Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
"Gênero” e “orientação sexual” têm saído dos documentos sobre Educação no Brasil. Por que isso é ruim?
Desde 2011, quando o projeto Escola sem Homofobia foi criado, os termos são alvo de pressão de setores conservadores
da sociedade e do congresso
Laís Semis
Não é de hoje que termos ligados à noção de identidade de gênero e orientação sexual
incomodam quando aparecem em documentos oficiais sobre Educação no Brasil. A encrenca de
setores conservadores da sociedade e do congresso com os conceitos (entenda o que eles
significam no quadro abaixo) ficou evidente já em 2011, quando o projeto Escola sem Homofobia
estava pronto para imprimir e distribuir materiais direcionados à formação de professores sobre
essas questões. Deputados ligados a entidades religiosas foram contra o projeto, apelidado
pejorativamente de "kit gay". Nada saiu do papel.
Três anos depois, o Plano Nacional da Educação (PNE) foi aprovado sem o trecho que falava sobre
gênero. Frases como "superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção de igualdade
racial, regional, de gênero e de orientação sexual" foram substituídas por "erradicação de toodas as formas
de discriminação", sem citar quais eram os tipos de discriminação. A mudança foi feita depois de
pressões realizadas pela sociedade civil e por deputados. Em 2015, os planos municipais e estaduais
de Educação, que deveriam prever o que seria da área nos próximos dez anos, acompanharam o
movimento. Cidades como São Paulo e estados como Pernambuco e Espírito Santo suprimiram as
referências à diversidade sexual, orientação sexual e gênero.
“Tratar desses temas vai contra o que algumas pessoas acreditam que seja o conceito de família.
A questão se relaciona com homossexualidade, construções familiares e identidade. A retirada
dos conceitos é uma pauta proselitista [que tem o objetivo de converter alguém para alguma
ideia ou causa] de um passado há muito tempo distante e que não condiz com a realidade do país
nem da escola atualmente”, aponta Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo
Direito à Educação.
ENTENDA OS CONCEITOS
Orientação sexual: “capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional,
afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um
gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”.
Identidade de gênero: “experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode
ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo
(que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por
meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta,
modo de falar e maneirismos”.
Os trechos que passaram por alterações estão grifados em amarelo e os termos retirados estão subscritos.
Página 14
Página 19
Página 301
ENTENDA Em fevereiro de 2015, NOVA ESCOLA publicou uma reportagem de capa sobre como a
escola trata com preconceito quem desafia as normas de papéis masculinos e femininos.
Para Anna Penido, diretora do Instituto Inspirare, integrante do Movimento pela Base Nacional e
uma das leitoras críticas da BNCC, o MEC deu um passo atrás no respaldo do tema, o que pode
desencadear uma reação em cadeia nos estados e municípios na hora de elaborar o currículo. “É
como se a orientação nacional dissesse ‘esse tema não precisa estar tão explicitado’ no currículo.
Não estando explicitado, quem vai bancar isso sozinho? Se o MEC banca, redes e escolas se
sentem mais fortalecidas para fazer o mesmo”, questiona. “Com isso, o Estado está se
desresponsabilizando de ter materiais pedagógicos, garantir formação continuada e de construir
políticas públicas que visem de maneira mais incisiva combater discriminações contra estudantes
homossexuais e transgêneros, por exemplo”, diz Michele.
Daniel Cara, da Campanha, explica que, no processo de escolarização, muitos foram impedidos
de concluir seus estudos por conta de preconceitos de colegas, professores e até da família. E a
escola não pode ser conivente com qualquer tipo de discriminação, especialmente quando ela se
torna recorrente e vira um caso de bullying (entenda aqui). “Bullying é uma das causas de
abandono dos estudos no Brasil. Precisamos ter essa preocupação porque o abandono está
ligado a um processo educacional falho. Não podemos mascarar essa realidade. Se a Base não
pode contribuir com isso, é lamentável. Perde-se uma oportunidade ímpar de fazer esse debate”,
comenta Idilvan Alencar, secretário de Educação do Ceará e presidente do Conselho Nacional de
Secretários de Educação (Consed).
Repercussão
A explicação do MEC realmente não convenceu e a alteração – e, principalmente, a forma que ela
foi feita, sem avisar ninguém – gerou críticas de organizações ligadas à Educação. Para Idilvan, do
Consed, a retirada de última hora das expressões foi desrespeitosa com os participantes do
debate de construção da Base. “Se essa explicação que o MEC deu se trata mesmo apenas de
redundância e não tem nada de ideológico por trás, é muito simples de resolver esse impasse: é
só incluir o termo de volta. São poucas palavras em um documento de tantas páginas”, aponta.
Outros secretários estaduais concordaram com a reclamação de Idilvan, que levou o tema ao
Consed para discutir os possíveis encaminhamentos.
Anna Penido, do Instituto Inspirare, lembra que o MEC não deixou de explicitar outras formas de
diversidade no texto. “Só os termos ‘gênero’ e ‘orientação sexual’ foram retirados. Eu não vejo
um motivo para essa exclusão que não seja evitar polêmica. Certamente essa mudança se deu
por conta de pressão ou do receio de sofrer pressão de grupos mais conservadores da
sociedade”, diz.
Outras instituições também mostraram preocupação com as alterações feitas na Base Nacional
Comum Curricular. O Movimento pela Base, formado por diversas organizações a favor da
construção colaborativa do documento, disse que “foi surpreendido pela retirada de menções a
identidade de gênero e orientação sexual do texto” entregue ao Conselho Nacional de Educação
e reforçou que defende e estimula o respeito à diversidade. “Embora o atual texto da Base siga
defendendo a pluralidade, a diversidade e o combate ao preconceito, acreditamos que
identidade de gênero e orientação sexual, pela sua relevância, devam estar explicitamente
colocadas ao longo do texto”, publicou o Movimento.