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A

ASCENSAO
DE
JOANINHA
GERHAR T
HAUPTMANN

Tradução, Prefácio e Notas


do Prof. Paulo Quintela

COiMBRA- 1972
GERHART HAUPTMANN

A ASCENSÃO DE JOANINHA

Sonho dramático em dois actos

FIGURAS:

JOANINHA.
GOTTWALD, Mestre-escola.
IRMÃ MARTA, Enfermeira Diaconisa.

TULIPE
HEDVIGES Internados dum Asilo de Mendicidade:
PLESCHKE
HANKE

SEIDEL, Lenhador.
BERGER, Administrador.
SCHMIDT, Contínuo da Administração.
DR. WACHLER, Médico.

Em sonho aparecem a Joaninha: o PEDREIRO MATTERN , seu


padrasto; uma FIGURA DE MULHER, sua falecida Mãe; um grande
A JO NEGRO; TRÊS ANJOS BRANCOS; a DIACONISA; GOT-
TWALD E SEUS ALUNOS; os internados PLESCHKE, HANKE
e outros; SEIDEL; quatro rapazes vestidos de branco; um ESTRA-
NHO; muitos ANJOS alvos, grandes e pequenos; FIGURAS DE
LUTO, mulheres, etc.
A

MARIA THIENEMANN HAUPTMANN

As crianças colhem trevo vermelho, arrancam


cuidadosamente as pequeninas flores e chupam
os finos caules pálidos. Cai-lhes na língua uma
doçura breve. Se tu tirares do meu poema
doçura tanta, já eu não terei que envergonhar-
-me do que aqui te dou.

Schreiberhau, 1893.

GERHART
PRIMEIRO ACTO
(Quarto num asilo de mendicidade duma aldeia mon-
tesina: paredes nuas, porta ao centro, à esquerda pequeno
postigo redondo. -Em frente do postigo mesa bamboleante
.I e banco. À direita cama com enxerga de palha. Junto à
parede do fundo fogão com banco e outra cama, igual-
mente com enxerga de palha e alguns trapos.- Noite tem-
pestuosa de Dezembro. À mesa, alumiada por uma vela de
cebo, cantando por um livro de orações, está sentada TULPE,
velha mendiga esfarrapada) .

TULPE (canta) :

Tua graça nos assista,


Jesus Cristo, Senhor nosso,
p'ra que de agora em diante ... (1)

(Entra HEDVIGES, a quem chamam HETE, mulher


de 30 anos, porca e desarranjada, de cabelo em franjinha.
Traz um lenço grosso em volta da cabeça e uma trouxa de-
baixo do braço; de resto vestida ligeira e pobremente).

(1) Veja Notas no fim do vol.


46 A ASCENSÃO DE JOANINHA

HETE (soprando nas mãos, sem deixar o embrulho


que traz debaixo do braço): Jesus, Jesus ! que tempo!
(Deixa escorregar a trouxa para cima da mesa, continua
a bafejar as mãos e vai esfregando alternadamente os pés
mal calçados um com o outro). Cousa assim já há muitos
anos que se não vê.
TULPE. Então que trazes?
HETE (arreganha os dentes, ganindo com dor, senta-se
no banco ao lume e esforça-se por descalçar os sapatos).
Ai ! Ai, meu Deus -meus dedinhos! -Arde que nem
lume.
TULPE (desata a trouxa; aparecem um pão, um
pacote de chicória, um cartucho de café, uns pares de meias,
etc.): Sempre há-de sobrar alguma cousinha para mim.
HE TE (que, entretida a descalçar os sapatos, não
reparou em Tulpe, atira-se agora sobre as coisas como um'
abutre e arrebata-as a si) : Tulpe! -(com um dos pés des-
calço, vai manquejando com as coisas para a cama junto
da parede do fundo) : Não queríeis mais nada, anh? Eu a
andar léguas, a gelar os ossos do corpo, para vós depois
meterdes tudo ao mochilo, anh? ! .
TULPE. Cala lá a boca, velha pega ladroa! Não me
sujo por tão pouco- (levanta-se, fecha o livro e limpa-o
cuidadosamente às saias) -Olha lá a grande conveniência
da pedinchice!
HETE (metendo as coisas debaixo da enxerga) : Quem
é que pedinchou mais nesta vida- eu ou vós? Vós nunca
fizestes mais nada, da idade em que estais: toda a gente
o sabe.
TULPE. E tu ainda fizeste outras cousas mais
bonitas. Olha como o padre tas cantou bem cantadas.
48 A ASCENSÃO DE JOANINHA

Quando era rapariga como tu, tinha outro tento em


mim.
HETE. Por isso foi malhar com os ossos à cadeia.
TULPE. E tu inda lá podes ir parar, se qui-
seres. Só preciso de encontrar um polícia, que eu lhe
cantarei as verdades. Não te faças fina, menina, digo-
-to eu!
HETE. Pois mande-me cá o tal polícia, que eu tam-
bém tenho que lhe contar.
TULPE. Conta-lhe o que te apetecer, cá por mim ...
HETE. Então quem é que roubou o pàlitó, ahn?- O
do filho do Richter da estalagem? (TULPE faz como
se cuspisse a Hete.) Tulpe! maldita! - pois agora é
que não!
TULPE. Olha a grande cousa. Eu aceito lá presentes
teus?!
HETE. Porque os não apanha.

(PLESCHKE e HANKE são literalmente arremessa-


dos para dentro do pátio pela tempestade, que acaba de
dar um safanão à casa. PLESCHKE, velho infantil, andra-
joso, de papeira saliente, desata a rir. HANKE, madraço
ainda moço, pragueja. Ambos sacodem para as pedras do
pátio, visíveis através da porta aberta, a neve das garras e
fatos. Traz cada um sua trouxa).

PLESCHKE. Com mil raios!... raios!- sopra como


o diabo - num belo dia, sim... num belo dia, leva pelos
ares esta velha traquitana do asilo. ( HETE lembra-se de
novo ao ver os dois, tira outra vez as coisas do colchão, e
sai, correndo por diante dos homens. Ouve-se a subir uma
escada).
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PLESCHKE (falando atrás dela): Porque é que...


porque é que- foges? -Nós- não te fazemos ... não te
fazemos nada.- Pois não, Hanke?- Pois não? ·
TULPE (entretida ao lume com uma panela de bata-
tas): A mulher não é escorreita do miolo. Pensa que lhe
tiramos as coisas.
PLESCHKE (entrando) : Jesus! Jesus! Que gente!
Ora não há!.. -Boa noite... boa noite.- Diabo, diabo!-
Sempre está um tempo... um tempo lá fora-! Foi mesmo a
todo o comprimento, -mesmo a todo o comprimento que
me estendi - mesmo a todo o comprimento. (Manqueja, de
pernas encolhidas, até à mesa. Depõe sobre ela a trouxa e
volta para Tulpe a cabeça trémula de cabelos brancos e
olhos inflamados e remelosos. Está ainda arquejante do
esforço, tosse e faz movimentos para se aquecer. Entretanto
também HANKE entrou no quarto. Pôs junto da porta o
bornal elas esmolas, e começa imediatamente, Ire- mente
de frio, a pôr rama seca no lume).
TULPE. Donde é que tu vens?
PLESCHKE. Eu? Eu? Dônde venho? De muito-
muito longe. Corri toda - toda a Aldeia-de-Cima.
TULPE. Trazes alguma cousa?
. PLESCHKE. Trago, trago: lindas cousas... l.indas cou-
sas... trago.- Em casa do chantre apanhei... apanhei
- uma de cinco, e - no estalajadeiro..·. lá cima- o
esta: lajadeiro- apanhei uma panela cheia, sim... uma
panela cheia... panela cheia de caldo.
TULPE. Vou já pô-la ao lume. Dá cá. ( Tira a
panela da trouxa, põe-na sobre a mesa e continua a
revolver) .
PLESCHKE. Também lá vem - lá vem --- um naco
52 A ASCENSÃO DE JOANINHA

de chouriço. Foi ... foi ... o carniceiro ... o Seipelt do talho


- que mo deu.
TULPE. E dinheiro - quanto trazes?
PLESCHKE . Três quartinhos (2), sim... três quarti-
nhos – parece-me.
TULPE. Então dá cá também, que eu tos guardo.
HETE (entra de novo): Bem tolo, dar assim tudo.
(Vai para o fogão).
TULPE. Mete-te lá tu na tua vida.
HANKE. Pois se ele é o noivo ...
HETE. Ora toma!. ..
HANKE . ...tem de trazer algum agradinho à noiva.
É do jogo...
PLESCHKE. Podes ir mangar... podes ir mangar,
sim... de quem quiseres, sim ... de quem quiseres. Mas um
velho... um velho como eu - deixa-o em paz.
HETE ( imitando o modo de falar do velho PLESCHKE):
O velho Pleschke... o velho Pleschke... daqu i a pouco
- sim, daqui a pouco- não desembucha. Daqui a pouco...
daqui a pouco - já não arranca ... nem uma uma uma
uma uma palavra... nem uma palavra, sim.
PLESCHKE (crescendo para ela com o cajado):
Põe-te- já- a mexer... · põe-te -já- a mexer.
HETE. E quem é que me põe a mexer, anh?
PLESCHKE. Põe-te- já- a mexer!
TULPE. Dá-lhe já uma .
PLESCHKE. Põe-te- a mexer!
HANKE. Deixe-se lá de maluqueira s!
TULPE. Esteja você quieto! (HETE aproveita o
momento em que HANKE , ao defendê-la, está entretido
com Pleschke, para lhe roubar qualquer coisa do bornal
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das esmolas e fugir. TULPE nota-o e sacode-se de riso).


HANKE. Que há aqui que rir?
TULPE (rindo sempre): Pois então- pois então não
se há-de a gente rir?
PLESCHKE. Ai, ai! Vai lá ver!
TULPE. Vai lá ver as tuas cousas. Pode ser que já lá
não estejam todas.
HANKE (vira-se, nota que foi logrado):
Cadela! ! - (Corre atrás de Hete). Se te
agarro! (Ouve-se o ruído de quem sobe uma
escada a correr, estrupido, gritos sufocados).
PLESCHKE. Mulher do diabo! - Mulher do
diabo! (Ri em todos os tons. TULPE sacode-se também
toda com riso. De repente ouve-se bater com força a
porta da rua. Param ambos de rir). Então? Que é isto?

(Fortes golpes de vento contra a casa. Neve granulosa


contra o postigo. Um momento de silêncio. Aparece agora
o professor GOTTWALD, homem de 32 anos, de barba
negra; traz nos braços JOANINHA MATTERN, rapari-
guinha de cerca de 14 anos. A pequena, cuja longa cabe-
leira ruiva cai desmanchada por sobre os ombros do pro-
fessor, geme continuamente. Esconde a cara no pescoço do
mestre, os braços pendem desfalecidos. Vem vestida só com
o indispensável e embrulhada em mantas. GOTTWALD,
sem atentar nos presentes, ·depõe o seu fardo com todo o
jeito na cama da direita. Um homem, lenhador, de
nome SEIDEL, entrou também com um lampião.
Traz, além da serra e do machado do ofício,
um embrulho de trapos molhados; na cabeça, já
bastante embranquecida, chapéu de caçador, velho e
amarrotado).
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PLESCHKE (com olhar pasmado e estúpido):


Hé, hé, hé, hé! - Então que houve? - Então que
houve?
GOTTWALD (estendendo sobre a pequena cobertores
e a própria capa) : Depressa, Seidel, aqueçam tejolos, de-
pressa!
SEIDEL. Vamos, vamos! tejolos!- Depressa!- que
estais a olhar?
TULPE. Que é que ela tem?
SEIDEL. Vamos, deixe-se de perguntas. (Sai rápido
com TULPE).
GOTTWALD (tranquilizador para JOANINHA): Dei-
xa lá! deixa lá! Não te assustes, que não te acontece
nada!
JOANINHA (a bater os dentes): Tenho tanto medo!
tanto medo!
GOTTWALD. Mas não tens que ter medo. Ninguém
te faz mal.
JOANINHA. O meu pai, o meu pai...
GOTTWALD. Mas ele não está aqui.
JOANINHA. Tenho tanto medo que venha o
meu pai.
GOTTWALD. Deixa, que não vem. Acredita.
(Alguém desce a escada apressado).

HETE (erguendo na mão um ralador) : Ora


olhai: vede o que deram ao Hanke «de pre-
sente»...

(HANKE veio correndo atrás dela. Alcança-a, quere


arrancar-lhe o ralador, mas ela atira-o ràpidamente para
o ·meio do quarto).
58 A ASCENSÃO DE JOANINHA

JOANINHA (estremecendo assustada): Aí vem ele!


Aí vem ele! (Soerguida, olha espantada, de cabeça esticada
para diante, com expressão de medo extremo na carinha
pálida, doente, atormentada, na direcção do ruído. HETE
libertou-se de HANKE e foge para o quarto de trás. HANKE
entra para apanhar o ralador).
HANKE. Anda que não as perdes, meu estafermo!
GOTTWALD (para Joaninha): Sossega, sossega,
Joaninha.· (para Hanke): Que quer Você?
HANKE (espantado): Eu? Que quero eu? ·
HETE (metendo a cabeça · pela porta): Larápio!
Larápio!
HAN KE (ameaçador): Descansa, que tas hei-de
pagar!
GOTTWALD. Peço um pouco de sossego, está aqui
uma pessoa doente.
HANKE (que entretanto levantou e arrecadou
·o ralador, recuando um tanto intimidado) : Então que
há?
SE/DEL (regressa com dois tejolos): Aqui está
por agora.
GOJTWALD (tomando o calor aos tejolos): Já estarão
bem quentes?. .. . . ,
SEIDEL. Sempre aquecem alguma coisa. (Põe um
dos tejolos aos pés da pequena).
GOTTWALD (indicando outro sítio): O outro aqui.
SEIJ?EL. Ainda está gelada.
GOTTWALD. Está a tremer como varas verdes.

(TULPE entrou atrás de SEIDEL. A seguir HETE e


PLESCHKE. Vêem-se à porta outras figuras duvidosas de
ASILADOS. Todos cheios de curiosidade, cochicham · uns
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com os outros, pouco a pouco animam-se, falam mais alto


e aproximam-se).

TULP E (que está mais perto da cama, de mãos


apoiadas nos quadris}: Água bem quente com água-ardente,
se alguém tem.
SE/DEL (tirando do bolso um frasco de água-
-ardente, bem como Pleschke e· Hcmke): Aqui está ainda
um bucho (3).
TULPE (já junto do lume): Dê cá.
SE/DEL. A água está bem quente?
TULPE. Jesus! . Capaz de pelar um boi. .. , .
GOTTWALD. Ponham-lhe uma pitadinha de açúcar,
se o houv~r.
HETE. Onde é que havemos nós de ter o açúcar?
TULPE. Tem-lo tu, não digas asneiras.
HETE. Eu? Açúcar? -Não! (Ri contrafeita)·.
TULPE. Mas inda agorà o trouxeste, que eu bem o
Vl na trouxa. Não digas mentiras.
SE/DEL. Vá, anda! Traz cá.
HANKE. Vai ·lá, Hete, anda!
SEIDEL. Não vês como está a mocinha?
HETE (insensível}: Oh! Cá por mim!. ..
PLESCHKE. Já te disseram que fosses buscar o açúcar .
HETE. Ao tendeiro, • que o tem. (Sai furti,-
vamente).
SEIDEL. Vão sendo horas que te ponhas a mexer,
senão apanhas dois cachações. E olha que não ficas com
vontade de mais.
PLESCHKE (que saíu por momentos, volta)': Mulher
assim! ·... Mulher assim! ...
SE/DEL. Eu é que lhe sacudia as moscas! Se eu fosse
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autoridade, pegava num bom estadulho e -zás! - vería-


mos se ela trabalhava ou não. Uma mulher como ela ...
nova e forte. Que necessidade tem ela de estar no
asilo ?
PLESCHKE. Eu inda achei- um torrãozinho - um
torrãozinho - um torrãozinho de açúcar - inda
achei!... inda, sim.
HANKE (farejando o cheiro do grogue) : Assim
também se me não dava nada de estar doente.
CONTÍNUO SCHMIDT (entra com um lampião.
Insistente e em voz baixa): Lugar, que aí vem o Sr. Admi-
nistrador.

(Entra o ADMINISTRADOR BERGER. Capitão da


reserva, inconfundivelmente. Bigodinho. Cara ainda
fresca e bondosa, cabelo já fortemente ruço. Casacão
comprido, seu quê de elegância. Bengala. Chapéu de aba
larga, posto à banda, fadista. Aspecto um tanto desenvolto
e despachado).

OS ASILADOS. Muito boa noite, Sr. Administrador! .


Muito boa noite, Sr. Capitão!
BERGER. ...noite! (Tira o chapéu e pousa-o
com · o casacão e a bengala. Com gesto caracterís-
tico) : Vamos, tudo prá rrrua! (Schmidt vai empurrando
os asilados para o quarto de trás) . Boa noite,
Sr. Gottwald. (Estende-lhe a mão). Então que há?
- GOTTWALD. Tirámo-la da água.
SEIDEL (avança): Queira ter a bonda de de descul-
par, Sr. Administra dor:· (Leva a mão à testa, em velho
costume de continência militar). Eu tinha ainda que fazer
na forja. Queria mandar ..pôr uma anilha no machado.
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E ao sair da forja... como V. Ex.a. sabe, lá em baixo,


ao pé da forja do Jeuchner ... há um tanque. Quase se
lhe podia chamar um lago. (Para Gottwald): Sim senhor,
pois não é! É quasi tão grande. E como o Sr. Admi-
nistrador talvez saiba, há lá um sítio onde o gelo
nunca fecha. É verdade: nunca fecha. Era eu ainda rapaz
pequeno ...
BERGER. Vá lá! E depois?
SEIDEL (levando outra vez a mão à testa) : Ora
quando eu ia a sair da forja- por acaso apareceu a lua
por um instantinho - ouço assim a modos de gemidos.
Primeiro ainda julguei: Hm! isto é só maluqueira tua! (4)
Mas vi logo que era pessoa que estava no tanque. E vai
encaminhei-me para o tal sítio aberto. Ponho-me a gritar
-e de repente desapareceu. E vai então eu -
pode Vosselência imaginar – logo prá forja, pego numa
tábua, e, sem dizer palavra, outra vez para o tanque.
Ponho a tábua no gelo, e - uma , duas, três! - deitei-
lhe as unhas.
BERGER. Ora até que enfim, Seidel! Bravo! Que de
resto de Você só se ouve falar de pancadaria, cabeças
rachadas, pernas partidas. Até que enfim vem outra
coisa! E trouxe-a logo para aqui?
SEIDEL. O Sr. professor Gottwald ...
GOTTWALD. Eu ia a passar por acaso. Vinha da
reunião dos professores. Levei-a primeiro para minha casa.
Minha mulher arranjou-lhe de repente coisas enxutas
para a mudar.
BERGER. E como se explica toda esta história?
SEIDEL (hesitante): Hm... -sabe Vosselência... -
ela é a filhastra do Mattern, do pedreiro.
66 A ASCENSÃO DE JOANINHA

BERGER ( confuso por um momento) (5): De quem?


Oh que malandro!
SEIDEL. A mãe morreu-lhe há coisa de seis sema-
nas. O resto já se sabe ... - Pôs-se a arranhar e a
estrebuchar - faz lá ideia! - só por pensar que eu
era o pai.
BERGER (murmura): Que patife!
SEIDEL. E já está ou tra vez metido na taberna de
baixo (6), a embebedar-se desde ontem, sem despegar.
E o patrão da loja mede-lhe todo quanto quer ...
BERGER . Desta vez é que o sujeito apanha um aper-
tão de arcos. (Inclina-se sobre a cama, para falar com
Joaninha): Ouve, menina: diz-me cá! Como tu gemes!
Não precisas de me olhar com tanto medo, que eu não
te faço mal. Como é que te chamas? - Que dizes?
Não percebi nada. - (Endireitando-se): Parece-me que a
pequena é um bocado casmurra.
GOTTWALD. É tudo medo, apenas. - Joaninha!
JOANINHA (debilmente) : Senhor?
GOTTWALD. É preciso responder ao Sr. Administrador.
JOANINHA ( fremente ) : Meu Deus, que frio tenho!
SEIDEL (aproxima-se com o grogue): Ora vamos
lá, bebe!
JOANINHA (como anteriormente): Meu Deus, tenho
tanta fome!
GOTTWALD (para o Administrador ): E quando
se lhe oferece, não quer comer.
JOANINHA. Meu Deus, dói-me tanto!
GOTTWALD. Então onde é que te dói?
JOANINHA. Tenho tanto medo!
BERGER. Então quem é que te faz mal ? Quem?
Anda, diz lá! -Não percebo palavra, minha menina.
68 A ASCENSÃO DE JOANINHA

Assim não adianto nada. - Ouve lá, pequena : o


teu padrasto tratou-te mal? - Bateu-te? - Fechou-te?
Pôs-te fora de casa, ou assim? Anh? --- Valha-me
Deus ...
SEIDEL. A rapariga é muito calada. Grande há-de
já ser o mal, para ela dizer uma palavra. É, pode-se dizer,
muda como um cordeirinho.
BERGER. O que eu queria era saber algum a coisa ao
certo. Qualquer coisa por que pudesse deitar a luva ao
sujeito.
GOTTWALD. Tem um medo louco do homem.
SEIDEL. Mas isso não é novidade nenhuma. Pode-se
bem dizer que toda a gente... sim... toda a gente o sabe.
Pode Vosselência perguntar a quem quiser. Eu só me
admiro como a mocinha ainda está com vida. Até parece
impossível.
BERGER. Então que é que ele lhe fez?
SE/DEL. Ora o que lhe havia de fazer! Toda a casta
de patifaria, se pode dizer. Empontava-a de casa às nove da
noite - e com tempo como o de ·hoje! - que lhe
fosse arranjar dinheiro. - Ora para que havia-de ser ?:
para a bebedeira, claro! E onde é que a pequena há-de
ir buscar o dinheiro? E aí ficava ela até desoras ao relento.
- Por-que quando voltava sem dinheiro, já se sabia...
juntava-se assim (apinhando os dedos) a gente, tal era a
gritaria e o choro que ela fazia.
GOTTWALD. Enquanto a mãe era viva; sempre tinha
um amparo.
BERGER. Em qualquer dos casos, vou já mandá-lo
prender. Há já muito tempo que está no rol dos bêbedos.
- Ora vem cá, menina: olha cá para
mim.
JOANINHA (implorativa): Ai não, não, não, por favor !
70 A ASCENSÃO DE JOANINHA

SEIDEL. Não lhe arranca nada, que lho digo eu.


GOTTWALD (docemente) : Joaninha!
JOANINHA. Senhor?
GOTTWALD. Conheces-me, não conheces?
JOANI NHA. Sim, senhor.
GOTTWALD. Então quem sou eu?
JOANIN HA. O Senhor – Professor - Gottwald.
GOTTWALD. Bem. Ora aí tens! Eu sempre fui teu
amigo, não fui? E agora vais-me contar... Tu estiveste lá
em baixo, no tanque da forja -. Porque é que não
tinhas ficado em casa? Anh? Porquê?
JOANINHA. Tenho tanto medo!
BERGER. Anda, que nós vamos lá para longe. Conta
isso tudo ao Sr. Professor sòzinho.
JOANINHA (tímida e misteriosa) : Ouvi uma voz a
chamar.
GOTTWALD. Uma voz? de quem?
JOANINHA. De Nosso Senhor Jesus Cristo.
GOTTWALD. E donde é que - Nosso Senhor
te chamava?
JOANINHA. Da água.
GOTTWALD. Donde?
JOANINHA. Lá de baixo - da água.
BERGER (mudando de propósito, e vestindo o sobre-
tudo): Aqui o que é preciso quanto antes é o médico. Há-
de estar ainda na Estalagem da Espada.
GOTTWALD. Eu também tinha já mandado buscar
uma enfermeira. A pequena precisa de ser tratada.
BERGER . Eu vou já dizer ao doutor. (Para
SCHMIDT): Vá-me buscar o guarda de serviço, que eu
fico à espera no Espada. Boa noite, Sr. Gottward.
72 A ASCENSÃO DE JOANINHA

Vamos já hoje pôr esse indivíduo à sombra. (Sai com


SCHMIDT. JOANINHA adormece) .
SEIDEL (depois de breve pausa): Bô' era! Olha não
o mande prender!...
GOTTWALD. E porque não?
SEIDEL. Ele bem sabe porquê . Então quem é que
deu a vida à criança?
GOTTWALD. Ora, Seidel! Falatório...
SEIDEL. Então não sabe a vida que este homem
levou?
GOTTWALD. Mentiras que se contam! Nem a metade
se pode acreditar.- Se ao menos o doutor viesse depressa!
SEIDEL (baixo): Desconfio que a pequena já não
torna a sair da cama.

(Entra o DR. WACHLER, homem grave, à volta


de 34 anos) .

DR. WACHLER. Boa noite.


GOTTWALD. Boa noite.
SEIDEL (ajudando-o a despir a peliça): Boa noite,
Sr. Doutor!
D R. WA CHLER (aquecendo as mãos ao fogão) : Pode-
se arranjar outra luz? (Ouve-se tocar um realejo no quarto
de trás). Parece que estão doidos, lá fora !
SEIDEL (já à porta aberta do quarto): Quereis fazer
o favor de estar sossegados?! (O barulho cessa. SEIDEL
desaparece para o quarto de trás).
DR. WACHLER. É o Sr. Gottwald, não é?
GOTTWALD. Sim, Sr. Doutor, Gottwald é o meu
nome.
74
A ASCENSÃO DE JOANINHA

DR. WACHLER. Disseram-me que a pequena se


deitou a afogar.
GOTTWALD. Decerto já não sabia para onde se
havia de voltar.

( Pequena pausa)

DR. WACHLER (dirigindo-se à cama, observando):


Parece que está a delirar?
JOANINHA. Milhões de estrelinhas. (Dr. WACHLER
e GOTTWALD observam. Entra luar pela janela, ilumi-
nando o grupo). Porque é que me puxas assim pelos ossos?
Ai! Ai! que dor!
DR. WACHLER (desaperta-lhe devagar a camisa em
volta do pescoço): Parece que tem o corpo cheio de vergões.
SEIDEL. Tal e qual como a mãe no caixão.
DR. WACHLER. É de cortar a alma.
JOANINHA (em tom obstinado}: Não quero! Não
quero! Não vou para casa! Quero ir - para o poço -
ter com a Fada da Neve (8). Largue-me - pai! Ui! que
cheiro! Tornou a beber água-ardente. - Escuta! o barulho
das árvores! - Hoje de manhã havia nuvens de vento
(9) sobre o monte. Oxalá não haja algum fogo! ---
Se o alfaiate (10) não leva no bolso um calhau e o
ferro-de-passar na mão, leva-o o vento pelos ares.
Escuta! que vento! ---

(A diaconisa, IRMÃ MARTA, entra)

GOTTWALD. Boa noite, Irmã.


IRMÃ MARTA (acena. GOTTWALD aproxima-se da
I
enfermeira, enquanto ela vai preparando os precisos para
o tratamento, e fala com ela ao fundo).
76 A ASCENSÃO DE JOANINHA

JOANINHA. Onde está a minha mãe? No céu?


Aah! Aah! Tão longe! - (Abre os olhos, olha com
estranheza em volta, passa a mão pela vista, e diz,
quase imperceptivelmente): Onde - é que eu
estou?
DR. WACHLER (inclinado para ela): Ao pé de
gente de bem.
JOANINHA. Tenho sede.
DR . WACHLER. Água ! (SEIDEL, que já trouxe
outra luz, sai a buscar água). Dói-te alguma coisa?
JOANINHA diz que não com a cabeça.
DR. WACHLER. Não? Ora vês ! Então não é assim
tão mau como eu julgava.
JOANINHA. É o Sr. Doutor ?
DR. WACHLER. Pois sou.
JOANINHA. Então - estou doente?
DR. WACHLER. Um poucochinho -não muito .
JOANINHA. E quer-me curar?
DR. WACHLER (examinando-a ràpidamente):
Dói-te aqui? Aqui? E aqui? Dói? - E aqui?
Aqui? - Escusas de me olhar assim com esse
medo, que eu não te faço doer. E aqui? Dói-te aqui?
GOTTWALD (aproxima-se de novo da cama): Res-
ponde ao Sr. Doutor, Joaninha!
JOANINHA (com .voz lacrimosa, tremente e implora-
tiva): Ai, querido Sr. Gottwald!
GOTTWALD . Ora agora repara no que te diz o
Sr. Doutor, e responde - vá!
JOANINHA acena que não com a cabeça .
GOTTWALD. Então porque não?
JOANINHA. Porque... porque... eu queria tanto u
para a minha mãe.
78 A ASCENSÃO DE JOANINHA

GOTTWALD (passa-lhe comovido a mão pelo cabelo):


Deixa lá! Deixa lá! (Pequena pausa).

(O MÉDICO endireita-se, toma fôlego e fica um mo-


mento pensativo. IRMÃ MARTA alumia com a outra
:I que tirou de sobre a mesa) .

DR. WACHLER (acena à ENFERMEIRA): Faça


favor, Irmã! (Encaminha-se com ela para a mesa e dá-lhe
instruções em voz baixa. GOTTWALD pega no chapéu e
fica à espera, olhando ora para JOANINHA ora para o
DOUTOR e a ENFERMEIRA. DR. WACHLER,
encerrando a conversa em voz baixa com a enferme ira): Eu
ainda por cá volto. - Ah! mando-lhe já os medicamentos .
(Para GOTTWALD ): Dizem que já está preso, na
Estalagem da Espada.
IRMÃ MARTA. Pelo menos assim o ouvi há
pouco .
DR . WACHLER (vestindo a peliça, para SEIDEL):
Você vem comigo até à farmácia?...

(O DOUTOR, GOTTWALD e SEIDEL despedem-se


baixo de IRMÃ MARTA ao passar).

GOTTWALD (instantemente): Que pensa do estado


dela, Sr. Doutor? (Saem os três. A DIACONISA fica agora
sòzinha com JOANINHA. Põe leite num púcaro. Entre-
tanto JOANINHA abre os olhos e põe-se a observá-la).
JOANINHA. Vens de Nosso Senhor?
IRMÃ MARTA. Que dizes?
JOANINHA. Se vens da parte de Nosso Senhor?
80 A ASCENSÃO DE JOANINHA

IRMÃ MARTA. Então já não me conheces, Joaninha?


Eu sou a Irmã Marta, não sou? Tu estiveste já connosco,
não te lembras? Até rezávamos junta s e cantávamos lindas
canções. Não é verdade?
JOANINHA (acena alegre): Sim, sim! Lindas can-
ções!
IRMÃ MARTA. E agora venho tratar de ti, até ficares
outra vez boa, se Deus quiser.
JOANINHA. Mas eu não me quero curar.
IRMÃ MARTA (junto dela; com o pucarinho de leite): o
Sr. Doutor disse para tomares um pouquinho de leite, para
criares outra vez forças.
JOANINHA (recusa-se): Mas eu não me quero curar.
IRMÃ MARTA. Não te queres curar? Ora pensa lá
bem um bocadinho. Deixa ver, que eu te ato o cabelo. (Ata-
lhe o cabelo).
JOANINHA (chorando baixinho): Mas eu não me
quero curar.
IRMÃ MARTA. E porque não?
JOANINHA . Eu gostava tanto ... gostava tanto - de
ir para o céu.
IRMÃ MARTA. Isso não está na nossa mão, minha
filha. Temos que esperar até que Deus nos chame. Mas se
te arrependeres dos teus pecados ...
JOANINHA (com ardor): Ai, Irmã! estou tão arre-
pendida!
IRMÃ MARTA. E se acreditares em Nosso Senhor
Jesus Cristo ...
JOANINHA. Eu acredito com tanta força no nosso
Salvador.
IRMÃ MARTA. Então podes esperar confiada e em
paz. - Agora vou-te ajeitar as travesseiras, e vais dormir.
82 A ASCENSÃO DE JOANINHA

JOANINHA. Não sou capaz de dormir.


IRMÃ MARTA. Ora experimenta.
JOA NINHA . Irmã Marta!
IRMÃ MARTA. Então?
JOANINHA. Irmã Marta! há pecados... há pecados
que se não perdoam?
IRMÃ MARTA. Ora vá lá, Joaninha! Dorme, não te
apoquentes!
JOANINHA. Ai, diga-me, diga-me, se faz favor!
IRMÃ MARTA. Há pecados desses, há. São os peca-
dos contra o Espírito Santo.
JOANINHA . E se eu fiz um pecado desses ...
IRMÃ MARTA. Qual quê! Isso são só os
homens muito maus. Como Judas, · que atraiçoou Jesus
Cristo.
JOANINHA. Mas pode ser... pode ser...
IRMÃ MARTA. Agora vais dormir, sim?
JOANINHA. Tenho tanto medo!
IRMÃ MARTA. Mas porque é que hás-de ter
medo?!
JOANINHA. Se eu fiz assim um pecado...
IRMÃ MARTA. Tu não fizeste nenhum pecado
assim.
JOANINHA (agarra-se com toda a força à Irmã e
fica a olhar esgazeada para o escuro) : Ai! Irmã, Irmã!
IRMÃ MARTA. Ora sossega!
JOANINHA. Irmã!
IRMÃ MARTA. Que foi? que foi?
JOANINHA. Aí vem ele! Não ouves?
IRMÃ MARTA. Não ouço, nada.
84 A ASCENSÃO DE JOANINHA

JOANINHA. É a voz dele. Lá fora. Escuta!


IRMÃ MARTA. Mas, ele - quem?
JOANINHA. O pai, o pai - lá está ele!
IRMÃ MARTA. Onde?
JOANINHA. Olha, ali!
IRMÃ MARTA. Onde?
JOANINHA. Aos pés da cama.
IRMÃ MARTA. Aqui está só um casaco, e aqui
um chapéu. Vamos já tirar daqui estes trapos
- e levá-los lá para dentro ao Tio Pleschke. E
trago logo água para te fazer uma compressa
fria. És capaz de ficar sòzinha por um ins-
tantinho? Mas tens de ficar muito quietinha e
sossegada!
JOANINHA. Ai que tolinha eu sou! Era só um casaco,
pois não era? e um chapéu?
IRMÃ MARTA. Muito quietinha, que eu volto já.
(Vai, mas volta logo, porque no pátio está tudo escuro).
Ponho a luz aqui fora no pátio. ( lvf ais 11ma vez, amea-
çando amorosamente com o dedo): E muito, muito quie-
tinha! (Sai).

(Fica tudo quase completamente às escuras. Imediata-


mente aparece aos pés da cama de Joaninha a figura do
PEDREIRO MATTERN. Cara torpe de alcoólico, cabelo
ruivo em desalinho, sobre o qual traz um velho barrete de
militar, sem chapa. Traz na mão esquerda a ferramenta de
pedreiro; enrolada à mão direita uma correia; fica durante
todo o tempo numa tensão, como se quisesse a cada mo-
mento açoitar JOANINHA com ela. Da aparição sai uma
luz pálida que ilumina o círculo em volta da cama de
JOANINHA).
A ASCENSÃO DE JOANINHA
86

JOANINHA tapa assustada os olhos com as mãos,


arqueja, contorce-se e solta baixo gemidos de choro.

A APARIÇÃO (em voz rouca, comprimida de


furor): Por onde andaste? Onde estiveste, rapariga? Que
andaste a fazer? Eu te ensinarei . Eu te darei uma
lição, vais ver... Que foste dizer a essa gente? Então
eu bati-te e tratei-te mal? Anh? É verdade? Tu não
és minha filha. Vamos, levanta-te! Não me pertences.
Podia pôr-te na rua.. . Levanta-te e acende o lume. Mexes-
te, ou quê? Tenho-te aqui em casa por caridade e
compaixão. E ainda por cima és preguiçosa, anh?
Então? Mexes-te ou não? Dou-te tantas, que até...

(JOANINHA levanta-se a muito custo e, de


olhos fechados, arrasta-se até ao lume, abre a
portinhola, e cai por fim desmaiada.
Vem nesta altura a IRMÃ MARTA com a luz e um
jarro de água, e a ALUCINAÇÃO DE MATTERN desa-
parece. A enfermeira fica sobressaltada, vê JOANINHA
caída sobre a cinza, assusta-se e solta um grito:
Jesus, Senhor!, pousa a luz e o jarro, corre para
JOANINHA e ergue-a do chão. Atraídos pelo grito,
vêm os ASILADOS).

IRMÃ MARTA. Saí só para ir buscar água, e levan-


k tou-se-me da cama. Hedviges, faça favor, ajude-me!
HANKE. Cautela, Hete, não lhe vás partir todos
! os ossos do corpo...
PLESCHKE. Eu creio - parece-me - que deita-
ram ... deitaram ... mau olhado à pequena, Irmã!
88 A ASCENSÃO DE JOANINHA

TULPE. Se calhar - a menina - está mesmo em-


bruxada.
HANKE (em voz alta): Eu cá digo que isto· não
acaba bem.
IRMÃ MARTA (que entretanto pôs JOANINHA de
novo na cama, com a ajuda de HEDVIGES): Talvez tenha
até muita razão, bom homem; mas por favor, não é ver-
dade? - Vossemecê bem vê: não devemos afligir mais
a doente.
HANKE. E que é que nós estamos a fazer?... ''
PLESCHKE (para Hanke): Um malandro é
que tu és... malandro é que tu és... malandro,
sabes?, e mais nada... nada. Um doente... um
doente - quem-quer sabe... um doente precisa de
sossego.
HETE (imitando-o): Um doente ... um doente ...
IRMÃ MARTA. Peço-lhes por favor, por favor ...
TULPE. A Irmã tem razão; vá, ponde-vos ao
fresco!
HANKE. Lá iremos, quando nos der na gana.
HETE. E dormir, vamos dormir à capoeira?
PLESCHKE. É o teu lugar ... é o teu lugar, sim -
tu lá sabes o que te convém.
(OS ASILADOS saem todos.)
JOANINHA (abre os olhos, medrosa): Já... já se foi?
IRMÃ MARTA. Sim, já se foram todos. Então assus-
taste-te, Joaninha?
JOANINHA (sempre medrosa): O pai já se foi?
IRMÃ MARTA. Mas ele não esteve aqui.
JOANINHA. Esteve, esteve, Irmã!
IRMÃ MARTA. Isso foste tu que sonhaste, com
certeza.
90 A ASCENSÃO D E JOAN IN HA

JOANINHA (com um suspiro profundo, em


prece íntima): Ai meu querido Jesus! Ai meu
querido Senhor Jesus! Ai meu rico, lindo,
querido Jesus!: leva-me para o pé de ti, leva-
me para o pé de ti! (Noutro tom) :

Ai, se ele viesse,


e consigo me levasse,
e da vista de
todos me
tirasse...

Sei-o com toda a certeza, Irmã ...


'I IRMÃ MARTA. Que é que tu sabes?
JOANINHA. Ele prometeu-mo. Vou
I para o céu, ele
prometeu-mo.
IRMÃ MARTA. Hm ...
JOANINHA. Sabes quem?
IRMÃ MARTA. Quem?
JOANINHA (misteriosa, ao ouvido da Irmã) : O que-
rido senhor - Gottwald.
IRMÃ MARTA. Ora agora vais dormir, Joaninha -
sabes?
JOANINHA. Irmã, não é verdade? O sr.
Professor Gottwald é um bonito homem.
Chama-se Henrique. Hen- rique é um lindo
nome, pois não é? (Com emoção): Que- rido,
querido Henrique!- Irmã! Queres saber? Vamo-
nos casar os dois. Sim, sim, nós ambos: o sr.
professor Gottwald e eu.

E quando foi do noivado,


lá foram ambos juntinhos
deitar-se num quarto escuro
num leito de penas brancas.-
92 A ASCENSÃO DE JOANINHA

Tem uma barba tão linda. - (Com arrebatamento):


Na cabeça dele cresce flor de trevo! -Escuta! -lá está
ele a chamar-me. Não ouves?
IRMÃ MARTA. Dorme, dorme, Joaninha; não
está ninguém a chamar.
JOANINHA. Era o Senhor - Jesus. - Escuta!
Escuta! é ele outra vez a chamar-me. Joaninha! -
muito alto. Muito claro: Joaninha! Anda, vem
comigo.
I
IRMÃ MARTA. Quando Deus me chamar, estou
pronta.
JOANINHA (de novo iluminada pelo luar, estende
a cabeça, como se aspirasse doces perfumes): Não
sentes nada, Irmã ?
IRMÃ MARTA. Não, Joaninha.
JOANINHA. O cheiro do lilás? (Em êxtase crescente):
Ora ouve! Que será? (Ouve-se, como de muito longe,
uma voz suave). Serão os anjos? Então não ouves?
IRMÃ MARTA. Pois ouço, ouço; mas- sabes?
agora vais-te deitar de lado, muito quietinha, e vais dor-
mir sossegada até àmanhã de manhã.
JOANINHA. Também sabes cantar aquilo?
IRMÃ MARTA. O quê, minha filha?
JOANINHA. «Dorme, dorme, meu menino...»
IRMÃ MARTA. Gostavas de ouvir?
!'
I JOANINHA (encosta-se e acaricia a mão da Irmã):
Mãezinha, canta! Canta, mãezinha!
IRMÃ MARTA (apaga a luz, inclina-se sobre a
cama, e diz com leve entoação da melodia, .enquanto a
música ao longe continua):
94 A ASCENSÃO DE JOANINHA

Dorme, dorme, roer, menino,


que a mãezinha logo vem ...

(agora cantando já, enquanto escurece completamente) :

que a mãezinha logo vem.


Foi lavar os cueirinhos
à fontinha de Belém,
à fontinha de Belém.
Ó-o'-o'-o'-o'-o'-o'...... (11)

(Uma luz de crepúsculo enche agora o quarto pobre.


Na barra da cama, inclinada para diante, apoiada
sobre os magros braços nus, está sentada uma FIGURA ES-
PECTRAL DE MULHER. Está descalça; o cabelo branco,
solto e comprido, cai-lhe pelas fontes até à coberta da
cama. Tem o rosto consumido, gasto; os olhos, em órbitas
fundas, posto que fechados com força, parecem olhar para
Joaninha adormecida. A sua voz é monótona como a duma
sonâmbula. Antes de pronunciar qualquer palavra, move os
lábios, como que exercitando-se. Parece arrancar os sons
com alguma dificuldade das profundas do peito.
Envelhecida antes de tempo, faces encovadas, magra e
vestida miseràvelmente).

FIGURA DE MULHER. Joaninha!


JOANINHA (igualmente de olhos fechados ): Mãezi-
nha, querida mãezinha, és tu?
FIGURA DE MULHER. Sim, sou eu; lavei com as
minhas lágrimas os pés de Nosso Senhor, e enxuguei-lhos
com os meus cabelos.
JOANINHA. E trazes-me boa embaixada?
FIGURA DE MULHER. Trago.
96 A ASCENSÃO DE JOANINHA

JOANINHA. Vens de muito longe?


FIGURA DE MULHER. Cem mil léguas através
da noite.
JOANINHA. Mãe, como tu vens!
FIGURA DE MULHER. Como os filhos do mundo.
JOANINHA. Trazes na " boca flores de lírios. E que
bem soa a tua voz!
FIGURA DE MULHER. Não é um som puro.
JOANINHA. Mãe, querida mãe, como tu brilhas
na tua beleza!
FIGURA DE MULHER . Os anjos do céu são mil
vezes mais belos.
JOANINHA. Porque é que tu não és tão bela como
eles?
FIGURA DE MULH ER. Sofri muito por ti.
JOANINHA . Mãezinha, fica ao pé de mim!
FIGURA DE MULHER (erguendo-se): . Tenho de
me ir embora.
JOANINHA. É bonito, lá onde tu estás?
FIGURA DE MULHER. Veigas muito grandes, abri-
gadas do vento, protegidas por Deus das trovoadas e do
mau tempo.
JOANINHA . E podes descansar, quando estás can-
sada?
FIGURA DE MULHER. Posso.
JOANINHA. E tens que comer quando tens fome?
FIGURA DE MULHER. Mato a fome com frutas
e carne. Quando tenho sede, bebo vinho dourado. (Vai
recuando) .
JOANI NHA. Vais-te embora, mãezinha?
FIGURA DE MULHER. É Deus que me chama.
JOANINHA. Deus chama muito alto?
98 A ASCENSÃO DE JOANINHA

FIGURA DE MULHER. Deus chama alto por mim.


JOA N INHA . Tenho o coração todo queimado, mãe-
zinha!
FIGURA DE MULHER. Deus to refrescará com rosas
e lírios.
JOANINHA. E Deus vai salvar-me?
FIGURA DE MULHER. Conheces as flores que
tenho na mão?
JOANINHA. São primaveras, chaves do céu (12) .
FIGURA DE MULHER (põe as flores na mão
de Joaninha): Fica com elas, como penhor de Deus. Adeus !
JOANINHA. Mãezinha, fica comigo!
FIGURA DE MULHER (recuando): Não me verás
por breve tempo; mas outro breve tempo passado, então
me verás.
JOANINHA. Tenho medo.
FIGURA DE MULHER (recuando sempre ) :
Como o vento persegue a neve em pó sobre os montes,
assim Deus fará aos que te atormentam.
JOANINHA. Não te vás embora!
FIGURA DE MULHER. Os filhos do céu são como
os relâmpagos azuis da noite. - Dorme!

(Faz-se escuro de novo, gradualmente. Entretanto


ouve-se outra vez a canção de embalar, cantada por
vozes suaves de meninos):

Dorme, dorme, meu menino;


foge, medo, do telhado -

(De repente ilumina-se o quarto dum brilho auriverde.


Vêem-se TRÊS LUM INOSAS FIGURAS DE ANJOS-
1 100 A ASCENSÃO DE JOANINHA

jovens belos, alados, com grinaldas de rosas nas cabeças-


que cantam o final da canção por pap éis de música pen-
dentes de ambos os lados. Não se vêem nem a DIACONISA
nem a FIGURA DE MULHER).

Foge, medo, do telhado ...


Deixa o menino dormir
Um soninho descansado,
um soninho descansado!
Ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó......

JOANINHA (abre os olhos, vê extasiada as figuras


dos anjos e diz, maravilhada): Anjos? (Com espanto cres-
cente, alegria irreprimível, mas ainda não livre de dúvida):
Anjos!! (Em júbilo trasbordante): Anjos!!!

( Pequena pausa. Os ANJOS vão dizendo sucessiva-


mente, acompanhados de música, o seguinte):

PRIMEIRO ANJO.

Não foi para ti que o sol


'spalhou ouro pelos montes;
nem a verdura dos vales
se ofereceu Íl teus pés.

SEGUNDO ANJO.

O pão dourado dos campos


não te quis matar a fome;
e o leite doce das vacas
não foi mungido p'ra ti.
102 A ASCENSÃO DE JOANINHA

TERCEIRO ANJO.

As flores lindas da terra,


tão cheirosas e suaves,
purpúreas, azuis de céu,
não tapetaram teus passos.

(Pequena pausa)

PRIMEIRO ANJO.

Este primeiro saudar


te trazemos pelo escuro;
no vento das nossas asas
primeiro ar da boa sorte.

SEGUNDO ANJO.

Na fímbria de nossas túnicas


perfumes da primavera;
em nossos lábios floresce
o primeiro alvor do dia.

TERCEIRO ANJO.
lI
Dos nossos pés se desprende

II o brilho verde do céu;


no fundo do nosso olhar
lampeja a Cidade Eterna.

Cai o pano.
SEGUNDO ACTO

(Está tudo como antes da apariçao dos anjos: a


DIACONISA está sentada ao pé da cama em que
está deitada JOANINHA. Acende de novo a luz, e
Joaninha abre os olhos. A visão interior parece
ainda existir. O seu aspecto tem ainda a expressão
de enlevo celeste. Logo que reconhece a enfermeira,
começa a falar em alegre preci-pitação) .

JOANINHA. Irmã! Anjos! Irmã Marta, Anjos!...


Sabes quem esteve aqui?
IRMÃ MARTA. Hm. Já estás outra vez acor-
dada!
JOANINHA. Ora veja se adivinha! Então? (Com
ímpeto): Anjos! Anjos! Anjos verdadeiros! Anjos do
céu, Irmã Marta! Tu bem sabes: Anjos de asas
muito grandes.
IRMÃ MARTA. Ora ainda bem, que tiveste assim
sonhos tão bonitos ...
JOANINHA. Ai, ai! E agora diz que estive a
sonhar! Mas então que é isto? Ora vê bem!
(Faz como se lhe mostrasse uma flor que tivesse
na mão).
106 A ASCENSÃO DE JOANINHA

IRMÃ MARTA. Então que tens tu aí?


JOANINHA. Olha! Olha bem!
IRMÃ MARTA . Hm ...
JOANINHA. Aqui, olha!
IRMÃ MARTA. Ahá!
JOANINHA. Ora cheira.
IRMÃ MARTA (como se cheirasse uma flor): Hm!
que bom!
JOANINHA. Tão fundo não, que ma partes.
IRMÃ MARTA. Ai desculpa! Mas o que vem
a ser?
JOANINHA Primaveras - então não conheces?
IRMÃ MARTA. Ah sim!
JOANINHA. Ora sempre está!... Traz cá a luz.
Depressa, depressa!
IRMÃ MARTA (alumiando com a vela) : Ah!
sim, agora já vejo.
JOANINHA. Pois não é?
IRMÃ MARTA. Mas tu estás a falar de mais. Agora
vamos ficar muito caladinhas, senão o Sr. Doutor zanga-
se connosco. Já mandou o remédio. E vamo-lo tomar à
risca.
JOANINHA. Ai Irmã! Tantos cuidados comigo!
E afinal não sabe o que aconteceu . Então? então?
Diga lá, ande, se sabe. Quem é que me deu isto, anh?
As primaveras? Quem foi, anh? Donde é que podem
ser as primaveras douradas? (13) Então?
IRMÃ MARTA . Contas-me isso tudo àmanhã de
manhã. Então já tu estás repousada, fresca e com
forças, com saúde...
108 A ASCENSÃO DE JOANINHA

JOA NINHA . Mas eu já tenho saúde. (Senta-se na


cama e põe os pés no chão) . Bem vês que já estou boa, Irmã!
IRMÃ MARTA. Não, Joaninha! Não faças isso!
Isso não se faz!
JOANINHA (levanta-se, repele a Irmã, dá alguns
passos): Deixa-me -deixa-me, que tenho de me ir em-
bora. - (Assusta-se e fixa esgazeada um ponto). Ai, . Pai
do Céu!

(Vê-se um ANJO de túnica e asas negras. É grande,


forte e belo, e traz uma espada comprida e recurva, com
I
o punho envolto em crepes negros. Calado e grave, está
sentado junto do fogão e olha Joaninha contínua e sere-
namente. O quarto enche-se de uma luz branca, de sonho).

JOANINHA. Quem és tu? (Não responde). És um


anjo? (Não responde). É por mim que vens? (Não res-
ponde). Eu sou a Joaninha Mattern, é por mim que vens?
(A princípio não há resposta. A IRMÃ MARTA ficou de
mãos cruzadas, devota e humildemente. E agora vai saindo ,
vagarosamente) ..
JOANINHA. Deus tirou-te a fala? (Não responde).
És anjo de Deus? (Não responde) . És meu amigo? ou és
meu inimigo? (Não responde). É uma espada que trazes
nas dobras do vestido? (Não responde). Ui! que frio! Que
vento tão frio sai das tuas asas! E o teu hálito, que frio!
(Não responde). Quem és tu ? (Não responde. Terror repen-
tino apodera-se dela. Volta-se com um grito, como se
alguém estivesse atrás dela). Mãezinha! Mãezinha! (Uma
110 A ASCENSÃO DE JOANINHA

figura no hábito da DIACONISA, mas mais bela e mais


jovem do que ela, com grandes asas brancas, entra.
Joaninha, correndo a refugiar-se no seio da figura e
segurando-lhe a mão): Mãezinha! Mãezinha! Está aqui
alguém!
DIACONISA. Onde?
JOANINHA. Ali! Ali!
DIACONISA . Porque tremes tanto?
JOA NIN HA. Tenho medo.
DIACONISA. Não tenhas medo, que eu estou aqui.
JOANINHA. Batem-me os dentes de medo. Não
posso. Tenho horror dele.
DIACONISA. Não temas, que é teu amigo.
JOANINHA. Quem é ele, Mãe?
DIACONISA. Não o conheces?
JOANINHA. Quem é?
DIACONISA. O anjo da Morte.
JOA NINHA. A Morte. ( Joaninha olha por momentos
o Anjo Negro muda e reverentemente). Tem então de ser?
DIACONISA. É por ali que se entra, Joaninha!
JOANINHA. E todos têm de entrar por lá?
DIACONISA. Todos.
JOANINHA. E vais-me fazer muito mal, Anjo? -
Ficou calado. Fica sempre calado a tud o o que lhe digo,
Mãe!
DIACONISA. As palavra s de Deus falam alto no teu
coração.
JOANINHA. Quantas vezes te desejei! E agora tenho
medo.
DIACONISA. Prepara-te.
JOANINHA. Para morrer?
DIACONISA. Sim.
112 A ASCEN SÃO DE JOANINHA

JOANINHA (depois de breve pausa, tímida): E hei-de


ir assim no caixão rota e esfarrapada?
DIACONISA. Deus te vestirá. ( Toca uma pequena
campaínha de prata que traz consig o. Vem imediatamente,
sem ruído -como todas as figura s que se seguem-, um
ALFAIATE DE ALDEIA, pequeno e corcunda, que traz
no braço um vestido, véu e grinalda de noiva, e nas mãos
um par de sapatinhos de cristal. Tem um andar baloiçado e
estranho, inclina-se mudo perante o ANJO, a DIACONISA
e, mais profundamente, perante JOANINHA).
O ALFAIATE (sempre com salamaleques): Menina
Joana Catarina Mattern. (Tosse). O Senhor seu Pai, sua
Alteza o Senhor Conde, foi servido de me encomendar
vestidos de noiva.
DIACONISA (tira o vestido das mãos do Alfaiate
e veste-o a Joaninha) : Vem cá, que eu te visto,
Joaninha.
JOANINHA · (alegre e excitada): Ai, como ruge!
DIACONISA. Seda branca , Joaninha.
JOANINHA (contempla-se extasiada): Que admira-
dos vão ficar todos, quando me virem no caixão assim
liI
l tão bonita!
ALFAIATE. Fidalguinha Joana Catarina Mattern.
(Tosse). Em toda a aldeia não se fala de outra coisa.
(Tosse). Que grande felicidade trazeis com a vossa
.I morte, Fidalguinha Joana! ( Tosse). O Senhor vosso
Pai ( tosse) , sua Alteza o Senhor Conde - (tosse)
'
esteve em casa do senhor Administrador...
i
DIACONISA (pondo a grinalda a Joaninha } : Inclina
um pouco a cabeça, noiva de Deus!
I
JOANINHA (tremente de alegria infantil): Queres .
114 A ASCENSÃO DE JOANINHA

saber, Irmã Marta, alegro-me com a morte ... (De


repente com dúvidas da Irmã) : Tu és... não és?
DIACONISA. Sou.
JOANI NHA. Tu és a Irmã Marta? Ai, não, não és.
És a minha mãe, não és?
DIACONISA. Sou.
JOANINHA. És ambas as coisas?
DIACONISA. Os filhos do céu são iguais em
Deus.
ALFAIATE. Se me permitis, Princesa Joaninha. ( Ajoe-
lhando em frente dela com os sapatinhos): São os sapa-
tinhos mais pequenos em todo o reino (14). Todas
têm os pés grandes de mais para eles: a Hedviges,
a Inês, a Luísa, a Marta, a Guilhermina, a Ana,
a Catarina, a Margarida. (Calçou-lhe os sapatos). Ser-
vem! servem! É ela a noiva. A menina Joaninha é quem
tem os pezinhos mais pequenos. - Se preci sar de mais
alguma coisa!... Um seu criado, um seu criado! (Sai
com salamaleques).
JOANINHA. Já mal posso esperar, Mãezinha.
DIACONISA. Agora já não precisas de tomar mais
remédios.
JOANINHA. Pois não.
DIACONISA. Em breve terás mais saúde que um

I peixe dentro de água, Joaninha!


JOANINHA. Pois é.

I' DIACONISA. Vem agora deitar-te no teu leito de


morte.
( Toma Joaninha pela mão, condu-la suavemente
para a cama, e Joaninha deita-se).
JOANINHA. Agora é que vou saber por fim o que
é morrer ...
DIACONISA. Pois vais, Joaninh a!
116 A ASCENSÃO DE JOANINHA

JOANI NHA ·(deitada de costas, as mãos postas


como que envolvendo uma flor): Eu tenho este
penhor.
DIACONISA. Aperta-o bem contra o peito.
JOANINHA (novamente com medo, olhando tímida
para o Anjo) : Tem então de ser?
DIACONISA. Sim, tem de ser.

(Ouve-se ao longe o som duma marcha fúnebre).

JOANINHA (escutando): É o mestre Seyfried e os


músicos, para me acompanharem à sepultura. (O ANJO
ergue-se) . Lá se levanta ele! (Aumenta a tempestade lá
fora. O ANJO está já de pé e caminha direito a
Joaninha g rave e vagaroso). Agora vem para mim.
Ai, Irmã, Mãe! Já não te vejo. Onde é que estás?
( Implorativa para o ANJO): Depressa, espírito negro
e mudo! (Arquejante, como sob um pesadelo): Que
peso, que peso! ... é como uma ... como uma pedra-
(O ANJO levanta devagar a larga espada). Ele vai ...
vai destruir-me - de todo. (Com medo extremo): So-
corro, Irmã!
DIACONISA (interpõe-se majestosa entre o ANJO e
JOANINHA, e _ põe -lhe ambas as mãos sobre o coração):
Não destruirá. -Ponho sobre o teu coração as minhas
bentas mãos.

(O ANJO Negro desaparece. Silêncio. A DIACONISA


cruza as mãos e olha para JOANINHA , sorrindo com suavi-
dade; depois cai em recolhimento e move os lábios, rezando
baixo. Os sons da marcha fúnebre não deixaram de ouvir-
118 A ASCENSÃO DE JOANINHA

-se entretanto. Faz-se notar o ruído de muitos pés cami-


nhando cautelosamente. Logo a seguir surge a figura do
professor GOTTWALD à porta do centro. Cala-se a marcha
fúnebre. GOTTWALD vem vestido de negro como para um
enterro, e traz na mão um ramo de lindas campaínhas.
Tira respeitosamente o chapéu alto e, mal entra, volta-se
para trás, com um gesto a pedir silêncio. Vêem-se atrás
dele MENINOS DE ESCOLA: rapazes e raparigas
com os seus melhores fatos. Ao gesto do prof essor inter-
rompem o seu murmúrio e ficam muito calados. Não se
I. atrevem a àtravessar a porta . GOTTWALD aproxima-se
agora, de aspecto solene, da DIACONISA que continua
I
a rezar).
! GOTTWALD (em voz baixa) : Bom dia, Irmã Marta!

DIACONISA. O senhor Gottwald! Deus o salve!


GOTTWALD (olhando para Joaninha, abana a
cabeça em gesto lamentoso e
doloroso) : Pobrezinha
DIACONISA. Porque é que está assim tão triste,
senhor Gottwald?
GOTTWALD. Por ela afinal ter morrido.
DIACONISA. Não é caso para nos entristecermos;
está em paz, e bem a mereceu.
GOTTWALD (suspirando): Sim, agora está em paz.
Livre de tormentos e misérias.
DIACONISA (mergulhada na contemplação de Joa-
ninha) : Que linda que ela está!
GOTTWALD. Linda, sim - agora, que estás morta,
é que tu floresces em toda a tua beleza.
120 A ASCENSÃO DE JOANINHA

DIACONISA. Deu s fê-la assim tão linda, por ser


tão crente.
GOTTWALD. Sim, crente e bondosa . (Suspira fun-
do, abre o livro de orações e olha para ele perturbado).
DIACO NISA (olha também para o livro): Não nos
devemos queixar, devemos ter paciência.
GOTTWALD. Ai, estou tão triste.
DIACONISA . Por ela estar na salvação?
GOTTWALD . Por me terem murchado duas flores.
DIACONISA. Onde ?
GOTTWALD. Duas violetas que tinha aqui no
livro. São os olhos mortos da minha querida
Joaninha.
DIACONISA. Vão reflorir no céu ainda mais belos.
GOTTWALD. Ai, quanto durará ainda a nossa
peregrinação por este escuro vale de lágrimas?! (De
repente noutro tom, diligente e profissional, tirando do
bolso papéis de música): Que lhe parece? Eu
pensava cantar aqui em casa o coral: «Jesus, minha
esperança» (15).
DIACONISA. Sim, esse coral é lindo, e a Joaninha
Mattern era uma menina piedosa.
GOTTWALD. E depois no cemitério cantamos
outro: «Deixai-me ir, que eu possa ver Jesus» (16).
(Volta-se para as crianças e diz): Número 62: Deixai-
-me ir, que eu possa ver Jesus. (Entoa baixo,
marcando o compasso): Deixai-me ir - deixai-me
ir, -- que eu possa - ver Jesus! ( As CRIANÇAS
acompanham-no , em voz baixa). Estais bem agasalha-
dos, meninos? Lá fora no cemitério vai fazer muito frio.
Entrai cá. Vinde ver mais uma vez a Joaninha, coitadinha.
(As crianças entram e vão colocar-se com solenidade em
122 A ASCENSÃO DE JOANINHA

volta da cama). Vede, que linda ficou na morte a pobre


menina. Andava vestida de trapos - e agora está vestida
de seda. Andava descalça - e agora tem nos pés ·
sapatinhos de cristal. Em breve irá morar num
palácio dourado, e vai comer todos os dias carne
assada. - Aqui viveu só de batatas frias - e nem
delas se podia fartar... Aqui todos vós lhe
chamáveis a «princesa dos farrapos», e agora vai ser
em breve uma princesa verdadeira. Quem tem
desculpa a pedir, que o faça agora, senão vai dizer
tudo a Nosso Senhor, e então - ai de vós!
UM RAPAZINHO (adiantando-se um pouco): Boa
Princesinha Joaninha, não me leves a mal, e não digas a
Nosso Senhor que eu te chamava sempre «princesa dos
farrapos».
TODAS AS CRIANÇAS (confusamente): Todos nós
temos muita pena e pedimos perdão .
GOTTWALD. Bem. Agora já a pobre Joaninha
vos perdoa. Podeis ir lá para dentro e esperai por
mim.
DIACONISA. Vinde, que eu vos acompanho. E lá
vos direi o que tendes de fazer para serdes assim
anjinhos bonitos como a Joaninha vai ser dentro em
breve. (Sai à frente das CRIANÇAS. A porta fica
encostada).
GOTTWALD (sòzinho com JOANINHA. Põe-lhe
comovido as flores aos pés): Minha querida Joaninha:
aqui te trago este ramo de campaínhas. ( Ajoe-
lhando ao pé da cama, em voz trémula): Não te
esqueças de mim de todo na tua glória. (Suspira,
124 A ASCENSÃO DE JOANINHA

e enterra a cabeça nas pregas do vestido dela): Parte-se-


me o coração (17), por ter de me apartar de ti.

(Ouve-se falar fora; GOTTWALD levanta-se, tapa


Joaninha com uma coberta. DUAS MULHERES DE IDADE,
vestidas como para um enterro, com lenço e livro de orações
de folhas douradas nas mãos, entram furtivamente).

PRIMEIRA MULHER (olhando em volta): Somos


as primeiras?
SEGUNDA MULHER. Não, já cá está o Sr. Pro-
fessor. Bons dias, Sr. Professor!
GOTTWALD. Bons dias.
PRIMEIRA MULHER. Teve de certo grande des-
gosto, Sr. Professor ! E depois uma menina tão boa . E
sempre a trabalhar, sempre a trabalhar.
SEGUNDA MULHER. Sempre será verdade o que
dizem? ... Eu cá não acredito... Que se matou?
TERCEIRA MULHER (vindo juntar- se às outras):
Isso era um pecado contra o Espírito.
SEGUNDA MULHER. Um pecado contra o Espírito
Santo.
TERCEIRA MULHER. Um pecado desses, diz o
Sr. Padre, não tem perdão.
GOTTWALD. Então Vossemecês não sabem o que
disse Jesus Cristo? «Deixai vir a mim as criancinhas».
QUARTA MULHER (entrando): Que tempo, que
tempo este, senhores! É de gelar os pés. Se ao menos o
padre não demorasse muito! (18) A neve no cemitério é
de metro.
126 A ASCENSÃO DE JOANINHA

QUINTA MULHER (entrando): Já sabem? O padre


não lhe dá a bênção. Nem a quere enterrar em sagrado.
PLESCHKE. Já ouvistes ... já ouvistes?... um fidalgo
foi ter com o padre- e disse: sim... disse ... a Joaninha
Mattern é santa .
HANKE (entrando apressado): Vêm aí com um
caixão de vidro !
VÁRIAS VOZES. Um caixão de vidro! Um caixão
de vidro!
HANKE. Jesus! Deve ter custado bem bom dinheiro!
VÁRIAS VOZES. Um caixão de vidro! Um caixão
de vidro !
SEIDEL. Ainda aqui vamos ver coisas lindas! Um
anjo atravessou pelo meio da aldeia. Do tamanho dum
choupo, podeis crer. À beira do tanque da forja estão sen-
tados outros dois. Mas esses são pequenos como meninos.
Eu cá digo que a pequena não era só uma pobre de pedir.
VÁRIAS VOZES. A menina não era só uma pobre
de · pedir. - Trazem um caixão de vidro! - Um anjo
atravessou a aldeia!
(Quatro RAPAZES VESTIDOS DE BRANCO en-
tram com um caixão de vidro, que pousam perto da
cama de Joaninha. Os do mortório (19) sussurram espan-
tados e curiosos).
GOTTWALD (ergue um pouco a coberta que tapa
Joaninha): Quereis ver a morta mais uma vez?
PRIMEIRA MULHER (espreitando curiosa): Que
cabelos! Parecem de ouro!
GOTTWALD (tirando completamente a coberta de
cima de JOANINHA, que fica nimbada de luz pálida):
E vestido de seda e sapatinhos de cristal.
128 A ASCENSÃO DE JOA N INHA

TODOS recuam como que deslumbrados, com


excla- mações da maior admiração.
I' VÁRIAS VOZES. Ai, que linda! - Quem é ela?-
A Joana Mattern? - A Joana Mattern? - Não
acredito.
PLESCHKE. A menina ... a menina ... é uma ...
Santa.

(Os quatro JOVENS põem JOANINHA · no


caixão com muito jeito e muito suavemente).

HANKE. Dizem para aí que a não enterram.


PRIMEIRA MULHER. Vão pô-la na Igreja.
SEGUNDA MULHER. Eu creio que a menina não
está morta. Parece mesmo a própria vida.
PLESCHKE. Ora dai cá ... dai cá - uma peninha
- vamos pôr-lhe... vamos pôr-lhe - uma peninha
ao pé da boca, para ver - sim - para ver se ainda
respira. (Dão-lhe uma pena, e põe-na diante da boca
de JOANINHA). Não se mexe. A menina está
morta. E bem morta.
TERCEIRA MULHER. Eu dou-lhe este raminho
de rosmaninho. (Põe-lhe o ramo no caixão).
QUARTA MULHER. Que leve também o meu ramo
de alfazema.
QUINTA MULHER. Por onde andará o Mattern?
PRIMEIRA MULHER. Por onde andará o
Mattern?
SEGUNDA MULHER. Olha esse! Há-de estar na
taberna.
PRIMEIRA MULHER . Com certeza não sabe o que
sucedeu.
130 A ASCENSÃO DE JOANINHA

SEGUNDA MULHER. Contanto que lhe não falte


a água-ardente, não quere saber de mais nada.
PLES CHKE. Então... então... não lhe dissestes...
sim... não lhe dissestes, que tem uma... uma morta -
em .casa?
TERCEIRA MULHER. Bem o podia saber, sem ser
preciso dizer-lho.
QUARTA MULHER. .Eu cá não quero
dizer nada, Deus me defenda! Mas quem
matou a pequena, bem se sabe. Cala-te boca.
SEIDEL. Isso também eu digo, sabe-o a
aldeia em peso. Tem um inchaço como o meu
punho!
QUINTA MULHER . Onde ele põe o pé não torna a
nascer erva.
SEIDEL. Eu ajudei a despi-la, e bem vi : tem
um inchaço como o meu punho. E foi isso que a
matou.
PRIMEIRA MULHER . O Mattern, e mais ninguém,
é que a tem na consciência.
TODOS (falando com violência, mas em tom de
segredo): Mais ninguém.
SEGUNDA MULHER. Assassino é que ele é.
TODOS (com raiva, mas misteriosamente) : Assassino !
Assassino! ( Ouve-se a voz do pedreiro MATTERN, bêbedo,
cantarolando).
A VOZ DE MATTERN. Quem- tem boa- cons-
ciência -dorme -na paz- do -Senhor (20). ( Aparece à
porta e grita): Rapariga! Ó rapariga! Moça! Onde estás tu?
(Fica encostado à porta). Só conto até cinco ... e não espero
mais. Nem mais um bocadinho ... um -dois-três e mais
um faz... Rapariga!! Não me faças danar, digo eu! Vou à
132 A ASCENSÃO DE JOANINHA

tua busca e se te agarro, canalha, esmago-te! (Estaca, vê os


presentes, que ficam no maior silêncio). Que quereis vós
aqui?- (Ninguém responde) . Que tendes aqui que chei-
rar ? Foi o diabo que vos trouxe, ahn?- Vamos, rrrrua!-
Então, vai ou não vai? (Ri consigo mesmo). Ora espera lá
um pouquinho. Já sei o que é. Subiu-me à cabeça, é o que
é. - (Canta): Quem - tem - boa cons - ciência -
dorme- na paz- do- Se-nhor!. .. (Assusta-se). Inda
aí estais? (De repente, num ataque de fúria, procurando
alguma coisa para bater): Agarro num porrete ...

(Entra um HOMEM vestido com uma capa coçada,


castanha. Tem perto de 30 anos, cabelo preto e com-
prido, e rosto pálido com as feições do professor
GOTTWALD. Traz na mão esquerda chapéu de aba
larga, e sandálias nos pés. Vem coberto de pó e parece
cansado da caminhada. Interrompendo o pedreiro,
toca-lhe de leve com a mão no braço. MATTERN volta-se
com violência).

O ESTRANHO (olha-o grave e serenamente cara a


cara, e diz humildemente): Deus te salve - pedreiro
Mattern!
MATTERN. Que vens _ aqui fazer? Que queres tu?
O ESTRANHO (pedindo humildemente) : Trago os
pés em sangue da caminhada; dá-me água para os lavar.
Venho morto de sede do sol ardente; refresca-me com
um pouco de vinho. Desde que abalei de manhãzinha
que não comi pão. Tenho fome.
134 A ASCENSÃO DE JOANINHA

MATTERN. E que tenho eu com isso? Quem te manda


andar a mandriar pelas estradas? Trabalha, que eu: também
trabalho.
O ESTRANHO. Eu sou trabalhador.
MATTERN. Vagabundo é que tu és. Quem trabalha
não precisa de andar às esmolas.
O ESTRANHO. Eu sou trabalhador sem féria.
MATTERN. Vagabundo é que tu és.
O ESTRANHO (tímido, submisso, mas com certa
insistência): Eu sou médico, talvez precises dos meus
serviços.
MATTERN. Não estou doente, não preciso de dou-
tores.
O ESTRANHO (com voz trémula de comoção):
Pedreiro Mattern, pensa bem! Não precisas de me dar
água, que eu curo-te mesmo assim. Não precisas de me
dar pão para comer, que eu ponho-te são, assim Deus
me ajude!
MATTERN. Põe-te ao fresco! Segue o teu cami-
nho. Eu sou rijo e são, não preciso de doutores! Enten-
deste?
O ESTRANHO. Pedreiro Mattern, pensa bem!- Eu
lavo-te os teus pés. Dou-te vinho para beber. Dou-te pão
doce para comer. Põe o teu pé sobre a minha cabeça, e
mesmo assim eu te porei são e salvo, assim Deus me
ajude!
MAT TERN. Ora agora vamos ver se te vais ou não.
E se não encontrares a porta, eu ta ...
O ESTRANHO (em tom de advertência
grave): Pedreiro Mattern, sabes o que tens em
casa?
136 A ASCENSÃO DE JOANINHA

MATTERN. Só o que me pertence. Tudo o que


me pertence. E tu não me pertences. Segue o teu
caminho.
O ESTRANHO (com simplicidade): A tua filha está
doente.
MATTERN. A doença dela não precisa de doutor.
A moléstia dela é preguiça , e essa curo-lha eu.
O ESTRANHO (solenemente): Pedreiro Mattern, vim
ter contigo como mensageiro!
MATTERN. E da parte de quem é a mensagem?
O ESTRANHO. Venho do Pai - e volto para o
Pai. Onde está a sua filha?
MATTERN. Que sei eu por onde ela anda? E que
me importam os filhos dele? Nunca se incomodou com
eles, de resto.
O ESTRANHO (com firmeza): Tens uma morta
em casa.
MATTERN ( vê Joaninha no caixão, aproxima-se
inteiriçado e mudo, e olha, murmurando): Onde arran-
jaste esses lindos vestidos? Quem te comprou o caixão
de vidro?

( Os do M 0RTÓRIO recomeçam a murmurar vio-


lenta e misteriosamente. Ouve-se várias vezes, pronunciada
com fúria, a palavra: «Assassino»).

MATTERN (baixo e a tremer) : Eu nunca te tratei


mal. Vesti-te e calcei-te. Dei-te o sustento. (Atrevido para
o ESTRANHO ): Que queres tu de mim? Que tenho eu
que ver com isto?
O ESTRANHO. Pedreiro Mattern, tens alguma coisa
a dizer-me?
134 A ASCENSÃO DE JOANINHA

MATTERN. E que tenho eu com isso? Quem te manda


andar a mandriar pelas estradas? Trabalha, que eu_ também
trabalho.
O ESTRANHO. Eu sou trabalhador.
MATTERN. Vagabundo é que tu és. Quem trabalha
não precisa de andar às esmolas.
O ESTRANHO. Eu sou trabalhador sem féria.
MATTERN. Vagabundo é que tu és.
O ESTRANH O (tímido, submisso, mas com certa
insistência): Eu sou médico, talvez precises dos meus
serviços.
MATTERN. Não estou doente, não preciso de dou-
tores.
O ESTRANHO (com voz trémula de comoção):
Pedreiro Mattern, pensa bem! Não precisas de me dar
água, que eu curo-te mesmo assim. Não precisas de me
dar pão para comer, que eu ponho-te são, assim Deus
me ajude!
MATTERN. Põe-te ao fresco! Segue o teu cami-
nho. Eu sou rijo e são, não preciso de doutores! Enten-
deste?
O ESTRANHO. Pedreiro Mattern, pensa bem!- Eu
lavo-te os teus pés. Dou-te vinho para beber. Dou-te pão
doce para comer. Põe o teu pé sobre a minha cabeça, e
mesmo assim eu te porei são e salvo, assim Deus me
ajude!
lvfATTERN. Ora agora vamos ver se te vais ou não.
E se não encontrares a porta, eu ta ...
O ESTRANHO ( em tom de advertência
grave) : Pedreiro Mattern, sabes o que tens em
casa?
136 A ASCEN SÃO DE JOANINHA

MATTERN. Só o que me pertence. Tudo o que


me pertence . E tu não me pertences. Segue o teu
caminho.
O ESTRANHO (com simplicidade): A tua filha está
doente.
MATTERN. A doença dela não precisa de doutor.
A moléstia dela é preguiça , e essa curo-lha eu.
O ESTRANHO (solenemente): Pedreiro Mattern, vim
ter contigo como mensageiro!
MATTERN. E da parte de quem é a mensagem?
O ESTRANHO. Venho do Pai- e volto para o Pai.
Onde está a sua filha?
MATTERN. Que sei eu por onde ela anda? E que
me importam os filhos dele? Nunca se incomodou com
eles, de resto.
O ESTRANHO (com firmeza): Tens uma morta
em casa.
MATTERN (vê Joaninha no caixão, aproxima-se
inteiriçado e mudo, e olha, murmurando): Onde arran-
jaste esses lindos vestidos? Quem te comprou o caixão
de vidro?
:I
;·I (Os do MORTÓRIO recomeçam a murmurar vio-
'I lenta e misteriosamente. Ouve-se várias vezes, pronunciada
com fúria, a palavra: «Assassino»).
1
1
MATTERN (baixo e a tremer): Eu nunca te tratei
mal. Vesti-te e calcei-te. Dei-te o sustento. (Atrevido para
o ESTRANHO): Que queres tu de mim? Que tenho eu
que ver com isto?
O ESTRANHO. Pedreiro Mattern, tens alguma coisa
a dizer-me?
138 A ASCENSÃO DE JOANINHA

(Toma-se mais violento o murmurar entre OS DO


MORTÓRIO; com mais frequência e mais raiva ouve-se:
«Assassino!» «Assassino!>>)

O ESTRANHO. Não tens nada a censurar-te? Nunca


a arrancaste do sono, alta noite? Nunca caíu ela como
morta às punhadas que lhe davas?
MATTERN (horrorizado, fora de si): Mata-me, mata-
me já ! - Que um raio do céu me parta, se eu tenho culpa .

(Relâmpago azulado e fraco, trovão longínquo) .

TODOS (em confusão): Uma trovoada! Assim no


meio do inverno?! Jurou falso ! O assassino jurou falso!
O ESTRANHO (insistente e bondosamente): Ainda
não tens nada a dizer-me, Mattern?
MATTERN (com medo abjecto): Quem tem amor aos
filhos, castiga-os. Eu só fiz bem a esta rapariga. Tratei-a
sempre como minha filha. Posso castigá-la, sempre que
ela o mereça.
AS MULHERES (avançam para ele): Assassino !
Assassino ! Assassino ! Assassino !
MATTERN. Enganava -me e men tia-me. Roubava-me
todos os dias.
O ESTRANHO Estás a falar verdade?

I MATTERN. Assim Deus me castigue...


(Neste mo- mento aparece entre as mãos posta s de JOANINHA
uma
primavera, que irradia um brilho verde amarelado . O pec.-
dreiro MATTERN arregala os olhos como doido para
aparição, tremendo em todo o corpo).
140 A ASCENSÃO DE JOANINHA

O ESTRANHO. Pedreiro Mattern, mentes.


TODOS (falando confusamente, em grande excitação):
Milagre!-Milagre!
PLESCHKE. A menina ... a menina- é- uma-
santa; ele jur ou- falso- e perd eu- corpo e alma ...
alma.
MATTERN (rugindo): Eu enforco-me! (Aperta as
mãos na cabeça. Sai).
O ESTRANHO (avança até ao caixão de JOANINHA
e fala dirigindo-se aos presentes; todos recuam ante a figura,
agora cheia de majestade): Não tenhais receio. (Inclina-se
e toma a mão de JOANI NHA, como que examinando-a aten-
tamente; diz cheio de mansidão) : A menina não morreu. -
Está a dormir. (Com profundíssima emoção e força con-
vincente): Joana Mattern, levanta-te!!! (Uma clara luz
auriverde enche o quarto. JOANINHA abre os olhos, ergue-
-se pela mão do ESTRANHO, sem contudo ousar olhá-lo de
frente. Sai do caixão e cai imediatamente de joelhos diante
do seu ressuscitador. Todos os presentes são tomados de
ri pânico. Fogem. O ESTRANHO e JOANINHA ficam sozi-
nhos. A capa parda cai dos ombros do ESTRANHO, que
fica numa túnica de branco e ouro).
O ESTRANHO (suavemente e com funda emoção):
Joaninha!
JOANINHA (extasiada e recolhida, curvando profun-
damente a cabeça, tanto quanto possível) : É ele.
O ESTRANHO. Quem sou eu?
JOANINHA. Tu.
O ESTRANHO. Dize o meu nome.
JOANINHA (cicia, trémula de veneração): Santo,
santo!
O ESTRANHO. Sei todas as tuas dores e sofrimentos .
142 A ASCENSÃO DE JOANINHA

JOANINHA. Querido, querido ...


O ESTRANHO. Levanta-te.
JOANINHA. O teu vestido é sem mácu la. E eu estou
cheia de ignomínia.
O ESTRANHO (pondo a mão direita sobre a cabeça
de Joaninha): Eu te liberto de tudo o que é vil. (Toca-lhe
de leve os olhos, depois de lhe erguer a face com suave vio-
lência): E assim eu dou aos teus olhos a luz eterna. Abrangei
sóis e mais sóis. Encerrai em vós o dia eterno desde a
alvorada ao sol-pôr, desde o sol-pôr à alvorada. Encerrai em
vós tudo o que brilha: mar azul, céu azul e campos verdes
por toda a eternidade. ( Toca-lhe nos ouvidos) : E assim eu
dou aos teus ouvidos que possam ouvir todos os coros jubi-
losos de todos os milhões de anjos nos milhões de céus de
Deus. (Toca-lhe a boca) : E assim eu solto a tua língua presa
e nela ponho a tua alma e a minha alma e a alma de Deus
· Altíssimo.

JOANINHA (tremendo em todo o corpo, tenta endi-


reitar-se . Mas não o consegue, como sob um peso ingente de
delícias. Abalada por soluços e fundo pranto, oculta a cabeça
no peito do ESTRANHO).

!
I
O ESTRANHO. Com estas lágrimas eu te lavo a alma
pó e martírio do mundo. Erguerei os teus pés acima das
estrelas de Deus .

(Acompanhado de música suave , acariciando com a


mão a cabeça de JOANINHA, o ESTRANHO diz o que se
segue. Enquanto fala, surgem à porta FIGURAS DE ANJOS,
MENINOS e MENINAS, grandes e pequenos; ficam tími-
dos à porta, vão-se atrevendo a entrar pouco a pouco , baloi-
çando turíbulos e enfeitando o quarto de tapetes e flores).
144 A ASCENSÃO DE JOANINHA

O ESTRANHO.

A bem-aventurança é um a linda cidade,


onde não têm fim a paz e a alegria.

(H arpas, primeiro baixo, depois alto e cheio).

São de mármore as casas, os telhados de ouro,


e das fontes de prata corre vinho louro ;
nas ruas brancas, brancas, . há flores espalhadas, das
torres soam sempre repiques de noivado . São verdes
as ameias batidas da alvorada, coroadas de rosas e
asas de borboletas.
Doze cisnes de leite navegam em redor
e ostentam vestidos harmónicos de penas;
ousados, erguem voo pelos ares floridos
entre aromas celestes vibrantes de canções.
Voam à volta, à volta, em bando majestoso, suas
asas no voo fazem música de harpas; olham
sobre Sião, sobre jardins e mares,
e vão deixando atrás de si véus verdejantes.
E lá em baixo anda gente de mãos dadas :
são os homens em festa no país celeste.
O mar largo, largo, é cheio de vinho rubro,
e nele mergulham os corpos resplendentes,
fundo naquela espuma e naquele brilho,
e a púrpura clara de todo os vai cobrir,
e ao saírem alegres da corrente,
estão lavados pelo sangue de Jesus.

(O ESTRANHO volta-se agora para os ANJOS, que


entretanto concluiram o seu trabalho. Aproximam-se com
146 A ASCENSÃO DE JOANINHA

alegria tímida, formando um semi-círculo à volta de


JOANINHA e do ESTRANHO).

Trazei o linho fino, anjos do céu!


Vinde cá, meus queridos, minhas rolas,
tapai o corpo fraco e descarnado
que o frio fez tremer e a febre ressequiu;
devagar, não firais a carne dolorida!;
e, voando suave e sem mexer as asas,
levai-a sobre a verde erva dos prados,
atravessai com ela o brando luar das luas ...
P'lo manso aroma das flores do paraíso,
'té que a banhe em deleite a frescura dos templos .

(Pequena pausa).

E preparai-lhe então, enquanto ela repousa,


em bacia de mármore, um banho misturado
de água dos montes, leite e vinho purpurino,
e assim fique pura de toda a podridão.
Quebrai ramos das árvores em flor:
de jasmins e lilás, orvalhados da noite,
e que a húmida carga das suas gotas claras
caia sobre ela em chuva fresca e perfumada.
E com panos de seda branda, como lírios,
enxugai-lhe seu corpo membro a membro.
Oferecei-lhe vinho em taça de ouro,
espremei dentro dele sumo de frutos: -
Morangos quentes do calor do sol,
amoras doces e de sangue rubro,
pêssegos de veludo, ananases de oiro,
148 A ASCENSÃO DE JOANINHA

laranjas brancas e amarelas; trazei tudo


em salvas largas de metal luzente.
Que o fausto e a abundância da manhã
novíssima lhe encha o paladar e o peito.
Seu olhar se extasie na pompa dos salões.
Borboletas de fogo adejem por sobre ela
junto aos altos tetos verdes de malaquite.
Sobre cetim 'stendido ela caminhe
entre jacintos e túlipas ... e a seu lado
se agitem largos leques de palmeiras verdes,
e tudo se espelhe no brilho das paredes.
O pobre olhar se espraie em campos de papoulas,
onde os anjos do céu brincam com bolas de ouro
,. aos raios matinais da luz recém-nascida;
e embalai seu peito em música de amor!

OS ANJOS (cantam em coro):

Em voo manso e brando te levamos


para o reino de Deus onde moramos.
Para o reino de Deus onde moramos (21).

(A cena escurece enquanto os anjos cantam. Ouve-se,


através do escuro, cantar cada vez mais fraco e mais lon-
gínquo. A cena ilumina-se de novo, e vê-se outra vez o
quarto do asilo; onde tudo está como antes da primeira apa-
rição. JOANIN HA está de novo na cama, outra vez criança
pobre e doente. O DR . WACHLER inclinado sobre ela com
o estetoscópio; a DIACONISA, que lhe segura a luz,
observa-o angustiada . Só agora é que o coro se cala por
completo) .
150 A ASCENSÃO DE JOANINHA

DR. WACHLER ( endireitando-se): Tem razão.


IRMÃ MARTA (pergunta ): Morta?
DR. WACHLER (sombrio e com um aceno de cabeça):
Morta.

Cai o pano.

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