito 1 222 123 0

Sujeito 2 188 159 0

Sujeito 3 227 172 0

As médias da alegria são consideravelmente maiores que aquelas da tristeza. O su-


jeito 1 e o sujeito 2 apresentam valores próximos na média da alegria, porém os va-
lores da tristeza entre os dois sujeitos estão bastante diferentes: uma diferença de 49
Hz. Observa-se também que o sujeito 2 varia apenas 29 Hz entre a emoção alegria
e tristeza. Considerando o valor de α igual a 0.05, nota-se que temos diferenças es-
tatísticas entre as emoções alegria e tristeza. Os resultados da tabela 3 corroboram
os resultados das tabelas anteriores.
Na figura 2, podemos visualizar melhor o comportamento da F0 nas duas emoções,
alegria e tristeza, produzida pelas três atrizes.

    
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Figura 2 — Média das cinco repetições da F0 da primeira frase falada pelos três sujei-
tos, interpretando as emoções alegria e tristeza.
No caso da raiva e do medo, o sujeito 1 apresenta as médias da F0 semelhantes para
ambas as emoções e nas três sentenças analisadas (por volta de 200 Hz). No en-
tanto, a variação de amplitude mostrou-se diferente nessas emoções: a variação
entre o mínimo e o máximo da F0 foi de 285 Hz, 238 Hz, 246 Hz (para a primeira,
segunda e terceira sentença), respectivamente. Já no medo, a variação foi de 475 Hz,
512 Hz e 385 Hz.
As médias da F0 dos sujeitos 2 e 3 também foram semelhantes para as duas emoções.
No entanto, no sujeito 3, a variação entre o mínimo e o máximo da F0, está em
299
torno de 348 Hz, 237 Hz, 299 Hz na raiva. Já no medo, as amplitudes estão por
volta de 159 Hz, 86 Hz e 133 Hz (na primeira, na segunda e na terceira frase, res-
pectivamente).

Conclusões
As análises dos dados mostraram que a F0 contribui para a diferenciação acústica
das emoções estudadas. As análises do contorno de F0 mostram-se eficientes para a
diferenciação das emoções e para identificarmos alguns fenômenos peculiares de
certas emoções, como foi o caso da raiva.
Para a diferenciação das emoções medo e raiva, é necessário verificar se outros pa-
râmetros acústicos, como a duração, são eficientes para diferenciá-las das demais
emoções.

1 Nessa pesquisa, adotamos o termo “neutro” para designar a leitura convencional, sem a so-
licitação prévia da interpretação emotiva. No entanto, não defendemos que a leitura neutra
necessariamente não apresente resquícios emotivos.

Referências
Banse, R., & Scherer, K. R. (1996). Acoustic profiles in vocal emotion expression. Journal of
Personality and Social Psychology 70(3), 614-636.
Correia, P.C.G. (2007) Sob o signo das emoções: expressões faciais e prosódia em indiví-
duos com perturbação vocal. Dissertação de mestrado. Instituto de Ciências da Saúde
da Universidade Católica Portuguesa.
Figueiredo, R.M (1993) A eficácia de medidas extraídas do espectro de longo termo para a
identificação de falantes. Caderno de Estudos Lingüísticos 25, 129-160.
Gustafson-Capková, S. (2001). Emotions in speech: Tagset and Acoustic Correlates. Term
paper in Speech Technology 1, Swedish National Graduate School of Language Tech-
nology (GSLT). Stockholm University. Department of Linguistics.
Laukka, P. (2004). Vocal Expression of Emotion: Discrete Emotion and Dimensional Ac-
counts. Dissertation of Acta Universitatis Upsaliensis, Sweden.
Medeiros, B. Raposo (2009) Pistas de competência cancional na entoação da canção. Cog-
nição & Artes Musicais/Cognition & Musical Arts, 4 (1), 5-11.
Morozov, V. (1996). Emotional expressiveness of the singing voice: The role of macros-
tructural and microstructural modifications of spectra. Logopedics Phoniatrics Vocology
21: 49-58.
Scherer, K. R. (1984). On the nature and function of emotion: A component process ap-
proach. In K. R. Scherer & P. Ekman (Eds.), Approaches to emotion, pp. 293-317. Hills-
dale, NJ: Erlbaum.
Scherer, K. R. (1995). How Emotion is Expressed in Speech and Singing. Proceedings of the
XIIIth International Congress of Phonetic Sciences, Stockholm, Sweden, 3, 90-96.
300 Scherer, K. R. (2001). Appraisal considered as a process of multi-level sequential checking.
In K. R. Scherer, A. Schorr, & T. Johnstone (Eds.). Appraisal processes in emotion: Theory,
Methods, Research, 92-120. New York and Oxford: Oxford University Press.
Vaz, N. M. (1983) Idéias para uma nova imunologia. In: Ciência Hoje II, ( 7), 33.

Anexo
Texto I (extraído de VAZ, 1983, pág. 33, item 2):
A reatividade dos linfócitos, as células do sangue que fabricam anticorpos, são
individualizadas. Em cada organismo, as células do fígado são provavelmente
iguais entre si, as da pele também, mas os linfócitos são diferentes uns do ou-
tros. Cada um difere do seguinte por possuir na membrana diferentes recepto-
res, moléculas que garantem a aderência a certas estruturas (ou a capacidade de
fixar certas substâncias). Assim, o linfócito seguinte adere às estruturas diferen-
tes. Para ser mais exato, as diferenças existem entre clones de linfócitos. Quando
um determinado linfócito se multiplica e gera duas, quatro, oito milhares de có-
pias idênticas, este conjunto constitui um clone linfocitário. Dentro de um
mesmo clone, os linfócitos são iguais: têm os mesmos receptores de membrana,
aderem às mesmas coisas, participam das mesmas interações.
Memória de Curto Prazo para Melodias:
Efeito das Diferentes Escalas Musicais
Benassi-Werke, M. E.
301
Departamento de Psicobiologia – Unifesp
Queiroz, M.
Instituto de Matemática e Estatística - USP
Germano, N. G.
Instituto de Artes - UNESP
Oliveira, M. G. M.
Departamento de Psicobiologia – Unifesp

Palavras Chaves
Alça fonológica; teste de amplitude; melodias.

Introdução
O modelo de memória operacional assume a existência de quatro componentes re-
lacionados: executivo central, alça fonológica, esboço vísuo-espacial e buffer episó-
dico (Baddeley, 2000). Tais componentes seriam responsáveis pelo armazenamento
e manipulação da informação necessária para atividades cognitivas. A alça fonoló-
gica está relacionada ao armazenamento de itens verbais e acústicos na memória de
curto prazo (MCP) (Baddeley, 2007). Alguns estudos indicam que a recordação
de curto prazo de itens verbais é influenciada por conteúdos semânticos pré-arma-
zenados na memória de longo prazo (MLP). Com base nos estudos sobre familia-
ridade com o idioma (Thorn & Gathercole, 1999), pode-se sugerir que a alça
fonológica é mais eficaz na manutenção de representações de palavras de idiomas
familiares do que de idiomas não-familiares. Assim, é possível que a MCP para tons
também seja influenciada pela familiaridade, isto é, por contextos musicais pré-es-
tabelecidos na MLP.

Objetivo
Verificar o perfil de armazenamento/manipulação de seqüências de tons através de
testes de memória construídos à semelhança do Digit Span Test na ordem direta
(OD) e na ordem inversa (OI), comparando tal perfil ao perfil de armazena-
mento/manipulação de material verbal. Utilizando-se o teste de amplitude meló-
dica (“Tone span test”) construído com base na escala diatônica (mais familiar) e
cromática (menos familiar), poderíamos verificar se o mesmo padrão que ocorre
na recordação de dígitos (mais familiar) e pseudopalavras (menos familiar) ocorre
também nos testes com estas duas escalas. Se a amplitude na OD do teste na escala
diatônica for maior que na cromática, mas se mantiver baixa na OI, pode-se suge-
302 rir que a manipulação de seqüências melódicas na memória operacional acontece
de forma diferente da manipulação verbal.

Materiais e Métodos
Dez sujeitos foram submetidos a testes de MCP para dígitos, pseudopalavas e tons.
Foi utilizado o Digit Span Test padronizado para o Português (WAIS-III). A par-
tir deste teste, foi criado um teste de amplitude de pseudopalavras. As pseudopala-
vras foram criadas a partir de mudanças de algumas letras que compõem os números
e, então, cada dígito do Digit Span Test foi substituído pela sua pseudopalavra cor-
respondente.
Foram construídos 2 testes de amplitude de tons à semelhança do Digit Span Test,
sendo um deles com base na escala cromática (utilizando-se 12 notas e a primeira
nota da oitava seguinte) e o outro com base na escala diatônica (utilizando-se 7
notas e a primeira nota da oitava seguinte). O teste na escala cromática foi desdo-
brado em 2 testes. Em um deles, as sequencias de tons tinham intervalos de, no má-
ximo, uma terça; no outro, as sequencias tinham intervalos livres. O mesmo foi
feito para o teste na escala diatônica.
Assim, foram construídos 4 testes de amplitude de tons:
1) Escala diatônica, intervalos até de uma terça (Teste 7_3);
2) Escala diatônica, intervalos livres (Teste 7_X);
3) Escala cromática, intervalos até de uma terça (Teste 7_3);
4) Escala cromática, intervalos livres (Teste 7_X).
A idéia da construção destes 4 testes é criar uma gradação de dificuldade, baseando-
se na hipótese de a escala diatônica ser mais familiar do que a cromática e, por-
tanto,os tons construídos com base nela seriam mais fáceis de serem recordados.
Além disso, intervalos mais próximos são mais comuns e, portanto, devem ser mais
fáceis de serem recordados do que intervalos mais distantes.
Posteriormente, foi atribuído um dígito para cada tom utilizado nos testes e, assim,
4 testes de amplitude de dígitos, pareados aos testes de tons, foram construídos.
Os sujeitos foram submetidos a um teste de afinação e, em seguida, foram aplicados
os testes de amplitude de dígitos WAIS-III, de pseudopalavras e de tons e dígitos
análogos na OD e na OI. Em todos os testes, seqüências crescentes de itens foram
apresentadas auditivamente. Ao final de cada seqüência, o sujeito deveria repeti-la
na OD ou OI, conforme avisado antes do teste. A amplitude (span) de cada teste
foi o total de itens contidos na seqüência máxima repetida corretamente.
Resultados e Discussão
Na OD, a recordação foi maior para dígitos do que para tons nos quatro tipos de
testes (p<0,05). Além disso, a amplitude de tons foi maior no teste 7_3 do que nos
outros três testes (p<0,05). O mesmo padrão foi encontrado para dígitos. Pode- 303
mos supor a partir destes dados que, como a amplitude dos testes 7_X não foi maior
do que a dos testes 12_3 e 12_X, a quantidade de elementos não influenciou a re-
cordação, já que nos testes 12_3 e 12_X havia mais dígitos e mais notas (13 notas
e, portanto, 13 dígitos).
Por outro lado, as amplitudes dos testes feitos na escala diatônica diferiram entre
si e esta diferença pode ser atribuída à diferença de salto melódico, pois no teste
7_3 os saltos melódicos eram menores (mais comuns), do que no teste 7_X onde
os saltos eram livres.
Nos testes de dígitos análogos encontramos a mesma diferença. Como no teste de
dígitos 7_3 os dígitos eram mais próximos uns dos outros, poderíamos supor que
seja mais fácil armazenar e recordar dígitos que estão mais próximos do que dígitos
mais distantes uns dos outros. Talvez isso ocorra por um possível aumento da ocor-
rência de chunks, isto é, de agrupamentos de números formando apenas um item
para recordar e não vários.
Na OI observamos o mesmo perfil da OD, sendo que a amplitude de recordação de
dígitos foi maior que a de tons (p<0,05) e a amplitude de tons e de dígitos foi maior
no teste 7_3 do que nos outros testes (p<0,05). Porém, as amplitudes de tons na OI
foram muito menores que as amplitudes de tons na OD.
Para evidenciar esta diferença entre OD e OI dos testes de dígitos e de tons, cria-
mos um Índice, definido deste modo: (amplitude na OD – amplitude na OI) /
amplitude na OD.
O Índice apontou que a diferença entre OD e OI foi significativamente maior para
tons do que para dígitos (p<0,05), isto é, a recordação na OI de tons é significati-
vamente menor que a recordação inversa de dígitos. Não houve diferença entre os
testes de tons, nem entre os testes de dígitos.
Em uma revisão de literatura, aplicamos a fórmula de índice em resultados de tes-
tes de amplitude de dígitos em outros idiomas como inglês e espanhol, hebraico e
alemão. Os resultados variaram entre 0.09 to 0.26. Neste estudo, os índices de dí-
gitos variaram entre 0,05 (pseudopalavras) e 0,24 (dígitos 12_X). No entanto, um
valor diferente foi obtido com Mandarin, um idioma tonal, cujo índice foi 0.48 ±
0.05, resultado semelhante aos encontrados nos índices melódicos em nossa pes-
quisa (0,48 a 0,60). Essa similaridade indica que a manipulação de tons na memó-
ria operacional é mais difícil do que a manipulação de itens puramente verbais, com
ou sem significado.
Conclusões
1) Em geral, o perfil de recordação tonal é similar ao perfil de recordação verbal,
mas o número de itens lembrados é menor.
304 2) O número de itens recordados no teste de amplitude melódica 7_3 é maior do
que nos outros testes de amplitude.
3) A recordação da OI é mais difícil em testes de amplitude melódica (mostrado
pelo Índice).
Supomos que o cérebro humano é capaz de manipular vários tipos de materiais me-
lódicos, mas, aparentemente, não é capaz de inverter materiais melódicos como é
capaz de inverter materiais verbais. Pode-se sugerir, conforme hipótese inicial, que
a manipulação de seqüências melódicas na memória operacional se dá de forma di-
ferente da manipulação de material verbal.

Referências Bibliográficas
Baddeley, A. D. (2000). The episodic buffer: A new component of working memory? Trends
in Cognitive Sciences 4(11), pp. 417-423.
Baddeley, A. D. (2007). Working memory, thought and action. Oxford: Oxford University
Press.
Baddeley, A. D. & Hitch, G. (1974). Working memory. In G. H. Bower (Ed.), The Psycho-
logy of Learning and Motivation 8, 47-90.
Thorn, A. S. C. & Gathercole, S. E. (1999). Language-specific knowledge and short-term me-
mory in bilingual and non-biligual children. The Quarterly Journal of Experimental Psy-
chology 52A(2), pp. 303-324.
Mario de Andrade e o Prazer Musical
Luciana Barongeno
lubarongeno@usp.br
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo 305

Resumo
Em 1933, Oneyda Alvarenga (1911-1984) escreve A linguagem musical 1 como trabalho de
conclusão do Curso de História da Música no Conservatório Dramático e Musical de
São Paulo. Orientada por Mario de Andrade (1893-1945), que escolhe o tema, seleciona
a bibliografia e orienta o plano de trabalho, esta primeira versão é ampliada até 1935 e
concluída em 1944. Os manuscritos que documentam o processo de criação incluem os
resumos, as notas e as três versões de Oneyda Alvarenga, bem como as notas margi-
nais de Mario de Andrade, presentes nas diferentes versões de A linguagem musical e nos
livros de sua biblioteca. Este conjunto de documentos, inédito, guarda matrizes de con-
ceitos musicológicos formulados na obra do mestre e na de sua discípula.
Este trabalho, que nasce da reflexão parcial sobre A linguagem musical - nosso atual ob-
jeto de estudo de doutorado - tem como objetivo mostrar que, para Mario de Andrade
e Oneyda Alvarenga, o intercâmbio de conceitos específicos às Artes e às Ciências serve
de eixo na investigação do problema da estética musical. A questão da dinamogenia, rei-
teradamente abordada pelos autores, é tomada como um exemplo clássico dessa inte-
ração.

“A arte precisa agradar primeiro aos sentidos e ao corpo”. A afirmação de Oneyda Al-
varenga, apresentada na primeira parte do capítulo “Prazer Musical”, deriva, entre
outros, da leitura de Psychologie de l´art 2 e de Esquisse d´une philosophie de l´art 3,
mas é sobretudo em La musique et la vie intérieure4 que a musicóloga encontra a ex-
plicação fisiológica do fenômeno musical. A sensação sonora, dizem Bourguès e
Denéréaz, cria dinamogenias, isto é, um desenvolvimento e um gasto de forças fí-
sicas, responsáveis pelo prazer musical. Na medida em que este processo coincide
com um evento motor e com um evento afetivo, os autores concluem que o “grito”
pode ser tomado como gesto germinal de toda música.
Conceito impregnado pelas teorias evolucionistas do século XIX, o gesto vocal é
uma das idéias fundamentais do pensamento musical de Mario de Andrade. No
ensaio A escrava que não é Isaura, por exemplo, o teórico apresenta sua concepção
modernista do processo de criação artística a partir da reconstrução crítica e ex-
pressiva do grito primitivo.5 Entende que o caráter da expressividade da música se
deve justamente ao fato de se manifestar como mimese da sensação expressa pelo
gesto6, idéia que repercute diretamente no conceito de Música Pura: “a música que
não se baseando diretamente em elementos descritivos, quer objetivos, quer psico-
lógicos, tira dos elementos exclusivamente dinamogênicos (Ritmo, Melodia, Har-
monia) a sua única razão de ser arte o ser bela”.7
Não é possível, por ora, rastrear a trajetória das concepções estéticas de Mario de
Andrade. No entanto, é possível ressaltar a importância que a “concepção genética”
da criação artística imprime no pensamento do pesquisador. A idéia da reconstru-
306
ção do gesto, desde a manifestação “simples” até a “complexa”, converge Ciência e
Arte na pesquisa estética de seus contemporâneos. Em L´Esprit Nouveau8, perió-
dico da vanguarda francesa, entende que o método genético nada mais é do que a
apropriação das teorias evolucionistas aplicadas às artes, podendo depreender ainda
a importância das disciplinas auxiliares, como a fisiologia e a psicologia, no estudo
da estética experimental.
Introdução à estética musical, livro cuja escrita revela a sintonia de Mario de An-
drade com o “espírito novo”, tem na questão da dinamogenia a fundamentação do
fenômeno fisiológico da música. Indiscutivelmente adepto das teorias evolucio-
nistas – com ou sem conhecimento de causa - o musicólogo discute o processo de
criação artística a partir da “evolução” expressiva do gesto vocal, sensação sonora
que associa ao prazer musical. Textos basilares do autor são estruturados sobre o
mesmo eixo de argumentação, dentre eles, Os compositores e a língua nacional 9, onde
o discurso evolucionista pavimenta as propostas do teórico travestidas pelas con-
cepções do “recitativo brasileiro”.
Ciente da complexidade do tema, Mario de Andrade indica a Oneyda Alvarenga
pontos essenciais a serem estudados em cada capítulo de A linguagem musical. A
correspondência entre ambos sinaliza o papel da biblioteca do professor, seara onde
se encontram cravadas as matrizes dos conceitos que a aluna apresenta em sua tese.
O exame apurado das leituras que compõem a bibliografia do livro inédito de
Oneyda Alvarenga, bem como dos manuscritos inscritos pelo musicólogo à margem
dos textos sugere que as bases intelectuais que subjazem suas reflexões estéticas re-
montam ao debate sobre a natureza humana da linguagem. Além de rota para a
elucidação do fenômeno musical, a estética fisiológica deve ser entendida como eco
da tradição iniciada pela Musicologia no século XIX, quando disciplinas de dife-
rentes áreas do conhecimento se uniam em nome da Ciência da Música.10 Este é o
cenário que serve de condição crítica ao teórico e experimentador do Modernismo
brasileiro.

1 Alvarenga, Oneyda. A linguagem musical. Série Manuscritos de Outros Autores, Arquivo


Mario de Andrade, IEB/USP.
2 Delacroix, Henri. Psychologie de l´art. Paris: Félix Alcan, 1927.
3 De Bruyne, Edgar. Esquisse d´une philosophie de l´art. Trad. Léon Breckx. Bruxelas: Albert
Dewit, 1930.
4 Bourguès, Lucien; Denéréaz, Alexander. La musique et la vie intérieure. Essai d´une histoire
psychologique de l´art musical. Paris: Félix Alcan; Lausanne: Georges Bridel, 1921.
5 Andrade, Mario de. A escrava que não é Isaura (1925). In: ———. Obra imatura. Rio de
Janeiro: Agir, 2009, p. 235-236.
6 Idem. Introdução à estética musical. Prefácio de Gilda de Mello e Souza. Estabelecimento
do texto, introdução e notas de Flávia Camargo Toni. São Paulo: Hucitec, 1995, p. 37.
7 Idem. Pequena história da música (1942). 9. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, p. 105. 307

8 Basch, Victor. L´esthetique nouvelle et la science de l´art: lettre au directeur de L´Esprit


Nouveau. L´esprit Nouveau, Paris: Éditions de L´Esprit Nouveau, n. 1, 1921, p. 5-12 e n. 2,
1921, p. 119-130.
9 Andrade, Mario de. Os compositores e a língua nacional (1937). In: ———. Aspectos da mú-
sica brasileira. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991, p. 32-94 (Obras Comple-
tas, 11)
10 Sobre o assunto ver: Brain, Robert Michel. The pulse of modernism: experimental phy-
siology and aesthetic avant-gardes circa 1900. Studies in History and Philosophy of Science
39, 2008, p. 393-417 e Rehding, Alexander. The quest for the origins of music in Germany
circa 1900. Journal of the American Musicological Society 53, n. 2, p. 345-385, Summer 2000.
tecnologia, artes musicais e a mente

Desenvolvimento do processos composicionais


308 eletroacústicos a partir da relação entre live-electronics
e redes neurais artificiais
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo
rbgtoffolo@uem.br
Universidade Estadual de Maringá — UEM

Resumo
Este artigo descreve a pesquisa de doutorado em andamento do autor, que tem como
proposta investigar formas de relacionar as redes neurais artificiais com a música ele-
troacústica do tipo live-electronics. Inicialmente, apresentaremos conceitos básicos que
se relacionam com a questão, como o conceito de música interativa, criatividade e auto-
regulação, propostos por (Rowe, 1993, 2001), (Paine, 2002) e (Di Scipio, 2003). Para tais au-
tores, o live-electronics pode ser considerado como um tipo de arte interativa, mais
especificamente como música interativa, porém para Rowe, Paine e Di Scipio, o conceito
de interatividade é mais amplo do que o que vem fundamentando grande parte da prá-
tica do live-electronics. Tais autores propõem modelos diferenciados para o live-elec-
tronics de forma que tal tipo de obra possa realmente ser considerada como arte
interativa. Para os autores, a interatividade é caracterizada pela habilidade de dois agen-
tes “criativos” estabelecerem um processo comunicativo, entendendo aqui criatividade
como capacidade de auto-regulação que ocorre durante o processo comunicativo. A
maioria dos processos composicionais típicos do live-electronics são somente “reativos”,
ou seja, processos computacionais (top-down) pré-programados pelo compositor que
reagem de forma “não-criativa” aos inputs-sonoros criados por um músico. Sendo assim,
apresentaremos dois modelos de obras do tipo live-electronics propostos por (Paine,
2002) e (Di Scipio, 2003) que pretendem superar essa visão (top-down) e que são inspi-
rados na modelagem Orientada a Objetos e nos estudos sobre Algorítmos Genéticos
respectivamente. Expandiremos a discussão propondo um modelo de live-electronics
que utilize Redes Neurais Artificiais com arquitetura apoiada nos estudos desenvolvidos
por (Hawkins and George, 2006). A escolha desse modelo é justificada pela facilidade que
tal rede tem em lidar com classificação de padrões temporais, característica essencial para
o processamento de áudio. Finalizaremos com a discussão sobre formas de obter com-
portamentos tipo-morfologicamente orientados da rede neural, de acordo com a teoria
de (Schaeffer, 1966).

Introdução
As técnicas de live-electronics têm se consolidado ao longo dos últimos anos no
campo da composição eletroacústica. A parte da discussão entre vertentes que
apoiam a música eletroacústica pura em detrimento das propostas de interação e
processamento de sinal de áudio em tempo-real, ou vice-versa1 o live-electronics tem
sido considerado como uma interessante ferramenta para o desenvolvimento de
novas formas de relacionar a escritura instrumental com a eletroacústica. De forma
muito resumida, podemos considerar que o live-electronics propicia algumas técni- 309
cas diferenciadas como: o processamento em tempo real do som proveniente do
instrumento com inúmeros tipos de bancos de filtros; detecção de pontos da par-
titura virtual relizados por processos de trigger2 utilizados para o disparo de tre-
chos eletroacústicos pré-elaborados pelos compositores e processos de interação
que utilizam trechos eletroacústicos gerados ora estocásticamente, ora randomica-
mente ou por procedimentos de inteligência artificial. Este último que nos inte-
ressa discutir neste trabalho.
Autores como (Rowe, 1993, 2001), (Paine, 2002), (Di Scipio, 2003), têm discu-
tido e apresentado diferentes formas de utilização de sistemas “inteligentes” em
composições do tipo live-electronics. A premissa inicial desses autores para justifi-
car o uso de tais sistemas é a que concebe o live-electronics como um processo de
interação entre homem e máquina. A interação é definida por tais autores de di-
versas formas, mas Paine e Di Scipio compartilham a idéia de que ambos os parti-
cipantes do processo, homem e máquina, têm que ter atitudes “criativas”. Afirmam
que a maioria dos processos de live-electronics falham nesse sentido, já que o plano
computacional não é concebido de forma que este manifeste atitudes cognitiva-
mente “inteligentes”3. O que nos interessa aqui não é a crítica, mas sim a possibili-
dade que se abre para a busca de novas poéticas para a música eletroacústica.

Live-electronics
O desenvolvimento da tecnologia computacional, bem como seu barateamento,
têm propiciado uma ampla gama de novas experiências em diversas áreas do co-
nhecimento musical inclusive para a composição musical. Com o desenvolvimento
dos processadores, hoje é possível lidar com o áudio digital, que envolve uma grande
quantidade de informação, com equipamentos relativamente baratos e acessíveis.
Dentro desse panorama, o processamento de sinal de áudio em tempo-real, am-
pliou as possibilidades composicionais para um tipo de composição comumente
chamado de live-electronics. Prova desse desenvolvimento centra-se na superação
de parte da crítica realizada por Risset (1999). Neste artigo, Risset ao discutir de-
talhes composicionais de sua obra Duet for one pianist age, segundo suas próprias pa-
lavras, como “advogado do diabo” (Risset, 1999) ao considerar as limitações da
tecnologia para a produção de live-electronics e apresentar uma defesa à sobrevi-
vência das obras de “tape fixo”. O autor ressalta cinco pontos principais que pode-
mos sintetizar em:
a) qualquer sistema digital consegue se ater à apenas um nível limitado de com-
plexidade do som real;
b) sistemas em tempo real são mais limitados do que os softwares de síntese;
c) os procedimentos em tempo real não são a solução para as dificuldades em do-
310 minar as complexas técnicas de síntese;
d) os sistemas em tempo real são efêmeros devido ao rápido desenvolvimento da
tecnologia;
e) música para tape também precisa ser interpretada, portanto não está morta.
Concordando com muitas das críticas assertivas de Risset, principalmente as que se
centram no campo estético, podemos ressaltar que a primeira e a segunda encon-
tram-se superadas pelo desenvolvimento da tecnologia que ele próprio aponta. Dez
anos depois de sua crítica, podemos afirmar que as linguagens de programação para
processamento de áudio digital encontram-se tão desenvolvidas e eficientes que
permitem que se atue em quantos níveis de complexidade de processamento de
áudio for necessário, bem como têm tanta flexibilidade para síntese quanto qual-
quer software para síntese sonora em tempo diferido. Processos de análise de Fou-
rier e re-síntese sonora, que há alguns anos levavam horas para serem processados,
são hoje realizadas em tempo-real por linguagens como o PureData e SuperColli-
der. Linguagens como o Csound, que tem uma ampla história de desenvolvimento
a partir das primeiras experiências de Max Matthews com o programa Music I de
1957, passou para a sua versão real-time incluindo todas as flexibilidades de sintese
e processamento que a versão em tempo diferido possui.
Dentro desse panorama, o live-electronics tem ganhado força dentre os composito-
res que vislumbram novas formas de relacionar a escritura instrumental com a ele-
troacústica. Autores como (Menezes, 1999, 2002), (Paine, 2002), (Di Scipio, 2003)
e (Rowe, 1993, 2001), para citar apenas alguns, têm discutido as diversas formas
de interação entre a escritura instrumental e a eletroacústica. Rowe (1993), por
exemplo, define os sistemas musicais interativos como aqueles nos quais o com-
portamento se modifica em resposta a eventos musicais, porém Paine (2002) apre-
senta uma contribuição interessante no que se refere aos conceitos de interação e
interatividade dentro do universo do live-electronics, ampliando a definição de
Rowe.
Paine afirma que os termos interação ou interatividade têm sido utilizados de forma
abusiva por inúmeros autores, já que a maioria dos sistemas são na verdade reativos
e não interativos, por falharem em aspectos cognitivos (Paine, 2002). Entende “cog-
nitivo” como a capacidade que os participantes de um processo comunicativo têm
para modificar suas estratégias de ação. Sua crítica parte da metáfora do “modelo de
conversação humana” onde dois indivíduos que conversam desenvolvem uma re-
lação contínua de “mão-dupla” em que ocorre a troca de informações e auto-regu-
lação de seus comportamentos. Se sistemas de processamento de sinal de áudio são
construidos de forma a não se modificarem estruturalmente mas somente reagirem
aos inputs sonoros, Paine afirma que não podem ser considerados como sistemas
musicais interativos:
This process of interaction is extremely dynamic, with each of the parties cons- 311
tantly monitoring the responses of the other and using their interpretation of
the other parties’ input to make alterations to their own respons strategy, pic-
king up points of personal interest, expanding points of common interest, and
negating poins of contention. (Paine, 2002, p. 297)
À parte de tais críticas terem ou não validade estética, ou muitas vezes parecerem
demasiadamente rígidas por não considerarem que sistemas musicais que realizam
processamento de sinal sem ser interativos podem ser utilizados para produzir gran-
des obras musicais, vale ressaltar que a proposição de tal discussão pode contribuir
para o desenvolvimento de interessantes investigações no campo da composição e
da cognição musical. Ao decorrer de seu texto, Paine sugere o modelo de Progra-
mação Orientada a Objetos como paradigma para a elaboração de sistemas musi-
cais interativos.

1. Dois modelos de interação apoiados em processos “inteligentes”


Paine considera que para a obtenção de novas maneiras de interação entre instru-
mento e máquina, os modelos tradicionais apoiados na dupla cartesiana frequên-
cia versus tempo não são eficientes para desenvolver processos de interação
dinâmicos. Sendo assim, parte do conceito de Dynamic Morphology desenvolvidos
por Wishart e a facilidade que tal modelo tem em ser implementado utilizando a
arquitetura computacional Orientada a Objetos, tanto para as camadas de “analise”
dos inputs sonoros, como da geração de som nas camadas de saida do sistema com-
putacional.
A programação Orientada à Objetos ou a Modelagem Orientada à Objetos carac-
teriza-se pela tentativa de modelar computacionalmente objetos com característi-
cas e formas de funcionamento específicos que atuam de acordo com as interações
realizadas pelos objetos e pelo usuário. A programação não é mais um fluxo linear
e contínuo de passos a ser executado pelo computador, mas sim conjuntos (clas-
ses) de objetos com características específicas que interagem entre si a partir das
operações realizadas pelo usuário (entendendo aqui usuário como uma entidade
abstrata que pode ser inclusive um outro programa). Os objetos são criados pelo
programador, que define suas características de funcionamento e formas de rela-
cionamento com outros objetos, e durante o tempo de execução do programa
podem entrar em operação (serem instanciados), serem eliminados ou serem mo-
dificados por outros objetos ou por ações do usuário de forma totalmente dinâ-
mica. Paine sugere então tal modelo para implementar um sistema interativo que
considere os inputs sonoros, o gestual humano e as modificações acústicas ocorri-
das no espaço em um looping-causal de interações mutuas onde as classes de obje-
tos se modificam de acordo com os inputs do ambiente de forma não reativa, mas
ativa (com classes de objetos modificando-se mutuamente), como proposta de apli-
312 cação dos conceitos de orientação à objetos à obras do tipo live-electronics.
Por outro lado Di Scipio (2003) sugere um outro modelo de sistema interativo
apoiando-se em conceitos advindos da Ciência Cognitiva Dinâmica. Tal área ca-
racteriza-se por estudos que abarcam o entendimento de como os processos cogni-
tivos e a inteligência se relacionam com a biologia; estudos de algorítimos genéticos
e suas aplicações; psicologia ecológica; sistemas auto-organizados, sistemas emer-
gentes, entre outras.4
Di Scipio descreve em seu artigo o desenvolvimento de um sistema interativo que
denominou por Audible Eco-Systemic Interface Project, resultado de suas experiên-
cias durante a residência composicional no CCMIX (Centre de Création Musi-
cale “Iannis Xenakis”) em 2002. Tal projeto caracteriza-se pela confecção de um
sistema interativo que atua apoiado em um algorítimo genético conectado à um
gerador de som e à um conjunto de receptores de som (microfones) em um am-
biente específico. Quando o ambiente é perturbado acusticamente, ou seja, quando
algum som é produzido nesse ambiente ele é captado e interfere no comportamento
das “unidades genéticas” que se modificam por regras simples de funcionamento.
Tais regras geram comportamentos caóticos que se auto-organizam em novos pa-
drões de comportamento gerando novos sons, produzidos a partir do comporta-
mento das unidades genéticas e sintetizados pelo gerador de som, visando equilibrar
o meio acústico em que o sistema está imerso.

Redes neurais artificiais aplicadas ao live-electronics


Os dois procedimentos descritos acima podem ser considerados como tentativas de
produzir obras do tipo live-electronics que incluam processos ditos “inteligentes”,
ora por ambientes construidos com o paradigma da Modelagem Orientada a Ob-
jetos ou por sistemas emergentes auto-organizados que simulam comportamentos
de auto-regulação de eco-sistemas. Paralelamente a esses procedimentos, a utiliza-
ção de redes neurais aplicadas ao campo musical tem crescido nos últimos anos.
Geralmente podemos classificar as redes neurais como classes de algorítmos que
podem “aprender”, classificar ou reconhecer relações que acontecem entre sua ca-
mada de entrada e de saída. São estruturas esquemáticas modeladas a partir do com-
portamento dos neurônios biológicos (Rowe, 2001). As redes podem ter
aprendizado supervisionado, quando o programador interfere durante o processo
de aprendizagem, corrigindo possíveis desvios de classificação que podem ocorrer
na rede; e não supervisionado, onde o próprio processo de funcionamento da rede
busca encontrar melhores soluções para os processos de classificação que ela deve
realizar. O segundo modelo é considerado pelos computólogos e cientístas cogni-
tivos como o que melhor se aproxima das capacidades cognitivas humanas (Kröse
and Van der Smagt, 1996).
Já é notoria a capacidade que as redes neurais têm em detectar padrões em meio a 313
fluxos de dados. No campo da música, redes neurais têm sido utilizadas de forma
satisfatória para a análise musical, detecção de frequências, reconhecimento de tim-
bres instrumentais, entre outras aplicações5. Alguns compositores têm utilizado
redes neurais para a deteção de padrões gestuais de bailarinos que são utilizados
para a sintese e processamento em tempo real de áudio em obras eletroacústicas in-
terativas. Porém, são raros os exemplos de aplicação de redes neurais em obras do
tipo live-electronics onde as redes atuem interagindo diretamente sobre o áudio. Um
motivo para tal ausência centra-se no fato de que até poucos anos não era possível
que redes neurais trabalhassem com áudio em tempo real devido à grande quanti-
dade de informação que caracteriza um arquivo ou stream de áudio digital. A maio-
ria dos modelos de rede neural necessitava trabalhar com informação reduzida a
níveis muito básicos para que pudesse realizar o processo de detecção e classificação
de padrões de áudio. Os processos de redução de informação não eram eficientes
para lidar com o áudio digital de forma que a camada de saída da rede pudesse gerar
um áudio com qualidade musicalmente viável. Em 2006 dois pesquisadores desen-
volveram um novo modelo de rede neural, não supervisionada, que trabalha com
informações em fluxos temporais denominada Hierarchical Temporal Memory
Maps (HTM) (Hawkins and George, 2006). Tal modelo de rede pode ser efetivo
para a aplicação em obras do tipo live-electronics que se configurem como sistemas
musicais interativos.
A proposta básica aqui se centra na idéia de utilizar uma Rede Neural Artificial não
supervisionada para criar um sistema realmente interativo de acordo com as pro-
posições de Paine e Di Scipio.
A HTM caracteriza-se por uma modelagem neuronal que se estrutura em camadas
hierarquicamente organizadas. A primeira camada é formada por certo número de
neurônios artificiais que recebem a informação e são ativadas ou não de acordo com
configurações de ativação determinadas pelo modelo. Tal camada é ligada em uma
camada superior com número reduzido de neurônios que são ativados se os neu-
rônios da camada inferior formarem algum tipo de padrão ou não. Essa segunda
camada é ligada em uma terceira camada superior também com quantidade menor
de neurônios que atuam da mesma forma e assim por diante até que se chega a uma
camada final que representa o padrão geral formado em todas as camadas anterio-
res. Tal arquitetura é interessante para realizar classificações de informações que
são dependentes do tempo. Isso porque a camada inicial é exposta ao padrão de en-
trada sequencialmente, onde cada porção da informação codificada passa por toda
a camada de entrada e assim sucessivamente. Tal procedimento propicial a detec-
ção de padrões temporais pelas camadas superiores que são hierarquisadas em cada
uma das camadas até que a última camada seja ativada ou não para aquele padrão
global que se construiu não-supervisionadamente em cada uma das camadas.
314 A partir desse modelo de rede neural pretendemos investigar suas formas de atua-
ção dentro de situações musicais, especificamente na interação em tempo real entre
músicos e sistema computacional. Tal modelo de rede neural pode ser treinado an-
teriormente ou não. Acreditamos que resultados diferenciados podem ser obtidos
a partir dessas duas situações. A hipótese central é a de que se uma rede neural for
treinada anteriormente com conjuntos de objetos sonoros específicos, poderemos
verificar como a rede “reagirá” ativamente a partir da situação de interação com o
músico. Sendo assim, acreditamos que se treinarmos a rede neural com eventos so-
noros de acordo com a tipo-morfologia descrita por Schaeffer (1966) poderemos ve-
rificar se a rede neural conseguirá identificar semelhanças tipo-morfológicas a partir
de objetos sonoros diferentes dos quais a rede foi exposta durante a fase de treina-
mento ou se a rede atuará de forma diferente disso. Tal investigação pode ser inte-
ressante no que tange a produzir comportamentos dinâmicos de interação no
campo do live-electronics mas que superem a usual sensação que se tem de proces-
sos interativos que soam de forma “aleatória”. Tais resultados geralmente obtidos
por processos de processamento de áudio em tempo real não costumam ser muito
efetivos quando se busca investigar formas de estruturar o discurso musical princi-
palmente no universo da Música Eletroacústica. Smalley aponta para o cuidado
que devemos ter ao considerar critérios de organização nesse universo:
Se os fundamentos naturais da percepção auditiva são ignorados na composi-
ção de morfologias, nos processos estruturais e na articulação de estruturas es-
paciais o ouvinte pode instintivamente detectar uma deficiência musical. A
evolução do espectro e mudanças dinâmicas entretanto trabalham com tole-
râncias naturalmente determinadas pela experiência auditiva. O trabalho ima-
ginativo com tais tolerâncias encontra-se no coração das habilidades e
julgamentos composicionais e a falha em apreciar sua importância crucial, fre-
qüentemente justifica a pobre aceitação de obras eletroacústicas. (Smalley, 1986,
p. 68)
Ainda, critérios de recorrência, redundância, como apontado por inúmeros auto-
res, (veja Meyer, 1956), são ferramentas cruciais para o estabelecimento de conexões
perceptuais por parte do ouvinte e que por sua vez são características centrais para
a obtenção de conexão significativa entre ouvinte e obra.
Sendo assim, os passos futuros dessa pesquisa centram-se na implementação de um
sistema de interação em tempo real a partir de redes neurais artificiais; investigação
dos tipos de comportamento que a rede neural desenvolverá na interação com ins-
trumentistas sem treinamento prévio. Posteriormente, pretendemos criar um
banco de amostras de objetos sonoros organizados de acordo com a tipo-morfolo-
gia de Schaeffer para então realizar o treinamento da rede neural com tal banco de
amostras. Por fim, pretendemos verificar qual o tipo de comportamento que a rede
neural demonstrará na interação com instrumentistas após o treinamento e com-
parar os resultados com os obtidos anteriormente.
É evidente que não temos a intenção ingênua de criar um compositor virtual ou 315
mesmo dar soluções para questões ontológicas ou epistemológicas no ambito do
conhecimento musical ou criação musical, mas o que nos interessa é propor uma so-
lução às criticas apontadas por Paine e Di Scipio no que se refere a processos inte-
rativos no campo do live-electronics. Também pretendemos oferecer um modelo
de interação homem x máquina, para usar os termos de Rowe, que fuja da simples
“aleatoriedade” ao ser tipo-morfologicamente (auto-)orientada.

1 Para uma visão interessante sobre o assunto, confira (Dias, 2006).


2 Processos presentes na maioria das aplicações ou linguagens de processamento de áudio
em tempo real como Max/MSP, PureData ou SuperCollider.
3 Tal afirmação deve ser considerada com cautela já que muitas vezes soam preconceituosa
demais por indiretamente colocar em xeque inúmeras obras de grandes compositores.
4 Para uma visão panorâmica sobre a Ciência Cognitiva Dinâmica ver (Varela et al., 2003).
Sobre Psicologia Ecológica ver (Gibson, 1966, 1979) e (Michaels and Carello, 1981). Sobre
auto-organização ver (Ashby, 1962) e sobre emergentismo ver (Emmeche, 1994).
5 Para algumas aplicações já implementadas ver (Rowe, 2001).
Agradecimentos
Gostariamos de agradeçer ao Instituto de Artes da Unesp onde a pesquisa esta sendo reali-
zada, bem como ao Laboratório de Pesquisa e Produção Sonora da Universidade Esta-
dual de Maringá (LAPPSO/UEM) onde as implementações, testes e desenvolvimento
de equipamento são realizados.

Referências
Ashby, W. R. (1962). Principles of the self-organising systems. In H. Von Foerster and G. W.
Zopf Jr. (Eds.), Principles of self-organisation, pp. 255–278. Oxford: Pergamon.
Di Scipio, A. (2003). ‘sound is the interface’: from interactive to ecosystemic signal proces-
sing. Organised Sound 8 (3), 269–277.
Dias, H. P. G. (2006). A “querela dos tempos”: Um estudo sobre as divergências estéticas na
música eletroacústica mista. Master’s thesis, Instituto de Artes da Unesp, São Paulo.
Emmeche, C. (1994). The Garden in the Machine: The Emerging Science of Artificial Life.
Princeton: Princeton Unversity Press.
Gibson, J. J. (1966). The Senses Considered as Perceptual Systems. Hillsdate: Houghton Mif-
flin Company.
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minology. Numenta Inc., 1–20.
Kröse, B. and P. Van der Smagt (1996). An introduction to Neural Networks. Amsterdam:
The University of Amsterdam.
316 Menezes, F. (1999). Atualidade Estética da Música eletroacústica. São Paulo: Fundação Edi-
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Meyer, L. B. (1956). Emotion and Meaning in Music. Chicago: Chicago University Press.
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Risset, J.-C. (1999). Composing in real-time? Contemporary Music Review 18 (3), 31–39.
Rowe, R. (1993). Interactive Music Systems. Massachusetts: The MIT Press.
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Schaeffer, P. (1966). Traité des Objets Musicaux. Paris: Éditions du Seuil.
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Varela, F., E. Thompson, and E. Rosch (2003). A mente Incorporada. Porto Alegre: Artmed.
Som, sinal, movimento:
novas modalidades do fazer/pensar música
Guilherme Bertissolo
guilhermebertissolo@gmail.com 317
Programa de Pós-Graduação em Música
Universidade Federal da Bahia

Resumo
Esse artigo trata de duas abordagens para a interação entre computador e intérprete hu-
mano no ato de se fazer música. Ao se valer de dois exemplos de aplicação dessas
abordagens em obras recentes e das determinantes possibilitadas por estas experiências,
esse artigo propõe discutir como o ciclo da inter-subjetividade (que tradicionalmente
contempla compositor-intérprete-ouvinte) pode ser quebrado ou pelo menos modificado
ao se interferir diretamente no objeto sonoro (a partir de sensores colocados em intér-
pretes, bailarinos ou qualquer outro sujeito pertencente ao contexto da obra) ou tor-
nando o computador um executante em conjunto com um instrumentista (no caso do
processamento por software através de microfones). A relação inter-subjetiva de cria-
ção de uma performance musical, estabelecida entre compositor e intérprete (onde mui-
tas indicações são claramente subjetivas) passa a incluir um objeto estranho, incapaz de
reconhecer/possuir subjetividade.

À guisa de introdução e uma delimitação do escopo


O século XX viu eclodir uma série de tecnologias que deslocaram continuamente
os paradigmas da teoria, da educação, da composição e, por conseguinte, da inter-
pretação musicais. Desde os anseios dos futuristas pelos idos de 1913 e suas para-
fernálias modernas, até o advento dos primeiros instrumentos eletrônicos e a grande
virada paradigmática p¡ropiciada pela disseminação e utilização em massa dos com-
putadores pessoais, vemos uma constante modificação nos modos de se pensar e
fazer música no seio da criação contemporânea. A música eletroacústica1 consoli-
dou-se como uma prática profícua e fundamental do métier do compositor, sendo
uma importante ferramenta para a composição musical hodierna. Outros exem-
plos da influência uso do computador nas práticas musicais são os avanços prove-
nientes de alguns recortes, tal como recursos da “musicologia computacional”
(computational musicology), que utiliza bases de dados musicais para análises de
grande repertórios em dimensões sobre-humanas para aplicação em teoria e com-
posição musicais; e a análise espectral, que permite a geração de material musical
para a composição, seja para instrumentos acústicos, seja para meios eletroacústi-
cos.
Ao se pensar/fazer música com o computador, deparamo-nos com um conceito
amplamente aplicado em áreas distintas do saber, tais como engenharias, ciência
da computação, entre outras, a saber, o tempo real. Uma definição suficientemente
satisfatória para o nosso escopo é a de Dodge e Jersey:
“When the calculation rate equals the sampling rate, a computer synthesizer is
318 said to operate in ‘real time’. Without real-time operation, a computer music
system cannot be used for live performance. For the musician, real-time opera-
tion is preferable because it drastically reduces the amount of time between ins-
tructing the computer and hearing the results (feedback time)” (Dodge; Jerse
1997, p. 70)2
Nesse sentido, a relação entre computador e intérprete humano é realizada no ato
do fazer música, culminando em uma série de determinantes que trataremos a se-
guir, oportunamente. Destaquemos que, dentre as inúmeras possibilidades de se
abordar essa relação entre computador e o ser humano no ato de se fazer música (ou
seja, em tempo real), pelo menos duas delas emergem com consideráveis genealo-
gias e inferem, ao nosso ver, em questões cruciais nos modos de fazer e pensar mu-
sicais. Uma delas trata do movimento aplicado à música através de sensores e a
outra trata do som como sinal, captado através de microfones no ato da execução.
Buscamos com esse artigo traçar uma quadro a partir dessas (pelo menos) duas
abordagens possíveis, intentando ao fim relatar as problemáticas e determinantes
oriundas da quebra do ciclo de intersubjetividade operado na inserção da máquina
no seio da criação musical contemporânea em dois casos de obras compostas pelo
autor.
O ciclo de intersubjetividade presente em uma obra musical de extração de con-
certo pode ser considerado em pelo menos três instâncias: a do compositor, a do in-
térprete e a do ouvinte. No ato de se fazer música, essas três instâncias estão
diretamente envolvidas e diversos processos de solidariedade conceitual ocorrem
para levar a cabo o contexto poético da obra musical. Vejamos um pouco sobre a so-
lidariedade de conceitos, como descrita por Sousa Santos:

“A solidariedade [de conceitos] é o conhecimento obtido no processo, sempre


inacabado, de nos tornarmos capazes de reciprocidade através da construção e
do reconhecimento da intersubjectividade. […] É um campo simbólico em que
se desenvolvem territorialidades e temporalidades específicas que nos permitem
conceber o nosso próximo numa teia intersubjectiva de reciprocidades. […] A
nova subjectividade depende menos da identidade do que da reciprocidade”
(Santos 2000, p. 81).
Em uma obra musical, diversas indicações são estritamente subjetivas e dependem
dessa relação de solidariedade e intersubjetividade. O domínio das intensidades tal-
vez seja o aspecto musical que sofra o maior impacto nesse contexto. Quantos F
podem existir em diferentes interpretações? E quantos p? Outras indicações de ca-
ráter e expressão também dependem da subjetividade do intérprete, tais como, para
citar apenas um exemplo, um fff tutta la forza.
Destarte, ao inserirmos o computador no ato de fazer música (tempo real), estamos
lidando com um elemento que não é portador de subjetividade. Não posso instruir
o computador com dados que não sejam estritamente quantificáveis sob a égide
matemática. Nessa questão reside a maior problemática da interação: as mesmas
indicações que são dadas ao intérprete e tão eficazes nos contextos composicionais, 319
não podem ser dadas nos mesmos termos para a máquina. Nesse domínio, o reco-
nhecimento de padrões métricos, por exemplo, é um aspecto de grande dificuldade,
já que o fenômeno temporal na música é extremamente complexo e dependente
de muitas variáveis3.
Pretendemos com esse artigo, a partir de duas abordagens para interação, discutir
o impacto da quebra desse ciclo de intersubjetividade oriunda da inserção do com-
putador no ato de se fazer música. Ressaltemos que não faz parte do escopo as es-
pecificidades de implementação, problemáticas de código, questões relacionadas
ao software ou à plataforma, mas sim a preocupação com as relações consequentes
desse processo no ciclo da composição.

Duas Abordagens para a Interação Humano/Computador


Esse é o Som, por Sinal
Uma das possíveis abordagens para a interação opera tratando o som como sinal,
através de microfones. Destarte, o som é tratado enquanto fenômeno físico, con-
forme as condições da acústica musical, onda sonora manifesta como sinal discreto,
passível de ser tratado a partir de suas frequências, seus parciais, sua intensidade,
sua numeração midi (Henrique 2002). Permite-se dessa maneira o processamento do
som em tempo real sob diversos aspectos.

Essa abordagem representa talvez a prática mais comum dessa que conhecemos hoje
genericamente como Música Interativa (Interactive Music). Esse fazer é possibili-
tado pelo reconhecimento de padrões em software4 (alturas, amplitudes, score-fol-
lower), culminando em uma considerável expansão dos potenciais instrumentais e
dos materiais musicais. Algumas estratégias são específicas dessa prática, e carregam
consigo suas determinantes. Como podemos ler em Winkler:

“Compositional strategies for interactive works differ from strategies for other
compositions in that they are always governed by the relationship between hu-
mans and computers. Will the computer part imitate the performer or will it
have its own distinct character? […] the human/computer relationship is a cen-
tral theme of the work; musical concepts and paradigms of interaction go hand
in hand. Freedom and control, predetermined or improvisational, communi-
cation and response, participation and adaptation – these are the issues that
drive interactive compositions and create the inevitable drama that unfolds by
the very nature of the technology itself” (Winkler 2001, p. 260).5
Essas estratégias devem ocorrer de maneira que o computador seja instruído a rea-
gir conforme os modos citados por Winkler e muitos outros, criando um campo in-
finito de possibilidades de relação em contextos poéticos. A grande questão é
justamente a instrução. As principais instruções possíveis dizem respeito às fre-
320 quências (ou números MIDI) dos sons captados (em um processo de reconheci-
mento e seleção), limiares de intensidade em uma determinada passagem (que dizer
respeito ao âmbito da dinâmica musical no ato da interpretação) e a ferramenta do
score-follower (que insere uma partitura, geralmente em formato MIDI, sobre a qual
o programa irá realizar comparações e disparar eventos em determinados pontos
pré-estabelecidos). Cada uma das ferramentas permite um menor ou maior grau
de rigor e determinação.

As metáforas de movimento e o movimento na música


Não há música sem movimento. Música e movimento estiveram intrinsecamente
relacionadas desde tempos remotos. O movimento é um elemento sem o qual a
música não pode existir.6 Em alguns contextos música e movimento não serão ca-
tegorias conceituais distintas; citemos como um exemplo a capoeira e outras ma-
nifestações culturais não-ocidentais, que não tratam música e movimento como
categorias conceitais independentes. Mesmo a noção relacionada com a comumente
nomeada “música pura” (ou “música absoluta”), na esperança iluminista de uma
música destituída de contexto, sofre hoje uma crítica irrefutável (Chua 1999).7
A abordagem da música como movimento nos remete a um campo de estudo na
teoria musical de mais de um século, conhecido hoje como energética. A energética
trata das qualidades dinâmicas da música, propondo a interpretação simbólica
como alternativa ao formalismo, reivindicando a necessidade da teoria da inter-
subjetividade. O teórico mais representativo e talvez mais conhecido seja ernst
kurth, que reivindicava um tipo de energia psicológica (psíquica) para a música. A
energética, em linhas gerais, trata noção de movimento em música a partir das for-
ças que caracterizam o fenômeno musical (Rothfarb 2002).
Uma busca sistemática pode ser realizada conceitualmente no sentido de se moldar
o discurso e/ou apreender como a mente humana processa o sinal musical, ambas
de modo tradicional (não necessariamente com o uso do computador). O contexto
no qual a energética se insere (início do século XX) não dispunha do computador,
mas nem por isso deixava de aplicar as noções de movimento em música em obras
instrumentais do século XIX.
Durante minha pesquisa de mestrado, que culminou na dissertação po(i)ética do
movimento: a análise laban de movimento como propulsora de realidades composi-
cionais (Bertissolo 2009a), busquei a criação de uma obra que estivesse no limite
entre as práticas de música e de dança (questionando as fronteiras entre som e mo-
vimento)8. Para isso lançamos mão do sistema laban/bartenieff 9 para realizarmos
uma série de processos de criação e notação do movimento em relação direta com
a realidade poética da obra musical. Atualmente temos buscado, na pesquisa em
nível de doutorado na universidade federal da bahia, a investigação entre categorias
conceitais genéricas entre som e movimento no contexto da capoeira (onde mú- 321
sica e movimento não são conceitualmente distintas).
Entretanto, com o advento e a atual disseminação e pluralidade de aplicabilidades
dos sensores de movimento, a noção de movimento em música foi implodida, ex-
trapolando as modalidades de se perceber e, acima de tudo, de se produzir a música.
Esse cenário nos coloca diante de um campo prolífico e sem precedentes na histó-
ria do fazer e pensar a música. O movimento mapeado com um acelerômetro (como
o controle Nintendo Wii, por exemplo, facilmente encontrado no mercado), pos-
sibilita a interação e a produção musical partindo diretamente do movimento, sem
a necessidade de criação de filtros metafóricos conceituais. Uma abordagem sobre
os sensores, suas aplicabilidades e potencialidades foi realizada por Wanderley
(2006), onde encontramos relatadas uma série de desenvolvimentos recentes nesse
sentido.
Podemos, a partir daí, lançar mão de um leque amplamente diversificado de ferra-
mentas que podem deslocar a prática musical e possibilitar novas modalidades de
criação e interpretação musicais. Como podemos observar no trecho capítulo in-
titulado Making Music through movement, de Winkler:
“Does human movement have constraints similar to those of musical instru-
ments, which might suggest something akin to idiomatic expression? Is there a
distinct character to the movement of the hands? What is finger music? What
is running music? What is the sound of one hand clapping? These questions
may be answered by allowing the physicality of movement to impact material
and processes. These relationships may be established by viewing the body and
space as musical instruments, free from the associations of acustic instruments”
(Winkler 2001, p. 319).10
São inimagináveis os efeitos que o mapeamento do movimento pode causar na prá-
tica musical e na composição de obras interativas. Os dados de qualquer movimento
podem ser mapeados nas três dimensões (vertical, horizontal e sagital) a partir da
sua aceleração, retornando parâmetros numéricos proporcionais à aceleração da
gravidade. Assim, qualquer movimento pode ser mapeado e pode, por conseguinte,
ser propulsor de contextos poéticos ou permitir a análise de uma interpretação sob
a égide dos movimentos.

As determinantes desses contextos aplicados em dois casos


O sinal e o Músico: Devir
A obra Devir, para violão e eletrônica em tempo raro op. 18,11 foi composta em
2007 e estreada no mesmo ano por cristiano sousa (violão) e o compositor (com-
putador). Nessa obra, usamos computador operando em tempo real através da cap-
tação do som do instrumento por um microfone (na primeira das abordagens
tratadas anteriormente).
322 A interação entre músico e computador nessa obra ocorre tanto pelo reconheci-
mento de notas (através da seleção de números midi), quanto pelo reconhecimento
de ataques e intensidades. Logo nos primeiros compassos da partitura (figura 1)
vemos a indicação das caixas de disparos (bangs), realizados pelo reconhecimento
do ataque dos acordes pelo intérprete. Esses ataques do intérprete disparam sons
pré-processados, captados do violão e processados em estúdio previamente, sor-
teados em tempo real (de maneira que cada interpretação é única).12 Logo no com-
passo 5, vemos um disparo do computador em uma nota: o fá sustenido 4. Como
essa nota ainda não havia aparecido antes, basta um simples reconhecimento da
frequência para o eventual disparo dos sons conforme o sorteio já descrito.
Aqui nos deparamos com um problema, que diz respeito justamente ao reconhe-
cimento da frequência pelo computador no caso de notas que não estão aparecendo
pela primeira vez na partitura13. Todo ataque de um som dispende uma grande
quantidade de energia e é, a um só tempo, um momento mais instável de um som
e o maior responsável pelo reconhecimento do seu timbre (Henrique 2002). Com
isso, na medida em que fosse necessário o reconhecimento de uma nota quando da
sua terceira aparição, por exemplo, é necessário instruir o computador em relação
a desconsiderar a porção de energia dispendida no ataque de uma determinada nota
no contexto instrumental (senão, a cada ataque o computador reconhecerá uma
dezena de notas diferentes). Mudanças de variação de ataque, nuances expressivas
e outras decisões de ordem interpretativas também precisam ser levadas em conta,
de maneira que é necessária uma tomada de consciência da necessidade de previ-
são do contexto interpretativo e sua eventual correção a instrução computacional
(mais uma vez: o computador não possui subjetividade).
Mesmo lançando mão de uma música escrita, essas problemáticas não podem ser
negligenciadas no ato de se fazer música. Imagine-se qual o impacto disso na inte-
ração no caso de obras mais abertas, em caráter improvisatório. Como aliar as in-
dicações dos intérpretes com as intruções do computador?

Processos perceptivos como esse são apenas a superfície de uma problemática que
está no cerne da questão na relação computador/humano. A percepção é um fe-
nômeno complexo e necessário para o entendimento musical, sem o qual o ato de
se fazer música não pode acontecer. É preciso estar atento para não reduzir a con-
dição interpretativa em uma obra interativa para os termos computacionais, sob
pena de se estar negligenciando um aspecto fundamental da experiência musical.
323

Figura 1 — Devir partitura: trecho inicial

Figura 2 — Devir puredata patch 1

Na seção central da obra, usamos um tipo de processo em que o reconhecimento


das notas é ao mesmo tempo controle (instrução) e material para o processamento
em tempo real (objeto sonoro a ser processado). Aquilo que é tocado é reconhe-
cido, gravado e, logo após, disparado, partindo unicamente do reconhecimento do
sinal.
Nesse sentido, partimos da contraposição entre as noções de tempo. Escrevemos
uma partitura com indicações de tempo musical (figura 3) e realizamos instruções
para o computador em tempo cronométrico (figura 4). O choque entre as realida-
des temporais ontologicamente distintas e os desdobramentos decorrentes desse
processo geram uma dialética de grande interesse musical. A impossibilidade de ali-
nhamento entre o “tempo do computador” e do “tempo do músico” gera um con-
texto musical de grande interesse, justamente pelo contraste gerado ao se sobrepôr
324 concepções/noções tão diversas do fenômeno temporal em música.

Figura 3 — Devir partitura: seção central


Nesse caso, o que é tocado pelo músico influencia o que será gravado e disparado
pelo computador, ao mesmo tempo em que é influenciado pela sua resposta,
criando um adensamento gradual da textura. Aqui, há uma potencialização da ca-
pacidade interpretativa, a partir da extrapolação das estratégias de interação operada
pelo alinhamento entre o controle e o material, oriundos de uma única fonte sonora.

O movimento como propulsor de uma textura sonora:


e-PORMUNDOS AFETO
O espetáculo de dança telemática e-PORMUNDOS AFETO14 foi estreado em Forta-
leza, Natal e Barcelona ao mesmo tempo, transformado em palco único e transmi-
tido via web no dia 06 de outubro de 2009. A direção cênica ficou por conta de
Ivani Santana (Brasil) e Konic Thr (Barcelona). A música para esse espetáculo foi
gerada por mim em tempo real, a partir de microfones (conforme abordagem su-
precitada), através de um acelerômetro (o Nintendo Wii) dentro do software Pu-
reData.
325

Figura 4 — Devir puredata patch 2

Foi acoplado um desses sensores em uma bailarina, de maneira que sua movimen-
tação desse vazão a uma série de processos musicais em tempo real. Essa aborda-
gem permite mapear os movimentos em nas três dimensões, retornando dados
discretos.
Na segunda cena do espetáculo, utilizamos a aceleração em cada uma das dimensões
para o sorteio de classes de samples e sons pré-gravados. Cada dimensão agrupou
uma família de sons a serem sorteados em tempo real conforme o deslocamento da
bailarina em cada uma das dimensões e com que intensidade ele ocorria.
Aqui, usamos o computador em consonância direta com o movimento corporal da
bailarina, de maneira mais literal. Em outras partes da obra usamos processos menos
literais para geração de material musical (como por exemplo, para determinar a
banda de filtragem em um sintetizador subtrativo). A interpretação musical dos
movimentos da bailarina foi transformada dados e posteriormente usada para o
sorteio realização de uma textura a partir de três vias de sorteio. A bailarina não
possuía qualquer instrução musical prévia, tampouco um treinamento musical na
acepção tradicional do termo. Até que ponto as noções musicais (prévias) da bai-
326

Figura 5 — e-PORMUNDOS AFETO

larina podem filtrar os dados de maneira nortear o fenômeno sonoro? Existe a ne-
cessidade de se pensar em termos conceitualmente musicais em uma prática como
essa? Quais são as conseqüências disso na prática musical ou na exploração dessa fer-
ramenta em uma obra instrumental? É importante o reconhecimento por parte do
intérprete dos mecanismos estritamente musicais mobilizados no ato da perfo-
mance? Quais são esses mecanismos?
Muitas dessas perguntas ainda não foram respondidas, dado o pouco tempo trans-
corrido desde o advento dessa abordagem. O que podemos certamente afirmar é
que o mapeamento do movimento de um músico/intérprete e a utilização desses
dados em tempo real para controle, e geração de material se configura como um
elemento que propõe novas modalidades para o fazer musical e, consequentemente,
o pensar a música. Música que não se manifesta necessariamente em termos
musicais.
Considerações finais
A partir das experiências musicas realizadas tanto no âmbito da música instru-
mental, quanto no âmbito da música interativa, percebemos a necessidade do ciclo
de intersubjetividade presente no ato de se fazer música. Esse ciclo está no centro
327
de uma prática que remonta a tempos muito longínquos e permite contextos poé-
ticos musicais enormemente sofisticados.
Não nos parece um bom caminho que haja uma inclinação das noções mobilizadas
no ato de se fazer música em direção ao contexto do computador. Este, por conta
da sua natureza, não possui subjetividade e não é capaz de dar vazão a uma parte
fundamental no fenômeno sonoro.
Mostraram-se necessárias as estratégias para a efetivação da relação intersubjetiva
na prática composicional, de maneira específica. Nesse sentido, precisamos avançar
em direção à potencialização das modalidades de interação, mas sem perder de vista
a complexa teia de processos cognitivos mobilizados no ato de se fazer e pensar a
música.

1 Por música eletroacústica estamos aqui nos referindo a várias práticas que são generica-
mente nominadas por esse “guarda-chuva” conceitual. Práticas como a da Música Concreta
(Musique Concrète), Música Eletrônica (Elektronische Musik), Música Acusmática, Música
Interativa, Eletrônica ao vivo (Live Electronics), vídeo-arte, bem como diversas outras ma-
nifestações são referidas nessa plêiade.
2 “Quando a taxa de cálculo é igual à taxa de amostragem, diz-se que um sintetizador com-
putacional opera em tempo-real. Sem uma operação em tempo real, um sistema de compu-
tação musical não pode ser usado para uma performance ao vivo. Para o músico, a operação
em tempo-real é preferível porque ela reduz drasticamente a quantidade de tempo entre a
instrução do computador e a audição dos resultados (tempo de feedback)” (Dodge; Jerse
1997, p. 7 – tradução nossa).
3 Mesmo sendo um aspecto bastante difícil de abstrair, inferir e em até certo ponto negli-
genciado na teoria da música, a teoria do ritmo tem recebido uma série de desenvolvimen-
tos bastante consistentes nos últimos anos (principalmente a partir da década de 1980). Uma
genealogia bastante perspicaz pode ser observada nos artigos de Caplin (2002) e London
(2002), que tratam respectivamente das teorias nos séculos XVIII/XIX e do séc. XX. Des-
taquemos os importantes avanços como os de Kramer (1988) no tratamento do que ele
chama “música anti-arquitetônica” e as suas noções de linearidade e não-linearidade, bas-
tante aplicáveis no domínio do tempo musical em diversos contextos; e a noção de “proje-
ção do tempo” em Hasty (1997), para quem métrica é ritmo e essas noções não podem ser
tratadas senão imbricadas.
4 De um modo geral estamos nos referindo ao software Pure Data (PD), um ambiente de
programação sônica orientada ao objeto. Esse software é livre, em código aberto e multipla-
taforma. Foi desenvolvido por Miller Puckette e sua documentação, bem como informa-
ções, instruções de instalação e comunidade estão disponíveis em http://puredata.info/
5 “Estratégias composicionais para obras interativas diferem das estratégias de outras com-
posições já que elas são governadas pela relação entre humanos e computadores. A parte do
computador imitará o intérprete ou terá seu próprio caráter distinto? A relação
humano/computador é um tema central da obra; conceitos musicais e paradigmas de inte-
ração andam de mãos dadas. Liberdade e controle, predeterminado e improvisatório, co-
328
municação e resposta, participação e adaptação — estas são as questões que norteiam
composições interativas e criam o inevitável drama que se desdobra pela natureza da tecno-
logia em si mesma (Winkler, 2001, p. 260 – tradução nossa).
6 Em um nível bastante elementar, basta que pensemos no movimento das ondas sonoras.
Obviamente, esse fenômeno acústico é processado pelo ouvinte de maneira diversa da estu-
dada na acústica. Essa preocupação com a natureza física do som e sua relação com o aparato
do ouvido humano é estudada pela acústica musical (cf. Henrique 2002), e, mais recente-
mente, pela psicoacústica (cf. Perry 2001).
7 Em seu livro, Daniel Chua opera uma crítica bastante sagaz da noção de “música pura” ou
“música absoluta”, a partir de uma genealogia do conceito e uma desconstrução bastante lú-
cida. Para maiores informações cf. Chua (1999).
8Trata-se da obra Noite (2008), para uma bailarina, sexteto misto, eletrônica e projeção de
vídeo. Para maiores informações cf. Bertissolo (2009a) ou http://guilhermebertissolo.
wordpress.com/
9 Para uma abordagem sucinta sobre o assunto roga-se ao leitor que procure o artigo Sistema
Laban/Bartenieff e música: possíveis interfaces (Bertissolo 2009b), publicado nos anais do
XIX Congresso da ANPPOM de 2009, disponível em http://www.anppom.com.br/
anais.php.
10 “O movimento humano tem limitações semelhantes às de instrumentos musicais, isso
poderia sugerir algo semelhante a expressão idiomática? Existe um caráter distinto para o
movimento das mãos? O que é um dedilhado em música? O que é a música em execução? O
que é o som de uma mão batendo palmas? Estas perguntas podem ser respondidas permi-
tindo a fisicalidade do movimento impactar sobre materiais e processos [musicais]. Essas re-
lações podem ser estabelecidas através da visão do corpo e do espaço como instrumentos
musicais, livre das associações com os instrumentos acústicos” (Winkler 2001. p. 319 – tra-
dução nossa).
11 Tanto a partitura completa quanto uma gravação de Devir podem ser acessadas em
http://guilhermebertissolo.wordpress.com/
12 Não cabe no escopo desse artigo esmiuçar os métodos de síntese sonora, tampouco as es-
pecificidades do processamento em tempo real. Para maiores detalhes cf. Winkler (2001) e
Dodge; Jerse (1997).
13 Ao lançar mão do reconhecimento de notas e não de um score-follower pretende-se um
contexto poético e interpretativo mais aberto no ato da execução. Seria perfeitamente pos-
sível a instrução do computador através de uma partitura, entretanto, isso afetaria a relação
intersubjetiva empreendida nas indicações dessa partitura. Note na figura 1 a passagem é es-
crita Senza tempo. Nesse caso, é impossível instruir o computador no contexto da variabili-
dade das interpretações possíveis e bem-vindas no contexto poético da obra.
14 Tanto uma resenha quanto um trecho do espetáculo podem ser assistidos em
http://tvverdesmares.com.br/bomdiaceara/tecnologia-em-espetaculo-de-danca/
Referências
Bertissolo, G. a. Po(i)ética em Movimento: a Análise Laban de Movimento como pro-
pulsora de realidades composicionais. Dissertação de Mestrado em Música. Salvador:
Federal da Bahia.
Bertissolo, G. 2009b. “Sistema Laban/Bartenieff e música: possíveis interfaces.” In: Anais
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do XIX Congresso da ANPPOM. Curitiba: Universidade Federal do Paraná.
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Wanderley, M. 2006. “Instrumentos musicais digitais.” In Em busca da mente musical: en-
saios sobre os processos cognitivos em música, Ilari, Beatriz (Ed.), p. 163–188. Curitiba:
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Winkler, T. 2001. Composing interactive music: techniques and ideas using Max. Cam-
brige/London: The MIT Press.
A Ontomemética e a Evolução Musical
Marcelo Gimenes
mgimenes@gmail.com
330 Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora
Universidade Estadual de Campinas

Resumo
Os mecanismos de interação e de influência sociais desempenham um papel importante
na aquisição e no desenvolvimento do conhecimento musical dos seres humanos. De um
lado, as pessoas nascem com determinadas características biológicas — os sistemas per-
ceptivos e cognitivos — que permitem a aquisição do conhecimento. De outro, as inte-
rações sociais fazem com que certos traços culturais sejam transmitidos de um indivíduo
para outro, de um lugar a outro.
Este artigo apresenta o Modelo Ontomemético de Evolução Musical (Ontomemetical
Model of Music Evolution — OMME), proposto durante minhas atividades de Doutorado
na Universidade de Plymouth (Reino Unido) que se baseia nas noções de ontogênese e
de memética. O OMME estabelece normas para o desenvolvimento de sistemas com-
putacionais interativos musicais com o intuito de explorar a evolução da música tendo
como referência a transmissão de memes musicais e, conseqüentemente, as faculdades
perceptivas e cognitivas dos seres humanos.
A fim de demonstrar as potencialidades do OMME, dois sistemas computacionais são
apresentados, o Gerador de Memes Rítmicos (RGeme — Rhythmic Meme Generator) e
os Ambientes Musicais Interativos (iMe — Interactive Musical Environments).

Introdução
O Modelo Ontomemético de Evolução Musical (Ontomemetical Model of Music
Evolution — OMME) é um novo modelo para o desenvolvimento de sistemas in-
terativos musicais que se inspira em princípios derivados da ontogenia e da memé-
tica (Gimenes, 2009). O interesse por esta investigação origina-se da noção de que
os mecanismos de interação e influência sociais possuem um papel relevante para
a aquisição e o desenvolvimento do conhecimento musical dos seres humanos.
De um lado, as pessoas nascem com determinadas características biológicas — os
sistemas perceptivos e cognitivos — que permitem a aquisição do conhecimento.
De outro, as interações sociais fazem com que certos traços culturais sejam trans-
mitidos de um indivíduo para outro, de um lugar a outro. Esses fatores favorecem
o aparecimento e a disseminação dos mais variados estilos musicais. De tempos em
tempos novos estilos surgem, alguns são bem sucedidos e sobrevivem mais do que
outros. Todos esses fenômenos podem ser facilmente observados na música que,
além de organização sonora, vem a ser uma expressão da inteligência, um compor-
tamento tipicamente humano e culturalmente condicionado. Não é por outra
razão que, segundo Snyder (2000), a estrutura da memória humana condicionaria
a estrutura da música.
A palavra “ontomemético”, que dá nome ao OMME, compõe-se do afixo onto, de
ontogênese e do prefixo “memético”, que se refere à teoria memética (Dawkins,
1989). Onto vem do grego e significa “ser”; genesis, também do grego, significa “ori- 331
gem”. Ontogênese (ou ontogenia), o primeiro elemento central do OMME, refere-
se, portanto, ao estudo do desenvolvimento das características físicas ou
comportamentais de um indivíduo, das suas origens até a fase adulta. Por extensão,
ontogenia musical poderia ser definida como o estudo do desenvolvimento musi-
cal de um indivíduo. Segundo Welch (2000), a música resultaria da ação combi-
nada de fatores como o potencial neuropsicobiológico de um indivíduo e o meio
sócio cultural em que ele vive. Em outras palavras, tanto a carga genética quanto as
experiências pessoais de cada um de nós contribuiria para a formação da nossa
“visão de mundo musical”.
O segundo elemento central do OMME, a memética, é uma abordagem para o es-
tudo da evolução cultural que se baseia na noção de meme. Memes seriam unida-
des de transmissão cultural do mesmo modo que genes são unidades de informação
biológica; e poderiam ser considerados como “estruturas biológicas vivas” uma vez
que existiriam sob a forma de configurações neuronais no cérebro. Além disso, os
memes teriam o potencial de se deslocar de um cérebro para outro através de subs-
tratos externos como partituras, ondas sonoras e gravações (Jan, 2000; Jan, 2007)
através de processos de imitação. A moda e as canções são exemplos de memes
(Dawkins, 1989).
No campo musical, a compreensão do conceito do meme requer a segmentação do
fluxo sonoro em unidades de informação musical, ou “memes musicais”, os quais
estão na base da transmissão memética. A evolução musical ocorreria por causa das
diferenças existentes entre os memes que são copiados e aqueles que são replicados.
Lenta e gradualmente essas diferenças (mutações meméticas) seriam responsáveis
pelas alterações de um determinado dialeto musical (Dawkins, 1989). Em certos
momentos históricos, essas mutações seriam tão importantes que levariam ao sur-
gimento de novas regras de organização musical.

O Modelo Ontomemético
O OMME introduz um conjunto de normas para o desenvolvimento de sistemas
que tenham por objetivo o estudo da evolução do conhecimento (ou da ontogê-
nese) musical levando em conta os conceitos fornecidos pela teoria memética. Os
objetivos gerais que o OMME propõe atingir são os seguintes:
1) Contribuir para a compreensão de fenômenos naturais, tais como a percepção
e a cognição humanas, através da modelagem computacional,
2) Contribuir para a construção da “musicalidade das máquinas” (machine mu-
sicianship) e a interação entre máquinas e seres humanos, e
3) Fornecer ferramentas computacionais para a musicologia principalmente cen-
trada em modelos teóricos que estudam a evolução cultural.
332 A fim de alcançar esses objetivos, o OMME define que sistemas computacionais
musicais devem cumprir as três condições gerais a seguir enumeradas:
Condição 1: “Sistemas baseados no OMME são sistemas interativos”. O termo
interatividade é usado em diferentes contextos com diferentes significados. No
escopo do OMME, contudo, interatividade tem um significado específico: “Sis-
temas interativos musicais são sistemas computacionais que, através da troca de
informações musicais, têm a capacidade de perceber o ambiente, analisar e pra-
ticar ações de modo a alterar os estados desse ambiente assim como o seus pró-
prios estados” (Gimenes, 2009). Decorre dessa definição o fato de que sistemas
baseados no OMME devem incluir mecanismos para (i) o intercâmbio de in-
formações musicais entre o sistema e o ambiente, (ii) a simulação de mecanis-
mos de percepção, de análise e de ação e (iii) a alteração dos estados do sistema
bem como dos estados do ambiente.
Condição 2: “Sistemas baseados no OMME consideram a música como uma ex-
pressão das faculdades humanas”. Sistemas baseados no OMME devem explo-
rar modelos teóricos e/ou empíricos das faculdades perceptivas e cognitivas
humanas porque (i) a música é uma expressão dessas faculdades e (ii) a base da
transmissão memética reside na existência dessas faculdades.
Condição 3: “Sistemas baseados no OMME devem implementar mecanismos para
avaliar a evolução musical”. Um dos objetivos do OMME refere-se à contri-
buição que os sistemas nele baseados devem dar para a pesquisa musicológica
e a construção de uma ontogenia musical. Esses sistemas devem, portanto, im-
plementar mecanismos que permitam a avaliação de diferentes aspectos da evo-
lução musical.
Em vista das condições anteriormente mencionadas, o OMME é brevemente de-
finido na seguinte expressão: “O Modelo Ontomemético de Evolução Musical é
um modelo computacional para a criação de sistemas interativos que consideram
a música como uma expressão das faculdades humanas e implementam modelos
criativos para a exploração e compreensão da evolução musical”.
A fim de validar e demonstrar as potencialidades do OMME foram implementa-
dos dois sistemas computacionais, o Gerador de Memes Rítmicos (RGeme —
Rhythmic Meme Generator) e os Ambientes Musicais Interativos (iMe — Inte-
ractive Musical Environments), a seguir descritos.

O Gerador de Memes Rítmicos (RGeme)


O RGeme foi a primeira implementação de um sistema computacional baseado
nas especificações do OMME. Nele, agentes de software interagem entre si e com
o ambiente, percebendo a existência de música, analisando os objetivos a eles pro-
postos e agindo de acordo com esses objetivos. Os agentes simulam aspectos das fa-
culdades perceptivas e cognitivas humanas uma vez que segmentam o fluxo musical
e possuem sua própria representação do mundo (memória), na qual guardam
memes rítmicos, e que é transformada através da execução de diferentes atividades 333
musicais. As transformações pelas quais passam os agentes são registradas de forma
a possibilitar a observação do aparecimento e evolução dos seus estilos musicais.
Todos os agentes têm a mesma estrutura interna (percepção e memória) e a capa-
cidade de realizar três tipos de atividades (tarefas) musicais: escutar, praticar e com-
por música (seqüências rítmicas). Na memória, também chamada de “matriz de
estilo”, são armazenados os memes rítmicos que, em última instância, constituem
o conhecimento musical dos agentes. A Figura 1 mostra um exemplo de meme
rítmico.

11101000

Figura 1 — Um meme rítmico (representação musical e binária).


O RGeme funciona através do projeto e execução de simulações tendo em vista
uma determinada preocupação musicológica e da análise da evolução da memória
dos agentes. Esta evolução resulta das interações que eles praticam com as músicas
disponíveis no sistema. O projeto de uma simulação envolve a definição dos se-
guintes elementos:
a) Número de agentes que vão interagir.
b) Uma “matriz de objetivos” para cada um dos agentes, i.e., as tarefas que cada
agente irá executar durante a simulação.
c) Uma “matriz de avaliação” para cada um dos agentes, i.e., um conjunto de re-
gras (nome do compositor e/ou ano da composição) que os agentes usam para
escolher dentre as música disponíveis para interação. A matriz de objetivos e a
matriz de avaliação predizem a ontogenia musical dos agentes.
Iniciada a simulação, o sistema envia seqüencialmente um contador (ciclo) para
cada um dos agentes. Este contador representa o ciclo temporal em que os agentes
se encontram. Uma vez recebido o contador, o agente executa as tarefas designadas
para aquele ciclo, escolhendo a música com a qual irá interagir segundo os critérios
definidos em sua matriz de avaliação. O material inicial com o qual os agentes irão
interagir é fornecido ao sistema na forma de arquivos MIDI.
O resultado das interações é que a memória de cada um dos agentes é constante-
mente transformada. A Tabela 1 mostra um instantâneo de uma dessas memórias
em que cada linha contém os memes que foram percebidos pelo agente além de ou-
tras informações como as “datas” ou ciclos (inicial — “dFL”, final — “dLL”) em que
os memes foram percebidos, o número de vezes (“nL”) que o meme foi percebido
e o peso (“w”) de cada um deles.
Ao final de cada tarefa, o peso (“w”) de cada um dos memes é reforçado de acordo
a similaridade entre os memes presentes na memória e aqueles com que os agentes
estão interagindo em um dado momento. Na medida em que os agentes interagem
com as músicas e, conseqüentemente, com os memes rítmicos, alguns desses memes
334 são reforçados enquanto que outros são enfraquecidos. A evolução do conheci-
mento musical dos agentes é monitorada através da análise dessas transformações.
Sucessivamente, ao final da interação com cada uma das músicas, o RGeme regis-
tra um instantâneo da memória dos agentes de modo que se possa analisar passo a
passo a importância dessas interações para a evolução do aprendizado e, conse-
qüentemente, do estilo musical de cada um deles.
# Meme dFL dLL nL w
1 01010110 1 1 2 1.026
2 01011000 1 1 2 1.017
3 11010000 1 1 2 1.021
4 00100010 1 1 2 1.013
5 01110111 1 1 4 1.025
6 11011101 1 1 6 1.022
7 10010111 1 1 6 1.023
8 10010101 1 1 4 1.019
9 11110111 1 1 15 1.014
10 10001000 1 1 1 1.000
... ... ... ... ... ...

Tabela 1 — Extrato de uma Matriz de Estilo.


(Meme = representação rítimica, dFL = data da primeira audição,
dLL = data da última audição, nL = número de audições, W = peso)

Figura 2 — Exemplo de uma composição rítmica gerada pelo RGeme.


Os agentes também são capazes de gerar novas composições com base nos memes
armazenados em sua memória, para o que utilizam as informações mostradas na
Tabela 1 acima, em especial o peso (coluna “W”) de cada um dos memes. As com-
posições dos agentes são particularmente importantes porque permitem que o co-
nhecimento adquirido por um deles possa ser transmitido aos demais em uma
mesma simulação. A Figura 2 acima mostra um exemplo de uma dessas composi-
ções.
Durante o desenvolvimento do RGeme foram realizadas inúmeras simulações e,
em (Gimenes, 2009) algumas delas são descritas em detalhe. A título de exemplifi-
cação, as próximas figuras mostram alguns gráficos que foram gerados a partir de
uma dessas simulações em que um agente interagiu com grupos diferentes de com-
posições de Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Jacob do Bandolim. A Figura
3 mostra o número de vezes (eixo ‘y’) que um determinado agente interagiu du- 335
rante toda a simulação com os 20 memes inicialmente aprendidos. O eixo ‘x’ mos-
tra a representação binária dos memes rítmicos.

Figura 3 — Número de interações para os 20 primeiros memes.


A Figura 4 a seguir mostra o número de memes aprendidos durante toda a simula-
ção. O eixo ‘x’ mostra a seqüência de ciclos da simulação, que durou um total de 100
ciclos, e o eixo ‘y’ mostra o número de memes aprendidos até um determinado ciclo.
O agente foi instruído na matriz de avaliação a escolher músicas de compositores
distintos em três diferentes fases da simulação. O gráfico da Figura 4 mostra este
fato, onde o agente aprende um determinado número de memes que é crescente
no início de cada uma dessas fases e posteriormente estabilizado.

Figura 4 — Número de memes aprendidos durante a simulação.


Finalmente, a Figura 5 mostra a evolução da curva de importância de uma seleção
de memes que o agente aprendeu durante a simulação. O eixo ‘x’ mostra a seqüên-
cia de ciclos da simulação e o eixo ‘y’ o peso relativo (“w”) dos memes. A Tabela 2
— mostra os detalhes de cada um dos memes exibidos na Figura 5 ao final da si-
mulação.

336

Figura 5 — Curva de importância dos memes (seleção).

# Meme dFL dLL nL w


3 11111111 1 100 862 3.753
6 11111010 1 91 100 2.543
9 01111111 2 100 318 2.982
23 00100010 3 57 14 1.013
29 10111111 13 95 51 2.297
39 11011000 35 98 69 1.970
Tabela 2 — Descrição dos memes da Figura 5.
(Meme = representação rítimica, dFL = data da primeira audição,
dLL = data da última audição, nL = número de audições, W = peso)
A fim de demonstrar a evolução da importância dos memes, a Figura 5 e a Tabela
2 — devem ser lidas conjuntamente. Por exemplo, o agente interagiu com os memes
3 e 6 na primeira interação (DFL = 1), que se originaram da música Lua Branca, de
Chiquinha Gonzaga. O meme 9 aparece na segunda interação (música Gaúcha,
mesma compositora), o meme 23 na terceira (música Annita, idem), o meme 29 na
13a. (música Atraente, idem) e o meme 39 na 35a (música Tenebroso, de Nazaré).
Embora o meme 23 tenha sido ouvido pela primeira vez no 3o. ciclo, a sua impor-
tância relativa em comparação aos demais nunca foi muito elevada. Por outro lado,
embora o agente tenha interagido com o meme 39 no 35o. ciclo, no final da
simulação este meme foi mais importante do que o 23o., com o qual o agente
interagiu pela primeira vez no 3o. ciclo. O meme 6 é relativamente importante na
música de Chiquinha Gonzaga, mas a sua importância foi menos significativa após
o agente ter começado a interagir com a música de Ernesto Nazaré. Por este motivo,
no final da simulação, o meme 9 foi mais importante do que o meme 6. Finalmente,
os memes 3 e 9 tiveram um desempenho comparável e estável durante toda a
simulação.
Ao final de uma simulação, é possível, com base nos pesos relativos de cada um dos
memes presentes na memória do agente, determinar quais deles são mais impor-
tantes (“vencedores”) que os outros. A Tabela 3 — abaixo mostra os dez memes
mais importantes ao final da mesma simulação utilizada nos exemplos acima.
337
# Meme dFL dLL nL w
3 1 100 862 3.753

11 2 98 431 3.111

9 2 100 318 2.982

17 2 92 18 2.577

6 1 91 100 2.543

8 1 100 240 2.482

10 2 98 191 2.422

19 3 94 225 2.402

38 35 98 161 2.381

7 1 99 149 2.329

Tabela 3 — Memes vencedores


(Meme = representação rítimica, dFL = data da primeira audição,
dLL = data da última audição, nL = número de audições, W = peso)
Considerando-se que o RGeme foi a primeira implementação de um sistema se-
gundo as normas do OMME, algumas das suas características foram intencional-
mente simplificadas. Este é o caso, por exemplo, do material musical (apenas ritmos
monofônicos) e da segmentação (critério de comprimento fixo, i.e., um segmento
por compasso). Além disso, o RGeme implementa um modelo de criação musical
que não leva em consideração a continuidade de um meme para outro. Por causa
dessas limitações e considerando as lições aprendidas com esse sistema, posterior-
mente implementei um segundo sistema chamado de Ambientes Musicais Intera-
tivos (iMe — Interactive Musical Environments), brevemente apresentado na
próxima seção.

Os Ambientes Musicais Interativos (iMe)


O sistema iMe é bem mais complexo que o RGeme embora guarde com este di-
versas semelhanças. Ambos são sistemas interativos musicais baseados nas condições
do OMME e possuem a mesma espinha dorsal: agentes executam atividades inspi-
radas no mundo real e se comunicam entre si e com o mundo exterior. O resultado
desta comunicação é que a memória dos agentes é constantemente alterada e, con-
seqüentemente, seus estilos musicais evoluem. Contudo, um número considerável
de características distingue esses dois sistemas, entre as quais estão a representação
musical, o modelo de segmentação e o fato de que o sistema iMe foi especialmente
concebido para abordar a interatividade sob um ponto de vista improvisacional em
338 que os agentes executam tarefas em tempo real (ouvir, executar, praticar, improvi-
sar-solo e improvisar-grupo) além de tarefas em tempo não real (ler e compor).
O sistema iMe utiliza o protocolo de comunicação MIDI para a troca de mensagens
entre os agentes e entre estes e o mundo exterior, a partir do qual os agentes ex-
traem a representação musical simbólica necessária para as interações. Esta repre-
sentação possui paralelos com os modelos perceptivos e cognitivos humanos, ou
seja, com a forma como os sons são captados pelos ouvidos, processados e armaze-
nados pela memória (Snyder, 2000). Uma série de filtros equipam os “ouvidos” dos
agentes e são responsáveis pela extração de características particulares do fluxo so-
noro, tais como o aumento e/ou a diminuição da freqüência sonora (direção da
melodia) ou a densidade musical (número simultâneo de notas). Os agentes per-
cebem as mudanças do fluxo de som entre dois momentos consecutivos no tempo
e extraem “informações sensoriais” a partir deles. A Figura 6 mostra um exemplo em
notação musical tradicional e a correspondente representação com base em filtros
sensoriais. Para fins de demonstração, neste caso são usados somente 3 filtros (di-
reção melódica, saltos melódicos e intervalos de tempo da melodia).

1 2 3 4 5 6 7 8
direção melódica 0 1 1 1 1 -1 -1 -1
saltos melódicos 0 2 2 1 2 2 1 2
intervalos de tempo da melodia 120 120 120 120 120 120 120 120

Figura 6 — Representação musical com base em filtros sensoriais.


Na versão atual do sistema iMe, a autonomia dos agentes foi limitada de modo que
eles executam as tarefas (matriz de objetivos) previamente determinadas pelo usuá-
rio bem como escolhem as músicas segundo critérios também fixados por este.
Sendo assim, do mesmo modo que no RGeme, ao projetar uma nova simulação, o
usuário deve determinar um número de agentes (pelo menos um) e atribuir um
número de tarefas (pelo menos uma) para cada um deles. Havendo tarefas que en-
volvam a escolha de músicas para interação, os agentes também devem ser instruí-
dos com os critérios (nome do compositor, gênero, ano de composição) para essa
escolha (matriz de avaliação). Os objetivos e a matriz de avaliação constituem uma
espécie de esboço do que virá a ser o mapa de desenvolvimento estilístico dos
agentes.
339

Figura 7 — Extração de características musicais e segmentação.


Ao interagir com uma determinada música, os agentes percebem o fluxo de dados
musical e o decompõem em informações sensoriais básicas (e.g. direção da melodia)
em tempo real, o que resulta em uma série de fluxos de dados paralelos, posterior-
mente utilizados para segmentação, armazenamento na memória e definição de es-
tilo. Esse mecanismo é ilustrado na Figura 7.
A segmentação implementada no iMe inspira-se em princípios da psicologia Ges-
talt e em modelos mais recentes do sistema cognitivo humano (Snyder, 2000). Em
linhas gerais, a fim de implementar esses princípios, o algoritmo de segmentação
simula o fenômeno da habituação, ou seja, dado que um sinal permanece estável
durante algum tempo, o seu interesse (atenção) decai. Desse modo, acompanhando-
se o comportamento dos fluxos de dados paralelos anteriormente mencionados, é
possível se obter indicadores para a segmentação. Enquanto os agentes percebem o
fluxo sonoro, a repetição do mesmo sinal resulta em uma falta de interesse enquanto
que uma mudança de comportamento no sinal, depois de um certo número de re-
petições, chama a atenção deles. Cada segmento constitui um meme musical que,
por sua vez, se compõe de um conjunto de “substrings” originário do fluxo sonoro
original.
A memória dos agentes é composta de uma Memória de Curto Prazo e de uma Me-
mória de Longo Prazo. A primeira armazena os últimos ‘n’ memes percebidos pelo
agente, onde ‘n’ é definido a priori pelo usuário. A segunda armazena cada um dos
substrings mencionados acima em áreas específicas de acordo com os filtros senso-
riais. Todas as substrings possuem ponteiros que apontam para as demais substrings
de modo que são estabelecidas conexões entre elas e que são reforçadas de acordo
com as músicas com as quais os agentes interagem. Quanto mais freqüentes são
essas conexões, maior é o peso atribuído a elas na memória dos agentes. Inversa-
mente, se determinadas conexões não ocorrem nas músicas com as quais os agen-
tes interagiram mais recentemente, elas são enfraquecidas, o que equivale a dizer
que elas começam a ser esquecidas.
Finalmente, os agentes são também capazes de criar novas músicas através das ta-
refas compor, improvisar-solo e improvisar-grupo. O modelo criativo usado nessas
três tarefas é, na realidade, muito semelhante e deve ser considerado mais improvi-
sacional do que composicional dado que, uma vez gerado um novo meme musical,
340 o agente não pode “mudar de idéia” e gerar um outro em seu lugar. O usuário do
sistema deve programar previamente uma seqüência de condições (e.g. escalas, acor-
des, etc.) em um espaço chamado de “Mapa Composicional e de Performance”
(MCP) que o agente irá seguir enquanto estiver criando uma nova música. No mo-
mento da criação, o agente gera novos memes recombinando as substrings que estão
armazenadas na sua memória, de acordo com os pesos das diversas conexões men-
cionadas anteriormente. Uma vez gerado, o novo meme é em seguida adaptado ao
MCP. Novos memes musicais são gerados até que todas as condições do MCP
sejam satisfeitas. Esse processo é ilustrado na Figura 8 abaixo:

Figura 8 — O processo de geração e adaptação dos memes.


Em (Gimenes, 2009) são descritas com detalhe algumas das possibilidades do
OMME implementadas pelo sistema iMe tanto na área de musicologia quanto na
de criação musical. Com relação à primeira, a configuração inicial do sistema (nú-
mero de agentes, base de dados musical, tarefas, etc.) é que permitirá o estudo de de-
terminadas questões. É possível, por exemplo que, em um determinado cenário, um
agente ouça uma peça e um outro agente ouça uma outra peça. Ao final da simula-
ção, a diferença do conhecimento musical dos agentes irá corresponder à diferença
dos estilos musicais entre as peças. Para isso é necessária uma medida de similaridade
entre as memórias dos agentes, a qual também é descrita em detalhe na Tese.
Uma outra possibilidade de análise poderia ser a comparação da memória de dois
agentes após um ter ouvido músicas compostas por um determinado compositor e
o outro agente ter ouvido músicas de um outro compositor. O gráfico exibido na
Figura 9 abaixo ilustra este caso. Nesta experiência foram usados dois conjuntos
distintos de músicas, de um lado as Invenções a duas vozes de J. S. Bach e, de outro,
um conjunto de 10 peças pertencentes ao gênero ragtime. O gráfico mostra que a
diferença entre as memórias dos agentes decresce à medida em que a simulação evo-
lui mas essa diferença é estabilizada em torno do valor 16.5, o que representaria a
diferença numérica em termos de estilo entre os dois conjuntos de peças.

341

Figura 9 — Diferenças de estilo entre dois agentes


(grupos diferentes de peças musicais).
Uma outra área na qual o sistema iMe tem grande potencial é o da criatividade mu-
sical visando a explorar, mais especificamente, o segundo objetivo do OMME, i.e.,
contribuir para a construção da “musicalidade das máquinas” e a interação entre
máquinas e seres humanos. Uma performance pública foi preparada durante o Pe-
ninsula Arts Contemporary Music Festival em fevereiro de 2008 na Universidade
de Plymouth, Reino Unido.
Uma simulação foi especialmente projetada para esta performance em que um
agente deveria executar duas tarefas: a leitura de uma música e uma improvisação-
grupo de outra. No início da simulação, a memória do agente estava vazia e, du-
rante a primeira tarefa (leitura), o agente leu um arquivo MIDI contendo apenas a
melodia da música Stella by Starlight, de Victor Young. Neste momento, a memó-
ria do agente passou a conter o material inicial que ele iria utilizar na segunda ta-
refa. Um MPC (mapa composicional e de performance) havia sido previamente
preparado com a seqüência harmônica da mesma peça musical e, durante a segunda
tarefa (improvisação-grupo), o agente e eu improvisamos com base nele. Iniciada a
improvisação, o agente começou a ouvir as idéias musicais que eu tocava, transfor-
mando, conseqüentemente, a sua memória. As novas idéias musicais aprendidas
pelo agente passaram então a compor a sua própria improvisação. Uma descrição
passo a passo dessa performance pode ser lida em (Gimenes, 2009) e sua íntegra as-
sistida em http://www.computermusiclab.com/.

Conclusão
Este artigo apresentou sucintamente o Modelo Ontomemético de Evolução Mu-
sical (OMME), um novo paradigma para o desenvolvimento de sistemas compu-
tacionais interativos musicais que se funda nas noções de ontogênese e de memética,
proposto durante o meu Doutorado na Universidade de Plymouth (Reino Unido).
Os sistemas baseados neste modelo devem (i) ser sistemas interativos, (ii) conside-
rar a música como uma expressão das faculdades humanas, e (iii) implementar me-
canismos para a análise da evolução musical. Essas condições visam a (i) contribuir
para a compreensão de fenômenos naturais, tais como a percepção e cognição hu-
manas, através da modelagem computacional, (ii) contribuir para a construção da
342 “musicalidade das máquinas” e a interação entre máquinas e seres humanos, e (iii)
fornecer ferramentas computacionais para a musicologia principalmente centrada
em modelos teóricos que estudem a evolução cultural.
A fim de demonstrar as potencialidades do OMME, foram desenvolvidos os siste-
mas Gerador de Memes Rítmicos (RGeme – Rhythmic Meme Generator) e Am-
bientes Musicais Interativos (iMe – Interactive Musical Environments). Ambos são
sistemas interativos musicais em que agentes musicais interagem com o ambiente
e entre si, possuem módulos perceptivos e cognitivos e são capazes de evoluir a par-
tir da execução de tarefas musicais. No RGeme os agentes executam tarefas em
tempo não real (ouvir, praticar e compor música), enquanto que no iMe, além des-
tas os agentes também executam tarefas em tempo real (ouvir, executar, improvi-
sar-solo e improvisar-grupo).
Os estudos apresentados neste artigo estão sendo atualmente aprofundados no Nú-
cleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS/Unicamp), no escopo da
minha pesquisa de Pós Doutorado com o apoio financeiro da Fundação de Am-
paro à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Um novo sistema interativo
musical está sendo desenvolvido com o intuito de estudar a emergência e evolução
de estilos musicais em um ambiente essencialmente autônomo. Esta pesquisa se in-
sere no contexto dos modelos que exploram a Vida Artificial (“Artificial Life”), os
quais procuram replicar fenômenos biológicos através de simulações em computa-
dor (Miranda, 2003) e abordam conceitos como, por exemplo, a origem dos orga-
nismos vivos, comportamento emergente e auto-organização e podem ajudar na
compreensão da gênese e evolução musicais (Atlan, 1979).
Referências
Atlan, H. (1979) Entre le cristal et la fumee: Essai sur lorganisation du vivant, Paris.
Dawkins, R. (1989) The Selfish Gene. Oxford, Oxford University Press.
Gimenes, M. (2009) An Approach of Machine Development of Musical Ontogeny. School
of Computing, Communications and Electronics. Plymouth, UK, University of Plymouth.
Jan, S. (2000) Replicating sonorities: towards a memetics of music. Journal of Memetics 4.
Jan, S. (2007) The Memetics of Music. A New-Darwinian View of Musical Structure and Cul-
ture. Aldershot, UK: Ashgate Publishing Limited.
Miranda, E. (2003) On the evolution of music in a society of self-taught digital creatures. Di-
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Snyder, B. (2000) Music and Memory: An Introduction. Cambridge, MA, MIT Press.
Welch, G. F. (2000) The Ontogenesis of Musical Behaviour: A Sociological Perspective. Re-
search Studies in Music Education 14, 1-13.
Análise Particional: uma Mediação
entre Composição Musical e a Teoria das Partições
Pauxy Gentil-Nunes
pauxygnunes@gmail.com 343
Departamento de Composição - EM-UFRJ

Resumo
A Análise Particional é proposta como abordagem original da composição e análise mu-
sicais, constituída a partir da aproximação entre a teoria das partições de inteiros, de Leo-
nhard Euler (1748) e a análise textural de Wallace Berry (1976). A teoria das partições é
uma área da teoria aditiva dos números, que trata da representação de números inteiros
como somas de outros números inteiros. Uma partição de um número inteiro não-ne-
gativo n é uma representação de n como uma soma de números inteiros positivos, cha-
mados somandos ou partes da partição, sendo irrelevante a ordem dos somandos. O
número cinco, por exemplo, tem sete partições - ou seja, sete maneiras com que pode
ser representado pela soma de outros números inteiros. A análise textural de Berry pro-
põe a representação das relações de congruência rítmica entre as partes de uma tex-
tura musical, através de números empilhados, que representam tanto sua diversidade
quanto sua espessura. Desta forma, Berry preconiza o controle numérico das diferen-
ciações texturais do discurso musical. A mediação entre as duas teorias, que constitui a
análise particional, é feita através da análise da estrutura interna das representações nu-
méricas de Berry, que são consideradas homólogas às partições. Toma o ponto de vista
pragmático (Wittgenstein), onde são considerados os atores individuais (instrumentistas,
dedos, fontes sonoras) e suas relações funcionais com os seus pares. Através da dife-
renciação destas relações em congruentes e não-congruentes (de acordo com critérios
pré-definidos), extrai de cada ‘partição’ dois índices (índices de aglomeração e de dis-
persão – a,d), que formam um par de coordenadas correspondente e único. A partir dos
índices, são obtidas representações gráficas dos estados dinâmicos do sistema de uma
peça ou trecho musical, tanto na forma de um espaço de fase (particiograma), quanto
na forma de gráfico linear (indexograma). Os contornos formados pelas trajetórias no par-
ticiograma fornecem mapeamentos exaustivos dos estados de determinado trecho mu-
sical; e o movimento dos índices (a,d) no indexograma permitem a segmentação e análise
do trecho a partir de recorrências dos contornos, chamadas de ‘bolhas’. Cinco catego-
rias são estabelecidas para classificação das progressões entre partições: redimensiona-
mento, revariância, transferência, concorrência e reglomeração. A partir delas, a tipologia
dos discursos particionais é viabilizada.
Neste trabalho, foram apreciadas três aplicações da análise particional, correspondentes
a três critérios de filtragem das relações binárias: particionamento rítmico, linear e de
eventos. Cada aplicação parte de teorias analíticas importantes, desenvolvidas durante
o século passado (Berry 1976, Schenker 1935 e Cage 1955). A partir delas, foram analisa-
das pequenas peças de alguns autores de música de concerto (Beethoven, Schöenberg,
Webern, Bach, o Autor, Ferneyhough), com a finalidade de verificar a pertinência analí-
tica da teoria, através da comparação com outros tipos de análise. As análises contaram
com a ajuda de ferramentas computacionais, programadas pelo autor (PARSEMAT), que
auxiliaram na leitura das partituras, através de arquivos MIDI, e na confecção dos gráfi-
cos, a partir dos quais se faz a leitura do discurso particional. O programa funciona tam-
bém como modelagem dos algoritmos envolvidos na tradução da linguagem musical
para a linguagem matemática.
344

Introdução
A Análise Particional (Gentil-Nunes 2009) é proposta como abordagem original
da composição e análise musicais, constituída a partir da aproximação entre a teo-
ria das partições de inteiros, de Leonhard Euler (1748) e corpos teóricos desenvol-
vidos durante o século XX (inicialmente, Berry 1976; e posteriormente, Schenker
1935 e Cage 1942, 1955 e 1961).
A formulação da teoria das partições foi uma conquista do matemático suíço Leo-
nhard Euler (Andrews 1984, p. xv). A teoria das partições trata das “seqüências fi-
nitas de inteiros positivos cuja soma é n”. Segundo Andrews, “toda vez que uma
divisão de algum objeto em sub-objetos é realizada, a palavra partição provavelmente
aparecerá” (id. ibid.).
Considerada desta forma, a teoria das partições trata de uma das atividades mais im-
portantes para o ser humano: a contagem, que representa as relações sociais, fun-
dada na divisão de bens (vasos, cabras, dólares – ver Gentil-Nunes 2006a).
O uso das partições é cotidiano e constitui, juntamente com a habilidade de con-
tar, um fato social inerente às sociedades complexas (ibid.) Os números, muitas
vezes considerados como abstrações desvinculadas das formas de vida concreta, são
de fato, são de fato representações literais (e, ao mesmo tempo, mediadores) das re-
lações humanas.
Da mesma forma, no trabalho do compositor inserido nesta mesma sociedade, seu
uso, consciente ou não, é ostensivo. A música, como outras atividades humanas,
precisa ter suas etapas de produção coordenadas para viabilizar sua realização. É
uma atividade, em grande parte, coletiva, e traz marcas, em seu processamento, das
várias relações que se estabelecem entre seus agentes (pessoas, instrumentos, pala-
vras, dedos), muitas delas codificadas através de números.
Um olhar pragmático é necessário para entender de forma mais objetiva como essas
relações são imbricadas no trabalho de criação. Afinal, faz parte do trabalho do
compositor a escolha sobre a distribuição e funcionamento das configurações de
produção. Conseqüentemente, das partes e das ações que se deflagrarão a partir
delas. Tarefa precedente a outras, que, grande parte das vezes, são cobertas pelas
técnicas tradicionais de composição (ou de arranjo), tais como as relações motívi-
cas, melódicas, tímbricas e formais.
Estas dinâmicas de produção, realizadas a partir da focalização do trabalho criativo
em determinados parâmetros ou habilidades, são chamadas neste trabalho de ‘jogos
criativos’. Técnicas usadas na pedagogia da composição (como o contraponto ou a
harmonia) são incluídas nesta categoria. A aplicação da teoria das partições à prá-
tica da composição pode ser uma fonte de infindáveis e novos jogos criativos, foca-
dos em parâmetros de produção que até agora foram deixados a cargo da intuição 345
do compositor.
Olhar pragmaticamente significa restringir a observação ao compositor e sua rela-
ção com a partitura. Sem, portanto, considerar a questão do resultado sonoro e a es-
cuta (estesis), que muitas vezes pode ter uma relação indireta, ou até nenhuma, com
as práticas de produção (poiesis), como bem assinala Nattiez (2005, p. 241-248).
Significa, além disso, olhar o compositor como um encenador, um diretor de ato-
res (sejam eles instrumentos, instrumentistas, entidades sonoras, motivos, timbres)
que interagem, estabelecendo alianças e confrontos, e compondo assim um enredo,
uma trama.
Ao seguir os passos de Euler – músico e matemático – o que é colocado não é uma
perspectiva idealista de busca de padrões musicais abstratos, ocultos ou imanentes,
ou mesmo estéticos e sonoros, mas uma visão pragmática do trabalho do composi-
tor. Compositor que escolhe e que, em suas escolhas, grande parte delas numéricas,
acaba por desenvolver uma prática que se relaciona diretamente com o resultado so-
noro, sem, no entanto, com ele se confundir.
Ao se colocar nesta posição, a Análise Particional pretende cumprir alguns objeti-
vos:
• Construir uma taxonomia exaustiva do campo das partições, bem como um
espaço topologicamente organizado das relações entre elas, que permite atribuir
a cada partição uma localização, e conferir significado, de acordo com os crité-
rios utilizados para a definição dos particionamentos;
• Dar margem a novos jogos criativos, que estimulem a manipulação consciente
de parâmetros que estão, no momento, a cargo da intuição do compositor, sem,
no entanto, abrir mão da mesma;
• Oferecer ferramentas para a análise de peças em que abordagens anteriores pos-
sam não ter sido bem sucedidas; alguns exemplos são fornecidos em Gentil-
Nunes 2009;
• Possibilitar a criação de tipologias, que podem ser aplicadas ao campo da ar-
quivologia, no sentido de delimitar campos de atuação e de gêneros de parti-
cionamento, de acordo com o tipo de tratamento dado às progressões
particionais (foi visto, por exemplo, que o discurso tradicional de música de
concerto prioriza um tipo de particionamento, enquanto escolas mais moder-
nas, como a de Darmstadt, priorizam outros tipos).
A teoria das partições
Uma partição de um número inteiro não-negativo n é uma representação de n
como uma soma de números inteiros positivos, chamados somandos ou partes da
partição, sendo irrelevante a ordem dos somandos. O número cinco, por exemplo,
346
tem sete partições - ou seja, sete maneiras com que pode ser representado pela soma
de outros números inteiros, o que caracteriza a função p(n). No exemplo citado,
p(5) = 7, uma vez que o conjunto das partições de cinco é {5, 4+1, 3+2, 3+1+1,
2+2+1, 2+1+1+1, 1+1+1+1+1}, conjunto com sete elementos. Esse conjunto é re-
presentado abreviadamente por {5, 41, 32, 312, 221, 213, 15}, onde na base estão re-
presentadas as partes, e nos índices sua multiplicidade.
O cálculo da função p(n), ainda que se constitua apenas a partir da aparentemente
simplória adição de termos inteiros e positivos, apresenta grande complexidade. A
fórmula de cálculo direto foi construída e aperfeiçoada por matemáticos diversos
(Hardy e Ramanujan, 1918; Rademacher 1937, 1943 e 1973) e envolve uma série
de elementos complexos, tais como a função Delta de Kronecker, a soma de De-
dekind, a função piso de Hardy, π e raízes complexas da unidade, em combinação
não-trivial (ver Andrews 1976, p. 69, 70 e 72; Weisstein 2010a, b e c; Gentil-Nunes
2009, p. 10).
A representação das partições através de gráficos é uma importante ferramenta na
demonstração de seus corolários. Dentre elas, destacam-se os diagramas de Ferrers
ou diagramas de Young, que apresentam as partes por pontos ou quadrados distri-
buídos no plano de acordo com o seu tamanho (dimensão horizontal) e sua mul-
tiplicidade (dimensão vertical).
O reticulado de Young é a representação de todos os diagramas de Young, orde-
nados por relações de inclusão. Neste tipo de relação, cada bloco precede e se liga
àquele em que pode ser graficamente contido, com a aresta superior esquerda coin-
cidente. Constitui uma taxonomia exaustiva de todas as partições de 1 até n, e neste
sentido corresponde a um importante conceito da análise particional, chamado de
conjunto-léxico – lex(n). Por exemplo, lex(4)= {1, 12, 2, 13, 21, 3, 14, 212, 22, 13, 4}.
O número de elementos do conjunto-léxico de n constitui a soma-léxico de n. No
exemplo a soma-léxico de 4 é igual a 11, ou seja, Slex(4) = 11.

A análise textural de Berry


Em seu trabalho sobre textura (1976, p. 184-199), Wallace Berry propõe a dife-
renciação entre o componente sonoro bruto, tomado apenas como quantidade, e
o que ele chama de ‘componente real’, resultado das interações entre os compo-
nentes sonoros e, portanto, já dotado de algumas qualidades, como, por exemplo,
densidade e graus internos de independência/interdependência.
347

Figura 1 – Reticulado de Young restrito às partições para n ≤ 4


(Andrews e Eriksson 2004, p. 108).
Aos componentes reais Berry atribui números, que recebem uma representação
empilhada, caracterizando o número de elementos e sua ‘espessura’.

Figura 2 – Milhaud – A peine si Le coeur vous a considerées, images et figures,


excerto: componentes reais (Berry 1976, p. 187-188).
O movimento dos componentes sonoros, sua súbita aparição ou desaparecimento,
assim como suas coincidências e contraposições, vão formar o que Berry chama de
‘progressões e recessões texturais’, que irão se dividir, por sua vez, e de maneira es-
perada, em curvas quantitativas e qualitativas, respectivamente.
Uma das principais virtudes da análise de Berry é a demonstração da viabilidade
de sistematização do pensamento textural em nível mais objetivo do que o corrente
na pedagogia da composição.
Ainda assim, Berry deixa em aberto algumas questões, relativas à maneira como or-
ganiza seu trabalho. Sua opção pelo compasso como unidade de referência de ob-
servação é relativamente arbitrária e não é justificada no texto. Além disso, Berry
admite: ‘estamos deixando de lado algumas diferenciações menores no intervalo de
movimento, em nível mais superficial’. Berry refere-se a pequenas inflexões que pre-
cisam ser ignoradas para manter-se a lógica de comparação por compasso. Outras
questões deixadas em suspenso são a observação qualitativa das relações entre as di-
versas configurações texturais e a possibilidade de sua enumeração exaustiva.
Uma crítica mais detalhada, visando esgotar aspectos rítmicos, melódicos e inter-
348 valares do exemplo, bem como a abordagem da questão da unidade de referência
para comparação das vozes é feita por Gentil-Nunes (2006b). Além disso, a Aná-
lise Particional pretende apresentar um ponto de partida para entender algumas
questões deixadas em aberto por Berry.
Análise Particional
A mediação entre as duas teorias (teoria das partições e análise textural de Berry),
que constitui a análise particional, é feita através da análise da estrutura interna das
representações numéricas de Berry, que são consideradas homólogas às partições.
Toma o ponto de vista derivado da virada lingüístico-pragmática (Wittgenstein
1952 e 1956), a partir do qual são considerados os atores individuais (instrumen-
tistas, dedos, fontes sonoras) e suas relações funcionais com os seus pares, dentro dos
chamados ‘jogos criativos’.
Estas relações são chamadas de relações binárias. Em uma escrita a quatro partes,
há, a cada momento, seis relações binárias em andamento. Para cada densidade-nú-
mero n, o número de relações binárias correspondente é a combinação de n dois a
dois, operação tomada da análise combinatória (Tucker 1995, p. 181). É o que
acontece no ensino do contraponto, por exemplo, onde a contextualização do dis-
curso está ligada à consideração de determinados intervalos, como quintas e oita-
vas paralelas. Para encontrar estes intervalos, observam-se as diversas interações
entre partes – no caso de um coro misto a quatro partes (SATB), onde são consi-
deradas então as relações TB, AB, SB, ST e AS (seis relações).
As relações binárias, por si mesmas, são apenas um índice da complexidade rela-
cional crescente, obtida no incremento da densidade-número. Por outro lado,
quando Berry define suas configurações texturais, ele está, similarmente às práticas
de contraponto e da harmonia, comparando as várias partes vocais. O filtro utili-
zado, que é a combinação entre congruência rítmica e direções de movimento, é o
que permite com que o autor agrupe ou diferencie os componentes reais.
Em configurações texturais sucessivas, os componentes estarão, a cada momento,
atualizando suas relações. Assim como as configurações texturais formam curvas
quantitativas e qualitativas, de acordo com Berry, as relações binárias também vão
se ajustando, criando assim um movimento autônomo.
Para cada partição há uma disposição de relações binárias específica. Seguindo-se
um critério determinado (que no caso de Berry, repita-se, é a congruência rítmica
dos pontos de tempo), as relações são divididas necessariamente em congruentes ou
não congruentes. Através desta diferenciação extraem-se de cada ‘partição’ dois ín-
dices (índices de aglomeração e de dispersão – a,d ), que formam um par de coor-
denadas correspondente e único.
Particiograma
Uma vez que as partições são finitas e conhecidas como entidades matemáticas, e 349
sendo possível atribuir a cada uma delas um par de índices que se referem ao seu
grau de aglomeração e dispersão internas, torna-se conveniente a plotagem das par-
tições em um gráfico bidimensional. Constitui-se assim um particiograma, que fun-
ciona como uma topologia do campo das partições, uma taxonomia exaustiva das
possibilidades de n e constitui também um espaço de fase, no sentido de represen-
tar um ‘conjunto de elementos condicionados por variáveis independentes e que evo-
luem no tempo’ (Bergé et Al., 1994, p. 91).

Figura 3 – Particiograma para n ≤ 9 (Gentil-Nunes e Carvalho 2003, p. 48 – ver


Anexo 11). Gráfico gerado pelo programa PARSEMAT (Gentil-Nunes 2004).
O particiograma também é uma representação do conjunto-léxico de um determi-
nado número – ou seja, apresenta o repertório de possíveis configurações texturais
para uma densidade-número (totais e parciais).
O particiograma também é um tipo de reticulado de Young, posicionado inclina-
damente, com seu lado diagonal direito paralelo ao eixo das abscissas. No entanto,
algumas diferenças importantes são notadas. No particiograma, as partições têm
uma organização geográfica precisa. As distâncias entre elas são significantes e quan-
tificadas, o que não acontece no reticulado de Young. Pode-se mensurar a diferença,
350 no sentido do conteúdo relacional, entre duas partições, pelo intervalo métrico
entre as duas. Por exemplo, existe uma proximidade maior entre as partições [27]
e [127] do que existe entre as partições [36] e [127], apesar de haver uma vizinhança
simples e simétrica entre as três no reticulado de Young.
O gráfico herda da função p(n) a estruturação fractal, e assim não se coaduna gra-
ficamente com progressões exponenciais, ainda que apresente um certo nível de
previsibilidade. Além disso, a distribuição das partições é bastante desequilibrada,
com um predomínio notável de partições mais dispersas, próximas ao eixo das coor-
denadas.
A plotagem de valores extraídos de excerto musicais, referentes aos índices de aglo-
meração e dispersão, definem trajetórias no particiograma, que corresponde à apre-
sentação sucessiva das partições. A forma destas trajetórias constitui gestos que
podem ser reconhecidos por seu contorno. Alguns deles podem ser reconhecidos,
como o estilo fugato ou a estruturação responsorial (ver Gentil-Nunes 2009, p. 41-
43).
Para o entendimento destes movimentos, é necessário estabelecer a diferenciação
entre ‘grau conjunto’ e ‘salto’, dentro do particiograma. Como o particiograma está
organizado homologamente ao reticulado de Young, que é um conjunto parcial-
mente ordenado, é possível fazer leituras a partir de ordens parciais embutidas na
estrutura do particiograma e definir conjunções e disjunções de acordo com estas
ordens. Outra maneira de extrair ordens parciais é através dos próprios índices, ou
seja, usando a organização interna das partições, representada pelos pares (a, d),
para encontrar conjunções e disjunções.

Progressões particionais
Cinco ordens parciais são observadas para classificação das progressões entre par-
tições:
Redimensionamento (m) – refere-se às operações onde existe mudança da di-
mensão horizontal (no diagrama de Young), ou simultaneamente horizontal e
vertical. Em termos de ação, este movimento corresponde a um comporta-
mento unilateral. Enquanto um elemento se afila ou se adensa, os outros per-
manecem inertes.
Revariância (v) – refere-se a operações onde existe a modificação da dimensão
vertical. É um comportamento unilateral, como o redimensionamento. Desta
vez, enquanto um elemento novo surge ou um elemento unitário já existente
desaparece, os outros permanecem inertes.
Transferência (t) – define-se quando existe uma modificação complementar e
combinada das dimensões horizontal e vertical. Isso significa a formação de
uma rede de colaboração entre atores, no sentido de manter a constância da
densidade-número. Quando uma parte se afila outras surgem para compensar 351
a perda de densidade; e vice-versa, quando surge uma nova parte, outras se afi-
lam. Esta é a relação que predomina nos discursos particionais tradicionais.
Concorrência (c) – constitui-se por um movimento paralelo ou similar (na
mesma direção) de ambas as dimensões; ou seja, um movimento combinado
das dimensões horizontal e vertical. A relação entre atores também é coorde-
nada, mas no sentido da competição entre atores. Quando um se afila, outros
se afilam também e outros desaparecem; quando um se adensa, outros surgem,
também adensados. A relação de concorrência provoca maiores contrastes e é
a que predomina no estilo Darmstadt.
Reglomeração (r) – define-se não pelo movimento dos atores, mas dos índices: o
índice de dispersão fica fixo, enquanto o índice de aglomeração é articulado.
Ou seja, as relações contrapostas passam de um estado mais distribuído entre
atores, para um estado mais concentrado em poucos atores, através do espes-
samento de uma das partes.
A simetria do arranjo entre as funções de redimensionamento, revariância e trans-
ferência é evidenciada quando elas aparecem concomitantemente em um reticu-
lado de Young enriquecido com a indicação dos pares de índices (a, d).

Figura 4 – Reticulado de Young para as partições com densidade-número ≤ 6 e ex-


plicitamento das ordens parciais circunscritas. Em cada caixa são indicadas as parti-
ções e o par correspondente de índices de aglomeração e dispersão. Concepção
original do presente autor.
A caracterização destes movimentos proporciona uma medida da ‘distância’ entre
partições, definida pela trajetória mínima, ou seja, aquela com menor número de
movimentos, necessária para chegar de um ponto a outro. Por exemplo, de [1] para
[13], há dois movimentos de redimensionamento e um de revariância – represen-
tados por [m2v1], a mesma distância que existe entre [3] e [24], e que constitui tam-
bém uma relação de concorrência, na medida em que ambos os índices crescem na
352 mesma direção; de [14] para [4], há uma relação múltipla de transferência, ou seja,
[t4]; já de [14] para [4], há duas revariâncias negativas e uma transferência negativa
– ou seja, [v -2t -1]. Estes dois últimos exemplos não constituem relações de concor-
rência, uma vez que os comportamentos dos índices são diferenciados (um sobe e
outro desce).
A representação de distâncias entre partições permite o tratamento intervalar. Ou
seja, a aplicação de qualquer tipo de operação de transposição, inversão, retrogra-
dação, serialização ou outras técnicas de manipulação composicional. A caracterís-
tica parcialmente ordenada do espaço de partições torna estas operações mais
flexíveis e com resultados menos previsíveis que suas contrapartidas tradicionais.
O que se pode constituir em grande vantagem no processo criativo, uma vez que
uma mesma estrutura de progressões pode gerar progressões reais diversas, e, no en-
tanto, com características semelhantes. Note-se, além disso, que as operações são co-
mutativas, ou seja, ainda que a distância seja medida por trajetórias distintas (por
exemplo, < 1 2 3 13> ou <1 2 12 13>), o resultado da medida será o mesmo (no caso,
[a2d]).
Indexograma
As trajetórias do particiograma acabam por explicitar o inventário de todas as par-
tições utilizadas em uma determinada obra ou excerto, contra o conjunto-léxico
referente à maior densidade-número encontrada. No entanto, a visualização da
progressão dinâmica dos índices no tempo fica obscurecida pelos cruzamentos, que
eventualmente são engendrados pelas trajetórias no particiograma.
O indexograma é uma forma de representar essa evolução dos índices de aglome-
ração e dispersão, plotando-os contra o eixo temporal. Uma vez que ambos os ín-
dices são sempre positivos, foram arranjados em uma representação espelhada, onde
a aglomeração é plotada negativamente. Assim, a distância entre os pontos defini-
dos pelos índices passa a ser também uma medida visual da densidade-número.
O objetivo o indexograma é bem diferente do particiograma. O indexograma des-
taca os movimentos dos índices no tempo e tem, portanto, homologia com a par-
titura. Permite, assim, a comparação com o texto musical de forma mais direta, ao
mesmo tempo em que traz informações novas em relação às partições, que o parti-
ciograma não mostra claramente, como, por exemplo, suas durações.
O desenho formado pelos índices enseja a formação de áreas poligonais fechadas,
que têm início e término em partições pequenas (preferencialmente a partição [1],
onde ambos os índices são zerados), e que são chamadas, na Análise Particional, de
bolhas.
353

Figura 5 – Elementos do indexograma: 1) legenda abreviada para os índices de


aglomeração e dispersão; 2) representação abreviada das partições; 3) bolhas;
4) indicação dos pontos de ataque; 5) pontos de tempo (beats). Gráfico gerado
pelo programa PARSEMAT (Gentil-Nunes 2004).
O contorno das bolhas constrói padrões que podem ser usados como critérios de
segmentação, constituindo assim uma ferramenta de análise musical.
Uma mediação
O trabalho ‘Análise particional: uma mediação entre composição musical e a teoria das
partições’ foi defendido em 2009, como tese de Doutorado em Linguagem e Estru-
turação Musical, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
Neste trabalho, foram apreciadas três aplicações da análise particional, correspon-
dentes a três critérios de filtragem das relações binárias: particionamento rítmico, li-
near e de eventos. Cada aplicação parte de teorias analíticas importantes,
desenvolvidas durante o século XX (Berry 1976, Schenker 1935 e Cage 1955). A
partir delas, foram analisadas pequenas peças de autores de música de concerto
(Beethoven, Schöenberg, Webern, Bach, Gentil-Nunes, Ferneyhough), com a fi-
nalidade de verificar a pertinência analítica da teoria, através da comparação com
outros tipos de análise.
As análises contaram com a ajuda de ferramentas computacionais, programadas
pelo autor (PARSEMAT), que auxiliaram na leitura das partituras, através de arqui-
vos MIDI, e na confecção dos gráficos, a partir dos quais se faz a leitura do discurso
particional. O programa funciona também como modelagem dos algoritmos en-
volvidos na tradução da linguagem musical para a linguagem matemática.
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Wittgenstein, Ludwig. Remarks on the foundations of mathematics. Oxford: Basil Blackwell,
1956/2001
Referências a Software
Gentil-Nunes, Pauxy. PARSEMAT - Parseme Toolbox Software Package. Rio de Janeiro:
Pauxy Gentil-Nunes. 2004. Disponível em http://sites.google.com/site/
pauxygentilnunes/parsemat
PARSEMAT: uma ferramenta para a Análise Particional
Pauxy Gentil-Nunes
Departamento de Composição - EM-UFRJ
355
O PARSEMAT – PARSEME TOOLBOX Software Package (Gentil-Nunes 2004) é
um conjunto de scripts e funções para MATLAB, programado pelo presente autor
com a função específica de realizar operações e confeccionar gráficos para a Análise
Particional (Gentil-Nunes 2009). Partindo de um arquivo MIDI, fornecido pelo
usuário, o programa faz a conversão para uma matriz e, a partir daí, oferece análi-
ses e gráficos específicos à teoria.
Na demonstração, pretende-se apresentar animações em Powerpoint e Flash, com
explanação breve do que trata a Análise Particional, dos tipos de gráficos gerados
pela ferramenta PARSEMAT, com trechos de áudio de peças analisadas, acompa-
nhadas dos gráficos correspondentes gerados pelo programa, ilustrando assim a
aplicação musical da análise em questão.
A Análise Particional (Gentil-Nunes 2009) é proposta como abordagem original
da composição e análise musicais, constituída a partir da aproximação entre a teo-
ria das partições de inteiros, de Leonhard Euler (1748) e corpos teóricos desenvol-
vidos durante o século XX (tomando como referência principal o trabalho de Berry
1976; e com aplicações posteriores a Schenker 1935 e Cage 1942, 1955 e 1961).
Como é uma interface conceitual, possibilita a interação com outros corpos teóri-
cos, ainda não ensejados.
O objetivo principal da Análise Particional é o fomento de novos jogos criativos, e
de novas ferramentas de controle e avaliação (análise) para o compositor de música
de concerto ou qualquer outro gênero que se utilize de registros escritos como meio
de transmissão.
A teoria das partições é uma área da teoria aditiva dos números, que trata da re-
presentação de números inteiros como somas de outros números inteiros. Uma
partição de um número inteiro não-negativo n é uma representação de n como uma
soma de números inteiros positivos, chamados somandos ou partes da partição,
sendo irrelevante a ordem dos somandos. O número cinco, por exemplo, tem sete
partições - ou seja, sete maneiras com que pode ser representado pela soma de ou-
tros números inteiros.
A interface entre a teoria matemática e as teorias composicionais ou analíticas, que
constitui a Análise Particional, é alcançada através da análise da estrutura interna
das representações numéricas de Berry, que são consideradas homólogas às partições.
Toma como referência o ponto de vista derivado da virada ligüístico-pragmática
do “Segundo Wittgenstein”, a partir do qual são considerados os atores individuais
(instrumentistas, dedos, fontes sonoras) e suas relações funcionais com os seus pares,
dentro dos chamados ‘jogos criativos’. Através da diferenciação destas relações em
congruentes e não-congruentes (de acordo com critérios pré-definidos pelas teo-
rias composicionais ou analíticas, que funcionam, assim, como referências concei-
tuais), extrai de cada ‘partição’ dois índices (índices de aglomeração e de dispersão
356 – a,d), que formam um par de coordenadas correspondente e único.
A partir dos índices, são obtidas representações gráficas dos estados dinâmicos do
sistema de uma peça ou trecho musical, tanto na forma de um espaço de fase (par-
ticiograma), quanto na forma de gráfico linear (indexograma). Os contornos for-
mados pelas trajetórias no particiograma fornecem mapeamentos exaustivos dos
estados de determinado trecho musical; e o movimento dos índices (a,d) no inde-
xograma permitem a segmentação e análise do trecho a partir de recorrências dos
contornos, chamadas de ‘bolhas’.
Cinco categorias são estabelecidas para classificação das progressões entre parti-
ções: redimensionamento, revariância, transferência, concorrência e reglomeração.
A partir delas, a tipologia dos discursos particionais é viabilizada.
Em Gentil-Nunes (2009), foram apreciadas três aplicações da análise particional,
correspondentes a três critérios de filtragem das relações binárias: particionamento
rítmico, linear e de eventos. Cada aplicação parte de teorias analíticas importantes,
desenvolvidas durante o século passado (Berry 1976, Schenker 1935 e Cage 1955).
A partir delas, foram analisadas pequenas peças de alguns autores de música de con-
certo (Beethoven, Schöenberg, Webern, Bach, Gentil-Nunes, Ferneyhough), com
a finalidade de verificar a pertinência analítica da teoria, através da comparação com
outros tipos de análise. O trabalho foi defendido em 2009, como tese de Doutorado
em Linguagem e Estruturação Musical, pela UNIRIO.
MATLAB (www.mathworks.com) é um ambiente de programação voltado para apli-
cações matemáticas e científicas. Sua principal característica é a linguagem desen-
volvida especificamente para o trabalho com matrizes. As unidades de construção
dos programas são as funções e scripts. A principal diferença entre eles é que as fun-
ções, na maior parte das vezes, recebem e retornam variáveis, enquanto que os
scripts apenas cumprem seqüências de comandos. As funções e scripts agrupam-se
em pacotes chamados de toolboxes (caixas de ferramentas). O próprio MATLAB
funciona como toolbox, propondo funções primitivas básicas, a partir das quais o
ambiente é constituído.
Uma vez que o acréscimo de uma toolbox agrega novas possibilidades ao ambiente,
a modularidade do sistema é garantida. O PARSEMAT, por exemplo, utiliza algumas
funções da MIDI TOOLBOX (Eerola e Toiviainen 2004c), construída para ler e ma-
nipular arquivos MIDI. Várias das funções da MIDI TOOLBOX são baseadas em tra-
balhos recentes de importante pesquisadores na área de teoria e cognição musicais
(Lerdahl 1983, Thompson 1994, Krumhansl 1995, Repp 1994, entre outros – ver
Eerola e Toiviainen 2004a e 2004b).
Os gráficos gerados por PARSEMAT apresentam informações diversas sobre o ar-
quivo MIDI e dividem-se em dois tipos.
Indexogramas – onde os vetores referentes aos índices de aglomeração e disper-
são apresentam-se representados por linhas independentes, em áreas distintas
do gráfico, plotados contra o eixo horizontal, que representa o tempo. Inde- 357
xograma traça linhas retas entre as junções, o que explicita visualmente, através
dos contornos das linhas, as recorrências ou semelhanças entre progressões.
Particiograma – atemporal, representa o inventário das partições encontradas na
tabela de partições topologicamente arranjadas de forma a explicitar suas rela-
ções de parentesco ou proximidade. No particiograma, as partições são apre-
sentadas em destaque, contra um fundo composto pelo conjunto-léxico
referente à maior densidade-número encontrada no arquivo.
O particiograma, por outro lado, além das partições encontradas na tabela de par-
tições, apresenta o conjunto-léxico como fundo, com finalidade de contextualiza-
ção. A listagem do conjunto-léxico é fornecida pela função lexset.
As partições encontradas na tabela são apresentadas, tanto no particiograma como
no indexograma, em sua forma abreviada, ou seja, com as partes representadas por
algarismos e suas multiplicidades por índices. A formatação desejada é produzida
pela função traduz, que transforma os vetores numéricos referentes às partições em
códigos LaTeX.
o desenvolvimento paralelo da mente
e das artes musicais
358
Apofenia Musical e Emoção Extrínseca em Música
Bernardo Pellon de Lima Pichin
bernardopellon@yahoo.com.br
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo
O presente trabalho mostra resumidamente alguns resultados parciais de uma pesquisa
extensa sobre a relação entre música e emoção. É apresentado o termo Apofenia Mu-
sical, que foi a solução conceitual para explicar essa relação que norteou a pesquisa. O
termo é ideal Apofenia Musical, pois o ouvinte faz conexões com outras instâncias de-
vido a alguma semelhança, sabendo da irrealidade dessas associações. Ou seja, sabendo
que a música não é uma emoção ou qualquer coisa a qual seja associada. Depois disso
é apresentado o conceito de Emoção Extrínseca em música, que é quando o ouvinte as-
socia a música às emoções específicas. Neste tipo de pesquisa costuma-se associar ele-
mentos da música presentes na composição e na performance com emoções específicas.
Para direcionar o estudo foram selecionadas cinco emoções básicas: alegria, tristeza, ira,
amor / ternura e medo. Em um primeiro estágio através de uma análise multidimensional
essas emoções básicas são dispostas em um gráfico cartesiano cujas duas dimensões são
valência (positiva e negativa) e intensidade (alta ou baixa). Em um segundo momento as
emoções básicas são relacionadas em forma de tabela com os elementos da estrutura
musical que costumam estarem relacionados à estas. Ao comparar o resultados dessas
duas etapas foi possível mostrar que os elementos da estrutura musical associados à
cada emoção também corroboram com a idéia de atividade e valência. Em seguida, é
discutido como é necessária a combinação de alguns fatores musicais para que tornem
possível uma associação de uma música com emoção. É notado que essa associação não
é uma regra, e que ouvintes podem discordar nas associações ou não fazer nenhuma. O
que a pesquisa propõe são algumas possibilidades de associações entre elementos da es-
trutura musical e as emoções.

Apofenia Musical
No processo mental da abstração, as idéias são separadas dos objetos. Através desta,
é possível imaginar um resultado de questões ou ações sem a necessidade de um
processo material. Ser abstrata é uma característica marcante da música, pois, salvo
exceções, não existem correlações diretas entre a arte musical e os objetos do mundo
afora; sendo esta talvez a mais abstrata das artes. Não é possível no universo sonoro
do mundo afora ter uma experiência de escuta musical a não ser no contato com a
música. “A doutrina que a música é ou deveria ser um sistema ‘abstrato’ de relacio-
namento estabelecido em um conjunto de equações assombrou a estética musical
desde sempre.” (Sparshott, 1980, p.122). Um acorde, uma melodia, um ritmo, não
significam nada além deles mesmos. Se escutarmos um trecho musical (sem rela-
ção com letra, imagem ou qualquer outro elemento extramusical), não poderemos
dizer com precisão o que este significa, simboliza, representa ou comunica. Não 359
com o tipo de precisão de uma palavra ou frase.
“Se, confessadamente, a música, na qualidade de ‘linguagem indeterminada’, não
consegue traduzir conceitos, então a conclusão de que ela tampouco pode ex-
pressar sentimentos determinados não é psicologicamente irrefutável? O que
torna os sentimentos determinados é justamente seu núcleo conceitual. (Hans-
lick, 1989, p. 34).”
Sendo a música incapaz de comunicar conceitos, por conseqüência também é in-
capaz de comunicar uma emoção. Contudo, é notório que existe uma relação forte
da música com as emoções. Então, como é possível explicar como se dá essa relação?
É da natureza do ser humano buscar sempre o entendimento do que vivencia, não
aceitando presenciar freqüentemente algo que não compreende. Com isso, na es-
cuta musical é comum que ocorram processos cognitivos associando os eventos mu-
sicais com o que é vivenciado no mundo. É durante esses processos cognitivos que
ocorre a relação entre música e emoção. Nestes processos entram em jogo as expe-
riências anteriores do ouvinte com outras músicas, seus gostos, a situação na qual
está escutando a música, se esta é uma música conhecida ou novidade, se possui
uma sonoridade conhecida ou nova, só para citar alguns dos muitos fatores.
Para denominar esse processo feito pelo ouvinte para dar sentido à abstração na
música, a pesquisa chegou ao termo “apofenia”, que satisfez a demanda de uma no-
menclatura que ilustrasse o processo em que o ouvinte atribui qualidades emocio-
nais à música.
Para Leon Petchkovsky, apofenia (apophenia) usualmente é considerada uma “per-
cepção espontânea de conexão e significado de um fenômeno sem relação.” (Petch-
kovsky, acessado em 2009, p.5). Originalmente o termo foi usado por Klaus Conrad
(1958), em um estudo psicopatológico sobre esquizofrenia.
“Inicialmente a vivência/experiência específica da ‘interpretação anormal da
consciência’, ou para a vivência/experiência do ‘estabelecimento de relação sem
motivo’, é chamada atualmente de percepção fantasiosa, representação delirante,
entre outras, e introduzimos a designação ‘apofenia’, com o objetivo de ter a
mão uma expressão prática e claramente definida de uma forma de vivência/ex-
periência.”1 (Conrad, 1958, p.46).
O termo é amplamente usado em estudos psicopatológicos, principalmente em
casos de esquizofrenia, como também em estudos sobre aparições para-normais, as-
sombrações e coisas do gênero, além de atualmente ser aplicado em estudos de mí-
dias digitais, principalmente gráficas e ligadas à internet. Contudo, a apofenia é
comum em estados normais, presente no dia-a-dia, e muitas vezes está relacionada
com criatividade e com a vontade de encontrar sentido. “Uma ampla extensão de
experiências normativas de vida (mágoa, trauma, amor e paixão, quase-morte, trans-
ferência psicótica, mas também inspirações criativas e artísticas, momentos de nu-
360 minosidade etc.) vêm com um intrínseco elemento apofênico.” (Petchkovsky,
acessado em 2009, p.6).
Um tipo muito comum de apofenia é a pareidolia. O termo vem do grego para (ao
lado) + eidos (figura). Um fenômeno que a maioria das pessoas já vivenciou e pro-
vavelmente vivencia com freqüência. São as famosas figuras que achamos ver nas nu-
vens, ou em objetos como rosto em um carro ou relógio, figuras formadas por
manchas na madeira, ou até as interpretações feitas a partir das pranchas de
Rorschach.
“Esse fenômeno consiste numa imagem (fantástica e extrojetada) criada inten-
cionalmente a partir de percepções reais de elementos sensoriais incompletos ou
imprecisos. Por exemplo: ver figuras humanas, cenas, animais, objetos, etc., em
nuvens, em manchas ou relevos de paredes, no fogo, na Lua, etc.; ou ‘ouvir’ sons
musicais com base em ruídos monótonos. Nesses casos, o objeto real passa para
um segundo plano.” (Cheniaux, 2002, p.31).
Assim como a apofenia, “a pareidolia não é patológica; ocorre em pessoas conside-
radas normais. Trata-se de um fenômeno bastante relacionado à atividade imagi-
nativa.” (ibidem). Alguns classificam esse fenômeno como um tipo de ilusão, mas
pode ser diferenciado das demais ilusões “pelo fato de o indivíduo estar todo o
tempo consciente da irrealidade da imagem e de sua influência sobre esta.” (ibi-
dem). Sendo que o indivíduo pode voluntariamente influenciar a imagem inter-
pretativa criada. Como colocado por Kivy (1989), “é um fato psicológico difícil
que nós tendemos a ‘animar’ o que nós percebemos. Amarre um pedaço de pano ao
redor do cabo de uma colher de madeira e uma criança irá aceitar esta como um
boneco; mais direto ao ponto, você irá vê-la como uma figura humana.” (Kivy, 1989,
p.57). Apesar de Kivy não utilizar o termo, é justamente esse o fenômeno da parei-
dolia.
Percebo que é característica do ser humano, de uma forma geral, fazer conexões,
encontrar novos sentidos, animar o que é percebido. “Parece que nós somos forte-
mente direcionados a buscar sentido; fazer conexões.” (Petchkovsky, acessado em
2009, p.7). É uma maneira de entender o mundo e vivenciá-lo fazendo intercâm-
bios dos seus conhecimentos e das experiências vividas, produzindo novos conhe-
cimentos a partir dessas associações. Por isso, proponho que o termo apofenia
musical se encaixa perfeitamente como uma proposta que ilustre como acontece a
relação entre música e emoção. Essa relação acontece a partir da vontade do ou-
vinte de dar sentido a um fenômeno tão abstrato como a escuta musical costuma
ser, e, a partir disto, busca encontrar em outras instâncias conhecidas ao longo da
vida características que ajudem a dar sentido para a música.
“Música pode ser semelhante a outras coisas além das expressões humanas. Mas
assim como nós vemos a face no círculo, e a forma humana na colher de ma-
deira, nós ouvimos o gesto e a fala na música, e não outra coisa. Eu não sugiro,
obviamente, que isto é um fenômeno inteiramente consciente, ou autocons- 361
ciente. Ao contrário, este é suficientemente natural para acontecer na maior
parte sem ser notado. (Kivy, 1989, p.58).”
Este argumento de Kivy mostra como a apofenia é exatamente uma possibilidade
de descrever o processo cognitivo que permite a relação entre música e emoção. Este
termo não só se mostra o mais apropriado porque ilustra exatamente o funciona-
mento dessa relação, como também o faz sem ter a necessidade de criar um paralelo
com outras instâncias que não têm relação nem com música, nem com emoção,
como linguagem, simbolismo, fenômenos visuais, entre outros. Com isso, o termo
apofenia musical foi adotado para ilustrar a relação feita pelos ouvintes entre mú-
sica e emoção.
Na pareidolia, assim como na apofenia, a interpretação não depende somente da
vontade do indivíduo, mas os elementos contidos no que é apreciado é que vão dar
subsídios para a interpretação, e que vão delimitar o quão clara é esta. Vejamos as
figuras abaixo:

Figura 1. Foto da superfície de marte


Esta primeira é uma foto tirada de marte, cuja forma formada pelos relevos e bura-
cos lembram muito uma face. É muito difícil que uma pessoa não veja uma face, ta-
manha é a semelhança que essas formas possuem com uma.
362

Figura 2. Foto de uma nuvem


Já a segunda figura é uma nuvem e seu formato não é tão claro, pode parecer várias
coisas. Se considerarmos que parece um animal e que a cabeça deste está na esquerda,
este pode ser uma rena, um veado ou até um cavalo ou cachorro. Já se considerás-
semos que a cabeça está no canto inferior direito, este pode ser um crocodilo, por
exemplo. Também uma pessoa pode não associar essa figura a nada, não notar ne-
nhuma semelhança com algo que conheça. Contudo, jamais alguém poderia dizer
que esta segunda figura é uma bola, pois o seu formato não possibilita essa associa-
ção, que é bem distinta da forma circular de uma bola.
De mesma ordem é a relação entre música e emoção. Existem músicas em que é
muito claro a que emoção pode ser associada, e essa opinião é compartilhada pela
maioria dos ouvintes; outras músicas vão proporcionar associações diferentes. Ou-
tras ainda não vão possibilitar aos ouvintes, ou à parte deles, associações a uma emo-
ção, porque a combinação de fatores musicais não permite uma associação clara.
Contudo, algumas associações são incoerentes, pois os fatores pertencentes à mú-
sica não são capazes de proporcionar uma interpretação com determinada emoção,
tendo em vista não apresentarem nenhuma semelhança com esta. Com isso, a as-
sociação da música com emoção não é meramente fruto da vontade do ouvinte. A
música deve conter uma combinação de fatores musicais que possibilite a associa-
ção com uma ou mais emoções, e quanto mais clara for essa combinação, mais pes-
soas vão fazer a mesma associação.

A Emoção Extrínseca
A emoção extrínseca ocorre quando o ouvinte associa a música com emoções espe-
cíficas, podendo traçar uma relação clara entre esta e as emoções sentidas e viven-
ciadas na vida. A principal questão no estudo da emoção extrínseca está em desco-
brir quais elementos podem estar associados a quais emoções.
“Grande parte das pesquisas empíricas esteve focada na expressão emocional com
a intenção de descobrir, por um lado, qual emoção pode ser seguramente ex-
pressa na música e, por outro lado, quais fatores na música contribuem para per- 363
ceber a expressão emocional. O último se refere a fatores na estrutura da
composição musical representada na notação musical, como tempo, volume, al-
tura, modo, melodia, ritmo, harmonia e várias propriedades formais. (Ga-
brielsson; Lindström, 2001, p.223).”
Ademais, além dos fatores da estrutura musical que estão presentes na composição,
outros fatores também significativos estão contidos na performance musical e pos-
sibilitam o reconhecimento de propriedades emocionais na música. O que é im-
portante é somente a associação feita, pelo ouvinte, entre essa música e uma ou mais
emoções, ou seja, o que ela significa para ele, considerando também compositores
e intérpretes ouvintes da música composta e tocada. Mesmo que não exista con-
cordância entre compositores, intérpretes e ouvintes, o importante é a relação de
cada um com a música em questão.
Ao entrar em contato com o produto sonoro produzido pela junção dos elemen-
tos da composição e da performance, o ouvinte traça um paralelo entre todos os
elementos escutados e uma ou mais emoções que já vivenciou em sua vida. É a re-
lação do ouvinte com a música que vai determinar como este vai interpretar a mú-
sica escutada e que paralelo ele vai traçar a partir de sua escuta. Não existe um
método infalível que garanta que qualquer ouvinte vai associar uma música a uma
emoção. E é importante ter a consciência de que a relação da música com a emoção
que nos interessa especialmente, no presente trabalho, acontece no ouvinte, e não
na música ou na intenção de compositores ou intérpretes. Porém, é possível que
cada uma das emoções encontradas na música esteja habitualmente associada a de-
terminados fatores da estrutura musical.

1. Emoções básicas em música


Para delimitar o objeto de estudo foram selecionadas “cinco emoções (alegria, tris-
teza, ira, amor / ternura e medo) que fora estudadas extensivamente. Essas emo-
ções representam um ponto natural de partida já que são vista como emoções típicas
por pessoas leigas e foram postuladas como as tão faladas ‘emoções básicas’ por cien-
tistas.” (Juslin, 2001, p.314-5). A seleção dessas emoções é providencial, pois são as
mais comumente associadas à música tanto por leigos quanto por compositores.
“As mesmas emoções também ocorrem (algumas mais do que as outras) nas marca-
ções de expressão de partituras musicais (e.g. festoso, dolente, furioso, timoroso, tene-
ramente).” (Juslin, 2001, p.315). Alguns alegam que da interseção entre elas pode
surgir outras emoções em música, ou seja, que emoções mais complexas podem sur-
gir da combinação de emoções básicas. “É interessante especular que emoções ‘se-
cundárias’ ou ‘complexas’ possivelmente foram desenvolvidas dessas expressões.
Muitos pesquisadores da emoção acreditam que essas emoções são ‘misturas’ de
emoções básicas.” (ibid, p.316).
364
Essas emoções básicas muitas vezes são apresentadas em uma abordagem multidi-
mensional, ilustrada em um gráfico cartesiano que possui usualmente duas dimen-
sões, em que cada eixo representa o nível de uma característica sendo a mais comum
valência (positivo e negativo) e atividade (alta atividade e baixa atividade). Cada
uma destas emoções é distribuída de acordo com a gradação que possui de cada
uma dessas características. Segue abaixo um gráfico baseado em um apresentado
em (Juslin, 2001, p.315).

Alta Atividade

Ira
Alegria

Medo

Valência Negativa Valência Positiva

Amor
Tristeza

Baixa Atividade

Figura 3. Abordagem multidimensional das emoções


A posição de cada emoção não está proporcionalmente distribuída nos eixos, e nem
possui valores absolutos. É uma organização meramente ilustrativa, e a função do
gráfico é mostrar como essas emoções são distintas entre si de acordo com os níveis
de valência e atividade. De caso em caso, uma emoção pode apresentar pequenas di-
ferenças nos níveis de atividade e valência. O mais importante é estar no quadrante
correto. Por exemplo, alegria ter alta atividade e valência positiva, tristeza ter baixa
atividade e valência negativa e assim por diante.
Para ampliar a discussão abaixo apresento a tabela em anexo relacionando os mais
diversos fatores da composição e performance musical com as eleitas emoções bási-
cas. Para tal, foram usados três textos: Juslin (2001), Gabrielsson e Lindström
(2001) e Bunt e Pavlicevic (2001), e ao lado de cada fator serão colocadas as duas
primeiras letras do sobrenome do primeiro (ou único) autor do texto de referência,
no caso (Ju), (Ga) e (Bu) respectivamente. Esses autores tiveram contato com uma
vasta bibliografia para propor essa relação entre fatores e emoções, mas como esta
pesquisa não teve contato com essa bibliografia, será mencionada apenas a referên- 365
cia direta. Em alguns casos, foram levados em conta alguns nomes que podem ser
considerados sinônimos dessas emoções básicas como, por exemplo, melancolia
para tristeza, ternura para amor, entre outros. A emoção extrínseca provavelmente
acontece em diferentes culturas, mas os resultados abaixo apresentam por vezes ca-
racterísticas próprias da música ocidental, pois está é a única viável de estudo, neste
trabalho, devido à maior familiaridade com a mesma.
A escolha dos parâmetros atividade e valência adotada pela abordagem multifun-
cional em algumas pesquisas não é por acaso. Podemos perceber que a maioria dos
fatores apresentados pode ser enquadrada em algum desses parâmetros. Atividade
esta relacionada a volume, dinâmica, tempo e altura. Alta atividade está relacio-
nada com volume alto, ou, em outras palavras, dinâmica forte, tempo rápido e notas
agudas. Em contrapartida, baixa atividade está relacionada com volume baixo, ou,
em outras palavras, dinâmica piano, tempo lento e notas graves. Quanto à valência,
aparentemente, pelo menos na cultura ocidental, parece ter forte ligação com con-
sonâncias e dissonâncias, e simplicidade ou complexidade. Valências positivas estão
relacionadas sons consonantes, harmonia simples, melodia com escalas diatônicas,
tonalidade, simplicidade rítmica e melódica. Valência negativa está relacionada com
sons dissonantes, harmonia complexa, melodias com cromatismo, atonalidade,
complexidade rítmica e melódica. Outros fatores, como timbre e articulações, estão
mais ligados diretamente a aspectos de cada uma dessas emoções básicas, e são
menos genéricas.
Esta tabela apresenta associações comuns feitas por ouvintes entre os fatores e emo-
ções, e a junção de alguns desses fatores já possibilita que ouvintes reconheçam se-
melhança da música com uma dessas emoções. Contudo, apesar de possivelmente
poder esperar que uma quantidade considerável de ouvintes faça uma mesma as-
sociação não há garantias que todos façam o mesmo juízo de uma música. O que se
deve ter em mente é que essa tabela não é uma regra. Não é necessário ter todos
esses elementos para configurar uma dessas emoções, e muito menos apenas um
elemento possibilitaria o reconhecimento de uma destas.
É possível que ouvintes diferentes façam associações a emoções diferentes, que
podem ter a valência oposta, contudo geralmente são emoções com a mesma ativi-
dade. Isso porque a atividade é mais óbvia, e todos conseguem perceber com preci-
são o tempo, dinâmica, volume ou região da melodia, por exemplo. Ademais, uma
música pode mudar os fatores musicais ao longo desta e com isso gerar uma asso-
ciação com uma emoção diferente. Por fim, numa forma mais complexa de asso-
ciação da música com emoção, o ouvinte pode reconhecer semelhança na música
com uma ou mais emoções simultaneamente, como por exemplo, alegria e amor,
ou até emoções antagônicas como alegria e tristeza.
O que se deve ter em mente é que esses fatores não estão associados a essas emoções
366
porque esse foi o resultado de pesquisas em laboratório. Essas associações são feitas
porque esses fatores apresentam características semelhantes ao comportamento,
principalmente à fala, expressões faciais e corporais, sensações provocadas por hor-
mônios como, por exemplo, adrenalina e endorfina, batimentos cardíaco, dilata-
ção da pupila, entre muitos outros, que todos vivenciam ao sentir emoções. E para
o entendimento disso não é preciso fazer pesquisa laboratorial ou bibliográfica, pes-
quisa de campo, ou estudos teóricos de música. Para associar uma combinação de
fatores da estrutura musical a uma emoção ou produzir uma sonoridade expressiva
de emoção, basta vivenciarmos emoções e termos contato periódico com a música.
Juslin conta que “notoriamente, mesmo crianças (4-12 anos de idade) parecem ser
capazes de usar alguns desses fatores para expressar emoção cantando. Por exemplo,
elas usam tempo rápido e volume alto em expressões alegres, enquanto elas usam
tempo lento e volume baixo em expressões tristes.” (Juslin, 2001, p. 316). Isso
ocorre porque certos aspectos da nossa expressividade, principalmente os ligados a
emoções, se assemelham a características musicais. Ou seja, o modo com que indi-
camos para o resto do mundo e para nós mesmos o que sentimos pode ser expresso
de maneira semelhante pela música.
“Quando mães falam com suas crianças, por exemplo, se elas querem acalmá-las,
elas reduzem a velocidade e intensidade da conversa e falam com contornos me-
lódicos decrescendo lentamente. Se, por outro lado, mães querem expressar de-
saprovação a respeito de alguma atividade desfavorável elas utilizam contornos
curtos, abruptos e parecidos com staccato.” (Juslin, 2001, p.323).
Autores como Juslin e Kivy apontam semelhanças entre expressão vocal de emoções
e expressão musical de emoções como as principais encarregadas por associações
entre música e emoção. De fato, a expressão vocal das emoções é uma forte forne-
cedora de fatores que possibilitam a existência da emoção extrínseca em música. Prin-
cipalmente, a melodia e todos os fatores que ela envolve, como articulação, escalas,
direção, volume, alguns tipos de timbre que lembrem os vocais, ritmo e padrões rít-
micos contido nessa melodia, entre outros, podem ter relação de como nos expres-
samos verbalmente. Contudo, outros fatores como harmonia, texturas, ritmos
sobrepostos, alguns tipos de timbre, só para citar exemplos, não estão presentes na
expressão emocional vocal, pois, normalmente, um indivíduo só emite um som
vocal por vez. Todo e qualquer elemento envolvido na experiência emocional que
possa traçar um paralelo com os fatores da estrutura musical pode proporcionar a
associação da música com a emoção, e apesar de importante, a expressão vocal é só
um aspecto dos vários possíveis, e não é suficiente para dar conta de todas as possi-
bilidades da emoção extrínseca em música.
A pesquisa sugeriu como uma alternativa eficiente para o método laboratorial es-
tudar as mais diversas formas de expressões e sensações envolvidas no processo emo-
cional, em diferentes emoções, e propor possibilidades do uso de fatores da
estrutura musical que possam se assemelhar às emoções. De certa maneira, isso é o
que fazem, mesmo que inconscientemente, compositores (no ato da elaboração dos 367
textos), intérpretes (ao executarem os textos) e ouvintes (ao interpretarem as “so-
noridades” resultantes). Esse tipo de abordagem é ainda pouco utilizado, e possi-
velmente pode obter resultados mais eficientes do que o método laboratorial, por
possuir semelhanças com o processo natural desenvolvido pelo ser humano ao as-
sociar música e emoção. Ao longo da pesquisa foi feita uma análise comparativa
entre aspectos característicos dessas cinco emoções básicas e os fatores musicais
apresentados na tabela para as respectivas emoções. Contudo, a apresentação des-
ses resultados extrapolaria o limite de espaço desse trabalho, e por isso não será
incluído.

Conclusão
O ser humano tende a tentar dar sentido ao que experiência no mundo, e muitas
das vezes fazendo conexões entre experiências que possuem semelhanças. Devido
ao caráter abstrato da música, esta é constantemente associada a outras experiências
não musicais para dar maior sentido a escuta musical. E uma das associações mais
famosas é com emoções. O termo Apofenia Musical se aplica perfeitamente para
descrever essa conexão que habitualmente é feita entre música e emoção, ou qual-
quer outra experiência não-musical, por apresentar de forma sucinta um termo que
engloba esse processo cognitivo sem o fazê-lo por intermédio de outra instância
que não seja nem musical nem emocional. É necessária uma combinação entre fa-
tores da estrutura musical para que aconteça uma associação entre música e uma
emoção específica. Somente um fator normalmente é insuficiente para possibilitar
uma associação. Existem músicas cuja associação com determinada emoção é
comum à maioria das pessoas, pois a combinação dos elementos da estrutura mu-
sical possibilita isso. Em outros casos, ouvintes podem discordar quanta a associa-
ção. Contudo, existem associações com emoções inviáveis, por os elementos da
estrutura musical não apresentarem semelhança com aspectos dessa emoção. Atra-
vés do estudo da emoção extrínseca em música é possível descobrir como a combi-
nação de elementos contidos na composição e performance musical pode gerar uma
associação entre música e emoções específicas, e prever possíveis relações entre ele-
mentos da estrutura musical e emoções. A seleção de emoções básicas foi importante
para focar o estudo intensivamente. Através desse estudo foi percebido que é pos-
sível separar os elementos quanto a categorias de valência e atividade, e que isso
possibilita uma maior previsão de qual tipo de emoção a combinação dos elemen-
tos pode gerar uma associação. Esse estudo, e provavelmente nenhum outro, não
possibilita a criação de regras que garantam que determinada combinação entre fa-
tores da estrutura musical vai gerar necessariamente uma associação com determi-
nada emoção. Pessoas diferentes podem associar a música a emoções diferentes, mas
contudo, geralmente são emoções com a mesma atividade. O que é possível é deli-
368 mitar algumas possibilidades e impossibilidades de associação. Uma boa estratégia
de pesquisa alternativa, e talvez até mais eficiente, aos processos laboratoriais é ten-
tar encontrar nos processos desencadeados por determinada emoção aspectos que
possam possuir semelhança com elementos da estrutura musical. Pois é exatamente
isso que os ouvintes fazem ao associar uma música a uma emoção.

1 Tradução livre de: „Wir führten eigangs für das spezifische Erlebnis des abnormen Be-
deutungs-bewuβtseins” bzw. das Erlebnis der ,,Beziehungsetzung ohne Alaβ“, also für jene
Erlebnisweisen, die gemeinhin auch als Wahnwahrnehmung, Wahnvorstellung usw. Be-
zeichnet werden, die Bezeichnung der Apophänie ein, um einen handlichen und klar defi-
nierten Ausdruck zur Verfügung zu haben für eine Erlebnisform.“

Referências
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Desenvolvimento de habilidades musicais
e aquisição da leitura e escrita:
estudos de intervenção e correlação com crianças pequenas
369
Caroline Brendel Pacheco
carolbrendel@gmail.com
Departamento de Educação Musical,
Universidade Federal da Paraíba

Resumo
Não é de hoje que pesquisadores e professores vêem debatendo sobre os efeitos da mú-
sica no desenvolvimento geral da criança. Por um lado, pesquisadores buscam verificar
a influência de determinada exposição ou treinamento musical em outra área de co-
nhecimento, ampliando assim o corpo de estudos sobre as transferências de habilidades
cognitivas. De outro lado, estudiosos procuram correlacionar a música, assim como as
habilidades envolvidas no fazer musical, a outras áreas de conhecimento. Tendo em vista
tal interesse, o presente trabalho pretende revisar os estudos de intervenção e correla-
ção sobre o desenvolvimento de habilidades musicais e a aquisição da leitura e da escrita
desenvolvidos com crianças pequenas de diferentes regiões do mundo. A revisão des-
ses trabalhos objetiva ampliar a discussão sobre o desenvolvimento musical infantil e a
aquisição da leitura e escrita, a partir da análise dos estudos recentes das ciências cogni-
tivas sobre o tema. Também serão apontadas implicações para futuros estudos.

Habilidades Musicais e Aquisição da Leitura e Escrita:


possibilidades de diálogo
A psicologia da música e os estudos da cognição musical têm tomado o desenvol-
vimento como uma de suas principais linhas de pesquisa. Segundo Levitin (no prelo
citado em Ilari 2009) estudos sobre o desenvolvimento de habilidades musicais, da
percepção e da memória musical, assim como de mudanças de comportamento e de
preferências musicais de bebês, crianças e adolescentes estão entre as principais pro-
duções destas áreas nos últimos anos. Todavia, é evidente que o desenvolvimento
musical é somente uma parte do amplo desenvolvimento infantil. Também por
isso, há algum tempo estudiosos vêem tentando localizar conexões entre o desen-
volvimento musical e o desenvolvimento geral das crianças e algumas destas pes-
quisas versam sobre as transferências de habilidades cognitivas.
Analisando a resolução de problemas, Sternberg (2000) afirma que a transferência
é um fenômeno amplo no qual o ser humano é capaz de ‘transportar’ conheci-
mentos ou habilidades de uma situação problemática para outra. Portanto, uma
transferência poderia ser positiva - quando a resolução de um problema atual é au-
xiliada pela resolução de um problema anterior - ou negativa - quando a resolução
de um problema anterior dificulta a resolução de um problema posterior.
Alguns pesquisadores elaboraram revisões sobre transferências envolvendo a mú-
sica. Ilari (2005) revisou estudos sobre os efeitos das transferências cognitivas entre
contextos levando em consideração o aprendizado musical e quatro áreas distin-
370
tas: a inteligência, a matemática, a linguagem e a leitura. Costa-Giomi (2006) tam-
bém resenhou diversos trabalhos, desenvolvidos a partir da década de 1970, que
versaram sobre os efeitos do ensino musical no rendimento escolar, no desenvolvi-
mento de habilidades espaciais e verbais, na memória verbal, na relação entre mú-
sica e leitura e em benefícios neurológicos. Segundo Costa-Giomi (2006), o
‘benefício mais importante’ é a música na vida das crianças, porém a autora tam-
bém ressaltou que a pesquisa que relaciona a música e o desenvolvimento de habi-
lidades é importante para compreendermos melhor o desenvolvimento infantil e
suas possíveis implicações na educação musical, uma vez que tais conhecimentos
podem auxiliar na compreensão de como as crianças aprendem e se desenvolvem,
em geral e musicalmente.
A relação entre a música e o aprendizado da leitura tem sido bastante abordada,
uma vez que a análise de alguns estudos sugere “que o aprendizado musical pode ser
útil para o desenvolvimento da leitura” (Ilari 2005, p.59). Dentre os diversos com-
ponentes envolvidos no processo de aquisição da leitura e da escrita, a consciência
fonológica tem sido uma área freqüentemente pesquisada quando se buscam rela-
ções com a música. Além disso, a consciência fonológica foi considerada por mui-
tos pesquisadores como uma das grandes conquistas da psicologia moderna (Bryant
e Goswani 1987 citados em Cardoso-Martins, 1996). Todavia, é importante res-
saltar que a consciência fonológica compõe um mecanismo mais amplo conhecido
como habilidades metalingüísticas. As habilidades metalingüísticas envolvem: (1)
a já referida consciência fonológica, que pode ser entendida como uma habilidade
de análise da linguagem oral a partir de suas diferentes unidades sonoras; (2) a cons-
ciência lexical, que é compreendida como a habilidade de segmentação da lingua-
gem oral em palavras tomando-se a função semântica e a função sintático-relacional
das palavras, e; (3) a consciência sintática, que por sua vez abrange a habilidade de
reflexão e manipulação da estrutura gramatical das sentenças (Maluf e Barrera 1997;
Barrera e Maluf 2003). Entendendo o desenvolvimento da metalinguagem como
um componente fundamental para o êxito da aquisição da leitura e da escrita (Car-
doso-Martins 1995, Barreira 2003, Barreira e Maluf 2003, Guimarães 2003a, Gui-
marães 2003b, Guimarães 2001) resta refletir sobre as motivações que unem, com
certa freqüência, as habilidades musicais e a consciência fonológica.
A motivação de diversos estudiosos ao delinear estudos sobre a música e a cons-
ciência fonológica parece ter uma explicação bastante simples, porém não menos
complexa: a percepção auditiva é ponto chave para as duas áreas. Assim como a per-
cepção musical é construto de nosso envolvimento com a música (Krumhansl
2006), a consciência fonológica, sendo habilidade de análise da linguagem oral, tão
somente ocorre a partir da possibilidade perceptiva. Neste momento é importante
salientar que tal análise abarca desde a percepção global de similaridades fonológi-
cas ou do tamanho das palavras, até a segmentação e manipulação de sílabas e fo-
nemas (Maluf e Barreira 1997). A percepção de similaridades, a segmentação e a 371
manipulação sonora são algumas das habilidades que podem ser acessadas através
da música e da análise da linguagem oral.
Considerando as possíveis interseções entre as áreas e a quantidade de estudos que
vêem sendo desenvolvidos tomando as música e a leitura, principalmente no que se
refere ao desenvolvimento de habilidades musicais e da consciência fonológica, pa-
rece pertinente realizar uma revisão de seus principais e atuais trabalhos. Objeti-
vando apresentar também as principais características metodológicas das pesquisas,
na primeira parte serão revisados alguns estudos que realizaram intervenções pe-
dagógicas para discorrer sobre o tema; a segunda parte, por sua vez, apresenta es-
tudos que construíram um design correlacional para abordar possíveis relações
entre as áreas, e; a última seção pretende traçar algumas implicações da análise des-
tes trabalhos para a área, bem como para futuros estudos.

Estudos de intervenção pedagógica:


a criança, a música e a leitura
Os estudos de intervenção pedagógica buscam responder suas questões a partir da
análise de pré e pós-testes separados entre si por um período de intervenção peda-
gógica, assim seria possível verificar a influência de determinada variável através do
desempenho de seus participantes antes e após o período de exposição às atividades
propostas. As pesquisas aqui analisadas ofereceram aulas de música para crianças
mexicanas, americanas e canadenses a fim de encontrar possíveis relações entre a
música e a aquisição da leitura e da escrita.
Moyeda, Gómes e Flores (2006) verificaram se o desenvolvimento do vocabulário
é influenciado pela prática de atividades musicais em geral ou por atividades musi-
cais específicas que estimulam a memória auditiva e a percepção rítmica, melódica
e harmônica. Para tanto, propuseram uma intervenção pedagógica, que se deu atra-
vés de aulas de educação musical, para um grupo de 30 crianças mexicanas em idade
pré-escolar. As crianças foram divididas em dois grupos experimentais e um grupo
controle. Cada grupo experimental participou de uma proposta metodológica di-
ferenciada e realizou 20 sessões de atividades musicais. No ‘Programa de interven-
ção educativo-musical para promover o vocabulário’ (experimental 1) cada
encontro tinha um tópico central sobre o qual eram desenvolvidas diversas ativi-
dades musicais, com ênfase na (1) repetição de padrões rítmicos, (2) memorização
de sequências de sons, (3) discriminação e elaboração de representações gráficas de
timbres, ritmos e linhas melódicas; também foram desenvolvidas atividades musi-
cais associadas a estímulos visuais e movimentos.
Uma adaptação para a língua espanhola do Peabody Vocabulary Image Test foi apli-
cada com todas as crianças, antes e após a intervenção. No pré-teste os resultados
372
foram homogêneos, entretanto, o grupo controle - que não foi envolvido em ativi-
dades musicais - obteve escores ligeiramente mais altos que os outros dois grupos,
porém essa diferença não foi apontada pelas autoras como significativa. Após a rea-
lização das atividades de educação musical todos os grupos obtiveram escores mais
altos, mas, somente o grupo experimental 1 apresentou diferenças estatísticas sig-
nificativas em comparação aos demais grupos no pós-teste. Segundo Moyeda et al.
(2006) a análise dos resultados demonstrou que as atividades musicais ‘Ritmos, can-
ções e jogos’ não influenciaram o desenvolvimento do vocabulário das crianças do
grupo experimental 2.
Entretanto, algumas questões do estudo de Moyeda et al. (2006) não ficaram es-
clarecidas. Entre elas estão, qual o motivo que levou as pesquisadoras a atuarem, em
sala de aula, somente no grupo experimental 1? No que consistiu a intervenção
‘Ritmos, canções e jogos’? Por que foram detalhadas somente as atividades do ‘Pro-
grama de intervenção educativo-musical para promover o vocabulário’? Respon-
der a essas questões parece fundamental para analisar uma série de itens que, talvez,
tenham contribuído para os resultados obtidos pelas pesquisadoras.
Em outro estudo, Gromko (2005) apontou a consciência fonêmica como o meca-
nismo capaz de explicar a relação entre o aprendizado musical e as habilidades de
leitura. Uma hipótese de ‘transferência próxima’ foi estabelecida supondo que o
fazer musical ativo e a associação do som à sua representação escrita podem ajudar
a desenvolver processos cognitivos similares àqueles necessários na segmentação da
palavra em fonemas. O estudo realizado com 103 alunos de educação infantil de
duas escolas norte-americanas buscou verificar se a instrução musical poderia au-
mentar o desenvolvimento da consciência fonêmica em crianças pequenas, princi-
palmente, na fluência da segmentação fonêmica (Gromko 2005).
As crianças foram divididas em grupo experimental (n=43), exposto a quatro meses
se aulas semanais de música, e grupo controle (n=60) que não foi engajado em ne-
nhuma atividade. Três aplicações do Dynamic Indicators of Basic Early Literacy
Skills Test (sub-testes de fluência em: som inicial, nomeação de letras, segmenta-
ção fonêmica e nas palavras sem sentido) avaliaram os participantes em pré e pós-
testes (Gromko 2005).
O grupo experimental obteve resultados mais baixos no pré-teste em relação ao
grupo controle. Segundo a autora, questões sócio-econômicas podem ter influen-
ciado esse resultado, uma vez que crianças mais pobres não são necessariamente
menos capazes, mas, podem apresentar maior dificuldade assim que entram na es-
cola (Gromko 2005). Esta conclusão levanta a questão sobre a necessidade do con-
trole das diferenças sócio-econômicas, tendo em vista que elas provavelmente in-
fluenciaram diretamente os resultados do estudo em questão. Nos pós-testes as
crianças do grupo experimental obtiveram ganhos significativos somente no sub-
teste de fluência na segmentação fonêmica, o que segundo a autora confirma a hi-
pótese de ‘transferência próxima’, que por sua vez, supunha que o desenvolvimento 373
da percepção auditiva, através do aprendizado musical, traria ganhos ao desenvol-
vimento da consciência fonêmica das crianças pequenas. Segundo Gromko (2005),
poderiam ser levantadas três possíveis explicações para esta transferência: (a) os re-
sultados foram obtidos por diferenças metodológicas de ensino nas duas escolas;
(b) o grupo experimental obteve escores baixos no pré-teste e este resultado teria au-
mentado a possibilidade de melhoria nas testagens subsequentes; (c) o efeito Hawt-
horne, que atribui a melhora dos resultados ao aumento da atenção dada por um
adulto às crianças, independentemente do tipo de instrução. Entretanto, segundo
a própria autora, se essas explicações fossem válidas, as crianças do grupo experi-
mental teriam obtido ganhos significativos em todos os sub-testes e não somente no
sub-teste de fluência na segmentação fonêmica (Gromko 2005).
Uma dificuldade encontrada na análise destes resultados diz respeito à possibili-
dade de explicar os dados por diferenças metodológicas empregadas pelas duas es-
colas participantes do estudo. Entretanto, este dado contradiz informações da
própria autora, que sugere que os participantes do estudo tiveram aproximada-
mente o mesmo tempo de instrução em leitura; o mesmo acesso a livros de gravu-
ras, sendo igualmente estimuladas a iniciar a leitura de livros nas salas de aula, além
de ouvir histórias em voz alta narradas pelas professoras; e de receberem instrução
em leitura que enfatizava a fluência na nomeação de letras e sons iniciais. Tal ques-
tão, somada as colocações referentes à diferenças sócio-econômicas das crianças, ex-
plicita a necessidade de atenção no uso destas informações, assim como alerta para
a necessidade da resolução destas situações em estudos futuros.
Crianças canadenses francófonas também participaram de um interessante estudo
sobre o efeito de um programa de ensino de música nas habilidades de consciên-
cia fonológica de crianças de cinco anos (Bolduc 2009). Cento e quatro alunos de
um centro de educação infantil, vindos de seis diferentes classes de professoras ge-
neralistas, participaram de 15 semanas de aulas de música diárias com professores
especialistas. As aulas do grupo experimental (n=51) foram conduzidas seguindo
uma adaptação, para crianças falantes de francês de desenvolvimento típico, do pro-
grama para crianças com necessidades especiais de Standley e Hughes (1997 citado
em Bolduc 2009). O grupo de controle (n=53), por sua vez, participou de aulas de
música que seguiam as orientações do currículo do Ministério da Educação de Que-
bec (2001 citado em Bolduc 2009).
Os grupos foram avaliados com pré e pós testes do Primary Measures of Music Au-
diation (Gordon 1979 citado em Bolduc 2009) e do Phonological Awareness Test
(Armand e Montesinos-Gelet 2001 citado em Bolduc 2009). Os resultados indi-
caram que os dois currículos desenvolvidos auxiliaram no desenvolvimento da per-
cepção melódica e rítmica dos pequenos, não havendo diferença significativa entre
os resultados dos grupos experimental e controle. No que tange a consciência fo-
374 nológica, os alunos engajados na adaptação da proposta de Standley e Hughes ob-
tiveram melhores resultados em relação ao grupo de controle. Tal resultado era
esperado uma vez que, segundo o autor, um dos objetivos desta proposta é aumen-
tar o interesse das crianças na leitura e escrita através de atividades musicais.
Os resultados obtidos por Bolduc (2009) auxiliam na compreensão da importân-
cia da percepção auditiva e da consciência fonológica no desenvolvimento das ha-
bilidades musicais e lingüísticas de crianças pequenas. Além disso, estudos futuros
poderiam seguir sugestões metodológicas traçadas pelo autor, podendo assim con-
tribuir inclusive com os estudos de transferências cognitivas entre contextos. To-
davia, é importante salientar, que as avaliações realizadas por Bolduc (2009)
seguiram procedimentos diferenciados. A avaliação das habilidades musicais foi
realizada em grupos (de três a oito alunos) durante as próprias aulas de música, en-
quanto a avaliação da consciência fonológica foi aferida individualmente, através de
uma atividade realizada no computador. A presente observação é um ponto de im-
portante reflexão, uma vez que combina elementos bastante diferenciados e, é pos-
sível que tenha influenciado os resultados obtidos.

Música e leitura: estudos correlacionais


Os estudos correlacionais permitem que as hipóteses sejam testadas a fim de veri-
ficar a existência de relações entre as variáveis propostas (Henriques et al.,
2004/2005). Assim seria possível avaliar, por exemplo, as habilidades musicais e de
consciência fonológica buscando investigar a correlação existente entre as duas
áreas analisadas. No caso de estabelecimento de correlações, é possível ainda en-
tender qual o sentido e a extensão em que estas se estabelecem, no entanto, é im-
portante frisar que este tipo de investigação não permite que sejam estabelecidas
relações causais entre as variáveis estudadas (Henriques et al., 2004/2005; Berry-
man et al., 2002). Os estudos correlacionais aqui revisados foram realizados com
crianças pequenas turcas, americanas, brasileiras e canadenses, falantes de inglês e
francês.
Anvari et al. (2002) realizou uma pesquisa com crianças de quatro e cinco anos
com o objetivo de verificar se há correlações entre o processamento musical e a
consciência fonológica, e de que modo a consciência fonológica e as habilidades
musicais são encontradas no desenvolvimento da leitura das crianças. Cinqüenta
crianças de quatro anos e 50 crianças de cinco anos matriculadas em creches ou es-
colas canadenses foram submetidas a cinco sessões de testes individuais, que en-
volviam tarefas de consciência fonológica, leitura, vocabulário, música, duração da
memória auditiva, e matemática. Os pesquisadores apontaram o desenvolvimento
da consciência fonológica como um facilitador na aquisição da leitura, sugerindo
também uma ligação entre a leitura e as habilidades de análise auditiva. Esta ligação
seria possível, segundo Anvari et al. (2002), tendo em vista que as crianças que são
hábeis na audição das categorias sonoras individuais de uma palavra também po- 375
deriam ter facilidade na associação desses fonemas com sua representação escrita.
Ainda segundo os autores, algumas habilidades de análise auditiva utilizadas na lin-
guagem – como a combinação ou a segmentação de sons, por exemplo – são simi-
lares às habilidades necessárias à percepção musical. Sendo assim, seria possível
propor a hipótese de que as habilidades de análise auditiva utilizadas na percepção
musical podem também estar associadas ao desenvolvimento da leitura (Anvari et
al. 2002).
Os pesquisadores realizaram uma ampla análise dos dados coletados e verificaram
a existência de correlações significativa entre a música, a consciência fonológica e a
leitura. Por meio da análise de regressão hierárquica foi possível apontar uma rela-
ção direta entre habilidades musicais e leitura a partir dos resultados obtidos pelo
grupo de crianças de quatro anos, mesmo quando a variável da consciência fono-
lógica foi removida. Todavia, no grupo de crianças de cinco anos, as questões rít-
micas não apresentaram relevância significativa e por este motivo, foram apontadas
relações entre a percepção melódica ou de alturas e a leitura. Também foram en-
contrados indícios de que os processos auditivos necessários à percepção musical são
encontrados também nos processos auditivos necessários à consciência fonológica
e à leitura. Os resultados obtidos nos testes de vocabulário e habilidades matemá-
ticas não apresentaram correlação significativa com a música nem com a leitura.
A conclusão mais relevante apontada por Anvari et al. (2002) foi a sugestão do uso
dos mesmos mecanismos auditivos e/ou cognitivos na percepção musical e na cons-
ciência fonológica, mecanismos estes que parecem ser acessados independente-
mente no aprendizado da leitura. Uma possível explicação para isto diz respeito à
habilidade de segmentação, pois, a consciência fonológica requer do ouvinte a ha-
bilidade de segmentar a fala em pequenos componentes sonoros e o reconheci-
mento dessas categorias sonoras entre as variações de altura, tempo e contexto.
Assim como a percepção musical também requer do ouvinte a habilidade para seg-
mentar o ‘fluxo de alturas’ em unidades menores relevantes e para reconhecer va-
riações de altura, tempo e contexto (para outras informações ver Schön, Magne e
Besson 2004; Magne, Schön e Besson 2006).
Os estudos sobre possíveis conexões entre as habilidades de percepção musical e a
consciência fonológica têm se tornado cada vez mais freqüentes, mas ao que tudo
indica Lamb e Gregory (1993 citados em Bolduc 2008) foram pioneiros nesta re-
flexão. Os pesquisadores realizaram um estudo fazendo uso de dois testes de leitura,
um teste de consciência fonológica, um teste original de habilidades musicais (per-
cepção melódica e reconhecimento de timbres) e uma tarefa de controle de habili-
dades não-verbais. Esses testes foram aplicados a 18 pré-escolares falantes de inglês.
As crianças participantes que apresentaram os resultados mais altos na percepção
melódica também demonstraram resultados elevados nos testes de leitura e cons-
376 ciência fonológica. Os autores concluíram que as crianças que alcançaram os mais
altos escores na percepção melódica também foram bem sucedidos na decodifica-
ção e manipulação de diferentes unidades lingüísticas (como rimas, sílabas e fone-
mas), apresentando maior facilidade do que as crianças que tiveram um
desempenho menor nas tarefas de percepção melódica (Lamb e Gregory 1993 ci-
tados por Bolduc 2008).
Seguindo caminhos semelhantes Peynircioglu et al. (2002) realizaram um teste de
aptidão musical para escolher os participantes de dois estudos que investigaram
possíveis correlações entre aptidão musical, consciência fonológica e habilidades
de identificação de pseudopalavras.
No primeiro experimento 61 crianças turcas participaram de um teste de aptidão
musical. Partindo do resultado do teste de aptidão, os autores selecionaram 32
crianças que apresentaram níveis alto ou baixo de aptidão musical para participa-
rem da segunda etapa do estudo, sendo excluídas assim as crianças que obtiveram
um nível médio de aptidão musical. As 32 crianças participantes do primeiro ex-
perimento realizado por Peynircioglu et al. (2002) tinham idade entre quatro e seis
anos, falavam turco, estavam matriculadas em pré-escolas ou creches públicas e pri-
vadas de Istambul e não sabiam ler. Todas as crianças foram submetidas a testes de
consciência fonológica e identificação de pseudopalavras que envolviam tarefas de
subtração de fonemas (iniciais e finais) de palavras e pseudopalavras, além do teste
de aptidão musical que envolveu tarefas de percepção melódica e habilidades rít-
micas, que, por sua vez, incluíram também a subtração de notas iniciais e finais de
trechos melódicos extraídos de canções familiares às crianças.
Os resultados encontrados levaram os autores a afirmar que os participantes que
apresentaram altos escores de aptidão musical também alcançaram os escores mais
elevados nos testes de consciência fonológica. Além disso, o estudo de Peynircioglu
et al. (2002) também contribuiu com informações sobre as características da língua
das crianças, uma vez que os resultados apontaram para questões como a maior fa-
cilidade na subtração de fonemas finais do que fonemas iniciais no turco, assim
como a vantagem na manipulação de vogais frente às consoantes nos fonemas ini-
ciais das palavras do léxico turco (Peynircioglu et al. 2002).
O segundo experimento foi idêntico ao primeiro, entretanto foi realizado com 40
crianças com idade entre três e seis anos, falantes de inglês, que estavam matricula-
das em pré-escolas ou creches públicas e privadas da região de Washington DC nos
EUA e que também não sabiam ler. Os mesmos testes foram aplicados, entretanto
Peynircioglu et al. (2002) inseriram novos excertos melódicos desconhecidos que
foram misturados aos excertos de canções familiares, bem como construíram pseu-
dopalavras tendo em vista os sons das palavras em inglês.
Ao analisar os dados coletados para o segundo experimento, Peynircioglu et al.
(2002) encontraram resultados idênticos àqueles encontrados no primeiro experi-
377
mento, ou seja, as crianças com melhores resultados no teste de aptidão musical
também obtiveram resultados superiores em consciência fonológica e identifica-
ção de pseudopalavras. Entretanto, os autores indicaram que as crianças falantes
de inglês apresentaram maior facilidade para identificar consoantes no início das pa-
lavras do que as crianças turcas (Peynircioglu et al. 2002). A diferença dos resulta-
dos encontrados nos testes de crianças turcas e americanas é possivelmente
explicada pelas diferenças entre os idiomas inglês e turco.
Outro estudo sobre correlações entre a consciência fonológica e as habilidades de
percepção musical (melódicas e rítmicas) foi desenvolvido por Bolduc e Montési-
nos-Gelet (2005 citados em Bolduc 2008) com 13 pré-escolares canadenses de cinco
anos, falantes do francês. Os pesquisadores realizaram testes para avaliar as habili-
dades de percepção musical e consciência fonológica dos participantes e encontra-
ram correlações significativas entre as habilidades de percepção melódica e as tarefas
de identificação de rimas e sílabas. Todavia, não foram encontradas correlações sig-
nificativas entre as habilidades de percepção rítmica e percepção melódica, nem
entre as habilidades de percepção rítmica e consciência fonológica.
A crítica feita por David et al. (2007) ao estudo de Anvari et al. (2002) poderia ser
estendida também ao estudo de Bolduc e Montésinos-Gelet (2005 citado em Bol-
duc 2008), tendo em vista que os autores criticaram a indicação de que o ritmo não
tem correlação com as habilidades de leitura e consciência fonológica em crianças
de cinco anos. Para David et al. (2007) o teste utilizado por Anvari et al.(2002)
priorizava a identificação de letras e não a habilidade de leitura de palavras.
Questionando os resultados de Anvari et al. (2002), um estudo longitudinal in-
vestigou como o ritmo pode predizer a leitura de crianças pequenas, além da cons-
ciência fonológica e a velocidade/rapidez de nomeação (David et al. 2007). A
pesquisa foi desenvolvida com 53 crianças de três escolas diferentes da província
de Ontário, Canadá, que possuíam condições sócio-econômicas similares. Por se
tratar de um estudo longitudinal, as crianças responderam a testes de consciência
fonológica, habilidade de leitura e ritmo durante cinco anos consecutivos, sempre
no outono, período que coincide com início do ano letivo no Canadá. A primeira
sessão de testes foi realizada quando as crianças cursavam a primeira série.
Para David et al. (2007) o ritmo é parte importante da linguagem e pode estar en-
volvido no desenvolvimento da leitura, tendo em vista que, desde o nascimento o
ritmo auxilia na discriminação de línguas, no entendimento da segmentação da fala
em palavras e na comunicação verbal com crianças pequenas, já que elas respon-
dem a uma espécie de ‘comunicação musical’ que é tanto melódica quanto rítmica.
Os testes realizados pelos participantes incluíram tarefas de velocidade/rapidez de
nomeação, consciência fonológica, leitura e ritmo. Por meio dos resultados obti-
dos os autores sugeriram que o ritmo é um elemento importante no desenvolvi-
mento da habilidade da leitura, consciência fonológica e velocidade/rapidez de
378 nomeação não somente na primeira série, mas, em todas as séries subseqüentes. No
entanto, quando a variável da consciência fonológica foi removida, o ritmo per-
maneceu como influência positiva apenas no caso das crianças da quinta série e no
teste de leitura, sub-teste de ataque da palavra. Quando a variável de velocidade/ra-
pidez de nomeação foi controlada foi verificado o poder preditivo do ritmo em re-
lação ao teste de leitura, ao sub-teste de identificação da palavra na segunda e
terceira séries e ao sub-teste de ataque da palavra na segunda, terceira e quinta sé-
ries.
David et al. (2007) concluíram o estudo sugerindo uma relação inédita entre ritmo
e leitura em uma amostra de leitores de desenvolvimento típico, pois, parte da li-
teratura traça esta relação, mas, geralmente em amostras de leitores com alguma di-
ficuldade de aprendizagem. Os autores sugeriram que há evidências de que a
correlação ritmo-leitura é mais significativa em crianças maiores, posto que os re-
sultados mais importantes que demonstraram esta correlação na amostra pesqui-
sada foram encontrados quando as crianças já estavam cursando a quinta série. Os
resultados mais significativos na relação ritmo-leitura apresentados pelas crianças
maiores poderiam ser explicados pelo aumento das dificuldades na leitura, tendo em
vista que, segundo David et al. (2007), as crianças mais novas só conseguem ler pa-
lavras mais simples, entretanto, as crianças mais velhas devem ler palavras mais com-
plexas, com maior variação de métrica e de entoação.
Cabe aqui uma crítica a David et al. (2007) em relação à idéia que o ritmo poderia
predizer a leitura de maneira mais efetiva nas crianças maiores. Ora, se os autores
criticaram os resultados encontrados por Anvari et al. (2002) que não encontra-
ram correlações entre o ritmo e as habilidades de leitura e consciência fonológica
em crianças de cinco anos, resultado também encontrado por Bolduc e Montésinos-
Gelet (2005 citado em Bolduc 2008), os autores deveriam ter encontrado tal cor-
relação em sua pesquisa. Tendo em vista a conclusão de que o ritmo é um preditor
mais efetivo da leitura quando as crianças são maiores (quinta série, aproximada-
mente 11 anos de idade) e, também avaliando a faixa etária das crianças partici-
pantes do estudo de David et al. (2007), que não eram pré-escolares de cinco anos,
mas alunos da primeira série do ensino fundamental, parece que o argumento de crí-
tica à Anvari et al. (2002) que sustenta a pesquisa de David et al. (2007) não é assim
tão sólido.
Um estudo realizado com crianças brasileiras pode corroborar a sugestão de Anvari
et al. (2002) e Bolduc e Montésinos-Gelet (2005 citado em Bolduc 2008) quanto
à ausência de correlação significativa entre o ritmo e a consciência fonológica. Pa-
checo (2009) desenvolveu um estudo com o objetivo de verificar se há correlação
significativa entre as habilidades musicais e a consciência fonológica em crianças
pequenas, replicando parcialmente o estudo de Anvari et al. (2002). Participaram
da pesquisa 40 crianças de quatro e cinco anos da cidade de Curitiba (PR), alunos
de um centro municipal de educação infantil que não participavam de aulas regu- 379
lares de música e tinham desenvolvimento típico. Duas sessões de testes individuais
foram realizadas para avaliar o desenvolvimento das habilidades musicais (tarefas
de percepção e produção de materiais rítmicos e melódicos) e da consciência fo-
nológica (tarefas de identificação de rimas; identificação de sílaba inicial, medial e
final diferente; identificação de sílaba, ataque e fonema inicial diferente; e síntese
silábica e de ataque/rima).
Os resultados do estudo de Pacheco (2009) sugerem a existência de correlação sig-
nificativa entre as habilidades musicais e a consciência fonológica das crianças bra-
sileiras de quatro e cinco anos estudadas. As habilidades musicais foram
segmentadas nas sub-habilidades percepção musical, produção rítmica e produção
melódica e foram analisadas em relação à consciência fonológica e entre elas mes-
mas. Correlações significativas foram estabelecidas entre todas as variáveis musi-
cais e a consciência fonológica, exceto entre a produção rítmica e a consciência
fonológica, resultado este que corrobora parte dos resultados de Anvari (2002) e
Bolduc e Montésinos-Gelet (2005 citado em Bolduc 2008).
A correlação encontrada entre a consciência fonológica e as habilidades musicais
levou a autora a especular sobre a possibilidade de haver transferência cognitiva
entre os domínios da música e da linguagem. Apontando assim que a correlação
encontrada entre as habilidades musicais e a consciência fonológica pode estar di-
retamente ligada a transferências cognitivas entre os dois domínios. Isso faz sen-
tido se pensarmos que a música e a linguagem possuem algumas características em
comum como organização temporal (McMullen e Saffran 2004), altura, ritmo, me-
lodia e, em alguns casos, prosódia (Medeiros 2006).
De maneira geral, o trabalho de Pacheco (2009) confirmou resultados de estudos
anteriores (Anvari et al. 2002; Lamb & Gregory 1993; Bolduc 2008; David et al
2007; Peynircioglu et al. 2002), isto é, a existência de correlação significativa entre
a consciência fonológica e as habilidades musicais. Todavia a tomada dos dados to-
tais relativos à percepção musical, sem seu desmembramento em percepção meló-
dica e rítmica, além do tamanho da amostra são limitações da pesquisa que merecem
ser levadas em consideração em estudos futuros.

Implicações e possibilidades futuras


A revisão proposta no presente trabalho objetivou, fundamentalmente, expor a co-
munidade brasileira interessada nos estudos da mente musical em contexto (Ilari
2009) alguns importantes estudos realizados em diferentes regiões sobre o desen-
volvimento musical e a aquisição da leitura e escrita em crianças pequenas. É im-
portante lembrar, que as crianças brasileiras ainda não receberam a atenção devida
no que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades musicais. O mesmo não
380 pode ser tido sobre a aquisição da leitura e da escrita, uma vez que diversos estu-
diosos vêem trabalhando sob esta temática há alguns anos (Cardoso-Martins 1995,
Barreira 2003, Barreira e Maluf 2003, Guimarães 2003a, Guimarães 2003b, Gui-
marães 2001). Entretanto, a preocupação com as possíveis interseções entre as áreas
ainda é pequena, seja para encontrar correlações e suas explicações, ou para inves-
tigar sobre as transferências de habilidades cognitivas entre contextos.
Tendo em vista tais questões parece óbvio dizer que há muito ainda por fazer. As
áreas da educação musical e da cognição em música ainda necessitam de alto in-
vestimento em pesquisa para que seja possível compreender o desenvolvimento de
crianças brasileiras. Pensando precisamente na música e na aquisição da leitura e da
escrita, novos estudos correlacionais, de intervenção pedagógica e, por quê não, to-
mando o desenvolvimento longitudinalmente, poderão verificar se os resultados
obtidos com amostras de outras regiões também se aplicam as nossas crianças. Além
disso, tais estudos poderão fornecer exemplos culturalmente válidos para alicerçar
tanto nossas práticas musicais com as crianças, quanto nossa nova área que cresce
e trabalha para divulgar os estudos brasileiros sobre a mente musical e suas relações.

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A Experiência Incorporada: Corpo e Cognição Musical
Wânia Mara Agostini Storolli
waniastorolli@usp.br
Universidade de São Paulo 383

Resumo
Este estudo propõe repensar o corpo a partir de teorias e investigações contemporâ-
neas, especificamente provenientes das Ciências Cognitivas, e refletir sobre as possíveis
consequências que estes conhecimentos podem gerar para a prática musical, tendo
como subsídio pesquisa concluída sobre o papel do corpo na criação musical. Propõe-
se rever noções que se tornaram usuais na nossa sociedade, e muitas vezes na prática
musical, que são a de corpo “instrumento”, passível de ser treinado para se obter certos
resultados, e a de “recipiente”, onde entram conhecimentos e informações a serem ar-
mazenadas e reproduzidas. Embora a prática musical dispense alguma atenção ao corpo,
nem sempre se ultrapassa o sentido de treinamento realizado com o objetivo de de-
senvolver habilidades para o domínio de um instrumento ou de determinado código mu-
sical. Acredita-se porém que o corpo seja mais que mero instrumento para a prática
musical. Considerando inicialmente a concepção de separação corpo-mente, ainda pre-
sente em muitas instâncias da nossa cultura, examina-se o conceito de embodied mind
(“mente incorporada”) apresentado por Varela, Thompson e Rosch, assim como por La-
koff e Johnson, que surge como alternativa para os dualismos corpo-mente e interno
versus externo. Com base neste conceito, no conhecimento de que os processos cog-
nitivos organizam-se principalmente a partir do nosso sistema sensório-motor, examina-
se a relação entre movimento e cognição musical e identifica-se a necessidade de
aprimoramento da consciência corporal para a prática musical, apontando-se para a im-
portância de processos de experimentação gerados pela atuação do corpo. Conclui-se
que o corpo não é “instrumento” a ser treinado para determinados fins, nem “recipiente”,
onde são armazenadas informações, mas sim é o local e o agente do processo de co-
nhecimento, provocando transformações nele e ao redor a partir de sua atuação. Atra-
vés de sua ação a experiência musical é gerada, passando a fazer parte dele – a
experiência incorporada.
Palavras chave
Movimento, experiência incorporada, prática musical

Introdução: Da relação entre corpo e música


A relação do corpo com a música remete-se provavelmente à própria gênese desta,
sendo anterior a códigos, sistemas e treinamentos. Não é difícil imaginar a mani-
festação musical sendo gerada pelo corpo através de sons e movimentos como parte
integrante das primeiras performances e rituais humanos. Poder gerar um processo
criativo a partir de sua ação e transformar a si próprio em sons no decorrer deste
processo, parece ser uma possibilidade do corpo, indicando que ele, além de ser o
agente responsável pela realização musical, pode ser também o local do processo de
criação. Esta forma de atuação, entre inúmeras possibilidades do corpo, revela não
somente sua importância para a prática musical, mas também sua potencialidade de
se desenvolver de uma forma criativa. A crença de que nele reside uma potenciali-
384 dade maior, é uma das idéias que movem o presente estudo, despertando a neces-
sidade de se examinar melhor como o corpo funciona. Além disso, percepção e
conhecimento musical também são processados no corpo e através dele, portanto
conhecer como ele atua parece ser uma questão fundamental para o entendimento
e prática da música.
Falar do corpo implica em discutir primeiramente de que corpo se fala. O conceito
de corpo, como são seus processos e sua forma de atuação são noções que dependem
do momento histórico. Ao rever estes conceitos e repensar como são os processos
do corpo a partir de teorias e investigações contemporâneas, este estudo pretende
avaliar as possíveis consequências dos novos conhecimentos para a prática musical.
Considerando as concepções mais atuais, propõe também rever noções que ainda
sobrevivem na prática musical, como por exemplo, a de corpo “instrumento”, que
deve ser treinado para atingir determinados resultados, e a de corpo “recipiente”,
questionando-se a noção de que a mente opera como um aparato input-output,
onde entram e são armazenadas informações para serem posteriormente reprodu-
zidas.
Além de fundamentar-se no conceito de embodied mind, este estudo examina ques-
tões que surgiram no decorrer de uma pesquisa sobre a performance do corpo na
criação musical. A experimentação prática, realizada como parte desta pesquisa, in-
vestigou algumas possibilidades de criação com o corpo, envolvendo especifica-
mente movimento, respiração e canto, o que gerou diversas questões sobre a
natureza do corpo e seu funcionamento no contexto da prática musical, que servem
como subsídio para a reflexão aqui proposta.

A investigação do corpo: revendo conceitos


Investigado exaustivamente em processos onde por vezes pesquisa estética e prá-
tica pedagógica se fundem, o corpo ganha maior relevância como foco de estudo so-
bretudo a partir de meados do século XIX. Sem nunca ter deixado de despertar o
interesse de artistas, filósofos e cientistas mesmo em períodos anteriores a este, é
durante o século XX que o entendimento sobre o corpo e seus processos passa por
mudanças significativas. Numa tendência mais atual, o intercâmbio entre as diver-
sas áreas de conhecimento tem gerado novas teorias e novos conceitos.
No âmbito das investigações teóricas, a preocupação com o corpo conduz a uma re-
visão de teorias e concepções, que até então eram dominantes. Greiner observa que,
principalmente a partir do século XX, passa a existir uma mudança sobre o enten-
dimento e os modos de descrição do corpo (Greiner 2005, 15). Uma quantia sig-
nificativa de publicações passam a se dedicar ao assunto. Longe de soluções defini-
tivas, os trabalhos retomam e recolocam questões inevitáveis (Fleig 2000, 9).
Sobretudo a partir das décadas de 80 e 90, a pesquisa que relaciona diversos cam-
pos de conhecimento estabelece-se como uma tendência, envolvendo disciplinas 385
distintas. As Ciências Cognitivas, a Neurociência, a Filosofia, a Teoria da Arte e a
Semiótica, são exemplos de disciplinas, que passam a se ocupar do estudo do corpo,
propondo concepções em consonância com as experimentações científicas con-
temporâneas. As novas teorias abrem caminhos e possibilidades diferenciadas para
o estudo das manifestações em que o corpo é um elemento fundamental. Entre elas,
as atividades artísticas performáticas, como a música, podem ser examinadas por
um viés diferenciado de acordo com as noções de corpo da atualidade.
Embora longe da unanimidade, o processo de mudança teórica pode representar
uma oportunidade para os que se dedicam à arte musical de rever idéias e práticas,
já que as propostas, ao trazerem novas concepções do corpo, também auxiliam na
compreensão do nosso processo cognitivo. A reflexão sobre os novos conceitos pode
ter como consequência alterações na metodologia do ensino musical ou então cons-
tatar e validar sua adequação.
Muitos dos estudos contemporâneos concentram-se em perceber o corpo através
de seu agir, de sua atuação no mundo, propondo alternativas para as dicotomias
até então predominantes, tais como as clássicas divisões corpo-mente, razão-emo-
ção, etc. Para compreendermos a importância da transformação que vem ocorrendo
nos conceitos sobre o corpo e no entendimento de como ocorrem os processos cog-
nitivos é interessante observar como estes conceitos eram até então. A idéia de que
existe um mundo objetivo e uma Razão Universal independente das mentes e cor-
pos dos seres humanos predominou durante séculos, constituindo um dos funda-
mentos do pensamento ocidental tradicional, herança que ainda pode ser percebida
na atualidade. Dessa forma, nessa tradição a Razão Humana foi por muito tempo
considerada como um processo independente do corpo. Embora tendo lugar no
cérebro, sua estrutura seria definida pela Razão Universal e a habilidade de fazer
uso desta Razão Universal seria o que diferencia os seres humanos dos animais. Se
a razão humana havia sido considerada independente do corpo, significava então
que era separada e independente de todas as capacidades corporais, tais como a per-
cepção, o movimento do corpo, os sentimentos e as emoções.
Segundo Ferracini, “apesar de esse pensamento de divisão retroceder até os gregos,
foi com Descartes, no século XVI, com seu cogito ergo sum que a divisão corpo e
alma, e o desprezo pelo corpo empírico, alcança uma base quase científica, numa se-
paração radical” (Ferracini 2006, 113). Descartes buscava na verdade “um cami-
nho fora da lógica aristotélica e da teologia católica que dominavam seu tempo”
(Greiner e Katz 2001, 78), pretendendo estabelecer uma aproximação entre a cog-
nição e as ciências matemáticas, consideradas domínios de precisão. Para Descartes,
a cognição era apenas dependente dela mesma, existindo uma essência humana, que
“se localiza na mente (ou alma, ou espírito) separada do corpo” (Greiner e Katz 2001,
79). Sendo assim, existiam duas substâncias autônomas: a alma, sede do pensamento
386 (res cogitans) e o corpo, o invólucro, que podia ser descrito através de modelos me-
cânicos (res extensa).
Descartes cria um corpo mecanicista como substância outra em relação à alma,
gerando, assim, toda uma concepção do corpo enquanto conjunto organizado
de peças. Como consequência desse pensamento, o corpo passa a ser uma natu-
reza mecanizada que pode ser controlada, dissecada. De certa forma, percebemos
ecos dessa imagem-pensamento do corpo máquina até hoje em vários ramos do
conhecimento. (Ferracini 2006, 114)
O conceito de separação entre corpo e mente, como observou Ferracini, faz-se ainda
sentir nos dias atuais e marca não só os estudos científicos, mas impregna outras
instâncias da cultura. Quase não nos damos conta da enorme influência que este
conceito exerce sobre nosso dia-a-dia, na educação ou nas artes. O corpo foi trans-
formado em objeto e “suas verdades passaram a depender de ciências capazes de
desvendá-lo, enquanto a mente (res cogitans), apoiada no critério das idéias claras
e distintas, apresentava-se como auto-evidente” (Greiner e Katz 2001, 80). Esta
concepção, mesmo que refutada por alguns pensadores, entre os quais, Baruch Es-
pinosa (1632-1677) e Friedrich Nietzsche (1844-1900), representou um forte fun-
damento de toda a cultura ocidental. Apenas a partir do século XX este conceito
começa a ser sistematicamente contestado por outras propostas, tais como, por
exemplo, pela fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938) e pelo filósofo
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e sua concepção de corpo como estrutura fí-
sica e vivida ao mesmo tempo, o que “significou um reconhecimento importante do
fluxo de infomação entre o interior e o exterior, entre informações biológicas e fe-
nomenológicas, compreendendo que não se tratavam de aspectos opostos” (Grei-
ner 2005, 23).
Falar sobre estudos contemporâneos que apresentam novos conceitos sobre o corpo,
é necessariamente realizar um recorte de um panorama mais amplo. As escolhas
aqui realizadas refletem o desejo de se encontrar conceitos que evitem os dualis-
mos e ao mesmo tempo revelem a importância do aspecto da atuação do ser hu-
mano, fundamental para a manifestação musical. Além de apresentar novos
conceitos, as propostas originam-se a partir do trânsito entre diversas áreas de co-
nhecimento, caracterizando-se por ultrapassar as fronteiras entre as disciplinas en-
volvidas. As Ciências Cognitivas são um exemplo de área que apresenta um enfoque
multidisciplinar. Com a intenção de estudar a mente e seu funcionamento surge na
década de 50, abrangendo conhecimentos da Linguística, da Psicologia Cognitiva,
da Neurociência, da Física, da Biologia e da Filosofia. Nas últimas décadas do século
XX, pesquisas empíricas desenvolvidas nesta área científica passaram a contestar o
conceito de separação entre mente e corpo com base nas suas experimentações.
Com o cruzamento de informações provenientes de diversas áreas do conheci-
mento, surge a noção de que não há limites absolutos entre o interno e o externo.
Existindo uma relação permanente entre meio e corpo, ambos se ajustam constan-
temente, num fluxo de transformações e mudanças, sendo que os processos de co- 387
nhecimento resultam dessa interação e a cognição começa a ser vista como
incorporada.

A Mente Incorporada
Uma proposta que revoluciona a concepção de corpo e cognição traz como funda-
mento o conceito de embodied mind,1 “mente incorporada”, apresentado por Fran-
cisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch num estudo de 1991,
The embodied mind: cognitive science and human experience.2 A partir da interação
entre Ciências Cognitivas e experiência humana, a obra promove um diálogo com
as tradições budistas e a Filosofia. Tendo como inspiração inicial a filosofia de Mer-
leau-Ponty, “um dos poucos cujo trabalho se comprometeu com uma exploração de
entre-deux fundamental entre a ciência e a experiência, a experiência e o mundo”
(Varela et al. 2003, 33), os autores procuram na tradição budista uma forma de exa-
minar a experiência humana não apenas de forma reflexiva, mas que também inclua
os aspectos vividos e imediatos. Neste trabalho questionam a noção de que a mente
opera como um aparato input-output, afirmando que a mente não opera como um
recipiente, mas como uma rede emergente e autônoma. Apresentam também a pro-
posta de “ação incorporada”, que objetiva superar a questão do interno versus ex-
terno. O termo “incorporada” refere-se ao fato de que a cognição depende das
experiências do corpo a partir de suas capacidades sensório-motoras, ocorrendo no
âmbito de “um contexto biológico, psicológico e cultural mais abrangente” (Varela
et al. 2003, 177). O termo “ação” enfatiza os processos sensoriais e motores, já que,
segundo os autores, a percepção e a ação são inseparáveis na cognição vivida.
O conceito de “mente incorporada” também fundamenta o trabalho de George
Lakoff e Mark Johnson, Philosophy in the flesh: The embodied Mind and its Chal-
lenge to Western Thought. Neste estudo de 1999, os autores propõem um diálogo
entre a Filosofia e as Ciências Cognitivas e contestam a concepção tradicional pre-
dominante no ocidente de que existe uma razão “desincorporada”, separada das
habilidades do corpo, tais como, percepção, movimento, sentimentos, emoções, etc.
Para estes autores, o sistema conceitual dos seres humanos fundamenta-se em seu
sistema sensório-motor. “Só podemos formar conceitos através do corpo” (Lakoff
e Johnson 1999, 555). Dessa forma a razão também é “incorporada”. Como, tanto
os conceitos quanto a razão derivam e fazem uso do sistema sensório-motor, a
mente não pode ser separada nem independente do corpo. Conclui-se então que os
processos cognitivos resultam da ação deste corpo no mundo. Assim, a “cognição,
longe de ser uma representação de um mundo pré-existente, seria o conjunto de
um mundo e de uma mente a partir da história de diversas ações que caracterizariam
um ser no mundo” (Greiner 2005, 35), daí a estreita interdependência entre co-
nhecimento e experiência. Tudo se constrói a partir de nossa ação no mundo e
“cada experiência é uma experiência incorporada” (Lakoff e Johnson 1999, 562).
388
Com esta nova orientação científica compreende-se que a cognição está totalmente
interligada aos processos corporais, sendo o movimento do corpo concebido como
um dos fatores fundamentais para os processos mentais. Lakoff e Johnson salien-
tam que “os mesmos mecanismos neurais e cognitivos que nos permitem perceber
e mover são os que criam nossos sistemas conceituais e modos da razão” (Greiner
2005, 45). Para Lakoff e Johnson “o nascimento do pensamento está sempre no
movimento e no acionamento do nosso sistema sensório-motor”. E o neurocien-
tista Rodolfo Llinás vai mais além afirmando que até “o pensamento é um movi-
mento interiorizado” e que “a mente é produto de diversos processos evolutivos
que ocorrem no cérebro, mas apenas das criaturas que se movem” 3 (Greiner 2005,
65). Ou seja, o movimento parece ser fundamental para a construção dos proces-
sos mentais e a mente um privilégio dos seres que se movem.

O corpo em ação: nem instrumento, nem recipiente


Os conceitos acima apresentados conduzem necessariamente a uma mudança de
postura em relação ao corpo e ao papel que este desempenha no processo de apren-
dizagem. No caso da prática musical, o corpo não pode ser visto como mero ins-
trumento, algo que pode ser treinado de forma mecânica através de exercícios
repetitivos. Tampouco pode ser visto como um recipiente. Segundo Greiner, o
corpo “não é um lugar onde as informações que vêm do mundo são processadas
para serem depois devolvidas ao mundo”, ou seja, não “é um recipiente, mas sim
aquilo que se apronta nesse processo co-evolutivo de trocas com o ambiente” (Grei-
ner 2005, 130). Nem instrumento, nem recipiente, o corpo estabelece-se enquanto
um sistema complexo e múltiplo, em constante transformação. Esta informação
gera como principal consequência para o ensino e a prática musical, a postura de não
se fazer do corpo apenas um mecanismo para se atingir determinados resultados.
Ora, o corpo não pode ser nosso ‘instrumento’ ou ‘ferramenta’ de trabalho, pois
quando falamos em ‘instrumento’ ou ‘ferramenta’ subentendemos sua mani-
pulação por algo supostamente superior, ou mais adestrado, ou mais treinado,
que saiba manipular e usar esse instrumento. Acabamos incorporando a dico-
tomia e a hierarquização no qual a mente controla o corpo, o usa como ferra-
menta de trabalho. Usando o corpo como mera ferramenta, aprovamos e damos
aval a essa dicotomia. (Ferracini 2006, 113)
O conceito de “mente incorporada” compreende o corpo como um sistema em per-
manente construção, sem separação nem hierarquia entre mente, espírito e corpo.
A incorporação das informações do meio ambiente ocorre através de um processo
em que o corpo também se transforma. O corpo passa a ser compreendido como o
local e agente do processo de conhecimento, provocando transformações nele pró-
prio e ao redor a partir de sua atuação. A ação do corpo no mundo é, portanto, fun-
damental, pois é a forma como o transforma e como é por ele transformado. Pode-se
dizer portanto, que é através de sua ação que o corpo realiza processos de aprendi- 389
zagem e desta forma incorpora o conhecimento, ou seja, este passa a fazer parte do
corpo. Considerando esta questão no âmbito do processo de cognição musical, en-
tende-se que o ambiente para que este processo ocorra deve ser instaurado pela pró-
pria ação do corpo. E a ação do corpo no mundo ocorre primordialmente através
do movimento. Portanto, estimular práticas que privilegiem a ação do corpo e que
trabalhem a partir do movimento parece ser uma atitude adequada para viabilizar
o processo de cognição musical de uma forma criativa e que esteja em consonância
com o conceito de “mente incorporada”.

Movimento e Cognição: precursores na área artística


O movimento tem ocupado cientistas de diversas áreas nos dias atuais, chegando-
se à conclusão, como colocam Greiner e Katz em A natureza cultural do corpo, de
que certas habilidades motoras são inseparáveis de competências como as de racio-
cinar, de emocionar-se ou mesmo de desenvolver uma linguagem (Greiner e Katz
2001, 85). Ele também é tema de investigação na área artística, merecendo atenção
especial desde meados do século XIX. Como o movimento passa a ser considerado
fundamental para os processos cognitivos, compreender como ele se aloja no corpo
e descobrir como “se especializa a ponto de se transformar em representação teatral,
gesto musical, dança, acrobacia, performance, música, ou seja, nas suas ações no
mundo na forma de arte” (Greiner e Katz 2001, 94) parece ser de fundamental im-
portância, especialmente para as práticas artísticas performáticas.
O movimento, como tema de pesquisa, foi abordado e investigado em alguns tra-
balhos pioneiros na área artística. Um exemplo é o sistema desenvolvido por Fran-
çois Delsarte (1811-1871), que investigou as relações entre movimento do corpo e
estados internos, conectando movimento e expressividade. Especificamente na área
musical, um dos pioneiros foi o compositor e pedagogo suiço Èmile-Jaques Dal-
croze (1865-1950), que havia tido aulas com Delsarte. Dalcroze investigou a im-
portância do corpo no processo de musicalização e as relações entre movimento e
percepção musical. A clareza da percepção intelectual seria, segundo Dalcroze, pro-
duto da perfeição dos meios físicos (Spector 1990, 117). Outro grande pesquisador
do movimento foi o bailarino e coreógrafo Rudolf Laban (1879-1958). No seu tra-
balho sofreu influência tanto de François Delsarte como de Èmile Jaques-Dalcroze.
Suas idéias são de grande relevância, especialmente porque decorrem de uma in-
vestigação prática sistemática que procura identificar como surgem os movimentos.
Entre outras propostas, Laban desenvolve a integração entre dança, som e palavra
(Tanz-Ton-Wort). Na concepção de Laban, há o espaço em geral e aquele que cir-
cunda o corpo, que o envolve. Laban “construiu um sistema expressivo que pro-
voca uma inversão: não é mais somente o espaço que contém o corpo e o define,
mas também o corpo passa a construir e definir o espaço” (Bonfitto 2002, 54).
390 Sendo assim, no aspecto da relação entre corpo e meio o sistema de Laban parece
estar em consonância com o conceito de um sistema integrado. A geração da ação
resulta da relação entre corpo e espaço e o corpo é também um dos responsáveis
por gerar esta ação. As idéias de Laban permanecem como fundamentos impor-
tantes para os processos criativos que envolvem o corpo e para as artes performáti-
cas em geral. Outro trabalho precursor foi o desenvolvido pela pedagoga musical
Gertrud Grunow entre 1919 e 1924. Grunow estudou a relações específicas entre
som e movimento, desenvolvendo sua experimentação em conexão à sua atividade
pedagógica na Escola Bauhaus, na Alemanha (Schoon 2006, 45).
Estas pesquisas constituem-se em eventos precursores de futuras experimentações
nas artes e especificamente na música. Elas demonstram a importância do corpo,
de seu movimento, para os processos de criação artística, privilegiando a ação do
corpo como base para a construção de conhecimento, antecedendo de certa forma
alguns conceitos teóricos da atualidade.

Conclusões
De um modo geral, ao se trabalhar a partir do movimento, estimulando a investi-
gação da natureza deste através de um processo de experimentação e improvisação,
por exemplo, estimula-se também o conhecimento do corpo. A tendência é que
haja um aprimoramento da percepção corporal, maior consciência dos processos
corporais, o que é desejável para toda prática artística performática e especifica-
mente para a música. Tendo como centro da investigação o movimento, o indiví-
duo pode construir seu espaço de aprendizagem a partir de sua própria ação,
incorporando a experiência realizada, ou seja, o conhecimento. Lembre-se aqui que
este resulta exatamente da interação entre corpo e meio. Trabalhar a partir do mo-
vimento e desenvolver a percepção corporal parecem ser princípios metodológicos
adequados, quando se sabe que o nosso sistema sensório-motor é o responsável
pelos processos cognitivos, uma das primeiras conclusões práticas que se pode tirar
quando se considera a teoria apresentada.
Os sons que podemos produzir com o corpo, incluindo aqui a voz, também são
movimentos. Investigar estes movimentos significa também explorar as diversas
possibilidades da voz. Os processos de experimentação, criação e improvisação são
fundamentais, pois além de permitirem o conhecimento do som, inclusive antes
de qualquer sistema ou código específico, ocorrem a partir da atuação do corpo.
Estas estratégias têm ainda como vantagem o fato de poderem eventualmente se
realizar como um processo coletivo, o que é enriquecedor por permitir uma cons-
tante interação entre os participantes.
Os atos de criar e de improvisar estão na raiz do fazer musical e são fundamentais
para o processo de cognição. Explorar a potencialidade da voz e do movimento são
estratégias que permitem o conhecimento do corpo e o exercício da possibilidade
391
de criar. Os processos de experimentação fazem parte da própria história da música,
um aspecto que foi retomado principalmente a partir da segunda metade do século
XX, estimulado pela atuação de compositores como John Cage, entre outros. Pos-
teriormente, compositores-performers, tais como Meredith Monk, passam a ex-
plorar o movimento do corpo e sua relação com a improvisação vocal, em ações
capazes de gerar suas criações e performances musicais. Ou seja, estas estratégias
são pertinentes ao fazer musical e podem também operar como formas que viabi-
lizam o conhecimento musical, que podem e devem estar presentes no processo de
aprendizagem.
A importância das experiências do corpo para os processos cognitivos gera como
consequência a necessidade de práticas que estejam em consonância com os co-
nhecimentos atuais sobre o corpo. Conclui-se que o trabalho com o corpo é um re-
quisito básico e deve estar presente na situação do ensino e da prática musical.
Também é importante pensar o corpo na sua potencialidade total, estimulando sua
ação, seus processos de interação com o entorno e sua capacidade de gerar proces-
sos de criação. Se a percepção e a ação são inseparáveis na cognição vivida, como
visto neste estudo, parece ser fundamental desenvolver métodos para aprimorar a
consciência corporal, formas de estimular o conhecimento do próprio corpo, a des-
coberta da voz e do movimento, assim como suas potencialidades criativas. Acima
de tudo, criar condições para uma vivência musical que se organize a partir de uma
atuação criativa, possibilitando assim a construção do conhecimento como uma
experiência incorporada.

1 De difícil tradução para o português, o termo tem aparecido como mente “encarnada”,“cor-
porificada” ou “incorporada”. Adoto aqui este último termo, utilizado na tradução para o
português, em 2003, da obra de Varela, Thompson e Rosch, The Embodied Mind: cognitive
science and human experience.
2 Greiner observa que em 1965 o neuropsiquiatra Warren McCulloch já havia publicado
Embodiments of Mind, embora com um enfoque diferente do de Varela, Thompson e Rosch
(Greiner 2005, 35).
3 Na verdade a preocupação com o movimento é bem antiga, já estando presente em escri-
tos de Platão e Aristóteles.Vale observar aqui a título de curiosidade que Platão, por exem-
plo, “afirmava que todo corpo que tem uma fonte externa de movimento não tem alma, mas
o corpo que deriva o seu movimento de uma fonte interna é animado, ou seja, vivo” (Grei-
ner 2005, 57).
Referências Bibliográficas
Bonfitto, Matteo. 2002. O Ator Compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislávski a Barba.
São Paulo: Perspectiva.
392
Ferracini, Renato. 2005. Café com Queijo: Corpos em Criação. São Paulo: Hucitec.
Fleig, Anne. 2000. “Körper-Inszenierungen”: Begriff, Geschichte, kulturelle Praxis. In Kör-
per-Inszenierungen: Präsenz und kultureller Wandel. Ed. Erika Fischer-Lichte e Anne
Fleig, 7-17. Tübingen: Attempto.
Greiner, Christine e Helena Katz. 2001. “A natureza cultural do corpo”. In Lições de Dança
3. Org. Roberto Pereira e Silvia Soter, 77-102. Rio de Janeiro: UniverCidade.
Greiner, Christine. 2005. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares.São Paulo:Annablume.
Lakoff, Georg e Mark Johnson. 1999. Philosophy in the Flesh: the embodied mind and its chal-
lenge to western thought. New York: Basic Books.
Schoon, Andi. 2006. Die Ordnung der Klänge: Das Wechselspiel der Künste vom Bauhaus
zum Black Mountain College. Bielefeld: Transcript.
Spector, Irwin. 1990. Rhythm and Life: The work of Emile Jaques-Dalcroze. Stuyvesant, NY:
Pendragon Press.
Varela, Francisco, Evan Thompson, Eleanor Rosch. 2003. A Mente Incorporada:Ciências
Cognitivas e Experiência Humana. Porto Alegre: Artmed.
Cognição musical, especialização cerebral e o
desenvolvimento da independência e coordenação motoras
Antenor Ferreira Corrêa
393
antenorfc@unb.br
Departamento de Música da Universidade de Brasília (UnB)

Resumo
Neste ensaio desenvolve-se a hipótese da possibilidade de se realizar tarefas coordena-
das entre os dois hemisférios cerebrais. Vale-se da junção entre domínios das ciências
cognitivas (especialmente a cognição musical e a matemática) como processo para a
execução de tarefas com objetivo de lograr o desenvolvimento da coordenação e in-
dependência motoras em músicos e não músicos. Nesse meandro, o fazer musical atuará
enquanto fornecedor da recompensa emocional, agindo como elemento motivador da
aprendizagem. Este estudo encampa, também, aspectos da etnomusicologia, de onde são
extraídas estruturas rítmicas dos gêneros musicais tradicionais com intuito metodológico
de viabilizar a transição de elementos conhecidos para aqueles ignorados.
Palavras-chave
Ciências cognitivas, coordenação motora, independência motora.

Introdução
No presente ensaio objetiva-se demonstrar, à guisa de hipótese, maneiras de de-
senvolvimento cerebral por meio de realização de exercícios coordenados entre os
membros do corpo, intermediados por estruturas rítmicas musicais, e operações
matemáticas simples. Entende-se que as atividades ora propostas demandem a in-
tegração de ambos os hemisférios cerebrais durante a realização das referidas tare-
fas.
Este estudo é, antes de tudo, uma proposta interdisciplinar, envolvendo ciências
cognitivas (especialmente aquelas dedicadas ao campo da cognição musical), arit-
mética e, em certo sentido, a etnomusicologia. Acredita-se que a associação entre et-
nomusicologia e cognição musical (ramo de estudos cujos objetos de estudo
geralmente não tem como prioritárias as preocupações de ordem etnomusicológi-
cas) possa promover resultados frutíferos no que concerne ao desenvolvimento de
habilidades ligadas à psicomotricidade e de independência e coordenação motoras.
Para tanto, a etnomusicologia atua como fornecedora de padrões rítmicos caracte-
rísticos de gêneros musicais populares, mais próximos da realidade dos não-músi-
cos ou de músicos não possuidores de instrução acadêmica formal. Espera-se, com
isso, ancorar-se na metodologia que visa atingir os objetivos propostos operando por
meio da transição gradual daquilo que é conhecido para o ainda desconhecido. Os
aspectos ligados às ciências cognitivas fundamentam-se, principalmente, no en-
tendimento da especialização cerebral, ou seja, na existência de dois hemisférios ce-
rebrais possuidores de atributos diferenciais em acordo com as tarefas que executam,
embora estejam sempre passíveis a reconfigurações neurais.
Perseguindo esse objetivo parte-se, então, dos seguintes pressupostos:
394
1. As atividades cognitivas podem ser estimuladas por meio de recompensas emo-
cionais. Envolve, portanto, o campo somático do processo epistemológico e
cognitivo, no qual a lógica da aquisição e armazenagem de informações é me-
diada por componentes motivacionais (Cf: Roederer, 2002, p.262).
2. Há a diferenciação no processamento de informações entre os dois hemisfé-
rios cerebrais, ficando cada um desses hemisférios responsável por trabalhar
distintos conteúdos; no entanto, esses processos estão permanentemente su-
jeitos a reconfigurações neurais. Assim, admite-se que processamentos de in-
formações seqüenciais e ligadas a análises e cálculos em geral sejam realizados
pelo hemisfério dominante (hemisfério esquerdo na maior parte da população
mundial, cerca de 97% das pessoas). O hemisfério menor, por sua vez, “se de-
finiu como mais adaptado à percepção das relações holísticas, globais e sintéti-
cas” (Roederer, 2002, p.269).
3. Os processos da tradição oral de aprendizagem musical (mais próprios da cha-
mada música popular ou folclórica) podem ser transportados para outros do-
mínios do conhecimento.
Em posse desses pressupostos, julgo possível executar tarefas (exercícios) que inte-
grem música e cognição. O fazer musical, nesse meandro, fornecerá a recompensa
emocional, agindo, então, como elemento motivador no processo de aprendiza-
gem. Esses exercícios, embora se configurem como atividades musicais, visam a de-
senvolver a psicomotricidade, pois são direcionados ao aperfeiçoamento da
independência e coordenação motoras. A parte advinda da etnomusicologia refere-
se ao uso de estruturas rítmicas características dos distintos gêneros musicais em-
pregados. Há inúmeras possibilidades, a seguir serão demonstradas algumas
atividades valendo-se de estruturas rítmicas extraídas dos gêneros musicais Ijexá e
Rumba.

Integração de domínios
Operações matemáticas são processadas pelo hemisfério dominante do cérebro.
Assim, cálculos ou mesmo contagens de qualquer natureza são analisados nesse he-
misfério. A percepção musical, por sua vez, é processada pelo hemisfério menor,
por tratar-se de uma tarefa compreendida na sua gestalt, isso é, de modo não seg-
mentado.
Partindo dessa fundamentação, poder-se-ia indagar: o que aconteceria ao realizar-
se uma atividade cujos estímulos sejam simultaneamente direcionados aos dois he-
misférios cerebrais? Logicamente, o cérebro estaria, ao mesmo tempo, trabalhando
com funções analíticas fracionadas e integrando-as, de modo a reuni-las em um
todo ordenado. Um simples exercício desse tipo seria contar uma seqüência nu-
mérica enquanto toca-se alguma coisa. Essas informações estariam, então, sendo
processadas simultaneamente nos dois hemisférios do cérebro. Partindo desse pos-
tulado, são apresentados, a seguir, alguns exercícios com intuito de trabalhar de 395
modo integrado as operações processadas em cada hemisfério cerebral e ainda bus-
car um desenvolvimento sensório motor.

Exercícios
O Exercício 1 mostra um padrão rítmico usado no Ijexá, gênero afro-brasileiro
muito comum na Bahia. Associado a esse padrão há duas propostas de contagens
(a e b). Há idéia é realizar concomitantemente alguma das contagens enquanto se
executa a estrutura rítmica (tocada com baqueta ou mesmo com palmas). O im-
portante é manter o andamento e notar que a contagem proposta na letra b possui
um número maior de elementos dentro do mesmo espaço de tempo, que é regido
pelo padrão rítmico. Para os afeitos à leitura musical, no quadro de n° 2 são mos-
tradas as duas maneiras de contagem valendo-se da grafia usual na pauta musical.
Assim, a contagem a corresponderá à execução em semínimas e a contagem b será
realizada em colcheias. Valendo-se dessa mesma estrutura é possível aprofundar o
esse trabalho de independência e coordenação motora com o acréscimo de mais
uma linha rítmica, que deverá ser executada por uma das mãos, ficando assim a
outra mão responsável pela realização do outro padrão rítmico, como mostrado no
Exercício 2.

Exercício 1 — 1) proposta da execução conjunta de um padrão rítmico extraído do


Ijexá e duas maneiras de contagem (a e b).
2) estrutura resultante das contagens a e b transcritas para notação musical.

A medida da organização temporal desses padrões rítmicos é chamada em música


de compasso. As estruturas rítmicas dos exercícios 1 e 2 enquadram-se em um único
compasso de quatro tempos. É possível, todavia, trabalhar com organizações maio-
res contendo dois ou mais compassos. O Exercício 3 apresenta um padrão de ritmo
extraído da linha de clave da Rumba, cuja estrutura métrica é completada em dois
compassos. Assim, há uma ligeira mudança na interpretação desse padrão, mu-
dando também as formas de contagens distribuídas ao longo desse metro, que trará
implicações no resultado musical, mas não terá uma alteração drástica no tipo de
contagem proposta para os exercícios anteriores.

396

Exercício 2 — proposta da execução conjunta de dois padrões rítmicos


(mãos direita e esquerda) associados às duas maneiras de contagem (a e b).

Exercício 3 — padrão rítmico extraído do Rumba associado às duas maneiras de


contagem (a e b).

Exercício 4 — padrões rítmicos de Ijexá e Rumba associados aos cálculos de


multiplicação por 2 e por 3.
Valendo-se dessas estruturas rítmicas apresentadas nos Exercícios 1 e 2, pode-se ex-
pandir o orbe dessas tarefas agregando-se operações aritméticas simples, como cál-
culos de adição e multiplicação, por exemplo. Das inúmeras possibilidades,
propõe-se, no Exercício 4, duas maneiras de execução dessa tarefa. Os padrões rít-
micos são semelhantes aos já utilizados (Ijexá e Rumba), porém a contagem é mo-
dificada de modo a realizar multiplicação por 2 e por 3. Assim, ao mesmo tempo em
que a estrutura rítmica é executada, deve-se dizer o resultado das operações sugeri-
das, sempre mantendo o andamento.
Logicamente, há também a possibilidade da realização de exercícios coordenados,
397
visando a aspectos cognitivos de modo a desenvolver a independência e a coorde-
nação motora. Valendo-se da mesma estrutura de rumba, apresenta-se no Exercí-
cio 5 o padrão rítmico da clave (a ser tocado com uma das mãos) associado ao
padrão da cáscara (a ser tocado com a outra mão), estrutura rítmica também pre-
sente em diversos gêneros musicais latino americanos, em especial na Salsa. Enfa-
tize-se que as duas maneiras de contagem sempre devem ser executadas,
preferivelmente, alternadamente. Deve-se, também, realizar este exercício substi-
tuindo-se a contagem por algum cálculo, como multiplicação por 4, 5, 6 ou outro
no qual o executante se ache confiante.

Exercício 5 — padrões rítmicos de clave e cáscara associados às duas maneiras de


contagem (a e b).
O nível de complexidade desses exercícios pode, logicamente, aumentar gradativa-
mente, por exemplo, com o acréscimo de outras linhas rítmicas para serem execu-
tadas pelos pés. Porém, essas etapas devem sempre ser coordenadas com os dois
tipos de contagem, sendo desejada a realização ininterrupta dos exercícios alter-
nando-se as diferentes maneiras de contagem. O Exercício 6 mostra uma das pos-
síveis organizações entre os quatro membros e os dois tipos de contagens,
novamente fazendo uso da estrutura rítmica do Ijexá.
Ressalte-se que, embora esses exercícios tenham sido elaborados a partir das estru-
turas musicais presentes nos respectivos gêneros tradicionais, a intenção não é fazer
música. O objetivo é trabalhar e desenvolver aspectos cognitivos associados à in-
dependência e coordenação motoras. A função dos elementos musicais é fornecer
um contexto conhecido àquele não iniciado que pretende executar os exercícios,
de modo a envolvê-lo de certa familiaridade ao praticar atividades. É até ideal que
esses exercícios sejam realizados junto com gravações dos respectivos gêneros mu-
sicais, de modo a propiciar um entendimento mais completo dos mesmos. Toda-
via, os não músicos devem ter orientação de um professor que compreenda os
aspectos musicais implícitos, posto que a proposta motriz é a integração dos he-
misférios cerebrais na realização dessas tarefas, de modo a coordenar os processa-
mentos holístico e analítico (de segmentação).

398

Exercício 6 — acréscimo de outras linhas rítmicas para serem executadas


pelos quatro membros associados às duas maneiras de contagem (a e b).

Considerações Finais
Embora o entendimento da existência da divisão cerebral em dois he-
misférios ainda não seja consenso entre neurologistas, a especialização cerebral to-
mada como fundamento e ponto de partida para as atividades aqui propostas não
possui qualquer efeito prejudicial. Tentou-se postular um dos muitos modos de
atuação interdisciplinar e de integração entre as ciências da cognição e outros do-
mínios do fazer musical, como a etnomusicologia.
Durante seu surgimento a etnomusicologia valeu-se de nova abordagem metodo-
lógica para o estudo da música ‘na’ e ‘como’ cultura. Aproximou, via antropologia,
a musicologia das ciências sociais, oferecendo para os pesquisadores da música novos
métodos de investigação científica distintos das abordagens positivistas usadas até
então. Nessa esteira, favoreceu também a expansão da criatividade dos artistas, em
especial dos compositores, que conheceram novos procedimentos e passaram a usu-
fruir de um maior material sonoro a ser tratado composicionalmente.
No seu estágio inicial, a etnomusicologia centrou-se em classificações e cataloga-
ções do repertório não ocidental. Atualmente, porém, já é mais que possível o uso
conjunto desses saberes entre as diferentes disciplinas. A educação musical benefi-
ciar-se-ia dessa união de aspectos étnicos como estratégias didáticas e pedagógicas,
ao incorporar e levar para sala de aula os processos de aprendizado musical oriun-
dos das tradições orais de transmissão de conhecimento. Imbuído dessa idéia, nesse
ensaio procurou-se especular sobre o intercâmbio entre etnomusicologia e ciências
cognitivas. Os dados coletados pela etnomusicologia referem-se ao uso de estrutu-
ras sonoras presentes nos distintos gêneros musicais, que indicam, inclusive, o grau
de complexidade de determinados gêneros musicais quando comparados a outros.11
Não se entende a complexidade sob o ponto de vista evolutivo-positivista, em que
adquire um estatuto valorativo, mas sim como um processo entrópico, obtido pelo
aumento de elementos e/ou incremento dos aspectos envolvidos no convívio sócio-
cultural. Pode-se entender o pulso como sendo um dos elementos mais básicos da
estruturação musical e quaisquer elaborações empreendidas sobre ele, implicam,
conseqüentemente, no aumento da carga informativa e da complexidade. A esse 399
respeito ver: Corrêa, 2004, p.231.. A hipótese de contribuição com a ciência da cog-
nição advém do uso dessas estruturas musicais como meio de elaboração de tarefas
visando a desenvolvimentos no campo da psicomotricidade e da coordenação e in-
dependência motoras. Infinitas combinações de exercícios são possíveis, dado a
grande diversidade de gêneros musicais existentes.
Esta é uma pesquisa em estágio inicial, cujo próximo passo seria incorporar grupos
referenciais e de amostragem de modo a verificar o desenvolvimento das habilida-
des desses sujeitos após a realização das tarefas propostas. Seria também de eficácia
conclusiva para os objetivos aqui perseguidos a possibilidade de se contar com equi-
pamento que permitisse o mapeamento por tomografia computadorizada durante
a realização das tarefas, indicando assim as áreas do cérebro envolvidas nessas ope-
rações. Com isso, acredita-se poder oferecer, além da comprovação da hipótese aqui
formulada, uma aplicação prática desse estudo interdisciplinar em cognição musical.

Referências bibliográficas
Corrêa, Antenor Ferreira. Vem debaixo do barro do chão? In: Anais do VI Fórum do Cen-
tro de Linguagem Musical. São Paulo, 2004, p. 226-232.
Roederer, Juan. Introdução à Física e Psicofísica da Música. Tradução Alberto Luis da Cunha.
São Paulo: Edusp, 1998.
Processos de criação musical e constituição do sujeito:
objetivando uma ética e estética na/da existência
Patrícia Wazlawick
400
patriciawazla@gmail.com
Kátia Maheirie
maheirie@gmail.com
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
Apresenta-se neste trabalho uma breve discussão acerca de aspectos obtidos em pes-
quisa de doutorado na área da Psicologia, abordagem histórico-cultural, junto ao campo
de investigação da música, acerca do tema da constituição do sujeito e atividade cria-
dora. Teve-se como sujeitos dois músicos violonistas compositores de música instru-
mental, integrantes de um duo. O objetivo principal foi investigar os processos de criação
musical como atividade mediadora na constituição do sujeito. A fundamentação teórica
pauta-se nos aportes teóricos do psicólogo russo Lev Vygotski, de acordo com o ma-
terialismo histórico e dialético, e seus interlocutores, sobre processo de criação, atividade
criadora e relação estética, e nos estudos do filósofo russo Mikhail Bakhtin a respeito da
criação/produção estética, e da temática da ética/estética. A música é entendida como
sendo uma linguagem afetivo-reflexiva (Maheirie, 2001), como trabalho acústico (Araújo,
1994) e como atividade/ação humana situada em contextos (Stige, 2002). O método, de
orientação qualitativa, esteve pautado na configuração de histórias de vida /histórias de
relação com a música, sendo utilizadas entrevistas semi-estruturadas com roteiro nor-
teador para a apreensão de informações, e trabalhou-se com análise do discurso se-
gundo Bakhtin (2006) e Amorin (2002). Foram realizadas observações de ensaios,
momentos de criação, e concertos, registradas em diário de campo e audiovisual. Um dos
aspectos centrais produzidos como conhecimento e resultado da investigação foi o de
que a música assim como seu(s) processo(s) de criação podem ser concebidos como
uma construção dialógica entre as várias vozes musicais presentes na história de um su-
jeito entremeadas ao processo de criação da própria vida, culminando em uma est(ética)
de si. Existe um amálgama entre o processo de criação de si como sujeito e de suas ati-
vidades criadoras, objetivando contemporaneamente músicas e sujeitos, onde os músi-
cos são capazes de se (re)criarem na existência, inovando, aprimorando e qualificando
continuamente em seus percursos de vida.
Palavras-chave
Processos de criação no fazer musical; constituição do sujeito; relação estética.

Introdução e considerações metodológicas


Como sujeitos histórico-sociais que se constituem na constante ação e relação em
contexto, um contexto cultural mutifacetado, temos contato com as músicas e os
sons desde muito cedo em nossas vidas, das mais diversas maneiras. Podemos dizer
que somos também sujeitos musicais, sujeitos que compõem, em conjunto com a
alteridade, histórias de relação com a música1.
Alguns destes sujeitos, no entanto, escolhem e decidem, de algum modo, trabalhar
401
com a música como uma profissão, nas suas mais diversas roupagens. Neste fazer a
música se torna também um trabalho acústico, como explica Samuel Araújo (1994)
e Kátia Maheirie (2001, 2003): a música como uma atividade criadora humana está
relacionada/entremeada aos contextos específicos onde o fazer musical é encarado
e assume um caráter de trabalho humano, assim como qualquer outro trabalho.
Como trabalho acústico a música está inserida em contextos de ação e de atividade,
do fazer humano, possui condições objetivas, datadas e situadas, com determinadas
possibilidades para que os sujeitos possam produzi-la. Como trabalho acústico po-
demos encontrar as atividades de músico instrumentista, intérprete, cantor, com-
positor, educador musical.
Em nossa pesquisa de doutorado2, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
linha de pesquisa “Constituição do sujeito, relações estéticas e processos de criação”, fi-
guram dois músicos como sujeitos. Estes realizam as atividades musicais citadas
acima, todas, porém, em uma delas, a composição – ou como chamaremos aqui
também ‘criação musical’ – possui uma certa especificidade, forjada por eles. Na
fundamentação teórica acerca da criação humana e do processo de criação no fazer
musical, fundamentamo-nos também em Ostrower (2008) e Sloboda (2008), e
para discutir os aspectos da relação ética/estética na constituição do sujeito e da
atividade criadora/processos de criação, fundamentamo-nos nos trabalhos de Bakh-
tin (2003), Sobral (2005, 2009) e Zanella (2006). Apresentaremos alguns pontos
fundamentais (porém, parciais) desta relação musical, discutindo-a3.
Tendo como fundamentação teórica os aportes científicos de Vygotski (1992, 1999,
2001, 2003) e Bakhtin (1926, 2003, 2006), e seus interlocutores, e ao refletirmos
sobre a atividade/fazer musical enquanto atividade criadora (Vygotski, 2003), ar-
quitetada por sujeitos que se constroem em um processo de constituição sempre em
relação com outros, o objetivo da pesquisa foi investigar os processos de criação no
fazer musical como atividade mediadora na constituição do sujeito.
Na relação dialógica (Faraco, 2006) com os sujeitos de pesquisa fomos encontrando
as vozes das experiências, das histórias musicais, das composições anteriores, da for-
mação musical desses músicos, do que hoje eles escutam, do que apreciam, de quais
são as suas referências musicais, de seus estudos, do pensar e edificar a produção
musical, enfim, uma dialogia de vozes de ontem e de hoje compondo o porvir. E,
neste aspecto, como produção da pesquisa surge a tese de conceber “a música e seu
processo de criação como uma construção dialógica entre as várias vozes musicais
presentes na história de um sujeito entremeadas ao processo de criação da própria
vida”. Esse processo de criação é um acontecimento onde as vozes se entrecruzam,
é um espaço de dialogia e constituição do sujeito, existe um movimento de objeti-
vação-subjetivação engendrado no processo de criação musical, onde figura uma
polifonia entre muitas vozes, para criar outras vozes: as músicas de um duo de
violões.
Sendo assim, da análise das informações das entrevistas individuais realizadas com
402
cada um dos músicos foram construídas as seguintes categorias: a) vozes dos pró-
prios músicos sobre seu processo de criação no fazer musical: é possível falar sobre
o(s) processo(s) de criação?; b) vozes dos dois músicos que dialogam entre si para
compor música: musicalidades em diálogo / a dialogia entre musicalidades; c) uma
voz que se produz de uma síntese dialógica de duas e de muitas outras vozes: a(s) mú-
sica(s) e os percursos musicais do duo; d) vozes que falam hoje em função de um
devir e de um porvir: projetos de futuro com a música. As informações também
foram coletadas por meio de videogravação, observações e diário de campo de en-
saios, momentos de criação e concertos do duo. Para a análise das informações foi
utilizado o procedimento de análise do discurso em base a Bakhtin (2006) e Amo-
rim (2002), tendo em vista a polifonia e a polissemia4 dos discursos.

Sujeitos da pesquisa
São sujeitos da pesquisa dois músicos instrumentistas, compositores, integrantes
do duo de violões “Comtrasteduo”5. Ambos são também educadores musicais, com
aulas individuais e formação de bandas, em violão, guitarra e baixo. O trabalho com
música seja na parte de composição, quanto educação musical são suas atividades
principais.
A proposta musical do duo é trabalhar com as particularidades da formação musi-
cal de cada um, conforme sua formação musical6. Buscam atingir uma fusão de gê-
neros que passeiam, principalmente, pela música brasileira, da cultura popular, em
entrecruzamentos possíveis com as músicas latina, espanhola, celta, jazz, e erudita.
Outra característica é, como o próprio nome remete, o ‘contraste sonoro’ propor-
cionado pelas afinações distintas de cada instrumento. Um violão é afinado à ma-
neira tradicional enquanto o outro lança mão de uma afinação ‘aberta’, com
uníssonos e oitavas em forma de ‘espelho’ D-A-E-E-A-D7. Esta afinação, formali-
zada por um dos integrantes do duo, é produto também de uma relação musical
instrumental com a viola caipira e outras afinações abertas utilizadas na música ga-
lega do norte da Espanha, a Galícia.

Breves aspectos de discussão


A afinação ‘em espelho’8 no violão, objetivada por um dos integrantes do duo, acaba
sendo uma especificidade do trabalho do Comtrasteduo, uma vez que como o mú-
sico utiliza esta afinação em seu violão, o trabalho de parceria musical a inclui no
modo de compor e no modo de tocar, apresentar suas músicas. Portanto, um vio-
lão é afinado à maneira tradicional e o outro na afinação anteriormente citada, o que
proporciona um ‘choque’ de sonoridades, um ‘contraste’ sonoro.
O contraste sonoro existe, há bem marcada uma diferença de sonoridade que faz
este próprio contraste. Entre eles não existe um primeiro violão e um segundo vio-
403
lão. Eles deixam a responsabilidade para o ouvinte, a escolha de selecionar ora um
ora outro, ouvir mais um ou outro, em quem prestar atenção, entrar no meio da
mistura sonora contrastante e vivenciar a música, enfim, tendo um como figura e
outro como fundo e vice-versa imediatamente. Daí nasceu o nome do primeiro CD
do duo, a proposta do contraste que encaminhou à Figura & Fundo.
Ao ser perguntado a respeito de que condições o violão do Marcio, possuindo outra
afinação, sugere ao duo, na entrevista de pesquisa, Glauber responde:
“O Márcio fica muito mais à vontade com esse violão, com essa afinação dele.
Porque é como, são matrizes de pensamento, eu estou usando aqui uma matriz,
a língua portuguesa, mas não estou pensando nela, ela já sai naturalmente. Toda
a minha formação foi com a afinação tradicional, então qualquer coisa que eu
quiser pensar musicalmente, eu penso através dessa matriz, assim como eu não
consigo pensar sem usar a língua portuguesa. Então ele, de tanto estudar esta
afinação, a matriz dele é muito mais essa. Ele se sente muito mais a vontade nisso.
E como eu, há muito tempo já escuto ele tocar, é como se eu tivesse essa ‘matri-
zinha’ também já instalada ali, entendeu? Então, eu consigo também pensar um
pouco já na sonoridade do violão dele. Eu sei que vai ter aquele grave, eu sei que
vai ter aquele médio danado que tem no violão dele, então a gente usa isso, ou
seja, é, eu acho assim, a afinação ela existe, ela foi muito funcional pro duo. Mas
poderia ter sido outra também, assim como eu poderia ter nascido no Japão e
estar falando agora com você em japonês, as mesmas coisas”.
A afinação tradicional do violão engendra-se como uma voz prática-técnica-de co-
nhecimento e de materialidade do instrumento para se pensar e se fazer música, ao
mesmo tempo aos dois músicos que a utilizam. No entanto, ao forjar uma afinação
outra Marcio estabelece também a si mesmo, e ao duo, contemporaneamente, a
forma de pensar e fazer música mediada pela materialidade desta outra afinação,
para ele mesmo, de modo mais intenso, pois desde que começou a trabalhar com ela,
não precisou mais ficar afinando o violão ora nesta afinação ora na tradicional, pois
seu violão ‘principal’ está oficialmente com esta afinação, e outro violão que possui
está com a afinação tradicional. A nova afinação passou a ser encarnada no instru-
mento desse músico, e o caracteriza.
Glauber diz que toda a sua formação musical foi baseada na afinação tradicional
do violão, assim também como para tocar guitarra e contrabaixo. Sua lógica, seu
raciocínio musical pensa e se faz, se objetiva por meio desta ‘linguagem’, por meio
desta materialidade sonora, que forja o pensamento e a compreensão, bem como a
escuta e a percepção musical violonística, para ele. Ele diz que esta é sua matriz de
pensamento musical, que tem seu fundamento, por sua vez, no tonalismo.
Porém, como trabalha em parceria com Marcio no Comtrasteduo, como há algum
tempo escuta ele tocar nesta afinação, é como se tivesse também parte deste racio-
cínio musical, de pensamento musical apropriada nele mesmo. Em suas palavras: “. . .
é como se eu tivesse essa ‘matrizinha’ também já instalada . . .” (Glauber). Porque na
404 relação com o outro se constitui o sujeito musical que é, na relação de composição
com o outro se constitui as formas de comporem que engendram e utilizam, e se
constitui música do Comtrasteduo, como uma síntese também dialógica de dois
raciocínios musicais: do violão afinado tradicionalmente e do violão afinado ‘em
espelho’ – que implica disposição das cordas, posições de notas musicais, formas
diferenciadas de fazer acordes, tocar escalas, fazer baixos/bordões, sequências har-
mônicas, etc. Por isso Glauber pensa também, de certo modo, por meio da sonori-
dade do violão de Marcio, sabendo, esperando e escutando já os graves que tem, e
“. . . aquele médio danado que tem no violão dele . . .”, e “. . . a gente usa isso”, nas mú-
sicas do duo, o que tem se demonstrado funcional para suas músicas.
No entanto, ele deixa claro e sinalizado: “Mas poderia ter sido outra [afinação]9 tam-
bém, assim como eu poderia ter nascido no Japão e estar falando agora com você em ja-
ponês, as mesmas coisas” (Glauber). Esta fala é fundamental, pois conota o modo de
que esta objetividade é uma construção, ou seja, foi construída por um deles e é va-
lidada no duo, no acordo entre os dois, nas músicas dos dois, e de um público, que
a aceita, que a legitima, é um possível que está dando resultados estéticos e musicais.
Como poderia não ser: assim como se ele tivesse nascido no Japão e estar falando
agora em japonês, ao invés de português, exatamente as mesmas coisas, com alguém
que o entendesse. Ou seja, muda-se a referência, muda-se a forma da mediação se-
miótica – porém, sempre semiótica – mudam-se os contextos, talvez outras cultu-
ras, outras histórias, outras materialidades, contudo sempre sígnicas e sempre
construídas sócio-historicamente. E também existiria, seria possível, apenas seria
outra.
A arte, portanto, também nos desafia a colocarmo-nos no movimento de sentir-
pensar-agir, no movimento de colocarmo-nos em pensamento, pensamentos es-
tranhantes, para sermos produtores de sentidos que nos levem a outras posturas
ético-estéticas (Sanchez Vázquez, 1999). Est(éticas). Martinez (2005), acerca da
construção da significação musical, fundamentado em temáticas da semiótica da
música – de acordo com Peirce (apud Santaella, 1983; Sekeff, 1998) – nos brinda
com a idéia de que “. . . da mesma forma como a eletricidade não reside nos circui-
tos metálicos, o pensamento não está em nós, mas somos nós que estamos em pen-
samento” (p. 81). Estamos em pensamento e percepção justamente por estarmos em
semiose, estarmos tomados pela ação dos signos, que nos constitui e a qual consti-
tuímos, articulamos por toda esta infinita cadeia inter-semiótica, que colocamos
em movimento e que, simultaneamente, nos coloca em movimento. Para Bakhtin
(2006):
. . . compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros
signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um
signo por meio de outros signos. E essa cadeia de criatividade e de compreensão
ideológicas, deslocando-se de signo em signo para um novo signo, é única e con-
tínua . . . (Bakhtin, 2006, p. 34).
405
Ao construir e trabalhar com outra afinação musical no violão, em interface com a
afinação tradicional, os músicos constroem outros sentidos para a própria afinação
sonora do instrumento – que pode, então, ser recriada, outras formas são possíveis
e podem ser construídas e utilizadas, não existe uma única, absoluta – e outros sen-
tidos para o compor, pois precisam romper muitas vezes com o instituído musical
e encontrar, forjar outros caminhos de resolução dos ‘nós’ e problemas musicais de
composição que se apresentam a eles, criativamente e signicamente.
É um romper com o instituído, não para superá-lo, mas para (re)construir, para ver
que outras formas são possíveis, que se pode inovar em suas atividades – há tanto
tempo instituídas . . . , assim como esta afinação tradicional do violão – e mostrar
que todos são sujeitos capazes de criar, em seus campos, em suas áreas de atuação,
(re)criando o sujeito, a si mesmo e o próprio fazer.
Ao nos remetermos à criação cotidiana, diária, criação como atividade própria do
ser humano, percebemos que, de acordo com Vygotski (2003), e iluminados pelos
discursos dos sujeitos de pesquisa que:
. . . na vida cotidiana que nos rodeia a cada dia existem todas as premissas neces-
sárias para criar e tudo o que excede do marco da rotina incluindo sequer uma
mínima partícula de novidade, tem sua origem no processo criador do ser hu-
mano (Vygotski, 2003, p. 11).
Porém, como sujeitos criadores, precisamos estar abertos à possibilidade da criação,
assumir e tecer, criar também uma postura criadora, já que em nós existe esta pos-
sibilidade, esta capacidade, humana que é, e precisamos levá-la adiante em nosso
dia a dia, em nossa história, para criar outras possibilidades de vida – que é o que o
duo está também mostrando – se sairmos um pouco do campo da música e am-
pliarmos este movimento, esta cena para o todo da vida.

Considerações Finais
Nossa pesquisa de doutorado, a qual alguns aspectos foram brevemente aqui apre-
sentados, aborda a temática de estudar os processos de criação como atividade me-
diadora na constituição do sujeito, e desta forma, “pensar a música e seu processo
de criação como uma construção dialógica entre as várias vozes musicais presentes
na história de um sujeito entremeadas ao processo de criação da própria vida”.
As relações dialógicas são mais que relações de diálogo face a face. São relações de
sentido que se estabelecem em um eterno e contínuo diálogo entre sujeitos e enun-
ciados (Bakhtin, 2003; Faraco, 2006), no movimento de respostas, réplicas e tré-
plicas, onde se dá a própria construção do conhecimento, da cultura, das significa-
ções, dos significados e sentidos (Vygotski, 1992), na trama das mediações semió-
ticas e edificando esta própria mediação semiótica.
Em base a este movimento podemos compreender a criação musical, num contínuo
406
diálogo (re)criado entre sonoridades musicais, notas musicais, ritmos, melodias e
harmonias junto a lógicas de pensamento – também musical – percepção, imagi-
nação, estética, emoção, de músicos, sujeitos musicais em suas trajetórias de vida,
num fazer artístico e criador. Para que, enfim? Para criar e recriar a si como sujeito,
à relação de trabalho acústico, a composição musical em parceria, e finalmente,
(re)criar a própria vida. Pois, no fazer artístico criador, na produção estética pode-
se engendrar um processo que constrói música, mas que, mais que isto, (re)inventa
a própria vida na qualificação de uma estética da existência, ou seja, a música e o
fazer musical transformando-se também a ser atividade criadora e (re)criadora da
existência, não apenas para adornar a vida, mas para fazer dela palco de existências
histórias realizadas que constroem efetivamente a vida em seus aspectos ético, es-
tético e cognitivo, com êxito humano, sendo capazes de projetar novos cenários
para a existência.

1 Conforme pesquisa realizada no curso de mestrado: Wazlawick, Patrícia. Quando a mú-


sica entra em ressonâncias com as emoções: significados e sentidos na narrativa de jovens es-
tudantes de musicoterapia. 2004. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2004. Orientação da Profª Drª Denise de Camargo.
2 Sob a orientação da Profª Drª Kátia Maheirie.
3 A tese completa possui 250 páginas de construção teórica. Estas palavras, neste trabalho, são
apenas uma pequena e breve apresentação do trabalho.
4 Vide Amorim (2002).
5 Formado por Marcio e Glauber.
6 As informações sobre a formação musical e história de relação com a música, de ambos os
músicos são aprofundadas na tese de doutorado.
7 Os “mi” centrais são uníssonos. As notas “lá” são separadas por uma oitava (uma grave e
outra mais aguda). E os “ré” são separados por duas oitavas (uma grave e outra mais aguda).
8 Na tese de doutorado retomamos o percurso de construção desta afinação. Por questão de
espaço no texto e escopo do trabalho, este tópico não será aprofundado aqui.
9 Inserido pela autora.
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Zanella, Andréa Vieira. Sobre olhos, olhares, e seu processo de (re)produção. In: Lenzi, Lucia
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Imagem: intervenção e pesquisa. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. p. 139-150.
Musicalidade na Educação a Distância:
Reflexões sobre os usos
das Tecnologias de Informação e Comunicação
408
Luciane Cuervo
luciane.cuervo@ufrgs.br
Departamento de Música, UFRGS

Resumo
De caráter ensaísta, este artigo aborda elementos da interação docente-discente e o
uso das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) na formação de professores
na modalidade de ensino a distância do Programa de Licenciatura em Música (Prolicen-
Mus) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Apresenta reflexões sobre
o desenvolvimento da musicalidade, articulando essas idéias ao ambiente EaD. Com-
preendendo a musicalidade como uma característica humana, serão discutidos temas in-
terdisciplinares que envolvem autores da educação e educação musical, psicologia,
neurociências e tecnologias em educação. A título de ilustração, serão apresentados re-
latos empíricos da atuação docente da autora, os quais refletem a intenção de conhe-
cer, interagir e contribuir no processo de ensino-aprendizagem dos “professores-alunos”
do curso de licenciatura em música a distância da UFRGS - sendo este um programa
que visa a qualificação de docentes que já atuam em sala de aula, mas não possuem le-
gitimação legal (licenciatura).
Palavras-chave
Musicalidade; educação a distância; TICs.

Introdução
Este texto reflete sobre o desenvolvimento da musicalidade com apoio do ambiente
virtual de aprendizagem (AVA) e das Tecnologias de Informação e Comunicação
na formação de professores do Programa de Licenciatura em Música (Prolicen-
Mus) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e universidades
parceiras.
O desenvolvimento musical será abordado fundamentando-se na concepção de
musicalidade como uma característica humana. Para fomentar a reflexão sobre esse
tema, apresento uma discussão interdisciplinar entre autores da educação, educa-
ção musical, psicologia, neurociências e tecnologias em educação, destacando-se
Gembris (1997), Krüger (2006; 2007), Sloboda (2008) e Cuervo (2009).
Existe uma necessidade latente de sistematização da abordagem pedagógico-musi-
cal na educação a distância, bem como estudos que acompanhem o desenvolvi-
mento do aluno, buscando compreender como se dá o processo de
ensino-aprendizagem, considerando sua subjetividade e complexidade intrínsecas,
bem como as matizes que o compõe. Por Educação a Distância, entende-se que esse
“é o processo de ensino-aprendizagem, mediado por algum recurso de comunicação,
onde professores e alunos estão separados espacial e/ou temporalmente” (UFRGS,
2007, p. 27).
409
As Tecnologias de Informação e Comunicação – TICs vêm ao encontro da quali-
ficação do processo de desenvolvimento musical em ambientes virtuais de apren-
dizagem, pois enriquecem e favorecem a aprendizagem num modelo interativo de
trabalho. Este modelo também está em conformidade com a realidade de sala de
aula encontrada por estes professores em formação e atuação, pois é bastante
comum a escola pública brasileira possuir computador, mas ainda raras as institui-
ções que possuam um acervo de instrumentos musicais. Para Krüger (2007, p. 98),
o uso das TICs no ambiente escolar
também ressalta a importância das interações entre professor e seus alunos e
entre os próprios alunos. Mais do que nunca, está claro que o professor não será
substituído pelas tecnologias, e que ele é fundamental para, junto com o aluno,
construir conhecimento.
A partir da minha pesquisa de mestrado1, a qual envolveu o estudo da musicali-
dade humana, venho buscando compreender o desenvolvimento musical dos alu-
nos nas modalidades presencial e a distância, me colocando os seguintes
questionamentos:
• Que diferenças podemos notar no processo de desenvolvimento musical no ensino
a distância e no presencial?
• Como se dá o desenvolvimento da musicalidade na educação a distância?
• Como as Tecnologias de Informação e Comunicação nos ambientes virtuais de
aprendizagem influenciam esse desenvolvimento?
Conforme Sancho (apud Krüger, 2006), na educação, há muitas formas de utiliza-
ção das TIC, como computadores e ferramentas para EaD via Internet, ambientes
para vídeo ou teleconferência, ambientes de realidade virtual, etc., além de apare-
lhos eletrônicos como televisão, rádio, som, entre outros materiais.
Para Tourinho e Braga (2006), por bastante tempo a interação presencial profes-
sor-aluno foi considerada essencial para o aprendizado musical. Para esses autores,
a Educação Musical a Distância utiliza meios impressos, mecânicos, eletrônicos e
digitais, sendo os recursos telemáticos cada vez mais importantes nessa trajetória
(Tourinho; Braga, 2006).
Pensar o desenvolvimento da musicalidade na EaD significa transportar os estu-
dos e as pesquisas já realizadas para o ambiente virtual de ensino, mas não é só isso.
A partir desse contexto, vislumbrar formas de oportunizar o acesso do aluno a esse
conhecimento e, mais desafiador ainda, a essa prática, procurando otimizar a utili-
zação das ferramentas disponíveis.
Morin (2009) acredita que as tecnologias interativas na educação a distância des-
tacam o que deveria ser o núcleo de qualquer processo educativo: a interação e a
interlocução entre os que estão envolvidos nesse processo.
Ao entender a musicalidade como natural ao ser humano, afirma-se a capacidade
de todo indivíduo de se desenvolver musicalmente, processo que deve ser contex-
410
tualizado ao seu ambiente sociocultural, no que a EaD vem a ser mais um meca-
nismo potencializador das ações de registro, comunicação expressão.

Reflexões sobre o conceito de musicalidade


O termo musicalidade vem sendo utilizado cotidianamente no ensino, aprendiza-
gem, execução e apreciação musical no Brasil. No entanto, consta-se a escassez de
publicações que abordem esse tema, especialmente no contexto da Educação Mu-
sical brasileira, conforme verifiquei em minha pesquisa (Cuervo, 2009).
Gembris (1997) analisou o conceito de musicalidade na interface histórica, iden-
tificando três fases: a Fenomenológica, entre 1880 e 1910/1920, a qual consistia na
ênfase na discriminação musical, na distinção entre a música boa da medíocre. A se-
gunda fase, Psicométrica, com ocorrência a partir de 1920 e chegando aos nossos
dias, onde o principal objetivo é o de testar habilidades musicais, independente-
mente dos aspectos socioculturais do indivíduo. A terceira fase é destacada como a
de geração de sentido musical, relacionada à habilidade musical de compreender e
transmitir o sentido da música que está sendo executada, ouvida ou criada. O autor
fundamenta-se nos trabalhos de Sloboda (1997), Blacking (1997) e Stefani (2007),
entre outros autores. Em afinidade com a terceira abordagem, este texto ensaístico
buscará construir um referencial teórico que privilegie esse conceito dentro do con-
texto sociocultural de atuação docente, analisando o direcionamento das pesquisas
que mapeiam os indicadores desse conhecimento e considerando a musicalidade
não como um dom ou um talento inato, mas um conhecimento que pode ser de-
senvolvido e potencializado na educação musical.
A concepção contemporânea de musicalidade, também chamada habilidade ou
competência musical, é descrita como a capacidade de geração de sentido, de acordo
com Gembris (1997), Maffioletti (2001), Swanwick (2003) e Stefani (2007), “com-
preendendo o saber, o saber fazer e o saber comunicar” (Stefani, 2007, p.1). O uso
do termo adequado para se referir à musicalidade é uma dificuldade também men-
cionada por Alda Oliveira, tradutora da obra de Swanwick (2003). Em nota de ro-
dapé (p. 84), explica que não há palavras em nosso vocabulário que possuam o
mesmo significado atribuído a musicality e musicianship, sendo a primeira ser rela-
cionada a talento natural e a segunda a habilidade adquirida e sensibilidade.
Pesquisadores brasileiros também utilizaram distintos termos, como expressividade
do discurso musical, de acordo com França (2000) ou talento musical, para Fi-
gueiredo e Schmidt (2005; 2008).
Dessa forma, podemos entender que, tanto nas práticas vocais e instrumentais, cria-
ção ou apreciação musical, podemos buscar a produção de significado, sendo esta
uma fundamental característica da experiência musical ampla. Todas as pessoas
possuem os mecanismos naturais de desenvolvimento da musicalidade, depen-
dendo de um contexto favorável em diversos aspectos, o qual englobaria um am- 411
biente familiar e escolar propício, como também a oportunidade de interagir em
diversas modalidades da experiência musical ao longo da vida (Cuervo, 2009).
Alguns autores relacionam a capacidade para a música com a capacidade universal
para a linguagem, como Ilari (2006), Sacks (2007) e Sloboda (2008). Para Sloboda
(2008, p. 25), “dizer que a linguagem e a música são universais é dizer que os hu-
manos têm uma capacidade geral de adquirir competências lingüísticas e musicais”.
Se entendemos a musicalidade como uma característica natural ao ser humano, a
voz, acima de tudo, é o primeiro veículo de expressão e comunicação humana, cons-
tituindo o princípio da linguagem. Para Wisnik (2007), a música pode ser o modo
de presença do ser, “que tem sua sede privilegiada na voz, articulação máxima entre
a palavra e a música”.
Nessa direção, compreende-se que todos têm mecanismos necessários para o de-
senvolvimento musical, e, assim, derrubam-se teorias que valorizam o talento de
poucos privilegiados, aqueles que “merecem aprender”. Lamentavelmente, ainda
hoje se verifica em escolas, conservatórios e aulas particulares de música a concep-
ção de que é necessário potencializar aqueles que já possuem o “dom da música”.
Isso contradiz os princípios universais da educação humana, nos quais todos podem
aprender e têm o direito de acesso ao saber e ao saber-fazer. Exatamente como de-
fende Elliot (1998, p. 26), o qual afirma que “a musicalidade é a chave para experi-
mentar os valores do fazer musical. [. . .] pode ser ensinada e aprendida”.
Ilari (2006) afirma que há inúmeras evidências sugerindo que os bebês recém-nas-
cidos já estão predispostos a prestar atenção aos elementos musicais da fala e dos pa-
drões sonoros, em conformidade com Barceló (2003), o qual sugere que a música
é natural ao cotidiano da criança. Em concordância com esses trabalhos, Gembris
(2006) afirma que a atitude musical existe desde os estágios iniciais da vida humana
e, talvez, semanas antes do nascimento.
No período contemporâneo, no qual há intenso “bombardeio” de sons e ruídos de
todas as formas, assim como os mais variados modelos de aparelhos de difusão so-
nora individuais e coletivos, a conscientização, a preservação e a emissão natural da
voz deveriam constar como prioridades no planejamento pedagógico-musical. Por
outro lado, não é possível ignorar a imersão de crianças, adolescentes, adultos e ido-
sos em uma grande rede de diversidade musical, os quais, influenciados pela famí-
lia, escola, rua e mídia, encontram suas vivências, valores e preferências musicais.
Torres (2008, p. 7) argumenta que a ampla presença da música – difundida em apa-
relhos portáteis – torna-se a “Música que nos acompanha, que pode ser levada e
compartilhada em diferentes espaços; a música em movimento”.
Musicalidade na Educação a Distância:
exemplos de interação
Ao iniciar minha preparação para atuação docente na educação a distância, passei
412 a estudar e refletir sobre as formas de desenvolvimento da musicalidade sem a pre-
sença física da relação professor-aluno, além de repensar as relações considerando
a presença do tutor como mediador desse processo. Em confluência com essa re-
flexão, Krüger (2007) acredita que seja possível considerar os três campos – do-
cência, música e EAD – como fomentadores das relações interativas e colaborativas
entre os docentes e seus alunos, e entre os próprios alunos.
Ramal (2000) defende que esses novos papéis exigirão “mudanças nos cursos de
formação docente, abertura permanente ao novo, visão crítica na seleção de infor-
mações, sintonia com os desafios de cada momento e atenção constante aos pro-
cessos educativos, tanto quanto aos resultados”. Pesquisadores e educadores como
Ramal (2000), Behar (2009) e Franco (2009) enfatizam uma característica funda-
mental no aluno de EAD: a autonomia.
O pensamento de Krüger (2007, p. 99) em relação à autonomia do aluno relaciona
esse perfil ao seu conhecimento e experiência em EaD: “quanto maiores, mais au-
tônomos poderão ser não apenas nas questões técnicas, mas também nas pedagó-
gicas, entendendo qual é papel esperado deles, de seus colegas e do formador
responsável”.
Como exemplo dessas práticas em EaD, me reporto agora às duas interdisciplinas2
que ministro, “Educação Brasileira” e “Didática da Música”, as quais fazem parte
dos chamados “Tópicos em Educação”, que compõe o eixo pedagógico do curso.
Também fazem parte da grade curricular do curso os eixos de Estruturação Musi-
cal, Execução Musical, Formação Geral e Condução e Finalização. Por exigirem
maior número de atividades práticas, as interdisciplinas de execução e estrutura-
ção utilizam mecanismos distintos das pedagógicas, com maior necessidade de soft-
wares e tecnologias de interação com o material musical. Mas apesar de maior
espaço para atividade teóricas e reflexivas nas pedagógicas, senti necessidade em
propiciar práticas que exemplifiquem os conteúdos abordados, como o incentivo à
apreciação musical e à criação musical.
A plataforma de ensino utilizada no referido curso é o “Moodle Institucional da
UFRGS”, possuindo como principais recursos de ensino-aprendizagem o “ques-
tionário”, que apresenta inúmeras formatações, das mais tradicionais e fechadas,
como verdadeiro/falso e múltipla escolha, até opções mais abertas, como disserta-
tivas, os espaços de diálogo assíncrono, como fóruns e síncronos, como chats (“bate-
papo” em tempo real), dentre outros.
Em uma atividade semanal proposta foi solicitado que o aluno ouvisse o primeiro
movimento (Allegro) da obra “La Primavera” de Vivaldi por meio de um link do
Youtube que incluía a imagem da partitura integral do movimento. Após a apre-
ciação, ele deveria anotar suas impressões a respeito da apreensão de elementos mu-
sicais do repertório, como instrumentação, forma, gênero, caráter, andamento, etc.
Essa atividade foi proposta na unidade “Avaliação em Música”, na qual foi ampla-
mente discutido os critérios de avaliação em apreciação musical, sendo apresentado 413
os níveis de avaliação encontrados por Swanwick (2003).
As tarefas entregues foram extremamente significativas para o entendimento de
concepções de música e competências necessárias ao educador musical, pois apesar
da proposta da atividade ser flexível (não era exigido aprofundamento das infor-
mações relatadas como resultado da apreciação), muitos alunos sentiam-se aquém
das capacidades para a realização da tarefa, com relatos como deste aluno:
“A principio foi uma experiência desafiadora e preocupante, pois ainda tenho pouco
discernimento para definir instrumentos; ouvi a canção várias e várias vezes para
tentar identificar os instrumentos, mas confesso que já conhecia a obra” (Sujeito 1,
EAD, atividade de apreciação musical, set.2009).
Apesar do Sujeito 1 dizer-se preocupado com a tarefa, achando que não possivel-
mente não possuísse capacidade de definir os instrumentos, realizou procedimen-
tos corretos para qualificação de seu processo de apreciação, ao buscar ouvir
repetidas vezes, procurando elementos musicais que pudesse identificar. Ao longo
de seu relato da apreciação, ele consegue definir corretamente os instrumentos e
algumas das principais características estilísticas e estruturais da peça. Ou seja, ele
tinha a bagagem de conhecimentos musicais necessários para realizar a tarefa e, ape-
sar de uma hesitação inicial, teve êxito na atividade.
O Sujeito 2 expressa de forma criativa suas impressões e elabora um relato sobre a
apreciação que inclui informações sobre instrumentação, ornamentação, tessitura,
caráter, andamento e valor da música, como pode ser observado nesse trecho de seu
trabalho:
“A música tem constantes mudanças, em que são empregados alguns artifícios téc-
nicos, como o compositor imprimir um som característico da natureza, fazendo-
nos (nós ouvintes) percebermos a questão do tempo, do clima e imaginar a música,
o que transcende o ato de ouvir.” (Sujeito 2, EAD, atividade de apreciação musi-
cal, set.2009).
De acordo com Gohn (2009), um programa de EaD que se propõe a trabalhar a
apreciação musical deve basear-se na tradição do estilo que é o objeto de estudo,
“mas mantendo aberta a criatividade do ouvinte e construindo sua capacidade de
julgamentos de valores”.
No debate de um dos fóruns dessa Unidade de Ensino, foi recorrente o comentá-
rio de alunos que passaram a ver a avaliação em apreciação musical a partir de ou-
tros pontos de vistas, como mecanismos de acompanhamento do aluno, de
desenvolvimento de habilidades, entre outros elementos, como consta no relato 3:
“A Avaliação em Apreciação Musical desenvolve a percepção, a sensibilidade, o senso
crítico e analítico, ampliando os conhecimentos de forma significativa.
Swanwick nos orientou oito critérios que estão descritos no conteúdo desta unidade,
vale a pena reler esta parte”. Sujeito 3. set. 2009.
414 Por meio da atividade de apreciação musical na EaD, vislumbrei a possibilidade de
conhecer mais a fundo o perfil musical dos alunos, registrando suas impressões, pre-
ferências implícitas ou explícitas em seus relatos, bem como promovendo o debate
acerca dos valores intrínsecos da música. Ficou clara, também, a heterogeneidade
das turmas, pois apesar de possuírem um pré-requisito comum a todos – a necessi-
dade de qualificação de legitimação acadêmica para professores já atuantes – cada
Pólo, cada trajetória individual, possui peculiaridades distintas.
A aprendizagem musical, porém, em essência é semelhante em qualquer ambiente,
necessitando de mudanças e adaptações metodológicas e tecnológicas de acordo
com o contexto, com distintas possibilidades e necessidades de interação. Para
Swanwick (2008),
A aprendizagem musical acontece através de um engajamento multifacetado:
solfejando, praticando, escutando os outros, apresentando-se, integrando en-
saios e apresentações em público com um programa que também integre a im-
provisação. Precisamos também encontrar espaço para o engajamento intuitivo
pessoal do aluno, um lugar onde todo o conhecimento comece e termine (Swan-
wick, 2008, p. 2).
França (2003) afirma que os eventos musicais são construções cognitivas e que o en-
sino de música deveria ter menos conteúdos e valorizar mais a expressividade. Essa
atitude pressupõe que o professor dê espaço para as reflexões e manifestações do
seu aluno, procurando orientá-lo sem cobrança quantitativa de tópicos a seguir, al-
mejando a sua liberdade de criação e expressão, com respeito e sensibilidade ao seu
ritmo de desenvolvimento.
Apesar de sustentar que a aprendizagem musical ocorra da mesma forma, no sen-
tido de entender o desenvolvimento musical intimamente ligado ao desenvolvi-
mento humano, entendo que a Educação Musical, mediada pela EaD, possui
peculiaridades que talvez permitam maior conhecimento e necessidade de intera-
ção com recursos tecnológicos muitas vezes desprezados no ensino presencial.
No entanto, devemos estar atentos para que essas tecnologias não sejam meras
transposições de exercícios convencionais, de um tipo de ensino já saturado até
mesmo no ambiente presencial. De acordo com Krüger (2006), esse é um dos as-
pectos mais criticados em relação às novas TIC na educação. Para ela,
Dessa forma não será utilizado todo o potencial de interação entre os usuários
(alunos e professores) e entre estes e o conhecimento. Em resumo, apesar do po-
tencial de enriquecimento, diversificação e estímulo em atividades convencio-
nais, os diferenciais técnicos e educacionais intrínsecos das TIC podem
promover outras e novas abordagens pedagógicas, não precisando ser abordadas
apenas como uma nova roupagem para um determinado tema.
Se no ensino presencial a entrega de atividades semanais por parte dos alunos é mo-
tivo de preocupação do professor quanto à participação destes, na EaD esse envol-
vimento é ainda mais representativo da interação dos alunos com as unidades de
415
ensino. A participação dos alunos das duas interdisciplinas em questão – “Educa-
ção Brasileira” e “Didática da Música”, aumentou em média 60% a partir do mo-
mento em que as assumi e passei a dar retorno das atividades realizadas, também
conhecido no ambiente virtual como feedback.
A avaliação em música, debate tão fundamental quanto ao que se refere a conteú-
dos e metodologias, torna-se ferramenta essencial de motivação e engajamento na
Educação a Distância.

Considerações finais
Educação Musical em EaD é um assunto que demanda maior discussão nos deba-
tes acadêmicos, necessitando de pesquisas que busquem compreender como se dá
o processo de desenvolvimento musical, num processo de avaliação permanente
em busca de aperfeiçoamento metodológico. Importante registrar que o perfil de es-
tudantes e profissionais envolvidos com os cursos EaD em música vêm se modifi-
cando, pois essa modalidade está conquistando espaços em universidades brasileiras
consolidadas, as quais encontram-se em franco processo de qualificação e expan-
são.
Apesar dos problemas enfrentados, na verdade presentes em qualquer modalidade
de ensino, é necessário valorizar o que já foi alcançado através de intenso investi-
mento de políticas públicas de qualificação e formação de profissionais já em ativi-
dade no País. O preconceito, o desconhecimento perante os recursos tecnológicos
e metodológicos, entre outros fatores, vêm sendo substituídos pela credibilidade
de realização de cursos qualificados, ampla pesquisa e produção de materiais didá-
ticos específicos para EaD, bem como a democratização de acesso à formação aca-
dêmica, corroborando, assim, para a consolidação de cursos de graduação
promovidos pelas Ifes – Instituições Federais de Ensino Superior.
Especialmente no atual contexto da Educação Musical brasileira, influenciada de
forma relevante pela aprovação da Lei. 11.769 (2008) que traz a música para a Edu-
cação Básica no País, os cursos de qualificação oportunizados pela EaD contribui-
rão significativamente na formação de grande demanda existente. De acordo com
Figueiredo (2010), é importante considerar que “a médio e longo prazo, novos li-
cenciados em música serão formados através de cursos de licenciatura oferecidos
na modalidade a distância”. Além desse ponto positivo, o autor levanta também a
possibilidade de cursos EaD auxiliarem na formação e qualificação continuada de
professores em exercício, podendo ser “uma excelente alternativa para a formação
continuada de professores, considerando que existem licenciados atuando nas es-
colas que necessitam atualizar permanentemente seus conhecimentos”.
Portanto, o processo de aprendizagem mediado pelo ambiente virtual de aprendi-
zagem e os recursos tecnológicos que lhe são próprios trazem possibilidades de qua-
416
lificação em qualquer modalidade de ensino, seja presencial, semi-presencial e a
distância. Isso ocorre à medida que esses recursos estimulam o docente a repensar
suas práticas mediadas pelo ambiente virtual e pelas ferramentas tecnologias con-
temporâneas, assim como provoca o aluno a assumir seu papel curioso e investiga-
tivo, acima de tudo, como ser autônomo na construção do conhecimento musical.
Então caberia provocar: Essas concepções de perfis docentes e discentes deveriam se res-
tringir à formação e atuação na modalidade EaD?A partir das temáticas levantadas
e discutidas neste artigo, podemos inferir que a resposta a esta pergunta é clara.

1 Mestrado defendido no Programa de Pós-Graduação em Educação/FACED/UFRGS,


com o título “Musicalidade na Performance com a Flauta Doce” (2009), pesquisa financiada
pelo CNPq.
2 O conceito de Interdisciplina aborda o diálogo e as conexões entre determinado eixo.

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A Construção da Escala Natural no Teclado:
significando sons e teclas
Caroline Cao Ponso
419
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo
Proponho neste artigo analisar uma experiência musical ocorrida com alunos de 1° ano
do Ensino Fundamental. Neste relato trago reflexões como professora-pesquisadora, bus-
cando responder a questão: Que tipos de inferências e relações fazem os alunos ao sis-
tematizar o esquema sonoro/visual da escala natural no teclado? Alguns termos, como
‘inferência’ e ‘reversibilidade’ serão aprofundados uma vez oriundos da teoria de Piaget,
referencial teórico para o estudo. O objetivo da experiência é compreender junto aos
alunos a organização sonora do teclado naquele desenho necessário de teclas. A orien-
tação metodológica na análise do experimento segue os princípios do método clínico, no
qual busco o modo de compreensão dos alunos, observando suas ações e questionando-
os sobre como compreendem a atividade em curso. Significar um objeto é agir sobre ele
de maneira que este apresente uma estrutura de significações comum a todos os sujei-
tos em diferentes situações. Ao compreender a escala, enquanto forma, o sujeito irá
compreendê-la no piano, no acordeon, na escaleta, ou outro instrumento com organi-
zação semelhante. A cada nova aprendizagem, a criança utiliza os esquemas já consti-
tuídos anteriormente a fim de explorar características e novidades cada vez mais
complexas dos materiais propostos.
Palavras-chave
Construção musical, música na escola, inferência musical

A compreensão do discurso musical pelas crianças na escola regular e sua opera-


cionalização sempre foram motivos de pesquisas na área de Educação Musical. Ao
ingressar na escola, a criança começa a formalizar alguns conhecimentos que já pos-
suía de forma intuitiva: a escrita dos signos do alfabeto, os números, as formas geo-
métricas, entre outros. Na aula de música o aluno traz consigo o conhecimento
musical que é proveniente da paisagem sonora que constitui sua vida e rotina, co-
nhecimento este, fundamental no trabalho com música em sala de aula.
Acredito que seja necessário dar voz às crianças na investigação do que realmente
pensam sobre o que é música. Qual a idéia de música para uma criança de seis anos?
O que ela pensa sobre a aula de música semanal? Isto está relacionado com o seu
próprio saber intuitivo sobre música? Verificar de que modo as operações de pen-
samento promovem a compreensão do discurso musical e em decorrência desta
operação de que forma o aluno transforma a música em ação inteligente, pode ser
fundamental para justificar e argumentar a importância da construção do conhe-
cimento musical na escola.
Proponho neste artigo analisar uma experiência ocorrida em uma turma de alunos
na qual atuo como professora de música. Neste relato trago reflexões como profes-
sora-pesquisadora, buscando através da filmagem da experiência, elementos para
responder a questão: Que tipos de inferências fazem os alunos ao sistematizar o es-
420 quema sonoro/visual da escala musical natural no teclado?
Esta análise de uma prática realizada em sala de aula tem a finalidade de verificar a
consistência dos conhecimentos construídos pelos alunos a respeito da escala mu-
sical. Pretende verificar se os estudantes estabelecem alguma relação entre a se-
qüência dos nomes das notas com a configuração espacial da escala na forma do
teclado.
Os termos utilizados neste artigo, tais como ‘inferências’ e ‘reversibilidade’ serão
aprofundados uma vez oriundos da teoria de Piaget, a Epistemologia Genética, que
não oferece uma didática específica sobre como desenvolver a inteligência do aluno,
mas nos mostra que cada fase de desenvolvimento apresenta características e pos-
sibilidades de crescimento e maturação de aquisições, sendo este o principal refe-
rencial teórico e base para o estudo. Sobre o termo ‘inferência’ Piaget apud Battro,
nos diz:
.
.
. há sempre inferência nas ações de um sujeito, quando, em presença de ele-
mentos dados fisicamente, o sujeito apela a elementos não fisicamente presen-
tes para tirar desta junção, entre os elementos fisicamente dados e os elementos
não presentes fisicamente, um conhecimento que não poderia ser obtido só por
meio dos primeiros. (Battro, 1978, p. 136)
Ou seja, a inferência é um tipo de dedução ou indução que o sujeito retira do ob-
servável, algo que não está ali presente. No caso da escala musical, o objetivo é in-
ferir que exista uma organização sonora naquele desenho necessário de teclas.
Neste experimento a reversibilidade é o conceito mais importante na comprovação
da ação do sujeito frente ao objeto escala musical. Todo o experimento nos enca-
minha para o ponto em que os alunos percebem a escala como um todo maleável,
que possui ida e possui volta, mas que essa volta não modifica o objeto, ele perma-
nece o mesmo. “Esta reversibilidade que comporta um aspecto causal (desse ponto
de vista, caracteriza a própria existência de um estado de equilíbrio), comporta tam-
bém um aspecto implicativo ou lógico: uma operação reversível é uma operação
que admite a possibilidade de uma inversa” (Battro 1978, p. 215) Ou seja, a escala
musical natural, de uma oitava de extensão, seja ela dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó, conti-
nua sendo a escala musical natural se o inverso for estabelecido como em dó-si-lá-
sol-fá-mi-ré-dó.
A criança pré-operatória ainda não realiza o processo de reversibilidade em suas
ações, e esta faixa-etária dos 6-7 anos, caracteriza-se pela passagem do pré-operató-
rio ao operatório concreto, geralmente. No estádio pré-operatório o pensamento
é intuitivo, a atividade é simbólica, pré-conceitual. No entanto, a criança ainda não
realiza operações reversíveis por não compreender a conservação dos conjuntos,
uma vez que se deixa levar pelas aparências sem relacionar fatos. No período ope-
ratório, já raciocina de forma coerente contanto que possa manipular objetos ou 421
imaginar-se manipulando. Aparecem noções de espaço, tempo, velocidade, peso,
medida e perspectiva.
A orientação metodológica na análise dos diálogos desenvolvidos em classe segue os
princípios do método clínico, no qual o professor-pesquisador busca uma hipótese
sobre o modo de compreensão dos alunos e procura testá-la questionando-os sobre
como eles compreendem a atividade em curso. Delval, sobre a estratégia do mé-
todo clínico, nos diz da necessidade de
[. . .] criar uma situação, mas agora determinada pelo material que se oferece ao
sujeito, e ver como se sai para explicar o que está ocorrendo diante dele. O pres-
suposto é que a forma como o sujeito trata a realidade revela quais são as ope-
rações que ele é capaz de realizar. Se essas ações vão mudando com a idade, fica
evidente que nisso há um progresso. (Delval, 2002, p.64)
Sendo assim, a intervenção do experimentador deve ser sistemática, elaborada e
ativa, pois a resposta ou questionamento do sujeito no instante do experimento
vem carregado de informações relevantes e denotam sua elaboração de pensamento.
Ao experimentador cabe se questionar qual o significado da conduta do sujeito e
estar sensível ao que o sujeito está fazendo.
A experiência foi filmada e fotografada, assim como os trabalhos de registro foram
preservados para posterior análise.
A experiência ocorreu no ano letivo de 2009, em uma turma de dezenove alunos
com idades entre seis e sete anos, em uma escola municipal de Porto Alegre. Os alu-
nos possuem dois períodos de cinqüenta minutos de aula de música por semana,
em uma sala específica para esta prática. A escola possui uma sala de música com
dois teclados, três violões e uma diversidade de instrumentos de percussão. Neste
ambiente ocorreu a atividade aqui descrita, com a duração de dois períodos. O ma-
terial utilizado foi um teclado eletrônico, folhas de papel ofício, tesoura e hidrocor.
O experimento consistiu em construir um teclado de papel, como o teclado explo-
rado empiricamente por eles desde o início do ano. Na aula em que realizamos a ati-
vidade, sentamos em roda a fim de que todos pudessem observar o material,
manuseado por mim, primeiramente. O objetivo foi o de verificar se os alunos per-
cebiam a ordem necessária de teclas brancas e teclas pretas a fim de que reprodu-
zíssemos o teclado.
Comecei questionando de que forma poderíamos construir um teclado utilizando
folhas de papel ofício e canetinha preta. Os alunos sugeriram que cortássemos as fo-
lhas e pintássemos com a canetinha hidrocor as teclas pretas. Cortei uma folha de
ofício para formar oito teclas brancas e assim começar a montagem do nosso te-
clado de papel. Ao dobrar a folha ao meio o aluno “JOE” falou que dali surgiria
‘dois pianos’, referindo-se ao número de teclas depois de cortada a folha. No mo-
mento em que a folha foi novamente dobrada, “MAU” disse ‘aí vai sair três’. No
422 entanto, três alunos falaram que seriam quatro teclas. Segurando a folha dobrada
questionei quem achava que seriam três e quem achava que seriam quatro teclas,
ao passo que somente três alunos de dezenove acharam que seriam quatro teclas.
Este episódio demonstrou que algumas crianças estavam inferindo elementos da
experiência de forma diferenciada. O fato de estarem vendo o processo de dobra não
significa ainda a conservação da quantidade que ali se ‘esconde’. Está implícito no
dobrar um esquema de multiplicação dos elementos, o que nem todos consegui-
ram deduzir.
Este fato me antecipou a idéia de que a turma como um todo precisaria visualizar
o teclado para construir o de papel, mas na construção em grupo, aqueles que re-
cordavam as experiências práticas no instrumento, auxiliaram os outros na cons-
trução de teclas brancas e pretas.
Após o recorte, disponho no centro da roda oito teclas brancas e pergunto quan-
tas teclas pretas precisamos para formar o teclado. Um aluno diz ‘oito pretas’, mas
o aluno “JOE” comenta: ‘não, porque tem uma parte que tem duas teclas brancas’.
Outro aluno comenta que ‘são duas e três pretas’, como ele recorda do teclado ver-
dadeiro. Neste momento pergunto quem se lembra do nome das notas musicais.
Depois de entoarem a escala ascendente pergunto à turma o que tem a ver esses
nomes das notas com as teclas e ninguém responde, o que denota uma não relação
entre o que eles cantam e o teclado como organização desses sons. Após construir-
mos o primeiro conjunto de duas e três pretas, ou seja, uma oitava, questiono o que
virá a seguir e “VIC” responde ‘quatro pretas’, como se as teclas pretas seguissem a
ordem natural da numeração. No entanto, alguns alunos intervêm dizendo que
após três teclas pretas retornam duas teclas pretas, o que implica conhecimento
sobre a organização espacial do teclado.
Significar um objeto é agir sobre ele de maneira que este apresente uma estrutura
de significações comum a todos os sujeitos em diferentes situações. Ao compreen-
der a escala, enquanto forma, o sujeito irá compreendê-la no piano, no teclado, no
acordeom, na escaleta, ou outro instrumento semelhante.
Maffioletti analisa profundamente em sua tese as construções e reconstruções das
idéias musicais das crianças na sala de aula. Sobre a escala, comenta:
Embora comporte uma estrutura lógica na composição dos intervalos, a sua re-
produção é facilitada pela familiaridade que caracteriza a cultura musical local.
A construção da escala a partir de elementos isolados ou soltos, no entanto,
supõe a abstração e a retenção na memória da seqüência da escala padrão. (Maf-
fioletti, 2005, p. 269)
As relações lógicas são conduzidas por uma necessidade de coerência que funciona
como norma. Se essa coerência não estiver presente, a criança guia-se pela percep-
ção, sem nada inferir para além do que é perceptível. A necessidade lógica reorga-
niza as reflexões da criança, fazendo-a avançar para além das constatações empíricas.
423
Na seqüência da atividade coloco o teclado no meio da roda para explorarmos e
compararmos nosso teclado de papel com o verdadeiro. Muitas crianças tocam no
teclado como se estivessem vendo-o pela primeira vez e dizem ‘Olha! As duas e três
pretas! É mesmo!’ A organização do teclado, neste momento, parece compreen-
dida, resta sistematizar os sons da escala naquele espaço. Quando “MAU” de-
monstra com os dedos a organização das teclas na direção agudo-grave, “LUC” lhe
diz que ele está ao contrário, ao que pergunto: como assim ao contrário? ‘Está er-
rado, tem que começar de duas’, ou seja, do grave pro agudo, mas não sabem dizer
o porquê. Acredito que neste momento, o fato de termos montado o teclado da di-
reita para a esquerda, tenha influenciado o aluno a acreditar nesta ordem necessá-
ria, e muitas vezes ‘viciamos’ nossos alunos com sentidos e ordens necessárias, por
repetirmos sempre da mesma forma aquela ação, seja em música, ou em operações
matemáticas ou jogos de regras.
Após a exploração do teclado pelos alunos, retornamos à sala de aula da turma e
realizamos o trabalho de registrar a atividade com desenhos. No desenho de “JUL”
e “MAR” o teclado obedece a organização espacial correspondente, com duas e três
teclas pretas intercaladas. No entanto, “JOE”, que muito falou durante a atividade,
não organizou seu teclado da forma convencional, mas com o mesmo número de
teclas brancas e pretas. Ou seja, existem diversas formas de analisar a compreensão
do aluno. Por vezes, aquele aluno que verbaliza menos, pode estar internamente
elaborando novas hipóteses, e outros que parecem se valer de certezas em relação ao
que está sendo trabalhado, na hora de registrar não representam esta compreensão.
Beyer, em um estudo com crianças na escola analisou diferentes maneiras de de-
senvolvimento musical.
O que é pouco mencionado na literatura são as múltiplas possibilidades de que
um indivíduo possa se desenvolver musicalmente. Ficou bastante evidente por
nosso estudo que os alunos, embora tivessem realizado as mesmas atividades
com a mesma professora, demonstraram diferentes maneiras de perceber os sons,
sendo que alguns tendiam a absorver mais rapidamente a convenção adotada
para sons agudos e graves, enquanto outros preferiam construir um eixo. [. . .]
Estas possibilidades múltiplas de desenvolvimento podem ser influenciadas pelas
múltiplas escutas que uma pessoa pode desenvolver com relação a um objeto so-
noro. (Beyer, 1995, p.66)
Os caminhos percorridos pelos sujeitos na interação com a música se diferem qua-
litativamente. As crianças quando interagem com os sons carregam toda a sua his-
tória musical, desde os primeiros sons ouvidos na vida intra-uterina até aquele
instante de música que está sendo gravada no experimento. A música se constitui
um objeto interessante ou não de interação diferentemente para cada sujeito. É ne-
cessário que se respeite o interesse de cada criança e se amplie o espectro de ativi-
dades a fim de conquistar o interesse de todos.
Sobre a cognição musical, Beyer diz que esta se relaciona principalmente ao mo-
424
mento central no processo de interação do sujeito com o meio, assim como o ato
de pensar compreende várias etapas no processo. Estas etapas vão desde a percep-
ção, passando pela organização mental do indivíduo, que chega a idéias que possi-
bilitam uma expressão do material captado e elaborado. No caso desse experimento,
as etapas de compreensão do teclado e a elaboração e significação do mesmo com-
preendem este processo.
Segundo uma perspectiva piagetiana, a organização mental dos fenômenos ex-
ternos ou internos relaciona-se à constante busca de equilíbrio entre os proces-
sos de assimilação e acomodação. Cada indivíduo, porém, imprime
características peculiares em sua cognição, conforme interesses ou vicissidades
de sua vida cotidiana. (Beyer, 1996, p. 10)
O processo contínuo de assimilação e acomodação conduz o sujeito em direção ao
centro de sua consciência. Este centro do sujeito é a consciência da subjetividade de
seu ser, enquanto que o centro do objeto é a consciência do mundo externo. Cada
nova ação que carrega uma tomada de consciência provoca uma acomodação que
modifica o sujeito. Por sua vez, a acomodação é o processo de criação de um novo
esquema ou a modificação de um esquema já existente em função das particulari-
dades do objeto a ser assimilado. Todo o processo de busca, de crescimento e de
aprendizagem envolve esse movimento espiral de transformação.
[. . .] a criança não é puramente passiva ou receptiva em sua assimilação das es-
truturas lingüísticas ou dos conhecimentos escolares, e se vê obrigada a reela-
borar o que assimila: as etapas e os mecanismos desta reconstrução, portanto,
continuariam sendo um documento de capital importância para o estudo da
formação das noções e das condições do conhecimento. (Piaget, 1974, p.33)
Sendo assim, ao trabalhar com Música, precisamos estar atentos ao que mostram as
ações dos sujeitos em contato com os materiais musicais.
Perceber o aluno é estar atento a todas as manifestações de suas ações, quer sejam
elas práticas, verbais, ou de registro. Ponso sugere que a avaliação em música se dê
ao longo de todo o processo de aprendizagem. Deve-se “acreditar nas possibilida-
des de os alunos construírem suas próprias verdades e valorizar suas manifestações
e interesses. Cada dúvida, certeza, erro ou questionamento que ocorra no cotidiano
do trabalho deve ser considerado pelos professores como impulsionador de novas
questões” (Ponso, 2008, p.19).
Concluindo, podemos dizer que os alunos verbalizaram o que visualizaram sem
muita compreensão da função formal que cada elemento trazia consigo, quer seja
o teclado, a escala cantada, ou a organização das teclas. Para podermos falar em
compreensão da escala musical, é preciso sentir as funções tonais no seu interior.
Compreender a escala é diferente de entoar, porque a criança pode reproduzir a es-
cala como se fosse uma música qualquer. Os alunos não indiferenciam ‘forma’ e
‘conteúdo’, quando não relacionam a escala cantada com o produto da nossa expe-
riência, o teclado de papel. 425

Ao comparar o teclado de papel com o teclado eletrônico, os alunos o fizeram de


forma empírica, no entanto iniciaram um processo de significação daquele objeto,
pois agregaram a ele conhecimentos novos. A cada atividade com os nomes das
notas, sons ouvidos, cantados e tocados por eles, estas se constituem em experiên-
cias musicais que possibilitarão a formação de conceitos musicais mais tarde. No
caso do conhecimento musical, se as experiências de aprendizagem forem signifi-
cativas servirão de base a construções futuras.

Referências
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Maffioletti, Leda de Albuquerque. Diferenciações e Integrações: o conhecimento novo na
composição musical infantil. 2005. 279 f. Tese (Doutorado em Educação) - FACED,
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Ponso, Caroline Cao. Música em Diálogo: Ações Interdisciplinares na Educação Infantil. Porto
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Beyer, Esther. Os múltiplos desenvolvimentos cognitivo-musicais e sua influência sobre a
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senvolvimento na primeira infância. Revista da ABEM 3, n. 3. Salvador, 1996, p. 9-16.
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Delval, Juan. Introdução à prática do Método Clínico: descobrindo o pensamento das crianças.
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Piaget, Jean, W. E. Beth e W. Mays. Epistemologia Genética e Pesquisa Psicológica. Rio de ja-
neiro. Freitas Bastos, 1974.
Aprendizagem cooperativa: a diversidade como recurso
facilitador na aprendizagem do instrumento
Tais Dantas
426 tais.dantas@hotmail.com
Simone Braga
ssmmbraga@hotmail.com
Marcus Rocha
violinmus@bol.com.br
Universidade Federal da Bahia

Resumo
O presente trabalho descreve o produto de duas experiências no campo da educação musi-
cal que verificaram a possibilidade do uso da metodologia da aprendizagem cooperativa como
recurso facilitador da aprendizagem do instrumento musical realizada em grupo. Na pri-
meira experiência apresentada, realizada no Centro Estadual de Educação Profissional em
Produção e Design localizado em Salvador, foram aplicadas, em paralelo às aulas tutorias,
aulas complementares de caráter coletivo em que foram observados o desenvolvimento da
percepção auditiva, o ouvido polifônico, o reforço de princípios técnicos musculares, a am-
pliação de repertório proporcionadas através da interação entre pares. Como resultado foi
possível verificar: aceitação e reconhecimento da importância do colega no processo de
aprendizagem do instrumento, maior entrosamento e o desenvolvimento do sentido de grupo
entre os alunos. A segunda experiência relatada, foi observada no Colégio Adventista de Sal-
vador em duas turmas do Ensino Fundamental II, cujos alunos participam das aulas de ins-
trumentos de cordas friccionadas como uma das opções de linguagem artística oferecida na
disciplina Artes. Nesta experiência, dentre outras atividades, a resolução de atividades como
a leitura de novos trechos musicais, estudo compartilhado de peças trabalhadas em sala de
aula e a criação musical foram realizadas sob a perspectiva da utilização da colaboração como
estratégia de ensino e aprendizagem. Observando-se que além de promover maior interação
entre os alunos, proporcionou maior eficácia no aprendizado do instrumento musical.

Palavras-chave
Aprendizagem cooperativa, cognição musical, ensino instrumental.

Aprendizado Cooperativo:
um recurso facilitador da aprendizagem
Diante da diversidade natural existente em qualquer sala de aula a aprendizagem
cooperativa tem se mostrado um mecanismo extremamente útil para a gestão da
sala de aula (Monereo e Gisbert 2005, 09). “A aprendizagem cooperativa é uma
metodologia que transforma a heterogeneidade, isto é, as diferenças entre alunos –
que, logicamente, encontramos em qualquer grupo – em um elemento positivo que
facilita o aprendizado. Na verdade, os métodos de aprendizagem cooperativa não
tiram partido apenas das diferenças entre os alunos, mas muitas vezes precisam
delas. A diversidade, inclusive a de níveis de conhecimento – que tanto incomoda
o ensino tradicional e homogeneizador – é vista como algo positivo que favorece o
trabalho docente” (Monereo e Gisbert 2005, 09-10). De acordo com os autores a 427
aprendizagem cooperativa utiliza a heterogeneidade, ou seja, as diferenças entre
alunos como um elemento facilitador do aprendizado. Além da diversidade, os ní-
veis de conhecimento também favorecem o trabalho docente. Segundo Nakagawa
(2007), o Dr. Spencer Kagan foi um dos primeiros a estudar e utilizar a aprendiza-
gem cooperativa, desenvolvendo uma abordagem estrutural constituída de criação,
análise e aplicação sistemática de aproximadamente duzentas estruturas. Estas es-
truturas são atividades aplicadas por meio da interação e podem ser utilizadas em
diversos momentos da aula, em diferentes séries e disciplinas, fazendo com que tam-
bém se tornem adequadas às aulas de música. Ao professor cabe a tarefa de escolher
a mais adequada para a situação de aula e integrá-la ao seu conteúdo. A aprendiza-
gem cooperativa visa a construção da responsabilidade individual, liderança com-
partilhada, interação entre alunos e professor, responsabilidade de grupo,
interdependência entre alunos e a auto-reflexão grupal, contribuindo para o de-
senvolvimento dos alunos.
É natural que numa sala de aula a cooperação entre alunos ocorra, mesmo que não
seja uma estratégia direcionada para a aquisição de conhecimento. Numa classe de
ensino coletivo de instrumentos, pó exemplo, isso pode ser observado quando um
aluno tenta ajudar o outro corrigindo notas, postura e afinação. Contudo, a apren-
dizagem cooperativa deve ser pensada, direcionada e supervisionada pelo profes-
sor em momentos específicos, “como uma entre outras metodologias, o corpo
docente deve conhecê-la profundamente para utilizá-la de forma estratégica, isto é,
em função dos objetivos que se propõe a trabalhar e das condições e necessidades
dos alunos” (Monereo e Gisbert 2005, 10). No ensino coletivo a aplicação da apren-
dizagem cooperativa é condicionada muitas vezes pelo tipo de dinâmica aplicada em
sala de aula. Umas das formas de sua utilização, por exemplo, é a formação de pe-
quenos grupos de alunos, onde a resolução de uma tarefa por um grupo de alunos
é proposta pelo professor, como será exposto mais a diante na descrição das expe-
riências. Contudo, a prática educacional demonstra que a depender da forma como
a aula é desenvolvida pelo professor este recurso fica bastante limitado. Muitas vezes
o professor não assume o papel de mediador, colocando-se à frente do grupo de
forma autoritária ao fornecer instruções e passar informações aos alunos, e a de-
pender do grau em que os alunos estão envolvidos e concentrados, torna-se inviável a
aplicação da aprendizagem colaborativa. “A implementação de um modelo coope-
rativo pressupõe a criação, análise e aplicação sistemática de estruturas ou formas
de organização da sala de aula que favoreçam a interação social, não se restringindo
assim, a uma simples disposição dos estudantes em grupo. Essas estruturas garan-
tem um conjunto de procedimentos que promovem a interatividade entre os estu-
dantes, permitindo que alcancem mais facilmente os objetivos propostos” (Kagan
1990, apud, Meneses, Barbosa e Jófili, 2007, 52).
428
Monereo e Gisbert chamam a atenção para o fato de que a utilização deste recurso
didático ganhou corpo com a reforma educacional, uma vez que até então a trans-
missão de conhecimento era predominantemente realizada através das interações
professor-aluno. “A adoção da concepção construtivista do ensino e da aprendiza-
gem, em que se fundamenta o atual sistema educacional, provocou a consideração
educativa das interações que ocorrem nas salas de aula entre alunos. Ao afirmar que
o/a aluno/a constrói seu próprio conhecimento a partir de um processo interativo,
no qual o papel do/a professor/a é mediar entre o/a aluno/a e os conteúdos, o cons-
trutivismo sugere a possibilidade em que, em determinadas circunstâncias, os alu-
nos possam ser protagonistas desse papel mediador. Os alunos também aprendem
uns com os outros” (Monereo e Gisbert 2005, 11).
A transmissão de conhecimentos através da interação é proporcionada, muitas vezes,
pela semelhança linguagem utilizada entre os estudantes, os alunos “falam a mesma
língua”. E o que determina o resultado cognitivo pode ser simplesmente a forma
como os alunos se comunicam, como transmitem a informação, como se interpre-
tam e como explicam um ao outro. Aliado a estes fatores, destaca-se o fato de os
alunos podem estar operando na mesma Zona de Desenvolvimento Proximal –
ZDP. Este conceito proposto por Vygotsky refere-se a uma zona entre o desempe-
nho real, ou seja, aquela em que o indivíduo é capaz de solucionar determinado
problema sem auxilio de terceiros, e o desempenho potencial alcançado através da
intervenção de uma pessoa mais capacitada, determinando a mudança do nível de
conhecimento. Corroborando essa idéia Woolfolk (2005, 57) afirma que “às vezes
o melhor professor é outro aluno que acaba de resolver o problema, porque ele está
operando na mesma zona de desenvolvimento proximal do aprendiz”.
Pode-se observar, constantemente, que o nível de interação aluno-aluno é maior
que entre aluno e professor, e se dá pelo fato de que os alunos se desinibem mais
entre si. Mas, usufruir da aprendizagem cooperativa não significa apenas deixar que
os alunos explorem essa interação. Ao professor cabe o papel de determinar res-
ponsabilidades e os papeis a serem desempenhados. Como exemplo, a cooperação
entre pares, aplicada numa aula coletiva de instrumento de cordas, pode ser pro-
porcionada na utilização de um repertório que permita a participação de alunos de
diversos níveis na mesma aula, e dependendo da dinâmica utilizada, o professor po-
derá propor uma atividade que contemple a cooperação, solicitando que um aluno
mais avançado auxilie outro aluno na execução de um trecho musical que esse já
conheça e saiba como fazer, devendo auxiliar no entendimento de ritmos, dedi-
lhados, mudança de posição, e outros.
Outra proposta de atividade musical que se apropria de maneira eficiente da coo-
peração é a criação (composição de trechos musicais). Esta atividade pressupõe, em
primeiro lugar, que os alunos tenham conhecimento suficiente para desenvolver a
tarefa proposta e, a partir da divisão de responsabilidades entre os alunos e através
de um auxílio mútuo, é possível que a cooperação entre ambos proporcione resul- 429
tados positivos na aquisição de conhecimentos. Algumas pesquisas têm demons-
trado a eficácia da aprendizagem cooperativa nesse tipo de situação, a respeito de
John (2006) que destaca o papel fundamental da colaboração em experiências de
aprendizagem com atividades musicais de composição.
Outras pesquisas sobre a aprendizagem cooperativa foram realizadas no campo da
música, a respeito de Macdonald, Miell e Mitchell (2002) investigaram os efeitos
das relações de amizade e de idade em atividades musicais realizadas de forma co-
laborativa. A relevância da cooperação foi verificada em muitos dos momentos
desta pesquisa quando se pôde observar, na prática, nas aulas realizadas no Colégio
Adventista de Salvador a aplicação deste recurso durante as aulas de instrumentos
cordas e no Centro Estadual de Educação Profissional em Produção e Design na
disciplina Instrumento, que são expostas a seguir.

Experiência 1
A experiência foi desenvolvida no Centro Estadual de Educação Profissional em
Produção e Design, localizado em Salvador. O centro oferece três cursos profissio-
nais destinados a adolescentes e jovens: artes visuais, documentação musical e téc-
nico em instrumento. A experiência, realizada no curso técnico na disciplina
instrumento (teclado), foi dirigida aos iniciantes na prática instrumental, sem ou
com pouca experiência prévia do instrumento teclado.
As aulas, inicialmente, eram realizadas em caráter tutorial. Entretanto, verificou-se
que alguns fatores dificultavam o seu desenvolvimento como a falta do instrumento
para o treino domiciliar, por parte de alguns alunos, e a dificuldade inicial da apren-
dizagem do instrumento, por parte de outros. Todavia, o que mais comprometia o
processo de ensino-aprendizagem foi identificado, pelos próprios alunos, como
sendo a solidão. A ausência de espaços que promovessem a partilha de dificuldades
e troca de experiências, nesta fase inicial do ensino instrumental, foi intensificada
pela matriz curricular em vigor. Em virtude das mudanças administrativas e orga-
nizacionais do curso, foram necessárias algumas adaptações como a troca do nome
da escola, a relaboração da proposta pedagógica, mudança do currículo e o acrés-
cimo dos cursos artes visuais e documentação musical. Desta forma, as disciplinas
canto coral e prática em conjunto, que oportunizavam o fazer musical coletivo,
foram eliminadas. Consequentemente, a possibilidade do desenvolvimento de ha-
bilidades musicais através da prática coletiva, como percepção auditiva, ouvido po-
lifônico, contextualização de conteúdos teóricos musicais, foram dificultadas.
Segundo a concepção filosófica-pedagógica de Swanwick (2003), tais habilidades
devem estar presentes na formação.
De acordo com Swanwick (2003), o ensino musical deverá promover o desenvol-
vimento de experiências musicais variadas para oportunizar o contato musical em
sua totalidade. O autor apresenta um modelo denominado C. (L). A. (S). P, tra-
430
duzido pelas educadoras Alda Oliveira e Liane Hentschke para T.E.C.L.A. No mo-
delo as atividades de apreciação, composição e execução, são consideradas centrais
por promoverem o fazer musical, a ser consolidado pelas atividades de técnica e li-
teratura. Assim, ouvir, tocar e criar, devem ser desenvolvidos equilibradamente. En-
quanto que o conhecimento do repertório, a identificação de estilo, forma,
tonalidade, entre outros, deverão fundamentar as atividades anteriores, assim como
a abordagem técnica na execução do instrumento.
Esta concepção de formação musical reforça a necessidade do desenvolvimento das
habilidades citadas anteriormente: percepção auditiva, ouvido polifônico, contex-
tualização de conteúdos teóricos musicais. Ao comparar com o modelo, a percep-
ção auditiva e o ouvido polifônico promoveria a apreciação e a contextualização de
conteúdos, representaria a literatura, complementos para a execução. Mas como
desenvolvê-las na estrutura do curso?
Além desta lacuna quanto a formação musical, os espaços para promoção da inte-
rações entre os alunos não eram oportunizados. Apesar das disciplinas teóricas
serem ministradas coletivamente, não havia condições temporais para a promoção
da partilha das expectativas, anseios e dificuldades referentes à prática instrumen-
tal entre os alunos. Com o objetivo de oportunizar experiências da prática em grupo,
o desenvolvimento da percepção auditiva, o ouvido polifônico, o reforço de prin-
cípios técnicos musculares, a ampliação de repertório e a interação entre pares,
foram aplicadas, em paralelo às aulas tutorias, aulas complementares em caráter co-
letivo. Estes objetivos também podem ser atingidos em aulas coletivas individuais,
todavia, a interação entre pares foi a ferramenta pedagógica utilizada nesta situação,
para despertar a motivação na iniciação musical.
Para tanto, foi elaborado o Projeto Conjunto de Teclados, extensivo as aulas dos
alunos do 1º ano A. Os recursos disponíveis para a realização foram teclados e fones
de ouvidos para a execução instrumental simultânea. Para alcançar os objetivos, ci-
tados acima, as aulas foram planejadas segundo princípios da aprendizagem coo-
perativa, com a freqüência quinzenal, às sextas-feiras das 12h às 13:30h. O horário
foi estabelecido pela disponibilidade de tempo dos alunos participantes. Estes, por
sua vez, após apresentação do projeto, foram convidados a adesão a atividade. Ini-
cialmente, o projeto contou com a participação de 70% dos alunos, posteriormente
a adesão foi de 80% dos alunos e no final, contava com a adesão de 90% dos alunos.
Na culminância do projeto foi realizada uma aula pública para a comunidade es-
colar.
O projeto centrou-se em arranjos para o instrumento teclado e peças das aulas tu-
toriais, para proporcionar a participação de alunos em diferentes níveis. As peças ex-
traídas da aula tutorial apresentaram pouco grau de dificuldade para que todos, in-
dependentes da habilidade técnica, pudessem executar. Por meio desta execução,
os pares serviram de referência para estabelecer troca de informações e experiên-
cias. Observar, comparar e verbalizar esta análise motivou o desenvolvimento da
auto-avaliação dos alunos. Enquanto isso, nos arranjos para o conjunto as diferen- 431
ças de habilidades técnicas foram valorizadas. Todavia, a junção da parte de cada
participante é que proporcionava a beleza do arranjo e a importância do fazer mu-
sical em grupo. Além deste repertório foram abordados padrões de acompanha-
mento, escalas e exercícios técnicos para sanar dificuldades detectadas nas peças
executadas, conforme descrição das atividades abaixo:
Desenvolvimento da percepção auditiva
Foram propostas atividades de escuta entre os alunos através da apreciação da exe-
cução individualizada e em grupo. Nesta atividade os recursos do teclado foram ex-
plorados para seleção de timbres, ritmo e padrões para acompanhamento. Neste
processo de seleção promoveu-se a discussão acerca das possibilidades de utilização
destes recursos, sempre pautados no ouvir.
Desenvolvimento do ouvido polifônico
Com o objetivo de complementar a atividade anterior, os exercícios realizados em
conjunto destacaram o ouvir na produção coletiva. Foram abordadas a equalização
da intensidade entre solo e o acompanhamento, a criação de frases melódicas para
inserção no repertório e a execução de progressões harmônicas para acompanhar as
melodias executadas.
O reforço de princípios técnicos musculares
Durante a realização do projeto, toda a execução dialogava com os aspectos técni-
cos musculares. É interessante reforçar que a observação e a contextualização de
tais informações foi realizada pela docente e também pelos alunos.

A ampliação de repertório
A adoção de uma única peça a ser executada individualmente, somada ao repertó-
rio para o grupo, contribuiu para a motivação em relação ao repertório. Através da
motivação, os alunos trocavam peças extracurriculares entre si e esta troca permi-
tiu a ampliação do repertório de cada participante.
Resultados observados
Em todas as atividades buscou-se desenvolver a troca e construção de conheci-
mentos musicais através da interação entre pares, e com esta estratégia a realização
do projeto atingiu o objetivo proposto. Verificou-se maior desenvolvimento dos
alunos acerca de dificuldades de cunho técnico, articulação da execução com as-
pectos técnicos, ampliação do repertório de peças instrumentais, criação de espaço
para a construção do conhecimento coletivamente, reforço do senso crítico quanto
a execução musical e audição. A interação promoveu e oportunizou a construção
coletiva de conhecimentos musicais estreitando relacionamento entre pares, ani-
432 quilando com o fator solidão.

Experiência 2
Em uma aula de música dialógica, participativa, num ambiente coletivo é impossí-
vel um professor manter uma postura centralizadora em que detém, em todos os
momentos, a atenção dos alunos voltada para si como se ele fosse o único possui-
dor do direito de ensinar, independendo da colaboração dos participantes da aula.
Uma aula é mais prazerosa, para os alunos e também para o professor, quando existe
a chance de todos participarem dando contribuições que ajudem na compreensão
do conteúdo e torne mais fácil a aquisição do conhecimento, influenciando no de-
senvolvimento positivo da aula, ou seja, que traga benefícios tanto para os alunos
quanto para o professor.
Foi com este pensamento de participação, contribuição e prazer que aconteceram
as aulas de música com os alunos da 5ª série do ensino fundamental na Escola Ad-
ventista de Salvador. Aulas coletivas de instrumentos de cordas são ofertadas aos
alunos interessados em participar das aulas de música, e que selecionados por meio
de uma avaliação, caso a procura seja maior que o número de vagas. Ao ingressarem,
os alunos não participam da matéria Artes utilizando o horário para as aulas de
Música. As aulas não eram voltadas inteiramente ao aprendizado do instrumento,
sobretudo objetivava o desenvolvimento musical integral dos alunos. O objetivo
geral era propiciar o aprendizado musical que favorecesse a apreciação, a criatividade
e a execução instrumental e especificamente alguns objetivos como vivência de ele-
mentos sonoros, percepção do corpo como produtor de som, interpretação de grá-
ficos sonoros, execução de diferentes instrumentos musicais e materiais sonoros,
entre outros.
A carga horária semanal correspondia a quatro horas/aula distribuídas em dois en-
contros. No primeiro encontro semanal, com duas horas aula de 45 minutos cada,
todo o grupo era envolvido, onde era trabalhado o conhecimento geral do instru-
mento, vivências, atividades de composição, apreciação, percepção e a integração so-
cial. No segundo encontro, também com duas horas/aula, a turma era dividida em
pequenos grupos de dois a quatro alunos, separados em ambientes diferentes, onde,
além do aprendizado peculiar de cada instrumento, era proposta a resolução das
seguintes atividades: leitura de novos trechos musicais, estudo compartilhado de
peças trabalhadas em sala de aula e a criação musical.
No início das aulas, o acolhimento dos alunos era sempre marcado por uma ativi-
dade de integração. Um dos objetivos era trazer a concentração dos alunos para o
ambiente da aula de música, dissipando de suas mentes pensamentos de outros fa-
zeres que viessem tirar sua atenção ou deixá-los dispersos. Quando os alunos en-
travam na sala já tinha uma música sendo tocada no aparelho de som, que na
maioria das vezes seria usada na atividade ou possuía elementos que seriam enfati-
zados no decorrer da aula. As atividades de integração eram realizadas nos encon- 433
tros que envolviam todo o grupo e eram pensadas de acordo os objetivos propostos
para a aula.
Como exemplo de uma das atividades de integração, os alunos eram dispostos em
formato de círculo, de mãos dadas e ouvindo uma música, cirandavam para um
lado e para o outro de acordo a indicação do professor. Em determinado momento
dividiam-se em pares e continuavam a ciranda. Por várias vezes os pares eram des-
feitos e novos pares formados até que, finalmente, voltaram à formação inicial, com
todos de mãos dadas. Era muito interessante observar que nessa atividade, na for-
mação de pares, com a velocidade dos acontecimentos nenhum aluno queria ficar
sozinho aceitando de bom grado o colega com quem formou par, sendo evitadas,
assim, escolhas individuais. A realização deste tipo de atividades tinha como obje-
tivo maior desenvolver a percepção dos alunos quanto à importância do outro no
desenvolvimento de tarefas compartilhadas, e consequentemente preparando-os
para atividades subseqüentes que envolvessem a cooperação.

Vivência de Elementos Sonoros


Essas atividades possuíam como propósito tornar o aluno competente para obser-
var o som e distinguir seus atributos, comparando, relacionando e julgando entre
um e outro som e, por fim, elaborar conceitos individuais e coletivos sobre os as-
pectos sonoros. Nestas atividades era introduzida a leitura de gráficos e, posterior-
mente, feita a conexão com a escrita musical. Para sua realização os alunos ficavam
em círculo, em pé ou sentados, e eram usados instrumentos de percussão, objetos
sonoros e o corpo.
Numa dessas vivências os alunos deveriam acompanhar gráficos de altura dese-
nhados na lousa, executando com um agogô. Antes passaram pelo processo de co-
nhecimento do instrumento e identificação dos sons retirados dos dois cones, som
grave e agudo. Cantaram esses sons para que pudessem perceber melhor a diferença
entre eles e assim se prepararam para a interpretação do gráfico com o instrumento.
Foram apresentados vários gráficos e cada aluno interpretaria um. A atividade co-
meçou e no seu decorrer alguns alunos não conseguiam executar o gráfico. Vendo
esta dificuldade, alguns colegas manifestaram interesse em ajudá-los espontanea-
mente. Propondo a eles que observassem melhor como alguns estavam fazendo, e
enquanto os colegas faziam davam-lhe explicações. Com a observação da execução
e explicação dos colegas aqueles alunos que apresentaram dificuldades na execução
da tarefa conseguiram, por fim, compreender como era realizada a tarefa. Neste
caso, o professor, percebendo que os alunos com dificuldade não se colocaram con-
trários à colaboração dos colegas, deixou que eles se entendessem, pois dali poderia
sair o precioso resultado da cooperação.

434 Criação Musical


As atividades de criação musical eram voltadas para a composição de ritmos e me-
lodias, pelos próprios alunos, visando colocar em prática conhecimentos musicais
adquiridos até aquele momento, levando-os a se deparar com as dificuldades da es-
crita e a superá-las através da busca de soluções e aplicação do conteúdo estudado.
Para fazer com que o processo produtivo fosse acelerado, e os objetivos não se per-
dessem no tempo, tolhendo a capacidade criadora por excesso de atividades ou de-
longamento de prazos, as atividades de criação musical eram aplicadas em semanas
em que as duas aulas fossem realizadas sem a interferência de feriados ou outras
programações da própria escola, podendo-se aproveitar os dois encontros semanais
para realizar a atividades.
Foi pedido aos alunos que, cada um, compusesse uma melodia de oito compassos,
dividida em duas frases de quatro compassos. Algumas regras deveriam ser seguidas
para dar sentido à melodia e facilitar a composição: a primeira e a última nota das
frases eram definidas pelo professor; a tessitura deveria estar dentro oitava conhe-
cida por eles; somente deveria escrever, rítmico e melodicamente, o que consegui-
ria tocar. Nestas atividades era proporcionada aos alunos total liberdade dentro do
procedimento de criação, para que os mesmos se ajudassem. Assim, apesar do pro-
fessor estar acompanhando e tirando as dúvidas, os alunos não ficavam sozinhos
nos seus lugares, se agrupavam, dialogavam, viam o que o outro estava fazendo, ti-
ravam dúvidas, consertavam o que estava diferente e se dispunham positivamente
no intuito de ajudar. Na apresentação da atividade, quando cada um tocaria a sua
composição, que durante o processo de criação foi sendo desenvolvida com a cola-
boração entre alunos. Alguns se candidataram para serem os apresentadores do pro-
grama e os demais se colocaram como platéia motivando os executantes,
percebendo sua importante participação no processo de realização conjunta da ati-
vidade. Como resultados foram observados uma aceleração na efetivação de resul-
tados durante realização da tarefa, o envolvimento na resolução de problemas, a
participação efetiva entre alunos no processo de criação, e o reconhecimento do
papel do outro no processo de aprendizagem.

Estudo do Instrumento
O aprendizado do instrumento era realizado nos dois encontros semanais. No pri-
meiro encontro o estudo abrangia um caráter geral, onde eram trabalhados con-
juntamente os quatro instrumentos formadores da orquestra de cordas. No
segundo encontro se buscava trabalhar as especificidades técnicas dos instrumen-
tos, onde o grupo era separado por naipe.
Tanto em um como no outro encontro havia dois momentos. Um em que o pro-
fessor atuava explicando, corrigindo, ensinando, regendo e orientando no que de-
veria ser feito e outro em que, presente ou não, deixava os alunos interagirem e
435
resolverem os problemas do aprendizado trocando idéias, tocando juntos, estu-
dando as lições, as novas melodias, o trecho musical difícil, a arcada, o dedilhado e
a afinação. Era neste segundo momento que a colaboração entre eles acontecia ple-
namente trazendo resultados favoráveis ao desenvolvimento musical.

Refletindo sobre as atividades


Em todos os finais de aula fazia-se uma reflexão sobre os acontecimentos a ela rela-
cionados. O diálogo era o meio usado para que o aluno refletisse sobre esses acon-
tecimentos e sobre suas ações, tanto para lembrar o que foi estudado transmitindo
e o que tinha aprendido, quanto para fazer avaliação do seu comportamento, da
sua atuação nas atividades realizadas, da disciplina e do conteúdo trabalhado. Na re-
flexão cada um ficava sabendo o que o outro pensava e podia verificar que as facili-
dades e dificuldades eram inerentes a todos, com isso sentiam-se mais recíprocos e
se auto-ajudavam visando melhorar a aquisição de conhecimentos. A reflexão levava
o aluno a perceber que ele era importante e que suas opiniões tinham valor, pois al-
guém queria escutá-lo e saber o que tinha a dizer, proporcionado mais segurança e
proximidade com os colegas e com o professor.

Considerações
A educação musical, além proporcionar a criação de ambientes interdisciplinares
contribuindo para a formação integral do indivíduo, representa um fator signifi-
cativo no desenvolvimento do comportamento social A aprendizagem cooperativa
é um recurso didático aplicado a um determinado grupo de alunos que se une em
torno da resolução de uma tarefa comum. A possibilidade de reunir diversos alunos
que aprendem um instrumento musical deve ser aproveitada pelo professor para
favorecer sua prática pedagógica, em vez de evitar que os alunos se comuniquem e
interajam, deve tirar proveito da situação de forma consciente e planejada, acarre-
tando em importantes ganhos para a cognição musical.
Dantas (2010) verificou através de uma pesquisa realizada com um grupo de pro-
fessores e alunos do ensino coletivo que este recurso é muito pouco usado pelos
professores, e muitas vezes não é bem interpretado, existe certa confusão em torno
da definição da aprendizagem cooperativa, muitas vezes o ato de cooperar acaba
sendo confundido como uma simples colaboração em sala de aula, como organizar
a classe e não incomodar o colega, por exemplo. De acordo com a investigação rea-
lizada em sua pesquisa, existe uma grande aceitação por parte dos alunos na aplica-
ção do aprendizado cooperativo durante as aulas de instrumento com a realização
de atividades musicais envolvendo a cooperação e a colaboração. Destacando em es-
pecial o seguinte fato: os alunos demonstram reconhecer a importância do outro no
seu processo de aprendizagem.
É preciso salientar que devido a sua importância, as pesquisas sobre aprendizagem
436
cooperativa no âmbito do ensino de música ainda requerem maior aprofunda-
mento. Através da abordagem da presença da aprendizagem cooperativa no ensino
coletivo pretendeu-se destacar que este recurso pode ser utilizado de maneira efi-
ciente trazendo inúmeros benefícios para a aprendizagem musical, uma vez que o
ensino coletivo proporciona a elaboração de estratégias para a colaboração e coo-
peração entre alunos que aprendem um instrumento musical. Estas estratégias po-
derão beneficiar e influenciar outras modalidades educacionais como aulas tutorias.
A experiência apresentada neste artigo destaca que a utilização de ferramentas uti-
lizadas nesta aprendizagem possibilita o desenvolvimento musical no instrumento.
As atuais mudanças na sociedade pós-moderna indicam a necessidade da promoção
da interação entre alunos. Desta forma, a adoção do modelo tutorial também de-
verá permitir espaços para interação e troca entre os alunos.
Referências
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terações na aprendizagem musical em grupo. Dissertação de Mestrado. Universidade
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Woolfolk, Anita E. 2000. Psicologia da educação. Porto Alegre: Artemed.
A motivação no processo de ensino e aprendizagem
musical realizado a partir de aulas coletivas:
relato de pesquisa concluída
437
Tais Dantas
Tais.dantas@hotmail.com
Pós-graduação em Música da Universidade Federal da Bahia

Resumo
O presente artigo apresenta os resultados obtidos na pesquisa de mestrado em Educação Mu-
sical, realizada na UFBA sob orientação do professor Dr. Luiz César Marques Magalhães.
Esta pesquisa investigou, dentre outros aspectos, os seguintes pontos relacionados à motiva-
ção nas aulas coletivas de instrumentos musicais: (1) a contribuição das aulas coletivas no
desenvolvimento da motivação; (2) os fatores que influenciam a motivação; (3) as inter-re-
lações aluno-aluno e aluno-professor e como estas interferem e estruturam a motivação nas
aulas coletivas. A concepção metodológica desta pesquisa, que pode ser classificada como
exploratória, possibilitou o entendimento de diversos aspectos relativos à motivação nas aulas
coletivas. O procedimento metodológico adotado foi o estudo de caso, e envolveu professo-
res do ensino coletivo e alunos do ensino fundamental do Colégio Adventista de Salvador,
onde aulas coletivas de instrumentos de cordas são oferecidas como opção na disciplina Artes.
Utilizou-se como instrumentos de coleta a entrevista espontânea para professores e a entre-
vista focada para os alunos. A pesquisa bibliográfica teve caráter interdisciplinar e apoiou-se
em áreas que ofereceram suporte aos parâmetros investigados, particularmente: educação
musical, psicologia da educação, psicologia social e a psicologia da música. A conclusão desta
pesquisa proporcionou o entendimento de determinados aspectos presentes no ensino co-
letivo que contribuem para a motivação dos alunos no processo de aprendizagem, em espe-
cial: a referência do outro no estímulo para um maior empenho na resolução de tarefas; o
planejamento e o olhar do professor sobre os diversos níveis de desempenho existentes na
turma; a importância do convívio social como facilitador do processo motivacional no estudo
do instrumento; e as articulações das motivações intrínseca e extrínseca no processo de apren-
dizagem.

Palavras-chave
Motivação, aprendizagem musical, aulas coletivas.

Introdução
Dar os primeiros passos na música a partir do ensino coletivo de instrumentos é
extremamente motivante. Oliveira (2008, 01) acredita que o aprendizado musical
é mais agradável quando feito em grupo, e as razões para isto encontram-se no fato
de que o aluno compartilha suas dificuldades com os colegas, o aluno se sente parte
de uma orquestra, e a qualidade musical é maior quando comparado ao estudo in-
dividual. Moraes (1997, 71) afirma que “a motivação e a interação social são os ele-
mentos apontados como os grandes responsáveis pelo incremento do aprendizado
musical”.
A motivação é definida por Tapia e Fita (2006, 77) como “um conjunto de variá-
veis que ativam a conduta e a orientam em determinado sentido para poder alcan-
438
çar um objetivo.” Segundo O’Neill e Mcpherson et al (2002, 31) “as teorias atuais
vêem a motivação como uma parte integrante da aprendizagem que auxilia os alu-
nos na aquisição da gama de comportamentos adaptativos que irá proporcionar-
lhes a melhor chance de alcançar seus próprios objetivos pessoais.”
Diante da importância da motivação como fator determinante da aprendizagem,
este trabalho buscou verificar como se dão os processos motivacionais nas aulas co-
letivas de instrumentos musicais a parir de um olhar sobre a interação aluno-aluno
e aluno-professor durante a aprendizagem.
Um dos pontos abordados no trabalho foi a relação existente entre a interação no
grupo e o desenvolvimento das motivações intrínseca e extrínseca. A motivação in-
trínseca é aquela que está ligada ao próprio desenvolvimento da tarefa, ou seja, “re-
fere-se à escolha e realização de determinada atividade por sua própria causa, por
esta ser interessante, atraente ou, de alguma forma geradora de satisfação” (Gui-
marães 2001, 37). O indivíduo sente-se motivado para realizar uma determinada
tarefa e provoca a execução da mesma, pois a satisfação encontra-se no próprio pro-
cesso de efetivação da tarefa.
No campo educacional a motivação intrínseca representa importante papel no de-
sempenho escolar. Guimarães (2001, 37) afirma que “envolver-se em uma ativi-
dade por razões intrínsecas gera maior satisfação e há indicadores de que esta facilita
a aprendizagem e o desempenho.” Ainda segundo a mesma autora (2001, 10) no
contexto específico da sala de aula, as atividades do aluno, para as quais o mesmo
deve estar motivado, têm características diferenciadas de outras atividades huma-
nas igualmente condicionadas à motivação.
Uma das formas de se relacionar a motivação intrínseca ao estudo do instrumento
musical, encontra-se nos resultados esperados a partir do esforço investido tecni-
camente no estudo do instrumento. O que faz com que o aluno evolua gradual-
mente nas suas habilidades de tocar e progrida no repertório estudado. Toda vez
que o aluno empenha-se durante os estudos de música seu nível técnico tende a
evoluir, assim sendo ainda pode-se relacionar a motivação intrínseca aos resulta-
dos esperados a partir do esforço investido tecnicamente no estudo do instrumento,
que teria como conseqüência a evolução nas habilidades de tocar e a progressão gra-
dual no repertório estudado.
Contudo, a motivação não se constitui num fato ou instante isolado em si, mas sim
em todo um processo que se desdobra em várias fases ou etapas. No início da tarefa,
durante sua execução, e até a conclusão da mesma, “a motivação para alcançar um
objetivo distante articula-se com as motivações sucessivas para cada uma das etapas
que podem levar a ele, o que equivale a distinguir uma motivação orientando a ati-
vidade do sujeito para tarefas imediatas de uma motivação orientada para objetivos
mais distantes” (Foulin e Mouchon 2000, 94).
439
Isso nos faz refletir sobre uma outra forma de motivação que está associada aos re-
sultados que o empenho numa determinada tarefa pode trazer: a motivação ex-
trínseca. Quando um indivíduo sente-se motivado para a realização de determinada
tarefa, e a satisfação encontra-se nos resultados que a mesma pode trazer, dizemos
que o indivíduo está motivado extrinsecamente. A motivação extrínseca, em opo-
sição à motivação intrínseca, não está ligada a execução de determinada tarefa, mas
sim aos resultados que esta pode proporcionar. Guimarães (2001, 46) destaca que
“a motivação extrínseca tem sido definida como a motivação para trabalhar em res-
posta a algo externo à tarefa ou atividade, como para a obtenção de recompensas,
materiais ou sociais, de reconhecimento, objetivando atender aos comandos ou
pressões de outras pessoas ou para demonstrar competências ou habilidade.”
No ensino coletivo de instrumento o aluno está motivado intrinsecamente ou ex-
trinsecamente? Se partirmos da proposição de que o aluno de música opta por um
desejo pessoal, podemos afirmar que satisfação apresentada no processo de estudo
e execução do instrumento estaria diretamente ligada à motivação intrínseca, onde
o ato de executar o instrumento geraria prazer e satisfação no aluno. Por estar ligada
a fatores externos, a motivação extrínseca também pode ser percebida no ensino
coletivo através de alguns aspectos. Numa sala de aula de ensino em grupo além do
professor, que tem um importante papel na motivação do aluno, o estudante conta
ainda com a presença dos demais colegas. Desta forma pode-se afirmar que existe
uma motivação extrínseca gerada pela convivência em grupo, o que estaria eviden-
ciada na busca pelo reconhecimento do grupo e na necessidade que o aluno tem
em demonstrar que também é capaz de executar o instrumento de maneira satisfa-
tória, e assim os alunos se sentiriam recompensados ao atingirem tais objetivos, ou
seja, tais ações estariam ligadas à motivação extrínseca.

A pesquisa de campo
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas com professores do ensino
coletivo e alunos de duas turmas da 5ª série do ensino fundamental II do Colégio
Adventista de Salvador que participam das aulas de instrumentos de cordas na dis-
ciplina Artes.
A coleta de dados com os professores do ensino coletivo foi realizada por meio de
entrevistas espontâneas, cuja escolha se deu pelo fato de que as mesmas possibilita-
ram a obtenção de dados mais amplos a partir do ponto de vista dos professores.
As questões foram elaboradas de maneira parcialmente estruturadas, ou seja, “guia-
das por relação de pontos de interesse que o entrevistador vai explorando ao longo
de seu curso” (Gil 2008, 117). Como coloca Yin (2006, 117), a realização da en-
trevista espontânea nos permite tanto obter informações sobre o fato relacionado
ao assunto, quanto obter a opinião dos entrevistados sobre determinados eventos,
440 e inclusive utilizar as interpretações apresentadas pelos respondentes como base
para uma nova pesquisa. Fato este verificado nesta pesquisa, onde a entrevista com
os professores serviu como base para a investigação com os alunos. Este tipo de en-
trevista permitiu também maior flexibilidade, uma vez que se entrevistou profes-
sores de diferentes modalidades do ensino coletivo.
Para a obtenção dos dados junto aos alunos optou-se pela realização de entrevistas
focadas, a partir de questões estruturadas, que segundo Yin (2006, 118) um dos
propósitos desta entrevista pode ser “simplesmente corroborar com certos fatos
que você já acredita terem sido estabelecidos (e não indagar sobre outros tópicos de
natureza mais ampla e espontânea)”, neste caso a entrevista com os alunos procu-
rou verificar a pertinência dos dados coletados tanto na literatura quanto na en-
trevista com os professores. Esta modalidade de entrevista também facilitou a coleta
de dados, proporcionando simplicidade no entendimento das questões por parte
dos pesquisados, bem como maior objetividade, uma vez que as entrevistas foram
realizadas nos poucos horários que os alunos tinham disponíveis, antes do início
das aulas e nos intervalos entre as mesmas.
A respeito da pesquisa realizada com os alunos do Colégio Adventista de Salvador,
as aulas coletivas de instrumentos de cordas e sopros são oferecidas na disciplina
Artes para aqueles alunos que optam por estudar música, como uma das lingua-
gens artísticas proporcionadas pelo colégio. As turmas do ensino fundamental II são
compostas em média por 35 alunos. Nas duas turmas escolhidas para participar do
estudo de caso, 21 alunos foram entrevistados, correspondendo ao número total
de alunos que estudam instrumentos de cordas. Outras turmas da 6ª a 8ª série pos-
suem alunos que freqüentam as aulas de instrumento de cordas, contudo, um dos
motivos que levou a escolha das turmas da 5ª série foi a quantidade de alunos, pois,
com o decorrer dos anos, o número de alunos que fazem aula de música tende a di-
minuir, uma vez que alguns alunos deixam os cursos de música ou até mesmo a es-
cola. Além disso, foi possível trabalhar os dados sem a interferência de algumas
variáveis, como: a diferença de idade, o tempo de estudo no instrumento e o de-
sempenho musical.
Como primeiro passo da abordagem empírica a pesquisa buscou conhecer a opinião
de professores do ensino coletivo de instrumentos musicais a respeito dos aspectos
investigados. A participação de professores de diferentes áreas da prática de ensino
coletivo, como cordas, sopro e piano, possibilitou maior abrangência dos aspectos
investigados fornecendo um vasto material que, confrontado com a literatura, foi
utilizado para a construção da entrevista aplicada à turma de ensino coletivo.
A motivação no processo de ensino e aprendizagem musical
Motivação: o que dizem os professores do ensino coletivo?
Dentre outros aspectos investigados, a motivação obteve destaque sendo um fator
enfatizado pelos professores como o grande diferencial existente nas aulas coletivas. 441

Um ponto destacado por alguns professores diz respeito ao fato de que a aula rea-
lizada em grupo gera uma maior motivação nos alunos, principalmente porque o co-
letivo proporciona a observação, análise e comparações entre os mesmo. Como
coloca Santos (2009) o ensino coletivo traz como contribuição relevante a possi-
bilidade da observação entre os alunos. Para a professora, o colega torna-se muitas
vezes uma referência mais significativa para o outro, uma vez que o mesmo pode se
espelhar e se sentir mais próximo de sua realidade de aprendizagem. Pois, para o
aluno o professor toca bem, e ele assim o faz porque é o professor, que traz consigo
uma imensa bagagem musical. Quando um aluno observa que um colega toca bem,
ele acredita que pode atingir aquele nível também. Santos (2009) afirma ainda que
esse processo funciona como uma competição saudável, onde o aluno se esforça
para alcançar o mesmo nível de desempenho do colega e segue acrescentando que
o processo de ensino e aprendizagem é muito enriquecedor, pois, geralmente as tur-
mas são heterogêneas, e a diferença de níveis de desempenho acabam favorecendo
a aquisição de conhecimentos musicais.
Em se tratando da motivação na aula em grupo, Braga (2009) destaca que o fato de
os alunos estarem reunidos em mesmo horário não é suficiente pra que se desen-
volva a motivação, e destaca a figura do professor. Assim como o professor deve
estar atento às necessidades de cada aluno, a importância de uma atuação reflexiva
revela-se no planejamento, momento em que o professor deve dedicar esforços para
elaborar a estrutura da aula. Abordando a importância do planejamento por parte
do professor, Braga (2009) enfatiza que é preciso observar o desenvolvimento mu-
sical e social de cada aluno, e construir juntamente com os alunos toda uma estru-
tura para que a motivação surja com mais eficácia. Para a professora é imprescindível
que o planejamento contemple as diferenças de desempenho existente entre os alu-
nos, o repertório deve privilegiar a participação integral dos alunos, para que todos
se sintam parte essencial do fazer musical.
Mattos (2009) e Rocha (2009) compartilham a mesma opinião de que o convívio
social é parte fundamental do processo motivacional durante a aprendizagem mu-
sical. Os professores fazem uma comparação entre a aula coletiva e a individual, e
destacam a vantagem da aula coletiva no que diz respeito à motivação, ao longo de
suas práticas os professores puderam observar que, além da própria motivação do
aluno e da motivação que o professor exerce sobre o mesmo, os alunos também mo-
tivam uns aos outros funcionando como reforçadores positivos no processo de
aprendizagem.
A motivação nas aulas coletivas de Instrumento:
o ponto de vista dos alunos
Na literatura consultada a respeito do ensino coletivo onde são ressaltados os as-
442 pectos relacionados à motivação, um dos fatores motivacionais mais destacados, e
que diz respeito à iniciação de instrumentos de corda com o ensino coletivo, é a so-
noridade. Alguns autores afirmam que a sonoridade inicial dos alunos de instru-
mentos de cordas é pouco agradável, e que no grupo essa sonoridade tende a ser
mais aprazível. Como afirma Galindo (2000, 58) uma das razões que torna o ensino
coletivo mais estimulante é que “o resultado sonoro do grupo é bem melhor que o
resultado sonoro individual.” Essa falta de qualidade na sonoridade se deve, na
maioria das vezes, à pressão inadequada que o aluno provoca com o arco sobre as
cordas, e acrescenta-se a este fator o início do uso da mão esquerda onde o aluno
sente dificuldades para afinar o instrumento.
Mas afinal, o que torna as aulas em grupo mais motivadoras? Para tentar responder
este questionamento foi perguntado aos alunos o que tornava a aula mais motiva-
dora. As respostas foram organizadas em cinco categorias (ver quadro 01), e neste
caso alguns alunos indicaram mais de uma alternativa, onde todas as respostas foram
consideradas, conforme se verifica no quadro abaixo:
Quadro 01 – Fatores que tornam as aulas em grupo mais motivadoras.

Fatores que influenciam a motivação para a Número de indicações por parte dos alunos
aprendizagem em grupo

A convivência com os colegas 18

A oportunidade de aprender em grupo 10

Sentir-se parte de um conjunto musical 09

A atuação e o estímulo do professor 09

A sonoridade do grupo 07

Fonte: Dantas, Tais. Pesquisa de campo.


A convivência com os colegas foi a resposta mais citada pelos alunos, como sendo
o fator que torna a aula mais motivante. A segunda resposta mais indicada pelos
alunos foi a oportunidade de aprender em grupo. Sentir-se parte de um conjunto
musical e o estímulo do professor foram citadas de forma eqüitativa pelos alunos
como o sendo o terceiro fator que mais gera satisfação nas aulas coletivas.
Embora não se possa negar que o fato de que iniciar os estudos em grupo contribui
positivamente para o desenvolvimento da sonoridade, o ponto de vista dos alunos
diverge em parte das proposições da literatura específica no campo do ensino cole-
tivo. A boa sonoridade foi um fator pouco indicado pelos entrevistados. Contudo,
ressalta-se que para muitos professores a falta de qualidade na sonoridade do aluno
iniciante se sobressaia mais em casos de alunos que têm aulas individuais, este fato
muitas vezes é responsável pelo desestímulo do aluno levando-o, em alguns casos, a
desistir do instrumento, inclusive sabe-se que o índice de desistência é bem menor
quando os alunos iniciam as aulas de instrumento de forma coletiva. 443

Outro aspecto que gera maior motivação e que é destacado pelos autores no campo
do ensino coletivo é o fato de que o aluno já se sente fazendo parte de um grupo, de
uma orquestra desde as primeiras aulas. Tocar em uma orquestra ou um conjunto
musical é, para muitos, a concretização do desejo de praticar música, e o ensino co-
letivo proporciona esta experiência desde os primeiros momentos da aprendiza-
gem musical. Para esta turma de alunos sentir-se parte de um conjunto musical e a
oportunidade de aprender em grupo são fatores relevantes, como foi indicado nas
respostas.
Porém o que mais chama a atenção neste estudo é que o fator evidenciado como de
maior relevância para os processos motivacionais dentro das aulas coletivas, des-
crito pelos alunos, não diz respeito à prática musical. No desenvolvimento das re-
lações interpessoais, o estudo da música realizado de forma coletiva representa um
fator significativo no desenvolvimento da socialização do indivíduo, a educação
musical oportuniza a criação de ambientes interdisciplinares contribuindo para a
formação social do indivíduo. Em um estudo a respeito das relações existentes entre
a música, o comportamento social e as relações interpessoais, Hilari (2006) con-
cluiu que a música tem um papel de destaque no desenvolvimento das relações entre
os indivíduos. Embora o estudo tenha tido como objetivo principal investigar o
papel da música (em meio a outros fatores) em relacionamentos afetivos, o estudo
revelou que entre os usos distintos da música no contexto das relações interpes-
soais, a música exerce uma função de “facilitadora de atividades que promovem a
aproximação de indivíduos”, como fazer parte de um coral, um conjunto instru-
mental ou assistir a um concerto (Hilari 2006, 197).
Em conjunto com estas verificações, procurou-se saber dos entrevistados de que
forma era mais motivante aprender o instrumento musical. Dos 21 entrevistados,
18 afirmaram que aprender o instrumento de forma coletiva gera uma maior mo-
tivação. Neste colégio funciona também o Conservatório Adventista de Música,
onde os alunos têm a opção de estudar o instrumento a partir de aulas individuais.
Por conta destas atividades os alunos convivem constantemente com as duas mo-
dalidades de ensino musical: aulas coletivas e tutoriais.
Procurando-se verificar de que forma da motivação intrínseca ou extrínseca se es-
truturavam no estudo do instrumento realizado em grupo, foi perguntado aos alu-
nos o que os motivava a dedicar-se ao estudo do instrumento. No quadro a seguir
as respostas foram classificadas de acordo com o significado expresso pelos alunos,
possibilitando verificar de que forma a motivação intrínseca ou extrínseca estava
presente nos estudos musicais, neste caso foram registradas todas as indicações dos
alunos.
Quadro 2 — Fatores que mais motivam os alunos a dedicar-se
ao estudo do instrumento.
444
Fator motivacional indicado pelos alunos Número de indicações
Tocar um instrumento por si só é motivador 02
Os resultados alcançados pelo estudo e evolução na técnica 13
O reconhecimento do grupo das minhas capacidades de executar um
09
instrumento
A busca pelo êxito e auto-valorização 13
Fonte: Dantas, Tais. Pesquisa de campo.
O estudo do instrumento é motivador e prazeroso, onde o próprio ato de executar
uma música gera satisfação, ou seja, “a participação na tarefa é a principal recom-
pensa, não sendo necessárias pressões externas, internas ou prêmios pelo seu cum-
primento” (Guimarães 2001, 37). Apenas dois dos entrevistados afirmaram que o
fato de tocar um instrumento por si só era o que mais os motivava a dedicar-se aos
estudos, neste caso a resposta inclinou-se para a motivação intrínseca onde a moti-
vação encontra-se no próprio ato de executar uma tarefa.
Treze indicações apontaram a vontade de evoluir na técnica e os resultados alcan-
çados pelos esforços no estudo como o fator que mais motiva o aluno a se dedicar
nos estudos musicais. Em relação à motivação intrínseca presente no processo de
aprendizagem, Tapia e Fita (2006, 78) afirmam que “a própria matéria de estudo
desperta no indivíduo uma atração que o impulsiona a se aprofundar nela e a ven-
cer os obstáculos que posam ir se apresentando ao longo do processo de aprendi-
zagem.” O aluno intrinsecamente motivado “busca novos desafios após atingir
determinados níveis de habilidade e as falhas ocorridas na execução das atividades
instigam a continuar tentando” (Guimarães 2001, 38).
A motivação extrínseca foi expressa nos seguintes fatores: o reconhecimento do
grupo das suas capacidades de executar um instrumento e a busca pelo êxito e auto-
valorização, indicados nove vezes e treze vezes, respectivamente. Para Nunes e Sil-
veira (2009, 162) o processo de motivação extrínseca “por parte do sujeito, pode
estar relacionado com recompensas externas e sociais, necessidade de reconheci-
mento, resposta às demandas e pressões externas, desejo de obter sucesso, êxito,
competências e habilidades.” O reconhecimento do grupo e a busca pela auto-va-
lorização pode ser considerado ainda como uma motivação “centrada na valoriza-
ção social (motivação de afiliação). Satisfação efetiva que produz a aceitação dos
outros, o aplauso ou aprovação de pessoas ou grupos sociais que o indivíduo con-
sidera superiores a ele” (Tapia e Fita 2006, 79).
Algumas Considerações
Através da análise dos discursos dos professores pôde-se verificar que o ensino co-
letivo proporciona um ambiente onde os alunos podem se observar e fazer compa-
rações em relação ao seu desempenho no instrumento. O aluno vê no colega a 445
imagem de uma pessoa que compartilha os mesmos objetivos, que sente as mesmas
dificuldades e que tem os mesmos anseios. Mesmo que a figura do professor seja
uma referência para o desenvolvimento musical do aluno, o professor se encontra
em um nível diferenciado de competência e, diferentemente, na representação do
aluno o colega reproduz uma possibilidade real de desenvolvimento e crescimento
musical que, através das comparações e observações, constitui-se num fator a mais
na motivação do aluno. Os alunos se observam a todo momento, e desta forma vão
construindo parte dos parâmetros necessário para verificar seu nível de desempenho.
Na interpretação do aluno esse nível pode ser mais elevado ou inferior ao dos cole-
gas, contudo o fato de perceber que seu nível encontra-se abaixo dos demais, isso
não significa necessariamente que o aluno irá perder a motivação para os estudos.
Foi possível verificar por meio desta pesquisa que estas situações, muitas vezes,
levam o aluno a se esforçar mais para atingir o mesmo nível, e superar as dificulda-
des, isso funcionaria como uma espécie de competição saudável. Mas, a ocorrência
destas observações precisa ser vista e observada pelo professor com bastante cau-
tela, uma vez que, dependendo da interpretação do aluno estas observações podem
ser convertidas numa falta de estímulo para os estudos. Também baseado nesta he-
terogeneidade, outro fato destacado é a possibilidade de troca de saberes. A opi-
nião dos professores é bastante clara quanto à possibilidade de aproveitar a
heterogeneidade existente no ambiente proporcionado pelo ensino coletivo para fa-
vorecer a aquisição de conhecimentos musicais. Os alunos interagem e aprendem
com o outro a todo instante, seja na observação, na troca de experiências ou na
orientação aluno-aluno.
No ensino coletivo diversos são os fatores que contribuem para a motivação do
aluno, como a oportunidade de aprender em conjunto, o fato de sentir-se parte de
um grupo musical, a atuação e o estímulo do professor e a sonoridade do grupo.
Contudo, o fator que mais se destaca por contribuir para a motivação entre os alu-
nos, segundo o ponto de vista dos mesmos, é a convivência com os colegas, confir-
mando a opinião de alguns professores entrevistados. Mas, o fato de reunir um
grupo de pessoas para ministrar aulas de instrumento não significa que vai haver in-
teração social. Este fato foi destacado por alguns professores, que chamaram aten-
ção para a atuação do professor como facilitador do desenvolvimento das relações
sociais entre os alunos, atuando como um mediador. Pois, como pode acontecer
em qualquer sala de aula, alguns aspectos negativos podem surgir durante as aulas
coletivas e o professor deve orientar os alunos no sentido de se desenvolver um am-
biente amistoso em sala de aula, cabendo ao mesmo verificar se algum aluno está dis-
tante do grupo incentivando seu entrosamento com os demais colegas.
A utilização do repertório de interesse dos alunos é destacado em pesquisas sobre
o ensino de instrumentos como um fator que interfere diretamente na motivação
dos alunos (Tourinho 1995, Silva e Braga 2009, Moura 2008). A construção do
446
conteúdo e do repertório devem estar contemplados no planejamento das aulas,
objetivando atender às diferenças de desempenho, podendo o repertório adequado
ser utilizado também como um dos recursos facilitadores do processo de aprendi-
zagem proporcionando ganhos no que diz respeito à motivação dos alunos.
Foi possível verificar como a motivação intrínseca e a extrínseca se articulam nas
aulas coletivas. A motivação intrínseca é refletida no fato de que os alunos buscam
estudar o instrumento por encontrarem motivação no próprio desempenho da ta-
refa, e, como conseqüência, vão alcançando bons resultados e evolução na técnica.
O reconhecimento pelo grupo da capacidade individual do aluno de executar um
instrumento, e a busca pelo êxito e auto-valorização evidenciaram que no ensino co-
letivo há maior tendência para que os alunos se sintam motivados extrinsecamente.
A presença de outros alunos influencia na busca de recompensas externas, como
valorização social e reconhecimento por parte do grupo, incentivando os alunos a
buscarem o sucesso nos estudos musicais.
Os fatores aqui apresentados nos fazem conjeturar que as aulas coletivas expõem o
aluno a inúmeros fatores, os quais não estão presentes nas aulas individuais, e que
funcionam como reforçadores positivos dos estudos, contribuindo mais eficaz-
mente para a motivação na aprendizagem.

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Processos de ensinar & aprender:
música, cognição e formação profissional
Patrícia Wazlawick
448
patriciawazla@gmail.com
AMF-Arte e Cultura; UFSC-Psicologia
Glauber Benetti Carvalho
glauberbcarvalho@gmail.com
AMF-Arte e Cultura; UFSC-Psicologia
Viviane Elias Portela
vieportela@gmail.com
AMF-Arte e Cultura

Resumo
Com a Lei Nº 11.769, cada instituição de ensino deverá ter em seu quadro docente um
profissional responsável que ministre aulas de música. Assim, é necessário aos professo-
res generalistas uma capacitação na área musical. A música como campo de prática e
de conhecimento possui importância na formação humana, pois de modo dialético age
e permite o ser humano agir com as atividades musicais nas dimensões ética, estética e
cognitiva da vida, uma vez que requer ação integrada entre pensamento, cognição, per-
cepção, e estética. Tendo três aspectos como temáticas principais: lei, música e forma-
ção, este trabalho investiga a apropriação musical em processos de ensinar-aprender de
professores da rede pública e particular que participam de um curso de formação pro-
fissional continuada em música. A fundamentação teórica baseia-se na psicologia histó-
rico-cultural, principalmente com Vygotski e interlocutores. O objetivo do curso é
capacitar os participantes para ministrarem aulas de música, visando desenvolver e apri-
morar seu conhecimento musical, para estarem aptos a trabalhar com formação musi-
cal. Os participantes têm no fazer musical uma possibilidade de formação e atuação
profissional, devido à capacitação e qualificação, aprimoramento e desenvolvimento
como educador. Ao trabalhar com uma proposta de formação profissional continuada
de educadores musicais, que integra de forma sólida os aspectos da percepção, teoria e
prática no próprio educador, ele poderá trabalhar com propriedade de conhecimento
primeiramente em si mesmo e auxiliar seus alunos na formação musical. O processo de
ensinar-aprender música, direcionado por este viés, poderá contribuir, para a construção
de uma compreensão da música como campo de conhecimento. Dessa forma, além de
refletir sobre o desenvolvimento do curso enquanto está em andamento, esta pesquisa
investiga o processo de construção da concepção da música como campo de conhe-
cimento. Entrevistas individuais com roteiro norteador estão sendo realizadas com os
alunos participantes e serão apresentados os resultados obtidos.
Palavras-chave
Formação continuada em música; cognição musical; processos de ensinar & aprender.

Introdução
449
Este trabalho relata a experiência desenvolvida até o presente momento com a rea-
lização do “Curso de Formação Profissional Continuada em Música”, que é um
Curso de Extensão da Antonio Meneghetti Faculdade – AMF, instituição superior
de ensino situada no Distrito Recanto Maestro, no município de São João do Po-
lêsine-RS. Este curso teve início no dia 09 de julho de 2009, sendo ministrado e
coordenado pelos professores Glauber Benetti Carvalho, Patrícia Wazlawick e Vi-
viane Elias Portela.
A realização deste curso de formação continuada, pelos elementos e aspectos que
aborda, é de fundamental importância no que tange à abertura de espaços que vis-
lumbrem novos olhares dentro da escolarização formal, pois além de suas ativida-
des teórico-práticas na área da música, que contribuem para a formação do
educador musical, permite que o mesmo desenvolva novos modos de visualizar e
compreender a realidade, sempre polissêmica e multifacetada que se apresenta (Za-
nella et al., 2007).
De acordo com a Lei Nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, que dispõe sobre a obri-
gatoriedade do ensino de música na educação básica no Brasil, cada instituição de
ensino deverá ter em seu quadro docente um profissional responsável e que minis-
tre essas aulas. Para tanto, é necessário aos professores generalistas (alunos do curso
supracitado) – tendo em vista trabalharem os conteúdos de música (práticos e teó-
ricos) com seus alunos – uma capacitação na área do ensino de música, de modo a
expandir e ampliar sua formação continuada no conhecimento didático-pedagógico
e musical. Portanto, em relação à implementação e objetivação das atividades mu-
sicais de acordo com a obrigatoriedade do ensino de música na educação básica do
Brasil, este curso inscreve-se em uma modalidade de ser uma forma de estratégia
de capacitação/formação de docentes, pondo em foco a formação continuada de
professores generalistas e também professores que já são educadores musicais.
A música como campo de prática e campo de conhecimento possui extrema im-
portância na formação humana em geral, pois de modo dialético age e permite o ser
humano agir com as atividades musicais nas dimensões ética, estética e cognitiva
da vida, uma vez que ela requer a ação humana integrada entre pensamento, cog-
nição, percepção, e estética (Maheirie, 2001, 2003).
Tendo três aspectos como temáticas principais: lei, música e formação, este traba-
lho investiga a apropriação musical em processos de ensinar-aprender de professo-
res da rede pública municipal, estadual e particular que participam de um curso de
formação profissional continuada em música, curso de extensão na área de Arte e
Cultura, oferecido pela Antonio Meneghetti Faculdade. Este curso tem por obje-
tivo geral capacitar os participantes para ministrarem aulas de música (ensino de
música), visando desenvolver e aprimorar o conhecimento musical dos mesmos,
para estarem aptos a trabalhar com a formação musical de seus alunos.
450
O curso apresenta-se na modalidade teórico-prática-vivencial, as aulas são realiza-
das uma vez por semana, com carga horária total de 160h/a, tendo dois semestres
letivos de duração. O curso teve início em julho de 2009 e finalizará seu primeiro
módulo em junho de 2010. Várias disciplinas são trabalhadas com os alunos, den-
tre elas:
a) instrumentação musical – formação de repertório e performance (prática mu-
sical individual e de conjunto), com os instrumentos violão e flauta doce;
b) iniciação musical e musicalização infantil;
c) teoria musical;
d) leitura e escrita musical;
e) percepção musical;
f) aspectos da história da música;
g) oficinas de tecnologia musical;
h) aspectos da interface entre música, psicologia e educação musical.

Os participantes do curso são professores de educação infantil, professores genera-


listas de ensino fundamental, professores do ensino médio, e educadores musicais,
seja de escolas públicas que escolas particulares da Região da Quarta Colônia de
Imigração Italiana no Rio Grande do Sul. Estes participantes estão tendo no fazer
musical uma possibilidade de formação e atuação profissional, uma vez que o curso
permite capacitação e qualificação nesta área, aprimoramento e desenvolvimento de
seu potencial como educador, e torna-os aptos a mais uma competência no pro-
cesso de ensinar-aprender, ou seja, o trabalho com o ensino na área musical.
Consideramos que, ao trabalhar com uma proposta de formação profissional con-
tinuada de educadores musicais, que integra de forma sólida os aspectos (as di-
mensões) da percepção, teoria e prática no próprio educador, ele poderá trabalhar
com propriedade de conhecimento primeiramente em si mesmo – em sua com-
preensão da música – e auxiliar seus alunos em um aprendizado global de formação
musical. O processo de ensinar-aprender música, direcionado por este viés, poderá
contribuir, para a construção de uma concepção/compreensão da música como um
campo de conhecimento. Dessa forma, além de refletir sobre o desenvolvimento
do curso enquanto o mesmo está em andamento, esta pesquisa investiga o processo
de construção da concepção da música como campo de conhecimento. Entrevistas
individuais com roteiro norteador estão sendo realizadas com os alunos partici-
pantes e serão apresentados os resultados obtidos.
Fundamentação teórica
A música pode ser entendida como uma forma de linguagem. Linguagem, por sua
vez, compreendida como um sistema sígnico utilizado para que duas ou mais ‘men-
tes’ estabeleçam uma ação comum, ou seja, estabeleçam comunicação. Nessa trama 451
de processos psicológicos a “percepção” se faz premissa ao fazer musical, ao mesmo
tempo que se engendra nele e a partir dele (Maheirie, 2001, 2003).
A percepção, de modo geral, direciona e orienta o estar e o sentir humano no
mundo. A percepção da linguagem musical atinge desde uma simples qualidade de
sentimento até aos altos níveis de cognição simbólica. A sua mensagem não diz res-
peito a nada que se encontra fora da música, ou seja, seus signos portam significa-
dos atrelados à própria estrutura musical, articulando pensamento, compreensão e
cognição de forma intensa nesse processo, ao lado de sentimentos e emoções.
Sendo assim, por meio dos processos de ensino e aprendizagem da música emerge
e produz-se percepção, isto é, o aluno pode abrir-se a uma certa percepção do
mundo, da vida e de si mesmo, uma percepção à ordem das estruturas, que é, em úl-
tima instância, percepção estética.
Com essa nova forma de percepção é possível ao aluno ampliar sua consciência e
criar novas vias de conhecimento – não somente aquele analítico e racional, mas um
conhecimento gestáltico.
Além disso, crianças, adolescentes, jovens e adultos, no decorrer de seu percurso de
vida, vivem situações concretas enquanto constituindo-se sujeitos, onde se dá a uti-
lização viva da música, que se faz presente em seu cotidiano, seja a música de sua cul-
tura, quanto outras musicalidades que venham a conhecer. Essa utilização é pessoal
e social ao mesmo tempo, de acordo com as implicações com a música em seus con-
textos locais de vida, onde se constroem significados e sentidos para a música, e
onde as músicas se fazem constitutivas dos jovens enquanto sujeitos. Dessa forma,
a música é parte integrante da construção da identidade de sujeitos.
A possibilidade, neste momento histórico no Brasil, da música existir em cada es-
cola como parte integrante do processo de ensino e aprendizagem dos alunos da
educação básica, é um oferecimento a cada um dos alunos – assim como aos pro-
fessores que ministrarão as aulas – de terem um efetivo acesso à educação musical,
e de modo concreto a todas as questões que foram discutidas anteriormente nesse
texto, e que dizem respeito à relação com a música. Neste sentido, esse processo se
torna uma ferramenta de inclusão cultural e de cidadania, que democratiza o acesso
à arte, e ajuda a fortalecer a cultura nacional, garantindo também a preservação das
raízes culturais e da musicalidade brasileira.
Cabe dizer ainda que – e isto é já sabido - as atividades musicais permitem desen-
volver habilidades cognitivas, psicomotoras, emocionais, a memória, a linguagem, a
autoestima, a autoexpressão, bem como a interação entre os sujeitos envolvidos no
fazer musical (Bruscia, 2000). É visível, portanto, que a música permite expandir o
universo cultural e de conhecimentos, de modo geral, dos alunos, proporcionando
desenvolver a compreensão da multiplicidade de manifestações artísticas e estéticas,
e sua inter-relação com o desenvolvimento social e histórico de uma coletividade.
452
Nesse sentido, esse curso de formação profissional continuada em música possibi-
lita aos professores um enriquecimento de seu próprio background de conheci-
mento, assim como amplia seu campo de trabalho e atuação profissional – no
momento presente nas escolas onde ministram aulas, e como projeto e possibili-
dades futuras de atuação. Pois, permite capacitação e qualificação profissional, apri-
moramento e desenvolvimento de seu potencial como educador, e torna-os aptos
a mais uma competência no processo de ensinar-aprender, ou seja, o trabalho com
o ensino na área musical.
A docência, seja ela em qual área do conhecimento for, implica formação em vários
aspectos, na medida em que ensinar exige bom senso, apreensão da realidade, res-
peito à autonomia do educando, consciência do inacabamento, curiosidade, ale-
gria, esperança (Freire, 1997), e várias outras condições que são forjadas na história
de vida dos que à esta atividade resolvem se dedicar. Segundo Zanella (2007):
Estas ultrapassam em muito a formação meramente técnica, embora desta não
seja possível prescindir. Afinal, quem ensina na verdade ensina algo para alguém,
sendo reconhecido por este outro enquanto autoridade do saber na medida em
que estabelece com o objeto de conhecimento uma relação de intimidade (Za-
nella 2007, 144).
Portanto, na qualidade de educador/professor é fundamental exercer atividades de
formação continuada ao longo da vida. Neste sentido, tomando como eixo o enfo-
que deste curso – a formação musical – outro aspecto relevante que desponta é a
educação estética, veiculada por meio das atividades realizadas com os saberes e fa-
zeres musicais, por exemplo.
Percebemos desde já que estes aspectos são fundamentais na educação e na forma-
ção humana, não para formar músicos em série (ou outros artistas), mas para mos-
trar que a educação estética (Vygotski, 2001), é parte indispensável da educação e
da constituição dos sujeitos, uma vez que, segundo Vygotski (2004):
Aqui reside a chave para a tarefa mais importante da educação estética: introduzir
a educação estética na própria vida. A arte transfigura a realidade não só nas cons-
truções da fantasia, mas também na elaboração real dos objetos e situações. A casa
e o vestuário, a conversa e a leitura, e a maneira de andar, tudo isso pode servir igual-
mente como o mais nobre material para a elaboração estética. De coisa rara e fútil
a beleza deve transformar-se em uma exigência do cotidiano. . . (Vygotski 2004, 352).
Importante dizer que adotar uma perspectiva estética na educação não significa tra-
balharmos necessariamente para a formação de artistas; significa, antes de tudo,
construirmos uma educação que tenha a arte, ou mesmo as atividades expressivas
de arte (as objetivações artísticas e criadoras, de modo geral), como aliadas na rela-
ção e no processo de ensinar & aprender (Camargo e Bulgacov, 2007).
Entendemos que, através da aproximação com as artes, a estética pode vir a ser
um instrumento para a educação do sensível, levando-nos a descobrir formas
até então inusitadas de perceber o mundo. Por meio da experiência estética o 453
homem desenvolve a capacidade sensível, a percepção, construindo um olhar
que o incentiva a perceber a realidade de diversos ângulos, de diversos aspectos
(Camargo e Bulgacov, 2007, p. 187).
A educação estética é, portanto, direcionada à emancipação e realização humana.
Neste sentido a preocupação com a estética, porque propriamente mobiliza a cria-
ção. E, junto disso, “estética porque pode sensibilizar apropriações da realidade po-
lifacetada, interpretando-a em suas diferentes formas de apresentação sígnica.
Estética porque supera o estésico alçando pensares e fazeres a patamares onde se
bricolam inovações” (Zanella, Maheirie, Costa et al., 2007, p. 13). Vygotski (2001)
compreende a atividade criadora e as objetivações estéticas como constitutivas do
sujeito, um sujeito que é criativo, sensível e ativo, que por suas atividades se (re)cria
nas condições materiais de existência, assim como pode (re)criar a própria existên-
cia por meio de seu agir.
Portanto, para efetivar estas possibilidades junto a alunos, possibilidade de educa-
ção estética e aprendizagem musical, é importante que criemos espaços de forma-
ção continuada para professores e educadores, nos quais eles, primeiramente,
possam, ao trabalhar sobre si mesmos, (re)criarem suas atividades e práticas peda-
gógicas como docentes. Esta demanda e necessidade na atualidade se faz primordial,
em qualquer instituição de ensino, seja ela que atenda bebês, crianças, adolescentes,
jovens e/ou adultos.
Nos contextos de ensinar e aprender, a figura e o trabalho desempenhado pelo edu-
cador é fundamental para o processo de aprendizagem do educando e para sua cons-
tituição como sujeito. Molon (2005)1 destaca que “o professor tem de ser um artista,
que está lidando com a matéria-prima específica, viva e inteligente que é o ser hu-
mano”.
Pino (2005)2 diz que a academia forma educadores, mas não forma a criatividade
neles. Existem educadores muito inventivos e pouco criativos, inventam tantas ati-
vidades que, muitas vezes, não levam a lugar nenhum, pois não despertam signifi-
cações nas crianças. Faz-se necessário educadores que imaginem, que pensem, que
articulem conexões entre todos aqueles conhecimentos teóricos que tiveram du-
rante suas formações acadêmicas e que também desenvolvam atividades criadoras,
que inovem e estendam isto a seus alunos. Aquilo que sabemos (conhecimento)
deve estar associado ao nosso fazer e se integrar, de fato, a nossa possibilidade de ser
afetado. Na medida em que este processo não se concretiza na práxis pedagógica, é
fundamental uma formação continuada e um rever dos contextos da instituição
escolar.
Zanella, Maheirie, Da Ros, et al. (2007) relatam e discutem a partir da realização de
oficinas com professores(as) da rede pública, na cidade de Florianópolis-SC, uma
possibilidade de se trabalhar com atividades criadoras, educação estética e consti-
tuição do sujeito em contextos de formação continuada. Suas pesquisas e inter-
454 venções basearam-se em oficinas “conduzidas através de atividades que envolviam
sensibilização e reflexão a partir de linguagens artísticas variadas” (p. 138). Fica evi-
dente com a realização destas oficinas que a abertura de espaços que vislumbram
novos olhares é de fundamental importância, e aqui falamos de novos olhares no
trabalho com a dimensão sensível e atividade criadora a partir da arte, que permite
aos educadores(as) tornarem-se sensíveis a novos devires em sua própria prática.
Camargo e Bulgacov (2007) trazem os questionamentos:
. . . Como formar leitores com professores não leitores? Como escutar as fanta-
sias de crianças, adolescentes e jovens se embotamos nosso próprio imaginário?
Como estimular a criatividade, o raciocínio, a ousadia, se estamos tomados pela
apatia? Como desenvolver a sensibilidade do estudante se a nossa própria sen-
sibilidade é descuidada? (Camargo e Bulgacov, 2007, p. 196).
Segundo estas autoras, é necessário romper com este círculo vicioso que perpetua
e justifica a reprodução e os imobilismo. O rompimento com estas formas de ser e
agir é possível a partir do momento em que o professor começa a mudar sua ati-
tude e sua postura diante de seus fazeres, quando “. . .destitui-se de sua posição de
autoridade que detém o saber e transforma o aluno em mero receptor do seu saber.
Quando o professor se coloca na relação do ensinar-aprender aberto para o apren-
der-ensinando ele pode romper com esta reprodução” (Camargo e Bulgacov, 2007,
p. 196).
Nos processos de ensinar & aprender, sejam eles quais forem, professores e alunos
devem atuar conjuntamente na possibilidade de experimentar outras formas de re-
lações em que o exercício da criatividade, da atividade criadora, da criticidade, da
cognição, da imaginação, percepção e dimensão afetiva tornem-se possíveis na vida
de cada um. Pois todas estas capacidades se constroem nas constantes trocas, rela-
ções e interações de sujeitos concretos, totais e humanos, em busca da realização
humana como um todo.
Metodologia
Objetivos
Este curso tem por objetivo geral capacitar os participantes (professores) para mi-
nistrarem aulas de música (ensino de música), visando desenvolver e aprimorar o
conhecimento musical dos mesmos, para estarem aptos a trabalhar com a formação
musical de seus alunos.
Como objetivos específicos do curso, pode-se destacar que a proposta está desti-
nada a:
• Ensinar a prática de instrumentos musicais: violão e flauta doce;
• Proporcionar práticas musicais de conjunto;
• Instrumentalizar para o trabalho de Iniciação Musical e Musicalização Infantil;
• Realizar ‘Oficina de Tecnologia da Música’ (recursos da informática utiliza-
455
dos para criação, manipulação, execução e reprodução musical);
• Ministrar conteúdos concernentes à música (conforme descritos abaixo – con-
teúdo programático) e suas relações com a prática musical.
Desta forma, salientamos que os professores que participam deste curso serão ca-
pacitados na formação destas competências e habilidades, de modo a objetivá-las em
si mesmos, primeiramente, para poderem gradualmente trabalhá-las junto a seus
próprios alunos na prática cotidiana dos processos de ensinar & aprender.

Metodologia – Coleta e análise das informações


O trabalho aqui apresentado vincula-se à pesquisa de avaliação do curso (em an-
damento) e à investigação que tem como foco verificar a apropriação musical em
processos de ensinar-aprender de professores da rede pública e particular que par-
ticipam de um curso de formação profissional continuada em música. Para tanto,
estão sendo realizadas observações e registro das atividades realizadas a cada aula
ministrada no referido curso, e descritas também as formas de interação dos parti-
cipantes nestas atividades, para acompanhamento de suas diversas formas de apro-
priação musical.
Além da observação e diário de campo, estão sendo realizadas entrevistas indivi-
duais com roteiro norteador com cada um dos professores participantes do curso,
sendo que, posteriormente serão transcritas e analisadas por meio de análise do dis-
curso, tomando por base os trabalhos de Bakhtin (2006) e Amorim (2002), para a
construção das categorias que serão resultado do percurso teórico-empírico da in-
vestigação.
Resultados e discussões até o momento
Os professores participantes do curso são jovens e adultos, com faixa etária de 17 a
45 anos de idade, que se apresentam estimulados para o aprendizado musical. Al-
guns já tinham conhecimento musical prévio, no que diz respeito a saber tocar um
instrumento musical, mas a grande maioria não – tinham porém, uma vontade já
há muito tempo na vida para aprender música, que neste momento está se tornando
realidade.
A maioria dos alunos são professores da educação básica (ensino fundamental) de
escolas municipais, estaduais e particulares de municípios da Região da Quarta Co-
lônia, e professores de música de escolas particulares da mesma região. Os demais
são profissionais de outras áreas de atuação ou estudantes, que também estão tendo
na música mais uma possibilidade de formação e atuação profissional.
É interessante acompanharmos a construção deste espaço de trabalho e espaço de
formação a quem deste curso participa, seja como professor, seja como aluno. É um
espaço, certamente onde há um processo contínuo de ensinar & aprender, que es-
456
timula à formação contínua, ao aprimoramento, qualificação, inovação e capaci-
dade de criar/criatividade no fazer. Ao chegar ao terceiro mês de aula (outubro de
2009) o curso já começou a fazer multiplicadores, pois três dos educadores que são
alunos neste curso, e atuam como professores em uma escola estadual de Faxinal do
Soturno-RS, Brasil, criaram em sua escola o projeto “Música na Escola”, onde estão
ministrando aulas de violão para aproximadamente 150 alunos da educação básica,
que possuem de 10 a 16 anos de idade. Estes professores estão atendendo a seis tur-
mas de 27 alunos cada, para a aprendizagem do violão, e com o projeto que elabo-
raram receberam recursos do governo do Estado do Rio Grande do Sul para a
compra de doze instrumentos/violões. Compuseram também um coral, e inicia-
rão aulas de flauta doce também na escola. Estes professores já estão se tornando
multiplicadores dos saberes e fazeres musicais para seus alunos, no contexto esco-
lar em que atuam.
Como resultados obtidos pela realização deste Curso de Formação Continuada,
até o momento, podemos destacar a capacitação profissional dos professores parti-
cipantes, no que tange aos conhecimentos teórico-práticos da música em instru-
mentação musical: violão e flauta doce; teoria musical; leitura e escrita da música;
percepção musical; história da música; interface entre psicologia, educação e mú-
sica e tecnologia e música.
Estes resultados são fruto da realização de uma ampla atividade de formação con-
tinuada – a formação ao longo da vida – que objetiva e já está formando multipli-
cadores do conhecimento musical. Estes multiplicadores realizam também, por sua
vez, um intercâmbio de informações e experiências entre escolas da região, através
de suas interações de conhecimento e prática musical.
Considerações finais
A realização e os resultados obtidos com o Curso de Formação Profissional Con-
tinuada em Música, conforme apresentado neste trabalho, mesmo considerando
que a pesquisa não está encerrada, ou seja, está em fases de andamento, até o mo-
mento demonstra que ações como esta são exemplos de possibilidade de estratégia
de capacitação/formação de docentes, pondo em foco a formação continuada de
professores generalistas e também professores que já são educadores musicais, para
a implementação e objetivação da lei que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino
de música no Brasil.
Esta ação não deve ser uma ação isolada, mas uma ação que possa também servir de
exemplo a demais grupos de professores, instituições de ensino, à parceria entre es-
colas e faculdade e universidades, tendo como objetivo diversas formas e soluções
de implementação da referida lei.
Além disso, ao ser uma possibilidade prática de formação continuada para profes-
sores generalistas e educadores musicais, para a capacitação e aprimoramento das
457
competências e habilidades na área de educação musical, a pesquisa irá trazer con-
tribuições no que se refere à apropriação do conhecimento musical por professores
e educadores, de forma a constituírem-se multiplicadores destes saberes e fazeres e
atuarem em processos de ensinar & aprender com seus alunos, em seus contextos
escolares.

1 Informação verbal de curso, a respeito das oficinas estéticas desenvolvidas junto de pro-
fessores. Data: 11/03/2005, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Informação verbal de curso, “As três instâncias do ser humano: o simbólico, o imaginário
e o real”. Data: 11/03/2005, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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Sander, Lucilene; Da Ros, Sílvia Z. Educação estética e constituição do sujeito: reflexões
em curso. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2007. p. 143-154.
O Aprendizado de Música
por Crianças com Necessidades Educacionais Especiais
Joana Malta Gomes
458
joanamago@yahoo.com.br
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Música – UNIRIO

Resumo
Considerando o conceito de necessidades educacionais especiais como uma forma de
apontar a demanda de alunos em função de um aprendizado específico em determinado
contexto, o que seria uma necessidade educacional em música? Se a criança chega à es-
cola portando alguma deficiência, seja ela de ordem física, sensorial ou cognitiva, na
atual proposta de educação inclusiva, a escola deve se preparar para atender esta criança
em todas as necessidades que ela possa apresentar. Uma vez estabelecida à obrigato-
riedade do ensino de música na escola regular, o professor de música também deve
estar preparado para o processo de inclusão de crianças com necessidades educacio-
nais na aula de música. Quais serão as dificuldades em música que uma criança com de-
ficiência intelectual pode apresentar. Qual a potencialidade musical de uma criança
deficiente? Que papel a música pode representar no processo de inclusão dessa criança
como um todo? Estas são algumas questões apresentadas neste ensaio que procura não
só refletir sobre a educação inclusiva em música, mas também sobre o próprio desen-
volvimento musical humano, colocando em evidência duas síndromes: o autismo e a
síndrome de Williams como um paradoxo para as possibilidades de aprendizado e de-
senvolvimento de habilidades musicais.

Introdução
Diante da atual proposta de Educação Inclusiva e da obrigatoriedade do ensino de
música na escola regular, venho por meio deste artigo, levantar algumas questões
sobre o aprendizado de música por crianças pequenas com necessidades educacio-
nais especiais incluídas em aulas regulares de música na escola de educação infantil.
Glat e Blanco (2009) definem as necessidades educacionais especiais como aquelas
“apresentadas pelos alunos com diferenças qualitativas no desenvolvimento com
origem nas deficiências físicas, motoras, sensoriais, e/ ou cognitivas, distúrbios psi-
cológicos e/ ou de comportamento (condutas típicas), e com altas habilidades”
(p.26). No contexto da Educação Inclusiva, em que todas as crianças devem ser in-
cluídas no ensino regular, independente de “suas condições socioeconômicas, raciais,
culturais ou de desenvolvimento” (p. 16), o estudo do processo de ensino e apren-
dizado deste grupo heterogêneo de crianças com necessidades educacionais especiais
é necessário também no que diz respeito ao aprendizado de música. Como aponta
Fernandes (1998) diversos pesquisadores da área de psicologia da música já vêm
desenvolvendo pesquisas sobre o desenvolvimento musical de crianças pequenas.
Entretanto não é evidenciado nestas pesquisas o desenvolvimento musical de crian-
ças com necessidades especiais.
O estudo da relação entre a música e crianças deficientes ainda está mais voltada
para o campo da musicoterapia, cuja abordagem não será contemplada neste en-
459
saio, uma vez que a educação musical inclusiva e a musicoterapia divergem em um
ponto principal: seus objetivos. Enquanto a musicoterapia usa a música como re-
curso terapêutico, seja na busca de satisfação, da saúde física, da adaptação social ou
até mesmo da cura (Bruscia, 2000, citado por Chagas, 2008, p. 46); a educação mu-
sical para crianças com necessidades educacionais especiais visa o aprendizado de
música por meio de uma transformação qualitativa a cerca do conhecimento em
música como acredito ser o objetivo da educação musical de uma forma geral.
Sacks (2007) em um estudo sobre a música e o cérebro faz referências às habilida-
des musicais adquiridas por crianças com comprometimento do lado esquerdo do
cérebro e que chegam a se tornar savants musicais. O autor também relata casos de
pessoas com síndrome de Willians consideradas como hipermusicais, dentre ou-
tras características, mas com deficiências cognitivas. Estes exemplos mostram certa
desproporcionalidade do desenvolvimento musical em relação ao desenvolvimento
cognitivo. Isto abre um caminho para o aprendizado de música na escola como ati-
vidade de grande importância no processo de inclusão de criança com necessidades
educacionais especiais.
É importante em um primeiro momento entender o que significa necessidade edu-
cacional especial. Como Glat e Blanco explicam,

necessidade educacional especial não é uma característica homogênea fixa de


um grupo etiológico também supostamente homogêneo, e sim uma condição in-
dividual e específica; em outras palavras, é a demanda de um determinado aluno
em relação a uma aprendizagem no contexto em que é vivida. Dois alunos com o
mesmo tipo e grau de deficiência podem requisitar diferentes adaptações de re-
cursos didáticos e metodológicos. Da mesma forma um aluno que não tenha
qualquer deficiência, pode, sob determinadas circunstâncias, apresentar difi-
culdades para aprendizagem escolar formal que demandem apoio especializado
(Glat e Blanco 2009, p. 26-27, grifos dos autores).
Diante dessas circunstâncias o processo de ensino e aprendizagem de música para
as crianças que chegam à escola com necessidades educacionais especiais deverá con-
tar com uma avaliação particular dessas necessidades em relação ao aprendizado de
música, pois como mostram os exemplos de Sacks (2007), não necessariamente a
criança com deficiência cognitiva apresentará dificuldades neste aprendizado. Esta
situação também nos faz pensar que as crianças que mostram grandes dificuldades
em se expressar musicalmente são aquelas que apresentam necessidades educacio-
nais especiais em música que, talvez passassem desapercebidas, se não fossem sub-
metidas ao ensino regular de música.
Entretanto, acredito que o desenvolvimento musical de cada criança é passível de
diagnóstico tanto das suas limitações quanto das potencialidades, podendo o apren-
dizado de música contribuir para a inclusão do aluno com necessidades especiais no
contexto escolar e consequentemente para o seu desenvolvimento global.
460

Desenvolvimento infantil
e necessidades educacionais especiais
Henri Wallon, em sua tese de doutorado baseada em 214 observações de crianças
internadas em instituições psiquiátricas defendida no ano de 1925, contribui não
apenas para uma maior compreensão do comportamento de crianças com diferen-
tes distúrbios mentais, como também para o próprio entendimento do desenvol-
vimento infantil, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento
emocional e motor. Naquela época, crianças especiais eram internadas e não ti-
nham oportunidade à educação, principalmente as que apresentavam distúrbios
do comportamento. Mas a busca de Wallon não se limitou em compreender a
criança turbulenta, mas em refletir sobre o próprio desenvolvimento infantil. Wal-
lon explica no prefácio de seu livro A evolução psicológica da criança as mudanças
ocorridas no campo da psicologia da criança, do ponto de vista da pesquisa e sua re-
lação com a educação.
Foram as necessidades e a prática que primeiro fizeram perceber um desacordo
fundamental entre realidade e os esquemas utilizados para explicar as operações
psíquicas. Foram problemas pedagógicos que incitaram a buscar outros proce-
dimentos para avaliar e utilizar as forças do desenvolvimento psíquico da criança
[. . .]. Por ter preconizado o acordo entre a mais livre expressão de todas as ener-
gias em potência na criança e no meio, um educador filósofo como Dewey, em-
bora não fosse propriamente psicólogo, abriu caminho, não só para inúmeros
ensaios práticos de educação, mas também para estudos sobre as necessidades de
atividade na criança e sobre a influência que ela sofre dos meios em que se en-
contra (Wallon 2006, p.4).
O que Wallon está querendo enfatizar é que a compreensão do comportamento
infantil e, consequentemente, do seu desenvolvimento, partiu da prática, de ne-
cessidades reais de dar respostas coerentes que pudessem compreender a criança,
não apenas na sua forma de agir, mas também de perceber e entender o meio em que
vive. Problemas práticos principalmente em situações de aprendizado propiciam a
reflexão sobre a maneira de pensar e agir da criança. É claro que mais de sessenta
anos depois, tais idéias já estão bastante difundidas, não só na área da psicologia,
como também na educação. Depois de Vigotski, Piaget, Gesell e o próprio Wallon,
muito já se tem conhecido sobre o comportamento da criança pequena e seu de-
senvolvimento.
Entretanto, apesar dos avanços na psicologia do desenvolvimento infantil ou
mesmo nas neurociências, pouco ainda se sabe sobre o limite de aprendizado e de-
senvolvimento de crianças com diversas anomalias ou transtornos do desenvolvi-
mento. Glat, baseada na contribuição de Murray Sidman (1970), afirma que “em
termos empíricos não existe até hoje método de avaliação que possa dizer com pre-
cisão se uma criança ou adulto deficiente está funcionando ao seu máximo poten- 461
cial (Glat 2006, p. 43)”.
Quando o desenvolvimento de uma criança ocorre de forma padrão, acredita-se
ser possível estabelecer um prognóstico quanto à escolaridade de tal criança; afinal
de contas, todo sistema educacional é construído acreditando que as crianças cor-
responderão a cada etapa estabelecida. Entretanto, quando qualquer alteração apa-
rece no curso de seu desenvolvimento e a criança passa a apresentar um déficit, ou
seja, uma deficiência orgânica que se manifesta pela falta de alguma habilidade ou
característica comum a maioria dos seres humanos, o prognóstico escolar fica pelo
menos em suspenso. Por outro lado, são as diferenças no desenvolvimento da
criança que podem anunciar a presença de alguma patologia, e quanto mais cedo um
diagnóstico é feito, mesmo sem prognóstico ainda, mais cedo é possível intervir e
em alguns casos evitar conseqüências futuras, principalmente no que diz respeito
aos distúrbios de ordem motora (Willrich et al 2008).
Os estudos de Wallon serviram justamente para compreender a relação entre o fun-
cionamento da atividade nervosa e da atividade psíquica, como Tran Thong explica
a partir da tese de Wallon:
A atividade nervosa é de natureza elétrica e química, mas a ela está ligada por na-
tureza a atividade psíquica, o que os progressos da neurologia e da psicologia
não cessam de confirmar. As funções nervosas são funções do organismo, da
mesma maneira como funções psíquicas e vegetativas. Mas não são imediata-
mente eficientes como estas duas últimas, que asseguram umas a vida interna
do organismo e as outras suas relações com o mundo circundante (Tran Thong
2007, p. 11).
Acredito que o entendimento, ou mesmo a constatação de que até mesmo o psi-
quismo humano é de natureza orgânica é de suma importância, principalmente
para entender a criança com necessidades especiais, pois seu comportamento atípico
não se justifica apenas em conseqüência do seu desenvolvimento psicológico como
já se pensou anteriormente, mas sim pela “existência de disfunções orgânicas no
sistema fisiológico desses indivíduos (Fernandes et al, 2009, p. 157)”. Entretanto,
Wallon não só destaca a natureza orgânica de certas deficiências que atingem o de-
senvolvimento da personalidade da criança, mas também como tal desenvolvi-
mento funcional acontece a partir da relação da criança com seu meio. Pereira
explica:
Na concepção genética, histórica ou biográfica da vida psíquica defendida por
Wallon, todos os domínios funcionais, isto é, percepção, motricidade, ação, afe-
tividade, inteligência, caminham para se integrarem. O pólo biológico fornece
as condições de base neurológica para a vida mental, por sua vez, não consegue
se desenvolver sem o meio sociocultural, ou seja, interpessoal e de valores, hábi-
tos, tradições, técnica, conhecimentos, enfim, tudo que compõe a vida cultural
das sociedades, dos grupos humanos (Pereira 1995, p. 26).
462 Portanto ao mesmo tempo em que podemos entender as alterações de comporta-
mento da criança com deficiência a partir de uma análise das disfunções orgânicas
provocadas por determinadas patologias, podemos também considerar que tal de-
ficiência em si não é a condição para as necessidades educacionais especiais, pois
estas estão circunscritas à relação entre a criança e seu meio.
Necessidades educacionais especiais, portanto, são construídas socialmente, no
ambiente de aprendizagem, não sendo, portanto, conseqüências inevitáveis da
deficiência ou do quadro orgânico apresentado pelo indivíduo. [. . .] Isto não
significa, certamente, negar que existam condições orgânicas que tornem o su-
jeito mais propenso a encontrar dificuldades para aprender. O aspecto que que-
remos reforçar é que uma necessidade educacional especial não se encontra na
pessoa, não é uma característica intrínseca sua, mas sim um produto de sua in-
teração com o contexto escolar onde a aprendizagem deverá se dar (Glat e
Blanco 2009, p.28).
Pode-se dizer que o confronto entre o comportamento padrão e o comportamento
atípico é justamente o que coloca em evidência as necessidades especiais dos alunos.
Na área da medicina, o que é padrão serve como referência para o diagnóstico e
para a busca de tratamento para a patologia que se apresenta, mas no âmbito social,
um comportamento fora do padrão, isto é, fora das normas sociais, conduz à de-
preciação dos indivíduos portadores de deficiência. Como Glat explica,
toda sociedade tem mecanismos de controle social para garantir que a maioria
de seus membros se conforme com as normas estabelecidas. Aqueles que por ca-
racterísticas físicas ou comportamentais, não podem se conformar, ou que vio-
lam as leis e normas sociais não são reconhecidos como membros efetivos do
corpo social, se tornando indivíduos estigmatizados e marginalizados (Glat 2004,
p. 22).
Aqueles indivíduos que apresentam um comportamento fora da normalidade, por
não se “conformarem” com os parâmetros sociais estabelecidos para o comporta-
mento de um indivíduo, são considerados como anormais. É esse tipo de classifi-
cação que promove o estigma de pessoas portadoras de deficiências.
Tem sido apontado em diversas ocasiões que o estranho, o inesperado, o dife-
rente, o excepcional, sempre chama a atenção e causa nas pessoas reações como
curiosidade, espanto, surpresa, repulsão e até mesmo medo. Essas reações ocor-
rem porque tudo que é diferente, que não se encaixa nas nossas tipificações, que
foge à norma – e é, portanto, anormal – ameaça a nossa frágil estabilidade social
(Glat 1995, p. 25).
No entanto, perceber as diferenças é inevitável. A todo o momento nos deparamos
com pessoas e situações diferentes que colocam em cheque nossas condutas, e para
isso não é preciso ser “especial”. A criança por si só já é um ser diferente. O seu com-
portamento se diferencia do adulto justamente por ser criança e ainda não possuir
o aparato biológico e psíquico desenvolvido suficientemente para poder com-
preender todas as regras sociais necessárias para convivência em grupo. Wallon faz
críticas à maneira como o adulto percebe a criança sempre do seu ponto de vista. 463
O egocentrismo do adulto pode enfim se manifestar por sua convicção de que
toda evolução mental tem por fim inelutável seus próprios modos de sentir e de
pensar, os de seu meio e de sua época. Por outro lado, caso aconteça de ele re-
conhecer que os modos da criança são especificamente diferentes dos seus, não
lhe resta outra alternativa senão considerá-los uma aberração (Wallon, 2006,
11)
A preocupação de Wallon se volta justamente para a maneira de olhar a criança.
Como nós pais, professores, pesquisadores, psicólogos, enfim, adultos olhamos a
criança e o quanto não a julgamos por seus desvios que, do nosso ponto de vista,
são inadequados? Que pais não tiveram de lidar com a questão do limite da criança
para não serem rotulados no meio social por não terem o controle sobre o com-
portamento de seus filhos? Como seria uma sala de aula se toda criança só fizesse o
que lhe convém, sem nenhuma regra ou limite para sustentabilidade da prática pe-
dagógica? Qual o limite entre a liberdade de ser criança e a sua adequação ao meio
em que vive?
Todas essas questões, sem dúvida, ficam explícitas em um ambiente escolar e põem
em cheque a prática pedagógica, principalmente se o grupo não se apresenta ho-
mogêneo, isto é, com crianças de uma mesma faixa etária, o mesmo nível de desen-
volvimento e aparências semelhantes (se é que isso é possível). Em um contexto
escolar, onde as turmas são formadas por crianças de idades, etnias, nível socioeco-
nômico e condições físicas ou mentais diferentes, ou seja, um grupo heterogêneo,
como é possível estabelecer os limites de conduta, expressão pessoal e desempenho?

O comportamento da criança com necessidades especiais


Entre as diversas patologias do desenvolvimento e conseqüentes deficiências, as que
mais desafiam a prática pedagógica são as que influenciam diretamente o compor-
tamento das crianças. Para crianças com distúrbios do comportamento é dada a
designação de “condutas típicas” que se trata de “um conceito educacional e não um
diagnóstico clínico” (Fernandes et. al 2007,156). Crianças com condutas típicas
desafiam a própria organização da dinâmica em sala de aula e a rotina escolar por
apresentarem comportamentos inadequados e fora das regras de convívio da co-
munidade escolar.
Essas crianças e adolescentes manifestam um padrão de comportamento ou con-
duta muito peculiar, bastante diferenciado dos demais alunos, que mostram
conseqüências diretas em sua aprendizagem e relacionamento social. [. . .] As
crianças e jovens com condutas típicas geralmente tem dificuldades de manter
contato visual e podem apresentar fobias [. . .] Sua característica mais marcante,
porém, são comportamentos auto-estimulatórios (p. ex.: ficar balançando o
corpo, agitando as mãos, etc) e autolesivos ou auto-agressivos (p. ex.: morder ou
beliscar a si próprios, bater com a cabeça contra o chão ou parede, etc. . .). (Fer-
464
nandes et. al 2007, 153-154).
Uma vez incluídas em turmas regulares, todas as pessoas em contato com essas
crianças terão que se adaptar à sua maneira diferente de ser. O professor terá que
aprender a lidar com a criança especial e com as reações das outras crianças diante
das alterações de comportamento que a criança com condutas típicas possa apre-
sentar. Trata-se de uma série de circunstâncias imprevisíveis tanto do ponto de vista
da criança deficiente como do resto do grupo.
Como explicar para as outras crianças esta “liberdade” que a criança especial tem de
ficar alterada? Se a criança especial pode, por que as outras não? Sabemos que
criança especial não pode, mas precisa, devido a sua condição orgânica, reagir de tal
forma. Sua alteração de comportamento faz parte da sua necessidade educacional es-
pecial, a forma como os outros irão lidar com ela é o que vai possibilitar sua inclu-
são ou não no contexto escolar. Afinal, é justamente no espaço social da escola que
a criança poderá aprender a controlar seus impulsos e se adaptar ao meio social.
Para as outras crianças da turma deverá haver uma orientação que justifique por
que a criança especial “pode” se levantar, batucar ou se mexer incessantemente. Se
nos voltarmos para o ambiente da aula de música, qual será o limite de movimen-
tação de uma criança especial com esses automatismos ou impulsos motores? Como
permitir a liberdade de expressão motora das crianças de uma forma geral sem com-
prometer o limite pessoal de cada um?
O que procuro é chamar a atenção para o fato de que, do ponto de vista da aula de
música, principalmente para crianças pequenas, a liberdade de expressão motora
da criança é imprescindível para o aprendizado de música. O único recurso que o
professor tem para acompanhar o desenvolvimento musical de seus alunos é por
meio de seu comportamento musical, que implica não somente no ato de cantar ou
tocar um instrumento, mas em toda sua expressão motora, (ou seja, suas reações
motoras ou movimentos suscitados a partir do estimulo produzido pelas atividades
musicais em aula). Inibir a liberdade de movimentação da criança em uma aula de
música é inibir sua expressão motora e consequentemente sua expressão musical.
A experiência musical é vivenciada no corpo e é por meio do corpo, seja através das
mãos que dedilham um instrumento de cordas ou percutem um tambor, do sopro,
ou mesmo do canto; o que está em jogo são funções motoras associadas às percep-
tivas (Godinho 2006, 355-360). Dar limites ao comportamento de qualquer criança
seja ela especial ou não, pode, de certa forma, limitar suas possibilidades de expres-
são musical.
De uma forma geral, na educação infantil é sempre impreciso o limite entre a li-
berdade de expressão motora da criança e a conduta adequada. Isso fica mais deli-
cado no caso das crianças que apresentam condutas típicas, pois o estímulo
promovido pela aula de música pode justamente desencadear automatismos, este-
reotipias ou mesmo fobias. O que não quer dizer que o aprendizado de música seja 465
inadequado para crianças nessas condições. Na verdade o que vou mostrar aqui é
justamente o contrário.
O sucesso da inclusão está tanto na oportunidade do aluno especial de aprender e
se desenvolver como as demais crianças, como no seu processo de socialização e
aceitação no grupo. É claro que, uma vez que a criança especial está incluída, toda
a comunidade escolar tem que aceitar seu comportamento e sua maneira de ser
dentro dos limites de cada indivíduo. O problema é a necessidade de encontrar jus-
tificativas para as possíveis liberdades de conduta que criança especial precisa ter
devido justamente à sua necessidade especial. Dar oportunidade à criança especial
de ser como é e se expressar da maneira que pode é abrir espaço para que todas as
crianças tenham a mesma liberdade e a requisitem perante a escola. De outra forma,
seria preciso justificar ou desculpar o comportamento “não padrão” da criança es-
pecial como sendo “especial” voltando assim à condição de estigma. Em uma es-
cola de educação infantil, onde crianças pequenas estão justamente aprendendo a
perceber o outro e a reconhecê-lo e respeitá-lo pelas suas diferenças, como admitir
a estigmatização da criança especial para justificar suas necessidades?!
Fica claro que no processo de inclusão de uma criança com necessidades educacio-
nais especiais não apenas esta criança precisará de adaptação ao meio escolar, mas
também toda a escola e principalmente as crianças e professoras que lidam direta-
mente com ela terão que se adaptar a sua forma de ser (Glat e Blanco, 2009). Na ver-
dade, acredito que seja preciso toda uma reformulação da dinâmica de aula para
que as deficiências da criança especial não sejam as únicas características a se desta-
carem no convívio social.
É nesse aspecto que coloco a aula de música como um ambiente propício para a so-
cialização e valorização da criança especial. Além das potencialidades musicais que
tais crianças possam apresentar (como será visto mais adiante), a aula de música
pode ser estruturada de forma a propiciar que não só a criança especial tenha a li-
berdade de expressão motora (mesmo que por meio de seus impulsos ou automa-
tismos), mas também todas as crianças: como uma forma de se comunicar, cujo
limite de expressão se encontra apenas no seu próprio corpo e no corpo do outro.
De certa forma a aula de música na educação infantil pode ter também um efeito
de catarse, assim como a própria prática musical enquanto arte o é (Vigotski 2004,
340). Entretanto esta tarefa não é fácil.
Autismo e Síndrome de Willians:
desafiando o entendimento do desenvolvimento musical
Acredito que o sucesso no processo de inclusão de crianças com alguma deficiên-
466 cia, seja ela, física, mental ou sensorial, etc., depende da compreensão do professor
acerca das características peculiares deste aluno com necessidades educacionais es-
peciais. Na minha experiência enquanto professora de música de crianças e jovens
com diversas deficiências (que nem sempre se enquadravam em um diagnóstico fe-
chado) percebi que algo me escapava na compreensão que eu tinha dessas pessoas.
Por que certos alunos entravam na sala e ficavam de olhos fechados? Outros repe-
tiam as mesmas palavras ou frases sem parar? Alguns não paravam quietos nem um
segundo? E mais aqueles que apenas riam de qualquer coisa sem importância?
Era uma infinidade de comportamentos variados que me desafiavam como profes-
sora. Mas eu aceitei o desafio e aos poucos fui conhecendo a personalidade de cada
aluno, suas características, ambições, suas habilidades musicais, mas também suas li-
mitações. Conhecer e aprender sobre as necessidades desses alunos tem sido uma
busca incansável na tentativa de poder compreender seus comportamentos e aper-
feiçoar minha prática pedagógica.
Na busca de um referencial teórico sobre as potencialidades musicais de crianças es-
peciais me deparei com duas síndromes bastante intrigantes: o autismo e a síndrome
de Williams. Minha intenção ao apresentar neste ensaio estas duas síndromes es-
pecíficas se deve em parte, pela contradição que elas apresentam entre si, mas prin-
cipalmente, pela contradição entre desenvolvimento musical e intelectual,
desafiando a nossa compreensão de como o cérebro processa a música. Outro mo-
tivo é que essas duas síndromes se enquadram no quadro de condutas típicas (Fer-
nandes et al 2009, 156).
Sacks (1995) em seu livro Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais des-
creve fantásticas histórias de pessoas com autismo, entre outras. Em um dos capí-
tulos dedicado aos prodígios ele relata casos de “savantismo” em música
apresentados por pessoas autistas. O primeiro caso que ele apresenta é o de Tom
descrito em 1862, um cego que desde pequeno, dada a oportunidade, demonstrou
grandes habilidades musicais ao piano. Já o outro caso é o de um menino chamado
Stephen, que desde pequeno apresentou notável talento para o desenho, pelo qual
foi reconhecido inúmeras vezes por meio de exposições e publicações artísticas, mas
sem nunca ter evidenciado nenhum talento especial para música. Entretanto, em
meio a sua adolescência, ele apresentou subitamente imenso talento para interpre-
tação e improvisação musical ao piano.
No caso de Tom, apesar de considerado em sua época como “idiota ou imbecil”, as
descrições de seu comportamento pelo médico francês Edouard Séguin, apontam
para características do autismo que, como afirma Sacks, “só foi identificado nos
anos 40 deste século, e não era uma palavra, nem mesmo um conceito, na década de
1860 (Sacks 1995, 200)”.
O autismo foi descrito quase que simultaneamente por Leo Kanner e Hans As-
perger nos anos 40, mas o primeiro parecia vê-lo como um desastre consumado,
enquanto o segundo achava que podia ter certos aspectos positivos e compen- 467
satórios – uma “originalidade particular de pensamento e experiência que pode
muito bem levar a conquistas excepcionais na vida adulta” (Sacks 1995, 253-
254).
Sacks comenta adiante que tais diferenças de pontos de vista entre os dois cientis-
tas diziam respeito à particularidade dos casos por eles estudados. O autismo pode
vir ou não associado a um quadro de retardamento, o que influenciará mais ou
menos negativamente no seu prognóstico. Entretanto, o retardamento (associado
ao lado esquerdo do cérebro) de certa forma propicia uma compensação do lado di-
reito do cérebro e até mesmo “uma anômala dominância do hemisfério direito em
vez da usual dominância do hemisfério esquerdo” (Sacks 2007, 157) o que justifi-
caria por que algumas pessoas com retardo mental podem apresentar habilidades sa-
vants. Sacks explica:
Uma característica – na verdade, a característica definidora – das síndromes sa-
vant é a intensificação de certas capacidades juntamente com uma deficiência ou
subdesenvolvimento de outras. As capacidades que são intensificadas nos sa-
vants são sempre de tipo concreto, ao passo que as deficientes são abstratas e
com freqüência lingüísticas. Muito já se especulou como pode ocorrer tal con-
junção de forças e fraquezas (Sacks 2007, 156).
Com a descoberta do autismo, percebeu-se que “a maioria dos idiot savants eram na
verdade autistas”. A incidência de “savantismo” entre os autistas “quase dez por
cento – era praticamente duzentas vezes maior que na população de retardados e
milhares de vezes maior que no resto dos homens”. Entre os talentos percebidos
nos savants autistas, estava os “musicais, mnemônicos, visuais e gráficos, de cálculo
e assim por diante (Sacks 1995, 204-205)”. Diante desses dados não resta dúvida
que habilidades musicais podem existir independentes do retardo mental que a
criança possa apresentar. Entretanto não se sabe como exatamente a criança autista
desenvolve tais habilidades.
O outro lado da prodigiosidade e da precocidade, a não-infantilidade, dos ta-
lentos savant é que eles não parecem se desenvolver como talentos normais. Já
estão totalmente formados de saída. [. . .] Os talentos savant lembram de certa
forma mecanismos preparados de antemão, predispostos e prontos para dispa-
rar (Sacks, 1995, p.234).
Apesar de Sacks enfatizar que o os talentos savants parecem já vir prontos e que
normalmente despontam na tenra idade, o caso do menino Stephen descrito por ele
mostra uma contradição, pois Stephen só foi desenvolver a habilidade musical aos
dezenove anos, quando teve o interesse e a oportunidade, como possivelmente im-
pulsionado pela sua adolescência.
Stephen tinha ouvido absoluto e podia reproduzir instantaneamente acordes
complexos, tocar melodias depois de ouvi-las pela primeira vez, mesmo que du-
rassem vários minutos, e transpô-las com facilidade para outros tons. Tinha
468 também capacidades de improvisação. Não se sabe por que os dons de Stephen
parecem ter surgido relativamente tarde. É provável que ele tenha possuído um
grande potencial musical desde bem pequeno, mas, talvez por causa de sua pas-
sividade e da atenção que as pessoas prestavam aos seus talentos visuais, isso pas-
sou desapercebido. Talvez, também, a adolescência tenha influenciado, pois
nesta fase Stephen de súbito adquiriu fixação por Stevie Wonder e Tom Jones,
e adorava imitar os movimentos e maneirismos dos dois artistas juntamente
com sua música (Sacks 2007, 156).
Quanto ao desenvolvimento musical de crianças autistas, só se pode saber por aque-
les que tenham a possibilidade de acompanhar e analisar o envolvimento da criança
com a música ao longo de sua infância. Ao ler toda a história de Stephen descrita
por Sacks, fica claro que muito pouco é percebido dos seus interesses musicais (uma
vez que sua habilidade de desenhar já chamava toda a atenção). Para Stephen sem-
pre foi dado papel e lápis, pois era somente isso que ele conseguia pronunciar
quando criança. Em várias passagens da narrativa de Sacks aparece o uso do walk-
man por Stephen e sua capacidade de cantar as músicas de Rain Man, seu filme
preferido. Talvez tenha levado dezenove anos para que Stephen pudesse demons-
trar seus desejos e interesses. Outra curiosidade é que, apesar do autismo, o desen-
volvimento geral de Stephen parece ter sido de certa forma normal, pelo menos no
que diz respeito à adolescência que pode ser percebida pelos outros por meio de
comportamentos típicos dessa fase do desenvolvimento humano assumidos por
Stephen, mesmo que talvez um pouco tardiamente (Sacks 1995, 239).
Para a criança autista que tem profundas dificuldades de comunicação, o estimulo
ao aprendizado e desenvolvimento de habilidades, quaisquer que sejam elas, de-
pende das pessoas que a cercam. Esta condição nos leva de volta ao papel da edu-
cação escolar como de suma importância para o desenvolvimento dessas crianças,
pois é no contato com outras crianças e no estimulo à comunicação e ao aprendi-
zado que a criança autista poderá superar as limitações impostas pela sua deficiên-
cia. Stephen, apesar de sua deficiência, pode por meio de sua arte ter uma vida mais
digna, mesmo que ainda não autônoma (Sacks 1995, 251).
Se a criança autista tem como características principais a “deterioração da interação
social com os outros, da comunicação verbal e não verbal e das atividades lúdicas”
(Sacks, 1995, 254), o portador da síndrome de Williams se caracteriza justamente
pelo contrário.
A síndrome de Williams foi descoberta em 1961 por J.C. P. Williams, e quase que
simultaneamente e independente por J. Beuren et. al. É raríssima (uma para cada
dez mil) e se caracteriza “por defeitos no coração e nos grandes vasos, conformações
faciais singulares e retardamento (Sacks, 2007, 307). Em 1964 Arnim e Engel, ci-
tados por Sacks, “observaram um perfil curiosamente desigual de habilidades e in-
capacidades”. Eles perceberam que apesar do “retardamento” que “sugere uma
deficiência intelectual geral e global, que prejudica a habilidade da linguagem jun-
tamente com todas as outras capacidades cognitivas (Sacks 2007, 307)”, tais crian- 469
ças apresentavam um comportamento cordial e extremamente social, uma enorme
capacidade de comunicação e um surpreendente desenvolvimento da linguagem,
além de “grande sensibilidade para ler as emoções e o estado de espírito dos outros”
(Sacks 2007, 308).
No que diz respeito à música, as pessoas com síndrome de Willians parecem real-
mente impressionar; são tão envolvidas com música que os pais de uma criança
com síndrome de Williams criou um acampamento de música onde pessoas por-
tadores dessa síndrome pudessem se encontrar e fazer música, além da oportuni-
dade de também aprenderem música em aulas regulares no próprio acampamento
(Sacks, 2007, 312). Sacks cita a descrição de Bellugui e Levitin em uma visita a um
desses acampamentos.
Os indivíduos com síndrome de Williams mostravam um grau incomumente
elevado de envolvimento com a música. Esta parecia ser não só uma parte muito
profunda e rica de sua vida, mas um elemento onipresente [. . .] Esse envolvi-
mento com a música é incomum em populações normais. [. . .] Raramente en-
contramos esse tipo de imersão total, mesmo entre músicos profissionais (Sacks
2007, 313-314).
Bellugui e Levitin se dedicaram a entender o porquê de características tão contras-
tantes nos portadores da síndrome de Williams. Eles examinaram o cérebro desses
indivíduos e chegaram à conclusão de que o funcionamento cerebral ocorre de
forma diferente das pessoas normais. Também descobriram que “as pessoas com
síndrome de William processavam a música de modo muito diferente”, comparado
a um grupo de pessoas normais e outro de músicos profissionais (Sacks 2007, 315).

Considerações finais
Diante de tais fatos, constata-se que ainda é difícil definir com se dá o desenvolvi-
mento musical no ser humano. O que se sabe é que a música está presente na vida
de todos os indivíduos de qualquer cultura e é acessível até mesmo para os porta-
dores de deficiências mentais, como alguns casos ilustrados aqui puderam mostrar.
Eu nunca tive a oportunidade de conhecer de perto uma criança com síndrome de
Williams, em contraposição às crianças autistas. As contribuições de Oliver Sacks
são sem dúvida importante para compreensão da mente e personalidade humana
uma vez que ele faz questão de apresentar em seus estudos sobre o cérebro a di-
mensão humana do ser. Sem falar nas contribuições que o autor oferece a nós pes-
quisadores por compartilhar seus estudos de caso e reflexões. Entretanto para poder
realmente compreender o processo de ensino aprendizado de música para crianças
com necessidades educacionais especiais, principalmente na aula de música na es-
cola regular, é preciso primeiro que estas crianças estejam incluídas na escola e que
possa ser avaliado o processo de inclusão e desenvolvimento musical de forma lon-
470 gitudinal.
É claro que o “savantismo” em música não é o objetivo pedagógico da aula de mú-
sica ou da inclusão da criança deficiente. Entretanto, conhecer as potencialidades
musicais do cérebro humano frente à diversidade nos coloca diante de possibilida-
des educacionais que não podem ser ignoradas. A obrigatoriedade do ensino de
música na escola associada à proposta de educação inclusiva poderá abrir caminho
para a compreensão do desenvolvimento humano não apenas pelas habilidades in-
telectuais supervalorizadas (mas nem sempre acessíveis a todos por diversos moti-
vos), mas também por habilidades diversificadas, ou melhor, pelas habilidades que
cada pessoa possui e pode desenvolver.

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Educação Musical e Ludopoiese:
vivenciando a aprendizagem musical
Maristela de Oliveira Mosca
472
maristelamosca@gmail.com
Doutoranda em Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN

Resumo
Viver é conhecer! Conhecer é viver! Abandonando a concepção dualista e linear reco-
nhecemos a dinâmica circular do aprender vivendo e viver aprendendo. Este trabalho re-
flete sobre os processos de ensinar e aprender música reconhecendo a natureza do ser
aprendente, que é biológica, psicológica, social, afetiva, cultural e espiritual – que não se
fragmenta ao vivenciar os processos de ensinar e aprender música. Para esta investiga-
ção reconhecemos a organização autopoiética como característica do ser vivo, pois
existimos como animais em nossa corporalidade molecular, vivendo como tal em nos-
sos processos fisiológicos, em nossa auto-organização. Sendo sociais, vivemos e intera-
gimos com o meio, e nesse fluir energético nossas mudanças estruturais se processam.
Em nosso modo de viver vamos interagindo como o meio, com os outros seres, e apren-
dendo a partir de nossas vivências – revelando em nossa corporeidade nossos saberes.
Procuramos neste momento desenhar uma partitura do fazer musical a partir das Teo-
rias da Autopoiese, de Maturana e Varela; da Teoria do Fluxo, de Csikszentmihalyi; em
consonância com os Pressupostos da Corporeidade. Em nossa investigação sobre os
processos de ensinar e aprender música nos envolvemos em vivências musicais, na au-
topoiese e estado de fluxo, apreendendo música sentindo, brincando, criando, pensando
e humanescendo. Compreendendo a Ludopoiese como a capacidade de criar condi-
ções de autoprodução da alegria de viver, investigamos a aprendizagem musical pela vi-
vência, pelo prazer em fazer, pela atitude lúdica. Envolvidos em uma Educação Musical
que quebra os paradigmas de instrução, seleção e performance reconhecemos o edu-
cando como protagonista dos processos de ensinar e aprender música, percebendo-o
como o ser que se (re)cria a cada momento, que aprende no compartilhar, que vivencia
a música no prazer. Assim, os Processos Ludopoiéticos se revelam no vivenciar a música,
já que possibilitam a auto-organização do ser, pois ao vivenciar a música aprende, e
aprende vivenciando a música.
Palavras-Chave
Educação Musical; Corporeidade; Autopoiese; Ludopoiese.

Música é para viver!


Linguagem do homem nas figuras dançantes, nos rituais e nas festas a música acom-
panha o percurso da história tomando forma nas grandes civilizações e imprimindo
a marca dos povos fazendo-se presente em todas as culturas.
Linguagem expressiva no cotidiano escolar encontra-se no palco das discussões com
a aprovação da Lei no 11.769, de 18 de agosto de 2008, alterando a Lei no 9.394, de
20 de dezembro de 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre
a obrigatoriedade do Ensino de Música na Educação Básica (Brasil 2008). A Lei
no 11.769 inclui a música como conteúdo obrigatório do Ensino da Arte.
473
Reconhecemos o valor da música na escola entendendo que ela se justifica como
componente curricular e não como estratégia de aprendizagem e que vai pouco a
pouco (re)fazendo parte do cotidiano escolar. Granja (2006, 104) nos convida a
refletir sobre o valor de nossas aprendências, já que “a música e as artes em geral são
tão importantes na educação como a leitura, a escrita, a matemática. Sem isso, não
há projeto de inserção da música na escola que se sustente a longo prazo”. Desta
forma, compreendemos os processos de fazer e aprender a linguagem musical, que
reconhece sua importância na formação do ser, em sua vida, na descoberta de novos
fazeres.
Entendemos assim que Educação Musical é o processo socializador de desenvolvi-
mento da musicalidade do ser, que valoriza os percursos de deleite em vivenciar a
música, a construção musical e a performance na ludicidade, criatividade e sensi-
bilidade. Tal processo educativo deve ser pautado em relações intrapessoais e in-
terpessoais, quando, a partir da interação entre indivíduos singulares se constrói as
teias do conhecimento musical, criando condições para que o ser se auto-organize
e viva seu jeito de viver a música.
Estando a música em todo lugar, como podemos desfrutá-la sem entregar-se, sem
partilhar, ou mesmo sem emocionar-se? Valorizando a música enquanto arte, pro-
dução de conhecimento e linguagem expressiva entendemos que seus conheci-
mentos se conectam com uma educação corporalizada, que tem como foco a
formação do ser. Inspirados por Assmann (1998), afirmamos que a educação é vis-
ceralmente corporal, e que nossos saberes se revelam em nossa corporeidade. Desta
forma, é necessário que compreendamos o ser em sua inteireza, em suas dimensões
individual, social, espiritual, planetária e cósmica.
E por meio de nossa corporeidade nos expressamos musicalmente, desde o primeiro
encontro com a vibração sonora, com o afago da melodia, com o desfrute da dança,
do canto, da execução instrumental. Em nossa corporeidade vivenciamos o lúdico
na criação musical e no compartilhar do trabalho em grupo, em uma autoprodução
vivida ao fazer música, fazer-se autor da música, vivenciando e aprendendo a cada
acorde dessa grande sinfonia que é a vida.
Escolhemos a metáfora da Teia de Aranha como operador cognitivo, procurando
assim configurar os “princípios norteadores para nossas ações educativas e para a
abordagem investigativa que toma a corporeidade como fonte geradora da huma-
nescência”, como nos fala Cavalcanti em comentário postado no blog da Corpo-
reidade em 1o de maio de 2009.
Nesta teia temos três princípios centrais: o brincar, o criar e o sentir, e vivenciamos
a Educação Musical na Escola com atitude lúdica, promovendo em sala de aula o
jogo de fazer música. Neste jogo nos despimos da utilidade da música ou de seus be-
nefícios para o educando. Nossa prática musical é jogo, é deleite, é encantamento.
474
Trabalhamos em grupo nos aproximando das necessidades coletivas e individuais,
respeitando os limites, construindo uma rede de aprendizagens que deve antes de
tudo ser significativa – e nesta construção vemos a implicabilidade das relações, o
movimento do grupo, os acoplamentos que ocorrem com a intervenção das ações,
da energia que flui no ambiente, na cumplicidade que nasce a cada momento. Neste
jogo de fazer música a distinção entre o jogo e a seriedade não existe, e brincar de
música se torna seriamente fazer música (Huizinga 2005).
A sustentabilidade teórica em nossa Teia de Aranha é representada pelas bordas,
nas dimensões histórica e vivencial da reflexividade – neste fio condutor temos o
princípio do pensar. Na natureza espiralada da teia vivenciamos a transdisciplina-
ridade, onde perpassam os raios que são constituídos pelos diferentes campos do co-
nhecimento para fazer emergir a humanescência. Neste processo de construção
entendemos o humanescer como a expansão da essência do ser no universo – sua co-
nectividade com o outro, com o entorno, com sua autoformação.
Assim, viver a música em sua plenitude na escola a partir dos pressupostos da cor-
poreidade é promover condições para que os aprendentes se auto organizem e vivam
a música de maneira singular na coletividade. É vivenciar o fazer musical na ener-
gia da música, na preparação do campo energético a ser compartilhado a cada dia,
compondo os processos pedagógicos que trilham esses saberes. É deixar-se brincar,
criar e sentir.
Nestes processos de ensinar e aprender valorizamos os procedimentos, pois acre-
ditamos que mais importante que os conteúdos da linguagem musical, a técnica
instrumental ou vocal é o processo do aprender, do vivenciar. Esse movimento é que
perturba a organização do ser, tornando possível sua aprendizagem. O educador
também é responsável por esse movimento de escuta, de fala, de pensamento. Ele é
quem instiga a curiosidade, que desafia, que mostra novos e surpreendentes cami-
nhos.
Neste movimento de exploração, de procura, de descanso é que a aprendizagem
acontece, que os conflitos são resolvidos, que o conhecimento se constrói. En-
quanto seres bio-psico-sócio-afetivo-cultural-espiritual nos movemos pela curiosi-
dade em saber, em realizar novos feitos, em encontrar novos caminhos. Para tanto
nos valemos de nossas experiências e de nossos saberes, estabelecendo relações e es-
pecialmente compartilhando descobertas em nossa corporeidade – em um ato que
é cognitivo, espiritual, corporal e social.
Neste caminho a trilhar nos encontramos com a Teoria da Autopoiese, de Matu-
rana e Varela (1997), que cunharam o termo Autopoiese na descrição da teia da vida,
designando a capacidade do seres vivos de se autoproduzirem. A teoria mostra que
o ser vivo é um sistema autopoiético, caracterizado pela circularidade de suas pro-
duções moleculares, já que as moléculas produzidas geram a partir de suas intera-
ções a mesma rede de moléculas que as produziu. Enquanto sistema autônomo, os 475
seres vivos estão constantemente se autoproduzindo e autorregulando em suas in-
terações como o meio, que desencadeia mudanças determinadas em sua própria es-
trutura. Assim, o “viver é a realização, sem interrupção, dessa dinâmica em uma
configuração de relações que se conserva em um contínuo fluxo molecular” (Ma-
turana 1997, 16).
Encontramos o conhecimento nestas relações, neste ciclo autopoiético. Crendo em
um corpo vivo, que como nos diz Demo (2006), não pode ser manipulado como
uma máquina inerte, uma engrenagem em que depositamos sistemas, o conhecer se
processa na coletividade, nas interações, já que:
A aprendizagem como um fenômeno de transformação do sistema nervoso as-
sociado a uma mudança condutual, que tem lugar sob manutenção da autopoiese,
ocorre devido ao contínuo acoplamento entre a fenomenologia estado-deter-
minada do sistema nervoso e a fenomenologia estado-determinada do ambiente
(Maturana e Varela 1997, 132).
Ainda de acordo com a teoria Autopoiética de Maturana e Varela podemos obser-
var o ser biológico, que se entrega inteiro em suas experienciações, com sua corpo-
reidade. Todas as nossas ações são fundadas no sentir e fluímos de acordo com
nossas emoções, com o vivido, e de maneira ímpar aprendemos a partir dessas in-
terações, e vemos assim que o conhecimento não pode ser imposto de fora para
dentro, mas deve ser vivenciado, em sua plenitude, em sua corporeidade.
Jogando com a música, sem a pretensão de transformar estes momentos em pro-
duções ou virtuosismos, nos entregamos aos processos de aprender música jogando
com a música (Huizinga 2005). Nesses processos que envolvem a vivência musical
nos encontramos constantemente em estado de fluxo. A Teoria do Fluxo, desen-
volvida por Csikszentmihalyi (1992, 17) nos elucida sobre a experiência máxima,
que o autor define como “aquele estado no qual as pessoas estão de tal maneira mer-
gulhadas em uma atividade que nada mais parece ter importância”. Neste estado do
fluir nos encontramos plenamente envolvidos, e fazemos acontecer o momento,
que mesmo com esforço e dificuldades nos levam ao estado de fluxo.
Ao fluirmos, ainda de acordo com o autor, nossa consciência está organizada de
forma harmoniosa, e desejamos continuar neste estado, nos satisfazendo com o
fazer. Esta entrega ao momento vivido é construída pela ação da atenção ao realizar,
quando o ser investe esforço para atingir suas metas.
O autor relaciona diretamente o estado de fluxo com a melhora de qualidade de
vida, e nos diz que desfrutar música nos leva a experiências ótimas. Quando ele nos
fala: “não é ouvir que melhora a vida e sim o escutar” (Csikszentmihalyi 1992, 161),
podemos ainda acrescentar que não é só o escutar que melhora a vida, mas sim vi-
venciar a música. Na vivência musical despertamos nossos sentidos, não apenas es-
cutando, mas sim compartilhando o fazer musical, no desfrute em realizar, no
476 deleite em apreciar.
Assim, envolvidos nas vivências musicais apreendemos música brincando, criando
e sentindo. Estes processos, que se fazem vivência e aprendência musicais aconte-
cem a partir de processos pedagógicos e tem uma característica especial. Tal carac-
terística é o Processo da Ludopoiese.
A Ludopoiese se encontra na vivência, é fenômeno. A Ludopoiese é a capacidade
de criar condições de autoprodução da alegria de viver. Tal conceito é pautado na
teoria da Autopoiese, pois o homem vive no conhecimento e conhece no viver – e
a Ludopoiese entende a ludicidade humana auto-organizada pelo sujeito.
Etimologicamente, a palavra ludicidade tem sua raiz no latim ludo – que pode ser
traduzida como brincar. Na inclusão dos jogos, brinquedos e estratégias é que vi-
venciamos atividades lúdicas. Para Luckesi (2005) o fenômeno da ludicidade “foca
a experiência lúdica como uma experiência interna do sujeito que a vivencia” (Luc-
kesi 2005, 1), e nestes processos vivenciamos o fazer musical com espírito lúdico.
Compreendemos a Ludopoiese como fenômeno da autoprodução da alegria de
viver. Sendo um sistema vital e contínuo do ser humano acontece na interação do
sujeito com o meio, com o outro, com a qualidade lúdica de seus fazeres.
Assim, comungamos com uma escola que valoriza a ludicidade do ser, a entrega in-
condicional à aventura de aprender, entendendo a ludicidade na escola não como
ferramenta ou instrumento de incentivo na busca de novos elementos para o fazer
escolar, mas sim de um estado de plenitude do ser ao fazer, já que “não estamos fa-
lando, em si, das atividades objetivas que podem ser descritas sociológica e cultu-
ralmente como atividade lúdica, como jogos ou coisa semelhante. Estamos, sim,
falando do estado interno do sujeito que vivencia a experiência lúdica” (Luckesi
2005, 6). E nesta aventura lúdica as propriedades da Ludopoiese se revelam em nos-
sos fazeres, em nossas reflexões, em nossa entrega.

Autotelia – o envolvimento do ser


Autotelia é a propriedade da ludopoiese que a define como uma vivência que tem
um fim em si mesmo, voltada para a própria subjetividade de cada um, traduzindo
escolhas, desejos que refletem autonomia e autodeterminação de uma expressivi-
dade humana no tempo presente.
Podemos dizer que é a descoberta da finalidade da ação, o fim em si mesmo, a im-
plicabilidade, o envolvimento do ser. É a qualidade de estabelecer para e por si pró-
prio o objetivo das suas ações. Encontrar no grupo e em cada um a finalidade da
música, o objetivo de um resultado.
Em nossas vivências musicalizadoras nossos educandos se vêem rodeados de desafios,
e são encorajados a expandir seu campo de ação, no esforço individual e coletivo,
atingindo assim o que denominamos de “experiência máxima” ou “estado de fluxo”.
Assim, para satisfazer-se em suas realizações, atingindo o estado de fluxo, devemos
perceber os elementos apontados por Csikszentmihalyi (1992), que nos elucidam 477
o caminho para que uma vivência tenha um fim em si mesma, que seja gratificante
e leve o educando a experiência máxima.
O autor nos fala a princípio que uma atividade desafiadora exige aptidão. Sabemos
que quando os passos propostos são muito grandes, muitas vezes a frustração em
não alcançá-los é desestimulante, provocando a desistência ou mesmo o desânimo
em persistir. Cabe ao educador então perceber quais desafios pode propor ao grupo
ou ao indivíduo, sabendo que, por exemplo: “uma música simples demais para nossa
capacidade auditiva se tornará tediosa, e uma música muito complexa, frustrante. A
satisfação surge no limite entre o tédio e a ansiedade, quando os desafios estão em
equilíbrio com a capacidade de atuação da pessoa” (Csikszentmihalyi 1992, 84).
Assim, vemos que para nos satisfazermos na vivência o esforço é válido para que
ultrapassemos barreiras, mas não tão difíceis que nos faça desistir, quebrando o es-
tado de fluxo. Neste esforço contínuo de superação, aprendizagem ou mesmo trei-
namento, a atenção se volta para o fazer, não havendo neste momento outra
informação relevante que desfaça o processo. O que Csikszentmihalyi (1992, 85)
chama: “a fusão entre a ação e a consciência” é o envolvimento pleno no fazer, per-
mitindo que a participação do ser seja espontânea, quase automática. A este estado
de concentração e envolvimento o autor chama de fluir.
Este estado só acontece porque nos encontramos concentrados na atividade pre-
sente. Este é outro elemento da satisfação elencados pelo autor. Ele nos fala que “as
atividades satisfatórias exigem uma total concentração da atenção na atividade pre-
sente, não deixando na mente nenhum espaço para informações irrelevantes”
(Csikszentmihalyi 1992, 91).
Exercer o controle nos leva a novas sensações, onde o corpo flui na vivência, sem que
o entorno possa atrapalhar. Neste estado de perda de consciência o ser não encon-
tra disponibilidade de atenção para outros pensamentos irrelevantes. O que inte-
ressa é o realizado, o momento.
Assim, neste envolvimento pleno – a experiência máxima – perdemos a relação
com o tempo, não contamos os minutos ou segundos para que tudo termine. En-
contramo-nos neste estado de atenção, absorto na vivência. Csikszentmihalyi (1992,
102) diz: “uma das descrições mais comuns da experiência máxima é que o tempo
não parece mais transcorrer do modo costumeiro”, e nos fazemos envolvidos neste
momento, que se faz nele mesmo, uma experiência autotélica.
Autoterritorialidade – a segurança do ser
Autoterritorialidade refere-se à propriedade da ludicidade humana de ocorrer em
espaço-tempo autodelimitado, constituindo assim o campo de jogo que propicia
478 concretizar desejos vivenciais de criação e expressão de si mesmo por si mesmo.
Neste jogo o ser estabelece seus limites de tempo e de espaço (Huizinga 2005), assim
esta propriedade se relaciona ao espaço-tempo determinado pelo ser, a segurança em
ser acolhido em determinado território, a apropriação desse espaço-tempo para sua
autoformação.
Em nossas vivências musicalizadoras, que é o jogo de fazer música, nos desvenci-
lhamos da produção, pois o foco não é o produto, mas sim a vivência. Acreditamos
inspirados por Caillois (1990, 9) que é a gratuidade do jogo de fazer música que
nos inspira e nos permite a entrega, é uma “fantasia agradável”.
Este é um espaço seguro, onde todos podem se expressar livremente pela música,
no jogo de combinar sons, na criatividade, na liberdade criadora. Neste espaço fa-
zemos nossas regras para o jogo a ser jogado, e construímos a estrutura da música.
Nesta estrutura construída coletivamente vemos que o jogo de fazer música é o nú-
cleo da criação, reafirmando Duvignaud (1997) que é na experiência do jogo que
criamos, fazemos nossa festa, divagamos e podemos sonhar com o adiante. Para que
o jogo se estruture, devemos assim delimitar nosso tempo-espaço, as regras a serem
acolhidas pelo grupo, na cumplicidade do fazer coletivo.

Autoconectividade – a entrega do ser


Autoconectividade representa a propriedade do envolvimento e da implicabilidade
do ser consigo mesmo para poder se conectar como personalidade criadora com os
outros e com o mundo. Podemos afirmar que é o sentir a música em sua plenitude.
Tal propriedade se relaciona a consciência do desfrute musical, da participação ativa,
da entrega ao fazer. Para sentir a música e participar ativamente das vivências mu-
sicalizadoras nossos educandos são convidados à brincadeira musical.
De acordo com Maturana e Vender-Zöller (2004), brincamos espontaneamente
para atender ao nosso emocionar, e não pelas conseqüências do nosso brincar. Não
brincamos de fazer música pelo resultado, mas pelo envolvimento no vivido, onde
oportunizamos que todos se façam presentes em cada momento.
Este brincar de música, com a música, na música é que nos move em ações musica-
lizadoras já que nesses momentos nossos educandos não são levados a se compor-
tarem de maneira a se prepararem para futuras ações no futuro. De acordo ainda
com Maturana e Vender-Zöller (2004, 231) o brincar musicalizador não prepara
para nada, “é fazer o que se faz em total aceitação”.
Neste universo da brincadeira, podemos observar a conectividade com o entorno,
com o outro e consigo mesmo. Neste ambiente estamos imbricados material, cog-
nitiva e energeticamente na brincadeira do fazer música, de compor, de trabalhar
na coletividade.
Podemos chamar o brincar de processo autopoiético, já que em nossas ações musi-
479
calizadoras nos envolvemos com o outro e com o entorno, provocando perturba-
ções em nossas estruturas, modificando nossos fazeres, nos envolvendo plenamente
em nossas realizações. Aprendemos música pelo processo do viver e brincar na mú-
sica, pela conectividade com o ambiente, com o fazer musical.

Autofruição – a satisfação do ser


Autofruição significa o estado vivencial de satisfação e alegria como meta a ser al-
cançada pelo sujeito na realização de seus desejos ludopoiéticos de expressão de si
mesmo por si mesmo como vivência plena da alegria de viver.
Na vivência musical, se relaciona ao desejo pessoal, ao prazer. A entrega plena, no
sentimento de prazer em estar envolvido no processo, em fazer parte do grupo, em
relacionar-se com o outro na música, pela música e para a música.
Para Csikszentmihalyi (1992), a felicidade enquanto estado de espírito precisa ser
preparada, cultivada e defendida. Quando controlamos nossa vivência interior nos
permitindo fluir nos pequenos atos, nas aprendências e especialmente na convi-
vência somos capazes de determinar a qualidade de nossas vidas. A felicidade não
é um estado eterno, mas conseguindo fluir em nossos fazeres ficamos mais próximos
dela.
Se nos envolvemos com o brincar, o criar e o sentir, não podemos deixar de com-
partilhar, de valorizar o momento vivido em grupo. E somente com amor é que
conseguimos compartilhar o momento vivido.

Autovalia – a música no ser


Autovalia diz respeito à gratuidade, ao valor atribuído pelo sujeito as suas escolhas
lúdicas. É a própria subjetividade humana responsável por determinar o valor das
vivências lúdicas para a criação e a recriação de si mesmo, para a sua alegria de viver.
A ludicidade humana não se manifesta como valor de troca mercantilizado pela
cultura de consumo. O valor do usufruto do lúdico é um autovalor, devendo ser de-
finido pelo próprio sujeito.
Assim, na Educação Musical essa propriedade se refere ao autovalor, a qualidade do
que vale para o ser, e não tem preço ou interesses. Podemos também entender como
a valorização do quanto vale educar para que o outro sinta que o processo vale para
ele.
Vivemos muitas vezes uma educação que não percebe os valores e se envolve ape-
nas na cognição e na valorização dos conteúdos, deixando de lado a formação do
educando, sua relação com o entorno, em uma proposta de viver dias melhores. A
Educação Musical também é desvalorizada neste processo, não sendo acolhida
como importante ciência a ser aprendida, e temos assim um componente curricu-
lar na escola que busca seu lugar enquanto linguagem a ser apreendida por todos.
480
Considerações
Os Processos Ludopoiéticos são revelados na corporeidade do ser, em suas ações,
em seus fazeres na música. O espírito lúdico – que move os homens e as culturas –
penetra no ser em suas ações quando nos permitimos entender a brincadeira como
vida, como a arte da vida.
Desta forma, defendemos a ludicidade como fundamental no processo de produ-
ção de conhecimento, e comungamos com Cavalcanti e Sampaio (2008, 7) ao afir-
marmos que “jogar é viver e viver é jogar. Joga-se com o corpo, com a alma e com o
espírito”. E neste jogar vivendo ludicamente a música aprendemos compartilhando
nossas emoções e fazeres com o outro, em uma sintonia harmoniosa que irradia lu-
minosidade, e de forma recursiva alimenta a própria fonte, e como nos dizem as
autoras “ao mesmo tempo expande essa luminosidade da alegria de viver para o seu
entorno, para todos os seres à sua volta”.
E neste humanescer vivemos imbricados nestas relações energéticas com nossos
educandos, captando com lentes sensíveis os momentos vividos, as descobertas, o
olhar, o desejo, a angústia e o contentamento. Fazemos uma (re)leitura de nossa
realidade, e se muitas vezes vemos o não palpável, é pela convivência, pelo conhe-
cer que vemos cada sujeito enquanto um ser em formação, em contínuo processo
de viver e conhecer.
E por meio dessas lentes podemos afirmar que nossos objetivos são alcançados na
aprendência musical. Podemos ratificar que nossos educandos apreendem música,
reconhecem signos musicais, são capazes de executar música em grupo, e demons-
tram conhecimento sobre a história da música, estilos e estrutura musicais – vivem
a música na Ludicidade.
Vemos que o processo é muito mais importante que o desempenho dos educandos
na apresentação ou performance. Nos encantamos com o fazer musical em seus
movimentos e rodopios e percebemos o discurso de nossos educandos que se ma-
nifestam nas descobertas que atendem seus desejos, interesses e necessidades. Assim
colaboramos para a formação do ser na educação, pois aprender música é sentir a
música, ter a oportunidade de brincar com a música, e (re)criá-la, onde o ser é pro-
tagonista do fazer musical. Padilha (2007, 48) nos diz que:
Crianças que, desde cedo, acumulam vivências musicais no seu ambiente fami-
liar e escolar, têm maiores perspectivas de se tornarem pessoas mais sensíveis em
relação à música e de atribuírem maior valor à presença da musicalidade em suas
vidas, sejam quais forem as suas atividades profissionais futuras, com o que se tor-
nam também pessoas mais conectadas a outros “sons” de suas existências.
E espalhando os sons de uma existência mais musical e harmoniosa desejamos que
a Educação Musical revele o viver a música do ser, e que ele possa irradiar lumino-
sidade para o entorno, envolvendo outros seres, a natureza, a sociedade e o planeta
481
na ciranda da vida.
Referências
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O Ensino de Música para Pessoas com Doença Mental:
a desconstrução da figura do louco
e a construção de possibilidades de inclusão social
482
Thelma Sydenstricker Alvares
tsydalvares@hotmail.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo
Pesquisa qualitativa realizada na Escola de Música da UFRJ visando o desenvolvimento
de uma metodologia de ensino de música para pessoas com transtorno mental que par-
ticipam do programa de hospital-dia do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Discussão da
Reforma Psiquiátrica e de outros movimentos que impulsionam o desenvolvimento de po-
líticas sociais que buscam a inclusão social e o acolhimento da diversidade humana. As
principais questões que norteiam esta pesquisa são: 1. Como a Educação Musical pode
contribuir com o movimento da Reforma Psiquiátrica? 2. Quais mudanças o aprendi-
zado musical traz para pessoas com doença mental? 3. Como assegurar um ensino de
música para pessoas com doença mental em que se enfatize a capacidade musical do
aluno e o indivíduo como um todo e não a doença mental? 4. Seria o modelo desen-
volvido por Swanwick, TECLA, adequado para o ensino de música para pessoas com
doença mental? Quais mudanças, ou adequações, se fazem (ou não) necessárias? As
principais abordagens e procedimentos metodológicos adotados são: observação parti-
cipante, registro das aulas (DVD), entrevistas semi-abertas. As principais concepções teó-
ricas que norteiam essa interpretação são: a. estudo da motivação na aprendizagem
musical como um campo importante de investigação que poderá facilitar o desenvolvi-
mento de uma metodologia do ensino de música para pessoas com transtorno mental.
b. As atividades criativas como meio facilitador do processo ensino-aprendizagem e
como meio integrador das 3 funções (experiência sensória, saber intuitivo e saber lógico)
referentes á aquisição de conhecimentos. c. A utilização do modelo TECLA, desenvolvido
por Swanwick, como ponto inicial para planejamento e desenvolvimento das aulas de
música. d. Teoria de Paulo Freire em que a educação é vista como meio de transforma-
ção e de afirmação do homem no mundo e não de adaptação; o homem deve ser o su-
jeito de sua educação e não objeto dela.

Esta pesquisa qualitativa, realizada na Escola de Música da Universidade Federal do


Rio de Janeiro (UFRJ), tem por objetivo investigar uma metodologia de ensino de
música para pessoas com transtornos mentais que estão no programa de tratamento
do hospital-dia do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. A Escola de Música possui
uma parceria com o Instituto de Psiquiatria na qual os alunos do curso de licen-
ciatura e do mestrado em educação musical encontram um campo para prática pe-
dagógica e pesquisa; as aulas vinculadas à pesquisa acontecem na Escola de Música
O século XX e o início deste século têm contribuído favoravelmente para a criação
de possibilidades de inclusão social de pessoas com necessidades especiais. A Con-
ferência de Salamanca (UNESCO, 1994), a Declaração de Caracas (BRASIL,
2002), as Conferências Nacional de Educação e as Conferências Regional de Re-
forma dos Serviços de Saúde Mental1 são exemplos deste movimento que busca o
desenvolvimento de políticas sociais mais democráticas. Percebe-se uma tendência 483
em desenvolver estratégias e ações sociais que busquem uma articulação entre a
educação, saúde, moradia, assistência social, desenvolvimento sustentável, econo-
mia solidária, trabalho e renda. Não podemos pensar em uma educação inclusiva,
sem garantir a inserção social deste indivíduo com necessidades especiais fora dos
muros escolares. Não bastam leis que obriguem a aceitação de alunos com neces-
sidades educacionais especiais em escolas regulares. È preciso repensar, entre ou-
tras questões, a formação dos professores, a acessibilidade de pessoas com
necessidades especiais nos espaços urbanos e rurais, a inserção destas pessoas no
mercado de trabalho e a articulação entre os serviços de saúde e a educação de modo
que estes serviços possam garantir o desenvolvimento pleno do aluno com necessi-
dades especiais. Por exemplo, uma criança surda que seja atendida na fonoaudio-
logia em uma escola especializada, não obterá benefícios condizentes com o
tratamento se não tiver aparelho auditivo que é fornecido pelos serviços de saúde.
O movimento da Reforma Psiquiátrica inicia-se na década de 70 sendo muito in-
fluenciado pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia (1985). No Brasil a Dra. Nise
da Silveira (Silveira, 1981; 1986; 1992) já iniciara na década de 50 um trabalho que
denunciava a violência do tratamento psiquiátrico como a lobotomia, o eletro-
choque e o uso abusivo de neurolépticos. Ela propôs um modelo inovador de tra-
tamento dando origem à Casa das Palmeiras e ao Museu do Inconsciente
tornando-se um ícone que impulsionou mudanças no tratamento psiquiátrico no
Brasil.
A partir do final da década de 80 e início da de 90, mudanças significativas come-
çam a ocorrer no tratamento da pessoa com transtorno mental. Em 1990, o Brasil
torna-se signatário da Declaração de Caracas (BRASIL, 2002) que propõe a rees-
truturação da assistência psiquiátrica intensificando o movimento em Saúde Men-
tal na América Latina e Caribe. Passam a entrar em vigor no país as primeiras
normas federais que regulamentam a implantação de serviços de atenção diária
como os Centros de Atenção Psicossocial (CAP), hospitais-dia e desenvolvimento
das primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. A
Lei 10.216, aprovada em 2001, por exemplo, redireciona a assistência em Saúde
Mental privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comuni-
tária, dispondo sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais.
Atualmente existem programas, serviços e auxílio do governo que buscam garantir
o direito de cidadania da pessoa com transtorno mental. Entre estes podemos
citar2: Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria
(PNASH/Psiquiatria), Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospi-
talar Psiquiátrica no SUS (PRH), Programa de Inclusão Social pelo Trabalho, Pro-
grama de Volta para Casa (visa à reabilitação psicossocial de pacientes que tenham
permanecido em internação psiquiátrica de longa duração), auxílio reabilitação psi-
484 cossocial e os Serviços de Residência Terapêutica. No entanto, apesar destas mu-
danças, o indivíduo com doença mental continua enfrentando obstáculos em seu
processo de inserção social.
Jean-Marc Raynaud na apresentação do livro de Jacques Lesage de La Haye (2007),
A morte do manicômio, afirma:
O louco já não faz mais parte da paisagem. Ele é (cada vez menos) confinado
em asilos. Semi-oculto em hospitais de dia, em apartamentos terapêuticos, em
locais de vida institucionalizados. . . Vagueia-se incógnitos na vida de todos os
dias trajando suas vastas camisas químicas de todos os tipos. Ele não tem mais
seu lugar entre nós. E ainda menos em nós. O louco, doravante, é o OUTRO.
O estrangeiro. Aquele a quem se deve temer. Excluir. Ocultar. Encarcerar.
Negar. No diapasão do deliquente, do jovem, do velho, do deficiente, do de-
sempregado (p. 10)
A estrutura do manicômio além do destrato humano tornou-se também um ônus
financeiro ao Estado. Por exemplo, a não mais existente Colônia Juliano Moreira3
chegou a abrigar cinco mil pacientes considerados irrecuperáveis. A indústria far-
macêutica responsável pelos neurolépticos também é geradora de grande capital. É
fundamental refletir sobre os passos da Reforma Psiquiátrica, considerando as ques-
tões econômicas, mas priorizando e viabilizando um tratamento humanitário. Se-
gundo La Haye (2007),
É verdade, o hospital psiquiátrico desaparece por razões econômicas, quando
de fato, essa evolução era necessária por motivos humanitários e conceitos teó-
ricos. O hospital psiquiátrico devia ser abolido, pois era um enclave totalitário
evocando os campos de concentração. Mais ainda, a atomização do hospital psi-
quiátrico em estruturas leves corre o risco de nada mudar em relação ao trata-
mento dos doentes mentais se seus princípios de funcionamento permanecerem
os mesmos. (p. 199)
Segundo Amarante (1995), os EUA são um exemplo do fracasso da Reforma Psi-
quiátrica porque o conceito de desinstitucionalização se reduziu à mera medida de
desospitalização. A Reforma Psiquiátrica precisa atingir um escopo mais abran-
gente:
Estamos falando em desinstitucionalização, que não significa apenas desospita-
lização, mas desconstrução. Isto é, superação de um modelo arcaico centrado
no conceito de doença como falta e erro, centrado no tratamento da doença
como entidade abstrata. Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua
existência e em relação com suas condições concretas de vida. Isto significa não
administrar-lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades.
O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e mortificação
para tornar-se criação de possibilidades concretas de sociabilidade a subjetivi-
dade. O doente, antes excluído do mundo dos direitos e da cidadania, deve tor-
nar-se um sujeito, e não um objeto do saber psiquiátrico. (p.494)
Acreditamos que a educação musical possa ser um caminho de construção de pos-
sibilidades para o indivíduo com transtorno mental. Segundo a Dra. Nise da Sil- 485
veira (Horta, 2008), o foco do tratamento é o indivíduo como um todo e não a
doença.
É fundamental valorizar o lado saudável do cliente, e não ficar procurando sin-
tomas para adoentá-lo cada vez mais. Ora, se você observa com desprezo o
doente mental, só enxergará tristeza, miséria, decadência. No entanto, se você for
mais além e conseguir olhar o outro lado do ser, descobrirá tesouros maravi-
lhosos, incalculáveis. . . Como eu não sou boba nem nada, decidi olhar o lado
mais rico. Foi exatamente desta riqueza que nasceu o meu trabalho. (Horta,
2008, p.96)
Em 2005, o Ministério da Saúde publicou o documento, Reforma psiquiátrica e
política de saúde mental no Brasil, apresentado à Conferência Regional de Reforma
dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas (BRASIL, 2005). Neste
documento, o Ministério menciona os Centros de Convivência e Cultura, inicia-
tiva já existente em Campinas (SP) e Belo Horizonte (MG):
É típico da dinâmica da Reforma Psiquiátrica o surgimento, em variados mo-
mentos e em diversas regiões, de experiências inovadoras e de novas tecnologias
para responder ao desafio do cuidado e da inclusão social. Os Centros de Con-
vivência e Cultura vem se destacando como uma destas experiências, e o Mi-
nistério da Saúde vem conduzindo um debate em torno da viabilidade de
aprofundamento e expansão deste dispositivo para todo o país. (Brasil, p. 36,
2005)
A contribuição de atividades culturais e artísticas que possam trazer mu-
danças significativas para inclusão de pessoas com transtorno mental tem sido dis-
cutida. No Rio de Janeiro, realizou-se o encontro Loucos por Diversidade
(Amarante, 2008) na Fundação Oswaldo Cruz no qual diversos projeto envolvendo
as Artes com pacientes psiquiátricos foram apresentados. Acreditamos ser essencial
a participação da Universidade neste processo de criação de experiências inovado-
ras e produção de conhecimento que venham a contribuir com os propósitos da
Reforma Psiquiátrica junto aos órgãos governamentais.
A criação de um espaço para o ensino de música, propiciando a possibilidade de
participação destes alunos na vida musical, cultural da cidade do Rio de Janeiro
vem ao encontro dos objetivos encontrados no movimento da Reforma Psiquiá-
trica. No Instituto de Psiquiatria, Vidal (Vidal, Azevedo & Lugão, 1998) relata o
surgimento dos Cancioneiros do IPUB que surgiu da necessidade dos pacientes de
expressarem suas composições. Desta iniciativa, surgiu o grupo, Cancioneiros do
IPUB, que hoje interage com a sociedade, em diversas cidades brasileiras, através do
projeto Loucos por Música que permite que bandas de pessoas com transtorno
mental participem de shows de músicos renomados. É importante mencionar que
desde a criação do grupo há 12 anos, nenhum de seus componentes voltou a ser in-
ternados. Segundo a Dra. Nise:
486 A experiência demonstra que a volta do paciente à realidade depende, em pri-
meiro lugar, de um relacionamento confiante com alguém - relacionamento que
se estenderá, aos poucos, a contatos com outras pessoas e com o ambiente. O
ambiente em que os clientes estão é, por si só, um importante agente terapêutico.
(Horta, 2008, p.329)
Acreditamos que o ambiente da sala de aula seja fundamental para o bom desem-
penho do aluno e isto também está correlacionado com uma metodologia satisfa-
tória. É objetivo de esta pesquisa investigar uma metodologia do ensino da música
que contribua para o processo ensino-aprendizagem de alunos com transtornos
mentais. No Instituto de Psiquiatria temos relatos de alunos que iniciaram estu-
dos em escolas de música, mas não conseguiram se adaptar ao ensino e abandona-
ram o programa. É importante buscar uma metodologia que não tenha como foco
a doença, mas que, ao mesmo tempo, trabalhe com possíveis dificuldades (ou dife-
renças) de aprendizagem das pessoas com transtorno mental. Para isso, é necessá-
rio levar em conta os aspectos emocionais, fruto da exclusão social sofrida pela
pessoa com transtorno mental, o uso de medicação psiquiátrica e as características
apresentadas, por exemplo, em quadros de depressão e esquizofrenia. “A esquizo-
frenia é uma doença biológica e, como tal, envolve alterações cerebrais, tanto no
nível celular como químico, acometendo diferentes funções cerebrais (Palmeira,
Geraldes & Bezerra, p.5, 2009).
Concordamos com a idéia de Freire (2001) de que o homem deve ser o sujeito de
sua educação e não o objeto dela. Segundo o autor,
Uma educação que pretendesse adaptar o homem estaria matando suas possi-
bilidades de ação, transformando-o em abelha. A educação deve estimular a
opção e afirmar o homem como homem. Adaptar é acomodar, não transformar.
(p. 32)
Neste momento histórico em que grandes mudanças ocorrem no tratamento da
pessoa com transtorno mental, é fundamental criar espaços sociais, culturais e ar-
tísticos onde as diversidades humanas possam ser compartilhadas e respeitadas. Se-
gundo Bruner (1996), educação “é uma busca complexa de fazer a cultura servir ás
necessidades de seus membros, e fazer seus membros com seus meios de saber ser-
virem às necessidades da cultura.” (p.43)
As principais questões que norteiam esta pesquisa são:
1. Como a Educação Musical pode contribuir com o movimento da Reforma Psi-
quiátrica?
2. Quais mudanças o aprendizado musical traz para pessoas com doença mental?
3. Como assegurar um ensino de música para pessoas com doença mental em que
se enfatize a capacidade musical do aluno e o indivíduo como um todo e não a
doença mental?
4. Seria o modelo desenvolvido por Swanwick (1999), TECLA, adequado para o
ensino de música para pessoas com doença mental? Quais mudanças, ou ade- 487
quações, se fazem (ou não) necessárias?
A pesquisa parte de alguns pressupostos relativos à educação musical que norteiam
o desenvolvimento do projeto. Swanwick (1994) acredita que exista uma relação di-
nâmica entre a intuição e a análise. Para o autor, o saber intuitivo é um modo ativo
de construção de mundo e permite todas outras maneiras do saber. Segundo Swan-
wick, a experiência sensória está diretamente correlacionada ao saber intuitivo que
é uma preparação para o pensamento lógico. “A relação não é entre funções con-
trastantes, mas entre fases prévias e subseqüentes para se chegar ao conhecimento.”
(p.29). Nas aulas buscamos a experiência prática, envolvendo a criação, improvisa-
ção como uma preparação para abordar a teoria musical. De acordo com Bréscia
(2003), “a aprendizagem só ocorre plenamente quando o aprendiz usa, transfere,
aplica, cria, aprofunda, modifica, inova a partir do que aprendeu.” (p.65)
Muitos alunos que participam das atividades musicais do Instituto de Psiquiatria
compõem canções sem ter conhecimento teórico de música. Acreditamos que os
alunos tragam um conhecimento musical adquirido em sua convivência social que
deve ser estimulado através de atividades de criação/ improvisação que envolvem
também a experiência sensória. Segundo Santos (2009), “a idéia de construção de
conhecimento permite conceber a criatividade musical em termos epistêmicos,
tendo em vista a perspectiva de construção e desenvolvimento de conhecimento
pessoal. “(p.99)
O planejamento das aulas envolvem atividades em que as 3 funções (experiência
sensória, saber intuitivo e saber lógico) descritas por Swanwick (1994) sejam utili-
zadas. As atividades criativas, além de fazerem parte do processo de aprendizagem,
podem ser um veículo de comunicação sobre as questões referentes ao transtorno
mental. No trabalho desenvolvido por Vidal (Vidal, Azevedo & Lugão, 1998), os
pacientes do hospital criaram canções que falam sobre a experiência da doença men-
tal como também de temas que falam de amor, natureza, violência urbana, etc. Para
Freire (2001), “Em todo homem existe um ímpeto criador. O ímpeto de criar nasce
da inconclusão do homem. A educação é mais autêntica quanto mais desenvolve
este ímpeto ontológico de criar.” (p.32)
Em sala de aula, damos ênfase às atividades em grupo. Além dos benefícios na apren-
dizagem, acreditamos que seja fundamental para a criação de uma identidade deste
grupo que está em um processo de inserção social. Apesar da reforma psiquiátrica
ter trazido novas perspectivas para pessoas com transtorno mental, estas pessoas
ainda sofrem muitos preconceitos. È importante estimular o desenvolvimento de
uma identidade de um grupo de alunos de música e não de pacientes do Instituto
de Psiquiatria. Segundo Bréscia (2003), “enquanto experiência social, uma ativi-
dade musical em grupo dá aos participantes a segurança de “pertencer”, que é ge-
neticamente derivada da antiga segurança de ser membro de uma família. ”(p.62)
488 Além das atividades em sala de aula, também assistimos, pelo menos uma vez ao
mês, uma apresentação musical em teatros e salas de concerto da cidade como meio
de estimular o grupo a conhecer e participar da vida musical do Rio de Janeiro. A
apreciação musical e o estudo de diferentes estilos musicais são fundamentais para
o desenvolvimento musical do aluno e em nossas aulas procuramos fazer uma ponte
entre os conteúdos estudados em aula com a escolha da apresentação musical do
mês.
A pesquisa inclui o estudo das teorias sobre motivação que vem recentemente sendo
utilizadas em pesquisa em música. Segundo Araújo (2009),
O estudo da motivação na aprendizagem musical representa um significativo
campo de investigação, uma vez que, por meio de diferentes enfoques, pode-se
obter resultados que auxiliem os educadores a compreender o percurso da apren-
dizagem discente, revelados por meio de dados sobre os aspectos do investi-
mento pessoal dos sujeitos, o grau de envolvimento ativo destes nas tarefas
realizadas, a qualidade de tal envolvimento e as conseqüências e resultados das
atividades musicais na relação entre motivação intrínseca e extrínseca. (p. 117)
Sloboda e Davidson (1996) afirmam que a percepção do próprio sucesso em mú-
sica aumenta a motivação do aluno enquanto que a percepção do próprio fracasso
é um fator de desmotivação. Os autores descrevem estudo sobre motivação no
aprendizado do instrumento em que as crianças que alcançavam um alto índice de
performance descreviam seu primeiro professor como uma pessoa amigável, sim-
pática e um bom músico. Por outro lado, as crianças que abandonavam o estudo
do instrumento relatavam que o primeiro professor era uma pessoa desagradável e
péssimo músico. Na pesquisa a motivação extrínseca, por exemplo, o professor dei-
xava a criança subir na árvore antes da aula, estimulava o interesse da criança em es-
tudar música o que levava ao surgimento, ou ao aumento, de uma motivação
intrínseca em relação ao estudo do instrumento. Segundo a teoria da autodeter-
minação, o ser humano nasce com propensões inatas para o aprendizado e o am-
biente pode fortalecer ou enfraquecer esta propensão. Na teoria da
expectativa-valor, os elementos determinantes do processo motivacional são “as
crenças nas habilidades, as expectativas de sucesso e os componentes subjetivos de
valoração da atividade realizada.” (Araújo, p. 121, 2009). De acordo com a teoria
do fluxo (Csikszentmihalyi, 1999) o indivíduo alcança o estado de fluxo quando há
equilíbrio entre os desafios propostos e as habilidades do indivíduo. Quando ele
atinge este equilíbrio ele consegue obter uma energia psíquica totalmente focali-
zada e concentrada na atividade em execução, além de obter prazer em enfrentar o
desafio. Segundo a teoria da autoeficácia,
As crenças e a realidade nunca se encaixam perfeitamente, e os indivíduos são
orientados por suas crenças quando se envolvem com o mundo. Como conse-
qüência, as realizações das pessoas geralmente são mais bem previstas por suas
crenças de autoeficácia do que por realizações anteriores, conhecimentos ou ha-
bilidades (Pajares e Orlaz, 2008, p.102)
489
Acreditamos que as teorias da motivação possam contribuir para o desenvolvi-
mento desta pesquisa e para elucidar caminhos facilitadores da inclusão social de
pessoas com transtorno mental.

Abordagens e procedimentos metodológicos


As principais abordagens e procedimentos metodológicos adotados na pesquisa são:
1. a observação participante, através da qual a coordenadora do projeto e os mem-
bros da pesquisa observarão as aulas semanais e interagem com o processo. Os
membros da pesquisa são alunos do curso de Licenciatura em Música da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro e do mestrado em educação musical en-
volvidos com a área de educação musical especial e que estarão sob a supervisão
da coordenadora do projeto.
Os critérios para inclusão são os seguintes: indicação de pacientes pela equipe
do hospital-dia do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e o interesse e a disponi-
bilidade dos pacientes em participar das aulas. Os critérios de exclusão são ba-
seados na avaliação da equipe do hospital-dia que indique que o paciente não
esteja em condição de atender as aulas de música. Em caso de internação, o
aluno ficará afastado das aulas, retornando ao programa quando voltar ao hos-
pital-dia e quando indicado pela equipe do hospital.
2. As aulas são filmadas e o registro das aulas é utilizado unicamente com objeti-
vos educacionais e de pesquisa.
3. Reuniões periódicas com a equipe do Instituto de Psiquiatria a fim de discutir
o andamento, avaliar os resultados e aprimorar o desenvolvimento das aulas de
música.
4. Entrevistas semi-abertas com os alunos vindos do hospital-dia. Os critérios
para inclusão nas entrevistas serão: interesse e/ou disponibilidade para ser en-
trevistado(a). Os critérios de exclusão serão os seguintes: a falta de interesse
e/ou disponibilidade para ser entrevistado(a).
5. Interpretação dos dados, a partir do referencial teórico adotado. As principais
concepções que norteiam essa interpretação são:
O estudo da motivação na aprendizagem musical como um campo importante de
investigação que poderá facilitar o desenvolvimento de uma metodologia do en-
sino de música para pessoas com transtorno mental.
As atividades criativas como meio facilitador do processo ensino-aprendizagem e
como meio integrador das 3 funções (experiência sensória, saber intuitivo e saber
lógico) referentes á aquisição de conhecimentos.
A utilização do modelo TECLA, desenvolvido por Swanwick, como ponto inicial
para planejamento e desenvolvimento das aulas de música.
d. Teoria de Paulo Freire em que a educação é vista como meio de transformação
490
e de afirmação do homem no mundo e não de adaptação; o homem deve ser o su-
jeito de sua educação e não objeto dela.

Conclusão
O movimento da reforma psiquiátrica assim como outros movimentos que visam
à inclusão social de indivíduos historicamente excluídos em muros institucionais
exigem mudanças sociais. É fundamental que a Universidade participe ativamente
deste processo através de projetos de extensão e de pesquisa que possam contribuir
com a formação de profissionais e produção de conhecimento que estimulem o
desenvolvimento de uma sociedade democrática que acolha a diversidade humana.
É intenção desta pesquisa em processo inicial de desenvolvimento participar deste
desafiador processo de transformação social.

1 Outras informações sobre estas conferências e documentos podem ser obtidas no portal de
saúde do Governo Federal: www.saude.gov.br
2 Informações sobre estes programas podem ser obtidas no portal do Governo
www.saude.gov.br
3 Informações referentes à Colônia Juliano Moreira podem ser obtida em
www..ccs.saude.gov.br/memória

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‘Musicalidade em Ação’
e Processos Cognitivos na Musicoterapia
Clara Márcia Piazzetta
492
musicoterapia.atendimento@gmail.com
Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia
Faculdade de Artes do Paraná

Resumo
Este texto tem resultados parciais do projeto de pesquisa bibliográfica Musicoterapia e
Ciências Cognitivas: possíveis relações entre os processos de pensamento e os proces-
sos musicais aprovado pelo Comitê de Pesquisa da FAP/PR. Apresenta uma reflexão
sobre os aspectos clínicos da música. Ambienta-se nos pensamentos sobre cognição
que consideram a mente corporificada e fundamenta-se na Musicoterapia Músico-cen-
trada. Também trás experiências musicais de trabalho clínico como exemplos. Musicali-
dade em ação relaciona-se com a cognição de maneiras ainda pouco conhecidas na
Musicoterapia, contudo, mostra-se como estratégia para uma melhor visibilidade dos va-
lores clínicos da música. A partir das reflexões, “musicalidade em ação” é um exercício
cognitivo inserido no trabalho clínico como uma estratégia de significar-fazendo ao se
considerar as “qualidades dinâmicas da nota”.

Introdução
Este artigo tem como base os estudos de um processo musicoterapêutico de 83 ses-
sões, já finalizado. Conta assim com um termo de consentimento livre e esclare-
cido para sua publicação. O foco do texto, contudo, não está na eficácia da
musicoterapia, mas sim, na reflexão com as bases teóricas da Musicoterapia Mu-
sico-Centrada. Esta teoria integra expressão musical e processos cognitivos da
mente corporificada pela fundamentação da análise musical na Teoria da Metáfora.
A mente corporificada apresenta-se como uma visão da cognição que considera não
apenas a mente (raciocínio e processos intelectuais) para a construção do aprendi-
zado, mas insere o corpo (os sentimentos, percepções e emoções) como formador
desse conhecimento.
O recorte do trabalho clínico organiza-se em três etapas: ‘criação do vínculo’, ‘aber-
tura às escutas internas’ e ‘lançar-se às possibilidades’. Em cada etapa, a musicalidade,
colocada em ação emerge como elemento chave para o desenvolvimento dos obje-
tivos clínicos. Musicalidade é entendida como capacidade cognitiva, no âmbito da
percepção auditiva e no âmbito do manuseio de instrumentos musicais. Assim, é
inata e constitutiva de cada pessoa, não se resume a capacidades e qualidades para
tocar um instrumento musical.
Os conceitos apresentados na abordagem Nordoff & Robbins e uma revisão con-
ceitual da música colocando-a como uma ação humana, e não como um objeto à dis-
posição, integra-se a esse sistema de conceitos e acabam por fundamentar uma rede
complexa de relações: homem, música, percepção sensorial, execução musical e re-
lações humanas. 493

Musicoterapia Músico-Centrada (MTMC)


A teoria que embasa este artigo foi descrita por Kenneth Aigen a partir dos escri-
tos da Nordoff – Robbins Music Therapy (NRMT) e do Guided Imagery and Music
(GIM), ambas abordagens que têm a música como fator clínico primordial.
Os conceitos apresentados por Aigen (2005) vêm de estudos da música, uma vez
que ela ocupa o lugar central nessa prática. A ênfase está assim nos processos mu-
sicais, estruturas, interações e experiências. Esta teoria é assim conseqüência de duas
condições advindas da realidade do trabalho de musicoterapia: 1) da aplicação sim-
ples da música por profissões ligadas à saúde adaptando-a aos seus propósitos ao
invés de uma aplicação da música por suas relações com o desenvolvimento hu-
mano, característicos do trabalho musico-centrado; 2) quando o trabalho musico-
centrado baseia-se em trabalhos clínicos apresenta-se diante de dois desafios: o de
criar novas teorias e a implicação do cuidado à saúde humana engajado com a mú-
sica.
Como o entendimento sobre música e musicoterapia é fundamental nessa teoria o
autor relembra o pensamento de Bruscia (1987) sobre as duas formas de pensar a
música na musicoterapia: música como terapia e música na terapia. O que as define
é a forma como a música é tratada. Música como terapia, a música é o agente pri-
mordial, um meio de resposta para as mudanças terapêuticas do cliente. Aqui a ên-
fase está na relação do cliente diretamente com a música e o musicoterapeuta auxilia
essa relação e intervém no âmbito interpessoal se necessário. Música na terapia, a
música não é o agente primordial, mas ao contrário é usada para facilitar mudan-
ças através da relação interpessoal, ou com outras modalidades de tratamento.
Os conceitos de Music Child e Condition Child presentes na NRMT são: o pri-
meiro, uma organização das capacidades receptivas, expressivas e cognitivas; e com
o segundo, entendem-se as potencialidades reais de cada pessoa. O aspecto dinâ-
mico destes conceitos tem um papel importante para o alcance dos objetivos não
musicais. Também outros conceitos descritos no livro de Aigen (2005) dão suporte
a esse fazer da música como terapia. Eles vêm da Filosofia da Música, da Educação
Musical e da Teoria da Música.

Aspectos da Filosofia da Música


O aporte filosófico de base para esse entender a música como terapia está descrito
no Pensamento do filósofo da Música – Victor Zuckerkandl. Uma obra complexa
e extensa. Esse texto apresenta muito brevemente sua concepção de música por não
ser o objeto desse artigo. Assim, Música para ele é um fenômeno do ‘mundo ex-
terno’. Os sons musicais chegam aos ouvidos por que estão no mundo ‘de fora’ e
fazem sentido na escuta por possuírem algo para isso. Esse algo pertence ao mundo
494 da Música. Preocupa-se com o entendimento da música a partir dela mesma e, para
tanto, considera o fenômeno sonoro percebido pela mente humana como música.
O ouvinte entende uma organização de sons como melodia porque esse fenômeno
faz sentido para ele. O que existe na música capaz de gerar sentidos? Os contextos
musicais (melodia) tornam-se forças ativas por que existe uma qualidade dinâmica
em cada nota. A música, para Zuckerkandl, é uma arte viva por essas qualidades das
quais a musicalidade humana se ocupa para a composição musical.

Aspectos da Educação Musical


O campo da Educação Musical, através dos estudos de David Elliot, repensa alguns
aspectos do que seja música para as pessoas e revê os métodos mais adequados ao
aprendizado da música. Uma revisão do conceito de Música tratando-a como Mu-
sicing mostrou-se muito pertinente para a MTMC.
Musicing: é o coração do pensamento musico-centrado. Este conceito envolve o
fazer humano.
Agir não é meramente mover ou exibir um comportamento. Agir é mover-se
deliberadamente, com controle, com intenção e finalidade . . . Musicing no sen-
tido da performance musical é uma forma humana particular e intencional de
ação . . . tocar música é agir pensativamente e conscientemente (Elliot apud
Aigen, 2005, p.65).
No trabalho musicoterapêutico um conceito sobre música que envolva, ao mesmo
tempo, os processos mentais (pensamento e cognição) e os processos musicais (o
fazer da experiência musical) vem ao encontro dos objetivos propostos no cuidado
à saúde engajado com a música.
Musicing na musicoterapia pode ser compreendido como “o único meio de co-
nhecimento baseado em sua própria epistemologia não reduzida à linguagem ver-
bal” (Aigen, 2005, p.67). Ansdell & Pavlicevic (2004) tratam-no como
“musicalidade em ação”. Isso é significativo para esse artigo por que a música existe
primeiramente como um meio para o desenvolvimento do self.

Aspectos da Teoria da Música – análise musical


e processos cognitivos
O entendimento da Musicoterapia envolve tanto o comportamento quanto os as-
pectos neurológicos envolvidos nas ações humanas. Aigen (2005) encontra no tra-
balho sobre o funcionamento metafórico do pensamento, descrito por Lakoff e
Johnson (1980), um apoio para integrar essas ações. A Teoria dos Schemas (Teo-
ria da Metáfora), como é chamada, está em uso no campo da análise musical por
teóricos da música, musicólogos e filósofos da música. Assim, mostra-se interes-
sante também à Musicoterapia, pois é uma forma de análise do fenômeno sonoro
musical levando em consideração os processos de pensamento envolvidos nas ações 495
e entendimentos do fenômeno musical. Segundo Aigen (2005) envolver-se nesse
conhecimento é encontrar argumentos para os valores inerentemente clínicos da ex-
periência musical.
A escuta musical compreendida por seus processos de pensamento metafóricos têm
como exemplo a expressão música é movimento. De fato, ela leva ao movimento
corporal, ela trabalha com diferentes velocidades de execução e diferentes possibi-
lidades de acentuações que induzem à dança; uma sequência de notas em interva-
los conjuntos do grave para o agudo e vice versa é descrita como o deslocamento do
som de baixo para cima e de cima para baixo (na cultura ocidental européia), como
se as notas pudessem subir ou descer. Contudo, nem na produção de ritmos e com-
passos nem nas escalas, algo na música se move. O entendimento desses sons como
movimento é obra do pensamento humano inerentemente metafórico e concei-
tual.
A teoria dos Schemas tem por base a idéia que a maior parte do conhecimento hu-
mano apóia-se sobre uma série de schemas cognitivos. Esses têm origem, mais, nas
experiências vividas pelas pessoas durante as interações com o mundo à sua volta, do
que, nas reflexões verbais sobre tais experiências. As formas de agir de cada pessoa
estão diretamente ligadas aos schemas construídos e desenvolvidos durante o viver.
As experiências musicais, deste modo, envolvem componentes cognitivos.
Assim, as percepções usando os esquemas de acima e em baixo, parte e todo, começo
meio e fim, continente, centro e periferia, direção, em frente e atrás, força e ligação,
estão em ação nas experiências de: dinâmicas musicais, solos sobre harmonias, har-
monias circulares, baixos caminhantes, cadências perfeitas, encadeamentos de acor-
des, exercícios de composição e outras. A compreensão do musicoterapeuta das
possibilidades de Schemas envolvidos nos processos cognitivos da escuta e do fazer
musical favorecem a construção dos objetivos clínicos musicais. Contudo é um as-
pecto que merece estudos para melhor compreensão de suas dinâmicas.
Os recortes clínicos a seguir, são interessantes para ampliar essa reflexão.

O Trabalho Clínico
a) ‘ Criação de vínculo’
O trabalho de musicoterapia propõe que se faça uma entrevista inicial seguida de
um reconhecimento do cliente. Sua musicalidade, suas potencialidades, suas quei-
xas, suas expectativas com o trabalho.
A criação do vínculo terapêutico é fundamental. Esse é construído a cada sessão e
a cada momento das interações sonoro, musicais, verbais e corporais compartilha-
das. A relação terapêutica e suas particularidades quanto à confiabilidade, preser-
vação de acontecimentos da sessão e aceitabilidade do outro precisam ser
496 entendidas e estruturadas desde os primeiros encontros. A integração do musico-
terapeuta com o cliente no setting acontece de modo inter musical, inter e intra
pessoal.
O musicoterapeuta está atento a toda a forma de relação possível entre o cliente, a
música e o setting. O exemplo a seguir (fig. 1), alto explicativo, traz os primeiros
sons produzidos em um processo clínico.

Figura 1 — 1ª Interação Musical – xilofone e tambor de bambu


Ainda nesse momento de reconhecimentos das interações musicais e pessoais é sig-
nificativo observar as relações estabelecidas com os elementos da música: ritmo, me-
lodia, timbre e harmonia. Em especial, no início deste processo se propôs um
trabalho de improvisação livre usando um instrumento melódico pelo cliente, sobre
uma base harmônica realizada pela musicoterapeuta. Essa experiência teve duração
de alguns minutos e desenvolveu-se dentro de um campo de tonalidade maior. Con-
tudo, as notas da flauta bem como o ambiente musical de música brasileira (canti-
gas de roda, cirandas, bossa nova, samba, e canções do candomblé) familiares ao
cliente nortearam a produção musical. Esses acontecimentos sonoros da flauta le-
varam aos acontecimentos da harmonia ao teclado e vice versa. O resultado foi uma
produção mais introspectiva, emotiva e movida com a flauta iniciando em intervalo
conjuntos descendente, mantendo notas mais longas e com poucas ousadias em sal-
tos de intervalos. Ao final os participantes estavam bastante envolvidos e surpresos 497
com o encontro musical. O cliente em especial relatou “eu imaginei algo feliz e veio
isso”. Nesse encontro, não transcrito, a emoção esteve muito presente, seja pela sur-
presa de pessoas, aparentemente desconhecidas tocarem de improviso, e construí-
rem algo musical. Seja pelas sonoridades vividas. Apenas a continuidade dos
trabalhos poderia indicar o sentido desse encontro. De início indicou que expe-
riências rítmicas e melódicas seriam mais fluentes. A harmonia precisava esperar
um pouco mais.
Esta foi uma produção bem diferente da realizada com o xilofone que soava com
uma energia impulsionadora e buscava notas desde as mais graves ate as mais agu-
das explorando o instrumento.
Após algumas sessões de ‘pausas’, pela falta do cliente, os trabalhos seguiram de
modo mais espaçado, pois assim como a música precisa de silêncios esse processo
precisou de um tempo diferenciado. Um tempo e uma velocidade possíveis de se
trabalhar. Na continuidade uma ‘ciranda’ (fig. 2) abria os encontros e ganhava letra
nova sempre que cantada.
Mi Che Che Che
Re
Dó # guei gue guei
Si
La ei com a mi turma cheguei
Sol
Fá # nhá

Figura 2 — Ciranda de chegada


Com as letras espontâneas acrescentadas a essa pequena canção, a escolha por in-
vestir no processo musicoterapêutico se consolidou através das produções rítmicas
com tambores de bambu e de plástico e movimentos corporais sugestivos nessa lin-
guagem musical de cirandas. O passo seguinte mostrou-se como um amplo campo
para escutas.
b) ‘Abertura as escutas internas’
Canções populares nortearam essa segunda etapa. Essa ampliação no repertório
trouxe também o encontro com os sons de acordes realizados ao violão pelo cliente.
A primeira canção é também uma ciranda: ‘Perdi meu anel no mar’ (fig. 3).
498

Figura 3 — Perdi meu anel


Nesta segunda etapa, o exercício de escuta levou a percepção da recorrência de in-
tervalos descendentes para iniciar as melodias. Levou também a constatação que a
canção de chegada na realidade começa com intervalos ascendentes (fig. 4), mas foi
recriada e aceita com intervalos descendentes

Fá # che
Mi guei
Re
Dó # gue
Si
La Che ei
Figura 4 — escuta das notas reais da canção
Estas percepções foram seguidas de outras canções e agora com acompanhamen-
tos harmônicos. Essa escuta da harmonia foi muito significativa, pois confirmou as
especificidades do momento como uma nova etapa. A canção ‘Para ver as meninas’
de Paulinho da Viola chegou ao setting.
Silêncio por favor Enquanto esqueço um pouco a dor no peito Não
diga nada
sobre meus defeitos Eu não me lembro mais quem me deixou assim
Hoje eu quero apenas Uma pausa de mil compassos Para ver as meninas
E nada mais nos braços Só este amor assim descontraído Quem sabe de
tudo não fale Quem não sabe nada se cale Se for preciso eu repito Por-
que hoje eu vou fazer Ao meu jeito eu vou fazer Um samba sobre o infi-
nito Porque hoje eu vou fazer Ao meu jeito eu vou fazer Um samba
sobre o infinito
A hamonia caminha no ambiente de Sol menor; tem início com a preparação da do-
minante para a tônica acompanhando a melodia em terça maior descendente a par-
tir da nota da dominante; passa pelo acorde homônimo apenas no terceiro verso:
‘não diga nada sobre os meus defeitos’; o verso: ‘hoje eu quero apenas uma pausa de
mil compassos’ é executado com uma fermata na palavra ‘apenas’, onde na harmo-
nia aparece o acorde da relativa maior que resolve na subdominante de Gm. O
tempo dessa fermata amplia a suspensão e as expectativas.
A recriação desta canção contribuiu para novas experiências de composição ins-
trumental (flauta e piano). Estas, contudo, foram de passagem para improvisações
com instrumentos não conhecidos, como o próprio teclado.
Estas novas improvisações, ou, permissões para ‘brincar’ com algo tecnicamente
desconhecido proporcionaram experiências de ousadia com os sons. Pode-se tam-
499
bém dizer da ampliação de suas possibilidades ao ponto de chegar à última tecla no
agudo e retornar em um ‘glissando’ com a ajuda da musicoterapeuta. Também ex-
plorou-se muito as dinâmicas de forte e fraco. Brincou-se com pianíssimos, sussur-
ros, e também fortíssimos. Muito prazerosas essas experiências. O relato ao final:
“aqui eu brinco, não me preocupo se está certo ou errado, apenas faço o som que
gosto. Na flauta me preocupo com muitas coisas, não posso errar”.
O uso das dinâmicas repetiu-se em outras experiências de improvisação com di-
versos instrumentos. Essa ampliação alcançou a intenção de tocar livremente, bus-
cando explorar o mais possível os instrumentos; sair de pulsos rítmicos pré
determinados; viver a construção de músicas mais contemporâneas, desconstru-
ções e reconstruções.
Com isso chegou-se a etapa seguinte. Aqui, três canções ressoaram: “Minha missão”,
O Poder da Criação” e “Sombra”.
c) ‘Lançar-se às possibilidades”
Com a autoconfiança em ampliação a recriação das canções “minha missão” e “o
poder da criação” tornaram esse momento mais intenso. Elas foram cantadas cada
uma algumas vezes e soavam como mantras repetidos em estado meditativo. Soa-
vam como encontros profundos. Encontros consigo mesmo. ‘Minha Missão’ de
João Nogueira e Paulo Pinheiro:
Quando eu canto É para aliviar meu pranto E o pranto de quem já
Tanto sofreu Quando eu canto Estou sentindo a luz de um santo
Estou ajoelhando Aos pés de Deus
Canto para anunciar o dia Canto para amenizar a noite
Canto pra denunciar o açoite Canto também contra a tirania
Canto porque numa melodia Acendo no coração do povo
A esperança de um mundo novo E a luta para se viver em paz!
Do poder da criação Sou continuação E quero agradecer
Foi ouvida minha súplica Mensageiro sou da música O meu canto é uma
missão Tem força de oração E eu cumpro o meu dever
Aos que vivem a chorar Eu vivo pra cantar E canto pra viver
Quando eu canto, a morte me percorre
E eu solto um canto da garganta
Que a cigarra quando canta morre
E a madeira quando morre, canta!

Esta canção está em Gm, na introdução escuta-se: Cm C# 0 Gm Eb7+ Am5-(7) D7


Gm7. Logo na primeira frase o encadeamento harmônico leva o ouvinte do am-
biente de Gm para F7.
Gm7 F7+ D#7 D7 Gm7 Cm D7
Quando eu canto, é para aliviar, Meu pranto E o pranto de quem já tanto sofreu
500
Na melodia (trecho em negrito) o primeiro intervalo parte da nota da tônica na
oitava de cima e segue por uma terça menor ascendente e depois segunda menor
descendente. Uma melodia que, por começar com a nota da tônica no agudo, ten-
ciona a primeira frase. João Nogueira interpreta esse início com notas rápidas. Clara
Nunes já a faz com fermata em cada palavra. Na recriação no setting a canção apa-
receu com notas mais longas.
Nestes primeiros versos e os seguintes até “aos pés de Deus” a harmonia mantém a
suspensão com a dominante com sétima. A resolução vem com a segunda parte da
canção:
G6 C F7+ B b7+
Canto para anunciar o dia Canto para amenizar a noite
D#7 G # 7+ D7 Dm5-(7) G7
Canto pra denunciar o açoite Canto também contra a tirania
Os acorde maiores com sétima acompanham a melodia que brinca com notas mais
rápidas e com saltos do grave para o agudo em cada verso (palavras em negrito são
não agudo). Contudo levam a um movimento descendente da peça, pois cada verso
começa mais grave que o anterior.
Essa mudança de ambiente entre acordes menores e maiores, ritmo melódico com
notas mais longas seguidas de notas mais rápidas e em saltos maiores de intervalos
ascendentes ao final das frases lembra um movimento de pêndulo. Um deslocar do
peso por lados opostos sobre uma mesma base sem perder o equilíbrio.
Esse movimento ‘por opostos’ esteve muito presente nas experiências musicais desse
processo. Desde as primeiras notas ao xilofone (fig. 1) com movimentos alterna-
dos das mãos, passando por evitar a sonoridade das harmonias por ‘receio’ aos acor-
des menores, até se alcançar a escuta e execução dessa harmonia. Com essa escuta
foi possível estar efetivamente na rede de relações sonoras existentes na complexi-
dade da música. Esse exercício de cuidar das escolhas dos sons permitiu a escuta dos
movimentos sempre indo de um pólo a outro. A conscientização que existe algo
no ‘meio’; a construção vivida passo a passo da caminhada até outra extremidade,
não apenas por saltos, foi experimentada nas experiências de composição musical.
A canção “O poder da criação” também de João Nogueira contempla esse momento
por mais equilíbrio.
Não, ninguém faz samba só porque prefere Força nenhuma no mundo interfere
Sobre o poder da criação Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito Nem se
refugiar em lugar mais bonito Em busca da inspiração
Não, ela é uma luz que chega de repente Com a rapidez de uma estrela ca-
dente E acende a mente e o coração É, faz pensar
Que existe uma força maior que nos guia Que está no ar
Vem no meio da noite ou no claro do dia Chega a nos angustiar 501
E o poeta se deixa levar por essa magia E um verso vem vindo e vem vindo
uma melodia E o povo começa a cantar! Lalaia, lalaia!
Na introdução a cadência harmônica caminha da tônica à dominante utilizando
como recurso um baixo caminhante em graus conjuntos Am, Am/G, F # 0,F 6/E,
Am, E7. A melodia inicia-se com a tônica, porém no grave. Segue pela 5ª descen-
dente e retorna a tônica. A palavra “não” é quase falada na primeira nota. Está no
tempo forte e ocupa todo o compasso. Soa afirmativa e impositiva.
Am G Am F
Não, ninguém faz samba só porque prefere Força nenhuma no mundo interfere
F #0 E7
Sobre o poder da criação
O movimento dessa canção é ascendente em seu todo. Os versos finais são o ponto
mais forte e mais alto da canção. A palavra ‘melodia’ recebe um destaque de inter-
pretação e é o ponto culminante da peça.
Dm E7 Am C
E o poeta se deixa levar por essa magia E um verso vem vindo e vem vindo
F E7 Am F7 E7 Am
uma melodia E o povo começa a cantar lá laia Lá lálaiá laiá, lálaiá.

A construção harmônica não oferece dois ambientes (tonalidade e acordes homô-


nimos). Ao contrário todos os sons convergem para os versos finais e para o que se
cria: ‘uma melodia’. Estes versos contam que algo está vindo e o campo harmônico
abre-se com a relativa maior, chega à subdominante da relativa e retorna pela do-
minante para chegar à tônica.
A letra da canção apresenta o processo de composição como uma entrega do poeta,
um deixar-se ‘levar por essa magia’. Contudo começa numa ambientação bem de-
limitada, uma negação: ‘não ninguém faz samba só por que prefere’ e conclui com
o objetivo dos músicos sambistas alcançado. Os limites nas relações favorecem um
campo de ação. Não adianta impor ao artista, não adianta lugares bonitos, precisa-
se deixar-se levar, mas sem perder o objetivo: escutar uma melodia.
No processo de alta uma canção escolhida pela musicoterapeuta compôs uma ex-
periência de escuta musical. A obra ‘Sombra’ de Chico Saraiva e Paulo Tatit inte-
grou esse processo musicoterapêutico pelos versos e por algumas características
estéticas da obra. Os versos são:
Sim, perdi o senso E vi assombração Vi apenas sombra Sem ninguém
Sombra num silêncio absoluto Sombra de algum vulto Do além Sim
sobrou a sombra Em plena solidão Pálida lembrança De alguém
Claro que o mistério Em si não dá pra ver Claro que o mistério É só
502 pra crer Claro que o etéreo Tende a desfazer Onde está você?
Sim, foi quando muito Uma consolação Ver somente a sombra Sem
você Tudo parecia inseguro Não via futuro nem prazer
Sombra não se alumbra com o dia Vive na penumbra, vive só
Sombra não se lembra quando escureceu
Sombra é sempre noite sol a sol Sombra que deslumbra a sua
dona Rouba a sua luz e deixa o breu Nesse traço negro não tem
mais você
Que que aconteceu?
Os aspectos estéticos: uma canção cujo arranjo compõe-se por voz, violão, percus-
são e oboé; um campo harmônico menor formado também por empréstimos mo-
dais o que a torna bastante orgânica e inerente ao ambiente de musicas brasileiras
recriadas no decorrer do processo; a peça inicia sem introdução com voz e violão
com suavidade; o acompanhamento arpejado dos acordes soa em uníssono com a
voz, nas pausas da voz ouve-se os arpejos (fig. 5). Os acordes da primeira frase soam
Cm7(11), G7/B, B bm6, F(add9)/A.

Figura 5 — início da canção


As frases musicais são organizadas em quatro compassos, na continuidade dessa
frase a rítmica do primeiro se mantém, contudo encerram com mínima. O oboé
entra ao final da primeira vez inteira, no interlúdio com uma contra melodia, e na
retomada da voz mantém algumas notas longas contrastando ao ritmo melódico e
colaborando com o contexto de questionamentos sem respostas apresentado com
os versos e os finais de frases com notas suspensivas. A percussão entra no interlú-
dio e mantém-se de base com poucas sonoridades. Usa de notas pontudas e toques
rápidos de ataque e notas longas que também colaboram para o ambiente miste-
rioso e enigmático da canção.
Os versos partem de uma afirmação ‘sim’ com a nota da terça do acorde interpre-
tada na oitava grave caminhando para a sexta descendente. A harmonia segue por
mais duas formas de encadeamentos. A letra da canção “claro que o mistério em si
não dá pra ver . . .” mantém a rítmica e muda a forma, utilizam notas repetidas, in-
tervalos cromáticos e é acompanhada pela parte 2 da harmonia (Fig. 6).
503
Figura 6 — ‘Sombra’ segunda parte
A terceira e última parte da canção mantém a rítmica e a forma da segunda parte e
a harmonia insiste nos baixos descendentes por graus conjuntos (fig. 7).

Figura 7 — ‘Sombra’ terceira e última parte


A interpretação da canção intercala sons no grave com repetições em falcetes e com
mais vozes. O final (em negrito) também é repetido no agudo. Esse movimento en-
fatiza o relato de mudanças trazidos nos versos bem como os questionamentos. O
verso interrogativo final é repetido três vezes mantendo a suspensão complemen-
tada com os sons da percussão sumindo aos poucos (fig. 8). A pergunta final ao re-
petir-se amplia o intervalo entre as notas aumentando o ênfase na questão (fig. 9).

Figura 8 — ‘Sombra’ final Figura 9 — ‘Sombra’ último compasso


Essa canção, estrutura e performance, reviveram algumas movimentações musicais
vividas no processo. Trouxe os opostos, tanto nos versos como na orquestração e in-
terpretação; trouxe os baixos caminhantes; trouxe a rítmica em semicolcheias; como
as construções ao xilofone; trouxe o violão como um acompanhador seguro para a
voz ao repetir a melodia; está organizada em três partes com diferenças harmôni-
cas dentro do campo menor e suas amplas possibilidades. Ao final a voz e o violão
terminam juntos e a percussão segue como um eco, ou rastro. A suspensão está pre-
sente em toda a peça e as perguntas contribuem para as incertezas diante do novo.

Musicalidade em ação e a cognição


Algumas reflexões quanto à musicalidade: as interações musicais vividas nesse pro-
cesso ocorreram sempre dentro das possibilidades e aspectos da musicalidade do
cliente como as escolhas por intervalos descendentes nos inícios das músicas e notas
mais longas em oposição às rítmicas movidas; o desenvolver dessa musicalidade ao
se trabalhar com voz e percussão em cirandas. As qualidades dinâmicas das notas,
‘um desejo’ de complementar-se na(s) notas(s) seguintes, guiaram e foram guiadas
por aspectos cognitivos.
504
Algumas reflexões quanto aos aspectos cognitivos: os schemas cognitivos de centro
e periferia e parte e todo estão em ação no movimento circular das cirandas e nos
sons alternados das baquetas no xilofone (fig.1) ao manterem notas de base. Desse
movimento circular e melódico próximo de acalantos escutados e vividos pelo
cliente foi possível ampliar a escuta para si mesmo. Os schemas de em cima e em-
baixo foram colocados em ação nas dinâmicas interpretativas (piano e forte), nos
baixos caminhantes e nos arranjos das músicas escutadas nos CDs.
Dois objetivos clínicos foram alcançados com esses movimentos: ajudar o cliente a
tornar-se mais centrado (grounded) e também alcançar maior orientação da reali-
dade. Segundo Aigen (2005) ao trabalhar com grounded e orientação o cliente está
ampliando a partir de sua experiência de percepção espacial e projetando essas qua-
lidades para sua própria vida para e suas relações sociais.
Os schemas de força, direção, começo, meio e fim moveram e foram movidos com a
harmonia. Isso ampliou a percepção da realidade e das relações pessoais existentes.
Na prática clínica estes schemas são componentes importantes do desenvolvimento
cognitivo e emocional particularmente os envolvidos no auto-conhecimento, por-
que eles relatam a forma do corpo ver a si mesmo e o modo que o corpo se percebe
em relação ao movimento no espaço físico (Aigen, 2005).

Considerações finais
O trabalho musicoterapêutico considerando essa visão cognitiva, inerente a per-
cepção e execução musical, oferece visibilidade às funções clínicas da música. Con-
siderar as ‘qualidades dinâmicas’ das notas, a Music child e a Condiction child do
cliente e definir música como ação — Musicing formam uma rede de conceitos e
dão suporte para discutir cognição e musicoterapia. Musicalidades em ação e cog-
nição estão completamente integradas no trabalho clínico. Estar atendo a esses as-
pectos estruturais da música interligados aos aspectos cognitivos do cliente é
fundamental. Nessa dimensão terapeuta e cliente estão vivendo experiências
apreendidas pelo ‘significar fazendo’ distinto do ambiente de estímulos e respostas.
‘Significar fazendo’ são espaços de cognição com experiências musicais. Musicali-
dade em ação é um exercício de cognição. Contudo, as relações entre as ‘qualidades
dinâmicas’ e os Schemas carecem mais estudos e reflexões.
Referências
Aigen, Kenneth. 2005. Music Centerede Music Therapy .Gislum, NH: Barcelona Publishers.
Ansdell, Gary; Pavlicecic, Mercédès. 2004. Community Music Therapy: International ini-
tiatives. London and Philadelphia: Jessica Kingsley publishers. 505
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Lakoff, George; Johnson Mark. 1980. Metaphors we live by. Chicago & London: Univer-
sity of Chicago Press.
Lee, Colin. 2003. The Architecture of Clinical Improvisation in Aesthetic Music Therapy. Gil-
sum, NH: Barcelona Publishers.
Stige, Brynjulf. 2002. Culture-Centered Music Therapy. Gilsum, NH: Barcelona Publishers.
Zuckerkandl, Victor. 1956. Sound and Symbol: Music and the external Word. Princeton,
NJ:Princeton University Press.
Aplicação do Conceito de Emoção Extrínseca em Música
Bernardo Pellon de Lima Pichin
bernardopellon@yahoo.com.br
506 Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo
O estudo da emoção extrínseca em música visa produzir um maior conhecimento sobre
com é feita a associação entre música e emoções específicas. Normalmente esse tipo
de pesquisa apresenta como resultado um paralelo entre determinados elementos da
estrutura musical e emoções específicas. A escuta musical é uma experiência abstrata e
para produzir entendimento ao que se está escutando muitas vezes é feito conexões
com outras experiências conhecidas, sendo uma das mais comuns as emoções. O termo
Apofenia Musical se adequou perfeitamente como solução conceitual para explicar e de-
nominar esse procedimento. Para delimitar o objeto de estudo foram selecionadas cinco
emoções básicas, sendo elas: alegria, tristeza, amor, raiva e medo. O presente trabalho
analisou três músicas compostas a partir dos resultados obtidos em uma pesquisa ante-
rior. O objetivo disso é testar a possibilidade de analisar e compor músicas delimitando
uma possível ou possíveis associações com emoções feitas na escuta destas. Sonhando
Acordado é uma música que teve como intenção a associação com a emoção amor.
Noite Urbana é uma música onde se teve a intenção e produzir uma sonoridade que pro-
duzisse uma associação a dois estados emocionais dicotômicos vivenciados na noite de
uma metrópole. De um lado se tem o entretenimento, o encanto, o romantismo, o gla-
mour. Por outro lado, existe o perigo, o medo, a angústia, a derrota, a solidão. Por fim, Vai
chegar é uma música onde se teve a intenção de produzir uma sonoridade cuja asso-
ciação transitasse por vários estados emocionais. Alegria, tensão, angústia, tristeza, medo,
jocosidade, esperança, entre outras.
Palavras-chaves
Emoção Extrínseca, Apofenia, Emoções Básicas, Análise Musical.

Argumento Teórico
Esta sessão de demonstração tem a intenção de discutir a aplicação do resultado do
estudo da Emoção Extrínseca em música. Neste estudo procura-se traçar uma re-
lação entre elementos da estrutura musical — como harmonia, melodia, ritmo,
entre muitos outros- e emoções específicas. Esta demonstração será um comple-
mento ao textoApofenia Musical e a Emoção Extrínseca em música apresentado
neste mesmo Simpósio, e é resultado de uma pesquisa realizada para uma disserta-
ção que trata da relação entre música e emoção.
Primeiramente, o estudo sobre a Emoção Extrínseca em música, proposto pela pes-
quisa, visa fornecer ferramentas para composição e análise de músicas que possam
estar associadas às emoções. Contudo, a intenção não é criar uma relação direta
entre elemento da estrutura musical e determinada emoção. Também não é inten-
ção propor uma interpretação correta, ou defender que todos os ouvintes terão a
mesma interpretação. A pesquisa concluiu e que a combinação entre alguns ele-
mentos da estrutura musical devido a uma semelhança com aspectos característicos
de cada emoção possibilita a associação por parte dos ouvintes de uma música com 507
uma ou mais emoções. E esses dados propostos podem ser utilizados na criação de
composições e arranjos, na interpretação, e na análise onde se pretenda compreen-
der os motivos que levam uma música ser associada à determinada emoção. Porém,
não há regras, e podem existir interpretações diferentes, ou nenhuma. A proposta
que se segue é só uma possibilidade de interpretação para demonstrar como os
dados colhidos podem ser utilizados.
Pode-se afirmar que a música é uma arte essencialmente abstrata. Isso porque, salvo
algumas exceções, possui uma sonoridade que só é possível na experiência da escuta
musical e não é presenciada de outra forma a não ser esta. Como afirma Sparshott,
“a doutrina que a música é ou deveria ser um sistema ‘abstrato’ de relacionamento
estabelecido em um conjunto de equações assombrou a estética musical desde sem-
pre.” (Sparshott, 1980, p.122). Contudo, o ser humano sempre procura entendi-
mento nas suas experiências, e por isso é comum existir algum processo cognitivo
para dar sentido a uma experiência tão abstrata como a escuta musical. Normal-
mente é feito um paralelo com outras experiências não-musicais que possuam de al-
guma forma semelhança com o que se está escutando na música. Talvez a mais
comum seja a associação com emoções. Desta forma o ouvinte encontra seme-
lhanças entre as características desencadeadas por uma emoção nos mais diferentes
âmbitos, como da fala, gestual, fisiológico, só pra citar alguns, e elementos da es-
trutura musical. Para denominar esse processo foi utilizado o termo Apofenia Mu-
sical. O termo apofenia foi primeiramente utilizado por Klaus Conrad em um
estudo psicopatológico sobre esquizofrenia.
“Inicialmente a vivência/experiência específica da ‘interpretação anormal da
consciência’, ou para a vivência/experiência do ‘estabelecimento de relação sem
motivo’, é chamada atualmente de percepção fantasiosa, representação delirante,
entre outras, e introduzimos a designação ‘apofenia’, com o objetivo de ter a
mão uma expressão prática e claramente definida de uma forma de vivência/ex-
periência.1
O termo apofenia foi providencial pois engloba de forma sucinta em um único
termo todo conteúdo necessário para descrever o processo que leva o ouvinte a as-
sociar uma música a uma ou mais emoções.
O estudo da Emoção Extrínseca em música visa traçar um paralelo entre elementos
da estrutura musical e emoções específicas. Para delimitar o objeto de estudo foram
selecionadas “cinco emoções (alegria, tristeza, ira, amor / ternura e medo) que fora
estudadas extensivamente. Essas emoções representam um ponto natural de partida
já que são vista como emoções típicas por pessoas leigas e foram postuladas como
as tão faladas ‘emoções básicas’ por cientistas.” (Juslin, 2001, p.314-5). Um dos re-
sultados da pesquisa foi perceber que tanto emoções quanto elementos da estru-
tura musical podem ser qualificados de acordo com dimensões de valência (positiva
508 e negativa) e atividade (alta ou baixa) e esses é um dado importante para delimitar
as possibilidades de associação entre elementos e emoções. Na música atividade esta
relacionada a volume, dinâmica, tempo e altura. Alta atividade está relacionada
com volume alto, ou, em outras palavras, dinâmica forte, tempo rápido e notas agu-
das. Em contrapartida, baixa atividade está relacionada com volume baixo, ou, em
outras palavras, dinâmica piano, tempo lento e notas graves. Quanto à valência,
aparentemente, pelo menos na cultura musical ocidental, parece ter forte ligação
com consonâncias e dissonâncias, e simplicidade ou complexidade. Valências posi-
tivas estão relacionadas sons consonantes, harmonia simples, melodia com escalas
diatônicas, tonalidade, simplicidade rítmica e melódica. Valência negativa está re-
lacionada com sons dissonantes, harmonia complexa, melodias com cromatismo,
atonalidade, complexidade rítmica e melódica. Outros fatores, como timbre e ar-
ticulações, estão mais ligados diretamente a aspectos de cada uma dessas emoções
básicas, e são menos genéricas.
Um dos resultados da pesquisa foi a tabela em anexo que relaciona os mais diver-
sos fatores da composição e performance musical com as eleitas emoções básicas. Para
tal, foram usados três textos: Juslin (2001), Gabrielsson e Lindström (2001) e Bunt
e Pavlicevic (2001), e ao lado de cada fator serão colocadas as duas primeiras letras
do sobrenome do primeiro (ou único) autor do texto de referência, no caso (Ju),
(Ga) e (Bu) respectivamente. Esses autores tiveram contato com uma vasta biblio-
grafia para propor essa relação entre fatores e emoções, mas como esta pesquisa não
teve contato com essa bibliografia, será mencionada apenas a referência direta. Em
alguns casos, foram levados em conta alguns nomes que podem ser considerados
sinônimos dessas emoções básicas como, por exemplo, melancolia para tristeza, ter-
nura para amor, entre outros. A emoção extrínseca provavelmente acontece em di-
ferentes culturas, mas os resultados abaixo apresentam por vezes características
próprias da música ocidental, pois está é a única viável de estudo, neste trabalho,
devido à maior familiaridade com a mesma. Essas informações serão cruciais para
o presente trabalho e serão base para a as análises a seguir.
Uma proposta alternativa à pesquisa laboratorial é estudar aspectos característicos
de emoções específicas e tentar encontrar elementos da estrutura musical seme-
lhante a estes. Este é um método que pode ser eficiente e até menos trabalhoso que
o laboratorial, pois segue o mesmo caminho feito pelo ouvinte, assim como inter-
pretes e compositores, que muitas vezes traçam esse paralelo a partir de semelhan-
ças encontradas entre a sonoridade musical e emoções.
Aplicações Conceituais
Para o estudo serão discutidos trechos musicais de minha autoria, tentando ilustrar
minha intenção e como utilizei esses dados como base para chegar a uma sonoridade
que possa se associar à determinada emoção. Para isso é feita uma relação de seme- 509
lhança entre os elementos da estrutura musical e características da emoção mani-
festada. É importante ter em mente que não serão estudadas as emoções despertadas
no ouvinte através da audição musical. Os motivos que levam esse despertar podem
ser muito idiossincráticos e difíceis de prever. Por isso, as analises se limitarão so-
mente às emoções que podem ser associadas a música em questão.

1. Sonhando Acordado
Sonhando acordado é uma música com a temática sobre amor. Não só amor entre
casais, mas amor entre indivíduos principalmente. É uma canção, mas com alguns
trechos instrumentais como o que será apresentado que acontece do c.77 ao c.91.
Esta música foi escrita para orquestra baixo, bateria, violão e voz. Para facilitar a
análise foi feita uma redução de todos os instrumentos para uma pauta para melo-
dia, outra para contracanto e uma pauta de piano para a base harmônica, de forma
a ter todos os elementos necessários para a análise de forma simplificada.
Ao sentirmos amor ou ternura, nossos gestos são mais lentos, calmos. Por isso a
toda essa música, tem andamento lento em 65 bpm. O ritmo da melodia principal
e o contracanto geralmente são baseados no pulso, com algumas divisões em dois,
raras em 4 como no c.78 e somente uma em quiáltera de 6 no c.90. O ritmo e an-
damento são aspectos fundamentais na associação da música com emoção, pois é
um fator facilmente percebido pelos ouvintes. A discrepância entre o ritmo de
como agimos quando manifestamos determinada emoção e o ritmo da música in-
viabiliza a associação desta música com esta emoção. Desta forma, em uma música
em que se pretende uma associação com amor/ternura é esperado um ritmo lento.
O amor ou ternura é uma emoção positiva e muito agradável. A harmonia é feita
por acordes consoantes, principalmente tríades. Da mesma forma a melodia segue
a harmonia não oferece tensão ou dissonância a esta. Muitos estudos apontam que
músicas associadas à emoção com valência positiva, pelo menos no ocidente, ten-
dem a ser consonantes, com pouca tensão ou complexidade.
Na paixão é comum uma sensação de inconstância. Algumas pesquisas apontam
para uma harmonia com oscilações entre maior e menor ou uso de modos para mú-
sicas de amor, muito provavelmente por uma semelhança desse tipo de harmonia
com essa característica da emoção. Neste trecho foi usada uma harmonia com al-
gumas inclinações, onde a tonalidade não fica tão clara, mas sempre em regiões pró-
ximas e pouco conflitantes. Foi a solução escolhida, pois fica no meio da música e
é um trecho proporcionalmente pequeno que não permite grandes desenvolvi-
mentos harmônicos. A música é essencialmente em lá (maior, menor, ou às vezes
usando modos). Esse trecho começa na tonalidade de ré (subdominante de lá). Vai
para fá sustenido menor (terceiro grau) e depois para lá com sétima menor (domi-
nante). Resolve a dominante em si menor (sexto grau) fazendo uma cadência de-
510 ceptiva. Até então um encadeamento harmônico comum em ré maior. Segue com
ré maior, sol maior (subdominante), mi menor (segundo grau) e lá maior com sé-
tima menor (dominante) resolvendo novamente em si menor agora com sétima
menor. A segunda resolução seguida em si menor pode, ao meu ver, levar o ouvinte
a interpretar esse si menor (relativo de ré maior) como tônica. Desta forma, esta úl-
tima cadência pode ser percebida, numa sonoridade mais si eólio do que menor,
como ré maior (terceiro grau), sol maior (sexto grau), mi menor (quarto grau) e lá
maior com sétima menor (sétimo grau) gerando uma dubiedade. Após o acorde de
si menor segue os acordes: dó sustenido meio diminuto, sol maior e la maior com
sétima menor que podem ser respectivamente segundo grau, sexto grau e sétimo
grau de si menor (ou si eólio) ou sétimo grau, quarto grau e quinto grau de ré maior.
Contudo, o acorde de lá maior com sétima menor resolve em si bemol menor, que
pode ser o relativo do homônimo de ré maior, mais que como sucede para dó maior
com sétima menor e conclui em fá maior, os acordes de si e de dó funcionam como
subdominante e dominante de fá maior. Esse contexto harmônico dúbio, oscilante
e de certa forma livre, ajuda a gerar um contexto de inconstância que pode ser as-
sociado à emoção de amor/ternura. Porém com pouca dissonância e conflitos har-
mônicos, já q essa é uma emoção positiva.
Quanto à parte melódica a melodia e contracanto possuem um contorno oscilando
entre ascendência e descendência de forma semelhante a um suspiro, reforçando a
idéia de inconstância. A melodia também possui pausas entre as frases musicais, é
tocada com muito legato, tem aspecto suave, e trompa e cordas são tocadas com
timbre suave, e isso lembra a fala com doçura e pausada quando expressando amor.
Do c.85 ao c.91 é feita uma sucessão de frases ascendentes criando um clímax q só
será resolvido no c.91. Para criar uma tensão até esse clímax é intensificada a velo-
cidade no ritmo da base. Primeiro com pausa de semicolcheia e três semicolcheias
e depois com quatro semicolcheias seguidas.

2. Noite Urbana
Noite Urbana é uma canção com um trecho instrumental que será analisado. Esse
trecho tem a intenção de criar uma sonoridade expressiva do contraste dicotômico
de situações ocorridas numa cidade urbana. De um lado se tem o entretenimento,
o encanto, o romantismo, o glamour. Por outro lado, existe o perigo, o medo, a an-
gústia, a derrota, a solidão. A proposta foi criar uma sonoridade que fosse expres-
siva dessas características simultaneamente. Para tal, foi selecionado o trecho inicial
da música que vai do c.1 ao c.38. Esse trecho foi composto para teclado, guitarra,
baixo e bateria e todos os instrumentos foram transcritos no anexo. Esses instru-
mentos exercem sempre a mesma função na textura da música. Na guitarra está a
melodia, no teclado a harmonia, no baixo uma base melódica na região grave, sem-
pre em colcheia, às vezes servindo como contracanto e na bateria a seção rítmica.
511
Sentimos medo de algo não acontecer da forma esperada, e de termos uma perda
não desejada. Esse risco e a incerteza criam uma ansiedade, uma instabilidade no in-
divíduo. Essa instabilidade é criada ritmicamente neste trecho de modo a possibi-
litar uma atmosfera de insegurança que é característica do medo. A base, formada
por baixo bateria e teclado tocam uma alternância de compassos compostos, como
7 (c.3, c.5, c.11, por exemplo), 8 (c.1, c.19, c.25, por exemplo), 9 (c.4, c.6, c.12, por
exemplo), 10 (c.23, c.30, c.32, por exemplo), 12 (c.26, c.28, por exemplo). Salvo al-
guns momentos, não existe sequência previsível nem uma ordenação na aparição
desses compassos, de forma que é difícil prever o primeiro tempo, dando um cará-
ter de instabilidade. Além disso, a caixa da bateria acentua tempos no compasso
que desestabiliza ainda mais a sensação de primeiro tempo. O pulso está em 130
bpm e o baixo usa a figura de metade do pulso, o que dá uma sensação de agonia e
de pressa.
Para desestabilizar ainda mais, o encadeamento harmônico feito pelo teclado tem
uma seqüência de acordes com uma lógica não diatônica. Muitas vezes só possui
uma seqüência de no máximo três acordes que poderiam estar no mesmo campo
harmônico. E o baixo sempre muda as escalas de acordo com esses acordes. Para
que isso fosse feito sem problemas foram utilizadas tríades, e às vezes acordes quar-
tas, pois define menos qual escala pertence e torna sonoramente mais agradável a su-
cessão de acordes vindos de tonalidades diferentes. Isso tira também tira a
estabilidade e expectativa de uma tônica, que não existe neste trecho. E esta foi a
forma de trazer a instabilidade, a incerteza para a música. Isso remete a sensação de
medo, insegurança, tensão, pressa e instabilidade.
Por outro lado, a melodia feita pela guitarra possui um lirismo, uma doçura para
lembrar o romantismo da noite. Com notas longas e pausas no final de frase, lem-
bra a fala apaixonada e deslumbrada, e parece fazer parte de uma música muito mais
lenta do que a base propõe. Por usar notas mais longas, não se percebe na melodia
a agonia e o contraste provocado pela alternância dos compassos compostos, isola-
damente pode trazer a ilusão de estar em compasso simples. Da mesma forma, ape-
sar de não levar a nenhuma tônica, possui uma lógica diatônica e os acordes se
harmonizam com suas notas apesar de não possuir lógica diatônica. Assim melodia
e harmonia coexistem sem grandes choques. Do c.26 ao c.38 o contorno melódico
possui uma alternância de entre ascendência e descendência, mas sempre se enca-
minhando para o agudo. Assim como uma pessoa a contar com paixão uma histó-
ria intrigante que se encaminha para um grande acontecimento, um ponto
culminante que se dá no c.37.
3. Vai Chegar
Vai Chegar é uma canção que fala sobre a problemática vida urbana, as questões e
dificuldades que surgiram nessa nova era, nesse novo estilo de vida, mas demons-
512 trando ao fim uma esperança de felicidade apesar das adversidades. A música foi
escrita para voz, guitarra, baixo, bateria e orquestra. Será apresentada de forma in-
tegral tanto na extensão, quanto na instrumentação, pois uma redução poderia per-
der alguns dados para a compreensão da discussão.
A música transita por várias intenções quanto a emoções a serem associadas. Pri-
meiramente, sugere um estado alegre e jocoso, depois tensão, pressa, agonia, em se-
guida medo e angústia e por fim a redenção, a volta à alegria. Um dado importante
é que a música foi escrita integramente em 48 . Apesar de ter dois momentos que po-
deriam ser escritos em binário, pois se trata de uma levada de samba, o resto da mú-
sica está em quaternário. Desta forma, ao adotar o compasso 48 , as partes de samba
foram escritas com a mesma grafia de um 42 . Essa uniformidade do compasso faci-
litou a programação e gravação da música. A música foi toda escrita para ser tocada
em 180 bpm, que é um andamento que pode ser rápido, ou moderado se for to-
cado como se tivesse o dobro do tempo.
A primeira estrofe da música se dá ao longo do c.1 ao c.17. É uma típica estrutura
de samba trazendo um caráter alegre e jocoso. Quando estamos alegres, agimos mais
rapidamente do que o normal, seja na fala ou no gestual. A percussão, formada por
um agogô, um triângulo, bateria e uma gran cassa, toca células típicas de samba, com
destaque a valorização do segundo tempo (terceiro no caso do quaternário) feita
pela gran cassa como feita pelo surdo normalmente. Esta base rítmica produz nessa
estrofe um caráter dançante, animado e jocoso.
A guitarra “limpa” (ou seja, sem distorção) valoriza o ritmo feito pela caixa da ba-
teria tocando acordes, sendo o principal instrumento ritmo-harmônico dessa es-
trofe. A harmonia, em dó maior, é típica do samba e de muitas músicas populares
brasileiras. Apesar de acordes com sétimas e sextas, não apresenta muita tensão. As
dominantes são sempre resolvidas de forma esperada, e as constantes inclinações
corroboram com o caráter ritmado dessa seção. O baixo toca notas da harmonia
valorizando sempre no primeiro tempo a nota mais grave do acorde, e acompanha
o ritmo feito pelo bumbo da bateria. É muito comum a associação da sonoridade
maior com alegria.
Quando falamos com alegria e animação geralmente existe um contorno na voz as-
cendente longo terminando com um contorno curto descendente. Da mesma
forma são as duas primeiras frases dessa primeira estrofe da música. Em seguida, são
feitas algumas frases de âmbito curto, porém ritmadas, valorizando o caráter rít-
mico da estrofe, criado contraste com as duas frases anteriores. Por fim, a estrofe ter-
mina com outra frase ascendente com termino curto descendente. E esses aspectos
melódicos possibilitam a associação com um caráter alegre, jocoso e cantante ao
apresentar um contorno semelhante de uma possível fala de alguém nesse estado.
Na segunda estrofe (c.18 ao c.34) a voz realiza a mesma melodia, contudo com uma
base diferente que muda o caráter da música. Quando estamos tensos, irados, ou
513
com pressa temos comportamentos acelerados. Falamos e agimos mais rapidamente
assim como o coração bate mais acelerado. Contudo, diferente da alegria, estes são
estágios emocionais negativos, provocado muitas vezes por frustrações, e acompa-
nham tensões e ações conflitantes. Para promover uma sonoridade que possa ser
associada a esses estados emocionais algumas mudanças foram feitas. A guitarra
agora é tocada com distorção proporcionando maior tensão. Além disso, seu ritmo
é muito acelerado, contendo muitas fusas, o que trás um caráter de pressa e tensão.
A gran cassa agora de dois em dois compassos toca um ritmo que lembra uma das
batidas do maracatu, onde não se toca a cabeça do tempo, colocando uma pausa de
semicolcheia antes, o que causa um desconforto pela ausência da cabeça do tempo.
Por fim a bateria toca um ritmo mais irregular e com acentuações menos previsíveis.
Isso tudo causa uma sensação de tensão e de desconforto. Essa mudança na sono-
ridade e execução dos instrumentos faz um contraste entre primeira e segunda es-
trofe, e promove com isso uma mudança de caráter, apesar da melodia e parte da
base rítmica ser mantida.
A terceira estrofe (c.35 ao c.50) possui toda instrumentação feita na segunda, mas
agora com o acréscimo da orquestra, com a predominância das cordas. A orquestra
além de preencher mais a harmonia, também acrescenta mais uma informação rít-
mica (c.43 ao c.50), e melodias feitas pelos violinos funcionam como contracantos.
A presença da orquestra trás uma sonoridade cheia, imponente, “épica”, mas con-
tudo não exclui o caráter apresentado na segunda estrofe. Funciona como um so-
matório de informações, com a sensação de um acréscimo de timbre, harmonia,
melodia e ritmo, corroborando com a idéia de muitos elementos simultâneos, como
acontece nas metrópoles.
Em seguida vem uma seção de transição (c.51 ao c.54) com material totalmente
novo com destaque na melodia feita pelos violinos I com contorno sempre des-
cendente e funcionando quase que como um ostinato. A bateria faz um padrão di-
ferente e contrastante com as estrofes anteriores. Baixo, guitarra e a orquestra
sustentam notas longas formando o material harmônico, com acordes que enca-
minham para uma modulação para Am. As notas longas do resto dos instrumen-
tos permitem um destaque para o ritmo dos violinos I e bateria.
A quarta estrofe (c.55 ao c.68) imprime uma sonoridade que pode ser associada à
tristeza. Quando estamos tristes falamos sem animação, às vezes com contornos
descendentes, mas vezes com contorno estático e sem grandes variações, de forma
“monótona”. Esta estrofe utiliza a idéia melódica com âmbito curto e ritmada apre-
sentada nas três estrofes anteriores e desenvolve, sendo esse o material melódico. A
maior parte da melodia só utiliza duas notas que são intercaladas de forma bastante
ritmada, somente ao fim da estrofe que há um movimento de ascendência e des-
cendência curto num âmbito de quinta. A utilização de somente uma melodia de
âmbito curto e com poucas notas já modifica o caráter musical. A harmonia está em
514 Am, e é uma tendência, pelo menos da nossa cultura ocidental, associar harmonia
menor à tristeza. O encadeamento harmônico é Am, C, F, Dm, Bm( b5)7, G7, Em7,
e o fato de não usar a dominante e sim o quinto grau menor caracteriza uma sono-
ridade mais eólia do que menor, mas nem por isso deixa de ser possível a associação
com a tristeza pois as sonoridades são muito parecidas. Quando estamos tristes ou
em estados depressivos em geral, agimos e falamos mais lentamente. Apesar do pulso
ser o mesmo, a bateria realiza uma seqüência rítmica que demora dois compassos
para terminar, um período bem maior do que nos padrões anteriores, e isso dá a
impressão de estar mais lenta essa estrofe. Por fim, as cordas preenchem a harmo-
nia, de forma que os instrumentos constantemente realizam notas melódicas e mu-
danças de posição, mas com ritmo diferente. Isso dá uma sensação de desencontro
e de irregularidade que pode corroborar com uma associação com a tristeza, que é
uma emoção negativa e que é despertada geralmente por decepções, frustrações e de-
sencontros.
A quinta estrofe (c.69 ao c.82) apesar de possuir a mesma melodia no vocal possui
elementos muito diferentes que possibilitam a associação com outra emoção: o
medo. Sentimos medo de que algo não decorra como esperado, ou que se perca algo,
que alguma situação tenha um fim indesejado. Produz sensações muito fortes e de-
sagradáveis no indivíduo. É um estado de muita tensão, ansiedade, angústia e frus-
tração eminente. Pode produzir comportamentos completamente dicotômicos,
como uma completa estaticidade ou comportamentos explosivos, desenfreados e
descontrolados. Alguns recursos foram usados para produzir uma sonoridade que
pudesse ser expressiva desse estado emocional. O primeiro dado é o contraste entre
a harmonia dessa estrofe com a da estrofe anterior. O encadeamento harmônico é:
Am, C # m, Fm, Dm, B bm, Gm, Em7. Por usar somente acordes menores, cria uma
sonoridade tensa ou até mesmo “sombria”. Ao contrário da estrofe anterior não
possui um campo harmônico proveniente de uma escala diatônica. Cada acorde
sempre provoca uma tensão cromática com pelo menos alguma nota do acorde an-
terior. Por exemplo, dó sustenido de C #m com dó de Am, ou lá bemol de Fm com
lá natural de Dm. Além dessa tensão, cada um desses acordes dura dois compassos,
e são sustentados pelas cordas e baixo elétrico. Sempre no segundo compasso as ma-
deiras e trompas fazem um acorde que funciona como um cluster do acorde que esta
sendo tocado pelas cordas. Somente o último acorde é feito junto às cordas du-
rando dois compassos. Ou seja, todas as notas fazem uma dissonância de segunda
maior ou menor com as notas tocadas pelas cordas. A seqüência harmônica é G7, B7,
E b7, Em7, A b7, F7. Pelo cluster seguir também uma lógica triádica e ser tocado com
a distância de um compasso, o resultado é mais brando do que normalmente acon-
tece nos clusters, mas nem por isso deixa de ser dissonante. A também uma tensão
rítmica provocada por uma polirritmia. Ao mesmo tempo em que cordas, baixo
elétrico, trompas e madeiras sustentam notas longas, outros instrumentos produ-
zem notas rápidas e contrastantes entre si. Isso lembra a característica dicotômica 515
do medo. O violino I segue um padrão melódico e rítmico, sempre em semicol-
cheias que vai variando de acordo com a harmonia. A
gran cassa faz um ritmo constante de duas colcheias e quatro semicolcheias. A gui-
tarra elétrica faz o ritmo inverso, com quatro semicolcheias e duas colcheias e de-
pois do c.77 seguem sempre em semicolcheias. A bateria faz padrões irregulares e
varia sempre estes, aumentando a intensidade ao se aproximar do fim da estrofe.
Por fim, o agogô faz um ritmo em quiálteras de 3 contrastando com os demais ins-
trumentos. Todo esse excesso de informação contrastante e complexidade rítmica
e harmônica criam uma tensão forte que pode levar a uma associação com o medo.
Uma pequena transição (c.83 ao c.86) realiza um encadeamento harmônico como
se fosse modular para dó maior, contudo resolve o acorde de sol maior com sétima
menor em mi bemol maior, que é o terceiro grau de empréstimo do homônimo. O
importante é que nessa estrofe diminui o excesso de informações e dissonâncias
causando uma sensação de alívio.
A sexta estrofe (c.84 ao c.108) volta à idéia de alegria, animação e esperança. Retorna
a tonalidade maior em mi bemol maior, que comumente está associada à alegria. A
harmonia segue uma lógica tonal e previsível. O ritmo é bem menos complexo, com
muitas notas longas e padrões simples e regulares produzidos pela bateria. E devido
a essa simplicidade, junto a harmonia maior e ao ritmo rápido, mas sem complexi-
dade, essa estrofe pode ser associada a emoção alegria.
Por fim, uma última estrofe (c.109 ao c.126), que funciona como coda volta a so-
noridade do samba, repetindo sempre uma melodia que tem um caráter livre e des-
pretensioso, com uma harmonia que oscila entre mi bemol maior e lá bemol maior
(sua subdominante). E essa estrofe final mantém o caráter alegre, agora porém mais
jocoso e encaminha para o fim da música.

Conclusão
A Emoção Extrínseca em música apesar de ainda ser um estudo novo e insipiente, já
é capaz de trazer novas possibilidades para análise e composição musical, trazendo
recursos suficientes para delimitar possíveis associações feitas para uma música de
acordo com os elementos que esta contém na sua estrutura. Apofenia Musical é um
caminho que possivelmente satisfaz as questões conceituais de como e porque é
feita uma associação com uma ou mais emoções ao escutar uma música. A seleção
de emoções básicas que são normalmente associadas à música pode ser uma estraté-
gia eficiente para delimitar os objetos de estudo. Os dados coletados nesse tipo de
pesquisa podem posteriormente servir como base para o estudo de outras emoções
diferentes e até mais complexas. Um caminho possível para pesquisas futuras é co-
letar mais informações sobre aspectos provenientes de um estado emocional e ten-
516 tar listar os elementos da estrutura musical que possuem semelhança com esses
aspectos. Outra possibilidade de pesquisa é promover outras análises a partir do
que já existe de material produzido na pesquisa da Emoção Extrínseca em música.

1 Tradução livre de: “Wir führten eigangs für das spezifische Erlebnis des abnormen Be-
deutungs-bewuβtseins bzw. das Erlebnis der ,,Beziehungsetzung ohne Alaβ, also für jene Er-
lebnisweisen, die gemeinhin auch als Wahnwahrnehmung, Wahnvorstellung usw.
Bezeichnet werden, die Bezeichnung der Apophänie ein, um einen handlichen und klar de-
finierten Ausdruck zur Verfügung zu haben für eine Erlebnisform (Conrad, 1958, p.46).

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artes musicais e cognição social

Música e interdisciplinaridade:
bases epistemológicas e exploração de uma interface 517

Rita de Cássia Fucci Amato


fucciamato@terra.com.br
Universidade de São Paulo

Resumo
Este artigo é parte de uma pesquisa de pós-doutorado sobre O trabalho do regente
como administrador e a perspectiva organizacional do canto coral: contribuições inter-
disciplinares para administradores e regentes, desenvolvida no Grupo de Estudos Orga-
nizacionais da Pequena Empresa (GEOPE), do Departamento de Engenharia de Produção
da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP), com o
apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Especifica-
mente no presente trabalho, pretende-se inicialmente apresentar algumas reflexões epis-
temológicas sobre interdisciplinaridade, explorando-se: 1) as diferenciações entre os temos
interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, transdicisplinaridade, multirreferencialidade etc.,
conforme diferentes pensadores; 2) as bases lançadas pela filosofia da ciência sobre al-
guns fundamentos do conhecimento científico e sobre as relações entre áreas do co-
nhecimento; 3) a exemplificação de relações interdisciplinares envolvendo a ciência
musical.
Palavras-chave
Interdisciplinaridade; pesquisa em música; música e gestão; administração

Introdução
Este trabalho visa embasar a questão da interdisciplinaridade e explorar a interface
entre música, administração de empresas e engenharia de produção. Tal aborda-
gem é realizada com base em um levantamento bibliográfico de publicações nas
áreas de engenharia de produção e administração de empresas que envolvam o tema
“música”, além de algumas publicações na área musical envolvendo aspectos da ad-
ministração e da engenharia de produção. As publicações selecionadas foram arti-
gos em periódicos, dissertações de mestrado, teses de doutorado, trabalhos de
formatura e artigos publicados em anais de dois importantes eventos nacionais na
área de gestão de operações: o Encontro Nacional de Engenharia de Produção
(ENEGEP), promovido pela Associação Brasileira de Engenharia de Produção (ABE-
PRO), e o Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ad-
ministração (EnANPAD).
Interdisciplinaridade
O conhecimento científico se baseia, desde a Antigüidade, no preceito de que é
possível compreender a realidade por meio de sua divisão em diversos campos in-
dependentes. Assim, acreditava-se que havia uma ciência para cada objeto especí-
518
fico de estudo, isto é, defendia-se a existência de uma perfeita correspondência entre
uma divisão preexistente na natureza e as divisões do campo científico; haveria,
então, assuntos concernentes a apenas uma parte do conhecimento humano: os fe-
nômenos físicos seriam o objeto de estudo da física, os conceitos biológicos se re-
feririam estritamente à biologia, e assim por diante. A filosofia, como
fundamentação do discurso e da teoria científica, expressou tal concepção em di-
versos momentos históricos. Platão (428/7-347 a.C.), por exemplo, expressou este
preceito ao defender a divisão do mundo em várias partes para compreender cada
uma destas cientificamente, em sua obra A República. Comenta o filósofo:
— [. . .] A ciência tomada em si mesma é ciência do cognoscível em si mesmo, ou
do objeto, qualquer que seja, que se lhe deve consignar; mas uma ciência deter-
minada é ciência de um objeto de qualidade determinada Explico-me: quando
a ciência de construir casas nasceu, não a distinguiram das outras ciências a
ponto de denominá-la arquitetura?
— Sim.
— Porque era tal que não se assemelhava a nenhuma outra ciência?
— Sim.
— Ora, não se tornou ela assim quando foi aplicada a um objeto determinado?
E não acontece o mesmo com todas as outras artes e todas as outras ciências?
— Acontece o mesmo. (Platão, 1973: 226)
Tal concepção do campo científico predominou ao longo do tempo no pensamento
ocidental, sendo aprofundada por pensadores como René Descartes (1596-1650
d.C.), que, no século XVII, adotou como um dos preceitos de seu método o “de re-
partir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fos-
sem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las” (Descartes, 1999: 49).
A despeito da influência do pensamento filosófico, atualmente a excessiva frag-
mentação da realidade para fins de compreensão e poder de atuação sobre esta é
acelerada pelo grau de desenvolvimento tecnológico. Na contemporaneidade, a
desmedida especialização das diversas áreas do conhecimento — regida pela con-
cepção de ser possível, pela ciência, gerar o saber necessário para dominar a natureza,
induzindo ao desenvolvimento produtivo e tecnológico — tem conduzido o indi-
víduo a uma visão de várias realidades fragmentadas, com conhecimentos estan-
ques, não produtores de ações eficazes no cotidiano social. Não se depreende, sob
esse ângulo, as vinculações semânticas que existem entre os conceitos teóricos, e se
passa à prática com conhecimentos díspares, que podem solucionar um determi-
nado problema e, concomitantemente, criar outros.
Em A estrutura das revoluções científicas, Kuhn (1981) observa que a ciência normal
é bastante eficiente na solução dos problemas específicos em que se detêm para es-
tudar, porém suas áreas de investigação representam um espectro bastante redu-
zido da concepção global da realidade. Nesse sentido, o recorte analítico acaba por
restringir o cientista a uma visão que torna dificultoso o entendimento mais amplo
do mundo (Kuhn, 1981). Rubem Alves corrobora este pensamento: 519
Você pode ser um especialista em resolver quebra-cabeças. Isto não o torna mais
capacitado na arte de pensar. Tocar piano (como tocar qualquer instrumento)
é extremamente complicado. O pianista tem de dominar uma série de técnicas
distintas — oitavas, sextas, terças, trinados, legatos, staccatos — e coordená-las,
para que a execução ocorra de forma integrada e equilibrada. Imagine um pia-
nista que resolva especializar-se [. . .] na técnica dos trinados apenas. O que vai
acontecer é que ele será capaz de fazer trinados como ninguém — só que ele não
será capaz de executar nenhuma música. Cientistas são como pianistas que resol-
veram especializar-se numa técnica só. Imagine as várias divisões da ciência — fí-
sica, química, biologia, psicologia, sociologia — como técnicas especializadas.
No início pensava-se que tais especializações produziriam, miraculosamente,
uma sinfonia. Isto não ocorreu. O que ocorre, freqüentemente, é que cada mú-
sico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem os soció-
logos, que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não
compreendem a linguagem da economia, e assim por diante. A especialização
pode transformar-se numa perigosa fraqueza. (Alves, 1982: 11-12)
A idéia de que o mundo seria um grande relógio, com muitas engrenagens, que es-
tudadas individualmente (cada uma por sua respectiva ciência), permitiriam — a
partir da união de todos esses conhecimentos específicos — a constituição de um co-
nhecimento global acerca da realidade foi contestada pela teoria sistêmica (Berta-
lanffy, 1977; Crema, 1989; Capra, 1993; 1995). Esta vertente epistemológica prevê
que a soma de várias partes não forma o todo, e que este somente pode ser com-
preendido de maneira global a partir do entendimento geral dos fenômenos dinâ-
micos que se inter-relacionam e, por meio dessas relações, constituem um sistema
integrado, indissociável. Segundo Crema (1989: 68), a abordagem sistêmica
[. . .] consiste na consideração de que todos os fenômenos ou eventos se interli-
gam e se inter-relacionam de uma forma global; tudo é interdependente.
Sistema (do grego systema: reunião, grupo) significa um conjunto de elementos
interligados de um todo, coordenados entre si e que funcionam como uma es-
trutura interligada.
O físico Fritjof Capra (1993) demonstrou, em sua obra O tao da física, que dife-
rentes concepções e maneiras de explicar determinados fenômenos trazem sua con-
tribuição para o estudo destes, porém nenhuma vertente do conhecimento é capaz
de oferecer uma solução única e incontestável para a explicação da realidade:
Na tentativa de compreender o mistério da Vida, homens e mulheres têm se-
guido muitas abordagens diferentes. Entre estas, encontram-se os caminhos do
cientista e do místico. Existem, contudo, muitos outros: os caminhos dos poe-
tas, das crianças, dos palhaços, dos xamãs — isso para indicar apenas uns poucos.
Esses caminhos deram origem a diferentes descrições do mundo, tanto verbais
como não-verbais, e que enfatizam diferentes aspectos. Todas são válidas e úteis
no contexto em que surgiram. Todas, entretanto, não passam de descrições ou
de representações da realidade e, em decorrência disso, limitadas. Nenhuma
pode oferecer uma representação completa do mundo. (Capra, 1993: 226)
520
O que Capra (1993) demonstra em sua obra é justamente a inexistência de um ca-
minho unívoco para a compreensão de determinado fenômeno. Em seu escrito O
ponto de mutação (Capra, 1995), o teórico segue a mesma direção de pensamento,
adicionando à citada constatação a impossibilidade de se compreender determi-
nado processo isoladamente, ou seja, sem compreender suas interação com outros
processos que constituem um organismo, um sistema.
A concepção sistêmica vê o mundo em termos de relações e de integração. Os sis-
temas são totalidades integradas, cujas propriedades não podem ser reduzidas às
de unidades menores. Em vez de se concentrar nos elementos ou substancias
básicas, a abordagem sistêmica enfatiza os princípios básicos de organização. Os
exemplos de sistemas são abundantes na natureza. Todo e qualquer organismo
— desde a menor bactéria até os seres humanos, passando pela imensa variedade
de plantas e animais — é uma totalidade integrada e, portanto, um sistema vivo.
(Capra, 1995: 260)
A teoria sistêmica tem sido traduzida, em diversas esferas científicas, pela concep-
ção de rede. Como ferramenta analítica, as redes são adotadas nos mais diversos
campos do conhecimento, como a sociologia, a educação, a informática, a mate-
mática, a economia, a engenharia e a administração. Epistemologicamente, pode-
se entender que os nós das redes são os conceitos, os quais são compartilhados pelas
diversas áreas do conhecimento, que constituem as ligações (ou linkages) da rede.
Ademais, as redes apresentam características como a flexibilidade, que induzem à
noção de que uma mudança teórica em determinada área (ligação) ou conceito (nó)
repercutirá por toda a rede, levando à ocorrência de reflexos em outros campos, em
maior ou menor grau. Esse fato se vincula à noção de interdependência e inter-re-
lacionamento entre as diversas áreas do saber.
Tal relacionamento entre campos de estudo, que emergiu desde finais do século
XX, é considerado produto de novas divisões do trabalho intelectual, pesquisas co-
laborativas, campos de conhecimento híbridos, estudos comparativos e perspecti-
vas de pretensão holística ou unificada (Klein, 1990: 11). Ademais, relaciona-se ao
chamado pensamento complexo, que busca “reconhecer a multidimensionalidade
dos fenômenos” e ser “capaz de associar o que está separado e conceber a multidi-
mensionalidade de toda realidade antropossocial” (Morin, 1986, pp. 113-22)
É importante divisar, porém, em que sentido tais visões globais de determinados fe-
nômenos, ou da realidade como um todo, criadas a partir da conjugação de conhe-
cimentos (parciais) de áreas que estudam partes da realidade, seriam diferentes da
perspectiva filosófica clássica.
A filosofia, identificada inicialmente com o diálogo socrático ou platônico, buscava,
pelo debate em que se chocavam opiniões contraditórias, alcançar os conceitos ver-
dadeiros. A partir de tal movimento de síntese de idéias, concebeu-se a possibilidade
de se chegar — em última instância — ao conhecimento da totalidade.
Uma das definições de filosofia a concebe como um esforço racional para com- 521
preender o Universo como uma totalidade ordenada de sentido. Outra definição a
considera como uma fundamentação teórica, crítica, racional e sistemática dos co-
nhecimentos e das práticas, isto é, como atividade de análise, reflexão e crítica dos
conhecimentos, da ciência, da religião, da arte, da moral, da história e da política. A
filosofia contempla os saberes e as práticas, analisando-os racionalmente (Chauí,
2006).
Por definição, a filosofia busca o conhecimento do todo, com um olhar também
constituído a partir de conceitos gerais, que estão na base de todo tipo de conheci-
mento. Idealmente, a interdisciplinaridade também visa à completude, à totalidade
e à universalidade do saber, ainda que este saber seja parcial — busca, ao menos, con-
jugar visões que se aproximem — mais do que o saberes de uma só ciência — ao co-
nhecimento global sobre determinados objetos, que são parcela da realidade. Cada
ciência, por si só, entretanto, busca conhecimentos parciais — baseados em seus
conceitos e métodos próprios — sobre parcelas da realidade — seus objetos pró-
prios.
Nota-se que a relação entre campos do saber é normalmente pensada a partir da
constituição de equipes compostas por indivíduos de diversas áreas, cada um com
saberes específicos. Costuma-se ignorar a hipótese de uma mesma pessoa ter for-
mação acadêmica em diversas áreas, podendo por si só desenvolver pesquisas in-
terdisciplinares, multidisciplinares, etc. Cabe considerar ainda que grandes estudos,
como os desenvolvidos por pensadores da filosofia e das ciências humanas, foram
elaborados a partir de conhecimentos que poderiam ser classificados como perti-
nentes a diversas áreas do conhecimento e hoje são relevantemente estudados em
diversas áreas do saber. Portanto, não é adequado dizer que a interdisciplinaridade
seja um fenômeno novo, mas apenas que a consciência desta é que se tem defla-
grado — e se explicitado — mais recentemente para os pesquisadores em geral, com
diferentes intensidades conforme os campos científicos.
O fenômeno da relação entre diferentes campos do conhecimento (envolvendo
não só ciências, mas também a filosofia e outros tipos de saber) tem recebido di-
versas nomenclaturas, tais como multidisciplinaridade, transdisciplinaridade, plu-
ridisciplinaridade, multirreferencialidade e interdisciplinaridade. Todas essas
designações expressam basicamente a mesma idéia: de que há conceitos e objetos de
estudo comuns aos diversos campos do conhecimento humano; de que conceitos
e arcabouços teóricos de uma área podem ajudar na solução questões inerentes a
outra área, e vice-versa. Não somente as relações entre ciências são consideradas,
mas também entre ciência(s), filosofia, “filosofias orientais”, religião e outros sabe-
res extracientíficos. Essas formas de conhecimento exteriores à ciência, cabe notar,
têm procurado obter filosoficamente a legitimidade científica e suas “verdades” têm
pretensão de “verdade científica”. (Gadamer, 1977)
522 Para Carvalho (1988, p. 93), multidisciplinaridade diz respeito ao momento de
uma pesquisa em que se faz uso de contribuições de diferentes disciplinas, porém
tal colaboração é “fortemente localizada e limitada”, sendo que cada disciplina man-
tém seu próprio campo de estudo, com autonomia de seus métodos e de seu escopo.
Já a interdisciplinaridade diria respeito a uma coordenação mais acentuada entre
disciplinas, com uma intercomunicação mais efetiva entre pesquisadores de dife-
rentes áreas; as várias disciplinas adaptam seus métodos ao esforço comum — com
planejamento e pretensão de continuidade, sendo que o objeto de estudo comum
passa a ser objeto também de cada disciplina por si só. Carvalho (1988) destaca
ainda o conceito de intradisciplinaridade, que se origina da particularização de um
objeto de pesquisa, que passa a ser o foco de uma subdisciplina, que entretanto não
obtém autonomia quanto aos métodos em relação à disciplina à qual pertence. Por
fim, para Carvalho (1988) a transdisciplinaridade é a elaboração de um novo objeto,
estudado por um método comum a várias disciplinas, processo que culmina com a
criação de uma nova ciência, constituída por contributos de diversos campos do
conhecimento; há uma unidade complexa do objeto com uma multiplicidade de
vertentes deste novo campo do saber heterogeneamente constituído. Ou, para Pe-
reira (2004, p.5), transdisciplinaridade “é o saber que se obtém a partir de todos os
saberes da cultura, isto é, da Ciência, Filosofia, Arte, Religião e Senso Comum. É
um saber que pertence à esfera maior dos conhecimentos humanos”.
Klein (1990) nota que a interdisciplinaridade, por um lado, é descrita como nos-
talgia de uma inteireza de mundo perdida; por outro, como um novo estágio da
evolução das ciências. A associação do termo se dá a uma ampla gama de experiên-
cias. Se um físico pode associar interdisciplinaridade a variados níveis de conver-
gência dos conhecimentos da física moderna, da química e da biologia, o mesmo
pode não conceber como tal relacionamento se dá nas ciências sociais. Economis-
tas podem condenar a interdisciplinaridade como diletantismo, enquanto usam
em suas pesquisas estudos interdisciplinares sobre o terceiro mundo. O termo in-
terdisciplinaridade, nota a autora, já foi usado para descrever tanto uma grande
unidade do conhecimento humano quanto uma colaboração limitada entre duas ou
mais ciências.
Fazenda (2006) nota que a interdisciplinaridade, como movimento, surgiu na Eu-
ropa, principalmente na França e na Itália, durante a década de 1960, em meio às
movimentações estudantis que ocorriam àquela época. Contrapunha-se à organi-
zação acadêmica que desprezava o conhecimento da cotidianidade e da contem-
poraneidade e que prezava a alta especialização, cultivando apenas olhares em uma
“única, restrita e limitada direção” (Fazenda, 2006, p. 19). Fazenda (2002, p. 8)
aponta que
A interdisciplinaridade vem sendo utilizada como ‘panacéia’ para os males da
dissociação do saber, a fim de preservar a integridade do pensamento e o resta-
belecimento de uma ordem perdida. [. . .] Antes que um slogan, é uma relação de 523
reciprocidade, de mutualidade, que pressupõe uma atitude diferente a ser assu-
mida frente ao problema do conhecimento, ou seja, é a substituição de uma con-
cepção fragmentária para unitária do ser humano. [. . .] É uma atitude de
abertura, não preconceituosa, onde todo conhecimento é igualmente impor-
tante.
Japiassú (1976) entende que a troca de informações entre disciplinas do saber é
condição essencial mas não suficiente para a interdisciplinaridade, que só se efetiva
quando a intercomunicação entre áreas do conhecimento provoca mudanças sen-
síveis nessas próprias áreas e em sua interação. O autor ainda identifica pluridisci-
plinaridade como o estudo de um mesmo objeto por diferentes disciplinas, mas
sem a unidade de conceitos e métodos. Já a interdisciplinaridade seria uma efetiva
integração das disciplinas no nível de conceitos e métodos.
Do ponto de vista da pesquisa científica, a interdisciplinaridade se constrói da in-
teração, comparação, análise e síntese de conceitos oriundos de diversos campos do
saber, isto é, da conjugação de ângulos pelos quais cada ciência e cada modalidade
outra de saber dirige seu olhar à realidade. Como atitude metodológica, tem-se a in-
terdisciplinaridade como um direcionamento do saber no intuito de “superar visões
fragmentadas” e dicotômicas da realidade e de “romper barreiras”, principalmente
entre especialidade e generalidade do conhecimento e entre teoria e prática (Boch-
niak, 1992: 19). Nesse sentido, a interdisciplinaridade também é notada como um
ideal da ciência em sua fase pós-moderna, na qual cultiva-se a noção de “de supera-
ção de qualquer dicotomia” (Pereira, 2005: 37).
Ora, a concepção de interdisciplinaridade [. . .] vem enunciada enquanto mais do
que superação das barreiras existentes entre as disciplinas científicas (como via
de regra ela vem entendida); enquanto mais do que superação das fronteiras e
oposições, até então estabelecidas entre Ciência, Filosofia, Arte e Religião [. . .];
enquanto superação de toda e qualquer visão fragmentada que tenhamos de
nosso mundo, de nós mesmos e de nossa realidade. O que, contudo, não signi-
fica que, sob tal enunciado, sejam desconsideradas ou desprezadas as respectivas
distinções, separações e/ ou classificações de que vimos nos valendo, e que su-
põem interessantes e necessárias circunscrições para a análise de fenômenos con-
siderados. Assim e, por exemplo, nesta perspectiva da interdisciplinaridade não
se despreza nem se desconsidera a separação ou a distinção entre ciências; a se-
paração ou a distinção entre as amplas áreas da produção e expressão do conhe-
cimento [. . .]; a separação e a distinção entre corpo e mente — pensamento,
sentimento, movimento de pessoa humana; a separação e a distinção entre teo-
ria e prática etc. O que se despreza e se desconsidera é o distanciamento entre tais
circunscrições e/ ou até mesmo a oposição entre tais esferas [. . .]. (Bochniak,
1993, p. 288-9)
Diante da pluralidade de conceitos, é interessante que se busque uma nomenclatura
que seja mais adequada e próxima ao uso lingüístico corrente nos meios científicos.
Cabe, portanto, identificar a interdisciplinaridade como um conceito aberto, que
diga respeito a vários graus de integração entre disciplinas. Uma densa integração
524 entre áreas do saber, que seja tão profunda a ponto de poder criar uma nova ciên-
cia, é fenômeno quantitativamente limitado no campo científico. Esse seria um
nível avançado de interdisciplinaridade. O que costuma ocorrer, entretanto, é a
junção ocasional de várias disciplinas para estudar determinado objeto, em deter-
minada pesquisa; ou, no plano pedagógico, a exploração do estudo de várias maté-
rias com foco um determinado tema que se está estudando. Esse seria um nível
básico de interdisciplinaridade, mais comumente notado. Tal como conceituada a
interdisciplinaridade lato sensu, esta poderia ser compreendida como gênero den-
tro do qual especificar-se-iam diferentes níveis de integração entre campos do saber,
abrangendo as espécies multidisciplinaridade, interdisciplinaridade stricto sensu,
transdisciplinaridade, etc.1 Por outro lado, haveria a coexistência mas não integra-
ção entre campos do saber, conceituada por Weil (2007) como multidisciplinari-
dade. Mas cabe notar que essa não integração é relativa, pois autonomamente, de
forma consciente ou não, as áreas do conhecimento são formadas e incorporam —
contínua ou descontinuamente — conhecimentos que não cabiam em seu escopo
original, além de partilharem métodos afins, sob bases semelhantes.
Música e gestão: um panorama de estudos brasileiros
Buhman, Kekre e Singhal (2005, p. 495) colocam: “Enquanto muito dos problemas
de gestão de operações entram em interface com a economia, a psicologia e outras
áreas dos negócios, alguns temas emergentes extendem a fronteira da gestão de ope-
rações para além destas áreas”. Ademais, muitos dos temas tratados em adminis-
tração têm por base fundamentos de outros campos do saber, como a pedagogia
(vide, por exemplo, os estudos do psicopedagogo Carl Rogers), a psicanálise e a psi-
cologia — que enfatizam a dimensão emocional, muito valorizada nas abordagens
mais recentes de administração, e trazem temas como a liderança e a motivação, in-
cluídos no âmbito dos estudos de gestão desde os estudos de Elton Mayo e outros
pesquisadores da Escola das Relações Humanas.
Artigos com múltiplas abordagens da inter-relação entre música, administração,
gestão e engenharia industrial (engenharia de produção) foram levantados. Nesta
seção, alguns destes trabalhos publicados nos anais de dois importantes congressos
brasileiros de gestão são destacados. Os congressos são o Encontro Nacional de En-
genharia de Produção (ENEGEP), promovido pela Associação Brasileira de Enge-
nharia de Produção (ABEPRO), e o Encontro da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD). No Simpósio de Ad-
ministração da Produção, Logística e Operações Internacionais, SIMPOI, promo-
Tabela 1 — Levantamento de trabalhos brasileiros correlacionando
música e gestão de operações
Abordagem Trabalhos no ENEGEP Trabalhos no Teses, Dissertações e
(1996-2008) EnANPAD (1997-2008) TCCs
Indústria fonográfica; aspectos
tecnológicos e mercadológicos
Monserrat Neto (1997); Ya-
matogi, Nantes e Lucente
Filgueiras e Silva (2002);
Carvalho, Hemais e
525
da produção e distribuição da (2001); Uehara (2001); Motta (2001); Kaminski
música; cadeia produtiva da Cota Júnior e Cheng e Prado (2005); Barros et
música; cadeia de valor da (2006); Menezes et al. al. (2008)
música (2006); Côrtes et al. (2008)
Emergência de estilos musicais Kirschbaum (2006)
Gestão de carreiras e música Kirschbaum e Vasconce-
los (2005)
Música no ambiente de Lima (1998); Moraes et al. El-Aouar e Souza (2003)
trabalho / música e qualidade (2004); Pereira et al. (2005);
de vida no trabalho Timossi, Francisco e Micha-
loski (2006); Santos et al.
(2007)
Ergonomia no trabalho do Paixão (1998)
intérprete musical
Educação musical a distância/ Fleury (2003)
música e tecnologias da infor-
mação e comunicação (TICs)
Gestão de organizações do Santos (2009) [TTC
terceiro setor de caráter socio- Engenharia de Produ-
cultural ção EESC-USP]
Gestão de instituições educa- Lemos, Alencar e Costa
tivo-musicais: conservatórios, (2006)
escolas de música, faculdades
Atividades socioculturais em Pena Júnior, Graciano e
projetos comunitários Válery (2005)
Percepção e cognição musical Pelaez (2000) [mes-
trado em Engenharia de
Produção — UFSC]
Gestão da qualidade e grupos Santiago (2002) [mes-
musicais trado em Engenharia de
Produção — UFSCar];
Morelembaum (1999)
[mestrado em
Musicologia — CBM]
Gestão de competências e mú- Teixeira (2005) [mes-
sica/ educação musical trado em música —
UFRGS]; Santiago
(2002) [doutorado em
Engenharia de Produ-
ção — UFSCar)
Música e qualidade de vida no Teixeira (2005) [mes-
trabalho trado em música —
UFRGS]; Morelem-
baum (1999) [mestrado
em Musicologia —
CBM]
A música e sua relação com a Rocha (2001) Flach e Antonello (2008)
administração de empresas (as-
pectos da intuição, improvisa-
ção, etc.)
vido pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da Funda-
ção Getúlio Vargas (FGV) não foram encontrados trabalhos sobre o tema.
Na tabela 1, a seguir, há uma lista exaustiva dos estudos encontrados nos anais dos
ENEGEPs e EnANPADs que contivessem qualquer referência significativa a "mú-
526 sica" ou "musical", ou que exemplificam uma abordagem possível de ser aprofun-
dada. Na tabela, são também mencionados, com um caráter exemplificativo,
algumas dissertações de mestrado, teses de doutorado e trabalhos de formatura de
cursos de graduação do Brasil que ilustram a síntese possível do conhecimento entre
as operações de gestão e de música. Note-se que outras fontes, como periódicos e ou-
tros anais de eventos acadêmicos não foram levantados.
A seguir, serão analisados brevemente cada um dos temas de pesquisa destacados.
1.1. A produção industrial da música comercial
Uma primeira abordagem da relação música-gestão que se pode verificar na litera-
tura brasileira da engenharia de produção e da administração de empresas é aquela
referente à indústria fonográfica, aos aspectos tecnológicos e mercadológicos da
produção e distribuição da música, à cadeia produtiva da música e à cadeia de valor
da música. Essa abordagem é a mais tradicional, pois remonta à concepção ador-
niana de indústria cultural, embora a depure de toda criticidade. Isso torna possí-
vel que, mesmo que um estudo trate da indústria cultural (ou da indústria
fonográfica, segmento desta), possa iniciar-se com a afirmação “Os diversos tipos de
expressão cultural de uma sociedade constituem a sua própria identidade” (Côrtes
et al., 2008, p. 2). Ora, a produção da indústria cultural reflete a identidade socio-
cultural de cada localidade em que é consumida?
Nessa linha de pesquisa, um dos aspectos estudados são os impactos das inovações
e mudanças tecnológicas na produção e comercialização da música, gerando novos
modelos de negócio nessa indústria: destaca-se, por exemplo, o barateamento das
mídias portáteis, como CDs e DVDs, e a crescente difusão da Internet, que popu-
larizou o comércio on-line de conteúdos sonoros (fonogramas) e audiovisuais, bem
como abriu espaço à divulgação gratuita de vídeos e sons. Tais mudanças gerariam
um fenômeno denominado de “cauda longa” (Anderson, 2006), possibilitando a
transição de um mercado massificado para um mercado segmentado, organizado
em nichos, no qual novos conteúdos podem ganhar viabilidade de divulgação, pois
haveria, dentre outros fatores, uma democratização das ferramentas de produção e
distribuição da música (Côrtes et al., 2008).
Outros trabalhos procuram compreender o comportamento dos consumidores de
música: é o caso do estudo de Kaminski e Prado (2005), destacaram haver uma re-
lação entre os valores dos consumidores e os benefícios e atributos percebidos no
produto musical: no caso, um som agressivo, com mensagens de reflexão e alusivo
à rebeldia era valorizado pelo público jovem por induzir a animação, descontração,
euforia e agitação. Semelhante foi o estudo desenvolvido por Barros et al. (2008),
que procuraram compreender o comportamento de consumidores de música na
Internet por meio do consumo digital (download) ilegal de materiais fonográficos,
fenômeno este inserido no quadro do que foi denominado como “pirataria virtual”.
Já Carvalho, Hemais e Motta (2001), entendendo o momento da entrega de um 527
serviço como um espetáculo teatral promovido pela organização, procuraram es-
tudar o comportamento dos consumidores nesse momento em relação à música
que compunha a ambiência do cenário em que se realizam as entregas de serviços.
Há também trabalhos explorando o uso de ferramentas de gestão da produção no
desenvolvimento de produtos musicais: Cota Júnior e Cheng (2006), por exem-
plo, estudaram a aplicação do planejamento e controle da produção (PCP) no de-
senvolvimento de toques musicais para telefone celular. Já outros estudos focam-se
nos meios de comercialização da música: Yamatogi, Nantes e Lucente (2001) rea-
lizaram um estudo de casos múltiplos, em três empresas, sobre o comércio eletrô-
nico (e-commerce) de discos de música (CDs), mostrando que, à época, as vendas
de tais produtos pela Internet representavam de 4 a 10% das vendas totais nas em-
presas pesquisadas. Outro trabalho investigou aspectos logísticos no varejo virtual
(e-Commerce B2C, business-to-consumer) de CDs, explorando aspectos como
tempos de ciclo, ou seja, o tempo total de entrega dos produtos encomendados via
Internet (Uehara, 2001). Há ainda trabalhos que discorrem sobre as mudanças tec-
nológicas, genericamente, discutindo exemplos como a transição das fitas cassetes
e CDs para os DVDs como mídias portáteis de conteúdos musicais (Monserrat
Neto, 1997). O estudo de Filgueiras e Silva (2002), que analisaram panoramica-
mente as gravadoras de música no Brasil, destacou que a indústria fonográfica bra-
sileira sofre ameaças devido a fatores como a pirataria e o download virtual gratuito
de músicas, a ambiguidade estratégica de várias gravadoras, a ausência de marke-
ting de marca, a falta de relacionamento com consumidores finais e artistas e o
grande desconhecimento a respeito de como os CDs são atualmente consumidos.
Estudo interessante a se destacar na área que pode ser chamada de engenharia de
produção do entretenimento é aquele relacionado à cadeia produtiva ou cadeia de
valor em grupos musicais independentes. Menezes et al. (2006) estudaram a cadeia
de valor de uma banda de rock, entendendo a música como um produto processado
ao longo de uma ampla cadeia de atividades estratégicas, em que a cada etapa agrega-
se valor por meio da vantagem competitiva em relação aos concorrentes. Essa cadeia
produtiva envolveria desde a criação musical, na qual a o grupo musical é o cerne,
até materialização do produto (música) por meio de gravações, sua divulgação e
distribuição e o encantamento do público.2
1.2. Emergência de estilos musicais
Neste campo, pode-se destacar o interessante tema do estudo de Kirschbaum
(2006), que explorou como se deu a introdução da Bossa Nova, um estilo musical
brasileiro — portanto, periférico, outsider para a crítica musical internacional —
como espécie de Jazz, um estilo já na condição de establishment para a crítica. Den-
tre outros aspectos, notou-se que a legitimação internacional da Bossa Nova foi
proporcional à quantidade de gravações que procuraram aproximá-la do Jazz.
528
1.3. Gestão de carreiras e música
As diversas carreiras musicais são um rico campo de investigação, seja pelas pecu-
liaridades do mercado de trabalho artístico, seja pelas peculiaridades da formação
e atuação desse profissional. Exemplo de estudo desse tema é o trabalho de Kirs-
chbaum e Vasconcelos (2005), que focaram o estudo do Jazz norte-americano entre
1930 e 1969, relacionando os padrões típicos de carreira nesse campo às suas trans-
formações estilísticas e às necessidades de adaptação à competitividade do mercado.
1.4. Música no ambiente de trabalho/ música e qualidade de vida no trabalho
Há estudos que citam aspectos sobre a utilização da música em diversos ambientes
laborais. Quanto ao espaço de um consultório odontológico, por exemplo, Moraes
et al. (2004), ao refletirem sobre o trabalho do odontopediatra, colocaram que o
atendimento a seus clientes (crianças) pode envolver uma série de estímulos visuais
e sonoros que desviem a atenção da criança-paciente da região bucal, na qual o den-
tista está trabalhando; segundo os autores, a música adequada é um elemento im-
portante para que o tratamento se torne mais agradável e o paciente, menos tenso.
Ao estudarem as condições ergonômicas do trabalho de dentistas da rede pública
e do setor privado, Santos et al. (2007) destacaram que apenas no serviço público
verificou-se a presença de música na sala de atendimento clínico, o que foi consi-
derado pelos profissionais entrevistados e por pesquisadores como “fator que con-
tribui para diminuição do stress e ansiedade durante o atendimento a pacientes com
alguma aversão à ‘cadeira do dentista’. Uma das dentistas entrevistadas comentou
que o trabalho com música é bom porque deixa o paciente mais relaxado” (Santos
et al., 2007, p. 6). Passando a outro setor, Timossi, Francisco e Michaloski (2006),
ao estudarem a implementação de um programa ergonômico de ginástica laboral
em um órgão público do governo federal brasileiro, destacaram o desenvolvimento
de um trabalho de relaxamento, prevenção e combate ao estresse com a utilização
de música, exercícios respiratórios e dinâmicas de grupo. Já Lima (1998), estudando
os temas da mobilização subjetiva, do controle disciplinar e da eficiência produtiva
em indústrias de processos contínuos (IPCs), relatou um caso em que o uso da mú-
sica (rádio) nas salas de controle, que era visto como uma concessão por parte da
empresa, passou a ser proibido, sendo que os operadores “Apenas dizem que não
atrapalha o seu trabalho, mas não podem argumentar contra a decisão da chefia (e
seu poder disciplinar) dizendo como e porque a música é também operacional e
parte integrante da atividade de controle do processo” (Lima, 1998, p.6).
Também poderia ser inserida nesta linha de estudos a pesquisa de Pereira et al.
(2005), que estudaram a qualidade da prestação de serviço de transporte público co-
letivo por uma empresa de ônibus, destacando o quesito “conforto versus ruído” e
concluindo que: “Provavelmente, se fossem feitas avaliações de limite de decibéis,
seriam ultrapassados os 85 db permitidos por lei, algo que com certeza influencia
diretamente no quesito conforto” (Pereira et al., 2005, p. 1675).
Outro campo que se destaca é o estudo da interrelação música-qualidade de vida no 529
trabalho. Normalmente, as abordagens referem-se a atividades musicais de caráter
sociocultural desenvolvidas para a motivação de funcionários em empresas. Há,
porém, uma outra perspectiva possível: a de se estudar a qualidade de vida no tra-
balho do próprio músico, tema da pesquisa de El-Aouar e Souza (2003).
1.5. Ergonomia no trabalho do intérprete musical
Nos dois congressos brasileiros pesquisados foi encontrado apenas um trabalho re-
ferente a este tema: Paixão (1998) avaliou do nível de pressão sonora nas apresen-
tações de grupos musicais gaúchos, visando à saúde dos músicos e da comunidade.
Destacou que, devido aos avanços da eletrônica e ao desenvolvimento dos sistemas
de amplificação sonora, “a música, tantas vezes associada ao divertimento, à sensi-
bilidade, ao congraçamento entre as pessoas, passou a ser executada e/ou ouvida a
níveis cada vez mais elevados, causando sérios prejuízos aos músicos (enquanto tra-
balhadores) e à comunidade (enquanto platéia e/ou moradora da vizinhança)” (Pai-
xão, 1998, p. 4), como a perda auditiva induzida por ruído (PAIR). Na pesquisa
empírica, a autora relatou que os grupos musicais pesquisados no estado Rio Grande
do Sul costumam passar dos níveis de ruído indicados pelas normas de sossego pú-
blico, seus músicos têm prolongada exposição (cerca de cinco horas sem interrup-
ção) a altos níveis sonoros, não possuem tempo e espaço adequado para descansos
auditivos durante as apresentações e não usam qualquer equipamento de proteção
auditiva.
1.6. Educação musical a distância/ música e tecnologias da informação
e comunicação (TICs)
A educação musical a distância, como a educação a distância em geral, é tema dos
que mais têm atraído atenção e provocado debates na atualidade. No âmbito da
música, o ensino a distância é possível em diversos níveis, o leva ao surgimento até
de cursos superiores de música a distância (nesses casos, a qualidade é bastante ques-
tionável).
Quanto ao uso da música em interação com as tecnologias da informação e comu-
nicação (TICs), Fleury (2003), que estudou iniciativas de redes de conhecimento
(definidas vagamente como “espaços onde ocorrem trocas de informações e expe-
riências entre profissionais”, p. 1), citou um projeto social que envolve a iniciativa
de montagem de um pequeno estúdio musical, o qual procura mostrar-se como fer-
ramenta digital para a criação de música do usuário pelo computador.
1.7. Gestão de organizações do terceiro setor de caráter sociocultural
A gestão de organizações não governamentais (ONGs) é tema de emergente inte-
resse desde a década de 1990. Grande parte dessas organizações mantém projetos
socioculturais, quase sempre envolvendo a educação musical. Santos (2009), por
530 exemplo, em trabalho de formatura em Engenharia de Produção estudou a gestão
no terceiro setor, tendo como referencial o Instituto Baccarelli, na cidade de São
Paulo, associação civil sem fins lucrativos que mantém orquestras e coros voltados
ao atendimento da comunidade carente de Heliópolis, em São Paulo.
1.8. Gestão de instituições educativo-musicais: conservatórios,
escolas de música, faculdades
Estudos interessantes poderiam ser realizados sobre a gestão de instituições educa-
tivo-musicais, pois seus dirigentes são, geralmente, músicos com pouca ou nenhuma
informação sobre administração de empresas ou engenharia de produção, o que os
faz deixar de aplicar fundamentos essenciais na administração de organizações,
como aqueles referentes à gestão de recursos humanos.
Entretanto, o único estudo que se aproxima deste campo de pesquisa encontrado
nos anais dos congressos pesquisados é um trabalho sobre governo eletrônico (e-
gov), que analisou o sites de instituições ligadas ao governo do estado de Pernam-
buco, dentre os quais o site do Conservatório Pernambucano de Música (Lemos,
Alencar e Costa, 2006).
1.9. Atividades socioculturais em projetos comunitários
Diversas são as possibilidades de desenvolvimento de projetos socioculturais en-
volvendo música. Esses projetos podem ser viabilizados pelo Estado ou por orga-
nizações como as universidades (na área de extensão universitária) e as empresas
(dentro de programas de qualidade de vida no trabalho ou como iniciativa de res-
ponsabilidade social corporativa ou sustentabilidade sociocultural). Entretanto,
apesar da possibilidade principalmente da última abordagem (empresarial) para se
desenvolver estudos na área de administração ou engenharia de produção, apenas
um trabalho que se aproxima do tema foi encontrado nos anais dos eventos pes-
quisados: Pena Júnior, Graciano e Válery (2005), refletindo sobre universidade e de-
senvolvimento local, citaram um projeto que promove aulas de esportes, música e
outras atividades artísticas para crianças de sete a quinze anos. Esse projeto é viabi-
lizado pela Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), especificamente
pelo Grupo de Ação em Responsabilidade Social (GARS), e também pelo Sindicato
da Indústria de Panificação e Confeitaria do Estado do Ceará (SINDPAN).
1.10. Percepção e cognição musical
Este é um tema que dificilmente poderia relacionar-se à administração de empre-
sas ou à engenharia de produção. Entretanto, foi o foco da pesquisa de Pelaez (2000),
defendida como dissertação de mestrado em Engenharia de Produção na área de
“mídia e conhecimento”. A autora estudou os processos biológicos envolvidos na
percepção e cognição sonora, discutiu questões da física envolvendo as ondas so-
noras e por fim discutiu habilidades de “aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos
e a ser através da música” (Pelaez, 2000, p. 150). Sem questionar o mérito do estudo, 531
nota-se uma evidente inadequação temática: a pesquisa poderia ter sido desenvol-
vida nas áreas de música, biologia, neurociência, medicina, fonoaudiologia, física
(acústica) e até mesmo pedagogia ou na filosofia; na engenharia de produção, difi-
cilmente. Na bibliografia não há sequer um autor da área de engenharia de produ-
ção, em que a tese foi defendida.
1.11. Gestão da qualidade e grupos musicais
Dois enfoques são possíveis quando se relaciona gestão da qualidade e grupos mu-
sicais: a gestão da qualidade dentro do próprio conjunto artístico e os impactos
dessa atividade artística na gestão da organização que ela integra. Santiago (2002),
em dissertação de mestrado em Engenharia de Produção, na área de “gestão da qua-
lidade”, relatou ações de melhoria contínua da qualidade em uma “orquestra expe-
rimental”, concluindo ser bastante eficaz tal gestão em grupos musicais. Já
Morelembaum (1999), em dissertação de mestrado em musicologia, estudou a in-
fluência da atividade coral para programas de qualidade total em empresas, desta-
cando que: “Essa visão holística, da qual o coral se utiliza amplamente, é um dos
pilares da filosofia da qualidade de vida, inserida na filosofia da Qualidade Total”.
(Morelembaum, 1999, p. 76)
1.12. Gestão de competências e música/ educação musical
Apesar da variedade de conceituações, as habilidades e/ou as competências são con-
ceitos altamente difundidos, principalmente na pedagogia e na administração. San-
tiago (2006) procurou utilizar o conceito de gestão de competências para
desenvolver um modelo de diagnóstico dos atributos do educador musical em cur-
sos de graduação em música. A pesquisa foi defendida como tese de doutorado em
Engenharia de Produção, na área de “gestão da qualidade”. A título de simplifica-
ção para a análise da adequação temática deste trabalho, nota-se que a tese tem no
total (com apêndices) 315 páginas, sendo que sem os apêndices a tese tem 250 pá-
ginas. De uma revisão bibliográfica de mais de 160 páginas, apenas 13 páginas são
dedicadas a um tema que pode ser classificado como pertinente à engenharia de
produção, justamente aos conceitos de “competências” e “gestão de competências”.
O restante da revisão de literatura traz aspectos elementares da história da música
e da educação musical (desde a Grécia Antiga), além de concepção de diversos au-
tores da educação musical sobre o que deve saber um músico ou um educador mu-
sical. De uma extensa bibliografia, menos de 10 trabalhos são da área de engenharia
de produção ou administração. Em dissertação de mestrado em música, Teixeira
(2005) utilizou-se do conceito de competências e realizou estudos junto a três coros
de empresas para concluir quais seriam as competências necessárias aos regentes
desse tipo de grupo musical: concluiu que essas competências seriam: ter formação
musical, tocar um instrumento harmônico (eg. piano) e ser flexível. A bibliografia
532 sobre competências, desenvolvida nas áreas de pedagogia, educação musical, admi-
nistração de empresas e engenharia de produção, foi composta por cerca de 10 tra-
balhos.
1.13. Música e qualidade de vida no trabalho
Os já citados trabalhos de Morelembaum (1999) e Teixeira (2005), por investiga-
rem o coro de empresa, acabam investigando a relação destes grupos com a quali-
dade de vida no trabalho, que se insere principalmente na prescrição de Deming
(1990) de que a empresa expulse o medo, encoraje a criatividade e os métodos de
solução de problemas. Morelembaum (1999, p. 57) destaca que o coro, como espaço
de iniciação musical, representa uma forma de lazer e pode “contribuir para uma
mudança de comportamento, ou seja, para o surgimento espontâneo da disciplina,
da receptividade, da alegria e do companheirismo entre as pessoas”. Já Teixeira
(2005), baseada na sociologia do lazer e do tempo livre, procura compreender o
coro de empresa como estratégia de gestão de recursos humanos.
1.14. A música e sua relação com a administração de empresas
(aspectos da intuição, improvisação, etc.)
A utilização de metáforas do campo musical na literatura e no cotidiano da admi-
nistração de empresas já é notória. Dependendo do tema administrativo, escolhe-
se um aspecto de determinado trabalho musical, normalmente visto sob a ótica do
senso comum social: a liderança é associada ao regente; o trabalho em grupo, a uma
orquestra ou coro; a criatividade, a improvisação e a flexibilidade, à própria ativi-
dade do compositor ou intérprete musical (principalmente aos músicos de jazz).
Considerando que as tradicionais prescrições da literatura administrativa de pla-
nejar, controlar e padronizar não são possíveis em diversas situações do cotidiano
empresarial, que exigem, portanto, improvisação por parte do administrador, Flach
e Antonello (2008) destacaram várias metáforas a partir das artes: a) o tempo in-
fluencia o processo de improvisação; b) a improvisação trabalha com a bricolagem;
c) a improvisação parte de estruturas mínimas; d) as pausas e o silêncio também
fazem parte do processo de improvisação; e) a improvisação pode ser individual ou
coletiva; f) a improvisação pode estar baseada em clichês e em repetição ou varia-
ção de temas; g) o erro é considerado parte da improvisação; h) a improvisação em
conjunto exige negociação e diálogos contínuos; i) a performance é essencial no ato
de improvisação.
Rocha (2001), que estudou o uso do pensamento lógico-racional, da intuição e da
criatividade por administradores de duas grandes empresas brasileiras, concluiu
que os dois últimos tipos de atitude intelectual prevaleceram nos três primeiros
anos de operação das empresas, a partir daí prevalecendo a lógica e a razão. A autora
cita Fisher, que descreve o perfil arrojado de executivos ideais que aproveitam sua
intuição e
solucionam problemas de maneira confiante e não-convencional; [. . .] apreciam
música e leitura e se envolvem profundamente com temas abstratos, tais como 533
verdade, beleza, valores maiores; possuem uma confiança cega em si mesmos;
defendem com muita convicção as idéias que apóiam, arriscam e acreditam que
é necessário arriscar sempre, para se obter o máximo da vida; [. . .] não sentem in-
segurança nem medo de fazer grandes mudanças em sua vida; são perspicazes,
exigentes, confiantes, previdentes, informais, espontâneos, independentes e cria-
tivos. (Fisher apud Rocha, 2001, p. 4)

Conclusões
Estudos sobre música e gestão de operações podem trazer contribuições típicas da
interdisciplinaridade. Por um lado, a atividade musical pode ganhar em qualidade
no momento em que seus atores obtêm conhecimento de técnicas e conceitos de
gestão de operações (GO); e pesquisadores de gestão podem enriquecer seus estu-
dos e teorias ao entrarem em contato com o campo de atividades da arte. Além
disso, a pesquisa interdisciplinar pode sofrer deficiências de conteúdo, já que difi-
cilmente há profissionais qualificados para avaliar um estudo envolvendo enge-
nharia de produção, de gestão e de música; tanto trabalhos de pesquisadores de
gestão de operações podem revelar falta de conhecimentos suficientes na área de
música, como estudos realizados por músicos podem revelar um nível muito baixo
de compreensão de conceitos da gestão. Isto faz alguns trabalhos mostrarem-se su-
perficiais.
Relativamente à revisão da literatura brasileira, muitos dos estudos mencionados
não mostram o que pode ser conceituado como a interdisciplinaridade, uma vez
que não exigem conhecimento de música e conhecimento de gestão: em geral, eles
são apenas estudos de gestão cujo tema é a música, e esses estudos não exigem co-
nhecimentos técnicos na área artística.
Ainda sobre a pesquisa brasileira, é importante notar que alguns estudos não foram
selecionados já que não foram publicados nos veículos pesquisados. Estes estudos
concentram-se principalmente em aspectos de liderança, motivação, gestão de re-
cursos humanos, organização do trabalho e gestão de competências nos grupos mu-
sicais (coros), e sobre as habilidades e competências e outros aspectos de gestão do
trabalho do maestro (Fucci Amato, 2007, 2008, 2009; 2010; Fucci Amato, Amato
Neto 2007a, 2007b, 2007c, 2008, 2009).
Todas as abordagens possíveis sobre a música interface de gestão descritas no pre-
sente documento são campos abertos esperando um amplo desenvolvimento de
pesquisas.
1 Nissani (1997) rejeita esse caminho conceitual de se definir vários tipos de interdiscipli-
naridade.
2 Note-se a semelhança no título entre este artigo e o de Boyle (2004).
534
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Coral e trabalho:
o canto em conjunto como atividade de lazer e o coro
como organização produtiva de bens e serviços culturais
540 Rita de Cássia Fucci Amato
fucciamato@terra.com.br
Universidade de São Paulo

Resumo
O presente trabalho integra a pesquisa de pós-doutorado O trabalho do regente como
administrador e a perspectiva organizacional do canto coral: contribuições interdiscipli-
nares para administradores e regentes, desenvolvida no Grupo de Estudos Organizacio-
nais da Pequena Empresa (GEOPE), do Departamento de Engenharia de Produção da
Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP), com o
apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A intenção
do artigo é explorar dois pontos de vista sobre a atividade coral: por um lado, encara-se
o canto coral como atividade lúdica e de lazer, “ócio criativo” praticado por grupos vo-
cais amadores em organizações como empresas, escolas e universidades, dentro de pro-
gramas de qualidade de vida no trabalho; por outro lado, dimensiona-se o próprio trabalho
dentro do coro, os processos e a gestão de recursos humanos dentro desse grupo ou
organização produtora de bens e serviços culturais. Para tanto, a pesquisa realiza-se em
duas etapas: revisão de literatura e estudo de casos múltiplos.
Palavras-chave
Canto coral; regência coral; motivação; trabalho.

1. Introdução
A visão tradicional do coro amador como um espaço de lazer, motivação, integra-
ção interpessoal, inclusão social e como um grupo de ensino-aprendizagem musi-
cal e vocal não exclui sua análise sob uma perspectiva interdisciplinar, envolvendo
a interface música-administração. Nesse sentido, o presente trabalho visa a desen-
volver a análise de aspectos organizacionais e administrativos relacionados à estru-
turação e ao trabalho de coros, bem como às atribuições e atividades desempenhadas
pelos regentes desses grupos.
Primeiramente enfoca-se uma revisão bibliográfica interdisciplinar, nas áreas de
música (regência e canto coral), administração de empresas, engenharia de produ-
ção, educação e sociologia, visitando-se autores como Nelson Mathias, Heitor Villa-
Lobos, Abraham Maslow, Chester Barnard, Alain Wisner, Christophe Dejours,
Norbert Elias e Domenico De Masi. A seguir, são estudados os casos de três coros
com diferentes características: (a) um coral municipal uma cidade de porte médio
do interior paulista; (b) um coral de empresa, formado por trabalhadores da ope-
ração, secretárias e pessoal da administração de uma indústria de autopeças de
grande porte; (c) um madrigal independente, composto principalmente por pro-
fessores universitários e profissionais atuantes em instituições educacionais. A me-
todologia adotada é pois de cunho qualitativo e exploratório, constituindo-se como
uma pesquisa-ação com observação participante ou pesquisa participativa (Thiol- 541
lent, 2005), mas com um caráter histórico, já que a autora foi regente dos dois pri-
meiros grupos e é regente do último coro.

2. O coro: organização ou grupo?


Segundo Maximiano (2006), as organizações são grupos sociais deliberadamente
orientados para a realização de objetivos, que, de forma geral, traduzem-se no for-
necimento de produtos e serviços. Nesse sentido, as pessoas são o principal recurso
das organizações, agregadas a outros recursos, quer materiais (instalações, espaço,
móveis, equipamentos etc.), quer imateriais (tempo e conhecimentos). O que pode
ser definido como comum a todos as vertentes do canto coral é que o coro consti-
tui uma organização — formal ou informal — que se funda em recursos materiais
(como instrumentos musicais, partituras, etc.) e, principalmente, em recursos hu-
manos (regente e coralistas, basicamente). Vale ressaltar que todas as organizações
podem ser desmembradas em processos. No caso particular da constituição de um
coro, seguindo as idéias correntes da teoria da administração (Maximiano, 2006), os
processos podem ser apontados como os de planejamento, organização, liderança,
execução e controle. Nessa perspectiva, pode-se adotar o entendimento de que o
coro é uma organização, uma vez que é orientado para a realização de objetivos
como a performance artística, a educação musical, a inclusão social e a integração
interpessoal, podendo ser encarado como um fornecedor de serviços e produtos so-
cioculturais (p.ex., concertos).
Ademais, apesar de um nível variável de flexibilidade (nos coros amadores, pelo
menos, maior que nas organizações empresariais, de atuação no mercado econô-
mico), há em todo coro uma série de regras estabelecidas pelo grupo quanto ao
comportamento dos membros, horários e datas de ensaios e concertos, tolerância,
pontualidade, etc. Há também certa autoridade da figura do maestro, em parte por
uma posição formal, em parte por seu carisma e liderança pessoais (variável con-
forme o maestro se coloque mais como um “igual” diante dos cantores, ou mais
como um controlador distante daqueles). A comunicação é mais ou menos orga-
nizada e há procedimentos, principalmente levados a cabo pelos regentes, para a
coordenação e cooperação entre os membros. Tem-se assim os requisitos da for-
mulação de Hall (2004, p. 30):
uma organização é uma coletividade com uma fronteira relativamente identifi-
cável, uma ordem normativa (regras), níveis de autoridade (hierarquia), sistemas
de comunicação e sistemas de coordenação entre os membros (procedimentos);
essa coletividade existe em uma base relativamente contínua, está inserida em
um ambiente e toma parte de atividades que normalmente se encontram rela-
cionadas a um conjunto de metas; as atividades acarretam conseqüências para
os membros da organização, para a própria organização e para a sociedade.
542 Por outro lado, pode-se visualizar o coro apenas como um grupo; em caso de coros
amadores, como um “grupo criativo e sem fins lucrativos”, conforme a abordagem
efetuada pelo sociólogo italiano Domenico De Masi (2003, p. 674). Seja como or-
ganização, seja como grupo, o coro é um sistema de produção que, como tal, tem
uma determinada configuração de seus recursos: além das pessoas, materiais, in-
formações, equipamentos e energia ou custos (Fleury, 2008, p. 2). Organização ou
grupo, todo coro conta com uma estrutura organizacional, sendo, no caso do canto
coral, a dimensão pessoal uma das mais proeminentes.

3. O coro amador: lazer ou trabalho?


As relações entre coral e trabalho podem ser vislumbradas de duas perspectivas. Por
um lado, o canto coral (amador) pode ser encarado como uma atividade de lazer,
como uma ferramenta motivacional, inserida, no caso de coros de empresa, em pro-
gramas de qualidade de vida no trabalho, definida como “o conjunto de ações, in-
cluindo diagnóstico, implantação de melhorias e inovações gerenciais, tecnológicas
e estruturais no ambiente de trabalho, alinhada e construída na cultura organiza-
cional, com prioridade absoluta para o bem-estar das pessoas da organização” (Li-
mongi França, 2007, p. 167). Nesse sentido, o canto coral, como atividade lúdica,
insere-se no período pós-1968, em que se iniciam as preocupações com a saúde
mental do trabalhador, após os períodos de sua luta pela sobrevivência (século XIX)
e da luta pela proteção à sua saúde (1ª Guerra Mundial até 1968)1, conforme defi-
nidos por Dejours (1987, pp. 14-25). Por outro lado, a própria atividade coral pode
ser analisada como trabalho, embora a definição do termo não seja simples e, ge-
ralmente, seja considerada trabalho apenas a atividade obrigatória (trabalho assa-
lariado, trabalho produtivo individual, trabalho familiar e escolar), ou, ainda, apenas
“o que acrescenta um valor e entre no circuito monetário” (Wisner, 1987, p. 11), o
que no máximo caracterizaria o canto coral profissional, mas nunca o coro amador.
Para Dejours (2008, p. 38), trabalhar seria “um ato orientado para um objetivo de
produção incluindo os pensamentos que são indissociáveis dele”, noção esta que
permitiria classificar quaisquer manifestações de canto coral como trabalho, já que
coros fornecem serviços ou produtos culturais, tais como apresentações, concertos
e gravações. Acrescenta-se ainda a questão da coletividade que envolve a noção de
trabalho:
[. . .] trabalhar não é unicamente uma relação individual [. . .] entre um sujeito e
sua tarefa. Trabalha-se sempre para alguém: para seus superiores, para seus co-
legas ou para seus subordinados. O trabalho é, pois, também, uma relação com
o outro. Levanta-se aqui a questão fundamental da cooperação. Primeiro a coo-
peração horizontal com os colegas, com o coletivo de trabalho, com a equipe; e
a cooperação vertical com os subordinados e com os chefes. (Dejours, 2007, p.
19)
O aspecto cooperativo é intrinsecamente vinculado à natureza do canto coral e 543
constitui sua essência enquanto organização e a dimensão organizacional do canto
coral ganha especial destaque ao se coadunar com a perspectiva de Barnard (1966),
autor pioneiro da abordagem dos papéis no trabalho do administrador. O autor
identifica os papéis do executivo como sendo os de “criar e comunicar” um “pro-
pósito comum” (Escrivão Filho; Mendes, 2008, p. 5); nesse sentido, o regente se
aproximaria relevantemente do administrador, já que é o líder capaz de criar e man-
ter uma harmonia polifônica grupal no qual se fundamente o trabalho artístico e
educativo-musical desenvolvido no canto coral.

4. Cooperação: uma visão barnardiana


Nascido em 1886, Chester Irving Barnard era filho de mecânico, mas teve a opor-
tunidade de conviver em seu ambiente familiar com intelectuais e maçons. Como
todo jovem filho de trabalhadores enfrentou problemas financeiros para manter
seus estudos e desde os quinze anos teve que trabalhar (inclusive como afinador de
pianos); portanto, não chegou a concluir seus estudos. Com seu livro As funções do
executivo, publicado em 1938, chamou a atenção para um dos principais desafios da
gerência: estabelecer um grau de equilíbrio entre as necessidades individuais e o es-
copo da organização (Barnard, 1966). Neste sentido, colocou que o papel de ge-
renciar está centrado na capacidade de convencimento, muito mais que no simples
comando. Contribuiu de maneira exemplar para a inovação da teoria administra-
tiva com seu pensamento a respeito das organizações (Levitt; March, 1995: 11) e
antecipou questões relevantes nesse âmbito.
A visão barnardiana de gestão inova e amplia o entendimento dos pensadores clás-
sicos Taylor e Fayol. Para Barnard, a organização é um sistema social complexo, em
cujo centro encontra-se o ser humano com suas limitações e aspirações. Daí a rele-
vância das abordagens comportamentais e psicológicas serem estudadas, a fim de
fundamentar e ampliar a visão gerencial sobre as organizações. No entendimento
de Barnard, conseguir a cooperação de indivíduos e grupos dentro dessa complexi-
dade é a dificuldade maior da administração. O pensamento de que as pessoas e a
organização se interrelacionam e são interdependentes é vital neste processo de
mútua realização (Pefeffer, 1995: 72).
Dentro deste processo de cooperação surge nova compreensão da liderança, que
envolve a capacidade de compreender e estimular a realização das aspirações indi-
viduais dos funcionários, conjugando-as aos objetivos das empresas. A figura do
bom administrador, preconizada por Barnard, distingue-se da anteriormente di-
vulgada, aquela do chefe autoritário, manipulador, cumpridor de metas. Outra ino-
vação no pensamento deste autor refere-se ao estabelecimento da autoridade do
líder que é referendada pelos liderados. Usualmente, essa questão era entendida
como fruto do poder e persuasão do líder, no entanto, em Barnard surge a con-
544 cepção de que os liderados autorizam e necessitam que a liderança seja exercida, es-
pecialmente quando da elaboração de valores e metas da organização.
Barnard escreveu também sobre a natureza e a importância da organização infor-
mal, reconhecendo que essa organização delimita valores e condicionantes com-
portamentais dentro da empresa. Segundo Gabor apud Migliato e Perussi Filho
(2008, p. 73): “As organizações formais são vitalizadas por organizações informais”.
As funções do executivo formuladas por Barnard dizem respeito, em primeiro lugar,
ao gerenciamento de um sistema de comunicação eficaz (meios formais e infor-
mais) para informar os deveres organizacionais e suas hierarquias; em segundo lugar,
incrementar a participação de pessoas para um relacionamento cooperativo com a
organização; em terceiro lugar, implementar um conjunto de ações para efetivar os
objetivos e fins da organização.
Barnard foi, pois, o primeiro autor a se preocupar em expor consistentemente as
funções do executivo, concentrando-se nas questões humanas, psicológicas e com-
portamentais. No centro de sua argumentação está a tensão entre a obtenção dos
objetivos organizacionais (denominado de eficácia) e a necessidade dos indivíduos
de alcançar seus objetivos pessoais (eficiência), colocando o autor que os objetivos
organizacionais não podem ser alcançados a menos que a liderança reconheça um
conjunto de aspirações individuais e descubra um meio de ajudar os funcionários
a alcançá-los. Assim, o sistema cooperativo funciona melhor se há equilíbrio entre
ambos. Daí ser considerado que Barnard teve um pensamento pioneiro sobre a na-
tureza da liderança (conceito do bom administrador como um formador de valo-
res), contrastando com a figura do administrador autoritário e manipulador
(sistema de recompensas). Precursor da abordagem holística nas organizações, Bar-
nard previa que todos os atos das pessoas e das organizações estão direta ou indire-
tamente interligados e são interdependentes, inserindo nessa concepção os
fundamentos do que veio a ser conhecido como gestão por objetivos (Migliato e Pe-
russi Filho, 2008).
Aplicando as descrições de Barnard sobre o trabalho do executivo à atividade ge-
rencial do regente de um coro amador, Fucci Amato, Amato Neto e Escrivão Filho
(2010) notaram que a liderança exercida pela regente do grupo estudado era pri-
meiramente baseada em sua habilidade musical; em segundo lugar, em sua facilidade
de tomar decisões levando em conta negociações com os cantores; em terceiro, ad-
vinha da compreensão e aceitação de seu padrão de liderança pelos coralistas, pro-
porcionada essa internalização pelo forte poder intuitivo da maestrina em fomentar
um imaginário apto a motivá-los a concretizar objetivos reais; finalmente, era faci-
litada pelo cumprimento do objetivo comum a todos: a produção musical de alta
qualidade.
Ainda sob inspiração barnardiana, os autores colocaram que outro importante
ponto era a fraternidade estabelecida pela maestrina e pelos cantores, aos quais
abria-se espaço para expressarem sua ansiedade e preocupações pessoais e profis- 545
sionais: os momentos de descontração e a integração na hora do lanche coletivo
foram considerados essenciais nos ensaios do grupo. Concluiu-se que as atividades
desenvolvidas por aquele madrigal materializavam as funções gerenciais típicas des-
critas por Barnard (1966) — manutenção da comunicação organizacional, promo-
ção da garantia de esforços essenciais e formulação e definição dos propósitos
organizacionais — e que o processo de liderança via cooperação e consentimento era
mais prazeroso ao tornar efetiva a consecução dos objetivos coletivos a partir de es-
colhas também coletivas.

5. Redes sociais e intersubjetivas no canto coral


Como ferramenta analítica, as redes são empregadas nos mais diversos campos do
conhecimento, como a sociologia, a educação, a ciência da informação, a informá-
tica, a matemática, a economia, a psicologia, a engenharia e a administração. De
acordo com Pizarro (2003), as redes são definidas, dentro da teoria sociológica,
como um conjunto de indivíduos (que estruturalmente constituiriam os nós da
rede) inter-relacionados e interdeterminados a partir de suas relações (que seriam
as ligações, ou linkages, da rede). Nessa rede, as identidades individuais são inte-
gradas por relações de pertencimento a grupos sociais. A análise da rede de confi-
gurações socioculturais que será realizada baseia-se, ainda, nas idéias de Norbert
Elias, o qual coloca que as “pessoas constituem teias de interdependência ou confi-
gurações de muitos tipos, tais como famílias, escolas, cidades, estratos sociais ou es-
tados” (Elias, 1999a: 15).
Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elás-
ticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e decerto não menos
fortes. E é essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a
outras, a ela e nada mais, que chamamos “sociedade”. Ela representa um tipo es-
pecial de esfera. Suas estruturas são o que denominamos “estruturas sociais”. E,
ao falarmos em “leis sociais” ou “regularidades sociais”, não nos referimos a outra
coisa senão isto: às leis autônomas de relações entre as pessoas individualmente
consideradas. (ELIAS, 1997: 23).
Quanto ao canto coral, este é configurado como uma prática musical exercida e di-
fundida nas mais diferentes etnias e culturas. Por apresentar-se como um grupo de
aprendizagem musical, desenvolvimento vocal, integração interpessoal e inclusão
social, o coro é um espaço constituído por diferentes relações interpessoais e de en-
sino-aprendizagem, exigindo do regente uma série de habilidades e competências re-
ferentes não somente ao preparo técnico musical, mas também à gestão e condução
de um conjunto de pessoas que buscam motivação, aprendizagem e convivência
em um grupo social (Fucci Amato, 2007). Conforme expressou Mathias (1986),
um coro tem diversos níveis de ação, desde um nível micro até o macro, propor-
546 cionando que o indivíduo se integre às dimensões pessoal (motivação), grupal (re-
lações interpessoais), comunitária (melhora da qualidade de vida), social (inclusão)
e política (participação democrática nas ações públicas, livre expressão de manifes-
tações estéticas, artísticas, poéticas, de idéias e ideais).
Desde a Antiguidade clássica, as funções sociais do canto em conjunto são louva-
das e, àquela época, a música era concebida como um fator integrado à política e à
justiça. Na Grécia Antiga, tinham papel de destaque na educação dos cidadãos a
música (mousiké) e a ginástica (gymnastiké), exercícios para a alma e o corpo (Ma-
nacorda, 2000; Platão, 1973, Aristóteles, 1988).
Ainda que sob um viés nacionalista, varguista, unitarista e até por alguns conside-
rados fascista, o maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos, grande idealizador e coor-
denador de um enorme projeto de canto coletivo no Brasil durante a Era Vargas
(Fucci Amato, 2008), também notou exemplarmente a função social do canto coral,
destacando:
O canto coletivo, com seu poder de socialização, predispõe e indivíduo a perder
no momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, inte-
grando-o na comunidade, valorizando no seu espírito a idéia da necessidade de
renúncia e da disciplina ante os imperativos da coletividade social, favorecendo,
em suma, essa noção de solidariedade humana, que requer da criatura uma par-
ticipação anônima na construção das grandes nacionalidades. (Villa-Lobos,
1987, p. 87)
Destarte, o canto coletivo constitui uma notável ferramenta de integração inter-
pessoal e socialização cultural. O canto coral atua, na perspectiva da integração,
como um meio de eliminação de quaisquer barreiras entre os indivíduos, colocando
todos em uma posição de aprendizes.
Os trabalhos com grupos vocais nas mais diversas comunidades, escolas, empresas,
instituições e centros comunitários pode, por meio de uma prática vocal bem con-
duzida e orientada, realizar a integração, dissipando fronteiras sociais. O regente-
educador, na igualdade da transmissão de conhecimentos novos para todos os
coralistas, independentemente de origem social, faixa etária ou grau de instrução,
tem o poder de envolvê-los no fazer do “novo”, ou seja, de colocá-los como agentes
do instigante processo da criação artística.
Ao cumprir com as normas do coro, dedicar-se ao aprendizado da música nos en-
saios e em horas extras, o indivíduo se integra ao grupo na busca de metas comuns,
configurando um carisma grupal, por meio do qual todos os sentimentos e obstá-
culos são transpostos (Elias e Scotson, 2000), para que todos os indivíduos contri-
buam para o cumprimento dos objetivos comuns a todos os coralistas. Essa prática
musical desenvolve um senso de união grupal em torno de metas e objetivos co-
muns, canalizando as ações e sentimentos individuais para uma produção artística
coletiva, na qual se conjugam a disciplina rigorosa, o estudo com afinco e dedicação
de cada um dos agentes, culminando na constituição do carisma grupal.
Para abordar mais densamente tal conceito, relevante é retomar brevemente o con- 547
texto teórico em que se insere no trabalho de Norbert Elias e John Scotson, que es-
tudaram a fonte de diferenciais de poder entre grupos inter-relacionados, os
estabelecidos e os outsiders.
Os termos establishment e established são utilizados pelos autores para se referirem,
respectivamente, a um grupo e a indivíduos que, dentro de uma escala hierárquica,
ocupam posições superiores de prestígio e poder. Tal grupo identifica-se e é reco-
nhecido como uma “boa sociedade”, influente e melhor, construída sobre os pila-
res da tradição, da autoridade e da influência, presentes decisivamente nessa
identidade social, sendo que seus membros também são considerados modelos mo-
rais para o restante da sociedade. Em oposição aos estabelecidos, encontra-se o
grupo dos outsiders, concebidos como os não membros da “boa sociedade”, agluti-
nados em agrupamentos heterogêneos e difusos, com relações interpessoais de
menor intensidade que os establishment e com um menor grau de reconhecimento
e identidade cultural entre seus membros (Neiburg, 2000).
A categorização dos grupos estabelecidos passa por um carisma grupal, e todos os
que estão inseridos no establishment participam desse carisma e submetem-se às re-
gras mais ou menos rígidas desse grupo, com o sacrifício da satisfação pessoal em
prol do fortalecimento e coesão da coletividade:
A participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal singular é,
por assim dizer, a recompensa pela submissão às normas específicas do grupo. Esse
preço tem que ser pago por cada um de seus membros, através da sujeição de sua
conduta a padrões específicos de controle de afetos. [. . .] A satisfação que cada um
extrai da participação no carisma do grupo compensa o sacrifício da satisfação pes-
soal decorrente da submissão às normas grupais. (Elias; Scotson, 2000: 26)
O coro atua, assim, como um neutralizador das diferenças sociais (em sentido
amplo: econômicas, culturais, políticas, etc.), permitindo a todos a integração em
uma coletividade, da qual participam como establishment. Daí o carisma grupal,
que principalmente em coros amadores é a base da motivação de cantores e regen-
tes.
[. . .] a arte está ligada a receptores que, independentemente da ocasião em que
as obras de arte são apresentadas, formam um grupo fortemente integrado. O
lugar e a função que a obra de arte tem para o grupo derivam de ocasiões deter-
minadas em que este se reúne. [. . .] Portanto, uma das funções importantes da
obra de arte é ser uma maneira de a sociedade se exibir, como grupo e como uma
série de indivíduos dentro de um grupo. O instrumento decisivo com o qual a
obra ressoa não são tanto os indivíduos em si mesmos — cada qual sozinho com
seus sentimentos –, mas muitos indivíduos integrados num grupo, pessoas cujos
sentimentos são, em grande parte, mobilizados e orientados para o fato de esta-
rem juntas. (Elias, 1999b, p. 49)
548 Concorrentemente ao carisma grupal, como seu ingrediente e produto, a estrutura
organizacional menos hierarquizada e rígida do coro facilita a construção de rela-
cionamentos intersubjetivos, ora harmoniosos, ora dissonantes, expressos na com-
plexa polifonia construída a partir das vozes de cada cantor, unidas por naipe (grupo
de vozes por tessitura: geralmente, sopranos, contraltos, tenores e baixos). É extre-
mamente fidedigna, notadamente com relação aos coros amadores, a descrição:
As relações interpessoais são predominantemente horizontais, calorosas, infor-
mais, solidárias e centradas na emotividade. Para o indivíduo ou para o grupo no
conjunto contam, principalmente o reconhecimento e a gratificação moral. Pre-
valece uma liderança carismática. Cada um está atento àquilo que deve dar aos
outros; atribui muita importância ao empenho; tende a aprender o mais possí-
vel, para melhorar a qualidade de suas próprias contribuições; sente-se respon-
sável; sabe para que ele serve; sabe para que serve a sua contribuição pessoal; não
tende a descarregar sobre os outros as suas próprias responsabilidades. A disci-
plina provém do empenho pessoal, da atração exercida pelo líder, da adesão à
missão, da dedicação ao trabalho, da fé, da generosidade, da participação na
“brincadeira” [. . .]. (De Masi, 2003, p. 675-6)
Nota-se ainda que o coro também oportuniza a aquisição de saberes artísticos e es-
téticos que podem provocar uma transformação na mentalidade dos coralistas e os
auxiliar em seu desenvolvimento intelectual e crítico. Conforme expressou Mat-
hias (2001), um coro tem diversos níveis de ação, desde um nível micro até o macro,
proporcionando que o indivíduo se integre às dimensões pessoal (motivação), gru-
pal (relações interpessoais), comunitária (melhora da qualidade de vida), social (in-
clusão) e política (participação democrática nas ações públicas). Provém dessa
conjunção de planos o poder comunicacional e expressivo do canto coral, sua “força
única, própria; uma força vinda de uma ação comum, capaz de comunicar o con-
creto mundo dos sons, o abstrato da beleza da harmonia, e a plenitude do trans-
cendental — eis o poder da Comunica Som” (Mathias, 1986, p. 15).
A partir da participação em um coro pode-se desenvolver o que Abraham Maslow
(1908-1970) chamou de auto-atualização, isto é, “o uso e a exploração plenos de ta-
lentos, capacidades, potencialidades etc.”, sendo que o homem “se auto-atualiza
não como um homem comum a quem alguma coisa foi acrescentada, mas sim como
o homem comum de quem nada foi tirado. O homem comum é um ser humano
completo, com poderes e capacidades amortecidos e inibidos” (Maslow apud Fa-
diman; Frager, 1986, p. 262). Além da motivação, da convivência e da aprendiza-
gem proporcionadas pelo canto coral, essa prática também nos leva a um
significativo prazer estético, ou seja, a um conjunto de manifestações significativas
em termos de emoções e sentimentos.
Dessarte, no plano das relações intragrupais ou intraorganizacionais, o canto em
conjunto desvela-se como extraordinária ferramenta para estabelecer uma densa
rede de configurações socioculturais, com os elos da valorização da própria indivi-
dualidade, da individualidade do outro e do respeito das relações interpessoais, em
um comprometimento de solidariedade e cooperação. 549

6. Comentários sobre casos múltiplos (coros amadores)


6.1. Coral municipal
O Coral Municipal de São Carlos (1983-1989) foi criado pela Prefeitura Munici-
pal de São Carlos e mantido em parceria com a entidade sem fins lucrativos Socie-
dade Civil Amigos da Arte (FILARTE). O grupo congregou uma grande
heterogeneidade de cantores, provenientes dos mais diversos espectros socioeco-
nômicos, profissionais e culturais daquela cidade de porte médio, no interior do
Estado de São Paulo. Ao longo da história do grupo, verificou-se a presença de pro-
fessores universitários, estudantes de graduação e pós-graduação, padeiros, donas de
casa, manicures, funcionários públicos, eletricistas, engenheiros, entre diversos ou-
tros grupos.
Observou-se que com o passar dos anos o grupo foi-se diminuindo de porte (em ter-
mos de números de cantores), bem como aperfeiçoando seu escopo último em ter-
mos musicais, que foi definido desde o princípio como manter um grau crescente
de qualidade nas performances, sem deixar de lado as outras dimensões inerentes
ao trabalho em um coro comunitário. Dentre outros motivos, a “seleção” dos co-
ralistas ao longo do tempo deu-se por questões pessoais (como limitações de horá-
rios dos cantores, já que o grupo costumava ensaiar cerca de dez horas semanais) e
por afinidades (questões de relacionamento entre os coristas, entre coristas e re-
gente, convivência, observância e adaptação aos métodos de trabalho adotados).
Verificou-se, principalmente nos anos iniciais do grupo, problemas relativos à for-
mações de grupos parciais de amizade, caracterizados pelo que Mintzberg (1998)
denominou de “pequenas informações” (fofocas, boatos e especulações).
Verificou-se sempre no grupo uma sobrecarga das funções da regente — e também
das monitoras e do pianista assistente — desde a divulgação dos concertos do grupo
(impressão e distribuição de cartazes e programas) até as conflituosas negociações
para obtenção de espaços para ensaio e concerto do grupo, a má vontade da insti-
tuição mantenedora do grupo em fornecer transporte para viagens em apresenta-
ções em encontros de corais, a arrumação dos locais de concertos, entre tantas
outras atividades características de um trabalho profissional no canto coral ama-
dor, marcado pela deficiência de infra-estrutura e apoios de pessoal, principalmente
em órgãos públicos.
Em termos intragrupais, ao lado da liderança forte e por vezes centralizada da re-
gente na consecução de altas metas definidas e na condução de um grupo bastante
heterogêneo e muitas vezes de dimensões relativamente grandes (em termos de nú-
mero de coralistas), o Coral caracterizou-se pela união de coralistas e regente diante
550 da felicidade resultante da aprendizagem musical, da convivência, da cooperação e
do prazer de uma realização individual e coletiva com qualidade artística.

6.2. Coro de empresa


No Coral Metal Leve (1988-1991) formou-se um grupo, também amador, com-
posto por funcionário dos mais diversos setores daquela indústria de autopeças fun-
dada pelo empresário José Mindlin e à época também por este presidida. Dada a
composição extremamente diversificada do coro, envolvendo desde trabalhadores
do chão de fábrica até pessoal com cargo gerencial e secretárias bilíngues, primei-
ramente, foi possível verificar uma quebra nos níveis hierárquicos estabelecidos pelo
trabalho dentro da empresa: para participar do coral só era necessário querer can-
tar. O gosto pelo canto estabeleceu as condições para uma quebra das barreiras so-
ciais e criou a possibilidade de diferentes pessoas, de diferentes categorias
profissionais, se integrarem para realizar um mesmo trabalho. Em certa ocasião, o
Theatro Municipal de São Paulo promoveu uma montagem da ópera Cosi fan tutte,
de Mozart, a preços populares. Os coralistas foram estimulados para que fossem as-
sistir ao espetáculo e até aludidos quanto à não-necessidade trajar vestimentas for-
mais para a entrada no teatro. Dessa forma, alguns cantores decidiram ir ao evento
e, após a ocasião inédita que tiveram a possibilidade de vivenciar, passaram a nar-
rar por meses a belíssima experiência que tinham tido, ao não se sentirem excluídos
da vida cultural e, em particular, da possibilidade de entrar em uma sala de concer-
tos geralmente destinada a um público seleto. Tal acontecimento ilustra a possibi-
lidade que um coro tem para a formação de platéias, produzindo efeitos colaterais
para o indivíduo criar interesse para ouvir outros corais, assistir a concertos e par-
ticipar outros eventos de natureza artística, redefinindo o seu papel e a sua posição
na sociedade.
O Coral foi criado e mantido pela Associação Desportiva e Classista Metal Leve,
um órgão dos próprios funcionários. À regente foram sempre proporcionadas óti-
mas condições de trabalho e a fácil comunicação entre esta e os mantenedores do
coro foi condição essencial para o bom andamento daquele trabalho.
Verifica-se nesse coro que o trabalho de natureza artística propiciado pelo canto
coral desfazia certos paradigmas típicos do trabalho na empresa, tais como hierar-
quia, divisão de trabalho e tipos de metas e de realização pessoal no desenvolvi-
mento das atividades. Corrobora-se, então, a descrição de Morelembaum (1999),
que estudou a influência da atividade coral para programas de qualidade total em
empresas, destacando que:
O homem é o todo e, nesse processo, corpo, voz e emoção interagem simulta-
neamente. As emoções estão intrinsecamente ligadas ao equilíbrio corporal e a
postura correta é determinante na qualidade da voz. Essa visão holística, da qual
o coral se utiliza amplamente, é um dos pilares da filosofia da qualidade de vida,
inserida na filosofia da Qualidade Total. (Morelembaum, 1999, p. 76)
551
6.3. Madrigal independente
O Madrigal InCanto é um grupo formado a partir do encontro de ex-integrantes
do Coral Municipal de São Carlos, duas décadas depois do encerramento das ati-
vidades daquele grupo. O InCanto iniciou suas atividades em agosto de 2008 e pas-
sou a ser formado também por novos cantores, hoje sendo composto por nove
cantores, dentre os quais funcionários públicos, professores universitários e da edu-
cação básica, pesquisadores, estudantes, entre outros. Como o trabalho da regente
é totalmente voluntário (nem regente nem cantores recebem qualquer remunera-
ção) e esta reside em São Paulo, sendo as atividades do grupo e a residência dos de-
mais cantores em São Carlos-SP, a questão espacial de locomoção (cerca de 230Km
de distância) faz com que os ensaios do grupo tenham menor frequência (cerca de
uma vez ao mês), o que também é determinado pela disponibilidade dos cantores
em virtude de compromissos pessoais e profissionais. Embora tenha enfrentado pe-
ríodos de estagnação, por exemplo pelas questões de saúde da Assistente, que tam-
bém é quem cede sua residência como local de ensaio dos grupos aos fins de semana,
buscaram-se sempre meios de suprir a falta de uma maior carga horária e frequên-
cia de ensaios, como as gravações digitais de áudio das vozes, para ensaio individual
pelos coralistas em seus aparelhos de som coletivos ou individuais. Recentemente,
também tem-se procurado realizar ensaios gerais a distância (com a regente em uma
cidade e os demais cantores em outra), por via da ferramenta de comunicação di-
gital Skype.
Outro óbice às atividades do grupo é a dificuldade de obtenção de apoio material
para a realização e a divulgação de concertos. No seu primeiro concerto, o grupo (re-
gentes e cantores) tiveram de realizar uma repartição das despesas relativas à taxa de
apresentação no Teatro Municipal de São Carlos, embora o concerto tivesse en-
trada franca.
Verifica-se no grupo ainda uma centralidade na regente das funções/ papéis/ ativi-
dades de comando, comunicação, motivação, contatos, busca de oportunidades
para o grupo, organização e programação das apresentações, embora esta busque o
apoio da Assistente nessas atividades e, também, de outros cantores, que por mo-
rarem na cidade-sede do madrigal teriam maior facilidade em alguns aspectos.
Apesar de momentos de desmotivação e de dificuldades pessoais de diferentes gra-
vidades e duração, cada integrante tem procurado manter a harmonia, o compro-
metimento e a amizade que ensejam a existência do grupo.
Conclusões
A partir das análises efetuadas, algumas conclusões do estudo podem ser destacadas:
1) o coral como atividade de lazer em organizações, colocado, sob essa perspectiva,
em oposição ao trabalho, faz parte de uma preocupação das organizações com a
552
saúde mental de seus funcionários e colaboradores, bem como é oferecido à comu-
nidade como atividade sociocultural de extensão por instituições educativas como
as universidades; 2) há diversas conceituações de trabalho, sendo que sob uma pers-
pectiva meramente econômico-financeira apenas o canto coral profissional seria
caracterizado como trabalho; porém, adotando-se outras conceituações, pode-se
entender que há trabalho em qualquer atividade coral; 3) o aspecto que mais marca
o trabalho no canto coral é seu caráter coletivo, colaborativo e cooperativo, insti-
tuindo o coro como um paradigma de trabalho em equipe; 4) em coros, as relações
interpessoais costumam ser calorosas, horizontais, fundadas na solidariedade e na
emotividade; 5) as atividades de gestão de recursos humanos e materiais, de orga-
nização e planejamento têm foco no regente, principalmente em coros amadores,
em que o maestro é visto como o profissional responsável por tais tarefas e pelos
resultados obtidos pelo grupo.

1 Pode-se inferir, ainda, que após as etapas descritas por Dejours (1987), chegar-se-ia a uma
“sociedade fundada não mais no trabalho, mas no tempo vago”, segundo Domenico de Masi
(2000, p. 13).

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mide Vezzá. São Paulo: FTD, 1987.
Problemas Sociais do Adolescente
em Cumprimento de Medida Sócio-Educativa
que Interferem na Cognição Musical
José Fortunato Fernandes 555

jfortunatof@itelefonica.com.br
Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas

Resumo
Este artigo, adaptado de um dos capítulos da tese que estou desenvolvendo sobre edu-
cação musical de adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa, discute os
fatores sociais e psicológicos que podem interferir na cognição da educação musical
através do canto coral em uma classe de adolescentes em cumprimento de medida
sócio-educativa, como também as diversas causas do comportamento problemático que
pode surgir na sala de aula e sugere atitudes do educador musical ante tais comporta-
mentos. Aborda fatores relacionados à família, escola, trabalho e religião que levam o in-
divíduo ao conflito com a lei. Os fatores psicossociais são estudados com o objetivo de
delinear a relação entre o mundo interno do adolescente em cumprimento de medida
sócio-educativa e o externo, ou seja, sua psique e o mundo social. Os fatores relacio-
nados à família abordam o processo educativo, os maus tratos e a negligência na infân-
cia, a ruptura familiar e a indisponibilidade de recursos mínimos para a sobrevivência
(Gomide, 1990). Os fatores relacionados à baixa escolaridade do adolescente em cum-
primento de medida sócio-educativa estão submetidos aos fatos de pertencer a uma
classe social desprivilegiada, da incompatibilidade entre as aspirações e as chances reais
de mobilidade social promovidas pela escola, e de apresentarem diversos problemas de
aprendizagem (Bourdieu, 1983). Os fatores relacionados ao trabalho abordam a luta de
classes resultante do sistema político-econômico capitalista (Bauman, 2005). Os fatores
relacionados à religião abordam sua rejeição devido ao fato dos adolescentes em cum-
primento de medida sócio-educativa serem imediatistas e quando é aceita, tem uma fun-
ção político-social de prover um sentimento de dignidade de vida em um presente
material ou em um futuro espiritual (Bauman, 2005). Todos esses fatores são abordados
como facilitadores para a formação e produção do adolescente em conflito com a lei.
Diante desse quadro, o trabalho de educação musical através do canto coral como meio
de inclusão torna-se de extrema importância, tanto para o adolescente em cumprimento
de medida sócio-educativa quanto para a sociedade. Acreditamos que o preparo ade-
quado do educador musical para lidar com esses adolescentes facilitará a cognição mu-
sical e permitirá alcançar o objetivo maior, que é a sua inclusão na sociedade através da
música.

Introdução
Este artigo, adaptado de um dos capítulos da tese que estou desenvolvendo sobre
educação musical de adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa, dis-
cute os fatores sociais e psicológicos que podem interferir na cognição da educação
musical através do canto coral em uma classe de adolescentes em cumprimento de
medida sócio-educativa, como também as diversas causas do comportamento pro-
blemático que pode surgir na sala de aula e sugere atitudes do educador musical
556 ante tais comportamentos. Pode-se considerar que um adolescente em cumpri-
mento de medida sócio-educativa tenha esse comportamento devido a um con-
junto de fatores de natureza psicológica, sua condição familiar e social. Partindo
do princípio de que a delinquência é a violação da lei, ela não escolhe classe social.
Pressupõe-se que todos têm as mesmas oportunidades de conhecimento e interio-
rização de valores e normas sociais, e que todos estão sujeitos à advertência ou pu-
nição pela sua infração. A delinquência é comum na adolescência: “é de se supor,
portanto, que exista uma íntima relação entre desenvolvimento do adolescente e
comportamentos delinquentes” (Gomide, 1990, p. 33).
Os fatores psicossociais são estudados com o objetivo de delinear a relação entre o
mundo interno do adolescente em cumprimento de medida sócio-educativa e o ex-
terno, ou seja, sua psique e o mundo social. Os fatores relacionados à família abor-
dam o processo educativo, os maus tratos e a negligência na infância, a ruptura
familiar e a indisponibilidade de recursos mínimos para a sobrevivência (Gomide,
1990). Os fatores relacionados à baixa escolaridade do adolescente em cumpri-
mento de medida sócio-educativa estão submetidos aos fatos de pertencer a uma
classe social desprivilegiada, da incompatibilidade entre as aspirações e as chances
reais de mobilidade social promovidas pela escola, e de apresentarem diversos pro-
blemas de aprendizagem (Bourdieu, 1983). Os fatores relacionados ao trabalho
abordam a luta de classes resultante do sistema político-econômico capitalista (Bau-
man, 2005). Os fatores relacionados à religião abordam sua rejeição devido ao fato
dos adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa serem imediatistas e
quando é aceita, tem uma função político-social de prover um sentimento de dig-
nidade de vida em um presente material ou em um futuro espiritual (Bauman,
2005). Todos esses fatores são abordados como facilitadores para a formação e pro-
dução do adolescente em conflito com a lei.
Da mesma forma, todos esses fatores interferirão na cognição musical de adoles-
centes em cumprimento de medida sócio-educativa. Diante desse quadro, o traba-
lho de educação musical através do canto coral como meio de inclusão torna-se de
extrema importância, tanto para o adolescente em cumprimento de medida sócio-
educativa quanto para a sociedade. Acreditamos que o preparo adequado do edu-
cador musical para lidar com esses adolescentes facilitará a cognição musical e
permitirá alcançar o objetivo maior, que é a sua inclusão na sociedade através da
música. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, formulei a seguinte hipótese: a apli-
cação da educação musical aos adolescentes em cumprimento de medida sócio-edu-
cativa através do canto coral será mais eficiente como meio de inclusão se for
diferenciada ao se levar em conta os seguintes fatores: 1) Os fatores sócio-culturais
dos adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa devem ser do co-
nhecimento do educador musical para que o possível surgimento de problemas seja
contornado, pois podem surgir como obstáculos para o bom desenvolvimento da
aula; 2) As diversas reações comportamentais, sempre relacionadas à história do 557
adolescente, devem ser consideradas, compreendidas e contornadas durante as aulas
para que estas sejam prazerosas; 3) As referências musicais e as condições do apa-
relho fonador devem ser consideradas ao se escolher o repertório e ao se aplicar a
técnica vocal, pois os danos vocais e a falta de técnica podem levar à frustração de
uma má execução e consequentemente à baixa auto-estima, ao desinteresse e/ou à
desistência do curso; 4) O conteúdo teórico musical deve ser básico, relacionado aos
elementos musicais que surgem nas partituras utilizadas na aula, aplicado de forma
lúdica e sua exposição deve adequar-se ao tempo mínimo e máximo de permanên-
cia do adolescente em cumprimento de medida sócio-educativa.

A Família
A instituição familiar se enfraqueceu por diversos motivos: pauperização, arbitra-
riedades, drogas, álcool, violência, prostituição, abandono e rejeição dos filhos. As
boas condições das relações familiares são de grande importância, pois “[. . .] os com-
portamentos anti-sociais somente se desenvolvem se houver condições propícias
na família” (Gomide, 1990, p. 38). Aliada à pauperização — e esse motivo não jus-
tifica os atos infracionais de menores de classes abastadas, mas somente é válido
para elas quando são atingidas por algum tipo de instabilidade financeira —, o pro-
cesso educativo a que as crianças são submetidas no leito familiar desencadeiam
comportamentos anti-sociais. A disciplina relaxada pode levar à delinquência, assim
como também a punição inconsistente, pois ela não possibilita vir à consciência o
efeito das ações: “a punição inconsistente ou não-contingente interfere sobretudo
na percepção do indivíduo, prejudicando a sua avaliação no que se refere aos efei-
tos que suas ações tem sobre os outros e sobre o meio” (Gomide, 1990, p. 39). Nesse
sentido, a punição aplicada sem fins educativos — como extravasamento de um sen-
timento colérico, desacompanhada em seu contexto de qualquer tipo de afetivi-
dade — provocará um estado de carência que se refletirá na predisposição para atos
infracionais: “a ligação entre a carência e o crime é proporcionada pela assertiva de
que a carência prejudica fortemente a capacidade para constituir relações afetivas
com os outros, que podem, então, ser prejudicados sem remorso” (Gomide, 1990,
p. 39). As técnicas educativas serão eficientes se forem orientadas pelo amor de tal
forma que haja interiorização de valores morais: “[. . .] a aquisição e internalização
de valores morais e a socialização necessitam da mediação do afeto para serem ins-
taladas nos indivíduos [. . .]” (Gomide, 1990, p. 86). Para que essa interiorização
ocorra, é importante que haja uma proximidade entre o castigo e a transgressão e
que seja feita uma autocrítica após o ato. Os modelos mais comuns de agressivi-
dade na família são as brigas entre pais e a delinquência em um de seus membros,
mas para que o modelo seja imitado é preciso que tenha algum tipo de status rela-
cionado ao poder.
558 Os maus tratos e a negligência na infância também são determinantes do compor-
tamento em conflito com a lei. Quando a criança é submetida ao poder dos pais
através do sofrimento de maus tratos ou é negligenciada no que tange aos cuidados
que deve ter, a ação dos pais servirá de modelo e exercerá forte influência no com-
portamento dos filhos e os poderá levar à delinquência.
A família é o primeiro agente socializador, mas ao nos depararmos com as ações
que “desmancham no ar” as não tão sólidas instituições sociais, percebemos que
são ações niilistas na construção de uma nova ordem. Nessa nova ordem está em-
butida a problemática da ruptura familiar. Apesar da paixão pela mutabilidade, os
menores em situação de risco têm necessidade de terem vínculos duradouros, prin-
cipalmente no que tange aos laços familiares:
“Precisamos de relacionamentos, e de relacionamentos em que possamos servir
para alguma coisa, relacionamentos aos quais possamos referir-nos no intuito de
definirmos a nós mesmos. [. . .] precisamos deles, precisamos muito, e não ape-
nas pela preocupação moral com o bem-estar dos outros, mas para o nosso pró-
prio bem, pelo benefício da coesão e da lógica de nosso próprio ser” (Bauman,
2005, p.75).
Assim, percebemos que há um paradoxo no que diz respeito aos desejos de relacio-
namentos, mas o que sempre acaba imperando não é o cultivo longo e cuidadoso das
relações, mas o imediatismo na satisfação dos desejos e na solução de problemas
que está intimamente relacionado a um sentimento hedonista: o mais importante
é o prazer próprio sem se importar com os meios para consegui-lo, um sentimento
que não leva em consideração as consequências futuras dos atos: “as coisas devem
estar prontas para consumo imediato” (Bauman, 2005, p. 81).
Este tipo de reação do menor em situação de risco aos relacionamentos se dá devido
à visão que tem de família, pois os problemas relacionados a ela são vários: alguns
não têm nenhum contato com a família, outros não têm um dos genitores, outros
têm o pai alcoólatra ou inválido, e outros têm os pais muito severos. A separação da
família, independente de ter sido antes ou no momento da institucionalização, se
dá em meio a uma crise que desencadeia depressão, culpa, necessidade de reparação
ou castigo. O caráter histórico da relação do menor com sua família determinará as
causas da infração que o levou ao confinamento: o processo educacional violento e
a ausência de orientação e afeto permitem ao menor em situação de risco vislum-
brar a rua como alternativa para ter dinheiro e emoção. O perfil das famílias da
maioria dos menores em situação de risco é o seguinte: socialmente desorganizadas,
lares desfeitos, extrema pobreza. A indisponibilidade de recursos mínimos para a so-
brevivência é um dos fatores que levam à marginalização social e consequentemente
à delinquência. Outros motivos que podem levar à delinquência são: o abandono,
a orfandade, a dissolução familiar, a ausência do pai ou da mãe, o alcoolismo, o de-
semprego dos pais. A visão da família entre os menores em situação de risco é an-
tagônica, principalmente entre os que foram abandonados: alguns sentem 559
necessidade de descobrir ou reencontrar algum familiar para que ela seja preser-
vada (por apresentar uma necessidade de segurança e sentimento de pertenci-
mento); outros mostram uma visão negativa e completo desinteresse por ela no
momento de um possível reencontro. Preferem dizer-se órfãos a assumirem o aban-
dono. Apesar da visão negativa da família, os abandonados têm a necessidade de
saber que possuem uma para seu autoconhecimento. O desequilíbrio da presença
do pai e/ou da mãe na vida do menor em situação de risco pode “[. . .] tornar-se o
mais grave fator na desorganização da personalidade” (Erikson apud Campos, 1981,
p. 84). Há muitos motivos de revolta relacionados à família no interior do menor
em situação de risco, geralmente relacionados à sua dissolução e suas consequências.
A família torna-se um núcleo de problemas: padrasto, madrasta, alcoolismo, ocio-
sidade, miséria. O sentimento de culpa por não conseguir se adaptar aos familiares
produz uma necessidade de reparo material. Para alguns a família tem um valor
neutro: tanto faz estar junto ou separado dela. A visão da figura paterna é a de um
ausente. A figura idealizada do pai é de supridor de necessidades materiais, mas sem
nenhuma afetividade. A figura materna contém um paradoxo: ela é considerada ví-
tima da desestrutura familiar e ao mesmo tempo é rejeitadora, mas a rejeição ma-
terna é sempre justificada e racionalizada, apesar de alguns se sentirem preteridos
pela mãe em função de um padrasto. Assim, o conceito de família se resume em
mãe, irmãos e, às vezes, padrasto. O menor em situação de risco que sofreu aban-
dono encontra-se em um estado de alienação no qual “[. . .] compara-se a não estar
nem ‘aqui’ (instituição), nem ‘lá’ (família), e em não ter substituto possível para
ocupar um lugar que, sendo simultaneamente desejado e repelido, é sempre uma au-
sência (do pai) ou um conflito (por causa da mãe)” (Campos, 1981, p. 88). As mar-
cas da alienação são irreversíveis, pois o menor em situação de risco se sente
marginalizado mesmo depois de recuperado:
“Compreende-se que a saída da instituição não pode ser o estabelecimento de
um novo contrato social, e que se perpetue o estado de alienação. A socialização
alimenta o sentido alienador e adquire, para o Menor, uma significação ‘corre-
tiva’ (normalização), impedindo a produção de uma identidade pessoal dife-
renciada. Ele permanece sendo a ‘imagem que tem dos outros e a imagem que
os outros têm dele’, uma imagem da sua própria alienação” (Campos, 1981, p.
97).
São muitos os sentimentos que surgem no período de desligamento da instituição:
a fantasia do encontro com a família, idealização desse relacionamento e a frustra-
ção ao se conscientizar da realidade. Por esses motivos, há necessidade de preparar
a família para receber o menor em situação de risco. E ainda há a agravante de que
algumas famílias visitam poucas vezes os internos, outras nunca visitam. Essa atitude
pode ser justificada pelo fato de as instituições abarcarem menores de diversas re-
giões, mas se concentrarem nos grandes centros, o que dificulta o acesso dos fami-
560 liares, em sua maioria com pequeno poder aquisitivo. De qualquer forma, o
aparente desinteresse dos familiares pelo menor institucionalizado provoca um sen-
timento de abandono e revolta e faz com que alguns se mostrem resistentes em vol-
tar à convivência com a família.

A Escola
Normalmente a família do menor em situação de risco está inserida nos estratos
mais baixos da hierarquia social e apresenta baixo nível de escolaridade e qualifica-
ção profissional. Há alguns fatores que precisamos considerar ao analisarmos as ra-
zões do baixo nível de escolaridade entre os menores em situação de risco. Primeiro
é preciso considerar que existe um estereótipo de juventude associado à irrespon-
sabilidade, virilidade, virtude, violência, amor, além de estar classificada em uma
faixa etária. Mas, “[. . .] a idade é um dado biológico socialmente manipulado e ma-
nipulável; [. . .] o fato de falar dos jovens como se fossem uma unidade social, um
grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar estes interesses a uma
idade definida biologicamente já constitui uma manipulação evidente” (Bourdieu,
1983, p. 113). Nesse sentido, a juventude vai perdendo suas características con-
forme vai possuindo atributos dos adultos que estão relacionados ao ter poder: é a
submissão às leis específicas do envelhecimento. Encontramos, pois, duas juventu-
des: uma de classe social privilegiada e outra desprivilegiada, fato que proporcio-
nará diferentes experiências para as duas. Seria preciso analisar as diferenças entre
as duas juventudes no que diz respeito às condições de vida, pois de um lado temos
jovens que já trabalham e do outro, os que são apenas estudantes.
“De um lado, as coerções do universo econômico real, apenas atenuadas pela so-
lidariedade familiar; do outro, as facilidades de uma economia de assistidos
quasi-lúdica, fundada na subvenção, com alimentação e moradia e preços baixos,
entradas para teatro e cinema a preço reduzido, etc. Encontraríamos diferenças
análogas em todos os domínios da existência [. . .]” (Bourdieu, 1983, p. 113).
Mas a classe social desprivilegiada, que não permitia ao jovem desfrutar dessa fase
pela necessidade de assumir responsabilidades de uma pessoa adulta para poder so-
breviver, descobriu o status de ser adolescente no qual o indivíduo é meio criança
e meio adulto, ou nem criança e nem adulto, o que faz com que o jovem tenha uma
existência separada, como se estivesse “socialmente fora do jogo”. Durante a infân-
cia e a adolescência todas as atitudes e idéias de uma nova situação são transmitidas
e recebidas inconsciente e involuntariamente. O que é conscientemente aprendido
pertence a uma classe de problemas que necessita de reflexão. Mannheim diz que
“[. . .] no início da infância até mesmo muitos elementos reflexivos são assimilados
de maneira ‘não-problemática’ [. . .]. A possibilidade de que ele realmente questione
e reflita sobre as coisas surge apenas no ponto onde começa a experimentação pes-
soal com a vida — por volta dos 17 anos de idade [. . .]” (Mannheim, 1982, p. 82).
Por menor que seja o período da adolescência na vida do indivíduo, ele é importante
para que haja a experiência da ruptura com o mundo jovem para entrar no mundo 561
adulto. E o que acontece no mundo do menor em situação de risco é que essa rup-
tura normalmente acontece muito cedo pela necessidade de sobrevivência, pois ele
entra para o mundo adulto a partir do momento que encara os atos infracionais
como meio de ganhar dinheiro, ou seja, poder.
Por outro lado, a escola produz uma incompatibilidade das aspirações com as chan-
ces reais: “a escola [. . .] é também uma instituição que concede títulos, isto é, direi-
tos, e, ao mesmo tempo, confere aspirações. [. . .] seus complexos desdobramentos
[. . .] fazem as pessoas terem aspirações incompatíveis com suas chances reais”
(Bourdieu, 1983, p. 115). Houve uma época em que a escola era para poucos e real-
mente proporcionava a mobilidade social daqueles que a frequentavam e adqui-
riam seus títulos. Dessa forma ela alimentou o sonho da mobilidade social para
muitos da classe social desprivilegiada. Atualmente ela é para todos, mas não con-
segue realizar o sonho de todos que a frequentam.
“Ora, quando os filhos das classes populares não estavam no sistema, o sistema
não era o mesmo. Há a desvalorização pelo simples efeito da inflação e, ao
mesmo tempo, também pelo fato de se modificar a “qualidade social” dos de-
tentores dos títulos. Os efeitos da inflação escolar são mais complicados do que
se costuma dizer: devido ao fato de que os títulos sempre valem o que valem
seus detentores, um título que se torna mais freqüente torna-se por isso mesmo
desvalorizado, mas perde ainda mais seu valor por se torna [sic: tornar] acessí-
vel a pessoas sem “valor social” (Bourdieu, 1983, p. 116).
Assim, encontramos uma defasagem entre as aspirações e as oportunidades do
menor em situação de risco, causando decepção e recusa de seguir adiante com os
estudos formais, o que provoca um baixo nível de escolaridade entre eles.
A discriminação e rejeição de uma criança devido às suas dificuldades de aprendi-
zagem podem levá-la a rejeitar os valores do sistema educacional e social e a aderir
à delinquência. Por isso, o educador deve identificar no menor em situação de risco
distúrbios de aprendizagem: dislexia (dificuldade de leitura, inversão de sinais grá-
ficos), disfasia (dificuldade na comunicação verbal, na compreensão e expressão) e
hiperatividade (atividade motora não direcionada, excessiva impulsividade e desa-
tenção). Muitas dessas dificuldades têm sua origem na pobreza e poderiam ser so-
lucionadas se a escola tivesse um outro tipo de atitude face à ela. Por ter sido
idealizada para atender aos filhos da elite, o pobre não consegue se adaptar a ela e
vai gradativamente sendo eliminado numa espécie de “seleção natural”. A escola
não está preparada para o atendimento da criança pobre, pois esta é rejeitada por-
que tem dificuldades de aprendizagem. O programa de reabilitação do menor em
situação de risco deve levar em conta os problemas de aprendizagem e ser elabo-
rado de forma que se atinja o sucesso, pois a experiência do sucesso resgata a auto-
estima: “Expor o adolescente problema a uma situação na qual ele possa
experienciar o sucesso é um modo de se atingir o objetivo, por outro lado, expe-
562 rienciar outro fracasso somente servirá para agravar a percepção de incompetência
já instalada anteriormente” (Gomide, 1990, p. 46). O desligamento da escola fa-
vorece o engajamento ao grupo da rua. Assim, o rebaixamento da auto-estima na fa-
mília e na escola faz com que busque sua elevação através do desenvolvimento do
comportamento anti-social nas ruas. Esse tipo de comportamento interferirá dire-
tamente em sua relação com o trabalho.

O Trabalho
O individualismo ganhou uma importância exacerbada em detrimento da coleti-
vidade. O menor em situação de risco não se preocupa com os danos causados ao
outro, pois o que importa é a satisfação do seu desejo. Na impossibilidade de con-
seguir uma mobilidade social através das vias aprovadas pela sociedade, vale tudo
para adquirir as vantagens que ela proporcionaria. Dessa forma, a idéia de um
“mundo melhor” se encolhe diante de causas de grupos violentos e categorias desfa-
vorecidas. As classes privilegiadas da sociedade agem da mesma forma que os me-
nores em situação de risco ao se preocuparem unicamente com seu conforto e
sustentarem um descaso com a injustiça econômica e a consequente miséria hu-
mana. Em seu meio não faltam críticos sociais que renunciaram à sua tarefa, pois
não falam de dinheiro e limitam-se à defesa da batalha por reconhecimento. Se-
gundo Bauman (2005), a identidade só surge com a exposição a uma comunidade
de destino, que são aquelas com as quais se têm afinidades. Dentro desse contexto,
o menor em situação de risco constrói forçosamente uma identidade que é este-
reotipada e estigmatizada:
“Num dos polos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e
desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-
as no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária.
No outro polo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da
identidade, que não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final
se veem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros — identi-
dades de que eles próprios se ressentem, mas não têm permissão de abandonar
nem das quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam, humilham,
desumanizam, estigmatizam. . .” (Bauman, 2005, p. 44).
Tais identidades parecem ser maquinadas e impostas de modo que a identidade da
subclasse seja a ausência de identidade e dessa forma a subclasse tenha a vida hu-
mana anulada:
“Mas mesmo as pessoas a quem se negou o direito de adotar a identidade de sua
escolha (situação universalmente abominada e temida) ainda não pousaram nas
regiões inferiores da hierarquia de poder. Há ainda um espaço mais abjeto —
um espaço abaixo do fundo. Nele caem (ou melhor, são empurradas) as pessoas
que têm negado o direito de reivindicar uma identidade distinta da classificação
atribuída e imposta. [. . .] Se você foi destinado à subclasse (porque abandonou
a escola, é mãe solteira vivendo da previdência social, viciado ou ex-viciado em
drogas, sem-teto, mendigo ou membro de outras categorias arbitrariamente ex-
563
cluídas da lista oficial dos que são considerados adequados e admissíveis), qual-
quer outra identidade que você possa ambicionar ou lutar para obter lhe é
negada a priori. O significado da ‘identidade da subclasse’ é a ausência de iden-
tidade, a abolição ou negação da individualidade, do ‘rosto’ — esse objeto do
dever ético e da preocupação moral. Você é excluído do espaço social em que as
identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou re-
futadas” (Bauman, 2005, p. 45-46, grifos do autor).
Assim, a estrutura de classes atua como fator determinante da identidade. Há uma
produção globalizada de “lixo humano”, ou seja, pessoas rejeitadas e excluídas, mas
necessárias ao bom andamento do sistema capitalista, apesar de não fazerem parte
de nenhuma linha de produção. O fato de não fazerem parte da produção de capi-
tal faz com que o sistema capitalista somado à dominação política e militar provo-
quem a mudança da exploração para a exclusão:
“O ‘lixo humano’ tem sido despejado desde o início em todos os lugares nos quais
essa economia foi praticada. [. . .] a expansão da economia capitalista finalmente
se emparelhou com a amplitude global da dominação política e militar do Oci-
dente, e assim a produção de ‘pessoas rejeitadas’ se tornou um fenômeno mun-
dial. No presente estágio planetário, o ‘problema do capitalismo’, a disfunção
mais gritante e potencialmente explosiva da economia capitalista, está mudando
da exploração para a exclusão. É essa exclusão, mais do que a exploração apon-
tada por Marx um século e meio atrás, que hoje está na base dos casos mais evi-
dentes de polarização social, de aprofundamento da desigualdade e de aumento
do volume de pobreza, miséria e humilhação” (Bauman, 2005, p. 47).
Visto que, se por um lado o sistema econômico exclui essas pessoas, por outro o sis-
tema político precisa delas, pois se tornam objetos de promoção dele próprio. O
processo de inclusão se dá através da política social e é ela que pode sustentar uma
ideologia, talvez utópica, de que a sociedade se uniria para minimizar o problema
da miséria humana. Nesse sentido, a história dos menores em situação de risco pode
ser mudada, pois quando se trata da história de seres humanos dotados de racio-
nalidade e poder de decisão, ela não segue as leis inflexíveis da fatalidade. Mas alguns
motivos fazem com que a história do menor em situação de risco continue se de-
senvolvendo na criminalidade, a começar pela omissão do Estado: “indivíduos en-
frentando os desafios da vida e orientados a buscar soluções privadas para problemas
socialmente produzidos não podem esperar muita ajuda do Estado, cujos poderes
restritos não prometem muito — e garantem menos ainda” (Bauman, 2005, p. 51).
Além da omissão do Estado, encontramos uma elite que exclui para manter seu sta-
tus, pois uma classe dominante só subsiste onde existe uma classe dominada. A fa-
lência do sistema carcerário dentro das instituições que se comprometem com a re-
cuperação do menor em situação de risco é outro motivo que o mantém na crimi-
nalidade: “[. . .] o significado de ‘cidadania’ tem sido esvaziado de grande parte de
seus antigos conteúdos, fossem genuínos ou postulados, enquanto as instituições di-
564 rigidas ou endossadas pelo Estado que sustentavam a credibilidade desse signifi-
cado têm sido progressivamente desmanteladas” (Bauman, 2005, p. 51). A política
social tem sido ineficiente, muitas vezes boicotada pelos setores internos das insti-
tuições correcionais, favorecendo a continuidade do sistema repressor apoiado por
um sistema judiciário descomprometido com a solução do abandono e carência.
Enfim, a falta de apoio estatal faz com que o menor em situação de risco se empe-
nhe na busca pelo “caminho individual rumo à felicidade”: “eles têm sido repeti-
damente orientados a confiarem em suas próprias sagacidade [sic; sagacidades],
habilidades e em seu esforço sem esperar que a salvação venha do céu [. . .]” (Bau-
man, 2005, p. 52). A ilusão da mobilidade social faz com que usem meios escusos
para consegui-la, sendo enganados, tratados como objetos descartáveis, úteis por
pouco tempo: “feridos pela experiência do abandono, homens e mulheres desta
nossa época suspeitam ser peões no jogo de alguém, desprotegidos dos movimen-
tos feitos pelos grandes jogadores e facilmente renegados e destinados à pilha de
lixo quando estes acharem que eles não dão mais lucro” (Bauman, 2005, p. 53). Essa
é uma situação muito comum na máquina do tráfico de drogas.
É fato que as diferenças reproduzidas pela estrutura de classes são decorrentes do
sistema capitalista que privilegia uns em detrimento de outros. A maioria das crian-
ças brasileiras é pobre e essas crianças das classes populares necessitam garantir sua
sobrevivência desde cedo e são elas que são interpeladas pela polícia e pela justiça em
nome da sociedade. Tal desequilíbrio social chegou a um ponto em que a violência,
em seus mais diversos aspectos, tornou-se meio de sobrevivência. É consenso geral
que o bem-estar comum dependerá do esforço de todos: “todos nós dependemos
uns dos outros, e a única escolha que temos é entre garantir mutuamente a vulne-
rabilidade de todos e garantir mutuamente a nossa segurança comum” (Bauman,
2005, p. 95). O esforço de todos leva-nos a vislumbrar uma utopia: uma irmandade
mundial/global que luta pela homogeneização das identidades, logo, pela homo-
geneização das classes sociais.

A Religião
Esse mesmo imediatismo que não permite ao menor em situação de risco o cultivo
lento e duradouro de um projeto de vida que traga perspectivas futuras e que se re-
lacione à vida material também o impede de vislumbrar uma vida futura espiritual,
e, embora admire e respeite os praticantes de uma vida religiosa, o imediatismo os
leva a rejeitá-la: “as pontes que ligam a vida mortal à eternidade, laboriosamente
construídas durante milênios, caíram em desuso” (Bauman, 2005, p. 82). Por outro
lado, a religião assume o papel do Estado ao desempenhar a função político-social
de prover um sentimento de dignidade de vida em um presente material ou em um
futuro espiritual. A religião torna-se uma opção de resgate da cidadania: “certas va-
riedades de igrejas fundamentalistas são particularmente atraentes para a parcela
destituída e empobrecida da população, aqueles que são privados da dignidade hu- 565
mana e humilhados [. . .]. Essas congregações assumem obrigações e deveres aban-
donados por um Estado social em processo de encolhimento” (Bauman, 2005, p.
93).

Conclusão
O estudo do importante papel do processo de socialização para o ajustamento do
ser humano pode nos levar a entender a origem do comportamento delinquente. A
socialização pode ser entendida como o processo de formação da identidade e é
permeada por diversos fatores: social, cultural, político e econômico. Dentre esses
fatores, o político-econômico tem devastado inúmeras famílias. O sistema capita-
lista brasileiro favorece o desenvolvimento da marginalidade na população exce-
dente que é necessária à manutenção do sistema capitalista através do desemprego
e do subemprego. Mas não temos nas instituições correcionais apenas adolescentes
da classe desprivilegiada, pois mais do que o fator político-econômico, o sócio-cul-
tural tem atingido inúmeras pessoas sem levar em consideração sua condição de ri-
queza ou pobreza. Segundo Gomide (1990), várias pesquisas foram realizadas
apontando como uma das principais causas dos comportamentos anti-sociais os
problemas na relação com a vida familiar. A teoria que pretende explicar a relação
entre origem familiar e delinquência através de fatores psicossociais defende que as
condições inadequadas na família e fora dela originam a delinquência. O esfacela-
mento de instituições — tais como a família e a igreja — têm deixado marcas nega-
tivas na formação da identidade dos adolescentes em conflito com a lei. A
identidade se forma na história de vida do indivíduo sendo uma intersecção entre
o indivíduo e a estrutura social a que pertence. Os principais fatores culturais res-
ponsáveis pela origem da delinquência têm se manifestado através das técnicas edu-
cativas, da estrutura familiar e social, dos maus tratos ou da negligência, da cultura,
do sistema educacional e da baixa auto-estima. Todos esses fatores influenciam di-
retamente na cognição musical, de forma que não basta apenas o educador ter cons-
ciência desses fatores, mas é necessário demonstrar atitudes que reflitam seu
comprometimento com a educação musical do adolescente em cumprimento de
medida sócio-educativa de forma holística através da afetividade. A cognição mu-
sical na prática do canto coral ou de qualquer outra atividade musical, para adoles-
centes em cumprimento de medida sócio-educativa ou não, terá um
desenvolvimento mais eficaz a partir do momento em que o educador musical de-
monstrar um olhar mais humano ante seus alunos e buscar um desenvolvimento
mais humano dos mesmos.
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Música erudita e cognição social:
assim se cria um repertório universal
Eliana M. de A. Monteiro da Silva
ms.eliana@usp.br / ms_eliana@hotmail.com 567
ECA — Universidade de São Paulo

Resumo
Em seu livro Conversaciones sobre música, cultura e identidad, o compositor e musicó-
logo Coriún Aharonián chama atenção para a importância da cognição social na forma-
ção de conceitos (e preconceitos) que se transformaram em verdades históricas.
Considerando que a cognição social está associada à percepção do indivíduo do meio
em que vive e como esta influencia seu modo de aprender e desenvolver sua persona-
lidade, o autor responsabiliza o descuido “dos que nos dizemos interessados” pela exis-
tência de um sentimento de superioridade dos países ditos mais desenvolvidos — por
serem economicamente preponderantes — em relação às demais culturas.
Aharonián enfatiza a necessidade de uma crítica apurada por parte dos estudiosos e in-
telectuais, para que não passem despercebidos feitos culturais que contribuam com qual-
quer tipo de política excludente. E o presente trabalho apropria-se desta idéia para
denunciar outro tipo de preconceito que incidiu — e persiste até os dias de hoje, apesar
da menor intensidade — sobre o mercado de música erudita ocidental: a exclusão da
composição feminina em geral.
Tomando como exemplo a obra da compositora e pianista Clara Schumann, esquecida
por mais de um século após sua morte em 1896 apesar de sua contribuição para a con-
solidação do movimento romântico musical, pretende-se demonstrar como composito-
ras que participaram ativamente da construção da história da música ocidental foram
ignoradas pela mesma, deliberadamente. Um olhar analítico sobre as composições de
Clara Schumann demonstra como a compositora utilizou os mesmos elementos traba-
lhados por seus colegas no século XIX, tanto no que tange à ampliação dos limites da
forma, harmonia e rítmica, como nos gêneros abordados.
Após a doença mental que acometeu Robert Schumann levando-o à morte, Clara dei-
xou de compor para dedicar-se exclusivamente à carreira de concertista — que lhe pos-
sibilitava, além de divulgar a obra do marido, ganhar mais dinheiro para o sustento da
família. Devido ao pouco interesse que a história reservou à produção musical erudita de
mulheres, suas composições foram sendo esquecidas e Clara tornou-se conhecida do pú-
blico atual somente através das biografias de Robert Schumann, ou seja, como mulher
de compositor.
Demonstrando como as composições de Clara Schumann contribuíram para o processo
de transformação sofrido pela música ocidental no século XIX conhecido por Romantismo
(com dados obtidos através de análise musical realizada por mim durante a pesquisa de
Mestrado), e como este fato é pouco divulgado pelo mercado histórico e musical, este
trabalho propõe uma reflexão sobre a importância de se realizarem pesquisas sobre com-
posições de mulheres, sob o risco de se perder não só uma parte importante da história
das sociedades atuais, como também de se empobrecer culturalmente pela falta de troca
de experiências.
Introdução: Cultura e cognição social
Em seu livro Conversaciones sobre música, cultura e identidad, o compositor e mu-
sicólogo Coriún Aharonián observou que:
568 “Nem todo feito cultural tem conseqüências sociais palpáveis. Mas pode ser que
aquele feito cultural que deixamos passar com descuido, justo aquele, incida efe-
tivamente na comunidade. Ou que a soma de pequenas incidências de feitos
culturais aparentemente irrelevantes adquira uma dimensão histórica muito
grande. É por isso (e talvez só por isso) que os que nos dizemos interessados no
que acontece em nossa sociedade temos a obrigação de cultivar a capacidade de
auto crítica [. . .]”1
Quando se fala em feito cultural (ato, evento ou acontecimento) está-se debru-
çando sobre um território vasto, que pode incluir desde uma obra artística até o
movimento social que a ela deu origem; desde o aprendizado de um conjunto de sig-
nos que representam a cultura de um povo até o sistema que propicia este apren-
dizado; ou seja, tudo que envolve o conhecimento humano. E se por conhecimento
entende-se tanto a “informação ou noção adquiridas pelo estudo ou pela experiên-
cia” , como “consciência de si mesmo”, pode-se ter uma idéia da dimensão histórica
que certos feitos culturais adquiriram em determinados grupos — ou melhor, oca-
sionaram — devido à distração de muitos membros destas sociedades . . .
O atraso de muitos séculos no estudo e valorização da produção musical de com-
positores do sexo feminino se deve a um destes descuidos que incidiram efetiva-
mente nas comunidades do mundo ocidental.2 Pois durante muitos séculos foi
considerado senso comum a inépcia feminina para qualquer atividade intelectual,
o que incluía a composição musical.
Jean-Jacques Rousseau (1712-78) dizia que a natureza da mulher a obrigava a uma
atitude de complementação ao homem, “único a encarnar a essência da intelec-
tualidade”.3 E o músico Hans Von Büllow (1830-96), um século depois, afirmava
que não haveria jamais uma mulher compositora. “Acima de tudo — dizia — eu de-
testo isso que representa a emancipação feminina”.4
Sob este estigma de incompetência, não admira que as compositoras só começassem
a circular mais livremente pelos ambientes intelectuais a partir do século XX, ape-
sar de existirem registros de composições que datam da Idade Média.5
Ainda hoje, em pleno século XXI, a produção musical feminina não chega a figu-
rar em metade dos programas das salas de concerto do mundo ocidental . . .

O exílio das mulheres no âmbito da composição musical.


Pode-se atribuir a muitos fatores o atraso da entrada massiva do sexo feminino no
rol dos compositores eruditos. Mas é inquestionável o fato de que o modelo pa-
triarcal adotado pelas sociedades ocidentais definiu onde, como, quando e porque
as mulheres deveriam atuar. A esta realidade somou-se a de que a história da mú-
sica ocidental foi pesquisada e registrada por estudiosos do sexo masculino, cujos in-
teresses ignoraram totalmente a participação das mulheres em qualquer processo
musical relevante. Este quadro só começou a mudar quando o acesso às escolas e,
principalmente, às universidades, foi permitido e incentivado ao sexo feminino — 569
no século XX.
Mas a que se deve tal exílio? Qual a razão de tanta resistência? As respostas são vá-
rias. Comecemos por lembrar que a imagem mais difundida da mulher no ocidente
foi criada pela Igreja Católica: a Virgem Maria. Qualquer outro exemplo era visto
pela igreja como uma ameaça à vida espiritual, o que ocasionou a proibição feminina
nos coros e serviços religiosos abertos à comunidade. Ao apóstolo Paulo é atribuída
a frase “deixe suas mulheres em silêncio nas igrejas”.6 Também baseado na teoria
cristã, Rousseau afirmou que:
“A mulher é o modelo primordial da humanidade. Mas, perdido seu estado na-
tural, torna-se um ser artificial, falso, mundano. Para se regenerar, ela deve apren-
der a viver segundo sua verdadeira origem. A regeneração passa pelo retorno à
uma linguagem anterior à palavra e à idéia, capaz de traduzir o amor conjugal e
maternal.”7
As posições diferencialistas proclamadas por Rousseau foram sendo absorvidas e
modificadas por outros filósofos, culminando na criação do verbete relativo à mu-
lher na L’Enciclopédie francesa editada entre 1751 e 1772. O verbete atribuía à mu-
lher as seguintes qualidades: Femme — ser humano do sexo feminino sujeito a
doenças, detentor de órgãos marcados por uma fraqueza congênita, ossos menos
rígidos que os masculinos, caixa torácica estreita e andar cambaleante. Seu verda-
deiro destino resume-se à procriação e à ausência de toda atividade profissional ou
intelectual.8
Em vista deste panorama, fica claro como a cognição social foi se sedimentando e
formando cabeças ao longo dos séculos que antecederam as duas grandes guerras
mundiais que a humanidade conheceu. Esclarece também os critérios adotados pela
sociedade ocidental para escolher o repertório musical que viria a compor a mú-
sica clássica universal. Aharonián aponta que: “Não é casual, então, que o imperia-
lismo europeu burguês tenha feito o impossível para impor a sangue e fogo seus
modelos culturais, chamem estes cristianismo, Beethoven, rock’n’roll, coca-cola,
blue-jeans ou Shakespeare. Ou escala temperada, ou música ‘culta’ [. . .]”9
No que tange às mulheres, tal imposição significou o não reconhecimento quase
total de sua participação nas artes em geral, mas principalmente na criação musical.
Michelle Perrot atribui a este fato o princípio de que a música foi sempre conside-
rada a linguagem dos deuses, uma forma de criação do mundo. Por esta razão às
mulheres era permitido apenas copiar, reproduzir, interpretar — jamais compor.10
Clara Schumann
e a formação de uma mulher compositora
Embora tenha nascido no início do século XIX (1819), Clara Schumann (nascida
570 Clara Josephine Wieck) teve uma criação totalmente diferente da maioria das mu-
lheres de sua época. Não só por ter sido uma virtuosa do piano desde a mais tenra
idade, mas também pela educação musical primorosa que seu pai, o famoso pro-
fessor de piano Friedrich Wieck, lhe conferiu.
A infância de Clara foi um dos fatores decisivos em sua carreira musical: antes que
a menina completasse cinco anos sua mãe, Marianne Tromlitz, abandonou o lar
para se casar com outro músico, Adolph Bargiel. E Friedrich Wieck, abalado com
a situação, voltou-se para a educação dos filhos fazendo disso seu objetivo de vida.11
A menina Clara, mais talentosa e disciplinada que seus irmãos Alwin e Gustav, tor-
nou-se logo objeto de fascínio e dedicação do pai. Num tempo em que proliferou
a moda das crianças-prodígio na Europa, Wieck soube aproveitar o momento para
lançar a carreira de sua pequena pianista, propaganda viva de seu método revolu-
cionário de piano.
A formação religiosa protestante de Wieck também contribuiu para a história mu-
sical de Clara Schumann, já que a Reforma protestante espalhou pela Europa do
Norte e do Leste escolas para os dois sexos. “Ao fazer da leitura da Bíblia um ato e
uma obrigação de cada indivíduo, homem ou mulher, ela contribuiu para desen-
volver a instrução das meninas.”12
Aos onze anos Clara deu seu primeiro recital solo na Gewandhauss de Leipzig, ini-
ciando uma renomada carreira internacional que a acompanharia até a morte, aos
76 anos. Como era habitual, seu pai programava para seus recitais peças de cunho
virtuosístico — em que a menina mostrava sua técnica estarrecedora — ao lado de
obras de autoria da pianista. E o professor, que sabia distinguir uma obra séria das
demonstrações de malabarismo que dominavam a cena musical, trabalhou para que
as composições da filha fossem inovadoras e de conteúdo musical relevante pro-
porcionando à menina aulas de composição, harmonia e orquestração, com os me-
lhores professores da Europa.
Após a temporada de recitais, Wieck fazia publicar as peças de Clara, o que também
representava uma postura avançada para a época.13 Desta forma as composições de
Clara Schumann tiveram uma certa projeção, recebendo inclusive elogios de seus
colegas.

O casamento com Robert Schumann


Clara e Robert conviveram, sob a tutela de Friedrich Wieck, desde que o jovem
veio morar em Leipzig, em 1830, para estudar piano. Mas o relacionamento amo-
roso só se deu a partir de 1836. Apesar de ser aluno-residente de Wieck, este nunca
viu com bons olhos esta ligação. Pudera, aos 16 anos a jovem virtuosa enchia as pla-
téias dos teatros pela Europa afora, sendo honrada, inclusive com uma torta à la
Wieck nas confeitarias chiques de Viena. E seus ganhos financeiros, que se equipa-
ravam aos de Franz Liszt (com quem dividia o palco, ocasionalmente), pertenciam 571
legalmente ao seu pai até que ela se casasse.
A teimosia de Wieck fez com que a luta pelo amor conjugal terminasse nos tribu-
nais alemães, num processo que duraria quase 2 anos até que o casamento se desse,
às vésperas de Clara completar 21 anos. Como resultado, o pai enciumado não per-
mitiu que a filha levasse nem seu piano nem o dinheiro que este lhe rendera.
Em vista disso, a vida conjugal de Clara e Robert Schumann iniciou-se com difi-
culdades que, ao longo dos anos, só fizeram aumentar de gravidade e tamanho. Os
atributos de uma mulher casada, dona de casa e mãe de oito filhos fizeram com que
Clara se dedicasse cada vez menos à composição. A necessidade financeira, por
outro lado, impulsionava a artista a voltar aos palcos em turnês assim que cada nova
gravidez lhe permitia, restando-lhe pouco tempo para a criação de novas obras. Para
completar, uma terrível doença mental se abateu sobre Robert Schumann levando-
o à internação e morte num asilo em Endenich, em 1856.14 Depois destes aconte-
cimentos, Clara encerrou definitivamente a carreira de compositora, salvo por
algumas obras esparsas para dar de presente aos amigos.

As composições de Clara Schumann


e sua ligação com o movimento romântico.
Ao contrário do que se poderia supor, dados os exemplos históricos de Félix Men-
delssohn e Gustav Mahler (proibindo a irmã e a esposa de compor), Robert Schu-
mann era um grande entusiasta das composições de sua mulher. Nos anos de
casados, ele e Clara estudaram juntos todo o Cravo bem Temperado de Bach, di-
versas sonatas de Beethoven, Mozart, etc, atentando para os processos composi-
cionais destes mestres. Clara compôs sua primeira — e única — sonata para piano
para dar de presente ao marido no primeiro Natal de sua vida em comum. Presen-
tear-se um ao outro com composições era um procedimento comum ao casal nas
datas festivas.
Além do aspecto musical, o convívio com Schumann trouxe para a vida de Clara um
universo literário que a jovem não conhecia até então. Filho de um escritor, editor
e comerciante de livros, Robert Schumann fora criado tendo os clássicos da litera-
tura alemã ao alcance dos olhos. E nos passeios rotineiros recomendados pelo por
Wieck a ambos — para fortalecer os músculos e os nervos — Schumann contava a
Clara histórias de livros que, com o tempo, ela veio a apreciar. Assim formou-se
um intercâmbio de idéias culturais e musicais que sobrevivem em diversas compo-
sições de ambos.15
Mas foi principalmente a ousadia e o desejo de romper com as barreiras impostas
pelas formas e harmonias clássicas, que Clara absorveu da convivência com Schu-
mann e com seus colegas românticos. Ousadia que já era incentivada, diga-se de
passagem, por seu pai e professor visionário, Friedrich Wieck. Um breve panorama
572 de sua trajetória musical descreve como seu estilo foi se desenvolvendo ao longo de
seus 23 opus (e algumas peças soltas).
As composições de Clara Schumann trazem, desde as primeiras peças, aspectos ino-
vadores em relação à música ligeira e virtuosística que fazia sucesso na primeira me-
tade do século XIX. Suas Quatre polonoises pour le pianoforte Op. 1, por exemplo,
receberam críticas elogiando a qualidade das mesmas, porém, com ressalvas pelas
harmonias “um tanto forçadas, freqüentemente dissonantes demais.”16
De fato, suas composições são repletas de cromatismos e outros procedimentos har-
mônicos usados por seus colegas na luta por uma música inovadora, legítima e li-
berta da harmonia tradicional. Sobre elas Franz Liszt escreveu, em carta à condessa
d’Agoult: “Suas composições são realmente notáveis, especialmente para uma mu-
lher. Há nelas cem vezes mais espontaneidade e sinceridade de sentimento que em
todas as fantasias, antigas e atuais, de Thalberg”.17-18
O Romantismo de Clara Schumann
Não foi só em relação à harmonia que Clara Schumann se aproximou dos ideais
perseguidos pelos compositores românticos. A seguir estão relacionados os princi-
pais elementos composicionais trabalhados pela compositora em sua obra:
1) Extensão das composições:
Clara compôs, em sua maioria, peças curtas (Romances, Mazurcas, Noturnos, etc).
Mesmo quando compôs sob grandes formas, como sua Sonata em sol menor, Clara
fez movimentos relativamente curtos, com seções fragmentadas e idéias completas
nas subseções. A peça curta é típica do período romântico “[. . .] cuja urgência e in-
tensidade de expressão negam [ao artista] a possibilidade de expandir-se em ampla
e elaborada construção formal [. . .]”19
2) Ausência de função social das composições:
A emancipação da obra de arte musical, fruto da ascensão de uma burguesia con-
sumidora da produção do compositor autônomo, possibilitou ao artista romântico
expor seus conflitos e colocar as técnicas de composição a serviço da poética do seu
discurso. Criou-se a imagem do artista-gênio, compondo com o corpo e com a alma
para expressar suas idéias pessoais.
3) Forma:
Em relação à forma também Clara Schumann mostra-se à vontade para ousadias.
Neste setor, cito o primeiro movimento de sua Sonate für Klavier, em sol menor20,
em que a compositora insere uma cadência de concerto antes de encerrar a seção A
(exposição) e A’ (re-exposição).
4) uso de todos os elementos musicais (e não somente melodia e ritmo),
como fator de coerência ou de contraste entre as partes. Exemplos:
a) Melodia: O uso da melodia longa pelos compositores da primeira metade do sé-
culo XIX foi absorvido por Clara Schumann em suas composições. Tal recurso foi 573
amplamente utilizado por Chopin, cuja influência se faz sentir na obra de Clara
Schumann tanto neste quesito como nos gêneros por ela abordados: Mazurcas, Ba-
ladas, Noturnos, entre outros.
b) Harmonia: Clara Schumann fez uso de acordes conhecidos do sistema tonal
colocando-os em situações atípicas, de caráter ornamental, para dar cores diferen-
tes a certas passagens musicais. Em seu livro sobre procedimentos harmônicos que
influenciaram a música do século XX, por exemplo, Stephan Kostka traz trechos de
suas composições para ilustrar este procedimento típico do período romântico.21
c) Ritmo: Clara Schumann trabalha o ritmo e a métrica com a mesma liberdade
que seus colegas românticos. Na sua Tocattina Op. 6, por exemplo, a compositora
divide a primeira grande seção em três pequenas, de oito, dezenove e vinte com-
passos respectivamente, separados entre si por barras duplas. Procedimento seme-
lhante encontra-se na seção central do Drei Romanzen Op. 21 n. 3, mas sem as
barras duplas.22 O uso de figuras de maior valor para dar a sensação de rallentando
em determinados trechos de suas peças também é freqüente. Assim como os gru-
pos alterados e a polirritmia.
d) Som:23 A textura, a dinâmica e o timbre foram trabalhados pela compositora
em suas peças, de modo a dar uma configuração precisa de cada idéia, na frase ou na
seção a que corresponde. No Premier Concert pour le Piano-Forte Op. 7,24 por exem-
plo, Clara Schumann dedica um solo ao violoncelo no segundo movimento, mu-
dando o papel do piano de instrumento solista a acompanhador e valorizando o
timbre do violoncelo. A exploração destes elementos será cada vez mais constante
na música ocidental a partir do final do século XIX e início do século XX.

O adeus à composição e o esquecimento da obra de Clara Schumann


Clara poderia ter voltado a compor e a publicar suas obras depois da internação e
morte de Robert Schumann? Sim, se tivesse confiança em seu talento para tal e não
tivesse diante de si uma obra que realmente considerasse digna de divulgação, como
a do marido. A verdade é que, mesmo com o incentivo e a boa receptividade al-
cançada por suas composições, Clara Schumann nunca confiou em seu mérito com-
posicional. Em carta a Robert, Clara falava de suas inseguranças a este respeito:
“Houve um tempo em que acreditei ter um talento criador, mas desisti da idéia; uma
mulher não deve pretender compor — nenhuma até hoje o fez, por que eu seria
uma exceção? Eu seria arrogante de acreditar nisso, foi uma ilusão que só meu pai
certa vez me incutiu.”25
Em vez disso, a compositora dedicou todos os esforços a editar, publicar e divulgar
a obra de Robert Schumann. Auxiliada por Johannes Brahms26, compositor e
grande amigo do casal, Clara revisou peça por peça do marido e tirou de circulação
qualquer composição que, segundo os dois, poderia denegrir a imagem de Robert
574 associando-se à doença do mesmo.
A postura adotada por Clara Schumann como intérprete e como editora da obra
do marido foi uma importante contribuição para estabelecer o nome de Robert
Schumann como um dos grandes mestres da música erudita ocidental. Certas peças
do compositor teriam permanecido inéditas por muito mais tempo se não tives-
sem sido interpretadas por uma artista da estirpe de Clara, cuja carreira esteve sem-
pre no mais alto patamar da crítica especializada.
O Konzert-Fantasie em lá menor, dedicado por Robert a Clara — então sua noiva
— em 1839 é um exemplo deste fato. Nenhum editor havia aceitado o trabalho em
sua forma original, em um movimento. Em 1845 Robert retomou a obra, acres-
centou os dois outros movimentos e Clara estreou-o, no auge de sua carreira. Logo
após sua segunda apresentação a Breitkopf & Härtel decidiu publicá-lo. Se a obra
não tivesse sido interpretada por tão brilhante pianista, talvez seu destino fosse
outro.
E talvez se a compositora tivesse agido com a mesma determinação em relação à
sua própria obra, como em relação à sua Sonata em sol menor — que permaneceu
inédita até cem anos após sua morte — o destino da mesma também teria sido di-
ferente.

As composições de Clara Schumann cem anos após sua morte.


Na década de 1990, cem anos após o total desaparecimento de Clara Schumann
— vida e obra — algumas de suas peças foram editadas, como a Sonate für Klavier,
g-moll (1841-42, editada em 1991) e surgiram biografias sobre a artista. Com um
mercado erudito ocidental tão competitivo como o dos séculos XX e XXI, as co-
memorações de centenários de nascimento e morte em festivais e as homenagens
aos compositores tornaram-se uma estratégia de atrair público para as salas de con-
certo e para as lojas de livros, CDs e DVDs. E a descoberta de composições inédi-
tas ou pouco conhecidas significaram um mercado à parte, menos rentável que o das
obras tornadas populares pela exaustão, mas ainda assim significativo.
O centenário de morte da compositora Clara Schumann em 1996, por exemplo,
lançou uma luz à obra desta mulher tão marcante no cenário musical ocidental.
Marcante por sua imagem de mulher independente, profissional bem sucedida, in-
térprete de importantes obras românticas até então desconhecidas do grande pú-
blico e criadora de outras tantas, e determinante na formação do gosto musical
burguês, na medida em que conquistava o público por onde passava e sabia intro-
duzir em seus programas de recital obras densas e inovadoras em meio a outras mais
acessíveis ao público leigo.
Clara Schumann foi a responsável pela introdução da música de Chopin na Ale-
manha, tendo estreado e editado a maioria de suas peças. Além disso, foi a primeira
pianista a tocar a sonata Apassionata de Beethoven completa e de cor em Berlim. 575
Quanto à sua atuação como compositora, criou peças totalmente de acordo com o
movimento romântico que se desenvolvia então. No entanto, seu nome raramente
é citado entre os compositores que participaram da formação deste importante es-
tilo musical, o que denota que pouca coisa mudou em relação à idéia de que a mu-
lher pode reproduzir, mas jamais criar obras de arte.
A compositora Clara Schumann somente foi registrada, incentivada por seu cen-
tenário de morte, em biografias sobre a artista — que não são muitas. Em portu-
guês, o único livro publicado sobre Clara até o momento é uma biografia de autoria
de Catherine Lépront27, e não aborda suas composições musicais.
O livro Música Clássica é um dos poucos que incluem Clara Schumann e Fanny
Mendelssohn entre os compositores românticos, dedicando-lhes a página inteira,
no caso de Clara, e meia, no de Fanny. Mas ao referir-se às obras, o editor diz que
“as melhores obras de Clara mostram imaginação e apuro, mas falta-lhe individua-
lidade melódica”. Quanto a Fanny Mendelssohn, diz que “reviver sua música é di-
fícil, pois seus manuscritos acham-se em coleções particulares”.28 Às duas opiniões
faltam embasamentos que incluem atualização das informações, pois já existem
muitas peças de Fanny editadas e comercializadas e a individualidade melódica de
Clara é tão restrita quanto a de seus colegas, influenciados pelas idéias que pairavam
no ar em seu tempo.
Pese-se a isso o fato de que certas iniciativas da compositora foram ignoradas pelos
musicólogos ou atribuídas a outros compositores. Este é o caso do solo de violon-
celo do 2º movimento do concerto Op. 7 de Clara Schumann, escrito em 1835 e in-
corporado por Robert Schumann no Intermezzo de seu Concerto para piano Op.
54 (1845) e por Brahms no Concerto para piano Op. 83 (1882). Peter Ostwald29
sugere que o solo seja resultado da orquestração de Robert Schumann para o con-
certo de Clara, já que o mesmo havia orquestrado o primeiro movimento escrito
pela compositora em 1832 e que se tornaria o 3º da obra completa. Porém, uma
carta escrita por Clara Schumann a Emilie List em 1835 atesta sua autoria: “Meu
concerto está terminado. O Adágio é tocado sem orquestra e somente com um solo
de cello obbligato. Acho que funcionou muito bem”.30

Considerações Pontuais (esperando que não sejam finais, pois o


assunto está longe de ser esgotado. . .)
Concluindo, as composições de Clara Schumann atestam o profundo conheci-
mento que ela possuía acerca do material de que dispunha, desde os instrumentos
(o piano, especialmente) até os elementos do som. O que não chega a causar estra-
nhamento, já que a compositora foi criada tendo alguns dos maiores músicos da
história da música ocidental como amigos que freqüentavam sua residência.31
576 O fato da música de Clara Schumann discutir as mesmas questões e problemas pro-
postos por seus colegas compositores aponta para a participação de mulheres nas
transformações sofridas pela música ocidental com o passar dos séculos. Participa-
ção que vem sendo desprezada pela maioria dos historiadores do assunto.
Em seu livro O livro feminista de 1715: o primeiro grito revolucionário, Fina D’Ar-
mada diz que os primeiros ventos do passado espalharam que “os homens tinham
construído o mundo sozinhos, enquanto as mulheres estiveram sentadas a ver.”
Poder-se-ia acrescentar que os mesmos ventos espalharam que os compositores cria-
ram a música erudita ocidental sozinhos, enquanto as compositoras estiveram sen-
tadas a ouvir.
É certo que a participação das mulheres foi em proporção infinitamente menor do
que a dos homens, pela própria dificuldade das mesmas em ter acesso à instrução e
ao saber (lembrando que as primeiras escolas primárias para meninas surgiram, na
França, em 1880 e a secundária, somente em 1900). Mas esta participação existiu
e a prova disto reside em composições esparsas, esquecidas pelo mercado musical e
até pelos próprios pesquisadores pela convicção sedimentada através dos séculos
de que não eram dignas de esforços para resgatá-las.
Clara Schumann é uma entre tantas compositoras importantes que permanecem no
ostracismo devido a um preconceito social com raízes históricas. E, logicamente,
não só as mulheres foram ignoradas pelo mercado fonográfico e de concertos do
mundo ocidental.
Em sua pesquisa sobre mulheres compositoras na América Latina, Graciela Paras-
kevaídis aponta que os compositores latino-americanos passam pelas mesmas difi-
culdades que as mulheres para divulgar e alcançar reconhecimento a nível
internacional. 35 Os processos de cognição social neste caso têm outras fontes, igual-
mente poderosas.
A mídia impressa e eletrônica, os eventos culturais públicos e os mecanismos de di-
vulgação sonora existentes estão a serviço da sociedade e são por ela conduzidos.
Por isso é tão importante que se saiba que o descuido destas fontes pode trazer con-
seqüências que demandam muito tempo para reverter. Grande parcela da respon-
sabilidade cabe a nós, pesquisadores, músicos e seres sociais ativos, fixando na
memória as palavras que iniciaram este trabalho, ditas por Coriún Aharonián:
“É por isso (e talvez só por isso) que os que nos dizemos interessados no que acon-
tece em nossa sociedade temos a obrigação de cultivar a capacidade de auto crí-
tica [. . .]”
1 Coriún Aharonián, Conversaciones sobre música, cultura e identidad (Montevideo: Edi-
ciones Tacuabé, 2005). Esta e as outras traduções foram realizadas pela autora deste traba-
lho.
2 Roswitha Sperber (1996, 7) afirma que as mulheres começaram a buscar indícios de sua pró-
pria história após o primeiro movimento feminista de 1920, e de maneira mais eficaz a par- 577
tir da década de 1970. Antes disso, a história da música escrita por homens sobre homens
ignorou qualquer participação feminina.
3 Elisabeth Roudinesco e Michel Manassein, prefácio a De l’égalité des sexes, dir. Michel Ma-
nassein (Paris : Centre National de Documentation Pedagogique, 1995), 12.
4 Françoise Escal e Jacqueline Rousseau-Dujardin, ‘’Musique et différence des sexes’’. In : Bri-
gitte François-Sappey, Clara Schumann : l’œuvre et l’amour d’une femme (Genève : Editions
Papillon, 2001-2004), 75.
5 Ordo virtutum, de Hildegard of Bingen, é o registro mais antigo que se tem de composição
feminina e data de 1150. Roswitha Sperber, Women composers in Germany, trad. Timothy
Nevill (Bonn: Inter Nationes, 1996), 12-14.
6 Nanny Drechsler, “Condemned to Silence?”. In: Roswitha Sperber, Op. Cit.,10.
7 Elisabeth Roudinesco e Michel Manassein, Op. Cit., 11-12.
8 Ibid., 12.
9 Coriún Aharonián, Op. Cit., 21. Grifos do autor.
10 Michelle Perrot, Minha história das mulheres, trad. Angela Côrrea (São Paulo: Contexto,
2007), 101.
11 Como Marianne abandonou o lar ela só teve direito de levar consigo o filho mais novo,
Victor, que tinha três meses.
12 Michelle Perrot, Op. Cit., 91.
13 A apresentação de crianças prodígio — de ambos os sexos — era comum no tempo de
Clara Schumann, mas não a publicação de obras de mulheres.
14 Para maiores informações sobre a vida de Robert Schumann, consultar: A. Zani Netto,
“Florestan e Eusebius: por que?” (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1988).
15 Para maiores informações sobre o assunto, consultar E. Monteiro da Silva, Clara Schu-
mann: compositora x mulher de compositor (Dissertação de Mestrado, Universidade de
São Paulo, 2008).
16 Nancy Reich, Clara Schumann: the artist and the woman (Ithaca: Cornell University
Press, 2001), 213.
17 Ibid, 195.
18 Liszt transcreveu três canções de Clara para piano solo: Op. 12 nº 3, Op. 13 nº 5 e Op. 23
nº 3. Sigismund Thalberg (1812-71), a quem ele se refere na citação, foi pianista virtuoso
aclamado pelo público. Em seus concertos constavam peças de sua autoria.
19 Renato Di Benedetto, Romanticismo e scuole nazionali nell’Ottocento (Torino: Edizioni
di Torino, 1982), 38.
20 Clara Schumann, Sonate g-moll für klavier (Wiesbaden : Breitkopf & Härtel, 1991).
21 Stephan Kostka, Tonal harmony: with an introduction to twentieth-century music (Nova
Iorque: The McGraw-Hill Companies Inc., 2000).
22 Tanto a Tocattina como o romance citado encontram-se no álbum Clara Wieck-Schu-
mann, Augewählte Klavierwerke (München: G. Henle Verlag, 1987).
578 23 Neste contexto, o termo Som inclui as considerações acerca do Timbre, Dinâmica e Tex-
tura (cf: White, 1994, p. 232).
24 Clara Schumann, Konzert für Klavier und orchester, a-moll Op. 7 (Wiesbaden: Breitkopf
& Hartel, 1993).
25 Blandine Charvin, Clara Schumann (1819-1896) : voyages en France (Paris: L’Harmattan,
2005), 47.
26 Brahms surgiu na vida dos Schumann em 1853 e tornou-se amigo inseparável de ambos.
Após a internação de Robert Schumann, Brahms deu suporte à Clara e aos filhos, além de
nunca deixar de visitar e suprir as necessidades do compositor internado. Ele e Clara tiveram
uma relação amorosa (platônica, segundo Nancy Reich) que vem sendo esmiuçada e co-
mentada por muitos historiadores da música.
27 Catherine Lepront, Clara Schumann, trad. Eduardo Brandão (São Paulo: Martins Fon-
tes Editora, 1990).
28 John Burrows, Música clássica, trad. André Telles (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007),
173 e 204.
29 Peter Ostwald, Schumann: the inner voices of a musical genius (Boston: Northeastern Uni-
versity Press, 1985), 240.
30 Nancy Reich, Op. Cit., 297.
31 Tanto na casa do Grande Lírio (como era chamada a residência dos Wieck quando Clara
era criança) como na residência do casal Schumann, eram comuns as reuniões de músicos
para tocar, ensaiar e conversar sobre música. Félix Mendelssohn, Frederick Chopin, Franz
Liszt, Joseph Joachim e Johannes Brahms são alguns dos nomes que por lá passaram.
G. PAraskevaídis, “La mujer como creadora de bienes musicales en América Latina: una do-
cumentación”. (Trabalho de pesquisa, Escuela Universitária de Música de Montevideo,
1989).

Referências
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Zani Netto, A. Florestan e Eusebius: por que? Tese de Doutorado, Universidade de São
Paulo, 1988.
Identidades sociomusicais na Canja de Viola em Curitiba
Grace Filipak Torres
gracetorres@uol.com.br
580 Departamento de Artes — UEPG

Resumo
Este artigo discute parte da revisão de literatura e dos dados coletados para um estudo
de caso sobre a Canja de Viola, encontro de prática musical que ocorre em Curitiba. A
partir da teoria das Comunidades de Prática de Etienne Wenger e alguns trabalhos de Joan
Russell que relacionam esta teoria às práticas musicais, foi possível descrever o objeto
de estudo como uma comunidade de prática musical. A pesquisa tratou do fazer musi-
cal de um grupo que não convive cotidianamente por morarem em lugares distantes uns
dos outros. Semanalmente, encontram-se e compartilham um fazer musical, numa co-
munidade cujos membros têm relações de identificação sócio-cultural, cultivadas pela
prática musical. O `local` dessa comunidade, portanto, é também simbólico, nos encon-
tros musicais propriamente ditos. As comunidades de prática são formadas por pessoas
interessadas em um processo de aprendizagem coletiva compartilhada em um domínio
do esforço humano. O domínio identifica a comunidade pelos interesses e competên-
cias, distinguindo seus membros de outras pessoas e comunidades. Em busca dos inte-
resses no seu domínio, os membros engajam-se em atividades conjuntas e discussões,
ajudam-se mutuamente e compartilham informações. A questão central da pesquisa rea-
lizada foi identificar quais as experiências comuns aos freqüentadores da Canja de Viola,
a partir de três categorias de análise relacionadas a identidades, práticas e construção
dos saberes musicais. Neste artigo a discussão se faz principalmente em torno da cate-
goria das identidades sociomusicais relacionadas a processos de cognição social, capa-
zes de moldar comportamentos e escolhas dos participantes da comunidade. Wenger
parte da noção da formação de identidades como processos de identificação com cer-
tas práticas sociais e habilidades de negociar e moldar significados produzidos no con-
texto dessas comunidades. Através de um trabalho em campo com observação
participante e entrevistas, foi possível descrever comportamentos comuns, crenças e
tradições que foram fundamentais para o desenvolvimento musical desses indivíduos.
Palavras-chave
Práticas musicais; Práticas sociais; Identidades; Comunidade de prática musical

Introdução
Ai, a viola me conhece
Que eu não posso cantar só.
Ai, se sozinho canto bem,
Junto, eu canto mió.
“Padecimento” — moda de Carreirinho, in Sant’Anna 2000, 220.
A Canja de Viola é um evento dedicado à música popular sertaneja em que deze-
nas de pessoas cultivam suas práticas musicais em encontros semanais, na cidade
de Curitiba (PR). Apesar desse evento ser de acesso livre a qualquer cidadão que
queira desfrutar de uma tarde musical, há um núcleo importante de freqüentado-
res, tanto de praticantes de música quanto de público, que se relacionam motiva-
dos por interesses musicais em vários níveis, o que despertou meu interesse e me fez 581
defini-la como objeto para um estudo de caso envolvendo observação participante,
procedimento que me daria condições apropriadas para buscar tanto elementos
que caracterizam a unidade e identidade deste grupo. Para tanto, busquei dialogar
com autores que tratassem dos temas das identidades, de comunidades e de apren-
dizagem, a fim de construir uma base teórica satisfatória para desenvolver uma dis-
sertação de mestrado. Com este processo em andamento, tive o privilégio de me
relacionar diretamente com a pesquisadora Joan Russell em 2007, o que iluminou
o caminho da pesquisa. Através desse contato, tomei conhecimento do conceito
de ‘comunidades de prática musical’, o qual, na sua formulação teórica, abarca jus-
tamente os temas que eu havia identificado como importantes em relação ao objeto
de estudo: aprendizagem, identidades e comunidade.
O conceito de ‘comunidades de prática’, foi formulado a partir de um estudo sobre
‘aprendizagem situada’, publicado pelo pesquisador e teórico organizacional Etienne
Wenger e a antropóloga Jean Lave (1991) e desenvolvido posteriormente por Wen-
ger (1998a), integrando um esquema conceitual mais amplo, uma teoria social da
aprendizagem. Em poucas palavras, é possível dizer que “comunidades de prática
são grupos que compartilham um interesse ou uma paixão por algo que fazem e
aprendem como fazê-lo ainda melhor à medida que interagem regularmente”1
(Wenger 2007, 1, tradução nossa). Em sua teoria, Wenger (1998a) mostra que a
aprendizagem é um fenômeno essencialmente social, que faz parte de nosso dia-a-
dia na interação com outros que compartilham interesses em e identificações com
um domínio do conhecimento. Em Russell (2002; 2006) encontramos este con-
ceito expandido para ‘comunidades de prática musical’, o que se mostrou muito
apropriado para o embasamento teórico e desenvolvimento da investigação do con-
texto desses encontros. A abordagem desse fazer musical dos freqüentadores da
Canja de Viola incluiu, portanto, uma reflexão sobre identidades sociomusicais
nessa comunidade de prática, recorte do trabalho destacado neste artigo.
A questão que orientou a pesquisa buscava saber que experiências comuns estão
envolvidas no fazer musical dos participantes da Canja de Viola. Isso incluía, entre
outras problematizações, buscar em que medida a Canja de Viola está relacionada
às identidades sociomusicais de seus freqüentadores e aos seus saberes musicais.
Assim, procurei observar e analisar práticas musicais de um grupo adulto, que vive
em uma metrópole e não convive cotidianamente por habitarem em lugares diver-
sos da cidade ou na região metropolitana. Aos domingos, no TUC2, assiduamente
se encontram e compartilham um fazer musical, numa comunidade cujos mem-
bros têm relações de identificação social, cognitiva (no domínio da música) e cul-
tural, reveladas e cultivadas na prática musical que ali ocorre. O `local` dessa co-
munidade, portanto, não é apenas geográfico: é também simbólico, nos encontros
musicais propriamente ditos.
582
O contexto da Canja de Viola
A Canja de Viola é um tradicional encontro semanal de violeiros3 e apreciadores de
música sertaneja que acontece em Curitiba há mais de vinte anos. Realizado roti-
neiramente no minúsculo TUC, no centro da capital paranaense, a Canja de Viola
tem formato de mini programa de auditório, com um animador de palco que coor-
dena as apresentações musicais de violeiros, cantores em duplas4 ou solistas, sanfo-
neiros, trovadores5 e outros fazedores de música todos os domingos à tarde. Ali eles
mostram um pouco das canções, toques de viola e ponteados que cultivam.
O espaço onde ocorre a Canja de Viola quase sempre conta com casa cheia e, in-
tencionalmente, é aberto e democrático, aceitando desde aprendizes ou amadores
até profissionais da música em seu pequeno palco.
Tudo isso começou em 1986, por iniciativa de Paquito Modesto6, que a partir de
encontros que aconteciam em um Centro Comunitário, fundou a Canja de Viola
com a intenção de dar espaço aos trabalhadores que quisessem desenvolver uma
prática musical ligada ao universo sertanejo:
Iniciado modestamente no antigo pavilhão comunitário da Avenida Visconde
de Guarapuava (. . .) e, finalmente (. . .), implantado no Teatro Universitário, a
Canja de Viola tem sido o mais democrático e aberto espaço para violeiros da ci-
dade — solos, duplas, trios e mesmo grupos maiores. Todos os domingos, a par-
tir das 15 horas, gente do povo que faz sua música [espontânea] encontra-se no
asfixiante espaço do TUC, na galeria Júlio Moreira, para ali mostrar canções
simples, [espontâneas] — que independente de apreciações estéticas são signifi-
cativas como comunicação popular. (Millarch 1992).
Paquito Modesto deu continuidade ao seu projeto até o ano de 2004, quando fa-
leceu. Porém, a Canja é tão significativa que o evento se mantém até hoje pela von-
tade dos freqüentadores.
A partir desses encontros semanais no TUC, muitos dos freqüentadores da Canja
tiveram oportunidade de se aperfeiçoar musicalmente e alguns até chegaram a se
profissionalizar, de acordo com os participantes e dados da Fundação Cultural de
Curitiba:7 “centenas de duplas e cantores populares passaram pelo palco do TUC,
muitos iniciando ali uma carreira de sucesso”.8 Tal afirmação sugere que a Canja de
Viola pode mesmo ser um espaço de aperfeiçoamento musical e profissionalização,
gerador de oportunidades, confirmado por Millarch:
Identificado aos artistas anônimos, amadores que fazem música com todo en-
tusiasmo, encontrou no Canja de Viola uma forma de valorizar cantores, com-
positores e instrumentistas que, uma vez por semana, nas tardes de domingo,
tem seus momentos de glória. Entre as duplas que saíram do Canja de Viola
para trilhar caminhos profissionais está Teleu e Sanvita, hoje radicados em São
Paulo — e preparando um primeiro LP — lembrados por Paquito para serem
convidados especiais de amanhã a tarde. (Millarch 1992)
583
A Canja de Viola é um espaço em que é digno de destaque o respeito, generosidade
e paciência com que os mais experientes, os “veteranos” na música assistem às apre-
sentações dos iniciantes e amadores. O apresentador também participa das perfor-
mances musicais, ora suprindo a falta do parceiro de alguém para cantar, ora fazendo
trovas improvisadas com rimas fixas, em desafio com outro. Dito isto, é possível
deduzir que a qualidade das performances varia muito. Porém o que é notável é a prá-
tica musical sempre colaborativa imersa nesse ambiente comunitário.
Quem freqüenta a Canja de Viola pode estar interessado tanto no encontro de ami-
gos e no entretenimento proporcionado por essas tardes de apresentações musicais
quanto no desejo de aprender ou aperfeiçoar seu desempenho musical — seja no
canto ou no instrumento — ao vivo e em público, tendo como prática constante a
performance.
A revisão de literatura que segue aprofunda elementos relacionados ao fazer musi-
cal na Canja de Viola, onde desenvolvem-se práticas no universo da música popu-
lar brasileira, notadamente a chamada de sertaneja no contexto do grupo em estudo.

Identidades, Comunidades
De acordo com a abordagem contextual, não existe definição de identidade em
si mesma. Os processos identitários não existem fora de contexto, são sempre re-
lativos a algo específico que está em jogo (Agier 2001, p. 9).
A citação acima descreve sucintamente como é complexo tentar conceituar iden-
tidade. Wenger (1998a), em sua teoria, parte da noção da formação de identidades
como processos de identificação com certas práticas sociais e as habilidades de ne-
gociar e moldar significados produzidos no contexto das comunidades. Em conso-
nância com este pensamento, que mostra que a relação de pertencimento ou
não-pertencimento a um grupo ou comunidade acaba por influenciar a constru-
ção de identidades, temos Hall (2006) e também Agier (2001, p. 10), que diz que
“a identidade remete, portanto, a um alhures, a um antes e aos outros”. Explicando
de outro modo, pode-se retornar a Lave & Wenger (1991, p. 3), que afirmam: “A
nossa própria identidade da individualidade é uma questão de pertencimento.”
(Tradução nossa).9
Com relação a esta discussão sobre identidades, fundamental para diversos pensa-
dores, Warnier (2003, p. 16) explica: “A noção de identidade encontra um sucesso
crescente no campo das ciências sociais desde a década de 1970”, com diversas de-
finições. O autor entende que “a identidade é definida como o conjunto de reper-
tórios de ação, de língua e de cultura que permitem a uma pessoa reconhecer sua
vinculação a certo grupo social e identificar-se com ele”. (Ibid., p. 16-17).
A globalização, a partir dos fenômenos de hibridação cultural decorrentes da veloz
urbanização do planeta, de diversas maneiras fragmentou identidades de pequenos
584 grupos (como, por exemplo, grupos de imigrantes e refugiados) (Canclini 2003a),
porém, a necessidade de uma identidade sociocultural consistente em seus contor-
nos permanece no ser humano. Essas idéias estão presentes em trabalhos de auto-
res relevantes nos estudos culturais como Hall (2006), que descreve o reforço a
identidades ‘locais’ ou particularistas como uma das possíveis conseqüências da glo-
balização sobre as identidades culturais. Com isso, as identidades movimentam-se
e transformam-se, por mais que o homem deseje significações estáticas e seguras.
Assim, como dizem Canclini (2003b) e Hall (2006) preservam-se, criam-se, ima-
ginam-se identidades para que os grupos sociais não fiquem sem essa referência co-
letiva: a noção de pertencimento a uma comunidade identitária, que se diferencia
em algum nível da temida homogeneização que supostamente seria provocada pela
globalização. Talvez também por conta dessas moldagens comportamentais que se
impõem a tantos grupos é que a cognição social tenha ganhado terreno e dialogado
cada vez mais com outras áreas do conhecimento.
Sawaia (1999) desenvolve a idéia de comunidade como “bons encontros”, que en-
volvem associação e identidades comuns, ou seja, a comunidade é vista como ética
e estética da existência, em tempos de profunda estetização do estilo de vida. A re-
flexão de Sawaia é mediada pelo conceito de identificações em curso, conceito pre-
sente também em Hall (2006), já que nas sociedades complexas como as das
metrópoles as comunidades são desterritorializadas, constituindo-se pela identi-
dade, ao mesmo tempo permanente e em transformação, num par dialético. Neste
aspecto a autora tem seu pensamento em consonância ainda com Warnier:
No campo político das relações de poder, os grupos podem fornecer uma iden-
tidade aos indivíduos. (. . .) seria talvez mais pertinente falar-se de identificação
ao invés de identidade, e que a identificação é contextual e flutuante. No qua-
dro da globalização da cultura, um mesmo indivíduo pode assumir identificações
múltiplas que mobilizam diferentes elementos de língua, de cultura, de religião,
em função do contexto. (2003, p. 17).
A concepção de comunidade identitária vista deste modo dinâmico é relevante para
esta pesquisa, uma vez que os freqüentadores da Canja de Viola cultivam música ser-
taneja numa metrópole, morando todos em lugares distantes uns dos outros, mas
que encontram local e oportunidade para exercer plenamente suas identidades
(e/ou identificações) musicais e de pertencer, pelo menos no contexto do evento, à
“família sertaneja”, sempre evocada pelo apresentador do evento. Importante res-
saltar aqui que as identidades desta comunidade não se integram apenas pela mú-
sica, que é o mais importante, mas é um dos diversos ingredientes culturais que
compõem o ‘universo sertanejo’:
A cidade multiplica os encontros de indivíduos que trazem consigo seus per-
tencimentos étnicos, suas origens regionais ou suas redes de relações familiares
ou extra-familiares. Na cidade, mais que em outra parte, desenvolvem-se, na prá-
tica, os relacionamentos entre identidades, e na teoria, a dimensão relacional da
identidade. Por sua vez, esses relacionamentos “trabalham”, alterando ou mo-
dificando, os referentes dos pertencimentos originais (étnicos, regionais, fac-
585
cionais etc.). Essa transformação atinge os códigos de conduta, as regras da vida
social, os valores morais, até mesmo as línguas, a educação e outras formas cul-
turais que orientam a existência de cada um no mundo. (Agier 2001, p. 9).
A chamada ‘cognição social interacionalmente situada’ é uma perspectiva que
procura ver a cognição como uma parte da ação conjunta — o tipo de atividade
em que nos engajamos diariamente, quando falamos com nossos vizinhos, con-
versamos ao telefone, assistimos ou ministramos aula, etc. O que acontece in-
ternamente em nossa mente é inseparável de sua manifestação exterior e as ações
dos indivíduos somente fazem sentido com referência às ações de outros indi-
víduos. Assim, a cognição se junta à língua, e é através desta união que o novo
sentido de cognição social pode dar conta de aspectos como o discurso (Leite
2003, p. 222).

Identidades ou identificações sociomusicais


na Canja de Viola
Podemos dizer que na Canja de Viola predominam — em um universo identifi-
cado com a ruralidade — diversos repertórios que foram, a partir dos anos 30, am-
plamente difundidos pelo rádio, veículo fundamental na formação da identidade
musical nacional. Foi por meio do rádio que a música rural (caipira, sertaneja, gau-
chesca) teve presença marcante e constante (Murphy 2006). Na Canja são prati-
cados quase todos os estilos de música sertaneja. Mas a influência mais forte
percebida nos participantes que se apresentam no palco do evento é a variante da
música sertaneja mais romântica, que é influenciada claramente em letras e sono-
ridades pela Jovem Guarda (Sant’Anna 2000) e outros estilos de sucesso na música
pop, como as baladas românticas atuais.
Vale dizer ainda que essa comunidade identitária da Canja de Viola exerce, na prá-
tica, as vivências comunitárias harmônicas descritas por Sawaia (1999): todos têm
suas individualidades; respeitam-se nas diferenças de jeito, modos de falar, costumes
— pois são originários de várias regiões do Brasil — e até de gosto estilístico dentro
do mesmo gênero musical. Ao mesmo tempo, encontram-se e compartilham iden-
tidades musicais, repertórios, trocam experiências, comentam de modo recíproco
suas performances, qualidade dos instrumentos, maneiras de cantar, etc., sem qual-
quer tipo de preconceito ou segregacionismo. Esta noção de comunidade cons-
truída nos encontros e nas identidades musicais está em consonância com as
reflexões de Russell em suas pesquisas, relatadas em artigo sobre a sua experiência
com comunidades de prática musical nas Ilhas Fiji:
Durante o canto dos hinos, fico rodeada de sons. Toda a congregação ao meu
redor está cantando em harmonia. A riqueza de suas vozes e a ressonância do
som me dá arrepios. Mãos generosas encontram cada hino no hinário que está
em minhas mãos, para que eu possa acompanhar o culto que prossegue. (. . .) Es-
tamos cantando um hino na linguagem harmônica de Bach. Estou de volta ao
586 coração de minha família, e me uno às contraltos, registro mais confortável para
a minha voz. Ainda que temporariamente, sinto que faço parte de uma comu-
nidade — uma comunidade de pessoas que — assim como minha família — can-
tam. (2006, p. 9).
Neste sentido e em consonância com o pensamento de Sawaia (1999), vemos que
nem mesmo a efemeridade dos encontros com data marcada para terminarem dis-
solve a sensação de pertencer a uma comunidade. Wenger (1998a) e Snyder e Wen-
ger (2004) ressaltam que as comunidades podem ser efêmeras ou durar séculos, não
sendo o tempo de ‘vida’ uma variável que possa interferir na definição de uma co-
munidade.
Outro dado relevante da Canja que merece ser destacado é a idéia de que as canções,
na cultura popular brasileira, ocupam um primeiro plano nas práticas e no con-
sumo cultural. Essa informação também gerou um recurso de análise importante
para o universo musical de que estamos tratando aqui, que toca na identidade so-
cial e cultural. Sobre esta importância da canção, no domínio da música sertaneja
ainda há um refinamento: cantar bem, que parece ser a verdadeira expertise para
esse universo, como demonstra Ulhôa:
O que torna a música sertaneja de boa qualidade para seus aficionados não são
melodia, harmonia, ritmo, instrumentação ou forma, categorias musicológicas
usuais para a análise da música popular, mas, principalmente, o estilo vocal dos
cantores no que chamam de “voz”, além da relação letra-música. A unidade es-
tilística da música sertaneja é conseguida pelo uso consistente do estilo vocal
tenso e nasal e pela referência temática ao cotidiano, seja rural e épico na música
sertaneja raiz, seja urbano e individualista na música sertaneja romântica. Deste
modo podem ter qualidade tanto Tonico e Tinoco ou Pena Branca e Xavanti-
nho quanto Chitãozinho e Xororó ou Leandro e Leonardo, pela habilidade que
demonstram em lidar com suas vozes dentro de um estilo específico, e pela coe-
rência interna das letras que remetem a um cotidiano histórico. (1999, p. 53-54).
Ainda em relação à música como atividade que constrói identidades, pode-se ob-
servar que muitos dos autores citados mencionam essa propriedade, inclusive refe-
rindo-se a outros autores que, em seus artigos, argumentam na mesma direção. De
acordo com Queiroz (2005), sabemos também que as identidades se dão dentro de
um contexto cultural e que muitas das habilidades e/ou facilidades de aprendiza-
gem musical referentes a um determinado estilo estão para além de competências
exclusivamente musicais, pois já estão no sujeito que está imerso em sua cultura,
mesmo que este contexto esteja apenas em seu passado, na infância, uma vez que in-
ternalizamos nossas histórias de vida.
Russell (2006) conta que cresceu num ambiente musical familiar em que todos can-
tavam harmonicamente no dia-a-dia, tendo habilidades e competências musicais,
adquiridas empiricamente, de “encontrar a sua voz” e harmonizar naturalmente
uma melodia dada no sistema tonal, a ponto da pesquisadora imaginar, quando
tornou-se educadora musical, que todas as pessoas teriam essas competências na- 587
turalmente desenvolvidas, o que, logicamente, não ocorreu e a surpreendeu naquele
momento em que iniciava a sua vida profissional. Ela tinha, então, um olhar ape-
nas de dentro de seu contexto familiar. Para ela, à época, cantar era tão habitual
quanto ler ou conversar.
Estas experiências da infância criaram minha identidade musical. A harmonia
tonal é minha língua musical, e minha imersão nas práticas musicais de minha
família a base de meu desenvolvimento como musicista e educadora musical. O
prazer de fazer música em conjunto continua nutrindo a minha participação
fazendo música com outras pessoas da comunidade, algo que parece ser infinito.
(Russell 2006, p. 8).

Comunidades de Prática
Significado, prática, comunidade e identidade são conceitos-chave na teoria de
Wenger (1998). O significado se refere à nossa experiência de vida e do mundo
e a prática, aos nossos recursos históricos e sociais compartilhados. Comuni-
dade refere-se às formações sociais nas quais as nossas iniciativas são definidas
como dignas de prossecução e nossa participação é reconhecível como compe-
tência. Identidade tem a ver com várias modalidades de aprendizagem que criam
histórias pessoais para nós em nossas comunidades.10 (Russell 2002, p. 2-3, tra-
dução nossa).
Para Wenger (1998a) a comunidade de prática é a corporificação (embodiment) de
sua teoria social da aprendizagem e, vista como local de aprendizagem (site of lear-
ning), é central para a teoria proposta por Wenger, que tem quatro premissas fun-
damentais:
(1) Somos seres sociais. Longe de ser uma verdade trivial, este fato é um aspecto
central da aprendizagem. (2) O conhecimento é uma questão de competência
no que diz respeito a iniciativas às quais se dá valor — tal como cantar afinado,
descobrir fatos científicos, consertar máquinas, escrever poesia, ser agradável ao
convívio, crescer como menino ou menina, e assim por diante. (3) O saber é
uma questão de participação na busca de certas iniciativas, ou seja, de um enga-
jamento ativo no mundo. (4) Significado — a nossa habilidade de experienciar
o mundo e nosso engajamento com isto como significativo — é o que, afinal de
contas, a aprendizagem deve produzir.11 (1998a, p. 4, tradução nossa).
As comunidades de prática são formadas por pessoas interessadas na prática com-
partilhada em um domínio do esforço humano. Três elementos são fundamentais
para caracterizá-las:
a) o domínio — o interesse em uma competência compartilhada, valorizada pela
comunidade, que distingue os membros de outras pessoas e as mantém juntas.
Nesta característica é importante ainda destacar que:
O domínio não é necessariamente algo reconhecido como ‘expertise’ fora da co-
munidade. Uma gangue juvenil pode ter desenvolvido todos os tipos de formas
588 de lidar com o seu domínio: sobreviver nas ruas e manter algum tipo de identi-
dade com que se pode viver. Eles valorizam a sua competência coletiva e apren-
dem uns com os outros, mesmo que poucas pessoas fora do grupo posam
valorizar, ou mesmo reconhecer a sua especialização.12 (Wenger 2007, p. 2, tra-
dução nossa).
b) a comunidade — em busca dos interesses no seu domínio, os membros enga-
jam-se em atividades conjuntas e compartilham informações. Assim, formam
uma comunidade que interage e aprende em torno do seu domínio, cons-
truindo relacionamentos.
c) a prática — uma comunidade de prática não é simplesmente uma comunidade
de interesses; seus membros são praticantes e desenvolvem um repertório com-
partilhado de recursos: experiências, histórias, ferramentas, maneiras de resol-
ver problemas decorrentes da prática.
Como vimos, comunidades de prática são grupos que aprendem juntos e compar-
tilham repertórios. Transpor esse tipo de características para o universo musical é
natural, como demonstrou a pesquisadora Joan Russsell:
A experiência também reforçou minha crença — advinda da infância — de que
a maioria das pessoas possui habilidades musicais que, com apoio social (estru-
turas e expectativas) e cultural (crenças e valores) apropriados, podem cultivá-
las de alguma maneira. Vejo as práticas musicais dos fijianos como evidências
de que a habilidade de cantar pode ser desenvolvida em um grau elevado, e que
a habilidade de cantar em polifonia não é exclusividade de alguns indivíduos ta-
lentosos, mas um tipo de expertise que se desenvolve em algumas condições par-
ticulares. A experiência em Fiji me ensinou muito a respeito da importância de
pertencer a uma ‘comunidade de prática musical’; um ambiente de aprendiza-
gem para crianças e adultos que aprendem juntos. Em tal comunidade, o grupo
tem um repertório comum de canções, e o canto é uma prática altamente valo-
rizada por todos, que se ligam através de uma experiência musical. (2006, p. 14).
Sawaia (1999), dialogando com as ciências sociais em artigo direcionado a estu-
diosos da psicologia social comunitária, apela para que se considere, ao mesmo
tempo, identidade como permanência e transformação, tratando-os como par dia-
lético, para não incorrermos em falhas de análise ou realizarmos práticas equivoca-
das e estanques. A autora conclui o estudo dizendo:
A estética da existência deve ser regulada pelo princípio de comunidade, que
define uma ética através de bons encontros, que se alimenta da diversidade, sem
temer o estranho, pois é ligar-se ao outro sem o despotismo do mesmo, caracte-
rizada pela mutualidade em vez de poder desigual, como arte de dar e receber
prazer. (Sawaia 1999, p. 24).
As entrevistas, de um modo geral, reforçaram a idéia da comunidade como sendo
um espaço desses bons encontros e que fornece abrigo às identidades musicais, li-
gadas a essa ruralidade (pertencimento), através do repertório compartilhado de
experiências, conforme indicam Wenger (1998a) e Russell (2002; 2006).
Considerei importante trazer para a análise também este conceito, que envolve a 589
idéia de estética da existência, por serem muito ligadas a estéticas as identidades
dos entrevistados e dos participantes da Canja de Viola. Uma existência ligada à
ruralidade, como já vimos, mas plena de estética pela música em si e pela própria
poesia de exercer essa identidade ‘sertaneja’ em Curitiba, uma cidade que parece
não se identificar com essa ruralidade possível para uma metrópole.

Música, talento, dom: ‘herança’ familiar?


A formação de identidades musicais
Nas declarações dos entrevistados, a crença no dom da música ligado a uma he-
rança familiar é unânime. Podemos chamar este de o primeiro e mais relevante
ponto em comum a todos os entrevistados, o que foi surpreendente para mim. Este
é um forte dado cultural da nossa sociedade, que eu, particularmente, julgava ser
apenas do senso comum, mas dos indivíduos que não são músicos. Como todos
manifestaram a mesma crença e, por sua vez, aprenderam música informalmente e
principalmente através do ouvido, imitação e memória (Recôva 2006), acredito
que esta crença tenha sido justamente um fator motivacional muito significativo.
Sant’Anna (2000) descreve em seu trabalho a história da crença no dom, advinda
da cultura caipira. Os violeiros, naquele contexto, seriam “verdadeiros ungidos pelo
dom de fazer versos” (p. 189-190) e que teriam um certo privilégio de levar a vida
com mais prazer do que os outros por poderem tocar viola:
Ai, a viola me acompanha
Desde quinze anos de idade,
Ela é minha companhera
Nas minhas contrariedade.
Faço moda alegre e triste,
Conforme a oportunidade,
Esse dom de fazê moda
Não é querer e ter vontade,
Tem muita gente que quer
Mas não tem facilidade.
É um dom que Deus me deu
Pra desabafar saudade, ai, ai, ai.13 (Ibid., p. 222).
Curiosa a diferenciação que essa comunidade faz entre aprender música “por par-
titura” e por ouvido. Para eles, quem não tem dom pode até aprender, mas somente
por partitura.
Russell (2002) conta que sua identidade como pessoa musical foi construída na in-
fância, em um ambiente familiar em que todos tinham competências musicais, can-
tavam e/ou tocavam instrumentos muito bem sem nunca terem tido aulas de
música. Como ela cresceu nesse ambiente e foi estimulada a cantar em conjunto
590 com eles desde cedo no costume familiar de harmonizar as diferentes vozes em coral,
ela absorveu o sistema tonal pela prática desde menina e reconheceu a sua família
como uma comunidade de prática musical.
Os entrevistados deste estudo narraram experiências semelhantes à da pesquisa-
dora canadense, que revelam também outros elementos formadores de identida-
des em que a ruralidade está presente em alguma medida. É interessante, por
exemplo, observar na história da vida musical de um dos entrevistados a partir de
sua infância em Minas Gerais, de onde o pai trouxe influências musicais e a apren-
dizagem familiar que ocorreu quando mudaram-se para o sul do Brasil e tiveram
contato a música gaúcha que, em uma negociação de significados com fronteiras
musicais (Wenger 1998a), acabou incorporando a presença e som da ‘gaita’ (acor-
deom) à casa, numa integração sonora e estilística com o violão vindo das Minas Ge-
rais.
Dentro do universo da música sertaneja, o domínio compartilhado desta comuni-
dade (Wenger 1998a; 1998b) existem diversos estilos que fazem parte das prefe-
rências musicais dos participantes da Canja. É digno de nota, mais uma vez, o
respeito para com as diferenças estéticas. Em geral todos prestam atenção e aplau-
dem as apresentações, que são bem heterogêneas em qualidade e estilos. Os modos
de cantar foram percebidos na observação em campo como tendo o mais alto valor
para todos os participantes da Canja, independente do estilo apreciado dentro do
gênero.

Resultados
A partir de diversas fontes de evidências, mas principalmente através do trabalho
de campo que envolveu a observação e entrevistas com alguns participantes, en-
tendo que os resultados foram mais significativos do que propriamente conclusivos,
no sentido de serem possibilidades abertas a outros e maiores aprofundamentos de
interpretação e análise. O que respalda essa afirmação é, em primeiro lugar, que o
objeto de estudo em si como prática social foi ainda pouco estudada e revelou-se
como um campo denso e fértil que pode propiciar mais pesquisas em cognição so-
cial e musical, educação musical, musicologia, psicologia social, antropologia, so-
ciologia, história, etc.; em segundo lugar, a pertinência da teoria das comunidades
de prática no campo da música (Russel 2002), praticamente inexplorada no Brasil,
como ferramenta para entender a cognição e as identidades sociomusicais de cer-
tas comunidades, além de possibilitar caminhos e recursos em educação musical.
Retomando a questão da pesquisa, que buscou identificar experiências comuns vi-
venciadas pelos participantes da Canja de Viola a partir da prática e das identida-
des relacionadas à comunidade, foi possível sintetizar alguns pontos importantes,
relacionados a seguir.
A opção por manter “um pé na roça” mesmo morando na cidade grande, como di- 591
riam muitos dos freqüentadores da Canja sobre as suas identificações com uma
certa ruralidade. Há aí uma opção também de ordem estética que reside na beleza
do continuar a ser sertanejo, além de uma ética (Sawaia 1999) pelos valores também
sertanejos da cordialidade, de ajuda mútua em relações estruturadas como vicinais.
A busca pela memória de um contexto social e familiar em que a música fazia parte
do cotidiano, sempre havendo um membro da família como referência musical
principal, geralmente adotado como modelo na formação musical dos entrevista-
dos. Daí emerge o conceito de enculturação, explorado por Green (2001) o qual se
relaciona com as identidades e também com o aprendizado, ocorrido de maneira si-
tuada como descrito por Lave & Wenger (1991), muitos tendo na própria casa, du-
rante a infância e/ou adolescência, uma comunidade de prática. (Russel 2002).
A forte crença no dom divino da música, herdado também “de família”, que todos
os entrevistados manifestaram com convicção. Essa crença, segundo Sant’Anna
(2000) tem origens históricas no mundo caipira e é um fator motivador para o de-
senvolvimento da musicalidade desses indivíduos.
O sentimento de pertencimento a essa comunidade, tanto dos músicos quanto do
público, destacado por Wenger (1998a) como fundamental para a consolidação da
comunidade de prática.
As preferências musicais semelhantes, como também descreveu Oliveira (2008),
com pequenas variações dentro de um mesmo gênero, centradas na música serta-
neja produzida a partir da segunda metade dos anos 50 até os anos 80.
O respeito com práticas que exploram outros estilos musicais. Não há um “fecha-
mento” da comunidade no sentido de julgar as suas preferências de prática melho-
res que as de outras pessoas ou grupos, o que revela uma maneira de certo modo
incomum de elaborar questões de valor.
O engajamento com a continuidade da vida da comunidade, para que a prática mu-
sical possa permanecer como oportunidade contínua de experiências significativas.
(Wenger 1998a; 1998b).
Os processos de aprendizagem, sempre situados (Lave & Wenger, 1991); tendo
como base a enculturação (Grenn 2001) — que é em si mesma um processo de cog-
nição social — de um modo geral foram desenvolvidos de forma essencialmente au-
todidata e envolveram uma forte motivação intrínseca (relacionada à crença no
dom), utilizando a observação atenta associada à imitação, ao ouvido e à memória.
(Recôva 2006).
O estudo musical sempre ligado a uma prática deliberada, com aplicação direta dos
objetivos traçados pelo próprio praticante, relacionados a um repertório que o in-
divíduo deseja desenvolver ou a ser apresentado numa situação concreta.
A comunidade de prática como espaço de aquisição e mesmo de criação de conhe-
592 cimento situa a aprendizagem e por isso a faz significativa. Este fenômeno foi tam-
bém demonstrado por Russell em suas pesquisas nas Ilhas Fiji, onde cantar é um
atributo da cognição social de todo e qualquer indivíduo daquela população: não
há alguém “desafinado”, a musicalidade está em todos.

1 “Communities of practice are groups of people who share a concern or a passion for so-
mething they do and learn how to do it better as they interact regularly”. Disponível em:
http://www.ewenger.com/theory/index.htm (conteúdo gerenciado pelo autor). Acesso em
11/11/2007.
2 O Teatro Universitário de Curitiba (TUC), equipamento urbano da administração mu-
nicipal, fica no centro histórico da cidade e tem menos de 100 lugares na platéia.
3 Violeiro é “figura típica do folclore brasileiro, tocador e cantador de viola, muitas vezes
também compositor, repentista, cordelista, qualidades típicas do violeiro nordestino, geral-
mente improvisador, que vai criando suas rimas enquanto canta e acompanha com a viola”
(Cascudo 2002, 730-731).
4 “Dupla caipira” ou “dupla sertaneja”, um par de cantores que fazem dueto em vozes para-
lelas, em intervalos de terças ou sextas, sendo que pelo menos um dos dois toca um instru-
mento (violão ou viola) que faz a base harmônica para o canto. (Oliveira 2005, 5).
5 Trovador é aquele que faz “trovas em forma de desafio”, que “revelam o talento natural e
a agilidade de pensamento dos cantadores, não só em quadrinhas, mas também nas sextilhas
e em outras modalidades de versos” (Cascudo 2002, 701).
6 Paquito Modesto, funcionário da administração municipal de Curitiba, fundou com sua
esposa Vera La Pastina o Centro Comunitário São Braz, onde ocorreram os primeiros en-
contros do que viria a ser o projeto Canja de Viola.
7 A Fundação Cultural de Curitiba (FCC), órgão da administração municipal, é mantene-
dora do evento através da cessão do espaço e equipe de funcionários: técnico de som, apre-
sentador, ajudante de palco.
8 Disponível em http://www.parana-online.com.br/editoria/almanaque/news/175282
Acesso em 30/11/2006.
9 “Our very identity of individuality is a matter of belonging” (Lave & Wenger, 1991, p. 16).
10 “Meaning, practice, community and identity are key concepts in Wenger’s theory (ibid).
Meaning refers to our experience of life and the world, and practice refers to our shared his-
torical and social resources. Community refers to the social configurations in which our en-
terprises are defined as worth pursuing, and our participation is recognizable as competence.
Identity has to do with the ways in which learning creates personal histories for us in our
communities” (Russel, 2002, p. 2-3).
11 “(1) We are social beings. Far from being trivially true, this fact is a central aspect of lear-
ning. (2) Knowledge is a matter of competence with respect to valued enterprises — such as
singing in tune, discovering scientific facts, fixing machines, writing poetry, being convivial,
growing up as a boy or a girl, and so forth. (3) Knowing is a matter participating in the pur-
suit of such enterprises, that is, of active engagement in the world. (4) Meaning — our abi-
lity to experience the world and our engagement with it as meaningful — is ultimately what
learning is to produce” (Wenger, 1998a, p. 4).
593
12 “The domain is not necessarily something recognized as “expertise” outside the commu-
nity. A youth gang may have developed all sorts of ways of dealing with their domain: sur-
viving on the street and maintaining some kind of identity they can live with. They value
their collective competence and learn from each other, even though few people outside the
group may value or even recognize their expertise”. <www.ewenger.com/theory>. Acesso em
30/10/2007.
13 Trecho de “Padecimento”, de autoria de Carreirinho.

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Música e acordeom: discutindo experiências
de educação musical na Maturidade
Jonas Tarcísio Reis
jotaonas@yahoo.com.br 595
FEEVALE, PPGEDU/UFRGS
Esther Beyer
PPGEDU/UFRGS

Resumo
Junto ao crescente movimento de expansão da área de educação musical no mundo e,
principalmente, no Brasil, é perceptível o advento de instituições e projetos de ensino
musical nos mais variados contextos da sociedade brasileira, e com diferentes faixas etá-
rias. E nesse movimento, circunscrito no ensino musical não escolar se encontra a edu-
cação musical na maturidade. Uma modalidade de ensino musical que vem despontando
no país. Porém, pouco se sabe sobre experiências educativo-musicais com o público da
terceira idade. Nesse sentido, com base nos escritos de Souza (2006), Luz e Silveira (2006),
Luz (2008), Leão e Flusser (2008), Torres (2006), procuramos discutir pontos importantes
acerca do ensino musical na terceira idade, e, também, da construção de conhecimento
musical fomentados por processos de ensino e aprendizagem de acordeom em aulas
particulares, segundo uma perspectiva educacional construtivista interacionista, calcada
em pressupostos teóricos da Epistemologia Genética de Jean Piaget. Como a discussão
científica referente ao ensino e a aprendizagem de música com idosos ainda é pouco en-
fatizada e, do mesmo modo, precariamente se publica sobre ensino de acordeom no Bra-
sil - diferentemente do que ocorre na Europa e em outras partes do mundo, onde tais
temas possuem um status maior que no Brasil-, este trabalho ajudará a suprir uma lacuna
existente na área de educação musical deste país, tendo como base dados empíricos re-
colhidos na região de Porto Alegre - RS, sobre o ensino e a aprendizagem desse instru-
mento musical com um indivíduo pertencente à faixa etária supracitada.

Introdução
É perceptível a expansão em termos qualitativos e quantitativos da área de educa-
ção musical na nação brasileira, principalmente ao longo das duas últimas décadas.
Notamos a esplendorosa atuação da ABEM (Associação Brasileira de Educação
Musical) e a crescente fomentação positiva e necessária de publicações de pesqui-
sas e estudos acerca do ensino e da aprendizagem musical. Conquistamos com
muita satisfação, a cada dia, como resultado de trabalhos consistentes e sérios de
representantes da área nos diferentes segmentos sociais e institucionais do país, o
reconhecimento social da importância da música na formação do ser humano, do
cidadão brasileiro. Um reconhecimento que é evidenciado pelo posicionamento
positivo de instituições educacionais privadas e públicas, do nível básico ao superior
e do mesmo modo das de livre iniciativa (espaços não escolares), e também pelo
posicionamento da sociedade que coloca a música como uma forma de arte que
subsidia e faz emergir possibilidades reais de os indivíduos virem a intervir ativa-
mente no mundo hodierno.
596 Assim, dentre os temas abordados pela área da educação musical na contempora-
neidade, está o ensino e a aprendizagem da arte musical em espaços não escolares,
que compreendem todos aqueles lugares que não as instituições formais de ensino
que, por sua vez, são representadas principalmente pelas escolas de educação básica
e pelos estabelecimentos de ensino superior. Então, ONGs, asilos, escolas particu-
lares de música, coros e grupos vocais, orquestras, orfanatos, entre outras forma-
ções sociais onde o ensino da música é objetivado estão inseridas nesse universo
compreendido como espaços não escolares, onde a educação musical se perpetua de
diversas formas, nos seus mais variados modelos pedagógicos, com fins e objetivos
educativo-musicais específicos, singulares, mas que convergem intenções para uma
mesma meta: a construção de um mundo mais musical e com seres humanos mais
sensíveis. Assim, este trabalho buscará refletir sobre o ensino de acordeom na ter-
ceira idade, tendo como base algumas experiências com o ensino desse instrumento
musical para indivíduos pertencentes a esta faixa etária.
O ensino de acordeom é uma prática que está fortemente ligada aos processos de
construção de conhecimento musical não escolar. Nessa perspectiva, é meritório
saber que dentre os diversos instrumentos musicais que conhecemos, o acordeom
ocupou uma relevante posição no passado musical do Brasil. Ainda hoje está pre-
sente como instrumento característico nos estilos musicais regionais, como no baião,
no forró, no sertanejo e na música tradicionalista e nativista do sul do país, sem
mencionar outros gêneros em que a sua presença é notada. Assim, a principal forma
de aprendizagem de acordeom é através de aulas particulares, de vídeoaulas e de
metodologias de auto-aprendizagem a partir de materiais gráficos e de áudios, o que
caracteriza a sua inserção no universo não escolar de construção de conhecimento
musical. Da mesma forma, a percepção musical é um fator importante no ensino e
aprendizagem de acordeom que, por vezes, não contempla questões de teoria, como
a notação musical convencional.
Pensando em educação musical não escolar, o entrecruzamento de saberes formais
e informais musicais nas aulas de música na terceira idade é uma premissa indis-
pensável ao desenvolvimento de processos de musicalização significativos e de qua-
lidade, uma vez que os indivíduos maduros possuem muitos conhecimentos de
música, que talvez ainda não tenham sido sistematizados, mas fazem parte da sua
bagagem cultural e cognitiva.
A terceira idade de nossos tempos:
um pequeno panorama relacionado à música
Segundo dados destacados por Souza (2006), Luz e Silveira (2006) e Luz (2008), o
crescimento populacional da terceira idade é inegável, sendo que em pesquisas rea-
lizadas recentemente constatou-se que no ano de 2020, uma em cada treze pessoas
será idosa. Conclui-se com isso que a população mundial está se tornando idosa, e
isso é bom, pois demonstra que as pessoas estão vivendo mais tempo, e para tanto
a sociedade deve se moldar para atender as novas demandas que virão com esta 597
transformação social.
Em vista dos avanços da ciência, medicina, tecnologia, neurociências, psicologia,
sociologia, filosofia e educação, as pessoas estão atingindo maior longevidade. Os
seres humanos estão vivendo mais tempo graças à melhoria na qualidade de vida da
população. Essa feliz realidade constatada por inúmeros pesquisadores ao redor do
planeta apresenta, entretanto, outra face: Como a sociedade age frente a esse novo
momento histórico pelo qual os homens estão passando? O que acontece com essa
população idosa?
Em síntese, o que comumente ocorre é que os integrantes desse grupo social estão
de certa forma à margem da sociedade, por se encontrarem na camada social de tra-
balhadores inativos e por isso não produtiva do ponto de vista capitalista. São ex-
cluídos da vida em sociedade e sentem falta do convívio de outrora e a necessidade
de assumirem um papel mais ativo na sociedade, colaborando para o desenvolvi-
mento desta, o que incide, logicamente, no aumento da auto-estima nos indivíduos
idosos.
O trabalho com música nessa idade está sendo cada vez mais desenvolvido. Muitos
idosos procuram realizar seus sonhos que, por algum motivo no passado não pu-
deram realizar, como o desejo de aprender música, aprender a tocar, cantar e/ou
compor. Dessa forma, através da prática pedagógico-musical relataremos o caso de
um aluno que vem fazendo aulas de acordeom, uma vez que, agora, ele dispõe de
mais tempo para ser dedicar à música e realizar o seu sonho de tocar acordeom. De
acordo com Torres (2006), os idosos buscam cada vez mais resgatar e realizar so-
nhos e desejos que não puderam efetivar-se no decorrer de sua vida profissional. A
esse respeito à autora buscou conhecer o processo de musicalização de adultos em
diferentes momentos da vida, abrangendo os sentimentos e as motivações.
É importante destacar que muitas iniciativas a favor dos idosos surgem no mundo
moderno, como projetos sociais e leis específicas que contemplam os indivíduos
pertencentes a essa faixa etária, assim como as Universidades Abertas à Terceira
Idade, que são uma demonstração de que “o indivíduo não encerra na velhice seus
anseios de esperança de vida e de uma participação na sociedade” (Souza, 2006, p.
56), mas, sim, está mais capacitado do ponto de vista cognitivo, para participar ati-
vamente na sociedade por se constituir em um ser com grande bagagem cultural,
ampla experiência história e prática em determinadas áreas do conhecimento hu-
mano, ou seja, trata-se de um sujeito experiente e que por isso tem como colaborar
positivamente na sociedade onde está inserido.
Nessa perspectiva, Souza (2006) nos fala que na terceira idade muitos fatores
podem contribuir para a maior disponibilidade para o estudo e para novas expe-
riências. A possibilidade de inserção do ensino de música é promissora e necessária,
levando em consideração um posicionamento “que remete à idéia de uma educação
598 musical atenta para as transformações da sensibilidade musical” (idem, p. 56).
Nesse mesmo sentido é possível afirmar que as artes têm a qualidade de atingir a sen-
sibilidade do ser humano, e a música é uma linguagem capaz de dizer coisas que ne-
nhum outro idioma consegue transmitir. Cantando e/ou tocando obras musicais
é possível melhorar a qualidade de vida não só dos idosos, mas também de pessoas
pertencentes a outras faixas etárias.

Singularidades no acordeom
Como sabemos o ensino e a aprendizagem de acordeom se constitui em um fenô-
meno sócio-histórico não recente no Brasil, entretanto, até agora não altercado
profundamente em nosso país. Apesar de estarmos falando de um instrumento mu-
sical consagrado em muitas culturas, a sua discussão no âmbito da educação musi-
cal no Brasil ainda é muito vaga, assim como a formação do professor de acordeom
e de professores de outros instrumentos populares é um fato pouco contemplado,
ainda, nas graduações em música desse país, mesmo apesar de sabermos que o acor-
deom se apresenta como um instrumento muito difundido nas culturas populares
e nos gêneros musicais próprios dessas culturas, que são apreciadas, criadas e di-
fundidas por boa parte da população da nação brasileira.
Hoje, mais do que nunca, os profissionais estão sendo cada vez mais exigidos nas
suas profissões e cada vez mais surgem e coexistem diversas profissões semelhantes,
mas com especificidades próprias, o que ocasionam as suas diferenciações. Antiga-
mente um professor de música, por exemplo, podia ensinar vários instrumentos de
que tivesse um considerável domínio. Hoje vemos cada professor se aperfeiçoando
na arte de ensinar um único instrumento, e não é incomum vermos também o en-
sino de um instrumento musical focando a produção e perpetuação de uma téc-
nica específica para a manutenção, cultuação e propagação de um gênero musical
específico, muitas vezes com o foco em determinadas faixas etárias.
Vivemos na época da especialização profissional. Um tempo que não é satisfatório
estar inserido em uma área do saber. Não basta ser da educação musical, esse é um
campo do saber muito amplo. Não é possível saber tudo de educação musical. Tam-
pouco dominar a pedagogia de vários instrumentos. É necessário procurar o aper-
feiçoamento no ensino de um instrumento, quando muito, é preciso restringir o
foco em determinados tipos de execução, técnicas, maneiras de se tocar em cultu-
ras e em grupos sociais específicos.
Por isso, acredita-se que o ensino de acordeom em determinadas regiões do Brasil
assume formas distintas, em vista das diferenças culturais e sociais que os estados e
cidades guardam entre si. Considerando essa hipótese, pensamos que o professor de
acordeom do sul do Brasil possui motivações, gostos, bagagem pedagógico-musi-
cal e teórico-metodológica diferentes dos professores de outras regiões brasileiras,
como o nordeste, onde a utilização do acordeom apresenta peculiaridades ligadas
à cultura musical própria dessa região. 599
Nesse sentido, a formação do professor de acordeom no Rio Grande do Sul é re-
vestida de uma singularidade, bem como a formação de professores desse instru-
mento em outras regiões também possui características diferentes.
Acredita-se que a escolha em ser professor de acordeom esteja fortemente ligada a
inserção desses indivíduos - que são professores - em uma cultura regional que en-
fatiza a produção musical com esse instrumento musical como base para estilos mu-
sicais que norteiam um mercado musical e cultural lucrativo. Isso reflete em uma
demanda expressiva pelo estudo desse instrumento específico acompanhado por
um professor de acordeom. Nessa cultura regional se nota a coexistência de duas
profissões: a de músico acordeonista e de professor de acordeom.

Justificativa
Desenvolver trabalhar com idosos não traz benefícios apenas para os próprios, pois,
de acordo com Leão e Flusser (2008), a experiência dos músicos que trabalham
junto aos idosos se traduz pela busca livre do exercício dessa atividade, aliada a busca
consciente do relacionamento. Ainda dizem que quando a relação Eu-Tu acontece,
desencadeia nos músicos emoção e sentimentos de felicidade, afetividade e até
mesmo de gratidão, pois reconhecem que o encontro, mediado pela música, possi-
bilitou seu crescimento pessoal naquele momento agregando valor à sua vida. Essas
interações entre aluno e professor impactam diretamente no fazer pedagógico do
educador musical.
A música também pode favorecer a memória, evocando lembranças do passado.
Souza (2006, p. 57) nos diz que quando se ativa a memória através da música trans-
mite-se o pensamento de que “a senescência é um período propício à recordação”.
Assim, o idoso reconstrói experiências do presente e passado. A autora ainda res-
salta que “esta memória advém de um trabalho em que o prazer da música suscita
o inconsciente a trazer material ao consciente” (idem, p. 57). Na aula de música o
foco é o desenvolvimento da cognição musical, e ao mesmo tempo o sujeito esta fa-
zendo uso de outros conhecimentos, que não estritamente os musicais, visto que o
indivíduo não põe em ação apenas uma estrutura mental para interagir com o ob-
jeto musical. Ele faz uso de muitos outros esquemas não musicais para abstrair dos
objetos musicais informações que lhe serão úteis e desencadeadoras da formação
de esquemas musicais no sujeito.
Além disso, Tourinho (2006 apud Souza 2006), atesta que estudos comprovam
que a atividade muscular, a respiração, a pressão sanguínea, a pulsação cardíaca, o
humor e o metabolismo são afetados pela música e pelos sons. Isso realça a perti-
nência de se aprender música na terceira idade, e relembra a contribuição que a mú-
sica pode dar para a melhoria da qualidade de vida não só dos idosos, mas
igualmente dos sujeitos oriundos de gerações mais jovens.
600 Destarte, de acordo com Souza (2006, p. 59), é importante dizer que “o educador
deve se inserir no contexto do grupo [do indivíduo]. O cotidiano da terceira idade
é instrumento para a elaboração das aulas. Dissociar a vida do ensino é distanciar a
educação de um propósito coerente com as necessidades do mundo no qual estão
inseridos”. Então, deve-se estar atento aos desejos dos idosos, não somente quanto
à música, mas também quanto a suas esperanças de vida e motivações em (con)viver.
Pois a aula de música é compreendida por eles como um momento rico de intera-
ção e diálogo com o professor.
A solidão e a inatividade social dificultam os processos de memorização na terceira
idade, é preciso empreender esforços para que a música surja como um elo que liga
novamente o indivíduo à vida ativa de tempos passados. Por meio da música ele es-
tará se envolvendo em processos de ensino e aprendizagem, e também estará mo-
bilizando esquemas mentais na busca e na estruturação do conhecimento. As redes
neurais serão postas em atividade e a busca pelo alcance de uma meta motivadora
do viver, do sentir-se útil, do sentir-se capaz de realizar determinadas tarefas será de-
finida. Nesse caso, o incentivo do educador musical na busca pelo conhecimento
musical pode se definir como uma possibilidade e como um apoio na construção do
saber musical do educando.
Assim, pode-se afirmar que a educação musical pode transformar a realidade dos
idosos, de forma que eles se sintam agentes da sociedade e transformadores da
mesma. Que através da música eles possam acender, novamente, a chama que ins-
tiga o homem na busca pelo ser mais, pelo saber mais, pelo fazer mais, pelo desen-
volvimento social, pela construção de saber próprio e coletivo, enfim, pelo
construir-se homem, que é um processo que nunca se encerra.

Discutindo a prática de acordeom na Maturidade


Em geral os alunos pertencentes à terceira idade, ou os que tenham passado da idade
escolar chegam às aulas particulares de acordeom imbuídos de uma idéia precon-
ceituosa, que é difundida na grande sociedade, de que somente indivíduos jovens
podem se desenvolver musicalmente, que somente estes podem aprender a tocar
algum instrumento ou a cantar. Nesse sentido, o educador precisa estar convicto de
que qualquer pessoa pode aprender música, aprender a tocar, cantar, apreciar ati-
vamente, a até criar novas obras musicais. Também é necessário desconstruir a con-
cepção inatista de aprendizagem musical que faz parte do discurso propagado no
senso comum, e que habita a mente daqueles que procuram aprender música a par-
tir da idade adulta.
Necessitamos acreditar que a educação musical pode ser acessada por todos aque-
les que tenham o desejo de se envolver formalmente em processos de aprendiza-
gem musical. E, pensar a democratização do acesso a cultura e ao conhecimento
musical sistematizado (ver Penna, 2008) é militar em um movimento educacional,
portanto político, que almeja a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, 601
humana, livre de preconceitos e de taxações elitizantes dos processos educativo-
musicais disponíveis atualmente. Assim, apostar nos potenciais de aprendizagem e
de domínio da linguagem musical de nossos educandos é crucial. Temos que pos-
sibilitar o acesso a informações musicais e à construção de conhecimentos musi-
cais através de uma pedagogia musical construtivista e libertadora. Isso significa
acreditar na igualdade entre os seres humanos e potencializar o desenvolvimento de
um sistema social onde os saberes e os produtos culturais produzidos pela huma-
nidade ao longo da sua existência não serão negados aos seres humanos de hoje e de
amanhã, já que, infelizmente, não podemos desfazer os erros e as injustiças come-
tidas no passado contra muitos seres humanos que tiveram o seu acesso a cultura e
aos bens sociais humanos negados.
Nesse caso, trata-se de preconizar, em nossas aulas, o diálogo docente-discente, a
construção conjunta de um planejamento pedagógico-musical que possibilite ao
educando a estruturação do saber musical em níveis cada vez mais complexos no
que tange ao desenvolvimento musical e, também, objetivar o aumento do inte-
resse do educando pela imersão na linguagem musical, motivando-o e fazendo-o
crer que aprender música é possível, contrariando, feliz e incansavelmente, o senso
comum que se proclama na seguinte máxima desumanizante: “aprender música
tem idade certa e é para quem tem talento; tem que ter dom para isso”. Assim, que-
remos demonstrar por meio das linhas que seguem possibilidades de construção de
uma educação musical para todos, focando nosso olhar sobre intervenções peda-
gógico-musicais realizadas com um adulto maduro, especificamente, através do en-
sino de acordeom.
Sendo assim, nas aulas iniciais de acordeom com esse aluno foram explicitadas ques-
tões referentes ao funcionamento mecânico do instrumento, bem como as funções
da baixaria, do teclado e dos registros (diferentes vozes, como nos órgãos). Alguns
apontamentos sobre as notas musicais, a utilização dos cinco dedos na mão direita,
a de quatro dedos na mão esquerda, e a técnica de baixos alternados para acompa-
nhamento das obras musicais foram destacados. Também foi solicitado ao aluno
que falasse sobre as suas motivações pelo aprendizado do instrumento, qual o tipo
de música que mais apreciava e sobre suas possíveis experiências formais com mú-
sica, anteriores às aulas de acordeom.
Em seguida, foi possível constatar que esse aluno apreciava muito as músicas re-
gionais do Rio Grande do Sul, como as dos gêneros: xote, chamamé, milonga, valsa,
marcha, rancheira, bugio e vaneira (sobre gêneros musicais do sul, ver Bertussi e
Teixeira, 2005) muito executadas com o acordeom, e que fazem parte da cultura re-
gional tradicionalista e nativista desse estado (sobre Tradicionalismo e Nativismo,
ver Lessa, 1985; Duarte e Alves, 2001).
Com base nos dados supracitados é possível afirmar que o ensino de acordeom para
602 esse aluno exigia o aprendizado, principalmente, de canções e obras instrumentais
típicas do cancioneiro popular gaúcho. Nesse sentido, é cogente partir do que o
aluno gosta; do seu universo musical e cultural; dos seus desejos pelo fazer musical,
para estruturar um planejamento de aulas que considere, também, os processos de
formação musical informal aos quais o indivíduo foi e é submetido diariamente
(Reis, 2009a; Wille, 2003; Arroyo et. al., 2000). É importante trabalhar com a mú-
sica conectando os conhecimentos e as informações que o educando já detém, e
aproveitar na aula de música o que o aluno já toca ou sente especial apreço.
Nesse ponto, é importante informar que o aluno destacou que não queria aprender
teoria musical, mas sim aprender a tocar, ele queria, principalmente, praticar, fazer
música. Considerando o desejo do aluno e de acordo com os estudos e legados das
neurociências, é fundamental gerar conexões no cérebro, usar as redes neurais exis-
tentes no sentido de aprender música, de modo que isso não seja desconectado do
que se quer aprender. Ninguém aprende aquilo que não tem interesse.
A título de esclarecimento, cabe as aulas são particulares e têm a duração de uma
hora, geralmente. O trabalho é desenvolvido com dois acordeons apianados, onde
o professor se vale do método de observação-imitação, muito utilizado pelos edu-
cadores musicais com alunos que não possuem conhecimentos de teoria musical
(Reis, 2009b). O método consiste basicamente em o professor demonstrar os exer-
cícios, o que tocar e os modos como tocar para o aluno, que deve imitar aquele no
seu instrumento.
Na primeira aula começamos o aprendizado de uma valsa em Dó maior, envol-
vendo apenas as primeiras cinco notas da escala de Dó maior em uma evolução har-
mônica composta por tônica e dominante apenas, como usualmente temos feito
com os alunos que estão tendo seus primeiros contatos com o acordeom. Opto por
trabalhar inicialmente com este gênero musical (valsa), de compasso ternário, pelo
fato de quase todas as pessoas gostarem de valsa e saberem dançar esse tipo de mú-
sica, pois a vivência prévia com algo facilita nos processos cognitivos de assimilação,
acomodação e adaptação no que tange ao desenvolvimento musical do ser humano
(quanto a esses processos, ver Kebach, 2008; Rizzon, 2009; Beyer, 1988).
O trabalho com a valsa permitiu o ensino da baixaria paralelo ao do teclado. A valsa
era composta por nove compassos, quatro compassos no campo harmônico da do-
minante e cinco no da tônica. Como na baixaria o acorde de tônica fica, sempre,
abaixo do acorde de dominante, trabalhou-se basicamente o movimento de subir
e descer nos baixos, marcando os três tempos de cada compasso. A melodia tocada
no teclado do acordeom era constituída de mínimas pontuadas (em uma evolução
melódica construída, apenas, com as primeiras cinco notas da escala utilizada) o
que facilitou a conjugação das mãos e a execução simultânea entre baixos e teclado,
que mudavam ao mesmo tempo. Também foi dada importância à utilização e ao
aprendizado da técnica instrumental própria do acordeom (Mascarenhas, 2003;
Bertussi e Teixeira, 2005) com a aprendizagem da execução da escala de Dó maior 603
no teclado; de um exercício com os cinco dedos da mão direita; e da mudança de
acorde na mão esquerda, para a obtenção de independência nos dedos, agilidade e
precisão na execução, bem como a construção de noções de harmonia. Nessa abor-
dagem de ensino objetivou-se a construção de esquemas motores por parte do edu-
cando, que facilitaram a execução da música em questão e de outras que virão a
compor o repertório dele.
Durante as primeiras aulas notamos o grande interesse do aluno por aquilo que era
trabalhado em aula. A atenção nas explanações do professor era algo bastante no-
tável e visto pelo aluno como fator importante na aprendizagem, e na construção
do conhecimento musical, formalmente pelo professor. O estudante se mostra
muito entusiasmado e cada vez mais motivado para aprender a tocar “gaita” (ou
cordeona, denominações comuns no Rio Grande do Sul para o instrumento acor-
deom, que em outras partes do Brasil é chamado, também, de sanfona). A cada aula
demonstra conquistas na linguagem musical. As suas interpretações são mais pre-
cisas, carregadas de sentimento e expressão, o que indica a musicalidade aflorada e
a bagagem musical do aluno. E também, pelo grau de aproveitamento, demonstra
que trabalha bastante os exercícios e as músicas na sua casa. Além da prática de in-
terpretação o aluno é incentivado a ouvir músicas diferentes para expandir seus ho-
rizontes musicais.
Nas atividades são trabalhadas músicas da preferência do educando, a fim de via-
bilizar um momento de sensibilização e o despertar do gosto pelo fazer musical, que
já não é pequeno nesse indivíduo. Nas aulas, faz-se uso de exercícios para estimular
a coordenação motora e possibilitar a improvisação futura. O acordeom é visto
como uma extensão do corpo do músico, facilitando o aprendizado e o domínio
da linguagem musical consciente e articulada ao corpo e seus movimentos, enten-
dendo e conhecendo os sons e/ou a música como algo que depende da pessoa e da
sua intenção para expressar e destacar fatores estéticos.
O repertório utilizado nas aulas, sempre, está sujeito a alterações em função de pos-
síveis sugestões dos alunos. Abordo a educação musical numa visão horizontal do
ensino e através do estabelecimento de uma ação dialógica com os educandos, ou-
vindo seus anseios; atento a suas expectativas e contemplando, na medida do pos-
sível, seus desejos, pois o foco principal é o educando e o seu processo de
aprendizagem e não o educador, sendo este, também, sujeito indispensável à estru-
turação de processos educativo-musicais significativos.
Considerações finais
Ao procurarmos material bibliográfico que tratasse do ensino de acordeom ficou
constatada a inexistência de publicações direcionadas a discussão científica do tema.
Diante disso, surgiu a necessidade de compartilhar com a área de educação musi-
604
cal, refletindo sobre a prática de um professor de acordeom, atuante há quatro anos,
mas dando destaque, aqui, para um caso específico com um aluno de sessenta e três
anos de idade, pertencente à terceira idade, que decidiu aprender a tocar “gaita” e
realizar um sonho não concluído em tempos passados, mas que, como agora pos-
suía tempo e recursos, optou pela aprendizagem musical de um instrumento de que
gosta muito. Segundo estudos neurológicos o aprendizado de um instrumento mu-
sical melhora a vida do indivíduo, pois age modificando a sua estrutura cerebral,
aumentando a auto-estima e gerando sentimentos de satisfação e alegria.
Em síntese geral acerca do ensino de acordeom pode-se aferir que este exige do pro-
fessor um domínio técnico e prático do instrumento, e uma bagagem teórico-me-
todológica específica para fazer intervenções pedagógico-musicais na aprendizagem
desse instrumento musical, de modo a permitir que o aluno possa descobrir e de-
senvolver ao máximo seu potencial artístico, além de sentir-se realizado e feliz na
aprendizagem objetivada. Ademais, é imprescindível que possibilitemos aos nos-
sos alunos de música, o tempo para que estes cheguem à tomada de consciência por
conta própria dos conceitos musicais via fazer musical, visando à construção de um
conhecimento assimilado e consolidado. Pensando a educação musical na terceira
idade, vemos que a imersão no universo da música como acordeonista, fez com que
o educando supracitado pudesse se enxergar como um ser social ativo na figura de
um artista, mesmo que fosse em um estado transitório de amadorismo. Isso con-
tribuiu para a restituição de uma auto-imagem positiva, e do resgate da auto-estima
do idoso que ocupa, sim, um lugar significativo e importante no meio social do qual
faz parte e com o qual colabora para desenvolver uma sociedade melhor.
Finalizando, é mister frisar que outras iniciativas no que tange ao ensino de ins-
trumentos populares como o acordeom, bem como aos processos de ensino e apren-
dizagem musical com idosos venham a acontecer com mais freqüência, para
levarmos para a academia a discussão sobre essas duas questões, visto que, atual-
mente, na Europa e em outras partes do mundo estes temas possuem um status
maior que no Brasil, levando em consideração que o ensino desse instrumento é
bastante difundido nos regionalismos brasileiros e na música portenha, que guar-
dam relação estreita com a música do sul do Brasil. Enfim, este trabalho é apenas um
ponto inicial de uma discussão que precisa ser ampliada sobre um tema ainda pouco
explorado.
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.
A construção do conceito de harmonia tonal
através de aulas particulares de acordeom na região
metropolitana de Porto Alegre - RS: três estudos de caso
606 Jonas Tarcísio Reis
jotaonas@yahoo.com.br
FEEVALE, PPGEDU/UFRGS

Resumo
Esta comunicação discute dados preliminares de uma pesquisa em andamento, que busca
investigar especificamente como se dá a construção do conceito harmonia tonal, fo-
cando nos processos de ensino e a aprendizagem através do acordeom. Esta investi-
gação está sendo realizada por meio de três estudos de caso, com três professores de
acordeom - atuantes na região metropolitana de Porto Alegre – RS-, passando a co-
nhecer mais sobre suas concepções de educação musical e estratégias para o ensino e
a aprendizagem de harmonia tradicional. Desta forma, buscamos compreender como os
professores de acordeom abordam o conteúdo harmonia em suas aulas; quais são os
pressupostos pedagógico-musicais e teórico-metodológicos na abordagem de harmonia
em suas aulas; como fomentam os processos de ensino e aprendizagem desse con-
teúdo; quais são as estratégias para isso; como o aluno é visto na aprendizagem de har-
monia pelos professores e quais são as concepções de educação musical destes para o
ensino de harmonia. Assim, queremos compreender, que pressupostos teóricos e meto-
dológicos permeiam as práticas dos professores de acordeom para o ensino e aprendi-
zagem de harmonia, bem como saber que recursos (conhecimentos, habilidades e
competências) são utilizados para fomentar isso no ensino de acordeom. A importância
deste estudo se revela, principalmente, pelo fato de que o ensino e a aprendizagem de
acordeom se constituem em um fenômeno sócio-histórico antigo no Brasil, mas ainda não
investigado profundamente em nosso país. Portanto, a pertinência desse estudo vai ao
encontro da premissa em contribuir com a área de educação musical, especificamente
no tocante a psicologia da educação musical e a construção de saber musical fora de
instituições formais, possibilitando um maior e mais concreto diálogo com as práticas mu-
sicais do cotidiano e não escolares.

Introdução
A música e os instrumentos populares somente agora vêm ganhando mais espaço
no ensino superior. A música e o ensino de instrumentos populares no Brasil, tais
como acordeom, gaita de boca, viola caipira, cavaquinho, bandolim, entre outros, é
uma construção social e cultural que acontece ao natural, sem a intervenção ou
ajuda previamente planejada com intervenções educativo-musicais institucionali-
zadas. É um acontecimento sócio-cultural singular, que reflete o estado de desen-
volvimento de nosso país e o status que algumas culturas possuem em detrimento
de outras. São questões que fazem parte da história específica da constituição social
e cultural de um povo. Assim, se aprende e se ensina acordeom no cotidiano, em
conservatórios e escolas específicas de música também. Mas a criação e perpetuação
de estilos musicais e modelos pedagógico-musicais acontece no dia-a-dia e de modo
não estruturado em modelos institucionalizados como conhecemos, e que acon-
tece com o ensino de outros instrumentos como piano, violino, trombone, etc., por 607
exemplo.
Nessa perspectiva, ao longo dos anos foram surgindo inúmeros questionamentos
sobre tópicos específicos da minha prática docente. Essas perguntas e ocorrências
do cotidiano profissional acabaram me levando a eleger um ponto principal, mas
não único, para o qual busquei dedicar o foco desta pesquisa, discutindo com mais
propriedade e aprofundamento, a maneira como é tratado o ensino de harmonia
através da aprendizagem de acordeom dirigida por professores particulares de ins-
trumento.
Ao longo dos anos fui construindo uma pedagogia para o acordeom de acordo com
teorias da educação e educação musical em que acredito, transpondo conceitos e
métodos de outros instrumentos para o ensino de acordeom. Também fui perce-
bendo que a discussão sobre o ensino desse instrumento é muito escassa, princi-
palmente em termos de materiais bibliográficos publicados no Brasil. A reflexão
sobre a prática documentada é quase inexistente sobre esse instrumento em nosso
país. Por isso decidi contribuir com a área de educação musical. Portanto, procuro
ao longo da pesquisa lançar luz sobre inúmeros pontos, mas me centrando espe-
cialmente no tocante ao modo como aparece o conteúdo harmonia nas aulas de
acordeom de três professores atuantes na região metropolitana de Porto Alegre –
RS.

Justificativa
O ensino e a aprendizagem de acordeom se constituem em um fenômeno sócio-
histórico antigo no Brasil, mas ainda não investigado profundamente em nosso
país. Desse modo, uma investigação que desvenda questões relativas a estratégias
de ensino e aprendizagem desse instrumento nos possibilita a construção de um
conhecimento científico acerca de como esse parâmetro da música, harmonia, pode
ser ensinado, e como os professores trabalham esse conteúdo em suas aulas de acor-
deom, tendo em vista as especificidades do foco de pesquisa.
Apesar de estarmos falando de um instrumento musical consagrado em muitas cul-
turas, a sua discussão no âmbito da Educação Musical no Brasil ainda é muito vaga,
assim como a construção do conceito de harmonia através do ensino e aprendiza-
gem de acordeom e de outros instrumentos é um fato pouco contemplado nas pes-
quisas da área. Também existem poucas graduações em música nesse país que
enfocam instrumentos populares, mesmo apesar de sabermos que o acordeom se
apresenta como um instrumento muito difundido nas culturas populares e nos gê-
neros musicais próprios dessas culturas, que são apreciadas, criadas e difundidas
por boa parte da população da nação brasileira.
A necessidade de desenvolvimento deste estudo vai ao encontro da premissa em
608 contribuir com a área de educação musical, focando a psicologia da educação mu-
sical e a construção de saber musical fora de instituições formais. Para isso o estudo
está sendo realizado com professores particulares de instrumento, possibilitando
um maior e mais concreto diálogo com as práticas musicais do cotidiano1 e não es-
colares.
Através deste estudo poderemos começar a analisar cientificamente a construção do
conhecimento musical de harmonia através do acordeom, e consequentemente a
complexidade do ensino e da aprendizagem desse instrumento. Poderemos iniciar
uma breve compreensão das diferentes formas que os professores de acordeom uti-
lizam para a transmissão e apreensão de informações musicais, desvendando se exis-
tem metodologias compartilhadas entre essa classe profissional, revelando qual a
influência das tecnologias, das mídias, dos grupos musicais, dos festivais de música,
das escolas particulares de música, da família e dos amigos na concepção de educa-
ção musical desses professores, e as suas estratégias para o ensino e a aprendizagem
de harmonia. Será possível, também, revelar a presumível presença das culturas tra-
dicionalista, nativista e regionalista no ensino desse conteúdo musical. Destarte, ve-
remos a que níveis acontecem as trocas de experiências com colegas músicos e
professores, e quais as consequências dessas interações na educação musical desen-
volvida pelos professores de acordeom escolhidos. Também poderão ser descober-
tas fatos a respeito da ligação entre o aprimoramento como professor e o
aprimoramento como músico e quais as táticas próprias de ensino de harmonia,
onde a curiosidade e criatividade têm papel fundamental, seja na forma de lecionar
ou nos recursos materiais utilizados. Resultando, ao final, na compreensão da pe-
dagogia musical perpetuada nessa subclasse específica de educadores-músicos, e no
ensino e na aprendizagem de harmonia.

Metodologia
A presente pesquisa é de natureza aplicada, pois busca produzir conhecimentos
sobre a construção do conceito de harmonia através de aulas de acordeom, com vis-
tas a responder a seguinte questão: “Como se dá a construção do conceito de har-
monia tonal nas aulas de acordeom?”, sendo a busca pela resposta dessa pergunta
um problema específico circunscrito em uma subárea da educação, a educação mu-
sical. Para isso o método científico adotado será o dialético. De acordo com Pro-
danov e Freitas (2009, p. 140),
“a dialética fornece as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da
realidade, já que estabelece que os fatos sociais não podem ser entendidos
quando considerados isoladamente, abstraídos de suas influencias políticas, eco-
nômicas, culturais, etc. Como a dialética privilegia as mudanças qualitativas,
opõe-se naturalmente a qualquer modo de pensar em que a ordem quantitativa
se torna norma”.
O método dialético é, geralmente, empregado em pesquisas qualitativas, para tor- 609
nar possível a interpretação dinâmica e totalizante da realidade que se quer inves-
tigar sem deixar de fora informações que possam clarificar e dar mais confiabilidade
ao modo de se produzir conhecimentos, sem correr o risco de fazer deduções vazias
ou superficiais dos fatos que compõe o fenômeno a ser estudado.
Como procedimento técnico será utilizado o estudo de caso (Prodanov e Freitas,
2009, p. 140), que por alguns autores também é entendido como método científico
(Becker, 1997). Para outros autores é compreendido como estratégia de pesquisa
(Martins, 2008). Assim a pesquisa será conduzida de modo a compreender não iso-
ladamente o fenômeno em questão, mas olhando atentamente as influências eco-
nômicas, culturais, educacionais, políticas e regionais do ponto de vista social, que
permeiam e agem modificando o fenômeno abordado.
Dessa forma, é possível afirmar que o método dialético e o estudo de caso formam
a estrutura de base na qual se edifica a pesquisa, consistindo nos instrumentos prin-
cipais para a especificação do desenho metodológico dessa investigação científica.
Os dados foram recolhidos, principalmente, por meio de entrevistas semiestrutu-
radas, e da observação de duas aulas de cada professor.

Apontamentos sobre o acordeom


O acordeom, em formato semelhante ao que conhecemos hoje, é certamente um
produto da era industrial2. Uma época em que surgiram, no cenário ocidental, mui-
tos instrumentos que conhecemos hoje. Ele começou a ser difundido em modelos
parecidos com os que temos hoje, no século XIX, na Europa e, a partir daí se espa-
lhou pelo mundo. É uma invenção de muitos autores. Portanto, suas origens e au-
toria na história ainda não são muito claras. Como afirma Zanatta (2005, p. 42-43),
“fica difícil atribuir a autoria da inventividade deste instrumento, porque os aper-
feiçoamentos que foram acrescentados até atingir a forma que tomou, só foram
possíveis graças aos trabalhos de inúmeros artífices anônimos ao longo do tempo”.
O conhecido acordeom é um instrumento musical aerófono3. Composto por um
fole, um diapasão e duas caixas harmônicas de madeira. A seguir veja a gravura dos
principais modelos de acordeons cromáticos utilizados na atualidade no mundo.
Posteriormente, venho o acréscimo de registros tanto na mão esquerda quanto na
direita, trazendo maior variedade expressiva ao instrumento. Tal acréscimo per-
mitiu a combinação e utilização de diferentes timbres em um mesmo instrumento.
Isso tudo tornou possível a utilização de escalas complexas, modos diversos, har-
monia mais rebuscada e melodias com evoluções harmônicas mais ricas do que as
que eram possíveis de serem compostas nos acordeons diatônicos (modelo mais
primitivo). E conferiu ao instrumento possibilidades outras de aprendizado, difu-
são e incorporação em culturas populares de repertórios simples a complexos. Nes-
sas circunstâncias, o mundo erudito musical, também, começou a se valer das
610 possibilidades do acordeom e passou a inseri-lo em suas composições. Tanto que
Ludwig Van Beethoven tem um movimento para acordeom na sua sinfonia de nú-
mero sete. É o segundo movimento dessa obra sinfônica. Wolfgang Amadeus Mo-
zart também escreveu, em 1791, um Adágio e um Rondó para Glasharmonika4,
Flauta, Oboé, Viola e Violoncelo (KV 617) (Maurer, 1983, p. 27). Outros com-
positores menos famosos também privilegiaram o acordeom em suas obras (Ver
Maurer, 1983).

Figura 1. 1 — Acordeons cromáticos de 120 baixos, com teclado de piano,


e com botões, respectivamente.

O acordeom no Rio Grande do Sul


Acredita-se que com a chegada dos primeiros imigrantes alemães, a partir 1824, já
teriam sido trazidos os primeiros acordeons para o estado. Depois disso, como sa-
bemos durante a revolução farroupilha a imigração cessou por alguns anos, sendo
retomada mais tarde e, de forma mais intensa. Fora aí que a difusão do acordeom
se dera mais extensivamente, com a pacificação no estado.
Contudo, foram os italianos, chegados por volta de 1875, que adentraram em ter-
ritório gaúcho em ondas migratórias incentivadas pelo governo brasileiro, que di-
fundiram mais extensiva e intensivamente o acordeom. Tanto que na região da
serra gaúcha surgiram muitas fábricas de acordeom. Nessa região a cultura musical
do acordeom possui contornos próprios. Tanto que existe um estilo serrano de se
tocar acordeom. Na região da fronteira a maneira de tocar acordeom sofreu fortes
influências da música portenha. No entanto, são muitos os povos que tem o acor-
deom incorporado às suas tradições e costumes culturais. Dentre eles se destacam
os alemães, que também ajudaram na colonização do estado localizado na região
mais austral do Brasil.
O acordeom foi sendo difundido através de obras musicais populares de origem
europeia inicialmente, e depois com obras compostas no Brasil, estas criadas com
base em formas e modelos de discursos musicais também europeus. O acordeom
ajudou na difusão de diversos gêneros musicais, mas estes gêneros também ajuda-
ram na difusão do acordeom pelas diversas regiões do estado, devido a populari- 611
dade que assumiram nos diferentes cenários sociais e culturais de nosso estado.
Surgiu uma relação de cumplicidade entre o instrumento acordeom e vários gêne-
ros musicais trazidos de fora do estado e do país. Em cada microrregião do estado
os gêneros musicais foram sendo trabalhos, disseminados e modificados com base
nas culturas locais e nas concepções musicais pertencentes às culturas de diferentes
etnias que vieram a compor o espectro social cultural do povo gaúcho.

O lugar da Música Popular Gaúcha no ensino de acordeom


Por ser o acordeom um instrumento fortemente ligado às culturas regionais no
Brasil, o repertório musical que se têm para esse instrumento, a título de exemplo,
no sul do Brasil, está em grande medida inserido no que denominamos por Música
Popular Gaúcha (MPG)5. Então as músicas que são trabalhadas no instrumento
acordeom, que fazem parte do repertório da grande maioria dos alunos são advin-
das da música nativista e regionalista. Alguns alunos também procuram aprender
músicas sertanejas (caipiras como em outras partes chamam). Há também aqueles
que apreciam e desenvolvem-se musical e tecnicamente através de músicas de cor-
rentes culturais variadas e de várias partes do mundo.
A influência de gêneros musicais de países do MERCOSUL é notada nas aulas de
acordeom. Tangos, milongas, chacareras, raguidos dobles, entre outros gêneros mu-
sicais também estão no gosto de muitos jovens que procuram aprender a tocar acor-
deom. Esses gêneros musicais são executados em nosso estado por muitos músicos,
principalmente por artistas da corrente musical compreendida como nativista em
nosso estado. Todos esses gêneros têm seus caminhos harmônicos escritos dentro
do tonalismo ocidental. Modulações e tonicizações ocorrem, porém a tendência
dessas músicas é manter um centro tonal principal, especialmente as mais tradi-
cionais, mais antigas. Muitos músicos têm buscado inovar o estilo gaúcho de se
fazer música popular. Alguns desses músicos tentam mesclar gêneros musicais do
sul com de outras regiões do Brasil e do mundo. Algumas dessas tentativas são tí-
midas. Outras mais exacerbadas. O caso do Tchê Music é uma dessas tendências
mais, digamos, radicais. No entanto, o que prevalece são os complexos sonoros que
estão mais ligados às tradições. Isso decorre também pelo fato de o Movimento
Tradicionalista Gaúcho ser bastante sólido, presente e impositivo no estado, in-
clusive no que tange a conservação de modelos musicais tais como eram aprecia-
dos e desenvolvidos em épocas mais distantes de nosso tempo atual.
As músicas gaúchas fazem parte do imaginário cultural de boa parte do povo sul-
rio-grandense. Com os alunos de acordeom isso comumente é mais freqüente. Os
alunos que geralmente procuram professores de acordeom estão de alguma forma,
envolvidos com a cultura musical regional gaúcha. Eles muitas vezes participam de
CTGs, de grupos de danças folclóricas do sul. Essa participação nesses contextos
612 sócio-culturais onde o acordeom e a MPG estão presentes traz a possibilidade do
estabelecimento de influências musicais no tocante ao gosto e apreciação, também
resultando no desejo de tocar acordeom ou outro instrumento típico ou não, em-
pregados pelos grupos musicais que fazem MPG.
Assim, as interações sociais e físicas do sujeito com os objetos musicais no meio cul-
tural do qual o estudante faz parte é um fator determinante na sua escolha por tocar
acordeom e, consequentemente, no repertório escolhido ou idealizado pelo edu-
cando como meta intrínseca ao estudo de acordeom.

Revisão de bibliografia
Como sabemos a área de educação musical tem crescido muito ao longo dos últi-
mos vinte anos no Brasil. Nesse panorama histórico de avanço científico, a área tem
voltado seu olhar para discussões e reflexões que contemplam os espaços de ensino
e aprendizagem musical não escolares, onde culturas de ensino e aprendizagem de
instrumentos musicais diversos assumem a forma de fenômenos sócio-culturais e
sócio-musicais. Onde, também, metodologias, teorias e conceitos acerca de educa-
ção musical são produzidos, compartilhados, modificados, disseminados - às vezes,
mesmo que de forma não intencional ou inconsciente - e onde se criam concep-
ções de ensino e aprendizagem, de profissão, de formação pedagógico-musical e de
perfil ideal de profissional.
Mais especificamente quanto ao ensino de acordeom temos o trabalho de Reis
(2009), que trata do ensino de acordem na terceira idade. O autor reflete sobre pe-
culiaridades de processos de ensino e aprendizagem desse instrumento, entrecru-
zando saberes da área de educação musical, educação, sociologia, neurociências e
psicologia da aprendizagem musical. Por fim, traz apontamentos sobre referenciais
teórico-metodológicos próprios para o ensino de acordeom.
No campo específico de ensino de acordeom, também, temos o trabalho de Persch
(2006), que realizou um estudo de caso investigando as contribuições do uso de
software Encore na educação musical, tendo em vista o ensino particular de acor-
deom para alunos iniciantes. O Autor evidenciou que as tecnologias podem ser
grandes aliadas nos processos de ensino musical, no seu caso específico, no apren-
dizado de teoria musical. Persch (2006) fala que o programa auxilia o aluno na es-
crita e no entendimento de questões teóricas, o autor afirma que “os alunos que
ainda não dominam a leitura da partitura musical convencional, ou mesmo os que
sentem dificuldades em realizá-la, podem acompanhar a partitura sendo executada
no programa, inclusive selecionando trechos que ainda não estão memorizados”
(idem, p. 11). O autor faz-nos refletir acerca da competência profissional extra-aca-
dêmica, expressa no saber usar as tecnologias para o melhoramento de nossas aulas.
Machado (2009) realizou um trabalho investigativo em torno das práticas peda-
gógicas de dois professores de acordeom, buscando desvelar e registrar aspectos re-
levantes da docência em acordeom. O autor procurou compreender quais eram as 613
metodologias de ensino; que processos avaliativos os professores adotavam; como
acontecia o planejamento das aulas; que materiais didáticos utilizavam; como era
a relação professor-aluno; e quais eram as expectativas dos professores sobre os alu-
nos, sobre a profissão e o que almejavam enquanto educadores musicais. Essa pes-
quisa venho a contribuir no movimento necessário de discussão da pedagogia do
acordeom e da formação do professor de acordeom no contexto brasileiro, tendo
em vista a enorme carência de estudos na temática envolvendo acordeom em nosso
país.
Sobre a construção do conhecimento de harmonia, temos o trabalho realizado por
Pecker (2009), que buscou compreender os processos cognitivos que asseguram as
conquistas das crianças de dois a cinco anos de idade sobre os modos do sistema
tonal. Alguns trabalhos de Costa-Giomi (2003; 2001) sobre o desenvolvimento da
percepção harmônica na infância também podem ser mencionados como relevan-
tes para as reflexões que queremos projetar nesse estudo.
Já no campo da construção de conhecimento musical, pensado amplamente, com
reflexões teóricas baseadas no legado epistemológico de Jean Piaget, temos os tra-
balhos de Beyer (1999; 1996; 1995; 1994; 1988), Kebach (2008; 2003), Fink
(2001), Maffioletti (2004), Bündchen (2005), Specht (2007), entre outros que en-
focam processos de ensino e aprendizagem musical, que é uma problemática espe-
cífica da educação musical, e que deve ser alvo de reflexões científicas rumo à
estruturação de saberes mais consistentes na área em questão, bem como a cons-
trução mais concreta de uma epistemologia da educação musical para o nosso
tempo, e que dê explicações condizentes ao movimento de complexificação do ser
e estar da sociedade humana. Isso presume andar a par dos avanços científicos na
área da educação e em outros campos do saber.

Algumas considerações preliminares


Os professores entrevistados trouxeram dados que elucidam a existência de um en-
sino musical e, uma respectiva aprendizagem no acordeom, permeados pelo incen-
tivo e valorização da prática musical em si, salientando também o desenvolvimento
da percepção auditiva. E, nesse ponto, no tocante ao desenvolvimento da percep-
ção auditiva, reside e tem fundamental importância as noções de encadeamentos
harmônicos, seja no âmbito horizontal ou vertical temporal de desenvolvimento
das músicas. Assim, ocorre que os professores incentivam bastante o ato de tirar
música de ouvido. Eles vêem essa prática como intrínseca a aprendizagem de acor-
deom, levando, nesse caso, em consideração o trabalho musical com repertório po-
pular. Também essa prática decorre de uma necessidade de contornar as
dificuldades encontradas na busca por material didático-instrumental, ou seja, por
614 partituras de obras para compor repertório. Então, o útil (tirar músicas de ouvido),
e o agradável (desenvolver a percepção musical), que também é considerado como
necessário pelos professores se coadunam na prática educativo-musical de ensinar
e aprender acordeom.
Em tal sentido, o desenvolvimento da percepção harmônica está atrelado - pode-
ríamos dizer dependente - diretamente ao desenvolvimento da percepção musical
como um todo, seja no âmbito dos ritmos, dos timbres6, das alturas e também das
intensidades, principalmente no tocante a construção de acordes e arpejos, onde a
interpretação de cada músico confere características singulares no produto musical
final, seja este uma música registrada na forma de gravação fonográfica, ou uma
apresentação não registrada, mas sim apreciada ao vivo.

Exemplo do Professor “Y” na abordagem da harmonia


No que concerne a abordagem da harmonia nas aulas do professor “Y”, podemos
notar que a visão do professor quanto à aprendizagem do instrumento delineia a sua
conduta para o tratamento pedagógico de determinados elementos da linguagem
musical no acordeom. O professor afirma que a harmonia vai surgindo nas aulas.
Ele faz afirmações que, devido à construção do mecanismo mecânico que é empre-
gado na baixaria, o ensino de harmonia tonal não acontece como em outros ins-
trumentos. Isto porque as relações harmônicas entre os acordes mais usados, em
complexos harmônicos simples, como as estabelecidas entre Tônica, Dominante e
Subdominante, tem seus botões de acionamento de notas e acordes localizados lado
a lado. A Tônica no centro, Subdominante abaixo, e acima da Tônica o botão da
Dominante. Nisso a obtenção de um acompanhamento se dá pelo uso e execução
constante de uma célula rítmica que, minimamente faz uso de dois dedos e duas
notas por função - isso depende da técnica de execução na baixaria de que se pode
estar tratando, pode ser a de baixos alternados ou não (Ver Mascarenhas, 2003).
Para compreender a disposição física dos botões de acionamento de acordes na bai-
xaria do acordeom, veja o exemplo abaixo, extraído de Mascarenhas (2003, p. 32):
615

O professor diz que a harmonia não é ensinada explicitamente. Ela surge como
parte integrante e indissociável das obras musicais e gêneros musicais tidos como
conteúdo. “Devido à construção do instrumento, dos acordes dados nos baixos
para acompanhamento, pela facilidade dos acordes dados” (Professor Y). Ele fala
que os acompanhamentos para os gêneros musicais como xote, vaneirão e valsa, por
exemplo, são facilitados na baixaria, pois as músicas são na grande maioria tonais.
Reforçando o professor relata que:
Principalmente quando se faz o acompanhamento de certos gêneros musicais, os
acordes diatômicos já estão prontos e você acaba usando disso, que é uma faci-
lidade. É incomum a gente ter isso pronto assim [em outros instrumentos]. Mas
ao mesmo tempo a gente acaba não mais abordando questões harmônicas, por-
que isso já fica muito fácil. Por exemplo, a primeiro e quinto graus ficam um do
lado do outro: fica muito tranqüilo de fazer acompanhamento. Já no piano você
vai ter que construir esses acordes diatômicos (Professor Y).

Considerações finais
Todos os professores entrevistados mencionaram em algum momento das entre-
vistas, que buscam contemplar as necessidades dos educandos. De tal forma, pro-
curam estruturar suas aulas com base nos desejos dos educandos, e primando pela
construção do saber musical que seja significativo para o educando. Nesse sentido,
o querer do educando tem mais força de voz do que a utilização de métodos en-
gessados ou a utilização de fragmentos de métodos distintos, que muitas vezes
foram escritos e idealizados para o ensino musical em outras realidades culturais e
sociais. Quanto a isso, Beyer (1988, p. 08) ressalta que,
O ecletismo generalizado é a base de ação para um número significativo de edu-
cadores musicais. Logicamente por necessidades de se ancorarem sobre um fun-
damento sólido (que é inexistente), aproveita-se um pouco de cada método,
exatamente aquilo considerado aleatoriamente como o melhor, deixando de
lado o restante. Pensa-se desta forma, estar completo o novo método criado, pois
tem por base um número grande de autoridades na educação musical (grifos da
autora).
No entanto, a necessidade do educador é criar uma metodologia para cada edu-
cando, com base na realidade cultural musical deste. Considerando prioritaria-
mente os conhecimentos musicais que este já possui. Assim, contemplar no plano
de estudos os vários elementos da música com vistas ao desenvolvimento completo
616 do aluno na linguagem musical, e almejando que este passe a ser dominador dessa
linguagem, sendo capaz de manipulá-la e ressignificá-la ao fazer uso da sua capaci-
dade inventiva, que deve ser desenvolvida na aula de música, é militar por uma edu-
cação musical libertadora: que não desenvolva meros reprodutores de constructos
musicais; executores de obras já prontas.
É preciso desenvolver seres capazes de criar novidades na música, ou pelo menos re-
criar músicas de modos singulares. Porém, para que isso aconteça é preciso pensar
em um ensino que não se restrinja ao simples desenvolvimento de repertório, e que
contemple a música como discurso fazendo o estudo dos diversos elementos musi-
cais que a constituem, estando inseridos aí os paradigmas harmônicos que nos estão
disponíveis, e que a partir desses o educando possa criar novos padrões se quiser.
Enfim, que a inventividade, criatividade, e liberdade sejam palavras intrinsecamente
ligadas e norteadoras dos processos educativo-musicais fomentados com o acor-
deom, independentemente do nível de aprofundamento e domínio da linguagem
musical que o educando tenha. E que seja considerada a construção progressiva de
conhecimento musical, sem privar o educando da tomada de consciência de ele-
mentos chave da arte musical.

1 Sobre as teorias do cotidiano aplicadas à educação musical, ver Souza, 2000; 2008.
2 Segundo Zanatta (2005, p. 49), “o acordeom é o primeiro instrumento da nova era da in-
dustrialização. Os primeiros acordeons construídos em série aparecem a partir de 1830 pelas
firmas: Buffet (Bélgica), Napoleón Fourneaux, e Bousson (França). Inicialmente, enquanto
produto industrial, dele derivara duas versões: acordeom tônico de botões, com um som para
cada botão, e o acordeom diatônico, composto por uma a três carreiras de botões e com a
emissão de dois sons por botão, obtidos conforme o movimento do fole” (grifos da autora).
São os movimentos de abrir e fechar o fole, no acordeom diatônico, que permite a obtenção
de notas diferentes através do acionamento de um mesmo botão. Ainda de acordo com os
dados levantados por Zanatta (2005, p. 47), podemos dizer que havia certos graus de inte-
resse dos artesões com vistas ao aperfeiçoamento do acordeom. Esse interesse manteve-se
com base na utilização do mesmo princípio de palhetas de soprar. Isso possibilitou o surgi-
mento de novas variações pelo mundo. “Em Londres, Charles Wheatstone registra, em 19
de junho de 1829, um instrumento chamado Concertina, que foi muito difundida pelos ma-
rinheiros da Grã-Bretanha. Em 1834, Carl Friedrich Uhlig, musicista e construtor de ins-
trumentos na Saxônia, durante uma viagem em Viena, vem conhecer o princípio do
acordeom de Demian. Em seguida, ele desenvolve um instrumento de forma quadrada, a
Concertina Alemã” (idem, grifos da autora).
2 Segundo a classificação organológica proposta por Curt Sacks (1881-1959), trata-se de
uma denominação para qualquer instrumento de madeira, de metal, de fole, etc., que soa
por meio do ar posto em vibração.
3 Esse instrumento é um modelo mais primitivo do acordeom como conhecemos hoje.
4 Compreende-se como sendo Música Popular Gaúcha, todas aquelas obras musicais que
por algum motivo tem raízes no estado do Rio Grande do Sul, seja pelo fato de que aqui che-
garam por intermédio dos imigrantes e caíram no gosto da população gaúcha no passado, ou
que aqui nesse estado emergiram com base em gêneros e concepções musicais originárias dos 617
povos indígenas ou trazidas para o estado de outras partes do Brasil e do mundo e na cultura
sul-rio-grandese sofreram modificações que lhe conferiram caracteres diferenciados de suas
origens. Portanto, a vaneira, valsa gaúcha, marcha, xote, polca, milonga, chamamé, bugio,
etc., são gêneros musicais representantes diretos do estilo musical gaúcho, e compõem o que
chamamos de MPG. MPG é todo o tipo de música que guarda relações diretas com estilos
musicais mais antigos perpetuados no Rio Grande do Sul, construções musicais que secu-
larmente se consolidaram e estão incrustadas na cultural gaúcha e que ainda hoje são pro-
duzidas, difundidas e apreciadas no estado ou fora dele, mas a origem geográfica do estilo se
encontra no supracitado estado.
5 No acordeom, trata-se das mudanças de registros, ou então das diferenças de sonoridades
existentes entre os diferentes tipos de acordeom, porque em alguns casos há o ato de trans-
por uma música executada no acordeom diatônico ou cromático para o apianado por meio
da audição de um e interpretação em outro. E, então, passamos a ter a diferença dos timbres
como fator responsável por mudanças no modo de abstrair as informações musicais da obra,
uma vez que os harmônicos passam a se apresentar com intensidades variadas em vista do ma-
terial físico utilizado na confecção do instrumento.

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em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, 2007.
Zanatta, M. A. F. Dialetos do acordeão em Curitiba: Música, cotidiano e representações so-
ciais. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Ponta
Grossa. Ponta Grossa, 2005.
Ensino coletivo de instrumentos musicais: auto-estima e
motivação na aprendizagem musical realizada em grupo
Tais Dantas
Tais.dantas@hotmail.com 619
Universidade Federal da Bahia

Resumo
Como fruto da conclusão do Mestrado em Educação Musical, sob orientação do Pro-
fessor Dr. Luiz César Magalhães, este artigo apresenta os resultados da incursão realizada
sobre as relações existentes entre a auto-estima, autoconceito acadêmico e motivação
em aulas coletivas de instrumentos musicais. A investigação focou a influência das rela-
ções interpessoais entre os alunos e professores sobre esses aspectos e sua interface com
a aprendizagem musical. A auto-estima tem sido alvo de diversos enfoques na área da
psicologia e, sobretudo, no campo da educação. São inúmeras as abordagens e contri-
buições que estudos e pesquisas sérias vêm acrescentando aos processos de ensino e
aprendizagem, e conseqüentemente à aprendizagem coletiva de instrumentos musicais,
por ser um ambiente onde o indivíduo reforça suas relações interpessoais. Como a auto-
estima é um tema complexo e extremamente amplo, a pesquisa buscou orientar-se ape-
nas por parâmetros referentes aos processos de ensino e aprendizagem bem como às
relações desenvolvidas nestes processos, utilizando como referência autores que se des-
tacam no campo da pedagogia e psicologia da educação abordando auto-estima e
aprendizagem. O desenvolvimento da pesquisa se deu por meio de uma investigação
realizada numa escola do ensino fundamental, em duas turmas da 5ª série que participam
das coletivas de instrumentos de cordas como componente curricular da disciplina Artes.
Além da observação das aulas, a coleta de dados foi realizada a partir da realização en-
trevistas focadas com os 21 alunos que freqüentam as aulas de música. Ao longo do tra-
balho evidenciaram-se alguns fatores que interferem na formação, manutenção e
alteração da auto-estima, do autoconceito e da motivação no processo de aprendiza-
gem observadas no ensino coletivo, como: o papel dos professores e dos colegas da
classe como “outros significantes”; a reação diante das críticas e elogios; e a relação
existente entre apoio dos pais e percepção de desempenho.
Palavras-chave
Ensino coletivo, auto-estima, autoconceito, motivação, aprendizagem musical.

A Auto-estima e aprendizagem musical em grupo


Por que abordar auto-estima em ensino coletivo? O tema tem sido alvo de diversos
enfoques na área da psicologia e, sobretudo, no campo da educação. Contudo, ape-
sar da complexidade que envolve tal aspecto, verifica-se que a produção bibliográ-
fica a respeito do tema tornou-se bastante abrangente, como constata Moysés (2007,
p. 17-18) existe um certo modismo em relação à auto-estima: “a auto-estima virou
palavra mágica. Cabe no anúncio profissional que trata depressão, que faz hipnose,
regressão de memória [. . .]. A respeito desse modismo, percebi que os estudos e as
pesquisas no campo do autoconceito e da auto-estima vão alcançando refinamen-
tos cada vez maiores, ainda que com enfoques e concepções diferentes.”
Apesar das inúmeras abordagens que a auto-estima inspira em diversos campos,
620 destacam-se em especial as contribuições que estudos e pesquisas sérias vêm acres-
centando aos processos de ensino e aprendizagem. Esta relevância também pode
ser observada no campo do ensino coletivo de instrumentos musicais por se tratar
de um ambiente onde o indivíduo reforça suas relações interpessoais, contribuindo
para o seu desenvolvimento psicossocial e para a sua formação como ser humano,
acarretando em ganhos para a aprendizagem musical. Diante da complexidade do
tema, esta pesquisa buscou orientar-se por parâmetros que dizem respeito aos pro-
cessos de ensino e aprendizagem bem como às relações desenvolvidas nestes pro-
cessos.
O propósito geral da pesquisa foi investigar certos aspectos psicossociais presentes
no ensino coletivo de instrumentos musicais e que interferem positivamente no
processo de aprendizagem musical. A pesquisa procurou investigar de que forma as
interações no grupo influenciam a auto-estima e a motivação nas aulas coletivas, e
como estes aspectos estão presentes e interagem na relação aluno-aluno e aluno-
professor. A pesquisa foi desenvolvida por meio de um estudo de caso exploratório
realizado com professores do ensino coletivo e com alunos de duas turmas da 5ª
série do ensino fundamental II do Colégio Adventista de Salvador (Bahia) que par-
ticipam das aulas de instrumentos de cordas, oferecidas na grade curricular como
opção na disciplina Artes. Onde se utilizou como instrumento de coleta de dados
a entrevista espontânea e focada1. Para análise dos dados utilizou-se como aporte
teórico para os elementos investigados as contribuições das seguintes áreas: educa-
ção musical, psicologia da educação, psicologia social e a psicologia da música. Neste
texto apresentamos determinados aspectos que foram investigados com a realiza-
ção da pesquisa de mestrado, focando o aprofundamento realizado sobre o auto-
conceito e a auto-estima.
A construção do autoconceito e formação da auto-estima
Quando nascemos não sabemos muito a nosso respeito. No decorrer do nosso cres-
cimento e nossa aprendizagem nos deparamos com alguns conceitos que nossos
pais nos mostram sobre nós mesmos, a estes se acrescentam outras definições que
nós construímos baseadas na observação de outras pessoas com quem convivemos.
Esses rótulos vão se agregando a nossa imagem ao longo do tempo, e desta forma
vamos criando um autoconceito.
Nas interações ocorridas em sala de aula o aluno está constantemente realizando ob-
servações sobre si mesmo e sobre os outros. Através destes processos de avaliação,
próprios e de terceiros, ele também vai construindo seu autoconceito. “Como a
própria palavra denota, o autoconceito procede de processos cognitivos. Ele é fruto
da percepção que a pessoa tem de si mesma. Como todo processo de percepção, está
sujeito a uma série de fatores externos e internos à própria pessoa (Moysés 2007, p.
18).”
“O aluno que ali está traz consigo o selo da sua origem e da suas história como um 621
ser social. Ser que vive em determinado ambiente sociocultural ao qual in-
fluencia e pelo qual é influenciado. O autoconceito acadêmico, nessa visão, passa
a ser mais um ângulo, dentre vários, passíveis de ser focados. Há um imenso
leque de possibilidades que podem ser trabalhados para além das habilidades
vinculadas à escola. Campos como os das artes, dos esportes, da cidadania e da
consciência grupal oferecem um manancial inesgotável de opções de trabalho
nesse setor. Experiências bem vividas em qualquer uma dessas áreas acabam ofe-
recendo pontos de apoio reais para a auto-estima.” (Moysés 2007, 28)
De acordo com Antunes (2007, 23), apoiado nos trabalhos de Carl Rogers e de
George Kelly (1955), a criança não nasce com a auto-estima formada através de
uma condição genética nem tão pouco é resultado da inteligência ou da personali-
dade, a auto-estima é construída através da interiorização da imagem que pais e
professores fazem da criança. “As crianças e adolescentes estão continuamente per-
guntando a si mesmos ‘como estou indo?’ Elas medem as reações verbais e não-ver-
bais das pessoas significativas – pais e outros membros da família nos primeiros
anos, e amigos, colegas e professores mais tarde – para fazer julgamentos. Os alunos
comparam seu desempenho a seus próprios padrões e ao desempenho dos pares.”
(Woofolk 2000, 78). As pessoas inseridas neste contexto atuam como “outros sig-
nificativos”, uma vez que o indivíduo estabelece as relações mais significativas para
a formação de sua identidade e de sua auto-estima.
Esta relação na aprendizagem musical em grupo se constrói de maneira semelhante,
pois a aula coletiva de instrumentos musicais possui os mesmos atores, ou seja, alu-
nos e professores, e o rendimento escolar que é dado pela evolução do aluno no de-
sempenho técnico no instrumento.
O autoconceito não é formado apenas a partir de uma perspectiva pessoal de jul-
gamento, as idéias e opiniões externalizadas por outras pessoas a nosso respeito tam-
bém fazem parte da construção. Moysés (2005, 26) destaca a relevância das pessoas
que a criança considera importantes, como pais e “outros significantes”, para a for-
mação do autoconceito e da auto-estima. A autora afirma ainda que a partir das re-
lações desenvolvidas com estas pessoas é que “a criança estabelece as relações mais
significativas para a formação de sua identidade. Nas suas mãos estão o poder e o
controle e, em conseqüência, a aprovação e a recompensa ou a reprovação e o cas-
tigo.” A influência destas pessoas se dá por meio da importância que elas represen-
tam para o indivíduo e das reações geradas a partir da aprovação ou reprovação
elaborando um conceito positivo ou negativo de si mesmo, desta forma, transpondo
estas relações para a aula de instrumento em grupo, pode-se afirmar que as atitudes
e opiniões dos professores e colegas numa turma de ensino coletivo influenciam di-
retamente na formação do autoconceito do aluno.
Sobre a formação do autoconceito, Antunes (2007, 20-21) chama a atenção para os
rótulos que são impostos às crianças, que muitas vezes lhes tira a oportunidade da
622 auto-exploração, uma vez que depositam extrema confiança nos adultos e acabam
por aceitar estes rótulos sem fazer algum questionamento sobre seu próprio con-
ceito. Contudo estes rótulos podem estar corretos ou não, e “é por essa razão que
a escola precisa ajudar toda criança a se autoconhecer, pois assim sentir-se-á apoiada
em bases firmes sobre as quais construirá sua vida e saberá identificar o que neces-
sita ser mudado e como realizar essa mudança” (Antunes 2007, 21). Não basta ape-
nas, para a escola, construir um ambiente onde alunos e professores se respeitem, é
preciso também desenvolver uma postura crítica nos alunos de forma que ele possa,
por si mesmo, desenvolver sua auto-imagem.
De maneira considerável, o ensino coletivo de instrumentos musicais proporciona
aos alunos a oportunidade de se depararem com a heterogeneidade, fazendo com
que se confrontam com a realidade do outro a todo o momento, pois cada aluno
traz consigo sua história e sua cultura que é compartilhada com os demais. Numa
classe de ensino coletivo, assim como em qualquer ambiente escolar, o aluno está
exposto a diversas referências que influenciam a formação do seu autoconceito,
muitas vezes ele vê o professor como um referencial de ideal e o colega como um es-
pelho, em que ele pode se projetar. Contudo Antunes (2007, 21) ressalta que “se
existe coerência e congruência entre a maneira como se vê e os anseios do que de-
sejaria ser, apresentará um desenvolvimento equilibrado e integrado.” O autor segue
enfatizando a importância do papel dos professores devendo ensinar a criança a se
conhecer e buscar seus ideais. “Se aceitarmos e valorizarmos nossos alunos, se o con-
siderarmos capazes de desenvolver competências e habilidades necessárias para lidar
com seus estudos e se os julgarmos suficientemente importantes para reservarmos
tempo em ouvi-los, contribuiremos para que desenvolvam padrões consistentes e
realistas, sintam-se encorajados a não se intimidar com o fracasso e aprendam a agir
de forma independente e responsável.” (Antunes 2007, 23-24).
Abordando a relação entre autoconceito e auto-estima Moysés (2007, 27) afirma
que “a auto-estima representa o nível de satisfação que a pessoa sente quando se
confronta com o seu autoconceito.” A auto-estima diz respeito ao julgamento pes-
soal, positivo ou negativo, que a pessoa faz de si mesma, “em termos práticos, a auto-
estima se revela como a disposição que temos para nos ver como pessoas
merecedoras de respeito e capazes de enfrentar os desafios básicos da vida” (Moy-
sés 2007, 19). Guilhard (2002, 12) enfatiza diversos aspectos que contribuem para
a formação da auto-estima, em especial destacam-se aqueles que dizem respeito às
interações sociais: “Auto-estima é produzida por uma história de reforçamento po-
sitivo social, em que a pessoa tem seus comportamentos reforçados pelo outro; [. .
.] Auto-estima só se desenvolve a partir da inserção da pessoa num contexto social
e esse desenvolvimento é proporcional à capacidade do meio social (dos pais, fa-
mília etc.) de prover reforçadores positivos para seus membros (filhos, por ex.).”
Para Humpreys (2001, 16) a auto-estima possui duas dimensões principais, são
elas: o sentimento de ser amado e o sentimento de ser capaz. Para o autor estas di- 623
mensões da auto-estima podem ser percebidas no comportamento da criança, e cita
os seguintes exemplos: a criança que demonstra um comportamento agressivo e
que costuma chamar a atenção pode ter dúvidas sobre a sua capacidade de ser
amada; a criança perfeccionista que evita o fracasso, que se irrita com os erros e com
as provas escolares pode estar em dúvida sobre a sua capacidade. Humpreys acres-
centa ainda que a auto-estima dos pais e professores também será refletida na for-
mação da auto-estima da criança, “os pais e professores com auto-estima elevada
vão induzir uma auto-estima elevada nas crianças, mas o inverso também é
verdadeiro.”
Auto-estima e motivação para a aprendizagem musical
Abordando aspectos psicológicos existentes na aprendizagem musical em grupo
Cruvinel (2005, 81) afirma que “na medida em que a interação grupal ocorre, o su-
jeito se sente realizado por fazer parte daquele grupo, com isso, sua auto-estima au-
menta, da mesma forma que sua produção e rendimento.”
No campo educacional a auto-estima tem sido abordada com um fator que in-
fluencia diretamente no rendimento escolar. Schunk (1990), citado por Senos
(1997, 01), afirma que alunos que se sentem seguros das suas capacidades de apren-
dizagem e com sentimento geral de competência tendem a estar mais motivados
para as tarefas e logo obtém melhores resultados, fato este que contribui para a ele-
vação de sua auto-estima, ou seja, “alunos com uma atitude positiva face às suas ta-
refas escolares, têm na realidade melhores resultados e conseqüentemente, um
autoconceito acadêmico reforçado” (Senos e Diniz 1998, 02). O oposto também se
confirma no fato de que o aluno que não se sente confiante diante de suas capaci-
dades costuma desenvolver uma auto-estima baixa e conseqüente desmotivação
para os estudos, fato que pode ser refletido em qualquer ambiente escolar inclusive
nos estudos musicais. Corroborando esta idéia, Oliveira (1994, 11) afirma que alu-
nos indisciplinados e com rendimento escolar baixo, em geral costumam fazer um
julgamento negativo a seu respeito, considerando-se incapazes de realizar determi-
nadas tarefas propostas pelo professor.
Verifica-se a existência de quatro classes da motivação, para a conduta humana e
para a conduta de aprendizagem, abordadas por Tapia e Fita (2006, 78-79), são
elas: (1) a motivação relacionada com a tarefa ou motivação intrínseca; (2) a moti-
vação relacionada com o eu e com a auto-estima; (3) a motivação centrada na va-
lorização social (motivação de afiliação); (4)
a motivação que aponta para a conquista de recompensas externas. Em especial des-
taca-se a classe que diz respeito ao autoconceito e a auto-estima, que interferem no
processo de aprendizagem.
Partindo do princípio de que os alunos optam por estudar música por uma inicia-
624 tiva própria, podemos dizer que o mesmo está motivado para a aprendizagem mu-
sical, onde cada descoberta é um desafio que torna o estudo da música motivante.
Porém, a falta de motivação para as atividades nas aulas de música pode ser uma in-
dicação de baixa auto-estima. “A criança com uma auto-estima elevada tem uma
curiosidade natural para o aprendizado e se entusiasma com cada novo desafio. Ela
se sente confiante em situações sociais e desafios no estudo. Por outro lado a criança
com auto-estima média ou baixa perde o estímulo para aprender; qualquer apren-
dizado representa um risco de erro ou fracasso, fatores que trouxeram a humilha-
ção e a rejeição no passado” (Humpreys 2001, 21).
Para Humpreys (2001, 20) “o sucesso e o fracasso por si não têm efeito sobre a mo-
tivação para o aprendizado, mas as reações, por parte de pais, professores e outros
adultos significativos, ao fracasso e ao sucesso das crianças, têm sobre elas um efeito
devastador.” De acordo com este autor os pais não devem incentivar seus filhos
pelos resultados alcançados, mas pelo esforço empenhado, “o que conta é o esforço,
não o desempenho. A ênfase no desempenho pode eventualmente fazê-lo desistir
dos esforços ou levá-los a tentativas exageradas.”

Observando a aula coletiva


Antes expor algumas análises realizadas a partir das observações de aulas e entre-
vistas com os alunos é preciso destacar que abordar auto-estima requer certos cui-
dados. Para Moysés (2007, 21) não é possível tratar a auto-estima e o autoconceito
de uma forma linear, já que “a rede de influências dos conteúdos interpsicológicos
é muito mais ampla do que se pode supor à primeira vista.”
Ao chegar à escola a criança já traz consigo o registro de uma auto-imagem, fruto
das relações desenvolvidas com pais e familiares. “Nessa perspectiva histórico-social
e, ao se procurar entender a problemática da auto-estima no âmbito educacional,
não há como negar a presença das mais variadas influências, a começar pelos con-
textos socioeconômico e cultural. É algo que passa pelo próprio grupo, pela famí-
lia e pelas interações existentes interpares, até chegar à organização da classe como
grupo.” (Moysés 2007, 21-22).
Diante destas verificações, a orientação basilar deste trabalho se deu a partir da ob-
servação da influência das relações interpessoais entre os alunos e professores de
uma classe de ensino coletivo sobre a auto-estima e sua interface com a aprendiza-
gem musical.
Entre os alunos há mais críticas ou elogios?
É possível verificar numa aula de instrumento em grupo alunos fazendo observações
sobre o desempenho dos outros. Essas observações podem ser externadas através
de brincadeiras, da correção de erros, chamando a atenção do professor apontando
quem errou, entre outras observações. Através de certas brincadeiras a auto-estima
do aluno pode ser afetada, “nascidas das relações interpessoais, as referências nega-
tivas aí presentes – ainda que em tom jocoso – vão sendo internalizadas pelo aluno, 625
passando a servir de ponto de referência para o seu autoconceito” (Moysés 2007,
22-23). Foi perguntado aos alunos se entre os colegas havia mais críticas ou elogios,
e como eles se sentiam diante desta situação. As respostas a este questionamento
foram organizadas e expostas a seguir. 2
Quadro 1 – de que maneira os alunos reagem diante das críticas ou elogios
Aluno Mais elogios ou críticas? Como o aluno reage diante das críticas
AEC 1, AEC 2, AEC 3, AEC 9, Indiferente, pois não se importa com
Críticas
AEC 14 e AEC 15 opinião dos outros.
AEC 6, AEC 11, AEC 12 e AEC 13 Críticas Mais motivado para estudar
Indiferente, pois não se importa com
AEC 4 Críticas e elogios
opinião dos outros.
AEC 5 Críticas e elogios Mais motivado para estudar
AEC 7, AEC 8, AEC 10 e AEC 17 Elogios Mais motivado para estudar
Fonte: Dantas, Tais. Pesquisa de campo.
Em um julgamento precipitado poderíamos dizer que diante das críticas dos cole-
gas o aluno se sentiria desmotivado. Contudo, o fato de receber uma crítica para al-
guns pode vir a ser um motivo para motivar-se ainda mais, impulsionando o aluno
para superar as dificuldades.
A presença de outros colegas que possuem os mesmos objetivos e que estão a todo
momento, de alguma maneira, interagindo com os outros, é realmente o diferen-
cial nas aulas de instrumentos musicais. Os alunos de alguma forma interferem na
aprendizagem do outro seja de forma explícita ou implícita, e uma forma de inter-
ferência é realizar críticas ou elogios, podendo estes fatores representarem um acrés-
cimo ou não na motivação do outro. Embora haja mais críticas do que elogios, de
forma geral, as críticas entre os estudantes entrevistados pareceram não interferir
negativamente na motivação, e em alguns casos serviu como um impulso para que
os estudantes se motivassem mais para alcançar melhores resultados nos estudos. A
percepção de críticas e elogios foi bastante diferenciada entre os alunos, ao passo que
a maioria afirma haver mais críticas do que elogios no grupo, quatro alunos afir-
maram que não existe nem críticas nem elogios. Mas, o que mais chama a atenção
é realmente o fato os alunos não se intimidarem facilmente diante das críticas. E é
neste ponto que se destaca a relevância das relações desenvolvidas em sala de aula,
pois, “as experiências, os êxitos e os fracassos, a opinião que os outros têm de nós co-
laboram de forma considerável para definir nosso autoconceito e auto-estima”
(Tapia e Fita 2006, 79).
Percepção de desempenho
O questionamento em relação à forma como os alunos viam seu desempenho tam-
bém teve o objetivo de se verificar a construção do autoconceito musical. O auto-
conceito foi abordado sob a ótica da educação como autoconceito acadêmico, para
626
tanto, “entenda-se por autoconceito acadêmico, aquilo que o aluno pensa de si pró-
prio, sobre o seu desempenho e rendimento escolar e que lhe é fornecido pelas notas
que tem e pela atitude que os professores, pais e colegas adotam em relação a ele.”
(Senos e Diniz 1998, 268).
O autoconceito acadêmico e sua relação com a motivação têm sido alvo de discus-
são entre diversos autores, a exemplo de Senos (1997), Moysés (2007), Silva e Braga
(2009). É muito delicado afirmar se o rendimento escolar interfere na auto-estima
ou se a auto-estima influencia no nível de rendimento escolar, ressalta Moysés (2007,
38), de acordo com a autora as pessoas que possuem uma percepção positiva de si
mesma, se sentem mais confiantes e têm uma boa expectativa para o sucesso, aca-
bam se saindo bem. Contudo, há sempre que se destacar que inúmeros outros as-
pectos podem influenciar tais fatores.
Para verificar a construção do autoconceito, que também é construído a partir das
observações e comparações entre os alunos, foi perguntado se eles comparavam o
seu desempenho com o desempenho dos demais colegas, e como os mesmos obser-
vavam esse desempenho musical em relação aos demais. As respostas foram trans-
critas no quadro a seguir:
Quadro 2 – Observação de desempenho musical pessoal em relação ao
desempenho dos colegas.
Aluno Como você vê seu desempenho em relação ao desempenho dos seus colegas?
AEC 1 Um bom desempenho (porém afirma não fazer esse tipo de observação).
AEC 2 Mais ou menos, bem legal pelo menos.
AEC 3 Afirma não fazer esse tipo de observação.
AEC 4 Afirma não fazer esse tipo de observação.
AEC 5 Bem.
AEC 6 Mesmo desempenho.
AEC 7 Toco bem.
AEC 8 Afirma não fazer esse tipo de observação.
AEC 9 Afirma não fazer esse tipo de observação.
AEC 10 Com os elogios e críticas dos professores.
AEC 11 Que eles aprendem melhor que eu.
AEC 12 Às vezes me sinto burra comparando com os colegas.
AEC 13 Um pouco atrasado.
AEC 14 Muito bem.
AEC 15 Bem, porque nós aprendemos juntos e somos bem desenvolvidos.

AEC 16
Às vezes igualmente na aprendizagem e também quando vejo alguém melhor que eu, 627
estudo mais.
AEC 17 Não respondeu.
AEC 18 Todos iguais.
AEC 19 Bem. Acho que em algumas músicas eu acompanho bem, e sempre tento me igualar.
AEC 20 Não respondeu.
AEC 21 Igual

Fonte: Silva, Tais Dantas. Pesquisa de campo.


A maioria dos alunos entrevistados realiza comparações entre o seu desempenho e
o dos colegas e através das comparações vai estabelecendo elementos para verificar
o seu nível de desempenho e, dentre outras variáveis, formular um autoconceito. A
partir das respostas pôde-se verificar que estas observações influenciam na forma-
ção do autoconceito, uma vez que a observação acaba por gerar parâmetros sobre
os quais é construída a sua imagem como instrumentista. Assim como os alunos
comparam seu desempenho com os dos colegas, os alunos comparam seu desem-
penho entre as disciplinas. Se ele tem um bom desempenho em uma disciplina seu
autoconceito para a mesma vai ser o mais positivo. Mas, as comparações que o aluno
faz entre seu desempenho e o dos demais alunos da turma também influenciam na
construção do autoconceito (Woofolk 2000, 78).

O apoio dos pais e familiares


A aprovação por parte dos pais ou “outros significantes” pode dar origem a um au-
toconceito positivo, assim como a desaprovação permanente pode levar a um pro-
cesso de construção de um autoconceito e auto-estima negativos, sem deixar de
levar em consideração outros fatores de ordem social e contextual (Moysés 2007,
26). Mesmo focando as interações ocorridas na sala de aula, não se pode focar a
auto-estima deixando de lado o apoio da família, pois, os familiares participam de
forma direta e indireta do processo de aprendizagem musical. Com o intuito de ve-
rificar de que forma o apoio dos pais interfere no desenvolvimento musical dos alu-
nos, foi perguntado aos alunos se recebiam apoio e incentivo da família para o
estudo do instrumento. Acreditando-se que o apoio dos pais para as aulas de ins-
trumento tinha grande importância para a motivação nos estudos e no desenvol-
vimento do autoconceito, estrategicamente após verificar o apoio dos pais,
perguntou-se aos alunos como os mesmos se viam em relação ao desempenho no
instrumento.
A maior parte dos estudantes afirmam receber incentivo e apoio dos pais e fami-
liares. Nota-se que expressão de apoio dos pais é feita de várias maneiras, através de
elogios, de incentivo, da atenção dada à aula de música e através da ajuda e acom-
panhamento nos estudos. Da mesma forma a falta de incentivo e apoio também
628 pode estar presente através da falta de estímulo e de atenção. Comparando-se as
duas respostas, apoio e percepção de desempenho, verificou-se que aqueles alunos
que recebem apoio e incentivo da família, de forma geral afirmam ter um bom de-
sempenho. A percepção de desempenho para aqueles alunos que responderam “não”
ou “mais ou menos” também reflete em parte o apoio dos pais, pois os alunos pa-
recem não se sentirem plenamente confiante de suas capacidades, atribuindo con-
ceitos negativos ao seu desempenho.

Considerações
Ao longo do trabalho evidenciaram-se alguns fatores que influenciam a formação,
manutenção e alteração da auto-estima e do autoconceito, e consequentemente a
motivação no processo de aprendizagem observadas no ensino coletivo. É reco-
nhecida a importância dos professores e dos colegas da classe de ensino coletivo
como “outros significantes”. Desta maneira sabe-se que a opinião destas pessoas
que participam do processo de ensino e aprendizagem tem incalculável valor. Em
especial destaca-se a atuação do professor de música e suas atitudes frente a seus
alunos, bem como a maneira como intermedeia as relações entre os estudantes.
Foi possível verificar que entre os colegas tendem a ocorrer certas formas de ex-
pressão apoiadas em críticas e rótulos, que, muitas vezes, se projetam na capacidade
de execução e no processo de aprendizagem do instrumento musical, contudo as crí-
ticas parecem não influenciar de maneira tão negativa na motivação e na auto-es-
tima do aluno. Observou-se que quando os alunos se deparam com as críticas dos
outros colegas, em geram não sofrem uma desmotivação, a reação aponta no sen-
tido de superar as dificuldades e continuar o estudo do instrumento. Mesmo que
grande parte dos alunos tenha uma reação positiva ou indiferente em relação às crí-
ticas, esta observação não se estende indiscriminadamente a todos os alunos, por-
tanto, ressalta-se a importância do papel do professor na mediação das relações
interpessoais para que as mesmas se tornem inclusivas e acolhedoras. A escola, prin-
cipalmente através da atuação do professor, deve ajudar o aluno a se conhecer e de-
senvolver os alicerces para que, diante das situações de críticas, possa desenvolver e
manter de forma positiva sua auto-estima e autoconceito.
Por se tratar de um trabalho voltado para a educação musical esta pesquisa debru-
çou-se especialmente sobre o autoconceito acadêmico, que diz respeito à percepção
do aluno em relação ao seu desempenho escolar, e que tem ligação com a formação
da auto-estima. Nas interações ocorridas na sala de aula estão presentes importan-
tes fatores que contribuem para a formação do autoconceito do aluno. Além dos re-
sultados, das avaliações e da opinião do professor, entre outros aspectos, um dos fa-
tores que contribuem para esta construção, é a comparação com os outros colegas
que servem como parâmetro, uma vez que os alunos sempre estão realizando ob-
servações entre si. Embora, muitas vezes, essa comparação possa gerar uma percep-
ção negativa de si mesmo para aqueles que consideram seu desempenho inferior 629
em relação aos demais, este parâmetro pode servir como um impulso, empenhando-
se para obter um melhor desempenho no instrumento, surgindo como uma forma
de manutenção e proteção da auto-estima, e conseqüente influência sobre a moti-
vação.
Retomando a afirmação de Schunk (apud Senos 1997, 01), à medida que os alunos
percebem que são capazes de realizar uma tarefa com êxito, tendem a se sentir mais
motivados, e como conseqüência surgem melhores resultados, o que contribui para
a elevação da auto-estima. Desta forma, o desempenho e os resultados obtidos nas
aulas de música possuem relação com o desenvolvimento da auto-estima, e vice-
versa. De acordo com Moysés (2007, 38) “o fato de se considerar bom ou ruim pode
acabar influenciando o seu desempenho escolar na medida em que poderá afetar seu
grau de esforço, de persistência e o seu nível de ansiedade.”
Diante de todos os atores investigados e de suas interações na aprendizagem cole-
tiva, surgiu um fator de grande importância no processo de aprendizagem musical:
o apoio e incentivo dos pais e familiares. Observou-se que existe uma forte relação
entre o apoio dos pais e a percepção positiva de desempenho entre os alunos, aque-
les alunos que recebem incentivos dos pais tendem a afirmar possuir um bom de-
sempenho nas aulas de música. Observa-se que as outras pessoas com quem o aluno
convive fora da sala de aula, em outros grupos sociais, não devem ser desprezadas
uma vez que também participam do processo de formação do autoconceito e da
auto-estima do indivíduo. Ressalta-se que estes parâmetros não são suficientes para
concluir investigações sobre auto-estima no âmbito do ensino coletivo, o tema me-
rece enfoque em pesquisas futuras e seu aprofundamento no que diz respeito ao
ensino da música.

1 De acordo com Yin (2006, p. 117), a entrevista espontânea nos permite tanto obter in-
formações sobre o fato relacionado ao assunto, quanto obter a opinião dos entrevistados
sobre determinados eventos, e inclusive utilizar as interpretações apresentadas pelos res-
pondentes como base para uma nova pesquisa. Estrategicamente, a entrevista espontânea
realizada com os professores serviu como base para a investigação com os alunos. Para a ob-
tenção dos dados junto aos alunos a entrevista focada, a partir de questões estruturadas, mos-
trou-se mais adequada, uma vez que um dos propósitos desta entrevista pode ser
“simplesmente corroborar com certos fatos que você já acredita terem sido estabelecidos (e
não indagar sobre outros tópicos de natureza mais ampla e espontânea)” (Yin, 2006, p.118).
Esta modalidade de entrevista facilitou o entendimento das questões por parte dos estu-
dantes, proporcionando maior agilidade e praticidade diante da pouca disponibilidade que
os mesmos possuíam para responder aos questionamentos.
2Todos os alunos foram identificados através da sigla AEC (aluno do ensino coletivo) se-
guindo do número da ordem de entrevista.

Referências
630
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Porto Alegre: Bookman, 2005.
O Espaço Musicoterapêutico
como Campo do Representacional:
Representações Sociais, Música e Musicoterapia
Fernanda Valentin 631

mtfernandavalentin@gmail.com
Leomara Craveiro de Sá
leomara.craveiro@gmail.com
Magda de Miranda Clímaco
magluiz@hotmail.com
Programa de Pós-Graduação em Música - UFG

Resumo
Considerando que as representações sociais regem as relações das pessoas com o
mundo, interferindo em processos variados como a difusão e assimilação de conheci-
mentos e a definição das identidades pessoais e sociais, estas podem ser compreendidas
ao mesmo tempo como produto e processo de uma atividade de apropriação da reali-
dade exterior ao pensamento e de elaboração psicológica e social dessa realidade. Nesse
sentido, ao introduzir a idéia de produto e processo, esta teoria aproxima-se de outras
áreas e passa a servir de ferramenta para outros campos, como a Saúde, a Educação, a
Arte e o Meio Ambiente. No campo das Artes, em especial na Música, a abordagem das
Representações Sociais é capaz de explicar processos de criação e apreciação artísticas
integrando aspectos históricos, sociais e culturais com processos psicológicos individuais,
permitindo analisar o fenômeno musical em seu duplo papel, tanto como produto da
realidade social quanto como parte do processo de construção dessa realidade. A mú-
sica, a partir desse ponto de vista, não é compreendida apenas como uma manifestação
individual, fruto da mente brilhante de determinados artistas, desconectada com o uni-
verso ideológico, sócio-histórico; não como um sintoma, um presságio, ou mesmo como
um produto acabado, mas como um elemento integrante da própria História. Ela influencia
e é influenciada, ela reflete e refrata uma dada realidade, num processo de interação e
recriação constante. Nessa perspectiva, pretende-se neste artigo, fruto de uma pesquisa
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de
Goiás, refletir como a Teoria das Representações Sociais pode vir a contribuir com a
compreensão dos processos vivenciados nos diferentes settings musicoterapêuticos, isto
é, de que forma a Musicoterapia se constitui campo do representacional. Ressalta-se, no
entanto, a atualidade das discussões em uma perspectiva histórica, cultural e social por
parte dos teóricos da Música e da Musicoterapia. Assim, ao propor aproximações da
Musicoterapia com tais teorias não se tem a pretensão de esgotar a complexidade en-
volvida na discussão dos temas propostos, mas sim apresentar determinados parâmetros
para reflexão e associação de idéias.
Representações Sociais e Música
Uma vez que as representações sociais regem as relações das pessoas com o mundo,
interferindo em processos variados como a difusão e assimilação de conhecimentos
e a definição das identidades pessoais e sociais, estas podem ser abordadas ao mesmo
632
tempo como produto e processo de uma atividade de apropriação da realidade ex-
terior ao pensamento e de elaboração psicológica e social dessa realidade. Sendo
assim, ao refletir sobre representações sociais, é devidamente apropriado conside-
rar os aspectos constituintes (os processos) e os constituídos (os produtos ou con-
teúdos) (Dotta, 2006).
Nesse sentido, ao introduzir a idéia de processo e produto, esta teorização apro-
xima-se de outras áreas e passa a servir de ferramenta para outros campos, como a
Saúde, a Educação, a Arte e o Meio Ambiente. No campo das Artes, em especial na
Música, Duarte (2002) afirma que
a abordagem das Representações Sociais é um modelo conceitual capaz de ex-
plicar processos de criação e apreciação artísticas integrando aspectos históri-
cos, sociais e culturais com processos psicológicos individuais. Ela nos permite
analisar o fenômeno musical em seu duplo papel, tanto como produto da reali-
dade social quanto como parte do processo de construção dessa realidade
(p.126).
A música, a partir desse ponto de vista, não é compreendida apenas como uma ma-
nifestação individual, fruto da mente brilhante de determinados artistas, desco-
nectada com o universo ideológico, sócio-histórico. A música não é considerada
exclusivamente como um sintoma, um presságio, ou mesmo como um produto aca-
bado, mas como um elemento integrante da própria História. Ela influencia e é in-
fluenciada, ela reflete e refrata uma dada realidade, “num processo de constante
iteração dialética e recriação permanente” (Freire, 1992, p.7). Portanto, Clímaco
(1998) assinala que,
como elemento constitutivo da sociedade, sujeito à sua temporalidade, a mú-
sica não apenas reflete o que existe neste social, mas é capaz de constituir o novo,
lançando possibilidades de novas estruturas, no que diz respeito à sociedade e à
própria arte. A música significa e ressignifica, estabelece uma relação intricada
com o tempo e com a sociedade com a qual interage, ajudando a constituí-los.
Essa capacidade da música em incorporar a dinâmica do social é devido a sua es-
trutura simbólica. Assim, em suas notas, acordes, cadências, intricadas em suas re-
petições, imitações, tensões-resoluções, consonâncias, a música articula sentidos e
significados; “não um universo fixo de significados, mas um universo de possibili-
dades de novas ordenações e significações” (Freire, 1994, p.128).
Dessa forma, os símbolos musicais são modos de representação construídos a par-
tir do sonoro, mas a natureza dinâmica da música recusa qualquer fixação definitiva
de um código, oferecendo uma pluralidade de interpretações. Para Barbosa (2007)
a lógica do sonoro se pauta na sensação, e por isso a música, em uma alternância
permanente entre sensação e códigos, possibilita a criação e dissolução das relações
simbólicas.
Como bem nota Wisnick (1989, apud Duarte e Mazzotti, 2006) sobre a natureza
polissêmica da música: 633
um grito pode ser um som habitual no pátio de uma escola e um escândalo na
sala de aula ou num concerto de música clássica. Uma balada “brega” pode ser
embaladora num baile popular e chocante ou exótica numa festa burguesa.
Tocar um piano desafinado pode ser uma experiência interessante no caso de um
ragtime e inviável em se tratando de uma sonata de Mozart. Um cluster pode
causar espanto num recital tradicional, sem deixar de ser tedioso e rotinizado
num concerto de vanguarda acadêmica. Um show de rock pode ser um pesa-
delo para os ouvidos do pai e da mãe e, no entanto, funcionar para o filho como
canção de ninar no mundo do ruído generalizado (p.1288).
Em ressonância com esse pensamento, Nattiez (1990, p. 34) afirma que “o simbo-
lismo musical é polissêmico, porque quando ouvimos música, os significados que ela
toma, as emoções que ela evoca, são múltiplas, variadas, confusas”.
Assim, a música não se restringe aos processos intelectuais, mas promove uma ar-
ticulação constante entre pensamento (domínio dos sistemas simbólicos) e senti-
mentos (experiências). Ao mobilizar as emoções, as obras musicais favorecem o
contato com aquilo que já foi vivenciado, evoca lembranças e conduz aos jogos do
imaginário. Conforme aborda Sekeff (2002, p.20) “a música, linguagem icônica,
carregando em seus flancos o inconsciente, sempre traz uma lacuna que é preen-
chida pelo imaginário do receptor da escuta. O discurso musical é essencialmente
multívoco, com os sons expressando mais do que ‘dizem’”.
Swanwick (2003), tratando sobre os diferentes processos que estão articulados com
a música, ressalta o caráter simbólico das obras musicais, tornado-as capazes de com-
partilhar sistemas de significados e conectar-se a outras formas simbólicas. Para ele
a música não é uma anomalia curiosa, separada do resto da vida; não é só um es-
tremecimento emocional que funciona como atalho para qualquer processo de
pensamento, mas uma parte integral de nosso processo cognitivo. É um cami-
nho de conhecimento, de pensamento, de sentimento (p.22-23).
Suzanne Langer (apud Lehmann, 1993) caracteriza o sistema de símbolos musicais
como um dos mais poderosos e profundos e compara-o aos sistemas da linguagem,
da literatura e da matemática. A autora afirma que do mesmo modo que é impres-
cindível conhecer a dimensão simbólica desses sistemas, todas as pessoas deveriam
conhecer também a dimensão simbólica da música.
Como dito anteriormente a música não se restringe a um universo fixo de signifi-
cados e, conforme Freire (1994) explica os símbolos musicais articulam também
com latências e resíduos de significados:
os signos utilizados na linguagem musical reportam-se à rede simbólica presente
no momento histórico de sua elaboração, mas também os signos utilizados
podem ser investidos de outras significações que não correspondem a esse
mesmo momento histórico, assim como podem portar, residualmente, signifi-
cados elaborados em momentos históricos outros, e que portanto, estão sendo
634 utilizados através de um processo de re-significação (p.128).
Esta autora considera, portanto, que três níveis de significados são articulados em
uma obra musical: significados residuais, atuais e latentes. Os significados residuais,
como o próprio termo indica, estão relacionados aos signos remanescentes de ou-
tras épocas, outros lugares. Os significados atuais são as ordenações que estão acon-
tecendo na atualidade, enquanto os significados latentes provem de estados não
vividos, mas que a arte já sinaliza.
A coexistência desses significados, ou a concepção de que passado, presente e fu-
turo estão instaurados e se entrecruzam em uma obra musical, é o que Freire
(ibdem) denomina de “tempo múltiplo”. Esse conceito mostra como as tramas so-
ciais são inerentes à música e inviabiliza a redução ou simplificação do significado
musical, opondo-se aos teóricos que desconsideram o social, o histórico.
A obra musical é construída pelas experiências, desejos, aspirações e reflexões da
vida do compositor. Nota-se, no entanto, que ainda que se queira restringir as vi-
vências desse indivíduo, este interage com outras pessoas e compartilha configura-
ções simbólicas com diferentes grupos sociais, pautando sua identidade, o que faz
com que a obra musical produzida transcenda o indivíduo e seja tanto uma ex-
pressão social, como um produto histórico.
Por isso, retomando as considerações de Freire (1994) e Clímaco (1998), cada obra
musical tem entranhada em si mesma o imaginário de um povo, se constituindo
como suporte representativo. Cada música conserva elementos residuais, atuais e
latentes, bem como, carrega dimensões reais, ideológicas e utópicas que oportuni-
zam constantes processos de ressignificação. Nessa perspectiva, nenhuma obra mu-
sical torna-se obsoleta, ultrapassada, por lhe ser inerente a capacidade de
apropriar-se há outros tempos, espaços e significados.
Toda essa potencialidade da música, utilizada em ambiente terapêutico por um
profissional musicoterapeuta, mobiliza e revela investimentos afetivos, que pode
conduzir o cliente a uma maior compreensão de si mesmo e da realidade que o cerca.
Assim, nos próximos itens pretende-se explorar esses aspectos da música em Musi-
coterapia, apresentar alguns dos princípios norteadores dessa terapêutica, bem
como delinear algumas considerações acerca desse espaço como um campo do re-
presentacional.
Musicoterapia e Representações Sociais: uma aproximação
A trajetória construída até aqui oferece apontamentos de como a Teoria das Re-
presentações Sociais pode vir a contribuir com a compreensão dos processos vi-
venciados nos diferentes settings musicoterapêuticos, isto é, de que forma a
635
Musicoterapia se constitui campo do representacional. Ressalta-se, no entanto, a
atualidade das discussões em uma perspectiva histórica, cultural e social por parte
dos teóricos da Música e da Musicoterapia, que vêm gradualmente participando
de eventos científicos com apresentações de trabalhos envolvendo teorias das re-
presentações sociais nas áreas da História Cultural e da Psicologia Social. Assim,
nesta pesquisa ao propor aproximações da Musicoterapia com tais teorias não se
tem a pretensão de esgotar a complexidade envolvida na discussão dos temas pro-
postos, mas sim apresentar determinados parâmetros para reflexão e associação de
idéias.
Nesse sentido, quatro pontos foram identificados e terão seus desdobramentos
apresentados a seguir. São eles: 1) as representações sociais auxiliam o musicotera-
peuta a compreender o cliente de forma mais abrangente, como sujeito social, his-
tórico e cultural; 2) a musicoterapia pode facilitar mudanças nas representações
sociais de um indivíduo ou de um grupo; 3) o musicoterapeuta deve compreender
as suas próprias representações sociais; 4) as representações sociais permitem valo-
rizar a dimensão social sem anular a dimensão individual, viabilizando uma tera-
pêutica imbricada com a cidadania, com a ética e a política.
González Rey (2007) nota que as representações sociais e os diversos discursos he-
gemônicos no interior da sociedade aparecem como sentidos subjetivos nas confi-
gurações dos clientes atendidos e possuem um forte peso na organização dos
problemas que surgem na terapia. Como exemplo, o autor mostra que valores re-
gidos por dinheiro, falta de vínculos e despersonalização do cotidiano são alguns dos
elementos providos pelo sistema no qual a sociedade atual está estruturada, o capi-
talismo. Estes, então, facilitam sentidos subjetivos associados à vivência da solidão,
do vazio. Ao pensar nos educadores sociais, sujeitos desta pesquisa, pode-se pon-
derar que o contexto de violência e mudanças constantes, possibilita sentidos sub-
jetivos associados à ansiedade, à incerteza, à desconfiança e ao medo.
Assim, primeiramente observa-se que o indivíduo, ao iniciar um tratamento musi-
coterapêutico, vem investido de suas representações sociais. Portanto, a identifi-
cação dessas representações permite ao musicoterapeuta compreender o cliente de
forma mais abrangente, perceber sua condição de sujeito social, histórico e cultu-
ral, seus processos complexos e constitutivos.
Valendo-se desse pensamento, Schapira (2005) comenta que o estudo das repre-
sentações sociais é de grande importância para compreender a construção, estru-
turação e a dinâmica dos subgrupos sociais aos quais pertencem os clientes da
Musicoterapia.
Barcellos e Santos (1996) mostram ainda como a cultura se estabelece como uma
articulação, uma trama de representações sociais:
a influência da cultura, do social se faz sentir, não só no compositor, mas tam-
bém na forma de cada ouvinte, ou mesmo executante, decodificar ou atribuir
636 sentidos a música. (. . .) Não se pode deixar de considerar o contexto social que
se desenvolvem as vivências humanas e nem pretender caracterizá-las como úni-
cas e puramente individuais. (. . .) A cultura condiciona as relações de cada in-
divíduo com a natureza e com os outros homens, não se podendo, a rigor, falar,
por exemplo, de uma apreensão da música puramente pessoal, mas sempre de
uma imbricação entre o biográfico e o social. O indivíduo escuta com o ouvido
de sua cultura, de sua época. (p.14-16)
Então, diferentemente de um modelo reducionista que, orientado em uma única
direção, enfoca o aspecto biológico, categorizando o cliente em uma patologia e
desconsiderando o contexto em que este está inserido, pauta-se na concepção de
que os transtornos individuais estão intimamente vinculados às configurações
subjetivas sociais. Assim, entender essas configurações, e a musicalidade que emana
destas, oportuniza novos caminhos para o tratamento musicoterapêutico desses
transtornos.
Sendo a música ferramenta chave do processo musicoterapêutico, um elemento
constitutivo da sociedade, capaz de evidenciar representações sociais, observa-se
que a Musicoterapia pode facilitar mudanças nas representações do cliente ou do
grupo atendido. Assim, as experiências musicais musicoterapêuticas favorecem a
percepção das representações sociais vigentes e como bem salienta Clímaco (1998)
pela dinamicidade da música, há a possibilidade de constituir o novo, lançar possi-
bilidades de novas estruturas, ressignificar. Dessa forma, a Musicoterapia torna-se
um campo do representacional, isto é, há um desvelamento das representações so-
ciais sobre fazeres musicais, onde a música se constitui como “um meio de criar e re-
presentar novas categorias de experiências não referenciais” (Ruud, 1990, p. 91).
Duarte e Mazzotti (2006, p. 1292) afirmam que
diante de algum fenômeno desconhecido, de toda ocorrência musical nova ou
inesperada, de algo perceptível, mas fora do “modelo” partilhado por nós em
nossos grupos reflexivos, reagimos por aproximação, procurando elementos já
presentes no mesmo modelo que construímos anteriormente. E o estranha-
mento de algum elemento não-assimilável pode ser o ponto de partida para uma
reestruturação de nossas concepções ou representações.
Ora, quando se elege uma tonalidade para construir certa música, ao formar uma
seqüência sucessiva ou simultânea de sons, ao propor um ritmo mais acelerado, ca-
denciado, o cliente mostra a sua visão de mundo. Mesmo que essa seleção seja par-
cial, não é ao acaso, uma vez que os elementos selecionados são os que “coincidem”
com o sentido que o indivíduo pode ou quer atribuir ao som (Duarte e Mazzotti,
2006). Como afirma Schapira (2007), os elementos musicais são equivalentes sim-
bólicos de um acontecer não musical, e o desenvolvimento dos processos musicais
se assemelham aos processos psíquicos, o que demonstra que no microcosmo dos
encontros musicoterapêuticos ocorrem a reprodução do macrocosmo da vida dos
clientes.
Contendo em si significados residuais, atuais e latentes, as obras musicais trazidas 637
ou produzidas pelo cliente permitem ao musicoterapeuta trabalhar presente, pas-
sado e futuro, em um processo de retomar os conteúdos que foram vividos, trazê-
los para o ‘aqui – agora’ e sinalizar o que está por vir, através de uma leitura e análise
das estruturas musicais.
O fato, no entanto, de a Musicoterapia adotar um conceito mais abrangente de
música, considerando a utilização de qualquer objeto sonoro1, não justifica a utili-
zação da música de forma aleatória e descuidada por parte do musicoterapeuta, mas
sim exige um aguçamento do senso crítico sobre as obras musicais emergentes no
setting, incluindo também os fenômenos da massificação cultural e da globalização.
Milleco (1997) afirma que a Indústria Cultural, termo postulado por Adorno e
Hokheimer (1948), favorece a construção de uma “pseudo-identidade sonora cul-
tural”, pautada pelo modismo e pela música feita para o consumo em grande escala.
Ele ainda pontua que, como o produto musical é caracterizado pela repetição e uti-
lização de uma mesma estrutura musical, travestida com novas roupagens, muitas
vezes limita a escolha dos ouvintes com a imposição de um modelo estético. Para
Santos (2002),
a ideologia desta indústria promove o conformismo que substitui a consciência,
criando dependência e servidão, manipulando gosto e produzindo ao mesmo
tempo uma aparência de liberdade, com o que arrasa o desenvolvimento de um
senso e de uma prática críticos (p.57).
Dessa forma, acredita-se que o musicoterapeuta deve estar atento aos processos de
hibridação e também à dimensão ideológica das produções musicais contemporâ-
neas. A hibridação, para Canclini (2002, p.2), são “os processos socioculturais em
que estruturas e práticas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar
novas estruturas, objetos ou práticas”. Pode-se pensar, ainda, na hibridação como
o cruzamento das representações sociais. Nesse sentido, as músicas presentes no
setting e a própria musicalidade do cliente podem partir das misturas e fusões dos
diferentes grupos sociais nos quais ele está inserido ou serem provenientes de im-
posições ideológicas, de produtos veiculados pela mídia desarticulados de sua iden-
tidade.
Considerando a perspectiva apresentada por Milleco (1997), surge o questiona-
mento: o setting musicoterapêutico poderia tornar-se um espaço para promover
novas referências estéticas aos clientes? O autor comenta que a musicoterapia ca-
racteriza-se pela possibilidade de transitar em diferentes campos da cultura, construindo
um senso estético e crítico, aberto a diversas formas de expressão musical. Muitas vezes es-
taremos remando contra a correnteza da massificação, transgredindo o instituído, pre-
servando a diversidade cultural, construindo um devir diferencial, favorecendo uma per-
cepção/expressão mais atenta a arte musical (Milleco, 1997, p.34)
Essa diversidade cultural é marcante no setting muscicoterapêutico, cabendo, al-
638 gumas vezes, ao musicoterapeuta seguir a correnteza da massificação, utilizando
“músicas de massa” para acessar o cliente, e ainda articulando elementos musicais
antagônicos e contraditórios.
Acredita-se, também, que essa visão crítica do musicoterapeuta deve se estender a
si mesmo. Conhecer as suas próprias representações sociais, isto é, as representa-
ções que foram construídas em conjunto com os grupos sociais que o cercam pode
auxiliá-lo na compreensão de processos como a transferência e contratransferência2,
bem como a repensar os entraves na relação terapêutica como, por exemplo, o pre-
conceito.
Conhecer suas representações de música, de musicoterapia, de homem, que foram
moldadas em sua formação acadêmica e profissional, articuladas com os valores e
crenças familiares e que sofrem influências dos grupos religiosos ao qual pode estar
inserido, favorece novas percepções da forma com que o musicoterapeuta consti-
tui a realidade.
Trata-se, portanto, de reconhecer a existência de um imaginário social, ou seja, uma
instância por onde circulam os mitos, as crenças, os símbolos, as ideologias e todas
as idéias e concepções que se relacionam ao modo de viver de uma coletividade e
proporcionar ainda reflexão sobre os arquétipos, “elementos constitutivos do ima-
ginário que atravessam os tempos, assinalando formas de pensar e construir repre-
sentações sobre o mundo” (Pesavento, 2003, p. 45).
Dessa forma, o musicoterapeuta deve atentar-se para o fato de suas compreensões
sobre os fenômenos musicoterapêuticos, apesar de se pautarem em estudos cientí-
ficos, serem também construções imaginárias da realidade. Os fatos vivenciados no
setting são objetos de múltiplas versões e por isso, jamais serão constituídos por uma
verdade única ou absoluta, mas por várias verdades. É no encontro entre cliente e
musicoterapeuta, mediado pela música de um e de outro, que coexiste a possibili-
dade de vivenciar reconstruções imaginárias. Cabe, no entanto, ao musicoterapeuta
ter o cuidado para não sobrepor as suas representações sociais às do cliente/grupo.
Quanto a isso, Queiroz (2003) ressalta que,
a música que vem do terapeuta, contendo seu gosto musical, suas afinidades es-
téticas, é ingrediente indispensável, na medida em que esta é presença do tera-
peuta no fazer musical, sua busca de contato. (. . .) Os valores e conteúdos
musicais do terapeuta são peças do processo musicoterápico (p.69).
Assim, a musicoterapia configura-se como uma terapêutica do contato, do encon-
tro. Musicoterapeuta, cliente e música colocam-se entre espaço e tempo, buscando
integrar-se um ao outro e ao mundo, em uma totalidade consciente. Por isso, con-
forme ressalta González Rey (2007, p.164), a terapia está sempre envolvida em um
espaço de subjetividade social.
A ênfase na dimensão social em musicoterapia se faz cada vez mais necessária, pois
como analisa Jovchelovitch (1995),
em tempos que nos confrontam continuamente com críticas pós-modernas que 639
elogiam a multiplicação de significados, a diferença e a supremacia da intimi-
dade apenas e unicamente em relação a si mesmos, onde a noção de limite se
apresentam freqüentemente como autoritárias ou como ilusões perdidas da mo-
dernidade, eu acredito ser necessário reafirmar que a produção de significação e
da diferença só é possível em relação às fronteiras de um mundo de outros (p.82).
Santos (2002), no entanto, traça uma importante consideração acerca do estudo do
contexto social em musicoterapia. Para ele,
embora não se possa dizer que a preocupação com os problemas sociais deixa de
estar presente entre os musicoterapeutas do Brasil, cabe destacar que o estudo
destas questões não ocupa propriamente um lugar de destaque no nosso debate
teórico. Even Ruud já identificava, em 1990, o descaso quanto ao contexto so-
cial maior como uma característica das definições de musicoterapia, de um modo
geral. Caberia questionar se o descaso com o contexto social se estende ao pró-
prio modo como consideramos a música, isto é, se a nossa análise do fenômeno
musical não estaria sendo prejudicada por uma certa falta de perspectiva social
na nossas abordagens (p.59).
O autor conclui que ainda são poucas as abordagens da música no campo da musi-
coterapia que possui uma perspectiva social mais ampla, que oportunize uma com-
preensão mais aprofundada dos sentidos da música que emergem no setting
musicoterapêutico. Frente ao exposto, observa-se que a Teoria das Representações
Sociais permite valorizar a dimensão social sem anular a dimensão individual e que
conexões entre representações sociais e musicoterapia oportunizam uma terapêu-
tica imbricada com a cidadania, a ética e a política.
Nota-se ainda que o “social” em musicoterapia, muitas vezes, é entendido de forma
restrita, como um campo de atuação, atendimentos a pessoas menos favorecidas,
ou intervenções diretas na comunidade. Faz-se necessário uma ampliação deste con-
ceito, pois em concordância ao pensamento de Vigostky (1999),
a arte é o social em nós, e, se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado,
isto não significa, de maneira nenhuma, que as suas raízes e essência sejam indi-
viduais. É muito ingênuo interpretar o social apenas como coletivo, como exis-
tência de uma multiplicidade de pessoas. O social existe até onde há apenas um
homem e as suas emoções pessoais (p.315).
Dessa forma, seguindo um raciocínio lógico, se a música constitui e é constituída
pela sociedade, e esta é o elemento primordial da Musicoterapia, o social é insepa-
rável a esta terapêutica. Independente do tipo de atendimento (individual ou gru-
pal), intervenção ou modelo/abordagem seguida, o social se faz presente em
Musicoterapia.
Para González Rey (2007), no entanto, considerar o social no campo da terapia,
não significa acreditar que todas as questões complexas desta ordem podem ser so-
lucionadas. Mas, que a ação terapêutica pode gerar alternativas de subjetivação que
permitam opções de produção subjetiva nos diferentes espaços sociais, capazes de
640 melhorar as suas próprias dinâmicas, assim como os estados subjetivos das pessoas
envolvidas, isto é, melhorar o desenvolvimento das relações intra e interpessoais.
Assim acredita-se que a musicoterapia, comprometida com as relações entre música
e sociedade, possa vir a contribuir com “a construção de vidas individuais que sus-
tentem em si mesmas as conseqüências plenas do fato de que as pessoas vivem umas
com as outras e não existe vida humana sem a presença de outros seres humanos”
(Jovchelovitch, 1995, p.83), de forma que representações sociais, subjetividade e
música sejam um continnum em um setting musicoterapêutico.

1 De acordo com Schaeffer (1993), objeto sonoro é todo fenômeno sonoro que é percebido
com um conjunto, como um todo coerente, que é ouvido por meio de uma escuta reduzida
que o enfoque por si mesmo, independente de sua procedência ou de seu significado.
2 Transferência, para Benenzon, (1998) é a atitude do cliente de repetir, com a figura do
musicoterapeuta, os mesmos episódios ocorridos primitivamente na sua história, na sua re-
lação materno, parterno-infantil, ou seja, colocar no presente o passado. A contratransfe-
rência é o sentir do musicoterapeuta do impacto que a transferência produziu no seu
inconsciente.

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Idosos independentes versus Idosos institucionalizados:
as diferenças na capacidade cognitiva
entre grupos da terceira idade
642 Mackely Ribeiro Borges
mackelyrb@gmail.com
Núcleo de Música, Universidade Federal de Sergipe

Resumo
Este artigo trata das diferenças na capacidade de aprendizagem e na qualidade da me-
mória na educação musical com a terceira idade através de um trabalho desenvolvido
com o Grupo da Terceira Idade Revivendo e no Abrigo D. Pedro II localizados em Sal-
vador- BA. Durante a pesquisa nos deparamos com duas realidades vividas pelos idosos:
a primeira formada por pessoas independentes financeiramente, geralmente aposenta-
dos que utilizam o seu tempo livre para a realização de novos projetos de vida como a
socialização e lazer nos grupos de terceira idade e o aprimoramento dos conhecimen-
tos nas faculdades da terceira idade; e a segunda realidade é o que chamamos de “ter-
ceira idade institucionalizada” formada por idosos que vivem em abrigos e asilos. O
trabalho desenvolvido no Grupo da Terceira Idade Revivendo e no Abrigo D. Pedro II tra-
tou-se de uma Oficina de Música com Canto Coral fundamentado na abordagem teó-
rica de Swanwick com a adaptação de Nagy (1997), no qual a vivência musical é baseada
no modelo CLATEC (Construção de Instrumentos, Literatura Musical, Apreciação Musi-
cal, Técnica, Execução Musical e Composição Musical). Entre os idosos do Abrigo D.
Pedro II, foram observadas algumas dificuldades associadas a outros fatores que não os
da velhice como a falta de motivação em conseqüência da depressão e da baixa estima,
a falta de uma vivência musical sistematizada, orientada e dirigida nas fases anteriores da
vida e, em muitos casos, o baixo nível de escolaridade. No entanto, apesar destas difi-
culdades e das diferentes realidades vividas pelos dois grupos, os idosos adquirem co-
nhecimento musical, principalmente, quando os conteúdos estão voltados ao resgate das
experiências musicais dos alunos e ministrados sempre de forma prazerosa, proporcio-
nando uma prática musical nova e significativa.

O envelhecimento é um processo natural na vida de todo o ser humano. Sem dú-


vida, a velhice é o presente de alguns e o futuro de todos. Afinal, a partir de quando
o ser humano passa a pertencer à terceira idade1? Em 1985, a Organização das Na-
ções Unidas (ONU) definiu a população idosa como sendo aquela com idade a par-
tir dos 60 anos nos países em desenvolvimento e 65 anos em países desenvolvidos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda divide a terceira idade em três gru-
pos: jovens idosos (60 a 69 anos); meio idosos (70 a 79 anos) e idosos velhos (a par-
tir dos 80 anos) (Mascaro, 1997: 60).
Em paralelo a “era da informação e da internet”, o mundo vive a “era do envelhe-
cimento. Dados da Organização das Nações Unidas revelam que em 1975 existiam
350 milhões de idosos, passando para 600 milhões em 2000 e a previsão para o ano
de 2025 é de 1,2 bilhões de pessoas de 60 anos ou mais. O crescimento da popula-
ção idosa também é uma realidade no Brasil. Dados do IBGE confirmam que em
1996, a proporção de idosos era de 16 idosos para cada 100 crianças passando em
2000 para 30 idosos para cada 100 crianças e, em 2025, o Brasil será o sexto país do
mundo com o maior número de pessoas idosas2. Muitos são os fatores que provo- 643
caram o aumento desta população. No Brasil, destacam-se a expansão do sanea-
mento básico, especialmente nas grandes cidades, os programas de controle da
natalidade (planejamento familiar) e as campanhas de conscientização da saúde
preventiva (alimentação saudável, práticas de exercícios físicos, realização de exames
periódicos, entre outros). Luz (2006: 1) nos lembra da contribuição dos avanços da
ciência em diversas áreas como a “genética molecular, a farmacologia, a quimiote-
rapia e das atuais pesquisas e descobertas da indústria biotecnológica (células-
tronco)”.
No Brasil, o aumento da população idosa e, especialmente, os avanços da ciência, es-
pecialmente da medicina, têm provocado mudanças no conceito de velhice, bem
como na posição e comportamento social, cultural e econômico do idoso. Sem dú-
vida, o envelhecimento é um processo natural que provoca alterações fisiológicas,
anatômicas e diminuição da funcionalidade nos diversos sistemas e órgão do corpo.
Estes fatores geram uma série de preconceitos, especialmente no nosso país onde o
referencial parte das capacidades dos jovens como, por exemplo, a crença de que o
idoso é um ser inativo, em decadência, e incapaz de adquirir conhecimentos (Bueno,
2008; Rodrigues e Carvalho, 2008; Luz e Silveira, 2006).
No entanto, nas últimas décadas, diversos estudos, especialmente na área da Ge-
rontologia3, tem se dedicado a desmitificar conceitos em relação às capacidades dos
idosos. Aqui, as limitações decorrentes desta faixa etária são interpretadas sob um
novo olhar de construção e transformação (Luz e Silveira, 2006: 10). O entendi-
mento de Rodrigues a respeito do envelhecimento é um exemplo desta tendência.
Nas palavras do autor, a velhice é “um período de perdas propício a novas con-
quistas” (Rodrigues, 2003: 24 apud Bueno, 2008: 3).
Quanto à parte cognitiva, os autores em geral acreditam que a velhice é um soma-
tório de todas as fases vividas e, por esta razão, os idosos são capazes de gerar e trans-
formar os conhecimentos adquiridos ao longo de suas vidas. Além disso, há o
entendimento de que a aprendizagem é uma atividade necessária na manutenção da
saúde física e mental e deve estar presente, especialmente, na terceira idade. A este
respeito, Figuerêdo (2009:13) faz o seguinte comentário:
“envolver-se na aprendizagem de coisas novas e no aperfeiçoamento dos assun-
tos já conhecidos é ainda mais urgente na velhice porque muitas das dificulda-
des impostas pelo envelhecimento natural podem ser “dribladas” ou atenuadas
através desta mobilização, proporcionando uma vida de melhor qualidade.”
Ainda a respeito da parte cognitiva, o Estatuto do Idoso, o mais recente instru-
mento de defesa dos interesses das pessoas desta faixa etária, aprovado pelo Con-
gresso Nacional em 2003 (Lei nº 10.741), reconhece a importância do idoso na
“transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da pre-
servação e da identidade culturais” (Brasil, 2003: 17). Desta forma, artigo V deste
estatuto garante ao idoso o direito à Educação, Cultura, Esporte e Lazer.
644 Em se tratando das atividades de ensino e aprendizagem musical na terceira idade,
observamos que, no Brasil, a Educação Musical neste segmento ainda se encontra
nos primeiros passos, cujas possibilidades ainda precisam ser exploradas. Os estu-
dos a respeito das práticas musicais que visam à manutenção e desenvolvimento
das faculdades cognitivas dos idosos se concentram em descrições e resultados de
práticas de ensino voltados ao canto coral (Borges, 2002; Figuerêdo, 2008 e 2009;
Maydana e Brasil, 2007), ensino coletivo de instrumento (Bueno, 2008 e Bueno e
Borges, 2008), musicalização (Luz, 2006, Luz e Silveira, 2006) e oficinas de música
(Bonilla, 2002 e Coronago, 2007). O ponto em comum encontrado entre os auto-
res citados acima é a contribuição da aprendizagem musical entre os idosos, prin-
cipalmente no que diz respeito à comunicação, socialização, criatividade, memória,
coordenação motora, entre outros. Além disso, a constatação de que o simples fato
do idoso se expressar musicalmente gera outros benefícios como a resgate cultural,
o (re)descobrimento de suas potencialidades (habilidades) e, conseqüentemente, a
recuperação da auto-estima e a melhora da qualidade de vida4.
Nosso estudo pretende discutir as diferenças na capacidade cognitiva e na quali-
dade da memória na educação musical na terceira idade através de uma Oficina de
Música e Canto Coral, realizada no período de maio a dezembro de 2002, com um
Grupo da Terceira Idade, chamado Revivendo e no Abrigo D. Pedro II5, ambos
localizados em Salvador-BA. Este trabalho nos proporcionou o contato com duas
realidades vividas pelos idosos. A primeira é composta por idosos ativos e inde-
pendentes e a segunda é o que se costuma chamar de “terceira idade instituciona-
lizada”, formada por idosos que vivem em abrigos, asilos, lares ou qualquer outra
denominação dada às instituições de longa permanência para os idosos.
O perfil dos participantes do Grupo Revivendo segue as características de um
grande número de idosos que, felizmente, tem se beneficiado dos avanços da ciên-
cia adquirindo uma melhor qualidade de vida e uma nova colocação (status) social.
São idosos ativos (geralmente aposentados), independentes economicamente e
preocupados em se adaptar às exigências do mundo moderno. Por esta razão, há
uma procura dessas pessoas por um aprimoramento de suas capacidades físicas e
mentais, através de atividades que promovam novos conhecimentos, proporcio-
nando a realização de novos projetos de vida e, em muitos casos, a realização de so-
nhos pessoais como, por exemplo, o de aprender música. Diante desta clientela,
temos visto, cada vez mais, a criação de programas e projetos em instituições go-
vernamentais e não-governamentais como, por exemplo, os chamados Grupos da
Melhor Idade e as Faculdades da Terceira Idade6. A respeito das atividades pro-
postas por estas instituições, Luz e Silveira (2006: 2) destacam o “lazer (excursões,
bingos, chás da tarde, aniversários, crochê, etc), atividades físicas (dança, biodança,
alongamento, ioga, etc.) e as de cunho intelectual, cultural e religioso (aulas de cu-
linária, de psicologia, festas folclóricas, terços e missas especiais para idosos e seus
grupos, etc.)”. 645
A terceira idade institucionalizada apresenta uma situação inversa. Aqui os idosos
vivem em condições mais difíceis, começando pela pobreza que, em muitos casos, é
determinante para a institucionalização. Em se tratando dos motivos que levam à
institucionalização dos idosos, Perlini, Leite e Furini (2007) constataram que, na
maioria dos casos, a família decide asilar o seu idoso pela impossibilidade de um ou
mais membros que se disponibilizem e se responsabilizem pelo cuidado do idoso ou
por falta de uma acomodação adequada no lar ou por dificuldades de relaciona-
mento que geram constantes desentendimentos familiares. Todos estes motivos
criam uma expectativa de que a instituição dará toda a assistência necessária e que
o idoso terá mais chances de se socializar pelo fato de encontrar outras pessoas com
as mesmas características. No entanto, não é o que acontece, porque a instituição
não está preparada para o atendimento individualizado, as instalações da institui-
ção obrigam o idoso a dividir espaço dos armários e dormitórios, gerando uma
perda da individualidade com total perda da privacidade. Além disso, a socialização
esperada não acontece por causa da rejeição daqueles que moram na instituição há
mais tempo e dos conflitos que podem existir pelas diferenças culturais, sociais e
de educação.
Por outro lado, a institucionalização muitas vezes ocorre por vontade própria.
Neste caso, os principais motivos que levam o idoso a optar pela moradia na insti-
tuição são: a necessidade de independência em relação à família, solidão por viuvez
ou por ausência dos familiares que saem para trabalho ou estudo e dificuldades fi-
nanceiras que ocasionam uma moradia inadequada. No caso dos residentes do
Abrigo D. Pedro II, os idosos que chegaram por iniciativa própria são mais inte-
grados e participativos nas atividades oferecidas pela instituição. É deste perfil a
maioria dos alunos que participaram da Oficina de Música e Canto Coral.
A realidade vivida pelos idosos institucionalizados, por melhor que seja a estrutura
dos abrigos, sempre revela um quadro de abandono. A vida na instituição obriga os
idosos a se adaptar a uma rotina de horários, a dividir seu espaço com desconheci-
dos e, além disso, a “individualidade e o poder de escolha são substituídos pelo sen-
timento de ser apenas mais um dentro daquela coletividade” (Porcu et al. 2002:
714). Todos estes fatores levam a um quadro de depressão e baixa estima. Em es-
tudos realizados sobre a prevalência de sintomas depressivos em idosos, constatou-
se um alto índice de depressão (inclusive nas formas mais graves) nos idosos
institucionalizados em comparação aos idosos residentes em domicílios. (Porcu et
al. 2002)7. Diversos estudos apontam os danos físicos e psicológicos causados pela
depressão, como a perda da capacidade cognitiva e a inaptidão para realizar as ati-
vidades diárias entre os idosos (Porcu et al. 2002: 716). Além dos impactos causa-
dos pela depressão, outro fator gerador de danos físicos e psicológicos aos idosos
institucionalizados é o isolamento social. Sobre as conseqüências do isolamento so-
646 cial, Leão e Flusser (2008: 74) fazem o seguinte comentário:
“Fato é, que o isolamento social retira os idosos dos círculos de linguagem signi-
ficativa, o que pode levar o sistema de consciência a danos significativos, pois os
processos de comunicação conferem o tônus afetivo e a qualidade da atividade
simpática e parassimpática e por conseqüência, repercutem inclusive, na vitali-
dade das vísceras. A relação interpessoal, por vezes negligenciada,tem implica-
ções diretas para com a saúde e a prevenção ou agravamento de doenças. (...) A
retirada dos mais velhos do meio social inibe ou limita as estruturas da cons-
ciência, dos estados afetivos e da atuação das vias nervosas conscientes e in-
conscientes.”
O trabalho realizado na Oficina de Música e Canto Coral contou com a partici-
pação de 12 idosos do Grupo Revivendo e 20 idosos do Abrigo D. Pedro II. As
aulas de música aconteciam duas vezes por semana nos seguintes locais: na sede do
Grupo Revivendo, localizada na região central de Salvador e no salão de convivên-
cia do Abrigo D. Pedro II.
As aulas de música tiveram como fundamentação a abordagem teórica de Swan-
wick com a adaptação de Nagy (1997), no qual a vivência musical é baseada no mo-
deloCLATEC(Construçãode Instrumentos, Literatura Musical, Apreciação Musical,
Técnica, Execução Musical e Composição Musical). Nas aulas, todas as atividades
giravam em torno de um repertório musical voltado para o resgate da memória so-
nora e musical dos idosos, tratado aqui como “músicas foco”. Foi observado que a
atividade de construção de instrumentos contribuiu na ampliação e na integração
das demais atividades do modelo CLATEC. De modo geral, observamos que o pro-
cesso de ensino-aprendizagem é impactado, mas não inviabilizado pelo envelheci-
mento do organismo. Na prática do canto, existem dificuldades ocasionadas pelas
perdas musculares da laringe, desequilíbrio respiratório, perda auditiva e outros
efeitos causados pelo uso de medicamentos de forma contínua. No caso dos idosos
do Abrigo D. Pedro II, apareceram algumas dificuldades associados a outros fato-
res que não os da velhice como a falta de motivação em conseqüência da depressão
e da baixa estima, a falta de uma vivência musical sistematizada, orientada e dirigida
nas fases anteriores da vida e, em muitos casos, o baixo nível de escolaridade.
Em relação à parte cognitiva, foram observadas diferenças de aprendizagem e na
qualidade da memória entre os dois grupos. Os idosos do abrigo apresentaram uma
resposta mais lenta às atividades musicais propostas em comparação ao desempenho
dos idosos do Grupo Revivendo. Outra diferença importante encontrada entre os
dois grupos foi a falta de motivação dos idosos em participar das atividades nas pri-
meiras aulas. Enquanto os idosos do grupo revivendo participavam ativamente das
atividades propostas com alegria e descontração, os idosos do abrigo se sentiam en-
vergonhados e a comunicação entre eles praticamente não existia. Nas primeiras
aulas tivemos a necessidade de ir ao encontro de cada idoso dentro dos alojamen-
tos para convidá-los a irem ao salão para participarem das aulas. Na medida em que
os encontros foram acontecendo, os idosos passaram a ir ao salão espontaneamente. 647
Da mesma forma a comunicação entre os idosos evoluíram gradativamente, ge-
rando um ambiente agradável e de grande descontração. Todas as aulas realizadas
no abrigo foram acompanhadas pela assistente social, que relatava os efeitos posi-
tivos das aulas nos idosos, especialmente os que apresentavam acentuados quadros
de depressão. Além dos problemas emocionais, a maioria dos participantes do
abrigo tinha dificuldades de locomoção, geralmente por conseqüência do acidente
vascular cerebral (AVC, conhecido popularmente como derrame), problemas car-
díacos e, em alguns casos, deficiência mental leve, conseqüência da idade avançada,
controlada por medicamentos.
No entanto, apesar destas dificuldades e das diferentes realidades vividas pelos dois
grupos, bem como as diferenças cognitivas observadas, os idosos adquirem conhe-
cimento musical, principalmente, quando os conteúdos estão voltados ao resgate
das experiências musicais dos alunos e ministrados sempre de forma prazerosa, pro-
porcionando uma prática musical nova e significativa. Entre os idosos do Abrigo D.
Pedro II foram observados muitos episódios de alegria e até emoção quando os alu-
nos conseguiam decodificar os elementos da gramática musical. Um exemplo deste
fato aconteceu durante uma atividade de “jogo da memória”, onde foram utiliza-
das cartões com as figuras musicais (semibreve, mínima, semínima, colcheia e se-
micolcheia). Os idosos que acertavam a posição das figuras tinham que executar o
ritmo usando um instrumento de percussão. Quando se executava a célula musical
de forma correta todos aplaudiam. Outro momento importante foram as apresen-
tações musicais, onde os idosos do abrigo tiveram a oportunidade de se expressar
musicalmente diante do público formado por moradores, funcionários e familiares.
Nestas ocasiões, os idosos sentiam-se emocionados e especialmente valorizados por
demonstrar em público a sua capacidade de aprender e de se expressar musical-
mente.
Além do conhecimento das duas realidades relatadas aqui, a realização deste tra-
balho nos proporcionou o conhecimento das possibilidades de trabalho voltado ao
ensino de música aos idosos institucionalizados. Neste caso, o ensino e a prática
musical geram resultados efetivos, que promovem a dignidade dos idosos. O papel
da música como um recurso para a promoção de uma melhor qualidade de vida
também é um objeto de estudo de outras áreas de conhecimento, preocupadas com
a realidade do idoso asilado. Isto pode ser observado nas palavras de Eliseth Ribeiro
Leão, pesquisadora da área de enfermagem, que diz:
“É nesse ponto que a Arte, em particular a Música, na forma como a concebemos,
possibilita a revitalização, tão necessária, do nosso potencial de dignidade, não
como um caminho único, mas como um caminho possível e promissor na abor-
dagem aos idosos institucionalizados. A música tem sido apontada como um
recurso valioso para se trabalhar com idosos por ser um estímulo que promove:
a) respostas fisiológicas; b) respostas emocionais que estão associadas às respos-
648 tas fisiológicas, como alterações nos estados de ânimos, nos afetos; c) integra-
ção social ao promover oportunidades para experiências comuns, que são a base
para os relacionamentos; d) comunicação, principalmente para idosos que têm
problemas de comunicação verbal e pela música conseguem interagir significa-
tivamente com os outros; e)expressão emocional; f) afastamento da inatividade,
do desconforto e da rotina cotidiana e g)associações extra-musicais, lembran-
ças de pessoas, lugares mediante a evocação de emoções guardadas na memória”
(Leão, 2008: 4)
Por fim, acreditamos que o maior desafio enfrentado na educação musical na ter-
ceira idade está no preparo do profissional de música, que deve conhecer as estra-
tégias de ensino e aprendizagem musical que sejam adequadas às condições físicas,
psicológicas e sociais dos idosos para uma educação musical de possibilidades8. Além
disso, este profissional necessita de um conhecimento interdisciplinar para auxiliar
suas atividades, principalmente na área de Gerontologia. No caso da prática de en-
sino com idosos institucionalizados, é de fundamental importância o acompanha-
mento de assistentes sociais da instituição, no sentido de serem fontes importantes
de informação que podem auxiliar no trabalho do educador musical.

1 De acordo com Nunes (2000), a categoria terceira idade surgiu na França na década de
1960 e refere-se “a uma emergente realidade da velhice, ligada a um novo tempo de lazer e
não mais associada à miséria, doença e decadência, o que, em geral, ocorria após a aposenta-
doria” (Frutuoso, 1996:33 apud Nunes, 2000: não paginado).
2 Para mais informações consultar o endereço eletrônico do Instituto Brasileiro de Geogra-
fia e Estatística (IBGE), http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/idoso/perfil_idosos.html
3 A Gerontologia é definida como a ciência que estuda o envelhecimento.
4 Além dos estudos voltados à educação musical, a prática musical na terceira idade está
muito presente nas pesquisas na área de musicoterapia, conforme observamos nos congres-
sos da área de música, especialmente os da ANPPOM e do SIMCAM, realizados na última
década. Cabe aqui destacar o trabalho realizado por Cotta (2006) voltado para a prática do
canto na musicoterapia e Cunha (2007) sobre a aplicação da musicoterapia junto a idosos
com provável diagnóstico da doença de Alzheimer.
5 O Abrigo D. Pedro II foi fundada em 1882 com o nome de Asilo de Mendicidade da Bahia
e foi considerada uma das primeiras entidades fundadas no Brasil com o objetivo de prestar
assistência a mendigos e idosos carentes. Em 1943 o abrigo passa a acolher apenas pessoas
com idade superior a 60 anos. Atualmente esta instituição é ligada à prefeitura de Salvador
e administrada pela Secretaria Municipal de Ação Social.
6 De acordo com Nunes (2000: não paginado) a primeira Faculdade da Terceira Idade foi
criada em 1973 em Toulouse, na França. No Brasil, a primeira instituição desta natureza foi
criada em São Paulo, em 1977, por iniciativa dos técnicos do SESC, no qual serviu de mo-
delo para o surgimento das demais instituições a partir da década de 1980.
7 Com o objetivo de estudar a prevalência da depressão em diferentes grupos de idosos, os
autores avaliariam 90 idosos, sendo 30 idosos que estavam hospitalizados, 30 idosos insti-
tucionalizados e 30 idosos residentes em domicílios. Nos resultados, foram obtidos altos ín- 649
dices de depressão entre os idosos hospitalizados (56,67%) e institucionalizados (60%), em
relação aos idosos residentes no domicílios (23,34%) (Porcu et al., 2002).
8 A respeito da formação do professor de música voltado à terceira idade, Rodrigues e Car-
valho (2008) estão desenvolvendo um projeto de pesquisa sobre formação e atuação dos pro-
fissionais pautado nos seguintes objetivos: “1) conhecer a formação dos profissionais que
atendem indivíduos na terceira idade; 2) verificar que concepções sobre ensino e aprendi-
zagem musical norteiam as práticas desses profissionais; 3) investigar que saberes têm sido de-
senvolvidos por esses profissionais; 4) investigar que saberes são considerados necessários
para atuar nessa faixa etária e 5) investigar os dilemas encontrados pelos profissionais em seu
trabalho docente. (Rodrigues e Carvalho, 2008: 5).
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A motivação dos alunos
para continuar seus estudos em música
Janaína Condessa
jcondessa@hotmail.com 651
Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS

Resumo
Este artigo faz parte de uma pesquisa em andamento que busca estabelecer a interação
existente entre os fatores individuais e ambientais que motivam os alunos para continuar
seus estudos em música fora da escola. Segundo a literatura, os fatores individuais refe-
rem-se às crenças, às percepções e às características pessoais dos alunos, enquanto os
fatores ambientais relacionam-se com as experiências em um determinado local e mo-
mento de vida, bem como as interações estabelecidas com as pessoas desse ambiente.
Além da interação entre esses fatores, a pesquisa pretende investigar o papel do ambiente
(pais, família, professores, pares e contexto escolar) e das características individuais dos
alunos (metas e autoconceito), quando estes escolhem continuar seus estudos em mú-
sica fora da escola. O texto aborda conceitos importantes sobre a motivação para apren-
der e continuar aprendendo música, trazendo pesquisas atuais e de diferentes partes do
mundo. Apoiada na literatura da educação e da educação musical e sob a perspectiva
da psicologia do desenvolvimento cognitivo, este trabalho justifica-se pela possibilidade
de compreender tanto os diferentes fatores envolvidos na interação entre o indivíduo e
o ambiente durante a aprendizagem musical, quanto a maneira pela qual eles incenti-
vam o aluno a continuar os estudos em música. Os resultados obtidos poderão colabo-
rar para o aprimoramento pedagógico dos professores de música, além de permitir
reflexões e subsídios que possam melhorar a motivação dos alunos para aprender mú-
sica.

Motivação para aprender


Desde o início do século XX, a motivação humana é um assunto estudado por di-
versos campos do conhecimento, principalmente nas áreas de administração, saúde,
psicologia e educação. Na perspectiva da psicologia educacional, pesquisas a res-
peito da motivação como componente essencial na condução das atividades hu-
manas têm sido desenvolvidas com o objetivo de entender ‘como’ e ‘por que’
professores e alunos sentem-se motivados em relação a seu trabalho e a seus estudos.
Os estudos sobre a motivação do professor, também conhecida como motivação
para ensinar, dedicam-se à compreensão da atividade docente relacionada com a
satisfação profissional e a qualidade do ensino oferecido (JESUS, 2000), enquanto
aqueles que se referem ao aluno, sobre a motivação para aprender, versam sobre as
autopercepções e os interesses discentes, bem como os resultados desses aspectos no
comportamento do indivíduo. Ambos os tipos de estudo são bastante relevantes na
área educacional, pois o professor tem um papel fundamental no processo cognitivo
do aluno, podendo inferir em seu comportamento motivado (Tapia; Fita, 2006),
assim como o aluno também é responsável pelas características e mudanças que
ocorrem no ambiente de aprendizagem (Hallam, 2002).
Os estudos sobre a motivação para aprender compreendem e explicam esse estado
652 psicológico sob diferentes enfoques. De acordo com Eccles e Wigfield (2002), es-
tudar a motivação significa entender o processo que envolve a ação dos indivíduos,
dando uma idéia de movimento e de dinamicidade a esse fenômeno. Bzuneck (2001,
p. 9) também defende a motivação como algo que “move uma pessoa ou a que põe
em ação ou faz mudar de curso”. Alguns pesquisadores consideram a motivação
como um processo e não como um produto da aprendizagem. Ou seja, conside-
rando-se que o processo motivacional do aluno não é passível de se observar dire-
tamente, Pintrich e Schunk (1996, p. 4) afirmam que “podemos inferi-lo através de
comportamentos como a escolha das tarefas, do esforço, da persistência, e das ver-
balizações [...]”. Para Hallam (2002), a motivação do aluno é entendida como um
fenômeno complexo e multifacetado e, para um maior esclarecimento, devem ser
admitidos os fatores que estão envolvidos e inter-relacionados nesse processo.
Na maioria das pesquisas sobre a motivação do aluno, o contexto escolar é consi-
derado objeto principal de estudo, apresentando questões referentes às escolhas, à
persistência e ao esforço despendido pelo aluno (Wigfield; Eccles; Rodriguez, 1998).
Contudo, em qualquer ambiente, a compreensão do processo motivacional é con-
siderada de muita relevância, pois conhecer os fatores que levam os alunos a se mo-
tivarem, pode contribuir para o alcance de altos níveis de aprendizagem. Isso
significa que um aluno motivado mostra-se ativamente envolvido no processo de
aprendizagem (Guimarães; Boruchovitch, 2004) e que um aluno desmotivado in-
veste cada vez menos nas tarefas propostas, o que acarreta a queda de qualidade no
aprendizado (Zenorini; Santos, 2010).
Nos últimos vinte anos, as pesquisas têm se expandido, trazendo não só as variáveis
motivacionais pertencentes ao self 1 – autopercepção, autoconceito, autoestima,
autodeterminação, autovalorização, etc. – mas, também, os elementos sociais que
influenciam a motivação para aprender (Wigfield; Eccles; Rodriguez, 1998). Nesse
sentido, Weiner (1990) revela em sua revisão histórica da pesquisa sobre motiva-
ção que, cada vez mais, novos conceitos acerca das emoções e cognições humanas
são introduzidos e novas áreas estão sendo incorporadas.

Fatores envolvidos na motivação para aprender


Segundo a literatura, a motivação para aprender não se limita a causas familiares,
pessoais ou pertencentes à realidade escolar, mas é uma combinação desses fatores,
num processo de interações multideterminadas, as quais aparecem, em sua maioria,
dentro da escola e da própria classe (Guimarães, 2001). Isso significa que os fatores
envolvidos no processo motivacional do aluno perpassam tanto por suas emoções
e percepções quanto pela interação com as situações e com as pessoas que convive.
O termo ‘fatores’ refere-se aos traços das características individuais do aluno, tais
como suas crenças, seus valores e suas autopercepções, e às relações pessoais esta-
belecidas no ambiente de aprendizagem, seja com pessoas de sua convivência mais 653
íntima (pais, irmãos, amigos), seja com aquelas não tão próximas (professores, co-
legas de classe). Isto é, todos eles são considerados elementos flexíveis e passíveis de
modificação, além de serem fundamentais para a motivação dos alunos.
Diante dos estudos que investigam esses fatores, há diferentes denominações para
os dois grupos, um relativo às características pessoais dos alunos e outro referente
às características do ambiente. De um lado, estão os fatores ligados às questões pes-
soais, que são as crenças dos alunos em relação a suas capacidades e desempenho e,
também, as crenças sobre a música e seu ensino. Esses aspectos aparecem nas pes-
quisas como: fatores internos (Sichivitsa, 2007), fatores individuais (Hallam, 2002),
fatores intrínsecos (O’Neill, 1999) e fatores pessoais (Ghazali, 2006). De outro
lado, estão os fatores correspondentes às relações estabelecidas com as pessoas e
com o ambiente de aprendizagem, os quais surgem na literatura como: fatores ex-
ternos (Vilela, 2009), fatores ambientais (Gembris; Davidson, 2002) e fatores ex-
trínsecos (Ilari, 2002).
O foco deste trabalho em andamento está na compreensão desses fatores e de que
forma eles interagem, quando o aluno decide continuar seus estudos em música
fora da escola. Como em qualquer área do conhecimento, a motivação para apren-
der música envolve as crenças pessoais do aluno e as interações dele com o ambiente
(Ghazali, 2006). Especificamente na área da música, as crenças pessoais, ou os fa-
tores individuais, referem-se às percepções e opiniões dos alunos acerca de dois as-
pectos: sobre suas habilidades na aprendizagem musical e sobre estudar música. As
interações com o ambiente – fatores ambientais – podem ser experienciadas tanto
dentro de um local ou de uma instituição específica, como podem ser estabelecidos
através do diálogo e da troca de vivências musicais entre amigos, colegas, família,
etc.
Como já foi mencionado anteriormente, na literatura são muitas as maneiras de
representar e denominar esses dois fatores. No entanto, essa divisão não é feita no
sentido de separar essas diferentes características, mas são apresentadas dessa forma,
no sentido de pesquisar, de forma cuidadosa, um recorte daquilo que envolve o pro-
cesso motivacional. A seguir, serão apresentadas as pesquisas que compreendem os
fatores individuais, os fatores ambientais e a interação estabelecida entre esses dois
tipos de fatores.
1. Fatores Individuais
Os fatores individuais foram bastante destacados nos primeiros estudos da moti-
vação humana. Entre os anos de 1940 e 1960, as teorias dominantes estavam no
eixo behaviorista, o qual argumentava que o comportamento humano é motivado
por recompensas ou por impulsos fisiológicos (Ryan; Deci, 2000). A partir da dé-
cada de 1970, pode-se afirmar que, de uma ênfase na biologia (instintos e necessi-
654 dades) e no comportamento (recompensas e punições), o foco passou para o
reconhecimento da cognição pessoal e do contexto social (Austin; Renwick;
McPherson, 2006).
De acordo com Hallam (2002), as características do indivíduo envolvidas na mo-
tivação incluem a sua personalidade, o seu autoconceito e suas metas. Para Sichivitsa
(2007), o autoconceito também aparece como um importante fator que influencia
o desempenho dos alunos, a satisfação com o ambiente de aprendizagem e o inte-
resse por um assunto. A característica pessoal de se autoperceber, de se autoavaliar,
abordada como autoconceito por Sichivitsa (2007), assemelha-se ao construto da
autoeficácia, defendido teoricamente por Bandura (2008). Segundo esse autor, as
crenças de autoeficácia representam o julgamento de uma pessoa sobre suas pró-
prias capacidades, num determinado contexto.
A motivação intrínseca também é um construto pertencente às características in-
dividuais do aluno. Para Deci e Ryan (1985), o indivíduo intrinsecamente moti-
vado sente-se mais competente e autodeterminado, pois ele escolhe realizar uma
tarefa por sua própria causa, sem necessitar de qualquer tipo de controle do am-
biente. Enquanto esses autores baseiam-se na característica inata da motivação in-
trínseca, Massimini, Fave e Csikszentmihalyi (1992) particularizam-na como uma
experiência mais subjetiva, em que o indivíduo realiza uma tarefa sem a preocupa-
ção de que os desafios estão além de suas capacidades (Csikszentmihalyi, 1997).
As metas estabelecidas pelos alunos também fazem parte dos fatores individuais.
Dentro da literatura da motivação, as metas, também denominadas de objetivos de
realização, podem ser divididas em duas categorias: meta aprender e meta perfor-
mance. Quando um aluno completa uma tarefa em busca de crescimento intelec-
tual, enfrentando os desafios e valorizando o esforço despendido, a meta aprender
é a predominante nesse processo. Entretanto, ao terminar uma atividade em que o
foco é demonstrar aos outros as suas capacidades, preocupando-se somente com os
elogios e a aprovação externa, surge, então, a meta performance (Zenorini; Santos,
2010). De acordo com a literatura, os alunos que adotam a meta aprender costu-
mam expandir as suas estratégias de aprendizagem frente aos obstáculos, ampliando,
também, as suas habilidades. Ao contrário, aqueles que têm como objetivo a per-
formance, procuram evitar tarefas muito desafiadoras, ou seja, aquelas que perce-
bem que estão além das suas capacidades de realizá-las com sucesso (Elliott; Dweck,
1988).
Além da necessidade de desempenho nas metas propostas, de ser competente nas
tarefas, e de sentir-se emocionalmente satisfeito durante a realização de uma ativi-
dade, atribuir importância e valor à aprendizagem é de extrema relevância, quando
se pretende compreender os fatores individuais no processo motivacional. Segundo
a literatura, os alunos valorizam mais as tarefas em que se sentem mais seguros, por
terem melhor desempenho e sucesso, a ponto de investir maior esforço para a sua
realização, atingindo, consequentemente, altos níveis de aprendizagem (Vilela, 655
2009; Wigfield; Eccles; Rodriguez, 1998; Wigfield et al., 1997).

2. Fatores Ambientais
Dentro dos fatores ambientais, destacam-se duas grandes categorias que possuem
relação com a motivação discente: as pessoas e os contextos. Inseridos na primeira
categoria, os dois grupos de adultos que têm maior participação na motivação para
aprender entre crianças e adolescentes são os professores e os pais (Marsh; Craven,
1991). Não só na área da música, muitas pesquisas têm sido realizadas com o obje-
tivo de compreender o papel do professor na motivação dos alunos (Bzuneck; Gui-
marães, 2007, Guimarães, 2003, Jesus, 2008, Lens; Matos; Vansteenkiste, 2008).
Martini e Del Prette (2002, p. 149) destacam que “o papel do professor e de suas
características tem sido amplamente reconhecido como um dos principais fatores
que influem sobre a qualidade das relações professor-aluno e da aprendizagem dos
alunos na escola”.
Ainda na primeira categoria, salienta-se o papel dos pais, pois eles são a primeira
referência de valores e de formação do indivíduo (McPherson, 2009), os quais irão
instruir e fortalecer as concepções sobre música. O papel da família também é citado
como um importante contribuinte para o progresso musical dos jovens instru-
mentistas (Howe; Sloboda, 1991).
No que diz respeito ao terceiro grupo das pessoas que contribuem para motivar os
alunos, destacam-se os pares (amigos e colegas). Para aprender, o indivíduo per-
passa, obrigatoriamente, por suas relações interpessoais, as quais irão influenciar a
modificação e o reforço do seu comportamento (Lisboa; Koller, 2004). A opinião
dos colegas, o sentimento de pertencer a um grupo, a formação da identidade entre
os amigos, a escolha de valores e os tipos de comportamentos influenciam direta-
mente a motivação para aprender em diferentes contextos de aprendizagem.
Dentro dos ambientes de aprendizagem, a escola é considerada um fator determi-
nante na motivação dos alunos, na medida em que representa o contexto social que
integra alunos, professores e colegas. Representando o principal fator ambiental
enquadrado na segunda categoria, a escola é um dos contextos de interação mais im-
portantes na vida de crianças e adolescentes, “podendo fortalecê-los ou enfraquecê-
los perante as dificuldades inerentes a essa etapa de desenvolvimento” (Guimarães,
2004, p. 179).
Além da escola, Gembris e Davidson (2002) apontam os sistemas socioculturais,
compostos pela mídia e pela cultura musical disponível, como elementos impor-
tantes na motivação dos alunos. Do mesmo modo, Hallam (2002) também inclui
a cultura nos fatores ambientais, ampliando-os, ainda, para os espaços (instituições)
de estudo e as exigências sociais vigentes.
656
3. Fatores Individuais e Ambientais
Na área da música, alguns trabalhos dedicaram-se a conjugar os aspectos indivi-
duais e os ambientais como objetos científicos. O estudo realizado por Austin, Ren-
wick e McPherson (2006), por exemplo, defende que a motivação para aprender
música pode ser considerada um processo dinâmico que envolve o autossistema
(percepções, pensamentos, crenças e emoções do aluno), o sistema social (profes-
sores, pais, pares e o ambiente de sala de aula), as ações (comportamentos motiva-
dos e regulação da aprendizagem), e os resultados (desempenho, aprendizagem).
Nesse caso, os fatores individuais podem ser considerados como os componentes do
autossistema, e os ambientais significam os aspectos do sistema social.
Outra pesquisa que considera esses dois tipos de fatores foi feita por Sichivitsa
(2007). Seu objetivo foi investigar os fatores internos – como o autoconceito e o
valor dado à música – e externos – como o apoio dos pais e a interação social nas
aulas de música – para justificar a sua influência no interesse e na persistência de alu-
nos de graduação não-músicos em participar de um coro. De outra forma, Ghazali
(2006) preferiu adotar os termos ‘pessoais e ambientais’ a ‘internos e externos’, ao
investigar como esses fatores auxiliam a maneira que as crianças malasianas valori-
zam o ensino formal de música dentro e fora da escola. De acordo com seu estudo,
os fatores pessoais referem-se às crenças dos alunos sobre música e sobre seu de-
senvolvimento musical; os fatores ambientais são a família, o ambiente de casa, os
pais, a escola e os professores; e, ainda, há um terceiro tipo que agrupa outros fato-
res sociais, tais como a influência da cultura, da religião e da importância dada à
educação musical.
Diferentemente desses enfoques, MacKenzie (1991) explicou os fatores que moti-
vam as crianças em aprender um instrumento musical, dividindo-os nos seguintes
determinantes: sociais, escola, lar e pessoais. Os determinantes sociais, que podem
ser considerados como fatores ambientais, são representados pelos pares, pela escola,
que incluem as condições oferecidas e os professores, e pelo lar, que abrangem os
pais e os irmãos. Os determinantes pessoais, que, nesse caso, só inclui o estudo do
interesse dos alunos, significam os fatores individuais.
Em busca da compreensão dos fatores ambientais, mas com o foco específico na in-
teração entre pais e filhos, McPherson (2009) criou um modelo que explica como
os objetivos, estilos e práticas dos pais são mediados pelas características da criança
e outros fatores socioculturais. Esse modelo é o primeiro a traçar as influências que
os pais podem ter na motivação para aprender dos seus filhos, juntamente com as
características da criança (motivacionais, autoconceituais e autorregulacionais) e
com as características do contexto sociocultural – que se restringe àquele em que
ocorre a interação entre pais e filhos.
Para concluir, é importante ressaltar que os estudos que se referem aos
fatores individuais não negligenciam os fatores ambientais, e vice-versa. Isso signi- 657
fica que, ao estudar a importância da aula de música na escola, por exemplo, não cor-
responde identificar, somente, as percepções pessoais, mas, também, pode
considerar os fatores ambientais envolvidos. Isso acontece, principalmente, na ado-
lescência, período em que as expectativas, os valores e as metas dos alunos, que ad-
quirem maior consciência e, portanto, capazes de entenderem e colocarem em
prática as sugestões de professores, pais, pares e outros membros do sistema social
(Austin; Renwick; McPherson, 2006).

Motivação para aprender e continuar os estudos em música


Os estudos sobre a motivação para aprender música podem ser divididos em duas
grandes categorias: o estudo da motivação do aluno no ensino do instrumento e o
estudo da motivação do aluno no contexto escolar. No cenário internacional, as
pesquisas sobre a motivação na aprendizagem musical estão voltadas, por um lado,
a explicar o grau de envolvimento e de persistência no estudo da música, princi-
palmente no instrumento musical (McPherson; McCormick, 2000, McPherson;
Thompson, 1998; O’Neill, 1999) e, por outro lado, a analisar os fatores do con-
texto social do aluno e que influenciam sua aprendizagem em música (Davidson
et al., 1998; Gembris; Davidson, 2002; McPherson, 2009; Schimdt, 2005). No Bra-
sil, há poucos trabalhos desenvolvidos sobre motivação na área de educação musi-
cal. A maioria deles tem por objetivo a motivação do aluno nos processos de ensino
e aprendizagem do instrumento – individual e em grupo – (Araújo; Torres; Iles-
cas, 2007; Araújo; Pickler, 2008; Cavalcanti, 2009; Figueiredo, 2008; Fucci Amato,
2008; Tourinho, 1995). A motivação para aprender música no currículo escolar e
em outros contextos foi temática da pesquisa de Vilela (2009), enquanto Pizzato
(2009) abordou esse assunto somente em relação à escola.
As pesquisas sobre a escolha do aluno têm investigado que a importância dele sen-
tir-se livre para escolher o repertório musical, pode fazê-lo atingir altos níveis de
engajamento nas atividades musicais (Renwick; McPherson, 2002). Outros auto-
res defendem que a escolha por aprender um instrumento musical pode estar as-
sociada à preferência por um estilo musical (Ho, 2003), ou, ainda, pelo timbre do
instrumento e pela influência de pessoas, como professores, pais e amigos (Fort-
ney; Boyle; Decarbo, 1993). Segundo Maehr, Pintrich e Linnebrink (2002), esco-
lher ou ter preferência por uma tarefa representam alguns indicadores da motivação
do aluno, porque, ao optar por algo, o indivíduo demonstra direcionamento e in-
vestimento de energia para realizar a ação.
Em relação à motivação para continuar os estudos em música, a pesquisa de Chen
e Howard (2004) demonstra que a satisfação em tocar o instrumento foi o princi-
pal fator apontado pelos músicos entrevistados. No mesmo sentido, Leung, So e
Lee (2008) identificaram o interesse próprio como determinante na motivação dos
658 alunos em prosseguir seus estudos em música, seguido das influências do professor
de música da escola e dos membros da família. No entanto, Ilari (2002) encontrou
resultados um pouco diferentes na análise das opiniões de instrumentistas profis-
sionais, brasileiros e canadenses, sobre a influência de professores, da família e dos
conjuntos musicais na sua formação e motivação para continuar estudando ou tra-
balhando na área de música. Nesse trabalho, a autora concluiu que o papel dos pro-
fessores e da família apareceram como os principais fatores na continuidade do
estudo da música e que o fato de o aluno escolher pela carreira de instrumentista in-
dica que ele está motivado (Ilari, 2002).

Considerações Finais
As reflexões trazidas sobre os dois tipos de fatores – individuais e ambientais – que
motivam os alunos em aprender música e que, também, contribuem para a conti-
nuidade dos seus estudos constituem a moldura desta pesquisa em andamento. Par-
tindo da reflexão de Ilari (2002) de que, ao continuar seus estudos em música, o
aluno demonstra o comportamento motivado, os objetivos propostos neste traba-
lho têm como foco o entendimento da interação estabelecida entre os fatores in-
dividuais de alunos que estudam nas séries finais do ensino fundamental e os
aspectos ambientais oferecidos em suas experiências com música dentro do currí-
culo escolar, os quais estão envolvidos na sua decisão em continuar seus estudos em
música fora da escola. O método escolhido para a coleta e análise dos dados foi o es-
tudo de entrevistas, de caráter semi-estruturado, que possibilitará muitas com-
preensões sobre os motivos que levaram esses adolescentes a continuar seus estudos
em música fora da escola.
É importante ressaltar que os dados aqui apresentados, sobre a importância de se co-
nhecer os fatores que contribuem para a motivação do aluno, são resultados de mui-
tas pesquisas já realizadas neste campo, uma vez que esta pesquisa ainda está em
andamento. Mesmo assim, cabe salientar que conhecer esses fatores é fundamental
para enriquecer a prática dos professores de música, em qualquer nível de atuação
profissional, pois já se sabe que um aluno interessado e motivado na aula de música,
sente-se mais confiante e satisfeito em aprender música na escola ou fora dela.
Assim como as pesquisas sobre a motivação para aprender música têm se expan-
dido no cenário internacional, o desenvolvimento de estudos brasileiros nesta área
está se fortalecendo, o que beneficia o campo da psicologia do desenvolvimento
cognitivo-musical e a área da educação musical como um todo. Portanto, a contri-
buição de novos trabalhos não se limita à construção de novas abordagens teóricas,
mas, também, ao enriquecimento da ação pedagógica do professor de música, na
qual ele poderá ampliar as suas estratégias e contribuir para a aprendizagem efetiva
e prazerosa em sala de aula.

1 Para a área da psicologia cognitiva, o self significa o “sujeito subjetivo”, considerando seus 659
processos cognitivos, motivacionais e afetivos (Almeida; Guisande, 2010). Com o objetivo
de ser fiel ao seu significado, os estudos impressos na língua portuguesa mantêm sua escrita
em inglês: self.

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Estimulação da memória pelo canto como base de edu-
cação musical na maturidade: um aspecto cognitivo social
Celina Amalia Vettore Maydana
Maria de Fátima Machado Brasil 663
Resumo
Envelhecer com qualidade é o objetivo primordial do ser humano. Neste sentido, a ques-
tão cognitiva tem sido preocupação constante, e seus mecanismos como a memória, a
linguagem, a atenção e as funções executivas, afetados pelo desenvolvimento da vida
até o envelhecimento, bastante pesquisados e estudados. Este desenvolvimento está as-
sociado a mudanças e a todos os processos adaptativos que disso decorrem. Para que
isto aconteça plenamente e de forma natural, aptidões físicas e emocionais devem ser
cultivadas a tal ponto que seu decréscimo não seja abrupto nem provoque incapaci-
dade. Dentro destas aptidões, focamos a memória como base para estudo. Áreas cere-
brais foram pesquisadas a fim de relacioná-las com os diversos tipos de memórias (de
trabalho, de curta duração, de longa duração, procedural, declarativa e etc). A música
(canto/educação musical) foi utilizada então como ferramenta básica de trabalho, pois sa-
bemos que ela (música) estimula operações físicas e mentais, com melhora significativa
em todos os aspectos cognitivos.

Este trabalho tem por objetivo, avaliar até que ponto o canto como base de educa-
ção musical, pode influenciar positivamente a memória, e o que isto pode repre-
sentar na conservação da auto-suficiência, adaptação social, obtenção e
aperfeiçoamento de novos conhecimentos, constituindo um prazer intelectual/fí-
sico e reafirmando o idoso como um sujeito ativo na sociedade. Foi desenvolvido
num grupo de pessoas participantes de uma oficina de música (atualmente trinta e
cinco mulheres), entre 52 e 90 anos, transformada posteriormente em coral, den-
tro do projeto USI-VIDA, da empresa USIMED (de responsabilidade civil), e desti-
nado aos usuários do plano de saúde USIMED. Os encontros são semanais com
duração de 90 (noventa) minutos, nos quais realizamos atividades com base na Edu-
cação Musical: noções de teoria e harmonia, musicalidade corporal, atividades cê-
nicas, exercícios vocais, exercícios de atenção, concentração e memorização,
utilização de músicas com letras em diversas línguas (inglês, espanhol, hebraico, ja-
ponês e francês) e outros. O grupo foi criado há 6 (seis) anos, porém a avaliação foi
feita, baseada em observações ao longo de 1(um) ano. Acrescentamos ainda a esta
avaliação um questionário para termos a dimensão do conhecimento dos partici-
pantes sobre a memória, e como eles se sentem com relação a isto antes e após a pes-
quisa. Este trabalho se tornou um desafio despertando grande curiosidade e
interesse dos participantes tornando-se um estímulo à aquisição e conservação de
novos conhecimentos. Baseados então nestas atividades verificou-se uma melhora
considerável no que se refere à memória, e conseqüentemente melhora em outros
aspectos da cognição. O “papel”, que antes era imprescindível como apoio para o
canto, já não tem a mesma importância, coreografias são praticadas com desenvol-
tura e segurança, compromissos não são mais esquecidos. Estas conquistas se es-
tenderam para o âmbito familiar e social, e foram reconhecidas como fatos reais.
664 Para os participantes representou a descoberta de que não há limites para novos
conhecimentos, independente da faixa etária.
Com base nos pressupostos estudados, verificou-se que Educação Musical (canto)
não se limita, atualmente, a formar músicos, mas pode ser utilizada num contexto
mais abrangente, atuando sobre mecanismos cognitivos (memória) como ferra-
menta poderosa na integração/manutenção do indivíduo à sociedade de forma
prazerosa.
Objetivo
Avaliar até que ponto o canto (coral) pode atuar de maneira positiva na memória
dos participantes do grupo e o que isto representa na sua qualidade de vida.

Fundamentação
O processo de envelhecimento com conseqüente declínio cognitivo e perda da ca-
pacidade funcional tem preocupado o homem desde o inicio da civilização. Inú-
meros estudos têm se desenvolvido sobre o assunto. Parente (2006, p.24) nos
mostra alguns destes estudos:
• o envelhecimento compreende processos de transformação do organismo que
ocorrem após a maturação sexual, sendo acompanhado por alterações regula-
res na aparência, no comportamento, na experiência e nos papéis sociais (Birren
e Bengston, 1988);
• além dos aspectos individuais, existem três domínios gerais a serem considera-
dos na velhice. O primeiro relaciona-se ao aumento nas perdas físicas, onde a
saúde tende a ser um problema crescente. O segundo acontece quando as pres-
sões e as perdas sociais tendem a se acumular e o terceiro quando os idosos de-
frontam-se com a idéia de que o tempo está se tornando cada vez mais curto
para eles (Papalia e Olds, 2000);
• a experiência do envelhecimento não é homogênea, existindo três realidades
de envelhecimento:
1 – velhice bem-sucedida ou ótima, quando acontece a preservação da saúde ob-
jetiva, da saúde auto-referida e da funcionalidade no padrão do adulto jovem;
2 – velhice usual ou velhice normal, onde ocorrem doenças físicas e/ou men-
tais ou limitações funcionais de intensidade leve ou moderada, modificando
apenas parcialmente nas atividades diárias;
3 – velhice com patologia onde a funcionalidade e o padrão de saúde física e
mental do adulto jovem foram perdidas ou estão menos nítidos, limitando se-
veramente a vida da pessoa (Neri, 1993).
Atualmente, o interesse da Medicina não é simplesmente a reparação de defeitos ou
cura de males orgânicos que acometem as pessoas, mas sim de cuidar dos pacientes
numa visão holística, procurando seu bem estar físico e psíquico, com objetivo glo-
bal das relações individuais e com o meio ambiente. De acordo com Mayr (1991, p.
95) houve uma mudança na “consciência de saúde” da comunidade. Estes objetivos, 665
em pessoas idosas, são muitas vezes descuidados, com diminuição da qualidade de
vida, e sem encontrar caminhos alternativos para suas dificuldades. Zanini, (2007,
p.94) fala da Síndrome Cerebral Orgânica (SCO), um dos mais importantes dis-
túrbios observados na comunidade entre as pessoas de terceira idade, e cita sua de-
finição segundo Veras (1997):
Compreende-se por SCO o comprometimento das funções corticais incluindo
memória, da capacidade de solucionar problemas cotidianos, da habilidade mo-
tora, da linguagem e comunicação e do controle das reações emocionais.
Luz apud Azambuja (2008, p.16) confirma esta definição, quando afirma que:
(...) a essas condições somam-se o declínio de suas características físicas tais como
rugas, cabelos brancos, diminuição da memória e dos sentidos e muitas outras,
que unidas à sua marginalização determinam alterações psíquicas como a perda
da confiança, da angústia e a depressão.
Concentramos-nos na memória, o que sua diminuição ou perda representa na vida,
e qual a função da música para sua melhoria. O termo memória tem origem eti-
mológica no latim e define-se como a capacidade de adquirir (aquisição), armaze-
nar (conservação) e recuperar (evocação) informações. Ela requer grande
quantidade de energia mental e deteriora-se com a idade.
É uma faculdade cognitiva extremamente importante, porque forma a base para
a aprendizagem, estando envolvida com a nossa orientação no tempo e no es-
paço e nossas habilidades intelectuais e mecânicas. (Cardoso, p.1)
Manes (2005, p.113) define aquisição como incorporação e registro da informa-
ção; conservação como guardar a informação na memória até que seja necessária,
em um lugar fácil de encontrar e evocação como recuperação da informação quando
necessária.
Wilder Penfield, um dos mais importantes neurocirurgiões americanos, foi o pri-
meiro a demonstrar que os processos da memória têm localizações específicas no cé-
rebro humano. Explorou a superfície cortical verificando que a estimulação elétrica
produzia resposta retrospectiva, na qual o paciente descrevia uma lembrança cor-
respondente a uma experiência vivida. Assim sendo, várias áreas cerebrais foram
reconhecidas como participantes do processo de memorização.
Segundo Izquierdo (2004, p. 31) os vários tipos de memória ocupam e requerem a
atividade simultânea de muitas regiões cerebrais (amígdalas, hipocampo, córtex en-
torrinal — estruturas dos lobos temporais —, córtex pré-frontal) e de acordo com
sua duração podem ser classificadas em: memória imediata (dura segundos), me-
mória de curta duração (dura de uma a seis horas) e memória de longa duração
(dura muitas horas, dias ou anos).
Na memória imediata encontramos e chamada Memória de trabalho ou operacio-
nal, que persiste por alguns segundos ou minutos além do fato ou do evento a que
666 se refere. É um armazenamento temporário e baseia-se na atividade do córtex pré-
frontal. Em alguns casos há a participação neste tipo de memória do córtex entor-
rinal e do hipocampo. A Memória de curta duração nos dá a capacidade de
responder aquilo que acabamos de aprender, enquanto a Memória definitiva ou de
longa duração ainda não está construída. Nestes casos, há a participação do hipo-
campo, córtex entorrinal e córtex parietal.
Quanto ao conteúdo, Izquierdo (2004, p. 23) classifica as memórias em: Memória
de trabalho (que não deixa arquivo permanente), Memória declarativa (relacio-
nada com atos conscientes) subdividida em Memória episódica (armazenamento e
recordação de experiências e eventos temporais vividos) e Memória semântica ar-
mazenamento permanente de conhecimentos, de palavras e seus significados), e
Memória procedural que provém da aquisição de habilidade sensoriais e/ou mo-
toras . São também denominadas de hábitos e não dependem de um pensamento
consciente, ou seja, a partir do momento que são apreendidas, são executadas in-
conscientemente. A memória declarativa é processada basicamente pelo hipocampo,
córtex entorrinal, córtex parietal e córtex cingulado anterior e posterior. Já a me-
mória procedural é processada inicialmente pelo hipocampo, sendo depois con-
trolada pelo núcleo caudado, cerebelo e suas conexões.
Quanto à evocação das memórias, as mesmas estruturas cerebrais são ativadas. Há
controvérsias se as falhas de memórias são causadas por dificuldade no aprendizado
da nova informação (aquisição) ou na recuperação da informação apreendida (Me-
deros e Ramos, 1992, p.15).
Luz (2008, p.39) se refere a Mercadante (2003, p.56), quando menciona que:
O modelo social de velho, as qualidades a ele atribuídas são estigmatizadoras e
contrapostas às atribuídas aos jovens. Assim sendo, qualidades como atividade,
produtividade,memória,belezaeforçasãocaracterísticasepresentesnocorpodos
indivíduos jovens e as qualidades opostas a estas presentes no corpo dos idosos.
Zimerman (2000, p.141) em seus estudos sobre memória nos lembra sobre o mito
que existe em relação aos idosos de que todos são “esquecidos”, o que acaba gerando
medo de não lembrar, levando à insegurança frente a situações de aprendizagem.
Este medo, insegurança e falta de motivação faz com ele não se concentre, não preste
atenção, não armazene as informações recebidas e com isto deixe de usar sua me-
mória.
Outro aspecto importante ainda segundo Zimerman (idem, p.141) é a dificuldade
de memorizar nas pessoas que possuem autocrítica exagerada. O “não consigo”, o
“medo de errar”, a “obrigação de sempre acertar”, de “não esquecer nunca”, gera ver-
gonha, culpa e sentimento de inferioridade e falta de interesse. O estímulo ao in-
teresse então se faz necessário em todos os sentidos como político, econômico, cul-
tural, alimentar, de saúde, de socialização, de estética, etc.
Em que então a Música poderia ser útil em todo este processo? Como a aprendi-
zagem musical poderia influenciar e desafiar preconceitos em relação à capacidade 667
memorial das pessoas na maturidade? Pensamos então na aprendizagem musical vi-
sando possibilidades e não reiterando dificuldades.
Kenneth Bruscia, musicoterapeuta coordenador do PhD em Musicoterapia da
Temple University, na Filadélfia, identificou seis grandes áreas de atuação em Mu-
sicoterapia: didática, médica, cura, psicoterapêutica, recreativa e ecológica. (2000
p.165). Podemos fazer uma correlação entre a Musicoterapia e a Educação Musi-
cal (com objetivo de trabalhar a memória e conseqüentemente atuar na cognição
social), utilizando esta classificação em alguns aspectos deste trabalho:
• A área didática “tem como foco ajudar os clientes a adquirirem conhecimen-
tos, comportamentos e habilidades necessários para uma vida funcional, inde-
pendente e para a adaptação social; desenvolver conhecimentos e habilidades
musicais que se relacionam especificamente com as áreas de funcionamento
não musical e utilizar a música e atividades artísticas como um apoio ao apren-
dizado não musical.” (Bruscia, ibidem, p.183).
• A área médica “inclui todas as aplicações da música ou da musicoterapia em
que o foco primário é ajudar o cliente a melhorar, recuperar ou manter a saúde
física. As abordagens utilizadas são todas cujo foco situa-se no tratamento di-
reto de doenças ou traumas biomédicos bem como aquelas que abordam os fa-
tores psicossociais correlacionados.” (ibidem, p.168). Este trabalho abordou,
na verdade estes dois focos: biomédico objetivando mudanças na condição fí-
sica das participantes; psicossocial quando atua para modificar fatores mentais,
emocionais, sociais ou espirituais que contribuem para o problema biomédico,
ou ainda oferecendo apoio psicossocial ao longo de uma doença ou convales-
cência.
• A área de cura “utiliza as propriedades universais da vibração, do som e da mú-
sica com propósito de restabelecer a harmonia do indivíduo e entre o indivíduo
e o universo”. (ibidem, p.210) A premissa básica é que na medida em que o
corpo entra em harmonia, a psique e o espírito o acompanham. Nesta prática,
pelo fato do processo ser considerado “natural’, o indivíduo modifica sua saúde
de forma independente. No que se refere ao som, utilizamos neste grupo har-
monias vocais, trabalho de respiração e voz. Na música, experiências musicais
ativas (cantar, tocar instrumentos, improvisar, compor) e receptivas (ouvir,
imaginar, relaxar). Dentro dos objetivos das experiências musicais (ibidem, p.
124 -129), tomamos para orientação:
— melhorar a atenção e a orientação;
— desenvolver a memória;
— aprender a desempenhar papéis específicos nas várias situações interpessoais;
— desenvolver e melhorar as habilidades interativas e de grupo;
— explorar os vários aspectos do eu na relação com os outros;
— desenvolver a criatividade, a liberdade de expressão, a espontaneidade e
668 capacidade lúdica;
— estimular e desenvolver os sentidos;
— desenvolver habilidades perceptivas e cognitivas;
— evocar estados e experiências afetivas;
— estimular fantasias e imaginação; e
— facilitar a memória, as reminiscências e as regressões.
• A área musico-psicoterapêutica “ocupa-se de ajudar ao indivíduo a encontrar
sentido e satisfação em sua vida” (ibidem, p. 222). É utilizada para manter a
saúde psicológica ou intensificar o crescimento e a realização pessoal. Neste
sentido, em nosso trabalho, ela (música) objetivou aguçar a atenção, a memó-
ria e a percepção, desenvolver a criatividade, dissipar a solidão, reduzir stress
ou ansiedade, elevar a auto-estima, estabelecer ou desenvolver contato com ou-
tras pessoas, aprimorar habilidades cognitivas.
• A área recreativa “abrange todas as aplicações da música e das atividades musi-
cais e da musicoterapia em que o foco recaia sobre o divertimento, a recreação,
as atividades ou o entretenimento.” (ibidem, p.234). Estas atividades foram por
nós utilizadas, visando melhorar a qualidade de vida das participantes.
• A área ecológica “inclui todas as aplicações da música e da musicoterapia em
que o foco primário é promover a saúde em e entre os vários extratos sócio-cul-
turais da comunidade e/ou do ambiente físico. Inclui todos os trabalhos que fo-
calizam a família, os locais de trabalho, a comunidade, a sociedade, a cultura e
o ambiente físico.” (ibidem, p. 238). Com estas orientações, tentamos por meio
do canto, estabelecer uma atmosfera convidativa à conversação, estimular ha-
bilidades de articulação e organização com a finalidade de produzir mudanças,
promover mudanças internas que contribuam no relacionamento familiar, es-
timular a presença e a participação em eventos artísticos.
Ruud (1990, p.74), citando Michel e Martin (1970) reitera nosso objetivo quando
diz:
O desenvolvimento da habilidade musical pode se constituir em ajuda no au-
mento da auto estima . . . e, conseqüentemente, pode se generalizar em aumento
da autoconfiança em outras tarefas.
O poder da música vai muito longe. Sekeff (2002, p. 72) nos afirma que o estímulo
musical mobiliza nossa atividade motora, graças a seu ritmo, estendendo-se por
nossa respiração circulação, digestão, oxigenação, dinamismo nervoso e humoral,
sobre as operações mentais, cria consciência do movimento, propiciando o con-
trole do sistema motor. Afirma ainda que a música diminui nosso limiar em rela-
ção a estímulos sensoriais de diferentes tipos, aliviando inquietações, ansiedades,
medos. Induz calma e bem-estar. Atua no córtex cerebral, no sistema neurovegeta-
tivo, no ritmo cardíaco, na respiração, motiva, emociona, move a química cerebral
e influencia a conduta (2002, p.75). Age no aparelho fonador, pelo canto, propor-
cionando higiene da voz e a solução de problemas vocais (2002, p.78).
Quanto à memória, a aprendizagem musical proporcionará armazenamento e reu-
tilização de aquisições, bem como o hábito da escuta musical levará à especialização 669
de certo número de células do córtex cerebral que possibilita o conhecimento e re-
conhecimentos dos sons musicais. A música age sobre nosso sistema límbico, lugar
onde a mente e o corpo se interconectam, onde o pensamento encontra a emoção
e onde o sistema endócrino faz uma interface com o cérebro. Como ela (música)
fala diretamente a nossas emoções, interessa a este sistema, também chamado “cé-
rebro emocional” sendo ele quem decide se vale à pena armazenar uma memória, se
ela é importante o suficiente para um armazenamento permanente. Daí a impor-
tância da música, do som, da melodia, do timbre e do ritmo sobre a memória (Se-
keff, 2002, p. 114).
Outro aspecto importante para estimulo do aprendizado e da memória é a novidade,
tornando mais agradável e eficiente o desafio de aprender, potencializando a me-
mória de longa duração (Fenker e Schutze, 2009, p.43) e com isto a memória, bem
como todos os outros aspectos cognitivos serão passíveis de melhora.
Assim, a aprendizagem e a memória serão o suporte para nosso conhecimento, ha-
bilidades e planejamento, fazendo-nos considerar o passado, nos situarmos no pre-
sente e prevermos o futuro.
Metodologia
Este estudo foi realizado num grupo, idealizado pela USIMED (empresa brasileira de
responsabilidade social, destinada aos usuários do plano de saúde UNIMED), com-
posto atualmente de 35 participantes do sexo feminino, com idade superior a 50
anos (52-90), por um período de 1 ano (a Oficina de Música funciona há 5 anos).
Os encontros se realizam uma vez por semana, por um período de 1 hora e 30 mi-
nutos. Inicialmente o trabalho foi denominado de Oficina de Música (parte do
projeto USI-VIDA, também com oficinas de artesanato, de ginástica, de memória,
de convivência), mas aos poucos se transformou em um coral, a que denominamos
CORAL USIMED. Não há seleção de pessoas, e utiliza-se o canto como base para a
educação musical.
Através do canto, introduzimos noções de ritmo, dinâmica, pulso, tipos de com-
passos, tom e semitom, pausa, ritornello, frases musicais, escala ascendente e des-
cendente (utilizando simultaneamente movimentos no corpo para cima e para
baixo), sons graves e agudos, vocalizes, divisão de vozes, “fala métrica” (a maioria não
tem conhecimento de notação musical), de harmonia, afinação e jogos cênicos, mu-
sicalidade corporal, etc. Uma nova tarefa foi instituída a cada encontro.
A história musical (técnica musicoterapeutica) de cada participante foi e é sempre
evocada, permitindo assim que memórias remotas sejam trazidas à tona.
Outro aspecto importante para estímulo do aprendizado e da memória utilizado foi
a novidade, tornando mais agradável e eficiente o desafio de aprender, potenciali-
zando a memória de longa duração.
670
A avaliação foi feita através da observação do grupo no que diz respeito à memori-
zação de novas letras e melodias, de letras de músicas antigas, de letras em línguas
estrangeiras, de coreografias, de diferentes vozes, de tarefas solicitadas, do conheci-
mento teórico musical oferecido, da presença nos encontros e apresentações, e do
comportamento e atitudes relacionadas à sua vida familiar e social.
A metodologia incluiu reuniões com objetivo de avaliação pessoal, de cada partici-
pante pelo grupo e do grupo como um todo.
Síntese do conteúdo, resultados e conclusão
A partir de observações baseadas nas diversas atividades propostas e de acordo com
um questionário (que todos os participantes concordaram em responder, anoni-
mamente), verificou-se maior liberdade frente aos desafios musicais e cênicos lan-
çados. Atividades que no início só eram possíveis com auxilio e apoio de “um papel”,
aos poucos foram sendo executadas livremente, sem que nenhuma forma de apoio
fosse necessária. Para que isto acontecesse atenção e concentração foram necessá-
rias, em vários tipos de exercícios.
Apoiamos-nos em Bang (1991, p.31) quando afirma ser a música uma das melho-
res maneiras de manter a atenção de um ser humano, devido à constante mistura
de estímulos novos e estímulos já conhecidos. Buscamos a musicalidade dos parti-
cipantes, pois como define ainda Bang (idem, p.31), é a aptidão de reagir aos estí-
mulos musicais e criar música. Diz ainda que aspectos humanos fundamentais estão
contidos nos diversos meios pelos quais uma pessoa vivencia a música, podendo
abrir perspectivas para pessoas consideradas normais, que em algum momento são
colocadas em situação desvantajosa, tolhidas pelo sistema.
Somente dois participantes (7,8%) não referiram melhora na memória (uma delas
é professora de línguas e a outra participa de grupos musicais religiosos), Por outro
lado, 92,2% dos participantes referiram melhora no que diz respeito à memória
principalmente no que se refere a armazenamento de números, textos e compro-
missos assumidos. Confirmamos estes aspectos pelas afirmações das participantes:
“Fiquei mais atenta, conseguindo reter por mais tempo as lembranças”; “Consigo
memorizar mais rápido”; “Consigo pensar mais rápido”; “Estou muito mais ante-
nada, fui aprender teclado, cumpro meus compromissos sem esquecê-los, com
muito mais facilidade”; “Fico mais alerta”;”Consigo cantar sem partitura (algumas
músicas); “Porque as letras são memorizadas com a repetição e a melodia durante
as aulas”; “Mais concentração”; “Estou mais ativa na leitura”.
Estes resultados nos levaram aos familiares, que reiteraram as mudanças nos parti-
cipantes no que diz respeito à convivência. Estas mudanças foram confirmadas nos
seguintes depoimentos: “Mais ânimo de viver”; “Amar e sentir emoções verdadei-
ras”; “Mais atualizada”; “Me ajudou muito a melhorar”. Dois aspectos importan-
tes e que não podemos deixar de comentar são: após alguns meses de participação
nas atividades, houve melhora significativa no resultado do EEG (eletroencefalo-
grama) em uma das participantes e, numa outra, mudança significativa no aparelho 671
fonador (através de exercícios respiratórios).
O cantar tornou-se elemento importantíssimo neste contexto, como base de alte-
rações e construções internas para transformações externas como, por exemplo, a
abertura de uma nova forma de comunicação com o mundo.
Todos estes aspectos analisados nos levam a concluir que o canto, como estímulo
musical visando trabalhar a memória, demonstrou melhora da auto estima e da
qualidade de vida destas pessoas, podendo ser utilizado num contexto mais abran-
gente, como ferramenta poderosa na integração/reintegração do indivíduo à so-
ciedade .
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A referência do outro:
aquisição do conhecimento através da interação
Simone Braga
672 ssmmbraga@hotmail.com
Tais Dantas
tais.dantas@hotmail.com.br
Programa de Pós-graduação – Universidade Federal da Bahia

Resumo
Este artigo relata uma experiência realizada na disciplina Canto coral, em curso profis-
sionalizante de música, valendo-se da interação e observação entre alunos. No Canto
coral o resultado coletivo é determinante para assegurar a qualidade do grupo. Todavia,
este resultado é a soma do esforço individual de cada participante, a se respeitar e con-
siderar no processo educacional. A co-relação entre individualidade e coletividade poderá
trazer saldos positivos na utilização da individualidade como referencial para a coletivi-
dade neste processo. As bases teóricas fundamentaram-se no conceito de zona de De-
senvolvimento Proximal proposto por Vygotsky, que diz respeito a aquisição de
conhecimento pela interação entre indivíduo onde, através da colaboração de pessoas
mais capazes, o indivíduo progride para um nível de conhecimento mais elevado. O
papel de uma pessoa mais capacitada pode ser desempenhado tanto pelo professor
quanto por outro aluno que detenha as condições necessárias para a resolução da ta-
refa. Diante destes pressupostos a experiência ora apresentada utilizou a interação entre
alunos através da utilização do referencial do outro obtido pela observação como es-
tratégia para promover o desenvolvimento da cognição musical. Para auxiliar o desen-
volvimento das atividades propostas utilizou-se como referencial o Modelo C.(L).A.(S).P,
proposto por Swanwick. A experiência foi realizada em curso profissionalizante de mú-
sica, aplicada com adolescentes e jovens na cidade de Salvador, cujos resultados pude-
ram ser observados no desenvolvimento dos alunos. Comparar e verbalizar a partir da
referência do outro, proporcionou a reflexão e auto-análise dos conteúdos desenvolvi-
dos, domínio de vocabulários específicos, compreensão do processo respiratório e ma-
nipulativo da voz e o desenvolvimento da apreciação auditiva mais refinada.
Palavras-chave
Referência do outro, interação, cognição musical.

Introdução
No campo das teorias a respeito da aprendizagem e desenvolvimento cognitivo hu-
mano, Vygotsky vem acrescentar o conceito de agregação e aquisição de conheci-
mento a partir da interação entre indivíduos.  “A teoria Vygotskyana compreende
que o desenvolvimento do sujeito, desde o início da vida, ocorre em virtude de um
processo de apropriação que ele realiza dos significados culturais que o circundam,
o que faz ascender a uma condição eminentemente humana, de ser, de linguagem,
consciência e atividade, transformando-se de biológico em sócio-histórico” (Nunes
e Silveira 2009, 98).” Vygotsky “adotou a idéia de que as capacidades cognitivas das
crianças são construídas em interação com as oportunidades e orientação propor-
cionadas pelo ambiente” (Fontana 2002, 80). Uma das possibilidades de efetiva- 673
ção da aprendizagem ocorre através das trocas proporcionadas pela Zona de
Desenvolvimento Proximal – ZDP. Vygotsky propõe que a ZDP caracteriza-se por
uma zona entre o desempenho real onde um indivíduo é capaz de solucionar um
problema sem auxílio e um nível mais elevado que é alcançado através da orienta-
ção e interferência do outro. De acordo com Goulart (2007, 174), “a zona de de-
senvolvimento proximal caracteriza as funções que ainda não amadureceram, mas
que estão em processo de maturação, que estão em estado embrionário. Tais fun-
ções podem ser estimuladas pelo educador, delineando o futuro imediato da criança
e o estado dinâmico de seu desenvolvimento.”
A importância da ZDP para o ensino em grupo diz respeito não só ao conheci-
mento transmitido do professor para o aluno, mas também às interações entre os
próprios alunos. Pois, como coloca Antunes (2002, 27) Vygotsky não desenvolveu
claramente a concepção de que o auxílio seria dado unicamente pelo professor, em-
bora muitos estudiosos deduzam que a proposta sugere tal papel. Mas como pode
ser visto na prática pedagógica a interação entre alunos pode proporcionar enormes
ganhos cognitivos, como poderá ser visto no relato de experiência presente neste ar-
tigo. Vale salientar, que entre os alunos este auxílio pode estar presente na orienta-
ção direta através de indicações e explicações verbais, bem como na observação do
outro na realização de tarefas.
Outras pesquisas abordam a importância da interação entre alunos no processo de
aprendizagem. Dantas (2010) constatou através de pesquisa realizada com dois gru-
pos de ensino coletivo que a aprendizagem musical em grupo proporciona um am-
biente onde os alunos podem observar e fazer comparações entre si, e desta maneira
a referência do outro permite a verificação do seu nível de desempenho. Estas ob-
servações entre os alunos possibilitam também a formação do autoconceito acadê-
mico, que diz respeito à percepção que o aluno tem em relação ao seu desempenho
escolar. Ter outro indivíduo como referencial no processo de aprendizagem pro-
porcionado pela observação, constitui-se num fator relevante na motivação do
aluno, uma vez que o mesmo pode se espelhar e se sentir mais próximo de sua rea-
lidade de aprendizagem. Além disso, ao verificar seu nível de desempenho o aluno
acaba por criar metas e desta forma, percebe-se que, na busca para alcançar melho-
res resultados em seu desempenho musical, a motivação extrínseca existente neste
processo impulsiona o aluno em direção a seus objetivos. Verifica-se também que
quando um aluno almeja obter resultados semelhantes aos de outro colega, o
mesmo busca um reconhecimento pelo grupo de suas capacidades, também baseado
na motivação extrínseca existente no processo de aprendizagem. “A motivação ex-
trínseca tem sido definida como a motivação para trabalhar em resposta a algo ex-
terno à tarefa ou atividade, como para obtenção de recompensas materiais ou sociais,
de reconhecimento, objetivando atender aos comandos ou pressões externas de ou-
674 tras pessoas ou para demonstrar competências ou habilidades” (Guimarães 2001,
46).
A motivação fortalece a interação e a comparação entre pares ao promover a troca
de valiosas experiências. Para o educador Swanwick (2003, p. 68), o acesso a expe-
riências variadas na área de educação musical garantem o respeito a características
individuais dos alunos. O autor propõe um Modelo denominado de C.(L). A.(S).
P., em que as características individuais se integram às atividades vivenciadas e pos-
sibilitam respostas diferentes a situações variadas: “Compor, tocar e apreciar: cada
atividade tem a sua parte a desempenhar. Desta forma, as diferenças individuais
dos alunos podem ser respeitadas [...]” (Swanwick, 2003, p. 68). Estas característi-
cas são denominadas por Swanwick (2003, p. 18) de discurso musical e represen-
tam os saberes musicais de cada indivíduo. Segundo o educador, o fazer musical é
um discurso e deve ser exercido com fluência desde o início do aprendizado. Este
discurso pode ser valorizado e contribuir para o desenvolvimento de saberes musi-
cais por meio da sua troca entre pares ou a utilização do discurso do outro como re-
ferencial.
O Modelo proposto pelo autor, além de valorizar as individualidades, permite a
construção da compreensão musical de forma globalizada através de experiências di-
versificadas ao abordar parâmetros de técnica, execução, composição, literatura e
apreciação. Criam-se condições didáticas para o ouvir (apreciação), criar (compo-
sição) e fazer (execução), perpassando por informações (literatura) e procedimen-
tos de como fazer (técnica). Três destes parâmetros são considerados centrais pela
associação direta com o fazer musical: apreciação, composição e execução. Os ou-
tros dois, literatura e técnica, fornecem subsídios e apoio na produção dos parâ-
metros centrais a ser desenvolvidos de forma equilibrada.
Apoiando-se nestes pressupostos teóricos, o artigo relata uma experiência realizada
na disciplina Canto coral, em curso profissionalizante de música, aplicada com ado-
lescentes e jovens na cidade de Salvador. A estratégia de ensino adotada valeu-se da
interação e observação entre os alunos para a promoção do desenvolvimento
musical.

Espelhos em canto coral: a referência do outro


Em uma aula instrumental, a partir de seu campo de visão, o aluno explora a topo-
grafia do instrumento e todo o funcionamento motor corporal envolvido nesta
prática. O confronto das imagens desta manipulação e dos movimentos corporais
permite associá-las com as orientações docentes e favorecem a construção do co-
nhecimento. A visão torna-se um recurso facilitador na iniciação musical. Entre-
tanto, no canto coral este processo é limitado. A voz, produzida pela vibração das
pregas vocais, comparada a um instrumento, não pode ser vista a olho nu, assim
como outros movimentos intrínsecos na prática vocal, como, por exemplo, a com- 675
pressão do diafragma no apoio respiratório.
Todavia, várias são as estratégias utilizadas por regentes para facilitar a compreen-
são e diminuir o grau de abstração intrínseco nesta atividade, sobretudo no início
desta prática. Alguns dos recursos utilizados é a alusão a imagens como metáforas,
para representar aspectos técnicos, utilização de materiais didáticos como bisnagas,
para associar com o processo respiratório ou vídeos que reproduzem o funciona-
mento de órgãos corporais no processo de produção vocal.
A utilização da observação entre alunos como recurso facilitador da aprendizagem
foi desenvolvida através da aplicação de atividades musicais na disciplina Canto
coral, inserida na matriz curricular de escola profissionalizante de música, com ado-
lescentes e jovens. Dentre os objetivos destacamos: 1) desenvolver a compreensão
do funcionamento corporal no ato de cantar; 2) diminuir a abstração deste enten-
dimento; 3) oportunizar a compreensão e a verbalização do processo vocal, através
da observação entre pares; 4) oportunizar a apropriação de vocabulários técnicos re-
ferente à prática, fisiologia e higiene vocal; 5) desenvolver a propriocepção1; 6) pos-
sibilitar a troca de informações e saberes por pares, enriquecendo a experiência em
sala de aula.
O norteador para a elaboração das atividades fundamentou-se nos seguintes as-
pectos: 1) definição das informações que se pretendia coletar; 2) conteúdos a serem
desenvolvidos; 3) desempenho individualizado dos alunos; 4) experiências musicais
diversificadas conforme o Modelo C.(L). A.(S). P. desenvolvido por Swanwick
(1979). Na experiência os parâmetros deste Modelo foram abordados através de
atividades de criação (improviso e arranjo), apreciação (análise da prática vocal),
execução (prática vocal), literatura (vocabulários técnicos) e técnica (observações
acerca da prática vocal).
Com a pretensão de transferir a percepção do outro para a auto-percepção, foram
intercaladas entre as atividades realizadas para avaliação por pares, atividades diri-
gidas para a auto-observação, ao induzidor o aluno para a conscientização quanto
a sua produção vocal. As atividades foram aplicadas em diversos momentos da aula,
como na preparação vocal por intermédio dos aquecimentos, leitura, aprendiza-
gem do repertório e apreciação, através da observação/participação do colega, con-
forme descrição abaixo:
Quadro 1 – Verificação por duplas
Verificação do processo da respiração diafragmática do colega ao verbalizar o processo
respiratório.
Parâmetros musicais: execução, literatura e técnica.
676 Conteúdos: apoio respiratório e propriocepção.
Critérios avaliativos: manipulação consciente do instrumento voz e desenvolvimento de conheci-
mentos referentes a conceitos teórico-vocais.
Avaliação: comentários sobre o processo respiratório do colega para a turma.
Resultados: Verificar o processo da respiração diafragmática do colega proporcionou a reflexão e
auto-análise da realização da respiração. Verbalizar a avaliação desta respiração ajudou a verificar e
compreender o processo respiratório bem como a utilizar terminologia específica.

Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.

Quadro 2 – Apreciação de vozes


Observação, análise, identificação, comparação e verbalização sobre os timbres das vozes
ouvidas.
Parâmetros musicais:apreciação e literatura.
Conteúdos: respeito e valorização ao colega e a diversidade musical; instrumento voz: classificação,
tessituras e tipo de vozes.
Critérios avaliativos: manipulação consciente do instrumento voz e desenvolvimento de conheci-
mentos referentes a conceitos teórico-vocais.
Avaliação: discussão em grupo sobre a execução vocal de cada aluno.
Resultados: Observar, analisar, identificar, comparar e verbalizar sobre os timbres das vozes ouvi-
das desenvolveu a habilidade de apreciação auditiva mais refinada além de conscientizar quanto à
variedade timbrística entre vozes e conceitos referentes a timbre e extensão vocal.
Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.

Quadro 3 – Analisando vozes (grupo de vozes iguais)

Observação e análise do naipe executante do trecho musical.


Parâmetros musicais: apreciação e literatura.
Conteúdos: participação, cooperação com o grupo, respeito, valorização ao colega, instrumento
voz: classificação, tessituras e tipo de vozes e manipulação consciente do instrumento voz.
Critérios avaliativos: desenvolvimento de conhecimentos referentes a conceitos teórico-vocais e
capacidade de fazer música em grupo profissionalmente.
Avaliação: verificação docente do desempenho dos alunos e discussão do grupo acerca do
conteúdo desenvolvido.
Resultados: Quando se faz necessária à execução de apenas um naipe é importante promover al-
guma tarefa a ser executada pelos outros. Neste caso, a observação, além de atingir este objetivo,
oportunizou a verificação do senso crítico e domínio de termos, vocabulário e conceitos a cerca da
prática vocal. A avaliação de naipes também foi favorecida.
Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.
Quadro 4 – Analisando vozes (grupo de vozes diferentes)
Formação de pequenos grupos (dentro do possível composto de naipes diferentes) para a execu-
ção da peça estudada em duas variantes. Na primeira variante, todos dispostos em pequenos grupos 677
executam a peça enquanto os outros ouvem, verificam e discutem com o grupo aspectos musicais
como equilíbrio entre as vozes, timbragem e segurança de participantes. Na segunda variante todos
os grupos executam simultaneamente mantendo a formação.
Parâmetros musicais: apreciação, execução e técnica.
Conteúdos: participação, cooperação com o grupo, respeito, valorização ao colega, instrumento
voz: classificação, tessituras, tipo de vozes, manipulação consciente do instrumento voz, afinação,
dicção, articulação e projeção vocal.
Critérios avaliativos: capacidade de fazer música em grupo profissionalmente e manipulação cons-
ciente do instrumento voz.
Avaliação: verificação docente do desempenho dos alunos e participação na discussão acerca do
conteúdo desenvolvido.
Resultados: Com o intuito de desenvolver a autonomia e independência vocal dos diferentes nai-
pes, foi proposta a formação de pequenos grupos (dentro do possível composto de naipes diferen-
tes) para a execução da peça em duas variantes. Na primeira variante, dispostos em pequenos
grupos, todos executam a peça enquanto os outros ouvem e verificam aspectos musicais como equi-
líbrio entre as vozes, timbragem e segurança de participantes. Na segunda variante, todos os grupos
executam simultaneamente ao manter a mesma formação. Através da atividade verificou-se tam-
bém a dedicação extraclasse dos alunos em relação ao estudo do repertório.

Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.

Quadro 5 – Verificação individual


Realização dos vocalizes focando a execução individual para a verificação de alguns aspectos como
a manipulação da voz, colocação, afinação, entre outros.
Parâmetros musicais: execução e técnica.
Conteúdos: manipulação da voz, articulação, afinação e projeção vocal.
Critérios avaliativos: manipulação consciente do instrumento-voz.
Avaliação: Verificação docente do desenvolvimento dos alunos.
Resultados: realização dos vocalizes de forma individual, facilitou a verificação do desenvolvi-
mento de cada aluno. Ao notar alunos com problemas na execução vocal voltava-se ao mesmo ou
colegas próximos, para a repetição sem chamar-lhe a atenção evitando o constrangimento. Entre-
tanto, alguns aspectos como a manipulação da voz, colocação, afinação, entre outros, poderiam ter
sido mais explorados e contribuir para o desenvolvimento da técnica vocal. Outro dado negativo a
ser notado, por ser uma atividade realizada no início das aulas, é a oscilação nos aspectos de fre-
qüência e de pontualidade dos alunos. É possível que este hábito esteja associado a compromisso
profissional de alguns e a organização administrativa da Instituição, através da mudança constante
de horários e a falta de pontualidade em sua programação.
Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.
Quadro 6 - Improviso vocal
Proposta de improvisação vocal realizada na formação em círculo utilizando a célula do refrão do
repertório desenvolvido: Derramaro Gai2 de Luiz Gonzaga.
Parâmetros musicais: execução e composição.
678 Conteúdos: manipulação da voz, composições vocais e improvisação.
Critérios avaliativos: manipulação consciente do instrumento-voz e desenvolvimento de conheci-
mentos referentes à estruturação musical.
Avaliação: Verificação docente do desenvolvimento dos alunos.
Resultados: Para a realização utilizou-se o refrão da música a ser ensinada: Derramaro Gai de Luiz
Gonzaga. A peça serviu como uma forma de desenvolvimento da habilidade de criação, através da
exploração da voz e percepção da estrutura musical (períodos e fraseados). Percebe-se total entrosa-
mento e liberdade dos alunos para a sua realização. As criações obtidas nesta atividade podem ser
utilizadas nas peças do repertório desenvolvido.
Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.

Quadro 7 - Improviso rítmico


Criação musical por meio de células rítmicas a manter o pulso estabelecido.
Parâmetros musicais: execução e composição.
Conteúdos: improvisação.
Critérios avaliativos: manipulação consciente do instrumento-voz e desenvolvimento de conheci-
mentos referentes à estruturação musical.
Avaliação: Verificação docente do desenvolvimento dos alunos.
Resultados: Apesar da exploração de diferentes timbres por parte de alguns alunos, o objetivo da
atividade foi a criação musical por meio de células rítmicas. Todavia, a contagem de tempos pela
professora/pesquisadora tornou-se desnecessária. Sua exclusão oportunizaria maior chance aos alu-
nos de perceberem e desenvolverem prontidão para a execução do improviso respeitando o pulso e
os fraseados. Nota-se a execução de células rítmicas com a utilização de síncopes e acentos próprios
da música brasileira possivelmente influenciado pelo repertório desenvolvido no Tributo a Luiz
Gonzaga.
Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.

Quadro 8 - Regência
Propor aos alunos a experimentação da dinâmica para uma “execução mais musical” além do
acesso a linguagem gestual utilizada na regência.
Parâmetros musicais: execução e literatura.
Conteúdos: conhecimento de sinais musicais, gestual de regência e exploração de parâmetros mu-
sicais como intensidade e andamento.
Critérios avaliativos: desenvolvimento de autodisciplina, capacidade de fazer música em grupo e
desenvolvimento de conhecimentos referentes à regência.
Avaliação: verificação docente do desenvolvido dos alunos e discussão sobre a vivência musical.
Resultados: Propor aos alunos a experimentação da dinâmica foi um convite para uma execução
musical “mais fluente”, além do acesso à linguagem gestual utilizada na regência após trabalhar com
conceito de pulso e compasso. A prontidão para este gestual também foi testada com a regência de
um aluno voluntário. O mais importante na participação do aluno não foi o gestual padronizado
da regência, mas a verificação da exploração de dinâmicas, compreensão formal e manipulativa mu-
sical e a interação do grupo. 679

Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.

Quadro 9 – Arranjo para grupo vocal


Criação coletiva de arranjo para grupo vocal.
Parâmetros musicais: apreciação, composição, execução, literatura e técnica.
Conteúdos: criação de arranjos, composições vocais, instrumento voz: classificação, tessituras e
tipo de vozes e esquemas analíticos de uma peça: estrutura da obra (estilo, forma, motivo, anda-
mento, textura, timbre, dinâmica, em momentos de apreciação musical, utilizando vocabulário
musical adequado, tessitura, extensão, linha melódica, letra, arranjo, entre outros).
Critérios avaliativos: manipulação consciente do instrumento voz, desenvolvimento de conheci-
mentos referentes à estruturação musical, conceitos histórico-estilístico musicais, autodisciplina e
capacidade de fazer música em grupo profissionalmente.
Avaliação: verificação docente do desempenho e participação no grupo e discussão acerca dos ar-
ranjos dos alunos.
Resultados: O trabalho em grupo foi adotado para atingir os objetivos em promover no canto
coral o desenvolvimento de habilidades como a liderança, a comunicação em grupo, a autonomia,
desenvolvimento vocal, responsabilidade individual, colaboração e a criação coletiva de arranjo
para o grupo. Estas habilidades também são apropriadas para a profissionalização musical. O envol-
vimento com a atividade, através da elaboração de arranjos vocais, promoveu a aproximação com a
disciplina, com a música vocal e favoreceu o desenvolvimento de habilidades e competências para o
trabalho em equipe, prática vocal e criação musical, além de garantir a participação ativa de todos e
a utilização de conhecimentos prévios integrados aos adquiridos.

Fonte: Braga, pesquisa de campo, 2008.

Considerações finais
A análise dos resultados disponíveis nos quadros acima comprova a eficácia das ati-
vidades aplicadas no grupo. Observar o outro conduziu para a auto-observação, cor-
roborando para o desenvolvimento da propriocepção, fundamental para a
compreensão do próprio processo de aprendizagem vocal. Esta observação entre
pares, somada a análise e identificação, foram responsáveis por um maior desen-
volvimento dos alunos. Comparar e verbalizar a partir da referência do outro, pro-
porcionou a reflexão e auto-análise dos conteúdos desenvolvidos, domínio de
vocabulários específicos, compreensão do processo respiratório e manipulativo da
voz e o desenvolvimento da apreciação auditiva mais refinada.
O processo educativo percorrido por todos os sujeitos envolvidos nesta experiên-
cia comprovam as afirmações de Vygostck. A Zona de Desenvolvimento Proximal
– ZDP oportuniza o desenvolvimento humano e a construção do conhecimento, ao
associar a interferência do outro com o desempenho individual. Ao utilizar o colega
como objeto de observação o desenvolvimento individual consolida-se uma apren-
dizagem em uma via dupla: “O outro aprende comigo e eu aprendo com o outro”.
No Canto coral o resultado coletivo é determinante para assegurar a qualidade do
grupo. Todavia, este resultado é a soma do esforço individual de cada participante,
680 que deve ser respeitado e considerado no processo educacional, conforme destaca
Swanwick. A compreensão do processo corporal intrínseco no procedimento vocal
oportunizará a qualidade da produção vocal e, como conseqüência, favorecerá a
produção vocal do grupo. A co-relação entre o entendimento e a prática individual
com o entendimento e a prática coletiva traz saldos positivos na utilização da
individualidade como referencial para a coletividade no processo de ensino-apren-
dizagem.
Numa aula onde se reúne estudantes que vêm de diversos contextos, a heteroge-
neidade representa um ganho na aquisição de conhecimentos, pois a interação pro-
porciona a troca de saberes entre os estudantes. Esta muitas vezes acontece de forma
natural e sem intenção, mas pode e deve ser provocada pela ação pedagógica do pro-
fessor. A adoção de estratégias metodológicas que reconheça e valorize os diferen-
tes discursos musicais em sala de aula possibilitará uma rica troca e partilha de
saberes responsáveis pela construção coletiva do conhecimento musical.

1 Termo utilizado em fonoaudiologia para definir a consciência do sujeito sobre a sua saúde
vocal possibilitando a expressão do seu conhecimento, do seu saber e das suas maneiras de
perceber a própria voz.
2 Música inclusa no repertório do Projeto Tributo a Luiz Gonzaga.

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A aprovação da Lei 11.769, de agosto de 2008, que visa implementar o ensino de


música nas escolas de ensino fundamental e médio, nos parece uma estratégia ideal
para buscar a paz através da música, além de todas as aprendizagens inerentes à Edu-
cação Musical. Nesse relato privilegiamos a música trabalhada em conjunto, assim
como a prática musical pedagógica é vista como pesquisa de campo. Buscamos com
este trabalho discutir e identificar os saberes profissionais do professor de música,
pois ele toca, ele organiza, ele é modelo para seus alunos. No entanto, ele também
é aprendente, sua postura deve ser aberta e criativa. Acreditamos que a música na
escola possa mobilizar o grupo de professores, a direção e a comunidade em proje-
tos amplos, que agreguem o maior número de pessoas voltadas ao fazer musical co-
letivo. A vida escolar do aluno começa a ter um novo paradigma, a do conhecimento
interligado, da interação, da troca entre as pessoas.
Neste texto, pretendemos relatar uma experiência docente na área da Música em
uma escola municipal de Porto Alegre/RS. A escola possui uma proposta político-
pedagógica diferenciada voltada às classes populares, buscando o sucesso escolar e
rompendo com qualquer possibilidade de exclusão, mantendo uma relação muito
sólida com a comunidade e práticas coletivas garantindo a participação de todos.
O ensino das Artes previsto nos PCNs acontece na escola nas três linguagens ar-
tísticas: música, teatro e artes visuais, e fazem parte do currículo regular.
Em 2008, quando se comemoravam os 50 anos da Bossa Nova, os alunos comen-
tavam e demonstravam curiosidade em conhecer o que foi este movimento da mú-
sica brasileira. Fomos à biblioteca da escola coletar informações nos livros e recortes
existentes sobre o assunto, juntando aos outros materiais das professoras de mú-
sica que foram colocados à disposição. Os alunos descobriram imagens, artistas,
músicas e a história daquele período.
Após essa etapa fomos à midiateca, laboratório de informática da escola, onde os
alunos tiveram acesso à pesquisa na internet. Além de obterem mais informações e
imagens, puderam ouvir diversas das músicas citadas no material consultado.
Já em sala de aula, fizemos uma “mesa redonda” onde reunimos CDs diversos para
apreciarmos e analisarmos, fazendo os mais variados comentários de ordem técnica
ou estética. Surgiu dos alunos a idéia de acharmos uma forma de apresentarmos as
músicas cantando ou tocando individualmente, em duplas, trios, e percebemos que
já se encontravam “contagiados” pela Bossa Nova. Diante desse interesse fizemos a
proposta para as turmas de realizarmos um sarau musical resgatando os saraus de
antigamente. Os alunos descobriram que os saraus eram encontros culturais ou
musicais, geralmente nos finais de tarde, normalmente em uma casa particular, onde
as pessoas se reuniam para se expressar, se manifestar artisticamente e também tro-
682 car idéias. Era um evento bastante comum no séc. XIX que buscava socialização 682
através de concertos musicais, serestas, cantos e apresentações solo ou performan-
ces artísticas e literárias. A biblioteca da escola já realizava periodicamente os Saraus
Literários e diante disso fizemos uma parceria.
A partir daí toda a escola passou a “viver a Bossa Nova”. Com a certeza de que seria
uma ótima oportunidade de integração fizemos um convite a toda a comunidade
escolar para participar, entre professores, alunos, ex-alunos, pais e funcionários. Os
alunos traziam CDs emprestados das mães, os professores ajudavam dando idéias
e emprestando materiais. Professores de outras áreas, que haviam estudado flauta
ou violão, pediram partituras e passaram a estudá-las para tocar no dia do Sarau da
Bossa Nova. A professora de música da escola que havia se aposentado, voltou e se
preparou para tocar no dia. O estagiário do curso de música que já havia concluído
seu estágio participou dos ensaios e do sarau falando sobre a participação de João
Gilberto no movimento musical. O professor de História organizou um vídeo pra
mostrar imagens e falar sobre o que estava acontecendo no Brasil e no mundo no
período da Bossa Nova, e os alunos falaram sobre o que haviam descoberto em suas
pesquisas.
O sarau aconteceu na biblioteca, transformada em um “barzinho” da época a fim
de criar um ambiente com “clima” de Bossa Nova. Foi realmente emocionante
ouvir os alunos cantando “Tereza da Praia”, “Águas de Março” e outras canções,
embora suas preferências musicais cotidianas sejam o pagode, o rap, e o funk. Sem
abandoná-las, ampliaram suas possibilidades musicais resgatando e conhecendo a
Bossa Nova como um movimento da MPB.
A aprendizagem decorrente da realização do sarau, durante o período de ensaios e
preparação que o antecedeu, tais como a prática instrumental, a prática de con-
junto, o canto, a troca de idéias e os arranjos, com certeza marcaram profunda-
mente a vida dos alunos, professores e todos os envolvidos no evento. Tanto que,
após encerrar o Sarau da Bossa Nova com todos cantando “Garota de Ipanema”,
os alunos e todos os que participaram, emocionados, pediram que os Saraus conti-
nuassem periodicamente com outros temas porque “foi muito bom fazer o Sarau”.
Sendo assim o Projeto Saraus Musicais foi instalado com o objetivo geral de inte-
grar os alunos à comunidade escolar através da música. Como objetivos específicos,
resgatar a História da Música, elevar a auto-estima, desenvolver a prática instru-
mental e vocal, crescer como grupo fazendo música juntos, desenvolver habilidades
como criatividade, adquirir postura de palco, usar adequadamente o microfone, es-
colher e estudar um repertório e ser platéia educada. Outros saraus ocorreram com
os temas: Sarau Monteiro Lobato, Sarau Jovem Guarda, Sarau Roberto Carlos e
Sarau “Era dos Festivais”. O projeto “Saraus Musicais” trouxe uma cara nova para
a escola. Foi através da música que integramos diversas áreas do conhecimento, pro-
fessores, funcionários e alunos em um mesmo ambiente pedagógico realizando tro-
683 cas significativas. 683
O registro em fotos, vídeos e depoimentos dos envolvidos nos permitiu desenvol-
ver um trabalho de avaliação constante em sala de aula, ouvindo, analisando com
criticidade nossa própria performance. Os alunos estão mais habituados a se escu-
tarem, publicam seus próprios vídeos na internet, se utilizam das ferramentas mi-
diáticas com muita familiaridade.
O relato de alguns alunos evidencia a importância que o evento teve em suas vidas
e em sua formação musical.
“Para os alunos foi importante para “ampliar seus horizontes”, conhecer e apren-
der a gostar de músicas de décadas passadas ou que nunca tinham ouvido antes”.
(Caroline - C34)
“Com esses Saraus, nós aprendemos muitas coisas. Por exemplo: controlar a ver-
gonha. Nós fizemos pesquisas sobre os cantores e ficamos sabendo mais sobre
eles. Conhecemos cantores que nem sabíamos que existiam. Quando cantei me
senti muito bem e dançando, melhor ainda”. (Kévellin - C31)
“Os Saraus da Monte Cristo são uma porta que se abre para influenciar os alu-
nos a mostrarem o seu talento. E é tão contagiante que alunos, professores e fun-
cionários cantam e atuam juntos”. (Leidy - C31)
“Os alunos estão fazendo um complemento muito bom. Suas mentes vão estar
com um bom pensamento para o futuro”. (Maximiliano -C32)
“Foram bem legais. Todos cantaram, até as mulheres da cozinha, as professoras
da direção, alunos e ex-alunos também”. (Daniela -C32)

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