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À FILOSOFIA DA
CIÊNCIA
Lisa Bortolloti
TRADUÇÃO
JORGE BELEZA
REVISÃO CIENTÍFICA
AIRES ALMEIDA
Gradiva
Título original An Introduction to the Philosophy of Science © Lisa Bortolloti,
2008 Esta edição é publicada por acordo com Polity Press Ltd., Cambridge
Tradução Jorge Beleza
Revisão científica Aires Almeida
Revisão de texto Maria de Fátima Carmo
Capa Armando Lopes (arranjo gráfico)/©Michael Stones (ilustração)
Fotocomposição Gradiva
Impressão e acabamento Multitipo — Artes Gráficas, L.da
Reservados os direitos para a língua portuguesa por
Gradiva Publicações, S. A.
Rua Almeida e Sousa, 21 r/c esq. —1 399-041 - Lisboa
Tel. 213974067/8
Fax 213953471
geral@gradiva.mail.pt
www.gradiva.pt
l.a edição Novembro de 2013
Depósito legal 366 955/2013
ISBN 978-989-616-557-4
Colecção coordenada por AIRES ALMEIDA
CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Gradiva
EDITOR GUILHERME VALENTE
Índice
Agradecimentos
Introdução: O que é a ciência?
1. Demarcação
1.1 Ciência e não-ciência
1.2 Ciência e pseudociência
1.3 Ciências naturais e sociais
1.4 O que é a investigação científica?
1.5 Boa e má ciência
2. Raciocínio
2.1 Maneiras de raciocinar
2.2 O método científico: a indução
2.3 O problema da indução
3. Conhecimento
3.1 O que é uma teoria?
3.2 Confirmação de teorias
3.3 Modelos de explicação
4. Linguagem e realidade
4.1 Significado, referência e categorias naturais.
4.2 Implicações do descritivismo
4.3 Realismo
4.4 O debate sobre o realismo
5. Racionalidade
5.1 Revoluções
5.2 Mudanças de paradigma
5.3 Além das revoluções
6. Ética
6.1 Instrumentalização
6.2 Constrangimentos éticos aos objectivos da investigação
6.3 Constrangimentos éticos aos métodos de investigação
6.4 Constrangimentos éticos à investigação científica
Conclusão: A ciência como actividade
Glossário
Bibliografia temática
Indice de figuras
Indice de quadros
Agradecimentos
Escrever este livro foi uma tarefa que contou com mais colaboração do que pode
parecer à primeira vista. Ao longo dos capítulos que se seguem, passo em revista
os debates clássicos em filosofia da ciência, mas também me debruço sobre
argumentos específicos que desenvolvi com outros filósofos, em particular
Matteo Mameli (sobre a ilusão metodológica na investigação em psicologia),
Bert Heinrichs (sobre a delimitação do conceito de investigação) e John Harris
(sobre a ética dos aperfeiçoamentos).
Também estou em dívida para com Ángel Fernandez, Asja Portsch, Francis
Longworth, Maggie Curnutte e Nigel Leary pelas suas muitas sugestões úteis. O
Nigel foi uma ajuda absolutamente fantástica em várias fases do projecto, sendo
inteiramente responsável pelo enriquecimento da bibliografia sobre os termos
para categorias naturais, em especial sobre «jade». Fico muito grata pela sua
competência, valorosa assistência e entusiasmo.
Nunca teria escrito este livro sem o encorajamento de Keith Maslin (Esther
College), Emma Hutchinson (Polity Press) e da maravilhosa directora do meu
departamento, Helen Beebee. Escrever este livro teria sido muito mais difícil
sem o constante apoio dos meus tão compreensivos pais e amigos. Agradeço a
Yujin Nagasawa, Matteo Mameli, Matthew Broome, Dan López de Sa, Jordi
Fernández, Edoardo Zamuner e Esa Díaz-León por terem estado sempre lá e por
me terem ajudado amavelmente a atingir a meta.
Também estou grata a todas as pessoas que me ensinaram a amar a filosofia em
geral e a filosofia da ciência em particular: Maurizio Pancaldi, Eva Picardi,
Maurizio Ferriani, Geoffrey Cantor, Donald Gillies, David Papineau, Bill
Newton-Smith, Martin Davies, Kim Sterelny e John Harris (pela ordem em que
tive o prazer de os conhecer).
Tive a sorte de fazer parte de um ambiente de investigação muito estimulante
quando trabalhei no Projecto EURECA (sobre a Delimitação do Conceito de
Investigação e das Actividades de Investigação) no Centre for Social Ethics and
Policy em Manchester, de 2004 a 2005. Desde que passei a fazer parte do
Departamento de Filosofia da Universidade de Birmingham, pude usufruir de
um apoio fantástico de todos, e testei versões prévias de capítulos deste livro em
estudantes de licenciatura muito pacientes. Recentemente, tive também a
oportunidade de visitar a Escola Europeia de Medicina Molecular (SEMM), na
Fundação do Instituto de Oncologia Molecular em Milão, onde testemunhei os
frutos inspiradores do casamento feliz entre a ciência e a filosofia.
Muito antes de ter descoberto a filosofia, prometi que dedicaria o meu primeiro
livro à minha irmã. Nem a Rita nem eu imaginávamos então que o livro seria
uma introdução à filosofia da ciência, mas ei-lo. Espero que ela não fique muito
desapontada.
1. Demarcação
Há um grande cepticismo sobre a possibilidade de se distinguir efectivamente a
ciência da não-ciência. A ideia de que não podemos ter um critério de
demarcação satisfatório é motivada pelas tentativas falhadas de prover tal
critério no passado, e pela observação da diversidade cada vez maior de métodos
e finalidades das disciplinas que somos inclinados a considerar como científicas.
Como podemos esperar oferecer uma explicação unificada do que faz da
investigação uma investigação científica, em disciplinas tão diferentes como a
física, a geologia e a economia?
Ainda que a tarefa de delimitar a ciência possa parecer infrutífera, há muito boas
razões para continuar a insistir. É importante saber em que especialistas se deve
confiar, que projectos de investigação financiar, que teorias ensinar nas escolas.
E as decisões sobre estas questões não podem ser tomadas apenas com base na
consistência teórica ou na aparente adequação da teoria aos dados empíricos.
Precisamos de uma explicação do que a ciência é, do que os cientistas fazem e
de que metas e métodos caracterizam a investigação científica. Não é provável
que a explicação bem-sucedida (se é que tal coisa existe) seja muito específica,
pois é um facto que a especialização conduziu a uma série de conceitos
diferentes de indícios e, além do mais, a diferentes critérios para o êxito nas
ciências naturais e entre estas e as ciências sociais.
As questões ligadas à delimitação da ciência adquirem grande importância na
sociedade contemporânea, onde a ciência é investida de uma autoridade e
responsabilidade especiais. Os cientistas são muitas vezes quem aconselha os
governantes sobre as políticas a seguir, e as suas opiniões são amplamente
solicitadas e ouvidas nos meios de comunicação. Em virtude dos seus
conhecimentos especializados, do seu estatuto enquanto cientistas, alguns deles
são chamados a encontrar soluções para muitos dos nossos problemas
quotidianos, desde lidar com os efeitos das secas a evitar que novos programas
de ensino produzam efeitos adversos nas crianças. Se é atribuída tanta
responsabilidade quer aos cientistas quer à comunidade científica como um todo,
parece que precisamos com alguma urgência de uma explicação sobre o que é
uma disciplina propriamente científica, por oposição ao exercício de disciplinas
que não partilham da mesma respeitabilidade e autoridade social, como a
astrologia e a quiromancia. Além do mais, fazer investigação científica em
muitas áreas (em biomedicina, agricultura, em recursos energéticos renováveis,
por exemplo) pode trazer grandes benefícios às pessoas e às sociedades, e
portanto é algo que deveria ser amplamente apoiado e promovido. Se a ciência
tem algum valor num contexto de recursos públicos limitados, ele está em fazer
pressão para que possamos ser capazes de identificar exemplos genuínos de
investigação científica e projectos de investigação válidos.
Na tradição, a discussão sobre o critério de demarcação entre a ciência e a não-
ciência estruturava-se em torno da tentativa de explicar por que razão a física é
uma ciência e a astrologia não, e de que maneira o método científico é diferente
da magia ou da revelação divina. Hoje, porém, os filósofos que se interessam
pelo critério de demarcação têm em mente um conjunto de questões inter-
relacionadas, e não aspiram necessariamente a fornecer uma descrição da ciência
que responda a todas elas de uma só vez.
Eis uma lista provisória:
•Será que o tema da investigação é importante para se saber se um projecto de
investigação é considerado científico?
•Podem a antropologia, a psicologia e a economia ser consideradas ciências
legítimas mesmo não sendo governadas por leis?
•O criacionismo tem a aparência superficial de uma ciência. Ora, por que razão
não é visto por muitos como uma teoria científica legítima?
•Qual é a diferença entre a filosofia e a ciência, uma vez que ambas pretendem
chegar a uma melhor compreensão dos fenómenos à nossa volta?
No século XX, filósofos inspirados por um movimento chamado Positivismo
Lógico analisaram formas de obter e organizar conhecimento com vista a
identificar diferenças importantes entre a ciência e a metafísica e entre a ciência
e a ética. Os positivistas lógicos, muitos dos quais formados em ciências
naturais, sociais ou matemática, acreditavam fortemente no valor da ciência (é
por isso que se chamam positivistas lógicos), tentando justificar o seu estatuto de
única fonte respeitável de conhecimento factual ao analisarem a estrutura lógica
e a linguagem das alegações de conhecimento (é por isso que se chamam
positivistas lógicos). Um dos objectivos deste capítulo é passar em revista e
avaliar os pontos fortes e as limitações da sua explicação da demarcação entre a
ciência e a não-ciência, antes de passar ao exame dos desenvolvimentos
posteriores das suas ideias e das objecções que tal explicação originou.
Algumas destas objecções podem ser encontradas nas obras de Karl Popper, Paul
Thagard e Paul Feyerabend. Popper, que partilha alguma da ênfase dos
positivistas lógicos no valor e na objectividade da ciência, segue uma linha de
orientação diferente na sua procura de um critério de demarcação. Acredita que a
ciência é a tarefa racional por excelência e procura activamente uma estratégia
viável para distinguir as teorias científicas genuínas das teorias que à primeira
vista parecem científicas, mas que não conseguem sê-lo (exemplos de
pseudociência).
Ao contrário de Popper e dos positivistas lógicos, Thomas Kuhn dá ênfase aos
factores históricos e sociais que determinam o êxito de uma teoria científica ou
de um projecto de investigação. Uma teoria ou um projecto podem ser
considerados científicos num contexto histórico e social mas não noutro, pois os
critérios que uma teoria ou um projecto precisam de satisfazer para poderem ser
considerados ciência também variam. Com base na análise feita por Kuhn da
ciência sensível à história, Thagard desenvolve um critério de demarcação
dependente do contexto, que tenta explicar por que razão algumas disciplinas
podem ver o seu estatuto mudar de científico para pseudocientífico ou vice-
versa. Feyerabend adopta uma posição mais radical, negando qualquer espécie
de estatuto especial à ciência. Argumenta contra a pretensa supremacia da
metodologia científica sobre tradições alternativas de pensamento.
Após esta breve história selectiva do critério de demarcação, apresentarei
algumas conclusões sobre os desenvolvimentos recentes do debate e deixarei
uma sugestão para a delimitação das actividades de investigação.
No final deste capítulo o leitor estará habilitado para:
•Assinalar algumas diferenças entre a ciência e a metafísica e entre a ética e a
ciência à luz das considerações apresentadas pelos positivistas lógicos.
•Explicar e avaliar a tentativa de Popper no sentido de prover um critério de
demarcação entre ciência e pseudociência.
•Estar ciente dos factores sociais que podem contribuir para a mudança de
estatuto de uma teoria e discutir os méritos e as limitações de uma metodologia
anárquica.
•Discutir e classificar diferentes tentativas de demarcar a ciência com base em
exemplos de pseudociência e má ciência.
•Identificar os desafios que se apresentam ao projecto de delimitar as actividades
de pesquisa.
1.1 Ciência e não-ciência
A questão de quando os seres humanos começaram a fazer ciência é controversa,
como veremos no capítulo seguinte, no qual iremos em busca das origens do
chamado método experimental. Em todas as civilizações houve sempre pessoas
interessadas em descrever e explicar acontecimentos naturais como o movimento
dos corpos celestes, os nascimentos ou a ocorrência de cheias. Construíam
hipóteses e tiravam conclusões após terem completado uma série de observações
sobre os fenómenos que queriam explicar. Num sentido lato, estavam a fazer
ciência. No entanto, a ideia comummente aceite é a de que a ciência moderna
tem um carácter especial que não é passível de ser encontrado nas tentativas
anteriores de explicar os fenómenos naturais. A questão de saber em que consiste
este carácter especial é objecto de discussão, conquanto se pressuponha que para
que uma hipótese seja considerada científica é preciso que se apoie em indícios.
Desde a Física de Aristóteles (350 a. C.), o raciocínio científico tem consistido
em formar hipóteses para explicar um acontecimento observado e em rever as
hipóteses explicativas se as observações futuras não forem consentâneas com
elas. Se este processo pode ser considerado como a disponibilização de um
corpo de indícios também é uma questão aberta a interpretações. Será que a
ciência moderna começou quando os humanos foram além da observação
passiva da natureza e começaram a intervir activamente nos fenómenos naturais?
Actualmente, a manipulação da natureza é comum em muitas das ciências nas
quais os experimentadores criam condições especiais para a ocorrência de um
evento para poderem controlar as variáveis e afinarem as suas hipóteses. Porém,
durante muito tempo na história das investigações humanas sobre a natureza, a
base para as teorias aceites era principalmente constituída por experiências
mentais e observações a olho nu, pelo que a distinção contemporânea entre
ciência e filosofia era, no melhor dos casos, difusa.
Poder-se-ia argumentar que fiarmo-nos em indícios e que mesmo a manipulação
activa da natureza não são critérios suficientes para distinguir a ciência moderna
de outras teorizações com base em indícios. Uma série de hipóteses que
explicam a ocorrência dos fenómenos por que nos interessamos não constitui
conhecimento científico a menos que as hipóteses sejam coerentes. As hipóteses
testadas têm de fazer parte de um sistema estruturado e coerente de modo a
contribuírem para o corpo do conhecimento científico.
A formulação de hipóteses explicativas, a manipulação da natureza com vista a
afiná-las e a testá-las, bem como a formação de teorias coerentes, são algumas
das coisas que os cientistas fazem. Ora, haverá uma lista de condições
necessárias ou suficientes para que um corpo de conhecimento seja
genuinamente científico ou para que uma actividade seja considerada
investigação científica?
No que se segue consideraremos com algum pormenor as razões pelas quais se
pensa que os cientistas e os filósofos se ocupam de tarefas distintas.
Exercício: Antes de prosseguir, tome nota de três diferenças entre ciência e
filosofia, com base na sua compreensão dos respectivos métodos e objectivos.
1.1.1 Afirmações analíticas e sintéticas
Ainda que em metafísica não esperemos que os investigadores montem
experiências e encontrem confirmação empírica para todas as afirmações nas
suas teorias, a verdade é que alguns metafísicos iriam ter em conta o que a física
deu a conhecer sobre a estrutura da realidade, elucidariam os conceitos
envolvidos na explicação dada pelas teorias científicas aceites e aprofundariam a
nossa compreensão desses conceitos (Ladyman et al. 2007). Pese embora isto, o
debate sobre o papel da metafísica é ainda extremamente acalorado, e as
tradições filosóficas diferem no que respeita à maneira como a relação entre a
ciência e a metafísica é concebida.
Exercício: É capaz de dar exemplos de hipóteses que são consideradas
científicas mas que não têm bases empíricas? Deveriam estas hipóteses ser
consideradas científicas?
1.2. Ciência e pseudociência
Os positivistas lógicos proporcionaram o critério de verificabilidade como um
critério para o significado das afirmações: uma afirmação tem significado se for
sintética e puder ser verificada por meio da experiência ou se for analítica. As
afirmações científicas genuínas (por exemplo, «Fumar muito aumenta a
probabilidade de se contrair cancro do pulmão») parecem satisfazer o critério,
pois são afirmações sintéticas que podem ser verificadas, mas muitas alegações
éticas e metafísicas parecem sintéticas e no entanto não podem ser verificadas
por meio da experiência, pelo que falham no teste do significado.
As coisas são mais complicadas do que a clara distinção avançada pelos
positivistas lógicos podia sugerir. Segundo Schlick, nas suas conferências
«Forma e Conteúdo» (1938), a afirmação de Descartes de que «Só os seres
humanos são dotados de consciência» não pode ser empiricamente verificada.
No entanto, a questão de querermos considerar as afirmações sobre a consciência
como metafísicas ou outra coisa depende do tipo de justificação que podemos
dar para as aprovarmos. Se temos uma definição de consciência que torna
impossível a outros seres que não os humanos serem conscientes, então a
alegação é uma afirmação analítica. Mas se a definição de consciência não exclui
a priori que os seres não humanos podem ser conscientes, a alegação de
Descartes é considerada sintética e podemos facilmente imaginar formas
cientificamente respeitáveis de lhe dar uma justificação.
Suponhamos que pensávamos que algumas regiões do cérebro humano estavam
envolvidas em alguma experiência que consideramos consciente, e que também
soubéramos que tais regiões eram significativamente diferentes nos cérebros dos
animais não humanos, ou que estes não as tinham de todo. Em tais
circunstâncias, teríamos algumas bases empíricas para avaliar a verdade de
alegações sobre a consciência em seres não humanos. A alegação de Descartes
passaria a ser uma afirmação sintética verificável.
Schlick pensou que este era um bom exemplo de uma afirmação metafísica não
verificável porque assumiu que o filósofo que a tinha avançado, Descartes, não a
justificou com base em dados empíricos que podia ter verificado (embora
Descartes fosse um vivisseccionista nato e tivesse muitos conhecimentos
práticos de fisiologia animal). O exemplo mostra, porém, que a distinção entre o
que pode ser verificado e o que não pode ser verificado não é algo estabelecido
de forma definitiva, e que problemas aparentemente intratáveis podem tornar-se
mais abertos à investigação empírica graças aos avanços da ciência e da
tecnologia.
Foram feitas outras críticas ao critério de verificabilidade enquanto critério de
significado, e também enquanto critério de demarcação. Há dúvidas de que o
critério possa ser suficiente para distinguir afirmações que pertencem a teorias
genuinamente científicas de afirmações que não lhes pertencem. Por exemplo, o
critério parece não ter os recursos para discriminar as afirmações sintéticas que
fazem parte de uma teoria física respeitável das de um horóscopo semanal. A
maioria das alegações dos astrólogos é indubitavelmente sintética, e algumas
alegações são até sujeitas a verificação. Estas afirmações satisfazem o critério do
significado, e no entanto resistimos a aceitá-las como científicas, considerando
muitas vezes que são falhas em justificação e base empírica. Portanto, temos de
procurar noutro lado uma maneira de delimitar o abismo que se considera existir
entre a física e a astrologia.
Exercício: Antes de continuar a ler, tome algumas notas sobre as principais
diferenças entre a física e a astrologia.
1.2.1. Será a astrologia falsificável?
Um contributo fundamental para o problema clássico da demarcação foi dado
por Popper (1959, 2002), que era da opinião de que a ciência é diferente da
pseudociência no sentido em que visa a produção de hipóteses falsificáveis.
Popper não está convencido de que, no contexto da demarcação, fazer apelo à
possibilidade de verificação seja satisfatório. A sua sugestão de uma estratégia
alternativa é baseada na observação de que as afirmações gerais nunca podem
ser verificadas pela experiência, uma vez que seria necessário um número
infinito de observações. Quantas observações de cisnes brancos são necessárias
para verificar a afirmação «Todos os cisnes são brancos»? Afirmações gerais na
forma «Todos os X são Y» dizem respeito a casos passados, presentes e futuros
de X, e portanto nenhum número de observações de X constituiria prova
suficiente para estabelecer com certeza a verdade dessa afirmação geral. E claro
que se eu observo cem cisnes e são todos brancos, é razoável que espere que o
próximo cisne que vou observar também seja branco. Porém, como sabemos, a
observação de um cisne negro numa viagem à Austrália pode ser reveladora. A
existência de apenas um caso em que X não é Y prova que afinal de contas a
afirmação geral é falsa.
O ponto de partida para a introdução da noção de falsificação é o de que uma
única experiência pode contradizer a previsão baseada numa hipótese geral, e
que isto é suficiente para provar que a hipótese é falsa. Segundo Popper, só as
hipóteses científicas são falsificáveis desta maneira, ao passo que as teorias
pseudocientíficas e as teorias metafísicas são imunes ao fracasso empírico. Por
este motivo, pensava que o apelo à falsificabilidade era a forma mais promissora
de distinguir a ciência da não-ciência. Ora será que esta maneira de ver as coisas
pode explicar o estatuto pseudocientífico da astrologia?
Popper (1963) defende que há uma diferença importante entre a) prever indícios
observacionais com base numa dada teoria e b) modelar os indícios de modo a
serem compatíveis com a teoria. A primeira prática caracteriza os
empreendimentos científicos saudáveis, ao passo que a última é típica das
pseudociências. Segundo Popper, uma boa teoria científica é incompatível com a
ocorrência de certos eventos, e por conseguinte impede que certas coisas
aconteçam. Neste sentido, a ciência é uma coisa arriscada. Popper ilustra este
argumento com o exemplo da teoria da relatividade de Einstein. As previsões
que a teoria nos permite fazer são passíveis de confirmação e infirmação, e se
forem infirmadas a teoria não terá um futuro risonho.
Eis outro exemplo de uma previsão arriscada. Suponha que está a considerar um
modelo de flutuações do mercado de acções segundo o qual de cada vez que há
instabilidade política num país, os preços das acções caem. Com base neste
modelo, prevê que da próxima vez que haja instabilidade política em Itália, os
preços das acções na Bolsa de Milão cairão. Se a sua previsão não se verificar, o
modelo foi falsificado.
Ao contrário de uma teoria científica, que faz previsões arriscadas, as teorias
pseudocientíficas são praticamente irrefutáveis. Não há indícios que possam ir
contra estas teorias e levar-nos a rejeitá-las, pois são formuladas de uma maneira
ambígua ou podem ser modeladas de modo a acomodar todos os indícios
aparentemente contrários. Um dos exemplos preferidos de Popper é a
psicanálise. Qualquer observação clínica pode ser interpretada à luz da teoria, e
nenhum exemplo de comportamento humano poderia claramente contradizer as
hipóteses construídas com base na teoria. A astrologia também encaixa nesta
descrição: as suas previsões são frequentemente formuladas em termos tão
gerais, que nenhum acontecimento futuro poderá claramente contradizê-las, o
que garante imunidade à teoria.
Suponha que ainda está interessado em prever o comportamento do mercado de
acções. Desta feita usa um modelo diferente, que lhe diz que de cada vez que há
estabilidade política num país, o custo das acções altera-se — mas não lhe diz se
sobem ou descem. Este modelo ainda é arriscado (pois seria falsificado se os
preços das acções continuassem exactamente os mesmos durante um período de
instabilidade política), mas é menos arriscado do que o modelo que antes
considerámos, pois não especifica como os preços mudam, e por conseguinte é
imune a alguns casos de infirmação empírica. Para Popper, o modelo seria
pseudocientífico se não houvesse circunstâncias nas quais pudesse fazer
previsões que acabariam por ser falsas. Resumindo, para Popper, as
pseudociências não estão genuinamente abertas à falsificação, uma vez que é
óbvio que nenhum evento é por elas excluído.
Exercício: Faça alguma investigação sobre duasdas seguintes actividades —
homeopatia; frenologia; arqueologia; ovnilogia; psicologia evolucionária —, e
em seguida decida se satisfazem os critérios de pseudociência de Popper.
Os críticos de Popper puseram em causa a falsificabilidade enquanto critério de
demarcação entre ciência e pseudociência com base no facto de alguns
elementos de uma teoria científica (como as leis na física teórica) não serem
directamente falsificáveis, ao passo que uma pseudociência como a astrologia
pode gerar afirmações falsificáveis. Se estes críticos estiverem certos, então a
falsificabilidade não é nem suficiente nem necessária para a demarcação.
Não é suficiente porque parece haver hipóteses falsificáveis que não são
científicas. Por exemplo, Paul Thagard (1978) relata algumas tentativas de
confirmar empiricamente, por meio de métodos estatísticos, a ideia de que a
posição dos planetas no momento do nascimento está correlacionada com a
escolha da actividade da pessoa na sua vida futura. Ora, descobrir que o
nascimento de uma pessoa não está correlacionado com a sua posterior
ocupação, como as teorias astrológicas indicam, pode em princípio constituir
uma falsificação da teoria.
A falsificabilidade não é sequer um critério necessário da demarcação. Alan
Chalmers (1999) recorda-nos que o fracasso de uma previsão nem sempre indica
que uma teoria científica está afinal errada. Como veremos quando discutirmos
as teorias científicas nos capítulos 3 e 5, mesmo que as observações pareçam
contradizer os princípios de uma teoria, na prática da ciência por vezes é
perfeitamente aceitável conservar a teoria, e, ao invés, modificar as hipóteses
auxiliares que precisamos de combinar com a teoria, de modo a torná-la testável
(Lakatos 1970; Kuhn 1962,1970; Kuhn 1996). Pode haver hipóteses científicas
que, de tão acerrimamente defendidas pelos cientistas que as testam, são feitas
para resistir a tentativas de falsificação perante previsões inexactas.
1.2.2 Factores dependentes do contexto na demarcação
Inspirado pela análise histórica e social da ciência feita por Kuhn, Thagard
concorda com Popper no ponto em que a astrologia é uma pseudociência, mas
defende que as razões pelas quais a astrologia é uma pseudociência não se
esgotam na aplicação do critério de falsificabilidade. Para determinarmos o
estatuto de uma disciplina, também precisamos de examinar algumas
características da comunidade daqueles que a praticam, bem como o contexto
histórico no qual estas investigações são conduzidas. Uma disciplina científica
saudável possui uma comunidade de praticantes que, em grande medida,
concorda com os principais princípios e métodos que a caracterizam. Os
praticantes ficam seriamente preocupados com indícios aparentemente
infirmantes, tentam encontrar soluções para a inadequação entre a teoria e os
dados e envolvem-se activamente no teste rigoroso da teoria. Quer o estádio do
desenvolvimento da disciplina, quer o reconhecimento da existência de uma
competição, são importantes para o seu estatuto enquanto ciência. Será que a
teoria dominante se tem estado a debater há muito com aparentes contra-provas?
Haverá outras teorias que possam explicar os fenómenos relevantes de uma
maneira mais satisfatória?
Segundo Thagard, a razão pela qual a astrologia está em má forma hoje em dia
deve-se ao facto de os seus praticantes não terem feito progressos significativos
durante algum tempo e de agora termos formas mais bem-sucedidas e fiáveis de
explicar o comportamento humano no âmbito da psicologia cognitiva e social.
Thagard não exclui que, em certo momento no passado, como por exemplo antes
do desenvolvimento da psicologia, a astrologia pudesse ser considerada capaz de
proporcionar uma explicação e uma previsão científica genuínas sobre o
comportamento humano. Actualmente, porém, os praticantes da astrologia não
fazem esforço algum para desenvolver soluções para os problemas que a
disciplina enfrenta, não se empenham no teste rigoroso das suas teorias, parecem
ser selectivos na maneira como consideram os indícios que apoiam ou
contrariam as suas alegações e não comparam o seu enquadramento explicativo
com enquadramentos explicativos alternativos. Segundo Thagard, estes sintomas
sugerem que hoje em dia a astrologia não consegue obter o estatuto de ciência.
Discussão: Concorda com a ideia de que o contexto n/ histórico é importante
para se saber se uma disciplina é considerada genuinamente científica? A título
de exemplo, considere a química e a psicologia.
1.2.3 «Vale tudo»
Na edição de Setembro/Outubro de 1975 da revista The Humanist surgiu uma
declaração sobre a astrologia subscrita por 186 cientistas e eruditos. Nela,
defendiam que os conceitos modernos da astronomia e da física, bem como a
ciência da psicologia, não sustentavam de modo algum a ideia de que a posição
dos planetas pode afectar a vida e o comportamento dos seres humanos.
Paul Feyerabend (1979) defende que a declaração não contém argumento algum
convincente que apoie a ideia de que a astrologia é menos respeitável do que
qualquer outra das disciplinas mencionadas. Feyerabend admite que, em grande
parte, a prática contemporânea da astrologia tem como objectivo «impressionar
o ignorante» e não constitui um exemplo de investigação progressiva, mas
contesta a maneira como os cientistas proeminentes envolvidos na declaração
tentam ridicularizá-la. Na declaração, defende-se que a astrologia surgiu da
magia, e que os seus princípios originais não são de modo algum confirmados
pela ciência contemporânea. Feyerabend responde que se isto é uma objecção,
então é uma objecção ao estatuto científico não apenas da astrologia, mas
também de muitas outras disciplinas que são normalmente consideradas
exemplos paradigmáticos de ciência. A alquimia, que não era desprovida de
referências mágicas, é a precursora da química moderna.
Feyerabend (1975) defende um ponto de vista segundo o qual a ciência é apenas
uma tradição de pensamento entre muitas outras, e que não é caracterizada por
um qualquer tipo de regras metodológicas próprias e rígidas. O desenvolvimento
histórico da ciência mostrou que foram feitos vários tipos de abordagens a
questões a que hoje chamamos científicas, e que foi precisamente esta variedade
de métodos que tornou o progresso possível. Referindo-se a alguns exemplos de
prática científica em diferentes disciplinas e em diferentes épocas, Feyerabend
tenta mostrar que estamos enganados quando pensamos que um único método
unifica todos os empreendimentos da ciência. Ao invés, defende que as Leis da
Razão que comummente consideramos como parte do método científico,
incluindo a ideia de que as teorias científicas estão estreitamente relacionadas
com a realidade por via da observação e das experiências, são apenas uma
reconstrução racional post hoc (Locução latina que significa literalmente «depois disso». Não
confundir com a falácia post hoc ergo propter hoc [depois disso; logo, por causa disso], por vezes
abreviadamente referida como post hoc - N. do R.) da metodologia científica e são
divulgadas para fins de propaganda política.
Nas nossas sociedades, argumenta Feyerabend, os cientistas têm um poder que
lhes é conferido com base no facto de serem depositários de um método racional
para investigar a realidade. Para conservarem o seu poder, dão uma imagem
distorcida da sua maneira de pensar como superior, pondo de parte tradições de
pensamento alternativas. No capítulo 5, passaremos em revista e avaliaremos os
argumentos a favor e contra a racionalidade do progresso científico, e
discutiremos estes assuntos com maior pormenor. Em especial, pensaremos
sobre a questão de saber se pode haver critérios objectivos para classificar
diferentes metodologias, e se a ciência contemporânea nos dá realmente um
estilo de pensamento que é superior ao de outras tradições de pensamento. Para a
presente discussão, porém, será suficiente dizer que pensadores como
Feyerabend são da opinião de que não é possível encontrar um critério de
demarcação coerente e satisfatório entre ciência e não-ciência.
Exercício: Enuncie três razões a favor e três razões contra a negação de
Feyerabend da supremacia metodológica da ciência.
1.3 Ciências naturais e sociais
A questão do estatuto das ciências sociais, de saber se são exemplos genuínos de
ciência, parece girar em torno da comparação entre a sua metodologia, dada a
natureza dos fenómenos que estudam, e a metodologia da física. Ora, será que
podemos realmente encontrar elementos de continuidade suficientes entre a
economia e a física para considerarmos ambas ciências? Popper (1957) distingue
duas abordagens à distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais: o
naturalismo e o antinaturalismo.
De acordo com a perspectiva antinaturalista, há um abismo entre as
metodologias da física e da sociologia. Eis uma listagem parcial de alguns dos
factores que sugerem uma profunda desanalogia:
• Generalizações. Nas ciências físicas fazemos generalizações a partir de factos
particulares para chegarmos a verdades universais com base no pressuposto de
que existem algumas regularidades na natureza. Na sociologia, porém, este
procedimento não é frutífero, pois as circunstâncias são peculiares de um
momento histórico no tempo, e ignorar este aspecto seria ignorar o facto de a
sociedade estar em constante evolução.
• Experiências. Na física, as experiências representam uma maneira de isolarmos
um fenómeno para podermos controlar algumas variáveis e nos centrarmos num
número limitado de factores relevantes. Na sociologia, este método não
funcionaria, uma vez que não há um princípio para decidir que factores são
relevantes para as questões a que se deve responder numa investigação. Além
disso, em física as experiências podem ser repetidas em diferentes laboratórios e
podem obter-se os mesmos resultados, ao passo que na sociologia as
observações sãosempre únicas, pois dependem das características do facto
observado.
• Complexidade. Os factos sociais são complexos, não só porque as variáveis não
podem ser facilmente controladas em situações artificiais, devido à sua
contingência histórica, mas também porque as vidas mentais são importantes
para o desenvolvimento da sociedade, e para se compreender o papel explicativo
das vidas mentais têm de ser invocados factos psicológicos e biológicos.
• Previsão. O ponto é: embora seja possível fazer previsões em sociologia, é
extremamente difícil, devido à complexidade dos factos sociais, mas também ao
efeito que o fazer uma determinada previsão pode produzir no facto que será
previsto. Por exemplo, prever que um banco enfrentará uma crise financeira
produz um efeito nos consumidores que confiaram as suas poupanças a esse
banco. E provável que retirem o seu dinheiro do banco com medo de o
perderem, comprometendo assim ainda mais a situação financeira da instituição.
• Objectividade. Toda a relação entre a pessoa que observa aquele facto e o facto
observado é uma questão que, até certo ponto, também diz respeito às ciências
naturais, mas que parece mais premente no caso das ciências sociais. O sujeito
que tenta dar uma explicação para um facto social não está fora do facto, numa
posição de neutralidade; muitas vezes, está incorporado nele. Uma consequência
extrema desta alegação é que, diferentemente da física, na sociologia o objectivo
do cientista não é revelar verdades, mas originar uma nova fase de
desenvolvimento social.
• Holismo. A partir do que os antinaturalistas dizem sobre a complexidade e a
inadequação das experiências nas ciências sociais, há uma outra questão que
afecta a esfera da previsão e da explicação: o holismo. A ideia é que, em física,
um agregado pode ser apenas a soma das suas partes, mas um grupo social é
sempre mais do que a soma dos seus membros, porque as relações pessoais
podem facilmente alterar a dinâmica e o comportamento do grupo. O próprio
grupo terá a sua história, que não se esgota na história pessoal dos seus
membros. Isto significa que quando tentamos dar uma explicação ou fazer uma
previsão em ciências sociais temos sempre de tomar atenção a como
acontecimentos ou interacções particulares, que parecem ter consequências
muito limitadas e confinadas, determinam alterações em toda a estrutura do
fenómeno social a estudar; e não podemos oferecer explicações ou previsões
localizadas, mas temos sempre de analisar a totalidade dos factos sociais
relevantes.
• Compreensão. Como fazemos quando queremos compreender factos? Se os
factos forem naturais, provavelmente procuraremos o que os causou. Se forem
factos sociais, diz o antinaturalista, procuraremos o significado e a finalidade.
Enquanto o primeiro objectivo, a explicação causal, pode ser posto em prática
pela observação de regularidades e generalizações, o último, a compreensão,
requer imaginação e empa tia.
Exercício: Que outras possíveis diferenças metodológicas entre as ciências
naturais e sociais consegue imaginar?
1.3.1 Leis e experiências nas ciências sociais
Popper discorda fortemente da posição antinaturalista, defendendo uma maior
continuidade entre as metodologias das ciências naturais e sociais. Argumenta
convincentemente que a comparação antinaturalista entre a física e a economia,
ou entre a física e a sociologia, se baseia numa imagem positivista cândida e
demasiado simplificada de como a comunidade científica se dedica ao estudo da
natureza.
Ainda que possa ser verdade que as generalizações em sociologia assumem uma
forma diferente das da física, também é verdade que ambas podem ser
interpretadas como leis ou hipóteses que estabelecem uma proibição. Eis dois
dos exemplos do próprio Popper: «Não se pode construir uma máquina de
movimento perpétuo», ou: «Não se pode ter emprego para todos sem inflação.»
Exercício: Consegue imaginar outros exemplos de proibições estabelecidas por
generalizações nas ciências sociais?
Popper também defende que a ênfase no holismo está mal pensada, da mesma
maneira que a rejeição da metodologia daquelas experiências que pretendem
encontrar regularidades em alguns aspectos do desenvolvimento social em vez
de na sociedade como um todo. Refere que há exemplos bem-sucedidos de
experiências fragmentárias que são relevantes para a articulação de teorias
sociológicas.
Pensemos na famosa experiência sobre a obediência à autoridade conduzida por
Stanley Milgram em 1974 (a que voltaremos no capítulo 6). Num cenário
experimental, mostrou que as pessoas estão fortemente inclinadas a obedecer a
figuras de autoridade que lhes dizem o que fazer, mesmo que esse pedido
implique agir de uma maneira considerada moralmente objectável. Milgram
queria compreender melhor o que tinha acontecido na Alemanha nazi, onde
ocorrera uma indignação relativamente moderada quanto à maneira como as
pessoas e as comunidades judaicas tinham sido perseguidas. A sua hipótese é
muito geral, uma vez que pode ser aplicada a diferentes pessoas em diferentes
sociedades e em diferentes contextos históricos: as pessoas têm dificuldade em
desobedecer a ordens dadas por figuras de autoridade. E, no entanto, a
experiência foi conduzida num laboratório, com a metodologia de investigação
da psicologia social do seu tempo. Os resultados experimentais confirmaram a
hipótese e geraram um debate acalorado sobre as constantes do comportamento
humano, contribuindo assim para uma melhor compreensão da dinâmica da
obediência e da resistência em regimes autoritários.
Exercício: Conhece outras experiências que tenham sido importantes para as
ciências sociais?
Experiências como a de Milgram podem contribuir para a aquisição de
conhecimento generalizável. O método utilizado, diz Popper, é o método que
recomenda para todas as ciências: tentativa e erro. Tentamos resolver um
problema dada uma certa hipótese e podemos falhar ou ser bem-sucedidos, mas
o que realmente importa é que aprendemos com os erros que cometemos. Se a
hipótese não parece funcionar, é revista ou rejeitada, e são feitos novos testes. A
dificuldade de abordarmos as experiências de uma maneira holística é que se
testamos hipóteses que dizem respeito à sociedade como um todo e fracassamos,
torna-se extremamente difícil saber exactamente qual foi o erro. Ao invés, isolar
variáveis, quando isso é possível, parece ser útil tanto nas ciências físicas como
nas sociais.
Há também outros elementos de continuidade no que respeita à questão da
experimentação. Tanto na física como noutras ciências, há experiências
potencialmente muito reveladoras que não podem ser conduzidas devido a
limitações metodológicas ou tecnológicas. Nestes casos, os cientistas têm muitas
vezes de fazer as experiências na sua cabeça e usar a sua imaginação para prever
o que poderiam ser os resultados, em vez de conduzir as experiências
propriamente ditas (como veremos no próximo capítulo). Nem mesmo no que
respeita ao uso comum de experiências mentais parece haver um abismo entre as
ciências naturais e sociais.
Harold Kincaid (2004) defende um ponto de vista naturalista, alegando que pode
haver leis nas ciências sociais. Porém, a sua perspectiva é diferente da de Popper.
Em vez de identificar as leis com afirmações que estabelecem uma proibição,
descreve-as como afirmações que identificam factores causais relevantes. A
complexidade dos fenómenos sociais não parece ser um obstáculo à
identificação de factores causais que contribuem para uma explicação de factores
sociais. Para Kincaid, não há uma boa razão para pensar que a noção de
compreensão em ciências sociais tem de ser concebida como marcadamente
diferente da noção de explicação causal nas ciências físicas.
O ponto de vista antinaturalista afirma que nas ciências sociais os «objectos»
investigados são pessoas com livre-arbítrio e com a sua maneira de
conceptualizar o mundo, não são matéria inerte. E isto que determinará o tipo de
explicação procurada para o comportamento estudado. O comportamento
humano, diz ainda este ponto de vista, não pode ser explicado com os mesmos
princípios do comportamento dos objectos físicos, requerendo um esforço de
interpretação que tem em conta as perspectivas das pessoas cujo comportamento
é estudado (Taylor 1971). Kincaid não pretende excluir que alguns factos sociais
(como um ritual, por exemplo) sejam mais bem explicados fazendo referência ao
seu significado em vez de àquilo que os originou, mas isto não significa que a
procura das causas esteja condenada ao fracasso ou seja irrelevante para as
finalidades da explicação nas ciências sociais. Afinal de contas, o que as ciências
sociais procuram estudar é não apenas o comportamento de alguns indivíduos
em algum momento, mas também a natureza das instituições e o
desenvolvimento de fenómenos em larga escala (e frequentemente recorrentes).
Por vezes pode ser necessária uma compreensão empática para ver uma
determinada situação da mesma maneira que as pessoas que estão nela
incorporadas, mas esta actividade interpretativa não exclui outros métodos para
averiguar a perspectiva de um sujeito, que se baseiam na psicologia humana, por
exemplo, e que podem conduzir a conclusões em certa medida generalizáveis.
1.4 O que é a investigação científica?
Abordaremos agora a questão da demarcação a partir de um ângulo diferente.
Em vez de procurarmos uma explicação da ciência como um corpo de
conhecimento unificado e estático ou uma explicação do que faz uma disciplina
ser científica, consideremos outro projecto de demarcação. O que caracteriza
uma actividade humana como uma instância de investigação científica? Três
conjuntos distintos de questões parecem surgir quando consideramos respostas
possíveis para esta pergunta. Primeiro, uma actividade considerada como
investigação possui uma dimensão metodológica e é sistemática em vez de
aleatória. Segundo, uma actividade considerada como investigação tem uma
função específica e visa contribuir para um corpo de conhecimento. Terceiro, as
actividades consideradas investigação científica possuem alguns aspectos
sociológicos em comum, tais como o papel que os cientistas desempenham na
resolução de disputas sobre questões empíricas ou a maneira como as novas
gerações são formadas em ciências.
Exercício: A dimensão sociológica da investigação não será aqui explorada,
mas poderá reflectir e discutir sobre as seguintes questões: 1) A investigação é
acessível a qualquer pessoa, ou será necessário algum tipo de formação ou
estatuto? 2) É importante o local onde a investigação é conduzida, o modo como
é financiada ou se se enquadra num projecto mais alargado que é reconhecido
por uma comunidade de investigadores?
1.4.1 Questões processuais
Há várias questões processuais que são relevantes para a demarcação das
actividades de investigação. As actividades de investigação tendem a ser
sistemáticas e a seguir um método cujas prescrições dependerão em muito da
disciplina no âmbito da qual a investigação é conduzida. Enquanto as ciências
naturais e sociais podem requerer testes empíricos rigorosos, outras disciplinas
podem requerer que as suas práticas correntes sejam apenas transparentes e
abertas à crítica racional.
Quando pensamos nas questões de procedimentos tradicionais, parece que
encontramos uma tensão reflectida no desenvolvimento da filosofia da ciência
do século xx. Por um lado, a ciência está de tal modo compartimentada e os
procedimentos científicos variam tanto, que talvez só as comunidades científicas
especializadas possam determinar se uma actividade particular se conforma às
exigências tantas vezes abstractas da metodologia actualmente aceite. Por
exemplo, Max Black (1954, cap. i) observa que quando falamos em metodologia
científica em geral tendemos a abstrair a partir do que sabemos sobre física, mas
que na astronomia não há experiências e que a geografia é em grande medida
descritiva. Tal sugere que não se espera encontrar uma descrição muito
pormenorizada do método científico que se adeqúe a todas as ciências. Por outro
lado, para a compreensão por parte do público e para a delineação de políticas,
torna-se necessária alguma espécie de critério de demarcação. Embora não seja
realista aspirar a descrever um método definitivo para todas as disciplinas que
possa ser considerado científico, existem elementos metodológicos
aparentemente essenciais que nos ajudam a distinguir a investigação de outras
actividades. Falar de uma metodologia científica parece erróneo não apenas
devido à diversificação das disciplinas científicas, mas também porque o método
usado na investigação científica, assim como as teorias científicas a que se
chegou por via desse método, podem ser passíveis de revisão.
Em termos muito genéricos, há duas exigências metodológicas que parecem
aplicar-se a toda a actividade que gostaríamos de considerar investigação
científica. Primeiro, a investigação científica deve ser conduzida de uma maneira
que permita o cotejo com a realidade, ou seja, os testes devem fazer parte do
processo de chegar a conclusões e de justificá-las. Segundo, quer as conclusões a
que se chegou, quer os passos do raciocínio necessários para a elas se chegar,
devem ser transparentes e passíveis de serem criticados.
Estes dois pontos parecem adequar-se a alguns dos requisitos sugeridos por
Popper e Thagard no que toca às diferenças percebidas entre a prática da física e
da astrologia. Mas note-se que enquanto os requisitos de sensibilidade aos dados
empíricos, de transparência e de abertura à crítica racional eram tradicionalmente
explicados nos termos da distinção entre disciplinas ou corpos de conhecimento,
agora tentamos identificar se algumas actividades serão instâncias de
investigação científica.
Exercícios: 1) Ilustre com alguns exemplos a maneira como os requisitos
processuais antes descritos são aplicados pela ciência natural ou social com que
está mais familiarizado. 2) Consegue imaginar outras actividades que se
adeqúem a estes requisitos processuais mas que não sejam manifestamente
exemplos de investigação científica?
1.4.2 Questões funcionais
É completamente incontroverso que a principal finalidade da investigação seja
contribuir para um corpo de conhecimento, mas nem todos concordam na
definição com maior pormenor do tipo de conhecimento que a investigação
pretende produzir. Por exemplo, quando anteriormente falámos sobre as
possíveis diferenças entre as ciências naturais e sociais, perguntámos se os
resultados produzidos no decurso de uma investigação da estrutura ou da história
da sociedade humana podiam ser generalizados. Uma ideia comum é que, para
que a investigação seja considerada um exemplo de investigação científica
genuína, os seus resultados precisam de ser generalizáveis, e que toda a
investigação que não produz resultados generalizáveis não consegue ser
científica. Focar-nos-emos aqui noutro requisito: a novidade.
Parece ser consensual classificar a confirmação de resultados e a reorganização
de dados anteriormente conhecidos como investigação quando a confirmação é
necessária e quando há um elemento de originalidade ou novidade na actividade.
Este elemento de originalidade pode ser esgotado pela possibilidade de se tirar
mais conclusões ou de se fazer mais generalizações a partir do mesmo corpo de
dados, reorganizando ou reinterpretando os dados à luz de novos pressupostos
teóricos. Para Imre Lakatos (1970), que retrata a ciência como a sucessão
dinâmica de programas de investigação e não como o agrupar de afirmações
teóricas, um programa de investigação é científico se for progressivo. Para que
seja progressivo no que respeita a um estádio prévio de desenvolvimento
científico, o programa de investigação tem de ter pelo menos o mesmo conteúdo
empírico e tem de ser capaz de proporcionar uma explicação para os mesmos
fenómenos de uma maneira pelo menos igualmente satisfatória. Além disso, tem
de fazer novas previsões que possam ser confirmadas pela experiência. Um
programa de investigação é degenerativo (isto é, é ainda ciência, mas não uma
ciência muito boa) se as novas previsões que são feitas não são confirmadas pela
experiência.
Embora a perspectiva de Lakatos tenha sido até agora extremamente influente no
âmbito do estudo da metodologia científica, têm sido levantados alguns
problemas no que respeita à noção de novos factos e novas previsões. Os factos e
as previsões devem ser novos em relação a quê? A literatura apresenta respostas
diferentes, que variam entre a novidade temporal e a novidade da interpretação.
As consequências do tipo de novidade que escolhemos são muito importantes
para a definição dos programas de investigação progressivos. A novidade
temporal requer apenas que os factos que antes não eram considerados prováveis
possam agora ser previstos. Ao contrário, a novidade da interpretação é bastante
mais fraca, requerendo apenas que os factos antigos sejam revisitados e
reavaliados pelo programa de investigação. O tipo de novidade requerida para
que uma actividade seja considerada investigação original é uma questão difícil,
e as respostas podem variar, dependendo dos objectivos de uma disciplina
científica ou mesmo do estádio de desenvolvimento dessa disciplina. Porém,
para a finalidade muito geral da nossa discussão aqui, a novidade da
interpretação parece ser necessária para que uma actividade seja considerada
investigação original.
Exercício: Quais das seguintes considerações poderiam originar um critério
funcional para a investigação científica: um maior poder explicativo; estimular
o debate num campo de investigação; pôr em causa ideias preconcebidas; ter
aplicações tecnológicas significativas; ser compatível com outros programas de
investigação bem-sucedidos; gerar resultados num vasto leque de fenómenos
inter-relacionados?
Discussão: Que outros critérios funcionais acrescentaria à novidade?
1.4.3 A delimitação da investigação
De que maneira podemos combinar as considerações anteriores sobre as
dimensões funcionais e processuais da investigação para chegarmos a uma
explicação da demarcação? A investigação científica é uma actividade humana
que visa contribuir, de modo inovador, para um corpo de conhecimento coerente
por via da adopção sistemática de um método crítico. Há duas maneiras de
identificar a função de uma actividade: subjectivamente, olhando para as
intenções primárias das pessoas envolvidas na actividade; objectivamente,
olhando para aquilo que efectivamente os resultados da actividade acrescentam.
Em muitos casos coincidem, mas por vezes as pessoas ou os grupos que
pretendem adoptar um método crítico ou contribuir para um corpo de
conhecimento coerente de uma nova maneira não conseguem fazê-lo.
O propósito de uma actividade pode contribuir para a compreensão das razões
subjacentes ao comportamento humano, o que é visto como um objectivo
científico legítimo, sem que nenhum método crítico e transparente seja adoptado
— alguns diriam que escrever horóscopos diários se insere nesta categoria. Uma
actividade pode ser conduzida por via de um método crítico sem visar alargar um
corpo de conhecimento de uma maneira nova — por exemplo, o trabalho de um
aluno da licenciatura em física pode ser metodologicamente indistinguível do
trabalho feito pelos cientistas de topo na mesma área, contudo, a sua função
principal é provar a competência do aluno, e não contribuir de uma maneira
original para o conhecimento partilhado pela comunidade científica.
Estes recursos conceptuais também nos podem ajudar a entender a distinção
entre investigação e terapia na biomedicina. Os mesmos dados, obtidos por via
de um método empírico respeitável, podem ser usados quer para alargar os
conhecimentos biomédicos, quer para fornecer uma terapia imediata. Estas
funções não se excluem, sendo defensável dizer que obter conhecimentos de
biomedicina tem sempre uma função terapêutica subjacente. As tentativas
terapêuticas que usam métodos ou fármacos não validados podem gerar uma
hipótese que é depois testada num ensaio clínico.
E disto um bom exemplo o caso Simms v Simms and An NHS Trust (2002). Neste
caso, o tribunal decidiu que era legal administrar uma terapia experimental a um
doente incapaz, Jonathan Simms, afectado pela variante da doença de
Creuzfeldt-Jakob. O fármaco que lhe foi administrado, pentosano polissulfato,
nunca tinha sido usado em seres humanos afectados pela vDCJ, e foi injectado
directamente no cérebro, através de um procedimento cirúrgico arriscado. A
decisão do tribunal foi motivada pelo prognóstico grave de Jonathan Simms e
pela falta de alternativas disponíveis. O caso sugere que não existem fronteiras
bem definidas entre a investigação e a terapia, além de que uma actividade pode
ter ambas as funções.
1.5 Boa e má ciência
A distinção entre disciplinas que são científicas e disciplinas que o não são (ou
entre disciplinas que são consideradas investigação e disciplinas que o não são)
não envolve necessariamente um juízo avaliativo. Poder-se-ia pensar que os
tipos de investigação que não se enquadram nos critérios processuais para a
investigação científica ou que não visam contribuir para um corpo de
conhecimento podem, não obstante, ser de grande importância, e deviam ser
financiados e realizados juntamente com a investigação científica. Porém, as
expressões «pseudociência» e «má ciência» têm conotações pejorativas. Uma
disciplina ou um tipo de investigação que é classificado como pseudocientífico
normalmente não passa no teste da demarcação mas apresenta-se como
científico, ou é considerado por alguns sectores da população como tendo o
mesmo estatuto de uma disciplina científica ou como uma instância de
investigação científica. A conotação negativa deve-se ao facto de haver um
elemento de simulação ou de engano.
Recentemente, o debate sobre o criacionismo reacendeu as preocupações
práticas que emergem da necessidade de distinguir a ciência da pseudociência.
Será o criacionismo científico? Deverá ser ensinado nas escolas em conjunto
com a teoria da evolução? De uma maneira geral, a comunidade científica nega
que o criacionismo ofereça uma explicação científica da origem da vida. As
razões desta posição devem-se principalmente a uma avaliação de factores
processuais. O criacionismo é considerado pseudociência porque introduz
factores sobrenaturais na explicação de como a vida evoluiu. Além do mais,
algumas das suas hipóteses são baseadas em noções vagas. Por exemplo, os
críticos defendem que o conceito de «tipo» como uma das diferentes formas
pelas quais a vida foi criada não é suficientemente elaborado, e que este carácter
vago torna extremamente difícil assinalar indícios que pudessem falsificar
alegações sobre a maneira como os diferentes tipos interagem uns com os outros.
Estas objecções ao estatuto científico do criacionismo parecem estar fundadas na
ideia de que há aspectos da teoria que comprometem quer a transparência das
hipóteses oferecidas, quer a possibilidade de serem testadas.
Considerar factores contextuais pode ser ainda mais problemático para o estatuto
do criacionismo. O argumento é que existe uma disciplina alternativa que pode
oferecer uma explicação mais empiricamente fundamentada e no geral mais
convincente do desenvolvimento da vida na Terra — a biologia evolucionária
—, e que os dados recolhidos nesta área não são tidos em conta, ou são
descartados de forma precipitada pelos criacionistas.
A distinção entre boa e má ciência (ou boa e má investigação) é, uma vez mais,
diferente. Há empreendimentos que, se conduzidos de uma maneira satisfatória,
poderiam contribuir para um corpo de conhecimento partilhado. E há
investigadores que subscrevem uma metodologia que, se correctamente aplicada,
poderia ser considerada crítica e aberta ao confronto com a realidade. No
entanto, os resultados da actividade não conseguem contribuir para um corpo de
conhecimento partilhado ou a metodologia não é correctamente aplicada. Trata-
se de casos de má ciência. Em certa medida a actividade cumpre os requisitos
para a investigação científica, mas não de uma maneira satisfatória, pelo que o
modo como é conduzida é objecto de um exame minucioso e de uma crítica
exaustiva.
Na literatura sobre a história da ciência há exemplos interessantes de fracassos
deste tipo. Há programas de investigação que pretendem provar a existência de
agentes causais cuja presença só pode ser detectada pela via da experiência.
Estes casos são pervertidos quando a presumível existência destes agentes é
justificada com alegações que podem entrar em conflito com a experiência e
quando, em resposta a críticas, se oferecem ajustamentos aã hoc à hipótese
inicial. Outro problema comum é que os resultados não podem ser reproduzidos
por outros investigadores ou equipas.
A história da tentativa de obter a fusão nuclear fria inclui um episódio que é
frequentemente descrito como um exemplo de má ciência. Em 1989,
Fleischmann e Pons, que faziam investigação na Universidade do Utah,
afirmaram ter obtido a fusão nuclear ao libertarem deutério de água pesada
(DzO) num eléctrodo de paládio. Sem se deixarem desencorajar pelas tentativas
anteriores falhadas de fusão fria, Fleischmann e Pons utilizaram um aparelho
muito rudimentar, basicamente um jarro de água cuja temperatura fora medida
antes e depois da experiência. Relataram ter encontrado um aumento de
temperatura que interpretaram como um sinal de que a fusão tinha ocorrido, e
que tinham sido produzidos neutrões. A notícia espalhou-se, criando grandes
expectativas, especialmente no governo americano, que estava interessado em
investigar as possíveis aplicações da fusão fria à criação de fontes de energia.
Os dois cientistas foram pressionados para submeter um artigo com os resultados
para publicação, o artigo foi revisto pelos pares e foi publicado. Outras equipas
de cientistas reproduziram as mesmas condições da experiência, mas não
conseguiram obter os resultados descritos por Fleischmann e Pons, mesmo nos
casos em que o equipamento utilizado era mais sofisticado do que o original. O
artigo publicado com as alegações de que a fusão fria tinha sido atingida também
fora recebido com muito cepticismo, uma vez que foram revelados alguns erros
básicos no modo como a experiência tinha sido conduzida, erros esses que
tinham afectado as estimativas do calor produzido.
Devido a estes desenvolvimentos, a alegação de que a fusão fria tinha sido
atingida foi depois rejeitada, e a reacção da comunidade científica ao trabalho de
Fleischmann e Pons chegou às páginas de ciência dos jornais mais importantes
(como The New York Times, por exemplo). O financiamento para o projecto da
fusão fria de Fleischmann e Pons foi retirado como consequência de não terem
conseguido responder satisfatoriamente às objecções de outros especialistas.
No caso da tentativa da fusão fria por Fleischmann e Pons, as suas actividades
tinham todos os indicadores sociológicos de uma actividade científica:
trabalhavam como investigadores para uma instituição respeitável e publicaram
os seus resultados numa revista com revisão pelos pares. O que correu mal,
então? Uma linha de explicação pode focar-se em factores que são «externos» à
ciência como influindo indevidamente no modo como a experiência foi
conduzida e como os resultados foram publicados. Poder-se-á dizer que houve
uma pressão excessiva por parte da universidade no sentido de tornar os
resultados públicos antes de terem sido obtidos resultados semelhantes por
grupos de investigação concorrentes que estivessem a trabalhar em projectos
semelhantes. Outro factor será possivelmente um optimismo excessivo por parte
dos investigadores: Fleischmann e Pons desejavam de tal maneira obter o tão
ansiado resultado da fusão fria, que negligenciaram questões metodológicas
básicas no seu procedimento experimental e subestimaram o significado das
objecções dos críticos. Uma outra linha de explicação pode reforçar o que esteve
em falta no que respeita aos critérios metodológicos de instâncias saudáveis de
investigação científica. A alegação de que a fusão fria tinha sido atingida não
fora confirmada pelos indícios disponíveis, e os resultados da experiência não
puderam ser replicados por outras equipas de investigadores.
A questão de saber se é sempre possível uma distinção clara entre casos de má
ciência e casos de pseudociência está em aberto. Por exemplo, será possível que
uma investigação que vise aumentar o conhecimento falhe de tal modo no que
respeita aos critérios processuais que deixe pura e simplesmente de ser ciência?
Exercício: Procure outro exemplo de má ciência e identifique os factores que
contribuem para que seja má.
Discussão: Acha que as razões que os cientistas x/ podem ter para acreditar na
verdade das suas hipóteses podem alguma vez ser «externas» à prática da
ciência?
Resumo
Neste capítulo começámos por enquadrar várias questões que podem ser
colocadas na tentativa de delimitar os conceitos de ciência e de investigação
científica. Nos capítulos que se seguem iremos concentrarmos em áreas distintas
da prática da ciência, entre as quais a sua metodologia, a sua linguagem, o seu
desenvolvimento histórico, os seus pressupostos ontológicos, o seu progresso e a
sua relação com o resto da sociedade. No decurso do exame das questões
filosóficas que se levantam nessas áreas, encontraremos outros critérios que
poderão ajudar-nos a obter uma explicação mais satisfatória sobre a distinção
entre ciência e não-ciência.
Aqui abordámos a questão da demarcação de uma maneira mais geral, e revimos
algumas das explicações disponíveis sobre as diferenças que se considera haver
entre ciência e ética, ciência e metafísica, ciência e pseudociência, entre as
ciências naturais e sociais, e entre a boa e a má ciência. Também reflectimos
sobre o conceito de investigação científica e os seus aspectos processuais e
funcionais.
Até agora, a ideia que fica é uma ideia de continuidade, na qual as diferenças
que se considera haver entre o que é tomado como ciência e o que não é não
resultam muito claras, pelo que as esperanças de conseguirmos uma distinção
clara e imediata a partir dos critérios de verificabilidade e falsificabilidade
acabam por cair por terra. Mas isto não é, necessariamente, motivo para
preocupação.
Cenas dos próximos capítulos
No capítulo 2 continuaremos a discussão sobre o que torna a ciência diferente
da não-ciência, focando-nos nas características do raciocínio científico e no
método científico. No capítulo 5 reconsideraremos as questões da demarcação
no que respeita à racionalidade da ciência e ao modo como progride.
Questões para pensar
1. Serão o marxismo e a homeopatia pseudocientíficos? Porquê?
2. Quais são as analogias entre a ciência e a metafísica?
3. Em que medida a falsificabilidade funciona como um critério de demarcação?
4.4Que factores determinam se a astrologia é uma ciência?
5. Em que é que a psicologia e a física diferem?
6. Se a ciência é apenas uma tradição de pensamento entre outras, o que será
responsável pelo papel especial que parece desempenhar na sociedade
contemporânea?
Leituras complementares
Consideremos outro exemplo de um argumento dedutivo. Imaginemos que
precisa desesperadamente de uma boleia e que está à procura de alguém que o
possa levar ao hospital. Saul, o irmão do seu amigo, está mesmo do outro lado da
rua, mas não lhe pede a ele, pois o Saul tem apenas 13 anos.
Argumento 2
Premissa 1: Com 13 anos não se pode ter uma carta de condução válida.
Premissa 2: Saul tem 13 anos.
Conclusão: Saul não tem uma carta de condução válida.
Estes exemplos mostram que usamos a dedução com frequência, quando
retiramos informação adicional a partir da informação que já temos. Nos
argumentos atrás esquematizados, a conclusão não contém qualquer informação
nova. A conclusão torna explícito algo que já está implicitamente contido nas
premissas (A caracterização do raciocínio dedutivo aqui apresentada pela autora,
segundo a qual a conclusão dos argumentos dedutivos está implicitamente
contida nas premissas, tem sido disputada. Se interpretarmos a expressão «está
contida em» em sentido lógico, então isso apenas significa que a conclusão é
implicada pelas premissas [que a conclusão é uma consequência lógica delas], o
que é trivialmente verdadeiro e, portanto, indisputável. Mas há também uma
interpretação epistémica da expressão «está contida em», caso em que se quer
dizer que a conclusão não acrescenta informação que as premissas não
contenham já. Isto é o que pensa também a autora, mas é esta interpretação que
outros autores [Russell, por exemplo, em Os Problemas da Filosofia, Cap. 8]
não consideram adequada. A ideia de quem não partilha esta interpretação é que
se a conclusão do argumento dedutivamente válido não acrescentasse
informação nova ao que já se encontra nas premissas, então a demonstração dos
teoremas da incompletude [assim como muitos outros resultados da matemática]
não constituíam genuínas descobertas realizadas por Gödel, nem contavam como
um genuíno avanço no conhecimento, o que parece claramente inaceitável. -N.
do R.).
Repare que há uma relação especial entre as premissas e a conclusão. Se as
premissas forem verdadeiras e o argumento for válido, a conclusão não pode ser
falsa. Uma maneira de descrever esta relação é dizer que a conclusão é uma
consequência lógica das premissas, ou que se segue logicamente das premissas.
A estrutura dos argumentos apresentados é tal, que a transmissão da verdade das
premissas para a conclusão está garantida.
Exercício: Identifique a estrutura lógica do argumento 2 e encontre outro
exemplo de argumento que se enquadre nessa estrutura.
Quando avaliamos um argumento dedutivo, interessa-nos a sua validade e
solidez. Um argumento é válido se a conclusão se segue logicamente das
premissas, como nos exemplos do Quadro 2. A validade depende da forma
lógica do argumento (Tipicamente, a validade dedutiva depende exclusivamente da forma lógica.
Porém, há casos menos frequentes de inferências dedutivamente válidas cuja validade não depende da
forma lógica. E o que se passa com os argumentos cuja validade depende dos termos ou conceitos
envolvidos nas premissas e na conclusão, como, no exemplo: «A mochila da Maria é azul. Logo, é
colorida.» Esta inferência é dedutivamente válida mas a sua validade não se deve à sua forma lógica - N. do
R.). Um argumento válido é também sólido se as premissas são verdadeiras. O
argumento 3 é um exemplo de um argumento dedutivo válido que não é sólido
porque a premissa 1 é falsa.
Argumento 3
*Ver nota do revisor da p. 44. Vale a pena insistir que muitos autores caracterizam a diferença entre tipos de argumentos não por uns,
ao contrário de outros, serem ampliativos, mas antes pelo modo como isso ocorre. Assim, defendem que as inferências dedutivas são
também ampliativas, só que isso se deve ao seu carácter estritamente combinatório, o que não sucede com as inferências indutivas. N.
do R.
Podemos dizer que um argumento indutivo ou uma inferência são sólidos se
tanto as premissas como a conclusão forem verdadeiras, mas não podemos dizer
que são válidos da mesma maneira que um argumento dedutivo o é, ou seja,
logicamente válidos. Num argumento dedutivo ou numa inferência a favor da
melhor explicação, a conclusão não deriva das premissas. Mas podemos dizer
que um argumento indutivo ou que uma inferência a favor da melhor explicação
são «correctos» se as premissas apoiam a conclusão (neste caso, a conclusão
pode acabar por ser falsa).
Exercício: Identifique mais três exemplos de raciocínio indutivo ou de inferência
a favor da melhor explicação.
Discussaõ: Será que a probabilidade de a conclusão ser verdadeira varia nos
exemplos dados? De que depende?
2.1.4 O raciocínio na prática científica
Nos exemplos de dedução, indução e inferência a favor da melhor explicação
que até agora considerámos, vimos que estas formas de raciocínio são
empregues no raciocínio e na resolução de problemas quotidianos. Ora, será que
a distinção entre estes tipos de raciocínio também é importante para a prática da
ciência?
A dedução é um poderoso gerador de inferências, e está patente no raciocínio
que ocorre quando tentamos provar que a soma dos ângulos internos de um
triângulo é igual a 180°; retiramos o que queremos provar a partir dos axiomas
do nosso sistema formal de geometria e dos teoremas que temos ao nosso dispor.
Nas ciências empíricas, porém, os princípios a partir dos quais retiramos mais
hipóteses para provar também precisam de confirmação empírica, e usamo-los
nas nossas deduções por nossa conta e risco. A maioria dos filósofos da ciência
concordaria que as leis da natureza não possuem uma natureza convencional e
não são como as verdades lógicas ou como as meras definições de conceitos,
mas são consideradas afirmações gerais sobre fenómenos num domínio
particular, e normalmente chega-se a elas por via da abstracção com base nos
resultados da observação e da testagem. A compreensão, descrição rigorosa e
previsão de factos que se enquadram no âmbito de uma teoria parecem ser reféns
da indução. Isto é, em certa medida, controverso, e alguns filósofos defenderam
que a indução não é necessária na ciência (ver Popper 1953).
A indução por enumeração, ao fundamentar as crenças sobre os fenómenos
gerais na experiência anterior de fenómenos particulares, sustenta as nossas
acções e expectativas quotidianas, e é comummente considerada a base de todo o
conhecimento empírico. É uma forma de raciocínio ampliadora, ou seja, visa
alargar o domínio do nosso conhecimento. Mas não proporciona certeza alguma,
pois todas as generalizações a partir de observações anteriores são falíveis.
Na ciência temos muitos exemplos de casos em que o que era considerado uma
explicação convincente dos dados disponíveis acabou por se revelar incompleto
ou erróneo. Tomemos o exemplo do debate sobre as causas das úlceras no
estômago na investigação médica. Durante anos, os investigadores acreditaram,
com base nas suas observações, que as bactérias não conseguiam sobreviver num
ambiente ácido como o do estômago, e portanto excluíram a possibilidade de as
bactérias serem a causa das úlceras. O stress e a comida muito condimentada
eram considerados os possíveis causadores das úlceras, pelo que o tratamento
recomendado consistia na prescrição de fármacos para bloquear a produção de
ácido. Recentemente, Warren e Marshall descobriram que há um
microorganismo responsável por muitas úlceras no estômago e no duodeno
(Helicobacter pilori) que vive no estômago e que se adapta ao seu meio hostil.
Hoje, a cura consiste na eliminação deste microorganismo. O mundo da
investigação científica lembra-nos sem cessar que por mais que as hipóteses que
temos se adeqúem aos dados previamente recolhidos ou estejam arreigadas à
nossa maneira de ver as coisas, podem sempre resultar incompletas ou
imprecisas, e precisar de ser revistas ou substituídas.
A inferência a favor da melhor explicação é alegadamente uma forma de
raciocínio aplicada pelos cientistas em circunstâncias em que os indícios não
excluem hipóteses explicativas incompatíveis, mas são melhor explicados por
algumas das hipóteses explicativas disponíveis do que por outras. Em
Companion to the Philosophy of Science, Peter Lipton (2001), ilustra este caso
com o exemplo de Darwin, que alinhou com a hipótese da selecção natural
porque estava convencido de que esta proporcionava a melhor explicação para
os indícios biológicos disponíveis.
Outro exemplo clássico de uma descoberta científica feita por inferência a favor
da melhor explicação é o de Kepler, ao chegar à conclusão de que a órbita de
Marte é elíptica. De acordo com uma reconstrução controversa (Hanson 1958), o
que Kepler fez foi partir dos indícios de que dispunha para chegar a uma
hipótese capaz de proporcionar a melhor explicação para os mesmos, com base
em algumas crenças de base e princípios metodológicos. Na época, havia
explicações rivais para as observações do movimento de Marte. Estas
observações pareciam não apoiar a ideia aristotélica comummente aceite de que
os corpos celestes se movimentam em círculos. Algumas hipóteses mantinham
que a órbita era circular, mas acrescentavam alguns expedientes para explicar as
irregularidades (o ponto equante de Ptolomeu ou os movimentos epicíclicos).
Para Kepler, no entanto, a hipótese de que a órbita era de facto elíptica possuía
várias vantagens sobre as adversárias: explicava satisfatoriamente todos os
indícios disponíveis; parecia satisfazer os constrangimentos da sua teoria
astronómica; não implicava expedientes geométricos irrealistas; permitia
previsões precisas.
Os problemas com a inferência a favor da melhor explicação surgem quando nos
focamos mais de perto na noção adequada de explicação. As comparações entre
os poderes explicativos de hipóteses alternativas só podem ser feitas se tivermos
uma forma objectiva de medir esses poderes, e, como veremos, os filósofos da
ciência dão explicações muito diferentes sobre as condições que uma boa
explicação tem de cumprir.
No que respeita aos pontos fortes e às limitações do raciocínio indutivo, manter-
nos-ão ocupados até ao final deste capítulo.
2.2 O método científico: a indução
O primeiro filósofo a afirmar explicitamente a centralidade do raciocínio
indutivo na metodologia científica foi Francis Bacon, na sua obra Novum
Organum (Novo Método). Esta obra pretendia substituir o texto metodológico
oficial há muito estabelecido do filósofo grego Aristóteles, intitulado Organum.
Bacon viveu numa época (século XVII) em que o estudo das ciências naturais
florescia e a autoridade dos grandes pensadores do passado começava a ser
questionada. Estava ciente de que se inseria numa importante fase de transição,
na qual a física e a astronomia aristotélicas eram postas em causa pelas obras de
Copérnico, Kepler e Galileu, e, com determinação, avançou a sua própria visão
de como a ciência deveria proceder.
O método indutivo descrito por Bacon começa com a observação dos fenómenos
naturais. Bacon pensa que devemos apresentar os resultados das nossas
observações em tabelas, para compararmos os dados. Da experiência sensível,
partimos então para axiomas inferiores, e dos axiomas inferiores para axiomas
superiores, que operam a um nível de generalidade cada vez maior. A partir dos
axiomas superiores, podemos esperar obter leis da natureza a partir das quais se
podem prever novos dados e organizar observações de novos fenómenos. Mas
Bacon pensava que, antes que os dados pudessem dar origem a axiomas,
devíamos usar um procedimento a que muitas vezes se chama indução
eliminativa. Este consiste em identificar várias hipóteses explicativas para um
conjunto de dados, e excluir aquelas para as quais se encontraram contra-
exemplos. Podem ser concebidas experiências para confirmar ou contestar as
hipóteses, até que uma sobreviva aos testes. Os passos descritos por Bacon
formam um ciclo de conhecimento (a partir de um nível de generalização
inferior até um superior, e depois do superior ao inferior) que supostamente
conduz os cientistas a uma maior proximidade da verdade.
Além da ênfase na indução, há outros aspectos importantes do trabalho de Bacon
que veremos com maior pormenor em seguida: defendeu uma metodologia
empírica numa época em que o uso de observações e de experiências na ciência
não era ainda a norma, e deu valor à dimensão colaborativa da prática científica.
2.2.1 As inovações na emergência da ciência moderna
Exercício: Consegue pensar em exemplos de novasdescobertas na ciência
contemporânea que deram origem não só a novas hipóteses teóricas, como
também a inovações metodológicas?
2.2.2 Experiências mentais
Quando descrevemos o impacto de uma revolução científica, é sempre fácil
destacar a importância das inovações. No entanto, há elementos de continuidade
que persistem juntamente com os sucessos metodológicos pioneiros.
Actualmente, os cientistas que se dedicam ao trabalho experimental fazem parte
de uma comunidade que tem mecanismos prontos para confirmar a fiabilidade
dos seus procedimentos experimentais e a consistência dos seus resultados. Este
aparato não surgiu de um dia para o outro, e a presença de instituições de
investigação foi apenas o início da formação de uma comunidade científica
capaz de dar credibilidade ao trabalho de investigadores ou de equipas de
investigação.
Pese embora isso, os cientistas estão sempre à procura de maneiras de resolver o
problema de encontrar estratégias argumentativas bem-sucedidas para defender
novas hipóteses e fazer face ao cepticismo dos seus públicos. O uso de
experiências mentais, por exemplo, parece resistir à passagem do tempo.
Enquanto metodologia, foi criada para proporcionar uma justificação quer à
física aristotélica, quer à newtoniana, e também foi frequentemente usada no
desenvolvimento da teoria da relatividade. Há uma longa tradição de
experiências mentais importantes nas ciências naturais, uma tradição que começa
quando Aristóteles e Galileu tentam descobrir as leis do movimento dos objectos
terrestres, e que continua com o exemplo de Albert Einstein do comboio atingido
por raios, no seu primeiro artigo sobre a relatividade (1905).
Galileu queria testar as ideias de Aristóteles sobre a queda dos corpos, em
particular o pensamento de que os corpos mais pesados caem mais depressa.
Imaginou então o que aconteceria se lançasse objectos da Torre de Pisa para
observar a que velocidade caíam. Se Aristóteles estivesse certo, uma pesada bala
de canhão cairia a uma velocidade maior do que uma mais leve bala de
mosquete. Mas o que aconteceria se atirasse uma bala de canhão fixada a uma
bala de mosquete (ou seja, um agregado de dois corpos, um mais pesado e outro
mais leve)? Este corpo agregado supostamente cai quer mais rápido do que a
bala de canhão por si só, porque é mais pesado, quer mais lentamente, uma vez
que a parte mais leve desaceleraria a mais pesada. Por conseguinte, a linha de
raciocínio baseada na lei do movimento de Aristóteles conduz a uma
contradição, o que significa que o pressuposto de que Galileu partiu — que os
corpos mais pesados caem mais depressa — tem de ser rejeitado.
Exercício: Será que Galileu apresenta aqui um bom argumento contra a lei do
movimento de Aristóteles?
Einstein usou a famosa experiência mental do comboio para provar que a ideia
newtoniana de que o espaço e o tempo são absolutos estava errada. Para
argumentar que são relativos, Einstein mostra que determinar se dois
acontecimentos são simultâneos é uma questão que depende do referencial
adoptado. Imaginemos que uma carruagem de comboio viaja a uma velocidade
uniforme e que um passageiro (P) se encontra no meio da carruagem a observar
uma lâmpada que emite raios de luz que chegam aos dois extremos da
carruagem, onde foram colocados dois detectores (Dl e D2). Para esta pessoa, se
a lâmpada também se encontra à mesma distância das duas extremidades, os
raios chegam aos detectores ao mesmo tempo. Imaginemos agora que há um
observador externo (O) que olha para o comboio a passar e que vê a lâmpada e
os detectores através de uma janela aberta. O observador não vai percepcionar a
detecção dos dois raios como simultânea, pois está a ver o comboio em
movimento. A luz chegará a um detector (Dl) mais cedo do que ao outro (D2)
porque, embora a velocidade da luz seja constante, a distância que a luz tem de
percorrer para chegar a D2 é maior do que a distância que tem de percorrer para
chegar a Dl. A experiência mental tem como objectivo mostrar que a
simultaneidade dos acontecimentos depende do referencial (a perspectiva dos
observadores, por exemplo). (Ver figuras 2.1 e 2.2.)
As experiências mentais são experiências conduzidas na cabeça do
experimentador, ao invés de na natureza ou no laboratório. O experimentador
pensa numa situação específica, imagina que algo acontece em tal cenário, e tira
conclusões com base nas consequências desse acontecimento imaginário. Muitas
vezes a experiência é imaginada em vez de realizada devido a limitações físicas
ou tecnológicas. Outras vezes, a experiência mental é uma sonda de intuição,
usada para tornar explícita a maneira como pensamos sobre certas situações ou
para destacar inconsistências não antes detectadas.
Se as experiências mentais são ou não um recurso científico de valor é uma
questão passível de discussão, e as posições variam consideravelmente. Segundo
Thomas Kuhn (1977, 1979) e Tamar Szabó Gendler (1998), elas podem
promover reformas conceptuais e levar à substituição de uma teoria por outra.
Kuhn defende que o uso de experiências mentais não apenas clarifica o aparato
conceptual no âmbito do qual os cientistas operam, como também reproduz o
choque entre interpretações opostas da natureza, preparando assim o terreno para
revisões teóricas radicais. O seu ponto de vista é apelidado «construtivista»
porque, segundo o mesmo, ao invés de porem em causa uma teoria existente, as
experiências mentais põem em causa todo um modo de pensar, todo um aparato
conceptual. O seu exemplo preferido é o da série de experiências que Galileu
concebeu para mostrar as inadequações conceptuais da física aristotélica, em
particular a que descrevemos antes, expondo a inconsistência de se supor que os
corpos mais pesados caem mais depressa, mas que os agregados de corpos caem
a uma velocidade intermédia.
Nem todos os autores concordam com Kuhn. Alguns defenderam a ideia de que
as experiências mentais são apenas formas imaginosas de desenvolver um
argumento a priori, e que não possuem qualquer conteúdo ou valor adicionais
(ver Norton 1996 e Atkinson 2003). Opondo-se à abordagem construtivista, estes
autores observam que nem todas as experiências mentais dão origem a revisões
conceptuais. Algumas, por exemplo, são próprias de uma teoria, e não põem em
causa os conceitos existentes. A tese «empirista», defendida por John Norton,
consiste em defender que só os métodos que podem, legitimamente, permitir-nos
retirar informação nova da natureza (como as experiências efectivas), podem
apresentar informação nova sobre a natureza. Dado que as experiências mentais
não fazem perguntas a que a observação da natureza possa responder, não
aumentam o nosso conhecimento da natureza. Da mesma maneira que os
argumentos dedutivos, apenas tornam explícita informação que já se encontrava
disponível antes de a experiência mental ter sido conduzida.
Para outros autores ainda, as experiências mentais são um meio para adquirir
conhecimento (ver Brown 1991 e Bishop 1999). Estes autores inserem-se numa
abordagem «racionalista» da importância epistemológica das experiências
mentais pois, apesar de concederem que estas não contribuem para o
conhecimento empírico sobre a natureza, defendem que o seu papel é alargar o
conhecimento a priori. Em particular, na sua resposta a Norton, Michael Bishop
defende que as experiências mentais não podem ser somente argumentos, uma
vez que os cientistas podem chegar a conclusões diferentes ao reflectirem sobre
a mesma experiência mental. Tal sugere que os cientistas podem usar
argumentos diferentes para interpretar ou reconstruir uma experiência mental.
James Brown, por exemplo, faz a afirmação positiva de que as experiências
mentais auxiliam as investigações empíricas da natureza, mas transcendem a
experiência. São concebidas com base em intuições sobre leis da natureza e
revelam relações entre propriedades, independentemente de estas serem ou não
instanciadas. Pensemos no seguinte exemplo, apresentado por Brown (2004). No
seu tratado De Rerum Natura (Sobre a Natureza das Coisas), Lucrécio pretende
demonstrar que o espaço é infinito. Antes de mais, convida-nos a imaginar que
atiramos uma lança até ao limite do universo. Se a lança o atravessar, não existe
limite; se fizer ricochete, então tem de haver algo além do limite. Por via desta
experiência mental, ficámos a saber algo sobre a relação entre a propriedade de
ser finito e a propriedade de ter um limite, mas não demonstrámos
empiricamente que o espaço é infinito.
Exercício: Consegue imaginar outras experiências mentais? Como foram
usadas no contexto em que as encontrou? Para explicar um conceito? Para
contestar uma posição, mostrando que gerava contradições? Para outra
finalidade?
Ora, qual das explicações discutidas é a mais convincente? O facto de as
experiências mentais serem usadas à discrição pelos cientistas podia ser uma
razão prima facie contra a tese de que são «apenas argumentos». Isto deve-se à
ideia preconcebida de que os argumentos que não são baseados, nem em dados
novos, nem numa interpretação original de dados previamente disponíveis não
são uma maneira respeitável de adquirir conhecimento nas ciências. Esta
concepção ingénua da prática da ciência assenta na ideia de que as decisões
sobre que teoria adoptar são feitas apenas a partir de bases empíricas. Mas isto é
uma maneira muito simplista e, no fundo, enganadora, de descrever a prática da
ciência. Há uma continuidade muito maior entre a ciência e a metafísica do que
os positivistas lógicos pensavam, não só porque as teses sobre a natureza da
realidade que são formadas com base em argumentos conceptuais podem
promover investigações empíricas, como também porque, como Popper sugeriu,
os objectivos e os métodos da ciência e da filosofia por vezes coincidem. O uso
de experiências mentais não é mais do que um exemplo desta continuidade.
Discussão: Será plausível defender que a maneira como as experiências mentais
contribuem para o conhecimento em ciência variam consoante a finalidade das
experiências mentais específicas?
2.2 O problema da indução
Bacon defendeu a ideia de que o raciocínio científico assenta na indução, e esta
ideia é ainda hoje subscrita por muitos filósofos da ciência. A centralidade da
indução para formar hipóteses prováveis sobre factos empíricos gerou um
interesse especial pela justificação e racionalidade das inferências indutivas.
De acordo com a interpretação tradicional do problema da indução, o filósofo
David Hume preocupou-se com a justificação das inferências indutivas que
tornam possível alargarmos a novos casos o que já sabemos com base na nossa
experiência.
Consideremos a seguinte inferência indutiva:
1. Até agora o Sol nasceu todos os dias.
2. Amanhã o Sol vai nascer.
Será que o passo da afirmação 1 para a 2 é justificado? Estamos habituados a
projectar as regularidades que observámos no passado para o domínio do
desconhecido, mas nada há que impeça que a afirmação 2 seja falsa e que a
afirmação 1 seja verdadeira. O que é que fundamenta o passo de 1 para 2?
Podíamos basearmos num princípio que diz que o futuro vai ser semelhante ao
passado. Por exemplo:
3. A natureza funciona de uma maneira uniforme.
A afirmação em 3 chama-se o Princípio da Uniformidade da Natureza, e pode
ajudar-nos a apoiar o passo inferencial de 1 para 2. É razoável assumir que o Sol
se comportará como sempre fez, porque a natureza se repete e não é provável
que as regularidades observadas na natureza sejam quebradas. Como Bertrand
Russell observa em Os Problemas da Filosofia, a convicção que subjaz à nossa
crença no Princípio da Uniformidade da Natureza é que tudo o que já aconteceu,
que acontece agora e que acontecerá no futuro é governado por uma regra geral
sem excepções.
Mas, então, qual é o estatuto de 3? Para Hume, existem três tipos de afirmações:
a. afirmações que podem ser verdadeiras a priori, independentes da experiência,
como: «O Sol vai nascer ou não vai nascer»;
b. afirmações que podemos apoiar por observação directa ou por outras formas
de experiência, como: «O Sol está agora a nascer»;
c. afirmações (sobre o futuro ou sobre o próximo caso não observado) que só
podemos apoiar por meio do raciocínio indutivo, como: «O Sol vai nascer outra
vez amanhã.»
A que categoria pertence o Princípio da Uniformidade da Natureza? E uma
suposição que fazemos, mas não é uma verdade lógica nem é verdadeira por
definição, pelo que precisamos de uma justificação a posteriori para ela. Porém,
também não podemos «observar» a verdade do princípio, e portanto não encaixa
em a nem em b. O único tipo de justificação que o princípio pode ter é uma
justificação indutiva.
A única justificação que temos para 3 deriva de algo como 4:
4. No passado, a natureza funcionou de uma maneira uniforme.
E o passo inferencial de 4 para 3 é, de novo, indutivo. Generalizamos a partir da
experiência do passado para obtermos o Princípio da Uniformidade da Natureza.
Mas se justificarmos todas as inferências indutivas indutivamente, a nossa
justificação acaba por ser circular, e temos de conceder que as inferências
indutivas não podem ser justificadas de um modo independente. Um argumento
é circular quando, para acreditarmos que as suas premissas são verdadeiras, já
temos de assumir que a conclusão é verdadeira.
Vou dar um exemplo de circularidade (retirado sem grandes preocupações de
rigor do cenário de ficção científica dos filmes Matrix). Suponhamos que nos
perguntam: «Como é que sabes que a tua experiência do dia-a-dia não passa do
resultado de uma engenhosa simulação de computador?» Sentir-nos-íamos
tentados a responder: «Porque vejo que estou rodeado por objectos reais e por
pessoas reais.» Mas se de facto respondêssemos assim, incorreríamos numa
petição de princípio, porque, para aceitarmos o que dizemos como verdadeiro,
temos de descartar a possibilidade de as nossas experiências quotidianas serem o
resultado de uma simulação de computador. Se o nosso objectivo é demonstrar
que experienciamos objectos no mundo real, não podemos desde logo assumir
que o que experienciamos não é o efeito de uma simulação de computador.
As principais estratégias para lidar com o problema da indução têm sido duas:
demonstrar que não é, verdadeiramente, um problema, mas, ao contrário, um
pseudoproblema, criado por alguma confusão ou incoerência conceptuais;
admitir que há, de facto, um problema, e sugerir uma solução. Veremos alguns
exemplos de cada estratégia em seguida.
Antes de avançarmos para as respostas possíveis ao problema da indução,
porém, devemos notar que, de acordo com recentes interpretações influentes de
Hume (em especial Beebee 2006), é erróneo atribuir o problema da indução a
Hume, e por duas razões. Primeiro, Hume não estava interessado no raciocínio
indutivo per se, ou seja, na passagem de regularidades observadas para uma
generalização universal ou para a previsão de um novo caso, mas sim em
raciocinar partindo de causas para efeitos. Segundo, Hume não estava
verdadeiramente interessado em justificar a nossa maneira de adquirir
conhecimento do mundo empírico, mas sim em descrever o mecanismo mental
que nos permite formar crenças sobre o mundo empírico. O que ele visava era,
portanto, a questão psicológica da formação de crenças sobre o que ainda não
experienciámos, e não a questão epistemológica da sua justificação.
Ora, o que apoia esta leitura de Hume? Primeiro, ele proporciona, efectivamente,
uma explicação psicológica sobre como adquirimos crenças sobre o mundo
empírico, introduzindo a noção de hábito, que descreve um mecanismo
psicológico por meio do qual observamos repetidamente a conjunção do
acontecimento A e do acontecimento B, e assumimos que há uma relação causal
entre os dois. Mas não há, no trabalho de Hume, tentativa alguma de
proporcionar uma justificação do passo de raciocínio de 1) A ocorre, para 2) B
segue-se de A. Segundo, concluir que devemos ser cépticos relativamente à
indução — ou ao raciocínio causal — enfraqueceria a perspectiva filosófica
geral de Hume, dado que ele é um empirista, pelo que seria contraproducente
comprometer a própria possibilidade de obter conhecimento do mundo empírico.
Esta interpretação de Hume pode levar-nos a ver o problema da indução como
um pseudoproblema, mas na literatura filosófica, e em especial na filosofia da
ciência, a justificação da indução tem sido objecto de um debate sem fim.
Exercício: Porque precisamos de uma justificação independente para a
indução?
2.3.1 Poderemos fazer desaparecer o problema da indução?
Peter Strawson (1952) não está de modo algum convencido de que haja um
«problema» com a indução. Argumenta que a nossa preocupação com a
justificação da indução surge da tentativa de responder a uma pergunta sem
sentido: será razoável acreditar na indução? Strawson defende que o significado
e o uso da palavra «razoável» já pressupõem a nossa conformidade com os
padrões indutivos. Não poderíamos saber aquilo em que é razoável acreditar se
não pudéssemos basear-nos em inferências indutivas.
Strawson diagnostica o problema da indução como a busca infrutífera de uma
justificação para a indução que esteja em conformidade com os padrões do
raciocínio dedutivo. Segundo Strawson, aquilo de que os filósofos parecem
precisar é de um argumento dedutivo que implique que os argumentos indutivos
sejam sólidos. Mas não é claro que este projecto seja legítimo. A única pergunta
legítima acerca da justificação da indução que pode ser feita, argumenta
Strawson, é se os indícios oferecidos por argumentos indutivos específicos
apoiam a conclusão de tais argumentos. A resposta a esta pergunta não pode ser
sobre a indução em geral. Há bons argumentos indutivos, nos quais os indícios
disponíveis são suficientes para tornar a conclusão provável, e maus argumentos
indutivos, nos quais a conclusão não é tornada provável pelos indícios
disponíveis.
Não satisfeito com a defesa da indução por Strawson, Max Black (1954) também
contribuiu para este debate. Para Black, bem como para Strawson, o problema da
indução não é, na realidade, um problema. Segundo Black, o erro cometido pelos
filósofos é o de interpretarem mal a alegação de que não pode haver uma
justificação indutiva para a indução. A razão por que é defendida está na alegada
circularidade de quaisquer justificações indutivas da indução, mas Black defende
que há uma maneira legítima e não circular de justificar a indução
indutivamente. Começa por distinguir dois níveis de discurso: o primeiro, que
diz respeito a objectos, propriedades e relações no mundo; o segundo, que diz
respeito a argumentos e regras lógicas.
Ao primeiro nível, podemos dizer que o facto de todos os cisnes até agora
observados serem brancos apoia a alegação de que todos os cisnes são brancos.
Este argumento é justificado por uma regra indutiva R (ao segundo nível),
segundo a qual podemos defender a partir de «todas as instâncias observadas de
A foram B» que «todo o A é B». A regra justifica o argumento, mas o que
justifica a regra? Segundo Black, há um argumento indutivo que pode ser usado
para justificar a regra, e que diz mais ou menos o seguinte: R mostrou ser fiável
em todas as instâncias observadas do uso da regra, pelo que temos bons motivos
para acreditar que R será fiável agora.
A questão que nesta altura se põe é: teremos incorrido em alguma circularidade?
Justificámos um argumento indutivo com a regra indutiva e justificámos a regra
indutiva com outro argumento indutivo. De acordo com Black, não há aqui
circularidade alguma. Um argumento é circular se uma das premissas é idêntica
à conclusão, ou se as premissas são tais que não as poderíamos conhecer se não
conhecêssemos já a conclusão. De acordo com esta definição de circularidade, o
argumento usado por Black para justificar a indução não é circular.
Mas persiste ainda uma outra preocupação. Talvez o argumento avançado por
Black não seja qualificado como estritamente circular, mas corra o risco da
regressão ao infinito. Isto é, a justificação do argumento indutivo relativo aos
cisnes brancos é indefinidamente adiada, pois depende da justificação da regra
da inferência, que por sua vez depende da justificação de outro argumento
indutivo, que por sua vez vai depender da justificação da mesma regra ou de
outra regra indutiva, etc.
Elliot Sober (1988) é de opinião de que o projecto de proporcionar uma
justificação para a indução defendendo o pressuposto da uniformidade da
natureza é enganador. Observa que o comportamento da natureza no passado não
parece ser uma boa razão para confiar na indução por oposição à contra-
indução. Imaginemos que há um método de inferência (chamado contra-
indução) segundo o qual a natureza não é uniforme, e em que não é provável que
as regularidades do passado se mantenham iguais no futuro. Agora, torna-se fácil
construir uma justificação contra-indutiva da contra-indução baseada na
uniformidade da natureza. No passado, a contra-indução não era fiável porque a
natureza se revelara uniforme na maior parte dos casos, e portanto podemos
esperar que seja fiável no futuro.
Mas Sober não pensa que, na sua formulação humeana, o princípio da
uniformidade da natureza seja plausível. E isto compromete a plausibilidade da
formulação clássica do problema da indução de Hume. A alegação de que a
natureza é uniforme é demasiado vaga para poder ter algum uso e, nessa forma,
não pode ser um pressuposto ao qual nos vamos querer agarrar quando fazemos
inferências. Em alguns aspectos, a natureza é uniforme, mas noutros não. Sober
dá o exemplo da cor: esperamos que a cor de todas asesmeraldas seja o verde,
sempre, mas não esperamos que a cor das folhas seja sempre o verde. A falta de
pormenor na formulação não é o único problema do princípio da uniformidade
da natureza: segundo Sober, tentar encontrar um pressuposto sobre a natureza
das coisas que fundamente todas as nossas inferências indutivas não coexiste
alegremente com a flexibilidade das nossas práticas indutivas. É mais plausível
que algumas crenças de base sejam mesmo necessárias para o êxito das
inferências indutivas, mas que crenças apoiam que inferências depende de cada
inferência.
Discussão: Qual das resoluções do problema da indução apresentadas lhe
parece mais plausível?
2.3.2 A tentativa de encontrar uma solução para o problema da indução
Inspirado por uma análise anterior de Reichenbach, Wesley Salmon (1974)
argumenta que tanto a forma dedutiva como a indutiva de justificar a indução
estão condenadas ao fracasso, explorando uma alternativa mais pragmática. E se
pudermos demonstrar que confiar na indução é a única opção racional? Salmon
defende que é mais prudente apostar no êxito do raciocínio indutivo do que no
seu fracasso.
Partamos do pressuposto de que a natureza é uniforme ou não, e de que, se
decidirmos não usar a indução, as estratégias disponíveis para a previsão de
acontecimentos desconhecidos não são indutivas (ler folhas de chá, na bola de
cristal ou adivinhar, por exemplo). Se usarmos estratégias não indutivas e a
natureza for uniforme, é provável que as nossas previsões falhem. Se usarmos
estratégias não indutivas e a natureza não for uniforme, é ainda provável que as
nossas previsões falhem. Se, em vez disso, usarmos a indução e a natureza não
for uniforme, é provável que as nossas previsões falhem, uma vez mais. Mas se
usarmos a indução e se a natureza for uniforme, é provável que as nossas
previsões sejam bem-sucedidas.
Embora a indução não seja um garante de sucesso, uma vez que não nos é
possível descobrir independentemente se a natureza é uniforme, ainda assim ela
funciona melhor do que as alternativas disponíveis. Isto é uma maneira de
defender que é racional usar a indução, mas não responde à questão de saber se
as inferências indutivas podem ser justificadas independentemente. E portanto
esta tentativa de solução falha o objectivo (ou, numa leitura mais benigna,
proporciona uma redefinição do problema da indução).
Em O Conhecimento Objectivo, Karl Popper declara ter resolvido o problema da
indução. Primeiro, reformula o problema ao fazer a seguinte pergunta: «Pode a
alegação de que uma teoria universal é verdadeira ser justificada com base na
verdade de algumas afirmações observacionais?» Se a questão é esta, então
Hume estava certo quando pensava que a resposta tem de ser «não». Não há
como justificar uma teoria universal com base na verdade de algumas das suas
instâncias que podem ser confirmadas pela observação. E, contudo, a solução
está em fazer uma pergunta semelhante, que tem uma resposta positiva: «Será
que a alegação de que uma teoria universal é falsa pode ser justificada com base
na falsidade de algumas afirmações observacionais?»
De acordo com Popper, precisamos de desistir da ideia de que a ciência é
baseada em inferências indutivas e aceitar uma forma de dedutivismo, que
funciona do seguinte modo. Primeiro, formulamos uma nova hipótese. Depois,
derivamos dela, via dedução, algumas afirmações cuja verdade ou falsidade
podem ser comprovadas pela observação. Se, após um teste minucioso, as
afirmações se revelarem verdadeiras, nada de conclusivo mostrámos acerca da
hipótese, que precisa de ser submetida a mais testes. Se as afirmações se
revelarem falsas, mostrámos que a hipótese é falsa (uma vez que produz as
consequências empíricas erradas) e avançámos um pouco. Por outras palavras,
falsificámos a teoria. A sugestão de Popper traz problemas, com os quais nos
depararemos quando nos dedicarmos às questões relacionadas com a
confirmação de teorias, mas é interessante notar aqui que Popper pensava que a
ciência não se baseia e não se deve basear em inferências indutivas, e que
sugeriu o que considerou uma alternativa plausível.
Exercício: Pense sobre a solução de Popper para o problema da indução e
responda às seguintes questões: a) Como é que chegamos a novas hipóteses a
não ser pela indução? b) Podemos alguma vez ter justificação para aceitar uma
teoria usando o método de teste de Popper?
Discussão: Acha que o problema da ausência de justificação da indução pode
ser resolvido?
Resumo
Neste capítulo, definimos primeiramente três formas de obter ou consolidar
conhecimento que correspondem às três regras diferentes da inferência: a
dedução, a indução por enumeração e a inferência a favor da melhor explicação.
Demos ênfase à importância das inferências indutivas para a prática da ciência e
discutimos algumas tentativas de justificar a fiabilidade da indução.
Descrevemos algumas das inovações metodológicas que caracterizaram a
revolução científica, e considerámo-las importantes para a nossa compreensão
contemporânea da ciência: a aceitação do raciocínio indutivo como base de todas
as ciências empíricas foi uma delas. Alguns dos outros aspectos foram o uso da
observação mediada e de experiências na prática da ciência, bem como a
fundação de instituições que promoveram o desenvolvimento de uma
comunidade de praticantes em constante diálogo uns com os outros.
Todas estas peculiaridades metodológicas da prática da ciência podiam ser
consideradas como critérios para distinguir as actividades científicas
propriamente ditas da pseudociência, mas isto seria demasiado precipitado.
Primeiro, há elementos de continuidade anteriores e posteriores à Revolução
Copernicana, incluindo o papel dos pressupostos metafísicos que norteiam os
projectos de investigação. Estes elementos devem fazer-nos pensar duas vezes
quando usamos as designações «pré-ciência» ou «ciência primitiva» para nos
referirmos às tentativas de descrição do mundo pelos Gregos antigos e pelos
filósofos naturais da Idade Média. Segundo, devemos ter em mente que há
diferenças metodológicas importantes na prática das diferentes disciplinas
científicas. A maneira como os dados são recolhidos não é igual na biologia e na
física, por exemplo, além de que só pode ser feito um número muito reduzido de
generalizações com segurança, no que respeita ao método. Terceiro, a
continuidade das estratégias e objectivos argumentativos parece reduzir a linha
que separa a ciência «madura» da «imatura». Os cientistas ainda vão querer
explicar os fenómenos que nos rodeiam de uma maneira sistemática e
satisfatória, e ainda vão usar argumentos e experiências mentais à moda antiga
para fazê-lo.
Cenas dos próximos capítulos
No capítulo 3 continuaremos a analisar o papel da indução na prática da ciência,
e avaliaremos diferentes estratégias para a confirmação das teorias científicas.
Examinaremos o enigma da indução de Goodman e introduziremos outro
paradoxo da confirmação de teorias. Exploraremos com maior pormenor as
noções de observação directa e mediada, e discutiremos a relação entre a teoria e
a observação no que respeita à estrutura e formação de teorias (capítulo 3), a
natureza dos termos teóricos e o debate realismo/anti-realismo (capítulo 4), e a
natureza do progresso na mudança científica (capítulo 5).
Questões para pensar
1. Pode alguém ser cientista sem nunca fazer uma experiência efectiva?
2. De que maneira a colaboração entre cientistas é benéfica para a aquisição ou
consolidação de conhecimento?
3. Será que as experiências mentais contribuem realmente para fazer ciência?
4. Qual é o tipo de raciocínio mais passível de orientar a prática científica?
5. Porque é que os filósofos se preocupam com a justificação da indução?
6. De que maneira o indutivismo de Bacon é ainda uma boa abordagem à
metodologia científica? De que maneira é ultrapassado?
Leituras complementares
Para uma introdução ao problema da indução e ao debate tradicional, leia
algumas partes do Tratado de Hume (Livro i, Parte in) e das suas Investigações
(Secção iv e v), Popper (1953,1974) e Russell (1967, capítulo 6). Uma
interpretação acessível e estimulante do problema humeano da indução pode ser
encontrada em Beebee (2006), e o dedutivismo de Popper é discutido em
pormenor em Newton-Smith (1981, capítulo 3).
A discussão sobre a natureza das experiências mentais entre Norton (2004) e
Brown (2004) fá-lo-á reflectir mais sobre o uso das mesmas em ciência, além de
ser uma boa fonte de exemplos.
Se quiser saber mais sobre a revolução científica ou sobre outros episódios
importantes da história da ciência em geral, pode aceder a um guia para leituras
complementares no portal da History of Science Society (www.hssonline.org/).
Aí também encontrará informação útil sobre novas publicações e conferências.
3. Conhecimento
Neste capítulo daremos seguimento à investigação sobre os aspectos
epistemológicos e metodológicos da ciência iniciada no capítulo anterior. Focar-
nos-emos na estrutura, formação, confirmação e no papel explicativo das teorias
científicas.
No último capítulo, vimos as primeiras tentativas de caracterizar o método
científico na obra de Bacon. A imagem indutivista simples da prática da ciência
que sucintamente introduzimos põe em relevo os fundamentos empíricos das
teorias científicas. Os cientistas esvaziam as suas mentes de toda a opinião
preconcebida e abrem os olhos: recolhem dados com base em observações e
experiências. Fazem abstracções a partir dos resultados destas observações e
experiências, e formulam hipóteses cada vez mais gerais. Depois testam as
previsões que podem fazer com base nestas hipóteses e realizam mais
observações e experiências. A ideia é que, por meio do raciocínio indutivo,
podemos chegar a uma generalização sobre um tipo de objecto que tem uma
certa propriedade num certo contexto, se tiverem sido encontrados objectos
desse tipo que tenham tal propriedade em contextos relevantemente semelhantes.
Esta concepção do modo como os cientistas operam está fundamentada na
fiabilidade das inferências indutivas, e considera as observações e as
experiências como pedras angulares das teorias. Mas a relação entre a teoria e a
observação tem de ser explorada com maior pormenor. É que, como é o caso de
Popper, alguns autores levantam objecções à ideia indutivista da ciência,
considerando que a fase da observação não pode ser anterior e independente da
formação de uma hipótese específica. Quando os cientistas observam, têm
sempre algumas expectativas para orientar e enquadrar as suas observações,
alguma ideia do que vão ver.
As nossas teorias científicas dão sentido às observações que fazemos de uma
maneira sistemática, e um dos propósitos da teorização científica é a previsão de
acontecimentos futuros. No entanto, muitas das observações não seriam sequer
levadas a cabo se não fosse para testar uma hipótese particular ou um conjunto
de hipóteses, e as observações que constituem indícios confirmantes das nossas
hipóteses são muitas vezes mediadas por um equipamento sofisticado cuja
fiabilidade depende de mais pressupostos teóricos. Alguns filósofos falam da
subdeterminação teórica da observação, ou seja, o facto de os dados que
adquirimos mediante a observação directa ou mediada não serem neutros no que
respeita a todas as teorias, mesmo antes de serem interpretados.
As teorias explicam e prevêem acontecimentos, mas como o fazem? Passaremos
em revista diferentes modelos de confirmação e de explicação de teorias, e
apresentaremos as duas principais concepções de teorias científicas: a concepção
sintáctica e a concepção semântica. Ambas as concepções parecem ser postas à
prova pelas teorias da confirmação e da explicação.
As teorias explicam e prevêem acontecimentos, mas como o fazem? Passaremos
em revista diferentes modelos de confirmação e de explicação de teorias, e
apresentaremos as duas principais concepções de teorias científicas: a concepção
sintáctica e a concepção semântica. Ambas as concepções parecem ser postas à
prova pelas teorias da confirmação e da explicação.
Ao longo da nossa curta introdução à noção de confirmação de uma teoria,
veremos que é difícil caracterizar a forma como as observações sustentam as
hipóteses científicas. Quando passarmos aos diferentes modelos de explicação,
passaremos em revista as condições que tornam as teorias científicas capazes de
proporcionar explicações adequadas dos fenómenos que nos interessam.
Poderemos explicar um facto sem apelar a uma lei da natureza? Como é que
decidimos entre hipóteses explicativas concorrentes dos mesmos fenómenos?
No final deste capítulo estará habilitado a:
• Discutir e avaliar explicações filosóficas diferentes sobre a formação e a
natureza de teorias científicas.
• Explicar a relação entre teoria e observação.
• Discutir e avaliar explicações filosóficas diferentes sobre a confirmação de
teorias científicas.
• Discutir e avaliar modelos diferentes de explicação científica.
• Formar uma opinião sobre o que faz de um conjunto de afirmações uma teoria
científica.
3.1 O que é uma teoria?
O que esperamos de uma teoria num domínio específico é uma explicação
coerente e sistemática da razão por que alguns factos ocorrem como ocorrem, e
uma maneira fundamentada de prever os factos que ocorrerão no futuro. Por
exemplo, uma teoria sobre o movimento dos objectos terrestres diz-nos com base
em que princípios os objectos de uma certa dimensão se movimentam como se
movimentam, e também nos permite prever como se movimentarão no futuro ou
como se movimentariam em contextos não reais (se não houvesse inércia, por
exemplo)
Qualquer teoria científica implica uma série de afirmações, que variam entre
afirmações empíricas sobre fenómenos particulares observáveis (quer a olho nu,
quer mediante instrumentos científicos), valores que podemos medir e princípios
gerais. Eis um exemplo de uma afirmação empírica sobre um acontecimento
particular em física: «O corpo cai à velocidade de 40 km/h.» Um exemplo de um
princípio geral é o princípio da inércia, segundo o qual um corpo conservará uma
velocidade constante, a menos que sobre ele actue uma força cuja resultante não
seja nula. Um exemplo de uma afirmação empírica sobre um acontecimento
particular em psicologia social é: «Após terem desempenhado uma tarefa
aborrecida como parte de uma experiência psicológica, as pessoas que não
receberam incentivo algum classificaram a tarefa como positiva.» Um exemplo
de um princípio é a hipótese da dissonância cognitiva: as pessoas tentam reduzir
o conflito entre as atitudes de que estão cientes (crenças, decisões, preferências,
emoções, por exemplo) e alteram o seu comportamento em conformidade.
Nas ciências naturais como nas sociais, os princípios podem ser confirmados
com base em afirmações empíricas sobre fenómenos particulares que pertencem
ao domínio abrangido pelos princípios. Quando perguntamos como os cientistas
formam teorias, muitas vezes interessa-nos a maneira como passam de
afirmações observacionais sobre acontecimentos particulares, de agentes,
objectos, etc., a princípios gerais, e, por último, a leis. Há muito que os filósofos
da ciência tentam proporcionar uma reconstrução do que são as teorias
científicas e de como a transição entre a observação de factos e a formulação de
hipóteses ou princípios gerais pode ser descrita.
Exercício: Consegue imaginar outras generalizações nas ciências naturais e
sociais? O que têm todas em comum?
3.1.1 Concepções de teorias científicas
De acordo com uma versão popular da concepção sintáctica das teorias
científicas (de sintaxe, o estudo das regras que determinam como as frases são
formadas), as teorias são compilações de afirmações que podem ter uma
representação formal enquanto sistemas axiomáticos. A ideia fundamental é que
podemos separar a estrutura lógica da teoria (calculus) do seu conteúdo factual
(Carnap 1967; Hempel 1970). As frases não interpretadas ligam-se umas às
outras pela lógica: por exemplo, os teoremas são derivados dos axiomas por
dedução. Quando os axiomas e os teoremas são interpretados, obtemos as
afirmações que formam o corpo da teoria. Tais afirmações contêm termos
lógicos, observacionais e teóricos. Pode-se atribuir significado aos termos
teóricos por correlação com termos observacionais por meio de regras de
correspondência.
Os termos lógicos são termos como «e» ou «ou», que significam uma relação
lógica entre predicados ou proposições. Na frase «Tenho um carro velho e uma
bicicleta de montanha nova», o termo «e» serve para exprimir a relação entre eu
ter um carro velho e uma bicicleta de montanha nova (que é uma relação de
conjunção). A frase exprime uma proposição verdadeira se for verdade quer eu
ter um carro velho, quer eu ter uma bicicleta de montanha nova.
Os termos observacionais são termos que podemos aplicar na experiência
directa. O termo «velho» na frase anterior é observacional, pois posso
determinar por meio da observação e da experiência directas que o meu carro é
velho (olhando para ele, ouvindo o barulho do motor, observando que demora a
arrancar quando está frio, por exemplo).
Os termos teóricos são aqueles que não são lógicos nem observacionais. O termo
«diabetes» pode ser um exemplo. Não podemos definir se alguém tem esta
doença por via da mera observação. Para se ver se uma pessoa tem as
características típicas desta doença é necessária investigação adicional: têm de
ser feitas análises adequadas, que têm de ser interpretadas por um médico. O
método para descobrir se uma pessoa tem diabetes pode ser dividido numa série
de observações, e portanto é em princípio possível estabelecer uma
correspondência entre afirmações sobre a diabetes e afirmações que contêm
termos exclusivamente observacionais.
Exercício: Pense noutros exemplos de termos observacionais e teóricos.
Consegue encontrar um termo que seja observacional nuns contextos e teórico
noutros?
O aspecto atractivo da concepção sintáctica é que em princípio se pode separar a
estrutura lógica — ou esqueleto — de uma teoria (constituída pelos axiomas não
interpretados e pelos teoremas) do seu conteúdo empírico e do seu significado.
Porém, a dificuldade em distinguir com precisão os termos teóricos dos termos
observacionais, juntamente com o problema de especificar regras de
correspondência satisfatórias por meio das quais os termos teóricos adquirem o
seu significado, levaram os filósofos a desenvolver uma explicação alternativa
das teorias científicas, a chamada concepção semântica.
Embora haja versões diferentes da concepção semântica (Van Fraassen 1980;
Giere 1988; Suppe 1989), todas partilham a rejeição da abordagem sintáctica.
Uma teoria científica não pode ser adequadamente apresentada como um sistema
axiomático formal escrito na linguagem da lógica que, numa fase ulterior, é
sujeito à interpretação semântica. Ao contrário, toda a teoria deve ser
apresentada como um conjunto de definições teóricas e um conjunto de
afirmações que defendem que diversas coisas no mundo satisfazem tais
definições (hipóteses teóricas). De acordo com esta explicação, não é possível
formular hipóteses sobre uma divisão precisa entre estrutura lógica e significado,
pois as definições não são necessariamente expressas numa linguagem formal.
Além disso, a relação entre as afirmações de uma teoria e o mundo da
experiência já não está refém da identificação de regras de correspondência,
assentando antes na criação pelos cientistas de réplicas ou modelos abstractos da
realidade que se enquadrem nas definições teóricas fornecidas.
Voltemos aos exemplos antes mencionados e vejamos como se chega às
afirmações de uma teoria, e como estas são testadas nas duas concepções que
apresentámos. Para o sintacticista, o princípio da inércia que pode ser derivado
da observação de como os corpos se movimentam seria formulado como um
princípio lógico, e funcionaria como um axioma num sistema. A partir dos
axiomas derivar-se-iam e interpretar-se-iam teoremas, de modo a conterem
termos teóricos, termos observacionais, assim como termos lógicos. Tornar-se-
iam afirmações sobre, por exemplo, o modo como os corpos de uma determinada
massa se movimentariam sob a influência de determinadas forças num meio
onde algumas variáveis eram controladas. Os termos teóricos contidos em tais
afirmações («inércia», «força», aceleração», etc.) receberiam significado com
base na sua correlação com termos observacionais. Tais afirmações estariam
então prontas para receber um maior suporte empírico, mediante observações e
experiências que visassem verificá-las (ou falsificá-las). O suporte empírico para
as afirmações transmitiria justificação empírica aos princípios de que são
derivadas.
Para o semanticista, no momento de axiomatizar não seria necessário traduzir as
afirmações científicas para frases numa linguagem formal, e depois inverter o
processo com o fim de testar os teoremas derivados à luz da observação e de
experiências. O princípio da inércia seria formulado com base em indícios
indutivos, como vimos antes, e depois definir-se-ia inércia. Uma hipótese teórica
que satisfizesse tal definição seria então avançada. Essa hipótese referir-se-ia a
uma réplica abstracta e muitas vezes adequadamente simplificada da realidade
(um meio em que algumas variáveis seriam melhor controladas), que podia
servir como modelo idealizado onde se observariam as relações básicas entre,
por exemplo, a velocidade de um corpo em queda e a (quantidade de) força
aplicada a tal objecto. Não seria preciso seguir os passos da interpretação e
procurar as regras de correspondência para todos os termos teóricos usados, pois
a definição e as hipóteses já estariam «interpretadas», isto é, expressas na
linguagem concreta da ciência e não na linguagem abstracta da lógica.
Frederick Suppe (1989) insiste que os semanticistas descrevem correctamente a
forma como os cientistas procedem. Os modelos e as réplicas abstractas são
criados para ilustrar as relações complexas entre propriedades. Consideremos
dois exemplos. Na psicologia, o behaviorismo visa identificar os parâmetros que
levam as pessoas a comportar-se como se comportam, e descreve o
comportamento como a função de estímulos e de padrões de resposta. Uma vez
que é difícil isolar os padrões motivacionais nos seres humanos, dado o número
de interesses que têm, a relação entre o estímulo e a resposta pode ser
demonstrada observando o comportamento de outros seres dotados de cérebro,
cujos interesses podem ser identificados e controlados com maior facilidade. No
cenário experimental, um rato com fome carrega numa alavanca e obtém
comida. Quando a mesma situação se repete, ou seja, o rato está outra vez com
fome, a alavanca será accionada de novo e esperar-se-á alimento. Por si só, estes
parâmetros não são suficientes para explicar a variedade e a complexidade do
comportamento humano e até do comportamento animal, mas fornecem um
modelo que aproxima a realidade que se pretende investigar, permitindo aos
cientistas explorar a relação entre estímulo e resposta.
Na física, o modelo atómico de Bohr (assim chamado por ter sido desenvolvido
por Niels Bohr, em 1915) descreve os electrões como circulando à volta do
núcleo atómico (composto por neutrões e protões) do mesmo modo que os
planetas circulam à volta do Sol. Este modelo é útil para muitas finalidades
educativas e outras finalidades explicativas, mas não nos dá uma descrição
precisa da natureza do átomo, pois a relação entre o núcleo do átomo e as órbitas
dos electrões é diferente da relação entre o Sol e as órbitas dos planetas. A título
de exemplo, no sistema solar as órbitas planetárias estão confinadas a um plano,
o que não se aplica às órbitas descritas pelos electrões, além de que a força de
atracção que faz os electrões orbitarem à volta do núcleo atómico é muito maior
do que a força gravitacional que actua sobre os planetas do nosso universo.
Encontrar exemplos de modelos na ciência não é difícil, mas explicar o modo
como os modelos contribuem para a formação e o desenvolvimento das teorias
científicas é uma outra questão. Considere as seguintes perguntas:
a. Qual é a relação entre o modelo e os fenómenos que se pretende
compreender? Será preciso que tenham a mesma estrutura?
b. Qual é a relação entre a teoria e os modelos relevantes? Será que os modelos
podem substituir as teorias, ou será que apenas as complementam?
c. O que são modelos? Serão entidades físicas, ou serão ficções?
Até certo ponto, a plausibilidade das respostas que podíamos dar às perguntas
(a), (b) e (c) depende do tipo de modelo que se considera, e portanto poder-se-ia
defender uma abordagem pluralista à função e à natureza dos modelos em
ciência. Porém, dependendo de algumas das respostas dadas às perguntas antes
feitas, foram formuladas e defendidas versões diferentes da concepção semântica
das teorias científicas. Vou dar um exemplo, em traços gerais, de um destes
debates.
Consideremos o modelo (os planetas a orbitar à volta do Sol, por exemplo) como
uma representação de um fenómeno (os electrões a orbitar à volta de um núcleo
atómico). Qual é a relação entre o fenómeno representado e a sua representação?
Alguns autores defendem que tem de haver isomorfismo entre os dois, em que
«isomorfismo» significa literalmente «igualdade de estrutura» (Van Fraassen
1980; Suppe 2002). Outros defendem que é suficiente estabelecer uma relação
de semelhança entre a representação e o fenómeno representado (Giere 2004;
Teller 2001). Tem sido observado que a última versão é mais prometedora como
uma explicação geral da relação, uma vez que pode incluir modelos que são
inexactos porque simplificam de mais. Por outro lado, também tem sido
observado que a explicação é demasiado vaga para ser genuinamente útil, se não
forem especificados graus de semelhança (ver Frigg e Hartmann 2006).
Exercício: Tente encontrar outro exemplo de um ^ modelo usado em ciência e
volte às perguntas (a), (b) e (c) à luz do novo exemplo.
Discussão: De que modo o modelo é útil? Quais são \/ as semelhanças e as
dissemelhanças entre o fenómeno representado e a sua representação?
Apresentámos duas concepções alternativas da natureza das teorias científicas.
Mas Ronald Giere (2000) defendeu que o debate entre a teoria sintáctica e a
teoria semântica está ultrapassado. A motivação para discutir a natureza das
teorias científicas fez sentido no contexto de tentar proporcionar uma
reconstrução filosófica da ciência, o que já não é propriamente o que está em
cima da mesa. Em certa medida, a emergência de diferentes tipos de disciplinas
científicas legítimas nas quais as teorias não se baseiam tanto como a física em
modelos matemáticos (é o caso da biologia e da psicologia), mostrou que não é
realista tentar descrever a estrutura de todas as teorias científicas.
Além disso, o debate entre os semanticistas e os sintacticistas não esgota o
espectro das possibilidades. Há explicações alternativas, que podem ser
encontradas no trabalho de Kuhn e de Feyerabend, que foram interpretadas como
explicações que desenvolvem uma visão historicista das teorias científicas (ver o
capítulo 5 para mais pormenores), e no de Thagard, que advoga uma explicação
computacional das teorias científicas. Estes autores sublinham a importância de
encontrar soluções para problemas prementes na prática efectiva da ciência, e
observam como os procedimentos que são considerados como um modo racional
de promover o avanço da ciência podem variar de acordo com o contexto
histórico e com o contexto cultural mais alargado em que os cientistas operam.
3.1.2 A complexidade oculta da observação
Para avaliarmos o indutivismo e as concepções das teorias que antes
descrevemos, precisamos de compreender melhor a relação entre observar e
interpretar um acontecimento à luz de uma teoria.
O que é considerado observável? Rudolf Carnap (1966) defende que o cientista
não usa o termo «observável» para se referir a propriedades que podem ser
directamente observadas, mas a propriedades que podem ser detectadas mediante
os nossos sentidos, como ser vermelho ou azul, quente ou frio, liso ou rugoso.
De acordo com esta definição do que é observável, «quente» é considerado um
termo observacional, mas «com carga eléctrica» não. Suppe (1989) concorda que
há contextos em que as propriedades observáveis em teoria não podem ser
atribuídas com base na observação. Por exemplo, dissemos que «quente» é um
termo observacional paradigmático, mas não poderíamos determinar por
observação directa se o Sol é dotado de tal propriedade. E há contextos em que a
presença de propriedades mais abstractas, como possuir carga eléctrica, pode ser
verificada pela simples observação (o que acontece quando enfiamos um dedo
numa tomada, por exemplo).
A importância da observação ser directa ou imediata também é controversa. Se
não aceitamos que as entidades que observamos ao microscópio têm o mesmo
estatuto que as que vemos a olho nu, o que diremos do que vemos com os nossos
óculos de leitura? Parece haver um argumento forte a favor da ideia de que a
distinção entre directamente observável e inobservável não é nítida, mas toma a
forma de uma «transição contínua» (Maxwell 1962).
Bas van Fraassen (1980) não considera convincente este argumento da
continuidade. Mesmo que concordemos que a dicotomia entre o observável e o
não-observável comporta alguns elementos de arbitrariedade, há dois casos que
têm de ser distinguidos. Alguns objectos que são vistos por via da mediação de
um instrumento também podem ser vistos a olho nu em condições adequadas
(por exemplo, os astronautas conseguem ver bem as luas de Júpiter sem um
telescópio). Mas há objectos que nunca podem ser vistos directamente, como
uma plaqueta, e a impossibilidade deve-se às nossas limitações enquanto seres
humanos. Neste último caso, os instrumentos são necessários para termos a
experiência dos objectos, e esta diferença pode desempenhar um papel
importante no debate sobre o estatuto ontológico de tais objectos (a que
voltaremos no capítulo 4).
A. Discussão: Será realmente impossível ultrapassar as actuais limitações
humanas e ver as plaquetas sem o auxílio de instrumentos?
Ian Hacking (1981) tira algumas conclusões interessantes da história dos
microscópios, contestando a distinção de Van Fraassen entre o que é possível e
impossível os seres humanos verem. Talvez o astronauta consiga ver bem as luas
de Júpiter ao voar no espaço, mas o microscopista consegue observar bem as
plaquetas ao basear-se no mapa das interacções entre o espécime e a sua imagem
(se o mapa estiver bem feito). Hacking argumenta convincentemente contra a
noção de observação como algo passivo, que depende das características da
propriedade ou do objecto a observar, sugerindo ao invés que a observação é
uma técnica e envolve algum fazer. Observar ao microscópio não permite só por
si que as pessoas o usem eficazmente: é a prática que lhes dá a técnica de
observar ao microscópio (ou, melhor, com o microscópio), e esta competência
não depende necessariamente da adopção de uma teoria particular (ainda que a
adopção de uma teoria particular seja necessária para construir um microscópio).
Exercício: De que modo observar ao microscópio é diferente de ver através de
uns óculos com lentes coloridas?
Discussão: Qual é a sua opinião sobre a «tese da \/ continuidade»? Haverá uma
distinção clara entre o que podemos e o que não podemos observar? Considere,
por exemplo, a imagiologia por ressonância magnética (IRM), uma tecnologia
usada para avaliar tumores ou examinar possíveis danos cerebrais. Será o
tumor ou o dano cerebral observável?
3.2 Confirmação de teorias
Ainda que as questões sobre o que as teorias científicas são e qual a melhor
explicação da relação entre as observações e as hipóteses teóricas possam
continuar em aberto, os filósofos da ciência concordam que as teorias podem ser
confirmadas ou infirmadas por mais observações e experiências, o que garante a
sua fundamentação empírica.
Quando afirmam que uma observação confirma (ou infirma) uma hipótese, os
filósofos querem dizer que a observação constitui um indício confirmante (ou
infirmante) de tal hipótese. Como vimos, as hipóteses universais não podem ser
verificadas de modo definitivo, independentemente do número de observações
que com elas concordem, pois o número destas observações será sempre finito.
Da mesma maneira, uma hipótese existencial não pode ser falsificada de modo
definitivo, pois um objecto cuja existência não foi ainda observada poderá ser
descoberto no futuro.
No que se segue veremos com maior pormenor como uma teoria pode ser
confirmada pelos indícios disponíveis, e examinaremos alguns dos quebra-
cabeças que geraram novas maneiras de articular a noção de confirmação.
Enquanto Cari Hempel pretende explicar a confirmação como uma relação
puramente lógica (o modelo hipotético-dedutivo), outros filósofos defendem que
só ao introduzir a noção de probabilidade podemos apreender os aspectos da
confirmação que são relevantes para a prática científica efectiva (a abordagem
bayesiana).
3.2.1 O paradoxo dos corvos
Muito embora a ideia de uma hipótese ser confirmada pela observação seja
intuitiva e não ofereça grandes dúvidas, é difícil fazer uma caracterização precisa
da relação entre os indícios empíricos e as afirmações numa teoria que se espera
que os indícios apoiem. O ponto de partida para o debate é aquilo a que na
literatura se chama Condição de Nicod: uma hipótese na forma «A implica B» é
confirmada sempre que observamos a presença de B num caso de A. Por
conseguinte, a confirmação é a relação entre uma hipótese e um objecto ou um
acontecimento.
Foquemo-nos no exemplo clássico. A seguinte hipótese, (U), «Para todas as
instâncias de X, se X é um corvo, logo X é negro», será confirmada pela
observação de uma coisa negra que é um corvo. A ideia subjacente a esta
condição é que, quando temos uma afirmação universal, a probabilidade de esta
ser verdadeira é originada ao encontrarmos uma instância da generalização. Um
corvo negro confirma (U), um corvo não negro infirma-a.
Hempel (1945) desenvolve a sua própria explicação da teoria da confirmação
com base na Condição de Nicod. Abraça a ideia de que a confirmação diz
respeito à relação entre hipóteses e observações, mas concebe-a como uma
relação lógica entre afirmações, análoga à de consequência lógica. Uma
afirmação observacional actua como um indício confirmante ou infirmante para
uma afirmação que relata uma hipótese científica. Hempel não se convence com
os pormenores da explicação de Nicod, pois esta viola o princípio da
equivalência lógica. Este princípio afirma que se duas afirmações-hipóteses (Hl
e H2) são logicamente equivalentes, então toda a afirmação-observação (Ol) que
confirma Hl também tem de confirmar H2. (Ul), «Para todas as instâncias de X,
se X é um corvo não negro, então X é um corvo e não é um corvo», é
logicamente equivalente a (U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo,
então X é negro» (Apesar de, à primeira vista, (Ul) e (U) não parecerem logicamente equivalentes,
elas são-no de facto, pois não há circunstância alguma em que elas tenham valores de verdade diferentes. -
N. do R.) Contudo, nenhuma observação pode confirmar (Ul), porque nada pode
simultaneamente ser um corvo e não ser um corvo. O que significa que o
princípio da equivalência lógica é violado pela condição de Nicod.
Isto representa um problema para Hempel, pois ele não quer desenvolver uma
noção de confirmação segundo a qual a relação entre o fenómeno observado e a
hipótese tornada mais ou menos provável por esse fenómeno seja refém do modo
como as hipóteses e as afirmações observacionais são formuladas. A afirmação
observacional «Isto é um corvo e é negro» constitui um indício confirmante para
a afirmação (U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo, então X é
negro», e a relação entre elas é análoga à da consequência lógica. Mas a
afirmação observacional «Isto não é um corvo e não é negro» também confirma
(U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo, então X é negro», porque
confirma uma afirmação que é logicamente equivalente a (U), isto é, (U2), «Para
todas as instâncias de X, se X não é negro, então X não é um corvo».
Porém, defender o princípio da equivalência lógica levanta outros problemas, de
que Hempel dá conta. Dada a nossa noção do senso comum de confirmação,
parece bastante contra-intuitivo defender que, ao depararmos com algo que não
seja negro e que não seja um corvo — um sapato branco ou uma folha verde, por
exemplo —, as afirmações observacionais «Isto é um sapato e é branco» e «Isto
é uma folha e é verde» apoiam a afirmação universal «Para todas as instâncias de
x, se x é um corvo, então x é negro». Isto é desconcertante, uma vez que a
observação de um sapato branco ou de uma folha verde não parece ter relevância
alguma para a hipótese de que todos os corvos são negros.
Ora, a probabilidade de se apanhar uma campainha no jardim da Ana (P(C/A2))
é 1/4. E a probabilidade de se apanhar uma campainha no jardim do Tozé
(P(C/T1)) é 1/2.
A probabilidade de o João apanhar flores no jardim do Tozé (P(T1)) é 1/2 (uma
vez que ele escolheu ao acaso entre os dois jardins). E a probabilidade de o João
apanhar flores no jardim da Ana (P(A2)) também.
Portanto, a probabilidade de o João ter apanhado a campainha no jardim da Ana
é de um terço.
De que modo a aplicação deste teorema nos ajuda a compreender a confirmação
científica? Proporcionando recursos para analisar a relação entre informação
nova (um novo indício) e uma hipótese. Se um novo indício é irrelevante para a
hipótese a ser testada, então não a confirma nem a infirma. Os indícios são
neutros no que respeita à hipótese, e a probabilidade da hipótese, dados os
(novos) indícios (probabilidade posterior), é igual à probabilidade da hipótese
antes de os indícios se terem tornado disponíveis (probabilidade anterior).
Neutralidade (ou irrelevância dos indícios): P(H/I) = P(H)
Se um novo indício apoia a hipótese a ser testada, podemos dizer que a
probabilidade posterior da hipótese será maior que a sua probabilidade anterior.
Voltando aos corvos, o meu grau de crença na hipótese de que todos os corvos
são negros será maior depois de ter observado mais um corvo negro. Eis um
outro exemplo, da tectónica de placas: a hipótese da deriva dos continentes foi
aceite muito depois de ter sido primeiramente desenvolvida, e a sua aceitação
deveu-se a novos indícios recolhidos sobre a natureza dos mecanismos
geológicos, por meio dos quais os continentes se podiam deslocar ao longo da
superfície da Terra. Graças à descoberta destas anomalias geomagnéticas (e de
outros indícios relevantes), a tomada de consciência de que os continentes se
podiam mover graças ao efeito da convecção térmica tornou mais plausível a
teoria da deriva dos continentes. A probabilidade da hipótese da deriva dos
continentes após a descoberta das anomalias geomagnéticas é maior do que a sua
probabilidade antes da descoberta de tais anomalias. Os novos indícios
confirmam a hipótese.
Confirmação: P(H/I) > P(H)
Os indícios minam a hipótese se a probabilidade da hipótese antes de os indícios
estarem disponíveis for maior do que probabilidade da hipótese, dados os
indícios. A observação de um corvo branco faria a probabilidade da hipótese cair
para zero, pelo que não só não infirmaria como também falsificaria a hipótese de
que todos os corvos são negros.
Eis um outro exemplo de infirmação, da teoria atómica: no início do século xix,
Dalton formulou a hipótese de que toda a matéria é composta por pequenas
partículas indivisíveis chamadas átomos. Quando, no final do mesmo século,
Thompson conduziu experiências com raios X, descobriu que os átomos não
eram partículas indivisíveis, mas que por sua vez eram compostos por partículas
mais pequenas, por electrões que se moviam rapidamente em redor de um
núcleo. A observação de Thompson tornou a probabilidade da hipótese de
Dalton, de que os átomos são pequenas partículas indivisíveis, menos provável,
infirmando-a.
Infirmação: P(H/I) < P(H)
Note-se que, diferentemente do modelo de confirmação de Hempel, a abordagem
bayesiana pode proporcionar uma indicação da medida em que uma hipótese é
apoiada por um novo indício. E isto parece ser vantajoso. Há também outros
resultados da aplicação do Teorema de Bayes à confirmação científica que são
bastante prometedores. Por exemplo, podem explicar os seguintes factos sobre a
confirmação:
a. A confirmação é maior quando a probabilidade dos indícios independentes da
hipótese é maior (por exemplo, resultados inesperados que confirmam a
hipótese, confirmam-na em maior grau).
b. Se uma hipótese implica os indícios («Todos os corvos são negros» implica
«Este corvo é negro») e são encontrados contra-indícios, nesse caso a hipótese é
falsificada, pois a probabilidade posterior é 0.
c. Uma hipótese universal de que todo o F é G é confirmada pela observação de
um não-G não F, mas em muito menor medida do que a observação de um F que
é G.
Este último ponto diz-nos que para os bayesianos, bem como para Hempel, o
paradoxo dos corvos não é, verdadeiramente, um paradoxo. Os bayesianos
também concluem que devemos aceitar a alegação contra-intuitiva de que a
observação de um sapato branco constitui um indício confirmante para a
hipótese de que todos os corvos são negros. Como diz Patrick Maher (2004), a
observação de um sapato branco confirma tenuamente que todos os corvos são
negros porque um sapato branco não é um contra-exemplo da hipótese de que
todos os corvos são negros. O que os bayesianos alegam poder fazer e que o
modelo de Hempel não pode é medir o grau em que a observação confirma a
hipótese e afirmar que uma instância positiva (um corvo negro) confirma a
hipótese de que todos os corvos são negros em muito maior medida do que uma
instância contrapositiva (um não-corvo não negro).
Discussão: Acha que as noções de confirmação e infirmação, tal como foram
formalmente definidas pela probabilidade bayesiana, encaixam na maneira
como estas noções são usadas em ciência?
Os críticos da abordagem bayesiana da confirmação defendem que há outros
aspectos da relação entre as hipóteses e os indícios que esta abordagem não tem
recursos para representar adequadamente. Ficam a pensar se na realidade os
cientistas raciocinam de uma maneira que pode ser formalizada mediante o
cálculo de probabilidades. É que os seres humanos não parecem bons
estatísticos, e tendem a ser conservadores quando avaliam a importância de
novos indícios (Kahneman et al. 1982; El-Gamal e Grether 1995): seja nos
relatos em primeira mão, seja nas reconstruções post hoc sobre o modo como os
cientistas chegam à aceitação das teorias que defendem com base nos indícios
disponíveis, é raro haver alguma menção à probabilidade (Kelly e Glymour
2004).
Exercício: Acha que a maneira como os cientistas raciocinam quando avaliam a
plausibilidade das suas teorias é relevante para o projecto da definição da
confirmação de teorias em ciência?
Aqui consideraremos apenas uma objecção à abordagem bayesiana à
confirmação, levantada por Clark Glymour (1980). Na literatura, esta objecção é
conhecida pelo «problema dos velhos indícios». Glymour observa que o
Teorema de Bayes nada diz sobre as teorias que são confirmadas por indícios já
conhecidos. O seu exemplo é o da teoria da relatividade de Einstein (H) ser
confirmada em 1915 pelas anomalias no periélio de Mercúrio (I), conhecidas há
mais de um século. Será que os indícios antigos podem confirmar uma hipótese
no âmbito da abordagem bayesiana? Tudo leva a crer que não, se a probabilidade
dos dados é 1 e, consequentemente, a probabilidade anterior da hipótese é igual à
probabilidade da hipótese dados os indícios.
Howson e Urbach (2006) defendem o Teorema de Bayes, argumentando que
deve considerar-se que o conhecimento prévio que determina a probabilidade
anterior de H não inclui I. Portanto, a probabilidade da hipótese deve ser tornada
relativa às crenças de base existentes, excluindo a crença nos indícios
potencialmente confirmantes. Segundo os autores, este passo justificar-se-ia
dado que a finalidade do exercício é medir o impacto de I na probabilidade de H.
Contudo, esta manobra deixa muitas questões sem resposta: se a explicação não
consegue produzir os resultados que esperamos no caso da confirmação de uma
teoria, dadas todas as crenças actuais, isso não será uma limitação? E
exactamente como faríamos para excluir I do corpo de conhecimento prévio?
Exercício: Consegue detectar outros problemas da abordagem de Bayes à
confirmação?
A mensagem que até agora podemos retirar da discussão sobre duas das
abordagens mais influentes à teoria da confirmação é que qualquer tentativa de
formalizar o modo como os cientistas operam quando avaliam hipóteses com
base em indícios novos ou previamente adquiridos é tendencialmente
problemática. As tentativas de formalização dão origem a inconsistências e
paradoxos, ou não conseguem captar o que os cientistas efectivamente fazem, e
se vêem a fazer, quando testam teorias. Ainda que as reconstruções
proporcionadas pelo modelo hipotético-dedutivo e pela abordagem probabilística
bayesiana permitam uma melhor compreensão da noção de confirmação e das
suas dificuldades, não parecem ser explicações completamente satisfatórias da
prática da confirmação científica.
3.2.3 O novo enigma da indução
Os problemas que Hempel enfrentou com a sua explicação da teoria da
confirmação também preocuparam Nelson Goodman. Goodman (1954, 2006)
apresenta um novo enigma, que salienta algumas dificuldades da indução para
uma generalização universal. Poderá alguma vez a observação de um corvo
negro confirmar a afirmação geral de que todos os corvos são negros?
Goodman introduz um novo termo, «verdul», que significa a propriedade de ser
verde até um determinado momento no futuro (31 de Dezembro de 2080, por
exemplo) e azul após esse momento. A afirmação «Todas as esmeraldas que
observei até agora são verdes» parece apoiar indutivamente a hipótese de que
«Todas as esmeraldas são verdes», mas também podia apoiar indutivamente a
hipótese de que «Todas as esmeraldas são verduis». Isto significa que devemos
ser cautelosos quando nos baseamos na indução para justificar as nossas
hipóteses científicas, pois em alguns casos os mesmos indícios podem apoiar
duas hipóteses gerais que geram previsões concorrentes de observações futuras.
Com Hempel como seu alvo polémico, Goodman quer demonstrar que não é
prometedor procurar uma resposta para o problema da indução e para uma
explicação da confirmação em ciência examinando as características sintácticas
das afirmações que relatam hipóteses e observações, e as relações lógicas entre
tais afirmações. É a semântica que interessa: segundo Goodman, só as
afirmações gerais de um certo tipo, as afirmações legiformes, podem ser
apoiadas por observações particulares das suas instâncias. Não podemos
determinar se uma afirmação é legiforme olhando simplesmente para a sua
forma sintáctica. Temos de prestar mais atenção às propriedades semânticas dos
predicados que contém.
É assim que o problema pode ser formulado. Todas as esmeraldas observadas
antes de 31 de Dezembro de 2080 são verdes. Esperamos que a próxima
esmeralda observada após essa data também seja verde, porque confiamos na
afirmação geral de que todas as esmeraldas são verdes. Todas as esmeraldas
observadas antes de 31 de Dezembro de 2080 são também verduis, dado o
significado deste predicado, mas de alguma maneira não confiamos na previsão
de que todas as esmeraldas serão verduis após essa data. O que faz duas
afirmações serem igualmente confirmadas pelas observações feitas até ao
momento presente, mas apenas uma gerar previsões que podem ser
confiantemente projectadas no futuro?
3.2.4 Soluções avançadas para o enigma de Goodman
Haverá algo errado com o termo «verdul»?
Os filósofos que pensam sobre a confirmação de teorias e a indução têm
manifestado preocupação com o facto de o enigma avançado por Goodman ser
determinado pela introdução de um predicado que é criado artificialmente, e de
as considerações que se aplicam a tal predicado não se aplicarem aos que
usamos na linguagem corrente. O predicado «verdul» parece artificial porque é
disjuntivo (ou seja, contém uma condição do tipo «ou..., ou...»).
Goodman observa, contudo, que a impressão de artificialidade se deve ao nosso
hábito de considerar o predicado «verde» como primitivo e o predicado «verdul»
como derivativo. Se abandonarmos este pressuposto e considerarmos «verdul» e
«azerde» como primitivos (em que «azerde» significa «azul até 31 de Dezembro
de 2080 e verde após essa data»), podemos então definir «verde» como «verdul
antes de 31 de Dezembro de 2080, e azerde após essa data». Assim definido, o
predicado «verde» seria disjuntivo, e, seguindo a linha de raciocínio antes
apresentada, mais artificial que «verdul».
Se estivermos atentos às mudanças de significado dos predicados que são usados
na linguagem corrente dias e na ciência, podemos achar que alguns destes
predicados se comportam um pouco como «verdul». O que os termos significam
e aquilo a que se referem mudou ao longo do tempo, juntamente com as
descrições teóricas a eles associadas. Isto, por sua vez, produziu um efeito no
modo como se concebe a projectabilidade das generalizações que contêm tais
termos.
Exercício: Consegue encontrar um outro exemplo de uma afirmação geral que é
verdadeira mas que não pode ser confiantemente projectada no futuro porque
contém um predicado semelhante a «verdul»?
Eis outra linha de argumentação relacionada: o predicado «verdul» é artificial
não por ser disjuntivo, mas por ser um predicado inventado e não estar
incorporado na nossa linguagem. Goodman define um predicado como
projectável se pudermos confiar nas inferências indutivas que o contêm, pois
nessa altura aplica-se aos mesmos objectos a que se aplicava no passado, e
confiamos que assim aconteça no futuro. De acordo com Goodman, um
predicado não pode ser confiantemente projectado a menos que esteja enraizado
na linguagem corrente e seja comummente usado. O problema de «verdul» é que
lhe falta enraizamento.
Porém, como Colin Howson (2000) observa, alguns predicados usados em
hipóteses perfeitamente confirmadas são termos completamente novos — refere
o caso do escândio, um metal raro terrestre assim baptizado em 1879. O facto de
as hipóteses sobre o escândio serem bem confirmadas torna os falantes
confiantes ao projectarem-nas para o futuro, independentemente de as primeiras
formulações de tais hipóteses conterem termos pouco familiares. Ainda que
termos como «escândio» não tenham um currículo estabelecido quando usados
pela primeira vez e não tenham tido origem na linguagem de todos os dias, são
projectáveis de acordo com a definição de Goodman, o que sugere que o
enraizamento não é uma condição necessária para a projectabilidade.
Exercício: Tente encontrar outros exemplos de ermos teóricos recentemente
introduzidos que surjam em generalizações científicas.
A legiformidade
A diferença entre as afirmações legiformes e as generalizações acidentais pode
explicar a razão por que a indução não parece funcionar com predicados como
«verdul». A afirmação «Todas as esmeraldas são verduis» não é uma afirmação
legiforme, mas sim uma generalização acidental. Se uma generalização é
acidental, não pode ser confirmada mediante a observação de uma das suas
instâncias.
Pensemos num caso particular. «Este homem de camisa azul não é casado» não
confirma a seguinte generalização: «Todos os homens de camisa azul não são
casados.» Uma das razões por que poderíamos pensar que a afirmação particular
não apoia a afirmação geral é que não há uma relação especial entre os
predicados nas afirmações. O que uma pessoa veste não parece ter qualquer
ligação especial com o seu estado civil, a menos que haja uma convenção
explícita em vigor que determine tal ligação — a título de exemplo, por vezes
conseguimos dizer se alguém é um padre ou uma freira católicos observando a
sua indumentária, e podemos fazer inferências dos seus papéis para o seu estado
civil. No nosso exemplo original, contudo, é acidental o homem que
conhecemos na festa usar uma camisa azul e não ser casado.
Comparemos isto com a afirmação «Este rubi é vermelho», que parece confirmar
a hipótese «Todos os rubis são vermelhos». Parece haver uma relação especial
entre ser rubi e ser vermelho. Os rubis, como muitas pedras preciosas, devem a
cor às impurezas que a sua estrutura contém (os rubis são cristais de corindo que
contêm impurezas de crómio). Portanto, não é acidental que o rubi que acabei de
observar seja vermelho.
Voltemos então ao «verdul». Haverá uma razão baseada em princípios para
considerar «Todas as esmeraldas são verdes» como uma afirmação legiforme e
«Todas as esmeraldas são verduis» como uma generalização acidental?
Normalmente as afirmações legiformes distinguem-se das generalizações
acidentais porque as primeiras não fazem referência explícita a um objecto, lugar
ou tempo particulares. «Todos os morangos no meu frigorífico estão maduros»
seria uma generalização acidental porque contém uma expressão que especifica a
localização dos morangos à qual atribuo o predicado de estarem maduros. Como
vimos antes, a definição de «verdul» contém uma referência ao tempo, mas o
mesmo se pode dizer da definição de «verde», se o definirmos com base em
«verdul» e «azerde». Este critério (que levanta problemas independentes) não
parece ajudar-nos a resolver o enigma.
Exercício: Pense noutras limitações desta primeira tentativa de distinguir as
generalizações acidentais das afirmações legiformes.
Discussão: Poderá haver leis que contenham qualificações espaciotemporais?
Suponhamos que encontramos efectivamente um modo fiável e baseado em
princípios de distinguir as generalizações acidentais das afirmações legiformes.
Ainda assim, poder-se-ia objectar a esta tentativa de solução que, quando as
crenças de base correctas estão presentes, as afirmações gerais são confirmadas
com base nas suas instâncias observadas, independentemente de haver uma
relação especial entre os predicados contidos nas generalizações. A ideia é que a
legiformidade é suficiente, mas não necessária, para a projectabilidade. Ainda
que nada pudéssemos pressupor acerca da natureza da relação entre ser um rubi
e ser vermelho antes de sabermos o que determina a cor das pedras preciosas, a
generalização «Todos os rubis são vermelhos» já estaria a ser projectada com
segurança no futuro.
Parece que ainda não temos uma boa razão para acreditar que «Todas as
esmeraldas são verduis» não vai gerar previsões precisas sobre observações
futuras de esmeraldas.
3.3 Modelos de explicação
No que se segue passaremos em revista algumas abordagens filosóficas à noção
de explicação científica. De acordo com o modelo nomológico, um
acontecimento só pode ser explicado se for subsumido numa lei ou numa
generalização estatística e se a explicação tiver a forma de um argumento
dedutivo ou indutivo. No modelo causal, a explicação científica trata de
identificar relações causais, cadeias causais ou causas comuns entre
acontecimentos. A explicação pragmática está mais interessada na maneira
como a gramática das explicações funciona do que em proporcionar uma
caracterização unificada de todas as instâncias da explicação científica.
3.3.1 Os modelos de explicação de Hempel
O Modelo Nomológico-Dedutivo de Explicação (ND) é baseado na ideia de que
qualquer explicação é constituída por:
• um explanandum (algo que precisa de ser explicado);
• um explanans (algo que explica).
O explanans tem de ser verdadeiro e o explanandum tem de ser uma das suas
consequências lógicas para que a explicação seja bem-sucedida. O modelo é
«dedutivo» porque a explicação tem a forma de um argumento dedutivo, e é
«nomológico» porque o explanans tem de conter pelo menos uma lei da natureza
(nomos = norma).
Um acontecimento singular A é explicado se, e apenas se, uma descrição de A
for a conclusão de um argumento dedutivo válido, cujas premissas envolvam
uma afirmação legiforme e um conjunto de condições iniciais. O modelo
também é referido como o modelo da «cobertura por leis», porque a ocorrência
do acontecimento a explicar tem de estar no âmbito de uma lei da natureza. A
ideia é que não se pode explicar um acontecimento particular a menos que este
se possa deduzir de uma generalização legiforme — as generalizações acidentais
não servem. Contudo, como vimos no que respeita a uma das tentativas de
resolver o enigma de Goodman, é extremamente desafiante encontrar uma
maneira baseada em princípios de distinguir as generalizações acidentais das
leis, pelo que isto pode ser considerado uma fragilidade do modelo ND.
Eis um exemplo (extremamente simplificado) da aplicação do modelo à
explicação de um fenómeno particular:
Condições iniciais: i) As placas tectónicas A e B friccionaram-se no
momento T1 no local L1
Generalizações legiformes: a) Quando as placas tectónicas se friccionam,
o movimento transmite ondas de energia à superfície da Terra, b) Quando
a energia é transmitida à superfície da Terra, ocorrem tremores e abalos,
c) etc.
Explanandum: Houve um terramoto no momento T2 no local L2.
Para Hempel, são quatro as condições de adequação que se aplicam a este tipo
de explicações.
1. O argumento tem de ser válido. A ocorrência do terramoto num momento
particular e num local particular é implicada pelas condições iniciais e pela
generalização legiforme. Se as premissas dos argumentos são verdadeiras,
também o é a conclusão.
2. As premissas têm de incluir uma afirmação legiforme. Algumas das premissas
do argumento antes apresentado têm de ser generalizações legiformes: por
exemplo, «Quando a energia é transmitida à superfície da Terra, ocorrem
tremores e abalos».
3. As premissas têm de ter conteúdo empírico e de ser verificáveis. As premissas
têm conteúdo empírico e podem ser verificadas, ainda que a tentativa de
verificar (e não de confirmar) uma generalização legiforme quando é expressa
por uma afirmação universal possa ser problemática.
4. As premissas têm de ser verdadeiras. Esta condição é diferente das condições
1-3. Se não for satisfeita, então o argumento do explanans ao explanandum ainda
tem a forma correcta, ou seja, é uma explicação potencial. Se a condição 4 for
satisfeita, então o argumento já não é apenas válido, mas também é sólido, e isto
é uma explicação real.
Hempel defende que o modelo pode dar conta da explicação causal, e que revela
a simetria entre a explicação e a previsão. Ora vejamos estes dois pontos cada
um de sua vez. Hempel argumenta que a explicação causal é apenas um tipo de
explicação que pode ser representada pelo modelo ND. Tal como fez com a
relação de confirmação entre uma afirmação observacional e uma hipótese,
Hempel explica a relação de causa e efeito por via da relação de implicação
lógica. Da mesma maneira que uma afirmação observacional se segue da
hipótese que confirma, também um acontecimento a explicar se segue das
condições iniciais e das afirmações legiformes que contribuem para a sua
explicação. A simetria entre a explicação e a previsão é também um resultado
desta abordagem. A afirmação legiforme e as condições iniciais explicam o
acontecimento que é descrito na conclusão do argumento, mas também o
prevêem. No exemplo anterior, num exercício retrospectivo, explicámos a
ocorrência do terramoto com base na consideração das condições iniciais e da
aplicação da generalização universal. Da mesma maneira, num exercício
prospectivo, poderíamos prever a ocorrência do terramoto com base na condição
inicial e na generalização legiforme.
De acordo com Hempel, também se aplica uma estrutura argumentativa
semelhante às hipóteses estatísticas, mas nesse caso a diferença é que a
generalização torna a conclusão não implicada pelas premissas, mas mais
provável, dadas as premissas (Modelo Estatístico-Dedutivo, ED). O modelo ED
é apropriado quando queremos explicar uma hipótese estatística e podemos fazê-
lo dedutivamente se uma das premissas for uma generalização estatística.
Quando o acontecimento a explicar é um caso único, o modelo dedutivo não
pode ser usado e temos de apelar ao Modelo Estatístico-Indutivo de Explicação
(EI). A conclusão é considerada muito provável dadas as premissas, mas não se
segue das premissas. No modelo ND, uma condição de adequação para a
explicação era que o explanans tinha de conter uma afirmação legiforme. Para o
modelo EI, a condição é que a generalização contida no explanans tem de ter
uma probabilidade muito elevada. O argumento do modelo EI também pode ser
usado para previsões: dizer que as premissas explicam o acontecimento é
também dizer que esperamos que o acontecimento vai acontecer dadas as
premissas.
Exercício: Identifique outras explicações que se adeqúem quer ao modelo ND,
quer ao modelo El.
Os modelos de explicação de Hempel foram criticados por não conseguirem
especificar condições necessárias e suficientes plausíveis para explicações
científicas satisfatórias. Segundo os críticos, alguns argumentos do modelo ND
ou do modelo EI não são verdadeiramente explicativos porque não apontam para
a causa genuína do acontecimento a explicar. Noutros casos, temos explicações
perfeitamente satisfatórias que não se adequam ao modelo ND (porque o
acontecimento a explicar não se insere no âmbito de uma generalização
legiforme, por exemplo) ou ao modelo EI (porque a generalização que explicaria
o acontecimento tem uma probabilidade baixa, por exemplo). Examinaremos
duas objecções com maior pormenor: a relevância e a simetria.
3.3.2 Relevância, simetria e relações causais
Wesley Salmon (1989) levantou o problema da relevância com o seguinte
exemplo:
Condição inicial: Butch toma a pílula.
Generalização: As pessoas que tomam a pílula não engravidam.
Explanandum: Butch não engravidou.
De acordo com o modelo de Hempel, o argumento antes apresentado é
explicativo, mas a primeira premissa parece ser irrelevante para a conclusão. A
razão por que Butch não engravidou nada tem a ver com ter tomado a pílula, mas
sim com o facto de ser do sexo masculino.
Consideremos o seguinte exemplo, que ilustra o mesmo problema:
Condição inicial: Ema toma vitamina C durante uma semana para tratar
uma constipação.
Generalização: A probabilidade de se recuperar de uma constipação
depois de se ter tomado vitamina C durante uma semana é muito elevada.
Explanandum: Logo, é muito provável que Ema recupere.
Mesmo se a generalização é muito provável, a explicação é má. Normalmente as
constipações passam numa semana, com ou sem a toma regular de vitamina C. A
probabilidade elevada da generalização foi introduzida por Hempel como uma
condição para argumentos do modelo EI bem-sucedidos, para garantir que havia
uma boa base de indícios para a inferência indutiva. Na realidade, contudo, a
probabilidade elevada da segunda premissa não garante que a explicação seja
boa. E preciso um critério adicional de relevância, pois a satisfação dos
requisitos formais para uma explicação adequada não é suficiente. Alguns
filósofos da ciência (ver Psillos 2002) defendem que uma referência a relações
causais poderia ajudar-nos a discriminar entre as explicações relevantes e as
irrelevantes, mas que este tipo de relações não é abrangido pelo modelo de
Hempel.
Sylvain Bromberger (1966) levantou o problema da simetria no modelo ND da
explicação científica. Eis um exemplo clássico:
Condição inicial: O barómetro cai rapidamente.
Generalização: Sempre que o barómetro cai rapidamente, aproxima-se
uma tempestade.
Explanandum: Aproxima-se uma tempestade.
O barómetro a cair é um indicador da aproximação de uma tempestade, mas não
explica a ocorrência da tempestade. E mais intuitivo dizer que é a aproximação
da tempestade que explica o barómetro a cair. Este caso destrói a desejada
simetria entre a explicação e a previsão. Ao usarmos um barómetro, podemos
prever que vai haver uma tempestade, mas não explicamos por que ocorre, pois
tanto o barómetro a cair como a ocorrência da tempestade se devem a outra coisa
— a uma alteração na pressão. Hempel não consegue explicar a simetria entre a
causa e o efeito no âmbito das explicações nomológicas-dedutivas.
O mesmo problema surge no exemplo da haste da bandeira do quadro 3.4.
Podemos explicar o comprimento da sombra fazendo referência às leis da óptica,
à geometria e à altura da haste da bandeira. Note-se que também podemos
«explicar» a altura da haste da bandeira fazendo referência ao comprimento da
sua sombra, e que esta direcção da explicação parece contra-intuitiva:
Condição inicial: Comprimento da sombra.
Leis: Leis da óptica e da geometria.
Explanandum: Altura da haste da bandeira.
Estes exemplos sugerem que o modelo de Hempel não tem recursos para
discriminar os papéis das condições iniciais e do explanandum, pois cada qual
pode ser usado para derivar o outro em conjunto com as leis ou generalizações
usadas como a segunda premissa do argumento. A análise deste exemplo torna
explícita uma importante desanalogia entre a relação entre as condições iniciais
e o explanandum no senso comum (que não é entendida como simétrica) e a
relação entre as condições iniciais e o explanandum no modelo dedutivo (que é
perfeitamente simétrica).
Foram feitas algumas tentativas para resolver os problemas da relevância e da
simetria especificando outras condições que a relação entre o explanans e o
explanandum precisa de satisfazer. O modelo causal da explicação, desenvolvido
por Salmon e por outros, consegue resolver alguns problemas encontrados no
modelo de explicação de Hempel, tais como a simetria, uma vez que é baseado
na ideia de que a relação entre o explanans e o explanandum é uma relação
causal. A ideia de Salmon é que todos os acontecimentos fazem parte de cadeias
causais e estão relacionados uns com os outros por via da continuidade
espaciotemporal e da relevância estatística. Quando os valores se correlacionam,
assumimos que possuem uma causa comum prévia. Por exemplo, a alteração da
pressão pode explicar tanto a ocorrência da tempestade como a queda do
barómetro. Mas talvez haja outros acontecimentos, anteriores à alteração da
pressão, que são a causa comum de tal alteração e do comportamento do
barómetro. Este método de estabelecer causas pode levar-nos a uma regressão da
explicação: quando é que paramos de procurar uma causa comum?
A principal dificuldade da explicação causal é a clarificação da noção de
«causar». Dizer que A causou B não é dizer que A é necessário para a ocorrência
de B, pois B podia ter ocorrido independentemente de A. O exemplo que se
segue ilustra este caso. Um homem ingere arsénico e morre 24 horas depois. O
envenenamento é a causa da sua morte, mas podia ter morrido na mesma se se
tivesse distraído ao atravessar a rua ou se tivesse sido atingido por um raio.
Uma explicação contrafactual da causalidade sugere que sempre que «A causou
B» é verdadeira, também é verdade que «Se A não tivesse acontecido, logo B
não teria acontecido». Porém, esta explicação apresenta outros problemas, pois
as condições antecedentes a A podiam estar na mesma relação contrafactual com
B e, no entanto, não serem relevantes para uma explicação causal para a
ocorrência de B. Se é verdade que a ingestão de arsénico causou a morte do
homem, então a morte não teria ocorrido a menos que o homem tivesse sido
envenenado. Contudo, também é verdade que a morte não teria ocorrido se o
homem não tivesse encontrado o seu irmão (que o envenenou), e, no entanto, o
encontro com o irmão não parece ser a causa da sua morte. Precisamos de uma
maneira de nos focarmos nos factores salientes na cadeia causal dos
acontecimentos que nos conduza à morte do homem, se queremos dar uma
explicação satisfatória da mesma.
Exercício: Consegue dar exemplos de boas explicações científicas que não
mencionem causas?
Discussão: Será que os modelos causais obtêm melhores resultados do que o
modelo de Hempel no sentido de proporcionar condições necessárias e
suficientes para a explicação científica?
3.3.3 Uma abordagem pragmática à explicação
Muitos dos problemas levantados pela teoria da explicação de Hempel, incluindo
os dois que apresentámos (a relevância e a simetria), podem ser, pelo menos em
parte, tratados fazendo referência a uma relação causal entre o explanans e o
explanandum. Todavia, algumas teorias parecem explicar sem oferecer
informação sobre processos causais (a mecânica quântica elementar, a psicologia
cognitiva ou a geometria, por exemplo), e isto leva-nos a perguntar se as
explicações científicas precisam de ser causais. Deverão os mecanismos causais
ter um papel privilegiado na explicação?
Bas van Fraassen (1980) passa em revista a literatura sobre a explicação, desde
os modelos de Hempel às explicações causais, e põe em causa o pressuposto
tanto da abordagem nomológica como da abordagem causal da explicação, de
que esta é uma relação entre o acontecimento a explicar e uma hipótese.
Desenvolve um modelo pragmático da explicação, segundo o qual um facto
explica outro facto relativo a uma teoria que é aceite. Os pressupostos
importantes nesta abordagem são: 1) a teoria usada para dar uma explicação dos
factos por que nos interessamos não precisa de ser verdadeira, ou mesmo
empiricamente adequada, para desempenhar o papel explicativo requerido; 2) as
explicações são sempre relativas a um contexto, o que significa que seria errado
supor que, para cada facto que precisa de uma explicação, há apenas uma
resposta satisfatória para a(s) pergunta(s): «Como (porque) é que F aconteceu?»
Esta análise aponta para duas fontes de dependência do contexto. Primeiro, uma
explicação é sempre relativa a uma teoria e aos interesses das pessoas que
procuram uma explicação. Estes dois elementos caracterizam o contexto no
âmbito do qual podemos avaliar a saliência e a relevância de factores
explicativos alternativos. Segundo, a explicação é relativa a que acontecimentos
consideramos serem uma alternativa relevante ao acontecimento que precisamos
de explicar.
Imaginemos a investigação de um homicídio. A pergunta «O que causou a morte
desta pessoa?» terá respostas diferentes para o médico que conduz o exame post-
mortem e para o detective que procura um homicida. Ora isto determina a
relevância explicativa das hipóteses que serão avançadas. No primeiro contexto,
as hipóteses explicativas alternativas para a morte da vítima podem incluir, por
exemplo, o afogamento ou ter sido baleada. No último contexto, o detective está
à procura de motivos plausíveis para o homicídio, e as hipóteses explicativas
alternativas podem incluir, por exemplo, a esperança de herdar uma fortuna ou
ciúmes.
Van Fraassen apresenta outro exemplo no qual à pergunta «porquê?» se pode
responder de maneiras diferentes, dependendo do interesse da pessoa que a faz.
Podíamos responder à pergunta «Porque é que o sangue circula no corpo?» quer
fazendo referência à função da circulação sanguínea («Para levar oxigénio aos
tecidos do corpo»), quer ao mecanismo que torna a circulação sanguínea
possível («Porque o coração bombeia o sangue pelas artérias»).
Quando reflectimos sobre o acontecimento a explicar, contrastamo-lo com outros
acontecimentos que podiam ter acontecido em vez dele, e perguntamos porque
ocorreu o acontecimento original (e não uma das alternativas que considerámos).
O detective pode procurar uma explicação para a razão por que o Senhor
Belmiro foi assassinado em casa e não no escritório, ou para a razão por que foi
assassinado às 8 da noite e não às 6 da manhã. O anatomista pode perguntar-se
por que razão o sangue circula à velocidade x e não à velocidade y. O biólogo
evolucionista pode pensar porque é que a circulação sanguínea se desenvolveu
em vez de outro meio que pudesse garantir o fornecimento de oxigénio aos
tecidos do corpo. Os acontecimentos possíveis que diferem do acontecimento
efectivo a explicar neste ou naquele aspecto (o local do crime, a hora do crime,
por exemplo) constituem a classe de contraste relevante.
O que torna uma explicação uma boa explicação? Há três critérios principais.
Primeiro, uma resposta à pergunta «porquê?», como «A ocorreu devido a E»,
pode ser avaliada por si só com base na verdade ou plausibilidade. No caso do
homicídio, uma explicação para a morte do Senhor Belmiro é a Menina Luísa
ter-lhe dado um tiro. A hipótese de a Menina Luísa ter disparado sobre a vítima
pode perder plausibilidade se descobrirmos que ela nunca teve ou usou uma
arma na vida.
Segundo, a resposta pode ser avaliada no que respeita à sua relevância para o
acontecimento a explicar. Será que E realmente apoia A no que respeita à sua
classe de contraste (os acontecimentos que podiam ter ocorrido em vez de A)?
Se a vítima tivesse sido a Senhora Maria, que é tia da Menina Luísa e que lhe
teria deixado uma boa herança, o motivo para o crime da Menina Luísa seria
claro e a explicação mais convincente. Mas a vítima foi o Senhor Belmiro, que,
tanto quanto se sabe, não tinha relação alguma com a Menina Luísa.
Terceiro, a resposta pode ser avaliada no que respeita a outras respostas possíveis
à pergunta «porquê?» — por exemplo, será «Porque A» mais provável do que
«Porque B», dada a informação de que dispomos? Se se descobrir que outro
suspeito com um motivo forte e sem álibi, o Senhor Silva, é um atirador
experiente, a probabilidade de a Menina Luísa ter cometido o crime não parecerá
tão elevada quanto a probabilidade de o Senhor Silva ter cometido o crime.
Na abordagem pragmática, a explicação de um acontecimento A é
desmistificada: é vista apenas como uma resposta à pergunta «porquê?» que é
satisfatória relativamente a uma teoria de fundo que determina a série das
hipóteses alternativas e os aspectos em que o evento precisa de uma explicação.
De acordo com Van Fraassen, parece não haver qualquer modo baseado em
princípios de distinguir a explicação em ciência de outros tipos de explicação, a
não ser fazendo referência ao tipo de acontecimentos que precisam de ser
explicados e à série de teorias de fundo com base nas quais a hipótese
explicativa relevante é escolhida.
Exercício: O que torna pragmática a abordagem de Van Fraassen da
explicação?
Resumo
Neste capítulo observámos modelos que foram concebidos para explicar o modo
característico como o conhecimento é adquirido, consolidado e posto em prática
em ciência. A atenção que os positivistas lógicos dão à estrutura lógica e às
componentes sintácticas da confirmação e da explicação parece fazer parte de
um projecto geral de explicar a prática da ciência de uma maneira puramente
objectiva (independente dos factos sociológicos e psicológicos da descoberta ou
da justificação), e de explanar os conceitos usados pelos cientistas de uma
maneira clara e inequívoca.
Porém, ainda que as suas análises sejam bastante esclarecedoras e nos ajudem a
chegar a algumas conclusões gerais sobre o modo como os cientistas operam, a
tentativa de explanar a confirmação e a explicação em termos das meras relações
lógicas entre afirmações não consegue abranger todas as características da
confirmação e da explicação que são importantes na prática da ciência.
Goodman e Van Fraassen defendem que as considerações semânticas e
pragmáticas têm de ser tidas em conta para compreender o modo como as teorias
são formadas, testadas, aceites e aplicadas em ciência. Isto não vai,
necessariamente, contra a objectividade da ciência, e não é uma ameaça à ideia
da ciência como progressiva e direccionada para a verdade, podendo, no entanto,
levar-nos a aceitar que há noções diferentes de confirmação e tipos diferentes de
explicação que servem finalidades diferentes e por vezes igualmente
importantes.
A abordagem pragmática gera mais dúvidas sobre a legitimidade de um critério
de demarcação bem definido entre a ciência e a não-ciência. Se é verdade que,
pelo menos algumas vezes, as teorias são desenvolvidas recorrendo a modelos
cujo papel é suscitar a análise e a reflexão e testar hipóteses, e que a adequação
de uma explicação deve ser concebida como relativa a um contexto e refém das
nossas expectativas, então o abismo entre a prática das ciências naturais e a
prática das ciências humanas ou sociais, e entre a prática da ciência em geral e o
raciocínio quotidiano, parece estreitar-se ao ponto de os elementos de
continuidade pesarem mais que os sinais de diferenciação.
Cenas dos próximos capítulos
O debate sobre a teoria e a observação continuará no próximo capítulo, em que
perguntaremos se as teorias científicas descrevem e representam a realidade tal
como é, ou se apenas fornecem ferramentas úteis para a previsão e a
manipulação da natureza.
As dificuldades do desenvolvimento de uma explicação formal satisfatória da
confirmação e explicação de teorias informarão a nossa discussão sobre a
racionalidade da mudança científica no capítulo 5. Será que podemos realmente
escolher entre teorias rivais baseando-nos na sua adequação empírica e no seu
poder explicativo, ou haverá outros factores que determinam a escolha de uma
teoria?
Questões para pensar
1. Qual é a ligação entre o enigma de Goodman e o problema da indução de
Hume?
2. Será «espécie» um predicado que pode ser projectado?
3. Que modelo de explicação se adequa melhor às ciências sociais?
4. O que torna um modelo de explicação «nomológico»?
5. Será que o Teorema de Bayes proporciona uma reconstrução de como
actualizamos as nossas crenças, ou de como as actualizaríamos se fôssemos
agentes racionais?
6. Haverá uma ligação necessária entre ser um rubi e ser vermelho?
Leituras complementares
Se quiser explorar a bibliografia sobre a natureza das teorias científicas, um bom
ponto de partida é a entrada Theories, por Giere, no Blackzvell Companion to the
Philosophy of Science (2000). Também há uma excelente entrada sobre Models
in Science, por Frigg e Hartmann, na Stanford Encyclopedia of Philosophy
(2006). Os textos recomendados sobre a perspectiva sintáctica das teorias são:
Carnap (1966, capítulos 23-6) e Hempel (1970); sobre a perspectiva semântica,
ver Suppe (1989) e Van Fraassen (1980, capítulo 3).
Se quiser saber mais sobre as tentativas de solucionar os paradoxos da
confirmação, comece pelo apanhado de Swinburne (1971) e pela colectânea
sobre o «verdul» organizada por Stalker (1994). Também pode deitar a mão aos
clássicos de Hempel (1945) e Goodman (1954, 2006). Está disponível uma
quarta edição do texto clássico de Goodman, Facto, Ficção e Previsão, com um
prefácio de Hilary Putnam. Ver as partes m e iv para, respectivamente, uma
formulação do paradoxo do verdul, e uma tentativa de solução do mesmo.
Se é estreante na probabilidade e quiser compreender melhor as abordagens
probabilísticas à confirmação, Hacking (2001) ser-lhe-á útil. Para uma discussão
pormenorizada sobre as explicações probabilísticas da confirmação e para
provas de algumas das alegações apresentadas na parte referente ao
bayesianismo, investigue tanto em Maher (2004) como em Howson e Urbach
(2006).
Pode encontrar visões de conjunto críticas da bibliografia sobre os modelos de
explicação em Salmon (1989) e Van Fraassen (1980). Sobre os modelos de
explicação computacionais, ver Thagard e Litt (2008).
4. Linguagem e realidade
No que se segue exploraremos algumas das questões levantadas pelo uso da
linguagem na prática e na teorização científicas. Algumas destas questões não
serão completamente novas, seguindo-se naturalmente da nossa discussão
anterior sobre a natureza das teorias científicas. Haverá uma distinção coerente e
significativa entre os termos teóricos e os observacionais? De que maneira o
significado de termos como «livro» (que denota um artefacto) difere do
significado de termos como «oxigénio» ou «casamento» (que denotam,
respectivamente, uma categoria natural e uma categoria social)?
Para compreendermos o motivo para introduzir tais distinções, precisamos de
saber um pouco mais sobre como a linguagem em geral funciona. Há teorias
contraditórias sobre a maneira como os termos que usamos obtêm o seu referente
e sobre como algo nas nossas mentes — uma ideia ou um conceito — consegue
referir ou destacar um objecto no mundo. O debate entre os adeptos da teoria
causal da referência e os descritivistas será brevemente introduzido, preparando
o terreno para a discussão de questões mais específicas em filosofia da ciência.
Será que teorias concorrentes podem ser comparadas se os termos teóricos que
usam se referem a entidades diferentes? Será que todas as entidades postuladas
pelas teorias que actualmente aceitamos existem mesmo?
O modo como a referência funciona é importante para a tarefa de comparar
teorias científicas, pois quando as teorias são derrubadas e substituídas, alguns
dos termos empregues na teoria derrubada são mantidos, mas podem ser
associados a descrições teóricas diferentes. Outros termos há que perdem
completamente os seus referentes: na nova teoria pode não haver espaço para
algumas das entidades cuja existência era antes aceite. Em todo o caso, a
alteração de teorias tem um impacto significativo tanto na linguagem como na
ontologia usadas pelos cientistas e pelos leigos numa comunidade.
Quando a alteração devida ao derrube de uma teoria anteriormente aceite é
absolutamente radical e são postuladas novas entidades com as finalidades de
explicação e de previsão, ou às entidades postuladas pela velha teoria são
atribuídas descrições teóricas diferentes, pode haver sérias preocupações quanto
à eficácia da comunicação entre os cientistas comprometidos com teorias
concorrentes. Será que poderemos traduzir afirmações de uma teoria para
afirmações de outra teoria e preservar uma comunicação genuína? Se a resposta
for negativa, a própria possibilidade de comparar as teorias concorrentes (e de,
por esse meio, avaliá-las com base em critérios como o poder explicativo e a
simplicidade) fica minada.
As questões sobre o significado e a referência dos termos teóricos e sobre a
possibilidade de comparar teorias reaparecem no debate sobre o realismo
científico. Qual é a relação entre a ciência e o mundo em que vivemos? Será que
é suposto as teorias científicas, ou pelo menos as teorias científicas que
actualmente aceitamos, proporcionarem uma descrição de como o mundo é
realmente? Se assim for, poderemos dizer que as teorias científicas
proporcionam uma descrição e uma representação melhores, talvez mais
fundamentais, do que os meios alternativos de descrição e representação?
Consideraremos o realismo científico no contexto do debate mais alargado sobre
o realismo em filosofia, e em seguida apresentaremos uma série de posições: há
posições realistas plenas baseadas nos argumentos do êxito da ciência; posições
instrumentalistas, relativistas ou construtivistas, que reforçam o pressuposto de
que a ciência é um guia para a realidade; há, por fim, posições intermédias
influentes, que concedem que o realismo pleno é insustentável, mas resistem às
consequências radicais das alternativas anti-realistas.