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O direito de buscar a felicidade

Contardo Calligaris

O ARTIGO SEXTO da Constituição Federal declara que "são direitos sociais a


educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados".

O Movimento Mais Feliz (www.maisfeliz.org) promove uma emenda constitucional


pela qual o artigo seria modificado da seguinte forma: "São direitos sociais,
essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde etc." (segue inalterado até o
fim).

É claro que, se eu dispuser de casa, emprego, assistência médica, segurança, terei


mais tempo e energia para buscar minha felicidade. No entanto o respeito a esses
direitos sociais básicos não garante a felicidade de ninguém; como se diz, ter
comida e roupa lavada é bom e ajuda, mas não é condição suficiente nem
absolutamente necessária para a busca da felicidade.

Em suma, implico um pouco com o adjetivo "essencial" no texto da emenda, mas,


fora isso, gosto da iniciativa porque, como a Declaração de Independência dos EUA,
ela situa a busca da felicidade como um direito do indivíduo, anterior a todos os
direitos sociais.

Por que a busca da felicidade não seria apenas mais um direito social na lista?
Simples.

A felicidade, para você, pode ser uma vida casta; para outro, pode ser um
casamento monogâmico; para outro ainda, pode ser uma orgia promíscua.

Para você, buscar a felicidade consiste em exercer uma rigorosa disciplina do corpo;
para outros, é comilança e ociosidade. Alguns procuram o agito da vida urbana, e
outros, o silêncio do deserto. Há os que querem simplicidade e os que preferem o
luxo. Buscar a felicidade, para alguns, significa servir a grandes ideais ou a um deus;
para outros, permitir-se os prazeres mais efêmeros.

Invento e procuro minha versão da felicidade, com apenas um limite: minha busca
não pode impedir os outros de procurar a felicidade que eles bem entendem. Por
isso, obviamente, por mais que eu pense que isto me faria muito feliz, não posso
dirigir bêbado, assaltar bancos ou escutar música alta depois da meia-noite. Por isso
também não posso exigir que, para eu ser feliz, todos busquem a mesma felicidade
que eu busco.

Por exemplo, você procura ser feliz num casamento indissolúvel diante de Deus e
dos homens. A sociedade deve permitir que você se case, na sua igreja, e nunca se
divorcie. Mas, se, para ser feliz, você exigir que todos os casamentos sejam
indissolúveis, você não será fundamentalmente diferente de quem, para ser feliz,
quer estuprar, assaltar ou dirigir bêbado.
Não ficou claro? Pois bem, imagine que, para ser feliz, você ache necessário que
todos queiram ser felizes do jeito que você gosta; inevitavelmente, você desprezará
a busca da felicidade de seus concidadãos exatamente como o bandido ou o
estuprador a desprezam.

Em matéria de felicidade, os governos podem oferecer as melhores condições


possíveis para que cada indivíduo persiga seu projeto -por exemplo, como sugere a
emenda constitucional proposta, garantindo a todos os direitos sociais básicos. Mas
o melhor governo é o que não prefere nenhuma das diferentes felicidades que seus
sujeitos procuram.

Não é coisa simples. Nosso governo oferece uma isenção fiscal às igrejas, as quais,
certamente, são cruciais na procura da felicidade de muitos. Mas as escolas de
dança de salão ou os clubes sadomasoquistas também são significativos na busca
da felicidade de vários cidadãos. Será que um governo deve favorecer a ideia de
felicidade compartilhada pela maioria? Ou, então, será que deve apoiar a felicidade
que teria uma mais "nobre" inspiração moral?

Antes de responder, considere: os governos totalitários (laicos ou religiosos) sempre


"sabem" qual é a felicidade "certa" para seus sujeitos. Juram que eles querem o bem
dos cidadãos e garantem a felicidade como um direito social -claro, é a mesma
felicidade para todos. É isso que você quer?

Enfim, introduzir na Constituição Federal a busca da felicidade como direito do


indivíduo, aquém e acima de todos os direitos sociais, é um gesto de liberdade,
quase um ato de resistência.

In: Ilustrada. Folha de São Paulo. 10/6/2010.


Disponível em http://antoniocicero.blogspot.com/2010/06/contardo-calligaris-o-direito-de-buscar.html
Acesso em 19/1/2012.

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