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Dissertacao - IMAGENS DO CORPO E IMAGENS DO EU - Sacks - Ramachandran - Damasio
Dissertacao - IMAGENS DO CORPO E IMAGENS DO EU - Sacks - Ramachandran - Damasio
RIO DE JANEIRO
2007
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C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E
U E R J / R E D E S I R I U S / C B C
S587 Silva, Sérgio Gomes da.
Imagens do corpo e imagens do eu: Ramachandran, Sacks e Damásio / Sérgio
Gomes da Silva. – 2007.
121f.
Orientador: Jurandir Freire Costa.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Medicina Social.
1. Ramachandran, V. S., 1951- – Teses. 2. Damásio, Antonio – Teses. 3. Sacks, Oliver W.,
1933- – Teses. 4. Imagem corporal – Teses. 5. Fenomenologia – Teses. 6. Neurologia –
Teses. I. Costa, Jurandir Freire, 1944- II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Medicina Social. III. Título.
CDU 391.6
____________________________________________________________________________________
2
AGRADECIMENTOS
A Benilton Bezerra Jr., Francisco Ortega e Monah Winograd, por aceitarem a fazer
parte da Banca;
Aos amigos e colegas do curso, em particular a Claudia, Daniela, Rachel, Igor, André,
Paula, Elaine e Camilo;
Aos novos amigos e amigas que souberam suportar minha ausência, mas que
contribuíram com sua força para o final dessa dissertação, Márcia, Ercy, Ieda, Rodrigo,
Miriam e Suely, minha gratidão para com vocês não acaba nunca, particularmente à
Vera, amiga e professora de francês, que me ajudou em parte das traduções contidas
nessa dissertação;
Aos velhos amigos da terra nem tão distante, que ficaram na torcida pela concretização
dessa Pós-Graduação, sobretudo Reivan, Márcia, Tatiana, Wilma, Lourdinha, Roberto,
Júnior, Wellington, Arlete, Valdir, e Robert;
Ao querido amigo Diomedes Paulo, in memorian, você não sabe como me fez falta no
final desse percurso, meu amigo;
E finalmente a minha família, que suportou bravamente meu êxodo para o Rio de
Janeiro.
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RESUMO
ABSTRACT
To study body-image today is to standing out its importance from the perception of
body image disfunctions. However, the medical technology supplied to neurology and
to neuroscience gave new approaches to the understanding the body-image disfunctions
verifying all the correlated cerebral roots to the disfuctions of body-image. Without the
mental or physical representation of our body, we would not obtain our sense we are
one in the world. When the body-schema enters in conflict with the "body-image ", we
can find what we call distortions of body-image". This approach has been placed in
relief for new disciplines wich the brain become a new agent of our personal identity as
brainhood (cerebral subject). To this point of view, we aims to analyze the origins of the
body-image, identity, subjectivity and self image from three distinct approaches:
Ramachandran and the their "phantom limbs", wich body image is understood as a brain
map; Oliver Sacks from a neuro-phenomenology of the self and António Damásio from
the neuro-anatomy ou neuro-biology of emotions and feelings and its correlation with
the corporeality or embodiment. First of all, to analize these differents approaches is
important because we can leave a reducionist, materialistic and localizacionist toughts,
to the new disciplines whom profit has notoriety in the last years; second, for
construction of new metaphors or narratives of the mind and self in the field of body-
image, and finally, to show the theoretical responsibility that found out in each one of
these respective discipline.
Francis Crick
Citado por John Horgan
O fim da ciência
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 08
SENTIMENTOS..................................................................... 70
corporais...................................................................................................................... 81
INTRODUÇÃO
comando motor.
França, através do médico e cirurgião francês Ambroise Pare, que percebeu a existência
(EUA), Weir Mitchell demonstrou que a imagem corporal, ainda sem se referir a este
fenômeno como tal, pode ser mudada sob tratamento ou em condições experimentais.
Mas foi o neurologista Henry Head do London Hospital quem primeiro usou o termo
“esquema corporal” para se referir a uma construção da imagem do corpo que temos de
nós mesmos. De acordo com Head “cada indivíduo constrói um modelo ou figura
consciente de nossos corpos é somada ao nosso modelo corporal e torna-se parte deste
“schemata”.
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confusão de conceitos teóricos e metodológicos nos vários campos em que ele tem sido
aplicado.
indivíduo separado de outras pessoas com pensamentos privados, com uma alteridade e
identidade (como um self). Aliás, ele é o nicho da própria identidade e também se refere
seu próprio corpo como ora como uma imagem, ora como um esquema corporal –
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através de sensações proprioceptivas. É também ter a certeza que o corpo tem uma
reagir a estímulos do meio externo (o ambiente) e não tem nenhuma referência ao “eu
corporal”.
Por outro lado, a “imagem corporal” está ligada a um fato mental com
corporal”.
“imagem do corpo” “não é”: Primeiro, imagem corporal não é um “órgão corporal”,
mas uma integração entre um determinante fisiológico e psicológico; ele não é uma
estrutura nem neurológica nem mental, mas ambos. Segundo, a imagem corporal não é
uma imagem tal como uma fotografia, um diagrama, uma tatuagem ou um retrato de si
tipos, tais como conversar ou andar. Por fim, a imagem corporal não é uma pessoa na
cabeça ou na mente, ou ainda uma entidade psicológica, tal como uma espécie de “ego
útil, mas carece de muitas limitações. A imagem do corpo tal como o ego corporal é
aquela defendida por Costa (2004a), qual seja, um fato mental com as qualidades de
outro que lhe é exterior solicitando ao sujeito a se representar. A imagem corporal seria
privada porque se refere à existência do eu, que lhe é própria, auto-referida, impessoal
tal qual um “self”, pois não existe imagem corporal sem um eu (self) que a reconheça
como sendo sua propriedade. Por fim, a imagem do corpo seria representacional,
consciente ou inconsciente.
da imagem do corpo.
por correção estética cirúrgica, além das ansiedades de exposição (síndrome do pânico e
modo geral subsídios para a compreensão de outros distúrbios de imagem corporal tais
(crença de que os parentes foram substituídos por outros). Essa perspectiva parte do
alterados de consciência.
identificado como sede pulsional dos conflitos e sofrimentos psíquicos e sugere uma
corporal” limitado pelo nosso envelope corpóreo e para o ser humano, o corpo nunca é
1
A idéia de corpo físico deve ser entendido mais próximo do conceito de “corpo vivido” ressaltado por
Merleau-Ponty e na forma conferida por Costa (2004).
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necessitamos desenvolver uma imagem e um esquema corporal que são mediados pela
tal como ressaltado por Costa (2004a, 2004b) e Campbell (1998), ou seja, quando o
sujeito” apela constantemente a um outro que o referencie. Porém, apelar para um outro
íntima relação com a identidade, surgiu uma nova figura no cenário contemporâneo,
defende a idéia de um “homem neuronal”, uma noção que implica nas bases
apontada por Gerald Edelman em seu livro “A biologia da consciência”, que defende o
das neurociências evidencia três perspectivas: uma teórica, uma prática e outra social. A
além delas de modo a fazer com que a linguagem das neurociências chegue à linguagem
por sua vez, visa apenas o progresso de doenças neurológicas e a descoberta de aspectos
neuropatológicas.
único órgão do corpo que precisamos para ser nós mesmos, e se tornou o órgão
logo existo”, para “tenho um cérebro, logo, sou!”. De acordo com Vidal, o cérebro
define a pessoa que nós somos como um “sujeito cerebral” (brainhood). Mas, como ele
mesmo tenta apontar, a idéia de que somos essencialmente nosso cérebro precede o
essa propriedade que o define. Por sua vez, a figura do sujeito cerebral foi determinada
2005b; Ehrenberg, 2004) e tem transformado o futuro das ciências médicas, a exemplo
fundamental, haja visto que não pode existir um cérebro sem um corpo, e esse corpo,
não pode existir sem uma relação com o ambiente. Assim, se a década de 90 do século
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passado foi considerada como a década do cérebro, o século XXI tenderá a ser, na visão
órgão do self que alguns autores cada vez mais tem chamado atenção para essa
transformação.
pessoal, aquilo que nos personaliza, aquilo que nos individualiza, é representado hoje
pela nova disciplina do século XXI como sendo a “ciência do cérebro” exposta nas mais
como Kant, Schopenhauer entre outros, como uma decorrência dos estudos frenológicos
de Joseph Gall (Hagner, 2003), ao passo que tem enfatizado o sujeito cerebral como
sendo um “homo cerebralis”. Por outro lado, Jean-Pierre Changeaux (1997) tem
referido que esse mesmo “sujeito cerebral” pode muito bem ser compreendido como
sendo o “homem neuronal”, uma noção que implica nas bases materialistas da
identidade pessoal.
recusa da idéia de que há duas substâncias no mundo e de que tudo o que há nele é
material. Ele é freqüentemente usado como sinônimo do fisicalismo tal como defendido
2
Para uma discussão sobre o tema remeto o leitor a Ehrenberg (2004), Vidal e Ortega (2004) e Vidal
(2002; 2005a; 2005b).
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pela filosofia da mente, que afirma que tudo o que existe no mundo espaço-temporal é
teoria da identidade, que propõe que todo evento mental é idêntico a algum evento ou
como estados mentais, mas um construto físico encerrado nos dispositivos cerebrais. A
teoria da identidade por sua vez, apresenta-se sob duas versões para os adeptos do
materialismo: uma é a “teoria da identidade type-type” a qual diz que todo evento
serem físicos, eles não podem ser reduzidos a uma descrição fisicalista, eles precisam
pela neurologia. A segunda teoria é defendida por Davidson que apresenta uma teoria da
3
Para uma discussão sobre o tema, ver também Ferreira (2000; 2006).
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mente e o corpo, entre a mente e o cérebro, entre o estado objetivo e o estado subjetivo?
fenômeno dos membros fantasmas e sua relação com os distúrbios da imagem corporal.
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poderá se verificar, não despreza nem a construção da imagem do corpo a partir de uma
representação deste no cérebro, nem muito menos a partir de conexões neuronais tal
como defende Damásio, porém propõe que não se despreze a interação do corpo com o
ou neuro-fenomenológico.
do corpo e do eu, ressaltando suas análises sobre a neuro-anatomia das emoções e dos
sentimentos em sua relação com a corporeidade, para, por fim, apontar suas teses acerca
suas teorias.
clínica tem requerido constantemente uma resposta diante da cultura somática. Assim, o
que compete ao tema proposto, bem como ressaltar sua importância na atualidade no
que confere à clínica e dos estudos dos distúrbios da imagem do corpo e do eu.
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Por que mostrar essas abordagens e sua correlação? Ora, de acordo com
disciplinas médicas que tem ganho notoriedade nos últimos anos; segundo, para novas
CAPÍTULO 1
William James
A consciência do membro perdido
“Investigar não apenas como novas conexões emergem no cérebro adulto humano,
como também quais informações de diferentes módulos sensoriais, como toque,
propriocepção e visão interagem. O estudo de membros fantasmas também deu uma
oportunidade de entender exatamente como o cérebro humano constrói a imagem do
corpo e como essa imagem é continuamente atualizada em respostas às mudanças
sensoriais” (Ramachandran & Hirstein, 1998, p. 1604).
relação entre as questões subjetivas que nos cerca e uma espécie de gênese ontogênica
depressão, entre outros, fenômenos esses que são eminentemente estudados através de
resolver “o mistério de como várias partes do cérebro criam uma representação útil do
mundo externo e geram a ilusão de um ‘eu’, uma individualidade, que resiste no espaço
e no tempo” (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p. 35). Não é apenas entender como o
cérebro trabalha, mas segundo o autor, esse estudo pode ajudar a compreender e tratar
pacientes com membros fantasmas lhe deu três oportunidades únicas: primeiro
demonstrou uma “plasticidade neural” em cérebros humanos adultos nunca antes vista,
a não ser com advento da tecnologia de imageamento do cérebro. Segundo, a partir das
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De acordo com Berlucchi & Aglioti (1997, p. 560), lesões cerebrais podem afetar profundamente a
forma como o corpo é percebido e representado, e em alguns casos, podem ser percebidos como
desordem do domínio cognitivo, tais como a linguagem ou atenção espacial. As lesões da consciência do
corpo (autotopagnosia – incapacidade de reconhecer e localizar as diversas partes do corpo, é provocada
por lesão orgânica cerebral e também denominada de agnosia da imagem do corpo; agnosia do dedo e
desorientação espacial esquerda-direita), em sua grande maioria, são causadas por lesões na parte
posterior esquerda do lobo parietal. Outros distúrbios podem afetar alterações específicas do esquema
corporal.
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Anorexia nervosa, como sabemos, é um distúrbio alimentar associado à imagem do corpo na qual o
sujeito não se reconhece como magro e se recusa a alimentar-se, causando perda de massa corpórea,
podendo em casos graves, levar à morte. Apraxia refere-se à incapacidade de executar movimentos
apropriados a um determinado objetivo do corpo, desde que não haja paralisia ou outros distúrbios
corporais, sejam eles sensitivos ou motores. Já a distonia focal, também conhecida como “câimbra do
escrivão”, está relacionada mais ao ato de escrever, mas pode ser caracterizada por contrações musculares
involuntárias desencadeadas por determinados movimentos manuais – escrever, tocar piano, digitar, etc.
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reiterando a teoria de que há no cortex cerebral um completo mapa corporal sem o qual,
dos membros fantasmas, e daquilo que ele reforçou como sendo a “plasticidade
neuronal”.
século XVI pelo cirurgião francês Ambroise Pare, a partir da perda do braço direito de
braço pode existir mesmo após ter sido retirado, por que a pessoa inteira não poderia
sobreviver à aniquilação física do corpo? Não seria esta a prova definitiva de que o
"espírito" continuava existindo muito tempo após de ter se livrado de sua carcaça?
Outra prova pôde ser encontrada através dos relatos de Lord Nelson, que
após ter perdido um braço durante um ataque a Santa Cruz de Tenerife, experienciou
dor no membro fantasma, incluindo uma estranha sensação de dedos tateando a palma
da sua mão. A emergência dessas sensações levou o Lord Nelson a proclamar que ele
tinha a prova direta da existência da alma, pois, mais uma vez, se um braço pode resistir
Não obstante, a primeira descrição clínica do membro fantasma foi feita por
1872. A palavra “membro fantasma” foi introduzida por Weir Mitchell ao verificar a
associação entre a posição perdida do membro e sua atual posição, tais como ocorre
todos esses casos os pacientes reconhecem que as sensações não são verídicas, eles
experimentam uma ilusão e não um engano (Ramachandran & Hirstein, 1998, p. 1604).
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A “descoberta” dos membros fantasmas, para Oliver Sacks, está diretamente relacionada com o campo
da neurologia na virada do século enquanto ciência médica. Segundo o autor, Weir Mithell registrou
vários episódios de “membros fantasmas” após a Guerra Civil Norte-Americana durante a década de
1860, mas na virada do século, as descrições dos membros fantasmas tornaram-se raras, visto que não
havia lugar para esse fenômeno no campo da neurologia. Conforme Sacks (2003).
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Conjunto de nervos que saem da medula espinhal e cujas raízes dão origem ao tronco superior, ou seja,
são os nervos responsáveis pelo movimento e sensibilidade das mãos, dos braços e dos dedos.
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(1) alguns pacientes preservam a consciência do membro depois de tê-lo perdido, outros
não; (2) em alguns casos, a sensação sempre aparece em uma posição fixa, em outros,
sua aparente posição muda e, por fim, (3), a posição pode mudar de acordo com algum
vontade pode fazer esta mudança; em raríssimos casos o desejo de mudar pareceria cada
vez mais impossível. Porém, a consciência do membro perdido varia de acordo com
vezes algumas doenças podem afetar o cérebro fazendo-nos perder o sentido de algumas
Descartes chega até mesmo a fazer referências, de acordo com Leder (1990), às
sensações de dor na mão e no braço de uma garota que tivera o membro amputado.
Mas a neurologia só veio dar mais alguns passos adiante após a década de
8
Oliver Sacks refere-se às pesquisas desenvolvidas por Luria e colaboradores através da investigação dos
hemisférios cerebrais, que resultou nos livros “The man with a shattered world” e “Higher cortical
functions in man”, referidos por ele no seu livro “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”
(Sacks, 1997).
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Ora, a neurologia clínica tem sido uma ciência mais descritiva do que
experimental. Ela caminhou alguns passos a mais após os estudos desses “fantasmas” e
cérebro, reforçados nos últimos anos pelos estudos das neurociências e pelas técnicas de
imageamento do cérebro.
do cérebro com várias partes do corpo distribuídos e mapeados no córtex cerebral, pelo
cerebral.
do corpo: pernas, pés, mãos, braços, dedos, ou ainda órgãos internos, e persistirá na
mama, partes do rosto ou em vísceras. Por exemplo, alguém pode ter sensação de
(Ramachandran & Hirstein, 1998). Também tem sido notada ereções ou orgasmos em
removido cirurgicamente; ainda tem sido notado pacientes com cólicas de menstruação
fantasma propriamente dito, mas os sujeitos não possuem domínio sobre ele – o cérebro
não reconhece que a imagem corporal mudou e o membro tem autonomia sobre o corpo
do sujeito, ou seja, o membro fantasma ganha vida própria, pode segurar um objeto com
as mãos ou os dedos das mãos, fazer gestos ou afagar um animal ou um ente querido.
dor fantasma-, que torna a experiência quase que insuportável para quem as sente.
9
Um bom exemplo disso pode ser extraído da literatura, do livro “Johnny vai à guerra”, no qual o
personagem título, após sofrer um grave acidente no campo de batalha, perde os membros superiores e
inferiores. Em seu drama, ele passa pela experiência dos “membros fantasmas”: "De repente fez uma
coisa curiosa que há meses não fazia. Começou a estender a mão direita para apanhar a coisa pesada que
haviam pendurado nele e pareceu que quase a tinha agarrado com os dedos até que compreendeu que não
tinha braço a esticar nem dedos para pegar" (Trumbo, 2003, p. 151).
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que perdera o braço esquerdo logo abaixo do cotovelo em um acidente de carro. Alguns
meses depois, Tom ainda tinha a nítida sensação do braço, podendo mexer os dedos
ausentes ou estender o braço ausente para pegar objetos ao alcance da mão, ações que
estava ali é um exemplo clássico de membro fantasma – um braço ou uma perna que
subsiste indefinidamente na mente do paciente muito tempo depois de ter sido perdido
48).
Algum tempo depois, Tom passa a sentir dores no braço fantasma e este é
um dos mais sérios problemas a ser tratado: como aliviar a dor de um membro que não
existe? Não seria este um momento para compreender como o cérebro nega a falta do
formas: na primeira, o cérebro não aceita a perda do membro e leva algum tempo para
adaptar-se à nova imagem do corpo. Esta seria, portanto, uma prova de que a construção
segundo, os nervos seccionados na altura do coto (parte onde foi amputado o membro)
idéia é defendida por muitos neurologistas, mas não por Ramachandran. Por fim, a
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Muitos outros relatos na literatura médica reforçam que as experiências do “fantasma” pode se dar no
campo dos órgãos do sentido (visual, auditivo ou olfativo). Porém, os fenômenos que mais chamam a
atenção é o fenômeno da “dor fantasma” provocada por movimento do membro ausente. Conforme
Berlucchi & Aglioti (1997).
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imagem do corpo seria determinada através dos nossos genes que vão se moldando ao
longo da vida, podendo ser modificado pela experiência pessoal e seria o responsável
corpo no córtex cerebral humano a partir das descobertas de Wilder Penfield, que
algumas vezes, através de traços deformados para indicar que tais partes do corpo têm
mapa genérico de várias partes do nosso corpo sendo o homúnculo, portanto, um mapa
cérebro possui de discriminação sensorial e sua importância motriz referente a cada uma
das partes de nosso corpo visto que ele está distribuído ao longo de todo o córtex
visto que ele é uma máquina sensóriomotora, ou seja, possui a função de discernir os
estímulos das respostas, de decidir, tomar decisões e etc., cuja representação corporal se
a partir de experimentos feitos com seres humanos durante cirurgias realizadas pelo
canadense Wilder Penfield. Nessas cirurgias o cérebro de alguns sujeitos fica exposto
sob anestesia local e determinadas regiões do cérebro eram estimuladas por Penfield
com um eletrodo que lhes perguntava o que sentiam. O resultado era a produção de
“Homúnculo de Penfield” estão muitos próximas uma das outras, muito embora elas
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Recentes avanços feitos por neuroimageamento do cérebro MEG (magnetoencefalograma) tem sido
possível com o advento da grande formação de magnômetros e com a compreensão da física e da
matemática das medidas da atividade elétrico-cortical. Esses avanços têm seguido por uma pequena
localização de menos de 3mm de processamento, e tem se obtido um detalhoso mapa sensório-somático
dos mapas das mãos, face, e de muitas outras partes do corpo. Ele se baseia no princípio de que, se você
tocar diferentes partes do corpo, a atividade elétrica localizada no mapa de Penfield pode ser medida
como mudança em campos magnéticos do couro cabeludo. Com o MEG é possível mapear toda a
superfície do cérebro de qualquer pessoa e há poucas variações de pessoa para pessoa (Ramachandran &
Blakeslee, 2004, p. 98).
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encontra-se próximo à mão e ao polegar, que por sua vez encontra-se próximo à área da
face, seguido da área dos dentes, língua, faringe e do abdômen, do mesmo modo como o
pé encontra-se próximo aos órgãos genitais, ao passo que os lábios e a face encontram-
sua perna esquerda, relatando que, a cada experiência sexual, sentia ereções e orgasmos
de determinadas partes do corpo. "Se uma pessoa perde uma perna e depois é
não deveria ser a prova mais do que irrefutável da qual pontuou a psicanálise desde
Freud, da existência dos fetiches por pés? Pode-se notar aqui uma correlação direta feita
pelo pé como substituto do pênis” passa ao largo das considerações feitas por
(1927)
mapa cortical identificado por Penfield chama a nossa atenção pelas conclusões do
médicos demonstram que entre 90 e 98% das pessoas vivenciam o membro fantasma
após a perda de alguma parte do corpo, principalmente se houver dor local antes da
Talvez porque elas ainda não tenham construído totalmente uma imagem concreta do
corpo. Daí, portanto Simmel (1962) relatar que os membros fantasmas foram
encontrados na ordem de 20% em crianças amputadas com dois anos de idade, em 25%
75% em crianças entre 6 e 8 anos de idade, e em 100% com crianças acima dos 8 anos
de idade.
encontrados ainda em pessoas que nasceram sem membros. "A ocorrência de fantasmas
em pessoas que nasceram sem membros obviamente não pode ser devido a um
1998, p. 1604).
algumas de suas hipóteses: Mirabelle Kumar é indiana, tem 25 anos e nascera sem
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braços. Possui apenas dois cotos pendentes na altura dos ombros cuja análise
posterior do braço, mas não havia sinais do osso rádio ou ulna (osso que forma o
antebraço). Não obstante, Mirabelle possuía sinais rudimentares de unhas, mas não
havia sinais de ossos da mão. Apesar dela usar próteses para os braços menores do que a
maioria dos pacientes, ela dizia sentir seus braços fantasmas. As próteses dos braços
eram menores do que o necessário, segundo ela, porque seus “braços fantasmas”
paciente referiu não balançar os braços como a maioria das pessoas, pois seus “braços
paciente houvesse perdido os braços depois da infância, visto que o cérebro dela teria
existiria um feedback dos sinais motores para o cérebro. Mas no caso de Mirabelle, as
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António Damásio também se refere à redução dos membros fantasmas ao longo do tempo. Segundo ele,
alguns indivíduos que sofrem a amputação do membro e sentem o “fantasma”, relatam que o tamanho do
membro varia com o tempo. De acordo com Damásio, essa sensação de redução do membro fantasma
está intimamente ligada à memória do membro perdido. “É obvio que esses doentes possuem uma
memória do seu membro, ou não seriam capazes de formar uma imagem dele em suas mentes. No
entanto, com o tempo, alguns doentes podem experienciar uma redução do membro fantasma, o que,
aparentemente indica que a memória – ou sua reprodução na consciência – é passível de revisão”
(DAMÁSIO, 1996, p. 141).
34
uma paciente devia ter sido estabelecido parcialmente pelos seus genes e não ser
adquirida, ele revela o quão dependente estaria de um certo “fisicalismo” ao afirmar que
“cada um de nós tem uma imagem que pode sobreviver indefinidamente, mesmo em
72), ou seja, se a sensação do fantasma existe em alguém que nascera sem os membros,
13
Gallagher (et all.) (1998) aponta para a hipótese genética de Ramachandran ao investigar a presença de
membros fantasmas em crianças recém nascidas. Para eles, um grande número de estudos tem sugerido a
existência de membros fantasmas em sujeitos que sofreram ausência congênita de membros, evidenciados
pelo esquema corporal inato. Os “fantasmas aplásicos” (aplasic phanton), isto é, a presença de membros
fantasmas desde o nascimento, foi encontrada em 17% em 30 casos estudados e indica um dos aspectos
do esquema e da imagem corporal. Há duas hipóteses para a ocorrência desses fantasmas: a primeira diz
que os “fantasmas aplásicos” são baseados na existência de um circuito neural específico associado com
esquemas motores inatos aos membros, como a matriz neural (neuromatrix). A segunda defende a idéia
de que os “fantasmas aplásicos” são modificados por um mecanismo que envolve a reorganização de
representações neurais do membro perdido com uma complexa rede envolvendo estruturas corticais e
subcorticais, as quais Ramachandran denominou de “plasticidade neural ou cortical”. De acordo com os
autores “se na aplasia, o próprio braço não se desenvolve, as representações correspondentes ao
desenvolvimento neural não são reforçadas pelo movimento ou pela experiência tátil que eles necessitam
para o seu desenvolvimento normal e completo. Na falta de um reforço experimental, eles deterioram em
alguns graus e são deslocados ou dominados por neurônios vizinhos, estímulos que podem gerar a
experiência do membro fantasma. [...] A primeira hipótese faz referência às representações neurais e a
rede nos córtexes pré-frontal, pré-motor e motores, tanto quanto em estruturas sub-corticais, e indica um
esquema motor inato [grifos nossos]. Isso explica o papel de esquemas motores específicos (...) na
formação do membro-fantasma. (...) A segunda hipótese, que faz referência à reorganização neural,
expressa mais drasticamente as mudanças no córtex somatosensorial, mas provavelmente é uma parte
dela ou envolve a mais estendida matriz neural, correspondente aos aspectos da experiência fantasma
associada com a imagem do corpo” (Gallagher, et all., 1998, p. 59-63).
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fundamenta, ainda que muito rapidamente, a necessidade da visão para que essa
braço, uma perna, um dedo da mão ou do pé? Haveria então, uma codificação genética
do nosso corpo encerrado em nosso cérebro, formatada tal qual um disco rígido, para
que passássemos a dizer que tal e qual parte do corpo é um braço ou uma perna senão
por nos fazer reconhecer nosso corpo? Nossos genes? Nossos neurônios? Nosso
cérebro?
diz que ela não poderia ter construído as imagens dos seus braços no cérebro desde a
infância porque ela não havia “vivido a experiência de ter braços”, portanto, haveria
apenas uma provisão visual para que essas referências passassem a existir. O
neurologista, porém, não caminha a passos largos, e deixa de investigar, por exemplos,
outros pacientes que nasceram sem braços e ao mesmo tempo não teria a visão como
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Não encontrei, na literatura pesquisada, nenhum dado referente a pacientes com deficiência visual e
com membros fantasmas nem desde o nascimento, nem que tenham perdido algum membro após a perda
da visão. Se a incidência de membros fantasmas fosse a mesma em pacientes cegos, caberia questionar se
não haveria de fato uma correlação direta entre uma base genética da percepção do membro fantasma e a
construção da imagem do corpo. Em nenhum momento, Ramachandran questiona a aquisição do membro
fantasmas através da interação com o meio em pacientes que nasceram sem membros.
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cérebro, de modo que este pode se readaptar às mudanças sofridas pela imagem do
Ramachandran et all., 1996; Ramachandran, 1994; Northoff, 2001; Xerri, 2003). Essa
tese é defendida por outros autores, os quais afirmam que a representação cortical do
membro sofre alteração após a amputação de modo que o cérebro aprende a lidar com a
nova imagem do corpo devido a uma reorganização da rede neuronal15. Notem que esse
neuronais ou corticais com a imagem do corpo (Northoff, 2001; Knecht et all., 1998;
córtex motor na parte frontal do cérebro continuam a enviar sinais para os músculos do
“não sabe” que o membro se foi. Muito provavelmente esses comandos do movimento
15
Paqueron (2003) e colaboradores também investigaram a capacidade que o cérebro tem de se readaptar
às mudanças no corpo a partir do evento dos “membros fantasmas”. Para eles, pacientes com lesões no
nervo periférico ou no “cordão espinhal” (spinal cord) freqüentemente relatam distorções relativas à
posição, forma, textura ou temperatura do corpo das áreas afetadas. Seu estudo sobre a fenomenologia das
distorções da imagem do corpo induzida por anestesia regional mostrou que a percepção e consciência da
imagem do corpo é construída por diferentes “modelos plásticos” na tentativa do cérebro em se readaptar
às mudanças ocorridas no corpo, assim como sublinhou a contribuição da atividade aferente periférica
para sustentar e unificar a imagem do corpo. Graziano (1999) procurou investigar o papel da visão e da
propriocepção na representação neuronal do membro perdido demonstrando como a posição do braço é
representada no cérebro na região do córtex pré-motor de macacos através da estimulação da
convergência visual e proprioceptiva em alguns neurônios de seus cérebros, provando que os neurônios
“responderam positivamente” quando foram estimulados juntamente com o campo visual no cérebro de
macacos. Berlucchi & Aglioti (1997), por sua vez, já haviam ressaltado a importância da visão em
consonância com o esquema corporal em paciente que perderam algum membro do corpo. Por fim,
Pavani (2000) e colaboradores buscaram demonstrar como o campo visual é necessário na localização
tátil do corpo.
37
são simultaneamente monitorados pelos lobos parietais que afetam a imagem do corpo.
membro ausente, não há feedback do membro fantasma, é claro, mas a monitoração dos
comandos motores pode continuar a ocorrer no lobo parietal, e assim o paciente tem a
perda de uma parte do corpo, e na tentativa de se readaptar, passa a organizar uma nova
nova imagem do corpo conforme pode ser observado na figura 2. Nesta, podemos
esquerdo foi amputado abaixo do cotovelo. A cor vermelha (no canto esquerdo) indica a
área da face; à direita, a cor verde indica a área da mão e em azul (à esquerda, próximo
que a área da mão (em verde) está faltando no hemisfério direito e está sendo ativada
cerebral tal como apontado por suas recentes descobertas nesta última década
38
Ramachandran, 2003).
imagem do corpo na sua rede neuronal. Esses achados, mais uma vez, estão muito
membro perdido. Por exemplo, ao se amputar um braço, o rearranjo neuroral das áreas
do cérebro podem migrar para áreas próximas, tal como o rosto. No caso do paciente
correspondia à área da região genital, o que fez com que o referido paciente passasse a
por magnetoencefalografia e
ressonância magnética.
da mão na região posterior da face. Esse mapa permaneceu estável durante os exames
paciente V. Q. uma vez teve seu braço esquerdo amputado, as áreas correspondentes da
imagem do corpo para o braço migraram para a área correspondente à face. A partir do
Mapa de Penfield, foi possível verificar quais áreas correspondiam ao braço, mão e
depois da amputação. Notem que as regiões do lado esquerdo do rosto de V.Q. eliciou
amputação. A região marcada com “T” sempre evocou sensações no polegar fantasma.
A letra “P”, no lábio inferior, indica o dedo mínimo; “I”, no lábio superior, refere-se aos
dedos indicadores, e “B”, entre o olho e a orelha direita, refere-se à ponta do polegar
Figura 3: Paciente V. Q.
40
cérebro para sua utilidade e conveniência (Ramachandran & Armel, 2003, p. 23-1).
Mostrarei agora, como essa hipótese pôde ser testada, a partir de dois experimentos: o
primeiro, realizado através de uma caixa de espelho, e o segundo, feito com uma mão de
A caixa de espelho nada mais é do que uma caixa feita em madeira, com
abertura para duas mãos, sendo que um espelho é colocado verticalmente entre as duas
aberturas. O paciente que apresenta dor na mão fantasma, é incitado a colocar o braço e
a mão dentro da caixa e posicionar a mão ausente na mesma posição que a outra. A
partir de então, através do reflexo da mão no espelho, cria-se a ilusão de que a mão
amputada está presente (Ramachandran, 1994, 1996, 1998, 2000, 2003, 2004).
referiram ao desaparecimento das dores. O experimento pôde ser refeito semanas mais
tarde com os olhos fechados, de modo a haver um controle daqueles pacientes que
que produz uma mudança na imagem do corpo a partir de uma ilusão de ótica. As
41
visuais mostrando que um braço ou mão ou músculos estão se movendo quando o braço
já não mais existe, o cérebro simplesmente nega o envio desses sinais e tenta solucionar
Figura 4: A Caixa de
espelhos.
o neurologista, são importantes por duas razões: primeiro eles sugerem, ao contrário da
figura estática dos mapas cerebrais dados por neuroanatomistas, que a topografia do
qualia - sensações subjetivas) para a atividade de mapas cerebrais e testar algumas das
42
por engenheiros de computador precisa ser substituído por uma visão mais dinâmica do
durabilidade, é na verdade um construto interno transitório, uma mera concha que nosso
Ramachandran, 2000).
cérebro.
borracha correspondente à sua mão verdadeira. Uma divisória é colocada entre a mão
real e a mão falsa, de modo que o sujeito tem a visão da mão verdadeira encoberta. A
partir de então, o experimentador aplica uma série de batidas leves na mão falsa e na
mão verdadeira em perfeita sincronia. Logo, o sujeito passa a sentir a ilusão de que as
sensações de toque são sentidas na localização espacial da mão postiça como sendo dele
e não na mão real. Em um segundo momento, a mão real é escondida tal qual no
acariciam e dão tapas na mesa em precisa sincronia por alguns minutos na mão real.
com a mão real. Os autores interpretaram esses experimentos como a tolerância cerebral
sujeito realmente incorpora a mesa ou a mão postiça à sua imagem corporal, quais os
16
Ver também o experimento semelhante descrito por Pavani e colaboradores (2000) acerca da captura
visual do toque na experiência do corpo.
17
O condutor de respostas da pele é um aparelho que possibilita medir e registrar a resposta de
condutividade dérmica sem qualquer dor ou mal-estar para o indivíduo, através do uso de eletrodos
ligados à pele e a um polígrafo. O funcionamento do aparelho se dá através da medição da alteração do
organismo após uma determinada resposta de ação ou pensamento, registrando o estado somático
correspondente. Neste caso, o sistema nervoso autônomo aumenta sutilmente a secreção das glândulas
sudoríparas em uma quantidade tão pequena que nos é impossível enxergar a olho nu ou através dos
sensores neurais da pele, porém, a mudança no estado do corpo é suficiente para reduzir a resistência da
passagem da corrente elétrica disposta pelos eletrodos. A “resposta de condutividade dérmica” consiste,
portanto, numa alteração da quantidade de corrente elétrica conduzida e registrada através do aparelho
(Damásio, 1996, p. 239).
44
respondendo às tarefas demandadas quando eles relatavam a mesa ou a falsa mão como
corporal, eles poderiam ser estimulados quando a mesa ou a falsa mão fosse de algum
produzia estímulo? Variações nas condições de controle foram usadas para testar se esse
fosse curvado para trás para parecer doloroso, o sujeito registraria uma SRC, ou seja,
em que extensão a mão é assimilada pela imagem corporal do sujeito? O SRC foi
experienciar a mesma ilusão se a forma do objeto externo fosse mudado. Nesse caso,
uma mesa foi tocada e batida de modo análogo à localização da mão real (figura 5-b)
manipulado. Assim, cada sujeito viu o toque para a falsa mão na localização real em
uma condição e então para uma distância falsa em outra (figura 5-c). O falso braço foi
estendido quase um metro além da mão real. Na distante mão manipulada, um falso
dedo foi torcido para o estímulo doloroso como na experiência 1. A antecipação da dor,
produz estímulos no sistema nervoso autônomo, por isso a necessidade de medir SCR,
45
para verificar se eles não estavam sendo metafóricos ou respondendo apenas às questões
Os resultados dos experimentos e das análises de SRC (que não pode ser
corpo pode ser fácil e profundamente modificada; não só a falsa mão foi assimilada
pelos sujeitos, mas também a mesa foi percebida como fazendo parte do corpo do
sujeito nesse experimento; e por fim, que o dedo torcido da falsa mão sugere que a
18
A idéia de que a visão é necessária para o auto-reconhecimento da imagem do corpo tem sido explorada
através de estudos empíricos tais como o realizado por Knoblich (2002). Para este autor, a visão é
necessária para o reconhecimento de partes visíveis do corpo (mãos, braços, pernas, pés, etc.), pois
recebem todo o tempo estímulos proprioceptivos e táteis e são continuamente influenciados pelo campo
visual. A necessidade da visão na construção da imagem de partes do corpo pode, inclusive, ser notado
em bebês com poucos meses de vida. Ver também Ramachandran & Gregory (1991).
46
neurológicas da construção da imagem do corpo, não levando em conta que o corpo não
pode ser entendido como sendo um “cérebro na cuba”. Ele está em estreita relação com
formado na sua superfície, mas daí a pensar que esse mapa possa ser construído a partir
de bases genéticas, não leva em conta todas as capacidades cognitivas pelas quais a
corporal de um braço ou uma perna já estão dados no “disco rígido” cerebral, parece
do nosso corpo se dá (não só, mas também) através do reconhecimento do mesmo por
outro sujeito. Esse corpo não está só no meio externo. Ele participa de toda uma
47
provisão para agir no mundo e por este é afetado. O campo visual notadamente também
participa do reconhecimento desse corpo, não só pelo próprio sujeito, mas por outros
Por exemplo, como saber se uma perna ou um braço é uma perna e um braço
e não um galho de árvore ou uma perna de mesa ou cadeira? O que faz com que
saibamos que nosso corpo nos pertence, a não ser através da aprendizagem cognitiva e
lingüística da “coisa” em si? Como ter a certeza que o meu corpo é, de fato, o “meu
corpo” e não o corpo do sujeito B ou C? Como saber se minha perna, de fato, é “minha
futebol? Wittgenstein (1999) em sua última obra intitulada “Da certeza”, fundamenta a
“certeza do corpo” numa única questão: a ação. Para Wittgenstein, como saber se uma
perna é de fato “minha perna”? Responde Wittgenstein: levante a perna, ou chute uma
bola, uma parede ou a perna de alguém, ou seja, haja com o seu corpo no mundo! Ou
adjetivos possíveis, considere sua mão ou sua perna ou o seu pé no maior número
Ora, nosso cérebro não nasce formatado como um disco rígido, ou seja, com
a informação da imagem do nosso corpo como algo dado, inato, pronto, porque para
tanto, ele precisa desenvolver toda a cadeia lingüística que fará com que essas imagens
possam ser representadas no nosso cérebro. Isto porque, assim como Ramachandran
defende que a construção da imagem do corpo não é apenas uma construção interior e
compreendidas a partir de uma construção perversa, tal como formulada por Costa
(2004b).
48
lugar, é esquecer, por exemplo, que o corpo não age sozinho no mundo, mas que ele
encontra-se no mundo com "presteza para agir" (Todes, 2001). Sua representação se dá
através de todos os dispositivos mentalistas que faz com que reconheçamos a nós
mesmos como agentes no mundo. Dizer isso significa que é necessário "um outro" para
que nos reconhecermos como um "eu" no mundo; um “eu” que pode também ser
compreendido como sendo o mais próximo do que Dennett (1986) denominou “um
2004b), que a imagem do corpo é formada unicamente por imagens e narrativas de si,
no espaço, não podendo ser uma criação nem inata, nem genética, pois, conforme
"é o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte
do cérebro. Suprima a imagem que leva o nome de mundo material, você aniquilará
de uma só vez o cérebro e o estímulo cerebral que fazem parte dele. (...) Fazer do
cérebro a condição de imagem total é verdadeiramente contradizer a si mesmo, já
que o cérebro, por hipótese, é uma parte dessa imagem".
CAPÍTULO 2
“O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um
meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles”.
Merleau-Ponty
Fenomenologia da Percepção
A neurologia foi uma das ciências que mais se desenvolveu nos últimos
que se pensava sobre as causas fisiológicas ou psíquicas desses danos, caiu por terra
sobre o cérebro humano foi a responsável por estabelecer definitivamente uma relação
esquerdo do cérebro como a responsável pelos distúrbios da fala em 1861, ele abriu
caminho para um outro neurologista famoso, Freud, atribuir uma base fisiológica aos
pararam mais.
que os acidentes vasculares cerebrais ou demais danos ao cérebro, tal como foi vítima
com origens eminentemente causadas por danos ao cérebro: um pintor que passou a
enxergar tudo em preto e branco, uma mulher que perdeu a sensação da propriocepção,
o homem que passou a perceber membros fantasmas no seu corpo, um jovem que perde
a noção do tempo tendo sua memória restrita à década de sessenta, quando ocorreu seu
acidente; o cirurgião que passa a ter tiques nervosos ou ainda um neurologista famoso
que perde a sensação e percepção da própria perna, entre outros, são todos personagens
do fantástico universo de Oliver Sacks. Muitos dos seus personagens tiveram suas
histórias publicadas em revistas tais como “The New Yorker” e “The New York
não deixar de lado as ferramentas que a ciência médica dispõe, mas o que transforma
Sacks em um neurologista diferente da maioria, é que ele apontou para algo que ainda
não havia sido feito: ele passou a deixar seus pacientes falarem sobre si mesmos e sobre
seus distúrbios.
de sua carreira ele inspirou a prática daquilo que ele chamou de “neurologia romântica”,
19
Os filmes são: “At First Sight”(À Primeira Vista) – Direção de Irwin Winkler – MGM/United Artists,
1999; “Awakening” (Tempo de Despertar) – Direção de Penny Marshall – Columbia/Tristar Pictures,
1990. A peça de teatro chama-se “The Man Who Mistook his Wife for a Hat” (O Homem que Confundiu
sua Mulher com um Chapéu) – Direção de Peter Brooks, Royal Natinal Theatre, Junho de 1994.
52
naquilo em que ele fez de mais singular e específico: Sacks não desperdiça os laudos
pacientes e de uma escuta clínica sobre o que eles têm a dizer antes e depois de lesões
cerebrais, muitas das vezes graves, sobre sua história de vida, sobre o que eles foram,
sobre o que eles se tornaram e sobre o que eles pensam como serão daí para frente.
Sacks não se reduz a uma descrição biológica, nem fisicalista nem mentalista da vida
subjetiva.
A conseqüência disso é que Sacks, apesar de não construir uma teoria sobre
desprezar a descrições dos mesmos distúrbios através das mais modernas técnicas
Assim sendo, ele não restringe a imagem do corpo nem a um mapa cerebral
nossas subjetividades. Ele não as nega, mas não se restringe a elas como veremos a
seguir.
53
ao longo de sua vida enquanto médico, o fez cada vez mais necessitar de um aporte
maior do que aquele dado pelos instrumentos de que dispunha pela medicina tradicional
cada paciente seu, somado a uma descrição da doença e da vida pessoal destes, o que
diretamente com as bases neurais do “eu” e com o problema “mente e cérebro”. Para
tanto, a descrição da vida subjetiva tornou-se necessária para compreensão dos danos
cerebrais. Unir psíquico e físico, só seria possível pela via narrativa de si. Ora, mas não
lesões cerebrais das mais diversas formas e a capacidade do cérebro de se adaptar a uma
dessas adaptações exigia uma nova visão do cérebro não mais como programado e
mundo coerente com sua nova realidade. Nesse sentido, Sacks está de acordo com as
eles, Babinski e o próprio Freud, sob a batuta de Chacot buscaram diferenciar a paralisia
orgânica, portanto, neurológica, das paralisias histéricas21. Segundo Sacks, Freud havia
sistemas psíquicos reprimidos para as paralisias histéricas. A primeira tem uma base
anatômica enquanto que a segunda tem uma base psíquica ou psicodinâmica. Para
Freud, as paralisias orgânicas era físicas enquanto que as histéricas eram mentais
(Sacks, 2003)22.
Babinski, por sua vez, escrevera os relatos dos seus estudos sobre paralisias,
alienações, lesões periféricas, entre outras, em uma época anterior aos escritos de Head
e Sherrington sobre imagem e esquema corporal, antevendo que esses distúrbios teriam
20
As neurociências hoje têm cada vez mais se colocado como aquela ciência definidora da essência
subjetiva e da identidade do sujeito. Você é o seu cérebro e é isto que define a sua identidade pessoal. A
“teoria neuronial da identidade pessoal” foi exposta nos últimos anos por Gerald M. Edelman e sua tese
sobre a seleção dos grupos neuroniais ou “darwinismo neuronial” (Sacks, 1995).
21
De acordo com Ehrenberg (2004) a histeria é a patologia que permitiu construir a idéia de psiquismo na
época de Freud e lhe dá um conteúdo diferenciado da idéia de lesão cerebral, visto que, para falar de
doença era necessário que houvesse uma lesão para explicá-la, não obstante, foi Chacot que rompeu com
essa idéia ao empregar o termo “lesão funcional” ou “dinâmica”, considerando a histeria como uma
patologia autêntica do campo da neurologia. A prova disso era a possibilidade de hipnotizar as histéricas
produzindo uma reação fisiológica, e não psicológica.
22
Muitos conhecem o Freud psicanalista, mas poucos tiveram acesso ao Freud neurologista, à exceção de
alguns dos seus trabalhos mais conhecidos tais como o “Projeto para uma psicologia científica” (1895).
Durante seus vinte anos, Freud dedicou-se primordialmente à neurologia e à anatomia, nutrindo uma
paixão pelas teorias de Darwin e o evolucionismo, isso foi decisivo para sua carreira médica e
posteriormente para a criação da psicanálise. Nesse percurso, Freud escreveu vários artigos neurológicos,
dentre os quais, descrições pormenorizadas sobre as funções e disfunções do cérebro. O trabalho sobre a
concepção da afasia 1891 data desse período. Não obstante, remeto o leitor, além do texto do “projeto” e
da monografia sobre a afasia, a um trabalho menos conhecido de Freud intitulado “Brain” (cérebro)
(Freud, 1888 publicado em Solms & Saling, 1990) e um artigo de Oliver Sacks (1998), o qual discute o
percurso neurológico de Freud. Ver também Garcia-Roza (1997; 2004).
55
neuronais. Sua contribuição nesse campo, diz Ehrenberg (2004) foi ter estabelecido uma
psicanálise. Ele fornece um conteúdo particular à noção de psíquico que emergia à sua
época, qual seja, a idéia de subjetividade, através da abertura dos portos ao conteúdo
histéricas. Lúria, por sua vez e com os eventos que se seguiram à Segunda Guerra,
instituiu aquilo que viria a ser conhecida como a “neuropsicologia”, na qual buscava as
cérebro, transformando a neurologia naquilo que Sacks descreve como sendo uma
década de 1950. O que precisamos agora, diz o autor, é uma neurologia do “eu”, do
Portanto, para Sacks, toda doença neurológica é, na verdade, uma luta para
“Percebi claramente que tais experiências tinham origem fisiológica, mas também
que não podiam ser enquadradas no modelo clássico. Ficou claro para mim que
precisávamos de uma ‘neurologia da identidade’, uma neurologia que pudesse
explicar como diferentes partes do corpo (e seu espaço) podiam ser ‘possuídas’ (ou
‘perdidas’), uma base neurológica para a coerência e unificação da percepção
(especialmente depois de uma perturbação da percepção por lesão ou doença).
Precisávamos de uma neurologia que pudesse escapar do rígido dualismo
mente/corpo, das rígidas noções fisicistas de algoritmo e gabarito, uma neurologia
capaz de fazer jus à riqueza e densidade da experiência, seu senso de cena e música,
sua pessoalidade, seu fluxo sempre mutável de experiência, de história, de tornar-se”
(SACKS, 2003, p. 195).
através de uma gênese ontogênica cerebral, ora inata, ora construída ao longo do
Sacks rompe com o domínio fisicalista das bases neurais do “eu”, que via no
Para tanto, tomarei como exemplo dois casos expostos por Sacks: o primeiro
próprio Sacks que o fez perder a percepção da própria perna. Ambos os casos são
23
A neuro-fenomenologia foi um termo introduzido por Francisco Varela no início da década de 1990 e
combina os aportes teóricos da neurociência com os da fenomenologia no estudo da consciência. Segundo
o autor, a neurofenomenologia sugere que invariantes padrões e estruturas da “consciência da primeira
pessoa” podem encontrar explicações na fisiologia e no funcionamento do cérebro. Teoricamente, a
neurofenomenologia busca encontrar as raízes do “encorporamento” (embodiment) na neurofisiologia da
consciência e na experiência subjetiva no atributo da primeira pessoa. Sacks não discute a construção de
57
computadores. Casada e mãe de dois filhos, é descrita como tendo uma mente e um
episódios de doença e nunca lembrou de ter ficado durante muitos dias acamada. Após
sofrer fortes dores abdominais, verificou-se que tinha cálculos biliares ficando interna
para remoção da vesícula biliar. No dia anterior à cirurgia, teve um sonho onde não
conseguia sentir nem suas mãos ou pernas, deixando cair tudo que lhe fosse solicitado
segurar ou sendo incapaz de dar um passo. Foi atendida por um psiquiatra que
Christina não mais passou a sentir as pernas nem as mãos por completo. Não conseguia
andar nem segurar nada com as mãos ao menos se olhasse para eles. Perdera a sensação
do seu próprio corpo. Não conseguia mais sentar-se pois seu corpo cedia. Desenvolveu
em pouquíssimo tempo uma estranha expressão facial, com mandíbula caída e sem
postura vocal. Algo terrível havia acontecido àquela mulher: “Não consigo sentir meu
do século XIX de Charcot e Freud, para Sacks, Christina apenas perdera completamente
aproximando e de animais bravos no lugar onde escolhera para esquiar resolve ir assim
um centro identitário tal qual um “eu” holístico a partir da neurofenomenologia na forma conferida por
Varela entre outros autores da neurociência cognitiva, não obstante, estou procedendo a uma aproximação
teórica e fazendo uso generalizado do termo, ao apontar que apesar de Sacks não desprezar o cérebro e
suas conexões na construção de uma imagem do “eu”, do corpo, da identidade e da subjetividade, bem
como dos diversos distúrbios neurológicos, ele também faz uso dos aportes teóricos da fenomenologia, e
é nesse sentido que suas teorias diferem dos outros autores até aqui apresentados. Remeto o leitor para um
maior conhecimento do termo a Varela (1996), Varela & Shear (1999), Campbell (2004), Vogeley & Fink
(2003) e Lutz & Thompson (2003).
58
mesmo pegar uma trilha e satisfazer seu objetivo. Apesar da inclinação do terreno, o
academia de musculação. Mas ao tentar fugir de um animal que aparece à sua frente,
escorrega e quebra a perna esquerda. Resgatado, vai para um hospital, tem a perna
engessada e fica interno até descobrir que perdera toda a sensação do referido membro.
Sacks paciente, e para seu horror e constatação, descobre que tem um “objeto estranho”
agarrado ao seu próprio corpo: sua perna esquerda. “Quando não era uniforme, a perna
tendia a ficar presa em todo tipo de irregularidade – parecia curiosamente inepta para
clássica.
talvez um pequeno derrame ou isquemia. Não obstante, não fica reduzido a esta
conformidade. Para ele, muito mais do que um dano no córtex cerebral é preciso que se
entenda que a imagem do corpo, tal como entendido pela fenomenologia da percepção,
é uma construção dada pelos sentidos do próprio corpo, mas não apenas aqueles que
tendões, articulações, pele, etc.), por meio do qual tomamos conhecimento do nosso
59
corpo no mundo e é indispensável para o senso de “nós mesmos”. Ela foi descrita pela
Graças à propriocepção, sentimos que temos um corpo, que ele é uma propriedade,
O senso do corpo, para Sacks, é dado por três dispositivos: a visão, os órgãos
corporal.
exterocepção está voltada para a percepção a tudo o que é exterior ao corpo, ou seja, os
comum a todo o sistema perceptivo, cuja consciência dos movimentos pode ser obtida
através tanto da visão quanto da audição, tantos dos músculos quanto das articulações.
percepção corporal, entendida como uma “concepção ecológica do self”, a qual reafirma
60
diversas do próprio corpo se autoperceber em sua relação direta com os objetos que o
Como ainda diz Sacks, os sentidos da propriocepção são “os olhos do corpo”
ou o modo como o corpo se vê. Quando ela desaparece, é como se o corpo estivesse
cego. “Meu corpo não consegue ‘enxergar’ a si mesmo se perdeu seus olhos, certo? Por
isso, preciso olhar para ele – ser os olhos de meu corpo”, diz Christina, paciente de
Sacks. Durante seu tratamento e recuperação da mobilidade de seu corpo, ela foi pouco
inconsciente da visão. Sua imagem corporal perdida foi sendo reintegrada à medida que
seu sistema perceptivo da visão passou a agir como o centro motor do seu corpo.
Mas à medida que o tempo passa, ela ainda sentia com persistência a perda
da propriocepção do seu corpo, como se ele estivesse morto, irreal, como se não fosse o
corpo dela nem que ela pudesse se apropriar dele. Como tal sensação nunca fizera parte
de sua experiência subjetiva, Christina não encontra palavras nem analogias diretas para
descrever a escuridão, o silêncio e a mudez do seu próprio corpo: “Sinto que meu corpo
está cego e surdo para si mesmo... ele não tem o senso de si mesmo” (Sacks, 1997)25.
24
Há uma série de autores que defendem a “perspectiva ecológica do self” nos termos conferidos por
Gibson. Todos defendem a diferença entre a propriocepção e a exterocepção para compreender, por
conseqüência, as diferenças entre esquema e imagem corporal. Sobre esse assunto ver, além de Costa
(2004), Reed (1996), Butterworth (1998), Campbell (1998) e Bermúdez, (1998).
25
Ainda há de se pontuar dois outros casos descritos por Sacks com perda da propriocepção e da imagem
corporal. O primeiro é o caso de Madeleine J., sessenta anos, interna em um hospital em 1980 com
cegueira congênita e paralisia cerebral. Apresentava ainda hipertonia e atetose, ou seja, movimentos
involuntários das mãos, aos quais, segundo Sacks, não se acrescentava o não-desenvolvimento dos olhos.
Poderia se esperar uma pessoa com retardo mental, mas Madeleine era extremamente culta. Sacks deduz
que ela teria facilidade de ler em braile, mas afirma que todo o seu conhecimento se deu através de
leituras próprias feitas com ajuda de pessoas ou gravações em fitas. Ela não podia ler em braile, pois,
segundo ela, não podia fazer nada com as mãos. “Elas são completamente inúteis. Monte de massa
imprestáveis e esquecidos – elas nem parecem fazer parte de mim”, diz a combalida senhora. A
capacidade sensorial das mãos de Madeleine, ao contrário, estavam intactas, porém, sua propriedade
61
Do mesmo modo é assim que “Sacks paciente” se expressa: “Eu não conheci
minha perna. Ela me era totalmente estranha, desconhecida, não era minha. Fitei-a
62)
Christina era uma mulher sem corpo, e Sack, por conseguinte, era um
uma alma penada, ela “possuía um corpo sem dono”, não havia nenhuma propriedade
que lhe desse autonomia do seu próprio corpo, tal como descreve Sacks:
“Eu era um amputado interno. (...) Eu podia dizer que perdera a perna como um
“objeto interno”, como uma “imago” simbólica e afetiva. Na verdade, parecia que eu
precisava de ambos os conjuntos de termos, pois a perda interna em questão era
tanto “fotográfica” como “existencial”. Assim, de um lado, havia uma severa
deficiência perceptiva, de maneira que eu perdera toda a sensação da perna. De
outro, havia uma deficiência “simpática”, de modo que eu perdera boa parte de meu
sentimento pela perna. (...) O que poderia causar essa mudança profunda,
calamitosa, esse colapso total de sentido e sentimento, esse colapso total da imagem
neural – e da imago?” (Sacks, 2003, p. 65).
proprioceptiva estava completamente prejudicada devido a paralisia cerebral. O outro caso, trata-se do
Senhor Macgregor, um homem cuja percepção proprioceptiva de seu corpo estava danificada: ele andava
inclinado tal qual a Torre de Pisa e era totalmente alheio a esse fato. Mais do que uma referência aos
órgãos do equilíbrio, o Senhor MacGregor não conseguia integrar os três sentidos necessários ao seu
equilíbrio corporal: o sistema labiríntico, o proprioceptivo e o campo visual (Sacks, 1997).
62
histórico.
Schilder (1999) é um bom exemplo disso. Para ele, a imagem corporal é uma
“figuração de nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo
se apresenta para nós” (p. 7) cuja representação são dadas através de várias sensações
advindas da superfície do corpo, dos músculos, das vísceras, etc. Por outro lado, ele
imagem tridimensiconal que todos nós temos de nós mesmos. Toda a construção da
63
como uma unidade. Ele, portanto, faz uso dos termos como se fossem sinônimos.26
corporal pode se encolher ou se expandir, e como tal, podemos anexar objetos externos
imagem corporal” (Schilder, 1999, p. 233). Até mesmo uma peça de roupa, pode mudar
a imagem que temos do nosso corpo! Schilder, portanto, confunde imagem com
esquema corporal. Para ele, a imagem do corpo pode incorporar objetos. Mas uma coisa
são incorporados como um “acessório” ao nosso corpo para que ele faça parte de nosso
não avança na discussão quando deixa de abordar a questão pela via do mental versus
físico a exemplo de outros autores, tais como apontam Costa (2004), Weiss (1999) e
Gallagher (1986).
(Gallagher, 1986). Por outro lado, o esquema corporal é definido como um conjunto de
26
Gallagher (1995) aponta que H. Head, no livro “Studies in neurology” de 1920, também usava os
termos imagem corporal e esquema corporal como se fossem sinônimos. Para Head imagem do corpo e
esquema corporal significam uma imagem ou representação consciente do corpo sem levar em questão o
aspecto cognitivo.
64
apenas o seu modelo postural, no qual, através dos órgãos dos sentidos, o corpo estaria
apto a agir e reagir aos estímulos do ambiente (Bermudez, 1998; Campbell, 1998).
solicitada a representar à sua própria existência e o seu próprio “eu”; por fim, necessita
nem cognitiva, nem emocional, ele se distingue da imagem do corpo, pois ele é uma
intencionalidade auto-referente, muito embora essas funções possam ter uma atividade
Para experienciar o mundo, o corpo precisa agir, e para que o corpo possa
Vários são os exemplos que podemos usar para ilustrar esse fato. O mais
comum refere-se à vareta que um deficiente visual usa para caminhar – o seu corpo não
se resume apenas a seus membros, mas prolonga-se até a última ponta da vareta que ele
piloto de um avião não se resume à sua matéria corporal, mas sim a toda aeronave que
ele pilota. Por extensão, um exímio digitador ou pianista tem a ponta de seus dedos
também a partir dos exemplos dos membros fantasmas. O caso da paciente que nascera
sem braços e usa próteses como se fossem braços verdadeiros, é outro exemplo claro de
como o esquema corporal pode ser útil para compreender a construção da imagem do
caixa de espelhos usada para curar pacientes com sensações de membros e dores
Damásio acerca dos distúrbios neurológicos estabelecendo uma nítida distinção entre as
27
O corpo como sujeito da ação e da intencionalidade também são teses defendidas por Williams &
Bendelow (1999), Campbell (1998), O’Shaughnessy (1998) e Gallagher (1998).
66
não apenas como uma unidade, mas como um “órgão rei” que comanda toda a
corpo é uma unidade de ações, e se uma parte do corpo é separada da ação, ela se torna
‘alheia’ e não é sentida como parte do corpo” (Sacks, 2003, p. 171) mesmo no contexto
se ele mesmo não tivesse sofrido um distúrbio dessa natureza, no qual afeta diretamente
a atividade neural organizada para formar a imagem do corpo em seu cérebro. E foi essa
local, ou de outros tipos de doenças mais graves, como tumor, diabetes ou câncer
cuja imagem corporal fora afetada, encontrando correlação direta com distúrbios de
todo paciente com graves danos na imagem corporal apresentava distúrbios igualmente
do ser nas partes afetadas fizeram com que houvesse uma alteração da identidade ou na
definido.
resultantes de danos cerebrais a partir das técnicas de imagem cerebral, para Sacks, não
daria conta da singularidade de cada um de seus pacientes, nem apontaria para o seu
“O organismo é um sistema unitário, mas o que é um sistema para um self vivo real?
A neuropsicologia fala de ‘imagens internas’, ‘esquemas’, ‘programas’ etc., mas os
pacientes falam de ‘experimentar’, ‘sentir’, ‘tencionar’ e ‘agir’. A neuropsicologia é
dinâmica, mas ainda é esquemática, ao passo que as criaturas vivas, no todo, têm um
self – e são livres. Isso não equivale a negar que há sistemas envolvidos, e sim a
dizer que os sistemas estão embutidos no self e que o self transcende esses sistemas.
(...) A neuropsicologia é admirável, mas exclui a psique – exclui o ‘eu’ vivo, ativo,
que tem experiências. (...) O caráter objetivo e empírico da neurologia impossibilita
considerações do sujeito, do ‘eu’. (...) O que precisamos agora, e precisamos para o
futuro, é de uma neurologia do self, da identidade” (Sacks, 2003, p. 181-182).
como um todo.
Se por um lado, Sacks não cria nenhuma grande teoria para explicar e
experiências subjetivas.
Ehrenberg (2004) ressalta essa perspectiva ao afirmar que seria necessário distinguir
dois campos nitidamente distintos quanto às doenças neurológicas que opõe o cerebral e
funcionais são suscitados por causas ou biológicas ou inerentes à própria doença. Nesse
modo, opõe o sujeito cerebral ao sujeito falante ao dar voz aquilo que a neurologia ou as
como tal, necessita desse corpo e de todos os seus dispositivos necessários para
o seu “eu” e a sua identidade a partir do seu equipamento lingüístico. Com isso, Sacks
possível compreensão de uma neurologia mais voltada para a identidade do que para as
neurológico na sua época e apontar para uma nova forma de ver o sujeito sem os
Sacks, por seu turno, tentou apontar para um novo campo da ciência do
século XXI, uma “neurologia romântica” como ele bem a definiu no início de seus
estudos, ou quem sabe, uma “neurologia da identidade”, uma “neurologia self”, uma
“neurologia do ‘eu’”.
No que Sacks falha ao tentar pautar sua clínica na escuta de seus pacientes
sem grandes saltos teóricos, António Damásio vai propor uma rígida teoria para
veremos a seguir.
70
CAPÍTULO 3
“Até agora ninguém abriu o meu crânio para ver se contém um cérebro;
mas tudo corrobora e nada é contra que seja isso o que lá se encontra?”
Wittgenstein
Da certeza
independentes.
O corpo para Descartes, nada mais é do que uma máquina sem alma, um
modelo por meio do qual ele estava predisposto à consciência e ao movimento. Porém,
sem alma, esse objeto-máquina não representava a metafísica dos seres humanos. Era
preciso Deus fundir corpo e alma em um único objeto para que a máquina pudesse
física ou metafísica dotaria o homem de uma identidade que o diferenciasse do resto dos
animais?
diferencia dos animais e nos torna humanos (Descartes, 1999a; 1999b). Daí a máxima
“penso, logo, existo” (na qual se ancora o “eu”) necessitar de uma introspecção mental,
uma terceira certeza, qual seja, o apoio em Deus, a res infinita, que serve de
intermediário entre as duas certezas anteriores: “sou uma coisa que pensa” (res
partir do dualismo corpo e alma ou corpo e mente. Enfim, Descartes buscava sustentar
um conhecimento racional do mundo fundado numa ciência dita empírica que por sua
mesmas leis do mundo físico ou da natureza material, pois esta era um exercício
Iowa e professor do Instituto Salk de Estudos Biológicos na Califórnia, deu início a uma
algumas patologias neurológicas, ora baseando suas teses nos resultados empíricos de
metafísica do corpo e da mente proposta por Descartes, ao afirmar que seu erro foi
“O grande erro de Descartes foi a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a
substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um
funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem
volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o
juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam
existir independentemente do corpo. Especificamente: a separação das operações
mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura e funcionamento do organismo
biológico, para o outro” (Damásio, 1996, p. 280).
substância pensante, qual seja, a alma. O que Damásio propõe é provar que a res
extensa e a res congitans descartiana, como sabemos, não são duas entidades separadas
e divisíveis, mas sim uma só entidade e está o tempo todo influenciando a construção da
nossa identidade pessoal e do nosso “eu”. No entanto, Damásio vai afirmar que as bases
substrato neural, distribuído ao longo do nosso córtex cerebral cujas marcas também
coragem, a depressão, o amor, a impotência, o bom e mau humor, entre outros, são
argumenta que este mesmo conjunto de proposições possui um substrato neural sem o
qual não seria possível a nossa sobrevivência. Isto foi adquirido biologicamente ao
superior ao que era considerada há 100 anos: ela foi elevada ao papel fundacional de
patologias neurológicas.
constituem a base daquilo que os seres humanos têm descrito como sendo a alma ou o
através de processos neurais que experienciamos como sendo a mente. O corpo, então, é
subjetividade.
“A mente existe dentro de um organismo integrado e para ele; as nossas mentes não
seriam o que são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro durante o
processo evolutivo, o desenvolvimento individual e no momento atual. A mente teve
primeiro de se ocupar do corpo, ou nunca teria existido” (Damásio, 1996, p. 17).
Mas de que modo a mente teve que se ocupar do corpo para existir? De
28
Estudos recentes têm apontado a “insula” como a responsável pelas emoções e sentimentos humanos. A
ínsula foi descrita pela primeira vez no fim do século XVIII pelo anatomista e fisiologista alemão Johann
Christian Reil, possui o tamanho de uma ameixa seca e trabalha diretamente com o córtex pré-frontal e a
amígdala, funcionando como uma espécie de tradutor das sensações humanas tais como sons, cheiros ou
sabores em emoções e sentimentos, tais como nojo, desejo, orgulho, arrependimento, culpa ou empatia.
De acordo com o neurologista Mauro Muszkat, estudos mostram que a superativação da ínsula está
diretamente relacionada a diversos distúrbios psiquiátricos, tais como as fobias e o transtorno obsessivo-
compulsivo. Conforme Buchalla (2007).
75
interagem com o mundo e por fim 3) as operações fisiológicas a que ele chama de
intrínseca relação com o corpo. Mas vejam que ele enfatiza o mecanismo biológico ou
neurológico, ao afirmar que a mente surge da atividade dos neurônios e não de uma
ambiente na qualidade dessa mente, mas sim, em como as conexões neurais podem criar
Para Damásio, aquilo que chamamos de self nada mais é do que uma parte
29
De acordo com o autor “uma mente, aquilo que define uma pessoa, requer um corpo, e que um corpo,
um corpo humano, naturalmente gera uma mente. A mente é tão estritamente moldada pelo corpo e
destina-se a servi-lo que somente uma mente poderia surgir nesse corpo. Não há mente que não tenha um
corpo, não há corpo que tenha mais de uma mente.” Conforme Damásio (2000a, p. 187).
30
Em um outro momento, Damásio vai afirmar: “cérebro e corpo continuam a serem concebidos como
separados em termos de estrutura e de função. A idéia de que o organismo inteiro, e não apenas o corpo
ou o cérebro, interage com o meio ambiente é menosprezada com freqüência, se é que se pode dizer que
chega a ser considerada. No entanto, quando vemos, ouvimos, tocamos, saboreamos ou cheiramos, o
corpo e o cérebro participam na interação com o meio ambiente”. Conforme Damásio (1996, p. 255)
76
Para António Damásio, há uma nítida distinção entre aquilo que é da ordem
das emoções e aquilo que é da ordem dos sentimentos: as emoções, diz ele, ocorrem no
emoções, ele continua, fazem parte dos mecanismos básicos da regulação da vida,
segunda. Os sentimentos, por sua vez, constituem as “coxias”, ou seja, o “pano de fundo
como uma resposta do corpo a uma quantidade de reações e situações pelas quais
respiração, narinas dilatadas e dentes cerrados quando estamos com raiva, Damásio
(1996) evoca os meios neurais para explicar as mesmas sensações corporais no processo
emocional.
“Uma emoção, pode ser alegria ou tristeza, vergonha ou orgulho, é uma coleção
padronizada de respostas químicas e neurais que é produzia pelo cérebro quando ele
detecta a presença de um estímulo emocionalmente competente – um objeto ou
situação, por exemplo. (...) Respostas emocionais são um modo de reação do cérebro
77
que são preparadas pela evolução para responder a certas classes de objetos e
eventos com um certo repertório de ação” (Damásio, 2001, p. 781)31.
primeiramente pelo nosso cérebro que envia sinais para o nosso corpo. O medo, por
amígdala, que por sua vez sinaliza como o corpo deve reagir.
Pierre Gloor e Eric Halgren, cuja avaliação cirúrgica nesse tipo de paciente requeria
31
Para testar a hipótese de que as emoções e os sentimentos requerem a participação de regiões do
cérebro, especificamente as regiões corticais, subcorticais, córtex sômato-sensorial e núcleo superior do
tronco cerebral, que são envolvidos no mapeamento ou regulação de estados do organismo interno,
Damásio e colaboradores analisaram um grupo de sujeitos, com o uso de PET scans, que experimentaram
episódios da vida pessoal marcados por sentimentos de alegria, felicidade, raiva e medo. De modo geral,
todos os resultados sustentaram a hipótese apresentada, qual seja, a de que todas as emoções citadas
estavam comprometidas com as estruturas relatadas para a representação ou regulação do estado do
organismo, tais como o córtex insular, o córtex secundário sômato-sensitivo, córtex singular e o núcleo do
tronco cerebral e o hipotálamo. Para uma melhor compreensão da pesquisa, remeto o leitor a Damásio (et
all.), 2000b.
78
Mas de acordo com o autor as emoções primárias são apenas parte da nossa
“emoções secundárias”, e essas, são as que mais nos interessam, pois são essas que
imagem corporal.
construindo assim, uma “imagem mental” dessa lembrança, acabamos por provocar
também uma reação dessa emoção específica em nosso organismo. Dito de outro modo,
corpo, mas também participam da experiência das emoções, são processos conscientes e
79
dessas imagens, não são verbais enquanto que outras o são. De acordo com Damásio
corpo
organismo uma reação específica ao ambiente em que ele se encontra. O corpo irá reagir
que fazem parte do cérebro. Foi a isso que Damásio chamou de “experienciar uma
emoção”.
E o que é um sentimento?
32
É a parte anterior das vesículas encefálicas primitivas e que irá dividir-se em telencéfalo e diencéfalo.
33
Porção anterior do prosencéfalo, a qual dá origem aos hemisférios cerebrais.
80
alterações que ocorrem no seu corpo, desde aceleração dos batimentos cardíacos a
movimentos das vísceras. Todas essas alterações são assinaladas pelo seu cérebro por
meio de terminações nervosas que levam a impulsos da pele, dos vasos sangüíneos, das
vísceras, dos músculos e articulações, obtendo-se, assim, uma “imagem neural” do seu
“Nos córtices cerebrais que recebem a todo o momento esses sinais, verifica-se um
padrão de atividade neural em constante mutação. Não há nada de estático, nenhuma
linha de base, nenhum homenzinho – o homúnculo – sentado dentro do cérebro
como uma estátua, recebendo sinais da parte correspondente do corpo. Registra-se,
em vez disso, uma mudança interessante. Alguns dos padrões estão organizados de
forma topográfica, outros não tanto, não constando de um único mapa, de um só
centro. Existem muitos mapas, coordenados por conexões neuronais mutuamente
interativas” (DAMÁSIO, 1996, p. 174).
um corpo e que ele está vivo. Mais do que isso, os sentimentos, para Damásio, são o
“As representações do corpo atuais não correm num mapa cortical rígido, como os
tradicionais diagramas do cérebro humanos nos levaram a supor erradamente.
Manifestam-se por meio de uma representação dinâmica, constantemente renovada
em instâncias novas e de acesso imediato, on-line, do que está sucedendo no corpo
em cada momento. Seu valor reside nessa atualização e acessibilidade imediata. (...)
Os hormônios e os peptídeos liberados no corpo durante a emoção alcançam o
cérebro por intermédio da corrente sanguínea e penetram nele ativamente pela
chamada barreira sangue-cérebro ou, ainda mais fácil, pelas regiões cerebrais
destituídas dessa barreira” (Damásio, 1996, p. 174).
justaposição de uma imagem do corpo com uma outra imagem, um objeto externo, por
exemplo, seguido de um estímulo que pode ser visual, tátil ou auditivo. A produção de
uma emoção e de um sentimento que por sua vez provoca uma mudança de estado
corporais
construção dessas imagens. Bérgson, não descarta o cérebro, mas privilegia a interação
82
entre o corpo e o ambiente. Mas para este último, tantos os nervos aferentes quanto o
diretamente o cérebro que por sua vez afetam a homeostase corporal. Bérgson, pode-se
dizer, é um interacionista:
com o mundo exterior: o corpo é afetado pelo ambiente externo e este, ao mesmo
tempo, afeta o corpo. Damásio, por sua vez, não desconsidera a influência do mundo
externo na construção da imagem do corpo, mas como veremos a seguir, ele pauta as
verdade, nada mais seria um “fisicalista não-redutivo”, mas também poderiamos chamá-
mente como sendo integrados, e isso em nada tira o mérito de suas teses.
sinais não apenas do corpo, mas de outras partes de sua própria estrutura interagindo
mutuamente com o ambiente. Não existe uma interação apenas corpo-ambiente, corpo-
corpo e cérebro encontram-se em uma mesma estrutura indissociável, sem o qual não
83
existiria nem corpo, nem mente, nem muito menos cérebro! Ambos geram respostas
chamado pensamento.
O cérebro evolui, afirma Damásio, e dizer isso significa dizer que o cérebro
passa a ocupar-se do corpo para a sua sobrevivência da forma mais eficaz possível
das modificações que são produzidas no corpo, quer dizer representar o meio ambiente
por meio da modificação dessas representações primordiais, sempre que tiver lugar uma
representação? Para Damásio, elas são de três tipo: a primeira refere-se à “representação
pele - uma super-membrana que nos delimita como sendo uma unidade; e por fim, a
34
A discussão em torno do conceito de mente é vasta e não caberia aqui dar conta dela. No entanto,
remeto o leitor aos textos Searle (1997, 1998) e Priest (1991) que, segundo penso, avançaram nesse
debate de modo profícuo. Ver também Sacks (1993).
84
probabilidade de abranger entidades e situações que podem ou não ser necessárias para
a sua sobrevivência. Quando isso ocorre, diz Damásio, nossa compreensão de mundo
Corpo e cérebro interagem intensamente entre si de forma não menos intensa que o
ambiente que os rodeia deixando a sua marca. Uma das formas que o ambiente tem de
neural dos olhos, dos ouvidos e das terminações nervosas localizadas na pele, nas
papilas gustativas e na mucosa nasal, ou seja, através dos órgãos dos sentidos.
“As terminações nervosas enviam sinais para pontos de entrada dos circunscritos no
cérebro, os chamados córtices sensoriais iniciais da visão, da audição, das sensações
somáticas, do paladar e do olfato. (...) Cada região sensorial inicial (os córtices
visuais iniciais, os córtices auditivos iniciais, etc.) é um conjunto de áreas diversas,
existindo uma intensa sinalização cruzada dentro desses agregados e cada conjunto
sensorial inicial.” (Damásio, 1996, p. 117).
85
Damásio, o ambiente afeta o corpo a partir dos dispositivos neurais providos pelo
próprio corpo, ou melhor, pelo cérebro, nas áreas responsáveis por esses estímulos.
Certamente, sem os dispositivos sensoriais e sem sua estreita conexão com o cérebro,
jamais teríamos capacidade de perceber o mundo que nos cerca. Não obstante, o que
chama a nossa atenção na descrição do autor é sua lógica para interpretar os estímulos
causal apenas se os fenomenologistas recusam sua discussão, mas como qualquer outra
estrutura corporal, tais como o olho, a boca ou a mão, o cérebro pode ser compreendido
não apenas fisicalisticamente, mas como um órgão que faz parte do “corpo vivo”, uma
aparente, visto que o cérebro quase nunca aparece como sendo um órgão da percepção
direta, em oposição à superfície do corpo, a pele, que é visível para todos nós. O cérebro
não desponta no teatro do corpo como ator principal, ele esconde-se sobre uma densa
fotos de livros de medicina ou psicologia cognitiva, mas não temos acesso direto à
massa cerebral, tal como temos ao nosso sistema perceptivo. Adequamos a referendar os
órgãos dos sentidos com sendo unicamente os responsáveis por perceber os estímulos
existência no mundo.
“Aqui está uma forma de profundo dis-aparecimento. Como meus órgãos viscerais,
meu cérebro é encoberto nas profundezas do meu corpo, escondido do meu poder
exteroceptivo e de outros. E como a mais reticente de minhas vísceras, como o
fígado ou o baço, o cérebro também está ausente da minha interocepção. (…) Como
a víscera, o cérebro requer esse revestimento na profundeza corporal. Isso serve a
uma função protetora tanto quanto para a operação das estruturas de mediação. O
cérebro não é adaptado nem a experiência nem a ação direta do mundo, mas confia
na intercessão de um aparato sensório” (Leder, 1990, p. 112-113).
interno dos órgãos dos sentidos, ou ainda, para usar uma metáfora mais apropriada, o
“Meu cérebro, com aquele em que eu existo, não manifesta nenhuma presença física
para mim diretamente conhecida. Eu não posso ter distância dele, torná-lo visível,
porque ele está muito escondido de mim, onde quer que eu vá. A mentalidade
humana pode assim parecer imaterial, desencorporada (desembodiment), como
qualquer outra coisa. Um dis-aparecimento experimental está pronto em termos
ontológicos. (...) Esse dis-aparecimento começa precisamente no encorporamento
natural da mente” (Leder, 1990, p. 115).
reconhecer os estímulos do ambiente. Este, por sua vez, não tem como influir no corpo
dos devidos equipamentos sensoriais – olhos, ouvidos, boca, nariz, pele. Como diz
para serem reconhecidos. Cérebro, mente, corpo e ambiente estão, por assim dizer,
“integrados” (embedded).
pessoal, da construção de um centro narrativo descrito como sendo “eu” e por fim, a
da ciência do cérebro.
incapazes de serem afetados pelos estímulos externos, tais como a música? O que dizer
produzir inúmeras peças musicais sendo até mesmo capaz de regê-las? O que dizer dos
deficientes visuais que conseguem ter outros sentidos do corpo muito mais apurados,
tais como o toque e a audição, do que aqueles que vêem? O que dizer de deficientes
visuais artistas plásticos que conseguem esculpir formas e movimentos sem, no entanto,
nunca verem sua obra acabada? O que dizer do personagem titulo do livro “Johnny vai à
88
guerra”, que mesmo após ficar sem braços, sem pernas, perder a visão, a audição e parte
da mandíbula após uma explosão de uma mina, conseguia ter uma percepção do
ambiente à sua volta, apenas com o que havia sobrado do seu corpo - a própria pele? O
que dizer de dançarinos surdos que conseguem interpretar o som de uma música apenas
com a reverberação do som em seus corpos? Ou ainda de alguns pacientes com lesões
cerebrais, tais como o pontuado por Oliver Sacks, o artista plástico chamado Senhor “I”
de enxergar as cores, mudou o estilo de seus quadros? Resposta de Damásio: eles são
que conseguiram se desenvolver para prover a deficiência daquele órgão que foi afetado
Notem que querendo ou não Damásio privilegia mais uma vez as descrições
entender como interpretamos os estímulos que nos chegam através dos órgãos dos
sentidos. Aquilo que afeta o corpo e é interpretado pelo cérebro, criando imagens
diversas, necessita de uma outra interpretação que não é unicamente cerebral. Damásio
narinas ou boca, como algo não do fenômeno cerebral ou neuronal, mas sim, da ordem
por si só que é capaz de dar uma descrição senso-perceptiva de um estímulo, seja ele
interior ou exterior. O cérebro, por si mesmo, não fala. Como interpretar que o que
sentimos é calor ou frio? Como interpretar que o que ouvimos é uma música e não um
barulho de uma serra elétrica? Como interpretar que o que vemos é uma casa ou uma
89
árvore, e não um elefante ou uma zebra? Finalmente, cabe ainda perguntar, como
interpretamos que aquilo que vemos no espelho, de fato, é a nossa imagem, a imagem
do nosso corpo, aquilo que nos identifica, que nos personaliza, que nos individualiza,
Mais uma vez, Damásio vai recorrer ao seu aporte teórico para explicar a
ele vai denominar “imagens da carne”, a segunda ele denomina de “sondas sensitivas
particulares do corpo pertencentes aos órgãos dos sentidos, tais como a retina, situada
no fundo do globo ocular, ou a cóclea, situada no ouvido interno. Essas imagens são
corpo são modificadas por objetos exteriores a ele, ou seja, são o resultado do contato
desses objetos com o corpo. Quando se dá o contato com a pele por algum objeto, ele
“imagens da carne” nada mais seriam do que uma parte do conjunto de sensações
capacidade de percepção do mundo exterior através dos órgãos dos sentidos – visão,
audição, tato, gosto e olfato -, que fornecem ao corpo do sujeito sua posição e
movimento no ambiente, descritas por Bermúdez (1998), Gallagher & Cole (1995),
metáfora da “imagem da carne”, Damásio também está muito próximo das proposições
sugeridas por Bernard Andrieu, em seu livro “O cérebro: ensaio sobre o corpo
pensante”.
sucessivas. Ela é uma síntese pessoal das interações com o mundo” (Andrieu, 2000, p.
nos é sensível em razão da “qualidade de nossa carne”, visto que é ela quem determina
percepções e orientações com o mundo. Por fim, a carne ainda nos permite descobrir
neural em que o córtex somatossensorial, o lobo parietal posterior e o córtex insular tem
responsável pela construção geral da forma do corpo, contando com o estímulo tátil e
uma conexão com aquelas partes do sistema límbico, tais como o hipotálamo, envolvido
parietal não afetam a habilidade de delinear a forma do corpo, mas sim a habilidade de
hemisomatoagnosia, ou seja, quando o indivíduo não percebe que metade do seu corpo
Como podemos ver, o córtex parietal direito parece ter, dentro do campo
do corpo e sensações de estar fora do corpo. Todos esses sintomas indicam sua
largamente estudados por uma gama de neurologistas, entre eles, Oliver Sacks,
semelhante para ambos. Primeiro, a atividade numa região do corpo produz uma
imagem é feita com ajuda de sinais químicos trazidos pela corrente sangüínea e sinais
eletroquímicos trazidos por feixes nervosos. Por fim, os “mapas neurais” que se formam
a construção dessas imagens não se dá apenas em áreas localizadas no cérebro tal como
formulado pelo “homúnculo”, mas que diferentes áreas no cérebro são responsáveis pela
verdade são mapas sensoriais e o que produz imagens são as capacidades qualitativas e
para a região do sistema nervoso central responsável por determinadas sondas, todas
Mas de acordo com o autor, não há um único lugar no cérebro onde sejam
percebidas essas imagens. Elas estão distribuídas ao longo de todo o córtex cerebral.
externos ao nosso próprio “eu” ao longo de toda a nossa vida. Evocamos imagens para
nos auxiliar a nos situar no mundo, diz Damásio. Para termos o registro de quem nós
fomos, quem nós somos e programar quem nós seremos, e aqui reside, de fato, a
diferença de argumento entre Damásio e Sacks. Para este último, a projeção de uma
experiência narrativa. Para Damásio, todas essas imagens são construções do cérebro, as
quais compartilhamos com outros seres humanos, e até com animais e com outros
mundo e são produzidas pela enorme quantidade de sensações perceptivas que estamos
complexa” de percepção, memória e raciocínio, regulada por vezes pelo mundo exterior
ao cérebro, ou pelo mundo que está dentro do nosso corpo ou em torno dele. Outras
2004, p. 208).
exteriores ao cérebro são criações do próprio cérebro. No entanto, nada impede que a
construção das imagens seja semelhante de sujeito para sujeito, nem muito menos que a
construção dessa imagem seja “a” representação da realidade do objeto externo, visto
37
Damásio também faz uma longa descrição do que ele chama de “representação”. Para ele,
“representação” é usada como sinônimo de “imagem mental” ou “padrão neural”. “Minha imagem mental
de um rosto específico é uma representação, assim como os padrões neurais que surgem durante o
processamento perceptivo-motor desse rosto, em diversas regiões do cérebro – visuais, sômato-sensitivas
e motoras. (...) [Representação significa] um padrão que é consistentemente relacionado a algo, quer se
refira a uma imagem mental, quer a um conjunto coerente de atividades neurais em uma região cerebral
específica. (...) De algum modo, a imagem mental ou o padrão neural representa com algum grau de
fidelidade, na mente e no cérebro, o objeto ao qual a representação se refere, como se a estrutura do
objeto fosse reproduzida na representação. (...) Os padrões neurais e as imagens mentais correspondentes
são criações do cérebro tanto quanto produtos da realidade externa que levou à sua criação. Quando você
e eu olhamos para um objeto exterior a nós, cada um forma imagens comparáveis em seu cérebro”.
Conforme Damásio (2000a, p. 404-405). Há uma extensa discussão do conceito de representação, tanto
na psicanálise como na fenomenologia. No que compete à primeira discussão, a idéia de representação
está diretamente ligada à noção de pulsão em Freud e a diferença entre “representação da coisa” e
“representação do objeto”, discutida por Costa (2004) no texto “A comédia do demônio sexual”. No
tocante ao segundo, remeto ao leitor às idéias de Bérgson (1990). Em ambos os casos, a discussão
perpassa a construção de imagens do corpo.
96
nosso corpo e no nosso cérebro. Isso explicaria, grosso modo, as diversas patologias ou
“self”, do nosso “eu” e da nossa própria subjetividade, para Damásio, também possui
identidade pessoal e da construção do “eu” ou do “self”. Vejamos, por fim, como isso se
configura.
também no plano social e é uma conseqüência dos avanços tecnológicos. Sem os novos
descrever o comportamento humano a partir das funções cerebrais vistas in loco através
dessa nova tecnologia, verificar como a mente funciona. Desde que Bichat exclamou
38
Também conhecida como “síndrome de Adonis” ou “doença da vaidade”, a vigorexia é caracterizada
pela prática de exercícios físicos e/ou musculação de forma contínua e extenuante, tal como uma ascese
corporal, e é predominantemente encontrada nos homens que procuram aumentar a sua massa muscular.
Faz parte dos transtornos dismórficos.
97
A partir desse novo paradigma para as ciências médicas, novas teorias sobre
reconhecer os avanços das neurociências no modelo médico e na vida social, tais como
Damásio.
meio e diferenciando-se de outros “eus” através da própria evolução. Para esse autor, o
“subjetividade” em Damásio.
uma cidade na Nova Inglaterra e trabalha na Estrada de Ferro Ruttland & Burlington
eficiente e capaz pelos seus superiores. Sua tarefa consiste em explodir minas nas
rochas para abrir caminho por onde passará os trilhos. Para tanto, é preciso fazer
98
buracos na rocha, enchê-lo com pólvora até a metade, adicionar o rastilho e cobrir a
pólvora com areia, que por sua vez é calcada com uma barra de ferro mediante algumas
pancadas com o martelo, para posteriormente ascender o rastilho e explodir a rocha com
a pólvora. Gage é metódico, mas um descuido nessa tarefa faz com que ocorra um
acidente sem precedentes. Antes de um ajudante colocar a areia sob a pólvora, Gage
martela a barra de ferro. Dá-se uma explosão diretamente no seu rosto. A barra de ferro,
porém, entra pela face esquerda de Gage trespassando a base do crânio (figuras 6 e 7).
Gage, como se sabe, não morreu, mas após a remoção cirúrgica da barra de
ferro e depois de enfrentar uma dolorosa recuperação do acidente, “Gage deixou de ser
saúde deteriorada em 1859, vindo a falecer em 1861. Seu crânio foi estudado por
diversos médicos neurologistas da época e seu caso entrou para a literatura como prova
Segunda vinheta clínica: descrito como o Pheneas Gage moderno, Elliott foi
um paciente de Damásio que chamou sua atenção em vista do diagnóstico médico que o
médicos queriam saber se esse tipo de comportamento era na verdade alguma doença
rara. Elliot, segundo Damásio, era um homem inteligente, competente e robusto que
necessitava ser chamado à razão para voltar ao trabalho, visto que ele apresentava
bom pai e um bom marido até aquela ocasião, mas após o diagnóstico de um tumor
cerebral seguida de uma cirurgia para a sua retirada, Elliott passou a apresentar
Quando lá chegava, parava a todo instante uma tarefa e se ocupava de outra. Passou a
Enfim, Elliott tornara-se o novo Phineas Gage, e isso serviu para mais uma vez provar
que lesão em um dos hemisférios cerebrais era capaz não só de afetar a dinâmica do
ou a identidade do sujeito.
“O que estou sugerindo é que a mente surge da atividade nos circuitos neurais, sem
sombra de dúvida, mas muitos desses circuitos são configurados durante a evolução
por requisitos funcionais do organismo. Só poderá haver uma mente normal se esses
circuitos contiverem representações básicas do organismo e se continuarem a
monitorar os estados do organismo em ação. (...) Não estou afirmando que a mente
100
se encontra no corpo. Mas que o corpo contribui para o cérebro com mais do que a
manutenção da vida e com mais do que efeitos modulatórios. Contribui com um
conteúdo [grifo do autor] essencial para o funcionamento da mente normal”
(Damásio, 1996, p. 257).
Para Damásio, ter um “eu” está pautado na “unicidade do ser”, ou seja, ter
com a noção de Daniel Dennet de que não possuímos um “teatro cartesiano” em lugar
do nosso cérebro. Dito de outro modo, o que Damásio postula é que há um “eu” para
cada organismo exceto nas situações de doença mental, tais como nos casos de
personalidade múltipla, ou ainda naqueles casos em que o “eu” foi diminuído ou foi
subjetiva não é um “impostor central” de tudo o que acontece nas nossas mentes, é
disposições neurais através do córtex cerebral, Damásio defende a idéia de que esse
“subjetividade”. Sempre que nos reportamos ao “self” nós nos reportamos à idéia de
fatos que definem uma pessoa – o que fazemos, do que e de quem gostamos, quais tipos
de objetos usamos, que locais costumamos freqüentar, que tipo de interação temos com
o ambiente que nos rodeia, onde moramos e com quem trabalhamos, quem somos e
quem são nossos amigos, quais seus nomes e nomes de parentes próximos e distantes,
39
De um modo geral, a palavra “self” é usado como sinônimo de “eu” tanto na fenomenologia como na
psicanálise ou ainda nas neurociências. Em todos os casos, ressalta-se importância do corpo (físico e
mental) na constituição de nossa identidade. Há, portanto, diversos tipos de “selves” ou “eus”: o “self
biológico”, o “self ecológico”, o “self-neurológico”, o “self cerebral”, o “self consciente”, o “eu-pele”,
entre outros. Para um conhecimento ampliado dos diversos usos e sinônimos da palavra, remeto o leitor
às seguintes referências: Costa (2004); Anzieu (1989); Dennett (1986), Bermúdez, Marcel & Eila (1998);
Campbell (1998); Butterworthy (1998); Robbins (2003); Platek et all.(2004); Brewer (1998); Eilan
(1998); Paqueron et all. (2003); Levine (2001); Wolputte (2004); Vittorio (2002) e Vidal (2002).
102
próprio corpo”, ou seja, tudo aquilo que o corpo foi e tem sido na sua relação com o
conjunto de interação entre ele e o ambiente interno e externo. De acordo com Damásio,
a subjetividade depende, em grande parte, das alterações que têm lugar no estado do
referência de tudo o que pode acontecer ao organismo. Dito de outro modo, a cada
um lugar (agora e aqui). Ela não projeta o futuro, pelo contrário, ela nos dá a percepção
de tudo o que ocorreu ha poucos instantes. Como diz Damásio (2000a, p. 34), “não há
outro lugar, não há antes, não há depois”. Ela é um fenômeno biológico que possui
identidade, uma personalidade, uma característica que individualiza uma pessoa. Ela é
consciência tal como ele as descreve. Desse modo, podemos afirmar que cada tipo de
“O sentido do self que emerge na consciência central é o self central, uma entidade
transitória, incessantemente recriada para cada objeto com o qual o cérebro interage.
Nossa noção tradicional de self, porém, está ligada á idéia de identidade, e
corresponde a um conjunto não transitório de fatos e modos de sermos únicos que
caracterizam uma pessoa. A expressão que emprego para designar essa entidade é
self autobiográfico. O self autobiográfico depende de lembranças sistematizadas de
situações em que a consciência central participou do processo de conhecer as
características mais invariáveis da vida de um organismo: quem o gerou, onde,
quando, seus gostos e aversões, o modo como habitualmente se reage a um problema
ou conflito, seu nome etc. Uso a expressão memória autobiográfica para denotar o
registro organizado dos principais aspectos da biografia de um organismo”
(Damásio, 2000a, p. 35)
mínimo que possa produzir subjetividade. Damásio o localiza nos córtices sensoriais
que o autor denomina de “meta-eu”, ou seja, uma entidade que opera através dos
(Damásio, 1999, p. 237). O choro, o riso, o rubor, o susto, entre outros, são formas de
experienciar uma emoção sem, no entanto, colocar essa experiência sob forma narrativa,
pois elas precedem o nível verbal. Essa “capacidade narrativa de primeira ordem” seria
ordem”, está a serviço da linguagem e produz relatos verbais a partir dos relatos não-
fizeram buscar na biologia das emoções e dos sentimentos as bases para a construção de
imenso palco que é o “teatro do corpo” e o “teatro cartesiano das emoções e dos
sentimentos”.
cartesiano pois, para o autor, não há separação entre o corpo, o mundo, a mente o
Como diz Andrieu (2000) o cérebro não é a condição do corpo nem o corpo
é a condição do cérebro, ou seja, não existe entre ambos uma ligação de causa e efeito,
imprescindíveis. Não existe um sem o outro. Não existe mente sem corpo nem muito
menos mente sem cérebro: a mente é o resultado da interação entre eles. Até pode haver
um corpo sem cérebro e sem mente, mas aí já não estamos mais no campo da
requer uma mente que por sua vez requer um corpo. “Essa neurobiologia do
2000, p. 52).
atividades dos neurônios com o meio externo, o mundo exterior, o ambiente e o meio
perceptivas do cérebro de um indivíduo com o meio em que ele vive. Mais do que isso,
mundo” ou no seu “campo de vida”, ou ainda, dito de outro modo, é aquela que dá ao
106
Sem esse tipo de mente, não haveria cérebro e sem um cérebro, não haveria
nem corpo nem muito menos subjetividade. Damásio, portanto, funde três instâncias,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
próprio campo da neurologia, para que fosse possível apontar para uma “neurologia
neurocientífico. Mas é preciso que se tenha em mente que cada cérebro, cada ínfima
conexão de um neurônio com o outro, não é suficiente para identificar todos os seres
Cada cérebro é específico para cada ser humano, pois cada um apreende
conexões neuronais que nos individualiza, nos particulariza, nos torna únicos?
de várias ordens buscam provar que tudo o que nos particulariza diante do Outro e do
O cérebro por si só, não fala. O cérebro por si só não ouve. O cérebro por si
não tem a capacidade de discernir o que é um homem, uma casa, ou uma montanha.
A experiência subjetiva, por sua vez, vai bem mais além. Para dar descrições
condições de dar descrição de tudo o que ela apreende, pois, conforme reforça Bezerra
Jr. (1999), a experiência subjetiva é encarnada, e dizer isto significa que a experiência
linguagem humana. A experiência subjetiva, ainda assim, também pode ser descrita
como histórica, no sentido em que ela é fabricada de acordo com contextos sociais e
contemporaneidade.
Afinal, a vida psíquica requer bem mais do que isso: requer uma interação
cérebro e mundo, sem o qual, não teríamos condições de dar descrições nem do mundo
ferramenta teórica da mente. Não obstante, Kandel é crítico quanto à relutância dos
prejudicada por uma concepção mais cientificista da mente, relegando para segundo
plano os aportes das ciências biológicas, não obstante Freud ter feito uso de uma
narrativas da mente, pelo contrário, tanto uma quanto a outra estão imbricadas.
contribuir para aquilo que ele chama de uma “biologia da subjetividade, da consciência,
mente, entre tantas, é apontar não só o referente corporal da nossa subjetividade como
111
predisposta em nosso cérebro, pois, segundo Kandel, o cérebro não espelha o mundo
como uma câmera, ele o decompõe em imagens e sensações para então reconstruí-lo na
mente.40
calcada na materialidade do corpo. Mas dizer isso não é implicar totalmente numa
descrição fisicalista da mente, pois, conforme adverte Costa (2006), qualquer hipótese
com o mundo ou com o ambiente, e quem possibilita ter a percepção de somos um “ser
indivisível”, que temos uma ipseidade, que somos um “eu” com uma qualidade
subjetiva, essa referência só nos é dada pelo Outro. Portanto, nossa imagem corporal
não está estaticamente desenhada no córtex cerebral nem é o cérebro o referente último
de nossa subjetividade.
40
O próprio Kandel, em outro momento, afirmaria: “a biologia pode revigorar a exploração psicanalítica
da mente. Devo dizer, de saída, que embora esboçamos o que poderia evoluir para uma significativa
fundamentação biológica para a psicanálise, estamos recém nos primórdios deste processo. Ainda não
temos uma compreensão satisfatória dos complexos processos mentais. Mesmo assim, a biologia tem
feito progressos notáveis nos últimos cinqüenta anos, e os passos não estão diminuindo. Como os
biólogos focalizaram seus esforços na compreensão do cérebro/mente, a maior parte deles está
convencida de que a mente representará para a biologia do século XXI o que os genes representaram para
a biologia do século XX” (Kandel, 1999, p. 508).
112
O “fetiche pelo pé” é um bom exemplo disso: o autor sustenta que Freud
poderia estar equivocado nas suas teorias acerca do fetichismo, quando analisa as
pessoas que sentiram orgasmos através de pés amputados, isto é, em pés-fantasmas. Sua
conclusão é que os fenômenos podem ser explicados pela proximidade entre as áreas do
Mas uma coisa é explicar a gênese da imagem corporal através das análises
Portanto, de acordo com Costa (2006), o exemplo clínico por ele utilizado,
foi escolhido para facilitar as crenças do leitor nas teorias da causalidade neural de fatos
mentais.
113
“Se o autor tivesse sido mais atento ao pensamento de Freud deveria explicar não
apenas o mecanismo neural do fetichismo sexual do pé, mas também em qual
vizinhança cerebral dos órgãos genitais encontra-se, não o pé, mas o ‘brilhante
cravado no nariz do outro’.(...) Mesmo se pudéssemos mostrar empiricamente que
qualquer excitação sexual depende da imaginação fantasiosa do sujeito, e é
determinada pela peculiaridade de sua arquitetura cerebral, como explicar a
diversidade cultural das proibições, permissões, enfim, dos códigos que regulam o
acesso ao gozo sexual? Em qual vizinhança dos órgãos genitais estaria o centro de
vigilância moral do erotismo de ordem mágico-animista, de ordem religiosa, de
ordem estética, de ordem jurídica, etc.? (Costa, 2006, p. 30)
membros fantasmas, podem contribuir para nossas teorias acerca das disposições
sofre quando da amputação de um membro. É nesse sentido que ele atualiza algumas
como sendo uma “neurofenomelogia da identidade”, dando voz aos seus pacientes e
caso do “Homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, no qual Sacks vai buscar
uma membrana e um órgão sensorial voltada para o exterior preparada para construir a
forma, a superfície, a textura e a temperatura dos objetos externos pelo sentido do tato.
setores deste.
114
está voltada tanto para o interior do próprio organismo quanto para o meio ambiente em
que ele reage. A interação entre o organismo e o meio se daria, portanto, através de
mapas sensoriais evidenciados, sobretudo, mas não apenas, pelo papel da pele
(Damásio, 1996, p. 261). Damásio, assim, está frontalmente próximo das considerações
construção de um “eu” como sendo um “eu pele”, ou seja, uma estrutura psíquica a qual
é acima de tudo uma estrutura intermediária do aparelho psíquico entre a mãe e o bebê,
uma membrana limitante e necessária para que seja equacionada a posição entre o “eu”
e o “não-eu”.
psicologia, cada uma, a seu modo, têm referido aos diversos distúrbios da imagem
corporal propondo tratá-los. Nem uma das disciplinas acima pode prescindir uma da
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