Você está na página 1de 230

INTRODUÇÃO

À FILOSOFIA DA
CIÊNCIA

Lisa Bortolloti








TRADUÇÃO
JORGE BELEZA







REVISÃO CIENTÍFICA
AIRES ALMEIDA









Gradiva



Título original An Introduction to the Philosophy of Science © Lisa Bortolloti,
2008 Esta edição é publicada por acordo com Polity Press Ltd., Cambridge


Tradução Jorge Beleza
Revisão científica Aires Almeida
Revisão de texto Maria de Fátima Carmo


Capa Armando Lopes (arranjo gráfico)/©Michael Stones (ilustração)
Fotocomposição Gradiva
Impressão e acabamento Multitipo — Artes Gráficas, L.da


Reservados os direitos para a língua portuguesa por
Gradiva Publicações, S. A.
Rua Almeida e Sousa, 21 r/c esq. —1 399-041 - Lisboa
Tel. 213974067/8
Fax 213953471
geral@gradiva.mail.pt
www.gradiva.pt


l.a edição Novembro de 2013


Depósito legal 366 955/2013


ISBN 978-989-616-557-4


Colecção coordenada por AIRES ALMEIDA


CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA


Gradiva


EDITOR GUILHERME VALENTE

À Rita, que sempre me ajudou


Índice


Agradecimentos

Introdução: O que é a ciência?

1. Demarcação
1.1 Ciência e não-ciência
1.2 Ciência e pseudociência
1.3 Ciências naturais e sociais
1.4 O que é a investigação científica?
1.5 Boa e má ciência

2. Raciocínio
2.1 Maneiras de raciocinar
2.2 O método científico: a indução
2.3 O problema da indução

3. Conhecimento
3.1 O que é uma teoria?
3.2 Confirmação de teorias
3.3 Modelos de explicação

4. Linguagem e realidade
4.1 Significado, referência e categorias naturais.
4.2 Implicações do descritivismo
4.3 Realismo
4.4 O debate sobre o realismo

5. Racionalidade
5.1 Revoluções
5.2 Mudanças de paradigma
5.3 Além das revoluções

6. Ética
6.1 Instrumentalização
6.2 Constrangimentos éticos aos objectivos da investigação
6.3 Constrangimentos éticos aos métodos de investigação
6.4 Constrangimentos éticos à investigação científica

Conclusão: A ciência como actividade

Glossário
Bibliografia temática
Indice de figuras
Indice de quadros

Agradecimentos





Escrever este livro foi uma tarefa que contou com mais colaboração do que pode
parecer à primeira vista. Ao longo dos capítulos que se seguem, passo em revista
os debates clássicos em filosofia da ciência, mas também me debruço sobre
argumentos específicos que desenvolvi com outros filósofos, em particular
Matteo Mameli (sobre a ilusão metodológica na investigação em psicologia),
Bert Heinrichs (sobre a delimitação do conceito de investigação) e John Harris
(sobre a ética dos aperfeiçoamentos).
Também estou em dívida para com Ángel Fernandez, Asja Portsch, Francis
Longworth, Maggie Curnutte e Nigel Leary pelas suas muitas sugestões úteis. O
Nigel foi uma ajuda absolutamente fantástica em várias fases do projecto, sendo
inteiramente responsável pelo enriquecimento da bibliografia sobre os termos
para categorias naturais, em especial sobre «jade». Fico muito grata pela sua
competência, valorosa assistência e entusiasmo.
Nunca teria escrito este livro sem o encorajamento de Keith Maslin (Esther
College), Emma Hutchinson (Polity Press) e da maravilhosa directora do meu
departamento, Helen Beebee. Escrever este livro teria sido muito mais difícil
sem o constante apoio dos meus tão compreensivos pais e amigos. Agradeço a
Yujin Nagasawa, Matteo Mameli, Matthew Broome, Dan López de Sa, Jordi
Fernández, Edoardo Zamuner e Esa Díaz-León por terem estado sempre lá e por
me terem ajudado amavelmente a atingir a meta.
Também estou grata a todas as pessoas que me ensinaram a amar a filosofia em
geral e a filosofia da ciência em particular: Maurizio Pancaldi, Eva Picardi,
Maurizio Ferriani, Geoffrey Cantor, Donald Gillies, David Papineau, Bill
Newton-Smith, Martin Davies, Kim Sterelny e John Harris (pela ordem em que
tive o prazer de os conhecer).
Tive a sorte de fazer parte de um ambiente de investigação muito estimulante
quando trabalhei no Projecto EURECA (sobre a Delimitação do Conceito de
Investigação e das Actividades de Investigação) no Centre for Social Ethics and
Policy em Manchester, de 2004 a 2005. Desde que passei a fazer parte do
Departamento de Filosofia da Universidade de Birmingham, pude usufruir de
um apoio fantástico de todos, e testei versões prévias de capítulos deste livro em
estudantes de licenciatura muito pacientes. Recentemente, tive também a
oportunidade de visitar a Escola Europeia de Medicina Molecular (SEMM), na
Fundação do Instituto de Oncologia Molecular em Milão, onde testemunhei os
frutos inspiradores do casamento feliz entre a ciência e a filosofia.
Muito antes de ter descoberto a filosofia, prometi que dedicaria o meu primeiro
livro à minha irmã. Nem a Rita nem eu imaginávamos então que o livro seria
uma introdução à filosofia da ciência, mas ei-lo. Espero que ela não fique muito
desapontada.

Introdução: O que é a ciência?







Este livro é um guia para as questões filosóficas centrais levantadas pela prática
da ciência. Não se destina apenas ao filósofo curioso pela ciência, mas também
ao cientista que quer saber mais sobre filosofia. E também a todo aquele que se
interessa pelo que confere à ciência um estatuto especial, pese embora a
continuidade entre a investigação científica e as outras actividades humanas.
Cada capítulo centra-se num conjunto de problemas e pretende dotar o leitor de
ferramentas básicas para a apreciação dos debates clássicos numa área
tradicional de exploração filosófica. No capítulo 1, sobre a demarcação, são
revistas e avaliadas algumas das tentativas de resposta filosófica à questão do
que torna a ciência algo de especial. No capítulo 2, sobre o raciocínio, são
identificadas e comparadas algumas estratégias de aquisição e derivação do
conhecimento científico. No capítulo 3, sobre o conhecimento, procede-se ao
exame da estrutura das teorias científicas, da sua formação e confirmação, bem
como da natureza da explicação. No capítulo 4, sobre a linguagem e a realidade,
é analisada a linguagem usada nas teorias científicas, em especial a distinção
entre termos observacionais e teóricos, e as potenciais barreiras linguísticas e
conceptuais à compreensão científica. Também é tratada a questão da finalidade
da ciência: ela visa descrever como as coisas realmente são, ou apenas dotar-nos
dos meios para prevermos os fenómenos por que nos interessamos? No capítulo
5, sobre a racionalidade, é investigada a natureza da mudança de teorias e do
progresso científico. No capítulo 6, sobre a ética, são discutidos alguns exemplos
da relação complexa entre a ciência e a sociedade, e são colocadas questões
sobre os constrangimentos éticos que devem ser impostos à investigação
científica. A capacidade que a ciência tem de proporcionar benefícios
moralmente relevantes aos indivíduos e às sociedades é também aflorada.
O livro dá ênfase a duas áreas: (1) a aquisição, sistematização e revisão de
conhecimento em ciência; (2) a complexidade da relação entre a ciência e o resto
da sociedade. Irá ler sobre os debates clássicos e actuais acerca do raciocínio
científico e a racionalidade na ciência, e será a todo o momento convidado a
reflectir sobre a autoridade e as responsabilidades daqueles que promovem a
ciência e abraçam a investigação científica na nossa sociedade.
Poderá estar ainda a pensar: «Qual a vantagem de ler uma introdução à filosofia
da ciência?» Embora sejamos bombardeados com informação sobre o que os
cientistas fazem e como a ciência afecta todos os aspectos das nossas vidas,
raramente paramos para reflectir sobre o peso da investigação científica, sobre o
seu estatuto e sobre como difere das outras actividades humanas. Ao longo da
nossa formação e na vida de todos os dias, ficamos apenas com uma vaga ideia
do que é a ciência. Quando vemos um documentário sobre os fósseis nas Ilhas
Galápagos, quando ouvimos a notícia de um surto recente de gripe das aves ou
quando lemos sobre os buracos negros em livros de divulgação científica,
ficamos a par dos esforços e dos resultados da investigação científica,
aumentando o nosso conhecimento sobre a natureza. Mas quando somos
confrontados com a variedade de métodos e objectivos da investigação
científica, com os seus êxitos e os seus fracassos, é-nos extremamente difícil
perceber o que torna a prática científica única.
Em termos corriqueiros, se ninguém se tivesse dedicado de uma maneira
sistemática à investigação empírica da natureza, hoje não beneficiaríamos dos
muitos avanços tecnológicos que caracterizam os nossos estilos de vida, como a
vacinação, as medidas preventivas para os terramotos, e os telemóveis. Quase
tudo o que nos rodeia — o vestuário, os alimentos, os edifícios — não estaria
aqui (pelo menos na sua forma actual) se não tivesse havido pessoas a investir o
seu precioso tempo e os seus poucos recursos a fazer ciência. E, no entanto, a
investigação científica não tem afectado apenas o estilo de vida de muitos seres
humanos. Os seus resultados também moldaram as nossas crenças sobre o
mundo, ao alterarem o que pensamos sobre nós próprios e sobre as diferenças
entre os seres humanos e outros seres vivos na Terra. Influenciando os nossos
sistemas de crenças, elementos importantes do chamado método científico
alimentaram o estilo e a forma da nossa maneira quotidiana de pensar.
Acreditamos que a racionalidade exige que prevejamos acontecimentos futuros
com base nos conhecimentos actuais. Valorizamos explicações para os
acontecimentos que observamos se estas forem abrangentes e consistentes com
os indícios disponíveis. Quando nos deparamos com problemas, encontramos
soluções que se baseiam na nossa experiência passada e, com o tempo, vamo-nos
tornando melhores a resolvê-los. Até mudamos de ideias quando a experiência
não apoia as nossas crenças iniciais. Ainda que raramente ou nunca reflictamos
sobre a forma como formamos opiniões e explicamos os factos que são para nós
importantes, registamos informações, aprendemos com os nossos erros, revemos
as nossas crenças e melhoramos o poder preditivo e explicativo das nossas
teorias. Num sentido fraco, todos somos — ou tentamos ser — cientistas no dia-
a-dia.
Estas observações imprimem uma tensão ao nosso conceito de ciência. Por um
lado, a investigação científica parece ser única entre as actividades humanas, e
investida de uma importância e de uma responsabilidade especiais. Há mesmo
quem diga que os esforços e os feitos da ciência são a marca da humanidade. Em
muitas sociedades contemporâneas, a ciência é uma autoridade, e os cientistas
são os especialistas consultados pelos governos em estados de emergência, bem
como no planeamento do futuro, na melhoria da qualidade de vida e na
prevenção das catástrofes naturais. Por outro lado, os objectivos e os métodos da
investigação científica estão de tal modo intrincados com outros objectivos e
métodos, que se torna bastante difícil assinalar as características da investigação
científica que fazem dela verdadeiramente única.
Ao pensarmos sobre a ciência de uma maneira sistemática, podemos ficar em
melhor posição para resolver a tensão entre o seu carácter único e omnipresente.
Nesta introdução à filosofia da ciência, revisitaremos alguns dos debates
clássicos em filosofia sobre a racionalidade e o raciocínio, a formação e a
justificação de teorias e a natureza da realidade e do progresso. Também
exploraremos os debates actuais sobre o modo como os nossos conceitos
fraccionam a natureza, e sobre como a ética e a ciência se impõem mutuamente
constrangimentos. Embarcar nesta viagem pode ajudar-nos a ficar com uma ideia
mais informada e menos turvada do que é a ciência e porque ela é importante.
Esta viagem destina-se ao principiante, que poderá encontrar ajuda sob a forma
de perguntas e exercícios para avaliar a compreensão e orientar a pesquisa;
quadros para facilitar a compreensão e ilustrar alguns pontos discutidos no texto;
exemplos das ciências naturais, sociais e médicas; questões para convidar à
reflexão, dar forma ao trabalho de grupo, estimular o debate ou orientar a
redacção de ensaios; algumas sugestões de leituras complementares no final de
cada capítulo; uma bibliografia temática exaustiva no final; um glossário
substancial de termos técnicos, que também contém pequenos apontamentos
biográficos de cientistas e filósofos importantes que vão aparecendo ao longo do
texto.
Espero que gostem!


1. Demarcação





Há um grande cepticismo sobre a possibilidade de se distinguir efectivamente a
ciência da não-ciência. A ideia de que não podemos ter um critério de
demarcação satisfatório é motivada pelas tentativas falhadas de prover tal
critério no passado, e pela observação da diversidade cada vez maior de métodos
e finalidades das disciplinas que somos inclinados a considerar como científicas.
Como podemos esperar oferecer uma explicação unificada do que faz da
investigação uma investigação científica, em disciplinas tão diferentes como a
física, a geologia e a economia?
Ainda que a tarefa de delimitar a ciência possa parecer infrutífera, há muito boas
razões para continuar a insistir. É importante saber em que especialistas se deve
confiar, que projectos de investigação financiar, que teorias ensinar nas escolas.
E as decisões sobre estas questões não podem ser tomadas apenas com base na
consistência teórica ou na aparente adequação da teoria aos dados empíricos.
Precisamos de uma explicação do que a ciência é, do que os cientistas fazem e
de que metas e métodos caracterizam a investigação científica. Não é provável
que a explicação bem-sucedida (se é que tal coisa existe) seja muito específica,
pois é um facto que a especialização conduziu a uma série de conceitos
diferentes de indícios e, além do mais, a diferentes critérios para o êxito nas
ciências naturais e entre estas e as ciências sociais.
As questões ligadas à delimitação da ciência adquirem grande importância na
sociedade contemporânea, onde a ciência é investida de uma autoridade e
responsabilidade especiais. Os cientistas são muitas vezes quem aconselha os
governantes sobre as políticas a seguir, e as suas opiniões são amplamente
solicitadas e ouvidas nos meios de comunicação. Em virtude dos seus
conhecimentos especializados, do seu estatuto enquanto cientistas, alguns deles
são chamados a encontrar soluções para muitos dos nossos problemas
quotidianos, desde lidar com os efeitos das secas a evitar que novos programas
de ensino produzam efeitos adversos nas crianças. Se é atribuída tanta
responsabilidade quer aos cientistas quer à comunidade científica como um todo,
parece que precisamos com alguma urgência de uma explicação sobre o que é
uma disciplina propriamente científica, por oposição ao exercício de disciplinas
que não partilham da mesma respeitabilidade e autoridade social, como a
astrologia e a quiromancia. Além do mais, fazer investigação científica em
muitas áreas (em biomedicina, agricultura, em recursos energéticos renováveis,
por exemplo) pode trazer grandes benefícios às pessoas e às sociedades, e
portanto é algo que deveria ser amplamente apoiado e promovido. Se a ciência
tem algum valor num contexto de recursos públicos limitados, ele está em fazer
pressão para que possamos ser capazes de identificar exemplos genuínos de
investigação científica e projectos de investigação válidos.
Na tradição, a discussão sobre o critério de demarcação entre a ciência e a não-
ciência estruturava-se em torno da tentativa de explicar por que razão a física é
uma ciência e a astrologia não, e de que maneira o método científico é diferente
da magia ou da revelação divina. Hoje, porém, os filósofos que se interessam
pelo critério de demarcação têm em mente um conjunto de questões inter-
relacionadas, e não aspiram necessariamente a fornecer uma descrição da ciência
que responda a todas elas de uma só vez.
Eis uma lista provisória:

•Será que o tema da investigação é importante para se saber se um projecto de
investigação é considerado científico?
•Podem a antropologia, a psicologia e a economia ser consideradas ciências
legítimas mesmo não sendo governadas por leis?
•O criacionismo tem a aparência superficial de uma ciência. Ora, por que razão
não é visto por muitos como uma teoria científica legítima?
•Qual é a diferença entre a filosofia e a ciência, uma vez que ambas pretendem
chegar a uma melhor compreensão dos fenómenos à nossa volta?

No século XX, filósofos inspirados por um movimento chamado Positivismo
Lógico analisaram formas de obter e organizar conhecimento com vista a
identificar diferenças importantes entre a ciência e a metafísica e entre a ciência
e a ética. Os positivistas lógicos, muitos dos quais formados em ciências
naturais, sociais ou matemática, acreditavam fortemente no valor da ciência (é
por isso que se chamam positivistas lógicos), tentando justificar o seu estatuto de
única fonte respeitável de conhecimento factual ao analisarem a estrutura lógica
e a linguagem das alegações de conhecimento (é por isso que se chamam
positivistas lógicos). Um dos objectivos deste capítulo é passar em revista e
avaliar os pontos fortes e as limitações da sua explicação da demarcação entre a
ciência e a não-ciência, antes de passar ao exame dos desenvolvimentos
posteriores das suas ideias e das objecções que tal explicação originou.
Algumas destas objecções podem ser encontradas nas obras de Karl Popper, Paul
Thagard e Paul Feyerabend. Popper, que partilha alguma da ênfase dos
positivistas lógicos no valor e na objectividade da ciência, segue uma linha de
orientação diferente na sua procura de um critério de demarcação. Acredita que a
ciência é a tarefa racional por excelência e procura activamente uma estratégia
viável para distinguir as teorias científicas genuínas das teorias que à primeira
vista parecem científicas, mas que não conseguem sê-lo (exemplos de
pseudociência).
Ao contrário de Popper e dos positivistas lógicos, Thomas Kuhn dá ênfase aos
factores históricos e sociais que determinam o êxito de uma teoria científica ou
de um projecto de investigação. Uma teoria ou um projecto podem ser
considerados científicos num contexto histórico e social mas não noutro, pois os
critérios que uma teoria ou um projecto precisam de satisfazer para poderem ser
considerados ciência também variam. Com base na análise feita por Kuhn da
ciência sensível à história, Thagard desenvolve um critério de demarcação
dependente do contexto, que tenta explicar por que razão algumas disciplinas
podem ver o seu estatuto mudar de científico para pseudocientífico ou vice-
versa. Feyerabend adopta uma posição mais radical, negando qualquer espécie
de estatuto especial à ciência. Argumenta contra a pretensa supremacia da
metodologia científica sobre tradições alternativas de pensamento.
Após esta breve história selectiva do critério de demarcação, apresentarei
algumas conclusões sobre os desenvolvimentos recentes do debate e deixarei
uma sugestão para a delimitação das actividades de investigação.
No final deste capítulo o leitor estará habilitado para:

•Assinalar algumas diferenças entre a ciência e a metafísica e entre a ética e a
ciência à luz das considerações apresentadas pelos positivistas lógicos.
•Explicar e avaliar a tentativa de Popper no sentido de prover um critério de
demarcação entre ciência e pseudociência.
•Estar ciente dos factores sociais que podem contribuir para a mudança de
estatuto de uma teoria e discutir os méritos e as limitações de uma metodologia
anárquica.
•Discutir e classificar diferentes tentativas de demarcar a ciência com base em
exemplos de pseudociência e má ciência.
•Identificar os desafios que se apresentam ao projecto de delimitar as actividades
de pesquisa.

1.1 Ciência e não-ciência

A questão de quando os seres humanos começaram a fazer ciência é controversa,
como veremos no capítulo seguinte, no qual iremos em busca das origens do
chamado método experimental. Em todas as civilizações houve sempre pessoas
interessadas em descrever e explicar acontecimentos naturais como o movimento
dos corpos celestes, os nascimentos ou a ocorrência de cheias. Construíam
hipóteses e tiravam conclusões após terem completado uma série de observações
sobre os fenómenos que queriam explicar. Num sentido lato, estavam a fazer
ciência. No entanto, a ideia comummente aceite é a de que a ciência moderna
tem um carácter especial que não é passível de ser encontrado nas tentativas
anteriores de explicar os fenómenos naturais. A questão de saber em que consiste
este carácter especial é objecto de discussão, conquanto se pressuponha que para
que uma hipótese seja considerada científica é preciso que se apoie em indícios.
Desde a Física de Aristóteles (350 a. C.), o raciocínio científico tem consistido
em formar hipóteses para explicar um acontecimento observado e em rever as
hipóteses explicativas se as observações futuras não forem consentâneas com
elas. Se este processo pode ser considerado como a disponibilização de um
corpo de indícios também é uma questão aberta a interpretações. Será que a
ciência moderna começou quando os humanos foram além da observação
passiva da natureza e começaram a intervir activamente nos fenómenos naturais?
Actualmente, a manipulação da natureza é comum em muitas das ciências nas
quais os experimentadores criam condições especiais para a ocorrência de um
evento para poderem controlar as variáveis e afinarem as suas hipóteses. Porém,
durante muito tempo na história das investigações humanas sobre a natureza, a
base para as teorias aceites era principalmente constituída por experiências
mentais e observações a olho nu, pelo que a distinção contemporânea entre
ciência e filosofia era, no melhor dos casos, difusa.
Poder-se-ia argumentar que fiarmo-nos em indícios e que mesmo a manipulação
activa da natureza não são critérios suficientes para distinguir a ciência moderna
de outras teorizações com base em indícios. Uma série de hipóteses que
explicam a ocorrência dos fenómenos por que nos interessamos não constitui
conhecimento científico a menos que as hipóteses sejam coerentes. As hipóteses
testadas têm de fazer parte de um sistema estruturado e coerente de modo a
contribuírem para o corpo do conhecimento científico.
A formulação de hipóteses explicativas, a manipulação da natureza com vista a
afiná-las e a testá-las, bem como a formação de teorias coerentes, são algumas
das coisas que os cientistas fazem. Ora, haverá uma lista de condições
necessárias ou suficientes para que um corpo de conhecimento seja
genuinamente científico ou para que uma actividade seja considerada
investigação científica?
No que se segue consideraremos com algum pormenor as razões pelas quais se
pensa que os cientistas e os filósofos se ocupam de tarefas distintas.

Exercício: Antes de prosseguir, tome nota de três diferenças entre ciência e
filosofia, com base na sua compreensão dos respectivos métodos e objectivos.

1.1.1 Afirmações analíticas e sintéticas

Há afirmações de vários tipos. Umas são sintéticas, ou seja, não poderíamos


saber se são verdadeiras ou falsas ao reflectirmos sobre a sua estrutura lógica ou
sobre o significado dos termos que contêm. «Hoje vai nevar» é uma afirmação
sintética. Outras afirmações são analíticas, ou seja, são ou verdadeiras ou falsas
em virtude da sua estrutura lógica ou do significado dos termos nelas contidos.
«Um quadrado tem quatro lados iguais» é uma afirmação analítica, uma vez que
por definição os quadrados têm quatro lados iguais. «Hoje pode nevar ou não» é
uma afirmação analítica, porque se trata de uma disjunção de afirmações que são
mutuamente exaustivas (Isto significa que a disjunção de ambas as afirmações esgota os estados de coisas
possíveis - N. do R.).

Os positivistas lógicos pensavam que todo o conhecimento sintético tem de ser
adquirido e verificado por meio da experiência (é por isso que também se lhes
chama empiristas lógicos), ao passo que a experiência é irrelevante para a
aquisição ou verificação do conhecimento analítico. Porém, nem todos os
exemplos de afirmações sintéticas parecem funcionar assim. Há algumas
afirmações sintéticas — aquelas a que chamamos normativas, como «matar é
errado» — que não são sempre verdadeiras ou falsas por definição, mas cuja
veracidade ou falsidade não pode ser facilmente definida por uma investigação
empírica. Outras afirmações sintéticas há cuja veracidade ou falsidade depende
de facto de como as coisas são, mas não nos é possível conceber uma maneira de
a testarmos, de a verificarmos. «Ser filósofo era uma propriedade essencial de
Aristóteles» — esta afirmação não satisfaz as condições da analiticidade, mas é
difícil dizer que testes empíricos poderiam determinar a sua veracidade ou
falsidade. Poderíamos basear-nos numa teoria sobre o que é uma propriedade
essencial, mas não em algo de empírico (conquanto existam noções mais ou
menos úteis sobre o que é uma propriedade essencial, dado o estado presente do
mundo).
A ideia tradicional é a de que existe uma diferença fundamental entre o
descritivo e o empírico, por um lado, e o prescritivo e o normativo, por outro. As
ciências naturais incidem em factos. Qual é a temperatura da água quando entra
em ebulição? Quão rápida é a aceleração de um corpo em queda? Qual é a idade
daquele fóssil? Porque é que os terramotos acontecem? O que causa uma reacção
química? Porque é que os primatas usam sinais de alarme? Noutras disciplinas,
contudo, também descrevemos e explicamos os factos. Quais são as metáforas
mais comuns para a morte, e são partilhadas pelas diferentes culturas? Quais
foram os efeitos da Primeira Guerra Mundial na Europa? Porque é que os
pintores começaram a usar a perspectiva no século XV?
Embora muitas disciplinas estudem aparentemente factos, descrever e explicar
como as coisas são não é tudo o que fazemos. Por vezes queremos saber como as
coisas deveriam ser com base num princípio ou numa norma. Será a democracia
a melhor forma de governo? Matar é intrinsecamente mau? Descarregar música
da internet deve ser considerado crime? As formas de governo e os exemplos de
comportamento humano são objectos de avaliação e podem ser bons ou maus,
adequados ou inadequados, certos ou errados. E pouco provável que estas
afirmações normativas possam ser justificadas com base na mera experiência.
Para os positivistas lógicos, o que distingue as afirmações científicas das da
lógica, filosofia, religião, literatura, etc., é serem sintéticas e a sua veracidade
poder ser definida por meio de testes empíricos (ou seja, são verificáveis). Na
sua perspectiva, a possibilidade de conceber indícios que possam confirmar ou
não uma afirmação é o que faz uma afirmação sintética ter significado. Por outro
lado, as afirmações sintéticas que não podem ser confirmadas ou infirmadas por
meio de indícios empíricos não têm significado algum. A experiência pode
confirmar a afirmação de que a água na chaleira está a ferver, mas que
observação directa pode confirmar a afirmação de que matar é errado? Os
positivistas lógicos não se contentam com a maneira de pensar da tradição
segundo a qual algumas afirmações não são nem analíticas nem verificáveis por
meio da experiência, querendo encontrar uma maneira de explicar a natureza
aparentemente inexplicável de tais afirmações.
No que se segue passaremos em revista algumas das implicações da ideia de que
só as afirmações sintéticas podem ser verificadas e têm significado, e
reflectiremos sobre a maneira como os positivistas lógicos caracterizaram a
diferença entre a ciência e a ética, bem como entre a ciência e a metafísica.

1.1.2 A «eliminação» da ética

Para Alfred Ayer (1936), que defendeu e divulgou muitas das ideias avançadas
pelos positivistas lógicos sobre a distinção entre ciência e filosofia, as
afirmações éticas não podem ser verificadas apelando à experiência. Segundo
ele, isto explica por que razão as questões éticas geram discussões infindáveis
que acabam por ser infrutíferas. Ayer diz que quando pensamos em afirmações
éticas, temos a impressão de que precisamos de nos agarrar a como as coisas
deveriam ser, à sua dimensão normativa. Mas essa aparência de normatividade
nas afirmações éticas, diz ele, é apenas uma ilusão. Não há uma dimensão
normativa nas afirmações éticas; há apenas preferências que acabam por ser
subjectivas e que frequentemente chocam com as preferências dos outros.
Ayer defende que a ética enquanto disciplina normativa não tem razão de ser. O
que está em causa nas discussões sobre ética é a expressão de preferências que
são em parte determinadas por factos psicológicos e culturais sobre os
indivíduos ou os grupos que as expressam. Quando defendo que matar é errado,
tudo o que estou a dizer é que matar não é uma prática que aprovo porque tenho
associada a isso uma emoção negativa («Matar é errado» quer dizer apenas
«Matar nem pensar!», diria Ayer). E esta associação negativa é em parte
determinada pelo facto de eu ter sido criado num contexto em que matar sem
necessidade é condenado pela sociedade no seu todo. A conclusão de Ayer é que
a ética não deve ser vista como uma disciplina independente que emite
afirmações normativas, mas, ao invés, deve ser subordinada a ciências empíricas
como a psicologia ou a sociologia.
As ideias de Ayer sobre a ética são radicais e controversas. Para considerarmos
algumas alternativas à sua posição, teríamos de explorar o vasto debate
filosófico sobre a natureza dos factos éticos. Mas para o que aqui nos interessa, o
que é relevante é que, na sua opinião: 1) as afirmações científicas são afirmações
sintéticas que podem ser verificadas; 2) as afirmações éticas podem ser vistas
quer como afirmações sintéticas que não podem ser verificadas (e que portanto
são destituídas de significado e uma perda de tempo), quer como afirmações
sintéticas sobre preferências individuais ou sociais que podem ser estudadas
empiricamente pelas ciências psicológicas ou sociais.

Exercício: Das frases seguintes, quais representam a realidade e quais
expressam sentimentos ou preferências?

• A ansiedade conduz à depressão.
• Todos os acontecimentos têm uma causa.
• Jogar às cartas é uma perda de tempo.
• O sumo de cenoura faz bem porque contém vitamina C.
• Entrar em guerra foi um erro.

Hans Reichenbach (1951), outro positivista lógico, chega de maneira
independente a uma conclusão muito semelhante à de Ayer, e também o faz
reflectindo sobre a natureza daquilo que parecem ser afirmações éticas.
Argumenta que estas expressões linguísticas não são afirmações genuínas, pois
não descrevem como as coisas são, mas emitem directivas ou manifestam
desejos e, portanto, não podem ser verdadeiras ou falsas.

Dizer que matar é errado é ou equivalente ao imperativo «Não matarás!», uma
elocução linguística que as pessoas usam para influenciar ou controlar o
comportamento de outras, ou a expressão de uma preferência por um mundo
onde matar não existe. Enquanto as afirmações que podem ser verificadas têm
um significado empírico ou cognitivo, as directivas ou os desejos têm apenas um
valor instrumental, pois são uma maneira de o enunciador atingir algo que quer
ou de expressar uma preferência. A ética não é a «ciência do bem último»: não
contribui de modo algum para o conhecimento científico ou empírico e não é
sobre o bem último, o que quer que este seja. É uma expressão da vontade de um
indivíduo ou de um grupo de influenciar a conduta de outros.
Os positivistas lógicos têm ideias muito radicais sobre o estatuto da ética porque
tendem a ver toda a aquisição de conhecimento genuíno como uma tarefa
fundamentalmente empírica, e impõem a verificabilidade como uma condição
para o significado a todas as afirmações que não qualificam como analíticas. A
normatividade das afirmações éticas é por eles interpretada como uma ilusão
criada pela maneira como a linguagem é (quantas vezes impropriamente) usada.
Na sua maneira de ver as coisas, a análise dos enunciados linguísticos é um meio
de pôr a nu a alegada natureza das afirmações éticas, proporcionando uma
demarcação entre estas e as afirmações científicas legítimas.

1.1.3 A metafísica enquanto poesia

Como devemos pensar a distinção entre ciência e metafísica? Há um sentido no
qual tanto as ciências naturais como a metafísica apontam para uma melhor
compreensão da natureza. É interessante reflectir sobre a história da relação
entre a ciência e a metafísica, uma vez que pensadores que contribuíram tão
enormemente para o progresso da ciência como Isaac Newton ou Albert Einstein
expressaram pontos de vista metafísicos e trabalharam com base em
pressupostos metafísicos explícitos.
Para os positivistas lógicos, a diferença entre a ciência e a metafísica está nos
métodos pelos quais a investigação da natureza é conduzida e no significado das
alegações formuladas no âmbito destas disciplinas. Tomemos por exemplo o
filósofo grego Platão. Em muitos diálogos que escreveu, afirma que o mundo da
nossa experiência, incluindo as cadeiras em que nos sentamos, o Sol que vemos
a nascer e a pôr-se todos os dias, é apenas meio real. A realidade última é feita,
não de objectos materiais, mas de formas, ou ideias, que não podemos ver nem
tocar, pois habitam um mundo diferente do mundo da nossa experiência e não
podem ser apreendidas pelos nossos sentidos. Mas se as formas não podem ser
vistas ou tocadas, então não podemos saber com base nos nossos sentidos se
existem e se têm os atributos que Platão lhes imputa.
Os positivistas lógicos consideravam que alegações metafísicas como «O mundo
das Formas não pode ser apreendido pelos nossos sentidos» não tinham
significado empírico ou factual algum porque não eram analíticas e não eram de
modo algum baseadas na experiência. O seu ponto de vista é o de que a maioria
das alegações metafísicas não tem significado e conduz ao erro, uma vez que
essas afirmações empregam palavras que se referem comummente a objectos
que podemos apreender com os nossos sentidos para descrever objectos que, por
definição, estão fora ou além dessa experiência.
Rudolf Carnap (1935) compara uma afirmação sobre a existência das formas
platónicas a uma afirmação sobre a existência de cangurus. Observa que quando
os zoólogos afirmam que os cangurus existem, a sua asserção pode ser
verificada, uma vez que dela se segue que, em certos momentos e lugares,
podem ser observadas coisas de um certo tipo. A asserção de Platão segundo a
qual as formas existem é diferente, pois as formas nunca podem ser apreendidas.
Carnap pensa que afirmações metafísicas como «As formas existem numa esfera
sem espaço e sem tempo» não representam a realidade, e que portanto não
podem ser verdadeiras ou falsas. Ao contrário, elas expressam algo, como o
desejo de acreditar em entidades que não estão tão sujeitas à alteração e à
destruição como os objectos físicos. O desejo expresso por uma afirmação
metafísica não tem conteúdo científico nem teórico, podendo ser comparado ao
trabalho de um poeta. Há, contudo, uma diferença entre a atitude do metafísico e
a do poeta. O poeta sabe quando está a descrever sentimentos e desejos nos seus
escritos, ao passo que o metafísico está iludido, erroneamente convencido de que
está a contribuir para uma forma de conhecimento factual. A prova desta ilusão
está no facto de o metafísico se preparar para entrar numa discussão com outros
metafísicos sobre a verdade de alegações acerca de objectos ou propriedades que
não podem ser experienciados. Para Carnap, as alegações metafísicas são
expressivas e não representacionais, e apenas parecem ter conteúdo teórico para
aqueles que as advogam.

Discussão: A distinção de Carnap entre expressões de sentimentos e desejos e
afirmações representacionais é convincente? É útil?

Karl Popper (1959, 2002) discorda da ideia positivista lógica de que as
afirmações metafísicas não têm mas hipóteses metafísicas tiveram uma
importante influência no desenvolvimento de hipóteses científicas. Dá o
exemplo do atomismo. A teoria de que toda a matéria é composta por partes
indivisíveis («átomos») surgiu na Grécia antiga e foi primeiramente formulada
por Leucipo (c. 500 a. C.) e Demócrito (460-370 a. C.). Esta teoria foi resultado
da especulação filosófica, desenvolvendo-se como uma tentativa de resolver
paradoxos sobre o movimento e a alteração. Permaneceu uma hipótese
metafísica sobre a natureza da realidade durante muito tempo: no século xvii,
foram articuladas diferentes versões a partir dela, pelos filósofos que se
interessavam pela natureza e composição últimas da matéria.
Pode dizer-se que a partir do século xix o atomismo passou a ser uma hipótese
científica, desenvolvida por John Dalton na química orgânica e por James
Maxwell no que respeita à teoria cinética dos gases. No século xx, a existência
de átomos deixou de ser uma questão controversa. É claro que os átomos cuja
existência nós hoje aceitamos são descritos de uma maneira muito diferente dos
átomos de que Leucipo e Demócrito primeiramente falaram, mas pode dizer-se
que o atomismo enquanto hipótese científica não teria surgido na ausência da
tradição metafísica anterior. Popper considera isto como um caso difícil para
quem insiste que as hipóteses metafísicas não têm um significado
representacional. Defende que mesmo os mitos podem derivar em hipóteses que
estão sujeitas ao teste empírico: o sistema copernicano, por exemplo, inspirou-se
no fascínio neoplatónico pela luz emitida pelo Sol.
O modo como a natureza de uma alegação metafísica é considerada é
parcialmente explicado pela maneira como ela é justificada. Metafísicos da
Grécia antiga como Demócrito e Platão não conduziram experiências nem
basearam as suas ideias numa série de observações exaustivas. Chegavam às
suas conclusões unicamente pela razão, com argumentos para os seus pontos de
vista que normalmente não incluíam afirmações empíricas como premissas. Os
metafísicos contemporâneos estão menos virados para a especulação sobre um
mundo de objectos e propriedades inobserváveis, preferindo compreender a
realidade de uma maneira que seja compatível com as teorias físicas actualmente
aceites, e que por vezes até funcione como um auxiliar conceptual para as
mesmas. Um exemplo desta interacção entre a metafísica e a física é o estudo da
natureza do tempo, que foi informado e inspirado pela teoria da relatividade, e as
suas importantes consequências para a noção de realidade do senso comum.


Ainda que em metafísica não esperemos que os investigadores montem
experiências e encontrem confirmação empírica para todas as afirmações nas
suas teorias, a verdade é que alguns metafísicos iriam ter em conta o que a física
deu a conhecer sobre a estrutura da realidade, elucidariam os conceitos
envolvidos na explicação dada pelas teorias científicas aceites e aprofundariam a
nossa compreensão desses conceitos (Ladyman et al. 2007). Pese embora isto, o
debate sobre o papel da metafísica é ainda extremamente acalorado, e as
tradições filosóficas diferem no que respeita à maneira como a relação entre a
ciência e a metafísica é concebida.

Exercício: É capaz de dar exemplos de hipóteses que são consideradas
científicas mas que não têm bases empíricas? Deveriam estas hipóteses ser
consideradas científicas?

1.2. Ciência e pseudociência

Os positivistas lógicos proporcionaram o critério de verificabilidade como um
critério para o significado das afirmações: uma afirmação tem significado se for
sintética e puder ser verificada por meio da experiência ou se for analítica. As
afirmações científicas genuínas (por exemplo, «Fumar muito aumenta a
probabilidade de se contrair cancro do pulmão») parecem satisfazer o critério,
pois são afirmações sintéticas que podem ser verificadas, mas muitas alegações
éticas e metafísicas parecem sintéticas e no entanto não podem ser verificadas
por meio da experiência, pelo que falham no teste do significado.
As coisas são mais complicadas do que a clara distinção avançada pelos
positivistas lógicos podia sugerir. Segundo Schlick, nas suas conferências
«Forma e Conteúdo» (1938), a afirmação de Descartes de que «Só os seres
humanos são dotados de consciência» não pode ser empiricamente verificada.
No entanto, a questão de querermos considerar as afirmações sobre a consciência
como metafísicas ou outra coisa depende do tipo de justificação que podemos
dar para as aprovarmos. Se temos uma definição de consciência que torna
impossível a outros seres que não os humanos serem conscientes, então a
alegação é uma afirmação analítica. Mas se a definição de consciência não exclui
a priori que os seres não humanos podem ser conscientes, a alegação de
Descartes é considerada sintética e podemos facilmente imaginar formas
cientificamente respeitáveis de lhe dar uma justificação.
Suponhamos que pensávamos que algumas regiões do cérebro humano estavam
envolvidas em alguma experiência que consideramos consciente, e que também
soubéramos que tais regiões eram significativamente diferentes nos cérebros dos
animais não humanos, ou que estes não as tinham de todo. Em tais
circunstâncias, teríamos algumas bases empíricas para avaliar a verdade de
alegações sobre a consciência em seres não humanos. A alegação de Descartes
passaria a ser uma afirmação sintética verificável.
Schlick pensou que este era um bom exemplo de uma afirmação metafísica não
verificável porque assumiu que o filósofo que a tinha avançado, Descartes, não a
justificou com base em dados empíricos que podia ter verificado (embora
Descartes fosse um vivisseccionista nato e tivesse muitos conhecimentos
práticos de fisiologia animal). O exemplo mostra, porém, que a distinção entre o
que pode ser verificado e o que não pode ser verificado não é algo estabelecido
de forma definitiva, e que problemas aparentemente intratáveis podem tornar-se
mais abertos à investigação empírica graças aos avanços da ciência e da
tecnologia.
Foram feitas outras críticas ao critério de verificabilidade enquanto critério de
significado, e também enquanto critério de demarcação. Há dúvidas de que o
critério possa ser suficiente para distinguir afirmações que pertencem a teorias
genuinamente científicas de afirmações que não lhes pertencem. Por exemplo, o
critério parece não ter os recursos para discriminar as afirmações sintéticas que
fazem parte de uma teoria física respeitável das de um horóscopo semanal. A
maioria das alegações dos astrólogos é indubitavelmente sintética, e algumas
alegações são até sujeitas a verificação. Estas afirmações satisfazem o critério do
significado, e no entanto resistimos a aceitá-las como científicas, considerando
muitas vezes que são falhas em justificação e base empírica. Portanto, temos de
procurar noutro lado uma maneira de delimitar o abismo que se considera existir
entre a física e a astrologia.

Exercício: Antes de continuar a ler, tome algumas notas sobre as principais
diferenças entre a física e a astrologia.

1.2.1. Será a astrologia falsificável?

Um contributo fundamental para o problema clássico da demarcação foi dado
por Popper (1959, 2002), que era da opinião de que a ciência é diferente da
pseudociência no sentido em que visa a produção de hipóteses falsificáveis.
Popper não está convencido de que, no contexto da demarcação, fazer apelo à
possibilidade de verificação seja satisfatório. A sua sugestão de uma estratégia
alternativa é baseada na observação de que as afirmações gerais nunca podem
ser verificadas pela experiência, uma vez que seria necessário um número
infinito de observações. Quantas observações de cisnes brancos são necessárias
para verificar a afirmação «Todos os cisnes são brancos»? Afirmações gerais na
forma «Todos os X são Y» dizem respeito a casos passados, presentes e futuros
de X, e portanto nenhum número de observações de X constituiria prova
suficiente para estabelecer com certeza a verdade dessa afirmação geral. E claro
que se eu observo cem cisnes e são todos brancos, é razoável que espere que o
próximo cisne que vou observar também seja branco. Porém, como sabemos, a
observação de um cisne negro numa viagem à Austrália pode ser reveladora. A
existência de apenas um caso em que X não é Y prova que afinal de contas a
afirmação geral é falsa.
O ponto de partida para a introdução da noção de falsificação é o de que uma
única experiência pode contradizer a previsão baseada numa hipótese geral, e
que isto é suficiente para provar que a hipótese é falsa. Segundo Popper, só as
hipóteses científicas são falsificáveis desta maneira, ao passo que as teorias
pseudocientíficas e as teorias metafísicas são imunes ao fracasso empírico. Por
este motivo, pensava que o apelo à falsificabilidade era a forma mais promissora
de distinguir a ciência da não-ciência. Ora será que esta maneira de ver as coisas
pode explicar o estatuto pseudocientífico da astrologia?
Popper (1963) defende que há uma diferença importante entre a) prever indícios
observacionais com base numa dada teoria e b) modelar os indícios de modo a
serem compatíveis com a teoria. A primeira prática caracteriza os
empreendimentos científicos saudáveis, ao passo que a última é típica das
pseudociências. Segundo Popper, uma boa teoria científica é incompatível com a
ocorrência de certos eventos, e por conseguinte impede que certas coisas
aconteçam. Neste sentido, a ciência é uma coisa arriscada. Popper ilustra este
argumento com o exemplo da teoria da relatividade de Einstein. As previsões
que a teoria nos permite fazer são passíveis de confirmação e infirmação, e se
forem infirmadas a teoria não terá um futuro risonho.
Eis outro exemplo de uma previsão arriscada. Suponha que está a considerar um
modelo de flutuações do mercado de acções segundo o qual de cada vez que há
instabilidade política num país, os preços das acções caem. Com base neste
modelo, prevê que da próxima vez que haja instabilidade política em Itália, os
preços das acções na Bolsa de Milão cairão. Se a sua previsão não se verificar, o
modelo foi falsificado.
Ao contrário de uma teoria científica, que faz previsões arriscadas, as teorias
pseudocientíficas são praticamente irrefutáveis. Não há indícios que possam ir
contra estas teorias e levar-nos a rejeitá-las, pois são formuladas de uma maneira
ambígua ou podem ser modeladas de modo a acomodar todos os indícios
aparentemente contrários. Um dos exemplos preferidos de Popper é a
psicanálise. Qualquer observação clínica pode ser interpretada à luz da teoria, e
nenhum exemplo de comportamento humano poderia claramente contradizer as
hipóteses construídas com base na teoria. A astrologia também encaixa nesta
descrição: as suas previsões são frequentemente formuladas em termos tão
gerais, que nenhum acontecimento futuro poderá claramente contradizê-las, o
que garante imunidade à teoria.
Suponha que ainda está interessado em prever o comportamento do mercado de
acções. Desta feita usa um modelo diferente, que lhe diz que de cada vez que há
estabilidade política num país, o custo das acções altera-se — mas não lhe diz se
sobem ou descem. Este modelo ainda é arriscado (pois seria falsificado se os
preços das acções continuassem exactamente os mesmos durante um período de
instabilidade política), mas é menos arriscado do que o modelo que antes
considerámos, pois não especifica como os preços mudam, e por conseguinte é
imune a alguns casos de infirmação empírica. Para Popper, o modelo seria
pseudocientífico se não houvesse circunstâncias nas quais pudesse fazer
previsões que acabariam por ser falsas. Resumindo, para Popper, as
pseudociências não estão genuinamente abertas à falsificação, uma vez que é
óbvio que nenhum evento é por elas excluído.

Exercício: Faça alguma investigação sobre duasdas seguintes actividades —
homeopatia; frenologia; arqueologia; ovnilogia; psicologia evolucionária —, e
em seguida decida se satisfazem os critérios de pseudociência de Popper.

Os críticos de Popper puseram em causa a falsificabilidade enquanto critério de
demarcação entre ciência e pseudociência com base no facto de alguns
elementos de uma teoria científica (como as leis na física teórica) não serem
directamente falsificáveis, ao passo que uma pseudociência como a astrologia
pode gerar afirmações falsificáveis. Se estes críticos estiverem certos, então a
falsificabilidade não é nem suficiente nem necessária para a demarcação.
Não é suficiente porque parece haver hipóteses falsificáveis que não são
científicas. Por exemplo, Paul Thagard (1978) relata algumas tentativas de
confirmar empiricamente, por meio de métodos estatísticos, a ideia de que a
posição dos planetas no momento do nascimento está correlacionada com a
escolha da actividade da pessoa na sua vida futura. Ora, descobrir que o
nascimento de uma pessoa não está correlacionado com a sua posterior
ocupação, como as teorias astrológicas indicam, pode em princípio constituir
uma falsificação da teoria.
A falsificabilidade não é sequer um critério necessário da demarcação. Alan
Chalmers (1999) recorda-nos que o fracasso de uma previsão nem sempre indica
que uma teoria científica está afinal errada. Como veremos quando discutirmos
as teorias científicas nos capítulos 3 e 5, mesmo que as observações pareçam
contradizer os princípios de uma teoria, na prática da ciência por vezes é
perfeitamente aceitável conservar a teoria, e, ao invés, modificar as hipóteses
auxiliares que precisamos de combinar com a teoria, de modo a torná-la testável
(Lakatos 1970; Kuhn 1962,1970; Kuhn 1996). Pode haver hipóteses científicas
que, de tão acerrimamente defendidas pelos cientistas que as testam, são feitas
para resistir a tentativas de falsificação perante previsões inexactas.

1.2.2 Factores dependentes do contexto na demarcação

Inspirado pela análise histórica e social da ciência feita por Kuhn, Thagard
concorda com Popper no ponto em que a astrologia é uma pseudociência, mas
defende que as razões pelas quais a astrologia é uma pseudociência não se
esgotam na aplicação do critério de falsificabilidade. Para determinarmos o
estatuto de uma disciplina, também precisamos de examinar algumas
características da comunidade daqueles que a praticam, bem como o contexto
histórico no qual estas investigações são conduzidas. Uma disciplina científica
saudável possui uma comunidade de praticantes que, em grande medida,
concorda com os principais princípios e métodos que a caracterizam. Os
praticantes ficam seriamente preocupados com indícios aparentemente
infirmantes, tentam encontrar soluções para a inadequação entre a teoria e os
dados e envolvem-se activamente no teste rigoroso da teoria. Quer o estádio do
desenvolvimento da disciplina, quer o reconhecimento da existência de uma
competição, são importantes para o seu estatuto enquanto ciência. Será que a
teoria dominante se tem estado a debater há muito com aparentes contra-provas?
Haverá outras teorias que possam explicar os fenómenos relevantes de uma
maneira mais satisfatória?
Segundo Thagard, a razão pela qual a astrologia está em má forma hoje em dia
deve-se ao facto de os seus praticantes não terem feito progressos significativos
durante algum tempo e de agora termos formas mais bem-sucedidas e fiáveis de
explicar o comportamento humano no âmbito da psicologia cognitiva e social.
Thagard não exclui que, em certo momento no passado, como por exemplo antes
do desenvolvimento da psicologia, a astrologia pudesse ser considerada capaz de
proporcionar uma explicação e uma previsão científica genuínas sobre o
comportamento humano. Actualmente, porém, os praticantes da astrologia não
fazem esforço algum para desenvolver soluções para os problemas que a
disciplina enfrenta, não se empenham no teste rigoroso das suas teorias, parecem
ser selectivos na maneira como consideram os indícios que apoiam ou
contrariam as suas alegações e não comparam o seu enquadramento explicativo
com enquadramentos explicativos alternativos. Segundo Thagard, estes sintomas
sugerem que hoje em dia a astrologia não consegue obter o estatuto de ciência.

Discussão: Concorda com a ideia de que o contexto n/ histórico é importante
para se saber se uma disciplina é considerada genuinamente científica? A título
de exemplo, considere a química e a psicologia.

1.2.3 «Vale tudo»

Na edição de Setembro/Outubro de 1975 da revista The Humanist surgiu uma
declaração sobre a astrologia subscrita por 186 cientistas e eruditos. Nela,
defendiam que os conceitos modernos da astronomia e da física, bem como a
ciência da psicologia, não sustentavam de modo algum a ideia de que a posição
dos planetas pode afectar a vida e o comportamento dos seres humanos.
Paul Feyerabend (1979) defende que a declaração não contém argumento algum
convincente que apoie a ideia de que a astrologia é menos respeitável do que
qualquer outra das disciplinas mencionadas. Feyerabend admite que, em grande
parte, a prática contemporânea da astrologia tem como objectivo «impressionar
o ignorante» e não constitui um exemplo de investigação progressiva, mas
contesta a maneira como os cientistas proeminentes envolvidos na declaração
tentam ridicularizá-la. Na declaração, defende-se que a astrologia surgiu da
magia, e que os seus princípios originais não são de modo algum confirmados
pela ciência contemporânea. Feyerabend responde que se isto é uma objecção,
então é uma objecção ao estatuto científico não apenas da astrologia, mas
também de muitas outras disciplinas que são normalmente consideradas
exemplos paradigmáticos de ciência. A alquimia, que não era desprovida de
referências mágicas, é a precursora da química moderna.
Feyerabend (1975) defende um ponto de vista segundo o qual a ciência é apenas
uma tradição de pensamento entre muitas outras, e que não é caracterizada por
um qualquer tipo de regras metodológicas próprias e rígidas. O desenvolvimento
histórico da ciência mostrou que foram feitos vários tipos de abordagens a
questões a que hoje chamamos científicas, e que foi precisamente esta variedade
de métodos que tornou o progresso possível. Referindo-se a alguns exemplos de
prática científica em diferentes disciplinas e em diferentes épocas, Feyerabend
tenta mostrar que estamos enganados quando pensamos que um único método
unifica todos os empreendimentos da ciência. Ao invés, defende que as Leis da
Razão que comummente consideramos como parte do método científico,
incluindo a ideia de que as teorias científicas estão estreitamente relacionadas
com a realidade por via da observação e das experiências, são apenas uma
reconstrução racional post hoc (Locução latina que significa literalmente «depois disso». Não
confundir com a falácia post hoc ergo propter hoc [depois disso; logo, por causa disso], por vezes
abreviadamente referida como post hoc - N. do R.) da metodologia científica e são
divulgadas para fins de propaganda política.
Nas nossas sociedades, argumenta Feyerabend, os cientistas têm um poder que
lhes é conferido com base no facto de serem depositários de um método racional
para investigar a realidade. Para conservarem o seu poder, dão uma imagem
distorcida da sua maneira de pensar como superior, pondo de parte tradições de
pensamento alternativas. No capítulo 5, passaremos em revista e avaliaremos os
argumentos a favor e contra a racionalidade do progresso científico, e
discutiremos estes assuntos com maior pormenor. Em especial, pensaremos
sobre a questão de saber se pode haver critérios objectivos para classificar
diferentes metodologias, e se a ciência contemporânea nos dá realmente um
estilo de pensamento que é superior ao de outras tradições de pensamento. Para a
presente discussão, porém, será suficiente dizer que pensadores como
Feyerabend são da opinião de que não é possível encontrar um critério de
demarcação coerente e satisfatório entre ciência e não-ciência.

Exercício: Enuncie três razões a favor e três razões contra a negação de
Feyerabend da supremacia metodológica da ciência.

1.3 Ciências naturais e sociais

A questão do estatuto das ciências sociais, de saber se são exemplos genuínos de
ciência, parece girar em torno da comparação entre a sua metodologia, dada a
natureza dos fenómenos que estudam, e a metodologia da física. Ora, será que
podemos realmente encontrar elementos de continuidade suficientes entre a
economia e a física para considerarmos ambas ciências? Popper (1957) distingue
duas abordagens à distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais: o
naturalismo e o antinaturalismo.
De acordo com a perspectiva antinaturalista, há um abismo entre as
metodologias da física e da sociologia. Eis uma listagem parcial de alguns dos
factores que sugerem uma profunda desanalogia:

• Generalizações. Nas ciências físicas fazemos generalizações a partir de factos
particulares para chegarmos a verdades universais com base no pressuposto de
que existem algumas regularidades na natureza. Na sociologia, porém, este
procedimento não é frutífero, pois as circunstâncias são peculiares de um
momento histórico no tempo, e ignorar este aspecto seria ignorar o facto de a
sociedade estar em constante evolução.
• Experiências. Na física, as experiências representam uma maneira de isolarmos
um fenómeno para podermos controlar algumas variáveis e nos centrarmos num
número limitado de factores relevantes. Na sociologia, este método não
funcionaria, uma vez que não há um princípio para decidir que factores são
relevantes para as questões a que se deve responder numa investigação. Além
disso, em física as experiências podem ser repetidas em diferentes laboratórios e
podem obter-se os mesmos resultados, ao passo que na sociologia as
observações sãosempre únicas, pois dependem das características do facto
observado.
• Complexidade. Os factos sociais são complexos, não só porque as variáveis não
podem ser facilmente controladas em situações artificiais, devido à sua
contingência histórica, mas também porque as vidas mentais são importantes
para o desenvolvimento da sociedade, e para se compreender o papel explicativo
das vidas mentais têm de ser invocados factos psicológicos e biológicos.
• Previsão. O ponto é: embora seja possível fazer previsões em sociologia, é
extremamente difícil, devido à complexidade dos factos sociais, mas também ao
efeito que o fazer uma determinada previsão pode produzir no facto que será
previsto. Por exemplo, prever que um banco enfrentará uma crise financeira
produz um efeito nos consumidores que confiaram as suas poupanças a esse
banco. E provável que retirem o seu dinheiro do banco com medo de o
perderem, comprometendo assim ainda mais a situação financeira da instituição.
• Objectividade. Toda a relação entre a pessoa que observa aquele facto e o facto
observado é uma questão que, até certo ponto, também diz respeito às ciências
naturais, mas que parece mais premente no caso das ciências sociais. O sujeito
que tenta dar uma explicação para um facto social não está fora do facto, numa
posição de neutralidade; muitas vezes, está incorporado nele. Uma consequência
extrema desta alegação é que, diferentemente da física, na sociologia o objectivo
do cientista não é revelar verdades, mas originar uma nova fase de
desenvolvimento social.
• Holismo. A partir do que os antinaturalistas dizem sobre a complexidade e a
inadequação das experiências nas ciências sociais, há uma outra questão que
afecta a esfera da previsão e da explicação: o holismo. A ideia é que, em física,
um agregado pode ser apenas a soma das suas partes, mas um grupo social é
sempre mais do que a soma dos seus membros, porque as relações pessoais
podem facilmente alterar a dinâmica e o comportamento do grupo. O próprio
grupo terá a sua história, que não se esgota na história pessoal dos seus
membros. Isto significa que quando tentamos dar uma explicação ou fazer uma
previsão em ciências sociais temos sempre de tomar atenção a como
acontecimentos ou interacções particulares, que parecem ter consequências
muito limitadas e confinadas, determinam alterações em toda a estrutura do
fenómeno social a estudar; e não podemos oferecer explicações ou previsões
localizadas, mas temos sempre de analisar a totalidade dos factos sociais
relevantes.
• Compreensão. Como fazemos quando queremos compreender factos? Se os
factos forem naturais, provavelmente procuraremos o que os causou. Se forem
factos sociais, diz o antinaturalista, procuraremos o significado e a finalidade.
Enquanto o primeiro objectivo, a explicação causal, pode ser posto em prática
pela observação de regularidades e generalizações, o último, a compreensão,
requer imaginação e empa tia.

Exercício: Que outras possíveis diferenças metodológicas entre as ciências
naturais e sociais consegue imaginar?

1.3.1 Leis e experiências nas ciências sociais

Popper discorda fortemente da posição antinaturalista, defendendo uma maior
continuidade entre as metodologias das ciências naturais e sociais. Argumenta
convincentemente que a comparação antinaturalista entre a física e a economia,
ou entre a física e a sociologia, se baseia numa imagem positivista cândida e
demasiado simplificada de como a comunidade científica se dedica ao estudo da
natureza.
Ainda que possa ser verdade que as generalizações em sociologia assumem uma
forma diferente das da física, também é verdade que ambas podem ser
interpretadas como leis ou hipóteses que estabelecem uma proibição. Eis dois
dos exemplos do próprio Popper: «Não se pode construir uma máquina de
movimento perpétuo», ou: «Não se pode ter emprego para todos sem inflação.»

Exercício: Consegue imaginar outros exemplos de proibições estabelecidas por
generalizações nas ciências sociais?

Popper também defende que a ênfase no holismo está mal pensada, da mesma
maneira que a rejeição da metodologia daquelas experiências que pretendem
encontrar regularidades em alguns aspectos do desenvolvimento social em vez
de na sociedade como um todo. Refere que há exemplos bem-sucedidos de
experiências fragmentárias que são relevantes para a articulação de teorias
sociológicas.
Pensemos na famosa experiência sobre a obediência à autoridade conduzida por
Stanley Milgram em 1974 (a que voltaremos no capítulo 6). Num cenário
experimental, mostrou que as pessoas estão fortemente inclinadas a obedecer a
figuras de autoridade que lhes dizem o que fazer, mesmo que esse pedido
implique agir de uma maneira considerada moralmente objectável. Milgram
queria compreender melhor o que tinha acontecido na Alemanha nazi, onde
ocorrera uma indignação relativamente moderada quanto à maneira como as
pessoas e as comunidades judaicas tinham sido perseguidas. A sua hipótese é
muito geral, uma vez que pode ser aplicada a diferentes pessoas em diferentes
sociedades e em diferentes contextos históricos: as pessoas têm dificuldade em
desobedecer a ordens dadas por figuras de autoridade. E, no entanto, a
experiência foi conduzida num laboratório, com a metodologia de investigação
da psicologia social do seu tempo. Os resultados experimentais confirmaram a
hipótese e geraram um debate acalorado sobre as constantes do comportamento
humano, contribuindo assim para uma melhor compreensão da dinâmica da
obediência e da resistência em regimes autoritários.

Exercício: Conhece outras experiências que tenham sido importantes para as
ciências sociais?

Experiências como a de Milgram podem contribuir para a aquisição de
conhecimento generalizável. O método utilizado, diz Popper, é o método que
recomenda para todas as ciências: tentativa e erro. Tentamos resolver um
problema dada uma certa hipótese e podemos falhar ou ser bem-sucedidos, mas
o que realmente importa é que aprendemos com os erros que cometemos. Se a
hipótese não parece funcionar, é revista ou rejeitada, e são feitos novos testes. A
dificuldade de abordarmos as experiências de uma maneira holística é que se
testamos hipóteses que dizem respeito à sociedade como um todo e fracassamos,
torna-se extremamente difícil saber exactamente qual foi o erro. Ao invés, isolar
variáveis, quando isso é possível, parece ser útil tanto nas ciências físicas como
nas sociais.
Há também outros elementos de continuidade no que respeita à questão da
experimentação. Tanto na física como noutras ciências, há experiências
potencialmente muito reveladoras que não podem ser conduzidas devido a
limitações metodológicas ou tecnológicas. Nestes casos, os cientistas têm muitas
vezes de fazer as experiências na sua cabeça e usar a sua imaginação para prever
o que poderiam ser os resultados, em vez de conduzir as experiências
propriamente ditas (como veremos no próximo capítulo). Nem mesmo no que
respeita ao uso comum de experiências mentais parece haver um abismo entre as
ciências naturais e sociais.
Harold Kincaid (2004) defende um ponto de vista naturalista, alegando que pode
haver leis nas ciências sociais. Porém, a sua perspectiva é diferente da de Popper.
Em vez de identificar as leis com afirmações que estabelecem uma proibição,
descreve-as como afirmações que identificam factores causais relevantes. A
complexidade dos fenómenos sociais não parece ser um obstáculo à
identificação de factores causais que contribuem para uma explicação de factores
sociais. Para Kincaid, não há uma boa razão para pensar que a noção de
compreensão em ciências sociais tem de ser concebida como marcadamente
diferente da noção de explicação causal nas ciências físicas.
O ponto de vista antinaturalista afirma que nas ciências sociais os «objectos»
investigados são pessoas com livre-arbítrio e com a sua maneira de
conceptualizar o mundo, não são matéria inerte. E isto que determinará o tipo de
explicação procurada para o comportamento estudado. O comportamento
humano, diz ainda este ponto de vista, não pode ser explicado com os mesmos
princípios do comportamento dos objectos físicos, requerendo um esforço de
interpretação que tem em conta as perspectivas das pessoas cujo comportamento
é estudado (Taylor 1971). Kincaid não pretende excluir que alguns factos sociais
(como um ritual, por exemplo) sejam mais bem explicados fazendo referência ao
seu significado em vez de àquilo que os originou, mas isto não significa que a
procura das causas esteja condenada ao fracasso ou seja irrelevante para as
finalidades da explicação nas ciências sociais. Afinal de contas, o que as ciências
sociais procuram estudar é não apenas o comportamento de alguns indivíduos
em algum momento, mas também a natureza das instituições e o
desenvolvimento de fenómenos em larga escala (e frequentemente recorrentes).
Por vezes pode ser necessária uma compreensão empática para ver uma
determinada situação da mesma maneira que as pessoas que estão nela
incorporadas, mas esta actividade interpretativa não exclui outros métodos para
averiguar a perspectiva de um sujeito, que se baseiam na psicologia humana, por
exemplo, e que podem conduzir a conclusões em certa medida generalizáveis.

1.4 O que é a investigação científica?

Abordaremos agora a questão da demarcação a partir de um ângulo diferente.
Em vez de procurarmos uma explicação da ciência como um corpo de
conhecimento unificado e estático ou uma explicação do que faz uma disciplina
ser científica, consideremos outro projecto de demarcação. O que caracteriza
uma actividade humana como uma instância de investigação científica? Três
conjuntos distintos de questões parecem surgir quando consideramos respostas
possíveis para esta pergunta. Primeiro, uma actividade considerada como
investigação possui uma dimensão metodológica e é sistemática em vez de
aleatória. Segundo, uma actividade considerada como investigação tem uma
função específica e visa contribuir para um corpo de conhecimento. Terceiro, as
actividades consideradas investigação científica possuem alguns aspectos
sociológicos em comum, tais como o papel que os cientistas desempenham na
resolução de disputas sobre questões empíricas ou a maneira como as novas
gerações são formadas em ciências.

Exercício: A dimensão sociológica da investigação não será aqui explorada,
mas poderá reflectir e discutir sobre as seguintes questões: 1) A investigação é
acessível a qualquer pessoa, ou será necessário algum tipo de formação ou
estatuto? 2) É importante o local onde a investigação é conduzida, o modo como
é financiada ou se se enquadra num projecto mais alargado que é reconhecido
por uma comunidade de investigadores?

1.4.1 Questões processuais

Há várias questões processuais que são relevantes para a demarcação das
actividades de investigação. As actividades de investigação tendem a ser
sistemáticas e a seguir um método cujas prescrições dependerão em muito da
disciplina no âmbito da qual a investigação é conduzida. Enquanto as ciências
naturais e sociais podem requerer testes empíricos rigorosos, outras disciplinas
podem requerer que as suas práticas correntes sejam apenas transparentes e
abertas à crítica racional.
Quando pensamos nas questões de procedimentos tradicionais, parece que
encontramos uma tensão reflectida no desenvolvimento da filosofia da ciência
do século xx. Por um lado, a ciência está de tal modo compartimentada e os
procedimentos científicos variam tanto, que talvez só as comunidades científicas
especializadas possam determinar se uma actividade particular se conforma às
exigências tantas vezes abstractas da metodologia actualmente aceite. Por
exemplo, Max Black (1954, cap. i) observa que quando falamos em metodologia
científica em geral tendemos a abstrair a partir do que sabemos sobre física, mas
que na astronomia não há experiências e que a geografia é em grande medida
descritiva. Tal sugere que não se espera encontrar uma descrição muito
pormenorizada do método científico que se adeqúe a todas as ciências. Por outro
lado, para a compreensão por parte do público e para a delineação de políticas,
torna-se necessária alguma espécie de critério de demarcação. Embora não seja
realista aspirar a descrever um método definitivo para todas as disciplinas que
possa ser considerado científico, existem elementos metodológicos
aparentemente essenciais que nos ajudam a distinguir a investigação de outras
actividades. Falar de uma metodologia científica parece erróneo não apenas
devido à diversificação das disciplinas científicas, mas também porque o método
usado na investigação científica, assim como as teorias científicas a que se
chegou por via desse método, podem ser passíveis de revisão.
Em termos muito genéricos, há duas exigências metodológicas que parecem
aplicar-se a toda a actividade que gostaríamos de considerar investigação
científica. Primeiro, a investigação científica deve ser conduzida de uma maneira
que permita o cotejo com a realidade, ou seja, os testes devem fazer parte do
processo de chegar a conclusões e de justificá-las. Segundo, quer as conclusões a
que se chegou, quer os passos do raciocínio necessários para a elas se chegar,
devem ser transparentes e passíveis de serem criticados.
Estes dois pontos parecem adequar-se a alguns dos requisitos sugeridos por
Popper e Thagard no que toca às diferenças percebidas entre a prática da física e
da astrologia. Mas note-se que enquanto os requisitos de sensibilidade aos dados
empíricos, de transparência e de abertura à crítica racional eram tradicionalmente
explicados nos termos da distinção entre disciplinas ou corpos de conhecimento,
agora tentamos identificar se algumas actividades serão instâncias de
investigação científica.

Exercícios: 1) Ilustre com alguns exemplos a maneira como os requisitos
processuais antes descritos são aplicados pela ciência natural ou social com que
está mais familiarizado. 2) Consegue imaginar outras actividades que se
adeqúem a estes requisitos processuais mas que não sejam manifestamente
exemplos de investigação científica?

1.4.2 Questões funcionais

É completamente incontroverso que a principal finalidade da investigação seja
contribuir para um corpo de conhecimento, mas nem todos concordam na
definição com maior pormenor do tipo de conhecimento que a investigação
pretende produzir. Por exemplo, quando anteriormente falámos sobre as
possíveis diferenças entre as ciências naturais e sociais, perguntámos se os
resultados produzidos no decurso de uma investigação da estrutura ou da história
da sociedade humana podiam ser generalizados. Uma ideia comum é que, para
que a investigação seja considerada um exemplo de investigação científica
genuína, os seus resultados precisam de ser generalizáveis, e que toda a
investigação que não produz resultados generalizáveis não consegue ser
científica. Focar-nos-emos aqui noutro requisito: a novidade.
Parece ser consensual classificar a confirmação de resultados e a reorganização
de dados anteriormente conhecidos como investigação quando a confirmação é
necessária e quando há um elemento de originalidade ou novidade na actividade.
Este elemento de originalidade pode ser esgotado pela possibilidade de se tirar
mais conclusões ou de se fazer mais generalizações a partir do mesmo corpo de
dados, reorganizando ou reinterpretando os dados à luz de novos pressupostos
teóricos. Para Imre Lakatos (1970), que retrata a ciência como a sucessão
dinâmica de programas de investigação e não como o agrupar de afirmações
teóricas, um programa de investigação é científico se for progressivo. Para que
seja progressivo no que respeita a um estádio prévio de desenvolvimento
científico, o programa de investigação tem de ter pelo menos o mesmo conteúdo
empírico e tem de ser capaz de proporcionar uma explicação para os mesmos
fenómenos de uma maneira pelo menos igualmente satisfatória. Além disso, tem
de fazer novas previsões que possam ser confirmadas pela experiência. Um
programa de investigação é degenerativo (isto é, é ainda ciência, mas não uma
ciência muito boa) se as novas previsões que são feitas não são confirmadas pela
experiência.
Embora a perspectiva de Lakatos tenha sido até agora extremamente influente no
âmbito do estudo da metodologia científica, têm sido levantados alguns
problemas no que respeita à noção de novos factos e novas previsões. Os factos e
as previsões devem ser novos em relação a quê? A literatura apresenta respostas
diferentes, que variam entre a novidade temporal e a novidade da interpretação.
As consequências do tipo de novidade que escolhemos são muito importantes
para a definição dos programas de investigação progressivos. A novidade
temporal requer apenas que os factos que antes não eram considerados prováveis
possam agora ser previstos. Ao contrário, a novidade da interpretação é bastante
mais fraca, requerendo apenas que os factos antigos sejam revisitados e
reavaliados pelo programa de investigação. O tipo de novidade requerida para
que uma actividade seja considerada investigação original é uma questão difícil,
e as respostas podem variar, dependendo dos objectivos de uma disciplina
científica ou mesmo do estádio de desenvolvimento dessa disciplina. Porém,
para a finalidade muito geral da nossa discussão aqui, a novidade da
interpretação parece ser necessária para que uma actividade seja considerada
investigação original.

Exercício: Quais das seguintes considerações poderiam originar um critério
funcional para a investigação científica: um maior poder explicativo; estimular
o debate num campo de investigação; pôr em causa ideias preconcebidas; ter
aplicações tecnológicas significativas; ser compatível com outros programas de
investigação bem-sucedidos; gerar resultados num vasto leque de fenómenos
inter-relacionados?

Discussão: Que outros critérios funcionais acrescentaria à novidade?

1.4.3 A delimitação da investigação

De que maneira podemos combinar as considerações anteriores sobre as
dimensões funcionais e processuais da investigação para chegarmos a uma
explicação da demarcação? A investigação científica é uma actividade humana
que visa contribuir, de modo inovador, para um corpo de conhecimento coerente
por via da adopção sistemática de um método crítico. Há duas maneiras de
identificar a função de uma actividade: subjectivamente, olhando para as
intenções primárias das pessoas envolvidas na actividade; objectivamente,
olhando para aquilo que efectivamente os resultados da actividade acrescentam.
Em muitos casos coincidem, mas por vezes as pessoas ou os grupos que
pretendem adoptar um método crítico ou contribuir para um corpo de
conhecimento coerente de uma nova maneira não conseguem fazê-lo.
O propósito de uma actividade pode contribuir para a compreensão das razões
subjacentes ao comportamento humano, o que é visto como um objectivo
científico legítimo, sem que nenhum método crítico e transparente seja adoptado
— alguns diriam que escrever horóscopos diários se insere nesta categoria. Uma
actividade pode ser conduzida por via de um método crítico sem visar alargar um
corpo de conhecimento de uma maneira nova — por exemplo, o trabalho de um
aluno da licenciatura em física pode ser metodologicamente indistinguível do
trabalho feito pelos cientistas de topo na mesma área, contudo, a sua função
principal é provar a competência do aluno, e não contribuir de uma maneira
original para o conhecimento partilhado pela comunidade científica.
Estes recursos conceptuais também nos podem ajudar a entender a distinção
entre investigação e terapia na biomedicina. Os mesmos dados, obtidos por via
de um método empírico respeitável, podem ser usados quer para alargar os
conhecimentos biomédicos, quer para fornecer uma terapia imediata. Estas
funções não se excluem, sendo defensável dizer que obter conhecimentos de
biomedicina tem sempre uma função terapêutica subjacente. As tentativas
terapêuticas que usam métodos ou fármacos não validados podem gerar uma
hipótese que é depois testada num ensaio clínico.
E disto um bom exemplo o caso Simms v Simms and An NHS Trust (2002). Neste
caso, o tribunal decidiu que era legal administrar uma terapia experimental a um
doente incapaz, Jonathan Simms, afectado pela variante da doença de
Creuzfeldt-Jakob. O fármaco que lhe foi administrado, pentosano polissulfato,
nunca tinha sido usado em seres humanos afectados pela vDCJ, e foi injectado
directamente no cérebro, através de um procedimento cirúrgico arriscado. A
decisão do tribunal foi motivada pelo prognóstico grave de Jonathan Simms e
pela falta de alternativas disponíveis. O caso sugere que não existem fronteiras
bem definidas entre a investigação e a terapia, além de que uma actividade pode
ter ambas as funções.

1.5 Boa e má ciência

A distinção entre disciplinas que são científicas e disciplinas que o não são (ou
entre disciplinas que são consideradas investigação e disciplinas que o não são)
não envolve necessariamente um juízo avaliativo. Poder-se-ia pensar que os
tipos de investigação que não se enquadram nos critérios processuais para a
investigação científica ou que não visam contribuir para um corpo de
conhecimento podem, não obstante, ser de grande importância, e deviam ser
financiados e realizados juntamente com a investigação científica. Porém, as
expressões «pseudociência» e «má ciência» têm conotações pejorativas. Uma
disciplina ou um tipo de investigação que é classificado como pseudocientífico
normalmente não passa no teste da demarcação mas apresenta-se como
científico, ou é considerado por alguns sectores da população como tendo o
mesmo estatuto de uma disciplina científica ou como uma instância de
investigação científica. A conotação negativa deve-se ao facto de haver um
elemento de simulação ou de engano.
Recentemente, o debate sobre o criacionismo reacendeu as preocupações
práticas que emergem da necessidade de distinguir a ciência da pseudociência.
Será o criacionismo científico? Deverá ser ensinado nas escolas em conjunto
com a teoria da evolução? De uma maneira geral, a comunidade científica nega
que o criacionismo ofereça uma explicação científica da origem da vida. As
razões desta posição devem-se principalmente a uma avaliação de factores
processuais. O criacionismo é considerado pseudociência porque introduz
factores sobrenaturais na explicação de como a vida evoluiu. Além do mais,
algumas das suas hipóteses são baseadas em noções vagas. Por exemplo, os
críticos defendem que o conceito de «tipo» como uma das diferentes formas
pelas quais a vida foi criada não é suficientemente elaborado, e que este carácter
vago torna extremamente difícil assinalar indícios que pudessem falsificar
alegações sobre a maneira como os diferentes tipos interagem uns com os outros.
Estas objecções ao estatuto científico do criacionismo parecem estar fundadas na
ideia de que há aspectos da teoria que comprometem quer a transparência das
hipóteses oferecidas, quer a possibilidade de serem testadas.
Considerar factores contextuais pode ser ainda mais problemático para o estatuto
do criacionismo. O argumento é que existe uma disciplina alternativa que pode
oferecer uma explicação mais empiricamente fundamentada e no geral mais
convincente do desenvolvimento da vida na Terra — a biologia evolucionária
—, e que os dados recolhidos nesta área não são tidos em conta, ou são
descartados de forma precipitada pelos criacionistas.
A distinção entre boa e má ciência (ou boa e má investigação) é, uma vez mais,
diferente. Há empreendimentos que, se conduzidos de uma maneira satisfatória,
poderiam contribuir para um corpo de conhecimento partilhado. E há
investigadores que subscrevem uma metodologia que, se correctamente aplicada,
poderia ser considerada crítica e aberta ao confronto com a realidade. No
entanto, os resultados da actividade não conseguem contribuir para um corpo de
conhecimento partilhado ou a metodologia não é correctamente aplicada. Trata-
se de casos de má ciência. Em certa medida a actividade cumpre os requisitos
para a investigação científica, mas não de uma maneira satisfatória, pelo que o
modo como é conduzida é objecto de um exame minucioso e de uma crítica
exaustiva.
Na literatura sobre a história da ciência há exemplos interessantes de fracassos
deste tipo. Há programas de investigação que pretendem provar a existência de
agentes causais cuja presença só pode ser detectada pela via da experiência.
Estes casos são pervertidos quando a presumível existência destes agentes é
justificada com alegações que podem entrar em conflito com a experiência e
quando, em resposta a críticas, se oferecem ajustamentos aã hoc à hipótese
inicial. Outro problema comum é que os resultados não podem ser reproduzidos
por outros investigadores ou equipas.
A história da tentativa de obter a fusão nuclear fria inclui um episódio que é
frequentemente descrito como um exemplo de má ciência. Em 1989,
Fleischmann e Pons, que faziam investigação na Universidade do Utah,
afirmaram ter obtido a fusão nuclear ao libertarem deutério de água pesada
(DzO) num eléctrodo de paládio. Sem se deixarem desencorajar pelas tentativas
anteriores falhadas de fusão fria, Fleischmann e Pons utilizaram um aparelho
muito rudimentar, basicamente um jarro de água cuja temperatura fora medida
antes e depois da experiência. Relataram ter encontrado um aumento de
temperatura que interpretaram como um sinal de que a fusão tinha ocorrido, e
que tinham sido produzidos neutrões. A notícia espalhou-se, criando grandes
expectativas, especialmente no governo americano, que estava interessado em
investigar as possíveis aplicações da fusão fria à criação de fontes de energia.
Os dois cientistas foram pressionados para submeter um artigo com os resultados
para publicação, o artigo foi revisto pelos pares e foi publicado. Outras equipas
de cientistas reproduziram as mesmas condições da experiência, mas não
conseguiram obter os resultados descritos por Fleischmann e Pons, mesmo nos
casos em que o equipamento utilizado era mais sofisticado do que o original. O
artigo publicado com as alegações de que a fusão fria tinha sido atingida também
fora recebido com muito cepticismo, uma vez que foram revelados alguns erros
básicos no modo como a experiência tinha sido conduzida, erros esses que
tinham afectado as estimativas do calor produzido.
Devido a estes desenvolvimentos, a alegação de que a fusão fria tinha sido
atingida foi depois rejeitada, e a reacção da comunidade científica ao trabalho de
Fleischmann e Pons chegou às páginas de ciência dos jornais mais importantes
(como The New York Times, por exemplo). O financiamento para o projecto da
fusão fria de Fleischmann e Pons foi retirado como consequência de não terem
conseguido responder satisfatoriamente às objecções de outros especialistas.
No caso da tentativa da fusão fria por Fleischmann e Pons, as suas actividades
tinham todos os indicadores sociológicos de uma actividade científica:
trabalhavam como investigadores para uma instituição respeitável e publicaram
os seus resultados numa revista com revisão pelos pares. O que correu mal,
então? Uma linha de explicação pode focar-se em factores que são «externos» à
ciência como influindo indevidamente no modo como a experiência foi
conduzida e como os resultados foram publicados. Poder-se-á dizer que houve
uma pressão excessiva por parte da universidade no sentido de tornar os
resultados públicos antes de terem sido obtidos resultados semelhantes por
grupos de investigação concorrentes que estivessem a trabalhar em projectos
semelhantes. Outro factor será possivelmente um optimismo excessivo por parte
dos investigadores: Fleischmann e Pons desejavam de tal maneira obter o tão
ansiado resultado da fusão fria, que negligenciaram questões metodológicas
básicas no seu procedimento experimental e subestimaram o significado das
objecções dos críticos. Uma outra linha de explicação pode reforçar o que esteve
em falta no que respeita aos critérios metodológicos de instâncias saudáveis de
investigação científica. A alegação de que a fusão fria tinha sido atingida não
fora confirmada pelos indícios disponíveis, e os resultados da experiência não
puderam ser replicados por outras equipas de investigadores.
A questão de saber se é sempre possível uma distinção clara entre casos de má
ciência e casos de pseudociência está em aberto. Por exemplo, será possível que
uma investigação que vise aumentar o conhecimento falhe de tal modo no que
respeita aos critérios processuais que deixe pura e simplesmente de ser ciência?

Exercício: Procure outro exemplo de má ciência e identifique os factores que
contribuem para que seja má.

Discussão: Acha que as razões que os cientistas x/ podem ter para acreditar na
verdade das suas hipóteses podem alguma vez ser «externas» à prática da
ciência?

Resumo
Neste capítulo começámos por enquadrar várias questões que podem ser
colocadas na tentativa de delimitar os conceitos de ciência e de investigação
científica. Nos capítulos que se seguem iremos concentrarmos em áreas distintas
da prática da ciência, entre as quais a sua metodologia, a sua linguagem, o seu
desenvolvimento histórico, os seus pressupostos ontológicos, o seu progresso e a
sua relação com o resto da sociedade. No decurso do exame das questões
filosóficas que se levantam nessas áreas, encontraremos outros critérios que
poderão ajudar-nos a obter uma explicação mais satisfatória sobre a distinção
entre ciência e não-ciência.
Aqui abordámos a questão da demarcação de uma maneira mais geral, e revimos
algumas das explicações disponíveis sobre as diferenças que se considera haver
entre ciência e ética, ciência e metafísica, ciência e pseudociência, entre as
ciências naturais e sociais, e entre a boa e a má ciência. Também reflectimos
sobre o conceito de investigação científica e os seus aspectos processuais e
funcionais.
Até agora, a ideia que fica é uma ideia de continuidade, na qual as diferenças
que se considera haver entre o que é tomado como ciência e o que não é não
resultam muito claras, pelo que as esperanças de conseguirmos uma distinção
clara e imediata a partir dos critérios de verificabilidade e falsificabilidade
acabam por cair por terra. Mas isto não é, necessariamente, motivo para
preocupação.

Cenas dos próximos capítulos
No capítulo 2 continuaremos a discussão sobre o que torna a ciência diferente
da não-ciência, focando-nos nas características do raciocínio científico e no
método científico. No capítulo 5 reconsideraremos as questões da demarcação
no que respeita à racionalidade da ciência e ao modo como progride.

Questões para pensar
1. Serão o marxismo e a homeopatia pseudocientíficos? Porquê?
2. Quais são as analogias entre a ciência e a metafísica?
3. Em que medida a falsificabilidade funciona como um critério de demarcação?
4.4Que factores determinam se a astrologia é uma ciência?
5. Em que é que a psicologia e a física diferem?
6. Se a ciência é apenas uma tradição de pensamento entre outras, o que será
responsável pelo papel especial que parece desempenhar na sociedade
contemporânea?

Leituras complementares

Uma influente e muito citada conferência de Imre Lakatos sobre ciência e


pseudociência pode ser descarregada a partir do portal da London School of
Economics (www.lse.ac.uk/collections/lakatos/scienceAnd Pseudoscience.htm).
Na conferência (primeiramente divulgada em 1973), Lakatos resume o seu ponto
de vista sobre o problema da demarcação, que também pode ser encontrado em
A Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Outras leituras de
obras clássicas incluem escritos de Popper, Kuhn e Laudan, que se encontram na
colectânea de Curd e Co ver (1998).
Na literatura mais recente, encontrará contributos para o debate sobre se
disciplinas ou programas de investigação particulares são cientificamente
respeitáveis, mais do que saber se são respostas ao problema da demarcação em
geral. Por exemplo, há uma série de leituras sobre se a investigação em
psicologia (Chauvin 1999; Lilienfeld et al. 2004) ou se as teorias do desígnio
inteligente (Haack 2005; Kitcher 1982; Fuller 2007) podem ser qualificadas
propriamente como científicas. Para uma abordagem mais exaustiva, veja duas
tentativas de redefinir o problema da demarcação em Dupré (1993) e Kitcher
(1993).
Há também muitos exemplos fascinantes de ciência patológica em duas
publicações recentes: Gratzer (2000) e Park (2000).

2. Raciocínio





A natureza do raciocínio científico e da metodologia científica sempre
desempenharam um papel fundamental na distinção entre ciência e não-ciência.
Quase todas as respostas à pergunta sobre a demarcação fazem explicitamente
referência à maneira como os cientistas raciocinam para chegar à articulação das
suas teorias e à formulação dos princípios que governam os fenómenos naturais
e sociais. Será legítimo acreditar que a ciência tem um método único, rigoroso e
fiável, que permite aos cientistas chegar a conclusões que são falíveis, mas nas
quais se pode confiar?
Neste capítulo focar-nos-emos principalmente na natureza, na força e nas
limitações do chamado «método científico». Algumas questões que os filósofos
colocaram e ainda colocam são sobre as origens do método científico, sobre se
pode ser aplicado ao domínio vasto e heterogéneo de todas as disciplinas
científicas, e sobre se é mesmo fiável. Para lhes respondermos, precisamos de
alguma terminologia. Assim, na primeira parte do capítulo, incidiremos nos
diferentes tipos de afirmações e argumentos. Veremos que há maneiras diferentes
de raciocinar, que algumas têm como objectivo principal a aquisição de
informação nova e que, ao contrário, outras procuram consolidar o conhecimento
já existente.
Na segunda parte do capítulo, aludiremos a alguns exemplos históricos para
ilustrar as mudanças importantes que ocorreram durante a revolução que,
segundo a tradição, marca o nascimento da ciência madura. Identificaremos as
características que a distinguem de anteriores tentativas de compreensão e
descrição da natureza, e veremos como muitos factores tiveram nisso um papel
de relevo, incluindo alguns pressupostos metafísicos sobre o lugar da
humanidade na natureza, algumas inovações metodológicas, como o
reconhecimento da importância da repetibilidade das experiências e das
observações, e algumas mudanças no seio das instituições, como a criação de
sociedades eruditas e de redes de pessoas interessadas em desenvolver a ciência,
que promoveram a troca de ideias e a transparência dos métodos.
A ênfase na inovação não deve levar-nos a pensar que a ciência foi
completamente reinventada após a Revolução Copernicana, ou que as mudanças
descritas foram súbitas e abruptas. Podem ser identificados elementos de
continuidade entre a física aristotélica e a newtoniana, além de que uma
característica da ciência — o uso de experiências mentais — é um excelente
exemplo desta continuidade, uma vez que vai de Aristóteles a Einstein.
No final deste capítulo estará habilitado a:

• Identificar e comparar diferentes tipos de raciocínio.
• Reconhecer uma variedade de estratégias argumenta tivas.
• Avaliar os pontos fortes e fracos da indução.
• Identificar alguns aspectos fundamentais da mudança de metodologia que
ocorreu durante a revolução científica.
• Discutir o papel das experiências mentais e das experiências reais na prática da
ciência.

2.1 Maneiras de raciocinar

Os filósofos em geral, e os filósofos da ciência em particular, prestam especial


atenção às várias maneiras como adquirimos, processamos e organizamos a
informação. Somos a todo o momento depositários de crenças, como por
exemplo que amanhã choverá ou que 2 + 2 = 4. Que amanhã choverá é uma
afirmação a posteriori, isto é, a sua verdade ou falsidade não pode ser
determinada sem nos basearmos em alguma forma de indícios (a experiência dos
sentidos ou o testemunho). Já 2 + 2 = 4 é uma afirmação a priori, uma vez que a
sua verdade ou falsidade depende das convenções da matemática. Nenhuns
indícios podem vir em apoio da verdade da afirmação, e a própria afirmação não
oferece descrição alguma de factos empíricos.
«Ela pode tanto comparecer na cerimónia como não» é outro exemplo de uma
afirmação a priori. Podemos assegurar a verdade desta afirmação sem nos
basearmos em qualquer tipo de experiência, pois é a estrutura lógica da
afirmação (ou seja, a disjunção de duas alternativas que se excluem mutuamente)
que garante a sua verdade.

2.1.1 Justificação e verdade

De que maneira formamos e actualizamos as nossas crenças? Podemos acreditar
que amanhã vai chover porque ouvimos a previsão do tempo na rádio. E
provável que mantenhamos esta crença se não encontrarmos indícios em
contrário. Acreditamos que 2 + 2 = 4 porque fomos ensinados que assim é
quando aprendemos matemática na escola, quando o tornarmo-nos hábeis nestes
cálculos básicos fez parte do modo como começámos a compreender o conceito
de números, e de operações como as somas e as subtracções. Mantemos as
crenças que adquirimos desse modo, a menos que questionemos as convenções
da matemática.
Quando testemunhamos um acidente ou olhamos para o termostato ou
misturamos azeite com água na cozinha ou observamos um eclipse raro a olho
nu, adquirimos crenças sobre o comportamento das coisas e das pessoas à nossa
volta. Em todos estes casos, temos a experiência directa do que acontece, do que
vemos ou sentimos, e em grande medida ganhamos essa experiência por via da
observação. Mais frequentemente, porém, as nossas crenças provêm de fontes
indirectas, algumas mais fiáveis que outras (especialistas destacados,
professores, livros, televisão, internet, boatos, tradição, por exemplo). E há,
finalmente, crenças que retiramos de crenças anteriores. Se sei que o meu amigo
João é alérgico aos camarões e que no banquete há um salteado que contém
camarão-tigre, então formo a crença de que o João deve evitar o salteado.
As nossas crenças são justificadas se temos boas razões que sustentem o seu
conteúdo. Mas há uma diferença entre verdade e justificação. A minha crença de
que amanhã vai chover pode ser justificada — pode, por exemplo, provir de uma
fonte fiável — e no entanto acabar por ser falsa. A justificação não garante a
verdade. Por outro lado, posso ter uma crença verdadeira, como por exemplo que
o meu vizinho é um espião, sem ter a mínima prova que a apoie. O que eu acho
ou o que neste caso o meu instinto me disse, coincidiu por acaso com algo que é
verdade, mas a minha crença não é justificada.
Há pelo menos duas razões para nos interessarmos pelas crenças justificadas.
Primeiro, por vezes a verdade não chega. Termos uma justificação para as nossas
crenças torna mais fácil convencer os outros da sua verdade. No tribunal, por
exemplo, o que eu acho e o meu instinto me diz não contam. É preciso provas de
que o acusado é culpado ou de que não houve crime. Segundo, é mais provável
que, desde que coerentemente organizadas, as crenças justificadas ofereçam uma
explicação satisfatória para os fenómenos por que nos interessamos.
Dificilmente valorizaríamos um conjunto aleatório de crenças verdadeiras, mas
se tivermos fundamentos para elas, é mais provável que vejamos as ligações
entre elas e que delas retiremos outras implicações, o que potencialmente alarga
o conhecimento.
Por vezes, os sistemas de crenças coerentemente organizados formam teorias.
Formamos teorias em contextos muito diferentes, não apenas no contexto das
disciplinas científicas formais. Temos teorias sobre toda a variedade de coisas:
por exemplo, sobre como ser bem-sucedido nas entrevistas de emprego, sobre o
que originou a tensão no Médio Oriente, sobre o motivo por que John Grisham
vende tantos livros.

Exercícios: 1) Pense noutros exemplos de crenças não justificadas que acabam
por ser verdadeiras e b) crenças justificadas que acabam por ser falsas. 2) Em
que condições não confiaria a) na experiência directa e b) no testemunho?

2.1.2 Argumentos dedutivos

Suponhamos que encontra o André numa festa e que ele lhe diz que gosta de
todas as comédias escritas por Shakespeare. Diz-lhe: «Portanto, deves gostar de
Muito Barulho por Nada. É a minha preferida!» A sua resposta mostra que fez
uma dedução, ou seja, que chegou a uma nova crença a partir de duas outras
crenças que já tinha. A estrutura do argumento é a seguinte:

Argumento 1

Premissa 1: O André gosta de todas as comédias escritas por Shakespeare.
Premissa 2: Muito Barulho por Nada é uma comédia e foi escrita por
Shakespeare.
Conclusão: O André gosta de Muito Barulho por Nada.


Consideremos outro exemplo de um argumento dedutivo. Imaginemos que
precisa desesperadamente de uma boleia e que está à procura de alguém que o
possa levar ao hospital. Saul, o irmão do seu amigo, está mesmo do outro lado da
rua, mas não lhe pede a ele, pois o Saul tem apenas 13 anos.

Argumento 2

Premissa 1: Com 13 anos não se pode ter uma carta de condução válida.
Premissa 2: Saul tem 13 anos.
Conclusão: Saul não tem uma carta de condução válida.

Estes exemplos mostram que usamos a dedução com frequência, quando
retiramos informação adicional a partir da informação que já temos. Nos
argumentos atrás esquematizados, a conclusão não contém qualquer informação
nova. A conclusão torna explícito algo que já está implicitamente contido nas
premissas (A caracterização do raciocínio dedutivo aqui apresentada pela autora,
segundo a qual a conclusão dos argumentos dedutivos está implicitamente
contida nas premissas, tem sido disputada. Se interpretarmos a expressão «está
contida em» em sentido lógico, então isso apenas significa que a conclusão é
implicada pelas premissas [que a conclusão é uma consequência lógica delas], o
que é trivialmente verdadeiro e, portanto, indisputável. Mas há também uma
interpretação epistémica da expressão «está contida em», caso em que se quer
dizer que a conclusão não acrescenta informação que as premissas não
contenham já. Isto é o que pensa também a autora, mas é esta interpretação que
outros autores [Russell, por exemplo, em Os Problemas da Filosofia, Cap. 8]
não consideram adequada. A ideia de quem não partilha esta interpretação é que
se a conclusão do argumento dedutivamente válido não acrescentasse
informação nova ao que já se encontra nas premissas, então a demonstração dos
teoremas da incompletude [assim como muitos outros resultados da matemática]
não constituíam genuínas descobertas realizadas por Gödel, nem contavam como
um genuíno avanço no conhecimento, o que parece claramente inaceitável. -N.
do R.).
Repare que há uma relação especial entre as premissas e a conclusão. Se as
premissas forem verdadeiras e o argumento for válido, a conclusão não pode ser
falsa. Uma maneira de descrever esta relação é dizer que a conclusão é uma
consequência lógica das premissas, ou que se segue logicamente das premissas.
A estrutura dos argumentos apresentados é tal, que a transmissão da verdade das
premissas para a conclusão está garantida.

Exercício: Identifique a estrutura lógica do argumento 2 e encontre outro
exemplo de argumento que se enquadre nessa estrutura.

Quando avaliamos um argumento dedutivo, interessa-nos a sua validade e
solidez. Um argumento é válido se a conclusão se segue logicamente das
premissas, como nos exemplos do Quadro 2. A validade depende da forma
lógica do argumento (Tipicamente, a validade dedutiva depende exclusivamente da forma lógica.
Porém, há casos menos frequentes de inferências dedutivamente válidas cuja validade não depende da
forma lógica. E o que se passa com os argumentos cuja validade depende dos termos ou conceitos
envolvidos nas premissas e na conclusão, como, no exemplo: «A mochila da Maria é azul. Logo, é
colorida.» Esta inferência é dedutivamente válida mas a sua validade não se deve à sua forma lógica - N. do
R.). Um argumento válido é também sólido se as premissas são verdadeiras. O
argumento 3 é um exemplo de um argumento dedutivo válido que não é sólido
porque a premissa 1 é falsa.

Argumento 3

Premissa 1: Todos os marcianos são verdes.


Premissa 2: Eu não sou verde.
Conclusão: Logo, eu não sou uma marciana.

2.1.3 Argumentos não dedutivos
Suponhamos que convidou a Sara para ver o último filme de Tarantino. Ela
abana a cabeça e diz: «Desculpa, mas não vou. Já vi três filmes dele e todos
tinham cenas de violência. Não me apetece ver um filme desse género hoje.» A
Sara raciocinou indutivamente. Viu três filmes de um realizador e reparou numa
característica comum a todos eles. Ela espera que o último filme do realizador
tenha essa característica. A estrutura do seu argumento é a seguinte:

Argumento 4

Premissa 1: Cães Danados, o filme de Tarantino, continha cenas de violência.
Premissa 2: Pulp Fiction, o filme de Tarantino, continha cenas de violência.
Premissa 3: Jackie Brown, o filme de Tarantino, continha cenas de violência.
Conclusão: O novo filme de Tarantino também contém cenas de violência.

As premissas constituem a base indutiva para a conclusão da Sara, que é uma
previsão com base na experiência anterior. Consideremos um cenário
ligeiramente diferente. Suponhamos que nunca estive no hemisfério sul e que
nunca fui a um jardim zoológico. Se me perguntar se existem cisnes negros,
poderei raciocinar do seguinte modo:

Argumento 5

Premissa 1: Todos os cisnes que vi até hoje são brancos.
Conclusão: Todos os cisnes são brancos.

Aqui, generalizo a minha crença sobre a cor dos cisnes a partir de uma amostra
limitada (constituída por todos os cisnes que vi na minha vida) para a população
total de cisnes. O argumento 4 e o argumento 5 são ambos casos de indução por
enumeração. O raciocínio indutivo por enumeração ocorre quando ampliamos de
um número de casos de que tivemos experiência até a o próximo caso ou a uma
generalização universal, e quando alargamos a relação entre duas propriedades
numa amostra à relação entre essas duas propriedades numa população. O
argumento 4 é um exemplo de indução por enumeração até ao próximo caso (o
próximo filme de Tarantino), ao passo que o argumento 5 é um exemplo de
indução por enumeração até uma generalização universal («Todos os cisnes são
brancos»), uma afirmação do tipo «Todo o A é B».
Ao comparar estes exemplos de raciocínio indutivo com os anteriores, poderá
verificar que há diferenças significativas entre a indução e a dedução. O
raciocínio indutivo é mais audaz que o raciocínio dedutivo: a conclusão contém
informação que não aparece logo nas premissas. No raciocínio indutivo,
inferimos a partir de indícios disponíveis para casos de que não tivemos ainda
experiência (o próximo caso) ou de que nunca conseguiremos ter experiência na
sua totalidade (a generalização universal). Por mais vasto que seja, o nosso corpo
de indícios nunca poderá garantir a verdade da conclusão.
Nos argumentos dedutivos, se as premissas forem verdadeiras e se o argumento
for válido, então a conclusão tem de ser verdadeira. Nos argumentos indutivos,
as premissas só podem apoiar a conclusão, tornando mais provável que seja
verdadeira. O que ainda não sabemos pode não ser bem como o que já sabemos:
afinal, os cisnes da Australásia são negros e o próximo filme de Tarantino pode
não conter cenas de violência.
Há um outro tipo de inferência não dedutiva, chamada inferência a favor da
melhor explicação. Imagine que Daniel é um detective que está a investigar um
assassínio misterioso. Há muitas pistas que o podem conduzir ao assassino, mas
nenhuma é conclusiva. Daniel tem de tomar uma decisão e tem três suspeitos.
Ele pode raciocinar do seguinte modo: que hipótese explica melhor todas as
pistas disponíveis? E assim que os médicos muitas vezes raciocinam para
chegarem a um diagnóstico. Quando diagnosticam uma doença, podem chegar à
conclusão de que o doente sofre da doença que melhor explica a ocorrência de
todos os sintomas que relata.
Estes exemplos mostram algumas das características da inferência a favor da
melhor explicação. Ela pretende alargar o nosso conhecimento, ao invés de
tornar explícito na conclusão o que já está contido nas premissas, e portanto
parece-se mais com a indução do que com a dedução. A inferência a favor da
melhor explicação, como a indução por enumeração, recomenda a conclusão
como provável dadas as premissas, e não como seguindo-se necessariamente das
premissas.
Uma limitação da inferência a favor da melhor explicação é que, quando se
selecciona uma série de hipóteses explicativas viáveis, a explicação correcta
pode não se encontrar entre as hipóteses que estão a ser consideradas. Quando o
detective ou o médico escolhem entre hipóteses explicativas viáveis, baseiam-se
em crenças e critérios preexistentes para o que é considerado uma boa
explicação, o que pode depender de outras teorias que aceitam.

Quadro 2.2 — Diferenças e semelhanças entre três tipos comuns de argumentos


*Ver nota do revisor da p. 44. Vale a pena insistir que muitos autores caracterizam a diferença entre tipos de argumentos não por uns,
ao contrário de outros, serem ampliativos, mas antes pelo modo como isso ocorre. Assim, defendem que as inferências dedutivas são

também ampliativas, só que isso se deve ao seu carácter estritamente combinatório, o que não sucede com as inferências indutivas. N.

do R.

Podemos dizer que um argumento indutivo ou uma inferência são sólidos se
tanto as premissas como a conclusão forem verdadeiras, mas não podemos dizer
que são válidos da mesma maneira que um argumento dedutivo o é, ou seja,
logicamente válidos. Num argumento dedutivo ou numa inferência a favor da
melhor explicação, a conclusão não deriva das premissas. Mas podemos dizer
que um argumento indutivo ou que uma inferência a favor da melhor explicação
são «correctos» se as premissas apoiam a conclusão (neste caso, a conclusão
pode acabar por ser falsa).

Exercício: Identifique mais três exemplos de raciocínio indutivo ou de inferência
a favor da melhor explicação.

Discussaõ: Será que a probabilidade de a conclusão ser verdadeira varia nos
exemplos dados? De que depende?

2.1.4 O raciocínio na prática científica

Nos exemplos de dedução, indução e inferência a favor da melhor explicação
que até agora considerámos, vimos que estas formas de raciocínio são
empregues no raciocínio e na resolução de problemas quotidianos. Ora, será que
a distinção entre estes tipos de raciocínio também é importante para a prática da
ciência?
A dedução é um poderoso gerador de inferências, e está patente no raciocínio
que ocorre quando tentamos provar que a soma dos ângulos internos de um
triângulo é igual a 180°; retiramos o que queremos provar a partir dos axiomas
do nosso sistema formal de geometria e dos teoremas que temos ao nosso dispor.
Nas ciências empíricas, porém, os princípios a partir dos quais retiramos mais
hipóteses para provar também precisam de confirmação empírica, e usamo-los
nas nossas deduções por nossa conta e risco. A maioria dos filósofos da ciência
concordaria que as leis da natureza não possuem uma natureza convencional e
não são como as verdades lógicas ou como as meras definições de conceitos,
mas são consideradas afirmações gerais sobre fenómenos num domínio
particular, e normalmente chega-se a elas por via da abstracção com base nos
resultados da observação e da testagem. A compreensão, descrição rigorosa e
previsão de factos que se enquadram no âmbito de uma teoria parecem ser reféns
da indução. Isto é, em certa medida, controverso, e alguns filósofos defenderam
que a indução não é necessária na ciência (ver Popper 1953).
A indução por enumeração, ao fundamentar as crenças sobre os fenómenos
gerais na experiência anterior de fenómenos particulares, sustenta as nossas
acções e expectativas quotidianas, e é comummente considerada a base de todo o
conhecimento empírico. É uma forma de raciocínio ampliadora, ou seja, visa
alargar o domínio do nosso conhecimento. Mas não proporciona certeza alguma,
pois todas as generalizações a partir de observações anteriores são falíveis.
Na ciência temos muitos exemplos de casos em que o que era considerado uma
explicação convincente dos dados disponíveis acabou por se revelar incompleto
ou erróneo. Tomemos o exemplo do debate sobre as causas das úlceras no
estômago na investigação médica. Durante anos, os investigadores acreditaram,
com base nas suas observações, que as bactérias não conseguiam sobreviver num
ambiente ácido como o do estômago, e portanto excluíram a possibilidade de as
bactérias serem a causa das úlceras. O stress e a comida muito condimentada
eram considerados os possíveis causadores das úlceras, pelo que o tratamento
recomendado consistia na prescrição de fármacos para bloquear a produção de
ácido. Recentemente, Warren e Marshall descobriram que há um
microorganismo responsável por muitas úlceras no estômago e no duodeno
(Helicobacter pilori) que vive no estômago e que se adapta ao seu meio hostil.
Hoje, a cura consiste na eliminação deste microorganismo. O mundo da
investigação científica lembra-nos sem cessar que por mais que as hipóteses que
temos se adeqúem aos dados previamente recolhidos ou estejam arreigadas à
nossa maneira de ver as coisas, podem sempre resultar incompletas ou
imprecisas, e precisar de ser revistas ou substituídas.
A inferência a favor da melhor explicação é alegadamente uma forma de
raciocínio aplicada pelos cientistas em circunstâncias em que os indícios não
excluem hipóteses explicativas incompatíveis, mas são melhor explicados por
algumas das hipóteses explicativas disponíveis do que por outras. Em
Companion to the Philosophy of Science, Peter Lipton (2001), ilustra este caso
com o exemplo de Darwin, que alinhou com a hipótese da selecção natural
porque estava convencido de que esta proporcionava a melhor explicação para
os indícios biológicos disponíveis.
Outro exemplo clássico de uma descoberta científica feita por inferência a favor
da melhor explicação é o de Kepler, ao chegar à conclusão de que a órbita de
Marte é elíptica. De acordo com uma reconstrução controversa (Hanson 1958), o
que Kepler fez foi partir dos indícios de que dispunha para chegar a uma
hipótese capaz de proporcionar a melhor explicação para os mesmos, com base
em algumas crenças de base e princípios metodológicos. Na época, havia
explicações rivais para as observações do movimento de Marte. Estas
observações pareciam não apoiar a ideia aristotélica comummente aceite de que
os corpos celestes se movimentam em círculos. Algumas hipóteses mantinham
que a órbita era circular, mas acrescentavam alguns expedientes para explicar as
irregularidades (o ponto equante de Ptolomeu ou os movimentos epicíclicos).
Para Kepler, no entanto, a hipótese de que a órbita era de facto elíptica possuía
várias vantagens sobre as adversárias: explicava satisfatoriamente todos os
indícios disponíveis; parecia satisfazer os constrangimentos da sua teoria
astronómica; não implicava expedientes geométricos irrealistas; permitia
previsões precisas.
Os problemas com a inferência a favor da melhor explicação surgem quando nos
focamos mais de perto na noção adequada de explicação. As comparações entre
os poderes explicativos de hipóteses alternativas só podem ser feitas se tivermos
uma forma objectiva de medir esses poderes, e, como veremos, os filósofos da
ciência dão explicações muito diferentes sobre as condições que uma boa
explicação tem de cumprir.
No que respeita aos pontos fortes e às limitações do raciocínio indutivo, manter-
nos-ão ocupados até ao final deste capítulo.

2.2 O método científico: a indução

O primeiro filósofo a afirmar explicitamente a centralidade do raciocínio
indutivo na metodologia científica foi Francis Bacon, na sua obra Novum
Organum (Novo Método). Esta obra pretendia substituir o texto metodológico
oficial há muito estabelecido do filósofo grego Aristóteles, intitulado Organum.
Bacon viveu numa época (século XVII) em que o estudo das ciências naturais
florescia e a autoridade dos grandes pensadores do passado começava a ser
questionada. Estava ciente de que se inseria numa importante fase de transição,
na qual a física e a astronomia aristotélicas eram postas em causa pelas obras de
Copérnico, Kepler e Galileu, e, com determinação, avançou a sua própria visão
de como a ciência deveria proceder.
O método indutivo descrito por Bacon começa com a observação dos fenómenos
naturais. Bacon pensa que devemos apresentar os resultados das nossas
observações em tabelas, para compararmos os dados. Da experiência sensível,
partimos então para axiomas inferiores, e dos axiomas inferiores para axiomas
superiores, que operam a um nível de generalidade cada vez maior. A partir dos
axiomas superiores, podemos esperar obter leis da natureza a partir das quais se
podem prever novos dados e organizar observações de novos fenómenos. Mas
Bacon pensava que, antes que os dados pudessem dar origem a axiomas,
devíamos usar um procedimento a que muitas vezes se chama indução
eliminativa. Este consiste em identificar várias hipóteses explicativas para um
conjunto de dados, e excluir aquelas para as quais se encontraram contra-
exemplos. Podem ser concebidas experiências para confirmar ou contestar as
hipóteses, até que uma sobreviva aos testes. Os passos descritos por Bacon
formam um ciclo de conhecimento (a partir de um nível de generalização
inferior até um superior, e depois do superior ao inferior) que supostamente
conduz os cientistas a uma maior proximidade da verdade.
Além da ênfase na indução, há outros aspectos importantes do trabalho de Bacon
que veremos com maior pormenor em seguida: defendeu uma metodologia
empírica numa época em que o uso de observações e de experiências na ciência
não era ainda a norma, e deu valor à dimensão colaborativa da prática científica.

2.2.1 As inovações na emergência da ciência moderna

Bacon faz parte da chamada «revolução científica». Os acontecimentos que


conduziram à aceitação do sistema copernicano do movimento dos planetas, que
culminaram na formulação das leis da física de Newton, são muitas vezes
caracterizados como os capítulos fundamentais da fascinante história do
nascimento da ciência moderna. A razão para se investir a Revolução
Copernicana de um papel tão importante na filosofia da ciência não tem apenas a
ver com o derrube espectacular das teorias astronómicas e físicas de Aristóteles e
Ptolomeu, mas também com as inovações metodológicas que foram ocorrendo
gradualmente a partir do final do século XVI.
Eis as cinco mudanças mais dignas de nota:

1. A autoridade dos filósofos naturais do passado é posta em causa com base em
novas observações e novas ideias sobre o método da ciência;
2. A matemática passa a ser concebida como a linguagem da natureza, e é
conferida uma estrutura explicitamente matemática às teorias da física e da
astronomia;
3. Os cientistas começam a fazer uso de experiências e da observação mediada
de uma maneira regular e sistemática, intervindo activamente na natureza;
4. Dá-se uma certa institucionalização da investigação colaborativa, o que
origina o desenvolvimento de sociedades eruditas;
5. A perspectiva na qual se enquadra a explicação da natureza (o movimento, a
cosmologia, a fisiologia, etc.) deixa gradualmente de ser organicista, ou seja, de
ver os fenómenos naturais como o resultado de intenções, para passar a ser
mecanicista, vendo os fenómenos naturais como efeitos de interacções causais
entre as várias partes de uma máquina de funcionamento perfeito, quer se trate
do corpo humano, quer do universo como um todo.

Estes elementos estão inter-relacionados, e, vistos como um todo, dão-nos uma
ideia de como a ciência moderna emergiu não somente da conquista de
descobertas teóricas e da adopção de novas metodologias, mas também da
instauração gradual de novos enquadramentos explicativos e da emergência de
uma nova concepção da natureza. No que se segue focar-nos-emos em alguns
destes pontos, e daremos uma explicação sobre a maneira como contribuíram
para transformar quer a natureza da investigação científica, quer o papel do
investigador (que de «filósofo natural» passou a «cientista»).
Há duas maneiras de conceber o papel da matemática na prática da ciência. Uma
pode ver a matemática como um mero instrumento para facilitar previsões. Esta
abordagem era comum numa disciplina como a astronomia, cujos principais
objectivos pareciam ser a previsão do movimento dos planetas por meio de
cálculos complexos. Se os cálculos adoptados revelavam a estrutura física do
universo era uma questão que podia ser secundarizada, desde que o movimento
dos planetas pudesse ser rigorosamente antecipado (a perspectiva
instrumentalista). Ou então a matemática pode ser considerada como uma
linguagem que capta as próprias relações entre os fenómenos observáveis e
promove uma compreensão mais aprofundada dessas relações (a perspectiva
realista).
Os principais intervenientes da Revolução Copernicana viam a matemática em
termos realistas, e usavam-na para obter uma descrição rigorosa da realidade. O
exemplo mais flagrante da concepção realista da matemática vem do próprio
Nicolau Copérnico. No seu De revolutionibus orbium celestium (Sobre o
movimento das esferas celestes), avança a ideia de que a Terra se move e o Sol é
o centro do universo. Esta ideia não era inédita, mas nunca tinha sido
fundamentada com um trabalho matemático tão preciso e pormenorizado. Os
cálculos matemáticos não somente apoiaram a perspectiva heliocêntrica, como
também foram a razão principal para uma mudança bastante radical na
concepção dos chamados corpos celestes e do mundo físico em geral, que era um
dado adquirido para leigos, intelectuais e autoridades religiosas por igual. O que
conduziu Copérnico ao modelo heliocêntrico como uma representação do
universo foi o facto de o sistema ptolemaico não conseguir fazer previsões
astronómicas precisas. Para ele, a matemática era um guia para a realidade: se os
cálculos não funcionassem, então a teoria física que supostamente lhes
corresponderia tinha de ser substituída.
Da mesma maneira, as experiências também não eram desconhecidas antes do
século xvi, sendo frequentemente conduzidas e relatadas em textos científicos
observações no campo da astronomia e da física terrestre. Uma vez mais, porém,
o papel do trabalho experimental não possuía a centralidade que tem hoje na
nossa concepção da metodologia científica. Nas décadas que precederam os
Principia Mathematica Philosophiae Naturalis (Princípios Matemáticos da
Filosofia Natural), obra publicada em 1687, o passo em frente consistiu na
legitimação do uso de experiências como uma componente aceite da prática da
ciência. Na tradição anatómica e alquímica, tornava-se cada vez mais comum
fazer e registar experiências para finalidades de ensino e investigação. A título
de exemplo, William Harvey, que descobriu como a circulação sanguínea
funciona, empregou técnicas experimentais e fez vivissecção.
O uso de instrumentação para ajudar nas observações da natureza também estava
a ser introduzido, mesmo que alguns instrumentos inovadores ainda fossem
encarados com desconfiança. O exemplo mais famoso é o telescópio de Galileu.
Galileu construiu um telescópio para observar os céus e, na sequência das suas
observações, afirmou que a Lua tinha uma superfície imperfeita e que o Sol tinha
manchas. Estas descobertas foram incrivelmente revolucionárias, uma vez que a
ideia comummente aceite era que os corpos «celestes» eram feitos de uma
substância especial e que, ao contrário da Terra, tinham uma superfície
perfeitamente lisa. Muitos astrónomos teóricos duvidaram da fiabilidade do
telescópio, sugerindo que era enganoso, e que as observações mediadas por um
instrumento assim não deviam ser consideradas como provas contra a ideia
vigente dos corpos celestes. Afinal de contas, se ao telescópio a Lua parecia tão
mais próxima de nós do que na realidade, o que poderia garantir que o telescópio
não criaria outras «ilusões»? A nossa resposta seria: os conhecimentos de óptica
que Galileu possuía, e o facto de combinar as lentes de tal modo que ampliavam
objectos distantes sem alterar a sua aparência. Mas se nos lembrarmos que a
óptica era então uma ciência muito jovem e que ainda não se tinha chegado a um
consenso sobre as leis que a governavam, podemos começar a perceber como era
difícil para os cientistas justificar o uso de equipamento novo e a sua fiabilidade.
Outro sinal importante da ciência madura é o reconhecimento da natureza
colaborativa da investigação e a necessidade de instituições que promovam a
troca de ideias e ocasiões para o debate. No século XVII foram fundadas três
instituições importantes: a Academia dei Cimento em Itália, em 1657, a Royal
Society em Londres, em 1660, e a Académie Royale des Sciences, em Paris, em
1666. Estas instituições promoviam a correspondência entre os praticantes de
ciência, e as suas publicações celebravam o recentemente instituído método
empírico da ciência. Alguns historiadores observaram que a influência crescente
do método experimental tornou a comunicação científica ainda mais importante,
uma vez que os cientistas tinham de ser capazes de reproduzir as experiências de
modo a avaliar os resultados obtidos e divulgados por outros.
Fazendo uso do exemplo dos estudos de pneumática feitos por Robert Boyle por
meio de experiências com uma bomba de ar no século xvii, Steven Shapin
(1984) defende que na ciência moderna já não é suficiente ter a tecnologia
material para realizar as experiências, mas que também é necessário ter os meios
para permitir que as pessoas conheçam os resultados das experiências e
determinar regras de base para a aceitação das alegações de conhecimento em
ciência. (Isto recordá-lo-á da ênfase na transparência e na abertura à crítica como
um critério processual para a demarcação entre ciência e não-ciência que
considerámos no capítulo anterior.) No momento em que Boyle fazia as suas
experiências, a Real Sociedade Filosófica londrina transformava-se num espaço
público onde os resultados das investigações científicas podiam ser partilhados e
debatidos. A ideia de que as hipóteses experimentais precisavam da aprovação
de uma comunidade de praticantes para ser legitimada como conhecimento
científico emergia lentamente, sendo hoje uma característica definidora da
investigação científica.


Exercício: Consegue pensar em exemplos de novasdescobertas na ciência
contemporânea que deram origem não só a novas hipóteses teóricas, como
também a inovações metodológicas?

2.2.2 Experiências mentais

Quando descrevemos o impacto de uma revolução científica, é sempre fácil
destacar a importância das inovações. No entanto, há elementos de continuidade
que persistem juntamente com os sucessos metodológicos pioneiros.
Actualmente, os cientistas que se dedicam ao trabalho experimental fazem parte
de uma comunidade que tem mecanismos prontos para confirmar a fiabilidade
dos seus procedimentos experimentais e a consistência dos seus resultados. Este
aparato não surgiu de um dia para o outro, e a presença de instituições de
investigação foi apenas o início da formação de uma comunidade científica
capaz de dar credibilidade ao trabalho de investigadores ou de equipas de
investigação.
Pese embora isso, os cientistas estão sempre à procura de maneiras de resolver o
problema de encontrar estratégias argumentativas bem-sucedidas para defender
novas hipóteses e fazer face ao cepticismo dos seus públicos. O uso de
experiências mentais, por exemplo, parece resistir à passagem do tempo.
Enquanto metodologia, foi criada para proporcionar uma justificação quer à
física aristotélica, quer à newtoniana, e também foi frequentemente usada no
desenvolvimento da teoria da relatividade. Há uma longa tradição de
experiências mentais importantes nas ciências naturais, uma tradição que começa
quando Aristóteles e Galileu tentam descobrir as leis do movimento dos objectos
terrestres, e que continua com o exemplo de Albert Einstein do comboio atingido
por raios, no seu primeiro artigo sobre a relatividade (1905).
Galileu queria testar as ideias de Aristóteles sobre a queda dos corpos, em
particular o pensamento de que os corpos mais pesados caem mais depressa.
Imaginou então o que aconteceria se lançasse objectos da Torre de Pisa para
observar a que velocidade caíam. Se Aristóteles estivesse certo, uma pesada bala
de canhão cairia a uma velocidade maior do que uma mais leve bala de
mosquete. Mas o que aconteceria se atirasse uma bala de canhão fixada a uma
bala de mosquete (ou seja, um agregado de dois corpos, um mais pesado e outro
mais leve)? Este corpo agregado supostamente cai quer mais rápido do que a
bala de canhão por si só, porque é mais pesado, quer mais lentamente, uma vez
que a parte mais leve desaceleraria a mais pesada. Por conseguinte, a linha de
raciocínio baseada na lei do movimento de Aristóteles conduz a uma
contradição, o que significa que o pressuposto de que Galileu partiu — que os
corpos mais pesados caem mais depressa — tem de ser rejeitado.

Exercício: Será que Galileu apresenta aqui um bom argumento contra a lei do
movimento de Aristóteles?

Einstein usou a famosa experiência mental do comboio para provar que a ideia
newtoniana de que o espaço e o tempo são absolutos estava errada. Para
argumentar que são relativos, Einstein mostra que determinar se dois
acontecimentos são simultâneos é uma questão que depende do referencial
adoptado. Imaginemos que uma carruagem de comboio viaja a uma velocidade
uniforme e que um passageiro (P) se encontra no meio da carruagem a observar
uma lâmpada que emite raios de luz que chegam aos dois extremos da
carruagem, onde foram colocados dois detectores (Dl e D2). Para esta pessoa, se
a lâmpada também se encontra à mesma distância das duas extremidades, os
raios chegam aos detectores ao mesmo tempo. Imaginemos agora que há um
observador externo (O) que olha para o comboio a passar e que vê a lâmpada e
os detectores através de uma janela aberta. O observador não vai percepcionar a
detecção dos dois raios como simultânea, pois está a ver o comboio em
movimento. A luz chegará a um detector (Dl) mais cedo do que ao outro (D2)
porque, embora a velocidade da luz seja constante, a distância que a luz tem de
percorrer para chegar a D2 é maior do que a distância que tem de percorrer para
chegar a Dl. A experiência mental tem como objectivo mostrar que a
simultaneidade dos acontecimentos depende do referencial (a perspectiva dos
observadores, por exemplo). (Ver figuras 2.1 e 2.2.)


As experiências mentais são experiências conduzidas na cabeça do
experimentador, ao invés de na natureza ou no laboratório. O experimentador
pensa numa situação específica, imagina que algo acontece em tal cenário, e tira
conclusões com base nas consequências desse acontecimento imaginário. Muitas
vezes a experiência é imaginada em vez de realizada devido a limitações físicas
ou tecnológicas. Outras vezes, a experiência mental é uma sonda de intuição,
usada para tornar explícita a maneira como pensamos sobre certas situações ou
para destacar inconsistências não antes detectadas.
Se as experiências mentais são ou não um recurso científico de valor é uma
questão passível de discussão, e as posições variam consideravelmente. Segundo
Thomas Kuhn (1977, 1979) e Tamar Szabó Gendler (1998), elas podem
promover reformas conceptuais e levar à substituição de uma teoria por outra.
Kuhn defende que o uso de experiências mentais não apenas clarifica o aparato
conceptual no âmbito do qual os cientistas operam, como também reproduz o
choque entre interpretações opostas da natureza, preparando assim o terreno para
revisões teóricas radicais. O seu ponto de vista é apelidado «construtivista»
porque, segundo o mesmo, ao invés de porem em causa uma teoria existente, as
experiências mentais põem em causa todo um modo de pensar, todo um aparato
conceptual. O seu exemplo preferido é o da série de experiências que Galileu
concebeu para mostrar as inadequações conceptuais da física aristotélica, em
particular a que descrevemos antes, expondo a inconsistência de se supor que os
corpos mais pesados caem mais depressa, mas que os agregados de corpos caem
a uma velocidade intermédia.
Nem todos os autores concordam com Kuhn. Alguns defenderam a ideia de que
as experiências mentais são apenas formas imaginosas de desenvolver um
argumento a priori, e que não possuem qualquer conteúdo ou valor adicionais
(ver Norton 1996 e Atkinson 2003). Opondo-se à abordagem construtivista, estes
autores observam que nem todas as experiências mentais dão origem a revisões
conceptuais. Algumas, por exemplo, são próprias de uma teoria, e não põem em
causa os conceitos existentes. A tese «empirista», defendida por John Norton,
consiste em defender que só os métodos que podem, legitimamente, permitir-nos
retirar informação nova da natureza (como as experiências efectivas), podem
apresentar informação nova sobre a natureza. Dado que as experiências mentais
não fazem perguntas a que a observação da natureza possa responder, não
aumentam o nosso conhecimento da natureza. Da mesma maneira que os
argumentos dedutivos, apenas tornam explícita informação que já se encontrava
disponível antes de a experiência mental ter sido conduzida.
Para outros autores ainda, as experiências mentais são um meio para adquirir
conhecimento (ver Brown 1991 e Bishop 1999). Estes autores inserem-se numa
abordagem «racionalista» da importância epistemológica das experiências
mentais pois, apesar de concederem que estas não contribuem para o
conhecimento empírico sobre a natureza, defendem que o seu papel é alargar o
conhecimento a priori. Em particular, na sua resposta a Norton, Michael Bishop
defende que as experiências mentais não podem ser somente argumentos, uma
vez que os cientistas podem chegar a conclusões diferentes ao reflectirem sobre
a mesma experiência mental. Tal sugere que os cientistas podem usar
argumentos diferentes para interpretar ou reconstruir uma experiência mental.
James Brown, por exemplo, faz a afirmação positiva de que as experiências
mentais auxiliam as investigações empíricas da natureza, mas transcendem a
experiência. São concebidas com base em intuições sobre leis da natureza e
revelam relações entre propriedades, independentemente de estas serem ou não
instanciadas. Pensemos no seguinte exemplo, apresentado por Brown (2004). No
seu tratado De Rerum Natura (Sobre a Natureza das Coisas), Lucrécio pretende
demonstrar que o espaço é infinito. Antes de mais, convida-nos a imaginar que
atiramos uma lança até ao limite do universo. Se a lança o atravessar, não existe
limite; se fizer ricochete, então tem de haver algo além do limite. Por via desta
experiência mental, ficámos a saber algo sobre a relação entre a propriedade de
ser finito e a propriedade de ter um limite, mas não demonstrámos
empiricamente que o espaço é infinito.

Exercício: Consegue imaginar outras experiências mentais? Como foram
usadas no contexto em que as encontrou? Para explicar um conceito? Para
contestar uma posição, mostrando que gerava contradições? Para outra
finalidade?

Ora, qual das explicações discutidas é a mais convincente? O facto de as
experiências mentais serem usadas à discrição pelos cientistas podia ser uma
razão prima facie contra a tese de que são «apenas argumentos». Isto deve-se à
ideia preconcebida de que os argumentos que não são baseados, nem em dados
novos, nem numa interpretação original de dados previamente disponíveis não
são uma maneira respeitável de adquirir conhecimento nas ciências. Esta
concepção ingénua da prática da ciência assenta na ideia de que as decisões
sobre que teoria adoptar são feitas apenas a partir de bases empíricas. Mas isto é
uma maneira muito simplista e, no fundo, enganadora, de descrever a prática da
ciência. Há uma continuidade muito maior entre a ciência e a metafísica do que
os positivistas lógicos pensavam, não só porque as teses sobre a natureza da
realidade que são formadas com base em argumentos conceptuais podem
promover investigações empíricas, como também porque, como Popper sugeriu,
os objectivos e os métodos da ciência e da filosofia por vezes coincidem. O uso
de experiências mentais não é mais do que um exemplo desta continuidade.

Discussão: Será plausível defender que a maneira como as experiências mentais
contribuem para o conhecimento em ciência variam consoante a finalidade das
experiências mentais específicas?

2.2 O problema da indução

Bacon defendeu a ideia de que o raciocínio científico assenta na indução, e esta
ideia é ainda hoje subscrita por muitos filósofos da ciência. A centralidade da
indução para formar hipóteses prováveis sobre factos empíricos gerou um
interesse especial pela justificação e racionalidade das inferências indutivas.
De acordo com a interpretação tradicional do problema da indução, o filósofo
David Hume preocupou-se com a justificação das inferências indutivas que
tornam possível alargarmos a novos casos o que já sabemos com base na nossa
experiência.
Consideremos a seguinte inferência indutiva:

1. Até agora o Sol nasceu todos os dias.
2. Amanhã o Sol vai nascer.

Será que o passo da afirmação 1 para a 2 é justificado? Estamos habituados a
projectar as regularidades que observámos no passado para o domínio do
desconhecido, mas nada há que impeça que a afirmação 2 seja falsa e que a
afirmação 1 seja verdadeira. O que é que fundamenta o passo de 1 para 2?
Podíamos basearmos num princípio que diz que o futuro vai ser semelhante ao
passado. Por exemplo:

3. A natureza funciona de uma maneira uniforme.

A afirmação em 3 chama-se o Princípio da Uniformidade da Natureza, e pode
ajudar-nos a apoiar o passo inferencial de 1 para 2. É razoável assumir que o Sol
se comportará como sempre fez, porque a natureza se repete e não é provável
que as regularidades observadas na natureza sejam quebradas. Como Bertrand
Russell observa em Os Problemas da Filosofia, a convicção que subjaz à nossa
crença no Princípio da Uniformidade da Natureza é que tudo o que já aconteceu,
que acontece agora e que acontecerá no futuro é governado por uma regra geral
sem excepções.
Mas, então, qual é o estatuto de 3? Para Hume, existem três tipos de afirmações:

a. afirmações que podem ser verdadeiras a priori, independentes da experiência,
como: «O Sol vai nascer ou não vai nascer»;
b. afirmações que podemos apoiar por observação directa ou por outras formas
de experiência, como: «O Sol está agora a nascer»;
c. afirmações (sobre o futuro ou sobre o próximo caso não observado) que só
podemos apoiar por meio do raciocínio indutivo, como: «O Sol vai nascer outra
vez amanhã.»

A que categoria pertence o Princípio da Uniformidade da Natureza? E uma
suposição que fazemos, mas não é uma verdade lógica nem é verdadeira por
definição, pelo que precisamos de uma justificação a posteriori para ela. Porém,
também não podemos «observar» a verdade do princípio, e portanto não encaixa
em a nem em b. O único tipo de justificação que o princípio pode ter é uma
justificação indutiva.
A única justificação que temos para 3 deriva de algo como 4:

4. No passado, a natureza funcionou de uma maneira uniforme.

E o passo inferencial de 4 para 3 é, de novo, indutivo. Generalizamos a partir da
experiência do passado para obtermos o Princípio da Uniformidade da Natureza.
Mas se justificarmos todas as inferências indutivas indutivamente, a nossa
justificação acaba por ser circular, e temos de conceder que as inferências
indutivas não podem ser justificadas de um modo independente. Um argumento
é circular quando, para acreditarmos que as suas premissas são verdadeiras, já
temos de assumir que a conclusão é verdadeira.
Vou dar um exemplo de circularidade (retirado sem grandes preocupações de
rigor do cenário de ficção científica dos filmes Matrix). Suponhamos que nos
perguntam: «Como é que sabes que a tua experiência do dia-a-dia não passa do
resultado de uma engenhosa simulação de computador?» Sentir-nos-íamos
tentados a responder: «Porque vejo que estou rodeado por objectos reais e por
pessoas reais.» Mas se de facto respondêssemos assim, incorreríamos numa
petição de princípio, porque, para aceitarmos o que dizemos como verdadeiro,
temos de descartar a possibilidade de as nossas experiências quotidianas serem o
resultado de uma simulação de computador. Se o nosso objectivo é demonstrar
que experienciamos objectos no mundo real, não podemos desde logo assumir
que o que experienciamos não é o efeito de uma simulação de computador.
As principais estratégias para lidar com o problema da indução têm sido duas:
demonstrar que não é, verdadeiramente, um problema, mas, ao contrário, um
pseudoproblema, criado por alguma confusão ou incoerência conceptuais;
admitir que há, de facto, um problema, e sugerir uma solução. Veremos alguns
exemplos de cada estratégia em seguida.
Antes de avançarmos para as respostas possíveis ao problema da indução,
porém, devemos notar que, de acordo com recentes interpretações influentes de
Hume (em especial Beebee 2006), é erróneo atribuir o problema da indução a
Hume, e por duas razões. Primeiro, Hume não estava interessado no raciocínio
indutivo per se, ou seja, na passagem de regularidades observadas para uma
generalização universal ou para a previsão de um novo caso, mas sim em
raciocinar partindo de causas para efeitos. Segundo, Hume não estava
verdadeiramente interessado em justificar a nossa maneira de adquirir
conhecimento do mundo empírico, mas sim em descrever o mecanismo mental
que nos permite formar crenças sobre o mundo empírico. O que ele visava era,
portanto, a questão psicológica da formação de crenças sobre o que ainda não
experienciámos, e não a questão epistemológica da sua justificação.
Ora, o que apoia esta leitura de Hume? Primeiro, ele proporciona, efectivamente,
uma explicação psicológica sobre como adquirimos crenças sobre o mundo
empírico, introduzindo a noção de hábito, que descreve um mecanismo
psicológico por meio do qual observamos repetidamente a conjunção do
acontecimento A e do acontecimento B, e assumimos que há uma relação causal
entre os dois. Mas não há, no trabalho de Hume, tentativa alguma de
proporcionar uma justificação do passo de raciocínio de 1) A ocorre, para 2) B
segue-se de A. Segundo, concluir que devemos ser cépticos relativamente à
indução — ou ao raciocínio causal — enfraqueceria a perspectiva filosófica
geral de Hume, dado que ele é um empirista, pelo que seria contraproducente
comprometer a própria possibilidade de obter conhecimento do mundo empírico.
Esta interpretação de Hume pode levar-nos a ver o problema da indução como
um pseudoproblema, mas na literatura filosófica, e em especial na filosofia da
ciência, a justificação da indução tem sido objecto de um debate sem fim.

Exercício: Porque precisamos de uma justificação independente para a
indução?

2.3.1 Poderemos fazer desaparecer o problema da indução?

Peter Strawson (1952) não está de modo algum convencido de que haja um
«problema» com a indução. Argumenta que a nossa preocupação com a
justificação da indução surge da tentativa de responder a uma pergunta sem
sentido: será razoável acreditar na indução? Strawson defende que o significado
e o uso da palavra «razoável» já pressupõem a nossa conformidade com os
padrões indutivos. Não poderíamos saber aquilo em que é razoável acreditar se
não pudéssemos basear-nos em inferências indutivas.
Strawson diagnostica o problema da indução como a busca infrutífera de uma
justificação para a indução que esteja em conformidade com os padrões do
raciocínio dedutivo. Segundo Strawson, aquilo de que os filósofos parecem
precisar é de um argumento dedutivo que implique que os argumentos indutivos
sejam sólidos. Mas não é claro que este projecto seja legítimo. A única pergunta
legítima acerca da justificação da indução que pode ser feita, argumenta
Strawson, é se os indícios oferecidos por argumentos indutivos específicos
apoiam a conclusão de tais argumentos. A resposta a esta pergunta não pode ser
sobre a indução em geral. Há bons argumentos indutivos, nos quais os indícios
disponíveis são suficientes para tornar a conclusão provável, e maus argumentos
indutivos, nos quais a conclusão não é tornada provável pelos indícios
disponíveis.
Não satisfeito com a defesa da indução por Strawson, Max Black (1954) também
contribuiu para este debate. Para Black, bem como para Strawson, o problema da
indução não é, na realidade, um problema. Segundo Black, o erro cometido pelos
filósofos é o de interpretarem mal a alegação de que não pode haver uma
justificação indutiva para a indução. A razão por que é defendida está na alegada
circularidade de quaisquer justificações indutivas da indução, mas Black defende
que há uma maneira legítima e não circular de justificar a indução
indutivamente. Começa por distinguir dois níveis de discurso: o primeiro, que
diz respeito a objectos, propriedades e relações no mundo; o segundo, que diz
respeito a argumentos e regras lógicas.
Ao primeiro nível, podemos dizer que o facto de todos os cisnes até agora
observados serem brancos apoia a alegação de que todos os cisnes são brancos.
Este argumento é justificado por uma regra indutiva R (ao segundo nível),
segundo a qual podemos defender a partir de «todas as instâncias observadas de
A foram B» que «todo o A é B». A regra justifica o argumento, mas o que
justifica a regra? Segundo Black, há um argumento indutivo que pode ser usado
para justificar a regra, e que diz mais ou menos o seguinte: R mostrou ser fiável
em todas as instâncias observadas do uso da regra, pelo que temos bons motivos
para acreditar que R será fiável agora.
A questão que nesta altura se põe é: teremos incorrido em alguma circularidade?
Justificámos um argumento indutivo com a regra indutiva e justificámos a regra
indutiva com outro argumento indutivo. De acordo com Black, não há aqui
circularidade alguma. Um argumento é circular se uma das premissas é idêntica
à conclusão, ou se as premissas são tais que não as poderíamos conhecer se não
conhecêssemos já a conclusão. De acordo com esta definição de circularidade, o
argumento usado por Black para justificar a indução não é circular.
Mas persiste ainda uma outra preocupação. Talvez o argumento avançado por
Black não seja qualificado como estritamente circular, mas corra o risco da
regressão ao infinito. Isto é, a justificação do argumento indutivo relativo aos
cisnes brancos é indefinidamente adiada, pois depende da justificação da regra
da inferência, que por sua vez depende da justificação de outro argumento
indutivo, que por sua vez vai depender da justificação da mesma regra ou de
outra regra indutiva, etc.
Elliot Sober (1988) é de opinião de que o projecto de proporcionar uma
justificação para a indução defendendo o pressuposto da uniformidade da
natureza é enganador. Observa que o comportamento da natureza no passado não
parece ser uma boa razão para confiar na indução por oposição à contra-
indução. Imaginemos que há um método de inferência (chamado contra-
indução) segundo o qual a natureza não é uniforme, e em que não é provável que
as regularidades do passado se mantenham iguais no futuro. Agora, torna-se fácil
construir uma justificação contra-indutiva da contra-indução baseada na
uniformidade da natureza. No passado, a contra-indução não era fiável porque a
natureza se revelara uniforme na maior parte dos casos, e portanto podemos
esperar que seja fiável no futuro.
Mas Sober não pensa que, na sua formulação humeana, o princípio da
uniformidade da natureza seja plausível. E isto compromete a plausibilidade da
formulação clássica do problema da indução de Hume. A alegação de que a
natureza é uniforme é demasiado vaga para poder ter algum uso e, nessa forma,
não pode ser um pressuposto ao qual nos vamos querer agarrar quando fazemos
inferências. Em alguns aspectos, a natureza é uniforme, mas noutros não. Sober
dá o exemplo da cor: esperamos que a cor de todas asesmeraldas seja o verde,
sempre, mas não esperamos que a cor das folhas seja sempre o verde. A falta de
pormenor na formulação não é o único problema do princípio da uniformidade
da natureza: segundo Sober, tentar encontrar um pressuposto sobre a natureza
das coisas que fundamente todas as nossas inferências indutivas não coexiste
alegremente com a flexibilidade das nossas práticas indutivas. É mais plausível
que algumas crenças de base sejam mesmo necessárias para o êxito das
inferências indutivas, mas que crenças apoiam que inferências depende de cada
inferência.

Discussão: Qual das resoluções do problema da indução apresentadas lhe
parece mais plausível?

2.3.2 A tentativa de encontrar uma solução para o problema da indução

Inspirado por uma análise anterior de Reichenbach, Wesley Salmon (1974)
argumenta que tanto a forma dedutiva como a indutiva de justificar a indução
estão condenadas ao fracasso, explorando uma alternativa mais pragmática. E se
pudermos demonstrar que confiar na indução é a única opção racional? Salmon
defende que é mais prudente apostar no êxito do raciocínio indutivo do que no
seu fracasso.
Partamos do pressuposto de que a natureza é uniforme ou não, e de que, se
decidirmos não usar a indução, as estratégias disponíveis para a previsão de
acontecimentos desconhecidos não são indutivas (ler folhas de chá, na bola de
cristal ou adivinhar, por exemplo). Se usarmos estratégias não indutivas e a
natureza for uniforme, é provável que as nossas previsões falhem. Se usarmos
estratégias não indutivas e a natureza não for uniforme, é ainda provável que as
nossas previsões falhem. Se, em vez disso, usarmos a indução e a natureza não
for uniforme, é provável que as nossas previsões falhem, uma vez mais. Mas se
usarmos a indução e se a natureza for uniforme, é provável que as nossas
previsões sejam bem-sucedidas.
Embora a indução não seja um garante de sucesso, uma vez que não nos é
possível descobrir independentemente se a natureza é uniforme, ainda assim ela
funciona melhor do que as alternativas disponíveis. Isto é uma maneira de
defender que é racional usar a indução, mas não responde à questão de saber se
as inferências indutivas podem ser justificadas independentemente. E portanto
esta tentativa de solução falha o objectivo (ou, numa leitura mais benigna,
proporciona uma redefinição do problema da indução).
Em O Conhecimento Objectivo, Karl Popper declara ter resolvido o problema da
indução. Primeiro, reformula o problema ao fazer a seguinte pergunta: «Pode a
alegação de que uma teoria universal é verdadeira ser justificada com base na
verdade de algumas afirmações observacionais?» Se a questão é esta, então
Hume estava certo quando pensava que a resposta tem de ser «não». Não há
como justificar uma teoria universal com base na verdade de algumas das suas
instâncias que podem ser confirmadas pela observação. E, contudo, a solução
está em fazer uma pergunta semelhante, que tem uma resposta positiva: «Será
que a alegação de que uma teoria universal é falsa pode ser justificada com base
na falsidade de algumas afirmações observacionais?»
De acordo com Popper, precisamos de desistir da ideia de que a ciência é
baseada em inferências indutivas e aceitar uma forma de dedutivismo, que
funciona do seguinte modo. Primeiro, formulamos uma nova hipótese. Depois,
derivamos dela, via dedução, algumas afirmações cuja verdade ou falsidade
podem ser comprovadas pela observação. Se, após um teste minucioso, as
afirmações se revelarem verdadeiras, nada de conclusivo mostrámos acerca da
hipótese, que precisa de ser submetida a mais testes. Se as afirmações se
revelarem falsas, mostrámos que a hipótese é falsa (uma vez que produz as
consequências empíricas erradas) e avançámos um pouco. Por outras palavras,
falsificámos a teoria. A sugestão de Popper traz problemas, com os quais nos
depararemos quando nos dedicarmos às questões relacionadas com a
confirmação de teorias, mas é interessante notar aqui que Popper pensava que a
ciência não se baseia e não se deve basear em inferências indutivas, e que
sugeriu o que considerou uma alternativa plausível.

Exercício: Pense sobre a solução de Popper para o problema da indução e
responda às seguintes questões: a) Como é que chegamos a novas hipóteses a
não ser pela indução? b) Podemos alguma vez ter justificação para aceitar uma
teoria usando o método de teste de Popper?

Discussão: Acha que o problema da ausência de justificação da indução pode
ser resolvido?

Resumo
Neste capítulo, definimos primeiramente três formas de obter ou consolidar
conhecimento que correspondem às três regras diferentes da inferência: a
dedução, a indução por enumeração e a inferência a favor da melhor explicação.
Demos ênfase à importância das inferências indutivas para a prática da ciência e
discutimos algumas tentativas de justificar a fiabilidade da indução.
Descrevemos algumas das inovações metodológicas que caracterizaram a
revolução científica, e considerámo-las importantes para a nossa compreensão
contemporânea da ciência: a aceitação do raciocínio indutivo como base de todas
as ciências empíricas foi uma delas. Alguns dos outros aspectos foram o uso da
observação mediada e de experiências na prática da ciência, bem como a
fundação de instituições que promoveram o desenvolvimento de uma
comunidade de praticantes em constante diálogo uns com os outros.
Todas estas peculiaridades metodológicas da prática da ciência podiam ser
consideradas como critérios para distinguir as actividades científicas
propriamente ditas da pseudociência, mas isto seria demasiado precipitado.
Primeiro, há elementos de continuidade anteriores e posteriores à Revolução
Copernicana, incluindo o papel dos pressupostos metafísicos que norteiam os
projectos de investigação. Estes elementos devem fazer-nos pensar duas vezes
quando usamos as designações «pré-ciência» ou «ciência primitiva» para nos
referirmos às tentativas de descrição do mundo pelos Gregos antigos e pelos
filósofos naturais da Idade Média. Segundo, devemos ter em mente que há
diferenças metodológicas importantes na prática das diferentes disciplinas
científicas. A maneira como os dados são recolhidos não é igual na biologia e na
física, por exemplo, além de que só pode ser feito um número muito reduzido de
generalizações com segurança, no que respeita ao método. Terceiro, a
continuidade das estratégias e objectivos argumentativos parece reduzir a linha
que separa a ciência «madura» da «imatura». Os cientistas ainda vão querer
explicar os fenómenos que nos rodeiam de uma maneira sistemática e
satisfatória, e ainda vão usar argumentos e experiências mentais à moda antiga
para fazê-lo.

Cenas dos próximos capítulos
No capítulo 3 continuaremos a analisar o papel da indução na prática da ciência,
e avaliaremos diferentes estratégias para a confirmação das teorias científicas.
Examinaremos o enigma da indução de Goodman e introduziremos outro
paradoxo da confirmação de teorias. Exploraremos com maior pormenor as
noções de observação directa e mediada, e discutiremos a relação entre a teoria e
a observação no que respeita à estrutura e formação de teorias (capítulo 3), a
natureza dos termos teóricos e o debate realismo/anti-realismo (capítulo 4), e a
natureza do progresso na mudança científica (capítulo 5).

Questões para pensar
1. Pode alguém ser cientista sem nunca fazer uma experiência efectiva?
2. De que maneira a colaboração entre cientistas é benéfica para a aquisição ou
consolidação de conhecimento?
3. Será que as experiências mentais contribuem realmente para fazer ciência?
4. Qual é o tipo de raciocínio mais passível de orientar a prática científica?
5. Porque é que os filósofos se preocupam com a justificação da indução?
6. De que maneira o indutivismo de Bacon é ainda uma boa abordagem à
metodologia científica? De que maneira é ultrapassado?

Leituras complementares
Para uma introdução ao problema da indução e ao debate tradicional, leia
algumas partes do Tratado de Hume (Livro i, Parte in) e das suas Investigações
(Secção iv e v), Popper (1953,1974) e Russell (1967, capítulo 6). Uma
interpretação acessível e estimulante do problema humeano da indução pode ser
encontrada em Beebee (2006), e o dedutivismo de Popper é discutido em
pormenor em Newton-Smith (1981, capítulo 3).
A discussão sobre a natureza das experiências mentais entre Norton (2004) e
Brown (2004) fá-lo-á reflectir mais sobre o uso das mesmas em ciência, além de
ser uma boa fonte de exemplos.
Se quiser saber mais sobre a revolução científica ou sobre outros episódios
importantes da história da ciência em geral, pode aceder a um guia para leituras
complementares no portal da History of Science Society (www.hssonline.org/).
Aí também encontrará informação útil sobre novas publicações e conferências.


3. Conhecimento





Neste capítulo daremos seguimento à investigação sobre os aspectos
epistemológicos e metodológicos da ciência iniciada no capítulo anterior. Focar-
nos-emos na estrutura, formação, confirmação e no papel explicativo das teorias
científicas.
No último capítulo, vimos as primeiras tentativas de caracterizar o método
científico na obra de Bacon. A imagem indutivista simples da prática da ciência
que sucintamente introduzimos põe em relevo os fundamentos empíricos das
teorias científicas. Os cientistas esvaziam as suas mentes de toda a opinião
preconcebida e abrem os olhos: recolhem dados com base em observações e
experiências. Fazem abstracções a partir dos resultados destas observações e
experiências, e formulam hipóteses cada vez mais gerais. Depois testam as
previsões que podem fazer com base nestas hipóteses e realizam mais
observações e experiências. A ideia é que, por meio do raciocínio indutivo,
podemos chegar a uma generalização sobre um tipo de objecto que tem uma
certa propriedade num certo contexto, se tiverem sido encontrados objectos
desse tipo que tenham tal propriedade em contextos relevantemente semelhantes.
Esta concepção do modo como os cientistas operam está fundamentada na
fiabilidade das inferências indutivas, e considera as observações e as
experiências como pedras angulares das teorias. Mas a relação entre a teoria e a
observação tem de ser explorada com maior pormenor. É que, como é o caso de
Popper, alguns autores levantam objecções à ideia indutivista da ciência,
considerando que a fase da observação não pode ser anterior e independente da
formação de uma hipótese específica. Quando os cientistas observam, têm
sempre algumas expectativas para orientar e enquadrar as suas observações,
alguma ideia do que vão ver.
As nossas teorias científicas dão sentido às observações que fazemos de uma
maneira sistemática, e um dos propósitos da teorização científica é a previsão de
acontecimentos futuros. No entanto, muitas das observações não seriam sequer
levadas a cabo se não fosse para testar uma hipótese particular ou um conjunto
de hipóteses, e as observações que constituem indícios confirmantes das nossas
hipóteses são muitas vezes mediadas por um equipamento sofisticado cuja
fiabilidade depende de mais pressupostos teóricos. Alguns filósofos falam da
subdeterminação teórica da observação, ou seja, o facto de os dados que
adquirimos mediante a observação directa ou mediada não serem neutros no que
respeita a todas as teorias, mesmo antes de serem interpretados.
As teorias explicam e prevêem acontecimentos, mas como o fazem? Passaremos
em revista diferentes modelos de confirmação e de explicação de teorias, e
apresentaremos as duas principais concepções de teorias científicas: a concepção
sintáctica e a concepção semântica. Ambas as concepções parecem ser postas à
prova pelas teorias da confirmação e da explicação.
As teorias explicam e prevêem acontecimentos, mas como o fazem? Passaremos
em revista diferentes modelos de confirmação e de explicação de teorias, e
apresentaremos as duas principais concepções de teorias científicas: a concepção
sintáctica e a concepção semântica. Ambas as concepções parecem ser postas à
prova pelas teorias da confirmação e da explicação.
Ao longo da nossa curta introdução à noção de confirmação de uma teoria,
veremos que é difícil caracterizar a forma como as observações sustentam as
hipóteses científicas. Quando passarmos aos diferentes modelos de explicação,
passaremos em revista as condições que tornam as teorias científicas capazes de
proporcionar explicações adequadas dos fenómenos que nos interessam.
Poderemos explicar um facto sem apelar a uma lei da natureza? Como é que
decidimos entre hipóteses explicativas concorrentes dos mesmos fenómenos?
No final deste capítulo estará habilitado a:

• Discutir e avaliar explicações filosóficas diferentes sobre a formação e a
natureza de teorias científicas.
• Explicar a relação entre teoria e observação.
• Discutir e avaliar explicações filosóficas diferentes sobre a confirmação de
teorias científicas.
• Discutir e avaliar modelos diferentes de explicação científica.
• Formar uma opinião sobre o que faz de um conjunto de afirmações uma teoria
científica.

3.1 O que é uma teoria?

O que esperamos de uma teoria num domínio específico é uma explicação
coerente e sistemática da razão por que alguns factos ocorrem como ocorrem, e
uma maneira fundamentada de prever os factos que ocorrerão no futuro. Por
exemplo, uma teoria sobre o movimento dos objectos terrestres diz-nos com base
em que princípios os objectos de uma certa dimensão se movimentam como se
movimentam, e também nos permite prever como se movimentarão no futuro ou
como se movimentariam em contextos não reais (se não houvesse inércia, por
exemplo)
Qualquer teoria científica implica uma série de afirmações, que variam entre
afirmações empíricas sobre fenómenos particulares observáveis (quer a olho nu,
quer mediante instrumentos científicos), valores que podemos medir e princípios
gerais. Eis um exemplo de uma afirmação empírica sobre um acontecimento
particular em física: «O corpo cai à velocidade de 40 km/h.» Um exemplo de um
princípio geral é o princípio da inércia, segundo o qual um corpo conservará uma
velocidade constante, a menos que sobre ele actue uma força cuja resultante não
seja nula. Um exemplo de uma afirmação empírica sobre um acontecimento
particular em psicologia social é: «Após terem desempenhado uma tarefa
aborrecida como parte de uma experiência psicológica, as pessoas que não
receberam incentivo algum classificaram a tarefa como positiva.» Um exemplo
de um princípio é a hipótese da dissonância cognitiva: as pessoas tentam reduzir
o conflito entre as atitudes de que estão cientes (crenças, decisões, preferências,
emoções, por exemplo) e alteram o seu comportamento em conformidade.
Nas ciências naturais como nas sociais, os princípios podem ser confirmados
com base em afirmações empíricas sobre fenómenos particulares que pertencem
ao domínio abrangido pelos princípios. Quando perguntamos como os cientistas
formam teorias, muitas vezes interessa-nos a maneira como passam de
afirmações observacionais sobre acontecimentos particulares, de agentes,
objectos, etc., a princípios gerais, e, por último, a leis. Há muito que os filósofos
da ciência tentam proporcionar uma reconstrução do que são as teorias
científicas e de como a transição entre a observação de factos e a formulação de
hipóteses ou princípios gerais pode ser descrita.

Exercício: Consegue imaginar outras generalizações nas ciências naturais e
sociais? O que têm todas em comum?

3.1.1 Concepções de teorias científicas

De acordo com uma versão popular da concepção sintáctica das teorias
científicas (de sintaxe, o estudo das regras que determinam como as frases são
formadas), as teorias são compilações de afirmações que podem ter uma
representação formal enquanto sistemas axiomáticos. A ideia fundamental é que
podemos separar a estrutura lógica da teoria (calculus) do seu conteúdo factual
(Carnap 1967; Hempel 1970). As frases não interpretadas ligam-se umas às
outras pela lógica: por exemplo, os teoremas são derivados dos axiomas por
dedução. Quando os axiomas e os teoremas são interpretados, obtemos as
afirmações que formam o corpo da teoria. Tais afirmações contêm termos
lógicos, observacionais e teóricos. Pode-se atribuir significado aos termos
teóricos por correlação com termos observacionais por meio de regras de
correspondência.
Os termos lógicos são termos como «e» ou «ou», que significam uma relação
lógica entre predicados ou proposições. Na frase «Tenho um carro velho e uma
bicicleta de montanha nova», o termo «e» serve para exprimir a relação entre eu
ter um carro velho e uma bicicleta de montanha nova (que é uma relação de
conjunção). A frase exprime uma proposição verdadeira se for verdade quer eu
ter um carro velho, quer eu ter uma bicicleta de montanha nova.
Os termos observacionais são termos que podemos aplicar na experiência
directa. O termo «velho» na frase anterior é observacional, pois posso
determinar por meio da observação e da experiência directas que o meu carro é
velho (olhando para ele, ouvindo o barulho do motor, observando que demora a
arrancar quando está frio, por exemplo).
Os termos teóricos são aqueles que não são lógicos nem observacionais. O termo
«diabetes» pode ser um exemplo. Não podemos definir se alguém tem esta
doença por via da mera observação. Para se ver se uma pessoa tem as
características típicas desta doença é necessária investigação adicional: têm de
ser feitas análises adequadas, que têm de ser interpretadas por um médico. O
método para descobrir se uma pessoa tem diabetes pode ser dividido numa série
de observações, e portanto é em princípio possível estabelecer uma
correspondência entre afirmações sobre a diabetes e afirmações que contêm
termos exclusivamente observacionais.

Exercício: Pense noutros exemplos de termos observacionais e teóricos.
Consegue encontrar um termo que seja observacional nuns contextos e teórico
noutros?

O aspecto atractivo da concepção sintáctica é que em princípio se pode separar a
estrutura lógica — ou esqueleto — de uma teoria (constituída pelos axiomas não
interpretados e pelos teoremas) do seu conteúdo empírico e do seu significado.
Porém, a dificuldade em distinguir com precisão os termos teóricos dos termos
observacionais, juntamente com o problema de especificar regras de
correspondência satisfatórias por meio das quais os termos teóricos adquirem o
seu significado, levaram os filósofos a desenvolver uma explicação alternativa
das teorias científicas, a chamada concepção semântica.
Embora haja versões diferentes da concepção semântica (Van Fraassen 1980;
Giere 1988; Suppe 1989), todas partilham a rejeição da abordagem sintáctica.
Uma teoria científica não pode ser adequadamente apresentada como um sistema
axiomático formal escrito na linguagem da lógica que, numa fase ulterior, é
sujeito à interpretação semântica. Ao contrário, toda a teoria deve ser
apresentada como um conjunto de definições teóricas e um conjunto de
afirmações que defendem que diversas coisas no mundo satisfazem tais
definições (hipóteses teóricas). De acordo com esta explicação, não é possível
formular hipóteses sobre uma divisão precisa entre estrutura lógica e significado,
pois as definições não são necessariamente expressas numa linguagem formal.
Além disso, a relação entre as afirmações de uma teoria e o mundo da
experiência já não está refém da identificação de regras de correspondência,
assentando antes na criação pelos cientistas de réplicas ou modelos abstractos da
realidade que se enquadrem nas definições teóricas fornecidas.
Voltemos aos exemplos antes mencionados e vejamos como se chega às
afirmações de uma teoria, e como estas são testadas nas duas concepções que
apresentámos. Para o sintacticista, o princípio da inércia que pode ser derivado
da observação de como os corpos se movimentam seria formulado como um
princípio lógico, e funcionaria como um axioma num sistema. A partir dos
axiomas derivar-se-iam e interpretar-se-iam teoremas, de modo a conterem
termos teóricos, termos observacionais, assim como termos lógicos. Tornar-se-
iam afirmações sobre, por exemplo, o modo como os corpos de uma determinada
massa se movimentariam sob a influência de determinadas forças num meio
onde algumas variáveis eram controladas. Os termos teóricos contidos em tais
afirmações («inércia», «força», aceleração», etc.) receberiam significado com
base na sua correlação com termos observacionais. Tais afirmações estariam
então prontas para receber um maior suporte empírico, mediante observações e
experiências que visassem verificá-las (ou falsificá-las). O suporte empírico para
as afirmações transmitiria justificação empírica aos princípios de que são
derivadas.
Para o semanticista, no momento de axiomatizar não seria necessário traduzir as
afirmações científicas para frases numa linguagem formal, e depois inverter o
processo com o fim de testar os teoremas derivados à luz da observação e de
experiências. O princípio da inércia seria formulado com base em indícios
indutivos, como vimos antes, e depois definir-se-ia inércia. Uma hipótese teórica
que satisfizesse tal definição seria então avançada. Essa hipótese referir-se-ia a
uma réplica abstracta e muitas vezes adequadamente simplificada da realidade
(um meio em que algumas variáveis seriam melhor controladas), que podia
servir como modelo idealizado onde se observariam as relações básicas entre,
por exemplo, a velocidade de um corpo em queda e a (quantidade de) força
aplicada a tal objecto. Não seria preciso seguir os passos da interpretação e
procurar as regras de correspondência para todos os termos teóricos usados, pois
a definição e as hipóteses já estariam «interpretadas», isto é, expressas na
linguagem concreta da ciência e não na linguagem abstracta da lógica.
Frederick Suppe (1989) insiste que os semanticistas descrevem correctamente a
forma como os cientistas procedem. Os modelos e as réplicas abstractas são
criados para ilustrar as relações complexas entre propriedades. Consideremos
dois exemplos. Na psicologia, o behaviorismo visa identificar os parâmetros que
levam as pessoas a comportar-se como se comportam, e descreve o
comportamento como a função de estímulos e de padrões de resposta. Uma vez
que é difícil isolar os padrões motivacionais nos seres humanos, dado o número
de interesses que têm, a relação entre o estímulo e a resposta pode ser
demonstrada observando o comportamento de outros seres dotados de cérebro,
cujos interesses podem ser identificados e controlados com maior facilidade. No
cenário experimental, um rato com fome carrega numa alavanca e obtém
comida. Quando a mesma situação se repete, ou seja, o rato está outra vez com
fome, a alavanca será accionada de novo e esperar-se-á alimento. Por si só, estes
parâmetros não são suficientes para explicar a variedade e a complexidade do
comportamento humano e até do comportamento animal, mas fornecem um
modelo que aproxima a realidade que se pretende investigar, permitindo aos
cientistas explorar a relação entre estímulo e resposta.
Na física, o modelo atómico de Bohr (assim chamado por ter sido desenvolvido
por Niels Bohr, em 1915) descreve os electrões como circulando à volta do
núcleo atómico (composto por neutrões e protões) do mesmo modo que os
planetas circulam à volta do Sol. Este modelo é útil para muitas finalidades
educativas e outras finalidades explicativas, mas não nos dá uma descrição
precisa da natureza do átomo, pois a relação entre o núcleo do átomo e as órbitas
dos electrões é diferente da relação entre o Sol e as órbitas dos planetas. A título
de exemplo, no sistema solar as órbitas planetárias estão confinadas a um plano,
o que não se aplica às órbitas descritas pelos electrões, além de que a força de
atracção que faz os electrões orbitarem à volta do núcleo atómico é muito maior
do que a força gravitacional que actua sobre os planetas do nosso universo.
Encontrar exemplos de modelos na ciência não é difícil, mas explicar o modo
como os modelos contribuem para a formação e o desenvolvimento das teorias
científicas é uma outra questão. Considere as seguintes perguntas:

a. Qual é a relação entre o modelo e os fenómenos que se pretende
compreender? Será preciso que tenham a mesma estrutura?
b. Qual é a relação entre a teoria e os modelos relevantes? Será que os modelos
podem substituir as teorias, ou será que apenas as complementam?
c. O que são modelos? Serão entidades físicas, ou serão ficções?

Até certo ponto, a plausibilidade das respostas que podíamos dar às perguntas
(a), (b) e (c) depende do tipo de modelo que se considera, e portanto poder-se-ia
defender uma abordagem pluralista à função e à natureza dos modelos em
ciência. Porém, dependendo de algumas das respostas dadas às perguntas antes
feitas, foram formuladas e defendidas versões diferentes da concepção semântica
das teorias científicas. Vou dar um exemplo, em traços gerais, de um destes
debates.
Consideremos o modelo (os planetas a orbitar à volta do Sol, por exemplo) como
uma representação de um fenómeno (os electrões a orbitar à volta de um núcleo
atómico). Qual é a relação entre o fenómeno representado e a sua representação?
Alguns autores defendem que tem de haver isomorfismo entre os dois, em que
«isomorfismo» significa literalmente «igualdade de estrutura» (Van Fraassen
1980; Suppe 2002). Outros defendem que é suficiente estabelecer uma relação
de semelhança entre a representação e o fenómeno representado (Giere 2004;
Teller 2001). Tem sido observado que a última versão é mais prometedora como
uma explicação geral da relação, uma vez que pode incluir modelos que são
inexactos porque simplificam de mais. Por outro lado, também tem sido
observado que a explicação é demasiado vaga para ser genuinamente útil, se não
forem especificados graus de semelhança (ver Frigg e Hartmann 2006).

Exercício: Tente encontrar outro exemplo de um ^ modelo usado em ciência e
volte às perguntas (a), (b) e (c) à luz do novo exemplo.

Discussão: De que modo o modelo é útil? Quais são \/ as semelhanças e as
dissemelhanças entre o fenómeno representado e a sua representação?

Apresentámos duas concepções alternativas da natureza das teorias científicas.
Mas Ronald Giere (2000) defendeu que o debate entre a teoria sintáctica e a
teoria semântica está ultrapassado. A motivação para discutir a natureza das
teorias científicas fez sentido no contexto de tentar proporcionar uma
reconstrução filosófica da ciência, o que já não é propriamente o que está em
cima da mesa. Em certa medida, a emergência de diferentes tipos de disciplinas
científicas legítimas nas quais as teorias não se baseiam tanto como a física em
modelos matemáticos (é o caso da biologia e da psicologia), mostrou que não é
realista tentar descrever a estrutura de todas as teorias científicas.
Além disso, o debate entre os semanticistas e os sintacticistas não esgota o
espectro das possibilidades. Há explicações alternativas, que podem ser
encontradas no trabalho de Kuhn e de Feyerabend, que foram interpretadas como
explicações que desenvolvem uma visão historicista das teorias científicas (ver o
capítulo 5 para mais pormenores), e no de Thagard, que advoga uma explicação
computacional das teorias científicas. Estes autores sublinham a importância de
encontrar soluções para problemas prementes na prática efectiva da ciência, e
observam como os procedimentos que são considerados como um modo racional
de promover o avanço da ciência podem variar de acordo com o contexto
histórico e com o contexto cultural mais alargado em que os cientistas operam.

3.1.2 A complexidade oculta da observação

Para avaliarmos o indutivismo e as concepções das teorias que antes
descrevemos, precisamos de compreender melhor a relação entre observar e
interpretar um acontecimento à luz de uma teoria.
O que é considerado observável? Rudolf Carnap (1966) defende que o cientista
não usa o termo «observável» para se referir a propriedades que podem ser
directamente observadas, mas a propriedades que podem ser detectadas mediante
os nossos sentidos, como ser vermelho ou azul, quente ou frio, liso ou rugoso.
De acordo com esta definição do que é observável, «quente» é considerado um
termo observacional, mas «com carga eléctrica» não. Suppe (1989) concorda que
há contextos em que as propriedades observáveis em teoria não podem ser
atribuídas com base na observação. Por exemplo, dissemos que «quente» é um
termo observacional paradigmático, mas não poderíamos determinar por
observação directa se o Sol é dotado de tal propriedade. E há contextos em que a
presença de propriedades mais abstractas, como possuir carga eléctrica, pode ser
verificada pela simples observação (o que acontece quando enfiamos um dedo
numa tomada, por exemplo).
A importância da observação ser directa ou imediata também é controversa. Se
não aceitamos que as entidades que observamos ao microscópio têm o mesmo
estatuto que as que vemos a olho nu, o que diremos do que vemos com os nossos
óculos de leitura? Parece haver um argumento forte a favor da ideia de que a
distinção entre directamente observável e inobservável não é nítida, mas toma a
forma de uma «transição contínua» (Maxwell 1962).
Bas van Fraassen (1980) não considera convincente este argumento da
continuidade. Mesmo que concordemos que a dicotomia entre o observável e o
não-observável comporta alguns elementos de arbitrariedade, há dois casos que
têm de ser distinguidos. Alguns objectos que são vistos por via da mediação de
um instrumento também podem ser vistos a olho nu em condições adequadas
(por exemplo, os astronautas conseguem ver bem as luas de Júpiter sem um
telescópio). Mas há objectos que nunca podem ser vistos directamente, como
uma plaqueta, e a impossibilidade deve-se às nossas limitações enquanto seres
humanos. Neste último caso, os instrumentos são necessários para termos a
experiência dos objectos, e esta diferença pode desempenhar um papel
importante no debate sobre o estatuto ontológico de tais objectos (a que
voltaremos no capítulo 4).

A. Discussão: Será realmente impossível ultrapassar as actuais limitações
humanas e ver as plaquetas sem o auxílio de instrumentos?

Ian Hacking (1981) tira algumas conclusões interessantes da história dos
microscópios, contestando a distinção de Van Fraassen entre o que é possível e
impossível os seres humanos verem. Talvez o astronauta consiga ver bem as luas
de Júpiter ao voar no espaço, mas o microscopista consegue observar bem as
plaquetas ao basear-se no mapa das interacções entre o espécime e a sua imagem
(se o mapa estiver bem feito). Hacking argumenta convincentemente contra a
noção de observação como algo passivo, que depende das características da
propriedade ou do objecto a observar, sugerindo ao invés que a observação é
uma técnica e envolve algum fazer. Observar ao microscópio não permite só por
si que as pessoas o usem eficazmente: é a prática que lhes dá a técnica de
observar ao microscópio (ou, melhor, com o microscópio), e esta competência
não depende necessariamente da adopção de uma teoria particular (ainda que a
adopção de uma teoria particular seja necessária para construir um microscópio).

Exercício: De que modo observar ao microscópio é diferente de ver através de
uns óculos com lentes coloridas?

Discussão: Qual é a sua opinião sobre a «tese da \/ continuidade»? Haverá uma
distinção clara entre o que podemos e o que não podemos observar? Considere,
por exemplo, a imagiologia por ressonância magnética (IRM), uma tecnologia
usada para avaliar tumores ou examinar possíveis danos cerebrais. Será o
tumor ou o dano cerebral observável?

3.2 Confirmação de teorias

Ainda que as questões sobre o que as teorias científicas são e qual a melhor
explicação da relação entre as observações e as hipóteses teóricas possam
continuar em aberto, os filósofos da ciência concordam que as teorias podem ser
confirmadas ou infirmadas por mais observações e experiências, o que garante a
sua fundamentação empírica.
Quando afirmam que uma observação confirma (ou infirma) uma hipótese, os
filósofos querem dizer que a observação constitui um indício confirmante (ou
infirmante) de tal hipótese. Como vimos, as hipóteses universais não podem ser
verificadas de modo definitivo, independentemente do número de observações
que com elas concordem, pois o número destas observações será sempre finito.
Da mesma maneira, uma hipótese existencial não pode ser falsificada de modo
definitivo, pois um objecto cuja existência não foi ainda observada poderá ser
descoberto no futuro.
No que se segue veremos com maior pormenor como uma teoria pode ser
confirmada pelos indícios disponíveis, e examinaremos alguns dos quebra-
cabeças que geraram novas maneiras de articular a noção de confirmação.
Enquanto Cari Hempel pretende explicar a confirmação como uma relação
puramente lógica (o modelo hipotético-dedutivo), outros filósofos defendem que
só ao introduzir a noção de probabilidade podemos apreender os aspectos da
confirmação que são relevantes para a prática científica efectiva (a abordagem
bayesiana).

3.2.1 O paradoxo dos corvos

Muito embora a ideia de uma hipótese ser confirmada pela observação seja
intuitiva e não ofereça grandes dúvidas, é difícil fazer uma caracterização precisa
da relação entre os indícios empíricos e as afirmações numa teoria que se espera
que os indícios apoiem. O ponto de partida para o debate é aquilo a que na
literatura se chama Condição de Nicod: uma hipótese na forma «A implica B» é
confirmada sempre que observamos a presença de B num caso de A. Por
conseguinte, a confirmação é a relação entre uma hipótese e um objecto ou um
acontecimento.
Foquemo-nos no exemplo clássico. A seguinte hipótese, (U), «Para todas as
instâncias de X, se X é um corvo, logo X é negro», será confirmada pela
observação de uma coisa negra que é um corvo. A ideia subjacente a esta
condição é que, quando temos uma afirmação universal, a probabilidade de esta
ser verdadeira é originada ao encontrarmos uma instância da generalização. Um
corvo negro confirma (U), um corvo não negro infirma-a.
Hempel (1945) desenvolve a sua própria explicação da teoria da confirmação
com base na Condição de Nicod. Abraça a ideia de que a confirmação diz
respeito à relação entre hipóteses e observações, mas concebe-a como uma
relação lógica entre afirmações, análoga à de consequência lógica. Uma
afirmação observacional actua como um indício confirmante ou infirmante para
uma afirmação que relata uma hipótese científica. Hempel não se convence com
os pormenores da explicação de Nicod, pois esta viola o princípio da
equivalência lógica. Este princípio afirma que se duas afirmações-hipóteses (Hl
e H2) são logicamente equivalentes, então toda a afirmação-observação (Ol) que
confirma Hl também tem de confirmar H2. (Ul), «Para todas as instâncias de X,
se X é um corvo não negro, então X é um corvo e não é um corvo», é
logicamente equivalente a (U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo,
então X é negro» (Apesar de, à primeira vista, (Ul) e (U) não parecerem logicamente equivalentes,
elas são-no de facto, pois não há circunstância alguma em que elas tenham valores de verdade diferentes. -
N. do R.) Contudo, nenhuma observação pode confirmar (Ul), porque nada pode
simultaneamente ser um corvo e não ser um corvo. O que significa que o
princípio da equivalência lógica é violado pela condição de Nicod.
Isto representa um problema para Hempel, pois ele não quer desenvolver uma
noção de confirmação segundo a qual a relação entre o fenómeno observado e a
hipótese tornada mais ou menos provável por esse fenómeno seja refém do modo
como as hipóteses e as afirmações observacionais são formuladas. A afirmação
observacional «Isto é um corvo e é negro» constitui um indício confirmante para
a afirmação (U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo, então X é
negro», e a relação entre elas é análoga à da consequência lógica. Mas a
afirmação observacional «Isto não é um corvo e não é negro» também confirma
(U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo, então X é negro», porque
confirma uma afirmação que é logicamente equivalente a (U), isto é, (U2), «Para
todas as instâncias de X, se X não é negro, então X não é um corvo».
Porém, defender o princípio da equivalência lógica levanta outros problemas, de
que Hempel dá conta. Dada a nossa noção do senso comum de confirmação,
parece bastante contra-intuitivo defender que, ao depararmos com algo que não
seja negro e que não seja um corvo — um sapato branco ou uma folha verde, por
exemplo —, as afirmações observacionais «Isto é um sapato e é branco» e «Isto
é uma folha e é verde» apoiam a afirmação universal «Para todas as instâncias de
x, se x é um corvo, então x é negro». Isto é desconcertante, uma vez que a
observação de um sapato branco ou de uma folha verde não parece ter relevância
alguma para a hipótese de que todos os corvos são negros.

Hempel considera primeiramente algumas soluções possíveis para este


problema, incluindo a introdução de uma qualificação que determine o campo de
aplicação de cada hipótese universal. Por exemplo, a hipótese «Para todas as
instâncias de x, se x é um corvo, então x é negro» só seria avaliada em termos da
classe dos corvos, e a observação de sapatos e de folhas não seria considerada
relevante para a sua avaliação. Mas esta medida introduziria um elemento de
arbitrariedade que é difícil de justificar, e que pareceria um expediente ad hoc.
Ao invés, Hempel quer advogar a conclusão contra-intuitiva: defende que, muito
embora a afirmação de que a observação de um sapato branco confirma que
todos os corvos são negros pareça desconcertante, deve-se aceitá-la. A razão do
nosso desconcerto inicial prende-se com o facto de estarmos habituados a
conceber que uma hipótese universal determina uma verdade em relação a uma
classe de indivíduos, quando as hipóteses universais deviam ser consideradas
como algo que emite uma proibição que se aplica a todos os objectos: se algo é
um corvo, então não pode ser outra coisa senão negro.
Segundo Hempel, na confirmação não estamos só a avaliar a relação entre um
dado indício e a hipótese; estamos também a avaliar a hipótese relativamente à
conjunção dos novos indícios que acabámos de recolher e de todos os indícios
anteriormente disponíveis. A observação de um sapato branco aumenta
fracamente a probabilidade de todos os corvos serem negros. Com esta
explicação da confirmação, que tem tacitamente em conta indícios anteriores,
aceita-se outra conclusão contra-intuitiva: a observação de um sapato branco não
proporciona indícios confirmantes só para a afirmação de que todos os corvos
são negros, mas também para a afirmação de que todos os corvos são verdes.
Mas de que modo pode a observação do mesmíssimo objecto — um sapato
branco — confirmar que todos os corvos são negros e que todos os corvos são
verdes ao mesmo tempo? A consideração dos indícios anteriormente recolhidos
pode ajudar a responder a este quebra-cabeças, mas a explicação revista não
deixa os críticos de Hempel satisfeitos.

Exercícios: 1) Aplique o princípio da equivalência lógica a outro exemplo de
confirmação. 2) Consegue detectar outras consequências indesejáveis da
explicação hempeliana da confirmação?

3.2.2 Abordagens alternativas da confirmação

Wesley Salmon (1975) acha que a defesa do modelo hipotético-dedutivo da
confirmação por Hempel assenta numa confusão de base entre duas concepções
de confirmação: por um lado, podemos dizer que uma teoria é aceite por uma
comunidade científica porque obteve confirmação dos indícios disponíveis; por
outro lado, podemos dizer que uma observação específica aumenta a
probabilidade de uma teoria, independentemente dos outros indícios disponíveis.
Esta distinção é importante, como podemos ver no seguinte caso: uma hipótese
com um baixo nível de probabilidade, dados os indícios disponíveis, pode ser
«confirmada» (no último sentido) por mais um indício, e no entanto a sua
probabilidade no que respeita ao conjunto dos indícios anteriores e dos novos
indícios não aumentou. Se já observámos alguns cisnes negros, não vamos
depositar grande confiança na hipótese de que todos os cisnes são brancos. Há,
contudo, um sentido de confirmação segundo o qual a observação de mais um
cisne branco apoia de alguma maneira a afirmação de que todos os cisnes são
brancos, se isolarmos esse indício dos que recolhemos antes.
Richard Swinburne (1971) mostra bem o contraste entre as duas noções com o
exemplo que se segue. Consideremos a hipótese: «Todos os gafanhotos estão
fora do condado de Yorkshire.» Se eu observar um gafanhoto que esteja fora do
limite do condado, esta observação deve servir para confirmar a hipótese. Mas,
dado o que eu sei sobre os gafanhotos (que saltam para aqui e para acolá, algo
indiferentes aos limites dos condados), a minha observação torna mais provável
que outros gafanhotos tenham entrado no condado, o que enfraquece a hipótese
inicial. O mesmo caso pode confirmar a hipótese de acordo com um sentido de
«confirmação» (baseado na relação de implicação entre os indícios e a hipótese),
e infirmá-la de acordo com o outro sentido de «confirmação» (se as crenças de
base também forem tomadas em consideração).
Além de ser insensível à distinção entre estas duas noções de confirmação,
segundo Salmon (1990) o modelo hipotético-dedutivo defendido por Hempel
tem uma série de fragilidades. Não parece permitir a possibilidade de hipóteses
alternativas poderem ser confirmadas pela mesma observação, e que algumas
destas hipóteses podem ser mais plausíveis que outras, dada essa observação.
Pelo menos na sua formulação explícita, o modelo de Hempel não tem em conta
a plausibilidade inicial das hipóteses sujeitas a avaliação. Por fim, não lida muito
bem com o caso das hipóteses estatísticas cujos indícios confirmantes não
podem ser deduzidos delas. Estes problemas foram tratados passando para a
teoria das probabilidades, em particular o Teorema de Bayes. Será que a sua
aplicação à confirmação em ciência consegue melhores resultados?
O ponto de partida é assumir que aquilo que nos interessa quando estudamos a
confirmação científica é o modo como um indício sustenta uma hipótese, dados
os indícios anteriormente disponíveis. As abordagens dedutivas da confirmação
não lidam muito bem com as hipóteses científicas que são confirmadas por uma
afirmação observacional que não é uma consequência directa delas. Ora, uma
resposta às limitações das abordagens dedutivas consiste em tratar a confirmação
munindo-nos dos recursos da teoria das probabilidades. Quando os filósofos
pensam sobre a probabilidade, podem ter uma das seguintes concepções em
mente: ou a probabilidade de uma teoria é objectiva, ou é subjectiva. No
primeiro caso, a probabilidade de uma teoria ser verdadeira depende de como as
coisas são; no último, na confiança que os agentes têm na verdade da teoria.
A explicação subjectiva pode ser usada para desenvolver uma explicação da
confirmação alternativa à de Hempel. O Teorema de Bay es, em particular, pode
dizer-nos como a nossa atitude relativamente às nossas crenças actuais muda
quando são disponibilizados novos indícios (actualização de crenças). A
probabilidade de uma hipótese H, dados novos indícios I, é igual à probabilidade
de I, dado H, vezes a probabilidade de H, todas divididas pela probabilidade de I.

Teorema de Bayes: P(H/I) = [P(I/H) P(H)] / P(I)

Eis um exemplo de como aplicar o teorema a um problema concreto. Imagine
que a Ana mora numa casa com um jardim, e que a casa do seu vizinho Tozé
também tem um jardim. Em ambos os jardins há flores de vários tipos. Se
alguém apanhar flores ao acaso, a probabilidade de apanhar uma campainha no
jardim do Tozé é 1/2, e a probabilidade de apanhar uma campainha no jardim de
Ana é 1/4. Se o João apanhasse uma flor num dos dois jardins ao acaso e se fosse
uma campainha, qual a probabilidade de a ter apanhado no jardim da Ana?

P(A2) é a probabilidade de o João ter apanhado uma flor no jardim da
Ana.

P(T1) é a probabilidade de o João ter apanhado uma flor no jardim do
Tozé.

P(B) é a probabilidade de uma campainha ter sido apanhada.


Ora, a probabilidade de se apanhar uma campainha no jardim da Ana (P(C/A2))
é 1/4. E a probabilidade de se apanhar uma campainha no jardim do Tozé
(P(C/T1)) é 1/2.


A probabilidade de o João apanhar flores no jardim do Tozé (P(T1)) é 1/2 (uma
vez que ele escolheu ao acaso entre os dois jardins). E a probabilidade de o João
apanhar flores no jardim da Ana (P(A2)) também.


Portanto, a probabilidade de o João ter apanhado a campainha no jardim da Ana
é de um terço.
De que modo a aplicação deste teorema nos ajuda a compreender a confirmação
científica? Proporcionando recursos para analisar a relação entre informação
nova (um novo indício) e uma hipótese. Se um novo indício é irrelevante para a
hipótese a ser testada, então não a confirma nem a infirma. Os indícios são
neutros no que respeita à hipótese, e a probabilidade da hipótese, dados os
(novos) indícios (probabilidade posterior), é igual à probabilidade da hipótese
antes de os indícios se terem tornado disponíveis (probabilidade anterior).

Neutralidade (ou irrelevância dos indícios): P(H/I) = P(H)

Se um novo indício apoia a hipótese a ser testada, podemos dizer que a
probabilidade posterior da hipótese será maior que a sua probabilidade anterior.
Voltando aos corvos, o meu grau de crença na hipótese de que todos os corvos
são negros será maior depois de ter observado mais um corvo negro. Eis um
outro exemplo, da tectónica de placas: a hipótese da deriva dos continentes foi
aceite muito depois de ter sido primeiramente desenvolvida, e a sua aceitação
deveu-se a novos indícios recolhidos sobre a natureza dos mecanismos
geológicos, por meio dos quais os continentes se podiam deslocar ao longo da
superfície da Terra. Graças à descoberta destas anomalias geomagnéticas (e de
outros indícios relevantes), a tomada de consciência de que os continentes se
podiam mover graças ao efeito da convecção térmica tornou mais plausível a
teoria da deriva dos continentes. A probabilidade da hipótese da deriva dos
continentes após a descoberta das anomalias geomagnéticas é maior do que a sua
probabilidade antes da descoberta de tais anomalias. Os novos indícios
confirmam a hipótese.

Confirmação: P(H/I) > P(H)

Os indícios minam a hipótese se a probabilidade da hipótese antes de os indícios
estarem disponíveis for maior do que probabilidade da hipótese, dados os
indícios. A observação de um corvo branco faria a probabilidade da hipótese cair
para zero, pelo que não só não infirmaria como também falsificaria a hipótese de
que todos os corvos são negros.
Eis um outro exemplo de infirmação, da teoria atómica: no início do século xix,
Dalton formulou a hipótese de que toda a matéria é composta por pequenas
partículas indivisíveis chamadas átomos. Quando, no final do mesmo século,
Thompson conduziu experiências com raios X, descobriu que os átomos não
eram partículas indivisíveis, mas que por sua vez eram compostos por partículas
mais pequenas, por electrões que se moviam rapidamente em redor de um
núcleo. A observação de Thompson tornou a probabilidade da hipótese de
Dalton, de que os átomos são pequenas partículas indivisíveis, menos provável,
infirmando-a.

Infirmação: P(H/I) < P(H)

Note-se que, diferentemente do modelo de confirmação de Hempel, a abordagem
bayesiana pode proporcionar uma indicação da medida em que uma hipótese é
apoiada por um novo indício. E isto parece ser vantajoso. Há também outros
resultados da aplicação do Teorema de Bayes à confirmação científica que são
bastante prometedores. Por exemplo, podem explicar os seguintes factos sobre a
confirmação:

a. A confirmação é maior quando a probabilidade dos indícios independentes da
hipótese é maior (por exemplo, resultados inesperados que confirmam a
hipótese, confirmam-na em maior grau).
b. Se uma hipótese implica os indícios («Todos os corvos são negros» implica
«Este corvo é negro») e são encontrados contra-indícios, nesse caso a hipótese é
falsificada, pois a probabilidade posterior é 0.
c. Uma hipótese universal de que todo o F é G é confirmada pela observação de
um não-G não F, mas em muito menor medida do que a observação de um F que
é G.

Este último ponto diz-nos que para os bayesianos, bem como para Hempel, o
paradoxo dos corvos não é, verdadeiramente, um paradoxo. Os bayesianos
também concluem que devemos aceitar a alegação contra-intuitiva de que a
observação de um sapato branco constitui um indício confirmante para a
hipótese de que todos os corvos são negros. Como diz Patrick Maher (2004), a
observação de um sapato branco confirma tenuamente que todos os corvos são
negros porque um sapato branco não é um contra-exemplo da hipótese de que
todos os corvos são negros. O que os bayesianos alegam poder fazer e que o
modelo de Hempel não pode é medir o grau em que a observação confirma a
hipótese e afirmar que uma instância positiva (um corvo negro) confirma a
hipótese de que todos os corvos são negros em muito maior medida do que uma
instância contrapositiva (um não-corvo não negro).

Discussão: Acha que as noções de confirmação e infirmação, tal como foram
formalmente definidas pela probabilidade bayesiana, encaixam na maneira
como estas noções são usadas em ciência?

Os críticos da abordagem bayesiana da confirmação defendem que há outros
aspectos da relação entre as hipóteses e os indícios que esta abordagem não tem
recursos para representar adequadamente. Ficam a pensar se na realidade os
cientistas raciocinam de uma maneira que pode ser formalizada mediante o
cálculo de probabilidades. É que os seres humanos não parecem bons
estatísticos, e tendem a ser conservadores quando avaliam a importância de
novos indícios (Kahneman et al. 1982; El-Gamal e Grether 1995): seja nos
relatos em primeira mão, seja nas reconstruções post hoc sobre o modo como os
cientistas chegam à aceitação das teorias que defendem com base nos indícios
disponíveis, é raro haver alguma menção à probabilidade (Kelly e Glymour
2004).

Exercício: Acha que a maneira como os cientistas raciocinam quando avaliam a
plausibilidade das suas teorias é relevante para o projecto da definição da
confirmação de teorias em ciência?

Aqui consideraremos apenas uma objecção à abordagem bayesiana à
confirmação, levantada por Clark Glymour (1980). Na literatura, esta objecção é
conhecida pelo «problema dos velhos indícios». Glymour observa que o
Teorema de Bayes nada diz sobre as teorias que são confirmadas por indícios já
conhecidos. O seu exemplo é o da teoria da relatividade de Einstein (H) ser
confirmada em 1915 pelas anomalias no periélio de Mercúrio (I), conhecidas há
mais de um século. Será que os indícios antigos podem confirmar uma hipótese
no âmbito da abordagem bayesiana? Tudo leva a crer que não, se a probabilidade
dos dados é 1 e, consequentemente, a probabilidade anterior da hipótese é igual à
probabilidade da hipótese dados os indícios.
Howson e Urbach (2006) defendem o Teorema de Bayes, argumentando que
deve considerar-se que o conhecimento prévio que determina a probabilidade
anterior de H não inclui I. Portanto, a probabilidade da hipótese deve ser tornada
relativa às crenças de base existentes, excluindo a crença nos indícios
potencialmente confirmantes. Segundo os autores, este passo justificar-se-ia
dado que a finalidade do exercício é medir o impacto de I na probabilidade de H.
Contudo, esta manobra deixa muitas questões sem resposta: se a explicação não
consegue produzir os resultados que esperamos no caso da confirmação de uma
teoria, dadas todas as crenças actuais, isso não será uma limitação? E
exactamente como faríamos para excluir I do corpo de conhecimento prévio?

Exercício: Consegue detectar outros problemas da abordagem de Bayes à
confirmação?

A mensagem que até agora podemos retirar da discussão sobre duas das
abordagens mais influentes à teoria da confirmação é que qualquer tentativa de
formalizar o modo como os cientistas operam quando avaliam hipóteses com
base em indícios novos ou previamente adquiridos é tendencialmente
problemática. As tentativas de formalização dão origem a inconsistências e
paradoxos, ou não conseguem captar o que os cientistas efectivamente fazem, e
se vêem a fazer, quando testam teorias. Ainda que as reconstruções
proporcionadas pelo modelo hipotético-dedutivo e pela abordagem probabilística
bayesiana permitam uma melhor compreensão da noção de confirmação e das
suas dificuldades, não parecem ser explicações completamente satisfatórias da
prática da confirmação científica.

3.2.3 O novo enigma da indução

Os problemas que Hempel enfrentou com a sua explicação da teoria da
confirmação também preocuparam Nelson Goodman. Goodman (1954, 2006)
apresenta um novo enigma, que salienta algumas dificuldades da indução para
uma generalização universal. Poderá alguma vez a observação de um corvo
negro confirmar a afirmação geral de que todos os corvos são negros?
Goodman introduz um novo termo, «verdul», que significa a propriedade de ser
verde até um determinado momento no futuro (31 de Dezembro de 2080, por
exemplo) e azul após esse momento. A afirmação «Todas as esmeraldas que
observei até agora são verdes» parece apoiar indutivamente a hipótese de que
«Todas as esmeraldas são verdes», mas também podia apoiar indutivamente a
hipótese de que «Todas as esmeraldas são verduis». Isto significa que devemos
ser cautelosos quando nos baseamos na indução para justificar as nossas
hipóteses científicas, pois em alguns casos os mesmos indícios podem apoiar
duas hipóteses gerais que geram previsões concorrentes de observações futuras.
Com Hempel como seu alvo polémico, Goodman quer demonstrar que não é
prometedor procurar uma resposta para o problema da indução e para uma
explicação da confirmação em ciência examinando as características sintácticas
das afirmações que relatam hipóteses e observações, e as relações lógicas entre
tais afirmações. É a semântica que interessa: segundo Goodman, só as
afirmações gerais de um certo tipo, as afirmações legiformes, podem ser
apoiadas por observações particulares das suas instâncias. Não podemos
determinar se uma afirmação é legiforme olhando simplesmente para a sua
forma sintáctica. Temos de prestar mais atenção às propriedades semânticas dos
predicados que contém.
É assim que o problema pode ser formulado. Todas as esmeraldas observadas
antes de 31 de Dezembro de 2080 são verdes. Esperamos que a próxima
esmeralda observada após essa data também seja verde, porque confiamos na
afirmação geral de que todas as esmeraldas são verdes. Todas as esmeraldas
observadas antes de 31 de Dezembro de 2080 são também verduis, dado o
significado deste predicado, mas de alguma maneira não confiamos na previsão
de que todas as esmeraldas serão verduis após essa data. O que faz duas
afirmações serem igualmente confirmadas pelas observações feitas até ao
momento presente, mas apenas uma gerar previsões que podem ser
confiantemente projectadas no futuro?

3.2.4 Soluções avançadas para o enigma de Goodman

Haverá algo errado com o termo «verdul»?

Os filósofos que pensam sobre a confirmação de teorias e a indução têm
manifestado preocupação com o facto de o enigma avançado por Goodman ser
determinado pela introdução de um predicado que é criado artificialmente, e de
as considerações que se aplicam a tal predicado não se aplicarem aos que
usamos na linguagem corrente. O predicado «verdul» parece artificial porque é
disjuntivo (ou seja, contém uma condição do tipo «ou..., ou...»).
Goodman observa, contudo, que a impressão de artificialidade se deve ao nosso
hábito de considerar o predicado «verde» como primitivo e o predicado «verdul»
como derivativo. Se abandonarmos este pressuposto e considerarmos «verdul» e
«azerde» como primitivos (em que «azerde» significa «azul até 31 de Dezembro
de 2080 e verde após essa data»), podemos então definir «verde» como «verdul
antes de 31 de Dezembro de 2080, e azerde após essa data». Assim definido, o
predicado «verde» seria disjuntivo, e, seguindo a linha de raciocínio antes
apresentada, mais artificial que «verdul».
Se estivermos atentos às mudanças de significado dos predicados que são usados
na linguagem corrente dias e na ciência, podemos achar que alguns destes
predicados se comportam um pouco como «verdul». O que os termos significam
e aquilo a que se referem mudou ao longo do tempo, juntamente com as
descrições teóricas a eles associadas. Isto, por sua vez, produziu um efeito no
modo como se concebe a projectabilidade das generalizações que contêm tais
termos.

Exercício: Consegue encontrar um outro exemplo de uma afirmação geral que é
verdadeira mas que não pode ser confiantemente projectada no futuro porque
contém um predicado semelhante a «verdul»?

Eis outra linha de argumentação relacionada: o predicado «verdul» é artificial
não por ser disjuntivo, mas por ser um predicado inventado e não estar
incorporado na nossa linguagem. Goodman define um predicado como
projectável se pudermos confiar nas inferências indutivas que o contêm, pois
nessa altura aplica-se aos mesmos objectos a que se aplicava no passado, e
confiamos que assim aconteça no futuro. De acordo com Goodman, um
predicado não pode ser confiantemente projectado a menos que esteja enraizado
na linguagem corrente e seja comummente usado. O problema de «verdul» é que
lhe falta enraizamento.
Porém, como Colin Howson (2000) observa, alguns predicados usados em
hipóteses perfeitamente confirmadas são termos completamente novos — refere
o caso do escândio, um metal raro terrestre assim baptizado em 1879. O facto de
as hipóteses sobre o escândio serem bem confirmadas torna os falantes
confiantes ao projectarem-nas para o futuro, independentemente de as primeiras
formulações de tais hipóteses conterem termos pouco familiares. Ainda que
termos como «escândio» não tenham um currículo estabelecido quando usados
pela primeira vez e não tenham tido origem na linguagem de todos os dias, são
projectáveis de acordo com a definição de Goodman, o que sugere que o
enraizamento não é uma condição necessária para a projectabilidade.

Exercício: Tente encontrar outros exemplos de ermos teóricos recentemente
introduzidos que surjam em generalizações científicas.

A legiformidade

A diferença entre as afirmações legiformes e as generalizações acidentais pode
explicar a razão por que a indução não parece funcionar com predicados como
«verdul». A afirmação «Todas as esmeraldas são verduis» não é uma afirmação
legiforme, mas sim uma generalização acidental. Se uma generalização é
acidental, não pode ser confirmada mediante a observação de uma das suas
instâncias.
Pensemos num caso particular. «Este homem de camisa azul não é casado» não
confirma a seguinte generalização: «Todos os homens de camisa azul não são
casados.» Uma das razões por que poderíamos pensar que a afirmação particular
não apoia a afirmação geral é que não há uma relação especial entre os
predicados nas afirmações. O que uma pessoa veste não parece ter qualquer
ligação especial com o seu estado civil, a menos que haja uma convenção
explícita em vigor que determine tal ligação — a título de exemplo, por vezes
conseguimos dizer se alguém é um padre ou uma freira católicos observando a
sua indumentária, e podemos fazer inferências dos seus papéis para o seu estado
civil. No nosso exemplo original, contudo, é acidental o homem que
conhecemos na festa usar uma camisa azul e não ser casado.
Comparemos isto com a afirmação «Este rubi é vermelho», que parece confirmar
a hipótese «Todos os rubis são vermelhos». Parece haver uma relação especial
entre ser rubi e ser vermelho. Os rubis, como muitas pedras preciosas, devem a
cor às impurezas que a sua estrutura contém (os rubis são cristais de corindo que
contêm impurezas de crómio). Portanto, não é acidental que o rubi que acabei de
observar seja vermelho.
Voltemos então ao «verdul». Haverá uma razão baseada em princípios para
considerar «Todas as esmeraldas são verdes» como uma afirmação legiforme e
«Todas as esmeraldas são verduis» como uma generalização acidental?
Normalmente as afirmações legiformes distinguem-se das generalizações
acidentais porque as primeiras não fazem referência explícita a um objecto, lugar
ou tempo particulares. «Todos os morangos no meu frigorífico estão maduros»
seria uma generalização acidental porque contém uma expressão que especifica a
localização dos morangos à qual atribuo o predicado de estarem maduros. Como
vimos antes, a definição de «verdul» contém uma referência ao tempo, mas o
mesmo se pode dizer da definição de «verde», se o definirmos com base em
«verdul» e «azerde». Este critério (que levanta problemas independentes) não
parece ajudar-nos a resolver o enigma.

Exercício: Pense noutras limitações desta primeira tentativa de distinguir as
generalizações acidentais das afirmações legiformes.

Discussão: Poderá haver leis que contenham qualificações espaciotemporais?

Suponhamos que encontramos efectivamente um modo fiável e baseado em
princípios de distinguir as generalizações acidentais das afirmações legiformes.
Ainda assim, poder-se-ia objectar a esta tentativa de solução que, quando as
crenças de base correctas estão presentes, as afirmações gerais são confirmadas
com base nas suas instâncias observadas, independentemente de haver uma
relação especial entre os predicados contidos nas generalizações. A ideia é que a
legiformidade é suficiente, mas não necessária, para a projectabilidade. Ainda
que nada pudéssemos pressupor acerca da natureza da relação entre ser um rubi
e ser vermelho antes de sabermos o que determina a cor das pedras preciosas, a
generalização «Todos os rubis são vermelhos» já estaria a ser projectada com
segurança no futuro.
Parece que ainda não temos uma boa razão para acreditar que «Todas as
esmeraldas são verduis» não vai gerar previsões precisas sobre observações
futuras de esmeraldas.

3.3 Modelos de explicação

No que se segue passaremos em revista algumas abordagens filosóficas à noção
de explicação científica. De acordo com o modelo nomológico, um
acontecimento só pode ser explicado se for subsumido numa lei ou numa
generalização estatística e se a explicação tiver a forma de um argumento
dedutivo ou indutivo. No modelo causal, a explicação científica trata de
identificar relações causais, cadeias causais ou causas comuns entre
acontecimentos. A explicação pragmática está mais interessada na maneira
como a gramática das explicações funciona do que em proporcionar uma
caracterização unificada de todas as instâncias da explicação científica.

3.3.1 Os modelos de explicação de Hempel

O Modelo Nomológico-Dedutivo de Explicação (ND) é baseado na ideia de que
qualquer explicação é constituída por:

• um explanandum (algo que precisa de ser explicado);
• um explanans (algo que explica).

O explanans tem de ser verdadeiro e o explanandum tem de ser uma das suas
consequências lógicas para que a explicação seja bem-sucedida. O modelo é
«dedutivo» porque a explicação tem a forma de um argumento dedutivo, e é
«nomológico» porque o explanans tem de conter pelo menos uma lei da natureza
(nomos = norma).
Um acontecimento singular A é explicado se, e apenas se, uma descrição de A
for a conclusão de um argumento dedutivo válido, cujas premissas envolvam
uma afirmação legiforme e um conjunto de condições iniciais. O modelo
também é referido como o modelo da «cobertura por leis», porque a ocorrência
do acontecimento a explicar tem de estar no âmbito de uma lei da natureza. A
ideia é que não se pode explicar um acontecimento particular a menos que este
se possa deduzir de uma generalização legiforme — as generalizações acidentais
não servem. Contudo, como vimos no que respeita a uma das tentativas de
resolver o enigma de Goodman, é extremamente desafiante encontrar uma
maneira baseada em princípios de distinguir as generalizações acidentais das
leis, pelo que isto pode ser considerado uma fragilidade do modelo ND.
Eis um exemplo (extremamente simplificado) da aplicação do modelo à
explicação de um fenómeno particular:

Condições iniciais: i) As placas tectónicas A e B friccionaram-se no
momento T1 no local L1
Generalizações legiformes: a) Quando as placas tectónicas se friccionam,
o movimento transmite ondas de energia à superfície da Terra, b) Quando
a energia é transmitida à superfície da Terra, ocorrem tremores e abalos,
c) etc.
Explanandum: Houve um terramoto no momento T2 no local L2.

Para Hempel, são quatro as condições de adequação que se aplicam a este tipo
de explicações.

1. O argumento tem de ser válido. A ocorrência do terramoto num momento
particular e num local particular é implicada pelas condições iniciais e pela
generalização legiforme. Se as premissas dos argumentos são verdadeiras,
também o é a conclusão.
2. As premissas têm de incluir uma afirmação legiforme. Algumas das premissas
do argumento antes apresentado têm de ser generalizações legiformes: por
exemplo, «Quando a energia é transmitida à superfície da Terra, ocorrem
tremores e abalos».
3. As premissas têm de ter conteúdo empírico e de ser verificáveis. As premissas
têm conteúdo empírico e podem ser verificadas, ainda que a tentativa de
verificar (e não de confirmar) uma generalização legiforme quando é expressa
por uma afirmação universal possa ser problemática.
4. As premissas têm de ser verdadeiras. Esta condição é diferente das condições
1-3. Se não for satisfeita, então o argumento do explanans ao explanandum ainda
tem a forma correcta, ou seja, é uma explicação potencial. Se a condição 4 for
satisfeita, então o argumento já não é apenas válido, mas também é sólido, e isto
é uma explicação real.

Hempel defende que o modelo pode dar conta da explicação causal, e que revela
a simetria entre a explicação e a previsão. Ora vejamos estes dois pontos cada
um de sua vez. Hempel argumenta que a explicação causal é apenas um tipo de
explicação que pode ser representada pelo modelo ND. Tal como fez com a
relação de confirmação entre uma afirmação observacional e uma hipótese,
Hempel explica a relação de causa e efeito por via da relação de implicação
lógica. Da mesma maneira que uma afirmação observacional se segue da
hipótese que confirma, também um acontecimento a explicar se segue das
condições iniciais e das afirmações legiformes que contribuem para a sua
explicação. A simetria entre a explicação e a previsão é também um resultado
desta abordagem. A afirmação legiforme e as condições iniciais explicam o
acontecimento que é descrito na conclusão do argumento, mas também o
prevêem. No exemplo anterior, num exercício retrospectivo, explicámos a
ocorrência do terramoto com base na consideração das condições iniciais e da
aplicação da generalização universal. Da mesma maneira, num exercício
prospectivo, poderíamos prever a ocorrência do terramoto com base na condição
inicial e na generalização legiforme.
De acordo com Hempel, também se aplica uma estrutura argumentativa
semelhante às hipóteses estatísticas, mas nesse caso a diferença é que a
generalização torna a conclusão não implicada pelas premissas, mas mais
provável, dadas as premissas (Modelo Estatístico-Dedutivo, ED). O modelo ED
é apropriado quando queremos explicar uma hipótese estatística e podemos fazê-
lo dedutivamente se uma das premissas for uma generalização estatística.
Quando o acontecimento a explicar é um caso único, o modelo dedutivo não
pode ser usado e temos de apelar ao Modelo Estatístico-Indutivo de Explicação
(EI). A conclusão é considerada muito provável dadas as premissas, mas não se
segue das premissas. No modelo ND, uma condição de adequação para a
explicação era que o explanans tinha de conter uma afirmação legiforme. Para o
modelo EI, a condição é que a generalização contida no explanans tem de ter
uma probabilidade muito elevada. O argumento do modelo EI também pode ser
usado para previsões: dizer que as premissas explicam o acontecimento é
também dizer que esperamos que o acontecimento vai acontecer dadas as
premissas.



Exercício: Identifique outras explicações que se adeqúem quer ao modelo ND,
quer ao modelo El.

Os modelos de explicação de Hempel foram criticados por não conseguirem
especificar condições necessárias e suficientes plausíveis para explicações
científicas satisfatórias. Segundo os críticos, alguns argumentos do modelo ND
ou do modelo EI não são verdadeiramente explicativos porque não apontam para
a causa genuína do acontecimento a explicar. Noutros casos, temos explicações
perfeitamente satisfatórias que não se adequam ao modelo ND (porque o
acontecimento a explicar não se insere no âmbito de uma generalização
legiforme, por exemplo) ou ao modelo EI (porque a generalização que explicaria
o acontecimento tem uma probabilidade baixa, por exemplo). Examinaremos
duas objecções com maior pormenor: a relevância e a simetria.

3.3.2 Relevância, simetria e relações causais

Wesley Salmon (1989) levantou o problema da relevância com o seguinte
exemplo:

Condição inicial: Butch toma a pílula.
Generalização: As pessoas que tomam a pílula não engravidam.
Explanandum: Butch não engravidou.

De acordo com o modelo de Hempel, o argumento antes apresentado é
explicativo, mas a primeira premissa parece ser irrelevante para a conclusão. A
razão por que Butch não engravidou nada tem a ver com ter tomado a pílula, mas
sim com o facto de ser do sexo masculino.
Consideremos o seguinte exemplo, que ilustra o mesmo problema:

Condição inicial: Ema toma vitamina C durante uma semana para tratar
uma constipação.
Generalização: A probabilidade de se recuperar de uma constipação
depois de se ter tomado vitamina C durante uma semana é muito elevada.
Explanandum: Logo, é muito provável que Ema recupere.

Mesmo se a generalização é muito provável, a explicação é má. Normalmente as
constipações passam numa semana, com ou sem a toma regular de vitamina C. A
probabilidade elevada da generalização foi introduzida por Hempel como uma
condição para argumentos do modelo EI bem-sucedidos, para garantir que havia
uma boa base de indícios para a inferência indutiva. Na realidade, contudo, a
probabilidade elevada da segunda premissa não garante que a explicação seja
boa. E preciso um critério adicional de relevância, pois a satisfação dos
requisitos formais para uma explicação adequada não é suficiente. Alguns
filósofos da ciência (ver Psillos 2002) defendem que uma referência a relações
causais poderia ajudar-nos a discriminar entre as explicações relevantes e as
irrelevantes, mas que este tipo de relações não é abrangido pelo modelo de
Hempel.
Sylvain Bromberger (1966) levantou o problema da simetria no modelo ND da
explicação científica. Eis um exemplo clássico:

Condição inicial: O barómetro cai rapidamente.
Generalização: Sempre que o barómetro cai rapidamente, aproxima-se
uma tempestade.
Explanandum: Aproxima-se uma tempestade.

O barómetro a cair é um indicador da aproximação de uma tempestade, mas não
explica a ocorrência da tempestade. E mais intuitivo dizer que é a aproximação
da tempestade que explica o barómetro a cair. Este caso destrói a desejada
simetria entre a explicação e a previsão. Ao usarmos um barómetro, podemos
prever que vai haver uma tempestade, mas não explicamos por que ocorre, pois
tanto o barómetro a cair como a ocorrência da tempestade se devem a outra coisa
— a uma alteração na pressão. Hempel não consegue explicar a simetria entre a
causa e o efeito no âmbito das explicações nomológicas-dedutivas.
O mesmo problema surge no exemplo da haste da bandeira do quadro 3.4.
Podemos explicar o comprimento da sombra fazendo referência às leis da óptica,
à geometria e à altura da haste da bandeira. Note-se que também podemos
«explicar» a altura da haste da bandeira fazendo referência ao comprimento da
sua sombra, e que esta direcção da explicação parece contra-intuitiva:

Condição inicial: Comprimento da sombra.
Leis: Leis da óptica e da geometria.
Explanandum: Altura da haste da bandeira.

Estes exemplos sugerem que o modelo de Hempel não tem recursos para
discriminar os papéis das condições iniciais e do explanandum, pois cada qual
pode ser usado para derivar o outro em conjunto com as leis ou generalizações
usadas como a segunda premissa do argumento. A análise deste exemplo torna
explícita uma importante desanalogia entre a relação entre as condições iniciais
e o explanandum no senso comum (que não é entendida como simétrica) e a
relação entre as condições iniciais e o explanandum no modelo dedutivo (que é
perfeitamente simétrica).
Foram feitas algumas tentativas para resolver os problemas da relevância e da
simetria especificando outras condições que a relação entre o explanans e o
explanandum precisa de satisfazer. O modelo causal da explicação, desenvolvido
por Salmon e por outros, consegue resolver alguns problemas encontrados no
modelo de explicação de Hempel, tais como a simetria, uma vez que é baseado
na ideia de que a relação entre o explanans e o explanandum é uma relação
causal. A ideia de Salmon é que todos os acontecimentos fazem parte de cadeias
causais e estão relacionados uns com os outros por via da continuidade
espaciotemporal e da relevância estatística. Quando os valores se correlacionam,
assumimos que possuem uma causa comum prévia. Por exemplo, a alteração da
pressão pode explicar tanto a ocorrência da tempestade como a queda do
barómetro. Mas talvez haja outros acontecimentos, anteriores à alteração da
pressão, que são a causa comum de tal alteração e do comportamento do
barómetro. Este método de estabelecer causas pode levar-nos a uma regressão da
explicação: quando é que paramos de procurar uma causa comum?
A principal dificuldade da explicação causal é a clarificação da noção de
«causar». Dizer que A causou B não é dizer que A é necessário para a ocorrência
de B, pois B podia ter ocorrido independentemente de A. O exemplo que se
segue ilustra este caso. Um homem ingere arsénico e morre 24 horas depois. O
envenenamento é a causa da sua morte, mas podia ter morrido na mesma se se
tivesse distraído ao atravessar a rua ou se tivesse sido atingido por um raio.
Uma explicação contrafactual da causalidade sugere que sempre que «A causou
B» é verdadeira, também é verdade que «Se A não tivesse acontecido, logo B
não teria acontecido». Porém, esta explicação apresenta outros problemas, pois
as condições antecedentes a A podiam estar na mesma relação contrafactual com
B e, no entanto, não serem relevantes para uma explicação causal para a
ocorrência de B. Se é verdade que a ingestão de arsénico causou a morte do
homem, então a morte não teria ocorrido a menos que o homem tivesse sido
envenenado. Contudo, também é verdade que a morte não teria ocorrido se o
homem não tivesse encontrado o seu irmão (que o envenenou), e, no entanto, o
encontro com o irmão não parece ser a causa da sua morte. Precisamos de uma
maneira de nos focarmos nos factores salientes na cadeia causal dos
acontecimentos que nos conduza à morte do homem, se queremos dar uma
explicação satisfatória da mesma.

Exercício: Consegue dar exemplos de boas explicações científicas que não
mencionem causas?

Discussão: Será que os modelos causais obtêm melhores resultados do que o
modelo de Hempel no sentido de proporcionar condições necessárias e
suficientes para a explicação científica?

3.3.3 Uma abordagem pragmática à explicação

Muitos dos problemas levantados pela teoria da explicação de Hempel, incluindo
os dois que apresentámos (a relevância e a simetria), podem ser, pelo menos em
parte, tratados fazendo referência a uma relação causal entre o explanans e o
explanandum. Todavia, algumas teorias parecem explicar sem oferecer
informação sobre processos causais (a mecânica quântica elementar, a psicologia
cognitiva ou a geometria, por exemplo), e isto leva-nos a perguntar se as
explicações científicas precisam de ser causais. Deverão os mecanismos causais
ter um papel privilegiado na explicação?
Bas van Fraassen (1980) passa em revista a literatura sobre a explicação, desde
os modelos de Hempel às explicações causais, e põe em causa o pressuposto
tanto da abordagem nomológica como da abordagem causal da explicação, de
que esta é uma relação entre o acontecimento a explicar e uma hipótese.
Desenvolve um modelo pragmático da explicação, segundo o qual um facto
explica outro facto relativo a uma teoria que é aceite. Os pressupostos
importantes nesta abordagem são: 1) a teoria usada para dar uma explicação dos
factos por que nos interessamos não precisa de ser verdadeira, ou mesmo
empiricamente adequada, para desempenhar o papel explicativo requerido; 2) as
explicações são sempre relativas a um contexto, o que significa que seria errado
supor que, para cada facto que precisa de uma explicação, há apenas uma
resposta satisfatória para a(s) pergunta(s): «Como (porque) é que F aconteceu?»
Esta análise aponta para duas fontes de dependência do contexto. Primeiro, uma
explicação é sempre relativa a uma teoria e aos interesses das pessoas que
procuram uma explicação. Estes dois elementos caracterizam o contexto no
âmbito do qual podemos avaliar a saliência e a relevância de factores
explicativos alternativos. Segundo, a explicação é relativa a que acontecimentos
consideramos serem uma alternativa relevante ao acontecimento que precisamos
de explicar.
Imaginemos a investigação de um homicídio. A pergunta «O que causou a morte
desta pessoa?» terá respostas diferentes para o médico que conduz o exame post-
mortem e para o detective que procura um homicida. Ora isto determina a
relevância explicativa das hipóteses que serão avançadas. No primeiro contexto,
as hipóteses explicativas alternativas para a morte da vítima podem incluir, por
exemplo, o afogamento ou ter sido baleada. No último contexto, o detective está
à procura de motivos plausíveis para o homicídio, e as hipóteses explicativas
alternativas podem incluir, por exemplo, a esperança de herdar uma fortuna ou
ciúmes.
Van Fraassen apresenta outro exemplo no qual à pergunta «porquê?» se pode
responder de maneiras diferentes, dependendo do interesse da pessoa que a faz.
Podíamos responder à pergunta «Porque é que o sangue circula no corpo?» quer
fazendo referência à função da circulação sanguínea («Para levar oxigénio aos
tecidos do corpo»), quer ao mecanismo que torna a circulação sanguínea
possível («Porque o coração bombeia o sangue pelas artérias»).
Quando reflectimos sobre o acontecimento a explicar, contrastamo-lo com outros
acontecimentos que podiam ter acontecido em vez dele, e perguntamos porque
ocorreu o acontecimento original (e não uma das alternativas que considerámos).
O detective pode procurar uma explicação para a razão por que o Senhor
Belmiro foi assassinado em casa e não no escritório, ou para a razão por que foi
assassinado às 8 da noite e não às 6 da manhã. O anatomista pode perguntar-se
por que razão o sangue circula à velocidade x e não à velocidade y. O biólogo
evolucionista pode pensar porque é que a circulação sanguínea se desenvolveu
em vez de outro meio que pudesse garantir o fornecimento de oxigénio aos
tecidos do corpo. Os acontecimentos possíveis que diferem do acontecimento
efectivo a explicar neste ou naquele aspecto (o local do crime, a hora do crime,
por exemplo) constituem a classe de contraste relevante.
O que torna uma explicação uma boa explicação? Há três critérios principais.
Primeiro, uma resposta à pergunta «porquê?», como «A ocorreu devido a E»,
pode ser avaliada por si só com base na verdade ou plausibilidade. No caso do
homicídio, uma explicação para a morte do Senhor Belmiro é a Menina Luísa
ter-lhe dado um tiro. A hipótese de a Menina Luísa ter disparado sobre a vítima
pode perder plausibilidade se descobrirmos que ela nunca teve ou usou uma
arma na vida.
Segundo, a resposta pode ser avaliada no que respeita à sua relevância para o
acontecimento a explicar. Será que E realmente apoia A no que respeita à sua
classe de contraste (os acontecimentos que podiam ter ocorrido em vez de A)?
Se a vítima tivesse sido a Senhora Maria, que é tia da Menina Luísa e que lhe
teria deixado uma boa herança, o motivo para o crime da Menina Luísa seria
claro e a explicação mais convincente. Mas a vítima foi o Senhor Belmiro, que,
tanto quanto se sabe, não tinha relação alguma com a Menina Luísa.
Terceiro, a resposta pode ser avaliada no que respeita a outras respostas possíveis
à pergunta «porquê?» — por exemplo, será «Porque A» mais provável do que
«Porque B», dada a informação de que dispomos? Se se descobrir que outro
suspeito com um motivo forte e sem álibi, o Senhor Silva, é um atirador
experiente, a probabilidade de a Menina Luísa ter cometido o crime não parecerá
tão elevada quanto a probabilidade de o Senhor Silva ter cometido o crime.
Na abordagem pragmática, a explicação de um acontecimento A é
desmistificada: é vista apenas como uma resposta à pergunta «porquê?» que é
satisfatória relativamente a uma teoria de fundo que determina a série das
hipóteses alternativas e os aspectos em que o evento precisa de uma explicação.
De acordo com Van Fraassen, parece não haver qualquer modo baseado em
princípios de distinguir a explicação em ciência de outros tipos de explicação, a
não ser fazendo referência ao tipo de acontecimentos que precisam de ser
explicados e à série de teorias de fundo com base nas quais a hipótese
explicativa relevante é escolhida.

Exercício: O que torna pragmática a abordagem de Van Fraassen da
explicação?

Resumo
Neste capítulo observámos modelos que foram concebidos para explicar o modo
característico como o conhecimento é adquirido, consolidado e posto em prática
em ciência. A atenção que os positivistas lógicos dão à estrutura lógica e às
componentes sintácticas da confirmação e da explicação parece fazer parte de
um projecto geral de explicar a prática da ciência de uma maneira puramente
objectiva (independente dos factos sociológicos e psicológicos da descoberta ou
da justificação), e de explanar os conceitos usados pelos cientistas de uma
maneira clara e inequívoca.
Porém, ainda que as suas análises sejam bastante esclarecedoras e nos ajudem a
chegar a algumas conclusões gerais sobre o modo como os cientistas operam, a
tentativa de explanar a confirmação e a explicação em termos das meras relações
lógicas entre afirmações não consegue abranger todas as características da
confirmação e da explicação que são importantes na prática da ciência.
Goodman e Van Fraassen defendem que as considerações semânticas e
pragmáticas têm de ser tidas em conta para compreender o modo como as teorias
são formadas, testadas, aceites e aplicadas em ciência. Isto não vai,
necessariamente, contra a objectividade da ciência, e não é uma ameaça à ideia
da ciência como progressiva e direccionada para a verdade, podendo, no entanto,
levar-nos a aceitar que há noções diferentes de confirmação e tipos diferentes de
explicação que servem finalidades diferentes e por vezes igualmente
importantes.
A abordagem pragmática gera mais dúvidas sobre a legitimidade de um critério
de demarcação bem definido entre a ciência e a não-ciência. Se é verdade que,
pelo menos algumas vezes, as teorias são desenvolvidas recorrendo a modelos
cujo papel é suscitar a análise e a reflexão e testar hipóteses, e que a adequação
de uma explicação deve ser concebida como relativa a um contexto e refém das
nossas expectativas, então o abismo entre a prática das ciências naturais e a
prática das ciências humanas ou sociais, e entre a prática da ciência em geral e o
raciocínio quotidiano, parece estreitar-se ao ponto de os elementos de
continuidade pesarem mais que os sinais de diferenciação.

Cenas dos próximos capítulos
O debate sobre a teoria e a observação continuará no próximo capítulo, em que
perguntaremos se as teorias científicas descrevem e representam a realidade tal
como é, ou se apenas fornecem ferramentas úteis para a previsão e a
manipulação da natureza.
As dificuldades do desenvolvimento de uma explicação formal satisfatória da
confirmação e explicação de teorias informarão a nossa discussão sobre a
racionalidade da mudança científica no capítulo 5. Será que podemos realmente
escolher entre teorias rivais baseando-nos na sua adequação empírica e no seu
poder explicativo, ou haverá outros factores que determinam a escolha de uma
teoria?

Questões para pensar
1. Qual é a ligação entre o enigma de Goodman e o problema da indução de
Hume?
2. Será «espécie» um predicado que pode ser projectado?
3. Que modelo de explicação se adequa melhor às ciências sociais?
4. O que torna um modelo de explicação «nomológico»?
5. Será que o Teorema de Bayes proporciona uma reconstrução de como
actualizamos as nossas crenças, ou de como as actualizaríamos se fôssemos
agentes racionais?
6. Haverá uma ligação necessária entre ser um rubi e ser vermelho?

Leituras complementares
Se quiser explorar a bibliografia sobre a natureza das teorias científicas, um bom
ponto de partida é a entrada Theories, por Giere, no Blackzvell Companion to the
Philosophy of Science (2000). Também há uma excelente entrada sobre Models
in Science, por Frigg e Hartmann, na Stanford Encyclopedia of Philosophy
(2006). Os textos recomendados sobre a perspectiva sintáctica das teorias são:
Carnap (1966, capítulos 23-6) e Hempel (1970); sobre a perspectiva semântica,
ver Suppe (1989) e Van Fraassen (1980, capítulo 3).
Se quiser saber mais sobre as tentativas de solucionar os paradoxos da
confirmação, comece pelo apanhado de Swinburne (1971) e pela colectânea
sobre o «verdul» organizada por Stalker (1994). Também pode deitar a mão aos
clássicos de Hempel (1945) e Goodman (1954, 2006). Está disponível uma
quarta edição do texto clássico de Goodman, Facto, Ficção e Previsão, com um
prefácio de Hilary Putnam. Ver as partes m e iv para, respectivamente, uma
formulação do paradoxo do verdul, e uma tentativa de solução do mesmo.
Se é estreante na probabilidade e quiser compreender melhor as abordagens
probabilísticas à confirmação, Hacking (2001) ser-lhe-á útil. Para uma discussão
pormenorizada sobre as explicações probabilísticas da confirmação e para
provas de algumas das alegações apresentadas na parte referente ao
bayesianismo, investigue tanto em Maher (2004) como em Howson e Urbach
(2006).
Pode encontrar visões de conjunto críticas da bibliografia sobre os modelos de
explicação em Salmon (1989) e Van Fraassen (1980). Sobre os modelos de
explicação computacionais, ver Thagard e Litt (2008).

4. Linguagem e realidade





No que se segue exploraremos algumas das questões levantadas pelo uso da
linguagem na prática e na teorização científicas. Algumas destas questões não
serão completamente novas, seguindo-se naturalmente da nossa discussão
anterior sobre a natureza das teorias científicas. Haverá uma distinção coerente e
significativa entre os termos teóricos e os observacionais? De que maneira o
significado de termos como «livro» (que denota um artefacto) difere do
significado de termos como «oxigénio» ou «casamento» (que denotam,
respectivamente, uma categoria natural e uma categoria social)?
Para compreendermos o motivo para introduzir tais distinções, precisamos de
saber um pouco mais sobre como a linguagem em geral funciona. Há teorias
contraditórias sobre a maneira como os termos que usamos obtêm o seu referente
e sobre como algo nas nossas mentes — uma ideia ou um conceito — consegue
referir ou destacar um objecto no mundo. O debate entre os adeptos da teoria
causal da referência e os descritivistas será brevemente introduzido, preparando
o terreno para a discussão de questões mais específicas em filosofia da ciência.
Será que teorias concorrentes podem ser comparadas se os termos teóricos que
usam se referem a entidades diferentes? Será que todas as entidades postuladas
pelas teorias que actualmente aceitamos existem mesmo?
O modo como a referência funciona é importante para a tarefa de comparar
teorias científicas, pois quando as teorias são derrubadas e substituídas, alguns
dos termos empregues na teoria derrubada são mantidos, mas podem ser
associados a descrições teóricas diferentes. Outros termos há que perdem
completamente os seus referentes: na nova teoria pode não haver espaço para
algumas das entidades cuja existência era antes aceite. Em todo o caso, a
alteração de teorias tem um impacto significativo tanto na linguagem como na
ontologia usadas pelos cientistas e pelos leigos numa comunidade.
Quando a alteração devida ao derrube de uma teoria anteriormente aceite é
absolutamente radical e são postuladas novas entidades com as finalidades de
explicação e de previsão, ou às entidades postuladas pela velha teoria são
atribuídas descrições teóricas diferentes, pode haver sérias preocupações quanto
à eficácia da comunicação entre os cientistas comprometidos com teorias
concorrentes. Será que poderemos traduzir afirmações de uma teoria para
afirmações de outra teoria e preservar uma comunicação genuína? Se a resposta
for negativa, a própria possibilidade de comparar as teorias concorrentes (e de,
por esse meio, avaliá-las com base em critérios como o poder explicativo e a
simplicidade) fica minada.
As questões sobre o significado e a referência dos termos teóricos e sobre a
possibilidade de comparar teorias reaparecem no debate sobre o realismo
científico. Qual é a relação entre a ciência e o mundo em que vivemos? Será que
é suposto as teorias científicas, ou pelo menos as teorias científicas que
actualmente aceitamos, proporcionarem uma descrição de como o mundo é
realmente? Se assim for, poderemos dizer que as teorias científicas
proporcionam uma descrição e uma representação melhores, talvez mais
fundamentais, do que os meios alternativos de descrição e representação?
Consideraremos o realismo científico no contexto do debate mais alargado sobre
o realismo em filosofia, e em seguida apresentaremos uma série de posições: há
posições realistas plenas baseadas nos argumentos do êxito da ciência; posições
instrumentalistas, relativistas ou construtivistas, que reforçam o pressuposto de
que a ciência é um guia para a realidade; há, por fim, posições intermédias
influentes, que concedem que o realismo pleno é insustentável, mas resistem às
consequências radicais das alternativas anti-realistas.

No final deste capítulo estará habilitado a:

•Revisitar a relação entre observação e teoria tendo como referência a linguagem


das teorias científicas.
• Explicar como a linguagem da ciência muda quando as descrições teóricas
aceites mudam.
• Distinguir duas teorias influentes sobre o significado e a referência.
• Explicar a distinção entre termos para categorias naturais e termos para
categorias não naturais.
• Avaliar a hipótese de as teorias concorrentes dominantes serem
incomensuráveis.
• Discutir o papel das teorias científicas e o modo como se relacionam com a
realidade.
• Avaliar argumentos diferentes a favor do realismo e do anti-realismo.
• Ter uma opinião informada sobre o estatuto ontológico dos termos teóricos.

4.1 Significado, referência e categorias naturais

No que se segue introduziremos as noções de significado e de referência, e
exploraremos a ideia de que os termos para categorias naturais obtêm a sua
referência de uma maneira que depende das propriedades essenciais da categoria
natural que nomeiam.

4.1.1 Como os termos adquirem o seu significado

Quando pensamos no significado de uma palavra, vêm-nos muitas coisas à
cabeça. A palavra «cenoura» designa uma hortaliça de uma certa cor, forma e
tamanho que os seres humanos e outros animais por vezes comem. Se nos
pedirem para explicar o que significa «cenoura» a alguém que está a aprender
inglês, podemos desenhar uma cenoura num papel como uma ilustração, mostrar
uma cenoura ou fazer uma listagem das propriedades que normalmente as
cenouras têm, como por exemplo serem cor de laranja, poderem ser cozinhadas
ou consumidas cruas, conterem vitaminas, serem recomendadas para intensificar
o bronzeado natural, etc. Note-se que a última opção só é viável se a pessoa já
tiver alguma competência no domínio da língua inglesa. Há outros tipos de
competências que podem ser relevantes: os utilizadores do termo «cenoura»
sabem algo sobre as cenouras, mas as pessoas que cultivam cenouras nas suas
hortas, os nutricionistas ou os autores de livros de culinária sabem muito mais
sobre cenouras do que as outras pessoas, e seriam capazes de enunciar
propriedades que não correspondem ao estereótipo das cenouras.
Os filósofos da linguagem salientam dois aspectos do significado: 1) o facto de
as palavras (pelo menos algumas) se referirem a objectos específicos no mundo
(a referência ou extensão) e 2) o facto de os falantes associarem uma descrição a
tais palavras (o sentido ou intensão). As teorias disponíveis sobre o significado
dão conta destes dois factos, mas há duas que disputam o que determina a
referência para os nomes próprios, como «Max», «Paris» e «Neptuno». Para
odescritivismo, a descrição que o falante associa à palavra determina a referência
do nome. Para a teoria causal da referência, a teoria rival, o que determina a
referência do nome são factos não mentais sobre o modo como o nome se
relaciona com o objecto a que se refere.
A teoria descritivista diz que a referência de um nome próprio é determinada
pela descrição (ou conjunto de descrições) que os falantes associam ao nome
(Strawson 1957; Searle 1969). Há diferentes versões desta teoria. Uma das ideias
é que há uma descrição privilegiada que desempenha este papel de fixar a
referência. A alternativa é sugerir que há várias descrições associadas ao nome e
que nem todas precisam de desempenhar esse papel de fixar a referência, ou de
ser satisfeitas por um objecto para que o nome a ele se refira com êxito (a «teoria
do agregado»). As teorias descritivistas também diferem sobre se a descrição é o
que um falante individual associa ao nome, ou se se trata de um grupo de
falantes relevantemente definido (uma comunidade linguística, por exemplo). O
nome «Daniel Kahneman» refere-se à pessoa que satisfaz a descrição que os
falantes associam ao nome. Para aqueles que não conhecem Daniel Kahneman
pessoalmente mas conhecem o seu trabalho, ele é o psicólogo que estudou as
limitações do raciocínio humano e ganhou o Prémio Nobel da Economia em
2002. É provável que para os seus familiares e vizinhos sejam mais relevantes
outras descrições.
A teoria da referência rival, a teoria causal, diz que um nome ou um termo se
refere a seja o que for com que mantém uma ligação causal correcta (Kripke
1980). «Daniel Kahneman» referir-se-á à pessoa que foi chamada «Daniel
Kahneman» e que foi chamada por esse nome desde então, com base nesse acto
inicial de baptismo.

Exercício: Consegue antever alguns dos problemas que as duas teorias da
referência antes esquematizadas podem enfrentar? Qual das duas teorias é mais
convincente?

Discussão: Como se pode determinar que descrições são mais ou menos
centrais ou representativas?

Um problema muito discutido na literatura, e frequentemente visto como uma
objecção a uma explicação puramente descritivista da referência dos nomes
próprios, é o das descrições inadequadas. Suponhamos que durante muitos anos
os falantes estavam convencidos de que «Homero» se referia ao autor da Ilíada,
e depois descobriam que afinal a Ilíada não fora escrita por um só autor. O que
pensariam sobre a referência «Homero»? Se a descrição que usavam para
seleccionar o indivíduo chamado «Homero» era inadequada, então «Homero»
não refere. Contudo, se consideravam que o nome referia quem quer que fosse
que tivesse sido baptizado como «Homero» e que mais tarde fora identificado
com esse nome, a questão de a descrição comummente associada a «Homero»
ser imprecisa já não se poria, e o nome não perderia, necessariamente, o seu
referente quando a verdade sobre a autoria da Ilíada fosse revelada. Neste último
cenário, os falantes só precisam de rever a descrição, e isto não tem
consequências imediatas na determinação do referente de «Homero» ou na
questão sobre se Homero existiu.
No caso em que tudo o que os falantes sabem sobre Homero é pensarem que
escreveu a Ilíada e em que nenhuma outra descrição é associada ao uso do
nome, a conclusão de que «Homero» refere alguém sobre quem nada sabiam e
que não tem ligação (especial) alguma com a Ilíada parece insatisfatória, pois
não explica a maneira como o nome era usado antes de se ter tornado conhecido
que Homero não fora o único autor da Ilíada.
Alguns filósofos, muitas vezes motivados por casos como este, sugerem que
podemos desenvolver uma posição intermédia entre a teoria causal e a teoria
descritivista da referência. Gareth Evans (1973), por exemplo, pensa que tanto as
ligações causais entre o nome como o seu uso são importantes, e que algumas
descrições são centrais para a nossa compreensão de como o nome tem sido
usado. Avança a ideia de que o referente de um nome próprio é o que fez que os
falantes associassem a ele a descrição prevalecente que rege o uso do nome.

4.1.2 A terra gémea

De acordo com as teorias do significado inspiradas pelo descritivismo (Frege
1892; Russell 1905; Kuhn 1962, 1970), a descrição que associamos a termos que
designam categorias fundamentais na natureza determinam em que pensamos
quando usamos tais termos. As categorias naturais são frequentemente
distinguidas dos agrupamentos de objectos abstractos (como os números) ou dos
artefactos (como cadeiras), mas também das categorias sociais (como o género).
A palavra «electrão» é um exemplo de um termo para uma categoria natural, e,
para o descritivista, refere seja qual for a entidade que a sua descrição teórica
capta. Se para o leigo o electrão é a parte com carga negativa do átomo, para um
químico ou para um físico a descrição usada para identificar as entidades em que
pensam quando falam em electrões será mais rica e mais pormenorizada, pois
compreendem melhor as propriedades dos átomos.
Nas teorias causais, o tratamento dos nomes próprios é alargado aos termos para
categorias naturais (Putnam 1975). A referência «ouro», «tigre» ou «água» é
dada pelo que o ouro, os tigres e a água são, não pelo que sabemos sobre eles. O
referente de «ouro» será a coisa que foi primeiramente baptizada como «ouro» e
depois identificada com esse termo, independentemente das alterações que a sua
descrição teórica sofreu desde o primeiro contacto com o ouro até ao uso actual
do termo.

Exercício: Será que a explicação do baptismo das categorias naturais também
funciona com entidades que não são directamente observáveis, como os
electrões? Considere um termo teórico à sua escolha (por exemplo,
«rendimento» na economia ou «quantum» na física). O que determina o referente
desse termo? Em que condições o termo muda de referente?

Putnam (1975) concebeu uma experiência mental (hoje extremamente influente
tanto na literatura sobre as categorias naturais como sobre o conteúdo mental)
para mostrar que as nossas intuições sobre o significado e a referência apoiam
uma teoria causal da referência dos termos para categorias naturais. Convida-nos
a imaginar que existe um outro planeta quase indistinguível do planeta Terra, a
Terra Gémea. A única diferença entre a Terra e a Terra Gémea é que a substância
a que chamamos «água» na Terra é H2O e a substância a que chamam «água» na
Terra Gémea é XYZ (em que isto significa a sua composição química). O que é
interessante neste caso imaginário é que em ambos os planetas as propriedades
superficiais da substância são idênticas: «água» denota um líquido incolor,
inodoro, que mata a sede, que pode ser encontrado em rios, etc.
Eis um caso em que os habitantes da Terra e da Terra Gémea não especialmente
versados em química partilham a mesma descrição associada ao termo «água» (o
que pode ser encontrado nos rios e nos lagos, por exemplo), mas em que o termo
se aplica a duas substâncias diferentes. Na Terra, refere-se a H2O; na Terra
Gémea, a XYZ. Se esta for a maneira correcta de interpretar a experiência
mental, então mostra que o descritivismo tem de estar errado, e que a intensão
(ou sentido) não pode determinar a extensão (ou referência), pois podemos ter
um termo com a mesma intensão mas com uma extensão diferente, dependendo
do meio em que é usado.
Putnam cria este cenário para nos fazer partilhar a intuição de que o significado
depende quer do mundo exterior (o que a água é, por exemplo), quer do modo
como o trabalho linguístico é distribuído na comunidade. Mesmo que o leigo não
consiga distinguir a água da substância que corre nos rios na Terra Gémea, para
os termos para categorias naturais como «água», a maneira como identificamos
instâncias de água depende da capacidade de identificar a sua estrutura oculta, as
suas propriedades essenciais, e não apenas as suas características superficiais,
como a cor e o odor. Por outras palavras, Putnam defende que o significado não
é algo privado na cabeça de um falante, mas algo determinado pela natureza das
coisas no mundo que nos rodeia. Essa natureza (tantas vezes não aparente) é algo
que aprendemos ao fazer ciência, e determina os critérios que os especialistas
usam para determinar se uma coisa é água ou outra coisa.
Fará sentido dizer que «água» tem duas extensões, H2O na Terra e XYZ na Terra
Gémea? Para Putnam, não, da mesma maneira que não faria sentido dizer que há
duas entidades mediante as quais o nome «Homero» se refere à pessoa que se
julgava ter escrito a Ilíada a uma só mão e ao grupo de pessoas que contribuíram
para a sua escrita. A água é H2O e o termo «água» sempre referiu H2O na Terra,
mesmo quando as pessoas não reconheciam a água com base na sua composição
química. Na terminologia de Kripke, «água» é um designador rígido, ou seja, o
seu referente é sempre o mesmo em todos os mundos possíveis, e destaca o que é
essencial sobre a água, a sua estrutura oculta. Mesmo no ano de 1750 na Terra,
quando ninguém conhecia a composição química da água, o termo «água»
referia-se a H2O porque se comportava como um indexical. A palavra «água»
fora atribuída a uma substância uniforme particular pelo baptismo inicial que
fixou a referência do termo: quando alguém disse pela primeira vez «Isto é
água». Como toda a expressão indexical, a sua referência é determinada pelo
mundo, pelas características daquilo para que os falantes apontam quando dizem
«Isto é água».

Discussão: 1) A sua intuição diz-lhe que antes da descoberta do oxigénio e da
composição química da água o termo «água» referia-se a duas substâncias
diferentes na Terra e na Terra Gémea? 2) A sua intuição diz-lhe que nessa altura
os habitantes da Terra e da Terra Gémea se referiam a coisas diferentes quando
diziam «água»?

4.1.3 Intuições sobre categorias naturais

Os descritivistas afirmam ter intuições diferentes sobre o caso da Terra Gémea, e
defendem uma perspectiva segundo a qual o referente de «água» é a subsância
que satisfaz uma descrição teórica aceite (ou uma definição operacional) de
água, seja ela qual for. A determinação da referência é relativa à teoria
presentemente adoptada. Não faz sentido dizer que antes de 1750 os falantes se
referiam a H2O usando o termo «água» porque nessa altura nenhuma descrição
desse tipo podia ter sido associada à água, e nada que com isso se parecesse
aparecia na melhor teoria disponível sobre o que a água era.
Pode-se levantar outra objecção à distinção entre propriedades superficiais e
essenciais para as categorias naturais, que interessa para a fixação da referência,
e com a ideia, implícita na perspectiva defendida por Putnam, de que os
referentes dos termos para categorias naturais são determinados pelas
propriedades essenciais e não pelas propriedades superficiais da categoria
natural. Que propriedades são essenciais e que propriedades são superficiais não
é facilmente determinado independentemente de uma teoria científica que
explique os fenómenos que uma categoria natural implica. Mesmo que houvesse
propriedades essenciais que pudessem ser identificadas com base na
investigação empírica, podiam não ser a estrutura oculta. Por exemplo, que a
estrutura oculta seja essencial para uma categoria natural faz sentido para
algumas categorias físicas ou químicas, mas é implausível no caso das categorias
estudadas pelas ciências da vida.

Discussão: Devemos acreditar que algumas propriedades da água são mais
importantes que outras e que são essenciais para o que a água é? Será que o
facto de a água ser H2O devia desempenhar um papel mais importante na
fixação de uma referência do que o facto de a água poder ser bebida?

As reflexões sobre o uso da linguagem e sobre a maneira como os significados
são atribuídos conduzem a reflexões sobre a maneira como identificamos a
natureza dos objectos que os termos da nossa linguagem referem. Há um debate
acalorado na metafísica sobre o modo como a natureza é fraccionada: será que
os cientistas estipulam ou descobrem que a água é HzO? E plausível que, quando
nos damos conta da composição química da água por via da investigação
empírica, fiquemos a saber o que a água sempre foi. Como Putnam e outros
essencialistas pensam a respeito das categorias naturais, o conhecimento
adquirido da identidade entre a água e HzO é usado para corrigir usos passados
do termo «água». Descobrimos a essência da água.
Todavia, noutros casos de baptismo parece provável que os cientistas não
tenham sido obrigados a caracterizar as categorias naturais como fizeram
mediante uma consideração das propriedades essenciais de uma categoria, mas,
ao invés, tiveram escolha. O termo «jade» refere-se à jadeíte e à nefrite, que
partilham a maioria das propriedades observáveis, mas não a mesma estrutura
oculta. A descoberta das suas naturezas diferentes não levou a revisão alguma da
linguagem. Quando da física e da química passamos às ciências biológicas, vêm-
nos à cabeça mais exemplos. As baleias foram classificadas como mamíferos e
não como peixes, mas poderia não ter sido assim (LaPorte 2004).
Embora a maioria dos filósofos reconheça que há um elemento de arbitrariedade
nas escolhas que os falantes fazem sobre a extensão dos termos para categorias
naturais, discorda no que respeita à sua explicação. Alguns defendem que as
categorias naturais têm um valor explicativo e há uma série de modelos de
classificação que funcionam para umas finalidades e não para outras: a ciência
não descobre como as coisas são, mas proporciona diferentes modos de as
representar para diferentes finalidades (Dupré 1981). Esta é a perspectiva anti-
essencialista das categorias naturais.
Outros defendem que em alguns contextos os cientistas de facto fraccionam as
coisas de uma maneira que é exclusivamente determinada pela natureza dos
fenómenos que estudam (os nomes dos elementos na química, por exemplo),
mas que noutros contextos há factores exteriores à ciência, e estes afectam o
modo como é fixada uma referência de um termo para uma categoria natural. Por
exemplo, os rubis e as safiras possuem a mesma estrutura oculta, mas têm nomes
diferentes. O nosso uso vernáculo segue as diferentes propriedades de superfície
dos compostos (vermelho e azul), que atribuímos às diferentes impurezas que
contêm, e não à sua estrutura interna, que é idêntica. As propriedades de
superfície têm implicações importantes no valor de mercado das pedras. Esta é
uma perspectiva essencialista das categorias naturais, mas uma perspectiva que
reconhece que os interesses científicos são apenas uma das partes envolvidas na
determinação do uso de termos para as categorias naturais (Bird 2007).
Comparemos estas perspectivas com a explicação de Putnam: Putnam defende
que se os tigres deixassem de ter listas não deixariam de ser tigres, pois ter listas
não é o que é essencial para ser um tigre. «X é listado» é apenas uma descrição.
Os falantes que não são especialistas podem basear-se nela quando lhes pedem
para identificar tigres, mas não faz parte das propriedades essenciais dos tigres.
Esta explicação tem consequências importantes para a fixação de referências:
ainda que a maioria dos falantes reconheça os tigres pela sua aparência, por
terem listas de um certo tipo e de uma certa cor, a extensão do termo «tigre» é
determinada por outra coisa, quaisquer que sejam as propriedades dos indivíduos
que foram baptizados como «tigres». Se «tigre» é um termo para uma categoria
natural, as propriedades de ser um tigre serão identificadas pela mais recente
teoria de classificação das espécies em biologia e por outras informações
empíricas relevantes sobre os tigres.

Exercício: Se a água perdesse todas as suas propriedades superficiais mas
mantivesse a sua composição química, ainda faria sentido chamar-lhe «água»?

Discussão: Será que a resposta à pergunta anterior nos diz alguma coisa sobre
como as comunidades linguísticas operam e evoluem, ou sobre o significado e a
referência?

Há outras maneiras de explicar a fixação da referência e o nomear. Uma das
opções é adoptar uma teoria híbrida da referência: faria sentido dizer que «tigre»
refere algo completamente diferente daquilo que os falantes actualmente pensam
porque uma nova teoria científica assim o diz? Michael Devitt (1981) argumenta
que tem de haver um elemento descritivo na fixação da referência dos nomes
próprios; ou seja, temos de ter pelo menos uma coisa que sabemos sobre o
objecto que nomeamos para que as relações causais entre o nome e o objecto se
mantenham, e para que desempenhem o papel sumamente importante de
determinar a referência para as gerações vindouras. Isto é, um falante tem de
saber, pelo menos, que tipo de coisa é o objecto em questão (para se nomear
alguém como «Homero», tem de se saber pelo menos que Homero é um
homem).
Poderá uma abordagem semelhante funcionar com os termos para categorias
naturais? Se a química vier a revelar a verdade última sobre a estrutura oculta da
água e nada na descrição original associada à substância dita «água» estiver
correcto, nessa altura parecerá bastante contra-intuitivo defender que os falantes
se estavam sempre a referir à água quando usavam o termo. Não é suficiente
apontar para a água e dizer «Isto é água» para baptizar instâncias de água como
«água»; deve acrescentar-se algum elemento descritivo ao indexical («Este
líquido é água», por exemplo). Se depois se descobre que a água não é um
líquido, ter-se-á de concluir que no passado os falantes não tinham sido bem-
sucedidos quando se referiam à água com o termo «água». Da mesma maneira,
não poderíamos fixar a referência «tigre» e ignorar que os tigres são animais
(«Este animal é um tigre», por exemplo). Se mais tarde se descobrisse que os
indivíduos chamados «tigres» não eram animais, ter-se-ia de concluir que os
usos de «tigre» anteriores a esta descoberta e baseados nesse acto de baptismo
original não serviam como referência.

Discussão: O que determina o nível de descrição do qualificativo (por exemplo,
líquido, animal, etc.)? O que faria «tigre» não referir se se desse o caso de os
tigres serem outra coisa que não animais? Continuaria a referir caso se
descobrisse que os tigres são outra coisa que não listados?

Alguns filósofos concederam que no cenário descrito por Putnam a maior parte
de nós tem intuições antidescritivistas, mas revela-se preocupada quanto ao uso
de um exemplo tão contrafeito. Afinal de contas, se duas substâncias têm uma
estrutura oculta radicalmente diferente (H20 e XYZ, por exemplo), é bastante
implausível e irrealista supor que não há qualquer diferença observável entre
elas. Pelo menos no laboratório de química, o comportamento das pessoas na
Terra Gémea com aquilo a que chamam «água» é diferente do das pessoas na
Terra, e formam crenças diferentes sobre as suas propriedades e a sua estrutura.
Mas, à parte estas preocupações metodológicas, o que a experiência mental
consegue fazer com êxito é destacar dois elementos distinguíveis em qualquer
teoria do significado: o que os falantes pensam quando usam um termo e aquilo
que o termo refere no mundo.

4.2 Implicações do descritivismo

Putnam considera que a explicação do significado dos termos para categorias
naturais é determinada por uma série de factores, entre os quais a descrição
comummente associada ao termo («Os tigres são animais felinos de grande porte
com listas») e a descrição da extensão do termo («Os tigres são animais com um
determinado ADN, etc.»). Quando a teoria sobre o que os tigres são muda, o
estereótipo não muda, e a extensão «tigre» também não muda porque foi fixada
no momento do baptismo; mas a descrição teórica, sim.
Para os descritivistas, os termos adquirem a sua referência com base nas
descrições a eles associadas. Os filósofos da ciência que defendem uma
explicação descritivista da referência dos termos teóricos argumentam
frequentemente que a comunicação entre os cientistas antes e depois de uma
mudança significativa de teoria se torna difícil, ou mesmo impossível, porque a
descrição dos termos teóricos mudou, e com ela a sua referência. Após o derrube
da teoria, teremos de dizer que alguns termos teóricos cujas descrições se
revelaram completamente incorrectas já não servem como referência. Esta
alegação tem implicações tanto para o realismo científico como para o progresso
científico. É mais difícil defender a ideia de que as teorias científicas estão a
descrever a realidade de uma maneira que é, pelo menos aproximadamente,
correcta, e que cada teoria nova vai fazendo progressos relativamente a teorias
anteriormente aceites, caso as afirmações teóricas das teorias antigas e novas não
possam ser comparadas.
Introduziremos aqui a noção de incomensurabilidade do significado, e em
seguida questionaremos se é justificado pensarmos que as nossas teorias
científicas actuais são (pelo menos aproximadamente) verdadeiras.
Consideraremos algumas das implicações da incomensurabilidade no avanço da
ciência no próximo capítulo.

4.2.1 A incomensurabilidaáe do significado

Kuhn parece dar a entender que não é possível compreender a linguagem de um
paradigma a partir da perspectiva de outro, e que, a par da possibilidade de
compreensão, os cientistas em oposição também não têm a possibilidade de
comunicar e de comparar as formulações e as soluções proporcionadas pelas
respectivas teorias. Chama a isto a tese da incomensurabilidade («ausência de
uma medida comum») do significado.
Kuhn parece fundamentar a incomensurabilidade em duas teses: 1) a ideia de
que não existe uma linguagem puramente observacional; 2) a ideia de que os
termos teóricos mudam de significado quando as teorias mudam. Desenvolve
uma crítica da tese neopositivista de que todas as afirmações teóricas podem ser
reduzidas a uma linguagem observacional comum que não é contaminada por
pressupostos teóricos. Por via da ideia de Carnap de que é possível traduzir
qualquer afirmação teórica para uma afirmação que contém apenas termos
observacionais (ver as regras de correspondência no capítulo anterior), poder-se-
ia pensar que é possível transpor o abismo conceptual entre duas afirmações
teóricas que empregam termos aos quais são associadas diferentes descrições. A
linguagem da observação livre da teoria podia ser a intermediária, e garantir uma
compreensão mínima comum. Porém, para Kuhn, a ideia de uma linguagem
puramente observacional e neutra no que respeita à interpretação teórica é
utópica.
A análise de Kuhn é inspirada por exemplos da história da ciência. Alguns
termos foram redefinidos de uma maneira bastante drástica, e a tal ponto que os
primeiros usos de um termo quase nada têm em comum com os usos
actualmente aceites do mesmo termo. Consideremos o termo «elemento», que
foi introduzido pelos gregos antigos e que foi depois usado pelos alquimistas
desde a Idade Média, fazendo hoje parte do vocabulário dos químicos
contemporâneos. Para Aristóteles, os elementos eram os constituintes básicos da
matéria (terra, água, fogo e ar) que podiam ser convertidos uns nos outros (por
exemplo, a água pode ser convertida em ar), e eram caracterizados pelas
propriedades de serem húmidos ou secos e quentes ou frios. A descrição dos
elementos na química de hoje difere muitíssimo da de Aristóteles, muito embora
ainda sejam genericamente caracterizados como os componentes fundamentais
da matéria. Actualmente, os elementos são mais precisamente caracterizados
como as substâncias constituídas por apenas um tipo de átomo, e os cientistas
descobriram mais de uma centena deles. Muitas das propriedades de um
elemento são consideradas como funções periódicas do número de protões no
núcleo atómico do elemento, e o número atómico determina a organização dos
elementos numa tabela que tem como objectivo ilustrar algumas das suas
propriedades periódicas.


Embora tenhamos continuado a usar o termo «elemento», a descrição que a ele
associamos (o que com ele queremos dizer) e as coisas que queremos com ele
referir (o referente) mudaram drasticamente ao longo de séculos de investigação
científica, e exemplos semelhantes abundam na história da ciência. Mas será que
estes exemplos e as conclusões que deles retiramos justificam a alegação de
Kuhn de que as teorias são incomensuráveis?
Se nos pedissem para traduzir uma afirmação numa língua para uma afirmação
numa língua radicalmente diferente, íamos querer preservar as propriedades
semânticas mais relevantes e, dado o nosso objectivo, provavelmente não
chegaríamos a uma tradução satisfatória ponto por ponto. A tradução pode ser
geralmente problemática e localmente impossível, como sentimos quando
falamos uma língua que aprendemos e que não é a nossa língua materna. Ainda
assim, para muitos críticos, postular que a comunicação se torna impossível
parece ser uma conclusão demasiado extrema. Uma compreensão parcial é
muitas vezes um objectivo que pode ser atingido com um esforço genuíno. No
caso das afirmações teóricas que pertencem a um enquadramento teórico
diferente, a compreensão parcial é considerada um requisito essencial para a
escolha racional de uma teoria. Se as afirmações em duas teorias rivais não
podem ser comparadas, então a escolha entre elas não pode ser feita com base
em considerações sobre o seu conteúdo (por exemplo: em que medida explicam;
como respondem a potenciais objecções; que implicações acarretam).
Kuhn estava certo quando salientou que os termos teóricos podem mudar de
significado quando uma teoria é rejeitada e substituída. Contudo, o fenómeno
não está confinado às disciplinas científicas formais. Mesmo os termos da
linguagem corrente são passíveis de alterações frequentemente drásticas, em
conformidade com uma alteração nos pressupostos e crenças de base. Pensemos
noutros dois exemplos: o uso quotidiano do termo «bruxa» e o uso de
«combustão» nas ciências químicas.
Nos dias de hoje, quando se usa o termo «bruxa» com a intenção de referir uma
pessoa que tem poderes mágicos e que pratica a feitiçaria, no geral pensa-se que
não adquire a sua referência fora da ficção. É em parte por isso que o termo
possui uma série de usos metafóricos e não literais. «Ela é uma bruxa» pode
referir-se a uma mulher que é considerada velha e feia, ou que dá ares de má.
Todavia, do século xv ao século xviii, o termo «bruxa» indicava outra coisa. As
bruxas eram pessoas (normalmente mulheres) que se faziam amigas do diabo e
que se envolviam em conspirações para trazer o mal a outras pessoas ou grupos
de pessoas, e que de facto provocavam o mal lançando feitiços, trazendo o
infortúnio e sendo responsáveis por pragas e catástrofes. Quando capturadas,
eram frequentemente torturadas até confessarem que tinham contactado com o
diabo, e em seguida mortas. O termo referia pessoas reais, e a descrição a ele
associada proveio provavelmente de ideias supersticiosas sobre as possíveis
causas das catástrofes naturais e dos infortúnios pessoais, em conjunto com a
observação de um comportamento que era considerado insólito (possíveis casos
de histeria, por exemplo). Ora, o que aqui nos interessa é que a alteração das
crenças de base entre esses tempos e os nossos tempos determinou uma alteração
na descrição associada ao termo «bruxa» e, ainda mais importante, uma resposta
diferente à questão sobre se o termo refere genuinamente.

Exercício: Consegue pensar noutro caso em que a mudança da descrição
associada a um termo, em conjunto com a mudança das crenças de base,
resultou num termo que deixou de referir algo real?

Consideremos agora o termo «combustão». Antes e durante a revolução química
(que descreveremos com algum pormenor no próximo capítulo), havia
explicações científicas concorrentes sobre a combustão. Joseph Priestley via a
combustão como um processo mediante o qual um objecto a arder liberta
flogisto, que é consequentemente absorvido pelo ar circundante. Para Antoine
Lavoisier, a combustão era um processo mediante o qual um objecto a arder se
combina com o oxigénio retirado do ar circundante. De acordo com uma
explicação descritivista da referência, a questão sobre se o termo «combustão»
refere depende da descrição teórica a ele associada. Se a combustão é o que
Priestley diz que é, então não refere processo real algum (pensamos hoje), pois o
flogisto não existe. (Um teórico causal diria que «combustão» sempre se referiu
a algo como o processo que Lavoisier descreveu, mas que tinha a ele associada
uma descrição incorrecta antes de Lavoisier ter «descoberto» o oxigénio.)
Kuhn está preocupado com a questão da compreensão. Será que podemos
compreender as alegações dos caçadores de bruxas do século xvi sobre os
perigos das bruxas? Será que Lavoisier e Priestley se compreendem um ao outro
quando falavam sobre a combustão? Para o incomensurabilista, o significado de
«combustão» está preso aos postulados de significado que a teoria química
aceite inclui. A concepção holística do significado que os incomensurabilistas
apoiam leva-os a dizer que Priestley e Lavoisier pensavam que se podiam
compreender um ao outro, mas na realidade não podiam porque não havia
terreno comum suficiente nas suas abordagens teóricas incompatíveis sobre a
combustão, além de que o significado diferente que atribuíam a «combustão»
afectou efectivamente o significado de muitos, se não de todos, os outros termos
teóricos e até observacionais que usavam. Se disséssemos que «um objecto a
arder» é uma descrição que podiam ambos reconhecer como sendo da
combustão, Kuhn insistiria que entenderiam «a arder» de uma maneira diferente,
e que não teriam usado e compreendido o termo independentemente dos
pressupostos teóricos acerca da natureza do processo de que partiam. Para
Priestley, «combustão» refere algo diferente de «combustão» para Lavoisier, da
mesma maneira que «massa newtoniana» tem um referente diferente de «massa
einsteiniana». Priestley referia-se a algo que (pensamos hoje) não existia quançlo
falava sobre a combustão, e o mesmo acontecia quando falava sobre o flogisto.

Discussão: Por que razão a associação de um termo com descrições teóricas
concorrentes gera uma falha de compreensão? De que pressupostos parte Kuhn
aqui?

4.2.2 Referência parcial e traduções imperfeitas

O anti-incomensurabilista pode rejeitar o descritivismo ou o holismo do
significado. Pode insistir que há um significado de «combustão» tão simples
como «objecto a arder», partilhado por teóricos rivais. Depois há perspectivas
incompatíveis sobre como a combustão ocorre, mas que não impedem
necessariamente que cientistas em campos opostos se compreendam
parcialmente e tenham uma ideia do que a teoria rival quer dizer. Há termos
teóricos, incluídos numa teoria que já se provou ser falsa, que cientistas
posteriores consideram não referir algo real. Por exemplo, se a massa
newtoniana existe ou não é uma questão controversa. A massa, tal como é
caracterizada pela teoria da relatividade de Einstein, não coincide com ela, e uma
vez que já rejeitámos a física newtoniana e aceitámos a teoria da relatividade,
somos levados a pensar que nada há no mundo que seja exactamente como a
massa newtoniana. Por outro lado, a descrição da massa por Newton diz algo de
verdadeiro sobre a massa tal como hoje a entendemos.
Hartry Field (1973) sugere que os termos teóricos de teorias já rejeitadas só
parcialmente referem objectos no mundo, e usa justamente o exemplo de
«massa». A ideia é que, até certo ponto, é indeterminado aquilo que referia o
termo «massa», tal como Newton o usou. No falar de Newton, «massa» refere
parcialmente a massa relativista e parcialmente a massa propriamente dita.
Quando usamos a palavra «massa» como Newton a usou cometemos um erro,
não porque o termo que usamos já não refere, mas porque não nos permite fazer
todas as distinções relevantes que poderíamos precisar de fazer (Devitt 1997).
E que dizer de «flogisto»? A crer na teoria do oxigénio, «flogisto» é
completamente destituído de referente, não havendo entidade alguma no mundo
que se comporte da maneira que é descrita pela teoria do flogisto. Somos
obrigados a dizer que «flogisto» nunca teve qualquer espécie de referente. Nada
há que possamos destacar no mundo químico e identificar (ainda que
parcialmente) como o referente de tal palavra. Os cientistas integrados no
enquadramento teórico formado por uma teoria que vai ser rejeitada podem
acreditar na existência de objectos que mais tarde se vem a provar serem meras
«invenções» teóricas.
Há quem tenha tentado refutar a teoria da incomensurabilidade de Kuhn usando
um argumento que tem como alvo qualquer instância de relativismo conceptual
(Davidson 1974). O relativista defende que há diferentes pontos de vista, mas
que estes pontos não podem ser comparados porque não há um sistema de
coordenadas comum que nos permita localizá-los. Mas, se assim é, como é que
podemos reconhecer que os pontos de vista são diferentes? Negar a possibilidade
de reconhecer a diferença mediante a comparação é também negar a própria
diferença.
Esta é uma refutação convincente das formas de relativismo que supõem que há
um dado, um conteúdo que ainda não foi interpretado, e que as diferentes
interpretações do mesmo são incomensuráveis. Se sabemos que as interpretações
concorrentes partilham uma base comum (um conteúdo neutro a ser
interpretado), temos um terreno para as comparar e para reconhecer como
diferem. Mas a tese da incomensurabilidade de Kuhn parece ser imune a este
tipo de crítica. Kuhn não acredita que haja um terreno comum, um conteúdo que
não é conceptualizado, uma linguagem com um carácter observacional puro, e
não fala de diferentes interpretações de dados partilhados. Recusa a ideia de que
há uma explicação dos dados que é neutra no que respeita às várias maneiras de
os interpretar. Os próprios dados são diferentes, e as mesmas observações podem
ser explicadas de maneiras diferentes antes de se ter alcançado o estádio da
interpretação. A incomensurabilidade invocada por Kuhn é simplesmente a
ausência de toda a medida comum, de todo o sistema de coordenadas no qual os
pontos de vista diferentes estão localizados. Temos de imaginar um sistema de
coordenadas diferente para cada ponto e nenhum plano comum onde assentem.
A mudança de um enquadramento teórico para outro é tanto uma mudança de
sistema quanto uma mudança de ponto de vista.
Há uma rota alternativa para a rejeição da incomensurabilidade do significado.
Primeiro, podemos conceder que muitas vezes uma tradução ponto por ponto é
não só impossível, mas, mesmo quando parece possível, é um verdadeiro
quebra-cabeças e exige que o tradutor faça escolhas difíceis e controversas. O
mais provável é que ocorra alguma perda de significado. A incomensurabilidade
parcial pode então ser experienciada e faz parte da mudança de uma linguagem
teórica para outra: pode haver falhas (locais) de compreensão, devido ao uso do
mesmo termo para referir entidades às quais são atribuídas diferentes
propriedades. No entanto, admitirmos que a tradução precisa entre linguagens
teóricas é falível não nos obriga a adoptarmos a tese da incomensurabilidade na
sua plenitude. Os teóricos rivais compreendem (pelo menos até certo ponto) que
diferenças caracterizam as suas posições (caso contrário não poderiam envolver-
se em debate significativo algum), e esta observação por si só torna a tese da
incomensurabilidade implausível, na medida em que o incomensurabilista insiste
justamente na possibilidade da comunicação ficar comprometida e na
inevitabilidade dos erros de compreensão. O pensamento de que no geral, e não
em circunstâncias históricas particulares, os cientistas são sistematicamente
enganados quando pensam que são bem-sucedidos ao comunicar com teóricos
rivais, é também uma tese implausível.
Consideremos um par de exemplos em que a compreensão parece ser alcançável.
Relembremos a nossa discussão anterior sobre o termo «elemento», e como a
descrição teórica a ele associada mudou desde Aristóteles até à química
contemporânea por via de séculos de tradição alquímica. Quando pensamos em
afirmações que contêm o termo «elemento», algumas afirmações que um
contemporâneo de Aristóteles julgaria verdadeiras (por exemplo, «A água é um
elemento») são hoje falsas (por exemplo, a água não é um dos constituintes
básicos da matéria). Mas percebemos o que Aristóteles queria dizer ao chamar
elemento à água, ainda que esta compreensão só aconteça porque quisemos
conhecer as crenças de base do seu tempo sobre a constituição da matéria e do
movimento, bem como as implicações que algo classificado como um elemento
representa para as teorias da física e da metafísica.
Eis outro exemplo. Henri Poincaré (1902, 2003, p. 42) tentou criar um dicionário
peculiar para traduzir termos cruciais da geometria euclidiana clássica para os
termos de uma geometria não euclidiana, a geometria hiperbólica de
Lobachevsky. O desenvolvimento de novas geometrias na primeira metade do
século xix significou que a geometria euclidiana deixou de ser a única maneira
de representar o espaço. Além do mais, a alegação de que a geometria euclidiana
era verdadeira quanto ao nosso mundo empírico também foi posta em questão,
dada a concepção de espaço introduzida pela teoria da relatividade de Einstein.
A concepção de espaço de Einstein não é inteiramente compatível com a
geometria euclidiana, que acaba por ser apenas uma aproximação à geometria do
espaço físico real. O quinto postulado da geometria euclidiana é rejeitado pela
geometria de Lobachevsky, e este é o postulado segundo o qual duas linhas
rectas convergentes acabam por se intersectar na direcção em que convergem.
De que maneira os termos usados na geometria euclidiana poderiam ser
traduzidos para os termos da geometria hiperbólica de Lobachevsky? Poincaré
defende que, a existir um dicionário de termos geométricos, seria possível
traduzir não apenas termos, um por um, mas até teoremas. Aquilo a que
chamamos «espaço» na geometria euclidiana é a porção de espaço situada acima
do plano fundamental na geometria hiperbólica, e o teorema de Lobachevsky
que diz que a soma dos ângulos de um triângulo é inferior a dois ângulos rectos
traduzir-se-ia assim: «Se um triângulo curvilíneo tivesse como lados arcos de
círculos que, se prolongados, intersectariam ortogonalmente o plano
fundamental, a soma dos ângulos deste triângulo curvilíneo seria inferior a dois
ângulos rectos.»
Eis um caso interessante em que se pode tentar uma tradução imperfeita entre
formulações teóricas produzidas no âmbito de paradigmas rivais. Não é uma
tradução ponto por ponto elegante, e todas as complexidades conceptuais da
comparação estão reflectidas no esforço linguístico de transmitir ideias com
ferramentas inadequadas. Porém, mostra que por vezes podemos salvar a
comunicação interteórica e a comensurabilidade reconhecendo as dificuldades
criadas pela alteração conceptual e tentando colmatá-las com os recursos
disponíveis.

Exercício: Consegue dar outro exemplo de uma tradução parcialmente bem-
sucedida entre afirmações pertencentes a teorias concorrentes?

4.3 Realismo

O realismo filosófico é um ponto de vista sobre o que existe e o que podemos
conhecer, e por conseguinte tem uma componente ontológica e uma componente
epistemológica. De acordo com a tese ontológica de um realista representativo,
há objectos e propriedades no mundo independentes da mente, objectos e
propriedades que estariam no mundo mesmo que não houvesse uma mente para
pensar neles. De acordo com a tese epistemológica, podemos ter acesso a esses
objectos e propriedades, e as representações que deles fazemos, ainda que
falíveis, não são sistematicamente enganadoras. A posição realista é
frequentemente caracterizada em termos de a nossa experiência perceptiva ser
um guia fiável para o que é independente da nossa experiência. O realista
responderia afirmativamente a perguntas como: será que o carro que vejo à
minha frente existe realmente? Será que é na realidade (aproximadamente) como
me parece?
Na vida de todos os dias, raramente paramos para considerar se as nossas
experiências são verídicas. Mas há circunstâncias em que ficamos com dúvidas.
Confrontada com a possibilidade de um truque de ilusionismo, posso considerar
a hipótese de o carro que vejo à minha frente ser apenas um sofisticado
holograma ou uma imagem em espelho muito bem conseguida. Talvez haja um
carro algures, mas não à minha frente. Os cépticos convidam-nos a generalizar a
partir destas raras ocasiões, e pedem-nos para imaginar que dúvidas semelhantes
podem afectar o grosso das nossas experiências. Mas os realistas respondem que
a nossa experiência dos objectos e das propriedades no mundo nos dá razões
para acreditar que esses objectos e essas propriedades existem
independentemente da nossa percepção, e que as nossas interacções causais, em
grande parte bem-sucedidas, com esses objectos e essas propriedades, nos dão
razões para acreditar que a maneira como temos experiência delas não é
sistematicamente enganadora.
Embora o realismo seja a posição por omissão do senso comum, podemos
facilmente imaginar reptos cépticos que insinuem dúvidas sobre o que existe e o
que conhecemos. O cenário dos cérebros numa cuba é o cenário típico no qual a
informação que recebemos por via da percepção não constitui um guia para o
que é o mundo real. Hilary Putnam (1981, 1999) sugere que as nossas
experiências perceptivas podem provir não da nossa interacção causal com os
objectos e as propriedades no mundo, mas do facto de os nossos cérebros terem
sido retirados dos nossos corpos e mantidos vivos no laboratório de um cientista
louco, recebendo impulsos eléctricos que proporcionam estímulos
indistinguíveis dos estímulos que os nossos cérebros receberiam quando
percepcionam objectos e propriedades no mundo. O que toma esta hipótese tão
interessante (e hipóteses semelhantes, como a da dúvida hiperbólica de
Descartes ou a possibilidade de uma simulação total de computador, como nos
filmes Matrix) é que se fôssemos apenas cérebros numa cuba, não teríamos
maneira de o saber. Baseados unicamente nas nossas experiências, não
conseguimos discriminar entre a hipótese realista de que as nossas experiências
são verídicas e causadas pela interacção dos nossos corpos com outros objectos e
propriedades no mundo, e a hipótese céptica de que as nossas experiências são
apenas o resultado da acção de um cientista louco que estimula os nossos
cérebros fora do nosso corpo (para uma discussão sobre esta questão, ver
Pritchard 2005 e Goodman 2007).

4.3.1 O realismo na filosofia da ciência

A discussão sobre o realismo científico diz respeito à capacidade que as nossas
teorias científicas actuais têm de descrever e explicar a realidade, e a estrutura do
debate entre realistas e anti-realistas não é dissemelhante da estrutura do debate
sobre o cepticismo que atrás sumariámos. A força da hipótese anti-realista reside
no pensamento de que mesmo que as nossas teorias científicas actuais não
correspondessem correctamente a objectos e propriedades reais no mundo,
provavelmente ainda assim funcionariam suficientemente bem, e não teríamos
maneira de discriminar entre o facto de serem (aproximadamente) verdadeiras e
apenas empiricamente adequadas.
Na filosofia da ciência, as questões sobre o realismo são na sua grande maioria
formuladas nos termos do estatuto ontológico quer das entidades inobserváveis,
quer das relações entre acontecimentos que são postulados pelas nossas teorias
científicas actuais. Será que os electrões existem realmente? Será a inflação real?
Eis o repto à posição realista: nada justificaria o passo que vai entre aceitar uma
teoria científica que pode prever eficazmente os fenómenos num dado domínio e
acreditar que as entidades e as relações postuladas pela teoria existem realmente.
Note-se a analogia com o cenário céptico antes discutido: nenhuma informação
perceptiva que obtemos sobre o mundo nos pode dizer que não somos cérebros
em cubas ou que não estamos presos na matrix. Nenhumas provas confirmantes
que recolhemos para cada teoria específica nos podem dizer se a teoria é mais do
que apenas uma ferramenta útil para a previsão dos acontecimentos que
queremos ser capazes de controlar.
No que se segue passaremos em revista alguns dos reptos mais comuns ao
realismo científico, e esquematizaremos algumas posições alternativas à realista.
As teses-alvo são as afirmações de que as teorias científicas actuais são
verdadeiras e as entidades teóricas, bem como as relações que postulam, existem
verdadeiramente.

4.3.2 Argumentos contra o realismo

A meta-indução pessimista

Se todas as teorias anteriormente aceites provaram ser falsas, porque devemos
acreditar na veracidade das nossas teorias actuais? Este argumento foi
popularizado por Hilary Putnam (1978). Putnam parte do pressuposto de que a
maioria das teorias científicas actuais é verdadeira. Em seguida argumenta que a
maioria das teorias científicas do passado tem de ser falsa, pois difere das teorias
actuais e foi substituída por estas. Induzindo a partir das teorias do passado,
concluímos que a maioria das teorias científicas actuais também se revelará
falsa. Esta conclusão entra em conflito com o nosso pressuposto inicial. O cerne
do argumento é fazer-nos perceber que não obtemos justificação quando
defendemos que as teorias científicas actuais são verdadeiras.

Exercício: Porque é que este argumento é uma meta-indução?

Larry Laudan (1981) avança um argumento com uma estrutura semelhante, pois
consiste em assumir em primeiro lugar que o êxito empírico de uma teoria é uma
indicação da sua verdade, e depois em descobrir que este pressuposto nos
conduz a uma contradição. Se a maioria das teorias actuais é verdadeira, então a
maioria das teorias científicas do passado é falsa, pois foi substituída pelas
teorias que actualmente aceitamos e diferem das teorias do passado. Porém,
muitas destas teorias do passado foram empiricamente bem-sucedidas. Por
conseguinte, o facto de uma teoria ser empiricamente bem-sucedida não pode,
afinal de contas, ser considerado uma indicação de que a teoria é verdadeira. E
podemos aplicar esta consideração não só às teorias do passado, mas também às
actuais. O seu êxito empírico não é uma razão suficientemente boa para acreditar
que são verdadeiras.
A versão do argumento de Laudan tem sido muito discutida na literatura sobre o
realismo, recebendo dois tipos de críticas. Alguns autores pensam que não é
válida, e que portanto não põe o realismo verdadeiramente em causa. Outros
levaram o argumento a sério, assumindo como projecto seu rejeitar uma das
premissas para defender uma versão de realismo.
No que resta deste capítulo passaremos em revista algumas tentativas de
desenvolver formas moderadas de realismo que não parecem ser tão vulneráveis
ao repto de Laudan. Mas antes de mais devemos centrarmos nas preocupações
quanto à validade do argumento. Já foi apontado que algumas versões da
indução pessimista podem ser acusadas de cair na «falácia da rotatividade»
(Lewis 2001; Lange 2002). O exemplo que se segue pode ajudar-nos a
compreender o aspecto principal da objecção: o facto de o conselho de
administração de uma empresa ter sido sujeito a muitas alterações no passado
não implica que todos os membros actuais sejam substituídos em breve. Pode
acontecer que alguns membros já ocupem os seus postos há muitos anos, mas
que nem por isso venham a ser substituídos no futuro próximo. Do facto de
terem ocorrido muitas substituições pode inferir-se que ocorrerão mais
substituições no futuro, mas não se pode prever quando cada membro será
substituído.
Com base em indícios da história da ciência, poderíamos pensar que as teorias
que presentemente aceitamos serão consideradas falsas no futuro e substituídas
por outras teorias, pese embora o facto de serem empiricamente bem-sucedidas
hoje. Mas este juízo não é justificado para todas as teorias actuais, pois pode dar-
se o caso de algumas terem sido aceites durante bastante tempo e de continuarem
a ser aceites no futuro. O argumento precisaria de ter como uma das suas
premissas a afirmação de que em qualquer momento no passado a maioria das
teorias aceites foi falsa (de acordo com os padrões actuais). Mas é muito mais
difícil justificar esta afirmação com base em indícios históricos.
Em resposta a esta objecção, poder-se-ia defender que, para que o argumento
seja um repto ao realismo, a conclusão não precisa de ser que a maioria das
teorias actuais será substituída dentro de pouco tempo (Saatsi 2005). Ao
contrário, tudo o que o repto precisa é que se aceite a afirmação de que o êxito
empírico não é necessariamente um guia para a verdade, e esta afirmação é
compatível com a possibilidade de todas as teorias científicas actuais serem quer
empiricamente bem-sucedidas, quer verdadeiras, e nunca virem a ser
substituídas no futuro. Contudo, o argumento seria de certa maneira menos
convincente se os indícios indutivos não nos levassem a pensar que o que
aconteceu às teorias bem-sucedidas do passado acontecerá provavelmente às
teorias actuais.

Discussão: Qual é a premissa mais fraca no argumento a favor da meta-indução
pessimista?

Subdeterminação

Suponhamos que há duas teorias que são empiricamente equivalentes, ou seja,
que não diferem nas conclusões a que chegam a propósito de objectos e relações
observados. No que concerne à previsão, as duas teorias oferecem os mesmos
resultados, mas estes são explicados de uma maneira diferente pelas duas teorias,
uma vez que são postuladas entidades e relações inobserváveis diferentes.
O debate entre os apoiantes dos sistemas astronómicos copernicano e ptolemaico
no século xvi exemplifica esta situação — antes dos novos dados a favor do
sistema heliocêntrico se tornarem disponíveis. Ambas as teorias eram
compatíveis com as observações do movimento dos planetas e das luas, mas o
modo como as trajectórias destes corpos eram calculadas era muito diferente.
A explicação das psicopatologias é outro exemplo: antes de a neurociência
conseguir apresentar indícios de lesões cerebrais para pelo menos algumas das
patologias, havia um debate acalorado entre as explicações psicodinâmicas e as
explicações neuropsicológicas cognitivas. Consideremos a síndrome de Capgras
como um exemplo. Trata-se de um delírio no qual a pessoa afirma que um ente
querido foi substituído por um impostor. De acordo com as explicações
psicodinâmicas, a convicção de que a pessoa considerada (quase) idêntica ao
cônjuge não é o cônjuge deve-se a uma tentativa de conciliar sentimentos
negativos relativamente ao cônjuge com o sentimento de que seria errado não
amá-lo. De acordo com a explicação neuropsicológica cognitiva, a patologia
deve-se a lesões cerebrais no sistema de reconhecimento de rostos semelhantes.
Actualmente, este último modelo de explicação é o dominante; porém, antes de
terem sido disponibilizados indícios de lesões cerebrais em pessoas com a
síndrome de Capgras, os indícios por si só não discriminavam entre as duas
hipóteses.
A observação de que uma teoria tem teorias rivais empiricamente equivalentes
chama-se «subdeterminação indutiva» (Okasha 2002) ou «subdeterminação
fraca» (Devitt 2005). Uma formulação da tese da indeterminação indutiva é a de
que não há indícios efectivos no momento presente que possam ajudar-nos a
discriminar entre duas ou mais teorias empiricamente adequadas. Isto não exclui
que no futuro novos indícios possam fazer desequilibrar a balança, ajudando-nos
a escolher entre tais teorias (como aconteceu durante a revolução científica,
quando o sistema ptolemaico foi abandonado a favor do sistema copernicano, e
quando os dados da neurociência apoiaram o modelo neuropsicológico cognitivo
dos delírios).
Um pensamento mais radical é o de que nenhuns indícios possíveis poderão
alguma vez ajudar-nos a decidir entre duas ou mais teorias, pois,
independentemente da quantidade de dados que possamos recolher, as teorias
serão indistinguíveis em termos meramente empíricos. Este último tipo de
subdeterminação, muitas vezes chamada «subdeterminação forte», foi construído
como repto a algumas versões de realismo (Duhem 1969; Van Fraassen 1980;
Putnam 1983). Mas o que é, exactamente, o repto? A ideia é que se há duas
teorias empiricamente equivalentes, o realista não tem justificação quando nos
pede para nos comprometermos com a verdade de uma das teorias ou com a
existência das entidades e das relações postuladas por uma das teorias. O apelo à
subdeterminação obriga-nos a rever a relação entre a teoria e os indícios, uma
vez que a tese da subdeterminação sugere que mediante os indícios por si só não
podemos dizer se uma teoria é verdadeira. Tudo o que podemos determinar ao
considerarmos os indícios é se a teoria é empiricamente adequada.
Eis um exemplo (muito simplificado) retirado de estudos de etologia cognitiva e
psicologia comparada. Desde os anos 70, os primatólogos têm-se interessado por
saber se os primatas são capazes de interpretar o comportamento de outrem (dos
seus congéneres ou de um treinador humano, por exemplo) com base na
atribuição de estados mentais inobserváveis. Esta capacidade é frequentemente
referida como «teoria da mente». Não é surpreendente que os chimpanzés
consigam interagir num grupo e que isto requeira alguma coordenação. Mas o
que não é claro é se conseguem pensar que outros indivíduos têm crenças,
desejos, emoções, etc.
Foram feitos muitos estudos para determinar se o comportamento dos primatas é
a) um comportamento que responde apenas à observação de outros, ou se é b)
um comportamento que responde à observação do comportamento e dos estados
mentais de outros.
Há duas hipóteses dominantes neste debate: 1) os primatas respondem ao
comportamento e aos estados mentais de outros em algumas circunstâncias
(Tomasello e colegas); 2) os primatas não respondem aos estados mentais
subjacentes de outros (Povinelli e colegas). A questão que recentemente se tem
colocado no debate é se os dados até agora disponíveis podem discriminar entre
estas duas hipóteses. Poderemos concluir legitimamente que uma hipótese é
mais bem apoiada pelos indícios?
Se considerássemos o enorme e crescente repositório de dados sobre o
comportamento dos primatas, é pouco provável que as duas hipóteses fossem
igual e consistentemente apoiadas, mas focar-nos-emos numa única experiência
de extrema importância. No que respeita a esta experiência, temos um exemplo
de subdeterminação.
A experiência faz parte de um conjunto de estudos sobre a atenção e o
seguimento do olhar, e tenta determinar se os chimpanzés conseguem distinguir
os treinadores que os vêem dos que não vêem. Quando os chimpanzés querem
alguma coisa, usam um «gesto de súplica» natural que é um sinal visual. Se os
chimpanzés estivessem num recinto fechado com duas pessoas, uma de frente
para eles e outra virada para o outro lado, não os conseguindo ver, e se
dirigissem sistematicamente o seu gesto de súplica à pessoa que estava virada
para eles, isto seria considerado como uma prova de que entendiam «ver». A
experiência proporciona este resultado — que os chimpanzés se aproximam do
treinador que os vê quando pedem comida. Temos portanto um apoio prima fade
para a hipótese 1, de Tomasello e colegas, que diz que os primatas conseguem
responder aos estados mentais de outros (ao estado de ver, pelo menos) em
algumas circunstâncias.
Mas os apoiantes da hipótese 2 defendem que o resultado da experiência podia
ser igualmente bem explicado pelo facto de os chimpanzés saberem pela sua
experiência passada que os organismos que estão virados para eles têm maior
probabilidade de reagir ao seu gesto de súplica do que os organismos que não
estão virados para eles. Portanto, pode haver uma boa explicação para os
resultados da experiência que não precise de partir do princípio do que quer que
seja sobre a capacidade que os chimpanzés possam ter para responder aos
estados mentais de outros. Podiam estar simplesmente a responder a outros que
os olhavam de frente.
Eis um caso em que o resultado da experiência isolado de outros resultados não
parece ser suficiente para discriminar entre as duas hipóteses, podendo ser
igualmente bem explicado no sentido de primatas a responder a comportamento
e a estados mentais ou de primatas a responder apenas a comportamento. Isto
não significa que uma hipótese não possa ser preferida em relação a outra, mas
os critérios para esta preferência não serão critérios baseados em indícios. Se
acreditarmos que a parcimónia é uma virtude nas explicações teóricas,
poderemos aceitar uma recomendação geral para a escolha de teorias, segundo a
qual quando os indícios não favorecem uma hipótese em detrimento de outra,
devemos preferir a hipótese que nos dá a explicação mais simples ou que nos
compromete com a existência de menos objectos. Neste caso, é plausível que a
hipótese defendida por Povinelli e colegas seja escolhida como a mais
parcimoniosa, pois não precisa de nos comprometer com a ideia de que os
primatas podem ter uma teoria da mente. Mas até esta avaliação é passível de
discussão.

Exercício: Consegue dar outro exemplo para ilustrar a tese da subdeterminação
fraca?

A tese de Duhem-Quine

Há uma outra tese que sugere que mediante os indícios por si só não podemos
sequer saber se uma teoria é falsa, contrariamente às aspirações do
falsificacionismo de Popper. É a chamada tese de Duhem-Quine. Baseia-se na
observação de que quando testamos uma teoria, não a testamos completamente
isolada de outras hipóteses. Se a experiência dá um resultado que entra em
conflito com a previsão feita com base na teoria e nas hipóteses auxiliares usadas
para conceber a experiência, o cientista fica a braços com uma escolha difícil:
não pode rejeitar a teoria nem pôr em causa as hipóteses auxiliares. O que é
rejeitado como resultado da experiência não é determinado pelos indícios
empíricos, ficando à discrição do cientista.
Pensemos na tentativa de falsificar uma teoria T1 É impossível conceber uma
experiência cujo resultado possa ser previsto apenas com base em T1, pois a
instrumentação utilizada, por exemplo, também se baseará noutros pressupostos
teóricos (h1 e h2). O que o cientista está a testar não é apenas uma teoria, mas o
conjunto da teoria com as hipóteses envolvidas na concepção da experiência. Se
a observação não corresponde ao que o cientista previra, o conjunto da teoria e
dos outros pressupostos tem de ser falso, mas o cientista não sabe qual dos
conjuntos é responsável pelo insucesso empírico:

Premissa 1: T1 + h1 + h2 —» O

A conjunção da teoria e dos pressupostos permite-nos prever que um
determinado acontecimento vai ocorrer.

Premissa 2: Não-O

O acontecimento previsto não ocorre.

Conclusão: Não-[T1 + h1 + h2]

Temos então de concluir que a conjunção da teoria e dos pressupostos é falsa.
Mas será que é a teoria que tem de ser rejeitada ou os pressupostos? Como
podemos saber?
Eis um exemplo de como esta estratégia pode ser aplicada. Há um projecto na
psicologia cognitiva que consiste em descobrir se os seres humanos têm uma
competência de raciocínio que corresponde às normas do raciocínio correcto.
Este projecto de investigação consiste em testar as capacidades do raciocínio
humano pedindo aos participantes para resolverem tarefas cuja solução correcta
é determinada com base nas normas da lógica, da estatística, da probabilidade ou
da teoria da decisão. Se a maioria dos participantes falhar nas tarefas, a
conclusão é que a sua competência de raciocínio não corresponde às normas do
raciocínio correcto.
A tese que os psicólogos cognitivos querem testar nas experiências é: (T1) a
competência humana de raciocínio conforma-se às normas ão raciocínio
correcto. Eis dois dos pressupostos de que se tem de partir para fazer derivar a
falha de competência do insucesso na resolução das tarefas: (hl) as normas do
raciocínio correcto são dadas pela lógica, estatística, probabilidade e teoria da
decisão; (h2) os erros cometidos na tentativa de resolver as tarefas atribuídas
não são erros de desempenho.
Suponhamos que a experiência é realizada e que a maioria dos participantes não
consegue resolver as tarefas (T1 + h1 + h2 —> O e não-O). Será que esta
observação significa que esses participantes não têm uma competência de
raciocínio que corresponda aos padrões normativos do raciocínio correcto? Não,
significa apenas que a conjunção da tese e dos dois pressupostos é falsa (não-[T1
+ h1 + h2). Que conjunto rejeitamos é uma questão em aberto (e esta questão em
aberto deu origem ao debate sobre a racionalidade nas ciências cognitivas).
Podemos rejeitar a ideia de que a competência de raciocínio é inadequada
rejeitando a ideia de que a lógica, a estatística, a teoria das probabilidades e a
teoria da decisão proporcionam normas para o bom raciocínio, ou defendendo
que os erros se deveram a erros de desempenho.

Exercício: Consegue dar outro exemplo ao qual a tese de Duhem-Quine possa
ser aplicada?

Duhem não é completamente pessimista no que respeita às consequências da sua
tese para a fiabilidade do método científico, e defende que os cientistas podem
usar o seu «bom senso» para tomar as decisões necessárias. Quine (1951)
desenvolve uma tese holística com uma abrangência muito maior, segundo a
qual é o nosso conhecimento por inteiro que testamos sempre que interrogamos a
natureza. Nunca se pode mostrar que a nossa crença numa única hipótese é falsa
pela experiência por si só, pois é toda a teia de crenças que é sujeita a
confirmação ou infirmação de cada vez que experienciamos um novo fenómeno.
Depois, podemos escolher rejeitar uma ou mais crenças no sistema, e, de acordo
com Quine, devemos ser conservadores e desistir da crença cuja rejeição resulta
em menos alterações nas nossas crenças restantes. Para Duhem, dizer que o
sistema ptolemaico é falso não significa que foi falsificado pela experiência, mas
que não se adequa às outras hipóteses aceites tão bem como o sistema
copernicano. Não é compatível com a física newtoniana, por exemplo.
Resumindo, pode lançar-se um repto ao realismo com base na ideia de que os
indícios empíricos por si só não nos podem dizer se uma teoria é verdadeira (a
tese da subdeterminação) ou se é falsa (a tese de Duhem-Quine). O que podemos
dizer sobre as hipóteses que actualmente aceitamos é que, em conjunto com
outras hipóteses, nos permitem fazer previsões razoavelmente precisas.
Normalmente os realistas respondem de duas maneiras aos reptos lançados pela
tese da subdeterminação: ou negam que possa haver teorias incompatíveis que
apesar disso são empiricamente equivalentes, ou concedem que pode haver
teorias empiricamente equivalentes que são incompatíveis, mas defendem que se
pode fazer uma escolha entre as teorias com base noutra coisa que não a
adequação empírica.

Discussão: Haverá uma forma de realismo imune à tese da subdeterminação?

4.4 O debate sobre o realismo

Antes de avaliarmos os argumentos a favor do realismo, vejamos quais são as
posições alternativas. Apresentaremos três opções: o instrumentalismo,
caracterizado pela perspectiva semântica segundo a qual não se pode apurar o
valor de verdade das afirmações teóricas porque os termos teóricos que contêm
não têm referência; o empirismo construtivo, cuja principal alegação, de natureza
epistémica, é que não podemos ter justificação ao considerarmos as nossas
teorias científicas verdadeiras em vez de empiricamente adequadas, dado os
indícios de que dispomos; a atitude ontológica natural, baseada na rejeição tanto
do realismo como do anti-realismo, defendendo a ideia de que se as teorias
científicas são verdadeiras, são-no da mesma maneira que a percepção sensorial
vulgar.

4.4.1 Alternativas ao realismo

Instrumentalismo

A ideia que caracteriza o instrumentalismo na ciência é que as teorias são
instrumentos que empregamos para prever acontecimentos. Contra o realista, o
instrumentalista defende que enquanto as afirmações observacionais são
verdadeiras ou falsas, as nossas teorias não são nem verdadeiras nem falsas.
Aceitamos teorias não por serem verdadeiras, mas porque as suas previsões são
exactas. E podemos avaliar legitimamente a exactidão das suas previsões porque
podemos ver se as afirmações observacionais derivadas das nossas teorias são
verdadeiras.
Esta posição assenta numa distinção entre as afirmações teóricas (que não são
nem verdadeiras nem falsas) e as afirmações observacionais (que são verdadeiras
ou falsas). O que explica esta diferença? Porque é que a verdade das afirmações
teóricas não pode ser apurada?
De acordo com o instrumentalista, nenhuma afirmação que contenha termos
teóricos é verdadeira ou falsa porque os termos teóricos não referem. Os
instrumentalistas defendem que quando o significado de um termo não está
associado a algo observável, dependendo exclusivamente de uma descrição
teórica, o termo não tem referência. Um exemplo de uma posição
instrumentalista extrema (a perspectiva eliminativista) é a de Ernst Mach, que
acredita que os objectos físicos não são mais que feixes de sensações. Nesta
perspectiva, só as sensações são reais. A finalidade da ciência é postular ficções
convenientes que nos permitam identificar a maneira como as sensações se
relacionam umas com as outras, mas a verdade do conteúdo de afirmações sobre
átomos e outras entidades inobserváveis não pode ser determinada.

Exercício: Será que a plausibilidade do instrumentalismo depende de uma
explicação específica da referência?

Há várias modalidades de instrumentalismo, e, de acordo com a versão de Pierre
Duhem, as teorias científicas não têm como objectivo proporcionar explicação
alguma da realidade (a perspectiva anti-explicacionista). Em vez disso, o seu
objectivo é «salvar os fenómenos», eles serem compatíveis com os dados
disponíveis. A explicação está reservada para a metafísica. Para Duhem, as
hipóteses científicas não são afirmações sobre a natureza da realidade e não têm
valor de verdade. Por conseguinte, não deviam ser avaliadas em termos de
captarem correctamente a realidade ou de serem verdadeiras, mas apenas em
termos de serem convenientes. A conveniência é determinada pelas
consequências das hipóteses científicas se adequarem aos dados. Relembremos
os exemplos de subdeterminação fraca que explorámos antes.
Vimos que há um debate entre as explicações do comportamento dos primatas.
Estas explicações diferem porque não conseguem concordar sobre se os primatas
têm a capacidade de pensar sobre os estados mentais de outros. De acordo com o
instrumentalismo defendido por Duhem, não é importante que explicação
adoptamos, desde que possamos prever com êxito o comportamento dos
primatas com base nessa explicação. Isto porque não é suposto que a ciência dê
uma explicação sobre a razão por que o chimpanzé usa um certo gesto de súplica
com maior frequência quando o treinador o olha de frente.

Empirismo construtivo

Os empiristas construtivos concordam com os instrumentalistas no que respeita à
finalidade da ciência: não é suposto que as teorias científicas descrevam como as
coisas são na realidade, mas que assistam a experimentação, permitindo aos
cientistas formular perguntas claras e informar a concepção de experiências que
possam responder a essas perguntas. Se é para isto que as teorias servem, tudo o
que sobre elas podemos dizer quando não são refutadas é que são empiricamente
adequadas, mas não necessariamente verdadeiras.
A diferença entre o instrumentalismo e o empirismo construtivo é que, de acordo
com o primeiro, as afirmações teóricas não são avaliáveis como sendo
verdadeiras ou não, e, de acordo com o último, a verdade das afirmações teóricas
é avaliável, mas não temos justificação suficiente para afirmar que são
verdadeiras.
Porque não temos indícios suficientes para sustentar a verdade das teorias que
aceitamos? As razões para acreditar nas entidades não observáveis que uma
teoria postula residem nos resultados experimentais que podem ser acomodados
mediante o uso da teoria. Dizer que a teoria é verdadeira — em que «verdade»
significa algo além da adequação empírica — seria defender que, fora da prática
da ciência onde a teoria é usada, estamos comprometidos com a existência das
entidades postuladas pela teoria. Mas isto não faz sequer sentido, pois não é
possível descrever tais entidades sem fazer uso do vocabulário da teoria que
postula a sua existência (Van Fraassen 1980).
Nesta perspectiva, a aceitação de uma teoria não depende da verdade ou da
aproximação à verdade; ao contrário, tem uma dimensão pragmática. A partir do
momento em que se descobre que teorias concorrentes são quer consistentes,
quer empiricamente adequadas, outros critérios recomendarão qual delas deve
ser aceite, com base no papel pragmático que pode desempenhar na prática da
ciência.
Pensemos no nosso exemplo anterior da explicação das psicopatologias em
termos das teorias psicodinâmicas ou no âmbito do enquadramento
neuropsicológico cognitivo. Ambos os tipos de explicação requerem que se
postulem entidades não observáveis, tais como desejos reprimidos e motivos
inconscientes, ou lesões no lobo frontal de um cérebro humano, que só podem
ser «observadas» mediante instrumentação complexa teoricamente impregnada
(como as imagens por ressonância magnética, por exemplo). De acordo com o
empirismo construtivo, não teríamos justificação ao afirmar que qualquer das
duas explicações é verdadeira ou é a correcta com base nos dados empíricos por
si só, pois a única afirmação que pode ser justificada em termos empíricos é uma
afirmação de adequação empírica. Escolheremos a explicação que melhor se
adeqúe às observações que podemos fazer sobre o comportamento de indivíduos
delirantes e, se forem ambas aceitáveis nesses termos, faremos uma escolha com
base noutros critérios (se a explicação se adequa a uma concepção materialista
da mente que temos razões independentes para preferir, por exemplo).

Exercício: Será que a própria ideia de empirismo construtivo ficaria
comprometida se a distinção entre entidades observáveis e não observáveis fosse
enfraquecida?

NOA: O realismo não passa de um bater com o pé metafísico

Arthur Fine afirma que se deve resistir aos argumentos a favor do realismo e do
anti-realismo, defendendo uma posição intermédia a que chama a Atitude
Ontológica Natural (Natural Ontological Attitude), cuja ideia-chave é que devíamos
considerar as verdades científicas como consideramos as verdades quotidianas
da experiência dos sentidos, pois as teorias científicas não nos dizem melhor o
que é a natureza profunda da realidade.
Fine considera dois argumentos a favor do realismo e defende que ambos são
fracos. Um deles diz que não pode ser coincidência que num qualquer momento
na história da ciência apenas um pequeno número de teorias seja considerado
plausível, e que as teorias sucessoras das teorias do passado se lhes assemelhem
(o argumento do punhado [«Small handful argument» no original]). Para o realista, isto é
uma prova de que as teorias do passado e do presente se aproximam da verdade
e não são apenas conjecturas com o propósito de acomodar os dados de uma
maneira coerente. Mas Fine responde que os anti-realistas também podem
explicar a coincidência: os elementos da teoria aceite no passado que são
responsáveis pela obtenção de previsões exactas são conservados, e são
acrescentadas novas hipóteses à porção empiricamente bem-sucedida da teoria
para se fazer novas previsões. Este método pode aumentar a adequação empírica
sem conduzir necessariamente à verdade.
O outro argumento realista que Fine rejeita é o de que por vezes as previsões
bem-sucedidas são feitas com base na conjunção de duas teorias aceites. O
argumento realista sugere que este fenómeno pode ser facilmente explicado se
acreditarmos que ambas as teorias são verdadeiras dado que a sua conjunção
também o será, mas não pode ser satisfatoriamente explicado se considerarmos
que as teorias são apenas empiricamente adequadas, pois não há razão alguma
para acreditarmos que a sua conjunção também o será. Fine não se deixa
convencer por este argumento. Ainda que a conjunção das hipóteses verdadeiras
seja também verdadeira, é por de mais plausível (dadas as considerações sobre a
meta-indução pessimista) que as nossas teorias sejam apenas aproximadamente
verdadeiras e não verdadeiras. Se assim for, então não temos razão alguma para
acreditar que a conjunção de hipóteses aproximadamente verdadeiras também
será aproximadamente verdadeira. Fine conclui que o realista sensato não pode
ser bem-sucedido ao fazer uso deste argumento.

Discussão: Será que a posição de Fine difere do empirismo construtivo?

4.4.2 A defesa do realismo

O realismo é frequentemente apresentado como a atitude do senso comum, a
adoptar acriticamente por defeito. Porém, os argumentos a favor do realismo
pleno têm sido considerados insatisfatórios porque não parecem apoiar a
alegação de que as teorias actuais são verdadeiras ou aproximadamente
verdadeiras, em vez de apenas empiricamente adequadas. Sob pressão dos reptos
anti-realistas, os realistas desenvolveram defesas sofisticadas da sua posição.
Consideremos o argumento clássico da ausência de milagres. A estrutura simples
deste argumento é uma inferência a favor da melhor explicação. Queremos
explicar o êxito esmagador e incontroverso da ciência. O realismo proporciona
uma explicação para o êxito da ciência: as nossas teorias científicas actuais são
verdadeiras e os seus termos teóricos têm referência, sendo por isso que as
previsões que fazemos com base em tais teorias são exactas. Contudo, não é
completamente claro porque é que a afirmação de que as teorias científicas são
verdadeiras deve proporcionar uma explicação para o êxito da ciência que não
esteja já disponível mediante a mera aceitação de tais teorias (Bird 1998).
Aceitar uma teoria não envolve necessariamente a crença de que ela é
verdadeira, mas sim a crença de que é apoiada pelos indícios disponíveis e pode
ser usada de uma maneira frutífera num dado programa de investigação.
Haverá uma forma de realismo que faça alguma concessão aos argumentos anti-
realistas e que no entanto resista às suas conclusões? Em seguida passaremos em
revista duas abordagens possíveis ao realismo moderado: o realismo estrutural e
o realismo interno.

Realismo estrutural

Os argumentos contra o realismo apontam para a tese de que as teorias
científicas podem descrever a natureza da realidade. Tais argumentos ganham
credibilidade a partir da observação do fracasso de teorias científicas do passado.
John Worrall (1989) defendeu que há uma versão de realismo aberta àqueles que
têm dificuldade em acreditar na existência dos electrões e dos quanta, e
consegue sobreviver aos reptos dos anti-realistas. E o realismo estrutural, a
perspectiva segundo a qual na ciência madura as teorias captam as relações entre
os fenómenos que tentam explicar mesmo quando não conseguem captar a sua
natureza. De acordo com Worrall, esta é a perspectiva que muitos filósofos
considerados anti-realistas ou instrumentalistas (como Duhem e Poincaré, por
exemplo) sempre tinham tido em mente.
A perspectiva assenta na distinção entre estrutura e conteúdo: relativamente ao
conteúdo, é verdade que teorias do passado se revelaram falsas, dado que hoje se
pensa que algumas das entidades teóricas que postulavam não existem; todavia,
o que foi retido das teorias do passado foram as relações formais
(frequentemente expressas em termos matemáticos) entre as entidades
postuladas (Psillos 1999). Isto é compatível com uma versão fraca do argumento
da Ausência de Milagres, uma vez que explicaria parcialmente por que razão até
as teorias do passado que foram rejeitadas eram até certo ponto empiricamente
adequadas, mas provaria menos do que o argumento da Ausência de Milagres,
uma vez que não se comprometeria com a tese de que os termos teóricos das
teorias científicas actuais referem com sucesso.
O exemplo usado por Worrall é o da teoria da luz e da mudança da teoria da
partícula de Fresnel para a teoria da onda de Maxwell. Fresnel pensava que a
luz era conduzida por via de um sólido elástico, ao passo que Maxwell
acreditava que era transportada por ondas num campo electromagnético. Embora
discordassem no que respeita à natureza da luz, formularam leis que são
formalmente muito semelhantes, o que poderá explicar o facto de a teoria de
Fresnel conseguir prever com exactidão muitos fenómenos ópticos observáveis.
A ideia é que, ao sermos realistas estruturais, conseguimos explicar a
continuidade que detectamos mesmo em teorias que precedem e sucedem uma
revolução científica, e, por conseguinte, conseguimos explicar o facto de o êxito
das previsões feitas com base em teorias falsas não ser um milagre.
O problema desta explicação é que precisamos de uma boa justificação para a
alegação de que numa teoria científica é sempre possível distinguir o seu
conteúdo (que pode não ser conservado em teorias futuras) e a sua estrutura (que
é mais provável que seja conservada).

Exercício: Haverá outros exemplos de mudança de teorias em que a alteração
pode ser considerada uma alteração de conteúdo e não uma alteração de
estrutura?

Realismo interno

Hilary Putnam (1983) apresenta uma outra solução de compromisso para a
oposição radical entre realistas e anti-realistas ao defender que é vão falar de
objectos que existem independentemente de como fraccionamos
conceptualmente a natureza. Putnam quer distanciar-se do realismo (metafísico)
pleno porque pensa que isso levaria a tentar reduzir a existência dos objectos de
tamanho médio — como as árvores e as cadeiras — a objectos mais
fundamentais descritos, digamos, pela física contemporânea, e, por
consequência, a afirmar que os objectos de tamanho intermédio não são reais.
Por outro lado, rejeita o instrumentalismo e o empirismo construtivo porque
pensa que as cadeiras e os electrões têm o mesmo estatuto, e que as entidades
postuladas pelas teorias aceites não são menos reais que as entidades
observáveis.
As perguntas «Quantos objectos existem?» e «Que objectos existem?» não
podem ser respondidas independentemente dos nossos conceitos de «objecto» e
de «existência», e, neste sentido, há diferentes versões, diferentes descrições da
realidade. A nossa resposta à primeira pergunta variará consoante estivermos a
contar moléculas ou móveis numa sala: dado que nós determinamos o que um
objecto é, não faz grande sentido perguntar se os objectos existem
independentemente de nós. Para o realista científico, só os objectos
fundamentais como os descritos pela física existem, e os objectos que nos são
visíveis são apenas projecções das nossas mentes; para o anti-realista, só o que
vemos é real e as entidades postuladas pelas teorias físicas para explicar os
acontecimentos observáveis são ficções.
Para Putnam, tanto o que vemos como o que não vemos é real no âmbito do
esquema conceptual em que operamos. Porém, também se quer distanciar do
relativismo. Dizer que os nossos conceitos determinam a resposta à pergunta
sobre quantos objectos existem não significa que concordemos por convenção
numa resposta, e que a nossa resposta seja tão boa como qualquer outra. Ao
invés, são os nossos conceitos que determinam a maneira com contamos
objectos, mas a resposta à pergunta sobre quantos objectos existem ainda tem de
ser «descoberta».

Exercício: Identifique as semelhanças e as diferenças entre a NOA de Fine e o
realismo interno de Putnam.

Resumo
Neste capítulo considerámos algumas questões que emergem da linguagem da
ciência, em particular como os termos para as categorias naturais obtêm o seu
significado e referência, e se os termos teóricos têm referência. Estas questões
transcendem a semântica: a teoria causal da referência convida-nos a ver a
ciência como a disciplina que descobre a essência dos constituintes fundamentais
da realidade, ao passo que a teoria descritivista se interessa mais pelo modo
como os nossos conceitos são um guia para a referência. As descrições
associadas às categorias naturais não precisam de revelar quaisquer propriedades
essenciais. Da mesma maneira, a questão sobre se os termos teóricos conseguem
referir tem implicações na questão sobre se os cientistas que apoiam teorias
rivais podem comunicar com êxito, e na tese de que as teorias científicas
apreendem a natureza verdadeira e profunda da realidade.
Se de facto os termos teóricos referem, então as afirmações teóricas que os
contêm são ou verdadeiras ou falsas. Se são verdadeiras, descrevem como as
coisas são, e são mais do que um instrumento útil de previsão. Mas o anti-
realista põe em causa o pressuposto filosófico de que a ciência é o caminho para
o nosso conhecimento da realidade e defende que as teorias desempenham um
papel mais limitado. Vimos que há uma série de posições moderadas entre o
realismo pleno e o anti-realismo que tendem a relativizar as afirmações sobre a
realidade a factos sobre o nosso científicas captam como as coisas são, mas não
melhor do que a nossa conversa corriqueira sobre cadeiras e mesas.
A relação entre a linguagem e a realidade é muito complexa, e limitámo-nos a
aflorá-la. Contudo, esta breve introdução à bibliografia existente sobre o
realismo científico é necessária para compreender as questões levantadas pela
análise da mudança científica e da sua racionalidade, e para avaliar como
contribuem para a definição do papel da ciência na sociedade.

Cenas dos próximos capítulos
A maneira como perspectivamos a linguagem da ciência, em especial a questão
da referência dos termos teóricos, bem como o debate sobre o estatuto das
teorias científicas, são essenciais para explicar a mudança e o progresso
científicos. No próximo capítulo veremos se a escolha de uma teoria é baseada
em critérios objectivos e se o progresso pode ser considerado cumulativo, tendo
em conta as mudanças conceptuais radicais na história da ciência.

Questões para pensar
1. Será que as afirmações teóricas da física newtoniana podem ser reformuladas
no âmbito da teoria da relatividade?
2. A que tipo de termos o descri ti vismo se adequa melhor?
3. Haverá uma diferença substancial entre as posições de um empirista
construtivo e um realista moderado?
4. Poderemos ser essencialistas no que respeita às categorias sociais? O que fixa
a extensão de termos para categorias sociais como «raça», «fome»,
«feudalismo», «género» ou «revolução»?
5. Considera que as experiências mentais (como a Terra Gémea de Putnam) têm
um papel útil a desempenhar na justificação de posições filosóficas? Identifique
algumas vantagens e desvantagens do uso de experiências mentais.
6. De que modo o realismo interno é diferente do relativismo conceptual?

Leituras complementares
A bibliografia sobre o significado e a referência no que respeita aos termos para
categorias naturais é vasta, e levá-lo-á a explorar a dimensão tanto
epistemológica como metafísica do debate entre o descritivismo e a teoria causal
da referência. Um bom ponto de partida é o artigo fundamental de Hilary
Putnam, «The Meaning of 'Meaning'», no qual o cenário da Terra Gémea é
analisado com algum pormenor. Em Kripke (1980) encontrará o enquadramento
filosófico subjacente à ideia da designação rígida e do baptismo, que será útil
para uma análise do essencialismo. Para uma aplicação destas ideias à ciência,
ver Bird (2007), LaPorte (2004) e Dupré (1981).
Para mais pormenores sobre os vários desenvolvimentos da ideia da
incomensurabilidade, pode começar por ler Kuhn (1962,1970, capítulo 11) e
Feyerabend (1975). Para críticas a esta ideia quanto à sua aplicação à mudança
de referência dos termos teóricos, ver Devitt (1979) e Field (1973). As
implicações da incomensurabilidade no progresso serão discutidas no próximo
capítulo.
Para uma excelente introdução ao debate entre realistas e anti-realistas na
ciência, ver Bird (1998, capítulo 4) e Papineau (1996). Van Fraassen (1980)
constitui o manifesto do empirismo construtivo, e Fine (1984) oferece um
compromisso interessante entre realismo e anti-realismo. Para uma perspectiva
realista, ver Boyd (1990).
Se quiser saber mais sobre a chamada tese de Duhem-Quine e sobre as suas
implicações na refutabilidade das teorias e no realismo científico, pode começar
com uma colectânea de artigos sobre o assunto, Harding (1976), e ler Lakatos
(1978, apêndice à parte I).

5. Racionalidade





O êxito da ciência é muitas vezes celebrado como a mais extraordinária
conquista humana. Contudo, vimos que é difícil assinalar o que a ciência tem de
especial: as generalizações indutivas subjacentes à prática da ciência são falíveis;
o método usado pelas ciências não pode ser facilmente explicado de uma
maneira única e distintiva; uma teoria científica não tem de ser verdadeira nem
de nos apresentar uma descrição precisa da realidade para receber confirmação
empírica, para ser empregue na explicação ou para funcionar como um
instrumento de previsão eficaz. À luz destes debates, a questão de saber se temos
justificação ao atribuirmos à ciência um estatuto privilegiado no seio de outras
práticas humanas torna-se ainda mais premente. Mas antes de podermos
responder a esta questão, temos mais duas outras para resolver: será que a
ciência evolui de uma maneira progressiva? Será a mudança na ciência guiada
por princípios racionais?
Mesmo se formos realistas no que respeita às teorias científicas e acreditarmos
que as entidades e as relações postuladas pelas teorias científicas actuais existem
realmente, a natureza do progresso em ciênciaobriga-nos a reconhecer que há
teorias que foram aceites no passado e que já não são consideradas verdadeiras, e
que postulavam a existência de entidades ou relações que hoje pensamos nunca
terem existido. Como podemos confiar que as nossas teorias actuais são
realmente melhores do que as anteriores, e não meramente diferentes? Será que a
escolha da teoria a adoptar pode ser apoiada por argumentação racional? Quando
uma comunidade científica destitui uma teoria e adopta outra, muitas vezes isto
acontece mediante um processo gradual de mudança que há muito os filósofos
da ciência tentam compreender usando modelos concorrentes.
As questões sobre se a mudança científica é racional e se o progresso é
cumulativo têm constituído o objecto do debate tradicional entre racionalistas e
historicistas, e têm sido tratadas em conjunto com outras questões, tais como a
referência dos termos teóricos que já não usamos, a finalidade da ciência, a
capacidade dos cientistas para comunicar eficazmente com os que defendem
teorias concorrentes, e a pluralidade de estilos de raciocínio que caracterizam as
investigações humanas sobre a natureza. Se pensamos que a teoria que hoje
aceitamos está mais próxima da verdade (ou é mais adequada empiricamente) do
que a anterior e que consegue explicar mais factos de uma maneira mais
satisfatória e abrangente, tenderemos a considerar a mudança da teoria anterior
para a teoria actual como um exemplo de progresso, um progresso baseado nos
princípios racionais da escolha de teorias.
Os racionalistas retratam a mudança exactamente nos seguintes termos: a
comunidade científica avança com base em argumentação sólida sustentada por
indícios empíricos sólidos. De acordo com eles, o estilo de raciocínio promovido
pela ciência, modelado pelo método científico, é o estilo que mais contribui para
o conhecimento. Os historicistas, porém, cuja análise é inspirada pela análise
pormenorizada de episódios específicos da história da ciência, sublinhando a
complexidade dos factores que frequentemente se vem a saber determinarem a
mudança das teorias actuais, comparam provocatoriamente a substituição de uma
teoria dominante num domínio da investigação a uma conversão religiosa. A
comunidade científica não é um agente racional colectivo que pesa as razões a
favor e contra teorias concorrentes de uma maneira objectiva. Ao contrário,
divide-se entre a sua atitude conservadora natural, que encoraja os cientistas a
conservar as teorias existentes, e a pressão resultante da constatação de que as
teorias existentes podem ter deixado de se adequar satisfatoriamente aos dados.
Neste contexto, a escolha de uma teoria em detrimento das teorias concorrentes
não é sempre defendida com base em argumentos puramente racionais. O
compromisso com a verdade ou a eficácia da teoria escolhida é um acto de fé da
comunidade científica (ou de parte da comunidade científica) em alguns
pressupostos metafísicos e metodológicos, e não uma consequência do juízo de
que a teoria escolhida é superior às suas concorrentes no que respeita a indícios
neutros e padrões objectivos.
Para tornar o debate sobre a mudança científica ainda mais complexo, os
historicistas vêem o papel dos indícios empíricos na mudança de teorias de uma
maneira diferente. Para o historicista, não podemos discriminar facilmente entre
teorias rivais baseando-nos apenas nos dados, uma vez que estes nunca são
apresentados de uma maneira completamente neutra e podem ser interpretados
como apoiando uma ou outra das teorias incompatíveis. O racionalista pode
concordar que os dados por si só não são sempre suficientes para discriminar
entre teorias rivais (relembremos a tese de Duhem-Quine que discutimos no
capítulo anterior), mas insiste que há critérios objectivos para a escolha de
teorias que nos permitem considerar a mudança como um exemplo de progresso.
No final deste capítulo estará habilitado a:

• Identificar os factores relevantes numa explicação filosófica sobre a mudança
científica.
• Listar e comparar critérios possíveis para a escolha de teorias, bem como
avaliar a alegação de que alguns critérios são mais importantes que outros.
• Distinguir e avaliar as perspectivas racionalista e historicista sobre a mudança e
o progresso.
• Identificar as implicações da tese da incomensurabilidade na ciência em geral e
na noção de progresso cumulativo em particular.
• Examinar criticamente várias interpretações da tese de que a ciência é racional.

5.1 Revoluções

De acordo com a obra pioneira de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas,
o processo da mudança científica pode ser afectado por uma série de factores
diversos e por pressões tanto internas como externas à comunidade científica.
Como o racionalista, Kuhn reconhece que uma nova teoria é em parte adoptada
porque é confirmada por dados relevantes (por vezes, obtém a sua vantagem
com base no seu êxito nas chamadas experiências cruciais), e que as novas
hipóteses propostas têm de ser capazes de explicar fenómenos anteriormente
recalcitrantes. Mas a confirmação e o poder explicativo cada vez maior nunca
são suficientes, por si só, para explicar a mudança: também temos de estar
atentos à maneira como a comunidade científica evolui; a que pressões está
sujeita por parte das autoridades políticas ou religiosas ou da sociedade em geral;
à hierarquia e organização internas da comunidade científica, incluindo os
princípios metodológicos da investigação científica, a formação dos novos
praticantes, o sistema de recompensas e punições, e o conjunto de problemas que
é suposto a disciplina enfrentar e solucionar.

5.1.1 Revoluções kuhnianas

Kuhn pensa que uma consideração apropriada destes factores torna muitas vezes
mais difícil, se não mesmo impossível, comparar duas teorias concorrentes em
termos objectivos. Só depois de termos avaliado a perspectiva de que as
tradições teóricas concorrentes podem por vezes ser incomensuráveis é que
estaremos em condições de determinar em que medida o progresso científico
pode ser cumulativo. Kuhn (1962, 1970) compara a mudança radical à queda
súbita de um governo, a um golpe de Estado. A analogia com a política implícita
no termo «revolução» não é casual. Kuhn acredita que, em qualquer momento na
ciência madura, uma comunidade científica é dominada por uma teoria principal
que só é derrotada quando a tensão entre a teoria e os indícios científicos
provoca uma crise de confiança na teoria no seio da comunidade, e quando são
disponibilizadas alternativas plausíveis.
Numa revolução científica, a comunidade científica é atingida por uma mudança
que é muitas vezes radical e multifacetada, e, como resultado, passa a dominar
uma teoria alternativa. De acordo com Kuhn, e como veremos, a combinação de
factores políticos e sociais e a falta de êxito empírico de uma teoria provoca uma
mudança científica, e muitas vezes a mudança envolve uma alteração radical na
linguagem — com a introdução de novos conceitos ou com uma mudança nas
descrições associadas à terminologia antes usada. Durante uma revolução
científica não é só a teoria dominante que é derrubada: as ideias metafísicas, os
princípios da metodologia e outros aspectos da prática científica são todos
submetidos a uma revisão. O termo «revolução» sugere que há uma forte
descontinuidade entre o período prée pós-revolucionário — o que significa que o
termo é mais adequado para descrever alguns, mas não todos, casos de mudança
científica.

Discussão: Acha que a analogia entre as revoluções políticas e as mudanças
radicais na ciência é convincente?

Exercício: Compare a Revolução Francesa no século XVIII Com a Revolução
Copernicana e anote as desanalogias relevantes.

Em A Lógica da Descoberta Científica (O título da edição original de 1934, em alemão, é
Logik der Forschung, e o significado literal deste último termo é «investigação». Mas em 1959, já em
Inglaterra, Popper reescreveu partes importantes do livro em inglês, tendo sido publicado com o título The
Logic of Scientific Descovery. A tradução do livro para outras línguas não tem sido convergente. Por
exemplo, a tradução brasileira [Cultrix] para português intitula-se Lógica da Pesquisa Científica, ao passo
que a italiana [Einaudi] se intitula Logica delia Scoperta Scientifica, a francesa [Payot] La Logique de la
Découverte Scientifique e a espanhola [Editorial Tecnos] La Lógica de la Investigación Científica .- N. do
R.) e Conjecturas e Refutações, Popper apresenta um retrato muito diferente da
mudança científica. A mudança é ditada pelas condições sob as quais uma teoria
é refutada. Quando se demonstra que as previsões feitas com base na teoria
entram em conflito com os dados disponíveis, os cientistas têm de procurar
noutro lado e adoptar uma teoria alternativa que tenha pelo menos a mesma
porção de conteúdo empírico que a teoria falsificada, mas que ainda não tenha
sido falsificada. Neste retrato, a teoria muda, mas o resto não muda grande coisa.
Ambas as teorias, a nova e a velha, dão resposta aos mesmos problemas e são
testadas de acordo com os mesmos critérios. Nos termos da analogia com a
esfera política, a mudança científica descrita por Popper não é uma revolução,
mas sim a formação de um novo governo que foi regularmente eleito através de
um processo democrático e vai manter a mesma Constituição.

5.1.2 Os racionalistas

Popper distingue três requisitos para o aumento do conhecimento. Uma nova
teoria deve: (a) partir de uma ideia simples e poderosa que ligue factos que
anteriormente não estavam relacionados; (b) ser testável independentemente; (c)
passar em testes novos e rigorosos. Os dois primeiros são requisitos formais de
originalidade e testabilidade. Quanto ao último, a teoria que vai ser aceite tem de
ser genuinamente nova e não explicar apenas o fenómeno que foi concebida para
explicar, mas também conduzir à previsão de outros fenómenos.
Enquanto sucessão de teorias que se aproximam cada vez mais da verdade, o
progresso é considerado por Popper (1975) como o modo pelo qual a espécie
humana se adapta ao seu meio. Quando adoptamos uma nova teoria, fazemo-lo
porque isso resolve alguns problemas que não tínhamos sido capazes de resolver
ao aplicar a teoria anterior. Contudo, a adopção de uma nova teoria cria novos
problemas que têm de ser enfrentados, e de facto enfrentamo-los testando mais a
teoria, numa tentativa de eliminar erros. Isto implica que há elementos tanto
conservadores como revolucionários na mudança de teorias: a nova teoria é
revolucionária na medida em que tem de entrar em conflito com a predecessora
de uma maneira significativa (e ajudar a resolver problemas que não foram
resolvidos antes); mas é também conservadora, pois tem de explicar a razão por
que a sua predecessora funcionava (pelo menos até certo ponto). Nesta
perspectiva, o progresso é cumulativo: a nova teoria tem de ser considerada um
aperfeiçoamento da predecessora, e por conseguinte tem de ser possível a
comparação entre as duas teorias.

Exercício: Consegue inferir a partir desta breve descrição da abordagem de
Popper se ele vê o progresso como um processo racional?

Popper quer distinguir a racionalidade do cientista que faz uma descoberta ou
testa uma teoria da racionalidade do progresso científico. O agente pode fazer
uma escolha baseada numa intuição que não pode ser racionalizada com base nas
regras metodológicas da prática científica, mas nem por isso a racionalidade do
progresso científico é comprometida. Para Popper, os indícios da história de
episódios específicos da ciência são pouco relevantes para a avaliação da
racionalidade do progresso científico: as revoluções científicas podem fazer-se
acompanhar de revoluções ideológicas quando a descoberta que é o foco da
atenção da comunidade científica parece apoiar ou entrar em conflito com uma
maneira de pensar, um dogma religioso ou a visão do lugar da humanidade na
natureza, por exemplo. Porém, o confronto de ideologias não é uma afecta a
racionalidade do processo a que a comunidade científica está a ser sujeita.
Popper reconhece a existência de factores psicológicos, sociológicos e
ideológicos que podem influenciar a prática científica, mas defende que estes
factores podem e devem ser separados de uma análise da mudança científica, e
que não devem afectar o nosso juízo da racionalidade do progresso.
Larry Laudan (1987) é mais céptico no que respeita à ideia da racionalidade do
progresso científico poder ser avaliada independentemente da racionalidade da
escolha de cientistas individuais. Laudan pondera se há continuidade entre as
metodologias científicas ao longo da história da ciência, e se estes elementos de
continuidade ou descontinuidade são consistentes com a ideia de que a mudança
na ciência opera de acordo com princípios racionais. Será possível concebermos
uma descrição coerente da metodologia científica nos termos dos princípios da
agência racional seguida pelos cientistas que contribuíram em grande medida
para o avanço das suas disciplinas?
Laudan defende que o projecto de se chegar a uma noção unificada do método
científico com base em indícios históricos é mal avisado, porque qualquer juízo
de racionalidade envolve uma consideração precisa da natureza das acções
efectuadas, dos objectivos e das intenções do agente ao agir assim, bem como
das crenças de base do agente sobre as possíveis consequências das acções
realizadas. Quando avaliamos a racionalidade dos métodos adoptados pelos
cientistas no passado, encontramos diferenças importantes entre os objectivos e
crenças de base do agente e as nossas, não só porque o corpo de conhecimento
partilhado aumentou, mas também porque as crenças relevantes sobre a
metodologia mudaram — sobre quais os objectivos da investigação científica e
qual a melhor maneira de os atingir, por exemplo. A falta de continuidade nas
crenças sobre os fins e os meios da ciência não é per se uma prova de
irracionalidade, mas de facto sugere que a mudança científica envolve algo mais
do que a substituição de uma teoria por outra, e que também conduz a inovações
metodológicas.
Consideremos o debate psicológico sobre a fiabilidade dos relatos introspectivos
e o seu papel num projecto científico legítimo. Antes do behaviorismo, os
psicólogos estavam interessados na experiência consciente, fazendo uso dos
relatos introspectivos como uma maneira fiável de aceder à mesma (ainda que
discordassem relativamente ao que era considerado um relato introspectivo).
Com o surgimento do paradigma behaviorista, o comportamento passou a ser o
foco da investigação científica e a sua observação substituiu o registo dos relatos
introspectivos como o meio para recolher indícios sobre o objecto de estudo. A
questão sobre se a introspecção é um meio de obter conhecimento relevante
depende de facto do que se considera ser a finalidade da psicologia científica. Os
relatos introspectivos podem ser uma importante fonte de indícios para a
psicologia descritiva e para as explicações fenomenológicas da experiência.
Contudo, aceitá-los sem os questionar não parece ser proveitoso para investigar
aspectos da psicologia cognitiva e social, uma vez que não são um guia fiável
para a identificação do tipo de razões que levam as pessoas a agir de uma certa
maneira. Isto deve-se ao fracasso generalizado do autoconhecimento patente nos
relatos introspectivos, e à prática comum de racionalizar os próprios
pensamentos e acções para dar uma imagem coerente de si mesmo. Titchener
(1912) apresenta uma boa discussão sobre a legitimidade da introspecção quando
acontece uma mudança de paradigma.

Exercício: Consegue dar outro exemplo de uma mudança metodológica na
história de uma ciência?

Laudan acaba por propor a adopção de uma concepção naturalizada de
metodologia científica na qual uma estratégia é considerada fiável quando é
usada para atingir determinados objectivos a partir de determinadas crenças de
base. A análise é naturalizada porque as regras metodológicas são tão sujeitas
aos indícios como as teorias, podendo ser revistas ou modificadas consoante os
mesmos. Um exemplo de uma regra deste tipo é: «Para chegar à formulação de
teorias fiáveis, evite modificações aã hoc das teorias que está a ter em conta.» A
eficácia desta estratégia pode ser testada com base nas consequências da sua
adopção e no grau de progressismo da prática da ciência quando cumpre esta
regra.
Laudan parece situar-se entre as posições de Popper e Kuhn. De certa maneira,
Kuhn está certo: as teorias não são a única coisa que muda quando acontece uma
revolução científica. Por outro lado, as análises históricas da mudança científica
e a observação da mudança de métodos e objectivos na pesquisa científica não
são contrários nem à racionalidade nem ao progresso.

Discussão: Qual é o terreno comum das análises do progresso de Popper e de
Laudan?

5.2 Mudanças de paradigma

Antes de podermos começar a descrever com maior pormenor o processo da
mudança de teoria a que Kuhn chama «revolução científica», temos de introduzir
alguma terminologia, e em especial definir «ciência normal», «paradigmas» e
«anomalias». Em seguida, nos dois próximos subcapítulos, ilustraremos o modo
como as revoluções funcionam, usando o exemplo da revolução química.
De acordo com Kuhn, a maioria da prática científica caracteriza-se por ser
ciência normal. A ciência normal é um período no qual a investigação científica
no âmbito de uma disciplina se propõe identificar que factos são importantes e
precisam de ser explicados; verificar se os factos observados se adequam à teoria
dominante; desenvolver a teoria, alargando o seu poder explicativo e preditivo a
novas áreas de investigação, por exemplo. Nos períodos de ciência normal, os
investigadores consolidam a teoria e operam de uma maneira conservadora no
âmbito de um paradigma.
O paradigma é um sistema que não inclui apenas afirmações teóricas aceites,
mas também: crenças de base (frequentemente de uma natureza metafísica ou
ideológica); um conjunto de critérios mediante os quais os cientistas avaliam
hipóteses (correcção, consistência, simplicidade, etc.); estratégias para formular
e testar novas hipóteses; modelos para a solução de problemas que possuem
valor metodológico e que também são usados em contextos educacionais, ou
seja, para formar os jovens cientistas na disciplina.
Quando as expectativas da comunidade científica no que respeita à adequação da
teoria dominante aos factos observados são goradas e a teoria não parece ser
confirmada pelos dados, Kuhn fala na existência de anomalias. Encontrar
anomalias não condena por si só uma teoria; porém, se as anomalias se
acumulam e enfraquecem a confiança que os cientistas depositam nos poderes,
explicativo e preditivo da teoria, segue-se um período de crise. Durante a crise, a
rotina da ciência normal altera-se, e é adoptada uma atitude mais crítica no que
respeita à teoria dominante. Estes períodos de crise antecipam frequentemente
uma revolução.

5.2.1 A «descoberta» do oxigénio

O próprio Kuhn usa a revolução química como exemplo de como a mudança
científica ocorre. A revolução química é caracterizada por uma nova explicação
teórica da combustão, pela rejeição da teoria do flogisto e pela descoberta do
oxigénio. É frequentemente apresentada como a contraposição de dois cientistas:
Joseph Priestley (1733-1804), defensor da teoria do flogisto, e Antoine-Laurent
Lavoisier (1743-94), o primeiro a identificar o papel do oxigénio na combustão e
na respiração.
Ainda que os primeiros resultados de Lavoisier apontassem no sentido da
rejeição da explicação aceite da combustão e da calcinação, é provável que ele
próprio não pensasse que eram incompatíveis com a teoria do flogisto. Saber
exactamente quando Lavoisier abandonou a teoria do flogisto permanece uma
questão em aberto, mas é certo que hesitou no início das suas investigações.
Uma consciencialização gradual conduziu-o à fase de maturidade da teoria do
oxigénio, que alterou a explicação de muitos fenómenos na química.
Ainda que o mérito da teoria caiba indubitavelmente a Lavoisier, a ideia de que
«descobriu» o oxigénio não é incontroversa. Por um lado, introduziu
correctamente a noção de oxigénio para explicar os resultados experimentais que
obteve, mas não foi o primeiro a efectuar tais experiências e a obter tais
resultados. A novidade consistiu meramente na sua interpretação dos resultados.
Por outro lado, hoje não aceitaríamos a sua definição de oxigénio, dado o
desenvolvimento da investigação química desde então. Poderíamos dizer que,
dependendo da nossa noção de «descoberta», o oxigénio foi descoberto ou antes
ou depois de Lavoisier, seja por aqueles que o isolaram pela primeira vez, seja
pelos que primeiramente o definiram como elemento da maneira que hoje
consideramos correcta.
O que dizia a teoria do flogisto? Os combustíveis contêm um princípio
inflamável que libertam quando são queimados. Foram descobertas muitas
semelhanças entre a combustão e a calcinação, e a calcinação dos metais era
considerada como nada mais que uma combustão lenta. Pensava-se que havia
três tipos diferentes de constituintes dos corpos: 1) o ar, 2) a água e 3) as terras.
As terras podiam ser de três tipos diferentes: terra inflamável, terra mercurial e
terra vítrea. Quando a combustão ocorria, libertava-se terra inflamável. Esta
substância era também chamada terra pinguis, que em latim significa «terra
gordurosa» ou phlogiston, que em grego era usado para «princípio do fogo».
Quais eram as propriedades do flogisto? Liberta-se de corpos que ardem com um
movimento rápido, e está presente em todos os corpos combustíveis e nos
metais, que podem ser queimados para resultarem em cales. O produto queimado
pode ser reconvertido na substância original ao fornecer flogisto de qualquer
substância que o contenha, como o azeite, a cera, o carvão ou a fuligem. Ao ser
aquecido ao rubro, o zinco arde com uma chama brilhante, e consequentemente
o flogisto é libertado. O resíduo branco é cal de zinco (Cal de zinco + Flogisto =
Zinco). Se o resíduo for aquecido ao rubro com carvão, rico em flogisto, o zinco
é reconvertido. Se o fósforo for queimado, produz matéria ácida (Fósforo +
Ácido = Flogisto). Se o ácido for aquecido com carvão, o flogisto é absorvido e
o fósforo é reproduzido.
Na versão de Georg Stahl (1659-1734), a teoria do flogisto explicava o
fenómeno da combustão como a expulsão de uma substância inflamável do
objecto queimado (enxofre, por exemplo), e o da calcinação como a expulsão de
flogisto dos metais (ferro, por exemplo). A teoria era muito poderosa e
abrangente porque, ao apelar ao flogisto, conseguia explicar algumas
características da respiração: se com a combustão o ar fica saturado de flogisto, a
respiração torna-se difícil, pois a respiração em si consiste na remoção de
flogisto do corpo para o ar.
Contudo, esta teoria teve de enfrentar algumas anomalias evidentes. Primeiro,
não conseguia explicar por que razão quando se queimavam metais as cales eram
mais pesadas do que o metal original, quando a substância tinha libertado
flogisto no processo. Segundo, não era claro por que razão a combustão cessa
num volume encerrado de ar e por que razão o volume de ar fica reduzido após a
combustão. Os teóricos do flogisto tentaram encontrar diferentes soluções para
estes problemas (originando uma proliferação de teorias diferentemente
ajustadas).
No seu Opusculum Chymico-Physico-Medicum (1715), Stahl defendeu a ideia de
que quando uma substância arde perde flogisto, e que por conseguinte pesa
menos após a combustão. Isto aplicava-se ao que se observava na madeira,
porque as cinzas são menos pesadas do que o pedaço de madeira original.
Todavia, a conversão de metais para cales mediante o calor causava um
incremento no peso. Esta anomalia era explicada pela suposição de que outras
partículas penetravam na cal como resultado do processo de aquecimento. A
observação comum de que a combustão, a calcinação e a respiração não podem
ocorrer na ausência de ar também era tida em consideração pelos teóricos do
flogisto. Se é o ar que absorve e remove o flogisto, quando não há ar, o flogisto
não pode ser absorvido nem emitido. Também havia uma resposta para a questão
da redução do volume de ar após a combustão: o ar flogisticado ocupa menos
espaço do que o ar vulgar, e isto era coerente com a ideia comum de que o
flogisto tinha um peso negativo. Porém, ainda que fosse compatível com o
fenómeno da combustão dos metais, esta solução não explicava a combustão da
madeira: como é que as cinzas podem ser menos pesadas que a madeira se o
flogisto, que está presente na madeira mas não nas cinzas, tem um peso
negativo?
Lavoisier tirou as primeiras conclusões relevantes sobre a combustão e a
calcinação em 1772, quando efectuou experiências já conhecidas e reinterpretou
os seus resultados. Explicou o facto de o enxofre e o fósforo aumentarem de
peso quando são queimados, e que ao mesmo tempo o volume de ar fica
reduzido, supondo que durante a combustão o ar é por eles absorvido (fixação).
Embora não tivesse feito conjectura alguma sobre o oxigénio, é provável que se
tenha deixado persuadir pelo facto de as cales efervescentes conterem ar, uma
vez que na calcinação os metais também aumentam de peso. Ainda que
Lavoisier tenha tomado logo consciência da importância dos seus resultados e
conjecturas, não estava bem certo do que era libertado — seria todo o ar ou
apenas uma parte? Nesta fase, tudo leva a crer que ainda não tinha rejeitado a
teoria do flogisto, pois em 1773 não punha de parte a possibilidade de o ar
fixado ser combinado com o flogisto.
Antes de Lavoisier, já dois químicos tinham conseguido isolar o oxigénio e
descoberto algumas das suas propriedades, mas nenhum deles compreendera
completamente o papel que desempenhava nos fenómenos da combustão e da
calcinação. Um deles era Priestley. As suas experiências estão relatadas na obra
Experiments and Observations on Different Kinds of Air, publicada entre 1774 e
1777. Em 1774, obteve oxigénio ao aquecer cal vermelha de mercúrio com uma
lente, e mostrou que este novo tipo de ar é insolúvel na água e permite a
combustão de uma vela com uma chama vigorosa. Chamou a este tipo de ar «ar
puro» porque achou agradável respirá-lo e julgou que podia ser usado para fins
terapêuticos. Depois chamou-o «ar desflogisticado», porque o supôs livre de
flogisto. Se queimarmos uma vela ao ar vulgar, o tempo de combustão é
limitado, pois o ar vulgar já contém flogisto e não pode absorver uma grande
porção. Se a mesma combustão ocorrer ao ar puro, a vela arde durante mais
tempo, pois o novo gás, que não contém flogisto, pode absorver uma maior
porção.
Lavoisier foi um dos primeiros químicos a adoptar um método quantitativo na
condução de experiências— usava regularmente uma balança, por exemplo. Isto
é importante, pois podemos ver que o facto de levar a sério as anomalias da
teoria do flogisto dependia de dois pressupostos tácitos: o da indestrutibilidade
da matéria e o da conservação da massa. Os aspectos quantitativos dos
resultados experimentais obtidos violavam estes princípios. Lavoisier fez
suposições para justificar os resultados que obteve com o fósforo, cujo peso
aumenta após a combustão, e em 1774 repetiu as experiências de Priestley,
depois de o ter conhecido em Paris. Como outros antes dele, conseguiu isolar o
oxigénio, a que nesta fase chamava «todo o ar». Em 1778, porém, salientou o
facto de este gás ser mais puro do que aquele em que vivemos, e definiu-o como
«a porção mais salubre e mais pura do ar», como Priestley tinha feito. Também
reconheceu que era o verdadeiro corpo combustível, e preparava-se para
desenvolver uma teoria da combustão que era incompatível com a teoria baseada
no flogisto de Stahl e uma alternativa à mesma. O ar é composto por nitrogénio
— a que Lavoisier chamava mophette — e ar puro. O ar puro é o que os
combustíveis absorvem e o que as cales contêm.

Em 1780, enunciou os pontos principais da sua teoria amadurecida:

•Em toda a combustão há uma libertação da matéria do fogo ou da luz.
•Um corpo só pode arder ao ar puro.
•Há uma destruição ou decomposição do ar puro, e o aumento do peso do corpo
queimado é exactamente igual ao peso do ar destruído ou decomposto.
•O corpo queimado transforma-se num ácido por adição da substância que faz
aumentar o seu peso.
•O ar puro é um composto da matéria do fogo ou da luz com uma base.

Na combustão, o corpo a arder remove a base que atrai mais fortemente do que a
matéria do calor, e liberta a matéria combinada do calor. A teoria do flogisto
localizava a matéria do fogo no combustível e não no ar puro. A partir de 1780,
Lavoisier passou a chamar ao ar puro principe oxygine, e é daqui que o termo
«oxigénio» deriva. Trata-se de uma palavra grega que significa «gerador de
ácido», pois Lavoisier pensava que o oxigénio era o constituinte fundamental de
todos os ácidos (hoje sabemos que alguns ácidos não contêm oxigénio — como
o ácido clorídrico, por exemplo). Contudo, em 1780 o oxigénio de Lavoisier não
é ainda um elemento como é para a química contemporânea, mas um composto
constituído pelo principe oxygine e pela matéria do fogo. Só mais tarde, em
1789, é que introduziria o oxigénio na sua tabela dos elementos, juntamente com
a luz e o calórico (= matéria do fogo e do calor). Ao apelar ao principe oxygine,
Lavoisier rejeitou definitivamente a teoria do flogisto, e em 1783 escreveu
(Reflexões sobre o Flogisto) que, uma vez que tudo na química pode ser
explicado de uma maneira satisfatória sem o auxílio do flogisto, é provável que o
flogisto não exista.

5.2.2 A revolução química como uma ilustração da teoria de Kuhn

Como vimos, a teoria do flogisto teve de enfrentar anomalias de monta
(combustíveis que libertam flogisto e que se tornam mais pesados, por exemplo)
muito antes de ter sido disponibilizada uma alternativa. Kuhn diz que as
contraprovas têm um papel essencial, na medida em que provocam tensão e
fazem os cientistas duvidar da eficácia da teoria a que aderem, mas que as
anomalias só são consideradas contra-instâncias em circunstâncias específicas. A
perda de adequação empírica possui um efeito psicológico: quando as anomalias
aumentam, os cientistas desconfiam do poder preditivo da teoria com que estão
comprometidos, e começam a considerar as alternativas disponíveis. Na
explicação de Kuhn sobre o modo como a ciência opera, não há uma regra
metodológica estrita que obrigue os cientistas a abandonar imediatamente a
teoria que não se adequa perfeitamente aos dados experimentais ou
observacionais. Na ausência de outras razões para desconfiar do modelo em que
opera, é mais provável que o cientista questione a sua própria competência na
condução da experiência do que a eficácia do modelo.
A ocorrência inicial de anomalias não representa necessariamente uma ameaça
decisiva para a teoria; pelo contrário, estimula a pesquisa e a investigação no seu
âmbito. E precisamente o que acontece na teoria do flogisto: o aumento «não
previsto» de peso dos combustíveis foi explicado de maneiras diferentes pelos
teóricos do flogisto, e ocorreu uma proliferação de versões ligeiramente
diferentes da teoria-padrão. Kuhn refere que há sempre dificuldades na
adequação paradigma-natureza, e que nenhuma anomalia que possa surgir
constitui por si só um argumento que derrube uma teoria. Kuhn não é optimista
no que respeita à possibilidade de falsificar uma teoria ou de escolher entre
teorias mediante a pura observação ou a investigação empírica. Até certo ponto,
algumas teorias rivais parecem ser empiricamente equivalentes, e nenhuma
experiência parece conseguir discriminar entre elas. Da mesma maneira, quando
ainda não há uma competição para a teoria dominante, os resultados
experimentais desconcertantes podem surtir um efeito reduzido na comunidade
científica. Primeiro os cientistas vão naturalmente tentar explicar as anomalias
fazendo uso das ferramentas que o seu paradigma já proporciona.

Exercício: De que modo esta explicação da maneira como os cientistas lidam
com as anomalias no modelo de Kuhn difere da explicação de Popper sobre o
método do falsificacionismo?

Quando uma teoria estabelecida não tem uma explicação para fenómenos que
parecem contradizer as previsões que foram feitas, testemunhamos o fenómeno
da proliferação. Esta proliferação representa a resposta dos cientistas ao
surgimento de anomalias: o cientista que confia no seu paradigma tenta melhorar
a sua coerência explicativa introduzindo hipóteses ad hoc. Um exemplo deste
fenómeno é a tentativa de Stahl de introduzir a leveza natural, ou peso negativo,
para explicar por que razão as substâncias que absorvem flogisto ficam mais
leves do que antes. O resultado deste processo não é senão a produção copiosa,
não de alternativas, mas de tentativas de remediar os limites da teoria.
Numa fase mais avançada, quando as anomalias já se acumularam, os cientistas
tomam consciência das dificuldades cada vez maiores da adequação paradigma-
natureza. O fracasso da resolução do problema é um primeiro passo para a
formação das suas atitudes críticas, ainda que outras razões possam causar
descontentamento em relação a uma teoria. Num modelo em que a atitude
psicológica dos cientistas pode determinar o modo como reagem às anomalias,
duvidar dos pressupostos filosóficos envolvidos na aceitação de um paradigma
pode ser relevante para a escolha de uma teoria.
Há aqui duas questões importantes: 1) se temos mesmo justificação ao usar o
conceito de descoberta quando descrevemos a introdução de alguns conceitos
úteis que se referem a entidades teóricas antes desconhecidas; 2) qual a
relevância destas «descobertas» para a ocorrência de uma mudança
revolucionária de paradigma. Kuhn introduz uma distinção entre descobertas e
invenções, alterando ligeiramente o uso comum destas palavras: as descobertas
são novidades sobre factos, ao passo que as invenções são novidades sobre
teorias. As anomalias surgem, a teoria é explorada e ajustada para explicar os
factos novos, e em seguida a comunidade científica está pronta para uma
mudança de teoria. O exemplo de Kuhn de como as descobertas factuais e
teóricas estão interligadas é o da descoberta do oxigénio. Sugere que devemos
atribuir a descoberta do oxigénio a Priestley e a sua invenção a Lavoisier, uma
vez que foi este último e não Priestley que tomou consciência das implicações
teóricas da descoberta do oxigénio. Esta observação é indiciadora do que Kuhn
pensa sobre uma descoberta: primeiro, não tem significado sem uma invenção
correspondente. Não poderíamos sequer dizer que Priestley tinha descoberto o
oxigénio se a teoria subsequente de Lavoisier não tivesse mostrado em que
consistia o oxigénio e como a combustão funciona. Em termos mais gerais,
nenhum facto novo é relevante se não for teoricamente interpretado. A ideia é
que, por si só, um facto «novo» não pode ser usado nem para confirmar nem
para infirmar uma teoria: uma descoberta só surte efeito na dinâmica de uma
teoria científica quando o surgimento de um fenómeno que antes não tinha sido
considerado (que é novo) é incluído num processo global de reinterpretação
teórica. Neste contexto, três químicos isolaram o oxigénio, mas apenas um o
reconheceu como uma substância distinta que desempenha um papel na
combustão e na calcinação. Priestley foi o primeiro a isolar aquilo a que hoje
chamamos oxigénio, mas não fez descoberta conceptual alguma, pois tratou-o
como ar desflogisticado, incluindo-o na explicação proporcionada pela teoria do
flogisto.

Exercício: De que modo a distinção de Kuhn entre descoberta e invenção se liga
ao uso comum destes termos?

A relação entre uma teoria e o mundo não pode ser considerada separadamente
da relação entre uma teoria e a sua rival. Efectivamente, as descobertas parecem
ocorrer antes da revisão do paradigma e antecipar revoluções limitadas ou
prolongadas. Isto sugere que para os cientistas é mais fácil reconhecer factos
novos na fase em que duvidam da eficácia do paradigma como um dispositivo de
resolução de problemas. Na nossa breve descrição da aproximação gradual de
Lavoisier à teoria do oxigénio, vimos que no início da sua pesquisa não estava
suficientemente confiante para rejeitar a teoria do flogisto de forma difinitiva,
pois não dispunha de uma teoria alternativa da combustão. Contudo, as suas
reflexões sobre o papel do oxigénio na combustão e na calcinação foram
decisivas, e conduziram-no à completa rejeição da perspectiva-padrão.
Kuhn defende que, no âmbito do carácter conservador da ciência normal, os
cientistas confiam no seu modelo e resistem às anomalias a menos que haja um
modelo concorrente que lide melhor com pelo menos alguns problemas por
resolver. Emprega a noção de épocas de maturidade. Quando as revoluções
ocorrem, são súbitas e dramáticas, mas não podem ocorrer sem serem
antecipadas por sintomas evidentes de crise. Um campo de estudo pode
encontrar-se na fase de maturidade ou imaturidade para a mudança, e quando
inicialmente se afasta do seu paradigma, não é desde logo claro para os cientistas
se a teoria paradigmática necessita apenas de melhoramentos e ajustamentos, ou
se se presta a ser substituída.
Kuhn tende a proporcionar um retrato psicologístico da mudança de uma teoria,
sugerindo que frequentemente os cientistas não estão conscientes das razões para
a sua escolha, seja de conservar o velho paradigma, seja de adoptar um novo.
Alguns filósofos da ciência (Thagard 1993 e Laudan 1977) criticam a explicação
de Kuhn e descrevem a mudança de uma teoria estabelecida para uma teoria
concorrente como uma exploração gradual de novas possibilidades conduzida
conscientemente pela comunidade científica. No entanto, note-se que Kuhn não
vê a resistência a uma nova teoria como algo irracional só porque depende da
adesão obstinada a um paradigma no âmbito do qual os cientistas foram
formados e estiveram a trabalhar. Afinal de contas, a constância na defesa do que
é considerado uma verdade estabelecida é reconhecida como uma virtude
racional. Kuhn admite que há algo de errado na recusa de Priestley em adoptar a
teoria do oxigénio quando resiste aos argumentos de Lavoisier e permanece
isolado na comunidade científica ao continuar a aceitar a teoria do flogisto.
Priestley, nas palavras de Kuhn, deixou de ser um cientista quando se isolou para
continuar o seu trabalho, pois deixou de estar envolvido numa comunidade de
praticantes. Se considerássemos o seu comportamento irracional, nem por isso
atribuiríamos irracionalidade à ciência em geral.

Discussão: Concorda com Kuhn quando ele diz que não se pode ser cientista
quando se está isolado de uma comunidade de praticantes com conhecimento
partilhado e objectivos comuns? Poderá haver ciência num mundo habitado por
uma só pessoa?

Quando Kuhn descreve as revoluções como mudanças de mundivisão, tem em
mente uma tese particular — a tese de que após uma revolução os cientistas
vêem um mundo diferente (e trabalham num mundo diferente). Entre as muitas
alegações surpreendentes de Kuhn, esta parece ser a negação mais evidente do
realismo; porém, não é o realismo que está aqui em causa. Kuhn nunca nega que
Lavoisier e Priestley olhavam para o mesmo mundo químico, para os mesmos
gases e combustíveis. Nega que viam os mesmos objectos. Considerando o
aspecto ontológico de um paradigma, percebemos que Kuhn reforce a palavra
«ver» e não «olhar» ou «interpretar». Os cientistas comprometidos com
paradigmas rivais podem olhar para o mesmo mundo, mas ver coisas diferentes.
Voltando a Lavoisier e Priestley, ambos «olharam para» o ar puro; Lavoisier viu
oxigénio, ao passo que Priestley viu ar desflogisticado. Isto implica uma
diferença de mundivisões, não de mundos. Eles não «interpretaram»
diferentemente o que viram; viram coisas diferentes. Se falássemos de
interpretação, assumiríamos que há um datum comum para interpretar, um dado
para classificar à luz de esquemas conceptuais e categorias diferentes.
Todavia, Kuhn defende que na ciência não há um dado, que os dados são sempre
recolhidos com dificuldade e que não são neutros ou puros quando se tornam
acessíveis aos cientistas, porque se tornam uma parte integrante de um sistema
de crenças de base e pressupostos metafísicos, linhas de orientação
metodológicas e noções aprendidas durante a sua formação. Estas crenças dão
forma ao conhecimento dos cientistas e à sua maneira de ver o mundo, pelo que
quando a comunidade testemunha uma mudança de paradigma, o mundo da sua
experiência muda.

Exercício: Escolha outra mudança de teoria importante na ciência (por
exemplo: da física de Newton para a relatividade de Einstein; do behaviorismo
para o cognitivismo na psicologia; a revolução darwiniana na biologia) e faça
alguma pesquisa. Em seguida avalie em que medida essa mudança se adequa à
explicação kuhniana das revoluções científicas.

Discussão: Haverá uma ligação entre a ideia de que \/ o mundo muda após a
mudança de paradigma e a incomensurabilidade?

5.3 Além das revoluções

A revolução química parece ser uma ilustração perfeita do modelo de mudança
de teoria de Kuhn e das várias fases de uma revolução. Porém, outros filósofos
consideraram que a sua análise da mudança científica era ou enganadora, ou só
aplicável a um conjunto muito limitado de casos na história da ciência. Ora,
quais são as alternativas à explicação de Kuhn? No que se segue passaremos em
revista algumas delas.

5.3.1 Programas de investigação

Entre os muitos críticos de Kuhn, Imre Lakatos é particularmente digno de nota,
uma vez que tenta mediar entre a novidade da análise de Kuhn e as ideias mais
conservadoras de Popper sobre o progresso e a verdade. Lakatos vê com bons
olhos o reconhecimento da importância do papel da história e dos estudos de
caso para a especificação do método científico. Também admite que é correcto
introduzir factores sociológicos, psicológicos e políticos (que os positivistas
consideravam «factores externos») na expücação do comportamento dos
cientistas, e rejeitar uma versão ingénua do falsificacionismo. Por outro lado,
Lakatos critica a vagueza da noção de paradigma (que o torna teoricamente
confuso) e as suas conotações metafísicas enquanto mundivisão. Também nega a
plausibilidade de apresentar as revoluções como conversões, bem como a tese da
incomensurabilidade. O seu propósito é promover uma reconstrução racional da
ciência, redefinindo o progresso científico e proporcionando uma versão mais
sofisticada do falsificacionismo do que a de Popper.
De acordo com Lakatos, Kuhn descreve a ciência como irracional porque, ao
discutir a natureza da mudança, fala das revoluções como se fossem conversões
religiosas, e para Lakatos isto significa ver a mudança científica como um
esbatimento irracional de quaisquer critérios de demarcação entre ciência e não-
ciência. O que é que Kuhn quereria dizer com a sua analogia entre a mudança
científica e as conversões? Uma conversão é uma mudança não apenas de um
conjunto de crenças, mas também de muitos pressupostos fundamentais nos
quais tais crenças assentam. Kuhn não é o primeiro autor a comparar a mudança
intelectual de crenças à experiência da conversão. Em Sobre a Certeza, o
filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) explora o problema da relação entre
cepticismo e senso comum, focando a sua atenção num tipo especial de
proposições (as chamadas proposições estruturais) que damos como certas e
raramente revemos. Estas proposições parecem proposições empíricas sobre o
mundo, mas o seu papel é quase gramatical, uma vez que descrevem a nossa
maneira de ver o mundo e não o próprio mundo (por exemplo: «O mundo já
existia muito antes do meu nascimento»; «Tenho duas mãos»). Se rejeitássemos
estas proposições, adoptaríamos uma mundivisão completamente diferente. E se
eu quisesse convencer um membro de uma tribo remota e culturalmente isolada
que não tinha sido ensinado a pensar que o mundo já existia antes de ter nascido
e que não acreditava em tal coisa, seria difícil convencê-lo só pela argumentação
racional. Podia dizer-lhe que aprendi em História, uma disciplina que me
ensinaram na escola, que as pessoas viveram, prosperaram, construíram
monumentos e combateram em guerras muito antes de termos nascido. Podia
dizer-lhe que conheço pessoas, entre as quais aquelas a quem chamo meus pais,
que são mais velhas que eu e já viveram mais tempo do que eu. Porém, estas
considerações não são argumentos independentes para a ideia de que o mundo já
existia muito antes dos nossos nascimentos, pois não as levaríamos de todo a
sério se não assumíssemos já que o mundo existia muito antes do nosso
nascimento. Se os membros da tribo passassem a ter a minha mundivisão, não o
fariam pressionados pela argumentação racional, pois todos os argumentos a
favor da proposição de que o mundo não começou a existir quando nascemos já
pressupõem de alguma maneira a verdade da proposição.

Exercício: É capaz de imaginar uma situação na qual uma proposição estrutural
é revista ou rejeitada?

Discussão: Será que a questão da conversão e das proposições estruturais
também se pode aplicar às mudanças de paradigma?

Lakatos reconhece que há alguns aspectos de um programa de investigação que
têm menor probabilidade de ser revistos (mesmo perante contraprovas),
chamando-lhes o núcleo do programa de investigação (os princípios de base de
uma teoria, por exemplo). Outros aspectos são mais flexíveis e menos
acerrimamente defendidos, e chama-lhes a cintura de protecção do programa de
investigação (as hipóteses auxiliares, por exemplo). Quando as provas
infirmantes se tornam disponíveis, duvida-se da cintura antes de se duvidar do
núcleo, e podem ser adoptadas diferentes estratégias para «corrigir» o programa
de investigação. Lakatos acredita que esta explicação é preferível à de Kuhn,
porque é historicamente mais realista e não compromete a racionalidade da
mudança. Para Lakatos, as razões para alterar a cintura de protecção ou preservar
o núcleo duro podem ser boas ou más, dependendo de os ajustamentos serem ad
hoc ou conduzirem a novas previsões.
Se os paradigmas kuhnianos são como mundivisões, então alguns dos seus
componentes são tais que não podemos abandoná-los sem alterar o paradigma.
Pode não haver boas razões interparadigmáticas para a mudança — a mudança é
tão radical que o que é considerado uma boa razão para a mesma também é
passível de mudança. No entanto, isto não significa necessariamente que a
mudança ocorre sem razões ou por más razões. Após a conversão de uma
comunidade científica, é então possível encontrar razões que expliquem a
mudança, e geralmente estas podem ser encontradas no facto de um novo
paradigma explicar áreas de investigação científica que não eram
satisfatoriamente explicadas antes da mudança. Lakatos opõe-se a esta noção de
racionalidade enquanto racionalização post-hoc, e não deixa espaço para a
mesma na sua descrição de como um programa de investigação substitui outro.
A principal diferença entre paradigmas e programas de investigação é que a
validade dos últimos pode ser avaliada objectivamente, de um ponto de vista que
não tem de ser interno ao programa de investigação que está a ser considerado.
Como já antecipámos, os programas de investigação são sequências de teorias no
âmbito de um determinado domínio, e são constituídos por um núcleo teórico e
hipóteses auxiliares (a cintura de protecção). Quando as previsões feitas de
acordo com um programa de investigação são falsificadas, nem sempre é claro o
que deve ser rejeitado (recordemos a tese de Duhem-Quine e as suas
contraposições ao falsificacionismo). A actividade no âmbito de um programa de
investigação é guiada por uma heurística metodológica que ajuda os cientistas a
decidir aquilo que mais provavelmente será responsável por uma previsão
falhada, seja o núcleo teórico, seja uma das hipóteses auxiliares. Se uma teoria
tem de ser rejeitada e substituída, um novo problema no âmbito de um programa
de investigação passa a estar no centro das atenções e a mudança pode ser
progressiva ou degenerativa. Para que a mudança contribua para o progresso, a
nova teoria tem de: ser mais informativa do que a anterior; ser capaz de explicar
o êxito da anterior; receber corroboração independente.
Lakatos sugere que o retrato de Kuhn da história da ciência como uma série de
períodos de ciência normal interrompidos por uma revolução não é correcto: na
ciência, só raramente houve um monopólio genuíno. De acordo com Lakatos, a
proliferação de soluções alternativas para problemas existentes não é apenas uma
característica de períodos de crise, mas sim um elemento essencial da prática
científica: a escolha entre teorias concorrentes no âmbito dos programas de
investigação e entre programas de investigação é necessária a todo o momento e
não apenas durante uma grande revolução; fazer escolhas é a única maneira de
gerar progresso. Se os paradigmas são considerados mundivisões que tudo
abrangem — no sentido em que quando nos comprometemos com um novo
paradigma vemos o mundo de uma maneira diferente e passamos a aceitar
padrões parcialmente novos para a escolha de teorias —, então a proliferação de
paradigmas concorrentes torna-se de facto uma situação excepcional. Porém,
segundo Lakatos, devemos rejeitar tal concepção de paradigma.
Lakatos ataca em particular a ideia de que cada paradigma tem a sua própria
racionalidade. Deparamo-nos com problemas sérios quando nos perguntamos em
que medida os paradigmas são independentes e não podem ser objectivamente
avaliados, pois a posição de Kuhn conduz-nos às teses da incomensurabilidade.
A «incomensurabilidade» pode ser usada de diferentes maneiras — refere-se à
impossibilidade de comparar afirmações de teorias rivais, mas também à falta de
regras metodológicas comuns com base nas quais a conduta dos cientistas
pertencentes a paradigmas diferentes pode ser avaliada, bem como à falta de
critérios comuns para a escolha de uma teoria independentes de um paradigma.
Todas estas teses da incomensurabilidade são postas em causa por Lakatos, para
quem as estratégias metodológicas e os critérios para a escolha de uma teoria
não dependem da teoria.

Discussão: Será que a explicação da mudança de teoria de Lakatos é um
melhoramento genuíno da noção de revolução de Kuhn? Será que Lakatos
consegue salvar a noção de racionalidade e progresso no âmbito da ciência?

5.3.2 Estilos de raciocínio

Em A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn defende que os paradigmas
concorrentes são de facto incomensuráveis, e usa a analogia provocatória da
conversão: a mudança de um paradigma para outro não pode ser inteiramente
devida a argumentos, pois o que é considerado um argumento apoiado por boas
razões para os cientistas que aderiram ao paradigma anterior pode ser ignorado
ou ser considerado um mau argumento para os cientistas que aderem ao último.
Os paradigmas não se limitam a possuir linguagens que resistem à tradução
interparadigmática: também contêm conjuntos de valores que são usados para
avaliar se os argumentos são bons e as teorias bem-sucedidas. Se esses critérios
forem internos a um paradigma, nenhuma escolha entre paradigmas pode ser
justificada apelando a tais valores, a menos que sejam partilhados pelos
paradigmas que nos interessa comparar. Paradigmas diferentes podem redefinir
as finalidades da ciência e propor concepções diferentes de prova, confirmação e
explicação.
Uma alternativa às noções de paradigma e de programa de investigação é a dos
estilos de raciocínio ou tradições. Tanto Hacking (1982) como Feyerabend
(1975) usam esta terminologia, mas chegam a conclusões diferentes sobre o
modo como os estilos de raciocínio determinam as respostas a questões
ideológicas e metodológicas, e como se relacionam uns com os outros quer em
períodos de proliferação, quer de mudança. Fundamentalmente, o problema que
tanto Hacking como Feyerabend abordam de maneira diferente é se há
elementos de relativismo em qualquer explicação historicamente correcta da
mudança científica e conceptual. Em particular, não estão interessados no corpo
de crenças verdadeiras que podem ser mantidas ou revistas de cada vez que uma
nova teoria é avançada, mas sim no modo de pensar que vai dando forma à nossa
investigação sobre a natureza, bem como nos critérios para o que é considerado
uma boa razão para apoiar uma mudança de crença.
Feyerabend começa com uma crítica exaustiva a qualquer abordagem da
metodologia científica que prescreva regras imutáveis com base na observação
de que na história da ciência diferentes estratégias foram bem-sucedidas. Tais
estratégias não podem ser vistas como excepções a um conjunto de regras: ao
invés, o facto de terem sido adoptadas e de terem produzido resultados indica
que a proliferação de abordagens metodológicas é desejável. Em seguida,
defende que para cada regra codificada pelos filósofos da ciência há uma regra
oposta que é igualmente aceitável, e afirma que na história da ciência os maiores
passos foram dados quando os cientistas foram menos conservadores e violaram
regras metodológicas explícitas como a consistência — ao avançarem hipóteses
que não eram compatíveis com as teorias consideradas como verdades
estabelecidas na época, por exemplo.

Discussão: Será que a observação de uma pluralidade de métodos na ciência
apoia a conclusão de que não há como codificar a metodologia científica? Será
que apoia a ideia de que não há racionalidade na ciência?

No âmbito da ciência há portanto uma pluralidade de métodos incompatíveis e
igualmente aceitáveis. Para Feyerabend, é importante salientar que as ideias a
que não se chegou por uma via científica legítima contribuíram para a direcção
na qual a ciência avançou. Até ideias que foram impostas por preconceitos e por
outras tendências «irracionais» foram essenciais para o processo mediante o qual
algumas teorias actuais levaram a melhor sobre as concorrentes. Dado o seu
compromisso de reconhecer elementos conducentes ao progresso em diferentes
tradições de pensamento, Feyerabend é céptico no que respeita à maneira como
os cientistas vendem os seus programas de investigação como guiados por
princípios racionais, e pensa que arriscam limitar o progresso futuro ao impor
constrangimentos às fontes de ideias que são consideradas aceitáveis. Rejeitar
uma ideia só porque parece ter sido gerada pela adopção de uma cosmologia há
muito esquecida, por exemplo, seria um erro e uma escolha míope. A tese é que
a metodologia varia consoante a tradição de pensamento no âmbito da qual a
ideia surge ou a investigação é conduzida, e que mesmo no âmbito da ciência,
que somos tentados a ver como um empreendimento metodologicamente
unificado, quase tudo vale.

Exercício: Pense num exemplo de um ponto de vista que foi posto de parte, mas
gerou o que hoje consideraríamos hipóteses científicas legítimas.

Discussão: Será que Feyerabend está certo no que respeita aos benefícios da
proliferação? Que desvantagens pensa que a proliferação pode ter?

Hacking partilha com Feyerabend um interesse, não pela mudança de teorias per
se, mas pela variação perceptível no modo como justificamos as teorias, pelo
estilo de raciocínio que explícita ou implicitamente subscrevemos quando
consideramos um problema como um problema legítimo. Não é surpreendente
que algumas pessoas achem verdadeiro o que outras acham falso. Este tipo de
desacordo pode persistir numa tradição de pensamento sem gerar qualquer
choque ou revolução substanciais. O que parece ser uma forma mais radical de
mudança é a alteração de estilos de raciocínio: Hacking usa o exemplo das
doutrinas alquímicas e astrológicas da semelhança e similitude no Renascimento
(1982, p. 60). Não entendemos estas explicações como ciência porque
actualmente empregamos conceitos diferentes (o conceito de prova alterou-se,
por exemplo), e temos razões completamente diferentes para acreditar que uma
hipótese é explicativa (a título de exemplo, podemos entender a alegação de que
o unguento de mercúrio é bom para a sífilis, mas não conseguimos entender
porquê — porque o mercúrio está ligado ao planeta Mercúrio, que por sua vez
está ligado ao mercado, onde a doença é contraída).
Bird (1998) proporciona outro bom exemplo de um tipo de explicação que
Hempel considerava não científica: o astrónomo Francesco Sizi defendia que o
número de planetas é necessariamente sete porque temos sete «janelas na
cabeça» (duas narinas, dois ouvidos, dois olhos e a boca) e os metais são sete.
Como Bird observa, a simetria podia ser defendida apelando às intenções de um
criador, e podia ser considerada uma razão para acreditar que o número de
planetas é sete nesse contexto. Na ciência contemporânea, porém, o modo como
Sizi argumenta a favor da necessidade da existência de sete planetas não é
aceitável. Estes exemplos mostram que quando o estilo de raciocínio muda, o
tipo de explicação e justificação que é considerado aceitável também muda e, de
acordo com Hacking, o entendimento pode falhar por esta razão.
Hacking discorda de Kuhn no que respeita a haver uma impossibilidade de
tradução entre as afirmações de uma teoria e as da sua rival. Contudo, concorda
que há descontinuidade na mudança conceptual, na qual o fosso provém de uma
variação na maneira de pensar, e em particular no que é considerado uma boa
razão para apoiar uma afirmação. Uma vez que são o raciocínio e os métodos
que são relativos a um estilo particular, os estilos não podem ser comparados uns
com os outros com êxito e os juízos de superioridade não podem ser justificados
independentemente.

Discussão: Concorda com Hacking em que o entendimento entre os vários
estilos de raciocínio falha? É capaz de encontrar outros exemplos de estilos de
raciocínio que num dado momento eram considerados científicos mas que hoje
seriam rejeitados por serem não científicos?

5.3.3 Escolha de teorias

Se pensarmos que os paradigmas, programas de investigação ou os estilos de
raciocínio são as unidades mais adequadas da mudança científica, deparamo-nos
com sérias dificuldades na comparação de teorias rivais quando a alteração na
descrição dos termos teóricos e os pressupostos metodológicos opostos levantam
a questão da incomensurabilidade. A incomensurabilidade do significado e dos
métodos tem implicações no progresso científico e na escolha de teorias. Se as
afirmações de teorias rivais não podem ser comparadas devido à falta de uma
linguagem e de conceitos comuns, torna-se extremamente difícil escolher entre
elas com base na sua adequação empírica. Como é que podemos defender que
uma teoria tem mais conteúdo empírico do que outra, ou que é melhor a prever e
a explicar fenómenos no mesmo domínio? A ideia de que as novas teorias
conseguem explicar o êxito parcial das suas antecessoras parece ser um passo
fundamental para o estabelecimento de uma noção de progresso genuinamente
cumulativo.
Mas é claro que a tese de que teorias rivais não podem ser comparadas com base
no seu conteúdo e, por conseguinte, com base na sua adequação empírica, não
exclui que haja outras formas de as distinguir e fazer uma escolha racional. As
teorias podem ser comparadas no que respeita a critérios que nos podem dar
razões para justificar essa escolha. Mas quais são esses padrões mediante os
quais avaliamos teorias? No posfácio de A Estrutura das Revoluções Científicas,
Kuhn enuncia alguns destes valores: uma teoria deve fazer previsões exactas (na
medida do possível, de uma natureza quantitativa, e não apenas qualitativa);
deve permitir a resolução de problemas; deve ser simples e consistente; deve ser
em grande medida compatível com outras teo-rias aceites. Newton-Smith (1981)
enuncia outros valores: uma teoria deve ser fértil e permitir desenvolvimentos
teóricos e práticos; deve estar bem integrada, não apenas com outras teorias
aceites, mas também com alguns pressupostos metafísicos gerais sobre o mundo.
As listas são muito heterogéneas. Alguns critérios parecem ser puramente uma
questão de juízo estético (a elegância de uma prova matemática, por exemplo);
outros parecem seguir virtudes epistémicas importantes: como observámos no
capítulo 1, a boa integração com outras teorias aceites é uma razão para preferir
a psicologia à astrologia quando procuramos uma teoria que possa dar uma
explicação para o comportamento humano. Contudo, é discutível que todos os
critérios sigam virtudes epistémicas: o debate alargado sobre a simplicidade ou a
parcimónia como um desideratum para as teorias mostra que não é fácil
discriminar as possíveis implicações dos critérios para a escolha de teorias antes
da investigação empírica.

Exercício: Consegue acrescentaroutros critérios à lista?

Kuhn defende que os valores são bastante constantes entre paradigmas, mas que
a sua aplicação pode ser sujeita a diferenças individuais e a diferenças entre
comunidades científicas: por exemplo, em que medida o facto de uma nova
teoria poder estar em tensão com outra teoria estabelecida antes da tensão se
tornar um obstáculo à aceitação da nova teoria é relativo ao juízo feito num
contexto particular e a outras avaliações e interesses. Outro juízo que pode
depender dos pressupostos metodológicos numa comunidade científica é a
importância relativa dos critérios, e se todos os critérios são aplicáveis a todas as
teorias científicas.

Discussão: Seria racional escolher uma teoria mais simples mas menos fértil?

Resumo
Neste capítulo considerámos diferentes abordagens filosóficas à mudança em
ciência e as suas consequências para a tese de que a ciência é um
empreendimento racional. De acordo quer com os racionalistas quer com os
historicistas, a racionalidade da ciência parece ser refém do facto de a prática da
ciência ser intocada por aqueles factores que não têm uma relevância directa
para a confirmação ou infirmação das teorias. Os racionalistas acreditam que a
mudança de teorias é racional e há um progresso cumulativo porque pensam que
podem reconstruir o processo de mudança de uma forma que não tem de ter em
conta factores externos às condições para a realização de testes e ao método da
ciência. Frequentemente, os historicistas negam a racionalidade da mudança de
teorias e a natureza cumulativa do progresso porque não acreditam que o
processo de mudança possa ser reconstruído independentemente de factores
ideológicos, sociais, psicológicos, políticos e históricos.
Porém, devemos contestar o pressuposto partilhado neste debate: porque é que
não pode haver racionalidade na mudança se reconhecermos que esta é afectada
não apenas pelos méritos objectivos de uma teoria e pela sua adequação aos
indícios disponíveis, mas também pela maneira como opera a comunidade
científica como um todo? O significado do contributo da ciência para o corpo de
conhecimento partilhado nas nossas comunidades só pode ser completamente
apreciado se virmos a ciência como parte da sociedade. E por ter em certos
momentos resistido e noutros sucumbido às pressões de «fora» que a ciência se
tornou o que é hoje: uma instituição social, ao invés de um mero conjunto de
disciplinas académicas unidas por um qualquer método abstracto.

Cenas dos próximos capítulos
Começámos por ver algumas das interacções mútuas entre ciência e não-
ciência: pressupostos metafísicos, mudanças ideológicas e conceptuais, traços
psicológicos da motivação humana no raciocínio e na escolha de teorias
contribuem todos para dar forma à trajectória do progresso científico. No
próximo capítulo, centrar-nos-emos nas responsabilidades éticas da ciência no
que respeita ao resto da sociedade.

Questões para pensar
1. Que noção de progresso científico é compatível com o ponto de vista da
mudança de teorias de Kuhn?
2. De que modo os programas de investigação são comparáveis a paradigmas?
3. Acha que faz sentido falar numa teoria do «dado» neutro em ciência?
4. Poderá haver um progresso genuinamente cumulativo?
5. Que critérios são legítimos para a escolha de teorias?
6. Será possível (e, em caso afirmativo, desejável) postular uma noção de
racionalidade independentemente dos requisitos da metodologia científica?

Leituras complementares
Neste capítulo apresentei uma ilustração das ideias de Kuhn referente à
revolução química. Poderá comparar a sua perspectiva com outras perspectivas
da mudança científica com base em exemplos de mudanças significativas na
ciência, como a Revolução Copernicana (Henry 1997; Hall 1983; Kuhn 1957,
1990; Cohen 1980). Outras opções incluem a mudança da física newtoniana para
a teoria da relatividade, ou a aceitação da teoria da evolução de Darwin. Outras
leituras de Kuhn podem ajudá-lo a compreender a importância do seu contributo
e os pormenores da sua proposta: ver, por exemplo, Bird (2000) e Hoyningen-
Huene (1993). As ideias de Kuhn sobre a estrutura das revoluções na ciência
foram aplicadas à cognição e à computação nos trabalhos de Andersen et al.
(2006) e de Thagard (1992), que se centram na aquisição e revisão de conceitos.
Pode encontrar artigos úteis sobre a coerência e a plausibilidade da noção de
«revolução científica» numa colectânea organizada por Hacking (1981). Nos
escritos de Popper (1963, 2002, cap. 10), Laudan (1984) e Lakatos (1970) é
possível ver perspectivas alternativas à teoria da revolução e do progresso de
Kuhn. As colectâneas de artigos sobre a mudança científica e a natureza do
progresso também poderão dar-lhe uma ideia da estrutura do debate: ver, por
exemplo, Radnitzky e Andersson (1978); Niiniluoto e Tuomela (1979); Lakatos
e Musgrave (1970); Harré (1975). Para uma introdução geral, ver Losee (2003).
Para contributos mais recentes da filosofia e das ciências sociais para o debate
sobre o progresso científico, ver Bird (2007), Chang (2007) e Lohmann (2004).

6. Ética





A concepção historicista da mudança de teorias levamos a considerar a
interacção entre as comunidades científicas e a sociedade como um todo no que
respeita a ideologias partilhadas, a conflitos de interesses e a pressões
financeiras. Um dos aspectos em que a ciência e o resto da sociedade
frequentemente colidem é a compreensão do modo como os constrangimentos
éticos devem ser aplicados ao desenvolvimento e financiamento dos programas
de investigação, e aos avanços tecnológicos que deles resultam. Outra questão
que merece discussão filosófica é se há obrigações para com a ciência, ou seja,
se apoiar a ciência é um imperativo moral para os indivíduos e as sociedades.
Neste capítulo examinaremos a relação entre a ciência e o resto da sociedade, e
discutiremos se os cientistas são imputáveis de uma maneira diferente dos outros
indivíduos na sociedade. Consideraremos alguns casos concretos, incluindo a
ética dos aperfeiçoamentos e o uso da ilusão na investigação em psicologia
social. Porém, muitas mais questões poderiam ilustrar os debates actuais sobre as
consequências éticas dos métodos e dos objectivos da investigação científica.
Eis alguns exemplos: a ética da investigação das células estaminais de embriões
precoces humanos; a ética da investigação biomédica com primatas não
humanos; as questões levantadas pelo aquecimento global; a ética dos ensaios
clínicos nos países em vias de desenvolvimento; a ética da investigação
epidemiológica em psiquiatria.
Os casos que observaremos têm como função ilustrar a interacção entre a ciência
e a ética, sugerindo como a investigação científica poderia ser constrangida por
princípios básicos como a autonomia do indivíduo, a evitação do sofrimento
desnecessário de seres sencientes e as obrigações que temos para com as
gerações futuras. Fora da discussão sobre os exemplos escolhidos, será
desenvolvida uma perspectiva geral da relação entre a ciência e o resto da
sociedade, e será questionado o papel das autoridades políticas e religiosas, dos
especialistas científicos e do público em geral nos debates que envolvem a
ciência.
O que devemos examinar criticamente é o pressuposto popular de que os
interesses e os valores dos indivíduos e das sociedades têm de ser
salvaguardados da ambição cega de cientistas que tentam «brincar a Deus», da
«ciência de Frankenstein» ou de interesses empresariais malévolos que se
escondem por detrás da procura da verdade e do progresso. Muito embora haja
riscos concretos (éticos e outros) na actividade da investigação científica, a
retórica com que a ciência é amiúde representada nos filmes, livros e até na
imprensa popular, é muitas vezes injustificadamente negativa. Isto deve-se
possivelmente ao facto de a sociedade não conseguir criar oportunidades para
um envolvimento público com a ciência, nas quais os problemas concretos que
afectam tanto os cientistas como os não-cientistas sejam discutidos de uma
maneira acessível e transparente.
No final deste capítulo estará habilitado a:

• Analisar os debates éticos actuais sobre os métodos e os objectivos da
investigação científica.
• Identificar o modo como os interesses na ciência podem entrar em conflito com
os interesses individuais na sociedade ou promovê-los.
• Explicar a complexidade da relação entre a ciência e a sociedade em termos de
obrigações e responsabilidades mútuas.
• Formar uma opinião sobre em que medida a investigação científica deve ser
autónoma e se o princípio da liberdade da investigação pode ser justificado.

6.1 Instrumentalização

São muitas as razões por que a investigação científica como actualmente a
concebemos pode ser considerada geradora de questões éticas ou a precisar de
regulação ética. Por exemplo, podemos perguntar-nos se é legítimo conduzir
experiências com seres humanos ou animais não humanos quando estão
presentes alguns riscos para a saúde, ou quando a dor e o sofrimento precisam de
ser infligidos como parte do objectivo experimental.
Há um argumento a favor da alegação de que nas actividades de investigação
que envolvem seres humanos ou animais é moralmente objectável usar seres
humanos ou animais exclusivamente como um meio — para obter conhecimento,
por exemplo — quando estes indivíduos não beneficiam dos resultados da
investigação. O poder persuasivo desse argumento não depende da avaliação dos
riscos potenciais. Mesmo se os riscos que os sujeitos da investigação correm
forem insignificantes, poder-se-ia argumentar que o uso de indivíduos com
direitos e interesses para finalidades que podem não os beneficiar directamente é
moralmente dúbio.
O argumento é frequentemente atribuído a Kant, segundo o qual nunca devemos
usar seres humanos apenas como fins (Kant 1785). Em anos mais recentes, os
teóricos dos direitos dos animais tornaram esta ideia extensiva à protecção de
alguns animais. Tom Regan (1983), por exemplo, defendeu que os mamíferos de
um ano ou mais nunca devem ser usados na investigação, dado que possuem
certas capacidades que justificam que lhes sejam atribuídos interesses, bem
como uma versão fraca de autonomia. De acordo com esta linha de pensamento,
várias actividades que podem conduzir à instrumentalização (ou a uma forma
moralmente ilícita da mesma), como o uso de um outro indivíduo unicamente
como um meio para atingirmos os nossos próprios fins, devem ser evitadas
mesmo que o risco real de causar danos a humanos ou animais seja baixo. Para
os utilitaristas, ao invés, não há uma resposta clara sobre se em geral os seres
humanos ou os animais não humanos devem ser usados na investigação (Singer
1974). É preciso calcular os benefícios e os riscos em cada caso, e decidir qual é
a melhor maneira de agir, dependendo de factores como: 1) a relevância dos
resultados experimentais esperados; 2) o nível de dor, de stress ou de sofrimento
que vai ser infligido aos participantes; 3) o nível de complexidade das
capacidades psicológicas dos indivíduos envolvidos; 4) a existência de métodos
de investigação alternativos que sejam fiáveis, etc. Uma experiência com
grandes benefícios potenciais que envolve um pequeno número de ratos mas que
não lhes causa uma dor significativa pode ser aceitável. Uma experiência menos
prometedora em termos da relevância dos resultados esperados e que implica
confinar e infligir dor a um grande número de primatas pode não ser aceitável.

Exercício: E capaz de dar alguns exemplos de instrumentalização?

Discussão: Usar pessoas ou animais para os seus próprios fins será sempre
moralmente objectável?

Discussão: Acha que é sempre moralmente permissível usar animais não
humanos na investigação biomédica?

A noção de instrumentalização precisa de ser esmiuçada. O uso de participantes
humanos na investigação científica pode não ser moralmente problemático se
certos princípios éticos — como o respeito pela autonomia pessoal — forem
tidos em conta. Frequentemente, tal princípio requer a obtenção do
consentimento informado da parte dos participantes, ou seja, que sejam
abertamente informados sobre os riscos que a sua participação na investigação
implica, e que a relevância do estudo lhes seja explicada de forma clara. Se é
verdade que a investigação científica, seja pura ou aplicada, beneficia todos os
seres humanos, então os próprios participantes podem estar interessados na
realização e no desenvolvimento das actividades de investigação desde que os
riscos para a sua saúde física e psicológica sejam reduzidos. Poder-se-ia
argumentar que «usar outros» não é uma prerrogativa da investigação científica.
Muitas das actividades humanas comummente aceites e por vezes até
promovidas nas nossas sociedades (a política, as empresas comerciais ou a
publicidade, por exemplo) e muitas formas de interacção social entre indivíduos
ou grupos de indivíduos (a amizade, o casamento, por exemplo) implicam
alguma forma de instrumentalização. A instrumentalização não é
necessariamente um aspecto moralmente objectável das nossas práticas
humanas, mas torna-se moralmente objectável quando implica exploração — ou
seja, quando os interesses de outros seres humanos ou dos animais não são
respeitados no uso que deles fazemos (a escravatura, por exemplo). Ainda que a
exploração de outros seres humanos seja amplamente reconhecida como
moralmente impermissível na nossa sociedade, a questão da exploração dos
animais é muito mais controversa no que respeita a práticas comuns como a
agricultura intensiva ou a investigação médica. Não há um consenso
relativamente à questão de os seres não humanos terem um estatuto moral, e,
mesmo quando se admite que o têm, o que isto implica para a forma como são
tratados não é claro.
Em ética, os filósofos correlacionam amiúde, implícita ou explicitamente, aquilo
a que um indivíduo tem direito de um ponto de vista moral com a complexidade
da vida mental do mesmo. Esta correlação (a chamada «abordagem psicológica
ao estatuto moral») ocupa um papel central em muitas tentativas de responder à
questão sobre se devemos atribuir direitos ou estatuto moral aos indivíduos que
não têm as capacidades que normalmente as pessoas têm — como a capacidade
de deliberação racional e de autoconsciência.

Exercício: Existem outras abordagens no sentido de determinar que obrigações
morais temos e para com quem as temos. Uma das perspectivas é a de que deve
ser atribuída uma protecção especial aos mais vulneráveis, quer tenham ou não
capacidades psicológicas comparáveis às nossas. Consegue dar um exemplo ao
qual esta linha de raciocínio possa ser aplicada?

O debate sobre a permissibilidade moral da investigação científica com animais
não humanos e embriões humanos (a investigação oncológica com ratos ou
qualquer investigação com células estaminais, por exemplo) é um bom exemplo
de como a opinião pública e a sociedade em geral têm impacto na ciência, e em
especial no modo como alguns objectivos de investigação são perseguidos.
Ninguém põe em causa que fazer avançar a medicina e descobrir tratamentos
para doenças tão debilitantes como a doença de Alzheimer são objectivos de
pesquisa eticamente legítimos, mas a questão que se coloca é se todos os meios
para atingir tais fins são permissíveis, ou se devem ser aplicados alguns limites
sobre que seres podem ser usados, a que seres pode ser infligido sofrimento ou
que seres podem ser destruídos para tais fins. Além da questão da
instrumentalização e da exploração e de outros constrangimentos éticos
aplicáveis aos métodos de investigação, há também um debate acalorado sobre
que prioridade deve ser atribuída às finalidades e aos objectivos dos projectos de
investigação publicamente financiados, dados os recursos limitados afectados à
ciência, bem como sobre se alguns objectivos de investigação devem ser
completamente postos de parte por razões éticas.
Exploraremos estas questões analisando alguns exemplos específicos, tentando
tirar algumas conclusões gerais sobre a forma que tais debates podem assumir e
sobre como se pode avançar no que a eles respeita.

6.2 Constrangimentos éticos aos objectivos da investigação

Há duas razões independentes pelas quais os objectivos de uma proposta de
investigação podem ser objecto de um exame ético minucioso. Pode haver
argumentos morais no sentido de que os recursos públicos para a investigação
não são ilimitados e devem ser distribuídos de uma forma justa, dando
prioridade às áreas de investigação em que um maior benefício pode ser obtido
para o maior número de pessoas ou para os mais desfavorecidos, por exemplo —
dependendo do conceito de justiça subjacente. Este tipo de limitação dos
objectivos da investigação é controverso, pois pode sujeitar o progresso da
ciência à tomada de decisão política no que respeita às questões da afectação de
recursos.
Pode também haver razões para não dar seguimento a uma proposta de
investigação que tem como objectivo provar uma tese que é eticamente dúbia —
como a superioridade de uma raça sobre outra, por exemplo. Muitos programas
de investigação activos no período do domínio nazi na Alemanha tinham o
objectivo explícito ou implícito de provar a inferioridade mental da população
judaica. Um exemplo desta tentativa de «psicologia racial» era a recolha de
indícios a favor da tese de que alguns traços intelectuais necessários para se ser
bem-sucedido na matemática eram racialmente distribuídos: a hipótese era que
os matemáticos judeus eram bons em termos analíticos (como outras populações
latinas), e que a imaginação e a intuição dos matemáticos alemães eram mais
desenvolvidas. Estas mesmas teses — que não eram de todo apoiadas por
indícios fiáveis, baseando-se em rumores — torna vam-se objecções a estilos
particulares de fazer matemática (ver os artigos de Ludwig Bierbach sobre a
vulgaridade da matemática judaica durante a década de 1930), e foram usadas
como uma razão para boicotar prelecções de colegas judeus e para lhes recusar
lugares académicos.
Mais recentemente, a investigação sobre a guerra biológica ou química pode
servir como exemplo de investigação científica com objectivos moralmente
objectáveis, dado ser provável que as potenciais aplicações da investigação
venham a causar danos em vez de promover o bem-estar.

Exercício: É capaz de dar exemplos de outros programas de investigação cujo
objectivo principal pode ser considerado objectável em termos morais?

Discussão: Acha que as preocupações morais devem funcionar sempre como um
constrangimento no que respeita à questão de aceitar um projecto de
investigação, dados os seus objectivos?

No que se segue examinaremos o exemplo de um projecto de investigação cujo
objectivo (o aperfeiçoamento genético) tem sido considerado por alguns eticistas
como moralmente inaceitável, e por outros como algo que devíamos ser
obrigados a promover.

6.2.1 Duas noções de deficiência

Suponha que dentro em breve vai ter um filho, e que sabe que há medidas
simples que pode tomar para se certificar de que ele será saudável. Suponha, em
particular, que, se seguir o conselho do médico, pode evitar que o seu filho tenha
uma deficiência, pode torná-lo imune a uma série de doenças perigosas e até
pode melhorar a sua inteligência futura. Tudo o que precisa de fazer para que
isto aconteça é cumprir alguns requisitos quanto ao seu estilo de vida e
alimentação. Terá razões morais (ou obrigações morais) para seguir o conselho
do médico? Seria diferente se, em vez de seguir requisitos alimentares simples,
assentisse à aplicação da engenharia genética para se certificar de que o seu filho
não teria deficiência alguma, seria saudável e teria uma inteligência acima da
média?
No debate sobre a ética do aperfeiçoamento genético, um dos argumentos
avançados é o de que se concordarmos que a deficiência deve ser evitada,
também deveríamos concordar que devem ser postos em prática
aperfeiçoamentos, uma vez que a deficiência e o aperfeiçoamento parecem estar
num continuum. É claro que esta perspectiva depende da concepção de
deficiência que se escolhe, e baseia-se na abordagem da deficiência com base na
condição danosa (Harris 1992), que se opõe à concepção social da deficiência
(Reindal 2000; Koch 2001).
Na explicação com base na condição danosa, faz sentido afirmar que certas
condições em que a pessoa se encontra podem ser consideradas incapacitantes
no seio do meio físico ou social em que está inserida quando se trata de
condições causadoras de dano em que uma pessoa racional preferiria não se
encontrar. O que todas as condições incapacitantes têm em comum é que de
alguma maneira causam dano às pessoas que nelas se encontram (expondo-as a
riscos, prejudicando a sua actividade, limitando as suas oportunidades ou
impedindo que tenham experiências que valham a pena ser vividas). Nesta
perspectiva, as condições incapacitantes constituem uma desvantagem no que
respeita a alternativas relevantes, mas não necessariamente no que respeita às
condições do ser humano representativo. A alteração de factores ambientais ou
novas descobertas sobre o surto de doenças graves, por exemplo, podem levar a
que as condições normais da nossa espécie se tornem incapacitantes.
De acordo com a concepção social de deficiência, todas as características
incapacitantes da condição desapareceriam se a sociedade fosse inclusiva e livre
de discriminação ou preconceito. Embora seja certamente verdade que certas
atitudes na sociedade relativas às pessoas que são consideradas diferentes só
podem piorar as coisas para as pessoas deficientes, em muitos casos, e
possivelmente na maioria dos casos, a sua condição prejudicial persistiria uma
vez reformada a sociedade (a surdez ou a síndrome de Down, por exemplo).
Geralmente, a concepção com base no dano da condição é preferida à concepção
social de deficiência, pois consegue explicar como certas condições em que a
pessoa se encontra permanecem incapacitantes mesmo depois das questões de
discriminação serem tratadas e da sociedade ser libertada de preconceitos.

Exercício: De que modo um defensor da concepção social de deficiência poderia
responder a este argumento?

Um caso em que uma condição incapacitante deixaria de ser prejudicial se a
sociedade fosse reformada é o de uma deficiência inteiramente causada pelo
contexto social adverso. Por exemplo, a história diz-nos que nascer do sexo
feminino na Europa do século XIX seria uma condição incapacitante comparada
com ter nascido do sexo masculino. Excepções à parte, às mulheres era negado o
exercício de toda a forma de tomada de decisão autónoma, e frequentemente não
tinham a oportunidade de receber instrução. Da mesma maneira, nascer
actualmente num país em vias de desenvolvimento em vez de num país
desenvolvido é, na maior parte dos casos, uma condição incapacitante, devido às
consequências em termos de saúde, educação, oportunidades de emprego e
muitos outros aspectos da vida das pessoas.
Estas condições prejudiciais deixariam de ser consideradas incapacitantes se
pudéssemos alterar o contexto social, político e económico. A concepção de
deficiência com base na condição danosa consegue reconhecer que as condições
incapacitantes podem ter uma série de causas sem se comprometer com a ideia
de que ao alterar os factores sociais, políticos e económicos, todas as
deficiências desapareceriam.
A partir da perspectiva de uma explicação da deficiência com base no dano da
condição, é possível explorar a relação entre deficiência e aperfeiçoamento. O
continuum dano-benefício é a ideia de que há continuidade entre as razões para
não causar dano a outros e as razões para os beneficiar. Poderia parecer que se
temos razões morais para impedir que as pessoas se encontrem em condições
incapacitantes, também poderíamos ter razões morais para melhorar as suas
condições, quer sejam incapacitantes, quer não. Outras questões que se colocam
são sobre se estas razões morais são (pelo menos em alguns casos) obrigações
morais, e se é errado não aperfeiçoar pessoas a quem poderíamos deste modo
beneficiar. Examinaremos algumas objecções comuns ao aperfeiçoamento, e
concluiremos que há pelo menos três maneiras possíveis de conceber a ética do
aperfeiçoamento que são compatíveis com a explicação da deficiência com base
no dano da condição.
Poderia parecer que temos razões morais para impedir condições incapacitantes
como parte do nosso compromisso com o princípio moral básico de evitar danos
desnecessários. Isto significa que, quando podemos escolher, devemos dar a vida
a pessoas sem condições incapacitantes (conhecidas), ao invés de a darmos a
pessoas em tais condições. Isto, porém, nada diz sobre se essas razões morais
dão origem a uma obrigação moral, ou sobre como a devemos pôr em prática. A
lista seguinte inclui apenas algumas das formas como se pode evitar gerar uma
pessoa com uma deficiência: adiamento da concepção; alteração do
comportamento; terapia genética; selecção de embriões pré-implantação; aborto.
Pode reconhecer-se a obrigação moral de impedir ou erradicar deficiências, e
ainda assim objectar, por razões morais ou outras, aos métodos mediante os
quais a obrigação pode ser posta em prática. Além disso, a força da obrigação
pode variar de acordo com o contexto da condição incapacitante e de acordo
com o grau do dano que a condição incapacitante provavelmente causará às
futuras pessoas.

Exercício: Considere o seguinte exemplo (a partir de Harris 2004) e identifique
as razões éticas que seriam relevantes para tomar uma decisão neste caso. Uma
mulher tem à sua disposição seis embriões pré-implantação in vitro que
aguardam implantação. Três desenvolverão asma e três parecem ser saudáveis.
Que embriões deverá a mulher implantar? Agora considere o seguinte caso e
explique de que modo difere do anterior: é dito a uma mulher que se conceber
imediatamente terá uma criança com asma, mas que se adiar a gravidez, se fizer
um tratamento e depois conceber, terá uma criança saudável. O que deve ela
fazer?

6.2.2 Objecqões ao aperfeiçoamento

Se aceitarmos que há razões morais para, quando possível, impedir ou erradicar
uma deficiência, ficaremos obrigados por isto a reconhecer que também temos
razões morais para proceder ao melhoramento? Esta pergunta coloca-se com
uma força particular àqueles que acreditam que há um continuum entre os danos
e os benefícios. Nesta perspectiva, as razões que temos para evitar causar dano a
outros são contínuas com as razões que temos para lhes conferir benefícios, se
pudermos. Em algumas teorias da responsabilidade para agir, segundo as quais
podemos proteger as pessoas dos danos, escolher não o fazer é tornar-se
responsável pelos danos que podíamos ter impedido. Todas as acções são
passíveis de ser redescritas como omissões, e vice-versa. A decisão de salvar
uma vida é a decisão de não permitir que alguém morra.

Exercício: Imagina que implicações contra-intuitivas esta ideia de
responsabilidade moral pode ter?

Se aceitarmos a ideia de que há um continuum dano-benefício e que temos uma
razão moral para evitar causar danos desnecessários a outros, também temos
uma razão moral para conferir benefícios a outros, e esta razão moral pode
tornar-se uma obrigação positiva na qual os custos para nós próprios são
razoáveis, dado o grau do benefício. Isto é apoiado pela analogia intuitiva entre a
deficiência e o aperfeiçoamento. Se as condições incapacitantes constituem uma
desvantagem no que respeita a alternativas relevantes, as condições
aperfeiçoadas constituem uma vantagem. Além disso, é fácil imaginar cenários
em que não melhorar a condição de uma pessoa significa criar uma deficiência.
Num meio em que a maioria das pessoas viu a sua memória a longo prazo ser
aperfeiçoada em 20 por cento, as pessoas cuja memória não foi aumentada estão
em desvantagem em alguns contextos; se fosse desenvolvida uma vacina eficaz
contra o VIH/SIDA, aqueles que não estivessem protegidos estariam em grave
desvantagem.
Contudo, há inúmeras objecções ao desenvolvimento de programas de
investigação com o objectivo de aperfeiçoar condições e capacidades, e
passaremos aqui em revista algumas. Na literatura da bioética, na imprensa e até
na cinematografia recente, os aperfeiçoamentos são encarados com grande
desconfiança.
Há muita gente preocupada com a segurança das tecnologias do aperfeiçoamento
e com o conhecimento limitado que mesmo os especialistas têm sobre as
consequências da engenharia genética em certos domínios. Embora possa haver
muito boas razões para decidir contra o aperfeiçoamento com base em
preocupações relativas à segurança dos procedimentos, este argumento não é
suficiente para mostrar que melhorar não é ético. Se houvesse um avanço
científico significativo, a segurança dos procedimentos poderia ser confirmada e
as consequências do aperfeiçoamento poderiam ser controladas. Nessa altura,
não haveria objecção alguma a avançar com o aperfeiçoamento.
Outra objecção ao aperfeiçoamento deriva da ideia persistente de que o natural é
bom e que o não-natural é mau: em poucas palavras, que devemos dar
prioridade ao natural em detrimento do artificial. Ainda que comum, a crença de
que o natural deve ter prioridade sobre o artificial tem sido considerada errada
por muitos. Na medida em que os alimentos que surgem naturalmente são mais
seguros ou mais saudáveis, há uma razão para preferi-los; em muitos casos,
porém, os alimentos preparados artificialmente são mais seguros e mais
saudáveis. Quando os processos naturais são menos dispendiosos ou provocam
menos danos no ambiente, há razões para preferi-los. Por conseguinte, não há
razão alguma para preferir um processo natural a um processo artificial na
ausência de outras considerações relevantes. Estes exemplos pretendem mostrar
que o natural per se é moralmente neutro. Por vezes os acontecimentos naturais
são bons, como um fabuloso pôr do Sol ou uma colheita abundante.
Frequentemente, porém, o natural provoca grandes danos (a pestilência ou as
enchentes, por exemplo), podendo causar enormes perdas de vidas humanas.
Poder-se-ia caracterizar a prática da medicina (e da ciência em geral) como a
grande tentativa de mudar o curso da natureza, pois as pessoas ficam
naturalmente doentes, são invadidas por organismos naturais como vírus e
bactérias, e morrem naturalmente em tenra idade, frequentemente enquanto
bebés. Se déssemos sempre prioridade ao natural, teríamos de renunciar à prática
da medicina e às descobertas da ciência médica, incluindo as vacinas e os
antibióticos.

Exercício: Consegue pensar noutros debates onde há uma aceitação acrítica da
ideia de que o que é natural é bom?

Há outras duas objecções que frequentemente andam a par. Uma é a objecção do
«brincar a Deus» — a ideia de que ao procedermos a certos aperfeiçoamentos
somos culpados de arrogância. Esta ideia traduz-se nos seguintes termos: «Não é
suposto que os seres humanos criem melhores seres humanos, pois isso seria
arrogante da sua parte. Deveriam apenas aceitar o que Deus ou a Natureza lhes
deu, sem tentarem melhorá-lo.» Esta objecção não é muito interessante, mas
conduz frequentemente a uma segunda e mais interessante objecção: Quais são
as consequências dos aperfeiçoamentos? Ao intervir nos genes, podemos
modificar a natureza humana e evoluir por nós próprios. Haverá algo de errado
nisto?
Uma possível resposta dependeria da ideia de que a espécie humana tal como é
deve ser preservada. Isto decorre da crença de que há algo de intrinsecamente
bom no ser humano. Mas será que é realmente a humanidade enquanto tal, o seu
conceito biológico, que valorizamos? O que é de valor nos humanos talvez seja o
facto de normalmente também serem pessoas, com a capacidade de terem
consciência de si mesmas, de tomar decisões por si de uma maneira racional e
autónoma, e de terem sentimentos e emoções complexos. O facto de todas as
pessoas que conhecemos serem seres humanos é apenas um acaso. Se
encontrássemos essas características das pessoas em seres não humanos, íamos
(ou devíamos) ainda valorizá-las e estimá-las. Tais considerações podem apoiar a
ideia de que o valor intrínseco e o estatuto moral não dependem da espécie a que
os indivíduos pertencem, mas do facto de serem pessoas, e de, enquanto tal,
terem interesses de um certo tipo. Possivelmente, ser humano não é nem
necessário nem suficiente para ter direitos. Se reconhecermos que o que justifica
conceder direitos a indivíduos não é a espécie a que pertencem mas os interesses
que possam ter, nesse caso a questão sobre se devem ser concedidos direitos a
pós-humanos resolve-se facilmente. O «humanos» na expressão «direitos
humanos» serve apenas para salientar que as diferenças de raça, género e riqueza
não são relevantes para apurar se tais direitos devem ser concedidos a alguém.
Se levarmos a sério a preocupação de alguns filósofos com outro tipo de
preconceito ou discriminação — o especismo —, o termo «humanos» terá de
sair e «direitos humanos» passará a ser «direitos das pessoas».

Discussão: Acha que os direitos devem ser reservados aos seres humanos
enquanto tal?

Um outro conjunto de objecções decorre das implicações sociais da prática
comum do aperfeiçoamento. Normalmente, pensa-se que algumas estratégias de
aperfeiçoamento — como a engenharia genética — serão bastante dispendiosas,
e que só os mais abastados poderão delas beneficiar. Como consequência, as
divisões sociais actuais tornar-se-ão ainda mais intransponíveis. As pessoas com
mais meios terão mais vantagens sobre as outras: uma saúde melhor, mais
inteligência, mais talentos, etc. Embora esta preocupação seja justificada, note-se
que não constitui uma objecção ética ao aperfeiçoamento enquanto tal, mas sim
uma preocupação no que respeita à distribuição justa dos recursos. Se nos
preocupamos em saber se os aperfeiçoamentos serão justamente distribuídos,
isto significa que estes são considerados uma coisa boa.
Há quem pense que a prática de submeter capacidades ao aperfeiçoamento e à
engenharia genética conduzirá a uma revisão total da nossa concepção de
agência. Normalmente, os agentes têm uma certa liberdade de acção e são
sujeitos ao elogio pelos seus feitos ou à censura pelos seus fracassos. Porém, se o
feito físico ou intelectual do agente é apenas marginalmente devido ao seu
esforço e à sua disciplina, e principalmente resultante de um fármaco poderoso,
por exemplo, o feito pode já não constituir uma boa razão para admirar o agente.
O argumento pretende mostrar que a utilização generalizada de
aperfeiçoamentos pode conduzir a um sentimento de agência e de
responsabilidade reduzidos. Para avaliar a força deste argumento, torna-se
necessário ser capaz de explicar o que as consequências da prática do
aperfeiçoamento realmente representam para a nossa concepção de agência. Em
parte, trata-se de uma questão empírica. Sabemos como são as nossas reacções
psicológicas actuais ao consumo de drogas ilícitas pelos atletas: achamos que é
fazer batota. Todavia, o cenário em que é dada a oportunidade a todas as pessoas
de melhorar a sua condição é significativamente diferente, e as nossas reacções
podem reflectir essa mudança. Não é de todo óbvio que perderíamos o
sentimento de posse das nossas acções se as capacidades que tornaram possível
atingirmos algo desejável com as nossas acções tivessem sido aperfeiçoadas.
Uma consequência possível dos aperfeiçoamentos generalizados poderia ser um
efeito de «subir a bitola», que pouco subtrairia aos méritos dos feitos pessoais do
indivíduo.
Dito isto, a objecção da agência reduzida parece promissora. Suponha que é um
corredor e que quer aumentar a sua velocidade em 20 por cento. Suponha
também que há dois métodos para atingir este alvo: pode tomar um comprimido
que melhorará imediatamente a sua velocidade, ou pode treinar três horas por dia
durante dois meses (note-se que estas estratégias são ambas estratégias de
aperfeiçoamento). Ora, pode ter uma razão moralmente relevante para preferir o
método mais difícil. Pode valorizar a autodisciplina e pensar que crescerá como
pessoa se atingir esse objectivo, fazendo um esforço consciente para aperfeiçoar
o seu corpo durante dois meses. Pode achar que o sentimento de satisfação que
teria no final do treino por ter atingido o objectivo vale o tempo e o esforço
requeridos. Porém, todas estas considerações de valor não significam que seria
não ético escolher a opção fáci.

Discussão: Em que outras circunstâncias o progresso científico pode afectar a
justiça social e alterar a «condição humana»?

Esta última objecção presta-se a mais considerações sobre tipos diferentes de
aperfeiçoamento. No exemplo do corredor que quer ver a sua velocidade
aumentar em 20 por cento e tem uma escolha, ele pode treinar três horas por dia
durante dois meses ou tomar um comprimido. Qual das duas estratégias é a mais
natural? «Natural» pode referir-se a: 1) dons naturais com que nascemos e que
não adquirimos; 2) características que consideramos normais, por oposição às
que resultam da doença; 3) características que se mantiveram inalteradas por
oposição às que alterámos; 4) algo que pertence ao mundo da natureza e que não
foi processado ou manufacturado. Uma estratégia não é obviamente melhor que
a outra. E verdade que um treino regular pode não implicar qualquer dos
processamentos artificiais que a preparação do comprimido pode envolver, mas
não parecemos objectar eticamente a este tipo de processamento artificial
quando tomamos medicamentos ou consumimos alimentos que não foram
criados por nós. É claro que podemos preferir evitar um processamento
excessivo e optar pelos chamados remédios «naturais» ou por alimentos de
cultivo próprio quando possível, mas estas preferências não seguem
necessariamente razões morais. Não pensamos que é moralmente errado comprar
legumes num supermercado. E nenhuma estratégia é natural dos outros pontos
de vista. Ambas visam a alteração de uma característica (a velocidade a correr)
que não é inata, mas adquirida. E correr três horas por dia não é algo que as
pessoas normalmente façam.
Pode haver estratégias de aperfeiçoamento cujo objectivo principal seja a
prevenção de uma doença e o aumento da esperança de vida, e estratégias de
aperfeiçoamento que visem melhorar as capacidades cognitivas ou a aparência
física. Embora muitas pessoas pensem que há uma diferença intuitiva entre estes
diferentes objectivos de aperfeiçoamento, é difícil traçar, de um ponto de vista
ético, uma linha divisória clara entre eles. Se não é errado desejar que o nosso
filho seja mais saudável, inteligente ou bonito, é difícil ver como poderia ser
errado satisfazer esse desejo caso pudéssemos.
A diferença entre os vários objectivos ou finalidades do aperfeiçoamento assenta
nos riscos que valeria a pena correr para atingi-los. Enquanto poderia ser
justificável correr riscos consideráveis para curar uma doença terrível ou para
nos protegermos da morte quase certa numa pandemia, seria difícil justificar a
exposição dos nossos filhos a riscos simplesmente para mudar a cor dos seus
olhos ou fazer deles melhores jogadores de ténis.

6.2.3 Teremos a obrigação moral de proceder ao aperfeiçoamento?

Tendo em conta os aspectos deste debate que até agora explorámos, há pelo
menos três posições que podiam ser defendidas com base na aceitação da ideia
da condição danosa e do continuum dano-benefício. Na perspectiva do dever
moral claro para conferir benefícios, não importa quão ligeira a deficiência seja
ou insignificante o aperfeiçoamento, os pais têm razões fortes, que são sempre
razões morais, para minimizar o dano ou conferir benefícios à pessoa a quem
vão dar a vida (sujeitas, claro está, a um método seguro para atingi-lo, e à
natureza benéfica inequívoca dos efeitos propostos).
Numa perspectiva em que se estabelece um limiar, os pais têm razões morais
fortes para impedir uma condição incapacitante ou para proceder a um
melhoramento só quando ao não fazê-lo estão a causar danos consideráveis aos
seus filhos. No contexto das escolhas reprodutivas, as acções dos pais deixam de
ser moralmente neutras e tornam-se sujeitas à aprovação ou condenação moral
quando produzem efeitos significativos na pessoa a quem vão dar a vida em
condições prejudiciais que podem ser impedidas, ou outras condições que podem
ser melhoradas. Se a desvantagem causada por não impedir uma condição
incapacitante ou não melhorar outra condição se situa abaixo de um certo limiar,
nesse caso não há razões morais para agir. Todavia, se a desvantagem for
significativa, há razões morais para agir.
Na perspectiva da escala móvel, todas as acções estão sujeitas ao escrutínio
moral e não apenas aquelas que produzem efeitos significativos em termos de
benefícios e danos para pessoas futuras. A ideia é que os pais têm sempre razões
morais fortes para o aperfeiçoamento e impedir a deficiência, mas que há uma
diferença importante entre a opção do dever moral claro e a escala móvel. Na
primeira, conferir benefícios ou impedir danos está certo, e não conferir
benefícios ou causar dano está errado, não importa quão ligeira a deficiência seja
ou importante o aperfeiçoamento. A razão para agir é uma razão moral, e o grau
de valorização ou condenação das nossas acções varia juntamente com o grau de
benefício conferido ou dano impedido. Por conseguinte, as razões para impedir
as condições incapacitantes causadas pela holoprosencefalia têm um impacto
moral muito maior do que as razões para aumentar a inteligência em 15 por
cento, por exemplo. Não estamos a falar do grau da força das razões motivadoras
— que podem obviamente variar igualmente nas três opções descritas —, mas
do facto de serem razões morais antes de mais.

Discussão: Qual das posições descritas estaria preparado para defender? E
porquê?

Uma vantagem da opção do dever moral claro é que é uma opção coerente e
simples, que parece ser compatível com a nossa concepção de deficiência como
uma condição prejudicial e com o continuum dano-benefício. O problema desta
opção é que do ponto de vista moral algumas distinções que muitas pessoas
acham intuitivamente fortes (a distinção entre o impedimento da deficiência
grave e o aperfeiçoamento para benefícios menores) não são transparentes.
A posição do limiar tem dois problemas graves. Um deles é epistemológico.
Nunca é fácil medir quão prejudicial ou benéfica uma condição é, pois isso nem
sempre pode ser feito fora do contexto ou intersubjectivamente. Este tipo de
cálculo torna-se ainda mais difícil quando aplicado a futuras pessoas, cujos
interesses e inclinações ignoramos. A perda de um dedo pode ser mais
significativa para alguém que poderia desenvolver a ambição de se tornar um
grande pianista do que para alguém que não teria interesse algum em tocar
instrumentos musicais, ainda que seja incapacitante para ambos. O outro
problema é se esta opção é realmente compatível com o continuum dano-
benefício. Se reconhecemos que uma condição é prejudicial para alguém, parece
seguir-se que há razões morais para impedir tal condição independentemente do
grau do dano. Poderão as acções que visam impedir o dano ser moralmente
neutras?
A opção da escala móvel tem alguns dos problemas epistemológicos que afectam
a opção do limiar, mas no geral é mais compatível com o continuum dano-
benefício. O que parece pouco atraente nesta opção é a conclusão de que
algumas razões para agir só podem ser parcialmente morais. Embora seja
perfeitamente razoável defender que podemos ter várias razões para agir de uma
certa maneira, já é mais difícil acreditar que cada uma das nossas razões para
agir é apenas parcialmente uma razão moral.

Exercício: Aplique as considerações que antes discutimos (as repercussões
sociais de um novo desenvolvimento científico ou de uma nova tecnologia na
distribuição justa dos recursos, por exemplo) a um caso de um outro objectivo
eticamente controverso de um programa de investigação científica (tratamentos
para prolongar a vida, por exemplo).

6.3 Constrangimentos éticos aos métodos de investigação

Quando pensamos na maneira como a investigação é conduzida e nas
consequências da concepção e do cenário experimentais para os participantes na
investigação, entram em jogo outras questões. Há razões morais para nos
certificarmos de que o bem-estar e a autonomia das pessoas são tidos em conta, e
de que não se causam danos desnecessários aos indivíduos.

6.3.1 A abordagem à ilusão na psicologia

Será ético iludir os participantes numa investigação em psicologia social?
Muitos autores defenderam que não (Kelman 1967; Bok 1999), e que os códigos
de ética existentes — que permitem o uso da ilusão em algumas circunstâncias
experimentais — precisam de ser revistos (Clarke 1999; Herrera 1999; Pittinger
2003). Será que o uso da ilusão deve ser interditado na investigação em
psicologia social? Os que defendem a legitimidade do seu uso argumentam que
os potenciais danos infligidos aos participantes não são graves se os
constrangimentos promulgados pelos códigos de conduta actuais forem
respeitados, e que os potenciais benefícios que as experiências podem
proporcionar aos próprios participantes e à sociedade em geral têm uma grande
importância ética.
No que se segue passaremos em revista alguns dos argumentos a favor e contra o
uso da ilusão na investigação psicológica. Os códigos deontológicos da
American Psychological Association (APA) e da British Psychological
Association (BPS) permitem o uso de métodos que façam uso da ilusão, ou
dissimulação, em experiências psicológicas, mas também impõem limites ao uso
de tais métodos, e exigem que sejam cumpridas certas condições na sua
utilização. Embora haja diferenças nas recomendações feitas nos dois códigos,
ambos requerem que a ilusão só seja usada quando:

1. Não há outros procedimentos eficazes para obter os resultados experimentais
desejados.
2. Se espera que os resultados sejam muito significativos.
3. Não é causado dano físico ou perturbação grave aos participantes na
investigação.

Recomenda-se que os experimentadores relatem aos participantes na
investigação, o mais imediata e cautelosamente possível após a experiência, toda
a informação relevante sobre a estrutura, a finalidade e o valor da experiência.
Para todos os pormenores, sugerimos que consulte o artigo 8.07 do APA Ethical
Principies of Psychologists and Code of Conduct (2002), e o BPS Ethical
Principies for Conducting Research with Human Participants (1992) [Poderá
consultar o Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses em:
https://www.ordemdospsicologos.pt/pt/cod_ deontologico#.Ubo8oPn2Z8E. - N. do T.]

Exercício: Haverá situações experimentais em que as condições 1, 2 e 3 não
podem ser satisfeitas mas em que o uso da ilusão metodológica pode ser
justificado?

Pese embora os vários constrangimentos impostos por estes códigos
profissionais ao uso da ilusão na investigação psicológica, alguns comentadores
sugeriram que os participantes na investigação não estão suficientemente
protegidos dos possíveis danos da ilusão, e que os códigos deviam ser revistos
em conformidade (Ortmann e Hertwig 1997; Pittinger 2002). Ora, quais são os
argumentos contra o uso constrangido da ilusão em psicologia?

6.3.2 Objecções à ilusão metodológica

Em muitos casos, a finalidade dos métodos que fazem uso da ilusão em
psicologia é assegurar que os participantes na investigação não se apercebem do
aspecto do seu comportamento ou da sua psicologia que está a ser estudado. A
lógica metodológica subjacente é que saber que alguém está a estudar como nos
comportamos em certas circunstâncias pode afectar, e frequentemente afecta, a
maneira como nos comportamos em tais circunstâncias. Porém, o uso
generalizado da ilusão na investigação psicológica pode ser metodologicamente
contraproducente. Se a ilusão fosse usada na maioria das experiências de uma
disciplina e se os potenciais participantes nas experiências estivessem cientes
deste facto, qualquer experiência na disciplina geraria desconfiança nos
participantes. Estes tentariam avaliar de antemão o experimentador, o que
tornaria os resultados experimentais muito difíceis de interpretar. Será que os
resultados indicariam como as pessoas normalmente se comportam, ou como se
comportam quando tentam avaliar de antemão um experimentador?
Herbert Kelman (1967) chamou a atenção para esta possibilidade numa época
em que o uso da ilusão não era tão minuciosamente regulamentado como hoje.
Contudo, graças em parte aos constrangimentos ao uso da ilusão promulgados
pelos códigos deontológicos antes mencionados, apenas algumas das
experiências conduzidas por psicólogos para estudar o comportamento humano a
envolvem. Por este motivo, o risco de a ilusão se tornar uma estratégia
contraproducente por razões metodológicas é, de momento, extremamente
reduzido.
O argumento mais influente contra o uso da ilusão na investigação psicológica
será provavelmente o de que viola a autonomia pessoal dos participantes
enganados, e que a autonomia pessoal dos participantes na investigação nunca
deve ser violada. Pode ser desenvolvido criando uma analogia entre a
investigação psicológica e outros exemplos de investigação científica que
envolve seres humanos, como a investigação biomédica. Se a investigação
psicológica com seres humanos se tem de conformar às mesmas directrizes que
se aplicam, por exemplo, à investigação biomédica, nesse caso o princípio do
respeito pela autonomia pessoal exige o consentimento informado dos
participantes na investigação no que respeita aos procedimentos experimentais.
Nos estudos que implicam o uso da ilusão, os participantes permanecem no
desconhecimento de pormenores importantes da investigação em que tomam
parte, e por conseguinte não são completamente informados. Podem estar
enganados no que respeita ao verdadeiro objectivo da investigação, ou ao papel
desempenhado por outros actores no cenário experimental.
O argumento que estamos a considerar tem duas versões, uma mais forte e outra
mais fraca. A versão mais forte diz que a ilusão viola sempre a autonomia
pessoal dos participantes na investigação, e que por isso devia ser sempre
interditada em situações experimentais, uma vez que deve procurar-se sempre
um consentimento totalmente informado. A versão mais fraca, ao invés, chama
atenção para o facto de na investigação biomédica haver circunstâncias nas quais
o potencial sujeito é incapaz de dar ou de negar o consentimento no que respeita
à sua participação numa dada experiência. Isto pode suceder quando o sujeito é
um paciente inconsciente ou gravemente doente, por exemplo. Nestes casos, é
possível e legítimo pedir o consentimento em nome do paciente a um
representante legal ou a um familiar próximo, depois de ter sido proporcionada
informação sobre os pormenores do protocolo da investigação e sobre o papel
que nela terá o paciente. Trata-se de uma forma de consentimento informado
indirecto. Por conseguinte, na investigação biomédica, o consentimento
informado directo nem sempre é necessário para que a autonomia pessoal do
sujeito seja respeitada. De acordo com esta perspectiva, o mesmo se aplicaria à
investigação psicológica. Se a obtenção do consentimento informado directo
comprometesse o valor dos resultados experimentais, poder-se-ia procurar o
consentimento informado indirecto; caso não fosse possível dispor de algum dos
tipos de consentimento, a experiência não seria conduzida.

Exercício: Saber se o consentimento informado é a melhor forma de proteger a
autonomia pessoal é uma questão controversa, mesmo no contexto da
investigação biomédica. Quais poderiam ser os argumentos contra esta ideia?

A desanalogia entre o caso da investigação biomédica e o caso da investigação
psicológica é digna de nota. A razão por que o consentimento informado directo
não é por vezes uma opção possível no caso biomédico é que os participantes
não podem dar o seu consentimento (devido ao seu estado de saúde ou à
ausência de capacidade). Quando consideramos a psicologia, a razão prende-se
com uma necessidade metodológica, com o facto de que informar o participante
na investigação sobre a natureza da experiência invalidaria a mesma. Para que a
versão mais fraca do argumento seja aceite, temos de admitir que a diferença
entre os dois casos é irrelevante no que respeita aos requisitos do princípio do
respeito pela autonomia pessoal.
Poder-se-ia argumentar que, uma vez as medidas já em vigor, tal é suficiente
para garantir o respeito pela autonomia pessoal dos participantes na
investigação: estes são informados antes da experiência sobre o possível uso da
ilusão, são esclarecidos com tacto sobre a investigação após a experiência ter
sido conduzida, e têm sempre a opção de a abandonar a qualquer momento. O
facto de os participantes poderem não estar na posse de todos os pormenores
relevantes sobre a finalidade, a concepção ou o cenário experimentais não
implica que o princípio do respeito pelas pessoas seja posto de parte ou violado.
De acordo com Alan Elms (1982), é provável que o uso da ilusão na
investigação psicológica cause dano não só aos participantes na investigação
enganados, como também aos investigadores e à sua profissão. Os
investigadores podem tornar-se moralmente corruptos como resultado do
emprego de estratégias que fazem uso da ilusão, e o conhecimento público da
existência de tais estratégias pode enfraquecer a confiança nos investigadores em
geral. Porque é que o princípio da confidencialidade é tão importante na
medicina? Não o é só porque serve para proteger o direito à privacidade dos
doentes, mas também porque ajuda a criar e a manter boas relações entre os
doentes e os clínicos. Da mesma maneira, a transparência pode ajudar a
aumentar a confiança por parte do público em geral nos psicólogos
experimentais, e também pode contribuir para atrair mais apoio para as suas
investigações. Nesta perspectiva, uma consequência a longo prazo do uso
generalizado da ilusão em áreas sensíveis poderia ser a desconfiança por parte do
público nos psicólogos em particular e nos cientistas em geral. Se a relação de
confiança entre os potenciais sujeitos experimentais e os experimentadores é
sistematicamente violada, os experimentadores podem acabar por ficar com má
reputação, e o número de pessoas que desejam participar na investigação
psicológica — e financiar instituições que a promovem, seja através de
donativos ou dos impostos — pode diminuir (Lawson 2001).
Também se pode objectar à ilusão metodológica considerando que os
experimentadores que dela fazem uso se arriscam a tornar-se moralmente
corruptos. Todavia, eles sabem que a ilusão é um instrumento metodológico. O
seu motivo para a utilizarem é simplesmente o desejo de conduzir experiências
metodologicamente robustas. Ao contrário de outras formas de engano humano,
não há uma motivação «malévola» por detrás do uso do engano experimental.
Neste contexto, a ilusão não é motivada pelo desejo de defraudar alguém, ou de
obter uma vantagem injusta sobre alguém, etc. A sua natureza puramente
metodológica torna improvável que a ilusão metodológica produza algum efeito
sobre as personalidades ou as inclinações morais dos experimentadores.

Exercício: É capaz de dar exemplos de outros contextos nos quais o uso da
ilusão é aceite?

O risco de a ilusão experimental manchar a reputação da psicologia será também
reduzido se as experiências forem conduzidas de uma maneira profissional. Se as
pessoas em geral e os participantes nas experiências psicológicas em particular
compreenderem que a ilusão experimental é apenas um instrumento
metodológico indispensável e não o resultado de um desejo «malévolo» da parte
do experimentador, não é provável que se crie algum sentimento de desconfiança
para com os investigadores. Isto é assim especialmente se, como as directrizes
actuais especificam, após a experiência ter sido concluída, os participantes na
investigação forem informados sobre as razões por que a experiência foi
conduzida, por que foi metodologicamente necessária alguma forma de ilusão
neste caso particular, e sobre o valor potencial dos resultados experimentais
esperados. Os participantes devem ser escrupulosamente informados sobre como
foram evitados riscos, deve ser-lhes permitido fazerem perguntas e devem ser
tranquilizados no que respeita ao valor da investigação. Isto gerará
frequentemente um sentimento de satisfação por terem contribuído para a
obtenção de resultados importantes. Além disso, e como veremos, mesmo
quando o que os participantes ficam a conhecer sobre si mesmos é perturbador,
esses potenciais efeitos prejudiciais podem ser mitigados pela compreensão de
que a forma de comportamento por eles apresentada durante a experiência não é
de todo uma ocorrência isolada.

6.3.3 Benefícios da ilusão metodológica

Todo o debate sobre se o engano é moralmente permissível resultou de uma
reflexão sobre as consequências potencialmente prejudiciais do seu uso nos
participantes em investigações. O exemplo clássico citado no contexto de uma
discussão dos potenciais efeitos psicológicos prejudiciais a longo prazo é a
famosa experiência conduzida por Milgram sobre a tendência das pessoas para
obedecerem à autoridade. Quando os participantes nesta experiência foram
recrutados, foi-lhes dito que iam fazer parte de um estudo sobre a memória e
sobre o modo como a punição afecta a aprendizagem. No laboratório, era dito a
cada participante que ele ou ela tinha de desempenhar o papel do «professor» e
que outro participante na sala tinha de desempenhar o papel do «aluno». O
participante genuíno desconhecia que na realidade o aluno era cúmplice do
experimentador. Era suposto o professor fazer perguntas ao aluno e, no caso de
as respostas estarem erradas, administrar choques eléctricos de uma voltagem
progressivamente mais elevada mediante um dispositivo electrónico simples. O
participante desconhecia que na realidade o aluno não recebia choque eléctrico
algum. O aluno só fingia que sentia dor quando o participante «administrava» o
choque eléctrico, e as suas manifestações de dor eram proporcionais à voltagem
do choque eléctrico que o participante julgava administrar. No geral, quando as
queixas de dor do aluno se tornavam relativamente pungentes, os participantes
manifestavam o seu mal-estar com o que (julgavam que) acontecia ao aluno.
Muitos pediram ao investigador para parar a experiência. Em resposta a tais
pedidos, o experimentador exigia obediência, insistindo que era muito
importante que o professor seguisse as instruções independentemente de quão
altos fossem os gritos do aluno. No final, 65 por cento dos participantes
infligiram (o que julgavam ser) choques eléctricos da voltagem mais elevada ao
seu respectivo aluno, pese embora as súplicas deste para parar (Milgram 1974).

Discussão: Acha que foi não ético conduzir a experiência de Milgram?

Actualmente, muitos comentadores consideram a experiência de Milgram um
exemplo paradigmático do uso não ético da ilusão na investigação psicológica.
Os participantes foram iludidos sobre a finalidade da experiência e sobre o papel
dos experimentadores e dos alunos. Além disso, foram colocados numa situação
deveras angustiante devido ao facto de os experimentadores lhes ordenarem que
seguissem as instruções apesar do seu mal-estar. Após o esclarecimento, os
participantes tiveram de lidar com o conhecimento do facto de terem sido
capazes, sob a influência da autoridade, de infligir uma dor considerável a seres
humanos inocentes. As directrizes para os esclarecimentos pós-investigação de
então não eram como as de hoje, e é possível que muitos participantes não
tenham recebido uma explicação adequada sobre a natureza da experiência e a
sua razão de ser. É possível que o esclarecimento então apresentado não tenha
ajudado todos os participantes a lidar com o incómodo psicológico gerado pela
tomada de consciência do que tinham feito.
Considera-se frequentemente que a experiência de Milgram causou danos
psicológicos significativos aos participantes na investigação. Todavia, o grau dos
danos efectivamente causados aos participantes permanece controverso. Elms
(1982), que trabalhou nos bastidores da experiência e entrevistou os
participantes após a mesma, afirma que os danos sofridos foram
surpreendentemente reduzidos dado o que esperava depois de ter testemunhado
as suas reacções durante a experiência. Para ele, a experiência tinha sido
angustiante, mas não mais do que um filme emotivo ou uma entrevista de
emprego decepcionante.
Saber se a experiência produziu danos psicológicos significativos nos
participantes é uma questão empírica difícil, uma questão que não pode ser
respondida apelando a intuições não testadas ou a observações casuais.
Efectivamente, foi para responder a este tipo de questões que a psicologia
experimental foi criada. E muito provável que seja uma daquelas questões a que
só se pode responder recorrendo a métodos que fazem uso da ilusão em cenários
experimentais. Na realidade, não sabemos se experiências do tipo da de Milgram
produzem danos psicológicos significativos e a longo prazo nos participantes. Se
o fazem, nesse caso há razões morais para não as conduzir. Mas se as
experiências não produzem quaisquer danos psicológicos significativos, tais
razões morais já não se aplicam. Além disso, a existência de razões morais
contrárias à condução de uma experiência é compatível com a existência de
razões morais a favor da condução da experiência. Por conseguinte, o facto de
algumas experiências que fazem uso da ilusão gerarem algum nível de stress
psicológico nos participantes não implica por si só que tais experiências devam
ser interditadas.
Que razões morais pode haver a favor de conduzir tais experiências? A ilusão no
que respeita à finalidade principal da experiência é usada para evitar o chamado
«efeito de Hawthorne», ou seja, a tendência do participante na investigação para
se comportar de acordo com o que pensa que são as expectativas do
experimentador (Gillespie 1991). Na psicologia social, contudo, onde muitas
vezes o objecto da investigação é uma forma de comportamento indesejável,
pode ocorrer o efeito contrário. Por exemplo, se os participantes na investigação
são informados de que o objecto da experiência é o comportamento agressivo,
podem ficar inibidos e tentar activamente evitar um comportamento agressivo
enquanto a experiência durar.
Os indícios da psicologia sugerem que os dados fiáveis sobre o modo como as
pessoas se comportam em certas situações não podem ser obtidos perguntando-
lhes simplesmente como se comportaram ou como se comportariam em
situações semelhantes. As pessoas estão frequentemente enganadas no que
respeita às suas tendências comportamentais, e a forma como se descrevem ou
como revêem as descrições de si mesmas com base em indícios são normalmente
tendenciosas devido ao seu desejo (inconsciente) de corresponder a este ou
àquele perfil particular. Daqui segue-se que há circunstâncias nas quais é
praticamente impossível estudar um fenómeno sem fazer uso de alguma forma
de ilusão. Suponhamos que estamos a estudar o comportamento de ajuda em
situações de emergência. O que as pessoas dizem sobre o que fariam em
situações de emergência diz-nos muito pouco sobre o que realmente fariam em
tais situações. É que as emergências reais não acontecem quando se quer, nem é
permissível provocá-las intencionalmente. Por conseguinte, o comportamento de
ajuda em situações de emergência só pode ser estudado mediante emergências
simuladas, e estas são uma forma de ilusão. Consideremos a experiência do Bom
Samaritano (Darley e Batson, 1973), na qual os investigadores quiseram mostrar
que o comportamento altruísta é afectado por factores externos e contextuais e
não por traços de personalidade. Darley e Batson pretenderam mostrar que
quando as pessoas estão com pressa é muito menos provável que ofereçam a sua
assistência em situações de emergência, independentemente da sua
personalidade. Criaram uma experiência na qual era dito a alguns seminaristas
que tinham de chegar a um edifício a toda a pressa para cumprirem uma tarefa (é
irónico que se aluda à história do Bom Samaritano). A caminho do edifício, os
participantes encontravam um homem caído num beco, mas a maior parte deles
não parou para o ajudar. Aqueles que pensavam que estavam atrasados
apresentaram um comportamento menos altruísta do que os que não estavam tão
apressados.
Por outras palavras, há muitas situações experimentais nas quais a ilusão é
metodologicamente necessária para se obter resultados fiáveis. Mas isto não
significa só por si que neste contexto a ilusão seja moralmente permissível.
Como os geneticistas muito bem sabem, as experiências reprodutivas
controladas (por oposição às naturais) seriam metodologicamente necessárias
para se obter dados fiáveis sobre os efeitos dos genes humanos nos fenótipos
humanos. Pese embora isto, tais experiências não são moralmente permissíveis.
Para se determinar se a ilusão experimental é moralmente permissível, temos de
determinar quais são os seus benefícios morais e os seus custos morais, e depois
julgar se os benefícios pesam mais que os custos.

6.3.4 A ilusão na psicologia e além da psicologia

Um argumento presente na literatura diz que, dado que o uso da ilusão é
generalizado na vida de todos os dias e noutras áreas de investigação, não devia
ser interditado na psicologia social. Há quem tenha defendido que uma vez que o
uso da ilusão é tão generalizadamente aceite na pesquisa de mercado e nos
mercados laborai e imobiliário, também devia ser aceite na investigação em
psicologia social, pois não há boas razões para aplicar critérios diferentes aos
dois casos (Kimmel 2001; Riach e Rich 2004).
Contudo, não é suficiente defender que a ilusão é usada numa série de outros
contextos para mostrar que o seu uso na psicologia social é justificado. Antes de
mais, devem ser feitas comparações mais subtis para determinar se o uso da
ilusão na investigação em psicologia social é significativamente semelhante ao
uso da ilusão na pesquisa de mercado e nos mercados laborai e imobiliário no
que respeita às variantes relevantes (o peso dos custos e dos benefícios, etc.).
Além disso, o facto de uma prática ser generalizadamente aprovada ou tolerada
não a torna eticamente justificada. Não obstante, há casos em que pode ser feita
uma analogia proveitosa entre o uso da ilusão na psicologia social e o uso da
ilusão noutras áreas.
As considerações éticas a favor da ilusão provêm de uma perspectiva utilitarista.
Muitas experiências de valor que envolvem a ilusão não causam mal-estar ou
dano algum aos participantes na investigação. Nas experiências que causam
algum grau de mal-estar ou dano, há muitos casos em que a importância dos
resultados pesa mais que a importância do potencial malestar ou dano causados
aos participantes. Na psicologia social, uma investigação metodologicamente
sólida que requeira alguma forma de ilusão pode ter uma grande utilidade quer
para os participantes envolvidos, quer para a sociedade em geral. Uma boa
investigação pode contribuir para identificar alguns padrões comportamentais
que afectam negativamente tanto a pessoa que os apresenta como as que a
rodeiam e que experienciam esse comportamento. O conhecimento de tendências
comportamentais potencialmente prejudiciais pode ajudar a desenvolver
estratégias para evitar os seus efeitos nocivos.
Os resultados da investigação em psicologia social não ajudam apenas os
cientistas sociais a compreender melhor o comportamento humano e a forma
como as sociedades humanas funcionam. Também aumentam a autoconsciência
de cada pessoa que participou na investigação. Relembremos os famosos estudos
de Stanley Milgram sobre a obediência à autoridade. Não é difícil ver o valor
potencial dos resultados experimentais que Milgram obteve, especialmente se
considerarmos o contexto histórico no qual ele veio a interessar-se pela
obediência. Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram muitas questões acerca
dos mecanismos psicológicos e sociais que levaram um grande número de
pessoas a envolverem-se em actividades de limpeza étnica. Milgram queria
testar a sua hipótese de que as pessoas têm tendência para obedecer à autoridade
mesmo quando as acções que lhes pedem para executar vão contra alguns dos
seus valores mais profundamente pessoais. Os seus resultados tornaram
consciente na comunidade científica e em alguns sectores do público em geral
que a influência da autoridade pode levar uma pessoa a agir de uma maneira que
ela própria acha errada ou imoral. Isto é importante, pois tal consciência pode
ajudar as pessoas e as sociedades a impedir que acontecimentos como o
Holocausto ocorram no futuro.
Como antes referimos, se é provável que uma experiência cause algum mal-estar
ou dano aos participantes, há razões morais fortes contra a condução da
experiência. Mas quando o dano e o mal-estar para os participantes não são
graves, as razões morais a favor da condução da experiência podem pesar mais.
Pode argumentar-se que, se o dano psicológico infligido ao participante na
investigação ultrapassa um dado limiar, a experiência não é moralmente
justificada. E pode-se chegar a esta conclusão independentemente dos potenciais
benefícios para o participante na investigação ou para a humanidade como um
todo, pois a condução da experiência constituiria um acto de injustiça contra o
participante. Este argumento restringe o cálculo utilitarista dos custos e
benefícios de certas experiências ao dizer que os custos para o participante na
investigação não podem exceder um dado limiar. Porém, o argumento não
implica que deve haver uma interdição generalizada do uso da ilusão nas
experiências. Ao invés, em vez de uma interdição da ilusão, sugere que deve ser
identificado um limiar sensato para o dano psicológico ao participante na
investigação, e que devem ser concebidas regulamentações que assegurem que
esse limiar nunca é ultrapassado. É interessante notar que os códigos
deontológicos existentes insistem que uma experiência nunca deve ser conduzida
se for provável que cause danos psicológicos graves ao participante. Ou seja, as
regulamentações existentes tentam assegurar o não franqueamento de um limiar
sensato de dano e, por isso, parecem estar em conformidade com a proposta que
discutimos.
O estudo dos preconceitos e das atitudes tendenciosas contra indivíduos de uma
raça, género, idade, preferência sexual ou aparência física particulares pode
ajudar a detectar aspectos do comportamento humano que causam uma
discriminação injusta, que os indivíduos e a sociedade podem depois tentar
controlar ou alterar. É por esta razão que os resultados nesta área de investigação
têm tanto valor. Os dados sobre as tendências comportamentais relevantes
podem ser obtidos em situações laboratoriais, bem como em campo.
As implicações do uso da ilusão no laboratório de psicologia levantam muitas
questões. Haverá algum interesse importante do participante na investigação que
os investigadores retêm fazendo primeiramente uso da ilusão e só depois
relatando os resultados do seu estudo? Adquirir conhecimento sobre os nossos
próprios traços psicológicos negativos pode ser perturbador. Partindo do
princípio de que as pessoas estão interessadas em evitar situações
psicologicamente perturbadoras, segue-se que os participantes na investigação
estão interessados em não adquirir conhecimento sobre os seus próprios traços
psicológicos negativos, e por isso estão interessados em não ser iludidos por
investigadores que pretendem identificar e estudar traços psicológicos negativos.
Porém, a existência deste interesse por si só não mostra que o uso de métodos
que fazem uso da ilusão em experiências psicológicas é ilegítimo ou eticamente
problemático. Nem todos os interesses são legítimos e nem todos os interesses
têm a mesma importância ética. Um preconceito contra candidatos a um
emprego com excesso de peso gera uma vantagem injusta a favor dos candidatos
com um peso normal. Além disso, o preconceito prejudica as empresas, uma vez
que leva os empregadores a preferir contratar pessoas menos competentes com
um peso normal em vez de pessoas mais competentes com excesso de peso. Os
empregadores que estão cientes da existência deste preconceito podem ser
capazes de evitar a rejeição injusta dos candidatos com excesso de peso. Desta
forma, podem ser capazes de melhorar a eficácia do processo de recrutamento e
as possibilidades de êxito da sua empresa, bem como contribuir positivamente
para a justiça social. O conhecimento da existência do preconceito também pode
ser útil na criação de legislação antidiscriminatória e de outros mecanismos
correctivos. Por conseguinte, o interesse que os participantes na investigação
podem ter em permanecer ignorantes no que respeita aos seus preconceitos
discriminatórios inconscientes relativos a pessoas com excesso de peso é menos
eticamente importante do que os interesses que eles e a sociedade em geral têm
em saber da existência de tais preconceitos.
Também se pode objectar à importância ética dos interesses dos participantes na
investigação a partir de uma perspectiva diferente. É possível que para algumas
pessoas e em algumas circunstâncias, estar ciente dos seus próprios preconceitos,
limitações ou outros traços psicológicos negativos possa resultar numa
diminuição da auto-estima e ter consequências negativas na sua felicidade
futura. No geral, porém, se os resultados experimentais forem adequadamente
explicados e compreendidos, é pouco provável que tal aconteça.
Antes de mais, deve considerar-se que, nos casos que discutimos e em muitos
outros casos semelhantes, os traços psicológicos negativos detectados pelos
investigadores estão presentes num sector muito vasto da população. Por outras
palavras, tais traços são estatisticamente normais. Além disso, saber que alguém
tem uma tendência para cometer certos tipos de erros de raciocínio ou para se
envolver em certos tipos de comportamento discriminatório pode ter um efeito
positivo na concepção de si mesmo. Este conhecimento dá às pessoas a
possibilidade de tentar vencer as suas limitações. E o facto de uma pessoa estar
em melhor posição para vencer as suas próprias limitações pode melhorar e não
piorar a sua auto-estima.
Alguns autores defenderam que os métodos dissimulados e que fazem uso da
ilusão podem ser aceitáveis no jornalismo de investigação e nas actividades
policiais, militares e de espionagem, mas não na investigação das ciências
sociais, pois o cientista social tem mais responsabilidade do que o resto da
comunidade (Erikson 1967, p. 367). Muito embora haja diferenças relevantes
entre a investigação em psicologia social e, por exemplo, o jornalismo de
investigação, diferenças essas que podem afectar a justificação ética dos
métodos usados em tais actividades, o uso da ilusão nas experiências da
psicologia social pode ser efectivamente considerado menos eticamente
problemático do que o uso da ilusão em pelo menos alguns desses outros
contextos.
Centremo-nos no caso do jornalismo de investigação. Uma razão por que a
ilusão é entendida por algumas pessoas como mais problemática quando ocorre
na investigação em psicologia social do que quando ocorre no jornalismo de
investigação pode ter a ver com o facto de (pelo menos no entender das pessoas)
os potenciais benefícios da psicologia experimental produzirem menos impacto
do que os do jornalismo de investigação. Todavia, mesmo se frequentemente os
resultados da investigação psicológica não têm o mesmo potencial de primeira
página que as descobertas do jornalismo de investigação, podem ser tão ou mais
benéficos para a sociedade do que os do melhor jornalismo de investigação. Por
conseguinte, aqueles que concordam que a ilusão é um instrumento legítimo
num jornalismo de investigação profissional também deveriam concordar que a
ilusão é um instrumento legítimo em experiências psicológicas bem conduzidas.
Primeiramente, a conduta dos investigadores de psicologia social é mais
rigorosamente controlada do que a conduta dos jornalistas disfarçados. A razão
para tal é que, de acordo com as normas actuais, os investigadores são obrigados
a obter a permissão de comissões de ética para avançar com as suas experiências,
e têm de ser autorizados pelos próprios participantes a utilizar os dados gerados
por cada um deles, aquando do esclarecimento pós-investigação. Ao contrário,
presentemente não existem comissões de ética com o propósito de examinar as
investigações do jornalismo de investigação antes de serem conduzidas, e de
detê-las quando necessário — ainda que os jornalistas sejam passíveis de
processo judicial se invadirem propriedade privada e se se envolverem noutras
actividades semelhantes. Deve notar-se também que, mesmo quando os
investigadores causam alguma perturbação psicológica aos participantes na
investigação, na realidade estão a beneficiá-los ao permitir-lhes descobrir alguns
dos seus traços psicológicos e ao dar-lhes a oportunidade de passar a ter alguma
forma de controlo sobre tais traços. O mesmo não se aplica aos jornalistas do
jornalismo de investigação, cujo propósito é normalmente mostrar que alguém
tem conhecimento de que está a fazer algo que não devia ser feito.

Exercício: Consegue dar outros exemplos de casos concretos nos quais os
princípios do respeito pela autonomia pessoal e da beneficência poderiam
entrar em conflito?

Discussão: Acha que a investigação científica devia ser regulada mais
apertadamente do que as outras actividades humanas?

6.4 Constrangimentos éticos à investigação científica

Já vimos como as questões éticas podem surgir tanto dos objectivos como dos
métodos da investigação científica. Será que a investigação devia ser regulada de
uma forma que a diferenciasse das outras actividades humanas?
Olhando para as várias razões que militam a favor da regulação ética da
investigação, torna-se claro que as questões éticas podem surgir em quase toda a
actividade de investigação, mas o modo como as actividades de investigação
afectam os interesses e os direitos dos indivíduos envolvidos podem variar
consideravelmente. Contudo, da mesma maneira que há exemplos perfeitamente
respeitáveis de investigação científica que não parecem ser candidatos à
regulação ética, também parece haver actividades que não são consideradas
investigação e que são moralmente problemáticas (como os inquéritos
exaustivos com finalidades políticas que envolvem dados pessoais sensíveis).
Aparentemente, o grupo de actividades que levanta questões éticas e que precisa
de regulação ética não coincide com o grupo das actividades que são
consideradas investigação. A razão para tal será presumivelmente que o que
realmente importa de um ponto de vista ético é que os direitos dos indivíduos
envolvidos na actividade sejam salvaguardados e que os seus interesses sejam
escrupulosamente tidos em consideração. Quando pensamos nas actividades que
devem ser reguladas pela ética, a questão principal não deve ser se são
consideradas investigação científica de acordo com alguma proposta de
demarcação, mas se é provável que os interesses e os direitos dos indivíduos
sejam afectados. Outra maneira de abordar a questão é dizer que de um ponto de
vista ético algumas actividades deviam ser avaliadas como a investigação,
mesmo que não tenham como objectivo aumentar o conhecimento por meio de
um método cientificamente aceitável. Isto não significa que sejam investigação,
mas que devem ser monitorizadas devido aos efeitos que podem produzir.
Vou exemplificar esta ideia. O uso de fármacos inovadores não validados num
cenário terapêutico pode não ser considerado investigação se a contribuição
sistemática para um corpo de conhecimento não for a sua finalidade principal.
Contudo, em alguns casos, a avaliação ética pode ser apropriada. Se os riscos são
elevados, é defensável que uma comissão independente avalie cuidadosamente o
uso de fármacos não validados mesmo que isto não seja considerado
investigação. A liberdade de escolha terapêutica é um dos principais elementos
da profissão médica. Todavia, se os médicos fazem uso de um procedimento não
estandardizado que pode ser perigoso para o paciente, a sua actividade pode ser
tão eticamente problemática como um exemplo de investigação. Os médicos
podem ser irrealistas na sua avaliação e, como resultado, causar dano
desnecessário.
Da mesma maneira, se pensamos que alguns animais não humanos merecem
consideração moral directa e não devem ser confinados nem lhes deve ser
infligida dor desnecessariamente, a investigação que os envolve deve ser
regulada de modo a reduzir o potencial para frustrar tais interesses básicos.
Porém, outras actividades humanas que envolvem animais (como a agricultura
intensiva, por exemplo) também devem ser reguladas na mesma base. O mero
facto de outras actividades humanas não serem consideradas exemplos de
investigação não deve isentá-las de regulação ética.

Resumo
Neste último capítulo focámos um aspecto da relação complexa entre a ciência e
o resto da sociedade: a questão de saber se os objectivos da investigação
científica actual e se os procedimentos através dos quais estes objectivos são
perseguidos devem ser restringidos pela regulação ética. Explorámos estas
questões aludindo aos pormenores de dois debates bastante acalorados: um sobre
a ética do aperfeiçoamento no contexto da reprodução assistida, e o outro sobre a
legitimidade da ilusão metodológica em psicologia.
Ao longo do nosso exame da ciência, pusemos em causa as presumíveis
distinções metodológicas entre as ciências naturais e sociais, e entre a
racionalidade apresentada pelos cientistas e pelo pensar e teorizar quotidianos,
bem como por outras áreas nas quais o conhecimento é adquirido, sistematizado
e revisto. Se o argumento a favor da continuidade for bem-sucedido, nesse caso
parece não haver razões para acreditar que a investigação científica deve ser
restringida mais apertadamente de um ponto de vista ético do que qualquer outra
actividade humana que provavelmente terá impacto nos direitos e nos interesses
dos indivíduos envolvidos. Na medida em que a ciência é uma instituição
poderosa nas nossas sociedades, o seu trabalho tem de ser monitorizado e
avaliado como o trabalho de qualquer outra instituição poderosa. Porém, nada
parece haver de intrínseco à prática científica que a torne mais perigosa do que
qualquer outra prática humana.
Pelo contrário, a ciência parece investida de uma responsabilidade especial, pois
é ao fazer ciência que muitas vezes conseguimos avançar em direcção às nossas
metas: curar doenças que causam sofrimento; definir que indivíduos podem
sentir dor, para proteger os seus interesses; revelar as nossas tendências
implícitas para a discriminação racial e sexual; identificar áreas nas quais o
nosso juízo apressado cause injustiça; impedir condições incapacitantes (e a lista
poderia continuar). Neste aspecto, a ciência deve ser promovida, pois consiste
numa maneira de os indivíduos e as sociedades atingirem o progresso moral.

Questões para pensar
1. Em que sentido os cientistas têm uma responsabilidade ética para com o resto
da sociedade?
2. Haverá algum direito pessoal que não possa ser violado na investigação
científica?
3. Será que a investigação em países com culturas radicalmente diferentes das
nossas deve ser conduzida de acordo com os nossos princípios morais?
4. De que maneira podemos resolver o conflito entre o respeito pela autonomia e
a beneficência?
5. Como se pode fazer a sociedade confiar na ciência?

Leituras complementares
Outros debates éticos que consideram os objectivos (a clonagem reprodutiva
humana, por exemplo) ou nos métodos (o uso de animais na investigação
biomédica, por exemplo) de alguns projectos de investigação também podem ser
caracterizados em termos de haver constrangimentos éticos ou outros
constrangimentos sociais à prática da ciência. A bibliografia sobre objectivos de
investigação ambiciosos e os debates que os acompanham é abundante. O portal
Science in Society, do Economic and Social Research Council (ESRC)
(www.sci-soc.net/SciSoc/) e a selecção de podcasts no portal Science and
Society (www.scienceandsociety.net/ podcasts/) são alguns dos recursos gerais
na internet. Na bibliografia temática encontrará uma lista de leituras sobre
algumas questões específicas que geraram acalorados debates bioéticos, e poderá
encontrar outras se aceder aos relatórios direccionados a responsáveis políticos
(muitas vezes disponíveis na internet) e consultar obras de referência e
colectâneas de artigos em áreas específicas (genética, ética animal, ética
computacional, ética da investigação científica em países em vias de
desenvolvimento, etc.).
Saber se a ciência tem um contributo para o resto da sociedade ao criar
oportunidades de fazer o bem é também uma questão muito interessante a
colocar, negligenciada na literatura. Como aperitivo, recomendo o artigo
controverso de Harris (2005) sobre se há uma obrigação moral para apoiar ou
mesmo participar na investigação científica.

Conclusão: A ciência como actividade

A ideia com que ficamos quando consideramos em pormenor as questões
metodológicas, epistemológicas, ontológicas e éticas respeitantes à prática da
ciência é a de uma continuidade entre a investigação científica e as outras
actividades humanas. E aqui apenas entrevimos os muitos debates que põem em
questão o estatuto especial da ciência. Poderemos realmente assinalar o que faz
de uma actividade humana um exemplo de investigação científica? Quando os
cientistas defendem uma hipótese particular, será que empregam estratégias
argumentativas que não são acessíveis aos filósofos ou aos leigos? Será que as
teorias científicas captam a essência da realidade, ou será que apenas
proporcionam uma explicação de fenómenos que é adequada para uma
finalidade específica? Será que a mudança em ciência é sempre baseada em
princípios objectivos racionais? Será que conduz sempre ao progresso? Será que
a investigação científica devia ser regulada mais apertadamente ou mais
liberalmente do que outras actividades humanas que afectam interesses
moralmente relevantes? Na linguagem corrente, bem como na filosofia e na
sociologia da ciência, «ciência» (ou «científico») pode referir-se a coisas
diferentes:

1. Ao produto final da aplicação de um método de investigação a um certo
domínio. Neste sentido, «ciência» refere-se a um corpo de conhecimento com
certas características.
2. Ao processo de adquirir conhecimento de uma forma que é sensível a indícios
e aberta à crítica racional. Neste sentido, «ciência» refere-se a um método de
investigação.
3. A toda uma comunidade que se envolve na actividade definida em 1 e 2,
incluindo as pessoas que fazem investigação, as instituições onde trabalham, os
laboratórios onde conduzem experiências, as revistas onde publicam o seu
trabalho, os livros que escrevem, etc. Neste sentido, «ciência» refere-se a uma
instituição, a uma parte integrante de muitas sociedades humanas.

Nesta introdução, examinámos alguns aspectos de cada um destes significados
da palavra «ciência». Muito embora as considerações relevantes no que respeita
a 1, 2 e 3 não possam ser facilmente separadas, houve uma progressão das
questões sobre o método para a consideração da ciência como um corpo de
conhecimento, e finalmente para as pressões a que a ciência está sujeita
enquanto instituição, bem como para os seus valores. Nos capítulos 1, 2 e 3,
centrámo-nos no método da ciência, no processo mediante o qual o
conhecimento científico é adquirido e na forma como as teorias são estruturadas,
confirmadas com base em indícios e usadas na explicação de fenómenos
interessantes. Nos capítulos 4 e 5, virámo-nos para a ciência como um corpo de
conhecimento em contínuo desenvolvimento cuja linguagem se modifica com a
aceitação e a rejeição de teorias, e cujo progresso nem sempre é fácil de medir. A
função das teorias científicas também foi examinada: será que servem para nos
dar uma compreensão de como as coisas realmente são, ou são instrumentos
úteis para a previsão? Finalmente, no capítulo 6, considerámos a ciência como
uma comunidade de investigadores cujo trabalho é frequentemente restringido
por questões que afectam os interesses moralmente relevantes dos indivíduos na
sociedade, ou que tem um contributo importante para tais questões.
Será que conseguimos isolar um conjunto de características que só a ciência
apresenta? Não fomos bem-sucedidos nesta tarefa, mas por muito boas razões. O
que encontrámos foi uma continuidade significativa entre a investigação
científica e outras actividades humanas, entre as ciências naturais e sociais, e
mesmo entre a ciência e a filosofia. Mas salientar estes elementos de
continuidade e as dificuldades em demarcar a ciência não é tornar os epítetos
«ciência» ou «científico» obsoletos ou inúteis. Pelo contrário, só depois de
reflectirmos sobre os elementos de continuidade entre a ciência e a não-ciência
nos poderemos aperceber das muitas dimensões da investigação científica e
começar a compreender os valores muitas vezes implícitos a que nos referimos
quando dizemos que algo é uma ciência ou que é científico. Ainda que «ciência»
e «científico» não pareçam ser mais que termos descritivos, muitas vezes usamo-
los como termos valorativos. Quando chamamos a uma certa actividade um
exemplo de investigação científica ou nos referimos a uma disciplina como
científica, podemos querer salientar que correspondem a certos padrões de
racionalidade ou sistematicidade, ou podemos querer dizer que o seu âmbito é
limitado no que respeita aos seus objectivos ou à sua capacidade de ter em conta
interesses humanos relevantes. «A biologia evolucionista é ciência» pode ser um
juízo sobre a respeitabilidade intelectual das actividades envolvidas no
desenvolvimento da teoria da evolução, ou uma defesa perante aqueles que
criticam a disciplina como uma hipótese infundada. Porém, dizer «Isso é apenas
ciência» indica frequentemente que as questões de facto que podemos investigar
empiricamente por via dos métodos da ciência não esgotam o âmbito dos nossos
interesses.
Quando empregamos tais epítetos, não estamos apenas a descrever como uma
actividade ou uma disciplina são, mas também as avaliamos com base em
valores que dependem dos interesses que nós, enquanto indivíduos ou
sociedades, temos ao conduzir uma certa investigação sobre o contexto natural e
social em que vivemos e operamos. No último capítulo, discutimos com algum
pormenor os constrangimentos éticos que se aplicam a exemplos específicos de
investigação científica, e como se pode objectar a alguns objectivos ou
metodologias de investigação com base no impacto que podem ter em interesses
moralmente relevantes que queremos salvaguardar.
Porém, pode argumentar-se que, enquanto alguns interesses humanos podem
entrar em conflito com os interesses de alguns projectos científicos específicos,
outros não podem ser adequadamente salvaguardados sem promover a ciência.
Ao deixar a ciência florescer, garantimos o contributo constante da comunidade
científica como um todo para uma compreensão mais profunda dos problemas
que temos de enfrentar e do que pode melhorar o bem-estar dos indivíduos e das
sociedades.
O contributo prático da ciência para o resto da sociedade é óbvio em algumas
áreas: a investigação biomédica tem um impacto muito visível no
desenvolvimento de tratamentos para doenças debilitantes. Outros benefícios há,
porém, cuja aplicação é mais geral. A disponibilidade de hipóteses científicas
empiricamente fundamentadas permite-nos apoiar alegações empíricas em
argumentos sobre questões que afectam a sociedade como um todo. Por mais
falíveis que tais hipóteses sejam, a sua disponibilidade significa que podemos
justificar alegações empíricas com razões que estão abertas à avaliação e à
crítica racionais. Serão os psicopatas moralmente responsáveis pelas suas
acções? Serão as galinhas que andam à solta mais felizes que as de aviário? Os
conflitos armados conseguirão conduzir à democracia? Estas são perguntas
impregnadas de valores sobre algumas das questões com que nos preocupamos,
enquanto indivíduos e enquanto sociedade, mas não podem ser respondidas sem
a análise de alguns dos conceitos envolvidos (a felicidade, a responsabilidade
moral, a democracia, por exemplo) e — o que é crucial — sem uma avaliação
escrupulosa das alegações empíricas que são apoiadas ou rejeitadas com base na
investigação científica (como saber se o confinamento, por oposição ao andar em
liberdade, afecta negativamente o bem-estar físico e psicológico das galinhas).
O progresso que a ciência nos permite fazer não é medido exclusivamente em
termos de dar origem a avanços tecnológicos ou a uma série de avanços na
medicina. Também é medido em termos da justificação que a ciência torna
disponível para as crenças que são a base da nossa interacção social e da nossa
compreensão do que nos rodeia.



Glossário





O seguinte glossário contém definições básicas de termos filosóficos relevantes e
uma breve introdução a algumas das ideias, movimentos filosóficos e autores
mencionados no texto.

a posteriori A verdade de uma afirmação é conhecida a posteriori se é conhecida
com base na experiência. a priori A verdade de uma afirmação é conhecida a
priori se é conhecida independentemente da experiência. ad hoc Expressão
latina que significa «para este propósito». Uma explicação é ad hoc se envolve
hipóteses que são introduzidas com a única finalidade de salvar uma teoria da
falsificação, analítica (afirmação) Uma afirmação cuja verdade ou falsidade
depende da sua estrutura lógica ou do significado dos termos que contém. Por
exemplo: «Todos os edifícios altos são edifícios»; «Os gatos são animais»,
anomalia Literalmente, «desvio da norma». Usada em filosofia da ciência para
indicar a incongruência entre um acontecimento observado e o que a teoria
actual tinha previsto.
anterior (probabilidade) Probabilidade de um acontecimento/hipótese antes de
ser tida em conta nova informação, antinaturalismo No contexto do debate sobre
o estatuto das ciências sociais, o antinaturalista defende uma descontinuidade
significativa entre as metodologias e os objectivos das ciências naturais e sociais,
alegando que os factos sociais devem ser explicados em termos de significado,
finalidade ou interpretação, e não em termos de relações causais e leis da
natureza, aperfeiçoamento Qualquer estratégia ou tratamento que vise melhorar
condições existentes. O termo é frequentemente usado para fazer referência aos
aperfeiçoamentos genéticos que podem ser aplicados a uma série de condições e
capacidades, como por exemplo a imunidade a certas doenças ou o
aperfeiçoamento de competências cognitivas.
Aristóteles (384-322 a. C.) Filósofo grego que contribuiu em grande medida,
mediante os seus ensinamentos e escritos abrangentes, para a fundação da lógica,
da metafísica, da epistemologia, da ética e da filosofia política, assim como da
biologia, da física e da astronomia, autonomia (princípio do respeito pela
autonomia pessoal) A autonomia é o autogoverno e a autodeterminação, a
capacidade que os agentes têm de formar crenças e intenções, tomar decisões e
agir com base em razões que reflectem os seus valores, sem serem coagidos. O
princípio do respeito pela autonomia pessoal diz que temos a obrigação de
respeitar as crenças, escolhas e acções dos agentes autónomos. O que o princípio
implica é controverso, mas é frequentemente considerado como a base para
práticas que visam proteger a confidencialidade e obter o consentimento
informado, axiomático (sistema) Um sistema axiomático contém: termos
primitivos indefinidos; termos definidos; axiomas (afirmações aceites sem
demonstração) e teoremas (afirmações sujeitas a demonstração), axiomatização
A axiomatização é a tentativa de captar a estrutura e o conteúdo de uma teoria
científica num sistema formal de afirmações. Algumas destas afirmações contêm
termos primitivos indefinidos (axiomas), e as outras afirmações (teoremas) são
delas dedutivamente derivadas. A axiomatização requer que se caracterize com
alguma precisão o domínio dos objectos postulados pela teoria, proporcionando
uma lista de termos primitivos, regras de composição de fórmulas bem
formadas, definindo que afirmações são axiomas, etc.
Ayer, Alfred (1910-1989) Filósofo inglês que divulgou as teses fundamentais do
movimento positivista lógico na sua muito influente obra Linguagem, Verdade e
Lógica (1936).
Bacon, Francis (1561-1626) Filósofo e político que pôs em causa as ideias de
Aristóteles e codificou o indutivismo como a base da metodologia científica. A
sua obra metodológica fundamental, Novum Organum, surgiu em 1620.
Bayes (Teorema de) O teorema de Bayes tem sido usado para formalizar
explicações subjectivistas de informação e aspectos da confirmação de teorias
científicas. O teorema diz que a probabilidade de uma hipótese H condicional a
um dado corpo de dados I é a razão entre a probabilidade incondicional do
conjunto da hipótese e dos dados, e a probabilidade incondicional dos dados por
si só.
bayesianismo A ideia de que as noções de justificação e confirmação científicas
podem ser captadas pelo Teorema de Bayes.
beneficência (princípio da) Beneficência significa literalmente «fazer o bem».
O princípio da beneficência diz que temos obrigação de fazer o bem, isto é, de
beneficiar os outros, bem como de impedir que lhes seja feito mal e de afastar
deles o mal. Tanto a formulação exacta do princípio como as suas implicações
são uma questão controversa em ética.
Black, Max (1909-1988) Filósofo da linguagem, matemática e ciência
influenciado por Frege, Russell e Wittgenstein. Defendeu que a indução pode ser
indutivamente justificada sem risco de circularidade.
Bohr, Niels (1885-1962) Físico responsável pelo desenvolvimento de um
modelo da estrutura do átomo com base em elementos da teoria quântica de
Planck. Autor de A Teoria Atómica e a Descrição da Natureza (1934).
Boyd, Richard Filósofo da ciência e da mente contemporâneo, sobretudo
conhecido por defender o realismo científico. Autor de muitos artigos e de uma
antologia de leituras essenciais, A Filosofia da Ciência.
Boyle, Robert (1627-1691) Cientista que contribuiu para a pneumática e para a
química, e que nos seus escritos defendeu uma explicação mecanicista da
natureza e uma abordagem experimental à ciência. Foi um dos fundadores da
Royal Society de Londres.
Carnap, Rudolf (1891-1970) Membro principal do movimento do Positivismo
Lógico, contribuiu significativamente para uma variedade de questões da
filosofia da ciência, adoptou a perspectiva clássica sobre as teorias e defendeu a
possibilidade de proporcionar uma tradução de afirmações teóricas para
afirmações observacionais via regras de correspondência. E autor de A Estrutura
Lógica do Mundo (1928), A Sintaxe Lógica da Linguagem (1934) e de
Fundamentos Filosóficos da Física (1966).
categorias naturais Modo de classificar as coisas na natureza (por oposição aos
artefactos). Para o essencialista, as categorias naturais agrupam coisas quando
estas têm as mesmas propriedades essenciais (frequentemente identificadas com
uma estrutura física subjacente). Para o anti-essencialista, as categorias naturais
agrupam as coisas quando este agrupamento serve alguma finalidade útil (para
fazer generalizações ou explicar fenómenos, por exemplo).
causal (teoria da referência) De acordo com esta teoria da referência, um
nome/termo para uma categoria natural adquire o seu referente por via de um
baptismo inicial, e mais tarde refere-se a essa entidade ao manter uma ligação
causal com o baptismo original, independentemente dos conceitos que os
falantes a ele associem.
cérebros em cubas Cenário céptico tornado famoso por Hilary Putnam, que
imagina um cientista malévolo que retira os cérebros às pessoas durante a noite e
os coloca em cubas. O cientista liga os cérebros a uma máquina sofisticada de
estimulação sensorial que reproduz as sensações que os cérebros receberiam se
ainda estivessem nos corpos e interagissem com o mundo exterior.
circularidade Um argumento é circular se uma das premissas é idêntica à
conclusão ou se as premissas são tais que não estamos em posição de as
conhecer se não conhecermos já a conclusão, confirmação Qualquer processo
por meio do qual a probabilidade de uma hipótese ou teoria científica ser
verdadeira aumenta. Normalmente consiste em observações que são compatíveis
com as previsões que podem ser feitas com base na hipótese ou na teoria em
conjunto com hipóteses auxiliares, construtivo (empirismo) Perspectiva
desenvolvida por Van Fraassen que difere do realismo científico no ponto em
que nega que as teorias actuais são verdadeiras ou aproximadamente
verdadeiras, mas que também difere do instrumentalismo, uma vez que nega que
as teorias não sejam susceptíveis de verdade. O empirista construtivo acha que
não há uma boa justificação independente para acreditar que as teorias são
verdadeiras e devemos apenas aceitar as teorias actuais enquanto empiricamente
adequadas.
contingente O oposto de «necessário». Algo que é, mas que podia não ter sido.
Ter escrito este livro é contingente (podia não o ter escrito), conversão. Na
explicação da mudança científica por Kuhn, a mudança de um paradigma para
outro requer a conversão, uma vez que não pode ser motivada por uma
argumentação racional baseada em indícios. Isto porque os indícios não podem
ser neutros no que respeita a paradigmas concorrentes e porque não há razões
independentes de um paradigma para preferir um paradigma a outro.
Copérnico, Nicolau (1473-1543) Cientista responsável pela defesa sistemática
da teoria heliocêntrica do movimento dos planetas, apoiando-a em indícios
astronómicos pormenorizados no seu tratado Das Revoluções dos Corpos
Celestes, que surgiu em 1543 e é considerado o impulsionador da revolução
científica, correspondência (regras de) Afirmações que contêm tanto termos
teóricos como observacionais que pretendem proporcionar um sistema formal
com conteúdo empírico, e que por conseguinte permitem que os termos de uma
teoria sejam primeiro interpretados e depois testados. A questão sobre se as
regras de correspondência são analíticas (como as definições) ou sintéticas é
objecto de controvérsia. Eis um exemplo (Carnap 1966): «Se há uma oscilação
electromagnética com uma frequência específica, há uma cor azul-esverdeada
visível de uma certa tonalidade». É estabelecida uma correspondência entre um
termo teórico («oscilação electromagnética») e um termo observacional («cor
azul-esverdeada»).
corroboração Esta noção, introduzida e desenvolvida por Popper, refere-se ao
desempenho de uma teoria no passado e, em particular, à forma como sobreviveu
à discussão crítica e a testes rigorosos.
Darwin, Charles (1809-1882) Naturalista que iniciou uma revolução científica
com as suas ideias, defendidas na obra A Origem das Espécies (1859), sobre a
evolução das espécies. Em A Descendência do Homem (1871) defendeu que os
humanos e outros primatas têm um antepassado comum, gerando fortes reacções
na imprensa popular da época.
dedução Modo de inferência no qual a verdade das premissas pretende garantir a
verdade da conclusão.
dedutivismo Estilo de raciocínio oposto ao indutivismo e defendido por Popper
como o método da ciência. De acordo com esta perspectiva, partimos do geral
para o específico, e avaliamos afirmações gerais delas derivando hipóteses que
podem ser submetidas a testes.
demarcação (critério de) Explicação sistemática do que faz a ciência ser
diferente da não-ciência ou da pseudociência. Os positivistas lógicos pensavam
que a verificabilidade podia proporcionar um critério de demarcação, ao passo
que Popper defendeu que a falsificabilidade tinha melhores hipóteses. Após a
viragem social na filosofia da ciência, muitos autores sugeriram que factores
externos ao método científico são relevantes para o que é e não é considerado
ciência.
deontologia Abordagem à ética segundo a qual a questão sobre se uma acção é
certa ou errada não depende das consequências que se seguem da acção, mas
antes se diz respeito a certos princípios gerais (as ideias éticas baseadas no dever
foram defendidas de uma forma sistemática por Immanuel Kant). A teoria dos
direitos é frequentemente integrada numa abordagem deontológica, e diz-nos
que temos obrigações especiais para com certos indivíduos com base no seu
estatuto.
Descartes, René (1596-1650) Matemático, físico e filósofo que rompeu com a
tradição aristotélica e tentou desenvolver novas teorias sobre o espaço e o
movimento. Também se interessou pela metodologia científica e filosófica, tendo
tido uma grande influência nos pensadores da sua época. Autor de Meditações
(1641), Princípios da Filosofia (1644) e de As Paixões da Alma (1649).
descritivismo Na filosofia da linguagem, a ideia de que os termos vêem a sua
referência fixada pelas descrições que os falantes a eles associam. Frege e
Russell são considerados descritivistas. designador rígido Um designador rígido
é um termo que se refere ao mesmo objecto ou propriedade em todos os mundos
possíveis e que a nada mais se pode referir. Se pensarmos que «água» é um
designador rígido, em todos os mundos onde não há uma substância com as
mesmas características da água, o termo «água» não refere. A questão das
características definidoras ou essenciais da água permanece em aberto. Putnam
acredita que os termos para categorias naturais são designadores rígidos, e que
«água» designa todas as substâncias com a mesma microestrutura daquilo a que
chamamos «água» na Terra (H20). Duhem, Pierre (1861-1916) Físico,
matemático e filósofo da ciência que escreveu sobre a relação entre as
observações e a teoria, e que defendeu que as previsões falhadas tanto podiam
falsificar a teoria testada como apenas as hipóteses auxiliares necessárias para a
testagem (a tese de Duhem-Quine). Também defendia uma visão instrumental
das leis científicas. Autor de A Teoria Física, o seu Objecto e a sua Estrutura
(1906/1914).
dúvida hiperbólica Quando Descartes quis encontrar uma verdade de que não
pudesse duvidar para nela basear o seu método para a investigação filosófica,
imaginou a existência de um génio maligno que o enganava constantemente.
Entre outras coisas, a existência deste génio fez Descartes duvidar de toda a sua
experiência dos sentidos. A dúvida hiperbólica é frequentemente considerada
como o ponto de partida dos argumentos cépticos contra o realismo ingénuo.
Einstein, Albert (1879-1955) Físico que se interessava pela filosofia e pela
cosmologia. Desenvolveu a teoria da relatividade restrita guiado pela intenção de
conciliar a mecânica newtoniana com as leis do electromagnetismo. empatia Já
foram formuladas diferentes noções de empa tia, mas uma definição geral
considera o modo como uma pessoa pode compreender as crenças e as emoções
de outra, não pela mediação de uma teoria, mas pondo-se no seu lugar. Alguns
autores consideram que a empatia desempenha um papel importante na
explicação em ciências sociais.
empírica (adequação) Uma teoria é empiricamente adequada se for compatível
com os indícios disponíveis e se não for por eles refutada, empirismo (adj.
empirista) Oposto do racionalismo. Perspectiva segundo a qual todo o
conhecimento provém da experiência dos sentidos, enraizamento Característica
de um predicado que está incorporada no discurso quotidiano e é usada para
descrever objectos e fazer previsões sobre observações futuras, equante e
epiciclos Conceitos matemáticos desenvolvidos por Ptolomeu para explicar o
movimento aparentemente anómalo de alguns corpos celestes no seu modelo
geocêntrico do universo, equivalência lógica (princípio da) Se duas hipóteses são
logicamente equivalentes, qualquer afirmação observacional que confirme uma
das hipóteses também confirmará a outra.
essencialismo A ideia de que algumas coisas (pessoas, categorias naturais, etc.)
possuem propriedades essenciais que fazem delas o que são, e que estão
frequentemente ocultas ou não são superficialmente avaliáveis.
Estatístico-Dedutivo (Modelo) Perspectiva sobre a explicação científica
avançada por Hempel para explicar a relação lógica entre uma regularidade
estatística que se pretende explicar e as leis estatísticas e as condições iniciais
que contribuem para a sua explicação quando a regularidade é a conclusão de
um argumento dedutivo que tem como premissas a lei estatística e as condições
iniciais.
Estatístico-Indutivo (Modelo) Ideia sobre a explicação científica avançada por
Hempel para explicar a relação lógica entre um acontecimento a ser explicado e
os factores que contribuem para a sua explicação, quando o acontecimento é a
conclusão de um argumento indutivo que tem como premissas as condições
iniciais e uma generalização muito provável.
experiências mentais Situações imaginadas, não reais, cujos resultados
pretendem mostrar algo relevante para a verdade de uma dada teoria, princípio
ou afirmação. A finalidade das experiências mentais e o seu papel metodológico
na ciência e na filosofia são controversos.
expressiva (afirmação) Uma afirmação é expressiva se for a manifestação do
desejo ou da preferência de um indivíduo ou de um grupo. As afirmações
expressivas não são verdadeiras ou falsas em virtude de como as coisas são
objectivamente, e (de acordo com alguns positivistas lógicos) não são
cognitivamente significativas.
falsificabilidade Critério de Popper para considerar uma teoria científica. Uma
teoria é falsificável quando é possível que gere previsões infirmadas por indícios
em testes rigorosos.
falsificação Uma hipótese é considerada falsa quando pelo menos uma previsão
feita com base nela foi infirmada por indícios.
Feyerabend, Paul (1924-1994) Filósofo da ciência com uma agenda
provocatória e um estilo de escrita cativante que argumentou contra a
supremacia da ciência sobre as outras tradições de pensamento, advogou a
incomensurabilidade e explorou as consequências do papel privilegiado da
ciência nas sociedades democráticas. Autor de Contra o Método (1975).
Frege, Gottlob (1848-1925) Lógico e matemático considerado um dos
fundadores da filosofia analítica. Foi responsável pela ruptura com a tradição
lógica aristotélica e pelo desenvolvimento de uma nova lógica quantificada.
Também contribuiu grandemente para a filosofia da linguagem ao discutir a
relação entre o sentido e a referência. Apoiou o descritivismo em «Sobre o
Sentido e o Significado» (que surgiu em alemão em 1892).
Fresnel, Augustin (1788-1827) Um dos fundadores da teoria ondulatória da luz.
Matemático e engenheiro civil, nos tempos livres dedicava-se à óptica,
desenvolvendo uma alternativa à teoria dominante — a teoria corpuscular da luz.
Galilei, Galileu (1564-1642) Astrónomo, físico e filósofo que se interessou pela
mecânica, pela óptica e pelo movimento e natureza dos «corpos celestes».
Argumentou contra os princípios da física de Aristóteles tanto por meio de
experiências mentais, como por dados que recolheu via experiências reais e
observações auxiliadas por um telescópio. Autor de Diálogo dos Grandes
Sistemas (1632), que lhe valeu a condenação por heresia.
Giere, Ronald Filósofo da ciência contemporâneo que se interessa pelo
raciocínio e explicação científicos. Autor de Explicar a Ciência: Uma
Abordagem Cognitiva (1988).
Hacking, Ian Filósofo da ciência contemporâneo que escreve sobre a mudança
conceptual, a construção social da realidade e o realismo científico. Autor de
Representar e Intervir (1983), onde discute o papel da experimentação na prática
da ciência, e de A Construção Social do Quê? (1999).
Harvey, William (1578-1657) Médico com muito êxito (foi o médico do Rei
James I e do Rei Carlos I), investigador e lente (de fisiologia e embriologia). No
seu Ensaio Anatómico sobre o Movimento do Coração e do Sangue nos Animais
(1628), descreveu pormenorizadamente o funcionamento do sistema circulatório,
explicando o papel do coração como uma bomba. Baseou o seu trabalho em
investigações empíricas conduzidas em corpos de animais vivos e em corpos de
humanos mortos. Hawthorne (efeito de) Um efeito que pode distorcer os
resultados de um estudo e produzir um impacto negativo na metodologia de uma
experiência. Em psicologia, é frequentemente utilizado para explicar como os
participantes tendem a comportar-se de uma maneira que agrada ao
experimentador ou confirma as suas expectativas. Outros efeitos semelhantes são
o efeito placebo e o efeito Pigmalião.
holismo (do significado) A ideia de que as expressões linguísticas adquirem os
seus significados em relação a outras expressões no sistema, e de que a alteração
do significado de uma expressão determina uma alteração de significado em
todas as outras, uma vez que estão inter-relacionadas.
Hume, David (1711-1776) Filósofo e historiador que defendeu o empirismo e
que apresentou uma análise crítica das inferências causais e indutivas
(originando o famoso problema da indução). Autor de Tratado da Natureza
Humana (1739-1740) e de Investigação Sobre o Entendimento Humano (1748).
implicação Relação lógica inversa da consequência. O facto de eu ter um irmão
ou uma irmã é uma consequência de ter uma irmã. O facto de ter uma irmã
implica que tenho um irmão ou uma irmã. impregnação teórica (da observação)
Uma observação é teoricamente impregnada quando os pressupostos teóricos
afectam o conteúdo das afirmações observacionais que dela derivam. Estes
pressupostos teóricos podem por vezes ser necessários para desenvolver
instrumentos que ajudam à observação, ou podem ser incorporados
(frequentemente de uma maneira não explícita) na linguagem mediante a qual a
observação é relatada. Supõe-se que a alegação de que a observação é
teoricamente impregnada ponha em causa a ideia de que a observação é neutra
no que respeita a abordagens teóricas rivais, indexical Expressão linguística cuja
referência se altera de acordo com as circunstâncias. A frase «Eu hoje estou
cansada» pode ter um significado diferente dependendo de quem a diz e de
quando é dita, pois «Eu» e «hoje» são indexicais.
indução Modo de inferência no qual a verdade das premissas torna a conclusão
provável, mas não necessariamente verdadeira.
indutivismo Concepção do raciocínio e da prática científicos segundo a qual os
cientistas chegam a teorias explicativas fazendo observações e formulando
generalizações com base nas suas observações específicas, inferência a favor da
melhor explicação Modo de inferência no qual a conclusão é sustentada porque o
facto de ser verdadeira é a melhor explicação para um acontecimento conhecido,
dados todos os indícios disponíveis, interno (realismo) Forma de realismo
moderado (defendido por Putnam) segundo o qual se podem descobrir verdades
mediante investigações científicas, mas estas verdades são internas (e até certo
ponto relativas) a um enquadramento conceptual, investigação (programas de)
Unidades de prática científica caracterizadas por um conjunto de teorias em
desenvolvimento, metodologia semelhante e princípios teóricos nucleares. Um
programa de investigação é progressivo se as teorias subsequentes conseguem
prever novos factos, ter mais poder explicativo e adequar-se melhor aos indícios
que as anteriores. Caso contrário, é degenerativo.
isomorfismo Do grego antigo, o termo significa «igualdade de forma, de
estrutura», e é usado para descrever relações, como por exemplo a relação entre
um modelo e um conjunto de fenómenos que o modelo é suposto representar, ou
a relação entre uma teoria e a realidade que a teoria visa descrever e explicar,
justificação Processo mediante o qual uma crença é apoiada com base em bons
indícios ou num bom argumento. Kepler, Johannes (1571-1630) Matemático e
astrónomo que se interessou tanto pela óptica como pela cosmologia e é
responsável pela ideia de que os planetas se movem em órbitas elípticas, bem
como pelas três leis do movimento dos planetas (hoje conhecidas como Leis de
Kepler).
Kuhn, Thomas (1922-1996) Físico, filósofo e historiador da ciência, Kuhn
deixou a sua marca com a publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas
(l.a ed., 1962), onde pôs em causa a ideia de que há um progresso contínuo e
cumulativo na ciência, e introduziu factores psicológicos e sociológicos na
explicação da mudança de teorias científicas.
Lakatos, Imre (1922-1974) Filósofo da ciência cujo trabalho foi inspirado pelo
de Karl Popper. Desenvolveu ideias originais sobre o problema da demarcação e
a melhor maneira de explicar a mudança científica. No seu trabalho mais
influente — «A Metodologia dos Programas de Investigação Científica», um
artigo de 1970 —, defende a racionalidade da ciência e a noção de progresso a
partir dos questionamentos feitos por Kuhn.
Laudan, Larry Filósofo da ciência contemporâneo que escreveu
substancialmente sobre o progresso e a racionalidade em ciência. Defendeu uma
explicação sofisticada do falsificacionismo, e argumentou contra o relativismo e
o subjectivismo nas explicações filosóficas da mudança científica. Autor de O
Progresso e os seus Problemas (1977).
Lavoisier, Antoine (1743-1794) Químico que demonstrou a inconsistência da
teoria do flogisto em Reflexões sobre o Flogisto (1783) e que foi o principal
responsável pela descoberta do oxigénio, originando a revolução química. No
seu Tratado de Química Elementar (1789) apresentou uma explicação unificada
do conhecimento químico do seu tempo e exaltou o papel das observações e das
experiências.
legiformes (afirmações) As afirmações legiformes são afirmações que, se
verdadeiras, expressam uma lei da natureza. A questão sobre que características
deverão ter está, até certo ponto, em aberto.
leis da natureza Princípios gerais que parecem desempenhar um papel central
numa teoria científica e na explicação e previsão de fenómenos particulares. O
estabelecimento das características definidoras de uma lei (se capta uma verdade
necessária; se sustenta contrafactuais; se articula uma ligação causal, etc.) é
controverso.
Lipton, Peter (1954-2007) Filósofo que contribuiu significativamente para a
epistemologia (explicação, provas e testemunho, por exemplo) e para as questões
metafísicas (realismo) na filosofia da ciência. O seu livro Inferência a favor da
Melhor Explicação (primeiramente publicado em 1991; 2.a ed. 2004) é um
clássico, lógica (forma) A forma lógica é a estrutura de uma proposição ou de
um argumento, exemplificada por cadeias de símbolos que obedecem a regras
sintácticas de formação. A forma lógica de um argumento é o padrão de
inferência que é obtido ao abstrair a partir do conteúdo das suas premissas e
conclusões, lógicos (termos) Os termos lógicos são termos que representam
predicados ou relações numa linguagem formal. Por exemplo: em (x) Px®Qx,
«P» é um termo lógico que representa um predicado; «®» é uma conectiva
lógica que representa uma relação condicional entre Px e Qx (se x é P, então x é
Q).
Lucrécio (século i a.C.) Poeta latino que escreveu Sobre a Natureza das Coisas,
onde argumenta a favor das ideias físicas e cosmológicas defendidas pelo
filósofo Epicuro (século ui a.C.), em especial o atomismo, a infinidade do
universo e a mortalidade da alma.
Mach, Ernst (1838-1916) Físico e filósofo que trabalhou em óptica e mecânica,
obtendo resultados impressionantes que abriram o caminho à teoria da
relatividade. Em filosofia, é conhecido pela tese de que todo o conhecimento
provém das sensações, e que mesmo as leis da natureza são uma forma útil de
descrever as relações entre as sensações. Esta ideia é defendida em Contributos
para a Análise das Sensações (1897).
Maxwell, James Clerk (1831-1879) Matemático e físico conhecido por ter
descoberto equações simples que expressam a relação entre campos eléctricos e
magnéticos, e por defender a ideia de que a luz é um fenómeno
electromagnético. Autor de Tratado sobre Electricidade e Magnetismo (1873).
mecanicismo Em termos gerais, a ideia de que o comportamento de um sistema
(como por exemplo o Universo) pode ser explicado fazendo referência a
partículas materiais governadas por leis determinísticas. É frequentemente
contrastado com o organicismo. metafísica Estudo do que existe, do que é real.
Ramo da filosofia tradicionalmente caracterizado por uma tentativa de revelar
princípios gerais e a natureza última da realidade, para lá das propriedades
observáveis das coisas existentes e dos acontecimentos que são o objecto da
ciência, método científico O método mediante o qual os cientistas operam. Pode
ser interpretado descritivamente ou normativamente. Os filósofos que pretendem
descrever o método científico perguntarão como os cientistas operam nas suas
comunidades científicas — que tipo de raciocínio seguem a maior parte do
tempo, como chegam a certas conclusões, etc. Os filósofos interessados pela
dimensão normativa perguntarão como os cientistas deviam operar para que a
ciência seja progressiva e contribua para o conhecimento. As opiniões diferem
sobre se é possível codificar uma metodologia geral para todas as disciplinas
científicas, ou se nos devemos ficar pelas metodologias relativas a disciplinas,
metodológico (pluralismo) A ideia de que a ciência não é uma actividade
unitária, e de que os seus métodos não podem ser apreendidos por uma
explicação geral para as ciências naturais e sociais.
Mill, John Stuart (1806-1873) Filósofo e economista cujas ideias estão
associadas a uma defesa do empirismo e dos valores liberais. Defendeu o
utilitarismo em ética e escreveu sobre metodologia, identificando os princípios
fundamentais da prática científica no seu Sistema de Lógica Raciocinativa e
Indutiva (1843). Também é o autor de Sobre a Liberdade (1859). modelo Um
modelo é uma ficção, um objecto, estrutura ou descrição que representa algumas
componentes de uma teoria (o modelo da dupla hélice do ADN, por exemplo).
O que os modelos são (mais precisamente) e o papel que desempenham na
descoberta e na explicação científicas, são questões controversas, naturalismo
No contexto da filosofia das ciências sociais, a ideia de que há continuidade de
objectivos e métodos entre as ciências sociais e naturais, e de que ambos os tipos
de ciência visam descobrir verdades sobre factos naturais e sociais revelando
ligações causais relevantes, necessário Oposto de contingente. Algo que é por
necessidade e que não podia ser de outra maneira. E necessário que os
hexágonos tenham seis lados.
Newton, Isaac (1642-1727) Físico e matemático que escreveu os Princípios
Matemáticos da Filosofia Natural (conhecidos como Principia), publicados em
1687, onde expõe os fundamentos da mecânica e introduz a lei da gravitação.
Nomológico-Dedutivo (Modelo) Perspectiva sobre a explicação científica
avançada por Hempel para clarificar er relação lógica entre um acontecimento
que se pretende explicar e os factores que contribuem para a sua explicação,
quando o acontecimento é a conclusão de um argumento dedutivo que tem como
premissas a afirmação legiforme e as condições iniciais, normal (ciência)
Período caracterizado pelo desenvolvimento de uma disciplina científica no
âmbito de um determinado paradigma, normativa (afirmação) Uma afirmação é
normativa se expressa um juízo sobre como as coisas deviam ser. objectiva
(probabilidade) Probabilidade de um acontecimento ocorrer, tendo em conta os
dados disponíveis sobre os acontecimentos observáveis, observacional (termo)
Um termo é observacional se se refere a objectos observáveis ou a propriedades
de objectos. Por exemplo, na afirmação «As folhas de Outono são vermelhas»,
«vermelhas» é um termo observacional. A questão sobre se «temperatura» é um
termo observacional já é mais controversa, organicismo Em termos gerais, a
ideia de que um sistema (como, por exemplo, o Universo) opera da mesma
forma que um organismo vivo com consciência ou intenções, e que por
conseguinte escapa à previsibilidade das relações de causa e efeito que
governam a matéria inanimada. Caracterizações diferentes ou mais específicas
deste termo podem ser encontradas na biologia e na teoria da arte.
paradigma Um enquadramento que combina os pressupostos teóricos,
metodológicos e metafísicos que dão forma ao trabalho da comunidade científica
em períodos de ciência normal. Há uma literatura vastíssima sobre os diferentes
usos do termo «paradigma», que entrou no discurso comum depois de a noção
ter sido explorada por Kuhn na sua explicação das revoluções científicas.
patológica (ciência) Os usos do termo «patológico» aplicados à ciência diferem
consideravelmente na literatura, mas parece ser uma estrutura comum aos
exemplos de patologia nas ciências naturais que 1) alguns cientistas ponham a
hipótese da existência de uma entidade para explicar alguns fenómenos; 2) tal
entidade seja inferida apenas como o resultado de uma técnica experimental
complexa que não parece obter os mesmos resultados quando adoptada por
outros cientistas ou grupos de cientistas; 3) tal entidade se revele fictícia. Além
dos problemas de replicabilidade dos resultados experimentais, os exemplos
patológicos de ciência são frequentemente caracterizados por uma credulidade
infundada na comunidade científica e por defesas ad hoc das alegações feitas
pelos cientistas «patológicos».
Platão (427-347 a. C.) Filósofo ateniense que escreveu diversos diálogos sobre
questões no âmbito da epistemologia, ética, política e metafísica, usando a figura
histórica de Sócrates como personagem principal.
Poincaré, Henri (1854-1912) Matemático e físico que escreveu sobre a filosofia
da ciência e, em especial, sobre a descoberta e a confirmação científicas.
Argumentou a favor do convencionalismo — a ideia de que as teorias são
verdadeiras por convenção. Autor de Ciência e Hipótese (1902), O Valor da
Ciência (1905) e Ciência e Método (1908).
Popper, Karl (1902-1994) Filósofo da ciência muito influente que contribuiu
grandemente para o debate sobre o critério de demarcação, a confirmação das
teorias científicas e a natureza da mudança e do progresso científicos. Embora
fosse crítico em relação a muitas ideias dos positivistas lógicos, partilhava a sua
concepção da ciência como um feito paradigmático da racionalidade humana.
Defendeu o falsificacionismo em Conjecturas e Refutações (1963). positivismo
lógico (ou empirismo lógico) Movimento filosófico originalmente fundado em
Viena, em 1922, por Moritz Schlick (físico), Otto Neurath (economista) e
Philipp Frank (professor de física). Visando promover e divulgar uma
«concepção científica do mundo», foi influenciado pela filosofia de Bertrand
Russell e de Ludwig Wittgenstein. O epíteto «positivista» está ligado à ideia
defendida por estes autores de que o conhecimento científico é o único tipo de
conhecimento legítimo, e que, por conseguinte, a ciência é especialmente
importante. O epíteto «empirista» refere-se à sua ideia de que o conhecimento
sobre o mundo não pode ser obtido sem recorrer à experiência por via de
observações e testes empíricos, posterior (probabilidade) Probabilidade de um
acontecimento/hipótese após ter sido tida em conta nova informação.
Priestley, Joseph (1733-1804) Químico que ajudou a desenvolver e defendeu
tenazmente a teoria do flogisto contra dúvidas emergentes. Autor de
Experiências e Observações em Diferentes Tipos de Ar (1774). projectável
(predicado) Um predicado é projectável se podemos esperar que no futuro se
aplique ao mesmo objecto a que se aplicou até agora. Goodman criou um
predicado que não é projectável — «verdul». pseudociência Uma disciplina ou
teoria é pseudocientífica se possui as características superficiais de uma
disciplina ou teoria científica, mas não satisfaz os critérios aceites para ser
ciência. A astrologia e o criacionismo são exemplos comuns (mas até certo ponto
controversos), psicológica (abordagem ao estatuto moral) Ideia de que as
capacidades psicológicas de um indivíduo são relevantes para determinar se tem
estatuto moral.
quebra-cabeças (resolução de) Actividade que para Kuhn caracteriza a ciência
normal — quando os cientistas concentram os seus esforços em explicar factos
fazendo uso dos recursos proporcionados pela teoria dominante. Quine, W. V. O.
(1908-2000) Lógico matemático e filósofo muito influente conhecido por atacar
a dicotomia entre analítico e sintético, desenvolver a epistemologia naturalizada
e conceber a filosofia como um ramo da ciência. Responsável por uma versão
radical da chamada tese de Duhem-Quine e autor de Palavra e Objecto (1960).
racionalismo (adj. racionalista) Em epistemologia, o racionalismo é a
perspectiva segundo a qual podemos adquirir conhecimento independentemente
da experiência dos sentidos. Em filosofia da ciência, o termo também pode ser
usado para se referir àqueles que pensam que a mudança científica obedece a
critérios racionais de escolha de teorias.
referência A relação entre as expressões linguísticas que usamos e as entidades
que representam. Se tenho um cão que se chama Fiel, o nome «Fiel» refere o
meu cão. Reichenbach, Hans (1891-1953) Filósofo da ciência que pertenceu ao
movimento do Positivismo Lógico, promoveu o princípio da verificabilidade e
estudou o conceito de espaço/tempo tal como estava representados na teoria da
relatividade. Autor de O Surgimento da Filosofia Científica (1951). relativismo
(conceptual) Em filosofia da ciência, a ideia de que os cientistas comprometidos
com diferentes paradigmas empregam conceitos diferentes e, como
consequência, têm uma mundivisão diferente. O que é verdadeiro sobre a massa
newtoniana pode não o ser para a massa einsteiniana, não havendo um território
neutro a partir do qual se possa ajuizar qual é a noção de massa correcta,
independentemente do compromisso com um paradigma, representacional
(afirmação) Uma afirmação é representacional se a sua verdade ou falsidade
depende de como as coisas são objectivamente. Para os positivistas lógicos, só as
afirmações representacionais são cognitivamente significativas.
revolução De acordo com Kuhn, uma revolução é uma mudança dramática de
paradigma no desenvolvimento de uma disciplina científica, caracterizada pela
substituição da teoria dominante e pela introdução de novos pressupostos
metafísicos e metodológicos. Os filósofos que negam que haja alguma vez uma
mudança dramática em ciência negam a ocorrência de revoluções científicas.
Russell, Bertrand (1872-1970) Lógico e filósofo considerado um dos fundadores
da filosofia analítica. Interessou-se pelas questões levantadas pela metodologia
científica e pela análise conceptual. Autor de Os Princípios da Matemática
(1903) e de Os Problemas da Filosofia (1912), onde trata do problema da
indução. Também defendeu uma teoria descritivista da referência em «Sobre
Denotar» (1905). Salmon, Wesley (1925-2001) Historiador e filósofo da ciência
que escreveu prolificamente sobre as questões da confirmação de teorias e sobre
probabilidade, indução, explicação e causalidade. Autor de Os Fundamentos da
Inferência Científica (1967) e de A Explicação Científica e a Estrutura Causal
do Mundo (1984). semântica (adj. semântico) Estudo do significado das
expressões linguísticas, semântica (concepção de teorias) De acordo com esta
concepção, que tem diferentes versões, as teorias não deviam ser entendidas
como interpretações de sistemas axiomáticos e os modelos desempenham um
papel importante na compreensão científica. Esta perspectiva é defendida por
Bas van Fraassen e Ronald Giere. sentido Conceitos associados por um
determinado falante ou uma comunidade linguística ao uso de uma expressão
linguística. O termo «Terra» será associado por um falante com um grau de
instrução razoável dos dias de hoje à ideia de um planeta que gira à volta do Sol
e é habitado pelos seres humanos, sintáctica (concepção de teorias) De acordo
com a concepção sintáctica, uma teoria científica pode ser formalizada num
sistema axiomático que revela o esqueleto ou a estrutura da teoria. O ponto
principal é que a interpretação da teoria — como, por exemplo, aquilo de que
trata — pode ser separada da estrutura do sistema formalizado. Esta perspectiva
é defendida por Carnap e Hempel. Aqueles que se lhe opõem defendem
normalmente a perspectiva semântica das teorias, sintaxe (adj. sintáctico) Estudo
das regras que governam a estrutura das frases, sintética (afirmação) Uma
afirmação é sintética se a sua verdade ou falsidade não depende nem da sua
estrutura lógica nem dos significados dos termos que contém. Exemplos: «Todos
os edifícios altos são feios»; «Os gatos são preguiçosos».
Sober, Elliott Filósofo da ciência e da biologia contemporâneo que participou
em debates sobre a distinção entre ciência e pseudociência, sobre o papel da
simplicidade na avaliação de teorias e as raízes do altruísmo. Autor de De um
Ponto de Vista Biológico (1994) e de Reconstruindo o Passado (1988), onde
trata do problema da indução, sólido (argumento) Um argumento dedutivo é
sólido se for válido e tiver premissas verdadeiras.
Stahl, Georg (1659-1734) Médico e químico que desenvolveu a teoria do
flogisto, foi o primeiro a explicar a combustão, e que depois explicou uma série
de fenómenos químicos. Autor de Opusculum Chymico-Physico-Medicum
(1715). Strawson, Peter (1919-2006) Filósofo interessado pela lógica e pelo
projecto de desenvolver uma metafísica descritiva. Argumentou a favor da
dissolução do problema da justificação da indução. Autor de Introdução à Teoria
Lógica (1952), Indivíduos (1959) e Os limites do Sentido (1966).
subdeterminação Um conjunto de hipóteses ou de teorias é subdeterminado pelos
indícios disponíveis se forem empiricamente equivalentes (ou seja, se os indícios
não conseguem distingui-los) mas incompatíveis (ou seja, não podem ser ambos
verdadeiros). A subdeterminação tem várias forças: há autores que alegam que
os indícios nunca podem ser suficientes para determinar a escolha de teorias (a
tese forte), ao passo que outros ficam pela tese mais moderada de que em
algumas circunstâncias a escolha de teorias é subdeterminada pelos indícios (a
subdeterminação fraca).
subjectiva (probabilidade) Juízo de probabilidade baseado no grau de crença
que um agente tem na ocorrência de um acontecimento particular.
Suppe, Frederick Filósofo da ciência contemporâneo que desenvolveu a
perspectiva semântica das teorias científicas. Autor de A Concepção Semântica
da Teoria e o Realismo Científico (1989) e organizador de uma colectânea
influente de artigos, A Estrutura das Teorias Científicas (1977).
teoria/observação (distinção) A ideia de que as afirmações teóricas e as
afirmações observacionais diferem de uma maneira significativa (por exemplo: a
sua verdade é determinada mediante um processo diferente; todos os termos
contidos nas afirmações observacionais referem, ao passo que nem todos os
termos contidos nas afirmações teóricas referem). A distinção é reforçada pelos
positivistas lógicos, e é importante para a plausibilidade do princípio da
verificabilidade e para a concepção clássica das teorias. É enfraquecida pelos
sociólogos da ciência, que apelam à impregnação teórica das afirmações
observacionais e à alegação de que o mundo da nossa experiência se modifica
após uma revolução científica. A distinção também desempenha um papel
crucial no debate realismo/anti-realismo. teóricas (definições) Uma definição
teórica é uma estipulação por meio da qual um novo termo é introduzido num
enquadramento teórico (quantum, por exemplo) ou é dada uma nova conotação a
um termo anteriormente usado com base numa mudança de teoria («massa», por
exemplo). A definição de um termo teórico deve tornar claro que o papel da
entidade ou propriedade que o termo refere está no âmbito da teoria, teóricos
(termos) Termos que por norma não referem entidades ou propriedades
observáveis, mas entidades ou propriedades postuladas por uma teoria científica
para finalidades explicativas e preditivas («electrão», «flogisto» ou
«condicionamento», por exemplo). A questão sobre se os termos teóricos
referem genuinamente e como o seu significado é determinado é controversa —
ver o debate realismo/anti-realismo e o debate entre os descri ti vistas e os
adeptos da teoria causal da referência.
testemunho Forma de adquirir crenças não através de indícios directos ou da
experiência pessoal, mas com base no relato de alguém. O testemunho pode ser
fiável ou não, dependendo das circunstâncias em que é obtido. Thagard, Paul
Filósofo das ciências cognitivas interessado na explicação científica e na
mudança conceptual. Autor de Revoluções Conceptuais (1992). utilitarista
(cálculo) Processo mediante o qual determinamos se uma acção é certa ou errada
com base nas suas consequências globais para todos os indivíduos envolvidos. O
que é calculado é a utilidade, que pode ser caracterizada de várias maneiras (em
termos de bem-estar, felicidade ou satisfação de preferências/interesses
relevantes, por exemplo). Perspectiva ética defendida por Jeremy Bentham, John
Stuart Mill e, mais recentemente, Peter Singer. válido (argumento dedutivo) Um
argumento dedutivo é válido se for impossível as premissas serem verdadeiras e
a conclusão falsa.
Van Fraassen, Bas Filósofo da ciência contemporâneo que desenvolveu o
empirismo construtivo como alternativa ao realismo e ao instrumentalismo no
seu influente livro A Imagem Científica (1980). Também defende uma
perspectiva pragmática da explicação e a distinção teoria/observação,
verificabilidade Critério que uma afirmação sintética tem de satisfazer para ser
considerada significativa pelos positivistas lógicos. Uma afirmação sintética tem
significado se pudermos determinar a sua verdade com base em dados empíricos
ou gerar previsões a partir dela que são confirmadas pelos dados, verificação A
verificação é o processo mediante o qual uma hipótese ou uma teoria é testada. A
hipótese (ou teoria) é verificada — ou seja, considerada verdadeira — se as
previsões feitas com base nela foram até então confirmadas por indícios, virtudes
(ética das) Abordagem à ética que se centra na importância de os agentes
desenvolverem um bom carácter moral em vez de seguirem regras ou calcularem
os possíveis efeitos das suas acções. Aristóteles é considerado o principal
filósofo responsável por esta abordagem da ética.

Bibliografia temática





Filosofia da(s) ciencia(s)

BAERT, P. 2005. Philosophy of the Social Sciences. Blackwell.
BAIRD, D.; MCINTYRE, L. C.; SCERRI, E. R. (orgs.). 2006. Philosophy of
Chemistry: Synthesis of a New Discipline. Springer.
BECHTEL, W. (org.). 2001. Philosophy and the Neurosciences. Blackwell.
BERMUDEZ, J. 2005. Philosophy of Psychology. Routledge.
BIRD, A. 1998. Philosophy of Science. UCL Press.
BOYD, R.; GASPER, P. (orgs.). 1991. The Philosophy of Science. MIT Press.
BOYD, R.; GASPER, P.; TROUT, J. D. (orgs.). 1991. The Philosophy of Science.
Blackwell.
BRODY, B. A.; GRANDY, R. E. (orgs.). 1989. Readings in the Philosophy of
Science (2.a ed.). Prentice-Hall.
BUTTERFIELD, J.; EARMAN, J.; GABBAY, D. M.; THAGARD, P.; WOODS, J. (orgs.).
2006. Philosophy of Physics. Elsevier.
COOPER, R. 2007. Psychiatry and Philosophy of Science. Acumen.
CURD, M.; COVER, J. A. 1998. Philosophy of Science: The Central Issues. W. W.
Norton and Co., Ltd.
DEWITT, R. 2004. Worldviews: An Introduction to the History and Philosophy of
Science. Blackwell.
GABBAY, D. M.; THAGARD, P.; WOODS, J. (orgs.). 2006. Philosophy of
Psychology and Cognitive Science. Elsevier.
GODFREY-SMITH, P. 2003. Theory and Reality: An Introduction to the Philosophy
of Science. University of Chicago Press.
HARDING, S. G. (org.). 1976. Can Theories be Refuted?: Essays on the Duhem-
Quine Thesis. Springer.
HAUMAN, D. 1994. Philosophy of Economics (2.a ed.). Cambridge University
Press.
HITCHCOCK, C. (org.). 2004. Contemporary Debates in Philosophy of Science.
Blackwell.
KUKLA, A. 2001. Methods of Theoretical Psychology. MIT Press.
LADYMAN, J. 2002. Understanding Philosophy of Science. Routledge.
LANGE, M. 2002. An Introduction to the Philosophy of Physics. Blackwell.
LANGE, M. (org.). 2007. Philosophy of Science: An Anthology. Blackwell.
MACHAMER, P.; SILBERSTEIN, M. (orgs.). 2002. The Blackwell Guide to the
Philosophy of Science. Blackwell.
MARTIN, M.; MCINTYRE, L. C. (orgs.). 1994. Readings in the Philosophy of
Social Science. MIT Press.
NEWTON-SMITH, W. H. (org.). 2001. A Companion to the Philosophy of Science.
Blackwell.
Nola, R.; IRZIK, G. 2006. Philosophy, Science, Education and Culture. Springer.
PAPINEAU, P. (org.). 1996. The Philosophy of Science. Oxford University Press.
PSILLOS, S. 2007. Philosophy of Science A-Z. Edinburgh University Press.
ROSENBERG, A. 2005. Philosophy of Science: A Contemporary Introduction.
Routledge.
ROSENBERG, A.; MACSHEA, D. 2007. Philosophy of Biology: A Contemporary
Introduction. Routledge.
SARKAR, S.; PFEIFER, J. 2006. Philosophy of Science: An Encyclopedia. Taylor
and Francis.
SOBER, E. 1993. Philosophy of Biology. Oxford University Press.
SUPPE, F. (org.). 1977. The Structure of Scientific Theories (2.a ed.). University of
Illinois Press.
THORNTON, T. 2007. Essential Philosophy of Psychiatry. Oxford University
Press.

Ciência, pseudociência e má ciência

BAUER, H. 1994. Scientific Literacy and the Myth of the Scientific Method.
University of Illinois Press.
BUNGE, M. 1984. «What is pseudo-science?». Skeptical Inquirer 9: 36-46.
CARNAP, R. 1935. Philosophy and Logical Syntax. Kegan Paul.
CHALMERS, A. 1999. What is this Thing called Science? (cap. 7) (3.a ed.).
University of Queensland Press.
CHAUVIN, R. 1999. «Psychological research and alleged stagnation». Journal of
Scientific Exploration 13 (2): 317-22.
DUPRÉ, J. 1993. The Disorder of Things: Metaphysical Foundations of the
Disunity of Science. Harvard University Press.
EMAN, C.; EMAN, M. 2002. «How not to be Lakatos intolerant». International
Studies Quarterly 46: 231-62.
FEYERABEND, P. 1979. Science in a Free Society. Routledge.
FEYERABEND, P. 1975. Contra o Método (cap. 19). Trad, de Miguel Serras
Pereira. Relógio d'Água, 1993.
FRENCH, S. 2007. Science: Key Concepts in Philosophy. Continuum.
FRIEDMAN, M. 1999. Reconsidering Logical Positivism. Cambridge University
Press.
FULLER, S. 2007. Science vs. Religion? Intelligent Design and the Problem of
Evolution. Polity Press.
GRATZER, W. B. 2000. The Undergrowth of Science: Delusion, Self-Deception,
and Human Frailty. Oxford University Press.
DURKHEIM, E. 1895,1938. As Regras do Método Sociológico (ll.a ed.). Trad, de
Eduardo Lúcio Nogueira. Editorial Presença, 2010v
DURKHEIM, É. 1953, 1974. «The problem of induction», em Miller, D. (org.).
Popper Selections. Princeton University Press.
RADNITZKY, G.; ANDERSSON, G. (orgs.). 1978. Progress and Rationality in
Science. Reidel.
SHAPERE, D. 1989. «Evolution and continuity in scientific change». Philosophy
of Science 56: 419-37.
SHAPIN, S. 1984. «Pump and circumstance: Robert Boyle's literary technology»,
em Collins, H.; Pinch, T.; Shapin, S. (orgs.). Social Studies of Science, pp. 481-
520. Sage.
RESCHER, N. 1978. Scientific Progress. Blackwell.
SHEA, W. 1988. Revolutions in Science: Their Meaning and Relevance. Science
History Publications.
THAGARD, P. 1992. «The conceptual structure of the chemical revolution».
Philosophy of Science 57 (2): 183-209.
— 1992. Conceptual Revolutions. Princeton University Press.
TITCHENER, E. 1912. «The schema of introspection». American Journal of
Psychology 23: 485-508.
TRIGG, R. 1993. Rationality and Science. Blackwell.
Ciência e sociedade, e ética da investigação
COUNCIL FOR INTERNATIONAL ORGANIZATIONS OF MEDICAL SCIENCES (CIOMS).
2002. International Ethical Guidelines for Biomedical Research Involving
Human Subjects. http://www. cioms.ch/publications/layout_guide2002.pdf
(acedido em Agosto de 2013).
FEYERABEND, P. 1978. Science in a Free Society. New Left Books.
FULLER, S. 1993. Philosophy, Rhetoric and the End of Knowledge. University of
Wisconsin Press.
HARRIS, J. 2005. «Scientific research is a moral duty». Journal of Medical Ethics
31: 242-8.
KITCHER, P. 2001. Science, Truth and Democracy. Oxford University Press.
KURTZ, P. (org.). 2007. Science and Ethics: Can Science Help Us Make Wise
Moral Judgments?. Prometheus Books.
LONGINO, H. 1990. Science as Social Knowledge: Values and Objectivity in
Scientific Inquiry. Princeton University Press.
MCMULLIN, E. 2000. «Values in science», em Newton-Smith, W. (org.).
Companion to the Philosophy of Science. Blackwell.
PARSONS, K. 2003. The Science Wars: Debating Scientific Knowledge and
Technology. Prometheus Books.
POTTER, E. 2006. Feminism and Philosophy of Science: An Introduction.
Routledge.
RADNITZKY, G.; BARTLEY, W. (orgs.). 1987. Evolutionary Epistemology,
Rationality, and the Sociology of Knowledge. Open Court.
SORELL, T. 1991. Scientism (caps. 1 e 4). Routledge.
WORLD MEDICAL ASSOCIATION (WMA). 2008. Declaration of Helsinki,
http://www.wma.net/en/30publications/10po- licies/b3/ (acedido em Agosto de
2013).

Aperfeiçoamento, deficiência e ética da engenharia genética

AGAR, N. 2004. Liberal Eugenics: In Defence of Human Enhancement.
Blackwell.
BERRY, R. 2007. The Ethics of Genetic Engineering. Routledge.
BURLEY, J.; HARRIS, J. (orgs.). 2004. A Companion to Genethics. Blackwell.
DANIELS, N. 2009. «Can anyone really be talking about ethically modifying
human nature?», em Savulescu, J.; Bostrom, N. (orgs.). Human Enhancement,
pp. 25-42. Oxford University Press.
7 1985. Just Health Care. Cambridge University Press.
FARRELL, C. 2004. «The genetic difference principle». American
Journal of Bioethics 4 (2): 21-8.
FEINBERG, J. 1984. «Harming as wronging», em Feinberg, J. Harm to Others
(cap. 3). Oxford University Press.
HARRIS, J. 1995. «Should we attempt to eradicate disability?». Public
Understanding of Science 4 (3). 233-42.
8 1993. «Is gene therapy a form of eugenics?». Bioethics 7 (2-3): 178-87.
9 1992. Wonderwoman & Superman: Ethics & Human Biotechnology. Oxford
University Press.
HARRIS, J.; HOLM, S. 2002. «Extended lifespan and the paradox of precaution».
Journal of Medicine and Philosophy 27 (3): 355-69.
HÀYRY, M. 2004. «There is a difference between selecting a deaf embryo and
deafening a hearing child». Journal of Medical Ethics 30: 510-12.
KOCH, T. 2001. «Disability and difference: balancing social and physical
constructions». Journal of Medical Ethics 27: 370-6.
MCKIE, J. et al. 1998. The Allocation of Health Care Resources. Ashgate.
REINDAL, S. M. 2000. «Disability, gene therapy and eugenics — a challenge to
John Harris». Journal of Medical Ethics 26: 89-94.
SCHICHOR, N.; SIMONET, J.; CANANO, C. 2003. «Should we allow genetic
engineering? A public policy analysis of germline enhancement», em Gilbert, S.;
Zackin, E. (orgs.). DevBio. http://9e.devbio.com/article.php?id=172 (acedido em
Agosto de 2013).

Ética da investigação científica com animais

AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION BOARD OF SCIENTIFIC AFFAIRS
COMMITTEE ON ANIMAL RESEARCH AND ETHICS. 2007. Guidelines for Ethical
Conduct in the Care and Use of Animals, www.apa.org/science/anguide.html
(acedido em Março de 2008).
ARMSTRONG, S.; BOTZLER, R. 2003. The Animal Ethics Reader. Routledge.
DUPRÉ, J. 2006. Humans and Other Animals. Oxford University Press.
KANT, I. 1785, 1998. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad, de
Paulo Quintela. Edições 70, 2011.
LINZEY, A.; CLARKE, P. (orgs.). Animal Rights: A Historical Anthology. Columbia
University Press.
NUFFIELD COUNCIL ON BIOETHICS. 2005. The Ethics of Research Involving
Animals, www.nuffieldbioethics.org/go/
browseablepublications/ethicsofresearchanimals/ report_230.html (acedido em
Março de 2008).
REGAN, T. 1983. The Case for Animal Rights. University of California Press.
ROYAL SOCIETY. 2006. The Use of Non-Human Primates in Research (The
Weatherall Report). http://royalsociety. org/ policy/publications/2006/weatherall-
report/ (acedido em Agosto de 2013).
SINGER, P. 1974, 2001. Libertação Animal. Trad, de Maria de Fátima Carmo. Via
Optima, 2008.
Ilusão na investigação psicológica
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. 2002. Ethical Principles of
Psychologists and Code of Conduct, www.apa.org/ ethics/ (acedido em Março de
2008).
BOK, S. 1999. Lying: Moral Choice in Public and Private Life. Vintage.
BRITISH PSYCHOLOGICAL SOCIETY. 2010. Code of Human Research Ethics,
http://www.bps.org.uk/sites/default/
files/documents/code_of_hiiman_research_ethics.pdf (acedido em Agosto de
2013).
CLARKE, S. 1999. «Justifying deception in social science research». Journal of
Applied Philosophy 16 (2): 151-66.
DARLEY, J. M.; BATSON, C. D. 1973. «From Jerusalem to Jericho: A study of
situational and dispositional variables in helping behavior». Journal of
Personality and Social Psychology 27: 100-8.
DWORKIN, G. 1988. The Theory and Practice of Autonomy. Cambridge
University Press.
ELMS, A. 1982. «Keeping deception honest: Justifying conditions for Social
Scientific Research Stratagems», em Beauchamp, T.; Faden, R.; Wallace, J.;
Walters, L. (orgs.). Ethical Issues in Social Science, pp. 232-45. Johns Hopkins
University Press.
ERIKSON, K. 1967. «A Comment on Disguised Observation in Sociology». Social
Problems XIV: 366-73.
GILLESPIE, R. 1991. Manufacturing Knowledge: A History of the Hawthorne
Experiments. Cambridge University Press.
HERRERA, C. 1999. «Two arguments for covert methods in social research».
British Journal of Sociology 50 (2): 331-43.
KELMAN, H. 1967. «Human use of human subjects: the problem of deception in
social psychology experiments». Psychological Bulletin 67 (1): 1-11.
KIMMEL, A. 2001. «Ethical trends in marketing and psychological research».
Ethics & Behavior 11 (2): 131-49.
LAWSON, E. 2001. «Informational and relational meanings of deception:
implications for deception methods in research». Ethics & Behavior 11 (2): 115-
30.
MILGRAM, S. 1974. Obedience to Authority. Harper and Row.
ORTMANN, A.; HERTWIG, R. 1997. «Is deception acceptable?». American
Psychologist 52: 746-7.
PATRY, P. 2001. «Informed Consent and Deception in Psychological Research».
Kriterion 14: 34-8.
PITTINGER, D. 2002. «Deception in research: distinctions and solutions from the
perspectives of utilitarianism». Ethics & Behavior 12 (2): 117-42.
RIACH, P.; RICH, J. 2004. «Deceptive Field Experiments of Discrimination: Are
they Ethical?». Kyklos 57 (3): 457-70.
SAXE, L. 1991. «Lying: thoughts of an applied social psychologist». American
Psychologist 46 (4): 409-15.
WOLF, S. 1990. Freedom and Reason. Oxford University Press.

Índice de figuras

2.1 O comboio de Einstein: a perspectiva do passageiro

2.2 O comboio de Einstein: a perspectiva do observador

4.1 Os elementos e as suas propriedades em Aristóteles

Índice de quadros

1.1 Desenvolvimento da concepção de átomo

2.1 A estrutura lógica do argumento 1 e de outro argumento exemplificativo

2.2 Diferenças e semelhanças entre três tipos comuns de argumentos

2.3 Figuras e avanços importantes da Revolução Copernicana

3.1 Um paradoxo para a teoria da confirmação de Hempel

3.2 Predicados não artificiais que se comportaram um pouco como «verdul»

3.3 O Modelo Estatístico-Indutivo de Explicação

3.5 Outros exemplos de explicação

Você também pode gostar