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A mulher tradicional e a mulher pós-moderna

Raymundo de Lima

Duas categorias de mulheres convivem no nosso tempo: a mulher tradicional e a mulher pós-
moderna.

A mulher tradicional é constituída à imagem e semelhança da mãe. A imagem da mãe é de


assexuada, sem desejo próprio, santa, imaculada, que “padece no paraíso” ou que goza ao realizar o
desejo dos outros. A ‘boa mãe’ é aquela que abdica de seus desejos para realizar os desejos dos
filhos, marido, parentes, vizinhos. Ainda é assim: “boa mãe” é aquela que no final do dia é um trapo
de cansada, sem ânimo para nada, inclusive para satisfazer o desejo sexual do marido.

Ao contrário da mulher-tradicional, a mulher pós-moderna é senhora do seu desejo, é anti-santa, e a


meta de ser mãe fica no horizonte. Ela se assume como dona do seu corpo, ocupa os espaços e
administra o seu tempo. Seu corpo, ela usa-o como bem entende. Procura aprimorá-lo com uma
malhação ou turbiná-lo com silicone. Ela usufrui das conquistas das mulheres da década de 1970: a
pílula anticoncepcional, a masturbação, o amor-livre, e hoje ela toma iniciativa em relação ao
homem ou mulher do seu desejo. Seu espaço, digamos, está para além do lar: ela não quer ser dona-
de-casa, nem ter um trabalho de faz-de-conta fora do lar, porque seu olhar está para além dos limites
das convenções, isto é, ela investe no estudo e na carreira profissional, e aspira um trabalho
profissional e poder. Ela quer ser poderosa e glamourosa, como diz aquela musiquinha. Hoje, 60%
das mulheres ocupam os bancos das universidades brasileiras. Ela opta ter um ou até dois filhos,
durante as férias do trabalho ou na época da elaboração de sua tese. Nesse caso, filhos são vistos
como troféus de realização intelectual e profissional. Mas ela pode também optar por nenhum filho,
visto como um estorvo, pelo menos em determinado período de seu investimento profissional. O
tempo da mulher pós-moderna é bem ocupado. Seu tempo livre vira ócio criativo; sua filosofia é de
desfrutar o momento, no lazer ou no trabalho. Mas ela odeia pensar o tempo como sinônimo de
gravidade e escoamento do vigor da juventude.

Psicossexualidade. A mulher pós-moderna é resultado da ruptura dos costumes – inclusive na


sexualidade – ocorridos a partir da década de 1970. A pílula anticoncepcional afastou o risco de
uma gravidez indesejada e propiciou a mulher ver a sexuação como um divertimento. A mulher-
tradicional casava virgem, não por escolha pessoal, mas por imposição cultural e religiosa. A
mulher pós-moderna resgata o estilo de Lilith, e está aberta para uma experiência a um, a dois, a
três, dez, dependo de sua escolha. Seu gozo é estar no comando das situações, mas ainda sonha:
talvez um dia encontre a alma gêmea.

A mulher-tradicional passou a ser vista como uma coitada na cama, uma escrava no lar e uma
bobinha na sociedade. Contradizendo a mulher-tradicional que até se gabava de nunca ter sentido
“nada” durante o ato sexual, a mulher pós-moderna se preocupa em conseguir um orgasmo a
qualquer preço. Fazer psicoterapia ou se consultar com um sexólogo hoje é uma escolha ‘natural’
das mulheres que tomaram consciência do seu direito ao prazer sexual e uma existência plena.

Relação. O ato sexual para a mulher tradicional significa um recurso para a fecundação; para a
mulher pós-moderna é prazer, independe da intenção de ter filhos e de se ver amarrada a um(a) cara.
O sexo da mulher tradicional é uma obrigação, às vezes sente nojo, exceto quando ela se vê
destinada a ‘padecer no paraíso’ na hora do parto. Nas raras conversas sobre sua intimidade com
amigas do lar escapa-lhe falar com vergonha das ‘porcarias’ que seus maridos as obrigam a fazer, e
também sua incapacidade de dizer não às obrigações matrimoniais. Uma entrevistada considera o
homem “um porco”, que só pensa em porcarias, e que era preciso enganar, constantemente com
desculpas.

Por seu lado, o marido tradicional não se atreve a pedir certos prazeres à esposa tradicional por
achar que não é ‘certo’ e, ela imagina que deve se mostrar fria e passiva nas relações sexuais.
Alguns autores consideram que esse mau entendimento entre os casais pode gerar desde frustrações,
até aumentar a falsa frigidez da mulher.

Geralmente ela deixa transparecer o medo e ciúme do marido procurar uma amante ou prostituta,
enfim, outra que saiba melhor satisfazê-lo. Afinal, a mulher-tradicional nunca aprendeu sobre
educação sexual, portanto, ignora como ser uma boa mulher na cama. Teme tomar a iniciativa, por
vergonha, culpa ou medo de ser confundida como uma vadia. Submissa, ela ignora que a cultura lhe
impôs como destino ser apenas mãe e dona-de-casa.

A mulher pós-moderna cultua a liberdade sexual, mas odeia assédios. Extrai gozo narcisista de estar
na tela ou no website. Sua imagem glamourosa, poderosa, deve dominar sua realidade cotidiana. Ela
evita expressar valores, mas fica indignada contra as limitações, principalmente à sua liberdade
sexual. Demonstra preocupação ética com os direitos humanos, a ecologia, seu direito ao aborto, o
direito dos homossexuais de adotarem crianças, etc.

Os homens, hoje – tradicionais e modernos –, parecem assustados com a mulher pós-moderna, tanto
na intimidade sexual como no seu forte desempenho na sociedade competitiva. Não
conscientemente, alguns temem ser devorados por essa mulher dominadora, com desejos sexuais
ativos, inextinguíveis e ilimitados. O “mito da vagina dentada” recalcado nos homens desperta-lhes
conflitos endopsíquicos. Que homem não é surpreendido com um orgasmo que parece um ataque
epiléptico?

O mal-estar da modernidade líquida obriga homens e mulheres pós-modernos a maximizarem os


momentos de prazer e minimizarem a disciplina e as chateações próprias do cotidiano. A boa notícia
hoje para a mulher é ela poder escolher como usar o seu corpo, como direcionar o seu desejo e sua
própria vida. Ainda que as mais conservadoras aceitem seguir o estilo apequenado da mulher antiga,
não é mais possível ignorar as mulheres pós-modernas nas ruas, nos filmes, no noticiário, na
internet. Elas parecem “mais mulher”.

As mulheres pós-modernas são criticadas por copiarem o que há de pior nos homens: desde o uso
de terninho estilo coveiro até a virilidade excessiva quando ocupa cargo de chefia, observa o
sociólogo Domenico de Masi, em conferência direcionada às mulheres no Senado Federal. Mas
também existe admiração por sua autonomia e ousadia dentro e fora do lar. Sua dupla ou tripla
jornada de trabalho, o estresse, o sentimento de culpa por não dar atenção aos filhos, não farão a
mulher pós-moderna desistir das suas conquistas e optar pelo modo de ser submisso da mulher
tradicional. Os avanços das mulheres são irreversíveis.

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