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Alice Barbosa

A GEOGRAFIA QUE CATIVA: UMA P ROPOSTA INTERDISCIPLINAR PARA O


ENSINO DE GEOGRAFIA NO FUNDAMENTAL II A PARTIR DE “O P EQUENO
PRÍNCIPE”

São Paulo
2019
Alice Barbosa

A GEOGRAFIA QUE CATIVA: UMA P ROPOSTA INTERDISCIPLINAR


PARA O ENSINO DE GEOGRAFIA NO FUNDAMENTAL II A PARTIR
DE “O PEQUENO P RÍNCIPE”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


banca examinadora em Licenciatura em
Geografia do Instituto Federal de São Paulo como
exigência parcial para obtenção do título de
licenciada em Geografia, sob a orientação do
Prof. Dr. Marcelo Augusto Monteiro de Carvalho

São Paulo
2019
Alice Barbosa

A G EOGRAFIA QUE CATIVA : UMA PROPOSTA I NTERDISCIPLINAR PARA O ENSINO DE


G EOGRAFIA NO FUNDAMENTAL II A PARTIR DE “O PEQUENO PRÍNCIPE ”

Data: ___________________

Nota:___________________

Prof. Dr. Marcelo Augusto Monteiro de Carvalho

Prof. Dr. Paulo Roberto de Albuquerque Bomfim

Prof. Me. Thiago Antunes


À Santina (in memorian) e ao Marcio por me permitirem sonhar.
AGRADECIMENTOS

Ao IFSP – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.

Ao Prof. Dr. Marcelo Augusto Monteiro de Carvalho, meu orientador, pela confiança e
pelas contribuições que enriqueceram este trabalho.

A todos os professores da Licenciatura em Geografia, cujas aulas tive o prazer de


frequentar.

Aos professores Dr. Márcio Alves de Oliveira e Me. Thiago Antunes pelas valiosas
discussões acerca de Literatura e Ciências Sociais no Grupo de Estudos ‘Tensões na Ideia
de Cultura’.

Aos professores do Programa de Residência Pedagógica da CAPES - Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, por tornarem possível que algumas das
proposições aqui apresentadas fossem aplicadas em aula. Em especial, ao Prof. Ronaldo
dos Santos Ornelas, pela generosidade de apresentar livros que muito contribuíram com
a construção desse trabalho.
Ao meu companheiro, Marcio Alves da Silva, por sua enorme paciência, pelo seu
incentivo e disponibilidade ao ouvir as diversas leituras dos meus textos, por trabalhar
comigo nas ilustrações, por seu apoio incondicional e pelos cafés, nas horas do cansaço.

Aos meus familiares, por compreenderem os hiatos na convivência e, em especial , ao meu


irmão Ari Barbosa, por ouvir minhas frustações, e à minha prima Andréia Aparecida
Garcia, pelas observações e revisões ortográficas.

Ao amigo Guilherme Lopes Morais, cuja revisão corrigiu o meu inglês.

A Karin Bezerra de Oliveira, da Biblioteca Francisco Montojos, pela confiança no


empréstimo de volumes de “O Pequeno Príncipe”, de seu acervo pessoal.

Aos colegas do IFSP, pela amizade, em especial pelo carinho e disponibilidade nas horas
de necessidade de Gabriella Valério Chabaribery, Gustavo Bispo de Meireles, Mauro
Henrique Capp Forganes e Guilherme Colugnatti de Abreu Oliveira.

A meu pai, Laudelino Barbosa, que trouxe o hábito da leitura para dentro de minha vida.

A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste


trabalho.
Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura,
inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e
sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no
curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da
mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo
curvo de Einstein

Oscar Niemeyer (1907-2012)


RESUMO

A pesquisa aqui apresentada teve por objetivo levantar quais são os temas presentes em
“O Pequeno Príncipe”, clássico da literatura infantil universal, que podem ser
relacionados às categorias e aos conceitos-chaves utilizados para o ensino e aprendizagem
de Geografia para os alunos do Terceiro Ciclo do Fundamental II, com base nas
recomendações expressas nos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais. Pela linguagem
simples, direta e repleta de representações sobre os saberes geográficos que Saint-
Exupéry conseguiu abordar nessa narrativa, nós podemos ver potenciais predicados para
auxiliar o processo de ensino e aprendizagem na educação básica. A geograficidade
presente no livro é trabalhada na proposição de utilizá-lo como Recurso Didático. A
Geografia Cultural permite pensar numa construção interdisciplinar entre Geografia e
Literatura. Ao propormos a utilização de um objeto cultural, como o livro, no processo
de construção do conhecimento geográfico nos anos iniciais da segunda etapa do Ensino
Fundamental, vemos que a análise e comparação entre a representação espacial oferecida
por “O Pequeno Príncipe”, mediadas pelo professor, e a realidade espacial vivenciada
pelos alunos podem chegar a uma construção e apropriação dos sentidos de alguns
conceitos geográficos.

Palavras-Chave: Geografia e Literatura; Recursos Didáticos; Geograficidade; Ensino de


Geografia, Saint-Exupéry.
ABSTRACT

The research here presented aimed to raise what are the themes present in “O Pequeno
Príncipe”, one of the universal children’s classic literature, which may be related to the
categories and key concepts used for the teaching and learning of Geography for students
of the Third Cycle of Middle School, based on the recommendations expressed in the
PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais. By the simple language, direct and full of
representations about the geographical knowledge that Saint-Exupéry managed to address
in this narrative we can see potential predicates to assist the process of teaching and
learning in basic education. The geographicity present in the book is worked on the
proposition of using it as a Didactic Resource. Cultural Geography allows us to think of
an interdisciplinary construction between Geography and Literature. By proposing the
use of a cultural object, such as the book, in the process of building geographic knowledge
in the early years of the Middle School we see that the analysis and comparison between
the spatial representation offered by “O Pequeno Príncipe”, mediated by the teacher, and
the spatial reality experienced by the students can come to a construction and
appropriation of the senses of some geographical concepts.

Keywords: Geography and Literature; Didactic Resources; Geographicity; Geography


Teaching, Saint-Exupéry.
LISTA DE ABREVIATURAS

PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais


MEC – Ministério da Educação
EF – Ensino Fundamental
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 – Conteúdos Sugeridos pelos PCNs para o Terceiro Ciclo.............................


32
Quadro 2 – Operações e processos mentais desenvolvidos no processo de
construção da Competência Leitora......................................................................... 38
Figura 1 – Correio Aéreo – Rota da Aéropostale................................................................. 51
Quadro 3 – Temáticas Geográficas em “O Pequeno Príncipe”........................................... 60
Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13

CAPÍTULO 1 – RECORTES E FRONTEIRAS CONCEITUAIS ...................................... 17

1.1. O Conceito de Geograficidade ................................................................................... 17

1.2. A interdisciplinaridade e a Geografia escolar .............................................................. 22

1.3. Recurso Didático ............................................................................................................. 25

1.4. A Geografia nos PCNs .................................................................................................... 26

1.4.1. A Geografia no Terceiro Ciclo dos PCNs .................................................................. 30

1.5. O Conceito de Aprendizagem Significativa em Geografia .......................................... 33

1.5. Geografia e Literatura ..................................................................................................... 36

CAPÍTULO 2 – Um panorama a respeito de Saint-Exupery e “O Pequeno Príncipe” ... 42

2.1. Antoine de Saint-Exupéry, uma breve biografia .......................................................... 42

2.1.1. Zé Perri? ........................................................................................................................ 49

2.2. O Contexto Histórico e Geográfico da produção de “O Pequeno Príncipe” ............ 52

2.3. Mário Quintana, o tradutor, e a edição de 2017 ........................................................... 54

2.4. Descrição de “O Pequeno Príncipe” ............................................................................. 56

2.4.1. As Personagens ............................................................................................................. 59

CAPÍTULO 3 – Um piloto de guerra e sua contribuição para o ensino e aprendizagem de


Geografia ................................................................................................................................. 61

3.1. Eixo 1 - A Geografia como uma possibilidade de leitura e compreensão do mundo 63

3.2. Eixo 2 - A Natureza e sua importância para o homem................................................. 65

3.3. Eixo 3 – O campo e a cidade como formações socioespaciais .................................... 66

3.4. Eixo 4 - A cartografia como instrumento na aproximação dos lugares e do mundo . 68

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 70

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 72

APÊNDICE A – Plano de Aula ................................................................................................ 75


13

INTRODUÇÃO

- Bem, eu terei de suportar a presença de duas


ou três lagartas se quiser conhecer borboletas.
(Saint-Exupéry)

A hipótese teórica que sustentou esse trabalho de conclusão de curso é a de que o


conhecimento geográfico pode ser alcançado através da literatura, pois as narrativas
ficcionais são construídas a partir de representações fundadas na observação da realidade
vivida, ou seja, nos saberes. Nossa proposta fundamentou-se numa construção
interdisciplinar entre essas duas áreas do conhecimento – Geografia e Literatura – para
atingir nosso objetivo principal: uma contribuição para a aprendizagem geográfica
significativa.
Nos limites desse trabalho, escolhemos explorar “O Pequeno Príncipe” com vistas
a utilizá-lo como recurso didático para a disciplina de Geografia no Terceiro Ciclo do EF-
II (Ensino Fundamental II – Etapa que compreende do 6º ao 9º anos) porque entendemos
que o seu autor conseguiu abordar, nessa narrativa, muitas situações em que categorias e
conceitos geográficos foram reunidos com potenciais predicados para auxiliar o processo
de ensino e aprendizagem nessa fase da educação básica.
“O Pequeno Príncipe” é um clássico da literatura infantil universal e, dentre os
inúmeros atributos dessa obra, ressaltamos a qualidade de aproximar-se de assuntos de
temática geográfica com uma linguagem acessível às crianças e jovens.
De maneira lúdica, o personagem principal lança-se numa viagem de descobertas
no universo que resulta numa série de aprendizados sobre o seu mundo1 e as afinidades
desse com outros espaços geográficos, comparando suas semelhanças e diferenças,
analisando esses diferentes espaços em comparação ao seu mundo previamente conhecido
e construindo, assim, seu conhecimento espacial, tanto no que tange aos aspectos físicos
quanto aos aspectos sociais.

1
O Piloto, personagem que narra a história, supõe que o Pequeno Príncipe habitava o asteroide B-612. Saint-
Exupéry, 2017, p.24
14

Nesse estudo, nos interessou a geograficidade presente no livro “O Pequeno


Príncipe” do autor francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944).
A obra em tela se tornou um dos livros mais lidos no mundo, superando 250
traduções publicadas2 e tendo sido adaptada para cinema e animação.
Reynal e Hitchcock, editores de Nova Iorque, publicam “O Pequeno Príncipe” em
1943 simultaneamente em inglês e em francês, enquanto Saint-Exupéry encontrava-se
exilado nos Estados Unidos, pois a França, à época, estava ocupada pelos nazistas, no
contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
A edição que aqui utilizamos é a tradução feita pelo escritor, tradutor, jornalista e
poeta Mário Quintana (1906-1994) e publicada apenas em 2017. Nessa edição, a
ilustração é do próprio Saint-Exupéry. Quintana submeteu a tradução à Editora
Melhoramentos na década de 1940, porém, como os direitos autorais haviam sido
adquiridos pela Editora Agir (1945), não foi possível publicá-la naquela época. Em 2015
a obra entrou em domínio público, por isso a Melhoramentos e a Fund ação Mário
Quintana, decidiram por lançar a edição aqui selecionada.
No Brasil, desde o surgimento da Geografia Crítica, na década de 1970, voltou -se
o foco para a reconstituição da Geografia como uma disciplina escolar que melhor
dialogue com os alunos e que lhes forneça ferramentas que contribuam para a construção
de seu olhar sobre o mundo que os permeia.
“O Pequeno Príncipe” é uma obra cuja linguagem é simples, direta e repleta de
representações sobre os saberes geográficos. Essas características nos permitem, a partir
de uma leitura sistematizada em conjunto com os alunos, elaborarmos uma estratégia de
aulas com cuja intenção é a de ultrapassar a barreira que se interpõe entre esse público e
a “Geografia dos Professores”, como entendida por Lacoste (1997), que, por sua excessiva
compartimentação, não revela sua real utilidade enquanto instrumento para leitura do
mundo cotidiano.
O presente estudo justificou-se ainda porque não encontramos, até o momento,
pesquisa que interprete teórica e metodologicamente a geograficidade dessa obra literária
com vistas a explorar seu potencial como recurso didático, tal qual temos proposto.

2
Em 2015, encerrou-se o prazo de reserva de setenta anos estabelecido pela Lei 9610/1998, Artigo 41, que dispõe
a respeito dos direitos autorais sobre obras literárias. Desde então, o número de traduções e versões de “O
Pequeno Príncipe” tem se multiplicado no mercado literário brasileiro.
15

Ao explorarmos o caráter lúdico de “O Pequeno Príncipe” e evidenciarmos sua


busca de conhecimento, como é narrada, por exemplo, na relação que o personagem
principal estabelece com a leitura sobre a floresta virgem e seus animais, como o deserto
é percebido em comparação a outros biomas mencionados na narrativa, como a popula ção
é espacializada em diversos ambientes (planetas ou países), nas considerações sobre as
diferenças culturais observadas no relato sobre o astrônomo turco, na ideia de equilíbrio
ecológico desenvolvida entre o carneiro e os baobás, nas ponderações sobre o movimento
aparente do sol e noções de escala têmporo-espacial quando o pôr do sol é observado em
diferentes lugares retratados, nas atividades vulcânicas e suas influências na formação do
relevo, enfim, em muitos momentos da leitura dessa obra observamos que é possível
aproximar a Geografia, enquanto disciplina ensinada pelos professores, da Geografia,
enquanto a vivência cultural que esperamos que os alunos aprendam na escola.
Partindo da hipótese de que a geograficidade está presente no livro e que há o
potencial de utilizar “O Pequeno Príncipe” como instrumento didático para uma
aprendizagem significativa de Geografia, o objetivo geral de nossa pesquisa foi levantar
quais são os temas presentes na obra que podem ser relacionados às categorias e aos
conceitos-chaves utilizados para o ensino e aprendizagem de Geografia no Terceiro Ciclo
da Segunda Etapa do Ensino Fundamental e como fazê-lo tomando por base as
recomendações expressas nos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais.
Os objetivos específicos que se pretendeu alcançar com esse trabalho de conclusão
do curso de Licenciatura em Geografia foram:
• Apontar ‘se’ e ‘como’ a leitura do livro pode contribuir como instrumento
de ensino de categorias e conceitos-chaves geográficos para os educandos
do período que convencionou-se denominar Terceiro Ciclo da Segunda
Etapa do Ensino Fundamental;
• Refletir sobre a importância do apoio da literatura infantojuvenil no
processo de ensino e aprendizagem da disciplina geográfica e sobre as
oportunidades de ganhos didático-pedagógicos de aulas ministradas a partir
da interdisciplinaridade;
• Investigar a adequação da narrativa às orientações contidas nos PCNs -
Parâmetros Nacionais Curriculares.
16

O trajeto que percorremos em busca desses objetivos teve como ponto de partida
a delimitação dos recortes e das fronteiras conceituais desse trabalho. No Capítulo 1
investigamos os conceitos de Geograficidade, como são discutidos os motivos para a
adoção de uma proposta interdisciplinar, o que é recurso didático. Pross eguimos na
análise dos PCNs buscando compreender como se dá a concepção do processo de ensino
e aprendizagem de Geografia no âmbito específico do Terceiro Ciclo e como a Geografia
tem trabalhado com o conceito de aprendizagem significativa. Finalizando esse capítulo
inicial, apontamos alguns dos caminhos percorridos no sentido de examinar relações
possíveis entre Geografia e Literatura.
No Capítulo 2, discutimos inicialmente a biografia de Saint-Exupéry: Quem foi o
homem que escreveu o clássico para crianças e jovens que inspira novas (re)criações até
os dias de hoje? Na sequência, levantamos em que contexto histórico e geográfico “O
Pequeno Príncipe” foi concebido e como o panorama conflituoso imprimiu seu impacto
sobre a narrativa. Trabalhamos com uma breve caracterização do tradutor da edição
selecionada por nós, Mário Quintana, e o papel desse autor no panorama literário
brasileiro. Trouxemos, então, um resumo de “O Pequeno Príncipe” e traçamos um perfil
das suas principais personagens. Discutimos a Geografia presente em “O Pequeno
Príncipe” e quais os potenciais didáticos que podem ser trabalhados em sala de aula com
o intuito de alcançar uma aprendizagem significativa no Terceiro Ciclo do Ensino
Fundamental.
No Capítulo 3 realizamos as análises das correlações entre os fatos narrativos, os
eixos temáticos e os aspectos geográficos que podem ser explorados no processo de
ensino e aprendizagem de Geografia a partir de “O Pequeno Príncipe”.
17

CAPÍTULO 1 – RECORTES E FRONTEIRAS


CONCEITUAIS

Os grandes sempre precisam que a gente


lhes explique as coisas.
(Saint-Exupéry)

1.1. O Conceito de Geograficidade

Em nossa proposta de exploração teórica e metodológica da geograficidade de “O


Pequeno Príncipe” vimos a necessidade inicial de entender o significado de
geograficidade e como surgiu esse conceito.
Segundo Claval (2006) e Marandola Jr. e Oliveira (2009), Eric Dardel (1899-1967)
cunhou esse termo na sistematização de suas ideias publicadas nos anos 1950 3. Dardel se
apoiou nos conceitos filosóficos e fenomenológicos trabalhados por H eidegger (1889-
1976) para desenvolver sua contribuição nas abordagens da Geografia. Nas palavras de
Claval, define-se geograficidade como:

[...] o papel que o espaço e o meio têm na vida dos homens, sobre o sentido que
eles lhe dão e sobre a maneira sobre a qual eles os utilizam para melhor se
compreender e construírem seu ser profundo. (CLAVAL, 2006, p. 90)

Nesse sentido, vemos que geograficidade é o atributo da ciência geográfica cuja


chave interpretativa faz do espaço vivido pelos seres humanos sua pedra filosofal, pois
refere-se especificamente à circunstância espacial da existência do homem, enquanto ser
social. Levando-se em conta que “O ser do homem também é determinado pelo tempo e

3
O Homem e a Terra: Natureza da Realidade Geográfica com tradução de Werther Holzer foi publicada em 2011,
no Brasil, pela Editora Perspectiva.
18

sua geografia, ou seja, uma geograficidade.” (RAMOS, 2016, p.47), assumimos que é a
partir desse conceito – geograficidade – aqui compreendido como uma categoria, que
desenvolvemos a análise de “O Pequeno Príncipe” com vistas à sua utilização como
recurso didático para os anos iniciais do EF-II.
Esclarecemos que trataremos aqui apenas brevemente as informações sobre “as
transformações que abriram caminho para as diferentes correntes de pensamento” na
Geografia e que seus passos evolutivos não “ocorreram linearmente” (PONTUSCHKA;
PAGANELLI e CACETE, 2009, p.56).
Vimos também que o conceito de geograficidade compõe o repertório da Geografia
Humanística Cultural, sobre a qual discorreremos brevemente a seguir.
O Professor Paul Claval (2002) afirma que “...o interesse dos geógrafos pelos
problemas culturais, nasceu na mesma época da Geografia Humana, final do século
dezenove.” (p.19). Tomando essa afirmação como fio condutor desse raciocínio,
observamos que a longevidade dessa linha de pesquisa dentro da ciência geográfica é
bastante significativa.
Claval (2002, 2011) ainda indica que essa corrente do pensamento geográfico se
desenvolveu em três fases. A primeira fase, deu-se entre o desfecho do século dezenove
e os anos 1950 e a concepção de cultura tomada como parâmetro pelos geógrafos “dizia
respeito aos meios usados pelos grupos humanos para modificar o ambiente” (CLAVAL,
2011, p.19). Nesse período destacaram-se os estudos das paisagens humanizadas, das
relações sociais – os gêneros de vida – e da organização regional. Os trabalhos
geográficos dessa corrente de pensamento fundavam-se nesse entendimento do conceito
de cultura como um conjunto de técnicas e recursos para a ação humana sobre o ambiente,
revelando sua configuração espacial.
Na segunda fase, no período entre as décadas de 1960 e 1970, as pesquisas
geográficas focavam numa abordagem estruturalista da cultura. Mais especificamente, na
permanência das estruturas e “a subjetividade humana não apareceu mais como um
domínio fora do campo da pesquisa nas ciências sociais”. (CLAVAL, 2011 , p.7). A
cultura passou a ser entendida a partir de estruturas simbólicas coletivas e que
apresentavam características que persistiam por longa duração entre os grupos humano s
a que se referiam.
No período em que Claval denominou de terceira fase, a partir dos anos 1980, os
geógrafos lançaram mão de num novo entendimento do que é cultura. A partir das
19

reflexões advindas dos trabalhos de Raymond Williams (1921-1988)4 e Stuart Hall (1932-
2014)5, que propuseram uma compreensão de cultura como “...um instrumento de
dominação, usado pelas classes mais altas para impor às classes mais baixas
comportamentos conforme seus interesses” (CLAVAL, 2011, p.08). Podemos notar que
houve a incorporação de concepções advindas do materialismo histórico, como, por
exemplo, os conceitos de classe social e dominação, como importante fator de análise
para a compreensão da espacialização dos fenômenos culturais. Ness e momento os
geógrafos culturais desenvolvem bases epistemológicas no sentido de superar a principal
crítica que enfrentavam: a subjetividade dos trabalhos produzidos. O ser humano
encontrou-se, então, no centro do processo de pesquisa e reconheceu-se os limites que
relacionam subjetividade e objetividade nas pesquisas geográficas. Depreende-se daí que
aquilo que é subjetivo e imaterial – a cultura – age sobre aquilo que é objetivo e material
– as relações de produção e organização social – influindo sobre a espacialização de
objetos. Esse processo de interrelação material/imaterial e objetivo/subjetivo, é
importante para a compreensão das relações de dominação no meio social pois
“...qualquer discussão geográfica deve originar-se do reconhecimento do ambiente como
um fenômeno culturalmente abrangido” (Crosgrove, 1998, p.17).
Sobre a Geografia Humanística Cultural trouxemos a seguir as palavras de Costa,
que assim nos explica:

A visão humanista na Geografia possui a tônica do homem como ser que sente
e possui diferentes imagens dos lugares onde vive ou já viveu, produzindo,
assim, novas perspectivas para o saber geográfico, não sendo apenas um mero
espectador estático que apreende dados físicos e reais. (COSTA, 2012, p.28)

Nossa escala de análise nesse trabalho foi recortada a partir dos sujeitos do
processo de ensino e aprendizagem: os seres humanos. No entanto, não é nossa intenção
produzirmos uma Geografia particular e subjetiva. Levamos em consideração as teorias
que, conforme veremos adiante, consideram o aluno como um ser social e histórico e que
seus saberes prévios provenientes do real vivido podem e devem participar da construção
de um conhecimento ampliado pela experiência escolar.
Corroborando essa perspectiva sobre essa corrente do pensamento geográfico
podemos citar as postulações de Claval:

4
Escritor e crítico inglês.
5
Sociólogo jamaicano.
20

A geografia humana estuda a repartição dos homens, de suas atividades e de


suas obras na superfície da terra, e tenta explicá-la pela maneira como os grupos
se inserem no ambiente, o exploram e transformam; o geógrafo debruça-se sobre
os laços que os indivíduos tecem entre si, sobre a maneira como instituem a
sociedade, como organizam e como a identificam ao território no qual vivem ou
com o qual sonham.
O peso da cultura é decisivo em todos os domínios: como os homens percebem
e concebem seu ambiente, a sociedade e o mundo? Por que os valorizam mais
ou menos e atribuem aos lugares significações? Que técnica os grupos adotam,
no sentido de dominar e tornar produtivo ou agradável o meio onde vivem?
Como imaginaram, atualizaram, transmitiram ou difundiram o seu know-how?
Quais são os elos que estruturam os conjuntos sociais e como são legitimados?
De que maneira os mitos, as religiões e as ideologias contribuem para dar um
sentido à vida e ao contexto onde ela se realiza? (CLAVAL, 2007, p.13)

Ao propormos a utilização de um objeto cultural, como o livro, no processo de


construção do conhecimento geográfico nos anos iniciais da segunda etapa do Ensino
Fundamental, vemos que a análise e comparação entre a representação espacial oferecida
pelo “O Pequeno Príncipe” – mediadas pelo professor – e a realidade espacial vivenciada
pelos alunos podem chegar a uma construção e apropriação dos sentidos de alguns
conceitos geográficos.
No Brasil, a corrente da Geografia que apoia seus estudos e pesquisas na análise
cultural ganhou corpo a partir da década de 1990. Como podemos ver na citação a seguir,
evidenciaram-se os trabalhos produzidos na UFRJ - Universidade Federal do Rio de
Janeiro e NEPEC - Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura, conforme o
panorama histórico traçado por Kozel sobre o que chamou de “Geografias Marginais”:

O resgate da geografia humana pelos geógrafos culturais, redimensionando o


conceito de cultura, se apresenta como uma perspectiva marcante a partir da
década de 1990 no Brasil, sobretudo com a criação do NEPEC (Núcleo de
Estudo e Pesquisa sobre Espaço e Cultura), na UERJ, pelos pesquisadores Zeny
Rosendahl e Roberto Lobato Correa. (KOZEL,2013, p.14)

E ainda, Seeman afirma:

[...] a combinação de elementos da geografia do comportamento, estudos sobre


percepção ambiental e mapas cognitivos e a tradução de alguns textos chave da
literatura humanística na geografia (principalmente de Yi -Fu Tuan (1980,
1983)) estimularam um clima mais favorável para esse tipo de pesquisa, embora
essas novas tendências ainda levaram mais uma década para marcar presença
nas publicações acadêmicas [...]. (SEEMANN, 2007, p.52)
21

O processo de ensino e aprendizagem deve ter o aluno, e portanto o ser humano,


como o centro da ação educativa. Assim entendido, o professor deve mediar a construção
da base sobre a qual o aluno poderá organizar racionalmente sua observação e
participação no mundo, comparando, analisando e tecendo considerações sobre os
conhecimentos geográficos que lhe serão apresentados nessa fase e nos passos seguintes
de sua vida escolar, criando assim as condições para que esse aluno desenvolva seu olhar
geográfico que o orientará durante todo o seu tempo de vida, para além dos limites da
escola .
Aqui vemos na necessidade de explicar porque optamos pela perspectiva
conceitual proposta pela Geografia Humanística Cultural. Em termos práticos, essa
subdivisão da disciplina, resultado da aplicação do paradigma cartesiano, tem sua
funcionalidade. No entanto, Crosgrove alerta que “as subdivisões do conhecimento,
institucionalizadas como disciplinas, são em si um produto de uma hegemonia ideológica
da cultura capitalista.” (1998, p.21). Diante disso, não desconsideramos apreciarmos a
contribuição de todas as possíveis abordagens geográficas que sustentem o melhor
entendimento do tema aqui tratado e cuja síntese é o ensino de Geografia.
Novamente recorremos ao Professor Claval, que afirma:

Construir uma geografia cultural como um compartimento isolado da geografia


não tem sentido: a construção duma sub-disciplina deste tipo tem um valor
prático, mas o que é importante é entender o papel da cultura no conjunto dos
fenômenos geográficos: daí o sentido novo da abordagem cultural na geografia.
(CLAVAL, 2011, p.14)

Cabe ao professor oferecer ao estudante variadas abordagens teóricas,


devidamente contextualizada, para que esse aluno elabore sua compreensão do mundo,
mediada por conhecimento científico mas também perpassada por suas experiências, suas
emoções e suas percepções sobre esse mundo, os seus saberes. Ou seja, é interessante que
o professor tenha em mente que “os meios de incorporação do espaço aos códigos
simbólicos através da produção cultural também constituem tarefas para a geografia
cultural” (CROSGROVE,1998, p.22) e tal abordagem geográfica pode enriquecer o
repertório do aluno se estiver contemplada no currículo escolar.
Pontuamos que não se busca aqui um ecletismo que rompa com o rigor
epistemológico e sim, que entender-se a Geografia como uma grande área do saber: a
fragmentação, no processo de estudos – nas ciências –, só se revestirá de sentido se
22

permitir a rearticulação, uma nova totalização consciente de suas partes, como foi
preconizado por Descartes (2004).
Para assumirmos a tarefa de ensinar geografia, leva-se em conta o pressuposto que
é essencial “[...] entender a experiência dos homens no meio ambiente e social,
compreender a significação que estes impõem ao meio ambiente e o sentido dado às suas
vidas” (CLAVAL, 2002, p.20). Sem considerar o sentido e o significado da Geografia
enquanto disciplina escolar na vida dos estudantes, a tarefa do Professor de Geografia
torna-se esvaziada para todos os atores do processo de ensino e aprendizagem.
É, portanto, a partir da perspectiva dos pressupostos teóricos da Geografia
Humanística Cultural que passaremos a considerar a Aprendizagem Significativa como a
meta do professor de Geografia.
Até esse ponto, conceituamos e exploramos o significado de geograficidade e a
história desse conceito, propondo tratá-lo enquanto categoria de análise. Na sequência,
colheremos elementos que poderão subsidiar para a operacionalização de nossas análises
no contexto do ensino e aprendizagem de Geografia.

1.2. A interdisciplinaridade e a Geografia escolar

Falar de propostas interdisciplinares nos leva a pensar em nossa área específica de


conhecimento – a Geografia – participando da edificação de pontes com as demais áreas
do conhecimento. Para que a construção do ensino e da aprendizagem sejam significativas
na vida escolar é necessário que os alunos desenvolvam o pensamento de forma
relacional, agrupando os diversos conhecimentos adquiridos e mobilizando -os para a
solução dos problemas e questões com os quais se deparam em seu cotidiano.
Nesse sentido, Cavalcanti (2002, p.33) afirma que “as propostas atuais são
pautadas pela necessidade de se trabalhar com os conteúdos escolares sistematizados de
forma crítica, criativa, questionadora, buscando favorecer sua interação e seu confronto
com outros saberes” e, corroborando essa ideia, Callai (2005, p. 237) reflete: “Ao ler o
espaço, a criança estará lendo a sua própria história, representada concretamente pelo que
resulta das forças sociais e, particularmente, pela vivência de seus antepassados e dos
grupos com os quais convive atualmente.” Depreende-se daí que a leitura e interpretação
23

de texto são fundamentais para a compreensão das matérias escolares, quaisquer que
sejam essas matérias. A possibilidade de situar uma questão geográfica num texto literário
se apresenta como uma forma de estimularmos o raciocínio espacial, que transcende as
fronteiras das disciplinas escolares.
Sobre a transversalidade e a interdisciplinaridade, Pontuschka, Paganelli e Cacete
(2009) afirmam que, para atingir-se os objetivos de aprendizagem que dispõem os PCNs
(BRASIL, 1998a) quando se referem à disciplina geográfica, “uma disciplina parcelar não
consegue lidar com todos esses tipos de conteúdo, e disso decorre a necessidade de pensar
em outros métodos e princípios que conjuguem esforços integrados para conseguir formar
o homem inteiro, propiciando uma educação integral” (p.109). A proposição que
trouxemos nesse trabalho de conclusão de curso foi motivada pelo interesse em explorar
as possíveis conexões interdisciplinares entre Literatura e Geografia no âmbito do EF-II.
Mas, o que é interdisciplinaridade?
Sommerman (2006) afirma que a interdisciplinaridade é mais do que juntar duas
ou mais disciplinas num projeto de ensino. É propor um método de pesquisa e de ensino
em que seja possível integrar mutuamente e intencionalmente a comunicação de ideias,
de conceitos, de epistemologia, de terminologia e de procedimentos. Portanto, podemos
afirmar que interdisciplinaridade é um trabalho coletivo tanto de professores, que
necessitam trocar coordenadamente entre si seus aportes teóricos e metodológicos para
que possam construir propostas de trabalho que atinjam os resultados esperados, quanto
um trabalho coletivo dos estudantes, que trocam também ideias e saberes que possam
contribuir na sistematização dos conhecimentos inter-relacionados. É a construção de
diálogos entre as disciplinas e entre os sujeitos com o objetivo de promover a efetividade
da aprendizagem.
Nesse sentido, ainda, Sommerman constata que: “O interdisciplinar consiste num
tema, objeto ou abordagem em que duas ou mais disciplinas intencionalmente
estabelecem nexos e vínculos entre si para alcançar um conhecimento mais abrangente,
ao mesmo tempo diversificado e unificado.” (SOMMERMAN, 2006, p. 30). Quando
pensamos no ambiente escolar e em sua heterogeneidade, consideramos que as propostas
interdisciplinares têm grande potencial para dinamizar e fortalecer o processo de ensino
e aprendizagem, processo esse que modifica-se na medida em que também se modificam
as aspirações dos grupos sociais e, assim sendo, deve sempre ser objeto de discussão,
(re)construção, ampliação e qualificação. Reorganizar os saberes escolares conjuntamente
24

e conseguir articular o que se aprende na leitura de um livro com os saberes geográficos


é um processo que tem por objetivo o enriquecimento dos sujeitos envolvidos na
compreensão e na resolução de determinados problemas que permeiam seus cotidianos.
Tal proceder permite um diálogo muito mais fluido entre os saberes disciplinares desses
sujeitos.
Sobre o processo de análise geográfica envolvido numa proposta interdisciplinar,
Callai fundamenta:
Fazer a análise geográfica significa dar conta de estudar, analisar, compreender
o mundo com o olhar espacial. Esta é a nossa especificidade – por intermédio
do olhar espacial, procurar compreender o mundo da vida, entender as dinâmicas
sociais, como se dão as relações entre os homens e quais as
limitações/condições/possibilidades econômicas e políticas que interferem.
(CALLAI, 2000, p. 94)

Ou seja, da mesma maneira que fracionamos uma matéria para que essa possa ser
analisada e compreendida em sua especificidade, é necessário que a escola proporcione
as condições para uma nova síntese na construção do conhecimento. Propostas
interdisciplinares são ferramentas para auxiliar o aluno no desenvolvimento do olhar
espacial, uma vez que buscamos observar o mesmo objeto – o livro – por dois ângulos
diferentes – o literário e o geográfico – e complementares. A comparação entre a narrativa
ficcional e a realidade que rodeia os sujeitos é importante exercício no desenvolvimento
desse olhar espacial e, por conseguinte, geográfico.
As professoras Pontuschka, Paganelli e Cacete (2009) indicam que muitas das
instituições de ensino, tanto públicas quanto particulares, encontram dificuldades em
implementarem ações pedagógicas que superem o parcelamento disciplinar de seus
currículos e, com elas concordamos.
No processo de reflexão sobre esse assunto, assentimos também as considerações
de Callai, quando argumenta:

O olhar espacial supõe desencadear o estudo de determinada realidade social


verificando as marcas inscritas nesse espaço. O modo como se distribuem os
fenômenos e a disposição espacial que assumem representam muitas questões,
que por não serem visíveis têm que ser descortinadas, analisadas através daquilo
que a organização espacial está mostrando.(CALLAI, 2000, p. 94)

Assim entendida, a presente proposta interdisciplinar tem por intenção promover


o estudo articulado entre a representação da distribuição e da disposição espacial dos
fenômenos presentes na narrativa ficcional como tema geradores da disciplina geográfica.
25

Buscamos, portanto, compreender em conjunto com os alunos como se dá a organização


dos elementos espaciais e como esses elementos interagem para o estabelecimento das
relações sociais representadas, estimulando, ainda, as comparações entre as situações
observadas na ficção e as situações observadas na vivência dos alunos.
Isso posto, seguiremos adiante na análise das demais matérias que
consubstanciaram nosso trabalho.

1.3. Recurso Didático

Em seu volume introdutório sobre o Terceiro e o Quarto Ciclos, sobre recursos


didáticos os PCNs enunciam:

Os recursos didáticos desempenham um papel importante no processo de ensino


e aprendizagem, desde que se tenha clareza das possibilidades e dos limites que
cada um deles apresenta e de como eles podem ser inseridos numa proposta
global de trabalho. (BRASIL, 1998a, p.96)

Vemos, a partir desse enunciado, que recurso didático pode ser todo o instrumento
do qual o professor pode valer-se numa situação de aprendizagem que possa contribuir
pedagogicamente com a construção do conhecimento escolar. Podemos depreender,
ainda, que recurso didático é o material selecionado para que o processo de ensino e
aprendizagem possa se concretizar, mediando-o e tornando-o acessível e significativo.

Essa seleção de material pode representar um desafio, porém “Esses recursos


[didáticos], se adequadamente utilizados, permitem melhor aproveitamento no processo
de ensino e aprendizagem, maior participação e interação aluno-aluno e aluno-professor”
(PONTUSCHKA; PAGANELLI e CACETE, 2009, p.216). Nesse sentido, buscamos
atender à recomendação dada aos professores que versa sobre a aplicação de variadas de
fontes de trabalho em sala de aula, para além do livro didático, com o intuito de ampliar
a visão do conhecimento que se proporciona aos seus alunos (Brasil, 1998a), numa
acepção que organize “diálogos entre os conhecimentos parcelares” (PONTUSCHKA;
PAGANELLI e CACETE, 2009, p.150).
26

1.4. A Geografia nos PCNs

Visualizamos, no âmbito desse trabalho, a relevância de entendermos a Geografia


como disciplina escolar no EF-II a partir das formulações expressas nos PCNs. Mesmo
tendo em vista que os PCNs são, e devem ser, objeto de críticas 6, ponderamos que, diante
de outras propostas curriculares que se aproximam da educação brasileira, esse
instrumento permite que os envolvidos no processo escolar decidam, dentro dos
parâmetros estabelecidos, quais as estratégias e as ferramentas que melhor se enquadram
para atingir os objetivos de aprendizagem de seus alunos.
Para que possamos avançar nessa linha de entendimento que orienta nosso trabalho
em relação aos PCNs, faz-se necessário explorarmos os objetivos contidos nos referidos
parâmetros no que tange à Geografia, quer sejam esses princípios declarados ou
camuflados, uma vez que a educação escolar não é destituída de intencionalidades ou
despreocupada de um contexto social e político. Mesmo concordando com as críticas que
se tecem a esse documento enquanto considera-se a associação dos seus objetivos ao
atendimento de uma demanda das relações de produção globalizadas e exógenas,
especialmente nas avaliações produzidas pelos membros da AGB - Associação dos
Geógrafos Brasileiros, como apontado por Soares (2015), é esse ainda o balizador dos
currículos escolares, mesmo diante das recentes propostas de homogeneização dos
currículos escolares brasileiros, como a BNCC – Base Nacional Comum Curricular.
Como documento oficial sobre o qual os currículos escolares devem ser construídos , os
PCNs apresentam importantes elementos que consubstanciam nossas análises. A
compreensão da concepção do ensino e aprendizagem de Geografia contida nos PCNs,
nos levou adiante na elaboração de nossa proposta metodológica para a utilização de “O
Pequeno Príncipe” como recurso didático.
Mas, para que nossa construção epistemológica se apoiasse em bases firmes, vimos
a necessidade de trazer para apreciação uma conceituação sobre Geografia.

6
Entre os educadores brasileiros, faz-se comum a compreensão que os PCNs são componentes de políticas
curriculares produzidas num contexto histórico, político e socioeconômico de avanço neoliberal, aqui
consideradas as análises tecidas por Zanardini (2003) e Pontuschka, Paganelli, e Cacete (2009) e, pelo exposto,
essas políticas estão mais alinhadas com os objetivos dos atores dominantes da atual fase do modo de produção
capitalista do que com aspirações de formação integral dos seres humanos.
27

Optamos por trabalhar com a definição proposta pelas Professoras Pontuschka,


Paganelli e Cacete, que nos assim nos ditam:

[A Geografia] como ciência humana, pesquisa o espaço produzido pelas


sociedades humanas, considerando como resultado do movimento de uma
sociedade em suas contradições e nas relações estabelecidas entre os grupos
sociais e a natureza em diversos tempos históricos.
A Geografia, como disciplina escolar, oferece sua contribuição para que os
alunos e professores enriqueçam suas representações sociais e seus
conhecimentos sobre as múltiplas dimensões da realidade social, natural e
histórica, entendendo melhor o mundo em seu processo ininterrupto de
transformação, o mundo atual da chamada mundialização da economia.
(PONTUSCHKA; PAGANELLI e CACETE, 2009, p..37-38).

Essa definição incorpora consideravelmente muitos dos elementos sobre os quais


a Geografia se debruça: considera sociedade e natureza em seu enunciado, mas amplia os
horizontes quando menciona as dimensões humana e social na produção do espaço através
dos tempos históricos. Dessa forma, caminha-se para além da dicotomia
sociedade/natureza tão difundida e sedimentada nas salas de aula de Geografia. Todavia,
ao explicitar o papel da Geografia como disciplina escolar, essa elaboração textual resvala
em limites quando se refere a um momento histórico específico, mesmo apontando-o
como um processo ininterrupto.
Ao analisarmos os PCNs, podemos constatar que já na apresentação do documento
se estabelece que a Geografia tem por objetivo estudar, dentro de um processo histórico,
como a formação das sociedades humanas se relacionam com o funcionamento da
natureza, por meio da leitura do lugar, do território e a partir de sua paisagem:

Por meio dela [a Geografia] podemos compreender como diferentes sociedades


interagem com a natureza na construção de seu espaço, as singularidades do
lugar em que vivemos, o que o diferencia e o aproxima de outros lugares e,
assim, adquirir uma consciência maior dos vínculos afetivos e de identidade que
estabelecemos com ele. Também podemos conhecer as múltiplas relações de um
lugar com outros lugares, distantes no tempo e no espaço e perceber as relações
do passado com o presente. (Brasil, 1998b, p.15)

Podemos depreender, partindo dessa formulação, que a interação entre os diversos


grupos sociais – com suas especificidades – e os diversos meios – naturais (?)7 – que
participam da construção do espaço geográfico é mediada pelas culturas dessas

7
É difícil conceber que possa haver ainda na superfície da Terra algum meio alheio às interações humanas, por
isso o nosso estranhamento quanto à denominação ‘meio natural’.
28

sociedades em conjunto com as configurações ambientais. Destacamos que o método


comparativo entre lugares e tempos históricos para a compreensão das relações espaciais
já é ali apontado, e veremos adiante que esse método comparativo permeia toda a redação
desse documento. Também inferimos que uma abordagem que privilegia aspectos
particulares dos estudantes, como vínculos afetivos e identitários, dão um tom humanista
nessa concepção da Geografia.
Ao caracterizar a Geografia no Ensino Fundamental, os PCNs (Brasil, 1998b, p.23)
proferem que “Nesse sentido, acreditamos que trabalhar com o imaginário do aluno no
estudo do espaço é facilitar a interlocução com ele e compreender o significado que as
diferentes paisagens, lugares e coisas tem para ele.” e ainda esclarecem que “o
imaginário” deve ser considerado na composição do repertório de estudos da Geografia ,
ou seja, deve ser inserido no currículo escolar, no sentido de expressar as representações
e a valorização dos fatores culturais presentes na vida cotidiana do aluno. Nessa
perspectiva, a disciplina geográfica no Ensino Fundamental deve se basear num “corpo
de conteúdos” (Brasil, 1998b, p.23) que contemplem o conjunto das análises do modo de
produção e reprodução da vida material, as descrições empíricas das paisagens, os
aspectos simbólicos socioculturais e também os aspectos físicos e biológicos dessas
paisagens, buscando compreender a interação entre esses diversos fatores. Resta -nos
ressaltar que a abrangência dessa proposição de conteúdos significa um grande desafio
para os Professores de Geografia, levando em conta a quantidade e duração das aulas que
são destinadas a essa disciplina nas grades regulares da educação básica brasileira.
E, ainda em consonância com essa linha de entendimento, os PCNs ainda nos
oferecem as seguintes formulações:

Esses procedimentos, somados à ampla possibilidade de uso de recursos


didáticos, tais como o trabalho com diferentes fontes documentais, imagens,
música, estudos do meio, leitura de textos mais complexos e reflexivos,
dramatizações, pesquisa etc., podem ser mais profundamente utilizados pelo
professor, para que possa criar intervenções significativas que despertem, e ao
mesmo tempo consolidem, os conhecimentos geográficos do aluno, como uma
forma de saber particular, mas ao mesmo tempo articulado com outras áreas.
(BRASIL, 1998b, p.96)

Ou seja, podemos depreender que o professor pode e deve lançar mão das diversas
possibilidades de ampliar as fontes de estudos que contribuem com a construção do
conhecimento geográfico de forma que esses conhecimentos se articulem com os
conhecimentos adquiridos nas outras disciplinas escolares. As diversas formas de
29

intervenções vislumbradas a partir desse fragmento dos PCNs representam desafios


culturais que podem servir como ferramentas de ensino e aprendizagem de forma
significativa.
Em conformidade com a proposição de o professor de Geografia fazer uso da
pluralidade de recursos para a que seus alunos possam chegar à compreensão dos
conhecimentos geográficos, suplantando os limites tradicionalmente impostos ao ensino
dessa disciplina, Cavalcante profere:

[...] algo delineador de uma Geografia Escolar processual, ou seja, para além de
um mero produto estatal. Uma Geografia capaz de discutir ontologicamente o
papel do sujeito na sociedade, não porque efetua apenas a crítica, mesmo sendo
possivelmente construtiva, mas sim, porque (re) lembra o ser humano
(professores e alunos em especial, pois falamos do espaço escolar) do seu papel
criativo na sociedade, fato esse fomentador da mudança. (CAVALCANTE,
2010, pp.7-8).

Em vista do acima exposto, quando falamos do potencial crítico da educação nem


sempre faz-se claro para nós, profissionais da área, os caminhos que nos levarão a uma
mudança social de fato, muito embora seja recorrente o anseio por mudanças que
assegurem uma maior proximidade com a justiça social e, nossos entendimentos sobre
esse tema estão em consonância com os de Cavalcante quando esse autor aponta para o
papel criativo da Geografia na revisão da relação sujeito-sociedade. Propostas didáticas
pedagógicas que viabilizem a criatividade na prática escolar são necessárias para a
construção de uma relação de ensino e aprendizagem voltada ao sucesso dos alunos e que
o objetivo de oportunizar o desenvolvimento e crescimento intelectual e pessoal dos
alunos esteja no horizonte escolar.
Voltando às orientações contidas nos PCNs, constatamos que essa metodologia de
trabalho plural e integradora é contemplada em diversos pontos do documento, como
quando estabelece que:

Estudar os lugares, territórios, paisagens e regiões pressupõe lançar mão de uma


ampla base de conhecimentos que não se restringem àqueles produzidos dentro
do corpo teórico e metodológico apenas da Geografia. Muitas são as interfaces
com outras ciências. (BRASIL, 1998b, p.41)

Assim, voltamos ao fato que a multiplicidade de oportunidades de ferramentas para


o aprendizado de Geografia prevista nos PCNs podem e devem contribuir com as práticas
escolares, uma vez que na escola temos reunidos como alunos sujeitos cuja construção do
30

conhecimento não se dá de maneira uniforme, por mais que essa seja a esperança dos
professores e demais envolvidos no processo de escolarização. Cada aluno desenvolve -se
e constrói seu aprendizado em tempo e modo próprios, num processo único. Nesse
sentido, a incorporação da diversidade de metodologias e estratégias didáticas e
pedagógicas no ensino em geral, e particularmente em Geografia, representa um
acréscimo nas chances desse processo alcançar os objetivos de aprendizagem.
Seguimos adiante reunindo os elementos epistemológicos que alicerçaram nossa
discussão, aprofundando-nos nas disposições veiculadas pelos PCNs.

1.4.1. A Geografia no Terceiro Ciclo dos PCNs

Em sua segunda parte, em que o ensino e aprendizagem são especificamente


tratados, destacamos que os PCNs salientam a importância da compreensão do papel que
os alunos exercem na construção de paisagens e lugares. Quando inseridos nos estudos
da disciplina, espera-se que os alunos sejam chamados a compreender as dimensões
sociais e simbólicas das categorias de análise da disciplina, reconhecendo-se a si próprios
como sujeitos sociais e atribuindo valor, para além do aprendizado do conteúdo, também
às atitudes e procedimentos adquiridos.
Nesse sentido, Cavalcanti (2015) analisa os PCNs referentes à Geografia dessa
etapa escolar e define os conteúdos procedimentais como os “temas trabalhados nas aulas
com o intuito de desenvolver habilidades e capacidades para se operar com o espaço
geográfico.” (p.135) e, sobre os conteúdos atitudinais e valorativos, a autora sustenta que
“referem-se à formação de valores, atitudes e convicções, que perpassam os conteúdos
referentes a conceitos, fatos e informações, devendo ser tratados em todas essas
dimensões.” (p.137). A partir dessas considerações, entendemos que os PCNs
demonstram avanço na construção democrática do conhecimento quando preocupar-se
com a relação que os alunos podem estabelecer com a disciplina geográfica em face de
seu próprio reconhecimento como atores no processo de produção do espaço, das
paisagens e dos lugares e quando apresentam para os professores a relevante necessidade
de orientar esses alunos no desenvolvimento de um “olhar intencional, em busca de
respostas”. (BRASIL, 1998b, p.52).
31

Considerando que o aluno que cursa o Terceiro Ciclo do EF-II deve ter
desenvolvido um certo domínio da comunicação pela escrita, bem como um certo grau de
compreensão pela leitura, esses recursos operatórios devem ser estimulados através de
atividades que permitam a socialização de seus pensamentos e opiniões através produções
textuais quer seja de maneira individual ou coletiva (BRASIL, 1998b, p.52) a fim de que
esses alunos conquistem desenvoltura na execução dessas atividades. Tais exercícios são
de vultuosa relevância tanto no processo de ensino e aprendizagem de Geografia quanto
nas demais disciplinas escolares para uma formação que propicie autonomia aos sujeitos
da educação básica.
Diante dessas considerações, optamos por reproduzir as sugestões curriculares
presentes nos PCNs para a área de Geografia, enquanto disciplina escolar, através da
elaboração do Quadro 1 - Conteúdos Sugeridos pelos PCNs para o Terceiro Ciclo. Dessa
forma, concebemos que nos é permitida uma visualização objetiva das temáticas e dos
conteúdos propostos para o Terceiro Ciclo do EF-II.
32

Quadro 1 - Conteúdos Sugeridos pelos PCNs para o Terceiro Ciclo

Eixos Temáticas/Conteúdos Sugeridos

Eixo 1 A Geografia como uma possibilidade de leitura e compreensão do mundo;


A construção do espaço: os territórios e os lugares (o tempo da sociedade e o tempo da
natureza);
A conquista do lugar como conquista da cidadania

Eixo 2 O estudo da natureza e sua importância para o homem;


Os fenômenos naturais, sua regularidade e possibilidade de previsão pelo homem;
A natureza e as questões socioambientais

Eixo 3 O campo e a cidade como formações socioespaciais;


O espaço como acumulação de tempos desiguais;
A modernização capitalista e a redefinição nas relações entre o campo e a cidade;
O papel do Estado e das classes sociais e a sociedade urbano-industrial brasileira;
A cultura e o consumo: uma nova interação entre o campo e a ci dade

Eixo 4 A cartografia como instrumento na aproximação dos lugares e do mundo;


Da alfabetização cartográfica à leitura crítica e mapeamento consciente;
Os mapas como possibilidade de compreensão e estudos comparativos das diferentes
paisagens e lugares

Fonte: Elaborado pela Autora a partir de BRASIL (1998a)

No Capítulo 3 do presente trabalho desenvolvemos a análise desse quadro de forma


comparativa, justapondo nossa análise de “O Pequeno Príncipe” para, a partir da
contraposição dos parâmetros que orientam a elaboração curricular oficial das instituições
de ensino que atuam no EF-II e da obra literária objeto desse estudo, possamos verificar
a efetividade da nossa hipótese.
É relevante, para nossa pesquisa, considerar ainda as proposições para o ensino e
aprendizagem de Geografia no Terceiro Ciclo do EF-II a partir dos temas transversais
sugeridos nos PCNs, como Meio Ambiente, Orientação Sexual, Pluralidade Cultural,
Trabalho, Consumo e Ética. O processo de ensino e aprendizagem através dos temas
transversais são fundados na necessidade da abordagem político-social de
“conhecimentos teoricamente sistematizados e as questões da vida real e de sua
transformação.” ( BRASIL, 1998c, p.30)
33

Prosseguiremos discorrendo sobre o conceito de aprendizagem significativa em


Geografia, conceito esse que justificou nossos esforços na concretização dessa pesquisa.

1.5. O Conceito de Aprendizagem Significativa em Geografia

Nesse trabalho de conclusão do curso de Licenciatura em Geografia, um aspecto


pode ser considerado de fundamental importância: para a seleção de temas e os recortes
realizados nos preocupamos no sentido da produção de um material didático com
potencial para a construção da aprendizagem significativa em Geografia.
Em nosso exame dos PCNs, analisamos as seguintes considerações sobre as trocas
entre professores e alunos que possam estruturar um processo de aprendizagem que de
fato ofereçam significados aos sujeitos da educação, na medida em que esses sujeitos
possam operar os conhecimentos adquiridos:

A construção do conhecimento sobre os conteúdos escolares sofre influência das


ações propostas pelo professor, pelos colegas e também dos meios de
comunicação, dos pais, irmãos, dos amigos, das atividades de lazer, do tempo
livre etc. Dessa forma, a escola precisa estar atenta às diversas influências para
que possa propor atividades que favoreçam a ‘aprendizagens significativas’. As
aprendizagens que os alunos realizam na escola serão ‘significativas’ na medida
em que eles consigam ‘estabelecer relações entre os conteúdos escolares e os
conhecimentos previamente construídos’, que atendam às expectativas,
intenções e propósitos de aprendizagem do aluno. Se a aprend izagem for uma
experiência bem-sucedida, o aluno constrói uma representação de si mesmo
como alguém capaz de aprender.
Se, ao contrário, for uma experiência malsucedida, o ato de aprender tenderá a
se transformar em ameaça, e a ousadia necessária à aprendizagem se
transformará em medo, para o qual a defesa possível é a manifestação de
desinteresse. (BRASIL, 1998a, pp.72-73. Grifos nossos.)

Ou seja, o conceito de aprendizagem significativa é abordado, sem que, no entanto,


os autores do texto dos PCNs tivessem se aprofundado na elucidação desse conceito.
Podemos ainda destacar que a redação, tal qual elaborada, pode levar ao errôneo
entendimento que o aluno individualmente, através das representações por ele mesmo
construídas, possa ser responsabilizado pelo seu fracasso escolar, na medida em que essas
representações não correspondam a “alguém capaz de aprender”.
34

Deparamo-nos, portanto, com a necessidade de ampliar nossa pesquisa no assunto,


para uma melhor compreensão do que é a aprendizagem significativa. A partir daí,
recuperarmos a explicação oferecida por Antunes (2001):

Devemos a David Ausubel 8 os estudos sobre como a mente apreende


trabalhando os conceitos de forma mecânica ou significativa. Assim,
aprendizagem significativa é o processo pelo qual uma nova informação se
relaciona de maneira não arbitrária e substantiva (não-literal) à estrutura
cognitiva do aprendiz. (ANTUNES, 2001, p.30)

A aprendizagem significativa ocorre quando, na aquisição de novas informações,


há a interação com conceitos relevantes previamente presentes na estrutura cognitiva do
sujeito da aprendizagem e essas novas informações participam ativamente na construção
do conhecimento. Por outro lado, ainda segundo Antunes (2001), na aprendizagem
mecânica ou automática as novas informações são memorizadas mas não interagem com
outros conceitos operados pelos sujeitos da aprendizagem, não são mobilizadas pelo
raciocínio desses sujeitos. Equivale a dizer que na aprendizagem mecânica ou automática
as informações ficam soltas, porque não se ancoram nessa estrutura cognitiva a qual o
sujeito recorre para transformar as novas informações em saberes, em sua vivência diária,
ou conhecimentos, quando sistematizados por meio das disciplinas escolares.
Tomita (2009) reitera a premência de cuidar para que, ao considerarmos os
conceitos preexistentes dos alunos no processo de ensino e aprendizagem não nos
deixemos engendrar pelo reforço de ideias que transitam no senso comum e que nossa
atuação esteja pautada pela organização formal do conhecimento da Geografia: “Cabe ao
professor a tarefa da passagem do conhecimento do senso comum do aluno, para a
produção de conhecimento científico.” (p.23)
A leitura da produção dessa autora contribuiu também na construção do presente
trabalho através de sua perspectiva no que diz respeito à proposição de práticas educativas
que superem as dificuldades representadas pela insegurança dos professores, em função
de despreparo ou dificuldade no manejo de aparatos tecnológicos, e mesmo a falta de
apoio das instâncias da administração escolar e argumenta:

8
David Ausubel (1918-2008) apresentou, em 1968, sua teoria sobre aprendizagem significativa na obra
intitulada: ‘A aprendizagem significativa: a teoria de David Ausubel’. A obra foi publicada no Brasil em 1982
pela Editora Moraes.
35

Ressalta-se que as relações envolvidas em uma perspectiva de aprendizagem


significativa não se restringem aos métodos de ensino ou processos de
aprendizagem. Na sala de aula, o conhecimento não é apenas transmitido pelo
professor e aprendido pelos alunos. Ensinar e aprender com significado implica
em interação, disputa, aceitação, rejeição, caminhos diversos, percepção das
diferenças, busca constante de todos os envolvidos na ação de conhecer. A
aprendizagem significativa segue um caminho que não é linear, mas uma trama
de relações cognitivas e afetivas, estabelecidas pelos diferentes atores que dela
participam. ( TOMITA, 2009, p.79).

Ou seja, a autora nos alerta para a premissa que deve estar contemplada no
horizonte dos professores, em seus planos de trabalho, que, ao estabelecerem como
objetivo a aprendizagem significativa, haverá diversas possibilidades de conflito. Diante
dessas possibilidades, o professor precisa preparar-se para a mediação desses conflitos
antes de lançar mão de alternativas metodológicas que fujam daquelas habitualmente
estabelecidas no âmbito escolar.
Antunes (2001) indica o uso de “associações e contextualizações” como
ferramentas para atingir a aprendizagem significativa. A proposta de Furlan (2005)
designa a construção de projetos intencionalmente desafiadores sobre questões presentes
no cotidiano do aluno. Castellar (2005) analisa a aprendizagem significativa em Geografia
à luz da teoria piagetiana da aprendizagem e propõe a Cartografia como potencial
procedimento ou estratégia para trabalhar o “pensamento simbólico representacional”
(p.45). Já Pontuschka, Paganelli e Cacete (2009) estabelecem a transversalidade e
interdisciplinaridade, o tema gerador como articulador de projetos, o estudo do meio e a
incorporação, no ensino de Geografia, de diversas linguagens, como a literatura, o
cinema, as representações gráficas e cartográficas para além do livro didático como forma
de propiciar aos alunos condições para chegarem a uma aprendizagem significativa.
Após reunirmos os elementos teóricos que balizam nossa discussão, partimos para
o ponto que representa o principal sustentáculo da ação propositiva desse trabalho: como
trabalhar com literatura para atingir os objetivos de ensino e aprendizagem de Geografia
no Terceiro Ciclo do EF-II? Nesse ponto, nossos esforços direcionam-se para dirimir essa
questão.
36

1.6. Geografia e Literatura

Na realidade da vida escolar, é possível ver que muitos alunos apresentam


dificuldades na leitura e análise de textos. Tal dificuldade ocorre independentemente de
qual etapa escolar ou acadêmica esses alunos se encontram como nos lembram
Pontuschka, Paganelli e Cacete (2009). Em geral, podemos observar que essas
dificuldades são mais agudas nos estudantes provenientes das camadas socias em situação
de maior vulnerabilidade. A Literatura, por seu potencial de propiciar uma experiência
intelectual, estética, afetiva, social e cultural, representa uma possibilidade de
trabalharmos as com os alunos, de forma individual e coletiva, no sentido de superar essas
dificuldades de análise e compreensão de textos.
Colocamos em perspectiva o que Cavalcanti nos diz:

Percebe-se, assim, a importância da linguem, como construção social e cultural,


nas práticas de ensino, entendendo que sua essência é a de significar, ou seja,
dar significado, atribuir significado às coisas (etimologicamente, ensino é
exatamente isso – ensinar, dar signos). (CAVALCANTI, 2002, p.72)

Quando o aluno avança no domínio da linguagem escrita sua autonomia no


processo de ensino e aprendizagem também avança, mas, para além de sua vida escolar,
também se ampliam suas possibilidades de compreensão e atuação sobre o mundo em que
vive. Dominar os meandros da comunicação escrita é indispensável para a vivência de
uma cidadania plena.
Sobre o papel da Literatura no cotidiano dos seres humanos, Cândido nos diz:

[...] assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o
sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.
[...] Vista deste modo a literatura aparece claramente como uma manifestação
universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem
que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com
alguma espécie de fabulação. (CÂNDIDO apud PETIT, 2009, p.42)9

Vemos assim que a Literatura carrega em si a potência de exercer papel través do


qual o aluno exercita e aprimora o seu domínio da comunicação escrita. Como

9
Tomamos contato com “O Direito à Literatura”, ensaio datado de 1998 e escrito pelo Professor, Sociólogo e
crítico literário, Antônio Cândido (1918-2017) através das citações presentes em “A Arte de Ler: ou como resistir
à adversidade”, de Michèle Petit, antropóloga e pesquisadora do Laboratório de Dinâmicas Sociais e
Recomposição dos Espaços, do Centre National de la Recherche Scientifique, na França.
37

consequência, almeja-se que esse aluno deixe de depender das explicações externas para
compor o seu repertório de interpretação do mundo e da realidade social, dando-lhe ainda
condições de interagir autonomamente com essa sociedade em que está inserido.
Com base em Pontuschka, Paganelli e Cacete (2009) podemos levantar algumas
das finalidades da análise textual em aulas de Geografia, como por exemplo, o
aprendizado da leitura, a familiarização com conceitos e com o vocabulário técnico
específico da ciência geográfica, bem como a compreensão de raciocínio, argumentação
e conclusões dos autores.
Já, a partir de Castellar e Vilhena (2010), nos defrontamos com análise detalhadas
sobre os possíveis ganhos que os aportes textuais podem oferecer ao processo de ensino
e aprendizagem, como um todo, e suas contribuições específicas à disciplina geográfica,
como podemos observar a seguir, no ‘Quadro 2 – Operações e processos mentais
desenvolvidos no processo de construção da Competência Leitora’. As autoras propõem
a utilização de diferentes linguagens em sala de aula e oferecem orientações específicas
que podem balizar a construção de planos de aula, sequências didáticas ou mesmo projetos
educativos que articulam Literatura e Geografia, entre outros dispositivos culturais que
estão presentes no cotidiano dos alunos e, a partir do olhar pedagógico, podem adquirir
outra dimensão dentro dos processos que estruturam a construção do conhecimento.
Na própria redação dos PCNs há a referência à condição favorável que a associação
entre Geografia e Literatura pode manifestar quando utilizada no processo de ensino e
aprendizagem:

Ao pretender o estudo das paisagens, territórios, lugares e regiões, a Geografia


tem buscado um trabalho interdisciplinar, lançando mão de outras fontes de
informação. Mesmo na escola, a relação da Geografia com a Literatura, por
exemplo, tem sido redescoberta, proporcionando um trabalho que provoca
interesse e curiosidade sobre a leitura desse espaço. (BRASIL, 1998a, p.33)

As relações espaciais que são desenvolvidas nas obras literárias podem ser
instigantes para os alunos porque permitem uma apreciação não usual da Geografia. Num
momento em que os professores disputam a atenção dos estudantes com tantas outras
situações que parecem mais atraentes, estratégias diferenciadas podem ser consideradas
com a finalidade de desenvolver-se aulas que mobilizem a atenção dos alunos.
38
39

Podemos observar que há razões para trabalhar didática e pedagogicamente com


Literatura e Geografia no EF-II e que essa pode ser uma experiência significativa para os
alunos.
Marandola Jr. e Oliveira (2009) lembram que a aproximação entre Literatura e
Geografia não é recente:

Fascinava os geógrafos do século XIX e da primeira metade do século XX a


capacidade de muitos escritores de descrever regiões e lugares que os próprios
geógrafos, muitas vezes, ainda não tinham estudado. Pode-se identificar estas
indicações inclusive no período da sistematização da geográfica, como nas
aproximações de Humboldt com a pintura e a literatura, num contexto de maior
aproximação entre os saberes. (MARANDOLA JR e OLIVEIRA, 2009, p.490)

Esses autores arguem que do “valor geográfico da literatura” no contexto brasileiro


ao analisarem obras de autores literatos como José de Alencar (1829-1877), Graciliano
Ramos (1892-1953), Érico Veríssimo (1905-1975), Guimarães Rosa (1908-1967) e Jorge
Amado (1912-2001) enquanto notam que os geógrafos podem se beneficiar, para além
das descrições de paisagens contidas nas obras literárias, da geograficidade que delas
emanam, considerando as relações espaciais para além do plano da concretude. É possível
vermos novas possibilidades para o olhar geográfico quando se leva em conta a dimensão
literária, como expressão cultural humana. Na perspectiva de Marandola Jr. e Oliveira
(2009, p.497), “a espacialidade se constrói a partir da realidade tanto a geográfica como
a literária”. E, nessa linha de pensamento, sugerimos dispor de atividades que permitam
exercitar e construir essa perspectiva geográfica através da Literatura como aporte para
as aulas de Geografia do EF-II.
Mas, além do contexto espacial e das descrições de paisagem, é possível expandir
o olhar geográfico sobre as obras literárias para abarcar também as relações sociais ali
expressas. As diversas formas de apropriações do espaço e os conflitos relatados nessas
apropriações também podem ser objeto de análise e de interesse da Geografia.
Costa argumenta a favor das possíveis aproximações entre Geografia e Literatura
que “O espaço literário atribui ao ser um modo de situá-lo, ou melhor, um estar.” (2012,
p.33). Diante dessa afirmação, podemos considerar que, no processo de criação de uma
produção literária, faz-se necessário que o autor tenhas as relações espaciais numa
perspectiva que dialogue intimamente com os sujeitos literários. Durante o processo de
leitura, a experiência do leitor recria essa perspectiva relacional entre o sujeito e o espaço
40

mesmo que ambos, sujeito e espaço, sejam ficcionais, e ativa a capacidade de pensamento
sobre o espaço que, por consequência, podemos dizer que ativa o pensar geográfico desses
leitores. Tuan, ao analisar as correlações entre habilidade espacial, conhecimento e lugar
(2013, p.89-108) afirma que “o conhecimento consciente pode até atrapalhar o
desempenho de uma habilidade” e ainda que “fazemos muitas coisas eficientemente sem
ter que pensar, por puro hábito”. Não concordamos com essas considerações desse
geógrafo, pois é necessário mobilizar-se continuamente o pensar geográfico tanto para o
desenvolvimento das habilidades espaciais quanto para a vivência humana, pois o espaço
geográfico não é estático e está inserido num movimento de constante construção e
reconstrução, dinamizado por um processo histórico. Seguindo essa linha de pensamento,
podemos sustentar que na ideia de ‘hábito’ já está traduzida uma rotina de práticas da
qual que o pensar – espacial – foi sistematicamente mobilizado.
Quando ajustamos nosso foco para a Literatura produzida para crianças e jovens,
vemos que Costa aponta que as obras desse gênero discursivo são pensadas para atingir
os leitores nessa faixa etária e “não só podem, mas devem ser utilizados como rico
material a ser interpretado à luz das várias representações do espaço.” (2012, p. 14).
Mas, dialogamos com a perspectiva de problematização quanto aos gêneros
discursivos que advém da análise de obras literárias levantada em ‘Violência e identidade
em ―O bife e a pipoca‖, de Lygia Bojunga’, na qual as autoras afirmam que “A liberdade
que a Literatura proporciona aos artistas dificulta o trabalho dos teóricos e críticos que
buscam maneiras de classificação formal dos textos, pois parece que sempre escapam
algumas exceções.” (DA ROCHA LARANJA e NIGRO, 2015, p.75). Assim observadas as
produções literárias tratam de construções narrativas cujo potencial pode abranger diferentes
públicos.
Voltando-nos novamente para os estudos produzidos na perspectiva interdisciplinar
para qual confluem Literatura e Geografia, podemos observar que:

[...] a literatura infantojuvenil, com a força de sua ação criadora, pela


recorrência ao imaginário e à fantasia, dá materialidade às diversas realidades
espaciais articuladas por meio do mosaico de representações simbólicas, de
imagens sensoriais e de significações evocadas tanto pela sua plurissignificação
linguística quanto pela capacidade transgressora da sua organização discursiva.
(COSTA, 2012, p.11)
41

Comungamos desse entendimento que reforça as potencialidades do livro, enquanto


objeto cultural, e joga luz sobre formas não usuais de trabalhar-se o ensino e aprendizagem de
Geografia, nessa perspectiva interdisciplinar.
Dentro desse olhar que toma a Literatura como meio criativo de integrar o pensamento
geográfico à vivência humana, destacamos:

A arte literária, com sua potencialidade de representatividade e transcrição


criativa dos espaços, lugares e paisagens vividos, exprime a condição e
existência humanas na Terra, sendo capaz de expressar como o homem sente e
pensa o mundo (COSTA, 2012, p.14)

Diante das referências teóricas anteriormente pormenorizadas, passamos, no Capítulo


2, a desvelar em que contexto o autor e o livro foram apreciados na elaboração desse trabalho
de conclusão de curso.
42

CAPÍTULO 2 – Um panorama a respeito de Saint-Exupéry e


“O Pequeno Príncipe”

Levei muito tempo para descobrir de onde


ele tinha vindo. O pequeno príncipe, que me
fazia tantas perguntas, nunca parecia ouvir
as que eu lhe dirigia. Foi pouco a pouco que
afinal vim a saber de tudo, pelas palavras
que ele deixava escapar, ao acaso.
(Saint-Exupéry)

2.1. Antoine de Saint-Exupéry, uma breve biografia

No processo de leitura, buscar reconhecer a personalidade do autor e discernir suas


motivações e condicionantes que o levaram a escrever a obra em foco são fatores
fundamentais para um melhor entendimento da mesma. Diante dessa constatação,
apresentaremos a seguir uma breve biografia de Saint-Exupéry que acreditamos contribuir
para a compreensão de “O Pequeno Príncipe”. As informações bibliográficas foram
compiladas a partir da leitura de Dryzum (2009), Webster (1994), do capítulo composto
por Vassallo10 na edição objeto dessa pesquisa, traduzida por Quintana e publicada em
2017, e do sítio mantido na web pelos seus descendentes 11.
Antoine Marie Jean-Baptiste Roger Foscolombe de Saint-Exupéry, herdeiro do
título nobiliárquico de Saint-Exupéry, conhecido no meio literário como Antoine de
Saint-Exupéry, nasceu no dia 29 de Junho de 1900, na cidade de Lyon, capital da região
de Auvergne-Rhône-Alpes, no Sul da França. Desapareceu no Mar Mediterrâneo durante
uma missão de reconhecimento fotográfico para a Força Aérea Francesa na Segunda

10
A edição da Melhoramentos (2017) é enriquecida com capítulos que tratam da biografia de Saint-Exupéry e
Mário Quintana, além da história da tradução e do contexto em que obra e tradução foram elaboradas.
11
Disponível em <<https://www.antoinedesaintexupery.com/>>.
43

Guerra Mundial, em 31 de Julho de 1944. Nesse contexto, foi dado como morto. Em 1988,
um pescador encontrou sua pulseira no Mar Mediterrâneo. Em 2000, os destroços do
Lockheed P-38 Lightning – mesmo tipo de aeronave que Saint-Exupéry pilotava quando
desapareceu – foram localizados próximo dali. Foi o terceiro filho de Marie Boyler de
Foscolombe de Saint-Exupéry (1875-1972) e de Jean Saint-Exupéry (1863-1904),
Visconde de Saint-Exupéry. O casal teve ao todo cinco filhos: Marie-Madeleine (1897),
Simone (1898), Antoine (1900), François (1902) e Gabrielle (1903). Seu pai, morreu
também subitamente em 1904, quando retornava de uma viagem.
Além de escritor, jornalista e ilustrador, Antoine de Saint-Exupéry também foi
piloto da aviação civil e militar.
A infância foi passada no castelo da família, onde descreveu em prosa poética a
paisagem que o circundava:

O quarto que Antoine partilhava com o irmão mais novo, François, em Saint -
Maurice-de-Rémens, virado a leste, dava para o imenso jardim do castelo, e, da
janela, distinguiam-se ao longe os cumes arborizados dos montes de Bugey a
despontar das faldas da cordilheira do Jura. É uma paisagem impregnada de uma
magia natural, em que as florestas densas se encontram sempre meio escondidas
pelo nevoeiro do outono ou pelas neblinas do verão, e por vezes cobertas de
neve. Na pureza cristalina do início da primavera, o vale granítico onde corre o
estreito e tumultuoso rio Albarine parece ao alcance da mão.
Aos olhos de uma criança, as colinas escuras eram uma terra estranha com os
seus próprios mistérios e segredos. Da sua janela, Antoine observava, mais além
das vinhas e das pastagens suaves que principiavam nos limites do jardim do
castelo da família, os distantes cerros escarpados onde o Homem, desde há dois
mil anos, se tinha entregado a combater a natureza ou as invasões inimigas.
Quase em frente do castelo, Antoine podia contemplar a imponente torre de
Saint-Denis, erguida como sentinela à entrada do estreito vale, e a antiga estrada
romana que ia de Lyon a Genebra. Mais oculta dos olhares, mas mais
impressionante, erguia-se uma enorme fortaleza quadrangular conhecida como
Les Allymes, cuja silhueta amarelada se destacava na floresta circundante.
(WEBSTER, 1994, p. 17)

Foi em Saint-Maurice-de-Rémens, esse lugar de paisagem privilegiada, que Saint-


Exupéry viveu grande parte de sua infância e sua adolescência. Como membro de uma
família que trazia consigo o título de nobreza desde o século XIII, seu capital cultural foi
amplamente cultivado. Sua mãe apreciava a música e a pintura. Webster relata que Marie
Boyler de Foscolombe contava história aos filhos enquanto pintava os seus retratos (1994,
p.34). Já Dryzum (2009, p.20) revela que as crianças encenavam peças escritas pelo
pequeno Antoine para diversão das pessoas grandes.
Também nessas paragens, Saint-Exupéry tomou contato com os aviões. O
aeródromo de Ambérieu ficava há apenas seis quilômetros do castelo da família e “[...] o
44

fantástico balé de gigantescas libélulas – barulhentas máquinas voadoras de madeira e


tela [...]” (DRYZUN, 2009, p.17) encantavam o pequeno. O garoto, sempre sonhador,
incrementava sua bicicleta com asas de tecido, prometendo aos irmãos que voaria.
Aos doze anos, numa visita ao aeródromo vizinho, Antoine convenceu o piloto
Gabriel Wroblewski, de que sua mãe tinha permitido que voasse em sua aeronave, um
Berthaud-Wroblewski W3. Doce mentira... Em comemoração ao batismo aéreo, o autor
de “O Pequeno Príncipe” compôs um poema, transcrevendo a emoção e a paixão que
duraria por toda a sua vida.
Sua educação formal ocorreu em colégios internos, primeiro em Paris, no colégio
Notre Dame de Saint Croix e depois no Colégio dos Maristas, na Suíça, após o início da
Primeira Grande Guerra.
Em 1918, quando terminou a guerra, retornou a Paris para tentar a carreira militar,
como seu pai. Prestou o exame para a Escola Naval, mas foi reprovado. Inspirado pelo
lado materno da família – entre os seus ascendentes houve “numerosos pintores, músicos,
colecionadores de arte e cientistas” (WEBSTER, 1994, p.40) – Saint-Exupéry decidiu-se
pela Escola de Belas Artes. Ali matriculou-se no curso de Arquitetura mas... tudo em vão.
Preferiu passar o tempo nos cafés e bistrôs, a escrever e a desenhar caricaturas.
Hospedado no palacete de sua prima, Ivone de Lestrange, duquesa de Trévise,
nosso escritor travou conhecimento com a elite literata e, entre esses, foi apresentado a
Gaston Gallimard que se tornaria o editor responsável pela publicação das obras de Saint-
Exupéry.
Em 1921, foi convocado para o serviço militar obrigatório. Optou por alistar-se na
Força Aérea. Porém, seu destino foi a oficina mecânica onde prestaria serviços na
manutenção de aeronaves: voar não estava entre suas atividades.
Saint-Exupéry matriculou-se então num curso de pilotagem, pois tinha a intenção
de ganhar os céus como piloto. Sua mãe o acudiu financeiramente, para que pudesse
realizar esse sonho. Ansioso, decidiu decolar sozinho, após algumas aulas. Como não
havia ainda aprendido a aterrissar o avião, sobreveio seu primeiro acidente aéreo. Como
consequência, seus ferimentos foram leves mas passou duas semanas preso.
Em meados de 1921, nosso autor foi transferido para o Marrocos – à época, um
protetorado francês – e conquistou, finalmente, seu brevê de piloto. No ano seguinte, foi
transferido para Bourget, próximo à Paris e promovido a subtenente.
45

No início de 1923, sofreu um grave acidente de avião e foi hospitalizado. Sofreu


várias contusões e fraturou o crânio. A investigação responsabilizou Saint -Exupéry pelo
acidente, uma vez que ele não estava habilitado para pilotar o Hanriot HD -14. Em junho
do mesmo ano, a pedido de sua noiva, Louise de Vilmorin, deixou a força aérea para
tentar a vida civil.
No entanto, Loulou – como Louise era conhecida – decidiu casar-se com outro.
Desiludido, Saint-Exupéry foi trabalhar na Latécoère, a primeira empresa de
correio aéreo do mundo, e foi designado como comandante dos mensageiros aéreos no
norte de África. Posteriormente, a Latécoère tornou-se a conhecida Aéropostale. Os
aviões utilizados eram os que haviam sido usados na Primeira Grande Guerra. As cabines
eram abertas, os instrumentos de voo eram precários e a autonomia de voo era bastante
limitada. Mas foi ali, no deserto do Saara, que Saint-Ex – os colegas do correio aéreo o
chamavam assim – estabeleceu contato diplomático com os mouros e conquistou-lhes o
respeito ao negociar a libertação de pilotos aprisionados como reféns. Por esse feito
recebeu o título de Senhor das Areias entre os colegas de trabalho. Foi nessas
circunstâncias que escreveu o seu livro: Correio Sul, lançado em 1929.
Nesse ano, foi transferido para a América do Sul, onde a Companhia fazia os
trajetos entre Natal, Fortaleza, Salvador, Vitória, Rio de Janeiro, Santos, Florianópolis,
Porto Alegre, Montevidéu, Buenos Aires e Santiago, naquela época.
Dryzum expressa que ser piloto de avião naquela época exigia raciocínio
geográfico e matemático bastante acurados, como podemos perceber na passagem que
escreve sobre os pilotos como Saint-Exupéry, Mermoz e Guillaumet – esses dois últimos
foram seus companheiros na Aéropostale:

[...] Guiados pelas estrelas, eles precisam decifrar o oceano, a costa, a selva,
cada curva, cada montanha.
As constelações, em uma época em que as previsões de tempo são apenas
palpites, substituem as bússolas instáveis. Os heróis desafiam as ventanias e as
cordilheiras, que cobram um alto preço pela audácia: a própria vida. (DRYZUM,
2009, p.32-33)

Guillaumet sofreu um acidente na Cordilheira dos Andes e Saint-Exupéry registrou


a desventura do amigo em seu livro, Terra dos Homens, publicado em 1939 e agraciado
com o Grande Prêmio do Romance da Academia Francesa e com o “National Book
Award” - Prêmio Nacional do Livro / premiação estadunidense de escritores para escrito r
– na categoria Não-ficção.
46

O escritório da Compagnie Générale Aéropostale foi estabelecido em Buenos


Aires e, Saint-Exupéry era seu dirigente. Como tal, recebia convites para as festas nas
embaixadas e foi numa dessas festas que conheceu Consuelo Suncin Sandoval, uma bela
artista plástica e cantora salvadorenha a quem nosso autor convidou para voar e a pediu
em casamento, horas depois de vê-la pela primeira vez.
Durante a liquidação judicial da Aéropostale, Saint-Exupéry retornou à França.
Em abril de 1931, Consuelo e Saint-Exupéry casaram-se numa cerimônia religiosa
no castelo de Pierre de Agay. A noiva optou por um vestido preto, de renda, com um
buquê de flores vermelhas.
Foi nesse ano, também, que nosso autor publicou Voo Noturno. Esse romance foi
sucesso de crítica e recebeu o prêmio Femina. Em 1933, foi adaptado para o cinema, em
filme homônimo, pelo estúdio Metro Goldwyn Mayer. Foi sucesso de bilheteria nos
Estados Unidos e na França. Com o êxito cinematográfico, o autor ampliou sua
popularidade.
Em 1933, trabalhando novamente como piloto de testes da Latécoère, Saint -
Exupéry passou por novo acidente, dessa vez no mar, e quase morreu afogado.
Ao recuperar-se de mais esse acidente, foi contratado como conferencista pela Air
France e pelo jornal Paris-Soir, para uma série de reportagens. Viajou o mundo: onze mil
quilômetros fazendo conferências. Seu roteiro para Anne-Marie, uma produção
cinematográfica sobre uma jovem mulher que deseja aprender a pilotar foi adquirido por
Raymond Bernard e o filme foi lançado em 06 de março de 1936.
No final de 1934, interessado num novo prêmio para o piloto que fizesse a rota de
Paris a Saigon, nosso piloto e seu mecânico, André Prévot, caíram no deserto da Líbia.
Após três dias andando e seriamente desidratados, os dois homens foram encontrados por
beduínos. Foi nessa ocasião que Saint-Exupéry conheceu a raposa do deserto: uma fennec
e “[...] esse acontecimento se transformará, seis anos mais tarde, em um dos mais lindos
capítulos da literatura universal.” (DRYZUM, 2009, p.53). Foi num momento de luta pela
sobrevivência que nosso autor conseguiu observar a beleza e a esperteza desse animal e
de onde tiraria a inspiração para compor um dos personagens mais emblemáticos de “O
Pequeno Príncipe”.
Em 1936, atuou como jornalista cobrindo a Guerra Civil Espanhola para os jornais
“L’Intransigeant” e “Paris-Soir” e foi capturado pelos anarquistas, num contexto político
de divisão e desconfiança entre as forças antifascistas. Levado ao chefe da guerrilha,
47

Durutti, conheceu os meandros da revolução e começou aí a formar a sua opinião sobre


os regimes totalitários e seus desdobramentos para a vida das pessoas.
Em 1938, novo acidente aéreo teve como consequência um estado de coma por
oito dias, na Guatemala. Saint-Exupéry vai para Nova Iorque para se recuperar e escrever
o romance Terra dos Homens.
Ainda nesse ano, nosso autor fez uma visita às escolas militares na Alemanha.
Ficou horrorizado com o que viu. Convidado para um jantar com Göring, líder do Partido
Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães – NSDAP – e comandante-chefe da
Luftwaffe - a força aérea alemã - conseguiu se desvencilhar do convite e voltou à França
para avisar seus amigos comunistas e judeus sobre os perigos da ideologia nazista.
Em 2 de setembro de 1939 iniciou-se a Segunda Guerra Mundial.
Em 1940, Saint Exupéry alistou-se e foi nomeado capitão, apesar de não ser
considerado capacitado à pilotagem de aeronaves militares em razão das sequelas
deixadas por seus múltiplos ferimentos. Realizou missões de reconhecimento fotográfico
e foi condecorado com a Cruz de Guerra.
Após a queda da França e a assinatura do armistício pelo Marechal Pétain, visitou
sua família no Sul da França e partiu para os Estados Unidos. Ali, juntamente com outros
expatriados, procurou convencer os estadunidenses a entrarem na guerra em apoio aos
aliados.
Em 1942, em New York, publicou Piloto de Guerra, romance sobre a França
ocupada e, sobre essa publicação, uma de suas biógrafas afirma:

As resenhas literárias o reconhecem como a devida resposta ao Mein Kampf de


Hitler; uma meditação luminosa sobre o futuro de uma civilização que teria de
ressurgir do fascismo. É a mais eficiente campanha para a causa francesa nos
Estados Unidos, e influencia extremamente a opinião pública americana.
(DRYZUM, 2009, p.72).

Consuelo junta-se ao marido como refugiada em Nova Iorque. Sendo que


inicialmente decidiram morar separados, mas logo voltaram a morar juntos.
Saint-Exupéry passou a colaborar com o Ministério da Guerra, em Washington,
fornecendo detalhes geográficos da Costa do Mediterrâneo e do Atlântico que orientariam
o planejamento do desembarque das forças aliadas em território francês.
Temos que salientar que o período vivido em Nova Iorque foi muito profícuo, em
termos literários: em 1942 também escreveu e publicou Cartas a um Refém e, em 1943
48

redigiu “O Pequeno Príncipe”, que foi publicado simultaneamente em inglês e em


francês.
Essa obra veio a tornar-se o maior sucesso de Saint-Exupéry e, peculiarmente, foi
composta a partir da encomenda de seu editor estadunidense, como podemos observar na
menção de Vassallo:

[...] Um fato curioso é que, diferente de seus outros livros, “O Pequeno


Príncipe” foi um livro praticamente encomendado por seu editor americano,
pois Saint-Exupéry nunca tinha escrito para o público infantil.
O escritor levou tão a sério a ideia de seu editor que também desenhou as
ilustrações de seu texto, criando uma obra produzida inteiramente por ele.
(SAINT-EXUPÉRY, 2017, p.114)

E, ainda sobre a ideia que resultará na história que até hoje cativa leitores mundo
afora, Dryzum reproduz o momento em sua narração:

Entre um prato e outro, sem parar de conversar, Antoine rabisca na toalha o


recorrente menino de cabelos rebeldes e cachecol esvoaçante. O editor,
intrigado, pergunta-lhe o que está desenhando:
- Nada de mais, apenas o garoto que existe em meu coração.
- Por que não pode ser ele o herói de um livro infantil? Poderíamos la nça-lo no
Natal!
A resposta é um longo olhar, daqueles que atravessam as paredes, os desertos,
as montanhas e vão para dentro de si. (DRYZUM, 2009, p.75).

“O Pequeno Príncipe” foi lançado em 6 de abril de 1943. Em 13 de abril, nosso


piloto embarcou como voluntário acompanhando as tropas estadunidenses com destino à
Argélia.
Depois de muita insistência e burocracia, devido às limitações físicas decorrentes
dos seus acidentes anteriores e à sua idade – inimaginável para os desafios de pilotagem
àquela época -, Saint-Ex é reintegrado ao esquadrão 2/33 na Sardenha.
Em 30 de Julho de 1944 seus superiores decidem que Saint-Exupéry não poderia
mais pilotar o Lockheed P-38 Lightning: ele precisava da ajuda dos companheiros até
para vestir o uniforme. A missão de reconhecimento fotográfico com destino à Savoia do
dia 31 seria a última da qual participaria. Mas ele jamais retornou.
“Cidadela”, cuja redação iniciou-se em 1936 mas nunca foi terminado, foi
publicado em 1948.
49

2.1.1. Zé Perri?

Em Florianópolis, entre a Praia da Joaquina e a Praia do Morro das Pedras, há uma


faixa de areia de aproximadamente três quilômetros e meio chamada de Praia do
Campeche. Há um quilômetro e meio mar a dentro está localizada a Ilha do Campeche.
Essa ilha foi reconhecida pelo IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, como patrimônio arqueológico porque abriga a maior concentração de gravuras
rupestres e oficinas líticas do litoral brasileiro, inicialmente documentadas por Rohr em
1969 (IPHAN, 2019). Estima-se que alguns dos achados arqueológicos tenham mais de
4.500 anos. Além do sambaqui, no paraíso ilhéu encontra-se “um monólito com nove
metros de altura e um ponto magnético sinalizado com inscrição rupestre onde as bússolas
têm comportamento alterado” (IPHAN, 2019).
Mas, apesar dessas informações instigar nossa curiosidade geográfica,
entusiasticamente cultivada pelos trabalhos de campo proporcionados pelo curso de
Licenciatura em Geografia do Instituto Federal de São Paulo, a nossa referência ao
Campeche ocorre porque ali a Latécoère instalou um campo de pouso nos anos 1920.
Destinava-se ao reabastecimento de combustível dos aviões do correio que faziam a rota
de Paris a Buenos Aires, tantas vezes percorridas por Saint-Exupéry.
Fragata (2009) fala sobre as visitas que Saint-Exupéry, como diretor de linha, fazia
ao Campeche, para verificar as condições do campo de pouso e de como o apelido “Zé
Perri” foi atribuído a Saint-Exupéry:

- Bonjour! Meu nome é Exupéry.


- Zé Perri?
-Non. Exupéry.
- Zé Perri!
- Non, non. E-xu-pé-ry!
- Zé... Perri...
- Voilá! Que seja, então – e Exupéry deu uma gargalhada. (FRAGATA, 2009,
p.54)

Nosso autor estabeleceu amizade com os pescadores do vilarejo do Campeche e,


conta-se que gostava de pescar com eles. Sobre esse fato, Fragata relata que os moradores
locais atribuem aos franceses, companheiros de Saint-Exupéry na Latécoère, o nome do
50

arraial e que a palavra Campeche seria composta por camp, que significa arraial, mais
pêche, traduzida por pescaria. Em nossa pesquisa, verificamos que a descrição do Mapa
389 Santa Catarina, Ilha e Costa Catarinense de 1779 tem entre seus topônimos a Ilha do
Campeche (ULTRAMARINO, 2011, p.328), o que desmistifica a participação de nosso
autor e seus conterrâneos na escolha do nome que batiza esse lugar.
Nessa pesquisa, nos interessa particularmente os conhecimentos geográficos ,
empiricamente adquiridos, que permitiram aos pioneiros da aviação comercial guiar seus
aviões nas 11 escalas brasileiras: Natal, Recife, Maceió, Caravelas, Vitória, Rio de
Janeiro, Santos, Florianópolis, Porto Alegre e Pelotas, além da base de hidraviões em
Fernando de Noronha.
51

Figura 1 – Correio Aéreo - Rota da Aéropostale

Fonte: AMAB - Associação Memória da Aéropostale no Brasil.12

12
Disponível em: https://amab-zeperri.com/exposicoes/santos/. Acesso em: 10/06/2019.
52

2.2. O Contexto Histórico e Geográfico da produção de “O Pequeno Príncipe”

Saint-Exupéry, nascido em 1900, teve a vida marcada por duas Guerras Mundiais.
Na Primeira Grande Guerra sua mãe o enviou para um colégio interno em Friburgo, na
Suíça. Sua adolescência transcorreu na distância da família.
Sobre a primeira metade do século XX, Hobsbawm (1991) reconhece a
singularidade da escala das guerras travadas nesse período dentro da experiência humana .
Os conflitos iniciados na Europa nesse início de século abarcaram geopoliticamente
quase a totalidade dos Estados-Nação, distribuindo suas nefastas consequências, em
maior ou menor grau, sobre todos os países.
Paxton (2007) conclui que a ascensão do totalitarismo, fenômeno intrinsicamente
vinculado à Segunda Guerra Mundial, somente se concretizou devido ao contexto
histórico, sendo resultado de “um declínio moral agravado pelos deslocamentos da
Primeira Grande Guerra” (p. 21), e, nesse entendimento, faz coro ao conjunto de
historiadores que consideram ambas as contendas como a continuidade de questões
surgidas de disputas territoriais que se relacionavam e não foram resolvidas ao final do
primeiro conflito.
Após sua primeira participação no conflito entre 1940 e o Armistício que dividiu
a França sob domínio nazista, Saint-Exupéry foi viver no exílio. Mas sua vivência foi
colorida pela militância antifascista.
Tal posição pode ser constatada em sua produção literária que precede “O Pequeno
Príncipe”, pois Terra dos homens (1939), Piloto de guerra (1942) e Cartas a Um Refém
(1943) fizeram enorme sucesso tanto pelo talento literário de seu autor, quanto pela
temática e a forma como foi tratada. O interesse do grande público e da crítica pelas obras
acima citadas também foi despertado por sua atualidade diante da conjuntura geopolítica.
Nos limitaremos, no âmbito desse estudo, a exemplificar a vinculação entre “O
Pequeno Príncipe” e o contexto histórico apontando dois elementos emblemáticos do
livro objeto dessa monografia.
O primeiro elemento que destacamos está presente na dedicatória: “a Leon Werth
[...] meu amigo [que] vive na França, onde agora está passando fome e frio. Necessita
53

consolo.” (SAINT-EXUPERY, 2017, p.11). Nessa passagem, Saint-Exupéry se refere a


seu amigo cujos adjetivos vão qualificá-lo como objeto de ódio nazista:

Léon Werth (1878-1955) nasceu em uma família judia assimilada. Estudante


brilhante, decidiu abandonar tudo para se dedicar à vida boêmia, na qual brilhou
por seu espírito anticlerical, antiburguês e libertário. Em 1914, partiu para a
frente de batalha, onde permaneceu por 15 meses. Em 1919, publicou Clavel
soldat, romance pessimista e antibélico que causou escândalo. Em 1928,
Cochinchine (contra o colonialismo). Durante a ocupação, passou à
clandestinidade. Em 1931, conheceu Saint-Exupéry, um rapaz 22 anos mais
novo. (LINK, 2015, p.210)

O segundo elemento que despertou nossa atenção para o vínculo com a mensagem
historicamente datada de “O Pequeno Príncipe” advém da ilustração, da observação das
tantas estrelas amarelas que a aquarela de Saint-Exupéry perpetuou ao longo das páginas
- da ilustração da capa até à última página do livro.
A partir de 1941, na Alemanha de Hitler torna-se obrigatório o uso da braçadeira
com a Estrela de Davi na cor amarela para todos os judeus, adultos ou crianças. (DE
ALENCAR BARBOSA, 2016, p.4).
E, textualmente, Saint-Exupéry afirma sobre as estrelas:

- Todos os homens têm as estrelas – respondeu ele. – Mas as estrelas não são a
mesma coisa para todos os homens. Para alguns, os viajantes, as estrelas são
guias. Para outros não passam de coisinhas que brilham no céu. Para outros, os
sábios, são problemas. Para o homem de negócios eram riquezas. Mas essas
estrelas são todas silenciosas. Você.. apenas você.. terá estrelas como ninguém
nuca as teve...
- Que queres dizer tu?
- Em uma das estrelas estarei vivendo. Em uma delas estarei eu rindo. E, quando
à noite você olhar para o céu, será como se todas as estrelas rissem... Você...
apenas você... terá estrelas que podem rir! (SAINT-EXUPÉRY, 2017, p.101)

Do ponto de vista geográfico, nosso interesse em “O Pequeno Príncipe” vai para


além das disputas territoriais que marcaram a “Era da Catástrofe” (HOBSBAWM, 1995).
Nos atentamos para o potencial didático-pedagógico que essa leitura possibilita para o
ensino de Geografia, e como essa leitura valida a hipótese que originou o presente
trabalho.
54

2.3. Mário Quintana, o tradutor, e a edição de 2017

Do que eu ia escrever até me esqueço...


Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
(Mário Quintana)

Quando começamos a esboçar o projeto que deu origem a esse estudo, deparamos
com uma dúvida: dentre todas as traduções e edições de “O Pequeno Príncipe”
disponíveis no mercado, qual seria a mais adequada para o nosso trabalho?
Tendo em vista que essa monografia pretende resultar numa proposta
interdisciplinar e considerando que Suzuki (2006) indica como as análises geográficas
poderão ser adensadas com recursos de descrição e caracterização trabalhados nas obras
literária, optamos pela edição traduzida por Mário Quintana (1906-1994).
Desde 1934, Quintana publicou traduções de obras de autoria de Virgínia Wolf,
Guy de Maupassant, André Gide, Aldous Huxley, Voltaire, Honoré de Balzac e Marcel
Proust, entre outros (SAINT-EXUPÉRY, 2017, p.127). Sua produção própria também foi
reconhecida por crítica e público. A contribuição de Quintana no panorama literário
brasileiro é de inestimável expressão:

Quintana receberá numerosos prêmios e distinções até o final de sua vida,


notadamente, em 1966 o Prêmio Fernando Chinaglia de melhor livro do ano por
sua Antologia Poética, o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre, a
condecoração do Governo do Rio Grande do Sul (medalha Negrinho do
Pastoreio), o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo
conjunto da obra e em 1982 títulos de Doutor Honoris Causa, concedidos pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Unicamp e a Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Uma das mais importantes homenagens ocorreu em
1983, quando o Hotel Majestic, onde o poeta morou de 1968 a 1980, passou a
chamar-se Casa de Cultura Mario Quintana. As homenagens ao poeta não
cessaram até e depois de sua morte, aos 88 anos, em 5 de maio de 1994. (CASA
DE CULTURA MÁRIO QUINTANA, 2019)

O currículo literato de Quintana, tão reconhecido por suas traduções, aliada à sua
disposição em escrever para o público infantil, são os fatores que consubstanciaram a
seleção da edição de 2017:

É indiscutível que uma adaptação bem-feita é importante para essa modalidade


de literatura, a fim de adequá-la ao leitor mirim, ainda mais quando se considera
que a adaptação é um dos recursos utilizados com a finalidade de reduzir a
assimetria ente os polos do processo comunicativo. Em considerando a literatura
infantil como um processo comunicativo, constata-se a imensa distância que
separa produtor e recebedor da mensagem. De um lado, está o adulto, que
55

escreve, edita, vende e compra obras, imbuído de convicções sobre o que é


melhor para a criança, mas sem muita consciência de suas reais necessidades;
de outro, a criança, consumidor final, portanto, última etapa da cadeia produtiva,
sem a experiência e as vivências do adulto e, além disso, precisando organizar
seu caos interior. (ARENDT, 2006, p.77)

Ainda sobre a edição selecionada e publicada apenas em 2017, a ilustração do


próprio Saint-Exupéry foi mantida, com a sutileza da coloração da aquarela e com
desenhos que muitas vezes mais parecem um esboço.
Antes da dedicatória, a Editora Melhoramentos traz um breve histórico, intitulado
“O Pequeno Príncipe, Uma Nova Tradução. Da gaveta às livrarias: a trajetória da tradução
do poeta” (SAINT-EXUPÉRY, 2017. p7).
Nesse texto, é trazido ao nosso conhecimento que Quintana submeteu a sua
tradução à Editora Melhoramentos na década de 1940, porém, como os direitos autorais
haviam sido adquiridos pela Editora Agir (1945), não foi publicada naquela época. Em
2015 a obra entrou em domínio público, por isso a Melhoramentos e a Fundação Mário
Quintana, decidiram por lançar a edição aqui selecionada.
Ainda sobre a tradução, resta-nos explicar o porquê de trabalharmos com essa
versão, em detrimento do original em francês.
Em princípio, esclarecemos que a tradução é vista por nós como obra autônoma.
Nesse sentido, Benjamin (2011) trata “[...] como a tradução é uma forma própria, também
a tarefa do tradutor pode ser entendida como uma tarefa própria, podendo ser diferenciada
com precisão da do escritor.” (p.112). Na edição analisada, sobre esse assunto também
podemos ver:

Em qualquer tradução, o responsável por ela assume provisoriamente a função


de autor. Carrega nos ombros a responsabilidade de produzir um texto novo, ou
seja, a obrigação de ser ele mesmo autor; porém autor na sua língua materna.
Isto é bastante complicado. Já se inventou, até, num ditado para denunciar a
quase impossibilidade de tal substituição: “tradutor-traidor”.” (TREVISAN,
2017, p.120)

Lembrando que nosso propósito está em compreender como os elementos


geográficos presentes em “O Pequeno Príncipe” podem ser trabalhados na escola para
contribuírem no processo de ensino e aprendizagem e construção dos saberes geográficos
na segunda etapa do Ensino Fundamental, nosso trabalho focou-se apenas na edição
selecionada, por mais méritos que outras versões possam acumular.
56

2.4. Descrição de “O Pequeno Príncipe”

O narrador começa por falar dos acontecimentos de sua infância: “uma esplêndida
estampa em um livro intitulado Verdadeiras Histórias da Natureza, à cerca da floresta
primitiva” (Saint-Exupéry, 2017, p.13).
O fascínio exercido pelas descobertas proporcionadas pelo livro serve de incentivo
para seu primeiro desenho.
Tratava-se de uma cobra do tipo jiboia – boa na tradução de Quintana - que havia
engolido um elefante inteiro.
Embora muito satisfeito com o resultado, o seu desenho não é compreendido. O
narrador é dissuadido da ideia de produzir desenhos e é aconselhado a dedicar-se a coisas
mais importantes como geografia, história, aritmética e gramática.
Desse modo, escolhe pilotar aviões.
Já adulto, é vitimado por um acidente enquanto sobrevoava o deserto do Saara.
No amanhecer do dia seguinte à queda de seu avião, é acordado por um garotinho
que lhe pede para desenhar um cordeirinho. Assustado, o narrador pergunta -lhe o que
está fazendo ali, mas o garoto insiste no pedido pelo desenho sem responder.
Após algumas tentativas e rejeições de desenhos que não atendiam ao pedido –
cordeirinho pesteado, carneiro adulto e com chifres ou muito velho – o narrador desenha
uma caixa e oferece a explicação: “- Isso é apenas a caixa dele. O cordeiro que o
amiguinho encomendou está aí dentro” (Saint-Exupéry, 2017, p.20).
Para sua surpresa o garoto aceitou e ficou felicíssimo com o cordeiro dentro da
caixa, rapidamente afeiçoando-se ao animal.
O garotinho - ao qual nos referiremos daqui por diante pela alcunha de Pequeno
Príncipe - deixa escapar, enigmaticamente que vem de um pequeno planeta. O narrador
supõe que o planetinha seja o asteroide B-612.
Dia a dia, a amizade entre o narrador - que chamaremos de Piloto - e o Pequeno
Príncipe vai crescendo. O Piloto descobre, numa conversa com seu novo amigo, que o
cordeirinho teria a função de comer os pequenos arbustos que nasciam, em especial os
baobás, cujas raízes ameaçavam a continuidade de seu pequeno planeta.
57

Os amigos conversam sobre crepúsculos, tristezas e sobre a anatomia das flores.


Ciente da precariedade da sobrevida dos dois no deserto e com pouca provisão de
água, o Piloto passava o dia tentando consertar a aeronave o mais rápido possível.
O Pequeno Príncipe aos poucos revela que seu planeta de origem é pouco maior
que uma casa. Lá havia três vulcões, um deles já inativo, e uma bela Rosa que surge num
nascer do sol. Vaidosa e orgulhosa, a complexa Rosa pede ao Pequeno Príncipe uma
redoma para protegê-la do vento.
Aborrecido com a sua Rosa e suas chantagens emocionais, o Pequeno Príncipe
decidiu partir por numa migração de pássaros selvagens, mesmo após a Rosa confessar-
lhe o seu amor.
“A fim de aumentar seus conhecimentos” (Saint-Exupéry, 2017, p.48), o Pequeno
Príncipe resolve visitar um conjunto de asteroides próximos ao seu planetinha. Assim,
passa por seis planetas até chegar à Terra. Vai conhecendo em cada planeta visitado, um
habitante emblemático: um rei, um homem importante, um beberrão, um homem de
negócios, um acendedor de lampião, um geógrafo[...]
Nessa trajetória, o Pequeno Príncipe vai acumulando conhecimentos obtidos
através de seus diálogos e de suas observações realizadas nos lugares pelos quais vai
passando.
O sétimo planeta é a Terra. Num deserto da África, o Pequeno Príncipe encontrou
uma Cobra. Os dois dialogam e o Pequeno Príncipe esclarece que foi parar ali porque teve
diferenças com uma flor. A Cobra oferece ajuda para o caso dele sentir muita saudade de
seu planeta e desejar voltar.
O garotinho percorre alguns lugares até chegar a uma estrada que contém “um
jardim todo aberto em rosas” (Saint-Exupéry, 2017, p.77). Ao constatar que a sua Rosa
era igual a tantas outras, que não “era a única de sua espécie em todo o Universo” (Saint -
Exupéry, 2017, p.78), o garotinho chorou, desiludido.
Nesse ponto, o Pequeno Príncipe encontra a Raposa – ou é ela que o encontra?
Essa personagem oferece ao garotinho, através do diálogo, a receita para
conquistar uma amizade e pede para ser domesticada, aos poucos, com paciência. A
Raposa revela ao Pequeno Príncipe que a sua Rosa é única em todo o Universo. Ela se
distingue das demais rosas, embora sejam iguais na aparência, sua essência é singular,
porque ambos construíram uma história juntos: “- É o tempo que gastaste com a tua Rosa
58

que assim a torna tão importante” [...] “somente com o coração é que se pode ver direito;
o que é essencial é invisível para os olhos” (Saint-Exupéry, 2017, p.85).
Partindo, o Pequeno Príncipe conhece o guarda-chaves, responsável pelo
embarque de passageiros no trem, e um comerciante que vendia pílulas para matar a sede.
Ambos demonstram a preocupação com a passagem do tempo.
No oitavo dia após o acidente, o Piloto e o Pequeno Príncipe partiram em busca de
um poço. Sedentos, ambos caminham até o anoitecer, quando o menino adormec e e o
Piloto o carrega. No amanhecer do dia seguinte, encontram o poço.
Após saciarem a sede, o garotinho convence o Piloto a voltar para consertar a
aeronave. Fazia um ano que o Pequeno Príncipe havia chegado à Terra e, saudoso de seu
planeta, resolveu retornar.
O Piloto compreendeu, por fim, que o garotinho havia decidido recorrer à Cobra
para viajar de volta ao seu planetinha. Apesar dos argumentos do amigo, o Pequeno
Príncipe justificou sua decisão afirmando que sua flor precisava dele para proteg ê-la.
Despediu-se do Piloto e caminhou resoluto para o destino que havia escolhido. O Piloto
deduz que seu amigo foi picado pela cobra em silêncio e tombou na areia. Porém, o Piloto
afirma que sabe que o Pequeno Príncipe retornou ao seu planeta porque não encont rou o
corpo na areia, no dia seguinte.
Ao voltar para seus companheiros, resgatado, o Piloto esconde a tristeza da
ausência de seu pequeno amigo, alegando cansaço.
O Piloto encerra sua narrativa com a apreciação do desenho de uma paisagem, “a
mais querida e a mais triste paisagem do mundo” (Saint-Exupéry, 2017, p.108) mas
conserva a esperança de reencontrar o amigo de cabelos de ouro e apela aos viajantes do
deserto africano:
Esperem algum tempo, exatamente debaixo da estrela. Depois, se aparecer uma
criaturinha que ri, que tem cabelos de ouro e que se recusa a responder
perguntas, já saberão quem é. Se isso acontecer, queiram tranquilizar -me logo.
Mandem-me dizer que ele voltou. (Saint-Exupéry, 2017, p.108).
59

2.4.1. As Personagens

A história de “O Pequeno Príncipe” é narrada em primeira pessoa. O Piloto é o


narrador e participa das situações e dos fatos apresentados no desenrolar das situações
descritas no livro.
O Narrador divide o protagonismo com a personagem do Pequeno Príncipe e
caracteriza-se por ser um adulto que expressa um intenso saudosismo de seu tempo de
infância. A sua percepção do Pequeno Príncipe é mediada pelo desejo de resgatar o
espírito da infância, pois o Piloto-Narrador expressa com clareza suas críticas à forma
como a “gente grande” apreende o mundo e às outras pessoas. Essas críticas são
extensíveis a si mesmo, o que podemos observar quando afirma que “Talvez eu seja um
pouco como a gente grande. Pois tive de crescer” (SAINT-EXUPÉRY, 2017, p.27). Por
trazer características do próprio Saint-Exupéry, que também foi piloto de aeronaves e
vítima de vários acidentes aéreos durante sua vida, podemos dizer que essa personagem
tem traços autobiográficos.
Já o Pequeno Príncipe é um garotinho, cuja idade não é definida na história. Ele
parte do seu planetinha para realizar uma viagem por outros planetas e culmina com sua
chegada à Terra. Ali, conhece o piloto que narra a sua história. É o personagem que
protagoniza o enredo e toda a obra concentra-se em discorrer sobre sua jornada e os
conhecimentos que ele acumula durante ela. Apresenta como características a
responsabilidade, a inocência e a curiosidade. O que motiva sua viagem é o desagrado
pelo rumo que seu relacionamento com a Rosa está tomando e sua busca para entender a
essência das coisas.
A Rosa é a personagem a quem o Pequeno Príncipe dedica seu amor e cuidado. Ela
apresenta características contraditórias e complexas, pois, apesar de ser uma “faceira
criatura” (SAINT-EXUPÉRY, 2017, p.27), única, maravilhosa e distribuir sua beleza e
perfume pelo ambiente, ela o perturba porque “começou a atormentá-lo com a sua
vaidade” (ibidem, p.27), e demonstra-se melodramática e exigente. Incapaz de lidar com
a complexidade da Rosa, o Pequeno Príncipe decide fugir dela, deixando seu planeta.
A Raposa é um animal selvagem que pede ao Pequeno Príncipe que a domestique.
Cativar a sua amizade é uma tarefa que leva tempo, proximidade e paciência. Contudo,
ao domesticar a Raposa, o Pequeno Príncipe estabelece uma relação de amizade que pode
60

transformar o sentido da vida. A generosidade da Raposa revela ao Pequeno Príncipe os


elementos que permitem compreensão da natureza de seu amor pela Rosa.
A Cobra é a primeira personagem com a qual o Pequeno Príncipe estabelece
contato quando chega ao planeta a Terra. A Cobra diz-se comovida com a inocência do
Pequeno Príncipe e oferece-se para ajudá-lo a retornar ao seu planeta, se ele sentir muita
saudade. Ela sempre fala por enigmas e afirma ser mais poderosa que o dedo de um rei,
embora tenha uma aparência frágil e uma presença fugidia.
61

CAPÍTULO 3 – Um piloto de guerra e sua contribuição para o


ensino e aprendizagem de Geografia

Tenho voado um bocado sobre todas as


partes do mundo; e é verdade que a
geografia me tem sido muito útil.
(Saint-Exupéry)

Ao realizarmos a leitura sistemática de O Pequeno Príncipe, catalogamos os


trechos que descrevem determinadas situações com as quais podemos ver relação com o
Ensino de Geografia. Observamos que em muitos momentos da leitura dessa obra torna
factível aproximar a Geografia, enquanto disciplina que os professores ensinam, da
Geografia, enquanto a vivência cultural dos alunos no ambiente escolar. Ou seja,
buscamos identificar a geograficidade do livro ao analisar os fatos narrativos e as
terminologias geográficas ali presentes.
Selecionamos os trechos em que foi possível identificar, dentre os assuntos
narrados, as temáticas relacionadas ao ensino e aprendizagem de Geografia e os reunimos
no Quadro 3 – Temáticas Geográficas em “O Pequeno Príncipe”, o qual reproduzimos a
seguir:
62

Quadro 3 – Temáticas Geográficas em “O Pequeno Príncipe”

Assunto Referenciado Temática Geográfica


Planeta (p.21), Terra, Júpiter, Marte, Vênus (p.24), Asteroides
Sistema Solar
(p.48)
Ditador turco (p.25), astrônomo turco (p.25). Organização sócio-política
Cultura, respeito à diversidade,
[...] Obrigando todos [...] A se vestir à moda europeia.
eurocentrismo
Eu vi uma casa linda, toda de tijolos cor-de-rosa... Eu vi uma
casa que custa $ 400.000,00 (p.26); as estrelas, para o Pequeno Pertencimento (lugar), identidade
Príncipe (p.90) ; a paisagem do deserto para o narrador (p.108)
Biomas, adaptação ao meio,
A catástrofe dos baobás (p.28), desertos (p.74, p.90)
biogeografia
[...] o cordeirinho come pequenos arbustos (p.28). Mas, quando é Agroecologia, uso de agroquímicos,
uma planta daninha, devemos destruí-la o mais cedo poluição ambiental, equilíbrio
possível.(p.29) ambiental
Alastra-se sobre o planeta inteiro. Atravessa-o com suas raízes
Intemperismo biológico
(p.30).
Todos sabem que quando é meio-dia nos Estados Unidos, o Sol, Movimento aparente do sol, fusos
está deitando na França. (p.34) horários
Escala geográfica, formato da Terra,
[...] eu vi o crepúsculo quarenta e quatro vezes! (p.34)
movimento aparente do Sol
Para que servem os espinhos? (p.35) Biomas, biogeografia
[...] ele se aproveitara da migração de um bando de pássaros Estações do ano, Movimentos de
selvagens (p.44). De ano em ano, o planeta vem girando mais translação e de rotação, biomas,
rapidamente (p.62) movimentos migratórios
Limpou cuidadosamente os vulcões ativos[...] As erupções Vulcanismo, Geologia, formação do
vulcânicas são como incêndios nas lareiras (p.44) planeta Terra.
Divisão internacional do trabalho,
Planetas do rei, do homem importante, do beberrão, homem de
especialização produtiva,
negócios, do acendedor de lampiões, do geógrafo [...].
territorialidades.
Estrutura de poder no estado-nação
Era um monarca absoluto (p.49)
moderno; regimes totalitários
- E que lhe adianta tornar-se rico? Sistema de produção capitalista
- É que assim poderei comprar mais estrelas, se outras forem (sobreacumulação), descobertas
descobertas. (p.59) astronômicas.
Capítulo XV - Geógrafo (p.65-69) Sistematização científica
Capítulo XVI - Planeta Terra (p.70) Cartografia, escala geográfica,
Montanha tão alta [...] Picos de rochas, afilados como agulhas formas e agentes modeladores do
(p.76) Os homens ocupam um lugar muito diminuto na face da relevo, rochas, paisagens, meio
Terra. (p.71), nesta terra feita de granito (p.73) técnico-científico-informacional
Erosão eólica, agentes modeladores
O vento os vai levando sempre para adiante (p.74)
do relevo, paisagem.
Revolução industrial, sistemas de
Compram tudo já pronto nas lojas (p.82). produção capitalista, consumo
Vendedor de pílulas para matar a sede (p.88) responsável, meio técnico-
- Como estão com pressa! (p.86) científico-informacional; tempo da
sociedade e tempo da natureza
Capítulo XXII – Guarda chaves (p.86-87) Transportes ferroviários.

Fonte: Elaborado pela Autora a partir de SAINT-EXUPÉRY (2017)


63

Diante dessa sistematização, passaremos a tratar a seguir das temáticas geográficas


identificadas em “O Pequeno Príncipe” e compará-las aos conteúdos sugeridos pelos
PCNs para o Terceiro Ciclo. Desse pensar a Geografia por meio da Literatura, surgiram
breves proposições para a prática em sala de aula. A abordagem sugerida pode variar de
acordo com as características de cada instituição e cada turma. O professor, de acordo
com sua avaliação e experiência, poderá adaptar as práticas sugeridas a fim de inseri-las,
ou não, em sala de aula com o intuito de produzir um processo de ensino e aprendizagem
significativos para os sujeitos da educação.

3.1. Eixo 1 - A Geografia como uma possibilidade de leitura e compreensão do


mundo

Os temas reunidos sob o Eixo 1 são a Geografia como uma possibilidade de leitura
e compreensão do mundo; a construção do espaço: os territórios e os lugares (o tempo da
sociedade e o tempo da natureza); a conquista do lugar como conquista da cidadania.
Dentro desse eixo temático, vemos a possibilidade de criar uma situação de ensino
e aprendizagem a partir dos fatos narrados no capítulo XIX, por exemplo, em que o
personagem principal sobe uma montanha na expectativa de ver toda a Terra e seus
habitantes, mas, ao não avistar as pessoas e observar somente picos rochosos, o
personagem conclui que a Terra é um planeta estranho ( SAINT-EXUPÉRY, 2017, p.76).
A partir da leitura desse trecho, o professor pode indagar como esse personagem apreende
e descreve uma determinada porção do espaço, abarcada pelos seus sentidos, e solicitar
aos seus alunos que registrem suas conclusões. Para realizar essa ação, o estudante estará
desenvolvendo operações e processos mentais atrelados à competência leitora e à
produção de texto apontadas por Castellar e Vilhena (2010), como identificar, isolar,
reproduzir, decodificar e ordenar ideias.
Sabendo-se que essa descrição é uma das formas de representação do espaço
geográfico, vemos a viabilidade de começar a construir, em conjunto com a turma, o
conceito de paisagem e buscar identificar quais os elementos que a compõe, fazendo sua
leitura, mobilizando-se a capacidade do aluno de ordenar ideias, levantar hipóteses e
64

verifica-las. Pode-se explorar ainda, apropriando-se da definição de montanha e de


cordilheira sugeridas no texto, a classificação das formas de relevo.
Tomando-se uma representação topográfica, como por exemplo um mapa ou uma
maquete, pode-se estimular os alunos a deduzirem quais as localidades que apresentam
características semelhantes às que o Pequeno Príncipe se refere, montanhosas e seca. Na
análise dessa representação, o exercício proposto pode trabalhar com a comparação, a
memorização e a replicação de conhecimentos.
Aprofundando-se nessa leitura, os estudantes podem ser estimulados a pesquisar
quais os agentes modeladores do relevo atuam na produção dessa paisagem e investigar
como o clima pode ser caracterizado nesses lugares. Assim sendo, vemos a mobilização
de processos mentais como levantar dados e fazer escolhas a partir da comparação do que
é pesquisado. Em consonância com essa proposta, podemos retomar o capítulo IX, e
propor a análise da paisagem do asteroide B-612, com seus vulcões, sua rosa e seus
baobás a brotar, e qual o papel do Pequeno Príncipe nessa segunda paisagem analisada,
inserindo-se assim a discussão sobre a ação dos seres humanos sobre paisagens provocam
modificações e como os objetos sociais podem estruturar as paisagens. É uma
oportunidade de propor que os estudantes façam inferências na diferenciação entre os
dois espaços descritos nos capítulos IX e XIX, a partir da caracterização das paisagens,
das formas de relevo e da espacialização dos objetos nos reveladas no texto sobre
ambientes dispares, com o objetivo de desenvolver competências como ligar um fato a
outro e transpor conhecimentos.
Ao focalizar nas informações sobre os vulcões anteriormente mencionados, torna-
se oportuno investigar os agentes endógenos de formação do relevo e, por conseguinte,
abordar a estrutura geológica da Terra. Nesse esforço de decompor o espaço geográfico
em elementos e buscar reintegrar esses elementos para analisar como se estabelecem as
relações espaciais, vemos uma possibilidade de construir-se uma aprendizagem
significativa da Geografia escolar, onde a centralidade do processo está situada na atuação
do aluno. A ação do vento sobre os homens, sob a ótica da flor do deserto ( SAINT-
EXUPÉRY , 2017, p.74), pode servir como disparador para estudar-se a erosão eólica e
prosseguir-se na investigação dos demais agentes modeladores do relevo na configuração
das paisagens.
Uma outra situação de ensino e aprendizagem pode ser organizada sob o Eixo 1
do Terceiro Ciclo, a partir do itinerário percorrido pelo personagem principal em sua
65

viagem até a Terra. Cada um dos planetas visitados tem características e habitantes
diferentes entre si. É verossímil estabelecer uma analogia entre planetas – como
apresentados no livro – e Estados Nacionais. Nesse exercício, vemos elementos que
apontam para a delinear estratégias que levem à construção dos conceitos de território e
lugar, por comparação e diferenciação, e novamente, voltamos a trabalhar com o
desenvolvimento e operacionalização de processos mentais organizados no Quadro 2 –
Operação e processos mentais desenvolvidos no processo de construção da Competência
Leitora.
Considerando-se ainda as especificidades dos espaços apontados na sequência dos
Capítulos X a XVI de “O Pequeno Príncipe”, pode-se explorar temáticas relacionadas às
transformações do espaço geográfico derivadas da Revolução Industrial e do sistema de
produção capitalista, como especialização produtiva, divisão internacional do trabalho e
sobreacumulação. Tais temas podem ser retomados na leitura do Capítulo XXIII, que trata
do vendedor de pílulas para matar a sede, cujo objetivo é economizar tempo, e as
considerações do personagem principal, que rebate o vendedor afirmando que preferia
usar o tempo para encontrar uma fonte de água fresca ( SAINT-EXUPÉRY, 2017, p.88).
Vemos nesse trecho, ser possível tratar também de temas como o tempo social e tempo
da natureza. Levantar o assunto do consumo responsável, a partir da leitura desses
capítulos também é um diálogo possível com os temas transversais indicados nos PCNs
(1998a).

3.2. Eixo 2 - A Natureza e sua importância para o homem

Sob o Eixo 2 do Terceiro Ciclo dos PCNs, agrupam-se os temas sobre o estudo da
natureza e sua importância para o homem; os fenômenos naturais, sua regularidade e
possibilidade de previsão pelo homem; e a natureza e as questões socioambientais.
Nesse âmbito, enxergamos que algumas possibilidades podem ser contempladas
em conjunto com o que já delineamos no item anterior, como as relações com o clima e
com o relevo.
Pensando-se na regularidade dos fenômenos naturais, transcreveremos a seguir um
diálogo, um trecho do capítulo VI:
66

- Eu gosto muito do crepúsculo. Venha, vamos ver um crepúsculo ago ra.


- Mas temos de esperar – disse eu.
- Esperar? Esperar o quê?
- O crepúsculo. Devemos esperar até que seja tempo.
No primeiro instante, pareceste muito espantado. Depois, sorriste par ti mesmo
e disseste:
- Sempre me parece que estou em casa!
(SAINT-EXUPÉRY, 2017, p.33-34)

Ao lado da passagem relatada no Capítulo XXVI em que o Pequeno Príncipe


reflete: “Esta noite, fará um ano... A minha estrela, então, ficará exatamente acima do
lugar em que eu desci à Terra, no ano passado...” (ibidem, p.33-34), colocamos em
perspectiva o potencial de aproveitamento em aula quando relacionados à regularidade e
previsibilidade de fenômenos naturais. Podemos ainda afirmar que tais trechos se
comunicam diretamente com assuntos derivados, como os movimentos de corpos
terrestres e fusos horários, como exemplo de abordagem do estudo da astronomia a partir
dessa obra literária.
Não obstante, podemos alinhar os pontos no enredo em que o personagem principal
estabelece diálogos com a rosa ou as rosas, com a raposa e com a cobra como temas que
podem gerar discussões interessantes sobre o meio natural.
Analisar também a migração sazonal de pássaros (ibidem, p.44), recurso que o
Pequeno Príncipe usa para fugir do asteroide B-612, é uma oportunidade de debater as
interações entre litosfera, atmosfera, hidrosfera e biosfera.
O trajeto que os personagens percorrem no deserto em busca de água pode ser a
base de reflexão sobre questões socioambientais bastante abrangentes como a
espacialização das sociedades humanas nas proximidades dos cursos hídricos numa
perspectiva histórico-geográfica, ou a apropriação desigual de recursos ambientais.

3.3. Eixo 3 – O campo e a cidade como formações socioespaciais

Os PCNs que versam sobre a Geografia escolar no EF-II (1998a), consideram no


Eixo 3 – O campo e a cidade como formações socioespaciais, a focalização no estudo do
espaço como acumulação de tempos desiguais; a modernização capitalista e a redefinição
nas relações entre o campo e a cidade; o papel do Estado e das classes sociais e a sociedade
67

urbano-industrial brasileira e a cultura e o consumo: (em) uma nova interação entre o


campo e a cidade.
Vemos, nessa seara, os atributos que o Capítulo XIV podem revelar elementos
sobre a percepção do tempo na moderna sociedade capitalista, no que trata do trabalho
executado pelo acendedor de lampiões. A execução mecânica das tarefas incumbidas aos
trabalhadores, fato esse que podemos constatar também presente na caracterização que se
faz do guarda-chaves, no Capítulo XXII, é uma discussão disparadora de uma situação de
aprendizagem com o objetivo de refletir sobre como os sujeitos sociais se relacionam com
o tempo na contemporaneidade. A partir dessas reflexões, é possível estabelecer-se uma
linha que leve ao entendimento sobre a disposição espacial dos objetos na cidade e no
campo e como essa disposição espacial correlaciona-se com vida das pessoas, sua
organização em sociedade e o modo de produção capitalista, levando-se em conta que a
dinâmica de formação socioespacial é um processo geográfico e histórico.
Discutir a divisão social do trabalho e seu papel na formação das classes sociais
também é uma proposição que pode derivar desse tema. Vemos que percorrer uma
trajetória até os Capítulo IV, X, XIII e XV, onde são retratados o astrônomo turco, o rei,
o homem de negócios e o geógrafo, respectivamente, pode nos municiar de elementos
significativos para tratar de quesitos como as relações sociais também podem revelar
relações de poder sobre o espaço geográfico. Personagens como o rei e o ditador turco
podem ser considerados numa analogia com o Estado, e, nesse viés, pode-se abordar a
sociedade é perpassada pelas relações de poder e dominação. Lembramos que o professor
deve ter em perspectiva como e o quanto esses assuntos podem ser aprofundados para os
alunos nessa etapa escolar.
Os regimes totalitários também se apresentam como passíveis de abordagem, sob
o ponto de vista da análise do rei e do ditador turco e, em algumas das interpretações de
“O Pequeno Príncipe” é possível que vislumbrar aproximações com os baobás:

- Antes de se tornarem tão grandes, os baobás começam por ser pequenos.


[...]
Mas as sementes, a gente não as pode ver. Dormem profundamente na escuridão
do interior da terra, até que algumas dentre elas sentem desejos de acordar.
Então, a pequenina semente espreguiça-se, estira-se e começa – timidamente a
princípio – a alongar um encantador brotinho, inofensivamente erguido para o
Sol. [...] O baobá é uma coisa que nunca mais a gente se pode livrar, se não o
faz enquanto é tempo. Alastra-se sobre um planeta inteiro. Atravessa-o com suas
raízes. E se o planeta é muito pequeno e os baobás são muitos, eles podem
arrebentá-los em mil pedaços... (SAINT-EXUPÉRY, 2017, pp.29-30).
68

Tais interpretações derivam-se da contextualização do livro, que foi escrito


durante a Segunda Guerra Mundial e da atuação de Saint-Exupéry como piloto nesse
conflito, como detalhamos no item 2.2 desse trabalho.

3.4. Eixo 4 - A cartografia como instrumento na aproximação dos lugares e do


mundo

Uma observação crítica que se pode fazer à composição de “O Pequeno Príncipe”


é que o livro carece de representações cartográficas e que, para o trabalho didático e
pedagógico, os elementos geográficos não prescindem de informações sobre orientação
espacial e coordenadas, astronômicas ou geográficas.
Nesse sentido, para adequar-se ao que está previsto nos PCNs em relação ao Eixo
4 - A cartografia como instrumento na aproximação dos lugares e do mundo, entendemos
que a essa obra literária nos remete muito mais a estudos qualitativos dos espaços
apresentados do que elementos que podem ser quantitativamente mensurados, como é de
praxe encontrar-se em representações cartográficas.
Vemos como a descrição da dimensão dos espaços e objetos, bem como da
distância entre eles, não é caracterizada objetivamente. Saint-Exupéry explicita sua recusa
em exprimir-se a partir de valores numéricos, como podemos observar no Capítulo IV:

Se forneci os dados precedentes a respeito do asteroide e comuniquei o seu


número, foi simplesmente em atenção à gente grande e ao seu modo de ser. Os
grandes gostam de algarismos. Quando você lhes diz que arranjou um novo
amiguinho eles nunca fazem perguntas sobre coisas essenciais. Nunca indagam:
“Como é a voz dele? Quais são os brinquedos de que ele mais gosta? Ele não
coleciona borboletas?”. Em vez disso, perguntam “Que idade ele tem? Quantos
irmãos ele tem? Quanto pesa? Qual é a fortuna do pai?” Somente por t ais
algarismo é que se podem ficar sabendo alguma coisa a respeito dele. ( SAINT-
EXUPÉRY, 2017, p.25-26)

O autor utiliza-se de predicados subjetivos para referir-se às distâncias e às


proporções. Como exemplo, transcrevemos adiante frases de Saint-Exupéry (2017)
recuperadas nos trechos “A mil léguas de qualquer habitação humana” (p.16) ou “É
verdade que naquilo [o aeroplano] você não poderia ter vindo de muito longe (p.22) , e
ainda “[...] o planeta de que viera o pequeno príncipe era pouco maior que uma casa!
(p.24). Essas passagens também demonstram que não houve preocupação do autor em
69

estabelecer indicações que possibilitem conhecer a posição relativa entre espaços e


objetos de que trata o texto.
Apesar dessas constatações, é possível pensar, a partir da leitura do livro e da
imaginação dos alunos, que o professor proponha atividades de elaboração de mapas ou
maquetes que representem trechos selecionados de “O Pequeno Príncipe”. Essas
atividades são habitualmente utilizadas na fase de alfabetização cartográfica, conforme
proposto por Castellar e Vilhena (2010) e Pontuschka, Paganelli, e Cacete (2009).
Atividades como as que aqui são sugeridas são consideradas significativas para o ensino
e aprendizagem de Geografia, na concepção dessas autoras.
70

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um clássico é um livro que nunca terminou


de dizer aquilo que tinha para dizer.
(Ítalo Calvino)

O objetivo desse trabalho foi investigar se a geograficidade estava presente em “O


Pequeno Príncipe” e se esse livro poderia contribuir como recurso didático no processo
de ensino e aprendizagem com vistas à construção de uma aprendizagem significativa da
disciplina geográfica para os alunos da segunda etapa do Ensino Fundamental.
As proposições para trabalhar em sala de aula com elementos geográficos
presentes na história também estavam em nosso horizonte na composição desse trabalho.
Ao realizarmos a leitura sistemática de O Pequeno Príncipe, catalogamos os
trechos que descrevem determinadas situações com as quais podemos ver relação com o
Ensino de Geografia. Observamos que em muitos momentos da leitura dessa obra torna
factível aproximar a Geografia, enquanto disciplina que os professores ensinam, da
Geografia, enquanto a vivência cultural dos alunos no ambiente escolar. Ou seja,
buscamos identificar a geograficidade do livro ao analisar os fatos narrativos e as
terminologias geográficas ali presentes.
Nessa sistematização, levantamos questões que podem ser aproveitas parcialmente
como tema gerador dentro das bases curriculares previstas nos PCNs e que podem
desafiar os alunos a pensar a Geografia como disciplina escolar mas também como uma
forma de pensar o mundo. Por outro lado, numa futura pesquisa, vislumbramos a
possibilidade de estender a proposta de utilização de “O Pequeno Príncipe” como recurso
didático significativo para o ensino e aprendizagem de Geografia para outras etapas
escolares.
E por último, consideramos pertinente trazer à tona um fato com o qual nos
deparamos no decorrer desse trabalho: um colega do curso de Licenciatura em Geografia
desencantou-se da leitura do livro ao chegar nos capítulos finais e cruzar com a ideação
71

suicida do personagem principal. Isso nos atentou para o fato que existem t emas
classificados como impróprios na Literatura para crianças e jovens, como os chamados
“temas fraturantes” 13 ou as obras classificadas como “sick-lit”14. Assuntos até
recentemente considerados tabus, não devem ser negados ou escondidos dos sujeitos que
ainda não atingiram a idade adulta, mas a sua leitura deve ser mediada pelos pais ou
professores. Mesmo que, em nossa interpretação, não encontramos com clareza que
elementos que demonstrem o suicídio do Pequeno Príncipe, estamos diante da
possibilidade de discutir a temática da conscientização da valorização da vida e da
prevenção do suicídio. Tal responsabilidade deverá estar subsidiada por orientação de
profissionais da saúde mental e por políticas públicas orientadas para esse fim.

13
De acordo com BARROS e AZEVEDO em Literatura infantil e temas difíceis: mediação e recepção (Em Aberto,
v. 32, n. 105, 2019), assim são denominados temas como guerra, morte e bulling.
14
Conforme SILVEIRA e SILVEIRA, em Doença e Juventude na Sick-Lit.(Em Aberto, v. 32, n. 105, 2019),
“sick-lit” é um subgênero da literatura contemporânea para jovens adultos, que tem se popularizado entre os
leitores adolescentes que leem, escrevem críticas nas redes sociais e aguardam ansiosamente por adaptações
cinematográficas das obras literárias.
72

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2003.
75

APÊNDICE A – Plano de Aula

1. Identificação

Professor: Alice Barbosa – 1663747

Disciplina: Geografia

Série: 6° ano - Ensino Fundamental

Nº de Aulas: 04 Aulas de 45 minutos

2. Tema

Fusos Horários

3. Conteúdos

Fusos horários, Coordenadas Geográficas, Linha internacional de mudança de datas.

4. Objetivos

Compreender o que são e para que servem os Fusos Horários;


Compreender a relação entre: Movimento de Rotação da Terra, Coordenadas
Geográficas e Fusos Horários;
Utilizar o Planisfério para calcular corretamente o horário local nas diversas
localidades do planeta.

5. Desenvolvimento

5.1 Leitura de Texto

Realizar a leitura do Capítulo VI do livro “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-


Exupéry. Dividir o texto em 4 partes e solicitar para 4 alunos a leitura de cada uma das partes.
Recursos: Reprodução impressa de 1 página do livro.
76

5.2 Problematização

Certificar-se se os alunos compreenderam o vocabulário empregado no texto e


levantar os conhecimentos prévios dos estudantes sobre horários locais. Discutir quais os
aspectos na leitura do texto chamaram a atenção dos alunos. Levantar questões sobre o
parágrafo que considera as diferenças de horários nos Estados Unidos e na França. Revisar
os conceitos de: Movimentos da Terra e Coordenadas Geográficas. Indagar sobre a existência
e a necessidade da padronização das horas mundiais.
Recursos: Globo Terrestre

5.3 Fusos Horários – Contexto Histórico, Conceito e Operacionalização

Identificar o contexto histórico da criação dos Fusos Horários (Conferência de


Washington e a padronização da utilização do Meridiano de Greenwich).
Explanar quais os fatores que determinam os Fusos Horários (movimento da Terra,
esfericidade da Terra, necessidade de padronização do tempo, expansão do modo de
produção capitalista).
Conceituar Fusos Horários (faixas de terra entre dois meridianos ➔ 15 Graus no
sentido da longitude) e exemplificar no mapa (Figura 1 – Fusos Horários) as faixas de horário
único.
Apresentar o conceito de Hora Legal e a DSHO-Divisão Serviço da Hora do
Observatório Nacional.
Recursos: Giz, lousa, globo terrestre e planisfério

5.4 Fusos Horários no Brasil

A partir do mapa de Fusos Horários Brasileiros (Figura 2), apresentar quantos e quais
são os fusos horários adotados no Brasil, em função da extensão longitudinal e dos
meridianos que cortam o território brasileiro e explicar a adoção mais de um fuso horário.
Indicar quais as unidades da federação adotam mais de um fuso horário como hora
oficial e o porquê.
Apresentar o mapa da Hora Legal utilizada no Brasil (Figura 2 – Hora Legal
Brasileira).
Recursos: Giz, lousa e Mapas: Figura 1 - Fusos Horários e Figura 2 – Hora Legal
Brasileira.
77

Figura 1 – Fusos Horários

Fonte: DSHO - Divisão Serviço da Hora do Observatório Nacional

Figura 2 – Hora Legal Brasileira

Fonte: DSHO - Divisão Serviço da Hora do Observatório Nacional


78

5.5 Calcular a diferença de horário a partir das Coordenadas Geográficas


a) Como encontrar a distância em graus no mesmo hemisfério (subtração) e em hemisférios
diferentes (soma);
b) Como calcular a diferença horária
c) Como determinar a hora em pontos localizados no mesmo hemisfério (divisão por 15º e
subtração) e em pontos localizados em hemisférios diferentes (divisão por 15º e soma)
d) Como lidar com as particularidades (resultados maiores que 24, resultados menores que
24, divisão com resto, tempo de viagem, cálculo de antípoda (longitude -180 e inversão
de hemisfério).
Recursos: Giz e lousa

5.6 Resolução de Problemas


Resolver em conjunto problemas que permitam a aplicação dos conceitos adquiridos e a
realização de cálculos.
Recursos: Giz e lousa

6. Avaliação

Participação nas aulas e Resolução de lista de exercícios

7. Referências

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação a Distância. “Fusos Horários”; Portal do Professor.


Disponível em: < http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=218>. Acesso em
29/04/2019.
DE SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O pequeno príncipe. Editora Melhoramentos, 2017.
PENA, Rodolfo F. Alves. "Fusos Horários no Brasil"; Brasil Escola. Disponível em
<https://brasilescola.uol.com.br/brasil/fuso-horario-brasileiro.htm>. Acesso em 29/04/2019.
SÃO PAULO, SEE. Caderno do Aluno: Geografia, ensino fundamental – 5ª série/6º ano, vol.1, São Paulo:
SEE, 2014

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