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A— Í^CA í-tAA» CM-JL.
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DICCIONARIO UNIVERSAL
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I
MEMORIAS
PARA
S E R V IR E M A. H IS T O R IA
DOS
RELIGIÃO CHRISTÃ
P R E C E D ID O
DE UM DISCURSO EM QUE SE INVESTIGA QUAL FOI A RELIGIÃO PRIMITIVA DOS HOMENS,
AS MUDANÇAS QUE SOFFREU A TÉ AO NASCIMENTO DO CHRISTIANISMO,
AS CAUSAS GKRAES, ENCADEAMENTO E EFFEITOS DAS HERESIAS QUE DIVIDIRAM OS CHR1STÃOS
TRADUZIDO
2 " }ò (o ê )
POR
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A N TO N IO G O M ES P E R E I R A
PRESDYTERO DA DIOCESE DO PORTO
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PORTO
EM CASA DE CRUZ COUTINHO-EDITOR
1 8 E 2 0 — CALDEIREIROS— 1 8 E 2 0
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O. S. R. Pesquisas Religiosas
Requieiçôo:_____________________
Preço:_________________________
Livraria ou D o a ç é o de:
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C la ssif.:
VI PREFACIO
V
MEMORIAS
PARA SERVIREM Á HISTORIA
DOS.
XZSTT^OIDXTCJÇJ-iLO
O homem recebe da natureza um inven mas estas leis combatem as paixões, ou mor;
cível desejo d’adquirir conhecimentos, ces- tificam os sentidos: ella promette uma feli
tendel-os, de ser feliz, e d’augmcntar sua cidade eterna c infinita; mas cm que ha de
felicidade. haver graus proporcionados aos mereci
Manifesta-se este desejo no menino, no mentos: fmalmcnte ella ameaça com uma
selvagem, e no homem frivolo pela celeri desgraça eterna, aquelles que não creem
dade, com que tomam e abandonam os obje os seus dogmas, ou que não obedecem às
ctos novos; no homem d’espirito pelo es suas leis, e busca todos os meios necessá
forço que faz para tudo conhecer, tudo ex rios para que se creiam as verdades que
plicar, tudo comprehendor; em todos por annuncia, e se desempenhem as obrigações
um amor insaciável do prazer, da gloria e que ella impõe; porém ella não destroe,
da perfeição. nem a actividade da alma, nem a inquieta
É desejo este, que determinado alterna- ção do espirito, nem a fonte das paixões,
damente pelos sentidos, pelas paixões, e nem o imperio dos sentidos, e nem previne
pela imaginação, ou dirigido pela razão que em todos os homens os desvios da razão,
tirou os homens da ignorância e da barba ou os descaminhos do coração humano.
ria, formou as sociedades, estabeleceu leis. D’est’arte, o espirito humano" levou no es
inventou as artes, deu nascimento ás scien- tudo dos dogmas da religião christã, na prâ-
cias, produziu todas as virtudes e todos os ctica das suas obrigações, princípios d’illu-
vicios, causou na sociedade todas as revo são, de desordem c aerro.
luções e mudanças; urdiu este labyrintho Collocado o christão, por assim dizer, en
de verdades e d’erros, d’opiniões, e de sys- tre a authoridade da revelação, que lhe pro
temas, de politica, de moral, de legislação, punha mysterios, e o desejo de se illustrar,
de philosophia, e de religião, no qual, ex que faz continuo esforço para comprehen-
cepto o povo judaico, q genero humano, di der e explicar tudo o ,que o entendimento
vagou até o nascimento do Christianismo. humano recebe como verdadeiro, creu os
Quando nasceu o Christianismo, os chris- mysterios, e procurou tornal-os intòlligiveis.
tãos voltaram este esforço para os dogmas, Não podia tornal-os intelligiveis senão por
e para a moral da religião christã. Os do meio das idéias que a razao lhe fornecia;
gmas que. ella ensina são evidentemente re aproximou os mysterios ás suas idéias ou
velados; mas muitos d’elles são mysterios: a seus princípios, substituiu algumas vezes
ella prescreve leis as mais proprias para fa suas idéias aos mysterios, ou não admittiu
zer o hom<g) feliz, mesmo sobre a terra; nos mysterios senão o que se accommodava
%
9
INTRODUCÇÃO
com os seus princípios, c com as suas idéias: que o Christianismo sc tornou a religião na
arrastado como todos os homens pelo amor cional.
invencível da felicidade, determinado pela Os cíTeitos das heresias, tão oppostos ao
religião a procuraNa nas esperauças da outra espirito da religião, não são sern dúvida
vida, ao mesmo passo que os sentidos e as comparáveis com as vantagens que ella p rof
paixões lhe mostravam a felicidade nos cura aos homens c ás sociedades civis.
objectos que bs lisongeiam, ellc procurou O reinado do paganismo foi também o
conciliar o interesse das paixões e dos sen reinado do crime c da desordem. Ainda
tidos com as esperanças da religião, ou sa sem nos voltarmos para esses tempos que
crificou umã cousa á outra, c viu um cri nos ficam mais remotos, lancemos uma vista
me nas acções mais innocentes; fez das ac d’olhos sobre o estado do inundo, antes que
ções mais criminosas outros tantos actos o Christianismo sc dilatasse pelo império
ae virtude. romano. Vèeni-se, por toda a parte, nações
Este, altrahido pela felicidade que a re armadas para conquistar outras nações, vas-
ligião promette, esforçou-se para remontar sallos tyrannisados por soberanos, soberanos
até o seio da Divindade. Para fruir esta fe desthronisados pelos seus vassallos, cida
licidade antes da morte, entregou-se á con dãos ambiciosos, que poom em ferros a sua
templação, teve visões, cahiu cm extasis, patria, que nenhum crime suspende, ne
creu-se elevado sobre a impressão dos sen nhum remorso corrige: por toda a part*, o
tidos. acima das paixões, acima das neces fraco opprimido pelo poderoso, por toda a
sidades do corpo, que ellc abandona a tudo parte o direito natural desconhecido ou des-
o que o cerca: ao mesmo tempo que outro, presado, quasi aniquilada a ideia de justiça
ferido' da desgraça dos condemnados, via e da virtude, ou tão monstruosamente des
por toda a parte demonios e inferno, e des- figurada, que se não cuidava mesmo de lhe
presava os deveres mais essenciacsdo Chris conservar as apparendas. Lance-se uma
tianismo, para se ligar a prácticas super vista sobre o estado do mundo, sob a do
sticiosas ou barbaras, que a imaginação e minação dos Marios,dos Scillas, dos Cesares,
o terror lhe suggeriam. dos Tiberios, e dos Neros, etc.
Tal é, geralmente fallando, a ideia que No meio d’esta geral corrupção, o Chris
se deve formar dos desconcertos do espi tianismo produz homens justos c desinte
rito humano sobre o assumpto da religião ressados, que ousam accommelter o vicio, e
christã. trazer os seus similhantes á práctica das
Todos os homens teem o natural desejo virtudes as mais uteis para o bem da socie
d’inspirar seus gostos e suas inclinações, e dade civil; fórma uma sociedade religiosa,
fazer adoptar suas opiniões e seus "costu que as practica, promette aos verdadeiros
mes; mas jamais é tão activo e tão empre- christãos uma recompensa eterna c infinita,
hendedor este desejo como quando animado e ameaça os maus com tormentos eternos.
do zelo da religião: manda esta, que traba Os que a abraçam, derramam seu sangue
lhemos não somente pela nossa, mas tam para confirmar sua doutrina, querem antes
bém pela salvação do proxiino; assim, o perder a vida, que commettcr um crime.
chrislão zeloso que cahiu no erro, o cnthu- Quem duvidará que uma tal doutrina, que
siasta, cuja imaginação produziu alguma a sociedade que a professa c que a practica,
práctica religiosa, se "se crê obrigado a eu- não seja o mais seguro meio para obviar a
sinal-a, e, sepóde, violenta todos os homens desordem, c inspirar as virtudes mais es-
a fallar, a pensar, e a viver como elle. sebeiaes ao bem da sociedade civil?
A igreja, que véla sobre o deposito da fé, É verdade que os christãos teem degene
condemna o erro, prescreve os mais eflica- rado, que se dividiram, e que entre elles
zcs meios para atalhar os seus progressos: se tem visto, e nos estados, guerras de reli
mas o christãò errante é muitas vezes indó gião, apenas conhecidas entre os pagãos; po
cil á sua voz; e o defensor da verdade nem rém estas guerras tiram a sua origem, não
sempre se conserva dentro dos limites que dos princípios da religião', mas sim das pai
ao verdadeiro zelo prescrevem a religião e xões que ella combate, e muitas vezes dos
a igreja. E, como a reacção tanto em o mo mesmos vicios do governo civil; muitas ve
ral como em o physico é igual àacção,cré-se zes a cobiça, o espirito de dominação, ac
empregar em defesa da verdade," quanto o cenderam o fanatismo; outras, os facciosos,
erro se permitte contra ella. e descontentes, se aproveitaram, para os
Produziram, pois, os erros dos christãos, seus intentos, do fanatismo, produzido pelas
„ heresias, seitas, e scismas, que hão dilace disputas dos christãos; muitas vezes a am
rado a igreja, pozeràm em armas os chris bição e a politica se serviram do seu zelo
tãos, e em desordem os estados, onde quer sincero e virtuoso pana a exeoj^ão dos seus
INTRODl>CGAO 3
projectos; íinalmentc, nunca as heresias fo O esforço que inccssantemente faz o en
ram tão funestas á tranquillidade pública, tendimento humano por dilatar os conheci
como nos séculos ignorantes, ou nos esta mentos e augmcntar a sua felicidade, des
dos corrompidos. Duvidar-sc-ha, quo ainda envolve estes germens, c faz nascer algum
iJestcs estados corrompidos, não se encon novo erro, ou reproduz os antigos debaixo
tre um grande numero quo crê as verdades de mil fôrmas diversas. As circumstandas
do Christianismo, c practicaas virtudes que cm que cllcs apparecem, c os caracteres
elle lhes ordena? Duvidar-sc-ha que a crença dòs seus authorcs ou partidários, fazem mais
d*estas verdades não atalhe muitos crimes ou menos rapido o seu progresso, e mais
e desordens ainda entre os maus christàos? ou menos perigosos os seus eíTcitos; mas
Que nos estados corrompidos não fórme a nenhum ha, que não seja nocivo, e todos po
religião cm todas as condições almas vir dem arrastar funestas consequências, por
tuosas e beneficas, que se dedicam ao soc- que todos nascem do fanatismo, ou podem
corro e consolação dos desgraçados? Poderá produzil-o. Que males não causou no oriente
final mente duvidar-se, que a persuasão das e no occidente, essa multidão d’crros c de
verdades da religião nao seja um remédio seitas, que se levantaram desde Ario até
para os infelizes, c o meio mais adequado Calvino?
para fazer que reine sobre a terra, a paz, O fanatismo é um zelo ardente, mas cego:
a humanidade, a doçura c a beneficência? fórma-sc, c sc accende no seio da ignorân
Que seria da Europa, depois que se des cia, extingue-se, e sc aniquila em presença
truiu o imperio romano, se não fosse a reli da verdade. Nos séculos barbaros, c entre
gião christã? Teria a mesma sorte que hoje os povos ignorantes, é onde são formidáveis
experimentam a Grécia, a Asia menor, a os chefes fanaticos. Uma nação illustrada
Syria, o Egypto, todos os reinos do oriente: os olha como eufermos, dignos de compai
os hunos, os godos, os vandalos, os alanos, xão, ou os tem por embusteiros, que só me
os francos que conquistaram o occidente, recem indignação e desprêso.
não eram menos ferozes que os turcos, os Não ha pois*cousa mais interessante do
tartaros, que subjugaram o oriente. que illustrar os homens sobre os erros que
Aquelles que não conhecem a religião, atacam a religião, e sobre os meios condu
c que impugnando-a, se persuadem comba centes para prevenir os eficitos da sua adhe-
ter em favor da humanidade, deixem pois são a estes erros, c o abuso que se pódc
•de pensar que cila seja contraria á felici fazer da sua confiança e do seu zelo. Sc fosse
dade dos homens, c d’attribuir-lhe as des possível, deveriam fazer-se correr c fami-
graças causadas pelas seitas e disputas dos liarisar estes conhecimentos cm todos os es
chrístãos, c imputando-as á vigilância com tados, ou pelo menos fáceis d’adquirir a todo
que a igreja rejeita e condemna tudo o que al o homem que faz uso da razão.
tera a pureza da sua doutrina e do seu culto. Nós julgamos, que se podia, ciu parte,
Porém os que amam a religião o o estado, preencher este fim com memorias, que fi
nem dissimulam os abusos que os interes zessem conhecer os desvarios do entendi
ses c as paixões cobrem com a capa de re mento humano arespeito da religião christã;
ligião, nem as desgraças que foram conse a origem das heresias e dos erros, os prin
quências dos scismas c das heresias. cípios em que ellas se teein firmado, a mar
Qual poderia ser o abjecto do zelo. que cha que teem seguido, os meios dê que se
quizesse riscar a sua memória, ou dimi serviram para os seus progressos, desde o
nuir-lhe a grandeza? seu nascimento ate os nossos dias; que nos
No fundo do coração de Iodos os homens ensinassem que princípios se lhe oppoze-
está como escondido* o principio de fanatis ram, as razões com que se combateram c
mo, o nada o descobre tão promptamente, condemnaram, as precauções que foram to
como as heresias, as seitas, e as disputas madas para estorvar a sua carreira, o bom
de religião: sómente cilas o podem bem ma exito que tiveram, c a causa porque ellas
nifestar em todos os corações, c dar ao fa se tornaram umas vezes inúteis, outras fu
natismo uma actividade ê uma constância nestas.
capaz do tudo ousar, resistir, e sacrificar Com o auxilio d’estas memórias poder-
no interesse de partido. sc-ia distinguir seguramente o amor da ver
Estas heresias, tão funestas â religião o dade, do espirito de partido, o zelo pela re
•ás sociedades civis, trazem a sua origem ligião do iuterresse pessoal: não se confun
das imperfeições ou das paixões adherentes diríam as opiniões permittidas cora os erros
natureza humana; e cáda século conserva coidemnados, nem o erro voluntario com a
d ’alguma sorte escondido o germen de to heresia: conhccer-sc-ia a extensão, e os li
das as hercsÉfcs, c de tfldos os-erros. mites do zelo e da firmeza que a religião
4 QfTRODUCÇlO
CAPITULO I
unil-as, scparal-as, c mistural-as a sou ta- cáhos informe, senão porque tivesse des
lantc. A analogia o havería, pois, conduzido coberto, que cllc "hão exislia necessaria
a suppôr na natureza uma infinidade ^ e s mente, que tinha prrneipiado e que a ma
píritos que produziam os phenomenos, a téria que o compunha não tinha por si mes
imaginação os teria crcado em toda a parte; ma a potência motriz, c a intelligcncia nc*5
por toda a parte se collocariam, e explicado cessaria para formar os astros, estabclecer-
tudo por meio d’clles, como se vò entre os Ihcs a ordem, e dar-lhes a harmonia que
povos selvagens descobertos desde Christo- reina entre elles; que a matéria tinha re
vão Colombo. cebido o seu movimento e a sua fôrma dc
A imaginação, que tão facilmente se ac um principio distincto d’clla, c immatcrial,
commoda aos genios,repugna pelo contrario que formára o mundo inteiro, c dado leis á
á ideia do cáhos, e os sentidos a combatem. natureza.
O espirito humano, no estado em que nós Para que os primeiros homens, no estado
o suppômos, não podoria, pois, chegar ao cm que os havemos supposto, se elevassem
conhecimento d’um cáhos anterior á forma por meio do raciocínio á crença d’um cá
ção do mundo, senão depois de haver reco hos universal, c anterior ao mundo, não se
n h ecid o a falsidade dos genios, aos quaes ria necessário somente que elles tivessem
cllc antes attribuiria os phenomenos da na sahido da barbaridade, e cultivado as ar
tureza. tes e as scicncias, mas que tam bem^ie-
Para renunciar ao systema dos genios, gassem a conceber a ideia d’um espirito dis
tão agrada vel e tão interessante para a ima tincto, c senhor absoluto da natureza.
ginação e fraqueza humana, era necessário Estes homens não se teriam, pois, elevado
ter reconhecido que nos phenomenos tudo ao Theismo, senão sobre os destroços c a
e opera nicchanicamento, o que suppõe extineção do Polytheismo; sobre uni conhe
íccssariamente, no gênero humano, tal co- cimento sublime da natureza, sobre os prin
o o temos supposto, uma longa serie d’ob- cípios d’uma metaphvsica, que teria dissi
rvações, ligadas e comparadas entre si, pado todas as illusões dos sentidos, des
na physica, e artes. truído todos os prejuízos da imaginação, cor
Para chegar á crença do cáhos, depois de rigido todos os desvarios da razão sobre o
.laver reconhecido a falsidade do systema Polytheismo, c sobre as causas dos pheno
de genios, era forçoso formar o projecto de menos.
remontar á origem do mundo, ter seguido Seria, pois, um absurdo, suppôr que na
as producçõcs da natureza cm todos os seus ções que se conservaram barbaras, sem
estados, havel-as visto nascer d’um princi artes, c entregues ã idolatria mais repu
pio commum, voltar a clle,c confundirem-se gnante, c, n’cste estado, formaram o projecto
alli de novo.. de investigar a origem do mundo, des
As observações, que teriam feito julgar cobriram que cllc é obra d’uma intelligcn
que no globo terrestre tudo esteve no princi cia infinita, immaterial, c que as causas dos
pio confundido, não poderiam persuadir que phenomenos da natureza estão ligadas.
(y Céo foi, primitivamente, mais que um Quando uma nação ignorante e grosseira
cáhos medonho. Nenhum dos phenomenos podésse conceber ô projecto de descobrir a
observados sobre a terra faz suppôr que a origem do inundo, dever-se-ia suppôr que
luz dos corpos celestes esteve coufundida todas, ao mesmo tempo, haviam formado
com as partes terrestres. este projecto, como era necessario que acon
. As tempestades, as tormentas, os vulcões, tecesse, para so chegar á crença d’um cá
que poem em desordem a atmosphera, e que hos? Quando cilas podéssem haver formado
abalam a terra, não actuamj nem levemente, este projecto, porque razão entre estas na
sobre o sol, e sobre os astros: sua ordem ções, tão diíTerentes em seus gostos, em
e immutavel, suas revoluções são constan seus costumes, e em suas idéias, não se en
tes, sua figura é inalterável: pelo menos, controu alguma que crésse que tudo fôra
e como os homens, no estado em que os sempre como actualmente é, como a igno
suppômos, teriam visto o Céo. Assim, a rância conduz a crêl-o, e como muitos phi
observação, longe de persuadir que os cor losophos o tem pensado? Como haverão to
pos celestes haviam estado confundidos no dos chegado á crença de uma alma universal,
abysmo de que sahira a terra, pelo contra creadora do inundo, e do cáhos anterior a
rio, as stías observações conduziríam a sup formação dc todos os entes que vêmos?
pôr que o Céo e os astros, tinham sido sem Povos que cultivam o espirito, podem
pre taes, quaes os viam. elevar-se até princípios geraes, chegar a ver
Não havería pois supposto o espirito dades communs, porque o espirito que se
humano, que o Céo fôra no principio um esclarece, dilata suas Idéias, o. as idéias
DISCURSO PRELIMINAR 7
quo conduzem á verdade são communs a possibilidade d’esta supposição, como cila
todos os homens; mas é impossível que po é destituída de provas,'ninguem a póde af-
vos differentes, immersos na ignorância, e firmar, fazendo d’cl!a o fundamento d’uma
que não cultivam seu espirito, hajam che historia, c avançar que uma opinião que se
gado a um principio geral, c creiam uni baseia sobre este supposto, é um sentimento
formemente um dogma sublime: porque a demonstrado, uma verdade attestada pelu
ignorância tende a meurtar as idéias, a de Oriente e Occidente. Aristoteles diz bom,
compor, digamol-o assim, todos os princí que ha apparencia, de que havondo-sc per
pios geracs, para fazer idéias particulares, dido muitas vezes as sciendas, estas opi
c não a reunir idéias particulares para d’cl- niões se conservaram como restos da dou
las formar princípios geracs: o que tudo trina dos primeiros homens, o que suppõe
seria necessario para se elevar por via do que este philosopho olhava o Theismo como
raciocínio, c pelo espectáculo da natureza, a doutrina dos primeiros honlcns, e a sua
da ignorância absoluta, e do Polytheismo o religião primitiva. Elle diz mesmo expres-
mais grosseiro, ao dogma do cáhos, e da samente, que o Polytheismo é uma addição
alma universal: seria indispcnsavclmentc feita á doutrina dos primeiros homens.
necessario dizer-se que esta uniformidade Respondo em segundo logar.quc não póde
de crenças cm povos tão differentes fòra suppôr-se que os autepessados d’estes po
oltRi do acaso, o que é absurdo. vos se houvessem elevado até á crença da
Entre o dogma d’uma intelligencia infi alma universal, c do cáhos. Posto que não
nita, que creou, que conserva o muiido, que admitta dúvida, que o entendimento hu
o anima, e a ignorância em que os monu mano se possa elevar por via do raciocínio
mentos historicos nos representam estas na á crença d'uma intelligencia que formou o
ções, ha uma distancia que o entendimento mundo; posto que elle não possa chegar á
humano não póde alcançar d’um salto; é crença do cáhos sem reconhecer a existên
reciso, pois, que ellas hajam recebido este cia cfesla intelligencia, todavia este conhe
ogma; e ha na maneira de viver d’osta$ cimento não bastava para conceber que o
nações, nas suas situações, nas suas idéias, mundo tinha sido no principio um cáhos
tantas difiérenças, que é impossível terem informe c espantoso, porque já lizemos vér
ellas imaginado, ou conservado uniforme que não ha na natureza cousa quo conduza
mente este dogma, se não sahem d’uma só a crêr o cáhos, e que a razão, que vé a ne
familia, e se o dogma d’uma intelligencia cessidade d’uma intelligencia omnipotente
suprema, que formou o mundo, não entrou para aproducção do mundo, da mesma sorte
na instrucção paterna. vé que não era necessário que ella o ti
A crença do cáhos, precedeu o mundo; rasse d’um cáhos preexistente, c que ha uma
a d’uma alma universal, que tirou todos os infinidade de modos differentes para pro-
séres do cáhos, e anima toda a natureza, duzil-o.
tem, pois, sua origem na tradição comraum E quando o acaso tivesse podido condu
a todos os povos, e anterior ão seu Poly- zir a esta opinião alguns philosophos, qual
theismo. quer sociedade, seria possível, que condu
Mas d’onde vem esta tradição? zisse todas as nações, e que todas a conser
Não é possível, que, como o diz Aristóte vassem?
les na referida passagem, se hajam perdido Concordando estes philosophos sobre a .
muitas vezes as scieucias, os homens esti necessidade d’uma intelligencia suprema
vessem ao principio em um estado de sel para a producção do mundo, se haveríam
vagens, que se elevassem por todos os graus dividido em infinitos partidos, todos diffe
do Polytheismo até á crença d’uma alma rentes, sobre o modo d’explicar a mancisa
universal, que havia tirado 6 mundo do cá como ella o produziu; da mesma sorte que
hos, e ainda mesmo até o Theismo? Não é os vémos unidos todós sobre a eternidade
possível, quo quando o genero humano che do mundo, e fazerem infinidade de syste-
gou a estes conhecimentos, uma revolução mas, para explicar a formação dos séres que
subita no globo terrestre fizesse perecer to elle contém.
dos os homens, á excepção do limitado nu Logo, em nenhuma supposição, poderam
mero que criam estes dogmas, que talvez até os homens elevar-se do Polytheismo á crença
créssem na existência d um Deus, mas que d’um espirito, ouo tirou o mundo do cáhos.
a necessidade e a mudança de seu estado É logo a intelligencia creadora, a que por
•fez cahir no barbarismo, e^no Polytheismo, si inesma se manifestou aos homens, fazen
e que não conservaram senão a crença do do-lhes conhe.cer por uma via differente do
cáhos e da alma universal? raciocínio que ella tirára o murfdo do ca-
Respondo: primeiro, que concedendo a hos; ó, pois, o Theismo a religião primi
DISCURSO PRELIMINAR
tiva dos homens; e a crença do cáhos e da dente da revelação, o mais superior grau
alma universal, que’se encontra na mais re de certeza de que a historia possa ser sus
mota antiguidade, é a corrupção do Theis ceptível, sem que as escuridades que se en
mo, e uma prova de que o Theismo foi a contram em alguns detalhes a hajam ^ en
religião primitiva do genero humano. fraquecer. Como pois se persuadiu mr. Hu
Moysés, como historiador, ensina-nos o me, que remontando-se além de 1700 an
que a razão, sustentada sobre os mais irrc- nos, se encontra lodo o genero humano ido
. fragaveis monumentos, nos faz conhecer da latra, e nenhum vestigio d’uma religião mais
religião primitiva dos homens. perfeita? E como pôde aífirmar que a sua
Moysés, o mais antigo dos escriptores, opinião era uma verdade attestada pelo
ensina que uma iutelligencia omnipotente Oriente e pelo Occidente?
creou o mundo e tudo o que elle encerra; «Porém, diz mr. Hume, tanto quanto po-
que este sêr supremo esclareceu o homem, «dêmos seguir o fio da historia, encontra-
deu-lhe leis, e lhe propôz castigos ou prê «mos o genero humano entregue ao Poly-
mios; refere-nos que o homem violou as leis «theismo, e poderiamos persuadir-nos que
que lhe foram prescriptas: seu castigo, que «em tempos mais distantes, antes do desco-
se estendeu a todo o genero humano; as «brimento das artes e sciencias, tivessem
desordens de seus filhos; o castigo de suas «prevalecido os princípios do Theismo? Se-
desordens, por um dilüvio que submergiu «ria isto dizer-se, que os homens desccfcuri-
a terra debaixo das aguas, e fez perecer «ram a verdade emquanto eram barbaros
seus habitantes, á cxcepção de Noé e sua «e ignorantes, e que tinham cahido no erro,
familia. «logo que principiaram a instruir-se.
Moysés, nos diz, que a familia de Noé co «Nem sombra de verosimilhança tem esta
nhecia o verdadeiro Deus, mas que haven «opinião, antes é contraria ao que a expe-
do-se multiplicado e dividido, formara dif «riencia nos faz conhecer dos princípios e
ferentes nações, entre as quaes se tinha al- «opiniões dos povos barbaros.
ejado, e até extincto o conhecimento do «...........Por pouco que se medite sobre os
)eus verdadeiro, excepto entre os ju- «progressos naturaes dos nossos conheci-
:eus. «mentos, todos se persuadiram, que a mul-
Comparando o que Moysés nos ensina so «tidão ignorante havia de formar primeira-
lare a origem do mundo com a crença do «mente idéias bem grosseiras e bem baixas
cáhos e do dogma da alma universal, pa «d’um poder superior: como se pretende,
rece que elle não pediu emprestada a sua «que ella se tenha elevado d’improviso a
historia áquellas nações, entre as quaes «noção do sêr perfeitíssimo, que pòz a or-
achamos a crença do cáhos, e da alma uni «dem e a regularidade em todas as partes
versal, e que em nenhuma parte se tinha «da natureza? Crêr-se-ha que os homens
elevado a razão a estas idéias no tempo de «representassem a divindade como um es-
Moysés. O Genesis contém, pois, a tradi «pirito puro, como um sêr sapientissimo,
ção primitiva, ou fiel mente conservada, ou «todo poderoso, immenso, antes de o repre-
renovada por um modo extraordinario. «sentarem como um poder limitado, com
Não é menos certo que as nações em que «paixões, appetites, e orgãos similhantes
encontramos o dogma da alma universal, «aos nossos? Eu acreditara da mesma sorté
não deviam esta crença a Moysés, e que el- «que os palacios foram conhecidos antes
las odiavam os judeus. Todos os monumen «das cabanas, e que a geometria precedeu
tos da antiguidade se ajustam, aliás, com a «a agricultura. O entendimento não se eleva
historia de Moysés. Todos os annaes dos «senão gradualmente; não fórma ideia do
^povos remontam á época da dispersão dos «perfeito, senão fazendo abstracção do que
homens, assignalada por Moysés, e alli pa «o não é... Se alguma cousa podésse per-
ram como por combinação. Os criticos mais «turbar esta ordem natural dos nossos pen-
sábios reconheceram e provaram a confor «sarnentos, deveria ser um argumento igual-
midade da historia de Moysés com os mo «mente claro e invencível, que transporta-
numentos da mais remota antiguidade.1 «ria immediatamente nossas almas aos prin-
A historia de Moysés tem logo, indepen «cipios do Theismo, e lhes fez, para assim
«dizer, transpor d’um salto o vasto inter-
«vallo que existe entre a natureza humana
i V. Bochart. no seu Phaleg.G rot. de «e a natureza divina. Não nego, que, me-
Relig- com as notas de m r. de Le Clerc; o «diante estudo e exame, não possa tirar-se
Comm. de Le Clerc. sobre o Genesis; Jaque- este argumento da estructura do Universo;
lo t da existência de DeuSj dissert. 1. c. «mas o que me parece inconcebível, é que
26. A s notas de Le Clerc sobre Hesiodo. homens grosseiros tivessem capacidade
DISCURSO PRELIMINAR 9
«para o formar, quando conceberam as pri- ferentes graus do Polytheismo, era neces
«mciras idéias d’uma religião.» 1 sario provar que o homem tinha sido, para
Todos esles raciocínios de mr. Hume, assim dizer, lançado sobre a terra, e aban
.quando muito, provam que o Theismo não donado ás suas simples faculdades c pre-
.se estabeleceu entre os homens de repente, cisões, a seus desejos, ás impressões dos
ou por via da reflexão na supposioão de corpos que o rodeiam.
que o primeiro homem fosse creado tal, Mr. Hume nada disse para comprovar
.quaes nascem os d’agora, c que Deus os este facto, sem o que a sua opinião ácerca
deixasse entregues ás suas limitadas forças. da Religião primitiva dos homens, não passa
Porém, não será possível, que Deus ele dTima supposição chimerica, já destruída
vasse o primeiro hômem immediatamcnte por tudo quanto havemos dito sobre a Re
.ao conhecimento do seu creador? Não é ligião primitiva; mas que nos occuparáum
.possível que o primeiro homem haja sido momento ainda, para melhor fazer sentir
creado com uma facilidade para conhecer quanto mr. Hume se illudiu sobre a mar
a verdade, com uma sagacidade capaz de cha do espirito humano.
se fazer elevar rapidamente pela simples Supponhamos o homem formado pelo
contemplação do universo, e de si mesmo, acaso, ou lançado, digamol-o assim, pelo
ao conhecimento de Deus? Pretcnder-se-ha Creador sobre" a terra, e abandonado uni
que a?nalureza não possa produzir intclli- camente ás suas faculdades taes, como mr.
gencias mais perfeitas, do que as nossas al Hume suppõe, que nós as recebemos da
mas? Não será possível que este primeiro natureza; façamos diligencia por descobrir
homem perdesse esta facilidade de conhe por meio da hisloria c da analogia, porque
cer a verdade, c que ella se negasse a seus serie d’idcias este homem pôde elevar-se
•descendentes? N’este supposto teriam os ao conhecimento d’uma intelligencia supre
homens recebido o conhecimento de Deus ma, e em que estado se encontraria o en
por via d’instrucção e d’educação. Apesar tendimento humano, quando chegasse a este
íla imperfeição do seu espirito, elles o ha conhecimento.
veríam concebido como um sér soberana O homem, tal como nós o suppômos, não
mente perfeito; os primeiros homens não tendo por mestre senão a necessidade, de
haveríam adquirido a ideia da Divindade, morou-se muito tempo antes de reflectir so
•çomo descobriram as artes ou os theore- bro as causas dos phenemenos: no princi
mas de geometria. pio, não teria buscado senão a causa dos
Se é certo que. o homem não possa ele males, que tivesse experimentado, e as at-
var-se ao Theismo senão pelo raciocínio, e tribuira a,animaes similhantes aos que elle
em subindo da ideia d’um sêr limitado até temesse. É assim que os moxos attribuiram
A ideia d’um sér infinito, diga-me mr. Hume suas calamidades e molestias a um princi
como, entretanto que nações as mais bem pio malfazejo, que elles suppunham ser um
policiadas, e mais cheias de luzes, se acham tigre invisível. 2
submergidas na idolatria, se encontra so Tcr-se-iam multiplicado os homens, e não
bre terra um povo sem artes, sem seien- haveríam sahido d’csta ignorância, senão
cias, separado de todos os povos, e entre com uma demora prodigiosa; c sómente no
este povo grosseiro a crença dTima intelli- fim de muito tempo attribuiriam ás almas
gencia suprema, que creou o mundo pela dos mortos uma parte de seus males; elles
sua omnipoteneia, e o governa pela sua teriam supposto nas almas d’estes bomens
providencia? Como se dá que os philoso mortos todos os gostos, todas as idéias, to
phos mais esclarecidos e que mais hão me das as paixões dos homens vivos, e se oc-
ditado sobro a origem do mundo, e sobra a cupariam a lisongear estes gostos, ou a sa
Divindade, não tenham jámais ensinado tisfazer estas paixões.
cousa tão sublime e tão simples acerca do Ter-se-iam por muito tempo fixado n’este
Sêr Supremo, como a crença d’este povo culto, e talvez até o em que um raro acaso lhes
ignorante e grosseiro, entre o qual, por con fizesse imaginar potestades invisíveis, e su-
fissão do mesmo mr. Hume, o Polytheismo pèriores aos homens, mas ás quacs elles te
não era um dogma especulativo adquirido riam attribuido os desígnios, os gostos, as
pelo raciocínio tirado das maravilhas da fraquezas, e as paixões da humanidade, que
natureza? elles procurariam tornar propicias por to
Para provar que o homem não pôde ele dos os actos que crêssem ser-lhes agrada-
var-se ao dogma da unidade de Deus, se veis; e estes actos constituiríam a' sua reli
não pela via lenta do raciocínio, e pelos dif- gião.
Todavia, tcr-sc-iam formado sociedades; mas sim, á ideia vaga d’um genio mais po
a guerra, c as paixões, se haveríam accen deroso que tudo o que se conhecia.
dito sobre a terra, os homens temeríam Nos povos idolatras, o respeito e os elo
mais seus inimigos armados do que os se gios não crescem senão á medida que ollcs
res invisíveis: as forças do espirito se ha ligam mais successos á mesma causa; eis
veríam dirigido principalmente para os obje a marcha do espirito humano, c o funda
ctos, que tornassem as sociedades mais tran mento da distineção das grandes e peque
quillas. e mais felizes; as artes c as scien nas Divindades. *Os homens, pois, não se
d a s havcr-sc-iam aperfeiçoado muito mais haveríam elevado á ideia d’uma alma uni
do que a mylhologia, que apenas seria cul versal á força d’exaggerar os elogios dados
tivada por ministros ignorantes, e interes aos genios, mas por uma dilatada serie de
sados em entreter os homens no culto d e s observações que os tivesse conduzido a uma
sas potestades chimericas, que ellcs tinham unica cin esm a causa, c n’cste caso não fi
imaginado. cariam submergidos n’uma estúpida igno
É assim que os gregos, que haviam pas rância.
sado do estado selvagem para a vida poli Por outra parte, estes elogios exaggera-
ciada, tinham leis discrclissimas, c a mais dos, por meio dos quaes mr. Hume suppõe
insensata theologia: ó assim que o selva elevados os idolatras ao conhecimento de
gem, industriosissimo em tudo o que diz um Sêr Supremo, não se cornpadectrsi com
respeito ás primeiras necessidades,, é .dc o estado d’intelligencia d’estes povos, por
uma incomprehensivel estupidez acerca de que elles julgavam seus Deuses rivacs, ze
religião. losos e vingativos, e louvando um genio
Encontramos inteirãmento o contrario sem restricoão, teriam receio d’offender os
entre as mais antigas nações: no seu estado outros. Uma cxaggeração similhanto só tem
primitivo, tem uma theologia sublime, e são logar entre nações polidas, nem d’clla acha
ignorantes, grosseiras, e sem artes. O ge remos exemplo algum entre os selvagens.
nero humano não foi, pois, collocadó sobre Finalmente, não póde provar-se que o
a terra no estado em que o suppõe mr. Theismo não é a religião primitiva dos ho
Hume. mens, porque elles não teriam podido ca-
Mr. Hume, para explicar como estes ho hir no Polytheismo: Primeiro, porque o
mens idolatras poderam no estado d’igno- Theismo dos primeiros homens era uma
rancia elevar-se até o Thcismo, pretende instruccão e um dogma Iransmittido pela
fazel-os passar, á força d’e!ogios exaggera- tradição, o qual póde alterar-sé mais facil
dos. da ideia das potestades invisíveis, que mente do que sendo adquirido por uma di
adoravam, ao Theismo. 1 latada serie de meditações. Segundo, pro-
Mas é evidente que estas cxaggerações que, com effeito, os judeus, cujo Theismo
não podiam haver conduzido o homem do é incontestável, cahiram na idolatria. Em-
estado, em que o consideramos, á ideia, de fim, nós vamos mostrar como podia alte
uma alma universal, que formou o mundo, rar-se, e com efleito se alterou este dogma.
CAPITULO II
Yimos o genero humano não se compondo dade, a mnocencia, c a frugalidade dos pri-
no seu começo senão d’uma familia que co meiros homens augmentaram rapidamente
nhecia e adorava uma intelligencia supre esta familia, que foi obrigada a estender-se,
ma, creadora do universo e pouco depois a dividir-se.
Esta familia cultivava a terra, e apascen Entre os animaes que habitam a terra,
tava rebanhos nas planicies do Oriente: é quasi todos são infinitamente mais fecundos -
de lá que todos os povos sahem. A bondade do que o homem; assim, os animaes herbívo
do clima, a fecundidade da terra, a activi- ros, frugi voros, ou 'carnivoros, cercam, do
DISCURSO PRELIMINAR 11
alguma sorte, o gênero humano, c occupa- os rebanhos, aos quaes foi preciso, d’algu-
vam uma grande parte da terra, quando a ma sorte, conquistar as campinas férteis.
multiplicação dos homens os obrigou a se Fez -se, pois, a guerra aos animaes, e teve
afastarem "das suas primeiras habitações, c cada familia os seus caçadores, para defen
a dividirem-se cm differentes corpos. der os rebanhos, c guardar as colheitas. Es
listas colonias, guiadas na sua marcha tis caçadores tornaram-se os patronos das
pelo curso dos rios, pelas cadeias dos mon familias, seus chefes, c a final seus senho
tes, pelos lagos c lagoas, encontravam suc- res. Nos séculos, que os chronologistas de
cessivamentc regiões ferieis, desertos esté nominam «tempos heroicos», os homens
reis, cantõcs aonde o ar e as producçõcs da mais respeitados eram os mais valentes, os
terra eram nocivas, onde pereciam seus caçadores mais destros, os destruidores de
rebanhos. Encontravam poucos animacs anímaes perigosos.
íveslas regiões, ou estes animaes eram ma O exercício continuo da caça dispõe para
gros e mòrbosos; pelo contrario, os animacs a dureza, e até mesmo para"a ferocidade:
eram cm grande numero, c robustos nos os caçadores tornaram-se audaciosos, arro
territórios férteis, e onde os pastos, os fru- jados," e deshumanos; os vínculos, que liga
ctos, c grãos eram saudaveis. Espalhados vam os homens antes da sua divisão sc af-
os homens, tomaram os animaes por guias frouxaram: as familias que habitavam os dif
e mestres; seguiram na sua derrota o voo ferentes cantõcs, olharam-se como socieda
das aves, entenderam que os grãos que el- des estranhas.
la s . comiam com avidez eram beneficos; Estas familias não sc haviam distanciado
observaram nas entranhas dos animacs her umas das outras mais do que o espaço que
bívoros, ou nos frugivoros, as qualidades a necessidade as obrigava a occupar,"e logo
das plantas c dos lruclos, c se fixaram que sua multiplicação as forçou a esten-
iTaqucllcs logares onde todas estas indica der-se, suas possessões tocaram-se em l»re-
ções lhes promettiam uma habitação feliz. ve, comprimiram-se, disputaram-se a terra*
Tal é, verosimilmente, a origem'dos agou como tinham feito aos animaes, occupan-
ros, tirada do voo das aves, do seu môdo do-se cada familia cm defender suas plan
de comer, e da inspccção das suas entranhas, tações, seus rebanhos, e sua vida contia os
espccie eVadivinhação simples c natural na homens e contra os animaes.
sua origem, e de que a superstição e o in Foi, pois, contínua, c quasi geral, a agres-
teresse fizeram uma ceremonia religiosa .são no renascimento do genero humano, e
destinada a descobrir os decretos do des como as familias inimigas tinham forças
tino. l / quasi iguacs, a guerra tornou-se viva, cruel,
D'esta maneira, por toda a parle aonde e porfiada.
se estabeleceram .as novas colonias sabidas i\r estas sociedades dispersas, não havia
dos plainos do Oriente, encontraram ani cousa que mais sc apreciasse do que saber
maes frugivoros, pascentes, ou carnivoros, atacar ou rcpellir o inimigo. O ardil, a força,
que devastavam as searas, e destroçavam a intrepidez dos guerreiros, forani o obje-
1 f Os adivinhos que consultavam as enpelo grau do appetite com que os frangos co
tranhas, chamavam-se. Á/uspicçs: os que fun miam; se comiam pouco diligentes e deixa
davam as suas prophccias nó voo e canto vam cahir parte da comida, e principal-,
das aves, Augures. mente se a despresavam, era funesto o agou
Os AniSpices eram chamados assim ab ro; mas se apanhavam soffrcgamenle o sus
aris inspiciendis. Elles procuravam a von tento, e sem deixar cahir parte d'clle, era
tade dos Deuses nas entranhas dos animaes, então o presagio feliz. Finalmente os anti
no coração, no ventre, no fígado, e bofes: era gos tiravam também presagios d'outros ani
um presagio funesto, quando a victima ti macs, iaes como os lobos, a raposa, as le
nha duplo fígado, e não tinha coração. bres, as doninhas, etc. Estes animaes car
Os Augures tiravam as suas predicçòes nivoros acham-se sómcntc em terrenos abun
do voo, ou do canto das aves, e estas predic- dantes de caça, e d'aqui presumiam que o
çues chamavam-se ÂusmeTos, derivando da paiz era bom para se habitar. O que nos
palavra latina avis et auspício. resta sobre estas adivinhações parece con
Quando as predicçòes eram fundadas so firmar a • nossa conjectura acerca da ori
bre o canto, chamavam-se Oscines, c quando gem d'estas prácticas, desconhecidas absolu
se tiravam do vôo, Perpetes."0'Àugur subia tamente dos antigos, como se vê cm Cicero
a qualquer altura, e 'voltado para ó Oriente, de Divini., I. 1 et 2. Em Origenes contra
n'csta situação esperava o vôo das aves. Jul Celso. Este philosopho parecia suppôr uma
gavam também os Augures sobre o futuro, espccie dc commercio entre os Deuses e as aves.
12 DISCURSO PRELIMINAR
dar-lhe accendendo' lenha, porque se lhe Na índia nos oflérece a natureza um dif
dava o alimento: muitas vezes mesmo os ferente espectáculo. Debaixo do nome de
reis, c pessoas abastadas lançavam no fogo Arabia coipprehcn(liam os.antigos a penin
pérolas, joias e perfumes preciosos, e a. es sula da índia, e quasi todo. o pai/, siluado
tes sacrifícios chamavam festins do fogo. debaixo da zonii:torri3ã.'
O raio era um fogo que consumia al TEisfa" viráfii extensão de terra é regada
gumas vezes as arvores, e as casas, matava por um numero infinito de rios e regatos,
as rezes, c ordinariamente cahia mais so que trasbordam, regularmente todos os an
bro os montes, que sobre as planicies; cre nos, e communicam á terra admiravel fc-
ram que as montanhas lhe eram mais agra- cundidadc. As inundações dos rios, e a
daveis, e mais visinhas d’este elemento, e fertilidade que d’ellas sc segue, fixaram as
(ofiereccram-lhe sacrifícios sobre logarcs attenções dos observadores índios; elles
elevados; e como oj^iio, cahindo, matava olharam-nas como obra da alma universal,
animaes, e homens som os consumir, con- que iiarticularmente se conduzííí poíaagua,
jecturaram, que tap.ib.em. se al- a penetrava toda, a enlumccia, a inchava,
v inasdg§,aui.macs; c se inimolaram ao fogo lio- e se ensinuava por meio d’ella nas plantas.
mens e aninVáes. Foi, pouco mais ou me D’aqui julgaram, que a agua era o elemen
nos, baseados n’csta mesma idéia que re to, de que ella se servia para communicar
graram o culto dos outros elem entos.1 a vida: os ríos eram os templos onde ella
Ao passo que os persas sc persuadiam residia por escolha, de que só sahia para
vór no fogo elementar o principio produ beneficiar os homens. As inundações dos
cente dos seres, póde ser que outros ficas rios foram favores,que a gratidão celebrou:
sem ligados á crença d’uma intelligcncia os indios honraram a agua c os rios com
omuipolente, que creára o miuido, c de os seus cultos.
que o fogo não era mais que o svmbolo; Não tinham estes rios. a mesma origem,
O ) talvez os parsgos 2 recebessem e tenham banhavam regiões differentes, formavam
conservado até agora esta doutrina? uma infinidade de curvas, c as percorriam
Nào é absolutamente impossível esta im- com variado movimento: persuadiram-se
mobilidadc do entendimento humano entre os indios que diversos poderes haviam ca
os parseos; mas é muito difíicil de se crôr, vado os alveos dos rios, c os faziam correr
por se estribar sómente em conjecturas, e mais, ou menos rapidos; a alma universal
presumpções c não sabemos qiic se ache lhes pareceu dividida cm muitas partes,
suffici entemente provada. Toda a antigui que governava a natureza sobre diversos
dade concorda, que houve tempo, em que planos, c por differentes causas: honraram
.os parseos adoravam o fogo e o sol. Mr. estas potências nos rios, aonde as suppo-
Iíydc, o mais celebre defensor dos parseos, zeram residentes; as suas inundações fo
não contesta este testimunho com razão ram graças, que o interesse se esforçou a
Ialguma decisiva, nem o combate, senão merecer," c que a gratidão celebrou. (Suan
com a crença dos mesmos parseos. do estas inundações eram muito grandes,
Mas porque- não teriani os parseos ascen ou muito pequenas; estavam irritadas as
dido do culto do. fogo ao dogma da existên divindades dos rios, e se empenharam em
cia de Deus, depois que a Religião ehristã fazel-as propicias, por meio de, votos, fes
havia feito conhecer o absurdo da idola tas, e dedicações de toda a especie, cujo
tria? Não se viram os Estoicos, para justi detalhe seria íongo para esta obra.
ficarem o Polytheismo, sustentar, que Júpi A índia é uma quasi ilha, e não se co
ter, Ceres, Neptuno, etc., não eram mais do nhece cm todo o mundo torrão mqis fértil.
que os differentes attributos do espirito,nm- Os indios gosaram d’uma abundancia e de
v ersal? E quando fosse certo, que o culto uma tranquillidade que os multiplicou pro-
dcT, verdadeiro Deus se conservasse entre digiosamente; foram obrigados a cultivar a
os parseos, não seria menos verdade que terra, c como a fecundidadc dependia da
ellc sc alterou, e perdeu entre os p ersa s.3 agua, tiveram de formar canaes para a con-
duzir nas torras onde a 'inundação não Tal foi a religião que os Sacerdotes egy-
chegava. peios estabeleceram sobre os restos da re
Estes canaes, cavados para fazer escoar ligião primitiva.
dos campos a agua dos rios, oíTercciam aos 0 entendimento humano não se eleva a
indios um refugio simples c seguro con princípios geraes senão pelo esforço que
tra as inundações excessivas^ ou diminu faz para dilatar suas ideias, e pclo-habito
tas, maios que os sacrifícios não impediam. de ligar os phenomenos, e os attribuir a
Facilmente advertiram, que, vastos canaes, uma mesma causa. Logo que cessa de li
afundados cm certa altura, poderiauí absor gar estes phenomenos por meio do raciocí
ver a quantidade nociva das inundações, nio c das observações, crê todos .os pheno
ou supprir as aguas, que os rios não '(les menos separados,- e attribue cada um a
sem. Descobriram, pois, os indios, a arte uma causa difierente. Assim, o povo, cuja
de conduzir as aguas c de seccar as terras, intelligencia se não esclarecia, e os Sacer
quando as outras nações estavam ainda dotes não instruíam, perdeu insensivel
mui distantes de pensar nas artes, nas seien- mente de vista o dogma da alma universal,
cias, e na physica.1 c tributou culto ás plantas, aos animaes
Com estas vantagens, os indios se tor úteis, aos elementos.
naram nimiamente numerosos para cabe É verosimil, que os Sacerdotes egypcios
rem em pouco tempo, nas suas antigas pos estiveram por muito tempo de boa fé n’cs-\
sessões, se estenderam para a direita, c para tas ideias. Descobriram que a alma uni ver-/
a esquerda, c deveram de partir natural sal seguia leis invariáveis, d’estas se shFYi-\
mente para a China, e para o Egypto, aonde, ram para prognosticar o futuro, mantive-/
talvez, communicaram a arte de dessecar ram o povo na supcrsticção, na ignorância;
as terras, c de conduzir as aguas; a crença e a religião cm suas mãos veio a conver
da alma universal, a das divindades, que el- ter-se n’um meio de que a politica se ser
la havia formado, e as ceremonias religiosas. viu para agitar ou aquietar os povos.
Como a China não deve a sua fertilidade Comtudo, nem em todos os collegios do
ás enchentes regulares dos rios, a agua Egypto se conservou este dogma da almai
cessou de parecer alli o elemento, cm que universal, porque nem todos observavam a Ü
residia a almar.universal, e os indios transi natureza pela mesma face. No alto Egypto, ;
portados T T h in a, ornaram a alma univer por exemplo, cm que depois das enchentes i
sal como um espirito derramado em toda a? do Nilo se viam sahir do limo pôdre e sêc-
natureza: ou o lu. co, insectos e reptis, se creu que os ani-
No.Egypto, onde as inundações do Nilo macs, c as plantas eram formados pela se
fecundavam a terra, se conservou o culto paração das partes aquosas, terrestres, e
das aguas, que se olhou como o elemento aereás, sem que se fizesse necessaria a in
de que se servia a alma universal para vi- tervenção da alma universal na formação
viíicar os corpos, ou se os egypcios não dos corpos.1
receberam esta crença dos indios, a cila fo É talvez d’csta maneira que se deve con
ram conduzidos pelo mesmo fio de idéias, ciliar o que Diogenes Laercio e Eusebio
porque tinham debaixo dos olhos phenome- nos referem da thgolpgia.ogcjilta dos cgy-
nos similhantes. pcios, ane não .admftüa. o conm rai.diuli-
* As plantas, legumes c fruetos, de que com os*
abundava o Egypto, e que eram produzi testununhos de Porpluro, de Jambhco, e do--,,
dos pela agua do Nilo, encerravam porções mesmo Eusebio, os quaes asseveram que}
d’esta alma, que parecia formal-os para se os egypcios attribuiam a formação do mun- ’
manifestar sensivel aos homens, c dar-lhes do a imi architecto intelligcute.2
em seus benefícios a prova da sua presen Os celtas, os. galos, c germanos, da mes
ç a . A gratidão deu cultos á alma univer ma sorte que os povos 3c"quff acabamos
sal, ou á Divindade, nas plantas, como em de fallar, criam que uni^spirjtqjnfinitoo
um templo, aonde parecia que cila convi QOÚWPQLçnm animava, toda a^naUu'i£a7for-
dava os homens a render-lhe homenagens.. mava todòTos' corpos' jriráuziá todos os
O interesse e a fraqueza associaram logo a phenomenos: tiveram seus philosophos, e
este culto todos os elementos que concor-, Sacerdotes destinados para observarem as
riam para a producção dos fruetos. / leis dos phenomenos, as causas que deter-
minam o Ente Supremo a produzil-os, e os mens, das mulheres, etc., c para preveni
meios de estorvar que clle produzisse estes rem as inundações julgaram os celtas q u e -
phenomenos terríveis, que faziam a infeli deviam fazer-se aos rios offerendas de to
cidade dos homens. das as cspecies.
Situados n’um clima, e debaixo d’um Os antros, que encontravam estes povos
Cêo rigorosos, embrenhados na espessura errantes, pareciam-lhes cavados pelo esp i
dos bosques, ou perpetuamente vagabundos rito universal para tragar os homens c os
entre os lagos, montanhas, rios, e lagoas, animaes; c sempre que os encontravam,
não observaram como physicos as produc- n’cllcs precipitavam alguns. As plantas cm.
ções da natureza, nem indagaram nos di que elles se persuadiam descobrir alguma
versos objectos, que ella oíTerccia, mais virtude util, lhes pareciam destinadas para
que os fins que se propunha o espirito uni merecer o respeito, o amor e o reconheci
versal, c que cllcs imaginaram sempre as mento dos homens.
suas proprias idéias, os seus gostos, e as Os monumentos, que nos restam, acerca
suas necessidades. da religião primitiva dos galos e dos celtas,
Não viram, pois, nos phenomenos, senão sobre os seus sacrifícios e adivinhações, são^
corpos, ou movimentos produzidos pela consequências dos princípios quc^lhes te
união do espirito universal com a materia, mos attribuido, mas estes detalhes não p er
e presumiram que esta união tinha um pra tencem á obra, que actualmentc damos, *
zer por fim, ou uma neçessidadc por prin Os que existem sobre a theologia dos
cipio. arabes antes de Mafoma, dos phenicios, e
Os Druidas 1 o os Dardos 2 procura- toscanos, nos ofíercccm os mesmos prin
ram descobrir as líec^ ícíacles c prazeres cípios, os mesmos erros, c a mesma mar-
da alma universal, e prescreveram cultos cha. 2
e sacrifícios proprios para satisfazel-os.
Suppunham a alma universal derrama § II
da em toda a natureza, julgaram que ella
pretendia unir-se á materia comprazendo-
se particularmente nos grandes accumula- Da extineção da religião prim itiva
dos de materias solidas, que pareciam des em muitos povòs} e da que elles imaginaram j
tinados a attrahir a attenção dos homens,
e convidal-os a render alli suas homenagens
á alma universal, que não formara estes Depois que os homens altribuiram a es
montòcs enormes, senão unindo-se a clles píritos particulares a producção dos pheno
d'um modo particular. Tal é, em grande menos, o dogma da alma universal tornou-'
parte, a origem do culto, que estes povos se uma cspecie de mysterio encerrado nos
tributavam aos grandes penhascos, as ar collegios dos sacerdotes, ou um dogma es
vores dcscommunacs, e aos vastos bosques. peculativo, que não se julgou mais com in
A vida pastoril d’estes povos lhes tornou fluencia sobre a felicidade dos homens: ex-
necessaria a visinhança dos mananciaes, das tinguiu-se no espirito do povo, que d’alli
ribeiras, c dos rios: julgaram elles que o em diante não viu na natureza senão Deu
espirito universal os fazia correr para feli ses, genios, e espíritos, aos quaes entrou a-
cidade dos homens, e dos animaes, c hon dirigir votos, c offerecer sacrifícios, porque j
raram a alma universal, ou o Sér Supremo somente d’cllcs esperava a sua felicidade.
nas ribeiras, e nos rios. A multiplicação contínua dos homens j;
Não era uniforme o curso dos rios: al n’estas nações, a impossibilidade de subsis
gumas vezes sabiam do seu alveo, e inun tirem dentro de seus antigos limites, as
davam as Jerras. Notou-se que, trasbordán- guerras civis e questões particulares entre
do, arrastavam tudo quanto encontravam as familias, fizeram destacar d’ellas pequenas
na sua carreira, e se limitavam depois ao colonias, que se espalharam sobre a terra.
seu leito; d’aqui se persuadiram que estas
invasões tinham por fim apoderar-se dos 1 Hist. de Marseille, Relig. des Gaulois
fruetos das cabanas, dos inoveis, dos ho- Collect. des Hist. de F)'anra. Biblioth. Genn.
t. 37 an. 1737. p. 140. Peloutier, Histoire
1 D ruydas é o nome dos Sacerdotes dos des Celtes.
antigos galos. 2 Vede specimen Hist. Arab. e as notas-
2 Bardos se chamavam os poetas entre de Pocok. Senec queest. nát. 1 .1. c. 41. Sut-
os celtas, os guaes cantavam os seus heroes. das in voce Thyrren. Plutarq. in Sylla. Eu-
seb. preep. Evang. I. c. 9. Thedoret de cu- i
NOTAS DO TRADUCTOR. randis grec. affect. serm. 12.
DISCURSO PRELIMINAR 17
Entre estas colonias houve-as que nào As guerras cruéis que estas nações se
levaram collegios nem Sacerdotes, ou ás faziam, e o habito de viverem da caça, as
quacs a morte lh’os arrebatou: muitas (Tes espalhou por uma infinidade de regiões.
tas colonias nào conservaram senào a re Nenhum signal da sua origem conserva
ligião práctica, e os sacrifícios, c as cere ram as nações selvagens, c por esta razão
monias religiosas: o dogma da alma univer as colonias das nações policiadas achavam
sal se extinguiu absolutamente entre cilas. por toda a parte homens, que sc julgavam
O curso das ribeiras, c rios, os lagos, nascidos da terra.
montanhas e desertos áridos guiaram a Aggregados estes selvagens, pelo medo
marcha d’estas fugitivas colonias; a guerra que tinham das feras e dos homens, tào
que se accendeu entre cilas, desavenças crucis como cilas, viram em cada um dos
particulares, as difficuldades dos caminlíos seus associados um protector, que amaram,
e mil accidentes similhantes destacaram e cuja morte era considerada como desgra
d’estas colonias algumas familias ou ban ça, que atacava a sua existência e felicida
dos particulares, c até alguma vez um ho de. A morte foi, entre estas sociedades, a
mem, c uma mulher que o receio dos ou primeira cousa sobre qne o seu raciocínio
tros homens ou das feras conduziu e man reflectiu, c de que cogitou os motivos.
teve nos logarcs mais inacccssiveis aos ani- Nào conheciam estes homens outra causa
maes ferozes, c aos homens; ao mesmo sensível da morte senão o odio dos homens
passo que outros, levados pelo acaso para ou o furor das feras: quasi sempre era a
paizes ferieis, ifellcs viveram com segu morte precedida por dòres internas, simi
rança, e se multiplicaram. lhantes ás que causavam os animaes, ou
Os homens, a quem o temor separára do as feridas feitas pelos homens: olharam a
resto do genero humano, e conduzira aos morte como obra d’a!gum animal invisivil -
desertos, lagoas, ou retiros inaccessiveis, inimigo do genero humano, c que imagi
unicamente se occuparam do cuidado de naram com um corpo similhante ao dos
se nutrir: riscaram-se do espirito d’cstes animaes que accommettiam os homens. É
homens solitarios todas as ideias que ti assim que os moxos acreditavam que todos
nham adquirido na sociedade, c seus filhos os males, que os afiligiam, llfos causava
tornandp-se selvagens, cahiram n’uma igno um tigre invisível.1
rância absoluta do Ente Supremo. Taes Não concebiam estes animaes malfazejos
eram os içtopliagos, que nem ao menos ti senão como invisíveis: não suppunham que
nham conservado''o uso de fallar, viviam elles tivessem outros motivos para fazer
em sociedade com as phocas, e que se cria mal aos homens mais do que a necessidade
terem habitado estes retiros desde a eter do sustento, c julgaram que se preservera-
nidade. Os homens que viviam, e que nào vam da sua malignidade saciando-lhes a
ousavam sahir d’elles, porque os animacs fome. Os homens repartiram naturalmentc
ferozes os esperavam' de cmbuscada á bor os alimentos com os sêres malfazejos e in
da dos mesmos: taes eram os liylogüQs, visíveis, como ainda agora o practicam mui
que se haviam refugiado no alto das arvo tas nações selvagens.
res, e se mantinham dos seus gômos; os Como estas offerendas não suspenderam
trogloditas, os garacoantas, c uma infinida o curso dos males, nem os golpes da mor
de de outros selvagens brutos ou estúpidos, te, cessou-se de imputar aos imaginados
de que Herodoto, Diodoro de Sicila, Stra- sêres invisíveis as molestias e a morte; e
bào, c os viajantes antigos fazem menção. não podendo descobrir-se a causa nos sê
Os homens, a quem o temor ou a for res estranhos, buscaram-se no mesmo ho
tuna conduziram a terrenos seguros e fer- mem.
teis, n’cllcs se multiplicaram, e a crença A morte não deixava vestigio algum da
do Entre Supremo, e dti alma universal se sua acção; via-se a mesma configuração
obscureceu, e alterou por infinitos modos, exterior do corpo humano, sem que fosse
e sc extinguiu absolutamente entre aquel- destruída alguma das suas partes, as quaes
les, a quem o temor dos animacs ferozes, tão sómente eram privadas do movimento;,
e dos homens, c a diflQculdade de se sus portanto concluiu-se que o corpo humano
tentar tinham continuamente occupados: não continha essencialmente o principio do
taes eram as colonias do caçadores espa seu movimento, e que o recebia d’algum
lhados sobre as montanhas da Colchida na Ente, que d’cllc se separava pela. morte. O
Ilyria, os bes&as, os arçadeos, os desar„t(3s, corpo, privado do movimento, não deixa
°s hyberianps, e t c .1 va perceber sensação, nem pensamento; o
das sc frustravam, entretanto que outras lhes asseguravam que seriam respeitados,
vingavam contra toda a apparenda; muitas c melhor servidos.
vezes o bom successo, ou a desgraça d’uma De tal sorte estavam persuadidos os ro
ompreza, tinha sido causado ou acompa manos do poder dos Deuses tutelares, e da
nhado por alguma circumstanda notável; virtude da evocação, que occulta vam com
d’aqui se inferiu que causas desconhecidas extremo desvelo o nome de seus Deuses
aos homens, isto 6, que genios, não conhe tutelares. Acreditavam que por força da
cidos, conduziam o lio dos acontecimentos, consagração os genios ou os Deuses habi
e levavam os homens á felicidade ou á des tavam as estatuas.1
graça por signacs que elles lhes davam por Gomo não suppunham limites na multi
mil "modos diíTcrcntes, a que se devia, por dão dos gênios, a fraqueza e o interesso os
consequência, ter uma altenção escrupulo crearam para qualquer necessidade, e con
sa. Tal foi entre estas nações a origem dos tra todas as desgraças: não sómente cada
presagios, dos genios amigos ou inimigos nação invocou genios de toda a cspccie,
dos homens, e das fadas, hem ou malfaze proprios para procurarcm.a sua felicidade;
jas. SuppOz-se o mundo cheio (Vestes gê mas em cada nação, cada condição, e em
nios: todos os successos, todos os movimon- todas as condições, cada familia*tcvc seus
tos, lim estrondo, um vaso cahido foi um geníos particulares.
presagio dado por algum genio. Povoou-sc As casas, os campos tiveram também
a atmosphcra (1’estes genios, que se honra seus genios: jamais deixara de fazer uni
vam, c que se imaginou poder tornar pro sacrificio ao genio do logar o piedoso Encas.
pícios rendendo-lhes cultos. Como o espirito humano não encarara os
0 culto dado a um genio, em geral, a phenomenos senão cm relação com a sua
nenhum lisongeava, c por consequenda não felicidade, creu todos os gênios occupados
interessava a algum em particular; além a servirem-no, ou a fazerem-lhe mal: attri
d’isto era necessário á imaginação um de bui u-lhes todas as suas inclinações; jul
terminado objecto; c ao homem" um genio gou-os determinados pelos motivos que o
que clle podésse instruir commodamenle determinavam, clle os considerou successi-
das suas necessidades: propOz-sc, pois, aos vamente sequiosos de sangue, ou ávidos d(
genios que sc iria a certo logar, onde sc gloria; olTereceu-lhcs sacrifícios, ou louvo
obrigariam por uma especic de voto a tri res c supplicas; cdificou-lhes templos, esta
butar-lhes um culto. bclcccu-lhes sacerdotes, instituiu-lhes fes
Entre as nações pobres c grosseiras, c an tas; e como era (Veste culto que os homens
tes de haver esculptura, se contentavam cm esperavam toda a sua felicidade, o espirito
distinguir a habitação dos genios por al humano exhauriu todos os meios possiveis
gum signal particular. Uma arvore ou um de agradar a estes genios.
tronco cortado foram em Thespis c cm Sa Tal foi a origem e o progresso da idola
mos os idolos de Juno: simples pedras, sem tria, que tinha infectado todas as nações: o
figura alguma particular, eram os idolos povo não conhecia outra religião.
do amor em Thespis, c de Hercules cm As colonias destacadas das grandes na
Hycta; tacs são ainda agora os idolos Fei ções communicaram aos povos aonde se
tiços 1 entre os africanos. A faculdade de estabeleceram os restos da tradição, a que
fixar os gênios produziu os genios tutelares ainda conservavam acerca da origem do
e os geníos dos logares, de que toda a his mundo, do diluvio, c do destino do homem
toria está cheia; as ceremonias que os an depois da morte.
tigos chamavam evocações, não permitiem Esta tradição, ãobscurecida mestas colo
sobro isto alguma dúvida. Para haverem nias, se uniu com as idéias, com a crença dos
de profanar qualquer logar que tinha sido povos, aonde foi levada; e d’aqui nasceu a
consagrado, corijuravam com toda a solc- mistura de idéias sublimes c de crenças ab
mnidade os genios, para se retirarem; e surdas, que se encontram nos antigos poe
quando se chegava ao ponto de tomar qual tas, historiadores e philosophos acerca da
quer cidade, para não eommctterem o sa natureza de Deus, das Divindades pagãs,
crilegio de fazer prisioneiros os Deuses tu da origem do mundo, e potências que o
telares, lhes suppiicavam que saliissem, e governam, do homem, c da outra v id a .2
passassem ao partido victorioso, no qual
1 Tito-Livio, l, o , c. 21-22.
1 Ciem. Alcx. Procrcp. c. 3. Tert. Apol. 2 Veja-se Hesiodo3 e as holas de Le
c. 18. Pausan. Boetie. 1.V). cap. 24-27. Mcm. Clerc, Homero3 Herodoto, Diodoro. Vossim
de 1’Acad. des Inscript. t. 23. Afriquc de do Idol. Vandale, de idol. explic. de la lablc
' Paper, voyages de Labat. d’Adonis, Bibli univ. c. 3, p. 7.
*•
20 DISCURSO PRELIMINAR
CAPITULO III
Temos visto que Iodos os homens attri- cuja vida era muito agitada, c o clima mui
buiram a genios os phcnomenos da natu to rigoroso para que podessem fazer obser
reza: sómente os Sacerdotes os olhavam vações seguidas, c que, levando uma vida
como porções da alma universal, e procu errante, nao tinham necessidade de prever
ravam, pela observação da natureza, des os phenomenos perigosos para os evitar:
cobrir os gostos, as inclinações d’estas por taes foram os celtas, os galos c os germanos..
ções da alma universal, c prescreviam os Porém a previsão dos phenomenos não
sacrifícios, as orações, as o (Terendas e de era sufficiente para os povos que tinham
dicações que julgavam convenientes para estabelecimentos fixos, e que cultivavam a
calmarem a colora dos genios, ou merece terra: elles forccjavam por conhecer esta
rem os seus favores. successão de causas que formavam a ca
Portanto, sómente dentro dos collcgios deia dos acontecimentos,’ a fim de desco
dos Sacerdotes é que o espirito-humano brirem preservativos contra as suas des
buscou pelo estudo dos phenomenos os gos graças.
tos, as inclinações, os desejos e intentos dos Os collegios dos Sacerdotes se converte
gênios, ou porções da alma universal. ram em assembléias de philosophos, que in
Nada havia de mais interessante do que dagaram como, e porque mechanismo se
satisfazer a proposito estes desejos, estas operava tudo em a natureza. Tendo assen
necessidades; era o meio mais seguro para tado que n’ella tüdo estava ligado, attribui-
preservar os homens dos eíTeitos da cólera ram a um só principio todos os phenome
dos genios; porém era necessario adivi- nos; e pretenderam descortinar como este1
nhal-os para os satisfazer. Os Sacerdotes havia prodqzido tudo.
dirigiram as suas attonções sobre tudo D’aqui se arrojou o entendimento huma
aqui 11o que podia annunciar as necessida no a querer indagar as leis, segundo as
des, os desejos, ou as inclinações dos ge quaes tinha sido o mundo produzido, e se
nios que governavam a natureza; exami abalançou a explicar a sua origem, a for
naram com cuidado todas as circumstan mar systemas, em os quaes suppunha cada
d a s que os acompanhavam; viram que es um seu principio, c o fazia obrar segundo-
tes phenomenos se repetiam com regulari as suas idéias, c os phenomenos que tinha
dade, e que ordinariamente eram acompa debaixo dos olhos: tal é a origem dos sys
nhados das mesmas circumstandas: julga-, temas dos caldeus, persas, indios e egypcios.
ram que tudo estava ligado na natureza, c Estes systemas, encerrados por muito
que os phenomenos se podiam prever: os tempo nos collegios dos Sacerdotes, passa
Sacerdotes regularam sojjre esta previsão ram ás escolas dos gregos, aonde o espiri
as festas e os sacrifícios. to systematico produziu infinidade de*opi
Em breve conheceram a inutilidade dos niões differentes, que as conquistas d’Ale
sacrifícios, julgaram que os phenomenos xandre levaram ao Oriente, á Persia, Egy-
tinham uma causa communi, e que esta pto e índia.
causa seguia leis invioláveis: todos os ge Estes princípios se communicaram aos
nios desappareceram aos olhos dos Sacer judeus o aos samaritanos antes do nasci
dotes, e não viram mais nos phenomenos mento do Christianismo. Por toda a parte
do que uma longa cadeia de successos, que se viram homens que n’elles se obstinavam,,
se seguiam e se produziam successiva- unindo-os a alguns dogmas dos judeus, e=
mente. depois aos do Christianismo, e é d’esta união*
.0 entendimento humano não passou avan que provém quasi todas as heresias dos tres»
te entre os povos grosseiros, ou pastores, primeiros séculos.
DISCURSO PRELIMINAR 21
Immcdiatamènte por baixo ilas puras in- tecimentos desgraçados, c imaginaram uma
telligencias começava o inundo corporeo, espeeie de gerarcliia nos genios maus, como
ou o cmpyrico: <?stc era um espaço im já haviam supposto nos bons.
menso alumiado pela luz pura, que sabia Mas porque razão a intclligencia supre
immcdiatamènte do Ser Supremo: estava ma, que era essencialmente boa, não sub
cheio d’um fogo infmitamcnte menos puro, mergiu debaixo do seu poder esta multi
que a luz primitiva; mas muito mais subtil dão de genios maleficos?
que todos os corpos. Creram uns que se não compadecia com
Por baixo do empyrio estava o etlier, ou a dignidade da intclligencia suprema lu
um grande espaço cheio de fogo mais gros ctar ella propria contra estes genios; ou
seiro que o do empyrio. tros entenderam que estes genios maus
Depois do cther estavam as cstrcllas fi pela sua natureza não podiam ser destruí
xas espalhadas em um grande espaço, aon dos, e que a intelligencia suprema, não os
de as partes mais densas do fogo etherco podendo aniquilar, nem corrigir, os havia
se tinham ajuntado, e formado as estrellas. desterrado para o centro da terra, no es
A este Céo das cstrcllas fixas se seguia paço que está debaixo da lua, aonde ellcs
o mundo dos planetas; era o espaço que exerciam seu imperio c sua malignidade;
continha o sol, a lua c os planetas. que para sustentar o genero humano con
É n’esto espaço que se achava a ultima tra tão numerosos c formidáveis inimigos,
ordem dos seres, isto é, a matéria bruta, mandava a intelligencia suprema espíritos
que nào só era destituída de toda a activi- bons, que defendiam continuamente os ho
dade, mas que resistia ás impressões c mo mens dos demonios materiaes. Como os
vimentos da luz. bons e maus gênios tivessem funeções par
As differentes partes do mundo se toca ticulares, e differentes graus de poder, da
vam umas nas outras, c os espíritos das vam-lhes os nomes que exprimiam suas
•egiòes superiores podiam obrar sobre as funeções.
nferiores, penetrar e descer a ellas. Estando ao cargo d’estes espíritos bene
Como a materia do cálios fosse informe ficos proteger os homens e soccorrel-os nas
e sem movimento, era necessário que os suas necessidades, deviam ellcs entender a
espíritos das regiões superiores tivessem linguagem dos homens; creu-se, pois, que
formado a terra, c que as almas humanas estes tinham genios protectores contra to
fossem espirito^ descidos das mesmas re das as desgraças, e que cada genio tinha
giões. seu nome, o qual bastava pronunciar para
O lhe fazer conhecer a necessidade que ha
systema dos ealdeus resuscitou, pois,
todos bs genios que a razão tinha dester via de seu soccorro: inventaram-se, pois,
rado, e se lhes* attribuiram todas as pro- todos os nomes que podiam evocar o^ ge
ducções, todos os phenomenos, todos os nios beneficos, ou fazer-lhes conhecer a ne
movimentos produzidos sobre a terra: a cessidade dos homens. Esgotaram-se todas
formação do corpo humano, a producção as combinações das letras para formar um
dos fruetos, todos os dons da natureza “fo commercio “entre os homens e os genios, c
ram attribuidos a espíritos beneficos. eis-aqui uma origem da Cabala, que attri-
N ’estc mesmo espaço, que ó o sublunar, buia a nomes extravagantes a virtude de
no meio da noite, se viam formar tempes fazer comparecer os genios, de pôr os ho
tades, saliir os relâmpagos da obscuridade mens em commercio com ellcs, c de obrar,
das, nuvens, c estalar o raio, que assolava por este meio, prodígios.
a terra: julgaram que havia espíritos tene Serviam também estes nomes algumas
brosos, c que nos ares estavam espalhados vezes para lançar fóra os genios maleficos;
demonios materiaes. era uma espeeie de exorcismos: porque,
Muitas vezes do seio da mesma terra se como criam que estes genios estavam des
viam sahir labaredas de fogo; a terra es terrados no centro da terra, e não faziam
tremecia: suppozeram-sc potências terres-, mal, senão porque haviam iIludido a vigi
tres, ou demonios no centro da terra, c lância dos genios destinados a guardal-os,
não tendo a materia actividade, todos os e que se tinham escapado na atmosphcra,
movimentos foram atttribuidos a gênios. cria-se que estes genios maleficos fugiam
As tempestades, os vulcões, as borras logo que ouviam pronunciar o* nome dos
cas parecia não terem outro fim senão o Anjos encarregados de os ter prisioneiros
de perturbar a felicidade humana. Persua nas cavernas subterraneas, e do os punir,
di nim -se que os demonios, qúc produziam quando d’òllas sahiUm.
tudo isto, eram maléficos, e aborreciam os Como áíppunham no nome dos gênios,
homens; attribuiram-se-lhes todos os acon ou no symbolo que exprimia o seu minis-
i
DISCURSO PRELIMINAR 23
terio uma virtude, que os obrigava a quem do movimento. Creram os persas vêr esta
os invocava, se creu que este nome grava causa no fogo; nenhum outro elemento lhes
do, ou cscripto sobre uma pedra, lixaria pareceu ter na natureza uma influencia
d’alguma sorte o genio junto d’aquelle que mais geral: ellc fazia nascer os grãos, cres
o trouxesse; e é verosimil que fosse esta acer as plantas, c amadurar os fruetos: acha
origem dos talismans fabricados com pa va-se na madeira, nas pedras, que friccio-
lavras, ou de figuras symbolicas. nadas, se aqueciam; inflaininava-se; sentia-
Como os demonios tinham orgãos, e os se no interior da terra. Os magos julga
genios tutelares podiam não vir com cele ram, pois, que o fogo era o principio, a
ridade ás solicitacues dos homens, creu-sc matéria de todos os corpos, e a força mo
precavcr-so dos seus ataques, pondo nos vente, que agitava todos os elementos.
iogares, por onde elles podiam passar, agu O calor descia do Céo sobre a terra, e
lhas e espadas, que agitavam para causar elles sabiam que ellc diminuia afastando-se
dôr aos demonios, quando as encontras da sua origem: inferiram que a uma certa
sem, e como a subtilidade dos corpos dos distancia do sol devia haver partes de fogo,
demonios podia garanti 1-os dos golpes das que formassem elementos differentes, e fi
espadas, entenderam que era necessário nal mente, a materia bruta, e insensivcl.
expellil-os com maus cheiros, ou accenden Havia, pois, n’estc systema um sèr sem
do fogos. actividade, insensível, que resistia ao mo
Na supposição de serem os demonios vimento do fogo, e era essência Imente op-
corporeos e sensíveis, julgaram-os capazes posto ao principio, que animava a nature
de se apaixonar pelas mulheres; d’aqui pa za, á alma universal.
rece que veio a crença dos demonios incu Entre a matéria bruta e a alma univer
bos, c infinidade de prácticas supersticiosal, que eram como extremidades da ca
sas, que não podiam ser exercidas senão deia dos séres, havia uma infinidade d
por mulheres: assim, por exemplo, para partes de fogo graduadas de differente act
ter chuva faziam dançar dez virgens vesti vida de.
das de encarnado, que se agitavam, que Na região que occupava a materia s
estendiam seus dedos para o sol, c faziam encontravam entes pensantes; tal ora a a,
certos signacs. Para suspenderem a sarai ma humana: o seu pensamento parecia c
va, pelo contrario, faziam deitar de costas cffeito da sua actividade. Os magos suppo-
quatro mulheres, e n’esta postura pronun zeram, portanto; entre a alma universal, e
ciavam certas palavras, depois levantavam a materia bruta, infinidade de espíritos dif
os pés para o Céo, e os moviam: a estes ferentes, cuja sagacidade e intelligcncia de-
princípios, segundo a vorosimilhança, se crescia sueccssivamcnte: a certa distancia
póde attribuir o grande respeito, que ti da alma universal apenas eram sensíveis;
n h a m ás mulheres, que faziain uma consi c por ultimo, forças motrizes, que dimi
derável figura na magia dos caldcus.1 nuíam até se converterem cm matéria
bruta.
Os magos suppozcram, pois, no mundo
II uma alma universal, d’onde sabiam intclli-
gcncias puras, que sómente obedeciam á
razão; séres intelligentes, e sensiveis, quê
Dos principifis obedeciam ao sentimento, c á razão; séres
persas puramente sensiveis, que seguiam sómente
as suas necessidades, ou seus desejos; for
ças motrizes, que nem eram intelligentes,
Depois que os Magos 3 descobriram nem sensiveis; o que só tendiam a produ
que todos os phenomenos estavam ligados zir movimento; c finalmente séres sem for
por uma cadeia invisivcl aos sentidos, dei ça, c sem movimento, que formavam a
xaram de os altribuir á multidão de ge materia.
nios, que haviam imaginado em todos os N’estcs diversos séres crêram descobrir
elementos, o os attribuiram á causa com- princípios bastantes para formar todos os
muni, á potência, que animava a natureza, corpos, produzir todos os phenomenos so
e que continha em si mesma o principio bre a terra, na atmosphera, no Céo, e so
bretudo a mistura dos bens, o dos males.
1 Vide THist. de la Phil. Orient. de Examinando-se a natureza dos males,
Stanley. 4 que affligem os homens, descobre-se. que
2 Magos chamavam-se entre os orien- elles tem a sua origem na materia: c d’ella
taes os astrologos e philosophos. que nascem nossas necessidades c nossas
24 DISCURSO PRELIMINAR
«lôres; d’onde julgaram os magos, que a seus pensamentos e acções eram encadea
matéria, ou as trevas eram um principio dos pela mesma necessidade que produzia
mau, c esscncialmentc opposto ao princi as emoções; nenhuma recompensa espera
pio benefico, que era a luz. va a virtude, nenhum castigo estava reser
Como concebiam o Sêr Supremo debaixo vado para o crime: nem mesmo cm tal sys
<la imagem d’um manancial, do qual sabia tema se considerava que houvesse virtude
incessante uma torrente de luz; c que a ou crime; e por consequência nem religião,
imaginação não podia seguir esta torrente nem* moral para o mago que seguia estes
na immensidadc do espaço, nem se repre princípios philosophicos. Quanto áquelles
sentar como fosse inexhaurivel este ma que suppunham gênios bons c maus, a sua
nancial, se elle manava, sem reparar suas religião não se distinguhi da do povo, e os
forças, e reanimar sua fccundidadc, assen princípios religiosos crestes magos não con
taram que todas as partes tenebrosas vol duzia á piedade, nem á virtude, c não tor
tavam cm continuo giro ao seio do Sêr Su navam os homens bons, nem religiosos,
premo, aonde retomavam a sua actividadc mas supersticiosos c maus. Por toda a par
primitiva. te onde foi um dogma da religião a crença
Assim, a inércia das partes tenebrosas do bom e do mau principio, fez-se muito
diminuía incessantemente, c a continuação mal para agradar ao mau principio, e mui
dos séculos havia de restituir-lhe a activi to pouco bem para satisfazer ao bom.
dadc primitiva, fazer desapparecer a ma
teria, c encher o mundo d’um fogo puro, e
de intelligencias sublimes c ditosas: este c
0 systema, que Plutarcho expõe d’um mo
do figurado, quando diz que os persas ■j
acreditavam que ha um tempo marcado : Dos princípios religiosos dos philosophos
em que ó necessario que Arimane pere eggpcios
ça. 1
Outros magos creram, que com eífeito os
bens c os males eram produzidos por ge Os Sacerdotes cgypcios destinados a bus
nios, que se compraziam em fazer bem aos car os meios de fazer propícios os genios,
homens, ou que sentiam satisfação pela a quem os homens julgavam dever a sua
sua desgraça: altribuiran^tudo a intelligen felicidade, observaram a origem, ordem e
cias, boas," ou más por natureza. A des seguimento dos phenomenos; descobriram
igualdade de seus oífeitos fez que julgas que um poder desconhecido ao vulgo os
sem assim proporcionadas as suas forças, ligava, que uma força, subordinada a leis
d’onde procedeu imaginarem nos genios constantes, os conduzia sem embargo dos
um a cspecie de graduação similhante á que votos e dos sacrifícios, e que os geniosj
se via nos phenomenos-*da natureza. ainda havendo-os, nada produziam.
A imaginação pôz termo a esta longa ca Para conhecerem as leis que seguia a
deia de genios bons e maus, com dous mais causa producente dos phenomenos, os in
poderosos do que os outros, mas entre si strumentos c mechanismo de que ella se
iguaes; sem o que não sc teria visto no servia, observaram o nascimento dos ani-
mundo senão o bem ou o mal. Portanto maes e das plantas; e como o Egypto de
suppozeram os magos em a natureza dous via á agua a sua fecundidade, crêram ser
princípios oppostos, que o amor do bem e este elemento o agente por meio do qual a
do mal conduziam a fazer os homens feli alma universal produzia todos os corpos.
zes ou desgraçados, aos quacs julgaram Crêram reencontral-a nas producções que
poder interessar a fazer bem ou mal; ^on se tornavam successivamente, terra, fogo,
de veio o uso de sacrificarem homens esco ar, etc. Julgaram que a alma< universal,
lhidos entre os infelizes, aos quaes, por um unindo-se a uma materia capaz de todas as
ou mais annos, subministravam todos os fôrmas, produzia todos os corpçs, e admit-
prazeres que elles desejassem: e assim tiram por principio de todos os sêres um
criam satisfazer ao principio mau, sem des espirito universal,'e a matéria.
agradar ao bom. 0 movimento geral d’esta, a fecundidade
Reduzia-se, pois, a religião dos philoso inalterável da terra e dos animaes lhes fez
phos persas a crêr em um ente necessa crêr que o espirito universal c a materia
rio, eterno e infinito, do qual tinha sahido tendiam necessariamente a unir-se, e a pro
tüclo por via de emanação: os homens, os duzir entes viventes e anim ados.1
que, dc todos os elementos, a agua tinha a feito, sahiam c iam procurar opportunida-
parte principal na producção dos corpos, de para o fazerem, tendo por lei inviolá
ou que cila mesma era o principio univer vel não jantarem sem que houvessem pra-
sal do nosso mundo. 1 cticado alguma boa obra. 1
Não perceberam no Céo a inconstância, Estavam, pois, os bracmanes occupados
e a versatilidade que se observava na at- de continuo em fazer- felizes os outros ho
mosphcra e sobre a terra: por isso julga mens, procurando com incrível ardor as
ram que. um sér essência linente differente propriedades salutares dos mineraes c das
formara o Céo. plantas, os meios d’aperfeiçoarem as artes
D’aqui suppozeram n’elle um ente, que ou a legislação, as occasiõcs dc darem al-
obrava sempre com prudência e regulari livio ao infeliz, e de defenderem o oppri-
dade; e sobre a terra uma força sem tino. mido, a sua beneficencia se estendia a tudo
Todavia, como havia ordeni e methodo o que era sensível, c teriam por crime ha
em muitas producções c phenomenos do ver comido qualquer animal. Assim termi
mundo terrestre, julgaram que a razão que navam a sua carreira, persuadidos de que
no Céo reinava dirigira a força que agita a beneficencia c regularidade no desempe
va as partes do mundo terrestre, c que ci nho d’cstas obrigações os elevaria gradual-
la o governava por porções separadas de mente á classe dos gênios superiores, c os
si mesma; e como haviam notado que tudo conduziría finalmente ao seio da Divinda
em a natureza tinha connexão, eréram que de. 2
um genio, mais poderoso do que todos os Os homens que não desempenhavam a
outros, formara o plano do mundo, c dera obrigação que contrahiram em nascendo,
a cada mna das partes da natureza genios entregando-se aos prazeres dos sentidos, e
para dirigirem a força movente, segundo uc obedeciam ás suas paixões não tinham
as leis que ellc prescrevera. ireito a estas recompensas: suas almas,
Divisaram os philosophos indios, obser desatadas das prisões do corpo pela morte,
vando o homem, que este conhecia c esti entravam em outros corpos, aonde eram
mava a ordem, mas que regularmente era punidas e desgraçadas.
levado, apesar dos gritos da sua razão, para Não havia, pois* cousa mais funesta para
a desordem. Concluiram que o homem ti o homem do que ser escravo das paixões;
nha. em si mesmo uma parcella de espiri nada mais feliz do que morrer depois de
to celeste, que ama e conhece a ordem; e ter obrado bem. Entretanto que o homem,
outra da força movente, que nem a conhe entregue ás paixões, errava dc corpo em
ce, nem lhe tem amor. Procuraram os meios corpo, feito o ludibrio dos elementos; o phi
de subjugar esta força movente, domando losopho virtuoso, em morrendo, voava ao
os corpos em que ella residia; e assentan seio da Divindade.
do que a medicina devia fazer uma parte Bracmanes houve sobre os quaes fizeram
da moral, procuraram os meios de acal impressão tão profunda estas idéias, que-
mar a effervescenda do sangue, e dc debi não hesitaram cm dar-se a morte, logo que
litar a sensibilidade dos orgãos, d’onde nas se persuadiram ter feito o bem a que o ho
cia. a força das paixões. mem é obrigado: outros, para se eximirem
Na conformidade d’estas idéias, julgaram das paixões, fugiram do commercio dos
os philosophos indios que a alma humana homens, c se retiraram sobre montanhas
era uma particula do Ente Supremo, unida inaccessiveis ou para as cavernas, e ahi vi
ao corpo para n’elle manter a ordem, quan viam em silencio. Alguns se votavam a to
to podésse, e para concorrer ao fim geral da a sorte dc austeridades, a prácticas dur
a que cllé se propozera na formação do ras e muitas vezes ridiculas, que olhavam
mundo; pelo que ensinaram, que o homem como sacrifícios feitos ao Ente Supremo, e*
era obrigado a procurar todo o bem possí compensações do bem que ellc exigia do-
vel, e não tinha direito aos benefícios que homem: taes foram aqucllcs bracmanes
o Ente Supremo derrama sobre a terra que Onesicrito achou cm attitudes, nas
senão tanto,, quanto ellc desempenhasse es quaes se conservavam desde manhã até á
ta obrigação. Os bracmanes estabeleceram noite. 3
sobre este principio a regra da sua condu Quando uma tal ideia se torna dominante
cta, estando sempre em acção: quando se
juntavam para comer, perguntavam aos
mais novos, que bem tinham clles feito de 1 Âpulée in Florid.
pois que amanhecera, e se nada tinham 2 Strab. loc. cit.
3 Strab. loc. cit. Prophnr. de abssin-
i Strab. in Indicis. J.4.
DISCURSO PRELIMINAR 27
cm uma sociedade, o espirito se retem, c a Taes eram os princípios religiosos da
razão não faz mais progressos. É assim que philosophia dos indios antes que ella nas
o temor das paixões e o desejo insensato cesse. entre os gregos, e talvez entre outros
da perfeição tornaram, pelo menos, imiteis povos: c não obstante as revoluções que a
homens, cuja philosophia religiosa dos Ín índia tem solTrido, estas opiniões se hão
dios tinha convertido toda a actividadc em conservado nVlla, e fazem ainda hoje a re
beneficio da humanidade. ligião d’uma grande parte da Asia.
CAPITULO IV
0 tempo, que multiplicava os homens, mos. Viram-se entre elles homens, que sa
aproximava inccssantemcnte as grandes crificavam ao desejo de se esclarecer, o
nações das pequenas familias, que a neces seu repouso c a sua fortuna; e que viaja
sidade, o temor, a guerra, ou o acaso ha ram entre os povos celebres pela sua habi
viam espalhado sobre a terra, e que viviam lidade, sua prudência, c sua sabedoria: taes
sem artes, nem scicncias, sem leis c sem foram Pherecides, Thales, Pythagoras, Xc-
costumes. nephonte, etc., que visitaram o Egvpto, a
Não virani os sacerdotes das grandes Persia e a índia; sendo-lhes patentes em
nações com indilTerença a humanidade de toda a parte os collegios. 2
gradada c cmbrutccida n’estes homens sel Eram ensinadas e cultivadas nos colle
vagens: persuadiram-os com o attractivo gios dos sacerdotes as scicncias todas: mas
da sua eloquência a viverem em sociedade, o conhecimento da origem do mundo”, e do
ou antes fizeram brotar aquellas sementes poder que produzia todos os seres e phe-
de humanidade, de justiça, e de beneficên nomenos, fazia o principal objecto dos seus
cia que a natureza pôz'no coração de to estudos. Foi para esto grande objecto que
dos os homens, e que a cobiça, a" ignorân os philosophos mencionados dirigiram os
cia e as paixões haviam sullocado: deram- esforços do seu espirito: cada um adoptou
lhes leis, c lh’as fizeram respeitar com o o systema que lhe pareceu mais satisfazia,
temor dos Deuses: taes foram Promctteo, ou reuniu, combinou, mudou a seu arbitrio
Lino, Orpheu, Museu, Eumolpo, Melampo e as idéias dos seus mestres.
Ilamolxio . 1 Thales, adoptou o systema dos philoso
Os sábios, que policiaram estes povos, phos egypcios: ensinou que a agua era o
lhes trouxeram os systemas dos philoso elemento de que sahiam todos os corpos, e
phos caldeus, persas, egypcios, etc., mas que um espirito infinito agitava as partes,
occultos debaixo do vóo da allegoria: ollos as coordenava, c lhes fazia tomar todas as
não tinham philosophos que estudassem a fôrmas cm que. ella se mctamorphoseava;
natureza. observou a mesma prudente reserva dos
As colonias sahidas das grandes nações, sacerdotes egypcios; adorou, como o povo,
que tinham collegios de sacerdotes e phi os Deuses e genios, aos quaes o seu syste
losophos occopados em aperfeiçoar a mo ma não dava influencia alguma na natu
ral e estudar a natureza, conservaram re reza,
lações com a sua mctropolc, e se commu Pherecides e Heraclito, suppozeram que
nicaram com os povos que cultivavam as o fogo era o principio e a causa de tudo.
scicncias, c com os que não as conheciam. Xenophanes, mais maravilhado da ideia
Por esta cominunicação entrou a curiosi
dade c a razão a elevarem-se entre os ulti-2 Piat, de Republ. I. 1. Horat. carm.
ode 12. Schalerst. Arístoph. in ran. Alcur-
1 JEsch. in Prometh. Vinct. Laert, l. sius de Sac. Eleusin, c. 2. Suid in Eumolp.
i. Diod. Sic l. 3. Appollodoro. I. 1.
28 DISCURSO PRELIMINAR
do infinito, que todos os philosophos admit- foi aberto seu sanctuario a todos os ho
tiam, do que dos phcnomcnos, não suppuz mens que quizeram cultivar a sua razão.
no niuudo outra cousa mais que o infinito, Os discipulos d’estcs philosophos nem to
o qual, por isso mesmo que era infinito, dos se contentaram plcnamcnlc com os sys-
era immovcl; d’onde concluiu, que os phe- temas de seus mestres.
nomenos nada mai^ eram do que prcce- A escola de Xenophanes se occupou por
pções do espirito. muito tempo cm explicar os phcnomcnos,
Pythagoras, viajou como Thales, pclo suppondo cm a natureza um sêr infinito e
Egyplo, Persia, Caldea e Indias; fez um immovel, c acabou admittindo infinidade de
systema, que, abrangendo em parte os de pequenos corpos, dotados dTuna força mo
seus mestres, se avisinhava todavia mais á triz cm continuo movimento.
opinião dos persas: admitte no mundo uma Como,- pelos princípios d’estes philoso
inlelligencia suprema, uma força movente, phos, a natureza não tinha desígnio, o ho
sem intclligencia, c uma materia, sem in- mem, fallando com propriedade, não tinha
telligencia, sem fôrma c sem movimento. obrigações, nem destino; porém tendia a
Todos os phcnomcnos, no sentir de Py nin fim, que era o de querer ser feliz, c
thagoras, encerram estes ires princípios; descobriram estes philosophos que ello o
mas tendo observado iTellos uma ligação não era casualmente, nem o podia ser, se
de relações, um fim geral, attribuiu ao ên- não pela temperança c virtude; e pclo pra
cadeainento dos phcnomcnos a formação de zer que procura uma boa consciência. }
todas as partes do mundo, e suas correla Anaximandro, cm logar de admittir por
ções á intclligencia suprema, que só pude principio do mundo a agua e um espirito
dirigir a força motriz, c estabeleceu liga infinito, como Thales, não concedeu senão
ções eptro todas as partes da natureza. Ne um ente infinito, o qual, por isso mesmo,
nhuma parte concedeu aos genios na for que o era, continha, produzia, e era tudo
mação do mundo. por sua essência, e necessariamente.
Pythagoras, tinha descoberto analogia c Anaximenes, creu que este ente infinito
proporções entre as partes do mundo; tinha era o ar. Diogenes de Apollonia, ensinou
reconhecido que a belleza, a harmonia ou que este ar erajntclligente'.
a bondade eram o fim a que a intclligencia Anaxagoras, julgou que os princípios de
suprema se propozera na formação do mun todos os corpos eram pequenos corpos si-
do, c que as relações postas entre as par milhantcs aos grandes, que estavam con
tes do universo eram os meios queempre- fundidos no seio da terra, e que o espirito
gára para ultimar o seu desígnio. Estas re universal reunia; mas como no mundo ha
lações se exprimiam por números: por via irregularidades, foi de parecer, que a
exemplo, as que ha entre as distancias e os intervenção da sua intclligencia não ora
movimentos dos planetas, porque um está sufficiente para explicar tudo: creu haver
afastado, v. g., do sol um certo numero de cousas que existiam por necessidade, ou
vezes mais ou menos que outro. Concluiu tras por acaso; e cmfim pensou que tudo
d’aqui Pythagoras, que o conhecimento era cheio de trevas, c nada certo. Archc-
d’cstes números era o que havia dirigido lau, discipulo d’Anaxagoras, creu que o
a intclligencia suprema. frio e o calor, produziam todos os corpos,
A alma do homem, no sentir de Pytha c ajuntou o estudo da physica ao da mo
goras, era uma porção d’esta inlelligencia ral. Socrates, discipulo de Àrchclau, namo
suprema, cuja união com o corpo a tinha rou-se da opinião de Anaxagoras sobre a
d’ella separado; e que á mesma voltava formação do mundo; mas este philosopho
logo que se achava desligada de toda a af- não explicava, nem porque esta intclligcn-
feição ás cousas corporaes: a morte, que cia tinha dado á matéria a ordem, que
separava a alma do corpo, não lhe tirava n’ella se admirava, nem cpial era o destino
estas aíleiçõcs; sómente a philosophia tinha de cada sôr, e o motivo de todas as partes
o poder do curar a alma. E cis-aqui o ob .do munflo: rejeitou um systema, que não
jecto de toda a moral de Pythagoras. (Vide dava algum fim, alguma sabedoria á intcl
no Examen du Fataüsme o systema da mo ligencia, que ellc fazia intervir na produc-
ral de Pythagoras, c na vida d’cste philo ção do mundo: a natureza não Ihe.ofTcre-
sopho, pôr Daciér). cia senão mysterios impenetráveis: c creu
Por. onde quer que estes philosophos es que o sabio a devia deixar nas trevas, em
palharam as luzes que haviam adquirido,
obtiveram consideração, estabeleceram es 1 A moral d'e$tes philosophos foi expos
colas, e tiveram discipulos. Assim a philo ta muito em detalhe no Exame do Fatalis
sophia sahiu dos collcgios dos Sacerdotes, c mo, t. i.
DISCURSO PRELIMINAR 29
que cila se tinlui sepultado: voltou-se todo brada pelos astros sobre a terra, se insi
para a moral. Na seita jonica nào houve nuava nos orgãos, e produzia entes anima
mais physicos. dos; a esta força movente se unia uma por
Socrates procurou no proprio coração do ção da intelligcncia universal, c formava
homem os princípios, que conduziani á fe uma alma, a qual tinha, por assim dizer, o
licidade, e achou que o homem não podia meio entre a materia, e o espirito.
ser ditoso senão pela justiça, pela benefi Assim a alma humana tinha duas partes,
cência, e por uma consciência pura: for uma que não era mais que a força mo
mou uma escola de moral, mas os seus dis vente, e outra que era puramente intelli-
cipulos se separaram dos seus princípios, gente: a primeira era o principio das pai
c procuraram a felicidade umas vezes no xões, e estava espalhada por todo o corpo
deleite, outrás no seguimento dos prazeres para n’ellc entreter a harmonia: todos os
innocentes, e outras, finalmcnte, na mesma movimentos, que entretem a harmonia,
morte. causam prazer. Tudo o que destroe, causa
Os discipulos de Pythagoras não foram dòr, segundo Timeu.
mais escrupúlosamentc afferrados aos prin As paixões, pois, dependiam dos corpos,
cípios de seu mestre. e a virtude do estado, dos humores, e do
Occcllo, e Empedocles attribuiram a for sangue. Para domar as paixões, segundo a
mação do mundo a forças diíTercntcs, c op- opinião de Timeu, era preciso dar ao san
postas, que obravam sem intelligcncia, c gue o grau de fluidez necessario para pro
sem razão. duzir nos corpos uma harmonia geral, com
Ti meu, suppòz, com Pythagoras, uma a força motriz tornada flexível, e a intelli-
materia capaz de tomar todas as fôrmas: genciapara a dirigir. Era preciso, pois, es
uma fôrma motriz, que agitava as partes, clarecer a parte racional da alma, depois
c uma intelligcncia, que dirigia a mesma de haver socegado a força movente; c era
força. isto a obra da philosophia.
Reconheceu, como seu mestre, que esta Não acreditava Timeu que as almas fos
intelligcncia tinha produzido um mundo re sem punidas, ou recompensadas depois da
gular c harmonico: julgou que cila traba morte. Os genios, os infernos, as furias,
lhara sobre um piano que havia formado. segundo este philosopho, não eram mais
Sem este plano cila não teria sabido o que que uns erros uteis para aquellcs a quem
pretendia fazer, nem posto o mundo em or a razão por si só não podia conduzir á vir
dem, e harmonia: cila não seria differente tude. Platão, depois dc haver sido discí
da força motriz, necessaria e cega. pulo de Sócrates, correu as differentes es
Este plano era a ideia, a imagem, ou o colas dos philosophos. Talvez não formou
modello, que havia representado á intelli- opinião fixa sobre os systemas, que n’cilas
gencia suprema o mundo, antes que cllc se ensinavam; mas a sua imaginação se
existisse, que a havia dirigido na sua ac recreou cm desenvolver a de Timeu! c em
ção sobre a força motriz, c que cila con dar maiores proporções âs suas consequên
templava, formando os elementos, os cor cias.
pos e o mundo. Ellc investigou dc novo o que Socrates
Este modello era distincto da intclligén- tinha buscado em Anaxagoras, a razão por
cia producente do mundo, como o archite que a intelligcncia, que era essencialmente
cto o ó de seus desenhos. Timeu de Lo- distincta da força motriz, se determinara a
crcnse dividiu, pois, ainda a causa produ dirigil-a; como, dirigindo-a, podia tirar da
cente do mundo em um espirito, que diri materia todos os corpos: qual era a natu
gia a força movente, c uma imagem, que a reza do modello, onde o plano, que tinha
determinava na escolha das direcções, que guiado a intelligcncia na producção do
proporcionava á força movento, c das fôr mundo: como ella o conservava cm ordem:
mas que dava á materia. d onde vinham as almas humanas: c qual
Assim foi que a alina universal, a quem era a sua sorte, e o seu destino.
os caldcus, os persas e os cgypcios attri Segundo Platão, o mundo ó um só, tudo
buiram a producção do mundo, se achou iVcllo 6 ligado, e não subsiste, senão pela
dividida em tres”princípios differentes, e harmonia das suas differentes partes. D’aqui
separados: uma força motriz, uma intclli- eoncluc Platão que a intelligcncia do mun
gencia, c um a imagem, ou a ideia, que di do é uma só. (In Timeo).
rigia a intelligcncia, c que era, por conse Esta intelligcncia ó immatcrial, simples,
quência, como a sua razão. indivisível; os sentidos não podem alcancal-a,
No sentir do Timeu, a força motriz não e sómente nos eleva a razão ao conheci
era senão o fogo: uma porção d’estc, vi mento da sua natureza e dos seus attributos.
30 DISCURSO PRELIMINAR
Como esta intelligencia c immaterial, olla todas as porções do mundo, conforme a ne
ó cssencialmente distincta da forca motriz, cessidade que tinha para a explicação me
não tem relação alguma necessaria com es chanica dos phenomenos: estava iio sol o
tes dous princípios, e é livremente que se seu centro, e depois collocada em todos os .
determinou a dar á matéria as diversas astros, c sóbre a terra, para ahi produzir
fôrmas, sob as quaes a vemos. as plantas, os animacs, etc. Estas porções
A força motriz obra sem alvo, a matéria da alma do mundo eram gênios, demortios
cede'áo"seu impulso sem razão, e seria todo e Deuses.
o mundo um eáhos, se cin a natureza nào Logo que os gênios haviam formado o
houvesse senão materia c movimento. Pelo corpo humano, uma porção da alma do
contrario, vê-se no mundo uma ordem c sv- mundo se insinuava nos seus orgãos, e for
metria admiráveis; ellc encerra em si crea mava uma alma humana.
turas, que gosam d’este espectáculo, c (iuc Encerrada esta nos orgãos, recebia as
elle faz felizes. Foram logo o amor da or impressões dos corpos, c se fazia sensível,
dem, e a bondade, quem determinaram a era capaz de conhecer a verdade, o de sen
intelligencia suprema a produzir o mundo: tir as paixões: estas não tinham por prin
logo é boa, c sabia esta intelligencia: cila cipio e por objecto senão as impressões
produziu no mundo todo o bem, de que era dos corpos estranhos sobre os orgãos: alte
capaz; c todo o mal, que n’elle vêmos, vem ravam na alma a parte puramente intclle-
da indocilidadc da matéria ás vontades da ctual, ou suspendiam seu exercício; cilas
intelligencia produetora do mundo. (In Ti depravavam a alma: a razão devia comba-
meo). tcl-as; c as victorias, que conseguia, a avi-
Para. produzir no mundo a ordem, que sinhavam aos puros espíritos, aos quaes se
admiramos, era forçoso que a intelligencia unia, quando não tinham mais ligação com
o conhecesse, c que contemplasse o model- os corpos: ã morte era o triumpho"* d’estas
lo, que lhe representava o mundo. (Ibid). almas, que soltas da materia, se reuniam
Este modcllo é a razão, ou o verbo da á sua origem, ou passavam a outras re
intelligencia: Platão falia d’estc modello, giões, aonde não experimentavam mais a
umas vezes como um attributo da intelli tvrannia dos sentidos, c gosavam d’uma
gencia, outras parece olhai-o como uma perfeita felicidade. (Vide o Examen du Fa
substancia distincta da intelligencia, que o tal. sobre Platão).
contempla, e outras vezes crér-se-ia que Era a contemplação da verdade, c da
elle considera o verbo como uma emana formosura do mundo iiitelligivei, a sobera
ção da intelligencia, e que subsiste fóra na felicidade d’estas almas, e facilmente se
d’ella. (In Phileb. de RepubL, l. 7, et álibi). concebe todas as consequências, que uma
Como a intelligencia suprema c immatc- imaginação viva, e fecunda pôde tirar (Tes
rial, indivisível e immovelj cila conheceu, tes princípios para a religião, e para a
que por si mesma) não podia dirigir a for moral.
ca motriz, por isso que esta era material, c Xenocrates não fez mudança alguma na
aivisjyel, c que para a dirigir era precisa doutrina de Platão: Zonam, em logar de
uma alma, que tivesse alguma relação com todos os entes, que Platão faz concorrer
os entes materiaes, c com a intelligencia, e para a producção do mundo, admitte uni
que participasse das suas propriedades: esta camente dous princípios, um activo, outro
intelligencia produzia pois uma alma, que passivo, sem matéria, sem fôrma, som força
era intelligentc, c que tinha obrado com e sem movimento, e uma alma immensa,
desígnio sobre a força motriz. que a transportava e lhe dava mil figuras.
A intelligencia suprema tinha produzido Era esta alma um fogo, no sentir de Zo
esta alma, segundo Platão, só pelo pensa nam, c este fogo obrava com intelligencia:
mento verosimilmente, porque este philo o mundo era sua obra, c tinha um fim: to
sopho concebia que uní espirito que pen das as suas partes tendiam ao fim geral, e
sa, produz uma imagem distincta d elle todas por consequência tinham suas func-
mesmo, o parece que Platão attribuia a ções, e seus deveres; e a felicidade dos
esta imagem uma existência constante,' c particulares dependia da realisaeão d’esscs
fazia (p u a umà substancia: é uma conse deveres. 1
quência do seu sentir sobre o verbo, ou so Aristoteles afastou-se muito mais do sys
bre a razão, (pie dirige a intelligencia su tema de Platão; elle reconheceu, como seu
prema nas suas producçõcs. mestre, a necessidade d’um primeiro mo
Como esta alma era o agente, por meio tor intelligentc, sabio, immaterial e sobe-
do qual a intelligencia suprema produzira ranameuto feliz, que tinha dado o movi
o mundo, Platão distribuiu esta alma cm mento á matéria, £ produzido intelligencias
DISCURSO PRELIMINAR 31
•capazes de conhecer a verdade; algumas e não foram mais religiosos; tal foi Estra-
estão espalhadas pelo Céo, aonde cntrctem tain, que nào admitte no mundo senào uma
a harmonia, que n’elle se admira. Refuta matéria esscncialmentc cm movimento.
perfcitamente bem os philosophos, que pre Os diversos systemas, que acabamos de
tendiam achar na materia só a razao suffi indicar, nào satisfaziam a razão, nem ainda
ciente da producção do mundo; porém aos philosophos, que os ensinavam. O en
quando quer estabelecer um systema, sup- tendimento humano creava inccssantemcn-
põe uma matéria eterna, fôrmas eternas, tc novos systemas ou fazia reviver os an
encerradas no seio da materia, c um mo tigos: houve philosophos que julgaram que
vimento eterno e necessário, que despren o sabio devia rejeitar todos estes systemas
de estas formas; une-as a differentes por ou pelo menos duvidar d’cllos; uns* porque
ções de materia, c produz todos os corpos: o homem era incapaz de distinguir o ver
a alma humana é uma substancia eterna c dadeiro do falso; outros porque elle não
necessaria, como o movimento c a mate chegou ainda áquellc grau de luz que deve
ria. Taes sfio os princípios religiosos da produzir a convicção. 1
philosophia d’Aristoteles. (L. de anima de
Ceio). 1 Todos às princípios d’estes philosophos
Muitos discipulos da escola peripathetica se acham miudamente referidos no Exam. -
•se separaram dos princípios d’Aristotcles, du Fatalism., ao qual nos reportamos.
CAPITULO V
I Acabamos de vèr os progressos, que o annos d’idade, e foi declarado rei pelos ma
\ espirito humano fizera na Grécia com o fa- cedonios, que julgaram não permittir as
tj.yor da liberdade, e no meio das guerras necessidades do estado que no reino suc-
domesticas, c estrangeiras, que a agitaram; cedcsse Amintas.
ao passo que o luxo, o fausto, o despotismo, Em breve Philippe tornou florescente o
as paixões e a guerra levantavam e aniqui reino de Macedonia; finalmentc elle se fez
lavam os impérios no Oriente, assolavam declarar generalissimo de toda1a Grécia, e
as provincias, e corrompiam os costumes, formou o projecto de voltar contra a Pér
aviltavam as almas, c manictavam a razão. sia as forças que os gregos tinham por tanto
Todo o resto da terra se achava selva tempo empregado contra si mesmos; porém
gem; ou sem leis, sem artes, c sem seien- foi assassinado, quando se preparava para
•cias. o executar.
Os homens grandes da Grécia ajuntavam Tinha Philippe um filho, e este filho era
á sciencia da guerra c do governo o estudo Alexandre. Apenas nascido, Philippe sc oc-
•das letras e da philosophia. Epaufiaornlag, cupou da sua educação: elle informou Aris
o maior homem da Grécia no sentir de Ci tóteles: «Sabereis—aiz elle a este philoso-í
cero *, tinha por amigos os homens mais pho—que me nasceu um filho, de que dou'
virtuosos; e era em casa d’elle, que Eysi; graças aos Deuses, não tanto por m’o ha
•das, celebre philosopho, dava as suas lições. verem dado, como pelo fazerem nascer vosso
• N’ella foi educado PÍUlififie; c ahi estava contemporaneo: espero que o fareis digno
ainda quando Perdicas, seu irmão, rei da de m e succeder, c de governar a Macedo
Mãcedonia, morreu n’uma batalha. nia.» *
Perdicas deixava um Jilho infantil, o seu O successo excedeu as esperanças de Phi
povo derrotado, e o estado em desordem: lippe. Alexandre, educado por Aristoteles,
tomou Philippe o governo aos vinte c dous c na idade de vinte annos, se apossou tão
admiravelmente do plano de seu pac, que reducto: parentes todos os bons, c somente*
Í apesar d’uma multidão d’iniinigos, se fez
declarar general de todos os estados da Gré
estranhos os maus. Quiz que os gregos e
os barbaros se não distinguissem pelo man
cia, c conquistou o imperio dos persas com to, pela jactancia, pelo alfange, ou pelo cha-
g tal rapidez, que causará assombro cm to péo; mas olhados e difTcrençados, o grego,
dos os séculos. como a virtude, c o barbaro* o vicio; repu
Tinha, pois, o tempo, reunido em Ale tando toí^os os virtuosos, gregos, c todos os
xandre o absoluto poder, c as luzes, que os viciosos, barbaros: tornando os trajes
quasi sempre andaram separados, além das cominuns, coinmuns as mesas, os casamen
qualidades e talentos d’um heroc dotado da tos, a fôrma de viver, estando todos unidos
grandeza d’alma, e da bencíiccncia, que tào pela mistura do sangue, e a communhão
difiicultosamentc se conciliam: portanto ha dos filhos.. . De que prazer sc dominou á
viam de produzir sobre a terra as conquis vista d\aquellas bellas e sanctas bodas em
tas d'Alexandre uma revolução differente que reuniu n’uma mesma tenda cem espo
de todas as que se tinham visto até então: sas persas casadas com outros tantos espo
este principe formou, com cífeito, um pro sos maccdonios c gregos, achando-se elle-
jecto, como nenhum outro conquistador ha proprio coroado de fiòrcs, c entoando o pri
via formado. meiro canto nupcial de Hymneu, como um
Á testa de todas as forças da Grécia c da cântico de geral amizade!» 1
Persia, não sc imaginou Alexandre sómente Não’sc viu que Alexandre fizesse servir
destinado para conquistar provincias, ou a seus triumphos os povos c reis que elle
subjugar povos^mas para reunir todos os vencera, ou que conquistasse para asse-
homens debaixo d’uma mesma lei, que nhorcar-se de suas riquezas, e fazer nações
alumiasse e conduzisse todos os espíritos, tributarias.
bem como o sol alumia por si só todos os Logo que depois d’uma porfiada resistên
olhos; que fizesse desapparcccr d’cntrc cl- cia as cidades das índias lhe enviavam em
les todas as diíTerenças que os tornam ini baixadores para se submetterem a elle, c
migos; que os ensinasse a viver e pensar alcançarem a paz, elle não exigia por con
diíTcrentcmente, sem sc aborrecerem, e sem dição *mais do que dar-lhes Ampis por rei,
perturbarem o mundo, para forçar os ou que cilas tinham posto á frente da sua em
tros a mudarem d’opinião. baixada. 2
Socrates, Platão, Zena.pi c outros, tiveram
iguSTpèhsamento; 'inás nem todos os ho 1 Plutar. cia fortuna d'Alexandre, trat.
mens eram assaz racionaveis para conhe primeiro, trad. cVAmiot. Arien. I. 7, c. 6 .
cer as suas vantagens, nem os philosophos Diod. Sic., I. 17.
sufficientementè poderosos para sujeitarem 2 Plutarc. Yida d’Alexandre.
aos seus sentimentos aquelles, que a razão Ibidem. Havia nas índias um Rei, cha
não persuadisse. mado Taxise, senhor d u m paiz, segundo di
Julgou Alexandre que era necessario zem, cie não menos extensão que todo o Egy-
unir a authoridadc á luz da razão para es pto, abundante o mais que é possível cm pas
tabelecer entre os honiens o governo feliz tos e fruetos, e homem tão atilado, que cle-
e judicioso, que a virtude tinha feito ima pois de haver saudado Alexandre, lhe disse
ginar aos philosophos. Esperou poder es- assim: «Que necessidade temos nós, Alexan
tabelecel-o entre os povos submettidos ao dre, de combater, ou fazer guerra um ao
seu império, suj eitando pelo seu poder aquel outro, se tu nao vens para nos tira r a agua,
les que a razão não persuadisse, os quaes, nem o resto do que precisamos para o nosso
depois de illustrados, conservariam por dis sustento, por cujas cousas unicamente os
crição e por gosto o que a principio só tc- homens sensatos elevem combater-se? Porque,
riam recebido por violência: «Consideran quanto aos outros bens c riquezas, se eu ti
do-se—diz Plutarco—como um enviado do ver mais que tu, estou prompto c disposto
Céd, reformador, governador, e reconcilia- para repartir comtigo, e se menos, não te
dor do universo, aquelles que elle não pôde rei dúvida em agradecer-te, quando queiras
reunir pelos conselhos da razão, constran comigo repartir.» Alexandre, comprazen-
geu-os pela força das armas, concentrando do-sè de o ouvir discorrer tão avisadamenter
o todo em um só ponto, fazendo-os beber, o abraçou, e lhe disse: «Acaso te persuadi
diga-se assim, na mesma taça da amizade, rás tu que esta entrevista se h a de acabar
e confundindo as vidas, os costumes, os ca sem combate, não obstante as tuas boas pa
samentos, os usos. Impôz a todos os homens lavras e amaveis carícias? Não, não, tu nada
j o dever de reconhecer a terra habitavel, como ganhaste com ellas, porque quero combater
i seu paiz, e seu campo como alcaçar e o e vencej'-te em urbanidade e cortezia, a fim
DISCURSO PRELIMINAR 3*
Encontra cm Taxisc um principe sábio sos de Homero, c os filhos dos persas, dos
e benefico, senhor cVum paiz rico, c (Vum susianianos, e ccdrosianos cantavam as tra
povo feliz, longe de o combater, faz d’ellc gédias de Sophocles, c d’Euripedes.
seu amigo, seu alliado, louva a sua prudên Por morte d’cste conquistador, seu im - \
cia, admira a sua virtude, somente com cllc perio foi dividido c despedaçado pelas cruéis j
contende cm generosidade, recebe seus pre guerras que se fizeram entro si os seus suc- {
sentes, e IIVos faz maiores, aos quaes ac- cessorcs: .unicamente Ptoloineu governava
cresccnta mil talentos (Vouro em moeda. o Egypto com intelligcnçia, e a felicidade
D uma multidão de pequenos estados des Üe que gosava o seu império chamou a elle
unidos fórma provincias, que tornou felizes. todos os estrangeiros a quem as guerras,
Em todas as suas conquistas c viagens, ou o mau governo dos outros successores
foi Alexandre acompanhado por sábios, phi- (VAlexandrç obrigaram a deixar as suas pa
losophos, c homens de letras. Todos os phi trias.
losophos c sábios de, qualquer paiz, seita, Alexandria, que este monarcha escolhera
ou religião que fossem, atlrahiram a sua para sua curte, sc tornou o asylo da vir
attenção, excitaram a sua curiosidade, e tude, do merecimento, e dos talentos per
obtiveram a sua estima: a sua corte reuniu seguidos, ou mal apreciados. Ptolomeu con
os philosophos gregos, persas, o indios, e cedeu prorogativas aos sábios, e aos philo- \
os seus favores concedidos a todos, os dis- sophos de qualquer nação, paiz, ou seita \
pozeram insensivelmente a estimarom-sc c que fossem: erigiu.uma/academia, cm que 'i
communicarem mutuamente suas idéias. 1 elles sem distineçãb. investigavam a ver- \
A terra mudou do face em poder (Veste dade, e formou em favor dos sábios aquella •
conquistador philosopho: cessaram os po bibliotheca tão famosa que seus successo- :
vos de serem inimigos: cllc ensinou os ar- res augm entaram ,eosscrraccnos,nom eio
raehosianos a lavrarem a terra, aos hirca- doj&tiino.século dçstruiTtTYTr '.........
nos a contrahirçm casamentos dignos, aos Tinha, pois, o tempo junto em Alexan
logdinianos a sustentarem seus paes decre dria todos os systemas, opiniões, e d esco-,
pitos, e não os matarem, aos persas a te brimentos do entendimento humano acerca
rem respeito a suas mães, não se casando da origem do mundo, das causas dos phc-
com ellas. nomenòs da natureza, e do destino dos ho
Oh! maravilhosa philosophia! continua mens.
Plutarco, por meio da qual os indios ado N’esta especic de mistura de systemas e
ram os Deuses da Grécia, os schythas se opiniões de todos os philosophos, se uniram
pultam os mortos e não os comem mais! todas -as idéias que tinham analogia, e se
Depois que Alexandre civilisou a Asia, fun formaram novos systemas, como succede .
dou entre os barbaros mais de setenta ci nas misturas chimicas, onde todos os prin- :
dades, ás quaes deu leis, e o seu commer cipios, quê tem aííinidade, se aproximam,
cio adoçou as nações ferozes, entre as quaes se unem, c formam compostos novos.
ellas foram estabelecidas. Os systemas philosophicos de Pythagoras,
A protecção e a estima que ellc prodiga- Timeu e Platão, tinham principios communs
lisava ás scicncias e aos sábios, desenvol com os dos caldeus, persas, e egypçios: sup- :■
veram n’uma infinidade d’cspiritos o desejo punham todos um Ente Supremoj o. o con- ‘í
de se esclarecerem. Depois que Alexandre ccbiam, umas vezes como luz, ou como fogo,
domou e civilisou a Asia, diz Plutarco, o d’ondc sabiam os entes; outras como uma
passatempo d’aquellcs povos era lér os ver alma diíTundida por toda a natureza, e for
mando todos os corpos pela sua actividade.
de que tu me não excedas em generosidade Todos olhavam a Intclligcncia Suprema co
c bondade.» Assim, recebendo a elle muitos mo uma força (pie obrava essencialmente,
e bellos presentes, lhe correspondeu ainda e suppunham que a acção d’esta força ha
com outros mais generosos; c finalmente, be via pfoduzido, por seus dccrecimentos suc
bendo em uma ceia, o saudou com m il talen cessivos, a materia a que genios sahidos
tos d'ouro em moeda. Este presente desagra (Veste ente haviam dado a fórma, e da qual
dou assaz.a seus familiares, mas em troco tinham tirado todos os corpos.
lhe grangeou muitos corações dos principes Pelo contrario, Platão fazia obrar esta in.-
e senhores barbaros do paii. (Pintarc. art. telligencia com sabedoria c desígnio; o seu
Alexandre.) conhecimento c noder, abraçavam toda a
1 Elle fez enforcar alguns philosophos natureza: este philosopho mostrava no mun
indios, que amotinavam os povos, e dos quaes do a ordem, a harmonia, sabedoria, e um
não podéra conseguir que deixasseiii de cla fim; e suppunha a natureza cheia de genios.
m ar contra elle. (Plutarc. ibidem.) Os philosophos persas, caldeus, c egy-
34 DISCURSO PRELIMINAR
<lo, e procurou nas differentes combina-] maior interesse, de (jue é capaz o coração
ções dos numeros um segredo para fazer! humano, e os seus princípios tinham accén-
mover a seu arbitrio os genios, os espiri- ] dido o fanatismo: ifaqui se vè facilmente,
tos, e os domonios. como estes homens inventaram uma infini
Gomo cllos criam a alma degradada e hu dade de prácticas cbimericas, ou se separa
milhada pela sua união ao corpo humano, ram da sociedade, para se occuparem na
buscaram com ardor os meios de se liber contemplarão, c formaram uma seita de phi
tarem da tyrannia dos corpos, do sujeita- 1losophos puramente religiosos. Tudo con
rem as paixões, o os sentidos pela austeri- j corria para se multiplicarem estes ultimos;
dado de seus costumes, e prácticas singu files tinham todos cnthusiasmo e fanatismo,
lares, pelo uso das plantas, ou dos minc-j eram muito proprios para inflammarem os
raes proprios para acalmarem o sangue, í espíritos, e communicar seus sentimentos;
e o impulso da força movente, (pie era a ] estes sentimentos agradavam á imaginação,
origem das paixões. Por este meio julga- i que se compraz a representar esta guerra
ram purificar a alma, e garantil-a nào só-1 continua entre genios c demonios. Todo
mente da necessidade de se. unir a. um o u -! este systema era hem mais adequado ao es
tro corpo, depois da sua morte, mas ainda j pirito Tio povo. Finalmente, os povos do Egy-
poder-se elevar, mesmo ifcsla vida, até á pto c Oriente, eram desgraçados, e por con
contemplação do Ente Supremo, que. era a sequência dispostos para receberem uma
partilha dos espíritos puros, e desprendí-j doutrina, que lhes ensinava a despresar os
dos de toda a affcição terrena. prazeres eas riquezas que os elevavam acima
Segundo o parecer (Vestes philosophos. 1do poder civil, e lhes mostravam um princi
não oram os sentidos e paixões, os unicos' pio de felicidade, que nenhum poder lhes
obstáculos para a união da alma com o Ente j podia roubar.
Supremo: genios maligno.-, ambiciosos, ou Assim se fez popular a philosophia de
inimigos dos homens, os prendiam á terra, Platão, misturada com as idéias da philoso
e aos seus corpos: era necessario enganar í phia ealdea no Oriente, e Egvpto, até á ex-
estes gênios, ganhal-os, vencel-os, ou inte tinccão do imperio dos successores iVAIe-
ressar os genios, amigos dos homens, para xandre.
se escapar aos genios maleficos, e para isto ] Também havia em todas estas regiões,
empregaram todas as prácticas da Theur- j philosophos sectarios d’Aristoteles, Stratão,
gia Caldca, que naturalmente se alliou com Epicuro o Zeuam, mas não formavam sei
■o Platonisino e Pythagorismo. tas consideráveis.
Estavam animados estes philosophos pelo I
X .
CAPITULO VI
ér
D o s p r in c íp io s r e lig io s o s d os ju d e u s
Achavam-se o$#tfij£US, como fiuasi todos pirar, prophetisop a seus filhos tudo o que
•os povos da terra ■ ■ I K i havia cfacoutccer-lhcs; annuneiou o Mds-
((uaíido Deus fez sahirvA3j^^lp da Üa 1dea, sias, traçando-lho o caracter, c proraetteu
e o conduziu á terra de Canaan. Deus eon- a Judá, que não sahiria o sceptro da sua
tractou um pacto ou allianea com este Pa tribu até á vinda do Messias.
triarcha', c lhe prome.tteu uma posteridade, ] Os filhos de Jacob se multiplicaram no
que possuiría a terra que pilo habitava. As ! Egvpto, aonde vieram a £j^ià<a5tfOs. Por
mesmas promessas repetiu a Isaac, filho de j meio de inTTa'^rcs'TOLoTTiiTicir^esplencfoi*, Deus
Abrahão, e a Jacob, filho de Isaac. 1 os livrou do captive iro: deu-lhes leis, o os
Acontecimentos, dispostos pela Providen i trouxe á terra promettida. Os jiídeus for
cia, conduziram ao Egvpto Jacob e a sua maram unia sociedade separada de todas
familia. Este Patriarcha, estando para ex- as nações, para darem , ao Ente Supremo
um eiíliõ legitimo, fundado sobi c estes prin
1 D m iw on. 4, 39. Exodo 21. Dcutc- cípios:
roíh 6,-4, o, 13. , Não ha mais que. um Deus, ereador do
36 DISCURSO PRELIMINAR
Céo c da terra, que tudo governa pela sua de conservar sua religião sem mudança, o
providencia; somente cllc deve ser ainado sem mistura doutras: tudo quanto respei
pelo homem, de todo o seu coração,, alma, tava á Religião, á moral e á sociedade ci
c potências; cllc sómontc deve ser temido vil, era ensinado aos judeus desde a infân
sobre todas as cousas, e seu nome deve ser cia, e explicado todos os sabbados, e dias
sancli ficado. festivos pelos prophetas, ou pelos levitas,
Elle tudo vò, até o mais recondito dos co os quaes lhes faziam uma deseripção terrí
rações; é bom, justo, e misericordioso. Creou vel da theologia das outras nações, sendo-
o homem livre, deixando-lhe a escolha para lhes prolubido sob as maiores penas, o in -
fazer o bem ou o mal: deve o homem rece stru[rcm-sc nas suas sciencias.
ber com reconhecimento todas as bênçãos, Não havia mais que uma cidade c um
como vindas da mão de Deus, e com sub templo, cm que se podésse adorar: era este
missão todas as calamidades, como castigos como o centro da Religião. A successão dos
pílternaes, ou como provas. Bem que Deus sacrificadorcs, o constante cuidado em im-
seja misericordioso, os judeus, sem um vivo molar victimas, a necessidade d’oíTcrccer
pesar das suas faltas, não devem lisongcar- seus filhos, c d ahi ir todos os annos para
sc dnbtcr perdão, nem de vèr cbssar os ma se purificar, eram outros tantos meios pro
les, que attrahirein sobre si por suas im- prios para reler os judeus na religião de.
moralidades. 1 seus maiores. Comtudo ellcs a corrompe
Tal é a Religião c a moral, de que o povo ram, c viram-se em Jerusalem reis idola
judaico, sem artes, nem sciendas, ignoran tras, c sacerdotes que profanaram o tem
te, e grosseiro, a qualquer outro respeito, fa plo, e a religião, misturando o culto dos
zia profissão; ao mesmo passo que as na falsos Deuses com o do Ente Supremo.
ções mais celebres pela sua. habilidade nas Cessou Deus de proteger este povo infiel;
artes c nas sciendas, estavam sepultadas os assbâfts tomaram.. ç , demoliram Jerus
nas trevas mais espessas acerca da natu além , destiw ã tii d templo, e fevaram capti-
reza, e existência do Ente Supremo, da ori vos osjudeus pafa Babylonia. Nó Hin d’um
gem do mundo, e do destino do homem. grãncíe captfvèlfõ, o templo e a cidade se
A estas sublimes idéias, aecrcscentavam recdilicaram.
os judeus esperanças magnificas: criam, r Depois que Alexandre conquistou a Asia,
que d’entrc ellcs, dá tribu e faça de David, jmuitos judeus se passaram para o Egypto,
nasccria um Salvador, que os havia do li Fe se estabeleceram em Alexandria, nó rci-
vrar de todos os males, c que attrahiria to-‘ inado d'estc conquistador, e os ptolomcus,.
das as nações ao conhecimento do verda- ms quaes lhes concederam os privilégios do
* deiro Deus. que gosavam os macedonios, e o livre exer
A sua Religião não consistia sómente em cício da sua religião . 1
professar estas grandes verdades; cila tinha 0 tempo, que relaxava insensivelmente
ritos, ceremonias, sacrifícios, hólocaustos, os nós que prendiam os judeus á sua pa
purificações c expiações: prescrevia aos ju tria, ia também insensivelmente intibiando
deus as le is mais adequadas para o bem da o seu respeito pela lei de Moyses, c seu
sociedade civil. Tudo era Divino na Igreja, odio aos estrangeiros: «Sahirám iTIsracl
c na Republica; porque Deus não era me filhos d’iniquidade, que a muitos davam
nos author dos regulamentos politicos, do este conselho: vamos, e confedcremo-nos
que dos ritos, e das ceremonias religiosas. com as nações circumvisinhas, porque de
A observância das leis, que Deus pre pois que nós retiramos d’ellas, cahimos cm
screvera aos judeus, era seguida de recom muitas calamidades: e esto conselho agra
pensas sensíveis, e presentes, esperando-as dou. Foram pois deputados alguns do povo,,
do Céo. Presidia a esta Igreja um Summo para fallarcm ao rei, o qual lhes deu a fa
Sacrificador, nos lábios dó qual repousava culdade de viverem segundo os costumes,
a sabedoria e a verdade: sobre seu peito gentilicos; e ellcs edificaram cm Jerusalem
estavam o Urim c Thurim, por meio dos um collegio á maneira das outras nações. 2
quaes pronunciava o Senhor os seus orá «Os proprios sacerdotes não cuidaram
culos. mais nas funeções do altar, despresando o
E encerrada a nação judaica em suas templo e os sacrifícios. Corriam aos espe
montanhas, c separada dos idolatras, havia ctáculos; não faziam caso algum do tudo a
que sc prestava honra no seu paiz; e nao
1 111 Beg. 8, 39. Deut. 8, ibiil acreditavam poder haver cousa mais digna
2 Genes. 40, v. 10. Beg. I. c. 7, v. 12.
' Ps. 21, v. 18. Is. 11, 8, 1 , 10. Ezech. 34, 1 PrideavXj Historia dos Judeus.
v. 23. 2 Machab. I 1 , c. L v. 15.
DISCURSO PRELIMINAR :i7
■o, grande do que sqbrcsahir cm tudo o que N’cllc se destinguem sete ordens de pha-
«era estimado entre ós gregos. Desenvolviam riscus: um não obedecia senão pela espe
por isto; uma perigosa emulação entre si. rança do proveito, c da gloria: outro, não
Tinlijtip inveja dos costumes dos pagãos, e levantava os pés quando andava: o tercei-'
aíTeõtavàm cm tudo áquelles que antes ha ro, batia com a cabeça na parede, a fim de:
viam sido os inimigos eapitaes do seu paiz. » 1 derramar sangue: o quarto, occultava-a em
llouve, pois, judeus, que tomaram gosto uni capuz: o quinto perguntava com alti
ás idéias dos gregos o estrangeiros, quccllcs vez: Que devo eu fazer? eu o farei. Que lia
se esforçaram por alliar com a sua religião, guc eu não tenha feito? O sexto, obedecia
ou para- a defender contra os pagãos, ou por amor, pela virtude, e pela recompensa:
para aclarar os logares obscuros dos livros e o ultimo não executava as ordens de Deus,
de Moysés, ou para iTcllcs descobrir as ver senão polo temor do castigo. Faziam todos
dades occulladas debaixo do véo da allego longas orações, negando-se. até ao somno
ria, e perdidas para aquelles que não co preciso: uns se deitavam sobre uma estreita •
nheciam a letra da lei, ou para combater e prancha, a fim de que não podessem garan
separar da religião judaica os dogmas dif- tir-se d’uma queda perigosa no caso ifador-
ficeis ou pesados: tacs foram os phariscus, mecer profundamente; e outros, ainda mais
■saduccus, csscuos, c os philosophos judeus. austeros, semeavam sobre esta prancha es
pinhos e ealhaus; jejuavam duas vezes na
semana, despedaçavam o corpo com acou-
I I tes, c faziam prolongadas preces, que reci
tavam eoni o corpo innnovcl, e os olhos
fixos.
Qns phariscus Traziam a cabeça abaixada, com receio
de locar nos pés de Deus, que se elevam
sómente quatro pés acima da terra: não
Asseveram os phariscus que Deus linha levantavam os .pés para denotarem o pouco
íijuntado á lei dada sobre o monte Sinav, cuidado que lhes dava tudo o que podésse
, \ grande numero de ritos c dogmas, nuc Mov- rnolestal-os; e a fim de parecerem aos olhos
O / sjyH zm nassaiia posteridade sem os es do povo unicamente occupados das cousas
crever; ás verdadeiras tradições, accres- celestes, cobriam seus vestidos de phyla-
cenlaram infinidade de contos ridiculos, eterias, que continham certas sentenças da
ideias falsas, e princípios adoptados dos lei, e se lavavam mais vezes do que bs ou
philosophos, que corromperam os dogmas tros, para inculcarem o extremo desvelo
e a lei. que tinham em ser puros.
Criam os phariscus, diz Joscpho, que tüj]o Os phariseus tinham um zelo ardente e
^e fazia pelo destino: porém não tiravam infatigável cm fazer proselytos, e este z c lo \
áwvontade o livro arbitrio, para se deter junto ás suas mortificações, os fazia vene- /
minar; porque no seu sentir usava Deus raveis aos olhos do povo. Chamavam-lhes
d’esta condição, e posto que tudo aconteça os sábios por excellenda, c seus discipu
por seu decreto, ou por seu conselho, toda los diziam com enthusiasmo uns aos ou
via conserva o homem o poder de fazer es tros: O sabio explica hoje. Tinham seus dis
colher entre o vicio c a virtude. Acredi cipulos nTima espccie d’escravidão, e re
tavam que as almas dos maus, depois da gravam com um poder absoluto tudo o que
morte, eram encerradas em nrisões. e sof- era concernente á religião. Dispunham do
friam supplicios eternos, ao passo que as espirito das mulheres e do povo; excitavam
dos boiis encontravam um facil regresso á a seu boi prazer as vagas d’estc mar tem
yif|a r» i»nfrnvmn n illll outro corpo. pestuoso, e se tornaram temíveis aos reis . 1
Não entraremos no detalhe cie! suas tra-
diçoes, que o tempo multiplicou prodigio rusalem, ajuntou um commentario a Misna,
ri samonte, c que recolhidas cm trinta e dous 0 qual se chama Gamara: estas duas partes
l volumes in-folio, compocm o que se chama unidas, formam o Talmud de Jerusalém.
^ o Talmud. 2 Havendo-se depois transportado os judeus
para Babylonia, a 1li erigiram escolas cele
1 Mach. I 2, c. 14. bres. e trabalharam no novo supplemento do
2 O Rabbi Judas, por sobrenome o San Misna, que foi acabado pelo fim do quinto
cto, vecollíeu todas as tradições de Moyses século. Chamam-lhe tombem Gamara, ou
até o meio do segundo secuto, c d'cllas com Talmud Babylonico. (Budoeus, Hist. Phil-
pôs um volume chamado—Misna: outro Rab- Hebreoerum.j
bi, chamado Jochanam, da synagoga de Je- 1 1 Math. 15, v. 16, cap. 9, v. % c. 23, v.
eo U -Q r J . ^
38 DISCURSO PRKLIMINAU
811 §1 1 1
mais que o emblema da feljcidado prepa maus seriam precipitadas n’um logar pro
rada para aquelles <|ue observavam os pre fundo o tenebroso, no qual ficariam expos
ceitos escondidos debaixo do exterior da tas a todas as injurias a u m inverno eonti-
lei. mio e cheio de penas, que jamais são inter
Os essenos se nfastaram, pois^ das jii.tlu- rompidas por algum favoravol intervallo.
; des, j)ara preservar-se Ha ecurupeãõPque Q^iessenos do.-Egypjo formavam uma
V. ífcllas reinava ordinariamente, e se corn- ideia niãTíFeTevadá da alma; não a conce
municava aos seus habitantes como as mo biam como um ar subtil e ligeiro, mas como
lestias aos que respiram um ar infccciona- uma substancia destinada a conhecer a ver
do: rçuniram-se c foriparam unia socieda- dade, e a vèr o mesmo Deus, que cra a fonte
; de particular, que não enlliesôuraya puro das verdades, e a luz que esclarecia os es
nem prata, eoiiteiitándo-se com o necessa píritos, como o sol alumiava os corpos.
rio, c* viviam do trabalho dc suas inãos. Esta luz sómente se communicava ás al
Àpplicavaui-se huuto á moral, c os seus mas isentas das paixões, desligadas dos cui
: preceitos se consagravam todos ao amor dc dados que as prendem á terra, e superiores
Deus, da virtude o do proximo: davam, diz ás distracções que causam sobre os nossos
Philão, iutinitas provas do seu amor para sentidos as impressões dos objectos.
com Deus: por toda a vida guardavam uma 0 esforço que faziam para elevar-se a
constantfiLiiinalMaycl castidade: nunca ju este estado dMmpassibilidade, lhes procura
ravam, nunca mòrítláin: attnTTuiam a Deus va extasis, nos quaes criam vèr a luz que
tudo o que era bom; c jamais o tinham por anhela vam, ficando embriagados de delicias:
author do mal. Faziam ver seu amor á vir accendia-se ifclles o fogo do enthusiasmo,
tude no seu desinteresse, no seu retiro da consideravam-se já como mortos para o
gloria e da ambição, na renuncia aos pra mundo, renunciavam os bens, os amigos, e
zeres, na sua. paciência, na sua simplici a sociedade, e se retiravam a alguma ca
dade, na facilidade enj se contentar; na sua bana ou casa abandonada, para se entre
modéstia, no seu respeito ás leis, uá firme garem á contemplação.
za da sua alma, etc. Emfiin, ellcs manifes - Na maior parte dos paizes do mundo,
tavam' seu amor para com o proximo, pela diz Philão, havia eremitas, mas aoude se
sua caridade, e comportamento igual para encontravam mais era no Egypto; havia-os
com todos; pela communicação"de seus em todas as suas provincias, principalmcntc
bens, e pela sua humanidade. No sentir nos arredores d*Alexandria, e sobre tudo
dos essenos, a natureza, como uma mãe omjrolta do lago Moria, sobre. uma emi
commum, produzia c sustentava todos os nência muito commoda para a segurança,
homens da mesma maneira, e os havia feito c. onde o ar ç saudayei.
verdadeiramente irmãos: a concupiscenda Tinha cada um o seu pequeno oratorio,
tinha destruido| este parentesco; c os esse-, chamado Monestarion> para onde não con
nos pretendiam restabclecel-o. duziam outros moveis mais do que a lei,
Espalharam-se os essenos na palestina, os prophetas, hymnos, c alguns outros li
aonde formaram differentes confrarias, en vros.
tre as quaes t,udo ora commum. Ao nascer do sol pediam a Deus a sua
Como as paixões c a cobiça nasciam da benção, esta benção verdadeira, que illu-j
prganisação do corpo, os essenos entendiam mina c que abraza as almas, e as penetra J
-que devia ajuntar-sc ao estudo da moral o da luz celestial; ao pôr d’este astro, roga-..'
. conhecimento .dos .simples, p.roprios para vam a Deus que os seus espíritos desprendí-J
i- dos dos sentidos e das cousas sensíveis po- i
•?as enImnidadH; e jlesçpbrii:ani..c)anta.s; e dessem n’um perfeito recolhimento desco- \
>: pedriis, q brir a verdade. Todo o resto do dia era em
Por to.dá ’ã parte se encontravam esse pregado no estudo das Sanctas Eseripturas, t
nos, aonde havia judeus; na Palestina, na o texto d a|,fl^e^raj)O T ^jlcs-q lh ^ 9..cajno ■>
Syria, e no Egypto. i ^ S S S í r nu? cs% Jm làs^m ais subfirqes)
. Todos esperavam a morte, como um preso nâuiptkfènt(^;tít c sõ dêviã intéfpre- \
espera* a liberdade. tar allegòricãmcntc para so decifrar o sen-;
Os L¥seuo^-da. Poleslina se persuadiam tido. \
-que quebradas queTossêm as prisões da Nem. Tcomiam,noaU).íM ^ I
carne, sua alma voava aos Céos, aonde en- dcLjiQStp o sol: alguns, arrebatados por um w
contraria uma habitação isenta de chuva, extraordinário desejo de conhecer o que
-neve, calores, e incommodos, c em vez d’isso buscavam, se esqueciam algumas vezes du-
-uni viração agradavel, que os refrigerava ranté tres dias, de tomar alimento. m
continuaíuente; ao passo que as almas dos Era Deus o objcctó de todas as suas m c - 1
40 DISCURSO PRELIMINAR
ditaçõcs, c até cm sonhos nào sc lhes re são outra cousa mais do que um ramo dos
presentavam scnào as bellezas e excellen essenos.
d a das perfeições divinas: muitas vezes A religião chrislã tem por aulhor o Mes
dormindo, faziam discursos admiraveis d’cs- sias, promettido aosjudeus, verdadeiro Deus
ta divina philosophia. e verdadeiro Iloincm; nada d’isto se cncon-
Passavam sejs dias consecutivos no seu dra nos dogmas dos essenos. A religião chris-
oratorio sem d elle sahir, nem mesmo olhar lã ao nascer, tinha sacramentos: os essenos
para fóra: no sétimo reuniam-se cm um não os Unham. Jesus Christo ensinou a rc-
oratorio communi, aonde um dos mais hiW surreicão dos corpos; os essenos a nega
heis fazia um discurso, depois do qual to-\ vam. Sc os christãos não eram outra cousa
• inavam juntos o seu alimento, isto é, u nf mais do que um ramo dos essenos, seria
■ pouco de pão com algum sal, c hyssopo. preciso que o proprio Jesus Ç h r islo jj^ s e
Durante a refeição guardavam o mais? sklo esseno, sepa radõ òii sccciohadn (la sua
. profundo silencio, c quando estava acabada, sgita^c que d’ella se houvesse tornado ini
um dos da companhia propunha uma ques migo,"' pois que leria ensinado dogmas op-
tão sobre qualquer passagem da Escriplu- poslos aos princípios fundamentaes dos es
ra; respondia outro, c o presidente decla senos. Os essenos tinham os seus templos
rava se a questão estava resolvida, accres- e as suas assembléias separadas; não com-
ccntando o que julgava a proposito: ap- muni cavam com os judeus, porque os não
plaudiam todos, levantavam-se, c cantavam consideravam assaz sanctos; não offercciam
um hymno: o resto do dia se passava em victimas, c condenmavnm os sacrifícios que
discursos sobre cousas divinas, c a noite a se faziam no templo. Como, pois, seria pos
cantar até o nascer do sol. sível que os phariscus, os cscribas, c os sa-
As meditações dos essenos do Egypto ti duccus, que conlinuamente. lhe armavam
nham por objecto a , a ciladas, que propalavam que ellc não era
qüal, segundo ellcs, era como o homem, outra cousa mais do que um impostor, não
composta d]gspi rjto; ç..dQJ.£0Xl)Q- O corpo lhe tivessem nunca recordado a sua ori
'la Escriptura era o sentido íitteral, e o inys- gem, nem lançado em rosto*que aniquila
ico, ou o occulto, era a alma, c era ívcsta va a lei de Moysés? Como é que tantas sei
iltimâ que estava a verdade c a vida. Phi- tas. inimigas do Christianismo, que~s£ des
ão diz que elles estudavam a Escriptura envolveram. entre os judeus, no Eg.Vpto,
como philosophos, c tinham entre si mui nunca nénhumá if ellas fez uma similhanto
tos cscriptos dos chefes da sua seita, que arguicão aos christãos?
eram monumentos d’esta cspecie de scien
d a allcgorica, que elles estudavam e pro
curavam imitar. IV
Tudo o que o espirito humano póde ima
ginar extravagante, se ofierecia sem dúvida
a estes homens continuamenlc entregues á Dos Samaritanos
meditação da Escriptura, guiados nas suas.
meditações por similhantes princípios, ate
nuados" pelos jejuns contínuos, cscandeci O antigo reino de S a p ^ iíi era habitado
dos pela solidão, animados pelos motivos pelos isiaeh tasjj^ ,d ez‘tri bus ^ u e Jeroboão
que actuam mais poderosamente sobre o sçp a rou ^ oS S iu p ^ e^ ^ ü ^ lejn , no reinado
coraçào humano, a esperança d’uma im- de Roboão, filho dc SáíòínãÕ.
< mortalidade feliz, e o desejo da perfeição. Sahiianasar apoderou-se do reino de Sa
Estes motivos parecia haverem elevado maria, transportou os seus habitantes para
os essenos acima da humanidade: nunca a as planicies da Caldea, c mandou repovoar
força dos tormentos, dos traclos do fogo o paiz da Samaria pelos cutcno.s. Esta co
das rodas, c de todas as invenções as mais lonia foi devorada pelos leoesTpor ter tran
terríveis, poderam arrancar-lhes uma unica sportado os seus idolos para a Terra San
' palavra contra o seu Legislador, contra a cta. Essharadão enviou-lhe um Sacerdote
a sua consciência . 1 judeu com uma nova colonia para alli res
f - Do que acabamos de dizer, fácil e de co- tabelecer o culto dos samaritanos; mas este
> nhcccr quanto se afastam da verdade aquel- sacerdote não pôde desprender absoluta
\ Jes que pretenderam que os christãos não mente os novos habitantes do seu primeiro
culto, e fez um mixto da sua antiga religião
1 Josnph de Bello Jud. I 1, c. 12. Phi e da Samaritana. Por fim esta colonia abra
lon dr vil. contempl. Os authores citados çou a r 0 j^ ão 4 dílaica, o os novos samarita-
sobre as seitas dos judeus. líos foram chamados os proselvtos &q.s Ifiüfis,
DISCURSO PRELIMINAR 41
porque era o temor (Tostes animacs quem os 1cQnlavamicoja.Qs gaflilgeus; os judeus posto
havia determinado a seguir a religião ju ! í[ cliíüJlmíòsãmento," 1 lies imputaram o
daica, da qual comludo se afastavam: l.° ; erro d’aquelles acerca da immortalidadc da
De todo o Canon dos judeus, do qual não | alma.
recebiam senão o PeniaJJiuico. 2.° Sacrifi Assim que os. ptolomeus se apoderaram
cavam sobtòPífWontc Uarisin. c não cm 1da Judeia e Samaria, os samaritanos se es-
Jerusalém, entendendo que não faziam mais | tabcléceram no Ègypto, assim como os ju
do que conformar-se com o culto dos Pa deus. Como cllcs, tomaram gosto pelas scien
triarchas, prodecessores de Moysés. .* 3.° d a s e pela philosophia, principalmente pela
Esperavam o Messias, como os*Judeus, o philosophia platônica, unida á caldaica, que
criam que o Messias seria não sómente consistia principalmenlc cm operar .çqii^as
um Pae, mas um Doutor, enviado por Deus admiráveis por eíTeito das virtudes oçciiltas
para os esclarecer. 4.® Observavam a lei das. pjaidas. pela astrologia c invocação dos
de Moysés com muita cxactidão, c não ti genios. Alguns samaritanos tinham alliado
nham inenos respeito que os judeus, pelo esta philosophia aos dogmas da sua reli
Pontatheuco; mas a sua dedicarão á obser gião, c viu-se na Samaria pina especie de
vanda da lei, não era a prova de persegui- magicos, que se inculcavam como enviados
ção_ ou de supplicios. o.° Os samaritanos de Deus, os quaes seduziam o povo com
rejeitavam toda a sorte de tradições, c acre seus prestígios. A historia de Dosithcs c
ditavam na palavra escripta, íío que con- de Si mão não deixam este ponto cm dú W
vida. ,
1 Joan. 4.
CAPITULO VII
Tinha sido o Oriente o berço do genero reiros fortes, atrevidos e ávidos dos despo-
humano, c as grandes familias n’elle esta jos da guerra, da qual tinham uma como
belecidas haviam inventado as artes c scien necessidade.
das, construído cidades, formado estados e Não faltava, pois, senão um guerreiro,
impérios, cmquanlo o Occidente era habi valente, ambicioso c de espirito elevado,
tado de povos pastores, ou selvagens. para formar na Italia um estado puramente
As guerras, a povoação excessiva, e ou guerreiro, o qual pela sua constituição, c
tros infinitos accidentes desmembraram das seus costumes tendesse sempre a engran-
nações policiadas algumas colonias, que na dccer-sc, c a desalojar os seus visinhos. Foi
vegando, procuraram novas habitações, e lloinulo este guerreiro,.c.-Roxq.aeste pitado,
formaram differentes estabelecimentos nos que*há súá origem não era mais qiic unia
paizes maritimos, principalmente na Italia. especie de arraial, povoado por aventurei
Estas colonias adoçaram os costumes dos ros, a quem a esperança do saque, muitas
povos selvagens, entre os quaes sc estabe vezes da impunidade, ajuntou; mas que pela
leceram; e na Italia se formou uma multi- sua constituição primitiva e pela sua situa
ào do pequenos estados independentes, ção havia de subjugar, c com elfoito subju
Í ada um dos quaes tinha religião, leis e gou a Italia, a Grécia, o ’Oriente. a Hcspa-
ostumes.diversos, e que pela sua situação nha o as Gallias. Todos os povos conheci
stavara muitas vezes em guerra . 1 dos tomaram partido nas guerras de Cesar
Assim, entretanto quo o luxo corrompia c de Pompeu. 1 .
•o enfraquecia os povos do Oriente, o tempo Receberam os romanos dos povos que
formava em um ponto do Occidente guer
venceram, princípios de corrupção, que in ram; a elles se entregou sem pejo, c o uni
vadiram todos os estados c todas as ordens verso teve por senhor um principe, dado
da republica: a honra, o amor da liberdade o mais vergonhosas sensuahdades, avareftttE
da patria extinguiram-se: em Roma não se cruel, zeloso do seu poder e excessi vame n te
conheceram verdadeiros bens senão as ri desconfiado. Aos seus temores e descon
quezas, e Roma encerrava em seu seio to fianças sacrificou infinitos cidadãos. N ã o s c
das as causas que haviam destruído todos viam em Roma senão delatores: e todo c_
es grandes impérios. 1 homem virtuoso ou rico era culpado. V iu -
Apesar da sua corrupção, Roma por uma se um pae aecusado por seu filho co m e
consequência da sua constituição havia de réo (Testado, sem fundamento, sem denun-
formar grandes capitães, politicos hábeis, ciador, e sem outras testimunhas, c este fi
ambiciosos, que buscassem sujeitar sua racs lho protegido por Tiberio. Ninguem ousava
ma patria, e a mudar a republica cm mo interessar-se pelos accusados, nem chorai:
narchia. Cesar o emprehendeu c o conse pelos mortos: a corrupção e o temor haviam
guiu. 2 suíTocado a voz da natureza, interrompida
Os cidadãos, que arrancaram com avida .0 commercio o as obrigações da vida ci
a Cesar a soberania, não restituiram a li vil. i
berdade á sua patria. Augusto, que lhe suc- As provincias saqueadas pelos barbaros-
ccdcu, foi mais poderoso do que olle, c suf ou pelos governadores, que Tiberio lhes en
focando todas as discordias civis, reinou pa- viava, escolhidos d’entrc os seus libertos,,
cificamente sobre o mundo conhecido desde ou d^utre aquclles que se distingo iam cm_
a índia até Allemanha. Caprêa, não eram mais felizes. Confiado seu
Ainda mais omnipotenfe do que Augusto, governo a ministros d’uma avareza insa
foi Tiberio, seu successor. Ellc tirou ao povo ciável, sem virtude, sem honra e sem hu
a eleição dos magistrados, que Augusto lhe manidade, collocavam em todos os cargos
deixara, nomeava os consules, os governa homens tão maus e viciosos como elles, que
dores das provincias, os intendentes, todos os dispunham como senhores absolutos da vi
oíficiaes c magistrados, dependia absoluta da c fortuna dos que lhes estavam subordi
mente de Tiberio tudo o que exercia qual nados, porque conhecendo a indifferença do
quer porção d’autlioridade; na sua pessoa principe para com as desgraças (Taquellès,
reuniu íotlas as cspecies de magistratura, se tinham por seguros da impunidade dos
que se haviam creado em Roma, para se seus delictos. ~
contrabalançar, para conservar a liberdade Nomeou Tiberio por seu successor Caio
e para prevenir a oRpressão do povo pelo Caligula. Este principe tinha sido creado
senado, ou a do senado pelo, povo. no incio do exercito. Ao poder de soberano
D’est’arlc tinha Tiberio cm todo o impé ajuntou a ferocidade de soldado e um na-
rio romano a mais ab solu taeillimitadaau- Jural violento, impetuoso e cruel.
thoridade, sem que houvesse cousa capaz x Era lovianò, vario,
de a reprimir. derado. Os seus socios e amigos eram os
Tiberio viveu sem mancha emquantm histriões, farcistas e homens dissolutos; hou-
particular, ou emquanto commandòu oi| ve saudades de Tiberio, emquanto viveu
exercitos no tempo (TAuguslo. ArteiramentdjLCaligula, que finalmente foi assassinado.
occultou seus vícios durante a vida de Ger Desde a morte de Caligula, ficou o im
mânico e Druso; foi.alternativamente bom pério á descripeão da soldadosca, que ac-
e mau durante a vida de sua mão; cruel clamava ou dcsthronnva os imperadores.
até o excesso, mas occulto nos seus praze Os differentes exercitos nomeavam cada um
res infames, emquanto amou ou tonieu Se o seu, c os horrores da guerra civil sc re
jano. Logo que não sc recoiou de pessoa uniam aos vicios do governo dos imperado
alguma, todos os seus vicios se desenfrea- res e á corrupção que infeccionava todo o
imperio. Toda a terra foi assolada pelo fogo
1 Lucan. I. 1. Tacit. anual. Dion. Cas da guerra até á eleição de Trajano.
sius. Saliist. D’csta maneira a ambição dos romanos,,
2 Não pretendemos esmiuçar as causas povo guerreiro c ignorante, que despresava
da grandeza c da decadência dos romanos: as scicncias e as artes, aniquilou a virtude
esse assumpto não pertence á nossa obra; e ie levou a desolação e a desgraça a toda a
*
os que n elle sc quizerem instruir • acharãd
* ~ parte, aonde Alexandre,,
’ ' ’heroe e . philoso
philoso-
esgotada essa m ateria nos Discursos de Ma-M)liOj se Jiavia. proposto levar a felicidade,
cliiavcl sobre Tito Livio, em S. EvremoiU \
nas Considerações de mr. de Montesquieu e 1 Tacit. Annal. I. 4.
em mr. o Abbade de Mably. 2 Idem et ibidem: ^ucton. m T ib
Discunso ruEu.MiNÂn 4$
communicar a luz, fazer reinar a paz, a tantas guerras emprehendidas, tanto san
justiça e a virtude. gue derramado, tantos povos destruídos,
- Alexandre, no seu projecto de conquis- tantas façanhas, tantos triumphos, tanta po
\ t a r o inundo, intentou unir todos os ho- litica, sabedoria, prudência, constância, va
í meus. Formaram os romanos o projecto de lor; este projecto d’invadir tudo, tão bem
avassalar todos os povos desunindo-os. Ale formado, tão bem sustentado .c ultimado:
xandre queria conquistar todos os povos em que veio a parar, senào cm sustentar
para.. .tornar todos os homens felizes; c os a felicidade de cinco ou sois monstros? Que!
romanos para servirem de mèiò á sua par Este senado nào tinha feito desapparccer
ticular felicidade. Alexandre empregava o tantos reis, senão para cllo proprio cahir
poder militar para estabelecer entre os ho debaixo da mais vil escravidão d’alguns
mens a authoridade das leis; entre os ro dos seus mais indignos cidadãos c para se
manos o poder militar, aniquilou a authori- exterminar pelos seus proprios decretos?!
í dade das leis, tomou Roma a escrava do Não se realça, pois, a sua grandeza senão
$ imperador e das tropas, fez desapparccer para vér cahir com mais estrondo! Os ho
| da terra a felicidade e a virtude. 1 mens não trabalham no augmento do seu
«lí iFisto, diz um homem celebre, que poder, senão para, cm prejuízo seu, o ve
convém oflercccr um quadro das cousas rem passar a mais felizes mãos. 1
humanas: vejanvsc na historia de Roma
1 Considíralions sur les causes de la
1 Vide acima o que respeita a Alex. grandeur des rom. p. 171.
Plut. de la fort. des Rom. cl Alex.
cação. Tal foi a virtude dc Scipião Africa do (pi o reinado das letras, c os poetas as
no, dc I.iüHo e dc Furio. 1 sim "como os oradoreTToram philosophos:
Em breve o gosto da philosophia se dila Horacio, Ovidio e Virgílio, expozeram nas
tou e se tornou mais vivo; estudaram-se os suas obras os systemas philosophicos dos
\ systemas dos philosophos gregos em Roma gregos, e os fizeram familiares na côrle, e
e todos tiveram partidários. À philosophia a todos os leitores.
não ficou encerrada nas escolas; ella se lor- Roma, subjugada pelo poder arbitrario
' nou o assumpto dos entretenimentos c com d’Augusto, entregue aos prazeres c ao luxo,
desvelo se applicaram os romanos a dar ás já náo produziu mais do que espíritos su-
materias philosophicas a ordem, clareza q* perficiaese caracteres fracos: a philosophia .
graças proprias para as fazer intelligiveis? de Arislipo e de Epicuro era a dominante. £
e importantes a todas as inlelligencias. 2 Ainda foram mais baixos os caracteres, {
Os systemas philosophicos combatiam o e os espíritos menos solidos no governo de 1
Polytheismo, c a philosophia enervou cm Tiberio. Este principe, muitas vezes,*ficou ;
muitos espíritos o respeito o temor dos Deu attonito á vista do servilismo do senado . 1
ses, os princípios c os sentimentos dc mo 0 povo, cavalheiros c senadores- passa
ral e dc virtude. Todos os ambiciosos e sen- vam a sua vida com os comediantes e com
suacs, todos os que tinham motivo para te os estriòes; acompanhavam-nos por toda a
mer a justiça dos Deuses, adoptaram syste parte, obsequiavam-nos; eram, como diz Se
mas que os libertavam de remorsos c ter neca, escravos dos pantomimos. Roma esta
rores da outra vida; não concorrendo pou va dividida em differentes partidos sobre o
co a corrupção dos costumes para conci merito, c sobre a prcemincncia dos ado
liar sequazes á philosophia, principalmcntc res. Muitas vezes estes partidos convertiam
á de Epicuro . 3 «Creio, diz mr. dcMontes- o espectáculo cm um campo de batalha, e
quicu, que a seita de Epicuro, introduzida o senado se occupava sériamonte dos meios
em Roma pelos fins da republica, muito de reprimir estas desordens, umas vezes
contribuiu para corromper o coração c o diminuindo os interesses dos actores, ou
espirito dos romanos. Os gregos tinham si tras prohibindo os senadores dc os visita
do inficcionados antes d’elles, assim ellcs se rem. 2
corromperam mais depressa . 4 Todavia não D’esta maneira, pois, na maior parto do
faltavam philosophos que defendiam a exis imperio romano, todos os que tinham al
tência dos Deuses e que haviam dado mui gum podor, authoridade ou adhercncia ao
ta claridade e força ás provas que estabe principe eram arrastados pelas necessida
lecem a necessidade d’uma intelligencia su des, que são consequências do amor exces
prema para produzir o mundo. O ostoicis- sivo dos prazeres c do luxo, sem que os
mo linha encontrado na natureza ordem c contivesse algum principio dc moral, do
proporções, que presuppunham que o mun honra, de religião, nem ainda de humani
do era cTuma. causa intclligcnlo. Conheciam dade. As proseripções c execuções innume-
que o homem tinha um destino e deveres, raveis, que se viram no tempo dc Silla, o
que consistiam cm concorrer para o bem nos impérios do Tiberio, Claudio c Nero,
geral. Criam que o homem não podia ser haviam suíTocado em quasi todos os cora
feliz senão preenchendo-os, c que era des ções aquclla preciosa semente de sensibili
graçado quando d’elles se apartava. Este dade, que recebemos da natureza, o que faz
systema tinha partidários consideráveis nos brotar em nós os mesmos eífeitos e senti
fins da republica; mas o numero diminuía mentos que vémos nos outros homens.
á medida que a corrupcão dos costumes se A ideia de liberdade estava riscada em
augmentava, e que a virtude se extinguia. quasi todos os espíritos c cxtincta a da vir
Depois de cxtincta a republica, e impe tude em quasi todos os corações. Porém
rando Augusto, floresceram as artes: este ainda restavam algumas almas privilegia
principe honrou todos os talentos, recom das. que a philosophia estoica preservara
pensou suas felizes producçõcs; scú rcina- da corrupção. Estas almas fortes c eleva
das pela philosophia, sensíveis ás desgraças
1 Cic. pro Aurel. yro Muren. Tacit. an.do genero humano, communicaram a sua
/. 1 . c*. 16. \ magnanimidade; c no tempo de CJaudio,
- Cic. Tuse. I. i. c. 6. dc Nal. Dcor. /5 Nn£Q, Vespffijnno e Doiniciano, se viram»-
1 . c. 8. ' 1 cidadãos pTHBsophos, que atacaram o vicio
3 Discours'de César au Sénat dans Sa-
luste. Bet. Caíil. 1 Tacit. an. 1. II. c. 66. 71.
4 Consid. su r les causes de Ui grànd. des 2 Surfou, in Aiig. r. 45. Plin. 19. Sen.
rom. p. 171. .i < Ep. 47. Tacit. /. 5. c. 71.
DISCURSO PRELIMINAR 4o
(j a tyrannia, não esmorecendo íi vista dos contra o Polylheismo. Segundo, pessoas (pie
tormentos, e que morreram d’uma morte nfio sendo philosophos de profissão, cultiva
digna de illustrar os niais bellos scculos da vam o seu entendimento, as letras e a phi
republica. Era dominante em Roma esta losophia, e que vivendo com os philoso
philosophia pelos fins do primeiro século. phos, tomavam parte das suas idéias. Ter
Nero, Vespasiano e Domiciano, para sus ceiro, o povo que não emprega a sua intel-
penderem os seus progressos d^stçrrayarn ligcneia senão em pontos de interesse, c
d(^JRpjnm_tod osos- philosophos, porque Te- falhando propriamente, não faz esforços para
cclavãinl.que. .p.s.princípios, do estoicismo, se illustrar sóbre a religião, ou outros ob
iilejHilicados com as idéias da liberdade, jectos especulativos, mas a quem o tempo
podiam tornar-se sedicíosps e erani odiqsos traz as verdades e idéias dos philosophos,
a imperodores liio per versos, como, Nei;o c depois de as haver feito passar por todas
DoííficTãno. as ordens do espirito, que separa o povo
'Dê'ttido o que dito fica se ve que na épo do philosopho, havcndo-Ihc dado por este
ca quo acabamos d’cxaminar, havia entre meio a clareza c simplicidade, proporcio
os povos idolatras: primeiro philosophos que nadas á intelligencia do mesmo povo.
não suppunham na natureza mais do que Assim o esforço geral do espirito huma
forcas moventes c matéria, ou que reco no tendia para á destruição da idolatria, e
nheciam um Ente Supremo, sábio c intelli- o povo tinha chegado„áqucllc grau de luz
gente, que formara o mundo, c o governa necessário para sentir o absurdo do Polv- /
va por leis immutaveis, ou confiava aos theismo, c as evidentes provas da cxisteii-/
gepios a sua administração. cia do Ente Supremo. Era esta época a d es-1
Todos estes philosophos, divididos acerca tinada pela Providencia para o nascimento f
da origem do mundo, estavam conformes do Christianismo.
PRIMEIRO SÉCULO
CAPITULO I
na. sua doutrina, o p radicarem sua lei, nào que se havia feito homem: (pie promettera
4i felicidade temporal, como os judeus gros uma felicidade eterna aos que cressem na
seiros esperavam, mas a espiritual, pura, sua doutrina e practieasscm a sua moral;
eterna. que havia provado por milagres a verdade
A beneftcencia, a simplicidade do cora das suas promessas. Estes homens annun-
ção, a verdade, a indulgência, o perdão das ciavain o que haviam visto, ou sabido da-
injurias, e amor aos inimigos, sao as obri quelles que o presenciaram; preferiam an
gações que ellc prescreve para com os ho tes morrer do q’uc negar as verdades, que
mens; e para com Deus um culto d’amor, tinham a seu cargo ensinar; sua moral era
^acatam ento, temor, c d’cspcrança. Insti sublime e simples, c seus costumes irro-
tuo Sacramentos, que proporcionam aos prehensiveis.
homens os soccorros necessários para o Tinham-se visto philosophos atacar o Po-
desempenho das obrigardes que ellc impõe. lytheismo, mas com precaução ou com gra
Prova com milagres a* divindade da sua cejo, e sem esclarecer os homens acerca
missão, e a verdade da sua doutrina. Esco da sua origem e destino: irellc tinham des
lhe Apostolos que a preguem em toda a coberto, apesar da sua corrupção, semen
terra. Morre, resuscita c sóbe ao Céo. tes de virtude, mas, em vão tinham procu
/•’'* Annunciam os Apostolos, cm Jerusalém, rado mii remedio para a corrupção, um
í a doutrina de Jesu§ Christo, e a sua rc- freio para as paixões, e um motivo para a
I surrei cão; estabelecem a verdade de suas virtude cm todos os estados c cm todas as
f predicas sobre as mais claras provas, por circumstandas. Aquellcs que se haviam *
\ meio de milagres os mais inauditos. Tres tornado superiores ás paixões, não se con
; mil judeus se convertem, e são baptisados. servavam n’essa altura senão pelo fanatis
| Unem-se estes novos discipulos. Todos os mo, ou pelo orgulho. Mas não se tinha visto
ddias vão orar ao templo, e não ha entre ol- uma sociedade inteira de homens rústicos,
l les mais que um coração, e uma alma: é pela maior parte ignorantes, explicar o que
j -de todos, o que é de cada úm; entre elles os philosophos inutilmente tinham procura
. não ha pobres, porque os que possuem ter- do saber sobre a origem do mundo, sobre
: ras ou casas, as vendem, e levam o seu a natureza, e. destino do homem; ensinar
; preço aos Apostolos, que logo o distribuem uma moral, que tende a produzir sobre a
por cada um, coiiforme sua necessidade. 1 terra uma concordia gerai, uma amizade
O progresso do Christianismo, a prega constante, uma paz perpetua, que põe o
ção dos Apostolos, os milagres que elles homem continuàmentc debaixo das vistas
operam e a virtude dos christãos accendem do Sèr Supremo e Omnipotcnte; que abor
o odio dos judeus; a igreja é perseguida, os rece o crime o ama a virtude; que recom
ch ristãos doJeru saJem sõ dispersam por pensa com eterna felicidade o culto, que
) tfwífi a Palestina, O-parte do O j^ to jio n d o lhe é dado, o bem que se faz aos outros
o s iudens tinham estabelecimentos e pas- homens, a paciência e a resignação nos
) sam Jogo a"mvgãr ã todos os povos . ' inales annexos á condição humana: e que
[ ^V iu-se, pois, sobre a terra uma socie pune com supplicius sem íim a impiedade
dade de homens, que atacava abertamente que o ofFcnde, o vicio que degrada o ho
o paganismo, annunciando que não ha mais mem, c o crime (pie affecta o bem da so
que um Deus, creador do Céo c da terra, ciedade. Emfim, practicavam os christãos
a sabedoria dó qual governa o mundo; que a moral que ensinavam, e preferiam antes
o homem, pelo abuso que fizera da liber morrer do que transgredir os seus precei
dade, recebida do seu Creador, se corrom tos, ou deixar de os ensinar aos homens.
pera, que a sua corrupção tinha sido com- Os milagres e a graça secundavam seus es
municada á sua posteridade; que Deus, forços; um numero "prodigioso de judeus e.
compadecido da desgraça dos homens, ha de pagãos abraçou o Christianismo. OlTere-
via mandado seu Filho a terra, para resga ceu, pois, a igreja christã ao mundo o mais
tai-os: que este Filho era igual a seu Páe; estupendo e interessante espectáculo: veja
mos as heresias que a perturbaram.
1 A ct. 4.
DISCURSO PRELIMINAR 47
CAPITULO II
CAPITULO III
SEGUNDO SÉCULO
CAPITULO I
\
u
>» DISCURSO PRELIMINAR Õ1
lão justo c virtuoso, e nenhum houve tão susteve o esforço dos barbaros c dos mais
respeitado das nações estrangeiras, 6 que povos inimigos; mas no interior era assola
tivesse menos guerras que sustentar. 1 do por Commodo, e. por aquelles (pie go
Não foi tão pacifico o reinado de Marco vernavam sob seu dominio. Alguns conju-
Aurelio, j uccc'ss~or jlõ Antonino: os parthos rados livraram a terra d’estc monstro, nas
•c'ãfmomos atacaram o imperio no Oriente; cido para desgraça c vergonha da humani
no Occidente os marcomanos, nariscos, her- dade.
inonduros, quados, mouros, <5 um numero PertinazJhe succedcu, c foi assassinado
incrível de nações barbaras penetraram no pelos soldados pretorianos, que pozeram o
imperio, roubaram c saquearam as cidades e império, em leilão. Juliano, homem riccTe
as provincias. Marco Aurelio alcançou gran voluptuoso, sem virtude, sem talento e sem
des victorias de todos estes inimigos; mas espirito, o comprou, c foi acclamado impe
foi obrigado a permittir a muitos d’estes rador em Roma. Com a noticia da morte de
povos que se estabelecessem nas provincias Pertinaz, e da elevação de Juliano, os exer
do imperio. citos do Oriente, da‘Illyria e. da Inglaterra
Commodo, filho c successor de Marco Au elegeram Niger. Albino e Severo.
rélio, excedeu cm vicios, crueldade e ex- Teve pois o império quatro senhores, que
travagancia todos os maus imperadores, se guerrearam com furor até o fim do sé
que o tinham precedido. O imperio esteve culo, sendo a final, tres d’ellcs, vencidos
em armas contra o Oriente c Occidente; por Severo. 1
1 Dion Cassius Spartian. Capilolin Lam- - 1 Dion Cassius in excerpt. Vales. Spart.
prid. Jul. Capit. Hero.
CAPITULO IL
cilas não llic fizeram mal, e já o povo o mc favorito, lhe levantou templos, e creou
suppunha invulnerável, quando uma cuti- Sacerdotes para lhe dar um culto. 1
lada lhe tirou a vida . 1 Antpnino foi religioso observador dc to
No tempo dc Vespasiano, VjUlfída^^LflüSm das as ceremonias do paganismo.
TacitoxbamajiAMiu cm dasJBructcros, era Marco Aurelio adoptoiUodas_as super-
reverenciada como uma deusa; c as suas sticões de Roma, e das outras nações: cria
prophecias fãzianf tomar as afmas a todos nos presagios, nos sonhos, c cm*todas as.
os povos d’Allemanha, ou os tinham em prácticas supersticiosas; os mesmos pagãos
paz. 2 faziam zombarias d’isso. Ainda se conserva
Respeitou Traiano o Ente, Supremo. c um distico em que os bois brancos desejam
comtudo permittía que se offerecessem sa que cllc não torne victorioso com receio
crifícios ás suas estatuas, c se jurasse pela de que extermine a sua raça. Spvcro col-
sua vida c pela sua eternidade. 3 locou Commodo na classe d q sjk iises, in-
Tinham-se prolubido os sacrifícios huma stftuRTTestas7 c' uni pontiTiceTem sua hon
nos, e para evitar as desgraças dc que se ra, entretanto que expunha aos leões Nar-
achava ameaçado o imperio romano, pelo cizo, que tinha estrangulado este monstro. 2
( crime dc tres* vestaes, foram enterrados vi D’csta maneira se destruía o Polytheis-
vos na praça dos Bois dous homens, c duas mo, por assim dizer, a si mesmo, ao passo
mulheres das Gallias c da Grécia . 4 que a razão se illustrava, e ia ferir pelos
A^U^ ixq» is illus- fundamentos. Via-se pela nova creaçào do
tradosjiQ_seuj.C£iii1 ,o e um'dos mãís^rrpiT- Deuses, o que se devia ajuizar, o que se
sfíciosos: recorreu a toda a cspccie dc adi devia pensar dos antigos; e os defensores
vinhações c de magia; consagrou templos do Christianismo empregavam utilmente-
. a si mesmo: afogou Antinuo, com a espe- este argumento contra o Polytheismo . 3
j' rança de prolongar sua vida por este sa-
4 orificio, e depois da morte d’este seu infa-
1 Spart. Adr. vil.
1 Tacit. I. 4. c. 61. 2 M. Aurel. vit. Commed. vil. Sever. viL
2 lbidem de morib. Gennanr. Diod. Vai. p. 737.
3 Plin. pan. p. 4. I. 10. Ep. 89, 102. 3 Jnst. Apol. 1. Athenag. Tal. Tert.
4 Plut. quest. sur les Bom. Apol. etc.
CAPITULO III
Domiciano, um dos mais viciosos, crucis, va por toda a. parte, não havendo pessoa
indigpos e despresiveis imperadores que que ousasse dizer seus sentimentos, nem
Roma teve, foi também um dos maiores ini escutar os alheios, por causa dos espiões,
migos das letras c da philosophia. derramados por todos os lados; e assim como
As crueldades d’este principe fizeram os romanos tinham visto a liberdade no-
perder ao senado os seus mais illustres mais alto grau nos tempos felizes da repu
membros e aterrados os outros, ficaram re blica, viam agora o ultimo grau da escra
duzidos, ou a calar-se, porque não ousavam vidão no governo domiciano. Ter-se-lhe-ia,
dizer o que pretendiam, ou a dizer, por ne com a falia, tirado mesmo a memoria, se
cessidade, o que não queriam. Convocava- fosse tão possivel esquecer, como c calar . 1
se o senado, para nada fazer, ou para au- Para extinguir sobre a terra, se tanto es
thorisar osvmaiores crimes; de sorte que os tivesse cm seu poder, até a ideia da virtu-
melhores juízos estavam entorpecidos, froi-
xos c como brutalisados. 1 Tacit. vit. Agric. anual: l. 16. c. 26-
A-mesma consternação e silencio reina Sueton in Domit.
i V
DISCURSO PRELIMINAR 33
CAPITULO IV
CAPITULO V
<lor com que os christãos buscavam a mor as seitas, cujos esforços eram sustentados
te, como uma desordem, não só religiosa, pelo furor do povo, pela authoridade das
mas politica; e portanto permittiu que se leis c poder soberano.
perseguissem. Tiveram algum intervallo de Este estado do Christianismo é attestado
repouso na vida de Commodo, c durante por todos os authorcs christãos, e até pelos
as revoluçóes, que tiraram o imperio a Per- mesmos pagãos. Plinio escreve a Trajano,
tinaz, Juliano, Niger e Albino; mas Severo que o Christianismo nào está sómente espa
renovou a perseguição, sem comtudo retar lhado pelas cidades, mas pelos campos; Lu-
dar o progresso do Christianismo. ciano reconhece que tudo está cheio de
Emquanto os poderes assim os perse christãos.
guiam, os philosophos cynicos, epicurios, Estes christãos, de que o imperio estava
etc., atacavam os christãos e o Christianis cheio, não eram homens credulos c ávidos
mo; taes foram: Crescendo, Celso, Fronto- da novidade, nem uma populaça vil, su
nio e um a multidão de sophistas, alguns persticiosa c estúpida; eram pessoas de to
dos quacs pediam a morte dos christãos dos os estados c condições, cuja viveza fa
furiosamenlc. 1 zia tremer os impostores, que queriam en
Foi no meio de todos estes obstáculos ganar o povo; e o impostor Alexandre, de
que o Christianismo se estabeleceu em to que já falíamos, não os temia menos que
das as partes do mundo: em Roma, em os epicurios, na presença dos quaes elle
Athenas, em Alexandria, no meio das esco prolubia igualmente que se celebrássemos
las mais celebres dos philosophos de todas seus mysterios. 1
1 Cels. Just., Apol. pro Christ. 23. Eusebe, 1 Pline, Epist. I. 10. cp. 97. Lucian.
Hist. Orig., cont. Eccl. 1.4. c*. 16. Minuti Fèlix. Pscmlomant. § 2o. Justin. Tert. Apol.
CAPITULO VI
D a s h e r e s ia s e süita s q u e se lev a u ta ra m
d u r a n te o s e g u n d o s é c u lo
0 Oriente c Egypto estavam cheios que se descobriam, e se estes não dão toda
de
philosophos, que buscavam a origem do a luz, o espirito volta aos antigos princí
mundo, a .pausa do mal, a natureza c desti pios, que concilia com suas novas opiniões.
no do homem, e que tinham adoptado os D’esta sorte, pois, os philosophos orien
differentes systemas, que o entendimento taes, que adoptaram o Christianismo, não
humano formára sobre estes objectos. encontrando n’elle o esclarecimento d’uina
A religião christã explicava tudo o que infinidade de questões, que a curiosidade
elles tinham buscado sem frueto: eram os humana fôrma sobre a origem do mal, a
seus dogmas annunciados por homens de producção do mundo, etc., se retrahiram,
um proceder irreprehcnsivel, e confir diga-se assim, sobre os seus antigos princí
mados por milagres os mais estrondosos. pios, que se tornaram um, como supple
Achou, pois, o raciocínio humano na reli mento, aos dogmas do Christianismo, c que
gião christã a luz, que inutilmente procurá- se ligaram com estes em mil fôrmas diffe
ra nos systemas philosophicos; abraçou-a rentes. É assim que o systema das emana
■com avidez, e muitos philosophos orientaes ções dos caldcus. a j^renca Tios g ê nios, a
s e fizeram christãos zelosos. doutrina aos aoiís nrmcipios se uniram, em
A descoberta d’uma verdade fundamen parle, aos dogm a s do Lhrlstianismp, c ser-
tal faz no espirito uma impressão forte, sus virainj)gã~^üfíCãr aThistoria dafereação,
pende d’algura modo a sua actividadc e qjirigenraõrmal. a historia da JudébLa, ori-
desvanece todas as dificuldades que o ti gmiLxto Cnrístianismo. a redemncão dos_ho-
nham, em suspensão. Logo que esta impres mens por Jesus Christo, e formaram os sys
são se enfraquece, renasce a curiosidade, temas theologicos de Saturnino, Basillcde,
pretende-se resolver todos os contras, que Cacpmu^es, EíTfra^es. Tafênfin, Çemon,
embaraçavam a questão pelos princípios Marcion, Hermogenes, Hérnnas, Bardeza-
DISCURSO PRELIMINAR
ocs, Apcllfts, Taciano, Severo. Horaceon, o império dos sentidos; porque era para este
«dos ScmJunos, dõs Xainitas o dós Opliítas. objecto que tendia 6 movimento geral dos
Quasi todos estes admittiam uma Ínteíli- espíritos n’cste século, como já vimos.
I
gcncia Suprema o gênios, dos quacs au- Esta disposição, ou tendência geral para
gmentavain ou,diminuíam o numero, e que a perfeição e gloria que nasce da austeri
faziam obrar segundo o arbitrio da sua dade c "do rigorismo da moral, produziu
imaginação. Viram-se, pois, dogmas da phi entre os verdadeiros christãos alguns ho
losophia oriental, pythagorica, platônica, mens, que levaram o espirito de mortifica
estoica; princípios da cabala, prácticas da ção e de zelo pelo Christianismo muito lilcm
magia empregadas; não sómente para ex das obrigações, que a religião e a igreja
plicar os milagres e dogmas do Christianis impunham aos fieis.
mo, mas também para alcançar a benevo Não formavam estes homens zelosos uma
lência dos gênios, c para se elevar á per sociedade separada; mas como os distin-
feição. Aqui são os talismans. pelo meio guiam, creram ser mais perfeitos que os
«dos quaes se crê attrâlíir a graça, e fazel-a outros christãos, e a sua moral mais pura.
•descer do Céo; alli se trazem números: uns Um ambicioso se elevou d’entrc ellcs, pre
para se desligarem da terra, c elevarem ao tendeu que a sua doutrina era mais per
«Céo, renunciam a todos os prazeres; outros feita que a de Jesus Christo, annunciou-se
os olham como um tributo, que se deve como o reformador da religião, que Jesus
/ «pagar aos anjos creadorcs, ou como cousas Christo tinha ensinado: predisse que no
indifferentes, que nào podem degradar a Evangelho promettia Jesus Christo enviar o
alma, c por isso de nenhum se privam: jus Espirito Sancto para ensinar uma religião
tes jmda£Mujs>JÇQ^ 110 esta- mais perfeita que a sua; annunciou que
tfd 9 ülTTnnõcencia; aquclles condcmnam cllc era o Espirito Sancto ou o Profeta,
como um crime o uso dos alimentos pro pela boca do qual o Espirito Sancto fazia
prios para excitar as paixões. conhecer aos homens esta religião mais
Todos presumem practicar o que Jesus perfeita; teve extasis, fez discipulos, que
Christo veio ensinar aos homens para con- se jactavam de inspirados, formaram uma
<luzil-os ao Céo; reconheciam uns que cllc seita extensissima, que bem depressa se di
era Filho de Deus; outros o tem por um vidiu em varios ramos, differentes unica
anjo; alguns o creem um homem, sobre o mente em algumas prácticas ridiculas.
qual o Ente Supremo tinha derramado com Era um dos dogmas d’esta seita que não
grande abundancia os seus dons c que ti se podia evitar, o martyrio, e d’esta sorte
nha elevado sobre a condição hu.uana. Re muitos dos montanistas’ soffreram a morte
conhecem, pois, todos, senícxcepcão, a ver na perseguição, c comtudo se perpetuou a
dade dos milagres de Jesus Christo, c todos seita até o quinto século, no qual Montano
tinham feito alguma mudança cm seus sys- c seus sequazes foram condemnados cm
temas para cxplical-os. Eram logo estes um concilio c separados da igreja.
milagres bem incontestáveis, pois que o Esta, incorruptível na sua moral, assim
amor do systema não ousou ncgal-os. Eis como nos seus dogmas, estava, pois, igual
o mais incorruptível, evidente e indubita- mente afastada dos extremos c dos exces
vei testimunho, que se possa exhibír em fa sos: assim o estabelecimento da religião
vor d’um facto: é o amor proprio d’uma christã não é obra do cnthusiasino.
multidão de philosophos systematicos, ávi A maior parte das heresias dos dous pri
dos de gloria c celebridade, que este facto meiros séculos eram uma al fiança de phi-^
obriga a mudarem seus systemas como pô losophia com os dogmas do Christianismo:
de vêr-sc consultando os artigos respecti os christãos philosophos as haviam comba
vos a cada: um. tido pelos princípios da razão e da philoso
Todos estes chefes de seitas se esforçam phia. A clcgancia de seus cscriptos, o seu
por fazer prevalecer suas opiniões sobre to feliz successo, a sua reputação voltaram
das as outras, enviam prcdicantes por toda naturalmente o espirito dos christãos para a
ji parte, os quaes pela austeridade da sua philosophia.
vida, ou pela sua moral liccnciosa, 'e por Tractou-sc a religião com methodo; dc-
algu n s prestígios, seduzem os povos, e lhes fendeu-se com provas tiradas da razão e
communicam seu fanatismo. Alguns d’estes dos princípios dos philosophos mais distin
chefes formaram sociedades assaz extensas; ctos. Houve christãos, que para fazerem cri
taes foram as seitas dos basilidianos, volen- veis os mysterios, quizeram conformal-os
cinianos c marcionitas, que se sustentavam ás idéias, que a razão nos fornece, avisi-
principalmente pela sua moral, que tendia nharam-os ás suas, c os alteraram: taes fo
ii domar as paixões, c eximir o homem do ram Arthemam o Thcodoto, que combate-
o8 DISCURSO PRELIMINAR
CAPITULO VII
D o s c í í e i t o s d a s s e i t a s q a ic s e le v a a s ía r a in d o s a u t e o
p r im e ir o s é c u lo , e d o p r o g r e s s o d a p h ilo s o p h ia e n
t r e o s c h r is tã o s n o s e g u n d o s é c u lo
Os nltimos erros que temos exposto, su roubo, seria indigno d’um christão usar de
blevaram muitos christãos contra a philo uma dadiva recebida dos anjos amaldiçoa
sophia, da qual se julgava serem o efleito. dos. 1 Pelo contrario criam os christãos phi
Pretendiam uns que cila era perniciosa, e losophos que não sendo a philosophia senão
que tinha sido inventada pelo demonio para a indagaçao da verdade, era util a todos os
destruir a religião; outros que os anjos ex- homens, aos que não eram christãos, para
pellidus do Céo a tinham trazido aos ho conduzil-os á verdade, aos christãos, para
mens. Muitos conheciam que ella produzi defender a religião contra os sophistas,por-
ra alguns conhecimentos uteis, c não a que ella exercita o espirito e o torna pro
olhavam coino invenção diabolica; atlri- prio para a meditação. 2 «Os que pretem
buindo-a a potências, que não sendo más, dem que a philosophia é inútil e que a lei
eram de inferior classe, e que não podiam basta, diziam os christãos philosophos, são
elevar o espirito ás verdades da religião, similhantes ao jardineiro, que sem cultivar
por serem d’ordem sobrenatural. Ernfinn, as arvores, espera colher tão doces fruetos,
muitos, obrigados a reconhecer nos phi como o cultivador hábil, assiduo, laborioso
losophos cousas sublimes, entendiam que e intciiigente.» 3
os anjos desterrados do Céo tinham trazido
a philosophia aos homens, e que, por con 1 Euseb. Hist. Eccles. I. 5. c. 28. Ciem:
sequência, era uma cspecie de roubo, de Alex. Strom. I. 1. .
que unrchristão não devia, nem podia, cm 2 Ciem. Alex. Strom. I. 1. p . 285.
consciência, fazer uso, e quando não fosse 3 lbideín pag. 291.
DISCURSO PRELIMINAR
CAPITULO I
As guerras de Severo contra os impera sar para os povos barbaros grande numero
dores Juliano, Niger c Albino, a vingança do cidiidãos c soldados romanos. Mas como
cruel que. elle exerceu contra todos os ami elle era excellente homem do guerra, e ti
gos. c paflidarios d’ostes, a sua crueldade c nha genio, 0 imperio foi ainda tão possante
avareza assolaram 0 imperio, e fizeram pas no seu reinado, que fez tremer todos os
CO J ' DISCURSO PRKLIMINAR
CAPITULO II
CAPITULO III
D o C r liisü a n ism o
Severo, que parece havia encarado como Galliano deu a paz á Igreja, permittindo
politico as differentes religiões que dividiam por um edito o livre exercício da religião
o imperio, tolerou ao principio tanto os christã, c fazendo-lhe restituir as suas Igre
christãos como os judeus; mas receando jas c cemitérios. 1 Depois de reinar quinze
que aquellcs, crescendo em numero, saliis annos, este imperador foi assassinado, e
sem da obediência cm que se tinham con Claudio ii, que lhe suceedeu, perseguiu os
servado até então, entendeu que devia con- christãos, mas o seu reinado foi curto, c
serval-os cm estado de fraqueza, c prohi Aureliano lhes foi favoravel.
biti por isso que os vassallos do imperio Depois da morte d’este imperador, clles
abraçassem o Christianismo. Cria, talvez, professaram a sua religião em paz, quasi
que üependendo mais do soberano a reli até ao fnn do século.
gião pagã do que a christã c judaica, era Tinha crescido prodigiosamente o numero
preciso que a primeira.fosse a nacional. dos christãos, sobre tudo nos reinados que
Caracalla e Heliogabalo não se oppoze- permittiram o livre exercício da sua reli
ram aos progressos do Christianismo, c gião: practieavam-a nos palacios, n’eflcs
Alexandre Severo, o melhor dos principes, occupavam cargos; tinham grangeado a af-
os favoreceu, admittiu no seu palacio, e se foição c confiança dos imperadores: gosa-
serviu de seus conselhos. 1 .. vam de grande credito. No império aonde
Maximino os perseguiu; .niíis Gordiano e tudo era escravo da riqueza c do favor,
Philippe os favoreceram. Decio, receando houve respeito a uma religião, que tinha se
que vingassem a morte de Philippe, os ve- ctários cm palacio, e entre os validos dos
xou tyrannicamente, e cessou a persegui imperadores. Os Bispos, respeitados nas
ção. Gallo, successor de Decio, reslituiu a provincias, erigiram Igrejas. Assim se tor
paz á Igreja, que depois perseguiu. Vale nou prodigioso o augmento do Christianis
riano a tractou da mesma sorte. 2 mo. 2
Elle não se encerrava sómcntc no impe-
1 Oros. Hist. I. 7, c. 19. Euseb. hist. Ec-
cl. I.6, c. 29. Doduel, dissert. Cypr.
2 . Cypr. ep. oi. ad Anton. 1. ep. 36, 37, 1 Ibidem c. 13.
40. Euseb. hist. lib. G, § 7, c. 10. . 2 . Euseb. hist., I. 3, c. 1.
DISCURSO PRELIMINAR 63
rio romano: christãos zelosos o levaram aos sportaram a esses povos, com a luz do Evan
povos barbaros, com quem a extensão do gelho, exemplo das mais sublimes virtu
imperio tinha aberto commercio; algumas des. '
vezes os exercitos inimigos levaram escra
vos, entre os quacs houve cbristãos que tran 1 Sozorn. /. 2, <:«p. 6.
CAPITULO IV
D as d isp u ta s c e rr o s q u e se Icrautaram e u tr e
os ch ristã q s
Temos visto como, pelo fim do ultimo sé rios; assim, a Trindade, a Divindade de Je
culo, se ajuntava o estudo da philosophia sus Christo, a espiritualidade c immortali-
ao da religião, que a philosophia nem era dade da alma, eram ensinadas clara e dis-
o Platonismo nem o cstoicismo, mas a esco tinctamente na Igreja, porque c por estes
lha de tudo o que a razão achava verda actos de separação que é preciso julgar a
deiro em todos estes systemas. Segundo sua doutrina.
taes idéias, cada um se julgou com direito Entretanto que alguns christãos philoso
para adoptar dos philosophos antigos quanto phos se desvairavam, forcejando por fazer
lhe parecesse a proposito para defender a intelligivcis os mysterios, outros mais feli
religião, c tornar intçlligiveis os seus mys- zes atacavam todos estes gnostieos, que se
terios, porque a obscuridade d’estcs era um tinham levantado nos séculos precedentes,
dos maiores obstáculos dos philosophos e e os traziam ao bom caminho.
dos pagãos. Ainda a Igreja não tinha formulado leis
Os mysterios não são contrarios á razão, sobre o modo como se haviam de receber
mas sãò a cila superiores: a razão, pois, os herejes convertidos, e as Igrejas do Oriente
não ministra ideia alguma que possa fa- e da Africa, pondo-os entre o numero dos
zel-os comprehensivcis; e não podendo ele cathccumenòs, os rebaptisava. No Ocidente
varmos-nos pelo fio das nossas idéias a es não havia esta práctica, contentando-se com
sas verdades sublimes para fazel-as intclli- a imposição das mãos. Esta diversidade de
giveis, esforçaram-se em avisinhal-os ás disciplina formou grande controversia, e
idéias que nos fornece a razão; e assim fo quasi um scisma.
ram os mysterios por muitos alterados. Não só se convertiam os herejes, mas
Taes foram Beryllo, Noccio, Sabcllio, Paulo aqucllcs que no tempo das perseguições,
deSamosatc, Hierax, que, para fazerem com- tendo trahido a religião, pediam para re
irchensiveis os mysterios da Trindade e conciliar-se com a Igreja. Queriam uns que
fncarnação, deram explicações, que os ani
quilavam. Outros, como os arãbianos, para
fossem recebidos sein penitencia, outros
que se sujeitassem a cila, c outros que se
explicarem a Resurreição, suppozcram que lhes recusasse para sempre a entrada na
a alma não era mais que uma aíTcição dos Igreja.
corpos. Estas differentes opiniões deram princi
Todos estes erros foram condcnmados, c pio a partidos, facções c seitas, de cujo nu
separados do seio da Igreja os seus sectá mero foram os novacianos.
64 DISCURSO PRELIMINAR
QUAllTO SÉCULO
CAPITULO I
£ s ta d o p o litic o d o Im p e r io
Similhanlo áquellas regiões que, mar com Maximino, excellente homem de guerra;
geadas d’um mar tempestuoso, d’elle se de c creando dous Cesares, Gallcrio e Constan
fendem com diques, os quaes, porém, con- do-Chloro. Julgou por este modo ter pre
tinuamente impellidos dos ventos e das on venido as facções dos exercitos, cada uiu
das, sào emfim desmantelados por todas nimiamente fraco para que podésse dar o
aquellas partes que não podem resistir cá império ao seu general, assim como os cf-
vehemcncia d’um impulso superior, assim feitos da ambição dos generacs c impera
estava o imperio romano cercado d’um dores. cada um dos quaes não ousaria em-
numero infinito de nações civilisadas ou sel prehender o dominio absoluto.
vagens, mas todas guerreiras, que forceja- Porém não fez Diocleciano com isto mais
vam por invadir c assolar o interior das suas que forçar a ambição a buscar caminhos
provincias: c bem como os terrenos cheios torcidos e occultos: teve o imperio romano
d'enxofre e de bitume, que a cada momento quatro senhores, que aspiravam todos ao
se infiammam e a si mesmos se arruinam, ao poder soberano, que se odeavam, forma
encerrava clle dentro do seu proprio seio ram ligas, c sc fizeram guerra, até Constan
principios de corrupção e de desordem, que tino, que reuniu todo o imperio, c o divi
insensivelmente o enfraqueciam. diu por seus filhos, os quaes, em breve, des
O habito do luxo c da intemperança ti contentes pela partilha, se pozeram em ar
nha feito as riquezas tão necessarias como mas; foram atacados por usurpadores, e
os alimentos para a subsistência; a vontade morreram n’estas guerras, à exccpção de
arbitraria dos imperadores os distribuía: Constando,, que ainda reuniu o império.
por indignos favoritos, que serviam ás suas Durante todo este século, esteve ellc as
paixões, ou por soldados cuja afieição se sim, reunido, ou desmembrado, governan
lhes havia tornado necessaria depois que do Vallentiniano, Graciano, Theodosio, Ar
as leis não tinham força, e os povos per cadio e Honorio.
dido a .virtude; porque esta soldadesca des Os povos barbaros o atacaram quasi con-
enfreada, por meio da qual os imperadores tinuamente; as desgraças que occasionaram
tinham dostruido as leis, dava o imperio, e estas guerras, e o numero de homens que
o tirava á sua descripção; ealém disto quasi ellas fizeram morrer, são incríveis. Ainda
todas as nações subjugadas, os persas, sei assim, o imperio subsistia: l.° porque Con
tas, godos, francos, allemfies, etc., attrahi- stantino tinha suíTocado as causas interio
dos pela esperança do saque, inundavam res das revoluções, aniquilando a autho
as provincias: portanto não podia resistir o ridade dos Prefeitos do pretorio; 2.° porque
imperio a seus inimigos senão pelo poder o exercito do imperio era muito superior
militar; que por consequência tinha o po aos povos barbaros; 3.° porque estes, só ti
der (Taniquilar a cada instante os impera nham a mira no saque, e não procuravam
dores e o inesmo imperio. Era pois indis- fazer conquistas. 1
pensavelmentc necessario conservar e con
ter ao mesmo tempo as forças d’cstc corpo.
Conhecendo Diocleciano a situação aos 1 Tilm. Hist. des Emp. t. 4. Confid. sur
imperadores c do imperio, se persuadiu les causes de la gr and. aes rom. p ar AL de
prevenir as desgraças de que ellcs estavam Aiontcsquieu, et observ. sur les rom. par AL
ameaçados, repartindo a sua authoridade VAbbê de Mably.
DISCURSO PRELIMINAR 65-
Lj
CAPITULO II
E sta d o da r elig iã o
Diocleciano nào obstante ser homem de bado a terra; continha princípios de divi
muita intelligencia, era summamcnte afTer- são e odio contra todos os homens; esperava
ràdo ás superstições pagas, mas nem por um rei que havia do destruir todos os im
isso aborrecia os christàos, dos quaes tinha périos; emfím era odioso e cheio do prácti-
cheio o palacio, e os havia também entre cas, que repugnavam aos romanos e aos gre
os guardas e entre os seus ministros. 1 Ma gos. Devia pois o imperador romano des
ximino c Vallerio, rivaes de Constando, truir o judaísmo, em logar de fazer d’elle
aborreciam os christàos, c os perseguiam a religião dominante. O Polytheismo estava
no Oriente, ao mesmo tempo que Constan já reputado como um absurdo, e por con
d o os protegia no Occidente; d’esta sorte sequência inútil para reformar os costumes.
o interesse das religiões, que dividiam o im A moral do Christianismo era pura e su
perio, se uniu aos desígnios politicos dos blime; nem o imperador tinha vassallos mais.
imperadores; Constantino, filho de Constan fieis, nem o imperio cidadãos tão virtuosos*
do, os protegeu; Licino, seu rival c inimi justos e beneficos como os christàos: ne
go, os preseguiu. nhum d’elles tomara parte nas conspirações,
Tinha-se multiplicado pasmosamente o formadas ainda contra' os seus mesmos pre-
numero dos christàos no Occidente, e era seguidores; portanto, Constantino, condu
considerável no Oriente. Constantino veio zido por fins politicos, devia formar o pro
em seu soccorro, e declarou guerra a Li jecto de fazer do Christianismo a religião
cinio, muito resolvido acontinual-a emquan- dominante do imperio; c além d’estcs mo
to lhe nào tirasse um poder, de que abusa tivos puramente humanos, accresceram os
va tào indignamente centra os christàos, milagres que Deus obrou em seu favor con
c ainda contra todos os subditos do impé tra Licinio e Constantino, pois fez restituir
rio. Viu-se, pois, este dividido, c posto em aos christàos as suas Igrejas e cdificar-lhes
armas para defender, e atacar o Christia outras novas; concedeu privilégios aos Bis
nismo tres séculos depois do seu nasci pos e Ecclesiasticos, dotou as Igrejas, semi
mento. 2 comtudo forçar os pagãos a renunciar a
Licinio tinha feito vir uma multidão de sua religião.»
augures, sacrificadorcs, adivinhos, e sacer N’um dos seus editos, cllc se dirige a
dotes egypcios, os quaes deprecavam aos Deus, protestando o seu zelo pela extensão
Deuses; oíTereciam-lnes victimas e sacrifí do seu culto, mas declara ser sua vontado
cios de toda a especie, e promettiam victo que debaixo do seu imperio até os mesmos
ria a Licinio; ao passo que Constantino, cer impios gosem da paz e da tranquillidade*.
cado de Sacerdotes christàos, e precedido da persuadido de que é este o meio mais seguro
Cruz, implorava o auxilio do Deus Supre de conduzí l-os ao bom caminho; prohibe que
mo, e sómente d’elle esperava a victoria . 3 os inquietem, exhorta os seus subditos a
Este principe, no qual se viam grandes que se sofTrain uns aos outros, não obstante
defeitos, ao par de grandes qualidades e vis a diversidade de suas opiniões, que se com-
tas profundas, viu que as desgraças do im muniquem mutuamente suas luzes, sem
perio se originavam da corrupção dos cos empregar a força nem o constrangimento,
tumes, c que unicamente a religião as po porque em facto de religião, é cousa excel
dia remediar. Nenhuma das religiões do lente sofTrer a morte, mas nào dal-a, como
imperio senão a christã, lhe pareceu que alguns christàos o pretendem, animados
satisfazia a isto:—o judaísmo tinha pertur- d’um zelo deshumano. 2
Todavia concedeu alguma cousa ao zelo*
1 Euseb. fíist. Bccíes. I. 8, c. 2.
2 Euseb. Hist. Eccles. I. 10, c. 2. Vit. 1 Euseb. v it. . Const. t. 4. Theod. i 4. c\.
Const. I. 2, p. 3. 20. Oros. I. 7. c. 28. Cod. Theod.
3 Euseb. ibid. 2 Euseb. vit. Const. I. 2, c. 60.
5
:( 1 4 Jt
66 DISCURSO PRELIMINAR
d’cslcs christãos, porque prohibiu os sacri povos barbaros, que havia muito faziam in
fícios, fechou e demoliu os templos. 1 vasões no império romano, e tinham levado
Havia pois nos christãos um principio de comsigo christãos que os converteram. 1
zelo que tendia a empregar o poder secular A nação judaica nada perdia do aíTerro
contra as falsas religiões, que trabalhava â sua religião; queimava c apedrejava to
continuamente, c por consequência havia dos aquelles que a abandonavam; inimigos
d’obtcr alguma cousa dos imperadores con do resto do genero humano, e sempre ob
tra o paganismo, e aniquilal-o, quando so stinados na esperança de conquistar c sub
bre o throno houvesse um imperador con jugar a terra, os jud*eus se revoltavam ape
descendente com o seu zelo, como aconte nas alguma agitação no imperio parecia fa
ceu com Theodosio e seus filhos, que de vorável ás suas esperanças. Constantino
moliram todos os templos, e prohibiram decretou leis severas contra cllcs, e seus fi
sob pena de morte os sacrifícios. 2 lhos lhe fizeram a guerra. Constando pro
0 poder e a gloria de Constantino, a tras- hibiu que se abraçasse a sua religião: fo
ladação da cadeira imperial para Constan- ram tractados com menos rigor por Vallen-
tinopla; as victorias que alcançou de seus tiniano: Theodosio lhes concedeu o livre
inimigos, o estabelecimento brilhante do exercício da sua religião, c prohibiu os
Christianismo, c os milagres obrados em christãos de saquear ou demolir as syna
seu favor, attrahiram sobre este principe a gogas. Elles tinham um juiz civil, e outro
attenção de toda a terra. Elle recebeu cm- ecclesiastico, oíficiaes c magistrados da sua
baixa*dores dos heros, os ethyopcs se con religião, cujas sentenças eram executadas
verteram, e pediram Bispos. em todos os pontos da sua religião ou dis
A religião christã fez progressos entre os ciplina, e a respeito do mais estavam sub-
godos, e foi abraçada pela maior parte dos mettidos a todas as leis do imperio. 2
CAPITULO m
Desde Diocleciano até o tempo em que alma. Todos admiltiam um espirito infinito
e independente, do qual haviam sahido in
Constantino foi o único reinante, o imperio
romano era assolado de guerras civis; ve finidade d’espiritos e a alma humana, os
atacado pelas nações contíguas, as quães quaes espíritos tinham proprias funeções e
também entre si andavam em continua destinos, segundo a sua natureza e quali
dades; o mundo e os elementos estavam
lucta , 1 e no meio do tumulto e agitação da
guerra e das facções, os philosophos e os cheios d’elles: os homens podiam ter com
mercio com todas estas ordens d’espiritos,
christãos eram quasi os unicos que cultiva
vam as seieneias c as artes. vél-os e entretel-os, elevar-se até o. conhe
cimento intimo da Divindade, e penetrar o
Quasi todos os philosophos pagãos tinham
adoptado o systema de Platão, que ajusta futuro pòr meio de differentes prácticas.
ram com os'princípios da philosophia cal- Esforçaram-se em justificar as do paga-
daica sobre a essencia da Divindade, ori pismo, e todos os seus sacrifícios: e ainda
gem do nuindo, providencia e natureza da nas mais repugnantes á razão e mais ob
scenas, imaginaram allegorias.ou preceitos
i Mamert, paneg. Dioçlet. Aurel. Vict. de moral: os sacrifícios de Priapo e de Ve-
Eutrop. nus, eram, no sentir de Jamblico, ou ho-
DISCURSO PRELIMINAR G7
mcnagcns prestadas aos attributos do Ente princípios reconhecidos como verdadeiros
Supremo, ou conselhos destinados a ensi pelos philosophos mais celebres, não eram
nar (jue muitas vezes o mais seguro meio contrarios â religião, e que nos pontos em
de nos eximir da tyrannia das paixões é que o eram, os philosophos inesmo se con
satislãzel-as, porque *cstc espectáculo, longe tradiziam ou se oppunham uns aos outros,
d’irrital-as, era proprio para reprimil-as, da c a razão os desmentia.
mesma sorte que os vicios representados D’csta maneira, pois, os ehristãos, assim
na tragédia ou na comedia corrigem os es como os philosophos platônicos, não admit-
pectadores. tiam os princípios philosophicos, senão em-
Quasi toda a philosophia, pois, se tornara quanto eram conformes aos da theologia
theologica: o livro de Jambiico sobre os christã, que veio a ser como base, sobre a'
mysterios é um tractado de theologia, cm qual assentaram todos os systemas philoso
que o platonisnio visivelmente se cont-ilia phicos formados no Christianismo.
•com o Christianismo, e no meio de mil absur Como o estabelecimento da religião chris-
dos se vé muita agudeza d espirito, c algu lã era o objecto principal da Providencia,
mas vezes uma moral sublime. 1 e nada cm sua comparação havia que fosse
Como o Christianismo fosse fundado so tão importante, os ehristãos zelosos attri-
bre as prophecias, c estabelecido pelos mi buiam-lhe todos os successos politicos, e
lagres, os philosophos pagãos creram poder phenomenos da natureza, crendo que tudo
sustentar o Polytheismo por prodígios ou se obrava por uma providencia particular
prcdicçõos favoráveis ao culto dos idolos: de Deus, por intervenção dos anjos, c pelos
persuadidos de que no mundo se obrava demonios, aos quacs *Deus permittia obra
tudo pelos genios, procuraram a arte de os rem sobre os elementos c sobre os espíri
interessar, de fazer por sua intervenção tos, c que estavam continuamente occupa-
«ousas extraordinarias, c prophctisar o fu dos em combater os ehristãos; portanto foi
turo: assim os Platonicos do quarto século absolutamente despresado o estudo da na
foram não só cnthusiastas, inas também má tureza; e grande numero de talentos pro-
gicos e adivinhos. Elles predisseram (pie pendeu para a crença da magia, dos sor
teria Valente um successor, cujo nome ha tilégios c adivinhações, c para um temoi
via de principiar pelas letras Tlieod, pre- ridiculo aos espíritos e feiticeiros. Mas to
dicção que foi funesta ao platonisnio. Va davia, entre os ehristãos, houve homens de
lente mandou matar todos os philosophos um genio sublime, c cujos cscriptos pode
que pôde descobrir, procurou e entregou ríam dar grande lustre a todos os séculos;
ao fogo todos os seus livros. Destruiu-se taes foram Pamphilio, Eusebio, .Arnobio,
um tão grande numero d’ellcs, c era tal o Lactancio, os Gregorios, etc. Estes celebres
terror, que se sacrificaram, quasi sem exa cscriptorcs sc applicavam muito á instruc-
me, obras sem conto, de toda a cspccic . 2 çào dos povos; c no meio das facções da
Um enthusiasta se esforça para communicar guerra, que traziam em movimento o im
suas idéias, e inspirar* aos outros as opi pério, e tudo transtornado, os Bispos, Sa
niões, de que está persuadido: por esta ra cerdotes e authores ehristãos, animados pe
zão os philosophos platônicos cultivaram los motivos, que mais poderosamente obram
a arte de persuadir, e se fizeram sophistas sobre o coração humano, se empenhavam
c rhetoricos. a illuminar os homens acerca da sua. ori
Desde o final do terceiro século os chris- gem, e dogmas da sua religião; sobre a ver
tàos cultivaram as scicncias com muito ar dadeira felicidade do homem, e recompen
dor e luzimento: obrigados a defender a sas promettidas aos fieis ehristãos. Castiga
religião contra os ataques dos philosophos, vam-se com o ultimo rigor todos os crimes
contra as imposturas dos Sacerdotes genti- contrarios ao bem da sociedade. 1
licos, c contra as objecções dós historiado Os philosophos pagãos, opprimidos pela
res, profundaram todos* os systemas philo forca das razões dos ehristãos, foram obri
sophicos, e se fizeram historiadores c chro- gados a mudar toda a religião pagã, ou me
nistas; a verdade da religião foi provada lhor, a fazerem riligiosa a philosophia, e
por todos os fundamentos, que subministra quanto poderam, conforme ao Christianis
a razão c a historia; demonstraram que os mo. Assim se illustrava por toda a parte
o espirito humano, c a mòral se aperfei
çoava: c já não se viam as desordens e eri-
1 Jambl. dc m yst. edit. G al Eunap. de
v it. Sophist:
2 Ámmien., I 29. Sozom., I. 6, c. 3o. 1 Concil. d'E lvir., d'Ancy, e .Nèocésa-
Soer., I. 4. c. lí>. rée, etc.
*
68
Ò - AiCwU' DISCURSO PRELIMINAR
mcs, que* se tinham visto no tempo de Ti rida a actividade, c 0 espirito d’intriga.'á
berio. virtude pacifica, e ao zelo illustrado, mas
Depois que o poder temporal tomou parte prudente. 1
nas disputas da religião, os pagãos, os chris-
tãos, e as diversas seitas, que entre elles se
tinham levantado, procuraram conciliar a DAS IIKUKSIAS DO QUARTO SÉCULO
benevolência da corte e dos imperadores
por meio d'elogios que lhes faziam nos dis
cursos públicos, c principalmente nos pa Gosavam os Bispos de grande veneração
negyricos dos mesmos imperadores, que em toda a Igreja, e d’uma authoridade quasi
nas cidades principacs se recitavam. absoluta sobre os fieis. 2 Mas como nem to
Assim se estudou no império com gran dos os christãos eram superiores á ambi
de cuidado a arte de fallar, persuadir, e ção e cubiça que reinava no Imperio, c que
mover, despresando-se as sciencias, que havia infcceionado todas as ordens do Es
apenas foram cultivadas por alguns philo tado, alguns houve que procuraram comí
sophos, que não attrahiram a aura popular, ardor as dignidades ecclesiasticas, c_que
nem o respeito da côrte, ficando na obscu formaram scisinas. Taes foram Donato, Col
ridade a sua sabedoria, por então inútil aos ludio, AnoT” ™
partidos que se tinham levantado. PTaqueTles logares cm que eram cultiva
Os cortezãos dum principe absoluto se das as sciencias e a philosophia, occupa-
occupam meramente no cuidado d’agradar, vam-sc os christãos em explicar os mys-
e na arte de lisonjear: são superficiaes, e terios, e principalmentc em dcscmbaraçal-os
pouco illuminados, más elegantes, e poli dos argumentos de Sabollio. Pcaxeas e ísoc-
dos; pensam pouco e fracamente, mas ex- çig, que no século precedente haviam en
plicam-se com graça c delicadeza: d’esta. sinado não ser.em.as..Xr.esJ)cssQas. da Trin-
sorte veio a degenerar n’este século a elo dade scnãcLtr.esjaQiTies dados.á mesma sub
quência, c se aperfeiçoou a arte de fallar; stancia, .s.egundoj) modo como cila se con
os philosophos, oradores, e letrados, que siderava.
>retendiam captar as boas graças da côrte, ‘“A" Igreja tinha condemnado estes erros,,
u aspiravam a grande reputação, se fize-
E as nao explicou porque as Tres Pessoas-
im engenhosos e elegantes, mas superfi- 1 Trindade existiam n’uma só substan
iaes. tia; a curiosidade e 0 desejo de fazer cri
Os frivolos cortezãos, submergidos 11a v eis estes dogmas áquellcs que os rejeita
molleza, c apaixonados pelo fausto, lison-, vam, voltou os espíritos em busca de idéias
jcavam a‘ preguiça e paixões do Principe, que podessem explical-os.
para merecerem a sua confiança c'favor: A rio, qae„.enipj^b_enden_esia..ex pJicaçào,
e os imperadores, tornando-se fracos, vo n e c ^ i|a y a , para estabelecer contra Sabel-
luptuosos, e vãos, foram dominados pelos lio a üistineção das Pessoas, não admittir
seus ministros e validos. muitas substancias increadas, como Mar-
N ’uma côrte cm que reinava 0 luxo c a cião, Cerdon, e outros; e se persuadiu
molleza, 0 merecimento e engenho foram evitar estes dous escolhos c fazer intelligi-
temidos ou despresados; 0 espirito c os ta vel 0 dogma da Trindade, suppondo as_tr.es
lentos agradaveis obtiveram as graças e a Pessoas tres Substancias: más que sómcntc
protecção; as riquezas conduziram ás di- 0 Fae era incrcado: portanto, fez da Pes
gnidades; a arte de formar partidos, de se soa do Verbo uma creatura; depois d’elle
desfazer d'um concorrente, e der ri bar um Macedonio atacou a Divindade do Espirito
rival, obteve consideração, credito e poder: Sàncto.
todos os animos c partidos tendiam insensi Houve uuL.motim-contEa._os scus-órros,
velmente para a arte d’adquirir riquezas, que os partidarios-d!AxiCLfizeram crer ap-
ou de formar intrigas no Estado, na Igreja, parentêsTffivIdiram-se, c formaram bandos.
c na côrte. A virtude, 0 merecimento e en São ordinariamente simples as contesta
genho, dcsappareceram;.os talentos dege ções e os erros nas suas origens, mas for
neraram, c viram-se pelos fins do quarto mados que sejam os partidos, cada qual
século os princípios da noite, que escureceu toma' a peito defender as opiniões que ado-
os seguintes, e das desordens que aniqui
laram 0 imperio romano. 1 Vejam-se os authores citados a respeito
Os mesmos christàos insensivelmente se de. Constantino
deixaram arrebatar da torrente, que arras 2 Igna. en. ad Smyrn. Cypr. epist. ad
tava a todos, e nos differentes partidos que Papin. Concil. Arei. can. 7, t. 1, Cone. V-
as suas disputas oceasionavam, foi prefe 1427.
DISCURSO I
gítou: já as intclligencias nada encaram, se _ A religião não tinha feito todos os chris-
não pela face que as favorece. Investigam- tãos superiores aos vicios do seu século;
se, pois, inlinidade de provas diíTerentcs, portanto encontraram-se em cada um dos
para as opiniões que se abraçam, e cada um bandos homens ardentes, facciosos, c inflam-
fazd’«aquellaqucaoscobriuuin principio fun mados pelo interesse do partido; e as dispu
damental: tiram-se consequências, c, ou ca tas dos christàos produziram no imperio
bem em novos erros, ou recahem nos que guerras civis. A Africa e Oriente foram
pretendem evitar assiiu se dividiram os perturbados pelo scisma dos donatistas, e
Arjanos cm E.uscbianQS, SiinG^rlãnos, etc.; heresia d’Ario.
assim Marcelliad^A nyra,-PlQtjnjõc Eunoipjo, Como quasi todo o império se compunha
i -sc.precipitaram no Sahelljaiiismq, ãrguindo de christàos, prevendo Constantino os elici
\ o dcfenucntlo A rio, o quãT também nào ti- tos das suas divisões, se esforçou a preca-
/ riha cabido no seu erro, senão por evitar vcl-os por via de doçura, e finalmcntc em
/ o Sabcllianismo: e da mesma sorte Appoli- reprimil-os pela força. Fez convocar con-
^ nario, combatendo Ario por muitas passa- cilios, desterrou e baniu, mas sem restabe
) gens, que dão a Jesus Christo os attributos lecer a paz, porque cada partido se empe
i -da Divindade, julgou que esta presidira a nhou em ganhar ministros, privados, cu-
V todas as suas acções, c que Jesus Christo nucos, c as danías que cercavam o impe
Y só tinha uma alma sensitiva, mas não hu rador.
mana. O exemplo de Constantino, a protecção
Como os imperadores tomaram muita que cllc concedeu á Igreja, os elogios*de
parte n’estas discussões, o nome que cilas que o encheram, fizeram julgar a seus suc
deram aos que se distinguiram, atacando cessores que nada podia conduzir mais se
•ou defendendo a verdade, accenderam a guramente á gloria e immorlalidadc, que •
.ambição cm muitos homens mediocres, que pacificar os distúrbios da Igreja; c n’estr
se esforçaram cm merecer as attenções por disposições foram conservadas pelos mini
um zelo sobejo contra os hereges, pela aus tros e validos, cunucos e senhores da cõrt-
teridade de seus costumes, por alguma que todos vendiam a sua protecção, e dt
práctica particular e extraordinaria, ou ata clarando-se por algum partido, faziam uma
cando a disciplina da Igreja, ou o culto que particular figura no império: como as dif-
cila dá á Sanctissima Virgem. Tacs foram ferenças da religião se tornaram ncgocios
EqliutliQ.-Aadco. Aria Bonoso, Helvidio, d’Estado para os successores de Constan
J oviniano. os collvrridianos. os uôscalçòs, tino, houve proseri peões, desterros, confis-
osuncssalIianos, PriscilIiano. caçõcs, e deposição de cargos para todos
Em inultos d’estes partidos era o fana aquellcs que a còrte nào julgava ortho
tismo a disposição dominante: quasi todos doxos.
tiveram sequazes, c no meio das disputas Assim o interesse conduziu todos os es
dos arianos è outros hereges, se viu multi píritos para o estudo dos dogmas, e as he
dão de homens, que apoiados com alguma resias deveram succcdcr-sc umas ás outras,
passagem da Escriptura, vendiam os seus c vir a ser cilas um principio do destruição
bens, andavam descalços, crendo-se rodea do império romano. Foi pasmoso o numero
d os de demonios c cm lucta com elles, ou de subditos que passaram á Arabia, Persia,
immoveis e ociosos tinham para si que o c povos barbaros, contiguos ao imperio; e
•christão não deve trabalhar pelo sustento os que restaram, entregues á facçao e in
que percebe. triga, nào viram no estado mais desgraça
Estava o imperio romano dilacerado pe que a de não poderem exterminar seus ad
las facções c guerras civis desde Tiberio, versarios.
e os subditos opprimidos ainda no.tempo A diíTerença d'espiritos e de caracteres
■de Constantino pelos governadores das pro fez nascer divisões n’estes partidos, e se vi
vincias, favoritos, e ofllciaes do íisco: tros ram scismas entre os orthodoxos como en
•séculos de tyrannia, de guerras civis, re tre os hereges: laes foram os diversos ban
voltas c calamidades, dispozeram os ani dos em que se dividiram os donatistas. taes
mos para a rcbcllião, e diíTundiram por no scisma da Antiochia foram Eustátio e
todo o imperio aquella acrimonia que com Lucifer, nos quacs essa divisão individual
tudo se irrita, o que produz a disposição nos mostrou todas as figuras que tomam as
jiroxima para a sublcvação. paixões, as preoccupações, e o zelo.
t
70 DISCURSO PRELIMINAR
QUINTO SÉCULO
No decurso do quarto scculo vimos gjm- Forcejou Theodosio por corrigir estas
D-crio cercado _dc nações barbaras que o m- desordens, mas inutilmente. Seus filhos,
fectavam, governado por ministros, corte- educados por validos ambiciosos, avaren
zàos c validos, que vendiam as honras, di- tos c frivolos, taes quaes os tinha produzido
gnidades e empregos a homens sem probi o precedente século, por morte d’cste prin
dade nem merecimento, e ainda mais fu cipe ficaram ainda muito novos senhores
nestos ao Estado que os mesmos barbaros. do império: cllo deu o Oriente a Arcadio o
As guerras que os imperadores se viram o Occidente a Honorio, ficando debaixo da
obrigados a sustentar, serviam de pretexto administração de kufino e Estilkào. Viam-
aos tributos que opprimiam os povos, c obri se, pois, n’estcTseculÕ7*tôcIas_.as^dcsordcns
gavam a entreter um exercito tão crescido, do precedente.
que assolava as provincias.
CAPITULO I
D o esta d o p o litic o c c iv il do O r ie n te
■, homem persuasivo, sagaz, lison- diíTerença o horrível abuso que Rufino, Eu
» tvareza insaciável, c d’ambição des tropio c Eudoxia faziam da sua authorida-
medida, era senhor absoluto no império do de, fez pesquizar com o maior rigor e cui
Oriente. Opprimiu os povos, vendeu a in dado se entre os ofíiciaes do palacio havia
dignos os empregos, e tornou odioso o go- hereges, e desterrou quantos n’elle desco
S'erno a todo o imperio. Adquiriu inimigos, briu, por mais probidade que tivesse, e por
e presumindo-sc que aspirava ao sceptro, mais leve que fosse o seu erro. 1
foi assassinado por ordem do imperador. 1 No tempo de Theodosio, filho d’Arcadio,.
Q. eunuco Eutropio, que.ajmpj^aXijzJ5ii- as desgraças doTmperio augmentaram sem-
doxià expufeou, nao pelos attentados inau pre. Eduardo, como seu pac, da mesma
ditos que commettera, mas porque lhe ti sorte dominado pelos eunucos e cortezãos,
nha perdido o respeito, continuou os mes que o tinham emergido em prazeres em-
mos males. Toda a authoridadc d’Eutropio quanto’ as nações barbaras e ofíiciaes do
passou ás mãos d’Eudoxia, princeza ava fisco talavam e saqueavam as provincias,
renta e dominadajiel asaiasj)_£unxLC.osjque extinguiu o amor da patria no coração de
a cçrcaxam, pelo que se viram então juntas todos, passando-se muito para os povos bar
todas as desordens, sofridas no tempo de baros. 2
Kufino c d’Eutropio. Quiz Marciano, successor de_ Theodosio,
Arcadia, indifferente ds desgraças do im corrigir todas estas desordens, mas viveu
perio, occupava-se cora o augmento da muito pouco para executar seu desígnio.
Igreja, c com os.meios d’expulsar dos seus As facções e os soldados deram c tiraram
estados todos os herejes: houve anno em
que publicou cinco editos sobre este obje 1 Zozim. Concil. hist. I. 2 <? 5. Soz. I. 7,.
cto; e o mesmo principe, que vira com in- c. 21, cod. Theod.
2 Excerpt. ex hist. goth. Ptisc. de lega.
i Oros. I 7, c. 37. Soer. I 6, c. í. So- tionibusincorp. Hist. Biant.Marcellin chron-
zom . /. 8, c. i . Procop. de Bel. Pers. I. c. 2.
DISCURSO PRELIMINAR 71
'o imperio: Leão i,.Zenão, BasiliçQ.e Anas- Foi por causa d’cstc amor respeitoso de
tacio, que occuparam successivamentc, o Marciano para com a Igreja que S. Leão
tTirono, foram viciosos, avarentos, fracos, exhortou Anatolio,. B ispo. de Constantirio-
sçnsuâes, e cruéis. pla, que emprchendesse sem receio algum
r Desde Constantino, possuia a Igreja gran- tudo o que julgasse util á religião:
>des bens, gosava de muitos privilégios e «Estou certo, diz elle, que "fazendo con
Simmunidades, o que fazia dos Bispos um sistira sua gloria em serem servos de Deus,
( corpo separado das outras condiçòcs. Apic- receberão com affecto todos bs conselhos que
l dade„de Tlieod.osio lhes tinha concedido no lhes derdes a favor da Fé Catholica.» 1 De
táveis honras, o dado muito credito, o qual pois da morte de Marciano, Anatolio co
clles empregavam em favor da religião ca roou Leão.
tholica. Promulgou este principe quinze leis Sendo Anastacio declarado imperador pelo
contra os hereges, c seis contra os pagãos. senado, Eufemio,. successor d’Anatolio e
Ajm<jp£UC,Jlpnorío, persuadidos de que Bisno de Constantinopla, se oppóz, pretex-
Theodosio devia a sua propriedade e a glo tãndo~que~ell'c'como nerege, era indigno de
ria do seu reinado ao zelo pela religião ca governar christãos orthodoxos; e não ce
tholica, confirmaram todas as leis de Theo deu ás instâncias do senado sem a condi
dosio: seus successores os imitaram, e os ção de que o imperador daria por escripto
pagãos e hereges foram banidos, despoja promessa authentica de conservar a fé na
dos dos seus bens, e declarados inbabeis sua inteireza. 2
para possuir empregos. Erigiu-se pois no imperio do Oriente uma
Persuadiram-se os imperadores que nun potência distincta da dos imperadores, que
ca eram mais uteis ao estado, que quando não tinha soldados, mas que dominava os
trabalhavam para a Igreja, e que a verda espíritos, c podia excluir do império os que
deira fé era a base e o fundamento do im cila tinha separado da sua communhão. Foi
perio; e sabendo além disto quanto as cou- este século, pois, a. énoca em nno se tran
sas de Deus são superiores às dos homens, sformaram os estados civil e politico do im
se criam obrigados a empregar na conser pério do Oriente.
vação da fé todos os seus desvclos. 1
i Cone. t. 4. Tillem. ílist. des Emp. t. 1 Leo. Ep. 65, c. 3. Tillem. loc. cit.
6 , pag. 286. 2 Tillem. t. 6, p. 534.
CAPITULO II
Eniduaiito Rufino reinava noOrientc de- ministro capaz; e os que o cercavam tinham
baixo do nónib d^rcàdeo, Estilicão,TfiTmes- pouca vontade de lh’o procurar. 1
ma. sorte no Occidente, abusava da confian Ucpeutinamente se viram tres impera
ça de. Honorio, e.teve um fim similhante ao dores a disputar o sceptro na ltalia, Hes-
de Rufino. Estava o imperio cheio de des panha, e nas Gallias. A Inglaterra e os ar-
contentes e hereges, que Honorio e seus moricos sacudiram o jugo do imperio: as
prodecessores despojaram de seus bens e cidades das Gallias formaram estados livres,
empregos, dindividuos arruinados pelas ve- que se colligaram contra os alanos, vânda
xações dos governadores e ministros, e pe los e suevos, os quacs, temendo estas ligas,
los* excessivos tributos: estes descontentes atravessaram os Pyrineus, c se derramaram
se sublevaram pela occasião da morte de por toda a Hcspanha, aonde fmalmcnte fun
Estilicão. Os ministros que lhe succedcrara daram seus estados. 2 Posto n’csta horrível
não se achando em circumstancias de sus
pender a desordem foram desgraçados, c os 1 Zoz. I. 5; Symmach. I. 9. Ep. 60. Aug.
que se lhes seguiram não foram melhores Ep. 129.
nem inais hábeis nem mais felizes. Honorio 2 Prosp. chron. Idant. fast. Osos. I. 7.
estava muito longe de poder escolher um Hist. Vanual. Per ec. par Théod. Ruinart.
'i v !\x.. t\vV v? DISCURSO PRELIMINAR
CAPITULO III
Sem embargo dos editos dos imperado Foi ainda mais despresado que no sécu
r e s e esforços dos christaos, ainda o Poly- lo precedente o estudo da natureza c da
theismo tinha sequazes que cuidavam com physica. Siri ano. Proculo, e outros d’este
efficacia em justiíical-o, imputando á sua ex- século, nada mais fizeram que compilar
-tineção todas as calamidades do imperio. Aristoteles e outros philosophos antigos 1
Os christaos refutavam o paganismo, e No principio d’elle, Arcadio e Honorio,
•estas controversias entretinham o estudo da então reinantes, viviam persuadidos de que
philosophia e o gosto da erudição em am Theodosio devia a gloria c felicidade do seu
bos os partidos. A philosophia era toda theo governo á sua piedade e zelo pela religião
logica, e absolutamente relíitiva á religião: christã e Fé Catholica. Estes principes fra
era o pythagorismo e platonismo concilia cos e voluptuosos, não attentando que se
dos com o paganismo, a fim de justifical-o, devia attrinuir alguma parte aos seus ta-
e manejados também pelos christaos para
combatel-o. 1 Paulin adv. Gentil. Aug. de civ. Paul Oros.
adv. Pagan. Prud. adv. Symmach.
i Chysost. adv. Judcsos et Ethnicos, Théod. 1 Suid. ÍJixic. Phot. Bib. cod. 242. Fab.
-de cur. groec. affect. Ambr. Epist. 30. 31. Bibl. gr. t. 8, l. 5, c. 16.
DISCURSO PRELIMINAR
t
lentos politicos c militares, fizeram contra Viram-se pois n’estes séculos poucos phi
os hereges e pagãos leis ainda mais seve losophos, muitos oradores, poetas c histo
ras que as de Theodosio, c seu exemplo foi riadores, divididos e rivaes, quasi todos de
seguido por Theodosio ir, Marciano, etc.; e dicados á Iisouja, ambição c intriga. A igno
como nào consideravam cousa mais impor rância da philosophia, ó despréso das scien
tante para a religião e felicidade do impe das exactas, o habito de lisongear, o receio
rio que a extineção da heresia e do paga d’oírender, e o desejo d’agradar debaixo do
nismo, hereges e pagãos foram banidos, governo de principes absolutos e afemina-
desterrados e despojados dos seus bens, di- dos, aniquilaram quasi todos os affectos no
gnidades, e empregos. 1 bres e varonis, fizeram desapparecer as
Segundo esta disposição dos soberanos, grandes e sublimes idéias, extinguiram o
o zelo que molestava os*pagãos e hereges, fogo da imaginação, baniram o espirito phi
ue ris atacavam nos seus templos, ou que losophico, e lhes substituiram o brilhante
’clles se apoderava, que descobria os oc falso; a feição cpigrammatica, as allusõcs
cultos ou dissipava as suas assembléias, foi forçadas, os* discursos empolados, as idéias
muito mais estimado que a caridade indul gigantescas, o amor do extraordinario, do
gente que se empenhava em illustral-os, inacreditável c maravilhoso, que são sem
persuadil-os c vencel-os. Que Bispo houve pre a substituição dos pensamentos finos,
tão acreditado como Theophilo d’Alexan do estylo elegante e nobre, do sublime, das
dria, Ncstorio, e tantos outros, que não ti imagens, c do pathetico, n’um século em
nham mais merecimento que o ardor c in que o espirito philosophico e gosto se per
discrição do seu zelo? dem e se corrompem: e o meio por onde o
A erudição, o gosto das scicncias, que a espirito humano desce necessariamente da
estimação pública, o respeito, c a necessi luz e do bom gosto á ignorância e bar
dade cíe defender os dogmas tinham con baria.
servado entre os christãos, e produzido tão Os poetas, historiadores e oradores, que
grandes homens no principio d’este século, tinham necessidade do maravilhoso para
■se extinguiram, c as scicncias quasi não mover, interessar, e arrebatar, os procura
tiveram entre os christãos quem as culti ram em todos os objectos, e como os não
vasse pelos fins do quinto século. Um im continha o espirito philosophico, nem os
perio aonde se crer que a felicidade tem illustrava a physica, nem a critica os con
poral depende da extirpação do erro, que duzia, viram omaravilhoso cm toda a parte
extermina e queima os hereges e infiéis, onde desejaram encov^tral-o: foram os acon
basta que tenha delatores e inquiridores; tecimentos sobrenaturacs, todos os pheno-
as scicncias hão de parecer n’elles perigo menos vistos menos vezes, e aos mais com-
sos. Não se chegou porém a estas conse rnuns deram o realce que lhes pareceu ca
quências no quinto século, nem ellas se es paz d’augmentar a admiração e importân
tenderam até á poesia, ã eloquência, c á cia; inventaram milagres, suppozeram his
historia. No século precedente, e principio torias falsas, c o público, apaixonado dos
do quinto, tinham sido cultivadas com lu- portentos, tudo recebeu sem exame. A’ me
zimento, e servindo para celebrar os elo dida que a luz se eufraquccia, se foram
gios dos imperadores eram validas na corte. pervertendo os costumes entre os christãos;
Eudoxia, mulher de Theodosio n, compoz porém no meio da corrupção geral, o Chris
poesias sagradas, o recitou em publico al tianismo tinha conservado cm muitos de
guns discursos. Theodosio sempre recom seus filhos o amor da justiça, a probidade,
pensou magnificamcnte os seus panegyris o desintoresse, e uma sensibilidade terna
tas, chegando até a erigir-lhes estatuas. Es para com todos os infelizes. Estas virtudes
tabeleceu em Constantinopla vinte profes particulares suavisaram os estragos dos bar
sores de humanidades, gregos e latinos, baros, as desordens do governo, as cala
tres dc rhetorica, latinos, c cinco gregos, midades públicas, 1e talvez a ellas se de
dous em direito, e um philosopho encarre vesse o não estar cxtincto o amor da pa
gado d’indagar os segredos da natureza, tria, sem o qual nenhum estado póde sub
que provavelmente eram as qualidades e sistir, o que somente a religião conserva
virtudes occultas c singulares das plantas cm tempos tão calamitosos.
e pedras, etc.; porque esta indagação re Depois que os imperadores julgaram não
creava muito á Theodosio. 2 haver cousa mais importante, tanto para a
Religião eomo para o^estado, como a extinc-
1 Sos. /. 8, c. 1. Leo epist. 21. Cone. t.
3, pag. 66, 67. t. 4. pag. 8, 9. Eclit. de Lab. 7, c. 21. Phot. cod. Ducange, Bysant. fa-
2 Const. Manaff. Breviar. chr. Socrat. I. mil. cod. Theod. I. 13.
74
J CwV DISCURSO PRELIMINAR
,ção das heresias, o zelo contra os liereticos losas; cmpregou-sc todo o cuidado em os-
'pareceu mais necessario do que a virtude, desculpar ou fazer menos odiosos: os cos
e tomou o logar d’esta: dissimularam-se tumes se corromperam, e a moral entre
os defeitos e ainda os vicios das pessoas ze muitos christaos se alterou.
CAPITULO IV
D as h e r e sia s d o q u in to s é c u lo
Logo que nasceu o Christianismo se in Christo uma alma humana, mas que esta
clinaram os espíritos, guiados pela philo era distincta e separada do Verbo, o qual
sophia platônica e pythagorica, para o es a instruía e governava; porque d’outra
tudo e exame dos mysterios da Trindade e sorte forçosamente se havia de reconhecer
Divindade de Jesus Christo, e da uniào da que a Divindade padecera, e que tinha ad
natureza divina e da natureza humana. quirido conhecimentos.
Estes mysterios, por assim dizer, estão Nestorio, discipyio_jíiJrJLeodoro dc Mo-
collocados entre dous abysmos, nos quacs psuêslià, possuído d’estes princípios, çon-
a curiosidade temeraria ou o zelo indiscreto cluiu uue a Divindade habitava na huma
Í se haviam precipitado: tinham crido uns nidade como em um templo, o queUÕ ne
que Jesus Christo não tomara corpo nem nhuma outra maneira estava uniüa a alma
se havia unido á natureza humana; outros humana: tiue nor consequência havfiPem
que Elle nào era mais do que um homem Jesus ChrisTõ duas Pessoas, o VerhõTque
dirigido pelo Espirito de Deus. era eterno, infinito, e increado: o homem
Pj^xeai-fiL^oet, para conservarem o do creado c finito: tudo o que uma em uma
gma da Trindacle, fizeram do Filho de Deus só Pessoa o Verbo e a natureza humana
uma substancia distmeta da substancia do lhe pareceu contrario á ideia da Divindade
Pae. Sahelljo- para defender a unidade da e Fé da Igreja. Condemnou como contrario
Divina Substancia, fez das Trcs Pessoas da a esta Fé o titulo de Mãe dp. PnpsTque se
Trindade tres attributos. Ario, pretendendo dava á Virgem Sanctissima.
evitar o erro de Sabcllio, c desembaraçar "intiammados os animos, ò zelo pela pureza
as difficuldades do mysterio da Trindade, da Fé penetrou em todos os estados: ojjpvo
tinha supposto que Jesus Christo era um só nlvoroton contra Nestorio. que logrando
Deus creado c distincto da substancia do grande authoridade da corte, obrigou a cas
Pae. Appolinario. defendendo a consub- tigar com prisão e açoutes os descontentes.
stancialiuade do Verbo por diversas passa A"innovarim de-T&fttem^fez grandji-eatam-
gens, nas quaes a Escriptura dá a Jesus pido; os monges defenderam a prerogativa
Christo todos os attributos da Divindade, (TifSancta Virgem; S. Cyrillo psemvon con
julgou que Elle nào tinha alma humana, e ti a Nestorio. a tprla a. Tgrpj.i fni imir)pdinta-
que a Divindade fazia todas as suas func- mente Sabedorn rin sim rQntPctnçjin For-
ções. Theofjoro flft Mopsuestia. para con maram-se partidos nas provincias, em Con-
vencer Appolinario, procurou na Escriptu stantinopola, e na Curte. Theodosio" ii fez
ra tudo o que podia estabelecer que Jesus convocar um condlkTem Epheso. ()s Bis-
Christo tinha uma alma distincta do Verbo. pos se dividiram: disputaram ;~das_disputas
Unindo todas às acções e affeições que a se passou aos insultos, dos insultos as ar-
Escriptura attribue a Jesus Christo, elle se masTe esteve nroxima a romper entre os
persuadiu encontrar algumas que nào só dous partidos uma guerrtLsanguenta.
mente suppunham que Jesus Christo tinha íNéstono e S. Cyrillo tinhamambosgran
uma alma humana, mas que fizera acções de partido na côrte; e Theodosio, que se Via *
sómente proprias d’esta alma, quaes sao o muito embaraçado para mitigar o zelo qiie
seu padecer, o progresso dc conhecimen elle mesmo accendera depois de grandes
tos, a infamia, etc. disturbiosgasPi muita agitação na côrte, em
D ’aqui tinha concluído Tlreflílorn dftJMo- Epheso, $& ís provincias, condemnou final-
psuestía, que nào sómente havia em Jesus mente os espíritos de Nestorio, prohibiu aos
DISCURSO PRELIMINAR ’0 v 7o
ncstorianos que fizessem convcnticulos, des Para combater o nestorianismo, usou de
terrou para a Arabia os cabeças, c Hies expressões mais fortes, c receando separar (
confiscou os bens. em Jesus Christo a natureza humana c a i
Cederam muitos na occasiào, conservando Divina, como Nestorio as confundiu, ensi- \
para assim dizer o fogo da divisào occulto nando, que nào havia no mesmo Scnliõr \
nas cinzas do nestorianismo, sem tornarem mais que uma so natureza. isto é, al)ivín a. u
o titulo de ncstorianos. Um d’estcs, refu porque a humana linha tirado absorvida 1
giado na. Persia, se aproveitou do odio petajíivina, cuiiio uma gota d agua no vasto
íTaquclla nação' contra os romanos, para marT"-------- -----------------------
alii fundar sobre as ruinas das Igrejas Ca O credito que Eutyches tinha na curte
tholicas o nestorianismo, que de lá se es o sustentou contra um concilio de Constan-
palhou por toda a Asia, aonde, talvez, con tinopla, cJe.zjiuc_se_con.\ncasse outro,'cuja
ciliado nos séculos seguintes com a reli presidenefa teve Dioscoro. patriarcha _de
gião dos lamas, deu principio á potência Alexandria, no qual Eutvches foi restabe
singular do Preste João. lecido, c seus ininngQsId.ePQstos, presidindo
$ ã o tinha o concilio d’Ephoso extincto o favor c ã violência a todos òs decretos
os nestoriãnosTTrrriitos se conservavam oc (ÍÊfe_Ípj]^no, formado c dTngiclo pelas'in-
cultos no Oriente com receio das disposi trigas ^ a c o r te ,, pefõTTuer com juit.CLtU.uJo
ções c desterros, cedendo á tempestade, sr>
se p línihnn a . cxtorsãõarrE
cliamau nfioín n
EpíicsoT nninmlr
apoiando
mas conservando um desejo ardente de seus decretos rneoüosio ii.
vingança contra S. Cyrillo c seus sequazes. Marciano, nuo suecédeu a Theodosio, fez
D’outrâ parto os defensores do concilio de ajuntar em Calcedonia outro concilio, que
Epheso aborreciam de mortc~os nestoria- condcmnou o erro d^utyches. Tuas s p
no?, ò"todos aquclles que ainda" conserva destrui r o seu partido;~êncheu o Oriente
vam alguma indulgência para com este d’alvorotos, sédiçôes n mortes. No meio
partido. Havia, pois, com elTeito, dous par de todos estes ■horrores moviam os euty-
tidos subsistentes, um dos quaes opprimido, chianos mil questões frivolas, dividiam-se
procurava evitar o perjurio, c preservar-se sobre estas mesmas questões, e formavam
das violências dos orthodoxos por fórmulas infinidade de pequenas seitas ridiculas e
de fé capciosas e equivocas, differentes das obscuras, que se perseguiam cruelmcnle-
de S. Cyrillo; e outro, victorioso, que per Assim accenderam o fogo do fanatismo em
seguia os ncstorianos em todos os seus sub todo aquelle império Nestorio c Eutvches,.
terfúgios. sem que a severidade ou o commediincnto
O zelo ardente e a cega desconfiança dos imperadores podésse fazer mais do que
para se assegurarem da sinceridade çTaquel- augmcntal-o. Os nestorianos e eutychianos
les a quem queriam fazer receber o conci successivamente encheram o império de
lio d’Épheso, imaginaram diversos modos motins c sedições; fizeram correr o san
de proval-os, empregando nos seus discur gue em todas as mais provincias, c d'ellas
sos expressões as mais oppostas á distinc- desterraram infinitos vassallos, que foram
levar seus cabedaes e industria aos estran
reza Divina eJnjfliana: serviam-se d’expres- geiros, instruil-os da fraqueza do império,
socs7 c(We"desígnavani nãojiómonte a união, e offerecer-lhes os seus braços para sé
mas ainda-a-Confnsào_das _duas_ naturezas. vingarem.
D’c.s.ta_sortc, depois que o nestorianismo Emquanto no Oriente alterava a curio
foi.condcmntula^ tudo era nertinaz. fanatico. sidade humana os mystorios, querendo ex-
plical-os, o desejo da perfeição atacava no
_ ______ muito_zelo contra o Occidente os dogmas do Clíristianismo so
nestorianismo, noucasZGÍzes^ u s^ m a d c T le bre a graça, liberdade do homem, c sua
costumes, um caracter obstinado c orgu- corrupção, querendo fazel-o capaz de che
1hosorcõm ingunrcredi to. gar por si mesmo ao.grau mais sublime da
Xao podia deixar dcThaver um homem virtude, ou destruil-o de toda a actividade
d^stcTncPseculo quc~examinamos: galera para o bem, submettendo-o a um destino
Eutvches. monge com reputação de sancti- que lhe negava a escolha c a liberdade;
uaac, c que n a jü k to lograva avantaiado taes foram os pelagianos, os predcstinacia-
■eírnTfT:
conceffoTErie foi o„ primeiro __...
author dos ri- nos o scmi-pelagianos; mas nenhum d’estes
^?õFeí> tom rfue se tractaram os ncstorianos erros perturbou os estados.
noürfênte:---------------------------
76 DISCURSO PRELIMINAR
SEXTO SÉCULO
CAPITULO I
D a im p ér io do O r ie u te
dos em muitas tribus, tacs como sallianos, tro filhos, que continuamente andaram em
rcipuarios, chamavos, chattos, etc., se reuni guerra, ou fosse pela sua própria inclina
ram debaixo do poder de Clovis, excepto ção, ou pelas instigações de Fredegundes,
os ripuarios, que formavam uma tribu se senhora d’espirito revoltoso, d’animo ex
parada, posto que reconhecessem por seu traordinario, c de tanta ambição, que não
rei a Clovis. 1 Depois de haver unido todos tinha cm conta alguma os maiores crimes,
os francos e conquistado a maior parte das com tanto que elles tivessem um resultado
Gallias, Clovis estabeleceu a corte do seu feliz.
império em Paris, aonde morreu em 31 i. Na Ilespanha e na África os gregos c
Seus íilhos dividiram os estados: Thierri, vandalos estavam em continua guerra, ou
havido d’uma concubina, foi rei de Metz; entre si, ou com os romanos. A Gran-Breta-
Childeberlo, de Paris; Clotario, de Soissons; nha por todo este século defendeu a sua
e Clodomiro, de Orleans. A’ forca de cri liberdade contra os saxonios, juttos e in-
m es c mortes reuniu Clotario todos estes glezes, e que emfim, depois de um século
estados, divididos depois entre os seus qua- de guerra, fundaram alii o seu imperio,
conhecido debaixo do nome de Heptarchia.
1 Greg. Tur. I. 2.
CAPITULO II
E sta d o das le tr a s e s c ie n d a s d u ra n te
o se x to sé c u lo
Anastácio, Justino, Justiniano, c seus suc N’uma tão geral e violenta agitação, pou
cessores, não tinham pelas letras a paixão cas pessoas cultivavam o seu espirito e a
que vimos em Arcadio, Honorio, Theodo sua razão: o gosto das letras e das scien-
sio, Marciano, etc. Os grandes engenhos e eias não subsistia senão entre alguns sábios,
conhecimentos não foram uteis nem apre que resistiram á torrente, e que por sua
ciados. moderação e prudência viveram esqueci
O império tinha-se tornado o frueto da dos ou se tornaram ridiculos e talvez odio
ambição: o soldado, o ministro do impera sos. Não achamos n’este seeulo mais que
dor, ahi chegavam, formando partido no alguns rhetoricos e historiadores apreciá
senado, no povo, na tropa, c excitando mo veis, c que eram ainda fruetos do prece
tins. dente. Taes são Nonnosio, Hcsichio, Proco-
Os manieheos, os arianos, e sobretudo os pio, Paulo, o silencioso, Agalhias, o escolas-
eutvchianos, estavam animados d’um odio tico, alguns philosophos pagãos, que não
vivo contra os catholicos, os quaes de nada tomavam parte nos negocios, e que se oc
se esqueciam contra inimigos tão activos, cupa vam em coadunar as opiniões d’Aris
0 lhes oppunham a mais inllcxivel firmeza, tóteles, Platão e Pythagoras, como foram
e o zelo mais infatigável. Assim se via o Simplicio e muitos outros, aos quaes Jus
imperio cheio d’ambíciosos, de parcialida- tiniano permiltiu que habitassem cm Athe
d es e facções, não logrando credito ou con nas. Os catholicos tiveram ainda .assim bons
sideração quem não se alistava cm algu escriptores, theologos hábeis, raciocinado-
m as d ellas. res intelligentes; mas em pequeno numero,
Arrastados por esta cspccie de torrente, e nenhum d’elles comparável aos egregios
s e oceupavam todos os espíritos em gran- authores do precedente seeulo . 1
gear um protector, a perder um inimigo, No Occidente foi a Italia o theatro de
fazer um proselyto. Calumnias, delações, uma guerra sanguinolenta e continua en
falsos testimunhos, imposturas, tudo se em tre os gregos, lombardos c romanos. As
pregava sem cscrupulo. 1 Gallias estavam submettidas aos burgonhe-
zes e visigodos c francos, cuja dominação ptores dos bons ecclesiasticos, fez imaginar
se estendia quasi dos Pyrincus até os Al infinidade de curas c de castigos milagro
pes. A Ilespanha, dilacerada pelas guerras sos. 1 Apparecoram innumcraveis collcc-
dos godos, vandalos e siievos; e flnalmente cõcs de historias maravilhosas, vidas de
a Gran-Bretanha invadida pelos juttos, in- Sanctos cheias de prodígios, apparições c
glezcs e saxonios. ' revelações ainda para os mais pequenos ob
Todos estes conquistadores, sem scien- jectos da vida particular: c como estas his
cias nem artes, subjugaram povos, que as torias faziam profunda impressão nos ani
cultivavam, devendo a seus animos esfor mos, c os acccndiam cm desejos de serem
çados, c ordinariamente á perfídia as van o objecto das maravilhas que se referiam,
tagens e felicidade de suas emprezas: en individuos sem numero se esforçavam a
tre cllcs só tinha valor a bravura e a arte chamar sobre si estes soccorros extraordi
d’enganar seu inimigo. As sciendas, as narios da Providencia.
letras e artes, ficaram sendo o patrimonio Impressiona-nos fortemente a cousa que
dos vencidos, e olhadas como a occupação se deseja com ardor, c se a imaginação é
dos covardes, e um objecto de despreso viva, dcsapparcccm todos os objectos* que
para os guerreiros, que conquistaram o Oc são estranhos a esta cousa: vè-se, crê-se
cidente. que cila existe, c quando se relata, é com
Não havendo, pois, motivo algum que es um enthusiasmo que subordina todas as ima
timulasse os animos á cultura das letras, ginações, que a razão nào sustem: assim o
fez a ignoranda rapidos progressos: no fanatismo e a ignorância crèram vèr mara
principio do sexto século já nào se enten- vilhas, c as persuadiram.
. diam os versos latinos, e excedia a intelli- É tão lisongeiro para o amor proprio,
gencia do público tudo o que nào era cs- tão consolador para a fraqueza humana, e
cripto cm cstylo baixo. e. grosseiro. tão importante, ainda para a mesma pie
Refugiaram-se as letras c scicncias nos. dade, o ser conduzido immcdiatamonte pela
mosteiros e entre o clero, conservando-se Providencia; contavam*sc tantas historias
escolas nas cidades episcopaes e nos con em que cila intervinha d’um modo mila
ventos, aonde se ensinavam as letras divi groso cm todas as circumstandas da vida
nas e humanas. Estas casas religiosas fo privada, que não se duvidou que a Divin
ram o asylo da virtude, assim como das dade, os Anjos e Sanctos estivessem conti-
scicncias. Nào viram os bispos com olho nuamente occupados em soccorrer os ho
indifferente os seus vencedores, ignorando mens, guial-os e instruil-os do que lhes
a verdadeira religião, e-elles emprehende- convinha saber, logo que fossem invoca
ram illuminal-os. Como porém a ignoran dos; portanto se creu, que consultando a
d a c barbaria d’èstes conquistadores os fi Divindado, os Anjos, os Sanctos, se rece
zesse menos hábeis para a instrucção; «era biam respostas c esclarecimentos acerca do
'preciso, dizem os sábios authorcs da histo futuro.
ria litteraria de França, que nos desígnios Sendo a ignorância tão profunda como
que Deus linha de conduzil-os á fé catho era extensa a superstição, c não tendo aqucl-
lica, alguma cousa os levasse pelos senti la capacidade para no*vos inventos, se ado
dos: escolheu pois os milagres, como o meio ptaram todas as adivinhações usadas entre
mais proprio para fazer sobre estes povos os idolatras, sefn que parecessem crimino
uma impressão sandavel. Faziam-se innu- sas, porque não tinham por objecto os de
meraveis nos sepulchros de S. Martinho de mônios, mas o mesmo Deus, os Anjos ou
Tours, de Sancto Hilário de Poiticrs, de S. os Sanctos.
Germano em Auxerre, c de muitos outros D’esta maneira se persuadiram que abrin
Sanctos: eram tão esplendidos c authenti do algum livro da Escriptura Saneia ao
cos, que os Bispos os propunham como uma acaso-, a Providencia conduzia a mão, c o
divisa certa e distinctiva da verdadeira re primeiro verso; continha a resposta que de
ligião. É constante que foi isto quem obri sejavam sobre algum ponto intrincado. Ja
gou o grande Cio vis a abraçal-a.» 1 em outro tempo tinha Adriano empregado
Os cffeitos que produziram estes milagres a Eneida para este objecto. Chilperico es
verdadeiros, fizeram crear outros imagina creveu uma carta a S; Martinho de Tours,.,
rios, que revestiram de circumstandas as e a fez collocar sobre o seu sepulchrò; ífclla *
mais adequadas para conduzir os ânimos ao rogava ao Sancto que lhe fizesse saber se
objecto a que se propunham: o desejo de iodia sem crime expulsar Boron da sua
Í
adquirir ricas oflertás ou d’intimidar os ra- greja, para aonde se tinha retirado.
D’esta crença cm que estavam de que a No sexto século foi pois que se desenvol
Providencia intervinha d’um modo extraor veram todos estes germens de superstição
dinario, sendo requerida. ou rogada pelos e d’arte magica, que vimos formarem-se*no.
christãos, se concluiüque cila nào deixa século precedente.
ria sem castigo o perjúrio, a mentira c o Como o estado do espirito humano -00-.
crime de que se lhe pedisse justiça, nem contra va em todas estas prácticas os meios
permittiria que a innocencia perecesse em de saber ou produzir quanto lhe importava,
qualquer estado que ella estivesse. D’aqui não teve estimulo ou motivo algum para
nasceram todas as cspecies de provas de cultivar as letras e sciencias; e assim s e .
agua, de fogo; do juramento, e do duello, co aniquilou 0 gosto do estudo no Occidente1
nhecidas debaixo do nome de Juizo de Deus.
Os culpados ou protervos que queriam
conhecer o futuro, ou foram submettidos a
estas provas, procuraram na assistência dos 1 Grey. Turor. h. I. 4, 5, 7. Baluf. ca-
maus genios o soccorro que nào ousavam pil. t. 1. Fredeg. chron. Lc Gendre, mamrs
esperar da Providencia ou dos Sanctos, c de Fr. Fleury, dis. 3. sur 1'hisL. Tliicrs et
assim recorreram á nigromancia, á ma lc Brun. Traité des Superst. Ilist. lit. de
gia, etc. Fr. t. 3.
CAPITULO III
D as h e r esia s d o se x to s é c u lo
Não podendo Ario no terceiro século con -1jder a sua opinião, indagar como uma sub-
ciliar 0 mysterio da Trindade com a uni-1Istancia podia unir-se á outra, de modo que
dade da Substancia Divina, sustentou que depois d’unida não houvesse mais que uma,
o Verbo não existia na Substancia do Pa e se esta união tinha logar em Jesus Christo.
dre, posto que fosse Deus, e apoiava a sua Os erros de Ario, Appolinario, Nestorio
opinião com passagens em que Jesus Christo e Eutyches haviam pois introduzido na
se diz inferior a seu Pae, ou produzido no theologia as astúcias c subtilezas da diale
tempo. ctica, e encaminhado os espiritos a exami
Os catholicos, pelo contrario, provaram nar a união das duas naturezas. Elevado
que 0 Verbo era consubstanciai ao Pae, 0 espirito a estes grandes assumptos, inda
por infinidade de passagens que estabele gou as causas, eíTeitos, propriedades, e con
ciam a perfeita igualdade entre 0 Pae e 0 sequências d’csta união, tanto a respeito
Filho, fazendo vêr que os arianos se des da humanidade como da Divindade; mas
viavam do verdadeiro sentido da Escriptura. como estava eoarctado pelas suas subtilezas
Estes, da sua parte, querendo illudir a for e a ignorância 0 tinha embotado, nào exa
ça das passagens, que os catholicos lhe op- minou taes objectos senão debaixo de rela
punhain, foram obrigados a recorrer a expli ções pueris, inventando modos de fallar ex
cações forçadas. traordinarios, e agitando questões nada me
Para combater c defender Appolinario nos exquisitas.
quando asseverou que Jesus Christo não Assim, os eutychianos examinaram sc
tinha alma humana, foi preciso examinar transpirava 0 Corpo de Jesus Christo, se
o s differentes principios, que concorriam nas tinha necessidade de sustentar-se: sobre
acções de Jesus Christo. esta questão se dividiram, emquanto inda
A opinião de Nestorio, que unia a natu gava Thimothco, sc depois da união das na
reza Divina c humana, fazendo duas Pes turezas Divina e humana linha 0 mesmo Se
soas distinctas, obrigou a examinar qual nhor ignorado alguma cousa.
ora a ideia ou essencia da personalidade, Alguns Monges schytas, para explicarem
c como duas tão diversas naturezas podiam mais claramcnte contra os nestorianos a
unir-se de sorte que não formassem mais união das duas naturezas, pretenderam que
quo uma só Pessoa. se devia dizer que um da Tiindadc tinha
Quando Eutyches sustentou que a natu padecido, e que era necessario fazer d’esta
reza Divina e a humana estavam confun proposição um artigo de fé.
didas, foi preciso para impugnar; e defen- Receando os catholicos que esta maneira
80 DISCURSO PRELIMINAR
SÉTIMO SÉCULO
CAPITULO I
E sta d o d o O r ie n te
cm 610; restaurou todas as provincias que dous pontos, isto c, que não havia mais
os persas lhe haviam tomado, c fez seu po que um Deus, e que Jesus Christo fora en
der formidável no Oriente c Occidente. Ainda viado para o fazer conhecer, e para ensinar
o imperio de Constantinopla incluía parte aos homens uma moral perfeita.
da Italia, Grécia, Thracia, Mesopotamia, Era impossível que na agitação cm que
Syria, Palestina, Egypto e Africa; mas es se viam todos os animos, não houvesse em
tas vastas possessões se viam despovoadas alguma d’estas seitas quem reduzisse o
pelas guerras contínuas que o imperio sus Christianismo áquellos dous pontos, c não
tentava, pelos estragos dos barbaros, c po divisasse n’esta reducção o meio de confe
der absoluto e arbitrario que os governa derar contra os catholicos todos os chris
dores, insaciáveis e deshumanos, alli exer tãos da Arabia.
ciam, c pelos editos rigorosos dos impera Igualmente era impossível que d’esta pri
dores contra todos os hereges. Gemiam de meira vista não concluísse algum, que tudo
baixo da opprcssào os subditos que ainda o que os christãos criam de mais era ac-
conservava o imperio, o qual para ninguem crcscentado á doutrina dc Jesus Christo;
era já patria. N’esta situação nào faltava que elles por consequência, á força de dis
mais que uma potência mediocre que to cursar, corromperam o Christianismo, e
masse a peito desmembrar o imperio no que era necessário rcformal-o, lembrando
Oriente, como havia succedido com o do aos homens a unidade de Deus, e benefl-
Occidente. cencia e virtudes moraes, que Jesus Christo
Trabalhavam os proprios imperadores viera ensinar e que as disputas dos chris
havia muito tempo em formar esta potên tãos haviam escurecido.
cia. No meio das guerras, que assolavam o Tinha pois o tempo aproximado na Ara
resto da terra, tinham os arabes conservado bia todas as idéias que haviam de condu
a paz e a liberdade. Entre elles se refugia zir o espirito humano a separar do Chris
ram os cidadãos, descontentes e infelizes, tianismo aquclles mysterios que foram en
os hereges proscriptos pelas leis dos impe tre os christãos o elemento da discordia, e
radores desde Constantino até Heraclio. a fazer sahir das seitas christãs, desterra
Cada um professava em liberdade a sua das na Arabia, uma seita reformadora, que
religião: havia tribus idolatras; alguns eram não admittisse por dogmas fundamentaes
judeus, outros tinham abraçado a religião senão a unidade de Deus, as penas e recom
christã, c finalmente alli se viam todas as pensas da outra vida; que reputasse a Je
seitas levantadas desde o nascimento do sus Christo como um enviado de Deus, e
Christianismo. reclamasse aos homens a beneficcncia, a
Continha pois a Arabia forças capazes de práctica das virtudes moraes, e um culto
fazer conquistas no imperio romano; mas mais puro que o dos christãos.
o amor da independência, da liberdade, as Entre os que se achavam refugiados na.
tinha desunidas e incapazes d’esta empreza, Arabia, muitos que tinham sido dospoiados
retendo os arabes em seus antigos limites, de seus bens e empregos, ,e compellidos a
cmquanto algum não colligasse estas forças deixar a patria pelos editos dos imperado
contra os estados visinhos, taes como a Per res, conservavam um odio implacável con
sia ou o imperio grego, igualmcnte inca tra os catholicos, e era impossível que o
pazes de resistir ás suas forças unidas. projecto de reunir os christãos não fizesse
Tinham também os mesmos imperadores nascer o d’armal-os contra o império de
disposto tudo para se colliarem estas for pois d’unidos, o de fazer receber a sua dou
ças contra o seu imperio. A Arabia estava trina entre os arabes, e associar por este
cheia de judeus, de christãos de toda a es- meio para a sua vingança, uma nação g u er
pecie, de sectários de quantas-heresias sur reira, ou ao menos espalhar por toda a Ara
giram desde o nascimento do Christianis bia esta reforma do Christianismo. Era, pois,
mo. Havia muitos nazarenos, ebionitas, e entre os arabes, aonde estes christãos re
seitas que atacavam a Divindade de Jesus formadores haviam de procurar um Apos
Christo, e o criam um homem Divino, en tolo capaz de prégar e fazer que se rece
viado por Deus para instruir os homens. besse a nova doutrina em toda a Arabia,
Os semi-arianos, que d’elle faziam um Deus reservando-se o cuidado de dirigil-o em
creado, contradizendo-se e destruindo a uni segredo. Porem não se havia d’offérecer
dade dc Deus; os nestorianos, que reconhe esta doutrina como reforma do Christianis
ciam a Jesus Christo por Deus, tendo po mo, mas como uma religião nova, e o arabe
rém, que a Divindade não estava a EUe que houvesse d’ensinal-a como um Pro
unida, senão como o estava a um propheta. pheta. Nada faltava pára isto senão um
Concordavam todas estas seitas sobre arabe ignorante, mas que tivesse espirito,
82 DISCURSO PRELIMINAR
simplicidade, c imaginação viva, cabeça ca dados intrepidos c invencíveis, de sorte que
paz do cnihusiasmo c fanatismo, coração em menos de dez annos professaram a sua
ambicioso, apaixonado, e a quem se po- lei todas as tribus arabes, recebeu embai
désse fazer sentir o absurdo da idolatria, xadores dos soberanos de toda a peninsula;
c* persuadir que era ellc o enviado de Deus mandou Apostolos e vigários ás mais afas
para ensinar aos homens uma religião pura tadas regiões, escreveu a lleraclio, ao rei
que lhe fôra revelada. da Persia e aos principes visinhos, empe-
Mafoma reuniu em si todos estas quali nhando-os a abraçarem a sua religião. 1
dades; o seu negocio o fez conhecer aos Abubecre, succ*essor de Mahomct, depois
christàos da Syria, Oriente e Arabia, que o de haver dcbellado as facções d’alguns Pro-.
escolheram para ser o Apostolo da medi phetas, que se levantaram, voltou toda a
tada reforma. Instruiram-o, inflammou-se, actividade dos arabes contra os estados vi
creu que o Anjo S. Gabriel lhe apparecera sinhos; escreveu aos principes deHicmeno,
e ordenara que ensinasse á sua tribu a aos principaes da Meca, c a todos os mu-
unidade de Deus e uma moral pura: teve sulmanos da Arabia que levantassem o
raptos c extasis; referiu-os, inflaminou as maior numero de tropas que possível fosse,
imaginações, e communicou o seu enthu- c as enviassem a Medina. «Tenho desígnios,
siasmo; prommetteu aos que recebessem a lhe diz elle, de tirar a Syria das mãos dos
sua doutrina grandes recompensas, e fez infiéis, e quero que tenhaes para vós, que
a mais viva pintura das delicias destinadas obedeceis a Deus, combatendo peja propa
para os que a crèssem. Persuadiu-se d’isto gação da nossa religião.»
um pequeno numero; fez proselytos, teve Viu-se em breve chegar a Medina um
contradictores, foi obrigado a fugir, achou pasmoso numero d’arabes, que faltos de vi
e venceu difficuldades sem numero, e foi veres, esperavam sem murmurar nem se *
finalmcnle reconhecido pela sua tribu como affligir que o exercito se completasse, para
Propheta c Apostolo de Deus. se conduzirem aonde o califa lhes orde
As difficuldades que Mafoma encontrou nasse. 2
e venceu, a sua prosperidade, o seu fana Por sua ordem partiram os musulmanos
tismo, e sem dúvida seus mestres, eleva contra os gregos e persas, e uma vez im
ram o seu espirito, augmentaram a sua in presso este movimento no fanatismo dos
trepidez, estenderam as suas vistas, c avan- serracenos, foram expedidos da Arabia to
tajaram os seus desígnios: elle formou o dos os judeus e christãos, subjugada parte
projecto d’obriçar a receber a sua religião da Persia, derramada a seita pelo Egypto
por todas as tribus e em toda a terra. e pela África, aonde se edificaram sobre as
Unem-se com as idéias militares, e to ruinas de quatro mil templos christãos, ido
mam o caracter guerreiro, o enthusiasmo latras e persas, mil e quatrocentas mesqui
e o zelo riligioso n’uma nação ignorante c tas no califado d^mar, successor d’Abu
bellicosa. Foi menos pela persuasão, do que becre. 3
pela força, que Mahomct e seus discipulos No d’Othomano, que succedeu a Ornar, a
retenderam fazer receber sua doutrina: Persia foi inteiramente subjugada pelos
£ [ahomet foi um Propheta guerreiro, e seus arabes, o rei de Nubia se fez tributario
discipulos Apostolos sanguinarios: «Sou eu, d’este califa . 4
dizia Àly, prestando o juramento de fideli Suspenderam-se as. conquistas só no ca
dade: sou eu, Propheta de Deus, quem ha lifado d’Aly, pelas divisões c guerras dos
de ser o teu visir? Arrancarei os dentes, arabes, que finalmente Moavic reuniu. Este
tirarei os olhos, rasgarei o ventre, e que fez correr uma tradição que os musulma-
brarei* as pernas até aos que se te oppo- nos haviam de tornar á capital dos Cesa-
zerem . » 1 res, e que seriam remittidos todos os pec- *
. O Propheta promettia o Paraizo a todos cados dos que se empregassem n’este sitio.
os que morresem pela sua doutrina: o céo Voaram os mahometanos debaixo dos cs-
se abria, por assim dizer, aos olhos do mu-
sulmão que media as armas com o inimigo;
a siia imaginação o transportava ao seio 1 ! Abulfed. c. 21. Alcor. su r ò', v. 8. sur
das delicias de que Mahomet fizera tão vi 8. v. 39. . Gagnier. I. 5.
vas pinturas. 2 Abul. Phar. Eutych. anual. Ockely.
Todos os seus discipulos se tornaram sol- Hist. des Sarr. t. i.
3 Ockely, Hist. des Sar. I. i. d'Herbelot [
Bibl. Or. art. Omar.
* Abufeld. v ii. Mah. c. 8. Gagriier, Vie 4 Elmancin. Hist. de Herbelot,’art. Oth-
d e M a h : l . i , c . 2. man.
DISCURSO PRELIMINAR 83
fandartcs do califa, sem que os fizesse es Jyazido, successor de Moavic, adiantou
morecer os perigos, nem causar as difli- as conquistas do lado do Oriente, sujeitou
culdades da empreza, que todavia se frus todo o Korasan, o Khorwarsan, e pôz cm
trou. contribuição os estados do principe de Sa-
Inutilmente se empenhou Heraclio cm marcanda.
suspender estes temerosos inimigos; Con Os arabes comludo não estavam ainda
stantino, seu filho, impondo-lhes um tributo, cm paz entre si. 1
lhes cedeu as provincias de que se haviam
apoderado. 1 Vide os authores citados.
CAPITULO II
E stad o do O ccid eu te
*
8'* DISCURSO PRELIMINAR
CAPITULO III
Vimos no Oriente passar o espirito hu- perio dos califas estava abrazado do seu
. mano do estudo da philosophia e das le fogo.
tras a uma paixão excessiva pelo maravi O fanatismo em Constantinopla não in-
lhoso, e d’csta ao despreso da philosophia: flammava senão as almas enervadas pelo
fazer infinidade de questões temerarias e luxo c molleza, abíitidas pela desgraça c
inúteis sobre os mysterios, c inventar for despotismo; não tendia a cousas grandes,
mulas de fé para descobrir os hercges oc nào inventava senão algumas prácticas re
cultos. Este methodo se seguiu durante o ligiosas, nào produzia mais do que enredos,
sétimo século. motins populares, e sedicõcs: no império-
Os imperadores entregues «ás disputas dos califas, porém, tinha feito de cada sub
theologicas, nào alentavam os talentos lit dito um guerreiro fanatico e religioso, que
terarios, e o gosto do maravilhoso, falto de se suppunba encarregado pelo Ceo para
luzes, coarctou todos os engenhos. Todavia restabelecer o mahometismo sobre toda
se deixaram subsistir os collegios, e o es- a terra, e fazol-o reinar em todas as na
[udo da grammatica c linguas se perpetuou ções.
na capital; porém nenhum esforço se fez «Nós vos pedimos, diziam os generaes do
para chegar ás verdades geraes e aperfei califa, que declareis não haver mais que
çoar a razão; apenas se conservava um um só Deus, que Mahomet é seu Apostolo,
íeve conhecimento das opiniões ^Aristóte que ha de haver um dia de juizo, e que
les* os philosophos não passavam avante: Deus fará surgir os mortos da sepultura.
nada é tão fraco como os tractados de Phi- Desde que fizerdes esta declaração, não nos
jopono e dos philosophos d’este século. As será permittido derramar o vosso sangue,
obras polêmicas eram quasi todas sem força levar vossos bens e vossos filhos; se recu-
e sem methodo. 1 saes isto, consenti cm pagar tributo, c sub-
N’este século appareceu o Prado Espi mettei-vos sem demora, senão far-vos-hei ata
r itu a l obra cheia d’apparições as mais sin car por homens, que fazem tanto caso'da
gulares, de prodígios incríveis, de mila morte como vós fazeis de beber um copo
gres os mais assombrosos, e menos neces de vinho.»
sários, a julgarmos segundo as idéias or Antes dos combates o general se punha
dinarias. Mas seja qual fôr a verdade de em oração á frente do exercito. «0’ Deusl
tudo o que se encerra n’esta obra, e mui dizia clle: confirmai nossas esperanças, e
tas outras, quanto ao mais, eram muito assisti áquelles que sustentam a vossa uni
bem cscriptas. 2 Leram-as á porfia, e cré- dade contra os que vos despresam.» No
ram quanto n’ellas se contava, porque em campo da batalha Kadel gritava: «Paraizol
uma nação frivola c entregue ao luxo, sub Paraizo!»
siste ainda a elegancia depois que a luz se Os christãos da sua parte faziam procis
extingue e os escriptorcs superficiales e sões c preces; os Bispos, levando o cruci
amenos são d’alguma maneira os doutores fixo e o Evangelho a frente dos exercitos,
da nação. Tomam-se os seus gostos, e como exclamavam: «O’ Deusl se é verdadeira a
por instincto se abraçam as suas idéias. nossa religião, assisti-nos, e não nos entre
Estas obras, pois, perpetuaram a paixão do gueis a nossos inimigos, mas destruí o op
prodigioso, inflammaram as imaginações, c pressor, porque vós o conheceis. O’ Deusl
fizeram propender mais os espíritos para o assisti áquelles que fazem profissão da ver
cnthusiasmo e fanatismo, emquanto o im* dade, e quê andam no bom caminho.»
Os mahometanos, testi munhas d’estas pro
1 Phot. Bibliot. 23, 24, 30, 408. cissões e d’estas süpplicas, exclamavam:
2 Phot. Bibliot. Dup. Bibliot. septime «O’ Deusl estes desgraçados fazem orações
siécle. cheias d'idolatria, e vos associam outro Deus:
D iscunso 1’RELIMINAR 8o
mas nós reconhecemos vossa unidade, e con Igreja. Assim foram cilas e os ritos n’cste
fessamos que não ha outro fóra de vós: as- século, objecto principal dos concilios de
sisti-nos contra estes idolatras, pois vol-o todo o Occidente, que sugeitos a principes
pedimos pelo nosso Propheta Mahomet.» ignorantes c ferozes, que haviam abraçado
Se no condicto se viam vacillar os musul- a religião christã, mas que ainda não ti
manos: «ignoraes vós, lhes dizia o general, nham adquirido o habito das virtudes, c
que qualquer que dá as costas ao inimigo que alternativamente obedeciam ás suas
ofTende a Deus e ao seu Propheta? Nào sa paixões e a seus remorsos; credulos e su
beis que o Propheta disse que as portas do persticiosos, arrastados por todos os cri
Paraizo nào se hào de abrir senão aos que mes pelas suas paixões, eram capazes do
tiverem combatido pela religiào? Que im tudo o que não pedia luz nem habito de
porta que o vosso capitão morra? Deus virtudes.
vive; Elle vé o que vós fazeis.» 1 Estes soberanos ignorantes e ferozes es
D’csta sorte em todo o Oriente o fanatis tavam continuamente em armas para ata
mo religioso c o amor do maravilhoso tinha car ou para se defender; á sua bravura
absorvido quasi todas as faculdades do es c á sua grande actividadc deviam o bom
pirito humano; nào se cultivavam as.lctras, exito de suas emprezas: e como tinhain sub
■c as scicncias se extinguiram. 0 inesmo jugado povos esclarecidos e eloquentes, olha
eíTcito produziram no Occidente acerca das vam com despréso para as letras e scien
letras, as guerras dos povos barbaros. A das, que não foram cultivadas senão pelos
Italia tinha sido assolada pelos godos, visi- ecclesiasticos e religiosos, a quem a neces
çodos e lombardos, pelos esforços empre sidade de se defender tornou também guer
gados pelos imperadores para reconquis- reiros, e que cahiram pela maior parte na
tal-a a estes novos conquistadores, e pelas ignorância e na barbaria.
guerras internas, que se haviam desenvol Sómente a religião oppunha uma bar
vido entre os differentes duques que a go reira ás paixões, á ignorância, á ferocidade;
vernavam. sómente a ella se deviam estes instantes de
Sómente a religião tinha offerccido um virtude, que se divisavam sobre a terra; so
remedio contra estas calamidades: o zelo, mente cila mantinha a sua ideia; sómente
a piedade dos bispos, sacerdotes c monges ella conservou ás letras aquellcs asylos
era o allivio dos desgraçados, a consolação aonde sc trabalhava cm segredo para suavi-
dos afflictos, a barreira *que se oppunha a sar os costumes, dissipar a ferocidade, <
favor dos guerreiros, os quaes apesar da apossar a razão dos seus direitos c privile
sua ferocidade respeitavam a virtude c se gios, formando homens illustres, cuja vii
horrorisavani dos castigos da outra vida. tude grangeou a confiança dos soberanò
Os bispos, ecclesiasticos c monges, volta e dos povos, aos quaes se Yizeram necessa
ram pois todos os seus esforços para a pie rias as suas luzes. Taes foram muitos Pa
dade c práctiea das virtudes mais proprias pas e Bispos, Sancto Izidoro, S. Julião de
para impôr aos soberanos do Occidente, Toledo, S. Sulpicio, S. Columbano, etc.,
para lhes fazer recommendavcl a religião, que estabeleceram quasi por toda a parte
para attrahil-os ao exercício da moral chris- cscólas e mosteiros. 1
tã, e para arrancal-os da desordem, fazen-
do-Ihcs apreciar as ceremonias e o culto da
1 Hist. lit. de Fr. t. 3, p. 427, etc. Dup.
1 Ockely, hist. des SasraSj t. 1. Bibl. des Aut. Eccl. septieme siccle.
CAPITULO IV
D as h e r e s ia s d o s e tlm o s e e u lo
Tinha definido a. Igreja contra Ncstorio, sistiam em que não se podia condemnar
que não havia senão uma pessoa em Jesus Euthyches sem renovar o nestorianismo, c
Christo, e contra Eutyches, que n’ellc ha admittir duas Pessoas em Jesus Christo:
via duas naturezas. Comtudo não faltavam aquelles, pelo contrario, sustentavam que
ainda nestorianos e cutychianos; estes in nào se podia condemnar Nestôrio sem re-
86 DISCURSO PRELIMINAR
cahir no sabei 1ianisino, c confundir, como erro, que não suppunha em Jesus Ghristo
Eutyclies, ambas as naturezas. mais que uma só vontade, uma regra de
O estrepúo que fizeram o ncstorianismo fé, e uma lei do imperio.
c eutychianismo, a perturbação c agitação Esqueceu-se Ilcraclio da gloria que adqui
de que encheram a Igreja e o imperio/ ti rira contra os persas c scrracenos, e nada
nham chamado todas as atfençõcs para este mais viu perigoso tanto para a religião
objecto, occupando-se ainda *d’clle depois como para o estado, como os inimigos do
que o nestonanismo c eutychianismo não seu edito, conhecido debaixo do nome do
formavam já partidos consideráveis. Ectese.
Já estavam discutidos o ncstorianismo e Seus successores se occuparam todos cm
eutychianismo; a Igreja decidiu, c a ver defender ou impugnar o monothelismo, cm-
dade do dogma ficou estabelecida: procu quanto as provincias eram vexadas pelos
rava-se cxplical-o: .esta é a marcha do dis governadores ou pelos intendentes, e des
curso humano cm todas as disputas da re truídas pelos barbaros, que de toda a parte
ligião. ás invadiam.
Emprehcndeu-sc, pois, fazer palpavel, Mesmo h’este século uma manichea, re
como duas naturezas, posto que distinctas, tirada nas montanhas d’Armenia, inspirou
não compunham mais que uma pessoa. Jul a seu filho o desígnio de fazer-se Apostolo
gou-se resolvida esta dilficuldade, suppondo da sua doutrina. Este se chamava Paulo:
que a natureza humana era realmcnte dis era cntlmsiasta, c fez seita, a que deu o seu
tincta da Divina, mas que de tal sorte lhe nome. Teve por successor Sylyano, que re
estava unida, que não tinha acção propria: formou o manichcismo, e emprehendeu
que o Verbo era o unico principio activo ajustar o systema dos dous princípios com
cm Jesus Christo, c a vontade humana ab- a Escriptura, de sorte que parecia estri-
■solutamente passiva, como o é um instru bar-sc n’ella; e não queria que houvesse
mento nas mãos do artifice que o'maneja. outra regra de fé senão a mesma Escri
Esta explicação pareceu acabar com as ptura. Arguia os catholicos de haverem ca-
liíliculdadcs do*s eutychianos c ncslorianos: hido nos erros do paganismo, e d’adorarem
Icraclio o olhou.como um meio d’cxlinguir os Sanctos como a Divindade: atTcctava
js restos das duas parcialidades, que tinham grande austeridade de costumes, e oíTerc-
resistido ás excommunhõcs dos concilios, cendo-se esta nova seita aos simples como
c ao poder dos imperadores. Satisfeito com uma sociedade, que fazia profissão do mais
tal ideia fez convocar concilio, c sahiu com perfeito Christianismo, os paulicianos fize
um edito que fazia do monothclismo ou do ram grande progresso n’estc século.
OITAVO SEOULO
CAPITULO I
E sta d o do O r ie n te
O imperio dos califas era sem contradic- tractaram muito bem os povos, mas não
cão o mais poderoso do Oriente; estendia-se tardaram cm opprimil-os. Ambiciosos, ava
desde Cantao até á Hespanha, e encerrava rentos, c descontentes, excitaram guerras
muitas provincias do imperio de Constan- civis, e revoltas que não se apaziguaram
tinopla. Enviaram os califas para as suas sem grande difficuldade c muita cíTusão,de
conquistas governadores, que ao principio sangue. A conquista da Hespanha e as íu-
DISCURSO PRELIMINAR I tt» 87
vasões nas Gallias, fizeram morrer um nu nistração, c da insensibilidade com que os
mero pasmoso d’arabes, godos, francczes, etc. imperadores olhavam para as desgraças do
Era o imperio de Constantinopla a proia estado, da ambição dos grandes c cortezãos,
dos serracenos, godos, hunos, lombardos, e da frivolidade que os tornava incapazes de
das intrigas c facçòcs que sc formavam, buscar remédios aos males públicos; da sua
cxtinguiam, e renasciam perpetuamente paixão insensata pelo luxo, que os condu
dentro do seu seio. Justiniano, expellido dos zia a vender a sua protecção, e a acoutar
seus estados pelos fins do precedente sé da severidade das leis o s 'ministros e go
culo, foi restabelecido no principio d’cstc, vernadores que tinham exhaurido as pro
o oito annos depois assassinado; Phylippico, vincias e extincto o amor da patria no co
que lhe succedeu, foi deposto. Anastacio, ração de todos os subditos.
successor de Phylippico, encerrou-o cm Nenhum dos imperadores, que subiram
um mosteiro Thcodoto, a quem o povo for ao throno n’estc século, sc esforçou em re
çou a acccitar o império, do qual foi des- mediar tão grandes males; quasi todos se
apossado por Leão Isaurico. Leão reinou occupavam ou cm fazer que prevalecesse
vinte annos; Constantino Copronymo, vinte algum erro, que cllcs tinham abraçado, ou
c quatro. Leão, seu filho, cinco; Constan em restabelecer a paz na Igreja; e d’esta
tino Porphyrogenito, assassinaram-no depois sorte apenas Phylippico subiu ao throno se
de reinar* dezesete; c Irene, sua mulher, occupou dos meios d’estabelecer o mono-
foi deposta depois de governar cinco. thelismo; Leão Isaurico, e Constantino Co
Não eram produzidas estas revoluções pronymo em abolir o culto das imagens;
tão frequentes c funestas ao imperio por Irene em restaural-o. 1 ’
algum corpo de magistrados, emulos do po
der imperial; a sua origem vinha da'cor
rupção dos costumes, dos vicios da admi 1 Cedren. Niceph. Theoph.
CAPITULO II
E stad o do O ccid en te
O edito de Leão Isaurico contra as ima no meio das desordens do Occidente, havia
gens causou turbulências na Italia, do que muitos papas, bispos, sacerdotes e monges,
os lombardos se aproveitaram para engran que desempenhavam todas as suas obri
decer-se. 0 exarcha, que emprehendeu fa gações, soccorriam e consolavam os des
zer executar o edito de Leão, foi cxcom- graçados, o instruíam os povos. Assim, ao
mungado pelo papa Gregorio; e este pon- passo que os soberanos, senhores e guer
tiGce escreveu a Luitprando, rei dos lom- reiros exerciam sobre os corpos um impe
bardõs, aos venezianos e cidades princi- rio de violência e de força, levantava a Re
paes, empenhando-os a perseverarem na ligião uma potência, que imperava nas al
fé. Rebellou-se a maior parte da Italia con mas e nos corações, por via da persuasão*
tra o imperador, que para ella fez marchar e pelos mais fortes motivos, que podem
todas as suas forças. Q papa chamou Luit mover o coração do homem.
prando, c por fim Carlos Martello em soc- Os progressos do poder religioso, igno
corro de Roma, da qual foram expellidos rado da maior parte dos soberanos do se-
;todos os oíficiaes do imperador. Ullima- cülo precedente, devia ser notado pelos
mente, nò reinado de Astolfo, se apodera homens virtuosos, que se occupavam nu
ram os lombardos do Exarchado, e empre- governo e que desejavam a gloria da Reli-
henderam a conquista de Roma. ião c a felicidade dos povos; e pelos am-
Os papas, bispos, sacerdotes e monges iciosos, que queriam adquirir credito, ele
tinham, pois, adquirido grande credito no var-se e engrandecer o seu poder: uns c
Occidente; e como não o teriam adquirido? outros igualmente haviam de divisar as
E llesgosavam de ricas possessões, e eranv vantagens que estes dous poderes juntos
•os unicos, que por estado professavam não conseguiríam, c assim deviam esihèrar-se
fazer mal a alguém, e beneficiada todos; em unil-os e concilial-os. Tinha^ pois, o
m DISCURSO PRELIMINAR
tempo tudo disposto para se formarem tra si só conter estes povos, c unicamente su
ctados entre o sacerdócio e o imperio, e jeitando-os a leis, a que olles obedecessem
dar-se ao poder ecclesiastico um estado por persuasão e interesse, os faria felizes
differente do quepossuia a Igreja no impé c tranquillos: attentou, que para produzir
rio Oriental. esta obediência, era necessario illustrar-
D’esta maneira se empenliou Pepino cm lhes a razão, reprimir por meio de castigos
unir o poder civil e o ecclesiastico, para as paixões, que ella não refreasse c fazer
obviar as desordens, grangear a benevo temerosa a infracção das leis pela authori
lência da nação c pôr as leis em observân dade da Religião. Empregou pois em favor
cia. Em um concilio, que fez convocar, se da felicidade dos seus povos a força, a luz
regulou tudó o que pareceu necessário, c a Religião, como outras tantas potências,
para evitar as desordens, auxiliar os fra que se auxiliam umas ás outras, e que rau-
cos c defender a Igreja. Carlos Martello, tuainente se ajudam.
uc a seus talentos militares era devedor Emquanto assim se occupava Carlos
2 a sua prosperidade, e cuja ambição temia Magno em felicitar seus Estados por meio
o poder da Igreja, pôz toda a diligencia por de providentes leis, a sua vigilância, acti-
aniquilal-a; mas nos ultimos periodos da vidade, valor e politica o asseguravam con
sua vida se reconciliou com cila. Pepino, tra os ataques dos inimigos estrangeiros,
o Pequeno, depois de fazer declarar inha- pelas allianças, tractados e ligas, que fazia
bil para o governo Childcrico, foi eleito pe com os povos visinhos, pelo espirito mar
los Estados, e se fez coroar por Bonifácio, cial em que mantinha a nação, e disciplina
arcebispo de Maguncia; auxiliou os papas que estabeleceu na sua tropa.
Zacharias c Estevão contra os lombardos, Tal foi o plano geral do governo, que
e augmentou as possessões da Igreja. O Carlos Magno se propôz estabelecer no Oc
papa, da sua parte, o coroou de novo c un cidente, e que se foi descobrindo no de
giu; e excommungou os francezcs, que do curso do seu reinado: d’clle nasceram to
alli em diante elegessem monarchas fóra das as leis conhecidas debaixo do nome de
da linha de Pepino. capitulares, os estabelecimentos para a in-
Ultimamente o papa Adriano atacado pe strucção de toda a qualidade de homens do
los lombardos, chamou em seu soccorro seu imperio e os actos de força c violência
Carlos Magno, o qual destruiu aquella po que elle empregou, para fazer abraçar o
tência na Italia; confirmou as doações fei Christianismo ás nações idolatras, que sub-
tas á Igreja por Pepino, e foi coroado im jugára, e que lhe deram o nome d’Apostolo
perador do Oriente. 1 armado. *
Dilatou este principe os seus domínios A Inglaterra se achava dividida entre
muito além dos limites, que o imperio ro muitos soberanos, sem leis, e quasi sempre
mano tinha então no Occidente; estendeu-se armados uns contra os outros, cujas pai
na Italia'até á Calabria, na Hespanha até o xões e ferocidade sómente podiam ser re
Ebrio: reuniu á sua corôa todas as Gallias; primidas pelos terrores da Religião, c ado-
conquistou a Istria, Dalmacia, Hungria, çadas pela caridade christã. Trabalhavam
Transilvania, Valachia, Moldavia, a Polo- n’este objecto, com felicidade, alguns ho
-nia até o Vistula e toda a Germania, que mens d’espirito verdadeiraménte apostoli-
comprehendia a Saxonia. co, os quaes dispozeram os ânimos, para
. • Estava cheio este vasto império de povos alli se formar uma sociedade mais bem mo-
facciosos, ignorantes, quasi sem educação rigerada. 1
e sem virtudes: parte d’estas nações con No principio d’este século, a Hespanha
quistadas eram idolatras e ferozes, acostu esteve sujeita a soberanos, que abusavam
madas a viver da pilhagem, e n’uma des do seu poder, não respeitando leis algu
enfreada licença, e inimigas de. qualquer mas c fizeram infelizes os seus subditos.
authoridade, que tendesse a coarctar-lh’a, Um d’estes chamou a cila os serracenos,
promptas sempre a tomar as armas contra aos quaes se uniu parte da nação. Rodrigo
os seus senhores, e não tendo em conta foi desbaratado: o seu reino passou á do
algum a os tractados. ou as mais solemnes minação dos califas, que dilataram a con
obrigações. quista até ás,Gallias, d’onde foram recha
Carlos Magno pêlo seu genio vasto e pro çados por Carlos Martello c Carlos Magno.
fundo conheceu que â força não podia por Alguns hespanhoes refugiados nas mon
tanhas e reunidos por Pelayo, n’ellas for-
CAPITULO III
E stad o d o e sp ir ito h u m a n o
Parece que tudo concorria para se cx- sua razão nos reinados dos Oinniados, c até
tinguir sobre a terra o amor das artes c a o califado de Almansor (757.)
luz das sciendas: o enthusiasmo religioso Viram-se eclypses e cometas no princi
c militar dos mahometanos estava ainda pio do seu califado; soíTrcram-se terremo
no seu vigor. Infinidade de rebellados c de tos, e seguiràm-sc algumas desordens, pelo
sectários se levantavam entre elles, c iguál- que se creu que estes phenomenos eram o
mente investiam as letras, a idolatria e to signal ou a causa. Quiz o Califa conhe-
das as religiões que difleriam da mahome- cel-os, e aprender a prevenil-os. Recorreu
tana. aos astronomos e philosophos, e os tirou da
Assim se viram sem agazalho nem favor obscuridade em que a barbaria de seus
as letras e sciencias, e obrigadas a escon predecessores os retivera; cm pouco pre-
der-se em todos os dòminios dos scrrace sou o seu commercio, e os chamou á côrte.
nos, que se estendiam desde Cantào até á Finalmente o projecto d’edifiear Bagdad, c
Hespanha, do Oriente ao Occidente e desde as suas enfermidades, lhe tornaram neces
o Archipelago ao Mar das índias, do Se- sários medicos, geometras e mathematicos:
ptemtrião ao Meio-dia.1 buscou-os, enriqueceu-os, honrou-os, attra-
Os mahometanos nos seus princípios de hiu-os a Bagdad, e fez traduzir em arabico
claravam guerra a todos os que uão que e syriaco as obras dos authores gregos.
riam receber a sua religião; e não davam Mahodi-Hadi e Haroun Al-Rashid, seus
quartel aos vencidos. Depois dos primeiros successores, favoreceram os sábios: tinham
excessos do enthusiasmo aboliram uma lei, sempre junto a si um astrononio, que con
q u e tornaria deserto todas as suas con sultavam, por ser ao mesmo tempo astrolo
quistas, contentando-se em fazerem domi go: assim fez a astronomia entre os arabes
nante o mahometismo nos paizes conquis maiores progressos do que as outras scien
tados: e á excepção da idolatria grossei cias. Não esclareceram demasiadamente a
ra, permittiram o livre exercício de to razão este favor, c recompensas dos sul-
das as religiões, principalmente d’aqucllas tões, mas resuscitaram o desejo de lér os au
em favor das qúaes se houvesse cscripto, thores g regos.1
persuadidos, ao que parece, de que uma Apesar do empenho dos sábios e califas,
religião defendida por escriptorcs, tinha fa não se dissipavam as trevas, se não a pas
c e s especiosas, capazes d’allucinarem a ra sos muito lentos: a maior parte dos maho
zão, e de que era desgraça e não crime aos metanos, que davam exercicio ao seu espi
olhos dos homens, cahir no erro, buscan- rito, occupavam-se meramente cm explicar
do-se a verdade. o Alcorão, moviam questões sem numero
Esta tolerância conservou no império dos sobre os dogmas do mahometismo, suas ce
califas grande numero de christàos, judeus remonias e leis, e acerca das obrigações
e sábios illuminados e instruídos nas artes que elle prescreve; e. estas questões se fa
e scicncias, que occultamente cultivavam a ziam tanto mais intrincadas, quanto os ara-
lies se afastavam da primeira simplicidade servação, havia muito tempo que era ob-.
dos mahometanos.1 jecto de indifferença para o povo.
- Dividia-sc o povo ignorante, supersticio Depois da invasao dos lombardos, estava
so, e fanatico entre estes doutores ou se en a Italia dividida em differentes soberanias,.
tregou ao primeiro impostor, que queria il- cujos chefes incessantemente se occupavam
ludil-o por meio de algum prestigio ou sin da conservação ou do augmento do seu po
gularidade; assim se viram os rawadianos der. Gemiam os povos debaixo do jugo de
honrar a Almansor como um Deus, c for tyrannos, derramando o seu sangue para
mar o desígnio d’assassinal-o, porque ellc satisfazerem á sua ambição. Todas estas
condemnou a sua impiedade.2 desordens tinham aniquilado as sciencias,.
No califado de Matai, o povo foi engana e pervertido os costumes na Italia: os pa
do por algumas destrezas dum impostor, pas, bispos e ecclesiasticos, que cultivavam
conhecido pela autonomasia d'author de a sua razão, não cuidavam mais do que
Luas, porque fazia sahir de .certo poço um em restabelecer os boiis costumes, domar
corpo luminoso simillíante á lua. A* vista as paixões com o temor dos castigos eter
d’este prodigio, o povo o tomou por um pro- nos, e fazer venerável a religião pela re
heta, logo por um homem, cm quem resi- gularidade dos seus ministros, pelo augus
S ia a divindade, c íinalmentc lhe tributou to apparato das suas ceremonias, capazes
as honras divinas. Contra todos estes im d’inculcar respeito em um século supersti
postores foi preciso mover exercitos.3 cioso e ignorante ás almas mais ferozes e-
Agitavam o imperio de Constantinopla as ás mais fogosas paixões.
facções civis, politicas c theologicas em qnc Na França, as artes c sciencias, que, por
elle estava inteiramente dividido o oceupa- assim dizer; se tinham refugiado nos mos
do: toda a authoridade, e politica dos impe teiros, forám d’clles expulsadas no oitavo-
radores se émpregava ou cm firmar as opi século. A tvrannia dos maires de palacio;
niões, que tinham adoptado, ou em conci as guerras de Carlos Martello contra Eudcs
liar os diversos partidos, que dividiam os d’Equitania, e contra os serracenos toma
espíritos. Seu zelo nào se limitava ao impé ram guerreira a maior parte da nação, e
rio: viu-se Heraclio negociar com os prin tudo o que não empunhava as arma*s, foi
cipes de Hespanha para os empenhar a for victima da ferocidade militar. Carlos Mar
çar os judeus a renunciar á sua religião, tello se apoderou dos bens ecclesiasticos, e
entretanto que se deixavam saquear as pro os deu aos seculares, os quaes em logar de
vincias do império. manter com elles os clérigos, sustentaram
Os que no século precedente haviam cul soldados. Os monges e clérigos, obrigados
tivado as letras, nào deixaram discipulos, a viver com elles, tomaram, seus costumes,
e o gosto das sciencias se aniquilou quasi e fmalmente para haverem de conservar
em todo o imperio de Constantinopla, ou as suas rendas, serviram também nos exer
nào existiu senão entre homens obscuros, citos. 1
cujas luzes e talentos nenhuma influencia Tudo se transtornou, a ignorância foi ge
tiveram sobre o seu século: viram-se pou ral pelo meio do oitavo século: nenhum
cos authores ainda ecclesias,ticos. S. João vestigio de scicncia e das bcllas-artes se viu
Damasceno é o unico em quem se encontra mais na França, e quasi em lodo o occi
erudição, natureza e methodo.4 dente, aonde os ecclèsiasticos c monges ape
N ’este século se fez ainda'mais forte a nas sabiam lér. 2
paixão pelo maravilhoso, que dominava nos Yimos como no meio d’estas trevas o
precedentes: houve mais credulidade; como vasto e penetrante, genio de Carlos, lançando
havia a certeza de que tudo era acreditado, mão de tudo o que podia elevar um estado
tomou-sc a liberdade de imaginar tudo; ao mais alto grau de poder, felicidade e glo
uma apparição, uma revelação suppdsta po ria, formou o projecto de combater a igno
dia causar grandes cffeitos no povo, e as rância c illuminar a razão; afastando-se da
questões religiosas foram de mais impor olitica superficial c barbata, que procura
tância do que á guerra dos barbaros o scr-
S
egradar a humanidade no . povo e' redu-
racenos, que atacavam o imperio, cuja con zil-o ào instincto dos brutos. De nada pois se
esqueceu Carlos Magno, que podésse escla
1 M araci. H is t.s e c t. M ahum . recer todos os homens, óue viviam nos-seus
2 A bulphar. domínios: creõu nas cidades, villas c al
3 A bulphar. E lm a c d'H erbelot, ibid. etdeias escolas para a instrucção gratuita das
a r t. H áken.
4 Fab. B ib. àrec. 1. 5 , c. 3: D up. B ib. des 1 Mobil. A ct. Bened. t. M .B o n if.E p . 131.
A u t. d u V lIIsie c le . 2 H ist. litt. de F r. t. h ,'p a g . 6.
DISCURSO PRELIMINAR 91
emancas do povo c dos paizanos; escreveu que a Religião conservara nos claustros, e
a todos os bispos e abbaaes, recommendan- entre o clero para a intelligcncia da Escri-
do-lhes, que as estabelecessem nas eathe- ptura Sancta, direcção do Calendario e Of-
draes c abbadias para o ensino das scien ficio-divino.
d a s o artes. Ello mesmo as estudou; c fez Todo o resto do século se empregou em
vir da Inglaterra e Italia os homens mais communicar ao publico estas noções super-
celebres, taes como Wulnefoido, Alauno, ficiaes. O espirito humano não se eleva na-
Clemente, etc. Logo todo o império se viu quelles séculos, em que sc esforça por es
cheio de escolas, aonde se aperfeiçoou o palhar a luz, similhante aos rios* que per
modo de lèr o latim, c sc ensinaram alguns dem da sua profundidade á proporção que
princípios de grammatica, arithmetica, lo sc espraiam.
gica, rhetorica, musica, c de astronomia,
CAPITULO IV
D o s erro s do e sp ir ito h u m an o
áccrca da r e lig iã o eh ristã
SuíTocada a razão, c desterradas as seien- a sua razão, homens, que, como Clemente,
cias pela ignoranda e desordem, se desen rejeitavam a authoridado dos concilios, e
frearam todas as paixões, e se pozeram em Sanctos Padres, atacavam o dogma da pre
acção os princípios de superstição, que os destinação, a disciplinh e a moral da Igreja.
espíritos haviam concebido no século pre O des*ejo de reduzir á fé os mahometanos,
cedente. As paixões c a superstição confe que encaravam como idolatria o dogma da
deradas, tudo ousaram, tudo emprchende- divindade de Jesus Christo, conduziu na
rain, de tudo se persuadiram; pozcfam-se Hespanha Felix de Urgel ao Arianismo, en
em uso todas as prácticas supersticiosas do sinando, que Jesus Christo não era filho de
Paganismo, inventaram-se algumas novas, Deus, por natureza, mas por adopção; po
suppozeram-se apparições de anjos c demô rém não restam apparendas de que Cle
nios, que se faziam intervir á vontade para mente deixasse discipulos, nem de que o
produzir nos animos os eíTeitos que se de erro do Felix d’Urgel fizesse progressos.
sejava: assim se viu Adelbcrto attrahir junto A Igreja, não sómente eondemnava estas
a si o povo em multidão, assegurando que imposturas e fazia vôr a falsidade d’este
um anjo lhe havia trazido das extremida pretendido maravilhoso, que servia d’apoio
des do mundo relíquias d’admiravel sancti- ao engano, e d’alimento á credulidade, mas
dade, c por virtude das quacs cllc podia ob também aos erros, que atacavam os do
ter de Deus quanto quizesse: viu-se este gmas. Clemente e Felix d’Urgel foram con-
impostor distribuir ao povo as suas unhas demnados, c refutados solidamente: todos os
c cabeljos, e os fazer respeitar tanto como concilios e todos os escriptos atteslam esta
a s reliquias dos apostolos; viu-se o povo verdade. D’esta sorte, rio meio das desor
deixar as igrejas, para se ajuntar em roda dens e das trevas, que reinavam sobre a
das cruzes, que elle erigia nos campos. terra, o corpo religioso encarregado do de
Emquanto os analphabctos assim rece posito da fé, conservava sem alterarão a
biam sem. exame quanto a impostura in doutrina de Jesus Christo, a sua moral c o
ventava para os seduzir, se viram entre culto que elle estabelecera.
aquclles que sc esforçavam por esclarecer
92 DISCURSO PRELIMINAR •
NONO SÉCULO
CAPITULO I
D o O r ie n te
CAPITULO II
D o O ccid en te
Carlos Magno reinou durante os primei sem princípios. Sómente os papas e os bis
ros quatro annos d’este século; foi temido pos virtuosos reclamavam os direitos da
de todps os seus visinhos, e adorado dos humanidade, em favor dos povos opprimi-
povos sobre quem dominava: mas não é dos; e sómente elles, pelas suas virtudes, g
sufficiente a vida d’um só homem para ci- pelo temor das penas da outra vida, podiam
vilisar uma infinidade de povos diíTerentcs, cortar o passo a tantos males. Com cíTeito,
submergidos na ignorância, e para dar a apesar da ignorância e da desordem d’estc
nações guerreiras o liabito da virtude, da século, o temor dos castigos eternos estre
moderação e da justiça. A sua prudência mecia os maus, e os remorsos da sua con
tinha contido, de alguma maneira, os seus sciência os reconduziam aos bispos e á Reli-
povos, como o seu poder subjugado seus ião. Elles faziam os bispos juizes dos seus
inimigos. D’esta sorte, por pouco que fal ireitos, ou se uniam com elles para refor
tasse de tào relevantes qualidades ao suc mar o Estado e a Igreja: assim os esta
cessor de Carlos Magno, o imperio da França dos juntos cm Aix, tendo considerado as des
havia de recahir na confusão c desordem, ordens de Lothario, o privaram da sua por
de que elle o tinha tirado. ção de terra e a deram a seus dous irmãos,
A natureza talvez nào produzisse ainda depois de obrigal-os a prometter que ha
successivamente dous homens taes como viam de governar seus povos segundo as
Carlos Magno. Luiz, o bom, seu filho, com leis de D eu s.1
excellentes qualidades, tinha grandes de Os concilios d’cstc século estão cheios de
feitos; era benefico c religioso, porém, fra exhortações e ameaças feitas aos soberanos,
co, sensual c inconstante, incapaz de abra que perturbavam a*paz, que abusavam do
çar o grande plano, que Carlos Magno ha seu poder e authoridade contra a Igreja,
via formado: d’clle não tomou mais, que contra os ficis e contra o bem publico;
algumas pequenas partes, que olhou como n’elles se lembram os momentos da morte
cssenciacs e fundamentaes; todo este grande aos soberanos c aos poderosos. Os eccle
edifício se abalou; os bispos c os grandes siasticos eram pois não obstante o seu irre
se levantaram, e os seus mesmos filhos, gular comportamento, os protectores unicos
aproveitando-se das suas faltas, da sua* fra da humanidade; se não fossem elles c a Re
queza e das disposições do povo, formaram ligião, haver-se-ia extincto no Occidente
, revoltas c facções, que lhe tiraram, e res- toda a ideia da moral e da justiça.
tituiram a coroa por varias vezes. Sentava-se Roberto sobre o throno de In
Seus filhos dividiram o. imperio cm tres glaterra no principio do nono século: teve
estados, ltalia, França c Allemanha. Nem por successores principes, ás vezes piedo
os filhos de Luiz, nem a sua posteridade sos, e sempre fracos até Alfredo, o grande.
herdaram alguma das qualidades de Car Durante todo este tempo, os dinamarque-
los. Em todos os seus descendentes faltou zes fizeram invasões na Inglaterra, pene
o genio, a intelligencia, o quasi sempre a traram no interior, e alli se estabeleceram,
virtude e a grandeza d’animo; dominados emquanto novos desembarques invadiram
pelas suas paixões, pelos prazeres, pelos esta ilha; todas as suas costas estavam de
validos, a desordem foi sempre em au sertas e devastado o seu interior. Alfredo,
gmento. A ltalia, a Franca c a Allemanha o grande, quasi em todo o seu reinado, es
estiveram cm continua discordia, e foram teve cm lucta com estes inimigos, e só
dilaceradas por facções e guerras civis, mente no fim d’elle os afugentou, estabele
emquanto as nações visinhas, os dinamar- cendo uma armada, que cruzava sobre as
quezes, normandos e serracenos assolavam costas de Inglaterra, e destruiu a dos dina-
a s provincias do imperio do Occidente. m arquezes.2
O bello plano do governo, estabelecido
por Carlos Magno, desappareccu; as leis se 1 B alu f cap. collept. des Hist. de Fr. t. 9.
viram sem força, e o espirito sem luzes e 2 Thoiras, Hist. d'Angl.
n , DISCURSO .PRELIMINAR
CAPITULO III
lo g o as scicncias começaram por florescer, isso mesmo que eram feitas em um seçulo
c o gosto a renascer.1 Vé-sc porém dos ignorante, e para exercitar intclligcricias
monumentos que nos restam (Testes phi desprovidas d’idcias, haviam-dc ser futilis
losophos e escriptores, que cllcs se não simas, e dar principio a infinidade de con
propozeram a mais que a entender e imi troversias pueris, fazel-as importantes, e
ta r os antigos. 2 retardar os progressos da razão, applican-
No Occidenc animava Carlos Magno to do-sc a estas questões todos os esforços do
dos os estabelecimentos por elle feitos cm espirito: tal foi a que se levantou sobre o
favor das letras. No prodigioso numero de modo como Jesus Christo sahira do seio da
«cscólas, que fundara, se cultivava toda a Virgem.
litteratura sagrada e profana. Liam-sc os A confusão e desordem successivas á
bons authorcs latinos; porém todos estes morte de Carlos Magno aniquilaram en
conhecimentos, que se buscavam, tendiam tre a nação o gosto das letras e das scien-
â intelligencia dos Sanctos Padres e Escri- cias, quê outra vez se tornaram a refugiar
ptura, sobre a qual fizeram muitos com nas cathedraes e mosteiros. Alli mesmo fo
mentarios n’cste século. Entre os arabes, ram inquietal-os as perturbações civis e
pelo contrario, todos estes conhecimentos politicas, e desalojando-os dos seus asylos,
s e empregavam na explicação dos melho extinguiram até os primeiros raios da luz,
r es philosophos da antiguidade. que Carlos Magno tinha accendido no Oc
Estudaram-se no Occidente a arithme cidente.
tica, astronomia c physica, assim como no As escolas c scicncias, que as invasões
imperio mahometano; mas n’estc se pro dos dinama rquezes e guerras interiores quasi
curava pela intelligencia do Céo, dos as tinham aniquilado na Inglaterra por mais
tros, e da Natureza presagiar o futuro, c de meio século, renasceram no governo
conhecer as leis dos phenomenos: no Oc d’Alfredo. Este principe, que, sem defeito
cidente o objecto de todas as sciendas era algum, possuía todas as virtudes e qualida
a reforma do Calendario e a ordem das des que fazem admirar e adorar os sobe
festas; como também a musica empregada ranos, era bom grammatico, philosopho,
cm cantar as poesias arabicas, servia no geometra e historiador.
Occidente para o officio da Igreja. Alfredo, summamcnte piedoso, tinha in
Carlos Magno, para pôr em emulação os clinado todos os seus conhecimentos a fa
eruditos, e em exercício o espirito, propu zer feliz a humanidade. Elles o dirigiram
nha questões de litteratura, de philosophia, a crear uma marinha, fortificar as praças
o u de theologia. Uma vez communicada e estabelecer leis tão sabias, que ainda ho
esta primeira impressão, se perpetuou, c je, em parte, fazem feliz a Inglaterra. Co
os homens mais illustrados se occuparam mo por si niesmo conhecia quanto eram
cm formar muitas questões subtis, que por necessarias para o bem da sociedade a luz
e a religião, fundou escolas de theologia,
arithmetica, musica e astronomia. Empe
1 Zon. I. 3. Caelius Secundus Curio. Hist. nhou todos os sábios estrangeiros para que
Sarac. I. 2. viessem esclarecer a Inglaterra, attrahiu os
2 Leo Aliai, de Psellis Bibliot. Phot. Fa- artistas celebres, c de nada se esqueceu
bric. Bibi. grcec. I. 5. Hankius de Script. para inspirar aos inglezcs o gosto das le
- groec. 9. foec. tras c das sciencias.
CAPITULO IV
NiCcno, extinguiu a parcialidade iconoclas- ptura; mas sem fazer systemas, e adoptando-
tica, c empregou toda a sua authoridadc quasi sempre algumas idéias ou explica
contra os manicheos. Deu ordem para em ções dos padres e authorcs ecclesiasticos.
todo o imperio se procurarem c matar to D’aqui nasceram multidão de questões-
dos os que se não convertessem. Mais de ou de controvérsias entre os theologos. Go-
cem mil morreram por differentes generos descalo excitou disputas longas e vivas so
de supplicios. bre a predestinação. Um monge do Corbia,
Quatro mil, que escaparam ás pesquizas, apoiado na authoYidade do livro de Sancto-
e supplicios, se refugiaram entre os serra- Agostinho da Quantidade da alma, preten
cenos, uniram-se a elles, talaram os cam deu que não houvesse mais que uma só
pos dd imperio, construiram fortalezas, ás alma em todo o genero humano. Um sa
quaes se acolheram os manicheos, que o cerdote de Maguncia ensinou que Cicero e
temor conservára occultos, e formaram um Virgílio se salvaram. Ratramno, e Pascha-
poder formidável por seu numero, c pelo sio tiveram grande disputa sobre o modo
odio concebido contra os imperadores e ca como Jesus Christo estava na Eucharistia;
tholicos. Muitas vezes assolaram as terras sobre o modo cm que se tornam as Espé
do imperio c desbarataram os seus exerci cies Eucharisticas; e ácerca do modo como
tos: uma batalha, na qual foi morto o seu a Sancta Virgem tinha dado á luz a Jesus
chefe, aniquilou este poderoso exercito, que Christo. Amalero examinou profundamente
os supplicios tinham creado c que havia se se. devia escrever Jesus com h; e se a
feito estremecer o imperador de Constan- palavra cherubim era do genero neutro ou
tinopla. masculino.
Depois que Theodora passou a sua au As diligencias que se fizeram para ex
thoridadc as màos de Miguel, este principe plicar a Escriptura Sancta, para apagar
entregou o governo do imperio a Bardas, com ella as opiniões que se tinham ado-
seu tio, que casou com sua sobrinha. Op- ptado, conduziram aos sentidos mysticos,
pôz-se a isto Ignacio, patriarcha de Con- espirituaes e occultos, e fizeram cahir cm
stantinopla: Bardas o fez depôr e substituir detalhes ridiculos: assim achou Ilincmar
por Phocio. Houve divisões n’aquella capi verdades escondidas nos numeros dez, trin
tal acerca dos' dous patriarchas e se decla ta, etc.; assim asseverou uma mulher ha
rou uma sedição: Roma tomou partido por ver encontrado no Apocalypse que o fim
Ignacio; a Igreja de Constantinopla se se do mundo aconteceria no anno de 848; e
parou da latina, e o scisma não pôde ter como se persuadira ter recebido do Céo
fim, senão no vm concilio geral. uma missão para annuncial-o; annunciou,
O desenvolvimento que Carlos Magno ti e teve sequazes.1
nha dado ao espirito e á curiosidade, pro
pondo questões aos theologos, sábios e eru 1 Dup. Dibl. 9. siéele. Hist. lit. de Fr. t.
ditos, ainda continuava n’esteseculo: quando 4. Le Bamf. Dissert sur Vètat des Sciences
as sciencias se encerravam nos claustros se depuis de la mort de Charlemagne, etc. Re-
dirigiu principalmente para a Religião: es cueilde piécespour Veclaircissement de VHist.
meraram-se em descortinar os mysterios, Fr. t. 2. à P ariz chcz Barrois.
explicar os dogmas, interpretar a Escri-
DECIMO SÉCULO
CAPITULO I
E sta d o d o O ricu te
7
DISCURSO PRELIMINAR
CAPITULO II
D o O ccid en te
A Italia enclieu-se de guerras civis; osii no meio das desordens da França. Deixou
principes visinhos, e muitas vezes os b ar-1na tutella de Hugo Capeto, seu filho Luiz,
Laros, eram chamados pelas diversas par- que morreu depois de dczcsctc annos de
cialidadcs, que se formavam, e que des- reinado; c Hugo Capeto subiu ao throno.
gostando-sc em breve dos principes, chama Os vassallos se haviam feito poderosos nos
vam outros, que lhes vinham a ser igual reinados precedentes: cada fidalgo construía
mente insupportayeis. Emfim, Otom, cha castellos e fortalezas, a maior parte, sobre
mado por João xxii, extinguiu todos es as alturas, apoderavam-so das passagens
tes partidos, conquistou dos gregos a Apu dos rios, faziam violências aos mercadores,
lia c Calabria, uniu a Italia á Allemanha e pedindo tributos c impondo sensos muitas
n’ella fixou a capital do imperio. vezes extravagantes c ridiculos. Hugo Ca
A França foi invadida pelos normandos, peto lhes fez guerra, teve homens de animo
aos quacs"Caiios, o simples, deixou a parte e virtude, que atacaram estes tyrannos, ou
da Neustria, chamada hoje Normandia. Os por melhor dizer, estes ladrões, obrigan
senhores, descontentes de Carlos, elegeram do-os a reparar os males, que tinham cau
a Roberto, irmão do rei Eudes. Carlos e sado: aqui teve principio a cavallcria an-
Roberto formaram ligas com seus visinhos. dante.
Depois da morte de Roberto, os estados ele Nào tinha mais socego a Allemanha: os
geram Raul, e Carlos abandonado de todos grandes estavam quasi sempre eni armas,
morreu prêso em Peronna. ou uns contra os outros, ou contra os im
Apoz a morte de Raul, Hugo, o branco, peradores. Quando estes se viram desem
conde de Paris c Orícans, chamou Luiz, fi baraçados dos inimigos tomaram parte nas
lho de Carlos, que passara a Inglaterra de guerras dos visinhos; assim esteve sempre
pois da desgraça de seu pae. Luiz do Ul a Allemanha sobre arm as.1
tramar formou o projecto d’abater os fidal Na Inglaterra houve intervallos de p az,
gos; fez ligas; os fidalgos as fizeram tam mas foi muitas vezes assollada pelos dina-
bém da sua parte, chamando cada qual já marquezes e dilacerada com guerras ci
os búlgaros, já os normandos; e Luiz do vis. 2
Ultramar morreu deixando a França en
tregue a estas faccões.
Lothario, seu filho, foi activo e guerrei t Hist. gcwralc d'Allemagnc.
ro, porém perfido; e morreu - envenenado, 2 Thoiras, t. 2.
CAPITULO III
D o e sta d o d o e s p ir ito h u m a n o
Por gosto, por habito ou vaidade os cos, e fazer que florescessem em seus esta
califas alentavam os talentos, e attrahiam dos respectivos as artes e sciencias. D’esta
á sua corte os homens celebres. Os sul- sorte a desmembração do imperio dos ca
tões, que usurparam a authoridade dos ca lifas, as guerras dos visires, sultões, emires
lifas, quizeram, assim como aquelles, ter e omras multiplicaram as' escolas c secun
os seus astronomos, philosophos e medi daram uma infinidade de talentos, que fica-
DISCURSO PRELIMINAR 99
1 Abulfcd, Polcolc, note in specim. H>st. 1 Bellarm. de Script. Eccles. Theod. Ilui-
Avab. (VHerbclot, art. Shalmagani, Susi, As- nart. prcef. gen. ad act. Mart. §. 1. n. 8.
hari. Leo Allat. de simonum script. Dup. Bib. 10.
2 jWHerbjtot, art. Motavodi. siécle.
*
d00 DISCURSO PRELIMINAR
perto de Paris, c que dorribou alguns mu Todos estes homens accrcscentaram aos fa
ros antiquissimos, arrancou vinhas e des ctos verdadeiros circumstandas as mais
truiu* searas. 1 N’cstc scculo recorreram proprias para interessar áqueiles, diante de
aos augures c a todas as cspccies d adivi quem representavam. Estes contos oram
nhações e de provas practicadas nos prece pequenas novellas, que a necessidade de
dentes. 2 se divertir cm uma naçào ociosa, destituída
Alguns clérigos dc Rothario, bispo dc d’artes c scicncias, propagou e que oflerc-
Verona, nfio concebiam a Deus, senão de cia uma mistura de brio militar, de pai
baixo d’uma forma corporea, e como um xões, de virtudes civis, de galanteio e dc
homem infinitamente poderoso, assentado religião. 1
sobre um throno d’ouro, cercado d’anjos, Bom que a desordem fosse extrema, to
os quacs nada mais eram que homens ves davia não destruiu todas as fundações fei
tidos de branco. Acreditava-se que no Céo tas em favor das letras e scicncias; houve
se passava tudo como na terra, e que S. ainda escolas famosas em Liege, Paris, Ar
Miguel cantava todas as segundas feiras ras, Cambray, Leon e Luxeuil. 2 N’ellas se
missa no Paraizo.3 liam os antigos; buscavam entendel-os, mas
Familiarisadas, pois, as imaginações com as obras d*cslc século nào foram mais do
estes objectos, receberam como no prece que compilações das passagens dos mesmos
dente scculo, sem exame, infinidade de vi antigos. Finalmcnte os principes arabes, es
sões c apparioões imaginadas ordinaria tabelecidos na Ilespanha, tiraram o Occi
mente por homens virtuosos, mas simples.4 dente da indiíTerença cm que estava a res
No meio d’agitaçào c do tumulto havia peito das scicncias ó philosophia, pelas em
instantes de soccgó c intervalles dc paz. O baixadas que lhe dirigiram. EUes propo-
espirito humano carece entào de recrear-se; zeram diííiculdades contra a Religião Chris-
esta necessidade era que em todos os tem tã; buscaram-se sábios para lhes responder;
pos, c entre todos os povos, produziu nos e estes iam na companhia dos embaixado
momentos da paz' e socego, o credito, acon res, que lhes mandavam. 3
tecimentos interessantes, acções famosas, 0 commercio com os serracenos do Oriente
heroes c guerreiros. e Occidente fez nascer o gosto pelas linguas
Tal havia sido, entre os antigos, a ori oriontacs, estudaram-se em muitas escolas,
gem da comedia, da tragédia, e d’uma par applicando-so á philosophia ^Aristoteles,
te das fabulas; dos bardos e scaldos entre que era o oráculo dos arabes; mas somente
os gallos, germanos e antigos dinamarque- se occupavam da sua logica.
zes, e dos" trovadores, menestreis e pclo- 0 decimo século, tão fecundo cm desgra
tiqueiros c farcistas no século precedente. ças, abysmado na mais profunda ignorân
cia, nãó viu nascer heresia alguma.
1 1j >, Bcevf.; loc. cit. p. 12o.
2 Martenr, ampliss. collect. I .4, p. 70,79. 1 Hnel. Ovig. des Romuns. Falconet,
3 Voijez dans le 2 Tome du Spicileg. Ia Hist. de l'Acad. des Inscript. t. d, p. 293.
réfulaiion de ccs extravagances, por Rocha- 2 Hist. lit. de Fr. t. 6.
rim . 3 Hist. lit. t. 6. Sa‘c. 4. Benedici, p. 3,
* Le Bcevf, loc. cit. p. 72. l. 14. Le Bamfj loc. cit.
UNDECIMO SÉCULO
CAPITULO I
E sta d o p o litic o d os im p é r io s
CAPITULO II
E sta d o do rito h u iu a u o
Os tureos, que subjugaram a Persia, Sy uma revolução subita nas idéias, nos gos
ria c Palestina protegeram os sabios, c se tos e nos costumes. A estimação que se
serviam dos seus conselhos: fundaram aca dava aos talentos litterarios, ás luzes c á
demias; nas suas cortes tiveram astrono- virtude enfraqueceu a paixão que havia
mos, poetas, philosophos e medicos. Por pela bravura feroz e pelos exercícios vio
meio das conquistas que fizeram, foram lentos, que são sempre o refugio da igno
levadas á India as sciendas e a philosophia rância e barbaria; o valor tornando-se hu
dos arabes, e communicada a estes e ou mano, foi tão apreciável como a virtude; c
tros philosophos gregos a philosophia da os latrocínios c ducllos, que o ocio c a ne
India. 1 Os orientaes já não eram simples cessidade d’alguma oecupação fizeram tão
traductores dos antigos; commcnlaram, ana- usuaos no século precedente, foram substi
Ivsaram, discutiram as suas opiniões e prin tuídos pelos torneios.
cípios, e dando-lhcs ligamento e ordem, for Seguiu-se nas escolas por lodo o século
maram systemas. undecimo o methodo de Alcuino, conhecido
No imperio de Constantinopla foram pou debaixo do nome de Trivium e Quadri
co cultivadas as scienciãs: a mocidade alii vium. Ensinava-se a grammatica, logica c
occupava-sc na caça, dança e enfeites, tra- dialectica, que era o Trivium; e depois se
:tando-se com o maior despréso as letras seguia a arithmetica, geometria, astrono
3 scienciãs até Constantino Monomaco, em mia c musica, que era o Quadrivium.
cujo tempo Psello reanimou o estudo das Gomo as scienciãs eram ensinadas desde
letras, grammatica e philosophia; mas esta o principio nas cathedracs e mosteiros* to
se empregava sómente em formar syllogis das se encaminhavam á religião e moral:
mos e sophismas sobre todos os assumptos; depois que se multiplicaram as escolas, e
exercício d’espirito, que mais embrutccia que a emulação* se communicou ao exte
do que illuminava o entendimento. 2 rior, vieram a ser estas uma cspecie d’am-
No Occidente os anathemas da Igreja, o philhcatro aonde cada um buscava distin-
temor do inferno, as virtudes de muitos pa guir-se, sendo a philosophia o primeiro ob
pas, bispos c abbades intimidaram as pai jecto de emulação, principalmente quando
xões: viram-se menos roubos, vexações e no meio d’este século se multiplicaram no
rapinas: tiveram mais respeito ás igrejas e Occidente as obras de Aristoteles, Aviccn-
mosteiros: estabeleceu-se a ordem e a dis na e Averroes, as introducções de Porphi-
ciplina: as letras e scienciãs foram, culti va rio c as cathégorias attribuidas a Sancto
das com socego: as escolas se abriram a Agostinho.
todos os que queriam instruir-se: a gene A arte de discorrer nada mais é, que a
rosa piedade das igrejas e mosteiros forne de comparar as cousas. desconhecidas com
cia de tudo o preciso aos talentos necessi as conhecidas, a lini de descobrir por este
tados: logo se viram frequentar as escolas cotejo aquellas, de que não ha conheci
infinitos estudantes cheios de tal ardor e mento.
emulação, que so communicaram a todas Tinha Aristóteles ponderado que nos di
as conâições c estados: reis, principes, se versos modos de comparar os objectos dos
nhores, princezas e senhoras todas culti nossos conhecimentos, havia alguns que
varam as letras; a luz, até então encerrada não rçodiam jamais esclarecer-nos acerca
nos claustros, fez uma especie d’explosão, (Vaquillo que pretendíamos alcançar, c que
que esclareceu toda a Europa e produziu eram falsas todas as consequências que se-
tiravam d'estas comparações. Todos os mo
1 Abulphar, n. 352. dos de comparar as idéias foram por elle-x
2 Atine Com. I. 5. Alex. H a tik m de reduzidos a certas classes, assignando-lhes
Scrip. H ist. Bisant. part. i , c. 26..Fulr. aquclles cujas consequpncias eram falsas*
Bibl. grec. de Psellis. Por meio .destas especies de formula-
DISCURSO PRELIMINAR 103
rios, se via rapidamente quando uma conse A ideia de João Sophista, que natural
quência era verdadeira; isto é ao que nas mente havia de fazer sentir a inutilidade dá
escolas se chama liguras dos syllogismos. philosophia d’este século, e conduzil-o ao
Acreditou-se pois vêr n’cstes formulários estudo das cousas, isto é, á observação e
um meio infaílivel c breve para conhecer aos factos, fazendo vêr que a philosophia
se havia engano, e se assegurarem da ver das escolas não podia jamais conduzir ao
dade dos juizos e opiniões que examina conhecimento da natureza nem do homem,
vam. produziu um cíTeito totalmcnte contrario.
As cathegorias nada mais eram que cer Insistiram os inimigos de João Sophista cm
tas classes, ás quaes tinham reduzido os que os objectos e idéias geraes e abstractas,
attributos, propriedades e qualidades, de existiam com effeito, e realmcnte na natu
que todos os entes são capazes; de sorte reza.
que para discorrer sobre um objecto, e co Os sequazes de João atacaram este pare
nhecer a sua essencia, relações c diíTeren- cer, e d’aqui se formaram as seitas dos
ças a respeito de qualquer outro, bastava nominaes c dos realistas, cujas controver
attender por meio das regras syllogisticas sias observaram a maior parte dos esfor
a qual das classes geraes se reduzia. As ços do espirito humano por muitos sécu
sim, por exemplo, uma substancia, fazia los.
certa cathegoria, em que se examinava a Ficando sepultada a ideia de João So
natureza da substancia em geral, e para se phista n’estas disputas, sómente seiscentos
julgar se tal objecto era uma substancia, annos depois foi reflectida por Bacon, que
examinavam se elle tinha as propriedades d’ella tirou esta consequência, que lhe era
essenciaes incluídas pa cathegoria da sub tão obvia; isto é, que a razão só podia iilu-
stancia. minar-se pela observação e conhecimento
Entendeu-se, pois, que em se conhecendo dos factos, e pelo estudo da natureza.
as cathegorias e figuras dos syllogismos, po Era absolutamente desconhecida a phy
dia discorrer-sc sobre tudo c julgar de tudo, sica, se exccptuarmos alguma parle da his
orque havia definições, ou noções geraes toria natural, como a dos animaes e pedras
e todas as especies’dc entes, c”se podiam preciosas, sobre que escreveram Ilildcber
comparar estas definições geraes com as to, bispo de Mans, c Marbonne, bispo d
ideiás ou definições dos entes particulares. Reunes. O maquinismo da natureza não s
Todo o raciocínio d’estes philosophos joga examinava, e os plienomenos extraordius
va, portanto, sobre idéias abstractas, e defi rios se reputavam sempre ou presagios
nições de nomes, sobrenomes, e não sobre ou cffcitos particulares da Providencia, c
idéias tomadas no seu exame, ou na obser se explicavam por meio de razões mysticas
vação d’aquella mesma cousa, acerca da e m oraes.1 A critica era tão desconhecida
qual se discorria. como a physica, razão porque havia grande
Um philosopho que foi olhado como so disposição n’este século para se attnbuir a
phista (João Sophista), notou que estas idéias prodígios todos os acontecimentos, e crêr
abstractas só tinham existência na imagi em tudo que se relatava.
nação, e nada exprimiam do que existe na Assim se exercitou muito o entendimento
natureza: d’aqui concluiu que a logica ti sem se illustrar, e o imperio da credulidade
nha sómente por objecto idéias abstractas, dilatou ainda bastante os seus limites n’este
ou para melhor dizer, as palavras que as século.
exprimiam. Muitos philosophos se olfende-
ram d’uma opinião que deprimia a diale 1 Fulbert. cp. 95, 96, 97. Hist. lit. t. 7,
ctica, ou melhor a philosophia, e insistiram p. 136, 283. Le Banif, Recueil des Dissert.
em que a logica tinha por objecto as Cou- su r VHist. Ecctes. de Paris, t. 2, p. 95, et
sas c não as palavras. suiv.
CAPITULO III
D as h e r e s ia s c scism a s
movimento gerai, não se. coulieccu heresia para discorrer cm todas as cousas, cujos
no imperio de Constantinopla. Este estado nomes ellc soubesse, foi portanto o conheci
do espirito, que suffoca heresias, descobre mento dos padres e authoros ecclesiasticos
as paixões quasi cm todos os estados, tor julgado desnecessário para fazer um theo
na-as activas c maquinadoras, e quasi sem logo: a este estudo substituiu-se a arte de
pre dá principio ás divisões e aos scismas. fazer syllogismos, c por meio d’ella cm-
0 patriarcha Cerulario formou o projecto prchcndcu-sc tractar dogmas c explicar
de se fazer reconhecer patriarcha univer mystorios: por este methodo tendia o en
sal; mas vendo que a Igreja do Roma seria tendimento a avisinhar os mysterios ás no
um obstáculo invencível ás suas preten ções ou idéias que oíTcrcce a razão, c a al-
sões, rçsuscitou as accusaçõcs que Phocio teral-os: assim se precipitou Bérengario na
fizera a esta Igreja, de estar cabida cm er imprccação, querendo explicar o mysterio
ros perniciosos. Foi cxcominungado pelo da Eucharistia, e Roscclino no Trithcismo,
papa, que ellc excommungou também. querendo explicar o da Trindade.
Grangcou o animo do povo, adquiriu sc- Desbaratado o exercito de Chrisochir, os
quazes na corte, excitou sedicõcs, que amo restos da seita manichea se espalharam na
tinava ou apaziguava a seu talante, fez tre Italia, e se restabeleceram na Lombardia,
mer o imperador c dispôz do throno.- De d’ondc passaram a diflerentes estados da
pois da sua morte foi o imperio abrazado Europa. Estes novos manicheos tinham fei
pelo fanatismo, que ellc accendéra, c que o to mudança na sua doutrina e professavam
poder imperial não pôde extinguir. amor á pobreza e á virtude, allucinando
No Occidente os individuos que se desti com estas apparencias algumas pessoas vir
navam para o estado ecclesiastico, faziam tuosas, que foram presas e queimadas, sem
4i carreira dos seus estudos nas escolas, que ainda assim se aniquilasse esta seita.
applicando-se com prefercncia á dialectica; Os seus restos escondidos fermentaram cm
e como já temos visto, que um homem que segredo por todo o Occidente, de que vc-
havia estudado dialectica se presumia apto Tcmos os effeitos nos seguintes séculos.
DUODECIMO SÉCULO
CAPITULO I
E sta d o p o litic o e c iv il d o im p e r io
CAPITULO II
E sta d o d o e s p ir ito h u m a n o
Apesar das guerras que assolavam o logares, aonde jamais penetraria a luz ée
Oriente, n’ellc eram cultivadas as artes e elles não fossem. Hem que .os seus conhe
sciencias: os califas, sultõcs, emires e visi-cimentos não se fizeram communs, e elles
resforam quasi todos sábios, poetas, philoso não inspiraram o proprio ardor, ao menos
phos e astronomos; as escolas ou acade diminuiram em parte as preoccupações da
mias espalhadas no imperio mahometano ignorância; c já as guerras não eram tão
foram respeitadas, c entre os arabes se vi fataes ás letras, como nos primeiros sécu
ram theologos, que atacavam todas as reli los.
giões esentimentos dos philosophos, ao passo Além d’isto, como os soberanos nas suas
que outros se empenhavam cm justificar o guerras queriam ao menos pretextar a jus
mahometismo pelos princípios da philoso tiça c o poder dos papas, tão formidável aos
phia. Não impediram estas disputas que soberanos, era sempre fundado sobre al
clles tivessem philosophos, geometras, as guma razão d’ordem, de justiça, ou do bem
tronomos c chimicos; mas nenhum d’estes publico; as mesmas guerras fizeram os sá
philosophos adquiriu tanta reputação cornô bios necessarios â Igreja e aos soberanos
Averroes, nem foi algum outro tão admira para defenderem os seus direitos, ou ata
dor d’Aristotelcs, que cllc respeitava quasi carem os/alheios.
como um Deus, ou como o ente que mais A arte d’cscrcver e fallar, posta em des-
se tinha avisinhado da Divindade, c que prêso no precedente século, era mais ne
conhecia todas as verdades, sem ter cahido cessaria no duodecimo, porque as decrc-
em algum e r r o .1 taes dos pontifices se dirigiam aos senho
As continuas guerras do império de Con- res, aos simples fieis e aos povos, que em
stantinopla com os scrraccnos c frequentes algum modo se haviam constituído juizes
negociações entre os imperadores c os sul- nos litígios dos soberanos; cultivaram-se,
tões, que se oppunham sempre aos enviados pois, incomparavelmente, mais que no pre
de Constantinopla, homens conspicuos, rea cedente século, o qual não produziu escri-
nimavam um pouco o estado das letras; e as ptores como um S. Bernardo, Melard, etc.
disputas da Igreja do Oriente com a Igreja As disputas dos papas, dos soberanos en
do Occidente conduziram os theologos a se tre si e de di (Terentes ordens religiosas vol
excitar, a escrever, a discorrer c a ínstrui- taram parte dos espíritos para o-estudo do
rem-sc para justificar o seu scisma: por direito civil c canonico, da historia eccle
tanto n’este século appareceram alguns phi siastica c profana: fizeram-se muitas vidas
losophos, theologos c jurisconsultos.2 dé sanctos illustres, e até historias univer-
0 ardor que durante ò século passado s a c s .1
vimos accender-se no Occidente a favor das Conservaram em parte a sua grande re
sciencias, a estimação que d’oIIas faziam os putação as escolas de philosophia: traduzi
soberanos, a escolha que se fazia dos ho ram-se as obras d’Aristoteles, e dos arabes,
mens famosos para os primeiros cargos da que o tinham commentado, e sobretudo de
Igreja, os progressos que fizeram as ordens Averroes: todas as idéias aristotelicas pas
cistersiense, chiniatense, charthuciana, c saram ao Occidente, aonde se viram philo
a dos conegos regulares, multiplicaram em sophos que queriam reduzir tudo, até mes
grande nutoero as escolas e academias no mo a Religião, aos seus princípios. Os theo
Occidente. Em todas as abbadias, e quasi logos c.philosophos, para defenderem a Re
em todos os mosteiros se viram muitas es ligião, se esforçaram a explicar os myste-
colas m enores.3 rios pelos princípios da razão, e a comba
Os litteratos e os sábios ousaram atacar ter pelos da philosophia e authoridade dos
a .ignorância c barbaria em infinidade de philosophos, os argumentos dos novos dia
lecticos. O espirito humano não fez pro
1 D'Herbelot, art. Togrgj Abensoar, Even- gresso algum nas outras sciencias.
piule, Algalsel, Tophail, Bayle, Chauffepied,
Averroes, prcef. sur la Phys. d'Arist. 1 Dup. hist. du 12 siécle. Hist. litt. de
2 Duo. 12 siécle. Fr. Le Bceuf, diss. sur 1'Hist. Eccles. etc. t.
3 Hist. litter. de F)\ t. 9, p. 30. % p . 45.
DISCURSO PRELIMINAR 107
: % .,-A ?
CAPITULO III
D as h e r e sia s
Pola exposição que fizemos do estado do 6.° Os manicheos espalhados pelo Occi
espirito humano no duodecimo século, vê-se: dente, tinham-se tornado circumspectos, e
1. ° Theologos que queriam conciliar mais os inimigos do clero, pelo rigor com que
dogmas da religião com os princípios e opi foram tractados, c ardia o fogo da vingança
niões philosophicas, caminharam entre dous nos corações d’estes fanaticos.
escolhos, cm que era facil naufragar a Continha pois o duodecimo século mui
curiosidade indiscreta. tos princípios de divisão e erros acerca dos
2. ° As contestações dos papas com os dogmas,
so do poder c reforma dos costumes.
beranos, c as pretenções do clero, produ 0 tempo que avisinha e combina conti-
ziram infinidade d’escriptos e dcclamaçõcs nuamente as idéias c as paixões, unindo
contra o clero, contra o papa o contra os estes differentes princípios, produziu em
bispos, em que se atacavam os seus pode Abelard c Gilberto de Porrée erros sobre
res c direitos. A multiplicação das escolas ti os dogmas c mvsterios; cm Arnaldo de
nha espalhado estes escriptos e posto mui Brcssc o projecto de despojar o papa c o
tas pessoas cm estado de lêl-os e enten- clero de seus bens, e restabelecer em Roma
del-os. o governo da antiga republica; em Valdo,
3. ° As diligencias que se fizeram paraoil-convidar os christãos a viverem em com
lustrar c reformar este século, nem dissipa muni, renunciando a toda a propriedade;
ram a igilorancia, nem restabeleceram a em Eon de TEtoile a persuasão de que cllc
ordem: parte do clero ficara submergido era Jesus Christo; cm Pedro de Bruys, cm
em uma grosseira ignorância, entregue á Tanchelim, em Tcrrico c nos apostolicos mul
dissipação e muitas vezes á vida dissoluta. tidão d’erros c prácticas sempre ridiculas,
4. ° Havendo-se feito algumas traducções muitas vezes insensatas c oppostas, entre
da Escriptura em lingua vulgar, a multi si acerca dos sacramentos, c de tudo que
plicação das escolas pôz muitos particulares podia conciliar os animos dos bispos e do
cm estado de lêl-as, e d’abusar d’esta lição. clero: emfim, a reunião de todas estas sei
ü.° O desejo d’adquirir nome era muito tas, na dos albigenscs; c os cruzados con
geral entre os theologos, philosophos, eru tra esta seita.
ditos c leigos.
CAPÍTULO I
O Oriente era occupado pelos mogoes, sas nações viviam em guerra continua. Gen-
turcos e serracenos, c pelos diversos povos giscan e seus successores arruinaram uma
occidentaes, que tinham formado um novo parte do império mahometano.
estado na Palestina o na Syria. Estas diver Aleixo, imperador de Constantinopla, foi
108 DISCURSO PRELIMINAR
assassinado por João Ducas; os principes iTAnjou, irmão de Luiz, a quem clle suc-
do Occidente, apoderando-se de Constanti- cessivarnente o tirou. As revoltas d’Alie
nopla, lhe derain um imperador; c somente manha cessaram com a eleição de Rodolfo,
pelo meio do decimo terceiro século (1261) conde de Hasbourg. 1 .
recuperaram o throno os imperadores gre Não houve mais tranquillidade na Fran
gos. os quacs estiveram continuamente cm ça e Inglaterra: n’estc século se viu o papa
armas contra os turcos, que tomaram parte tirar, dar, e tornar a tomar de novo a co
dos seus estados. roa (^Inglaterra; constranger os reis a rc-
A Aliemanha foi dividida por varios prin nunciarem-lhe os reinos; desobrigar os súb
cipes, que aspiraram ao imperio. Othon, (i- ditos do juramento de fidelidade: viram-sc
nalmcntc, foi reconhecido c coroado por também subditos abandonar seus sobera
Innoccncio iii, em cujas mãos jurou defen nos. 2 Parte das provincias da França foi
der o patrimonio de S. Pedro. Pouco satis assolada pelas guerras dos cruzados contra
feito dos romanos, o imperador assolou as os albigenses., Todas estas revoltas alenta
terras da. Igreja: o papa o dcpòz n’um con ram de novo ã paixão da guerra no Occi
cilio geral: muitos principes cTAUemanlia dente.
elegeram Frederico: Othon abandonado de Era, pois, este ainda o theatro das dis
alguns senhores, c fazendo liga com outros, cordias e das calamidades: alli as paixões
foi desbaratado; e deixou por sua morte a armavam os homens contra os homens,
Frederico em pacifica posse do imperio. mas não se viam aqucllcs horrores e cruel
Este fez voto de passar aos logares sanctos, dades que se tinham visto antes de Con-
e doou algumas terras tá igreja de Roma. stantiuo, c durante as incursões dos barba
Como expoliasse dos seus domínios dous ros no Occidcute, antes de haverem abra
condes de Toscana, que se refugiaram em çado o Christianismo: nem também a asso-
Roma, se indispuz com o papa, c quiz ex íação que produziram durante este século
pulsar alguns bispos que este nomeara para no Oriente as armas dos inogoes, hunos,
muitas cidades da Italia. O papa pronun tartaros c todos esses povos, cujas paixões
ciou o anathema, c confederou os princi não eram refreadas pela R eligião.3
pes italianos contra Frederico, ajuntou con
cilio, proferiu sentença de deposição, fez
eleger o Landgravo de Thuringia, c depois 1 Baluz. Misccll. t. 4. Hist. d'Aliem. t. o.
o conde de Hollanda, cxcommíingou Con- 2 Mezenti, Ilist. des Phil. Aug. Louis
rado, que depois da morte de Frederico VIII, S. Louis, etc. Thoiras, l. 8, 9. Rcvol.
fura eleito por parle da Aliemanha, tirou- d' Angletcrrc, I. 3.
lhe o reino de Sicilia, dando-o a Duarte, fi 3 Voijez Vliist. des Huns por M. de Gui-
lho do rei de Inglaterra, depois a Carlos gnes.
CAPITULO II
E sta d o do e s p ir ito lu im a u o d n ra u te
o d é c im o te r c e ir o sc c u lo
gos, sobretudo por Aristóteles: já se não soberanos que protegiam os albigensos fo
contentavam com estudar a sua logica; es ram despojados dos seus domínios, cidades
tudaram a sua physica e metaphysica; ado notáveis entregues ás chanunas, o os seus
ptaram as suas opiniões, e theologos houve habitadores passados ao fio da espada. Para
e philosophos que ensinaram o dogma da destruir as reliquias da heresia, se resta
alma universal, a eternidade do inundo e a beleceu a inquisição.
fatalidade absoluta. 1 Percorreram os inquisidores todas as ci
Outros pretenderam conciliar com a Re- dades, fazendo desenterrar os hereges se
ligiào as opiniões d’este philosopho; e sem pultados em sagrado, e queimando os vi
attentarem n’isto, eram os dogmas da Re vos. Era infatigável o seu zelo e extremo
ligião os que elles queriam acconunodar o seu rigor: elles condemna vam á viagem
aos princípios ^Aristóteles. Assim Amauri da Terra Sancta, e cxeommungavam a to
e David de Dinand se persuadiram vòr a dos os que não lhes obedeciam ccganiente.
explicação do Genesis no systema d’Aristo- A’s da guerra, succedcram novas cala
tcles sobre a origem do mundo. Deus era midades: os povos estavam por toda a parle
a primeira materia, tudo o que havia pas ifaquolla consternação, que annuncia a re
sado no mundo, todas as religiões, ainda volta: assassinaram os inquisidores e nào
mesino christã, eram phenomenos que ha houve remedio senão suspender o exercí
viam de ser produzidos pelo movimento e cio da inquisição.
qualidades da primeira materia. O que maiVtinha contribuído para o pro
Outros introduziram na theologia aquella gresso dos albigensos, valdcnses c das sei
curiosidade que o gosto pela dialectica fi tas formadas no duodecimo século, era o
zera nascer e que cila entretinha; exami- apparente bom comportamento dos secta
ram se a essência estava no Espirito San rios e a vida licenciosa de grande numero
cto, emquanto fórma, se o Espirito Sancto de catholicos c d’uma parte do clero: co
procedia do Filho emquanto amor, ou so nheceu-se que era forçoso contrapur-lbcs
mente do Pae; se havia verdades eternas, exemplos de virtude, fazendo vér que todas
que nào fossem o mesmo Deus; se as al aquellas de que os hereges se jactavam,
mas bemaventuradas, c a mesma da Vir eram practicadas pelos catholicos; e como
gem, estariam no céo empyrio, ou no pri os valdcnses faziam profissão da renuncia
meiro cristallino. Sobre todos estes objectos dos seus bens, d’uma vida pobre c de se
se viram erros, que foram condemnados. - applicarem á oração, á leitura da Escri-
Prohibiu-sc a leitura da physica e meta ptura Sancta e á meditação, e de practica-
physica d’Aristóteles; esta prohibiçào irri rem á letra os conselhos evangélicos, houve
tou a curiosidade: Aristoteles ficou cm pos catholicos zelosos que distribuiram aos po
sessão da admiração d’um grande numero bres os seus bens, trabalharam e viveram
de philosophos; c cmfim theologos eminen das suas mãos, meditaram na Escriptura
tes cm virtudes c erudição, tomaram a sua Sancta, pregaram contra os hereges e ze
defesa, como foram Alberto Magno e S. laram a pureza dos costumes, tacs foram os
Thomaz. pobres catholicos, os humildes, etc.
As heresias que se levantaram n’ostc sé Estas sociedades approvadas e favoreci
culo e as desintelligcncias dos papas occa- das pelos summos pontifices, fizeram nas
sionaram muita applicação ao estudo da cer entre muitos catholicos o desejo de for
theologia e direito canonico. mar estabelecimentos religiosos e por to
Todavia as provincias meridionaes da da a parte se viram novas sociedades, as
França estavam cheias d’albigcnses, nos quaes se esmeravam na mais avantaja-
quaes não produziram eíTeito as missões; o da perfeição; foi n’cstc século quando se
papa fez pregar uma cruzada contra elles; fundaram as quatro ordens mendicantes,
correram logo em multidão tlamengos, nor a ordem da Redempção dos Captivos, etc.,
mandos, borguinhezes, etc., capitaneados e muitas outras se teriam visto, se no con
por arcebispos e bispos, e pelos duques de cilio lateranense não fosse prohibida por
Borgonha, condes de Ncvers, de Montfor- Gregorio x a erecção de novas ordens.
te, etc. Propagaram-se muito todas cilas, princi-
As provincias meridionaes da França tor- palmente as quatro mendicantes; estes re
naram-sc o theatro d’uma guerra cruel; os ligiosos, tão respeitados e uteis, principal
mente na sua instituição, não estavam re
tirados nos bosques e*nos desertos; habita
1 DArgentré, Collect. jud. t. í. Exam. vam nas cidades e n’ellas viviam dos dona
d u Fatal. t. i. tivos da piedade dos fieis. Desejaram tra
2 IfArgentréj ibtd. Dup. 13. balhar pela salvação dos seus bemfeitores;
110 DISCURSO PRELIMINAR
o seu zelo activo estabeleceu prácticas de casiòcs n’um século em que os ecclesiasti
votas, capazes de reanimar a piedade: pre cos, destituídos de- luzes, teern grande au-
gavam c confessavam; nas suas igrejas se thoridade c pretenções ainda maiores. As
ganhavam indulgências. sim succcdeu que um parocho allemào nào
O zelo d’alguns d’estes religiosos, porém, satisfeito da oíTcrta que lhe fizera uma de
levou-os a invadir os direitos parochiaos; suas parochianas, em logar de sacramcn-
c muito natural era que uns homens que tal-a com uma Hóstia, lhe deu a commun-
se julgavam em estado mais perfeito que o gar o dinheiro que lhe trouxera; pediu jus
clero, se presumissem mais aptos para con tiça o marido, e recusou-sc-lhe; elle matou
duzir o povo á perfeição. o 'parocho, c se fez cabeça d’uma multidão
A’s pretenções dosreligiosos se oppôz o de descontentes, que, tomando as armas,
clero secular, reclamando as leis c quei assolara o paiz. Prégou-se contra clles uma
xando-se de que era oíTendida a disciplina. cruzada em que o bispo de Brcme, o duque
Os religiosos da sua parte se defendiam de Brabante e o conde de Hollanda na van
com os seus privilégios, e os papas os pro guarda dos cruzados debellaram c extin-
tegeram e condemnaram os seus adversa guiram n’uma batalha os studingos.
rios. 1 Emquanto o resto dos albigenses e val-
Nem os rigores da inquisição, nem os denses assim ataca va a authoridade da Igre
exercitos dos cruzados cxtinguirani total- ja, outros sectarios se contentavam d’atacar
mente os albigenses e manlcheos; uns c o papa c os bispos, sustentando que ellcs
outros se haviam derramado pela Allema- eram hereges, c que, consequentemente,
nha, aonde semeavam em segredo os seus havia expirado entre ellcs o poder de con
erros contra a Igreja, contra o culto e con ceder indulgências.
tra os sacramentos; cm todos os animos Quasi todos os espíritos se occupavam
andavam como occultos os princípios de fa dos assumptos de que acabamos de fallar;
natismo, que para se declararem, nào es só um pequeno numero se tinha afastado
peravam mais que uma acçào ou um abuso d’csta esteira, como foram S. Boavcntura e
escandaloso da parte do clero ou de qüal- S. Thomaz, em parte da philosophia e da
quer ecclesiastico; c nunca faltam estas oc- theologia, e Rogério Bacon, na physica.
Este-foi accusado de magico c como tal
préso e perseguido pelos franciscauos, seus
D'Argentrèj Collcct. Jud. 1 .1. irmãos.
DECIMO.QUARTO SÉCULO
CAPITULO I
E sta d o p o litic o d o s im p é r io s
ram os reis, pensionaram as igrejas; e, as les se julgaram com direito a depôr os so
sim como no precedente século, se viram beranos. 1
.anti-papas, entre os quacs se dividiam os
■soberauos. 1 Raynald sur le 14 siécle. Balus. Hist.
Em tempo algum os summos pontifices des Pap. Avenion. Hist. du Sch. des Pap.
levaram tào longe as suas pretenções. El- par M. Dupuy.
Occidente por todo o século treze, se con res formaram as seitas dos begardos, fra-
verteu em uma especie de paixão epide- ticcllos ou irmãosinhos espirituaes, aposto*
'mica entre o povo, e nas religiões, du licos, dulcinistas, llagellantcs, turlupanos.
rante o decimo quarto século. Os francis- João xxu cxcommungou os fraiiccllos c-
canos se dividiram na fôrma dos seus há seus fautores. Os sectarios atacaram a au-
bitos, querendo uns trazcl-os curtos e de thoridade que os fulminava e distinguiram
pajino grosso, outros mais compridos c de duas Igrejas: uma toda exterior, que era
panno menos grosseiro; affirmaram muitos rica, possuía domínios c dignidades: o pa
que elles não tinham nem ainda a proprie pa e os bispos, diziam os sectários, domi
dade do que comiam. Os papas e sobera nam nesta igroja, da qual podem excluir
nos tomaram parle íVestas disputas: fulmi aquclles que cxcommungam; mas ha ou
naram-se cxcommunhões contra elles; c tra inteiramente espiritual, que não tem
emfim muitos foram queimados. 1 mais encosto, que a sua pobreza, nem mais
Aqui os frades c leigos faziam consistir bens, que a sua virtude: Jesus Christo é a
a perfeição na mais rigorosa pràctica da cabeça d’esta igreja, c os irmãosinhos, os
pobreza* e com receio de terem direito a seus membros: o papa não tem imperio al
alguma cousa, não trabalhavam nunca, c gum sobre ella. Afim de conciliarem o fa
insistiam cm que não lhes permittia a sua vor dos principes, incluiram entre os seus
consciência trabalhar por um sustento ca erros algumas proposições contrarias «ás
duco. pretenções dos papas; sustentavam que es
Alli se encontravam homens que para se tes não” eram mais successores de S. Pedro
avantajáreni mais que S. Francisco na si- do que os outros bispos, que não tinham
milhança com Jesus Christo, se faziam en poder algum nos estados dos principes
faixar, pôr em um berço, aleitar por uma christãos; c que eram absolutamente des
ama e circumcidar. tituídos cío poder coacti vo.
Umas vezes apparecia um homem que Perscguiram-sc por toda a parte estes se
asseverava ser S. Miguel, o que os seus ctários, queimando-se um pasmoso numero,
discipulos, depois da sua morte, tiveram sem que todavia se aniquilassem; elles se
pelo Espirito Sancto. Uns alíirmavam que espalharam e uniram aos restos dos albi-
seriam salvos todos os que vestissem o ha genses: taes foram os lollardos. Oodio con
bito de S. Francisco, c que o sancto descia tra os papas, lhes adquiriu a protecção dos
todos os annos aotinfcrno. para tirar de lá inimigos da curte de Roma em uma parte
todos os seus filhos. Outros asseveravam da Europa: assim as fogueiras e os rigo
que um anjo tinlia trazido certa carta em res levaram a toda a parte a obstinação do
que Jesus Christo declarava que para ob scisma, e os princípios da revolta contra os
ter o perdão dos peceados era preciso lar papas e Igreja, o estes princípios só depen
gar a patria, c açoutar-sc por trinta e quadiam d’uma cabeça que podésse dar-lhes
tro dias em memoria do tempo que ellc ti ordem, e fàzel-os mais especiosos, para
nha vivido no mundo. Todas estas opiniões produzirem seitas de maior consequência
tiveram sectarios c grassaram por toda a e ruido. '
Europa. Era diflicultoso que dcix.assc d’existir
Estes homens que tendiam para a per uma tal cabeça n’este século cm que ha-
feição, formavam uma sociedade, cujos via philosophos; andava agitado^ com tan
membros se amavam-mais ternamente que to calor tudo o que tinha relação com os
os da sociedade geral. Attendendo que os papas e soberanos; e os papas haviam le
seus esforços para a perfeição não os isen vado suas pretenções até o ponto de se de
tavam da tyranniá das paixões, as olhavam clararem senhores de todas as coroas do
como uma ordem da natureza, a que era Universo. Esta cabeça eíTcctivainente se en
forçoso obedecer, e cortando tudo o que controu na pessoa d’Wiclef, que atacou a
excedia a necessidade, tiveram a popula curte romana nos seus sermões e escriptos,
por um acto louvável, ou pelo menos inno- reunindo tudo o que se tinha dito contra o
cente, quando eram tentados; c um osculo, papa, clero, Igreja, ceremonias e sacra
por um horroroso crime. mentos.
Todos estes bandos do homens c mulhe Nas escolas se estudava Aristoteles c os
arabes que o tinham commcntado: muitos
adoptaram seus princípios acerca da as
i Rainald sur le 14 siécle. Vanding. trologia judiciaria, attribuindo áos astros
ann. minor. Balus. t. 1. Miscell. Emcric, todos os successos, c presumindo encontrar
D irect. Inquis, p. 2. Balus. vit. Pap. Ave- nas suas disposições a explicação de todos
nion. Du Boulai, hist. univ. t. 4. os acontecimentos civis, da origem e pro
DISCURSO PRELIMINAR i l .T
gresso de todas as religiões e ate da chris- ram em desvarios: taes foram Utricourt,
tâ: tal foi Cceco Asculano. de Mcrcourt, Ekard.1
Outros receberam os princípios meta-
physicos d’estes philosophos, ou cmprchcn- 1 Dup. 14. siccle, iTArgentrè. Collect. jm l..
deram cpncilial-os com a religião; e acaba t. I, Examen, du Fanatismc, t. 1.
CAPITULO I
Morto (pie foi Bajazcto, seus filhos se di não teem em conta alguma a destruição dos-
vidiram, e ficou em paz o imperio dc Con- impérios; e os gregos encaravam conio uma
stantinopla; mas logo que Mahomct reuniu impiedade o vaeillar entre a perda do im
os estados de seus irmãos, principiou de perio e a separação da Igreja latina. Ma
novo a guerra contra os gregos. Estando o homct ii, aproveitando-se d’estas dcsordensr
imperio Oriental no ponto mais critico da bloqueou Constantinopla, e d’ella se fez se
sua ruina, o imperador implorou o auxi nhor pelo meio do decimo quinto século.
lio dos principes do Occidente, resolveu a 0 império d’Allemanha estava em com
união das duas igrejas, c a concluiu: mas pleta desordem: já os imperadores não ti
não obstante o decreto da união attrahir nham poder na ltalia; João ii se havia uni
grandes soccorros ao império de Constan- do ao duque d’Anjou contra Ladislau, rei
tinopla, clle não fez mudança alguma na de Nápoles; o duque de Milão, pretendia
disciplina grega, nem alteração na sua mo senhorear-se de Florença, Mantua, Bolo
ral; comtudo isso, o clero nem quiz annuir nha, etc. Roberto, o pequeno, que succe-
a esta lei, nem admittir ás funeções eccle deu a Wenceslau, não pode restabelecer a
siasticas, aquclles que a tinham assignado. ordem no imperio, nem também seus suc
Formou-se logo contra os parciaes da cessores. 1
união uma conspiração geral do clero c Na França reinava Carlos vi no princi
povo, e principalmento dos mongès, que pio d’este século; tudo n’clla esteve tran
sendo os unicos arbitros das consciências, stornado pela imbecilidade d’csto principe,
amotinaram até a infima plebe; c este le ambição dos duques de Borgonha e de Or-
vantamento geral fez retractar a maior 16311$' c assassinato d’este ultimo, que fez
parto dos que haviam manejado a união. passar a coroa á cabeça do rei de Ingla
Declamaram-se contra o concilio dc Flo- terra: pelos esforços que fez Carlos vn para
rença, c todo o Oriente condenmou a união occupar o reino, pelas diflerenças do Del
que n’cllo se fizera. phini com Carlos, seu pae, finalmente pe
Quiz o imperador sustentar a sua obra, c las dissensões de Luiz xi com os duques
ameaçaram-no com a cxcommunhão se con dc Borgonha, Berrv, Bretanha, etc., e pelas
tinuasse a communicar com os latinos: em guerras de Carlos vm na ltalia contra parte
tal situação se achavam os estados do suc d’estcs soberanos. 2
cessor de Constantino Magno.
Emquanto os gregos assim se dilacera 1 Hist. gen. d'Allemagne du P. Bare. f_
vam, algumas praças do impeilo foram to 1. Hist. de 1'Emp. p ar Heiss. t. í et 2.
madas por Amurãte, e Mahomct n c tudo 2 Mex vie de Charles VI. Gerson op. t . f .
annunciava proxima a conquista dc Con- Thoiras, t. 2. Actes de Rymer, t. 8. E x -
stantinopla; mas o scisma e o fanatismo truits des Actes par M. Le Clerc, p. 84.
8
114 jV DISCURSO PRELIMINAR
ifX W A A
Eraquanto os soberanos e senhores as elegeu Amadeu de Saboya, que tomou o
sim luetavam entre si, Gregorio xn e Be nome de Felix v. Eugciíio cxcommungou
nedicto xin se disputavam a cadeira de Felix c o concilio. Os padres de Basilea
Roma. O concilio de Piza os depôz a am cassaram este decreto, c todo o Occidente
bos, nomeando João xxm . Então se viram esteve dividido entre estes dous papas até
tres papas, entre os quaes a Europa esteve á morte de Eugênio, a quem succedeu Ni-
dividida. Todos os soberanos se interessa colau v. A suavidade d’este pontifice res-
ram na extineção do scisma, que final tituiu a paz á Igreja: Felix cedeu, c o scis
mente Tez terminar o concilio de Constan- ma acabou.
ça, não se vendo menos desordem no es Os successores de Nicolau v tomaram
tado ecclesiastico, que nos estados politi demasiada parte nas guerras da Italia, e se
cos; o concilio de Conslança indicou outro occuparam cm reunir os príncipes chris-
em Pavia, para se cuidar no restabeleci tãos contra os turcos, e no engrandeci-
mento da ordem c da disciplina: mas, por mento das "Suas proprias fam ilias.1
differentes razões, foi transferido este con
cilio de Pavia para Senna, e de Senna para
Basilea. d’onde o papa Eugênio queria trans- 1 Gerson, t. 1. Gevsoniana, 1. 1, t. 2,
feril-o para Ferrara. Os padres juntos cm p a rt. 1 et 2. D upuy, Hist. d u schism . Rai-
Basilea se oppozeram a isso. O papa cas nauld, Spond, . Onunha. Colled. Concil. t.
sou o concilio; o concilio depôz o papa, e 11, 32, 13. L e n fa n t.
CAPITULO II
B a s h e r e s ia s
'libcrdado sem afastar-se do respeito c aca cxcommungava por motivos de pouco mo
bamento devido á Sancta Sede: houve so mento, pelos seus interesses temporacs por
mente alguns desvarios, produzidos pelo exemplo: assevera que tal excoinmunhão
.zelo indiscreto, que foram condcmnados, não separa os fieis cffi Igreja; e uma vez
logo que se reílectiu n’elles, sem que tives que os papas podem abusar do seu poder,
sem defensores. pertence aos fieis julgar, se a excommu-
Na Inglaterra, em que as luzes eram nhào c justa ou injusta, e que os christàos
muito mais fracas, c maior o poder do teem na Escriptura um guia fiel para co-
papa, os wiclefitas c lollardos acharam nos nhecel-o.
ânimos disposições mais favoráveis: fize Assim as cxcommunhõcs fulminadas pe
ram proselytos c formaram um corpo, que los papas conlrçi os soberanos, a extineção
protegido pela camara dos communs, en do poder, os supplicios dos albigenses c
grossou occultamente, nào podendo a au- valdcnses, o fanatismo de todas as seitas,
thoridade dos reis c do clero extinguil-o, e que no precedente século tendiam a uma
se augmentou com os supplicios. extraordinaria perfeição, combinado tudo
Levadas á Allcmanha as obras de Wi- com os progressos que fizera o espirito na
clcf, inílammaram os ânimos indispostos philosophia c theologia, produziram uni
contra o clero. Joào Ilus. as considerou systema de rebclliào contra a Igreja, mais
proprias para enfraquecer a authoridadc proprio para dominar as pessoas que ra
do mesmo clero, o qual elle olhava como ciocinam, do que os erros dos albigenses,
um invencível obstaculo para a reforma valdenses e lollardos; mas de que podiam
dos costumes c restauração da disciplina; atalhar-se os progressos, iIlustrando-se a
-c pondo em ordem as idéias de Wiclcf, as razão c corrigindo-se o abuso. Nào se ap
publicou nos seus sermões e persuadiu: o plicaram estes remédios: o magistrado fe
clero o atacou; foi emprazado para ir a prender os parciaes de João Hus, que f<
Roma, c expulso de Praga: elle cntào vol banido de Praga; elle se exacerbou conti
tou todas as suas vistas para os meios de a Igreja, contra o clero e contra o pap;
enfraquecer o poder do papa e do clero. foi citado para o concilio de Constançí
Joào xxiii fez pregar uma cruzada con aonde o queimaram. Seus discipulos se po-
tra Ladisiau, rei de Nápoles, concedendo zeram cm armas c se sublevaram; parti
aos cruzados a mesma indulgência, que ram exercitos contra cllcs. Esta guerra
áquellcs'quc se cruzavam para ir á Terra chamou sobre a Bohcmia todos os fiagellos
.Sancta. da cólera divina; cila fez d’este reino e de
Joào Hus atacou esta bulla e as indul parte d’Allcmanha um deserto inundado de
gências que cila promette; protesta rctra- sangue humano, c coberto das cinzas e ruí
ctar-se, se o capacitarem de que se enga nas das aldeias, mosteiros e cidades; e só
na; declara, que nem pretende apoiar La acabou quando o fanatismo se extinguiu.
disiau, nem ollender a authoridade que Se porventura, cm logar dos exercitos
Deus tinha dado ao papa; mas sómente op- enviados contra os hussitas, se tivessem
pôr-se ao abuso d’esta authoridade. . mandado á Bohcmia theologos hábeis c
> Depois d’estas protestardes, sustenta que prudentes, que instruíssem os povos, gran-
a cruzada é contraria á caridade evangé geassein a sua confiança c combatessem os
lica, porque a guerra trazeomsigo desor erros sem cólera c sem azedume, havería
dens e calamidades innumeraveis, por ser causado tantas calamidades á Bohcmia e á
ordenada a christàos contra christàos, por- humanidade a obstinação dos hussitas?
vque sendo christào o reino de Nápoles e fa As seitas fanaticas, suscitadas no século
zendo elle parte da Igreja, a bulla, que lhe precedente, já não subsistiam, e se viram
põe interdicto e o manda assolar, nào pro tão sómentc alguns fanaticos, que publica
tege uma parte, senào destruindo a outra; ram cxtravagancias, como Sikardo, os ada
que se o papa tivesse o poder de ordenar mitas, que resuscitaram cm parte as infa
•a guerra, seria forçoso, ou attribuir-lhe mias dos gnosticos, c foram desbaratados
mais luzes que a Jesus Christo, ou que a por Zisca: alguns flamengos, que quizerani
•vida de Jesus Christo fosse menos preciosa inculcar-se prophetas, e um resto de hus
que a dignidade e prerogativas dos papas; sitas, que se dissiparam nos bosques e vi
pois que elle não permittira a S. Pedro que viam nas cavernas.1
'tomasse as armas para salvar-lh’a. Pre
tendo que o papa nào fazia menos abuso
.do poder de punir, que do de perdoar, que 1 Voijez Vart. Hus et Hussites:
*
116 DISCURSO PRELIMINAR
A conquista do imperio grego não satis Assim foi o papa obrigado a observar ao-
fez á ambição dos ottomanos, que atacando mesmo tempo as regras que a politica lhe
os estados *do Occidente, se estabeleceram prescrevia como principe e os deveres que
na Hungria. Já não era tão vivo o furor a Religião lhe impunha como cabeça da
das conquistas, como nos seus primeiros Igreja. No primeiro estado, não tinha ou
estabelecimentos; mas, de quando em quan tra mira senão o seu cngrandccimcnto,
do, se reanimava: os seus projectos de nem outra lei mais que as maximas da po
guerra inquietavam toda a Europa, c ou litica; como papa e cabeça da Igreja, ti
suspendiam ou alteravam os dos sobera nha só por olijecto o bem da Religião, a
nos, principalmcntc d'Allemanha, para a paz dos christãos, a felicidade da Europa,
qual eram perigosos os movimentos dos e por lei a caridade, a justiça c a verdade.
turcos. Os summos pontifices se esforça 0 dever do cabeça da Igreja cedeu al
ram cm colligar contra estes inimigos da gumas vezes ao interesse do soberano: as
ehristandadc os príncipes christãos, mas sim se conduziu Julio ii como um prínci
com pouco efleito. Levantaram decimas so pe, o não como papa, quando intentou lan
bre o clero, que resistiu a este tributo. çar fóra da Italia os francezcs, porque o
No tempo de Carlos vm, tinham os fran- pae commum dos fieis deve evitar a guer
cczes abandonado a Italia, depois do qüc ra, e effusão de sangue, tractando igual-
se tornaram inimigos os venezianos, o papa mente bem todos os príncipes christãos.
c Sforça. Luiz xu se aproveitou d’estas di Emfiui, houve papas que empregaram o
visões para recobrar a Italia. Alexandre vi seu poder temporal e espiritual no adian
se uniu com clle, e em vinte dias se fez tamento das suas familias, ou na manuten
senhor do Milancz. ção das suas paixões: d’csta qualidade fo
O imperador Maximiliano d’Austria re ram Alexandre vi e Julio n no principio
ceava, que Luiz, unido com o papa, se fi d’este século.
zesse senhor da Italia, c transferisse a co Para fazer face aos gastos da guerra, os
roa imperial para a casa de França. Fer papas impozeram taxas sobre os bens”ec
nando temia pelo reino da Sicilia, e não clesiasticos em todo o Occideute, levantando
podia executar o projecto de senhorear-sc sommas consideráveis de todos os estados
do de Nápoles emquanto os francezcs do christãos. 0 clero as soffria a seu pesar, e
minassem na Italia. Veio pois a ser a Ita recusou pagal-as em França e na Allcma-
lia o theatro da guerra e o alvo da ambi nha, tanto que conheceu com evidencia
ção dos reis de França, dos imperadores e que os papas se serviam d’ellas para os
ãos reis de Ilcspanha até á abdicação de seus interesses temporaes.
Carlos v. Entretanto, os papas gosaram n’cstcs rei
Foi importante o poder do papa na Ita nos das annatas c de muitos outros direi
lia e cm toda a Europa pelos seus esta tos pesadíssimos ao povo c ao clero, que
dos, pelo seu, imperio .sobre o espirito dos levavam grandes sommas para Roma, em
povos, pela facilidade com que negociava pobrecendo os estados n’um tempq em que
em todas as cortes da Europa por meio ainda o commercio não reparava estas per
dos bispos, ecclesiasticos c religiosos, que das, e com todo o desvelo se impedia a tras-
lhe estavam sujeitos, c que dirigindo as ladação de dinheiro para os paizes estran
consciências dos reis, eram poderosos em geiros: em uma carta d’Erasmo se acha,
todas as cortes.' que eram visitados todos os que sahiam de
Estas vantagens fizeram buscar.com des Inglaterra, não se lhes permittindo levar
velo a alliança do papa por differentes prin comsigo mais que o valor de seis aiujelotes. 1
cipes, e não lhe permittindo os seus inte
resses guardar a neutralidade entre as
grandes potências, se via precisado a to E ra m e , ep. 6o. UAmjcIot ctoit vne
mar partido como principe temporal. monnoie d'ov de 7 deniers 3 gr.ains.
DISCURSO PRELIMINAR
mcramente uns theologos superficiacs, ou O tempo, que dilata a carreira das scien
que absolutamente o não eram, se deixa d a s e espalha a luz, vai sempre extin
ram allucinar facilmente pelos sophismas guindo os princípios do fanatismo nos pai
dos reformadores: uni dito faceto contra os zes protestantes; c assim ha nas igrejas, se
theologos, uma consequência ridicula, im paradas da Catholica, uma força, que oc-
putada aos catholicos, uma passagem da cultamente arrasta os animos para o soci-
Escriptura, mal entendida pelos commen- nianismo; e este separando do Christianis
tàdores, um abuso retomado e corrigido fi mo tudo o que a razão não comprehende,'
zeram olhar os theologos como uns igno conduz a olhar-se a razão como a unica
rantes, e a reforma coinó a restauração do authoridade a que o homem deva submet-
Christianismo. A reforma não foi mais que ter-sc.
um acto de fanatismo; ella tinha por de Ao mesmo tempo cm que estes princí
fensores homens d’espirito, sábios, cscripto- pios theologicos faziam um tal progresso-
res hábeis. nos paizes protestantes, os philosophos ce
Divididos entre si os reformadores, como lebres Bacon, Gasscndi c Descartes decla
já dissemos, nem tinham princípios segui ram a guerra contra as preoccupaçõos e
dos, nem corpo de doutrina, nem symbolo. contra a philosophia das escolas, c seoccu-
Calvino se abalançou a formal-o. Por pri pavam em conduzir os homens á indaga-'
meiro fundamento’*estabeleceu este princi ção das verdades naturacs, depois de ha-
pio commum a todos os protestantes: que a vcl-os ensinado a duvidar, c a não ter por
Escriptura Sancta era a única regra de fè, certo senão o que a razão lhes fazia evi
c cada particular o ju iz do sentido da Es dente. 1
criptura. Firmado sobre esta base, Calvino Junto este methodo aos princípios da re
affectou tirar da mesma Escriptura todos forma, havia de conduzir os espíritos a re
os dogmas da sua reforma, e fez um sys jeitar como revelado tudo o que a razão
tema de religião, cujo methodo c clareza não comprehendia, a examinar até os fun
igualavam a elcgancia do eslylo. damentos, a revelação, c a inquirir em to
Formou, pois, uma nova reforma, que dos os dogmas concernentes á Religião,,
tinha por cabeça um theologo habil, excel não os princípios claros, que provam a sua
lente eseriptor, claro logico, um espirito certeza, mas as obscuridades, que nos em
esclarecido, um sophista destro, e que a baraçam, para ter sobre estes objectos uma
estas qualidades unia uma imaginação for cabal evidencia.2
te, uma firmeza inflexível, e toda a- activi-, Por meio do commercio, que as letras
dade que dão ao fanatismo o amor de do estabeleceram entre todas as nações, que
minar e a ambição da fama: a sua doutrina cultivam a razão, se generalisarâm estes
fez rápidos progressos em todos os paizes princípios cm toda a Europa, e fazem o pri
em que se cultivavam as letras, e princi- meiro objecto, sobre o qual se excita hoje,,
pálmente na França. em grande parte, a actividade do espirito
Apoiando-se nos" mesmos princípios, em humano.
que tinha estabelecido Calvino o seu sys D’esta maneira, o espirito humano, de
tema, Socino separou do Christianismo to pois de haver esgotado todos os modos de
dos os mysterios que aquelle ainda con enganar-se sobre os dogmas e moral do
servava; e Scrveto achou não haver no Christianismo, pop dezoito séculos, foi con
mundo mais que uina substancia, e que duzido no fim d’eíles pela mesma encadea-
todos os séres não eram senão modifica cão dos seus erros a duvidar da sua ver
ções da Divindade.1 dade.
Adiuiltiam, pois, todas as seitas separa Já temos visto que esta dúvida não é
das da Igreja como unica regra de fé, a fundada na comparação que se faz dos
Escriptura, c cada particular por juiz do princípios, que estabelecem os dogmas da
sentido da mesma Escriptura. Como este Religião, com os argumentos que os com
sentido só podia conhecer-se por meio de batem; mas nas obscuridades, espalhadas
uma inspiração, ou com os soceorros da sobre alguns pontos dogmaticos, c na per
razão, o principio fundamental da reforma suasão em que se .está de dever-se rejeitar
tendia para o fanatismo, ou levava para como falso, ou como incerto, tudo o que se
um christianismo, que só havia de admit- não vê com evidencia. Esta dúvida, pois,
tir os dogmas, que a razão podésse com- póde não ter por principio senão a igno-
prehender, e o culto em que ella visse a
utilidade.
1 Voyez VExam. du Fat. t. 1.
i Voyez VExam. du Fat. t. 3. 3 Ibid. 1 .1, p . 171. etc.
,l,c .
DISCURSO PRELIMINAR í 19
rancia, ou a preguiça, porque se véem me maiores progressos entre as nações enge
nos cousas, c com menos clareza á medida nhosas e frivolas, incapazes da circumspcc-
que alguém é mais ignorante e preguiçoso. çào, que pede o exame, c embuidas da ma
Igualmente é certo que o pyirhonismo re xima de que se não deve receber por ver
ligioso do nosso século ha de fazer muito dadeiro senào o que se vé claramcnte.
cto Padre contra cllc, por isso como o re sigo n’esta narração, porque 6 fundada em
curso estava no temporal, acolheu-se a Car legitimas provas, creram no monge de Wi-
los v, exaltando-o, segundoosseus princípios, temberg sobçc sua missão divina, como os
porque todo o christao era Sacerdote, Bispo, arabes creram cm Mahomet sobre suas en
c Papa, d’ondc vinha sua supremacia pelo trevistas nocturnas com o Anjo Gabriel:»
poder, e notando-lhe a necessidade de fazer d’cste modo Luthero caminhou a seu fim
entrar o Papa na razão, ainda á ponta da obedecido por elles, c secundado de Melan-
•espada! Um tal monstro, carregado de cri chton para escrever impiedades, (1'Ulrico
mes, chamado reformador da doutrina de para manejar a arma do ridiculo, porque
Christo, a tanto se atreveu com auxilio dos a reforma d’um monstro tão escandaloso
homens da politica, para quem os interes não podia ser melhor plantada do que por
ses sào verdadeiro Deus! Fulminado pelos um impio, c por um editor de caricaturas;
raios da Igreja, em 15 de junho de 1520, mas o que parece impossível é que a se
não hesitou diante de torpeza alguma, ap- riedade e o temor de Deus, que deviam sen
pcllou da bulla para o concilio geral, ta tar-se ao lado dos soberanos, os desampa
xando o Summo Pontifice de juiz iniquo, rassem a ponto de sc submetterení a tudo
licrcge, apostata, inimigo de toda a Eseri- quanto deshourava o espirito humano, que
ptura Sancta, c blasphemando da Igreja Ca é isso o que sc apresenta na origem c pro
tholica c dos concilios; passou d’aqui a quei gressos da seita de Luthero! Entretanto na
mar na praça pública os livros de direito dieta de Forms de 2.'] d’outubro de 1520,
canonico, a bulla, a Summa de S. Thomaz, apesar das pomposas palavras do impera
c os escriptos dos catholicos que o coude- dor Carlos v sobre a piedade de seus avós
mnavam; tocou a rebate contra o Pae com- e sua, o impio sahiu são e salvo para se
mum dos ficis, e contra estes, c se decla mear seus erros; no anno seguinte a uni
rou chefe d’uma seita abominável, fundada versidade de Paris condemnou esses erros
sobre a doutrina, que teve vontade de es (já um pouco tarde), c o imperador, receando
tabelecer! E os poderes da terra surdos a talvez as consequências de sua condescen
tudo isto! mais claro, protegendo tudo isto, dência passada em relação aos domínios de
porque as suas vistas eram reunir, como Ilcspanha por causa da pureza orthodoxa de
no paganismo, o Sacerdocío ao império, que seus habitantes, mandou queimar os livros
o Christianismo nào comporta pela sua es do supposto reformador; porém Luthero
piritualidade, mas que por isso mesmo se zombou e progrediu, depositando.o sacer
pretendeu sempre, visto que os politicos e dócio nas mãos dos leigos c das mulheres,
os jurisconsultos ha perto de dous mil an isto é, extinguindo o sacerdócio, tomou para
nos ainda não poderam conceber a natu o manter Catharina de Bore, religiosa, que
reza da religião do crucificado, c ainda me
nos consentir que alguém tenha qualquer maus os crimes que elle proprio obra: Lu
genero de dominio sobre elles! thero, d'esse modo, acceitando o fatalismo,
Com prazer incrível foi recebido o seu negou o livre arbitrio; (Vahi vem a impia
livro abominável do Captiveiro de Babylo- ideia que nos deu da Divindade, absoluta-
nia, não menos que a carta insolente, cs- mente idêntica á de Mahomet: todo o syste
cripta por elle mesmo aos Bispos, na qual ma de Luthero, em sc estudando e compa
sc chamou Martinho Lulhero por graça de rando, apresentará absurdos indignos do
Deus, Ecclesiastico de Wittembcrg, decla homem (e ainda mais de quem sc diz chris-
rando-lhes que havia tomado esse titulo com tão), e sua identidade com o do islam, pelo
o mais alto desprêso d'elle e de Satanaz:para que Solimão II estimava o novador, porque
que nào allegassem, dizia, ignoranda de sua ninguem mais que elle favorecia a sua causa.
nova qualidade d. Evangelista, e se não atre Sem agora lembrar os males espirituacs
vessem a informar-se ou a julgar de sua causados á Igreja de Deus, jjor esse torpe
doutrina, porque nem dava razão d'cila, nem systema, não posso eximir-me de fazer re
perm itlia que fosse julgada por elles, nem cordação do muito que. a victoria de Lepanto,
mesmo pelos anjos! «Os barões allemãcs, do anno 1571, impediu os desastres tempo-
escreveu o abbade Rohrbacher,1 a quem raes da christandadc, porque o novo engran-
decimento do Turco, pelo favor d'algumas
1 Este sabio comparou perfeitamente a cortes da Europa e de similliante systema,
doutrina de Luthero á de Mahomet; e muito era para causar serios cuidados. S. Pio V
■bem, porque o falso propheta da Arabia es promoveu a expedirão, que teve um tão fe
tabeleceu o fatalismo, e tirou a liberdade liz resultado, não só peta boa direcção que
ao homem, por isso suppondo Deus author lhe fez dar, mas pelo alto meivcintento de
d as boas c más acções, o fa z castigar nos suas orações a Deus: penso assim.
122 DISCURSO PRELIMINAR
fugiu do seu mosteiro com outras aposta avenças com aqucllc principe, convidou o
tas, e mudou a face das cousas, convertendo turco Solimão u para assolar as terras dos
os ecclesiasticos em operarios, e todos os christàos, c esto veio contra a Hungria, c
homens c mulheres cm pregadores; e fa pôz cerco a Vienna; Henrique viu ulngía-
zendo apostatar monges c monjas para ca- terra, que pelo seu livro contra Luthcro
sar-se, sendo um dos principacs d’aquellcs mereceu do Sancto Padre o nome de defen
Fr. Alberto de Brandbourg, mestre de ca- sor da Fé, 1 mas que depois, repudiando
vallcria teutonica, que roubou á Igreja c sua mulher contra as leis da Igreja, para
a essa cavallcria o estado da Prússia, per- tomar outra, e sendo por isso cxcommun-
jurando, arvorando-se cm soberano tempo gado, se constituiu pontifice dTnglatcrra, e
ral, e casando-se: a doutrina de Luthcro, admittiu em seus estados o que antes re-
posto que sensual como a de Mahomet, ape prchendcra; mais adiante sua filha Maria
sar dos muitos sequazes, precisou accender restaurou quanto pôde o templo destruído:
a rebcllião, c serviu-se das armas para se porém Isabel, a espúria, seguiu as traças do
assentar com solidez, porque seus discipu pac, c sem ser virgem nem casada reinou
los se guerrearam uns aos outros, assolan e exerceu as maiores tyrannias com os ca
do os paizes mais florescentes d’Allcmanha, tholicos, excedendo o pae, e não conhecendo
perpetrando sacrilégios inauditos nos tem igual senão em Nero e Dioclcciano: em
plos c mosteiros, e entregando-os á pilha Ilespanha já desde o século antecedente,
gem, bem como os castellos: uma sociedade debaixo do pretexto dc religião se havia es
sem centro, e puramente anarchica, que re tabelecido a inquisição contra os judeus e
sultados devia ter? a scisào, separando-se contra os hereges, porém mais naluralmcntc
de Nicolau Storkio para ser patriarcha dos para se exercer uma influencia politica nos
anabaptistas, que negaram o baptismo aos negocios da Igreja, como acontecia em Fran
meninos, ô persuadiram a igualdade e li ça (ha mais tempo), e persevero u commet
berdade absoluta dos homens; André Car- iendo horrores cm nome de Jesus Christo;
lostadio, pac dos sacramentados, que ne do mesmo modo se levantou n’csto século
garam a Presença Real Eucharistica, de em Portugal, c debaixo das idênticas bases
que foram os principaes Zuinglio c João contra os catholicos em Allemanha, Hol
Calvino, estabelecendo cada qual seu sys landa, Suécia, Noruega c Inglaterra, como
tema e partido; alraz d’elles Miguel Ser- no Japão; os ministros eram pela maior
veto, que disputou com todos, dogmatisou parte jurisconsultos ou politicos, por isso
contra os mysterios da Trindade e da Con- os maiores c mais hábeis instrumentos da
substancialidadc do Yerbo, e foi suppliciado politica e da supremacia temporal na Igreja;
por ordem dc Calvino; e os luthero-calvi- c os processos, como o seu texto apresenta,
nos, que fizeram um amalgama das suas provam a descrença c impiedade d’csses
seitas, hostilisando-se uns aos outros, e to homens: finalmente, para cumulo de todos
dos á Igreja dc Deus, assolando muitos paizes os males, no anno 1515 publicou Machiavcl
catholicos, principalmente a França, que um livro cm que reduziu a, systema bem
soflreu muito dos lulheranos, c ainda mais ordenado, para servir dc lição aos princi
dos ealvinistas, e senhoreando-se d’outros pes e aos politicos, as doutrinas do despo
fóra da Allemanha, como a Hollanda, em tismo propaladas pelos anteriores politicos
que os ultimos assentaram seu throno. Por e jurisconsultos, c em que- se sanccionam,
outro lado differentes soberanos em Allema- além d’outros attentados:— 1.° a falta dc fé-
nha, o da Suécia e outros se alistaram de e de justiça nos soberanos; 2.° que a poli
baixo das bandeiras da heresia; protestando tica ou razão do estado não é subordinada
os germanos em 1529 contra as decisões á religião nem á moral christã, mas que o
da uieta de Spira (pouco favoráveis aos in- principe c o supremo juiz da explicação c
novadores), d’onde lhe veio o nome de pro da applicação d’essa moral!!! Machiavcl
testantes, como a todos os sectarios d’cssas morreu em 1527, depois de ter feito os
malditas doutrinas, que preferiram a des- maiores males á religião e á humanidade,
honra ao nome de bons christàos. Por or e não tractou da restituição até á hora ex
dem dc Carlos v os seus generaes assola: trema; porém acabou com demonstrações
ram Roma, excedendo os irAlarico; sacri dc christão, recebendo os Sacramentos da
legamente attentaram contra a liberdade Igreja, c dando o ultimo suspiro nos braços
do SummoPastor; e elle mesmomais adiante,
pelo seu interim á moda dos imperadores
do Oriente, concedeu aos hereges d’Alleraa- 1 Que apesar de ser tm titulo dado pela
nba a liberdade da religião; o famoso Fran Summo Pontifice, d'elle usam seus succes
cisco i de França, em Yirtude dc suas des sores.
DISCURSO PRELIMINAR 123
dos sacerdotes; mas seria tudo isso fingido tharina de Gênova, os illustres Sacerdotes
para dar mais força a seus erros? é o que Fetzel, Ecicio, Einser, c Prierias, que com
se não sabe: appcflcmos entretanto para a bateram contra Luthero, Fr. Gomes de Lis
misericórdia do Senhor, que teria compai boa, Bispo de Nazareth, Thomaz Moro, Tho
xão de sua alma, c lhe faria graça, porque maz de Villa-Nova, Sancto Ignacio de Loyola,
cm qualquer hora que o pecca dor se arre- o Cardeal Polo, Luiz Lippomano, João Luiz
ponda o recebe como pac carinhoso. A Vives, Diogo de Paiva d’Andrade, Fr. Jero
Igreja nunca teve século de tanta tribula- nymo da Azambuja, Fr. Francisco Foreiro,
çao, mas venceu, e carregada dos trium os Bispos João Soares, Fr. Gaspar de Leão,
phos que n’ellc obteve, passou avante glo Fr. Gaspar do Casal, Fr. Bartholomcu dos
riosa, porque Deus lhe assistiu, auxiliando Martyres, c Fr. Jeronymo Seripando, de
seus martyres a derramar até a ultima gôta queni mais tarde farei menção; os Sacerdotes
de sangue pela confirmação da Fé; cm In João d’Avila, Fr. Heitor Pinto, c Fr. Tho-
glaterra (n’csse reino até então modello de mé de Jesus, a virgem Saneia Thereza de
orthodoxia c piedade, c que só uma vez Jesus, S. Carlos Borromeu, Fr. Luiz de Gra
peccoul) Thomaz Moro, chanceller do es nada, c S. João da Cruz; não foi inferior
tado, João Fishcr, Bispo de Rochester, c n’este século o zelo dos pastores nos Syno
Cardeal da Sancta Igreja de Roma, os Prio dos, de que, além de muitos contra Luthero,
res do Ermo Cartusiano de Londres, Axi- e outros heresiarchas, merecem particular
holm c Belval com uin Sacerdote secular, menção o de Constantinopla contra os er
Reinaldo, monge de Sião, e outros religiosos ros de Calvino, o de Diampcr no Malabar,
da ordem de S. Bruno, os Parci, conde de convocado e presidido pelo metropolitano
Northumbcrland c seu filho o conde d’Arun- de Goa Fr. Aleixo de Menezes para refor
del, Cunthbcrto, Sacerdote, e vinte outros ma dos costumes; o penúltimo geral Late
fieis, Edemundo Campeano, Roberto Pcr- ranense, presidido pela Sanctidade de Ju
sons, Rodolfo Sherwln, Lucas Kirby, e lio ii, a fim de reprimir a audacia do con-
Eduardo Risthon, Sacerdotes, e Emerson, ciliabulo de Piza, tido ao raiar do século, e
coadjutor temporal da Sancta Companhia de reformar os costumes; porém o mais fa
com outros Sacerdotes c leigos, foram sup- moso é o Tridcntino, ultimo geral até ao
pliciados por ordem da inquisição de Hen presente, presidido pelos legados dos Sum
rique viu, e de sua filha Isabel; na Hollan- mos Pontifices Paulo m, Julio m, c Pio iv
da dezenove fieis, entre Sacerdotes e lei contra todos os erros c heresias até então
gos (onze dos quaes eram filhos de S. Fran propaladas pelo diabo; c fóra dos Synodos
cisco), acabaram feitos em pedaços pelos se tornaram notáveis por seus esforços em
calvinistas: no Japão, desde uma escrava beneficio da religião os vigários de Jesus
ate o Sacerdote Baptista, muitos obtiveram Christo a começar de Pio m, successor im -.
a palma das mãos dos idolatras: innumcra- mediato d’Alexandrc vi, e que apenas du
veis foram os confessores que por sua alta rou vinte c seis dias, até Clemente vm, dos
piedade deram testimunho contra todas as quaes se se exceptuarem esse Pio m, Ur
seitas, assim os Bispos Thomaz de Villa- bano v ii e Innocencio íx, que viveram pou
Nova, Paulo d’Arezo, e Carlos Borromeu; co, todos pelejaram com valor c constância
os Sacerdotes Ladislau de Gielniow, João para manter o deposito sagrado contra os
de Liccis, Jeronymo Emiliano, Caetano de poderes da terra; c dignos de particular re-
Thcanna, o grande Ignacio de Layola, Pe commcndação foram pelas sublimes virtu
dro d’Alcantara, Francisco deBorja,o«oro des de S. Pio v, Marcello i i , c Innocencio íx
Paulo Francisco Xavier, Luiz Beltrão, Fi- pela integridade da vida; Leão x pela scien
lippe Nery, Simão Lipnieza, Nicolau Factor d a ,dc que deu provanapropriabulladecon-
c João da Cruz; os conversos Vicente de demnaçao de Luthero; Gregorio xm pelos es
Aquila, João de Deus fportuguez), modello forços na propagação da Fé em regiões as
da caridade o penitencia, Felix de Cantali- mais distantes; Júlio m pelos de reconquis
cio, Reynero, Salvador, Bento de Philadel tar á Igreja filhos errantes, como os syros;
phia, Paschoal Bailão, c Fclix de Apparicio Clemente vhi pelos que empregou em àttra-
(estes seis dos menores); c as castas vir hir á penitencia pelas graças Apostólicas,
gens Magdalcna de Paratiori, Margarida de no augmento do culto, e na diligencia dc
Ravenna, Stephania Quinzani, Catharina propagar os livros sagrados expurgados de
Mathei, Angela de Brescia, a prodiçiosaThc- erro; Julio ii pela cflicacia que poz cm li
reza de Jesus, e Catharina de Ricci; e as bertar a Igreja da dependencia dos princi
sanctas viuvas .Catharina de Gênova, Gen- pes italianos, e em restabelecer a liberdade
tila de Ravenna e Catharina Albcrtoni; dis- dTfalia; e Xisto v pela inexorável justiça
tinguiram-se por seus escriptos Sanctá Ca com que puniu crimes de toda a especie;
m DISCURSO PRELIMINAR
Pio ix lia pouco lançou no cathalogo dos tc, Gabriel dc Magalhães, V. Fr. Antonio
beatos; assassinados pelos islamitas cm Afri das Chagas, .Luiz Thornazino, Fr. Fran
ca João do Padre, Sacerdote, cm Bysancio cisco de Sancto Agostinho dc Macedo, V.
André de Chio, além d’outros; pelos licrc- Bartholomeu do Quental, Rance, c dc mui
ges na Ethiopia não poucos fieis, demais tos outros, como os illustres seculares,
uaqucjles que soíTreram a expulsão e os Leão Alacio c Carlos dc Frcsnc, senhor
horrores da miseria; pelos calvinistas Felix do Cange: assim triumjihou também pelo
de Siugmaring; c com o ferro dos hereges zelo dc seus pastores, a frente dos quaes;
scismaticos na Lithuania Josaphat, Bispo como luz refulgente, apparcceram os Sum
de Poloczk: pela sanctidadc de seus con mos Pontifices desde Leão xi, successor do
fessores, os veneráveis Bispos Turibio de Clemente viu até Innocencio xii, devendo
Lima, Francisco de Salles, de Genebra, João entre cllcs recordar-sc com a mais saudosa
dc Ribeira, de Valenda, e Gregorio Luiz memoria Paulo v, Gregorio xiv, Innoccn-
Barbadigo, dc Padua; os illustres Sacerdotes cio x, Alexandre vn, c Innocencio xi, ao
Francisco Carrocido, fundador dos clérigos lado dos quacs pelejaram com valor apos-
regulares menores, André Avelino, Fran tolico os Bispos Thcotonio d’Evora, S. Turi
cisco Solano, José de Lconissa, João Baptista bio dc Lima, Fr. Agostinho da Cruz Braga,
da Concciçfio, Camillo de Leílis, Lourenço Luiz dc Cerqucira, no Japão, S. Josaphat,
dc Brindes, que chegou ao termo da vida Bispo de Poloczk, S. Francisco de Salles,
quando estava Núncio cm Lisboa, Si mão dc Isaac Habert dc Uabres, AÍTonso Mendes, da
Roxas, Miguel dos Sanctos, João Francisco Ethiopia, e Fr. João Thomaz de Rocaberti,
Regis, Pedro Fourier, José Calasans, fun de Valencia; os Sacerdotes S. Francisco So
dador das escolas pias, Pedro Claver, o lano, Jeronymo d’Angelis, Diogo dc Carva
grande Vicente dc Paulo, fundador da con lho, Jacqucs Yuky, Matheus Ricci, S. Felix
gregação da missão, c José dc Cupcrtino, dc Sigmaring, André Duval, S. João do Pra
os penitentes conversos da ordem dos me do, S."João Francisco Regis, Diogo de Mat
nores André Ilibernon, Seraphim dc Mon- tos, Beato Pedro Fourier, Antonio Fernan
tegranio, c Bernardo de Corleonc, o bom des, o grande S. Vicente de Paulo, S. José
Affonso Rodrigues, coadjutor temporal da dc Cupcrtino, e Antonio de Gouveia, Gabriel
Sancta Companhia dc Jesus, o pio Jacintho dc Magalhães, c o beato João de Brito: a
Galanti, as castas virgens Maria Magdalena, Missão Sancta progrediu d’um modo incrí
de Pizzi, Rosa de Lima, Anna Maria de Je vel na Ethiopia, Japão, c Corca, dando ao
sus, Joanna Maria Bonomi, Jacinlha Maris- Christianismo grande numero de martyres
coti, fundadora das oblatas de Maria, e as e confessores; e apesar da opposição do pa
virtuosas matronas Maria Victoria Fornari, ganismo e da heresia, que fizeram decretos
fundadora da Annunciada Celeste, c a ba- uexterminio e de morte, os triumphes sub
roneza de Chantal Joanna Francisca Fre sistiram, e a semente evangélica ficou lan
ni iot, fundadora da Ordem da Visitação: çada sobre a terra para produzir bons fru-
pela sciencia e cscriptos dos Bispos Bclar- ctos, quando aprouvesse á Divina Clemên
mino dc Capua, c Cardeal da Sancta igreja cia; na China, Paraguáy, e outros pontos
de Roma, Luiz de Cerqucira de Tebcriades, da America, onde obtiveram muita gloria
S. Francisco de Salles, de Genebra, Fr. An os filhos dc Sancto Ignacio, dos quaes lem
tonio de Gouveia, de Cyrene, Fr. Thomaz brarei o padre Claver, que se tornou bem
do Faria, de Targa, Agostinho Barbosa, de notável por seu zelo, piedade, e humildade;
Ughento, e Fr. João Thomaz dc Rocaberti entre os islamitas em África, onde o fervor
de Valencia; dos Sacerdotes Baronio, Car dc S. João dc Prado se elevou ao mais alto
deal da Sancta Igreja Romana, o venerável grau; no Madagascar e outros logares cm
Antonio da Conceição, Sebastião Barrades, que os filhos de S. Vicente de Paulo deram
Gabriel da Costa, Diogo dc Carvalho (mar a conhecer o espirito celestial que os ani
tyr no Japão), Cosme de Magalhães, Fr. Af mava; entre os pagãos no Madure, a quem
fonso da Criiz, Fr. Gregorio das Chagas, o beato João dc Brito deveu subir á glo
Simão Vaz Barbosa, João Roswide, André ria do martyrio; e por ultimo entre os he
Duval, Cornelio Alapide, Fr. Abrahão Bzo- reges, aos quaes S. Felix dc Sigmaring pro
vio, Diniz Petavio, Francisco Hallier, Fr. vou que os catholicos sabiam ter resignaçao
Agostinho Calmet, Fr. Lucas Wadingo, S. para morrer por Christo. Passemos ao sé
Vicente de Paulo, João José Surin, Filippe culo 18.°: a obra de Luthero progrediu ac-
Labbe, João Bollando, Odorico Rcinaldo, Fr. crescentando, dividindo e confundindo seus
Fernando Ughcllo, Fr. Antonio de S. Vi elementos: estendendo-se desde o Saxe para
cente, Clemente Gallano, João Bona, Car o nascente, pôde introduzir-se na Palestina
deal da Sancta Igreja Romana, Carlos Coin- e n’oulros domínios do islam; para o sul
DISCURSO PRELIMINAR 127
chegou ate á Occeania; para o poente levou essa depravada seita, que passou sem ser
suas doutrinas á America; e para o norte combatida por Bossuet, c apoiado por Pas-
estabeleceu-se na Polonia, porque depois da coal Qucsncl, que se arvorou em chefe de
morte de Joào Sobieski, o salvador da Al- partido, c por muitos membros da Congre
lemanha, cila admittiu por soberano um es gação do Oratorio (entre os quaes não tem
trangeiro protestante, que se fez catholico o ultimo logàr o padre Antonio Pereira de
para dominal-a; c com seus costumes des Figueiredo), c de quem foram fautores os
graçados occasionou a licença c a heresia; Bispos Montazct, de Leão, Fitz-James, de
mas cm castigo da eleição, este desgraçado Soisons, Colbert, dc Montepcllier, Bossuet
paiz veio a desmembrar-se para ser présa (sobrinho), de Troyes, Caylo d’Auxerre, per
de hereges e scismaticos; a obra dc Luthcro, verteu a França, fez grande numero de pro
senhora do poder na Dinamarca, Suécia, selytos nos estados catholicos, quiz innovar
Noruega, llollanda e Inglaterra, cm muitos ritos contra as determinações da Sancta Sc,
estados germanos, c nas suas colonias de arredou da frequência dos Sacramentos, por
França, cada dia viu mais possantes os fun que o seu principio de perfeição é abster-se
damentos dc sua existência—a anarchia e d’clles, c levantou o desastroso scisma dc
immoralidadc,—porque a paz dos luthera- Ultreckt por um dc seus membros o orato-
nos propriamente taes, dos anabaptistas, riano Pedro Codde; o phocianismo, dc mis
calvinistas, zuinglianos, anglicanos, e qua- tura com a impiedade do poder temporal,
kers; se foram alimentando n’umas partes sentados sobre o throno da Rússia, conti
c nascendo em outras os pictislas, os mo nuou levando a sua influencia perniciosa
nos, os saltantes, os mergulhadores, os aria aos confins d’este vasto imperio, onde a jc-
nos, .os unitários, os latitudinarios, os soci- rarchia ecclesiastica tem cessado d’existir,
nianos, os episcopaes, os presbyterianos c interrompida a successão pela entrada de
muitos, que a modo dos atmos’d’Epicuro, lobos em Iogar de pastores legitimos:1 o is-
se preparam, se chocam, e se misturam lam em Africa proseguiu arvorado cm pi
s e m . cessar, porque as pedras angulares rata, para fazer escravos os christãos, e no
cVcssc edifício são a vontade i 11imitada e a Oriente perseguiu a Igreja de Deus como
liberdade absoluta dos individuos: ao lado em toda a parte; c o paganismo suppliciou
(Teste transtorno d’ideias, que prova evi- atrozmente Sacerdotes, e fieis na Corca, n<
dentemente a miseria do homem, estava a China, e estados d’Anam; mas nada d*iss(
seita dos jurisconsultos e dos politicos, de é comparável cáscenalastimosa queapseudo
cidindo dos destinos da religião e da hu philosophia trouxe ao meio da França e da
manidade, decretando a desobediencia aos Europa inteira, apresentando a degenerarão
decretos da Igreja, ou perseguindo, em nome completa da intelligencia humana, c de que
de Christo, os dissidentes verdadeiros, se só houve exemplo na proximidade da época
não supposlos: c em nome dos reis, senão cm que se verificou o grande facto da Re-
de sua propria authoridade, os catholicos, dempção do genero humano; c se n’cssa
secundando essas maldades, Frederico ri, da não fosse universal similhante degenerarão,
Prússia, José 11, d\Allemanha, ambos impios, a do fim do seculo 19.° a teria excedido,
Catharina, da Rússia, adultera e regicida, os porém Deus não quer outro igual, senão á
ministros d’outros tres monarchas, liccncio- vespera do julgamento de todos os homens;
sos e fracos dous, cbem condescendente um ;1 na verdade os delírios de França foram su
fomentando o espirito superficial c irreli periores aos de todo o mundo, n’aquella
gioso do século com suas obras Dupaty, época; comtudo na França mesmo, e em
Montcsquicu, e o mau Bispo João Nicolau,
de Hontcim, discipulo dcVan-Espen, debaixo 1 Em 1588 Jeremias II', Patriarcha pho-
do nome dc Febronio, e tendo força de lei ciano de Constant inopia, foi expulso desta
a s doutrinas dc Machiavel: por outra parte cidade pelos turcos; e acolhendo-sc á bene
o jansenismo, fazendo causa commum com volência dos czareSj elevou a Metropole dc
Moscow a Patriarchal, collocando seu pre
1 Os aconte.cimentos da bulla da Canoni-lado depois das Prelados das Patriarcfiaes
sação de S. Vicente de Paulo, o maior adversa do Oriente, e tornando-o independente do By-
rio dos jansenistas protegidos pelos tribunaes, santino: assim passaram as cousas até 1703,
das outras anteriores Vineam Domini, Uni em que essa dignidade Patriarchal foi abo
genitus, e da posterior Auctorem Fidei; e lida, e a substituiu uma commissão impe
os factos da inquisição e da extineção dos rial dc negocios ecclesiasticos, presidida por
jesu ítas são prova oastante da arroganda um coronel de cavalleria, ajudante d'ordens
e impiedade que no seculo 18.° dominavam do czar, e chamada sancto-synodotH É até
os poderes da terra. onde pôde chegar ò escarneo do sagrado!!!
128 DISCURSO PRELIMINAR
toda a parte, apesar dos esforços da impie positivo, como na abolição dos thronos; re
dade, universaes nâo foram as loucuras, e bentou essa revolução em 1789, e não tar
para o provar bastariam os martyrios, as dou a mostrar sua origem c fins, porque
perseguições, os desterros, e as desgraças a constituição civil do clero, redigida pelo
não so de milhares d’individuos, mas de mi advogado jansenista Camo, foi approvada
lhares de familias! 1 Desde o século 17.° pela assembléia constituinte, Luiz xvi a as-
o materialismo c o fatalismo em França, signou cm 24 d’agosto dc 1G90, c logo a
Inglaterra, Allcmanha e outros paiz.es iam França catholica sc recusou a acccital-a; mas
tendo acceitação, e começaram a dcclarar-sc a impiedade foi vencendo desde que o cura
ivestc de que ora tracto sem rebuço; Spi Gregorio apostatou com os Bispos dc An-
nosa c Bayle abriram o caminho, c segui tun, Talleyrand, e de Lydda, Gobcl; c obteve
ram-se por um lado Bolingbroke e Woor- completo triumpho cm 10 dc novembro de
ton com outros muitos inglezcs; por outro 1793, em que na propria cathedral dc Pa
Rousseau, Mirapaux, Mablv, Fontenellc,Di- ris sc escarneceu da Divindade, adoran
derot, Alcmbert, Buffon, Voltaire com os do-se a deusa da razão!!! D’aqui em diante
incredulos da encvclopedia, por outro Fre que se esperava dos loucos dominadores
derico ii, Maupertíiis e o marquez d’Argcns, de França? a desconjunoção da ordem ci
que depois se arrependeram, Toussaint e vil, a começar pelo parricídio dc seu sobe
la Mettric; a par d’estes conspiraram a ma- rano! E que mais? assassinarcm-sc uns aos-
çonaria d’Inglaterra, importada a Paris no outros c levar a nação ao estado mais anar-
tempo da regencia, e o illuminismo allemâo, chico que a terra ha visto, até que um ho
que Weishaupt estabeleceu aproveitando mem pôz termo a essas inauditas desor
os elementos maçonicos, c arvorando-sc cm dens. 1
chefe com o titulo de commandantc geral
dos escravos aue tomam anuas para reivin ços para o acabar; nem o atheismo nem a
dicar liberdade contra a republica Romana; deismo poderam contra elle; c essa religião
7ue Zwach coadjuvou poderosamente, e a nova, de que a politica necessita, e que a
que Kniggc deu a ultima fôrma, adoptando a chamada philosophia tem pretendido esta
todos estes perdidos a maxima dos dous belecer, ainda não o substituiu: o que existe
grandes impios Diderot e Voltaire: «enfor e se não ha de acabar, cmquunto os sobera
car o ultimo rei com as tripas do ultimo nos, attentando por seus verdadeiros inte
Sacerdote;» e finalmente o philosophismo resses e dos povos confiados a seu mando,
de Yolf, ou amalgama das doutrinas dc Loi- não estabelecerem uma cruzada para salva
bnitz e .Descartes, c o dc Kant, ou a con ção das sociedades, c a instabilidade abso
ciliação do scepticismo de Humc com o fa luta a que os innovadores tein sujeitado tudo;
talismo de Pryestlcy; as sociedades secre e esse ç o castigo de suqs miserias, porque
tas estabelecidas por toda a parte, as esco nunca souberam acertar; e se alguma cousa
las acceitando taes doutrinas, e os cscriptos com o seu nome conseguiu a duração d'an
propagando-as a todo o risco, auxiliando-se nos, c porque os aulhores não foram elles.
dos desvarios do poder temporal, produzi 1 Napoleão. Estou bem longe dc querer
ram os eíleitos desastrosos da revolução fazer a sua apologia, porque também perse
franccza, e de todas as posteriores cm que guiu a Igreja de Deus; mas em castigo foi
só se tem tido mira na destruição do Chris morrei' desterrado sobre um rochedo no meio
tianismo 2 c de todo o principio religioso do Occcano. Anw as antigas dynastias, e de
sejava vcl-as reslituidas, por isso não rendo
1 O protestante, St arde, segundo o ab- homenagens áquelle famoso general; mas por
bade Rohrbacher, disse que a revolução fran- outra parte o meu coração é muito mais at-
ceza, mesmo no que tinha de mais horrível, trahido pela sanctidadc do Christianismo;
era filha natural do philosophismo, como por isso não duvido confessar que as ihal-
este o era do protestantismo, reconheceu e dades dc Philippe, bello, Carlos VII e Luiz
contestou nos pseudo-philosophos modernos XI, a corrupção de Luiz X V , e a conde-
um a conjuração formada contra a religião mnação do episcopado francez pelos conse-.
e contra o estado; e fez vêr que p a ra se exe Iheiros (Testado no tempo de L uiz Philippe,
cutar\ um dos principàes meios foi a extinc- bem poderam ser a causa da queda fatal da
ção dos jesuítas, e a sua substituição pelas dynastia dc Hugo capeto em França, como
sociedades secretas, de illumina dos em Alle- a iniquidade de Napoleão para com o chefe
manha, e de franc-maçõcs em França, con da Igreja de Deus foi a causa da extineção
cluindo com esta notável allocução aos so da sua desccndmcia. Pertence á sua fami
beranos «et nunc, reges, intclligite.» lia o soberano actual de Franca, c verdade,
2 Ainda dura, apesar de todos os esfor- mas como tem estado longe dc ser inimigo
DISCURSO PRELIMINAR 129
Luctou a Igreja de Deus contra tantas com outros Bispos, Sacerdotes o fieis: en
perseguições, oppondo, como suas prbprias tre os confessores que a Igreja colloca so
armas, a constanda dos martyres, a piedade bre seus altares, mencionarei o Bispo Af
dos confessores, o zelo dos pastores, a sabe fonso Liguori, e os Sacerdotes José Oriol,
doria dos escriptores e o clamor dos mis Boaventura de Potenza, José Maria de Tho-
sionários, que cm toda a terra, segundo o maci, Francisco de Pozadas, Francisco Je-
exemplo dos Apostolos, deram testimunlio ronvmo, João José da Cruz, Angelo d’Acri,
de Christo Deus c Redemptor do genero Leonardo de Porto-Mauricio, o converso Ni-
humano; derramaram puro sangue confes colau de Longobardi, e a virgem Verônica
sando a Fé, ás mãos dos idolatras na Corca, Juliani, abbadcssa Scraphica: mostrou-se o
os irmãos Paulo In c Jaeques Kuan; na Chi zelo dos pastores nos Synodos, de que me
na Pedro-Martyr Saus, Bispo de Maricastro, recem particular memória o Romano de
os Sacerdotes Royo, Alcober, Serrano, Dias, 1725, e o de Baltimore*de 1791 sobre ne
Tristão de Attenis, e Antonio Henriques, e gócios disciplinares; c fóra d’cstas-sanctas
o catcchistaKo-hoitgcn; nos estados do Anam reuniões devem contar-sò tantos illustres
o Sacerdote Buccharclli cm companhia de Vigários de Jesus Christo, quantos em se
nove fieis e outros Sacerdotes Bartholomcu rie successiva occuparam a cadeira de S.
Alvares, Manoel d’Abreu, Vicente da Cunha, Pedro, como foram Clemente xi, que prin
João Gaspar Cralz, Malhous Affonso, Gil de cipiou no século antecedente, e mandou ex
Frederico, além d’óutros; e ás mãos dos im pedir as duas famosas bullas Vineam Domini
pios cm Paris foram massacrados uns du e Unigenitus contra osjanscnistas; Innocen-
zentos e vinte ecclesiasticos, eptre os quaes eio xiir, excellente por sua doutrina, inte
é necessario lembrar os Bispos d’Ar!es, João gridade de costumes e devoção ao Sanctis
Maria Dulau, o de Saintcs, Francisco José simo Nome de Jesus; Bento xiu. notavel pelo
de Ia Rochefoucauld, c seu irmão Pedro seu amor á rcctidão e ao culto; Clemente
Luiz de Bcauvais, e o Sacerdote Francisco xii, virtuoso e amigo da paz e da devoção;
Luiz Kebert, superior dos eudistas; em Ver- Bento xiv, illustre pela sabedoria e cscri-
sailles o senhor de Castellane, Bispo de Mon ptos; Clemente xiu, de quem a bondade c
de, coni grande multidão de prisioneiros; a moderação se tornam credoras d’alto elo
em Reims, Estevão Carlos Pacquot, cura dé gio; Gemente xiv, digno de piedade pela
S. João, e muitos outros; do mesmo modo tortura em que o pozeram os poderes da
que n’outros logares se foram multiplicando terra e os impios para extinguir osjesuitas,
as coroas, subiu ao Céo com a gloriosa pal c que deu exemplo da solicitude pela Igreja
ma, extenso numero de religiosas de diver n’essa messa extineção, porque previu, e
sas ordens, entre as quaes as madres The- bem, que Portugal, Hespanha, França, c
reza de Sancto Agostinho, Thereza Conso- Nápoles abraçavam os erros de Luthcro sem
lon, e Margarida Bonct; c posto que não rebuço se nãó o fizesse; o venerável Pio vi,
obtivessem o martyrio, soíTreram coni resi que mandou expedir a bulla Auctorem Fi
gnação as mais violentas perseguições dos dei contra o jansenismo, e que muito sof-
hereges, os Bispos Jaeques Gordon, e Ale freu da impiedade; e Pio vii, que mais tarde
xandre Smit, e os Sacerdotes Gordon, Ca- veio a ser desterrado e a padecer tributa
meron, e Maitland, e dos poderes da terra ções pela casa de Deus; ligados ao centro
e do jansenismo, o venerável Bispo de Pa a união da Igreja Catholica pelejaram- os
ris Christovão de Beaumont, e muitíssimos Bispos, de Mcaux, Jaeques Benigno de Bos-
jesuítas antes e depois de sua extineção, suot, embora se illudissc com o jansenismo;
de Cambrai, Francisco de Solignac de La-
de Deus, se assim continuar bem pôde ser mothe Fénélon, que mereceu por sua pie
que o Senhor lhe dê perpcluidadc sobre o dade, sabedoria, constância cm defender o
throno. A dynastia Carltngia empunhou o principio da authoridade do Summo Ponti
sceptro despojando os Mcrovingios, os Cape- fice, e ainda mais pela humildade com que
tos cingiram a coroa arrancando-a da ca ouviu a condemnação d’uma de suas obras;
beça de Pepino, o menor; Napoleão sanccio- dcMarcopolis, Withan, Saltzbourg, Leopoldo;
nou a tyrannia dos impios francezes da re de Paris, Christovão dcBeaumont; d’Amicns,
volução, mas seu sobrinho Luiz foi chamado Luiz Francisco do Orlcans de Ia Mottc; de
á F)'ança depois que cila desthronou um Clcrmont, Massillon; Sancto A (Tonso de Li-
principe, que levantara seu throno sobre os gouri, que subiu ao Céo em 1788, coroado
despojos da sua propria familia, c que era pelo merecimento da práclica constante de
filho de quem effjcazmente concorrera para todas as virtudes d’um verdadeiro Apostolo;
se estabelecer a impiedade cm França, e por de Baltimore, João Caroll; de Aix, BoisgeliD,
cila subir L uiz X V I ao cadafalso. * que com cento e vinte nove Bispos da Igreja
130 DISCURSO PRELIMINAR
ferido e outros; os Sacerdotes Manoel Ber- 1 Author da obra Exposição das verda
nardes, Fr. Luiz de Souto-maior, o venerá des catholicas contra os fundamentos do
vel oratoriano José Vaz, Fr. João de Mabil- systema anarchico. E sta obra foi publicada
lon, beato Francisco de Pozadas, Paulo Se- posteriomientc em 1812, mas o desembargo
gneri, o velho, referido, Fr. José Assemani, do paço revoltou-se contra ella e a prohibiu,
Fr. Diniz de Sancta Martha, João Harduino, porque attenlava contra os ciros dos regar
com os differentes collectores dos monumen listas c dos jansenistas, e assim foi bom,
tos da Igreja Cacalica, Fr. Manoel de Deus, porque depois o seu author, quando houve
Honorio Tournely, Manoel Caetano de Sousa, liberdade d'imprensa, sustentou ainda me
Fr. Martinho Pereira, Bertliier, Balto, Fr. lhor sua doutrina.
DISCURSO PRELIMINAR 131
CAPITULO II
Tal ha sido a marcha da humanidade este indifferente a fórma mas nào o uso do
desde o grande facto da nossa Redempeão poder, de modo nenhum se alcançará o pre
pelo Sacrificio da Cruz sobre a montanha tendido: é sim em relaçào ao viver das so
do Calvario: em todos os acontecimentos do ciedades que se deve inquirir, e isso tenta
longo periodo que eu tenho historiado, mos rei eu agora examinar: a fórma de go
trasse ate á evidencia a Divindade do Chris verno mais excellente é aquella que dá maior
tianismo, porque se clle nào fosse obra de somma de benefícios ás sociedades: eis ahi
Deus, nào podia resistir por tantos séculos o principio geral e absoluto que nào se póde
aos ataques violentos da força bruta do po negar sem se querer passar por louco: por
der temporal, nem da intelligencia humana isso aquella fórma que produzir a felicidade
corrompida, mas vaidosa e ousada, e aindíf em grau inais elevado será a preferível.
meuos a infidelidades ás desordens d’aqucl- Extincto o governo patriarchal, appare-
lcs a quem Jesus Christo confiou o depo ceu a monarchia, a republica, e depois a
sito sagrado da sua doutrina: prova-se de mistura d’uma e outra, que nào é tão nova
um modo que nada deixa a desejar, que o como a pretendem fazer, são estas tres fôr
Christianismo 'se vexa c se incommoda affli mas, mais ou menos variadas, que tem go
cti vamente com o dominio externo dos po vernado c governam actualmente as socieda
deres da terra, porque na sua razào ^ e s des humanas: na monarchia toda a acção
piritual nào póde ser impunemenle tocado parte d'um só, como do centro, na repu
por braço profano; manifesta-sc com cla blica de muitos, e na ordem mixta o poder
reza que nenhuma fórma de governo é con subsiste originariamente na multidão que
traria á sua existência, porque todo o po constitue seus delegados, os quacs determi
der vem de Deus na sua origem como ellc; nam o que em nome d’um se ha de obrar:
porém que o mau uso do poder c a anar- esta ultima fórma é pcrfeitamcnle uma de-
’chia sào seus adversarios, porque elle no generação da monarchia, ou a razão de seu
•seu modo de sór, c cm todas as circumstan sêr degenerado, e o mau meio de coarctar
das da vida, é guiado pela mão de Deus, o os abusos de seu poder, do mesmo modo
mau uso do poder vem do homem, c a anar- que à republica o é; porque se as influen
chia procede do diabo; e se nós attendermos cias na hora do cscandalo da monarchia
a estes princípios, acharemos a verdadeira tendem consideravelmente á destruição do
causa da prosperidade das nações pela cn- nome real, como em Roma pelos dias de
fluencia benefica do Christianismo, encon Tarquinio, o soberbo, a fórma republicana se
trando nos governantes uma verdadeira ha de seguir necessariamente; se pelo con
piedade filial para com a Igreja: reconhe- trario, como em França, quando a desgra
ce-sc finalmentc, que bem longe d’impedir çada revolução da impiedade e da demago
os progressos da scienda, se auxilia d’clla gia terminava, a fórma mixta apparcceu.
e lhe presta luzes para seguir sem tropeços Os primeiros vestígios mais salientes d’esta
a senda da verdade, porque buscando am terceira fórma remontam quasi ao meado
bos sua origem em Deus, elle adopta for do século 7.°, 1 em que na França d’um
m ulas externas e humanas para fazer en lado as menoridades, c do outro a educação
tender as doutrinas sublimes do Céo pela
razào obscurecida do homem, emquanto 1 Para corroborar o que acima se ex
derrama sobre cila, para nào errar, as lu pende, veja-se o Exordium Vitae Karoli Ma
zes Divinas de que abunda. Passarei agora gni no tomo 2.° da Historim Francorum
a expôr sobre a monarchia, a que tendem Scriptores por André du Chesne, pag. 94 et
minhas affeições (é preciso dizel-o alto): 95; Guisot na traducção de Eginhardo a
não entendo eu que se deva procurar a ex pag. 123 c 124 do tomo 3.° da Collection des
cellenda d’uma fórma de governo em rela Memoires relatifs á 1’histoirc de France; e
ção ao Christianismo, porque sendo para a Historia Critica.de Espafia a pag. 38 e 39.
*
132 DISCURSO PRELIMINAR
CAPITULO III
a existência d’um único sér real—a mate e creador, c de que todas as almas huma
ria— estes explicarão ào contrario dos pri nas eram uma parte integrante; eis ahi o-
meiros, a producção pelas relações exterio pantheismo, e d’ahi a apathia ou fatalismo
res apenas; mas apesar d’isso, um d’entre djesta seita, c sua austeridade pela razão
elles, por exemplo Empedocles, não só dava d imitar o Sér Perfeitíssimo, c não desdizer
culto aos deuses, mas era de costumes aus da perfeição do universo, que lhe provinha
teríssimos: os atomistas, modificando a dou da perfeição do author. Xenophanes, au
trina mais antiga do concurso de difleren- thor da csçóIajl!Elea. com seus discipulos,
tes partes da matéria para composição e ao contrario da cscóla jonica, tendeu a um
decomposição do mundo visivel, estabele espiritualismo exclusivo, segundo Schwartz;
ceram um novo systema, dando a essas dif e não reconhecendo realidade nos séres su
ferentes partes os meios necessários da pro balternos, se oppôz aos sectarios de Thales,
ducção e destruição sem auxilio d’agentc que em seus systemas negaram a existên
externo; apesar d*isso, se me não engano, cia do Sér Soberano, como disse Rohrbacher
acharemos nos proprios clamores de Demo acerca de Permenidcs: os elcaticos consi
crito contra a existência dos deuses, o grito derando a Deus Sér unico, negando á ma
de sua consciência acerca do Ente-Supre- téria toda a realidade, suppondo que os phc-
mo, porque a depravação dos outros ho nomenos eram apenas percepções do espi
mens o levou a proferir blasphemias, ao rito, não admittindo ao Homem destino nem
revés dos modernos incrédulos que o tem deveres, não podem escapar da nota de
feito por sua propria depravação; e com pautheistas.
respeito ás protestações d’Epicuro nos tem Póde conceber-se o motivo do materialis-
plos, não entendo qiíe possam provar algu mo de Thales, de sua escola, c dos atomis-
ma cousa pelo motivo da sua hypocrisia:^ las, como do pantheismo dos stoicos, mas
até aqui sobre materialismo antigo. Desde qual se dará do aihcismo do Phvrro e dos
que a Grécia imaginou a eternidade da ma scepticos? A superficial idãclo a esta seita
teria c a possibilidade da creação indepen- esta demonstrada, porque, procurando seus
dentemente d’uma causa intclligente, nunca professores a verdade não a encontram, e
mais deixou d’apparecer algnma cousa do perseverando na dúvida recusaram princí
materialismo nas doutrinas philosophicas, pios fixos, por isso a realidade nada foi para
exclua ella absolutamente a Deus de todo elles, reprovando toda a extineção-a não
o concurso na formação e conservação do ser nominal; segundo elles a existência real
universo, ou o confunda com a materia: no do universo era um problema, e nulla a
primeiro systema convieram em geral os diíTerença entre a virtude e o vicio, como
jonicos e atomistas, c o segundo, admittido já tive óccasião d’expor; nias que se dirá
por alguns dos primeiros, foi a base da dou de Protagoras. Gorgias. lip p ias, Eçpdico,
trina dos stoicos: Zenon de Cittio, adversa Theodoro do Bysancio com seus discipuíos,
rio d’Epicuro pela austèndãdc de vida e metiendo iu ü o a ridículo, fazendo por outra
princípios moraes, e pae dos stoicos, sentiu parte consistir a sciencia na mentira, e en-
que Deus é o elemento activo, e a materia sinuando-se por ineio d’uma enganosa elo
o passivo, por isso reconheceu a Deus como quência? os anteriores philosophos, embora
author dò universo, mas que Deus e o uni seus caminhos errados, procuravam a ver
verso eram um todo á similhança do corpo dade de boa fé, e os proprios scepticos, posto
humano, de que a alma era sér intclligente que mais modernos, c podendo acceitar
seus conceitos, não foram tão torpes; nas
V ' Mais d'uma vez tenho sido'testimunha mãos dos sophistas tudo se aniquilou: a
de contradicções similhahtes, que não me existência dc Deus e do universo; o crime
recem outra resposta senão o silencio. «Pe foi defendido, e a innocencia accusada!—
los princípios da philosophia a razão das cou- «Se alguma cousa existe não se póde com
sas é esta, mas aos olhos da religião passa-se prehendor, e se se comprehende não se póde-
tudo d’outro modo» dizem!!! E sta m iseiia é explicar!»
filha da mais supina ignoranda, ou de negra Tal foi a sua doutrina; mas apesar d’isso-
m á fé: no Christianismo só os altos mysterios havia para elles duas cousas reaes, que
são superiores á razão, posto que sua pos vinham a ser a lei humana c o uso da pa
sibilidade por ella .se prove; mas auanto aos lavra para fazer variar as opiniões sobre
factos da creação, leis que regulam o uni direito, segundo suas conveniências! Socra
verso, sêres que n'ellc habitam, decadência tes, o homem mais sensato da Grécia, ensi
do homem e seu destino, va i tão longe a sa nou a existência d’um Deus Supremo, in
philosophia como o Christianismo, e andam visível em si, visivel em suas obras, Sobe
de.pleno accôrdo. rana Intclligencia, que formando o universo
DISCURSO PRELIMINAR 13!
o conserva o governa por meio de deuses phenomenos estes tres princípios, mas no
subalternos igualmente invisíveis, e que tou cm todos uma ligaçao de relações e um
creou o homem, o tracta com bondade de fim geral, attribuiu o seu cncadcamenfò e
pae, c premiará ou castigará sua alma im- a formação de todas as partes do inundo e
mortal; mas ao lado de tudo isto, acceitando suas relações á Intelligencia Suprema, que
a doutrina d’Anaxagoras, em parte, sobre a regulou a força motriz, estabeleceu as re
formação do mundo, resentiu-se da eterni lações e ligações entre todas as partes do
dade da matéria, por quanto a unidade que mundo; fez da alma humana uma porção
reconhecem em Deus refere-se á qualidade da Intelligencia Suprema, separada d’clla
de sér Puro e Intelligente, e n’essa hypo- emquanlo está unida ao corpo; e suas dou
thesc abraçou o duclismo; Platão, o homem trinas moraes produziram homens d’uma
mais sabio da antiguidade, partilhando boas vida regularissima: explicando tudo por nu
idéias, como seu mestre, creou na eterni meros, deu a conhecer a Intelligencia Su
dade da materia com clle, mas considerou prema pelo impar, indivisível, absoluto, prin
a Deus como causa primeira, formando a cipio de todas as cousas, que rege tudb,
alma do mundo, principio de todas as fôr sèr determinado, eterno, permanente, im-
mas corporaes e de todos as almas: das dou mutavel, similhante a si, e di (Terente de to
trinas precedentes da escola jonica e dos das as cousas, mas que não pôde fazer puro
atomistas se concluo que se attendeu á o mundo pela intervenção do vacuo na sua
formação material do mundo por agentes formação, mas esta intervenção colloca o
do mesmo todo, dando-se ou não intelligcn- fundador da escola de Crotona*entre os dua-
cia a cssps agentes, mas na hypothese de listas: de todas as doutrinas de que eu até
Socrates c Platão o agente difTere, o operá aqui tenho tractado n’este paragrapho, a
rio é differente da obra, attendendo-se por mais sensata c a do dualismo puro, porque
isso não só á formação material, mas á con despresadas ou esquecidas as tradições
cepção da ídeia; entretanto que Aristóteles primitivas, difiicil era ao homem conceber
querendo dar outra fôrma ao systema de como o Ente Peçfeitissimo e Indivisível po
seu mestre estabeleceu um Deus só occupa- dia crear um sèr imperfeito e divisível como
do de suas perfeições, e sem cuidado nos ho a materia, posto que lhe não era impossí
mens e no resto do universo, que foi creado vel entender e mesmo explicar porque im
não porque Deus qúizesse, mas pelo facto primiu fórma á matéria.
da existência de Deus; n’esta só hypothese Conforme Dcgerando, o mysticismo orien
suppôz a Deus primeiro motor, c deixou á tal fundava-se n’estcs elementos:— Deus,
naturez^1 o restante, considerando-a como luz primeira—dous princípios do bem c do
fórma unida á materia desde toda a eterni mal—desenvolvimento da substancia divi- /
dade; demais d’isso toda a sua moral se es- na, e sua emanação progressiva—hymeneu /
tribou nas conveniências individuacs e so- mystico—genios ou espíritos superiores e \
ciaes; pelo que devemos reconhecer em Aris attributos personificados— instrumento da ^
toteles o author do deismo. Mais antigo é creação distincto do creador, emanado d’elle,
o systema pythagorico, que não examinava o verbo, a sabedoria, o homem primitivo e 1
os phenomenos physicos debaixo do ponto celeste—região intelíectual, e communica- ,>
de vista material, porém antes pelo contra ção da alma pelo extasi com a Intelligen- {
rio, e se destinava a indagar as leis e a har cia Suprema: na Persia Zerouane Akéréné J
monia nos princípios do mundo, debaixo do ou o Senhor de todas as 'éõusas, ô^Tõfllpo f
ponto de vista moral do bem e do mal; Py sem limites, o eterno, que produziu Or- \
thagoras, segundo disse o abbade Pluquet, muzd, o author do bem, o principe da 1
admittiu no universo uma Intelligencia Su c Ahriman, o author do mal, o principe das I
prema, uma força ipotriz sem intelligencia, trevas; Ormuzd produziu seis entes para
e uma matéria sem intelligencia, sem fór dirigir a creação, grande numero de che- j
ma, e sem movimento; suppôz em todos os fes e soldados do exercito celeste, o os ge- ]
nios tutelares ou anjos da guarda dos ho- )
\ 1 Em grande numero descriptos, nas es mens; Ahriman produziu demonios de que j
colas e conservação, apparece essa palavra sete se reconheceram os principaes: essas j
como synonimo da Divindade, ou vara sub duas legiões deviam combater d u r a n te jo -;
stituir esta. Desde muito creança reflecti ze mil annos, e o homem que peccara se-
que havia no emprego de similhante termo, duzidõ^põFAhriman e pela mulher, devia
intento de retirar das mãos de Deus a obra tomar parte na contenda ao lado de Or
da creação; hoje serve-me para conhecer os muzd para não ser por elle punido: depois
sentirnentos religiosos ou a scienda daquel- da lucta, o reinado de Ahriman passou, Or
les que fazem uso de tal termo. muzd reinou só, e a luz appareceu em toda
m o o u n o v 1'llHM M liSA U
a parte; Ormuzd, com o seu exercito, e elle. 1 Na China, o Tão (o verbo) ó princi
Ahriman, tornado bom com suas legiões, pio, meio c fim doTodas as cousas, sem
oíTereceram sacrifício commuin ao Eterno, nome, porém existindo antes de todos os
e tudo se consuinmou; Ormuzd é o princi séres; antes do cáhos, que tem precedido o
pio e centro de todas as cousas, o que é, que nascimento do Céo c da terra, existia elle
é tudo. e conserva tudo, ao mesmo tempo é só, Sêr immenso, silencioso, e immutavel
o verbo da bondade, nascido da semente do agitando-se sem se alterar: o homem se re
Eterno, produzido pela mistura da agua pri gula segundo a medida da terra, a terra
mitiva com o fogo primitivo, primeiro dos pela do Céo, o Céo pela de Tão, e este pela
seres, a sciencia, ò uispensador da sciencia, de si mesmo, rcgulando-se assim o universo
c a razão de tudo, a quem o Eterno propòz inteiro por elle, que é a razão eterna; elle
como rei por doze mil annos: segundo isto, produziu um, este dous, este tres, e estes
nào parece bem definida a natureza d’Or- todas as cousas, isto é, um mudou o nada
muzd, porque, como bem notou o abbadc, em sêr, os dous são as duas regras primor-
Rohrbacher, ora se identifica com o Eterno diaes, os tres essa mesma dualidade com
ora nào; entre os sòrcs produzidos por Or a harmonia, finalmente a unidade dos tres
muzd, o deus medeador dos persas, Mi constituiu tudo; as doutrinas prácticas que
thras é o author do sol e seu guia, que levou acompanhavam estas theorias eram sãs, por
0 nome de demiurgo ao crcador, porque que tendiam a formar o coração pela mo
disse expressamente haver formado o mun ral, c regulavam o sabio na contemplação,
do, e ser author da crcaçao. vivendo solitario, ao menos por certo tem
s Na índia, Brahrn ó o Eterno, o sêr por po, applicando-sc a conhecer a verdade c a
' excellcncia, o mundo, o seu nome e a sua purificar suas acções pela virtude, e empre
imagem; mas essa existência primeira, que ga udo seu tempo a pensar n’estc Tão. No
contém tudo cm si, é só a realmente sub Egypto não diíTeriam as doutrinas das rece
sistente, todos os phenomenos tem sua causa bidas na índia ácerca da Divindade, esta
em Brahrn; este nào c limitado nem pelo belecendo como lá, a metempsycose, as alle
1 tempo nem pelo espaço, flnpcrecivel, a al- gorias, as personificações dos séres, das es
Inia do mundo e a de cada ser em particu tações, dos ventos, ou melhor, transfor
lar; o universo é Brahrn, vem d’elle, subsiste mando-se a Divindade, manifestando-se c
iTellc, e torna para elle; o sêr existente por reproduzindo-se em tudo. «Em uma pala
si, a fôrma da sciencia e de mundos sem vra, disse o abbadc Rohrbacher, servindo
fnn; todos os mundos são um com elle, por todas as verdades de fundo a todos os er
que existem por sua vontade; esta'vontade ros.» Eis-ahi como a corrupção, operando
eterna é o começo em todas as cousas, reve com toda a sua força sobre a intclligcncia
la-se na creação, na conservação e destrui humana, despresadas ou esquecidas as pri
ção, no movimento e nas fôrmas do tempo mitivas tradições, estabeleceu, por meio
e do espaço; Brahrn é o sér supremo, que do estudo c dos esforços do espirito, dou
: revelando-se como creador é Brahrn, como trinas mais ou menos absurdas, chegando-se
conservador é Vichonou, e como destruidor ao resultado d’excluir das suas obras a
é Siva; a cada sér d’esta trindade sup- Deus, suppondo que elle não existia; de o
posta se attribuiu uma mulher, e d’essas identificar com o universo; de duvidar da
tres juneções foram produzidas milhões de sua existência; d’cscarnecel-a! de conside
divindades subalternas; mas todos os mun rar sua obra tão antiga como elle, reputan
dos e todos os séres nào fazem mais que do-a sem existência real, ou com esta; de
um com o Sêr Supremo, porque existem dar-lhe acção sobre a materia, ou de ne-
por sua vontade; Deus só tem realidade es gar-lh’a; d admitlir o seu governo, ou de
sencialmente subsistente, e o resto compa separal-o totalmente dos homens e do uni
rado a elle é como uma negação, a razão e verso; e d’explicar a sua existência o a sua
a virtude,_querendo que se destaque de todo obra debaixo do só ponto de vista religioso,
o resto pára se unir a Deus e fazer cora divinisando os séres creados, e fazendo-os
<elle um mesmo espirito: tudo isto atten parte integrante d’elle. Resta agora appli-
dendo á letra da prece indica «eu sou Deus» car essas doutrinas aos systemas que vigo
importa um pantneismo ainda mais absurdo ravam ao tempo do Sacrifício do Calvario,
<jue o stoico: para practicar a vida mys e aos que nasceram depois d’essa época.
tica de modo o mais perfeito, os brahmas 2—Não appareceram depois da Redem-
s e retiram á solidão para conhecerem a
Brahrn; que é a luz das luzes e a sciencia 1 Não pertence aqui o systema das en
das sciencias, porque só por meio da con carnações, porque c p o stm o r ao mysterio
templação se conhece se ha união e com do Calvario.
DISCURSO PRELIMINAR 137
pção do genero humano, por mais que o pre vos, fanaticos, c misanthropos. Pela Grécia,
tendam, idéias originacs; assim como n’cs- Itoma, e Alexandria, eram^ntão dominan
scs antigos systemas se encontram muitas, t i os systemas antigõinia phiTõsoplna mais
reproducçòcs nos que seguiam essa época,
não ha outras novidades senão modificações,
se . cxccptuarmos cm alguns dos chamados
sábios inimigos do Christianismo, uma muito
notável pertinacia, uma muito mais refi
nada maldade, c uma muito mais subida
corrupção; c noutros mais ignorância, mais gia7T;nt(»nil<»u'.-cmn APTTüllomo Ue Tlnana a
superficialidade. Penso que aos olhos des fr'ente, imitar por cila esses milagres. i7~vi-
prevenidos de qualquer pensador não se ycr urna vida mais perfeita, qual a d<tscluis-
apresentarão conceitos differentes d’este; c tãos, segundo disse Pluquct. Entre as no
como eu poder entrarei n’cssc exame, quan vas creações viu o primeiro século de nossa i
to este cscripto o comporte: sem grande era uma'mistura dos systemas orientaes, e ,
trabalho se encontrará no fundo de todos do pythagorico e platonico, com os livros e1*
os systemas que vogavam ou se crearam de Moysés, como no systema de Philo, ju- ^
depois do primeiro século christão, o ma- deu d’Alexandria, c um dos homens'mais
tcrialismo, o sccpticismo, a sophistica, o sábios do seu tempo, que seguiu as traças
dualismo, e o mysticismo, cm os descreven d’Aristobulo, e principalmentc se fundou
do: entremos na primeira época, que leva nas doutrinas de Platão, dando-nos uma
rei até serem prohibidas as escolas da Gré obra de merito, e de que podemos obter aj-
cia por Justiniano. Principiando nela Ju- gumas luzes; c d’esscs mesmos systemas
deia, topamos com os sàfluccos,cuio.systeina com os livms-de Moysés. c com a doutrina
sTfuBfláva'nos livros de Moysés, maUnter- de Jesus Christo, apresentando-se no campe
PTetad^_aJiajiQUli3ãJosittümistas,-poiv da lucta seus authores c sectários com c
que^acccitando-dluiti-ladQ- que. D.cus cr_eou mais enthusiastico fanatismo, c consideran
ojnm:ei'sOvOgovciaiaqwrsua_pr.oviclencia, do ao Salvador, uns como um genio que
c que favoreceu os israelitas cani-granilis- desceu do Céo, outros como um homem
simo j uwlcro 7fc prodigios; dloulro-erératn mais perfeito que os outros, e dirigido por
quc^j3„penas--por^llej3stahelQfiidas-qiai'a um genio celeste: PQi^-üxemplo Simào o
castigar o, homem, se referiamua-esta-vida, inago.pacd ^ tMin^fie!!^!^^?»/, dcsi mesmo .
e eram puramento temporaosr pnrque-sup- o VorlMPcTe-Iíens- o Parael(>to. o Todo-Po-
nòzêrani a alma humana apenas.nma,pro- derosúllQ -toadnrirtiitclligeucias, uma das
piiêdadc da bruanisacão,,,do-.corpQ^e--Por imiiis penetmn n seu desisnio da formação
isso, que com elle morre: com os phariseos, ddmmukL.
oj c produziu os amos e os outros
qüe adnultlnclo além dos Íivros is cie Movsi'
_ espíritos, uue tormarãm XLiuundo, e ttüil se
as’Tní(TTçoes verdadeiras ao revés d\aqucl- TSzercm Cfllisírlarnr onTrjft supreiqOS,
les, lhes ajuntavam grande numero de ri- prenderam sn;i___ mãer fi^rai"-11^e^jiurajcs,
nhrn)egJ
dícularias: o ao mesmo moaojiiie mtorpre- htrocliutfftm-sb no corno d’uma mulher,
tàvaTrnillorali'iiehtõ~o~s iivrõssanctos, o fa 3 aé~Síit!üln para see.nlo a fizeram passar a
ziam à doutrina de nmiagoras, reconhe out.ro eonpo: cllc havia d’acabar o mundo,
cendo alnetempsycosc, como os egypcios e não dava salvação senão aos seus disci
e_índios: com ós essenos, que admittiam a pulos, que soltos das cadeias do corpo, go-
i nunortaljdade d a ^ 5na„CQntra„os.A)omei- savam da liberdade de puros espíritos: Cèr
ros. e regõnãvãml i s tradições contra os rintho. iudeu antiocheno. que ouviu os Apos-
segundos, emquanto adoptavam_asjlouii;i- toIõsêiO erusarem, estabeleceu um ?JLr Su-
uas~stõicas~sobre a natui:eza.e.espmtuali- prfvnTfwjuftMoi origem dãTexistência,.pro
dáíSêHaralmã,' porque solta esta das prisões duziu espiritos, poderes ou gemos, com aif-
do cõrpoTsc tornava pura cõmo TTantcs, e ferentns. g paps de. perfeição, 0 ümã~ certa
não"mTresponsayel pòr.lçrmicg^passafips • yirinde-Qu forçtwnotriz qi^ rcguloii áTina-
IWlIIIWIA-W| |IUHUVt os~~ariios
o_s~dõminios d’esta seita estendianbse_des_de. terin. fprmou.o_múnclo, UUJVJ VouU genios
na^Tiíb^JEigy- 'teiTÊStes para governar o m md o c o slio -
pto, vivendo s.eus. professores na solidàcL e ihSnsui^ à c c r n t r ^ o^consi-
dçcau^òn^rdlíõ^^cfir-los~ee~M ãria,m as
nuo fo iu n T EiTtOao privilegiado, üue no
ifint^mjLdeiasjmais.5J,ib sen baptismo, o üfirl^t5r~d^ilhTrumco
turezadl\.alma; .e. canxo.^ êraneutas, frac- do Deus, desceu sobre~êUo em figura de
_______________
çãOõs_ess.QiiQSJjn, que "(Pèllcs soü íiTe- pomba, o l ho jovêlóú^õ^cõnhecimcnto do
r ençavam por Absolutamente contempláti- Pae, uuccTle annunciou aos IiõméntrcTor
S <*cIo(ajlçQ
rvj
138 DISCURSO PRELIMINAR
CíA / íLoA/V'
DISCURSO PRELIMINAR 139
doar todos os pcccados; condcmnou as se alheias de seu espirito: Paulo dcSamosates
gundas núpcias; c apesar de suas suppos- negou finalmente a Divindade ac Jesus
tas austeridades, com que cnganoiLojirp- Christo, a quem, segundo elle, a sabedoria
prio Tertulliano, sua vida naCT se confor foi communicada extraordinariamente; c
ma va com o que por suas austeridades que para dizer que na Trindade não havia tres
ria inculcar: Theodoro de Dvsangio confes Deuses, serviu-sc d’outros termos novos e
sou que Jesus Christo nasceu d’uma virgem absurdos, tres attributos, pelos quaes a Di
por obra do Espirito Sancto, mas sem al vindade se tem manifestado ao homem, sup-
guma prorogativa além d’uma vida sancta pondo uma só pessoa: Manes, que se quiz
e uma virtude mais eminente: por ultimo fazer passar pelo Espiritolsancto Paracleto,
terminarei acerca dos gnosticos com o que atacou a bondade e unidade de Deus, esta
d’ellcs escreveu Degerando: («O primeiro belecendo os dous princípios do bem e do
/principio, segundo clles, c a luz primordial, mal, o velho dualismo: porque, segundo
\ fonte de toda a luz; o cahos, a rcgiào das elle, se o diabo fosse crcado por Deus, se
trevas, occupava os profundos abvsmos: um ria consubstanciai a Deus (o que podia ser
liymcncu myslcrioso c fecundo unia o Sér verdade, se o systema das emanações fosse
Supremo, a alma celeste, mãe de todos os também uma verdade); e tirando* a liber
sêres, ao principio da luz: um sequito de dade ao homem, deu a Jesus Christo um
emanações transmittia gradualrnentc uma corpo phantastico, reprovou as bodas e o
vida menos perfeita; a ideia emanada do uso da carne c do vinho, como tendo por
Pac Universal, o segundo homem, o homem author ao diabo: a par d’estes, Novato e
mortal, formou-se sobre o lypo do homem Novaciano. recusavam absolver os pecca-
ideal ou celeste; os sete principaes poderes dores que haviam prevaricado em artig
foram personificados em sete anios ou in -, de Fé, condcmnavam a Confirmação, ;
telligcucias supremas, que correspondiam ceremonias precedentes ao Baptismo, e
aos sete planetas, e os animavam; uma lu segundas bodas: emfim, dous grandes li
cta dos dous primeiros princípios se agitava mens. oue o Christianismo respeita’nò,qi
' inccssantemente na região dos sêres -inter- ensinaram dcJTom, Tertulliano, que se de
Mnediarios.» Quando este século estava a ter- xou arrastar á confissão dos erros de Mon
í minar, lançava Ammonio-Saccas. cm Ale- tano, levado de suas oppostas severidades,
I xandria, os fundamentos da escola nconla- porque para essas tendia muito; c Origenes,
tomea. que, disse um sabio, depois de ter ácerca de quem houve questão sobre uíTTc-
sympathisado com todas as doutrinas e todos rentes erros, principalmente sobre a pre
os usos reputados barbaros, os venceu; mas existente das almas c da restauração de to
o Christianismo lhe resistiu e o ameaçou, das as cousas, quando Jesus Christo entre
porque inflexível cm seus princípios, e do gar o reino a seu Pae (porque isto não c
minando a civilisaçào grega, de mais em senão orientalismò puro, sobre as idéias da
mais foi ganhando terreno sobre' essa es mctcmpsycose, c do reino* de doze mil an
cola; o pensamento do fundador esteve em nos): o neoplatonismo, que pretendia em
r1V r nnlP plaJ?Tn * Aristoteles nos pon resultado de seus esforços reunir todas as
tos principaes; mas nos séculos seguintes religiões e todas as seitas philosophicas,
veremos o resultado de seus esforços. En para o combater e a seus discipulos, susci
( trando no 3.° século, deparamos com as se tou Deus na escola ecclesiastica ^Alexan
guintes novidades: o mysticismo oriental, dria um sabio que nada ignorava das dou
reunido com a philosophia da Grécia ás dou trinas d’essas seitas, S. Paqtenp, om estre
trinas judaicas e ao Christianismo, vigorava do illustre Clemente elToutros granflejl\o-
ainda n’este; porque Praxeas, Noet e Sabcl- mens que se oppozeram a essaLescólate-
lio não viram meio deseclescartar da mul nn v e ld o paganismo.V^xpíícaram~ds'"flo-
tiplicidade de deuses, senão admittindo cx- gm asda Igreja pelos termos philosophicos,
clusivaménte a unidade; e disseram que quanto podia efleituar-se: Plotino. discipulo
toda a distineçãb das Tres Divinas Pessoas e successor d’Ammonio, querendo levar as
era nominal; segundo elles,Deus resolvendo cousas por caminho differente de seu mes
salvar os homens, se chamava Pae; descendo tre, aproveitou-se dos conceitos mythologi-
sobre a terra ao seio d’uma virgem, c pa cos, admittiu o inagismo, que esperou po
decendo a morte da Cruz, se chamava Fi der justificar pefiTsympathia universal de
lho, e derramando suas graças sobre os pec- todas as cousas do mundo sensível, porque
cadores se chamava Espirito Sancto; isto essas cousas, conforme elle, apresentam em
não foi mais quo accommodarem na essên tudo o amor e o odio em opposicão um ao
cia e nas circumstandas as doutrinas ve outro; e em relação á práctica, a base d’esta
lhas ao Christianismo, quaudo eram muito escola era a identidade da perfeição intel-
» S ca-C£-«AyJ ^ClvJLc (At
CWfc/ô ) \ VaA.'- PWv «
v/VÍ0 l Q/\A-
140 DISCURSO PRELIMINAR
sustentar contra ellc dura guerra; na se Depois dc.âcfccliarem as escolas de Athenas,
gunda pretendeu-se amalgamar a philoso devemos considerar -toda. esta época cha
phia giiígíiTprinçipalnicnte o platonísrno e mada meia-idade, apesar da sua deradentia
o pythagorismo, coin as doutrinas orien- entre ãs dlliercntcs nações, em que a eivi-
tacsj pondo-se de parte o Christianismo, lisação mais ou menos‘adiantada dominava
embora Annnoniojaaccas, primeiro mestre por este modo: no oriente christão. o cara
d’esta escola^ tivesse cm vista attrahirdhc cter pronunciado eram ãs discussões sub
os philosophos pagàos; mas inspirando o tis. ô abuso Oíi dialectica, o abandõnocTas
pensamento ele seu eleclismo a Plotino, as scicncias positivas c o desnreso dos cstiicfiis
cousas tomaram outra direcção, lançando dos phcnomenos do universo, de modo que
este outros, fundamentos a essa escola: eis a philosop lia, sem o apoio dos conhccimcn-
ahi o que muito bem disse um author re tos fundados na observação, ficou «privada
cente, Maupied. Oj)cnMQ,_QiLe_tfirmiiiou, igualmente da vida que" deve recepcr dãs
foi decahindo-UQUco a pouco, tornando-se alTccçocs generosas e das mtlncnciasnio-
esterií em indagações originaes, mas fértil
cm combinações mais ou menos desgraça riitiiw, a metaphysica e a dialectica de Aris
das c cm commentarios infiéis: tendo-se tóteles, e as doutrinas orientaes da Pérsia
contrahido o habito de não pensar, e de jul misturadas com o Christianismo pelos ma-
gar só pela authoridade dos mestres, o re nicheos: d’aoui saturam os aphlardocitaspíi
sultado devia ser guiar a critica pelas com incorrup.tjvefs, que ciavam fiTipassibilidade
parações; entretanto o periodo, que se se ao corpo dc Jesus^Çhristo desde _sua conce
guiu* foi o mais estéril para a historia do pção, e TòT esta heresia professada pelo im-
espirito humano; mas no meio d’esse espe pcf^òrTüstiiíiãno j, àutliõr dó famoso edi-
ctáculo afilictivo, podem appareeer algumas to, que nYandou fechar as escolas pagãsT
instrucções uleis: d’cste modo fez Dcgcrando mas que fòr*um dos príncipes mais.perni-
a comparação entre as duas épocas philo cjõsos aT&Téia d(TDcusT ós a rm enios. a fren
sophicas, a que descreví, e aquella em que te d03~quae$~esteve Jacob Syrio, que ensi-
vou entrar. Porém quaes serão as causas noiLaos oue levaram seu nome superstições
d’csla decadência, que se encontra nos co pueris? cnuiuanto aifuefics adoptaraiiV o"er
nhecimentos humanos desde o começo do ro "^ que a natureza * d o ^ rI Ji^ra.m uda-
século 6.° aíé~ao lõ_.°? Muito se tem dito y ç L jQ ü ^ 3 ^ im a lo ^ n ç to ^ jir q ç e d ia .d o
sobre as causas da degradação do espirito Pae; os monothclitasrclc quem, foi mestre
humano durante este longo espaço, c a mim ffiêodoro ua^Arabia, e lhes ensinou oue ém
rae parece, que será facil encontral-as em Jesus Christo fiávia só a~vontadeJJiviná:
se buscando debaixo de tres pontos dc vista: d’osto modo passou o século 6:°f ãõ fim do
i.° a corrupção das escolas, procedendo do quãl appareceu um homem grande, João
apparato d e‘ phrases, que cada dia se au Phitbnmfrininngo déclãrado-jlos-novos pla-
gmen tou com o desejo dc levar tudo mais tonicos, porque encontrou em snasdoutp-
pelos proprios conceitos, que pela verdade, nas a origem de graves damnos ao Chris-
e preferindo a argumentação .á contempla tianismo, refutou Porphyrio, mas querendo
ção; 2.°—a corrupção pela curiosidade in ca1cular os~Mvsteriõs Divinos pelas idéias
quieta de conhecer todos os objectos e for d(U5ãTão_.e Ãrisíi)te|és, sc_Jomou chqfe
mar systemas, para explicar o que a Reli d’uma seita, a dos trjthéitás, suppondo na.
gião não esclareceu (faliando com respeito Sanctissima Trindade, h es naturezas varti-
ao Christianismo), entendendo que os do cuTarês, esquecendo a naturezçTcpmmniL, e
gmas podiam ser explicados pelas prcoccu- cStabelecenuo tres deusesfJ T pelo 7.° reno-
pações philosophicas, dc que resultaram, varam o monotiicnsmo sergio, dc ‘Constan
como escreveu Pluquet, todas as heresias ti nopla, GvroTdc AloxanTlmfe Macaiio. de
dos primeiros séculos; 3.°-r*a corrupção pela Antiochia, os georgianos, e Marão com sue
soberba, porque devendo o Christianismo seita, que excluiu de Jesus Christo .não sc
rccebor-sc com humildade, c sujeitar-lhe to du^ 3 'üidades,mias_dúas.hãtui,éza5, _e dua=
das as concepções humanas, desde sua ori ojieraeões. e de que os sectarios passados
gem vémos que .faltaram as creações ou quinhentos annos reconheceram os erros
as idéias originaes, reduzindo-se tudo a com entretanto para cumulo dos males veio ■
parações, e as escolas persistiram cm sua unitário Mohamed tão torpe, como se rte
soberba; por issa veio a degradação humana presentou ja: no século 8.° appareceram o_
ao ponto que se lamenta n’esses séculos iconomacos ou iconoclastasmoclast; (que^não. a ^
anteriores ao chamado renascimento das le mittiam o culto das sagradasJmagcns) do-
tras, mas depois d’clle, como nós veremos, quaes foi o maior fautor Leão Isauro, c
a humanidade não melhorou: penso assim. mais poderoso adversario o uiusire con fes
142 DISCURSO PRELIMINAR
sor de Christo S. João Damasceno: este bem pelos que abraçaram o partido jlc^Alj: os
aventurado padre, sem questão o homem kalifas prepararam succcssivámcnte, con
mais sabio do seu século, viu, como Philo- formo o mesmo historiador, essa educação
pon, os males que do“ novo platonismo e dc intellectual dos arabes, e fizeram apparcccr
todos os erros philosophicos se seguiam ã entre elles as primeiras luzes das letras e
Igreja dc Deus, e quiz dar-lhes remedio, das scicncias, como foram os sábios EUMan-
porém seguiu uma vereda differente do fa sqpr. Aroun-al-Rascid e AlmainouiÇ o pri-
moso fundador do tritheismo, pondo antes meiro associou o estudo da legislação ao da
de tudo por diante dos oTffüs a humildade philosophia e astronômica, o segunclo mani
christã, applicando a philosophia ao ensino festou a sua tendência para a poesia, e o
da theologia, e servindo-se d’ella com recli- ultimo juntou de toda a parte os cscriptos,
dào e prudência no desenvolvimento das que continham o deposito da antiga sabedo
verdades orthodoxas, em que mostrou não ria dos chaldeus, persas e gregos, reuniu a
só a profundidade de seus conhecimentos, si os homens capazes de ensinar as doutri
mas as luzes celestiaes que o auxiliaram: nas contidas n’esscs livros, e cm cada mes
no século.D/» Miguel Psello, o velho, deu quita fez abrir uma escola; e com relação
vida a plnTosophia uos hovos plalonicos, e áJIcspanha. entrando no gosto que os anti
deixou por discipulos PJjflgjp, dc quem já gos tmDitantcs tinham nolã instruo,cão, tor
se viram os erros, e o imperador Leão, o naram-se celenres pela cultura das cidades
sãbiò, que restaurou o ensino” classico nos dê uordova e, Granada, gomo fora da penin
seus domínios, e, que apesar de seus cul- sula o eram Rngdndj n-fotnrã, TrCIlCS, Tri-
ivados talentos e da opposição a Phocio, noli o Marrocos: João Philopon c S. João
ão deixou de ser supersticioso e dedicado Damasceno começaram primeiro que nin
s prácticas mysteriosas das velhas escolas: guem a desbravar a rudez selvagem dos
o século 10.° a cegueira por Aristoteles, mahometanos, e se lhes seguiram no oriente
|ue ja vinha do antecedente, continuou ap- os medicos christãos João Mesuch. que mo
parccendo nos commentarios, compilações veu Almamoun. o ultimo cTesses kalifas. a
e paraphrases, c dc que foram apologistas erigir osTestabelecimentos litterarios c foi o
Ni celas David. discipulo de Leão o sabio, c riirnptnr Ã~~5i>n filhr> GqpMn que
outro uavid, còmo Miguel Psello, o moço, traduziu do_ grego cm arabc os escriptos
e Entraste: no 12.°. Njcephero Belemnides, dos philosoj^os: enTnossa tornrõsHBispos.
que soube fazer melhor uso üe seus estu os Sacerdotes e os Monges, nuc-vlvíam no
dos, e confessou que o Espirito Sancto pro domimo do islam. inspiraram a esses con-
cedia do Filho: n o i3 .° , Gregorio de Chy- quístadores o gosto pclas-sciencias e os en-
nrc e Jorge Padrim^!^ com outros, que se si n ^ m n rpfjm ciro arabo que so mostrou
lhe seguiram mais ou menos illustres pelo cégo amador de Aristóteles foi__Ajkcndi.jque
seu saber. Entre arabes a philosophia fo escreveu differentes obras philosophicas, e
r m o u o .caminno que permiuia a oocdíencia alcançou os tempos dc Mcsucti e Gõnain:
' passiva d’esta gente cá sua regra de fé e á scgnirairuso no seculo^tOT^Moliainüd Ibn
- Tonladc do seus principes; os seus habitos Iarkhan AbnNars Al-farãnTauthor de dous
j formados sobre as doutrinas do korão só pequenos tractados,~Tegumlõ o espiriío da
%lhe permittiam adoptar as doutrinas de Aris- philosophia do mestre de Alexandre, o gran-
^totelcs, e na verdade o espirito do deismo dõnbnuSina íAviccnah aue-se-mostim aos
>da seita islamistica, que para fins puramente musulmanos, como unuiEQCligio de^cLencia
,temporaes admitte as futuras recompensas etn-differenles ramoTde sua^ppJicaçàít es-
J e o culto externo, não podia admittir senão crevQQdq5obJ^.as.Jtraças de^Aristoteles, e
o systema d’uiff philosopbo deista, pelo que illustrandcham esm o,.^ dc
-conduz ao fatalismo que essa gente pro- Jmjiostas:
3 fessa; os arabes associaram o estudo das ve.io.no se.ciilo U .° Al-ghazali urndos ara-
mathematicas e da medicina ao da philoso- hes mais distinctos, por seus csmaosTque
■phia; mas alguns entregando-se ás especu reproduziu o systema dc A vicena^ole tor
la ç õ e s d’um idealismo mystico, as amalga nou nntavp.i ne.iosce.niicismo critico: no jl2.*
m a r a m com as doutrinas do korão, segundo século (ou nos fins do antecedente) Avicc-
Degerando; por isso (e o disse este sabio hron foi author das doutrinas, que produ-’
historiador) a philosophia entre os discipu ziram mais tarde em dous christãos francc-
los de Mohamed dividiu-se em dois ramos zes o absurdo de identificar o univcrsQ.com
jrincipaes, o primeiro comprehendendo a Deus, considerando-o a materia primeira,
J ogica e a metaphysica dc Aristoteles, e o
-segundo referindo-se á theologia mystica
reconhecendo n’ella as Tres Pessoas da San
ctissima Trindade, dando a cada uma rei
-adoptada por diversas seitas, principalmente nados differentes, e fazendo encarnar o Pae
DISCURSO PRELIMINAR 143
•
cm Abrahão, cujo reino acabou com a lei kalifas do oriente no começo do século \ l .•
escripta, o Filho cm Jesus Christo, cujo rei c principiou então a ser famosq escola de
no estava a passar, por isso os Sacramentos Cordova. que por idéias de política auxilia
não tinham virtude, c ao Sacerdócio faltava ra poderosamente Kisham 2.°, conforme es
jurisdicçàoeauthoridadc legitima, visto que creveu o acadêmico Antonio Ribeiro dos
o reino do Espirito Sancto era proximo, c a Santos, c da qual fôra primeiro professor o
Religião devia ser toda interior; c que tam Rabbi Moseh, um dos mais distinctos da es
bém deram origem aos conceitos do famoso cola de Pombcdita, que viera a Hespanha,
Rayjnu nd j ^ uJlcu, Ahuibahvalidibn Reslid eque aqucllc principe não deixou voltar á
(A ^O ^és) naluxaLdc Cordova. reíutou^T- sua patria: dividiam-se essas cscólas em
ghazali, contribuiu poderÕsamcnte a consô- textualistas, porque seu estudo se restringia
luRTFiraulhoridade despótica quo Aristote á interpretação littcral do Texto Sagrado,
les tem exercido nos tempos posteriores, e d’onde veio q*ue nenhum subsidio externo
consummou a alliança do novo platonismo procuravam; em rabbanitas, que reputando
com operi patheticismo;e outros se segui ram insufíicientc o Texto Sagrado, se davam ao
escravos d’cssc systema, apresentando ao estudo das tradições; e em càbalistas, que
menos uma circumstanda nova: devendo interpretavam o Texto Sagradosobre certas
entre clles lembrar-se Lhonhail. author do regras dos antigos mestres, e o explicavam
livro, dito na lingua latina, Philosophus A m- por combinações de numeros e letras; por
todidactus, que não occultou a influencia isso estas duas ultimas seitas tinham rela
exercida pelas doutrinas mysticas sobre ção com as escolas philosophicas: entre os
muitos dos arabes, c a sympathia d’estes p> rabbanitas sc professavam as doutrinas de
lo ncoplatouismo, attribuindo elle mesmo na Aristóteles,por quem havia grande venera
introducção ás inspirações do extasi as lu ção, mas não sc despresava o neoplatonismo;
zes, que manifestaram ós sábios da sua gen e os cabalistas formaram um systema com
te; mas é necessario advertir que a dou posto das doutrinas pythagoricas e platoni
trina da união intima da alma com Deus cas, dissenti ndo da nova cscóla de Platão
lançou mais raizes entre os sofís da Persia 1 porque cmquantoestaadmittiaa unidadeab-
segundo era necessario, tendo a vida con soluta e numérica do pantheismo, clles a re
templativa como meio de se identificar com cusavam: estas escolas produziram homens
Deus, porque gradualmente por cila se che notáveis em todas as idades, mas eu apon
ga ao ultimo grau da absorpção perfeita: tarei tres distinctos no século 12.°, que, se
segui*amentc se ha dito bastante cm diffe gundo escreveu o acadêmico referido, me
rentes logarcs d’este cscripto para se poder receram contar-se entre os maiores homens,
remontar á origem de tudo isto, c ao co que teve a synagoga, os rabbinos Moseh Bar
nhecimento do seu resultado moral. O povo Maimonides. Ahraham hen F / p . c David
de Israel teve sábios mestres, que depois de ben Josonfi Himchi. e de que os primeiros
.sua dispersão ensinaram nãs escolas de Na- d ousíom o rabbino Chinania ben Isaac re-
hardéa e de Sorá, pelas vlsinhanças do Eu- ceberam iguaes elogios d’outrosescriptores;
Iphrates, cm Pombcdita c Mchasiah na Ba- mas sem questão Maimonides os excedeu, c.
'nylonia e na Pérsia, para onde de toda a todos ellcs, mais ou menos, encontravam os
[terra ia esse povo aprender: porém todas fundamentos de suas doutrinas em as de
essas cscólas acabaram pela perseguição dos Aristoteles, dos arabes e de Alexandria. Ve
remos entretanto até que ponto chegou a
1 Um idealismo exaltado é sobre que se degradação das escolas entre os christãos
fundam doutrinas mysticas que levam a latinos: para me conformar aos princípios
contemplação até ao extasi, e que fazem de recebidos, c segundo a disposição methodi
riva r de união intima com a Divindade a ca de Digcrando, direi qiic os caracteres da
communicacão de toda a luz; esse idealismo philosophia escolastica, como chamam a
e seus resultados foram a base da scienda das cscólas occidentaes christãs da meia;
da China e índia, dos Magos, dos Gnosticos idade, fundavam-sc n’um principio de imi
e da religião do Tybet, cujo reino espiritual tação da philosophia antiga de todas as es-
recebeu muitas fôrmas da seita nestoriana, cólas precedentes; na submissão ao jugo da
como os restantes cultos da Asia as adqui authoridade; na subordinação ao ensino re
rira m do Judaísmo e do Christianismo, se ligioso, porque concentrada nos seminarios
gundo lembrei: esse idealismo e seus resulta (como hoje dizemos) e nos mosteiros,não po
dos viram-se entre os judeus da Grécia, Ale dia ter outro destino; na adopção d’um me
xan dria c Roma, entre os arabes e sofis da thodo imperfeito, como preliminar de toda a
Persia, como ponderou Degerando, e eu te doutrina positiva, que rio volver dos tempos
nho feito vêr. se ressentiu de mais a mais d’ossa imperfei- ,
4 , x/4 . ÍW v
fj. '7* f/tVVíAc*. 0f.m
y b o j i t , f
144 DISCURSO PRELIMINAR
çao, levando-sc as cousas a um dogmatismo dos levaram; mas é necessário dizer, quo
cegoc absoluto, e esqueccndo-so o estudo da apesar d’isso. no geral a cega obediência á
natureza physicae da historia moral: o novo authoridadc dos mestres, e esse dogmatismo
platonismo, einfim, a escola arabe, c final- absoluto, que se alardeia, só consistia no
mcnte Aristóteles reinaram com poder des methodo dascicncia, como affirmou o sabio
pótico nas escolas: as guerras violentas, que Rohrbacher; c na verdade não foi esse me
deram cabo do império Occidental, c obri thodo, que perverteu Claudio, Bispo dc Tu
garam a trocar o livro pela espada, bem rim.para sc fazer iconoclasta, mas o philo-
como a barbaridade dos conquistadores, con sophismo oriental, nem os casionistas, que
sumiram escriptos, c tiraram o soccgo, que atormentaram com suas loucuras e deboches
os bons estudos requerem, de modo que os a Andaluzia, nem o famoso Bispo Hosligazio
primeiros discipulos que substituiram no para negar a immcnsidade de Deus, nem
ensino os mestres do século o.° eram tão outros perdidos, mas as tonterias de Bysan-
inferiores que não podiam comparar-se-lhcs, cio e as relações com os .arabcs: no século
e o mal foi progredindo, até que a paz veio 10.° o Sancto Padre Silvestre ii, Fulherlo de
dar occasião á cultura dos espíritos, c o pen Chartrcse o monje Constantino entregaram-
samento de aprender cm Constantinopla, c se a todo o geubro de estudos, sem se ligar
onde quer que se abrisse uma cscóla,appa- espccialmcnte a este ou áqucllc systema; c
rcccu c durou muito tempo; mas no Oriente Cunzo dc Verona apresentou opiniões con
as cousas passavam, como se tem visto, pelo trarias a Platão e Aristóteles sobre a reali
que a instrucção do Occidente não podia ser dade objcctiva das noções geraes: no século
melhor que a*dos mestres, de quem se ou H.° S. Pedro Damião abandonando Aristóte
viam lições; apesar d’isso o século 7.° pro- les admittiu, quanto ao methodo, algumas
luziu em líespanha uma luz brilhantíssima, idéias dos novos plalonicos, mas Berengario,
ilém de outras, Sancto Isidoro de Scvilha, negando a Presença Real na Eucharistia
que embora fosçc apenas um compilador, apresentou-se mais sequaz dos philosophos
ainda dc boa escolha, como disse Digerando, do paganismo, que justo apreciador de suas
não será muito facil encontrar n’esse século, obras, porque oppondo á fé os sentidos e a
cm todo o mundo, quem conhecesse a scien imaginação, preferindo a soberba á humil
d a e tão universalmcntc como clle, e ainda dade christã, e occultando sua superficiali
menos quem fizesse melhor uso d’ella, não dade com o abuso da dialectica, quiz antes
se ligando a systema algum, nem tendo ou imitar os erros das escolas peripathctieas do
tro fim senão a verdade cm suas indagações; que os sentimentos orthodoxos dos Padres
no século 8.° como que seguiram suas tra da Igreja; não foi assim o beato Lanfranco,
ças nas Ilhas Britannicas Adhelcno c ainda que o combateu, e soube derramar grandes
mais o venerável Beda, posto que d’el,le se luzes nasdoutrinas escolasticas guiadas por
diga que foi só compilador; seguiram o ce uma judiciosa prudência cxclusiva.dos dou
lebre Alcuino,seu compatriota, restaurador tores christãos, e sobretudo d’aquelles que
dos estudos em França, c o wesigodo Theo- preferiram a humildade evangélica ao es
dulpho, Bispo dc Orleãns, com o diacono de pirito faccioso c innovador: no sécfflp
Aquilca Paulo, e o Bispo d’essa igreja, Pau- 12.°, do mesmo modo obrou seu discipu
lino, que promoveram na Italia essa restau lo Sancto Anselmo de Cantuaria, que se
ração; mas emquanto os esforços (Testes guindo as traças de S. Pedro Damião, tomou,
grandeshomens progrediam d’uma maneira por guia dc seus trabalhos a Sancto Agosti
incrível, as Bispos Felix d’Urgel e Elipando, nho, e porigual modo João de Salysburi, Bis
de Toledo, imbuídos nas •doutrinas dos gnos- po de Charlres; Hildebcrto, Bispo deTours,.
ticos, e tomando por base a unidade de tão celebre por seu saber como por sua vir
Deus, segundo se encontra no Alcorão, a tude, e que andou por.caminho bem diffe
fim de attrahirem os islamitas ao Christia rente de Berengario, seu mestre, e Ilugo de
nismo, affirmaram que Nestorio, que em Je S. Victor, que soube dar preferencia a Pla
su s Christo havia duas pessoas, e que em tão sobre Aristóteles, foi o primeiro d’este
quanto homem era filho adoptivo dc Deus, longo periodo, que fez estudo sobre a psyco-
subsistindo o primeiro nò erro, apesar da logia, e obrou como Sancto Anselmo em
renuncia do segundo: no século 9.° João seusestudos: differente caminho seguiu Ros-
Scoto renovou o novo platonismo em França cclin,que levantou a scisão na escola, insti
e Inglaterra, e foi propriamente o fundador tuindo uma nova sciencia de palavras, e
do systema escolastico, qúepõr muito tempo uma.iiòva philosophia, attribuindo tudo á
permaneceu nas escolas christãs, é que eu força dos termos; e envolvendo a razão em
estou bem longe de defender por causa das imagens materiaes, mas Sancto Anselmo c-
questões pueris e do mau caminho que to João de Salysburi combateram esse princi-
DISCURSO PRELIMINAR 145
pio, c tTahi veio a distineção cnlrc nomi- das doutrinas do celebre fundador da cscóla
naes c realistas, (lando-se á escola de Ros- do Lyceu; mas, como disse aquelle historia
cclin o primeiro nome, c aos seus contra dor, o nome do beato Alberto, o grande, e a
rios o segundo; Pedro Loinbardo, Bispo de authoridadc de S.Thoniaz deram outra direc
Paris, e author do Mestre das Sentenças foi ção ás cousas, fazendo admiltir Aristóteles-
propriamente o fundador da escola realis todo inteiro, porque servindo-sc d elle não
ta; emquanto aquella de Roscclin produziu prevaricaram; por outro lado estabeleceram
Abailardo, que ensinou a desigualdade das uma nova senda á philosophia cscolastica.
Pessoas na Trindade Sanctissima, porém re- Kalles introduzindo as fôrmas syllogisticas-
tractou-sc; Arnaldo, de Brcscia, que por um no ensino da theologia; Guilherme d’Auvcr-
lado sentiu mal da Eucharistia, c por outro ge estudando todos os gregos, arabes o ju
levou o cspiritualismo a recusar a posse dos deus, ordenou um corpo da sciencia philo
bens temporaes ao clero; mas isso não foi sophica, em que apparecem alguns traços
senão por adular o poder temporal, inter de Platão, mas como theologo se mostrou
pretando maliciosamente a Sagrada Escri- fiel á doutrina da Igreja; Rogero Bacon, que
ptura; Gilberto, Bispo de Poiticrs, que deli- primorosamenle soube as sciendas physicas
rou, segundo sua escola, a ponto de consi e mathematicas; Vicente de Bcauvais, que
derar a Trindade Sanctissima não um Deus, procurou conciliara Platão com Aristoteles;
mas uma deidade, que não era Deus; e o Gil Colona, S. Boaventura, Pedro Juliào, que
Abbadc Joaquim, que, pretendendo comba depois subiu á cadeira de S. Pedro, Henri
ter Pedro Lombardo, também sentiu mal da que e Ricardo de Mcdeavilla foram outros
Trindade Sanctissima; fóra d’estcs o século tantos doutores que bem mereceram por
12.° ainda viu Pedro de Bruis, inimigo da seus trabalhos litterarios; mas Duns Scot
Eucharistia, do culto, das preces e das boas sem dúvida adquiriu na escola maior dis-
obras; os albigenses, que se oppozcram com tineção, elevando seus estudos a uma esphera
os waldenses ás indulgências, á invocação mais alta, combatendo frente a frente com os
dos Sanctos, e ao poder ecclesiastico, e ado discipulos de S. Thomaz, e dando principio
ptaram expressamente erros dos manichcus; á famosa lucta cscolastica entre a ordem de
cDavid de Dinant com outros, os quaes to S. Francisco, a que pertencia, e a de S. Do
dos se fundavam nas doutrinas dos gnosti- mingos, de que S. Thomaz fora filho, porque
cos,quc por esse tempo subsistiam cm Fran affirmava contra a outra parcialidade nãc
ca: o século 13.°, disse Degerando, se cara- terem as faculdades da alma existência dis
cterisa debaixo d’uma relação duplice, por tincta entre si, nem existência separada da
que recolheu os clTeitos da cultura, que co alma: e sobre estes princípios se elevaram,
meçou a tornar-se geral, c porque os estu questões theologicas entre uns e outros, sem
dos* dos homens instruídos principiaram a comtudo d’um ou outro lado haver n’essas
abraçar uma csphera mais extensa, cncon- questões excessos em relaçào á fé; porém
trando-se, segundo esse historiador, o sc- isso não aconteceu com Raymundo Lullo,
undo.caracter especial d’este século em de Terraga, que se enlodou iio inixticismo*
ous factos positivos: o conhecimento dos c, como alguns outros, suas applicaçõcs a
escriptos dos arabes e das obras de Aristo levaram a errar no caminho do justo: os
teles; c isso veio determinar o espirito c a nominacs, que haviam terminado no século
fôrma da philosophia da sua época: os es que os viu nascer, resuscitaram no 14.° pa
criptos de Aristóteles entraram então por ra entrarem em lucta contra os realistas*
inteiro na Europa, e com os de Averrdes uc os haviam destruido; Guilherme Ockam*
foram recebidos com grandissimo enthusias- iscipulo de Scot, que havia defendido o rea
mo na Allcmanlia e França, sendo princi lismo com grande valentia, oppôz-se ao mes
palmente o celebre Frederico Barba-roixa tre, combateu os argumentos em que elle
quem procurou vulgarisar aquelle philoso pretendeu fundar o seu triumpho, c tentou
pho, fazendo' traduzir o original grego de uma reforma difíicil, adoptando um systema
suas obras por Miguel Scot (foi isto cousa na simples e indicado pela naturezadas cousas*
tural, porqueo amigo de Mohamednão podia e apresentando independência e originali
deixar de querer que as theorias do deismo c dade, segundo parece do sentir do historia
do despotismo fossem cultivadas por seus dor, que principalmente sigo n’este periodo:
vassallos para ter mais auxiliares contra a contra elle e em favor de Scot se levantou
Igreja e a humanidade); entretanto a acade Burlcigh, que defendeu a realidade objecti-
m ia de Paris condemnava a lição das obras de va das noções geraes; mas o realismo teve
Aristoteles, e a Sancta Sé os erros do pan- adversarios era Jalabert, Masilio de Inghen,
theismo mixto dos novos platônicos reprodu Suisset, Buridan, o Cardeal de Ailly, e ou
zido em França, e que se entendia origiuado tros a quem se não pôde negar muito merc-
146 DISCURSO PRELIMINAR
tentavamos erros antigos reproduzidos por outros erros tirou a liberdade a Deus; João-
Wiclcf, compunham a seu modo as doutrinas Lockc tão confuso, que talvez cllc mesmo se
que propalavam, fundando-se na audacia não entendesse sobre a natureza da maté
philosophica; c para se evadirem ápena me ria, e do qual disse um sabio moderno que
recida por seus crimes recusaram toda a não era mais christão, que Mohamcd ou o
authoridade, porque, por exemplo, conside gran-turco; entre os electicos notaram-sc o
rando a Igreja um corpo mystico, exclusi- chanceller Bacon, pae da philosophia expe
vamente composto de justos e predestina rimental: Isaac Ncwton, restaurador das
dos, e não reconhecendo no Sancto Padre c sciencias exactas, c notável pela sua theoria
nos Bispos mais poder que o simplesmente da luz sobre que reproduziu as idéias d’um
ministerial, a salvo estavam para vomitar padre da Igreja, Descartes, creador de nova
quantas blasphcmias quizessem. No século escola de raciocinar: Lcibnitz, espirito pro
16.® renovaram-se as velhas seitas de Pytha digioso, que profundou as doutrinas de to
goras por Nicolau Copernico, sobre cujos dos os philosophos; Hugo Grocio, que cui
trabalhos cuidaram de reformar a astrono dou de restaurara philosophia moral; e ain
mia Tycho Brahe, Joào Kepler, e Galileo; da outros a cujo numero se deve juntar o
de Parmenides, por Bernardino Telcsio; do venerável Fénélon, se eu devo entender por
Aristóteles, por Nicolau Lconcio Thomaeo, clecticismo uma liberdade regrada de accei-
Nicolau Machaviel, Pedro Pomponeceo, Pau tar o que convém á< razão pura c á verda
lo Jovio, Julio Cesar Vanini, Alexandre e de: de outro lado progrediam os erros de
Francisco Picolimini: de Platào e dosstoi- testáveis dos discipulos do Machiavel;sc re
cos, por Pedro Ramos, reformador da philo novavam por Miguel de Molinos os do velho
sophia nacional, e um dos maiores adversa quietismo; cda amalgama de differentes sei-
rios, ou para melhor dizer, inimigos que las apparcccu o janscuismo propagado por
tem tido Aristóteles, embora alguma eousa Marco Antonio de Dominis c Ilauramo; bem
se aproveitasse d'clle; dos escolasticos, por como o systérna de igualdade entre os ho
Fr. Domingos Soto, e muitos outros: com mens e da liberdade de julgar sobre o Texto
estes seguiram alguns uma philosophia de Sagrado; ainda mais lata dò que o pretendeu
imaginação, raciocinando de má sorte sobre Luthero, propaladas pelos quakers ou visio
certas doutrinas antigas, como o visionário nários inglezTes, que no fundo não é senão o
Thcophrato Paracelso; outros cm syncretis- deismo revestido de certas formulas christãs.
mo ou reconciliação do inconciliável, isto é, Século 18.®—a heresia collectiva, disse um
das Sagradas Letras com as seitas philosophi sabio historiador, conhecida debaixo do nome
cas, de que deram exemplo Guilherme Pos de philosophia do século 18.® herdou as here
tei, Mucio Pansa, Eugubino e ainda mais; sias de Jansenio, Luthero, Calcino, assim
certos, oppondo-sc aos conceitos philosophi como de todas, as heresias anteriores com-
cos, mas baseando suas doutrinas sobre as prehendidos o mahomelismo c o paganismo;
dos philosophos, como Luthero, pae dos he- e a respeito do qual um philosopho recente
resiarchas modernos, Hoflman, e dilTcrentes: accrescentou—que um materialismo auda
entre os electicos pozeram João Bruno, que cioso e um sccpticismo cego nascido dos
pôde ser um bom pantheisla; Jeronymo Car- princípios dò século 17.® se tornaram toda a
dan. obscuro e supersticioso; porém assim sabedoria do seguinte século frivolo, egoista
m c faltam forças para ter n’esta conta outro c sensual, que começou pela immoralidade, e
que não seja ó dontissimo João Luiz Vives, veioaacabar pelo sangue—d’aqui passou-se
pelo caminho recto que seguiu. No século segundo elle, ao racionalismo, característico
17.® continuaram os escolasticos, e apparc- do século actual, que para escapar ao scc
ceram de novo os scepticos, dos quaes men pticismo vai cahir no pantheismo: 1 outro
cionarei o portuguez Francisco Sanches, Je
ronymo Hirnhayin, o Bispo Huet, e Pedro 1 La philosophie française, fondée par
Bayíe, que andou por má estrada, e foi tido Descartes (não e sobre a sua dúvida metho
por atheu: ao lado d’estes restauraram a dica que o author quiz faltar), fú t develóp-
escola jonica Claudio Berigardo, que não pée par Afalebranche dans le sens du plus
pôde também passar sem ser accusado de haut spiritualisme. Dejá ellc se mctlait en
atheu; as doutrinas panthoistas, Bento Spi harmonic avec le Christianisme; la voie ou-
nosa; as materialistas, Daniel Sennerlo, João verte; le tcrnps devait amener les perfectiori- \
Chrysostomo Magneno, Hobes e Pedro Gas- nements necessaires à la constitution d'une
sendi; que dobraram os joelhbs diante dos philosophie complete. Mais ces developpc-
velhos atomos; de Aristoteles, o padre Ma- ments furent arretes et violamment inter-
lebrancbes, que pretendendo accordar a phi rompus par Vintrodnction des doctrines de
losophia de Descartes com a Religião, entre Lockc. La philosophie de la sensalion, qui
V* j*'
DISCURSO PRELIMINAR 149
•cscriptor (Amando Saintcs), depois de dizer se em pouco toda a sua historia: materialis-
que Fortalcge tractando de Kant escreve nio representado por Didcrod; sccpticisino,
ra: «« philosophia contemporanea assimilha- inconscquencia c contradicção, representa
sc a um immenso edifício composto todo de dos por Joào Jacques Rosseaú; sophisticismo
equenas casinhas, cada uma das quaes era c libertinagem representados por Vollaire;
•occupada por um philosopho, sendo Kant o superficialidade representada por Wolf, e
fundamento do cdijicio »accrescentou que era obscurantismo representado por Kant; tudo
exacto substituir Spinosa ao nome de Kant, isto pôz em acçào as al mas damnadas de Wcis-
e representar o edifício fluctuando nos ares: haupt, Zwach, Kniggc, Lanz, c de todos os
tal é a moderna philosophia, quero dizer, c seus associados occultos, e produziu o es
o que nào podia deixar de ser com elemen pantoso facto da revolução desastrosa da
tos do século passado, como a d’essc o fora França no fim do século, com suas conse
com a do século anterior; mas vejamos o (pie quências, que em todas as relações estamos
(Tesse século 18.° se pôde afllrmar. Resume- sentindo.
a va it des prccourseurs en France dans Vcco- vague et invtil dei.smc incapablc de regnxerer
fe dc Gassandi, setablit panni nous, et de- la raison affaiblie Cepemlant le loix eter-
v in t dominant vers lemelicu du 18.me siécle. nelles de Vordrc de conscrcation des socie-
Ce siécle frivole, equiste el sensuel, ve pou- tés avaient éte violces; rois et peuples
v a it avoir d'outre philosophie. II trouvait s'elaicnt laissé seduirc et enivrer par les le-
dans le systeme du philosophie anqlais, com- cons de Verreur parée des agrements de l'es-
mentée et perfectione par Condillac, taot Ia prit, aux appâts d'une-corruption elegante;
Science dont il sentait le besoin. Un matc- le clergé lui-meme dans une trop gr and
rialism e audacieux et un scepticismc aveu- nombre de scs membres, clait profondement
gle naquirenl des principes adoptes et devia dechu de la foi Chretianne, el de 1'esprit
ren t loute la sagesse d'une epoque qui pia- Chreticn. Tant de violations ne pauvaient
ç a it le bonlieur dans les jouissances mate- rester impunies, et le siécle, qui avait com-
riclles. Des voix eloquentes sans douto pro- mencè dans la debauchc, vint finir dans h
testerent contre des tendences aussi abjectes; sang.—Maret. Kssai sur le. Pantheisme, dam
mais ces voix furent impuissantes; la foi les Societés Modernes, chap. l.°
nc les animait jias; elles proclamaient un
A Igreja de Deus fundada sobre doutrinas do com todas as suas forças o espirito, cm-
absoluta mente conformes árazão c á digni quanto procuram aniquilal-a, precisam co
dade do homem, c dirigida pela moral mais brir o rosto e voltar as costas ao campo da
pura, apesar da lucta feroz que contra cila batalha, onde a desfeita lhes cabe em sorte!
empenham a politica, a falsa sciencia c a Eis ahi a historia do Christianismo durante
corrupção mantida por uma e outra, cami dezenove séculos, direi melhor, desde a ori
nha triumphante pelo tempo á eternidade, gem do mundo, porque o Christianismo foi
que é o seu destino! A ambição do dominio, revelado a Adão, promettido a Abrahão, c ma
a impiedade e o sensualismo concorrem, ni festado no Homem-Dcus, no Filho da Vir
sem o quererem, para suas victorias! O des gem! O primeiro inimigo da Igreja de Deus
potismo elevado á condição de poder, sem que disputa .sobre a authoridadc espiritual,
muitas Yezes ser percebido pelos proprios de que olla é a unica depositaria, a politica,
tyrannos; o erro usurpando com audacia o por outro nome, a ambição de donunio, ou
.assento da sabedoria; e a materia subjugan o despotismo, aprescntá-sc na lide â frente
150 DISCURSO PRELIMINAR
mo: n’csse estado, alistados os que presu ou aquellcs que pretendem tcl-a achado
mem saber tudo, ignorando toda a verdade, procurando-a, prevenidos pelo espirito do
trissime Domine, a non judice, non dispen que seus paes açoutavam um Crucifixo
sato cl suspecto ac contra juris formam, et ameaçando-a de queimar-lhe as mãos ríum
etiam a Principe scculari nominato, tot brazeiro que tinha diante, c extorauiu-lhe
processus, incarcerationes, condemnationes, d'esse modo a confissão d'uma falsidade; e o
cxccutioqos, damna, scandala, et inconve de insultar o pudor de mulheres casadas e
nientia sunt orta, et in dies magis orientur, donzellas, que estavam prêsas, com ditos c
si Sanctitatis Sum justitia, et misericordia actos 7ião só impudicos, mas insultantes da
non providerit, ut ab eadem misericorditer desgraça. (ditos Symmitica e tom. fol. 332 v.)
speratur (ditos Symmitica e tom. fol. 154 v.) C.° Ò Regimento do Conselho Geral da
4.° As notas dos crimes e excessos dos in Inquisição feito pelo Cardeal Infante D.
quisidores por todo o reino de Portugal apon Henrique no l.° de março de 1570 em algu
tam algumas cousas, que mc pareceu necessá mas de suas disposições revela a verdadeira
rio m encionar:. . .Qui plures comburit,cre origem e espirito d'este tribunal.— 1,° cap.
dit majorem famam acquirerenon minus et 10.—Vindo algumas Bullas ou Breves dos
honorem, etin hoeseenervant putantesin eo Summos Pontifices, que sejam de graça aos
prmstare obsequium Deo et principibus, novamente convertidos ou de quaesquer
sperantes propterea majores honores, prm- outras cousas que pertençam ao estado ou
mia, redditus, et Prmlatias; et si qui ibi alte bom governo do Sancto Oílicio da Inquisi
rius fuere intentionis, quos ad idem proposi ção, ou pareça que sào em prejuízo seu, se
tum convertere nequiverunt, hi fuerunt ex darão no Conselho, estando presente o in
pulsi et rejecti ab olficio; quoniam si sunt quisidor geral; e se tomará resolução no
bonm intentionis et pii zeli dicunt non cs- que se deve fazer, e se dará conta *d’isso,
;e idoneos pro inquisitoribus.. Iste error sendo necessário a Sua Alteza. E sendo as
lascitur ex deputatis, de quibus princi- taes Bullas apresentadas aos inquisidores
es se confiderunt, et quibus tradiderunt das comarcas, cllcs mandarão ás partes que
urisdictionem, ac quibus cbmmittunl cla as tragam ao Conselho para se lhe dar o
mores et gemitus ac gravamina patientium despacho que mais convier ao serviço de
hujusmodi crudelitatis, quoniam illi elege Deus, conforme a direito, sem lhe ós inqui
runt subdclegatos domorum, et prius eos do sidores darem mais outro despacho, porque
cuerunt, ac instruxerunt artem inquirendi n’este caso lhes não damos jurisdicoàò an
et penes se multis diebus ad praticam re tes, porque nós queremos vér se nas taes
tinuerunt. quam illos deputarent affirman Bullas ha falsidade ou alguma cousa de
tes principibus eos esse idoneos.. . Inomni- que convenha dar conta a Sua Sanctidade.
bus domibus regni non servatur jus com —2.° pelos cap. 13 e 14 o Conselho era au-
mune, nec Bulla Inquisitionis.. . In toto Re thorisado a conhecer de appellações inter
gno fuit denegata misericordia petentibus postas pelas partes ás sentenças dos ordina
illam etiam nomine eorum existente rela rios.—3.° pelo cap. 21 o Conselho era au-
pso, et hoc modo combusti sunt omnes us thorisado a reclamar dos Ordinarios os pro
que ad hodie contra formam Bullte. . . In cessos e présos que tivessem culpas perten
omnibus Regni domibus sunt carceres con centes á Inquisição; e se elles os não remet-
tra formam Bullaj, iique fiunt etiam secreti tessem o inquisiàor geral os avocaria, con
et privati in domibus aliquorum inquisito forme o Breve que tem de Sua Sanctidade
rum, atque mulieres pulchras detinent in (as promessas falsas, como foram sempre as
domibus sub propriis clavibus vel servito^ de qualquer pretenção do despotismo do po
ru m su oru n .... In omnibus domibus Regni der temporal encarnado rí esta filha primo
reperietur fuisse aliquas personas sine cul genita c predilecta da escola brutal, torna
pa carccratas et postea sibi ordinatos qum- vam nullas todas as concessões da Sancta
sitos et traditos falsos lib ello s.. . Justitite se Sé:)—í.°— cap. 25.—No Conselho se passa
culares et similiter inquisitores ordinant,ne rão as cartas em nome de El-Rei para todos
Christiani novi possint requirere suam jus os Viso-Reis, governadores, capitães, duques
titiam coram Suai Sanctitati, nec in hac em ais senhores, e justiças seculares fazerem
Sancta Sede A postólica.. . (ditos Symmit- tudo o que cumprir para o bom governo,
tic a et tom. fol, %o7.) e estado c favor do Sancto Oílicio; c estas
5.° A .noticia dos excessos dos inquisido cartas fará o secretario, e levando vista do
res de Coimbra manifesta igualmente casos Conselho para Sua Alteza assignar; etc.—
dignos de memoria, como, entre outros, o de 5.°—cap. 26.—Oinquisidor geral tera super
obrigar um a menina de dez annos a dizer intendência na administração e despacho
DISCURSO PRELIMINAR 153
•erro ein seguindo sem critério c com pai plcsmentc a sua razão obscurccida em pre
xão systeinas antigos, ou consultando sim- conceitos ou por interesses; felizmcnlc o
dos bens confiscados, c em tudo que tocar a sentença em 11 demarco de 1571. (Os autos
•este negocio, e ordenará aos juizes c dará a •Telia estão entre os do tribunal de Lisboa
fôrma que n’isso llie parecer dando primei no Archivo Nacional.)
ro d’isso conta a El-Rei; e no Conselho se 8. ° No processo de Francisco líenriques,
passarão as cartas cm nome de Sua Alte natural de Miranda do Doúro, c accusado
za para as justiças seculares se não intro- de culpas de judaísmo, depozeram como
metterem no conhecimento das cousas que testimunhas contra elle alguns ofjiciaes da
pertencem ao fisco.—6.° pelo cap. 27 se Inquisição, por terem estado de vigia, como
estabeleceu que os juizes c thesoureiro do era costume fazer-se a todos os presos, em
fisco seriam providos pelo inquisidor geral, togares para isso accommodados; e de seus
passando-se as cartas em nome de El-Rei. ditos, fundados cm meras conjecturas, se
Esses cap. 2o, 26 e 27 expressam n'este tr i fez carga ao accusado, auxiliando-se com
bunal a qualidade de tribunal civil, do mes elles suas proprias confissões contradicto
mo modo que o I.#, porque se determinou rius, e‘as denuncias porque fora preso: so
a annuenda do Rei para a creação de bre estes fundamentos recahiu uma senten
todos os ofjiciaes, e a residenda do Con ça de relaxarão! Foi executada a sentença
selho e inquisidor geral na corte; demais o d'este infeliz’ no auto de fé de 1644. (b s
provam a licença do soberano para se fa autos Telia estão entre os do tribunal de
z e r esse regimento e sua confirmação pe Lisboa no Archivo Nacional.)
los reis D. Sebastião, D. Henrique.'D. Fi- 9. ° No processo de Maria de Freitas, na
lippe i.°, que c isso que se encontra nos tural de Buarcos, e accusada de culpas de
subsequentes feitos por outros inquisido judaísmo, se lavrou a seguinte sentença:
res geraes. Christi Jesu nomine invocato, julgam e ‘de
7.° No processo de Manoel Travassos, na claram a ré Maria de Freitas por verda
tu ral de Lisboa, accusado de lutherano, ha deira relapsa no crime de heresia e apos
certas notas á margem, c uma a fo i 36, que tasia da nossa Sancta Fé Catholica, c in
diz: esta culpa cresceu depois do rco estar correu cm sentença de excommunhão maior
préso n’este cárcere (se prender por doido e cm confiscação *de todos os seus bens
um homem em seu ju izo, não tardará a applicados ao "fisco c camara real, c nas
perdei' a cabeça;) e outra a foi. 36 v. sobre mais penas cm direito contra similhantes
a palavra do accusado: que os inquisidores estabelecidas. E por se haver feito indigna
eram tyrannos, porque apertavam com clle. de misericórdia (posto que a pediu), como
Ti'avassos, como muitos outros presos, lan relapsa a relaxam (ainda que penitente),
çava em rosto aos ministros do tribunal sua etc. Não sei que a perversidade possa chegar
iniquidade, e isto bastava para vingança mais longe! Esta horrrivel sentença foi exe
cruel da parte d'esses. Este homem, por seus cutada no auto de fé de 1671. (Os autos Tel
escândalos, merecia aspero castigo, mas ia eslão entre os do tribunal de Coimbra no
não queria eu vêr que por cabeças coroadas Archivo Nacional.)
fosse condemnado á morte rícstes termos: 10. ° 0 processo de Maria Rosa do Espi
Christi Jcsu nomine invocato. Declaram rito Sancto, natural de Soure, e accusada
que o réo Manoel Travassos foi e ao pre de feiticeira, c um dos monstros mais he
sente é herege lutherano, e, como tal, he- diondos que produziu a Inquisição: não se
roge impenitente, ficto c simulado, confi- tracta aqui de crimes imputados em mate
tente e dogmatista, o condemnam; e que ria de Religião, c que se provassem ou dei
incorreu cm sentença de excommunhão xassem de provar, mas da prostituição de
maior, c nas outras penas em direito con uma depravadíssima adultera, de perguntas
tra os similhantes estabelecidas, c cm con- e respostas indecentissimas, e d'um desfe
fiscação de todos os seus bens applicados cho tão ridiculamente indecente, que chega
para o fisco e coroa real, e o excluem do a ser revoltante a complacência com que se
grêmio c união da Sancta Madre Igreja, c faziam os interrogatorios á accusada, of
o relaxam á justiça secular, a quem pedem fende tanto a moral, quanto eram desafo
com muita instancia se haja com clle pio- radas as suas confissões: depois Tum a seríe
dòsamcnto, e não proceda a morte nem cf- inaudita de actos nauseantes e escandalo
fusão de sangue. ( Este final, posto em to sos, foi condcmnada em um anno de reclu
das as sentenças dos relaxados, era um são nos carceres, c cinco de degredo para
cprave insulto aos desgraçados rcos, porque Angola; mas fazendo novas confissões a
equivalia dizer ao fogo. ’ Foi publicada esta prazer dos inquisidores, a declararam ar-
Í5 & DISCURSO PRKLIMINÀR
rependiâa, e, por pedir misericordia, se lhe peor depois dos arrazoados das sentenças,
commutou o degredo em 17 de outubro de ora filhas do odio, ora da mais torpe ambi
1730 (á pobre Maria de Freitas, que não era ção, c sempre injustas c iniquas, ju n tava o
adultera nem deshonesta, nao lhe valeu o saciilcgio, antes de proferir o accordo ter
arrependimento, nem a supplica de miseri rível da relaxarão, por estas palavras:
cordia!!!) e em 9 de novembro seguinte, por Christi Jesu nomine invocato!!! como se
ordem dos inquisidores de Evora, foi cum viu nos que acabo de lançar aqui.
p r ir o degredo em Faro. (Os autos estão en A Inquisição é um argumento da pouca
tre os do tribunal de Coimbra no Archivo ou nenhuma fé n'aquelles que a pediram e
Nacional.) a exemeram; porque não admittiram o
Persuado-me que nada mais é preciso pa principio fundamental do instrumento da
ra m ostrar com evidencia não só os horro conversão a palavra, nem a promessa de
res practicados por esse tribunal de sangue, Nosso Senhor Jesus Christo, de que quanto
mas a maldade com que se quiz fazer d'um se pedir a Seu Pae cm Seu Nome será con
tribunal politico um tribunal d'uma religião cedido.
de amor, de paz e de salvação: se isto não A Inquisição é um argumento de torpeza
basta, apresentarei um seni numero de au brutal n'aquelles que a pediram e exerce
tos m m es, em. que se invocava o nome de ram; porque é outro principio fundamental
Christo para .condemnar homens ao fogo! no Christianismo, a conversão absoluta
e por outra parte Bullas e Breves de cas mente voluntaria, e deu o exemplo o nosso
sação de processos, de reprehensões da San Divino Salvador, que só essa admillia, di
cta Sé, e outros documentos d'uma lucta zendo: Se alguém quizer vir atraz de mim,
quasi continua dos Papas com a nossa cor faça abnegação de si, tome sua cruz, e si-
te por causa dos procedimentos temerarios gá-me.
e iniquos da Inquisição. Este tribunal ne A Inquisição, finalmente, é um argumen
fando para tudo invocava a authoridade to de perfidia naquelles que a pediram e
real; mas para dar toimentos dizia que es exerceram; porque enganaram a Saneia Sé,
ta v a authorisado pela Sancta Sé, e que o e persistiram tenazes em sua obra contra
fa zia p o r bem da Igreja de Deus; e o que é as reclamações do Chefe da Igreja de Deus.
DISCURSO PRELIMINAR 155
rios do dinheiro correm para as algibeiras que é o que yérnos cm Portugal? indiíTc-
d’uma mulher de theatro, porque cntrelcvc rença, indiflerença, indiíTerença! c é isto o
uiu sarau cantando c dançando, ou de quem que punge o meu pobre coração e mc faz
negoccia com o suor dos desgraçados c com derramar lagrimas sobre esta princeza das
a vida de milhares de infelizes*! Nào será nações que tão gloriosa foi j á . . . que domi
isto opposto á lei que professa a Igreja de nava sobre os mares e sobre as terras mais
Deus? quereis saber os factos? é bem pou longinquas.. . e que plantou o Symbolo Au
co custoso topar com elles! Nào será isto a gusto da Redempção da humanidade em
corrupção combatendo as leis sanctas do grande parle da Africa, da Asia, da America c
Evangelho pelo braço da politica c pelas da Oceania!.. Deixemos essas considerações
tacs concepções dos pscudo-philosophos? para vòr de que modo a Igreja de D*cus
esses c outros grandes males filhos da cor-, sahiu a campo apresentando batalha face
rupção, de envolta com os que cila está a face a seus inimigos.
produzindo pela impiedade, se encontram No estabelecimento ou restauração do
n’cste desgraçado século cm toda a parte; reino de Deus, a Igreja enviou seus mis
mas se percorrermos os paizes Onde a ci- sionários a essa grande empreza, sem ou
vilisação tem assento, encontraremos a tras armas, que a palavra e a austeridade
moral* Evangélica luctando contra a corru de costumes, expostos aos rigores dos cli
pção em todas as nações, sem cxccptuar mas e das estações, á pobreza e á tyrannia
uma só fóra de nós, indo adiante a Fran dos poderes dá terra: eis ahi os soldados
ça, essa França que tantos escândalos deu de seu exercito c a provocação ao combate!
no século passado e ao raiar do presente! principia a lucta, e a defesa como o ataque
Entre uma infinidade de factos que provam
o da existência d’essa lucta, apresentou a voz? «Euntes docete omnes gentes» (Ide,
ella nas desordens da ultima transição da ensinai todas as gentes), accrescentou com
monarchia para a republica o lypo d'um o evangelista S. Matheus; se o Salvador os
verdadeiro Pastor, o Metropolitano de Pa mandou ensinar, onde a authoridade dos
ris, que appareccndo no meio do seu povo, poderes da terra para fazer calar? «Spiri
pediu a paz, c se ofiercccu em holocausto tus Sanctus posuit Episcopos regere Ec
pçlo termo das dasavençasl e já antes se clesiam Dei» (Os Bispos,que pôz o Espirit
naviam exposto ás iras do poder temporal Sancto no governo Aa Igreja), ainda com
os Bispos.de todas as suas Igrejas, pelejan Apostolo das gentes: se assim é que tem
do em columna cerrada cm defesa do sa politica a fazer com o governo da Igreja?
grado direito da liberdade do ensino!1 Mas Estabelece além d'isso as mui importan
tes proposições:—A Igreja deve ser inde
1 Na questão famosa que coroou de glo pendente e*m seu magistério:—A Igreja de
ria os Bispos das Igrejas de França na ce ve ?er livre em seu magisterio:—A Igreja
lebre lucta da liberdade de ensino, que o po deve ser livre cm suas relações com o che
der temporal pretendia tolher, um d'esses fe visivcl:—A Igreja deve ser livre no exer
prelados, Luiz Thiago Maurício de Bonald, cício de sua legitima authoridade:—A Igre
cardeal presbytero da Sancta Igreja Roma ja deve ser livre no estabelecimento das
na, do titulo da Sanctissima Trindade no ordens religiosas. Muito desejavamos tran
Monte-Pincio, arcebispo de Lyão e de Vien screver aqui o desenvolvimento das citadas
na, primaz das Gallias, etc., dirigiu por oc- proposições, mas os estreitos limites d'vma
casião da quaresma de 1846, uma Instruc- nota não o permitiem, epor isso a apresenta-
çao Pastoral (aos fieis da diocese de Lyão e remos no ftm do Diccionario como desenvol
Vienna, que ô para mim, sem controversia, vimento á doutrina de que aqui falíamos.
um dos melhores escriptos sobre a liberdade da Um monumento de sã doutrina acerca da
Igreja, t Ego veni, ut vitam habeant, et abun authoridade da Igreja é a Instrucção Pas
dantius habeant» (Eu venho para que os ho toral do doutor D. Antolino Monescillo, bis
mens tenhamvida,e a tenham com abundan po de Calahorra e da Calzada, dirigida
d a ), disse o illustre sábio metropolitano com aos fieis da sua diocese por occasião da vol
o discípulo amado, e, na verdade, se o Filho ta da cidade eterna, onde tinha ido assistir
de Deus veio á terra para tal fim, com que á canonisação dos m artyres do Japão. Tam
direito se tolhe a liberdade da Igreja?... bém a transcrevergnos no fim d'este Dic
«Tanquam Deo exhortante per nos» (ex- cionario, assim como o eloquente e magis-,
hortando-nos pelo orgão da Igreja), repetiu tra i discurso do snr. Bispo d'0rleans, pro
com S. Paulo aos corinthos; pois se o poder nunciado na cathedral de Sancta Cruz, na
da palavra do Sacerdote ê tal, quem ha no sua volta de Roma no dia 27 de julho de
mundo com authoridadepara lhe embargar 1862.
156 DISCURSO PRELIMINAR
consistem na doçura d’uma eloquência ce prestados por mão interessada? negai-o
lestial com que se procuram attrahir os ini mas negai primeiro a existência de João
migos; na paciência com que se soíTrem as da Matta, Francisco d’Assiz, Ignacio de
injurias; na caridade com que, pela conver Loyola, Vicente de Paulo, c muitíssimos ou
são d’clles, se dobra o joelho para orar ao tros homens, que nunca poderão ser imi
Senhor, que tenha piedade d’elles, e se abai tados cm sua ardentíssima caridade senão
xa o pescoço oflcrcccndo a vida em holo pelos Sanctos. Na lucta contra os poderes
causto pela salvação dos proprios algozes! da terra c contra o philosophismo, a igreja
Podereis negar isto, espíritos fortes? negai de Deus, para conservar o deposito sagrado
embora, que a historia vos desmente: 11c- que o Divino Fundador lhe confiou, comba
gai-o, mas negareis a existência dos mar teu pela voz de seus pastores, de seus sa
tyres e dos confessores; negai-o, mas nega cerdotes, e dos outros ministros do San
reis a existência dos Apostolos, dos disci ctuario, e pelos escriptos não só d’esses,
pulos do Salvador, e d’essa cadeia de San mas dos fieis; pelas congregações dos pas
ctos, que prende o sacerdócio do século tores entre si, ou com o Summo Pontifice;
actual ao sacerdócio de Jesus Christo! ne c finalmentc reunindo-se este com o maior
gai-o, mas negareis os factos que se pas numero d’aquelles em nome de todos, faz
sam no dia presente em toda a terra! Visi expressa confissão de que recebeu dos Apos
tai as cidades, as aldeias, as selvas da Asia, tolos o ponto da doutrina combalido, e que
da Africa, da Oceania e da America, ide ás esses o receberam de Jesus Christo, por isso
nações da Europa, onde o catholicismo é lança fóra do seu seio aquelle que não emitte,
vedado, e lá encontrareis o ministro do San igual confissão; este Tribunal não reconhece
ctuario, que não pertence ao claustro, ao superior sobre a terra, e o Espirito Sancto
lado de religiosos de quantas ordens a Igreja assiste para salvar do erro homens que não
de Deus tem approvado desde o grande An- são impeccaveis no acto solemnissimo de
tão ao abbade Rosmini: procurai, se que similhantc confissão, do mesmo modo que
reis saber o que é caridade ensinada por está sempre com elles no ensino c direcção
Aquelle que na montanha do Calva rio tfe- dos fieis; a este Tribunal Supremo serviu
liu ao Pae Celestial por quem o crucifica d’exemplar o Proto-Synodo dê Jerusalem,
ra! O zelo, paciência, abnegação de si pro em que reunidos os Apostolos e Bispos que
prio, e amor da humanidade por amor de lá se achavam, Pedro cxhortou seus irmãos
Deus, que se encontrou no principio, se a ouvir e a decidir questões que Paulo e
guiu por todas as gerações, de modo que Barnabé lhe haviam proposto, estes fizeram
um só resume todos os factos! E se quizer- a exposição, e depois (Touvidos todos, as suas
des allegar tyrannias, já vos disse que não vozes resoaram na sancta assembléia, de
pertencem á Igreja, porque são factos ex clarando estar decidida a questão conforme
ternos de que a maldade dos individuos, o parecer do Espirito Sancto c d’elles; e
os poderes da terra, ou as seitas que se tem ninguem mais se atreveu a sentir o contra
acobertado iniquamente com o manto do rio: este tribunal foi que declarou a Divin
sagrado, tiveram e teoni toda a culpa. Na dade de Jesus Christo, e sua consubstan-
conservação pacifica do reino de Deus, a cialidade com todos os dogmas que a Igreja
Igreja põe á cabeceira do enfermo, leva ao Catholica tem hoje, e professa desde sua
centro das masmorras, faz apparecer junto instituição, porque os não propôz nem pro
dos patibulos,-nos campos da batalha, lá põe novos; esse tribunal, isto é, os Bispos
onde quer que a humanidade padece, os com o Summo Pastor, algum ou alguns
seus ministros para dar consolações e to prelados em nome d’este, suppondo-se pre
dos quantos socorros a humanidade pre sente, e approvando as decisões de todos
cisa: podeis negar isto, espíritos fortes? Ex- quantos concorrerram ao logar, se reuni
cepçoes apresenta a historia, é verdade, mas ram em nome de todos os ausentes, e dis
a Igreja será culpada? Se quereis vér mi cutiram livremente, porque assim declara
lagres, deixai-lhe livre a escolha dos Bis ram a crença catholica em Nicéa, Constan-
pos e dós parochos, retirai a opposição fe tinopla, Epheso, Calcedonia, Latrão, Leão
roz á sua plena liberdade, e não morrereis de França, Vienna do Delfinado, Cónstança,
desesperados! Podereis negar que a Igreja Florençá e Trento; esse tribunal, emfim,
recebe os votos solem^es de muitos dos em quê toda a Igreja docente reunida não
seus filhos, que voluntariamente querem só testimunha em suas mais gloriosas tra
expor a liberdade e a vida pela redempção dições, e recorda as suas mais assignaladas
dos captivos, pela civilisação dos selvagens, victorias, mas estreita os vínculos sagrados
e na assistência aos que gemem no leito da que ligam os Apostolos entre si, que os li
morte sem soccorros, ou com soccorros gam com Pedro, e Pedro e os Apostolos
DISCURSO PRELIMINAR 157
com Christo, Summo Sacerdote, e author tyres não c esteril, porque todo ellc é amor:
detodo o legitimo Sacerdócio:1 eis ahi como a tribulaoão dos confessores não e esteril,
a Igreja combate, cstabelcccndo-sc, conser- porque o seu fim é o amor: o zelo dos pas
vando-sc e defendendo as doutrinas da sal tores não é esteril, porque sua base é a sal
vação. Encontracs vós, espíritos fortes,algu vação do proximo; o esforço de todos os
ma cousa na historia, que contradiga essas soldados da Cruz não é esteril, porque não
asserções? reparai, que talvez as apparen é interessado, não pretende cxclusivamente
tias vos enganem; c tende cuidado em não os despojos da batalha, mas que todos re
confundir a maldade dos homens com a cebam igual parte dos méritos do sangue
sanctidadc da religião: se as vossas inda derramado na Cruz: militam, porque creem
gações forem profundas, c se inquirirdes nas promessas de Deus; militam, porque
sem prevenção os factos, achareis o espi esperam o cumprimento d’cllas; militam,
rito da Igreja puro, saneio, livre do pccca- porque amam a Deus, pretendendo que to
do, e de todo o erro: o sacrificio dos mar- dos os homens creiam, esperem, c amem a
Deus, e d’esse modo amam os homens por
1 Não houve em tempo algum tanta ne amor de Deus, porque amando a Deus amam
cessidade d'um synodo geral, como desde as os homens come irmãos, reconhecem a Deus
desordens da França no fim do século pas como pae commum, que os creou, remiu,
sado até ao presente; e persuadido estou eu e sanctificou: eis ahi como o Christianismo
de que poucas vezes se tem apresentado tanta se funda na caridade, que exprime as rela
opport unidade como hoje. A urgência pro ções mutuas dos filhos para com o pae; e
va-se em razão de que nunca a Igreja foi faz que, amando-se o pae, se amem todos
tão universalmente atacada, e tão forte os irmãos por amor d’elle. Como se amava
mente, pretendendo-se abalal-a pelos seus a Deus, ensinou Deus a Adão, e a todos os
fundamentos: d.° porque nunca o materia- patriarchas; e como Deus amava os homens,
lismo teve tantos creditos, e o deismo tão ex ensinou o Filho de Deus aos homens, offe-
tensos dominios;—2.° por causa da adopção rcccndo-se em holocausto pelos homens,
ainda mais geral do indifferentismo, que tem para que soubessem como se amavam os
feito obliterar as disposições disciplinares homens amando a Deus. Eis ahi o Chris
d'um modo nunca visto, chegando ao sum tianismo, as suas tribulações, c os seus ini
mo o abuso nos que devem mandar, e nos migos! Eis ahi o Christianismo, os seus
que devem obedecer, n'uns por'desleixo, e triumphos, e os'seus amigos! Eis ahi final
noutros por ignoranda ou maldade;—3.° mente o Christianismo estabelecido para
pela precisão de substituir algumas d'estas guiar o homem desde o berço até á sepul
disposições, e pôr outras em pleno vigor;— tura pelo caminho da eternidade, para fa
4.° pela má interpretação que se está dando, zer o homem feliz n’csta e na outra vida,
mesmo entre os catholicos, á Sancta Escri- para ensinar ao homem a sciencia pela hu
ptura, principalmente nos textos da creação, mildade, para lhe dar um governo, cujas
esquecendo-se todas as tradições, e torcen bases sejam a tranquillidade e 1a justiça,
do-se o sentido genuino da crença orthodo mas que o homem despresa pela soberba,
xa. A opportunidade prova-se:— 1.° pela e porque prefere a desventura á felicidade
■tendenda dos protestantes á unidade;—2.° em todas as suas relações.1
pela expectação geral de todos os christãos
que reconhecem a precisão de se cortarem
os abusos por uma vez;—3.° pela liberdade 1 O snr. J. B. C. de F. Castello-Branco,
que geralmente ao momento, os governos da na sua Introducção aos estudos biographi-
Europa parecem querer dar á Igreja, ao cos. Este illustre cscriptor seguiu na sua
menos em algumas nações mais poderosas. narração o sábio abbade Rohrbacher—Ilis-
Peço a Deus que inspire o Sancto Padre toire Üniverselle de VEglise Catholiquc, con-
Pio IX para a convocação, c a todos os so tinuée jusqdcn 1860, p a r J. Chautrel, sui-
beranos, que, para sua •p ropria estabilidade vie d'unc table generale, enticrement refon-
c paz das nações, de bom grado convenham due, par Leon Pauthier, e d'un atlas histo-
no que c allamente útil a toda a christan- rique specialement deressê pour Vouvrage
dade. p ar A. H. Dufour.
158 DISCURSO PRELIMINAR
R e s u m o c o n te n d o os p r in e ip a c s e r r o s do n o sso tem p o ,
q u e e stã o d e sig n a d o s nas a llo c u ç o e s, c u c y clica s e o u
tr a s c a rta s a p o stó lic a s d o N osso « a u c tissim o P a d re ,
o papa P i o IX
philosophia não póde nem deve reconhecer 17. ° Pelo menos deve-se ter esperança
authoridadc alguma. na salvação eterna de todos os que não vi
(Cartas ao arcebispo Frising em 11 de vem no seio da Igreja christã.
dezembro de 1862 c 21 de dezembro (Allocução de 9 de novembro de 1854.)
de 1863.) (Encyclica de 17 d'agosto de 1863.)
22. ° A obrigação que diz respeito aos processos civis ou criminacs dos clérigos-
governantes c cscrintorcs catholicos limi (Allocução de 27 de setembro de 1852~
ta-se ás cousas que foram definidas por jul- c 15 de setembro de 1856.)
amento infallivel da Igreja como dogmas
c fé que devem ser cridos por todos. 32. ® Sem violar nem a lei natural nem
(Carta ao arcebispo Frising em 21 de a equidade, podem ser revogadas as im-
dezembro de 1863.) munidades pcssoacs que exoneram os clé
rigos da lei militar; esta obrogação é exi
23. ° A Igreja não tem direito d'usar gida
de pelo progresso civil, principalmcntc
força, nem de nenhum poder temporal di nas sociedades modeladas pelos princípios
recto ou indirecto. do governo liberal.
(Carta apostólica de 22 d'agosto de 1851.) (Carta ao bispo de Montisregal, em 29
de setembro de 1864.)
24. ° Os pontifices romanos c os conci-
lios ecumênicos teem ultrapassado os li 33. ® Não pertence á jurisdicção eccle
mites dos seus poderes, usurpado os direi siastica, por direito nenhum proprio e in-
tos dos principes, c teem mesmo commet- herente á sua esscncia, dirigir a doutrina
tido erros nas definições das questões de em materia de theologia.
dogma e de moral. (Carta ao arcebispo Frising em 21 de
(Carta apostólica de 10 de junho de 1851.) dezembro de 1863.)
25. ° Além dos poderes inherentes ao34. ® A doutrina dos que comparam o
episcopado tem-lhe o poder civil, tacita ou pontifice a um soberano livre c governando,
expressamente, conferido authoridade tem a Igreja universal, prevaleceu na idade
poral, que por isso mesmo lhe póde ser ti media.
rada pelo poder civil quando este quizer. (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1851.)
(Carta apostólica de 22 de junho de
1851.) 35. ® Nada impede que por sentença de
concilio geral ou por decisão de todos os
26. ° A Igreja não tem direito naturalpovos
e seja transferida a soberania pontifi
legitimo d’adquirir c possuir. cai do bièpo e da cidade de Roma para ou
(Carta apostólica de '18 de dezembro de tro bispo e para outra cidade.
1856.) (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1851.)
(Encyclica de 17 de setembro de 1863.)
36. ® A definição d’um concilio nacional
27. ° Os ministros da sancta Igreja enão o admitte discussões subsequentes, c o
pontifice romano devem ser absolutamente poder civil póde exigir que as questões não
excluídos de qualquer cuidado ou dominio vão além.
que seja relativo a cousas temporãos. (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1861.)
(Allocução de 22 de junho de 1862.)
37. ® Podem ser instituídas Igrejas na-
28. ° Os bispos não tem direito nem au-cionaes fóra do grêmio do soberano ponti
thorisação do poder de promulgar as suas fice. o separadas.
cartas apostólicas. (Allocueão de 17 de dezembro de 1860,
(Allocueão de 15 de dezembro de 1856.) c de 17 de março de 1861.)
45. ° A completa direcção das escolas 52. ® O governo póde no uso dos seus
públicas, nas quaes se educa à mocidade direitos mudar qualquer época fixada pela
dos estados christãos, exceptuando os semi Igreja para o cumprimento dos deveres re
narios episcopaes, póde e deve ser attri- ligiosos d’ambos os sexos, e ordenar a to
buida á authoridade civil, e attribuida de dos os estabelecimentos religiosos que não
tal modo que a nenhuma outra authoridade admittam, sem consentimento d’elle, pessoa
seja dado intrometter-se na disciplina das nenhuma a pronunciar votos solemnes.
escolas, no regimen dos estudos, na conces (Allocução de 15 de dezembro de 1856.)
são dos graus, na escolha ou approvação
dos professores. . 53. ® É preciso revogar as leis que di
(Allocução .de 1 de novembro de 1850.) zem respeito à protecção dos estabeleci
mentos religiosos, dos seus direito? e das
46. ° Ainda mais, nos proprios seminasuas funeções; além d’isso o. poder civil
rios dós clérigos, d methodo dos estudos póde prestar o seu apoio a todos que qui-
déve ser approvado pela authoridade civil. zerem deixar a vida religiosa e quebrar os
(Allocução de 15 de dezembro de 1856.) votos religiosos. Póde igualmente suppri-
mir os estabelecimentos religiosos, as col-
47. ® As melhores condições da sociedadelegiadas e os simples benefícios, -ainda que
civil exigem que as escólas populares, aber sejam de padroado, e subinetter os bens
162 DISCURSO PRELIMINAR
*
DICCIONAEIO UNIVERSAL
DAS
nal*os um pouco mais tardios cm condc- lho dos cardeaes, condemnára todos os ca
mnar. Sc cm S. Bernardo, que linha uma pítulos d’AbaeIard c todos os erros, e jul
alma tão illuminada c tão pura, houve zelo gara que os sequazes ou defensores da sua
em demasia, quanto não devemos nós des doutrina deviam ser separados da commu-
confiar do nosso, nós que estamos tào dis nhão dos fieis. ^
tantes do desinteresse e da caridade d’um Abaelard publicou uma protestação de í
S. Bernardo? fé, na qual asseverava diante de Deus que í
As cartas d’este sancto fizeram suspeita elle se não sentia culpavcl dos erros que *
á fé, c odiosa a pessoa d’Abaelard quasi lhe imputavam, que achando-sc algum nos
e.m toda a Igreja, do que ellc mesmo se seus escriptos, estava na resolução de o não
queixa ao arcebispo de Sens, a quem rogou defender, e prompto a corrigir e relractar
que fizesse vir o sancto ao concilio, que es tudo o que elle tivesse proferido sem razão:
tava proximo a congregar-se na mesma ci conseguintemente condemnou todos os er
dade. ros em que o accusavam de haver cahido,
S. Bernardo veio, produziu as proposi e protestou que cria cm todas as verdades
ções extrahidas das obras d’Abaelard, e o opposlas aos mesmos erros.
intimou para que se desdissesse ou se justi Depois de publicada esta apologia, Abae
ficasse. lard tomando o caminho de Roma, passou
. Algumas d’estas proposições, como já tc- pelo mosteiro de Cluni, aonde Pedro, o ve
/ mos visto, não exprimiam os sentimentos nerável, que n’elle era abbade, o reteve, e
fi’Abaelard; outras podiam explicar-se, e o conciliou com S. Bernardo. Alli edificou
\ oram mal entendidas pelos denunciautes; e todos os religiosos, c no anno de 1142, com
\ fmalmente havia outras sobre as quaes sessenta e tres annos d’idade, morreu cm
\ Abaelard pretendia esclarecer. Mas com uma casa dependente de Cluni, para onde
i tanta vivacidade o instou o sancto, que Abae- se tinha retirado a fim de tractar da sua
t lard conheceu nos animos uma prevenção saude. 1
tão ardente, que julgou não dever entrar A.UECEDARI AXOS, . OU - ABECEDARIOS— raiUO
cm disputa, e temeu um motim do povo: d’a n a b a p tis ta s, os q u a e s affirin av am q u e
por estas considerações tomou o partido de p a r a h a v e r d e nos s a lv a r, e r a n e c e s sa rio
appellar para Roma, aonde contava alguns não s a b e r ler n e m e sc re v e r, e a té ig n o ra r
amigos, e intimada a appellação se retirou.1 a s p r im e ir a s le tra s do a lp h ab eto , o q u e lhes
Condemnaram-se no concilio as proposi d e u o n o m e d e abecedarianos.
Íções extrahidas das obras de Abaelard, sem Depois que Luthero atacou descoberta
se fallar na pessoa d’elle, e se escreveu ao mente a authoridade da Igreja, a tradição
papa, informando-o da sentença dada pelo e os sanctos padres, estabeleceu que cada
concilio. 2 um dos particulares era juiz do sentido da
O papa respondeu que elle com o consc- Escriptura; Stork, seu discipulo, ensinou
que cada um dos fieis, como qualquer dou
1 Olho Frising ensis de gestis Friderici, tor, podia conhecer o sentido da Escriptura,
c. 48. que o mesmo Deus era quem nos instruía,
2 Berengario, discipulo d'Abaelard, emque o estudo hos embaraçava para estar
uma apologia que fez a favor de seu mes attentos á sua voz, e que o unico meio de
tre, e D. Gervasio na vida <TAbaelard, ata prevenir estas distracções era não apren
caram o procedimento do concilio; mas o der a lèr, porque os que sabiam lér esta
primeiro não fez mais que declamar, e o se vam em estado perigoso para a sua sal
gundo não prova que os padres do concilio ex vação.
cedessem o seu poder. Os bispos pronuncia Carlostad tornou-se sectario d’este erro,
ram sobre as proposições que lhe foram apre renunciou a universidade e a sua quali
sentadas; e poderá duvidar-se que elles não dade de doutor para se fazer mariola, e se
tivessem esse direito? Elles não ouviam, di chamou o irmão André. Esta seita se es-
zem os apologistas, a defesa d'Abaelard, teudeu muito em Allemanha. 2
p a ra julgarem se as proposições que se de Em todos os tempos teve a ignorância
nunciaram ao concilio eram conformes ou defensores, que d’ella fizeram uma virtude
■contrarias à fé; porém sómente deveria ser cliristã, taes foram os gnosimacos, os cor-
ouvido Abaelard, se o concilio pronunciasse nificianos, no sétimo e no duodecimo século,
contra a sua pessoa. Vide d'Argentré, Col-
lect. Judiciar. de novis Erroribus, t. 1, p. 1 Vide os authores pouco antes citados.
21. Martene Obsemation. ad Théol. Abae- 2 Osiander, centur. 16, l. 2. Stokman Le-
la rdi, t. 5. Thesau. Anecdot. Natal. Alex. xic in voce Abecedarii. Vide os art. Carlos
in scec. 12. Dissert.. 7:. tad, Anabaptistas.
i 70 ABY
c todos os séculos tiveram, c haverão de Os abyxins crêem na presença real c na
ter os seus guosimacos e os seus cornifi- transubstanciação; as lithurgias trazidas
cianos.
ABELONiTAS— rusticos da diocese de Hy- d'Alexandria, e tendo os cophtas conservado
p o n ^ q u e penetrados de veneração para o sacramento da extrema-unção ainda de
Abel, presumiram ser necessario casar pois das conquistas dos serracenos, como
como elle, mas que não era preciso usar póde vêr-se no artigo Cophtas, que razão ha
do matrimonio; d’esta sorte os maridos e para que os abyxins tenham supprimido a
as mulheres viviam juntos, mas faziam pro confirmação?
fissão de continência, c adoptavam um me Mr. Ludolfo se funda no testimunho dos
nino c um a menina que lhes succediam. 1 missionários portugueses; porém aquellcs
AB S ^ iK E ^ T Ê ^ — nome que se dava aos em missionários, mais zelosos que illustrados,
cratitás e aos inanjcjieos, por quererem que provavelmente se enganaram, porque este
hM vesse abstinência do vinho e do casa sacramento não se administra na Ethiopia
mento, etc. da mesma fôrma que na Europa. Os aby
.ABYSSINIOS, ABYXINS OU ETHIOPES— POVOS xins o conferem segundo meu ver, como os
d^tricãrcrhh^são euWcfiianos iacobitas. cophtas, depois do baptismo, e os missioná
É difficil determinar "ó'tdínpo em que nas rios portugueses tomaram a confirmação
ceu o Christianismo na Ethiopia, mas é por uma ceremonia do mesmo baptismo, e
sem dúvida que lá foi levado antes de 32o, como não viram administrar a confirmação
porque o concilio de Nicea, celebrado no aos adultos, conjecturarum d)aqui que‘ os
mesmo anno, dá ao bispo da Ethiopia o sé ethiopes não reconheciam este sacramento.
timo logar depois do de Silencia. Do mesmo principio vem os erros d'estes
A Igreja de Abyssinia reconhece a de missionários ácerca da extrema-unção; é
Alexandria por sua mãe, e lhe é sujeita de certo que os cophtas conservaram este sa-
um modo tão particular, que nem gosa da ci'amento (veja-se o seu, artigo); c não ha ve-
iberdade d’cleger o seu bispo. rosimilhança para que se julgue que os aby
Este costume, tão antigo como a convcr- xins, que teem recebido d'elles os seus metro
ão da Abyssinia, está authorisado por uma politanos, não seguissem o costume da igreja
ollecçao de canones que os abyxins res dos cophtas.
peitam sem differença dos livros sanctos. Porém entre os cophtas não se adminis
D’esta sorte seguiu a Abyssinia a fé da tra a extrema-unção como entre os latinos;
igreja d’Alexandria, e os abyxins ou ethio- além d'isso se applica depois da confissão,
pes se fizeram ou eutychia- e aos sãos da mesma sorte que aos enfer
nos, depois que ò Ê g y p to p a sso u irdüTffl- mos. E como os missionários nao viram na
riãÇão dos turcos, e que os jacobitas se se- Ethiopia as ceremonias que practica a igreja
nhorearam do patriarchado d’Alexandria. latina, e criam que a extrema-unçao só de
Os abyxins não tem pois outros erros se via applicar-se aos enfermos, se persuadi
não os mesmos dos cophtas; crêem como ram que com effeito os abyxins não tinham
elles, tudo o que a Igreja romana cré so este sacramento.
bre os mysterios, mas rejeitam o concilio Esta conjectura ao. que me parece virá a
de Calcedónia e a carta de S. Leão, e não ser uma prova, se se fizer reflexão sobre o
querem reconhecer em Jesus Christo senão modo com que os cophtas administram a
uma natureza, bem que não julguem que extrema-unção. «0 sacerdote depois de ha
a natureza divina e humana estejam con ver administrado a absolvição ao penitente,
fundidas na sua pessoa. 2 se fa z assistir por um diacono; principia
U ' Entre elles ha sete sacramentos como logo incensando, e toma uma alampada cujo
entre os catholicos, c não deve crêr-se que oleo benze, e lhe accende uma torcida; de
lhes falte a confirmação e a extrema-un pois d'isto recita sete orações, que são al
ção, como pensa mr. L udolf.3 ternadas por outras tantas luzes, toinadas
da Epistola de S. Thiago e outros logares-
1 Aug.Hcer. 86. da Escriptura (è o diacono quem as lê).
2 Perpet. de la Foi, t. 4, h 1, c. 11. Men Finalmente o sacerdote toma o oleo bento da-
des l. if C. 6. Ludolf. Hist. Etyop. I. 3, c. alampada com que fa z uma unção sobre a
8. Voyag. de Lobo p a r le Grand. testa, dizendo: *Deus te cure em nome dO'
3 Ludolfo, Hist. Eliop. I. 3, c. 5. Sobre Padre, do Filho, e do Espirito Sancto*; a
esta pretenção de m r. Ludolfo, fazemos al mesma unção fa z sobre todos os que assis
gumas reflexões. tem, temendo, dizem elles, que o maligno-
Havendo os abyxins recebido sempre o seu espirito não passe a alguns dos assistentes.*
metropolitano ou o seu bispo do patriarcha (Noveaux Memoires de la Compagnie de Je-
ABY 17 1
por mr. Ludolf não permitiem de o duvi çòes pelos defuntos, e os cultos das reliquias
dar, pois que o exprimem formalmente. * conservaram-se entre os abyxins como en
0 culto e invocoção dos Sanctos, as ora tre os cophlas. 1
stis dans le Levant, t. 6, Lettre du P. Ber- 3. ° Tem-se visto em Roma abyxins, que
nat. Perpetuité de la Foi, t. o, l. 5, c. 2.) affirmavam que a igreja da EÍhiopia crê
E' bem 'natural que a uns missionários na transubstanciação, porém mr. Ludolfo
que não tinham tido tempo para estudar a pretende que o seu testimunho seja suspeito,
litliurgia dos ethiopcs, lhes fosse muito dif- porque estes estavam comprovados pela côrte
ficulloso o reconhecer o sacramento da ex de Roma; mas deve-se crêrJjnparciai e sin
trema-unção assim administrado. cero o seu abyxim nas respostas que lhe deu
1 Jiist. JEthyop. I. 3, c. 5. Mr. Ludolfo, depois que elle mesmo nos expõe no seu pre
não obstante a clareza das Ulhurgias, in facio os serviços que tinha feito, e conti
siste em que os abyxins não creem na tran- nuava a fazer ao seu abyxim?
substanciação, c se funda no testimunho do Mr. JAtdolfo terá mesmo toda , a certeza
abyxim Gregorio, que inquiriu sobre este ar de não haver suggerido a Gregorio as suas
tigo. respostas por meio das suas conversações,
Mr. Ludolfo lhe perguntou que queriam e talvez ainda pelo modo com que elle b in
dizer as palavras sér transubstanciado, sêr quiriu.
convertido, c se cria que a substancia do 4. ° Emfim calculando os testimunhos,
pão, e do vinho, fosse convertida e trocada temos aàyxins estabelecidos em Roma, que
na substancia do Corpo e do Sangue de Je contradizem, e consequentemente annullam
sus Christo. 0 abyxim sem hesitar nem pe o testimunho de Gregorio; resta logo a au
d ir alguma explicação dos termos, lhe res thoridade dás Ulhurgias, que contém o do
pondeu que os abyxins não reconheciam gma da transubslanciaçao. (Vejam-se as
uma similhante conversão, que elles não se mesmas Ulhurgias na Perpet. de la Foi, t.
embaraçavam em questões tão intrincadas, 4, /. i, c. II. Lithurg. Orient. t. 2. Le
que quanto ao mais lhe parecia que o pão c Grawl, Dissert. 12, à la suite du Voyagcde
o vinho não se dizem convertidos e muda Abyssinie par le P. Lobo.
dos, senão porque elles representam o corpo 1 Mr. Ludulfo reconhece todos estes pon
e sangue de Jesus Christo, e passam assim tos, inas crê que são abusos introduzido.
dyum uso profano a um uso sagrado. Faça na igreja d’Abyssinia pelas pregações doi
mos algumas reflexões sobre esta resposta bispos, e outras cousas.
do abyxim. Esta asseveração é mal fundada; o la-
1. ° O abyxim não nega a transubstan lendario dos abyxins reconhecido por mr.
ciação; diz sómente que lhe parece que òs Ludolfo, prova que a igreja d'Abyssinia
abyxins não a conhecem, e que não tractam sempre invocou os Sanctos, e deu culto ás
questões tão espinhosas. Uma resposta si reliquias: as suas litliurgias contéem ora
milhante poderá contrapesar a authoridade ções pelos mortos.
clara, e precisa das lithurgias dos ethiopcs. Mr. Ludolfo nada oppõe que seja raciona-
Além disso sendo certo que os cophtas creem vel contra estas provas; diz elle, por exem
a presença real, que razão haverá para que plo, que a invocação se introduziu pelas pre
os abyxins, que teem recebido d'elles o seu gações politicas dos bispos, e em toda a Abys-
patriarcha, c que adoptaram todos os seus sinia não lia mais que o Abuma ou metro
erros variassem ácerca da Eucharistia? politano; demais d'isso nunca lá se fazem
2. ° O abyxim tracta de questão espi pregações.
nhosa o dogma da transubstanciação, e diz Mr. Ludolfo convém que os abyxins oram
que os abyxins não excitam questões simi- pelos mortos, mas insiste que nao teem co
lhantes, porém não faz a mr. Jmdolfo al nhecimento do purgatorio. E sta assevera
guma pergunta'sobre este dogma, não tem ção é igualmente falsa, sendo certo que os
embaraço algum, não pede explicação ou abyxins não negam o purgatorio, e que só
esclarecimento algum sobre esta questão tão mente ha differentes opiniões sobre o estado
espinhosa, e que não se excita na Ethiopia. das almas depois da monde, posto que reco
É sta precipitação em responder, suppõe que nheçam que para gosar da bemaventurança
elle não entendeu a pergunta que lhe fizera eterna seja preciso satisfazer á justiça di
m r. Ludolfo, nem a resposta que elle deu; vina, e que as orações supprem o que bs ho
ou que o abyxim queria responder de modo mens não poderão satisfazer.
que não desagradasse a mr. Ludolfo, de quem
elle conhecia os sentimentos ácerca da trans-
substanciação.
172 ABY
examinar-se pelas regras, e não pelos abu
sos. Perpetui de la Foi, t. 4, p. 87, 102.
D E ALGUMAS PRÁCTICAS PARTICULARES Demais d’isto, a práctica da confissão não
EN TR E OS ABYXINS está cxtincta entre os abyxins, que se con
fessam aos sacerdotes, e algumas vezes
ao metropolitano, c quando seaccusam ^ al
1. * Os abyxins, assim como os cophtas,gum peccado grande, o metropolitano se.
tcem a ceremonia do baptismo de Jesus levanta, reprehende vivamente o pcccador
Christo, que mr. Renaudot c o-padre Tollis e chama os beleguins, que açoulam coní
tornaram apparentemente pela reiteração todo o vigor o penitente; então todos os
do baptismo. Yeja-se o artigo Cophtas. circumstantes que se acham na igreja sc
2. a Elles, assim como os cophtas, tecmchegam ao metropolitano, e obteem o per
a circumcisae e outras prácticas judaicas, dão a favor do penitente, a quem elle dá
taes como a de se absterem do saugue e a absolvição. Ludolf, ibidem, 1. 2, c. C.
da carne dos animaes suíTocados, c ó mais 4. » O casamento entre os abyxins é tido
provável que elles tirem estas prácticas dos por sacramento, e eis aqui como Alvares
cophtas do que dos mahometanos c judeus, descreve a celebração d’um a que assistiu,
como pretende mr.de la Crozc no seu Chris feito pelo abuna ou metropolitano. «O es
tianismo da Ethiopia. 1 poso e a esposa estavam á porta da igreja,
3. * Abulsclah, author egypcio, que aonde
es se tinha preparado uma espccic de
creveu ha perto de quatrocentos annos, diz leito, sobre o qual os mandou, assentar o
que os clhiopcs,.em logar de confessarem abuna, que fez uma procissão em roda d’el
seus pcccados aos sacerdotes, os confessam les com cruz e incensario; depois pôz-lhes as
todos os annos diante d’um thuribulo em mãos sobre- as cabeças, dizendo: que da
que está ardendo incenso, crendo que as mesma sorte que elles hoje hão eram mais
sim alcançam o perdão. que uma mesma carne, assim não deviam
Miguel, metropolitano de Damictta, jus ter mais que uma vontade; e depois de lhes
tifica esta práctica no seu tractado contra dirigir um discurso conforme a estas pala
a necessidade da confissão, e não é de ad vras, foi dizer missa, a que assistiram o es
mirar que ella passasse á Ethiopia no tem poso e a esposa, e por um lhes deu a ben
po dos patriarchas, João e Maria, que favo ção nupcial.» 1
reciam este abuso. 5. a O divorcio está em uso entre os
Zumzabo, porém, afíirmava que no seu abyxins; um marido, descontente de sua
paiz se confessava, e segundo a disciplina mulher, a repudia e a torna a receber com
dá igreja d’Alexandria, o deviam fazer. A o mesmo desembaraço: a infidelidade da
verdadeira tradição d’uma igreja deve pois mulher e do marido*, a esterilidade ou a
menor desintelligcncia, são entre elles cau
sas mais que legitimas para se separarem.
1 Entre os cophtas. uns olhavam o cos-, O divorcio por causa d’adultorio facilmente
tum e da circumcisão como uma condescen se reconcilia, compondo-se com algum di
denda que foram obrigados a ter com os nheiro a parte oíTendida: mas não é tão fa-
mahometanos, outros como práctica pura ,cil esta reconciliação quando entre os con
mente civil. Os abyxins estão mais confor sortes tem havido pendências ou pancadas:
mes em pareceres sobre este objecto; mas al n’estc caso o juiz lhes permitte se casem
guns ha, que a respeitam como uma cere com outros; e quer mais qualquer ethyopo
monia religiosa e necessaria para a salva receber uma mulher que outro repudiou
ção. Certo religioso abijxim contou ao padre por adultera, do que uma que se deixou
Lobo que u m demonio se tinha affeiçoado a por desordem. 2
certa fonte, e vexava extraordinariamente 6. ° Os sacerdotes são casados entre os
os pobres religiosos que iam buscar agua, abyxins, assim como em todo o Oriente,
que Tecla Aimanat, fundador da sua or mas com esta restricção desconhecida en
dem o tinha convertido, e que elle somente tre os reformados; diz mr. Renaudote, qiie
houvera difficuldade no ponto da circumci- nunca.se permittia aos sacerdotes, nem ain
são, porque o diabo não queria ser circum- da aos diaçonos, casarem-se depois ^orde
cidaao, mas Tecla Aimanat o persuadiu, e nados, e qiie o casamento d’um religioso e
fe z elle mesmo esta o p era çã o e o diabo to
mando depois o habito religioso, m oireu ao 1 Dissert. ,13, à la suite du Voyagedu
fim de dez annos, com odor de sanctidade. P . L o b o ,m . . •,
O P. Lobo, Relação Historica dAbyssinia, 2 Lobo, loc. cit. p. 76. Tevcnot, in-folio •
traduetion de le ôrand, p. 202. t. 2, p . 3.
ABY 173
d’uma religiosa foi sempre olhado como sa mesmo rei não era reconhecido sem que
crilego. 1 fosse sagrado pelas mãos do Abuna, que
7. * A pluralidade das mulheres c outromuitas vezes se serviu d’esta authoridade
abuso, q ue os patriarchas d'Alexandria tem contra os usurpadores, para conservar a
pretendido remediar infruetuosamente. 2 dignidade real a quem de direito pertencia.1
8. * Não ha em todo o 'mundo paiz tãoOs reis d’Abyssinia teem feito as mais vi
povoado d’ecclcsiasticos, d'igrejas e mostei vas solicitações para que o patriarcha de
ros como a Abyssinia: apenas se póde can Alexandria ordene bispos nos estados da
tar n’uma, que se não ouça em outra, e re Ethiopia, mas o patriarcha receando que,
gularmente em muitas. Elles cantam os se houvesse n’ella mais, se multiplicassem
psalmos de David, que teem na sua lingua tanto que viessem a eleger outro patriar
traduzidos fielmente, assim como os outros cha, nunca consentiu se ordenasse em toda
livros da Sancta Eseriptura, á exccpção dos a Abyssinia mais do que um Abuna.
Machabcus, que comtudo reconhecem como Gosa este de muitas e grandes terras; e
canonicos. n’um paiz em que todos são escravos, os
9. * Cada mosteiro tem duas igrejas^uma rendeiros são inteiramente isentos de qual
para os homens, c outra para as mulheres; quer tributo, ou nào pagara senão a elle,
na dos homens se canta em côro, e sempre com a cxcepção das terras que possue no
em pé, sem que jamais se ponham de joe reino de Tigre; também se faz para elle um
lhos, razão porque tem diversas commodi- peditorio de panno c sal, de que lhe pro
dades de que usam para se apoiarem e sus vem grande rendimento. No espiritual não
tentar-se. reconhece outro superior senão o patriar
Os seus instrumentos de musica consis cha d’Alexandria.
tem em pequenos tambores, que teem pen O Abuna é o unico que póde dar dispen
durados ao pescoço, e tocam com ambas sas, e muitas vezes tem abusado da sua au
as mãos. Os principaes e mais graves ec thoridade a este respeito, porque regular
clesiasticos trazem estes instrumentos, e mente é ignorantíssimo, e não menos ava
também uns bordões com que batem no rento.
chão com toda a sua força, e com um es O Komos ou Hugenos é a primeira dign
tremecimento de todo o corpo. Principiam dade ecclesiastica, c equivale ao que nó
a sua musica batendo com o pé, e tocando chamamos arcypreste.
estes instrumentos suavemente; depois in- Na Abyssinia pão se conhecem as missas
flammando-sc pouco a pouco, os largam, c resadas ou particulares.
se poem a bater com as palmas, a saltar, Ha na Abyssinia conegos e monges: os
a dançar, a levantar as suas vozes quanto primeiros casam-sc, e muitas vezes passam
podem, sem guardarem mais pausa nem os canonieatos a seus filhos.
compasso nos seus cantos, e dizem elles que Os monges vivem no celibato, teem gran
David lhes manda celebrar assim os divi de reputação, c de ordinario são emprega
nos louvores, quando diz nos Psalmos:— dos nos mais importantes negocios. Elles
Omnes gentes, plaudite; manibus jubilite fazem os votos. Yejam-se Ludolfo e Lobo.
Deo, etc.
-diaconos. Os bispos são os successores dos aos seus sacerdotes que preguem o aria-
apostolos, e os apostolos eram uma ordem nisnm^qc
differente da ordem dos sacerdotes. do Ni cea, ou de mudar aaisciplina èstabe-
Vernos nos actos dos apostolos que S. lccí3a~para toda a Igreja por este concilio:
Paulo c S. Bcrnabé estabeleceram sacerdo ha pois n’ella uma authoridade superior ao
tes nas cidades, e que estes sacerdotes não bispo, a qual authoridade faz leis que o
pertenciam ao collegio dos apostolos: é dif bispo está obrigado a observar, c que elle
ferente a fórma da sua ordenação da de não pódc constranger a alguns dos seus sa
quando se tracta d’escolher um apostolo: cerdotes a infringir; assim quando a Igreja
geralmentc se falla dos apostolos como de tem dado as leis, é do bispo o poder de fa-
uma”ordem distincta dos bispos:1 e para zcl-as observar, c de punir aquelles que as
o tribunal dos bispos são citados os sacer quebrantam.
dotes; assim teem os bispos pela sua insti Porém como um bispo em particular não
tuição, ou pela sua ordenação, c consequen é infallivel, pódc enganar-se sobre a obser
temente por direito divino, uma superiori vância das leis, ou ácerca da sua applica-
dade d’ordem e de jurisdicção sobre os sim ção, e amplial-as demasiadamente; ha por
ples sacerdotes. isso um tribunal em que se julga se o bispo
Em todos os tempos a ordem episcopal se engana quando profere que tal pessoa
foi distincta da sacerdotal, e esta distineção não ouserva a lei, ou se elle dá á mesma
suppõe no bispo uma superioridade de di lei e ao seu proprio poder uma extensão
reito divino* acha-se assignalada formal- excessiva.
mente esta distineção nas cartas de Sancto Este tribunal era meramente ecclesias
Ignacio, em Origenes c cm Tertulliano.2 tico, e nem podia ser d’oulra sorte, pois
s Os bispos eram os unicos que tinham o que a Igreja era uma sociedade puramente
Sdireito d’ordenar bispos, sacerdotes, c diaco- religiosa, cujas leis não tinham relação al
vnos: e sempre se annullaram as ordenações guma com os interesses puramente tempo
feitas pelos sacerdotes. rãos e civis: e como a alliança da Igreja
s** A igreja grega, os cophtas, e os nesto- e do estado em nada mudavam* a constitui
( rianos, concordam n’este ponto com a igre- ção c essencia da mesma Igreja, fica send,
-ja latina.3 D’esta sorte o sentimento que claro que o poder ecclesiastico e civil s?
recusa aos bispos uma superioridade d’or- diversos, c não oppostos.
dem, de jurisdicção, e de honra sobre os
simples sacerdotes, é contrario á constitui
ção da Igreja, á Escriptura, â tradição, e DA ORAÇÃO PELOS MORTOS
á práctica immemorial da mesma Igreja.
Hamondo e Pearson sobre este ponto re
duziram os presbyterianos ao absurdo, e Lémos no livro segundo dos machabeus,
mr. Nicole refutou sem replica o que mr. que é um sancto e saudavel pensamento
•Claudio tinha dito em seu favor.4 Mas nin orar pelos mortos, para que lhe sejam re-
guem arguiu melhor os presbyterianos, nem mittidos seus peccados. 1 Segue-se, por
defendeu melhor o episcopado contra Sau- tanto, haver peccados quepodem ser per
maise e Blondel que o padre Petau. Ve doados no outro mundo pelos suffragios dos
jam -se os seus dogmas theologicos. vivos.
Como cada um dos bispos em particular Não podendo os protestantes responder
não é infallivel, assim elle não tem sobre a este argumento, negavam que fosse ca
•os simples sacerdotes uma authoridade sem nonico o segundo livro dos machabeus, mas
.limite ou “um poder arbitrario. Um bispo, sem razão, porque elle foi posto no numero
por exemplo, não tem o direito d’ordenar dos canonicos por quasi todas as igrçjas
christãs, pelo decreto dTnnocencio i, e pelo
1 Act., c. 14. v . 10 c. lò\ íy cojiçüipjier,Ç.acthagD- A dúvida d!alguns
2 Ignac. Ep. ad Magnes, ad Ephes. Orig. pacTres c d’algumas igrejas particulares não
Hom. in Luc. 20. Tert. Coron. Militis. contrapesa o consentimento geral das ou
3 Perpet. de la Foi, t. 3, p. 570; vejam-se tras.
■os artigos nestorianos, cophtas, abyxins, ja- Jesus Christo declara no Evangelho que
•cobitas. ha certos peccados que não se perdoam
4 Hamon, Dissert. cont. Blondel. Bin nem n’cste mundo, nem no outro, e d’aqui
(jliam, Autiquit. Eccl. Joannis Pearsoinii, concluiram os padres que havia peccados
•opera posth. Defensio Episcopatus Dicece-
san i, autore Henrico Mauritio. Prctendus
Bcformés convaincus de Sshisme, L 3, c. 10. Machab., I. 2, c. 12, v. 46.
182 AGN
'que se perdoavam no outro mundo, e que lheres, que alliciavam pessoas novas, e lhes
era preciso orar pelos mortos. ensinavam que nada era impuro para as-
Na Igreja houve sempre o costume de consciências puras.
orar por ellcs; assim se practica desde o Este ramo de gnosticos talvez tirou sua
segundo scculo, c Tertulliano o põe no nu denominação d’uma mulher chamada Aga-
mero das tradições apostólicas. Ora estas pc, que havendo sido instruída por um
deprccaçõcs que se faziam pelos mortos, certo Marcos, perverteu na Hcspanha mui
não eram sómente para consolação dos vi tas mulheres de qualidade. Uma das maxi
vos, ou para agradecer a Deus as mercês mas dos agapetas era ju ra r, e perjurar,.
que tinha feito aos mortos: era para al antes que revelar o segredo da sua seita. 1
cançar. o ailivio das suas penas. 1 AGARENEANOS OU AGARE+NOS— C O 1101110
Esta devoção se augmentou muito no que se ‘dêü .Valguns christãos, que no ineio
fim do scculo decimo e no principio do un do sétimo scculo renunciaram o Christia
decimo por Sancto Odilão c pela ordem nismo para professarem o Alcorão. Nega
cluniatense 2; e com elTeito, c muito digna ram a Trindade e sustentaram que Deus
da caridade christã esta devoção: o nosso não tinha filho, porque não tinha mulher.
amor a Jesus Christo deve ligar-nos a todo Estes christãos apóstatas foram chamados
o seu corpo e obrigar-nos a tomar parte agarenos, porque abraçaram a religião de
nos bens e nos males de todos os seus mem Mafoma c dos arabes* descendentes d’Is-
bros; da mesma sorte, pois, que nos deve- rnaelx fijbft d;Agar.2
uos interessar pela gloria dos sanctos, rc- AGEQXLTAS OU AQEpNESES— foi Ullia S eita
osijando-nos com a sua felicidade e com de homens devassos, que condemnava o
seus triumphos, assim também havemos casamento e a castidade, que clles olhavam
*. condocr-nos das penas que soíTrem os como uma sugestão do mau principio. En-
stos, que ainda tem de satisfazer á jus- tregavam-sc a toda a sorte d’infamia. Ap-
ça Divina, e orar por ellcs; todos os nos- pareceram pelos annos de G94, imperando
os controversistas tractaram optimamente Justiniano n e o papa Sérgio i. Foram con-
esta questão.' demnados no co^iJlítde^Lapgres.3
0 erro d’Aerio acerca da celebração das agnoetas—este nome quer dizer igno
festas e das ceremonias foi em parte reno rantes: üeu-se i.°—aos discipulos deTheó-
vado pelos protestantes, e principalmente phronio, que no fim do iv século susten
•pelos presbyterianos,algunsanabaptistas, c tava que Deus não conhecia tudpj^oquc
emfim pelos kouakres: nos seus artigos o eUc^dqüir®
tractaremos. '“*—**^' Este èrrò é absurdo, sendo incontrasta-
Sobre esta matéria póde vêr-sc a obra de vel que o Ente necessário tem um conheci
Bruyeis, intitulada: Defense du culte exte- mento infinito: a unica difliculdade contra
rieur. a Omnisciencia de Deus tira-se do livre ar
Aeschines — era um empyrico d’Athenas, bitrio. Os socinianos renovaram este erro.
qiie seguiu os erros dos montanistas: ensi Yeja-se o seu artigo.
nava que os apostolos tinham sido inspira 2.°— Deu-se o nome de Agqqctas aos que
dos pelo Espirito Sancto, c não pelo Para- pretenderam que Jesus Christo não sabja
clito: e que o Paraclito promettido dissera tudo, que Elle ignorava o dia do juizo, e o
por bôcca de Montano mais cousas e de logar aonde Lazaro estava sepultado.
mais importância, que o Evangelho.3 Os erros de Nestorio e d’Eutyques tinham
agapetas—esta palavra significa pessoas feito nascer uma infinidade de questões
queW ffinám: deu-se a um ramo de gnos- acerca da natureza de Jesus Christo, da
ticos que subsistia nos fins do quarto sé sua Divindade e Humanidade, domodo como
culo em 395. cilas estavam unidas c dos cíTeitos d’esta
S. Jeronymo representa esta aspecie de união. .
seita como composta principalmente de mu- Themistip, diacono ^Alexandria, indagou
se depois d’esta união, não havendo em Je
1 Joan. 6, v. 27. Tcrt. de Monogam, c. sus Christo mais que uma Pessoa, Jesus
10. Aug. De curti pro mortuis, operum, t. 6, Christo ignorava alguma cousa: propôz a
р. 116. Senn. 32. Dê Verbis Apost. n. 172, sua dúvida a Thimotheo, bispo d’Alexan-
с. 2.C hrysost. Hom. in Ep. ad Philip, circa dria, o qual lhe respondeu que Jesus Christo
fin, nada ignorava: Themisthio cria lér o con-
2 Mabillon,' Prce. in 6 stec. Benedicti-
num , p. 449, n. 38. , 1 Aug., Hteres. 70. Stockman Lexicon.
3 lttigius. de Hcei:. p. 243. Hofman Le- 2 Stgdcman Lexicon.
xic. Slochnàn Lexicon. 3 Ibidem.
AGR 183
trario na Escriptura, por o proprio Jesus respondeu-lhes que eram cousas cujo co
Christo dizer que nem os Anjos nem o Fi nhecimento só o Pae a si reservara, e que
lho, mas sómente o Pae, sabia o dia do não queria descobrir aos homens, nem per
juizo. si, nem pelos anjos do ceo, nem pelos pro
Não se suppoe que os agnoetas attribuis phetas, nem pelo Filho; n’uma palavra, que
sem esta ignorância á alma dò Jesus Chris por este segredo impenetrável quçria o Pae
to, e não a sua Divindade; parece não te conservar-nos rt*uma vigilância e desvelo
rem feito esta distineção: como n’elle não continuo, e reprimir em nós a vã curiosi
reconheciam mais que uma Pessoa, e Je dade e as indagações inúteis á salvação. 1
sus Christo havia dito que não sabia quando Forbcsio crê que com effeito a humani
havia de ser o dia do juizo, cllcs conclui dade ou a alma de Jesus Christo ignorava.,
ram que Jesus Christo ignorava alguma o dia de juizo. Esta explicação é contraria 1
cousa. Parece, pois, que Relarmino se en aos sentimentos dos padres, mas não uma *
ganou acerca dos agnoetas.1 heresia. A alma humana de Jesus Christo,
E’ facil convencermo-nos d’isto mesmo, bem que unida hypostaticamcnto ao Verbo,
reflectindo sobre a origem d’esta seita, e não é infinita; ella póde em virtude d’esta
pela lição dos authores que escreveram união saber tudo o que deseja saber; mas
d’cila. * como não é infinita, não vê tudo d’uma vez;
0 erro dos agnoetas pão tem mais fun assim Jesus Christo nó tempo cm que di
damento que a passagem em que Jesus zia a seus apostolos que ignorava o dia de
Christo diz que o Filho do Homem não juizo, podia não saber com certeza quando
sabe o dia do juizo, e já tinha sido esta o mundo havia de acabar.2
mesma passagem cm outro tempo motivo AGONiCELiTAS—é o nome d’aquelles que
d’uma grande disputa entre os aerianos e susíentávím"que se devia ojar.dejjé, e que
Íos catholicos, porque os primeiros conclui era uma superstição orar dc joelhõs.3
ram cTaqui que Jesus Christo não era Deus. a g r íc o l a (João IslebioJ—assim chamado
Para responder a esta objecção tinham por ser dTslebo ou Eisleben, no condado dí
dito alguns padres que emquantò homem, é Mansfeld, compatriota e contemporaneo d€
que Jesus Christo ignorava o dia do juizo, Luthero, foi também seu discipuld. No prin
não porque eréssem que Jesus Christo como cipio sustentou o sentimento dc seu mes
homem ignorava alguma cousa, pois que tre, com grande zelo, mas depois o aban
cm virtude da união hypostatica estavam donou, c se tornou seu inimigo.
n’clle todos os thesouros da sabedoria e da Depois de mil variações na sua doutrina
sciencia, mas sómente que a humanidade e na sua fé, depois dc mil rctractações, e
separada da Divindade, mal podia per si mil recahidas, renovou um erro qúc Lu
mesmo e pelas proprias luzes ter este co thero fôra obrigado a deixar; elle levando
nhecimento. 3 Outros padres créram que o adiante as consequências, se tornou chefe
Filho dc Deus quizera dizer que Elle não ti d’uma seita, a que chamaram a seita dos
nha sobre isso uma sciencia experimental.4 anomeos.
Alguns, finalmente, dizem que Jesus Christo ^TfnTTa Luthero ensinado que a fé nos ju s -\
ignorava em um certo sentido, o que Elle tifica, e que as boas obras sao desnecessa- }
1não julgava a proposito descobrir-nos; igno rias para a salvação. D’este principio de
rava-o para nós, queria que nós o ignorás duzia Agricola que uma vez que o homem
semos. tinha a fé, já para elle não ha lei, que lhe
Tinham os apostolos perguntado a Jesus é superflua, ou seja para corrigil-o, ou para
Christo quando seria o fim do mundo e que governal-o, porque estando justificado peja
signaes haviam d’annuncial-o. fc, as obras lhe são inúteis, e se o não
Jesus Christo respondendo á segunda está, o ficará logo que faça um acto de fé.
parte da sua pergunta, disse tudo ó que Não queria pois Agricola que se prégasse
havia de preceder o dia do juizo, porque é a lei evangélica, mas sómente o Evange
necessario que esses signaes sejam conhe lho; queria que ensinassem os princípios
cidos; a respeito da hora e do dia preciso,
1 Orig. Chrys. Aug. I. 8, qtuest. 61, l. 1.
De Trin. c. 12. De Genesi, contra Maur. c.
1 Bcllarmino de Christ. I 4, c. d. 23. jEstius in loc. diff. script. p. 441, in
2 Leont de Sectis, Acto prim . Isidor. I loc. 3. Sent. dist. 14 et 3. Calmet, sur S. Aia-
3. Origin c. 5. Damascen. thieu et s v r S. Marc., c. 24, et 12. N atal,
3 Athan. Senn. cont. Arian. Ambr. in Alex. in s(ec. 6, Dissci't. 7.
Luc. I. 8, Gregor. Naz. Orig. etc. 2 Forbes. Inst. Thcol. I. 3, c. 21.
4 Orig. in Math. Epiph. Hoer. 69. 3 Stockman.
184 ALB
que nos conduzem a crer, e não as maxi tificio sempre cíficaz para persuadir um
mas que nos dirigem a bem obrar. 1 povo estúpido.
Luthcro se levantou contra esta doutri A esta ignorância do clero c dos povos sé
na. Agricola se retractou muitas vezes, e devem pois attribuir os rapidos progressos,
outras tantas reincidiu; porque não aban das seitas que inundaram a Europa desde o
donando Luthero seus princípios acerca da oitavo século, c que accenderam guerras
justificação, e admittindo-os.com Agricola, porfiadas c tão cruéis que só tiveram fim
nem podia rcfutal-o solidamente, nem des- no passado. Ycjam-se os artigos BogomiloA
cnganal-o, por quanto as consequências de Tamquclino, Ganquclino, Pedro dc Brmjs3 y
Agricola eram evidentemente ligadas com Arnaldo dc Brcxa, Albigenses, Valdenses, \
os princípios de Luthero áccrca da justi Stadinghos, Capuciatos, Begardos, Frati- j
ficação. , cellos, WicUf, Hussitas, Luthero, A naba-J
Como Agricola rejeitava toda a cspccie ptistas, Reforma.
de lei, chamaram-se os séus discipulos Ano- a l b i g e n s e s —manicheos que infestaram
níeos, que quer dizer sem lei. o Languedoc no fim do século duodecimo.
'^ÒRirri.NiA.Nos—discipulos dc Aggrippa, A heresia dos paulicianpsjm manicheos
bispo" de Carthago, que rebaptisava aqucl- da Bulgária, fora trazidará França pof-fima*. .
les que tinham sido baptisados pelos here- velha, que allucinou muitos conegos d’Or-
ges. Yeja-se o artigo Rebaptizantes. lcans; e outros manicheos derramados pe
ALDANEXSES—seita do oitavo século, cha- las provincias meridionacs da mesma Fran
mada ãssíhT do logar cm que nasceu, que ça, haviam communicado n’ellas os seus
foi na Albania. 2 erros: a severidade com que foram tracta-
Sustentavam que era prolubido fazer al dos, c a busca rigorosa que d’elles se fez,
gum juramento; negavam oj)eçcadojarigi- não destruiram a heresia, e tornaram os
nal, a efficacia dds..saçí\ahi'cntÒs, e o TTVre herejes mais circumspectos.
arbitrio; rejeitavam a confissão auricolar Eram extremas, n’essc tempo, a igno
jeomo inútil, e não queriam que se excom- rância e a dissolução dos costumes, ainda
[mungasse. mesmo entre, o clero, apesar das diligen
. . Attribuia-se-lhes haverem crido que o cias que sc fizeram para restaurar os estu
^inundo é eterno, e ensinado a transmigra- dos e a disciplina: homens mal morigera-
(ção das almas. \ dos c inertes desluslraram as funeções ec
• Parece que admittiam também dous prin-j clesiasticas: a usura era commum, e em
■cipios eternos e contrarios, e que negavam; muitas igrejas tudo venal, ou fossem sa
;,á Divindade dc Jesus Christo. Condemna-. cramentos, òu benefícios: os clérigos e sa
| vam o casamento. cerdotes, os conegos e até os bispos se ca- •
' \ Portanto eram os albanenses um ramo asavam publicamente. 2
/ de manicheos, (jue se tinha renovado na Entre os seculares não se via senão mor
í Albania, depois da súa destruição no Orien- tes, roubos e violências: os grandes se apo
; te. Espalharam-se estes sectarios por toda deravam dos bonéficios, doavam-os, ven
a.parte, formaram seitas e tiveram disci diam-os e até os deixavam em testamento.1
pulos. Na França os houve em muitos lo- Era o clero o objecto do odio e do desprêso
gares. do povo e dos grandes. 1
Éra n’esse século a ignorância profunda Os manicheos, que conservaram contra o
e quasi geral; e o clero principahnentc cleroüm rancor implacável, com um desejo
ignorantíssimo e por consequência pouco ardente de se vingarem dos rigores que se
regular, porque não é crivei que um clero tinham executado contra elles, se aprovei
sem. luzes possa conservar os costumes por taram d’cstas disposições para assaltarem,
muito tempo, e o mesmo se deve dizer tudo o que conciliava o respeito ao clero;
áccrca do povo. .assim investiram contra os sacramentos,
. Estes restos de manicheos, assim espa içontra as ceremonias da Igreja, contra as
lhados pela Europa, eram muito ignoran jprerogativas do clero, pretenderam que nao
tes: elles illudiam o povo por meio d’uma [pagassem os dízimos, e condemnaram to
apparencia de regularidade nos seus cos ldos os ecclesiasticos que possuíam bens de
tumes e na sua compostura, e gritando raiz; e como o terror das penas canonicas
contra os abusos e desordens, do clero; ar- era quem só continha o povo ignorante na
submissão ao clero, facilmente aeu ouvidos
1 Stockman Lexic. Sekendolf. Hist Luth.
1 . Gallia Christ. t . i . ° 3p . 19 V arix Apên
L3,§82. ...
2 Stockman Lexic. m voce Albanenses dices, %. 44.
Sander, Baron. 2 Hist. L itt. de Franco, t. 6.
ALB 185
mente dos seguintes.» Eram os artigos ha ás chammas. t «Elles, diz o padre Bento,
ver-se recusado a assignar a paz; nào ter passaram ao fio da espada todos os habita-
expulsado os hereges; haver-se tornado sus dores, sem dislineção de sexo nem de idade,
peito na fé; nào ter feito justiça aos seus saqueando e roubando por toda a parle’ o
inimigos; ter levantado impostos e salvos vendo depois que sete mil homens se na
conductos indevidos; ter prendido alguns viam retirado para a igreja da Magdalcna,
bispos e os seus clérigos; ter invadido os com o designio de alli se entrincheirarem,
seus bens, etc. O conde consente que se ou fugirem ao furor dos vencedores, estes
dispensem os seus subditos do juramento seguindo os primeiros movimentos do seu
de fidelidade, no supposto de que elle re impetuoso furor, e nào sendo cornmanda- v
cuse obedecer ao papa em algum d’estes dos por pessoa alguma de respeito, se lan- \
artigos. çaram sobre aquelles infelizes, que tyran-
Dezcscis barões, subditos do conde, fize namente mataram, sem que escapasse um
ram a mesma promessa. Logo o legado or só.» 2
denou ao conde que reparasse todos os Feito o saque de Beziers partiram os
damnos que fizera, prohibiu-lhe impôr no cruzados para Careassona, e a sitiaram; de
vos tributos de portagem, e que nào se in- pois dum ataque c uma resistência rigo
tromettesse mais em ncgocios ecclesiasti rosíssimos c funestissimos, elles obrigaram
cos, etc. Depois que o conde prometteu ob os habitadores a render a cidade, salva tão
servar todas estas condições, o legado lhe sómcnle a vida: não trouxeram estes mise
fez pôr uma estola ao pescoço, e pegando- ráveis mais que a camisa; e o conde Rogé
lhe pelas extremidades, o "introduziu na rio foi mettido em um cárcere, aonde em
igreja, fustigando-o com um molho de va poucos dias morreu. Na sua sahida decla
ras: emfim, depois d’esta humilhante cere raram os habitadores que todos eram ca -\
monia, lhe conferiu a absolvição.1 tholicos, á excepção de quatrocentos, osJ
r ' Entretanto o exercito dos cruzados se ia quacs foram presos e queimados.3
engrossando cada vez mais: viam-sc che Doaram-se todos os domínios de Rogério
gar cm cardumes flamengos, normandos, a Siinão de Monforte. Os cruzados, que só
borguinhezos, etc., conduzidos pelos arce tinham vindo para ganhar a indulgência,
b isp o s de Rcims, de Sens, de Roucn, pelos se retiraram, findos que foram os quarenta
bispos d’Autim, de Clermonte de Nevers, dias de serviço, que lhes eram impostos;
de Baycux, de Lisieux, e de Chartrcs, c mas os legados e Si mão de Monforte conti
por um grande numero de ecclesiasticos. nuaram a"guerra contra os hereges c seus
Também entre os senhores seculares se protectores.
contavam o duque de Borgonha, os condes Raymundo, conde de Tolosa, se tinha
de Nevers, de Monforte, etc. O abbade de unido aos cruzados, c retirado como os
Cister, legado da Sancta Sé, foi nomeado mais depois da tomada de Careassona; mas
generalissimo d’csta expedição.2 ainda não era chegado a Tolosa, quando o
Rogério, visconde de Beziers, espavorido abbade de Cister e Raymundo de Moufor-
com esta terrível cruzada, procurou os le te, mandaram deputados para intimarem
gados, o lhes protestou que era catholico, tanto a elle como aos consules de Tolosa,
que detestava os' erros dos hereges e que sob pena de excommunhão, que entregas
os nào favorecia; mas foram em vào todas sem aos barões do exercito todos os habi
as suas protestações, que não se acredita tantes que os deputados lhes nomeassem,
ram, porque engrossando cada vez mais o e seus cabcdacs, a fim de que elles fizessem
exercito com os dilferentes corpos que se profissão de fé na presença dos barões do
lhe vinham ajunlando, conduzidos pelo arce exercito.
bispo de Bordéos, bispo de Limogcs, etc., to Simão do Monforte ameaçava o conde do
maram os cruzados varios castellos e quei Tolosa de que, no caso d’elle da sua parte
maram muitos hereges; e emfim, postado o recusar obedecer a estas ordens, iria so
exercito na fronteira de Beziers, intimou aos bro elle, c levaria a guerra até o coração
catholicos, que lá estavam, que lhe entre de seus estados. Apesar de todas as pre
gassem todos os hereges que houvesse. cauções que Raymundo tomou para evitar
Nào se submettendo a cidade a estas con a guerra, apesar das promessas que fez de
dições, os cruzados a sitiaram, a tomaram,
c feita cruel matança em sessenta mil ha ; 1 Hist. de Languedoc, p. 161.
bitadores, lhe deram saque e a entregaram r 2 Hist. dos AÍbigeois, p ar le P. Binoit,
t. 2, p. 104.
1 Hist. de iMnguedoCj t. 3, p. 162. 3 Hist. de Languedoc. Ibid. Hist. des Al-
2 lbidem, p . 161. bigeois, ibid. p. 106.
188 ALB
buscar e punir os hereges, apesar de mil Sancta, ou excommungavam tudo o que
protestos de fidelidade á religião, e de hor não lhes obedecia ccgamentc. A’s da guer
ror á heresia, os legados c Simão de Mon- ra succcderam pois novas calamidades; os
forte voltaram contra ellc as forças da cru povos por toda a parle se achavam em
zada. Portanto o conde de Tòlosa se aprcs- uma consternação, que annuncia proxima
tou para a guerra e fez liga com differen a sedição e a revolta; muitos logarcs se
tes senhores da provincia. Engrossava e amotinaram; varios inquisidores morreram
diminuía o exercito do legado alternativa cruclmente, e foi preciso suspender o exer
mente com as tropas dos cruzados, que cício da Inquisição, que depois se restabe
concorriam de todas as partes da França leceu. 1
para ganharem a indulgência, e se retira Muitas vezes foi necessário pur limites
vam aos seus paizes, tanto que tinham ser ao zelo dos inquisidores, c ainda assim se
vido os quarenta dias; por esta razão eram queimaram muitos hereges. Diminuía o nu
desiguaes e lentos os successos dos cruza mero d’estes pouco a pouco, e não consta
dos, cujas alternativas de força e de fra [que se celebrasse acto de fé desde 1383.
queza, mantinham entre Simão de Mon- fOs inquisidores ainda continuaram as suas
forte e seus inimigos, uma especie de equi pesquizas e não aspiravam senão a quei
líbrio, que por muito tempo fez das pro mar; mas os summos pontifices, informa
vincias meridionaes da França um theatro dos da irregularidade dos seus processos e
de confusão e de horrores. da injustiça das suas sentenças, lhes impo-
A facilidade de ganhar a indulgência, zeram leis severas; então o tribunal não ex
em se cruzando contra os albigenses, ar citou mais motins, os hereges foram dimi
ruinava as cruzadas do Oriente; e os prin- nuindo, e por fim se exlinguiram de todo.
tcip es confederados, principalmenle o rei Eraquanto os inquisidores procuravam
\d e França, que se tinha unido aos cruza com tanta exaclidão, e puniam os hereges
d o s , estavam desejosos da paz. O conde de tão severamente, um grande numero de
^Tolosa a fez, perdendo uma parte dos seus pessoas se deu á magia e aos sortilégios,
domínios; promettendo demolir os muros? e por outra parte se viram pastorinhos ar-
de Tolosa cã primeira voz do legado, e ju-; ranchar-se e matar desapiedadamente os
rando que elle pesquizaria os hereges e os judeus.
puniria severamente. Quantas desordens, quantos crimes, quan
Não se exigiu de Raymundo que entre tas calamidades não offerece este século á
gasse individuo algum, nem teve a guerra ideia d’um christão que pondera! porém
outro eíTeito mais do que ser elle despo era summa a ignorância; não houve século
jado d’uma parte de seus domínios. em que se fulminassem mais excommu-
Para se ajustarem todos estes objectos, nhões, em que se queimassem mais here
j passou Raymundo a Paris, e depois de as- ges, e cm que fòssem menos cultivadas as
l sentados, foi introduzido na igreja de Nos- sciencias e as artes.
í sa Senhora, descalço, e em ccroulas, e alli
j jurou observar todos os artigos menciona-
c--dos, e recebeu a absolvição. DA DOUTRINA DOS ALBIGENSES
Os principes confederados imitaram o
conde de Tolosa, e fizeram a paz, promet
tendo trabalhar com zelo na extirpação da É constante por todos os monumentos do
heresia. tempo dos albigenses, que estes hereges
0 legado convocou muitos còncilios, eram
c um ramo djUftaiUÇ.l\e,os ou caUiaros;
entre outros um em Tolosa, em que os mias*o seTfmamcheismo differente d,aqucHe^
bispos, de accordo com os barões e senho de Manes. Elles suppunham que Deus ti
res, tomaram as suas medidas contra os nha produzido Lucifer e os seus anjos, que
hereges; n’elle foram também admittidos Lucifer se revoltara contra Deus, que fora
dous consules de Tolosa, que prestaram ju expulso do céo com os seus anjos, e que
ramento, em nome de toda a corporação, de desterrado de lá, tinha creado o mundo vi
observarem os estatutos que se fizessem na sível, sobre o qual reinava; e que Deus,
J assembléia, concernentes á destruição da para restabelecer a. ordem, creára um se
heresia, e se estabeleceu a Inquisição. gundo Filho, o qual era Jesus Christo; eis
Os inquisidores correram por todas as aqui porque os albigenses se chamaram
oidades fazendo desenterrar os hereges, se também arianos.
pultados em sagrado, e queimando os vi vos.
1 Hist. dê Languedoc, t. 3, l. 24, c. õ, t. 4,
Era infatigável o seu zelo e o seu rigor
N -extremo: condemna vam á viagem da Terra p. 184.
AMA 189
Portanto, c incontrastavel que os albi riguaeão era bem ocioso agglomerar tan
genscs eram verdadeiros manicheos; todos tos sopbismas.1 Tinham os albigenscs além
os autliores contemporâneos o dizem, e os dos erros dos manicheos também o dos sa-
seus interrogatorios, de que ainda se con cramcnUiriqs, e n’isto se fundamentam paH
servam originaes, o attcstam e confirmam.1 aílirmarem que os albigenses eram precur
Verdade é que os valdenses, boguinos e sores dos novos reformados.
outros heregcs penetraram no Languedoc, Os erros dos albigenses não eram obra
e alli foram condemnados, mas não é me do raciocínio, mas os effeitos do fanatismo,
nos certo que sempre estes hereges se dis- da ignorância e da aversão que ellcs ti
tinguiram dos albigenscs, que nunca tive nham aos catholicos. Estão refutados n o s|
ram a sua denominação c se chamaram só artigos Manicheismo, Calvino e Lutliero. *
mente hereges.2 Emfim, Guilherme de Puy a l o g e s pu a l o c e a n o s — hereges do se
Laurent, author contemporâneo, diz que os gundo seciiló, que'ser suppõe negarem, a
hereges que se haviam espalhado no Lan- Divindade.. d.o, Verbo: ellcs rejeitavam o
guedoc differiam entre si, que uns eram Evangelho, segundo S. João, e o Apocaly
manicheos, outros valdenses, e que estes pse. 2
disputavam contra os primeiros, que sem Sc o seu erro fosse differente do de Theo-
düvida se chamaram ao diante albigenscs. doto de Bizancio, entraria nos princípios
Não devem pois confundir-se todas estas de SabellíQ, que negava que o Verbo fosse
| seitas, como faz mr. Basnage, c é certo que uma pessoa distiuctajlo Pãdre, oá nos sen
I os albigenses eram verdadeiros manicheos, timentos dos íjnanos, que reconhecendo ser
* como o disse mr. Bossuet. o Verbo uma pessoa distincta do Padre, pg-
Que mr. Basnage ajunte aos valdenses, seguravam que fosse uma ..creatura.
henricanos, etc., os albigenses para d’elles amaüri—era um clérigo, natural de Be-
fazer uma communhão extensa e visível, no, ameia da diocese de Chartres, que es
que n’esse século tinha o dogma dos pro tudou em Paris pelo fim do duodecimo s(
testantes, é isso cousa que aos catholicos culo, e ensinou com credito no principi
pouco interessa de refutar. Porem não de do seguinte.3
vemos deixar de dizer, se bem que de pas Tinham então sido levados á Franca o
sagem, que Valdo^ de ninguem houve os livros d’Aristoteles: todos os philosophos
seus erros, e qüc‘elles não eram os- erros arabes o haviam tomado por guia no es
dos protestantes. tudo da logica, que era quasi a unica parto
Também não receamos asseverar que da philosophia que então se cultivava; mas
mr. Basnage, sómente por meio de sophis- era cousa summamente diflicultosa ter-sc
mas. desculpou os albigenses do manicheis Aristóteles por um guia infallivcl na ave
mo que se lhes imputa; todas as suas pro riguação da verdade, sem se presuppôrem
vas se reduzem a estabelecer que .havia n’elle grandes adiantamentos no conheci
no Languedoc hereges oppostos aos mani mento dos objectos que examinara.
cheos, o que ninguem lhe contradiz; mas o Amauri passou do estudo da logica de
que se assevera é que os hereges chama Aristoteles ao da metaphysica e da physi
dos albigenses eram manicheos, e que es ca, e seguiu este philosopho na averigua
tes manicheos, que mr. Basnage não nega ção que cllc fizera da natureza e origem do
estarem no Languedoc, crain com efiei to a mundo.
mesma seita contra a_..qual .s&Jorm&u. a Aristoteles, na sua metaphysica, exami-i
cruzada, e qué^^éham oü a seita dos al- na todas as opiniões dos philosophos que
filgcnscs; é o que consta com evidencia de o precederam, nenhuma o satisfaz, e as
toàos os monumentos d’aquelle tempo, dos refuta todas: condemna Pithagoras, que}
concilios, dos interrogatorios, e pela dis- olha os numeros, ou antes os séres sim-j
tineção que sempre se fez entre os albi ples c inextensos como os elementos dosí
genses e valdenses; e a isto se reduz a corpos; Democrito que suppõe todos com-t
questão sobre o manicheismo imputado por postus d’atomos; Thales que tirara tudo daí
mr. Bossuet aos albigenses, e para cuja ave- agua, e a causa de todos os entes.
Depois de haver refutado todas estas opi-
1 Hist. de Languedoc, t. 4, p. 183, t. 3,
p . 135', 93, etc. Hist. des Albigcois, par le 1 Hist. des Eglises Reform. t. 1, periode
P. Benoit, t. 2. Pièces justificatives. 4, c. 9, p. 163. Hist. de YEgl. t. 2, l. 29, c. 3,
2 D'Argentré. Collect. Jud.'Hisloir. des p. 1400.
Croisades contre les Álbigeois, par le'P . 2 Epiph. Hcei\ 51. Philast. de Hcer., c.
Langlois, jesuite. Histoire de Languedoc. 600. Aug. de Hcer. c. 30. Tertull. de Prcefer.
Histoire des Álbigeois. 3 Rigord, ad anno 1209.
190 AMA
.niões, suppõc Arisl.otçiçs que todos os só- Filho c o Espirito Sancto, ás quaes attri-
res saheni d’uma matéria extensa, mas que buia o imperio do mundo, e que elle olhava
. de si mesma nào tem fôrma, nem figura, a como objecto da religião.
que clle chama matéria prima. Mas como a materia primeira estava cm
Esta matéria príina éxíste por si mesma, um movimento continuo e necessário, por
o movimento que a agita é-necessário como tanto a religião e o mundo haviam dc aca
cila, e posto que Aristóteles reconheça que bar, o todos os entes deviam dc tornar a
os espíritos sào entes immatcriaes, coíntudo entrar no scio da materia prima, que era
parece qnc algumas vezes suppõc que cl- o ente dos entes, o primeiro ente c o unico
les sahiram da matéria. indestructivel.
Estratào, seu discipulo, confrontando es religião, no pensar d'Amauri, tinha
tas differentes opiniões d’ArislotoIes, tinha tres épocas, que eram como os reinos das
crido que a matéria primeira bastava para -,tres pessoas da Trindade.
dar razão da existência de todos os seres, : O reino do Padre tinha durado o tempo
e que em se suppondo o movimento adhe Ma lei moysaica. O reino do Filho, ou a re
rente á materia prima, se acharia n’ella a ligião christã, não ha dc durar sempre, as
causa e o principio de tudo. [ceremonias e os sacramentos, que no seu
Muito depois de Estratào, alguns philo sentir fazem a sua essência, não devem de
sophos árabes,'que commentaram Aristóte |ser eternos.
les, lhe attribuiram esta opinião, que pas Devia haver um tempo em que os sacra*
sou ao Occidente com os livros dos mes fmentos haviam dc cessar, e ter então prin
mos commentadorcs. Martinho, o polaco, cipio a religião do Espirito Sancto, na qual
refere que João Escot Erigeno tinha ado- os homens já não terão necessidade de sa
ptado este sentjmento, e que ensinara não cramentos, c hão de dar ao Sèr Supremo
haver no mundo mais que a matéria pri um culto puramente espiritual.
ma, que era tudo, e á qual dava o nome Esta época era o reino do Espirito San
de Deus. 1 cto, reino annunciado, no sentir d’Amauri,
Ou fosse porque Amauri considerasse as na Escriptura, e que havia de succedcr á
sim o systema d’Aristoteles, ou porque elle religião christã, como esta havia succcdido
adoptasse o de Estratào, ou porque seguisse á moysaica. A religião christã era, pois, o
. os conunentadores arabes e a Escot Eri-o reino'dc Jesus Christo no mundo, e todos
. geno, elle na verdade creu ,auc^Dcus^não: os homens debaixo d’esta lei deviam olhar-
. ' J se como membros de Jesus Christo.
' Depois de haver ensinado a lógica com Levantou-se contra a doutrina d’Amauri
í muita reputação, Amauri se applicou ao toda a universidade de Paris: clle a defen
:.estudo da Sagrada Escriptura, e quiz ex- deu e parece que era o seu principio fun
í plical-a: Como tinha grande aferro ás suas damental este sophisma de logica.
j opiniões philosophicas, quiz encontral-as na A matéria prima c um ente simples, pois
Escriptura, e presumiu que alli as via: que não tem qualidade, nem quantidade,
] creu encontrar na relação de Movsés a ma- nem eousa alguma que possa determinar
teria primeira, o calios; que esta matéria um ente; ora o que não tem quantidade
.primeira era hão só a causa producente, nem qualidade é um ente simples; logo a
mas o fundo de que tinham sahido todos materia prima é um ente simples.
os séres, do modo que Moyses o referia. A religião c a theologia ensinam que
Toda a religião se offerecia então a Amau Deus é um Ente simples; entre os entes
Í ri, como o desenvolvimento dos phenome- simples não póde conceber-se diversidade,
nos que o movimento e a materia primeira porque estes só differiriam havendo, cm al
haviam de apresentar, gum d’elles partes ou qualidades que não
j Esta foi a base sobre a qual fundou o houvesse no outro, e-então já não seriam
. &eu systema de religião christã. simples.
/ A materia primeira podia, pelas suas fór- Se não ha, nem póde haver differença
| mas diversas, produzir entes particulares, entre Deus e a materia prima, logo a ma
|: é Amauri reconhecia na materia primeira teria prima é Deus, e d’este principio de
J o que clle chamava Deus, por ser um Ente duzia Amauri lodo o seu systema de reli
:$■necessario e infinito; Amauri, digo, reco gião, como já vimos..
nhecia, em Deus tres pessoas, o Padre, o Sendo condemnado pela uniyersidade,ap-
pcllou para o papa, o qual confirmou a
i Nicolaus Trinct. in suo chronico, t. 8. sentença da condemnação. Então Amauri
Spicileg. v • 560. DIArgentré, collect. Jud. se retráctou, e retirado a S. Martinho dos
t. I, p. 128. Campos, alli morreu dc desgosto c dc pe*
ANA 191
.zar. 1 Teve, por discipulo David de Dinan- nha armado d’estc principio fundamental
do. Ycja-se o seu artigo. da reforma, isto é, que só deve ter-se como
anabafçistas — se ita d e fan atico s, q u e se revelado c como necessário para a salva
r e b a p lis a v a n i' e p ro h ib ia m o b a p tism o das ção, o que se encerra na Escriptura; cllo
c re a n ç a s . condemna como fontes contaminadas os pa
dres, os concilies, os theologos e as bellas-
letras. A sciencia, no sentir de Stork, en
DA OIUGEM DOS ANABAPTISTAS che,o coração d’orgulho e o entendimento
de conhecimentos profanos e perigosos. Por
este meio levou Stork para o seu partido os
Comba tendo Luthcro o dogma das indul- ignorantes, os tólos e o populacho, que na
encias, linha feito depender a justificação sua seita estavam ao nivei dos theologos c
o homem unicamente dos merecimentos doutores.
de Jesus Christo, que o christão se appli- Luthcro não tinha sómente ensinado que
cava pela fé. a Escriptura era a unica regra da fé c cada
Portanto, segundo o sentir d’estc chefe um dos fieis o juiz do sentido da Escriptu
da reforma, não eram os sacramentos os ra, mas também que cada um dos fieis re
ue justificavam, mas tão sómente a fé cebia luzes extraordinarias do Espirito San
'aquclle que os recebia.2 D’estes princí cto. Ellc asseverou que o Espirito Sancto
pios concluiu um dos discipulos de Luthe- não recusava aos que lh’as pedissem as
ro, appellidado Stork, que o baptismo das mesmas illustrações com que ellc era fa
creanças não podia justifical-os, c que era vorecido: estas luzes, pois, communicadas
perigo rebaptisar todos os christãos, visto aos fieis pelas inspirações c toques interio
que elles foram baptisados, quando incapa res do Espirito Sanctó, eram no sentir de
zes de formar o acto de fé, por meio do Stork, a unica regra da sua fé e da sua
qual o christão a si mesmo applica os me moral.
recimentos de Jesus Christo. Carlostadio, Munccr e outros protestantes
Lulhero não havia fundado a sua dou ou invejosos do poder de Luthero, ou re
trina, nem sobre a tradição, nem sobre as voltados pela sua dureza, adoptavam os fun
decisões dos concilios,'nem sobre a aulho- damentos de Stork, e os anabaptistas for
ridade dos padres; mas tão sómente na Es- maram em Wittemberg uma poderosa sei
criptura: ora, dizia Stork, na Escriptura ta. Feitos cabeças d’esta seita Carlostadio e
não se encontra que seja preciso baptisar Muncer, correram d’igreja cm igreja, aba- \
as creanças; pelo contrario é necessário ca- tendo as imagens e destruindo todos os res- )
thechisar os que se baptisam, e que elles tos do culto catholico, que Luthero ainda J
creiam. Os meniuos nem podem instruir- conservara.
se, nem são capazes de formar acto de fé, Tanto que Luthero soube no seu retiro
sobre o que se deve crér para ser chris os progressos dos anabaptistas, partiu para
tão; portanto é o baptismo das crianças Wittemberg, pregou contra elles c fez des
uma práctica opposta á Escriptura, c os terrar Stork, Muncer e Carlostadio. Este se
que foram baptisados na infancia, não o retirou a Orlemonde, d’onde passou á Suis-
receberam com efleito. sa, e alli lançou os fundamentos da dou
Stork não propôz esta doutrina ao prin trina dos sacramqivtarios.
cipio senão como uma consequência dos Stork c Muncer percorreram a Suevia,
fundamentos da de Luthero acerca da jus a Thuringia, a Franconia, e semearam por
tificação, consequência que o mesmo Lu toda a parte a sua doutrina, prégando igual-
thero não quizera descobrir, segundo diz mente contra Luthero e contra o papa; este,
Stork, por circumspcccão ou por prudên dizia Stork, soçobrava as consciências com
cia. Este novo dogma de Stork, não foi por uma multidão de prácticas, pelo menos in
então mais que um assumpto de conversa úteis; aquelle authorisava uma relaxação
ção- mas bem depressa se introduziu nas contraria ao Evangelho; e a sua reforma
escolas, pôz-se em theses, adquiriu partido não viera a parar cm outra cousa mais
.nos collegios, e fmalmente foi proposto nos que n’uma dissolução similhante á do ma-
pulpitos. hometismo. Os anabaptistas publicaram que
Stork para defender a sua opinião, se ti- Deus os havia enviado para abolirem a re
ligião do papa nimiamente severa, c a so
1 GuiUclm. 'Armoricus. Hist. de vila e ciedade de Luthcro muitó licenciosa, c para
gestis Philip, ad ann. 12Ò9. WArgenfré, loc. ser christão era preciso não cahir em vicio,
cit. S, Th. contre Gent. c. 17. c viver isempto de orgulho e de fausto.
2 Luth. de captivit. Babilon. p. 73. Os anabaptistas não pretendiam, como
192 ANA
Lufhero, tyrannisár as consciências; do esta differença de classes e de bens, que a
Deus sómente, segundo o seu systema, de tyrannia introduziu entre nós e os grandes
víamos esperar as luzes proprias para dis do mundo? Porque razão gemeremos nós
tinguir a verdade do erro, a verdadeira re debaixo da pobreza, c seremos accumula-
ligião da falsa. Deus declarava na Escri- dos de males, entretanto que elles se en
ptura que havia de conceder o que se lhe pe golfam n’um mar de delicias? Não temos
disse; e assim, no sentir de Stork e de Mun nós direito á igualdade dos bens que de
cer, tínhamos um meio seguro de que não sua natureza são feitos para se dividirem
faltaria jamais a dar aos fieis senhas infal- sem distineção entre todos os homens? Res-
liveis, por onde conhecesse a sua vontade titui-nos, ricos do século, usurpadores, ava
quando se lhe pedisse. A vontade de Deus rentos, restitui-nos esses bens que retendes
se manifestava por differentes modos, ora com injustiça; não somente como homens,,
por appariçõcs, ora por inspirações, e al mas ainda como christãos, temos o mesmo
gumas vezes por sonhos, como no tempo direito que vós a uma distribuição igual da
ldos prophetas. fortuna e das suas vantagens.
x Stork e Muncer acharam grande numero «Não vimos no nascimento da religião,
d’espirítos fracos, e de imaginações vivas, que os apostolos só tinham em attençao a
que ávidamente abraçaram os seus princí necessidade de cada um dos fieis na repar
pios; elles se pozeram logo á testa d’uma tição do dinheiro que se vinha oflerecer
seita de homens que não raciocinavam, e a "seus pés? Não voltaram mais esses tem
que não tinham outro guia mais do que os pos ditosos! E tu, infeliz rebanho de Jesus
ímpetos e delírios da sua imaginação, ou Christo, terás de gemer sempre na oppres-
os movimentos das suas paixões. são, debaixo das potências ecclesiasticas! 1
Vendo estes dous chefes quanto poder O Omnipotente espera que todos os povos
tinham para imprimir nos animos de seus destruam a tyrannia dos magistrados, que
discipulos todos os movimentos que qui- com as armas nas mãos recobrem a sua
zessem, não cuidaram mais em oppôr con liberdade, que não paguem tributos, e que
tra Luthero uma seita de controversistas; ponham os seus bens em commum
aspiraram a fundar no seio d’Allemanha «Aqui aos meus pés é que se devem tra
uma nova monarchia. Porém alguns dos zer, assim como em outro tempo se amon
discipulos não seguiram os ambiciosos de toavam aos dos apostolos; sim, meus irmãos,
sígnios dos seus chefes; e no mesmo tempo não possuir cousa alguma como própria é
em que Muncer julgava ser-lhe tudo per- o espirito do Christianismo no seu nasci
mittido para estabelecer o seu novo impe mento; e não pagar aos principes os tribu
rio, estes anabaptistas pacificos olhavam tos com que elles nos opprimem, é livrar-
como um crime a defesa mais legitima mo-nos do captiveiro de que Jesus Christo
contra aquelles que atacavam as suas pes nos resgatou.» 2
soas e os seus bens. Nós vamos, pois, se- ' O povo de Mulhausen viu em Muncer
uir os seus progressos e differentes esta- um propheta enviado do céo para libertal-o
os d’esta seita. da oppressão; lançaram fóra os magistra
dos, pozeram-se em commum todos os bens,,
e Muncer foi respeitado como o juiz do
DOS ANABAPTISTAS CONQUISTADORES DESDE 4)ovo. Este novo Samuel escreveu ás cida
SOBERANIA DE MUNCER A TÉ Á SUA MORTE des e aos soberanos que o fim da oppres
são dos povos e da tyrannia dos soberanos
tinha chegado, que Deus lhe ordenàra que
Tinha-se sublevado uma parte d’Allema- exterminasse todos os tyrannos, e que es
nha, por não poder supportar as vexações tabelecesse em pessoas de bem o governo
dos senhores e dos magistrados, e dérá de. todos os povos.
principio ao levantamento conhecido pela Pelas suas cartas e pelos seus apostplos,
denominação de guew a dos paisanos: esta Jituncer ateou o fogo da sedição na maior
sedição tinha abalado, por assim dizermos, parte d’Allemanha: viu-se em breve na
toda a Allemanha, que gemia debaixo da vanguarda d’um exercito numeroso, que
tyrannia dos grandes, e que parecia espe commettia grandes desordens; calamidades
rar sómente por um chefe. ainda maiores, ameaçavam a Allemanha,
Muncer se aproveitou d’estas disposições os. povos rebellados corriam de todas as
ara grangear a confiança do povo. «To-
os somos irmãos, dizia elle fallando ao 1 Oatrou. Hist. des Anab. Sleidan.
povo miudo reunido^ e só> temos um pae 2 Catrou, ibid Sleidan, 1 .10. SékemorI»-
commum, que é Adao; d’onde vem, pois, comment su r le Hist. du Luth.
ANA 193
partes para se alistarem ás ordens de Mun- consideravelmente: então correram por to
cer. do o paiz, gritando: «Arrependei-vos, fazei
O Iandgravc dTIassia, e muitos senho penitencia, e sêde baptisados, a fim de que
res levantaram tropas, e investiram Mun- não venha sobre vós a ira de Deus.*
cer, antes que a elle se reunissem diffe O povo miudo sc ajuntou: todos os que
rentes corpos de revoltados, que já mar tinham recebido um segundo baptismo, cor
chavam: o exercito de Munccr ficou desba reram logo pelas ruas, dando a mesma voz;
ratado, mais de sete mil anabaptistas mor muitas pessoas se uniram aos anabaptistas
reram n’csta derrota, e o mesmo Munccr por simplicidade, temendo com cffeito a có
ficou captivo, e foi executado algum tempo lera divina com que os ameaçavam, c ou
depois.1 tras porque temiam o ser roubadas.
O numero dos anabaptistas se augmen
tou dentro de dous mezes a muitos mil, c
DOS ANABAPTISTAS DEPOIS DA MORTE DE MUN- tendo publicado os magistrados um edicto
CER ATÉ Á EXTINCÇÃO DO SEU REINO DE contra clles, correram ás armas, c se sc-
MUNSTER. nhorcaram da praça do Mercado. Os cida
dãos se postaram ém outro bairro da cida-
dade: por espaço de tres dias guardaram-
A derrota de Munccr não aniquilou em se uns aos outros; por fim se concordaram
Allemanha o anabaptismo, que alli se man em que cada um dos partidos deporia as
teve c ainda cresceu, mas jã não formava armas, e que reciprocamente se tolerariam,
um partido digno de temer. Os anabaptis não obstante a differença de sentimentos
tas igualmente odiosos aos catholicos, aos acerca da religião. Porém os anabaptistas
protestantes e aos sacramcntarios, eram receando ser atacados de noite, emquanto
I condenmados e punidos cm toda a Allema estivessem desarmados, secretamente en
nha. ' viaram mensageiros a differentes logares
Na Suissa clles amotinaram os cidadãos com cartas dirigidas aos seus apaixonados.
e os paisanos, porém com menos successo, Referiam estas cartas, que um propheta
porque a vigilância e a authoridade dos enviado por Deus chegara a Munster, que
magistrados desmancharam seus projectos, prophetisava acontecimentos estupendos, e
tractando-os com rigor, pois que só pode- que instruía os homens sobre os meios dc
ram alli perpetuar-se debaixo d’um grande obterem a salvação: um prodigioso numcr<
segredo. Em muitos cantõcs se tinha pro d’anabaptistas partiu para Munster. Entã<
ferido pena de morte contra os anabaptis os da cidade correram pelas ruas gritando
tas, e todos aquclles que frequentassem as «Retirai-vos, perversos, se quereis evitar
suas assembléias, c com cffeito se execu uma total destruição, porque sc esmagará
tou em grande numero d’cllcs. Ainda eram a cabeça a todos aquclles que recusarem
tractados' com mais rigor nos Paizes-Bai- rebaptisar-sc.» O clero c os cidadãos aban-~
xos e na Hollanda: estavam cheias as pri donaram então a cidade; os anabaptistas \
sões, c quasi todos os dias se levantavam saquearam as igrejas c as casas abandona- y
cadafalsos; mas por mais supplicios que se das, e á exccpção da Biblia, reduziram a
inventassem para aterrar os animos, cada cinzas todos os livros. Pouco tempo depois
vez crescia mais o numero dos fanaticos. a cidade foi cercada pelo bispo de Muns
De quando em quando se elevavam en ter, e Mathison morto em uma sortida. A
tre os anabaptistas alguns chefes, que lhes morte de Mathison consternou os anaba
promettiam tempos ditosos: taes foram Hof- ptistas; porém João Bekold sahiu n ú cor
man, Tripnaker, etc. rendo pelas ruas, e gritando:*~To rei de
Depois d’cstès appareceu Mathison, pa Sião chega.» Practicado este acto, tornou
deiro dTíarlem, o qual enviou apostolos á a entrar em casa, tomou os seus vestidos,
Frisa, a Munster, etc.; como se tinha esta e não sahiu mais. No dia seguinte veio o
belecido em Munster a religião reformada, povo cm turmas saber a causa d’esta acção;
os anabaptistas haviam feito alli alguns pro João Bekold nada responde, e escreve: que
selytos, que receberam os novos apostolos. Deus lhe prendera a lingua por tres dias. J
Todo o seu corpo se ajuntou n’essa noite, Não se duvidou de que o milagre ope- 1
e recebeu do enviado de Mathison o espi rado em Zacharias não fosse renovado em 1
rito apostolico que elle esperava. João Bekold e se esperou com impaciência *
Conservaram-se escondidos os anabaptis o fim da sua mudez.
tas até que o seu numero se augmentou Passados os tres dias, Bekold se apre
sentou ao povo, e declarou com um tom de
v 1 Catrouy Sleidam, Sekendorfj ibid. prophecia que Deus lhe ordenára se esta-
13
194- A-N.A
belecessem doze juizes sobre Israel; no lemanha e na Suissa continuamcule se re
meou-os e. fez no governo d’esta cidade io produziram.
das as mudanças que lhe pareceu. Esta foi por Ioda a parte a sorte dos ana
Quando Bekold se creu bem senhor dos baptistas, cujo principal desígnio era o de
animos dos povos, veio um certo ourives a formarem um reino temporal ou ainda uma
buscar os juizes, e lhes disse: «Eis aqui o monarchia universal pela destruição de to
que disse o Senhor Deus Eterno: assim das as potências: dispersos sobre a terra e
como cm outro tempo eu estabelecia Saul descoroçoados das suas emprezas vieram a
rei sobre Israel, e depois d’clle a David, renunciar o projecto insensato de submet-
posto que nào fosse mais que um simples ter o universo as suas opiniões; o seu fa
pastor, da mesma sorte eu estabeleço hoje natismo deixou de ser um furor guerrei
rei em Sião a Bekold, meu propheta!» Um ro, c então se uniram com os anabaptistas
jOUtro propheta veio e apresentou uma es puros c pacificos.
pada a Bekold, dizendo: «Deus te faz rei,
} não sómente sobre Siào, mas sobre toda a
: terra.» Opovo arrrebatado d’alegria accla- DOS ANABAPTISTAS PACIFICOS
:m ou João Bekold rei de Sião, lizeram-lhe
um a coroa d’ouro e bateram moeda em seu
‘ nome. Não era essencial nos anabaptistas o es
Apenas Bekold foi proclamado rei en pirito da revolta e da sedição, e Stork nãò
viou vinte c seis apostolos para fundarem achou cm toda a parte caracteres taes como
por toda a parte o seu imperio. Estes no o de Muncer: alguns de seus discipulos pelo
vos apostolos aonde quer que chegaram contrario cm vez de se rebellarem contra-
promoveram grandes distúrbios, principal as potências seculares, emprehenderam re
mente na Hollanda, aonde João de Levde unir os anabaptistas dispersos cm dilleren-
asseverava que Deus lhe tinha dado Ains- tes partes d’Allemanha, fugir ás persegui
terdam o muitas outras cidades. Como os ções dos magistrados e formar uma socie
anabaplistas causaram n’ellas grandes des dade puramente religiosa. Taes foram Hu-
ordens, mataram um grande, numero d’ellcs. ter, Gabriel c Menno, que formaram as so
0 rei de Sião soube com mágoa as des- ciedades dos irmãos da Moravia, e a dos
raças dos seus apostolos, e esmoreceu; o Mauronitas.
Bsanimo entrou em Munster, que pouco
ípois foi tomada pelo bispo, c n’ella pri-
oneiro o mesmo João de Lcvd, ou Bekold, DOS IRMÃOS DA MORAVIA
atanazado em 1536. D'csfa sorte finalisou
) reino dos anabnptistas cm Munster.
Huter e Gabriel, um e outro discipulos
de Stork, compraram na Moravia um ter
DOS ANABAPTISTAS CONQUISTADORES, DEPOIS reno assaz extenso em sitio fértil mas in
DA EXTINCÇÂO DO SEU REINO EM MUNSTER culto, depois percorreram pela Silesia, Bo-
liemia, Styria e Suissa, annunciando em toda
a parte que Deus escolhera um povo se
Os anabaptistas foram perseguidos e cui- gundo o seu coração, que este povo vivia
dadosamente observados por todos os prin espalhado entre os paizes da idolatria, que
cipes c seus ministros, que tendo sempre o tempo de congregar-se Israel tinha che
diante dos olhos o exemplo de Munster, gado, c que era necessario que os verda
não lhes deram repouso algum. Na Hol deiros fieis saliissem do Egypto e passas
landa não deixaram de fazer-se execuções sem á terra da promissão.
em muitos annos: passados dez depois da Depois que Huter reuniu anabaptistas
reducção de Munster, foram executados mui bastantes para formar uma sociedade, fez
tos anabaptistas que faziam diligencia para um symbolo dè^lcis. Continha este sym
restabelecer o seu partido; alguns d’elles se bolo: *
escaparam, mas outros, morreram cont um 1.® Que Deus em todos os séculos esco
válor estupendo: taes houve que podendo lhera uma nação saricta que clle fizera de
salvar-se preferiram morrer, por se vêrem positaria do verdadeiro culto; que a diffi-
no estado de não poderem esperar torna culdade consistia em conhecer os seus mem
rem -se melhores no decurso d’u m a v id a bros entre os filhos da perdioão^e reunifos
mais dilatada. Com o mesmo rigor forám cm um corpo pai a os conduzir ã terra pro-
tractados os anabaptistas na Inglaterra, mettida; que este corpo era sem dúvida o
aonde comtudo fizeram proselytos: na Al- que Huter congregava para o fixar na Mo-
ANA 195
ravia; finalmentc, que separar-se do chefe tendidas, emquanto o prcdicante explicava
oudespresar as leis do coiulucior d’Isracl, o mysterio, c finalmcntc este pronunciava
era o signal d’uma infallivcl coridemnação. em alta voz as seguintes palavras: «To-
2. ° Que se devem olhar como impias to •mai, meus irmãos, comei e annunciai a
das as sociedades, cujos bons não sào cóm- morto do Senhor.»
muns;. que não se póde ser rico cm parti Então todos comiam o pão: o ancião ia
cular e juntamente christão. depois correndo d’uns a outros com o seu
3. ° Que Jesus Christo não é Deus, mascalix, c o prcdicante dizia: «Bebci em nome
Propheta. de Christo c cm memória da sua morte.»
i.° Que os christãos não devem reconhe Hebiam todos do calix e depois ficavam em
cer outros magistrados senão os pastores uma cspecie (fextasis, de que somente sa-
ecclesiasticos. hiam pelas exhortaçõcs do prcdicante, o
5. ° Que quasi todos os signacs exterioqual lhes explicava os cíTcitos que havia de
res de religião são contrarios á pureza do produzir n’elles o mysterio de que deviam
Christianismo, cujo culto ha de ser no co ter participado.
ração, e que não devem consorvar-sc ima Logo depois da communhão eram sepa
gens, pois que Deus o prohibiu. rados da assembléia os apostolos que ha
6. ° Que são verdadeiros inficis todos osviam de ir pregar ás provincias circumvi-
que não são rebaptisados; e os casamentos sinhas.
feitos antes da nova regeneração, são an- Entre os anabaptistas quasi não havia
nullados pelo novo contracto que se faz com outros exercícios de religião fóra da rece
Jesus Christo. pção da ceia, excepto o ajuntarcm-sc por tur
7. ° Que o baptismo não perdoa o pec-mas, todas as quartas feiras e domingos, em
cado original, não confere graça, nem é casas particulares para alli fazerem ou ou
mais que um signal pelo qua; o christão se virem sermões sem ordem nem preparação.
entrega á Igreja, Os irmãos da Moravia habitavam sempre
8. ° Que a missa é uma invenção de Sa-no campo em terras de fidalgos que acha
tanaz, o purgatorio um delirio e* a invoca vam mais utilidade cm arrendal-as a uma
ção dos sanctos uma injuria feita a Deus; colonia ^anabaptistas, parque sempre pa
que o corpo de Jesus Christo não está rcal- gavam aos senhores o dobro do que lhe*
mente presente na Eucharistia. teriam produzido* nas mãos d’uni rendeiri
Taes são os dogmas que professavam os ordinario.
anabaptistas reunidos por Huter c que to Logo que lhes confiavam qualquer her
maram o nome de irmãos da Moravia. dade, vinham residir n’ella todos juntos em
Como cutrc elles não se dava o baptismo um sitio separado que cercavam com esta
senão ás pessoas d’uma idade madura, per cada: cada familia tinha alli a sua cabana,
guntava-se ao proselyto se cllc se tinha feita sem ornato, mas aceada no interior.
cxórcitado em algumas magistraturas o se No meio da colonia faziam aposentos pú
renunciava a todo o fausto e pompa de Sa- blicos, destinados ás funcçòes das commu-
tanaz, que as acompanham: examinavamos nidades: alli se via um réfeitorio onde se
seus costumes, c só se julgava digno de ser ajuntavam todos ás horas do comer, e sa
contado entre os irmãos quando com um las para trabalhar nos oflicios, que só po
voto unanime gritava o povo: «Soja bapti- dem cxercer-sc a coberto. Tinham ahi um
sado.» Então o pastor tomando agoa a lan departamento cm que se creavam as crean-
çava sobre o proselyto, pronunciando estas ças da colonia, e não seria fácil explicar
palavras: «Eu tc bàpliso em nome do Pa com que desvelo as viuvas desempenhavam
dre, do Filho e do Espirito Sancto.» esta funeção.
Entre os huttcritas se tomava a commu- Em outro logar separado tinham uma
nhão ou a ceia duas vezes no anno, no escola pública para a instrucção da moci
tempo que o sou chefe determinava para a dade, e d*esta sorte nem estava a cargo dos
communhão pública, c era ordinariamente paes o sustento nem a educação de seus
debaixo d’um tolde ou, palco, na sala que lilhos.
servia de refeitório aos irmãos que se ajun- Como os bens eram communs, um eco-
tavam para ter parte nos mysterios. nomo que se revesava todos os annos, per
Principiava a ceremonia *pela lição do cebia os rendimentos da colonia e os fru-
Evangelho em lingua vulgar: sobre o que ctos do seu trabalho: a clle tocava prover
se-tinha lido fazia-se um sermão, c no fim a eommunidadc de todo o necessario: o
d’ello o ancião ia levar a cada um dos ir prcdicante c o archimadrita tinham uma
mãos um pedaço do pão communr. todos cspecie d’intendencia sobre a distribuição
. o recebiam nás suas mãos, que tinham es dos bens e boa ordem da disciplina.
*
196 ANA
A primeira regra era a do não tolerar então inventaram um genero de supplicio
ociosos entre os confrades. Desde que ama muito extravagante, que era fazerem cóce
nhecia, depois da oração que cada um fa gas ao criminoso até que morresse.
zia cm particular, uns se espalhavam pelo . Os irmãos da Moravia não despendiam
campo para cultival-o, outros exercitavam quanto adquiriam. D'aqui vieram as rique
nos seus laboratorios os oíficios que lhes zas que os economos de cada colonia amon
tinham ensinado: ninguém vivia isempto toavam occultamentc, c de que só davam
do trabalho; e por isso logo que uma pes conta ao primeiro chefe de toda a seita.
soa nobre entrava na irmandade, era re EUa tinha um, conhecido sómente pelos ir
duzida, segundo a sentença do Senhor, a mãos, que não se revelava no público. Á
comer o pao com o suor do seu rosto. disposição d’cstc chefe ou d’eslc primeiro
Todos os trabalhos se faziam em silen archimandrila, se empregava o supcrlluo
cio; rompcl-o no refeitório era um delicio. das colonias em proveito de toda a seita, c
Antes de tocar no comer, cada um dos ir muitas vezes aconteceu fazerem suas, por
mãos orava cm segredo por espaço de quasi compra, as mesmas terras que alugavam.
um quarto de hora, com as maos juntas
sobre a bôcca em uma espccie d’extasis;
1 não sahiam da mesa sem que fizessem ou DA DESTRUIÇÃO DOS IRMÃOS DA MORAVIA
tro quarto de oração; depois de comer, cada
um tornava ao seu trabalho.
Nas escolas entre os mesmos meninos Parecia conspirar-sc tudo a favor dos ir
era observado o silencio rigorosa mente: mãos da Moravia: a nobreza tinha proveito
ter-se-iain supposto umas estatuas em tudo em fazer cultivar suas herdades por ho
similhantos, porque o panno e o talhe do mens infatigáveis c fieis; e não se ouviam
vestido seguia tudo um só modello, assim queixas d’uma sociedade cujos regulamen
nos irmãos como nas irmãs. tos parecia terem por objecto a utilidade
Nos casamentos não se attendia nem á pública. Mas não obstante isso, o zelo da
paixão nem ao interesse: o superior tinha religião prevaleceu á mesma utilidade no
um registo dos moços d\un e d’outro sexo; coração de Fernando: este principe, diz o
o mais velho era "destinado para a mais padre Catrou, ponderando tudo, concebeu
velha das raparigas: aquelle dos dous que ser perigoso fòrmar-se no seu reino uma
recusasse alliar-se com quem lhe cabia, republica independente dos magistrados ci
passava a ser o ultimo dos que haviam de vis e adversa á obediência dos soberanos.
ser casados: então se deixava á sorte o seu O dobrado interesse da religião e do estado
acerto. o fez inimigo declarado, dos hutteritas cm
Celebrava-se com pouco apparato o dia particular, como elle já o era dos anaba-
das núpcias em que tao sómente o cconomo ptistas em geral.
augmenta va com algumas iguarias o jantar O marechal da Moravia recebeu, poisr
dos noivos, e esse dia era para ellcs um uma ordem para cxpellir os anabaptistas:
dia de festa, isemptando-os de trabalho. appellaram elles para a authoridade das
Então lhes destinavam uma cabana sepa leis que os tinha feito possuidores legiti
rada dentro do cercado, com condição que mos dos domicílios: a nobreza e as cidades
a mulher se acharia todos os dias no seu da Moravia se empenharam na sua conser
posto na casa do trabalho, e que o marido vação; mas nada houve que podésse do-
se transporia como do costume ao campo, brár Fernando: elle fez marchar tropas
ou aos logares cm que lhe cumpria satis contra os anabaptistas. Então, continua o
fazer ao seu officio. padre Catrou, os irmãos da Moravia aban
Não tinha ainda o vicio corrompido es donaram suas habitações á avareza dos sol
tas sociedades cm que não se encontrava dados, e sem darem o menor signal ^indi
vestigio algum d’aquelles desmanchos de gnação ou de revolta, sahiram da Moravia
ue eram censuradas as differentes seitas aos bandos para se retirarem a um paiz
'anabaptistas: o quebrantamenlo das leis visinho, inculto, esteril e inhabitado.
era punido unicamente com penas espiri- Em pouco tempo a Moravia conheceu
tuaes, como a separação- da connnunhão; quanto perdera: queixou-se por yér terras
e os incorrigíveis eram mandados para o n’outro tempo tão ferieis c tão cultivadas
século. pela industria dos anabaptistas, tornadas
Quando acontecia que a cólera houvesse desertas ou despresadas depois da sua ex
feito commetter alguma morte, nue fosse pulsão. Emquanto os hutteritas se acha-
perigoso deixar sem castigo, tinham em vam mprtos de fome nos seus desertos, os
horror a effusão do sangue do culpado, e habitantes da Moravia suspiravam pela res-
ANA 197
li tu icito (Vestes pobres desterrados, e pouco não restabeleceu n’ellas a ordem nem a
tardou que não se queixassem, que nào disciplina primitiva: ao desregramento dos
murmurassem, e que a Aloravia nào se anabaplistas se seguiu o desprêso dos po
visse a ponto de romper n’uina sublevaçào. vos, e ao desprêso, a perseguição: final-
Foram chamados os anabaplistas, e \lo- mente pelos annos de 1620 esta communi-
p.ois do seu chamamento foi quando a dis dade, tão desfigurada, foi quasi cxtincta:
cordia perturbou estas colonias: cilas eram um grande numero d’irmãos se retirou a
governadas por Hutcr e Gabriel, dous ho Transylvania, aonde se uniu aos socinia-
mens de muito dilTerentc caracter. Huter nos, e depois que os quakers «e restabele
declamava continuamenle contra a autho- ceram na Transylvania e receberam todas
ridade dos magistrados, prégava cm todo o as seitas chrislãs, passaram para cilas mui
seu rigor a igualdade dos homens. Gabriel, tos dos anabaplistas da Moravia.
mais docil, queria que se conformassem
com as leis do paiz cm que viviam. Huter
e Gabriel se desavieram, e formaram duas n o s a n a h a p t i s t a s p a c íf ic o s d a h o l l a n d
seitas separadas, que reciprocamcnlc se ex- CHAMADOS MENNONITAS
****••"*'•■>«»,
•commungavam. Por esta razão se dividiram
os irmãos da Aloravia em gabrielistas e hut-
teritas. Huter c Gabriel, cada um para seu Dous irmãos, um dos quaes se chama'
lado, foram formar novos estabelecimentos, Ubbo e outro Theodoro Philippe, filhosd’m
sendo o designio (Vambos fazerem-se por pastor de Leward, depois de haverem abra
toda a parle os unicos lavradores d AIle- çado a seita dos anabaptistas, foram feitos
manlia e os melhores artifices das cidades. bispos em 1534. Estes dous irmãos, que
Assim se achava nas colonias dos anaba- nunca approvaram nem os sentimentos
ptistas geralmcntc quanto era necessario nem os desígnios dos anabaptistas de Muns-
para abastecer todas as cidades. D’aqui vie ter acerca do reino temporal, depois da ex-
ram, diz o padre Gatrou, a ruinae os mur tineção d’estc ajuntaram o resto dos anaba
múrios dos antigos habitadores do paiz: ptistas, projectando formar d’elles uma nova
além d’isso viu-se que Huter nas differen seita. Communicaram os seus desígnios a
tes provincias, aonde chegava, induzia os Mcnno, parocho em Friza, e o persuadiram
particulares a venderem-lhe bens para os a deixar a parochia para ser bispo dos ana
seus estabelecimentos; foi preso como ini baptistas.
migo da sociedade e o queimaram como Tornado Alenno bispo dos anabaptistas,
herege. trabalhou com tal ardor e successo no es
Depois da morte d’Huler, estas duas sei tabelecimento d'aquclla seita, que cm pouco
tas se uniram, mas relaxou-se nas colonias tempo foi recebida a sua doutrina por gran
a disciplina, c introduziu-se o luxo e attra- de numero de pessoas cm Friza, cm West-
liiu a ella todos os vicios. Toda a prudên phalia, em Gueldes, llollanda, Brabante e
cia dos archimandrilas apenas era bastante em muitos outros logares.
para encobrir as desordens das colonias: Comtudo não deixou ella de soflrer for
para obvial-as não se pregavam senão ra tes obstáculos, publicaram-se edictos seve
zoes de politica; não se occupavam mais ros contra os mennonitas, morreram quei
com Deus nem da severidade dos seus jul mados muitos (Velles, e um paisano d’Har-
gamentos. Pelo que respeita aos mysterios linghem, em Friza, foi executado de morte,
da Trindade e da Encarnação do Verbo, já só porque recebera em sua casa a Alenno
pareciam inteiramente esquecidos. Tolera Simonis.
vam todas as seitas do anabaptismo, sab Não tardaram cm dlvidir-se entre si os
batarios, clámilarlps, etc., do que traetare- mennonitas, surgiram grandes controver-
mos cm artigo á parte. sias acerca da cxcommunhão e se fez um
Como Gabriel se oppôz com todas as synodo cm Wismar, aonde Alenuo residia
suas forças a estas desordens, tornou-se N’este synodo se resolveu viva e forte
odioso aos sectários, que o expulsaram da mente contra todos os que transgrediam as
Moravia: elle se retirou á Polonia, onde ordens: determinou-se que o marido aban
terminou na miseria uma vida sempre des donasse a mulher excommungada e igual
tinada ao estabelecimento e á gloria da sua mente a mulher seu marido, e que os pa
■seita.. rentes d’uma pessoa excommungada nãi
A communidadc dos irmãos da Moravia teriam com clles commercio algum.
não deixou de subsistir depois da expulsão N’uma assembléia que houve no mesm«
de Gabriel. Feldhallcr» se applicou unica anno em Mcklenbourgo, foi condemnad-
mente a enriquecer‘as suas colonias, mas este synodo, c n’eila se determinaram pra
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ccdimcntos menos rigorosos a respeito das protestantes gosaram do exercício livre da
pessoas que fossem julgadas dignas da cx- sua religião nas provincias unidas, empre
comniunhão. Porém esta dilTorcnca causou garam logo todos os meios para os tornar
para o futuro outros scismas entre os ana {odiosos até os fazerem expulsar.
baptistas acerca de muitas questões que se Sem embargo das diílieuldadcs que ex
agitaram sobre os meios de se servirem da perimentaram da parte das igrejas refor
espada carnal, sem recorrerem ao magistra madas e dos magistrados do paiz àté o meio
do, e cscandcceram de tal sorte os animos, do ultimo século, as divisões continuaram.
que havendo Menno cxcommungado um Comludo em 1(532 sc congregou um svnodo
certo Cnyper, este por seu turno o excom- para trabalhar na reunião, e nVllc sc fez
mungou também. uma espccic de traclado de paz, que foi as-
No anuo seguinte se augmentou conside signadu por cento cincoenta o um menno-
ravelmente esta divisão dos anabaptistas, nitas; mas alguns annos depois surgiram
sobretudo em Emhden, aonde houve gran novos scismaticos n'esta seita.
des distúrbios por causa d’uma mulher, O mennonismo tem hoje dous grandes
cujo marido fòra excommungado: como ramos na Hotlanda, debaixo do nome dos
esta mulher não quizesse separar-se d’cllc quaes sc comprchendem todos os irmãos:
uns estavam em que devia ser cxcommun- é um o dos waterlandcrs, o outro o dos fla
gada o outros se oppunham. mandos; mestes se comprchendem os men-
Escreveram a Menno, o qual respondeu nonitas frisões c os allemãcs, que são pro
que não consent iria nunca que se usasse priamente a seita dos anabaptistas antigos,
d’um tão grande rigor a respeito da cxcom- na realidade mais moderados do que foram
munbão; mas sendo ameaçado ellc proprio os seus prodecessores cm Allcmanha e na
com cxcommunhão, pelos anabaptistas ri Suissa.
gidos, foi obrigado a transigir com o seu Entre os flamandos sc encontram mui
sentimento. tos socinianos. Em 1664- o estado se viu
D*estas diversas opiniões acerca da cx- obrigado a interpor a sua aulhoridade para
communhão, é que vieram as diversas fac lhes prohibir o disputarem sobre a divin
ções que ainda hoje separam os mennoni- dade dc Jesus Christo. Chamam-sc também
tas. Os mesmos anabaptistas rigidos se di- estes galenilas do nome de Galeno, celebre
ddiram também entre si de sorte que uns predi ca nte mennon i ta.
ão menos austeros, e outros mais rigoro- Além d’este ramo dc mennonismo, ha cm
í o s : todos se excommungaram reciproca- Amslerdam muitas pequenas assembléias
mente, e nada houve que podesse reconci menos conhecidas; estes mennonitas dilTc^
liar estes partidos. rem entre si cm diversos pontos de pouca
Morto que foi Menno, se augmentou o importância c as suas pequenas assembléias
scisma entre os seus sequazes, principal- sc formam sem ruido c secrelamcntc n’al-
mente entre os de Flandres c da Suissa: gumas casas particulares.
para o fazer cessar, os dous partidos toma As disputas que os galenitas tiveram en
ram arbitros, e se compromcttcram no seu tre si acerca da divindade de Jesus Christo,
juizo os flamandos, que eram os mcnnoni- em 1(569, deram nascimento a uma nova
tas severos; foram condemnados, mas accu assembléia de menuonitas que se separou
saram os árbitros de parcialidade, rompe protestando contra as opiniões dos socinia
ram todo o commercio com os mennonitas nos: estes continuaram a congregar-se de
menos rigorosos, e tiveram por um delicio pois d’esse tempo n’uma igreja particular.
conversar, comer, fallar, ou ter com cllcs o Reconhecem, pois, os mennonitas a di
menor tracto, aindam esm o no estado ^ a r vindade dc Jesus Christo, e pretendem que
tigo dc morte. se não deve obedecer nem á Igreja, nem
• Separadas as provincias unidas da domi aos concilios, nem a alguma^issemblcia ec
nação hespanhola, não foram mais perse clesiastica. Rejeitam .o baptismo das crcan-
guidos os anabaptistas. Guilherme r, prin ças, sustentam que nenhuma igreja deve
cipe d’Orange, teve necessidade d’uma som ser reputada verdadeira igreja, com exclu
nia de dinheiro para sustentar a guerra, e são das outras, e que a reforma não deve
a pediu aos mennonitas, que lli’a enviaram. ter a consideração d’uma empreza execu
Recebida a somma, o principe assignou tada por authoridade dc Deus c de Jesus
um a obrigação, e lhes fez perguntar qual Christo. Não créern que os sacerdotes e os
graca desejavam ellcs que se lhes conce diaconos tenham authoridade alguma por
desse; os mennonitas pediram a dc serem direito divino, c d’aqui concluem-que a cx-
tolerados, e concluída a revolução efíecti- communhão não tem logar depois dos apos
vam ente o foram; mas apenas os ministros tolos, quo unicamente foram estabelecidos
ANG 199
por Deus; porém reconhecem a necessi depois da nova regeneração era fácil per-
dade d-obcdccer aos magistrados. severar-se de toda a culpa, c entendiam
Em 1660 os anabaptislas allemãos da Al- que com cffcito não pcccavam mais. Com
sacia subscreveram a confissão de fé dos este fundamento, cortavam na oração do
anabaptislas ílamandos: os de Hamburgo minical aquellas palavras: «Perdoai-nos as
teem a mesma confissão de fé que os ana- nossas dividas;» a ninguem rogavam que
baptistas separados. Administram o baptis orasse por clles.
mo e a ceia com pouca differença como os 6. * Os ixuiãosiiJUaliops, os quacs tinha
irmãos da Moravia.1 que toda a servidão era contraria ao espi
rito do Christianismo.
7. ° Os sabbMyjjQs, que criam ser prec
DAS SEITAS DEVOTAS QUE SE LEVANTARAM guardar o macio sabbado c não o do do
" ENTRE OS ANARAPTISTAS mingo.
8. ° Os clanclularios. que diziam ser pr
ciso fallar em público como o commum
Erà um principio fundamental do ana- dos bomens, e que só em segredo devia
baptismo que Deus instruía immediata- cada um dizer o que pensava cm materia
mente os fieis, e que o Espirito Sancto lhes de religião.
inspirava o que deviam obrar e crèr, e to 9. ° Os manifestarios, que tinham sen
mava. pois, cada um dos anabaptislas como mentos diametraímente oppostos aos dos
verdades reveladas todas as suas idéias, clanclularios.
por mais extravagantes que fossem, c se 10. ° Os chorões, que imaginavam ser
viu uma multidão de seitas de anabaptis- as lagrimas~agraaaveis a Deus, c que uni
tas que só tinham de commum a necessi camente se occupavam em adquirir a faci
dade de baplisar os que já eram baptisa- lidade de chorar: elles misturavam sem
dos, e que faziam dependente a salvação pre as suas lagrimas com o seu pão, e já-
de differentes prácticas. Tacs foram: mais se encontravam senão a suspirar.
1. ° Os adanikag, que cm numero de mais11. ° Os regqsi|ados, que estabelecera
de trezentos si2Íü:amjwjs sobre uma alta por principio que*aalegria e a boa mesa
montanha, persuadidos de que serjam ar era a honra a mais perfeita que podia tri
rebatados ao céo em corpo e alma. butar-se ao author da natureza.
2. ° Os apostolicos. que practicavam ao12. ° Os it^iflerfiplçg, que em pontos
pé da letra a ordem que Jesus Christo déra religião não tufliam tomado partido, sup-
de prégar sobre os tectos, e não tinham pondo-as todas igualmente boas.
outros pulpitos senão a cobertura das ca 13. ° Os sangjUaati.os, que só pensav
sas, aonde subiam com agilidade, e d’alli derramar o sangue dos catholicos e dos
faziam ouvir a sua voz aos que passavam. protestantes.
3. ° Os taciturnos, pelo contrario, persua14. ° Os ajifimaL^apQS, que negavam
didos de que estavam chegados aquelles Sancta Yirgeintoda a honra c todo o res
tempos de tribulação predictos por S. Pau peito. 1
lo, cm que a porta do Evangelho deve es ANDRONie.OS^ u ^ u moN^A^ps—discipu-
tar fechada, se calavam obstinadamente loscTüm 'certo Andronico, que tinha ado-
-quando eram perguntados acerca da reli ptado os erros dos severianos: criam que
gião e do partido que devia tomar-sc b e s a ametade sup'erior das mulheres era ob ra1
tes tempos tão penosos. de Deus, c a ametade inferior obra do
4. ° Os perfeitos, que se haviam separadodiabo. 2 Yeja-se o artigo Severíanos.
do mundo, a fim de desempenhar ao pé da a n g e l ic o s — parece existir esta seita des
letra o preceito de não se conformarem de ITTÊrfipõ dos apostolos e que d’elles
com o século: um ar do serenidade ou de falia S. Paulo aos Colossenses: «Ninguém
satisfação, o menor sorriso era no seu pen vos roube o prêmio da vossa carreira, diz
sar attrahir a maldição de Jesus Christo: este apostolo, affectando parecer humilde
«Desgraçados vós, que rides, porque vós por um culto supersticioso dado aos anjos,
chorareis.»
5. ® Os im p.ecça^s, cuja crença era, que 1 Vejam-se os authores citados} e Kro-
mayer, in Scrutinio Religionum. Pantheon
1 Hist. Mennonitarum Descript d'Amstcr- Anabaptisticum e Enthrusiasticum, 1702,
dam. Cair ou, Hist. des Anabaptistes. Uma in-fol. Os theologos allemães escreveram
pequena Historia cVAnabaptistaSj em 12, muito sobre o aiiabaptismo. Veja-se Stok-
.impressa em Amsterdam e feita sobre ex man, Lexic. Hceres.
cellentes noticias. 2 Epiph. Hceres. 45.
*00 ANT
mcttendo-se a fallar de cousas que não sa rosos na presença de Deus e os créram
be, cntumecido pelas frívolas imaginações muito mais proprios para nos conciliar
d?um espirito humano e carnal. 1 com elleque o mesmo Jesus Christo,iHa
Nada se vé nem na lei, nem nos prophe via angelicos no império de Severo até o
tas, nem nas prácticas dos sanctos do An anno 260,mas jánão existiamno tempode
tigo Testamento sobre o culto dos anjos: S.Epiphanio,que só tinhanoticia do nome
verdade é que quando elles apparcceram dastes hereges, mas ignoravacm que con
e fali aram em nome de Deus, c como re sistiaa heresia e de que lhe derivava o
presentando-o receberam homenagens c nome. 2 Sancto Agostinho cré que elles
uma adoração; mas este culto c esta ado se appellidavam assim porque pretendiam
ração se referia a Deus de quem elles eram ter uma vida angélica.3
ministros e embaixadores. 2 Thcodorclo pondera que o culto dos an
Depois que os judeus voltaram do capti- jos, que os sanctos apostolos tinham feito
veiro foram mais curiosos de conhecer os abraçar na Phrigia e na Psidia, alli se ra
anjos e de distinguil-os pelas suas fuucções, dicara tanto que o concilio de Laudicéa,
e pelos seus nomes, c pouco a p o u co \ie- havido no anno de 357 ou 367, prohibiu
ram render-lhes algum cu lto .3 expressamente dirigirorações aos anjos, e
0 espirito humauo gosta de augmentar ainda hoje. accrescenta Theodorclo, allise
as prerogativas do objecto do seu culto, encontram oratoriosdedicadosa S.Miguel;
d’engrandecer c nobilitar tudo o que a elle mas o concilio diz simplesmente que não
pertence; d’esta sorte os que honraram os é preciso que os christãos abandonem a
anjos reverenciaram muito a lei de Moy Igreja de Deus nem que d'ellasaiam, que
ses, porque Deus a déra aos homens pelo invoquem os anjos e que façam assem
ministerio dos mesmos anjos; creram que a bléiasseparadas.4
observância d’esta lei era necessaria para anglicana (religião)— veja-sein g l e s á r e
a salvação; e final mente que havendo-se lig iã o T '
servido Deus do ministerio dos anjos para ànqaieos— veja-seEunomeos.
ensinar a sua vontade aos homens por este anthT^ tas^ u ANTju.A^gjAs— Philastrio.,-
ministerio, deviam também os homens fa falla d’ cstes'seclarios^ sem saber cm qué
zer passar as suas orações a Deus, cuja tempo appareccram: elles olJia.vam_o,tra
magestade era invisível c inacccssivel aos balho como um crime e passavamlTvidáa
mortaes. Ultimamente julgaram elles que dormir.
\ão podíamos ter mediadores mais pode- A^TpqPOMORPHITAS.OU.ANTROPfJIANOS’—
Criam quc Ticiis tinha um cõrpó dé figura
1 Ep. Paul. ad coloss., c. 2, v. 18. hjjjnaua, fundãíuíò-sé e*ní uina passagem'do
2 Exod., c. 3, v. 4 et 5. Josué, c. o, v. Genesis, aonde Deus diz: «Façamos o ho
Ko. Genes., c. 18, v. 2. mem á nossa imagem» e n’outras da Escri-
3 Acham-se em Philon alguns discursos ptura, que attribuem a Deus braços, per
sobre a natureza dos anjos, sobre os seus nas, e t c .5
officios, e sobre a distinccão dos bons e dos Houve d’estes hereges no quarto século
maus. Joseph, e depois a elle Prophirio, di e no principio do decimo (931).
ze m que os essenos na sua profissão se obri Este século ignorante e grosseiro só pro
gam a conservar religiosamente os livros duzia erros d’esta especie; queriam imagi
da sua seita, que era verosimil fossem os nar tudo, e tudo se lhes representava de
livros sagrados, e os nomes dos anjos, o que baixo de fôrmas corporeas; os anjos con-
fa z conjecturar que elles lhes rendiam al cebiam-nos como homens com azas, vesti
gum culto. O author do livro da pregação dos de branco, taes como se viam pintados
de S. Pedro, livro antiquissimo, citado por nas paredes das igrejas, e até entenderam
$. Clemente Alexandrino, diz que os judeus que no céo se passava tudo, com pouca dif-
davam um culto religioso aos anjos e ar- ferença, como na terra: muitos criam que
chanjos, e até aos mezes e á lua. Celso os S. Miguel celebrava a missa na presença
accusa d'adorarem não sómente os anjos,
m as também o céo. Mr. Gaulmin nas notas 1 Thcodoret. Theophilact. Gi'ot. Menoch.
sobre a historia de Moysés, (c. 4, p. 301) S. Christ. Hom. 7, ad Col. 2. Stockman Le-
c ita um livro composto pelo rabino, Abra- xicon.
hão Salomão, em que ha uma oração diri 2 Epiph. Hcer. 60.
gid a ao archanjo S. Miguel. Veja-se Calmet, 3 Aug.Hcer. c. 39.
comm ent su r S. Paul, Ep. au x Col. c. 2, v. 4 Calmet, loc. cit.
18, e a sua Dissert. su r les bons e mauvais 5 Nicephor. I. 11, c. 1 4 ,1 .13, c. 10. Ittig.
anjes. de Hcer. pag. 190.
ANT 201
<Ic Deus todas as segundas feiras, c por d’eslcs, chamado Paulino; mas enganou-se,
esta razào, n’este dia, mais que em qual o partido de Melecio lhe foi constante, c o
quer outro, se frequentavam os seus tem scisma permaneceu: os bispos do Oriente"s.
plos. 1 seguiram a Melecio, os do Occidente a Pau- 7
ANTIDIÇp.\tVRIANITAS OU ANTIMARIANOS— lino.
sâo os que negaram a virgindade da mãe Uma apparcncia de differença, cm ponto
de Jesus Christo, pretendendo que cila tivera de doutrina, manteve esta divisão: os mcle-
muitos filhos de S. José, porque no Evan cianos c os bispos orientaes sustentavam
gelho se diz que Jesus Christo tinha irmãos. que se devia dizer.-Que havia em Deus tres
Veja-se Helvidio. 2 hypostases, entendendo pela palavra hypos-,
aiíxüxqmianqs, isto é, inimigos da lei— lasc a pessoa.
Veja-se Agricolct, que foi o autbor da seita. '■'Paulino e os occidentaes temendo que o l
ANTiocuiA—O scisma d’esta cidade per termo hypostase se tomasse por natureza, i
maneceu. $ ^ ;;p o s; eis-aqui a sua origem: como succedcra em outro tempo, não q u e-;
tendo os arianos expulsado d’Antiochia a riam consentir que se dissesse que em Deus \
Eustathio, pozeram cm seu logar Eudoxio, havia tres hypostases, c sómente reconhc- \
-ariano zeloso; e muitos dos catholicos se ciam uma. Bem que não fosse esta mais que '
conservaram adherentes a Eustathio. Morto uma disputa de palavras, e que no fundo
este, e transferido Eudoxio a Constantino- conviessem na mesma doutrina, todavia el-
pla, houve grandes contendas c facções pa les falia vam c se persuadiam pensar dilTe-
ra prover a igreja d’Antiochia, esforçando- rentemente. 1 O scisma principiou a dissi
se cada partido cm que a eleição rccahisse par-se pela convenção que Melecio e Pauli
em algum de seus apaniguados; e depois no fizeram entre si, de que governariam si
de grandes debates, se uniram todos os vo multaneamente a igreja ^Antiochia, e que
tos em favor de Melecio, que foi unanime morto um d’elles, não se ordenaria outro
mente escolhido. em seu logar, ficando bispo unicamente o
Melecio condcmnou nos seus sermões os que sobrevivesse: porém depois que morreu
sentimentos dos arianos, c foi desterrado. Melecio, os bispos do Oriente não attenden
Os arianos elegeram em seu logar Eusoio, do a esta convenção, elegeram um, chama
Í acerrimo fautor do arianismo: os catholicos do Flaviano; Paulino, pela sua parte, no-
que seguiram as partes de Melecio, se sc- meoiuTorclenou por seu successor a Evagro.
araram e fizeram á parte as suas assem- No concilio do Capua se commetteu irThèõ-
leias. 3 philo e aos bispos do Egypto a decisão d’cs-
Viu-se pois a Antiochia dividida em tres ta disputa; mas Flaviano os refutou, e de
bandos: o dos catholicos adherentes a Eus pois da morte d’este, impediu Theophilo,
tathio, os quaes não quizeram communiear com os créditos que gosava para com o im
nem com os arianos, nem com os catholicos perador, que se nomeasse outro bispo em
que seguiram a Melecio, porque o olhavam seu logar. Flaviancr ficou pois separado da
! como eleito pela facção dos arianos; o dos communhão dos bispos do Oriente, e só se
! catholicos que seguiam a Melecio, e o dos reuniu com ellcs em 393.
■arianos. Estes tres partidos encheram a ci- ANTiT.yÇTiUQí?—Hercgcs que professavam
| dade de divisões c desordens. Elevado que pordevér praçticar..tudo.o.qwejKftjH^Lbi-
l foi Juliano ao imperio, chamou todos os bis- do pela E^çcuiüira.
I pos desterrados; então Melecio, Luifer Ca- ”"Nò sentir d’estes hereges havia um ente
laritano, e Eusebio Vercellense partiram da bom, por essencia, que creára o mundo,
Thebaida para se restituirem ás suas igre aonde tudo era bom, c no qual as creatu
jas. Eusebio foi a Alexandria, aonde con- ras innocentes e felizes tinham amado a
regou um concilio. Porém Luifer cm vez Deus. Estes homens, levados da necessida
e ir também, partiu para Antiochia para de, ou attrahidos do prazer aos bens que
alli restabelecer a paz entre os eustalhianos derramara sobre a terra o author da natu
e nxçlecianos. Como elle achasáê*õTêusta- reza, gosavam dos mesmos com reconheci
thianos mais pertinazes contra a união, per mento, e sem remorsos; eram ditosos, e a
suadido de que os melccianos, que se mos paz reinava no meio d1ellcs. Uma das crea
travam mais anciosos da paz, se uniriam turas que o ente benefico produzira, era
aos custathianos, instituiu bispo um chefe maligna; para cila a felicidade dos homens
tornava-se um espectáculo de mortificação,
1 Hist. Litteraire de France. t. 5. pag. 10. e ella emprehendeu perturbal-a; meditou
2 Epiph. Hcer. 78. sobre ò homem, e descobria que para o tor-
3 Philostrog. 1.6, c. 5. Sulpitius Severus
J.IO . T h e o d .l.iíe U . 1 Basil. Epist. 149, aliás 272.
202 ANT
nar infeliz bastava somente introduzir no ca, simples e indivisível substancia: p or
mundo algumas idéias novas. Estabeleceu tanto sentiram que o Pae, o Filho c o E sp i
pois nos espíritos a ideia do mal, q u eéd es- rito Sancto eram tres substancias distinctas-
honesta; prohibiu certas cousas como des- Sabei lio, Praxoas, Serveto c Socino tiv o ra n i
lioneslas, c ordenou outras como honestas; que nao permittindo a razão c a rev ela çã o
ao que a natureza inspirava ligou uma ideia suppòrcm-sc muitas substancias divinas
. de pejo, e os prohibiu debaixo de grandes nem unir em uma só substancia sim plesl
penas; e por estas leis, a urgência de satis tres pessoas essencialmento distinctas era
fazer a um a necessidade, que na instituição forçoso que o Pae, o Filho e o E sp irito S a n -
do author da natureza era uma origem*do clo não fossem pessoas, mas nomes differen
prazeres, veio a tornar-se uma origem de tes dados ã substancia divina, segundo o s
males: a ideia do crime andava sempre an clfeitos que cila produzia?
nexa á ideia do bem, os remorsos se segui ■r Ha logo duas sortes de anlitrinilarios: o s
ram ao prazer, e o homem se via humi tritheistas, que suppoem que as tres pessoas
lhado logo que rcílectia na felicidade que sé? divinas são tres substancias, e os unitários
procurara. que suppoem que as tres pessoas não sã o
Collocado o homem entre as propensões- mais que tres denominações dadas á mesma
que recebe da natureza, c a lei que as con substancia.
demna, murmurou contra o seu Creador: Refutamos o trilheismo no artigo do a b
enchcu-sc o mundo de desordens e de infe bade Joaquim, e contra Clark e W isthon
lizes, que luctavam continuamente contra a mostramos que o Filho e o Espirito Sancto
natureza, ou que se atormentavam para il- são duas pessoas divinas, consubstanciaes
ludir a lei, ou para concilial-a com as suas ao Pae. Vejam-sé os artigos Ario, Macedo
paixões. nio.
ir*-" Eis-aqui, segundo os antitacticos, a ori- Demais contra Sabellio e Praxeas se aeba
V gem do mal e a causa da infelicidade dos provado que o Pae, o Filho e o Espirito San
'hom ens. Elles consideravam dever praclicar cto são tres pessoas e não tres nomes dados
quanto a lei prohibe, crendo que por este a uma só substancia. Portanto havemos es
meio se resliluiam ao estado da innocencia tabelecido o Mysterio da Trindade contra
de que o homem só fòra tirado pelo author os tritheistas que admiltem tres pessoas di- f
da lei; destruir o imperio que elle usurpara vinas, mas fazem d’ellas tres substancias; }
sobro os homens, c vingar-se d'elle. e contra os unitários que não concedem
Os- antitacticos eram um ramo de cairçi- mais que uma substancia divina, mas que ;
tas; appareceram nos lins do segundo sécu olham as tres pessoas como tres nomes d if-'
lo, pelos annos de ICO. ferentes dados a esta substancia, para dis- )
Eram homens voluptuosos c superficiaes, tinguirem as suas correlações com os ho
Vede o artigo Cainilas. 1 mens.
e o nome que em ge Os tritheistas e hnitarios, entre si tão op-
ral se d a aos que ii(
negam o mysterio da Trin postos áccrca d’cstc dogma, se fundam com-
dade. tudo sobre os mesmos princípios: tem elles
A revelação nos ensina que ha tres pes l.° que é impossível que tres pessoas exis
soas divinas:, o Pae, o Filho e o Espirito tam num am osm asubstancia, simples,úni
Sancto, as quaes existem na substancia .di ca, e indivisível; 2.° que sendo impossível,
vina: eis-aqui o mysterio da Trindade. A haver tres pessoas em uma só substancia, {
união das tres Pessoas em uma só e unica não poderia fazer-se d’isto um objecto ua
substancia simples e indivisível, faz toda a nossa crença, porque não poderiamos for-
difliculdade d’este mysterio. Póde pois negar mar uma ideia d’este mysterio, nem por con- j •
-se; o Cl suppondo què o Pae, o Filho c o Es- sequencia crêl-o.
l pirito Sancto não são tres pessoas, mas tres Ao artigo dos antitrinitarios pertence pro- p
^nomes differentes dados á mesma cousa, ou priamenle o exame d’estas duas difliciuda-
£que estas tres pessoas são tres substancias des, de que os seus erros são meras conse
M v ersa s. O abbade Joaquim, alguns minis quências.
t r o s socinianos, Sherlok, Wisthon e Clark,
|créram que pela Escriptura não podia dei- I
jxar de reconhecer-se haver tres pessoas di
vinas, nem tambem unil-as em um a só, uni- Será possível que Ires pessoas existam
em w na\só substancia?
1 Theodorct. Hoeret. Sab. 1 .1, c. 16. A tti
gitis, de Hcer. sect. 2, c. 16. Bibl. Aut. Eccles. Suppõe-se. impossível uma cousa quando
scec. 2, a rt. 6. se une o sim e o não, isto é, sempre que.s*;
ANT 203
Se sc pedir dc mim, por exemplo, que demos conceber da divindade, deve fundar-
creia que a é igual a ü, e eu nào souber se sobre algumas ideias accessorias á natu
que cousa é a nem que cousa é b, e cm que reza divina, e a combinação das mesmas
consiste a igualdade, nada mais creio do ideias fôrma esta segunda noção, que expri
que cria antes dc me ser feita esta propo mimos pela palavra pessoa: quando, por
sição, nem serei capaz d’algum acto dc fé exemplo, nomeamos a Deus Padre, forma
determinado; o mais que poderei crer n’esta mos quanto o permitte a nossa intclligcn-
occàsiâo sc reduz a isto: que uma certa cia, a ideia de Deus como obrando dum
cousa tem relação a outra, c que aquillo tal modo a todos os respeitos, e com taes
que se pretende que eu creia, é affirmado relações: c quando nomeamos Deus Filho,
por pessoa de grandes conhecimentos, e que concebemos a mesma ideia de Deus obran
merece ser acreditada, e que por conse do d’outra maneira a todos os respeitos, e
quência é verdadeira a proposição no sen com taes relações; o o mesmo acerca do Es
tido que a tal pessoa a entende, mas nada pirito Sancto.*
mais sei do que d’antes sabia, e a minha A diíTerença que se acha entre o Padre,
fé, por esta proposição, não- adquiriu grau o Filho, c o Espirito Sancto, vem pois do seu
algum de conhecimento. diverso modo cTobrar; ao Padre pertence a
Quando eu saiba que a e b são duas li acção que caractcrisa o Padre, como a que
nhas, e que por estas duas linhas iguaes se caíacterisa o Filho pertence ao Filho; são
entendem duas linhas da mesma longitude, logo o Padre, o Filho, e o Espirito Sancto
este conhecimento não póde produzir mais tres princípios que tem cada um sua acção
que uma fé geral c confusa, isto é, que ha propria; podemos conseguintemente conce
uma certa linha que tem o mesmo compri ber estes tres entes como tres pessoas, por
mento que outra: mas sc por a e b se en que a palavra pessoa não significa mais que
tendem duas linhas rectas, qhc são os lados um certo ente intelligente que obra d’um
d’um triangulo concedido, c que eu creio certo modo, que existe em si, e que é in-
sob a palavra d’um mathematico, sem de communicavel. 1 Temos logo ideia dos ter
monstração, que estas duas linhas são iguaes, mos que compocm esta proposição Deus <
é um acto de fé distincto c particular, pelo um em tres pessoas, ha um só Deus, trei
qual estou convencido da verdade d uma pessoas, Padre, Filho, c Espirito Sancto.
cousa que eu não cria, ou que antes igno Além d’isto não vèmos que seja contra
rava. rio a alguma das verdades que conhece
2.° Supponhamos agora que estou obri mos, que haja em Deus tres pessoas como
gado a crér que um só c o mesmo Deus é o fizemos vér no paragrapho precedente:
tres pessoas distinctas: eu não posso crér podemos logo crér o mysterio da Trindade,
senão quanto entendo dos termos d’esta pro ou formar sobre clle um acto de fé distin
posição, e emquanto as idéias que elles ex cto c determinado.
primem não encerram contradicção c im Mas poderão dizer-nos: concebemos nós
plicância: para fazer pois um acto dc fé. so como estas tres pessoas podem existir cm
bre esta materia, devo examinar as ideias uma só, e a mesma substancia simples e
que tenho de Deus, da unidade, da identi indivisível; c se não concebemos como es
dade, da distincrão, do numero, c da pessoa. tas tres pessoas existem cm uma mesma
Os nomes de Padre, Filho, e Espirito San substancia, como poderemos crér que com
cto não são como os nomes que exprimem effeito ellas alli-existam?
os attributos de Deus; estes exprimem tão Respondo que não tenho um conheci-
somente uma ideia incompleta da divinda ineuto tão claro da pessoa divina, nem uma
de; cada um d’aquelles porém significa um ideia tão aperfeiçoada, tão completa da sub
ente que tem todos os attributos da divin stancia divina, que veja como as pessoas
dade. existem nesta substancia; mas para vér
Temos logo uma ideia completa de Deus, que com effeito ellas alli existem, basta que
antes de lhe darmos os nomes de Padre, de não encontre repugnância entre a ideia da
Filho, e dc Espirito Sancto, e cada um d a s substancia do ente necessario, e a ideia das
tes nomes encerra a ideia total da divinda tres pessoas divinas. Nào crémos nós que
de, e do mais alguma cousa que a nossa pensamos? E por ventura sabemos como
razão nào alcança, o que faz toda a distinc- pensamos? Pomos nós em dúvida a exis
ç ã o q u e ha entre estas pessoas. tência da materia, bem que ignoremos a
Nós não podemos conceber nem crér tres sua natureza? Por ventura negamos os ef-
entes infinitos entro si, realmente distinctos,
e que tenham as mesmas perfeiçòes infini 1 Veja-se Vossio, JEtimolog. á palavra
tas: portanto a distineção pessoal que po pessoa. íla rtin ii Lexic., na mesma palavra.
206 ANT
feitos da electricidade, os dos trovões, os como a natureza d’csta obra nào permitte
phenomenos do iman, e o movimento? E que entremos na individuação de taes ar
quem póde lisongear-se de conhecer como gumentos, nos limitaremos somente a lem
se obram todas estas cóusas? brar o que diz mr. Bossuet sobre este as
Examinamos nos artigos Sabellio, Pra- sumpto:
xeas, Arianos e Macedonio, outras objecções «A linguagem humana principia pelos
que podem pôr-sc ao mysterio da Trinda sentidos: tanto que o homem se eleva ao
de; mas nào fallarcmos do que mr. Bayle espirito como a segunda região, a cila
)õc no artigo Pirron, como uma prova transporta parte da sua linguagem primei
H lonstrativa de que os mysterios são con ra; c assim tiramos a ideia da attenção ou.
trários ás verdades da-razão; é um sophis dá applicação do espirito d’um arco" apon
ma que póde resolver o logico mais fraco, tado, c a dá comprchcnsão dTima mão que
c que os theologos tractam muito seria vai apanhando c prendendo aquillo cm que
mente, como o fez mr. La Placette.1 pega.
«Quando passamos d’csta segunda região
á suprema, que é a das cousas divinas,
§ III tanto cila é mais pura, quanto mais cus
toso é ao nosso entendimento achar alli fir
meza, quanto mais este é coagido a servir-
Sempre se creu dislinctamente na igreja sc nas cousas divinas da fraca linguagem
o dogma da Trindade dos sentidos, para suslcntar-sc com segu
rança. Esta é a razão porque alli são tão
usuaes as expressões tiradas das cousas
Asseveraram os socinianos que o dogma sensíveis.
da Trindade fôra desconhecido nos primei «Todas as comparações exlrahidas das
ras séculos da Igreja; refutamos as suas cousas humanas, são como elfeitos neccs-
rozõcs quando falíamos da consubstancia- rios da força que faz o nosso entendimento
lidadc do Verbo c do Espirito Sancto nos quando arrebatado ao-céo, e rccahido pelo
artigos Arianos, Modernos, c Macedonios. seu proprio péso na materia de que se que
0 ministro Jurieu renovou este erro para ria desviar, se segura como aos ramos
desembaraçar as igrejas protestantes das dTima arvore, no que a mesma matéria
consequências que nasciam d,as variações tem de mais elevado e menos impuro, a fim
de que mr. Bossuet as accusa va na "sua de não se deixar recahir c abysmar n’ella
pistoria das mesmas variações. Este mi- inteiramente.
íistro pretendeu que a Igreja variara acer «Se arrebatados pela fé ousamos elevar
ca dos mysterios, e que até o concilio de nossos voos ao nascimento do Verbo Eter
Nicca não tivera senão uma fé informe no, com receio de que allucinados pelas
sobre a Trindade.2 imagens dos sentidos que nos cercam, e por
No artigo Ario provamos que a divinda assim dizer nos bloqueiam, vamos cahir
de e consubslancialidadc do Verbo foram cm representar nas divinas pessoas as.dif-
sempre cridas, o para maior individuação ferenças d’idades, as imperfeições d’um me
remettemos os leitores ao sabio Bullo", a nino recem-nascido, c todas as baixezas das
nu*, de Meaux, etc. N’este Iogar observare gerações vulgares; o Espirito Sancto no li
mos sómente que a Igreja condcnmou em vro da Sabedoria nos oíTerecc o que ha
todo o tempo assim os que criam que o Pa mais bello o mais puro em toda a nature
dre, o Filho, c o Espirito Sancto eram tres za, isto é, a luz no sol como na sua mãe, e
simples denominações da substancia divi a mesma luz no raio como no* seu frueto:
na, como os que as olhavam como tres sub alli se figura de repente um nascimento
stancias distinctas; d’onde evidentemente sem imperfeição, c o sol fecundo, logo que
se segue que a Igreja creu sempre o do principia a existir como a imagem mais
gma da Trindade como hoje se cré. perfeita d’aquellc que existindo sempre, 6
As objecções que poem os antitrinitarios sempre fecundo.
e socinianos a este respeito, nascem das Demorados na nossa queda sobre esto
comparações que se lêem nos sanctos pa bello objecto, d’alli tornamos a formar um
dres sobre o mysterio da. Trindade; mas voo mais feliz, dizendo a nós mesmos que
se nos corpos, se na mesma materia se en
1 Réponse à deux objections sur Vori contra um nascimento tão formoso, com
gine du m al et s u r le Mystère de la Trini- muita mais razão devemos crér que o Fi
té; un volume in-12, àssez rare. lho e Deus sahc de seu Pae como o res-
2 Tableau du Socianisme, Jettre 6. plendor que reflectiu da sua eterna luz, co-
ANT 207
mo uma doce cxhalação da sua infinita cla á união inseparável do Padre c do Filho,
ridadecom o o espelho sem mancha da sua do que é ou parece ser á sua igualdade o
magestade, c a imagem da sua bondade per raio de Tertulliano, porque separadas as
feita. É o que nos diz o livro da Sabedo duas tochas, se verá arder uma quando a
ria .1 outra estiver apagada, e ficamos muito lon
■Mas se os nossos presumidos reforma ge da comparação do raio que existe sem
dos não querem receber d’elle estas bellas pre adherente ão corpo do sol.
expressões, S. Paulo l!t’as ajunta n’uma só «Deve pois dizer-se n’uma palavra que
palavra, quando chama ao Filho de Deus de cada uma das comparações só se ha de
o r esplendor da gloria, e a estampa da sub tomar o que ha de bello c perfeito, e assim
stancia de seu Pae. 2 se acharia o Filho de Deus mais insepara-
f «Não ha cousa que mostre melhor no vclmentc unido ao seu Pae, do que o sào
Padre c no Filho a mesma natureza, a mes ao sol os seus proprios raios, e mais igual
ma eternidade, o mesmo poder, do que esta a elle do que o são todas as tochas áquella
bella comparação do sol e dos seus raios, em que se accenderam, porque elle não é
que, levados â espaços immensos, fazem sómente um Deus sahido d’um Deus, mas
sempre um mesmo corpo com o sol, e con um Deus só com aquclle do qual sahiu; o
tém toda a sua virtude. Mas quem não sen que não tem entre si as creaturas com que
tirá todavia que esta comparação, posto possa comparar-se.
que a mais bclla de todas, degenera neces E o que aplana esta doutrina, ó que to
sariamente como as outras; se se quizer dos os sanctos padres fazem a Deus immuta-
altercar nào poderá dizer-se que o raio vcl, c não menos o fazem espiritual c indi
sem se* desapegar do corpo do sol, soíTre visível no seu sér, sem grandeza, sem di
diversas diminuições, ou, como dizem os visão, sem côr, sem tudo o que fere os sen-x
pintores, que as tintas da luz nào sào igualtidos, c incomprehcnsivel a tudo o que não
mente vivas é espirito...
Para não deixar conceber aos homens «Logo quem é Dcus,é Deus todo inteiro,
uma similhante ideia do Filho de Deus, e não degenera de Deus por alguma parte.
S.-Justino, o primeiro de todos, apresenta Todos os sanctos padres convém uniforme
> ao espirito outro exemplo que tira da na mente sobre a perfeita simplicidade do en
tureza do fogo tão vivo c tão activo no te divino; e o mesmo Tertulliano, que a fal
prompto nascimento da chamma d’uma to lar sem rebuço, corporalisa todas as cousas
cha, que repentinamente se accende por divinas, porque tainbem a sua linguagem
outra: alli se repara de todo a desigualda inculcando a palavra corpo, póde ter signi
de que a razão parecia deixar entre o Pa ficado substancia, não deixa de convir es
dre e o Filho; porque nas duas tochas se crevendo contra Hermogenes, primeira
vê uma chamma igual, c accésa uma sem mente com elle, como d’um principio com
diminuição da outra. As divisões e porções muni, que Deus nào tem partes, e que é
que nos offendiam na comparação do raio, indivisível, de sorte que elevando as suas
O.S.Ü.
desapparccem. S. Justino expressamente ob idéias pelos princípios que clles mesmos
serva que aqui não ha nem degradarão, nos deram, não nos restará mais n’aquel-
nem diminuição, nem partilha. 3 les raios, n’aquellas extensões, n’aquellas
«Até rar. Jurieu pondera que este mar porções de luz e da substancia, que a ori
tyr satisfaz plonamente ao que a igualdade gem commum do Filho c do Espirito San
requeria. Ellc pois se dá por contente com cto, d’um principio infinitamente commu
o mesmo sancto a este respeito, e se dá por nicativo; c a dizer a verdade, aquillo mes
pouco satisfeito com Tertulliano a respeito mo que disse o Filho de Deus, fallando do
das suas proporções e partes.4 Espirito Sancto: Elle toma do meu, ou do
«Porém se não estivesse preoccupado dos que eu tenho de meu, como eu tomo de meu
erros que busca nos sanctos padres, basta Pae, com o qual tudo me é commum.
ria só dizer-lhe que tudo tende ao mesmo «Não'sc devia pois imaginar na doutrina
fim; que das comparações se deve tomar dos sanctos padres aquclla monstruosa des
sómente não o grosseiro e o baixo como igualdade, debaixo do pretexto d’estas ex
elle faz, porquê d’outra sorte essa tocha pressões, que ellcs muito bem souberam
.accésa de S. Justino não seria menos fatal apurar, dizendo com tudo isso que o Filho
de Deus sahira Perfeito do Perfeito, Eterno
1 Sapient. 7, v. 2o e 26. do Eterno, Deus de Deus. E o que dizia S:
2 Hcebr. 1, 3. Gregorio, appelüdado por cxcellencia tliau-
3 Lib. adversus Thryph. maturgo, ou o milagroso; e S. Clemente
4 Tableau dü Socidnisme, let. 6, pag. 229. Alexandrino .dizia também que elle era o
208 APE
Vei bo nascido Perfeito do Pac Perfeito. Elie a Trindade; e d'alli tiramos tres consequên
não lho fez depender a sua perfeição d’um cias.
grande nascimento, e seu Pae o produz A primeira, que o dogma da Trindade
perfeito como clle mesmo; por esta razão não e uma crença introduzida pelos platô
não somente o Padre, mas também em par nicos, como pretende o author do platonis-
ticular o Filho é todo bom, todo formoso, e mo descoberto, e mr. Lc Clere na sua Bi
por consequência todo Perfeito. 1 bliotheca escolhida, e na sua Bibliotheca
É logo mais claro que a luz do dia, que universal. 1
jamais entrou no espirito dos sanctos pa A segunda consequenda é que a crença
dres a ideia de desigualdade; antes pelo da Trindade não era confusa e vaga como
contrario acabamos de vér que para evi- quer mr. Lc Clcrc sempre que falia d’este
tal-a, depois de haverem nomeado, segundo mysterio.
a ordem, o Filho c o Pae com o designie de A terceira é quo o author das Cartas so
mostrar que se o Filho é o segundo, isto bre a reliqião essencial se oppõc a toda a
não se entende na perfeição, na dignidade, antiguidade christã, quando diz que se de
na honra. Longe de o suppõrem desigual, vem supprimir os nomes de Trindade c de
elles o faziam cm tudo e por tudo um com pessoas, e que olha este dogma como in
cite, da mesma sorte que o Espirito San útil. Sc conhecesse melhor a historia da re
cto; c a fim de que se tomasse a unidade ligião christã, c a sua essência, não pensa
na perfeição, como se dc\rc tomar tudo, o ria assim. Toda a economia da religião-
que deve scr attribuido a Deus, declara christã suppõe este mysterio, e o christão
vam que Deus era uma só e a mesma cou- não pódc conhecer o que deve a Deus, igno
sa, perfeilamente uma, superior a tudo o rando como as tres pessoas da Trindade
que ê unido, e á unidade mesma.> 2 concorrem para a obra da sua salvarão: não
No restante da advertência, mr. Bossuet nos foi pois revelado este mysterio para
entra em algumas individuações acerca do scr o objecto das nossas especulações, mas
concilio de Nicea, dos desacertos de Jurieu, para que melhor podessemos comprehen
que não podemos seguir, mas que ó pre dor o amor de Deus para coiu os homens.
ciso lé r .3 E por ventura será inútil um tal conheci
, Não entraremos nos pormenores das diíü- mento para desempenharmos os deveres da
culdades que os socinianos tiram da Escri- religião?
ptura, nem emprchenderemos refutar as apelles—discipulo de Marcião pelos an-
falsas explicações que dão ás passagens da nos*fflf!fEo. sómente admittia um principio
mesma, em qúc. se funda o dogma da Trin eterno e necessário. Era esta uma opinião
dade. As interpretações socinianas se acham a que Apelles se prendeu por uma cspccie
optimamente impugnadas pelos theologos; de instincto, e da qual, dizia ellc mesmo,
mas ninguem o fez melhor que o sabio pa que não podia dár a prova.
dre Petau, que n’cste ponto, como em mui A diíüculdade de conciliar a origem do
tos outros, vale por todos os theologos.45 mai com o principio bom e omuipolento, cu
Os inglezes tractaram muito bem este ja existerícía ellc reconhecia, o levou a jul
dogma,, e entre outros se podem vér os gar que este ente nenhum cuidado tinha
theologos de que falíamos nos artigos A ria das cousas da terra. Que elle creára anjos,,
nos modernos, e Macedonio. Sobre tudo vc- c entre outros que nomeava, o Anjo do Fo-
ja-se Isaac B arroto.h o, que creou o nosso mundo sobre o mo-
Nos artigos Arianos e Macedonio, faze ello d’outro superior e mais perfeito. Mas
mos vér a divindade c a consubstanciali- como este crcador era mau, o mundo o era
dade do Verbo e do Espirito Sancto, ensi também.
nada na Escriptura e pelos apostolos como Reconhecia que Jesus Christo era filho
o fundamento da religião christã; nos arti de Deus soberano, e que não só viera nos
gos Sabellio e Praxeas mostramos que a ultimos tempos com o Espirito Sancto para
Igreja condemnou sempre os que negaram salvar os que criam n’clle, e para lhes dar
conhecimento das cousas celestiaes, mas-
juntamente para obrigal-os a despresar o
1 Greg. N y s s D e vita Greg. Neoces. Ciem. creador e todas as suas obras.
Alex. Pedag. 1.5,6. Assim se avisinhava nos seus sentimen
2 Ciem. Alex. Pedag. 3, e ultim. Strom. tos a Marcião, mas não cria como este, que
9. Pedag. I, c. 8. Jesus Christo só tomára um corpo phan-
3 Bossuet, Avertiss. 6.
* Petau, Dogm. Thcol. t. 2. 1 Biblioth. choisiej art. erit. Bibli, univ-
5 Isaaci Barrows Opuscula. 1.10, art. 8. E x tra it de la Vic d'Eusebe.
APH 209
tastico: porém para não o fazcr dependente tra os Uvros de Moysés consistia em que
do Deus creador, dizia que Jesus Christo Deus não podia ter ameaçado a Adão com
formara seu corpo das partes de todos os a morte se comesse do frúcto vedado, por
céos por onde havia passado, descendo á que não a conhecendo Adão, não podia
terra, e que voltando a clles, restituira a tel-a por castigo. 1 Tertulliano escreveu
cada uin o que d’clles tomara. contra Apelles, mas não apparece hoje a
Apelles, como se vê, uniu parte das idéias sua obra.
dos gnosticos aos princípios geraes de Mar- Rodon também a refutou, e cis-aqui o
cião: imaginava que as almas foram crea- que d’elle nos refere: «Tive, diz clle, uma
das sobre os céos. Elias, no seu sentir, nào conferência com este velho venerável pela
eram absolutamente incorporeas, a sub sua idade, c pela regularidade exterior da
stancia espiritual, ou a alma estava unida sua vida; e como lhe fiz vêr que se enga
a um pequeno corpo subtilissimo, e esta nava cm muitas cousas, elle se viu obriga
extrema subtileza se elevava aos céos. Alli do a dizer, que não deviam profundar-se
as intelligencias puras e innocentes con tanto as matérias da rejigiào, que cada um
templavam o Ente Supremo, e gosavam de devia ficar na sua crença, que os que es
uma perfeita felicidade sein abaixarem as peravam em Jesus Crucificado se salva
suas vistas sobre o globo terrestre. riam se fizessem boas obras, c que a elle
O Deus creador produziu fruetos e flo nada lhe parecia tão obscuro como a di
res cujo prefume, elevando-se, lisongeára vindade.
os orgaos delicados dos espíritos celestes, «Não deixei de o instar, continuou Ro
clles se baixaram á terra cTonde subiram don, e de pedir-lhe a razão porque elle não
estes prefumes, e o ente creador que lhes conhecia mais que um só principio, e que,
havia armado um tal laço, os envolveu na prova tinha d’isto mesmo elle, que nega
materia para conserval-os debaixo do seu va a verdade dos prophetas que nol-o at-
imperio. testam.
Emergidas as almas na materia, se agi «Rcspondcu-mo que as prophecias se
taram, e pelos seus esforços formaram cor condemnavam a si mesmas porque nada
pos similhantes aos corpos subtis, que ti- diziam que verdade fosse, que eram todas
. nham antes de descerem á terra: os corpos falsas, e que não se acordavam entre si,
aereos que clles tinham no céo, no sentir antes se contradiziam umas ás outras, mas
de Apelles, foram como os moldes cm que ao mesmo tempo me confessou que nào ti
'as almas tinham fundido os seus corpos nha razão para mostrar que não havia mais
terrestres. Estes corpos aereos tinham dous que um principio, e que sómente por um
sexos differentes, e d’esta sorte as almas certo instincto seguia este sentimento.
descidas do céo, e envoltas na materia, ha «Conjurei-o para me dizer a verdade, e
viam formado corpos machos, ou femeas, jurou que fallava sinccramente, que igno
segundo o sexo da alma que o formava. rava o* como não houvesse mais que um
Tertulliano chama a Apelles o deprava- Deus sem priucipio, mas que assim o cria.
dor da continência de Marcião, e diz que «Quanto a mim, continuou Rodon, eu fi-
ellc se retirou para Alexandria, por fugir a quei condemnando o sou erro, e riudo-me
seu mestre depois de haver abusado d’uma. da sua ignornneia, p^r não havpr cousa
mulher. Accrescenta, que voltando algum mais ridicula do que um homem cpie se
tempo depois, igual mente corrompido, bem tem por mestre dos outros, c não póde al
que nào de todo, Marcionita, cahira nos legar alguma prova da sua doutrina.» 2
laços d’outra mulher, que se tinha tornado a p e l l i t a s — Nome dos sectarios d’Appel-
uma prostituída. lesr~""~
Esta mulher cria ter apparioõcs maravi açhtartodoctàs—-eram os discipulos de
lhosas e vêr a Jesus Christo em fôrma de Juliano* dc"Hàlicarnasso, que asseveravam
menino, e outras vezes era S. Paulo que que o corpo de Jesus Christo fora impassi-
lhe apparecia. Acreditavam que ella fazia vel, porque çra incorruptível. Apparece-
milagres, e que vivia do pào celestial. Um ram pelo anno de 4 6 3 .3
dos seus principaes milagres consistia em
fazer entrar n’uma garrafa de vidro debôca 1 Autor Append. ad Tert. de Prascript.
. muito estreita um grande pão, que depois A m br.l. 1 de Paradiso. Origen. I. 6, cont.
tirava com os seus dedos. Cels.
Apelles, que rejejtava todos os livros de 2 Rhodon, apud Euseb. I. 5, c. 13. Epiph.
Moysés c dos prophetas, compoz um das Hccr. 44, Ang. Hcei\ 23. TerL de Prcescript.
revelações e prophecias de Pnylomena, c c. 30, 31. Baron, ad an. 146.
cria n’ellas. Um dos seus argumentos con 3 Niceph. I. 17, c. 29. Dainascen.
110 ARO
a p o c a iu t a s — Este nome significa segu- mas não se acham muitos que adoptem
rança^eni fióndade. Parece que esta seita uma opinião tão estranha. 1
seja um ramo do manichcismo. Appareceu Attribuc-se a Apollinario haver susten
cm 279, e ensinava que a alma humana tado que a divindade sofirera, que mor
era uma porção da divindade.1 rera, etc.; mas estes erros mais sao conse
apollTnario — Lispò cleLaudicea, cria que quências tiradas dos princípios d’Apollina-
Jesus (Jiirísto encarnara c tomara um cor rio, que as opiniões d’estc bispo. A ideia
po humano; mas que não tomara alma hu que d’clla nos dão os authorcs ecclesiasti
mana, ou ao menos (iue aquella alma hu cos, não nos permitte que pensemos (Tou-
mana que o Verbo assumira, não era uma tra sorte.‘Apollinario foi tido gcralmentc
intelligencia, mas uma alma sensitiva, que pelo primeiro do seu tempo em saber, eru
não tinha razão nem entendimento. dição, e piedade. Devemos pois ter grande
Tinha sido Apollinario um dos mais zc- desconfiança das nossas proprias luzes, e
Uosos defensores da consubstancialidade do não menos indulgência com os homens que
ÈVerbo: ellc a approvou contra os arianos se enganam, porque a scicncia, o engenho,
rpor infinidade de passagens em que a Es- e a piedade, nem sempre nos preservam
criptura dá a Jesus Christo todos os attri dos desvarios.
butos da divindade: julgou que uma alma 0 tempo em que Apollinario ensinou este
humana era inútil cm Jesus Christo, e lhe erro é incerto, mas elle floresceu polos fins
parecia desnecessária alguma das opera do quarto seculol imperando Juliano. A
ções que pedem intelligencia e razão, por sua heresia foi logo condcnmada no conci
que a divindade presidira a todas as suas lio d’Alcxandria, congregado no anno de
acções, e fizera todas as funeções da alma 362, presidindo Sancto Athanasio depois
em Jesus Christo.2 da morte de Constancio: o mesmo concilio
Mas como Jesus Christo experimentou se condemnou o erro sem que se nomeasse
sentimentos que não podem convir á di o author d’elle. O papa Damaso o conde
vindade, Apollinario lhe suppõe uma alma mnou também, c depôz Apollinario; emfim
serisitiva. Tinha esta opinião seu funda a sua opinião foi proscripta no segundo
mento nos princípios da philosophia pytha- concilio ecumênico, congregado cm Con-
gorica, que súppõe no homem duas almas, stantinopla- 2
uraa que raciocina c é pura intelligencia, . O erro d’Apollinario foi combatido por
Jque não póde soíTrer a agitação das pai Sancto Athanasio, pelos SS. Gregorio Na-
xões, o outra incapaz de raciocinar, c que zianzeno c Nysseno, por Theodoreto, e por
é unicamente sensível. Os princípios d’esta Sancto Ambrosio.3
philosophia se acham expostos mais indivi a£QJ44íjAMT a s — Nome que tiveram os
dualmente no Exame do Fatalismo. discipuloTfrApolIinario.
É facil refutar este erro, porque a Es- ^qrHA^usT^s — Sectarios d’Apophancs,
criptura nos ensina que Jesus Christo era quc íof discípulo de Manes.
homem em tudo similhante aos mais ho AçpsTpLicos— Foi o nome que teve um
mens, excepto no peccado.3 ramo dos'Iencratitas, que presumia imitar
Ella nos diz que Jesus Christo na sua in perfeitamente os apóstolos. Veja-se o ar
fância crescia e se ifortificava em espirito tigo Apoctacticos. Também foi commum
e sabedoria,4 o que não tem Iogar senão este nome a todas as pequenas seitas dos
a respeito da sua alma racional. O Verbo reformadores, que appareceram no duode
não podia crescer em sabedoria, nem a al cimo século, e se derramaram por diffe
ma animal cm luz. rentes provincias da França. Vejam-se os
Coratudo, Wisthon abraçou o sentimento Albigenscs, Valdenses.
d’Apollinario, e diz' que o Verbo sofirera: Estas pequenas seitas tinham erros op
e desejando que este sentimento seja rece ostos, c regularmente prácticas contrarias,
bido entre os christãos, pretende apoial-o ongregaram-se vários concilios em que
nos testimunhos d’alguns sanctos padres, foram condemnados. Dos apostolicos foram
que viveram depois do concilio de Nicea; queimados muitos em differentes provin-
1 Patres Apost.
2 Epist. Synod. Cone. Alex. Theodoret,
1 Stockman Lexicon. Hist. I. 9, c. iO. Concil. Constant.
2 Vincent. Lirin. Commonit. c. 17. Aug. 3 Alhan. Ep. ad Epilect. I d}lncarn.
de Hcei\ c. 55. Greg. de Nyss. cont. Apol. Theod. Dial. de
3 Paul. ad Hebr. 4, 15. Incomprehensibili. Hceret. Fab. I. 5,- v. 13.
* Luc. 2, v. 40. Auct. de Myster. Jncar.
ARA 211
cias, c estes sectarios soflrcram os suppli- Aii.ums.„ou Ait.unANqs—é o nome que se
cios com tal constância, que Erviuo não dá a uma seita que no terceiro século ata
podia comprehcnder como os membros do cou a iumiorlalidade.da-aluía, sem todavia
(lemonio tivessem tão grande constância negar que houvesse outra vida depois da
pelos seus erros, como os verdadeiros lieis presente: clles tinham para si que a alma
pela verdade. 1 morria com o corpo, e depois resuscitava
A seita dos apostolicos se renovou por com clle.
um homem da plebe. Veja-se a historia Sobre esta matéria houve na Arabia uma
(Vesta seita singular na palavra Segarei. grande assembléia, á qual assistiu Orige-
IIouvc também entre os anabaptistas al nes, que fallou n’clla com tanta solidez e
guns que se appcllidaram apostolicos. Vc- moderação, que aquelles que tinham cahi-
ja-sc o artigo das seitas anabaptistas. do no erro dos arabianos o abandonaram
AgQiA£Tjços—Ramo dos eucratitas ouia- inteiramente. Origenes esclareceu os ara
thuííSSI, que aos differentes erros dos cu- bianos sem os irritar, c clles se converte
eratitas ajuntavam a necessidade de renun-. ram sinceramente; nunca o rigor extinguiu
ciar os bens do mundo, c que olhavam como tão projnptamcntc uma heresia. Os golpes
reprobos todos os que os possuíam. Al da aulhoridade ou fazem hypocritas ou não
guns se viram na Cicilia e Pamphilia pelos atalham o progresso do erro, senão tirando
iins do segundo século, mas foram pouco á intclligcncia a sua força, e extinguindo
numerosos. Nenhum foi queimado: primei pouco a pouco as suas luzes. Eu bradaria
ramente moveram a compaixão, depois fo sempre, se podésse, a todos os que tcom a
ram tidos em despréso, e assim se extin- seu cargo o governo das almas: «Esclare
;guiu a seita. Não aconteceu da mesma cei os homens; tractai com doçura os que
sorte quando no duodecimo século se re se enganam, se quereis convcrtel-os soli
novou a dos apotaclicos, que tomaram o damente, c aniquilar o erro. Haveis vós
nome dapostolicos. Houve contra cllestaes por ventura esquecido que estar n’ellc em
rigores, que foram alguns queimados; e ponto de religião, não seja ter cabido n’um
para os extinguir na França, se levantaram precipício, e ser infeliz, e que os infelizes
exercitos. Vejam-se os artigos Apostolicos, merecem indulgência c respeito?» Eu lhes
Albigenses, Valdenses. 2 diria; «Todo o homem que propala um erro,
• aqlluuanqs— Nome que tiveram tam ou está cm boa fé ou é um embusteiro que
bém os eucratitas. seduz os homeus de boa fé, c que procu
aquaticq§—Hereges que criam que a ram a verdade. Sc está de boa fé, vós
agíílHffã um principio coetcrno a Deus. convertereis segura c sinccramente, escla
Hermogenes havia ensinado que a ma recendo-o; a aulhoridade fulminando-o sen
téria era coctcrna a Deus, para poder ima o esclarecer, o firmaria no erro sem espe
ginar um sugeito do qual Deus podésse ti rança ^arrependimento. Se o homem que
rar o mundo visível. Quizeram seus disci espalha o erro c um velhaco que induz
pulos investigar a natureza d’csta materia, para o inal alguns proselytos de boa fé,
■ijuc servira (Tassumpto á acção de Deus, vós atalhacs seguramente o progresso da
e apparentem ente adaptaram o systema de scducção fazendo vêr que clle se engana.
p ia les, que olhava a agua como principio A autíioridade que se emprega contra este
üe todos os entes. É assim que o espirito seductor, sem o refutar e sem provar cla-
humano, depois de se haver elevado sobre ramente a falsidade da sua doutrina, o fa
•os systemas dos antigos com o auxilio da ria mais querido de seus sequazes, c então
religião, tornava a clles por curiosidade e já não ficareis em estado d’illustral-o, nem
pela tendenda que sempre tem para tudo tereis outro recurso contra o seu partido
im aginar.3 senão o rigor, a violência, e os supplicios.
ara — foi um herege que asseverava que «Porém quando o uso que vós fizésseis
.atév?Hficsmo Jesus Christo não fora iseni- de taes meios não tivesse inconveniente
•pto do peccado original.* nem causasse algum mal, seria por ventura
melhor o seu offeito que o da persuasão c
1 Bemard. Senn. in Cant. 65, 66. A/a- da suavidade? Um homem a quem quei-
bil Analect. t. 3, p. 551. D'Argentré, Collcct. racs obrigar por aulhoridade a deixar suas
■Jud. t. 3, p. 23. Natal. Alexander, sa;c. 42. opiniões, quando menos, supporá que não
2 Epiph. lia r. 61. Aug. Har. 40. Da- vos acliacs em estado d'esclarecel-o, ou que
mascen. lia r. 61. o despresaes cm demasia para que vos di
, 3' Slockman Lexicon. gneis illustral-o c persuadil-o; c não é justo
4 Euseb. Hist. I. 6, c. 37. Aug. de Har. que uma similhante suspeita caia sobre os
.c 28. Nicephor. Hist. L 5, c. 23. successores dos apostolos; quando S. Paulo
*
212 ARI
nos diz: «Nós ensinamos, provamos, de dro, o Filho, c o Espirito Sancto eram tão
monstramos.» somente tres nomes dados á divindade, e
a r c h o n t i cos—Seita de valentinianos denão tres pessoas, e como havia pouco tem
que fòTOTnòr Pedro o eremita. Esta seita po que fòra condemnado este erro, ainda
appareccu pelos annos do 160, governando tinha sequazes.
Antonino Pio. 1 A argúcia d'A rio naturalmenlo se incli
ARLVN.isiRD-—Heresia d’Ario, que consistia nou a comparar a explicação d’Alexandre
em negar alcojisubstaucialidade, da. Verbo, com o que a Igreja definira contra Sabel
ou da segunda pessoa da-Trindade, que lio, c creu que não podia alliar-sc a simpli
clle òlhava conio uma creatura. cidade da substancia divina com a distinc-
Exporemos a origem e progresso d’esle ção das pessoas, que a Igreja ensinava con
erro até á morte d’Ario. Consideraremos o tra o mcsino Sabellio.
arianismo desde a morte d’A rio até á sua No sentir d’Ario não podiam dislinguir-
extineção. Vél-o-hemos renascer nó Occi se muitas pessoas, no que é simples, ou era
dente no decimo quinto e decimo oitavo preciso que estas, por exemplo, o Padre o ■
século. Examinaremos seus princípios, e o Filho não fossem mais que nomes diffe
os refutaremos. rentes que se davam á mesma cousa se
gundo os diversos effeitos que cila produ
zia; o que linha sido condemnado em Sa-
ii bcllio, e era contrario á ideia que nos dá
a Escriptura do Padre c do Filho, que cila.
nos representa entre si tão distinctos como
Da origem do arianismo, o são o cffeito da sua causa: o Padre gera
c progresso d'eslc erro até á morte d'Ario c o Filho é gerado; o Pae não foi produ
zido, e é sem principio; o Filho tem um, e
foi produzido.
• Explicava Alexandre, bispo d’Alexandria, D’osta sorte Àrio, para não cahir na he-
em presença dos seus parochos c clérigos l*c$ia de Sabellio, que confundia as pessoas
o mysterio da Trindade, querendo conci da Trindade, fez do Padre e do Filho duas
liar a Trindade das pessoas com a unidade differentes, c sustentou que o Filho era uma.
de Deus, c explicar como existiam as Ires creatura. 1 Mostrou Alexandre que Ario
pessoas n’uma unica e simples substancia; não tinha uma ideia justa da pessoa do
pois que Socrates refere dizer Alexandre Verbo, que este era eterno como o Padre,
que na Trindade havia unidade, e que para e não produzido em tempo, o que aniqui
isto se servia d'uma palavra que não so laria o dogma da divindade do Verbo.
Í mente significa unidade, mas também sim Ario, todo possuído da força do seu ar
plicidade: dizia clle que na Trindade ha gumento, não se occupou mais que cm rc-
via monada, ou que a Trindade era uma torquir os d’Ale^andre, c cm provar que
monada. 2 o Verbo era uma creatura.
•A ideia da simplicidade da monada c da Esta doutrina perturbou a igreja d’Ale
Trindade se oílereceram simultaneamente xandria, e veio a ser o principal objecto da
á inlelligencia d'Ario, que assistia aos dis disputa. Perdeu-se de vista Sabellio; Ario
cursos d’Alexandre, e como por este mes se empenhou sómente em provar que o
mo eram conduzidos os espíritos ao empe Verbo tinha sido creado, e o partido ad
nho de comprehendor o mysterio da Trin verso em defender a sua eternidade;2 c
dade, ellc se esforçou em conceber como como os sophismas seduzem sempre que se
tres pessoas distinctas existiam n’uma sim impugna algum mysterio, Ario fez sequa
ples substancia. Não pôde conceber o mys zes e causou divisões no clero d’Alexan
terio, e o creu impossível. dria.
Examinando Sabellio o mysterio da Trin Persuadiu-se Alexandre, que permittindo
dade, creu não poder concilíal-o com a uni a Ario e a seus partidários que disputas
dade de Deus, senão suppondo que o Pa- sem c propozessem as suas difficuldades,
eJIes se desenganariam melhor que por
1 Aug. Hoer. c. ^0. Epiph. tícer. 40. T/ieo- meio de condemnações c actos d’authori*
doret, Hceret. Fab. I. 1, c. 2. dade, os quaes sendo precipitados, raras
2 Socrates, l. 1, c. 4. Monadon esse in vezes atalham os progressos do erro, sem-
Trinitate, o que nâo quer dizer união, como
traduziu m r. de Valois, mas simplicidade. 1 Lettrc d'Arius à Euseb. Epiph. Ilcer..
Veja-se Basnage, Annal. Politico-Ecclesias- 69. Alhan. t. 1, pag. 63o.
itic, /. 2, pag. 664. 2 Socrat. I I, c. 6.
ARI 213
'prc irritam, c nunca esclarecem. Mas logo ceber um filho coeterno a seu Pae. Foz to
•que Alexandre ponderou que a sua mode dos os esforços para comprehendor como
ração podcria ter consequências desastro um filho podia ser coeterno a seu pae; da
sas, congregou um concilio em Alexandria, sua impotência om conceber o mysterio
no qual Ario defendeu a sua doutrina. Pre passou ã persuasão de que era eflectiva-
tendeu que o Verbo tivesse sido tirado do mente impossível, e d’csta impossibilidade
nada, pois que era impossível ser eterno tinha feito a base da sua opinião; portanto
como seu Pae, da mesma sorte que nào cria d’uma parte ser impossível que o Ver
poderia conccbcr-se que o Filho sempre bo fosse coeterno a seu Pae, e da outra via '
tivesse existido com seu Pae. «Nào 6 claro, tão claramente ensinada a divindade do
dizia ellc, que então o Filho seria gerado, Verbo na Eseriptura, c pela Igreja, que lhe
e nào o seria. Além de que se o Pae não não era possível desconhccel-a.
tirou o Filho do nada, o tirou forçosamente D’aqui concluiu Ario que a creação do
•da sua substancia, o que é um impossível. Verbo e a sua divindade eram duas verda
«A Escriplura, dizia ainda ellc, também des, que deviam crér-sc, e reconhecendo
nos não dá. outra ideia do Verbo: o Verbo, que o Verbo era uma creatura, cria com
•diz ellc proprio no capitulo 8 dos Provér tudo que era verdadeiro Deus e igual a seu
bios, que Deus o crcou no principio da sua Pae. O amor proprio c a preoecupaçào as
carreira. Deus diz que clle o gerou, c este sim mudam aos olhos dos homens os mys-
modo de produzir é uma verdadeira crea- terios cm absurdos, c as contradicções mais
ção, pois que a Escriplura o applica igual evidentes cm verdades manifestas" Ario ti
mente tanto aos homens como ao Verbo, nha rejeitado a Trindade, que ellc não com-
como se vé nas passagens n u que Deus prehendia, mas que nào tem em si contra-
-diz que gerára filhos que o desprcsaram.1» dicçào, e não suppunha conlradizer-sejinin-
Os padres do concilio ^Alexandria, fun do no Verbo a essencia da divindade c da
dados ifcstas confissões, ou melhor ífcstcs creatura, suppondo que o Verbo tinha to
princípios d’Ario, o sentenciaram. «Sc o das as perfeições, c sustentando que lhe
Verbo, diziam ellcs, é uma creatura, tem faltava a primeira de todas, que é d’existir
,todas as imperfeições da creatura, está su por si mesmo.
jeito a todas as mudanças, não é omnipo- O concilio ^Alexandria definiu que o-*.
tente, nem sábe tudo; porque estas imper Verbo era Deus, e coeterno a seu Pae; eon-
feições seguem cssencialmcntc o sér de demnou a doutrina d’Ario, e excommun-.
creatura, por mais perfeito que se julgue.» gou a sua pessoa; porém o hcrcsiarcha não
A s consequências eram evidentes, e Ario se abalou com a sentença do concilio; con
não podia ignoral-as. tinuou a defender a sua opinião, expôl-a
Encarada d’csta sorte sua doutrina, os sem rebuço, c mandou a sua profissão de
padres do concilio provaram ser falsa por fé a muitos bispos, pedindo-lhe que ou o
todas as passagens da Eseriptura, que at- illuminassem se estava em erro, ou o pro
tribuem ao Verbo a immortalidade e omni- tegessem e amparassem se era catholico.1
sciencia, por todos os que expressamente É "natural em todos os homens certo alle
dizem que tudo por ellc fora feito, e que cto que obra sempre em favor dTim ho
nada sem ellc se fizera. mem, que foi condcmnado, principalmente
Estas ultimas passagens subministravam quando elle protesta que nada mais deseja
nos padres argumentos decisivos, porque que illustrar-se para haver de sesubmetter:
se nada do que foi creado o foi sem o Ver portanto achou Ario protectores ainda en
bo, é evidente que elle não foi creado, por tre os bispos. Euscbio de Nicomedia con
que então alguma cousa seria creada sem gregou um concilio composto dos bispos da
clle, pois que um ente de nenhum modo provincia de Bytliinia, c este concilio es
é causa de si mesmo. creveu circulares a todos os bispos do
A’ evidencia d’estas provas, tiradas da Oriente para induzil-os a que recebessem
Eseriptura, ajuntaram os padres do conci Ario na sua communhão como a um ho
lio a doutrina da igreja universal, que sem mem que defendia a verdade, e para o mes
pre reconheceu a divindade do Verbo, e se mo fim escreveu também a Alexandre.
parou da sua communhão os que a impu Alexandre, como rcconvcnção, escreveu
gnaram. circulares cm que muito censurava Euse-
Ario achou-se então como collocado en bio de proteger Ario, c de recommcndal-o
tre a necessidade de reconhecer a divin aos bispos. A carta d’Alcxandre irritou Eu-
dade do Verbo, c a impossibilidade de con-
sebio, c tornou inimigos irroconciliavcis es vendo mesmo logares onde se abateram as
tes dous prelados. estatuas do imperador, porque ellc queria
Gondcmnado Ario por Alexandre e por que sc tolerassem os arianos. 1
um concilio, mas defendido por muitos bis Faziam então os christãos uma parte con
pos, nào se apresentava senao como um in siderável do império romano, e ponderando
feliz que se perseguia, pelo que divulgou a Constantino que. nào podia dispensar-se de
sua doutrina, e até o mesmo povo se inte tomar parte nas suas pendências, c que era
ressou em seu favor. , preciso apazigual-as, convocou um concilio
»- Era Ario homem d’alta estatura, magro do todas as provincias do mesmo império,
! c socco; cm seu rosto se via estampada a cujos bispos se congregaram cm Nicea no
imagem da melancholia; tinha uma com anno de 325L
postura grave, trazia sempre vestidos os Juntos osl)ispos, formaram assembléias
habitos ecclesiasticos, e encantava pela sua particulares, aonde chamaram Ario para
vidade da sua conversação; como era poeta sc instruírem dos seus sentimentos. Ouvido
e musico, compunha canções espirituaes que foi Ario, pareceu a alguns condcmnar
para os homens do povo c pessoas devotas; toda a novidade, c contentarem-se cm fal
e pondo em cantico a sua doutrina, consc- lar do Filho nos mesmos termos do que se
5 guiu por este mcio fazel-a popular. Já do haviam' servido seus predcccssorcs; outros
xm esm o expediente se tinham servido antes estavam em que não sc deviam receber
j; d’Ario, Valontim c Armonio, e com clle sem exame as expressões dos antigos: dc-
l mu itas vezes prosperaram as heresias. Apol- zesctc favoreceram as novas expressões de
% linario, depois d’Ario, assim propagou os Ario, c dirigiram uma nova profissão de
Vseús erros melhor que por sons escriplos.1 fé segundo os seus sentimentos; mas ape
I)’esta sorte sc engrossou o partido d’Ario nas cila'se tinha acabado de Iér, na assem
insensivelmente, c nào obstante a subtileza bléia sc gritou que era falsa, e foram inju
das questões que agitava, elle soube tornar riados como perfidos á fé. 2
importante até para o povo a sua contenda. Propozcram condemnar as expressões
Divjdiram-se os bispos, o clero c o povo; de que sc serviam os arianos fallando de
em 'breve se exacerbaram as disputas, fi Jesus Christo, taes como são estas: Que
zeram grande estampido, e os comedian ellc fora tirado do nada, que houve tempo
tes, que então eram pagãos, tomaram d\aqui que clle não existia. PropOz-sc dc se servir
motivo para pôr a religião christã cm sce- das mesmas phrases da Escriptura, assim
na nos thoatros. como estas: O Filho é unico da sua natu-
Constantino, que no principio d’csta dis reza, c a razão, o poder, a unica sabedoria
cussão, sómcntc a olhou como politico, es de seu Pae, o esplendor da sua gloria, etc.
creveu a Alexandre c a Ario dizendo-lhes Mas declarando os arianos que estavam
que eram loucos dividindo-se por cousas promptos a admiltir uma confissão conce
que não entendiam e que nenhuma impor bida em taes termos, recearam os orthodo
tância tinhahi.2 Mas era de muita conse xos que os explicassem cm mau sentido, e
quência o erro d’A rio para que os catholi por esta razão quizeram ajuntar que: o Fi
cos houvessem de ficar na indiíTercnça que lho era da substancia do Pae, porque rí isto
Constantino lhes, aconselhava. Alexandre se distinguia das creaturas.
escreveu para toda a parte a fim d’alalhar Perguntou-se pois aos arianos sc criam
. os progressos do erro e fazer conhecer o que o Filho não era uma creatura, mas o
seu perigo. poder, a sabedoria unica, c cm tudo a ima
D’outro lado Ario c seus sequazes faziam gem do Pae, e finalmonto verdadeiro Deus.
todos os esforços para desacreditar a dou Créram os arianos quo estas expressões
trina ^Alexandre, c tanto os arianos como poderíam convir á ideia que cllcs tinham
os catholicos imputavam reciprocamente formado da divindade do Filho, e declara
aos seus adversarios as consequências mais ram estarem promptos a subscrever esta
odiosas que podiam tirar dos seus princí profissão.
pios. Porém como se tinha reflcctido que Eu-
Os contínuos choques inflammaram os sebio dc Nicomedia, na carta que léra, rejei
dous partidos, levando-os até á sedição, ha tava o tormo consubstanciai, sc creu não
poder melhor exprimir a doutrina ortho
1 VidcErnesti Cypriani,'Dissert. de Prodoxa, o excluir todo o equivoco, quo usan-
pagatione Hccres., per Cantilenas, Lond.
1720, m-8.°
2 Apud Euseb. in Vit. Const. c. 63. So- 1 Euseb. ibid. I. 3, c. 4.
crat. /. i, c. 7. 2 Socrat. L i , c. 8.
ARI IIS
do d’este termo tanto mais quanto os aria cederia que viesse á sua presença, e o tor
nos o recuavam 1 naria a inandar com honra para Alexan
Os orthodoxos conceberam a sua profis dria.
são n’cstes termos: «Crémos em um só Se Obedeceu Ario, e apresentou ao impe
nhor Jesus Christo, Filho de Deus, Filho rador uma profissão de fé cm que decla
unico do Padre, Deus nascido de Deus, luz rava: «que o Filho nascera do Pao antes
emanada da luz, verdadeiro Deus, nascido de todos os séculos, c que a razão, que é
de Deus verdadeiro, gerado c não feito, con Deus, fizera todas as cousas, assim no céo
substanciai a seu Pae.* 2 como na» terra.»
Dizendo-se que o Filho era consubstan Se Constantino ficou verdadeiramente sa
ciai a seu Pac, não se tomava esta palavra tisfeito d’esta declaração, era forçoso que,
na acccpção em que se toma quando se falia ou tivesse mudado dc sentimentos, ou não
dos corpos ou dos animaes mortaes, por comprehendesse o symbolo de Nicea, ou
que o Filho uão era consubstanciai do Pac, que com effeito o sacerdote ariano houvesse
nem por uma divisão da substancia divina mudado as disposições de Constantino res-
da qual cllc tivesse alguma parte, nem por peetivamentc ao arianismo.
alguma mudança d’esta mesma substancia: Como quer que fosse, elle permittiu que
queria dizer-se sómente que o Filho não Ario voltasse a Alexandria, c desde esso
era de substancia diversa da substancia do tempo os bispos arianos lentamente recu
Pac. Tal foi a decisão do concilio de Nicea peraram o favor, e foram restituidos ás
áccrca do erro d'Ario; elle se terminou em suas igrejas os desterrados.
2o (TagOhto, e Constantino desterrou os que Não tinham produzido mais que appa
não quizerain subscrevel-o. Alexandre, bis rendas de socego os edictos de Constantino
po d’Alexandria, morreu pouco depois, c contra os arianos: pouco e pouco se reani
cm seu logar foi eleito Athnnasio, diacono maram as disputas, e já tinham grandes
da mesma igreja, cuja eleição Constantino alentos quando os bispos exilados foram
approvou. chamados.
Verosimilmentc foi por esse'tempo que A’ força d’examinar a palavra consub
Constantino fez a sua constituição contra to stanciai, bispos houve que se escandalisa-
das as assembléias dos hereges, ou fossem ram; disputou-se, desavieram-sc, c por fim
públicas ou particulares. Pela mesma con se atacaram com extremo ardor. «As suas
stituição dava o imperador as suas capellas contendas, diz Sócrates, não eram pouco
aos catholicos, e confiscava as casas em similhantes a um combate nocturno: os
que se encontrassem praclicando devoções. que rejeitavam o termo consubstanciai ti
Éuscbio accrcscenta que o edicto do impe nham que os outros introduziam ifello o
rador continha que se faria apprchcnsão sentimento dc Sabellio e de Montano, e os
de todos os livros herecticos que se encon tractavam d’impios, que negavam a exis
trassem. tência do Filho de Deus: pelo contrario, os
Este edicto e muitos outros diminuiram que n’elle faziam aílinco, crendo que os ou
prodigiosamente o partido d’Ario, e pare tros queriam introduzir a pluridade de Deu
ceram cxtinctas quasi todas as heresias no ses, lhes tinham tal aversao, como se se in
imperio romano. tentasse restabelecer o paganismo. Eusta-
Comtudo, Ario ainda tinha muitos sequa- thio, bispo d’Antiochia, accusava Euscbio
zes, c entre os occultos um sacerdote que de Ccsarca dc corromper a crença do con
Constância recommendou a seu irmão Con cilio niceno: Euscbio o negava, e pelo con
stantino, estando para morrer, como um trario accusava Eustathio dc sabellianis-
homem d’extrcmada virtude,-e muito leal mo.» 1
ao serviço de sua casa. Este sacerdote, que É pois certo pelo quo o mesmo Sócrates
logo adquiriu a confiança e estimação de refere, que entre os defensores d’Ario ha-
Constantino, o entreteve acerca d’Ario, re- via muitos que não inpugnavam a consub-
presentando-llfo como um homem virtuoso, stancialidade do Verbo, e que rejeitavam
injustamente perseguido, e cujos sentimen a palavra consubstanciai, não porque ella
tos eram conformes aos do mesmo concilio exprimisse que Jesus Christo existia na
que o condenmára. mesma substancia cm que existia o Padre,
Constantino ficou suspenso coin este dis mas porque presumiam que se dava a esta
curso, e prometteu que se Ario quizosse expressão um sentido contrario á distinc-
subscrever o concilio dc Nicea,-elle lhe con- ção das pessoas da Trindade, e favoravel
ao orro dc Sabellio, que o confundia.
1 Ambr. I. 3 de Fide, c. ultimo
2 Socrat. I. i, c. 8i 1 Socrat. L i, c. 28.
216 ARI
Para se decidir sobre os diversos senti durante esta ceremonia, Eusebio de Cesa
mentos d’Eustathio c Eusebio, se congre rea fez muitos discursos que encantaram
gou uni concilio em Anliochia.no anno de o imperador.
329, composto de bispos que tinham assi- Depois da dedicação, os bispos congre
gnado violentamcntc o concilio de Nicea. gados em Jerusalém receberam á commu-
N ’elle foi Eustathio condemnado e deposto, nhão Ario c Eusoio, pelas rccommcndações
c se elegeu Eusebio de Cesarea para oc- do imperador, o qual desterrou Sancto Atha
cupar a cadeira d’Antiochia. nasio para Troves, e chamou Ario a Con
A cidade se dividiu entre Eusebio c Eus stanti nopla, receando que a sua presença
tathio; uns queriam a conservação d'cstc, motivasse alguns distúrbios em Alexan-,
outros desejavam em seu logar aquelle. dria. 1 Chegado que foi Ario a Constanlino-
Tornaram ambos os partidos as armas, c pla, o imperador lhe propôz que assignasse
estavam a ponto d ese investir quando chc- o concilio de Nicea, o que clle executou; e
ou um otTlcial do imperador, que persua- o mesmo imperador, depois que se assegu
t iu o povo (|ue Eustathio merecia a deposi rou da fé cTArio, escreveu a Alexandre,
ção, e Eusebio suslcvc o motim. bispo de Constantinopla, para que o rece
' " Eusebio de Cesarea recusou a cadeira besse na sua communhão; mas Alexandre
d’Antiochia, e para a occupar elegeram Eu- protestou que o não recebería, e Ario mor
fromio, sacerdote de Capadocia. Eustathio reu durante esta contenda.
foi desterrado.
Deposto Eustathio, trabalhou o concilio
para que Ario voltasse a Alexandria, aonde ESTADO DO ARIANISMO DEPOIS DA MORTE
Sancto Athanasio nuo permittiria que tor d ' a r io
nasse a entrar. 0 imperador, a instancias
do concilio, ordenou a Sancto Athanasio que
recebesse Ario, mas o sancto respondeu Atacado Constantino d’uma indisposição
quo não se recebiam na Igreja os que ha notável, c sentindo proximo o seu íim, en
viam sido cxcommungados. tregou cm segredo suas ultimas disposições
A adhesão de Sancto Athanasio ao con ao sacerdote ariano que sua irmã lhe rc-
cilio de Nicea irritara igualmente os mcle- commendára. Determinou-lhe que sómente
cianos e os arianos. Estes dous partidos se a Constando as entregasse, c morreu. N ul
reuniram contra elle, e o accusaram de ha las dividia Constantino por seus Ires filhos
ver imposto urna especie de tributo sobre o imperio: a Constantino dava as Galhas,
o Egypto, c de haver fornecido dinheiro a Ilcspanha o Inglaterra; a Constando a Asia,
alguns scdiciosos, de ter despedaçado um Syria, e Egypto; c a Constante a Illyria, Ita
calix, voltado a mesa d’uma igreja, c quei lia, c Africa.
mado 09 livros-sanctos. Tambem o accusa Finalmonto entregou o sacerdote ariano
ram de ter cortado o braco a um bispo me- a Constando o deposito que Constantino
leciano, c de se servir d1cllc para opera lhe confiara: e como esta partilha lisongea-
ções magicas. va muito a sua ambição, concebeu affecto
Por si mesmo reconheceu Constantino a c respeito a este padre, deu-lhe credito, e
falsidade das duas primeiras accusações, e lhe ordenou que o viesse vér repetidas
quanto às outras commetteu a averiguação vezes.
aos bispos, que se congregaram em Tyro 0 valimento do padre ariano para com
no anno de 334. o imperador o fez bem acceite da impera
Os bispos da Libia, Egypto, Asia e Eu triz, e lhe facilitou estreitas amizades com
ropa, juntos em Tyro, aeputaram alguns os eunucos, partieularmente Eusebio, ca-
bispos arianos a Alexandria para synaica- marista-mór de Constando, que elle tornou
rem contra Sancto Athanasio, o qual desde ariano, assim como a imperatriz e as senho
logo protestou contra tudo o que o concilio ras da corte. Diz Sancto Athanasio que en
resolvesse, e se retirou para Jerusalém, tão os arianos se tornaram temíveis para
aonde estava então o imperador. 0 sancto todos, porque eram sustentados com o cre
foi considerado culpado segundo as infor dito das damas. 1
mações do Egypto, e os bispos juntos em Communicou-se logo o veneno do aria-
Tyro o depozeram pelos crimes de que era nismo aos cortezàos e á cidade ^Antio
accusado. chia, onde Constando tinha a sua ordina
Deposto que foi Sancto Athanasio, o im ria residência, e d’alli se derramou por to
perador escreveu aos bispos que immedia- das as provincias do Oriente: «Em todas
mente viessem a Jerusalem, para alli faze
rem a dedicação da igreja dos apostolos, e 1 Socrat. I. 6, c. 33.
ARI 217
as casas sc via, diz Socrates, uma guerra tinopla a Paulo, mas o povo amotinado pOz
•de dialectica, que-logo produziu unia dis fogo á pousada dc Hermogenes, prendeu-o,
cordia e confusão geral.» e atado a uma corda, depois d’arrastado pela
Suspenderam o zelo de Constancio pelos cidade, o matou a pancadas. Então Constam
arianos, as guerras dos persas, a sublcva- cio em pessoa foi a Constantinopla, puniu
■ção dos armênios, e as sediçòcs dos exer o povo, e lançou fóra a Paulo, que sc re
citos, mas logo que voltou a Constantino- fugiou na Italia junto ao papa Julio.
pla, fez celebrar abi uni concilio composto A cila se tinham retirado também San
dc bispos arianos, os quaes depozeram da cto Athanasio c muitos*orthodoxos, que alli
•cadeira da mesma cidade a Paulo, substi- viviam tranquillos debaixo da protecção de
tuindo-o por Euscbio dc Nicomedia. Constante, o qual compadecido das divisões
Depois da deposição dc Paulo, partiu que perturbavam a Igreja, escreveu a Cons-
Constancio para Antiochia, para fazer a de tancio, empenhando-o a convocar um con
dicação dTima igreja que Constantino edi- cilio ecumênico, para restabelecer a paz.
ficára. Alii sc ajuntaram uoventa ou no Sancto Athanasio e outros prelados roga
venta e sete bispos. ram a Çonstante que apressasse a celebra
Aprovei taram-se d’esta occasião Euscbio ção do concilio: o mesmo sancto lhe con
c os arianos, para afastar Sancto Athana- tou com as lagrimas nos olhos as calami
sio d’Alexandria, aonde ellc voltara de dades que os arianos lhe tinham feito sof-
pois que o ajustado encontro dos tres im frer, lembrou-lhe a gloria dc seu pae, o
peradores em Pannonia linha occasionado grande concilio que elle fizera congregar
a restituição dos bispos desterrados. Dcpo- em Nicea, c o desvello com que solidara,
zeram-no com o pretexto de haver tornado com a authoridadc das suas leis, tudo o que
-a entrar na sua sé de moto proprio, c Grc- os padres dicidiram n’aquelle concilio, ao
-gorio foi ordenado em seu logar. qual ellc mesmo pessóalmente assistira.
Constituído Eusebio o chefe e a alma da Como a dòr dc Sancto Athanasio brilhou
facção ariana, se fez um formulario de fé, muito em seus discursos c queixumes, pe
no qual se supprimiu a palavra consub netrou profundamente o imperador, e (
stanciai, e se enviou a todas as cidades. moveu a imitar o zelo de seu pae, de sort|
Passado algum tempo fabricou-se outro, que apenas acabou d’ouvir a Sancto Atha
onde se dizia que Jesus Christo possuía a nasio, logo escreveu a seu irmão Constau
•divindade immutavelmentc, que ellc era a cio, persuadindo-o a conservar inviolavel-
imagem sem differença da substancia, da menlc a piedade que Constantino, seu pae,
vontade, do poder, e da gloria do Padre. lhes deixara como por successão, e repre-
Finalmente fizeram terceiro, mas obscuro, sentando-lhc que aquellc grande principe,
áccrca da divindade de Jesus Christo, me havendo com cila assegurado o seu impe
nos a asserção dc que o Filho .de Deus é rio, exterminara os tyrannos, que eram os
perfeito. 1 inimigos dos romanos, e subjugara os bar
• Era pois a divindade de Jesus Christo baros. 1
bem constante, c ensinada na Igreja muito Acordou Constantino com seu irmão a
universalmentc; pois que o partido d’Euse- convocaeão d’um concilio, para o qual os
bio, que se compunha de homens conspi bispos do Occidente c do Oriente se con
cuos, inimigo violento dos orthodoxos, e gregaram em Sardica no anno de 349; mas
omnipotente na presença de Constancio, os orientaes se retiraram logo a Phyloppoli,
. não se animou a impugnal-a, c reconhecia cidade de Thracia, que obedecia a Constan
a, divindade dc Jesus Christo, negando a cio, porque os occidentaes não quizeram
sua comubstancialidade. Este partido d’Eu- excluir do congresso a Sancto Athanasio,
sebio foi o mesmo a que chamaram semi- visto que ellcTòra declarado innocente pelo
ariano, opposto aos arianos, mas sempre concilio de R om a.2
unido a clles contra os catholicos. Juntos em Sardica, os occidentaes con
N ’este tempo morreu Eusebio, bispo de servaram o symbolo de Nicca, sem mu
•Constantinopla, é o povo restabeleceu Paulo; dança alguma, declararam innocentes os
mas os eusebianos elegeram Macedonio, e bispos depostos pelos arianos, c depozeram
se formou um scisma e uma guerra civil, os principaes cabeças dos mesmos. Em re
que encheu Constantinopla dc perturbações presália os orientaes confirmaram tudo o
e de mortes. que haviam feito contra Sancto Athanasio
Constancio mandou Hermogens, general
d e cavalleria, para lançar fóra de Constan- 1 Vic de S. Athan. por Herman, t. I, l.
5, c. 28, pag. 527.
1 Socrat. I. 2, c. iO. Hilar. Synod. 2 Socrates, L 2, c. 20.
318 ARI
e contra os mais bispos catholicos, separa Seleucia, no qual vinha expresso que o Fi
ram da sua communhão os que haviam lho de Deus era similhante a sou Pao em
communicado com os bispos depostos, c substancia e esscncia, mas supprimia-se a
fizeram um formulario de fé em que sup- palavra consubstanciai.
primiram a palavra consubstanciai. 1 O concilio de Rimini rejeitou a profissão
Feitos os concilios, os bispos juntos cm ou formulário, estando pelo de Nicea, a
Sardica o Phyloppoli voltaram ás suas res anathemalisou de novo o erro d’Ario. Ur
pectivas igrejas. sacio c Valente, que não quizeram assignar
Constante informóu a seu irmão Constan os anathemas- pronunciados contra Ario,.
d o do que se passára em Sardica, pedin foram também condemnados por consenso
do-lhe o restabelecimento de Sancto Atlia- unanime de todos os bispos.
nasio em taes termos, que Constando não O imperador desapprovou o concilio, e
lh’o pude recusar. «Tenho, escreve cllc, enviou aos bispos o formulario de Syrmich,
em minha casa, Paulo e Athanasio, dous para que o assignassem, com ordem ao go
homens que eu conheço serem perseguidos vernador de não deixar sahir de Rimini
por causa da sua piedade; se vós me pro- bispo algum sem que houvesse assignado;.
metlerdes rcstabeleccl-os c punir os seus c continha a mesma ordem que o gover
inimigos, eu vol-os enviarei, aliás cu mes nador desterrasse os que desobedecessem,
mo irci restituil-os ás suas calhedraes.» quando não excedessem o numero de quin
Pouco tempo depois, Constante foi ata ze. Resistiram os bispos de Rimini por mais
cado e morto por Magncncio: mas este, foi de quatro mezes, apesar dos maus tracta-
logo destroçado por Constando, que se tor mcnlos que soííreram, mas posto que não
nou senhor da Italia e de tudo o que Con estivessem inteiramente vencidos, parece
stante possuia. ram cmfim muito quebrantados. Então Ur
Constando tomou a felicidade das suas sacio c Valente, aproveitando-se do seu aba
armas contra Magncncio por uma confir timento, lhes representaram que cllos sof-
mação da pureza dos seus sentimentos, friam fóra de proposito, que podiam dar
crendo que Deus apoiava a sua fé, a sua fim a seus trabalhos c ás inquietações da
religião, pelas victorias que alcançava; con Igreja som serem traidores á fé, pois quo
vocou um concilio nas Gallias, fez condc- o formulário que o imperador lhes propu
mnar de novo Sancto Athanasio, e publi nha não era ariano, que cllc exprimia a fé
cou um edicto pelo qual seriam banidos to catholica, e não diíTeria do de Nicca senão
dos os que não o condemnassem. pela falta do termo consubstanciai, do qual
O papa Liberio pediu a Constando a concomtudo exprimia o sentido, porque for
vocação d’outro concilio em Milão, c iTisto malmente dizia que o Filho é similhante cm
consentiu o imperador. Iíavia alli poucos ludo a seu Pae, e não sómente por um ac-
orientaes: estes por preliminar requereram côrdo de vontade, mas ainda em substancia
que se assignasse a condem nação de San e essência.
cto Athanasio; oppozeram-sc os occidentacs, Os bispos, acabrunhados com as attribula-
gritou-se muito d’uma e outra parte, e por ções, deram ouvidos aos discursos de Va
fim se separaram os bispos sem se ultimar lente, e tomadas todas as cautelas possí
cousa alguma. O imperador desterrou os veis para prevenir as consequências que
que recusaram assignar a condemnação de podéssem tirar-se da mudança que ellos fa
Sancto Athanasio, e o mesmo papa Liberio, ziam no symbolo de Nicca, pronunciaram
que não quiz subscrevel-a, foi banido. em alta voz, c fizeram pronunciar da mes
Fatigado Constando de todas estas con ma sorte anathema contra todos os que
testações, quiz finalmente estabelecer uma não reconhecessem «que Jesus Chrisío era
paz geral, e- resolveu a convocação d’um Deus, verdadeiro Deus, eterno com seu
concilio para terminar todas as disputas, Pae, ou que dissessem que houve tempo
mas a difliculdade d’unir no mesmo logar em que o Filhò não existira.» N um a pala
os occidentacs e os orientaes, fez com que vra, pronunciava-so excommunhão contra
se congregassem uns em Seleucia, e outros todos os que, confessando *que o Filho de
em Rimini. Concorreram a Rimini mais Deus é Deus, não dissessem que existia an
de quatrocentos bispos, oitenta dos quaes tes de todos os tempos, que se podem concc-
seguiam o arianismo; Ursacio e Valente, bor, mas suppozeram alguma cousa antes
que. eram do mesmo partido, apresenta d’elle. •
ram ao concilio o formulário que haviam Tomadas estas precauções, os bispos con
feito em Syrmich antes que partissem para gregados cm Rimini assignaram ò formu
lário quo Valente e Ursacio tinham proposto,
1 Hilar. Frag. 2A, 22, 24. e obtiveram a liberdado de voltar ás stias
ARI 249
dioceses. O imperador obrigou os do Seleu- de Juliano, c expòr-se »á morte, do que au-
cia a firmar a mesma fórmula, e passou thorisar uma acção, que podesse deixar
logo a pronunciar pena do banimento a to suspeita a sua fe; mas elevado ao impe
dos os que recusassem assignal-a. 1 rio, entendeu que não devia perseguir os
Triumpha vam os arianos depois do con inimigos da religião; distinguiu cuidado-
cilio de Rimiui, c pretenderam que todo o samente os deveres de christão, e os de
mundo fosse ariano; mas é facil vér quanto imperador: como christão submetteu a sua
era ehimcrico oste triumpho. Elles mesmos fé ao juizo da Igreja, c seguiu todas as re
estavam d’isto tào persuadidos, que immo- gras, que cila prescrevia aos simples fieis;
diatamente depois do concilio alteraram o como imperador, creu não ter outra lei,
formulario de Rimini; e logo depois indu que a felicidade do imperio. 1
ziram Constancio a que convocasse outro Emquanto irtiperador, e legislador, se jul
concilio para reformar a profissão de Ri gou obrigado a fazer convergir todos os
mini, c declarar que o Filho era dissimi- animos, no pensamento da felicidade do es
líiantc ao Pac em substancia c em vonta tado, e a proteger para o mesmo dTeito os
des; e seria esta profissão a decima nona, cidadãos uteis, e virtuosos, de qualquer re
porém elles não ousaram deixal-a vir á ligião, c seita que elles fossem. Deu leis
lu z .2 em favor do clero christão, e do pagão: os
A morte de Constancio transtornou seus pontifices pagãos foram restituidos aos seus
projectos. Juliano, que lhe succedeu, odia privilégios, c se lhes decretaram as mes
va os primeiros funccionarios de Constan mas hoftras que aos condes.2
cio, c principalmente a Euscbio, camareiro- Elle nem quiz governar a Igreja, nem
mór: chamou os desterrados, e permittiu pronunciar sobre os seus dogmas, c leis;
a todos os christãos que professassem cm da mesma sorte que não queria, que o cle
liberdade cada um os seus sentimentos. ro tomasse parte nos ncgocios do imperio.
Então a fé nicena recobrou o seu esplen Assim, quando os bispos congregados na
dor, c o arianismo perdeu muitos sequazes. Illiria, lhe enviaram a sua decisão sobre a
Joviniano, que succedeu a Juliano, não consubstanciai idade do Verbo, c acerca da
cuidou mais que cm restabelecer a fé de necessidade de conservar iuviolavelmentc
Nicca, chamou Sancto Athanasio, c queria o symbolo de Nicea, lhes respondeu Va-
pôr em paz a Igreja; mas a brevidade do lcnciniano, que elle cria na decisão, c de
seu governo frustrou estes projectos, por- sejava que a sua doutrina fosse ensinada
ue reinou sómente sete mczes c vinte por toda a parte, cm tal fôrma, porém, que
ias. 3 Depois da morte de Joviniano, o não se vexassem aquclles que recusassem
exercito escolheu por imperador a Valen subscrever o juizo do concilio, para que
tiniano. Este principe sinccramcntc dado não se entendesse, que os que seguiam a
á fé de Nicca, e zeloso da religião christã, doutrina do concilio, mais que a Deus, obe
ainda não era mais que tribuno das guar: deciam ao imperador.3
das, qu.ándo conhecendo a aversão qué Ju Não vèmos que a tolerância, c protec
liano tinha aos christãos, e o seu zelo pelo ção que Valentiniano concedia a todas as
rcstabclccimonto do paganismo, não receou sociedades religiosas fizessem olhar este
patentear a sua dedicação pela religião principe como "um herege, ou inimigo da
christã ao proprio tempo cm que Juliano religião, ou lhe adquirissem alguma deno
dava provas do seu zelo pelo paganismo. minação odiosa, antes os mesmos authores
Valentiniano foi desterrado, e teria per ecclesiasticos nol-o representam coiuo um
dido a vida, se o imperador não receasse confessor.
tornal-o illustre com o martyrio. 1 Cha Os catholicos do Oriente não eram assim
mado do seu desterro, Joviniano o pôz na tractados. 0 principe Ariano, que iVellc
frente da companhia dos escudeiros da sua governava, zeloso até o furor, desterrou,
guarda: e morto Joviniano, o exercito o baniu, fez morrer muitos bispos, o catho
acclamou imperador. licos votados á fé de Nicea, e pôz em todas
Valentiniano, emquanto tribuno das guar as igrejas do condado do Oriente bispos
das, mais querería incorrer na desgraça arianos. A situação dos negocios do impe
rio não pormittia quo Valentiniano so op-
l ' Sosom. I. 4, c. 26.
2 lbid. Socrat. I. 2; c. 9o. Atlrni. de. Syn. 1 Socrates. I. 4, c. I. Sozam. I. 6, c. 6.
pay. 96. Titleniont, i. 6, 5, 21. Theodor. Hist. Eccles. I. 4, c. 6, 8.
3 Ammhiian. Marcei, pag. 308. Socrat. I. 2 Codez Theod. I. 15, tit. 7. Leg. I. Til-
3, c. 26. leuwnt, l. 6.
* Sozom. I. 6, c. 6. 3 lbid. Theod. ibid.
220 ARI
pozcssc ás crueldades de Valente. Assim, A moderação dos prelados catholicos tor
debaixo do governo d’cstes dous principes, nou odiosos os bispos arianos, que rejeita
o arianismo triumphava no Oriente, e a ram estas proposições; c houve cidades em
fé catholica se ensinava cm liberdade por que se viu o bispo ariano abandonado de
todo o Occidente; e sem que n’csto se empre todo o seu partido, oaltrahido pela doçaira
gasse força, ou violência alguma, o aria- do bispo catholico, conhecer a verdade, c
nismo ficou quasi extincto. No Oriente, pelo professar a consubstancialidadc do Verbo.1
contrario, os arianos tinham por si Valen 0 imperio estava no interior dilacerado
te, e contra si a maior parte do povo, que pelas facções, c no exterior invadido pelos
se conservava pennanentemente affecto á barbaros; c Graciano para melhor suppor-
fé de Nicea. tar o péso dos ncgocios do estado, associou
N’cste calamitoso tempo, sem temor das ao governo a Theodosio.
perseguições, se viram os Bazilios, os Gre- Mais zeloso que Graciano pela fé de Ni
gorios reprehenderem a Valente das suas cea, este principe fez uma lei cm que or
injustiças, e propugnarem com heróica fir denou a todos os seus vassallos, que se
meza pela consubstancialidadc do Verbo. guissem a fé, assienada pelo papa Dama-
0 Egyplo tinha estado cm socego, mas so, c por Pedro de Alexandria, declarando
por morte de Sancto Athanasio, querendo que sómente se reputariam catholicos os
os arianos pôr-lhe um bispo da sua seita, que a seguissem, e que os outros seriam
lançaram fóra Pedro, que o sancto orde tidos por infames, como hereges, c puni
nara seu successor. Oppozcram-sc os ca dos com diversas penas. Mas apesar d’cstas
tholicos cm favor de Pedro, mas os aria leis, os arianos fizeram assembléias, c ainda
nos alToutados por Valente, prenderam, po- muitos d’cllcs conservaram as suas cathc-
zeram a ferros, e mataram todos os que dracs.
o seguiam. Estava Alexandria como uma Sancto Amphyloco, bispo de Iconio, so
cidade levada por assalto. Os arianos se licitou íortemente o imperador para que
senhorearam logo das igrejas; caos bispos, coni elTeito prohibisse os convcnticulos dos
que elles, elegeram para o Egypto, se con arianos, mas Theodosio recusou constante
cedeu o poder de banir da Igreja todos os mente ás inspirações do seu zelo, c somen
que seguissem a fé niccna. 1 te cedeu a um piedoso estratagema, de que
Entretanto que o arianismo assim asso o sancto bispo se serviu para persuadir o
lava o imperio, os godos, c sarracenos o imperador, que não devia facilitar aos aria
invadiram; c occupado Valente cm defen nos a liberdade de se congregarem.
der-se d’estes inimigos formidáveis, cessou Acabava de ser declarado por Augusto,
a perseguição. Valente marchou contra os Arcadio, filho de Theodosio, e Sancto Am
godos; o seu exercito foi destroçado, elle phyloco, que se achava no palacio, nenhu
fugiu, e morreu queimado n’uma casa, cm ma demonstração de respeito patenteou por
que se havia recolhido.2 Arcadio. Reparou Theodosio n’isto, e lhe ad
Graciano, então unico senhor do imperio, vertiu, que fosse fazer-lhe a devida sauda
seguiu as maximas de Valentianiano, seu ção; entao o sancto se chegou a elle, e lhe
pae, deixando a todos em liberdade, para fez algumas carícias, como se fura a um
seguirem a religião da sua escolha, á ex- menino, mas nenhum d’aquellcs' signaes
cepção do manichcismo, phocinianismo, e de respeito com que era costume tracta-
dos sentimentos de Eunomio; e fez vir para rem-se os imperadores, c logo voltando-se
as suas igrejas os bispos que d’ellas ti para o imperador lhe disse, que bastava
nham cxpellido os arianos. Muitos dos con tcstimunhar-lhc' a elle os seus respeitos,
fessores, que voltaram dos extermínios, sem os tributar a Arcadio.
testimunharam maior amor á unidade da Theodosio, encolcrisado com esta respos
Igreja, do que á sua dignidade, consentin ta, mandou sahir de palacio a Amphyloco,
do que os arianos ficassem bispos, unin o qual ao retirar-se, lhe fallou assim: —
do-se á fé, e communhão dos catholicos, e «Vós vedes, senhor, que não podeis sofTrer
lhes pediram com instandas, que não au- a injuria que se faz a vosso filho, e que
gmentassem a divisão d’aquclla Igreja, que vos encheu d’ira contra os que lhe negam
Jesus Christo, e os apostolos lhes haviam o devido acatamento; pois não duvideis
deixado, e que as dissensões, c uma vergo que o Deus do Universo não aborreça da
nhosa paixao de dominar dilacerára por mesma sorte os que blasphemam contra o
tantas partes. seu unico filho, não lhe tributando as mes
mas honras, que a elle, e que deixe de abo-
1 Sozom. I. 6, c. 20.
2 Ibid. c. 39, 40. 1 Sozom. /. 7, c. 2. Socrat. I. 5, c. 2.
ARI 22i
minai-os como ingralos ao scu salvador, e nortancia encontrar a sua doutrina nos pa
bemfeitor.» 1 Theodosio, ao qual impediam dres dos tres primeiros séculos; principal-
razoes de estado, de prohibir os conventi- mento no governo de Theodosio, pois que
culos dos arianos, cedeu a este apologo do este principe se propunha a julgar pela sua
sancto, e promulgou uma lei, em que pro authoridade todos os partidos.
lubia as assembleias dos hereges. Não se havendo, pois, ajustado os chefes
Era o partido dos arianos nimiamente de parcialidade cm fôrma alguma nas suas
poderoso, e extenso, para que estas leis conferências, trouxe cada um por escripto
houvessem de se executar com exacção. o scu formulario de fé: Theodosio, depois
Continuaram os conventiculos, inquietaram de examinai-os, declarou que era sua von
os catholicos, e se tornaram mais denoda- tade, que se seguisse a profissão de Nicea,
dos. Além d’isto se tinham levantado ou prohibiu os conventiculos dos hereges, lan
tras heresias; e no interior do império ha çou fóra das cidades a uns, notou a outros
via uma agitação surda, mas violenta. com a infamia, c os despojou dos privilé
Emprchcndêu Theodosio restabelecer o gios de cidadãos.
socego, unindo todos estes partidos: man Comludo não foram observadas cm ri
dou vir os chefes á sua presença, a fim de gor estas leis. Theodosio as olhava como
obrigal-os a convir n’uma regra conunum, comminatorias, destinadas a intimidar seus
que podesse servir para julgar da verdade, subditos, a conduzil-os á verdade, e não a
ou falsidade das suas opiniões; c propuz a punil-os. Por mais d’uma vez renovou es
todos os partidos, c principalmente aos tas leis, promulgou outra cm que prohibia
arianos, que tomassem como regra a Escri- se disputasse em público sobre a religião;
ptura, e os padres que precederam a Ario. e ultimamcnlc, pelo fim do quarto século,
Não agradou aos arianos este meio, que exterminou de Constanlinopla todos os bis
havia sido suggcrido ao imperador por um pos, e sacerdotes arianos.
defensor da consubstancialidadc, e vendo o A imperatriz Justina, que reinava na Ita-
principe que ellcs rejeitavam a authori- lra, na llliria, e na Africa, debaixo do no
dade dos padres, que tinham precedido o me de Valcnciniano, seu filho menor, quiz
concilio niccno, eq u e as conferências nada restabelecer o arianismo, e prohibiu, com
ultimavam, ordenou a cada um dos chefes pena de morte, que se inquietassem os que
do partido que désse por escriplo o formu faziam profissão de seguir a doutrina do
lário de fé que queriam professar. concilio de Rimini: mas foram vãos osseus
D’esta maneira, recusavam os arianos, esforços: a profissão do arianismo era já
110'quarto século, estar pela doutrina dos velha, novas heresias absorviam uma gran
padres que precederam a Ario acerca da de parte do espirito de parcialidade, c de
consubstancialidadc do Verbo; c vem-se disputa; todos estes partidos se concentra
nos dizer no décimo sétimo, que os padres vam, por assim dizer, c os arianos não po
que viverem antes do concilio de Nicca, dendo estender-se mais, se voltaram d al
eram arianos, ou não conheciam a con- guma sorte sobre si mesmos, c para dar
substanciliadadc do V erbo! Sc tivesse ha alimento á inquietação do seu espirito, agi
vido alguma obscuridade no modo com taram entre si novas questões, dividiram-
que os padres se exprimiram sobre este se c formaram diversos ramos. Examina
dogma, por ventura os arianos, que pelo ram, por exemplo, se o nome de Pae con
menos eram também exercitados como os viría a Deus, antes que elle tivesse pro
catholicos na controversia, não teriam achar duzido a Jesus Christo, sustentando uns a
do n’esses padres os seus dogmas, da mes affirmativa, e outros a negativa, se formou
ma sorte que os catholicos? um scisma entre elles: outras divisões suc-
N’aquclle tempo nada poderam contra cederam a estas, c os partidos se multi
este dogma as passagens dos padres dos plicaram. Estes partidos não se communi
tres primeiros séculos, com que hoje se caram mais entre si, chamaram-se nomes
presume combater a consubstancialidadc odiosos, fizeram-se ridiculos, cahiram no
do Verbo, c teremos nós a ousadia de crér despréso, e insensivelmente se extingui-
que entendemos melhor estas passagens, c ram,'dc sorte que no fim do quarto século,
a doutrina dos tres primeiros séculos da já os arianos nao tinham bispos, nem igre
Igreja do que os mesmos catholicos, c jas no imperio rom ano.1 Todavia se con
arianos do terceiro c quarto século? Sem servaram ainda alguns particulares cccle-
dúvida havia entre os arianos homens
conspicuos, e aos quacs seria de muita im-
1 Vejam-se estes fa d o s em Socrates, So-
1 Sozom. I. 7, c. 6. zomenio e Theodoreto.
m A RI
1 Madamc Myer instituiu um legado pio 1 Veja-se toda esta disputa na Biblioth.
' de oito sermões contra o arianismo. Veja-se Ang. e dans M m oires Littéraires de la Gnui-
a Biblioth. Anglaise, t. 7. de-Brctagne.
15
226 ARI
naturezas a que a Escriptura chama Deus. consequência não se falhava da consub-
• Todos estes caracteres denotam uma stancialidade do Verbo, que é uma questão X
grandeza tão immensa, diz o doutor Bury, dilficilima, c infinitamente superior a capa
que depois de havermos fóilo todps os es cidade daqucllcs, aos quaes Jesus Christo
forços para descurtinal-a inteiramente, na e os seus apostolos annunciaram priincira-
da mais nos resta que a convicção de não mcnle 0 seu Evangelho.
a poder comprehender. Emfim, segundo 0 doutor Bury, no tem
Bem longe de que esta incomprehensibi- po de S. Justino tinham-se por verdadeiros
lidadc nos em peçadeter n'ellc a confiança christãos os que pensavam ser Jesus Chris
que de nós requer; por esta mesma razão é to um homem nascido de homem.
que crémos mclle, assim como nos confia Loke, assim como 0 doutor Bury, fez
mos na luz, porque aquclla mesma luz que um extracto de tudo 0 que dizem de Jesus
deslumbra os nossos olhos, quando os fita Christo os seus apostolos no Evangelho, e
mos no seu manancial, nos descobre todos nos actos d’aquelles que pretendiam con
os objectos sobre que ella cabe. verter, e por este meio imaginou alcançar
Eis-aqui quanto nos é necessario para quanto os apostolos requeriam dos chris-
crér em Jesus Christo. Não temos necessi tàos.
dade de conhecer mais da sua pessoa para Creu Mr. Loke, em consequência d’cste
crêl-o c obedeccl-o, assim como não é pre exame, que a religião christã tinha por
ciso ao viandante conhecer a natureza do base 0 dogma da redempção, c concluo que
sol para tirar d'clle as utilidades de que para conhecer a religião christã se devia
necessita: assim como 0 sol não alumia 0 examinar cm que consistia a redempção
mundo para attrahir 0 reflexo do diamante, do genero humano, isto é, 0 estado a que 0
ou os louvores do philosopho, da mesma peccado de Adão reduzira os homens, e
sorte 0 sol do alto não apparcce com al como Jesus Christo restituira 0 genero hu
gum outro desígnio, senão para trazer a mano ao da graça primitiva.
saude da alma. Os que d’ellc julgam de ou Pcrsuadiu-sc que aquclle do qual Adão
tra maneira 0 deshonram muito, e negam decahira, era de perfeita obediência, e de
mais verdadeiramente a sua divindade do signado no Novo Testamento pela palavra
que os hereges, pois que estes suppoem justiça. Durante este estado de obediência,
necessariamente alguma proporção entre habitava Adão no Paraizo terrestre, aonde
Deus e 0 homem. estava a arvore da vida, e d'clle foi expul
Não é preciso que saibamos de Jesus so depois da sua desobediencia, perdendo
Christo senão aquillo, sem 0 que, c impos desde aquclle momento 0 privilegio da im-
sível crermos n’elle. mortalidade. Entrou pois a morte no mun
O doutor Bury pretende provar pela res do; c eis-aqui como todos os homens mor
posta que Nosso Senhor deu aos judeus, rem em Adão, toda a sua posteridade que
quando elles lhe disseram: «Porque razão nasceu fóra do Paraizo terrestre havia de
nos tens em dúvida por tanto tempo? Se és ser mortal.
Christo, dize-o claramente. » Veio Jesus Christo amumeiar j.o s ho
Jesus Christo não lhes deu mais respos mens uma lei, cuja observância nao isém-
ta senão: * Que Deus era seu Pae.» Não cui pta da morte, mas lhes procura a felicidade
da em expôr os seus direitos, nada lhes diz de resuscitarem e de não poderem mais per
do que elle fora em si mesmo antes de to der 0 privilegio da ímmortalidade depois
do 0 tempo, mas somente 0 que era relati d’esta resurreição.
vamente ao mundo; supprimiu 0 que exce D’aqui paása Loke a examinar qual era
dia a sua intelligencia, contentando-se em esta lei, á observância da qual se promet-
lhes dizer quanto era bastante para pro tia a Ímmortalidade, e que fazia a essencia
duzir n’elles uma convicção saudavel. do Christianismo. Creu elle descobrir que
Não se poderá duvidar d’este sentimento Jesus Christo e seus apostolos olhavam co
no parecer do doutor Bury, se houver at- mo christãos todos os que criam que Jesus
tenção á simplicidade e ignorância d’aquel- Christo, Filho de Maria, era 0 Messias, e que
les a quem Jesus Christo annunciou prir nada mais pretendiam; portanto reduziu 0
meiramente 0 seu Evangelho, e á facilida essencial da religião christã a este unico
de com que os apostolos conferiam 0 ba ponto.
ptismo aos novos convertidos: a historia do Este artigo levava comsigo uma inteira
eunuco da rainha da Ethiopia, e tres mil submissão ao que Jesus Christo ensinara, e
pessoas convertidas n’um unico sermão de uma obrigação estreita de practicar 0 que
S. Pedro, provam que era jireciso saber elle tinha mandado: e èsta disposição do es
muito pouco para ser christao, e que por pirito suppunha também, no sentir de Loke,
ARI 227
um grande desejo de conhecer o que Jesus homens, c que faziam a essencia da sua dou
Christo ensinara, c de practicar os seus pre trina, c o fundamento do culto que viera es
ceitos: mas é claro no seu parecer que nào tabelecer sobre a terra.
se sabia da submissão que fazia a essên O principio fundamental de Bury, e Lokc
cia do Christianismo, quando havia algum é pois absolutamente falso: vejamos agora
engano acerca da doutrina e dos preceitos se a eonsubstancialidade do Verbo faz par
de Jesus Christo, c que por consequência te d’cstas verdades fundamentacs; e para
aqucllc que cria que Jesus Christo ensinara proval-o, mostrarei: l.° que o conhecimen
ser consubstanciai a seu pac, devia crér a to da pessoa de Jesus Christo fazia uma par
eonsubstancialidade; mas que os que criam te essencial do Christianismo; 2.° que com
que cllo ensinara ser uma creatura, deviam effeito Jesus Christo ensinou que clle era
rejeital-a. consubstanciai a seu Pae.
O author d’uma dissertação, que se acha
no fim da obra intitulada Ce Christianisme
raisonnable, pretende por este meio reunir l.° O conhecimento da pessoa e natureza de
todas as sociedades christãs, pois que todas Jesus Christo faziam uma parte essencial
reconhecem que Jesus Christo, Filho de Ma da doutrina que o mesmo Christo ensinou
ria, é o Messias, i aos homens.
riosidado, tinha corrido superficialmcntc naldo eram ligadas o formavam algum sys
quasi todas as sciencias, c adquirido tal re tema; o que parece é que eile odiava os fra
putação, que sc persuadiu ser capaz dc tu des e ecclesiasticos; e nada ha que nos con
do, ò* cahiu cm muitos erros. vide a suppôl-o theologo illustrado, por cuja
Eis-aqui os que cllc sustentava: razão não disputaremos com M. Chaufepie-
I. de, se clle foi um dos pcrcursores dos no
° A natureza humana, cm Jesus Chris-
/ to, c cm tudo igual á divina. vos reformados.12
V 2.° A alma dc Jesus Christo, logo depois Arnaldo dc Villa Nova, de alguma sorte
j da sua união, soube tudo o que sabia a di- foi o fundador de uma seita conhecida pelo
l vindade. nome de arnaldistas, que fez algum pro
3. ° O demouio perverteu todo o genero gresso principalmente na Hespanha. Assim,
humano, e fez acabar a fé. nem ás excommunhõcs, nem as cruzadas,
4. ° Os frades corrompem a doutrina nem dc os rigores da inquisição, que foram
Jesus Christo, não leem caridade, e scrào tantos nos séculos treze e quatorze, poderam
còndemnados. atalhar a liberdade de pensar c escrever;
o.° O estudo da philosophia deve dester- nem também a dos predicantcs e fanaticos,
rar-sc das escolas, c os theologos fizeram que produzi ram n’estc século infinidade de
muito mal cm scrvir-sc dellc. seitas, taes como as dos begardos, aposto-
6. licos, fraticellos, lollardos, etc.
° A revelação feita a Cyrillo é mais pre
ciosa que a Sagrada Escriptura. Um grau mais dc luz teria tornado ridi
7. ° As obras dc misericórdia são mais culas todas estas seitas, e as ha veria ani
agradaveis a Deus que o sacrificio do al quilado. As 15 proposições referidas foram
tar. condcmnadas em Tarrãgona pelo inquisidor
8. ° As fundações dos bcnoíhios ou das em 1317. Arnaldo dc Villa Nova chamado
missas são inúteis. a Roma para tractar com o papa Clemen
9. ° O que reune uma grande congrega te v, morreu na embarcação que o condu
ção de mendigos, c que lünda capellas ou zia, c foi enterrado em Gênova no anno de
missas perpetuas, incorre na condemnação 1313.
eterna. arnaldo de m ontanier — natural dc Pc-
•10.° O sacerdote que oficrece o sancto, sa cicci (ia, ha Catalunha,Ensinava que Jesus
crificio, c quem o faz oíTcrccer, nada do seu Christo c seus apostolos nada possuíam err
ofTcrecem a Deus. particular nem em commum; que nenluu
II. ° A Paixão dc Jesus Christo ó mais d’aquelles que trazia o habito dc S. Frai
bem representada nas esmolas, que no sa cisco sc condemharia; que este sancto de
crificio do altar. cia todos os annos ao purgatorio, c (Velle
12. ° No sacrificio da missa, Deus nãorava é os seus filhos, para os fazer subir
louvado por obras, mas só por palavras. paraizo, e finalmente, que a ordem d e »
13. ° Nas constituições dos papas nada Francisco
ha seria eterna.
que não seja obra humana. Foi citado perante o tribunal da inquisi
14. ° Deus não ameaçou com a conde ção, aonde sc relractou dc tudo o que tinha
mnação eterna os que peccam, mas tão só proferido; mas esta retractação não foi sin
mente os que dão mau exemplo. cera, e ellc dc novo publicou os seus delí
15'.° 0 .m undo ha de aç^«y^OLiumtL(dc rios. Prenderam-no segunda vez ua diocese
1335. t d’Urgcl, c Emyrieo, que n’ella era bispo,
"Todas estas differentes proposições são condcmnou a Arnaldo a cárcere perpetuo.
extrahidas de varias obras compostas por Isto prova que a ignorância não preserva
Arnaldo de Villa Nova; taes são os livros do erro, nem nos faz dóceis á verdade e
intitulados:— Da Humanidade, e Paciência obedientes aos superiores ecclesiasticos. Se
-de Jesus Christo, O Fim do Mundo, A Cari Arnaldo tivesse mais luzes, hem haveria
dade, e tc .2 publicado taes extravagancias. nem resisti
Não vémos se estas proposições em Ar- do aos superiores; tcl-o-iam desenganado.
a r n a l d i s t a s — Discipulos de Arnaldo de
1 Nicol. Emene, Direct. Inquisit, pag. V i l í a N ^ —
282. Edit. 1583. Niceron, loc. cit. Cent. Ma- ARTEMANO OU ARTEMAS— HcrCgO OUC h e-
gd. cent. 13, c. 4. Hofman. Lcxicon Dup. 14 gavaTTlivindãdc^u^Jesus Christo, cujos
saec. pag. 431. Natal Alex. saec. 13. D'Ar-
gentre, t. 1, pag. 267.
2 D'Argcntrc Ibid. Tritheni Chronie. Hir- 1 Prateol. Elench. Hist. Har. pag. 66. Fa
saygiensi, t. 1. ad ann. 1310, pag. 123. His- bricius, Bibliot. medix ctc. infim, l, 1. jug.
toire Prov. Catalauncs. 35o.
248 ATH
princípios eram os mesmos que os de Theo- nham junto do seu altar um balão, c asso-
doto de Bysancio. Veja-se este a r lig o .1 prando-o muito para estar bem inchado,
ARTOTYRiTAS— Ramo dos Montanistas, as- dansavam em roda d'ellc. Consideravam
sini cTiainailos porque offercciam nos seus este balão como um symbolo proprio para
mystcrios pào e queijo. Ellcs admittiam as exprimir que estavam cheios de Espirito
mulheres ao saccrdocio, e episcopato. Ti Sancto, porque lal era a sua pretenção.
nha Montano tomado a qualidade de refor Veja-se o artigo Montano 1
mador, c seus discipulos, levados do mesmo AscopnuGiiAs—O mesmo que ascitas.
espirito, procuravam continuamentc aper asçqwmtas—Especie de archonticos que
feiçoar a disciplina da igreja; c d’aqui vi despedaçavam os vasos sagrados pelo odio
nha que qualquer montanista que imagi que tinham ás oblações feitas na Igreja. Pu
nava um novo modo de honrar a Deus, fa blicaram os seus erros pelos annos de 173.
zia da sua práctica um artigo fundamental, Rejeitavam o antigo Testamento; negavam
e formava uma seita. Fazendo reflexão al a necessidade das boas obras, c as despre-
guns montanistas que os primeiros homens savam, presumindo que para ser sancto,
dos seus sacrifícios oíTercciam a Deus fru- bastava o conhecimento de Deus. Suppu
ctos da terra c producçõcs dos seus reba nham que cada esphcra do mundo era go
nhos, se persuadiram que deviam imitar a vernada por um anjo. 2
práctica dos primeiros patriarchas, c oíTere- Af^jELSiio*—1.°—Todo o homem dominado
cer a Deus pào e queijo. Como Montano ti pelos affèbtos, sujeita-lhes o seu pensar, e
nha associado ao seu ministerio de propheta por elles regula as suas acções.
a Priscilla c Maximilla, concluiram d’aqui Um bem longo cathalogo de aberrações do
os artotyritas que as mulheres podiam ser espirito humano, assaz conhecidas do todos,
promovidas ao saccrdocio c ao episcopato, nos patenteia a verdade de que o espirito
e não queriam que se fizesse diíTcrcnça al de cada um aflere por elles seus pensa
guma entre os dous sexos para o ministé mentos, que em seguida procura rcalisar.
rio da religião; pois que Deus não a fazia D’aqui vem que a sentença da Escriptura
na communicação dos seus dons,.c das qua a lingua falia segundo os desejos do cora
lidades proprias para conduzirem os fieis e ção, 2 explica a causa de tantos absurdos e
governar a igreja. disparates, que ao proprio indouto, não
A penitencia, mortificação e pesar de ha apaixonado, provocam o riso, c que toda
ver ofiendido a Deus, eram no parecer dos via teem todos achado defensores exalta
montanistas os primeiros deveres do chris- dos, e mais d um apologista frenetico que
tão. O mais essencial do ministerio consis lhes procura o engrandecimenlo.
tia em fazer nascer no coração dos chris- 0 erro c a falsidade poderíam por ven
tãos estes sentimentos, e parece que os mon tura ser o resultado da razão, bem dirigida
tanistas suppunham as mulheres mais pró c regulada?
prias para inspirar nos homens aquelles Nao, por certo: mas então devemos bus
affectos, e mais capazes para os internecer car sua origem no principio opposto: e este
verosimilmente pela facilidade que pre será a má direcção da razão.
sumiram haver no sexo feminino para se Deve porém haver causas que a promo
apaixonar vivamente, ou para o pàrccer, vam e que convém averiguar.
ainda quando o não é, c talvez pela dispo Mas o nosso alvo hoje é sómente o atheis-
sição que elles suppunham nos homens para mo, ou a insensata opinião dos que ante
abraçar os sentimentos das mulheres, c in- pondo a razão com toda a sua limitação c
ternecerem-se sobre a infelicidade da que mediocridade, ao proprio creador que a
está afflicta, e penetrarem-se da dôr de que produziu, ouàam elevar seus vôos ainda
ella parece penetrada. além da eternidade, dizendo: não ha Deus.
Yiam-se, diz S.Epiphanio, entrar nas suas Depois d’isto, que serve de fundamento
igrejas sete donzellas, vestidas de branco, ao seu nome, já se não sobresaltam ao pen
com uma tocha na mão, para representar sar na aniquilação da propria substancia
as prophetizas; alli choravam e lastimavam espiritual, e com a intrepidez de espíritos
a miseria dos homens, e com estas afflic- fortes encaram um nada, onde resolver-se
ções conduziam o povo a uma especie de «
penitencia. 2 1 Aug. de Hcer. c. 62. Autor. Prccdcst. c.
Afiqijfcs—Seita de montanistas que pu 62. Philaslr. c. 75.
2 Thcod. Hcer. Fab. I. 1, c. 10. Jttig. de
1 Euscb. Hist. Eccl. I. 5, c. 28. Tlieodor. Hcer. Sect. 2, c. 14, § 2.
Hceret. Fab. I. 2, c. 4. J E x abundantia enim cordis os loqui*
2 Epiphan. Hcer. 49. Âug. de Hcer. c. 28. tu r. S. Lucas. c. 45.
ATH 249
•talvez no fim da pronuneiação daquella blas- Surdo aos gritos da consciência, secun
phemia. ' dada pela razão, em seus lucidos intcrval-
A causa d’estc systema absurdo é a cor los gritará espavorido:—Não ha Deus: de
rupção do coração, que allucina o entendi ora ávanle meus excessos serão permittidos
mento, dictando-lhe as idéias que deve for c a impunidade reinará.
mar para serem ambos coherentos. E mais um passo para a eternidade, e esta
0 desenganara sem remédio o louco que as
atheismo é, pois, uma ccnsequcncia ne
cessaria da depravação c perversidade da sim pensar!!!
vontade, sendo, como é, um producto im O dogma social da independência de toda
mediato do entendimento. a authoridade divina e humana, bem á ma
Sendo o gòso do bem, real ou apparente, neira da elevação d’um ministro corrupto,
•o fito de todos as acções do homem para o tem por base o axioma do poeta Epicureo:
obter, busca este todos os homens que a a utilidade e a fonte do justo e do honesto.1
não se dirigirem áquelle, cederíam ao aban Deixemos pronunciar o caracter dos que
dono. professam o atheismo por uma authoridade
Nenhum homem poderá recusar cm seu cm nada suspeitaL2 que assim se expressa
coração um logar á crença de um Deus, se a seu respeito: «S<7o almas manchadas, com
não quando deseje que ellc não exista por todo o genero de vicios, e capazes dos mais
via d’algum fim que repute um bem. horríveis crimes, que roflectindo que o te
A lembrança de que os crimes não fica mor do inferno vem algumas vezes pertur
rão impunes,"existindo um juiz recto, co bar-lhes o socego, c comprehendendo que
nhecedor de todas as circumstandas do cri lhes seria vantajoso o não haver Deus, pro
me, distante do suborno, e falsos juramen curam d’isso persuadir-se a si proprios»;
tos sem permittir nem ainda composição al e mais adiante: «desde o momento em que
guma das partes, faz estremecer o devasso o homem é capaz de ser atheu, e de fazer
que por um só momento se demore n’clla. esforços para chegar a ellc, está já possuí
E d’aqui proveem os contínuos desgostos, do dá mais espantosa malicia que póde ca
que ralam a consciência, os remorsos, com ber n’uma alma, c se Deus não faz um mi
panheiros inseparáveis do peccado, e os tor lagre para convertel-o, commctterá todos os
mentos que minam a existência, consumin crimes que poder, ainda que seja impossí
do-a a fogo lento. vel chegar jamais ao ponto de ser rcalmen-
Este estado, como violento e o mais in te atheu.»
ferior de todos os que podem sobrevir a Estas expressões, sahidas da penna do
um desgraçado mortal, não pode ser per propugnador ardente do atheismo, são di
manente c durável. gnas de se registarem como um brado in
N ’elle uma continua anciedade c inquie voluntário da verdade.
tação, cobrindo de sombras o espirito, um 2.°—Se do relance percorrermos essas
pesadello involvendo o coração, c uma pro paginas infames da vida dos atheus de to
funda melancholia fazendo-o concentrar dos os tempos, encontramos tal deprava
comsigo, ainda no seio das orgias mais fes- ção, e moral tão corrupta, que só a lem
tivaes, porque a consciência do crime, bem brança produz em nós bem penivel mágoa.
como o genio do mal, em toda a parte o per Mas qual a razão, de que na antiguidade
segue, o forçam a aproveitar todos os re sejam tão raros os atheus como esses abor
cursos c todos os meios para se subtrahir tos da natureza, só produzidos do tempos a
a tão deplorável posição. tempos, c que hoje sejam tão frequentes os
Um meio poderoso para o conseguir acha- que se dizem professar tão ccrcbrina opi
1-o-ia na expulsão das paixões, e nas cren nião?
ças religiosas, mediante o arrependimento e Seria n’aqueila época menor a corrupção
os tão efficazes recursos que a Igreja, mãe do que hoje?
carinhosa, subministra em tantos aos que se Antes pelo contrario.
lançam em seus braços. Então eram, no pensar dos homens des
Mas essas paixões, ah! não quer ou jul vairados, os deuses, os primeiros modellos
ga que não póde desarraigal-os, desapos- da desmoralisação, que sómente transluzia
sando-as d’um império, a que o coração se em todos os actos religiosos.
submettera voluntario. Não havia em tal caso interesse em ne-
E então que procurando o remedio no
trilho opposto, mais se entranha no mal; e
começa a levantar castellos no ar com que 1 Atque ipsa utilitas ju sti prope mater et
possa derrubar o throno de Deus, pelo me cequi. Horat. I. 1, satyr. 3.
nos do logar que occupava em seu coração. 2 Bayle Pensees divers. §. 177.
250 ATH
gar a existcncia cie Deus senão para os que os modernos o cardeal do Polignac, que no
queriam subir ao mais alio grau de corru seu Anti-Lucrecio fustiga os novos athle
pção, ou para os que não podendo conce tas da honra deEpicuro cm harmonia com a
ber a Deus com tacs imagens, se abraça crença de 18 séculos.
vam ao alhcismo, discorrendo que tacs deu E que homem, por mais cordato, não
ses não podiam existir, c que quando os obraria como Epicuro depois de adoptar a
houvesse reprovariam as suas desordens. maxima que nenhum prazer é mau de si e
Nos tempos modernos, pelo contrario, que só deve fugir-se d'e.lle quando d ’ahi di
possuidores das verdadeiras idéias religio manem maiores inquietardes que delicias?
sas, que foram reveladas pela propria ver Ha quem n*clle elogie a virtude da amiza
dade, em fórma visivcl, c mais necessário de; mas essa mesma era consequência le
o emprego d’este meio a quem o impulso gitima d’aquelle principio para gosar dos
das paixões guia cm seus actos. prazeres que cila produz.
É notável em abono do que dizemos, o , Da moral dos modernos nada diremos.
não apparccer um só que se diga atheu, E de todos bem conhecida para não des
cujos costumes sejam sem mancha e escân mentir o nosso pensar.
dalo, ou ao menos regulares no exterior. Todavia Bayle que não deixa perder ne
Os seus desejos injustos, arvorados cm nhum sophisma favoravcl ix(sanrtalH) causa
princípios, os compellem a considerar-se no do atheismo a par dTuna classe de quem
mesmo plano dos demais animaes c a crér não pódc desviar nossas accusaçõcs, diz ha
que com esta vida finalisou tudo para o ho ver outra a que chama de homens de gra-
mem, sendo a lembrança da outra uma fic vidade, alheios aos deleites e vaidades da
ção de timoratos, que "deveríam seguir o terra... a quem uma longa série de medita
conselho de Lucrecio—temer o Acqueronte ções profundas, posto que mal dirigidas, pre
é grande quimera—este vil temor deve ser cipitou no abysmo da impiedade.
cxpcltido d'alma. Eis-aqui uma inépcia que só a má fé de
A’ medida que cada um, condescendendo um cscriptor de talento pódc explicar.
com as proprias-inclinações, vai abrindo o Todos os que negam a existência de Deus
coração ao gosto dos excessos, a religião rejeitam a immorialidadc da alma, e por
começa de perder terreno. tanto com a m o$e tudo termina para ciles.
O mesmo acontece em maior escala nas Qual será, pois, a esperança que os ani
nações, porque são cousas incompatíveis. me á práctica da virtude, qual o incentivo
Quem ha que não conheça a devassidão que os conterá em seus deveres, quando a
dos costumes de Iloracio, Petronio, Lucre natureza viciada parece arrastal-os ao cri
cio, c todos os mais da escola de Epicuro? me?
Éstc tão digno mestre de discipulos tão Poderá contrafazer suas inclinações o ho
corruptos, foi o typo da immoralidade. mem que em acção nenhuma vé conse
É verdade que sendo o apostolo dos atheus, quências más ou funestas?
os modernos quizcrain vcndcl-o como vir Poderá ser alheio aos deleites sensuaes o
tuoso, sem queimarem os documentos con que adopta por dogma a fruição d’clles no
trários por impossível. maior grau que seja dado ao homem?
Buyle, seguindo os passos de Pedro Ga- Poderá ser homem de gravidade quem
zendó, a quem primeiro coube a gloria de nada vendo apoz este mundo, e fazendo con
acarretar, com eloquência sobre Epicuro sistir a felicidade no maior gôso dos bens
uma reputação de que nunca gosára, disse terrenos, os despresa c abandona sem um
d’cllc: poderoso motivo cm contrario?
«Epicuro que negava a jyi'ovidenvia e im- E u seria o primeiro a dizer que d’aqui
mortalidade da alm a/é um dos antigos phi á demencia não distaria intervallo.
losophos que viveu exemp!armente.* A ideia de atheu repugna esscnoialmentc
Porém asseveram o contrario.como mais com a de homem de gi-avidade, alheio aos
conhecedores da verdade Cicero, Plutarco, deleites e vaidades do mundo.
Sexto Epirico, Seneca e Atcnco do tempo de Nem todos, ó verdade, teem os mesmos
Commodo, qtie pinta os jardins de Epicuro vicios e o mesmo grau de corrupção, por
como um lupanar de devassidão, em cuja que algumas vezes não deixa isso do de
loria teve não pequena parte a decantada pender da differença de temperamentos que
£ eoncia. faz variar as inclinações.
Segundo a fé que nos merecem escripto- Porém o que dizemos é que lodo o atheu
res, assaz contemporaneos, escusado é ou cede ao impulso das paixões para que mais
virmos a este respeito S; Clemente Alexan propende.
drino, Lactancio, Santo Ambrosio, e entre 3.°—Concordamos que pódc concorrer
ATII 2ol
para aquclla opinião absurda urna longa se compatibilidade entre o vicio e a virtude, o
rie dc meditações profundas mal dirigidas. não, querendo resistir á propria inclinação,
Estas, porem, cm si sãu já uma conse para serem concludentes buscam princí
quência do perversidade do coração, que pios em que basear seu proceder.
ou aspira á impunidade do vicio, óu abun Para que o athcismo, porém, fosse o re
da cm orgulho, superior á crença das ver sultado de meditações profundas, cumpria
dades que os outros creem lirmcmentc que os athcus se applicassem com serieda
como manancial de felicidade. de ao estudo religioso.
São, pois, estas meditações um producto Mas não é isto o que acontece.
da vontade que para aquclle lado inclinou Os dias e as noites, de ordinario, são por
o entendimento. Supponhamos a um ho elles dissipados na escola de todos os pas
mem em tudo bem regulado, que por isso satempos e dissoluções.
não tivesse interesse cm negar qualquer Só buscam cm grande parto os livros
verdade religiosa. nalgum intervallo para desenfado, o entre
Quanto aos preceitos moraes, que por si estes sómcnto os immoraos e obscenos como
mesmo cumpria já, não tardaria cm rcco- guia de seu proceder, que sabe consequên
nbccçv que elles sómente prohibem o que cia legitima dc taes princípios.
um bom c carinhoso pae vedaria aos seus O sarcasmo, as ironias, a irrisão dos mi
filhos; e que pelo contrario só determinam nistros sagrados e de tudo o que seja reli
o vantajoso que é. gioso, dc envolta com aleivosias, são repeti
Os mesmos athcus dotados de amor para das com applauso nas conversações, c as
com seus filhos, procuram desviar-lhes o sembléias.
que elles teem haurido a longos tragos. Mas nada manifestam tanto como a pro
E isto equivale a uma confissão tacita do pria intenção, pois que taes ditos cm ne
que formalmente os condemna. nhum parallelo podem estar com o argu
Na crença, porém, das verdades dogma mento mais infirme.
ticas não vaciliaria um homem tal, visto que Este gcncro dc atheus, hoje mais salien
cilas algumas vezes produzem no espirito tes, são em tudo similhantes ao antigo Lu-
uma força de persuasão invencível aos so- ciano, excepto na educação, talento e elo
phismas mais ardilosos, quando se abafam quência pela maior parte.
as paixões. São estes os que com o manto do ano-
Não fosse porém assim. nymo, por não quererem parecer o que são,
A religião propõe aos lieis os seus manda procuram em folhetos que cheguem as mãos
mentos como prêmios infinitos,c commina a da classe imperita da sociedade c falta de
contravenção com penas lambem infinitas. critica—o povo—dissiminar as idéias anti-
O athcismo, d’outro lado, tem como prêsociacs destruidoras da propriedade, dos di
mios a impunidade do crime com a per reitos antiquissimos, e da religião.
missão dc todos os excessos, nivelando a Não se pejam de dar a um público pro-,
morte do homem com a dos mais animacs, vas de crassa estupidez e perversidade des
cujo encanto só poderá attrahir o devasso. marcada, deturpando os factos, de que só
Mas não tem saneção penal. aproveitam os que lhes convcem.
Em vista d’isto o homem prudente não llazão tem de pur um véo sobre o nome
hesitaria na escolha, porque este sempre quem espalha aleivosias c quem mostra que
procura o partido mais seguro. nem ao menos tem ouvido uma só regra dc
E só a razão desapaixonada vendo as ter dialectica.
ríveis consequências dos excessos, e fazen Crimes individuacs, filhos da fragilidade
do-os evitar, aplainaria o caminho para a humana, não se podem lançar cm rosto a
crença religiosa. uma classe, quo não póde obviar aos des-
A carreira, pois, do vicio trilhada pelos varios dc todos os seus membros.
athcus manifesta ser este o interesse que Do contrario todas as instituições, por
d’ahi colhem. mais sagradas, teriam de derrubar-se, c tc-
Perdido este interesso voltam por si mes riamos de pretender o impossível de que
mos ao seio dà religião. todos fossemos anjos.
Em nosso abono corre a experiência. Se um sacerdote commette excessos, não
O homem com um vicio inveterado, para é a Igreja quem lh’os approva, antes con
o justificar, procura todos os subterfúgios, demna, nem somos nós quem lh’os louva
torturando quanto pódc a razão. mos, antes censuramos, mas sómente den
Mas a is.to estão mais siijeitos os homens tro de nossa alma, ou na presença da com
sábios. petente auíhoridade como caridosos.
Estes não conhecendo, como o iguorante, Comparemos um tal sacerdote, filho do
252 ATH
peccado, com esses apostolos zelosos que para os infamar c ultrajar, os alcunham do
por entre todos os perigos transportam aos estúpidos e hypocritas.
povos incultos a religião c a civilisaçao; Mas os factos provam-se com testimunhas
e procuremos tal dedicaçao nos das ou e isto não o fazem.
tras communhõcs a beneficio da humani São asserções gratuitas.
dade. Votemos, portanto, os encobertos authores
Cotejemos este com esfoutros, que aflfron- da mentira a abominação, ou antes á com
tando todos os aleives que lhes cospem os paixão; por isso que com sciencia super
sybaritas do tempo que anhelam pelo me- ficial ou de novellas o seu forte esta no
lhorainento da sociedade, missionando no grande numero dc companheiros iolatium
paiz que por desgraça tanto carece de mo est miseris socios habere malorum.
ralidade, a cuja falta se deve o atrazo da E diga ainda alguém que o atheismo não
•civilisaçao. é producto em sua origem de coração in-
Os eminentes serviços dos missionários quinado, pelo menos, do desejo do crime c
pesam tanto no coração dos impios que, do vicio.
CAPITULO I
Um Deus, author soberano de todo o uni Senhor a Moysés, seu servo; e por elle nos
verso: uma religião sancta e divina, que o revelou a nós.
glorifica e o honra: uma reveláção que an- Parece incrível que haja quem ponha em
nuncia seus dogmas e fixa, outrosim as re dúvida a existência do Ente Summo,—prin
gras dos costumes: um deposito sagrado da cipio de todos os outros entes c causa d’cl-
mesma revelação augusta nas Escripturas les!... Parece mais incrível ainda que se en
e na tradição: uma zeladora incansável que contrem desgraçados que afincadamcnte a
vigia por ella, e a guarda pura; bem como neguem, se obstinem em contrarial-a! 1...
uma mestra infalhvel que nol-a explica, Ha todavia uma e outra cousa, digo-o
abrindo-nos seus sentidos com segurança e com extrema mágoa.
acerto; uma zeladora e mestra na Igreja do Por similhante motivo a demonstração
proprio Filho de Deus: seis verdades altís d’aquella existência soberana não póde—
simas, cujo conhecimento é essencialmente não deve falhar aqui. Ella assim como é,
. necessario a todo o homem que vem a este em geral, o fundamento de toda a verdade
mundo;—verdades altíssimas, cuja profis religiosa, é por isso também a que presta
são explicita se torna indispensável absolu o alicerce firmissimo a todo o systema de
tamente para que ao mesmo homem seja evangélica doutrina que.m e hei proposto
dado obter, alfim, a eterna bemaventurança estabelecer e explanar nas paginas d’este
que ao crente é ao christão está promettida diccionario.
nos céos. Entretanto, a despeito da sua importân
Nós—sdgundo nos cumpre—respeitan cia supretfia, serei mais breve no desenvol
do-as com acatamento profundo, tractare- vimento de objecto tão magestoso, do que
mos de todas. Hoje começaremos pela pri terei de o ser, por ventura, na exposição e
meira d’ellas, base de tudo e de todas, de na prova de bastantes mais assumptos, com
baixo de qualquer consideração em que se os quaes tenho de me occupar n’este tra
contemple:—a existência d’um Deus. balho a que me submetti de presente.
É elle aquelle Ente Perfeitíssimo que A existência de Deus brilha de per si como
existe desde toda a eternidade, porque o sol aos olhos do homom—mesmo o mais
existe de si:— existe pela virtude da. pro simples, o mais acanhado até em intelligen-
pria natureza.—E u sou o^que sou: dizia o cia. São poucos—bem poucos por fortuna—
ÀTH 253
aqucllcs que a contestam: a maxima par Monstro em humana fôrma, a que te aba
te... direi antes c melhor, a quasi totalidade lanças?!... Louco, miserável, insensato!!...
dos homens a adora e abraça. Tenho sobe Tira se pódes, tira Deus ao mundo, e re-
jas razões, por conseguinte, para mais de vê-te, mal aventurado, nos cíTeitos pavoro
pressa a commemorat* cheio de veneração sos de tua obra maldita. Queres um mundo
e de respeito, do que demorar-me com ex sem Deus?... Repara, vê bem. O que en
cesso em fazer d’clla longa demonstração. contras n’clle?...
Apenas aecrcscentarci alguma cousa ao que Encontras por toda a parte o vicio sem
já está dito: c accrescental-o-hei pela preci castigo; sem galardão a virtude. O mal
são contrastavcl tanto quanto pela conve vado triumphante; o justo abandonado.
niência manifesta, de consolidar bem o ci Nem aqui; nem na eternidade—que a não
mento sobre o qual tem de estribar-se o ha, senão ha Deus—aquelle será punido:
plano de instrucção c doutrina que mc hei será recompensada esta. Terá punição o
formado. perverso; o justo cantará victoria.
Quem lér ajuize e decida. Sem mais de Queres um mundo sem Deus?... Repara
longas entro na matéria. —Repara bem. O que encontras n’elle?...
Ha um Deus que nos crcou: este o pre Encontras homens sem freio: encontras
gão do universo inteiro. leis sem vigor: encontras paixões recres
E que sublime é elle!... Quanto é ma- centes: encontras feras sanhudas: encon
gestoso este annuncioü... Quanto é prazen- tras a desordem c o cahos: encontras a de
teira esta voz da natureza!!... Quanto nos solação e horror: encontras anarchia em
deve ser grata tal noticia!!... Quanto não tudo.
tem ella para nós de consoladora e de van Mas virai o quadro, miseráveis philoso
tajosa!!... Todos os motivos que mais po phastros: virai-o e cobri-vos de pejo:—en
dem interessar ao homem se reunem aqui. chei-vos de confusão e vergonha.
Se existe um Deus, existe não menos um Um Deus preside aqui ao mundo que
Pae que nos deu também a existência. E formou: é tudo grande: é ludo excelso:
qual é o pae que não ama, não protege maravilha é tudo.
seu filho?... O espectáculo do universo, que um Deus
Se existe um Deus, existe não menos um tira do nada c que um Deus governa, as
juiz rectissimo. E quem não folgará de que sombra por sua magestade: arrebata por
se lhe faça escrupulosa, imparcial justi sua belleza: surprende por sua perfeição:
ça?!.. encanta-nos por sua regularidade: falla-nos
Se existe um Deus, existe não menos um sempre de Deus: e não move só, arrasta ao
Senhor Omnipotcnte. E quem deixará de seu convencimento as intelligencias mais
CJ.S.n. FoxTíiià
se extasiar cm face de grandeza tanta, lar rudes: subjuga, prostra, triumpha das von
gamente despendida cm nosso favor, nosso tades até as mais obstinadas—mais duras.
proveito?... Os céos annunciam a magnificência de
Se existe um Deus, existe não menos um sua gloria; e no vasto—bello quadro do fir
Legislador Supremo. E a quem não alen mamento—véem-se debuchadas com pasmo
tará a ideia de que ha nos céos um Ente as grandezas de sua virtude immensa, os
Superior aos potentados, aos legisladores prodígios de seu braço vigoroso.
da terra, que lhes ha de pedir contas estrei Aqui a variada infinidade dos séres, que
tas do uso ou abuso que houverem feito do povoam a terra, nos suspende c nos enleia:
poder que se lhes confiou em beneficio a ordem de suas relações e dependencias
nosso?... nos espanta: a perfeição de sua estruetura
Se existe um Deus, existe não menos um admiravcl nos eleva:* a multidão de suas
bemfeitor munificente em summo grau. E propriedades portentosas nos deixa absor
a quem nãO inundará de consolação e de tos: c o curso sempre inalterado—em or
conforto, a quem não encherá de deliciosa dem ao fim que se lhes marcára, presta-nos
esperança uma certeza d’estas?... não menor occasião de nos repassarmos dos
Pae:— é o nosso protector e o nosso amigo. sentimentos mais vivos de veneração e de
Juiz:— ha de castigar o mau, premiar o bom. pasmo. A altiira dos montes, a profundi
Omnipotentc:—tudo regula para melhor dade dos valles: o matizado dos prados: a
em vantagem nossa. Legislador:—ha tudo fecundidade dos campos: a abundanda das
estatuído quanto é mister para o bem das fontes: o delicado das flores: o sasonado
suas creaturas. Bemfeitor Supremo:—ó elle dos pomos: a variedade dos fruetos: tudo,
a fonte incxhaurivel de nossos dons, nossas n’uma palavra, tudo quanto n’ella se apre
venturas. senta brada que existe um Deus:—tudo os
Atheu, o que te atreves a proclamar?!... tenta aos olhos do homem em extremo as-
254 ÀTH
sombro, quando cm tal repara, a riqueza, conduzir com segurança ao porto deman
a sabedoria c o poder do autlior soberano dado o frágil baixei que o vai sulcando.__
que a formou do nada. Nós vémos que tudo, n uma palavra, tudo
Alii,- remontando-nos á região dos astros, quanto n clle se apresenta brada que existe
se seu brilho nos cega e deslumbra a vista, Deus:— tudo ostenta aos olhos do homem
a constanda estupenda de suas leis inva em extremo assombro, quando cm tal re
riáveis, que o volver de tantos séculos não para, a riqueza, a sabedoria -e o poder do
tem podido desmentir no mais pequeno e Author Soberano, que o formou do nada.
imperceptível apice, abysma-nos com razão Além se antulham cardumes sobro car
e nos embaraça:—faz-nos vergar com ra dumes de animacs que giram c vivem na
zão debaixo dhim pêso incalculável de pro terra e nos ares, nas aguas e algum até no
fundissima adoração c respeito. Seu giro mesmo fogo:—animacs innumeraveis por
em orbitas nunca excedidas-e nunca en sua quantidade, variadissimos em suas cs-
curtadas: seu numero, além de prodigioso, pccies, distinctos uns dos outros cm subido
infinito quasi: as normas invariáveis pelas grau por suas propriedades c instinctos:—
quaes se regem, que já os chamam para se animacs que cada qual em si é uma mara
não distanciarem inconvenientemente, já os vilha da natureza por sua estruclura c m e
arredam e alongam para se conservarem chanismo; muitos por sua elegancia c bol-
em proporcionado intervallo: a força in leza;. todos, sem cxcepção, pela maneira
gente que suspensos os faz rodar sobre adequada com que estão organisados em
nossas cabeças: a influencia d’cstes: a massa ordem a seus destinos não menos que pela
enorme d,á*quellcs: a claridade d’uns: o invariável constância com que marcham ao
scintillar dos outros: tudo, n’uma palavra, preenchimento dos fins particulares para
tudo quanto n’ellcs se apresenta brada que os quaes tudo induz a concluir haviam sido
existe Deus:—tudo ostenta aos olhos do ho de principio persignados por uma sabedo
mem em extremo assombro, quando em ria infinita—por um poder sem limites:—
tal repara, a riqueza, a sabedoria e o po- c animacs que, -segundo a phrase concci-
ler do Author Soberano que o formou do tuosa do douto e piedoso arcebispo duque
íada. de Cambray, o insigne de La Mottc Fénélon,
Acolá nós vémos o mar em sua extensão ainda são mais dignos do admiração do que
incommensuravcl; e todos os plienomenos são os astros c os proprios céos.
grandiosos que n’ollo se observam são mais A ave com a plumagem que a cmbcllcza
que tudo capazes de nos transportar e nos e o receio constante que a protege e defen
encher de extasi — Nós vimos a espaçosa de: o peixe no seio das aguas.com suas es
congregação das aguas conservando com camas prateadas e sua reproducção incrí
cscrupulo o logar que no globo occupa, vel, fabulosa quasi: o leão com sua agili
beijar reverente, as balisas que se lhe pre dade c vigor, aterrando—dominando os
screveram, e que nunca será licito trans bosques: a aguia, reinando na região dos
gredir.— Nós vémos o successivo fluxo ares por sua intrepidez igualmente que pelo
o refluxo dos mares, agora fugindo preci terror que inspiram as garras dospodaça-
pitados do seu centro para as extremida doras de que a natureza a dotara: o ele
des, e logo deixando as extremidades para phante que cm instincto excede a todos, e
de novo se recolherem com força ao mesmo que mais do que instincto parece haver-lhe
centro, d’onde se apartaram.—Nós vémos cabido em sorlo intelligencia e razão: o cão
todos os rios correrem a desaguar no grande com sua fidelidade: o cavallo com sua ar
Oceano, que coinpletamente circunda a rogância c seus brios: o boi com sua força
terra e faz d’ella toda uma ilha immensa; e seu prestimo, submettido inteiramente na
vémos todos correrem a perder-se ahi, e os vida como na morte ao serviço o á utili
vapores, que d’elle se elevam, subirem e dade do homem: o veado com sua velo
condensar nos ares corpulentas nuvens cidade e suas fôrmas esbeltas:. a raposa
que devem mais tarde descer em copiosa com sua sagacidade e finura: o Gamello
chuva para humedecer—fertilisar o solo. com suas longas, pernas, e notável absti
Estes sabem sem cessar de seu vasto am-, nência de comida e de bebida por largos
bito para que se não transborde: aquelles dias, como lhe eonvém na vastidão dos de
veem de continuo confundir-se n’elle para sertos de que é habitador: a serpento na
que se não esgote.—Nós vémos o furor celeridade com que se arrasta, umas vezes
d’e»te elemento èmbravecido, arremessando mudamente, outras sibilla furiosa—furiosa
suas ondas ás nuvens e ás estrelías, e des se arremessa e salta: o castor no seu inte
cendo aos abysmos em cavernosas vagas, resse pelos trabalhos—particular o com
scrcnar-se ao leve aceno da divindade para muni—que influe sobre modo no espirito
ATH
do sociabilidade que mais que muito os dis —á face do espectáculo grandioso que nos
tingue, no governo de sua bem ordenada oíTcrecc em qualquer ponto em que o en
republica a que todo se vota c consagra: a caremos. Valente, porem, como já é, ella
abelha com seus segredos, com seu regi recresce mais e mais em força irresistível
men e grande proficuidade: os mesmos ver á medida que penetramos mais, também, no
mes que pisamos: os insectos que despre- seio da mesma natureza:—cavamos mais
samos: os animalejos pequeníssimos que fundamente na indagação e no exame dos
nos escapam á vista peia proporção ainda séres que constituem á maravilha do uni
assim de suas partes e orgãos:—todos, verso inteiro.
num a palavra, todos desde o maior ao me Por certo, o quadro da crcação é sur-
nor, desde o mais feroz ao mais manso, prendente em si e arrebatador: entretan
desde o mais elegante ao mais mal gciloso to, se a perspectiva do universo, conside
e nojento, todos e em tudo, quanto n’elles rado no seu todo portentoso, se essa per
se apresenta, bradam que existe Deus:— spectiva é grande e poderosa para levar re
todos ostentam aos olhos do homem cm ex cta e determiuadameute o homem ao co
tremo assombro, quando cm tal repara, a nhecimento d'uma causa que, por forçosa
riqueza, a sabedoria e o poder do Author necessidade, deve dc ser maior— muito
Soberano, que o formou do nada. maior ainda e mais poderosa—essa perspe
-Vem a proposito aqui, mais do que cm ctiva não 6 dc menor força e valor para
parte alguma, exclamar agora com o real nos conduzir seguros ao mesmissimo re
propheta:—Senhor... Senhor, que motivos sultado, quando nos entretenhamos apenas
lia para admirar o teu nome em toda a ex com a inspecção detida e refiectida de cada
tensão da terra! 1... Tua magnificência elc- uma de suas partes—as mais pequenas até
va-se ao décimo dos céos. São clles obra 'Deus, com quanto máximo, brilha por um
de tuas mãos omnipotentes. Tu fundaste a modo esplendoroso nos entes, minimos que
lua c as estrollas. E’ tua a terra em toda a sejam, a que a sua dextra excelsa deu a
vasta amplitude que te aprouve dispensar- existência, c fez d’cst’arte comprebende-
lhe. Teu é o universo, e tudo quanto iVelle rcm-sc no todo magestosissimo—no vasto
habita. Tu dominas sobre os mares, e sua c refulgente alcaçar da natureza creada.
força inqualificável: abrandas, tão depressa Embora as palavras sejam outras: haja
queres, o furor medonho das ondas embra- embora variantes nos termos com que an
vocidas. Todas as tuas obras dão testimu- tes o paraphrasiei do que o alleguei, é este
nho solemnissimo do teu poder—da tua va no fundo o pensamento digno d’um genio
lentia immensa. Senhor!... Senhor, que mo distincto da antiguidade, que merece recor
tivos ha para admirar e engrandecer teu dar-se a todo o instante; que a todo o ins
nome na vasta extensão de toda a terra!!... tante por igual se acha verificado com plena
—Bcmdito seja por vós o Deus do céo. cxactidào, com rigor indisivel.
Confessai perante os viventes toda a sua Eminet in minimis maximus ipse D e u s.__
grande misericordia-^sua vontade podero Tanto isto assim é, que sábios, muitos e
síssima. esclarecidos, hão demonstrado a existência
Assim cnmo o-determinava a TobiasRa- irrcfragavel d’um Deus pela consideração
pbael, o enviado de junto do throno do Al mesmo de cousás—ã primeira vista insi
tíssimo para o curar da cegueira em que gnificantes talvez. Toom-a demonstrado de
gemia; assim o devemos repetir com elle: uma maneira que se maravilha muito rião
ou diremos antes com os meninos da for convence menos. Teem-a demonstrado, dc
nalha ardente de Babilônia:—bemdigam, feito, por uma maneira terminante.
louvem c superexaltem ao Senhor suas Vedes aquelle verme pequeníssimo?...
obras para todo o sempre. Os anjos e os Nem vedes—inferis só pelo som que elle
céos, o sol e a lua, as aguas c as estrellas, ahi está e existe?... É um animal perfeito:
a geada e o orvalho, o frio o o calor, os nada lhe falta para que o seja completo. Se
gelos e as neves; noites e dias, luz e trevas, aquelle mal se percebe, se esto escapa à
relâmpagos e tempestades, montes c outei vista, cm que ponto serão seus orgãos—in
ros, rios e fontes; tudo que se move nas dispensáveis, essenciaes para a vida?... Pois
aguas, tudo o que germina na terra, tudo curvai-vos peraute os prodígios da Omni-
o que vôa rios ares, tudo. o que vive nos potencia!... Seu machinismo é acabado;
campos, todos os filhos dos homens louvem suas funeções regulares. Um c outro tem
e bemdigam o Creador Omnipotente:—lou corpo; tem cabeça; tem boca; tem coração;
vem e exaltem seu nome glorioso. tem entranhas. 'Este, como aquelle, tem
Tal é a prova evidente e incontrastavcl nervos; tem musculos; tem veias; tem ar
quo resalta do simples intuito da natureza terias; tem sangue; tem humores; tem tudo
256 ATH
— tudo quanto é necessario, e conformo é existência d’um principio infinitamente
necessario para fazer d’ello um sêr vivente, grande—poderoso infinitamente.
também construído e disposto como qual Este o Deus que devemos adorar. Só cllc
quer dos animaes mais nobres—mais avul- era capaz—o unico capaz de os conceber
tantcs. desde os séculos eternos, e de os produzir
Que poder!... Que saber!... para o orga- depois no tempo predeterminado. Se o Todo
nisar assim:—para assim o-constituir!!... Poderoso brilha nas grandes producções da
Oh!... Existe um Deus, sem dúvida. Pros- natureza, cllc não brilha n’estcs phenome-
tremo-nos na terra, cheios de pasmo e de nos minutissimos que passam para nós des
respeito, ante o throno elevado de sua glo apercebidos, porque não sabemos avalial-os.
ria e magestade suprema que nas alturas Eminet in minimis maxi7nns ipse Deus.
occupa. Estas cousas pequenas—estes ato Acerca de objecto tão indisivclmente gran
mos quasi imperceptíveis da natureza ani dioso resta infinito a expôr. Ainda que
mal— estes e outros ainda, deixai-m’o di pouco, alguma cousa mais cxpendcrci no-
zer, infinitamente ainda mais pequenos, le capitulo seguinte.
vam-nos, queiramos ou não queiramos, á
CAPITULO II
D e u s, su a e x istê n c ia
Deus!... Tirai meia dúzia, se tantos, de ho Então, accrcscenlo ainda, deve-se escre
mens dissolutos c perdidos, ambiciosos de ver sobre isto com calor, com efficacia, e
fama, anhelantes de celebridade, e eis ahi com insistência louvável para illustrar os
'tudo. rudes, que os impios se afadigam por per
Adverti, ainda assim, que esses mesmos verter. Deve-se escrever para desviar os
nem eram atheus: apparcntavam sel-o. Não incautos, suster alguns d’elles até que tal
■eram atheus da cabeça, eram-o do coraçào. vez já toquem as bordas do precipício hor
Não eram positivos,*eram negativos. Não rível para o qual os teem ido impellindo tei-
estavam persuadidos que não havia Deus, mosamente c com fúria. Deve-se escrever
desejavam que o não houvesse. As suas para atalhar muita perdição, ruinas lamen
vacillaçõcs, as suas contra dicções incessan tosas. Deve-se escrever para ao monos sal
tes n’cste particular o certificam de sobejo. var estes quando mesmo não seja practi-
Nem eram sábios, como pretendeis: eram cavel converter aquelles.
insipientes; porque só o insipiente é que Quanto ás nações que se inculcam igno
diz na forca do seu desejo—Não ha Deus. rando Deus, não lhe dando culto, quanto
Bem percebo o que mc objectacs:-—se a cilas, uma palavra basta.
não ha atheus, a que vem este teu afan e A historia desmente hoje narrações tão
trabalho?... se os não ha, supérflua cousa é insensatas, tão absurdos boatos. Ainda de
intentar rcfulal-os. proposito ou sem proposito, reina aqui ca
Não os ha verdadeiros; e todavia o que lumnia, como reinára alli. O barbaro que
•emprchendo, e immensos teem cmprchcn- mais longe parecer estar de toda a ideia
dido, é convcnienlissimo não só, é neces de Deus á primeira apparenda e quiçá de
sario mais que muito, é indispensável. pois de algum tracto; tractado mais de es
Não se dão atheus que o sejam verda paço, sondado a fundo, e interrogado com
deiros, repito, que o sejam de entendimen diligencia, deixa cntre-eonheccr para logo
to: dão-se, no entanto, alguns hypocritas a noticia indistincta, imperfeita embora, de
do atheismo, atheus que o são da vontade. um Senhor do mundo e d’um Deus. Teme-»
Estes poem tudo em acção para persuadir c o respeita.
.aos rudes erro tão fatal; para arrastar in O campo que oíTcrecc a demonstraçà
cautos a esta voragem medonha. Os fins, moral, é vasto, tão vasto como a terra tod.
clles os sabem (c eu lambem): o empenho Por agora não o explorarei mais. Não
que empregam n!islo, é ardente, ó incan consentem os limites d’um capitulo, cir
sável. cumscriptos em demasia.
«Então, rctorquir-vos-hei como o escla Quem desejar vêr este ponto perfeita-
recido padre Tournemin, deve-se então es mente desenvolvido, poderá consultar a
crever sobre a existência de Deus para obra que ha pouco publiquei, sob o titulo
confundir aquelles que á custa de falso ra da—Brado da Razão e da Fé,—pois que
ciocinar se quereríam tornar atheus deve na presente conjunctura não me c possível
ras, se isso fosse possível: aquelles que pre dar-lhe aqui maior desenvolvimento.
tendiam vêr se por simílhante meio se con
venciam de tal.»
CAPITULO III
D e u s. su a u n id ad e c su as p e r fe iç õ e s
aos israelitas, aue—só o Deus que os salvou aos hebreus, com o rei propheta, que o
da barbarie do Egypto, é o Deus verda throno do Altíssimo ha de permanecer até
deiro, á excopção do qual nenhum deverão ao século dos séculos, e que seus annos não
reconhecer. E’ n’ellas que está exarado por acabarão jamais. D’est’ai'te o evangelista
S. João no seu Evangelho, e por S. Paulo amado nos revela, prophetisando cm Pat
aos de Galatha, que:—Deus... Deus verda mos, que é elle o Alfa e o Omega, o principio
deiro só um existe. e o fim, segundo o mesmo Oinnipotente lhe
Eu sou o Senhor?!... E que Senhor!! É houvera dito.
um Senhor Excelso, que com a efficacia dc Eu sou o Senhor?!... E que Senhor!... É
sua vontade poderosíssima arranca o mun Senhor Immenso, incircumscripto, que tudo
do do nada; metteu a ordem no cahos; das enche e occupa.
trevas fez surgir a luz: um Senhor Excclso, Por isso Salomão ao consagrar-lhe em
que com a valentia de seu braço omnipo- Jerusalém o templo maravilhoso que fizera
tente tudo conserva, e sustenta tudo. erigir em honra do seu nome sacrosancto,
Assim é cllc o proprio que nol-o declara falia ao povo e lhe diz que nem o céo, nem
em repetidas passagens das divinas Escri- a immensidade sequer dos céos todos o
pturas. póde comprehender. Por isso David annun-
Alli elle nos certifica de que é um Se cia que em parte alguma é dado subtra-
nhor Todo Poderoso: um Senhor fortissimo, hir-se ao poder do seu espirito. «Sc subir
ao qual nada ha que seja impossível, nem aos céos, são suas palavras cmphaticas, tu
difficil mesmo. Alli se lê no Apocalypse, por alli estás; se descermos infernos, estás tam
entre louvores immensos, tão estrondosos bem presente.» Por isso os cherubins cia
como o clamor da multidão innumeravel, mam um para o outro, em Isaias: «És trel
como a voz das torrentes, como o ribombo vezes sancto, ó Deus dos exercitos, toda
de espantosos trovões, se lê o testimunho terra está cheia da lua gloria e da tua gran
reverente de todos aquelles que o temem, deza incommensuravcl.» Por isso em Jere
de todos os seus servos, grandes e peque mias o Eterno mesmo nos attesta que céo
nos, que clamavam, dizendo: «O Senhor é c terra é tudo occupado por elle. Por isso
na realidade um Deus Omnipotentem Alli, S. Paulo préga em Athenas, no centro do
desde o primeiro ao ultimo dos Livros Agio- Areopago: «Nós todos, sabei-o alhenienses,
graplios, começando no Genesis e terminan nós todos n’elle vivemos, n’ellc nos move
do no livro das visões do desterrado de Pat mos, existimos n’elle.» ,
mos, todos á uma apresentam provas ir- Eu sou o Senhor?!... E que Senhor!... E
refragaveis da sua virtude infinita, em que um Senhor que, juiz rectissimo, tudo e todos
creou os céos e a terra; o mar, e tudo o julga com uma justiça inteira: dá a cada
que n’elle ha; o que vémos c o que não um a paga conforme seus merecimentos.
vémos; o universo inteiro em toda a ma- Testifica-o assim Job quando enuncia que
gestade e esplendor grandioso de que se «está longe de Deus a impiedade; longe...
reveste. Bastou elle proferir uma palavra, mui longe do Oranipotentc a iniquidade.
nos assevera o Psalmista em sua phrase Elle retribue ao homem segundo os cami
sublime, bastou que proferisse uma palavra, nhos por onde o homem marcha.» Testifi
foi tudo feito; mandou, apenas mandou, e ca-o assim o aulhor do psalmo 9o, ao cer
tudo.existiu de quanto existe. «Elle... elle só, tificar-nos que «tudo exulta ante a face do
proclama Isaias, fez tudo: estendeu os céos, Altíssimo, que vem para julgar a terra:
deu estabilidade á terra com aquella dextra exulta porque a ha de julgar em toda a
otcntissima, com a qual (David o cantou sua amplitude, em sua vasta e extensa re
S epois) o mesmo é tocar os montes que re- dondeza, com a equidade que o caracte-
duzil-os a fumo: deu estabilidade á terra, risa: ha de julgar os povos* com a exacti-
para a qual se olhar attento, a fará tremer dão da verdade que constitue n’elle a pró
até aos fundamentos.» pria natureza, sua essencia sanctissima.»
Eu sou o Senhor!?... E que Senhor!... É Testi fica-o assim Jeremias, seu propheta,
um Senhor Sempiterno, sem principio nem muito antes de nascido, predesignado já
fim de siia existência, sendo antes o fim e para ser no meio das nações; por quanto
o principio de todas as creaturas. ahi se encontra exarado que cada qual tem
D’est’arte bem nos assegura Job que o a receber do Arbitro Supremo o que me
numero dos seus annos não é possível con recer de justiça, á medida do que lhe com
tar-se. D’est’arte Tobias o appcllida o Rei petir, attentas as veredas que houver bri
dos séculos, e Isaias nos affirma que é elle lhado. Testifica-o por modo igual b. Ma-
dos entes o primeiro, dos entes è o novis theus e-S. Paulo, ambos accordes em asse
simo. D’est’arte o grande apostolo assevera gurar-nos que «o Filho do homem ha de
264 ATH
vir acompanhado dos anjos em grande glo mesmo pelos animos os mais prevenidos:
ria, e que entào dispensará prêmios ou cas atteste-sc para essa reunião de circumstan
tigos, quaes forem devidos ás obras que se das notáveis, ainda na hypothese dc que
tiverem practicado.» se esteja preoccupado d’um sentimento ad
E u sou o Senhor?!... E que Senhor, em- verso. Encare-se, decida-se, e a valentia da
fiml... «É um Senhor tào bom como fiel, verdade triumphará de todos os obstáculos.
diz entre muitos o prophetico filho d1Amo*; Triumphará por certo; e quando hajam per-
tào sancto como misericordioso, declara, tinazes em a não querer confessar, elles
com bastantes mais, o sanctificado filho de proprios a sentirão cm si; dentro de si lhe
Helcias; tào cheio de sciencia como de pro tributarão homenagem.
videncia; tào digno de ser temido, tào di Os argumentos mais simplices são, por
gno de ser adorado, tào digno de ser ser vezes, os mais concludentes também. Vou
vido com pontualidade e escrupulo, como adduzir um pois que se em sua contextura
em um e outro dos Testamentos se nos é singelo, é irresistível na força de demon
conta a cada passo, nas phrases as mais stração evidente que encerra na propria
explicitas, nos termos os mais formaes.» simplicidade que o distingue sobre modo.
Vôdes esta consonância tào completa?... No universo, apesar de seu esplendor, que
Notaes esta uniformidade tào acabada, tào deslumbra, enxerga-se a mistura bem pro
perfeita entre a razào e a fé, que se pro nunciada c distincta de muitas perfeições
nunciam, no maior accôrdo, sobre o obje que encantam, a par de imperfeições não
cto relevante, por extremo dos attributos pequenas que o olfuscam e desfeiam. Veri
de- um Deus? Notai-a; pois convém, e mui- ficadas ellas, sua contingência é visivel. Sua
o, que a advirtaes. Notai-a, que. é de inte- contingência, uma vez manifesta, leva-nos
•esse, c de interesse summo, que fiqueis por forçosa consequência ao conhecimento
Telia possuídos, a ponto de não poder res- d’uma causa necessaria que lhe désse o
ar dúvida alguma, sér. Esta causa existe: esta causa é Deus.
Ficai todavia igualmente certos que mes Incontrastavelmente nada mais se precisa
mo por impossível, se a razão e a fé se ca que a só observação rcílectida do mundo,
lassem a tal respeito, a voz só do universo para sermos conduzidos sem esforço ao
nos bradaria tão alto... sua vista unicamente grande resultado, ao qual a philosophia de
poderia tanto, que ella, de per si apenas, mãos dadas com a revelação—philosophia e
seria assazmente esforçada para levar a revelação que sempre se auxiliam em ma
convicção n’este assumpto ao fundo dos co terias ao alcance da natural intelligencia,
rações os mais obstinados. Aquella perspe quando esta é divina, e aquella não é pre-
ctiva mesma do quadro assombroso Ja na tenciosa e falsa—ao grande resultado, ao
tureza que nos elevou directamente até ao qual a philosophia de màos dadas com a
conhecimento da existência de Deus, essa revelação celeste se empenharam ha pouco
mesmissima perspectiva, embora indirccta- por nos fazer chegar.
mente, nos sublima também ao conheci Por esta tanto quanto por aquella; por
mento seguro da existência de um só Deus, uma igualmente que por outra, está a to
e das perfeições infinitas que formam sua dos patente que o ente que creou céos e
essencia divina, terra, é um ente eterno, que sendo eterno,
É mister recordar que não ha effeitò sem é necessário não menos; sendo necessario.
causa. é independente, é infinito sem dúvida, e que
Cumpre se tenha presente que nenhum sendo infinito é perfeitíssimo na extensão,
effeito póde ser superior á sua causa. De como o deve... o ha de ser por força na in
contrario verificar-se-ia o caso estranho de tensidade também dos attributos que o re
dar alguém o que não tem, ou pelo menos vestem c o constituem.
de ir dar a outrem mais do que em si te Eis a conclusão a que queria trazer os
nha, o que repugna. que lêrem, fazendo-os profundar até ella,
Ponha-se tudo isto ante os olhos do espi com suavidade e sem custo. Resumil-a-hei:
rito, de um lado. é esta.
Colloque-se do outro -a magnificência, a Quanto a theosophia nos ensina dos attri
magestade surprendente do espectáculo que butos divinos, outro tanto a theologia reve
o universo offerece. No meio de tanto bri lada nos certifica ácerca dos mesmos attri
lho, a despeito de bellezas tào insignes, re- butos; e o que a primeira e segunda nos
flexione-se não menos que ainda assim des evidenceiam, a mera observação da natu- *
tacam da sua superfície; em seu seio se reza nol-o esclarece c convence. Pelos tes-
descortinam imperfeições não poucas, de timunhos da fé, pelos dictames da razão,
feitos bem perceptíveis. Encare-se tudo, pela simples reflexão sobre a vista da na-
ATH 565
turcza, o ente que crcou o mundo 6 neces feitíssimo e unico. Tal é Deus: perfeitís
sario c eterno. Este para ser necessario, simo e unico.
tem de existir dc si; para existir de si tem Reconheçamos sua existência; confesse
de ser absolutamente independente; para mos sua unidade; adoremos seus attributos
ser absolutamente independente, tem de ser perfeitíssimos, c suas perfciçòes infinitas.
infinito; para ser infinito, tem de ser per
CAPITULO IV
hebreus, impcllidos pela fome, da terra dc que o author, qualquer que ellc seja da Sa
Chanaan para a terra do Egypto; bem que piência, divino sem questão, canonico in-
mencione o fallar-se anteccdentcmcnto da controvcrsamente; que Isaias, que Daniel,
confusão das linguas, e dispersão dos loucos que Malachias, que a mão dos machabeos,
filhos dos homens, em pena da sua auda se expressam para significar a omnipoten-
cia c demenda manifestadas, a não restar cia do Excelso, feita manifesta na obra da
a menor hesitação, na fabrica da torre de creação.
Babel que tiveram o arrojo, quasi incon Po*ssuidos do mesmo espirito, é outrosim
cebível, de intentar elevar até ir emparc- com idêntica lucidez e emphasc, que S. Ma-
lhar-se cm sua summidadc com o proprio theus no seu Evangelho, que S. Pedro nos
céo; bem que ainda antes nos diga que o actos dos apostolos, que S. Paulo em suas
Genesis se occupa da divisão da terra pelo epistolas, que o discipulo predilocto, antes
descendente de Noé, nos assegura termi- no Evangelho e depois no Apocalypse, es
nantemente que os dous ernpenhos princi- tes como aquellcs se enunciam todos, pre
paes do grande legislador israelita, ao es- tendendo glorificar na feitura dos céos e da
crevcl-o, eram—mais que tudo, e primeiro terra o Senhor Supremo, cuja palavra, ella
que tudo, deixar consignada por um modo só, bastou para do nada que eram, os tra
incontrastavel a historia eminentemente as zer em breve á realidade da existência que
sombrosa da creação do mundo pelo Omni- houve por bem dispensar-lhes generoso.
polente, e a do começo do genero humano «Abrçihão, tu és abençoado pelo Deus Ex
que alli, em painel tão radioso, avulta como celso, pelo Excelso e grande Deus que
sendo uma notável, nobilissima parte em creou o céo e creou a terra.» É Melchise-
excesso, da mesma creação. dcch, rei de Salem, e sacerdote do Altís
Tanto este acontecimento estupendo, que simo, que correndo por celeste disposição
só um Deus podia planear, e só a um Deus ao seu encontro, lh’o vem annunciar, como
era dado levar ao cabo, é prodigioso sobre se vé no capitulo decimo quarto do divino
modo, e chega em si a ser, sem contesta Genesis.
ção, o maximo dos prodígios; outro tanto é Vês o céo com a toda a sua magnificên
surprendente não menos, e energica a lin cia?... Cuidado!... Quando o olhares exta
guagem que emprega para o referir o in siado, e admirares alli o sol, que espargindo
signe e venerando propheta, legislador de por toda a parte seus raios, faz em tudo
Israel. sentir a benefica influencia de seu calor vi
Disse Deus: «Faça-sc a luz.» E a luz foi vificante, quando o olhares maravilhado e
feita. admirares a lua que preside, na doçura da.
Tal é a phrase admiravel de concisão e sua claridade, ao silencio da noite, como
valentia, de que lá se serve para nos signi aquelle preside, na duração dos tempos, ao
ficar com valentia lambem o poder efficacis- bulicio dos dias, quando o olhares arreba
simo d’aquelle que com sua palavra ape tado e admirares alli os astros todos, que o
nas do nada fez existir tudo: luz, céos, terra, abrilhantam e ornam... Cuidado!... outra
mares, sol, lua, estrellas, os reptis e os vo vez t’o advirto. Não caias no erro de os
láteis, os peixes grandes e os pequenos, os adorares. Adora... adora um, mas o Senhor
animacs da terra, de toda a especie, c o ho teu Deus; foi eUe quem os creou.
mem, alfim, que lhe agradou creal-o á sua É este o espirito, e esta a intelligencia
imagem magestosa, c a sua similhança au das palavras com as quaes Moysés no ca
gusta. pitulo quarto do Deuteronomio cxhorta o
Tal é a phrase cheia d’uma sublimidade povo que libertava da tyranni a de Pharaó,
divina, que um homem inspirado pelo Altís e da durissima escravidão que o opprimira
simo soube... pôde achar mais que adequa no Egypto: este é o sentido das palavras,
da para nos dar a possível ideia da virtude com as quaes, depois de o haver excitado
poderosíssima do Eterno, que por efleito, á observanda dos mandamentos da lei, o
só e unicamente, de simplices actos de sua admoesta que se não despenhe no crime e
vontade irresistível, e dos abysmos inson- desvarios horrendos da torpe idolatria, para
davois do não ser, foi assaz potente para aa squerosidade da qual uma tendenda des
extrahir de prompto o mundo cm todo o graçada o arrastava sem termo. Ai de ti,
seu deslumbrante brilhantismo, o universo Israel, se o não fizeres!...
inteiro em sua magnitude espantosa. «A mão do Eterno alcançará pesada os
Dominados pelo mesmo espirito, é por que delinquirem. O Senhor é fogo, que
igual, com a mesma clareza e força, que abraza e consome. É um Deus cioso. A elle
Melchisedech no já citado Genesis, qúe Moy só adorarás, pois que só elle é de tudo o
ses no Deuteronomio outra vez, que David, Creador, munificcnte o poderosíssimo: —
268 ATH
dos astros no firmamento, dos peixes no der illimitado se estende sobre toda a car
seio das aguas, dos animaes que povoam ne.»
a terra, dos voláteis, que voltejam de con Tal ó a resposta resoluta c firme que Da
tinuo na vasta região dos ares. niel não trepida dar ao monarcha de Baby
«Vós o dissestes, ó Deus; e tudo foi para lonia, que sobre csje ponto o interroga.
logo chamado á existência. Vós lançastes «Por ventura não ha um pae para nós
um sopro sobre o nada; c eis aqui o uni todos?... Por ventura não ha um Deus que
verso appareccu creado. Não ha quem re nos crcou?...»
sistir possa ao brado da vossa voz omnipo- Pergunta Malachias, indignado com ra
tente, que abala os montes desde seus fun zão contra o orgulho fatal que leva triste-
damentos, e derrete as pedras como se fos mente o homem a despresar seus irmãos.
sem céra.» Esta pergunta, não menos que aquella res
É a bella e valorosa Judith a que assim posta, são ainda dous argumentos nervosos
se pronuncia, exalçado o grande Adonai, que a Biblia nos subministra; na creação
entoando-lhe hymnos cordeaes de louvor c se baseia; a omnipotcncia é visivcl.
sinceras graças pela maravilha de Bethu- E para terminar por uma maneira nota
lia, sua patria, a quem tanto amava, em velmente frisante, na ausência d’outras
destruição e ruina do inimigo feroz que a muitas testimunhas que omitto, deixarei
havia reduzido ás ultimas extremidades. que fallc a corajosa mãe dos maeliabeus.
«EUe o disse, e foi tudo feito: ellc o or Edifica, ao mesmo passo que instruo. Quan
denou, e tudo em continente foi creado se do arrebata, convence. Edifica c arrebata
gundo o ordenára.» seu proceder de heroina. Instrue e con
É o rei psalmista que a imita depois nos vence sua palavra inspiradora.
sons accordes da sua harpa divina, nas me «Filho, olha; repara bem para o céo c
lodias suaves de seu canto inspirado com para a terra; olha, repara bem para tudo
que celebra a valentia do author soberano, quanto n'elles ha; olha, repara bem que
do qual já outr’ora houvera dito: «que com isto tudo foi o Senhor que o arrancou do
uma palavra apenas, firmára os céos; com nada, como do nada lhe aprouve arrancar
o só espirito de sua bôcca déra instantanea igualmente toda a raça dos humanos, dos
existência ao apparato immenso da gran homens, a progenie inteira.»
deza e da magestade com que elles se or Por tal arte esta mulher forte e varonil
namentam. não hesita persuadir o mais joven de seus
«Foi o Excelso que crcou isto tudo; foi filhos em lace mesmo do cruel Antiocho.
pile quem fez que existissem todas as cou- Ella prefere vêl-os acabar entre tormentos,
sas que existem: elle que nem se alegra todos sete cm um só dia, e cila propria aca
jamais na perdição dos viventes.» bar com elles, á menor desobediência aos
Clama a Sabedoria no principio logo preceitos da lei suprema, que o Omnipo-
d’esse livro respeitável e sancto, que assim tente Creador do mundo se havia dignado
se intitula. Seu escriptor agiógrapho, no transmittir-lhes por Moysés.
empenho que tomou a peito, senão de re Aqui tendes textos bastantes das Escri-
petir as palavras, de referir por certo as pturas da antiga lei, e muitos outros se po
sentenças do famoso Salomão, é mais um deríam adduzir, se tanto fosse mister, ante
athleta robusto, que mandado do alto, se os quaes toda a contestação se torna absur
apressa a acudir decidido pela sustenta da: a dúvida sincera é impossível até.
ção e defesa d’esta verdade sanctissima. Se por crear se entende a producção do
Lê-se no Ecclesiastico que, sem a mini nada—-só pela força da vontade, pelo impe
ma excepção, tudo foi creado pelo rei invi rio dá voz do quê assim o quer e ordena,
cto. que vive desde os séculos eternos, e é isto o que nos asseguram fóra feito pelo
continuará a viver eternamente sem fim. Deus que tudo póde, ao dar a existência
Está escripto cm Isaias n’um trecho: ao universo, algumas e não poucas das
«que fôra o mesmo quem creára a terra passagens apontadas. Creação e omnipo-
em toda a extensão dos seus termos.» N e u tencià são n’ellas salientes no grau subido
tro «que os céos são creatura sua.» E ain em que o são os resplendores mais brilhan
da n’outros e n’outros, vezes repetidas e tes do sol em dia claro ao tocar seu zenith
por expressões bem formaes, que se en á hora meridiana.
contra aqui, além, consignada esta doutrina Nas demais, se desde logo que se enca
inconcussa. rem, esta verdade sacrosancta não translu-
«Não, eu não presto culto a Bel, falso zir a todos com vivacidade igual, com ful
deus que tu adoras; só o presto ao Deus gor tamanho, uma simples reflexão que se
vivo, creador do céo e da terra, cujo po faça, será de sobejo para apresentar ra-
ATH 269
CAPITULO V
Jámais doutrina alguma da religião teve arremessado sanhudos, tem investido com
por testimunhos, nem tantos, nem mais de furia.
cisivos, nem assim mais Crisantes, do que Folheie-se entre outros o Evangelho es-
a doutrina sancta da omnipotcncia do Eter cripto pelo discipulo bem amado, e logo
no, a crença arreigada em todo o Christia em seu principio, no principio mesmo do
nismo, da creação do universo pelo mesmo, capitulo primeiro, se irá dar de frente com
da suã conservação portentosa. a mais solcmnc declaração, em ordem a
Nunca algum outro dogma foi tão accor- similhante assumpto.
demente sanccionado nas paginas do Ve «Pelo Verbo do Eterno todas as cousas
lho e do N oyo Testamento; do Velho e do foram feitas (nol-o assegura em sua lin
Novo Testamento cm verdade, pois que ás guagem suave o apostolo da caridade); pelo
passagens que se lécm n’aquelle, apontadas Verbo do Eterno todas as cousas foram fei
muitas, que não todas, no capitulo prece tas em termos tacs, que sem elle nem um
dente, bastantes se seguem n’cste, bastan átomo sequer existiría do que existe feito.
tes se continuam a reproduzir em todo este, Omnia per ipsum facta sunt et sine ipso
que nada cedem ás primeiras na força de factum est nihil, quod factum est.»
provar, que as acompanha. Se elle fez todas as cousas, todas! se nada
De bom grado me não prevalecerei de havia na origem dos tempos, e d’esse nada
não poucas, que com quanto demasiado o foi tudo feito, ludo o que foi feito: se esse
demonstrem e o convençam, podem pro tudo que existe e que sahiu do nada existe
porcionar todavia commoda occasião, posto só pela palavra do Altíssimo: in principio
que por maneira alguma leal ou justo mo- erat Verbum... Omnia per ipsum facta sunt;
tivo, para teimosas contestações. se crear é tirar do nada para a existência
As incontroversas e claras superabun- pela virtude apenas da palavra, só por ef-
dam immenso. É d’ellas, c só d’ellas que feito d’um acto de vontade potentissima,
quero lançar mão para proseguir no con que é assaz valente para do nada extrahir
veniente desenvolvimento d’esta matéria, tudo, por quanto sobre o nada a nenhum
em summo ponto interessante. É com el- outro instrumento era, é, ou será possível
las, unicamente conv cilas, que tenho re por fórma alguma operar: se isto na reali
solvido collocar além do alcance dos tiros dade se passa por tal arte, eis o texto do
de raivosos adversarios esta materia altís ultimo dos Evangelhos, eis a omnipotencia
sima, que em todo o tempo c a todo o tran em toda a sua lucidez, eis a creação em
ce a orthodoxia ha sustentado com denodo; sua plenitude e rigor.
e contra a qual cm todo o tempo não me Por mais superficialmente que as phra
nos, já o erro nas trevas em que se ali ses precitadas se analysem, apparece em
menta e vive, já a impiedade na refalsada breve por um lado a omnipotencia d’aquelle
doblez que a caracterisa c distingue, se hão que do nada tudo produziu; por outro a
z 7 l) ATH
creação do universo arrancado a esse nada mas que em ontologia se demonstram n o
pela efficacia da palavra do Excelso, produ maximo da evidencia.
zido por aquella omnipotencia. Ento contingente é aquellc que não existe
Muito é isto para o esclarecimento da de si, mas d’outro. Como tal é dependente:
verdade, que se pretende desaíTrontar de como dependente não póde ser necessario:
todas as névoas, tornar incontrastavel a como necessário não é... não póde ser eter
despeito das mais furiosas investidas de no: como não é eterno, c todavia existente,
quaesquer ataques. Não parcis entretanto. não podendo ter de si a existência; não a
Levai ainda mais avante vossas investiga podendo ter sempre em ultima analyso d e
ções. Em objecto d’esta magnitude, de tão outro contingente também, porque haveria
transcendente importância, nada ha su n’esse caso o progresso anterior ao infinito
pérfluo. de causas contingentes sem alguma neces
Folheai, folheai comigo as demais escri- saria de que aquellas dependessem, o q u e
tturas da lei augusta do Crucificado. Fo- repugna; não a podendo ter recebido do
Í heài-as do primeiro ao ultimo dos seus li nada, por isso que então o nada, cllc p o r
vros: do Evangelho de S. Mathcus ao de si, seria a causa efficiente d’alguma cousa,
S. João, do Evangelho de S. João á ultima o que além d’absurdo é impossível intrin-
das Epistolas, da Epistola Catholica de S. scccamcntc, obstando-lhe como lhe obsta
Judas ao fim do Apocalypse, e por toda a o axioma, que do nada nada se fa z por s u a
parte encontrareis inequívocos testimunhos natureza c forca propria: é mister então,
que cada vez mais e melhor vos confirmem e é forçoso que a existência da cadeia d e
na exaclidão escrupulosa d’esta doutrina entes, que constituem o mundo, lhe tenha
sanctissima. vindo d’um ente necessário, que tendo o
Em S. Matheus está cila annunciada. Nos sér por virtude, toda c só sua, de ninguem
actos dos apostolos em mais d’uma párte dependeu ou depende.
se lê: Na Epistola aos fieis de Corintho, S. Tudo isto são princípios incontrastaveis
Paulo terminantemente a confessa, como perante a mais depurada motaphysica, e
o proclama outro sim além d’isto, primeira, princípios sobre geralmente acceitès aqui,
segunda, terceira, quarta, quinta e sexta já estabelecidos n’este mesmo capitulo, evi
vez, nas Epistolas aos ephesios, aos' collos- denciados já.
senses, e aos hebreus. No livro das Vi Certo tanto quanto isto é, faça-se appli-
sões do Desterrado em Patmos em di (Teren cação ao objecto sujeito.
tes logares ella se nos revela com inexcedi- 0 mundo existe; é de primeira intuição.
vel clareza. O mundo é contingente, porque é mudavel.
Ao facto agora dos oráculos das Escri- Esta ultima proposição é incontroversa não
pturas, consultai em seguida a tradição e menos por intuição que por experienda; e
os padres, os concilios e a Igreja, e todos a outra é sua consequência legitima.
se pronunciarão com voz unanime a prol Se o mundo porque é mudavel, é con
da certeza infallivel do ensino orthodoxo tingente, o mundo não é eterno. Se não é
da creação do universo. O crente tem ahi eterno e existe, é o eficito d’uma causa ne-
de sobejo com que fortifique sua fé contra .cessaria, e como tal eterna, independente,
as machinações incessantes dos impios e immutavel. Esta causa assim é Deus; é por
dos descridos. tanto o mundo feito por Deus.
Mas que!... porque boquejei em vós tanto De que o fez?... Por qual modo o fez?...
alarido, clamores tão desentoados?!... Por Tirando-o de si?... Impossível!... D’essasorte
certo a razão que vos assiste é nenhuma; elle seria uma parte ou uma emanação da
por isso vossa celeuma é tamanha. Calai- divindade; e um ente mudavel, um ente
vos, insensatos. Sei bem o que pretendeis defeituosissimo, um ente contingente não
dizer: eu vos satisfaço plenamente e de póde ser parte nem emanação essencial
prompto no que inculcaes tanto desejar. d’um ente necessario, immudavel, perfei
Calai-vos pois. tíssimo. Se o fôra, esse ente constaria por
Quereis a razão, que não a fé, para vos tal guisa de partes heterogeheas, repugnan
convencerdes?... Tel-a-heis; descansai segu tes mesmo, ou d’attributos que mutuamente
ros. A razão no entanto, ficai-o entendendo se chocavam e se destruíam, o que não
desde já, a mesma, a só razão sem a fé vos póde ser.
esmaga e subterra em vossa requintada, ou Tirando-o da materia preexistente o etor-
talvez, e mais depressa, em vossa affeclada na?... Impossível!... A materia de que o
incredulidade. universo se fórma não é eterna nem póde
Todo o contingente é mudavel, c todo o ser eterna. Conhece-se pelas mesmas ra
mudavel é contingente: são dous theore- zões d’intuição e d’experienda pelas quaes
ATH 271
se conheceu e reconhece que o mundo que perfeições possíveis, e todas e cada uma
se fórma d’ella, o não é por maneira al d’ellas no grau maior que é possível.
guma. Ora eis ahi o que ó um absurdo supre
Afora cilas, que a materia do mundo é mo. Se ambos os entes eternos que sup-
susceptível de mudança, e sendo-o, nào 6 pondes teem, todas as mesmissimas quali
nem necessaria nem eterna; o proprio fa- dades e perfeições intensivas e extensivas,
cto da transicção, na hypothese dada, em não são dous, é um, um apenas.
bora nào concedida, o proprio facto da Se ambos não as possuem, nem todas
transicçào do estado anterior para o estado nem as mesmas, nem na mesma força, ne
osterior á constituição do mundo, se se nhum d’ellcs por mais que lhe chamem é
ésse, o tornaria palpavel aos menos ver perfeitíssimo, e por isso não é eterno. Se
sados nos princípios da sciencia. um só as tem assim, o outro não, aquelle,
D’onde o tirou pois?... Do que resta; do e não este, é que é perfeitíssimo. Aquelle,
nada. Logo Deus é o creador: é creatura e não este é que é eterno. Consequente
o mundo. Vede... vêde aqui como a razào mente é repugante existirem dous entes
vos confunde. Ella diz isto, e diz ainda perfeitíssimos; repugnante também c exis
mais, mas isto hasta. Ao brado de sua voz tirem dous entes eternos. Ou um ou ne
ossante, vossas artimanhas feridas pela nhum. Se um, examine-se qual seja. A
ase se desmoronam miseravelmente. questão está entre Deus e o mundo, ou
Debalde... é debalde que sustentaes po quando menos entre Deus e a materia, da
der-se por um modo igual áquelle, pelo qual o mundo se diz haver sido formado.
qual se affirma que Deus é eterno, poder- A ser Deus eterno, o mundo não o é;
se .convencer que o mundo, outro sim o é, nem a matéria da qual se pretende que
ou pelo menos essa materia preexistente elle fôra feito o é, mas creada. A sel-o,
da qual nos falia quem assegura que elle quer esta quer aquelle, Deus não é eterno,
fôra feito antes que creado. c se o não é não existe Deus.
Sustentaes isso?... Muito bem. Dissestes Podia terminar já aqui o argumento, e
o que vos parecia ou aprouve: reparai no d’um modo triumphante. Era sufficiente
entanto n’uma só difficuldade que se vos para isso ponderar que a existência de
oppõe resoluta. Grande ou pequena, como Deus fica demonstradissima nos capítulos
vos agradar qualifical-a; tomai sentido em antecedentes, e que a eternidade do mundo
vós. Ella vos derruba c victima. Vinde, ou da matéria, que tende a destruil-a, é ira-
vós e ella, ante o tribunal d’uma razão es mensissimamente falsa, logo que d'ella se
clarecida, d’uma razão recta; vinde a este, segue um absurdo immensissimo, qual este.
visto que desdenhaes o supremo da reve Segue-se, a menos que se não queira sus
lação; vinde, allendei á sua sentença, c tentar o nefando pantheismo. Equivalería
acatai-a. proceder similhante a despenhar-se n outro
De duas uma. Ou o mundo é eterno, c abysmo não maior, que o não póde haver
quando não, elle, a materia preexistente igual sem dúvida. Mais ao diante lá lhe
eterna existe, existindo simultaneamente tenho um logar reservado. Não mc escapa
outro ente eterno, e que se chama Deus: por certo. Hei de refutal-o.
ou verificando-se ser o mundo eterno, e Ainda que terminava bem o argumento
quando elle o não seja, verificando-se ser terminando-o assim, não o faço. Apraz-me
eterna a materia de que o mesmo mundo seguir outro caminho, mórmente com re
é constituído, não ha similhanto Deus. lação á matéria mundana.
Na primeira d’estas supposições tinha- Ponha-se a eternidade d’cssa materia.
mos dous entes eternos. Affirmar que ha Como no universo, além dos corpos ha es
dous entes eternos, é affirmar que ha dous píritos, pois ha entes cogitantes, pensado
entes necessarios. Affirmar que ha dous res, e materia cogitante e pensadora é con
entes necessarios, é affirmar que ha dous tradictorio; como havendo natureza physica
entes independentes. Affirmar que ha dous e impensante, ha por igual modo natureza
entes independentes, é affirmar que ha dous intellectual e moral: esta ou tem d’existir
entes immutaveis. Affirmar que ha dous sem razão sufficiente,—primeiro parodoxo
entes immutaveis, é affirmar que ha dous e repugnância; ou tem na materia eterna
entes infinitos. Affirmar que ha dous entes a razão sufficiente da sua existência,—se
infinitos, é affirmar que ha dous entes per gundo parodoxo e repugnância.
feitíssimos. Affirmar que ha dous entes No primeiro caso ia-se de frente contra
perfeitíssimos, é affirmar que ha dous en o axioma, de que nada se faz ou existe sem
tes que teem em si todas e cada uma, sem razão sufficiente. No segundo atacava-se
sombra d’excepção, todas e cada uma das cara a cara outro axioma, de que o effeito
não pôde ser mais nobre que a sua causa. castigo vinha desfechar' inexorável sobre o
E o espirito racional é-o incontroversa- criminoso do sacrilego desacato.
mentc sobre a matéria bruta. Já o asseve «D’aqui (avança um escriptor insigne, de
rei, repito-o. Sào dous parodoxos enormes, saber immenso, c d’erudição vastíssima)
duas repugnancias monstruosas. d’aqui vem a profunda veneração dos ju
O que vos parece?... Ante cilas fica redeus pelo numero sete.»
duzido a pó intangível o vosso systema im Dcbalde... mui debalde os modernos ra-
pio da eternidade do mundo, a vossa eter cionalistas, libertinos da quinta essencia,
na materia. intentam contestar até o reconhecimento
Venha a eternidade da existência de Deus: d’estc grande principio, d’este dogma im
tudo se explica satisfactoriamcnte, tudo vai portante e sancto pelos padres da igreja de
de plano, corre tudo ás maravilhas. Jesus Christo. Todos á uma o sustentam e
Existe, fóra de controversia, existe Deus. o confessam. Aquelle mesmo com o qual
Dous entes eternos não podem existir. Por os adversarios encarniçados mais se pre
um corollario infallivcl, vosso mundo eter valecem, S. Justino os pulvorisa e tortura.
no e materia eterna sào ou illusões tristis E calumnia manifesta tudo quanto n’este-
simas, ou infames decepções. sentido lhe assacam. A má fe é um assaz
Dcbalde... c dcbalde que saltando do cam deplorável recurso!...
po do raciocínio para o da authoridade, Supponha-se que algum logar das dou
onde vos entreteis de contínuo a esgarava tas obras d’este padre respeitável tinha
tar dúvidas e difficuldades, é debalde que certa obscuridade, c que vinha a dúvida
levaes a audacia da obstinação até ao ponto apoz esta. Supponha-se, conceda-se mesmo-
de negardes que a doutrina sublime da para fartar vontades. Os logares menos
creação fosse conhecida, fosse adoptada claros devem ser interpretados pelos mais
pelos judeus. Sois useiros e veseiros n’isto; claros: é esta uma regra de hermeneutica,
insurgis-vos contra a evidencia. A mathe que tem achado sempre seguidores, nunca
matica, a physica, a moral, para vós é o contradictores.
mesmo. Em vos não fazendo conta, vai Discorrendo segundo esta prescripção da
tudo raso. arte d’entender com exactidão as palavras
Lá estão os textos clarissimos, positivis- dos outros, e applicando-a á questão pre
simos, que vos citei do Testamento Antigo: sente, toda a hesitação a similhante res
lá estão elles para vos responder, E quando peito que não seja systema e vergonhosa
isto não fosse sufficiente para vós, que com mente systematica, desapparece como fumo.
raiva canina tudo despedaçaes, lá está es Eu não sei que possa haver mais claro,
tatuída na lei a sancti ficação dos sabbados: mais explicito, mais concludente n’um tal
lá está comminada não menos que a terrí assumpto, do que este padre o é na sua
vel pena de morte contra os violadores famosissima «Exposição aos gregos.» A dis-
d’este mandamento solemne. tineção por elle feita, e que figura n’ella
Ordenação notável!... Sancção rigorosís entre Creador e obreiro, dissipa toda a in
sima!... La está tudo isto para vos desmen certeza.
tir. A que fim a observância do dia se «Consiste a differença d’um ao outro
ptimo, levada ao auge tamanho ^ auste (são palavras suas) que o Creador não tem
ridade?... Com que justificar a rigidez éx- necessidade senão da própria potência para
trema da comminação de morte contra produzir os sêres, emquanto que o segun
os transgressores de tal preceito?... E pa do, o obreiro, sem materia preexistente não-
tente. póde realisar a sua obra.»
A razão de tudo procure-se na creação: Depois d’isto saiba-se que S. Justino no-
ahi se achará. O sabbado era d’ella uma Dialogo com Tryphon confessa ter estudado
commcmoração continuada: o descanso a doutrina da creação em Moysés e nos
n’elle determinado, um como oitavario per prophetas, e que fora d’estes que a apren
petuo para celebrar o descanso em que o dera. Acreditava d’esta arte que Deus era I
Livro Sancto affirmára ter ficado o Excelso creado no sentido das Escripturas, isto é,
em seguida ao complemento pela feitura verdadeiro Creador, que do nada tirou por
do homem, da grande obra da creação que um poder infinito o mundo todo, que ao •
emprehendera. Era por causa d’estes so imperio de sua voz possante, dos abysmos
beranos motivos, aqui c alli distinctamenfe da não oxistencia fez surgir de prompto o
expressos em diversas partes dos differen universo inteiro. Não o era em conformi
tes livros das Escripturas do povo israeli- dade cora a doutrina de Platão, philosopho
tico, era para inculcar bem a fundo quanto preclaro por muitos titulos, que cahia en
respeito se lhes devia, que o formidável tretanto no absurdo monstruoso de consi-
ATH 273
derar eterna a materia da qual o universo Bastantes outros padres foram como este
havia sido formado. Tanto isto c certo, que accusados de platonismo no negocio da
o proprio S. Justino se propôz a refutar a creação. Era, na phrase de S. Justino ha
opinifio erronea do celebre fundador da pouco allegada, fazer a Deus obreiro e não
academia, o logra seu fim por argumentos creador. Injuriavam-nos a elles, como in
victoriosos, e por observações sem réplica. juriavam este.
CAPITULO VI
D eu s, C onservação
' Da conservação diz-se o mesmo que da poder d’inimigos raivosos que só tentara
creação. E a continuação da acção com prejudical-o, anhelam só destruil-o. A des
que se deu a existência. Parte do mesmo peito de toda a sua sanha e fúria em que
braço: demanda igual poder. Só quem fôr se arrebatam, faça-o o Omnipolente afor
creador poderá ser conservador. Creação tunado na terra sobre modo: na mesma o
e conservação: uma e outra são duas ver vivifique e o conserve: Dominus conservet
dades incontestáveis da razão: dous dogmas eum, et vevificet eum, et beatum faciat eum
sacratissimos da religião: Deus que nos in terra.
creou é o mesmo que nos conserva. É ou não é a que lhe appetece a verda
N’estes termos nos faliam as Escriptu- deira, a rigorosa conservação?... É a con
ras. N’este sentido se pronuncia a razão. servação de que se tractata que se men
N’éste ponto, á siinilhança d’outros muitos, ciona aqui. E' essa a conservação que se
ellas se dão as mãos para nos instruírem. roga ao Excelso em favor do justo e do ca
Fallam-nos as Escripturas no psalmo 15, ridoso, pois que do Excelso tão sómente,
v. 1: «Conserva-me, Senhor, porque espe e de ninguem mais, ella depende.
rei em ti.» Assim se exprime o rei pro Fallam-nos as Escripturas no Livro da
pheta, mostrando bem claro que só ao Sapiencia onde a conservação está mani-
Eterno pertence conservar, e que é n’elle, festamente enunciada: «Por que modo as
por isso, que'põe toda a esperança da sua cousas poderi am permanecer, se vós o não
conservação. quizesseis?... ou conservarem-se sem vossa
Fallam-nos as Escripturas no psalmo 40, determinação?...» Assim nol-o declara o cs-
v. 2: «o Senhor o conserve e lhe dê a vida, criptor sagrado no livro agiógrapho, que
e o faça bem-aventurado na terra, e o não entre os canonicos se designa com aquelle
entregue ao poder de seus inimigos.» As titulo, e o declara por maneira tão inequi-
sim o supplica ao Altíssimo, David, seu au- voca e tão frisante, que esta passagem bas
thor sagrado. taria, ella só por si, para ultimar na pre
Segundo elle, tem de ser bem-aventu sença de juizes d’animo imparcial e circum
rado nos céos o homem caritativo e esmo specto o mais embaraçoso pleito, e decidir
lei; que pensa nos meios d’alliviar o pobre, e acabar por uma vez a mais complicada
do soccorrer o desvalido; e que chegada a e accêsa controvérsia que sobre este as
occasião, obra para com um e para com sumpto podésse ter-se suscitado.
outro conforme ha pensado, em auxilio de Fallam-nos as Escripturas em varios ou
ambos, e o amor do proximo demanda da tros de seus livros e em não poucos outros
sua religiosidade. A’ recompensa que o es logares que se léem aqui, alli, na conti
pera nas alturas, deseja o psalmista se ve nuação das paginas sacrosanctas de que se
nham agrupar... melhor; deseja que aquella, compoem. Estes que, energicos como o são,
ineffavel no céo, seja antecedida por gosos não avalio íodavia por necessario reprodu
5 preciosos na terra, dos quaes, varão por zir agora ao lado dos proximamente tran
tal arte recommendavel perante Deus e pe- scriptos e ponderados, estorçam-se quanto
s rante os homens, lhe parece tornar-se di- quizerem os adversarios rancorosos da ver
m gnamente credor:—larga vida, e vida bem dade, fechem hermeticamente a entrada a
ditosa na terra, para o que é mister que toda e qualquer dúvida n’este particular.
= exista superior sempre, nunca sujeito ao Entretanto, quando mesmo sobre isto e
18
274 ATH
apesar d’isto se verificasse ainda subsis rompera e se tornára indigna dos benefi-
tir alguma, a mais simples e por igual a cios que o Senhor Todo Podoroso sobre
mais obvia das considerações possíveis, cila com mão larga havia liberal isado.
consideração solidissima na qual os prin Alli é o fogo e o euxofre que descem do
cípios adoraveis da fé se apertam em es céo a consumir as cidades do Pentapolis
treito enlace com os dictames mais prova em tremenda punição de suas abominações
dos da inlelligencia, uma consideração d e s execráveis, exceptuada Segor, que dera
tas a desvanecería completamente. asylo seguro e guarida a Lot e aos seus, que
Que Deus é o conservador do universo fugiam apressados de Sodoma por manda
demonstra-se em toda a clareza, porque c mento expresso do Altíssimo, que assim llTo
elle do mundo o Senhor Supremo. ordenára.
Que Deus é do universo o Senhor Sobe Acolá são: a vara d’Aarão, que se con
rano, manifesta-se a não mais, por isso que verte cm serpente, serpente que mata e de
foi elle o que lhe impôz a lei invariável e vora todas quantas os magos de Pharaó por
constante em seu curso ordinario, segundo meio d’encantamento e maleficio haviam
a qual o mesmo tem sido regulado íia se produzido á imitação do enviado do senhor:
rie immensissima e grandiosa dos phcno- as aguas em lodo o Egypto, no rio, nos ri
raenos physicos que apresenta desde o beiros, nos regatos, nos lagos c nas lagoas,
momento primeiro em que existiu até ao que repentinamente se tornam cm sangue:
presente, e o será sem questão até o ulti as rãs e os gafanhotos que em cardumes
mo momento que lhe está prescripto, até infinitos a um mero signal dãquelle que o
que sôe, em harmonia com os decretos eter Eterno chamára o propheta de Moysés, co
nos da Providencia, a hora extrema da du brem toda a terra do reino do Pharaó: as
ração temporaria que n’elles imprescripti- trevas horríveis que se apalpam por tres
veímente lhe ha sido consignada. dias entre os egypcios, emquanto a luz bri
Que Deus é o author das normas physi lha como de costume nas habitações d’Is-
cas pelas quaes o universo se rege, depre- rael: horríveis, densissimas trevas, que d’es-
-hende-se incontroversamente do facto irre t’arte se espalham a um leve aeêno apenas
cusável da suspensão d’essas mesmas leis do Deus de Pharaó, conforme ao grande
em casos repetidos á vontade do Eterno. Adonai aprouve denominar o filho adopti
Se o Excelso as suspende logo *que assim vo do rei que se dignâra escolher para ser
lhe apraz, o Excebo é d’ellas o author, o o libertador do seu povo da oppressao feroz,
legislador verdadeiro, visto que só tem po- na qual gemia no volver de largos annos;
■der para dispensar nas leis ou alteral-as, e por entre outros portentos, muitos c as
•aqu&Ile que o teve assaz para as constituir. sombrosos em extremo, a mortandade ge
E que Deus ha alterado, ha dispensado ral dos primogenitos do Egypto n’uma noi
por muitas vezes as leis da natureza ope te, a hora assignalada, a principiar no pro
rando prodígios a milhares, que só podem prio primogenito do moriarcha endurecido,
Tealisar-se com a alteração momentanea e acabando no do ultimo escravo; desde o
d’essas leis naturaes, as Escripturas o at- primogenito do homem até aos primoge
-testam: a Biblia Sancta ahi está para o le s-; nitos dos seus gados.
-timunhar incessantemente. Abra-se, folheie- N’esta parte é o mar que se fende ao so
-se ao acaso, e em cada pagina quasi se de- pro d’um furacão violento e abrazador, e
-parará com uma, e quiçá mais provas d e s que fórma com suas aguas da direita e da
ses successos estupendos, ante os quaes o esquerda duas muralhas firmissimas para
crente se extasia, mas reconhece e adora darem passagem a pé enxuto ao povo israe-
-submisso, ante os quaes o incredulo raiva litico, que ia sacrificar no deserto ao Deus
e se enfurece, mas é forçado a confessar, dós seus maiores, d’Abrahão, dTsaac, e de
mau grado seú, a impotência absoluta em Jacob, para seguir depois para a terra do
que se acha de os combater com frueto, chananeu, do hetheu, do amorrheu, do phe-
• menos, müitò menos de os contrariar e reseu, do heveu, e do jebuseu, que muito
■destruir. (Tantes lhe estava promettida.
Aqui é o mundo que parece abysmado N’aquella é o movimento apparente do
nas aguas do diluvio universal, nas quaes sol, mas verdadeiro da terra, que?se sus
boia unicamente a arca com oito pessoas pende á voz de Josué pelo espaço d’um dia,
por todas: Noé e sua esposa, seus tres fi para ultimar a derrota dos cinco reis dos
lhos e suas mulheres, para serem os paes amorrheus e seus exercitos numerosos, que
da nova geração humana, que devia sub tinham vindo aggredir os gabaonitás, e a
stituir a primeira, que tanto e tão profun conquistar-lhes sua cidade em pena de se
damente com o correr dos tempos se cor alliarem com Israel, que odiavam.
ATII 27o
CAPILULO VII
P r o v h lc u c ia
Desallial-as seria destruil-as. Sem a se cional, tão distinctamente racional é elle,
gunda a primeira não é só uma miserrima que no iminenso turbilhão de seitas, na va
inconsequencia: é mais, muito mais do que riedade tão estranha das escolas dos seus
isso, é um absurdo, uma contradicção fla sábios, posto que algumas, as dos Demo-
grante, um impossível. crítos, dos Stoicos, dos Platonicos também,
É este um sentimento racional c de fé, admittindo o fado, a negassem indirecta-
a que nenhum christão se póde esquivar: e mente, só uma se atreveu a contrarial-a de
tão racional, tão distinctamente racional é frente; a oppôr-se-lhe directa c immediata
elle que, transiuzindo ainda por entre as mente.
, trevas e os negrumes do gentilismo, apenas Tanto isto é assim, que os proprios Stoi
por excepção, e excepçâo bem rara, lá mes cos, notáveis grandemente por titulos sa
mo, apenas, pôde ser desconhecido. Tão ra lientes sobremodo, elles proprios apesar do
278 ATH
fado, que hoje mesmo não 6 bem liquido Aquclla nos certifica outrosiin que o mes
em que o fizessem consentir, o que enten mo vigia diligente sobre olle, o rego c o en
dessem por tal; elles proprios, a despeito caminha sem cessar em inteira conformi
d’isso confessavam a Providencia. De envol dade com os desígnios adoraveis, que tivera
ta com o fim, era uma miserável providen- cm mira ao rcalisar o acto omnipotente,
dencia sem dúvida, mas confessavam, al- que do nada o arrancou para a existência.
fim, c se declaravam d’ella acerrimos pro Escute-se esta: quero dizer, attenda-sc á-
pugna dores. Por igual lheor os platônicos razão. O que diz ella?...
procediam não menos. A negação da Providencia (eis o que ella
Foi a Epicuro só, c sua sordida escola, proclama) é urna nefanda impiedade; mais
a quem coube vergonha similhante. Foi que uma impiedade nefanda, é uma fonte
àquellc seu maioral c aos porcos do seu re perenne de successivas impiedades: é, em
banho, a quem pertenceu afli dar o escân ultima analysc, é o athcismo com todos os
dalo de se abalançarem ã cara descoberta horrores que o precedem, que o seguem,,
a tão revoltante attentado. que sempre o acompanham em todo o tem
Nos termos a que essa turba de homens po e por toda a parte.
immoraes, que para opprobrio da philoso Sem providencia, Deus é para nós um ente
phia não se pejavam de se appellidarem indilíercnte não só, despresivel mesmo. Se
philosophos, nos termos a que essa seita de a elle da sua parte nada se lhe dá do níun-
vassa ousou lcval-o, tudo o mais o oluou do, por isso, em nada se importa com o ho
com indignação. mem: ao homem pela sua parte lambem
Nem podia deixar de assim aeonteçcr; para nada lhe serve Deus. Depois de crea-
porque theoria sacrilega por tal arte, dou do na creação geral do universo (sem pro
trina tão monstruosa, tão impia, se não é, videncia, esta hypothesc é de mero favor.
desde logo, o athcismo descorado, conduz Um Deus, que não fosse providente, não era
a cllc inevitavelmente. Nem assim podia perfeitíssimo, ou, por outra, infinito intensiva
deixar do ser; porque opinião por tal sorte a extensivamente em suas porfeições. N’cste
perniciosa e desolante, se concede ao mun caso não podia ter o poder infinito, que se
do um Deus em nome, rouba-lh’o na reali chama omnipotentia. Se,pois de não ser pro
dade; segundo a phrase conceituosa, tanto vidente, se deduz logicamente não ter omni-
quanto inexcedivelmcnte exacta d’um dos polencia; e se sem ella não pôde ser crca-
gênios mais espirituosos c atilados, de que dor, a hvpothese que estabeleço em confor
se ufanou com justiça a antiga Roma. midade com muitos que assim o dizem, e
Horror, horror eterno, pela época omi assim o fazem, considerando-o creador não
nosa em que vivemos!... O que lá foi raro, sendo providente, é de pura graça, mas vá.
é cá frequente: faz-se agora gala do que São estas novas illusões absurdissimas do
era reputado então aviltamento e deshon- não reconhecimento da Providencia. Veja-
raü ... Digo-o com pesar, não com referen se que tal é o principio d’onde as mesmas
cia a este unico objecto; digo-o com mágoa nascem!... Manterei, no entanto, a supposi-
a outros muitos respeitos. ção figurada de creador sem ser providente,
Os adversarios do dogma sancto e ineffa- toda graciosa como ella é, e desentranharei
velmcnte consolador d’uma providencia que d’ahi as consequências palpaveis.) Depois
tudo regule, e disponha tudo, negrejam em de creado por Deus o homem na creação ge
nossos dias como nunca. Está-sc condemna- ral do universo, nenhuma necessidade tem
do tristemcnle a escutar por toda a parte mais de tal Deus sem providencia.
blasphcmias contra ella, que amarguram e Nada lhe interessa que elle. continue ou
anceiam. cesse de existir; que seja bom ou seja mau;
Soam de contínuo em menoscabo seu justo ou injusto; eterno ou temporario; ne
zombarias e dicterios que irritam a indole cessario ou contingente; sabio ou ignorante;
mais soíTredora: poem em eftervcscencia poderoso ou fraco; perfeitíssimo ou defei-
indisivel os animos mais tolerantes, os es tuosissimo. Isto nada lhe toca.
píritos mais pacificos, os corações mais in Tracta-sc d’um'sêr, que em nenhuma re
dulgentes. lação está com o homem uma vez existen-.
Entretanto, em que pêse ao incredulo e te;nem o homem com tal ser. Tenha o que
ao deista, se nada ha mais preciso, nada ha tiver, seja o que fòr, exista, não exista, ó
mais certo. Fé e razão, ambas se conspiram elle o unico a quem isso respeita, a nós
para nol-o annunciar. Se esta nos assegura nada.
que um Deus formou o mundo... oh! não Que tecido de enormidades!... Que cadeia
o formou inquestionavelmente para o en do espantosos delírios!...
tregar a si proprio. Que é feito dò grande Deus do universo,
ATH 279
que a razão nos demonstra, a revelação nos este faria vér a torpe face da corrupção e
annuncia?... , perversão universaes, e n’ellas o assassino
Que 6 feito do amor supremo que lhe feroz da vida do homem c da vida dos po
devemos, como a creador e bcmfcitor in vos, que tudo mata c destroc tudo.
cessante, que a razão nos demonstra e a De feito a vingar esta desgraça medonha,
revelação nos annuncia?... bem individual c bem estar social, tudo se
Que é feito do temor saudavol de que ria impellido para esta voragem tenebrosa:
devemos estar repassados para com elle?... tudo sorvido pela garganta voraz d’cstc Ma-
Temor filial não só qual o do bom filho elstron infernal. Estava o caso em que o cri
para um pae digno, a quem por isso que o me se podesse perpetrar occulto, podesse
ama, teme ofiender, receia desagradar, fi ficar impunido pelos tribunacs e lei huma
lial não só, mesmo o servil?... na; e eram inevitáveis as mais negras cala
Temor que elle de nós exige,e nós obriga midades, as mais assombrosas catastrophes.
dos estamos a manter ante a terribilidade A honra como a vida, a segurança da pes
dos castigos, com os quaes nos ameaça, se soa como da propriedade, os prazeres legi
fôrmos maus, para que bons sejamos?Temor timos como os gôsos innocentes, as commo-
que lhe é devido na qualidade de soberano didades mais permittidas como os mais jus
Senhor, c juiz inexorável que a razão nos tos interesses, tudo, tudo ahi ficava á mercê
demonstra, e a revelação nos annuncia. do primeiro faccinora, astuto, sagaz bastante
Que c feito da veneração e respeito que para escapar á cega e manca justiça da so
nos cumpre guardar para com elle, porque ciedade. Tudo, tudo estava ahi á disposição
elle, que já vimos nos creou, é também que do primeiro desalmado quetentasse atacal-o,
nos conserva? mudando ás vezes de momento uma ditosa
Veneração e respeito inseparáveis do re existência n’um abysmo insondavcl e pro
conhecimento de que ó elle do mundo o fundissimo de consternação espantosa, d(
conservador poderoso, segundo a razão nos tribulaçõcs sem par.
demonstra, e a revelação nos annuncia?... Felizmente d’c$ta alluvião de males in
Que é feito do culto da maior obediência supportaveís, vindos por tal motivo, estamos
e servidão, que sem quebra nem escusa é nós livres, graças ao Altíssimo!... Ha pro
dever nosso prestar-lhe como a omnipoten- videncia, é quanto basta.
te?... Culto e dever que a razão nos demons Ha providencia. A razão nos descansa a
tra, e a revelação nos annuncia?... este respeito, e o que a razão nos affirma,
Que é feito da honra c louvor sincero, a revelação o confirma.
que ser a natureza perfeitíssima como é, Ha providencia, porque ha Deus: e Deus
de nós demanda? é um ente perfeito infinitamente.
Tributo de louvor c honra, ao qual se Ha providencia, porque Deus é um ente
faltássemos, faltaríamos á mais sagrada das infinitamente perfeito: e sendo-o, deve ter...
nossas obrigações, conforme a razão nos de ha de ter... tem por certo todas as perfei-
monstra, c a revelação nos annuncia?... ções possíveis.
Que é feito, íTuma palavra, da religião Ha providencia, porque Deus possuo to
em seus princípios theorcticos, se Deus não das as possíveis perfeições; c a esta, que é
existe, ou se, existindo, nada tem comnosco uma d’ellas, é excellente, e das primeiras,
nem nós com elle, que vale o mesmo?... Se tem-a sem dúvida.
não vigia sobre o universo?... Se deixa o ho O que se diria de um pae, que de animo
mem nas mãos de seus conselhos sem lhe frio, coração insensível, de si repellisse du
merecer cuidado de que sejam rectos ou ini- ramente o filho a quem déra o sêr?... O que
uios, bons ou maus, justos ou violentos,' se deveria divulgar d elle em altos brados
etestaveis e perversos, ou excellentes e e perante todos: d’elle que, quando mesmo
saudaveis?... lhe custasse, quanto mais nada* lhe custan
É isto horrível quanto á doutrina, em do, regel-o, governal-o, vigiar sobre seu
comparação porém das horribilidades que comportamento, c protegcl-o, o abandonasse
d’aqui resultam para a práctica, á face dos sem querer saber cousa alguma do seu exis
atrozes corollarios que derivam d’aqui para tir, e da sua sorto: cruel e desapiedado o
a moral, aquelle posto ao pé d’est’outro qua abandonasse, á inexperiencia dos annos, ás
dro, embora medonho em excesso, passa ain verduras da idade, ao frenesi .das paixões,
da a parecer— consolador não digo— digo á seducção dos exemplos, ás instigações dos
pouco carregado: se lisonjeiro não, quasi malvados, ás sugestões de amigos "impru
aprazível 11... dentes, ao fitror dos inimigos, á immoral1;
Aquelle representaria a feia catadura da dade dos tempos, á desgraça, á miséria, á
irreligião cm triumpho, o que é desolante: perdição e á morte?
280 ATH
O que seria de razão pensar-se, muito clarecer desde ha muito. Deferido de uma
mais dizer-se d’um pae d’estes, se d inh pae para outra vez não cabe no possível espa-
lhe cabe o nome venerando? çal-o mais.
Dir-se-ia com a mais reconhecida das Ha, pódc haver um reparo a que reputo
verdades, entre execrações e acres censu necessário acudir de prompto: reparo que
ras, e quanto mais acres tanto mais bem ca quiçá terá occorrido a simplices c a mal
bidas, dir-se-ia d’clle que estava tão longe dosos; a inimigos não só que até a amigos.
de ser pae, como o estava de scr bom. Dir- Quero satisfazer aos primeiros c aos segun
se-ia, sim, e. dir-se-ia com universal as dos: aos inimigos para os refutar, aos ami
sentimento, que ao revés do pae era urna gos para os informar: para instruir os sim
fera... nem issol... que as feras amam, guar plices, para desarmar os maldosos.
dam seus filhos; era um aborto informe, um Sei de mais que as provas da revelação
monstro desnaturado. nada valem para o incredulo que combato.
Ohl... Deus não pôde ser isto. Deus é pro N’ella não acredita: mofa ou despresa por
vidente de certo. isso o que d’ella consta: zomba ou rejeita
Não posso demorar-me na consideração de plano quaesquer argumentos de lá tira
contraria: tremo de horror. Questão n’cstc dos, com os quacs se lembrem de preten
ponto é maldade requintada, senão é siza- der convencel-o. A quem isto intentar é mis
nia completa. ter antecipadamente demonstrar-lhe da re
Em apoio da razão que só se tem feito velação, a existência c verdade, para depois
escutar até aqui, vem logo a fé cm seus então e só então, lhe argumentar com cila.
oráculos sagrado^. Como aquella, esta cla Outro procedimento que não seja este é
ma por igual: ha providencia. inopportuno e baldado.
Ha providencia, porque o Senhor de tudo Reconheço a precisão de demonstrar ao
cura que crcou: dil-o o espirito que do pae libertino a necessidade da existência da di
procede no livro da Sabedoria. vina revelação, bem como de lhe fazer pa
Ha providencia, porque o Eterno de tudo tente qual ella seja e onde se encerra.
e de nós todos tem cuidado incessante: dil-o Tenho descrentes a combater, e crentes
S. Pedro na sua Epistola primeira. a doutrinar. Tanto levo em vista confundir
Ha providencia; por esta mesma palavra o impio, como empenho em confirmar o
nol-a certifica o livro inspirado da heroina christão em sua crença sancta, para que
de Bethulia. robustecido n’ella, resista aos ataques dos
Ha providencia, porque terminantemente perversos que querem transvial-o: para
nol-a assevera David em varios dos seus que não vacille e succumba.
psalmos divinos. Para estes nos pontos em que hei tocado
Ha providencia, porque por termos equi a razão e as Éscripturas. Uma e outras ad
valentes nol-a assegura o proprio Salvador mitte ellc e reverenceia. Para os descridos
no Evangelho de S. Matheus. a razão: ella, ella só basta por si, porque
Ha providencia, porque distinclamente ella só o fulmina em seus erros.
nol-a menciona S. Lucas em seu Evange É assim que o pensei. É assim que o te
lho Sagrado. nho desempenhado até agora. É assim, a
Ha providencia, porque muitos outros tes- final, que procedo aqui. Ao incredulo, ar
timunhos das Escripturas nol-a certificam gumento-lhe com a razão, sem por ora o
sem que restar possa a menor hesitação em apertar com as Escripturas. Ao fiel, illus-
tal assumpto. tro-o com estas apoz convencel-o com aquel
A providencia, como a attenção e a von la. Com uma e com as outras o corroboro
tade do omnipotente para que se conserve a e alento.
ordem physica e moral no universo, por ellc Quero que os impios se convertam, mas
estabelecida no acto de o crear: a providen não quero que os christãos se desvairem.
cia, entendida como o cuidado e vigilanda Quero os impios salvos, e não quero que os
summa, com que o Excelso tudo governa e christãos se percam. Quero arrancar os im
rege tudo nas cousas da natureza: a provi pios á sua iniquidade; e quero permunir.os
dencia está portanto consignada nos livros christãos, tornando-os assaz fortes em sua
e em differentes paginas de um e de outro crença para não serem arrastados á ruina
Testamento. pelas tentativas dos maus. Quero... quero
Falta muito a expender, que deixarei para mais que tudo, quando não possa ganhar
o seguinte capitulo. Ainda sobre esta ma os primeiros para a religião e para o céo,
téria me hei de entreter alli. Agora tenho quero primeiro que tudo, sobre tudo, mais
por indispensável explicar-me quanto an que tudo arreigar os segundos nos dogmas
tes sobre um ponto, que desejo e intento es sagrados da lei sacrosancta da Cruz do Ho-
ATH 281
mem Deus; rctcl-os firraes, decididos n’clla: tes, tem sido meu scopo principal eviden
empenhar-me para que possam conservar ciar nos dogmas da religião verdadeira de
as esperanças, os direitos mesmo que lhe fo Christo que sepuimos, os catholicos sob o
ram adquiridos pelo sangue de Jesus Chris estandarte da Cruz, a mais perfeita harmo
to, á bemaventurança que apenas em seu nia entre a razão e a fé.
acto se poderá obter. A maneira, unica maneira de patentear
Em conclusão: até que haja demonstrado essa harmonia insigne, é a que tenho ado-
a verdade e a divindade dos livros sanctos, ptado. Tanto não estou arrependido de a
o que d’elles cito é para o seguidor do Evan haver posto em práctica no que está tra-
gelho que já n’elles acredita e se consola ctado, que estou na deliberada resolução
•com sua doutrina sancta. Está a razão para de a continuar a seguir no que continuar
o incredulo: para o crente é cila um re a tractar.
forço apenas. Demonstrada que seja aquella A não ser nos Mysterios, cm tudo o mais
divindade e verdade, o que d’elles produzir cila se dá.
é para o christão como para o incrédulo. Nem a desconheço, c como, se ella é tão
Para este, porque já tem o dever prova luminosa c brilhante?!...
do de os acatar e attender. Para aquclle, Como?!... Nem mc desviarei jámais ape
porque sempre os acatou e attendeu: e sar de quaesquer reparos, censuras mesmo
como sempre fez, assim o fará sempre. (estas e aquelles, ou insensatos ou mali
Quando não seja tudo para todos, tome gnos) apesar d’elles c d’ellas não me des
cada qual seu quinhão. viarei da senda pela qual marchado tenho,
Do meu proceder accresce novo motivo. c que entendo adequada aos fins que me
Afóra o exposto, tem sido em tudo quan proponho tractar.
to cscripto deixo nos capítulos anteceden
CAPITULO VIII
quilado, póde scr, que segundo as leis con este globo, a que chamamos terra, como
stituídas, o universo inteiro se desconcer rei de todos os séres que o povoam; tudo
taria. n’elle denota um destino sublime; ellc
Ha, cmfim, providencia, porque ncgal-a transforma pela arte os mesmos séres da
é negar a existência de Deus, é destruir a crcação; submette todos os animacs ao seu
divindade, como acima mostramos. Admit- dominio; lucta com os mesmos elementos,
tida uma cousa, seria absurdo repugnante c, como que despresando o logar cm que
não admillir a outra. Basta conhecer os ter habita, eleva a fronte para os céos, c o seu
mos da questão para não restarem dúvidas espirito vaga pelo espaço infinito, buscando
a este respeito. entre as cspheras um bem que não encon
Temos fallado da providencia em geral; tra na terra. E seria acaso digno da sabe
tractaremos agora da mesma providencia doria e bondade de Deus abandonar esta
na ordem moral. E um ponto de summa nobre creatura que collocára rei da crea-
importância, por isso que por muitos é ne ção? Como poderia Deus despresar os seus
gado, ao menos indircctamcnte. generosos esforços? Não seria faltar aos
fins, aos altos fins que não podia deixar de
propôr-sc creando o mundo, o abandonar
o homem a si mesmo? Attendamos que um
homem qualquer não seria talvez capaz de
commetter uma tão grande injustiça, não
Como todos os seres do universo, os ho poderia ser tal e tão mau, como muitos
mens estão sob a vigilância da providen philosophos nos querem representar Deus,
cia Divina; como todos, foram creados para que é a mesma justiça e bondade!
um fnn certo, e não faltaram os meios para Mas para responder ás blasphemias d es
o conseguir, porque isso accusari a inscien- ses philosophos indignos, ahi está a huma
cia ou impotência na divindade. Haverá, nidade inteira. Examinai a historia antiga
porém, uma providencia especial sobre o e moderna, os povos civilisados assim coma
homem? Velará Deus sobre as nossas ne os selvagens, e o antigo e novo mundo; não
cessidades? Ouvirá as nossas queixas? At- encontrareis os mesmos costumes e as mes
tenderá os gemidos do innocente opprimi- mas leis; não encontrareis povos vivendo
do? Influirá emfim sobre a sorte dos po pela norma dos outros á maneira dos irra-
vos, ou o genero humano mover-sc-ha ao cionaes; por toda a parte achareis diversi
acaso sobre a face da terra? Eis o que nos dade. Ha comtudo um ponto em que os
propomos examinar. homens não diversificam; por mais civili-
Não c nosso intento avaliar as disputas sada ou selvagem qne se tenha tornado
eternas entre os augustinianos, os thomis- uma sociedade, ella reconhecerá sempre
tas e discipulos de Molina a este respeito; um poder superior c sobrenatural que re
nem tão pouco queremos tocar na melin gula os destinos da humanidade assim como
drosa questão da graça, que, além de in do universo inteiro.
teiramente inopportuna, demanda conheci Quando o homem se vê n’um grande
mentos e agudeza que de todo nos falle- risco, quando uma calamidade está emi
ccm. É só pelo lado philosophico que ra nente, no perigo da tormenta, no ardor das
pidamente vamos tocar este ponto. A cada batalhas, n’uma palavra, quando nada ha
passo se ouvem queixas contra Deus, quasi a esperar da terra, os olhos erguem-se na-
sempre sqattribuem ao acaso os aconteci turalmentc ao céo a implorar soccorro. Col-
mentos mais extraordinarios, c não éraro locai o selvagem, o fatalista e o atheu mais
também ouvir em nossos dias, quem se pertinaz e obstinado sobre um baixei ex
guindo os passos de Rousseau, zombe das posto ao furor das ondas, no auge d’uma
preces que os afflictos endereçam ao céo. procella horrorosa; quando os abysmos do
Vejamos o fundamento que podem ter es mar se abrirem como para o tragar, n’esse
tas queixas e zombarias. instante supremo, em que elle vai a sub
Primeiramente, admittida a providencia mergir-se no medonho barathro tão pro
geral, é evidente que .não póde deixar de fundo e sombrio como seu futuro, pergun
se admittir a providencia especial sobre o to: esse homem, qualquer que elle seja,
homem. deixará de soltar um grito do fundo do
Não ha dúvida que o homem é uma no peito a pedir soccorro ao céo?
bre creatura, que vale milhões de mundos, N’uma palavra, se examinardes a face
se ahi não suppozermos uma creatura in- da terra, não encontrareis um só povo sem
telligente capaz de amar o bem; não ha religião; não encontrareis um só que não
diivída que o homem foi collocado sobre tenha as suas divindades a quem invoque;
284 ATH
quo nào tenha os seus sacrifícios,.os seus com o que passam os homens, perguntare
hymnos sagrados e o seu culto. mos com Silviano,1 para que erguemos dia
Os pagãos multiplicaram os deuses, e riamente as mãos ao céo? Para que vamos
cada vicio, cada virtude, os mares, os bos fazer nossas supplicas diante dos altares?
ques, tudo tinha a sua divindade respe Se Deus não pôde ou não quer ajudar-nos;
ctiva; mas através d’esses erros grosseiros, diremos ainda com Cicero,2 se clle absolu
transparece a crença n’um sêr superior que tamente não cura do que fazemos... porque
se invocava e em que se tinha confiança. c que lhe endereçamos nossos cultos, nossas
Os mais celebres philosophos consagraram homenagens e nossas preces?
esta crença n’um ente sobrenatural, a quem Mas, o que é mais ainda, esses loucos
convinha erguer o coração; os legisladores, descrentes da Providencia vão contra o
para melhor se fazerem respeitar, inculca- testimunho da sua propria consciência, e
ram-se inspirados do céo; emfim, templos, não poucas vezes desmentem com as obras
Ti'ctimas, os agouros, todas as superstições aquillo que professam no gabinete philo
mostram nos idolatras, ainda os mais bar sophico. D’um antigo atheu se conta, que
baros e grosseiros, uma crença constante no perigo dTuna tormenta, invocara a Pro
na divindade e sentimentos nunca desmen videncia que negava, e que Bias espirituo-
tidos de religião. samente lhe dissera que se calasse, pois
Ora tudo isto, como mui judiciosamente temia que Deus viesse a conhecer que alli
observa Frayssinous, seria não sómente in eslava um alheu. Yoltaire, diz-se, que ater
útil, mas inteiramente insensato, se a di rado por uma tempestade, se vira dobrar o
vindade fosse indifferente ao que se passa joelho diante dos seus satellites; e de Rous
sobre a terra. 1 seau todos sabem, que, como para dar um
D’este modo os que combatem a Provi desmentido solemnc ao que escrevia, foi
dencia, destroem a religião pelos seus fun encontrado a resar fervidamente dentro
damentos. Si Dei Providentia non pm sidet dos templos.
'cbus humanis, diz Sancto Agostinho, nihil Tudo, portanto, nos obriga a acreditar
'St de religione satagendum.2 n’uma providencia. É uma verdade conso-
D’este modo, diremos com um celebre ladora que o nosso coração precisa crêr e
ascriptor3 a quem podiam applicar-se as que jamais deixará de existir no fundo de
suas mesmas palavras, d’este modo os ad nós mesmos.
versarios da Providenda tiram aos afflictos Não ha ninguem que não tenha horas
a ultima consolação da sua miseria, aos de extremo soffrimento: o que seria de nós
poderosos e aos ricos o unico freio das se não acreditássemos n’um Deus que não
suas paixões, e arrancam do fundo dos co só póde valer-nos, mas que está prestes a
rações o remorso do crime e a esperança fazel-o, logo que a clle recorramos de todo
da virtude. o coração?!...
D ’este modo, finalmente, aquclles que ne Parece-nos que o que fica dito n’este e
gam que Deus se interessa pelos homens, no antecedente capitulo bastaria para dis
erguem-se contra o testimunho de todo o sipar todas as dúvidas acerca da Providen
genero humano, e, com os seus systemas, cia. Tencionamos, todavia, responder ainda
veem taxar de loucura aquillo que existe a algumas objecções que se costumam op-
firme na consciência, da humanidade. .Por pôr a esta verdade. Ha todo o interesse
que, na verdade, se Deus se não importa em arreigar profundamente a crença na
Providencia Divina.
1 Loc. cit.
2 Tomo 8, pag. (mihi) 67. 1 De Providentia, liv. 1.
3 Rousseau. 2 De natura Deorum, lib. 1, cap. 1.
CAPITULO IX
D e u s , P r o v id e n c ia
Deixamos provado que a todo o uni vé e tudo ama na sua essencia simplicis
verso e a cada uma das suas partes assiste sima e immutavel. Vamos agora, segundo
a providencia d’um Deus eterno, que tudo o que promettemos, responder a algumas
ATH m
objccçoes que se costumam oppôr contra ça, o crime e a hypocrisia a campearem
esta crença tào universal c racionavel aíToutos por sobre a virtude e innocencia
quanto consoladora. despresadas c opprimidas! Certamente, a
Nào procuraremos enfraquecer essas ob- humanidade c uma raça de séres infelizes,
jecçõcs para depois lhes respondermos com com quem ninguem sê importa!...»
mais vantagem. Esforçar-nos-hemos, pelo Eis-aqui como discorrem alguns infeli
contrario, em apresentar os adversarios da zes, mais insensatos do que infelizes, mais
Providencia com toda a força o energia do injustos ainda do que insensatos. Sábios
raciocínio que lhes é possível, para mais escriptores, catholicos ou philosophos, teem
cabalmente mostrarmos que realmento ne respondido d’um modo victorioso aos seus
nhuma teem nem podem ter. blasfemos argumentos. Reproduziremos cm
«Lançai os olhos por esse mundo, dizem resumo o que se tem dito de mais solido,
elles; vêr-vos-heis obrigados a dar-lhe o reportando-nos principalmente a Frayssi-
nome tào característico de valle de lagri nous.
mas', nome que até a Igreja consagrou Antes, porém, de tudo, temos a assentar
n’uma das suas orações c cuja exactidão um ponto admittido como incontestável en
a experiencia propria nos confirma bem tre todos os philosophos dogmatístas. «A
infelizmente. O que sào os homens? pobres primeira regra da nossa logica, diremos
creaturas, lançadas por ahi ao acaso sobre com Bossuet, c que não devemos abando
a face da terra. Na sua loucura ou na sua nar as verdades uma vez conhecidas clara
nfelicidadc, védel-os ahi a guerrearem-se mente, embora tenhamos difliculdade em
mutuamente, altribuindo uns aos outros as conciliar; mas quê, pelo contrario, de
os nomes de fanaticos, visionários, igno vemos, por assim dizer, segurar sempre
rantes, insensatos ou criminosos. Emquan- fortemente as duas extremidades da cadeia,
to uns riem, outros choram, o sabio inves ainda que não vejamos bem o' centro por
tiga placidamente no remanso do gabinete onde se continua o encadcamento.» 1
os arcanos da natureza, e julga loucos os É esta uma regra que desejamos estabe
que dizem caminhar ao campo da gloria lecer seguramente, porque a cila temos de
incendidos em ardor guerreiro e ávidos do recorrer com frequência no decurso d a s
sangue humano, e estes zombam da philo tes nossos trabalhos. E era cila já suffi
sophia do sabio: o christão lamenta a am ciente resposta a todas e quaesquer objec-
bição c voluptuosidade do homem do mun çòes contra a Providencia; todavia nào é
do, e este nào despresa menos a simplici só este o recurso que temos contra os ad
dade do christão. E’ tudo assim! Onde está versarios. Vejamos como são falsos ou ine
a felicidade? Não védes alli o pobre esta ptos os seus argumentos.
lando de fome na sua cenzala, emquanto Convimos em que n’este mundo se não
o opulento se entrega ao gôso vaidoso e gosa uma felicidade perfeita; não são os
malerialisado dos prazeres d’um dia? Não homens comtudo tão desgraçados como os
védes o innocente gemer sob a oppressão querem fazer. Ninguem ha que, sem em
d’aquclles em quem a perversidade não bargo de quantos trabalhos e penas quei
impede a fortuna? Não védes. emfim, o ram imaginar, não experimente no decurso
mundo, todo elle obedecendo ás maquina da vida sentimentos de prazer e alegria e
ções do egoismo, da ambição, da hypocri- se não sinta animado ao menos pela espe
sia e do crime? rança.
«A virtude é tanto unia raridade exce Os homens são desgraçados, é verdade;
pcional, que cila é apontada como exem mas devemos lembrar-nos que essa mesma
plo digno d’admiraçào; e aquillo que devia infelicidade é sempre obra das suas mãos.
ser a práctica ordinaria entre os homens, Aquelle que procura ser feliz pela satisfação
chama-se heroísmo como se merecesse o da sua consciência, aquelle que só dirige as
nome pomposo d’heroc aquelle que, muito suas acções à virtude c ao cumprimento da
simplesmente, faz o que deve! vontade de Deus, esse será venturoso ape
«Onde está o direito da virtude e o res sar de todas as adversidades. Aquelle, pelo
peito á innocencia? Onde está a felicidade, contrario, que só procura a satisfação das
onde a ordem? Tudo obedece á força ou á suas paixões, sem attender á iniquidade
astúcia, e as nações curvam-se sob os Na- dos meios, esse sim, jamais sentirá socego
poleões e os Cromwels, c os povos cedem em seu coração; embora se esforçará por
aos impulsos que do fundo de clubs tene suffocar com novos crimes o grito affli-
brosos lhes imprimem meia duzia de ho
mens tão insignificantes, quanto mal inten
cionados! Oh! Por toda a parte a desgra i Ti'aite chi libre arbitre, cap. 4.
A TII
incredulo: é mais uma prova da Providen culo de desordens, iniquidades, dolosos tra
cia, que cllc combale. mas, etc. Aqui como em todas as outras
É lambem falso que a virlude seja o fru objecções, longe ^encontrarmos motivo de
s t o obrigado das circumstandas. De feito, duvidar da Providencia, nós somos pelo
sejam estas quacs forem, o homem é sem contrario mais obrigados ainda a acreditar
pre livre no obrar; c esses homens que sào n’clla. Na verdade não c uma prova fortis
perversos poderíam, apesar da indole, da sima de que Deus preside aos destinos hu
educação e de tudo o mais que os pôde le manos, a conservação c harmonia das so
var ao crime, poderíam sem dúvida ser ho ciedades a despeito da rcbellião c choque
mens de virtude e honra. A experiência das paixões que tendem a tudo confundir
confirma isto mesmo. Não vêmos nós es c destruir? Como se explicará sem a Pro
corregar a uma vida criminosa homens videncia esta verdade incontestável, que
em quem conhecemos excellentes inclina apesar da liberdade dos agentes moraes
ções? E não sabemos pelo contrario que ho não ha dúvida que as leis geraes da histo
mens de virtude tiveram a vencer muitas ria dominam todos os factos particulares?
vezes perversas inclinações, inveterados Ha desordens, ninguem o duvida, e essas
habitos, ou a superar dilficilimos obstácu desordens permittidas pela Divindade, são
los? Não sào d'islo prova Sócrates na an todavia unico e exclusivo elfeito de causas
tiguidade, e milhares de sanctos na histo livres, mas o que nem todos advertem é
ria da Igreja?... Digam o que quizerem, que a Providencia sabe tirar bem dos mes
será sempre verdade que o homem é livre mos males, e as proprias desordens faz en
em todas as suas acções imputaveis, e que trar na ordem geral, e tudo emfim faz con
-a perversidade nu n s não é menos filha da correr para maior bclleza c perfeição da
liberdade, do que em outros a virtude é o sua obra. Assim, se vós vos collqcardes em
írueto d’uma resolução corajosa e igual- um ponto superior d’onde avisteis todo o
mente livre. curso dos séculos passados, admirar-vos-
De resto, seja qualquer que fôr o estado heis da maravilhosa successão d’aconteci-
om que o homem se ache, elle póde sem mentos que revelam a presença d'uma Prq
pre conseguir o seu alto destino, e ser por videncia omnisciente, que sem lhe destrui
consequência feliz. O cavouqueiro mais mi a liberdade, dirige aos seus sanctos fin
serável, se na esphera em que foi collocado esta inquieta humanidade que parece mo
fizer o bem e cumprir o dever, não ha dú ver-se ao acaso. Apontaremos um facto.
vida que será mais ditoso, e mesmo a sua Essa paz geral, essa florescência do impe
vida será mais nobre e heroica do que a rio romano, não se conhece visivelmente
de muitos homens de talento e poder, que ser preparada desde o começo dos tempos,
nasceram n’uma alta posição, mas que cor através da sucessão dos impérios do Oriente,
rompidos pelo egoismo, trabalharam só para para a vinda do Messias?
si sem desempenharem a missão de que Examinai a historia: vereis que as revo
foram incumbidos pela Providencia. luções, os cataclysmos politicos, as proprias
Desenganemo-nos: em toda a parte po heresias e perseguições são empregadas por
demos ser felizes; em qualquer logar po Deus como castigo dos povos, como prova
demos conseguir o nosso destino. Ricos ou ção e corroboraçao dos justos, etc. Assim
pobres, sábios ou ignorantes, estimados ou vêmos que foram precisas as perseguições
despresados, tractemos d’agradar a Deus, dos tres primeiros séculos para o estabele
que é aquillo para que fomos crcados, fa cimento do Christianismo, e que todas as
çamos o bem, practiquemos a virtude, e guerras feitas á Igreja, desde Luthero até
ninguem será mais feliz que nós. «Sejamos aos philosophos dos nossos dias, teem ser
mais moderados em nossos desejos, diz o vido de lhe conservar a pureza, porque não
precitado Frayssinous, mais reservados em temos dúvida em aCfirmar que seria quasi
nossos discursos, mais rasoaveis em nossos impossível ou pelo menos muito difficil que
projectos, mais sobrios, mais comedidos, o catholicismo se conservasse puro no meio
mais afastados dos prazeres e vicios que d’uma prosperidade duradoura e continua,
ennervam juntamente a alma e o corpo, e e isso mesmo seria uma prova de que elle
nós veremos desapparecer o maior numero era obra humana. N’uma palavra: um at
dos males que soflremos.» tento c bem intencionado observador vê
Responderemos agora áquelles que di em todos os acontecimentos o dedo da Pro
zem que tanto não existe uma Providencia, videncia; e certamente se se rasgasse este
que nós vémos que tudo obedece à astúcia, véo que nos priva de vêr os desígnios do
a hypocrisia, ao crime, o que toda a terra Altíssimo, certamente dizemos nos, fica
offerece ao observador um vasto espectá ríamos aifmirados de vêr como tudo está
288 ATH
debaixo da sua influencia immediata e sa- mal—que reservamos para o capitulo sc-
pientissima. uinte, onde nos propomos tractar da bon-
Resta-nos ainda tractar d’uma questão ade de Deus, como conclusão do que ha
melindrosissima—a existência e origem do vemos dito da Providencia.
CAPITULO X
D e u s, su a b ou d ad e c sa u ctid a d e
Não se póde perguntar se Deus é bom e E n’este pouco que temos dito parece-
sancto, porque esta pergunta seria o mes nos ter já com palavras sobejas demonstra
mo que est outra—Deus é DeuS? Em ge do o que nos propúnhamos n’estc capitulo..
ral todas as questões relativas á divindade Muitas pessoas desejariam talvez mais pa
ficam decididas e esclarecidas desde que lavras, porém se estas são necessarias quan
se provou a sua existência. do se tracta de matérias d’imaginação, el-
O que é Deus? É a suprema razão las são por certo muito prejudiciaes quando
de
tudo, é esse sol das intelligencias a que os se quer com rigorosa exactidão provar as
philosophos modernos, em sua linguagem uteis verdades da metaphysica, que são
abstrusa chamam razão impessoal, é aquelle também da religião. Aquellas simplices pa^
irincipio eterno em que descansa tudo, que lavras ditas por Deus a Moysés: Ego sum
az que a verdade não seja o erro, que o qui sum, valem os mais eruditos, os mais
usto se não confunda com o injusto, e que logicos, e os mais volumosos tractados dos
) bello seja eternamente bello. Reparai em philosophos sobre a divindade, ou antes
todos os séres: achaes em todos alguma explicam mais do que poderam explicar to
cousa de perfeito, alguma cousa que e per dos elles.
manentemente bello: é Deus nas suas obras, Eu podia recorrer ao argumento ordina
é o cunho do Eterno impresso nas creatu rio de que se servem muitos para mostrar
ras. Ahi tendes um perverso: a sua vida é a bondade e sanctidade divina, isto é, enu
uma vida horrorosa de crimes: não respeita merando os muitos benefícios que de sua
nenhumas leis, destruiu todos os instinctos mão recebemos, a existência, a liberdade,
beneficos da natureza, e parece não gosar a intelligencia, etc. E assim, se chamamos
de liberdade senão para transtornar a or bom áquelle que reparte benefícios, c en
dem moral e attentar contra Deus e contra che de bens os seus dependentes, como o
os homens. Pois bem: ahi n’esse homem não chamaremos a Deus, a este pae bene
ha ainda alguma cousa de bello e perfeito; fico e amoroso que nos deu a existência de
é a sua mesma liberdade, a sua intclligen- tantos dotes enriquecida?...
cia, a sua existência, o.fundo do seu sér. Porém este argumento, aliás util, por isso
Tiido o que ha no universo de bom, de mesmo que falia d’um modo frizante á ima
perfeito, de bcllo, é Deus mesmo: por ou ginação das rudes capacidades, é insuffi-
tra, nenhuma cousa tem perfeição alguma ciente aos olhos da sciencia, e digamol-o-
senão em Deus e por Deus. Nada póde ser sem rebuço, é mesmo inepto se se exami
justo senão porque Deus o é; a bondade, nar á luz d’uma logica esclarecida e recta.
a belleza, podem existir nas creaturas, por Effecti vamente elle suppõe o que se pre
que existem n’um grau infinito em Deus; tende provar, jíorque se nós não acredi
a verdade seria para nós uma chimera se tássemos na bondade divina, isto é, n’um
não existisse um ente eterno; que é a mes principio eterno de bondade, não chama
m a verdade. Emfim, repetiremos ainda em ríamos bons aquelles sêres que espalham
duas palavras: Deus é a razão suprema de em volta de si liberaes munificentias. E
tudo, o principio soberano de todas as cou- como se quizessemos excitar alguém ao
sas. Ainda uma vez pois é absurdo per amor de Deus, apresentando-lhe o exem
guntar se Deus é bom e sancto, visto que plo do amor que nós devemos aos nossos
elle é o principio de toda a bondade e san- bemfeitores; razões, diz Balmes, que não
etidade, e sem elle estas bellas qualidades satisfazem no ponto de Yista da sciencia,
nem ainda seriam concebidas pôr nós. porque se podessemos duvidar do amor
ATH 289
que nos obriga ao sér infinito, duvidaría serve para apreciar a moralidade, e loca
mos tariibem do amor quo nos obriga áqucl- d’uma maneira feliz os affectos d’alma.
les que nos fazem bom! por outras pala Ninguem pense que nos oppômos a um
vras, sendo o amor obrigatorio a Deus, o modo de fallar que é usual nos livros mys
que explica, e a unica razão do amor aos ticos, c que tem mesmo o mérito incontes
benifcitores, é absurdo apresentar este co tável de tocar os instinctos do coração, sem
mo motivo para nos excitar áquclle. se oppur d’uma maneira directa áo rigor
Com isto, porém, não queremos proscre da verdade.
ver essa linguagem menos rigorosa debaixb No seguinte capitulo tractaremos da
do ponto de vista logico, mas que, todavia, existência e origem do mal.
CAPITULO XI
mens, parece que seria niais proprio de não tem mais motivo de recorrer a um
sua bondade nfio crcar o mundo, visto que principio mau, c a nós só nos resta amar,
n’clle se tinham de dar mais malcs que amar sempre aquelle Deus, só elle bom, só
bens.» elle sancto. Nemo bonus nisi solus Deus.
Concluiremos portanto que também não Non est sanctus, ut est Dominus, neque
ha mal moral; não existe mal algum quo enim est alius extra te.
deslustre a bondade divina; os manichcus
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
Qual é o homem que é completamente humano. Coin elle, a esperança, a vida; sem
feliz aqui n’csta terra de miserias? E toda ellc, a morte por toda a parte, por toda a
via qual 6 também o homem que nào as parte trevas, e o universo inteiro sendo para
pira a uma felicidade completa; ainda mais, nós um enigma indecifrável, e a vida um
que nào sente no fundo cTalma um como cscarneo atroz.
presentimento,uma doce esperançado que Também Deus existiu sempre na con
ainda ha de ser plenamcnte feliz? sciência da humanidade, e a qualquer povo
Quando um Deus nào existisse, seria ain que nos dirijamos encontraremos sempre
da assim util á humanidade acreditar na uma crença ifum a divindade, muitas ve
sua existência. zes forjada a capricho, mas que mesmo de
Ha tantos infelizes sobre a terra! quern monstra bem a necessidade rigorosa que o
lhes fará luzir uin raio de esperançai Os homem tem de recorrer a um ente supe
venturosos, os opulentos, os grandes da rior. Um athcu disse: primus in orbe Deus
terra? Esses cm geral sào pouco para si facit limor. Isto que no sentido do author
mesmos, nada lhes importa o que soíTrem é impio e absurdo, tem comludo uma si
os seus similhantos, e teem até todo o cui gnificação verdadeira e contraproducente
dado de que os não vá perturbar no meio ao que o poeta queria estabelecer. De fa-
do seu gôso o pensamento da miséria alheia. cto, dado que o temor fizesse imaginar um
Entretanto, o indigente, o desvalido, o fraco Deus, d’onde nascia o temor? Não era elle
soíTre e soffre muito! Quauto não sofTrc o já um presentiraento, um reconhecimento
pobre pac que assiste ao tormento profun da divindade? Porque sem Deus, esse te
do de seus filhos, que vé a morte ir todos mor é inexplicável e absurdo, visto que
os dias extinguindo o viço d’aquellas faces nada havendo superior ao homem, nada
mimosas que ainda agora desabrochavam ha que elle possa temer.
ao calor da vida! Oh! e o que não soffre Deus existiu sempre na consciência da
uma pobre mãe que sente uma filha que humanidade, dizemos nós, e é incontesta-
rida e innocente conspurcada pela infamia velmente assim. Desde o tempo em que a
dos vis! O que não soíTre... o que não sof- historia nos mostra os povos surginuo da
fremos todos nós! Sim, porque todos nós noite dos tempos até aos maravilhosos des
soffremos mais ou menos d’estes soíTri- cobrimentos dos nossos dias, ainda se não
mentos que occultamos aos homens; que encontrou um povo, uma nação, uma tribu
ninguem adivinha, que só revelamos a Deus. que não tivesse a sua religião. Póde-se di
Soflremos pois todos, toda a vida é um tor zer: o genero humano acredita, e acreditou
mento, é uma lucta, é uma amargura pro sempre em Deus.
longada, em que o riso só serve de tornar E este Deus em que todos os homens
mais amargas as lagrimas. E quem nos va acreditam, não é o Deus mundo. Todos dis-
lerá n’este nosso soffrer? Que venham to tinguimos inteiramente entre nós e a di
dos os homens que solTrera; ha ahi alguém vindade; nos pagãos, ainda os mais grossei
que achasse verdadeira consolação das suas ros, acontece o mesmo, pois que nós ds vê-
lagrimas fóra de Deus? Quem é que não sen mos orando a Deus, offerecendo-lhc sacri
tiu elevar-se-lhe o coração a Deus durante fícios.
o amargor das suas penas? O pantheismo (de que fallaremos n’outra
Quem não pensou em Deus no tempo da parto) ou o Deus mundo, não é mais do que
adversidade? Os homens despresam muitas uma variante do horrendo atheismo pro
vezes os nossos direitos, somos muitas vezes clamado por alguns insensatos.
opprimidos, e emfim, achamos no homem Não obstante, o pantheismo é o grande
a cada passo um inimigo que nos supplan erro do tempo, que procura ganhar raizes
ta; mas quanto nào é consolador dizer com- no terreno arido do racionalismo; e nós não
sigo mesmo: ha um Deus; como senão sente passaremos adiante sem que acautelemos
então o homem reanimado e como desap- os nossos leitores contra este erro sobre to
parecem diante d’elle todas essas nuvens dos terrível.
caliginosas que annunciavam a tempesta O espirito livre da reforma protestante
de! Com Deus, a vida póde ainda ser e é levou os pensadores allemães a um laby
muitas vezes um soffrimento, mas esse rintho do pensamentos abstrusos, que teem
soffrimcnto é placido c tranquillo? e n’elle sido d’um péssimo resultado. O orgulhoso
mesmo existe uma esperança animadora. transcendentalismo de Kant, conduziu ao
D’esta maneira, o homem soffre, mas não pantheismo idealista de Fichte, e ao não
é infeliz. menos absurdo hegelismo. Estas doutrinas
Deus portanto é uma necessidade para tem achado algum ecco na França, e, se
o homem, para a sociedade, para o genero bem que alguns espíritos .rectos, e illustra-
296 AUD
dos tenham feito inteira justiça aos atrevi lebrar a Paschoa com os judeus, presumin
dos e inintelligiveis discipulos do philoso do que o concilio de Nicca mudara a prá-
pho de Koenisgberg, nào ha dúvida que ctica da Igreja por condcsccnder com Con
ellas, só com serem nomeadas, produzem stantino, ao qual se julgou lisongear, fazen
já em alguns espíritos uma certa impres do cahir a Paschoa no dia do seu nasci
são de respeito c admiraçào. mento. 1
É mister comtudo desenganar os incau Entre os audeos havia uma práclica sin
tos contra a pretendida profundeza da ne gular para a remissão dos peccados: ti
bulosa philosophia allemà. Para que os nos nham elles parte dos livros canonicos, e
sos leitores desde já ajuizem d’esta mons além d’estcs, muitos outros apocryphos que
truosa e impia philosophia, basta dizer-lhes respeitavam e tinham por mais mysterio-
que cila tem pretendido destruir Deus para sos ainda que os livros sagrados; punham
divinisar o eu, systema o mais absurdo, o estes livros cm duas fileiras, d’uma parte
mais ridiculo, e o mais alheu de quantos os sagrados, d’outra os apocryphos, e man
para desgraça nossa tem sido forjados pe davam aos peccadores que passassem por
los philosophastros de todos os tempos. entre elles, depois do que lhes conferiam
a^ iocia^os—Hercges do século xm, que a absolvição.
criain que a alma morria com o corpo, e Como Audeo se fazia escoltar por muitas
que todos os pcccados eram iguacs.1 pessoas do povo, os bispos catholicos o de
AuiinOj segundo Thedoreto, e audio , se- nunciaram ao imperador, que o desterrou
guííclSbancto Epiphanio—Era de Mesopo para a Scithia, atravessando a qual se cn-
tamia, e celebre n’aquella provincia pela tranhou muito adiante, no paiz dos godos,
sua fó e zelo da gloria de D'eus; elle es n’elle catechisou muitas pessoas, estabele
crevia pelo meado do século iv. ceu mosteiros, a práctica da virgindade, e
Quando via na Igreja alguma desordem, as regras da vida solitaria; o que durou
reprehendia com altivez os sacerdotes, e até 372, em que foram expulsos da Gothia
ainda os mesmos bispos; e se encontrava os christãos na perseguição d’Athanarico.
algum sacerdote ou bispo aíTerrado ao di Sancto Epiphanio parece dizer que Au
nheiro, ou vivendo em moleza, murmurava deo já não vivia n’esse tempo. A sua seita,
d’elle, e o arguia. amargamente. A sua cen depois d'cllc, foi governada por alguns bis
sura c ousadia o tornaram emfim insuppor- pos que tinha estabelecido; porém estes
tavel: contradiziam-no, injuriavam-no, e al já lambem eram mortos em 377, em que
gumas vezes o mal tracta vam. os audeos se acharam reduzidos a um nu
O zelo que linha pela salvação do proxi
mero limitado. Elles se ajuntaram perto dc
mo, c sem dúvida o prazer de censurar, o Euphrates e da Mesopotamia, particular-
sustiveram por muito tempo contra estes mente em duas aldeias do territorio da Col-
opprobrios, mas finalmcnle veio a separar- chidia. Muitos dos que haviam sido expul
se da Igreja. sos da Gothia, vieram habitar a Colchidia,
Taes são ordinariamente os effeitos que e ainda os mesmos que se tinham espalha
produz uma extrema vaidade nos homens do nos mosteiros do Monte Tauro, ou na
de curta intelligencia, e d’uma grave aus Palestina, e Arabia se reuniram com os au
teridade de costumes. Se se houvessem ana- deos da Colchidia.
lysado as causas do scisma de Audeo, tal Habitavam em mosteiros ou em cabanas
vez se encontrasse que elle não era mais no campo, e perto das cidades. Não se tra-
que um melancholico orgulhoso sem scien ctavam com os catholicos, porque no seu
d a e sem espirito, que aborrecia os seus sentir, eram viciosos, ou communicavam
superiores, os homens e os prazeres. ,cora os viciosos; pelo que, nunca o audeo
Uma franqueza audaciosa, que ataca os fallava com um catholico por mais sancto
superiores, tem imperio natural sobre os c virtuoso que fosse; e até deixaram o no
caracteres fracos e espiritos revoltosos; por me de christãos, tomando o de audeos, ou
íSso, foi seguido Audeo de muita gente, e audeanps.2
até um bispo approvou o seu scisma, e lhe É claro que Audeo, no principio do seu
conferiu a ordem episcopal. scisma, nào cahiu em erro de fé, porque os
Foi pois Audeo cabeça d’uma seita, cujo seus inimigos não o censuraram d’algum
caracter era uma aversao invencível a toda n’esse tempo; mas parece que depois, seus
a especie de condescendenda, a que os au-
deos davam o odioso nome de respeito hu 1 Epiph. Hceres. 70. Tlieodoret. Hceret.
mano. Por este motivo, quizeram elles ce- Fàb. I. 4, c. 10.
2 Petau, Dogm. theol., t. 1, l. 2, cap i
t Cent. Magd. Cent. 13, c. 5. g 8, 9.
BAG 297
discipulos, attribuiram a Deus mãos, olhos dissenções e fazer cessar todos os pleitos.
e ouvidos. Theodorcto c Sancto Agostinho Entendiam ser contra o espirito do Chris
o affirmaram, seguindo a Sancto Epipha- tianismo citar alguém perante a justiça;
nio. pelo que se viam na Allemanha alguns ana
O padre Petau ere que Theodorcto c baptistas, que criam ser-lhes ordenado por
Sancto Agostinho entenderam mal a San Deus que despojassem de seus bens todos
cto Epiphanio, por dizer este padre que os os que não pensassem como elles, e que
audeos tinham conservado a pureza da fé, levassem a morte, o fogo, c a dessolação
posto que se obstinassem muito acerca de por onde quer que não fosse recebida sua
um ponto de pouca importância, que nào doutrina, ao mesmo passo que outros ana
podia entender-se o erro dos anthropomor- baptistas se deixavam expoliar de todos os
phitas. seus bens c tirar a vida sem se queixarem.
Pódc responder-se ao padre Petau, que Eis-aqui até onde tinham conduzido os es
bem que os audeanos attribuissem a Deus píritos os princípios da reforma, e comtudo
uma fórma humana, todavia eram ortho nol-a inculcam como uma obra de luz e um
doxos acerca da Trindade, de sorte que o partido necessário para desenvolver a ver
seu erro sobre as passagens da Escriptura, dade das trevas em que a igreja romana o
que attribucm a Deus a forma humana, pa tinha sepultado. Os bacularios appellida-
recia nào haver mudado em cousa alguma vam-se lambem steblcrianos, da palavra
a sua fé. steb, que significava bordão. 1
Sancto Epiphanio, pois, nada encontra üageaiio— era de Lcypsic, e viveu no
n’elles reprehensivel senào o atrevimento niêiò do século 17.° A serie dos seus estu
com que definiam no em que consistia a dos o conduziu a investigar os motivos por
similhança do homem com Deus, e nào no que Deus se poderia ter determinado a crcar
essencial da mesma explicação; pois é cer entes distinctos d’elle mesmo.
to que Sancto Epiphanio refuta n’este mes Sobre esta questão se haviam dividido
mo logar o erro dos anthropomorphitas. muitos philosophos e theologos, tendo uns
Talvez que os audeanos não vissem as que Deus sómente creára o mundo para
consequências do seu erro acerca d’este ar fazer brilhar seus attributos, c outros que
tigo, ou que Sancto Epiphanio, levado da para se fazer adorar por entes livres.
austeridade dos seus costumes, do que pa Bagcmio creu que um ente intelligente
rece fazer grande apreço, se inclinasse a não se determinava a obrar senão por amor,
interpretar com indulgência a explicação e que só obrava fóra de si mesmo por amor
dos audeos; mas sem dúvida é injustiça d’aquelle objecto para o qual se determi
querer provar-se por esta indulgência do nava. Que o amor para com a creatura c
Sancto a respeito (Tolles, que este sancto o determinara a creal-a, e presume fazei
padre favorecesse o erro dos anthropomor sensivel o seu systema com o exemplo dc
phitas, que refutou expressamente. rnanccbo a quem os attractivos d’uma só
' Os audeanos cahiram também n’aquelles pessoa apaixonam e subordinam. Como as
erros do manichcismo: parecem ter para creaturas não existiam antes que Deus se
si, que Deus não creára as trevas, nem o determinasse a creal-as, é claro que elle se
fogo, nem a agua, mas que estes tres ele não tinha determinado a creal-as senão pela
mentos não tinham causa, e eram eternos. ideia que lh’as representava; portanto não
Também parece que elles degeneraram da fazia Bagcmio mais que renovar o syste
sua primeira austeridade, e se desregraram ma de Platão, que Valcntim procurara unir
muito em costum es.1 ao do Christianismo.2
bacularios —Seita d’anabaptistas, que se Parece que Bagcmio não formou seita;
forfífó^emTlSâS, c se chamou assim por e nós referimos seu erro unicamente para
que aos erros geraes dos anabaptistas, ac- mostrar que nos homens e suas opiniões
crescentavam que era um crime trazer ou ha uma especie de revolução que successi-
tras armas mais que um bordão, e que não vamente os faz apparccer de novo, e que o
cra permittido repellir a força pela força, espirito humano encontra com pouca diffe-
pois que Jesus Christo ordena aos christàos rença os mesmos escolhos, sempre que pre-
que ofTereçam a face áquelles que os offen-
aem. 1 Veja-se o artigo Anabaptistas, suas dif
0 amor da paz, que Jesus Christo viera ferentes seitas. Stockman Lexicon. Prctre-
fazer reinar sobre a ferra, no sentir d’es- ju s C atai Hcm\
les anabaptistas, devia extinguir todas as 2 Veja-se o artigo Valentim. No 1 .1.° do
Examen du Fatalisme se acha explicado o
1 Veja-se Thedoret. Hcci'et. Fab. I .4, c. 9. systema de Platão.
298 BAI
tende passar a esphera dos conhecimentos por seu modello, porque o tinha pelo mais
que são quinhoados ao homem. A’cerca do exacto nas matérias que traclára; portanto
que importa, c é necessario conhecer ca applicou-se muito a comprehcnder bem a
balmente, já temos chegado-a uma perfeita doutrina d’estc sancto padre, principalmen
luz e certeza; mas quando os conhecimen te ácerca da graça, porque os protestantes,
tos se tornam o objecto da curiosidade, en como já dissemos, a (Teclavam não seguir
tão a luz desapparece ou diminue, princi outra sobre estes objectos, e não se podia
piam as trevas, a perplexidade, e esta é a impugnal-os mais eíFicazmcnle do que com
região das conjecturas, o imperio da opi a doutrina d’cstc padre. 1
nião e do erro. Portanto, é a revelação um Sancto Agostinho tinha provado contra
grande beneficio que gosamos a este res os pelagianos a necessidade da graça pelas
peito, pois que ella nos preserva de todos passagens em que a Escriptura nos ensina
os erros que o entendimento humano larga que nao podemos cousa alguma sem Deus,
e reassume logo que discorre entregue á que d’elle vem toda a nossa força, que a
sua inquietação e curiosidade.1 nossa natureza está corrupta, e que nasce
bai^ íusaííL— c o nome que se dá ao sys mos filhos da ira. Pelagio tinha opposto a
tema theologico, contido em setenta e tres estas provas a liberdade do homem, que
proposições, condomnadas por Pio v, e ti seria aniquilado se a graça lhe fosse ne
radas em grande parte dos escriptos, ou cessaria.
resumidas das lições de Miguel Bay, cha Não tinha Sancto Agostinho atacado a li
mado mais ordinariamente Bayo; bem que berdade do homem, mas sim presumido es
este theologo não seja nomeado na bulla, tar elle n’uma impossibilidade absoluta para
e que entre as proposições condcmnadas conseguir a salvação sem o soccorro da gra
haja muitas que ou não são d’elle, ou não ça, e ensinara que o mesmo Adão, sem este
teem relação ás materias da Graça, vamos soccorro, não poderia ter perseverado na
examinar os princípios e origem d’este sys justiça original, e que por consequência
tema, os cíTeitos que produziu, a sua con- não só era impossível que o homem depois
demnação, e consequências que d’ella se da queda se salvasse por suas próprias for
seguiram. ças, destruídas pelo pcecado original, mas
que até necessitava d’uma graça mais eíü-
DA ORIGEM E PRINCÍPIOS DO BAIANISMQ caz que a que teve o mesmo Adão.
♦rrcswws».
Eis o que Bayo viu nas obras de Sancto
Nasceu Miguel Bayo em Malin, aldeia de Agostinho: creu que a mudança que fez no
Haynaut, em 1513, e fez seus estudos em homem o peccado d’Adão desembaraçava
’Lovania, aonde ensinou philosophia, e to- todas as difficuldades ácerca da liberdade
, mou o grau de doutor em 1550. No anno do homem, e da necessidade da graça. 2
; seguinte foi escolhido para occupar a ca- Sancto Agostinho provara o peccatio ori
■deira da Sagrada Escriptura. ginal e a corrupção do homem, pela con
Tinham feito muito progresso em Flan- cupiscenda a que está sujeito desde o in
dres e nos Paizes-Baixos as idéias de Lu- stante cm que nasce, pelas miserias que
thero, Calvino, e Zuinglio. Os protestantes soflre, pela morte, e por todas as desgra
não reconheciam mais regra de fé que a ças, que depois da quéda d’Adão, acompa
Escriptura; porém havia alguns sanctos pa nham sempre a humanidade. Provára tam
dres, cuja authoridado respeitavam, e ainda bém que o homem não existia no estado
mesmo presumiam que os seus sentimen em que Adão fora creado, porque debaixo
tos ácerca da graça e predestinação não do governo d’um Deus justo, sabio, bom, e
eram outros senão os de Sancto Agostinho. sancto não póde nascer o homem nem cor
Bayo formou o projecto de reduzir o es rompido nem desgraçado.3
tudo da theologia, principalmente á Escri D’aqui concluiu Bayo que não sómente
ptura e aos antigos padres, para os quaes era o estado da innocencia aquelle em que
testimunhavam sua veneração os hereges; Deus resolvera crear o homem, mas tam
seguir o methodo dos mesmos padres na bém quo a justiça, sabedoria, c bondade de
discussão dos pontos controvertidos, e aban Deus não poderia haver-lhe dado o sêr sem
donar o escolastico, que desagradava muito as graças e perfeições do mesmo estado.
aos protestantes.
Fez pois este theologo um estudo serio 1 Carta de Bayo ao cardeal Simonet, no
nas obras de Sançto Agostinho, e o tomou fim da collecção das obras de Bayo, in-12.
2 Veja-se o artigo Pelagio.
i Vide esta cadeia d'erros no t. l.° de le 3 Ibid. Vejam-se também as obras de S.
Exam en du fatalisme. Agostinho contra os pelagianos.
BAI 299
Que' a justiça, d’Adão nào era na verdade podia suspender ou obrar as impressões
essencial ao homem cm tal sentido, que fosse que i^ellcs faziain os corpos estranhos.
tào inherente á natureza humana, que o ho Pelo peccado perdeu o império que li
mem nào podésse existir sem ellaj mas que nha sobre os sentidos c a graça que lhe
era essencial ao homem, para nao ser vi era necessaria para perseverar na justiça;
cioso, depravado, c incapaz de satisfazer ao c arrastado necessariamente para a crea
seu destino. tura pelo péso da concupiscencia, não pôde
Portanto, dizia Bayo, um homem pôde resistir a esta propensão.1
existir sem bons olhos ou bons ouvidos; Não 6 pois Deus quem produz os pecca-
Tnas se só tiver olhos c ouvidos taes cujos dos do homem como Luthero e Calvino te-
nervos não sejam capazes de levar ao ce merariamente haviam asseverado; é o mes
rebro as impressões das cores e dos sons, mo homem que se inclina para a creatura
não poderá satisfazer as funeções a que o pelo seu proprio péso e propensão, c n’isto
homem está destinado. 1 Não podia Deus consiste a sua liberdade, por nào ser vio
pois fazer o homem tal qual elle hoje existe, lentado por uma cousa estranha. A sua
isto é, sujeito á concupiscentia, e sem um vontade não é constrangida, o homem pec
imperio absoluto sobre os sentidos; porque ca porque quer, e não quer violentado; obe
sem este império a alma é escrava do cor dece á sua inclinação c não a uma cousa es
po, e nào se compadece esta desordem em tranha; portanto é livre. 2
uma creatura que sahe das mãos de D eus.2 O homem até póde escolher e determi-
Portanto foi o homem privado da integri nar-sc por juizo nas cousas relativas a esta
dade da sua natureza depois do peccado vida, e portanto o livre arbitrio nào está
original, ficando escravo da concupiscen cxtincto.3 Reconhece Bayo que os doutores
tia, e sem mais forças que para peccar. catholicos que escreveram contra os here-
Segundo o sentir de Bayo não é esta dou ges não pensam d esta maneira acerca do
trina contraria ao dogma da liberdade. Tres livre arbitrio, fazendo-o consistir no poder
seitas principalmente a atacaram, diz este dc fazer ou não fazer uma cousa, isto é,
theologo: os estoianos, os manicheus, c os n’uma isempçào de toda a necessidade; po
discipulos de Luthero e de Calvino. róm cré que ellcs se afastaram do senti]
Os primeiros submettiam todas as acções de Sancto Agostinho, e ligando-se ao Evan
humanas ao destino, que tudo produzia no gelho faz consistir o livre arbitrio em qui
homem; os segundos suppunham ser a na a vontade do homem nào esteja exposta a
tureza humana essencial mente, má e vi alguma necessidade exterior, sem que seja
ciosa; Luthero e Calvino, finalmente, ensi necessario que elle tenha o poder de nào
naram que o homem estava dabaixo da di fazer o que faz, e de fazer o cjuc não fa z.1
recção da Providencia como um autômato Tal é a doutrina que Bayo c Hcsselo ensi
nas" mãos d’um machinista; que nada fa naram emLovania ácerca da graça c da for
zia não só por ser incapaz d’obrar, e por ça do homem, a qual foi adoptadá por mui
que Deus o determinava cm todas as suas- tos theologos.
acções por um poder invencível, mas tam Bayo, Hcsselo, ou seus partidários ti
bém porque Deus produzia só, e immedia- nham também outras opiniões difFercntes
tamente todas as acções humanas.3 do sentimento commum dos doutores a res
No sentir dc Bayo, estes tres inimigos da peito do merecimento da Conceição da Vir
liberdade se enganavam, e elle cria ser gem, etc., que omittimos.
congruente o seu systema para refutal-os.
Eis-aqui o que elle èra.
Deus tinha creado livremente o homem DOS EFFEITOS I U DOUTRINA DE BAYO
e o crcára livre. Adão peccou livremente,
e portanto não foi arrastado pela lei do des
tino. Antes do peccado, o primeiro homem Quando voltaram á Lovania os theologos
fora justo, innocente, c ornado de virtudes; que tinham ido ão. concilio de Trento, fica
assim nào era má a natureza humana, como ram estupefactos ouvindo as opiniões de
pensavam os manicheus; e* o primeiro ho Bayo, e o progresso que ellas tinham feito.
mem n’este'estado dominava o seu corpo; «Quem foi o diabo, exclamava um d’elles,
os sentidos estavam sujeitos á sua vontade, quem foi o diabo que introduziu na nossa
I 301
voto dc receber o baptismo ou a absolvi O cardeal Granvelle, encarregado da exe
ção senão se recebem natural mente. cução da bulla, commetteu este negocio a
Ninguém nascou iscmpto do peccado ori Morillon, seu vigário geral, ordenando-lhe
ginal, e os. trabalhos que solTreram a Vir que procedesse com uma caridade verda
em Sanctissima c os sanctos, são castigos deiramente christã, a fim de reparar com
o peccado original ou actual. suavidade a falta de Bayo, o que, diz o car
Póde merecer-sc a vida eterna antes de deal, fará mais honra á universidade e a
estar justificado; não deve dizer-se que o elles mesmos, c lhes redundará em maior
homem satisfaz por obras de penitencia, credito do que conduzindo-se com aspereza.
mas que em vista d’cstas acções é que nos Marillon convocou em particular a fa
é applicada a satisfação de Jesus Christo. culdade de theologia a 17 de novembro dc
Pio v condcmnou as proposições que ti 1570; publicou a bulla de Pio v na assem
nham esta doutrina: «Nós condemnamos bléia da mesma faculdade sem deixar d'ella
estas proposições, diz ellc, cm rigor, e no cópia; requereu que os doutores env theo
proprio sentido dos termos d’aquelles que logia a subscrevessem, c lhes perguntou se
as affirmaram, posto que haja algumas que
possam d’alguma maneira sustentar-sc, isto mnadas pela bulla no sentido cm que ellc as
é, n’um sentido distante da significação pro ensinara, e exigiu da universidade de Lo-
pria dos termos, e da intenção dos que vunia que ensinasse a contradictoria de to
d’elles se serviram.» 1 das estas proposições para se confoimar
com a bulla.
1 Os defensores de Bayo teem d?outra 4. * Urbano VIII fez imprimir a consti
sorte a pronuncia da bulla, tendo que deve tuição de Pio V.com a virgula depois de
ser assim: *Nós condemnamos estas propo possinf, e não depois d’intento.
sições, bem que entre cilas haja algumas 5. # A Sancta Sé exigiu das universida
que possam d'alguma sorte sustentar-se em des de Lovania e de Duai a acceitação da
rigore no sentido proprio dos termos d'aquel- bulla, pura c simples, e quiz que desta mes
les que as proferiram.» A differença d'estes ma acceitação se declarasse que nenhuma
dous modos de lêr depende aum a virgula das proposições pôde ser sustentada, toman
posta depois da palavra possint, de que to do-se no rigor das pulavras e no proprie
dos se convenceram lendo a bulla em latim» sentido das mesmas.
«Quas quidem sententias, stricto coram no 6. a Os defensores de Bayo asseveram que
bis examine ponderatas, quanquam non na cópia da bulla enviada pelo mesmo papa
nullae aliquo pacto sustineri possint, in ri e depositada nos archivos da faculdade de
gore et proprio verborum sensu ab aucto Lovania, para n'elles servir d'original, não
ribus intento damnamus.» É claro que a ha virgula nem divisão d artigos, de que não
virgula que está depois ífintento, collocada póde atinar-se a dislincção senão pelas le
depois de possint, fa z um sentido absolu tras maiusculas que apparecem no princi
tamente diverso. pio de cada artigo (Dissert. sur les bulles
Os defensores de Bayo insistiram em que contre Baius, pag. 68.j
devia lêr-se a virgula depois d’intento, e não E d esta mesma supposição não devere
depois de possint, sobre o que faremos al mos nós referir-nos acerca do sentido da
gumas reflexões: bulla a Urbano VIII, a Gregorío XIII, e aos
1 / Uma censura dogmatica tem sempre princípios da critica, que não pennitlem
por objectd o sentido proprio e natural das collocar a virgula depois de possint, como
proposições, e a censura do papa seria in já o fizemos ver nas primeiras reflexões?
justa, informe, e absurda, se proscrevesse 7. a Nas cartas que o cardeal de Granvelle
as setenta e seis pi'oposições c livros de que escreveu a Morillon para a execução da bul
são extrahidas unicamente, por causa d'um la, c claro que em Roma se cria que o mesmo
sentido estranho que não tem nem no livro cardeal pensava terem-se condemnado os li
nem no espirito dos authores, mas que se vros e sentimentos de Bayo. (Inter opera
lhe pôde dar. Baii, t. 2, v. 50.) Veja-se 1'Histoive du Baia-
2. * O cardeal de Granvelle encarregadonisme, ou de 1'Hei'esie de Baius, avec des no
do negocio do bayanismo por Pio V, decla tes historiques, chronologiques, et suivés de
rou que Bayo' incorrera nas censuras ful eclaircissemens, etc., par le père Jean Ba-
minadas na bulla por havei' defendido as ptiste Duchesne de la Compagnie de Jesus; a
proposições no mesmo sentido litteral do au- Douai in-4°, 1731.
thor. Traité historique et dogmatique sur la do-
3. * Gregorio XIII obrigou Bayo a conctrine de Baius, et sur Vautoiité des Papes,
fessar que as suas pi'oposiçÕes eram conde- qui 1'ont condamné, 1739, 2 vol. m-12.®
302 BAI
queriam obedecer á constituição do papa, CONSEQUÊNCIAS DAS CONTROVÉRSIAS
que acabava de lhes apresentar. Seis dou LEVANTADAS SOBRE A DOUTRINA DE BAYO
tores de Lovania e o mesmo Bayo se sub-
metteram.
Como este não se nomeava na bulla ex Apesar das precauções que se haviam
pressamente, ficou na universidade de Lo tomado para sulTocar o espirito de divisão
vania, e até foi n’olla chanceller, e conser entre os theologos dos Paizcs-Baixos, con
vador dos seus privilégios cm 1578. Porém tinuaram os debates na faculdade de theo
n’este mesmo anno se atearam de novo as logia de Lovania. Bayo se reputou sempre
questões que pareciam extinctas. Bayo de suspeito de aíTcrro ás opiniões que a bulla
uma parte foi accusado de conservar ainda proscrevera, c até foi altamente accusado
os erros condonmados; d’outras se suscitou de não querer obrigar os candidatos a que
uma dúvida sobre a authenticidade da bul prestassem juramento de submissão a esta
la, querendo uns que cila fosse supposta, bulla, e de haver tido e ousado propor que
e outros subreptiva. se raiasse o artigo do juramento que d’cllcs
O rei de Hespanha patrocinou perante se requeria antes da recepção dos graus.
Grcgorio x iii a solicitação d’alguns theolo Foram remellidas estas accusaçõcs ao pa
gos de Lovania para acalmar estas contro dre Toleto, jesuíta, a quem no mesmo tempo
vérsias, e o papa publicou uma bulla em se dirigiram muitas proposições concernen
que vinha inleiramente copiada a de Pio v, tes á doutrina e procedimento de Bayo, e
sem a confirmar por expresso, nem condc- o jesuíta commcttcu o juizo d’estas propo
mnar de novo os artigos que n’ella se con- sições ás universidades d’Alcalá e de Sala-
inham, mas declarando unicamente que manca, que as censuraram. O bispo dcVer-
ílla fôra achada nos registros de Pio v, e celli, núncio do papa em Flandres, para res
juc se lhe devia dar fé. Notificada esta tabelecer a paz entre os theologos de Lo
bulla á faculdade de theologia de Lovania vania, fez compor um corpo de doutrinas
pelo padre Toleto, jesuíta, confessor de Grc opposto aos artigos censurados na bulla de
gorio x iii , e encarregado de a fazer execu Pio v, e todo o corpo da faculdade se obri
tar, Bayo declarou que condemnava os ar gou com juramento a tel-o por norma dos
tigos que iTella se continham segundo o es seus sentimentos.1
pirito da mesma bulla, e da maneira que Depois d’cste corpo de doutrina, se assen
n’ella se condemnavam. tava que a paz estava tão consolidada en
Os doutores de Lovania fizeram a mes tre os theologos de Lovania, que não have
ma declaração; o mesmo Bayo assignou ría cousa que a alterasse quando as opi
este acto em que reconhecia haver susten niões que ensinaram dous theologos jesuí
tado muitas das sessenta e seis proposições tas, Lcssio e Hamclio, acerca da graça e da
arguidas na bulla, e que estas eram con- predestinação, vieram renovar todas as dis
demnadas no mesmo sentido em que elle putas. Não havia cousa mais opposta aos
as tinha ensinado. Bayo assignou este acto sentimentos de Bayo, que as opiniões de
cm março de 1580, e Grcgorio xm lhe es Lessio.
creveu logo um breve attencioso, remet- Suppunha este theologo que Deus, depois
tendo-lhe a cópia da bulla de Pio v, que do pcccado de Adão, assistiu a todos os ho
elle havia pedido. A condemnação de Pio v mens com meios sufficientes contra o pec-
foi confirmada por Urbano vm em 1642. cado, e com auxílios para adquirirem a
Disputou-se muito acerca da authoridade vida eterna; que a Escriptura estava cheia
d’estas bullas, mas como tal discussão não de preceitos c de exhortações concernentes
é do meu assumpto, indicarei sómente os á conversão dos peccadóres, d’onde con
authores que d’ella tractaram .1 cluía também Lessio que Deus lhes conce
dia um auxilio sufficiente para se poderem
1 Le père Duchesne, loc. cit. Cinquieme converter, porque elle não manda cousas
Instruet. Pastor de mr. Languet arch. de impossíveis. Lessio presumia que Saneio
Sens. p. 877, e Instruet. Pastor de mr. de Agostinho verosimilmente não expozera es
Cambrai, 1735. Traité Historiquc cite ci-des- tas palavras da epistola a Thimotheo: «Deus
sus. Dissert. sur les Bulles contre Baius, et quer que todos os homens sejam salvos»,
sur le elat de nature pure, p ar le P. de segundo a intenção do apostolo, dizendo
Gennes 1722, 2 vol. in-12.° que S. Paulo tinha entendido querer Deus
que se salvassem todos os que são salvos.
Ensinava Lcssio que todos os logarcs da sio, e encarregou d’cstc emprego Jacobo
Sagrada Escriptura quo dizem ser impos Janson, amigo apaixonado de Bayo, e mes
sível a conversão de certas pessoas, devem tre Janson.
■ontendcr-sc de tal sorte, que o termo im A universidade de Duai, que se póde cha
possível signifique o que é cm extremo dif- mar filha da de Lovania, movida pelo exem
ficultoso. Sustentava que o que ignora in plo dc sua mãe, e talvez tão inimiga como
vencivelmente a fé, era obrigado a obser ella dos novos collegios dos jesuitas, fez
var os preceitos naturacs, isto é, o Deca uma censura das suas proposições, simi-
logo, e que tinha um auxilio sufficiente lliante á de Lovania. Elias tinham sido re-
para os cumprir,.porque Deus a ninguem rnettidas a Duai pelos arcebispos de Cam-
obriga ao impossível: que d’outra sorte se brai c Malinas, c pelo bispo de Gandc. Gui
rocahiria nos erros dos hereges que aífir- lherme Eslio, doutor de Lovania, transfe
mam havcr-sc perdido o livre arbitrio para rido a Duai, foi o que ordenou esta censura
o bem, depois do pcccado original. Cria que mais forte e mais extensa ainda de que a
a predestinação para a gloria não se fazia de Lovania.
antes da previsão dos merecimentos, e que Os*jesuitas mandaram a Roma a censura
quando fosse di (Terente a opinião de Sancto de Lovania. Xisto v, que então occupava a
Agostinho, isso não importaria muito. cadeira de S. Pedro, despachou ordens ao
Lcssio ensinava também algumas cousas núncio dos Paizes-Baixos, para accommo-
concernentes á Escriptura Sagrada, que se dar esta contenda. O núncio passou a Lo
oppunham aos sentimentos dos doutores de vania, e fez reunir, em sua casa, a facul
Lovania, mas que não tinham correlação dade: alli se acharam doze doutores, entre
alguma com o bayonismo. D’esle objécto os quaes se contavam Miguel Bayo, Henri
não trataremos; sobre ellc se pódo vêr a que Granio, c João Lens. Depois das for
Censura da Faculdade de Theologia dc Lo malidades ordinarias, insinuou o núncio
vania, impressa cm Paris cm 1641. como desejava que a faculdade reduzisse
Na universidade de Lovania havia alguns a certos artigos o que estava em disputa:
doutores que conservaram sempre disposi Lens c Granio assim o fizeram; o núncio
ção favoravel pelas opiniões de Bayo: além prohibiu que os dous partidos disputassem
de que era tão grande a authoridade dc dc viva voz ou por escripto sobre estas ma
Sancto Agostinho n’aquella universidade, térias, e ambos se sujeitaram á prohibição.
que a doutrina de Lessio alvoroçou muita Prohibiu igualmcntc o núncio, sob pena
gente, e ha bastantes conjecturas de que de excommunhão, que alguém tomasse in
Bayo se aproveitara d’estas disposições, e teresse quer pela faculdade, quer pelos je
empregara o seu credito para fazer cen suitas; que ninguém disputasse, ou em pú
surar a doutrina de Lessio. blico ou em particular, condemnando um
Com eííeito a* faculdade dc theologia de ou outro sentimento que a igreja romana,
Lovania censurou trinta proposições extra- mestra de todas, ainda não tinha conde-
hidas dos livros de Lessio, como contendo, mnado. Excommuugou, além d’isso, em ge
pela maior parte, uma doutrina inteira ral, todas as pessoas que tractassem o do
mente opposla á que Sancto Agostinho en gma dc qualquer dos dous partidos de sus
sinara cm muitos de seus escriptos acer peito, escandaloso, ou perigoso, emquanto
ca da graça, e do livre arbitrio. Ella decla a sancta sé o não tivesse julgado. Por esta
rava que havendo sido sempre extremosa- mesma determinação permittia o núncio a
mente respeitada a authoridade dc Sancto Lessio e Hamelio que ensinassem a sua
Agostinho na Escriptura, pelos concilios, doutrina, uma vez que não refutassem os
papas, e authores ecclesiasticos, ós mais il sentimentos de seus adversarios, e dava
lustres, não estar por cila era ultrajar uns também a mesma liberdade ao partido op-
e outros; c finalmente que as proposições posto.
de Lessio renovaram e resuscitaram todas N’este mesmo anuo, Luiz Molina, jesuita
as dos semi-pelagianos de Marselha, tão so- hespanhol, que fòra professor em theolo
lemnemente conaemnadas pela sancta s é . 1 gia na universidade d’Evora, em Portugal,
A faculdade de theologia dc Lovania en publicou a sua obra intitulada: A Concor
viou a sua censura a todas as igrejas dos dia da Graça, e do Livro Arbitrio. Os domi
Paizes-Baixos, c para perpetuar quanto lhe nicos de Valhadolid sustentaram uma dis
fosse possível suas opiniões acerca das ma puta pública em favor da doutrina opposta
terias controvertidas, instituiu uma cadeira á de Molina, no anno de 1590, e, desde esse
pública de theologia para refutar as de Les- tempo, as duas ordens principiaram a in-
vestir-se. Clemente vm impôz silencio aos
1 Hist. Congreg. de Auxiliis, l. 1, c. 7. dous partidos por um breve de 15 d’agosto
304 BAI
de 1594. Philippe u deu ordens similhantes Morreu Jansenio antes de publicar a sua
nos seus estados, mas nào foram executa obra, que appareceu em Paris em 1640. 0
das, c o papa, instado pelos dous partidos, es cardeal de Richclieu, que aborrecera a Jan
tabeleceu em Roma uma congregação para senio, cmquanto vivia quiz refutar o seu
julgar sobre este negocio, de sorte que d alli livro; c commettcu csta empreza a Isaac
em diante nào houve mais controversias so Haberto, magistral de Paris, e depois bispa
bre este assumpto. 1 de Vabres. 1 Ilaberto deu principio ao seu
Em uma historia particular veem as con ataque contra Jansenio por tres sermões,
sequências e cffeitos d’estas congregações, em que dizia quo o Sancto Agostinho de’
que nào dizem respeito senão aos jesuítas Jansenio era um Sancto Agostinho mal en
c dom inicos.2 tendido, mal explicado, mal allegado, e ul
As disputas acerca da graça c da pre trajou cm extremo os jansenistas.
destinação, não tinham terminado mais em .Antonio Arnaldo tomou a defesa do bispo
Lovania do que cm Hespanha. Os sequazes dTpres; llaberto respondeu n’uma obra,
de Bayo pretenderam que as proposições que intitulou Defesa da Fé; replicou Ar
condemnadas, tomadas em um certo sen naldo, por^uma segunda apologia, a que
tido, não continham outra doutrina que não Haberlo não respondeu, mas publicou ou
fosse a de Sancto Agostinho. Lessio, c seus tra obra em que expunha os sentimentos
partidários, asseveraram, por seu turno, dos padres gregos acerca da graça. Urbano
uc suas opiniões não eram contrarias à viu depois de haver examinado com des
outrina do mesmo sancto doutor, e todas velo o livro de Jansenio, o prohibiu, como
as disputas dos theologos de Lovania acerca renovando algumas das proposições de
da graça e predestinação, se reduziram in Bayo, já condemnadas por Pio v, e por
sensivelmente a saber qual era o sentimento Gregorio xm. Jansenio, no corpo da sua
de Sancto Agostinho; c Janson encarrega obra, fere muitas vezes Molina, Lessio, o
do de combater a doutrina de Lessio, se todos os que pensam como ellcs; e no fim
occupou a combatcl-a pelos princípios do d’ella põe um parallelo das suas opiniões,
mesmo sancto. Admittia Lessio uma graça com as dos semi-pelagianos de Marselha.
concedida a todos os homens para se sal Como Lessio e Molina eram membros
varem, c cm todos os infiéis um auxilio mo d’uma sociedade fecunda em sábios c theo
ral, para satisfazerem a lei natural. logos consummados,que tinham combatido
Entre os discipulos de Jansenio havia de com grande lustre os erros dos protestan
appareccr naturalmente algum que com tes, tiveram defensores entre seus irmãos,
batesse os princípios de Lessio pela autho- e até entre os doutores de Lovania e de
ridade de Sancto Agostinho, c que bus Paris.
casse encontrar n’este sancto padre,—que Viram-sc pois cm França dous partidos,
Deus não quer salvar todos os homens, um dos quaes presumia defender a dou
que ordena cousas impossíveis, e que não trina de Sancto Agostinho, e combater os
quer que todos os homens se salvem.—E erros dos pelagianos e semi-pelagianos nos
muito verosimil que Jansenio lésse n’esta seus adversários, ao passo que o outro as
disposição Sancto Agostinho. Sobre elle severava defender a liberdade do homem,
fez um" estudo profundo, passou dez vezes e a bondade de Deus contra os erros de
todas as obras d’este sancto, e trinta seus Luthero e Calvino.
escriptos contra Pelagio. Alli achou natu Exacerbaram-se os animos cm França,
ralmente a mesma doutrina que procura os doutores dividiram-se, e o syndico da
va. 3 Porém esta doutrina sahiu da penna faculdade representou na assembléia do
de Jansenio n’uma ordem systematica que primeiro-de julho, que entre os bacharéis
não tinha até então, e apresentou-se como se iam introduzindo idéias perigosas, c que
a explicação das verdades que Sancto Agos seria necessario examinar partieularmente
tinho defendera e elucidara contra os pe- sete proposições que elle recitou.
lagianos, cujos princípios Lessio e Molina As cinco primeiras eram concernentes á
renovavam. doutrina da graça, e são as mesmas que ao
1 Trad. de VEgl. Rom. part. 4,pag. 184, 1 Jansenio era autlior d'uma obra inti
etc. tulada Mars Gallicus, e rCélla sustentava os
2 Hist. Congreg. d'Auxiliis, Auclore Au- interesses da Hespanha contra a França,
gust. de Blanc. com quem ella estava então em guerra: dis
3 Corneli Jansen. Episcopi Ipr ensis, Au se que esta foi a origem do odio d'este car
gustinus Synopsis vitee Auctoris, t. 1, libr. deal contra Jansenio. Apol. des Gèns. pag.
preemial. c. 10, t. 2. 144.
BÀI 305
depois fizeram tanto ruido. A sexta e se- riosa, que deroga a misericórdia divina, e
tinia diziam respeito á penitencia. heretica.
Nomearam-se commissarios, formou-se No mesmo dia que a bulla se expediu,
uma censura das proposições; appellaram Innocencio enviou-a com um breve ao rei
d’ella, como d’abuso, sessenta doutores; o dc França, c escreveu também uutro aos
parlamento prohibiu que se publicasse o bispos do mesmo reino.
projecto da censura, c que se disputasse so Em 9 dc julho fez o rei uma declaração
bre as proposições que n’clla se continham, dirigida aos arcebispos c bispos de França,
emquanto a corte de Roma não ordenasse em que se diz que não contendo a consti
o contrario. Esta determinação foi de o de tuição dlnnoecncio cousa alguma que seja
outubro de 1649; porém os defensores e contraria ás liberdades da igreja gallicana,
adversarios de Janscnio pozeram tudo cm é seu animo que ella se publique em todo
obra para fazer prevalecer seus respecti o reino. Trinta bispos que n’este tempo se
vos sentimentos. achavam em Paris, escreveram uma carta
Pelo fim do anno seguinte o bispo de Va- gratulatoria, d’accordo com o cardeal Ma-
bres escreveu uma carta latina que encer zarino, e os mesmos prelados dirigiram ou
rava as cinco proposições, rogando ao papa tra circular aos mais bispos.
uc as julgasse, e empenhou varios prela- Tinham reconhecido sempre os defenso
os para ensinal-a, a fim de a enviar de res dc Jansenio, nas proposições condemua-
pois á Curia. Innocencio x fez examinar as das, um mau sentido, mas asseveravam que
cinco proposições, e publicou em 1643 uma este mau sentido não era o dc Jansenio.
bulla, datada em 31 de maio, na qual diz Trinta e oito bispos, congregados em Pa
que havendo-se suscitado na França algu ris, escreveram ao papa uma carta, datada
mas controvérsias acerca das opiniões de em 28 dc março dc 1654, na qual ponde
Jansenio, e particularmente sobre cinco ravam «que um pequeno numero d’eccle
proposições, elle tinha sido rogado para jul siasticos rebaixavam vergonhosamente
ga l-as. As proposições sào: magestade do decreto apostolico, como
1. a Alguns preceitos de Deus são impos não houvesse terminado senão controvf
síveis aos justos, segundo suas forças pre sias, inventadas por divertimento; que ell
sentes, bem que clles desejem c procurem faziam na verdade profissão dc condemn.
observal-os; porque estão da graça destituí as cinco proposições, porém n’um sentid
dos, pela qual são possíveis. differente do de Jansenio, e que por este
2. a No estado da natureza corrupta nãoartificio pretendiam deixar aberto um cam
se resiste nunca á graça interior. po, para n’cllc renovarem as mesmas dis
3. a Para merecer e desmerecer no estadoputas: que a fim de prevenir estes incon
da natureza corrupta, não se requer no ho venientes, os bispos infra-escriptos, congre
mem a liberdade que exclue a necessidade; gados em Paris, tinham declarado por uma
mas basta ter aquella que excluc a violên carta circular junta áquella, que elles es
cia. creviam ao papa que estas cinco proposi
4. a Os scmi-pelagianos admitliam a neções eram de Jansenio, que sua sanctidade
cessidade d’uma graça interior, proveniente as tinha condemnado cm termos expressos
para cada acção cni particular, ainda em e clarissimos nb sentido do mesmo Janse
principio da fé, e eram hereges em preten nio, c que se poderíam castigar como here
der que esta graça fosse de tal natureza, ges os que as sustentassem.»
que a vontade tivesse o arbitrio de resistir- Innocencio. x respondeu por um breve,
lhe ou consentir n’ella. de 29 de setembro, no qual lhes agradecia
5. a É um erro dos scmi-pelagianos dio que elles. tinham trabalhado para fazer
zer-se que Jesus Christo morrera e derra executar a sua constituição, e diz que nas
mara seu sangue por todos os homens. cinco proposições de Cornelio Jansenio elle
A primeira proposição foi declarada te havia condemnado a doutrina contheuda
meraria, impia, e blasphema, digna ^ana no seu livro.
thema e heretica. O clero de França, junto em Paris, escre
A segunda heretica. veu em 2 setembro dc 1656 uma carta as-
A terceira heretica. signada por todos os prelados e outros de
A quarta falsa e heretica. • putados da assembléia geral, em cuja se re
A quinta falsa, temeraria, e escandalosa, presentava ao papa q u e «os jansenistás pro
e se ella se entender no sentido de que Je curavam reduzir a controversia a questão
sus Christo não morreu, senão unicamente de facto, na qual ensinavam elles que a
pela salvação dos predestinados, o papa a Igreja podia errar, e assim tornavam inútil
condemna como impia, blasphema, inju- o breve de Innocencio x, e rogavam a sua
306 BAR
sanctidade que confirmasse esta condemna- Os quatro bispos se reconciliaram com
ção, como se a questão de direito c de fa- Clemente ix e Luiz xiv, e não teve mais Io-
cto fosse toda uma. » gar em França a distineção de facto e de
A mesma assembléia do clero recebeu o direito. 1 E já pareciam estar supitas as
breve de Alexandre vii, que confirmava a disputas, pela submissão dos quatro bispos
bulla dlnnoccncio x, e expressamente de quando cm 1701 se viu appareccr um im
clarava que as proposições tinham sido con- presso, intitulado Casos de Consciência, re
demnadas no sentido de Janseuio. solvidos por quarenta doutores da facul
Os defensores d’este asseveravam que o dade de Paris, muitos dos quaes depois de
breve não obrigava a ninguém a assignar clararam haver assignado por engano csía
o formulario; c ainda mesmo alguns bispos obra.
não exigiam que olle se assignasse. O rei N ellcs sc definia que qualquer confessor
rogou ao papa a que enviasse um formu- podia absolver o penitente que tivesse as
• lario, e o sancto padre passou uma bulla signado pura c simplesmente a condcmna-
em 25 de fevereiro de 1665, em que ellc ção do livro, c proposições de Jansenio, bem
vinha inserto, com ordem a todos os bispos que assignando-a não crêsso n’csta decisão
para o fazerem assignar. Era concebido quanto ao facto, c que não tivesse outra
nos termos seguintes: vista mais que a de guardar sobre esta
«Eu, N., me submetto á constituição apos questão um silencio respeitoso. Este im
tólica de Innoeencio x, passada em 21 de presso foi condemnado por M. de Noailles,
Maio de 1665, e rejeito c condemno as cin arcebispo de Paris, e pelo maior numero
co proposições exírahidas do livro de Cor de bispos, e^ todos os que haviam subscri
nelio Jansenio, intitulado Auguslinius, no pto a decisão dos Casos de Consciência, se
sentido do mesmo aulhor, como a sancta sé retractaram, excepto um, que a Sobborna
apostólica as condeinnou pela constituição excluiu da sua corporação.2
sobredita. É o que eu juro, assim Dous me* Finalmente Clemente xi pôz fim a todas
ajude, e estes sanctos Evangelhos.» estas disputas na sua constituição de 17 de
Este formulario foi autliorisado por uma julho de 1703, na qual, depois de haver re
lei do principe no parlamento, e recebido ferido as constituições d’Innocencio x e de
por todos os bispos; devem porém exce- Alexandre viii, declara «não prestar a obe
ptuar-se d’este o de Alet, Pamierz, Beauvais, diência necessaria ás constituições dos pon
e de Anvers. tifices, sobre a questão presente, aquelle
A favor d’estes escreveram a Clemente ix, que as não repebe com um silencio respei
c também ao rei outros dezenove, represen- toso.» O clero, junto em Paris em 1705. re
tando-lhes que «om tal negocio de nenhuma cebeu esta bulla, e a acceitou.
maneira se tractava da fé, e que todo o bardesanes—nasceu na Syria, e foi um
crime dos quatro bispos consistia em se ha dos mais illustres defensores da religião
verem opposto a uma nova e perniciosa christã. Vivia imperando Marco Aurelio,
doutrina, contraria a todos os çrincipios de que conquistou a Mesopotamia no anno de
religião, aos interesses do rei, e 'á segu 166. Como este principe, era opposto ao
rança do estado, pela qual se queria attri- Christianismo, Appollonio, seu valido, quiz
buir ao papa o que só pertence a Deus, fa induzir Bardesanesva que renunciasse a fé,
zendo o papa infallivel, até nos mesmos fa mas este respondeu que não temia a morte,
ctos; e supplicavam ao rei que quizesse es nem poderia evital-a, ainda quando fizesse
cutar as justificações dos quatro bispos.» o que o imperador d’elle exigia.
Deniz Talan, ad vogado do rei, se queixou Este homem tão conspicuo por seus talen
ao parlamento, dizendo que se faziam ca tos e virtudes, cahiu na heresia dos valen-
balas e conventiculos illicitos, a fim de que tinianos. Admittiu muitas gerações de aeo-
os bispos assignassem uma carta dirigida nas, c negou a resurreição. Nao sabemos
ao rei, em que se continham maximas ca claraqjpnte qual fosse a serie d’idcias que
pazes de perturbar a paz da Igreja, e de conduziu Bardesanes a este erro, do qual
' ennervar a auíhoridade das leis e bullas re- se afastou depois algum tanto, sem que
istradas no parlamento acerca da doutrina comtudo o renunciasse inteiramente.
e Jansenio. Aprendamos pois com tal exemplo; que
Em consequência d’isto, prohibiu o par talvez não ha -erro, que visto por um certo
lamento que se imprimisse ou publicasse a lado, não seja capaz de allucinar uma ra-
carta mencionada, e quaesquer outros es-
criptos similhantes, sob pena de serem tra- 1 Veja-se o Journal de S. Amòur. Pieces
ctados os que o fizessem como perturbado touchant les quatre Evêques.
res do socego publico. x2 Antonio Arnaldo.
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zão esclarecida c animada do amor da ver ser a habitação d’uma alma pura e inno-
dade; o aprendamos também qual deve ser ccnte. 1
nossa indulgência para com aqucllcs que Reconhecia Bardesanes a imniorlalidade
se precipitam no erro, c qufto pouco deve da alma, a liberdade, a omnipoteneia, e pro
mos ensoberbeccr-nos de havel-o evitado. videncia de Deus. -
A quóda de Bardesanes prova, segundo nos Este philosopho tinha comb.atido o des
parece, que Ciere, c outros criticos como tino ou a fatalidade n'uma obra conspicua,
clle, tcom feito mal cm traclar o erro de de que Eusebio nos conservou grande fra
Valentim como um amontoado de absur gmento: cria que as almas nào estavam su
dos, (pio nem mereciam ser examinados. jeitas «ao destino, mas que nos corpos tudo
Verdade é que Bardesanes nào persistiu era submeltido ás leis da fatalidade.3
neste erro,mas cahiu cm outros. Ellepro . jjAsiupEs—era da Alexandria, e vivia no
curava, assim como os philosophos c theo pnncipícnio, século n; estava então muito
logos do seu tempo, resolver esta grande em voga em Alexandria a nlulosonhia de
questão: «que motivo lia para haver mal Pithagoras e Platão. Na mesma cidade se
no mundo?» Eis-aqui como elle a resolvia: havia annunciado felizmente a religião
Dizer-se que Deus fez o mal é um absur christã, o as scit«a$ separadas do Christia- •
do; devemos suppôr que o mal tem causa nismo já n’clla tinham peneirado.
differente de Deus. Esta causa, segundo As investigíições dos philosophos toma- -
Bardesanes, era Satanaz ou o dcinonio, que vam então corno principal objecto a origem j
elle olhava como inimigo de Deus, mas nào do mundo, o sobretudo a do mal no mesmo -
como creatura sua. mundo. Basilidcs olhou esta segunda ques
Nào suppozcra que Satanaz deixasse de tão como a mais interessante para a curio-,
ser creatura de Deus bom, só para nào pôr sidade human.a, procurou a sua explicação»
a cargo do Ente Supremo os males que se nos livros dos philosophos, nós escriptos *
viam no mundo; elle pois não concedeu a de Simão, na escola de Menandro, e ainda
Satanaz «algum dos seus «attributos da divin entre os mesmos christãos.
dade, excepto o de existir por si mesmo, Nenhum o s.atisfez plcnamcnte acerca
sem altentar que é inteiramente perfeito d’csta grande difliculdíide, c para resol-
um ente que por si mesmo existe; portauto vel-a formou elle mesmo um systema com
clle admittia um principio do mal distincto posto dos princípios de Pithagòras c de Si- j
do Ente Supremo, bem que não reconhecia mão, dos dogmas dos christãos e da crença'*
mais que um só Deus. dos judeus. 4
Por uma consequência, d’esta opinião, Suppôz Basilides que o mundo nào fora
não concedia Bardesanes a Satanaz parte creado immediatainentc p clo J jntcSqpre-
alguma da administração do mundo, senão qs, porfnlell ígencl arquFelleprodu-
a que era necessaria para explicar a ori zfgi. ‘Esfe era o systema da 'th W itn n rdif-
gem do mal; c d?esta sorte, segundo a opi fículdíide de conciliar a origem do mal com
nião de Bardesanes, Deus çrpára o mundo a bondade do Ente Supremo, linha fixa
c o homem; mas o homem que elle creára do n’esta supposição qu«asi todas as seitas
no principio, nào era um homem revestido que cmprehcuderám explicar a origem do
de carne, mas uma «alma Unida a um corpo mundo, c do mal. Simão, Men«andrò c Sa
subtil, c conforme á sua naturez«a. turnino todos suppunham um Ente Supre- \
Esta era a alma que tinha sido formada mo que produzira intelligencias, e attri- \
á imagem de Deus, e que cnganíida pelas buiam a origem do mal á imperfeição d’es- \
astúcias do demonio, havia transgredido a tas mesmas intelligencias subalternas, que
lei do mesmo Deus, o que obrigara oCrc«a- fazia cada um d’elles obrar pelo modo mais
dor a expulsal-a do Paraizo, c a ligal-a a
um corpo carnal, que era como a sua pri
são. Dizia Bardesíuics que estas eram «as 1 Origen. Dial. cont. Marcion % sect. 3, et
tunicas de pêllo com que Deus tinha co pag. 70, 71.
berto Adão o Eva depois do pcccado. 2 Euseb. de Prcep. Evangel. c. 10.
Era pois consequência do mesmo pecc«a- 3 Euseb. Hi&l.Eccles. I. 4, c. 30. Epiph.
do, segundo Bardesanes, a união da alma Iícer 36. Photius, Bib. cod. 223. Epiph.
a um corpo carnal, e d’aqui tirava elle «as prcep. /. 6, c. 30. Ilist. Bardesmm et Bar-
seguintes conclusões: 1.* que Jesus Christo deanistarum, in-4.°, 1780, por Strunzius
nem tomára um corpo humano; 2." que Ittig. de Hcer. pag. 133.
nós não havemos de rcsuscitar com o mes * Fragm. I. 13. Comment. Basilid. em
mo corpo que temos sobre a terra, mas sim Grab. Spicileg. PP. sceculi 2, pag. 39. Ciem.
com um corpo subtil c celestial, que deve Àlex. I. 4. Strom. pag. 506.
308 BAS
adequado para a explicação da difliculdadc •a*figura de Simão Cyreneu, dando-lhe
que o embaraçava sua; e que d’esta sorte os judeus haviam
Não era sufficiente então explicar em crucificado Si mão cm logar de Jesus Chris-
ceral o modo como o mal physico se intro )to, que então se estava rindo d’elles, sem
duzira no mundo; precisava-se também dar que o vissem; e que depois subira aos céos
a razão das desordens c da miseria dos ho (sem que jamais fosse conhecido de nin
mens, explicar em particular a historia das guém. i Assim se persuadia Basilides que
desgraças dos judeus, fazer comprehensi-' não se devia soffrer a morte por Jesus
vel como o Ente Supremo ti ve rã vistas de Christo, porque, não havendo elle sido
misericordia para com o genero humano c morto, mas Simão Cvrencu, os martyres
enviara seu Filho ao mundo para remil-o. morriam por este, c não por Jesus Christo. *
E eis-aqui, pois, quaes foram os princípios ** A dependência em que õs homens vi
de Basilides acerca de todos estes objectos. viam dos anjos, ora uma objecção contra
• O ente increado tinha produzido, segun a bondade de Deus. Basilides á resolvia,
d o Basilides, a intelligencia; a intelligencia dizendo que as almas peccavam em uma
/produziu o Verbo; o Verbo produziu a vida anterior á sua união com o corpo, e
* prudência; a prudência, a sabedoria e o que esta união era um estado d’expiação,
i poder; c a sabedoria c o poder, produzi- de que a alma sómente sahia depois de se
* ram as virtudes, as potestades e os anjos. haver purificado, passando successi vamen-
Os anjos eram de diflerentes ordens, e te de corpo cm corpo, até haver satisfeito
a primeira d’cstas ordens produziu o pri a justiça divina, que não dava outros cas
meiro céo, e assim se foram seguindo até tigos, mas que comtudo não perdoava se
o numero de 360.Í1 Os anjos que occupam não as fallas involuntarias.3 Cria Basilides.
o ultimo dos céos* fizeram o mundo: por haver em nós duas almas, adoptando este’
tanto não é d’admirar que n e llc se veja o sentimento dos pilhagoricos, a fim de con
bem e o mal. O imperio do mondo foi re ciliar os combates das paixões e da ra- /
partido entre elles, e ao principe dos anjos zã o .4 —
do céo, em que se acha a terra, tocaram •' Havia-se applicado muito á magia, e
os judeus, por cuja razão obrou elle em arece-me que estava preoccupadissimo
seu favor tantos prodígios; mas querendo í bs delírios da cabala: elje suppunha uma
este anjo ambicioso submetter todas as na- grande virtude na palavra abrasas ou abra-
1 ções aos judeus, então se colligaram con-; xas. A origem d’osta opinião singular, que
| tra elle todos os outros anjos, e todas as* principalmenlc o fez celebre, a meu vér,
' nações se fizeram inimigas da judaica. mí esta que vou explanar.
Éstas idéias se conformavam em parte S Pithagoras, de quem Basilides adoptára
com a crença dos antigos hebreus, que se ‘ó s principios, reconhecia com os caldeus,
i persuadiam que cada uma das nações es- °éus mestres, a existência d’uma intclli-
í tava debaixo da protecção de seu an jo.2 encia suprema que tinha formado o mun-
Gemiam os homens, e estavam opprimi-,
dos da tyrannia, desde que a ambição dos,,J
anjos tinha posto em armas as nações; e zÔ£& ná sua producção, meditou sobre
então o Ente Supremo," condoído da suai natureza, a fim de descobrir as leis que
sorte, enviou seu primeiro filho, ou a intel iclla seguia nos phenomenos, e d alcançar
ligencia, Jesus ou o Christo, para libertar o fio que ligava os acontecimentos.
; os homens que n’elle cressem. j^Foram suas primeiras vistas sobre o
O Salvador, no sentir de Basilides, fez os ;eéo, aonde o author da natureza parece
I milagres referidos pelos christãos, mas elic [manifestar mais claramente seus desígnios.
*não crê que o mesmo Senhor encarnara. í‘Como n’ello descobriu uma ordem admirá
A difficuldadc que tinha em conciliar o es vel, e uma harmonia constante, julgou que
tado da^humiliação e de dor em que Jesus esta ordem e harmonia que alli reinavam,
Christo appareeera no mundo, foi verosi- não eram mais que relações que se divisa
milmente quem o determinou a sustentar vam entre as distancias dos corpos celestes
que n’elle não houvera mais que as appa e seus reciprocos movimentos. A distancia
rendas (Thomem, e que na paixão tomara o. movimento são grandezas, estas gran-
nr i n r
podiam deixar dc tomar as palavras da in tro cidades imperiaes que seguiam a opi
stituição no seu sentido proprio c natural; c nião de Zuinglio, sc visse na necessidade
o Senhor, longe dc os haver prevenido de de induzir estas mesmas cidades a fazerem
que faltava d um modo allcgorico, de al uma protestação dc fé, cm que reconhe
guma sorte os havia preparado a tomarem ciam que Jesus Christo déra a seus disci
suas expressões no sentido litlcral. pulos a comer seu verdadeiro corpo, c a
Collocando-nos n’este ponto de vista, que beber seu verdadeiro sangue? Porque ra
ê o unico como se deve olhar a questão, se zão, n’uma carta escripta ao duque de Bru-
colhe facilmente que MM. Claudio c Bas- nswick-Lunebourg, protestou cllc que cria
nage não passaram de formar sophismas em Zuinglio c /Eco lampadi o, que o verda
para provar que o espirito dos apostolos deiro corpo c sangue de Jesus Christo es
estava assaz preparado no sentido metha- tavam presentes na Eucharistia? 1
phorico,pela propria ceremonia daPaschoa, Emíirn, se é verdade, que o sentido figu
que Jesus Christo celebrava, e pelo uso de rado se apresenta naturalmente ao espirito,
se servir dc allegorias c parabolas. Por porque% razão aquellcs mesmos povos aos
tanto, Jesus Christo e os evangelistas não quacs Bucer tinha prégado o sentido figu
nos previnem para que devamos tomar as rado, tornaram ao dogma da presença real,
palavras da instituição cm um sentido fi logo que ellc e Cupiton, em attenção'aos lu-
gurado. théranos, deixaram de repetir constantc-
Em segundo logar, não se pódc dizer que mente aos seus ouvidos esta opinião? 2
o sentido lilteral c obvio das palavras da Mas dir-se-ha: Os apostolos não viam evi
instituição Eucharistica encerrem contra- dentemente que comendo o pão que Chris
dicção sensível ou absurdo palpavel, de sor to benzera, não podiam comer o corpo que
te que ouvindo-se estas palavras, o espirito tinham diante dc seus olhos?
deixe o sentido natural e passe ao figurado; Respondo que o espirito vê como impos
porque então jámais teria entrado no dos sível somente aquillo que encerra cm si o
apostolos e christãos o dogma da presença sim c o não, isto é, o que affirma o que
real; além do que, nunca se poderia haver uma cousa é, e não é no mesmo tempo; mas
estabelecido ou ao menos se teriam visto não ha contradicção em que o corpo de Je
na igreja christà reclamações contra este sus Christo se ache debaixo das especics
grande dogma, e o maior numero se teria do pão c do vinho, porque é possível.
ligado ao sentido methaphorico. 1. ° Que o pão e o vinho se convertam em
Porém, quando Berenger atacou o do corpo c sangue de Jesus Christo, como o
gma da transubstanciação, toda a Igreja suppoem os que seguem a impanaçào.
cria na presença real, nem os protestantes 2. ° É possível que Deus fórme na sub
até agora pòderam assignar um tempo em stancia do pão, c na do vinho um corpo
que eilc não fosse crido, ou um século em humano, a que se una a alma de Jesus
que a Igreja tivesse de fé que a Eucha Christo, como examinou M. Varignon.
ristia não era mais que a figura do corpo 3. ° Não se vê que seja impossível que o
de Christo. Se o sentido figurado é .o que corpo dc Jesus Christo so ache debaixo das
se offerccc ao espirito quando se ouvem as especies de pão e vinho, como é na reali
palavras da instituição Eucharistica, por dade, e se fará vêr quando fallarmos da
que razão foi abandonado de todo o mun transubstanciação.
do Carlostadio, quaudo suppôz este sentido? Em segundo logar respondo: que os apos
Porque razão Zuinglio consumiu mais de tolos conhecendo a omnipotcncia e verdade
quatro aniios para achar que as palavras: infallivel de Jesus Christo, não tinham ne
Este è o meu corpo, deviam entender-se: cessidade de conceber se era possível o
Este representa o meu corjjo. 1 que ellc lhes dizia, para interpretarem seu
Se o sentido figurado é o que se olTcrecc discurso em um sentido natural e à letra.
ao espirito, que razão tiveram Luthero, e Crêram que com eíTeito o^pão se tornara
seus sequazes para tomar constantemen em corpo e sangue dc Jesus Christo, bem
te no natural c á letra'as palavras da in que não entendessem como isto podia ope
stituição Eucharistica, bem como as tomam rar-se. E por ventura deixa de se crér o
os catholicos? Que razão houve para que mysterio da Trindade por ser impossível a
Bucer, a fim dc interessar os principes pro sua comprehensão?
testantes de Allemanha cm favor das qua-
1 Zningl., de vera religione, pag. 202. Resp. 1 Hospin. pag. 2,121. Perpet. de la Foi,
ad Luthcr. pag. 400. Ep. ad Pomeram, pag. ô. 4.
256. Perpet. de la Foi, t. 2, l. 1, c. 2. 2 Ibid. c. 17.
OlU U lit i
n’uma igrcjaem que se tivesse crido a ausên tão grosseira, e não as convencesse da falsa
cia? Como se teriam mudado todo o culto, impressão que lhe haviam feito as suas
e todas as ceremonias, sem que ninguem palavras?
se oppozesse a esta mudança? Porém, des Poderá crér-se que todos os pastores fos
de o tempo dos apostolos até Berenger, cm sem tão cegos e tão imprudentes que se
ue era universalmcnte crido na Igreja o servissem de palavras apropriadas para
ogma da presença real, nào se acha a me conduzir ao erro as suas ovelhas, sem que
nor prova de que alguém publicando que, jamais explicassem tão perigosos equívo
Jesus Christo estava realmente na Eucha cos? E se estas palavras não eram de si
ristia, se lembrasse de propor uma opinião mesmas sujeitas a um mau sentido, nem
diversa da crença commum da Igreja do mal explicadas, senão por um pequeno nu
seu tempo ou da Igreja antiga. mero de pessoas ignorantes, como seria pos
Não se descobre que alguém fosse de sível que os fieis mais illustrados e que que-
nunciado publicamente aos bispos e conci- tidianamente conversavam com os simples,
lios por haver publicado do viva voz, ou por algumas das acções ou palavras d’cs-
por escripto, que Jesus Christo estava rcal- tes não descobrissem* o reprehensivej erro
mente na bòcca d’aquellcs que recebiam a em que estavam imbuídos, o que deveria
Eucharistia. Não se encontra que algum necessariamente produzir uma dilucidação,
dos padres, que algum bispo, qúc algum c não poderia deixar de ser conhecido dos
concilio se oppozcssem a esta crença, testi- pastores, os quaes immcdiatamente seriam
munhando que havia entre o povo quem obrigados a declarar cm público a má in-
grosseira e perigosamente se enganasse, telligencia que se havia dado a suas pala
crendo que Jesus Christo estava presente vras, abusando-se d’cllas e tomando-se em
sobre a terra, da mesma sorte que no céo. um sentido falsissimo e inteiramente con
Não se acha que algum escriptor ecclesias trario ás suas intenções?
tico, nem que algum prégador jamais se Porém qual seria* a razão porque este
queixassem de que em seu tempo se intro equívocos só entre o nono e decimo si
duzia uma idolatria perniciosa, c digna da culo entraram a enganar o mundo, con
condemnação, adorando a Jesus Christo, aflirmam os reformados, se na celebraçã
como realíuentc presente nas espeeies de da missa, e na pregação da divina palavn
pão c vinho. 1 nunca se serviu a Igreja d’outras para ex
Porém dir-se-ha talvez que estas razões plicar este mysterio, senão das mesmas de
fazem ver na verdade que a crença da pre que antes se servia? E que cousa poderá
sença real se não iatroduziu por meio de imaginar-se mais digna de riso de que di-
controvérsia, nem por individuos que ex- zer-sc que as mesmas palavras fossem en
pontaneamente mudassem de sentimentos, tendidas universalmcnte d’um mesmo mo
ou pretendessem innovar e alterar a cren do em certo tempo, e que em outro se en-
ça da Igreja; mas que isso não prova que tedessem universalmente em um sentido
não podésse introduzir-se d’um modo ainda opposto, sem que ninguem attentasse n’es-
mais inseusivel, qual é, que os mesmos pas ta incohercncia?
tores da Igreja, persuadidos de que o corpo
de Christo estava cm figura na Eucharistia,
com tudo annunciassem esta verdade em TODOS OS PADRES ENSINARAM O DOGMA
termos tão ambiguos que os simples tomas DA PRESENÇA REAL
sem suas palavras em sentido contrario á
sua intenção, e entrassem na opinião da
presença real, como se ella fosse a dos pas
tores. Extrahindo os sanctos padres a sua dou
Mas bem que um tal equivoco podésse trina acerca da Eucharistia, do que ensi
induzir no erro um pequeuo numero de naram os apostolos, para se julgar o seu
pessoas simples, é o ultimo remate do ab sentimento, só se deve examinar se elles
surdo querer persuadir que podessem en entenderam as palavras: Este c o meu cor
ganar-se todos os christaos do universo, po., no sentido figurado ou no de realidade.
porque poderá imaginar-se sem extrava- Ora é certo que um e outro d’estes dous
gancia, que sendo mal entendidas as pa sentidos teem signaes e caracteres que lhes
lavras dos pastores por um grande numero são proprios, e que se devem encontrar nas
de pessoas de todas as partes do mundo, expressões dos padres, os quaes sómente
nenhum d’ellcs descortinasse esta illusão fallaram a este respeito na conformidade
cTaquelle dos dous sentidos que tinham no
1 Perpet. de ia Foi, vol. in-12, pag. 23. seu espirito.
348 BER
Quando se crê que as palavras da insti mos produzir aqui as provas d’is to, mas
tuição Eucharistica—Este é o meu corpo— achar-sc-hão na Perpêtuité de 1a Foi. i
exprimem estar o corpo de Jesus Christo 3. ° Os padres reconheceram que a Eu
realmente presente, tomam-sc n’um senti charistia produzia a graça, e aitribuiram
do natural, que sem trabalho se oITcrcco a efficacia do sacramento á presença real
ao espirito de todos, e é forçoso que isto do corpo de Christo. É outro ponto que na
assim seja, segundo os princípios dos calvi- Perpêtuité de la Foi se segue até á demon
nistas, uma vez que elles asseveram que a stração. 2
Igreja, sem controversia alguma, passara 4. ° Os padres fallaram sempre da Eucha
da crença da ausência real á da presença ristia como d’um sacramento que continha
real, pelo unico meio das palavras— Este é. rcalmcnle o corpo c sangue de Jesus Christo.
o meu corpo;—porém tomadas as mesmas 5. ° Para conhecermos o sentimento dos
no sentido natural, exprimem uma eousa padres acerca da presença real do corpo
incomprehensivel; portanto o sentido litte de Christo na Eucharistia, não devemos res-
ra! c da presença real é facil, e a eousa que tringir-nos a um pequeno numero das suas
elle exprime é diflicilima. passagens; havemos de considerar cm ge
Quando se crê que estas palavras—Este ral todos os legares cm que elles tractam
é o meu corpo—significam—Esta é a figu d’esta materia. Ora é indubitavel, por infi
ra do meu corpo—este sentido é diílicili- nidade de passagens e de razões que pro
mo de descobrir, e o espirito naturalmente duzem uma total certeza, que os padres
o repugna; c para prova não empenhamos dos seis primeiros séculos tomaram as pa
mais razões do que o que dissemos de Zuin- lavras da instituição da Eucharistia no sen
dio, que esteve quatro annos persuadido tido proprio c littcral; é pois sem dúvida
e que o corpo de Jesus Christo não estava que o figurado nunca lhes veio á mente, e
3almente na Eucharistia, antes de poder elles reconheceram uma verdadeira con
char que o sentido das palavras— Este c versão da substancia do pão na do corpo
meu corpo—era—Esta é a figura do meu de Jesus Christo.
corpo;—portanto é certo que o sentido fi Portanto, ainda que nos sanctos padres
gurado das palavras de Jesus Christo é dif- se encontrassem algumas passagens em
ficilimo e o mais inverso. Mas é sem dú que elles dessem á Eucharistia os nomes
vida que elle exprime uma eousa facil de de—signat, imagem, figura, — não devera
comprchender, isto c, que o pão e o vinho d’aqui concluir-se que elles não criam na
são os symbolos do seu corpo e sangue c presença real. 3
podem produzir na alma eíTeitos saudá 6. ° Como as especies do pão e do vinho
veis, o que nào c mais difficil d’alcançar ainda existiam depois da consagração, não ó
que a producção da graça por meio do ba impossível que os padres ainda depois d’ella
ptismo. dessem á Eucharistia o nome de pão c vi
Portanto o sentido dos catholicos é muito nho: porém elles exprimiram os symbolos
facil nos termos, mas exprime uma eousa Eucharisticos por idéias populares e não
diíTlcil de conceber; d sentido dos calviriis- phylosophicas; e claramente se vê servi
tas pelo contrario é opposto ás regras da rem-se destas expressões para se coufor-
linguagem, e por consequência muito dif- marem á linguagem do povo, por quanto
ficultoso de conceber, mas exprime uma affirmam constantemente que o pão c o vi
eousa que o não é, antes muito facil. nho se convertem no corpo c sangue de
1. ° Os sanctos padres nunca cmprehon- Jesus Cliristo.
deram explicar o sentido d’estas palavras: 7. ° Pelas palavras da consagração, a
—Este é o meu corpo, —c bem que sempre substancia do pão e do vinho no sentir dos
explicassem com grande cuidado todas as padres, se convertem na do corpo dc Christo;
mcthaphoras, jamais escreveram eousa al porém este não se vê immediatamenle: nos
guma para obviar que os fieis não as to sos sentidos só véem as especies dc pão e
massem no sentido dos catholicos, c por de vinho;, assim depois da consagração, el-
tanto créram que as palavras—Este é o las são os signaes ou o typo do corpo dc
meu corpo— deviam tomar-se no sentido Jesus Christo.
natural, e á letra. Portanto, podem os padres haver dado
2. ° É certo que todos os padres olha aos symbolos Eucharisticos o nome de si-
ram a Eucharistia como um mysterio in
comprehensivel, como um objecto de fé. V T. 2, l 3 e 4. Nat. Alex. Dissert. 12
Sempre recorreram á omnipotoncia divina in sxc. 1 1 .
para proval-o, o que certamente não tem 2 Perpét. de la Foi, ibid. I. õ.
logar no sentido dos calvinistas. Não pode 3 Perpét. de la Foi, t. 2, l. 1, c. 1.
BER 319
:gnaes do corpo c sangue de Jesus Christo, mos pela maior parte abandonaram. Va
sem que todavia deva d’aqui concluir-se mos pois reduzir aos pontos mais simples
que nao criam na presença real. 1 os seus principaes argumentos.
CAT 363
unidas aos corpos por so haverem esqueci formar-se ácerca d’isto com certa passa
do de Deus, c que degredadas de sua pri gem do Evangelho que diz: «Quando via
meira dignidade perderam o privilegio de jardes com vosso inimigo cuidai cm vos pre
puros espíritos c desceram ao mundo cor caver de seus ataques, receando que elle
poreo, em que eram sujeitas aos anjos crea- vos entregue ao juiz e que vos faça condu
dores do mesmo mundo. Todas as luzes de zir á prisão, d’ondc não saiaes sem ter sa
que haviam sido dotadas no estado primi tisfeito até o ultimo real.»
tivo se tinham apagado: esta era a causa Os carpocracianos tinham os anjos crea
da ignorância cm que nascem todos os ho dores como inimigos que se regosijavam de
mens, e os debeis conhecimentos a que se vér os homens procurar os prazeres e entre-
iam elevando com tanto trabalho nào eram, garem-se a elles: e para evitarem o emba
segundo Carpocras, outra cousa mais que raço de resistir a seus ataques se entrega
reminiscencias. vam a todos os seus desejos.1
A alma de Jesus Christo, que na outra Tinham os carpocracianos os seus encan
vida se tinha esquecido menos de Deus que tamentos, os seus segredos e a sua magia
as demais, tivera menos trabalho cm sahir como todas as seitas que attribuiam a for
da ignorância em que o pcccado submergira mação do mundo e os successos importan
os homens: os seus esforços attrahi ram so tes aos homens, a genios sujeitos a todas as
bre si os favores do Ente Supremo e Deus paixões c fraquezas humanas. Os seus se
lhe communicára tal força, que o fazia su ctarios eram marcados na orelha: excita
perior e capaz de resistir aos anjos e de rc- ram a indignação dos pagãos c occasiona-
montar-se ao céo, apesar dos seus estorvos. ram muitas calumnias aos christàos, que
Deus concedia a mesma graça aos que imi os pagãos confundiam com elles. 2 ___
tavam a Jesus Christo e que conheciam ser f ca t iia r o s — Esta palavra quer dizer puro. 7
espíritos infinitamente superiores aos cor-1 Os monxTCnistas, manicheos, novacianos e $
pos. albigenscs tomaram o mesmo nome. Vejam- ■
Com este conhecimento* segundo Carpo se os seus artigos.
cras, o homem se elevava acima das fra -"'C a t h o licism o e s e u s in im ig o s —A verdade
quezas da natureza humana, sua carne era por SL“rçiTélMffl tttôòbrir, sempre
atormentada sem que elle soíTressc; as im apparecc superior a todos os erros c so-
pressões dos corpos estranhos sobre seus phismas.
orgãos nào o subordinavam: elle soffria Se aqui se esconde, acolá brilha cm todo
sem fraqueza, era incorruptível no meio o seu esplendor.
dos prazeres, porque nào os olhava senão Poderá sim por algum tempo offuscar-sc,
como movimentos da materia, que um es mas nunca predominar o erro por longo
pirito bem persuadido de sua grandeza en tempo, nem em toda a parte.
cara com superioridade. Immovel no meio E se isto é exacto, não o c menos que os
dos acontecimentos que agitam os homens, seus inimigos quasi nunca a atacam aber
e inflexível qual o rochedo no meio das on tamente, mas ordinariamente servem-sc das
das, que dominio podem ter sobre um tal armas do dolo e mentira para triumphar.
homem os anjos creadores? Mostram-se animados do zelo, imparciali
N’cste conhecimento da própria dignida dade e desinteresse para occultar a verdade
de consistia pois a perfídia humana: Jesus c fazer reinar o erro.
Christo nada mais tivera: todos os homens E quando elles se julgam os unicos que
podiam imital-o e merecer a gloria de que possuem a bossa da sciencia, então tomando
elle gosava. Na conformidade d’estas idéias um tom pithagorico, c dando-se ares de ex
os carpocraciancs nào viam a acçào corpo clusivistas nas letras, pensam ter tocado a
rea que fosse boa ou má: o temperamento meta dos seus fins, que são o triumpho do
ou a educação decidia acerca dos seus cos erro contra a verdade.
tumes: portanto eram ordinariamente ho Assim é que a guerra feita á religião é
mens estragados, como sempre acontece em uma guerra infame e traiçoeira, porque os
todas as seitas que se fundam em similhan- seus inimigos não ousam apresentar-se fran
tes princípios. camente, aizendo o que querem e usando
Alguns d’estes sectários reputavam os da lealdade nos argumentos.
razeres mais vergonhosos como tributos
S e que a alma era devedora aos anjos crea
dores e que o homem havia de satisfazer 1 Ciem. Alex. 1.3. Strom. pag. 312. Phi-
para recobrar a liberdade original: por este lastr. de Hcer. Ircen. I. 1, c. 24. Euseb. I. 4,
meio as acções mais nefandas se tornavam c. 7. Hist. Eccles. Epiph. hcer. 27.
actos de virtude, e affectavam elles con 2 Euseb. Ircen. Epiph. ibid.
364 CAT
Estes novos phariseus não combatem o no século i SunãpJIago, Menandro, Niçolau
catholicismo com a razão e o raciocínio, Geciutho e .Ebion. ~ ^
ue se assim o fizessem já ha muito ^ N o 11 Saturnino, B.asilidcs, os gnosticos
S íavcria incredulos e impíos. Ellcs com-J os valentinianos, marcionitas, montanistas
batem-no por meios hypocritas e insedio* ,e eucratitas.
sos, por meio de soplíismas c calumnias, ^ No ui os novacianos, sabellianos, paulia-
por meio da mentira c do ridiculo. E coino mistas c manicheus.
em escarneo do bom senso e da razão cha-< ^ No iv os donatistas, arianos, maccdonios,
mam-se racionalistas e philosophos. \ apolinaristas e priscillianistas.
Ha dezenove séculos que Jesus Christo /^ ‘No v os pelagianos, nestorianos c outy-
appareceu entre os homens c lhes prcgòui chianos.
uma religião, que sondo o complemento d;y *7 No vi os agnoelas, os defensores dos tres
lei velha, tocou a perfeição; e esta religião,\ capítulos.
sempre pura no dogma, na moral e na dis- "”~No vii os monothclitas e paulicianos.
ciplina é a mesma que hoje existe com o:~"No viu os iconoclastas,
nome de Catholicismo. JTNo ix Sergio e Focio.
Ora aqui temos um facto que é ncccssa-< ^ jN o xi Bercngario e Cerulario.
rio examinar. ^ No xu Tanquillino, os petrobrusiasnos,
Todo o homem, ou seja christão, ou pa-* ^Abaelardo c os valdenses.
gão, ou mahometano, ou deista, ou a th eu ,,^ N o xm os albigenses e os beguinos.
mas que pense c raciocine, tem necessaria- ^ No xiv João Wiclef.
mente de parar junto d’este facto—o Chris-^^No xv João Ilus e Jeronymo de Praga,
tianismo—; não pódc ser insensível a essa LJNTo XVI Luthcro, Calvino, Zuinglio, Soci-
mudança que um homem, a quem os ju- m o e outros muitos,
deus crucificaram, veio operar no mundo, J ^ N o xvn os arminianos, os jansenistas, os
c que mudou a face religiosa, moral e so .guietistas c os kokcrs.
cial de todos os povos. ,? rNo xviii os appellantes c os cncyclope-
Ora o Christianismo existe ha dezenove distas, e os phylosophos racionalistas, e fi-
séculos, sempre o mesmo nos seus princí Inalmentc no século xix uma chusma de
pios, consequências e fins. seitas impias c abomináveis, em cujo nu
Aqui offcrece-se logo á mente do pensa mero entram os pedreiros livres, earbona-
dor uma reflexão. Um facto, que dura tão Irios, illuminados, socialistas e cominunis-
longo tempo sem alteração nos seus prin llgs-
cípios, nas suas consequências e nas suas Todos estes hereges e inimigos da reli
circumstancias, deve necessariamente ser gião catholica apparcccram cm diversos
tido como verdadeiro, porque a mentira e tempos: e apenas espalharam as suas dou
o erro não reinam tanto tempo. trinas, foram logo 'condemnados por diver
Ainda outra circumstancia ha de notar: sos papas e concilios, e combatidos por dif
o erro póde durar algum tempo quando ferentes homens que professaram a sã dou
ninguem o combate, mas quando uma qual trina.
quer doutrina é combatida por diversos Ora uma crença tão combatida e sempre
modos, em diversos logares, em diversos triumphante não póde deixar de ser a unica
tempos e por diversos homens dotados de verdadeira.
differentes opiniões, interesses e paixões, e Ainda mais. Durante tres séculos os que
apesar d’isso ella triumpha sempre, não seguiam esta crença eram condemnados á
póde ser um erro; porque se o fosse deve morte, passando por tormentos que só o no-
riamos então renegar da razão humana. meal-os causa horror. Os perseguidores of-
Ora o catholicismo está n’esse caso. Teve fereciam promessas, riquezas e prazeres
oppositores de todas as classes e ordens, que aos christãos como prêmio da sua aposta
se serviram de differentes meios em varios sia, e clles tudo recusavam e antes que
tempos e logares no longo espaço de deze riam morrer por aquelia crença. O sangue
nove séculos; mas elle ainda hoje existe dos christãos produzia novos crentes da re
com a mesma fé, com a mesma doutrina e ligião do Crucificado.
com os mesmos princípios. Certamente uma religião com taes cir
Isto humanamente nao se póde conceber. cumstancias e predicados não póde ser obra
Mas se isto assim mesmo fosse obra de ho de homens, mas sim obra d’um Deus.
mens devia ser abençoada tal obra e aca
tada de todos.
A religião christã-catholica teve por con
tradictores aos seus dogmas e á sua moral
CAT 3G5
II além, S. Hilário, Eusebio, S. Efrem, S. Ba-
silio Magno, S. Gregorio de Nessea e de Na-
zianzo, S. Epiphanio, S. Ambrosio, S. João
Succodc muitas vezes que uma ideia com Chrysostomo, Arnobio e Lactancio.
primida, ou mais cedo ou mais tarde vence. No v S. Jcronymo, S. Agostinho, S. Cy
E se o Christianismo fosse só combalido, e rillo d’Alexandria, S. Leão i, papa, S. Pe
apesar d’isso triumphasse, podcr-se-ia dizer dro Chrysologo, Cassiano, S. Paulino de
que o triumpho nasceu da opprcssão. Nora, Paulo Orosio, c S. Hilário d’Arles.
Mas não foi só isso. No vi S. Gregorio Magno, S. Fulgencio,
Essa crença, o Christianismo, foi defen Cassiodoro, S. Gregorio de Tours, Evagrio
dida por homens os mais sábios, mesmo no e S. Simão Styllita.
meio dos tyrannos, perseguidores c inimi No vii Theoílacto, S. Maximo, S. Isidoro
gos. de Scvilha, e S. Ildcfonso.
Essa crença foi discutida por talentos os No viu Beda, S. Germão, arcebispo de
mais sublimes e por elles abraçada, des- Constantinopla, Paulo Diacono, e Alcuino.
presada a crença contraria. No ix Haymon, Paschasio, Rabão Mou
Homens os mais virtuosos a seguiram, e ro, S. Remigio, Floro Diacono, e Dungalo.
muitos deram por ella o seu sangue. Al No x, que é chamado o século do ferro,
guns authorcs teem formado o computo de por causa da espessa noite de ignorância,
dous milhões quinhentos cincoenta e cinco c dureza dos entendimentos, brilharam as
mil martyres que morreram pela fé de Je sim mesmo Simcão Metafrastes, Flodoardo,
sus Christo, e repartido o seu numero pe Luithprando, c S. Odon, abbade.
los dias do anno, caberíam a cada um dia No xi S. Pedro Damiào, S. Anselmo, Lan
sete mil; e eram pessoas de toda a idade, franco, Bruno de Signia, Abberico, mong<
sexo e condição. Sua constância não podia Hugo, Humberto, cardeal, e Guitmundo.
deixar de ser o eíTeito da persuasão ou in No xu Rupcrto, abbade, S. Bernardo, Eu
tima convicção da verdade do Christianismo. tymio, Hugo de S. Victor, S. Norberto, S.
Não era esta persuasão filha dos prejuí Thomaz, e"Ricardo dc S. Victor.
zos da educação, não, porque müitas pes No xu Alexandre d’Hales,S.Boaventura,
soas educadas no paganismo^ com prejuízos Alberto Magno, Agostinho Triumpho, Egi-
contrarios á religião christã, abandonavam dio, Bacon, e Raymundo Martini.
os idolos e prestavam culto ao Deus do Cal No xiv Scoto, Guilherme Ocham, o idio
vário, derramando o seu sangue por essa ta, e Nicolau de Lyra.
crença. No xv Pedro d’Áilly, Gerson, Nicolau de
Isto diz alguma cousa. Muitas vezes os Cusa, S. João de Capistrano, S. Antonino,
maiores inimigos d’essa crença, conhecida S. Bernardino de Senna, S. Lourenço Justi
a verdade, a abraçavam. niano, Thomaz de Kempis, S. Vicente Fer
E os homens que isto faziam, nao obra rer, Tostado, Thomaz Valdense, Bessarion,
vam por ambição ou por interesse. Elles João de Torre-Queimada, e Dionisio Car-
deixavam os prazeres mundanos, vendiam thusiano.
quanto possuíam para darem aos pobres, No x y i João Driedo, ambos os Sotos, Mel-
e professavam o Christianismo. Abandona chior Cano, Medina, Molina, Lessio, Vata-
vam as commodidades da vida, e seguiam blo, Maldonado, Ambrosio Flondino, João
uma religião que nenhuns interesses ma- Hoffmeister, Alberto Pighio, Hosio, Seri-
teriaes lhes assegurava. pamdo, Reginaldo Polo, Affonso de Castro,
N'estas circumstandas está o catholi- c Erasmo de Roterodam.
cismo. No xvii Vasques, Soares, Sylvio, Ba-
Esta sublime religião teve por apologis ronio/Bellarmino, Bona, Sirmond, Petau,
tas e defensores, além d’outros muitos sá Harduino, Becano, Fevardencio, Tillemont,
bios, os seguintes, cujos nomes bastavam Descamps, Ripalda, Bossuet, Fénélon, Gret-
de per si para todos se curvarem perante ser, Vito Erhcmanno, Adrianno e Pedro de
o Evangelho e a crença catholica; a saber: Halemburcb, Thomazino, Annato, e João
No século ii S. Ignacio. Polycarpo, S. Jus Moraincs.
tino, S. Ireneu, Athenagoras e Clemente Ale No xvm Mabillon, Calmet, Graveson,
xandrino. Mansi, Roncaglia, Huecio, Balusio, Munla-
No século ui Tertulliano, Minucio Feliz, ri, Gotti, Monaglia, Orsi, Berti, Zaccharias,
Origenes, S. Dionisio Alexandrino, S. Cy Chateaubriand, Bergier, e outros muitos
priano, S. Gregorio Thaumaturgo e Sym que viveram n’esse século, c n’este xix em
macho. que vivemos.
No iv S. Athanasio, S. Cyrillo de Jerus Ora uma religião que tem por si simi-
366 CAT
lhantes homens, não póde deixar de ser Os seus discipulos, taes como os gnosti-
uma religião verdadeira, porque tão grande cos, depois intitularam-se—Filhos da luz.
numero de sábios e homens virtuosos cm Sancto Agostinho, que antes da sua con
diversos tempos, não podiam dar tal testi- versão era manicheu, nos descreve os er
munho a favor do erro e da mentira. ros o vicios abomináveis d’esta seita, bem
E que á vista d’isto nos venha agora, no como Sancto Epiphanio; e S. Cyrillo hor-
século dezenove, essa chusma d’impios c rorisa-se quando narra as suas infamias e
incredulos, escoria das letras e abortos da torpezas.
scicncia, tractar de fanatismo c superstição Os manicheus disfarçavam-se com vários
a religião christão-calholica, que tão gran nomes, e Theodosio, o grande, instituiu
des homens abraçaram, seguiram, confes contra elles uma especic de inquisição.
saram, e muitos confirmaram, dando por Priscilliano formou outra seita terrível, cu-
ella o seu sangue!!... jos membros foram condemnados á morte
Como poderíam doze homens, sem scicn pelo imperador Maximo. Os priscillianis-
cia e sem meios, pobres pescadores, como tas constituiram-se em lojas secretas, á
eram os apostolos, fazer-se acreditar pe maneira dos mações dos nossos dias, e
los philosophos e até pelos sacerdotes dos n’ellas juravam guardar o maior segredo,
idolos, empenhados cm sustentar o culto c practicavam a mais desenfreada luxuria.
dos deuses do paganismo, sendo tal crença Assim nol-o refere o historiador Bercastcl,
um absurdo? Como poderíam? Seria isso Sulpicio Severo e S. Jeronymo. -
possível?... Não provará tudo isto que essa No século oitavo appareceram no Oriente
religião que elles prégavam, tinha uma os iconoclastas, que destruiram as imagens
força divina a que ninguem podia resistir, sagradas, e combateram com as armas na
e que por.conseguinte era verdadeira?... mão contra os imperadores. A imperatriz
A’ vista d’isto ainda haverá inimigos Irene, e Theodora perseguiram-nos, e esta
d’csta sancta religião, que a combatam, ultima condemnou á morte mais de cem
que tractem a sua fé d’uma impostura, mil.
os dogmas d’absurdos, os sacramentos de Os albigenses practicavam taes maldades,
nullidades, a devoção de fanatismo, e o que até os mesmos reis da França, como
culto de superstição?!... S. Luiz ix, iitipozeram contra elles pena
É capaz do fazer em pedaços um cora de morte.
ção que tem sentimentos. Elles fizeram correr rios de sangue, e pa
ra se encobrir estabeleciam, como os pris-
cillianistas, suas lojas por toda a parte, sen
III do a cabeça da seita na Bulgaria.
Nas ordenações de S. Luiz mandam-se
Temos mostrado por alguns argumentos queimar vivos. Fleury, Bcrcastel, e com
tirados da razão, que a verdade existe no especialidade Baronio hos faliam dos erros
catholicismo. Fizemos vér que uma crença e vicios d’estes hereges.
-tão combatida e sempre triumphante, se Antes de continuarmos esta lista de ser-%
guida, abraçada c defendida pelos genios pentes venenosas, responderemos aqui a ’
mais atilados, pelos varões mais virtuosos, uma pergunta que nos poderão fazer. Tal
não podia ser falsa, olhada simplesmente vez nos objectarão que opiniões religiosas
pela razão. não mereciam tamanho castigo; que tal
E que qualidades tinham e teem os ini pena se não compadece com o espirito do
migos da religião? Com que espirito com Evangelho; que isto era uma intolerância
batiam e combatem os dogmas e a moral da parte dos catholicos, ou dos reis que
•do Christianismo? Vejamos ao menos al puniam com tanto rigor.
guns. É na verdade muito attendivel esta ob-
Em geral são todos de costumes pessi jecção, ainda que mostra ignorância da
mos, e d’uma moral corrupta e estragada. historia. Estes hereges não apresentavam
A sua sciencia não passa- de um vão or simplesmente o caracter dogmatisante, el
gulho. les além d’isso se rcbellavam contra o po
Cubrico, ou Manes, que deu o nome á der constituído, c se tornavam revolucio
seita dos manichcus, era d’umfa moral tão nários. Eis-aqui a razão porque os reis os
pessima, e professava uma doutrina tão puniam de morte. Nunca nenhum tribunal
pestifera, que até foi mandado esfolar vivo terreno castigoü opiniões, senão depois que
pelo rei da Persia Sapor. Sendo escravo de são traduzidas em factos. De internis solus
condição inventou a crença da liberdade e Deus.
da igualdade.
CAT 367
Dito isto, prosigamos com a enumeração de Roma, vai prender em Jesus Christo; e
dos chefes das heresias e da sua moral. todas as outras prendem em seus inven
Luthcro, chefe dos protestantes, foi um tores, que foram homens imraoraes e abo
monstro cm todo o sentido. mináveis.
Fez aposlatar uma freira, c sendo religioso Além d’isso muitos d’elles não inventa
casou publicamenle com cila. O'seu erro ram nada de novo, porque a sua doutrina
começou por uma questão pessoal, d’ondo já tinha sido proscripta cm outros hereges.
se prova que foi uma vingança mesquinha No catholicismo véraos sempre unanimi
e não a persuasão que o levou a separar- dade de crença, divisões e sub-divisões nos
se do catholicismo. O papa Leão x pros seus inimigos. Todos conspiram contra a
creveu os seus erros, e elle appellou hypo religião verdadeira, todos votam odio com
crita e audazmente da sua bulla para um especialidade ao papa; no mais estão divi
concilio geral. Mas depois, quando se cele didos, nem elles se entendem a si mesmos.
brou o concilio geral de Trento, nem Lu-
thero nem os seus sectarios quizerara es
tar pela sua decisão. Tal é o caracter de IV
todos os que desconhecem a supremacia
do papa.
Melancton cahiu em erros os mais de Costumam os impios e incrédulos mo
ploráveis e absurdos crassos. dernos responder as razões mais fortes,
Conta Floremundo que perguntando-lhe claras e convincentes. Não creio, não se
sua mãe, estando elle proximo á morte, conformam com a minha razão. Com isto
qual era a melhor religião, respondera: teem dito tudo, e ficam muito satisfeitos, e
«As novas são agradaveis, mas a catholica se julgam triumphantes.
é certa e segura.» Não admira, porque Ao ouvil-os em todas as questões appel
, quando se fecham os olhos do corpo, ordi lar para a razão, julgar-se-ia que os apolo
nariamente se abrem os da alma. gistas da religião catholica só querem uma
Zuinglio gloriava-se de tractar com o obediência cega, uma fé servil, e que ex
demonio, e nunca houve homem mais pra- cluem a razão dos seus argumentos.
guejador. A Igreja não exclue a recta razão, nen
_ João Calvino commetteu crimes tão hor os argumentos que n’ella se fundara. Ra
ro ro so s que foi marcado nas costas com donabile obsequium, diz S. Paulo. A razàc
. ferro em brasa, e a final morreu na deses- é que conduz o homem á fé, diz Sancto
peração. Leia-se Bergier, que nos explica Agostinho, o homem mais sabio, o logico
'o s erros, os crimes e a punição d’este mal mais profundo, dotado d’um genio vasto,
vado. d’um espirito subtil e vigoroso, mas o mais
Cornelio Jansenio foi o maior hypocrita submisso e obediente á Igreja, porque che
que tem havido. Pretendeu em Lovania gou a dizer que não acreditaria no Evan
vestir a roupeta jesuitica, mas os padres gelho, se não o obrigasse a isso a authori-
(parece que adivinhando) lh’a negaram. Na dade da Igreja.
universidade de Salamanca quiz iniciar na O que a Igreja condemna é o abuso da
sua seita proselytos, mas nada conseguiu, razão, ou o chamado racionalismo, assim
porque foi descoberto pela inquisição, e como o abuso da philosophia ou o philoso-
teve de fugir para a França. Depois com phismo.
-outros partidários formou o projecto de Mas dizei-me, philosophos inimigos do
Bourg-Fontaine em que tractavam de des catholicismo: Que razão é a vossa, de que
truir a Igreja pela mesma Igreja, usando vos servis contra a religião? Por ventura
de meios insidiosos para melhor illudirem. será mais illustrada do que a de Sancto
È isto o que nos refere o insuspeito Be- Agostinho, de S. Jeronymo, de Tertulliano,
rault-Bercastel que o publicou no meio dos de Fénélon, de Bossuet, de Bergier, de
seu s inimigos o ninguem o contradisse. Chateaubriand, de Frayssinous de Ventu
O jansenismo tem sido a seita mais pes ra, de Lacordaire e de tantos outros?
tifera e hedionda que o inferno abortou na Por ventura só vós é que vêdes as cou-
face da terra. Alliou-se a final com o ma- sas como ellas são; e tantos sábios, littera
çonismo, produzindo a terrível e de nefasta tos, philosophos, physicos, mathematicos,
memória revolução franceza, como confessa astronomos e poetas distinctos, que teem
o mesmo de Potter. prestado a homenagem da crença á reli
Eis-aqui as cabeças mais notáveis das seL gião catholica, estariam cegos?
tas quo se teem levantado contra a igreja Já mostramos quaes foram os fins e o
catholica. A Igreja que tem por chefe o bispo caracter dos principaes chefes de seitas
368 CAT
que romperam os laços de união com a Os seus discipulos teem-no imitado n’csse-
igreja romana, unica verdadeira, até que charlatanismo, porque conheceram que a
apparcceu o monstro do janseuismo. religião christã não podia ser combatida de
Dêmos a ultima demão a este hediondo boa fé, e com argumentos fundados na ra
quadro dos desvarios humanos. zão, mas só com chicanas c com as armas
O que tem produzido tantos impios e intraiçoeiras da mentira.
credulos, não tem sido a intima convicção, Eis-aqui os inimigos da religião, única
mas sim a corrupção dos costumes, o amor verdadeira, que pelo seu proceder estão*
da gloria, a complacência com um século mostrando ainda mais claramente a sua
corrupto, o desprêso da authoridade da má causa, e que o catholicismo é divino.
Igreja, e um orgulho vão e uma sciencia E uma religião que tem similhantes con
superficial, que não aprofunda nem inves tradictores, poderá deixar de ser a unica
tiga nada nas verdadeiras e solidas fontes, divina?...
e muitas vezes a mais crassa ignorância. Comparemos os homens que teem de
Quantos inimigos jurados ao Christia fendido a Igreja com os que a teem ata
nismo o teem estudado para o combater, e cado, veja-se a differença do caracter e de
este estudo emprehendido com animo hos meios de que se serviam, e se conhecerá
til. mas com boa fé, os tem feito abraçar que a verdade existe no Christianismo ca
o Christianismo, e ser os seus mais arden tholico romano, c o erro em todas as ou
tes defensores?! tras seitas, seja qual fõr o nome que ellas
A maior parte dos impios o são, porque adoptem.
a religião é contraria ás suas paixões. Não
se mostrará um inimigo da religião catho
lica que seja virtuoso e justo, modesto, V
leal e franco, cidadão probo e pacifico, e
verdadeiro sabio.
Voltairc foi um homem immoral e mor
reu na furia e desesperação. Foi, é verda Ha dezenove séculos que se operou um
de, dotado de talento de que se serviu para grande facto na face da terra, como já dis
ridiculisar as cousas sérias. Elle conheceu semos. Este facto, que é o Christianismo,
bem o século em que viveu, viu que era mudou tudo o que então existia, os costu
frivolo e não profundava as cousas. Ser mes, as leis, o homem e a sociedade.
viu-se pois da mentira, empregada com Nada houve que podésse estorvar o pro
graça e sal atico. De resto, nas obras de gresso da religião christã. A tuba apostó
Yoltaire não se encontram serião menti lica soou d’um a outro polo, e logo cahi-
ras, imposturas, contradicções e erros ma ram por terra os simulacros do paganismo,
nifestos, e nada de fundo. Avança propo escudados pelo poder dos Cesares, pela elo
sições com um tom de confiança que illude quência dos philosophos, pela impostura
um espirito desprevenido; e isto muitas dos sacerdotes, e pelas paixões dos homens.
vezes sem dar provas, manejando sempre Sem que n’esta rapida propagação inter-
a arma do ridiculo contra as cousas mais venha Deus, não se póde explicar este fa
graves e sérias. Outras vezes attribue ao cto. Mas mettei ahi o poder do Altíssimo, e
catholicismo opiniões que elle condemna, tudo se explicará mui facilmente.
e isto para indispor contra elle as pessoas Eis-aqui uma observação que faz o sabio
de boa fé. Gaume na sua obra monumental, o Cathe-
Fallando do Diccionario philosophico de cismo de Persevwança:
Yoltaire, exprime-se assim um author: *0 «Ha dezenove séculos que o mundo adora
veneno que elle espalha é um aroma im- um judeu, que foi crucificado, e nada ha
pestado que insensivelmente se insinua em mais miserável e odioso que adorar um
toda a massa do sangue. Conceitos enge homem justiçado com tanta infamia. Desde
nhosos, gracejos subtis e agradaveis, bons que o mundo adora esse judeu crucificado
ditos agudos, antitheses brilhantes, contra tornou-se muito mais virtuoso, muito mais
posições surprendentes, pinturas amenas, livre, e muito mais perfeito. Todas as na
reflexões atrevidas, expressões energicas, ções não sahem da barbaria e degradação
emfim, todas as graças do estylo, todas as senão adorando esse judeu crucificado, e
flores do genio e aa imaginação ahi são aquellas que o recusam adorar permane
empregadas com profusão.» cem na barbaria; e se o deixam d’adorar
E é assim. Quanto ao mais Voltaire nao recahem de novo n’ella.»
fez outra cousa que usar da mentira, da Excellentemente. Nem mais nem menos.
superficialidade e do ridiculo em tudo. Se esse judeu crucificado não é um Deus,
CAT 369
se a sua doutrina não é a unica verdadeira, opiniões na doutrina dogmatica da Igreja,
não sabemos como se possa explicar que não são mais que o erro com as suas di
todo o mundo acreditasse essa doutrina, e versas fôrmas.
abraçasse e adorasse o seu author. Nem o manicheismo, nem o arianismo,
Seria esse o maior dos absurdos, e ne nem o protestantismo, nem o racionalismo,
gar que Christo seja um Deus, e que a sua podem ser a verdade christã, porque não
doutrina é divina, á vista da sua rapida ensinam a mesma doutrina que ensinou
propagação por todo o mundo, attentas as Jesus Christo, porque quebraram os lacos
suas circumstandas, é um absurdo maior da unidade, e porque tiveram por authores
que negar a escuridade das trevas e a cla não um Deus, mas homens despeitados,
ridade da luz. A verdade é uma só, o erro sensuaes e innovadores.
pôde ser de muitos modos. Só a Igreja, que tem por cabeça o bispo
Eis-aqui um axioma clarissimo. de Homa, ou, por outra, só o catholicismo
Ha muitas religiões na terra, mas a re é que tem todos os caracteres da verdade,
ligião deve necessariamente ser uma só, porque a sua crença omnimoda c tolàl é a
porque Deus não póde admittir contradic- mesma que Jesus Christo ensinou.
ções na sua doutrina. Os hereges antes de fazerem scisão na
A nossa razão não póde conceber como doutrina da Igreja seguiam-nos. Se a sua
Deus approva opiniões c crenças que se nova crença é a verdadeira, segue-se natu
destroem umas ás outras. O que é, é; Deus ralmente que até ahi não havia religião
não póde querer ser crido senão d’uma verdadeira, o que é impossível, repugnan
maneira. A religião verdadeira deve pois do com a Providencia divina.
ser uma só com exclusão de todas as ou Logo, só a igreja catholica, de que clles
tras. se separaram, é a unica divina e verda
Quando o Christianismo appareceu en deira.
tre os homens, o mundo era quasi todo ido Escutemos a Sancto Agostinho (liv. con-
latra. De duas uma, ou o paganismo era tr. a Epist. fundam., cap. 4 e 5): «Muitas
a verdade ou o Christianismo. D’aqui não cousas me detem na Igreja: o consenti
se póde fugir. mento dos povos e das nações, a authori-
Quanto ao judaísmo, elle refundiu-so no dade que esta Igreja tem adquirido, autho-
Christianismo, que não é mais que o seu ridade principiada com milagres, nutrida
complemento e perfeição. Jesus Christo dis com a esperança, augmentada com a cari
se: Non veni solvere legem, sed adimplere. dade, fortificada com a antiguidade. De-
Se admittirmos a verdade do gentilismo, tem-me a successão continuada dos bis
então existente, admiltiremos um absurdo, pos, que até agora occupam a sé de S. Pe
porque o mundo deixou o culto dos idolos dro, a quem Jesus Christo depois da resur-
e fez-se christão. Logo forçosamente temos reição incumbiu o governo das suas ove
de crêr que o Christianismo é a crença ver lhas. Detem-me enfim o mesmo nome de
dadeira, que tem relação com todas as ne igreja catholica............................................»
cessidades do homem, que é proporcionado Não se póde fallar melhor, nem em me
a todos os espíritos, e que se tem conser nos palavras exprimir mais idéias. O con
vado na sua integridade através dos sécu sentimento dos povos e das nações, isto é,
los e das revoluções. a crença geral e unanime de todo o mun
Similhante á luz, que dissipa as trevas do a favor da Igreja; a authoridade da
da noite, e faz conhecidos e visíveis todos Igreja, isto é, a sua divindade, que se pa
os objectos, que jaziam sepultados na es tenteia na sua origem, no seu progresso e
curidade, o Christianismo fez desapparecer desenvolvimento, na sua doutrina e na sua
a religião dos idolos e ficou a brilhar em duração sempre intacta e incorrupta; a suc
toda a face da terra. cessão dos bispos de Roma regendo os povos,
Ora o catholicismo é essa mesma reli isto é, o haver um só pastor, um só chefe
gião que Jesus Christo ensinou aos ho da Igreja, um papa supremo a quem todos
mens, que os apostolos prégaram a todas obedecem, e finalmente o mesmo nome da
as gentes, e que pura. e sem mácula tem igreja catholica, isto é, a sua universali
atravessado todas as gerações. dade, o cila encontrar-se em todos os tem
Desde o primeiro século esta religião pos c logares; tudo isto, diz Sancto Agosti
tem admittido uma só fé, uma só moral, nho, é o que faz conservar-me n’esta Igreja,
g um só culto no essencial, e uma só cabeça, porque sem dúvida taes caracteres só po
■ porque este é o caracter da verdade, o ser dem encontrar-se no que é verdadeiro e
I uma só em todos os tempos e logares. Às divino. Sancto Agostinho ainda diz mais:
I diversas seitas que tem havido, as diversas Eu não acreditaria no Evangelho se a isso
370 CAT.
me não movesse a authoridadc da igreja ca- c com cila muitas vezes as suas commodi-
tholica. dades e interesses particulares, o abraçam
Só o ealholicismo é verdadeiro, porque a religião catholica romana. Senhoras da
a religião verdadeira deve sem questão ser mais alta nobreza entram no grêmio da
catholica. Igreja, que tem por cabeça o romano pon
tifice.
Isto não póde ser filho senão da intima
VI convicção; d’entre os catholicos ha algu
mas apostasias, que teem por origem a
ambição ou a avareza, e sempre as pai
Os incrédulos, os sceplicos c os impios xões c os interesses. E mesmo esses taes,
clamam: os renegados, começam por ser despeita
«Ha no mundo muitas religiões; todos dos, depois cabem n uma indiíTerença reli
os seus sequazes dizem que a sua é a ver giosa, no scepticismo, e nunca teem o vi
dadeira, e que as outras sao falsas, de modo gor da crença.
que ninguém pódc julgar qual d’elles tem Porém o protestante, o mahometano ou
razão. Todas são falsas; cada um phantasiou judeu convertido ao catholicismo, abjura o
uma religião, c formou um Deus a seu ca seu erro com toda a energia, com toda a
pricho.» '. - . publicidade, e algumas vezes com a maior
Eis-ãqui os parodoxos da increduiidade solcmnidade, e torna-se d’ahi em diante um
atheisla. valente c corajoso defensor da verdade ca
Collocai-vos, vós, ó philosophos raciona- tholica,
*listas, collocai-vos diante do protestantis Talvez que dentr.o de poucos annos te
mo com' as suas diversas phases, diante do nhamos a consolação de vôr toda a Gran-
mahometismo e do catholicismo, mas de boa Brctanha catholica, tornando ao centro de
fé. Raciocinai, analysai, argumentai usando que a separou um principe devasso e des
das verdadeiras armas da razão e com o peitado.
fim de descobrirdes a verdade, c o vosso Na Hollanda, na Persia, na Dinamarca,
trabalho dará em resultado o declarardes na Suécia, ataca-se abertamente o calvi-
que só o catholicismo é verdadeiro. nismo, lutheranismo, e préga-se c escrc-
Ainda mais. Vá um sacerdote pagão, um ve-se a favor do catholicismo.
mahometano, um protestante e um padre Em toda a Allemanha se refuta o racio-
catholico, pregar cada um a sua religião, nalismo, e se poem á luz do dia os nefandos
por exemplo, a Groenlândia, á Rússia ame systemas do philosophismo. E que succede?
ricana, á Patagônia, e a outros estados sel E’ vérmos todos os dias rarearem as filei
vagens d’America; sim, pregue cada ura ras do atheisino svstematico e do jansenis-
d-elles a sua doutrina, áquelles povos bar mo, e crescer o exercito catholico, forte
baros e em tribus nômades, e veja-se qual com os seus novos soldados, que debanda
d’elles faz proselytos, e qual terá mais se ram do campo do erro.
quazes.- Todos abraçarão o catholicismo, Na França, mesmo no centro da volu
porque a verdade sobresahe em toda a ptuosa Paris, d’onde nos veio maior mal,
parte. ataca-se fortemente o scepticismo e o ma-
A experiencia d’isto temol-a nas missões terialismo seguido por philosophos insen
dos catholicos e protestantes. satos, e já alli se observa uma vigorosa
• O missionário catholico leva a toda a reacção catholica, e vai perdendo terreno o
parte a luz, a civilisação, o Evangelho, em- volteranismo, que tantos incrementos ga
flm a verdade, e nada lhe póde resistir, nhou com as suas revoluções politicas, íi- _
ainda que todos os poderes da terra e do lhas do principio pagão. Batc-se em todo o =
inferno conspirem contra ella. mundo a impiedade e incredulidade, no
Ainda temos outra reflexão a fazer. meio dos mesmos impios c incredulos.
Existe o catholicismo em todas as par E porque fazem isto os catholicos?
tes do mundo, e os seus sequazes defen É porque a verdade defende-se em toda _
dem corajosamente a sua doutrina em to a parte, sem receio, no meio dos seus mes- :
das ellas. mos perseguidores, e apparecem sempre ■
Na Inglaterra protestante combate-se o corajosos defensores, que nada temem.
protestantismo, e defende-se a Igreja e o Porém os impios e. inimigos do catholi- =
papa. Alli são espantosas as conversões ao cismo não obram d’esse modo, porque a |
catholicismo de pessoas de todas as clas sua causa é a do erro, e o erro ou mais _
ses, sexos e condições. Muitos clérigos, que cedo ou mais tarde se dá a conhecer.
seguem a religião anglicana, a abandonam, Desde Voltaire e os encyclopedistas, qual l
CER 371
é o que tem combatido o oatholicismo clara o valor do S. Grcgorio vir, a sabedoria de
o aberlamente com o raciocínio c a intelli- Bento xiv, e a piedade de Clemente xnr.
goncia? Uns scrvem-so do anonymo, outros Emmudecei, ó impios, porque a religião
dizem e desdizem. Alguns, e hoje quasi que triumpha, e os vossos erros provam a seu
a maior parte, trazem de continuo na bucca favor. Eis-ahi pois o catholicismo cm frente
a palavra Christianismo, e querem achar a dos seus inimigos, no longo espaço de de
práctica do Evangelho em seu systema er zenove séculos.
roneo, ao passo que renegam a Igreja e o Escolhei. Tudo falia a favor da igreja
catholicismo. catholica, c tudo conspira contra seus ini
Apenas Proudhon teve a franqueza de migos.
se declarar atheista, ainda que os seus cs- / CKCKO asculaxo — astrologo do d u q u e d e \
criptos estão cheios de contradicçõcs mani- {(Calabria, sustentava que se formavam nos nc *5
festas. Ainda Proudhon teve a coragem de 'céos espíritos malignos, os quaes obriga-
dizer que a lei revolucionaria era atheista, vam os ’homens, por meio * das constclla-
apesar d’Odilon Barrot se ter desdito. ções, a fazer cousas estupendas, e afilr-
Ouçamol-o: inava que os astros impunham aos corpos
«A*obra suprema da revolução de xtx é e aos espíritos uma necessidade absoluta
destruir o catholicismo sobre a terra: de sorte que Jesus Christo
M. Odilon Barrot fez mal cm se relra- não fòra pobre nem padecera, se nào por
ctar: o atheismo legal é o primeiro artigo haver nascido debaixo do certa constclla-
do nosso direito público. çào que produzia necessariamente um tal
Algumas linhas mais abaixo diz: efleito; c que o Anti-Ghristo seria rico c
«A revolução nào transige com as divin poderoso porque havia de nascer debaixo
dades.» (Tdeia geral da revolução no sc- d’outra inteiramente contraria. Este astro
. culo quatorze por P. J. Proudhon). logo faLquÊÍmado^j^J^27. P __
É necessário archivar estas confissões, ^ cf. r d o x — era syriaco d'origem: primeiA
porque partem d’authoridadc insuspeita. ramente adoptou bs princípios de Simão e i
Porém o resto dos impios só usa da liypo- Saturnino, reconhecendo como clles a ex is-1
crisia. Mazzini e Kossuth faliam cm Deus tencia d’um Ente Supremo, que produzira1
e no povo, apesar de que cllcs são inimi espíritos menos perfeitos que ellc; estes es
gos de Deus e do povo, c formam associa píritos fecundos, como o pae de .todas as
ções terríveis, cujas armas são o punhal, o cousas, produziram immensidade de gera
roubo, o assassínio e a irreligiào. ções diversas, cujo poder, que vinha sem
No dia 24 de março de 1852 os chama pre a diminuir, formara o mundo e produ
dos amigos da Italia, com Mazzini ã frente, zira sobre a terra todos os acontecimentos.
fizeram uma reunião cm Inglaterra, na Assim, remontando dos effeitos ás suas cau
qual o inimigo de Deus p dos homens sus sas, se achava por primeiro principio de
tentou que se devia destruir o papado, não tudo o Ente Supremo.
só como poder temporal, mas também co Se os pheuoincnos, que o mundo nos of-
mo poder espiritual. fercce, nada mais fossem que deslocaçõcs
Porém serão baldados os seus esfor da materia, collisões dos corpos e movi
ços. mentos, correría de plano que as emana
O catholicismo triumpha c triumphàrá ções da primeira causa, isto é, os genios
sempre. O throno pontificio está cada vez óu foFças moventes produziam tudo; mas
’mais firme na sua base, porque alli está havia no niuudo espíritos amargurados,
sentado um pastor vigilante. A barca de atormoutadòs c infelizes. Além d’isto o En
Pedro não naufraga, porque o seu piloto é te Supremo era uma intelligeucia summa-
o mais atilado. mente perfeita, sábia e benefica; e como
E que assim o não fosse, Jesus Christo podería encontrar-se em um tal ente a
disse-o ao primeiro pontifice, sobre quem causa das calamidades, que aíltigem o ge
está fundada a Igreja: nero humano?
Portai inferi non prcvvalebunt adversus Tudo istokreconheciam Simão e Satur
eam. nino, sem haverem reflectido na dificul
Comtudo o sanctissimo Pio ix é um dos dade que ha em conciliar a existência dos
pontifices mais sábios e virtuosos quo teem maus genios com o systema, o qual sup-
occupado a cadeira apostólica. Tem atra põe vir tudo do Ente Supremo por via de
vessado no seu governo uma das épocas emanação: porém Ccrdon encarando o sys-
mais tempestuosas e criticas para a reli
g iã o , mas elle tudo tem superado com ani- 1 Dup. Bibliot. 14 siéck. Spond. ad an.
juo varonil e resignação christã. Herdou 1327.
372 CER
tema de Saturnino por cstc lado fraco, teve pira beneficencia, perdão, suavidade e m i
para si que Simão, Saturnino, c todos os sericordia; portanto era a lei dos christàos
sequaces do systema das emanações se en obra do bom principio, e Jesus Christo, que
ganaram, fazendo vir tudo do Ente Supre a annunciára, verdadeiro filho do mesmo
mo; e que se deviam suppôr na natureza bom principio.
dous princípios, um bom e outro mau, por- Este principio beuofico não sujeitou seu
uc havendo genios maléficos uns mais po- filho ás desgraças da humanidade, nem sua
erosos e outros menos, necessariamente, bondade o permiltia, bem que para instruc-
remontando á origem, se havia de chegar ção dos homens fosse necessario que ollosc
a um principio cm que se achasse a pri revestisse das apparencias da carne, por
meira raiz do ,mal, que se descobre pela que a realidade de seus padecimenlos se
successão dos tempos, o que no sentir de ria um triste espectáculo, que o mesmo
Cerdon repugnou á natureza do Ente Su bom principio se teria dado a si mesmo,
premo. c que não se compadecia com a sua natu
Com efieito na doutrina de Simão e Sa reza. 1 Prevenido d’cstas idéias, Cerdon re
turnino, o Ente Supremo, que elles olha jeitou o Testamento Velho, não admittia do
vam como o pac do todas as cousas, se in Novo senão o Evangelho de S. Lucas, e
teressava bastante na sorte dos homens ainda esse não era inteiro.
para enviar-lhes seu unico filho, a fim de Este hercsiarca, diz Sancto Ircneu, pe
destruir o imperio dos maus demonios; diu perdão de seus erros, e passou depois-
portanto o mesmo Ente Supremo, respei algum tempo, ora ensinando occultamente
tado como a causa e principio de tudo, a heresia, que abjurára, ora abjurando de
aborrecia os maus genios: isto supposto, novo, ora convencido da sua pertinacia, c
como os deixava cllc subsistir se podia portanto separado da communhào dos fieis..
destruil-os, e como permiltia suas maligni- Teve por discipulo Marcião, que foi tam
dades se d’elle dependiam a sua existência bém cabeça de seita: consultando o artigo
e o seu poder? Forçosamente pois se ha d’este se podem vér as diversas fôrmas que
viam de suppôr no mundo, segundo o sen toma o erro de Cerdon; este encadeamento
tir de Cerdon, dous princípios necessaria dos desvarios do juizo humano é o prin-
mente independentes, um bom, que produ sil interesse da historia. _ ....... _
zira os genios beneficos, e outro mau, que e .eul^tuo—era um judeu antiochono, queft
produzira os maleficos. dedicou muito á philosophia; residia em \
Cerdon, que só havia observado a natu jcrusalem no tempo dos apostolos. A p lii- '
reza por via dos phenomenos, creu ter en losophia que então vogava no Oriente era
contrado n’estes dous princípios com a fe-< uma mistura da caldaica e das idéias py-
Ücidade do homem a razão de tudo e a ex-á thagoricas c platônicas. Suppunham um
plicação de quanto se contava dos diversos’ Ente Supremo, que produzira genios, po
estados do genero humano, porque esse era tências capazes d’obrarem c de produzi
o principal objecto de quasi todos os sys- rem outros genios e espiritos; d’elles po
temas que até então se haviam imaginado. voaram o mundo, e os faziam intervir co
Como o bem e o mal tinham princípios mo deuses da machina para explicarem
essencialmente differentes, attribuiam ao quanto imaginavam. Cerintho reduziu á
bom principio tudo o que era bem, e ao simplicidade estes princípios para os appli-
mau tudo o que era mal. A creação dos car á historia do mundo: reconhecia um
espíritos, que eram capazes do prazer, e Ente Supremo, que era a origem da exis
que sempre tendiam para a felicidade, se tência, e que produzia espiritos, potências
attribuia ao ente benefico: os corpos, pelo ou genios com diversos graus de perfeição.
contrario, a que as almas estavam unidas, Entre as producções do Ente Supremo
e que de mil modos as afiligiam, eram havia uma certa virtude ou potência infi
obra do principio mau. Da mesma sorte nitamente superior ás perfeições do estado
era attribuida a um d’estes entes malignos supremo, collòcada, por assim dizer, em
a lei dos judeus, que parecendo a Cerdon uma distancia infinita d’elle, e quo igno
um complexo de prácticas difRceis e peno rava o author da sua existência; era vero-
sas, não podia ter outro author. Um d a s similmente a ultima das producções do Ente
tes espiritos malignos fôra quem ordenara Supremo, uma especie de força movente
áquelle povo as cruéis guerras que elle fi
zera ás nações da Palestina: e o Deus dos i Iram. I. 1, c. 28, 37, l. 3, c. 4. Tert.
judeus diz em Isaias: sou eu o weaclor do de pm script. c. 51. Pliilaslr. de Hcer. c. 44.
m al Epiph. H ar. 41. Aitg. de Hcer. c. 21. Theo
Pelo contrario no Christianismo tudo res dorei. Hcer. Fab. I. 1, c. 24.
1
CUR 373
ou de força ;plastica, apta para ordenar a Façamos agora algumas observações sobre
materia c formar o mundo. 1 o seu erro.
D’este poder tinham sabido eom o mundo 1. ° Cerintho era um grande inimigo dos
anjos ou genios terrestres, que se apodera apostolos, e combatia vivamente a sua dou
ram dò império do mesmo mundo e gover trina: vivendo como viveu no seu tempo,
navam os homens. Um d’estes genios tinha estava em situação de convencei-os se fos
dado leis aos judeus; e por este modo creu sem enganadores; porém reconhecia que
Cerintho poder dar razão de toda a histo Jesus Cliristo fizera milagres: tinham logo
rio judaica. estes então um grau de certeza ou d iv i
Jesus Christo, segundo Cerintho, aííir- denda, que não permiltia se altercasse so
mava ter vindo ao mundo para abolir a bre a sua verdade.
lei, e livrar os homens da tyrannia dos 2. ° Para fazer compatíveis os attributos
maus anjos; o mesmo Senhor'provou sua do Filho unico de Deus com o estado de
missão com milagres, c os apostolos os at- humiliação em que Jesus Christo apparc-
testavam, e elles mesmos os confirmavam ceu, suppunha Cerintho cm Jesus Christo
com outros prodígios. Assim se via Cerin dous entes diíTcrentes: Jesus, filho de Ma
tho obrigado a suppor que o Ente Supre ria, e o Christo, que descera do céo; por
mo eíTcctivamente se interessava na sorte tanto é evidente que Jesus Christo ensinou
dos homens, e que enviara seu unico Fi ser Filho unico de Deus, e que confirmou
lho Jesus Christo para os instruir e salvar. com milagres esta doutrina de maneira
Porém, como poderia nascer de Maria o qüe Cerintho nem pôde impugnar este do
Filho unico do Ente Supremo, que em si gma nem os milagres, uma vez que se em
continha a plenitude da divindade? Não ha penhou' em explicar como Jesus Christo
via cousa mais opposta aos m .ncipios de era o Filho unico de Deus.
•Cerintho, c assim reputava elle como ab 3. ° Os apostolos expulsaram da Igreja a
surdo dizcr-sc que o Filho unico do Ente Cerintho, olhando-o como corruptor da dou
Supremo nascera e padecera. Copitudo Je trina de Jesus Christo; portanto desde o
sus Christo affirmára ser elle o Christo, o tempo dos mesmos apostolos era a divin
Filho de Deus: para haver de conciliar dade de Jesus Christo um dogma funda
idéias tão oppostas, segundo o sentir de mental do Christianismo, digam o que dis
Cerintho, dizia elle que Jesus nascera de serem os sociniauos, e na conformidade
Joseph e de Maria como os demais homens dos mesmos Bury, Loke, e tc .1 «w
mas que os excedia em prudência <‘ jus CHILIASTES OU MILLENARIOS—VCja-SC C S te^
tiça; que quando Jesus foi baptisado ° vprtigo. " ^ w /
Christo ou o Filho unico de Deus descera ■^ramisTiÀxisiiQjç . piuj*qsQ£UiSMO—A’lerta,
sobre elle em figura d’uma pomba, c lhe christãos, alerta; soldados da fé catholica, I
revelara o conhecimento de seu Pác, até álerta... não despreseiso grito de alarma í
então desconhecido, e que por este meio o de uma sentinella apostólica romana, que |
havia feito conhecer aos homens. Jesus fez vos convida a occupar os vossos postos de
milagres por virtude de Christo; logo de honra c de gloria, nos vastos acampamen
pois foi perseguido pelos judeus c entre tos de nossa sancta religião, impenetráveis
gue aos algozes: e então o Christo se sepa sempre ás incursões de seus perfidos ad
rou d’elle e subiu á presença de seu Pac versarios, se defendidos com denodo c leal
sem soíTrer cousa alguma: quanto a Jesus dade.
elle fora crucificado c morto, e havia re- No momento, camaradas, em que os ini
suscitado. 2 migos do Christianismo, a titulo de desfor-
Cerintho escrevera em favor da sua dou çar as liberdades humanas, cerceadas pelo
trina algumas revelações, que affirmava ha espirito do jesuitismo, cujas fogueiras in-
verem-lhe sido feitas por um anjo; reco quisitoriaes são (ainda hoje!...) o seu ca-
nhecia a necessidade do baptismo para nos vallo de batalha, se esforçam por alistar
•salvarmos, e cria que depois da resurrei- novos soldados, colher duplas munições, e
eão se haviam de gosar por mil annos so rearmar suas devastadas tendas, acastran-
bre a terra todos os prazeres dos sentidos.3 do-se cm redor de sua esfarrapada ban
deira, a cuja legenda fronteira o livre exame,
escripta pela mão do egoismo e ociosidade,
1 Theod. Hist. I 2, c. 3. Ircen. I. i, c. corresponde pelo avesso que tão cuidado-
15, l 5, c. 11. Epiph. H ar. 28.
2 Im n . I. 1, c. 26. Epiph. Hcer. 28. Aug. 1 Bury, Christianisme, nud. Loke, Chris
de Hcer. c. 8. Tert. de prcesci ipt. c. 48. tianisme raisonable. Estes erros acham-se
2 Euseb. Hist. Eccles. I 3, c. 28. refutados no artigo Arianos.
374 CHR
samentc nos occultam, outra em que se lè thcon, e occupado seu tumulo pelo im
—mentha—gravada^pelo incontestável tes- mundo lodo de Mirabeau; esse tumulo m o -
timunlio dos factos, na invariável ordem numentoso que attestava a religiosa grati
dos tempos; em um tal momento, nao seria dão de um povo christianissimo, que ll f o
só fraqueza e culpavel ‘desmazelo, seria havia levantado com tanto enthusiasino
abominável relaxação, seria maldade im para descanso d’cssas cinzas que o S ena
perdoável abandonar o posto que á face mais tarde, cioso de tão excellente the-
dos altares, perante o delegado do Divino souro, recebeu solicito cm seu seio, fu -
Mestre, juramos defender; deixando á hy- cindo apressado á vista de tantos horro
pocrisia e ao egoismo arvorar o fatal pen- res, para ir dcposital-as na sagrada c vasta
dão do racionalismo sobre as ruinas do es sepultura do circumvago oceano.
tandarte da cruz, d’onde pendem tantos O brado, porém, que convoca ás arm a
trophéos, quantos hão sido os combates al não vos. ministra espadas nem lanças eoiii
cançados sempre contra esse precario po que junqueis dc cadavcres de impenden
der'do inferno, que agora parece querer tes contumazes os arraiaes dc tão frágeis
levantar de novo seu collo lá do denso pó> quanto barbaros inimigos; as armas q u e
sobre que fez rolar sua propria cabeça, de vos concede c aconselha, são apenas a r e
pois de haver-lhe immolado victimas de signação nas tempestades da vida; a fé n a s
toda a cspccie, cujo sangue sc repellia, promessas do Salvador; a paciência e m
porque ainda mesmo a jorros pela terra, supportar os embates da incredulidade; o
o sangue innocente de Luiz xvi e seu fi o uso opportuno dc uma razão animada
lho; de uma Antoinette, sua digna esposa, pela religião, c esclarecida pela unica d o u
tão respeitável por sua instrucção, como trina revelada; mas uma razão modesta;
por sua exemplar firmeza _de caracter; de repito ainda, c não presumpçosa, que r e
uma Elisabetb, credora dos mais altos res pudie o auxilio da religião, c negue a n e
peitos por suas excellentes virtudes, e cessidade de revealção; nem a paciência
cujo unico crime era ser pia, religiosa, e do indolente, que nos leva ao iudifieren-
irmã desditosa d esse rei generoso, d’esse tismo; ncni a fé que acompanha o ocioso,
Socrates'resignado á injuria e ao suppli que nos conduz ao fatalismo; nem a r e si
cio: de uma Lamballe (princeza de) tão gnação do perdido, que nos condemna á
belía quão virtuosa; de um la Rochefau- muda inacção; isso não, porque taes virtu
cauld (duque de) o Mecenas da França, des eram apenas disfarçados crimes; n ão
notável protector das sciencias e das le seria por esse methodo'que nós defende
tras; de um.Baylly distincto philosopho e riamos como nos cumpre, nossas institui
astrônomo; travava forte combate, ou fu ções sagradas, e que daríamos provas de
gia espavorido de sangue criminoso dos sua origem divina; ao contrario é-nos for
Robespierre, dos Marat, dos Danton, dos çoso dar lestimunho expresso e o mais p ro
Desmolins, dos Vergniaud, Gensonné, Du- nunciado da identidade da nossa doutrina,
cos, c dos Brissot, quando entre o sagrado d’essa doutrina, que emanada lá do céo por
e o profano se ateava dura guerra, levando uma ordem successiva de revelações d ivi
de vencida a execranda sombra de Mira- nas, e attestada na terra pelos'actos do
beau aos preciosos c venerandos restos de proprio Deus humanado, é a unica capaz
. Sancta Genoveva, a quem esses francos de e necessaria para felicitar a humanidade,
generados da antiga raça dos vencedores a quem protestamos servir, até com sacri
'dos barbaros hunos, que essa sancta pia, ficio da propria vida, se algum dia seu s
.corajosa e patriotica, havia feito parar ao tyrannós, como nos primeiros séculos da
mero som de sua voz, no meio de sua de Igreja, lhe declararem nova guerra d’esse
vastadora marcha pelo .coração da França exterminio, que o anjo das trevas lhes tem
agonisante! concederam por maior home feito conceber, mas dcbaldc; pois que con
nagem a profanada praça de Greve, para tra a palavra divina não ha forças que
onde foi arrojada; por único tributo, uma prevaleçam—et portee inferis n on pm vale-
fogueira que a reduzia a cinzas; e o Sena, bunt adversus eam:—essa palavra divina,
rubro pelo sangue de pios christãos, que que repetida pela bucca dos apostolos, e
fugia, como corrido de vergonha, a.occul- exarada nas longas paginas do livro da
tar essa cOr de verdadeiro pejo, que lhe verdade, d'esse livro unico, inimitável e
havia assumado ao rosto de suas limpidas sancto, a cúja leitura cahem inermes, na
aguas, ao teslimunhar tantos horrores, pof turalmente fascinados pelas leis da ver
tumulo das preciosas cinzas d’esses restos dade, que brilha em tantas paraholas sen-
venerandos, para de logo ser seu templo tenciòsas, em tantas admoestações pater-
sagrado transformado em um profauo pan- nacs, cm tantas leis eternas, as turbasmtal
CHR 375
aconselhadas ainda pelos demagogos e hy- numerar, e supérfluo mesmo, porque vós
ocritas, a fim de sustentar essa torpe ban- os conheceis, mau grado c aversão que
S eira alada pelo sceplicismo c atheismo,
cuja legenda o—livre exame—as turbas ou
lhes votaes, desmentem vossas argucias e
alcivosias; as palavras divinas, as verda
nào tem ou não entendem, porque escravi- des inexcusaveis que clles conteem, perse
sadas assim aos appetitos sensuacs e a toda guem-vos como inexorável phantasma, por
sorte de paixões degradantes, nem ao me todos os delírios de vossos loucos pensa
nos lhes resta a faculdade de atleuder li mentos, e a incííicacia de vossas forças,
vremente, e raciocinar sobre os dados da tantas vezes empregadas, quantas balda
consciência moral. das, vos dará emfim a consciência de vossa
Emquanto porém esses indifferentiatas, fraqueza, miseros ingratos! que esquecidos
os mais perigosos inimigos de Deus, athcus de vossa natureza, negaes até um precario
disfarçados, porque-falleccndo-lhcs a cora- tributo, a quem deveis veneração eterna!...
em de declarar-se, fingem, sob pretexto Continuai pois, se ainda vós apraz, em
c tolcrancia, defender todas as seitas, to vossa fatal pertinacia; mergulhai-vos n’csse
das as religiões, igualmcnle fáceis em con- immundo lodaçal do pantheismo; dei ficai a
dcmual-as todas, porque nenhuma seguem, razão, que assim se vos deixa obcecar pelo
o assim não lhes pesa vêl-as aflrontadas egoismo; que um dia, envergonhados de
todas, c eondcmnadas ao mais aviltante vossos desatinos, renegareis atterrados tan
despréso e ultrage; principahnentc os si tos erros, mas talvez já sem remedio! junto
mulados christãos, que achando preferível á borda do tenebroso scpulchro, arrepen
a religião cm que nasceram, ora,a religião didos de haverdes trocado as eternas vor-
de Mjyfamede. ora a seita de Ario, logo o dades, contidas n’essc grande livro que ora
protestantismo de Luthero, pouco depois a condemnaes sem fundamento, polas fabu
heresia de Calvino, furtam-se ás leis de to las ridiculas e impracticavcis de vosso con
das ellas como apóstatas licenciosos da tracto social, parto abortivo da imaginação
propria consciência: emquanto, dizia eu, soberba e esquentada de uma intelligencia
lhes fallecc também a coragem para cha- presidida pela consciência erronea, sob
mar-nos, como aos nossos irmãos de ou- fatal influencia de um egoismo extrenu
tr’ora, cuja gloria é bem para invejar, a mente ignominioso!...
dar testimunho de nosso proprio sangue É esta uma verdade incontestável, é esl
em fé explicita de nossa sancta crença, a minha inabalavel convicção.
arca unica de esperança em que navega
remos á vida eterna, a demandar essa fe
II
licidade, cuja posse disputamos incessante
e poríiadamentc, levados de um sentimento
commurn e innato, a que deve necessaria O mais forte contendor milita sempre ao
mente corresponder uma realidade, mas sancto serviço do Christianismo: sua causa
que jamais alguém viu rcalisado n’oste é a da humanidade, o peito do Salvador,
valle de lagrimas, emquanto desleaes só seu impenetrável escudo, sua divisa a fé
nos insidiam com laços do philosophismo, constante, a verdade seu glorioso trophéo,
receosos do enristar íts lanças do sccpti- e sua corôa inauferivel o eterno descanso
cismo, tantas vezes rechaçadas pelo duro junto ao throno da immortalidade.
embate do broquel das verdades eternas, Seu estandarte sagrado, alçado sobre o
sobre que descansa a igreja catholica apos Golgotha, tremulará em todo o sempre
tólica romana, não soflramos calados esses inexpugnável, ora sobre o altar do sacri
olpes dolosos, que sob apparencias de ver- ficio, ora sobre a cupula do campauario,
ade, e coloridos com engenho, descarre como a bandeira do tempo sobre o castello
gam surrateiros no estandarte da cruz, que da eternidade... ondulando sempre incor
com fé pünica fingem defender, aprovei rupto e inabalavel, mau grado o continuo
tando assim, sob caracter de amigos, occa- vcndaval do volver de todos os dias.
sioes mais opportunas para com risco o de Toda a vez que á face de novas cohor
molirem, c com clle toda a. base da socie tes, de perfidos alliados ou barbaros inimi
dade, que para cllcs são dons espantalhos gos, é preciso hasteal-o e defender-lhe a
sem significação ou utilidade alguma, c me base, um immenso concurso de valorosos
ra especulação do tyrannos ambiciosos, de e dedicados soldados disputam entre si a
embusteiros e supersticiosos ignorantes!... gloriosa palma de guial-o á victoria por
Ahi estão porém os livros sagrados que, toda a parte que o philosophismo confct-
além de milhões de factos que militam a maz, sob o já gasto pretexto de destorçar
favor de nossa causa, que fora impossível as liberdades humanas, deificar a razãot
‘376 CHR
armado de ascorosos sarcasmos e bifor bispo de Nicomedia, e do imperador Con
mes sophismas (armas sordidas, forjadas stantino, c mais tarde pela decidida protec
na hedionda officina do inferno, sobre a ção de Constancio c outros dos seus suc
immunda bigorna da torpe mentira, pela cessores, cila teria morrido, da mesma" co
mão nefanda c requeimada da inveja sata- lica que o seu instituidor (condcmnado ao
nica!) ousa levantar-lhe novas barricadas, anathema pelo primeiro concilio ecumê
a despeito de tantas derrotas soffridas quan nico, o de Niceia, e por outros, e á morte
tas batalhas guerreadas; d’onde jamais esse pela Sanctissima Trindade, que elle negará
inimigo commuin do Christianismo c da na sua pretendida entrada triumpha! na
sociedade, colheu outros despojos que as Igreja, e subida ao patriarchado d’Alcxan-
palpitantes entranhas de milhares de victi driaj se a incursão dos barbaros lhes não
mas humanas, immolados ás suas brutaes viesse dar calor e actividade; pois que só
e ferinas ambições sobre o nefando altar nos estúpidos c feros corações dos vânda
do anli-chrislao egoísmo! Eis cmfim a ter los, dos borgonhezes, e dos lombardos, pôde
rível realidade cm que se traduzem tantas essa seita, filha legitima do egoismo, adqui
rbmessas fabulosas com que embalam a rir uma vida de 348 annos, que terminou
oa fé do espirito humano, sempre disposto emfim pela abjuração de Ariberto i, ultimo
a crêr na possibilidade d’uma perfeita ven rei ariano dos lombardos; porque.os dias e
tura sobre a terra do desterro, que transi as noites se transmittiram cm sua muda
tamos todos rodeados sempre das fadigas linguagem á verdadeira sciencia, e os mor-
inherentes a uma viagem tão activa no tão taes não poderam deixar de escutal-a, como
curto espaço d’esta primeira vida! eloquente e simplesmente nos ensina o psal
Ainda assim se uma ou outra vez nos mista:
abandona Deus a nossos proprios recur
sos, é só para nos acordar nossa fraqueza, Dies diei eructat verbum,
e apoz elia nossos deveres; uma vez reco E t nox nocti indicat scientiam.
nhecidos, a Providencia vela sem intermis-
são sobre nossas necessidades, e o mais Se os discipulos do Manes se agitam na
forte contendor continua pela causa da so solução do grande problema da existencia
ciedade, que é a mesma causa do Chris de um Deus, que se compadeça com a he-
tianismo, contra a qual não prevalecerão terogeneidade da existencia do bem e do
s portas do inferno. E t porta1 inferi non mal, que elles attribuiam a dous princípios
rcevalebunt adversus eam. necessarios e independentes, do centro de
Se uma seita pois de arianos se levanta suas proprias phalanges lhes deserta o
sob as ordens do ambicioso hcresiarcha de mais liabil e corajoso de seus soldados, e
Cyrenaica, que pérfido a seu sagrado mi corre a depor -suas armas aos pés de um
nisterio principiou cm 312 a pregar um dos mais famosos centuriões da milicia
complexo de paradoxos, que elle denomi christã, o celebre bispo de Milão, Sancto
nava doutrina religiosa, combatendo a uni Ambrozio, cujas virtudes respeitou, e te
dade e consubstancialidade da Trindade Sa meu a propria espada de Theodosio, o gran
crosancta, a Divindade de Jesus Christo, de, e abjurando seus erros vai esse mesmo
etc., tomam, entre tantos'varões conspi soldado, o primeiro padre da igreja latina,
cuos, a dianteira, Athanasio e Alexandre, instituidor dos seminarios (Sancto Agosti
celebres bispos d’Alexandria, e enristando nho, nascido em Tagaste, na Numidia, no
por toda a parte que a falsa doutrina ap- anno 354, de pae pagão, e de mãe christã,
parece, a lança inconcussa das verdades Sancta Monica) levar a devastação ás co
reveladas, que chegam até nós, e continua lumnas do exercito em que outr’ora mili-
rão por diante seu caminho á posteridade, tára, e cuja causa agora debate com cora
viajando socegadas nas sagradas paginas gem e lealdade, fazendo pública à mais in
da historia universal, e na fé da tradição genua confissão de seus erros, para eterno
universal e concorde, levarão os destroços opprobrio do egoismo, e da hypocrisia dos
ás filas inimigas, que mais tarde jazerão fatuos e covardes inimigos do Christia
sem alento e sem crença junto aos pés pie nismo, que ora procuram encobrir-so com
dosos da caridade chnstã, essa filha legi uma já debotada capa de virtude, emquanto
tima do céo, e de Deus a mais amada, que não apparece algum novo Behrão, que da
desde logo os recebeu no hospital dos in verdade cioso, lhes descubra as ulceras da
validos da fé, e lhes curou com piedade as mentira que cuidadosamente encobrem sob
chagas ascorosas de^scus perniciosos er a rugosa pelle do torpe embuste; sorte bem
ros; e ainda que esta heresia tomou um merecida, que coube também ao ousado es
vulto ao nascer pelo apoio de Eusebio, cravo mamcheu, author da mesma heresia,
«
CHR 377
que acabou por scr esfolado vivo cm 274, da sapiência c poder divino, murmura me
por ordem do principe Behrão, successor lancholica c insinuante aos ouvidos de todos
de Hormisdas, que então presidia aos des os mortaes; o mais forte contendor, pois,
tinos da Persia: Talis vita, finis ita! repito ainda, milita sempre sob o estan
Se um Luthero, se um Calvino, em sum darte da christandadc, que jámais será der-
ma, ousam levantar seu collo lá do im ribada pelo poder do inferno. Et portee
mundo lodaçal de paixões ignóbeis, ati inferi non prajvalebunt adversus eam.
rando ao Christianismo Catholico Aposto- Restava porém ainda aos delgados lábios
lico Romano uma luva sordida de suas am da hedionda avareza soprar sua garrocha
bições c vinganças nefarias, mau grado o de perfidia sobre a inabalavcl crenca de
nojo que causa,*uma longa cohorte de es tantos séculos; e os beiços originaes do afi
forçados propugnadores sem medo e sem lado Yoltaire cumpriram de prompto tal
receio mesmo a levantam, até que Bossuet, missão: está proxima, dizia o espirito forte
o invencível Benigno Bossuet, veste as ar do sabiundo mestre Francisco Maria Arouet
mas, trava a batalha da discussão, para de e de seus aíTeiçoados discipulos, está pro
logo fazer succumbir, sob o duro açoute do xima a época do triumpho do philosophis-
sabre irresistível de sua razão esclarecida mo sobre as verdades reveladas do rançoso
nos altos mystcrios da fé do Christianismo, Christianismo, e a presagiada sentença que
os perfidos inimigos da sociedade humana, condemnava á morte repentina a crença
partos abortivos de um philosophismo tão inveterada de fanatiqueiros avós, foi victo-
absurdo quanto impracticavel, e tão fatuo riada com uma interminada salva de es
■quanto pretencioso, cujas doutrinas todas trondosos apoiados, desde logo correspondi
reunidas e ornadas de seus mais fortes ar dos pelo monótono e descompassado som
gumentos, ou antes de seusí sarcasmos e d’uma voz que lhes era bem similhante: a
sophismas, não poderam por lima só vez, do Cerbero Trifauce, porteiro-mór do Pan
um momento sequer, eclipsar a luz da ver demônio de suas sessões; força era pois não
dade, que reflecte expontaneamente de cada despresar o ultimo momento de combate
um pensamento, de cada uma expressão para que se não traduzisse ainda mais esta
d’esse genio encantador, como do astro do vez em vergonhosa burla o cataclismo pre-
dia quando alumia lá do firmamento; cada conisado que ia mergulhar na seio de sur
uma de suas palavras symbolisa uma cs- inundação o signal da salvação, a cruz d
trella no céo, e uma victoria na terra; as Salvador! mas como a dura experienc
almas como as espadas cedem ao seu im lhes havia mostrado que uma discussão s
petuoso impulso; até a do mesmo Turena ria e franca era impotente para obter
não ousou resistir-lhe... Ah! como é forte completa victoria que elles anteviam em mt
a palavra de Deus humanado, explicada ros sonhos, força lhes foi recorrer a outro
aos homens pelos verdadeiros orgãos do genero de armas; e nos salões cxplendidos
Christianismo! O proprio vencedor do gran das madamas Geoffrin, Teucin e outros,
Condé, esse novo eollosso da França, cujo ornados de artezãos dourados e engrinal-
bronzeo peito não poderam penetrar cen- dados de flóres d’artc, eucontraram o cy-
tenares de imperiaes bayonnctas, é atraves nismo do mestre Yoltaire e a leviandade de
sado pela palavra de Bossuet, e seu inexo Fontenelle ao calor das iguarias e ao per
rável coração impenetrável sempre, ou in fume dos licores, vastos arsenaes onde re-
sensível á terrível harmonia das trompas e fundir e aperfeiçoar as armas abjectas do
bombardas de mistura com o rancor dos sarcasmo e do escarnco, com que perfida-
obuzes e clarins, não pôde resistir um mo mente atacaram a sanctidade dos livros de
mento sequer ás columnas do fogo da ver Moysés, a fé dos prophetas e por conse
dade que, como do rouco Etua, as lavare- quência a divindade de Jesus Christo, etc.,
das se despediam em turbilhões da bôcca etc., desgraçados contendores que não ou
do grande orador christão, sem os appara sam encarar de face o vulto severo e pio
tos de guerreiro, bem longe do tremendo do Christianismo 1 c ainda assim... desgra-
«campo da batàllia, no pacifico recinto de çadamente crearam proselytosl...
um templo de Christo, onde o silencio mys- «É que os tempos, como disse o sabio
terioso e eloquente das campas,, de harmo De Lurges, surpréso de dôr e dc indigna
nia com o doce som de hymnos saerados, ção, estavam maduros para impiedadel os
•qual brisa suave, em noite tranquilla, so costumes licenciosos gerados nos ultimos
prando brand,amente aos ouvidos do pen annos do precedente reinado, que se occul-
sador profundo, absorto na contemplação de tavam em razão do respeito ao temor que
tantos luzeiros inimitáveis, que povoam um ainda infundia o monarcha, se mostraram
firmamento de anil como testimunhas fieis despejadamente em toda a sua nudez. Quem
378 CHR
pregou a incredulidade já não foi o philo- III
sophismo, foi a devasáidão! antes dos frau-
cezes aprenderem a descrer, haviam apren
dido a nào obrar. O atheismo foi systema- Dcbalde se teem cansado os mais preten-
tisado, por isso que já a maior parte dos ciosos philosophos, enfatuados antes pela
homens punha nos prazeres e deleites ma- sua temeraria ousadia do que pela sua li
teriacs o unico cuidado da vida. Os so vre seicncia, em substituir na instrucção
phistas d’então, á imitação dos que antes dos povos uma cosmogonia philosophica á
d'elles foram, nada mais fizeram quo apro- cosmogonia religiosa, fundada nào como
vcitar-sc das disposições que occorriam. A cila cm meros inventos e imaginarias con
semente depositada na mente humana não cepções, mas sim nas verdades unicas re
fortifica senão quando uma causa anterior veladas, nas tradições de todos os povos
a dispõe para a fecundação. Um systema existentes e extinctós do todas ascren ca s,1
não deita raizes nas intelligencias senão c amparada pela fé, condição essencial d’esta
quando certas necessidades, que se coadu nossa vida que só depara coin a realidade
nam com os princípios d’cllc, lhe facili nas lagrimas, alimento na esperança c con
tam a assimilação c o ageitam ao tempera solação na caridade.
mento da época em que se manifesta. Sem
opportunidadc nào ha doutrina opportuna, 1 È bem para notar que em mytliologia
e em igual paridade a este respeito se acham e em summa em todas as falmlas inventa
a verdade e a mentira, com a differença po das para explicar abs gentios c pagãos, etc.,
rém que a primeira subsiste e a segunda etc., o grande problema da natureza e sua
passa.» causa primeira e necessaria, tudo converge
Assim parecia triuuiphar o racionalismo para um centro commum, attestando ao
supplantando a verdade c propalando a mesmo tempo a authenlicidade da revelação,.
mentira! e nenhuma voz se levantou acaso apoz a necessidade d. um Deus Supremo, que
para anathematisar essa filha espúria da todos os povos inventaram como mcllior o
desvairada razão, divorciada da verdade e podiam conceber; tanto elles estavam con
ornada com os seductores enfeites da pros vencidos da necessidade de sua existência.
tituição que satisfazia, ou antes entretinha O furto practiçado por Prometheo, a caixa
as dámnàdas e exterminadoras paixões de de Pandora, a Meschia e Meschane (Adão e
seus adoradores?! Oh! não façamos essa Eva) dos Parsis; a degenerarão da especie
injuria ao bom senso da humanidade; ao humana deplorada pelos indoiis; a Isis (V ir
contrario, a voz commum do mundo todo gem c mãe do futuro libertador dos drui-
eccoou unisona e grave aos surdos ouvi das); o Zodíaco dos persas '(Virgem e filho);
dos dos pseudo-sacerdotes da razão: mal a Sching-Mou. (Mãe sancta) dos chinas; o
vados, lhe bradou, quereis acabar com a Mithra (mediador das numerosas almas de
nossa sociedade, a filha mais querida do toda a terra) dos persas; o Orus (mestre
Christianismo?!... Elles porém conscrva- doutor) mediador dos egypcios, etc., etc.,
ram-sc ainda surdos a esses clamores; sua nada menos representam que a cópia fiel do
obra safanica continuou ainda por diante; quadro original do Genesis, trasladado pela
a razão devia ser cleificada... cila porém foi mão da tradição para tantos povos, sob di
a victima, o altar, a guilhotina e a mais he versas fôrmas c variadas sombras, mas re
dionda ambição, o idolo mais caro de suas presentando sempre um mesmo pensamento,
funestas adorações: sobre esse altar infando uma verdade incontestável— In principio
correu o sangue do justo de involta com o Deus creavit ccelum et terram, etc., etc. No
do criminoso! Assim era preciso; o mundo principio creou Deus o céo e a tetra , for
enlu.dado por este, precisava ser lavado mou depois o homem á sua similhança, deu-
por aquelle; c o nosso reprehcnsivel des lhe tinia mulher por consocia, addicionando-
leixo, a nossa criminosa tolerância carecia Ihe o imperio do mundo com todos os bens
uma punição! ella chegou!... A’lcrta, pois, do Paraizo, á excepcão d'um frueto único;
soldados da fé catholica, álerta; a reinci o liomem não guaràou porém a prohibicão,
dência no crime importa como consequên foi ingrato ao seu creador e peccou; d ahi
cia necessaria a reincidência na pena, e procedeu o mal que opprime toda a sua des
esta costuma augmentar tantos graus quan cendenda, que ficou escrava do mesmo pec-
tas são as vezes que n’aquelle se reincide... cado; d'ahi a necessidade da redempção hu
e a segunda lição será mais severa que a mana a preço d'uma victim a, qual o pro
primeira!... É esta uma incontrastavel ver prio filho de‘Dcus feito homem e nascido de
dade, é esta a minha convicção. uma Viracm; eis a crença fiel de todos os-
povos e de todas as éras.
CHR 379
Cada lição dada á massa immensa dos que as próprias verdades, que julgamos ad
povos, cuja totalidade consta de genios me quiridas pelo mero trabalho de nosso espi
diocres e incapazes d’uma explicação mc- rito, essas mesmas não as reputamos tacs
thaphysica, pelo enfatuado e livro philoso- senão pelo instincto da fé? «Se estamos
phisnío só tem produzido cm suas cabe certos da existência do mundo exterior,
ças uma confusão fatal, abrindo a seus pés diz com bem fundada razão um publicista
ábysmos inevitáveis cm que veem sepultar- contemporâneo, é porque damos credito aos
se mestres c discipulos. sentidos: se não duvidamos das verdades
Na primeira pagina do Genesis, explica de primeira intuição é porque temos fé na
da com a simplicidade característica da razão humana: e n’um e outro caso essa fé
verdade pelo philosopho christào (o padre), c um instincto, é uma lei de nossas conce
aprende o marido c a esposa, o filho e o pções.
servo a alta scicncia da creação do mundo "«Se o testinumho dos homens pódc ser
e formação do homem, o que grossos volu falso, lambem a razão pódo enganar-nos,
mes de "discursos philosophicos não pode- também os sentidos muitas vezes illudem.
ram fazer-lhes comprehcndcr. Se lançar A realidade objecti va das cousas, que por
mos ainda nossas vistas sobre o quadro li nós inesmos conhecemos, não se funda se
vre em que nos pintam a sempre citada lei não na crença illimitada com que acatamos
natural, que aos olhos do pliilosophistno a authoridade dos sentidos ou da razão.»
parece ter existência propria e construir a Ou a crença, ou a dúvida, ou a fé, ou o
grande alma do mundo (parto abortivo do scepticismo; não ha meio termo. Esses, que
mero acaso!...) o que vemos? supérfluas de- tanto exaltam a razão e deprimem a fé,
clamações, baldas de successo e de utili mal pensam que a homenagem rendida á
dade; e a illudida humanidade nunca chega razão não passa d’um instincto de fé. Os
a descobrir a certa vereda de seus sagra motivos d’essa homenagem sentem-se, não
dos deveres, que uma só expressão do se calculam: a razão da razão crê-se, não
Christianismo, a caridade, lhe faz compre se demonstra. Tirai ao homem a crença na
hendor com a mais simples c mais natural divindade, que alimento deixaes á alma? O
explicação—amar a Deus sobre todas as vacuo!...
sos e aó proximo como a nós mesmos. É tempo pois de reagir contra tão funes
Eis, mau grado,- todos os sophisraas, a tas theorias. Esse inditTerentisfho rcligios*
unica synthese possível de toda a lei que do século é uma imbecilidade abjecta. «Sã
mereça este nome natural, revelada ou es- confessemos a Deus unicamente nos lábios
criptá. Para que pois substituir na instruc- renegando-o no coração.
ção da humanidade c direcção da sociedade A religião não é só para o povo, curvem-
um systema tão fácil, tão sublime e tão ac- se diante das suas crenças esses espíritos
cessivcl a todas as capacidades, satisfazen orgulhosos, que se ufanam da aristocracia
do a todos os espíritos; aos mediocres pela do talento, continha o mesmo escriptor, o
clareza e aos transcendentes, pela sublimi talento não é a vaidade, é a simplicidade
dade! para que substituil-o por um syste do espirito, é o ardor vivo das crenças. O
ma, fundado em meras hvpothcses tão en orgulho do talento é a mais formal nega
contradas como os pensamentos, tão pre ção d’clle, é o opprobrio dos intitulados sá
carias como o entendimento humano que as bios, dos novos castellões que açoutam as
figura?!... Que mais ensinaes vós em todas turbas com seus escarneos.
as vossas longas e incomprehcnsiveis dis E comtudo parecem ainda acreditar que
sertações, fundadas no livre exame do que esse orgulho se compadece com o senti
o philosopho christào na simples oração do mento e simplicidade da sabedoria!... É
Padre Nosso escudado pela fé?! Se ensinaes porque não reflectem que o genio mais il-
o mesmo, para que tão arduo trabalho sem lustrado e sem contradicção aquelle que me
pre mal succedido, quando o podeis conse lhor comprehende a sua fraqueza, e que
guir com doçura e simplicidade? Se ensi conscio d’ella busca na fé o amparo da ra
naes o contrario, como quereis que nossos zão, que uma vez abandonada e circum
corações amem c abracem vossas doutrinas scripta a seus pretenciosos recursos do li
que assim tendem a materialisar-nos, c im vre exame, voga ao ludibrio das procello
portam a nossa destruição?... sas ondas no mar immenso da cruel incer
Sc é pois um principio vosso negar a ne teza, sem bússola e sem estrella, e sem pos
cessidade da fé, que outro meio inventareis sibilidade de aíTerrar jamais o porto da sal
- inais simples e tão profícuo para que vossa vação; instrumentos que só poderá encon
doutrina seja crida por tautos, que nunca po- trar na fé, na crença o na religião: em nenhu
doram coraprchcnder-vos!... Ignoraes acaso ma parte depara mais com uma taboa de
380 CHR
esperança; cm todo o logar o desespéro; o possa tornar orgulhoso? Obterá acaso os
naufragio pois é inevitável c um insonaa- precisos dados para se julgar um sabio con-
vel abysmo na sua eterna sepultura!... E summado, independente c capaz de inven
quem sabe se dcbalde me canso em dar tar mundos, astros, etc., etc., assignalar-
provas d’esta verdade!... lhcs vida, logar c rotação? Oh! ao contra
Oh! talvez!... pois que factos, argumen rio cllc se convencerá, á medida de suas
tos e intimações, tudo, tudo prescreveu para descobertas, de que o homem é real mente
esses fatuos admiradores da razào, que se mais ignorante c mais fraco do que ello
abstrahindo da admiração que devem ao mesmo se suppõe, sua intclligcncia muito
Creador e ao todo creado, não se pesam de mais limitada do que ellc pensava, e que
despresar o todo para só acatarem uma pe com cíTeito lhe resta muito mais que saber
quenina parte da creação. Preslaes reve do (pie cllc nunca imaginaria antes d’eslcs
rentes e admirados um culto de idolatria a novos cabcdaes de sciencia, adquiridos no
uma simples unha da estatua, e quaes mi mais accurado estudo dos planetas, etc., e
seros idolatras profanacs o seu todo colos na apreciação de tantos phenomenos que
sal; e o que é mais, cobris de impropérios nos escapam ao mais amplo circulo de to
o seu estatuario, sem reílectirdes que a dos os numeros imagináveis. Em taes ma
não valer o seu engenho e trabalho, essa térias, sem uma pouca de fé e uma crença
estatua não passaria d’uma materia vil e viva, não ha mais a satisfazer nossa natu
obscura, e menos seria formada a unha ral ambição de saber, cada dia mais des
que ora admiraes. pertada em presença dos variadissimos
Vêde vós a que vil extremo vos arrosta phenomenos que nos a (Tectam a sensibili
essa deidade que pretendeis ter libertado dade e nos agitam o sentimento a toda a
do dominio da fé christã (até a injuriaes de hora e cm todos os sentidos.
ter sido misera escrava!...) para divinisal-a! Deus é infinito, immenso, suas faculda
que perigosa não é a vossa temeridade, e des illimitadas, c por consequência acima
que vão o vosso livre saber, que ousa in de nossa razão; suas obras incomprehensi-
ventar um novo Deus, quando nem capa- veis, suas leis invariáveis!... e o mais hu
íidade tendes para reconhecer e venerar o milde christão sabe-o perfeitamente, ou
jue sempre existiu!... quanto é possível saber-se; porque todo
Mas qual Deus, qual creação, me inter este cabedal de sciencia nos é fornecido
roga ousado o philosophismo por seu orgão pela nossa crença, filha de nossa fé, bem
luminar o barão de Holbach, qual Deus, fundada na revelação muda e expressa: ex
qual creação, se tudo que existe é devido pressa na tradição e nas sagradas paginas
ao mero acaso, se nada mais existe que da unica historia; e muda nos phenomenos
materia, se ella mesmo existe et (eterno et da mesma natureza. E torna-se tudo isto
per se, independente de nenhum principio e d’uma intuição tal, que o comprehende
com faculdade de pensar, raciocinar c com assim o grande como o pequeno, o igno
parar em razão da grande alma que lhe é rante como o sabio!...
inherente? E, com efleito, eu mesmo con Ainda quando sejam- rcaes verdades as
fesso que vol-o concedería de barato se ti conclusões de vossos estudos, que cada vez
vesse de avaliar do senso commum de to vos devem convencer mais da necessidade
dos os povos e da habilidade do espirito 4’um principio regulador, que assim collo-
humano pelos vossos juizos e raciocínios, cou esses vastos e innumeraveis corpos
que em verdade mais se assimilam a par sem se perturbarem em seus cursos sob
tos abortivos de ociosa materia, do que a suas leis pàrciaes, sujeitos a um systema
actos reflectidos d’um pensador conscien geral, como attesta a ordem invariável de
cioso, como vós quereis inculcar, em plena tantos séculos, sobre que fundaram suas
contradicçào com os vossos mais favoritos crenças Copernico, Keppler e Newlon; com
princípios, a vossa sapiência encyclopedi- parai, digo, todas as vossas descobertas com
cal... um sem numero de outros systemas que
O vos são incognitos, e com as leis qüe re
que e pois a sabedoria se ella não curva
sua fronte altiva perante o principio infal- gem a immensa, a incompreliensivel ma
livel de todo o saber? Depois de percorrer china do universo, e dir-me-heis então se
com o pensamento o espaço, cujo termo ha paridade possível, se ha motivo plausí
jamais alcança em seu mais rapido vôo, e vel para vos considerardes consummados
medir um a um todos os pontos do firma sabedores e blasonar de terdes dado com o
mento em busca de novos mundos, em problema de Deus e da natureza fóra do
pesquiza de incognitos séres; o que resta auxilio da revelação c da fé.
ao pobre mortal de suas descobertas que o Emfim, em tudo quanto descobrirdes não
CHR 381
haverá tal motivo para assim incrementar feito o que na actualidadc seria mais apre
o orgulho á humanidade, que ao menor cho ciado:—um systema de atheismo para as
que perde esse sopro de vida que lhe ani pessoas de instrucção, um manifesto con
ma a existência; tal ó a ordem dos plieno- tra os sacerdotes; *e tudo isto combinado
menos da natureza, que tudo quanto des com adopção de certas fabulas de que o
cobrirdes, repito ainda, só servirá a mos povo necessita c que satisfaz ao mesmo
trar mais evidente a existência d’um prin tempo o poder e a vaidade.»
cipio regulador, em summa, d’um Deus: c Véde-vos n’cstc espelho apostolos do di-
que nós comparativamente ao todo somos vinisado philosophismo, c dizei-me depois
em parte insignificantes insectos, que só por se a authoridade d’cste personagem, que
misericordia do mesmo Deus podemos con tem sido toda vossa, também é suspeita
servar o uso de tantas faculdades que pa para vós?... ou então não vos pese, a exem
recem exceder o nosso nada!... plo d’clle, confessar que toda a vez que
Uma pouca de scicncia, dizia Bacon, le o philosophismo abandonado a seus pro
va-nos ao atheismo, c mais de sciencia á prios recursos pretendeu dar solução do
religião—A liltre Science leads to athcism, grande problema da creação, desligando
tem deixado de ser attcstadà por um sem seu principio da causa primeira, que a
numero de testimunhas insuspeitas, e en crença da necessaria revelação nos tom
tre ellas notarei o celebre Bcnjamin Cons feito *comprchcnder, ou pclo^menos crer,
tant, que durante o seu exilio na Allema- sente-se para logo navegar a voga solta
nha, tempo em que se occupou a compôr por um pélago immenso de dúvidas inven
a sua obra sobre a religião, escreveu d’ahi cíveis, encalhando a cada hora nas espes
uma carta a um seu amigo (M. Hochct) cm sas syrtes das pobrezas e miserias huma
que lhe dá conta de seu novo trabalho, em nas, é que clle torna ainda mais miserá
um trecho da qual se expressa da fôrma veis, sepultando-as para sempre áquem da
seguinte: «Eu renovei todo o plano e mais eternidade; d’csse Iogar da esperança unica
de tres quartos dos capitulos da minha His que nos acena lá dos confins do futuro e
toria do Polytheismo. Assim me foi preciso, que nos pódc tornar mais tolerável est?
não só para chegar á ordem que eu tinha vida precaria, que nos seria por demai
imaginado e que julgo ter obtido, mas tam miserável, se apoz cila nada mais restass
bém porque, como vós sabeis, eu já não á ambiciosa humanidade que de todo csj |
sou mais esso philosopho intrepido que numero infinito de diversos entes, que r
não creia da existência de outro mundo e presentam no variadissimo quadro da cre;
que tão satisfeito d’estc se alegra por não ção, seria o unico genero que não chega
haver outro. A minha obra é uma prova ria a cumprir nenhuma missão rasoavel;
singular do que diz Bacon, que uma pouca vér-se-ia em summa privada de todas aquel-
de sciencia leva ao atheismo, c mais de scien las vantagens que a nenhum ente da crea
cia á religião. É positiva mente aprofundan ção foram negadas, todos cumprem sua
do os factos, colligindo-os de todas as par missão; a do homem pois (creatura a mais
tes c aflrontando diíficuldadcs sem numero perfeita) seria a unica incompleta; que mi
que ellcs oppoem á incredulidade, que eu seria 1... que systema de philosophar!...
me tenho visto forçado a recuar para as
idéias religiosas; eu o tenho feito de muito
boa fé, porque "cada passo retrogrado me IV
tem sido mui custoso. Ainda presentemente
todos os meus habitos c todas as minhas
lembranças são philosophicas, c defendo Deixemo-nos emfim de viajar lá pelas al
ponto por ponto tudo o que a religião re tas regiões da metaphysica, porque n'cssa
conquista sobre mim. Ba mesmo n’isto um gloriosa, porém ardua viagem, podem pe
sacrifício de amor proprio; porque é difii- netrar também os travessos ventos do so
cil, segundo eu creio, achar uma logica phisma, e abalar nas mentes desprevenidas
mais severa do que aquella de que eu me o voo d’essc balão em que nos tínhamos
tinha servido para atacar todas as opiniões proposto viajar até Deus: cá mesmo, ser-
d’esse genero. O meu livro não tinha abso peando pela terra, apreciando os pheno-
lutamente senão o direito de marchar no menos e descobrindo-lhes modestamente as
sentido opposto ao que presontemento me causas, também depararemos estrada se
parece verdadeiro e bom, e eu teria alcan gura para tocar com os nossos pensamen
çado uma victoria indubitavel; eu teria tos e prosas a meta do caminho que nos
ainda alcançado outra vantagem, porque propozemos—demonstrar a primazia e ne-
com muitas levianas inclinações eu teria cessidadevda lei da fé, com exclusão mesmo
m CHR
do livre philosophismo,—para quem a lei é cada século passado, que constituem o gran
um phantasma vão que só sujeita os espíri de livro da verdadeira historia, tudo isso
tos fracos. Dir-nos-hão pòrém os espíritos para nós será nada?
fortes—qual será mais velho, a lei ou o As ruinas inonumentosas de tantas ri
philosophismo? quezas oriçnlaes, de tantas cidades sober
Se este c mais velho ou pelo menos coé- bas, de tantas obras colossaes que cobriam
vo d’aquella, porque a não dominou logo a face da terra coin sua base, c aíTronta-
ao nascer, se ella nasceu também por aca vam os astros com seu vertice minaz, c
so; se porém alguém a fez nascer, porque que hoje se apresentam a nossos olhos: e
a não preveniu logo com o philosophismo, meditações como vivos apontamentos, no
que mais tarde tinha de supplantal-a, c tas o cscholios da mais remota historia,
emancipar d’ella a razão, pondo-a cm plena que nos arranca o assentimento, sc ousa
liberdade, sem lei, sem Deus, sem rei, (oh! mos negal-o, ás verdades que nos relata,
que licença!!!) submettida apenas ao fatal tudo, tudo isto não merece a mera home
dominio áa vontade do sugeito?... Kespon- nagem de vossa razão?! Ah! loucos perti-
der-me-heis com eíTeito—que o sabio não nazes que, mau grado a vossa consciência,
carece de lei, que bem se regula elle pelos vos mostraes appareutementc satisfeitos e
dictames da sua couscioncia; e eu vol-o contentes de vossos erros; qual o vosso
concedería em verdade se os vossos argu successo?
mentos podessem uma vez sequer destruir Oh! cmmudeccis, e com razão: o horror
os muitos factos que tantos séculos passados que vos deve ter causado o frueto do ra-
nos teem testado em bem triste herança, des cionalismo, deve também ler-vos seccado
de que ha memória de homens, assim nas para sempre o orgão da voz; baldo será
paginas da historia, que muito importa apre vosse esforço, pois, para expressar-vos, e
ciar, como nas tradições de todos os po o quadro das illusões, por demais sombrio,
vos; fins promissos de que podemos tirar para tentardes ainda apresental-o aos olhos
uma conclusão verdadeira e que vos des- lacrimosos da olTendida humanidade! Eu
troo plenamente; e d’ondc conhecerá elle mesmo me compadeço de vosso estado de
que é bem regulado em seu proceder? Não remorsos, se ainda tendes consciência, ou
serão pela comparação que em apreciação de degradação, se nem vislumbres d’ella
de seüs actos estabelece entre a consciên vos restam; n’um o n’outro caso ha moti
cia e a lei? Demais—poderão acaso sér sá vos para a dor; mas nem em ambos para
bios todos os homens? Ninguem haverá a esperança que aquellcs divisam ainda
tão louco e temerário que ouse aífirmal-o; por acaso corno taboa de salvação no des
e então? provada assim a impossibilidade compassado subir c baixar das procellas,
de chegarem todos á comprchensão de seus que os baldeiam de mistura com estes,
deveres e á apreciação do^ actos humanos, que, já esquecidos de si e da vida, naufra
por meio do vosso decantado philosophis gam sem alma, mas não morrem sem dòr!...
mo, quereis privar do exercício do bem Eu, pois, conscio de vossa incapacidade e
um sem numero de capacidades de todas conunovido de vosso soffrcr, passo a repre
as escalas?... É assim que estabeleceis a sentar por vós uma parte dos fruetos de
igualdade entre os homens, cegando-os para vossas doutrinas racionalistas, reproduzin
trepidarem sem trilho fóra do unico cami do o triste e fiel quadro do christianissimo
nho que a lei lhes aponta e alumia? Pode Chateaubriand, em que esse amigo da ver
reis vós, meia duzia de philosophos pre- dade nos dá minuciosa conta das victimas
tenciosos e enfatuados, com o apparente d’essa revolução que abalou o mundo eu
successo que também a desordem vos pre ropeu, filha genuina c a inais amada do li
para ás vezes para abysmar-vos, podereis vre philosophismo, desposado pela soberba,
vós, digo, sustentar o embate dos destinos em presença do sophisma da mentira, que
da massa immensa dos povos, privada da assistiram como testimunhas á boda fatal,
unica scicncia que os esclarece? qual a lei e que já hoje conta um bom numero de
da unica balisa que os guia? qual a.fé? bem travêssas netas, e igualmente barba
Conforme as velhas crenças de seus sem ras!
pre venerados avós, rasgando assim os Tal é a que nos dias do junho de 1848
m a is. sagrados testamentos cm que elles, juncou de cadaveres as ruas da louca Pa
cuidadosos de nosso futuro, nos legaram ris, c a que partejada pelo grande principe
tantas verdades que ora constituem o mais de Ganino, sedento do sangue dos Rossis,
precioso patrimonio de nosso viver presente expulsou da capital do mundo christão o
e futuro, cada facto, cada memoria que lê- principe da paz, o symbolo da virtude, o
moà todos os dias nas longas paginas de instrumento da caridade c misericordia de
CHR 283
'Deus!... e tantas outras quo doloroso seria Transporte. 34:764
continuar a mencionar. Demais quo, para
.avalial-as todas, basta conhecer os eiTeitos Sacerdotes fuzilados . 300
d’uma: et crimine ab uno disce omnes:—as ídem afogados . . . 460
sim se expressava perante Dido, o heroe de Nobres idem . . . 1:400
Virgílio. Deixemos pois fallar o immortal Operários idem . . 5:300
cscriptor, que transido de dôr assim prin Victimas em Lyon. . 31:000
cipia com uma reprovada ironia a descre
ver o lugubre quadro dos desatinos de sua Sonnna. 73:224
França civilisada, mas racionalista! Este
tribunal era sem appellação (le tribunal Total . 1,032:58o
revolutionnaire.)
Eis-aqui a grande base sobre que deve
mos assentar a nossa admiração: honra
seja feita á equidade revolucionaria!...
honra á justiça da caverna! Agora, com-
pulscmosoS actos emanados d’esta justiça. N’cstcs números nào sào comprchcndi-
O republicano Prudhommc, que não abor dos os mortos em Versailles, nos Carmos,
recia a revolução c que escreveu quando na Abbadia, na Neveira de Avignon, os
ainda o sangue estava quente, nos deixou fuzilados de Toulon e dc Marseille, depois
seis volumes de relações circumstanciadas. dos cercos d’estas duas cidades, e os de
Dous d’estes seis volumes constituem um golados da pequena cidade provcnçal de
diccionario cm que cada criminoso se acha Bcdoin, cuja população foi absolutarnente
inscripto por ordem alphabetica, com seu aniquilada. Para a execução da lei dos
nome, pronomes, idade, logar do nasci suspeitos de 21 de setembro de 1793, mais
mento, qualidade, domicilio, profissão, data dc cincocnta mil commissòes revoluciona
e motivo da condemnando, dia e logar da rias foram estabelecidas por toda a Fran
execução. Ahi se acham entre os guilhoti ça. Conforme os calculos do convencional
nados* 18:613 victimas, distribuídas da fôr Cambou, cilas custavam annualmente qui
ma seguinte: nhentos c noventa c uui milhões. Cada
membro d’esta commissão recebia tres fran
E x -n o b res............................... 1:278 cos por dia e ellos eram quinhentos e qua
Mulheres, idem......................... 750 renta mil: eram quinhentos e quarenta
Mulheres dc trabalhadores e mil accusadorcs que tinham o direito de
operários............................... 1:467 designar as victimas como dignas de morte.
R e lig io so s................................ 350 Só em Paris se contavam sessenta commis-
Sacerdotes............................... 1:135 sòes revolucionarias, e cada uma d'ellas ti
Homens plebeus de diversos nha sua prisão para detenção dos suspei
e s t a d o s ............................... 13:633 tos. Vós notareis que não são simplcsmcute
nobres, sacerdotes, religiosos que liguram
Somma. . . 18:613 aqui no registro mortuário; se se tractasse
d’essas classes, o terror seria verdadeira
Mulheres mortas em conse mente a virtude: canalha!... louca espe-
quência de partos prema cie!... Mas ois-ahi 18:923 homens plebeus,
turos . . . . . . . 3:400 de diversos estados, e 2:231 mulheres de
Mulheres gravidas e paridas . 348 trabalhadores ou operários, 2:000 crean-
Mulheres mortas na Yandée . 15:000 ças guilhotinadas, afogadas c fuziladas:
Creanças, idem, idem . . . 22:000 em Bordeaux executava-se por crime de
Mortos na Yandée. . . . 900:000 negociantismo. Mulheres!... não sabeis vós
que em nenhum paiz, em nenhuma nàção
Somma. . . 940:748 da terra, cm nenhuma proscripção poli
tica jamais foram as mulheres entregues
Yictimas do proconsulado de ao algoz, á excepção de algumas cabeças
Carrier cm Nantes . . . 32:000 isoladas em Roma no tempo dos imperado
Creanças fuziladas. . . . 500 res, na Inglaterra no de Henrique vui, da
Idem afogadas......................... 1:500 rainha Maria e de Jacob ii?
Mulheres fuziladas. . . . 264 Foi só o terror o que deu ao mundo o
Idem afogadas. . . . . 500 covarde e desapiedado espectáculo de as
sassinato juridico de mulheres c creanoas,
. Somma. . . 34:764 em massa. O girondino RioufTe, préso com
384 CHR
Virgniaux, madame Rolland c seus amigos tmguir: ó grito da dòr maternal, quanto
na Conciergeric, refere o que segue nas foste agudo... mas sem efleitol... Algumas
suas Memorias de um prcso: mulheres morreram na carreta e ainda as
«As mulheres as mais bellas, jovens as sim seus cadaveres foram á guilhotinai,
mais interessanles cahiam confusamenle não tinha eu visto, poucos dias antes di>
n’este sorvedouro (a Abbadia), donde só 9 thermidor, outras mulheres arrastadas
sahiam para ir ás dúzias inundar com o á morte? ellas se tinham declarado gravi
seu sangue o cadafalso. das... E são homens, francezos, a quem
«Dir-se-ia que o governo estava nas mãos seus philosophos os mais eloquentes pre
d’estes homens depravados, que não con gam ha sessenta annos a humanidade e a
tentes de insultar o sexo satisfazendo seus tolerância?...
prazeres monstruosos, lhe votam ainda um «Já na praça de Sancto Antonio se ha
odio implacável. Jovens mulheres "ravi via cavado um aquedueto immenso para
das, outras que acabavam de dar á luz, e esgoto do sangue. Digamol-o, por maior
que se achavam ainda n’este estado de horror que sintamos ao dizel-o, todos os
fraqueza c de pallidez, consequência do dias o sangue humano era baldeado a cân
grande trabalho da natureza, que seria res taros no momento da execução, por qua
peitado pelos povos os mais selvagens; ou tro homens que se occupava*m em o va-
tras, cujo leite se tinha suspendido de re sar n’esse aquedueto. Era ás tres horas da
pente, ou pelo terror ou porque de seus tarde que estas longas procissões de victi
peitos lhes tinham arrancado seus filhos, mas desciam ao tribunal, c atravessavam
eram de dia e de noite precipitadas n’este lentamente, por baixo de longas abóbadas,
abysmo. Eram arrastadas de enxovias cm no meio dos presos, que se punham em fi
enxovias com suas fracas mãos encadea leira para as vér passar com uma avidez
das em indignos ferros: algumas teem aqui sem igual. Eu vi quarenta magistrados do
apparecido com gargalharias ao pescoço. parlamento de Paris, trinta e tres do par
Umas entravam desmaiadas e levadas em lamento de Tolosa, marchando á morte
braços dos carcereiros a quem desperta com o mesmo ar com que n’oulro tempo
vam o riso; outras em estado de estupe- se apresentavam nas ceremonias públicas;
facção, que as tornava como imbecis; nos eu vi trinta rendeiros geraos caminhando
ultimos mezes sobretudo (antes do 9 ther- com passo firme e tranquillo; os vinte e
midor), aqui se observava uma actividade cinco primeiros, negociantes de Seden, la
própria dos infernos! de dia e de noite mentando, quando iam morrer, dez mil
os ferrolhos se agitavam; sessenta pessoas obreiros que deixavam sem pão. Eu vi
chegavam á noite para ir ao cadafalso; no esse Baysscr, o espanto dos rebeldes da
outro dia ellas eram substituídas por ou Vendée e o mais illustre guerreiro que teve
tras cem, a quem esperava a mesma sorte a França; eu vi todos esses gencraes que a
no dia seguinte. Quatorze moças de Ver- victoria acabava de cobrir de louros mu
dum, d’uma candura sem exemplo e que dados repenfinamente em cyprestes; emfim
tinham o ar de virgens, adornadas para todos esses jovens militares tão vigorosos...
uma. festa pública, foram simultaneamente marchavam silenciosamente... não sabiam
conduzidas ao cadafalso. Ellas desappare- senão morrer!!!...»
ceram de repente c foram ceifadas na pri Prudhommc vai completar este quadro:
mavera da vida. O palco das mulheres, no «A missão de Le-Bon, nos departamentos
dia seguinte ao de sua morte, apresentava das fronteiras do norte, póde ser compa
o aspecto de um jardim privado de suas rada á apparição d’essas negras furias tão
flôres pela tempestade. Eu nunca vi entre terríveis nos tempos do paganismo...» Nos
nós desesperaçao igual á que nos causou dias de festa a orchestra estava colloeada
similhante barbaria. ao lado do cadafalso; Le-Bon dizia ás mo
«Vinte mulheres de Poitou, pobres cam- ças que alli se achavam: «Segui a voz da
ponezas pela maior parte, foram igualmente natureza, entregai-vos nos braços de vos
assassinadas: parece-me ainda estar vendo sos amantes.» Meninos por elle corrompi
essas desgraçadas victimas, estendidas no dos lhe formavam uma guarda, e eram os
pateo da Conciergene, opprimidas pela fa espiões de seus parentes. Alguns tinham
diga de uma longa viagem e dormindo so pequenas guilhotinas com que sc diver
bre as lages... No momento de partir para tiam dando a morte a passaros e a ratos.
o supplicio, foi arrancado do seio de uma Sabe-se que Le-Bon, depois de ter abusado
d’cstas infelizes um menino que ella ama d’uma mulher, que se lhe tinha entregado
mentava, e que n’esse mesmo momento para salvar seu marido, fez morrer este ho
sorvia o leite cuja fonte o algoz ia ex- mem aos olhos d’esta mulher, para quem
CIR 385
não ficou mais que o horror de seu sacrifí Que liberdade republicana!... Que hjran-
cio; genero este de atrocidades tão repeti nia da liberdade!... a que jámais houve
das em outros logares, que Prudhominc diz monstro que assimilar-se-lhe possa, nem
se não poderíam contar. haverá, a não provir do mesmo principio.
Carrier se distinguiu cm Nantes: «Perto Dcbaldc procurarei nos annacs de toda a
de oitenta mulheres, extrahidas do depo historia, entre os actos da mais dura tyran-
sito, trazidas a este campo de carnagem, nia dos Busiris, Phalaris, Dionisios, Syllas,
ahi foram fuziladas, depois foram despidos Marios, Tiberios, Caligulas, Neros, Díoclc-
seus corpos c n’cste estado ficaram por cianos, Commodos, c de quanto selvagem
espaço de tres dias. Quinhentos meninos tem viajado sobre a face do globo, factos
de ambos os sexos, de que os mais idosos que de longe se assimilem á inaudita bar
tinham quatorze annos, forani conduzidos baridade d’esses algozes francos, cujos no
ao mesmo logar para ahi serem fuzilados. mes mc horroriso de repetir!!! E tudo isto
Nunca espectáculo algum foi mais tocante é obra vossa, darnnados philosophos, cn-
nem mais espantoso; a pequenez de sua cyclopcdistas, liberacs, racionalistasü... E
estatura punha muitos ao abrigo das balas; ainda podereis tolerar a vista da huma
clles desatam suas cadeias, e se dispersam nidade dilacerada, que com severo vulto de
por entre os batalhões de seus algozes, e reprovação pela memoria ainda fresca de
procuram um refugio entre seus joelhos, tantas victimas, vos lança olhos de irremis-
que abraçam fortemente, levantando para sivel execração, condemnando-vos á eterna
elles'scu íosto, cm que se pintam ao mes ignominia e infernal exilio...
mo tempo a innocencia e o espanto. 0 que esperaes, pois ainda, réos confes
«Nada faz impressão sobre estes exter- sos e condemnadosü... Já que não podeis
minadores, que os degolam a seus pés!... mais destruir tantas provas, vesti-vos ao
«Uma quantidade de mulheres, a maior menos de sacco, cobri-vos de cilicios, cm-
parle gravidas, c outras apertando seus fi pocirai-vos de cinzas, e de rastos pelo chão,
lhos contra o seio, são conduzidas a bordo como a serpente traiçoeira, percorrei cm
das barcas... As innocentes carícias, os sor penitencial romaria o* orbe inteiro, implo
risos d’estas tenras victimas vertem na al rai o perdão de Deus c dos homens, de
ma das desoladas mães um sentimento que tudo cmfirn quanto ha de sagrado e pro
acaba de despedaçar suas entranhas; ellas fano, já que nada escapou á violação sa-
respondem com vivacidade ás ternas carí tanica de vosso libidinoso e insaciável fu
cias das creanças, lembrando-se que é pela ror!... e os fieis christãos, unicos que sa
ultima vez! 11...» bem perdoar injurias, porque conhecem í
Uma d’ellas acaba de parir sobre a areia, fraqueza do vosso nada, vos ajudarão com
dando-lhe os algozes apenas tempo de ter suas orações, que em todo o caso serão
minar tão grande trabalho; clles avançam, proveitosas á humanidade. Eis ainda os
são todas amontoadas na barca, c, depois meus ardentes votos.
de as terem despido, prendem-lhes as mãos -■^CHRisTOMAcos—É o nome generico, de-l
atraz das costas. Os gritos os mais agu baixo do ([uai Sancto Athanazio compre-*
dos, as exprobações as mais amargas d e s hende todos os hereges que erraram ácer-
tas desgraçadas* mães, se fazem ouvir por ca da natureza ou da pessoa de Jesus
toda a parte contra os algozes; Touquet, Christo. 1
Robin e Lamberty lhes respondem com gol ;p\py^iCELUõES—Deram este nome tome n o ?
pes de sabro, e a timida belleza já assaz quarto século'aos donatistas furiosos,
>sos. Ve- {
occupada cm occultar sua nudez aos mons ja-se o artigo Donatistas. Também m assim |
tros que a ultrajam, desvia, bramindo, suas chamaram a certos predicantes que appa-
vistas de sua companheira desfigurada pelo receram na Allemanha no meio do decimo
sangue, c que já vacillante vem render a terceiro século (1248).
seus pós o ultimo suspiro. Mas o signal es Ninguem ignora os grandes debates que
tá dado; os carpinteiros com golpes do ma teve com os summos pontifices o impera
chado arrombam as portinholas e a onda dor Frederico, e a excommunhão fulmi
as sepulta para sempre!!!... nada contra elle, no concilio de Leão, por
«Eis o objecto de vossos hymnos, vos Innocencio iv. Durante o fogo d’estas al
repito em conclusão com o mesmo Cha- tercações se levantou na Allemanha uma
teaubriand, milhares de execuções em me sociedade, que, debaixo do pretexto de de
nos de tres annos, em virtude d’uma lei fender o partido do imperador, prégava
uc privava os accusados de testimunhas, que o papa era herege, c que os seus bis-
3 c defensores e de appcllaçãoL.»
1 Athan. I. de Decret. Synod. Nis com.
25
386 CLE
pos, e demais prelados o eram também, qualquer christão podia desposar-sc com a
simoniacos; que estando em peccado mor viuva de seu irmão: afflrmava que Jesus
tal todos os sacerdotes, já não tinham o po Christo descendo aos infernos, d’elles tinha
der de consagrar, e que eram sectarios: tirado todos os condemnados, ainda os mes
que nem o papa, nem os bispos, nem al mos inficis c idolatras; além d’estcs tinha
gum dos viventes, tinham direito para pro- outros muitos erros áccrca da predestina
hibir os divinos officios; c que os que ção. Foi condemnado com Adalberto no
tal faziam eram enganadores e hereges; c concilio de Soissons e cm outros celebra
que os frades menores c pregadores per dos em Roma. 1
vertiam a Igreja com suas falsas préga Os sábios authores da historia litteraria
ções, e que fora da sociedade dos circum de França, parece olharem este Clemente
cclliões ninguem vivia conforme ao Evan como um dos que trabalhou no restabele
gelho. cimento das letras, governando Carlos Ma
Depois de haverem pregado estas maxi gno, c que tinha sido mestre de llccton, ab-
mas, declararam a seus ouvintes que lhes bade do mosteiro de Richemond, na diocese
dariam indulgências, não taes quaes o papa de Constança, e depois embaixador de Car
e os bispos haviam imaginado, mas indul los Magno em Constantinopla, e bispo de
gências que vinham da parte de Deus. Es Basilea. Presume-se também haver sido
tes hereges causaram muito damno ao par elle regente dos estudos do palacio. 2
tido de Frederico, e d’elle separaram mui Quanto ao mais ha d’elle muito pouca
tos catholicos.1 noticia; c não é inverosimil que n u m sé
x^^CLANcuLAnios—Nome d’uma seita d’ana- culo cm que se suppozeram e alteraram
' bapRITlTs^que”diziam ser necessario fallar tantas obras dos padres, um homem que
em püblico, comó o commum dos homens, principiou a introduzir as luzes da critica
e dizer sómente em particular o que pen no estudo da theologia, rejeitasse como de
sava cada um em materia de religião. Ve pouco momento as obras dos padres, e des
ja-se o artigo Anabaptistas, e suas diver- vairasse. Era natural que o erro de Cle
sa^u.seitas. mente conduzisse os entendimentos ao es
\ T iT fflig — arinntnn no principio tudo da critica, mas em um século tão igno
I do nório século o erro dos iconoclastas, d rante não se seguiu tal eíTeito: o seu erro
de Vigilando'.2 Alguns abusos que notou nem foi util, nem damnoso; e condemnado
a este respeito .na devoção dos fieis, o con não teve defensores, nem deixou disci
duziram a impugnar a veneração das reli pulos.
quias e imagens. Comtudo não se armem os protectores
Era Claudio um dos christãos mais fer da ignorância com este exemplo contra as
vorosos do seu século, mas não pensava sciencias, porque n’este século nimiamente
com moderação c acerto áccrca do culto ignorante, para haverem de se adoptar os
das imagens c reliquias. Foi refutado por erros de Clemente, enganou os povos um
Dunghle, por João d’Orleans, e condenmado tropel d’embusteiros, e foram ávidamente
no concilio de Paris, que declarou ser ne recebidos os erros mais absurdos, prega
cessario conservar nas igrejas as sagradas dos por fanaticos os mais ignorantes. Os
imagens para instrucção do povo, mas que costumes eram tão estragados, quanto a
nem se haviam de adorar, nem dar-lhes ignorância era profunda: a desordem e a
um culto supersticioso.3 superstição sempre cresciam á proporção
«T QLF.MF.yirp—Era originario da Escossia: do decremento da luz. Confronte-se o ar
/ rejeitava os canones e os concilios, os tra- tigo Adalberto com o artigo Clemente: estes
* ctados dos sanctos padres acerca da reli dous homens foram ;condemnados no mes
gião, e suas explicações sobre a Escriptura: mo concilio.
não recebia as obras de S. Jeronymo, de CLEODio ou CLEOBULO—foi um herege con-
Sancto Agostinho, e de S. Grégorio, e sus teffipÕfãimo^e^Imão; combateu a religião
tentava que podia ser bispo depois de ha christã, e capitaneou a seita dos cleobianos.
ver tido aous filhos adulterinos, e dizia que Negava a authoridade dos prophetas, a
omnipotencia de Deus, e a resurreição; at-
tribuia aos anjos a creação do mundo, e
i Dup. X III Siécle, pag. 190. D'Argen-
tré, loc. cit.
3 Mabillon Annal. Ord. Bened. I. 29, n.
52, 60, 61. Cone. t. 7, pag. 1942. Hist. Lit- 1 Cone. t. 4. Bonif. Ep. 135.
téraire de France, t. 4, pag. 256, 490. 2 Hist. Littéraire de France, t. 4, pag.
3 lbid. 8, 15.
COL 387
asseverava que Jesus Christo não nascera gados com a verdade da pregação dos apos
d’uma V irgem .1 tolos: elles preponderam aos escrúpulos do
D’esla maneira encontraram os aposto scepticismo, c ás objecções de Craiage. A
los e primeiros pregadores do Evangelho sua certeza é pura, mas igual á que (Tcllcs
na Palestina, traditores c contraditores, tinham os coetancos dos apostolos.
que eram cabeças das seitas; homens es c2b.*yiU42í>0—Foi um celebre valcntiniano
clarecidos c exercitados na controvérsia, que parece haver applicado ao systema de
entendidos na arte de persuadir o povo, Valcntim os princípios da cabala c da as
animados do interesse do systema, se assim trologia. 1
posso cxplicar-mc, c da ambição da fama, coLUTuq—Prcsbvtcro de Alexandria, pa
uc era a paixão ordinaria dos corypheus rocho d‘uma das freguezias da mesma ci
e todas as seitas. dade, ensinou que Deus não sómente não
Uns adversarios d’esta cspecie oppunham era author do mal, mas lambem que não
aos apostolos todas as objecções que po havia mal que d’elle viesse. Refere Sancto
diam cxcogitar, c nada ommittuam a fim de Epiphanio que emquanto Ario fazia grassar
as fazerem persuasivas c victoriosas; por d’uma parte a sua impiedade, outros paro
tanto é claro que os factos que servem de chos, como Colutho, Sarmatho, etc., prega
base ao Christianismo, foram então discu vam diversas opiniões, e que os povos, divi
tidos com a exactidão mais rigorosa, c so didos cm sentimentos, dividiam da mesma
bre elles se fez o mais individual exame. sorte seus louvores, prezando-se uns de
Sc os apostolos fossem apanhados na me arignos, e outros de coluthcanos.2
nor infidelidade, seus inimigos a teriam as O desejo de adquirir fama produziu a
soalhado, c bem provada que olla fosse, re- heresia de Colutho, porém como era de ta
bateria os progressos d’uma religião, cuja lentos medianos, e vivia n’um século illu-
moral combatia as paixões, e propunha á minado, teve poucos discipulos.
razão mysterios incomprchensivcis. Pode É natural aos homens de luzes medio
mos julgar d’aquclles tempos pelos nossos: cres a ambição de dominar sobre os de
se a presumpeao c as paixões tranformam mais homens", mas a mediocridade jamais
hoje cm demonstrações um chuveiro de soube mcncar grandes expedientes para
seitas, que fóra de todo o proposito dispa grangear este dominio: assim se separou
ram contra a religião umas allegorias, que, Colutho d’Alexandre, capeando sua ambi
simplesmente expressadas, não offcrccem á ção com o débil pretexto de que o bispo
razão mais que mofas rasteiras c sediças; de Alexandria era nimiamente circumspe
que clTcito não fariam sobre os espíritos cto com Ario. Rara elle tomar um tal par
esses inimigos dos apostolos, se lhes podes- tido não precisava nem de talentos, nem
sem ter lançado cm rosto com fundamento de luzes, nem de merecimentos: esta é a
alguma infidelidade ou impostura? Porem unica traça de que usam os ambiciosos igno
n’essc mesmo tempo foi quando a religião rantes para fazerem estrondo, c pela qual
christã fez os mais rapidos c estrondosos levarão sempre a sua entre os nescios; mas
progressos, c que a olhos vistos desappare- aos olhos dos sábios sempre os tornou ri
ceram, e se aniquilaram todas as seita que diculos. Colutho depois de se haver sepa
a combatiam.2 rado d’Alexandre, se fez bispo de propria
Portanto a evidencia dos factos que os authoridade: o concilio d’Alexandria o de-
apostolos annunciavam, era irrcfragavel- pôz de seu imaginado episeopado, e o re
•mente ligada con tos progressos do Chris duziu ao estado de presbytero.
tianismo, c com a extineção das seitas que D’esta sorte veio a parar no esqueci
o impugnaram desde o seu nascimento; mento Colutho, assim como os outros fra
pois que temos debaixo dos olhos factos sub cos embrulhadores, que tinham projectado
sistentes, que são necessariamente ligados fazerem-se famosos e estabelecer seitas.
com a verdade do testimunho dos aposto Em séculos ignorantes haveríam formado
los, e tão necessariamente ligados, como o scismas perigosos, porque Adalberto, Wal-
são os monumentos mais authenticos com do, Arnaldo de Brexa e muitos outros, que
os factos mais irrefragaveis. Nem o lapso assolaram a Igreja, não preponderavam a
do tempo, nem a infidelidade dos testimu- Colutho, porém estes appareccram em urp
nlios poderão jamais variar estes factos li- século, em que parte do clero sem costu
mes c sem luzes queria dominar tudo, e
1 Constit. Apost. I 6, c. 8. Théodor. Rcr-
ret. Fab. I. 3. Prcef. Euscb. Hist. Eccles. I. 1 Autor. Apend. ad Tert. de Prcescript.
4 , c. 21. c. 53.
2 Theodorei, ibid. 2 Epiph. Hcer. 69. Philastr. Kan\ 98.
388 COP
sómente defendia a religião por meio dos ca c para entre os arabes, aonde eram to
golpes da authoridade. leradas todas as religiões. *
—Eram certos devotos da Os que permaneceram no Egypto esta
Virgem Sanctissima, que lhe tributavam um vam subjugados, mas violentos, c conser
culto singular, olTereciam-lhe pastcllões, varam contra os imperadores romanos um
que em grego se chamam Collyrides, d’onde rancor invencível: os maus tractamenlos
houveram onomodciCollyridianos. As mu dos governadores e ofllciaes do imperio, os
lheres eram as sacerdotisas d’esta ccremo'- vilipendios c ultrajes por que faziam pas
nia: tinham um carrinho com seu assento sar os egypcios, c mais de cem mil mortos
quadrado, que cobriam com uma toalha, e desapiedadamento cm diversas occasiõcs
em certo tempo do anno apresentavam um por haverem recusado reconhecer por le
pão, que oíTcrcciam em nome de Maria, c gitimo o concilio de Calccdonia, tinham ar
depois tomava cada uma a sua parle. San raigado no coração de todos os egypcios
cto Epiphanio combateu esta práctica como um odio implacável contra os imperadores
um acto dMdolatria, e com o fundamento de e um ancioso desejo de se vingarem do
que as mulheres não podiam ter parte no sa quem os opprimia.2
cerdócio. 1 Os patriarchas da sua seita mandaram
pqxsr.iExciosos—E o nome que se dá a vigários para os manterem n’estas disposi
algunríiTÜTgos hereges, que não conheciam ções e os conservarem constantes contra as
outra regra, nem outro legislador mais que leis dos imperadores: no tempo dTIeraclio
a sua consciência: este erro foi renovado enviava o patriarcha Benjamin do fundo
no xvi século por certo allemão, de nome dos desertos do baixo Egypto o seu vigário
Mathias Koutscn, que d’clle passou ao atheis- Agathon, disfarçado em torneiro, a consolar
mo. Veja-se o exame do Fatalismo, 1.l.° os egypcios, conferir-lhes os sacramentos e
(w h t a s , coFiTAS ou -CQEIAS—E o nome levar-lhes a Eucharistia.
que daíTaos egypcios efiristãos, jacobitas Encerrava pois o Egypto dous povos quo
ou monophisitas para os differençarem dos se aborreciam de morte, os gregos ou ro
outros habitantes do Egypto. Para melhor manos, que occupavam todos os empregos
darmos a conhecer a sua origem, devemos e dignidades, e dos quaes se compunha a
remontar ao tempo de Dioscoro. maior parte das tropas; e outro povo, a sa
Dioscoro, patriarcha d’Alcxandria, foi ber, os egypcios, que eram incomparavel
acerrimo promotor do eutychianismo: a mente mais numerosos, e que formavam os
authoridade que lhe dava o seu emprego, cidadãos, lavradores e artifices.
as suas generosidades, que o fizeram ado N’csta situação se achava o Egypto, quan
rar do povo, e o horror que industriosa- do os scrracenos conquistaram à Palestina
mente inspirou a todos os egypcios a res c a Syria: os mesmos egypcios os convida
peito dos inimigos d’Eutyches, que repre ram ao seu paiz, c por um traclado que ce
sentou como nestorianos, derramaram o lebraram com Amrou, general d’Omar, se
eutychianismo por todo o Egypto. uniram a elle contra es romanos, e poze-
O concilio de Calccdonia, que depôz Dios ram os egypcios debaixo do dominio dos
coro, irritou os animos e áccendeu o fana scrracenos.' Todos os gregos ou romanos
tismo em toda aquella região: a severidade fugiram e abandonaram o Egypto, que
das leis dos imperadores contra os inimi d’ahi cm diante só foi habitado pelos natu
gos do concilio, c os artificios dos sequazes raes c scrracenos, os quaes pozeram um
de Dioscoro alentaram o fanatismo, c en tributo pessoal sobre os egypcios, c resti-
cheram todo o Egypto de reboliço, de divi tuiram á posse de seus privilégios o pa
sões e de motins. triarcha Benjamin.
Final mente, o poder imperial estabeleceu Como os jacobitas quasi todos.eram na-
a authoridade do concilio: de Constantino-
pla eram nomeados para o Egypto patriar 1 Hist. Palriarch. Alexand. pug. 164.
chas, bispos, magistrados e governadores, 2 Quando os govmiadores comiam, fa
excluídos os naturaes de todas as dignida- ziam sustentar a mesa par quatro egypcios,
des ecclesiasticas, militares e civis; mas e limpavam as mãos ás suas barbas, que
nem assim se extinguiu o fanatismo: parte era o vilipendio mais insupportavel que llies
dos inimigos do concilio de Calcedonia se podiam fazer, e que ainda hoje excita a có
retirou para o alto Egypto, outra parte sa- lera c o odio dos egypcios contra os impera-
hiu das terras do imperio, e passou á Áfri radores romanos. Também não se riscou
ainda da sua memoria a horrível mortan
dade que houve para os obrigar a receberem
1 Epiph. H ar. 79. o concilio de Calcedonia.
COP 389
da verdade? estará fóra do seu alcance o Que maior prova nos podia cila dar de
que mais lhe convém saber? que não foi feita para esclarecer o genero
Acaso nenhuma luz existe para o ho humano c que em vão se procura a verda
mem? Estará elle condcmnado a espessas de na sua escola?
trevas desde o seu berço até o seu tumulo? É assim que a philosophia nos tem lan
Que se pódc cxcogitar de mais funesto çado n’uma região desconhecida, que ne
do que esta fatal indiíTercnça com que a nhuma luz esclarece, n’um pégo immenso
philosophia encara o negocio mais impor sem fundo c sem praia, em que se nào di
tante que ha sobre a terra, sem que pre visa porto de salvamento, n’um deserto sem
tenda indagar se existe outra vida álem termo e sem sahida, n’um labyrintho em
d’csla, ou se existe um Deus que deva ser que todas as veredas perdem c desenca
o nosso juiz? minham.
Mas se existe uma vida além d’csta, não
deverei eu cogitar n’ella? Deverei entre-
gar-me só ás cousas da terra? Nào deve VI
rei elevar-me acima d’clla, á região da irn-
morlalidadc que mc espera?
Acaso deverei julgar por cousa indifTe- Que é a scicncia do incrédulo? Uma ca
rcute a parte mais nobre do meu sér; este rência de toda a fé, uina abstencia de toda
espirito que vive e pensa em mim, maior a crença c de todos os princípios, é uma
que o universo, que abraça e mede em negação de Deus, do seu culto e das suas
suas concepções, que se lança no infinito leis, ê o orgulho do homem divinisado, ou
rompendo os limites do tempo c do espa não reconhecendo outras leis senão as que
ço, que ba de sobreviver ás ruinas do dictar a si mesmo, é o homem entregue ás
universo para subsistir eternamente? suas paixões c á sua louca phantasia, é, em
Acaso nos pertence mais este corpo que uma palavra só, a sciencia do incredulo
perece, do que este espirito que vive sem um sorvedouro immenso, aonde se abys-
pre? E mais preciosa a vida do corpo que mam c se perdem todos os princípios e to
a do espirito, mais o tempo que a eterni das as verdades, sem que escape uma só,
dade? Serão mais sensíveis os males pre a que se possa ater o espirito humano.
sentes que os futuros, mais os que acabam Em que abysmo se não despenha o hc
que aquelles que duram sempre? mem, diz um illustre escriptor, quando um
Se ha um Deus, em cujo tribunal tenha ycz sacode o jugo da fé! elle fluctua coi
mos um dia de apparcccr, não será da pri todo o vento de doutrina, não póde fixai
meira necessidade que trabalhemos por ap- se em opinião alguma, e muito menos fa
parecer sem mancha diante d’elle, ou em zer d’ella o seu symbolo, o seu credo, ou
não cahirmos culpados nas mãos da sua a regra do seu comportamento!!
justiça? Que regra se póde derivar d um juizo
Ser-nos-ha indiíTerentc aquclle em cuja vario, d’uuia opinião inconstante, d’um pro
mão está a nossa sorte c de cuja vontade blema irresuluvel, ou d’um enigma indeci
dependem os nossos destinos? precipitar- frável?
nos-hemos nos abysmos eternos sem nos Tudo o que cerca o homem sem fé 6
importar a sorte que lá nos espera? Tudo um mysterio para elle; esta universalidade
será objecto dos cuidados e da curiosidade de cousas que o confunde e de que elle
do homem, menos o destino de uma eter nada entende, o indisivel ponto que occupa
nidade? Acaso deverá o homem jogar á no meio de espaços immensos sem saber
sorte, ou fazer zombaria do seu destino? como, nem para que, uma eternidade que
Póde o homem adormecer a similhante o precede, outra que deve absorvei-o em
respeito n ’uma indiíTercnça estúpida ou sua fugitiva existência, tudo é para elle
n’um lethargo mortal? e será isto força de um abysmo, tudo se lhe prende a um eni
espirito, ou força de demência e de loucu gma que não tem solução.
ra? 0 ’ cegueira incomprehensivel! o que Gomo c para que apparcceu o homeni
é de summo interesse da vida presente e sobre a terra, eis-aqui o escolho da philo
da futura, o que é de summa importância sophia antiga e moderna, eis-aqui o pro
e de tão alta transcendência, que nem o blema que ella nunca pude resolver, e na
homem póde comprehender, o que emfim da melhor o mostra como a historia das
é de summo interesse para todos e a todos seitas religiosas, antes do nascimento de
os respeitos, é aquillo que a philosophia ou Jesus Christo, e os monstruosos desvarios
declara indiíTerentc, ou que não encontra da philosophia moderna.
em si luzes para poder resolvçr. Eis-aqui a razão d’essa mutabilidade das
412 DEI
opiniões, d’cssas contradicções vergonho querem acreditar em mysterios incomprc-
sas, d’essas eternas incertezas, d’essas ques hensiveis, seguem uns apoz dos outros er
tões que Voltaire propunha a seus adeptos, ros tào visíveis c tão monstruosos, que são
a Alambert, Didcrot, e a Frederico u, rei a vergonha c o vilipendio da razào, sem
da Prússia, sobre a existência de Deus, so que d’elles tenham convicção: eiles vivem
bre as nossas relações com clle, sobre a e morrem na horrível incerteza se o na
inimortal idade da alma, sobre o nosso des da é o fim da sua carreira, ou se os es
tino, a que seus adeptos, tão ignorantes co pera a justiça de um Deus para os casti
mo clle, declaravam nào saber responder. gar; nenhum meio posto em práctica para
E este miserável, cheio de cegueira, de tornar a Deus propicio, para applacar sua
demencia e orgulho, tinha a imprudência ira por causa dos seus crimes, e por isso
de dizer que nào acreditava em mysterios, nenhum pensamento lisongeiro, nenhuma
quando elle era para si mesmo uní grande esperança de um estado mais feliz, nenhum
mysterio, quando de tudo o que via nào meio termo entre estes dous extremos; uma
sabia dar a razão. indiííercnça estúpida, o lethargo que prece
Que gloria pois é a d’estes homens? Que de a agonia da morte, ou um futuro cheio
galardào esperam pelos seus feitos? ne de horríveis approhcnsões; eis-aqui a sua
nhum. «Eiles nào confiam, diz Bossuet, se sorte, eis-aqui o seú destino!!
não na sorte do nada; mas essa tão mise E que se póde imaginar de mais desgra
rável, como c que certeza podem ter d’cl- çado do que uma similhante sorte?
la? Quem tem a certeza de que Deus hão Eis-aqui toda a philosophia do impio,
existe, ou que não cuida das cousas d’este eis-aqui toda a sua scicncia em materia de
mundo? Quem é que lhes póde assegurar religião!
que Deus não crcou o homem para o re Como é logo verdade que a religião vem
conhecer como Deus e Senhor? que não de Deus, porque sem ella não ha mais que
tem obrigações a cumprir para com clle, e trevas, porque só ella nos descobre a ra
que póde por isso viver á medida do seu zão da nossa existência, do nosso fim e do
desejo? Quem póde assegurar-se que ha nosso destino, porque só ella nos apresenta
de escapar á sua justiça, vilipendiar o seu Deus creando o homem para um fim digno
poder, ou subtrahir-se ao imperio d’aquelle da sua grandeza, e que, se nos dotou da
que domina sobre o raio e a tempestade, faculdade de o conhecermos, foi para um
que tem uma eternidade á sua disposição, dia o glorificarmos como clle merecia; por
que vive e reina além dos tempos? que só ella nos mostra que esta desordem
Qual é pois o credo do impio, ou do ho morai que nos afllige, será um dia repa
mem sem fé? Qual é a> ua esperança? é o rada, porque o tempo presente não é mais
nada: mas que nada é este? é o nada do que a aurora da eternidade.
seu espirito, é o nada da sua razão, é esta
nullidade, é esta insufficiencia, que se co
nhecem a si mesmos para formar um juizo YI I
em que possam fixar-se, que se não invalide
ou desfaça logo por outros juizos ou por
novas idéias. É, pois, verdade que. a religião vem de
Sem fé, sem nenhuma regra, sem ne Deus, porque cm toda á parte onde se des
nhuma convicção, não acreditando em na conhece a sua authoridade, predominam
da, não esperando em nada, elle vai de in erros grosseiros, dúvidas eternas, vergo
certeza em incerteza, de abysmo em abys- nhosas incertezas, ou monstruosos desva-
mo até esbarrar-se no que lia de mais hor riosl
rível, até cahir no atheismo, até perder-so Não é só a philosophia moderna que as
n’um furor que quasi não tem logar nos sim se degrada: a philosophia antiga não
espíritos. ■' foi mais feliz.
Mas não se julgue que clles param aqui, Qual foi o dogma que ella teve por alvo
porque isso lhes daria a segurança d’al- sobre a existência e natureza de Deus, e
guma cousa, e não a teem de nenhuma: sobre o nosso destino? Que absurdos se
eiles vão até onde mesmos não sabçm que não encontram n*essas cosmogonias anti
vão, até duvidarem de tudo, até duvida gas ou cm tudo o que disseram os poetas
rem de si mesmos e dos objectos que os e philosophos sobre a origem do mundo,
cercam. sobre a natureza de Deus, formação do
Os absurdos em que cahem são mil ve universo e existência do homem?!
zes mais insustentáveis, que as verdades, Qual é d’elles que deu a Dous a honra
cuja sublimidade os assusta; o porque não e a gloria que lhe é devida, apresentando-o
DEI 413
como crcador do homem e do universo, c lcs que julgaram o mundo eterno emquan
como Supremo Senhor de todas as cousas? to á sua materia e á sua fórma: segundo,
Qual c aquellc que o reconheceu corno d’aquellcs que julgaram a materia eterna,
o unico Ente que existe por sua propria mas não emquanto á sua fórma, acabando
natureza, c de que todos os outros rece por dividir cm duas classes os philosophos,
beram a existência, o sèr c a vida por ef- que admittindo a eternidade da matéria,
feilo da sua bondade c da sua omnipoten- reconheceram todavia um sèr intelligente
cia? como architecto do mundo.
Não o suppozcram cllcs inhabil ou im Uns d’clles não reconheceram outra sub
potente para crear a materia? E que des- stancia senão a natureza dotada dc enten
varios, consequências absurdas se não de dimento, de iilustração e de vida: os outros
viam naturalmcnte seguir d’cste primeiro admittiram a Deus e a materia como dous
erro sobre a natureza e essência do pri entes eternos separados e distinctos um do
meiro sèr?! outro, sujeita porém a materia á acção de
Aquellcs que negam a Deus o poder de Deus.
crear a materia, devem necessariamente Emquanto aos da primeira opinião, prin
admittir uma d’cstas duas proposições: ou cipiarei por Ocello Lucano, cuja authorida-
a matéria existe desde toda a eternidade co dc e antiguidade se teem opposto á de Moy
mo sujeito passivo das operações de Deus, ses, ainda que elle viveu um pouco antes
ou a matéria é o unico ente "existente por de Platão.
si mesmo. Este Ocello Lucano era um acerrimo de
Mas uma c outra proposição não conduz fensor da eternidade do mundo, c fez um
aos maiores absurdos e ás mais revoltan pequeno tractado, que ainda hoje existe,
tes impiedades? A primeira, que suppõe para provar que o mundo não teve princi
dous princípios co-eternos e existentes por pio nem fim, e que é por sua natureza eter
si mesmos, não é uma contradicção mani no, perfeito e indestructivel.
festa? e a outra, que suppõe que a materia Aristoteles considera o mundo como ums
existiu sempre como a vèmos com peque emanação necessaria do poder de Deus,
nas diíTerenças, ó acaso menos contradicto por conseguinte não eterno como elle, pel
ria e inconsequente? Na verdade, tudo o razão de que Deus não podia existir un
que nós vèmos, ou seja em relação á fórma momento sem manifestar pelas suas obrai
presente do mundo, á situação "e ao movi a sua gloria, á similhança do sol, que não
mento das suas partes, ou seja em relação póde existir sem dar luz e claridade.
á matéria em si mesmo, sem respeito á Segundo a sua doutrina, não só a maté
sua fórma actual, é não só precário, mas ria dos céos c da terra é eterna, mas o
dependente c o mais alheio possivcl da mesmo genero humano c todas as espccies
ideia d’um ente necessário. de animaes teem subsistido sempre por
Emquanto á segunda opinião de dous en uma serie de gerações, sem principio e sem
tes co-eternos e improduzidos, que maior interrupção.
absurdo do que fazer um escravo do outro; Pretenderam dar alguns a esta opinião
porque é da essencia d’um ente increado de Aristoteles um sentido rasoavel, fundan-
ser independente na sua essencia e nas suas do-sc na eternidade do decreto de Deus
propriedades, não necessitando senão de si para a creação do universo en a indivisibili
mesmo para as suas operações, não lhe fal dade da sua existência, sem considerarem
tando cousa alguma para a sua perfeição, que similhante doutrina faz pVoceder as
não podendo receber modificações d’oútro obras de Deus, não d’um effeito livre da
sèr para a sua maneira de existir sem de- sua vontade, mas irresistível de sua natu
teriorar-se. reza, sendo ainda esta opinião summamento
Apesar porém dos absurdos de qualquer injuriosa á divindade, emquanto faz neces
d’cstas duas proposições, não houve philo sarias as creaturas para a honra e para a
sopho na antiguidade que não abraçasse al- gloria do Creadòr.
uma d’ellas; e é para o mostrar que vou Os sentimentos dc Aristoteles sobre a
’um rapido lauco de vista passar sobre eternidade do mundo foram abraçados por
toda a philosophia antiga, mostrando que a muitos, e entre estes por Origenes: notan
ideia dc creação foi estranha a toda ella. do dc passagem que no século vi se ensi
Para proceder com alguma ordem no meio navam publicamente as suas doutrinas, em
d’este labyrintho do opiniões e de contra- Alexandria, por Amonio, discipulo de Pro
dicções em que se encontra, farei as se- clo, e ainda hoje ellas teem voga entro os
güintos divisões: mahometanos, tendo sido abraçadas por al
Primeiramente fallarei da opinião d’aquel- guns dos seus mais sábios sectarios.
414 DEI
Segundo Xenophanes, que foi o fundador nemur et unum est, et Deus, et socii ejus
da seita cleatica, no universo não ha mais suum et membra. Sen. cap. 92.
que uma só substancia, Deus e o mundo O mesmo sentimento se nota em Luca
suo uma c a mesma cousa: tudo o que no. L. 9.° de Pharsal.—Jupiter est quod-
existe é um unico sêr que permaneço sem qumque vides, quocunque moveris.
pre o mesmo, e eis-aqui o unico Deus que Um author, que morreu nos princípios
existe, ou o unico Deus verdadeiro. d’cstc século, que se fez tão celebro c co
Esta doutrina foi seguida pelos seus dis nhecido pelos seus paradoxos, como depois
cipulos Zenão de Elea, Parmenides, Mclis- foi despresado e aviltado por elles, abraçou
scs, Stilpào c pelos philosophos megarie- também a mesma doutrina, pois que elle
nos. sustenta que não ha outra substancia além
Dcbalde Simplicio, interpretando a Aris- d’csla immensa cousa que vémos—Denuis
toles. pretende dar um sentido metaphysico origine des Cultos. Tom. l.°, cap. 1."
á opinião de Xenophanes. Que systemas, ou antes que montão de
Stratonio Lampraceno disse que o mun monstruosidades c cxtravagancias! Que se
do fòra ingenito e que existia ab eterno póde imaginar de mais absurdo do que fa
pela sua própria virtude. zer de Deus a causa e o offcito dos males
Alexandre Epicureo, que se suppõe ser physicos e moraes do universo?
contemporâneo de Plutareo, ensinava que Do que fazer da matéria a mais vil de
Deus era material: que todas as eousas for todas as eousas, o theatro de todas as mu
mam uma só essência, ou que todas as cou- danças, o campo de batalha de todos os
sas são cssencialmente Deus, e que as fôr combafes, este ser eterno e improduzido,
mas são accidentes sem existência real. sempre o mesmo, em que não ha variação
No século xiii foi desenterrado c quei nem sombra de mudança?
mado o cadaver de Almarico por ter ensi Mas passando á segunda opinião, que a
nado esta doutrina. substancia do universo é eterna ainda que
Pedro Abailard foi accusado por ter dado não seja a fórma, em que cila hoje se acha,
esta extravagancia. que foi a mais seguida entre os antigos
Ha uma seita famosa no Japão que en pelo axioma—que de nada, nada se faz; al
sina quasi o mesmo, isto é, que não ha guns d’estcs explicaram a formação do uni
senão um principio de todas as eousas, verso unicamente por princípios mechani
cujo principio communica a sua essência cos, c pela força e actividade da materia, c
aos entes particulares de fórraa, que fazem outros julgaram que deviam recorrer á in
com elle a mesma essência c n’ellc se re tervenção d’uma intelligcncia superior: mas
solvem quando são destruídos. todos estes, ou quasi todos estes suppoem
Entre os mahometanos também ha uma que a origem da terra provém do cáhos ou
seita chamada Alzenadika, que estabelece d’uma massa opaca c fluida sem distineção
como cousa certa que tudo o que existe no de elementos, composta de toda a sorte de
mundo, ou que tudo o que vimos ó Deus. partes em confusão c sem fórma alguma
O famoso Abu-Mosscn passa por ter se determinada.
guido esta opinião, c por ter acreditado que Parece que Ovidio foi de differente opi
todas as eousas parlem c se resolvem n’um nião e que concebeu o cáhos como homo
rincipio commum, isto é, em Deus: os ara- gêneo, porque no bella descripção que d^lle
es dão a esta opinião o nome de metaphy- nos faz no liv. l.° das suas Metamorphoses
sica de resolução. nos diz que a natureza tinha então uma só
A doutrina, que reconheceu no universo face, o que todavia não combina com os
uma alma, que o anima, que se communi princípios que elle introduziu na sua com
ca aos differentes sêres, c que fórma com posição.
elles uma só essencia, e que tão univcrsal- Principiando pelos philosophos da pri
mente está espalhada no Oriente, era mui meira opinião c principalmente pelas cos-
to commum entre os antigos; constituía -a mogonias mais antigas dos phenicios, dos
parte principal do systema stoico. egypcios, dos caldeus c babylonios, a pri
Segundo Plinio, maturalista, o céo deve meira, isto é, a dos phenicios, que refe
considerar-se como uma divindade eterna, re Sanchoniaton, escriplor phenicio, n’um
immensa sem principio e sem fim—mun fragmento que nos conservou Eusebio dc
dum numen esse credi par est aeternum, im Cesarea, não faz entrar Deus por cousa ne
mensum, neque genitum, neque interiturum nhuma na formação do universo.
umquam. Lib. 2.°, cap. d.° Segundo Diodoro da Sicilia, que também
Seneca também parece ser da mesma nos deixou a sua, e que se suppõe ser a dos
opinião, quando diz—totum hoc, quo conti egypcios, a natureza se constituiu por si
DEI 415
mesma independente da acção de qualquer Homero, deixou-nos uma theologia muito
outro ente. confusa c muito extravagante.
Eusebio de Ccsarca fórma sobre ambos Com effeito. ao passo que guarda um
os systemas o mesmo juizo, dizendo que profundo silencio sobre uma intclligencia
n’um e n’outro em vez de Deus se lhe sub suprema, faz d’um dragão monstruoso um
stituiu uma formação do univerno fortuita dos seus primeiros princípios; apesar po
c expontânea. rém d’esta extravagancia, a maior parte dos
Para confirmar este seu juizo, refere clle gregos o teem considerado não como um
uma passagem de Porphirio, que na sua simples poeta, mas como um philosopho
carta a Anebo, sacerdote egypcio, diz que profundo, fazendo das suas fabulas que di
Cheremon e outros julgaram’ que nada ha zem respeito aos deuses, allegorias admirá
via anterior a este mundo visivcl, que os veis e sublimes mysterios, a cuja opinião
planetas c os signos de Zodiaco eram os deve Orpheu a honra de ter passado por
verdadeiros deuses dos egypcios, que o sol um homem inspirado.
devia considerar-se como o crcador do uni Supposlo pois elle fosse o grande apos
verso. concluindo Eusebio, que mesmo se tolo do polytheismo, enire os gregos tem-se
gundo a theologia secreta dos egypcios, não figurado como reconhecendo um Deus su
havia outros deuses mais que as estrellas premo como principio de todas as cousas,
c os planetas; não se devendo a formação fundando-se esta presumpção na grande es
do universo, nem a um principio espiri tima que fizeram d'ellc as duas seitas de
tual, nem a uma ou muitas divindades, philosophos mais religiosos, os pythagori-
mas unicamente ao sol pela sua acção so cos e os platônicos; e esta opinião favorá
bre os elementos. vel a Orpheu, a que parece mesmo terem
O resumo qde nos deixou da philosophia subscripto alguns dos padres da Igreja, não
egypeia Diogenes Laercio, é precisamente será despida de fundamentos se se reco
conforme a esta doutrina, ou a que a ma nhecer que o resumo da cosmogonia de
teria foi primeiro principio de que sahiram Orpheu, feito por Thimoteo Cronographo,
os quatro elementos e todos os animaes, e contém a verdadeira doutrina d’este poeta.
ue o sol e a lua eram as suas divindades, Notarei de passagem que elle foi o pri
ebaixo dos nomes de—Osiris e Isis. meiro que introduziu entre os gregos o ce
Emquanto aos caldeus c babylonios, ain lebre ovo do mundo, que provavelmente ti
da que Diodoro diz que elles acreditaram rou da theologia dos egypcios, que á simi-
que a natureza do mundo era eterna c que Ihança de muitas nações antigas represen
o universo não Tora gerado, nem estava su taram o mundo debaixo d’este symbolo.
jeito á corrupção, no entanto Berosio, que
merece mais credito pela sua antiguidade
c porque era da Caldea, faz preceder á for YIII
mação do universo a agua envolta em es
pessas trevas, sahindo do seu seio os ho
mens e os differentes animaes. Os primeiros naturalistas quasi todos al-
Segundo os poetas, o mundo sahiu do tribuem a producção de todas as cousas ao
cáhos sem assistência da divindade, e ainda Oceano ou á agua, c é por esta razão que
que elles digam que o amor presidiu ao os deuses juravam pela agua da lagôa sty-
arranjo das partes da materia, c por este gia, como pela cousa mais antiga e vene
amor queiram alguns entender um princi rável, e é por esta razão ainda que Home
pio activo separado da materia, parece-me ro chama ao Oceano o pae dos deuses e a
mais natural que elles quizessem explicar origem de todas as cousas, e que Thallcs,
o accordo e harmonia dos elementos de author da seita jonica, dizia que a agua era
pois que acabou a guerra intestina que os o principio de que todas as cousas eram
desunia, porque, segundo elles, o amor nas compostas e em que- a final todas se resol
ceu do cahos, bem como os deuses que ver viam.
dadeiramente não eram outra cousa senão Parece porém que fazendo da agua flui
os corpos celestes, os elementos e as diffe da o primeiro principio de tudo, não en
rentes partes da natureza, personificadas ou tenderam a agua elementar mas o cáhos,
deificadas. que era uma substancia, segundo a signi
Orpheu, que foi o principal introductor ficação da palavra grega.
dos ritos religiosos do paganismo entre os Segundo a theologia de Hesiodo, ainda
gregos, c que parece foi elle o author dos ue muito confusa, é do cáhos e do amor
nomes dos deuses, da sua genealogia e dif c que elle faz o mais bello dos deuses que
ferentes funeçoes, em que foi seguido por precede tudo.
416 DEI
Segundo esta extravagante philosophia, do univorso, e a attribuia ao seu concurso
não sómente a materia, os elementos, o. fortuito c ao seu movimento continuo cm
fogo, o ar, a agua e a terra existiam antes um espaço infinito desde toda a eternida
de Deus, sendo elles mesmos deuses, mas de, do que resultou depois de infinitas com
os homens e os differentes animaes. Ainda binações o mundo organisado como ora o
que alguns tenham pretendido justificar vêmos.
Thalles da imputação de atheismo, que E que admiravel philosophia a d’este Epi
rendo que elle admittisse um principio de curo, admiltindo a eternidade do mundo
que tudo tinha sido formado da agua, c formando os corpos do partes de materia
para prova d’isso citem a Cicero e Laer- infinitamente pequenas, fazendo sahir a
cio, no entanto é também certo que o mes terra, os céos, os planetas, as estrellas, os
mo Cicero, Laercio e uma infinidade d o u mineracs e os mesmos homens do movi
tros attribuem unanimemente a Aoaxago- mento obliquo d*cstes átomos, reprodu
ras a honra de ser elle o primeiro que re zindo-se pela geração os differentes entes
jeitou o acaso como author da ordem do viventes logo que aquclles perderam a sua
universo, e o attribuiu a uma intelligencia força productoral
suprema, o que parece mostrar que todos Que sensata philosophia a d’este Epi
os philosophos da seita jonica, que prece curo! Admittiu os orgãos e as differentes
deram Anaxagoras, eram atheus ou mate partes dos corpos animaes crcados sem
rialistas, c é por isso que Aristoteles com destino, devendo os seus usos ao emprego
razão chama a Thalles o principe d’csta phi machinal que dfelles fizeram os differentes
losophia. . . animaes.
Anexcmandres reconhecia por primeiro Passando aos philosophos, que admittin-
principio do universo uma materia primi do a eternidade da materia reconheceram
tiva e infinita, a que elle nào dá nome. todavia um sér intelligente como architeto
É d’esta materia que foram formados os do mundo, alguns d’estes não admitliram
corpos celestes, e é da sua fermentação que outra substancia senão a mesma natureza,
nasceram todos os animaes, sendo produ que elles suppozeram dotada ^entendimen
zidos os homens do ventre dos peixes, aon to, de razão, c de vida; e outros conside
de se conservaram até que podessem ali raram Deus e a matéria como dous séres
mentar-se por si, sendo depois vomitados separados e distinctos um do outro.
sobre a terra. A primeira opinião, que não dista muito
Aneximnes, discipulo de Anexemandres, do espinosismo, parece ter sido a de Dio
não negava a existência dos deuses, mas genes d’Apolonia, de Hippaso, de Hetha-
estava tão longe de lhes attribuir a forma ponto, de Heraclito, e dos stoicos.
ção do universo, que os considerava como Hippaso c Heraclito fizeram do fogo o
producçõos d’um ar infinito, de que fazia primeiro principio de todas as cousas, re
o principio de todas as cousas. solvendo-se a final n’clle depois de certos
Plutarco, depois de ter exposto a opinião periodos de tempo, e fizeram ainda d’este
d’estes dous philosophos e mostrar que am fogo o mesmo Deus.
bos elles se tinham enganado, attribuindo a ' Heraclito o descreveu como uma sub
formação do mundo sómente á materia stancia, que pela sua subtileza penetra c
sem a intervenção da divindade, faz a se circula em todo o universo.
guinte judiciosá reflexão—que a materia é O famoso Hippocrates fazia da divindade
tão capaz de produzir alguma cousa como a mesma ideia que Heraclito, pois que elle
é um pouco de barro de se organisar em fazia d’este fogo um sêr immortal, que via,
fôrma de vaso por si mesmo, sem a indus ouvia, c sabia todas as cousas, tanto pre
tria e intelligencia do oleiro.—Diogenes de sentes como futuras.
Apollonia corrigiu a opinião de seu mestre Os stoicos admittiam dous princípios pri
Aneximnes, estabelecendo o ar como pri mários: Deus e a materia, um activo e
meiro principio do universo, mas o ar do outro passivo, ainda que ambos corporaes,
tado de força divina, sem o que elle nada porque elles não reconheciam substancia
teria produzido. immaterial, o que verdadeiramente era re-
Todos sabem que o systema dos áto duzil-os a um só.
mos, que uns attribuem a Leucipio e ou Elles diziam que Deus, o qual conside
tros a Democrito, e de que Epicuro pre ravam como architecto do mundô, era um
tendeu dar-se por author, e que depois da ente immortal, dotado de razão, que go
sua morte teve grande voga, e parece mes vernava o mundo e todas as cousas pela
mo ter prevalecido sobre todos os outros sua providencia; mas representavam-no or
systemas, excluía a divindade da formação dinariamente como uma substancia ignea,
DEI 417
•pio dos tempos, tirando o homem c todas contra; c assim o mostra elle, porque de
as eousas do nada. só pola forra da sua pois de muito discorrer ou ter dissertado
palavra; dizendo—faça-se a luz—e a luz largamente sobre esta materia, se não li-
iinmediatamcnte alumiando todo o univer songeia de ter dissipado todas as dúvidas,
so, suspendendo o sol no meio (Trona abó ou de ter chegado ao pleno conhecimento
bada immensa, attrahindo á roda de si to da verdade; e por isso concluo que nos de
dos os planetas como se dominasse sobre el- vemos sujeitar com gosto á lei da morte;
Jes, como se viessem fcstejal-o c render-lhe porque, ou cila nos leva a melhor vida. ou
suas homenagens; cobrindo a terra de ar nos priva de lodo o sentimento—ut. 'aut
vores de fruetos, planetas, vcgetacs para in (cternum, ct plane in nostrum domum
regalo do homem, bala*nceando emfim sobre remigremus aut omni sensu, molestiaque
o globo as montanhas c os mares, como carre cimus. Tuse. l.°, § 49.
para annunciar este feliz consorcio, de que É por esta mesma liberdade philosophi
Deus é o sacerdote supremo, a terra o lei ca. que elle n’um logar ridicuiisa como
to nupcial c o genero humano a posteri pueril, o temor da outra vida; destruindo
dade. assim toda a importanda d’esta verdade,
Porém se os philosophos só disseram cou- pois de que serve acreditar na immortali
sas absurdas sobre a origem do mundo, cl- dade da alma se se não teme a outra vida,
les não mostraram mais que ignorância so ou se não tem influencia sobre o nosso
bre o nosso destino. * . comportamento? e n’oulro dá como pouco
A immortalidade da alma, este dogma tão verosimil, o que pouco antes julgara sel-o
importante, a base da moral e os funda muito. Cie., cie natura deorum, liv. 2.
mentos dos nossos deveres, em que repou- Cousa, notável; Cicero tendo discorrido
.sam a tranquillidadc pública e a seguran sobre a immortalidade da alma, não lhe
ça individual, os direitos dc todos c de ca parece tel-a demonstrado, antes manifesta
da fim cm particular, por nenhum sabio, claramentc as suas dúvidas; e Lucrccio em
por nenhuma seita foi definido com clare penhado em destruil-a, deixa escapar (tanto
za; algumas vozes o reconheciam, outras pôde a força da yerdadel que se não con
o combatiam; ora era apresentado como vence do que disse, c que dá como certo
um doscjo“do coração, ora como uma dú para os outros, o que elle para si não repu
vida da razão; emfim este dogma tão trans ta que o seja; eis-aqui como se explica no
cendente não era mais que um objecto de seu livro l.°:
disputa e de controversia philosophica, c
quasi um jogo d’cspirito para todos os phi Ignoratur enim quee sit natura animee.
losophos. Nata sil, an contra nascentibus, insinuetur
Socrates ao despedir-sc dc seus amigos, Et simul intereat nobis cum morte direpta.
para ser conduzido á morte, exita sobre a
immortalidclde da alma, duvida que algu Seneca chama «i immortalidade da alma
ma cousa sobreviva de nós, ou se tudo se uni sonho lisongeiro.
•confunde no tumulo: indica elle que o co Cesar fazia zombaria d’ella á face do se
nhecimento d’csta verdade só pertence a nado.
Deus. Tacito parecia conccdcl-a como privile
Cicero, quando nas suas obras falia da gio ás almas dos homens grandes—Si non
immortalidade da alma, não a apresenta cum corpore magnev anima• extinguuntur,
como uma verdade demonstrada e iufalli- placide requiesce, diz elle, fallando da mor
vel: mas umas vezes como uma opinião te dc Germano.
verosimil ou provável — Quavis, diz elle, Urna grande parte dos philosophos anti
fallando da immortalidade da alma, ut po gos rejeitaram-na sem disfarce, a dc mui
tero, explicabo, nec tamen quasi Pitliius tas passagens dc Homero, dc Hesiodo, de
Apollo, certa ut sunt, et fixa, quee dixero; Pindaro, de Climaco, dc Lucreeio, de Yir-
u ltra enim, quo progredior quam ut verosi- ffilio, de Ovidio, de Juvenal, e d’outros se
m ilia videam non liabeo—outras vezes co deprehende claramente que o dogma do
mo um desejo do coração, dc que a razão immortalidade da alma e da outra vida,
pouco se convence—Néscio, quomodo, dum não passava de un: problema, sobre que
lego, assentio: cum posui librum, et mecum tomavam a liberdade de discorrer, já de
ipse de immortalitate animorum coepi cogi-, •uma, já de outra maneira, sem que pre
tare, assentio omnis illa elabitur. Liv. l.° tendessem resolvel-o. •
quest.—È por isso que tracta a immortali No tempo de Augusto a libertinagem de
dade da alma como uma questão acadêmi espirito tinha chegado a ponto que este
ca, cm que é permittido argumentar pró e dogma se ridiculisava nos theatros, c se
*
420 DEI
cantava nelles publicamente— post mor peito a gloria do Creador, admitlindo um
tem nihil est, ipsaque mors nihil, spem po Deus que não manifestou ao homem o seu
nant avidi, soliciti metum. É isto que faz destino, que o abandonou a si mesmo para
dizer a Bossuct que antes de Jesus Christo ser victima dos seus erros c das suas pai
a immortalidade da alma não era um do xões; isto é, que figuraram o Creador pro
gma reconhecido, c que mesmo entre os cedendo d’uma maneira que o deshonra e
judeus, apesar de terem na Escriptura a avilta; isto é tão indigno da sua grandeza
certeza d’uma vida futura, fazia tão pouco como da sua gloria, de que a natural con
este dogma o fundamento da sua consti sequência parece ser que. uma similhante
tuição religiosa, que os saduceus, sem o divindade é um ente sem realidade, uma
reconhecerem, eram admittidos ao saccr- chirncra de imaginação, uma contradicçào
docio— Cest un des caracteres du peuple do espirito, ou antes uma monstruosidade
nauveau, de poser pour fondement de la re- na natureza: c se isto é verdade, também
ligion, la foi de Ia vie future, et ce devant o é que os authores ou sectarios d’cste sys
Ure le fruit de la venu e du Messie. Disert. tema monstruoso teem estabelecido ou pro
sur Vhistoire univ., 2.a parte. clamado uma especic de alheismo mais bru
tal, mais grosseiro c degradante, se nos é
licito explicar assim, do que aquelles que
X descaradamente negam a existência d’uma
primeira causa, que dá a tudo o sér, a
exisfencia c a vida.
Em conclusão do que fica dito, se a phi Em verdade como poderarn cllos conce
losophia pois não professa nenhum credo, ber uma divindade inconsequente c absur
nenhum dogma, nem mesmo o da existên da? Como fizeram d'ella os fundamentos
cia de Deus, que manifesta claramentc o dos seus systemas c a figuraram como o
espectáculo da natureza, as maravilhas do unico Deus existente c possível? Como é
cco c da terra, nem mesmo o da immorta que o espirito humano póde conceber um
lidade da alma, que é uma consequência Deus sem providencia, sem culto, sem ho
necessaria d’aquella verdade, de que ternos menagens e sacrifícios, um rei sem res
em nós mesmos a prova concludente n’este peito c sem vassallos, um senhor sem au-
desejo de felicidade que sentimos, que nun thoridade e sem dependencia, um pae in-
ca vêmos satisfeito, de que nos convence o difierente ao bem de seus filhos sem que
sentido intimo n’esse tribunal interior que prescreva regras do subordinação e obe
nos julga primeiro que todos os outros, diência, um legislador emfim sem desígnios
que se nos dá galardão pelo bem feito, e sem sabedoria? Como concebeu o espi
pelo mal nos dá vituperio, nos accusa c rito humano uma divindade para blasphe-
profere essa sentença de condcmnação, que mar d’clla a todos os momentos, para a
é um annuncio, uni correio anlicipado da- condemnar ao desprôso e ao ridiculo? Co
quella que nos espera no tribunal do Su mo concebeu clle uma divindade sem ne
premo Juiz....................................................... nhuma ideia religiosa, um systema reli
De que serve a philosophia ou antes a gioso sem nenhuma religião? Se falia al
sciencia do impio? Acaso pódo haver cou- gumas vezes da divindade, é sem saber
sa mais inútil ou prejudicial? se cila existe; se da alma, é sem saber se
Se o homem em perdendo a luz da fé existem espíritos, ou se tudo é materia;
não escuta a voz da natureza, se desconhe se do nosso destino, é sem saber qual clle
ce o seu Crcador, se lhe não rende nenhum seja; se de deveres moraes c religiosos, è
culto, nenhum tributo de respeito e home ignorando se existem relações entre Deus
nagem, se vive coiuo se clle não existisse, e o homem, e qual seja o seu objecto c. fun
se fóra da religião não ha mais que atheis- damento.
mo, aquelle a quem clle causa horror, Ah! o homem concebeu e admittiu tudo
aquelle a quem Deus é uma convicção c isto, porque não ha absurdos que ellc não
o seu culto é uma necessidade, póde exi- admitia, ou em que o espirito humano se
tar um momento em se recolher á arca não precipite, quando uma vez abandonou
sancta da religião para o salvar do naufra a religião, c o seu coração se penetrou de
gio, no meio das aguas do diluvio? corrupção e o seu espirito se cobriu de
Tenho emfim chegado ao cabo d’este lon> trevas ê cegueira !•
go capitulo, em que me propuz fallar do Que é pois o deismo, ou ò deus da phi
svstema d’aquelles, que tomando por fuu- losophia? é quando muito, uma abstracção
damento o maior de todos os absurdos, philosophica em que o espirito humano es
teem concebido o homem creado sem res tará sempre mais disposto a rejeitar, que a
DEI 421
admittir que não pertence ao coração, com r Disse que imprimiu no seu século o seu
que pouco se importa o espirito, e de que espirito de corrupção e de immoralidade.
clle ainda entende menos, que não póde Pai a aquelles que nos faliam da gravi
passar d'uma opinião especulativa, abstra dade dos costumes de Voltaire, remettel-os-
cta, incerta c vacillante, que importa no hemos ao poema—la Puccllc d'Orlcans—
mesmo que o atheismo, ou tão inconse que por sua libertinagem e indecência, ex
quente c absurda como a positiva negação citou a indignação ainda dos menos escru
de Deus. pulosos, devendo considerar-se como só di
Não será pois verdade que fóra da reli gna d’um homem, para quem a hònra e a
gião não ha uma só ideia religiosa c que reputação não passam d’um nome vão.
quem não quizer ser christão ha de viver Citar-lhes-hemos o seu— Optimismo— a
como athcu? É a proposição que me-pro- maior parte dos seus contos, o seu poema
puz demonstrar. sobre a lei natural, aonde reina o escân
dalo c a indecência, o seu poema sobre o
desastre de Lisboa, em que insulta a mes
XI ma divindade e que mereceu a censura do
mesmo J. J. Rousscau.
Emquanto a essa vasta conspiração con
tra o Christianismo, de que elle foi o che
Disse, fallando de Yoltairc, referindo-me fe, citaremos a carta que lhe escreveu Fre
ao testimunho d’um dos seus discipulos, derico n, rei da Prússia, no anno de 1767,
que clle preparara as revoluções públicas em que se exprime assim:
e religiosas, que inundaram a Europa de «Que século tão desgraçado para a côrte
sangue, de crimes e desordem. de Roma, diz Frederico; batem-a na Polo-
Na biographia universal Feller, ci nia, e expulsam de França e de Portugal
tam-se para prova d*esta verdade, muitos os seus guarda-corpos (os seus mais va
cscriptores que assim o teem reconhecido, lentes esquadrões.)
e entre estes o Mercúrio de França de. 7 «Os philosophos minam por toda a parte
(Tagosto de 1790, cm que seus authores 1 o throno pontificio, tudo está perdido para
mostram que a revolução franccza de 1789 elle; é necessário um milagre para salvar
foi obra de Voltairc, e que, se clle não viu a Igreja, c vós tereis a gloria de a enter
tudo o que se fez, foi quem fez tudo o que rar c fazer-lhe o epitaphio.»
se viu. Em outra carta, por occasião da expul
são dos jesuítas d^lespauha, lhe diz o mes
mo Frederico:
1 Os homens pensadores, dizem clles, re «Acabamos de conseguir outra vanta
conhecerão que Voltairc è o arande movei gem; os jesuítas são expulsos do reino de
d'esta revolução que enche de assombro a ílcspanha; que se não deve esperar do sé
Europa, que espalha o terror nas cortes e culo que se segue a este?....
a esperança no meio dos povos; foi clle que «O machado está á raiz da arvore, os
fez cahir o maior sustentaculo do despotis philosophos levantam-se contra os abusos
mo (o poder sacerdotal), se clle não tivesse d’uma superstição reverenciada, este offi
quebrado este jugo, nunca o povo teria re cio (a Igreja catholica) vai cahir por terra;
conquistado a sua independcncia e liberda os annacs de todas as nações transmittirão
de, ou desfeito os grilhões que o maneata- á posteridade que Voltaire foi o promotor
vam. Foi Voltairc que fez a razão popular d’esta revolução, que se consummou no sé
em França; se clle não ensinasse o povo a culo xix.»
pensar, este nunca sabeida o que era, nem Que mentirosas prophecias! aonde se en
teria sabido usar da siia força para se li contrarão mais falsas e mais desgraçadas
bertar da tyvannia. É o pensamento dos para os seus authores?
sábios que prepara as revoluções, mas c o Em vez'de Voltairc enterrar a Igreja,
o braço do povo que as executa. E repetia foi cila que o mandou enterrar, e custou
tantas vezes ao povo que a sua maior des muito trabalho aos seus parentes, e secta
graça era ser tôlo e covarde, que clle dei rios para obter d’ella esta graça.
xou de ser uma c outra cousa.» Basta-nos Bem longe de Voltairc fazer o epitaphio,
por ora este testimunho entre muitos que para pôr no seu tumulo, elle a julgou tão
podia produzir, c que omitto por brevidade, forte, e tão cheia de vida ao tempo da sua
e d'elle já o mundo póde conhecer por expe morte, que ainda lhe fez humildes súpplicas
rienda o que se lucra com a leitura das para se reconciliar com ella c ser recebido
suas obras. cm seu seio, se bem que alternadas com os
i
gritos dc dcsosperação do impio agonisaji- plicadamcnte acima do que anda impres
tc ‘, e com transportes de furor similhan- so nas memórias dos jesuitas, o numere*
tes aos de Orestes. d’almas, que por industria d’estes varões
Das cartas citadas, vô-sc ainda que a cx- apostolicos, passaram das trevas da ííomili-
tincçào dos jesuitas entrava no grande pla dade para as mui claras o bemfazejas lu
no da conspiração contra o Cliristiauismo, zes do Evangelho sancto.
a que parece nao foram estranhos os jan- «Não foi portanto exagerado um poeta,
senistas que na revolução de 1789 se uni nem jesuíta, nem sacerdote, mas christào
ram com os revolucionários, para dar caho o imparcial, que ao extinguir-so a compa
da religião na França. nhia de Jesus, desabafou n’csta maviosa c
Tudo o que havia de philosophos c jan- elegantíssima queixa:— «Se os esquadrões
senistas, ou para o dizer com mais proprie cclestiacs podessem chorar, as suas lagri
dade, todos os inimigos da religião applau mas traspassariam o firmamento c apre
di ram a extineção dos jesuitas e julgaram sentariam uma nova cspccie de chuva, que
vôr n’ella o triumpho da sua causa. inundaria a terra.» 1
Esta celebre ordem oppunha-lhcs, pois, Se porém os christãos verteram lagrimas
uma harreira invencível, que clles assen de sangue ao vôr a extineção d’csta ordem
taram dever destruir primeiro que tudo; é celebre, que tantos serviços tinha presta
este o seu maior elogio c o seu triumpho, e do á religião e á sociedade, os philosophos
o maior brazío da sua gloria. julgaram vôr na sua extineção a ruina da
Teve dous milhares de razões um arce Igreja, ou pelo monos uma grande victo
bispo nosso e pio cscriptor para exclamar: ria, que lhes abria o caminho para novos
«Sc os anjos do céo podessem baixar a es triumphos e para a execução dos seus pla
te mundo para nos declararem os immen nos, não se descuidando todavia em machi
sos fruetos das missões dos jesuitas, por nar contra todas as ordens religiosas; c cis-
certo ficaríamos suspensos c assombrados, aqui porque clles declararam beneméritos
c poderiamos sem temeridade romper das da philosophia todos os governos, que quan
vozes do propheta evangelista, quando viu do não podessem extinguil-as dTima vez,
essa multidão, sem conta, d’almas ditosas, principiassem por reduzil-as c acabar com
escolhidas dc todas as gentes, tribus, po ellas pouco a pouco. (Veja-se a carta de
vos e linguas, para serem eternos adorado Frederico a Vollairc, de 124 dc março de
res da magestade divina. 1767, e a de Voltaire a Frederico, de 25
«Se os demonios fossem capazes dc au d’abril do mesmo anno.)
xiliar uma causa justa, clles proprios con No breve de Pio vi, dirigido aos bispos
fessariam scr desmedido, c mais que tri- francezcs, por occasião da extineção das
ordens religiosas, na assembléia dc Fran
1 VoUcdrc morreu por fim implorando ça, de 1790. dá este papa a razão das iras
os
soccorros d'esta mesma igreja, que tinha dos revolucionários contra ellas—Suppressi
perseguido; bem que dirigindo suas suppli sunt, diz ellc, igitur ordines, fam ut in
cas humildes ao abbiule Gauthier, de envol eorum invaderetur bona, quam ne amplius
ta com os furores e a raiva de um impio quis existerit, qui populos ab errore, ac mo
desesperado. rum corruptione revocaret.
Porém em que tempo morreu este infame
apóstata da religião? Circumstanda muito
digna é esta de notar-se. Morreu exacta- X II
mente no praso que era mister para des
mentir outra prophecia sua, similhante á de
Frederico. Tinha escripto aquelle impio ao Já que toquei incidcntemento nas ordens
seu discipulo d'Alembert, no anno de 1758, religiosas, não posso abster-me dc fazer
esta blasphemia:— «Esperai ainda vinte an uma reflexão, e vem a ser, que todos aquel-
nos, e vereis no que pára Deus, e que boa les que se teem levantado contra a Igreja
sorte o espera.»—Ao findarem ' estes vinte ou desconhecido a sua authoridade, teem
annos, no de 1776, desappareceu da terra principiado por decretar ou promover a
aquelle monstro, que teve a ousadia de des sua extineção.
afiar o céo, e anm nciar a Deus para o Luthero, Calvino, Beza e Zuinglio princi-
mesmo anno a mesma sorte. Assim è que se
castigam os falsos prophetas e as impieda 1 N este sentido patenteava o Palatino
des. (Instruccão pastoral dos bispos de Le- de Cracoviá, e o general dos exercitos da Po-
rida, Tortosá, Barcelona, Urgel, c Pam- lonia, Wenccslau Rzewusco, a extineção dos
plona.) jesuitas.
DEI 423
piaram por declamar com furor contra ro dc fogo, que devia tornar a apparécer no
ellas. fim dos tempos?!
O patriarcha ou o chefe principal da re A vida domestica pode gloriar-se dc ter
forma, tão orgulhoso como corrupto e im- por seus authores os prophetas S. João Ba
inoral, principiou por seduzir uma freira ptista c o mesmo Jesus Christo, que mui
com quem se casou pública e escandalosa tas vezes se'retirou sobre as montanhas
mente. para orar.
Os principes d’AUcmanha, cm virtude Os tharapeutas 1 deram-nos o modcllo
das doutrinas dos seus mestres, saciaram dos primeiros mosteiros chrLtãos; mas se
logo a sua avareza, apoderando-so de to se póde dizer que a vida domestica é dc
dos os seus bens. O mesmo foi practicado todas as idades e dos maiores servos de
pelo tyranno Henrique viu dTnglaterra, Deus, e que cila nasceu com o Christianis
pelo ambicioso Gustavo Vasa na Suécia, mo, com que signaes dc approvação a não
pelo turbulento o escandaloso Christiano manifesta Deus aos homens!
na Dinamarca, c por toda a magna cater Que maravilhas não exporíamos se fizés
va de reformadores, 1 que produziu o sé semos a historia dos Paulos, dos Antonios,
culo dezeseis para vergonha c confusão do e dos sanctos da Thebaida, que encheram
espirito humano, que perturbaram a Igreja, o Carmcllo c o Libano de portentosas obras
c destruiram a religião n’uma boa parte de penitencia!!
da Europa. Os philosophos do século de Que espectáculo! estes sanctos hymnos,
zoito, c todos os revolucionários que lhes esta infinidade de vozes, entoando a* gloria
abraçaram os princípios ou lhes seguiram e as maravilhas do Senhor, que converte
as maximas, mostraram o mesmo furor ram os desertos em templos, dedicados aos
contra ellas; porém isto só prova a sua im louvores de Deus! Quantas vezes as musi
portância, e a estima e veneração cm que cas celestes se não confundiram com o
sempre foram tidas na Igreja; e entre uma murmurio e estrepilo das ondas, e quantas
infinidade de testimunhos, que podia pro vezes os anachoretas não tiveram por hos
duzir para prova d’esta verdade, citarei S. pedes os serafins!! Os leòes lhes serviram
João Chrisostomo, que se levantou com de mensageiros, c os corvos lhes ministra
. toda a força do seu zelo, do seu talento e ram o maná celeste. As cidades mais opv
eloquência contra os seus detractores, e S. lentas invejaram a sua reputação, e tive
Grcgorio Magno, que prohibiu debaixo de ram ciuincs da sua gloria.
graves penas que molestassem os regula Que diriamos se confessássemos a histo
res ou lhes tirassem as suas rendas e pro ria dos do monte Sinai, do logar em que
priedades debaixo de qualquer pretexto Jchovah declarava os seus oráculos aos he-
que fosse. breus, ou aquclle cm que Jesus Christo
É sabido o apreço que d’ellas fazia S. desappareccu da face da terra!!
Luiz, rei de França, e o grande Alfredo, Mas se tudo isto os torna muito rc.com-
rei d’Inglaterra, e a estima em que sem- mendaveis, que diriamos da sua instruc-
ire foram tidas por todos os principes re- Ção, que se identifica com a religião, e que
f igiosos c pios. E como podia deixar de e uma necessaria consequência d’ella! A
ser assim, se é verdade que uma cousa é sua proscripção ou prohibição em qual
tanto mais venerada, quanto maior é a sua quer estado, que outra cousa é senão um
antiguidade! desmentido ao Evangelho, e uma injuria
Que direito não teem ellas ao nosso res- feita á religião; porque é uma condcmna-
^ peito e veneração?! ção de profissão pública dos conselhos evan
O propheta Elias, fugindo â corrupção gélicos, c d’essc genero de vida recommen-
d’lsrael, retira-se nas margens do Jordão, dado sempre na Igreja como mais confor
e ahi vive de hervas o raizes com seus dis me com a doutrina dos apostolos e com o
cipulos. espirito religioso, que consiste em viver
Que não teriam dito os poetas gregos, desapegado do mundo para chegar á per
diz um celebre escriptor, se tivessem en feição christã ou á caridade?!
contrado por fundador dos seus collegios E que é ainda esta prohibição, como diz
um homem transportado ao céo, n’um car- o padre papa Pio vi no citado Breve, se
não um ultrage feito aos seus fundadores,
que a Igreja pôz no cathalogo dos sanctos,
1 Que se lançaram como lobos; esfaima-e que todos os dias expõe á sua veneração,
dos sobre os despojos dás ordens religiosas,
e a isto ou para isto é que se fez a refor- 1 Monges christCws, que habitavam junto
m a, d iz um escriptor protestante. . ao lago de Meris no Egypto.
424 DEI
para lhes imitarmos a virtude e lhes con
seguirmos o exemplo? que não fizeram es XIII
tas fundações senão por efleito de revolu
ção divina, como declara ainda o mesmo
papa? Quando eu escrcvi os artigos proceden
Condcmnar pois as ordens religiosas, é tes sobre o deismo, tinha então tenção de
seguir os princípios dos hereges, e de to dizer alguma cousa sobre a philosophia de
dos os inimigos da religião; é condemnar a Kant ou sobre o decantado philosophismo
Igreja, é condemnar todos os conci lios e allemão, que occupa uma parte tão notá
todos os papas, que as authorisaram, é con vel na historia dos desvarios do espirito
demnar todos os sanctos padres, todos os humano, e que tanto servia para o fim a
sanctos doutores, que lhes teceram os maio que me propunha de mostrar que não ha
res elogios, c Rellas fizeram a apologia: é princípios religiosos fóra da religião, e que
condemnar todos os principes, todos os ho a philosophia, seja qualquer que fôr o no
mens illustres por sua sciencia ou piedade, me com que se appellide, kantista, raciona-
que as julgaram importantes ao estado e á lista, sceptica, ou indiflerentista, não é se
Igreja, c condemnar lodo o universo pio não a total carência ou negação R elles; po
e religioso, é condemnar a experienda do rém desisti de o fazer, porque me pareceu
todos os séculos, que mostra que nada se melhor tractar d’ella n’um artigo separado.
' tem descoberto mais util para dilatar a fé, No entanto, como ainda não sei quando
propagar a religião, instruir os fieis, mora- poderei tractar Reste objecto com a exten
lisar os povos, corrigir e reformar os cos são que ellc exige, pareceu-me não ser fóra
tumes, e ajudar os bispos e os parochos no de proposito dizer já alguma cousa Ruma
exercício do seu laborioso ministerio, e philosophia que seus apaixonados exaltam
ainda, direi mais, que debaixo de todas as até ás nuvens, e que parece, á vista dos
onsiderações e a todos os respeitos, e ain- elogios que lhe fazem, ler alguma cousa
a em relação ás letras, ás sciencias e ás de sobrenatural e maravilhosa, para que
artes, ao commercio, á industria e á nave se veja que é tão abjecta e degradante para
gação, o inundo lhes deve serviços impagá o espirito humano, como é toda a sciencia
veis, que só podem ser desconhecidos pelo que prescinde das lüzes da fé e da religião,
espirito de libertinagem e de irreligião, de e que tem por ultimo esteio c fundamento
que são boas testimunhas as ordens milita o orgulho do homem, e as fracas luzes do
res, os cavalleiros de Malta, a ordem teuto-. seu espirito.
nica, os cavalleiros de Calatrava ou de S. Escriptores judiciosos, profundamente
Thiago de Hespanha, as missões da Ame versados nas obras Reste celebre escriptor,
rica, do Levante, da Italia, da China, do Pa- que lhe examinaram a doutrina, seguiram
raguay, do Guyanna, das Antilhas, da nova as tendências, e Rella fizeram a historia,
Hespanha, e uin sem numero Restabeleci lhe teem feito as mais acres e vehementes
mentos tão uteis como gloriosos á humani censuras.
dade, que são obra sua. Elles a teem accusado de ter introduzido
Direi por ultimo que a Igreja as tem as uma phraseologia barbara, contraria ás re
sim achado de muito interesse para arre gras da boa grammatica, ainda do bom
dar do povo christão os castigos da justiça senso e da discreta razão, de ter innovado
divina, pois sempre na Igreja se acreditou por systema e sem necessidade, de ter co
na efficacia das orações das pessoas consa berto a sua sciencia Rum véo quasi impe
gradas ao serviço de Deus, de que são tes netrável, de ter derramado sobre ella as
timunhas irrefragaveis S. Gregorio Magno sombras Ruma linguagem mysteriosa, de
nas seguintes palavras, fallanao do estado ter sido author de systemas'tão funestos
em que os longobardos tinham posto Ro como absurdos, de ter espalhado emfim a
ma:— Se não fossem as súpplicas das reli dúvida e a incerteza sobre os conhecimen
giosas, j á nenhum de nós subsistiría aqui tos que mais interessam á humanidade, de
ha tantos annos, entre as espadas dos lon- ter desviado a mocidade pela força e pelo
gobardos.—E Benedito xiv, fallando das suas prestigio do talento, das sciencias positivas
religiosas de Bolonha, diz—esta cidade, af e dos estudos serios e graves, e por efleito
flicta com tantas calamidades e ha tantos Rum idealismo transcendente e sobre ma
arínos, já não podia subsistir m ais, se as neira rigoroso, de ter precipitado os seus
orações continuas ctas minhas religiosas não discipulo? nos mais funestos erros, condu
tivessem desarmado a cólera do ceo. zindo uns ao scepticismo, outros a uma no
va especie Respinosismo, outros a um idea
lismo absoluto, e todos elles a systemas pes-
DEI 425
.•simos, tão absurdos como funestos á huma e n’uma ideologia vaga c escurissima; e
nidade. acontece com elle o que 'quasi sempre
Estas accusaçõcs graves, diz a biogra- acontece com os innovadores ou authores
phia universal de Feller, são desgraçada- de seita.
mente verdadeiras, e o kantismo, levado á Sc uns levados do espirito da libertina
França, acabou de nos confirmar nas jus- gem, da curiosidade ou amor da novidade
tas.prevenções que tínhamos contra elle. e independencia o admiram, outros véem
É certo porém que elle na França tem n’clle um espirito audacioso e atrevido, que
-feito poucos progressos, segundo o afiirma se lançou fóra dos seus justos limites, que
o mesmo author. pretendeu reprovar por eíTeito do seu or
Mas cingindo-me eu hoje ao que preci gulho e vaidade tudo quanto existe, para
samente me propuz tractar, e prescindindo estabelecer sobre as suas ruinas systemas
de tudo o mais, são. seguros os seus prin falsos ou impios, e sempre funestos c pre-
cípios sobre a existência de Deus e a mo judicialissimos, não vendo n’elle senão um
ralidade das suas acções? Estava elle pro novo inimigo da religião que a destroe, in
fundamente convencido d’estas verdades? tentando explical-a â seu modo, c não ven
DiSsc, prescindindo de tudo o mais, por do na sua razão pura alguma critica, por
que não venho hoje fazer o processo á phi que elle pretende afierir o Christianismo
losophia de Kant, ou ajuniar todas as pe- mais que o puro deismo.
as que se encontraram nas suas obras, Com effeito Kant não considera o Chris
oas ou más, para analysal-as c para o con- tianismo senão como uma ethica ou syste
•demnar c absolver por cilas: isto é traba ma moral de que elle exclue todo o culto
lho de muito vulto; cingir-me-hei sómente externo, todas as ceremonias, orações c sa
ao que não póde ser contestado, porque é crifícios, manifestando por isso que não.
•de notoriedade conhecida, e por isso nota acredita em seus mysterios, c fazendo de
rei sómente que na sua primeira obra, pu Jesus Christo um ente segundo a sua ideia:
blicada em 176o (se me não engano), em porém esta sua theoria, assim como tudo o
que elle pela primeira vez manifesta a sua que sahiu da sua penna, é tão embaraçado •
doutrina, a qual tem tanto ^extraordina e tão diííicil d’entender, que os seus famo
rio como d’inintelligivel, que intitulou: — sos discipulos Scheling c Fitcho, que se ga
Unica base para a demonstração da exis bam de a ter aperfeiçoado, teem-se consu
tência de Deus,—esta unica base não é mido em vigilias c trabalhos para a expli
mais que um montão de parodoxos, que car, e cada um o tem feito a seu modo, de
elle mesmo destruiu, substituindo-lhes ou que resultou formar cada um d’elles uma
tros que teem tanto d’extraordinarios e in- nova escola, que não é menos escura e te
intelligiveis como os primeiros. nebrosa que a de seu mestre: tanto foi o
Na sua critica da razão pura, nega que seu empenho cm se fazerem claras e in-
do argumento physicó c theologico para a telligivcisl!
demonstração da existência de Deus se Podíamos juntar a estes outros iguaes,
possa tirar razão convincente. mas os limites d’uma tão breve nota não
Pouco antes da sua morte, perguntando- o permittem.
se-lhe o que pensava a respeito da immor- Esta doutrina hierogliphica foi emfim ado-
talidade da alma e da vida futura, respon ptada em uma grande parte das universi
deu só duas palavras, mas estas sem equi dades d’Allemanha. Mas de que tem ella
voco—nada decidido. servido? pergunta um judicioso eseriplor.
Já antes, por uma similhante pergunta, Acaso para esclarecer os homens sobre
elle tinha dado em resposta—que não ti os seus deveres, ou para arraigal-os nos
nha ou que não concebia a ideia d’um es solidos princípios da religião e da moral,
tado futuro,—como se por elle o não con ou fíizel-os melhores e mais virtuosos? Não:
ceber, não podésse existir. é tudo pelo contrario. Se tem servido, é
No entanto um homem, que apesar,das para propagar a irreligião, augmentar o
suas metaphysicas profundas não póde des espirito da incredulidade, da independen
cobrir fundamento nem base para a mo cia e do orgulho, é, n’uma palavra, só para
ral,- escreve .sobre ella, e pretende que a corromper e desmoralisar mais o mundo.
sua theoria de costumes prevaleça sobre Um cseriptor, que se declarou apologis
todas as outras. Nos seus prolongamentos ta de Kant, depois de ter dado grande apre
para o estudo da metaphysica—nos prin ço ás suas descobertas idealogicas, convém
cípios metaphysicos da sua doutrina—na nos seus princípios de irreligião e impie
theoria da virtude—e na religião, d’accordo dade.—0 espirito aíflige-se, diz elle, em vér
com a razão, Kant perde-se em abstracções nas suas obras o empenho que elle mostra
426 DON
cm negar ao Christianismo a sua origem com Ceciliano e não com Majorin e com
celeste. Donato, seu successor.
É pois a nova philosophia de Kant um Este sclsma produzido por uma vingan
novo systema, que a impiedade descobriu ça particular perturbou a Igreja por mais
para combater o Christianismo: é uma no d um século, encheu a Africa de calamida
va campanha sob a direcção d’outros che des e de horror, esgotou os rigores e a pa
fes: nào se combate abertamente a religião ciência de tres imperadores, c sómente ce
como no systema de Voltaire, isto c, por deu ao tempo; similhante aos vulcões, que
uma guerra viva c por manifestas hostili o mineiro imprudente accende, e que só
dades contra ella; pretende-se conseguir o sc extinguem depois que o fogo tem consu
mesmo fim por um modo mais pacifico, mido o enxofre e bitume, que elles encer
mas talvez mais pernicioso, porque é mais ram nas suas entranhas.
astuto c manhoso: explica-se o Christianis Será muito importante conhecer-se per-
mo pela razão para o destruir: faz-se d'ellc feitamente a origem c o progresso d’um tal
um systema de philosophia moral como o scisma, c que sigamos individualmente os
de Zoroastres ou Confucio ou de qualquer seus elfcitos.
outro philosopho, isto é, considera-se como
uma obra puramente humana, e como tal DO SCISMA DOS DONATISTAS ANTES DE DONATO
sc explica.
Esta guerra ou esta nova cspccie de A religião christã nãò foi levada á Africa
combate tem muita similbança com aquel- pelos apostolos, mas n’clla fez grandes pro
le que os jansenistas fizeram á Igreja, in gressos no segundo século, e se estabelece-,
tentando destruil-a pela.mesma Igreja, pon ram na mesma região muitas igrejas, ape
do cm execução talvez o systema melhor sar das grandes perseguições que soíTre-
combinado que o inferno podia suggerir ram, e que foram mais cruéis, imperando
contra ella. Dioclcciano, Galerio e Maxencio. Durava
Se os jansenistas pois tractaram de des ainda a ultima, quando Mensurio, bispo de
truir a Igreja pela Igreja, os kanlistas pre Carthago, foi chamado por Maxencio: e antes
tendem destruir o Christianismo pela sua de partir confiou a alguns velhos os vasos
razão critica, ou pelas suas explicações da Igreja, e dou a clareza do que se conti
philosophicas. nha na entrega a certa velha, para que no
Emquanto ao mais, clle é tão absurdo e caso de morrei’ na jornada, ella a pozesse
íão monstruoso, como todos os syslemas nas mãos do seu successor. Morreu com
philosophicos de que se baniu a religião; cffeito Mensurio na sua volta para Cartha
sem nenhuma fé, sem nenhum dogma, sem go; e por esse tempo Maxencio deu paz á
nenhum symbolo, sem nenhum principio Igreja. »
religioso, faz-se assentar em parodoxos a Para nomearem successor a Mensurio
existência do primeiro sêr, e n’uma base se ajuntaram cm Carthago os bispos da
incerta, vacillante, e não definida a morali provincia, e de unanime consenso foi elci^
dade das acções. to Ceciliano, e ordenado por Felix d’Aptu-
Que bella philosophia!! Que escola de n h a .2
virtude!! Que grande systema do moral Chegou á mão do novo bispo a relação
para instrucção do genero humano!!! dos vasos sagrados, que entregara o seu pre-
d e s c a l ç o s — Hcregcs que asseveravam decessor aos mencionados velhos, os quaes
ser preciso andar descalço para conseguir suppunham que se ignorava o tal deposito,,
a ssalvação.12 e porque Ceciliano os obrigou a darem con
DOCETAs ou d o c i t a s —Hereges que nega ta d’elles, lhe conceberam um odio violen
vam que Jeslis con sto encarnara.2 to. 3
DONATisTAs— Scismaticos que sc separa- Botro e Celestio, duas pessoas de reputa
ranfí 'dacommunhão de Ceciliano,por ção entre o clero de Carthago, tinham as
que esteera ordenado por Felix,bispo ap- pirado um e outro á cadeira episcopal, e
tungitano, que ellesarguiam de haver en resentidos de que lhe fosse preferido Ceci
tregado os livrose vasossagrados durante liano, sc uniram aos velhos, e desabafaram
a perseguição; 2.°de toda a Igreja,porque eni declamações contra e lle .4
toda ellatinhaficadounidaem communhão
19 Optat., I. I. Aug. Litt. Petili., I. 2, c-
87.
1 Aug. (VHceres, 68. 2 Ibid.
2 Clement. Alex. Strom., I. 7. Theodo 3 Optat, ibid. Aug. in Parm.
rei., I 5. Horret. Fab. * Ibid.
DON 427
1 Aug. Epis. 162,168. Euseb. vita Const. 1 Opt. ibid. Aug. in Cruscent. in Par-
I. 1, c. 44. 4 mm.
2 Opt., I. 3. Aug. Lett. Petil. 2 Euscb. Vit. Cont., I. 15, c. 45.
DON 429
cavei: isto sc creu, c veio a ser o scisma uma penha, e Donato em um poço. Donato
um mal sem remedio. Persuadiram-se os e Marculpho foram logo contados entre os
donatistas que nâo podiam perder-se, se martyres, e a gloria do martyrio veio a ser
guindo os seus bispos; o quando estavam a paixão dominante dos circumcelliões. Não
convencidos pela evidencia da verdade, se atacavam sómente os catholicos: corriam
cerravam á banda, tendo, que iam seguros cm cardumes a investir os pagãos nas suas
no seu scisma, porque eram ovelhas, c se- maiores festividades para que os matassem,
uiam os seus pastores, os quaes respon- pondo o ponto ás seitas, que lhes atiravam
eriam por clles diante de Deus. 1 os mesmos pagãos; os quaos também se
D’cste grau de confiança passaram logo persuadiam honrarem seus deuses, sacrifi
a pcrsuadir-sc necessitados a defender o cando-lhes aquellcs furiosos. »
►artido de Donato: um tropel de donatistas Quando estas occasiõcs lhes faltavam, of-
{ argou sua^ occupações, renunciou a agri fereciam quanto dinheiro possuíam para
cultura, c tomou as armas para defendero que os matassem, e sc não tinhain com que
seu partido contra os catholicos: appellida- comprar a gloria do martyrio, iam ás es
ram-sc Agnósticos, ou Combatentes, porque tradas e obrigavam os que encontravam a
eram, diziam elles, os soldados de Jesus lhes tirarem a vida, comminando-lhes a
Christo contra o diabo; c como divagavam morte sc recusassem dar-lhes aquella de
sem habitação certa, c para acharem de que sejada gloria.2
se sustentar, andavam em roda das casas A severidade de Macario, e as leis do im
dos paisanos, que os appclidaram Circum- perador se tornaram pois inúteis contra os
celliões. 2 circumcelliões e contra os donatistas, e não
Eram suas armas bastões e não espadas, poderarn obrigal-os a communicarem com
porque Jesus Christo prohibira a S. Pedro os catholicos, porque mais gueriam soíTrer
o uso d’ella: com os taes bastões esmiga a morte que exercer um só acto de com-
lhavam os ossos a qualquer: c quando que municação com elles: umas vezes se pre
riam usar de misericórdia com algum, lhe cipitavam do alto dos rochedos, outras re-
dàvam uma só bastonada: chamavam-sc a cciando a propria fraqueza, e que os cons
estas armas Israelitas. 3 trangessem a reunirem-se com os catholi
No tempo de suas expedições contra os cos, accendiam elles mesmos uma fogueir
catholicos, cantavam louvor a Deus; esta em que se arrojavam, c morriam satisfe
era a senha, c com cila entravam a derra tos: via-se todos os dias a terra tingida t
mar o sangue humano: tudo dcsapparccia sangue d’cstes desgraçados, todos os di;
á sua chegada; os bispos donatistas, apoia se viam cardumes de homens e mulhcrc.
dos d’esta formidável milicia, levavam a que, engatinhando, subiam as montanhas
dissolução aonde queriam, e expelliam de mais escarpadas, e d’ellas sc lançavam no
suas igrejas os catholicos.4 meio dos rochedos c dos precipícios.
Depois da morte de Constantino, Cons Honrava o povo os cadaveres d’estes sui
tante, ífue dominou em Africa, mandou a cidas, como honra a Igreja os corpos dos
ella Paulo e Macario a levarem esmolas, e martyres, e celebrava todos os annos o dia
cxhortarcm á paz os seus vassallos; mas da sua morte como uma festividade, c elles
Donato recusou receber as esmolas de pretendiam justificar suas mortes volunta
Constante: cerraram as portas da cidade rias com o exemplo de Rasias, c morriam
de Bagai a Macario: cm pouços momentos persuadidos de que iam receber a coroa
este foi investido pelos circumcelliões, e do martyrio.3
obrigado a fazer vir tropas, a que os cir-
cumcclliõcs fizeram cara, e se combateu com 1 Aug. Cont. Litt. P. 1.2, c. 20. in Joan.
furor, sendo estes finalmente derrotados; c Hom. 11.
Macario irritado com tal procedimento, tra- 2 Opt. I. 3. Theod., I. 4, c. 6. Aug. Hcer.
ctou os donatistas com grande rigor. 69. Epis. õO.
Queixaram-se elles, clamando que os per 3 Rasias foi um judeu extremosamente
seguiam, e publicaram que os catholicos zeloso da sua religião. Nicanor procurando
haviam precipitado Marculpho do alto de pervertel-o, enviou cincoenta soldados para
o prenderem n u m a torre, em que elle esta
1 Aug. th Parmen., I. 2, c. 10. va, e Rasias, que se viu a ponto de ser ap-
2 As casas dos paisanos chamavam-seprehendido, metteu cm si uma estocada, es
cellas. timando mais morrer nobremente, que vêr-
3 Aug. d'Han\, c. 69. Theod., I. 4, c. 6.sc sujeito a pcccadorcs, e soffrer ultrages
Opt. 1.3. indignos do seu nascimento; mas como na-
4 Ibid quellc repente o golpe lhe não tirasse logo a
430 DON
Macario á força de rigores debilitou mui catholicos; em Africa se fizeram absolutos
to o partido de Donato, os donatistas so c quasi tudo vergou debaixo d,aquclle ter
mente conservaram algumas igrejas, os bis rível partido. Então os bispos dos mesmos
pos se espalharam, Donato morreu no des se ajuntaram cm numero de mais de tre
terro e Maximiano lhe succedeu. zentos e dez, c mandaram pôr em peniten
cia povos inteiros, porque se nào haviam
separado dos catholicos. 1
D0 SCISMÀ DOS DONATISTAS DEPOIS QUE MOIUIEU Alguns annos depois Bogalo, bispo tíc
DONATO ATÉ Á SUA EXTINCÇÃO Mauritania, se separou dos donatistas vc-
rosimilmente por desapprovar os circum-
celliòcs: os donatistas sentiram com amar
Subindo Juliano ao throno imperial, cha gura esta divisão, c exercitando o poder
mou todos os que estavam exterminados secular contra os rogatistas, extinguiram
por motivo de religião, c permiltiu aos bis este partido. Por esse mesmo tenipo, cm
pos donatistas que voltassem ás suas ca- que ferviam as calumnias 'dos donatistas
thedraes: 1 pretenderam cllcs tornar a en contra a Igreja, Parmeniano, seu bispo cm
trar iVaqücllas de que os catholicos se'ha Carthago, cmprchcndcu justificar o scisma
viam apoderado; e levando-os á força de com seus cscriptos, propondo provar na
armas, quasi todas as igrejas se viram sua obra ser nullo o baptismo dos herc-
cheias de homens feitos em postas, d’abor- ges, e estarem estes cxcluidos da Igreja.
tos,dc mulheres, c meninos cruelmentc as Sancto Optato o refutou: então o fanatismo
sassinados. Sustentados os donatistas pe entrou a dcscahir, e muitos dos sectarios
los governadores, cxpelliram finalmente os enxergaram a verdade. Tyconio provou a
validade do baptismo, dos hereges, condc-
vida, quando viu entrar os soldados em tro mnou a rebaplisação, c fez vèr que se de
pel, com extraordinaria firmeza, correu á viam tolerar os abusos, e os mesmos pcc-
muralha, c d'ella se precipitou sobre o povo, cados que nào se podiam corrigir, sem que
'ubiu a um penhasco escarpado, e rasgan- por ís s q se houvesse de romper a unidade.
io o ventre, tirou as entranhas, e as lan Parmeniano impugnou os princípios de Ty
ou sobre o mesmo povo, invocando o domi conio, c Sancto Agostinho a carta de Par
nador da vida e da alma para que em um meniano.
dia Uda restituisse; e assim morreu. Ma- Como os donatistas não tinham pór prin
chab., 1. 2, c. 2o, v. 39 e seguintes. cipio do unidade senão a precisão de se
Os judeus contam Rasias entre os seus sustentaram contra os catholicos, tanto que
mais illustres m artyres, c presumem pro adquiriram credito, logo se dividiram em
var com o seu exemplo, e com o de Saul, e multidão de seitas, c de ramos differen
Sansão haver certos lances em que a morte tes. 2 Estiveram suspensos os odios pes-
voluntaria não só c perm itlida, mas ainda soaes cmquanto a perseguição durava, mas
louvável e meritória: são estes: l.° Quaiulo logo qúe entraram cm paz, recobraram a
ha ju sta desconfiança das proprias forras, e sua actividade.
receio d’aquiescer debaixo do pêso dá per Sendo Primiano bispo de Carthago, tiuha
seguição. 2.° Quando se prevê, que se cahir- sofirido muitos acintes da parte de Donato:
mos nas mãos dos inimigos, cllcs se haverão quiz vingar-sc d’clles no diacono Maximia
de-servir d'esta occasiào para insultar o no, parente do dito Donato, proferindo uma
Senhor, e blasphemor o seu saneio nome. sentença contra cllò: defendeu-se Maximia
Alguns theologos pretendem justificar Ra no, e muitos bispos congregados em Car
sias, dizendo que obreira por uma inspira- thago cassaram a sentença de Primiano;
ção particular, e o justificam também com inquiriram sobre o procedimento d’cstc, c
o exemplo d'algumas Virgens, que antes se achando que tinha commettido crimes atro
quizeram m atar que perder sua virgindade. zes, o depozeram, o ordenaram em seu Io-
(Lyran. Tirin. Serrar, in 12. Machàb. 1, 4.) gar o mesmo Maximiano.
Sancto Agostinho e S. Tliomaz sustentaram, Convocou Primiano outro concilio dc
que não havendo sido approvada a historia trezentos e dez bispos, que o declararam
de Rasias, mas simplesmente referida na innocente,e condemnaram Maximiano com
E scriptura, dfella nada se póde concluir todos os que haviam tido parto na sua or
p a ra justificar a sua acção, quanto ao mo denação, e informando os procunsules da
ral. (Aug. Ep. 61, aliás 204. Lib. Cont. Gau sentença do concilio dc Bagai, lhes pediu
dent. c. 31. S. Thomaz prim a secundce art.
5, ad 5, pag. 64.) 1 Opt. I. 2.
* Opt. I 2 . 2 Aug. Ep. 48.
DON 431
execução das leis do estado contra os he Esta lei pòz cm paz a de Carthago: no
reges,*c fez expedir das suas igrejas os que anno seguinte o imperador isemptou das
haviam sido condemnados no concilio que penas incorridas, por motivo de scisma, to
elle congregara, destruindo assim a igreja dos os que tornassem á Igreja; e finalmente
de Maximiano, c duraram as contestações tres annos depois permittiu aós scísmaticos
d’estes dous partidos todo o tempo do* go o livre exercido üa sua religião; mas at
verno de quatro proconsules. tendendo ás instandas dos padres do con
Optato, bispo de Tangada, muito valido cilio de Carthago, revogou este edito por
de Gildon, commandanle d’Africa, se ser outro em que ordenou se castigassem com
viu de todo o seu credito para perseguir a pena ultima os hereges e scísmaticos.
os catholicos, rogatistas, e maximianistas, Finalmentc pediram conferendas os do
e foi chamado o llagello d’Africa por es natistas e catholicos, e Honorio, por um
paço de dez annos. As suas crueldades só edito do anno de 410, concedeu que os bis
terminaram com a morte de Gildoh, que pos de ambos os partidos se ajuntassem
havendo aspirado á soberania, foi desbara para disputar publieamente. Abriram-se as
tado, c esganou-sc. conferências no anno seguinte, em que sc
Informado Honorio d’estas desordens, acharam duzentos c oitenta c um bispos
condemnou á morte, por uma lei, todos os catholicos, e duzentos c setenta e nove do
que fossem convencidos de haver inves natistas, entre os quacs foram escolhidos
tido c perturbado os catholicos. N’cssc tem para disputar sete de cada um dos parti
po, pois, principiaram elles a fazer conci- dos.
Jios, a escrever, e a pregar. Depois de tres dias de disputa, o conde
Porém a protecção concedida aos catho Marcellino pronunciou em favor dos catho
licos ateou de novo toda a raiva c todo o licos, c na conformidade do que o mesmo
furor dos donalislas: não houve igreja ca-, referiu ao imperador, e cste.por uma lei do
tholica isempta dos seus insultos; prendiam anno 412 impôz grandes muitas aos dona
nas estradas todos os que iam pregar a tistas, desterrou os seus bispos, e adjudi
união c a paz, o seu zelo barbaro não res cou os bens das suas igrejas aos catho
peitava nem ainda os mesmos bispos e os licos.
circumcelliões derramados pelos campos; Este golpe de severidade, igual ao raio
exercitavam mil deshumanidades contra que cahe sobre o enxofre e o bitume, tor
os catholicos, que ousavam oflereccr a paz. nou a atear o fogo dos donatistas; vo 1tarar
e incitar os donatistas á união. ás armas, assassinaram cruelmente os ca
0 concilio de Carthago mandou deputa tholicós, e a si mesmos, estimando mais
dos ao imperador para que acoutasse dos morte, que voltarem á communhão da Igrc
insultos dos donatistas os catholicos que ja: mas a prudência c firmeza do condt
prégavam a verdade, ou que a defendiam Marcellino reprimiram logo os seus furo
com seus escriptos: Sahcto Agostinho, po res. 1 Os bispos donatistas publicaram que
rém, c outros bispos, foram de sentir que Marcellino fora comprado pelos catholicos,
que não sc deviam pedir castigos contra e quo não lhes permittira se defendessem,
elles: o mesmo sancto linha para si que mas Sancto Agostinho fez vér claramente
não se devia forçar ninguem a abraçar a suas calumnias.
unidade, mas que por meio de conferên Theodosio, o moço, renovou as leis de Ho
cias, disputas, e razõos, se havia de obrar, norio contra os donatistas, e debilitou mais
persuadir, c vencer, para que os hereges ainda o seu partido. Pouco tempo depois os
declarados não se voltassem catholicos fin vandalos se fizeram senhores d’Africa, c
gidos. maltrataram igualmente os catholicos e os
Porém os donatistas haviam enchido o donatistas: o fanatismo d’estes enfraqueceu
estado de desordens, e perturbado a tran- notavelmente; reanimou-se porém no go
quillidadc püblica: eram assassinos, incen verno do imperador Mauricio, mas •este
diários c sediciosos, c o imperador res principe fez executar as leis publicadas
ponsável ao público de leis mais severas contra os donatistas, que ficaram disper
contra tão perniciosos sectarios, que já não sos por differentes cantos d’Africa, c não
estavam nas circumstandas da tolerância tornaram a formar partido.
civil, nem da ecclesiastica, c n’esta justa
consideração ordenou, sob graves penas,
que os scísmaticos voltassem á Igreja.1 1 Collat. Carthag. an. 411 habita. Nio.
nov. Collcct. conc. Balussi, apud Aug. Brel-
1 Aug. Ep. 50. Codex Theod. 16, tit. 6, liculus Collationis cum Donatistis, adit. Be- ‘
liv. 3, pag. 195. nedict. I. 9, pag. 545.
432 DON
DOS ERROS DOS DONATISTAS blema de uma mulher sem defeito o em
que não ha cousa reprchensivel. i *
O Novo Testamento ainda é mais claro-
Nasce quasi sempre o scisma do erro, e terminanto no sentir dos donatistas’ S
ou elle o produz. Os donatistas haviam-sc Paulo expressamente diz que Jesus Christo-
separado da Igreja por insistirem em que amara a sua igreja, que a sanctificára, e
era nulla a ordenação de Ceciliano, como que cila e pura, e sem mancha. 2
feita por Felix d’Aptunha, que era traidor; Tinham elles para si que a verdadeira
portanto foram naturalmente conduzidos a igreja era composta d um pequeno nume
negar a validade dos sacramentos conferi ro de justos, que a grande extensão não
dos pelos hereges e peccadores. D’este prin lhe era essencial, que se incluira cm Abra-
cipio se seguia que a Igreja era composta hao, Isaac, e Jacob, e que na Escriptura
de justos, e que por boa consequência Ce estava designada no emblema d’uma porta
ciliano, Felix (TAptunha, que o ordenara, o estreita, pela qual entram poucos, etc. 3
papa Meltiades, que o absolvera, e muitos Para justificar 0 seu scisma sé serviam
de seus irmãos, convencidos de crimes, de do exemplo de Elias c Eliseu, que se reti
viam ser depostos, e expellidos da Igreja; raram da communicação dos Samaritanos
que seus peccados os liavfy feito cessar de e se apoiaram no que Deus disse por bôccá
serem membros de Jesus Christo, que to de Ageo: que elle detesta uma nação man
dos os que defenderam e communicaram chada pelo peccado, e om que é immundo
com elles, se fizeram seus cúmplices, ap- quanto oflerece. 4
provando-os, c que assim nãó sómente a Fizeram vér os catholicos estarem em
igreja de Africa, mas todas as do mundo, erro os donatistas ácerca da natureza e da
que se ligaram em communhão com os do extensão da Igreja, provando que ella era
partido de Ceciliano, havendo-se contami representada na Escriptura como uma so
nado, deixaram de ser parte da verdadeira ciedade que encerra bons e maus, c que 0
igreja de Jesus Christo, que estava redu mesmo Jesus Christo a havia assim desi
zida ao pequeno numero d’aquelles que gnado, já 11a comparação da rede lançada
nào quizeram communicar com os preva no mar, e que recebe peixes de todas as
ricadores, e que se conservaram sem essa qualidades, já na do campo em que 0 ho
mancha. Portanto criam que a Igreja se mem inimigo ingeriu a sizania, já na eira
compunha unicamente de justos, e que el em que está a palha misturada com 0 bom
les eram esta Igreja. trigo.5
Reduzia-se, pois, a tres pomos toda a A igreja antiga comprehendia 110 seu
disputa dos catholicos e dos donatistas: l.° gremio peccadores: Aarão e Moysés nào
se Felix tinha os crimes de que o arguiam; fizeram scisma, e comtudo na igreja dTs-
2.° se na supposição de os ter poderia or rael havia sacrilégios: Saul e David per
denar válidamente a Ceciliano; 3.° se a tenciam á igreja de Judá: havia maus sa
Igreja se compunha unicamente de justos cerdotes e maus judeus na igreja judaica,
e de sanctos, ou se encerrava bons e maus. c na mesma sociedade de que Jeremias,
Na historia que acabamos de referir do Isaias, Daniel e Esequiel eram membros. 6
scisma dos donatistas, vimos que elles ja S. João não se separou dos peccadores, c
mais provaram contra Felix c contra Ceci os olhava como dentro do gremio da Igre
liano algum dos crimes de que os accusa- ja, apesar dos seus peccados: esta é a idéia
vam: no artigo Rebaptisantes mostramos que nos dá S. Paulo da mesma Igreja.'0
serem válidos os sacramentos conferidos culto, ás orações, as ceremonias, tão anti
pelos hereges e .peccadores: agora vamos gas como a mesma Igreja, suppoem que
vér e mostrar o erro dos donatistas ácerca ella encerra peccadores.7
da Igreja.
Presumiam elles que a Igreja se compu
nha unicamente de justos, e, o provavam 1 Cant. c. 5.
pelos caracteres que lhe dao os prophe 2 Ad Ephes. 5, 2. Cor. c. 11.
tas, e pelas imagens com que os mesmos a 3 Aug. de Unitate Eccles. Collat. Car-
annunciam. Isaias nol-a representa, diziam thag. t. 9, edit. bcnedict. Collect. Balusii.
elles, como uma cidade sancta, em que não 4 Aggaei, c. 2, v. 14, 15.
deve entrar nenhum impuro e incircum- 5 Matth. 15, 38.
ciso, e só ha de conter um povo sancto. 1234567 6 Aug. cont. Ep. Parmen. I. 2, c. 7. De
O Cântico nol-a descreve debaixo do em Unit. Eccl. c. 13.
7 Ad Rom. 4, v. 24. Hcebreòr. 9, v. 12-
1 lsaias—52, 62, 35. Ad Tim. prima, c. 2.
DOS 433
Todas as passagens cm que a igreja nos consequência nunca se dá motivo justa
6 representada como uma sociedade pura, para romper com ella os vínculos da com-
de que os peccadores sào os excluídos, de munhão, e são scismaticas todas as socie
vem entender-se da igreja triumphante, no dades que d’ella se separam.
sentir de Sancto Agostinho. * Sobre a terra Antes das disputas que Luthero, Zuin-
é ella uma sociedade religiosa composta de glio, e Calvino excitaram no Occidente, era
homens unidos exteriormente pela com- a igreja romana, sem controvérsia, a igreja
iuunhão dos mesmos sacramentos, e pela catholica, e estavam na sua communhão
obediência aos legitimos pastores, e inte todos os que abraçaram a reforma; por
riormente pela fé, pela esperança, e cari tanto não se podiam" separar d’clla sem se
dade. rem scismaticos, porque não podem arguir
Podemos pois distinguir na Igreja uma a igreja catholica de sustentar nem um só
parte exterior c visivel, que é como o seu dogma que não fosse propugnado por gran
corpo, e outra invisível e interior, que é des sanctos; c por consequência elles em
como a sua alma: portanto se unicamente todos os tempos poderam salvar-se na
consideramos a parte interior da, Igreja, igreja romana: portanto não havia no de
poderemos dizer que os hereges e pecca Luthero, Zuinglio, e Calvino, razão alguma
dores nào pertencem a ella; mas nào é me- legitima para se separarem d’ella, como fi
, nos verdade que elles pertençam ao corpo zeram os chefes da reforma.
da mesma; e assim deverão bxplicar-se os Não é pois a igreja reformada a verda
diversos logares em que Sancto Agostinho, deira igreja, c os que abraçaram a sua
e depois d’élle muitos outros theologos, di communhão estão destituídos de funda
zem que os peccadores nào sào membros mentos para se conservarem separados da
da Igreja. O cardeal Bcllarmino deu solu romana. Isto c o que o* clero de França,,
ção a todas estas objecções na comparação no fim do século passado, queria que exa
ao homem, que é confposto d’um corpo e minassem os presumidos reformadores; e
d’unm alma, e do qual um braço não deixa a que todos os catholicos deveríam ainda
de ser parte, posto que esteja paralytico. hoje exhortal-os, e nós nos persuadimos
Os catholicos não provavam com menos que este methodo tão prudentemente pro
força e evidencia que uma sociedade re posto, reuniría muitos dos protestantes á
duzida a uma só parte da Igreja d’Africa igreja catholica; porém será impossível que
não podia ser a verdadeira igreja, por tal methodo surta cíTeito, se elles aborrece
quanto nos annunciam todos os prophetas rem os catholicos, e estiverem irritados
que a de Jesus Christo se ha de derramar contra elles, persuadidos de que os que
por todo o orbe.12 rem tyrannisar, e não esclarecer. A ques
' O mesmo Senhor a si applica todas as tão do scisma dos protestantes foi esgotada
suas prophecias, dizendo que era necessá por M. Nicolau, na sua excellente obra in
rio que Christo soffresse, e que se prégasse titulada: Os presumidos reformados conven
em seu nome a penitencia, e remissem dos cidos de scisma.
peccados a todas as nações, principiando DOSiTHEp— foi um magico de Samaria
em Jerusalém.3 Todos os sanctos padres qu'^affiífffãva ser o Messias; é tido pelo
antes dos donatistas haviam pensado que a primeiro heresiarcha. Os samaritanos eram
igreja de Jesus Christo, a verdadeira igreja, afferrados á lei de Moysés assim como os
devia ser a catholica; por este nome se dis- judeus, e da mesma sorte esperavam o
tinguia desde o tempo de S. Polycarpo das Messias. A ambição humana não podia as
demais seitas que se levantaram no Chris pirar a cousa maior que á gloria do Mes
tianismo. 4 Finalmente esta era a doutrina sias, e era impossível que entre nações que
de toda a Igreja contra os donatistas.5 o esperavam, deixasse de haver ambiciosos
Portanto pois jamais é licita a separação que lhe usurpassem o titulo, e contrafizes-
da igreja catholica por ser a verdadeira, sem os caracteres.
na qual sempre podemos salvar-nos, e por Tinha sido o Messias annunciado pelos
prophetas, e havia de assignalar seu po
1 Aug. I. 2. Retract. c. 18. der por milagres os mais estupendos: de
2 Genes. 12. Isaiae, 49, 54. Malacli. 1. veríam pois d’occupar-se muito na arte de
Ps. 2, 20, 49, 55, 71. obrar prodígios, e talvez a estas vistas, uni
3 Luc. 25, v. 44, 47. Act. 1, v. 8. das ao progresso do pythagorismo e plato-
4 Euseb. Hist. I.4,15. Cyril. Catech. 18, nismo, e á philosophia cabalistica, deva
circa fin, Aug. cont. Ep. fundam, c. 7. Cypv. mos attribuir a paixão da magia, que tanto
de Unit. Eccles. grassou entre os judeus e samaritanos, an
5 Aug. eant. Crescent. tes do nascimento do Christianismo. Seja.
434 EBI
porém bem ou mal fundada esta conjectu sustentam haver no mundo dous princípios
ra, quanto ao mais é sem dúvida certo que eternos e necessarios, um dos quaes pro
- Dositheo se applicou fòrtementc á magia, duz todo o bem, o outro todo o mal. Vc-
e que allucinou a imaginação com prestí jam-sc os artigos Marcião c Manes.
gios, encantos, e ligeireza de mãos. LelS° nascido em Novara, na
Annunciou-se Dositheo pelo Messias, c Lombardia, foi discipulo de Sagarelo, e de
foi acreditado: e como os prophetas o cara- pois da morte de seu mestre se fez cabeca
cterisavam debaixo de rasgos que sómente da sua seita, que tomou o nome de apostó
podiam convir a Jesus Christo, mudou as lica. Veja-se o artigo Sagarelo.
prophecias, e as apropripu a si: seus dis dM k e r s o u t j j w r s — O protestantismo
cipulos sustentaram ser elle o Messias pro fracciona-se n’uma multidão de seitas. De
dicto pelos prophetas. pois de ler durante muito tempo declama
Trazia Dositheo uma comitiva de trinta do contra as instituições monasticas dos
discipulos, que eram tantos quantos os dias catholicos, os protestantes tiveram também
do mez, e não queria mais; e com elles ti seus monges. Gonrado Seysel sentiu-se com
nha admittido uma mulher, a quem cha desejos de retirar-se á solidão.
mava Lua: observava a circumcisão,>e je- Dirige-se a vinte léguas da Philadelphia,
juava muito. Para fazer crér que tinha su edi fica uma cella, planta amoreiras, e al-
bido ao céo, se escondeu em certa caver uns arbustos. Foi depressa seguido dos
na, retirada dos olhos de todos, na qual se evotos d’um e d’outro sexo. Desde 1777
deixou morrer á fome. contavam-se quinhentas cellas. Assevera-se
Os sectarios d’este enganador estimavam que a colonia tem hoje mais de trinta mil
muito a virgindade, e se prosavam tanto sectários. Entre elles tudo é commum: tra
d’esta virtude, que olhavam com despréso zem barba comprida, usam um vestido que
oara o resto do genero humano: desdenha roja no chão, com cintura e capuz. Não co
ram a companhia de qualquer que não mem carne senão nas grandes reuniões
pensasse, e vivesse como elles. Tinham communs. Seu symbolo é mui differente
prácticas singulares, ás quaes eram nimia- do dos catholicos. Negam a eternidade das
mente aíTerrados:-tal era a de existirem penas, não reconhecem peccado original;
por vinte e quatro horas na mesma pos por consequência não dão o baptismo se
tura em que se achavam quando o sabbado não aos adultos; é conferido por immer-
principiava. são: é por isso que estes sectários são cha
Esta immobilidade era uma consequên mados dunkers, que significa embeber, mer
cia da prohibição de trabalhar no sabbado: gulhar. A moral dos dunkers é bella. Guar
com prácticas similhantes se tinham estes dam o celibato: os que se casam são sepa
sectarios por superiores aos homens mais rados da colonia. Condemnam a guerra, os
esclarecidos, aos cidadãos mais virtuosos, e processos, a escravidão. Teem por laço a
ás almas mais beneficas: estando por es fraternidade. Tudo isto é. mui bello de lon
paço de vinte e quatro horas postos de pé, ge, mas parece que ha grandes vicios soli
e com a mão direita ou esquerda~cstendi- tarios nas cellas dos dunkers...
da, tinham para si que agradavam a Deus e b i o n i t a s — Esta palavra, em hebreu,'si-
mais do que se se houvessem agitado muito gnífíca pobre, e foi dado este nome a certa
para consolar os afflictos, e dar allivio aos seita de hereges que tinham adoptado os
desgraçados. sentimentos dos nazarenos, a cuja doutrina
Ainda subsistia no Egypto esta seita no ajuntaram outras prácticas e erros, que lhes
sexto sécu lo.1 Por morte d’um dos disci eram particulares. Os nazarenos, por exem
pulos de Dositheo, entrou em seu logar o plo, recebiam toda a escriptura que se en
celebre Simão Mago, que logo excedeu seu. cerrava no canon dos judeus; os ebionitas,
mestre, e se fez cabeça de seita. pelo contrario, rejeitavam todos os prophe
Ç y ^ D U^LisTAs—é o nome que deram aos que tas, tinham horror aos nomes de David,
Salomão, Jeremias, e Ezequiel; o por Es
1 Euseb. Hist. Eccles. I. 5. c. 22. Ort- criptura Sancta unicamente recebiam o
gen. Tract. 27, in Math. I. i, cont. Celsum; Penthateuco.
c. 4 4 / 1. 6, pag. 288, edit. Spencerí. Patriar- Origenes distinguiu duas qualidades de
c h e l % c. 2, Philocal. c. 1, pag. 36. Origen. ebionitas: uns criam que Jesus Christo nas
Hiictl l. 2, pag. 319. Photius Bibliot. cod. cera d’uma virgem, como o criam também
230,' pag. 466, edit. gr.;pag. 331, edit. lat. os nazarenos, d os outros pensavam que
Epiph. Hcer. 13. Hieron. adversus Lucif. c. nascera como os demais homens.
8. Tert. de P rm cript. c. 44, Philastr. de Hce- Alguns ebionitas eram sobrios e castos,
res. c. 4. outros não recebiam na sua seita pessoa
ECG 435
. alguma que não fosse casada, e ainda an ctismo, em dous volumes m-12, que appa-
tes da puberdade, c além d’isso permittiam receram cm 1756.
a poligamia: não comiam animal algum, Não nos parece muito necessario exami
nem o que d’cllcs era proveniente, como nar minuciosamcnte tudo o que Mosheim,
leite, ovos, etc. na sua Hist. christà, 2.° século, § 26, c
Serviam-se da mesma sorte que os naza Drueker, na sua Hist. critica da philos...
renos, do Evangelho de S. Mathcus, mas ti- tom; 2.°, disseram do celebre Anjjnonio
nham-no corrompido cm muitas passagens, &iccas, quQ.jjassa nmUer^sidíL<> .fundaIlor
e d’elle tiraram, a genealogia de Jesus da nhilosoiihia^M ect/ça, na escola d’Ale
Christo, que os nazarenos conservaram. xandria. Foi este philosopho constantemen
Além do Evangelho cm hebreu, segundo te aíTeiçoado ao Christianismo ou desertor
S. Mathcus, os ebionilas adoptaram muitos da fé? christão no exterior c pagão no-co
outros livros debaixo dos nomes de S. Tliia- ração? Houve dous Ammonios, um chris-
go, S. João, c de outros apostolos, c se ser tãó e outro pagão, que confundiram? Dis
viam também das viagens de S. Pedro. se elle tudo o que seus discipulos escre
Muitos se persuadiram ser os ebionilas veram pelo correr do tempo, ou rnuda-
um ramo dos nazarenos, c outros créram ram-lhcs a doutrina cm muitas cousas? Co
formar cllos uma seita inteiramente diver lheram seus dogmas entre os orientacs ou
sa: esta questão, pouco importante, e tal nos escriptos dos philosophos gregos? To
vez muito ardua de decidir, foi examinada das estas .questões não nos parecem tão im
pelo padre Lo Quien nas suas dissertações portantes como a estes dous sábios criticos;
sobre S. João Damasceno. Origenes, S. João e, a despeito de toda a sua erudição, se
Damasceno, Eusebio, e Sancto Ircnio, tra conseguiram sobre isto tudo exacerbar cor
ctaram da heresia dos ebioni' s . 1 jecturas. Faremos até vêr que as levara?
Os ebionitas c os nazaren a, que assim muito além, quando quizeram provar qi
eram divididos em diversas seitas, e que a philosophia ecclectica ou o novo platoni
se contradiziam na sua crença e na sua mo, introduzido na Igreja pelos padres, nu
moral, comtudo se uniam acerca de um dou em muitas cousas a doutrina e a mo
ponto, qual era reconhecerem ser Jesus o ral dos apostolos; é uma calumnia que Mo
Messias: é portanto indubitavel que clle sheim se esmerou em provar na sua dis
veio revestido de todos os caracteres que sertação De turbata per receniiores platôni
o annunciavam. cos ecclesia, mas que nós teremos cuidado
j^gclecticos—Philosophos do III (‘ do IV de refutar. Yidc Platonismo o Padres da
seaiío^lirfgréja, assim chamados do grego Igreja.
—eu escolho,—porque ellcs escolhiam as Parece que Deus permittiu o desvario
)piniões que lhes pareciam melhores nas dos ecclecticos para cobrir de confusão os
M erentes seitas de philosophia, sem se li- partidários da philosophia incredula. Não
jarem a escola alguma; foram também cha se póde deixar de fazer sobre este objecto
mados novos platônicos, porque seguiam muitas observações importantes, lendo a
cm muitas cousaTas idéias dc Platão. Plo- historia que Bruckcr fez, c que os nossos lit
tin, Porphyrio, Jamblique, Maximo, Euna- teratos desfiguraram.— i.° Longe de que
pe, o imperador Juliano, eram d’cste nu rer adoptar o dogma da unidade de Deus,
mero. Todos foram inimigos do Christia- ensinado e professado pelos christãos, os
fnismo, e a maior parte empregou o seu ecclecticos fizeram todo o possivel por sof-
I credito em soprar o fogo da perseguição focal-o, para fundar o polytheismo c a ido
contra os christãos. latria sobre raciocínios philosophicos, para
' O quadro do imaginação que os nossos acreditar o systema de Platão. Na verdade,
litteratos modernos traçaram d’esta seita, elles admiram um Deus supremo, do qual
as imposturas que lhe juntaram, as calu tinham sahido todos os espíritos por ema
mnias que arriscaram por esta occasião nação; mas entenderam que Deus, submer
contra os padres da Igreja, foram solida so n’uma ociosidade absoluta, tinha deixa
mente refutados na Hisf. critica do Eccle- do aos genios ou espíritos inferiores, o cui
dado dc formar e de governar o mundo;
que era a elles que o culto devia ser diri
1 Origen. cont. Ccls. Epiph. Han\ 10. gido, e não ao Deus supremo.
Ircen. 1, c. 20. Euseb. Hist. Eccles. I. 3, c. Ora, dc que serve um Deus sem provi
27. Parmi les Modernes on peut consulter dencia, que não se intromette em cousa al-
le Clei'c, Hist. Ecchs. pag. 476, an. 72. liti uma, e ao qual não somos obrigados a ren
gium Dissert. du Hares. scec. 1, c. 6. Le P. er um culto? Por isto vêmos a falsidade
Quien, Dissert. su r S. Jean Damasc. do que foi sustentado por muitos philoso-
436 ECG
phos modernos, a saber, que o culto ren dades douradas, etc. (Vide Brucker, llist
dido aos deuses inferiores se dirigia ao da philos., tomo 2.°,pag. 370, 380; tomo vi
Deus supremo.—2.° Brucker faz vôr. que Appendix, pag. 361.)—Os quequizerem fa
os ecclecticos tinliam juntado a theoria do zer um parallelo do procedimento dos eccle
paganismo á philosophia por um motivo cticos com o dos nossos philosophos mo
d’ambicão e d’interesse, para se lhes altri- dernos, acharão uma simillianca perfeita. Se
buir todo o credito e todas as vantagens que sç exceptuarcm os falsos milagres e a ma
alcançariam uma e outra. gia, de que estes últimos nào fizeram uso,
A primeira fonte do seu odio contra o não despresaram nenhum dos outros meios
Christianismo foi a inveja: os christàos da dc seducção. Quando não se tem lido a his
vam à lüz o absurdo do systema dos eccle toria, imagina-se que o Christianismo nun
cticos, a falsidade de seus raciocínios, a as ca experimentou ataques tão terríveis como
túcia de seu procedimento^ como lhes de hoje: enganam-se; o que vémos nào é mais
veríam estes perdoar? Nào admira pois do que a repetição do que se passou no ív
que elles tenham excitado, tanto quanto século da Igreja.—6.° Muitos dos philoso
poderam, a crueldade dos perseguidores: phos que abraçaram o Christianismo não o
S. Justino foi entregue ao supplicio pelas fizeram de boa fé; trouxeram-lhe o seu ca
accusacões d’um philosopho chamado Cres- racter embusteiro c seu espirito falso. Qui-
cent, qúc queria mal a Taciano (Tatiani zeram accommodar a crença christà com
Orat., n.° 19.) Lactancio queixa-se do odio seus systemas de philosophia. Os sábios no
de dous philosophos do seu tempo, que nào taram que os éons dos valcnlinianos c dos
nomeia, mas que se julgam ser Porphyrio e differentes ramos dos gnosticos, não eram
Hierocles. (Jusi, d i v i n 1. v, c. 2.)—3.° Para mais do que as intelligencias ou genios for
levar avante, os seus projectos nào poupa jados pelos platônicos ou ecclecticos.
ram nem os embustes nem a mentira. Como Não approvaremos todavia o que julga
íão podiam negar os milagres de Jesus ram Brucker, Mosheim c outros criticos
Christo, attribuiram-nos á thiurgia ou á ma- protestantes, que parecem muito inclinados
íia, de que elles mesmos faziam profissão. a favorecer o socinianismo. Dizem elles que
Disseram que Jesus fôra um philosopho os ecclecticos, mesmo sinccramente conver
thiurgista que pensava como elles, mas que tidos, laes como S. Justino, Athenagoras,
os christàos desfiguraram e transformaram Hermias, Origcncs, S. Clemente d’Alexan-
sua doutrina. Attribuirain milagres a Py dria, etc., levaram suas idéias philosophi
thagoras, a Appollonio de Tyane, a Ploti- cas á theologia christà. Até ao presente não
no; blasonavam de lambem o*s operar por vémos que dogma do ecclcclismo tenha pas*
meio da thiurgia. Sabe-se até que ponto Ju sado ao nosso symbolo; vémos, pelo con
liano se preoccupou d’esta arte odiosa, e a trario, os padres dc que vimos de fallar
que sacrifícios abomináveis este erro deu muito attentos em refutar os philosophos,
logar. Os proprios apologistas do ecclectis- sem perdoar mais aos platônicos do que
mo não ousaram contradizel-o.—4.° Estes aos outros.—Ainda que fosse verdade que
philosophos valeram-se do mesmo artificio todos os erros altribuidos a Origenes fo
para apagar a impressão que podiam fazer ram nascidos da philosophia ecclectica, que
as virtudes dc Jesus Christo c de seus dis se seguiria? Estes erros jamais fizeram
cipulos; altribuiram virtudes heróicas-aos parte da theologia christà, pois que teem
philosophos que os haviam precedido, e es sido refutados e condemna dos. Achar-sc-
forçaram-se por persuadir que eram san hão nos escriptos dos outros padres que vi
ctos. Suppozeram falsas obras, sob os no veram no tempo d'Origencs, ou immedia-
mes d’Hermes, d’Orphéo, de Zoroastro, etc., tamente depois d’elle?
e estamparam n’ellas sua doutrina para Quando Brucker quer persuadir-nos de
fazer crêr que era muito antiga e que ti que a maneira como Origenes concebeu o
nha sido seguida pelos maipres homens da mysterio da SS. Trindade, c o que disse do
antiguidade—5.° Como a moral p u r a e su Verbo eterno, foi tomado do plalonismo,
blime do Christianismo subjugava os espí tomo ui, pag. 446, mostra uma tintura de
ritos e ganhava os corações, os ecclecticos socinianismo que não lhe faz muita honra.
fizeram alarde da moral austera dos stoi- Só lhe restava dizer, como os incrédulos,
cos, e a glorificaram nas suas obras. D’ahi que o primeiro capitulo do Evangelho, se
os livros de Porphyrio sobre a abstinência, gundo S. João, foi feito por um platonico.
onde se julga ouvir fallar um philosopho — Alguns d’estes criticos limitaram-se a
da Thebaida; a Vida de Pythagoras por sustentar que os padres tomaram do paga
Jamblique; os Commentarios de Simplicio nismo muitas das nossas ceremonias; é uma
sobre Epictete, de Hierocles sotnv as ver outra imaginação que teremos cuidado do
ECC 437
refutar tractando de cada um d’estos ritos bros e d’orgãos tomados aqui c alli, ajusta
cm particular: entendemos pelo contrario dos com mais ou menos arte, mas que não
que estas ceremonias foram sabiamente podem constituir um corpo vivo.
instituídas para servir de preservativo aos A verdade diz-se, nào pertence a syste
fieis contra as superstições do paganismo. ma algum, porque cila nào seria mais a
—Finalmente, outros pensaram, com mais verdade pura e universal, se se deixasse
verosimilhança, que os ccclecticos se appli formular n’uma theoria particular. Não é
caram a imitar muitos ritos da nossa reli nem nas obras de taes philosophos, nem
gião, c a aproximar, tanto quanto lhes era nas opiniões de tal século ou de tal povo
possível, o paganismo do Christianismo. que cumpre procurar a philosophia: é em
Como achar a verdade no meio de tantas todos os escriptos, cm todos os pensamen
conjecturas oppostas? tos, cm todas as especulações dos homens,
Nào approvaremos também o que disse cm todos os factos pelos quacs se manifes
Bruckcr dos padres da Igreja em geral, ta e se exprime a vida da humanidade. A
que nào foram isemptos do espirito dbloso philosophia não está pois por fazer; nào é
dos ccclecticos, e que julgaram, como elles, o genio do homem que a faz: faz-se per si
que era permittido empregar a mentira c mesma pelo desenvolvimento ãclual do mun
as fraudes piedosas para servir utilmente do, de que o homem é parte integrante; faz-
a religião, tomo 2.°, pag. 389. se ledos os dias, todos os instantes, é a mar
É uma calumnia aventurada sem prova. cha progressiva do genero humano, é a his
Estào acaso bem certos de que as obras toria: a tarefa do philosopho é desembara-
apocryphas o suppostas, que appareceram çal-a das fôrmas caducas, sob as quaes ella
nos qüatro ou cinco primeiros séculos, fo se produziu, e certificar o que é immuta-
ram forjadas pelos padres da Igreja, e nào vel e necessario no meio do que é variavel
por escriplorcs dcsauthorisados? Quasi to c contingente.—Muito bem! mas para fa
das apresentam o cunho da heresia; logo zer esta distineção, para operar esta repa
nào foram feitas pelos padres, mas por he- ração, é mister olhos seguros, vista firme e
reges. exercitada; ó mister o critério da verdade;
Enoja que nas discussões, mesmo pura ó mister uma medida, uma regra infallivel;
mente litterarias, c que nào pertencem nem e onde irá tomal-a a philosophia eeclectica?
á theologia nem á religião, os authores pro Nào é n’uma doutrina humana, pois que
testantes deixem sempre penetrar sua pre nenhuma d’essas doutrinas encerra a ver
venção contra os padres da Igreja, c pare dade pura, e porque é'justamente por iss
çam alTectar fornecer armas aos incredu- que é mister o ccclectismo: appellam tan
íos. bem para a razão universal, para a razà
Na palavra Platonismo acabaremos de absolutaI ainda bem se essa razão absoli
justificar os padres, e faremos vér que não •ta se mostrasse sób uma fôrma que llu
foram nem platônicos nem ecclccticos.^Vide fosse propria, e nos désse assim a convic
Economia c Fraude piedosa. ção de que é ella que nos falia; mas não
O ccclcctismo tomou um mui amplo lo- acontece assim no estudo das cousas natu-
gar na philosophia moderna, e se apresen raes: alli, a razão universal nào nos falia
tou como o. non plus ultra da sciencia. 0 senão por meio de razões privadas; alli, ha
theologo deve poder julgal-o. sempre homens entre mim c ella; é sem
0 ccclcctismo, diz M. Riambourg, assi-pre um homem que se declara seu orgão
gnalou a angustia do racionalismo antigo. e interprete; c quando o philosopho nos
E’ o signa 1 precursor do fim do racionalis diz: Eis-aqui o que disse a razão absoluta!
mo contra o seu principio. Naturalmente, isto apenas significa: Eis-aqui o que eu,
o racionalismo tende a dividir: o ecclcctis- na rninha consciência e na minha razão
mo quer conduzir á unidade. propria, julguei conforme á razão univer
0 sal. 0 ecclectismo não possuindo este crité
ccclcctismo alexandrino apoiava-se em
uma mentira: «Os systemas não são con rio tão necessário da verdade, é impossivel
trários.» 0 ccclectismo moderno funda-se que o seu ensino não seja obscuro, vago,
em um absurdo: «Bem que sejam contrá incoherente: ellc não tem doutrina propria
rios, os systemas podem concordar.» mente dita; é um quadro brilhante ónde to
«0 ccclcctismo no século xix, diz M. Bau- das as opiniões humanas devem ter Jogar;
tain (Psychologia experimental, prefacio), é verdadeiras ou falsas, exprimem os pensa
o que foi em todos os tempos, um syncre- mentos humanos, c teem assim direito ao
tismo, um resumo d’opiniões ou de pensa respeito do philosopho; não é mister jul-
mentos humanos que se aggregam sem se gal-as por suas consequências moraes, uteis
fundir, ou, por outra, uma reunião de menv ou nocivas, beneficas ou perniciosas; teem
438 ECC
todas, considerando-as philosopliicamcntc, e contraria, o abandono á fatalidade, a ser
o mesmo valor, sào fôrmas diversas da ver vidão da necessidade sob os exteriores da
dade unica. Mas, se todas as doutrinas são independcncia. Esta philosophia tão rica dc
boas tanto quanto, as expressões foihnaes promessas, mas tão pobre de cíTeitos, como
da razão do homem, todas as accões sel-o- a historia o dirá, está julgada hoje, e não é
hão igualmente como manifestações da sua já a esta escola que uma juventude gene
actividadc livre; não ha ahi nem ordem nem rosa irá buscar grandes idéias, sentimen
desordem para um sêr intclligente, que não tos profundos, altas inspirações.
conhece lei nem fim. «M. Cousin, o corypheu‘da philosophia
O crime ò' um faclo como a virtude; bem
do nosso tempo, póde ser olhado como o
que oppostos cm seus resultados para o in chefe do ccclcctismo moderno. Suas dou
dividuo e para a sociedade, similam-sc em trinas philosophicas foram julgadas por M.
qüe um c outro exprimem um modo da li Gaciano Arnould, que pertence á mesma
berdade, e eis sómente o que lhes dá um escola, mas que sem dúvida não possuo os
valor philosophico. mesmos princípios. A apreciação é severa;
As acções humanas não teem importân mas não ó a nós que M. Cousin deve lan
cia senão á proporção que ajudam ou im çar as culpas; é um discipulo da sua esco
pedem o desenvolvimento da humanidade, la que o julga.
que deve sempre ir avante, nào imporia «Depois dc ter sido successivamente dis
em que sentido ou para que termo, condu cipulo do M. Condillac, dc M. Loromiguic-
zida pela razão universal, que não póde re, de M. Roycr-Collard, dos Escocezes, dc
transviar-se, porque não ha duas vias de Kanl, dc Platão, c dc Proclo, M. Cousin,
aperfeiçoamento: não se tracta senão de meditando, sobre estas variações do seu es
sér, de existir e de se mover. As socieda pirito, pensou que ellas vinham dc que to
des sabem tanto onde vão como os indivi dos os syslemas são cm parte verdadeiros
duos; nascem c perecem, manifestando em e cm parte falsos, como elle mesmo diz.
todo o tempo da sua duração uma porção «Ecclcctismo significa escolha. Em theso
da vida geral, e servindo cTapoio ás gera geral, escolher suppõe cinco cousas, a sa
ções futuras, como a cilas mesmas serviram ber: que o objecto procurado ó do numero
ás que as precederam; representam seu pa dos objectos actualmenle existentes; que
pel na scena do mundo, e depois passam. estes objectos estão á nossa disposição; que
Um século, por mais pervertido que pareça, .sabemos qual objecto buscamos; que sabe
traz em si sua justificação: c que era des mos como cumpre procural-o; que sabe
tinado a representar tal phasc da humani mos em fim quaes os signaes por que o ha
dade; a impressão penosa que produz so vemos dc reconhecer. Na ordem particu
bre nossas almas é um combate dc senti lar da philosophia, o ecclcctismo suppõe:
mento e dc prejuízo. Visto philosophica- l.° que a verdade philosophica é do nume
mente e em si mesmo, é tão mau como qual ro das opiniões emittidas até hoje; 2.° que
quer outro, e perante a verdade/ vale em estas opiniões não são todas conhecidas;
sua existência os séculos de virtude e de 3.° que sabemos perfeitamente qual é o ob
felicidade; é o acontecimento que decide do jecto da philosophia; 4.° que sabemos qual
direito; é o successo que prova a legitimi é o methodo philosophico; õ.° finalmente,
dade; a justiça está na necessidade, porque que sabemos qual o signal porque se re
tudo o que existe é um facto, e todo o fa- conhece a verdade philosophica.
cto é. o que deve ser por aqui 11o só que é. «Ora, primoiramente, se M. Cousin af-
Taes são as lamentáveis consequências da jirmou que a verdade philosophica é do
philosophia ccclectica na sciencia como na numero das opiniões emittidas até hoje,
moral; eis onde rematou o grande movi- não o provou dc modo algum, porque sua
ipentó philosophico do nosso século; é aqui theoria do erro, que lhe serve de primeira
que elle veio perder-se, deixando nos espí prova à priori, além de não ser a verda
ritos que agitou, e como ultimo resultado, deira theoria do erro, nada prova; porque
d’um lado uma especie dc indiíTercnça o seu quadro historico d’opiuiõcs passadas,
para com a verdade, na qual já não creem, que é a sua segunda prova à posteriori,
porque á força de íh’a mostrar em toda a além de ser muito incompleto e muitas ve
parte, vieram a não vél-a em parte algu zes infiel, nada prova; porque seu quadro
ma; e d’outro lado, no procedimento da do presente, no qual mostra os povos da
vida, com uma grande pretenção ao su Europa ajustando-se pará procurar conci
blime. á dedicação, com todas as apparen liar todos os elementos do passado n’um
d a s (io heroísmo, um passaporte de pai systema dc politica ponderada, mesclada
xões, a aversão por tudô o que embaraça d’anarchia, d’aristocracia c dc democracia,
que é a sua terceira prova, nada prova. cha que segue habitualmcnte, e sobretudo
Em segundo logar, M. Cousin disse muitas pela exposição do systema que ensinou em
vezes que nào conhecia as opiniões do ultimo logar... Eis-aqui o tecido: 1
Oriente, anteriores ao tempo da Grécia. Os
primeiros tempos da Grécia são também
pouco conhecidos. Discule-sc todos os dias EXPOSIÇÃO METHODICA DO SYSTEMA
sobre as verdadeiras opiniões de Platão, e DE M. COUSIN
d’Aristóteles. Todos os sophistas dão logar
a tantas discussões quantas elles mesmos
outr’ora sustentavam. Os alexandrinos, os « l.a Definirão.— A substancia é o que
padres da Igreja e os cscolasticos, são mui não suppõe cousa alguma além do si rela
tas vezes citados; mas quem os leu? Quan tivamente á existência, ou o que é em si e
do se quer dizer com verdade o que scria- per si, segundo a etymologia, ens in se^et
mente se pensou, é-se forçado a procla per se subsistens (substans, substantia.
mar que uma grande parte das opiniões «O que não suppõe cousa alguma além
philosophicas, é uma extraordinaria inco de si, relativamentc á existência, chama-se
gnita. Em terceiro logar, não é muito facil absoluto ou infinito.
saber qual é o objecto da philosophia, tal <Axioma.— Dous absolutos ou infinitos
como M. Cousin o dá a entender nas suas são absurdos.
ultimas obras. «Porque, segundo elle, as «Syllogismo.—A substancia é absoluta ou
idéias são os unicos objectos proprios da infinita, segundo a definição. Ora, o abso
philosophia, e as ideias são o pensamento luto ou o infinito é um só*, segundo o axio
sob sua fórma natural, a fórma adequada ma. Logo, a substancia é uma, ou não ha
do pensamento, o proprio pensamento com- senão uma só substancia.3
prehendendo-se e conhccendo-se; as ideias «Escolio.—Substancia e sér são dous ter
não toem senão um caracter, é ser intel- mos synonymos.
Iigiveis, e são só inlelligiveis; não repre « 2 / Definição.—Deus é o sér, como tão
sentam nada, absolutamente nada, senão bem disse Mo*ysés: Sou o qüe sou, isto é, o
ellas mesmas, e existem sós; as ideias são sér em si e por si absoluto.
Deus; e a philosophia é o culto das ideias, «O absoluto ou infinito chama-se neces
e é essencialmente idêntico á religião.» Em sario.
quarto logar, M. Cousin só diz algumas pa «Axioma.—Modus essendi sequitur essi
lavras sobre a maneira d’estudar a philo O sér tem seus modos que são da mesnn
sophia. Em compensação alarga-se longa natureza que elle.
mente sobre o piethodo a seguir para des «Syllogismo.—Deus é o sér necessario,
cobrir em si e por si a verdade philosophi segundo a definição. Ora, o sér necessário
ca. Em quinto logar, íinalmente, M. Cou
sin não diz em parte alguma qual o signal
para se reconhecer a verdade philosophica 1 Algumas notas de que acompanho aqui
entre as opiniões mixtas de verdadeiro e a exposição methodica do systema de M.
de falso. Cousin, não são lo d a sa s objecções que se
«Logo, tres consequências se seguem lhe podem fazer; mas são fundamentaes. Se
d’aqui: a primeira, é que M. Cousin não rá conveniente no entanto lêr a exposição
demonstrou a verdade do principio funda do systema sem interrupção e não se occu-
mental do ecclectismo. Submettido á ana- par d'estas notas senão n'uma segunda lei
lyse, esto principio parece verdadeiro so tura.
mente n’este sentido: que o homem não 2 Definindo assim a substancia, M. Cou
adopta erro algum que não, tenha alguma sin deu a esta palavra um sentido differen
affinidade com a verdade. É falso n’oulros te do que lhe dá ordinaiiamente; podia-o
sentidos. A segunda consequência, é que fazer. Mas no decurso da obra serve-se d'el-
M. Cousin não pôde applicar seu prinGipio la no sentido ordinario; não o devia fazer.
do ecclectismo; porque confessa que uma Esta duplicidade de sentido para a mesma
parte da historia da philosophia, e talvez palavra gera um dos seus erros fundamen
que, algumas vezes, mesmo esta, a estudou taes, q pantheismo.
n ’um espirito um pouco systematico: seu 3 Esta doutrina não é outra cousa mais
bloqueio estava feito. A terceira consequên que o pantheismo de Spinosa. Demais, é
cia, é que M. Cousin nào quiz applicar seu para notar que o principio logico da dou
principio do ecclectismo. Está isto demons trina de Spinosa foi também uma definição'
trado pela analyse do methodo recommen- da substancia, que M. Cousin não fez mais
dado por M. Cousin, pela indicação da mar que repetir.
'440 ECC
lera modos necessarios, segundo o axioma. «4.- Definição.— O phenomeno é o nuo
Logo, Deus tem modos necessarios. 1 suppoc alguma cousa além de si, rclativa-
«3.* Definição.— Os modos do Deus são mente á existência no qué c pelo que é i
ideias. «A causa é o que faz com que o pheno
«Ora, l.° sendo infinito c uno, Deus tem meno exista.
necessariamente a ideia d*unidadc c d’infi- «Escolio.—O que faz com que o pheno
nito. 2.° Deus não tem csta ideia sem sa meno exista é a mesma causa que o phe
ber; mas sabe necessariamente seu modo nomeno suppòe além de si, relativamente
como se sabe a si mesmo. Sabendo e ao a existência. Estas duas proposições são
mesmo tempo sendo sabido, Deus é dous. synonymas.
A dualidade é variedade. O diverso é fini «Phenomeno c eíTeito são lambem dous
to. A ideia de variedade c de finito é a se termos synonymos.
gunda ideia deJDeus. 3.° Estas duas ideias «Att/owa.— Todo o phenomeno suppõe
não existem em Deus sem laço nem união; além de si a substancia.
m as uma intima relação as une necessa «Corollario.—A substancia é causa.
riamente, procedendo d’uma c d’outra, e «Syllogismo.—Os objectos, cujo todo é o
. coexistindo em ambas. A ideia d’csta rela mundo, e aquellcs cujo todo é a humani
ção da unidade com a variedade c do infi dade, são phenomenos, segundo a defini
nito com o finito é a terceira ideia de Deus. ção: porque cada um d'cllcs suppòe algu
«E estas tres ideias são os modos neces ma cousa além de si, relativamente á exis
sarios do sér necessario, absoluto, infinito, tência. Ora, os phcnomeuos teem relação
que é o sér cm si e per si, ou uma sub com a substancia e com a causa que é
stancia. Para designar estas ideias aos íjue Deus, segundo o axioma e o que precede.
escutam, é-se obrigado a nomeal-as uma Logo, o mundo c a humanidade são os phe
depois da outra, successivamente; mas, na nomenos de Deus.
realidade, não ba successão entre cilas;
existem simultaneamente; c ao mesmo tem
po, Deus é a unidade, variedade, e relação da relação do mundo com Deus estão no es
da unidade com a variedade; é ao mesmo pirito humano. Logo o espirito humano é
tempo infinito, finito e relação do infinito Deus, o mundo c a relação do mundo com
com o finito; unidade que se desenvolve em Deus. Mas esta ultima proposição não está
Iriplicidade, e tripli cidade que se resolve em de modo algum incluída nas premissas; a
unidade; unidade de triplicidade que c só conclusão legitima c sómente que as ideias
real, mas que perecería completamente[ sem de Deus, do mundo e da relação de Deus
uma só d'estas tres ideias. Porque estas tres com o mundo estão no espirito humano.
ideias são os modos de Deus. necessários %.°—Devs, ao mesmo tempo infinito, finito e
como elle, tendo todos o mesmo valor, e relação do finito com o infinito, é um ajun
constituindo juntamente uma unidade in- tamento de palavras com as quaes as ideias
•decomposta. Tal é Deus, e este Deus não repugnam ' conciliar-se. Por outro lado, o
é outro senão o Deus de Platão, o Deus da Deus, ao mesmo tempo infinito, finito e re
orthodoxia christã, o Deus que préga o ca- lação do finito com o infinito não pôde ser
thecismo aos mais pobres d’espirito, e aos mais que o universo, do qual não se distin
mais pequenos dos m eninos.2 gue. Um Deus que não e distincto do uni
verso simila-sc muito á negação de Deus,
1 ilf. Cousin cahe ainda relativamente á como um espirito que não é distincto dos
palavra necessario, na mesma falta que oigãos se simila muito á negação do espi
commetteu a respeito da palavra substan rito. O pantheismo de M. Cousin é pelo me
cia. Esta segunda falta produz o seu se nos trtnâo do athcismo. 3.®—Posto que se
gundo erro fundamental, o fatalismo uni possam fazer vêr muitas comas cm Platão e
versal. sobretudo n'um mysterio, è todavia pennit-
2 Sobre isto tudo, eis-aqui tres obser tido duvidar que a Trindade, segundo M.
vações: 4 .°—Ha aqui um sophisma pouco Comin, possa nunca ser mostrada nem na
contestável. M. Cousin diz: As ideias são pretendida trindade platônica, nem na trin
os modos de Deus, concedo. Ora, as ideias dade catholica.
d'infinito, de finito, e de relação do finito i E sta definição de phenomeno, por M.
com o infinito estão em Deus, concedo. Lo Comin, dá logar ‘á mesma obsewação que- a
go D eus-é infinito, finito, e relação do fi definição da substancia, assim como o uso
n ito com o infinito, nego. É como se eu dis que em seguida fa z d'esta palavra. Estas
sesse: as ideias são os modos do espirito hu duas faltas fazem uma só e geram o mes
mano: ora, as ideias de Deus, do mundo, e mo èrro, o pantheismo.
ECC 441
«5.°—A apparição dos phcnomcnos de «Tal é o mundo, manifestação necessa
Deus c a creação. ria de Deus, do qual representa necessa
tOs phcnomenos dc Deus tecm o mesmo riamente os modos ou ideias. 1
•caracter que cite. «7.°— Não ha senão esta humanidade,
iÉ porque a creação 6 necessaria, abso segunda parte da creação.
luta c infinita.1 «E porque— 1.° a vida da humanidade
«6.°— A creação, manifestação de Deus, corre necessariamente, segundo leis irnmu-
manifesta-o necessariamente tal como elle taveis c geraes; é a ideia d’unidade e de
•é com suas ideias ou modos. infinito: 2.° as leis desenvolvem-sc necessa
«É porque—1.° o mundo em geral, pri riamente em factos variaveis c particula
meira parte da creação, c necessariamente res; e a ideia de variedade e de finito: 3.°
unico. A idcia d’umco e d’infinito, que 6 os factos teem necessariamente relação com
um modo necessario de Deus, é tambem as leis; é a ideia da relação da unidade com
um modo necessario do mundo. 2.° O mun a variedade e do infinito com o finito.
do ó necessariamente diverso. A idcia de «Assim a humanidade atravessou duas
variedade e dMnfinito, que é um modo ne civilisações; cila v<* a terceira: l.° a pri
cessario de Deus, é tambem um modo ne meira civilisação foi a do immovel Orien
cessario do mundo. 3.° O mundo é neces te; ideia d’unidade e dMnfinito: 2.° a se
sariamente alliança d’unidadc c de varie gunda foi a da movei Grécia; ideia da va*
dade (uni-verso.) riedade e do finito: 3.° a terceira é a civi-
«A ideia da relação da variedade com a lisação moderna; ideia da relação do infi
unidade c do finito com o infinito, que é nito" com o finito.—Por uma consequência
um modo necessario de Deus, e tambem necessaria, a primeira d’estas civilisações
um modo necessario do mundo. escoou-se nos logares que representam a
«Esta unidade, esta variedade e esta re ideia d’unico e d’infinito: a segunda nos ru-
lação da unidade com a variedade, é a vida presenla a ideia de variedade c dc finito;
do mundo, sua duração, harmonia e belle- a terceira tem sua séde principal na terra
za: ó tambem o que faz o caracter benefico de França, mixto d’unidade c dc variedade,
de suas leis. que representa a idçia da relação do infi
«Da mesma sorte, na astronomia, na phy nito com o finito.
sica e na mechanica, ha necessariamente: «Assim, no seio da humanidade, os po
d.° lei d’altracção; é a ideia d’unidade c vos— 1.° umas vezes vivem sob uma ordem
d’infinito: 2.° lei d’expansão; é a ideia da despótica; unidade e inGnito: 2.° outras ve
variedade e de finito: 3.° relação d’attrac- zes são levados pelo sopro d'uma liberda
ção com a expansão; é a ideia da relação de anarchica; variedade c finito: 3.° final
•âa unidade com a variedade, do finito com mente, param n’um estado que concilia a
o infinito. liberdade c a ordem; relação da unidade e
«Na chimica e na physiologia vegetal e do infinito com a variedade c o finito, etc. 2
animal, ha necessariamente: l.° Lei de co «Assim, no seio dos povos, os que se cha
hesão e assimilação; é a ideia d’unidadc c mam grandes honiens— 1* são os represen
d’infinito: 2.°'lei'*d’incohesão e de dessimi- tantes do povo; unidade e infinito: 2.° elles
lação; é a ideia de variedade e de finito: mesmos são individuos; variedade e finito:
3.° relação da cohesão e da assimilação 3.° são ao mesmo tempo representantes do
com seus contrarios; é a ideia da unidade
com a variedade e do finito com o infinito. 1 Isto não é mais que um jogo d'imagi
«Finalmente, na simples geographia, ha nação; ideias fluctuantes com palavras dou
necessariamente: l.° grandes mares, gran radas. Sem dúvida os grandes factos natu-
des rios, e planicies inconcussas; unidade raes, citados por M. Cousin, são verdadei
e infinito: 2.° pequenos mares, regatos, col ros; mas se se perguntasse a um physico o
linas e valles; variedade e finito: 3.° a re ue pensa de sua razão da lei da attracção
lação de todas estas cousas; relação da uni os corpos, ou a um chimico o que pensa
dade com a variedade, e do finito com o de sua razão da lei de cohesão, que respon
infinito. deríam estes sábios?
2 Varios factos humanitários e sociaes
1 As ideias de creação c de infinito são aqui citados não são verdadeiros: outros só
eontradictonat. Uma creatura infinita não com restricçães podeião ser tomados como
seria uma ci'eatura; um infinito ci'cado não taes. Mas quando mesmo todos o fossem com
seria um infinito. O pantíieismo supprime pletamente, a razão que dá M. Cousin não
de facto a creação. M. Cousin suppritniu a poderá ser tomada como imaginai'ia senão
■causa, deixando a palavra. nos casos precedentes.
442 ECC
povo c individuos; relação da unidade com simples e uno; unidade c infinito: 2.» o m a-
a variedade.— O grande homem é ao mes terialismo, que não vê senão a matéria
mo tempo povo e clle; é a identidade da multipla c plural; variedade c finito: 3.* a
generalidade e da individualidade n’uma conciliação do materialismo c do idealis
medida tal que a generalidade não suíToca mo; relação do finito e do infinito.
a individualidade, c que ao mesmo tempo «Assim, finalrnente, as leis da razão, seus
esta não destroe aquclla, dando-lhe uma elementos ou idéias são necessariamente:
forca nova. Não é sómente um individuo, l.° o uno e o infinito; 2.* o varido c o fi
mas tem relação com uma ideia geral que nito; 3.° a relação do uno com o variado,
determina c realisa... O grande homem c a do infinito com o finito, e todos os conhe
harmonia da particularidade c da genera cimentos ou scicncias humanas não são se
lidade; não o é senão por este preço, por não o desenvolvimento necessário d’estas
esta dupla condição de representar o espi idéias, d’cstes elementos e d’cslas leis. 1
rito geral de seu" povo, e de o representar Porque a razão que se chama humana ou
soh a fórma da realidade, de tal sorte que do homem não pódc ser distincta da razão
a generalidade não abate a particularida que se chama divina ou de Deus. Ella lhe
de, e que esta não dissolve aquclla; que a é necessariamente idêntica, e não é huma
particularidade c a generalidade, o infinito na senão por isso só que faz sua apparição
e o finito, fundam-se iVe^ta verdadeira gran no homem, phenomeno necessário de Deus.
deza humana. • «8.° A apparição de Deus no homem
«Assim, todos os individuos grandes ou por meio de sua razão ou verbo, é o obje
pequenos, leem necessariamente tres facul cto do dogma de Deus feito homem, ou da
dades: 1.* a razão, cujo caracter ó a uni razão encarnada, ou do Verbo feito carne.
versalidade e o absoluto; unidade c infi Esta encarnação c necessaria, perpetua,
nito: 2.a a sensibilidade, cujo caracter é o universal ou catholica; leve sempre logar
seu opposto; variedade c infinito: 3.a a li no passado, em cada homem, c em cada
berdade, cujo officio ó conciliar a razão e instante da vida de cada homem; da mes
a sensibilidade; relação do finito com o in- ma sorte teve sempre logar no presente, e
in ito.1 tel-o-ha também sempre no futuro. Todos
«Assim, na sensibilidade, ha necessaria os homens são irmãos do Christo, isto é,
mente: L° o egoísmo, que é potência de que o que o cathecismo ensina d’elle só é
concentração; unidade e infinito: 2.° a sym rigorosamente verdadeiro de cada um d’el
pathia, que é potência d’expansão; varie les.
dade e finito: 3.° a alliança do egoismo e «Sem a apparição do Verbo divino na
da sympathia; relação da unidade com a carne humana, ou sem a encarnação da di
variedade. vindade na humanidade, esta seria vil, pe
«Assim, na razão ha necessariamente: quena, degradação e nada. Mas o Verbo
i.° a espontaneidade, que vè o objecto in encarnando-se n’ella a ennobrecc, engram
teiro d’uma vista total ou synthetica; uni dece, eleva e resgata. Este resgate é o obje
dade e infinito: 2.° a reflexão, que o vê par- cto do dogma da redempção, idêntica á en
ticularmentc em miudeza ou anal.yticamen- carnação, como ella necessaria, perpetua,
te; variedade e finito: 3.° a alliança da es- universal ou catholica.
ontaneidade e da reflexão; relação do in- « £ este Verbo redemptor e encarnado,
nilo com o finito.—A espontaneidade é re Deus e homem ao mesmo tempo, substan
velação primitiva, fé, religião, poesia e in cia divina n’uma fórma humana, sêr infi
spiração; a reflexão é exame da revelação, nito, eterno, immenso, n’unt phenomeno fi
sciencia, philosophia, prosa e meditação; a nito, passageiro e local, é também o m e-
terceira é alliança da inspiração e da medi
tação, da revelação c do exame, da scien
cia e da fé, da religião e da philosophia, 1 Se nos demoramos no verdadeiro, quer
da poesia e da prosa. isso dizer sómente que os objectos percebi
«Assim, entre os systemas philosophicos dos por nós são finitos; que cada um d'elles
nascidos da razão, ha necessariamente: l.° nos suggere a ideia d'alguma cousa d'infi
o idealismo, que não vê senão o espirito nito, e que concebemos os objectos finitos
conio existindo no infinito e pelo infinito;
i mas que distancm ha d'estas proposições ás
E sta theoria das faculdades do espi
rito , extremamente vaga e geral, não tem que fazem as sciendas humanas!... e como
na verdade valor scientifico. Nada se ado ellas pouco ou nada as auxiliam!... No en
p ta aos factos senão alterando-se e alteran tanto são o principal fundamento do syste
do-os a elles proprios. m a de AL Cousin.
EGC 443
diador necessario entre o homem c Deus. questão ó facil terminar-se pela inspecção
Ninguem pódc ir até Deus senão por meio de suas obras.
do Christo: quer dizer, que cada homem «Consultemos os seus Fragmentos (Pref.
se resgata a Deus pela razão, que é o Ver pag. x l , !.• ed.); eis-aqui as suas palavras,
bo. Mas o Verbo era antes do nascimento para as quaes peço a maior attenção: «O
_d’Abrahão, e continua 'a ser com cada ho Deus da consciência não é um Deus ab
mem até ao fim dos séculos, porque o Ver stracto, um rei solitário, desterrado além
bo é o proprio homem, e este c o Verbo da creação, sobre o throno deserto d’uma
são Deus. eternidade silenciosa c d’uma existência
«Tal é o systema de M. Cousin... absoluta que se parece com o proprio nada
«A quantas objccções este systema se ex da existência: é um Deus ao mesmo tem
põe! Sao tacs que não pôde ser sustentado po verdadeiro e real, ás vezes substancia
cm nenhuma de suas partes... e causa, seqiprc substancia e causa, não
«Um grande mal intellcctual, feito por M. sendo substancia senão tanto quanto é cau
Cousin, foi, sem contradicção, fortificar na sa, e causa senão tanto quanto é substan
juventude que o escutava ou o lia, a ten cia, isto é, causa absoluta, um c muitos,
dência hoje commum de contcntar-sc de eternidade e tempo, espaço c numero, es
grandes palavras, que se não comprchen- sência e vida, indivisibilidade e totalida
dem, a não fallar senão por meio de for de, principio, fim c meio; na summidadc
mulas ou de princípios absolutos, e a pre do sêr, c no seu mais humilde grau; infi
ferir em tudo esses bosquejos vagos e gc- nito c finito juntamente; triple emtim, isto
raes, que não são desprovidos de certa bel- é, alternalivamente Deus, natureza, c hu
leza, mas bellcza estéril, e que escondem manidade. Com etfeito, se Deus não é tudo,
muitas vezes uma ignorância real sob uma não é nada; se é absolutamente indivisível
falsa apparencia de sciencia, farrapos de em si, é inaccessivel, c por consequência
miséria sob os ouropéis dourados do char incomprehensi vel, c sua incomprehensibi-
latão... M. Cousin, que era bcllamcntc do lidade é para nós sua destruição.»
tado de tudo o que necessitava para luctar «Pesemos todas as palavras d’estc pe
vantajosamente contra este despotismo, cur riodo, á exccpção das primeiras, que são
vou à fronte; sacrificou-se á moda, e sa- quasi enygmaticas e sobre tudo mui sus
crificando-sc na sua alta posição, augmen- peitas. Os membros das phrases seguintes,
tou a reputação do falso Deus, e tornou seu que são perfeitamente claros, nos dispen
idolo mais diflicil d’abater. Que o verda sam d’esse exame. Deus é tempo, esparo c
deiro Deus lhe perdoe! numero. Que prova apresenta M. Cousin
«Os resultados de seu ensino foram tam para o decidir com tanta affouteza? Ne
bém funestos á moral em alguns pontos. nhuma. Mas como o tempo, o espaço, e o
Sua doutrina do pantheismo fatalista e opti- numero são limitados c não podem entrar
mista tende sómente a destruir a virtude n’uma substancia simples, começa a deixar
no seu principio, que é a crença nos de perceber n’isto o pantheismo que tem no
veres de luctar contra a desgraça c o mal. espirito... Deus mostra-se na summidadc do
Nada menos do que isto. É nesta lucta, no sêr, e no seu mais humilde grau. Póde por
bremente sustentada, que consiste a belle- ventura haver diversos graus do sér, uns
za do caracter; muitas pessoas julgaram superiores aos outros na perfeição sobera
aprender de M. Cousin a consideral-a como na? Por outra, qual é o mais humilde grau
uma chimcra c uhia nccedade; obrani con do sér? É evidentemente aquelle que oc
sequentemente. cupa os corpos rudes c materiaos disper
«Finalmente, sob o ponto de vista de re sos no universo. Estes corpos fazem parte
ligioso, só conseguiu fazer atheus, tornar-se do sêr divino. O mesmo erro... Deus é ju n
mau christão, c parodiar o catholicismo. tamente finita e infinito. Eis seguramente
Muitos dos que foram seus discipulos tor a mais monstruosa e revoltante alliança de
naram-se san-simonianos. palavras de que ha talvez exemplo; porque
«Monsenhor Clausel de Montais mostrou é evidente que um sêr finito sob certa re
n’uma serie de cartas, todos os perigos da lação não ó infinito em sua essencia. Mas
philosophia de M. Cousin. Citaremos um quando se pretende que Deus está con
fragmento. strangido na materia, c que ella faz parte
«E primeiro que tudo, diz o prelado, o de sua essencia, a união d’estas duas pala
author grita contra os que taxaram sua vras parece á primeira vista um pouco me
doutrina de pantheismo. Assevera, com o nos repugnante. É pois a este estado que
tom mais firme e decidido, que pelo con o author reduz a divindade. Seguem-se ex
trario, o combateu sempre. Esta primeira pressões tão atrevidas, que não se acredita
riam, se a clareza c precisão dos termos das da sua substancia^ c como esta su b
não tornassem impossível um engano: Fi stancia adoravel é simples, indivisivcl, im -
nalmente Deus c triplice, isto c, alternativa- mutavel, inalterável, incapaz, num a pala
mente Deus, natureza e humanidade. A dou vra, de se transformar, é mister necessa
trina do Deus-universo brota d’estas pala riamente concluir que todas as cousas pro
vras d'uma maneira tão viva e tão pene duzidas por ellc participam da sua su b
trante, que não exigiría um commentario, stancia, são a sua propria substancia, de
mesmo para um infante. O primeiro sêr é sorte que tudo é Deus no universo. Imagi
alternativamente Deus, natureza e huma ne-se quantas subtilezas se quizer, que nao
nidade. Como explicar melhor que todas se escapará nunca a esta consequência.
as cousas existeutes não fazem senão um «Finaliscmos este artigo por um indicio
todo unico? Todavia o author sabe achar mui surprendente. Ninguém ignora que
novas expressões para traduzir o mesmo Spinosa deu o seu nome ao pantheismo
pensamento. Se Deus não é tudo, não é na moderno. Ora o chefe da escola philoso
da. É exactamentc a divisa e a palavra de, phica actual mostra por este judeu hollan-
ordem dos panthcistas. Sim, se Deus não dez uma predilecção ou antes um cnttyi-
é réptil, tigre, panthera, não é nada. De siasmo que manifesta uma viva sympathia.
testável blasphemia, que deve no entanto Fórma a respeito d’este homem um juizo
proferir aquellc que sustenta uma tal opi que não póde deixar d’excitar uma extre
nião. A incomprehensibilidade de Deus é ma surpreza. Não lhe acha, me parece,
para nós a sua destruirão. Ora c prccisa- outro defeito senão o ter sido muito reli
mente o contrario, segundo a opinião de gioso: Longe de ser um atheu, diz ellc, Sqri-
todo o homem capaz da mais leve reflexão. nnsa possue de tal sorte o sentimento dc
«Que espirito com efleito não é tocado Deus, que perde o sentimento do homem;
d’esta verdade, quê vistas finitas como as c um excesso dc que ninguem o julgaria
nossas são muito curtas para penetrar to capaz. O nos^o escriptor acrescenta: Seu
das as profundezas do infinito? D’onde se livro é no fundo um hymno mystico, um
segue que se Deus fosse comprehcndido impulso c um gemido da alma para com
por nós, não seria infinito, não seria Deus. elle, que só póde legilmiamente dizer: E u
Mas não, o author dos Fragmentos, como sou o que sou. Sim, sem dúvida, Spinosa
se vê em todos os seus livros, não quer canta aquelle que é, mas que é á maneira
que haja mysterios para a razão humana. dos pantheistas: quando se tracta de Deus,
SuStenta que póde abraçar todo o infinito. o judeu d’Ainsterdam não conhece outro.
Ail que resulta pois? É que ellc equipara Parece evidente que aquelle que se deixa
a nossa intelligencia á sabedoria increada, acariciar quasi arrebatadamente por este
que faz a sua apotheose, e que sem o pen cantico mystico, não póde ser senão um
sar, sem dúvida, erige o execrável altar da philosopho affeiçoado á mesma escóla. Fi-
deusa Razão. nalmcnte, cis-aqui as palavras mais ex
«Eis pois o sentido bem claro em todas traordinarias, creio eu, que tenho lido: se
as suas minuciosidades d'csto longo pe guramente ha poucas pessoas que não pos-
riodo. Affirmo com confiança que nunca sam.dizer outro tanto. Fallando de Spinosa,
se enunciou o pantheismo d’uma maneira exprime-se n’estes termos: O author com o
mais explicita, mais clara, mais cathego- qual mais se assimila este pretendido atheu,
rica. Não póde escapar a author algum, é o desconhecido author da Imitação dc Je
que a nossa philosophia era insaciável de sus Christo (Fragmentos, tom.2, pag. 164,
repetições e de figuras para pôr mais vi 165.)
gorosamente em relevo esta deplorável dou «Quê! esse homem tão venerável, tao
trina. Accrescentemos, mas inutilmente, piedoso, e ao mesmo tempo d’uma alma c
alguma prova mais. d’um espirito tão elevados, a respeito do
«Deus, segundo o mesmo escriptor, tira qual Fonlenblle proferiu uma phrase co
o mundo não do nada que não existe, mas nhecida de todo- o mundo, que Leibnitz ad
d'elle, que é a existência absoluta. (Introd. mirava, era pois como uma imagem e um
á Hist. da Philosophia, 5.a liç., pag. 27.) Pois retrato anticipado do judeu apostata! Po-
que Deus não tira o mundo do nada, por de-sc levar mais longe a gloria d’essc im
isso que não existe, tira-o por consequência pio, execrado hà dous séculos por todos os
d’uma cousa que existe, isto é, d’uma sub povos civilisados? E como é possível dei
stancia effectiva e real. Ora, no instante xar de crêr que aquelle que o louva com
que precedeu a creação, não havia outra uma effusao tão viva c com tão singulares
substancia senão a substancia divina. Se transportes, approva e mesmo partilha seus
gue-se que Deus tirou todas as cousas crea- sentimentos?
ECC 445
«Dir-sc-ha talvez que ellc reprovou mui contrários. Mas não é evidente que entre
tas vezes esso systema do Dcus-universo. duas doutrinas, das quaes uma ataca todas
Mas comludo dizer o pró e o contra não é as paixões, c a outra as lisongeia, entre o
retractar-se, sobre tudo se persiste em di- theismo, por exemplo, que colloca sobro
zcl-os sobre o mesmo objecto... Retractou- nossas cabeças um Senhor, um juiz formi
se, mas como? quem o acreditará? Algu dável, e o panthcismo, que mostra um Deus
mas vezes mesmo pretendendo desappro- obrigado na materia, e por isso mesmo im
var a sua profissão de crença panthcistica, potente c como que estúpido, não é evi
renova-a c confirma-a. Eis um exemplo dente, repito, que ifesta alternativa, um
proprio a excitar vivamente a curiosidade. grande numero de homens, ou entregues
N’um dos prefácios que estão á frente da as illusões da juventude, ou pouco instrui-
3.a edição, p. 19, o philosopho que nos oc dos ou pouco tocados do que tem relação
cupa repelle ao principio com uma extre com Deus e com a salvação da alma, dei
ma vivacidade a accusação do panthcismo. xassem o systema que os contraria, c abra
Lança de passagem estas* palavras, que tris çassem com ardor aquclle que alarga a
temente nos surprenderam, a saber: que o rédea ás suas inclinações c lhes authorisa
seu Deus não é o Deus morlo da escolas- todos os excessos, todos os arrebatamen-
tica (como se a escola tivesse jamais reco tos, todos os caprichos?
nhecido outro Deus que não fosse o Deus «É pois incontestável que o pantheismo
vivo dos christãos); e apoz uma explicação domina todos essas doutrinas que querem
cheia de calor em fórma d’apo!ogia, faz chamar philosophicas: e o que accrescenta
uma horrivel reincidência, isto é, refere o muito á preponderância dada a esta dou
grande periodo citado mais acima, apoia- trina pelo author, é uma circumstanda, que
se n’csla passagem, e confessa-a authcnti- é mui essencial notar. Com effeito, se elle
camento dc novo. Na verdade, por um se- houvesse abjurado tão monstruosa opinião,
mi-remorso, suspende-se ante estas expres parece que se admiraria de ter podido abra-
sões fataes: triplo emfim, isto é, alternati- çal-a e defendel-a, que gemeria profunda
vamente Deus, natureza, e humanidade; mente á vista d’essas linhas que tivesse a
porém cita tudo o que precede. Ora quando desgraça d’escrever n’essc intuito, que que
se diz que Deus é tempo, espaço e numero, rería apagal-as com suas lagrimas, c que
que é infinito e finito, etc., exprime-se su- sc apressaria cm fazer desapparccer o me
perabundantemente a doutrina do pantheis- nor vestigio d’ellas. Mas acontece precisa
mo. E’ assim que elle rccahe no abysmo ao mente o contrario: fez reimprimir o gran
qual pretende ter sempre escapado, c que de periodo já mencionado em todas as edi
se torna a deixar arrastar pela inclinação ções das suas obras; acha-se pelo menos
de systema, c pelo imperioso ascendente na terceira edição, que appareceu doze an
dc seu secreto e profundo pensamento. nos depois da primeira, e que tenho á vis
«É esta, devemos convir, uma estranha ta. Não tocou, não mudou uma só palavra,
maneira dc se corrigir. As outras palino uma só syllaba. Como conciliar o seu ar
dias do author, que quasi não merecem es rependimento com esse cuidado tão perse
te nome, são, é verdade, d'um outro cara verante em reavivar aos olhos do público
cter; mas são vagas, indirectas, mal apoia um texto que deveria a todo o custo sub-
das, e de modo algum concludentes. D’ahi trahir-llfo, e fazer-llfo, se possível fosse,
que sc segue? É que se estas modificações esquecer para sempre?
ennervam um pouco a força do grande* pe «Observamos estas cousas, aproxima-
riodo, por exemplo o que citei mais acima, mol-as, c tiramos d’ellas tristes inducções;
c onde o pantheismo é professado com tan não é visivel, com efleito, que a impressão
ta precisão, solemnidade e esplendor, por produzida por taes livros é medida sobre
outro lado este periodo, com a lucidez ex todas estas circumstandas? E quanto é dif
trema e o vigor de suas expressões, des- fidi que um joven, sobre tudo, que as leu
troe todo o valor d’essas retractações amor dc boa fé, e que os toma para regra de
tecidas e incompletas, nas quaes temos des seus juizos e dc suas crenças, não saia
de logo o direito dc só vér palliativos, pa d’csta leitura com o pantheismo no cora
linodias concertadas e pouco dignas de con ção, ou ao menos com uma predilecção
fiança. Esta observação é, me parece, d’um manifesta por este detestável systema?
m ui grande péso, e ainda mesmo que os «Esta consequência é afflictiva, mas é-o
dous termos oppostos d’cstas contradicções ainda mais ciuando se considera que o pan
fossem d’uma igual energia, que poderia theismo é, n um sentido, mais pernicioso e
resultar? Que o author deixaria a cada mais funesto á sociedade que o mesmo
um a escolha dc dous partidos diversos ou atheismo. O atheu limita-se a considerar
446 ECC
o crime como indiíTerente; sua cegueira oxame tão doloroso c que tanto insulta a
nào vai mais longe; mas a opinião do pan- nossa fé. Sc os devemos acreditar, a re
theista, que julga ser uma porção da eter velação verdadeira, segundo clles, é a ra
na essencia, torna respeitáveis a seus ollios zão, é o espectáculo da natureza c a im
todos os seus actos; ella consagra seus er pressão que faz em nossas almas. (Ensaio
ros, sanctifica todos os seus exames, divi- sobre a Historia da Philosophia cm Franca
nisa seus mais odiosos c mais negros at- no século dezenove, por M..., professsor áe
tentados. Quem não estremecería aqui, philosophia.) A razão, dizem clles, é lilte-
quem não veria um medonho perigo n’es ralmente uma revelação; c o mediador ne
tas impressões recebidas por tantos leito cessario entre Deus c o homem, é esse Ver
res? E como calcular os males que aguar bo feito carne, que serve d'interpretc a Deus,
dam uma sociedade cm cujo seio as dou c de prcccptor ao homem, homem alternati
trinas de que acabo de fallar fossem mes vamente e Deus ao mesmo tempo... o Deus
mo algum disfarce, diíTundidas por mil ca- do qene.ro humano. Ora pódc haver dous
naes e ao abrigo d’um titulo especioso c mediadores divinos (sua duplicidade seria
honroso? inútil, c d\alguma sorte serviríam dobsta-
«Se as verdades mais elevadas, mais re culo um ao outro); não póde haver dous
verenciadas foram tão perigosas c audacio Verbos feitos carne; o imperio do genero
samente atacadas pelos modernos philoso humano não póde ser dividido entre dous
phos, tenho, necessidade de dizer que não deuses differentes. Segue-se que a razão é
pouparam também outras verdades oriun tudo, que «supplanta Jesus Christo, c que o
das d’ellas? tenho necessidade de mostrar culto (Teste Deus salvador não é mais que
de que maneira tractam o Christianismo? uma allegoria, uma ficção, um mytho. E s
É facií julgar pelo que já se tem visto. O ta deificação da razão, e o aniquilamento
artigo mais augusto da nossa fé, a Trin do Christianismo, que é a sua consequên
dade, na unidade da qual adoramos o Pa cia, e o fundo de todo o seu systema. Em
dre, o Filho, c o Espirito Sancto, que é todos os logares dos seus livros acha-se es
para clles? Já vol-o disse; nào véem n’este ta intenção bem ou mal disfarçada... Es-
symbolo mais que o Deus triplo, que é al- forçam-se em occultar, pelo menos na ame-
ternalivamente Deus, natureza e humani tade, estas monstruosas imaginações... Sim,
dade. Depois d’isto, em que se torna a en iTestc intuito inventaram um estratagema,
carnação da segunda pessoa, a redempção mas um estratagema grosseiro; eil-o:
e toda a nossa religião? Mas não é só isto. «Sob o nome de mysticismo, termo ajus
«Que discipulo do Evangelho nào geme tado, pelo qual designam a crença no so
ría profundamente ao lêr as palavras se brenatural e nos mysterios, e que esten
guintes: A philosophia é paciente; feliz em dem ao culto protestante, porque teem a
ver as massas entre os bi'aç.os do Christia fraqueza de crêr em Jesus Christo; sob o
nismo, contenta-se estendendo-lhe docemen véo d’esta dominação insultam a religião
te a mão, e ajudando-o a elevar-se mais al do Christo, escarneccm-na, aviltam-na, ca-
to ainda (Introd. d Hist. da Philosophia, 2." lumniam-na, religam-na no povo c nasíwos-
liç., pag. 38.) Que compaixão insultante e sas; fazem d’ella o termo opposto á razão
divisória! Vós: o védes: cllc quer lançar e á reflexão: decidem que ella marcou o
uma vista d?interesse sobre a religião chris- seu tempo (d’onde seria forçoso concluir
tã; adapta-se, faz-se mais- pequeno para des que Jesus Christo, que lhe prometteu unia
cer até cila; digna-se prestar o seu apoio duração sem fim, enganou o mundo); fi-
ao Christianismo, tão digno de piedade, que nalmênte, quando querem fazer-lhe mais
produziu tão poiicas virtudes resplenden honra, declaram com altivez que ella é o
tes, que foi defendido por tão poucos ho antecursor, c figura-vacuo, o involucro de
mens d’um genio eminente, que fez tão sua propria philosophia, a qual bem de
poucas conquistas no universo. Estcndc- pressa triumphante, abrirá uma era afor
se-lhe a mão docemente, com bondade, com tunada de liberdade sem peias, de felicida
uma tocante condescendência; e para qué? de sem mixto, e formará a unica religião
para o elevar mais acima. E até onde o quer verdadeira. Abstenho-me dc qualificar esta
pois fazer subir? presume-se: até á altura presumpção e dfclirio.
da sua philosophia. Ai! vós a conheceis já. «Como encaram elles o que tem relaçaó
Póde-se acaso zombar, com um despréso com a existência e immortaliddde da al
tão incrível de toda a circumspecção, de ma? Antes de responder devo notar que
uma religião crida e venerada no mundo inventaram um methodo que se chamou
inteiro? psychologico. Esta vã e perniciosa novidade
«Façamos urn esforço para continuar um consiste em transportar o grande meio de
i
EGC 447
•conhecer o que Deus nos deu, do espirito parte do mundo, havería sein dúvida lou
ao coração e do entendimento á consciên cura, c por consequência algum mal em
cia. Investiram por esta causa a ordem e destruil-o sem razão, cm mutilal-o por ca
o destino das faculdades de que o Crcador pricho. No entanto, não seria crime nem
nos proviu. Deus vinga a sua obra quando injuria; seria uma offensa á natureza, e
ousam tocar n’clla; pediram luzes a este não a um sér moral.» Ensaio sobre a ílist.
methodo c nào obtiveram senão equívocos, da Phil. em França no século dezenove, t.
erros, e espessas nuvens. Um exemplo de 2, pag. 257.)
cisivo, ouso dizcl-o, e que tem relação com E’ assim que uma doutrina repellida com
a verdade de que se tracta n’estc momen horror pela religião, por- todos os séculos
to, isto é, com a espiritualidade da alma, e por iodos os povos, o ate pelo instincto
confirma esta observação. 0 celebre philo dos animaes; que uma doutrina que se
sopho, cuja recente perda deploramos (Gouf- pulta na desolação familias sem numero,
froi), confessou abertamente que o dogma e nos torna n’estc momento o escandalo do
de que falíamos não achava nem prova universo, é consagrada, é sellada pelas ma
nem apoio na actual sciencia philosophica. ximas dos que se lisongciam de ter entre
Não poderam, sem uma confiança incrível, nós a suprema direcção do pensamento, c
negar, como fizeram, a realidade d’esta sobre que repousam ós futuros destinos da
opinião concebida cm termos tão formaes França. Sim, despedaçam, ou antes cons
como estes: È mister deixar dormir esta purcam o codigo da moral, destroem toda
questão (a da immatcrialidadc e immorta- a sanctidade de seus preceitos, corrompem
lidadc da alma); no estado presente da scien todos os princípios de felicidade que elle
cia, é até impossível encetal-a (Esboço de encerra, transformam-no n’uma fonte de
Phil. moral, Prcf. do trad., pag. cxxxvi). sangue e de lagrimas. Eis pois a que se
Hoje temos mais conhecimentos relativa rendeu toda essa philosophia. Ella não <
mente a esta questão, e revelações feitas mais que um acerbo de temeridades into
depois da rnorte do author, que acabo de leraveis, de princípios falsos, que formad
designar, nos deram a conhecer que esse uma oííensa sacrilega á essencia de Deu
methodo psychologico não havia podido re- e ás suas perfeições, que fazem esvaeccr c
primil-o, ou mesmo que o havia collocado dogma da immortalidade da alma. que ani
no pendor d'um pyrrhonismo universal, cm quilam o Christianismo, que desterram do
cujo seio se extinguiu essa vida toda de inundo a virtude, c fazem pedaços a regra
meditação e estudo. dos costumes.
t Deverei fallar da moral? Em que a «Agora pergunto: o caracter d’cstes es-
tornam elles? Que base lhe dão? Ah! elles criptorcs, considerados como escriptorcs c
lhe tiram toda a força, toda a saneção. As como philosophos (porque longe de mim o
sim desarmada, que virtude póde cila fa tocar em suas qualidades privadas), me
zer brotar? que vicios póde reprimir? que rece que se colloqucm cegamente cm suas
excessos está em estado de prevenir? Um mãos os mais preciosos thesouros da pa
•horrível flagello desola a nossa França: é tria, sua felicidade c grandezas futuras, a
o suicídio. Que dique lhe oppoem, *que sorte d uma religião que por tanto tempo
preservativo para esse acto espantoso de foi o seu apoio, a sua gloria, o objecto do seu
dosespôro? Nenhum; facilitam-no,, promo respeito e amor? Qual é a sua maneira de
vem-no pelo contrario. Com o seu pau- philosophar? onde está a sua lógica? onde
theisnío, seu material ismo, ou, se o que está a connexão, a gravidade, a utilidade
rem, com o seu espiritualismo, que não de suas maximas? Que respeito teem elles
•traz apoz si obrigação alguma moral, met- para com as leis que sempre dirigiram a
tem o punhal na màb do desgraçado,.que razão? Sabem-no aquellcs que os teem lido
despedaça o seio, impellido antes por sua com discernimento. Em geral, julgam-se
fatal doutrina que por vãs angustias, para dispensados de provar o que avançam, e
as quaes poderia muitas vezes achar um muitas vezes apresentar no logar da de
remedio facil. E querem a prova? Achal-a monstração uma torrente d’asserções deci
hão n’estas revoltantes palavras do pro sivas, d’expressões inintelligiveis, de figu
fessor philosopho, muitas vezes citado: «0 ras violentas para atordoar o leitor, logho-
•corpo depende da alma por certas relações machia, phraseologia vaga e pomposa, ro
muito intimas; é-lhe necesssario como in deios sophisticos para mostrar, occultar,
strumento d’acçào, para ser tractado com reproduzir, e disfarçar proposições contra
indiflerença. Nao porque tenha direitos aos rias ás opiniões geraes e verdadeiras. Apoz
cuidados que lhe são proprios; é apenas esta flexibilidade e astúcia, o que mais dis
physico em si mesmo. Eueito da ordem, tingue suas obras é uma obscuridade mais
448 EON
ou menos profunda. Também não é raro judeu, por nome Elxai, se uniu aos ebio
achar um homem de senso, que depois de nitas, e compôz certo livro que encerrava,
ter estudado seus livros com um verdadei dizia elle, algumas prophetias, c uma sa
ro desejo do se instruir, confesse que essa bedoria inteiramente divina. Os clccsaitas
leitura havia fatigado horrivelmente seu affirmaram que havia descido do céo. El
cerebro, e que só havia lucrado trevas e xai era reputado pelos sectários como uma.
um langor oppressivo. potência revelada, communicada pelos pro
Desgraçadamente estas trevas nem sem phetas, porque o seu nome cm hebreu quer
pre são impenetráveis, e as paixões sabem dizer que é revelado: até reverenciavam os
lér perfeitamente através das nuvens. Não, da sua raça, a ponto de os adorarem, c de
essas doutrinas não merecem o nome de se supporem obrigados a morrer por elles.
philosophia. Em vez d’esclarecer o espirito, No imperio de Valente ainda se conserva
só produzem dúvidas, perplexidades cruéis, ram duas irmãs da familia d’Elxai, ou da
e uma horrível confusão d’ideias. Posso raça abençoada, como elles a appellidavam
empregar a esto respeito as palavras de S. chamadas Martha, e Marthena; eram con
Paulo: Videte ne quis vos decipiat per phi sideradas como deusas pelos clccsaitas
losophiam et inanem fallaciam (Coloss. n, quando appareciam em público, elles as
8): Tomai sentido, não vos deixeis tran- acompanhavam em tropel, ajuntavàm a
sviar por uma philosophia enganadora e terra que pisavam, e a saliva que cus
vasia de luzes e dos bens que promette. piam: guardavam estas cousas, e as tra
Tal é o verdadeiro caracter d’csscs syste- ziam comsigo como preservativos singula
mas, que enfeitam com um nome que lhes res. 1
não pertence. São similhantcs a esses va Tinham algumas orações hebraicas, que
sos sobre que inscrevem um nome pom queriam se rezassem sem se entender. M.
poso, para persuadir que encerram essen Basnagc provou muito bem que os clccsai
tias raras e preciosas, mas que só occul tas nào provinham dos essenios.2
am uma vã poeira misturada dos mais EycRATiTAS—Veia-se o artigo Taciano.
dprtaes venenos.» ,N, eon da e s t r e l l a —era um cavalheiro
EJXESAITAS, OU OSSONJA.XOS, E ^ M P S E A N O S bretão, que vivia no duodecimo século.
—Era uma seita'dc fanaticos quê ájíttítã'- Pronunciava-se então tão mal o latim, que
ram a algumas prácticas christas os erros em vez de se proferir eum como nós o pro
dos ebionitas, os princípios d’astrologia ju nunciamos hoje, proferiam eon: e assim no
! diciaria, as prácticas da magia, a invoca credo em logar de cantarem per eum qui
ção dos demonios, a arte dos encantamen venturus est judicare vivos, et mortuos,
tos, e observavam as ceremonias judaicas. cantavam per eon qui.
Nas idéias d’estes hereges não se deve Sobre esta pronuncia, Eon da Estrella so
buscar nem ligação, nem coberencia: elles nha ser elle de quem se.dizia no symbolo
adoravam um só Deus, c presumiam dar- que viria julgar os vivos e mortos; c esta
lhe grande honra em se banharem muitas visão o enleia, esquenta-se a sua imagina
vezes no dia; reconheciam um Christo, um ção, e se persuade ser o juiz dos vivos e
Messias, a que davam o nome de Rei Gran dos mortos, e por consequência o Filho de
de. Ignora-se porém se criam que Jesus Deus: publica-o, o povo o cré, ajuntá-se, e
Christo fosse o Messias, ou algum outro o segue em tropel por diversas provincias
que não tivesse ainda vindo: davam-lhe de França, aonde elle saqueia muitas ca
uma fórma humana, invisível de perto, de sas, e principalmente os mosteiros. Distri
trinta e oito léguas d’altura, e seus mem buiu em diversas ordens os seus discipu
bros eram proporcionados a este talhe: los, sendo uns anjos, outros apostolos: este
criam que o Espirito Sancto era uma mu se chamava o ju ízo, aquelle a sabedoria,
lher, porque a palavra que o exprime em outro a dominação ou a scienda, etc.
hebreu é dó genero feminino, e talvez tam Muitos senhores enviaram gente para
bém porque havendo o Espirito Sancto des prender Eon da Estrella, mas como elle
cido sobre Jesus Christo, no seu baptismo, a tractava bem e lhe dava dinheiro, nin
em fórma de pomba, e tendo dito Jesus guem o quiz prender, e publicaram que
Christo que elle era o seu filho muito ama era um magico que encantava os que o
do, colligiram d’aqui ser o Espirito Sancto pretendiam capturar: esta impostura foi ge
uma mulher, a fim de não darem dous ralmente acreditada, porém o arcebispo de
paes a J esu s.1 Reims o fez aprisionar, e então se disse
• Governando o imperador Trajano, um
1 Epiph. Hcer. 19.
1 Grab. Spicileg. PP. 2 Basnagej Annales Eccles. t. 1.
EUN 449
que os demonios o tinham desamparado. abundantemente o Author da Natureza;
0 mesmo arcebispo o apresentou no conci mas a paixão e a ignorância foram as que
lio, que por ordem do papa Eugênio m se rompendo esta igualdade c união commum,.
congregou na mesma cidade de Rcims, introduziram o mal no mundo: as idéias da
contra os erros de Gilberto de Porrée. Fize propriedade exclusiva nào entraram no
ram-lhe perguntas, e se viu que nada mais plano da Intelligencia Suprema, mas são.
era que um insensato: condemnaram-no a obra dos homens.
cárcere perpetuo; porém fizeram queimar Estes pois, formando leis, tinham sahido
ojuizo c a scienda, c alguns outros de seus da ordem, c para tornarem a entrar n’ella,.
discipulos, que nào quizeram reconhecer a era forçoso abolil-as, e restabelecer o es
falsidade das prclenções de Eon da Es- tado da igualdade cm que o mundo fôra
trella. 1 formado.
No mesmo século em que parte do povo D’aqui concluo Epiphanio que a união,
era allucinado por Eon da Estrella, Pedro commum das mulheres era o restabeleci
de Bruys, Tanchefino, Henrique, e muitos mento da ordem, bem como a união com
outros fanaticos, ensinavam diversos erros, mum dos fruetos da terra: os desejos que
e amotinavam os povos contra o clero: de recebemos da natureza são os nossos direi
outra parte os theologos se dividiam nas tos, no seu sentir, e uns titulos contra os
escolas, levantavam questões theologicas, quaes nada pôde prescrever. Comprovára
as mais subtis, e formavam partidos op- estes princípios pelas passagens de S. Pau--
postos e inimigos; mas o povo nào tomava lo, que dizem que não se conhecia o pec-
parte nos seus odios, porque era nimia- cado antes da lei, e que não haveria pec-
mente ignorante para haver de se interes cado algum se não houvesse lei. Assim jus
sar em suas altercações. tificava toda a moral dos carpocracianos, e
Este mesmo povo, summamente igno combatia a do Evangelho.
rante acerca da religião, porque as luzes Epiphanio morreu da idade de dezesetc
ou a ignorância do povo são sempre pro annos: foi reverenciado como um Deus,
porcionada^ ás luzes ou á ignorância do consagraram-lhe um templo em Samé, ci
clero, se deixava induzir e se apaixonava dade de Cephalonia, leve altares, c em seu
pelò primeiro impostor que o queria enga nome erigiram uma academia.
nar: e jamais faltaram espíritos que o in Todos os primeiros dias do mez se ajun-
tentassem em séculos ignorantes. tavam os cephalonicos no seu templo para
.jffiPHÃBlfc-niho de Carpocrates, foi in celebrar a festa da sua dedicação; oiíere-
struído na philosophia platônica, e creu en ciam-lhe sacrifícios; faziam banquetes, e
contrar n’eila princípios proprios para ex cantavam hymnos em seu louvor.1
plicar a origem do mal, e para justificar a Veja-se Presbyterianos.
moral de sou pae. Suppunha um principio EsõunsisTAs—Seita de montanistas, que
eterno, infinito, e incomprehcnsivel, e allia- confundiam as pessoas da Trindade. (Ve
va com este principio fundamental o sys ja-se o artigo Montano). Sabellio fez cele
tema de Valentini. bre esta opinião. Veja-se o seu artigo.
Para dar a razão da origem do mal, re EU.ÇHITAS Oü..EÜTYCH1TAS—Discipulos de
montou até ás idéias primitivas do bem e Siriíao, que criam ser as almas unidas aos
do mal, do justo e do injusto, c se persua corpos, para se entregarem n’elles a toda a \
diu não ser divérsa a bondade da justiça sorte de sensualidades: este sentimento era/
nò Ente Supremo. O universo olhado de o mesmo dos, antitacticos, e dos cainitas.
baixo d’um tal ponto de vista, jamais offe- Vcjam-sc os seus artigos.2
receu a Epiphanio cousa alguma, que fosse EüNQMio—era originário de Capadocia, e
contraria á bondade de' Deus. tinhTgràndes talentos naturaes: intruiram-
Nasce o sol igual mente para todos os no alguns sacerdotes arianos, aos quaes
animacs: a terra a todos oflerece com elle se uniu, adoptando seus sentimentos:
igualdade suas producoõcs e benefícios: constituído bispo de Cyzico, veio a ser
todos podem satisfazer suas necessidades, ariano acèrrimo.
e por consequência a natureza proporcio Para defender o seu partido recahiu no.
na a todos uma igual felicidade: tudo o sabcllianismo, do qual Ario se persuadira
que respira é sobre a terra, como uma
grande familia, a cujas necessidades provê
1 Theod. Hcer. Fáb. 1.1, c. 5. Epiph. Hvr.
32. Iram. I. i, c. l i . Ciem. Alex. Strom. 1.3.
1 D Argeníréj Collect. Jud. N a ta l Alex. pag. 428. Grab. Spicileg. PP.
in scec. 12. D vp. Bibíiót. douzim e siêcle. 2 Theodoret, Hcir. Fab. /. 5, c. 9.
-450 EUN
não poder fugir sem negar a divindade do jam substancias, nem partes das mesmas
Verbo.1 substancias.
Ario para não cahir no erro de Sabellio, Sendo infinita a divina substancia, quem
que confundia as pessoas da Trindade, fez teria 0 arrojo d’affirmar que ella com effei-
ao Padre e do Filho duas pessoas distin to não iríclue cm si princípios differentes
ctas, e sustentou ser o Filho uma creatu que nem sejam substancias, nem partes
ra: era pois a divindade de Jesus Christo cFelIas? Para haver de se affirmar tal pro
0 eixo sobre que rodavam todas as dispu posição não seria forçoso vdr individual
tas dos catholicos e dos arianos. Aquclles mente a essencia da divindade, comprchen-
admittiam na substancia divina um Pae del-a, e conhecer a Deus tão perfeitamente
que não era gerado, e um Filho que o era, como se conhece clle mesmo?
sendo todavia consubstanciai e coeterno a Esta é a razão porque os padres que re
seu Pae. Estes não podiam illudir a força futam Eunomio, taes como S. Basilio, e S.
dos argumentos que os catholicos lhes op- Chrysostomo, lhe objectam a incomprehen-
punliam, tirados da Escriptura, em que a sibilidade da divindade; 1 porque também
divindade de Jesus Christo era evidente nós de boamente pensaríamos como Vas-
mente ensinada. ques, que Eunomio não se persuadia co
N’cstas circumstandas pois julgou Eu- nhecer a substancia divina, como 0 mesmo
nomio ser forçoso examinar o dogma em Deus a conhece, por mais que affirmasse
si mesmo, c vêr se com effeito se podiam ter d’c!la um perfeito conhecimento.2 D e
admitlir na substancia divina dous princí uma maneira tal bem poderia asseverar o
pios, dos quaes um fosse gerado, e o ou geometra mais fraco vêr 0 circulo que elle
tro nào. Para resolver a diííiculdade par traça tão perfeitamente como 0 geometra
tiu d’um ponto, reconhecido pelos catholi mais conspicuo, e que, não menos do que
cos e pelos arianos, que era a simplicidade este, 0 ve todo e inteiro, sem que todavia
de Deus. Creu não se poderem suppôr em fique persuadido de conhecer tão indivi
uma cousa simples dous princípios, um dos dualmente, como Clairaut todas as proprie
quaes fosse gerado, e outro gerante: podia dades do mesmo circulo.
no sentir d’Eunomio, uma cousa simples Reconhecia Eunomio, como os catholi
ter diversas relações, mas não podia con cos, um Pae, um Filho, e um Espirito San
ter diversos princípios. cto, mas olhava como creaturas 0 Filho, e
Já d’cste mesmo principio havia concluí 0 Espirito Sancto, e cria que este era uma
do Ario, a fim d’evitar o sabellianismo, que producção do Filho: exprimia esta crença
confundia as pessoas da Trindade, serem o 110 seu baptismo, que dava em nome ao
Pae e o Filho duas substancias distinctas; Padre, que não era gerado, do Filho, que
e como d’outra parte não se podiam admit- era gerado, e do Espirito Sancto, que era
tir dous deuses, julgara que o Verbo ou o produzido pelo Filho; e em consequência
Filho não era Deus, mas creatura. d’este seu sentimento supprimia as tres
D’isto mesmo concluiu Eunomio, não só immersões. Também não mettia na agua se
que não podiam suppôr-se na essencia di não a cabeça e 0 peito das pessoas que ba-
vina um Pae c um Filho, mas nem ainda ptizava, tendo por infames, e indignas do
admitlir n’ella muitos attributos; e que a baptismo as partes inferiores.
sabedoria, a verdade e a justiça, não eram Como 0 erro de Eunomio era uma espe
senão a mesma essencia divina, conside culação pouco propria para fazer grande
rada debaixo de relações diversas, e nomes sequito, devemos reflectir que para conci
differentes dados á mesma cousa, segundo liar discipulos necessitava de ajuntar á sua
as relações que cila tinha com os objectos opinião algum principio de moral commo
exteriores. Eis-aqui o erro que Eunomio do: portanto ensinou que os que conser
ajantou ao arianismo: funda-se sobre uip vassem fielmente sua doutrina, não pode
principio falso, como passamos a provar. 2 ríam perder a graça, por maior que fosse
Uma substancia simples não póde conter 0 peccado que commettessem:3 porém este
muitos princípios que sejam substancias, expediente, de que d’ordinario se serviam
ou partes das substancias; proferil-o seria
cahir n’uma contradieção manifesta: mas 1 Basil. Ep. 166. Chrysost. de incom-
não vémos que uma substancia simples não prehensib. Dei natura.
possa encerrar muitas cousas que nem se- 2 Vas quez, in prim a part. Disput. 37,
cap. 3.
3 Theodoret. Heeret. Fab., 1.4., c. 3. At/^.
1 Socrat. I. 4, c. 12. Epiph. Hcer.70. de Jíceret. Epiph. Hceret. 76. Baron, ad an.
2 G reg.Nyss. Orat. 12. 356.
•EUN 451
os cabeças de seita, nem sempre sortiu vaçao que o seu temperamento, nem meio
•oíTcito. A de Eunomio foi inteiramente ex- mais prudente para conservar sua virtude
tincta no tempo de Theodosio. 1 e assegurar a salvação que o mesmo que
EUNQMiAjtos—Discipulo? d’Eunomio; tam- tomára Origenes para confundir a calu
bciruTics chamaram cüWWfMpJj da palavra mnia; portanto se fez cunuco, c defendeu
anomeon, que significa dissimilhante, por que este ado de prudência e de virtude,
dizerem elles que o Filho e o Espirito San não se devia excluir das dignidades eccle
cto difleriam cm tudo do Padre: também siasticas. No principio tractaram com in
os appellidaram UjmlQfluLgs. Veja-se este dulgência um tal desvario; mas como ia
artigo. fazendo progressos, lançaram fóra da Igre
EUN^ ipfiursYcq^^qs—Ramo dos euno- ja a Valesio e seus discipulos, os quacs se
mianos, que sê separaram pela questão do retiraram para um canlao da Arabia.
conhecimento ou da sciencia de Jesus Chris Valesio não tinha por discipulos senão
to, conservando poróm os principacs erros homens, que estando em continua lucta
(VEunomio; e segundo Niccphoro, tinham com o espirito tentador, por causa do seu
um chefe por nome Eupsycho.2 São estes eu- temperamento ardente, c da sua imagina
nomiocupsychianos os mesmos, aos quacs ção viva, se persuadiram ser esta práctica
Sozomeno denomina eulychianos, c da por o unico meio de se preservarem da culpa,
■cabeca um chamado Eutycho; porém não e d!affiançarem sua salvação; e como todos
ha duyida que Nicephoro,'e Sozomeno fal os que são animados d’uma paixão vehe
iam da inesma seita; pois que Nicephoro mente, ou arrebatados do impulso do seu
copiou a Sozomeno, mas ha erro sobre o natural, não suppoem nos outros homens
nome do cabeça da seita .3 M. de Valois senão aquelles mesmos princípios e senti
nas suas notas sobre Sozomeno, e Fronton- mentos, de que elles são agitados, tiveram
du-Duc nas que fez sobre Nicephoro, as os valesianos que todos os homens que
sim o advertiram, sem dizerem qual b el não se mutilassem, estavam no caminhe
les- se enganara. da perdição, e entregues ao peccado.
e u n ucos ou v a l e sia n o s — Hereges que se Como o Evangelho ordena que todos o
mutilavam' e nao~pernííttiam que seus dis christãos trabalhem pela salvação do sei
cipulos comessem cousa que tivesse vida, proximo, os valesianos se persuadiram nãc
emquanto não estivessem n’esse estado. haver meio mais seguro para o desempe
^.Origenes para confundir a calumnia, que nho d’csta obrigação que pôr seu proxi
| fazia correr fastidiosos boatos acerca de mo, quanto lhes fosse possível, no mesmo
£ receber na sua escóla donzcllas de pou- estado de segurança em que elles se con
[ ca idade, se mutilou elle mesmo, e assim sideravam: portanto faziam todos os es
S atalhou todos os discursos que offendiam a forços por persuadil-os á necessidade de
*ssua virtude. se fazerem eunucos; e quaudo não podiam
f Esta delicadeza com que Origenes tra- persuadil-os, então os olhavam como crean-
? ctou a sua reputação, foi tomada por uns ças, ou como enfermos em delirio, a cuja
j como um acto de relevante virtude, e por repugnância seria barbaridade ter algum
Soutros como um impeto de zelo irregular, e respeito, quando se tractasse de lhe appli-
• extravagante: a sanctidade de sua vida e a car um remedio infallivel, bem que lhe
jM & M
1 Codex Theod ., I 8.
2 Niceph ., l. 22, c. 30. 1 E piph. H a r. 36. A v g . H a r. 37. Fleu-
3 Sozom .j l. 7, c. 17. n jj H ist. Eccles., I. 11. B a ro n , ad an. 249.
*
452 EUP
hibc rcccber na ordem clerical os que sc Euphrates verosimilmente cria que sen
mulilam a si m csm os.1 do determinado o ente necessário pela sua
Quanto ó extravagante o entendimento natureza a produzir tres entes diversos c
humano! O mesmo concilio que ordenava o numero tres d’alguma fôrma o termo de-
esto canon contra os valesianos, fez tam todas as producçòes do ente necessário era
bém outro contra os ecclesiasticos que ce forçoso admitlirem-se tres Padres, tres Fi
lebravam contractos d’adopçào, pelos quaes lhos c li es Espíritos Sanctos: c como Jesus
um sacerdote tomava para sua casa uma Christo, que era filho de Deus, tinha a na
viuva ou uma donzella, debaixo do nom e, tureza humana, cria Euphrates que os tres
de irmã ou de sobrinha espiritual. A insti Filhos eram tres homeus.
tuição d’estas familias espirituaes era fun A segunda parte do mundo incluia um
dada no exemplo de Jesus Christo, que se numero infinito de potências diversas, c fi
recolhia a casa de Martha, e de Magdale- nalmente a terceira encerrava o que os ho
na, e no de S. Paulo, que trazia em sua mens chamam ordinariamente mundo. To
companhia uma mulher irmã. das estas partes do universo eram absolu
Este ultimo costume se tinha estabeleci tamente separadas, e deviam estar sem
do nos primeiros séculos da igreja; não communicaçào; mas as potências da ter
era cousa rara vèrcm-sc viver juntas pes ceira parle haviam attrahido á sua csphera
soas novas d’um e d’outro sexo, e para as essencias da segunda parte do mundo,
triumpharem da carne mais gloriosamen c as tinham aprisionadas.
te, arrojavam-se ao mais forte perigo, quan Pelo tempo de Herodes, o Filho de Deus
do os valesianos tinham para si que não desceu da morada da Trindade para livrar
podiam preservar-se d’ellt\ senão fazendo- as potências que tinham cabido nos laços
se incapazes da tentação. Que pensaríamos das potências da terceira parte do mundo:
porém nós, que justamente capitularemos e este Filho de Deus era um honrem que
d’insensatas estas duas seitas da tolerância linha tres naturezas, tres corpos e tres po
ue o nosso século concede a uma especie tências.
e valesianos; incomparavelmente mais bar Cria Euphrates verosimilmente que o
baros e com mais justa razão despresiveis, Filho de Deus devia de ter estas tres es
os quaes na mutilação só teem por objecto sencias ou naturezas para encher os deve
a perfeição da voz das victimas da sua ava res de libertador das potências que tinham
reza? cahido da segunda parte do mundo na ter
e u t h r a t e s —da cidade de Pera, na Cili ceira, e talvez assim sc persuadia também
cia, admittia tres Deuses, tres Yerbo$, tres explicar a razão porque o Filho Jesus Chris
Espíritos Sanctos. to fora escolhido para redemptor das po
Entre os philosophos que tinham indaga tências descabidas com prcfercncia ás ou
do a natureza do mundo, alguns o olhavam tras pessoas da Trindade.
como um grande todo, cujas partes eram li Depois que as potências da segunda parte
gadas, e não suppunham na natureza mais do mundo houverem subido á sua patria,
que um só mundo, conio Ocello de Luca isto a que chamamos o nosso mundo, ha
nia ensinara, e não muitos, como Leucipse, de acabar, segundo a opinião de Euphra
Epicuro e outros philosophos tinham sus tes. 1
tentado. 0 padre Harduino tem para si que o qua
Euphrates adoptou o fundo d’este syste dragésimo oitavo dos cânones attribuidos
ma, e não admittia a serie de mundos dif aos apostolos, foi feito contra os discipulos
ferentes, a que recorriam a maior parte d’Euphrates, e que o symbolo que se diz
dos chefes de seita para conciliar a phi de Sancto Alhanasio teve em mira estes
losophia com a religião, ou para explicar hereges, no verso em que diz:—ha um sò
seus dogmas: elle suppunha um só mun Padre, e não tres Padres, um só Filho, e
do, no qual distinguia tres partes, que en não tres Filhos. 2
cerravam tres ordens d’entes absolutamen Quanto a nós, parece-nos que Euphrates
te diversos. e Adamas adoptaram o systema philoso
A primeira parte do mundo incluia o phico d’Ocello, c que sc esmeraram pelo
ente necessario e increado, que elle conce conciliar com o dogma da Trindade, com
bia á maneira de um grande manancial, o da divindade de Jesus Christo, e com a
ue fazia sahir do seu seio tres Padres, tres sua qualidade de mediador, c que por isso
ilhos, e tres Espíritos Sanctos.
1 Theodoret, Haret. Fab., I. 1, cap. 18.
1 Cone. Nycçen. Collect. Cone. Hist. du Philastr.
cone. de Nicéc, in 8.*, vn vol. 1 Hardouiiij de triplici Baptismo.
EUT 453
só ollos ajuntaram aos princípios geraes truir nos simples fieis a obediência de
irOccllo algumas idéias pythagoricas ácer- vida aos legitimos pastores, que estas as
- ca da virtude dos numeros. 1 sembléias similhantes ás d'Eustalhio, e os
E que certeza não deviam de ter estes homens, tacs como ellc tncrecem não me
dogmas entro os christãos, visto que se em nos a attenção dos magistrados que a dos
penharam cm concilial-os com o systema primeiros prelados da Igreja.
dròccllo, com o qual não tem clles affini- EUSTATiiiAxos—É o nome que tiveram os
dade alguma, antes lhe são oppostos? E seqüazes do monge Eustathio, de que falía
que responderão a esta pergunta os que mos no precedente artigo.
presumem serem os mesmos dogmas fa Eyiycfirçs — era abbadc d'um mosteiro,
bricados pelos platônicos? perto de Constantinopla: ensinava que a na-,
, Euphrates teve discipulos que formaram tureza divina c a natureza humana se ha-\
a seita dos pereanos, ou prácticos do nome viam misturado, não formando depois daS
Pera, que era a cidade em que cllc ensi encarnação mais que uma só natureza/
nava. porque á humana se confundia na divina,
Eqpiiiyfoomíaxos—Hereges do (juarto sé como uma gota d agua que cahc no mar.
culo, qúc uniam os erros d’Eunomio com O^concilio (TEphcso, e os esforços que
os de Thoophonio. Sócrates diz que a di fez Joao^(TcXntíòcíiKÍ depois da sua recon
versidade dos erros d’um c d’outro é tão ciliação com S. Cyrillo, a íim de que o
leve que não merece individuar-sc.2 mesmo concilio fosse recebido, não extin-
Ey^VTJjjP—Persuade-se Baroni o ser o guiram cabalmcnte o nestorianismo. As de
nome de um monge ao qual Sancto Epi- posições, e desterros tinham produzido no
phanio chama Eutacto: vivia no quarto sé Oriente infinidade de nestorianos occultos,
culo. 3 Estava este monge tão loucamcntc que cediam á tempestade, rnas conserva
prcoccupado do seu estado, que condemna- vam um ancioso desejo de se vingarem de
va qualquer outro: c a este erro accrescen-S. Cyrillo e dos seus seqüazes; c além
tou os seguinte^, que foram delatados ao d*isto os defensores do concilio d’Epheso
concilio de fíangres: l.° Condemnava o ca aborreciam muito os nestorianos, e a todos
samento, e separava as mulheres dos ma os que (conservavam algum resto d’indul-
ridos, alfirmando que as pessoas casadas gcncia para com clles.
se não podiam salvar. 2.° Prolubia aos seus Havia pois dous partidos subsistentes de
sectários que orassem dentro de casa. 3.° pois do concilio d’Ephcso, dos quaes um
Obrigava-os a deixarem seus bens, como opprimido procurava fugir ao prejuizo e
incompatíveis com a esperança do Paraizo. preservar-se das violências dos orthodoxos
4.® Retirava-os das assembléias dos fieis por meio de profissões de fé capciosas, equi
para tcl-as occultas com ellcs, e lhes faziavocas c diversas das de S. Cyrillo; outro
trazer um vestido particular. o.° Queria victorioso, que não consentia nos tòrcicol-
que ipjuasscm nos domingos, e dizia que los dos nestorianos c de seus fautores, e se
os jejuns ordinarios da igreja eram inúteis,esmerava em os deixar sem subterfúgios.
depois de se haver chegado a um tal grau Homens de um zela ardente e de uma des
de pureza, que ellc excogitava. G.° Tinha confiança pouco illuminada deveram pois
horror ás capellas consagradas em honra d’excogÍtar differentes modos de provar a
dos martyres, c ás assembléias que n’ellas boa fc d’aquellcs, aos quaes obrigavam a
se faziam. receber o concilio d’Epheso, c de se servi
r Muitas mulheres induzidas pelos discur- rem em seus discursos de termos os mais
/• s o s de Eustathio repudiaram seus mari- oppostos ás distineções que fazia Nèstorio
( dos, e varios escravos fugiram da casa de das duas naturezas; e era natural que estes
T seus senhores. A doutrina de Eustathio foi usassem d’cxpressões que não somente de
delatada ao sobredito concilio de Gangres. csignassem a união, mas ainda a confusão
n’ellc proscripta no anno dc.342. * das duas naturezas.
Não ha cousa mais contraria ao espirito Além do que a união da natureza divina c
da religião, nem mais adequada para des- da natureza humana, que em Jesus Christo
fôrma uma só pessoa, é um mysterio, e por
1 VoycZj sur la vertu attachéc aux nom- pouco que discrepassem do dogma, que nos
breSj Vart. Caballe, Rasilide, Manes. ensina serem as duas naturezas de tal sorte
2 Socrat., I. 5, c. 24. unidas, que não formam mais que uma só
3 Baron. ad an. 319. pessoa, era facil tomar a unidade da natu
4 Epipli. Han\ 40. Socrat., I. 2, c. 23. reza pela unidade da pessoa c confundiy
Sozom., I. 3, c. 3. B asii Ep. 74, et 81. Ni- estas duas naturezas n’uma só, a fim de
cephore, l. 9, c. 16. não deixarem de unil-as, e de não reco-
454 EUT
nhoceíem em Jesus Christo duas pessoas, paixao se junta com a ignorância, não ve
como fez Nestorio. senão extremos; o prudente meio que os
. Démais d’isto os nestorianos e seus pro- separa, e cm que reside a verdade, somen
( tectores desadbravam com o triumpho de te o divisam os entendimentos esclarecidos
) S. Cyrillo e do seu partido: accusavam-o circumspectos e moderados. *
1 de renovar o apollinarismo, e de nào reco Ensinava pois Eutyches a seus monges
nhecer em Jesus Christo mais que uma na que não havia cm Jesus Christo mais que
tureza, o nào podiam deixar de pôr n’uma uma natureza, c não queria que se disses
rigorosa balança todas as expressões de se ser cllc consubstanciai a seu pae, se
seus inimigos, para as julgarem, e de se gundo a natureza divina, e a nós, segundo
desatarem em calumnias contra ellcs, pu- a natureza humana, crendo que a natureza
• blicando que ensinavam o erro de Apolli- humana havia sido absorvida pela divina
nario, uma vez que em duas expressões como uma gota d’agua que houvesso en
* faltassem os apices da cxactidào, quando trado no mar, ou da mesma sorte que é
fallavam na união das duas naturezas em absorvida pelo fogo a matéria combustível
Jesus Christo. que se lança cm uma fornalha: tanto as
Assim estava tudo preparado depois da sim, que cm Jesus Christo já não conside
condcmnação do nestorianismo para uma rava nada de humano, c a natureza huma
heresia opposla, para se formar na Igreja na em seu sentir d’alguma sorte se tinha
outra seita obstinada, fanática e perigosa; convertido em natureza divina. 3
e para que ella viesse â luz, nada mais fal Não era pois o erro de Eutyches uma
tava que um homem que tivesse zelo so questão de nome, como assevera M. de La
bejo contra o nestorianismo, poucas luzes, Croze;2 porque suppondo que a natureza
austeridade de costumes, caracter pertinaz humana fôra absorvida pela divina, e con
e algum credito. fundida com cila, de sorte que não fazia
T' Este homem foi Eutycjics, o qual, como com a mesma senão uma só natureza, des
todos os demais moiTfgesT tomara .partido pojava a Jesus Christo da qualidade de
contra Nestorio. Como estava em reputa- mediador, e destruía a verdade dos pade
■çãõlíc grande sanctidadc, c linha na côrle cí mentos, da morte e da resurreição de Je
bastante estimação, S. Cyrillo o havia lison- sus Christo, por quanto pertencem todas
geado, empenhando-o a servir a verdade estas cousas á natureza humana, e á reali
com o credito que lograva para com a im dade d’uma alma humana, c d’um corpo
peratriz. 1 Por esta mesma razão concebe humano, unidos á pessoa do Verbo, e nao
ra o mesmo Eutyches muito odio contra os ao mesmo Verbo. Se este não tomou nossa
nestorianos, e até se faz verosimil que fos natureza, todas as victorias que pôde alcan
se o primeiro author dos rigores que con çar da morte c do inferno, não satisfazem
tra clles se exerceram no Oriente: 2 que- por n ó s .3
brantado da velhice como estava, ainda os Em uma palavra, se a natureza humana
annos não tinham moderado o seu zélo, des é de tal sorte absorvida pela divina, que
cobria o nestorianismo* em toda a parte, em Jesus Christo ha sómcntc a divina, re-
olhava por inimigos da verdade todos os cahe Eutyches no erro de Cerintho, de Ba-
que conservavam a favor dos nestorianos silides, de Saturnino e dos gnosticos, que ti
alguma commiseração ou indulgência, c cui nham para si não ter Jesus Christo encar
dava em inspirar no coração das pessoas nado, e não se haver revestido senão das
poderosas a acrimonia do zelo que o roía.3 apparencias da humanidade: e eis-aqui o
Para combater o nestorianismo usava das quo assombra que M. de Ia Croze não divi
expressões mais fortes, c a fim de não cahir sasse no eutychianismo.
em suppôr duas pessoas em Jesus Christo Eutyches diflundiu seu pernicioso erro
por baver n’elle duas naturezas, suppôz que primeiramente pelo grande numero de
estas naturezas estavam de tal sorte unidas, monges que dirigia, e depois pelos de fóra
que não faziam mais que uma só, e assim que o vinham visitar: enlaçou n’clle mui
as confundiu ambas, para ficar mais segu tas pessoas simples, e pouco instruídas: o
ro de não admiti ir em Jesus Christo duas erro grassou pelo Egypto, e passou ao
pessoas, como fizera Nestorio. Quando a Oriente, aonde os nestorianos conservaram
protectores, e Eutyches pelo seu indiscreto
1 Synod. C a n c . 203. Balus., novat
Collect. Cone., pag. 909. 1 Apud Theodor. D ial in confusus. Cone.
2 Tillem., t. dò', pag, 482. Const. act. 3.
3 Leo, Ep. 39. Theodov. Ep. 82, pag. 2 Hist. du Clirist. d'Ethiopie, l 1, p. 26.
91o. 3 Leoj Ep. 25, /. 2. Theoit. pag. 247.
I
EUT 4oo
zelo fizera inimigos, ainda entre as mesmas fez com que o imperador altendesse a uma
essoas apaixonadas do concilio d’Epheso.
S s bispos do Oriente foram os primeiros
representação que elle lhe oíTereccu, cheia
de calumnias contra o concilio que o con-
que atacaram o erro de Eutyclies, c escre demnára, e em que requeria ser julgado
veram ao imperador acerca d’csla nova he por outro. 0 imperador fez convocar um
resia, 1 em Epheso, em que deu plena authoridade
Eusebio, bispo de Doryleo, que fura um a Dioscoro, patriarcha de Alexandria. Par
dos primeiros que se levantou contra Nes- tiram os bispos para Epheso: S. Leão man
torio, c que então se tinha ligado com Eu dou seus legados; mas juntos que foram os
tyches, fez diligencia por ifíustral-o, mas bispos, recusaram a assistência dos mes
debalde. Este bispo, a fim de atalhar o pro mos legados, com o pretexto de que logo
gresso do erro, offereceu uma representa que haviam chegado, tinham ido a casa de
ção contra Eutyclies aos bispos congrega Flaviano, que era o accusador d’Eutyches:
dos em Constantinopla para julgarem sobre illudiram as letras do papa, não quizeram
certa contenda que se movera entre FIo- dar ouvidos a Eusebio de Doryleo, c fize
reneio, metropolitano de Lydia, e dous dos ram a abertura do concilio, lendo as actas
seus suffragancos. N’esta representação ac do de Constantinopla; quando chegaram á
cusa va elle a Eutyches d’heresia sem espe sessão em que Eusebio de Doryleo instava
cificar cm que ella consistisse, promettendo Eutyches para que reconhecesse em Jesus
porem sustentar a accusaçào, e pedia a Fla Christo duas naturezas, ainda depois da
viano e ao concilio com ás maiores instân encarnação, exclamou o concilio que Euse-
cias que não desdenhassem este ponto, c fi sebio devia ser queimado vivo, c feito em
zessem vir perante elles o accusado. quartos por ultrajar a Jesus Christo.
Eutyches recusou comparecer sob pre Não se contentou Dioscoro, que n’el!e
texto de haver feito voto de não sahir do presidia, com estes clamores; requereu que
mosteiro; e logo despachou dous de seus os que não podessem fazer ouvir seus vo
monges a diversos mosteiros, a fim de os tos, levantassem as mãos em testimunho de
sublevar contra Flaviano. Estes enviados que consentiam no anathema das duas na
diziam aos monges que visitavam, que el turezas; e d’esta maneira cada um d’elles
les muito brevemente seriam opprimidos execrou os que davam a Jesus Christo duas
pelo patriarcha, se não se unissem a Euty naturezas; clamando que fossem banidos,
clies contra elle; e além d’isto lhes propu mortos, e despedaçados os que eram de tal
nham certo escripto para assignar, cujo sentimento.1
fim se ignorou. Depois do que Eutyches foi declarado
Também o concilio depois de repetir a orthodoxo, restabelecido ou confirmado no
notificação a Eutyches para que appare- sacerdócio, c no governo do seu mosteiro.
cesse, o* coinminou com depozição: elle en Logo depois leu Dioscoro a prohibição
tão se escusou por enfermo, e por não po que o concilio d’Epheso fazia de qualquer
der sahir do mosteiro. outra profissão de fé, que não fosse a do
Final mente, depois de mil mentiras, com concilio de Nicea, e requereu que os bis
pareceu, e foi convencido de haver ensina pos proferissem se aquelle que houvesse
do estar confundidas em Jesus Christo as excogitado alguma cousa de mais, era su
duas naturezas. 0 concilio não podendo jeito aos castigos ordenados pelo concilio.
desirnaginal-o, nem vencer sua pertinacia, Ninguem contradisse a Dioscoro, e elle,
o privou da dignidade ecclesiastica, da com- aproveitando-se d’este instante de silencio,
munhão da. Igreja, e do governo do mos fez lêr uma sentença de deposição contra
teiro; e a condemnação foi assignada por Flaviano e contra Eusebio dc Doryleo. 2
vinte e nove bispos. Oppozeram-se a este sentimento os lega
É portanto muito claro pelo procedi dos de S. Leão: muitos bispos se prostra
mento d’Eutyches, e respostas que deu no ram aos pés de Dioscoro, para que sup-
concilio de Constantinopla, sustentar elle primisse esta sentença; mas elle lhes res
com eífeito a confusão das duas naturezas pondeu que não diria senão o que tinha
em Jesus Christo, e não ser condeninado dito, ainda que houvessem de lhe cortar a
por uma questão de nome, ou por uma má lingua; e vendo que os bispos persistiam
intclligencia. 2 n’aquella humilde postura^ fez entrar na
0 credito que Eutyches tinha na corte, igreja o proconsul com cadeias, e grande
numero de soldados, e de gente armáda.
1 Isid. Telus., L í . Ep. 4i0, t. 4. Cone.,
pag. 54, i7 , 157. Facuna., I. 8, cap. 5. 1 Cone., t. 4. Cone. Const.
2 Cone., t. 4. Cone. Const. 2 Jbid,
•456 EUT
Tudo era tumulto: não se falia va senão sem mudança, sem divisão, sem separação*
cm depor c desterrar os que não annuis de sorte que as propriedades das duas na
sem á condemnação de Flaviano, ou tra turezas subsistem, e convcem a uma mes
ctassem de mitigar o seu rigor: finalmcn- ma pessoa que não é dividida cm duas
to, um dos bispos declarou que Flaviano e mas que é um só Jesus Christo, Filho de
Euscbio não sómente deviam ser depostos, Deus, como se diz no symbolo niceno.
mas formalmente os condemnou a perde Esta formula foi unànimemente appro-
rem a vida. 1 vada. 1
Immcdiatamente o entraram a pisar aos Ensinava pois a Igreja contra Nestorio
pés, o recebeu tantos golpes, que d’ellcs não haver mais que uma pessoa em Jesus
morreu em breve tem po.2 Christo, e contra Eutyches haver n’elle
Logo depois Dioscoro depôz os bispos duas naturezas.
mais "venerandos e esclarecidos, c restabe Se o Espirito Sancto não presidiu ás de
leceu todos os maus, que haviam sido de cisões do concilio d’Epheso, se este conci
postos. Thcodoreto foi condemnado como lio foi composto sómente de homens fac
herege, prohibindo-se que lhe dessem vi ciosos e apaixonados, digam-nos como era
veres e asylo. Assim se terminou o se possível, que taes homens, entregues á ve-
gundo concilio d’Ephcso. hemencia das paixões, divididos cm ban
Allucinado Theodosio por Chrysapho, seu dos, que todos querem que prevaleçam os
primeiro ministro, louvou e confirmou com seus sentimentos e fulminam excomníunhão
uma lei a extorsão d’Epheso. Debakle em contra os seus adversarios, poderam ajus-
pregou S. Leão todo o seu credito, e seus tar-sc para formar um juizo, que nada me
talentos para obter do imperador que se nos contrario ao nestorianismo, que ao eu-
congregasse no Occidente oulro concilio tychianismo, igual mente condemna va todos
em que"fosse examinado o negocio de Fla os partidos: nos não daremos outra respos
viano, e cTEutyches. ta ás declamações de Basnage e dos outros
Theodosio respondeu que já congregara inimigos do concilio de Calcedonia. 2
m cm Epheso, aonde a controversia fora Terminado que foi o mesmo, nos princí
laminada, e que era inútil, ou ainda im- pios de novembro de 451, Marciano man
jssivel obrar-sc mais sobre tal materia. dou por uma lei, que todos observassem
Marciano, que succedcu a Theodosio em seus decretos, a qual renovou e confirmou
.50, entrou em sentimentos diversos; por segunda vez, e fez uma terceira severissi
que Pulcheria, que, dando-lhe a mão ^ e s ma contra os sectarios d’Eutyches, e con
posa, o collocára no throno, respeitava mui tra os monges-que tinham motivado quasi
to o bispo de Roma. Convocou pois o im toda a desordem.
perador outro concilio em Calcedonia, o O concilio de Calcedonia confirmou tudo
qual foi celebrado na magnifica igreja de o que se tinha determinado contra Euty
Sancta Eufemia, estando presentes os com- ches no de Constantinopla, e este heresiar-
missarios e ofDciaes do imperador, e os cha deposto, expulso do seu mosteiro, c
conselheiros d’estado, que todavia não po- desterrado, ainda defendeu por algum tem
deram evitar se excitasse n’elle grande tu po o seu desvario; mas emfim recahiu na
multo. Revoga-se quanto se havia feito em obscuridade e no esquecimento de que ja
Epheso, foram restabelecidos os bispos de mais teria sahido se não fosse o seu fana
postos, c finalmenlc os padres formaram tismo: a historia não falia mais d’elle de
uma profissão de fé, em que se continha a pois do anno de 454. Este cabeça de par
approvação dos symbolos de Nicôa e Con- tido morto ou ignorado, teve ainda com tu
'tantinopla, das cartas synodicas de S. Cy- do alguns sequazes, que excitaram novas
i illo a Nestorio, e aos orientaes, e também turbulências: d’estas vamos tractar debaixo
da carta de S. Leão. do nome d’eutychianos.3
Declara o concilio que, seguindo os es- Erro d’Eutyches, que en
criptos dos sanctos padres, fazia profissão sinava nao haver em Jesus Christo duas
■de crér um só e unico Jesus Christo Nosso naturezas, e que a natureza humana tinha
Senhor, Filho de Deus, perfeito na sua di sido absorvida pela divina. Veja-se E uty
vindade, e perfeito na sua humanidade: ches.
consubstanciai a Deus, segundo a sua di
vindade, e a nós, segundo a humanidade:
que n’elle havia duas naturezas unidas, 1 Leo, Ep. 29, t. 4. Cone.
2 Basnage, Hist. Ecclesiaste l. 20, c. 5 ,
1 Cone., t. 4. Cone. Const. pag. 515.
2 Zonar. Niceph. Leo, Ep. 92, l. 2, c. 2. 3 T ille m o n t. 15, pag. 722.
EUT 457
e u j y c i h a j í í q s — Sectários do erro d’Euty- e reduzidas a cinzas as casas d’aquellos
•ches. que defendiam a fé do concilio de Calce
Já vimos o que elles fizeram ate á morte donia, e que recusavam communicar com
d’este heresiarcha: passaremos agora a exa Theodosio. Emíim, á vista de tantos estra
minar o que obraram depois do concilio de gos, dir-se-ia que aquclla infeliz provincia
Calcedonia. Este concilio nào pacificou a tinha soíTrido uma invasão dc barbaros,
Igreja de tal sorte que deixassem dc ficar sem que estas calamidades bastassem para
Ainda eutychianos, que excitassem tumul desenganar os povos, porque o falso zelo
tos c desordens na Palestina. do impostor Theodosio os deslumbrava tão
Um monge, por nome Theodosio, que as sobremaneira, que muitas cidades lhe vi
sistira ao mesmo concilio, não quiz sub- nham pedir bispos voluntariamente.
metter-se ao seu juizo, e levou comsigo al Para occorrer a tantas desordens, partiu
guns outros monges, por meio dos quaes Dorotheo, governador da Palestina, da Ara
fez amotinar a Palestina contra o concilio bia, aonde então se occupava na guerra,
de Calcedonia. mas chegando a-Jerusalem, achou" fecha
Theodosio c seus adherentes publicaram das as portas da cidade por ordem d’Eu-
que o concilio insidiáca a verdade, que au- doxia, c não lhe foi concedido entrar íTel-
thorisava c fazia entrar de novo na Igreja la, sem que promettesse seguir o partido
o ímpio dogma de Nestorio, e violava a fé que os monges e o povo da cidade haviam
nicena; que estabelecendo a crença das duas abraçado.
naturezas em Jesu£ Christo, obrigava a ado Chegada que foi a Marciano esta novi
rar dous Filhos, dous Christos, e duas Pes dade, este fez destacar para Jerusalem uma
soas, e para Theodosio mais afiançar estas forte guarnição, que expulsou o monge
imposturas, forjou umas actas falsas, que Theodosio, e "deixou cm paz a cidade.
imputou ao concilio, nas quaes se liam as A tropa que foi aquartclada nos conven
mesmas calumnias que contra elle publi tos dos monges, os insultava. Queixaram-
cava. se estes á imperatriz Pulcheria, dirigindo-
Residia por esse tempo na Palestina a lhe uma representação, em que fallavam,
imperatriz Eudoxia, viuva do imperador não em tom de supplicantes, mas no de
Theodosio ii, a qual patrocinava anciosa- sediciosos e inimigos das leis de Deus e do
mente Dioscoro, a quem o concilio depo- Estado; porque em vez de viverem no so-
zera, e que sempre conservava adhesão cego da sua profissão e de se portarem co
ao partido d’Eutyches, no qual o mencio mo discipulos dos prelados, sc erigiam cm
nado imperador estivera firme até á morte. doutores, e mestres absolutos da doutrina,
A imperatriz recebeu em sua casa o mon e da Igreja, c até negavam com grande af-
ge Theodosio, e o alentou no desígnio que fouteza terem sido elles a causa de tantos
formara de se oppôr ao concilio de Calce desatinos. Comtudo o imperador usou de
donia: immediatamente se uniu a elle uma indulgência com estes protervos monges:
multidão dc monges, que viviam das libe desimaginou os povos da falsa ideia cm
ralidades da imperatriz; os simples, e as que os mesmos monges os tinham posto
pessoas menos instruídas, crêram nas ca acerca da sua fé, e ficou restabelecida .a
lumnias de Theodosio, e toda a Palestina paz. i
se amotinou logo contra o concilio de Cal Não foi menos ruidosa a perturbação
cedonia, e se pôz em armas para defender que houve no Egypto: Dioscoro fôra de
este sedicioso monge, que soube aprovei- posto pelo concilio de Calcedonia, e substi
tar-sc da effervescenda do povo, fazendo- tuído por S. Protero: mas bem que a elei
se declarar bispo dc Jerusalem, d’onde ex ção d’estc sancto fosse inteiramente con
pulsou Juvenal, bispo legitimo. A nova di forme aos cânones, comtudo a ella se se
gnidade de Theodosio ajuntou em roda d’el- guiu muita turbulência.
le todos os vadios da Palestina, e este novo Araotinou-se o povo .contra os magistra
apostolo, escoltado d’uma tal milicia, per dos, e querendo a tropa rebatel-o, cutrou
seguiu, depôz e lançou fóra de suas igre elle em furor, investiu os soldados, c lhes
ja s todos os bispos que não ^pprovavam fez voltar as costas, seguindo-os até á igreja
seus excessos^ de S. João Baptista, aonde, postos em sitio,
Também uina multidão de monges, dis os venceu, e por ultimo os queimou v iv o s.2
persos pelas casas, publicava querer o im
perador restabelecer o nestorianismo, e por 1 Cone., t. 4. Leo, Ep. 87. Cotelier. iUo-
similhante traça induziam o povo, torna num. Eccles. Grcec.
vam odioso o imperador e excitavam mo 2 Evagr., I. 2, c. o, l 3, c. 31. Leo, Ep..
tins em toda a Palestina: eram saqueadas 93.
458 EUT
Marciano puniu severamcnto o povo de expulsos ou desterrados, e condemnava a
Alexandria, c os sediciosos ficaram logo Nestoéio e Eutyches. Porém Basilisco não
subjugados; porém os habitantes estavam gosou por muito tempo do império: Zenão
de tal maneira infeccionados do cutychia- o recuperou, c declarando logo por nullo
nismo, que Marciano no l.° d’agosto de 456 tudo quanto aquelle tinha feito, começaram
renovou todos os rigores, que tres annos dc novo os reboliços, os partidos depunham
antes havia ordenado contra esta seita. respectivamente os bispos que lhes eram
As leis porém nào dobraram d’opinião o sujeitos, e estabeleciam outros; e as cathc-
partido de Dioscoro; este bispo carregado dracs mais notáveis, ou eram usurpadas,
de delictos era adorado de seus sequazes ou conferidas pelos mais arrojados ao ar
na vida, e depois da morte foi honrado co tificio, á vileza e ao perjurio.1
mo um grande sancto.1 Occupado Zenão cm extinguir as facções
Apesar de todos estes obstáculos o impe politicas, e cm resistir aos inimigos do im
rador fazia receber o concilio de Calcedo- perio, não se deliberava a tomar um par
nia, e já parecia estar tudo a elle sujeito; tido certo sobre as divisões dos catholicos
mas Thimotheo e Eluro persistiam todavia c dos eutychianos; queria muito mais re-
no partido de Dioscoro com quatro ou cin concilial-os; c assim o intentou. A diyisão,
co bispos, e um pequeno numero do apol- que havia entre os catholicos c eutychia
linaristas c d’eutychianos. Estes scismati- nos, respeitava principalmcnte o concilio
cos haviam sido condemnados pela Igreja, de Calcedonia; estes o rejeitavam como ir
e banidos por Marciano; mas por morte do regular, e como renovando o neslorianis-
mesmo imperador amotinaram o povo de mo; aquelles, pelo contrario, queriam abso
Alexandria. Eluro fez assassinar Protero, lutamente que fosse assignado por todos, o
e que o declarassem bispo, ordenou sacer que se conservasse como indispensável con
dotes, captou o Patricio Aspar, encheu o tra o eutychianismo.
Egypto de violências, é se teve por algum Parecia pois que um e outro partido de
tenipo com os seus adversarios: 2 mas em- sejavam que se ensinasse a união das duas
fim S. Gennado descortinou a verdade ao naturezas, e que ao mesmo tempo se co
imperador Leão, e obteve um edito contra nhecesse que cilas não estavam confundi
Eluro, que foi expulso d’Alcxandria, des das: os catholicos queriam que se conser
terrado para Gangres, e depois removido vasse o concilio de Calcedonia como neces
para Chersoneso, por haver feito em Gan sario para cortar os passos ao eutychianis
gres alguns conventiculos scismaticos. mo, c os eutychianos que se condemnasse,
Depois da morte do imperador Leão sa- para rebater o neslorianismo.
liiu Eluro do seu desterro, e fez muitas, Á vista d’estas circumstandas se persua
bem que frustradas diligencias, para obter diu Zenão, que anathematisando Nestor io e
de Zenão que se congregasse um concilio Eutyches satisfaria ás pretenções d’um e de
em que fosse julgado o de Calcedonia; mas outro partido, e que então não sendo já pre
sendo Zenão desthronisado por Basilisco, ciso o concilio de Calcedonia, poderia elle
este deu ouvidos a Eluro, e cassou por um por consequência fazer approvar a sua sup-
edito tudo o que se fizera no concilio de pressão, e reunir assim os dous partidos:
Calcedonia; ordenando além d’isto, que se é o que elle tentava na sua 1ienotica, isto
ronuueiasse anathema contra a carta de é, no Edito da União, edito que não conti
. Leão: desterrou, depôz, e perseguiu to nha heresia alguma, que confirmava a fé
dos os que não quizeram aquiescer a seus do concilio de Calcedonia, e condemnava
mandatos; e assim assignaram mais de qui com effeito o nestorianismo e o eutychia
nhentas pessoas a condemnação do conci nismo. 2
lio. 3 Porém não restabeleceu a paz o edito de
Oppôz-se á perseguição Aeacio, patriar Zenão: alguns o subscreveram, mas foi re
cha de Constantinopla: o povo se amotinou, jeitado pela maior parte assim dos euly-
rotestando reduzir a cinzas a cidade, se chianos como dos catholicos, por não ata
zessem algum acinte ao patriarcha; e en lhar o progresso do erro. Os catholicos não
tão Basilisco, temeroso, revogou o seu edito queriam desistir da necessidade de ser ge
por outro, em que restabelecia os bispos ralmente assignado o concilio de Calcedo-
nia, e os eutychianos estavam pertinazes na
1 Evagr. Ibid.
2 Cotelicr, Monum. Eccles. G m c., t. 3. 1 Evagr., I. 3, c. 8.
Balus. Àppend. Cone., t. 4, m g. 894. 2 Evagr i, l. 2, c. 10. Leo Bysant. art.
Lab. Cone., t. 4, pag. 1081. 5, 6. ■
0
EUT 459
condemnação do mosmo concilio, c a re dita: esta innovaçào desagradou aos fieis,
queriam ao imperador.1 os quaes comtudo obedeceram, rccciando
Comtudo quiz Zenào fazer receber o seu a indignaçào do imperador. Porém entran
edito, e depôz muitos metropolitanos e bis do cm certo dia alguns monges na igreja,
pos, que recusaram subscrevcl-o: 2 portan cm logar da addiçào cantaram o verso de
to se formaram tres partidos, que estavam um psalmo: o povo alvoroçado exclamou
muito alentados, quando Anastacio succc- logo: Vieram a jn'oposito os orthodoxos: to
deu a Zenào. O novo imperador a fim de dos os sequazes do concilio de Calcedonia
os apaziguar punia iguahnentc assim os cantaram o verso com os monges: os euty
uc queriam fazer abraçar o concilio de chianos o desapprovaram.
alcedonia, aonde nào estava recebido, co Interrompe-se o officio, investem-se na
mo os que o condemnavam, o publicavam igreja: o povo sahe fóra, toma as armas,
que nào devia rcceber-sc.3 Por esta razào leva tudo a ferro e fogo, e nào se applaca
Anastacio entrou no terceiro partido, a que senào dí^iüis-4^~dez% .n4Íljn o rtes.1 Entào
chamaram incertos ou hesitantes. cuidou Anastacio mãis‘seriaffíen(e que nun
Cada um d’estes tres poderosos partidos ca em exlinguir um partido tào formidável,
faziam os maiores esforços para aniquilar e resolveu fazer condemnar o concilio de
os outros, e Anastacio, que se via rodeado Calcedonia: de tudo se serviu para ultimar
d’inimigos formidáveis, tinha muito tento os seus intentos, c á força de lisonjas, de
com todos, principalmente com o dos ca perseguições e de ameaças obrigava mui
tholicos, cujo zelo o inquietava mais. O te tos bispos a receberem a eondemnaçào do
mor se tornou em odio, que ellc descobriu mesmo concilio.
apenas se pôde desenvolver da guerra da Depois de se haver assegurado por estes
Persia, declarando-se abertamente em fa meios dos seus consentimentos, fez convo
vor dos eutychianos. Obrigou os que sup- car um concilio em Sidon, composto de oi
punha apaixonados do concilio de Calccdo- tenta bispos, os quaes condemnaram o de
nia, c todas as suas guardas, a acccitarcm Calcedonia, á excepção de Flaviano, bispo
o edito do imperador Zenào, e escolheu to de Antiochia, e um outro, que se oppoze
dos os seus officiaes entre os eutychianos. ram ao decreto, e que portanto foram dc
Oppôz-se com todas as forças a estes de postos.
sígnios do imperador Macedonio, patriar Comtudo Flaviano nào se separou d’Ai
cha de Constantinopla: o povo adorava o tiochia. Por meio d’algun$ monges quizt
seu bispo, e o imperador nào se tinha por ram induzil-o a subscrever o concilio dt
seguro na capital; portanto lançou fóra Sidon, e passaram a usar dc violência; ou
d’ella a Macedonio, pôz em seu logar um tros monges orthodoxos acudiram era soc-
chamado Thimolhco, desterrou os partidá corro de Flaviano; o povo seguiu o mesmo
rios mais zelosos de Macedonio, c fez quei partido, e em defesa do seu bispo cahiu so
mar as actas do concilio de Calcedonia. bre os monges eutychianos, c houve alli
Havia por esse tempo na igreja do Orien uma horrível mortandade.2 O imperador
te o uso de cantar o povo, quanto o sacer que estava bloqueado de cutychiauos, lan
dote chegava ao altar, Deus sancto, Deus çou fóra Flaviano, e pôz na cadeira ^An
forte, Deus immortal; a que davam o no tiochia o famoso Severo, acerrimo n’aquella
me de Trisagion; 4 ao qual accrescentou seita: e no governo d’estc usurpador sof-
Pedro Foulon as palavras: que fostes cruci freram muito os catholicos em todo aquelle
ficado por nóSj tende piedade de nós. patriarchado.
Como esta addiçào, que podia ter um * N’esse mesmo tempo, em que Anastacio
bom sentido, era usada dos eutychianos, empregava toda a sua authoridade para
pareceu suspeita aos catholicos, persuadi constranger os catholicos a condemnarem
dos de que continha a doutrina dos euty o concilio de Calcedonia, um de seus ge-
chianos theopaschilas, que asseveravam ter neraes, por nome Vitaliano, se declarou
padecido a Divindade. protcct,or dos orthodoxos; no breve espaço
Apenas Thimotheo havia subido á cadei de tres dias levantou um temeroso exerci
ra de Constantinopla, logo ordenou que o to, c porque o imperador nào quiz restabe
Trisagion se cantasse cora a addiçào sobre- lecer nas suas cathcdraes os bispos que ti
nha expulsado d’ellas, se senhoreou da Moe
sia e da Thracia, desbaratou as tropas do
1 Cone., I. 4.
2 Ibid.
3 Evagr., I. 3, c. 30. 1 Evagr., I. 33, 44. Vita Theodos.
4 Photius., Bib. Cod. 212. ' 2 Ib id .c . 32.
460 EUT
imperador, c se postou diante de Constan- perador desterrara, tres bispos culychia-
tinopla com seu exercito victorioso.1 nos, escondidos nos desertos do Egvpio or
Entào Anastacio mandou a Vitaliano denaram cm seu logar Pedro Zejago, e’ as
grande somma de dinheiro, prometteu res sim perpetuaram quasi occultamente os
tituir ás suas igrejas os bispos desterrados, seus patriarchas até o principio do sétimo
deu palavra de convocar um concilio para século.
terminar as contendas de religião: e Vita Levantaram-se novas dissensões theologi
liano se afastou de Constantinopla, c des cas entre os monges do Egypto acerca da
pediu o seu exercito. O imperador por al doutrina d'Origencs. Justiniano, ou fosse
gum tempo deu esperanças do cumprir as por habito, ou por gosto, tomou parte nul
promessas, c entretanto se esmerou cm las, e publicou um edito contra a doutrina
grangear os corações do povo, lisongeou d’Origcncs: os sequazes d’Origencs, aliás
com empregos a Vitaliano, c persuadido adversos ao concilio de Calccdonia, que os
que foi de que já não tinha d’ellc que te inimigos d’Origenes defendiam, persuadi
mer, passou a novas tentativas para ani- ram ao imperador, que se elle condemnas
uilar a authoridade do concilio de Calco- se Theodoro do Mopsuestia, Theodorcto e
onia; porém morreu sem haver ultimado Ibas, como havia condemnado a Origenes,
este desígnio. 2 faria render á Igreja todos os eutychianos’
Succcdeu a Anastacio Justino, perfeito do os quaes unicamente rejeitavam ó concilio
pretorio, que foi eleito pelos soldados: o de Calccdonia por haver approvado os cs-
novo imperador expulsou os eutychianos criptos d’estcs bispos: Justiniano nada so
das cathedracs, que haviam usurpado, res licitou tanto como vél-os condcmnados, e
tabeleceu os orthodoxos, c mandou que publicou um edito contra estes tres bispos,
fosse recebido em todo o império o conci posto que já fossem mortos.
lio de Calccdonia. Entào os bispos se oc Produziu este edito uma grande alterca
cuparam em reparar os damnos da igreja: ção, persuadindo-sc muitos que elle faria a
convocaram-se concilios, depozeram-se os authoridade do concilio de Calcedonia: e
eutychianos, os quaes foram banidos, des foi necessário, para terminar este negocio,
terrados c punidos como o tinham sido os um novo concilio, que é o quinto geral da
catholicos no tempo1d’Anastacio. Igreja, c o segundo geral de Constantino-
Justiniano, que succedeu a Justino, seu pla.
tio, declarou-se em favor dos orthodoxos; Justiniano, que fizera condemnar os tres
mas a imperatriz favorecia os eutychianos: capítulos pelas solicitações d’Eusebio de Ce-
esta obteve do imperador, que se fizessem sarea, que era eutychiano no coração, ca-
conferências para reunir, se fosse possível, hiu finalmenle elle mesmo no cutvchianis-
os dous partidos; porém não produzindo mo dos incorruptíveis:1 para fazer abraçar
ellas o eíTeito desejado, foram seguidas de este erro empregou todos os meios de que
uma lei das mais severas contra os euty tinha usado a fim de que fosse recebido o
chianos, que desde então sómente foram concilio de Calcedonia; mas a morto sus
tolerados. pendeu os seus intentos. 2
Comtudo ainda era. grande o seu nume Recobraram pois os eutychianos algum
ro. Severo, que no tempo d’Anastacio fòra íavor pelos íius do governo de Justiniano,
patriarcha d’Antiochia, tinha alli multipli e no de seus successores, os quaes se em
cado os eutychianos ou acephalos, que re penharam em os reconciliar com os catho
jeitavam o concilio de Calcedonia: olle mes licos: mas as diligencias que para isso se
mo .estabelecera na cadeira d,’Edessa Jac- fizeram produziram uma nova heresia, que
ques Baradeo, ou Zanzalo, que sendo d’ella era como um ramo do eutychianismo, e
expulso pelos imperadores romanos, se re que occupou todos os entendimentos: foi o
tirou para as terras dos persas, e por todo monothelismo.
o Oriente ordenou sacerdotes, instituiu bis Parecia pois absolutamente extincto o eu
pos e formou a seita dos jacobitas. tychianismo nas provincias do imperio ro
0 . mesmo Severo expulso e escondido, mano, quando as conquistas dos scrrace-
ordenou no seu retiro a Sergio para lhe nos o fizeram reproduzir com luzimento no
succeder; e assim tiveram sempre os eu
tychianos um patriarcha de Antiochia oc 1 Entre os eutychianos havia alguns que
culto. Finalmente, depois da morte de Theo asseveravam que Jesus Christo tomara um
dosio, patriarcha d’Alexandria, que o im- corço incorruptível, e que não estava sujei
to ás enfermidades.
1 Evagr., I. 2, c. 32. 2 Evagr., I. 4, c. 39. 40, 41. Baron, ad
2 Ibid. an. 363. Pagi, ad an. 365.
FEL 461
Oricnle c no Egypto, d’onde passou á Ar perverter Theodoro Volkarte Kornheert;
mênia c á Abyssinia. Vejam-se os artigos as disputas foram tão frequentes como in
Copias, Jacobilas, Armenios e Abyxins. úteis, porque quando Nicolau não sabia
Os eutychianos no meio dos distúrbios responder a Theodoro, recorria ao espirito,
de que haviam enchido o império, agita que lhe ordenava, dizia elle, que se calasse.
vam mil questões frivolas, dividiam-se ácer- Comtudo não deixou de ter discipulos este
,ca d’estas mesmas questões, e se perse cnthusiasta, os quaes, «á maneira de seu
guiam tyrannamente: tal foi a que se sus mestre, se criam homens deificados. Fez
citou sobre a incorruptibilidade da carne alguns livros, taes como o Evangelho do
de Jesus Christo antes da sua resurreiçào, Reino, e a Terra de Paz, etc.
em que o povo d’Alcxandria se amotinou A seita da familia do amor tornou a ap-
contra o seu bispo, que tomara o partido parecer em Inglaterra no principio do sé
da affirmativa, c taes eram os acephalos, culo decimo sétimo (em 1604) e apresen
uc reconheciam duas naturezas cm Jesus tou a el-rei Jacobo uma profissão de fé,
2 hristo, mas nào queriam assignar o con em que declara ser esta seita diversa da
cilio de Calcedonia; c os theopaschitas, que dos brounistas. Estes sectarios fazem pro
criam que a Divindade fora crucificada, c fissão de obedecer aos magistrados de qual
cuja cabeça era Pedro Foulon.1 quer religião que sejam: é entre elles um
O ponto fundamental. 1
eutychianismo foi combalido por Thco-
doreto, bispo de Cyro, em vinte e sete li FA^mçg—Esta palavra, segundo alguns,
vros, dos quaes se acha o extracto na Bi veni aiuni termo grego que significa luz, e
bliotheca de Phocio (Cod. 46), e em tres d’ella se leem servido para designar um ho
dialogos intitulados o Immutavcl, o Incon mem illuminado e inspirado. Outros a de
fuso, o Impassível; por Gelasio em um li rivam de Fanum, que significa templo, de
vro intitulado Das duas naturezas; por que fizeram a palavra fanatico, para indi
Vigilio, que escreveu cinco livros contra car um homem que faz extravagancias em/
Ncstorio e contra Eutyches; por Maxencio roda dos templos, e que prophetisa como.’
e Ferrando, c por muitos outros, que Lcon- um insensato.2 Mas seja qualquer que fõr
cio indica na sua obra contra os eutychia a sua etymologia, hoje se applica a um
nos c neslorianos. Vejam-se Colleclion de homem, que, tomando por inspirações os
Canisius, édit. de Basnage, et la Bibliot. de elTeitos d’uma imaginação desordenada, se
PhotiuSj Cod. 29, 30, cré instruído nas verdades da fé por uma
FA.MJUA; ou c a s a p p a m o r -—é o nome illustraçào particular, e faz acções de de
que toniou^dWa seita que fazia consistir a voção e de piedade desarrazoadas e estra
perfeição da religião na caridade, e que nhas. Não formam pois os fanaticos uma
excluia a esperança e a fé como imperfei seita particular: encontram-se em todas as
ções. Os associados da Família do Amor seitas, como em todas as religiões.
faziam, pois, profissão de se amar, e não Da palavra fanatico se formou fanatismo,
practicar senão actos de caridade; por esta isto é, uma disposição de espirito, que faz
razão se presumiam não compor mais que tomar por inspiração divina os phantas-
uma família, cujos membros estavam uni mas d’uma imaginação desordenada. Por
dos pela caridade. esta definição se collige que a historia do
Amavam todos os homens, c assentavam fanatismo não é uma das porções menos
que jamais devia haver entre clles querel interessantes da historia do entendimento
las nem.odios, por terem diversidade de humano; mas como este objecto não é da
sentimentos acerca da religião: também a nossa obra, unicamente nos determinamos
caridade, no sentir d’estes sectarios, fazia o a explicar aqui a palavra fanatico, porque
homem superior ás leis, e o tornava im- d’ella nos servimos ordinariamente.
peccavel. f e l i x — bispo d’Urgel, na Catalunha, en
Teve esta seita por seu author um certo sinou que Jesus Christo, segundo a huma
Henrique Nicolau de Munster, o qual pri- nidade, sómente era filho adoptivo de Deus,
meiramente se presumia de homem ins como os homens são chamados na Escri-
pirado, e pouco depois se deu por deifi- ptura filhos de Deus. O nome dc filho de
cado. Jactava-se de ser maior que Jesus
Christo, o qual, dizia elle, não fôra mais 1 Stohnan. Lexicon, voce Familia. Hist,
que o seu typo, ou a sua imagem. dc la Rcform. des Paus Baix. par Brandi,
Pelos annos de 1540 fez diligencias por t. 1, pag. 84.
2 Veja-se Hofman. Lexicon. Godfrey so
1 Vejam-se Nycephor. Hist. Eccles., 1.18, bre o Digest. I. 21, tit. de Edil. edict. 1 .1,
c. 53. Leont. de Lutis Eutych. § 9, 10. Vossius Etymol. Du Cang. Gloss.
462 FEL
Deus, no sentir de Felix, não era senão um novo nome: e assim como na primeira
um modo KTexprimir mais particularmente geração em que nós nascemos, segundo a
a escolha que Deus fizera da humanidade carne, não podemos tirar nossa origem s e
de Jesus Chr isto. não de Adão, da mesma sorte na segunda
Os arabes ou serracenos, depois de ha que ójjspiritual, não recebemos a graca dá
verem derrotado muitas vezes as tropas de adopção senão por Jesus Christo, que rece
Heradio, se assenhorearam da Syria c do be uma c outra, a primeira da Virgem, su a
Egypto: espalharam-se depois pela Africa, Mãe, e a segunda em seu baptismo.
tomaram Carthago, entraram de posse da Jesus Christo em sua humanidade c F i
Numidia e da Mauritania, e, pela entrega lho de David, Filho de Deus: não é possi-
do conde Julião, se apossaram da Hcspa- vel que um homem tenha dous paes s e
nha. gundo a natureza; logo c um natural, e
Senhorcados das Hcspanhas os serrace outro adoptivo. A adopção nada mais é que
nos, deram aos christãos juizes da sua re uma eleição, uma graça, uma applicacão
ligião, como os califas o tinham practicado por escolha e por vontade, e todos cs*tes
na Asia, aonde até admittiram alguns bis caracteres attribue a Escriptura a Jesus
pos nos seus conselhos. Ainda foram inais Christo.1
bem tractados por Abdalazis, filho e suc Para mostrar que Jesus Christo emquan-
cessor de Musa, que conquistou as ITespa- to homem não c mais que um Deus nun
i nhas. Por este meio se encheram ellas de cupativo, isto é, de nome, Felix raciocinava
| christãos, de judeus, c de mahometanos, assim, segundo o testimunho do mesmo
que todos queriam converter uns aos ou Jesus Christo: a Escriptura denomina deu
tros, c propunham respectivamente seus ses aquelles a quem a palavra de Deus ó
argumentos. dirigida por causa da graça que recebe
Como o principal artigo da crença dos ram; portanto como Jesus Christo parti
mahometanos consiste na unidade de Deus, cipa da natureza humana, participa tam
• tractam elles de idolatras todos os que na bém d’csta denominação da divindade, as
divindade reconhecem algum numero: con sim como de todas as demais graças, posto
fessam de boamente que Jesus Christo fòra que d’um modo mais ex cellen te/S. Pedro
um grande propheta, que tinha o espirito diz que Jesus Christo fazia milagres, por
de Deus, mas não podem sofTrer que seja que Deus era com elle.2 S. Paulo diz que
chainado Deus por sua natureza. Os ju Deus está em Jesus Christo, reconciliando
deus estavam então, e ainda hoje nos mes assim o mundo.3 Não dizem que Jesus
mos princípios, bem que o Messias lhes Christo era D eus.4
fosse annunciado pelos prophetas, como o Como Deus, Jesus Christo é esscncial-
filho natural de Deus. mente bom, mas como homem, posto que
Portanto assim os judeus como os ma seja bom, não o é cssenciahnente, c por
hometanos atacavam os christãos acerca si mesmo: se foi verdadeiro Deus depois
da divindade de Jesus Christo, c insistiam de concebido no seio da Virgem, como diz
que se lhe não devia dar o titulo de Filho elle, cm Isaias, que- Deus o formou seu
de Deus. Para responderem ás objccções servo no seio de sua Mãe?5 Como se com
ue se lhes punham, sem alterar o dogma padece que aquelle que é verdadeiro Deus
a unidade de Deus, diziam os christãos da tome,as vezes de servo, como Jesus Christo
Hespanha que Jesus Christo não era Filho na fórma d’escravo; por quanto provam
de Deus por sua natureza, mas por ado- que elle é Filho de Deus e da sua serva,
pção: parece que esta resposta foi adopta- não sómente por obediência, como a maior
da por alguns sacerdotes de Cordova, e parte o quer, mas também por nature
commumente recebida na Hespanha.1 za? E de que fórma será elle eternamente
Elipando, discipulo que fôra de Felix de sujeito ao Padre, se não ha diííerença en
-Urgel, o consultou para saber o que pen tre a sua divindade e a sua humanidade?6
sava de Jesus Christo, e se o cria Filho na- Jesus Christo é um mediador, um advo
-tural ou adoptivo. Felix lhe respondeu que gado dos peccadores, junto do Padre, o que
segundo a natureza humana nao era mais
que filho adoptivo ou nuncupativo, isto é,
•de nome sómente, e sustentou esta opinião 1 Alcuin, l. 1, 2, 3, cont. Felicem.
em alguns de seus escriptos. 2 Act. 10, v. 38.
Sendo Jesus Christo, segundo Felix de 3 Cor. 2, 5, v. 19.
Urgel, um novo homem, devia também ter 4 Alcuin, ibid.
5 Isaice, 49, v. 4.
1 Alcuin, Ep. 1$. 6 Alcuin, /.í>.
FLA 463
se não tia dc entender de Deus, mas do A principal objccção dc Fclix de Urgei
homem, cuja natureza tomou. consistia em que não estando o homem es-
Para provar todas estas proposições, Fe
scncialmcntc, e por sua natureza unido á
lix dTTrgcl citava muitas passagens da Es- divindade, o homem em Jesus Christo não
criptura e dos sanctos padres, que trun- era Filho de Deus senão por eleição c por
cava c extorquia do seu sentido genuino; escolha. Esta objccção nada mais é que
e principalmentc se fundava na lithurgia um sophisma: a nãó sc respeitar senão a
dc Hespanha, em que se achava frequente elevação da natureza humana á união hy
mente que o Filho de Deus adoptára a na postatica do Verbo, pódc muito bem dizer-
tureza humana. se que o Filho dc Maria é Filho dc Deus
«Responderam a Felix d’Urgel que a Igre- por graça, porque por mera graça do Ver
jaT stava em paz quando a sua opinião se bo Eterno foi que elle quiz toníar a si a
principiou a divulgar, c que cila a inquienatureza humana, e sem a graça jamais te-
tara: lizcram-lhc vér que esta sua opinião,ria cabimento esta proposição: o homem é
como quer que elle a figurasse, não era Deus, o Filho de Maria é Fillio de Deus; as
outra cousa senão a de Nestorio; porque sim se sc olhar com este respeito o princi
uma vez que sc distinguissem cm Jesus pio pelo qual se fez a encarnação, o Filho .
Christo dons filhos, um natural e outro de Maria é Filho dc Deus por graça.
adoptivo, era forçoso que a natureza hu Porém se se considerar a natureza hu
mana e a divina fossem duas pessoas em mana unida hypostaticamcnte ao Verbo,
Jesus Christo: por quanto, desde o primei ou, para nos servirmos dos termos da es
ro instante que encarnou, o Verbo c a na cola, se se considerar a união hypostatica
tureza humana são unidos com união hy in facto esse, è claro que o Filho dc Maria
postatica, não ha no Verbo mais que unia é o Filho dc Deus por natureza; porque
pessoa, e o homem tem todos os titulos de não fazendo a natureza divina e a natureza
divindade; d’onde se segue devermos dizer humana, depois da encarnação, mais que
que o Filho de Maria é Deus por sua na uma só Pessoa, que é o Fiího dc Maria,
tureza, o que nada mais quer dizer senão este é o Filho de Deus pela eterna gera
que a mesma Pessoa, que é Filho de Maria, ção.1
c Filho de Deus pela geração eterna. D’esta Felix d’Urgel foi condemnado no conc
mesma sorte, na ordem natural, posto que lio de Balisbona, e abjurou seu erro, er.
a alma do Filho não sahisse do Pae, como que reincidiu depois que voltou á sua dio
o seu corpo, elle não deixou de ser todo cesc. Foi citado para o concilio dc Franc
inteiro o proprio Filho d’aquellc que pro fort, no qual o depozeram do bispado por í
duziu seu corpo. causa dc suas frequentes recahidas, c o I
. Se o Filho da Virgem não é mais que o desterraram para Leão, por toda a s u a /
Filho adoptivo de Deus, de que pessoa da vida, que elle terminou sem se desenga
Trindade é elle Filho? Sem dúvida da pes nar. Veja-se o Padre le Coinle, anno 779,
soa do Filho, que tomou a natureza hu n. 1617.
mana, e portanto não será mais que o Fi flagellantes— Penitentes fanaticos e
lho adoptivo do Padre Eterno. atrabiliarios,~que se açoutavam desapieda-
É um engano pretender-se provar que damente, e que attribuiam á disciplina
Jesus Christo não é propriamente Deus, maior virtude para apagar peccados, do
por se dizer que Deus estava n'elle: por aos sacramentos.
quanto se deveria também dizer que o Não ba cousa mais conforme ao espirito
Verbo não era Deus, nem também o mes do Christianismo, que a mortificação da
mo Padre, porque diz Jesus Christo: Meu carne o dos sentidos; S. Paulo castigava o
Pae está em mim, e eu estou em meu Pae. seu corpo, e o reduzia á escravidão: este
Provou-se que Felix d’Urgel applicava mal espirito povoou de penitentes os desertos l
a s passagens dos padres, ou que as trun- do Oriente, aonde elles practicavam incrí
cava, como também que todos eram con veis austeridades: não parece que as fla-
trarios ao seu sentimento.1 gellações voluntarias fizessem parte d’estes
rigores, mas é sem dúvida que os tribu-
1 naes civis se serviam d’ellas no castigo dos
Alcuin loc. cit. Paulino de Equilea;
Bento d'Aniane; as cartas do papa Adriano criminosos.2
no concilio de Francfort, que se acham nos 01havara-se pois as disciplinas como ex-
concilios de França do P. Labe, t. 7, pag.
104. Simondo t. 2: na Bibliotheca dos pa 1 Veja-se a reftUação de Nestorio, no seu
dres t. 4, pag. 2, «os Concilios do padre artigo.
Labe, t. 7, pag. 1014. 2 Boileau. Hist. des Flagellans, c. 9.
464 FLA
piações: os açoutes de Jesus Christo, e os indignado contra as depravações do século
exemplos dos apostolos, e dos martyres, fi e que a rogos da Bcmavcnturada Virgem
zeram vêr as flagellações voluntarias não c do mesmo anjo, respondera que se os
só como obras satisfactorias, mas tambem pcccadorcs queriam obter misericórdia, de
como obras meritorias que podiam obter o via cada um sahir da sua patria, c açou-
perdão dos pcccados dos que executavam tar-se por trinta e quatro dias; cm memo
sobre si esta mortificação, como também ria do tempo que Jesus Christo vivera no
d’aquelles pelos quacs eram oíTerecidas: mundo: assim fizeram innumcravcis pro
cilavam-se exemplos de condcmnados, res selytos. Clemente vi condemnou esta seita:
gatados por este meio; a superstição e a os bispos da Allemanha, na conformidade
ignorância receberam ávidamente simi- do seu breve, prohibiram as associações
íhantes imposturas, e assim vieram a ser dos flagellantes, e a seita se dissipou.1
as flagellações frequentes no undecimo e Ella porém tornou a apparecer cm Mis-
duodecimo* século. nia pelo principio do decimo quinto século,
Finalmente estas idéias produziram pelo cm 1414.
fim do décimo terceiro século (cm 12C0) a Um certo Conrado renovou a fabula da
scita dos flagellantes, da qual um monge carta posta pelos anjos sobre o altar de S.
' de Sancta Justina de Padua refere o nas Pedro, que instituía a flagellação: asseve
cimento da maneira seguinte: rava ser aquclla a época do fim da autho-
«Estando toda a Italia, diz ellc, submer ridade do papa e dos bispos, os quaes ti
gida em peccados c vi cios de toda a espe- nham perdido toda a jurisdicção na Igreja,
cie, d’improviso se ingirc uma superstição depois que se estabelecera a sociedade dos
inaudita, primeiramente entre os perusia- flagellantes; que os sacramentos já não ti
nos, logo depois entre os romanos, e final nham virtude; que a verdadeira religião
mente por quasi todos os povos da Italia, sómente existia entre os flagellantes, e que
pe tal sorte se tem apoderado d’elles o ninguém podia salvar-se senão fazendo-se
[emor do juizo final, que as pessoas no- baptisar no proprio sangue. O inquisidor
orcs,as de baixa esphera,c de todo e qual fez prender estes novos flagellantes, e fo
quer estado, se poem quasi nuas, e andam ram queimados mais de noventa.2 Se os
em procissão pelas ruas, levando cada uma flagellantes se tivessem feito mais podero
seu açoute, e fustigando-se com elle nas sos que o inquisidor, o teriam feito quei-
costas, até sahir o sangue; arrancam do ,mar a elle, c a todos os que não se quizes-
peito sentidas queixas c dolorosos suspi sem açoutar.
ros, c derramam rios de lagrimas: estes Ainda hoje ha confrarias de flagellan
exemplos de penitencias produziram logo tes em Italia, Hespanha, e Allemanha, que
felizes eíTeitos, vendo-se muitas reconcilia devemos distinguir muito d’estcs sectarios
ções, restituições, etc.» de que acabamos de tractar. O padre Ma-
Repentinamente se espalharam estes pe billon viu em Turin, na sexta-feira sancta,
nitentes por toda a Italia, mas foram dimi uma procissão de flagellantes assalariados:
nuindo, porque o papa não quiz appro- «Principiaram a açoutar-se, diz ellc, na
val-os, nem os principes lhes permittiram igreja cathedral, muito lentamente, cm-
fundações nos seus estados.1 quanto não chegava sua alteza real, que
-Quasi um século depois que esta seita não tardou meia hora; mas tanto que ap
appareceu a primeira vez, uma peste que pareceu este principe, descarregaram um
se sentiu na Allemanha, no meio do decimo chuveiro de golpes sobre as espaduas, já
quarto século, a fez resuscitar de repente. dilaceradas, c então sahiu a procissão da
Corriam os sectarios em cardumes por o igreja. Seria uma instituição muito pia se
paiz todo; tinham um chefe principal, e ou estas pessoas se fustigassem assim por um
tros dous superiores, aos quaes. obedeciam pesar sincero de seus peccados, c com a
cegamcnte; arvoravam nas suas procissões intenção de fazerem uma penitencia públi
um estandarte de séda carmezim, pintado, ca, e não por darem ao mundo uma espe-
e assim percorriam pelas villas e cidades. i cie de espectáculo.»3
Atropellava-se o povo para gosar de um Gerson escreveu contra os flagellantes,
tal espectáculo, e tanto que estava junto se e se persuadia que os prelados, parochos,
açoutavam c liam certa carta que diziam
ser, em substancia, a que um anjo havia 1 D*Argentréj Collect. Jud. I. 1,pag. 361.
trazido á Igreja de S. Pedro de Roma, .pela Natal Alex. in scec. 13 et 14. Boileau, loc.
qual o anjo declarava estar Jesus Christo cit.
2 Cont. de Fleury, t. 21, pag. 206.
1 Boileau, ibid. 3 Musceum Italicum, pag. 80.
FRA 465
e doutores, deviam reprimir esta seita com ctissima Trindade. A scita dos socinianos
suas cxhortações, e os principes com sua produziu a dos deistas, que acharam mais
autlioridade.1 O abbadc Roileau impugnou conforme á razão não admittir nem mys
as flagcllaçõcs voluntarias,2 mas o padre terio nem revelação divina.
Gretzcr tornou a sua defesa; M. Thiers es Vieram depois os materialistas, os atheus
creveu contra a historia dos flagellantes: systematicos, e pretenderam que a espiri
esta refutação 6 prolixa, fraca, c enfado tualidade e a immortalidade da alma, a na
nha. 3 tureza c os attributos da divindade apre
füàsça,— Breve noticia do scisma dc sentavam mysterios impenetráveis e até
França durante a primeira revolução—A contrarios á razão, e que não deviam ser
historia da seita dos scismaticos francezes,menos rejeitados do que a revelação c os
que esteve a separar da igreja catholica a mysterios do Christianismo.
França e os paizes por esta invadidos, está Estes systemas d’incredulidadc que ti
necessariamente ligada com a da revolu nham fermentado e feito muitos estragos
ção franceza, que a produziu e a fez ser nos paizes protestantes, principalmente na
vir á execução dos desígnios da impiedade. Inglaterra, manifestaram-se na França des
Para bem conhecer a sua origem, fins, pro de o começo do século xvm, onde forma
gressos, o diversas vicissitudes, cumpre toram uma seita com o bello nome de philo
mar as cousas de mais alto, e recordar a sophia, e se espalharam por meio do abu
historia da seita dos impios conjurados conso de todo o genero de talentos com um
tra a religião, que executou successiva- ardor que pareceu chegar a frenesi.
mente, durante a revolução, todos os seus Esta nova seita conjurada contra a reli
projectos contra a igreja catholica e contragião, igualmenlc conspirava contra a mo
o Christianismo em geral. narchia. Excitando para seus fins todas as
paixões, havia obtido os mais funestos re
sultados, tinha-se apossado do imperio da
CONSPIRAÇÃO DOS MAL CHAMADOS PHILOSOPHOS opinião, e posto quasi todos os espíritos era
CONTRA A RELIGIÃO fermentação; assim, os symptomas d’uma
revolução religiosa e politica se desenvol
veram com rapidez assustadora nos annos
0 espirito revolucionário, que se mani que precederam a convocação dos Estados
festou no século xvi, e que tantas pertur Geraes em 1789.
bações produziu na christandade, nao ces Esta assembléia, que segundo as fôrmas
sou desde então de fermentar na Europa, antigas do reino devia compôr-se do clero,
c a revolução do século xviu não póde dei nobreza, c terceiro estado, deliberando por
xar de ser considerada como obra sua, e ordem, foi mudada desde a sua abertura
o complemento dos seus trabalhos. pela fusão das tres ordens n'uma assem
Os chamados reformadores do século bléia nacional, e desde então tudo deixou
xvi rejeitando a autlioridade da Igreja em prever funestas*consequencias.
matéria de religião, proclamaram a sagra As assembléias das provincias, nomean
da Escriptura como a única regra da fé, e do os deputados aos Estados Geraes, tinham
entregaram a sua interpretação ao juizo declarado nos diplomas a sua vontade po
particular, ao espirito privado de cada um sitiva de manter a religião catholica, im
dos christãos. Reunidos todos na conjura pondo expressamente este dever a seus de
ção formada contra a Igreja, haviam logo putados; porém os mandatos d'estas assem
aividir-sc entre si sobre o symbolo da fé bléias foram annullados; os deputados pro
que deviam adoptar, e ha trezentos annos clamaram-se representantes de toda a na
que os seus successores não teem podido ção, e por consequência livres e indepen
jamais concordar a este respeito. dentes de todas as clausulas e restricções
Sujeitando a interpretação da Sagrada postas aos seu poderes.
Escriptura ao juizo da razão, Zuinglio e A assembléia nacional apressou-se a des
Calvino rejeitaram o dogma da presença envolver o plano d’ataque formado contra
real de Jesus Christo e o mysterio da San- a religião, mas evitou muito mostral-o no
seu complexo e nos monstruosos 'excessos
1 Gei'son, t. 2, pag. 660. que o haviam d’assignalar ao horror do
2 Hist. Flagellantium. mundo.
3 Dc Spontanea Disciplinarum seu Fla Para não.sublevar o povo, ainda geral
gellorum Cruce, Colonice 1660, in-12. Criti mente affeiçoado á religião catholica, feve
que de 1'Histoire des Flagellans, par J. B. a politica de conservar a principio todo o
Thiei'S. culto externo, até os ministros da Igreja
30
466 FRA
nos diversos graus de gcrarchia; mas pro- os directorios dc departamentos ou de dis
curou-sc quo elles fossem menos os minis trictos designarão aos eleitos qualquer bis
tros da Igreja do que delegados do poder po a quem deverão recorrer para recebe
civil, e com este intuito se fizeram leis, que rem d'cll« a sua confirmação.»
transtornaram a disciplina geral da Igreja, Facil era conhecer quanto estes artigos
atacaram o dogma, e originaram a pro- decretados pela assembléia nacional eram
scripção do clero catholico. contrarios aos princípios e governo da igre
ja catholica, porque são dogmas da fé ca
CONSTITUIÇÃO C1IAMADA CIVIL DO CLERO tholica professados em todo o tempo e cm
toda a parte.
A assembléia principiou dando o grande 1. ° Que Jesus Christo estabeleceu uma
golpe- meditado c provocado, havia muito ordem de pastores para governar a Igreja,
tempo, pela seita dos impios: com o pre e que para este fim lhes deu um poder e
texto de soccorrer o estado, confiscou para jurisdicção espiritual, distincta, e indepen
a nação todos os bens ecclesiasticos, e logo dente do poder temporal.
depois attentou até aos direitos espirituaes 2. ° Que para exercer o ministerio eccle
e á liberdade da Igreja, dando-lhe uma siastico não basta ser ordenado, mas que
nova constituição, que perfidamente intitu é necessário também receber a missão da
lou constituição civil, para fazer acreditar authoridade da Igreja; principio opposto
que não tocava no espiritual. em todos os séculos a todos os novadores
Eis-aqui as suas principaes disposições: e especialmente aos heresiarchas do sé
«As dioceses terão (sem concorrência da culo xvi. 1
authoridade ecclesiastica) uma nova de 3. ° Que os aclos de jurisdicção exercidos
marcação, que será conforme á dos depar sem a missão da Igreja são radicalmente
tamentos. invalidos e dc nenhum efleito.2
(Por efleito d’esta primeira disposição 4. ° Que existe uma gcrarchia ecclesias
>upprimia-sc um numero considerável de tica instituída por Jesus Christo; que o pa
intigos bispados e se erigiam alguns no- pa, bispo de Roma,jtem um primado de
/os.) honra c jurisdicção a que os fieis, sacerdo
«Os bispos serão nomeados pelas assem tes, e bispos devem cega obedieucia.3
bléias populares e confirmados pelos me ò’.° Que os bispos, cuja cabeça é o papa,
tropolitanos, sem recorrerem á saneia sé são estabelecidos para governar a Igreja, e
para a instituição cauonica. que 'são de direito divino superiores aos
«As dioceses" serão administradas por um presbyteros.4
conselho de sacerdotes de que os bispos Todos estes dogmas da doutrina catho
somente serão os presidentes. lica eram manifestamente atacados c vio*
«Na vagatura das sés episcopaes a admi lados por leis puramente civis, que tinham
nistração das dioceses pertencerá de pleno por objecto mudar as leis da Igreja sobre
direito a um sacerdote designado pelos de a instituição dos seus ministros, ç attribuir
cretos. aos metropolitanos contra as disposições ca
«Os parochos serão igualmente nomea nônicas a authoridade de dar aos bispos
dos pelos eleitores leigos, e este titulo de eleitos a confirmação, que só podiam re
nomeação lhes bastará para exercerem va- ceber do papa; não deixar aos bispos ou
lidamente as suas funeções. * tras relações com o papa, senão as de
«Todos os membros do clero, bispos, pa uma declaração irrisória de communhão
rochos, e outros com o titulo de benefícios com elle; não* reconhecer a jurisdicção es
ou oflicios serão obrigados a dar o jura piritual de bispo algum residente fóra de
mento de guardar a constituição decretada, França, sem ainda exceptuar a do papa re
sob pena dc destituição de seus benefícios, sidente em Roma; finalmente tirar a uns
empregos, o funeções, incorrida só pelo fa- pastores a jurisdicção espiritual, e confe-
cto da recusa do juramento. ril-a a outros; restringil-a a estes, e am-
«Proceder-se-ha á eleição de novos titu plial-a áquelles; subordinar a authoridade
lares para substituírem os bispos, paro dos bispos a um conselho de sacerdotes; e,
chos, e os mais que recusarem o jura na vagatura das sés episcopaes, attribuil-a a
mento.
1 Cone. Trid. ses. 23, can. 7.
ARTIGO ADD1CI0NÀDQ Á CONSTITUIÇÃO 2 Professio fidei, ju x ta dispositionem
cone. trid. prcescripta.
«Na falta dos metropolitanos ou dos an 3 Cone. Trid. ses. 14, c. 7.
tigos bispos que recusarem o juramento, 4 Ibid. ses. 23, cap. 4.
FRA 467
um sacerdote chamado pelos decretos á ad Entretanto a assembléia nacional tinha
ministração das dioceses, que a Igreja con decretado outros sele artigos conformes aos
fiava aos cabidos das cathcdraes. primeiros cinco; logo depois, para segurar
Rcsultava pois dos princípios catholicos, a execução d’estes decretos, tinha passado
que todos os bispos, parochos, e outros com um novo, pelo qual prescrevia, debaixo de
cura d’almas, estabelecidos em execução graves penas aos bispos, vigários geracs,
da constituição civil do clero, não tinham parochos, directores de seminarios, e mais
jurisdicção alguma espiritual, que eram scis- encarregados de funeções ecclesiasticas o
maticos, separados da communhão dos le darem. iTum tempo d*cterminado, o jura
gitimos pastores e intrusos, estabelecidos mento de guardar a constituição decretada.
unicamcule pelo poder leigo. De sua exis O rei escreveu novamente ao papa, par
tência, cm virtude da constituição decreta ticipando-lhe que se via obrigado a sanc-
da pela assembléia nacional, tiveram cllcs cionar este ultimo decreto, c chegava a pe
o nome de constitucionaes. dir-lhe que interpozesse a sua authoridade
para lhe legitimar a execução, e que ex-
hortasse os metropolitanos e os bispos do
CORRESPONDÊNCIA DE PIO VI reino a consentirem nas mudanças intro
0 0 M 0 REI LUIZ XVI duzidas pela nova constituição.
SOBRE A CONSTITUIÇÃO CIVIL DO CLERO A congregação dos cardeaes annunciada
pelo papa celebrou-se efiectivamente, c exa
minaram-se n’ella successivamente todos
Logo que o summo pontifice foi sabedor os artigos decretados: para remover toda
dos primeiros artigos decretados pela as a suspeita de malevolência ou precipitação,
sembléia nacional com o titulo de consti resolveu-se unanimemente que era neces
tuição civil do clero, sua sanctidade man sário exigir os sentimentos dos bispos de
dou fazer em Roma preces públicas, e es França sobre a materia proposta, e sobre
creveu ao rei uma carta em que lhe pedia os meios, se alguns podessem indicar, de
com instancia que não desse a sua sanc- conciliar os mesmos artigos com os princí
çáo a estes artigos para não fazer cahir a pios da desciplina ecclesiastica.
nação no erro, c o reino no scisimç E para Porém a assembléia nacional avançava
que as suas exhortações e supplicas fizes com rapidez: o decreto do juramento tini
sem no espirito do rei mais profunda im sido sanccionado, e logo posto em execuç;
pressão, sua sanctidade dirigiu ao mesmo
tempo dous breves, um ao arcebispo de
Bordcus, ministro (Testado, e outro ao ar PRESTAÇÃO DO JURAMENTO RIGOROSAMEN"
cebispo de Vienna, chancéller, advertin EXIGIDA
do-os paternalmcnte queajuntassem os seus
conselhos aos d’cllo para com o rei, a fim
de o desviar de conceder uma saneção, que A constituição civil do clero foi confun
introduziría o scisma na França, e entredida com a constituição politica decretada
garia as igrejas a pastores intrusos e sempela assembléia nacional. 0 juramento pro
authoridade c jurisdicção espiritual.1 scripto estendia-se sem cxcepção a todos
Da sua parte Luiz xvi escrevia ao papa os decretos, c era exprimido n’estes ter
e lhe pedia que approvasse provisional- mos: Juro guardar com todo o meu poder
mente os cinco primeiros artigos decreta a constituição do reino decretada peta as
dos, aos quaes elle se vira obrigado a darsembléia nacional, c acceite pelo rei.
a sua saucção. 0 papa sentia-se pczaroso Os ecclesiasticos, membros da assem
por não poder conceder a approvação pe bléia, tinham proposto uma formula que
dida; mas desejaudo tirar aos inimigos da restringia o jurameuto aos objectos pura-
Igreja todo o pretexto de o accusarem de mente civis; mas foi rejeitada, e exigiu-se
não querer prestar-se a via alguma de cona prestação pura e simples do juramento
ciliação, respondeu que ia examinar com decretado.
madureza n’uma congregação geral dos Era chegado o dia designado para ulti
cardeaes os artigos de que se tractava, c mo praso, 4 de janeiro de 1791, e os mem
pedia ao rei que os fizesse também exami bros ecclesiasticos da assembléia foram
nar por todos os bispos do seu reino, c lhechamados para pronunciar a cathegorica
désse a saber os sentimentos d’estes. formula pura e simples do juramento.
Todos os bispos, em numero de trinta, e
i Breves de 10 de março e de 13 d'abril seguindo seu exemplo os ecclesiasticos da
de 1791. segunda ordem a recusaram com invenci-
*
468 FRA
vel constanda, c nào houve nem um só res sentimentos, ao que o cxhortava com
prejuro. bondade paternal.
Dosde o dia seguinte em diante, grande Esta carta ao cardeal de Brienne ora da
numero ^ecclesiasticos que tinham dado o 23 do fevereiro de 1791, c a 10 do marco
juramento nas sessões precedentes o retra seguinte o papa dirigiu aos arcebispos e
ctaram, declarando que nào tinham enten bispos, membros da assembléia nacional
dido dal-o senào para os objectos tempo- um breve cm que discutia succcssivamentó
raes, e nào para o que tocava no espiri todos os artigos da nova constituição da
tual. clero, c mostrava como cila se oppòe aos
Tractou-sc de fazer executar sem demo princípios da fé catholica, ás leis geraes da
ra a lei do juramento cm todo o reino c disciplina ecclesiastica, á doutrina dos pa
até na Corscga: mas experimentou-se uma dres da Igreja e definição dos concilios, ás
resistência quasi geral; um arcebispo so maximas representadas até então em Fran
mente e tres bispos de França, o famoso ça—pelo clero e pelo poder civil—como sa
cardeal de Brienne c os bispos d’Antun, o gradas e invioláveis; comparava os artigos
d’Orleães e de Viviers foram os unicos que da constituição com diversas heresias con-
se deixaram arrastar pela seducçào ou aba demnadas pela Igreja, e provava que são a
ter pelo temor. Cento vinte e sete se con sua renovação. Accrescentava que sem em
servaram fieis. bargo se absteve de declarar separados do
O maior numero d’ecclesiasticos da se seio da Igreja os authores da constituirão,
gunda ordem oppôz igual fortaleza e resis e que julgava dever usar de toda a doçura
tência. Ate em Paris, onde particularmen e paciência para evitar um scisma deplo
te se tinham empregado todos os meios de rável, c trazer a paz ao clero c á nacão.
seducçào e terror, d’oitocentos sacerdotes
occupados nas funeções do sagrado minis-
erio, setecentos e trinta permaneceram CONSUMMAÇÀO DO SCISMA PELAS ORDENAÇÕES
nílexiveis; e de quarenta conegos da me- DE BISPOS CONSTITUCIONAES
ropole, só um prevaricou.
Os bispos passaram nas suas dioceses
cartas patentes para justificar a recusa— A assembléia nacional, sem se conter
que fizeram—do juramento, c para preca com as reclamações do papa e dos bispos
ver o clero e os .fieis contra a cxecuçào dos proseguia os seus desígnios, e precipitava
decretos scismaticos da assembléia. o reino no scisma; já em execução dos seus
decretos, a 24 de fevereiro, o bispo d’Au-
lun assistido dos bispos in partibus, de Ba
j u íz o d o u t r in a l d o p a p a bylonia c de Lidda, linha ordenado dous
SOBRE A CONSTITUIÇÃO CIVIL DO CLERO bispos, um para Quimpcr e outro para
Soissons; a 27 do mesmo mez o bispo de
Lidda, assistido dos dous novos bispos, or
O arcebispo de Sens tinha querido, em denou outro para Dax, c a G de março or
uma carta ao papa, justificar-se de ter denou mais quatro, um para Beauvais, ou
prestado o juramento, c da execução que tro para Evreux, o terceiro para Moulins,'
pretendia dar por sua authoridadc espiri o quarto para Chaeauroux, e ellc mesmo
tual aos decretos da assembléia nacional. foi nomeado e estabelecido arcebispo de
O papa na sua resposta o reprehendeu Paris. D’esta sorte as ordenações se multi
com rigor da sua prevaricação, e lhe disse: plicaram successivamente nos departamen
«Que nào podéra fazer á purpura roma tos. Os novos bispos empregaram nas fune
na, com que era decorado, maior des- ções os sacerdotes que deram o juramento,
honra do que a de dar o juramento, o qual e ordenaram de novo quantos poderam, sem
era contrario aos juramentos os mais san escolha e sem decencia, a fim de formarem
ctos e solemnes a que estava ligado; que para si um esqueleto de clero.
continha um aggregado e o suca) de muitas Tal é a genealogia dos bispos e mais mi
hwesiaSj e què aquelles que o haviam pre- nistros constitucionaes.
scripto nào tiveram outro fim debaixo do
pretexto de reforma senão o de airu in ar
CONDEMNAÇÃO DAS ORDENAÇÕES
a religião catholica pelos seus fundamen
CONSTITUCIONAES
tos.»
O papa ameaçava também o arcebispo
de o despojar da sua dignidade de cardeal Informado da consummaeão do scisma,
(o que depois fez), senão voltasse a melho o papa não hesitou era pronunciar as pe-
FRA 469
nas incorridas por clTcito das ordenações copal os bispos d’Autun, de Babylonia, c
religiosas. Lidda, sacrilegos consagrantes ou assisten
O summo pontifice tinha recebido a Ex tes, c suspensos do excrcicio da ordem sa
posição dos princípios sobre, a constituição cerdotal, e de todas as outras todos aquel-
civil* do clero, assignada por todos os arce les que por seu auxilio, obra, consenti
bispos e bispos, membros da assembléia; sa mento ou conselho, tiverem contribuído
bia que a generalidade dos outros bispos para estas exccrandas sagrações.»
lhe adheria, e tinha conhecimento das car «Prohibe depois, debaixo da mesma pe
ta s c instrucçõcs pasloraes dos bispos pu na de suspensão, aos bispos sacrilegamente
blicadas contra o juramento, c contra a ordenados o exercerem qualquer funeção
constituição civil do clero, seu objecto. Em de jurisdicção episcopal, declarando niillo
todos estes cscriplos viu elle os mesmos e de nenhum efleito tudo o que tiverem a
princípios que expozera no seu breve de temeridade d’attentar n’cste genero.»
10 de março, e a declaração solcmnc da «Prohibe também, debaixo da pena de
incompatibilidade da nova constituição com suspensão, aos consagrantes c consagrados
a fé, authoridadc, e unidade da Igreja. Ti o exercerem funeção alguma episcopal, e
nha portanto todos os documentos que a declara que todos os que receberem d’el-
sua sabedoria lhe fizera desejar; podia pro les algumas ordens, ficarão por isso mes
nunciar com tanta mais confiança que os mo ligados pela suspensão, e se as exer
bispos de França tinham declarado o pro cerem, incursos na irregularidade.»
prio juizo, submeltendo-o á sua decisão. Para prevenir maiores males, o papa de
O papa dirigiu pois cm data de 13 de cretou «que todas as mais eleições de bis
abril de 1791 um breve aos cardeaes, ar pos c parochos, que se fizerem de futuro
cebispos c bispos, aos cabidos, ao clero e em conformidade da constituição civil do
ao povo de França. N’clle, drnois de recor clero, serão illegitimas, sacrilegas, c de ne
dar os seus esforços para impedir o scis- nhum efieito, que os eleitos não terão ju
ma e o juizo uniforme dos bispos de Fran risdicção alguma ecclesiastica ou espir
ça contra a constituição c juramento, refu tual. *
ta os pretextos dos authores do scisma, e «Que os bispos e parochos que tiverei
pronuncia,— «em virtude da authoridadc sido ordenados estarão igualmente sem ji
♦apostólica* com o parecer dos cardeaes da risdicção, da qual nenhum exercicio se po
sancta igreja romana, c em conformidade derão arrogar sem incorrerem na pena de
dos votos (da generalidade dos bispos de nullidadc, e na de suspensão, dc que só po
França, que todos os arcebispos, bispos, ab- derão ser absolvidos por authoridadc da
bades, vigários geraes, conegos, parochos, sancta sé. Adverte cmtim aos prcvericado-
sacerdotes, e outros quaesquer pertencen res que se se obstinarem na sua rebellião,
tes á milicia ecclesiastica, que deram pura não poderá deixar de lhes fulminar o ana
e simplesmente, como foi proscripto pela thema, e denuncial-os á igreja universal
assembléia nacional, o juramento civico, como scismaticos, e separados da sua eom-
fonte envenenada de todos os erros, c que muuhão.»
não o retractarem dentro de quarenta dias
contados da data do breve, serão suspensos
do exercício de todas as ordens, e sujeitos CONTINUAÇÃO E PROGRESSOS DO SCISMA.
á irregularidade, se algumas exercerem.» PERSEGUIÇÃO CONTRA OS CATHOLICOS
•Declara com especialidade que «as elei
ções dos novos bispos, que appellida por seus
nomes, e pelos titulos das sés a que eram Os breves de 13 d’abril e dc 10 de mar
chamados, são illegitimas, sacrilegas, c to ço de 1791 foram recebidos e publicados
talmente nullas, e quo olle as cassa, abole, pelos bispos dc França: um condcmnava
e abroga.» os erros capitaes da constituição civil do
«Declara mais e decreta que as sagra clero; o outro pronunciava as penas incor
ções dos mesmos bispos tem sido e são il ridas pelos que adheriam a esta constitui
legitimas, sacrilegas, feitas contra os sa ção. Estava dado o juizo pela cabeça su
grados canones, c quo por consequência prema da igreja, e reconhecido legitimo
os eleitos e ordenados estão sem jurisdicção pela generalidade dos bispos de França.
alguma espiritual para o governo das al Que podiam oppôr a uma tal authoridade
mas, e suspensos de todo o excrcicio da alguns bispos ordenados com despréso de
ordem episcopal.» todas as leis da Igreja, e sem titulo algum
«Declara também nomeadamente sus de missão ecclesiastica e espiritual?
pensos dc todo o exercicio da ordem epis Porém a facção dos constitucionaes ani-
470 FRA
mada pelo espirito revolucionário, e sus dotes catholicos, o até aos cadavercs dos
tentada pelas leis, c pelo governo, não es que tinham recebido dos mesmos minis
tava disposta a retrogradar: procurou so tros os ultimos sacramentos.
mente pretextos para curar a suarcbcllião Havia muito tempo que o projecto de
e infidelidade, pondo cm dúvida, c até ne proscripção dc todos os ministros catholi
gando a aulhenticidado dos breves do sum cos estava decidido: por mais submissos
mo pontifice, e attribuindo-os aos inimigos que se mostrassem ás leis civis, elles eram
da assembléia nacional, e do povo franccz. perseguidos com horríveis calumnias para
Invocou depois as liberdades da igreja os tornar odiosos c provocar contra elles
galicana, e pretendeu que não tendo sido novos furores. Já tinha sido passado o
estes breves recebidos pelo poder civil, decreto de deportação, mas o rei recu-
ainda quando fossem authenticos, nenhu sára sanccional-o: c dia 10 de agosto de
ma força tinham, nem produziam obriga 1792, que abriu a sepultura á monarchia,
ção alguma, como se pertencesse ao poder livrou os conspiradores da necessidade da
civil impedir o elTeito dos juizos da Igreja sancçào real, c a 2G do mesmo mcz pas
sobre a constituição divina, e o das penas saram elles o decreto absoluto de depor
cspirituacs decretadas contra os prevari tação dos bispos e sacerdotes catholicos.
cadores. Os constitucionacs pois foram por Quinze dias lhes foram marcados para obe
diante na execução dc seus planos; as or decerem, debaixo da pena de serem depor
denações dos bispos e sacerdotes continua tados para a Guiana Franccza os que não
ram á nuiltiplicar-se, c d’esta sorte a igre se conformassem com a lei.
ja scismatica achou-se organisada em todo Viram-se então as estradas cobertas de
o reino. sacerdotes que se dirigiam ás fronteiras; a
Comludo os bispos e sacerdotes catholi maior parte foram expostos a ultrajes, rou
cos, a quem foram prohibidas as funeções bos e maus tractos, e grande numero foi
annexas a seus titulos, conservavam geral- morto, por não obedecer a uma lei tão in
mcnlc a confiança em nome da liberdade justa como cruel.
dos cultosj cujo principio ainda não tinha Todavia, atrozes precauções tinham sido
sido atacado, e exerciam o seu ministerio tomadas d’antemão para reter victimas: al
em algumas igrejas ou capellas. A multidão guns bispos e uma multidão de sacerdotes
dos fieis, que recoiTiam a ellcs, atlrahiu- tinham sido présos e mettidos em diversas-
lhes uma perseguição mais ou menos vio prisões, em Paris e outras cidades do rei
lenta, e que se tornou quasi geral até ao no. Chegaram os horrorosos dias 2 e 3 de
decreto da sua deportação. setembro, nos quaes foram mortos o arce
Os bispos foram expulsos dos logares de bispo de Aries, os bispos dc Beauvais e de
retiro, que tinham escolhido nas suas dio Saintes, e perto de duzentos sacerdotes:
ceses. Os parochos e outros sacerdotes fo estas matanças multiplicaram-se ao mesmo
ram proscriptos das suas parochias; gran tempo em muitas provincias.
de numero d’clles foram lançados nas pri
sões; a maior parte experimentaram cruéis
ultrajes e maus tractos, e muitos foram h o r r ív e is e x c e s s o s d a im p ie d a d e
deshumanamente mortos.
Os sacerdotes, que pela condescendência
d’algumas administrações tinham dado o Depois da mortandade e dispersão dos
juramento com rcstricções sobre as cousas ministros catholicos, os constitucionaes pa
espirituaes, foram tractados com tanto ri reciam ficar senhores do campo, e já não
gor, como os que o tinham recusado, logo ter rivaes a temer; mas houveram de co
que se viu que elles não tinham communi- nhecer qne tinham sido empregados e sus
cação alguma com os bispos constitucio- tentados só com o fim de servirem de in
naes. strumentos para oppressão do clero catho
O odio dos intrusos e o furor dos jacobi- lico e para o triumpho da impiedade; e esta
nos exerceram-se até com os simples fieis, armação da igreja constitucional, que fòra
cora as mulheres, e com as religiosas que elevada como uin vão simulacro para en
não queriam communicar cóm os sacerdo ganar o povo e romper todas as relações
tes constitucionaes. Catholicos de todos os com a authoridade ecclesiastica, cahiu de
sexos, idades e condições foram ultrajados, repente á voz da impiedade.
acutilados e açoutados, em consequência do A seita conjurada contra a religião não
que muitos perderam a vida. A raiva se tardou com elTeito a declarar-se aberta
estendeu aos consortes que tinham feito mente contra os mesmos constitucionaes,
abençoar os seus matrimônios por sacer e contra toda a seita que professasse o
FRA 471
Christianismo; cila proscrevia todo o culto á França dos diversos paizes do seu des
christão debaixo do nome odioso de fana terro; mostraram-se successivamente com
tismo, c lhe substituiu o atheismo debaixo liberdade; viram-se cercados da confiança N
da fôrma do culto idolatrico da razão. Ain e respeito devido á virtude muito tempo
da fez mais; exigiu dos ministros das di opprimida; exerceram o sagrado ministe
versas communhões christãs um acto pú rio com felizes resultados, e ém toda a
blico d’aposlasia; viram-se então ministros parte tiveram a consolação de vér voltar
protestantes entregar-lhe os vasos da ceia, á unidade um grande numero de sacerdo
e as Sagradas Escripturas; uma multidão tes constitucionacs. Só na diocese de Rouen
de sacerdotes constitucionacs assignar uma se contaram em um anno perto do seisccn-
infame formula de renunciação ao sacer tas rctractações. Finalmente, debaixo da
dócio. de verdadeira apostasia, e mais de protecção de uma nova legislatura, que se
vinte bispos d’csta seita abjurar o seu es encaminhava ao restabelecimento da reli
tado, reconhecer que tinham sido uns char- gião c da monarchia, ellcs iam levantar por
latãcs e entregar-se aos mais vergonhosos toda a parte os altares do culto catholico,
excessos. quando uma nova crise revolucionaria (a
Os ministros catholicos foram tractados de 18 de fruetidor ou 4 de setembro de
com mais crueldade, mas ao menos d’um 1797) os pôz outra vez no estado de op-
modo mais horroroso. Foi decretada pena pressão, e os proscreveu com novo furor.
de morte contra os que se subtrahissem á Os ministros constitucionacs sempre pro
lei de deportação, ou que depois de a te tegidos pelas leis viram-se novamente sós
rem soíírido, tornassem a entrar cm Fran em posse do exercício do culto público: rc-
ça: grande numero eíTectivamente foi im- uniram-se, reorganisaram-se nos diversos
molado, maior numero ainda pereceu nas departamentos; espalharam escriptos, mul
masmorras, ou em navios destinados a de- tiplicaram ainda as ordenações sacrilegas
portal-os além dos mares. até se juntarem em Paris n’um suppost
Alguns bispos constitucionacs, Gobel, concilio nacional; fizeram todos os esfoi
Fauchet, Lamourctte, e Roux, pereceram ços e não pouparam meios para sustenta
também victimas da facção a cujos planos â sua igreja vacillante, até a grande époc
tinham servido; e condemnados a uma mor da concordata.
te violenta, deram provas de remorsos, re
nunciando ao scisma c ao erro. Outros bis
pos mais felizes repararam livremente em CONCORDATA ENTRE O PAPA PIO VII
diversas épocas, c com mais ou menos pu E O GOVERNO FRANCEZ
blicidade sua adhesão ao scisma, e gran
de numero de sacerdotes deu á Igreja a
mesma consolação. Os constitucionaes de nenhuma sorte que
riam desistir do partido de negar a authen-
ticidado dos juizos emanados da Sancta Sé
SITUAÇÃO DOS SACERDOTES CATHOLICOS sobre a constituição civil do clero, mas a
E DOS CONSTITUCIONAES Providencia permitliu que no meio das suas
DEPOIS DOS TEMPOS DO TERROR victorias na Italia o general Bonapartc che
gasse a dar a este respeito uma prova que
não deixasse mais logar á iilusão, nem pre
Quando depois da queda do tyranno Ro- texto á má fé. Ameaçando Roma, tinha elle
bespierre houve alguma liberdade de vol exigido que o papa retractasse os seus
tar á profissão, e culto do Christianismo, breves contra a pretenção da igreja consti
os principaes cabeças dos constitucionacs tucional; porém Pio vi, constante nos seus
trabalharam em reanimar o seu partido: e princípios c fiel á sua consciência, tinha
o reorganisaram com quantos poderam re preferido o desterro e o captiveiro, e n el-
unir dos seus adherentes por mais mancha les morreu.
dos que estivessem do crime d’apostasia, e Desde a sua exaltação ao throno pontifi
de outros infames excessos; e assim sus cio, o papa Pio vii manifestou os mesmos
tentados pelas leis restabeleceram-se nas princípios do seu antecessor sobre os nc-
funeções do culto público em toda a parte, gocios ecclesiasticos de França. Na carta
onde lhes foi possível. encyclica dirigida aos antigos bispos de
Os ministros catholicos, posto que ainda França, considera-os como os unicos e ver
sujeitos ao rigor das leis, sahiram de di dadeiros titulares, e legitimos bispos; lou
versos retiros em que se tinham subtrahido va o seu zelo, firmeza e fidelidade a sã dou
aos furores revolucionários, ou voltaram trina, felicita-o? dos soffrimentos que antes
472 FRA
quizeram supportar, do que manchar-se lhe que se certificasse da sua submissão a
com um juramento execrando, e impio, li sancta sé. Dos doze bispos constitucionaes
gar-se pelo crime, c nào obedecer aos juí oito sómente recusaram dar ao papa a satis
zos da sé apostólica. fação exigida. O legado instou com elles para
Quando por motivo de concluir a con se renderem; elles resistiram com altivez:
cordata com o governo francoz, Pio vu se queixaram-se ao ministro que os protegia
viu na dura necessidade de exigir a demis e este declarou que o governo não queria
são dos bispos, nào a pediu senào aos an retractação, mas uma simples adhesão á
tigos bispos, considcrandò-os como os uni concordata. O legado não podia transigir
cos legitimos bispos das sés episcopaes da com esta condição nem conceder a institui
França. ção sem proceder á absolvição das censu
De muito differente modo tractou os con ras, para o que tinha ellc formado um de
stitucionaes; fez-lhes significar pelo snr. creto que deyia ser entregue a cada um
arcebispo de Corintho, seu enviado junto dos bispos depois de terem dado signaes de
do governo francez— «que se apressassem emenda, c de se mostrarem dispostos a con
a voltar á unidade, que cada um d’elles formar-se com elles. Este decreto continha
cm cartas dirigidas a sua sanctidade pro que aquelle a quem se entregava— «ti
fessasse uma inteira obediência e subm is-: nha abandonado a sé episcopal, que prece
sào ao pontifice romano; que declarassem dentemente oecupára sem a instituição da
sinceramente adlierir e plcnamentc sujei sancta sé; que tinha promettido a obediên
tar-se ás decisões da sancta sé sobre os ne cia e submissão ao summo pontifice, e ti
gócios ecclesiasticos de França, e que dei nha declarado adherir, e submclter-se aos
xassem logo as sés que tinham occupado juizos emanados da sancta sé sobre os ne
sem a instituição da sé apostólica.» gócios ecclesiasticos de França;» depois do
Emfim, na bulla da confirmação da con que o legado declarava absolvido de Iodas
cordata, supprimindo as antigas sés epis as censuras, e dispensado em todas as irre
copaes para estabelecer novas, o papa no gularidades, impondo-lhe por penitencia re
meia todas as sés taes quaes existiam an za r uma vez os sete Psalmos Pcnitenciacs e
tes da revolução, sem comprehendor as no obrigando-o a conservar cuidadosamente a
vas sés erigidas pelos decretos da assem unidade pelo laço da paz.
bléia nacional, nào lendo portanto, consi A grande diÍBculdadc era obter a sub
deração alguma com a circumscripção das missão dos oito bispos. Monsenhor Ber-
dioceses, feita em execução da constituição nicr, bispo d’Orleans e negociador da con
civil do clero. cordata, encarregou-se d’islo; obteve d e s
D’esta sorte Pio vu, seguia exactamentc ses bispos a assignatura d’uma carta res
os principios de Pio vr, assim como tinha peitosa dirigida ao summo pontifice; entre
elogiado o seu zelo, trabalhos, c animosa gou a cada um o decreto d’absolvição, e
dedicacão cm combater os erros, c defen atteslou que elles o receberam com o res
der a doutrina e unidade da Igreja. Com- peito conveniente, e que se conformaram
tudo o governo francez exigiu imperiosa com as suas disposições.
mente que muitos constitucionaes fossem Foram pois conceclidas as bullas da in
comprehendidos no numero dos que se ha stituição, e todos os documentos enviados
viam de instituir em execução da concor para Roma: o summo pontifice o communi-
data. Era já para elles um grande passo o cou aos cardeaes em uma congregação 1
adherir á concordata, considerar as suas annunciando-lhes que os bispos «tractados
chamadas sés, e titulos como aniquillados, com uma bondade singular e paternal, se
e sujeitarem-se a receber a sua instituição tinham reconciliado com a sancta sé, e que
da authoridade da sancta sé; mas além d is tinham satisfeito á Igreja esta divida ne
to deviam dar uma segurança da sua fé, e cessaria.» 2
uma prova edificativa da sua submissão á
sé apostólica. Sustentados por um celebre 1 Allocução aos cardeaes em 24 de maio
ministro, que foi sempre seu protector, os de 1802.
constitucionaes resistiram abertamente ao 2 A concordata foi assignada em lõ de
que lhes exigira o snr. arcebispo de Co julho de 1801, confirmada em Roma pela
rintho, e se limitaram a apresentar a sua bulla,Ecclesia Christi de 15 de agosto se
demissão nas mãos do governo. guinte, e ratificada em Paris, em 8 de se
O papa não variou nas suas determina tembro do mesmo anno. Em 4 de outubro
ções, e nos poderes que concedeu ao car chegou a esta capital o cardeal Caprara,
deal de Caprara, seu legado á latere para enviado pelo sancto padre como seu legado
a instituição dos novos Bispos, prescreveu- a latere, e em 29 de novembro Pio VII pela
FRA 473
Todavia, alguns dos bispos, ate alli con Porém quando sua sanctidadc se achou cm
stitucionacs, venao-se instituídos, publica Paris cm 1804, elles foram obrigados a as-
ram cm tom de jactancia que nenhuma re- signar nas suas màos uma formula que nào
tractação fizeram, que resistiram a quanto deixava subterfugio á má fé, pois era con
se lhes exigira, c perseveravam nos mes cebida n’cstcs termos: «Declaro na pre
mos sentimentos. Se os devemos acreditar, sença de Deus, que professo adhesào, e
segue-se que o papa fora enganado por submissão aos juizos da sancta sé, c da
falsas informações, e que clles obtiveram a Igreja catholica apostólica romana sobre os
sua confirmação d’um modo fraudulento. negocios ecclesiasticos de França. Suppli
co a sua sanctidade que mc conceda a sua
bulla Qui Christi Domini fez a nova cir- benção apostólica.» 1
cumscripção das dioceses. Em 2 d'abril de Em attenção á politica do governo, quo
•1802 a concordata foi communicada ao cor queria evitar o estrondo das retractações,
po legislativo, e declarada lei do Estado, o cardeal legado, regulando o prose*gui-
mas por urna fraude que muito affligiu o mento que deviam ter os bispos a respeito
sancto padre Pio VII, o governo fez ado- dos sacerdotes constitucionacs, determinou
ptar pelo corpo legislativo, juntamente com que se exigiría dos que quizessem conci
a concordata e com o nome de Artigos Orga liar-se c o m \ Igreja «a declaração escripta
nicos, varias disposições relativas ao exer de adhesão á concordata, e de communhão
cido do culto, disposições tyrannicas, que com o bispo enviado pelo summo pontifi
iendiam a cscravisar ‘a Igreja. Prohibiam, ce.» Depois d’isto devia o bispo exhortal-os
por exemplo, que os bispos conferissem or a pôr cm ordem as suas consciências. •
dens sem annuenda do governo; prescre Um grande numero de bispos que qui-
viam que os vigários geraes do bispo conti zerani certificar-se melhor da doutrina dos
nuariam a governar a diocese, ainda de sacerdotes constitucionaes, exigiram além
pois da morte d1este, contra os direitos do d’isto cm particular a adhesão aos juizos
cabido; regulavam minuciosamente muitos da sancta sé sobre os negocios ecclesiasticos
pontos que pertencem á aulhoridade eccle de França.
siastica, e collocavam esta em uma de Apesar das declarações assignadas, prii
pendenda absoluta dos agentes do governo. cipalmenle nas dioceses onde sómente s
Estes artigos foram apresentados como a exigiu a prescripta pelo legado, muitos s
fôrma e condição do restabelecimento da cerdotes constitucionacs, imitando o exen
religião catholica em França, e pela data e pio dos bispos do seu partido, jactarain-s^
modo da publicação pareciam fazer parte publicamente que nào fizeram retracta-
da concordata: comtudo, bem longe de serem ção, e persistiram nos mesmos sentimentos
approvados pela sancta sé, pelo contrario que tinham professado antes da concordata.
Pio VII exigiu que se modificassem ou mu E’ o que causou mais ou menos desassocc-
dassem os que estavam em opposição ás re gos, discordias, e perturbações em diver
gras da Igreja, e na sua aüocução de 24 de sas dioceses, c princlpalménte naquellas
maio informou os cardeaes das reclamações que eram administradas pelos bispos con
que a este respeito havia dirigido ao primei stitucionaes, que depois da sua instituição
ro consul. canonica tinham manifestado uma escan
Ultimamente, em dia de Paschoa, 18 de dalosa obstinação nos seus primeiros sen
abril de 1802, o restabelecimento da reli timentos.
gião catholica em França foi solemnisado Porém os mesmos bispos, principalmente
na catliedral de Paris por um Tc-Dcum, a depois do acto de submissão, que assigna
ue assistiram os consules. O cardeal lega- ram cm Paris nas mãos do papa, guarda
o celebrou a missa, vinte dos prelados, no- ram ao menos mais comedi mento c mode
vamente confimnados, deram o juramento, ração; os sacerdotes do seu partido segui
I e um antigo •prelado de Boisgelin, arcebispo ram o seu exemplo, c pôdc-sc esperar que
- o scisma desarraigado nas igrejas de Fran
que foi de A ix e agoi'a de Tours, pronun
ciou um discurso em que mostrou a Provi ca pela instituição canonica dos pastores,
dencia servindo-se dos acontecimentos c en âeixaria também de dividir os corações, e
caminhando-os ao teimio marcado nos seus de remover a confiança.
deci'etos. Assim a concordata foi uma época FRATRICELLOS OU IRMÃOSINHOS— O d e s e jo
de conversão do povo francez á religião, e de se distinguirem por uma sanctidade ex
I se cila nao fora, a ignoranda e a immora- traordinaria não era menos vivo na Italia,
lidade continuariam a fazer progressos, e
que seria de Fi'ança? 1 Allocução aos cardeaes em 26 de ju
(NOTA DO TRADUCTOR.) lho de 1805.
474 PR A
que na Allcmanba, aonde tinha produzido e até do Christianismo. Não negavam a au
os beguardos pelo decimo quarto século. thoridade do papa, mas somente a preten
Alguns frades menores obtiveram de Celes diam restringir, .asseverando que as suas
tino v a permissão de viverem como ere cxcommunhões não podiam ligar os fra
mitas, e de practicarem á letra a regra de tricellos: 1.» porque elles tinham sido ap-
S. Francisco. Muitos religiosos. debaixo do provados por Celestino v, e porque um
pretexto de viverem mais retirados, e cm papa não podia destruir o que seu prode
maior perfeição, sahiram de seus conven cessor estabelecera: 2.» porque a sua so
tos, varios seculares os imitaram, e todos ciedade era aulhorisada no Evangelho
estes, que aspiravam a uma vida mais per contra o qual não tinha poder algum o"
feita, se uniram, chamaram-se irmãos e for papa: 3.° fmalmente para atalharem toda c
maram uma seita: os franciscanos se ap- qualquer instancia, distinguiram duas igre
pellidaram irmãos, os seculares irmãosi- jas, uma totalmcnte exterior, rica e pos
nhos, ou fratricellos, ou bisochos. suidora de domínios c dignidades, na qual
Este tropel de frades sabidos de seus con dominavam o papa c os bispos, que por-
ventos viviam sem regra, sein superiores, tauto podiam d’ella excluir os que excom-
e faziam consistir toda a perfeição christã mungavam; outra inteiramente espiritual
na absoluta renuncia de toda a proprieda que não se fundava senão na sua pobreza,
de, porque na pobreza consistia o principal c que não tinha outros fundos mais que a s
caracter da regra de S. Francisco, á qual suas virtudes: d’esta era a cabeça Jesus
eram estranhamente afferrados os francis Christo, e os fratricellos os membros: o
canos, Macerota, e um outro, que deram papa não linha n’ella imperio algum, nem
principio a esta seita. authoridade, e as suas cxcommunhões a
Os fratricellos passeavam ou cantavam, ninguem podiam excluir d’esta igreja.
c para observarem mais à risca o voto da D'um tal principio concluiram os fratri
pobreza jámais trabalhavam, receiando por cellos que fora da sua igreja não havia sa
meio do trabalho adquirir direito a alguma cramentos, que os ministros peccadores não
cousa: da mesma sorte que os massilianos, podiam conferil-os, e desenvolvendo esto
diziam que se devia orar continuamente principio fundamental do seu scisma, reno
para não cahir em tentação; c se acaso os varam os diversos erros dos donatistas, a l-
arguiam d’ociosos, diziam que a sua con bigenses, e valdenses.1
sciência lhes não permittia trabalharem por Espalhando-se por toda a Italia para pré-
um sustento caduco, e só o queriam fazer garem estes desvarios, e amotinarem os
pelo celestial, consistindo este espiritual fieis contra o papa, João xxn escreveu con
trabalho na meditação, na oração en o can tra elles a todos os principes, e encarre
to. 1 gou aos inquisidores que os sentenciassem
Apesar d’esta austerissima renuncia, os rigorosamente. 2 Os fratricellos, porém, a
fratricellos eram bem providos de tudo: fim de pôrem d.o seu partido os principes,
grande multidão d’artifices, carvoeiros, pas que o papa excitava contra elles, mistura
tores e carpinteiros largaram suas occupa- ram entre os seus erros algumas proposi
ções, suas casas e seus rebanhos para to ções contrarias ás pretenções do papa, sus
marem o habito de fratricellos: todos os tentando que elles não eram mais succes
religiosos descontentes do seu estado, prin- sores de Pedro que os outros bispos; que
cipalmente alguns franciscanos, sob pre não tinham poder algum nos estados dos
texto d’observarem mais cxactamente a re principes christãos, c que eram absoluta
gra de S. Francisco, deixaram seus con mente destituídos de todo o poder coactivo.
ventos, c engrossaram a seita dos fratricel A concorrência de todas estas traças sus-
los, os quaes se estenderam pela Toscana, teve por algum tempo os fratricellos con
Calabria, etc. tra a anthoridade do papa: todavia foram
Viu João xxii o abuso d’estas sociedades, queimados muitos, cuja perda ainda iam
prohibiu-as, e excommungou os fratricellos reparando os novos proselytos: mas final-
e seus fautores.2 Os fratricellos investiram monte não tendo já igrejas nem ministros,
a authoridade, que contra elles fulminava, entraram na presumpção de que aos fra
fundando-se no especioso pretexto da po tricellos assistia todo 6 poder de absolver
breza evangélica, em que consistia a pri e de consagrar, e asseveravam ser inútil
meira obrigação da ordem de S.-Francisco, orar nas igrejas sagradas.
Os franciscanos uniram seqs esforços
1 A n n . 1294. D ’A rgentré Collect. Jud.
R a y n a ld . a n n . 1317, n. 56. 1 R a yn a ld ad an n . 4318, n . 460.
2 Ibid. 2 lbid.
GIL 47$
aos do papa para a cxtincção dos íratri- philosophia era reduzida a tractar da sub
ccllos; c esta seita, depois de luctar por stancia, qual idade, attributos, c dc outras
muito tempo contra os ataques dos papas, abstrações similhantes.1
se dissipou: os restos passaram á Allema- 0 mesmo methodo passou ás escólas de
nha, aonde subsistiram protegidos de Luiz theologia, cujos differentes objectos foram
de Bavicra, inimigo de Joào xxu, c se con tractados segundo as regras da dialectica.
fundiram com os beguardos. Os theologos dos séculos precedentes nào
Deu-se o nome de fratricellos indistin- escreviam sobre as verdades theologicas,
ctamente áquella multidão de seitas que senão quando a necessidade de dcfendcl-as
inundaram a Europa no decimo terceiro os obrigavam a tomar a penna; mas tanto
século, e principio do seguinte: todas ellas que a dialectica foi introduzida nas escó
se precipitaram nas mais horríveis desor las de theologia, tractaram os seus diver
dens, renovaram as infamias dos gnosticos, sos objectos por gosto e por divertimento,
c dos adamitas, asseveraram que nem Je e logo appareceu uma multidão de traota-
sus Christo nem os apostolos tinham guar dos theologicos.
dado continência, porque tiveram mulhe Gilberto de Porréc seguiu o gosto do seu
res suas, ou alheias. Entre estes sectarios século: depois de se haver applicado muito
houve alguns que sustentavam que o adul á philosophia, estudou a theologia, e ató
terio e o incesto nào eram peccados, sendo compôz varias obras theologicas, tractando
commcttidos entre os da sua seita.1 os dogmas da religião segundo as leis da
Tal c, com pouca diíícrença, o quadro dialectica. Assim, fallandb da Trindade,
que nos oflercce um século ignorante, pre examinou a natureza das pessoas divinas,
cedido d’outros ainda mais, em que nào se seus attributos c propriedades, que difle-
poupavam nem o sangue nem o ferro: toda rença havia entre a essencia das pessoas '
a Europa estava cheia d’exercitos de cru suas propriedades, entre Deus e a natun
zados, dc fogueiras, e ^inquisidores: ha za divina, entre a natureza divina e os ?
viam-se destruído os hereges, c feito dili tributos de Deus.
gencias por corrigir as desordens que clles Como todos estes objectos tinham defir
objcctavam aos catholicos, emprehenden- ções diversas, Gilberto julgou que todos e
do-sc a reforma dos costumes; porem não íes eram differentes, que a essencia ou na
se cuidando em esclarecer os entendimen tureza de Deus, a sua divindade, sabedoria,
tos, a mesma reforma, que fòra vista como bondade e grandeza, não eram o mesmo
um preservativo contra a seducçào dos al- Deus, mas a fórma pela qual elle é Deus.
bigenscs c valdenscs, conduziu a todos os Eis-aqui, ao que parece, o verdadeiro sen
erros, c originou as seitas dos fratricellos, timento de Gilberto de Porrée; d’csta ma
dos beguardos, dc Sagarel, etc., porque não neira olhava elle os attributos de Deus e a
tinha por principio senão uma piedade sem divindade como fôrmas differentes, e Deus
luz. ou o ente soberanamente perfeito como a
ngNiiLis v^f.ENTrM—Vcia-sc Socinianos. collecção d’estas fôrmas: este era o seu
erro fundamental, d’onde tinha concluido
Gi l b e r t o ^ ík\ p o r r é e —nasceu em Poitiers
no líu^cnvurseculoTIS^cssc tempo se ha que as propriedades das pessoas divinas
viam multiplicado no Oriente as escólas de não eram estas pessoas, e que a natureza
philosophia e de theologia, aportaram á divina não tinha encarnado.
França os livros d’Arisloteles, os commen Conservava Gilherto os mesmos princí
tarios que Averroés fez ás obras d’aquclle pios quando foi eleito bispo de Poitiers, e
philosopho, as interpretações de Porphirio, os explicou n’um discurso que fez ao seu
e as cathcgorias attribuidas a Sancto Agos clero. Arnaldo e Calon, seus dous arcedia-
tinho. 2 gos, o denunciaram ao papa Eugênio in,
A logica cm que consistia quasi toda a que estava então em Sena, a ponto de pas
philosophia, não era mais do que a arto de sar á França, aonde, logo quo chegou, fez
ordenar os objectos cm certas classes, dar- examinar a accusaçào em que lhe delata
lhes diversos nomes, analysar, por assim di vam o bispo de Poitiers.
zer, estes mesmos nomes, distinguir as dif Este prelado foi chamado a uma assem
ferentes qualidades d’objectos, e assignalar bléia, havida em Paris em 1147, e depois
às suas diversidades c relações. Toda a ao concilio de Reims celebrado no anno
seguinte, no qual foram condemnados seus
1 D 'A rgcntrc loc. cit. sentimentos. Gilberto se retractou, e se re
2 D uchesne, t. 4, pag. 259. Mabillon. A n - conciliou sinceramente com os seus arce-
nal. Bened. I. 71, pag. 88. H ist . L ittéra ire
de F ranco, t. 9, pag. 45, 180. 1 Hist. L itt. t. 7, pag. 130.
476 GNO
diagos. Alguns de seus discipulos insisti vangloriavam d ensinar uma doutrina ele
ram no erro, mas não formaram partido. vada e diíficil; mas 6 sem dúvida que os
Eis-aqui pois um philosopho que reco padres e authores ecclesiasticos deram este
nheceu sinceramente que se enganara, e nome .aos discipulos de Simão ou basili-
seus discipulos não fazem uma seita re dianos. etc. '" • ” _
belde c facciosa: igualmente aconteceu o ~~Comtudo Sancto Epiphanio, Sancto Agos-
mesmo a Abaelardo, c no mesmo século.1 tinlio, etc., nos faliam dos gnosticos como
O erro de Gilberto de Porrée destruía, de uma seita particular, que tomara e*to
como temos visto, a simplicidade de Deus; nome por se persuadirem seus sectários
por esta consequenda impugnou S. Ber d’entender melhor as cousas divinas do
nardo os seus princípios. Parece que este que os d’outras seitas. Sancto Epiphanio
bispo suppunha que a substancia de Deus principalmentc falia dos gnosticos como dc
não tinha por si mesma os attributos ou uma seita que conhece, e que JÀnliauima
as propriedades que constituem a divin dputcina,aai;lLç.uJ.ar, que elle alcançára pela
dade, mas que a collecção d’estes attribu lição dos livros que os gnosticos tinham
tos, que são a divindade, era uma especie composto; o que não se oppunha ao uso,
dc fôrma que se unia á substancia divina, que era frequente, do darem o nome de
ou que ainda mesmo lhe não era essencial. gnosticos aos que haviam adoptado alguns
Portanto o Ente Supremo, ou o ente por dos princípios dos mesmos: fóra dUsso"não
si mesmo, segundo Gilberto de Porrée, não se oppõe cá opinião de Sancto Epiphanio
era cssencialmente eterno, sabio, bom, etc., alguma objecção real. Seja porém como
porque não encerrava na sua ideia a col quer que fôr, nós vamos cuidar em des
lecção dos attributos que faziam a divin crever quaes eram os princípios geraes
dade. A substancia do ente necessário não dos gnosticos, e como estes princípios, ado-
era Deus senão porque a collecção d’estes ptados successivamentc por diversos here
attributos estava unida á sua substancia. ges, tomaram varias fôrmas, e produziram
Persuadimos-nos porém não dever con- differentes seitas.
fundir-se a opinião dos escotistas com o. S. Paulo adverte a Thimotheo que evite
erro de Gilberto de Porrée, porque aquelles-^as novidades profanas, e todas as opposi-
na
...........
verdade
— ..................
créem que ................
os attributos
$ões, quedeobjecta uma sciencia falsamente
Deus são distinctos da sua essençia, mas-: chamada gnose, a qual tem desencaminina
créem comtudo que nascem necessaria do a alguns que d’ella fazem profissão, e
mente d’esta esscncia, como da sua fonte, que se não deixe embelecar com fabulas e
ou do seu principio; e que a existência por genealogias sem fim, que mais servem para
si mesmo encerra necessariamente a infi excitar disputas, que para estabelecer pela
nidade, a intelligencia, a bondade, e todas fé o edifício de D eus.1
as perfeições. Segundo estas passagens de S. Paulo, e o
gnosimaco—Este termo é composto de sentir de Sancto Epiphanio, parece que o
duãTpalavras gregas: genosis, que significa caracter principal da gnose era iniqginar
scienda, c malte, que significa destruição. multidões de gerações dc eonas,2 ou dc
Deram este nome a certos hereges do sé genios a qué^ínxmül«áffTarprôduc-cão do
timo século, que condemnavam as scien- mundo, e todos os acontecimentos: eis-aqui
cias, e todos os conhecimentos, ainda os verosimilraente a origem de seu senti
mesmos que se adquiriam pela lição da Sa mento.
grada Escriptura; porque para alcançar a /-Reconheciam os gnosticos um Ente Su
salvação, era necessario viver bem, e não premo que existia por si mesmo, e que
ser sabio.2 dava existência a todos os entes; porém
GNosTicos—Este nome significa homem crêram encontrar no mundo algumas ir
sabio o ftmoso. Os primeiros heregès o regularidades, desordens, e contradicçõcs,
tomaram, porque se jactavam de ter co- ítTonde colligiram que o mundo não sahira
r»ho/»im
nhecimentos í»ntnc e
/» luzes nvtmnrflinnrinQ E
ln*oc extraordinarios. F .immPfliflfflmfillíft
immediatamente rin mim*; do
dass mãos rln Ent.p. Snnrfi-
Ente Supre
uma questão entre os sábios se os gnosti- mo, soberanamente sabio, e infinitamente
cos constituiam uma seita particular, ou; perfeito. Era forçoso, no seu sentir, que
se se dava este nome a todos os que se
1 Prim a ad Thimoth. 6, v. 20. Iianiond.
1 Vejam-se- acerca de Gilberto de Porrée, Dissert. de Jure EpiscopatuSj applica aos
Pelau, Dogm. Theol. 1 .1, l. 2, c. 8. D'Argen- gnosticos grande numero de passagens de
tré, Colleçt. Jud. Dup. X II siêcle, c. 8. Nat. S. Paulo.
Alex. Hist. Eccl. Soec. 13, art. 9. 2 No artigo Valentiniaiios se explica que
2 Damascen. de Hcer. Hcer. 88. cousa sejam eonas ou aeonas.
GNO 477
houvesse uma coisa menos perfeita; por-\ cos, distinguiam o creador do universo de
tanto suppozcram que o Ente Supremo Deus, que sc fez declarar aos homens por
produzira outro menos perfeito que ellc. seu filho, o qual elles reconheciam pelo
Esta primeira producçào nfio bastava Christo.1
para crear o inundo; por quanto n’elle se Assevera Saneio Ireneo que posto elles t i- ,
divisavam movimentos oppostos, c grande vessem opiniões muito diversas acerca de \
variedade de phenomenos contrarios, c que Jesus Christo, comtudo se ajustavam no \
não podiam ser attribuidos a uma só, e á* ponto de negar o que diz S. João: que o
mesma causa: portanto imaginaram que^ Verbo sc fez carne, assentando todos em /
esta primeira producçào dera a existência que o Verbo de Deus, e o Christo, que cl-
a outros entes. les punham entre as primeiras producções
Depois d’estc primeiro passo imagina da divindade, tinha apparecido no mundo
ram no mundo diversas potências, segun sem encarnar, sem nascer nem da Virgem,
do a necessidade que d^Uas tinham para nem de qualquer outro modo que fosse.
a explicação dos phenomenos que obser Como Jesus Christo não viera senão
vavam, e (Testas potências formaram idéias para salvar os homens, i§KLé, np^seutir
analogas aos cíTcilos que lhes attribuiam, dos gnosticos, para os iílustrar.e.mstruir,
do que nasceram todas as gerações d o i não ' Ilie davam munropêira'çués que as in
eonas, dos gemos, ou dos anj^s, taes comtf dispensáveis para este objecto, e criam que
<T7$oms ou íríntclligencia, o Logos ou o* as apparendas da humanidade bastavam
Verbo," a Phrgnpsc ou a prudência, Sophify para este fim. Para salvar os homens só
ou DwiamvTou. a sabedoria e o poder, ele.'; erá necessario instruil-os, porque a sua
PoucÕ"mais ou menos assim desenvolvia; corrupção o apego á terra provinham da
Hesiodo -Q_cáhos, e explaiíava" àToríííação. ignorância em que estavam ácerca da sua
do mundo pelo amor, etc., e também com propria grandeza, dignidade, e destino ori
pouca differença os peripalheticos assim, ginal.
imaginaram algumas virtudes ou qualida Desde que as almas humanas estavam
des occultas para todos os phenomenos. > aprisionadas em orgãos corporeos, sómente
O objecto principal dos gnosticos não era se podia esclarecer o espirito por interven
explicar os phenomenos da natureza, mas ção dos sentidos, e para que Jesus Christo
dar a razão do que a histpi;ia nos expli podesse conversar com os homens e ' in
c a v i acerca do povo judaico, c do que os struil-os, necessitava tomar as apparendas
christãr^~Contaváin dê Jesus Christo. Sup- id’um corpo; porém não se tinha unido a.
pózeram pois muitos mundos produzidos este corpo phantastico da mesma sorte que •
pelos anjos; que um d’estes anjos gover a nossa alma está unida ao corpo humano: }
nava o nosso, c imaginaram umas vezes teimilhante união, no pensar dos gnosticos,'
mais, outras menos mundos e anjos, e lhes •além de ser desnecessária para intruir os
attribuiam diversas qualidades, segundo homens, havería desauthorisado o Salva
ellcs consideravam as cousas. dor: portanto a obra da redempção não
Assim muitos reconheciam dous princí era da parte de Jesus Christo mais que
pios: um bom, e outro mau. Diziam outros um ministério d’intrucção.
que havia dez^péos, a que davam nomes, A sua doutrina podia ser ensinada a to
segundo suas phantasias: ao principe do dos os homens, porque todos tinham or
sétimo, subindo desde o inferior, chama gãos aptos para a escutar, c ouvir um h o-,
vam alguns Sçibahot: e a este attribuiam a mem que falia, mas nem todos eram capa-)
creacãp^gj^éo^Q^.tciy^i, c subordinavam zes da instrueçao que Jesus Christo viera\
oS*TftiiroiTseisl cèosTqüe lhe ficavam debai trazer ao mundo. Segundo os princípios (
xo, e muitos anjos; também o faziam au- dos pylhagoricos c platônicos, distinguiam ^
thor da lei dos judeus: suppunham-lhe a os gnosticos tres partes na natureza; a na- *
fórma de jumento ou de porco, o que vc- tureza material pu hvlica, a natureza.phy- \
( rosimilmentc deu occasiào á censura que sina nn nnimalTc ji .natureza . pneumatica;
os pagãos faziam aos primeiros christaos ou espiritual: entre os homens ãdmTltfãiuN,
de adorarem um jumento. Ignora-se que pouco mais ou menos estas mesmas diver- /
principio tivessem para dar uma tal fórma sidades, distinguindo toda a massa da h u-)
ao principe do sétimo céo; mas é de crôr manidade em homens materiacs ou h y li-\
que não fosse isto mais que um emblema. cos, animaes ou physicos, e espirituaes ou
No oitavo céo collocavam o seu BarJjello, pneumaticos.
a que umas vezes davam o nome'de paé,
outras o de mãe do universo. Aflirmam al i Aug. Hcer. c. 16. Ep. 26, c. 10, n. 91.
guns que os que se denominaram gnosti Epiph. H(crt 26. Theot. Apol. c. 36. Iren.
478 GNO
Os primeiros eram authomatos que uni- abatimento do homem não consistia cm sa
Ccamente obedeciam aos movimentos da ma- tisfazer as paixões, mas em olhal-as como a
Xteria, e eram incapazes de receber alguma origem da felicidade do homem, o como o
(idéia, dc seguir um raciocínio, c de se in seu fim.
struírem : n’olles tudo dependia da matéria, É facil conjecturar que uns taes prin
/soflnam todas as suas alternaçõcs, c nào cípios haviam de conduzir forçosamente a
>tinham destino differente. Os homens ani- todas as desordens possíveis, e que par
fm aes ou physicos nào eram intraetaveis, tindo os gnosticos do projecto d’uma per
ynem incapazes de raciocinar, como os ma- feição sublime, haviam de precipitar-se nas
yteriaes; porém nào podiam elevar-se sobre devassidões mais vergonhosas. Elles que
(a s cousas sensíveis, e aos objectos pura- riam alliar com os seus princípios as ver
f mente intellectuacs; portanto era depen- dades c moral do Christianismo, ou, para
dente a sua salvaçào das suas acções; isto melhor dizer, olhavam os mesmos princí
E queria dizer verosimilmento que podiam pios como a perfeição de Jesus Christo.
i perder-se ou salvar-se segundo os habitos Vejamos como um bispo gnostico os jus
/ “que tivessem adquirido por seus actos, ou tificava: «Eu imito, dizia elle, aquelles de
>os desapegassem dos affectos terrenos, ou sertores que passam ao campo dos inimi
} o s prendessem a elles. Os espirituacs, pelo gos com o pretexto dc lhes fazer serviços,
{ contrario, se elevavam acima dos sentidos, mas effectivamente para os perder. Üm
Z'e na contemplação dos objectos puramente gnostico, um sabio ha de conhecer tudo:
yespirituacs não perdiam de vista a sua ori- pois que merecimento póde haver em nos
ig em e o seu destino, e nào havendo cousa privar d’uma cousa que nào conhecemos?
<vque os podosse prender á terra, triumpha- O merecimento não consiste na abnegação
t vam de todas as paixões, que lyi annisavam dos prazeres, mas em sabermos usar duel
\o s outros homens. les, como senhores, c em subordinar os ap-
Os gnosticos pois se jactavam de teç.o- pelites ao nosso império, quando estamos
brix.na E ^ ip tu ra sentidos occultos, c vòr- entre os seus braços: cmquanto a mim eu
d^es^§ubl|n)es, é de se fazerem inaccessi- assim uso d’ellcs, e não os abraço senão
veís as paixões por meio d’estas verdades. com o desígnio de os suflocar.»1 *
E é sem dúvida que o espirito humano é. * Finalmentc houve gnosticos que esm e
capaz de elevar-se a taes especulações, e( rando-se em conhecer o jogo e imperio'das
talvez nào seja impossivel parar n’elfas pon paixões, para triumphar d^llas c viverem
alguns instantes, mas esta sublimidade nào como puros espíritos, insensivelmente ca-
póde ser o seu estado sobre a torra. Cada hiram em uma opinião contraria, e cré-
um dos homens coaduna em si as ires es- rram que os homens não eram com clTeilo
*pecies em que os gnosticos dividiam o gc- ^senão animaes; que a espiritualidade de
. lnero humano; e o gnostico, o mais conven-( que elles se ostentavam tão ufanos, era
ícido da sua perfeição, era com effeito um' uma chimera, o que nào se difTcrcnçavam
$ homem material, animal, e espiritual: o dos quadrupedes, dos reptis, c das aves
f péso do seu corpo o fazia logo recahir so- senão pela configuração dos seus orgãos:
-b re a terra; a sensibilidade animal reco tal foi aquelle ramo* de gnosticos, a que
brava os seus direitos, c então as paixões deram o nome de Borboritas.
renasciam e se inílammavam. S' Dividiram-se estes hereges, como acaba
} Todos os gnosticos pois declararam guer mos de dizer, em diversos ramos, que toma
ra ás paixões, e para vencel-as empregava ram difTerentes nomes, umas vezes tirados
cada um d’elles armas diversas: uns, para do caracter distincliyo de suas opiniões, ou
c triumphar d’ellas, se separaram dos obje- tras do cabeça da seita; taes foram os bar-
, < ctos que as faziam nascer, o se abstiveram tyelonitaSj os coddeanos, os levitas, os cutu-
• dc tudo o que as fortificava; outros as des xliitas, os stratioritas, os oipkritas, os se-
armavam, por assim dizer, extenuando todo {chianos, os florianos, os phibèonitas, os za-
* o seu vigor; estes, para as combater mais heanosj os borboritas.
*■4 vantajosamente, queriam conhecel-as, e Alguns d’elles recebiam o Antigo e Novo
para melhor as conhecer se entregavam Testamento: attribuiam ao espirito de ver
a todos os seus movimentos, e se observa- dade o que parecia favorecel-os, c o que
; vam; aquelles as tinham como distracções os impugnava
-------. „ ao espirito
* da mentira, por-
-
’ importunas, que perturbavam o homem na nue assentavam que as prophecias vinham
contemplação das cousas celestiaes, e d e/d e deuses differentes. Tinham um livro
que era forçoso desembaraçarem-se, satis-lque diziam fòra composto por n*u*
fazendo-as, ou ainda prevenindo todos os •
seus appetitos, tendo para si que a culpa c I 1 Ciem. A le x .Strom. I. 3, pag. 411.
GON 479
lhcr <lc Noé, um poema intitulado o Evan nal; suppõc-sc que tendo todos os homens
gelho da Perfeição, o Evangelho d'Eva, os parte no mesmo peccado, c nascendo filhos
Livros de Sclhj as Revelações d'Adão, as da ira, todos nascem dignos do inferno; mas
Questões de Afaria c o sen Parlo, a Prophe- que Deus pela sua misericordia resolvera
cia de Bahuba, e o Evangelho de Philippe. 1 tirar alguns da massa da perdição, c fa-
A base fundamental do systema moral zel-os morrer na justiça, deixando n’essa
dos gnosticos era o systema melaphysico massa os outros. Quanto ã liberdade, o sy
das emanações, isto é, aquclle que suppu* nodo não a nega abertamente como Luthe
nha liãver um Ente Soberano perfeito, de ro e Calvino; reconhece no homem forças
que dimana vam todos os entes particula naturacs para conhecer c practicar o bem,
res, como dimanava a luz do sol. A expo mas sustenta que as suas acções são sempre
sição d’cste systema aclia-se nos artigos Ca viciosas, porque sempre nascem d’um co
bala, Basilides, Valentiano, e Marcos. Os ração corrompido; reconhece que a graça
gnosticos perpetuaram-se até o quarto sé não obra no homem como u’um tronco ou
culo, como se pódc vér cm Saneio Epiph. n’um authomato, que conserva á vontáde
Hcer. 26. — ______ _ as suas propriedades, e não a constrange,
GgTÃR/Francisco)—Theologo protestante apesar de si mesma, isto é, que a não faz
/ e IenfiTem Lcyde, conhecido pela sua dis- querer sem querer.1
/ puta com Arminio. Ensinava Calvino que Que estranha theologia! diz M. Bossuet:
[ Deus predestinava igualmente os escolhi- não é quererem embrulhar tudo, explica
l dos para a gloria, e os reprobos para a rem-se tão fracamente acerca do livre ar
1 condcmnáção eterna; que o mesmo Deus bitrio? Não se lançaram em rosto á igreja
I produzia no homem o vicio e a virtude, catholica variações similhantes: cila con-
1 poraue.Q homem não crailm ? . e a neccs- demnou sempre* igualmente os pelagianos,
* sidade o determinava em todas as suas ac que negavam a necessidade da graça; os
ções. Esta doutrina ensinada por Luthero semi-pelagianos, que não admittiam *a sua
tinha sido impugnada pelos seus proprios gratuidade e a predestinação; os predesti-
discipulos: e entre os protestantes sempre nacianos, que impugnavam a liberdade,
houve algum theologo que a combateu, que presumiam ter Deus creado um ccrtc
como foi Arminio, theologo de Leyde, e col numero de homens para os condemnar, c
lega de Gomar. Gomar tomou a defesa de que os reprovados eram destituídos das
Calvino e sustentou que a opinião d’Armi graças necessarias para se salvarem, as
nio tendia a fazer os homens orgulhosos e quaes sómente concedia aos escolhidos.
arrogantes, e tirava a Deus a gloria de ser Eis-aqui a doutrina da igreja catholica,
o author das boas disposições do espirito, doutrina sobre a qual cila nunca variou;
e do coração do homem: com estas decla- e por maior que tenha sido a liberdade,
mações, Gomar pôz da sua parte os minis que permitte aos theologos para explana
tros, os prégadores c o povo. No artigo rem estes dogmas, jamais lhes consentiu
Ilollanda expomos como o principe Maurí proporem ou dfefenderem estas explicações,
cio tomou partido pelos gomaristas, c se senão emquanto reconheciam que cilas não
aproveitou d’esta dissenção para fazer mor impugnavam a doutrina da igreja contra
rer Barnevelt. os pelagianos, semi-pelagianos, e predesti-
Os gomaristas obtiveram que se congre nacianos: e d’aqui se pôde julgar se Bas-
gasse um synodo, em que foram discutidos nage e Jurieu tinham fundamento para ar-
os sentimentos d’Arminio, e a doutrina de guir a mesma igreja de haver variado acer
Calvino. As actas d’este synodo estão bem ca da predestinação e da graça.2 — —.
ordenadas, mas n’ellas se vé extremamente Gonçalves (Martinho)-—Nasceu em Cucn-v
variada a doutrina d’este reformador, e ca, ná Bèspanhã; pretendeu ser o Anjo S. /
abandonado o decreto absoluto, pelo qual Miguel, para quem Deus tinha reservado f
elle assevera que Deus destinou desde a a cadeira de Lucifer, e que algum dia ha- \
eternidade a maior parte dos homens ás via de combater contra o Anti-Christo. O
chammas eternas, e que em consequência inquisidor para refutar a visão de Gonçal
os pôz em um encadeamento de causas que ves fez morrer queimado este infeliz.
os conduz ao peccado e á impcnitencia fi Depois dá "sua morte quiz Nicolau, o ca-
nal. labrez, seu discipulo, inculcal-o por Filho
No mesmo synqdo se suppõe que o de
creto de condemnar teve por motivo a qué- 1 Corpus et Syntagma Confessionum
da. do primeiro, homem, c o peccado origi- Fidei in-4.° Hist. de la Refonne des Pays-
Bas par Brandi. I. 2.
1 Epiph. Hcer. 26. Aug. Iren. loc. cit. 2 Bossuet, Hist. des Variet. I. 14.
480 GRE
de Deus; pregou que o Espirito Sancto ha velmente se elevaram sobre os patriarchas-
via de encarnar um dia, e que Gonçalves d’Alcxandria e de Antiochia, e por fim ar
no dia do juizo final havia de livrar todos rogaram a si o titulo de patriarchas ecu
os condemnados por meio da sua inter- mênicos ou universaes.
cessão. Como os papas se oppunham porfiada-
Nicolau pregou estes desvarios cm Bar mente ás suas emprezas, e conservavam
celona, foi condemnado pelo inquisidor, e ainda os seus direitos, c grande respeito
morreu nas chammas. Gonçalves appare- em todo o Oriente, Phocio que n’elles via
ceu no século quatorze.1 um obstaculo invencível ás pretenções dos
1 gouthÉo—discipulo de Si mão Mago, não patriarchas de Constantinopla, emprehen-
< fez na doutrina de seu mestre senão algu- deu separar-se da igreja latina, arguindo-a
/ mas leves mudanças, segundo allirmam al- de que defendia erros perniciosos, 1 mas o
\ guns aulhores. Outros o poein no numero seu projecto não teve o successo que d’ellc
dos primeiros sete hereges, que depois da esperava: Phocio foi expulso da sua sé, e
ascenção de Jesus Christo corromperam a depois d’um pequeno scisrna, tornaram a
doutrina da nova Igreja, e dos quaes mais unir-se as duas igrejas.
se conhecem os nomes do que os dogmas. Comtudo existiam entre ellas algumas
Unicamente sabemos com certeza que elles cousas occultas para a rotura: os patriar
impugnavam o culto que os apostolos c os chas não aflrouxavam as pretençòcs ao ti
✓ •christãos davam a Jesus, Christo, eq u e ne- tulo de ccumenicos, nem os papas de se
\g a v a m a rcsiii reição dos mortos.'2 opporem a ellas constantemente; portanto
gqtoscalc^ . q^ ^ p^ escalco— Veja-se 0 estes princípios de divisão, que Phocio ima
artigo* Vfé^sunacianos. ginara, não podiam deixar de rcsuscitar o
guegos—Scisma dos gregos é a separa scisrna, logo que occupasse a cadeira de
ção’oãigrcja de Constantinopla da igreja Constantinopla um patriarcha ambicioso,
romana. Para se poder julgar melhor o querido do povo, e que tivesse valimento
idso dos aggravos dos gregos contra os la- com o imperador: tal foi Miguel Cerula-
inos, nos persuadimos ser a proposito re- rio.
jordar em poucas palavras a origem da Viu este patriarcha na igreja romana
grandeza do patriarcha de Constantinopla. uma barreira invencível para os seus am
Antes de se transferir para ella a cadei biciosos projectos, c que para reinar abso
ra imperial de Roma, se contavam na Igre lutamente sobre o Oriente era necessario
ja sómente tres patriarchas, o de Roma, o fazer separar d’ella a igreja grega: já o pa
d’Antiochia, c o d’Alcxandria: além d’estes triarcha Phocio tinha facilitado esta derro
patriarchados havia tres dioceses, cada uma ta á ambição dos seus successores.
das quaes era sujeita a seu primaz, e que Miguel fez entrar nos mesmos interesses
não dependiam d*algum patriarcha: estas o bispo de Acrida, metropolitano da Bulgá
tres dioceses eram a d’Asia, sujeita ao pri ria, e ambos escreveram uma carta a Joao,
maz d’Epheso, a de Thracia;' ao de Hera bispo de Tranina Apulia, a fim de que elle
clea, c a do Ponto, ao de Cesarèa.3 a communicasse ao papa e á igreja do Oc
N’este tempo ainda Constantinopla não ti cidente.
nha bispo, ou se o tinha, não era de consi Continha esta carta quatro pontos, em
deração, ou dependia do metropolitano de que accusavam a igreja latina; l.° que cila
H eraclea.4 se servia do pão asino no sacrificio; 2.° que
Depois de trasladada a cadeira imperial os latinos comiam queijo, animaes e carnes
para Constantinopla, fizeram-se de muita suflocadas; 3.° que jejuavam no sabbado;
consideração os bispos d’esta cidade; vie 4.® que não contavam Alleluia na Quares
ram a obter a preeminencia e jurisdicção ma. 2 Com outros pretextos igualmente fri
sobre a Thracia, Asia e Ponto; 5 insensi- volos Miguel Cerulario fez fechar as igre
jas de Constantinopla, e tirou a todos os
1 Dup. 14 siècle. Natal. Alex., 14 scec. abbades e religiosos, que não quizeram re
D'Argcntre, Collect. Jud., t. 1, p. 376, an. nunciar ás ceremonias da igreja latina, os
1356. mosteiros que possuíam na mesma capital.
2 Theodor. B ar., Fab. I. 1, cap. 1. Con- Leão ix respondeu á mencionada carta,
stit. Apost., I. 6, c. 6. Nicephore, hist. ec- realçando muito a dignidade da igreja ro-
cles., I. 4, c. 7. Ittigius, de B a r., sect. 1, f. 5.
3 Pagi. ad an. 37. Oriens. Clirist. l.° \
tivesse tirado do nada, c sua bondade não trabalhou, diz elle, tem um movimento va
as haveria solTrido. Logo, é forçoso que go c indiíTerente a todas as sortes de de
j)cus formasse o mundo d’uma materia terminações. Se a determinação do movi
feo eterna com elle, c que o não formasse mento da materia é eterna e necessaria
ijsenão trabalhando sobre um fundo inde como ella, Deus não pôde nem modifical-a
pendente d’elle. nem mudal-a; c se o movimento da mate
A Escriptura, segundo Hermogenes, em ria não é mais que uma dcslocação vaga
nenhuma parte diz que Deus formasse do e indiíTerente a todas as sortes de determi
nada a materia; antes pelo contrario, dizia nações, não tem ella por sua natureza al
elle, nos representa a Deus formando o guma determinação para o mal, ou algu
mundo e todos os corpos d’unia materia ma opposição para o bem: todo o mal pro
preexistente, informe, invisível; cila diz: cede pois da intelligcncia que a põz cm
«Deus fez o céo e a terra no seu principio, obra, e consequentemente Hermogenes não
ou em um principio, in principio.» Este explica a sua origem.
principio em que Deus formou o ceo c a 4.° Faz vér Tertulliano, que Hermoge
terra não era senão a matéria preexistente nes explicou mal a narração de Moyses, e
c eterna como Deus; a ideia da creação da que abusou do equivoco da palavra prin
materia não está expressa na Escriptura cipio in principio, de que se serve no Ge
cm parte alguma. nesis.
Esta materia informe era agitada por A palavra principio, diz Tertulliano, póde
um movimento vago sem desígnio c sem designar a ordem da existência das eou-
objecto; Deus nos c representado na Es sas, ou a potência que as fez existir, ou a
criptura como dirigindo este movimento, matéria de que se tiram as mesmas cou-
e modificando-o do modo necessario para sas. A palavra principium em Moyses não
produzir os corpos, os animacs, c as plan serve mais que para exprimir o principio
tas. Sendo a materia increada c eterna, c da existência.—In principio Deus fecit coe
o movimento uma força cega, não abraça lum et terram, significa: «No principio fez
escrupulosamente as leis que Deus lhe pre Deus o céo e a terra»; e não como tradu
screveu; c as desordens que ha no mundo ziu Hermogenes: «Deus fez o céo e a terra
são cfleitos da sua resistência. Esta hypo- cm um principio, que era a materia»; por
these satisfez a imaginação de Hermoge que quando a palavra principium c em
nes, que para explicar â origem do mal, pregada para exprimir o sujeito ou a ma
teve para si deverem unir-se os princípios teria com que se fôrma uma cousa, não
dos estoicos acerca da natureza da mate dizemos que a cousa seja formada n’este
ria com os dos christãos sobre a potência principio, mas é feita d’este principio; não
producente do mundo. dizemos que se fez uma medalha em pra
ta, mas de prata.
Moyses, no Genesis, se propõe a dar a
BEFUTA-SE A OPINIÃO DE HERMOGENES historia do principio do mundo: para sa
tisfazer a este objecto, neccssarimcnte nos
havia de indicar os princípios que concor
Prova Tertulliano contra Hermogenes: reram para esta producção, isto é, nos ha
l.° Que não podia fazer-se da materia um via de fallar de Deus como do principio
ente eterno e increado sem a igualar a activo ou da causa producente do mundo,
Deus, porque tendo por si mesma a exis que é effeito da sua acção; e da matéria
tência, ella teria todas as perfeições, e que que foi o sujeito, do qual elle tirou o
o mesmo Hermogenes não se abalançou a mundo. Se Moyses se persuadisse que
aflirmar. Deus tirara, o niundo d’uma matéria que
2. ° Tertulliano faz vér que Hermogenes lhe era coeterna, ter-nos-ia fallado d’csta
não dá alguma ideia distincta d’esta mate materia, mas nada no^ diz d'ella; logo não
ria coeterna a Deus, a que elle chama existia antes da creaçao do mundo, c ella,
umas vezes corporea, outras incorporea; segundo a narração de Moysés, foi tirada
que elle olha o movimento já como um do nada.
ente diverso da materia, já como a mesma Porém replicava Hermogenes que Moy
materia, bem que o movimento nada mais sés diz que antos que Deus formasse o céo
seja que um accidente da mesma. e a terra, esta era informe e invisível, que
3. ° Demonstra Tertulliano que Hermoge suppõe a preexistência, e que ella era eter
nes pela sua hypolhcse não pódc dar a ra na e increada.
zão da origem do mal no mundo: esta ma «Vós não mc objectareis aqui, diz Tertul
teria, sobre a qual vós presumis que Deus liano, senão alguma argúcia; quereis provar
H ES 495
a existência c eternidade da materia por di não se duvidava, pois que elle tracta de
zer Moysés a terra era; mas nào se pódc opinião nova o sentimento que suppôe a
dizer que uma cousa o é tanto que rece materia eterna, o que basta (por não nos
beu a sua existência? demorarmos) para patentear o juizo que se
«Estas palavras a terra era não suppoem deve fazer da verdade e da erudição de to
senão a existência da materia, e nào a ra dos os que com tanta afToutcza aíTirmam
zão pela qual cila existe; portanto não ha não ser conhecida a creação nos primeiros
na narração de Moysés cousa alguma que séculos.
aulhoriso a opinião de Hermogenes acerca Alguns asseveram crér Hermogenes que
da eternidade da materia. «Mas, finalmen o corpo de Jesus Christo estava no sol, e
te, instava Hermogenes, a Escriptura cm que os demonios se haviam de dissolver
nenhuma parte nos diz que a materia fosse algum dia, c entrar no seio da matéria
tirada do nada.» prima.
«A Escriptura refere que ella leve um h e r m o c i m a n o s — Discipulos de Hcrmogc-*
principio, responde Tertulliano, e por con nes, que foram muitos: dous dos mais fa- \
sequência que foi tirada do nada.» mosos eram Hermias e Seleuco, que fize- ]
Sc o mundo tivesse sido tirado de uma ram seitas particulares. Yejain-se os seus/
materia preexistente, a Escriptura nol-o artigos.
havería dito, como fez a respeito de todas ii e s y ç h a s t e s — Monges gregos, que ensi
as outras producções: quando Moysés nos naram o gujgjismo, pelo meio do scculo de
conta a producçào das plantas, as tira da cimo primeiro."Siineão, o moço, abbadc de
terra; quando nos refere a dos peixes, os Xerocerso, tinha levado muito longe os
tira da agua, etc. O mesmo logar de Moy exercícios da vida contemplativa, e dado
sés, que Hermogenes cita cm abono da maximas aos seus monges, que oravam e
sua opinião, aniquila todos os seus princí meditavam continuamente, para n’ella se
pios; por quanto, n’essa passagem, diz Moy aperfeiçoarem.
sés que a terra era imperfeita e informe, Como a gloria celestial era o objecto de *
o que não póde convir senão a uni ente todos os seus votos, não tinham outra ma- \
produzido c tirado do nada. teria as suas meditações: agiti^am-se, tor- ;
Quanto á objecção de Hermogenes sobre ciam a cabeça, c reviravam os olhos, fa- ;
a permissão do mal que ha no mundo, sup- zendo incríveis esforços para se elevarem
pondo que este fôra creado por um ente sobre as impressões dos sentidos, e se sol-
omnipotente, responde, Tertulliano que o tarem de todos os objectos que os cerca- \
mal que ha no mundo não é contrario á vam, e que lhes parecia aíTeiçoarem suas \
bondade nem á omnipotencia de Deus, por almas á terra: n’este estado lódos os obje
que virá tempo em que tudo ha de entrar ctos se confundiam na sua imaginaçao,
na ordem: 1 e esta resposta é victoriosa nada viam distinctamente; todos os corpos •
principalmente contra Hermogenes, que desappareciam, c as fibras do cerebro já ;
reconhecia a authoridadc da Escriptura, e não eram agitadas senão por aquellas vi
da revelação. Os que atacam a bondade de brações que produzem innumeraveis cores
Deus sem saber qual é o plano que o Ente vivas, como de relâmpagos, quando o ce
Supremo se propôz na creação do mundo, rebro é comprimido pela inflammação dos
não o podem fazer senão a forca de so- vasos sanguineos.
phismas. No fervor das suas meditações tomaram
M. Le Clerc não faz justiça a Tertullia os discipulos de Simeão estas fugitivas lu- -
no acerca do modo como elle refuta a Her zes pela luz celestial, tiveram-na por um •
mogenes, e até é de crér que não com- raio da gloria dos bemaventurados; c^iiain
prehendou inteiramente o sentido das suas que tendQjQS_o.lhps fix q sj^n to o ,saJU es
objecçõcs, que não impugnavam directa- offerecia esta hiz.
mente a possibilidade da creação, mas que Foram censurados estes visionários: Si
de todo rodavam sob a impossibilidade de meão, abbade de Sancto Ammas, os defen
conciliar a permissão do mal com a crea deu e tractou de homens carnacs c terres
ção.2 tres, inimigos dos hesychastes, os quaes go-
Tertulliano com prudência se encerrou saram da liberdade de procurar por meio
n’estes limites, sem que cuidasse em esta de suas meditações aquellas visões que os
belecer a necessidade da creação, de que faziam ditosos.
No principio do decimo quarto século,
Gregorio Palamas, monge do monto Athos,
* Tertul. contr. Hermog. que deixára as honras e a fortuna pela
2 Le Clerc, Hist. Eccles. an. 158. vida monastica, adoptou as regras que si-
496 HOL
mcão prescrevera, e lhes deu muito lus servir-se de Palamas para concluírem a
tre. sua paz, o , fizeram absolver em um syno
^ Escreveu sobre a natureza da luz que do, que condcmnou o patriarcha João, já
\ o s contemplativos divisavam sobre o seu defunto, e Cantacuzeno fez eleger éhi seu
/' umbigo, asseverando não ser diversa da logãr a Isidoro, sectario acerrimo das opi
\ que houve noThabor; que esta luz era in- niões dos hesychastes.
. creada e incorruptível, e bem que não Com este motivo os barlaamitas se sepa
i a essencia de Deus, era uma operação da raram da communhão de Isidoro; e para
•divindade a sua graça, a sua gloria, c o haver de se estabelecer a paz entre estes
'resplendor também que sahia da sua es dous partidos, os dous imperadores Canta
sencia. cuzeno e João Paleologo, fizeram congre
Um monge, por nome Barlaam, impu gar novo concilio, composto de vinte e cin
gnou o sentimento dos hesychastes, con co metropolitanos, de alguns bispos, e do
cernente á natureza da luz que tinha ap- muitos sacerdotes e monges.
parccido sobre o Thabor, affirmando que Foram citados para comparecer n’elle
esta luz não era increada, c que a opinião os inimigos de Palamas: tractou-se da luz
de Palamas parecia admittir muitas divin do Thabor; e pouco depois se discutiram
dades subalternas, e emanadas da divinda algumas questões, que respeitavam á es
de substancial. Cotigregou-se.um.concilio sencia e operação divina, as quaes propôz
- para decidir a questão, que principiava a o mesmo imperador. Referiram-se todas as
5 fazer estrondo, c n’elle foi condemnado passagens dos padres para as explicar, e
5 Barlaam. não se examinando com menos desvelo a>
Outro monge, chamado Acyndino, tomou doutrina de Barlaam, foi condemnado este
a peito a sua defesa: congregou-se um con com Acyndino, e todos os seus sequazes, e
cilio, no qual foi convencido Àcyiidinò de approvada a profissão de fé dos monges do
seguir a opinião de Barlaam, e de crér que monte Athos.
a luz do Thabor era crcada: Acyndino e A celebração d’cste concilio foi pelo anno
Barlaam foram condemnados; impôz-se si [1345. i
lencio sobjp estas controversias, c prohi- É notável o numero das obras compos
biu-se, debaixo de pena de excommunhão, tas a favor c contra os hesychastes, mas
que fossem accusados os monges de he quasi todas ellas estão ainda manuscri-
resia. ptas, havendo muitas na bibliotheca de Coi
Não satisfeitos porém ainda os hesychas flin.2
tes ou palamitas d’esta victoria, encheram Em outro artigo nos propo-
ConstantinüpTãae seus escriptos contra zemos a expender n’estc a historia, origem
Barlaam; divulgaram e fizeram receber a e estabelecimento do calvinismo nas Pro
sua doutrina. vincias Unidas, ao que vamos satisfazer.
De repente Constantinopla se viu cheia
/ de quietistas, que oravam continuamente,
\ e com os olhos inclinados para o umbigo, DA REFORMA NOS PAIZES-BAIXOS DESDE LU-
| uesperavam toda a luz do Thabor. THERO A TÉ QUE SE FORMOU A LIGA, CO
Os maridos largavam suas mulheres para NHECIDA DEBAIXO DO NOME DE COMPRO
■se entregarem sem distracção a este subli- MISSO.
i me exercício, e os hesychastes lhes davam f
/ a tonsura monacal: queixavam-se as mu-
Vlheres, e em toda a côrte resoava a pertur '"'Grassando a doutrina de Luthcro pelos
bação, e a discordia. Paizes Baixos, no anno de 1521, Carlos v
Quiz o patriarcha occorrer ás desordens, fez publicar um cartaz contra ella, c no
mas não dando os hesychastes nem pelas meou dous inquisidores, que mandaram
suas admoestações, nem pelos seus precei prender todos os que julgaram infcccio-
tos, os expulsou da cidade; e convogando i nados das opiniões d’aquetle heresiarca:
Ç u m concilio, que se compôz do paíFiarcha muitos religiosos Agostinhos foram d’es-
v de Antiochia, e de outros bispos, n’elle foi
condemnado Gregorio Palamas, suas opi 1 Dupin. X IV siccIOj pag. 322. Nat. Alex.
niões, e os sectarios das mesmas. Mas como in scec. 15. Panolia adversus Schisma Grce-
esta condemnação se fizesse durante o go corum Centúria, 13, c. 3, pag. 381. Fabri
verno da imperatriz Anna, que foi emquan- cius, Bibliot. Grtec. t. 10, pag. 454. Alla-
to Cantacuzeno estava desterrado, logo que tiuSj etc.
este se senhoreou de Constantinopla, a im 2 Veja-se o cathalogo da bibliotheca de
peratriz Anna e João Paleologo querendo! Coiflin.
HOL 497
te numero; dous morreram queimados, e respondeu, que mais queria ser despojado
o seu supplicio fez decantados os erros, de todos os seus estados, que possuil-os in
que a cllc deram occasião. A este primei fectos com a heresia.
ro edito ajuntou Carlos v muitos outros, Também pelo mesmo tempo appareecu
nos quacs eram condcmnados todos os hc- n’aquclle paiz urna bulla de Paulo iv, para \
reges a perder a vida, os relapsos a ser a erccção de tres novos bispados, a qual j
queimados, e as mulheres enterradas vi expressamente dizia que os novos bispos, i
vas, alliviando-se porém da morte os que assistidos de seus cabidos, fariam as vezes >
se convertessem, com tanto que nem fos d’inquisidores nas suas dioceses. Accres-
sem relapsos, nem estivessem presos. 1 ceu que para as fundações dos novos bis
Por este mencionado edito era prohibido, pados, se assignavam rendas e terras tira
com pena de morte e confiscaçào de bens, das a algumas abbadias, c outras commu-
que ninguém recebesse em sua casa al nidades religiosas. Os abbades e as commu-
gum herege; todas as pessoas suspeitas de nidades queixaram-se, e souberam avaliar
heresia eram excluídas dos empregos hon- tanto os seus direitos, que por fim não
? rosos; c para que melhor se descobrissem houve remedio senão virem os bispos á
\ os hereges, se promettia aos accusadorcs composição com clles, e deixarem-lhes uma
1metade dos bens dos delatados, se nào boa parte do que possuíam.
{ excedessem a somma. de cem libras de Os magistrados d’Anvers, de Lovaina, Ru-
.{Flandres. remond, Deventer, Groninguc, e de Lawar-
Os anabaptistas, que desolavam a Alle- de presentindo quanto a sua authoridade
manha, penetraram então nos Paizes Bai se debilitaria pela dos bispos, se oppozeram
xos, e foram punidos com mais rigor ain vigorosamente ã bulla, e encontraram meios
da, que os lutheranos: c em breve subiu o para impedir aos bispos a entrada nas ci
fanatismo a tal ponto, que se viram assim dades, ou para os expulsar d’ella$.
estes como aquclles disputar entre si a Esta opposição dos catholicos aos desí
gloria de irem para as fogueiras e patibu gnios da corte de Roma, deu novos alentos
los com o menor sentimento, e a maior aos sectarios, que então fallaram com mais
constância; e o que mais é, e não póde re liberdade contra a curia, e muitas pessoas
ferir-se sem estremecer, viram-se alguns creram não vér n’el!es senão cidadãos ze
d’estcs presumidos reformados, lançar as losos, e inimigos da oppressão: o seu nu
mãos sacrilegas á sagrada hostià, quan mero cresceu notavelmente, e cmfim, em
do o sacerdote a elevava, quebral-a e pi- 1559 fizeram apparecer uma profissão de
h sal-a aos pés pela gloria de Deus, queren- fé, que continha trinta e sele artigos, qua
] do assim mostrar que cila não continha a si todos oppostos á doutrina da igreja ro
I Jesus Christo; esperarem com semblante mana, e conformes á de Genebra: por esta
( socegado que os prendessem, e sofTrcrem razão as sociedades que a receberam, to
\ sem murmurar terríveis mortes. Este era maram logo o titulo d’igrejas reforma
\o miserrimo estado em que se achavam os das. 1
Paizes Baixos, quando Carlos v resignou a
(. Hespanha em Philippe, seu filho.
\ Philippe confirmou os editos de seu pae, DO CALVIN1SMO EM IIOLLANDA DESDE A LIGA
e fez punir com igual severidade os luthe- ATK QUE O PRÍNCIPE d ’ORANGE
ranos c os anabaptistas. As execuções mul SE PÔZ EM ARMAS
{ tiplicaram os hereges, e os tornaram tão
resolutos, que se viram corporações intei
ras de protestantes emprehenderem tirar Tão sobremaneira havia alvoroçado os
. das mãos dos executores, os que eram animes o terror da inquisição, que a no
!• conduzidos ao supplicio.2 breza fez uma liga occulta para estorvar o
j Luiz Philippe, a fim de rebater mais se- seu estabelecimento, e com igual empenho
j guramente os progressos da heresia, esta- os mais zelosos catholicos abraçaram o mes
j boleccu a inquisição nos Paizes Baixos, mo projecto: foi conhecida esta liga debai
; como na Hespanha; e representando-lhe xo do nome de compromisso; mas não po
um dos seus ministros que a severidade dendo a nobreza~'fcórifédeíada maquinar
poderia fazor-lh’os perder, ou ao menos al com tanto segredo, que deixasse de chegar
gumas d’aquellas provincias, Philippe lhe aos ouvidos da governadora um rumor
confuso dos seus desígnios, el-rei Philippe
1 Hist. de la Reform. des Pays-Bas, par a fim de socegar os ânimos mandou de Ma-
B randi, t. i , l. 2.
2 Jbidj pag. 35. 1 lbid., t. 1, l. 5, pag. 106.
498 HOL
drid um decreto que condemnava ás galés ram em armas, saquearam o convento das
os prcdicantes, os escriptorcs protestantes, religiosas de Wolevergem, aonde quebra
c todos os que os recebessem em suas ca ram as imagens, c tudo o que era destina
sas, ou permittissem que n’ellas fizessem do ao serviço divino; subitamente se der
suas assembléias. Portanto se ajuntaram ramou cm tal maneira pela maior parte
. os ministros nos bosques, ou nos campos, das provincias iconoclastas, que cm termo
t aonde concorriam algumas vezes de sete a de tres dias foram depedradas mais de
oito mil pessoas: alli pregavam, e depois quatrocentas igrejas. Viam-sc no tumulto
das pregações cantavam alguns psalmos. 1 tantos ladrões, e mulheres dissolutas, e fó-
Pelo estrepito das assembléias tào públi ra d’estes era o numero tão limitado, que
cas e tào numerosas conheceu a princeza igualmente cscandalisava a falsa devoção
Margarida, governadora dos Paizcs Bai d’uns, c a insolência dos outros.
xos, que o numero dos protestantes e des Taes eram os fundadores da reforma cm
cendentes era muito maior, do que ella Ilollanda: uma vil plebe, que sob pretexto
pensava; e mandou aos magistrados d’An- de zelo religioso se entregava aos maiores
vers que fizessem expulsar todos os fran- desatinos, c pisava aos pés as leis divinas
cezes, e impedissem absolutamente todas c humanas; c que engrossando com estes
as assembléias.2 motins o partido dos protestantes, os affou-
Os magistrados assim o executaram, pro- tava a fazerem públicos os seus exercícios
hibindo por um edital todas as assembléias em algumas das maiores cidades, c até de
que eram públicas; mas logo receberam se apoderarem de muitas de suas igrejas, i
uma representação, cm que se lhes pro Assombrada a duqueza de Parma á vis
punha, (juc havendo-se multiplicado de tal ta de tão rapidos progressos, prometteu
sorte o numero dos reformados, que já lhes abolir o Sancto Officio, regular os negocios
não era pdssivel ajuntarem-sc occultamcn- da religião, e obter d’cl-rci o congresso dos
tc, se rogava aos mesmos magistrados, per estados; mas Philippe, que tinha outros de
mittissem estas assembléias, assignando to sígnios, c que esperava aproveitar-se d’cs-
gares aptos para ellas; e que esta liberdade tas circumstandas para estabelecer nos
attrahiria ao seu paiz innumeraveis fran- Paizes-Baixps uma authoridadc absoluta, a
cezes e allemães. fim de ultimar seus projectos, se dispunha
A governadora fez publicar um edital, a arruinar o principe d’Orange com os
que de novo ordenava a seus ministros condes d’Egmont e d’lIorn.
que dissipassem todas as assembléias, e fi Uma carta que continha este desígnio,
zessem enforcar cm Misericordia todos os veio ás mãos do principe d’Orangc, que a
predicantes dos reformados. participou aos seus mais intimos amigos,
Era este procedimento uma falta de pa os quaes se uniram, e fizeram participação
lavra á nobreza confederada, a quem se ti a el-rei sobre a necessidade que havia de
nha promettido esperar a resposta de Phi tolerar as seitas, reprimindo-as: portanto
lippe, e que se lisongeava de que nada se sómente foram castigados os novos icono
emprehenderia sem que se deliberasse nos clastas, e o governo se tornou odioso aos
estados geraes: produziu pois este edital protestantes, sem todavia se reconciliar com
um pessimo efleito, e fez descobrir um os catholicos, extremamente offendidos da
queixume, e geral murmuraçào: muitas impiedade dos presumidos reformados. 2
cidades, até a d’Anvers, recusaram pro- Havia pois em Hollanda tres partidos
mulgal-o em fórma: as pregações públicas differentes: os catholicos inimigos da inqui
foram mais frequentes; houve desordens, sição, e defensores dos privilégios nacio-
principalmente era Anvers, aonde a sedi- naes; os catholicos dedicados á corte d’Hcs-
cão estava á ponto de romper, e não se po panha, c que tudo queriam sacrificar pela
tieram impedir as assembléias. Este exem- ruina dos reformados; e finalmcntc os pro
lo reforçou o animo dos sectarios, e em testantes fanaticos, que pretendiam conser-
reves instantes se viram estabelecidas var-se, e estenderem a sua presumida re
igrejas, que se diziam reformadas em Lille forma.
Tournai, Valenciennas, e nas provincias Estes pediram soccorro aos principes
d’Utrecht, e d’Hollanda. protestantes d’AUemanha, que exigiram
0 fanatismo dos protestantes, alentado (Telles que assignassem a confissão d’Aus-
com este successo produziu novas desor burgs, o que os reformados absolutamente
dens: no districto de Sancto Omer se poze- recusaram. Portanto fizeram os lutheranos
■c calvinistas dos Paizes-Baixos duas seitas te a sua patria, e sem embargo das provi
•separadas, que rcciprocamcnto sc excom- dencias com que a duqueza de Parma quiz
mungaram, e os lullieranos sc reuniram acautelar a deserção, por editos que fez pu
com os catholicos contra a reforma d’An- blicar, não foi ouvida. O duque d'Alba da
vers, que tinha tomado as armas para de sua parte cm nada mitigou a severidade,
fender a sua causa. Então os catholi c ate erigiu um tribunal, a que deu o no
cos sc aproveitaram d’esta divisão para nne de í ’oniidÜüJlas4pjpjjIllo11s.
recuperar alguns logares que os rcligio- Estabeleceu este por maxima fundamen
narios lhes tinham usurpado, c se apode tal «ser um crime de lesa-magestade fazer\
raram d’outros em que elles faziam as suas representações contra a fundação dos no- j
prégações; e a corte d’Hespanha, que sup- vos bispados, contra a inquisição, c contra *
pòz desbaratada a liga, exigiu dos senho as leis penacs; ou crer que o*Sancto Üífi- \
res, nobres c magistrados, que jurassem cio fosse obrigado a attender aos privile- '
sustentar a religião catholica romana, pu gios e alvarás, ou dizer que el-rei estava }
nir os sacrilegos, c extirpar as heresias; e ligado aos seus povos por promessas ou [
por fim, querendo assegurar-se dos povos, juramentos.» Este conselho se compunha i
obrigou a todos sem cxcepção a tomarem de hespanhoes, e tinha por presidente a
o s mesmos empenhos. João de Vargas, que se annunciou ao pú
Os reformados para fugirem á tempes blico da maneira seguinte: «Todos os ha
tade que desfechava sobre elles, volunta bitantes das provincias merecem ser en
riamente se pensionaram, elegeram um forcados, os hereges por haverem saquea
caixa geral, levantaram tropas, senhorea- do as igrejas, e os catholicos por não as
ram-sc de Bois-lc-Duc, c alli se fizeram for haverem defendido.» 1
tes. Foram menos ditosos em Utrecht c Rctirou-se a governadora, c deixou toda
Flcssinguc, porque o partido que havia a administração ao duque, o qual fez tirar
tentado esta ultima expedição, foi destroça a vida a muita gente: mil coitoccntaspes-)
do pelos catholicos d’Anvcrs. Os reforma soas morreram em pouco tempo ás mãos
dos (Vesta cidade, com a nova da derrota do algoz, e passou-se ordem para serem
de seus irmãos, correram ás armas, e a punidos como hereges, e com a maior se
cidade sc viu cheia de mortes c perturba veridade, todos os habitantes dos Paizes
ção, que o principe d’Orangc não pôde re Baixos, excepto aquellas pessoas de que (
bater, senão armando contra os calvinistas conselho dos tumultos houvesse dado uma
os catholicos e lutheranos. relação favoravel.
El-rei dTlespanha se fez logo senhor ab
soluto cm Valcnccnas, Cambrai, Mastriss,
Hassct, Bois-lc-Duc, etc., c tractados os re 1)0 CALVINISMO NOS PAIZES-BAIXOS DESDE
formados com o ultimo rigor, muitos per QUE TOMOU AS ARMAS O PRINCIPE D ORANGE
deram a cabeça, e os ministros foram en ATÉ Á PACIFICAÇÃO DE GAND
forcados. 1 O principe d’Orangc temendo
correr a mesma tormenta que desolava os
protestantes, cuidou em os reunir com os Suspiravam os povos por um libertador,
lutheranos; mas, frustrados os seus inten e não tinham outro senão o priucipc de
tos, se retirou para Allemanha, a qual sc Orangc: dirisindo-se pois a clle de toda a
encheu de refugiados, porque nos Paizes- parte, o resolveram a soccorrer a sua pa- .
Baixos continuaram tacs rigores, que os tria. Os principes protestantes (VAllema-
patibulos sc viam sempre cobertos de cor nha lhe pcrmitliram levantar tropas; todos
pos justiçados. os protestantes o abasteceram de dinheiro;
N’cstas criticas circumstandas mandou as igrejas de Londres, de Clcves, etc., lhe
el-rei de Hespanha áquelles paizes o duque mandaram sonunas notáveis: o principe
<l’Alba, na frente de mil e duzentos homens formou um exercito, c declarou as razões
de cavalleria, c de oito mil infantes (em que o determinavam a tomar as armas:
•1567 c 1568.) Entrou o duque em Bruxel- «Conservando o respeito devido ao sobera
las, e depois de haver distribuído as suas no dos Paizes-Baixos, queriam manter os
tropas pelos contornos, fez prender os con antigos privilégios, abolir as leis penaes,
des d’Horn e d’Egmont, c muitas outras restabelecer a paz do estado, c livrar as
pessoas de consideração: esta noticia at- provincias do jugo hespanhol.» Foi nomea
terrou todos os animos: mais de vinte mil do generalissimo o conde Luiz, que mar-
habitantes desampararam prccipitadamen-
ria cada uma das provincias independente valiosas senão depois da approvacão do-
das outras, e soberana entro si quanto ao burgomestre.
seu governo particular, e que por conse Einquanto estas divisões interiores tra
quência cada uma estabelecería entre si o ziam agitada a republica, cila era no inte
governo ecclesiastico, c conservaria a reli rior invadida pelas potências estrangeiras,
gião que lhe agradasse; c se dava um ma e o principe d'Orangc defendia a sua liber
nifesto de que os confederados estavam dade por todos os expedientes que inspi
dispostos a receber na liga as provincias ram o genio e o valor: e já a Hollanda es
que não quizessem tolerar senão a religião tava a ponto de o declarar conde d’està
romana, uma vez que se submettessem aos provincia, quando foi morto d’um tiro de
mesmos artigos.» pistola por um burguinhão, em Delft, no
A Pacificação de Gand, a paz religiosa, c dia 10 de julho de 1584. Consternada a re
a união de Ütrècht, não soccgaram os ani publica, com este acontecimento inespera
mos: de novo começaram os tumultos em do, as provincias unidas se offereceram a
Anvers, Gand, etc., aonde os ecclesiasticos Henrique m, que não se via em estado de
foram maltractados: em Utreclit, Beuges, receber nem de amparar este povo, pelas
Bois-le-Duc, e em muitos outros logarcsjos inquietações que lhe causava a liga no seu
reformados nem tiveram mais sujeição, proprio reino: portanto se oíTercceram as
nem mais prudência, c por fim aconteceu mesmas provincias a Isabel, rainha ^In
o mesmo que se receava; porque em Ar- glaterra, que lhe rejeitou a soberania, mas
tois, Hainaut, e os outros povos vallões, fi lhe concedeu alguns soccorros, com a con
zeram paz com Philippe ii, e tornaram á dição porém de que ella teria'guarnições
sua obcdieucia: este foi o effeito das conti inglczas nas cidades que são as chaves da
nuas infracções que os reformados faziam Hollanda e da Zelanda.
por toda a parte contra o tractado de Gand, Commandava os inglezcs o conde de Ly-
e de suas frequentes perfidias contra os ca castre, o qual com a ajuda dos ministros
tholicos romanos, insultando os sacerdotes augmentou a confusão c o reboliço, razão
e parochos, despedaçando as imagens, e de- porque as provincias se voltaram para
oedrando as igrejas, das quaes expulsavam Maurício, filho do principe d’Orangc, que
)s mesmos catholicos. por seu valor c por sua felicidade propria,
Sem embargo de se achar a republica sustentou a vacillante fortuna das provin
muito supeada pelos hespanhoes, mais de cias unidas: elegeram o stathoudcr d’Ulrc-
bil pela separação dos vallões, e dilacera cht, Gueldrc, ZuplUen, Hollanda, e Zelan
da pelos catholicos e lutheranos, c por in- da; e elle alcançou tacs vantagens contra
numeraveis seitas de anabaptistas, alguns os hespanhoes, que deu aos confederados
ministros reformados suscitaram disputas tempo de respirarem.
importunas acerca da policia ecclesiastica; Henrique m tinha sido assassinado, o
pretendiam uns que o magistrado tivesse a Henrique iv conquistava então o reino d e
principal parte na. escolha de seus paro França: Philippe, cego do odio que tinha a
chos ou ministros, c outros que ella depen este principe, se uniu contra elle aos col-
desse do Consistorio. ligados, e mandou a França o duque de
tfo meio d’cstas discordias e tumultos Parma. Os hollandczes se* fizeram mais
os ministros se juntaram e deram á igreja animosos, e o seu poder igualou bem de
reformada de Hollanda a disciplina que pressa o seu valor: depois de se manterem
Calvino estabelecera em Genebra: mas não por muito tempo na defensiva, assaz feli
obstante isso ollas foram agitadas por mil zes em poderem nos princípios resistir aos
divisões intestinas, e principalmente pelos seus inimigos, principiaram a atacal-os, c
muitos esforços que fizeram para sujeitar íinalinente lhes tiraram as provincias visi-
a si os magistrados, e para impedir que se nhas: a.victoria foi quasi sempre sua com
concedesse »ás outras religiões aquella mes panheira inseparável no mar c cm terra,
ma tolerância que os reformados, logo nos nos sitios c nas batalhas.-1 •
seus princípios, requeriam dos catholicos Fizeram novas leis, regularam a admi
como uma justiça.1 nistração das suas rendas, sustiveram a
Finalmente as disputas do clero e dos guerra contra a Hespanha por quatorze
magistrados terminaram em que estes hou annos, ligaram-se contra ella com a Ingla
vessem igualdade de votos nas eleições terra e a França, e por fim chegaram a
com os ministros, c juc cilas não fossem
1 Em 1648. Veja-se De. T lm . I. 10-
Traité de Muneter, Hist. du Traité de
Jbid. I 13 et 14. ptalie.
HOL 50:)
tal grau de poder, que os põz em estado cm Jesus Christo, seriam absolvidos desuas
de se fazerem reconhecer por toda a Eu culpas, e gosariam da vida eterna; mas que
ropa por uma nação livre, sobre a qual os pcccadorcs endurecidos e impenitentes
não tinha a Ilcspanha que pretender. seriam castigados; que Deus folgava muito
de que todos os homens renunciassem os
seus peccados, e que depois de chegarem
DAS SEITAS QUE SE FORMARAM NA IIOLLANDA a conhecer a verdade, n’clla perseveras
DEPOIS QUE O CALVINISMO sem constantes, mas que não constrangia
FOI n ’e LLA A RELIGIÃO DOMINANTE ninguem.» i
Gomar tomou a defesa de Calvino sus
tentando que «Deus por um decreto eter
As provincias unidas e levantadas con no havia ordenado que entre os homens
tra a Hcspanha c contra a inquisição, vie uns fossem salvos, c outros prescriptos, de
ram a parar cm asylo de todas as seitas que se seguia que uns eram attrahidos á
chrislãs, condemnadas pela inquisição e graça, c que assim attrahidos não podiam
pelas leis d’Hcspanha; como os estados da cahir; mas que Deus permittia que todos
Hollanda as protegiam, os anabaptistas fo os outros ficassem na corrupção da natu
ram tractados com mais humanidade, e os reza humana, e nas suas iniquidades.»
theologos protestantes atacaram em seus Gomar não contente com defender a sua
sermões e escriptos esta indulgência dos opinião, publicou que a doutrina de Armi
magistrados, sustentando não poderem cl- nio abalava os fundamentos da reforma, e
les conceder a liberdade do consiencia, e introduzia o papismo e o jesuitismo.
deverem punir os hereges: tacs eram as Combateram Arminio a maior parte
pretenções do clero protestante contra os dos ministros e pregadores, mas elle tam
socinianos, anabaptistas, etc., no meio das bém achou quem o defendesse: as escolas
calamidades da guerra e desassocegos que tomaram parte n’esta controversia, que
causavam ás provincias unidas os esforços d’ellas passou aos pulpitos, e d’estes ao
de Hespanha, que talvez podiam submet- povo; c alguns pregadores se queixaram
tcl-as ao jugo que sacudiram, por não lhes amargamente de que se pozesse em dúvi
permittirem a mesma tolerância que im da a profissão de fé, que tinha sido scllada
pugnavam. com o sangue de tantos martyres.2
N’estc tempo em que os theologos pro Os estados da Hollanda toniaram conhe
testantes forcejavain por armar o povo e cimento d’estas disputas, e fizeram quanto
os magistrados contra os socinianos, ana foi possível por apazigual-as, mas sem ef-
baptistas, lutheranos, etc., ellcs mesmos es feito, porque tomando calor os dous parti
tavam divididos entre si acerca da graça, dos, tudo embaraçaram, c as duas seitas
da predestinação, e do merecimento das vieram a ser duas* facções; porém obtendo
obras, e as suas controvérsias produziram a de Gomar cm breve tempo a superiori
divisões, bandos, e uma guerra de reli dade, os arminianos olTcreceram aos- esta
gião. dos da Hollanda uma representação em
Calvino tinha negado a liberdade do ho que se justificavam das accusações dos go
mem, e sustentado que Deus não predesli- ma ri tas, que os censuravam de quererem
nára menos os homens ao peecado e á con- fazer innovações na religião. Insistiam el-
demnação, que á virtude e á bemaventu- les em que se devia examinar a profissão
rança: esta doutrina, que muitos protes de fé, e o cathccismo; depois do que de
tantes censuraram em Luthero, foi impu ram exposição da doutrina dos seus adver
gnada contra Calvino, naquelle mesmo sarios, c da sua. Esta representação, apre
tempo que elle podia tudo em Genebra: sentada pelos arminianos, lhes deu o nome
ella encontrou adversarios mais formidá de remontrante.Sj e aos gomaristas que of-
veis nos Paizes Baixos, e entre os reforma fercceram outra opposta, chamaram con-
dos, os quaes tiveram que a doutrina de tra-remontrantes. 3
Calvino, acerca da predestinação, não fazia Os estados impozeram silencio sobre os
um ponto principal da reforma. matérias controvertidas pelas duas parcia-
Arminio, parocho em Amstcrdam, e pro
fessor em Leyde, se declarou contra Calvi Hist. de la Reforme des Pays-BaSj t. i,
no; cria este ministro «que sendo Deus pag. 364.
justo Juiz e Pae misericordioso de toda a 2 lbid. pag 365, 369.
eternidade, fizera esta distineção entro os 3 Jâ expozemos os princípios theologi
homens: quo os que se emendassem de cos d'estas duas seitas nos artigos Arminio
sous peccados, e pozessem a sua confiança e Gomar.
504 HOL
lidadcs, e as cxhortaram a viver em paz; D’aqui passou a ordenar á tropa quo
mas nào sendo approvado este partido por nao obedecesse aos magistrados, e obrigou
todas as cidades, os ministros continuaram os estados geraes a que escrevessem* aos
a declamar contra os arminianos, c a fa- magistrados das cidades, determinando-lhes
zcl-os mal vistos. que despedissem as tropas levantadas para
Gomo varios cavalheiros d’Amsterdam, e a segurança pública; porém os estados par-
até alguns magistrados da mesma cidade, cularcs, que a este proposito não se per
logo no principio da reforma, tivessem re suadiram sujeitos a outras ordens mais
jeitado a doutrina de Calvino acerca da que ás dos estados das suas provincias, não
predestinação, e outros dogmas d’estc theo tiveram respeito algum ás dos estados ge-
logo, os descontentes dos ditos se declara racs.
ram em favor das opiniões dos remontran 0 principe tractou este procedimento de
tes, e aggregando-se a estes alguns mem rebcllião, e conveio com os estados geraes
bros da igreja de Wallona, fizeram todos em marchar elle mesmo, com as tropas
sua assembléia particular. que commandava, a extinguir esta solda-
Os remontrantes, incitados com o exem dcsca levantada irrcgularmente, e a depôr
plo d’estes, e com as tentativas dos ministros os magistrados arminianos; prendeu tudo
gomaristas, formaram também suas assem quanto resistia á sua authoridadc tyran
bléias particulares na provincia da Hollan- nica, c á sua justiça militar, e, aproveitan
da: a plebe as investiu, fez em pedaços a do-se d’esta opportunidade, fez prender e
cadeira do presidente, e lhe demoliría a cortar a cabeça a Barnevelt, um dos mais
casa, se o motim não fosse desbaratado.. No illustres defensores da liberdade das pro
domingo seguinte saquearam a de um re- vincias unidas.
montrante, cavalheiro rico; razão porque Barnevelt havia sido tão util ás provin
os remontrantes d’ííoIlanda e Utrecht, pre cias unidas, no seu gabinete, como o foram
vendo a tormenta, formaram entre si união os principes de Orange á frente do exer
mais estreita, por um acto particular. cito: a liberdade pública nada tinha que
Viu-se pois o magistrado na urgência de temer de Barnevelt; mas foi sacrificado á
tomar parle n’estas dissensões theologicas, vingança do principe d’Orangc, que podia
publicando um edito que ordenava aos aniquilar a liberdade das provincias, e que
dous partidos que se tolerassem, porque talvez teudo formado o projecto de se fa
os predicantes não se limitando a cathe- zer dictador das mesmas, temia encontrar
chisar, assopravam também o fogo da sedi- n’elle um obstaculo insuperável.1
ção. Este edito porém amotinou todos os Apoiados os gomaristas com o credito e
gomaristas de tal maneira, que receando- poder do principe d’Orange, fizeram con
se as antigas sedições, o grande pensiona- vocar um synodo em Dordrccht, em que
rio JBarncvell propòz aos estados se conce foram condèmnados os arminianos, e con
desse aos magistrados da provincia o po firmada a doutrina de Calvino ácerca da
der de levantarem tropas para reprimir os predestinação e da graça.2
sediciosos, e prover a segurança de suas Em virtude do mesmo synodo, fizeram
cidades. Bordecht, Amsterdam e outras banir, expulsar, e prender os arminianos,
tres cidades, favoráveis aos gomaristas, pro que sómente depois da morte do principe
testaram contra o parecer de Barnevelt, foram tractados com menos rigor, e final
mas elle comtudo foi seguido, e os estados, mente cm 1630 conseguiram a tolerância.
na conformidade do mesmo, firmaram um É pois o calvinismo a religião dominante
decreto em 4 d’agosto de 1617. em Hollanda, e em todas as cidades e vil
Havendo já muito tempo que o principe las dependentes das provincias unidas; po
Maurício de Nassau aborrecia a Barnevelt, rém os que seguem a profissão d’Ausbur-
se persuadiu poder aniquilar a authorida- go, os remontrantes e os arminianos, teem
de d’este magistrado á sombra das dis muitos templos: os anabaptistas, cujo nu
sensões religiosas. Queixou-se de que ten mero se augmentou consideravelmente de
do os estados resolvido o levantamento das pois que foram expulsos do condado de
tropas sem o seu consentimento, dcsautho- Berne, teem também suas assembléias: os
risavam a sua dignidade de governador e socinianos são iguálmente tolerados cm
de capitão general: e porque taes pretèn- Hollanda, e quasi todos se aggregaram aos
ções não podiam sustentar-se sem os votos
do povo, se declarou em favor dos goma 1 Veja-se du Mauricr, Le Vassor, et le
ristas, que tinham altrahido ao seu partido Clerc.
o mesmo povo, e eram inimigos capitaes 2 Vejam-se os artigos Gomar e Armi
de Barnevelt. nio.
HUS 505
anabaptistas, ou aos anninianos. Os puri attribuia a causa primitiva de todos os ví
tanos e kuakrcs teem suas assembléias. Os cios de que o censuravam.
catholicos romanos são tolerados, e pos Rcconunendava este sectario a lição dos
suem algumas capellas particulares, mas livros dos hereges, suppondo quo viesse
c maior o seu numero nas ajdeias do que muito a proposito para fazer persuadir a
nas cidades. Finalmcntc os judeus teem na necessidade d’csta reforma, pela audacia
Hollanda suas synagogas, duas em Amster- com que ellcs pintavam as desordens do
dam, uma cm Rotterdam, etc. A tolerân clero: c no seu sentir se devia permittir a
cia das provincias unidas tem sido muito leitura dos mesmos, porque n’ellcs se acha
censurada, e M. Basnage a quiz justificar.1 vam algumas verdades mais bem discuti
nos (joão n^J_nn^iQXq pp. hussinets, or das ou mais fortemente expressadas, e ti
dinariamente chamado joão nus-—foi assim nha para si não ser de temer tal permis
appellidado, segundo o uso do seu tempo, são, uma vez que fossem solidamente refu
do nome de uma cidade ou villa da Bohe- tados os erros que n’elles se encerravam.
mia, dlgnde e,ra,natural. Fez a^carrePra de Ainda então não linha João Hus adopta-
estudo em Praga, aonde tomou o grau de do alguns dos erros de Wiclef, mas com
mestre em artes, e veio a ser o decano da a sua audacia, a boa acccitação que tive
faculdade de theologia, e finalmente reitor ram os seus sermões, e a lição de Wiclef
da universidade, no principio do decimo indispozeram contra o clero*infinidade de
quinto século. 2 pessoas, e causou inquietação o projecto
O immediato produzira multidão de sei da doutrina. Foi citado para comparecer
tas, que, enfurecidas contra a curte de cm Roma, e expulso de Praga: logo se con
Roma c contra o clero, accommetteram a demnaram os livros de Wiclef, de que fo
authoridade dos papas e da Igreja; mas os ram queimados mais de duzentos volumes,
inimigos.do clero, de Roma, c da igreja, e puniram severamente as pessoas que os
não eram sómente enthusiastas e fanati conservavam.1
cos, eram religiosos theologos, homens sá João Hus tomou a defesa de Wiclef, sem
bios como João d’01iva, Marcilio de Padua, que todavia justificasse os seus erros, que
Wiclef, e todos aquelles franciscanos que aliás condemnava; mas pretendia elle pro
escreveram para provar que os filhos de S. var pela authoridade dos padres, dos pa
Francisco não podiam possuir nada como pas, dos canones, c da razão, que não se
proprio, e que nem eram senhores da sopa deviam queimar os livros dos hereges, e
que comiam, atacando a authoridade do particularmente os de Wiclef, de cuja vir
papa, que condemnava esta opinião. tude e merecimento a universidade de Ox
As obras de todos estes correram geral- ford linha dado os testimuuhos mais authen
menle, e as de W iclef sobre tudo se divul ticos. «A essencia da heresia, dizia elle,
garam na Bohemia: além d’isto o estado consiste na obstinação da resistência á ver
actual do clero augmentava o peso a estes dade; quem sabe se W iclef se arrependeu?
sediciosos cscriptos, porque o viam carre eu nao assevero que elle deixasse de ser
gado de riquezas e submergido na igno herege, mas também não me presumo com
rância, não oppôr a seus inimigos senão a direito para afiirmar que o fosse.»
authoridade e o valimento que tinham jun Segundo o seu sentir, era um pensar de
to dos principes; viam anti-papas disputa masiadamente favoravel aos hereges, e dar
rem a cadeira de S. Pedro, excommun- aos fieis uma ideia muito vantajosa dos so-
gando-se reciprocamente, e fazerem pré- phismas d’aquclles, o prohibir-lhes suas
gar cruzadas contra os principes que obe obras, por se suppôr que cilas infallivcl-
deciam aos seus competidores. mente induzam no erro as pessoas que as
Esle espectáculo, pois, e a leitura dos li* lêrem. Instrui o povo, dizia elle, ponde-o
vros dos inimigos da Igreja, produziram em estado de discernir a falsidade de seus
cm varios animos o desejo d’uma reforma princípios; esteja bastantemente instruído
na disciplina c no clero; e João Hus, olhan- para que os possa comparar com a dou
do-a como unico remedio para as calami trina da Escriptura, e assim distinguirá fa
dades da Igreja, teve o arrojo de a prégar, cilmente nos livros dos hereges o que a
levantando-se contra a ignorância, contra ella é conforme do que lhe é contrario:
o s costumes e riqueza do clero, a que elle este é o meio mais seguro para rebater os
progressos do erro.
Principiava, pois, João Hus a estabelecer
1 Stup. Relig. des Holland. Hist des Pro-
' vinces Unies, par Basnage, 1 .1, pag 135. 1 L E nfant. Hist. du Cone. dtPise. /En.
2 Em 1409. Silvius. Les Hist. de Bohemc.
304 HOL
lidades, e as cxhortaram a viver cm paz; D’aqui passou a ordenar á tropa que
mas nào sendo approvado este partido por não obedecesse aos magistrados, e obrigou
todas as cidades, os ministros continuaram os estados geraes a que escrevessem* aos
a declamar contra os arminianos, c a fa- magistrados das cidades, determinando-lhes
zcl-os mal vistos. que despedissem as tropas levantadas para
Como varios cavalheiros d’Amsterdam, e a segurança pública; porem os estados par-
até alguns magistrados da mesma cidade, culares, que a este proposito não se per
logo no principio da reforma, tivessem re suadiram sujeitos a outras ordens mais
jeitado a doutrina dc Calvino acerca da que ás dos estados das suas provincias, não
predestinação, e outros dogmas d’estc theo tiveram respeito algum ás dos estados gc-
logo, os descontentes dos ditos se declara racs.
ram em favor das opiniões dos remontran 0 principe tractou este procedimento de
tes, e agçregando-so a estes alguns mem rebellião, e conveio com os estados geraes
bros da igreja de Wallona, fizeram todos em marchar clle mesmo, com as tropas
sua assembléia particular. que commandava, a exlinguir esta solda-
Os remontrantes, incitados com o exem desca levantada irrcgularmente, e a depôr
plo d’estes, e com as tentativas dos ministros os magistrados arminianos; prendeu tudo
gomaristas, formaram também suas assem quanto resistia á sua aulhoridade tyran
bléias particulares na provincia da Hollan- nica, c á sua justiça militar, e, aproveitan-
da: a plebe as investiu, fez em pedaços a do-se d’esta opportunidade, fez prender e
cadeira do presidente, e lhe demoliría jx cortar a cabeça a Barnevelt, um dos inais
casa, se o motim não fosse desbaratado. No illustres defensores da liberdade das pro
domingo seguinte saquearam a de um re- vincias unidas.
montrante, cavalheiro rico; razão porque Barnevelt havia sido tão util ás provin
os remontrantes d’IIollanda e Utrecht, pre cias unidas, no seu gabinete, como 0 foram
vendo a tormenta, formaram entre si união os principes de Orangc á frente do exer
mais estreita, por um acto particular. cito: a liberdade pública nada tinha que
Viu-se pois o magistrado na urgência de temer de Barnevelt; mas foi sacrificado á
tomar parte 11’estas dissensões theologicas, vingança do principe d’Orange, que podia
publicando um edito que ordenava aos aniquilar a liberdade das provincias, e que
dous partidos que se tolerassem, porque talvez tendo formado 0 projecto de se fa
os predicantes não se limitando a cathc- zer dictador das mesmas, temia encontrar
chisar, assopravam também 0 fogo da sedi- 11’elle um obstaculo insuperável.1
ção. Este edito porém amotinou todos os Apoiados os gomaristas com 0 credito c
gomaristas de tal maneira, que receando- poder do principe d’Orange, fizeram con
se as antigas sedições, 0 grande pensiona- vocar um synodo em Dordrccht, em que
rio Barncvelt propbz aos estados se conce foram condèmnados os arminianos, e con
desse aos magistrados da provincia 0 po firmada a doutrina de Calvino acerca da
der dc levantarem tropas para reprimir os predestinação e da graça.2
sediciosos, e prover a segurança de suas Em virtude do mesmo synodo, fizeram
• cidades. Bordecht, Amsterdam e outras banir, expulsar, e prender os arminianos,
tres cidades, favoráveis aos gomaristas, pro que sómente depois da morte do principe
testaram contra 0 parecer dc Barnevelt, foram tractados com menos rigor, e final
mas clle comtudo foi seguido, e os estados, mente em 1630 conseguiram a tolerância.
na conformidade do mesmo, firmaram um É pois 0 calvinismo a religião dominante
decreto em 4 d’agosto dc 1617. em Hollanda, e em todas as cidades e vil
Havendo já muito tempo que 0 principe las dependentes das provincias unidas; po
Maurício de Nassau aborrecia a Barnevelt, rém os que seguem a profissão d’Ausbur-
se persuadiu poder aniquilar a authorida- go, os remontrantes e os arminianos, teem
de d’este magistrado á sombra das dis muitos templos: os anabaplistas, cujo nu
sensões religiosas. Queixou-se de que ten mero se augmentou consideravelmente de
do os estados resolvido 0 levantamento das pois que foram expulsos do condado de
tropas sem 0 seu consentimento, desautho- Berne, teem também suas assembléias: os
risavam a sua dignidade de governador e socinianos são igualmente tolerados cm
de capitão general: e porque taes preten- Hollanda, e quasi todos se aggregaram aos
ções não podiam sustentar-se sem os votos
do povo, se declarou em favor dos goma 1 Veja-se du Mauricr, Le Vassor, et te
ristas, que tinham altrahido ao seu partido Clerc.
0 mesmo povo, e eram inimigos capitaes 2 Vejam-se os artigos Gomar e Armi
de B arnevelt. nio.
HUS 505
íinabaptistas, ou aos arminianos. Os puri attribuia a causa primitiva de todos os ví
tanos c kuakrcs teem suas assembléias. Os cios de que o censuravam.
catholicos romanos são tolerados, e pos Rccommendava este sectario a lição dos
suem algumas capellas particulares, mas livros dos hereges, suppondo que* viesse
é maior o seu numero nas ajdeias do que muito a proposito para fazer persuadir a
nas cidades. Finalmcntc os judeus teem na necessidade d’csta reforma, pela audacia
ílollanda suas synagogas, duas cm Amstcr- com que clles pintavam as desordens do
dam, uma cm Rotterdam, etc. A tolerân clero: c no seu sentir se devia permittir a
cia das provincias unidas tem sido muito leitura dos mesmos, porque n’elles se acha
censurada, e M. Basnagc a quiz justificar.1 vam algumas verdades mais bem discuti
nus OoÃo j ieI ím l jo AO-DE iiussiNETS. or das ou mais fortemente expressadas, e ti
dinariamente chamado joâó nus— fói assim nha para si não ser de temer tal permis
appellidado, segundo o uso do seu tempo, são, uma vez que fossem solidamente refu
do nome de uma cidade ou viüa da Bohe- tados os erros que n’ellcs se encerravam.
mia, (Tflndc ej;a..natural. Fez a^carrefra de Ainda então não tinha João Hus adopla-
estu d oem Praga,' aonde tomou o grau de do alguns dos erros de Wiclef, mas com
mestre cm artes, e veio a ser o decano da a sua audacia, a boa acceitação que tive
faculdade de theologia, e finalmente reitor ram os seus sermões, c a lição de Wiclef
da universidade, no principio do decimo indispozeram contra o clero*infinidade de
quinto século.2 pessoas, e causou inquietação o projecto
O immediato produzira multidão de sei da doutrina. Foi citado para comparecer
tas, que, enfurecidas coutra a curte de em Roma, e expulso de Praga: logo se con
Roma e contra o clero, accommetteram a demnaram os livros de Wiclef, de que fo
authoridade dos papas e da Igreja; mas os ram queimados mais de duzentos volumes,
inim igos. do clero, de Roma, e da igreja, e puniram severameute as pessoas que os
não eram sómente enthusiastas e fanati conservavam.1
cos, eram religiosos theologos, homens sá João Hus tomou a defesa de Wiclef, sem
bios como João d’01iva, Marcilio de Padua, que todavia justificasse os seus erros, que
Wiclef, e todos aquelles franciscanos que aliás condemnava; mas pretendia elle pro
escreveram para provar que os filhos de S. var pela authoridade dos padres, dos pa
Francisco não podiam possuir nada como pas, dos canones, e da razão, que não se
proprio, e que nem eram senhores da sopa deviam queimar os livros dos hereges, e
que comiam, atacando a authoridade do particularmente os de Wiclef, de cuja vir
papa, que condemnava esta opinião. tude e merecimento a universidade de Ox
As obras de todos estes correram geral- ford linha dado os teslimunhos mais authen
mente, e as de W iclef sobre tudo se divul ticos. «A esscncia da heresia, dizia elle,
garam na Bohemia: além d’isto o estado consiste na obstinação da resistenda á ver
actual do clero augmentava o peso a estes dade^ quem sabe se W iclef se arrependeu?
sediciosos cscriptos, porque o viam carre eu não assevero que elle deixasse de ser
gado de riquezas e submergido na igno herege, mas também não mo presumo com
rância, não oppôr a seus inimigos senão a direito para afBrmar que o fosse.»
authoridade e o valimento que tinham jun Segundo o seu sentir, era um pensar dc-
to dos principes; viam anti-papas disputa masiadamente favoravel aos hereges, e dar
rem a cadeira de S. Pedro, excommun- aos fieis uma ideia muito vantajosa dos so-
gando-se reciprocamente, e fazerem pré- phismas d’aqucllcs, o prohibir-lhes suas
ar cruzadas contra os principes que obc- obras, por se suppor que ellas infallivel-
eciam aos seus competidores. mente induzam no erro as pessoas que as
Este espectáculo, pois, e a leitura dos li» lêrem. Instrui o povo, dizia elle, ponde-o
vros dos inimigos da Igreja, produziram em estado de discernir a falsidade de seus
cm varios animos o desejo d’uma reforma princípios; esteja bastantemente instruído
na disciplina o no clero; e João Hus, olhan para que os possa comparar com a dou
do-a como unico remedio para as calami trina da Escriptura, c assim distinguirá fa
dades da Igreja, teve o arrojo de a pregar, cilmente nos livros dos hereges o que a
levantando-se contra a ignorância, contra ella é. conforme do que lhe é contrario:
os costumes e riqueza do clero, a que elle este é o meio mais seguro para rebater os
progressos do erro.
Principiava, pois, João Hus a estabelecer
1 Stup. Relig. des Holland. Hist des Pro-
' vinces Unies, par Basnagc, t. i, pag 135. t VEnfani. Hist. du Cone. de Pise. /En.
2 Em 1409. Silvius. Les Hist. dc Boheme. .
506 HUS
a Escriptura como a única regra de fé, c beranos pontifices, mas tao sómente oppôr-
os simples fieis como os juizes competen sc ao abuso da mesma. Feitas estas protos-
tes das controvérsias da mesma fé, porque tações, sustenta João Hus quc a cruzada
ellc nào seguia os erros de W iclef acerca ordenada por João xxm é contraria á c a
da transubstanciaçào, da authoridade da ridade evangélica, porque a guerra traz.
Igreja, do papa, etc.; mas tão sómente se comsigo innumeravcis calamidades c des
conformava com aquellc herege em asse ordens, porque se ordena a christãos con
verar que os reis tinham poder para ex tra christãos; porque nem os ecclesiasti
poliar as igrejas das suas possessões tem- cos nem os bispos, nem os papas podem
poraes, e que os povos podiam recusar-lhes fazer guerra, principalmcnte por interes
os pagamentos dos dizimos. 1 ses temporaes; porque sendo christão o
reino de Nápoles, e fazendo uma parte da
Morto o arcebispo Sbinko, João Hus tor
nou a Praga em tempo que João xxm man Igreja, a bulla, quc põe interdicto este.rei
dara pregar uma cruzada contra Ladislau, no e o manda assolar, não protege um a
rei de Nápoles. Na bulla que a ordenava parte da Igreja senão destruindo outra;
tpedia o papa pela aspcrsào do sangue de que a ter o papa algum poder para orde
Jesus Christo a todos os imperadores e nar a guerra, era forçoso quc clle fosse
mais illuslrado que Jesus Christo, ou que
principes da christandade, a todos os pre
a vida de Jesus Christo valesse menos que
lados das igrejas, a todos os mosteiros, a
a dignidade e prerogativas do papa, pois
todas as universidades, a todos os particu
que o mesmo Senhor não permittira a S .
lares d’um e outro sexo, ecclesiasticos, e
seculares de qualquer condição, grau, ou Pedro que arrancasse a espada para sal
dignidade que fosse, que se apreslassem var-lhe a vida.
para perseguirem e exterminarem a Ladis Nào atacou João Hus nem o poder que
lau e seus cúmplices cm defesa do estado teem os sacerdotes para absolver dos pcc
e da honra da Igreja, c da sua própria.» cados, nein a necessidade do sacramento
Concedia o papa aos que se armassem da penitencia, nem ainda o dogma das in
para seguir esta guerra, a mesma indulgêndulgências tomado em si mesmo; mas con
cia da cruzada da Terra Sancta, proinct- demna va tão sómente o seu abuso: dizia,
quc no seu pensar o explicavam mal aos
tendo iguaes graças aos que, não combaten
do em pessoa, mandassem á sua custa, se fieis, e que estes se esperançavam nimia-
gundo as posses e condições de cada um, mente nas indulgências; cria,*por exemplo,
pessoas aptas para combaterem; c tomava que ellas não se podiam conceder por uma
uns e outros com suas familias e bens de contribuição para os cruzados.
baixo da sua protecção e da de S. Pedro, Igualmente asseverava não se abusar
determinando aos prelados, que procedes menos dc poder de punir, que do poder
sem com censuras ecclesiasticas, e até sede perdoar, e que o papa excommungava
valessem do braço secular contra todos os por motivos muito leves, e por seus inte
que quizessem ínolestar os cruzados em resses pessoacs; que uma tal excommu-
seus bens e familias, não obstante qual nhão não separa os fieis do corpo da Igre
quer appellação. A bulla promettia plena ja, c que pois que o papa podia abusar do
remissão dos* pcccados aos prégadores e seu poder, impondo aos lieis estas penas,
collectores das cruzadas, suspendia ou an-a elles tocava vér e examinar se eram jus
nullava todas as outras indulgências até tas ou injustas, c uma vez quc se persua
então concedidas pela sancta sé, e tractavadissem ser injustas, não as deviam tem er.1
a Gregorio xii, concorrente de João xxm , Como este principo dava um golpe fatal
na authoridade dos papas e do clero, quc
de herege, de scismatico, e de filho da m al
dição. 2 João Hus olhava como um obstaculo in
João Hus impugnou esta bulla c as in vencível para a reforma que desejava, pôz
dulgências que ella promettia, protestando n’elle todo o seu empenho; e para assegu
retractar-se quando lhe fizessem vêr que rar as consciências contra o temor da ex-
se enganara; porque nem era seu animo communhão, cmprchendcu mostrar que a
defender Ladislau, nem sustentar as pre- injusta não separava com efleito da com-
tençoes de Gregorio xii, nem accomrnettcr munhão dos fieis; tal é a doutrina que elle
a authoridade que Deus tinha dado aos so intenta estabelecer no seu Tractado da
Igreja.
1 Veja-se Joannis Hus Hist. et Mqnum. Por base d*este tractado propõe elle ser
2 Acham-se estas bullas na collecçõo das
obras de João Hus, t. 1, pag. 175. E dição 1 Disputatio Joan. Hus advers. indul
nauremberga. Papal. Ia cit.,pag. 175.
HUS 307
a Igreja uni corpo mystico de que Jesus Como todos estes princípios eram sus
Christo é a cabeça, e os justos e os predes tentados por declamaçóes patheticas e ve
tinados sào os membros: e como nenhum hementes contra a riqueza, costumes, e
dos predestinados possa perder-se, não é ignorância do clero, c principaluicntc con
possível que nenhum dos seus membros tra a authoridade que cllc exercia sobre
seja separado d’ella por algum poder; e os fieis por vivas pinturas das calamidades
portanto a cxcommunhão não póde cx- do Christianismo, e pela regularidade de
cluil-os da vida eterna. Os reprobos não vida de João Hus, veio a tornar-se este
pertencem a esta igreja, nem d’ella sào theologo o oraculo d uma parte do povo.
verdadeiros membros; estão sim dentro do Os seus discipulos enfureceram-sc contra o
seu corpo, porque participam do mesmo clero, e atacaram as indulgências, ao pas
culto e dos mesmos sacramentos, mas nem so que os pregadores das mesmas se em
por isso são do corpo da Igreja, bem como penhavam em declamar contra João Hus
os humores viciosos que residem no corpo e seus sectarios, os quaes improperavani
humano, não são parte do mesmo corpo. os mesmos pregadores, e davam ao papa
Portanto o papa e os cardcaes compoem 0 nome de Anti-Christo.
o corpo da Igreja, mas aquelle não é a sua Fez o magistrado prender alguns, aos
cabeça. Porém o papa c os bispos, que são quaes mandou cortar a cabeça; e bem que
no ministerio os successores dos apostolos, este aclo de rigor não causasse motim,
teem o poder de ligar c desligar, mas se comtudo os sectários roubaram os corpos
gundo João Hus, não c senão um poder dos justiçados, e os honraram como a mar
ministerial, que não liga por si mesmo: tyres. Porém os discipulos d’este heresiar-
por quanto o poder de ligar não tem mais cha se multiplicavam, e como el-rei da Bo-
extensão que o de desligar, e é sem dúvi hemia publicou um edito pelo qual tirava
da que o de desligar nos bispos c sacerdo aos ecclesiasticos mal morigerados as suas
tes não é senão ministerial, e que sómente rendas e dizimos, os hussitas authorisados
Jesus Christo desliga com effeito; pois que com ellc, delatavam todos os dias algum
para se justificar um peccador, é necessá d’estc caracter: assim veio a ser o clero o
rio um poder infinito, quo só a Deus per objecto d’uma cspecie ^inquisição: c mui
tence: d aqui tira João Hus por conclusão, tos ecclesiasticos, para não serem desbulha-
que a contrição é sufficiente para remittir dos dos seus beneficies, se pozeram da par
as culpas, e que a absolvição não as per te dos hussitas, e o zelo dos catholicos prin
doa. mas tão sómente as declara perdoadas. cipiou a esm orecer.1
No sou parecer, o papa c os bispos abu Conrado, arcebispo de Praga, a fim dc o
sam do poder puramente ministerial, c a reanimar, póz interdicto na cidade dc Pra
Igreja nao deixaria de subsistir, quando ga, e cm todos os logares em que habitasse
nao houvesse papa nem cardeacs; pois que João Hus, prohibindo que n^lles se pre
os christàos leem na Escriptura uma guia gasse c fizessem os divinos officios durante
segura para os governar. Comtudo não a sua assistência, e ainda por alguns dias
deve pensar-sc que os bispos não tenham depois.2 João Hus sahiu de Praga, mas as
direito algum ã obediência dos fieis, mas suas obras continuaram a ser lidas iTaqucl-
esta sujeição não se ha de estender ás or la cidade, c ellc a compor outras mais in
dens manlfestamente injustas e contrarias solentes e injuriosas á igreja romana: taes
á Escriptura, porque a obediência dos fieis sào a sua Anatomia dos membros do Anti-
ha de ser racionavcl. Christo, a Abominarão dos sacerdotes e
Todas estas materias são tractadas por monges cam a es, a Abolição das seitas e
João llus com bastante ordem e methodo; sociedades religiosas e condições humanas.
n’cllc se veem invectivas grosseiras, mas Todos estes odiosos escriptos, por confis
esse era o tom do seu século; e os livros são de M. LEnfant são tão oppostos ao gosto
d’estc hcrcsiarcha teeni servido de reper do nosso século como ao caracter evangé
torio aos reformadores que o seguiram. lico; 3 mas foram recebidos avidamente
Taes sào os princípios theologicos sobre pelo povo, de sorte, que se formou uma
que cllc fundava a resistência que punha seita formidável, que tinha cm divisão a
ás ordens dos papas, e o plano da reforma Bohemia, c que igualmente se oppunha ao
que pretendia estabelecer na Igreja, ad- clero c aos magistrados.
stringindo o seu poder, e dando aos sim-
n p le s fieis uma liberdade que com effeito 1 Colchi Hist. Hussit, l 1, pag. 62.
a n iq u ila v a a da Igreja. 1 2 lbid. V E nfant. Cone. de Pise, 1.1, pag.
237,
1 Joan. Hus de Ecclesia militante. 1 3 Na collecção das obras de João Hus.
508 HUS
f ' João Hus foi denunciado no concilio de entradas c sabidas, por qualquer direito
v . Constança por um professor de theologia que seja, c deixando-o passar livre c segu
e um parocho de Praga, c como el-rei da ramente, demorar-se, parar o voltar, c pro-
Bohemia folgava que elle se achasse no vendo-o com bons passaportes em honra c
mesmo concilio, foi pedido para Joào IIus respeito da magestade imperial. Dado em
um salvo-conducto ao imperador Segis- Spira cm 18 d’outubro de 1414.» NMsto se
mundo. Chegado que elle foi a Constança, fundam os que censuram o concilio de
teve suas conferências com alguns car- Constança dc falta dc fé a João Hus, sobre
deaes, cm que protestou que nao presu a qual censura fazemos algumas reflexões:
mia ensinar nem heresia nem erro, c que 1. “ João Hus não tinha direito para se
se o convencessem do contrario se retra- dispensar da citação do concilio dc Con
ctaria; mas continuava a divulgar os seus stança, pois que el-rei da Bohemia c o im
sentimentos com grande obstinação e calor. perador, d’accordo com o mesmo concilio,
D’esta maneira não promettia João Hus lhe ordenavam que a elle fosse. N’isto con
obedecer ao concilio, nem acquiescer ao vém M. L’Enfant. 1
seu juizo senão no que fosse convencido: Se João Hus era obrigado a obedecer á
elle assim mesmo o diz n’uma carta em citação do concilio, era-o também ao juizo
que aflirma não ter jamais promettido a do mesmo: ora, é absurdo citar-sc alguém
sua obediência senão debaixo da condição para um tribunal, ao qual é naturalmente
de ser convencido, porque em muitas con sujeito, e prometter-lhe que elle não será
ferências particulares c públicas havia pro obrigado ao juizo do mesmo tribunal: por
testado que se submetteria ao concilio, tanto não é dc presumir que a intenção dc
quando lhe fizessem vôr que escrevera, en Segismundo fosse tomar a João Hus tlebai-
sinara, c divulgara alguma cousa contra xo da sua protecção cm tal maneira, que
ria á verdade. 1 cila lhe valesse no caso de ser condemna-
Como era bem d’esperar que João Hus, do pelo concilio.
homem tão aferrado ao seu parecer, c que 2. a O salvo-conducto não diz que não
estava tão ufano por se considerar cabeça possa ser préso João Hus, seja. qualquer
d’um partido, aò qual se tinha insinuado que for a sentença que o concilio profira
por inspirado, não se sujeitaria ã sentença sobre sua doutrina e pessoa; mas é conce
do concilio; c que sem embargo do que dido tão sómente para que faça a sua der
elle determinasse, continuaria a divulgar rota desde Praga até Constança, em que
a sua doutrina opposta ã Igreja e á socie era difiicil viajar, principalmcntc a João
dade civil, resolveram assegurar-se da sua Hus, que tinha, cm Allcmanha grande nu
pessoa: o consul de Praga, que o acompa mero dMnimigos, depois que elle fizera ti
nhava, protestou logo pelo salvo-conducto rar aos allemães os privilegies de que go-
concedido por Segismundo; mas prenden- savam na universidade de Praga, d’ondc
do-sc João Hus, não se creu que fosse vio todos os allemães se haviam retirado.
lado o mesmo salvo-conducto, como com 3 / O mesmo João Hus não queria que
efleito se não 'violara. o salvo-conducto que pedira e alcançara,
Eis-aqui o salvo-conducto, tal qual o re o assegurasse de não ser punida a suá re
fere M. L’Enfant: sistência ao concilio, como se manifesta de
cartas que escreveu antes de partir para
«Segismundo pela Graça de Deus, etc. Praga, em que diz esperar encontrar no
A todos saude, etc. Recommendamos com concilio mais inimigos do que teve Jesus
uma plena afTeição o venerando homem, Christo em Jerusalem; c em uma das mes
o Mestre João Hus, bacharel em theologia, mas cartas pede orações aos seus amigos,
c mestre em artes, portador das presentes, para que sendo condemnado, dé gloria a
que se dirige ao concilio de Constança em Deus com um fim christão, fallando da sua
Bohemia, o qual nós temos tomado debai volta como dc cousa muito incerta. E se
xo da nossa protecção c tutela e da do im ria esta por ventura a linguagem d’um ho
perio, desejando que na sua chegada o re- mem que se cresse aeoutado,das conse
cebaes benignamente, c o tracteis bem, as quências do concilio pelo salvo-conducto
sistindo-lho com o necessario para abre do imperador? 2
viar c assegurar a sua jornada, assim por 4.a Insiste L’Enfant, em que João Hus
mar como por terra, sem que se lhe tome sómente pedira o salvo-conducto para Con-
cousa, alguma, ou sua ou dos seus, nas
1 Hist. du Cone. de Const., 1 .1, pag. 37.
i Jean Hus, Lettre i5. V E nfant, Hist. 2 Hist. du Cone. de Const., t. 1, pag.
des Cone. dc Const., I. 1, pag. 307. 39, 40.
HUS 509
stança, c não para a viagem desde Praga Nomearam-se commissa rios para a causa
ató á dita cidade; mas que razão havería de João Hus, os quacs produziram trinta
para que o salvo-conducto nào fallassc na artigos, extrahidos dos mesrnos seus livros,
morada de João ílus em Constança, se elle que contecm toda a sua doutrina tal qual
o tivesse pedido para salvar a sua impu a expozemos. Verificadas que foram as
nidade na mesma cidade? proposições extrahidas dos mesmos.livros
0 mesmo M. L’Enfant reconheceu que do delatado, declarou o concilio que mui
João Hus linha na sua derrota infinidade tas d’ellas eram erroneas e outras escan
d’inimigos; e como deixaria de prcsumir-sc dalosas e oíTensivas aos pios ouvidos, que
contra os seus insultos, quando se dirigia uma grande parte eram temerarias e sedi-
a Constança? ciosas, outras notoriamente heréticas c con-
João líus, para se dispensar de obedecer demnadas pelos sanctos padres e concilios.
á citação de João xxiu para comparecer Degredado João Hus, o imperador o ap-
no concilio, não se fundara senão na difii- prehendeu como advogado e defensor da
culdade da viagem, c pouca segurança dos Igreja, e o entregou ao magistrado dc Con
caminhos; c porque razão não seria tam stança para ser executado. Nào se poupou
bém esta mesma difficuldadc o motivo pelo nada para o obrigarem a reconhecer seus
qual pedisse o salvo-conducto? Em uma erros; nías elle, inflexível, caminhou para
palavra, se sómente o procurou para aílian- o fogo sem pavor c sem remorsos. 1 Este
çar a sua volta de Constança para Praga, supplicio amotinou todos os discipulos de
ou para estar seguro em Constança, por João Hus, que tomaram as armas, e asso
que razão não faz d’isto expressa menção laram a Bohemia. Vejam-se as suas conse
o salvo-conducto, fosse um seguro ou pro quências no artigo seguinte.
messa de que não prenderíam em Constan iiu ssjt a s — Sectários de João Hus: ti
ça a João Hus, quando a sua doutrina fos nham-se multiplicado muito na Bohemia e
se condemnada pelo concilio, nem de que Pomcrania antes do concilio de Constança,
elle não seria sentenciado segundo as leis, que os cxconunungou a todos.
se recusasse obedecer ao mesmo? Emquanto este hcresiarcha estava em
5. a Não se queixam os bohemios nas Constança, certo doutor da Saxonia foi ter
suas cartas, depois da captura de João Hus, com Jacòbel, parocho de Praga, e lhe disse
de que o prendessem, mas sómente de o que se admirava de que um homem tão
prenderem, sem que fosse ouvido, o que sabio e tão sancto como elle, não tivesse
era contrario ao salvo-conducto;attendido attentado n'um grande erro, que havi;
diziam cartas, que el-rei da Bohemia ha muito tempo se havia introduzido na Igre
via pedido um salvo-conducto, cm conse ja, isto é, a suppressão do uso do calix m
quência do qual João Hus devia ser ouvido administração da Eucharistia, que era op-
publicamente, e não estava sujeito ao con posta ao mandamento de Jesus Christo, que
cilio, senão depois de convencido d’onsinar diz: «se não comerdes a carne do Filho do
uma doutrina contraria á Escriptura; por Homem, e nào beberdes o seu sangue, nào
quanto os Bohemios reconheciam qtfc em tereis a vida em vós.» 2 Jacobel allucinado
tal caso el-rei o submettera á sentença c com este sophisma entrou a pregar a com-
decisão do concilio. 1 munhão cm ambas as especics, c publicou
6. theses contra a communhão em uma só.
a João Hus tinha obtido um salvo-con-,
dueto para vir ao concilio a dar a razão' Estavam n esse tempo no seu maior auge
da sua doutrina: assim o dizem expressa as controvérsias de João Hus: o povo c a
mente as cartas aos bohemios; mas elle em Igreja viam-se no maior desassoccgo, e em
vez dc se encerrar n’estes limites, conti uma especie d’anarchia, que faz desejar
nuava a dogmatisar e a espargir seus er com ancia toda a novidade. Demais d’isto
ros; e o salvo-conducto, sem duvida, nào Jacobel foi favorecido po.r outro parocho:
authorisava esta licença, e portanto o con o sophisma que os allucinava attrahiu tam
cilio, fazendo-o prender, ainda antes de con bém o povo; e estes dous parochos deram
vencido do erro, não infringia o salvo-con a communhão em ambas as especics.
ducto. Oppôz-se o clero a esta innovação: Jaco
7. ° João Hus pretendeu fugir dc Con bel foi expulso da sua parochia, c cxcom-
stança, e a salvo-conducto não lhe conce mungado pelo arcebispo; mas esta pena já
dia a liberdade dc fugir, nem Wcnceslau
a havia requerido.2 1 L E n fan t loé. cit. Nat. Alex. in scec.
15. Dujün in s a ‘C. Raynald ad an. 1415 et
1 Veja-se Raynaldo ad an. 141o. seg.
2 Veja-se Raynaldo ad. an. 1415’ n. 31. 2 Joan. C.
510 HUS
não refreava a ninguém. Jacobel persua ccrdocio a muitos hussitas; c desde então
dido por João Hus de que uma cxcomniu- principiou o povo a olhar o desuso da com
nhão injusta não deve embaraçar a s a t i s
munhão em ambas as cspecics como uma
fação dos proprios deveres, pregou (Tflllipráctica prejudicial, que condemnavi os
em diante com mais zelo, c o clero dc Prachristaos, e a contraria como indispensá
ga denunciou esta doutrina ao concilio dc vel para a salvação. O clero, que recusava
Constança. Estava então João Hus ifesta esta, veio a parar odioso, c os hussitas, que
mesma cidade, aonde os discipulos de Ja administravam a communhão em ambas as
cobel o consultaram, c elle não sómente cspecics. foram reverenciados como apos
approvou este sentimento, mas escreveu cmtolos que procuravam a salvação do povo,
favor da communhào em uma c outra cs- e que eram perseguidos injustamente; tudo
pecie. 1 pois estava annunciando um scisma na Bo-
hemia.
Adoptaram pois os hussitas esta opinião
dc Jacobel, c a necessidade dc commun- Não ignorava o concilio de Constança a
gar debaixo das duas cspecics entrou no disposição cm que os animos se achavam
corpo da sua doutrina. Os theologos ca n’aquellc reino: Martinho v quiz ordenar
tholicos impugnaram a innovação, o conciuma cruzada contra elle, mas Segismundo
lio a condemnou: mas não estando Jaco o dissuadiu, c o papa tomou o partido dc
escrever aos bohemios c dc lhes enviar um
bel e os hussitas pelo seu juizo, a commu-
nlião nas duas cspccies fez grandes prolegado; porém as cousas estavam em si
gressos cm Bobem ia e Moravi a, favorecida
tuação cm que as cartas e os legados não
em alguns logares pelos senhores c pelo faziam mais que atiçar o fogo. João Do-
povo, bem que aliás soíTrcsse obstáculosmingues, cardeal de S. Xisto, escreveu ao
d’uns c outros. papa, dizendo-lhe que já eram infruetiferas
No territorio de Bcchin encontrou for
contra os hussitas a lingua e a penna, e
midáveis adversarios, porque os parochosque não devia hesitar-se sohrc a tomada
c vigários dc mão armada rechaçaram os das armas contra os hereges obstinados.
sacerdotes que davam a communhão cm Não tinha concorrido pouco o mesmo
ambas as cspccies, como a outros tantos cardeal para chegarem as cousas a esta
\xcommungados. Então alguns d’cstes sa-extremidade, pelo^rigor que havia exerci
erdotes se retiraram para uma montanha,
do contra os hussitas: a queima d’um sa
n que levantaram uma barraca, c n’cllacerdote e d’um secular foram como a se
tziam o serviço divino, c davam ao povo
nha para a rcbcllião contra os catholicos.
i communhão em ambas as espccies; a Estes c os hussitas se pozeram cm armas:
esta montanha chamaram Thabor, talvez Zisca. sectario acerrimo dos mesmos, c ea-
por causa da tenda que n’clla erigiram; marista de Wcnceslau correu as campinas,
porque a palavra Thabor, no idioma da Bo-saqueou os mosteiros, expclliu os monges,
heinia, quer dizer terra ou campo. 2 apodcrou-sc das riquezas das igrejas, e for
Logo para cila concorreu um numero mou o projecto de edificar uma cidade so
pasmoso dc pessoas, que comnuingavam bro a montanha de Thabor, e de fazer mel
em ambas as cspccies, c as que tinham la uma praça que fosse a capital d’estes se
esta práctica se chamaram Thaboritas. ctários.
Como o supplicio de João Hus, a cxcom- Vieram pois os hussitas a parar n’uma
munhão fulminada contra seus discipulos, seita ignorante, fanatica c guerreira, á qual
e a condemnação da communhão em am se uniram todas as que se tinham revolta
bas as cspecics alvoraçaram muita gente, do contra a igreja romana. Estas insinua
vam seus erros, e os introduziram entre
os hussitas apaixonados* e ardentes, se ser
viram d’cstes mesmos motivos para inci os hussitas retirados ao Thabor: porém em
tar o povo contra o clero. Fundavam clles Praga e outros diversos logares da Bohe-
a necessidade da communhão assim admi mia os hussitas, exccptuando a commu
nistrada n’uma passagem da Escriptura, nhão cm ambas as espccies, c os erros de
e até na palavra de Jesus Christo, que diJoão Hus não se desviaram da crença da
zia que ninguem teria vida, se não bebesseigreja romana: portanto se dividiram em
o seu sangue: o sophisma que formaram duas seitas principacs logo desde a sua
sobre esta passagem allucinou o bispo de origem.
Nicopolis, o qual conferiu ordens c o sa- Os do Thabor, que eram uns como ba
nidos c soldados, adoptaram os erros d’al-
1 Ü E nfant, Hist. du Cone. de Const., guns valdenses, e d’alguns sacramcntarios,
6. 1, pag. 271. que entre clles se haviam refugiado, os
2 Supplement d la guerre des hnssit. (juacs condemnaram as ceremonias da
HUS 511
Igreja, c formaram a seita dos thaborilas: turcos, Zisca proseguiu nos seus estragos,
pelo contrario todos os que persistiram af- e fortificou 0 Thabor.
íorrados ás ceremonias da igreja romana t Estava perto d’esta montanha a cidade
s e chamaram calixlinos, porque davam a d’Aust: Zisca rcceiando que 0 senhor da
•communhão do calix ao povo.1 Estas duas mesma, catholico zeloso, c muito animado
seitas tiveram discordias muito grandes, e contra os hussitas, inquietasse os thabori-
jamais se uniram sobre os artigos da sua tas, a tomou por assalto em uma noite do
confissão de fc: mas sempre que se tra- carnaval, cm que 0 seu governador estava
ctava d’atacar a igreja romana se colliga- ausente, e os habitantes submergidos no
vam, c com esta uniào prosperavam muito. somno, ou entregues ás demasias du tem
po. Levaram a cidade antes que cila atteu-
tasse, que era accommcttida: todos os seus
DO TROGRESSO DOS HUSSITAS habitantes foram passados a fio d’espada, c
ella reduzida a cinzas: d aqui passou Zisca
a toda a diligencia a Sedlils, que levada
Antes de se declararem divididos os hus- lambem por assalto, teve a mesma desgra
sitas, Scgismuiído fizera ajuntar as guarni- çada sorte. Ulric, senhor d ambas, foi mor
•ções, que tinha em Bohcmia, para se oppòr to n’csta ultima.
as suas assembléias; mas elles unindo-se, Havia cm Praga quantidade d’hussitas,
lhe fizeram cara, de sorte que entre as tro mas ainda não era entre elles constante 0
pas de Segismundo, c os hussitas, houve livre exercício da communhào nas duas cs-
combates muito sanguinolentos. Zisca es pecies: os thaboritas lhe propozerain que
creveu a todos, cxhortando-os a tomarem se unissem a elles, para se senhorcarcm de
as armas; fez do Thabor uma cidade e uma Praga, destruírem 0 governo monarehico,
fortaleza: e disciplinando-os pouco a pouco c fazerem da Bohemia uma republica: ac-
na arte militar, entrou em Praga, aonde os ceitaram a proposição, c unidos os calixti-
hussitas, animados com a presença d’este nos aos thaboritas,* bloquearam Wisrade c
chefe, saquearam e demoliram varios mos a tomaram por escala. 1 Zisca se haveria
teiros, c tiraram a vida barbaramente a feito senhor da cidade, se os embaixadores
muitos monges c catholicos: 0 mesmo Zis do imperador não tivessem obrigado os
ca matou um sacerdote, depois de lhe ha hussitas a acceitarem uma trégua de qua
ver despido os habitos sacerdotaes: e pas tro mczes, com a condição de que a todos
sou logo com os hussitas á cidade da Ca seria livre commungarcm cm uma ou cm
mera, aonde sabia estarem juntos os sena ambas as cspecies, e que não se tolheríam
dores, para tomarem 0 seu accordo contra a ninguem os dous modos de commungar
elles. que os hussitas não expulsariam os rei'
Onze dos senadores fugiram, outros fo giosos e as religiosas, c que entregariar
ram présos, ou arremessados das janellas Wisrade.
com 0 juiz c alguns cidadãos: a plebe en Depois d’csta trégua, Segismundo teve
furecida esperava os corpos nas pontas das uma Dieta cm Broun, ou Urina; d’onde es
lanças, em dardos c forquetas, emquanto creveu á nobreza e aos magistrados de Pra
João de Premonstrato a incitava, mostran ga, para que se achassem n’ella; foram c
do um quadro cm que se via pintado 0 ca pediram a liberdade de consciência; mas
lix. esta condição não agradou ao imperador,
No dia seguinte os hussitas levaram os que declarou querer governar, como go
mosteiros a ferro e fogo. Os magistrados vernara Carlos iv, 0 qual publicara editos
não tinham premeditado isto, quando pou severos coutra os hereges.
co tempo antes d’esta catastrophe fizeram Ficaram pois triumphantes os catholicos;
cortar a cabeça a muitos hussitas no átrio e os hussitas, consternados, partiram uns
da casa da camara. Wenceslau, consterna para 0 Thabor, para se unirem a Zisca, c
do com esta noticia, foi ferido d’uma apo outros para Sadomils, buscando a Hussi-
plexia, de que morreu. A rainha Sophia nets, senhor poderoso e hussita apaixona
fez contra Zisca algumas tentativas; mas do. O imperador considerando não dever
foram frustradas; e não podendo Segis entrar em Praga, marchou para Brcslau,
mundo restabelecer a ordem em Bohemia, na Silesia, aonde assentou que se fizessem
por estar occupado em Hungria contra os algumas execuções sanguinolentas, entre as
Por morte de Zisca o seu império se di ram dos quatro pontos, c o concilio não
vidiu em tres corpos: um elegeu por chefe lh'os quiz conceder. Voltaram pois os de
a Procopio Rasa, por antonomasia o Gran putados para a Bohemia, c continuaram as
de: outro não quiz chefe algum, c estes hostilidades, mas os thaboritas soíTreram
lmssitas se chamaram Orphãos; os do ter revezes, em que os dous Procopios foram
ceiro corpo tomaram o nome d’Orcbitas, e destroçados e mortos; c enfraquecidos pela
escolheram gcncracs: porém esta divisão perda d’cstes dous cabos, e por muitos
não lhes obstava para que deixassem de outros desbarates, acccdcram mais facil
se unir estreitamento, quando o interesse mente ás proposições de paz. O concilio
era commum: deram á Bohemia o nome lhes mandou deputados, que fizeram um
de Terra da Promissão, c aos allcmàcs, que tractado com os bohemios, no qual se ajus
lhe ficavam contiguos, a uns chamaram tava, que clles c os moravos se reuniríam
' Idomeus, a outros Morabitas, a estes Ama- á Igreja, e se conformariam cm tudo a seus
lecitas, áquclles Philisteus: e na verdade ritos, á excepção da communhão em am
estes Ires corpos d’hussitas tractaram as bas as especies, que ficava sendo promcl-
provincias visinhas da Bohemia com o mes tida áquclles, entre os quaes era usual; que
mo rancor com que os israelitas haviam o concilio decidiría se isto se deveria pra-
tractado os povos da Palestina. cticar por preceito divino ou não, e regu
Renovou o papa as suas exhorlações e laria por uma lei geral, se o julgasse a pro
instâncias para clTcctuar a segunda cruza posito, para a utilidade c salvação dos lieis:
da contra clles; c a Allemanha pôz em pé que se os bohemios depois persistissem em
um exercito de cem mil homens; porém os querer commungar em ambas as espe
imperiaes, sem embargo da superioridade, cies, mandariam uma embaixada ao conci
foram desbaratados, c os hussitas continua lio, o qual deixaria aos sacerdotes da Bo
ram a assolação, apesar d’uma e outra cru hemia e Moravia a liberdade de adminis
zada, cujos exercitos igualmente derrota trarem assim a communhão ás pessoas que
ram. tivessem chegado á idade de discrição que
Considerando pois o papa c o imperador a desejassem, uma vez que publicamente
que era impossível reduzir os bohcmios á fossem advertidos os povos, de que a car
força d’armas, propozeram conferendas c ne de Jesus Christo não existia sómente de
meios de accommodação: convidaram-nos baixo das especies do pão, nem o sangue
para o concilio de Basifea, dando-lhes salvos- sómente debaixo das especies do vinho,
conductos tfles, quacs ellcs os desejassem: os mas que o mesmo Senhor estava todo de
'deputados dos hussitas se dirigiram tá mes baixo de cada uma d’ellas.
ma cidade cm numero de trezentos, á testa O imperador conveio também cm deixar
dos quaes estava o famoso Procopio, disci como cm penhor os bens das igrejas, aos
pulo de Zisca, João de Rokisanc, sacerdo que estavam de posse d’elles, até que em
te, discipulo de Jacobel, e alguns outros troco dos mesmos recebessem um corto
hussitas de consideração. preço.
Reduziram elles as suas pretenções a qua Dã sua p.artc os bohemios convinham em
tro artigos capitaes.— 1.® que u Eucharistia que voltassem os religiosos c os catholicos,
fosse administrada aos leigos em ambas as com condição porém de que os mosteiros
especies.— 2.° que a palavra de Deus fosse demolidos não se reedificariam. As igrejas
prégada livremente por todas as pessoas a da Bohemia ficaram á disposição do papa,
quem tocava, isto c, por todos os sacerdo e deram-sc seis annos aos orphãos e ihabo-
tes.—3.° que os ecclesiasticos não tivessem ritas, para se resolverem a acceder ao tra
mais bens, nem do minios temporaes.—4.° ctado.
que os crimes publicos fossem punidos pe Depois d’isto, fez o imperador a sua en
los magistrados. trada em Praga, aonde morreu no anno se
Debateu-sc muito sobre estes artigos; guinte, que era o de 1437, e Alberto da
mas tanto as disputas püblicas, como as Áustria, que desposára sua filha, foi eleito
conferências particulares, se tornaram inú rei da Bohemia, mas sobreviveu sómente
teis, porque os hussitas não se desamarra- dous annos á sua eleição. Morto Alberto,
os bohemios escolheram dous governado
parte, sem embargo de ser seu animo demo res até que chegasse á maioridade Ladis-
r a s s e aquelle dia em Craslau, e retirando- lau, filho d’x\lberto, a quem Pogcbrac suc-
se, dizia: esta fera maligna, morta como cedeu.
está ha cem annos, ainda fa z medo aos vi Pogebrac extinguiu o partido dos thabo
ventes. (Veja-se La Guerre des Hussites, t. ritas, porém manteve o uso da communhão
i, pag. 207). cm ambas as especies, que veio a ser or-
33
314 HUS
dinaria na maior parte das igrejas da Bo- do Occidente, da mesma sorte que a do
hcmia, sem que houvesse^ a precaução de Oriente, por mais de mil annos administrou
advertir os povos que não era de neces a communhão aos mesmos leigos em am
sidade esta observância. bas as cspecies; » esta práctica porém não
Sem embargo de Pogebrac haver arrui era lao geral, que cm muitas occasiòes se
nado o partido dos thaboritas, comtudo fi não conferisse a communhão cm uma só*
caram muitas pessoas eivadas: estas se se a communhão do velho Scrapião, a dos en
pararam dos calixtinos, c formaram uma fermos, as domesticas, a missa de sexta fei
nova seita, conhecida debaixo da denomi ra sancta dão uma inoontrastavel prova
nação de Irmãos de Dohemia. Ycja-se o seu d’esta verdade: não se reservava (como
artigo.1 ainda agora se practíca) senão o corpo sa
Taes foram os cíTcitos c o fim da guerra grado de Jesus Christo; porém é certo, se
dos hussitas: acccndeu-se na fogueira, cm gundo todos os authores, que o celebrante,
que João Hus foi consumido, exaccrbou-sc o clero c o povo commuugavam n’csses
com o sangue derramado pelo rigor dos le sanctos dias, c que por consequência só
gados, e pelos exercitos que Segismundo mente commun^avam debaixo d*uma espe-
mandou contra clles; attrahiu sobre a Bo- cie: a origem d esta práctica, geral no oi
hemia todos os flagellos da cólera divina, tavo século, não se encontra.
tornou este reino e parte da Allemanha em Até é sem dúvida, que no ofiicio ordiná
um deserto coberto de cinzas e de ruinas, rio da Igreja tinham os fieis a liberdade de
inundado de sangue humano, c por fim commungar debaixo d’uma só, ou bam
não corrigiu os abusos, contra os quaes se bas as cspecies: o decreto do papa Gelasio
haviam empunhado as armas, e pregado as para a communhão debaixo d’ambas as es-
cruzadas. pecies faz d’isto uma boa prova. «Chegou á
E se porventura o imperador, depois da nossa noticia, que alguns recebendo só
condcmnação dc João Hus, c da sua dou mente o corpo sagrado, se absleem do sa
trina, cm vez de mandar exercitos contra grado calix, os quaes na verdade, pois que
os hussitas, que se ajuntavam para com- se vêem afierrados a não sei que supersti
mungarem em ambas as espccics, tivesse ção, ou devem receber as duas partes d’estc
feito passar á Bohemia theologos bem en sacramento, ou serem privados d’uma e de
tendidos e moderados, que houvessem ins outra.» 2
truído os povos, e impugnado com as ar Por quanto o papa Gelasio não ordena
mas da religião, da caridade e da razão os que se tome a communhão debaixo das duas
erros dos hussitas, teriam causado maiores espccics, senão para oppôr-se ao progresso
damnos á Bohemia e á Igreja? de ?ião sei qual superstição: o que suppõe
evidcntemenle a liberdacle de comuiunga-
rem debaixo d’uma só, antes do nascimen
DOS ERROS DE JOÃO IIüS E DOS HUSSITAS to d’csta superstição, e quando cila fòr ex-
tincta. Eis-aqui uma consequência, que to
das as subtilezas de MM. de Ja Roque, e dc
Os capitaes erros de João Hus c dos hus Bordieu não poderam illu d ir.3
sitas respeitam ao papa, cujo primado im A práctica de dar a communhão aos fieis
pugnam, á Igreja, que elles compoem uni cm uma só cspecie se estabeleceu, e veio a
camente de escolhidos e predestinados, e á ser geral no Occidente sem contradicção al-
communhão debaixo das duas cspecies, que uma; portanto é certo que em nenhuma
os mesmos tem como necessaria para a sal as igrejas occidentaes se cria que fosse
vação. No artigo Gi'egos refutamos o erro necessaria a communhão em ambas as cs
concernente ap primado do papa. O que pecies, quando Jacobcl emprehendeu que
segue sobre a natureza da Igreja fôra já assim se conferisse. E seria permittido a
suscitado pelos donatistas, e albigenses, val- um simples parocho mudar a disciplina ge-
denses e wiclefs, e seguido depois pelos
protestantes; porque este é o asylo dc to 1 Mabillon, Prcef. in 3. scec. Bencdict.
das as sociedades separadas da romana. No Observ. 10. pag. 138. Bossuct, de la Com-
artigo Donatistas o refutamos. Resta-nos mun. sous les deux espéces. Perp. de la Foi,
tão sómente tractàr da eommunhãó em am 1, 5, /. 2. BoileaUj Hist. de la Cotnmunion.
bas as cspecies. Traité de VEucharistic, à la fin.
Reconhecem os catholicos que a igreja 2 Dccrct. Grat. de Consecr. dist. 2. Ep. a i
Major, et Joan.
1 Sobre a historia dos hussitas vejam-se 3 La Roque Hist. de VEuch. 1 p. c. 12,
os authores citados Flcury e Dupin. pag. 244. Du Bordieu Rep. c. 13.
ICO 51o
Talmente oslabelccida? Podería fazcl-o con eucharistico, porque este nos faz lembrar
tra a prohibiçâo do concilio de Conslança? da morte do Salvador igualmcntc que a
Sem dúvida que só teria authoridadc pára communhão em ambas as espeeies; c se se
esta alteração, quando fosse evidente que ha de conservar o uso do calix para nos
a communhão cm ambas as espeeies era recordar melhor a paixão de Jesus Christo,
necessaria á salvação: aliás deveria ani- haverá também de dar-se a communhão
qui!ar-sc todo o principio de obediência á depois da ceia, porque esta circumstanda
Igreja. Mas poderão dizer que 6 evidente nos recorda ainda melhor a sua inorte.
ser necessaria para a salvação a commu- Os lutheranos renovaram a communhão
nhão cm ambas as espeeies, c que d’outra em ambas as espeeies, e o concilio de Trcn-
maneira se não recebe o sacramento da Eu to condemnou esta innovação, que é um
charistia. dos maiores obstáculos para a reunião das
Na administração dos sacramentos somos igrejas lutheranas. Sobre este objecto ha
obrigados a fazer não tudo o que Jesus via uma cspecie de negociação entre MM.
Christo fez*(d’outra sorte se deveria dar a liossuct c Lcibnitz, cuja individual relação
Eucharistia depois da ceia), mas somente o se acha nas obras posthumas do mesmo M.
que pertence á substancia do sacramento: Bossuet.1
ora não poderá encontrar-se na Eucharis É pois sem dúvida, que tendo sido usual
tia algum cITeito do corpo distincto do san a communhão em ambas as espeeies, e não
gue; portanto a graça d’um c do outro no sendo contraria nem á natureza do sacra
fundo e na substancia não poderia ser se mento, nem á instituição de Jesus Christo,
não a mesma. póde a Igreja conceder o uso do calix aos
Com elleito Jesus Christo, instituindo o simples líeis: mas como este foi prohibido
sacramento^ da Eucharistia, disse a seus por inconvenientes que resultavam da com-
discipulos: «Tomai e comei; este ó o meu munhão em ambas as espeeies, só á Igreja
corpo»: ora o corpo, sangue,alma e divin pertence restabelecer este uso, c somente
dade de Jesus Christo são inseparáveis, cila tem o direito de julgar se os inconve
porque o mesmo Senhor diz a S. João. que nientes que nascem da prohibiçâo do calix
deu seu corpo vivo na Eucharistia: não são maiores do que os que procedem da
póde ser vivo sem que estejam unidos com actual disciplina, e se esta se deve relaxar
o sangue a alma e a divindade debaixo de a este respeito.
•cada cspeciq; portanto os catholicos dando HYDRQI*inK T ^ -X n m n que se <JeU aOS
.a communhão debaixo dTima só, não va encraíítas, que não oflereciam senão agua
riam a substancia do sacramento. no sacrificio.
Esta variação no administrar da Eucha içqxoclastas. isto ó, destruidores d ima-
ristia não fere mais na substancia d’aquel- gens.—CeãoT-sauriano fui o chefe da sei
flc sacramento, do que fere na do baptismo ta, cuja origem e progressos vamos expôr,
:a que se faz pa administração d’cstc; c to c que refutaremos em seguida.
davia os protestantes a adoptaram. A tu
do pois quanto clles disserem para justi
ficar a variação, que abraçaram na admi DA. ORIGEM DOS ICONOCLASTAS
nistração do baptismo, podem responder os
catholicos cm defesa da sua variação no
modo de administrarem a Eucharistia. Em- . Desde Constantino, o grande, quasi to
fim o não uso ’do calix fere tão pouco na dos os imperadores tomavam parle nas
substancia do sacramento, que os protes controversias que se levantavam entre os
tantes fizeram um decreto para se adminis christãos: uns pela politica, outros ganhos
trar a Eucharistia debaixo da unica espe- pelos seus ofliciacs e pelos seus eunuchos:
cie de pão aos que tivessem ao uso do vi haviam-nos quasi sempre visto decididos
nho uma repugnância invencível.1 por seus ministros ou por seus favoritos,
Dcbalde pois se assevera, que sendo des sustentar a verdade, ou proteger o erro.
tinada a Eucharistia a excitar cm nós a A parte que tomavam nas disputas da
memória da morte c paixão de Jesus Chris religião, os elogios que recebiam do parti
to, não se recebe este sacramento senão do que favoreciam, lhes inspiravam o gos
imperfeitamente, quando só se toma o pão to por esta sorte de occupações. Os cor-
tezãos, que os queriam determinar em fa
1 ' Bossuet. Traité de 1a Communion sons vor d'um partido, representavam-lhes que
les deux espcces. Bellarmino, Nat. Alex, tra era bello interpor sua authoridadc nas
ctaram a fundo esta questão, e todos os theo
logos que lhes succcderanu i T. 1, pag. 264.
516 ICO
contendas da religião, e tracta'vam as ques
põz-sc á sua execução; porém Leão tez
tões dos theologos como ncgocios da maior carregar o povo, as imagens foram des
importanda, c proprios a cternisar a glo truídas, c o patriarcha Germano deposto.
ria dos imperadores; de sorte que era bom Leão enviou seu edito a Roma para o
para um imperador ter duranto o seu rei fazer executar: Gregorio ii escreveu-lho-
nado alguma heresia ou disputa theologi com mais firmeza, c lhe assegurou que os
ca que íizesse motim. povos não rendiam ás imagens um culto-
D’est’artc, depois da condcmnação d’Eu-idolatra: advertiu-lhe que competia aos
tychcs, o quando tudo começava a estar bispos c não aos imperadores julgar os do
tranquillo, Justiniano vendo cm Constanti- gmas ecclesiasticos; que como os bispos
nopla, vindos dc Jerusalém, monges que não se intromcttiain nos negocios secula
tinham extrahido algumas proposições das res, era mister lambem que os impera
obras d'Qrigeucs, c que as queriam fazer dores se abslivesscm dos negocios eccle
condcmnar, o imperador aproveitou esta siasticos. 1
occasiào para julgar materias ecclesiasti Leão, irritado da resistência de Gregorio,
cas, c deu um edito que condcmnava Ori- mandou assassinos a Roma para o mata
genes, Theodoro c Ibas, c fez reunir um rem, mas o povo descobriu-os e os matou.
concilio para approvar seu edito. 1 Toda a Italia se sublevou então contra Leão,
cujo governo duro e tyrannico, tinha dis
Philippico apenas elevado ao solio impe
posto os espíritos á revolta.
rial, tomou o partido dos monolhelitas, dei
xou devastar as terras do imperio pelos Estas perturbações, por uma práctica que
búlgaros, c foi deposto. não pertencia a Leão condcmnar, ainda
Anastaeio, que era mui douto, c que o quando ella fosse reprehensivcl, não des
povo collocou no logar de Philippico, não viaram, comtudo, este imperador do proje
tomou menor parte nos negocios ecclesias cto de abolir as imagens: occupou-se todo
ticos, e foi expulso por Theodosio. o resto da sua vida cm fazer executar seu
Leão Isauriuno, que Anastaeio fizera geedito, c não pòde vingal-o na Italia.
neral das tropas do império, recusou reco Constantino Copronymo, filho de Leão,
nhecer Theodosio, deu-lhe a morte, c fez- seguiu o projecto dc seu pae, e para me
se proclamar imperador. lhor estabelecer a disciplina, que queria
Leão era oriundo dTsauria, d’uma fami introduzir, fez reunir um concilio em Con-
lia obscura, fora simples soldado; coroado stanlinopla, ao qual assistiram mais de tre
a 2 de março dc 710, jurou nas mãos do zentos bispos.2
patriarcha Germano, manter c proteger a Os bispos d’estc concilio reconhecem os
religião catholica. seis primeiros concilios, c pretendem que
Por sua educação, Leão era incapaz de os que authorisam o culto das imagens,
tomar parte cm questões theologicas, c destroem pela raiz a authoridade d’òstes
queria comtudo, como seus prcdccessorcs, concilios; pretendem mais, que as imagens
que se dissesse que tinha protegido a Igrenão são de tradição dc Jesus Christo, dos
ja, feito regulamentos sobre a religião, c apostolos, ou dos gregos: que não ha crea-
conservado a fé. ção na igreja para as sanctificar, e que
Tivera grandes ligações com os judeus cáquelles que as honram, recahem no pa
com os serraccnos: estas duas seitas eram ganismo.
inimigas das imagens, e Leão ouvira-lheç De razões, passam a authoridadcs, o al
legam as passagens da Escriptura, nas
falhar do uso d’ellas, como d’uma idolatria:
quaes se diz que Deus é um espirito, c
elle tinha podido tomar parte dc suas idéias,
mais fáceis de penetrar por um soldado, que os que o adoram devem adoral-o em
do que as subtilezas theologicas. Julgou espirito c em verdade; que Deus jamais
assignalar-se abolindo as imagens; e no foi visto d’alguem, e que prohibiu ao seu
decimo anno dc seu reinado, publicou um povo de fazer idolos talhados.
edito, no qual ordenou se derrubassem as Emfun, apoia-sc este concilio sobro o
imagens. - suffragio dos padres; mas as passagens que
Á publicação do edito, o povo dc Con- se citam, nada concluem contra o uso das
stantinopla s*o revoltou, e o patriarcha op-imagens, tal como os catholicos o admit-
tem, ou são falsificadas e troncadas.
t É a disputa conhecida sob o nome de Segundo estas razões c authoridadcs, o>
disputa dos trcS capítulos, que foi termi
nada pelo quinto concilio geral. 1 Greg. 2. Ep. 1. Cone. t. 7. Baron, a d
2 Cedre nus, Zoríare, Constantino Maan. 726, n. 28.
nasses. 2 Cone. t. 7. Cone. Const. 2, act. 6.
ICO 517
•concilio do Constantinopla prohibe a todo o consentimento dos patriarchas, c que dei
o mando de adorar e collocar nas igrejas xavam inteira liberdade «aos bispos uc dizer
ou nas casas particulares imagem alguma, seu sentimento.
sob pena de deposição, se fòr uin sacerdo Muitos dos bispos, que tinham eonde-
te ou um diacono,* c d^xcommunhão, se mnado o culto das imagens, reconheceram
1 for um monge ou um leigo. 0 concilio quer sua falta, c foram admiltidos ao concilio.'
\ que ollcs sejam tractados conforme o rigor Fez-se vêr n’esto concilio que o uso das
das leis imperiaes, como adversarios das imagens nào ê contrario á religiào, como
leis de Deus, c inimigos dos dogmas de o de Constantinopla pretendera, c que po
seus antepassados. dia ser util: provou-se pelo exemplo dos
concilio do Constantinopla foi rojeila- chcrubins da Arca, pelas passagens de S.
f .do pelos romanos: mas a authoridade do Gregorio. de S. Basilio, c de S. CyrilIo,quc
i imperador o fez receber c executar em suppoem que as imagens cstào em uso na
\ urna grande parte das igrejas do Oriente: Igreja do tempo d’estes padres; que por
\ baniu-sc, cxilou-sc, condemnou-se do mor- conseguinte os padres do concilio do Con
' te aquellcs que se oppozeram ao concilio stantinopla tinham raciocinado mal sobre
e ao odito do imperador contra as ima as passagens da Escriptura, que prohibem
gens. fazer idolos, quando concluiram que era
Como os monges eram os mais ardentes um crime as imagens.
■defensores das imagens, olle fez um edito O concilio nào linha necessidade de pro
prohibindo a quem quer que fosse de abra var outra cousa, e as considerações de MM.
çar a vida monastica; a maior parte das Dupin c Basnagc, sobre a insufliciencia
casas religiosas foram confiscadas na capi dos argumentos dos padres do concilio,
tal, c os monges obrigados a casarem-se, e nào sào justas. 1
mesmo a conduzirem suas noivas pelas O concilio, depois de ter provado que o
ruas. 1 uso das imagens nào c criminoso, prova
Constantino morreu em 773, c Leào iv, N<[ue a tradicào as authorisa desde tempo
seu filho, lhe succcdcu. O novo imperador immemorial,* e que os ehristàos nào adora
occupou-sc desde logo com as guerras dos vam as imagens como adoram a Deus; mas
scrraccnos c das conspirações; mas apenas que as abraçam, as saudam, e lhes ren
houve paz, renovou todos bs editos de seu dem um culto para testimunhar a venera-
pae c de seu avô contra as imagens, o fez çào que teem pelos sanctos que cilas re
punir com a ultima severidade os trans presentam.
gressores d’esles editos. Os padres do concilio fazem vêr em se
Era mais um furor que odio o d'este im guida que as passagens de que o concilie
perador contra os que louvavam as ima de Constantinopla se authorisa, nào atacam
gens: nào quiz mais ter commercio com a senào o culto idolatra, c nào o que a igre
imperatriz, porque havia achado imagens ja christà tributa ás imagens: e também
em seu gabinete: quiz saber de quem as mostram que os bispos do concilio de Con
tinha recebido, c fez perecer essas pessoas stantinopla falsificaram muitas vezes as pas
cm tormentos. 2 sagens dos padres que citam.
Leào morreu pouco tempo depois, e Con Ò concilio declarou, pois, que se podiam
stantino Porphyriogencte lhe succcdou; collocar cruzes e imagens na Igreja e nas
mas como nào tinha mais que dez annos, habitações, c até nos caminhos, a saber:
sua màc Ircna empunhou as rodeas do as imiígcns de Jesus Christo c da Virgem,
império. Ircna, que conservara sempre de as dos anjos e dos sanctos; que cilas ser
voção pelas imagens, quiz restabelecer seu vem para renovar sua memoria e para fa
cuíto; escreveu ao papa Adriano para re zer nascer o desejo de os imitar; que se
unir um concilio cm Nicea: o concilio se pódc heijal-as c rcspeital-as, mas nào ado
realisou no anno de 787, sendo composto rai-as com a adoraçào verdadeira; que só
de mais de duzentos c cincocnta bispos ou a Deus é devido o poder de as ombellezar,
arcebispos. porque a honra que se lhes dá, passa ao
Alli se leram logo no principio as car objecto, e que aquclles que as respeitam,
tas do imperador e da imperatriz, em que respeitam o que cilas representam.2
declaravam que reuniam este concilio com O concilio dc Niçca nào foi bem rccebi-
Os bispos das Gallias acharam muito mau der-se-lhes alguma cspecie de culto, c ou
que os padres do concilio de Nicea autho- tros eram de parecer que se lhes rendesse
risassem um similhante culto para as ima tfm.1
gens. Os padres do concilio de Francfort ti
Estavam sobre tudo offendidos da pala nham aliás razões particulares para se op-
vra adoração que os padres do concilio de pôrem ao culto das imagens, que lhes pare
Nicea empregaram para designar o culto cia novo: os allcmãcs, cujos bispos assistiram
que se rendia ás imagens: esta palavra cm grande numero a este concilio, eram
empregada no Oriente para significar um novamente convertidos á fó pelo ministro
testimunho de submissão e.respeito, não de S. Bonifácio, arcebispo de Mayença, sob
estava em uso nas Gallias senão para ex o reinado de Pepino^pac de Carlos ílagno.
primir a homenagem rendida ao Sêr Su Os bispos allemães temiam que estes neo
premo. phytos tornassem a cahir na idolatria á
Não julgaram, pois, que a palavra ado vista das imagens, ás quaes se rendia um
ração fosse susceptível d’um bom sentido culto: foi por isto que elles se contentaram
logo que se tractasse das imagens, e o concom cxhortal-os a não profanar as ima
cilio de Francfort não condemnou o de Ni gens, sem os exhortar a que as honras
cea, senão porque se acreditava ho Occi sem.
dente que os padres do concilio de Nicea É certo pois que o comportamento dos pa
entendiam por adorar as imagens, tributar- dres do concilio de Francfort, nada tem de
lhes um culto tal como o que se tributa a contrario ao espirito do de Nicca, c que não
Deus, como sç vê do segundo canon d’estc condemnavam como um acto de idolatria
concilio, concebido n’cstes termos: «Pro- o culto que a Igreja dá ás imagens.
pôz-se a questão do novo concilio dos gre O concilio de Francfort foi no anno de
gos, havido em Constantinopla, sobre a ado794.
ração das imagens, no qual se escrevera No principio do nono século, em 824,
que todo aquello que não quizesse render reuniu-se em França, na cidade de Paris,
as imagens dos sanctos o serviço ou a ado uma assembléia de bispos, os mais hábeis
ração como á divina Trindade; seria repu do estado, e ahi decidiram que não era
tado como excommungado. Nossos sanctis preciso prohibir o uso das imagens, mas
simos padres do concilio, não querendo de que também não era mister honral-as.
nenhum modo a adoração ou servidão, con Esta decisão do concilio de Paris não é
demnaram este concilio de commum ac- uma condemnação absoluta do culto das
cordo.» 1 imagens, como se pôde vér dos regulamen
Não se encontra nas actas do concilio detos do concilio: os padres combatem o jul
Nicea que elle ordenasse a adoração das gamento do concilio de Niceá, que ordem
imagens dos sanctos como a Trindade; es o culto das imagens, c não dizem em parti
alguma que este culto seja uma idolatria,
tas palavras, pois, parecem tei^sido accres-
centadas em fôrma d’explicação, pelo con como se vê das cartas que os deputados
cilio de Francfort, para fazer vér que elleforam encarregados de levar ao papa.
não condemnava o culto das imagens, ap- 0 concilio de Paris não era, pois, favo
provado pelo concilio de Nicca, com tanta rável aos iconoclastas; elle os condemnou
que os padres d’este concilio entendessem mesmo, e não recusou admitlir o culto das
pela palavra adoração um culto de latriaj imagens senão como se rejeita um ponto
tal como se rende a Deus. do disciplina, pois que elles não se separa
ram da communhão das igrejas que lhes
0 concilio de Francfort não olhava, pois,
como uma idolatria, o render ás imagens prestavam culto.
um culto differente do culto de latria: vê- Os bispos de França e d’Allcmanha con
tinuaram ainda por algum tempo n’este
se, pois, que os bispos das Gallias não con
sideravam como idolatras os de Italia e do uso; mas a final, sendo o culto das imagens
Oriente que honravam as imagens. bastante derramado por toda a parte, e não
Com cffeito, quando a questão das ima havendo já que receiar da idolatria, elle se
estabeleceu geralmente, e em pouco tem
gens foi transportada ás Gallias, dividiu-se;
uns pretenderam que não era preciso ren- po; porque vêmos, no começo do nono sé
culo, Claudio, bispo de Turin, condemnado
meridade insupportavel a jírincipes, que pelos bispos, por ter destruido as imagens,
compai'assem seu reino ao de Deus. Lib. e escripto contra o seu culto, que se esta
Carolinij Prefacio. Dupin, Bibliot., t. 7, beleceu geralmente nas Gallias antes do de-
pag. 472.
1 Sigismond, Concil. Gallia:, t. 2. 1 Mabillon, Prcef. in-4.* sccc. Benedict.
ICO
cimo século. Veja-se o artigo Claudio de aos pés dos idolos; elles não olhavam Deus
Turin. como seu ultimo fim, mas sim collocavam-
Os valdenses, que quizeram reformar a no nos prazeres dos sentidos.
Igreja no principio do decimo segundo sé A idolatria impedia, pois, o homem de
culo, os albigenscs e essa multidão de fa render a Deus o culto que se devia e que
naticos, que inundaram a França, renova elle exige; cila corrompia, além d’isso, a
ram os erros dos iconoclastas, c depois moral, porque attribuia todos os vicios e
d’clles, Wiclef, Calvino c outros reforma crimes a- esses séres sobrenaturaes, que
dos, atacaram o culto das imagens, e accu apresentava á homenagem e ao respeito
saram a igreja romana d’idolatria. Todos dos homens.
os seus escriptos polêmicos estão cheios Vejamos a origem e a natureza do culto
d’estas arguições, e os homens mais distin das imagens na igreja catholica.
ctos da pretendida communhão reformada
forçam-se em o provar.1
Para collocar o leitor em estado de jul DA ORIGEM E NATUREZA DO CULTO
gar se esta accusação ó fundada, basta QUE A IGREJA ROMANA RENDE ÁS IMAGENS
comparar o que temos dito da origem e
natureza da idolatria, com a natureza e
origem do culto que a igreja romana ren No meio da corrupção, que reinava so
de ás imagens. bre a terra, Deus escolheu um povo, que
Pelo que já havemos exposto acerca da lhe rendeu um culto legitimo. Emquanto
origem da idolatria, tudo era na terra que as nações estavam sepultas nas trevas
objecto d’adoração, excepto o verdadeiro da idolatria, os judeus conheciam que o
Deus. Os homens, prostrados aos pés dos universo tinha por-causa uma intelligen-
idolos, não esperavam sua felicidade senão cia omnipolente c soberanamente sabia:
das potências chimericas, que elles consi elles não adoravam senão esta intelligen-
deravam ligadas a isso, e que olhavam co cia, e o culto dos idolos era entre elles o
mo as verdadeiras causas do bem e do maior dos crimes.
mal; o Sêr Supremo, foco de todos os bens, A religião chrislã elevava muito o espi
não se offerecia a seus espíritos. rito humano, ensinou uma moral sublime,
Eis o crime da idolatria; cila aniquilava mudou todas as idéias e todas as vistas dos
a Providencia, e impedia o homem de se homens, ensinou-lhes com muitíssima cla
elevar até Deus: os homens, infectados da reza e amplidão que uma intclligencia in
idolatria, não imputavam a Deus, como á finitamente sabia e omnipotente tinha crea-
jua verdadeira causa, os bens de que clle do o mundo, e que ella destinava o homem
is accumulava; e as desgraças destinadas a uma felicidade eterna; que tudo succe-
a chamar o homem a Deus, o conduziam dia pela vontade d’esta intelllgencia; que
um cabello não cahia da cabeça sem sua
1 Dallams, l. 4. Be imaginibus, Spa- ordem, e que ella dirigia a um unico fim
nheim, exercitationes historicce, de origi todos os acontecimentos. Ella demonstrou
ne et progressu controversice Ichonomachüe a inutilidade, extravagancia e impiedade
sceculo 8.°, opposita Maimburgio et Natal. da idolatria; ensinou a toda a terra que
Alexandro, 1685*, in-4.° Forbesius, instit., era preciso adorar Deus cm espirito e em
Tverdade; foi a razão porque os pagãos tra-
t. 2, /. 7. Basnage, Hist. Eccles., t. 1 , l . 12,
23. Preservativo contra a reunião da igre ctavam os primeiros christãos como ho
j a romana,, por V E nfant, t. 2, pag. 3. Car mens sem religião e como atheus.
ta l.a Da idotalria da igreja romana, in- Todavia, é certo, que desde o tempo dos
12. Rival, Dissert. Historicas, Dissert. 4. apostolos, os christãos tinham um culto vi
Este assumpto, que para todos os protes sível, e logares onde se reuniam para orar
tantes motivou um scisma, M. de Beauso- e para offerecer a Eucharistia. 1 .
bre pretendia que era mister tractal-o a rir, Os padres dos tres primeiros séculos fal-
sendo o ridiculo, segundo elle, mais proprio lam-nos dos logares onde os christãos se
para decidir esta questão do que o serio. juntavam, de seus bispos, de seus diaconos
Foi d1este principio que elle partiu para nos e de suas igrejas.2
d ar essas longas e nauseantes chocarrices
sobre as falsas imagens de Jesus Christo e 1 Act., cap. 2, v. 24, 26, cap. 20, v. 7.
sobre a Virgèm Rainha da Polonia: o nojo 2 lgnat. Epist. ad Magnes, ad Pkila-
que ellas causarem a quem as. emprehender delph. Ciem. Alex. Tert. de Id o l, cap. 7.
ter, dispensa uma resposta. Veja-se a Bi Adversus. Valent., cap. 2. De Coron. Milit
bliotheca Germanica. . cap. 3. Cypr. de Oper. et Eleemostjn., pag.
ICO 52!
De maneira que, quando Origcnes, La- truir os simples; estas imagens eram como
ctancio, Minucio Felix, e Arnobio disseram livros em que os christãos podiam lêr a
que os christãos não tinham aliares, que historia do Christianismo- e cilas eflcctiva-
riam dizer que os christãos não tinham mcnlc não tiveram ao principio outro uso
altares ornados dc idolos como os pagãos, nas igrejas.
nem altares sobre os quaes oíTerccesscm Os fieis, tocados dos objectos que as ima
sacrifícios sangrentos como os gentios, e á gens representavam, testimunharam, por
maneira dos judeus. signaes exteriores, a estima que consagra
A antiga Igreja não tinha imagens nem vam áqucllcs que eram representados nas
reliquias sobre os altares na instituição do imagens.
Christianismo; pelo menos não ternos^ pro Estes signaes de respeito não foram ge
vas authenticas, e o silencio dos pagãos c ralmente approvados: houve bispos que
dos judeus, quando os christãos lhes ar- olharam as imagens como germen de su
guiram o absurdo dos idolos, authorisa a perstições; outros, julgaram-nas uteis para
crér que eflectivamentc os primeiros chris intrusão dos fieis, c houve quem conside
tãos não possuíam imagens. rasse as homenagens rendidas ás imagens,
Elias não são, na verdade, cssenciaes á como eíTcitos d’uma piedade louvável, quan
religião, e n’um tempo cm que tudo estava do cilas dissessem respeito aos originacs c
repleto d’idolos, os primeiros pastores não aos sanctos.
queriam expôr a fé dos novos convertidos, O uso das imagens não se estabeleceu,
expondo a seus olhos imagens, e renden pois, desde o principio cm todas as igre
do-lhes um culto; talvez temessem que os jas; foi permittido ou vedado, segundo os
defensores do paganismo publicassem que bispos, por motivos particulares; julgaram-
o Christianismo não era mais que uma ido no util ou perigoso, pela relação ás dispo
latria di (Terente, c o persuadissem ao povo sições d’aqucllcs que honravam as ima
ignorante, o que era facil em um tempo gens.
que a religião chrislã não era ainda assaz Vê-sc no nono Hymno dc Prudência, c
conhecida, para que as calumnias dos pa nos Sermões de S. Grcgorio de Nysa, por
gãos a este respeito deixassem de ser re S. Basilio e por todos os padres citados no
cebidas favoravelmente, se os christãos ti segundo concilio dc Nicea, que as imagens
vessem imagens nos logares em que se estavam em uso no Oriente desde o quarto
juntavam para orar e oíTerecer a Eucha século. 1
ristia. É, pois, certo que o uso das imagens e
Era, pois, um comportamento cheio de seu culto era assaz geral na Igreja no
prudência não admittir as imagens nos tem quarto século, c que nao era olhado como
plos do Christianismo durante os primeiros uma. idolatria; que aquellcs que o defen
séculos. diam, não corídemuavam todavia os que o
A religião christã fez grandes progres authorisavam.
sos, seus dogmas foram annunciados e co Este culto, além d’isso, não era contra
nhecidos; os padres e os pastores pregavam rio á lei que prohibe adorar outra cousa
aos christãos e a toda a terra que tudo es que não seja Deus, porque não é contrario
tava sujeito aos decretos do Sér Supremo; á razão ou á piedade honrar a representa
que os homens não são nada per si mes ção d’um homem virtuoso c respeitável, c
mos, que nada possuem que não tenham não se temia que os christãos, a quem era
recebido c dc que possam glorificar-sc. permittido honrar as imagens, lhes rendes
Não se temeu só então que os christãos sem um culto idolatra; fazia-se-lhes vêr
cahissem na idolatria, .que podessem acre que estes sanctos nada eram per si mes
ditar que os genios governavam o mundo, mos, que ellcs tinham sido virtuosos só- ,
e pensar que esses genios estavam ligados mente pela graça de Deus, c que era em
á tela sobre qiie se traçaram as figuras. Deus que terminava a honra que se lhes
Então admittiram-so nas igrejas imagens rendia.
destinadas a representar os combates dos A Igreja não ensinava que os espíritos
martyres e as historias sagradas, para ihs- beatificados estivessem identificados com
as imagens, como os pagãos criam dos ge
203. Ep. 54. A d CorneiArnoib., I. 4, pag. nios: ella mostrava que os sanctos, repre
152. sentados nas imagens, deviam a Deus suas
Vejam-se as provas dc tudo mais circum- virtudes e méritos, que Deus era a causa
stanciadas em Bingham, Antiguidades Ec
clesiasticas, l. 8. Em Tillemont, Hist. dos
Imperadores, t. 3, art. 0, i Bingham, Antiqui., Eccles., I. 8, cap. 8
322 IGR
o o principio das virtudes que honramos bins collocados sobre a Arca, o a serpento
nos sanctos. de bronze, provam que todo o uso das ima
O culto quo os fieis instruídos prestavam gens não é interdicto por esta lei. Para fa
'ás imagens, nào era pois um culto idola zer á igreja catholica um crime do culto
tra, e as igrejas que prohibiam o mesmo que ella da ás imagens, é preciso fazer vôr
culto, nunca arguiram as que as honra que elle é contrario á religião, á piedade,
vam de ter cahido em idolatria. ou á fé; e é isto o que se não póde provar:
A permissão do culto das imagens de é por esta razão que a Igreja anglicana, os
pendia do grau de luz que os pastores lulheranos, e ealvinistas celebres, não con
viam nos fieis, c do conhecimento que es demnant o uso das imagens, senão como
tes pastores tinham de suas disposições perigoso para os sim ples.1
particulares. Mas, diz M. Rival, quando uma cousa
Assim, Sereno, hispo de Marselha, des não é necessaria, nem de preceito divino,
truiu as imagens da sua igreja, porque no nem de natureza, e que é aliás sujeita a
tara que o povo as adorava, c o papa S. abusos nocivos, como o uso c o culto das
Gregorio louva seu zelo, mas censura sua imagens, não quer o bom senso que se sup-
acção, porque ella escandalisára o povo, e prima?2
era para os simples um meio d’instrucçao Eu respondo:—!.0 Que não compete a
muito util e muito antigo. Fallava d’csta um particular emprehender esta suppres-
sorte S. Gregorio, no fim do sexto século. são, quando mesmo ella fosse rasoavel,
Logo, pois, que os povos se instruiram mas sim á igreja; ou que é preciso abolir
sufllcicntemente sobre a natureza do culto na igreja toda a noção de hicrarchia e de
que a Igreja authorisava, relalivamente ás subordinação; que por conseguinte os vai- \
Imagens, elle se espalhou e se estendeu denses e os calvinistas são incxcusaveis por
em toda a Igreja, depois do segundo con se terem separado da igreja, por causa do
cilio de Nicea. culto das imagens.
O culto que a igreja catholica consagra 2. ° Que o abuso do culto das imagens é
ás imagens, não ó pois um culto idolatra. facil de prevenir; e que nào é difficil fazer
A decisão do concilio de Trento, e o cui sciente aos simples fieis, de qual é a natu
dado que elle teve cm corrigir os abusos reza do culto que a Igreja aulhorisa rcla-
que teriam podido introduzir-se n’este cul tivamente ás imagens.
to, o provam cvidenlementc: para se con 3. ° Que a suppressão do dito culto não
vencer d’isto basta lançar os olhos sobre a reconduziría os protestantes á Igreja, como
propria Historia do Concilio de T)'ento, por M. Rival o persuade: os ministros bem sa
Fra-Paolo, c sobre as notas do padre Cou- bem que os abusos em que se cahe, com
rayer.1 relação ás imagens, são fáceis de prevenir,
Uma vez estabelecido este culto, é gran e não é isto o que impede a reunião.
de temeridade que um particular, ou Com efleito os protestantes estão tão ins
mesmo algumas igrejas particulares, não truídos a respeito dos abusos do culto dado
queiram seguir tal uso, e condemnem os ás imagens, que não ha a temet que elles
que honram as imagens. Os pretendidos caiam; além de que, a Igreja condemna,
reformados não estavam pois authorisados tanto como elles, estes abusos: o culto das
a separar-sc da igreja romana, porque ella imagens não deve pois servir de obstáculo
approvava o referido culto, pois que não á sua reunião com a igreja romana.
approvava um culto idolatra: é por este Póde-se vér sobre o culto das imagens,
motivo que os theologos de Saumur não Peresius, de traditionibus, parte 3. Linda-
rejeitam o culto das imagens, admittido nus Panopl. I. 3, c. 23. Alanus Copus con
pelos catholicos, senão porque Deus pro tra Magdeburgenses, dial. 4 et 5. Bellann.
hibe fazer alguma imagem talhada, e que Natal. Alex. in sxc. 8, dissert. 6. Hist. dos
elles pretendem que este preceito se effei- Cone. Geraes.
tua tanto para os christãos como para os igreja daJ —Vamos entrar n’uma
judeus. matéria, quê a razao e a boa fé já decidi
Porém é claro que estes theologos dão ram, mas que os séculos teem tornado bas-
muita amplidão á prohibiçãò que Deus fez
aos judeus: é evidente que esta prohibição
diz respeito ao culto idolatra, e não abso 1 Hist. do Velho e Novo Testamento, por
lutamente ao culto das imagens; os cheru- Al. Basnage: Amsterdam, in-fol. Disserta
ções Historicas, por Pedro Rival, dissert. 4,
t Edição de Londres, t. 2, pag. 633, pag. 277.
646 e 647, nota 2. 2 R ival, Ibid. pag. 237.
IGR 523
tante espinhosa. Envergonha, que no anno Será só exacta a ideia que do papa fize
do 1865, dezenove séculos depois da Tun- ram Calmet, Febronio, Eybcl,Gmeiner, Ric-
daçãó do Christianismo, d’essa grandiosa ci, c será falsa a que fizeram Bolgeni, Zac-
revelação de Deus c da humanidade, ainda carias, Ballcrini, Duval, Milante, Troila, e
se escrevam artigos com a epigraphe que tantos outros?
apresentamos. Sc a crença d’estes ultimos é ultramon-
Quem sabe que Pio ix é o successor de tanismo, então S. Thomaz, Sancto Antonio,
S. Pedro, e enche o cathalogo desses du S. Francisco de Salles, Sancto AÍTonso de
zentos cincoenta e sete ponlilices, que fo Ligorio, todos os sanctos o doutores da Igre
ram sublimados á cadeira apostólica, quem ja são ullramontanos. Mas eis-aqui o que
tiver lido os livros do Novo Testamento, fo se não póde dizer de quem viveu na Hes-
lheado as actas dos concilios, aberto as panha, na mesma França, em Portugal, na
obras dos sanctos padres c doutores eccle Allemanha, na Europa inteira, na Asia, na
siasticos, quem attender ao costume sem África, na America, e em todo o mundo,
pre invariável c nunca contradicto no go porque em todo o mundo ha defensores do
verno c economia da Igreja, saberá o lo- papado, uma vez que ha christãos.
gar que o papa n’ella occupa. Assim mesmo, nunca aquellcs, aliás esti-
Porém o orgulho humano não é assim. maveis gallicanos, apesar de se illudirem,
Torceu os textos da Escriptura Sancta, pretenderam tirar de suas theorias a illac-
chamou os sanctos padres a uma questão ção, que depois o jansenismo tirou tão im-
que elles nunca tractaram cx professo, pòz prudentemente.
na sua bôeca pensamentos e até palavras Foram os parlamentos de França que os
alheias d’elles, violentou as actas dos con violentaram.
cilios, abusou da disciplina da Igreja, c de Mas a verdade fica no mesmo ponto, e
pois, apresentando-so ás turbas, sob a mas os factos são o que eram. Pio ix gosa do
cara da virtude c da sinceridade, bradou- mesmo poder que gosava S. Pedro, e S. Pe
lhes:— «Eis-aqui a verdadeira ideia da san dro gosou do poder que lhe couferiu Jesus
cta sé. Que é o papa? Segui a nossa dou Christo.
trina, porque o contrario é nltramontanis- Vamos, pois, tractar das prorogativas
mo. Estamos em ajuste de contas com a pontificias. A verdade costuma ser simples
côrte de Roma. Só fanaticos, hypocritas, e sincera, e não usa de rodeios nem d<
papistas, servis aduladores da curia roma meias palavras. Diremos portanto a verda
na, é que podem defender a sua tyrannia de sem rodeios e com clareza.
c despotismo espiritual.» Depois que Bcllarmino, Orsi, Duval, i
Ahí estão dezenove séculos a protestar outros, tractaram a questão do papa em
contra os adversarios do papado. O janse- relação á Igreja, pouco mais liaveria que
nismo já hoje não illude ninguem. Cahiu- accrescentar aos argumentos irrespondí
lhe das faces a mascara coin que encobria veis d”estes aulhores; comtudo De Maistrc
o systema mais pestifero c hediondo, que e Moreno pozeram á luz da evidencia esta
havia surgido dos abysmos. Foram os sé matéria, nada mais havendo a desejar.
culos que se encarregaram de nos patçn- Ousamos ainda dizer mais: quem hoje
tear esta verdade. O século xix deu-lhe o tiver d’encetar esta questão, não o fará
ultimo golpe, ainda que muito antes o mes melhor do que elles, por mais erudição e
mo Bcrcastel trouxesse á luz pública o pro eloquência que possua, e terá de reprodu
jecto de Bourg-Fontaine, traçado por Jan- zir a maior parte dos seus argumentos.
senio e seus partidários, e o incorporasse Todas estas razoes talvez façam com que
na sua historia. alguém se admire de tractarmos tão deba
E que tem que Bercastel bebesse depois tida c ardente questão. Mas deve notar-se:
o mesmo veneno? quem escreve sobre materias religiosas não
Não se póde attribuir senão á cegueira inventa, nem adduz cousa nova, porque na
do entendimento. religião não ha novidade no dogma e na
Que importa que Bossuot, Fleury, Cal- moral. Hoje é preciso escrever-se o que os
met, e Bergier, desconhecessem o plano de homens sábios e livres de paixões disso-
Jesus Christo na sua Igreja? ram sobre o que toca á religião, porque
Por ventura será unicamente a escóla hoje escreve-se para o povo, c o povo pre
gallicana a que ha de dictar a lei do mun cisa da verdade reproduzida e recopilada
do? Havemos crôr o que diz o grande Bos- em materias religiosas. O povo não lé a pe
suet, e não o quo diz o venerável Bellar- sada c profunda obra de Bellarmino, nem
mino? Havemos jurar nas palavras de Fleu- as longas sessões dos concilios, nem as de-
Ty, e não nas do illustre e verdadeiro Orsi? cretaes dos pontifices. Não estranhem pois
os sábios, que não é para esses que escre Sempre sc recorreu ao papa como ultimo
vemos artigos sobre o papa. tribunal da Igreja. Sempre a clle eram de
O papa é boje o que era ha dezenove sé volvidas todas as questões que tinham do
culos, c ha dezenove séculos era clle o che decidir-se: somente os horeges, os impios,
fe da Igreja, o mestre c pac commum dos os scismaticos, os apostatas, c os maus ca
christàos, o monarcha supremo da religião. tholicos ó que negavam ao papa a supre
macia do poder, persuadindo-sc que o thro
no pontificio era uma instituição humana.
II Mas ainda algumas vezes appcllavam dos
bispos, que os condemnavam, para o pon
tifico; e quando este também os condemna-
*0 papa o a Igreja tudo é um.» va, então ó que dirigiam seus tiros contra
Eis-aqui as formacs palavras d’um gran a pedra, sobro que Jesus Christo fundou a
de sabio, d’um grande prelado da Igreja, sua Igreja.
d’um grande sancto, emfim, de S. Francis
co de Salles. III
E na verdade, para que tivéssemos como
verdadeira aquella asserção, não era ne
cessário que a proferisse 5 esclarecido bis Quem é o papa?...
po de Genebra. Sc lançarmos os olhos ao 0 papa é a pedra cm que Jesus Christo
Evangelho, aos testimunhos de todos os sé fundou a sua Igreja, pedra firnio c inaba-
culos, se altendermos ao plano d’esta socie Iavcl, que tem resistido, resiste, e resistirá
dade chamada christã, á economia divina ás concussões dos poderes do inferno c do
da instituição da Igreja, se lermos a histo mundo inteiro, contra ella armadas.
ria, havemos de confessar que a authori- É o pastor unico do universal rebanho
dade do papa na Igreja é tudo: havemos de Jesus Christo, com suprema authorida-
de dizer com Bcllarmino, que a questão do dc de o apascentar, reger c governar.
papa é a questão do Christianismo; have É o centro de todos os poderes, c a fon
mos finalmente concluir, que não ha ver te unica d'onde dimana tudo o que é po
dadeira Igreja sem Christianismo; não ha der, authoridade e jurisdicoão na Igreja.
verdadeiro Christianismo .sem catholicis- É o legitimo successor de S..Pedro, e é
mo; não ha calholicismo sem papa, c por mesmo um outro Pedro, pois que c a incs-
conseguinte .o papa e a Isreja tudo é um. ma pedra.
Não póde existir edifício sem base ou É o vigário de Jesus Christo, seu logar-
fundamento. Ora a Igreja é um ediGcio ma tenente, que faz as suas mesmas vezes; por
ravilhoso, cuja base é o papa, porque as que o Senhor devendo fazer o que elle faz,
sim se colhe das promessas de Jesus Chris e como não convinha á sua providencia es
to. E sendo a base e a parte essencial e tar entre nós cm fôrma visivel, pôz em seu
necessaria no edifício, segue-se mui nalu- logar este homem, constituindo-o um outro
ralmcnte que a pessoa do papa na Igreja Elle mesmo, para fazer o que clle faria.
é tudo, que quando se ataca o papa, ata Eis-aqui o que é o papa. Eis-aqui. a res
ca-se a Igreja, a religião e o Christianismo. posta que se deve dar a quem perguntar
Eis-aqui porque os impios de todas as com todo o orgulho, como fez o jausenista
cores fazem mil esforços para derribarem Eybcl, quando o immortal Pio vi partiu
aquelle vulto magostoso, aquella sentinella a visitar o imperador José n, cujo palacio
vigilante collocada sobre a Igreja; EUes estava inundado de jansenistas.
bem sabem, que ferindo as prerogativas E se exigir provas e argumentos, nós
ontificias, ferem o Christianismo. Elles então lhe diremos: por onde quer que o
em sabem, que faltando o papa, falta a prove?
Igreja: e por uma contradicção com os seus Pelas Escripturas Sagradas, c cm espe
princípios, mas contradicção- que reverte a cial pelo Evangelho?
nosso favor, confundem o*papa com a igre Pelo plano que Jesus Christo seguiu,
ja , e atacam aquelle para fazerem cahir quando cimentou o divino edifício da Igre
esla. ja?
Mas são insensatos, porque a Igreja ha Pela condição e natureza d’esta socie
de permanecer firme ató o fim das gera dade? Pela tradição sempre constante?
ções, c por isso a sua base, que é o papa. Pela crença geral de todo o Christianis
A supremacia do papa sempre foi pro mo? Pelos conciiios ecumênicos, provin-
clamada cm todos os tempos, apesar dos ciaes e nacionacs? Pelos sanctos padres c
inimigos declarados c solapados da religião. doutores da Igreja? Pela historia ecclesias-
IGR 325
tica c profana? Pelos authorcs protestantes nós o rejeitamos. O que vós dizeis é falso,
e inimigos do supremo papado?... e nós o refutamos.»
O campo ó .vasto. Mas em qualquer ter Com eíTeito Jesus Christo escolheu doze
reno quo se travar o combale, a victoria apostolos a quem constituiu bases da soa
a nosso favor é infallivel. O papa fica su Igreja, c pedras fundarnentacs d’este edifí
perior a todos os tiros, e os seus defenso cio. Mas a pedra primeira em que todas
res não temem entrar na lucta, porque sa as outras assentavam foi uma só, com ex
bem que a verdade tem sempre argumen- clusão das outras.
* tos a seu favor. Foi Pedro, c nenhum outro. Os bispos
Para um christão que acredita na di são successores dos apostolos, quanto ao
vindade dos livros sanctos, nào era preciso cpiscopado, o nào quanto ao apostolado, e
mais nada para saber qual devia ser a sua c o papa é successor dc S. Pedro em todas
fé a respeito do papa, do que abrir estes as suas prorogativas. Eis-aqui uma verda
livros e responder a quem lhe negasse as de que o jansenismo tem procurado em
prorogativas da sancta sé: acreditas 11’es- brulhar c confundir, para seus sinistros c
tes livros? Crês que sào a palavra dc Deus? malevolos fins.
Pois- lé. Eis-ahi o que diz Jesus Christo a
S. Pedro, c na pessoa d’ellc aos papas seus
successores: aqui estào os direitos do papa. IV
D’aqui dimanam os seus poderes. Negas
estes poderes? Negas por conseguinte a
palavra dc Deus. Negas as promessas de Certamentc todos os apostolos gosaram
Jesus Christo. Nào pertences á Igreja, por dc grandes dons e privilégios. Certamentc
que contradizes a doutrina do seu chefe c todos elles foram pedras lirmes c inabala-
pastor. veis do edifício da Igreja.
Abramos o Evangelho dc S. Matheus (16, Comtudo este nome do pedra é só pri
18 e 19). e ahi encontraremos: Tu cs Pe vativo de Pedro. A nenhum outro chamoi
dro, e sobre esta pedra edificarei a minha Jesus Christo pedra sobre que edificaria I
Igreja... /£ en te darei as chaves do reino sua Igreja.
dos céos, e tudo o que ligares na terra será Uma singularidade bem notável, de qu
ligado no céo, e tudo o que desatares na todos os theologos deviam lançar mão para
terra será desatado no céo. fazerem emmudecer os inimigos da reli
A que outro disse Jesus Christo estas gião, é este nome dc pedra dado a S. Pedro
palavras? A nenhum. exclusivamente.
Abramos o Evangelho de S. João (21, 15 Jesus Christo fallou na lingua hebraica,
c 17), e ahi veremos que fora dito só a S. c usou da palavra Cephas.— Tu es Cephas,
Pedro: Apascenta os meus cordeiros, apas et super hanc Cepham cedificabo ecclesiam
centa as minhas ovelhas. meam. Segundo Calmet, a palavra Cephas
Sophismai, usai dc todas as cavillaçõos ó d’origem ealdaica, que significa pedra ou
c chicanas, mas nunca podereis convencer rocha.—Cepha vox Caldaica est, petram,
ninguém dc que estes textos siguifiquem sen rupem sonans.
outra cousa além do supremo poder o au- No grego foi vertida em petron, que tam
thoridade, dados por Jesus Christo a S. Pe bém' quer dizer pedra. Ultimamente S. Je-
dro c aos seus successores ng pontificado. ronymo masculinisou este nome, traduzin-
E se quizerdes esbulhar d’estas proroga do-ò em Petrus, perdendo já muito a sua
tivas do papa, dizendo que é á Igreja que força primitiva.
pertence esse poder, ou ã cadeira apostó Jesus Christo disso pois a S. Pedro: Tu
lica, fazendo distineção entre a Igreja e o és Pedra, e não Tu cs Pedro, constituindo
, papa, entro a cadeira c o que n’ella se as fundamento, base e alicerce da igreja ca
senta, como Bossuet, nós, n’csse caso, vos tholica— E sobre esta pedra edificarei a mi
responderemos com o immortal Fénelon: nha Igreja.
«Vossa opiniào é claramcntc opposta ás Á vista d’isto que se deverá pensar da
promessas dc Jesus Christo, feitas á sua interpretação que Natal Alexandre e outros
Igreja c ao seu chefe e cabeça. EUa é in- dão a este logar de S. Matheus?’ Dizem el
teiramente desconhecida á tradição; cila 6 les que essa pedra é a Igreja.
nova. Póde-se dizer d’csta chimera o que Mas isto não se entende, c até tornaria
Sancto Agostinho dizia a Juliano: o que vós o sentido vão.
dizeis é novo> o que vós dizeis é falso. O «Tu és Pedro, e sobre esta Igrgja edifi
que vós dizeis é estranho, c nós o ouvimos carei a minha Igreja.» .
com surpreza. O que vós dizeis é novo, e Quererá dizer isto alguma cousa? Fará
526 IGR
isto sentido? Será grammatical, ou mesmo Sc o papa é o maior dos bispos, se tem
logica esta oração? É ncccessario referir o primado c a plenitude de poder na Igre
estas misérias, porque cilas mostram uma ja, e se a elle compete decidir as questões
má causa, que escogita e inventa quantos de fé, segue-se que o papa é a pedra fun
disparates ha. damental da Igreja, que sem elle não ha
Pedro entre os apostolos era sempre o Igreja, c que elle é infallivcl no dogma c
primeiro em tudo; o primeiro na ordem, o na moral, porque aliás a Igreja cahiria em
primeiro nas decisões. erro. Mas isto é impossível, sendo cila a
Escutemos a S. Bernardo, que assim falia columna c o firmamento da verdade, como
ao papa Eugênio m, e na pessoa d’elle a expressamente declara o Espirito Sancto
todos os papas: «Tu quem és, grande sa pela bôcca de S. Paulo.
cerdote, summo pontifice? Tu cs o princi O papa faz na Igreja a mesma figura que
pe dos bispos, tu o lierdeiro dos apostolos, faz um rei no seu reino. Jesus Christo
no principado, Abel; no governo, Noé; no quiz que o chefe da Igreja tivesse o mesmo
patriarchado, Abrahão; na ordem, Melchi- poder e authoridade no religioso, que um
sedech; na dignidade, Aarão; na authori- rei no civil (servatis servandis). Um rei
dade, Moysés; no julgamento, Samuel; no manda governar esta ou aquelfa provin
poder, Pedro; na unção, Christo. Tu és cia pelos seus magistrados; porém a fonte
aquelle a quem foram entregues as chaves c a origem do poder reside no rei, que
do céo, c confiadas as ovelhas. Ila ccm ef- tem a chave do governo. Da mesma sorte
feito outros porteiros do céo, e pastores do o papa constitue os bispos n’esta ou Saquei-
rebanhos; mas tu herdaste uní nome, tanto la parte do catholicismo. Comtudo, a fonte
mais glorioso quanto se distingue dos ou do cpiscopado está no romano pontifice.
tros. Elles teem rebanhos destinados em Não é pensamento meu, é do referido S.
particular; a ti foram confiados todos, a um Thomaz.
só pastor um unico e universal rebanho. E A supremacia do papa não é oxageração
não és só pastor das ovelhas, mas o unico ultramontana, como dirá alguém. É a cren
pastor de todos os pastores. Perguntaes-me ça d.c todos os séculos: são verdades defen
d’onde eu prove isto? Da palavra divina. didas por todos os theologos dignos d’este
A que outro, já não digo bispo, mas mes nome, e até pelos mesmos citramontanos,
mo apostolo, assim absolutamente, e sem como Gerson, Pilau, Natal Alexandre, Pe
reserva, foram commettidas todas as ove dro de Ailloy, Almain, e outros. Nada mais
lhas?» expresso n’e’stes authores do que o regi
Não se póde fallar melhor. Estas pala men monarchico do papa.
vras de S. Bernardo dizem tudo. Por ellas
se prova que'o papa succede a Pedro em
todas as prerogativas inherentes ao supre Y
mo pontificado, e isto cm virtude das pro
messas de Jesus Christo. Por ellas se prtf-
va que o papa tem o primado de jurisdic- Lécm-se n’uma obra intitulada—Appello
ção e poder na Igreja, que elle é a origem aos parochos daldeia, por Lcdru-Rollin—
é centro de todo o poder d’clla, e que por as seguintes palavras: «Hoje os verdadei
conseguinte sem elle nada se póde fazer ros christâos já não estão da parte da Igre
na Igreja. ja.» Sem dúvida queria dizer, como se co
Ouvi agora a S. Thomaz d’Aquino, um lhe pelo contexto de toda a obra, que o ver
dos maiores sanctos e theologos, que assim dadeiro Christianismo não existia na igreja
escreveu seis theses contra os erros dos gre romana, que tem por cabeça e chefe o sum
gos: «O romano pontifice, successor de S. mo pontifice: e como elle de papa nada
Pedro c vigário de Jesus Christo, é o pri queria, para ser coherente também não de
meiro c o maior de todos os bispos.—O via querer que a igreja romana fosse a ver
summo pontifice tem o primado universal dadeira christã. Tomou por conseguinte a
sobre toda a Igreja.—O romano pontifice palavra Igreja no seu genuino sentido, que
tem a plenitude de poder na Igreja.—S. Pe é tendo por cabeça o papa.
dro é vigário de Jesus Christo, e o romano Disse porém o*maior absurdo e a maior
pontifice é successor de S. Pedro no mes impiedade, porque os que querem ser verda
m o poder que lhe deu Jesus Christo.—Ao deiros christâos estão hoje, assim como es
summo pontifice pertence determinar o que tiveram sempre, com a Igreja e com o papa.
c de fé..—É de necessidade da salvação a Outros, não sabemos se mais impios se
obediericia ao romano pontífice.» mais pedantes, chamam aos catholicos emis
Exccllentemente. sarios do papa, e papistas. Mas devem sa-
IGR 827
ber que nós honramo-nos com similhantes d’outra cidade? Tantos respeitos pelos bis
nomes, pois conhecemos que por ellcs en pos de Roma, e nenhuns pelos outros bis
tendem os verdadeiros catholicos os que pos?]
obedecem ao papa, successor de S. Pedro, Não será porque Pedro foi constituído
e que faz as vezes de Jesus Christo. pedra da Igreja, só e exclusivamente, c os
Sim, somos emissarios do papa, e verda seus successores gosam de todas as suas
deiros papistas, assim como o teem sido to prerogativas?!
dos os sanctos do Christianismo, todos os Não mostrará isto a superioridade do
theologos c doutores da Igreja, e todos os papa aos outros bispos do orbe catholico?
christàos. E não estaria isto no plano divino?
Leia-se a historia ecclesiastica, c se verá Mas talvez se dirá que os concilios ge-
que o papa é a alma d’esse corpo, que em raes teem authoridade sobre os papas, que
toda a parte ha lançado raizes. Tirai ao em taes concilios é que reside o dom da
corpo a sua cabeça, e elle apenas ficará infallíbilidade, e que por conseguinte o pana
um cadaver, sem vida, sem espirito, sem não é mais que um bispo com o primado
animação. de honra.
Porém, se ainda restam algumas dúvi Futil evasiva é esta.
das a respeito da suprema authoridade Os inimigos disfarçados da Igreja (c al
pontifícia na Igreja, observe-se a serie nun guns illudidos por ellcs) faliam em conci
ca interrompida de papas desde S. Pedro lios geracs, em igreja e em papa, baralham
até Pio ix, sempre dirigindo a Igreja, legis tudo, e por fim nada provam. Separam o
lando, mandando, e emfim usando de todos papa da Igreja, como se podesse haver cor
os poderes, sem contradicção alguma senão po sem cabeça, editicio sem base. Chamam
da parle dos hereges e scismaticos. Igreja ao que não tem tal nome, e negam
Dezenove séculos tem d’existência a san ao seu chefe o que lhe pertence por direito
cta sé, e nem uma única vez se apartou do divino e positivo.
dogma c da moral christã. Roma tem sido Ora supponhamos um concilio geral, a
o centro do catholicismo. Alli está o depo quem os adversarios fazem dotado dos
sito da fé e da religião. Alli está a fonte do maiores poderes, decretando c discutindo
poder ecclesiastico. Todos alli recorrem como papa; c ponhamos d’oulro lado o pa
para serem decididas as questões que se pa em opposição a este concilio, decidindo
suscitarem sobre a fé e costumes. Eis-aqui o contrario com os seus cardeaes. Aonde
o-que nós observamos em todos os tempos estará n’eslc caso a Igreja?- Quem gosarà
e em todos os séculos. aqui do supremo poder: o concilio ou o
As outras sés episcopaes, fundadas pelos papa? Desenganem-sc todos. Ou n’este caso
apostolos acabaram, os seus prelados cahi- não existe papa, ou tal concilio não é ver
ram em erro, e apartaram-se da verdadei dadeiro concilio. O papa não póde estar em
ra crença; só a cadeira de S. Pedro e do opposição com a Igreja.
pontifico romano tem atravessado todas as Um concilio ecumcnico sem papa é nada;
gerações, sempre pura, c sem macula na e se nós em dezenove séculos não temos
fé. visto similhante phenomeno na Igreja, po
Creta, Epheso, Smyrna, Pergamo, Tyati- demos afoutamente dizer que nunca se ve
ra, Jerusalém, Antiochia c Alexandria, ci rá até ao fim dos séculos.
dades com sés episcopaes, fundadas pelos Mas se se désse o caso de estar o papa
apostolos, já não existem. Unicamente exis em opposição com todos os bispos do mun
te a successão romana. do catholico, estivesse cm seu juizo per
Este facto não quererá dizer alguma cou- feito, c fallasse como papa, mandando co
sa? Não está mostrando que Roma é a mãe mo pastor da igreja, e dizendo: eis-aqui
de todas as igrejas da terra, que a cadeira a verdadeira fé, eis-aqui a fé de Pedro:
de S. Pedro e a mestra de todas as mais n’cste caso (apenas imaginario) devia-se
cadeiras do mundo, e que o papa, que obedecer ao papa, c não ao concilio. Mas
n’ella se senta, é o pac de todos os chris- eis o que nunca se viu, nem verá. Nun
tãos, a alma, o coração e a cabeça da Igre ca ninçucm contrariou o papa fallando
ja, e que sem elle hão haverá verdadeira como doutor da igreja universal, ou se
Igreja? gundo dizem os theologos, fallando ex-ca-
Mostrem-nos na Igreja uma authoridade thedra. Aonde está Pedro, ahi está a Igreja,
superior á do papa. diz formalmente Sancto Ambrozio (sobre o
Qual é a razão porque nas questões de psalm. 40).
fé se não recorre ao patriarcha de Alexan Desejaria eu muito que os adversários do
dria, de Constantinopla, de Jerusalem, ou summo papado, e defensores da siípreraa
528 IGR
authoridade dos concilios sem papa, me rería com estas palavras S. Basilio adular
dissessem quantos bispos são necessários a còrlc romana e o seu monarcha? Seria a
para que o concilio seja verdadeiramente maior injuria a tão grande sabio c sancto.
ecumcnico. Dizem geralmentc que se não S. Boavenlura na Summa Theologica (q.
requer a maior parte dos bispos do mun 1 a. D. 3.) diz: «O papa nao póde errar,
do, mas que representem a maior parte. suppostas duas cousas: 1.* que determine
Comtudo na Africa e no Oriente reuni como papa; 2.a que intente fazer dogma
ram-se numerosos bispos em concilio, c de fé.»
por mais de que uma vez erraram, c os Sancto Antonino sobre a appcllacuo do
papas condemnaram os seus decretos. E o papa (p. 1, tit. 23, cap. 3, v. 3) não* duvi
que mais é, aquelles bispos tinham por si dou dizer ou escrever o seguinte: «Do papa
S. Cypriano, S. Firmiliano, e apesar d’isso para o concilio geral não se póde appellar,
erraram, porque lhes faltava a pedra c o porque o papa é superior a todo o conci
conductor, que lá estava cm Roma, falhan lio; nem tem vigor o que faz o concilio, se
do como papa, e anathcmatisando quem não for confirmado pela authoridade do
seguisse opinião contraria á da sancta sé: romano pontifice. Logo, sentir que do papa
e por fim S. Cypriano c os outros bispos se póde appellar para o concilio, é uma he
viram-so obrigados a ceder, c a sujeitar-se resia.
á decisào dogmatica do papa Sancto Este Chamai ultramontano c papista a Saneio
vão i. Antonino, por declarar o mesmo que Bcl-
larmino não disse.
S. João do Capistrano diz: «O papa tem
VI cm tudo jurisdicção plenaria sobre o con
cilio, e não o concilio sobre o papa. E o
concilio, ainda o ecumenico, é obrigado a
Quando Carlos Magno reuniu um conci obedecer ao papa, do qual, depois de Chris
lio particular de bispos cm França, a pro to, depende a salvação dos fieis.»
nunciar seu juizo sobre Leão iii, ouviu a Agora perguntaremos se estes doutores
seguinte resposta: «Nós não nos atrevemos fallaram assim por mero capricho, e por
a julgar a sé apostólica, que é a cabeça de lisongearem os pontifices romanos. Desco-
todas as igrejas; porque nós todos somos nhcccriam elles o verdadeiro plano da Igre
julgados pela mesma, e pelo seu vigário. ja? Vale mais o que dizem estes doutores
Mas ella por ninguem é julgada, como é do que todos os gallicanos aííerrados ás
antigo costume; antes obedeceremos cano- suas phantasticas liberdades.
nicamente, assim como o determinar o Os adversarios do papado esforçam-se
summo pontifice.* por mostrar todos os sanctos padres a
O concilio de Limoges, celebrado no anno favor da sua opinião. Suam debalde, tor
de 1034, diz expressamente: «A fé romana cendo textos e mutilando phrases. Porém
pertence á igreja universal.» todos os sanctos e doutores da Igreja, des
Que responderam a isto os que nos ci de o século xiv por diante, unanimemento
tam a França, como adversaria em todos e cm termos os mais claros faliam do su
os tempos do supremo papado? Que dirão premo poder e authoridade do papa na
os defensores das liberdades gallicanas? Igreja; e o que é mais notável é que não
Porém vamos entretanto vendo o que nos houvesse um unico sancto que não obede
diz a historia. cesse cegamente ao pontifice romano, como
No concilio de Calcedonia (Act. l.°) fal- se fosse o mesmo Jesus Christo. E até ao
lando-se de Dioscoro, se diz: «Atreveu-se século xiv nunca ninguem contestou a in-
a convocar um concilio sem authoridade fallibilidade do papa, nem tal questão se
da sé apostólica, o que nunca se fez,- nem havia sequer ventilado, mas sempre se creu
é licito fazer-se.» o tribunal do pontifice como o ultimo e su
S. Basilio (Liv. Thesaur), assim se ex perior na Igreja; e logo que se começou a
prime: «Só ao romano pontifice pertence ferir o throno apostolico, foi então que os
reprehendor, corrigir, determinar, dispor, theologos pozeram as cousas na devida or
ligar c desligar, em logar d’aquelle que o dem, tractando expressamente do poder pa
edificou, e a nenhum outro, mas só a elle pal. Comtudo não se mostrará um só pa
deu o que é plenamente seu; e todos por dre da Igreja que conteste a suprema au
direito divino lhe curvam a cabeça, e os thoridade do papa, e mesmo a sua infalli-
prelados do mundo lhe obedecem cumo ao bilidade.
mesmo Jesus Christo.»
Será isto também ultram ontanim o? Que
IGR m
Y Il todo o systema dos cismontanos, cuja maior
escoria tem sido a declaração do clero gal
licano em 1682.
Barruel, escriptor franccz, c que nin Principalmcnlc Bossuet esfalfou-sc cm
guem dirá ser exaltado papista, na sua demonstrar que o papa podia errar, mas
obra intitulada—Do papa e dos seus direi vendo-se apertado de todas as partes, disse
tos—põe na maior clareza quaes são os que a promessa da infallibiíidade fora feita
direitos do pontifico romano. á universalidade dos papas, e não a cada
Barruel declara que se não mette na um de per si. Isto só merece o riso, c per
questão da infallibiíidade, mas assevera doe-nos o grande Bossuet. Se assim fosse,
que não ha um só exemplo dc reclamação também poderiamos dizer que a infallibili-
contra as decisões do papa, lallando como dade não fura permittida a cada um dos pa
chefe supremo da Igreja, ou cx-cathedra triarchas dc Lisboa, ou d’outra qualquer ci
(tom. d.°, part. !.*, cap. 5.°, nota.) dade, mas sim á universalidade dos pa
Muito bem. Estamos d’algum modo dc triarchas dc Lisboa, etc., porque não ó pos
accordo. Não digamos que o papa é infal- sível que todos errem.
livel; mas obedeçamos-lhe, e respeitemos os Como estes poderiamos citar uma im-
seus decretos, quando fallar .como pastor e mensidade dc authores francczes, que por
chefe da Igreja. um lado admitliam a suprema authoridade
Barruel cerlamentc queria dizer: não e infallibiíidade do papa, e por outro a mi
dêmos a infallibiíidade ao papa, porque of- navam.
fendemos as nossas liberdades galli canas; Os jansenistas mais aíferrados ao seu sys
mas observemos as suas decisões, tanto cm tema, primeiramente negavam os privilé
dogma como em moral; porque é o sum gios da cadeira de Roma, e depois passa
mo pastor da Igreja, porque ó o seu che ram a negar ate as prerogativas da Igreja.
fe, e em tempo nenhum se reclamou con Elles dizem sim que a Igreja ó infallivel.
tra as suas decisões. Mas entendamo-nos. Essa Igreja não é a
Ora aqui temos um escriptor gallicano, catholica romana, visto que elles minam o
aliás estimavel, por um lado affirmando primado de seu chefe; essa Igreja é a jan-
que não quer fallar ,na infallibiíidade, para senista. É o seu Pantheon. Se quizessemos
não bútír nas suas tão caras liberdades, se apontar factos, poderiamos citar o concilia
bem que suppostas; e por outro lado asse bulo de Pisloia, e o que alli fizeram o:
verando, sem querer, que o papa é infalli- jansenistas.
vel. Eis-aqui porque todos os catholicos de
É elle mesmo que em outra parte diz: vem defender os privilégios dos papas, por
(cap. 4) «Sem Pedro ensinando, como che que minados e destruídos estes, nào fica da
fe dos apostolos, não ha igreja infallivel. Igreja mais que um cadaver inerte e sem
Isto diz tudo. A Igreja é infallivel, é vida.
a mestra, a columna c o firmamento da
verdade. Mas d’onde lhe vem este dom?
Vem-lhe de Pedro, porque sem Pedro não V III
ha Igreja.
Tournely, outro theologo franccz, na sua
obra o Tràctado da Igreja (part. 2.*, quest. Já que tocamos na infallibiíidade do papa,
5.a, art. 3.°) não duvidou dizer ou escrever: não será fóra de proposito demorarmos-nos
«Não se deve dissimular, que em tanto pêso mais alguma cousa sobre esta questão. Dis
de testimunhos, que Bellarmino e outros semos no artigo ív, <jne até o século xiv
reuniram, nós reconhecemos a authorida- não se encontra um só escriptor que negne
de certa, e infallivel da só apostólica, ou da a infallibiíidade dos successores de S. Pe
igreja romana; mas ainda ó mais diííicil dro; então é que começaram alguns a ata
conciliar estes testimunhos com a declara car esta prorogativa, e a questionar a este res
ção do clero gallicano, d a q u a l n à o n o s é peito; e os theologos catholicos, examinan
PERMITTIDO APARTAR.'» do minuciosamente os direitos pontificios,
Que prova isto? Prova que Tournely deram à suprema authoridade do papa na
acreditava tanto como nós na infallibilida- Igreja o nome de infallibiíidade. E não po
de do papa, mas que as leis civis dc Fran dia deixar de ser assim.
ça lh’o nao permittiam. Um poder infallivel na Igreja é absolu-
Grande cegueira! conhecer a verdade, e taipente necessario, como a mesma razão.
não a abraçar, porque lhe não é permitti* manda. Ora sendo o papa uma authorida
dol... Bastava Tournely para desacreditar de suprema, segue-se muitíssimo logica e na-
530 IG R
tu ralm n te que cllc é que tem esse poder homem probo, mas dignos dà má causa, que
infallivel. sustentam.
D’aqui não se pódc fugir. Nós do boa Sc nos citarem Victor i, Marccllino, Li-
vontade concordaremos, que a Igreja anão berio, Zozimo, Vigilio, Honorio, Grcgorio
o papa é infallivel (deixem passar o absur n, como cahidos em erros, nós lhes objccta-
do), sc nos provarem que um corpo sem remos a aulhoridade de S. Leão ix, que go
cabeça obra. falia, auda, pensa e sc go vernou no século xi, depois dos criminados
verna. pontifices. Diz pois clle na sua 5.* carta a
Logo que não fazem isso, digam (porque Pedro de Antiochia: «O Scuhor rogou a
nào lica mal a ninguém, nem alguém 110I-0 Deus que não faltasse a fé sómente de Pe
prohibe), digam que o papa ó infallivel. dro. Esta oração foi tão eflicaz, que ainda
Os cscriptores gallicanos, c alguns leva até hoje não faltou, nem ha de faltar a fé
dos da sua aulhoridade, sào os que mais de Pedro no seu throno até o fim do mun
teein contestado no papa a infallibilidadc nas do.»
suas decisões dogmaticas: levaram esta E sc esta aulhoridade não c suflicicntc,
qucstào a um ponto muito alto, c fizeram ouçam o que diz S. Grcgorio vii (liv. 8.
com ella grande bulha. ep. l.° ao arceb. Simand): «Na igreja ro
Sc analysarmos com reflexão os argu mana, fundada cm S. Pedro, não se conhece
mentos. d'elles, veremos que o que mais haver governado nenhum herege, nem ja
lhes custava a deixarem passar, era este mais ha de governar, porque o’ Senhor as
nome de infallibilidade na pessoa do papa. sim o prometteu, quando disse a S. Pedro:
Aqui fazemos cxcepção dos jansenistas, —Eu roguci por ti, ó Pedro, que não falte
porque esses negam a infallibilidade, c por a tua fc.»•
fim a da Igreja, como se viu na bulla Uni Grcgorio v i i governou no mesmo século
genitus, approvada por toda a Igreja. xi, depois de S. Leão ix.
Yél-os-hemos mostrar que a igreja roma Talvez dirão que estas authoridades são
na é a. mãe de todas as igrejas da terra. suspeitas, porque julgam em causa propria;
Vél-os-hemos provar com argumentos irres mas nós responderemos, que sendo estes
pondíveis a supremacia do papa em toda a dous pontifices varões sanctissimos, não po
Igreja. Vél-os-hemos dizer final mente que as diam querer illudir, negando a verdade da
decisões dogmaticas do papa sempre foram historia.
leis na Igreja; mas dizerem que o papa é Prescindindo porém do seu testimunho,
infallivel nunca. os mesmos protestantes e adversários da
Guardam-se muito bera de. tal palavra. infallibilidade defendem os ditos papas.
Sobretudo Opstract é capcioso n’este pon Libcrio é formalmcnte absolvido pelos
to. Depois de referir as diversas opiniões, Centuriadores de Magdcburgo, e por Natal
que ba sobre esta questão, diz que ainda Alexandre. Gazzaniga prova que elle não
que cilas sc diflcrcnccm na realidade, não cahiu em erro, e que não são suppostosos
se di/Tcrençam nos termos; porque todas seus cscriptos. Honorio é defendido por
afflrmam qtíe o pontifice é infallivel, quan Bossuet e por Natal Alexandre, e sobre os
do define cx-cathedra, e entende ellc por outros papas, o mais que ha é ohicanas e
definir cx-cathedra, definir com o consen caviIlações, mais ou menos ridiculas.
timento do concilio geral, ou de toda a Nós ‘dizemos, que o papa é infallivel,
Igreja. quando define ex-cathedra, ou como sum
De sorte que assim qualquer bispo é in mo pontifice pastor da Igreja, tomando a
fallivel. plenitude do poder. E por ventura esses
Mas nós perguntaríamos a Opstract, se pontifices, que se dizem ter errado, falla-
por ventura a Igreja póde deixar de estar ram sem contradicção cx-cathedra? Por
com o papa, quando clle define como seu ventura a sua decisão tem sido dada livre
pastor, tomando a plenitude do poder. Se mente por todos, e como obrigatória a toda
ria ufn phenomenc que se não tem visto a Igreja? Se os concilios, ainda ecumênicos,
em dezenove séculos. podem errar em cousas dogmaticas, c ató
Nós aqui não tractamos de averiguar se nas dogmaticas quando não obrem livre
os romanos pontifices teem sido infallivcis mente, como confessam os adversarios, para
de factd; porque isto está provado mais que se ha de elevar a infallibilidade do pa
claro que a luz do dia. pa a um ponto, que está fóra da'sua pro
Os adversarios cansam-se em provar que vincia?
alguns teem com effeito cahido em errp; Repetimos: a infallibilidadc de facto esta
mas para o fazerem teem chicanado, cavil- tão provada como a luz do sol.
lado e usado de todos os meios, indignos do O direito não se póde negar, sem destruir
IGR 531
■a Igreja c o seu plano, sem riscar os tcsli- Porém nào é verdade que toda a França
immlios dos concilios o dos sanctos padres, siga a opinião contraria.
e som contradizer a mesma verdade e razão. O clero francez, no concilio de Paris do
O concilio i i de Lalrào, c xi geral, diz anno de 1G2G, diz formalmcnte: «O papa é
expressamente: «Na igreja de Roma lia al successor de S. Pedro, sobre quem Jesus
guma cousa de singular, porque nào póde Christo fundou a Igreja, quando lhe deixou
haver recurso a superior.» as chaves do reino dos céos, c o dom da in-
Ora o poder superior na Igreja deve ne fallibilidadc nas cousas de fé, que se tem
cessariamente ser infallivel. visto durar immulavcl cm seus successo
Origenes diz: «Se o inferno prevalecesse res até os nossos dias.»
contra Pedro, também .prevalecería contra O rnais exaltado nUramonlano não diria
a Igreja, porque cila está fundada sobre mais do que cs-e concilio de França, cele
Pedro.» Mas o inferno nào prevalece con brado só 50 annos antes daquelle cm que
tra a Igreja, porque S. Paulo expressamen- a França adopíou opinião contraria. Tão
tc lhe chama columna da verdade; logo depressa se esqueceu da doutrina dos seus
também nào prevalecerá contra Pedro, e maiores!...
por isso contra o papa, seu successor nos Adverte Raynaldo, cscriptor francez (de
privilégios. Rom. Pontif.),’que todos os theologos fran-
S. Thomaz diz: «Que a igreja universal cezes, anteriores ao concilio de Constanea
nào pode errar, porque S. Pedro também c de Bazilca, unanimemente ensinavam que
mão pode errar, segundo a promessa de Je as definições pontificias, ainda fóra do con
sus Christo. , cilio, faziam dogma de fé.
O concilio de Nicea (canon 18), diz: «To Nauclero aflirma que a faculdade de Pa
dos os bispos devem nas coutas mais gra ris, no anno de 1320, condemnára como he
ves appellar para a sé apostólica, a cuja dis réticos os artigos de Marsilco de Padua, que
posição a antiga authoridadc dos apostolos dizia: «Que o romano pontifice era fallivel.»
reservou todas as cousas maiores.» Duval, também francez, diz que a mes
S. Leão ix, na sua carta a Leão Acridano, ma faculdade condemnára como herege
cap. 31, diz: «Pedro e os seus successores Marco Antonio de Dominis, porque ensina
leem juizo livre de toda a Igreja.» va que a authoridadc do papa era fallivel.
S. thom az diz: «O concilio só póde ser Finalmentc Barruel, que escreveu em
•congregado pelo papa, e lhe confirma a sua 1801, diz que quando os bispos estão reu
decisão, c do concilio 'se appella para o pa nidos, c ahi nào está Pedro, ahi nào está
pa.» Diz cm outra parle contra os impu- Igreja. Que se deverá pois dizer da doi
gnadores da religião: «Os sanctos padres, trina gallicana do anno de 1682?
Congregados cm concilios, nada podem de Uma unica cousa: que é uma doutrin
terminar sem intervir a authoridadc do nova, inaudita, e desconhecida a todaaan
pontifice romano.» tiguidade.
Nicolau (epist. 7), assim escreveu: «Nos Que se deverá dizer de Bossuct, Fleury,
concilios geraes que cousa se tem por vá Dupin c Vigor, que com todas as veras a
lida senão o que a sé de Pedro approvou? defendem? Que estes escriptores, apesar de
E assim pelo contrario só o que elle repro recommendaveis, se illudiram redondamen
vou, só isto mesmo consta que até aqui é te em materia tão importante.
reprovado.» Que se deverá pensar das liberdades da
Por todos estes testimunhos se prova a igreja gallicana? Que são phantasticas e fal
crença geral e antiga de que o papa é in- sas, e que merecem antes o nome de es-
faliivcl como authoridado suprema na Igre eravidòes, como se vô pelo que diz Tour-
ja. Que o papa tem a supremacia do poder nely.
c que o seu governo é monarchico, confes Assentemos, pois, que os decretos do pa
sa-o o mésmo Gerson, ainda que adversario pa foram sempre leis na Igreja (o que o
da infallibilidade, porque nào duvidou es mesmo Bossuct confessa): que nunca nin
crever: «Que era herege quem cresse o guem reclamou contra a sua decisão ex
contrario, pois Christo não instituiu na eathedra (como diz o mesmo Bossuet), e que
Igreja outra politica além da monarchica.» por conseguinte o papa é infallivel.
Opstract também diz que a doutrina da
infallibilidade no seu tempo era commum
fóra de França cm todas as academias, or IX
dens religiosas c escriptores ecclesiasticos.
•|Dc Loc. Thcol. Dissert. 5.a, quest. 4.», G. Sancto Agostinho define a Igreja. «É o
in, n. 5.) povo fiel espalhado por todo o inundo (De
532 IGR
Cathcch. and. cap. 3.*)» Argumentava com Jesus Christo, depois de nos mandar rc-
os donatistas. Eslcs 1)eroges do quarto prehender o irmão que pecca, manda que
século circumscrcviatn a Igreja no circu avisemos a Igreja (Dic Ecclesia;); e so clle
lo da Africa, e por isso o sancto doutor, a nao ouvir, seja tido como um pagão- nós
omittindo outras propriedades da igreja, vos responderemos, com S. João Chrysos-
.quiz-lhcs mostrar que a Igreja unica ver tomo (Uomil. 61, a S. Matheus), que a pa
dadeira nào sc incluia só na Africa, mas lavra igreja, ifestc Jogar, nào designa o
que sc devia encontrar em todos os Joga concilio geral ou outro poder separado do
res do universo. papa, mas sim o mesmo que preside na
Dizia a verdade Sancto Agostinho. Igreja.
Mas esta Igreja será a columna e o fir Sejamos claros. Sobre este ponto não
mamento da verdade, dc quo falia S. Paulo? devem haver meias palavras. Quando o
Terá o poder dc legislar, dc ensinar o do papa falia, é necessário ouvir o seu orá
gma c a moral, e de governar esse povo culo; porque o papa, mesmo como pessoa
fiel espalhado por todo o mundo? Seria o particular, merece mais altenção que ou
maior 'absurdo e conlra-sènso. Entào a tro qualquer cscriptor, por minto erudita
fôrma do governo da Igreja seria repu que seja, segundo diz o mesmo S. Thomaz
blicana ou democrática, c nós já provamos (Quod. I. 10, ar. C.) Mas quando cllc falia
que era monarchica com Gerson. como summo pontifice, querendo obrigar
A palavra igreja, na sua aceepção ety toda a Igreja, a unica resposta dos chris
mologica, quer dizer multidão, sociedade, tàos é esta: Pedro faltou— eis-aqui a voz
ou ajuntamento para um fim, que. no sen de Pedro—anathema a quem sentir o con-
tido em que falíamos, c um fim religioso. traijo.
Ê pois a Igreja uma sociedade de homens Sobre esta materia é digno de mcncio- '
ligados para um fim religioso ou espiritual. nar-se o facto de Fénélon. Este grande ho
Dai a esta sociedade todos os poderes. mem havia defendido o quietismo, ou falso
Confiai a todos os seus membros a supre- mysticismo, na sua obra intitulada Lcs Ma-
nacia da jurisdiceao. Concedei-lhe o dom ximes des Saintes. Bossuet, prelado sabio e
a infallibilidade. * das melhores intenções, tocou a rebate cou-
Mas tornai-me a dizer: será esta socie- tra tão pestifera doutrina, c levou a causa
ade a igreja que S. Paulo .chama firma á decisão do summo pastor da Igreja. In-
mento da verdade? Gosaram todos os fieis noecncio xw, examinando minucíosamente
christàos da authoridadc monarchica que o livro do Fénélon, condemnou-o, pondo-o
S. Thomaz e Gerson dizem residir na Igre no indico dos livros prohibidos. E que fa
ja? Seria uma contradicção nos termos ria ueste caso o grande arcebispo dc Cam-
porque se nào compadece com a fôrma bray, o immortal author do Telemaco? So-
monarchica. phismaria defendendo a sua causa? Ouvi a
Ouvi agora a S. Cypriano (Epist. 69 a resposta da bôcca do proprio Fénélon: «O
Florenc. Papian.): summo pontifico fallou; a discussão é pro-
«A Igreja, diz cllc, é o povo unido ao sa hibida aos bispos, que devem reconhecer e
cerdote. e o rebanho obediente cm tudo acceitar o decreto pura e simplesmente.»
ao seu pastor.» , Porém clle ainda fez mais. Subiu ao pul
Paliava com um scismatico, e por isso pito da igreja, leu. a bulla do pontifice, e
lhe disse que sc ellc queria estar na Igreja, revogou publicamcntc os seus erros, sub
devia obedecer ao pastor, porque sem ellc screvendo em tudo c por tudo ao decreto
nào ha igreja. pontificio. Grande e raro exemplo de hu
Deve pois a igreja ter uma só cabeça, e mildade e obediência!
um só pastor. Reunindo agora estas duas Oxalá quellossuet o imitasse quando In-
definições, concluiremos que a supremacia nocencio xr proscreveu os quatro artigos
o a infallibilidade do poder residem no do clero gallicano, lavrados cm 1682! «Mas-
summo pontifice, como cabeça da Igreja, tão longe esteve d’isso, que antes trabalhou
porque sem clle nào ha verdadeira igreja. de noite c de dia em defender essas sup-
. Separai um individuo, uma provincia, postas liberdades.»
ou uma naçào, da obediência ao papa, te Sempre em todos os tempos se reconhe
reis o que se chama scisma; c os scismati- ceu a authoridadc do papa como necessa
v cos (corho lambem confessam os adversa- ria para as decisões do fc, e ainda de dis
riòé) sãò excluídos do gremio da Igreja, ciplina. Qual foi a razão porque Jansenio-
E 9ò vós querendo fazer alguma distinc- sujeitou o livro Augustinus ao juizo do
câo bníré o papa e a Igreja nos objectar summo pontifice?
des aquelle texto dc S. Matheus, cm que I*íão podemos saber o que faria Jansenior
IGR m
se fosse vivo, no caso de ser condcmnada Pertence o posto avançado aos hereges,
a sua obra; mas o que é verdade é que os muitos dos quacs negaram toda a sorte de
seus sectários chicanaram e sophismaram authoridade.
para defender o seu partido. Não só negaram o sacramento da or
Sancto Anselmo sujeitou o seu livro de dem, e o poder que cllc confere aos ungi
fidr. Trinitatis ao juizo de Urbano u. San dos do Senhor para contituil-os chefes do
cto Agostinho sujeitou as suas obras con povo chrislào, mas teem de mais d’isso af-
tra os pclagianos a S. Bonifácio i. Phocio, iinnado que o proprio poder secular, além
até o herege c scismatico Phocio,' submet- de não porvir de Deus, até é mau, de sua
teu os seus escriptos á censura de S. Ni- natureza.
colau i. S. Juliào, bispo de Toledo, sujeitou Apparcccram depois os politicos, como
a sua apologia contra os detractores do sex Biclfed. Watcl, de Real, Bentbam, Richer,
to concilio geral, ao exame de S. Bento 11. e outros muitos, a varios dos quacs. pare
Mas o que dá um córle na questão, são as ceu melhor que o principe reunisse na sua
proprias palavras que deixou cscriptas o pessoa os poderes espiritual e temporal, ou
abbade Joaquim, que depois foi condemna ecclesiastico e civil; julgando perigosissima
bo com as suas obras, por Innoconcio 11. cousa que o governo laical admittisse os
Eil-as aqui: «Rogo da parle de Deus, a to canones ou leis do poder ecclesiastico; para
dos os meus eo-abbadcs c priores, e man não fazer assim nascer um imperio dentro
do, pela authoridade que tenho, que apre d’outro imperio, e opinando ainda outros
sentem este escripto ao exame apostolieo, que o principe, que não reprimisse corajo
c recebam da mesma sé a rcprchensào, samente a distineção dos dous poderes,
condemnando o que cila condcmnar, e jamais teria seguro o dominio dos seus po
abraçando o que eíla abraçar. vos.
Perguntaremos ainda. Qual a razão por Vieram ernfim os regalisias, que osten
que olTercciam as suas obras ao juizo do tando grande zelo de suster a gloria c a
papa, e não ao d’outro qualquer bispo? estabilidade dos thronos, insinuaram aos
ISTão seria porque reputavam o papa principes a reivindicação dos direitos d
como superior nas decisões de fé c de ino- soberania, usurpados pelo sacerdócio: pr
ral?... curaram restringir a authoridade da Jgrc
Concluamos, pois, que o papa gosa da sómente ao espiritual, interno, e invisiví
supremacia na Igreja, porque os fastos da e estabeleceram, por principio indubitav»
mesma Igreja, os sanctos padres, c os ca que as constituições dogmaticas, e rnuit
nones,- assim o mostram; e nós devemos mais as disciplinares, deviam ser submet-
julgar do que c o papa, pelas accies da tidas ao exame dos juizes seculares; idéias
Igreja, pelos padres, c pelos canones, como estas de que estão cheios os livros do Sar-
testifica o jansenista Pascal. pé. a pessima obra de Febronio, a Historia
Concluamos que o tribunal do papa é o Civil de Giannove, c os diversos escriptos
ultimo tribunal da Igreja, e d’ellc não se de seus condiscipulos c sectarios.
póde appellar sem se destruir a unidade Mas não é assim: nenhuus d’esscs dis
da Igreja, como prova o protestante Mo- correram accrtadamentc: perderam-se no
sheim. labyrintho dos desvarios a que a sua indi
Concluamos, finalmcnte, que o papa e a vidual razão os conduzira sem o providen
Igreja é todo um, como disse o grande. S. te fio' da verdadeira crença, que d’alli os
Francisco de Salles. salvasse: não levantaram" os olhos á luz
clara do céo,quc os esclarecesse: guiaram-
se por lumes latuos da terra, que os illu-
ii * diram.
Entrando, pois, no assumpto, farei con
A Igreja e o.império ó livre e independente? siderar a meus leitores que assim como no
principio crcouüeus o homem, c para este
céos c terra, os animaes c as plantas, as
Entre todas as controvérsias de que sim também crcou, em utilidade do mes
mais depende immediatainentc a felicidade mo homem, dous poderes essenciahnente
da Igreja e do estado, tem um dos primei distinctos, mas conducentes um c outro á
ros legares essa que na epigraphc se dei felicidade do genero humano; limitando-se
xa indicada. porém um aos actos necessarios para o
Trcs classes d,e adversarios teem comba bem-estar d’esta vida passageira o breve,
tido n’c$tc campo, do lado da opposicào e emquanto que o outro se esforça por asse
do erro. ' gurar, pelo modo dc eonduzir-*se cá n’este
334 IGR
mundo, a felicidade da vida futura e eterna. entre si, livres c independentes um do ou
E não sc duvida que foi Deus que crcou tro, como se vò da sua privativa natureza,
esses dous poderes; porque se Deus é o e dos encargos de que são investidos.
author das mil necessidades a que o ho Por quanto, já que o poder politico deve
mem é sujeito; sc Deus é o author das in presidir soberanamente á ordem civil, com
clinações naturaes do coração humano; se prehendendo por isso todas as authorida-
elle é o author dos meios que tem o ho des, que são essenciaes á boa administra
mem de fazer entender-sc pelos outros, e ção pública, o direito de organisar leis e
de entendel-os também; sc é elle o author fazel-as observar, de nomear os seus em
de todas essas irresistíveis tendências do pregados públicos, decidir da paz c da
mesmo homem para sc reunir cm corpo guerra, impor penas ou dispensal-as e dar
social, que não pôde existir e conservar-se as recompensas, lançai tributos, fiscalisar
sem cabeça d’onde provenha o systema e as rendas públicas, bater moeda, e fazer
direcção do movimento, c sem ministros outras cousas analogas; assim também o
que appliqucm os priucipios estabelecidos poder ecclesiastico, sendo emanado immc-
pára a existência e commodo da sociedade, diatamente de Deus, como o politico, e ten
porque onde não ha quem governe, cahirá do a presidir á ordem espiritual ou reli
o povo em ruina (Proverb. 11 e Vi)] sc é o giosa, deve por isso regular-sc pelos mes
author d’essas intimas aspirações do ho mos princípios que constituem os direitos-
mem ao guso do summo bem, com que da soberania, pertencendo-lhe portanto a
fundamento sc dirá que só não é Deus o publicação da doutrina e sua interpretação,
author do remedio a tantas necessidades e a administração dos sacramentos, a organi-
objecto a tantas inclinações (o corpo so saçào dos canones ou Icis ecclesiasticas so
cial), c dos meios aptos (os dous poderes) bre tudo o que diz respeito á disciplina da
para obter os desejados e justos fins? Igreja, distribuição de graças, impor pe
Estes dous poderes são tão indispensá nas, constituir ministros; etc.; bem como c
veis na sociedade humana, por necessidade ponto inconcusso entre christãos orthodo
e natureza, que não podem portanto dei- xos, que nas materias mixtas devem con
ar de ser formados pelo proprio author correr igualmente os dous poderes sobera
Ja mesma natureza. nos, a fim de que, diz, cm 1736, M. Beau-
E com efTeito se é elle quem diz no men mont, arcebispo de Paris, na sua pastoral
cionado livro dos provérbios que por elle sobre a authoridade da Igreja, os inte
reinam os imperantes, e os principes go resses internos do homem não sejam por
vernam (8,13); affirmando pela bõcca de modo algum espesinhados pelos interesses
Daniel que é elle quem dá o reino e o im (Tuma vida passageira e fugaz.
perio (2, 37), c que o dá a quem muito lhe Dada, pois, tanta distancia entre os en
parece (4, 22); e accrescentando, por ex cargos que Deus impozera ás authoridades
pressão de S. Paulo, que nào ha poder que seculares, c os que elle mesmo tem con
d’elle não provenha, de modo que todo fiado aos ministros da. sua igreja, bem se
aquellc que resiste ao poder, resiste á sua discerne a sua essencial diversidade, que-
ordenação, porque os principes são seus Schmidt, nas instituições de direi,to eccle
ministros (a Rom. 13.°, 1 e seg.): é elle siastico germânico, classifica do indubita-
mesmo também, que na pessoa de Jesus vel entre todos os catholicos: c n’cssa con
Christo, disse aos apostolos, encarregan formidade, dizia um grande jurisconsulto,,
do-os da sua missão, que assim como seu o publicista Domat, que todos os estados
Eterno Pae o tinha mandado, assim elle em que se professa a verdadeira religião,
os mandara também (S. João, 11, 21); rc- são governados por duas sortes de pode
commendando mais adiante aos bispos, por res, o espiritual e o temporal, os quaes
lingua igualmentc do apostolo das gentes, tem Deus estabelecido para regular-lhes a
a guarda do rebanho, sobre o qual foram ordem pública, e cujas attribufeoes, de um
constituídos pelo Espirito Sancto para go c outro, accrescenta o arcebispo de Bour-
vernarem a sua igreja (Act. 20, 28). gesno seu discurso, pronunciado em nome
Corntudo estes dous poderes, ecclesias do clero, na assembléia de 1763, estão bein
tico e secular ou civil, posto que prove separadas e distinctas.
nham da mesma origem, qual é o Crca- Deverá porém advertir-se que não é por
dor, e se destinem ao mesmo fim, isto é, á que os objectos ,sejam interiores ou exte
Telicidade da creatura temporal ou eterna, riores, nein pela iníluoncia indirecta que
o ambos sejam exercidos pelos proprios elles possam ler sobre um ou outro do*
homens, para cuja utilidade foram crea- dous governos, que se determinará a na
dos, são todavia esscncialmcnte distinctos tureza das materias temporãos e espin-
IGR 535
tuaes, c fixará a competência dos dous po d’ellcs, como pelos seus meios, e pelos es-
deres: ambos elics teem espiritualidades e pcciaes fins a que um e outro sc propoem.
exterioridades, c ambos teem reciproca in Não é nova esta distineção: a maior par
fluencia na boa ordem um do outro, mas te das naçòes, desde remotissimos tempos,
não sc segue por isso que um deva ser tem acordado n’ella; sendo notável o res
absorvido pelo outro. peito c consideração que não só os egy-
Mais claro. pcios, mas também os antigos romanos
Todo o culto público da religião é exte professavam para com o poder sacerdotal:
rior; todas as funeções do sacerdócio, diz nem se ignora que na mesma lei antiga
um sabio cscriptor, todos os objectos que entre os hebreus houvera uma tribu pri
mais irrefragavelmente estão na ordem das vativamente separada por Deus para o
cousas espirituaes, como o ensino da dou exercício das funeções do sacerdócio com
trina e os sacramentos, são exteriores: além um summo pontifice c syncdrio, investidos
d’isto toda a religião, o parlicularmontc a de grandissimo poder.
confissão auricular, a pregação do Evange Na lei da graça, que é mais perfeita que
lho, e a ordenação dos pontifices, interes a lei antiga, mais perfeitamente também
sam e influem iia civil sociedade. E dir- sc acha estabelecida c regulada esta dis
se-lia, por isso, que todas estas cousas, tineção entre os dous poderes, ainda que
pela sua influencia c pela sua exterio- soplíismada muitas vezes pela força: e o
ridade, entram na competência do poder Christianismo considerou sempre com hor
civil? ror a temeridade d^quellcs imperantes que
Por outra parte, a obediência e a justi se tornaram invasores do poder ecclesias
ça, emquanto dizem respeito á consciência, tico; nem a Igreja deixou jámais de os re
são cousas espirituaes, que todavia entram bater e fulminar, sem consentir ou tolerar
nos direitos do poder secular, o qual sc se nunca sirnilhanle irregularidade, posto que
limitasse sómente ás exteriores matcriali- forçadamente se visse algumas vezes obri
dades, não teria dominio algum nas con gada a sofirer as insolências de extravia
sciências, e as suas leis ou mandados, ain dos ou rebeldes filhos.
da os mais justos, poderíam licitamente ser O enotico de Zcuão, o ectesi de Ileraclà
transgredidos contra o que rccommcndou o o typo de Constante, o inierim de Carlos
apostolo, mandando obedecer não só por reprovados pelos pontifices e pelos conc
evitar o castigo, mas propter conscientiam; lios, são exemplos, além de outros muite
não sendo menos certo que a boa ordem que podiam adduzir-se, de como a Igreji
na administração c governo temporal do tem sido solicita e invariável na repulsa
estado influe grandemente sobre os costu das invasões contra o seu poder.
mes dos povos, e até sobre o mesmo go Nos nossos dias mesmo temos visto com
verno ecclesiastico. quanta amargura o summo pontifice. Grc- '
E com tudo poderá crér-se que essa es gorio xvi lamentára diversas vezes era con
piritualidade, e essa influencia décm á sistorio dos seus cardeaes, com todos os ca
Igreja o direito sobre a temporal adminis racteres da mais solcmne reprovação, os
tração pública dos reinos e dos impérios? excessos do governo do imperador D. Pedro,
Certamente não, em um c outro caso. e mais alguns, practicados íVcstc nosso
São bem diversos e distinctos entre si os Portugal contra o poder ecclesiastico, e
dous poderes da Igreja c do estado, tendo liberdade e independencia da Igreja, lem
cada um direitos que lhe são proprios e brando-lhes as censuras e penas em que
privativos, independentemente um do ou estavam incursos os invasores.
tro. E não eram sómente os pontifices e os
A confusão dos dous poderés foi positiva concilios, que levantavam a voz contra o
c expressamente banida por Jesus Christo, poder civil a reprovar o seu anti-religioso
uando mandou dar a Ccsar o que era de e usurpador procedimento; entre os mes
S esar, e a.Deus o que era de Deus. mos bispos apparcceram varões intrepidos,
que longe de chamarem sobre si a igno
miniosa expressão canes m uti do Evange
§ II lho, não receavam fazer ouvir também as
suas vozes na defesa da soberania, inde
pendencia e liberdade ecclesiastica.
São bem distinctos um do outro, como Eis ahi como ao imperador Constancio,
na primeira parte seNmostrou, os dous fautor do arianismo, fallava Osio, bispo de
poderes ecclesiastico, e civil, assim pela Cordova, que bem poderia servir de mo-
natureza ou indole propria de cada um dello a muitos d’hoje:
«Não te intromcltas, dizia o illustre bis Sc aquelle que não póde fazer 0 mesmo,
po, nas cousas ecclesiasticas, nem queiras não póde fazer 0 mais, como pretenderá
dar-nos regras sobre este assumpto, por regular 0 culto c 0 poder espiritual 0 sobe
que de nós 6 que tu deves aprendel-as. A rano que não é habil para exerccl-o?
ti te entregou Deus o imçerio, a nós con Como c que sendo a fé immutavcl, c
fiou-nos o que pertence á Igreja; e assim eterno 0 Evangelho, poderão estas cousas
como aquelles que desobedecem ao teu ser sujeitas á volubilidade dos governos
mando, contradizem a ordenação divina, temporãos, c ás intrigas das suas cortes?
assim tu, acautela-te de arrogar-tc o que é Então c que os subditos, advertindo 0
da competência da Igreja, para que te não governo que não se regula pelos solidos
tornes culpado de um grande crime...» princípios da religião, facilmente se per
Se Iodos os bispos fossem Osios, não se suadem que clle não tem religião alguma,
atreveríam os governos seculares a tantos posto que muito falle n’ella; e é n’esse ca
excessos como, animados pelo silencio c so, c nao no imaginado petos, regalistas e
até connivencia talvez de alguns d’aquclles, revolucionários, que poderíam sobrevir ao
estão continuamente practicando contra a estado aquelles perigos, c os que costu
independência do poder ecclesiastico. mam ser consequência ordinaria de tal
Não temam, porém, os soberanos tem- persuasão.
poraes que a distineção dos dous poderes Nem seria menor ainda 0 perigo de ou
lhes torne vacillantes os seus thronos: é tra estratégia, que alguns governos leem
esse um terror panico, ó um dos muitos feito pôr cm execução para obterem os
prejuízos que os regalistas e todos os re seus fins, isto é, formarem um clero com
volucionários teem procurado metter na ca posto da gente privativamente sua no modo
beça aos imperantes, para melhor comba de pensar e na dependenda; c ahi ficaria
terem por este modo a Igreja, destruírem 0 poder ecclesiastico á disposição do go
a religião, c cavarem a sepultura dos mes verno para fazer tudo ú que este quizesse.
mos imperantes, que tiverem a sancta sim Mas 0 prestigio da authoridade espiritual
plicidade, ou a ambiciosa malicia de at- teria então acabado, e aconteceria como
f.endel-os, comò por desgraça houve e ha no tempo de Philippe de Macedonia, que
linda. propondo-sc corromper os oráculos para
A distineção e a independência dos dous que vaticinassem a seu geito, ninguém
poderes, ao contrario do que dizem aquel mais 0 acreditou, porque philippisdvam,
les aduladores ou falsos amigos dos impe dizia 0 povo idolatra: c 0 mesmo poderia
rantes, ajuda a consolidar o throno secu 0 povo christão dizer agora d’aquelles bis
lar; sustenta admiravelmente a sua estabi pos que, antepondo a condição dos subditos
lidade e o seu florescimento, como aconte do governo á preclara qualidade de prin
ce n’aquellcs reinos em que se observa, cipes da Igreja, annuissem aos ambiciosos
por inviolável principio de direito, uma tal excessos, e irreligiosidades do poder secu
distineção. lar «pedrisam, v. gr., rainhisam, govenii-
Se o poder da Igreja dimana de Deus (9 sam, não crémos n elles, porque não evan-
que nenhum bom christão duvida), poderá gelisam.»
clle deixar de produzir bens a quem 0 re E eis ahi, na invasão e confusão dos po
conhece, e se lhe submelte, sendo, como c, deres ecclesiastico e civil, um dos maiores
certo que infallivelmente merecerá as bên males contra a religião; e não menos gra
çãos do Altíssimo todo aquello que procu ve contra a boa ordem e tranquillidade da
ra cumprir a sua divina vontade? Igreja, que talvez contra a do proprio es
Se 0 soberano deseja experimentar as tado.
vantagens da religião, não deverá ser 0
primeiro a crér n’ella, c a honral-a? Ou
terá a simplicidade de pcrsuadir-sejle que § III
vendo os subditos que clle a não_ res
peita como instituição divina, deixarão de
seguir 0 seii exemplo, e continuarão a fa Placuit nobis: assim nos agradou. (Act.,
zer caso d’aquellas doutrinas da mesma cap. 15, v. 25.) Tal é a magestade da sobe
religião, que os obrigam a obedecer ás rania com que a Igreja na pessoa do prin
authoridades constituídas? cipe dos apostolos, S. Pedro, e de seus com
Quando 0 soberano temporal acredita na panheiros no sagrado ministerio, reunidos
religião d’uma authoridade divina, como em assembléia, profere 0 seu juizo sobre
pdderá elle pretender que .ella seja sujeita as sublevações que faziam 0 objecto da re
á sua humana? união.
IGR 537
A Igreja não vai supplicante pedir a remos, sim, dous estados, mas de differen
aulhorisação do poder secular, nem mes te genero; cada um dos quaes tem seus li
m o consultar o seu voto sobre os assum mites, que não póde ultrapassar sem offen
ptos religiosos que alli se discutiam: cila sa do Creador, c sem transgressão dos mais
lirma-sc na propria authoridade, robuste- sagrados direitos da religião e da humani
cida com o inlluxo do divino espirito que dade: estados estes ou poderes, que longe
lhe dieta os conceitos—porque, diz cila, as de sc hostilisarem c destruírem, antes ad
sim pareceu ao Espirito Sancto, c a nós: miravelmente se coadjuvam e sustentam.
visum est enim Spiritui Sancto, cl nobis Além de que, tão longe está a Igreja de
<v. 28.) poder ser comprchendida no referido sys
E tractava-se de objectos muito visiveis tema collcgial dos protestantes c seus se-
c corporeos, como eram cousas de que se quazes, quanto que , cila tc universal, não
ria ou não seria licito alimentar os corpos; reconhecendo n’estc munclo outros limites
pois que a Igreja é visivel, c visivel, como territoriaes que os do orbe terráqueo, de
já foi notado, é também necessariamente o pois que Jesus Christo dissera a seus apos
seu governo e administração; não podendo tolos:
dar-se maior absurdo que aqucllc dos que «Foi-me dado todo o poder no céo e na
suppozeram que á Igreja só pertencia o terra: ide portanto, instrui todas as gentes,
regimen dos espíritos; bem como não ha baplisando-as em nome do Padre, do Filho
vería cousa mais estulta do que dizer-se e do Espirito Sancto, ensinando-lhes a ob
que só nos corpos imperam as leis civis. servar tudo aquillo que vos ordenei.»
Mas não é só que o governo da Igreja Demais, o collegio no sentido dos pro
verse também sobre cousas visiveis, abran testantes, em que aqui é tomada a palavra,
gendo assim os corpos c os espíritos, é da limitar-se-ia a uma cidade ou provincia, c
mesma sorte evidente que o seu governo, quando muito a um reino ou império, para
tanto sobre os objectos corporacs como es- poder dar-se a protestantes sujeição ao so
pirituaes, não. está na razão de collegio, berano: mas a indole da Igreja não soffre
porém sim na razão de republica, ou me a eslreiteza dos logarcs c dos territórios;
lhor annunciado, de monarchia, distincta ella abrange no seu direito todos os povos
da civil, com poder governativo, jury pro e todos os paizes do universo.
prio et summo. O collegio não póde constituir-se c jun
O systema collcgial ou de sociedade igual, tar-se sem authorisação do poder civil;
de que alguns protestantes quizeram ulti mas a Igreja é constituída e confirmada,
mamente derivar os chamados por elles di apesar mesmo e contra a vontade dos so
reitos collegiaes e os magestaticos, atlri- beranos ou governos temporaes, devendo
buindo aquclles á Igreja como a collegio primeiro obedccer-sc a Deus que aos ho
igual, c estes, aos principes como a patro mens.
nos dos collcgios c associações que estão O collegio dissolvc-sc quando occorram
em seus territórios, é outro não menor ab circumstandas pelas quaes se julgue con
surdo. veniente a dissolução: mas a Igreja cm ne
Para sustental-o disseram os protestan nhumas circumstandas, nem as mais dif-
tes, que tendo a Igreja nascido depois de ficcis ou imperiosas, deve ser dissolvida ou
formadas as cidades e constituídos os go aniquilada.
vernos, cujo imperio é supremo, seguia-se Nem com a razão dos collegios da ideia
que d’alli devia depender a mesma Igreja, protestante sc deve confundir a razão das
e que por isso não podia ter' outra consi nacionalidades, em cujo sentido se diz mui
deração mais que a do collegio, para que tas vezes: v. g. igreja lusitana, igreja hes-
não hajam na mesma sociedade dous sum panhola, igreja gallicana, etc., ou a dos di
mos impérios—status in statu, d’onde re versos ritos cèremoniaes porque se distin
sultaria uma grande confusão de cousas c guem algumas porções do catholico reba
a maior perturbação no regimen público: nho, como igreja moronita, igreja cophta,
contra o que, disse Montesquieu (que não igreja armenia, etc., porque tudo isto são
m e parece ser uma authoridade suspeita) partes da inesma unica Igreja, ligadas a
no seu Espirito das leis, linh. 28, cap. 41, cila pelos vínculos de doutrina, sujeição e
que a jurisdicção ecclesiastica desnervára respectivos direitos e obrigações, que as
o poder dos senhores feudaes, e contribuira unem todas em um só corpo moral, e de
com isto a dar força á authoridade real. baixo de um unico chefe supremo, que é
E na verdade sendo tão diversos os meios o bispo de Roma: são como provincias do
de que se servem, e os fins especiaes a que grande e indivisivel imperio da Igreja uni
propoem estes dous summos poderes, te versal.
538 IGR
Aos protestantes do systema collcgial, tanto a destruir o poder civil, que está na
que procuram destruir por este modo o natureza do homem social?
independente e supremo poder espiritual Os dous poderes, diz Loyseau, proceden
da Igreja, se aproximam aquelles que, ado tes do mesmo principio, que é Deus de
ptando as ideiãs de Mornay e Eybcl, con- quem vem todo o poder, e tendentes ao
demnados em Roma, o primeiro por de mesmo fim, que c a felicidade, devera ter
creto de 16 de março de 1621, o segundo uma mutua correspondência. Placido ac-
por decretos de 16 de fevereiro de 1784 c cresccnta que os dous poderes, por isso
28 de novembro de 1786, querem lambem que dimanam immcdiatamenle de Deus
esbulhal-a do poder temporal, que para uti teem cada um em si mesmo a suprema aii-
lidade da mesma Igreja c sua religião, exer thoridade, que convém á sua instituição e
cem os summos pontifices nos estados ro ao seu fim: escrevendo Domat na sua lei
manos. civil, que fôra Deus, na ordem espiritual
jNão se dá contradicção alguma com os da religião, que estabelecera o ministerio
princípios do Christianismo, ou inconve do poder ecclesiastico: que é ellc que na
niente contra o bem da religião em que a ordem temporal da politica faz reinar o s
mesma pessoa exerça simultaneamente um reis c dá aos soberanos tudo o que cllcs
e outro summo poder, se não lhe falta a teem de poder e d’authoridade; d’onde pro
legitima e necessaria habilitação, antes me vém que a religião e a politica, não tendo
lhor c mais completa correspondência po outro principio mais que este commum da
de então dar-se entre os dous summos im divina ordenação, devem accordar-se, e
périos crcados pelo mesmo author divino, mutuamente suster-sc; que os mesmos po
e para o mesmo fim de commum interesse deres são distinctos n o 'seu ministerio, uni
dos homens, por quem e sobre quem são dos no seu fim commum de manter a or
• exercidos. dem o reciprocamente soccorrer-se: por
Dedicarei um artigo especial a este as que, segundo também Bouchel, se estes
sumpto, visto que relativamente ao mesmo dous poderes, espiritual e temporal, conhe
apparecem na imprensa (religiosa!) opi cem um mesmo principio, que é Deus, não
niões com que não posso nem devo confor- podem deixar de ter uma mesma corres
mar-mc. pondência.
Proseguindo pois no discurso sobre a Deveremos porém ter cautela cm não
distineção e independencia dos dçus pode confundir de modo algum a sanclidade
res politico e religioso, como vinha dizendo das instituições divinas com a pravidade
na precedente parte d’este mesmo artigo, das acções humanas.
repetirei que similhante distineção e inde
pendencia não só não é prejudicial ao bom
governo do estado, mas até auxilia mui § IV
tíssimo pela unidade de principio d’um e
outro, e pelo commum interesse dos res
pectivos fins. Se a distineção e a independencia do»
Deus c unico, c as suas obras, posto que dous poderes, ecclesiastico e civil, não fòr
em si distinctas, tendem todas á unidade: vigorosamente repcllida, exclamarão os
e se ellc, como se lé na Escriptura, tem 'politicos e os regalistas no assombro de
creado tudo para si, e se as suas obras, suas apprehensões, vér-se-ha no estado
como igualmentc está cscripto, são perfei uma monstruosidade ou uma utopia, uni
tas e ordenadas, qual outro fim poderão systema impossível ou anarchico, imperio
ter os dous poderes que não seja o proprio in impetio...
Deus? Perdão, apprehensiveis senhores: parc-
Logo, como deixaria o mesmo omnipo- ce-mc que ha toda a razão para estarem a
tente Deus, quando instituiu os dous pode tal respeito mais tranquillos; as monstruo
res, de dar-lhes tal perfeição e tal ordem, sidades e as anarchias não teem appare-
que longe de mutuamente se offenderem, cido na sociedade senão quando a immo-
antes mais depressa servisse cada um á ralidade e as revoluções, mais ou menos
solidez, ao esplendor, e á benefica influen subtis, mais ou menos brutaes, teem inva
cia do outro? dido os thronos e transtornado a ordem pü-
Se Deus é o author da graça, e por isso blica, apoderando-se o mais.forte d’aquiIIo
também o do sacerdócio, produziría ou que lhe não pertence.
querería elle obrar sobre este objecto de Quando os governos e os governados se
uma maneira conducente a destruir a na conteem cada um nos seus limites e cum
tureza de que também é o creador, e por prem com os respectivos deveres, quando
IGR 539
a sociedade civil se não aclia fóra do seu nham tornado facciosos, rebeldes c obsti
estado normal, c melhor ainda se além nados, porque tudo se reduzirá a rcbejliôes
d’isso ella se adianta no progresso da mo c a sediciosos tramas quando a aulhorida-
ral e da justiça, do ulil e honesto, haverão dc da religião seja aniquilada.
sim dous governos distinctos c independen Como fizeram os hereges valdenscs, os al-
tes na mesma sociedade, composta da mes bigenscs, os lulheranos, os calvinistas e ou
ma gente, porém limitados por natureza tros, assim teem feito os modernos incré
propria, um ao regimen religioso c o ou dulos c todos os filiados na maronuria, que
tro ao público c civil, sem que pela sua in emquanto còm uma mão procuram des
dependência c liberdade se hostilisem ou truir o altar, com a outra se esforçam por
destruam um ao outro, antes mutuamente derribar os thronos; attribuindo á ignorân
se corresponderão, seguindo sempre uma cia, diz-nos Ilolbach no systema da natu
marcha de paz e de concordia. reza, todo o fundamento das authoridades,
Então veremos, não um império a sub debaixo das quaes tem gemido, segundo
jugar ou a destruir um outro imperio, mas elles, tão longo tempo o genero humano.
pelo contrario, imperium pro imperio, um E não só é evidente que a communidade
governo auxiliando outro: pois que, se pela do principio e dos interesses obriga os dous
unidade de seu principio se propoem estes povos á mais perfeita concordia, mas a lei
dous poderes, ecclesiastico e politico, a um, mesmo divina lhes impõe o sagrado dever
penso que por ambos desejado fim, qual é d’uma reciproca protecção.
a felicidade temporal e a eterna do genero Por isso cantava o rei propheta no cen
humano: será cousa naturalissima que os tesimo quarto de seus psalmos, como cousa
proprios interesses communs dos mesmos ordenada por Deus—que não se tocasse
dous poderes ou estados os movam e obri nos ungidos do Senhor, bem certo dos cas
guem a obrar concordes, posto que entre tigos que Saul tinha merecido por haver
si distinctos. posto sacrilegas mãos sobre os sacerdotes.
Se não se duvida que a religião seja um A vontade divina c igualmente bem ex
sustentaculo do estado, porque quando ella pressa por toda a sagrada Escriptura, onde
íloresce, floresce também a propriedade são a cada passo encontrados preceitos, que
nacional, se não é menos certo que, quan obrigam a não confundir-se, mas a respei
do o estado é dirigido por sabias leis, quan tar-se de contínuo entre si os dous pode
do é limpo de crimes, quando progride n% res; ordenando-sc alli particularmente no
boa ordem e gosa tranquillidade durável, livro de Zacharias—que cobrisse de gloria,
floresce então melhor a religião, será tam e se sentasse c dominasse sobre o seu thro
bém uma verdade incontestável que o re no o principe temporal, emquanto que o
ciproco interesse dos dous- poderes deva sacerdote estava sentado igualmente so
obrigal-os a cooperar concordcmente para bre o seu throno; que entre os dous hou
o bem temporal e eterno dos seus subditos. vesse um conselho de paz, isto é, de per
Além de que, existe uma lei primitiva, feita concordia e reciproca protecção: do
como discorre Pey (authoridade dos dous mesmo modo que na lei nova entendeu S.
poderes), que nos manda ohedecer áquel- Leão papa, quando escrevia ao imperador,
les que Deus tem estabelecido sobre nós também Leão: «Tu deves reflectir attenta-
etiam dyscolis, accrescenta a lei da graça; mente que o regio poder tc foi dado por
c se essa lei, que não é menos sagrada Deus não só para regular o mundo, mas
quando manda obedecer aos pastores do principalmente para defender a Igreja*: ao
que quando manda obedecer aos princi passo que por outro lado lá está o principe
pes, pôde ser despresada c transgredida dos apostolos ajudando a sustentar o poder
n’aquella parte, na qual submette as ove civil quando na sua primeira epistola en
lhas ao pastor, com que direito deverá ser sina aos fieis a temer a Deus, a respeitar
ella respeitada e cumprida somente na o soberano e seus ministros, a honrar o
submissão ao principe? proximo, estreitando com elle os vinculos
Se ha direito para não obedecer quanto d’uma perfeita fraternidade: subjecti igitur
áquella, porque não haverá igual direito estote, diz elle... propter Deum: sive regi,
para desobedecer quanto a esta? quasi pmcellenti, sive ducibus, tanquam
Eis ahi porque as seitas hereticas. tendo abeo missis... omnes honorate: fralernita-
sacudido a authoridade da Igreja, se revol tem diligite, Deum timete, regum honorifi
taram também contra a do estado: depois cate.
do que, não admira, como observa o illus Ora será este o imperium in imperio que
tro Bossuet, que os povos tenham perdido tanto tem aflcctado as apprehensues dos
o respeito á magestade c ás leis, e se te politicos, dos rcgalistas e dos revoluciona-
m IGR
rios de todos os tempos e de todos os cu São homens odiosos a Deus, c os so
nhos, até ao ponto de se mostrarem per beranos devem ler por inimigos do estado
suadidos de que lá iam todos engolidos taes maledicos c revolucionários, que assim
pefo modesto, pacifico e paternal governo procuram calcar os direitos, c quebrar as
da Igreja? boas relações dos dous poderes; são mir-
rhadas ou séccas accendalhas, que ateiam
o fogo da discordia entre o sacerdócio e o
V império, fingindo querer sustentar com
grande zelo os interesses do throno, c de
sejar ardcnlemente o esplendor da sobera
Embora se diga com o erudito Grócio— nia temporal pelo abatimento da authori-
que na lei natural os paes de familia eram dade da Igreja; mas que na realidade não
ao mesmo tempo também sacerdotes; e que querem senão deprimir arnbos os poderes
havendo transferido ao soberano, que c e fazer cahir um sobre as ruinas do outro,
como pac de toda a nação, a secular au- como a experiência de todos os tempos,
thoridade, com cila lhe transferiram igual- principalmentc das épocas mais recentes,
mente o poder espiritual—que sem ques o tem mostrado.
tionar como isso fosse no Estado primitivo Não deixam igualmente de promover a
do genero humano, ó certo que nem assim escravidão da Igreja todos aquellcs que
foi na lei escripta em que Deus escolheu sem o consenso, ou contra vontade da m es
para o sagrado ministerio a tribu de Levi, ma sancta igreja, chamam ao exame dos
determinando que o sacerdócio ficasse he tribunaos seculares as letras apostólicas,
reditario na familia de Aarào; nem foi tam para que possam ser dadas á execução.
bém assim na lei da graça, na qual os sa E aqui observarei a meus leitores quanto
cerdotes instituídos, segundo a ordem de c perigosa a leitura de maus livros como
Melchisedech, foram, conforme a própria aquellcs que mc induziram no tempo da
vocação, tomados de entre todas as gentes frequência acadêmica de Coimbra a avan
para‘serem revestidos pelo Omnipotcnte da çar proposições, que boje desapprovo, não
mais alta dignidade. por espirito*de versatilidade, mas por inti
Comtudo os inimigos da independcncia ma convicção a que o estudo por melho
o soberania sacerdotal não se poupam a es res livros, a reflexão mais séria c a provei-
forços para derribal-a por meio da sujeição .tosa experiência do mundo me teem con
em que pretendem que ella deva estar de duzido.
pendente sempre do poder temporal. Tributo á Universidade os maiores res-*
Lamentam as desordens que teem occor- peitos: bebi n’aquellc manancial perenne
rido por causa da distineção dos dous po das sciencias; mas rejeito as aguas amar-
deres, mas não se lembram que pela maior gosas que por entre as doces também alli
parte não sc teriam ellas realisado, se a pro se infiltram: porque as obras d’alguns au-
tecção do poder temporal, devida á Igreja, thores, assim nacionacs como estrangeiros,
sc não houvera muitas vezes convertido em alli adoptadas, até são prohibidas por sc
opprossão; porque a ideia de equilíbrio de acharem condemnadas pela sagrada con
poderes não lhes agrada senão para mas gregação do Index expurgatorio: sem fal
carar certas imposturas com que teem pre lar dos expositores, que alli tem mais voga,
tendido enganar os povos. dos quaes uma parte está experimentando
;Esqucccm-se da perenne cíTusão de a mesma triste sorte.
bens, que da perfeita distineção c equilíbrio Mas voltemos ao assumpto.
éos dous poderes ecclesiastico e civil, teem Se á Igreja não pertence a nomeação dos
resultado a favor da humanidade, para se empregados civis, também não compete ao
recordarem só de alguns escândalos que poder secular o provimento dos ecclesias
das _suas dissençpes ou faltas de equilíbrio ticos de qualquer qualidade ou cathcgoria
tenham alguma vez nascido. que sejam.
Essa parcialidade accusa de menos jus Eóra da concessão da Igreja c concorda
tos os sectários da confusão dos dous po tas em vigor, tudo ò que vai contra a re
deres, que se prevalecem de taes argumen ferida regra será invasão de poder, ao que
tos; scudo mesmo o ethnico Cicero quem se aproximam não pouco certas insinua
no livro 3.° De Legib. lhes dá uma lição, ções, que os governos fazem algumas vezes
condemnando como iniquos aquellcs ho aos cabidos serie vacante para que noincicm
mens que em qualquer proposto assumpto tal ou qual individuo para seu vigário ca
enumeram só os males sem calcular os pitular. _
bens que d’ahi podem ou devem resultar. Similhantcs recommendaçõcs sao quast
IGR 841
decretos attentatorios, pelo menos indire- Querem os meus leitores, querem os so- '
ctainente, da liberdade necessaria para dar- beranos mesmo e seus governos saber o
se verdadeira-eleição: c quando por urna que são esses reyalistas, esses politico-ca-
bem entendida deferência se deva annuir noni por interessar, que fingem advogar a
ao desejo do soberano, no que eu concordo causa dos reis, para esconder debaixo da-
se a pessoa indicada é digna, igual prá- quclla mascara o odio contra a Igreja, c o
ctica deve ser permitlida aos cabidos de desejo dc engrandecer-se por meio da adu-
proporem também alguma vez aos gover lação? Lancem os olhos sobre as modernas
nos a nomeação de pessoa que lhes conve revoluções da Europa, c admirem alli a
nha para seu bispo, onde por concordatae firmeza, reclidão c elevação de caracter de
concessão pontificia competir ao poder se-’ taes publicistas: quando chegaram os tem
cular uma tal nomeação. pos difficcis c dc prova, quando os reis fo
Erigir ou supprimir bispados ou paro ram precipitados dos thronos, acharam-se
chias, limitar as ordenações dos clérigos, aquclles seus falsos amigos bem cordeal
bem como regular-lhes as suas habilitações c pronunciadamente do lado dos revolucio
scicntificas, o que só compete aos bispos, nários, dc maneira que a justiça dos pro
restringir ou embaraçar a liberdade dos prios imperantes, que poderam* reassumir
votos monasticos ou annullal-os, prohibir o o poder, se viu depois obrigada a conde- -
recurso á sé apostólica sem previa autho- mnar á merecida pena taesanarchistas: ao
risação laical, arrogar-se poder e jurisdic- passo que dos verdadeiramente adherentes
ção sobre as pessoas c cousas positiva c lc- á Igreja, e respeitadores da sua plena au-
galmentc constituídas debaixo do poder e thoridade, nenhum vacillou na occasião da
dominio da Igreja, pelo que diz respeito a tormenta, ficando firmes na fidelidade a
esta qualidade, são altentados contra a li seus respectivos soberanos.
berdade, independência e immunidade ec Desejo toda a imparcialidade sobre esto
clesiastica, oíTcnsivos não só dos proscri assumpto: a Deus o que é dcDeus, e a Cé
ptos nos sagrados cânones, mas até mesmo sar o que é de César. Assim como é justo
no disposto por ordenação divina. que os governos façam uso de todos os
E se é proprio ao poder civil dispor co meios que, comprehéndidos na sua orbita,
mo lhe convier a sua. policia externa, tam podem conduzir os homens á paz e pros
bém se não póde negar que a Igreja tenha peridade temporal, assim também é indis
todo o direito de regular soberanamente a pensável que o episcopado, especialmente,
sua exterior disciplina: devendo igualmcn- e em geral todo o clero, se convençam c pos
te rcpular-se por abusivo e contrario ás suam bem dh importância dos seus direitos
prcscripçõcs da mesma sancta igreja o re e obrigações, para que sem excesso nem
curso interposto sobre pendências ou cou diminuição, mas com animo pacifico, a quo
sas divinas c sagradas para os tribunaes não falte a coragem e a perseverança, usan
seculares, aos quacs só compele julgar do do dc todos aquclles expedientes que lhes
que é mero, temporal, mundano e transitorio. são permittidos, cheguem a bem cumprir a
Legislar, v. g., sobre a administração dos missão dò amor e caridade dc que foram di-
sacramentos c disciplina, que nada teem vinamente encarregados, e de que, não me
com a ordem civil, como ha pouco se viu em nos que o poder temporal na sua esphe-
Lisboa, c não muito antes na Sardenha; e ra, haverão dc dar estreitas contas perante,
lançar mão das cousas e bens da Igreja, aqucllo que é rei dos reis c senhor dos se
como por ahi se tem desgraçadamente fei nhores: redde rationem villicationisJuce, di
to, c continua fazendo, sao invasões, rabi rá Jesus Christo na sua volta.
nas c escândalos que todo o bom christão Por aqui terminarei hoje o capitulo pre
abomina, e a que o céo não póde, cedo ou sente, deixando a melhores pennas e mais
tarde, ser indiíferento. Se não se teem visto felizes engenhos o muito que póde ainda
agora castigos promptos como os dc Oza, dizcr-sc no assumpto, c que cscripto em
Balthazar c Helliodoro, não fiar na tardan- variado, ou mais nobre estylo, deverá cer-
ça: acautelar a tempo, porque a providen tamento ser mais grato a todos os leitores.
cia de Deus 1não falha nas suas divinas e
imprescrutaveis disposições.
A expericncia é a grande mestra da vi VI
da; o eila nos tem ensinado quo assim co
mo não é na prosperidade que se conhece
o amigo, assim também não deixa o inimi A esphcra da acção de qualquer autbo-
go de mostrar o que é no tempo da adver ridade, bem como as relações entre autho-
sidade. ridades diversas, que governem os mes-
i
542 IGR
mos individuos cm varias ordens, não to ordem moral, contida material mente na
lhem a cada authoridade a justa indepen ordem, pela força c pelo interesse. Temos
dência na sua propria ordem. Será op (Visto provas historicas, relativamcnle a
portuno fazer applicação d’este principio todas as sociedades pagãs, nas quacs ha a
âquellas duas sociedades, eutre as quacs propor que se iam esquecendo as tradi
occorrcm com mais frequência collisões, c ções priinittivas de natural honradez, que
são mais contrastados os lctigios: quere ainda hoje admiramos nos Fabricios, nos
mos dizer as sociedades espiritual c civil, Curtos, nos Cincinatus, c nos Regulos, se
guiadas pelas'suas respectivas authorida- cabia iio despotismo dos Césares, c no ser
dcs. Mas para que n’cstas applicacões bri vilismo dos senados, intercalados com as
lhe toda a evidencia, é necessário dar uma conjurações c os punhaes, que levavam a
ideia clara do (pio se entende por socieda sociedade, cansada dc um primeiro tvran-
de, authoridade. e ordem espiritual, a fim no, a submettcr-sc a outro.
de não cahir no erro dc julgar espiritual Tal seria a natural condicão da socie
unicamente o que c espirito, bem como os dade humana, se fosse abandonada á direc
falsos politicos attribuem á ordem tempo ção d’csta natureza corrompida.
ral tudo o que é materia. Estabeleçamos, Nem uma tal degradação nos deve cau
portanto, primeiro com princípios natu- sar admiração, ou parecer-nos que d’ella
raes. a ideia de sociedade espiritual, e da resulte dosdouro ao Crcador. Tinha clle
ordem que n’cl!a se deve manter, por meio destinado o homem para uma condição
da authoridade espiritual. muito mais sublime do que aquclla a que
Se a authoridade alcança a meta, c dá se poderia ter elevado só com suas pro
leis conformes áquella verdade c justiça, prias forças, e para isso o havia dotado, no
que são o principio de ordem para a natu acto de sua creaçào, com a graça sanctifi
reza racional, então as leis achando n’essa cante, para o tornar, por meio d’cssc dom,
natureza um eceo espantoso, um estimulo capaz de subir á altura do seu destino.
de consciência, uma saneção de remorso, Mas rcpellindo o homem esta graça com
obteem ordinariamente o concurso da plu a culpa, todas as suas propriedades, os
ralidade dos súbditos, não sendo possível seus attributos, a sua condição, e as suas
que a pluralidade proceda em opposiçào operações sentiram a desgraça da sua de
da natureza. Pelo contrario se as leis, sanc- gradação.
cionadas pela authoridade, não são confor Eclipsado o entendimento, vacillante o
mes ás relações reaes, e aos direitos que raciocínio, fraca a vontade, enfermo o cor
d’ella derivam (no que consiste a verdade po, irritáveis as paixões, equivocas c in
c a justiça, a que a authoridade deve con certas as sciencias, incautas as delibera
formarão); então as leis, oppondo-sc a es ções, improvidos os conselhos, n’uma pala
sas relações reaes, em logar de as corro vra, alterado tudo no homem intellectual,
borar, ou não obteem que sejam executa moral, e corporeo. Que admiração é que
das, ou augmenta, com sua execução, a se ache na mesma condição o homem so
desordem da sociedade. cial? Que admiração, que, por consequên
Desd,e que a natureza humana ficou su cia, a sociedade (los homens descabidos,
jeita ao estrago que n'ella introduziu a venha sempre a reduzir-se, á cxcepçào de
culpa de Adão, o entendimento enfraque alguns lucidos intervallos brevissimos, a
cido pelo predomínio dos sentidos, foi ou- um déspota que opprime, a escravos que
trosim hostilisado, e as mais das vezes il- se aviltam, a aviltados que se revoltam?
ludido pela tyrannia das paixões, sempre A Providencia, porém, não quiz abandonar
que teve de decidir-se sobre a orcíem prá- o genero humano; de tal modo cnvilccido,
ctica dc qualquer objecto. Emquanto se antes quiz realçal-o á graça, por meio da
tracta de especularão, ou de cousas mate- redempção, c applicar a redempção a cada
riaes, o erro ó menos seductor; mas quan um dos* homens, chamando cada um ü’cl*
do o entendimento deve formar um juí les, cm particular, a uma universal (ca
zo, a execução do qual possa na práctica tholica) sociedade, na qual, e por meio
incommodar o proprio juiz, então a re da qual se perpetuasse, tradicionalmen
pugnância do incommodo torna plausível te, aquella sublimidade dc entendimento,
qualquer sophisma contrario, c obscurece, aquclla sanctidadc dc vontade com fjue a
por essa fórma, as verdades mais eviden sociedade humana tornava á elevação de
tes. É porque a sociedade humana, guia sua primitiva dignidade, o a authoridade
da simplesmente pela authoridade, as mais fundada na verdade c na justiça com que
das vezes não nos apresenta outra cousa se deve coordenar a multidão dos sogeitos,
no paganismo, senão uma universal des póde prender rcctamente a seus deveres, e
IGU 543
•conformando as leis ás verdades das rela principe estará seguro no que commanda,
ções humanas, promover entre clles a feli os subditos livres na obediência, c não será
cidade exterior, que vem a ser a liberdade esta uma justa ideia da felicidade social?
de toda a honesta separação. Tal foi o de E comludo aquolles legistas que herda
sígnio da Providencia, que nós, fallando ram do inundo pagão a idolatria do estado,
como catholicos, assumimos como propo nao se envergonham de dizer algumas ve
sição. zes dos christãos, aos catholicos que os go
Existe, pois, no mundo christão, uma vernam: «Senhores, tende cuidado, vigiai
sociedade destinada pelo Crcador a con o senado, armem-se' os deputados contra
servar e explicar as normas da verdade e as insidias da Igreja! Es*a quer dividir o
da justiça, conforme ás quacs todos os que vosso reino, e quebrar-vos o sceptro.» São
governam devem estabelecer as leis. Um malvados ou mentecaptos os que assim
povo que faça parte dlcssa sociedade, póde faliam, pcis não vôem como a mão que
esperar o ter principes illuslrados e rectos detem o sceptro do reinante, nos limites da
que o governe; e esses principes poderão justiça, dotem iguahnente os punhaes dos
esperar súbditos aíTcctuosos c obedientes; conjurados ás portas dos paços reaes? não
c cm vez de ter por seu direito a omnipo- veem que pretendendo clles sustentar a
tencia do despotismo,,c por limites d’esse omnipotcncia dos Césares, como arbilros de
direito o punhal dos conjurados, terão o toda a justiça, manteem nos subditos a in
poder moral de tudo que é justo, limitado dependência dos spartanos c dos calilinas,
unicamente pela impossibilidade do mal, livre de todo o dever!
que é reprovada por um oraculo infallivel. Foi portanto grande beneficio, ou soja
Eis ahi a alternativa cm que se acham para os povos ou para os depositarios do
actualmcnte collocadas as sociedades e os poder, a instituição da Igreja, guarda dos
governos, qualquer que seja a fôrma do princípios supreínos da verdade c da jus
governo. tiça. Mas esta destinada ao fim d'instillar
Querem por acaso viver sem o freio de c promover entre os homens esses mesmos
lei alguma? princípios da verdade c da justiça, que ser
Pódem fazel-o; mas lembre-se o princi vem de base a toda a ordem presente, e
pe, ou quem governa, que os subditos, se abrem ao caminho a felicidade eterna. Sc
não os refrearem, serão rebeldes; lcm- é sociedade de homens livres, claro está .
brem-se os subditos que o poder se não que necessita de uma aulhoridade que o
íôr refreado, será oppressor; lcmbrc-sc governe pelas mesmas razões, pelas quaes
toda a sociedade que se não quer anar- toda e qualquer sociedade necessita de um
chia, deve tolerar a tyrannia; se não quer principio de unidade. Portanto a Igreja tem
a tyrannia, deve tolerar a anarchia, sendo uma aulhoridade que deve conduzir os as
essa necessariamente a condição de uma sociados ao fim a que é destinada, isto é,
sociedade, na qual o poder.e bs subditos ao conhecimento da verdade e. da justiça
abandonaram a lei da verdade e da justiça, moral, base de toda a ordem presente, c
ou perderam a ideia do que ella seja. Pelo de toda a esperança futura. jNT,cste intuito
contrario, quereis que na sociedade reine deve cila empregar os meios c tomar as
a ordem e a justiça, fundada sobre a ver medidas necessarias; à serie das quacs, se
dade, recta e universalmente reconhecida forem adoptadas a tal fim, se chama or
pelós que governam, c pelos que são go dem da sociedade espiritual.
vernados; é necessário uma aulhoridade ' E a esta ordem devem conformar-se nas
infallivel, que vol-a manifeste, c que por acções que a cila pertencem todos que fa
tanto. façaes parte d’aquella sociedade que zem parte de tal sociedade, ou sejam rei
é unica, na qual a verdade não póde falsi- nantes ou subditos. ]S’isto não tem logar
ficar-se, nem a justiça desviar-se dos prin dillerença de opiniões; c mesmo os inimi
cípios univorsaes. Aclmittidos estes princí gos da Igreja não ousariam dizer o con
pios, quem governa se reconhecerá obri trario, a não ser que neguem o dogma
gado a que as leis sejam a ellcs adoptadas, christão; aliás estariam perfeilamente d’ac-
e os subditos sentirão a obrigação de ob cordo cómnosco. E qual seria aquclle, mes
servar essas leis, por isso que dictadas, mo entre os libertinos, os legistas, os adu
não pela vontade arbitraria do principe ou ladores dos principes, os inimigos da Igre
do poder, mas por uma verdade e justiça ja, que ousasse pronunciar esta blasphe-
que d’ellc não dependa. Assim o principe mia: «Um príncipe não deve (jovernar con
não terá por mestre o terror das conjura forme a justiça?» Bem pelo contrario, nin
ções, e o povo obedecerá por uma razão guém tem declamado tanto sobre a obriga
melhor que a dos carcereiros e algozes: o ção de governar justamente, copio actual-
544 IGR
mente declamam esses reformadores, que gal, a Hcspanha, etc., o governar a justiça
para esse mesmo fim querem reduzir os ou a justiça o governar Portugal, Ilcspa-
reis a reinar sem governar, e os advogados nha, etc., poderia acaso lembrar a alguém
a governar sem reinar, porque em todas o submeitcr a justiça ao arbitrio d’esses
as monarchias passadas, julgam vér a jus ou dc quacsqucr outros governos? Será ri
tiça menoscabada c a verdade falsificada, diculo até suspcital-o.
c cuidam que nào ha já outra esperança Ora notai bem: a justiça por si mesma
que não seja o governo dos advogados. é um ente abstracto, que nào pódc fallar*
Todos portanto estão'(Yaccordo sobre este c por isso o instituidor do Christianismu
ponto, isto ê, que toca á justiça dictar as lhe deu um orgão visivcl, e capaz de sc
leis: c a unicà discrepância entre nós e expressar, que e a Igreja; bem como a na
ellcs, consiste em que nós dizemos que o tureza deu á authoridade humana, ente
interprete da justiça é a Igreja, e ellcs a igualmente abstracto, um orgão visivcl, o
qualificam de enganadora, ambiciosa, c ty capaz de se expressar, que é soberano (ou
ranna. Mas vós, leitor catholico, nào que chefe supremo.) De maneira que, assim
rereis por certo admittir esta blasphcmja; como para conhecer o commando da au
e direis comnosco que a norma d’um bom thoridade civil ouvimos o soberano, assim
governo, é a justiça; a norma da justiça, é também para conhecer os dictamcs da jus
a Igreja, e a norma da Igreja, a authori- tiça, nós catholicos, interrogamos a Igreja,
dade que a governa, isto e, a que ordina e a sua voz equivale por consequência aos
riamente chamamos authoridade espiritual, dictamcs da mesma justiça.
não já porque seja possuída por um puro Ora substituindo a palavra igreja aos Jo
espirito ou porque governe espíritos puros; gares do precedente argumento, em que
mas porque é enderessada a um fim espiri dissemos justiça, diremos assim como toca
tual, e por isso se chama ordem espiritual á justiça governar os diversos paizes, e
aquella serie de providencias, por meio nào estes a dictarem-lhc a luz; igualmente
das quaes ellc estabelece no inundo a luz dizer que a Igreja deve ser de um tal paiz,
da vòrdade, e o commando do que é justo; não é dizer, por exemplo, que Portugal a
llni este, como é evidente, perfeitamente governa, mas sim que a Igreja governa
espiritual, ainda quando se obtem por Portugal e outros paizes. Esta consequên
\ meios materiaes. cia fará horror a esses legistas de que aci
Partindo da ideia que demos dã socie ma falíamos, que não teem outra alguma
dade e authoridade espiritual, é faeil com- ideia dc ordem c de governo fóra da ma
prehender as suas relações com a ordem terialidade do dominio civil; mas vós, que
pública, e resolver certos problemas, que tendes comprehendido que o governar si
sc tornam escuros por confusão d’iàeias. gnifica manter a ordem entre os homens,
Disseram os legislas: e que esta ordem não é senão uma serie
«/1 Igreja está no- estado»; responderam d’acções capazes de conseguirem o objecto
os canonistas: «o estado está na Igreja»: e para que a mesma sociedade existe, e que
d’estes enunciados formaram syllogismos, o objecto da sociedade espiritual nào é se
entraram em polemicas, e passaram mes não o reino da justiça e da verdade, en
mo algumas vezes até ás injurias e insul tendereis perfeitamente que, dizendo-se que
tos de pessoas, que talvez não entendiam toca á. Igreja governar cspiritualmentc Por
o que diziam. tugal, Hcspanha, ou outro paiz, isto não
Para esclarecer a questão, deixemos de quer dizer que a Igreja deva n’csscs pai
parle as phrases legislas, e fallemos da lin zes receber os impostos, armar exercitos,
guagem vulgar. e sentenciar sobre os haveres; quer uni
Que vos parecería mais acertado, o di camente dizer, que quando a Igreja define
zer: a justiça é portugueza, hespanhola, uma cousa como verdadeira o justa, será
frapeeza ou ingleza; ou dizer, o portuguez, isso verdade e justiça em Portugal, na Hes-
o hespanhol, o franccz, devem ser justos. panha, ou em outro*qualquer paiz do mun
• Persuado-me que hão hesitareis na res- do, c que portanto deverá practicar-se
osta: seria ridiculo dizer que a justiça aquella justiça' o acreditar-se aquella ver
S eve ser d’este ou d’aquelle paiz. E por: dade cm todos os paizes, por quantos se
que seria issoridiculo? Porque a justiça é queiram considerar filhos c subditos da
perfeição da natureza humana, a qual se Igreja, sem que os governos dos respecti
encontra e é o primeiro principio de ac vos paizes, possam invalidar a força das
ção nos homens de todos os paizes do quellas definições, ou d’aquellas determi
inundo. , ' nações.
Ç se vos perguntassem se toca a Portu Eis ahi o que no sentido dos canonista-
IGR 545
quer dizer o «estado (seja Portugal, IIcs- Mas os outros ensinos teem por objecto
panha, ou qualquer outro paiz) está na directo o bem moral, como são as scien
Igreja.» das metaphysicas c moraes, e estas são es-
Pelo contrario os jurisperitos fébronia- sencialmentè sobordinadas á authoridade
nos quando dizem a Igreja está no estado, da Igreja.
teem cm vista o territorio material, por Outros objectos, finalmente, podem diri
clles attribuido ao principe, com todas as gir-se a ambos os fins, como as sciendas
pessoas c bens dos subditos, e com relação historicas e a litteratura, e estas devem ser
á Igreja, que dá ás pessoas existentes ^ e s sobordinadas a ambas as authoridades, es
se territorio determinações relativas ao seu piritual e temporal.
bem espiritual. Dizem: «a Igreja está no N’esta, porém, como em outras occasiões
estado», c querem com isto significar: a similhantcs, póde nascer o caso de conllicto,
Igreja dispõe das pessoas c das cousas, que quando uma das authoridades ordene cou-
nós entregamos ao pleno arbitrio do poder sa que seja pela outra prohibida.
civil; c se não quizer ser por nós persegui Em tacs conllictos, qual das duas autho
da, deve amoldar-se a explicar a justiça a ridades deverá prevalecer? Também dei
nosso modo de cntcndcl-a. Ora, qual d es xamos isto á vossa propria decisão. Que
tas duas sentenças vos parece verdadeira? cousa é mais importante, que os estudos
Que o estado deva amoldar-sc á justiça, sejam dirigidos de inodo que não oíTendam
(o estado está na Igreja) ou que a justiça a justiça e a verdade na ordem moral, ou
deva ainoldar-sc ao estado (a Igreja está que se* conformem aos systemas de des-
no estado)?... ciplina exterior, determinados n’este ou
Façamos applicação dos princípios que n’aquelle regulamento? Sede vós mesmo
defendemos, a alguns dos problemas que juiz, ó leitor, que não nos fica dúvida d
tanto teem ultimamente servido de thema qual será a vossa sentença.
aos publicistas; por exemplo, ao matrimo Portanto, os conflictos*relativos ao ens
nio, c ao ensino, medindo os direitos em no se reduzem ao principio universal d»
raza do fim. todos os outros conllictos entre a authori-
Qual é o fim a que é dircctamentc desti dadde espiritual e a politica: sempre se es
nado o matrimonio? Será á manutenção tará na alternativa, ou de conceder aos go
da ordem externa, ou.á propagação do rei vernos que fabriquem a justiça a seu mo
no da verdade c da justiça? do, o que será erigir em dogma o despo
Ccrtamcnte a creança quando vier a ser tismo, ou conceder á justiça que vincule
adulto tefá parte na ordem pública exter os que governam, isto é, entre catholicos,
na, c poderá ser d’ella o defensor ou o in- obrigar o poder temporal a não violar as
fractor; mas quem acredita que o' homem leis da Igreja.
é destinado a uma bem-aventurança no ou Os legistas pouco escrupulosos em ma
tro mundo, verá que os paes, se são ra- teria orthodoxa, podem resolver o proble
soaveis, devem ter principalmente em vis ma d’oulra fórnia, dizendo que a Igreja não
ta o ultimo fim para que seus filhos foram é oraculo de verdade, e de justiça, ou que
crcados, e que para esse é que o Crcador esse oraculo não é infallivel, ou que se ó
quiz que os homens se multiplicassem so infallivel, não reside no corpo insinuante,
bre a terra. mas na universalidade dos fieis. .
E o fim do ensino qual é? Este erro e outros similhantcs, já con-
EUe tende por si mesmo a introduzir a demnados quando foram proclamados pe
verdade nas mentes. Mas essa verdade é los protestantes c pelos jansenistas, pode
necessariamente ulterior, pois que o ho rão ser reproduzidos para fazer parecer
mem na vida presente não procura saber menos contradictoria a tyranni a dos go
senão porque deve operar. vernos que os adoptam, e que continuan
Ha portanto verdades que são relativas do a dizer-se catholicos, recusam todavia
á ordem material, das quacs o ensino de obediência á Igreja. Mas quem reconhece
penderá por consequência da authoridade n’.ella como catholico a authoridade supre
politica, se por quaesquer combinações ac- ma governativa da ordem moral, poderá
cidcntaes não tivessem alguma ligação com hem deixar á authoridade civil a plena in
a ordem moral, como succedeu ao ensino dependência no exercício do poder, pelo
da mocidade, que é necessariamente ligado que respeita ás medidas que por sua na
com a educaçao. tureza conduzem a manter externamen-
A taclica, a mathematica, a chimica, e tc inviolado todo o direito; mas quando se
a medicina, pertencem portanto ao poder tractar de conhecer esse direito nos prin
temporal. cípios moraes de que clle depende, sem-
346 IGR
prc deverá dizer que a authoridadc civil tanto ellc se gloria de ter concedido aqucl-
deve governar conforme á justiça, c que la preciosíssima liberdade, de que se faz
não é justo o que sc oppòe ao ensino da prcsentcmcnle tanto alarde.
Igreja. E isso, como dissemos, é declarar-se
_ Passemos a outro exemplo d’uma ques abertamente tyranno c sacrilego.
tão, que sc resolve naturalmente pelas pre Se não sc chega a fazer similhante de
cedentes doutrinas. A separação da Igreja, claração, a separação do estado da Igreja
do estado ê lambem presentemente um é um enigma incomprehensivel, ou antes
problema tempestuosissimo. Ora a que se um absurdo ridiculo para quem compre
reduz este problema, á vista das doutrinas hende que governar os homens não é o
defendidas? Que pretendem os que que mesmo que possuir um campo ou um re
rem separar o estado da Igreja? banho.
Na verdade, se os interrogardes, ou não Quereis separar o estado da Igreja? Bem
saberão o que querem, ou será forçoso re está: mas separai também o boticário do
conhecer que querem uma impiedade. Di medico, deixando a liberdade ao medico
zei, pois, senhores advogados, philosophos, de prescrever uma receita, e a liberdade
deputados, publicistas, ou quem quer que ao boticário de vos dar outro medicamen
sois: que pedis vós, n’uma palavra, para to: separai o pedreiro do architecto, dei
separar a Igreja do estado? Pretendeis vós xando a este a liberdade de dar o risco
que as acções do cidadão a quem o estado que bem lhe pareça, ficando porém igual
governa, nunca sejam acções moraes? Que mente livre a cada pedreiro o executar ou
nunca tenham .relação alguma com a con tro qualquer desenho.
sciência c com a justiça? Se por esse modo esperaes curar os en
Mas uma tal pretenção seria absurda; fermos e fabricar bellos edifícios, então
seria como quem pretendesse que as ac comprehenderet que possaes também se
ções livres do homem nunca lhe fossem parar o estado da Igreja, c esperar a edi
moralmente imputadas. ficação do povo catholico sem um archite
E demais, não seria isso de vossa pro cto que para ella dé o risco c direcção.
pria conveniência; ai de vós se os subdi Mas se isto é absurdo, seja agora um
tos não obedecessem por consciência! Onde protestante quem conclua' esta ultima ap-
acharieis tantos esbirros c algozes que bas plicação de nossas theorias sociaes.
tassem para assegurar a execução das leis? Aquellc de quem citamos a opinião, é o
Portanto, se as acções entram muitas ve professor de Berlim, Frederico Stahl, na
zes no dominio da consciência, como pre sua Historia da philosophia do direito, o
tendeis vós separar a Igreja do estado, no qual está longe de crêr o (Tendida a inde
regulamento d’aquellas acções entre catho pendência do estado pela sua união com
licos, onde todos reconhecem na Igreja a a Igreja; «pelo contçario, diz ellc, dado o
mestra c directora das consciências! Eu só significado e o valor proprio, e independen
vejo um unico meio de separação, e é que te do estado, a sua connexào com a Igre
a Igreja se contente em dizer: «tal acção é ja, como diz Sancto Agostinho, é uma ver
moral mente honesta, moralmente obrigató dade irrefragavel, que sempre se experi
ria»; e vós por vossa parte vos contenteis mentou entre os povos christãos, e não é
em ordenar outras acções, ou como uteis impugnada nos nossos tempos senão por
ou como externamentê necessarias para a que os povos não são tão vivamente pene
observância do direito que a Igreja julgou trados da fé de Christo, pois que a separa
moralmente obrigatorio. ção da Igreja do estado, que é hoje em dia
Mas se vier occasião em que a mesma uma palavra d'ordem, é unicamente ensi
acção, que é moralmente prohibida pela nada por aquelles que, ou participam elles
Igreja, seja por vós ordenada, como exter mesmos d’essa falta de fé, ou não sabem
namente util, a separação se tornará im imaginar um estado do cousas diverso da-
possível, e o cidadão deverá escolher entre quclle que os circunda.
o honesto e o util, entre a Igreja e o esta Um governo catholico não póde cm ma
do. Em taes occasiões, a que se reduzirá téria de religião c de consciência deixar
íinalmente a pretendida separação? de ouvir a Igreja, interprete infallivcl dos
O estado, dirá o cidadão: «Sem embargo princípios universaes de justiça, c de ver
do que possa dizer-te em contrario, a tua dade, que dirigem toda a ordem moral: e
consciência obedece-me»: o que, como bem este dever é tão evidente, que não ha moi
se vé, não é separação do estado da Igreja, tas consciências que .ousem negal-o aber-
mas sim tyrannia do estado sobre a Igreja tamenie; mas quando a eloquência do in
o sobre as consciências, ás quaes no en teresso argumenta em um. coração fraco
IGR 347
contra a evidencia dc um principio, cobre- póde também o estado abusar do seu po
so com o véo da fragilidade humana do der? Então do julgamento do estado appel-
superior, para sc evadir á evidencia da laremos nós para o tribunal da Igreja; e
•authoridade. isto na verdade seria muito mais tolerável,
«A Igreja... oh! Deus nos livre dc lhe mesmo segundo as doutrinas dus nossos re-
querer dosobedeceri mas a Igreja não é o generadores, os quaes para deduzir a ne
papa, c muito menos o bispo, ou a uniào cessidade de separar os tres poderes não
nacional dos bispos; se a Igreja é infallivel cessam de exagerar o argumento tão sa
quando declara a verdade, quantas vezes bido; é: «Sc o legislador, e juiz tiver ao
se engana um-bispo na applicacão d’ella? mesmo tempo a força executiva, não póde
E cm taes casos querereis vós tolher a um deixar de vir a ser tyranno.» Por quem
governo o que se concede ao ultimo dos sois, snrs. advogados, tende alguma cohc-
subditos: o appellar de um tribunal para rencia logica. Nós não admittimos esse
«outro?» principio, porque crémos que a consciência
Será muitíssimo razoavcl a difTieuldade, póde em muitos casos servir de contrapeso
sc 11’aquillo cm que assim o é não tivesse á força; mas vós, que desterrastes esta con
já sido providenciada pela Igreja. E quan sciência entre os entes da razão no mundo
do é que esta sapiendssima mãe negou esse onthologieo, sede ao inonos cohercntcs com
recurso a seus íilhos? Do sacerdote sc póde vós mesmos, c já que o estado possue a
appellar para o bispo, do bispo para o seu forca, deixai o direito na mão da Igreja.
metropolitano; do synodo diocesano, para Assim poderiamos arrazoar com elles, se
o synodo provincial; d^slo, para o núncio, gundo os seus princípios, mas não quere
para o legado c para o pontifice; ba, se mos imital-os nas suas contra dieçoes, bas-
gundo varios casos previstos pelo direito lando-nos o ler demonstrado que da Igrejr
canonico, cinco ou seis graus ordinários se póde appellar para o estado, porque á
de appellaçào, sem fallar dos casos extra gum prelado póde abusar, e pela mesma r
ordinarios de que se póde recorrer a um zào sc poderia appellar do estado para
synodo ecumênico. Mas estes tribu na es, igreja.
dizeis vós, são sempre em substancia a Similhante argumento, que se póde assii
Igreja: e é justamente a Igreja que póde tão facilmente retorquir, mostra sulíieien
causar aggravo ao estado; portanto a ap- temente quanto seja frivolo e insubsistente.
pcllacão nao deve ser de um tribunal da Todavia não basta ainda, e se bem rellc-
Igreja para outro também seu, mas do tri ctirdes achareis ii'c!le mais alguma falha.
bunal ecclesiastico para o secular. «A Igreja, dizem os oppositorès, é infalli
Então, não é já da pessoa do papa ou do vel, mas os prelados não; portanto não sc
bispo que queria appellar, como figuravas, esteja pelo que determinam os mesmos pre
mas sim da propria Igreja. Ora, isto é di- lados.»
rectamcnte opposto ao que dizeis na vossa Quem falia d’estc modo, mostra ignorar
objcccão, c portanto colloca-vos cm con- os primeiros elementos dc direito, isto ó,
tradieção com vós mesmos: ó ao mesmo a natureza da authoridade. Authoridade e
tempo*contrario ao bom senso, c vos pòc infallibilidade são cousas diversas: a infal
cm flagrante absurdo. Por quanto, o que libilidade deve ser crida pela sua intrinse
quer dizer appellar da Igreja para o poder ca veracidade; a authoridade deve ser obe
secular? Quer dizer appellar de um tribu decida pela necessidade da unidade social.
nal, que ex-ofjicio é mestre dc moral, e tem A infallibilidade é propria só da Igreja no
o direito de a manter, para um tribunal, ensino; a authoridade é propria de qual
que ex-ofjicio ó d’ella discipulo c tem mil quer sociedade na esphera da sua compe
incentivos dc interesse proprio para vio- tência.
lal-a. É em substancia, como se um gene Se pois se concede que a Igreja é uma
ral d'cxercito, condemnado em conselho sociedade visivel, governada por conse
d c guerra por transgressão de arte mili quenda por uma authoridade (o que é in-
tar, appellasse para a revista d’cssa sen negavel nem alguém nega), deve-se con
tença á camara ecclesiastica, ou ao tribu ceder a essa authoridade ao menos tanto
nal dc commercio. Demais, ha outra razão quanto sc cousente por sua natureza a qual
que resolve debaixo de outro aspecto a quer outra authoridade social.
diíliculdade, e é que cila póde ser retor- Ora a authoridade. domestica, a authori
quida, contra os que a propoem. dade civil, a authoridade politica nas suas
Vós appellacs da Igreja para o estado, proprias e respectivas competências, teem
porque na Igreja, dizeis vós, o prelado um tribunal supremo dc que se não póde
póde abusar do poder. Mas que? acaso não appellar: logo um tribunal supremo de que
*
548 IGR
sc não possa appellar, devo tambem existir sciência; é livre a obediência do povo, o o
na ordem espiritual. Esse argumento que commando do principe é ligado. Alas esta
usam contra a Igreja, voltai-o* contra os ligação nào provém nem do terror da in
tribunacs civis, c conhecereis a sua palpá surreição nem da prepotência do cloro: di
vel insubsistcncia. mana do supremo direito da verdade e da
«A Igreja, dizem elles, c infallivel; mas justiça, nas verdades moraes, em que é
o prelado pode abusar, e portanto pódeap- grande a difficuldade de eonhoeel-as só
pellar-se da Igreja para tribunal mais alio.» pela experienda, porque as paixões oITus-
Do mesmo modo dizemos nós: «a lei ci cam a razão, e a experiência chegaria mui
vilmente é infallivel, mas os juizes podem to tarde a convencer-nos: foi necessario á
abusar na applieaçãó d’ella: portanto ne revelação que as manifestasse, uma socie
nhuma sentença será sem appellação, por dade que conservasse a revelação, c uma
tanto do tribunal civil appellarcmos para authoridade que governasse essa sociedade.
o militar, do militar para o juízo commer- Por falta de similhanto authoridade an
cial c d’este para o tribunal ecclesiastico. daram vagando nas trevas as sociedades
D'aqui se vê que o argumento que a ty- pagãs, entregando-sc alternativamente ao
íannia usa contra a Igreja, nào soíTrc nem despotismo, para sc defenderem da anar-
sombra de discussão: é um cumulo d’igno- chia, á anarchia contra o despotismo.
rancia c de incohercncias. Se a Igreja é .Não succede isto ao christào, pois que
uma sociedade espiritual tem um fim espi pode dizer que a justiça se deixou vér do
ritual: para conseguir este fim são neces céo, a verdade nasceu na terra, a anar
sários meios proporcionados; para coorde chia foi enfreada pela authoridade, e o des
nar esses meios e o uso que os homens de potismo pela justiça, até que a apostasia,
rem fazer d’ellcs, é necessaria uma autho- revoltando-se contra a tradição e contra a
idade; para que essa authoridadc possa revelação, tornou a tolher ao inundo a ideia
jbter ó seu fim, as suas determinações (co da unica verdade c unica justiça. D’então
mo de outra qualquer authoridade) devem por diante o povo tornou a rebcllar-se con
nào ser examinadas c censuradas pelos tra a authoridade, o principe a desvineu-
subditos, mas obedecidas. Sc dependesse lar-so da justiça: rebcllando-se o principe
do subdito a força obrigatória do comman contra a authoYidade do papa, o povo, por
do, cessaria a authoridade, ficaria dissolvi seu turno, se revoltou contra a authorida
da a unidade, abolida a sociedade. Portan de dos reis. Pertence agora a quem tem
to na ordem espiritual a authoridade é in còmprehcndido a historia do seu século,
dependente, c quando ella tem definitiva c a theoria da authoridade, decidir sc é
mente fallado, ou a sua definição deve ter- mais util aos principes o dominio da Igre
se por justa, ou não temos norma alguma ja, ou se o da praça pública é mais util aos
com que. discernir a verdade e a justiça na povos, á submissão, a authoridade, ou á for
crJem moral. ça; mais util á sociedade a união recipro
Esta segunda posição do dilcmma expri ca entre os principes c o povo, por justiça
me a condição dos protestantes; os catholi c obediência,,ou a contenda entre o poder
cos se ateem á primeira. Os protestantes, das bayonnetas e o direito de insurreição;
não sabendo o que é verdadeiro e o que é decidir’ ern summa, sc é mais conveniente
justo, não acham outro argumento para in reverenciar a Igreja com os catholicos, ou
duzir o povo á obediência senão aguilhoal-o pizal-a aos pés com os protestantes.
pelo despotismo; nem outro argumento pa Ainda mal que desde mais de um sé
ra induzir o principe a governar com jus culo, mesmo entre os catholicos, e algu
tiça senão aguilhoal-o pelos systemas rc- mas vezes até entre catholicos sinceros,
resentativos ou com o terror do punhal mas iIludidos, muitos espíritos prcoecupa-
os rebeldes. Entre os catholicos, pelo con dos costumam reputar a Igreja como po
trario, estando certos o principe e o povo tência usurpadora, o vêem abuso c super
que a Igreja ê infallivel cm definir os prin stição em tudo o que cila practica, no que
cípios e aiithorisada a determinar a appli- mostram uma certa tendencia ao protes
cação d’elles, recebem da mesma Igreja com tantismo.
reverencia as normas do que é verdadeiro Embebidos de taes sentimentos, c não
e justo; segundo essas normas dicta o prin achando a Igreja docil bastante para os ac-
cipe as leis, segundo essas normas o povo ceitar por seus mestres, tiveram de procu
reconhece a justiça d’ellas e sente a obri rar outro ponto de apoio, e foi esse o ap
gação de observaí-as. pellar da Igreja para o estado, da doutrina
D’csfe modo o povo obedece por con da verdade para a espada da força, c in
sciência, e o principe commanda por con stituiram por essa forma o despotismo jan-
IGR «49
«cnista, primeiro passo para o protestan subditos c superiores formam um só todo
tismo, mascarado entre os catholicos. En nào por equilíbrio de contrastes, mas pela
tre os protestantes, o governo tem direito harmonia de sentimentos, de a Rectos e de
de dizer: «Eu sou o legitimo mestre em cooperações.
treligiào; portanto nfio deveis ter escrupulo Se isto é o maximo dos bens sociaes, um
de executar o que vos mando.» Entre os governo conforme á justiça, c uma justiça
•catholicos o estado apóstata diz: «Eu estou conforme aos oráculos da Igreja, sào 'o
separado da Igreja, e assim como a deixo bem supremo do uma sociedade, e a har
•cm plenissima liberdade dò fazer as suas monia entre os dous poderes, espiritual e
Jeis espirituaes, do mesmo modo tenho di temporal, c o estado regular de todo o
reito de ser livre cm fazer as minhas tem- povo, no qual a verdade c a justiça conser
poraes. Portanto obedecei sem escrupulo, vam os seus direitos, guiando os subditos
■o nào deixeis o clero invadir os meus di e a autlioridadc.
reitos.» Bem vedes, ó leitor, que o eíTeito
•é sempre o mesmo que manda, c quer
mandar sem freio.
Já se mostrou que é impossível em theo ALGUMAS DUVIDAS
ria que a Igreja, dirigindo o catholico, im A RESPEITO DA I.NDEPKNDK.NCIA DA IGREJA
peça o estado de guiar o cidadào: nào po-
deiido o estado ordenar ao cidadào scnào
dentro dos limites da verdade e da justiça,
•nem podendo a Igreja dictar ao càtholico Tçndo mostrado nos capítulos preceden
scnào o que é verdadeiro c justo. Se na tes que a authoridade da Igreja é indepen-
práctica algum erro das pessoas pódc al tc, tractarem os agora, resumidamente, do
guma vez tornar escabrosa a applicaçào poder coactivo, elemento integrante, d'essa
das theorias, isto que acontece, c occorre- authoridade, demonstrando como clle per
rá sempre quando sào os homens que ope tence á sociedade ecclesiastica, á qual c
ram, nào faz que seja falso o que temos seus adversarios o querem negar, qua*
«videntemente inferido da natureza do ho do ó certo que o referido direito lhe pi
mem c da sociedade. tenee, como fácil é de evidenciar. Pa
Em conclusào: fica demonstrado que a isso servir-nos-hemos de algumas prov;
sociedade'e authoridado catholica sào em tiradas da authoridade, fazendo omissa
todo o rigor uma necessidade para a au- das da razão, para pouparmos espaço.
thoridade civil, e um beneficio immenso l.° Que os heterodoxos c incrédulos dos
■que Deus a esta conferiu o catholicismo. tempos antigos recusassem à Igreja (que
0 paganismo, que foi privado d'cste be todavia nào deixara de usar d clle livre
neficio, e o protestantismo, que a ellc re mente) o poder coactivo, c cousa de que a
nunciou com sua apostasia, nào podendo historia nos faz certos, c que a indole do
ligar, na verdade c na justiça, os superio coração humano nos mostra naturalissima.
res aos subditos, foram obrigados a sugge E quando é que o ladrão e o assassino acha
rit* a quem commanda*o absolutismo da ram justo e competente o tribunal que sa
força, por isso que o subdito nào tem o in biam que os condemnaria? mas quem de
terno estimulo da consciência que o insti nossos dias, que blasonc á furça de suas
ga a obedecer, c a suggcrir a quem obe convierdes, a severidade logica "de sua ra
dece a precaução da divisão dos poderes, zão, a independente imparcialidade de sua
e o direito de rebollião para reprimir o justiça, ouse disputar à Igreja o poder coa
absolutismo da força. ctivo, é juntar a iucolierencia logica à in
0 catholicismo, pelo contrario, intiman credulidade heretica.
do tanto aos principes como aos subditos a Com eReito. nào são cllcs que sustentam
verdade c justiça, eommuns a todos, dicta com toda a força que nào existe nos go
bas por um oráculo, que d’clles nào de vernos poder coactivo, nem outro algum
pende, c que para obter obediência não direito de authoridade, senão pelo consen
tem outra força senão o seu direito iner timento do subdito? Pois bem, se ha socie
me; o catholicismo, digo, constitue o sub dade da qual os poderes recebidos imme-
dito cm tal condição, que se conhece obri diatamentede Deus sejam verdadeiramen
gado nào pela força, mas pelo dever: con te consentidos pelos subditos, c justamente
stituo também o superior cm condição tal. a sociedade catholica. E qual é o catholico
quo sabe ser o seu poder mais fundado na mcdiocrcmcnte instruído e educado na pro
justiça do que na forca; constitue tinal- pria religião, que não tenha reconhecido o
mento a sociedade em" tal condição, que poder coactivo da Igreja, com todos os o.u-
550 IGR
tros dogmas que cila ensina, aceitando ao morto, se condemna a si proprio ao cár
menos, implicitamente, a fé n’ellcs, pela cere e á forca, procuremos antes nas dou
sua pessoal adhesào, se foi baplisado adul trinas catholicas, c na verdadeira philoso
to, ou se o foi sendo creanca, ratificando phia natural as bases do poder, que nos
depois as promessas do seu baptismo? propozemos defender. Mas de que serviría
Quando mesmo o descuido dos educa audar investigando o revestindo os archi-
dores ou a falta de desenvolvimento intcl- vos da Igreja, quando se tracta dc respon
lectual podésso dar um pretexto a dimi der á gente que despresa sua authoridado!
nuir o valor d’cssas explicitas declarações Sc ellcs conservassem ao menos o pudor
feitas na idade infantil, quantas outras oc- do delicto, bastaria citar a bulla dc João
easiòcs se lerão apresentado a cada um xxii e dc Pio vi, para os obrigar a mudar
dos fieis, para reiterar a renovação de seus ao menos dc linguagem, se nào quizerem
votos baptismacs? Em França são ellcs ra mudar de sentença: bastaria fazer-lhes lem
tificados quando se faz a primeira com- brar (sem fallar do que podería de algum
rnunhào; nas missões não deixam pela modo illadir-se pelos adversarios, por isso
maior parte os zelosos pregadores de con que prodigioso como a morte dc A-naniás e
vidar o povo a esse acto; no Piemonte, c de SolTraria, 1 c outros similhanles exem
em outros paizes, se dá principio ao anuo plos) fazer-lhes lembrar, digo, o castigo de
com essa soleinnidade do baptismo, no l.° Marciào, dc que falia Sancto Epiphanio: a
ou a G de janeiro: um professor que toma casa tirada a Paulo Samosatense, as mul
posse dc uma cadeira, um beneficiado da etas repetidas vezes impostas pelos, conci-
sua prebenda, costumam iniciar a nova lios, os jejuns c os Cilicios, e as cònfisca-
carreira com a profissão de fé; mas pondo ções c as privações de honras e gradua
mesmo de parle todas essas declarações ções, tudo qualidades de penas usadas,
cspeciacs, qual ó o fiel, a não ter abando incsino depois do concilio Tridentino, no
nado inteiramente toda a práctica dc pie qual foram sanccionados, sem que hou
dade, que de tanto cm tanto nào repita no vesse reclamação alguma contra isso, por
acto de fé a protestarão dc crèr tudo quan parte dos principes, que pelos seus repre
to a Igreja ensina, c* de reconhecer n’elia. sentantes assistiam ao concilio.
por consequência, os direitos por ella mes 3.° Verdade é que d’esta mesma circum-
ma authentieados como decretos solcmnes? stancia os adversarios da Igreja costumam
Vós, portanto, progressistas, que nào ad deduzir que isso se fez por delegação da
mittis em nenhuma aulhoridade o poder authoridado civil.
coacti vo, se não é consentido pelo subdito, • Mas ainda quando isto fosse verdade, por
" dizei-me se ha alguma outra sociedade, ã ventura não entraria aqui de novo o argu
qual um tal poder tenha sido consentido mento já indicado contra os incredulos mo
tào solcmnemcnte, tào formalmente pelos dernos? Se tão pouco os governos civis
súbditos como por. todos os baptisados (pri teem aulhoridade senão pelo consentimen
meiro implicitamente e depois ratificado to dos subditos, a Igreja que toria na sup-
como fica dito) como o foi á Igreja? posta hypothese a aulhoridade pelo con
Portanto o direito da Igreja, que nunca senso dòs principes, tem os mesmos direi
pôde negar-se sem erro, actualmente nào tos que o governo civil, e ainda maiores;
póde ser negado sem contradicçào pelos por quanto, pelo consentimento dos princi
que sustentam a theso acima indicada, e é pes, com mandaria os mesmos principes.
na verdade estranho que sejam estes pre- Mas a verdade ó que os imperadores pa
cisamentc os que o hostilisam com mais gãos nunca teriam conferido tal direito á
vehcmencia, quando, segundo as suas theo Igreja, e os principes chrislãos não teriam
rias, o direito da Igreja é o unico (a nào conferido á Igreja um direito eoactivo, do
ser que enumereis entre os poderes so- mesmo modo que os subditos nunca o te
ciaes os synedrios das seitas, das quacs os riam consentido ao principe, se esse direi
seus escravos cegamente juram, sobre o to não fosse fundado na propria iudolc e
punhal, de acceitar a morte) que póde glo natureza dc ambas as sociedades, como 6-
riar-se de ter esse apoio, sem o qual, pela evidente. E comtudo não só no govirno
sentença de seus adversários, todo o direi
to vacilla. 1 Digo illudir-se, e não confutar-se, por
Z ° Mas por isso que nós catholicos nào que o ser o facto milagroso o tornaria para.
podemos admittir a absurda theoria pela um coração recto, menos convincente, mos
•qual cada cidadão, cedendo o seu juizo e trando Deus mesmo cooperante com a Igre
a sua vontade á sociedade, o consentindo- j a no exercido do poder, que os adversarios-
lhe, por este modo, o direito de vida e de lhe contendem. x
IGR 551
dc principes christãos, mas até quando do se a Igreja não tem faculdade para legislar
minaram os pagãos, a Igreja usou de di nos assumptos de sua competência, em ne
reitos coactivos, dc muletas, jej uns, flagella-
nhuma parte poderemos reconhecer esta
ções, exclusão do templo c da conversão suprema faculdade legislativa, seguindo-se
dos catholicos, como é notorio pela histo que todos os poderes supremos do mundo
ria ecclesiastica. Comprehendo muito bem não derivam dc Deus, e só são uma usur-
que os adversarios da Igreja responderam, pacão ou expressão do direito da coacção
como já respondeu o herege Salmasio, que e da força, e cm prova d’isto examinemos:
a essas penitencias os fieis se sujeitaram que sociedade reconhece como chefes ho
voluntariamente, e portanto que não po mens a quem 0 Todo-Podcroso tenha dito,
diam cilas chamar-se verdadeira coacção. fallando-íhes pessoalmente, 0 que Jesus
Mas isto seria questão de nome: quem Christo, Filho de Deus, c Deus com sou
é constrangido, por temor da excommu- Pae e 0 Espirito Sancto, disse pessoalmen
nhão, a pagar uma muleta, e a supportar te a seus apostolos? «Com 0 mesmo poder
uma flagellação, soíTrc tanto a coacção, que meu Pae me enviou, assim eu vos en
como aquclle* que a essas penas se sub- vio... recebei 0 Espirito Sancto... deu-sc-me
mette pelo temor do exilio, ou da infamia todo 0 poder no céo c sobre a terra. Ide
legal: prefere o menor mal ao maior, e c ensinai a todas as nações, baptisando-as
aceita o primeiro com aquclla vontade re cm Nome do Padre, do Filho e do Espirito
pugnante, que os escolasticos chamavam Sancto; ensinai-lhes a guardar tudo aquil-
em parle involuntaria (involuntarium se lo que eu vos tenho rccommendado. Sabei
cundum quid). rjue eu estarei comvosco todos os dias até
á consummação dos séculos... Na verdade
vos digo que‘tudo que vós ligardes sobre
i vn a terra, será ligado no céo; e tudo 0 que
desligardes na terra será desligado nr
céo. *»
Houve por ventura jamais alguma mc
A Igreja tem um poder legislativo, proprio narchia que recebesse uma investidura qu<
e independente de todo o poder humano, podésse comparar-se áquella que recebeu
e que é necessario e ulil a todos os pode 0 pescador da Galilea e seus augustos suc
res supremos. cessores? «Eu te digo, falia Jesus Christo,
que tu és Pedro e sobre esta pedra funda
rás a minha Igreja, e as portas do inferno
Quando propozemos esta questão, pre não prevalecerão contra ella. Eu te darei
tendemos examinar se a igreja catholica as chaves do reino dos céos. Tudo aquillo
recebeu dc seu divino fundador o direito que tu ligares sobre a terra, será ligado no
de fazer leis religiosas que obriguem em céo; e tudo 0 que desligares sobre a terra,
consciência tanto aos prelados e pastores, será desligado no céo... Eu pedi por ti,
como aos simples fieis; questão esta que a fim de que não faltando tua fé, sejas 0
na actualidade não se quer analysar com sustento de teus irmãos... apascenta as ove
a imparcialidade que a ' razão reclama: lhas c os cordeiros a fim de que não haja
por uma parte pretende-se que a Igreja mais que um aprisco e um pastor.2»
soja uma escola e associarão piedosa, cuja Todo 0 poder para não ser ineíficaz, de
authoridade legislativa efeve reduzir-se a ve ser proporcionado á commissão que
formar alguns regulamentos interiores de desempenha, e ao objecto que se propõe.
disciplina, que ainda necessitariam ser re A commissão e objecto do poder temporal
vistos e approvados pelo poder temporal, reduz-sc a procurar os interesses materiaes
antes dc serem obrigatorios a seus filhos; de alguns milhões dc homens, c conservar
por outra, sustenta-se que a Igreja ó uma uma vida pacifica c tranquilla 3 entre os
sociedade de ordem superior, cuja autho habitantes d’um estado; porém 0 da Igreja
ridade se estende sobre os mesmos pode estende-se sobre todos os homens, a fim
res supremos; e nós não admittimos ne de regular seus negocios espirituaes, ma
nhum d’cstes dous pensamentos: dizemos teriaes, individuaes, domesticos, racionaes
sim «que a Igreja é uma sociedade d’ama
ordem superior, que deve ser regida c go 1 S. Joan., 20, 21. S. Math., 28, 18, 20.
vernada por leis proprias; assim como cada 2 S. ftlath., cap. 16, 18, 19. S. L u c a S j
uma das sociedades civis, se rege e gover 22, 32. S. Joan., 10, 16, 21, 15, 17.
na pelas suas.» 3 S. Paulo, 1.* epistola. Timotheo, capi
Para assim fallar nos fundamos em que tulo 2 .°
552 IGR
c internacionaes, segundo a sancta lei de cousa inais á sua missão, porque, ebrio pela
Deus: diremos melhor, o poder da religião gloria e poder, rodeado d’armas numero
catholica dirige-se a submetter a universa sas e invencíveis, chegando a sujeitar um
lidade de individuos c povos á lei da ver povò composto de reis, pretendeu fazer da
dade, da justiça e do amor, que reconci Igreja universal um ajudante de seu impé
liando-os entre si como pae celestial, é a rio, como tinha feito dos reis ajudantes de
unica que os póde livrar da escravidão do seu governo militar nos exercitos, e aspi
mal e conduzil-os pelo caminho da vida c rou a despojar o soberano espiritual do
da felicidade; n’uma palavra, a religião faz universo d’um pequeno principado tempo
que Deus reine sobre o genero humano no ral, que pesando pouco na balança dos des
tempo, para que este reine com Deus na tinos do mundo cm tal conceito, só serve
eternidade. para o fazer independente de qualquer so
Perguntamos agora: que governo se po berano, como o deve ser aquellc que na
derá comparar a isto? que poder politico terra é o representante de Deus.
por menos limitado e mais livre que se en O vigário de Deus, o anjo da paz em Je
contre em sua acção legislativa, se resol sus Christo, desembainhou a espada espiri
verá, não já a olhar-se como superior, mas tual, que brilhou diante dos olhos do tyran
a igualar-se a ura poder que regenera as no, que disse sorrindo-se: «julgará o nes
almas, iniciando-as na sciencia da vida cio que sua excommunhão fará cahir as
presente e futura, e as colloca por sua ac- armas das mãos dos meus soldados?» Pou
cão além dos limites do tempo c do espa cos dias mais aguardara o .Salvador para
ço? Assim parece que devia succedor, c castigar a mais insolente de todas as blas-
todavia essa tem sido a pretenção, ha mais phemias, e não querendo dar aos homens
de século e meio a esta parte, de muitos a missão de abater aquellc que só tinha
governos europeus que se diziam chris- elevado para exercer duas justiças, disse
taos, c que guiados por uma grandeza c ao gelo com a mesma voz omnipolente e
poder, que deviam á educação catholica, soberana com que do nada mandou no
ousaram levantar a mão contra Christo e principio formar os céos e a terra, des
sua Igreja, c disseram-lhe: «o vosso reino arma immediatamcnte aos vencedores do
nao é d’este inundo.» Se quereis governar mundo; e vigorisado pela palavra de Deus,
as almas haveis de fazel-o com o nosso be o rigor da estação, o gelo c frio penetrou
neplacito e a nossa vontade. Os fruetos que até ao coração dos bravos, fez cahir as ar
recolheram d’esta lucta insensata contra a mas, homens c cavallos; c cmquanlo que
obra da divina redempção humana, teem si o anjo da paz em Jesus Christo caminhava
do bem amargos em si mesmos, c bem fu da prisão para o throno, o Nabuco d’este
nestos cm suas consequências, porque reco século, o rei dos exercitos armados, o novo
lheram o desprêso de Deus e dos homens; Marte, descia do throno e caminhava para
e d’isto seguiu-se uma vertigem, que se não a prisão, que lhe preparavam seus verdu-
é incurável, 13 2ao menos c di/Gcil de reme gos, e que certamente não foram chris-
diar, segundo os progressos que tem feito tãos. 1
no genero humano. Esta lição, precedida de mil outras, ser
Pela primeira vez que se ouviu esta voz viu de mui pouco aos soberanos europeus:
contra a doutrina evangélica, sob pretexto satisfeitos com dividir entre si os despojos
de liberdades da Igreja em uma. parte, de do gigante, tomaram de seu despotismo
preeminencias e direitos supremos em ou militar o que era desconhecido desde sécu
tras, e em todas com a ideia de submetter los, permittindo que o scisma e a heresia
e subordinar a authoridade independente devorassem reinos e provincias catholicas,
da Igreja, contentou-se o Dominador su e que o principio anti-christão e anti-na
premo 2 com o destruir alguns thronos da cional, minasse surdamente o poder reli
Europa e humilhar o orgulho insolente dos gioso e a authoridade temporal.
mais. O homem * que a Providencia esco Se a Igreja denunciava as sociedades
lheu como instrumento para dar uma li secretas, e antes da explosão da mina re
ção aos reis da terra, accrescentou alguma volucionaria reclamava a livração do sa
cerdócio para inutilisar estes trabalhos sub
1 Psàlmo .106, v. 40. Cahiu o vilipendio terraneos, ou se despresavam seus avisos
sobre os principes, e os fez andar errantes como pueris e pânicos, ou se julgava que
por desertos, onde não havia caminhos. era mais conveniente e necessario vigial-a,
2 Deus e a historia contemporanea o
provam como sua obra.
3 Napoleão. 1 Byron.
IGR 553
•considerando-a a cila mais perigosa que as gal, e anarchia, é preferível aquella que
sociedades secretas c revolucionarias. mais se aproxima da ordem, que é a vida
Registamos os factos conhecidos, que de de todas as sociedades.
ram resultados que se nào podem ignorar, Tal é o império da religião c o resultado
c que são uma consequência precisa da de suas leis: o fanatismo politico nào tem
primeira inaptidào. Napoleão desapparc- duvidado olhal-o como inútil, e assentar
ceu da sccna politica como se tinha apre como fundamento da legislação humana
sentado n’ella, isto 6, entre o estampido do princípios pouco conformes ao respeito que
canhão c o espectáculo sanguinolento das merece a lei do verdadeiro Deus; porem,
batalhas; porém deixou um futuro mágico, embora o imprudente se suma com des
que os herdeiros do seu poderio, sem ter dém, o resultado n’csla vida será sempre
seu genio, teem degredado c viciado muito o que nos ensinou o espirito de Deus no
mais, em prejuízo seu c do genero huma livro da sabedoria, e que diz è tõo impossí
no: cm prejuízo seu, porque teem ide des- vel formar uma sociedade sem o funda
apparecendo uns apoz d’outros, submergi mento do poder religioso, como edificar um
dos entre as ondas espumantes do systema castello no ar.
parlamentar, que em ultimo caso lega aos Nos últimos tempos tem-se intentado ex
povos o enfado c o desgosto. perimentar a força d’esta verdade, e a ex
Ha trinta annos a esta parto que se ac- periência que se *faz adianta tanto, que já
•cordou entre os inimigos do catholicismo, não é necessário ser propheta nem politico
em annunciar um espectáculo maravilho profundo para fechar o nosso horoscopo,
so em obsequio do maior culto, que se rea- c vèr o futuro de todo o mundo europeu; é
lisouno meio das orchestras funebres, que que este, ou cahe na democracia pura que
serviram para atear de novo um fogo oc préga Proudhon, ou se salva pela theocra-
culto, c que só precisavam de que lhe che cia evangélica; nào couhecemos meio entre
gassem a mecha para incendiar a ordem c estes dous termos.
A paz do universo; porque se tornou a des Pretenderemos advogar em favor d’um
conhecer a authoridade religiosa e o poder despotismo clerical c tyrannico, ou por
legislativo do Christianismo. uma restauração social, no sentido dus sé
O poder moral, que é o poder de que culos da idade media, séculos chamados
falíamos, nào existe senão na religião, a de ferro, de ignorância e de brutalida
qual faz que o povo reconheça o direito de? Não, por certo, e aqui o consignamos
que tem o governo para mandar sobre cl- do modo mais terminante e explicito: as
le: quem duvida que, destruído este poder fôrmas d’aquella restauração c os modos
moral, desappareça necessariamente todo de explicar a supremacia papal, passaram
o poder politico? c ainda quando fosse pos já para nào voltar mais; porque nunca
sível duvidar cm theoria, cuja dúvida vi olhamos como possível que voltem ao mun
ría a ser o extravio da razão c nada mais, do as circumstandas que então fizeram jus
quem póde resistir á prova dos factos? esta tas, legitimas, necesssarias c uteis ás fôr
prova é hoje oflcrccida pelo testimunho pú mas, que hoje seriam improcedentes, c que
blico: cada um se olha com direito de im por serem desconhecidas em seus fins, se
por sua vontade por lei, c reprovar tudo extravia facilmente o juizo que se fórma
aquillo que lhe desagrada; c todos aqucl- sobre cilas, por aquelles que pretendendo
les que não fazem derivar a authoridade criticar tudo, nem consultam a historia,
de uma origem divina, não veem nos su nem estudam a legislação, nem comparam
periores que a exercem, senão tyrannos os tempos de cujos princípios procede o
dispostos sempre a escravisal-os:* d’aqui critério justo e razoavcl. Pretendemos, sim,
procedem os aprestes christãos para o mais restaurar os princípios civilisadores que
rude combate, porque a authoridade se vô Deus estabeleceu para este fim, e que pri
desobedecida c desacatada a cada instante, meiro acabarão os céos e a terra, que clles
e pela força de que usam os subditos para deixarem de ser o unico principio de jus
resistir-lhe, vô-sc obrigada a usar da força tiça c de sociabilidade; estes princípios de
para se defender c fazer-se respeitar. Só tlieocracia evangélica, ensinados pela Igre
os catholicos se apresentam no meio d’esta ja, que apresentamos cm massa, apreseuta-
lucta consequentes cm seus princípios, e mol-os também cm detalhe para evitar dú
por mais que um poder temporal substitua vidas c intcrprctacòcs ambiguas. Yêdc aqui
a vontade cega do homem à lei da justiça, o que nós entendemos por princípios de
cites o acceitam e lhe obedecem (no que* é theocracia evangélica: «Toda a soberania,
temporal), porque todo o poder deriva de todo o poder, toda a paternidade, emanam
Deus, c porque entre uma authoridade le de Deus: EUc é o unico rei das almas, dos
554 IGR
corpos, c dc toda a natureza. Sua lei é a leis, teem que escolher necessariamente os
regra suprema de todas as leis, a origem homens desde Adao até a consummação-
dc todos os direitos c a expressão de todas dos séculos, porque Deus não admitte neu
as obrigações. tralidade; o que não está com elle, é con
Além do poder dos chefes dc familia, tra clle. i
que ó ao mesmo tempo religioso e civil, A lei divina, que é uma c invariável, ar
Deus estabeleceu dous poderes, ou melhor, vorou sua insignia cm Bethlcm, quando os
estabeleceu dous ministros dc seu poder: espíritos celestes cantaram: «Gloria seja a
um religioso, para formar e conduzir a Dous nos céos, e paz na terra aos homens
grande familia da humanidade a seu eter de boa vontade.» 2
no destino; c outro civil, para manter a A lei dc Satanaz, depois dc ter esgotado
ordem c conservar a tranquillidade cm cada todas as fórmulas hypocritas do erro, apre-
familia nacional. Estes dous poderes cstào scnta-sc alfim com a fôrma mais simples
igualmente sujeitos à lei do Deus, dc quem c clara cm todos os programmas que pu
as suas leis não devem ser mais que o des blicam os chefes da jovon Europa: «Abaixo
envolvimento, c como se disséssemos seus Deus c toda a religião; caia o homem mo
artigos organicos. O poder civil ainda póde ral como todo o poder, todo o direito, toda
ter algumas outras restricçõcs, que cada a obrigação, tudo aqui 11o em fim que pode
nacào tem posto legalmentc cm seu exer ría distinguir a terra da morada da desor
cido. Estes dous poderes sào independen dem eterna.» Os symbolos dos poderes in
tes um do outro, e cada um em sua pro termedios fazom-se cm proporção da capa
pria csphcra, porem devem irmanar-sc sem cidade dos adeptos, que illudidos por seus.
se confundir.» chefes e sem jamais penetrarem na obscu
D’isto segue-se que um povo christão, re ridade dc seus mysterios, esperam a ordem
mido com o sangue de Christo, não deve do chefe geral dos illusos para a cumprir,
despresar a sua lei, para admiltir a vonta sem ao menos a examinar, nem conhecer
de do homem; 1 e deve considerar-se que suas tendências e objecto; tal é o systema
0 pontifice, os principes, os sacerdotes c que admittem os inimigos da religião, que
os magistrados, sào todos ministros de Je repellem por obscuros os mysterios divi
sus Christo, empregados uns na ordem re nos.
ligiosa, c outros na ordem civil, por cllc c As nações da Europa, amestradas pela
em serviço e utilidade de seus irmãos. experiência repetida dos factos, não sabe
Tal é o systema na restauração social mos o que farão, porque ignoramos se se
que estabelecemos, unico que póde fazer a submetterão com franqueza, 3 se voltarão
divisa da ordem, liberdade c progresso, se a refugiar-se sobre a disciplina do Senhor
gundo a verdade, porque sem estes prin e cmprehcnderào com cila a conquista pa
cípios, que houve, ou póde haver jamais cifica do universo, ou se, despresando os
para os homens e para os povos? a anar- esforços da misericordia divina, se entre
chia, a escravidão e a morte. garão á discrição dos ministros do exter
A liberdade não consiste cm fazer o que minio, até que "o céo mande aos barbaros
quer a vontade, a ignorância c a corru do norte asiatico c europeu que abando
pção; consiste sim em submettennos-nos á nem seus paizes áridos c gelados, e ve
lei da vida. unica que nos póde livrar dos nham cultivar nossas regiões cobertas de
erros, ligeireza c escravidão das paixões, e tanto sangue, para recolher os fruetos do
elevar-nos á gloriosa liberdade dc filhos de justiça que temos despresado c continua
Deus; porque esta lei, que é a lei de Jesus mos a aborrecer. 4
Christo, é a lei perfeita de liberdade: 2 a Este é o problema do futuro da Europa,
liberdade não consisto em viver sem supe e por maior que deva ser a nossa reserva
rior, isso é impossível; consiste, sim, cm para marcar o tempo o os momentos em
reconhecer o dominio d’aquellc que. nos que ha dc obrar a Omnipotentia do Padre
creou e que se humilhou ato morrer na Eterno, podemos sem dúvida, e depois do
cruz, para conseguir nossa eterna liberda ter meditado na marcha dos espíritos, pen-
de; qualquer que rejeite este saudavel jugo
de Deus, cahc imracdiatamentc debaixo da 1 S. Math., cap. 12, v. 30.
dominação do mais cruel dos tyrannos, que 2 S. Lucas, cap. 2, v. 14.
é Satanaz; entre estes dous chefes c suas 3 Psalmo 2.°, v. 12. Abraçai a boa dou
trina, para que alfim se não im ite o Senhor
1 S. Paulo, epist. aos corinthios, cap. 7, e pereçaes extraviados do caminho da jus
v. 23. tiça.
1 S. Thiago, epist. can., cap. 1, v. 25. *4 S. Malheus, cap. 21, v. 43.
INF 355
sar n’uma palavra, sentença e decreto de pude vencer e contar por toda a terra os
Jesus Christo, pela qual comprehendcmos maiores triumphos sem outras armas além
que não passará esta geração sem que este ua simples palavra, e dos peitos inermes
problema seja resolvido. 1" cios proprios filhos, que oíTcrecia ás agudas
INFALUBILIDAD15 DO PAPA (INIMIGOS DA)— espadas dos seus poderosos e terríveis ini
Tem-se, desde antigos tempos, arvorado em migos?
questão, agitada ordinariamente por parte As barbaras perseguições que a Igreja
dos hereges, que atraz de si levaram algu tern solTrido desde o seu principio até hoje,
ma voz engenhos não vúlgares—se o papa ou abcrlamcntc da parte dos judeus, pa-
nas suas decisões ex cathedra, cm assum gaos, hereges, e dos impios, ou á surdina
ptos moraes ou dogmáticos, é ou não infal- por parte dos hypocritas, não menos per
iivel. versos o inimigos, que, ostentando-so lieis
Comtudo, por não principiarmos exjabru- christãos, a vão sempre minando para fa-
pto, abandonando o nexo que ordinaria zcl-a desabar em. ruinas; c o modo porque
mente se dá, ou por natureza, ou por ne cila, sempre passiva e pacifica, tem sabido
cessidade de comparação entre os princí triumphante até hoje, e triumphará até ao
pios e os fados, observaremos quasi só fim dos séculos, são irrefragavel documen
como preâmbulo, ligeiramente, o direito to de que ha ahi mais alguma cousa que
antes de passar á historia, collocando pri simplesmente causas e efleitos naturaes.
meiro em frente uma de outra as duas op- Então, por um pensamento elevado, como
postas opiniões, da maneira que já tinha- é elevada a causa primaria do todo este
mos cscripto. assumpto, poderemos nós deixar de ad-
Notáramos nós, pois. que aquelles que miltir a infallibilidade do vigário de Jesus
no maravilhoso estabelecimento da sancta Christo na terra, da cabeça visível da Igre
Igreja de Jesus Christo, na sua portentosa ja, sem outra razão mais que a deduzida
propagação e nos seus magnificos trium das imperfeições humanas, a que o papa,
phos nãó querem vér senão causas natu- como homem é sujeito? Mas, se a cabeça
raes, c naiuracs elicitos, muito natural- errou, querereis vós que o corpo acerte?
mente produzidos por essas causas, diziam Ou se a cabeça é morta na fé, pensaes vô:
também por uma natural consequência, que que um corpo accphalo tenha vida?
o pontifice, mero homem, não é isempto Passando agora a argumentos mais posi
das imperfeições que a natureza dccahida tivos, Jesus Christo disse a Pedro que este
innoculára (com a competente excepção) era a pedra, sobre que cllc edificaria a sua
cm todos os mortaes: que assim é possível Igreja—/» és Petrus, et super hanc Petram
que como outro algum sabio o mais illus- aedificabo ecclesiam meam— Ora, se a pe
trado, possa errar cm qualquer ponto que dra angular e fundamental do edifício res
seja; que portanto rejeitam n’elle a infalli- vala e cahc, poderá este deixar de arrui
bilidade, no sentido mesmo que acima fica nar-se?
proposta.— Que, ao contrario, que na exis Todos sabem, mesmo não sendo pedrei
tência da Igreja divisamos sempre um con ros ou architectos, que a pedra que não
tinuo milagre, ou se considerem os seus está firme c segura, não sustenta o edifício.
princípios, ou os seus meios, ou os seus re Cahisse pois o mystico tabernaculo da Igre
sultados, não tenhamos por isso mesmo a ja, c as portas do inferno prevaleceríam
menor repugnância em acreditar como contra cila, e contra a bem positiva dispo
uma parle d'esso milagre permanente a in- sição de Jesus Christo, quando em seguida
fallibilidade do papa, supposto não ter sido accrescentou:—E t portai inferindo pm vo-
ainda formal e positivamente julgada um lebunt adversus eam.
artigo de fó. Todavia se d’aqui já deduz grande ar
E na verdade, como é que poderam pou gumento de força c firmeza a infallibilida-
cos homens, pobres c ignorantes, ao lançar dc do papa, não" menos concludente c tal
os fundamentos da Igreja, confundir "os vez mais claro ainda deve ser o que lhe
philosophos e os doutores da lei, c muitas subministra a formal declaração do mes
vezes convencel-os c convcrlel-os? Como é mo divino mestre Jesus Christo, quando
que a morte e o sanguo derramado, signal deu a Pedro a segurança de que rogára
e principio de aniquilarão e de exterminio, a seu Eterno Pae para que a fó nunca fal
toem sido para a Igreja, no martyrio de tasse—^ rogavi pro te, ut non deficiat fides
seus sanctos, um fecundo germen do vida tua;—juntando logo—et' tu aliquando con
c de multiplicação? Como é que a Igreja versus confirma fratres tuos;—além da in
cumbência que outra vez lhe fizera—pasce
1 S. Matheus, eap. 24, v. 34. agnos meos, pasce oves meas.
5o6 INF
Tal ó o fundamento, a origem c o fim do ser muito extenso, bastará por isso apon
primado de S. Pedro e seus successores, tar os principaes factos, sem que seja n e
que, segundo a expressa vontade de Jesus cessário dar minuciosa c exacta relação
Christo, ha de durar illibado na fé, e in dos insignificantes, a que a hostil imagina
concusso até ao fim dos tempos; porque se ção dos antagonistas quiz dar o valor o u
o dom dos milagres c o das linguas, neces a inlelligencia que não teem, porque cio
sarios no principio para o estabelecimento maior se póde bem julgar para o menor.
da Igreja, não passaram de pessoaes, o da Começando pois dos primeiros tempos
fé, sendo indispcnsvel para a sua conser diremos que não errou na fé o principe
vação, é permanente assim no primeiro dos apostolos cm Antiochia, quando foi ad
como em todos os vigários de Jesus Chris moestado por S. Paulo a que não deixasse,
to, successores de S. Pedro. pelo medo de escandalisar os judeus cliris-
O contrario seria um contrasenso, seria tàos, a convivência dos gentios convertidos
um paradoxo. Chefe visivol da Igreja, pe —segregabat se ab ris:—era este farto de
dra fundamental, centro de unidade, pas mera conveniência ou dcsconveniencia
tor dos pastores com crro_ na fé. quando christã, mais ou menos imprudente, m as
falia ou obra como tal, não pôde combi que nada aíTcctava a fé inabalavel de Pedro.
nar-se com princípios nenhuns, nem divi Não póde ser argumento de fallibilidade
nos, nem humanos. N’cste ponto a philo no pontifice a questão entre S. Victor e o s
sophia terrestre, discorrendo diversamen- bispos contumazes da Asia-menor sobre a
tc. claudicou como cm muitos outros. celebração da Pasehoa; nem as queixas de
Mas se por uma tactica mais conforlablc alguns bispos do Occidente, acerca d’aqucl-
quizessem os adversarios levar a questão le objecto contra o sancto pontifice, se re
ao campo dos factos, não recusaríamos, feriam mais que ao seu rigor, diverso do
pequenas como são nossas forças, entrar exemplo de seus prcdcccssorcs.
corajosamente uo combate. No mesmo caso se acha a opposiçào dos
bispos de Africa e de alguns asiatleos na
outra também renhida questão da rebnpli-
II
sação dos hereges, mandando Sancto Este
vão que não tornassem a ser baptisados
A experienda de quasi dezenove sécu todos aquelles que já uma vez o tivessem
lo s ^ um monumento indcstructivel, levan válidamente sido. O facto era então mera
tado á infallibilidadc dos papas. E suppos- mente disciplinar, se havia ou não de rei-
to seja mesmo á sombra d'esse magestoso torar-sc o baptismo; nem S. Cypriano ou
monumento da experienda que os adver Firmiliano, ou algum outro dos’ bispos op-
sarios queiram ajudar-se dos factos para postos, assim n’esta questão, como já linha
combater uma verdade tão solemnc e fun- sido na da celebração da Pasehoa, duvida
damentalmcnle estabelecida, nós retocare vam do poder que* tinha o papa de julgar
mos, o mais rapidamente que podermos, sobre assumpto de fé, porque esta foi sem
esses mesmos fados, ou antes lhes sacudi pre a crença da Igreja catholica, c pre
remos o pó com que alguns teem querido tendiam somente conservar sobre aquelles
cobril-os para oecultar as suas verdadei factos os costumes das suas particulares
ras feições, e enganarem assim os leitores igrejas, que julgavam não reprováveis.
incautos, c os mostraremos ao público, na Em uma e outra d’estas duas questões,
sua verdadeira luz. isto é, a da celebração da Pasehoa, c a da
Não temos á mão alguma das obras de rebaptisação dos hereges, se conformaram
qualquer antigo ou moderno escriptor, que depois, com as decisões pontificias, os vo
ex j)rofesso ou mais largamente tractasse tos dos padres de Nicca.
este objecto. Foi-nos portanto necessário O facto do papa Marcollino, mesmo a ser
percorrer a historia para colligir os factos verdadeiro, pois ha muito boas razões para
que dizem respeito ao nosso assumpto, dis o não ter por tal, nem merece commemo-
persos em toda dia, valendo-nos para isso rar-se aqui, porque ninguem ignora que
principalmcntc de um curso de historia uma fraqueza, nascida do medo da morte,
ecclesiastica, recentemente publicado cm não é um erro de entendimento, e muito
Italia, e mesmo da grande obra do histo menos uma decisão ex cathedra.
riador Flcury, apesar de contrario, como Mais parecería coadjuvar a opinião dos
quasi todos os gallicanos de certa época, â contrários á infallibilidadc dos papas a
causa que defendemos. E como aqui nos subseripção de Libcrio á formula de fe,
não propomos compôr um tractado, mas em que se calava ou omittia a palavra—
sómente redigir um artigo, que não póde Oniousion— consubstancialidade do Filho
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com o Pac. Comtudo, ponderados os prece seus protestos, apesar dos quacs, averi
dentes d'esto sancto pontifice, a repugnân guando depois melhor o facto, se conheceu
cia que sempre mostrara á doutrina aria que era realmente verdadeiro herege. Mas
na, e padccimcnlos c desterros, que por (jue pode o erro de pessoa ter de communi,
essa causa solTrera, não pôde dizer-se que para o nosso caso, com o de doutrina?
houvesse da sua parto erro de entendi
mento cm uma cousa contra a qual tanto
havia Iuctado, mas que unicamente assigná- III
ra, vencido de tedio c languor dos padecí-
raontos—paixões estas dc animo, diz um Nada prova também contra a infallibili-
cscriptor, que explicam quando muito uma dade dos successores dc S. Pedro, a ques
ligeireza do espirito, mas nunca uma von tão chamada dos tres capítulos, em tempo
tade firme, ou proposito de querer que os do papa Vigilio, pois que em todas as al
outros assim obrem. ternativas da dita questão o pontilicc não
Além de que, por ter assiguado quasi se contradisse, e muito menos em assum
forçadamente o papa Libcrio uma formula pto dogmatico, versando sómente em fa
simplesmente equivoca, dizendo-se alli que ctos pessoaes as modificações que se viu
o Filho é igual ao Pac, e calando-se que obrigado a fazer, não por*inconstancia ou
lhe é também consubstanciai, nada igual- ligeireza, mas por hem ponderado juizo,
mente se pódc concluir contra a infallibi- pois que é proprio do homem sabio e pru
lidade do papa, não só porque o que disse dente mudar conselho, se para isso tem
era em si verdadeiro, mas também porque ■razoaveis motivos, como sobre este objecto
não houve aqui alguma decisão cx cathe- explicou Pelagio n, na sua carta aos bis
ilra pela falta assim de plena liberdade e pos dc Istria.
de clareza, como de varias outras circum Os padres do concilio de Calcedonia,
standas indispensáveis cm aclos de simi- condemnando os erros de Eutychcs e Ncs-
lhantc especie. torio, não quizeram, por motivos que jul
O procedimento de S. Zozimo na questão garam razoaveis, entrar na particular dis
j de Celestino, admittindo-o á communhão cussão das obras de alguns bispos, uns já
da Igreja, como se approvasse a depravada mortos no seio da Igreja, outros alli pre
doutrina d’aquelle herege, é outro argu sentes, contentando-se que estes disses
mento dos iinpugnadorcs da infallibilida- sem anathema contra aquelles heresiarcas,
de: analysado porém o facto, nada se acha como fizeram; pelo que foram readmittidos
dc erro contra a fé ou contra a moral no á communhão catholica.
sancto pontifice. Instigado porém o imperador pela vin
Fura apresentar-se-lho Celestino quei- gativa emulação de alguns intriguistas c
xando-se-lhc do juizo contra si proferido encobertos fautores dos hereges, que não
pelos bispos de Africa, c protestando que podiam soíTrcr a condemnação de alguns
não se oppunha aos decretos do papa In- erros de Origcnes, condemnou também o
noccncio (sobre que versava a contenda), imperador, pelo seu edito de 54o, os cscri-
c que admittia ou reprovava aquillo que ptos de um d,aquelles bispos, Theodoro
pela sancta sé fosse, reprovado ou admitti- Mopsucsteno, já morto, e dous ainda vivos
do. Parecia portanto não haver ainda per e presentes ao concilio de Calcedouia,e alli
tinacia; c sem lhe recusar a communhão, retractados e admittidos á communhão da
recebeu S. Zozimo benignamente a sua Igreja—Theodoreto, bispo cinense, c lhas,
profissão dc fé, na qual comtudo calava o bispo de Edessa, o que formava o objecto
Iicresiarca o que sustentava manifestamen dos chamados tres capítulos.
te falso, e expunha com termos equívocos Subscreveram os bispos do Oriente, pelo
o que podia tomar-sc em varios c diver respeito ao imperador, ainda que ao prin
sos sentidos: apenas porém apresentou as cipio repugnassem: Vigilio, porém, c os
suas interpretações, explicando claramente bispos do Occidente não annuiram, assim
o sentido das suas ambiguas palavras, foi por attençào ao concilio, como por outras
logo condemnado por S. Zozimo, proscri razões que podem vér-sc na historia, sen
pto, o denunciado como heretico ao impe do este um negocio mais de prudência c
rador q toda a Igreja. politica ecclesiastica, que dc doutrina e
O mais, portanto, que n'cstc caso podería theologia; porque os erros de Eutyches c
imputar-se ao pontifice Zozimo, seria so de Nestorio, de que podia achar-sc alguma
mente o ter-se enganado quanto á pessoa infecção nas ditas obras, estavam prescri-
dc Celestino, julgando-o dc animo catholico, ptos nos dous conci lios de Epheso o Calce
ou pelo menos não pertinaz, segundo os donia, no que todos concordavam.
Comtudo, considerando o pontifice que igreja universal aquclla paz de que tantas
se ellc proprio condemnasse os tres capí dissensões o opposieào de espíritos dividi
tulos, talvez os bispos do Occidente o se dos a tinham privado.
guiríam, terminando assim as dissensões
entre as duas igrejas, grega e latina, pu
blicou o seu Judicatum, coni que condc- IV
mnava os tres capítulos. Foi todavia illu-
dida a esperança do pontifice;' porque a Exporemos, em seguida, o celebre facto
dissensão augmentou a tal poiito no Occi que diz respeito ao papa Honorio, conside
dente, não só contra os bispos da igreja rado como herege monothelita, mesmo polo
grega, mas até contra o proprio papa, que proprio Bossuet, que para sustentar a sua
ellc julgou prudente suspender o Judica triste ideia ou opinião dc fallibilidade nos
tu m , recolhcndo-o da mao do patriarcha papas, nào sc envergonhou dc aggregar-se,
Monna, de Constantinopla, até á convoca como Pottor c outros, aos accusadores as
ção de um concilio, pedido pelo impera sim d’estc, pontifice, como dc outros, espo-
dor, em que as diversas opiniões se dis cialmcnte o já mencionado Liberio, que al
cutissem na frente umas das outras, c se cunharam dc ariano. Mas tal é o limite c
podessem assim entender, e mais volunta a imperfeição dos espíritos, tidos mesmo
riamente combinar; exigindo sómente o pelos mais sublimes, que até no auge de
pontifice que para, evitar-se a preponde sua elevação, por nào desmentirem a fra
rância de partidos, interviessem ao conci gilidade da natureza humana, sc deixam
lio tantos bispos do Occidente, como do cahir, como deixou miscramcnte o referi
Oriente. do Bossuet, cm alguma de cujas obras se
Depois de muitas dúvidas sobre o local acha lançado o anathema do index expur-
onde se celebraria o concilio, foi este con gatorio dos livros prohibidos.
vocado para Constantinopla; mas como se Apesar, pois, do voto dc Bossuet, c ou
apresentassem os bispos do Occidente em tros aliás respeitáveis gallicanos, diremos
muito menor numero que os orientaes, e como disseram os contemporaneos c visi-
se désse principio por ordem do impera nhos d’aquellcs tempos, segundo as leis da
dor ás deliberações, nào só não quiz o sensata hermeneulica, os dous pontifices,
pontifice assistir, mas nem delegou quem S. Martinho, no concilio Lateranense, e San
fizesse alli as suas vezes. cto Agatào, na epistola a Constantino Po-
N'estas circumstandas, considerando Vi gonato, c como disse o martyr S. Maximo,
gilio que d’aquelle conciliabulo nào resul na sua carta a Pedro—que* nenhum dos
tariam senão cada vez maiores desordens pontifices anteriores, incluindo Honorio, ap-
na christandade, decretou então o seu Con provára jámais, ou deixára dc combater a
stitutum , que vinha a ser o Judicatum mais heresia monothelita.
modificado, poupando as pessoas, c impon E descendo mesmo á analvse da carta
do silencio sobre a carta de Ibas (que até d’aquclle accusado pontifice, dírigida a Sér
•era supposta apocripha), para vér se podia gio, corpo do delicto, cm que os contrarios
assim contentar orientaes e occidcntaes, c buscam a aceusação, igualmente diremos
restabelecer a paz cm toda a igreja; e an com o seu proprio secretario, o abbade
tes da quinta sessão o enviou a Justianiano João, allegado pelo acima commcmorado
para que este o fizesse apresentar aos pa S. Maximo, na sua carta a Marino, com o
dres alli reunidos; mas nào o fazendo as papa João iv, na carta ao imperador Con
sim o imperador, antes occultando-o e stantino, e com a opinião de excellentes
usando de outras malacias, deu-se por ter criticos, antigos c modernos, quo Honorio
minado o concilio á oitava sessão, e. por disse sim que reconhecia uma só vontade
•ellc foram condemnados in toto os tres cm Christo, ablato gemince operationis vo
capítulos, o que porém não teria validade cabulo (dLaqui talvez o equivoco), mas cra
.alguma se Vigilio não confirmasse, como quanto á humanidade, c não duas vonta
passados mczes confirmou, este concilio des contrarias (tal cra a errada crença de
com a sua decretai, dirigida ao patriarcha Sergio) uma do espirito, e outra da carne,
Eutichio, de Constantinopla, condemnando como nós temos depois do pceeado—cum
por ella, como já tinha feito no Judicatum, Sergius scripsisset quod quidam duas volun
os ires capítulos. tates in Chrislo contrarias dicerent, rescri
D ’cste modo, pois, usando ora dc firme psimus: Christum non duas voluntates con
za, ora dc prudência, longe de errar na fé, trarias habuisse, carnes inquam et spiritus,
ou na doutrina, chegou o papa Vigilio a sicut nos habemus post peccat um, sed unum
conseguir o seu fun, qual era restituir á tantum, qua« naturaliter ejus humanitatem
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signabat (Abbadc Joan. ut supra). Quanto que o homem, devendo reconhecer que só
porém ás duas operações ou vontades, di dc Deus emana todo o seu bem, em nin
vina c humana, sem dúvida as reconhecia guém mais que n’cllc só poderá com fun
Honorio, existentes unidamerite na pessoa damento gloriar-se.
<lc Christo, como elle mesmo dizia na re O modo como o sancto padre Gregorio
ferida carta a Sergio—inconfuse, indivise, v i i se houve com o herege Bercngario, que
atque inconvcrtibiliter propria operantes. negava a real presença dc Jesus Christo
Mais diíficuldade parecería cncontrar-sc no Sacramento do altar, é mais um outro
x no procedimento dos padres do sexto con dos argumentos com que os adversarios da
cilio geral, commemorada ainda no sctimo infallibilidade dos successores dc S. Pedro
e no oitavo, condemnando a memoria do a querem combater.
sancto pontifice Honorio, pelo que tinha cs- Em urn dos dous concilios, que, além dc
cripto a Sergio, não porque ahi se achasse outros cm diversas partes, se celebraram
qualquer erro ou heresia, que elles como em Roma no tempo d aquclle pontifice cun-
tal especificassem ou declarassem, mas por tra Berengario, propôz este a sua profissão
que em vez de procurar extinguir, logo no de fé muito vaga e ambigua, que não agra
principio, com sua apostolica authoridade, dando ao concilio, foi substituída por outra,
a heresia, deixou-a tomar corpo, tendo-a dictada pelo proprio papa, subscrevcndo-a
assim por negligencia favorecido. Esta ne- Bercngario, c confirmando-a com juramen
ligcncia na prompta fulminaeào do erro, to dc que não tornaria a seguir o erro.
cuYnolivo a tomar-sc como approvação, c Então o sancto pontifice recebeu com be
á sua sombra apparccia, para maior apoio nevolência, qual bom pae de familia, o fi
da heresia, a famosa Ectesi ou exposição lho arrependido e recuperado, deelaran-
de fé, do imperador Heraclio, que, por fin do-o por suas apostólicas letras catholico,
gida moderação, e induzido por Sergio, pro- c ordenando a todos os fieis que o não in
hibia nomear tanto uma como duas vonta commodassem: voltaudo este, porém, a
des em Christo; o que pelos seus cfleitos França, rctractou-sc da abjuração de seus
tornou ainda mais grave c mais reprová erros* feita em Roma, c tornou de novo a
vel a negligencia de Honorio. cnsinal-os, accrescentando perfidamente ter
Assim o entenderam os proprios assis em favor de sua doutrina o voto «assim do
tentes no sexto concilio geral, como o im pontifice como do concilio romano, menti
perador Constantino Pagonato, que no seu ra que depois também foi repetida pelos
edito, em que publicava o anathema d’aquel- poucos bispos, que juntamente com o car
lc concilio contra os hereges monothelitas, deal scismatico Bennone, se juntaram em
nomeava Honorio, não como herege, mas Brcscia por ordem do imperador Henrique
sómente, segundo o sentido que deixamos iv, para cohonestar por este modo a depo
dito, como o fautor da heresia. E mais cla sição que elle ordenava do legitimo papa,
ra e coinpetentemcnte S. Leão n, que con e a elevação do «anti-papa Guiberto.
firmou as actas d’aquellc concilio na sua Ora se Moshcm (com todos os da sua er
carta aos bispos de Hespanha, diz, como já rada opinião) tivesse, diz o supra-citado
fica indicado, fallando da condemnaçào de cscriptor, mesmo ligeiramente rcflectido
Honorio—qui flammam haeretici dogmatis, que fora sempre costume dos hereges ser-
non, u t decuit apostolicam auctoritatem, virem-se do nome e da authoridade dos
incipientem extinxit, sed negligendo confo mesmos que os deviam proscrever c con-
v it—que desprosando* favoreceu, não ful demnar, para melhor poderem impor e fa
minando logo quanto convinha. zer acreditar suas falsas doutrinas, e ti
Eis-aqui pois a interpretação que a isto vesse lido a fórmula de fé que o sancto
deram as authoridades e cscriptorcs con pontifice dictára a Bercngario, c este sub
temporaneos c proximos seguintes, cujo screveu em presença do concilio romano,
voto deve ter certamentc mais pôso que não avançaria, «querendo passar por es-
<j dos Bossuet e dos Potter, que viveram criptor probo c de verdade», a falsa e in-
séculos depois. E assim concluiremos com decorosa «asserção de que Gregorio vu fòra
a s proprias expressões d’um sabio escri- fautor do hcrégc Berengario, c que parti
ptor moderno— que não houve no papa lhara seus erros.
Honorio algum erro declarado ^entendi
mento, e muito menos heresia, mas sómen V
te defeito de bom ponderada prudência, c
dc fraqueza da parte da vontade; o que
não mostra mais que as grandes preroga- Restam ainda outros diversos tropeços,
íivás são encerradas cm vasos de barro, e com que se tem querido também embara-
çar o livre curso da infallibilidadc dos pa lhcs-hcmos dous mais breves, que se re
pas. Encontram-se expostos alguns por M. ferem aos papas Clemente vi e Urbano v.
de Flcury, que não se deliberando a negar Diz, pois, Flcury que o papa Clemente
directa e positivamente aquella indispensá vi vendo-se doente c cm perigo do vida, fi
vel qualidade no supremo pastor do reba zera uma declaração, pela qual revogava
nho universal, se contenta em applical-os, tudo aqui 11o que ou antes ou depois de-
apontando-os isoladamente nos respectivos pontifico lhe podésse ter escapado contra
periodos historicos a que pertencem. a fé c bons costumes, disputando, ensi
É um d‘ellcs a renovação de certos anti nando, prégando ou d’outra qualquer ma
gos canones feita pelo pontifice S. Symma- neira: e o cscriptor adverte os leitores ^ es
co, posterior a S. Zo/imo, o anterior a Vi te ponto de sua historia, que o papa -parte
gilio, de quem já se fallou, nos quaes se même de ce qiCil a dit, ct yrêche dejniis son
diz—que as ovelhas nào devem accusar o pontificai, mas sem tirar illacçâo. j\ ' ó s con
seu pastor senão errando clle contra a fé, cordamos, acreditando sem difiiculdade na
ou fazendo-lhes alguma particular injusti palavra do historiador, c deduzimos d’ahi
ça. D’aqui deduz Flcury a illacçâo— que primeiramente que o pontifico não reco
ò papa reconhece poder errar.—Mas sup- nhece ter errado; e se depois d’isso atten-
pondo mesmo que esses canones faliam cm dermos ao estado d’angustia cm que na
sentido tão absoluto, que não admittam a cx- turalmente se achava pelos soíTrimentos
cepção do pastor dos pastores, c sem pre da doença, pelo medo da morte, c pelo de
cisarmos recorrer á favoravel intelligen- sejo de segurar o seu eterno destino, .que-
cia, que se pódc obter da combinação (Tes admira que por cautela fizesse o pontifico
tes canones com o cscripto de Ennodio em tal declaração, sem mesmo estar persua
favor dos papas, approvado pouco antes dido de que tivesse errado contra a fé, ou
pelo concilio romano e pelo proprio che de que a isso fosse sujeito? Além de que
fe supremo da Igreja, diremos que, se o não lendo ainda sido definido este ponto
pontifico pôde cahir em erro como particu como artigo do fé, obrou o papa judiciosa
lar por fragilidade propria, e cm caso in e prudentemente por cautela, ainda mes
dividual, como se diz ter acontecido a S. mo estando na persuasão assim de que
Marcellino, que por medo da morte incen não errára, como de que não podia errar
sara aos idolos, ou como succedcu a Hono —no sentido em que é baseada a questão,
rio, que por negligencia ou pouca activi* pois podería suppôr-se que bra sujeito ao
dade deixou medrar a heresia monothelita, erro fóra d’cste sentido; e assim nada pro
ou ainda como Liberio, que cansado dos va o presente facto contra a infallibilidadc
tormentos, ou talvez por surpreza, assi- de que tractamos.
gnou um como equivoco, que em si nada A protestação do papa Urbano v feita á
tinha d’crronco, mas que só pela conse hora da sua morte, na qual clle diz, se
quência que. d’ahi queriam tirar os herc- gundo o mesmo historiador, na presença
ges, é que isso foi causa de que d le s o ti do seu confessor, de seu camareiro, e d ou
vessem por ariano; comtudo, nada d’isto é tras pessoas—que crê firmemente tudo o
fallar c decidir ex cathedra, como fica de que cré c ensina a Sancta Igreja Catholica,
monstrado; c portanto, dado de barato que c que se tiver avançado em contrario al
os pontifices podessem como individuos guma cousa de qualquer maneira que seja,
particulares e por fraqueza c medo, ou ca o revoga—é um argumento da mesma ou
hir em erro, ou obrar contra a fé, e serem ainda menor força que o antecedente, não
n’esse caso sujeitos ás disposições cTaquel- precisando por isso d’outra alguma res
les canones, nunca d'ahi se podería tirar a posta.
consequência necessaria de que clles er
rem também, ou que S. Symmaco reco VI
nhecera que podem errar quando faliam
ex cathedra, como pessoas públicas, reves
tidos da sua authoridadc para serem obe Os dous factos que os sectarios da falli
decidos, tornando-se por isso insignifican- bilidade nos papas leem allegado contra o
tissimo e de nenhum valor este indirecto sancto padre João xxn, como prova de er
argumento de Fieury. ro contra a fé, referem-se o primeiro a
Deveríam agora seguir-se pela ordem celebre questão da pobreza franciscana, e
chronologica os factos que se allegam con o segundo á da visão beatifica.
tra o summo pontifice João xxn, como pro Pelo que respeita ao primeiro, e para
va da pretendida fallibilidade; mas, exigin lamentar a insisteneia^do proprio Bossuet
do esses mais alguma extensão, antepòr- na sua injusta accusação dos summos pon-
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tificcs, para fazer valer a tristissima opi Então publicou o mesmo sancto nadre a
nião da fallibilidadc, dc que tambcm cra constituirão Cum inter nullos, na qual, para
sectario, procurando achar contradicçào justificação do que tinha ordenado na sua
entre os decretos dc João xxn c o de Nico- antecedente, definiu— terem Jesus Chris
lau m, por isso que este dissera—não terem to e os apostolos possuido em commum al
Jesus Christo c os apostolos possuido cou- guma cousa:—c como tres dos mais notá
sa alguma nem proprio nem em commum, veis revoltosos Cescna, Occamo c Banogra-
quando polo contrario aquelle allirmára zia reclamassem contra esta definição, di
que não repugnava â pobreza de Jesus zendo-a opposta a quanto havia sido deter
Christo e dos scus apostolos a posse c o minado pelos passados pontifices, princi-
uso d’algumas cousas em commum: ac palmcnte Nicolau nr, na sua constituição
crescendo a isto haver o pontifice João xxu Exiit qui seminat, que, interpretando a re
publicado ainda outro decreto em que de gra dc S. Francisco, dissera ser cousa san
clarava hcrctico todo aquelle que á sua pri cta c meritória abandonar toda a proprie
meira decisão se oppozesse: d’ondc pare dade de bens, assim em particular como
ceu a Bossuet que algum dos pontifices er em commum, o que também Jesus Christo
rara, e sobre facto da Sagrada E scriptura, c os apostolos haviam practicado, promul
que é ponto de fé. gou ainda João x x ii uma outra constitui
Nós, porém, mostraremos que não hou ção, que principia Quia quorundam, cm
ve verdadeira contradicçào nos decretos que sc propôz defender a precedente, de
d’aqucllcs pontifices, fazendo para melhor clarando herege todo aquelle que se lhe
intelligencia uma prévia e ligeira descri- oppozesse.
pção do facto, sem comtudo entrar em al Respondendo, pois, lembraremos primei
gumas particularidades referidas por Flcu- ro, que em tudo o que não é contra a fé ou
ry sobre o assumpto, assim por nos pare contra a moral, podem os papas fazer a
cerem desnecessárias como para não tor alterações que segundo os tempos c as ci
nar longo o artigo. cumstancias parecerem necessarias e co
Disputavam entre si alguns frades fran- venientes, como o teem sido a práctica
ciscanos sobre a fórma do habito c do ca- todos os séculos da Igreja; o que é dc ta
pucho; e esta questão, que ao principio pa ta evidencia, que não precisamos demorai
recia insignificante, veio 'depois a mover nos íVeste incidente para mostrar que c
na ordem grave scisma, querendo uns que pontifico João podia fazer na regra de S.
o vestuário fosse restituido ás fôrmas pri Francisco sobre a possessão d'alguns bens
mitivas, e outros que se conservasse lar em commum, a modificação que nào tinha
go e dc melhor talhe, como por ultimo se feito Nicolau quando a confirmara.
usava: além do que accresccntavam aqucl- Quanto, porém, á apparente contradic-
lcs—que, segundo as intenções do funda ção nas asserções dos ditos dous pontifices
dor. nada dc comestível deveria conscr- sobre a pobreza dê Christo c dos apostolos,
var-se no celeiro; c se intitulavam espiri- tendo dito Nicolau que estes cousa nenhu
tuaes. ma haviam possuido, e definindo João que
Para terminar, pois, as desordeus, em tinham possuido cm commum, accrescen-
que por estes motivos andava envolvida tando a declaração de herege a todo aquelle
toda a congregação, ordenou o pontifice que obstinadaniente ousasse negar aquella
pela sua constituição Quorundam exigit, sua proposição, diremos com os melhores
que os proprios guardiães c ministros da criticos—que Nicolau não tivera cm vista
ordem, combinassem a fórma que devia dar unia definição sobre o assumpto: disse
ter o habito, e a quantidade de pão que sómente, como" de passagem c em geral,
para as necessidades do convento se deve para louvar a abnegação dos religiosos
ria temporariamente conservar, impondo a franciscanos, que tambcm Jesus Christo e
todos os religiosos a obrigação dc obede os apostolos nada possuíam, quando pelo
cerem sem contrariedade áquillo que por contrario João xxii teve posilivamente por
seus superiores lhes fosse mandado. lim, â vista das questões suscitadas, defi
Não agradou, porém, a alguns dos prin- nir este ponto: pelo que, sendo de diversa
cipacs coryphcus da desordem esta deter natureza o fim d’ambos ollos c a qualidade
minação do papa, não tanto pelo que res do seu dizer, muito bem podia este, sem
peitava ao habito, quanto á propriedade c injuria d’aqucllc sou prodecessor, c sem
uso das cousas, passando da disputa ao menoscabo da infallibilidadc, que defende
scisma, e d’ahi á heresia, até chegarem a mos nos successores de S. Pedro, definir o
vomitar blasphcmias contra o proprio pon coutrario do que aquelle tinha, sóraente
tifice. opinando, ou como de passagem referido.
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Dcmãfc, suppondo mesmo (sem comtudo de parecer, como se via dos cscriptos de
conceder) que também Nicolau se tinha Adriano, Gerson, c Occamo.
proposto definir aquelle ponto de historia Nós, pois, deixando de parle pola mes
sagrada como se propozcra João, ainda ma razão porque outras vezes o temos fei
nem assim se poderíam notar de contradi to, varias circumstandas menos importan
ctorias as suas definições, porqnc o sentido tes ou menos futeis, que cm cstylo hostil
da expressão de Nicolau era, diz uni illus- refere Fleury sobre este assumptò, respon
trado interprete, que houve tempo em que deremos aos expostos fundamentos da ac-
Jesus Christo c os apostolos nada possui cusação, não ser verdade que o pontifice
ram em commum, sendo o sentido da de João xxn, ou antes de ventilada pelos theo
finição de João xxu, que houve tempo cm logos no sou tempo a questão da visão bea
que- ellcs possuiram também alguma cou- tifica, ou antes das suas declarações de 3
sa em commum: as quacs duas proposi de janeiro e 3 de dezembro de 1334, con
ções, distinctos os tempos, podiam ser am formes á verdadeira doutrina, sobre este
bas verdadeiras, e na verdade o eram. ponto, tivesse dado em favor do erro algu
Ora, não seria cousa mais decente c mais ma decisão como pontifico, nem mesmo co
christã, que Bossuet empregasse o seu eru mo doutor particular o tivesse positivamen
dito e sublime talento em defender a Igre te sustentado; o que se prova não só com
ja e o seu chefe visível das calumnias que a carta do mesmo Sancto Padre, dirigida ao
em todos os tempos lhes teem sido imputa mencionado rei Philippe de Valois, era que
das pelos impios c pelos hereges, do que lhe assegurava não ter feito sobre tal obje
andar escabichando pontinhas por onde po- cto nos seus discursos mais que recitar so
desse vêr cahidos os pontifices em suppos- mente diversos logares da Escriptura e dos
tos erros, ou em apparentes contradicções, padres, que pareciam favorecer aquella opi
?omo esta de João xxii c Nicolau nr, para nião; mas igualmento com as suas declara
Jizer depois com os inimigos da Igreja— ções, acima indicadas, dc 3 de janeiro c 3
que o vigário de Jesus Christo errou na fé de dezembro, em que por instrumento pú
e na doutrina. blico e solcmne, e por uma sua bulla, cer
tificou o mesmo que ao rei Philippe tinha
asseverado.
YI I Nós negamos que o pontifico mandasse
encarcerar Thomaz Valas, que pregava a
verdade contra o erro, mas diremos que o
O outro faclo, que por parte dos adver fez justamente, porque havendo tolerado
sarios se.allega contra o mesme pontifice que cada um seguisse a propria opinião
João xxii em prova da fallibilidade nos che emquanto a Igreja não tivesse definido este
fes da Igreja, é que elle aífirmava que as ponto, não podia entretanto permittir que
almas innocentes ou puramente purgadas qualquer individuo particular ousasse pre
não eram admittidas á visão beatifica de venir imprudentemente o juizo da Igreja,
Deus, sem que primeiro tivessem no dia do taxando dc heresia a opposta opinião, como
juizo universal reassumido os seus corpos, fez aquellc dominicano; e ó essa a razão
contra o que depois fôra definido pelo seu porque justamente o fizera o papa encar
successor Benedicto xxu no anno de 1336. cerar, e não pela simples opinião que se
É certo que quando principiou a ser agi guia ou publicava.
tada esta questão, parecia que o papa se As ameaças do rei de França por occa-
inclinava aquella erronea doutrina, não só sião d’csta questão, ou os adversarios as
pelo que expressava nos seus discursos, e confundem com as que foram dirigidas
porque permittia que fosso prégada pelos contra o geral dos franciscános Geraud,
frades menores uma tal crença, tanto em que em Paris prégava publicamente e com
Paris como na propria cidade de Avinhão, geral escandalo e admiração o deferimen
onde residia, mas ainda mais porque fez to da visão beatifica, as quacs a malicia
encarcerar Thomaz Yalas, da ordem dos ou ignorância de escriptorcs subsequentes
prégadores, que pública c ,ardentemente suppôz dirigidas ao papa, como se nota cm
sustentava a doutrina opposta, notando Adriano e Gerson (pois quanto a Occamo,
aquelfoutra de erronea; accrescentando ainda que coevo, era um frade apostata,
mais os adversarios—que tanto o pontifice scismatico e encarniçado inimigo do papa,
seguia aquella falsa opinião, ao menos co não admirando assim que lhe levantasse
mo particular doutor, que atq o rei de tão,injurioso descrédito), que dc falsos ra-
Franca, Philippe de Valois, o ameaçára mores do vulgo colheram essa noticia, e
com o supplicio do fogo se não mudasse não de veridicos documentos, que só depois
INF m
4 ’ellcs foram publicados, ou referidos por chcs, o que talvez deu causa ás desordens,
Oderieo Ha ina Ido; ou cnlào são inteira- suscitadas então no conciliabulo de Con-
incntc falsas, por quanto, além de que se stanlinopla, escrevendo depois ao mesmo
•deve considerar alheio do animo de Phi S. Flaviano em sentido um tanto diverso,
lippe de Valois o fazer uma tão insensata a segunda, que muito applaudida foi no
c insolente ameaça ao pontifico, o mesmo concilio do Calcedonia e alli examinada;
se comprova com as cartas d’cstc áquclle d’ondc Natal Alexandre. Bossuet c Fcbro-
soberano, em que se queixa das ameaças nio tiraram indirectas e fraquissimasinduc-
feitas aos religiosos, e nfio diz nem palavra çuos contra a infallibilidadc dos papas.
de alguma ameaça feita contra a sua pro Por igual razão passamos cm claro ou
pria pessoa; além de que já o prudente rei tros argumentos, que os sobredilos Natal
não duvidava da intenção do pontifico, para Alexandre e Bossuet fundamentam no fa
ousar ultrajai-o assim* pois que até á aca cto de haver Leão u convocado um conci
demia de Paris lhe havia tarnhom já refe lio gera! para condemnar a heresia mono-
rido que o pontifico João xxu não suslcn- thelitajácondemnadapor Martinho e Aga-
tára jamais uma tal opinião, havendo so táo cm dous concilios celebrados cm Koma.
mente, como cllc proprio tinha feito saber Por causa idêntica omittimos, comocou-
-a Philippe, recitado alguns textos da Es- sa ociosa no presente caso, discorrer sobre
criptura e dos padres da Igreja: non asse o cap. de Graciano Sunt quidam 25. q. I,
rendo, seu opinando protulit, sed solummodo c. G, notado em PIcury na questão da po
recitando. breza franciscana em tempo de João xxu,
Ora vejam os leitores a que vem a ro- onde se lé—que se o papa procurasse des
•duzir-sc tanto apparato de argumentos for truir o que tem sido ensinado pelos apos
çados, e improducentes com que os adver tolos, c pelos prophetas seria mais depres
sarios da infallibilidadc a tem querido im sa convencido de ter cahido em erro d
pugnar, procurando por todos os modos que ter dado uma decisão.
achar cahido em erro contra a fé ou con Por motivo similhante guardamos silen
tra a moral, qualquer dos successores de cio relati va mente á condemnação ou nãc
S. Pedro, sem que comtudo até agora o te condemnação do livro de Moitna, exami
nham na realidade podido conseguir. nado pela congregação de auxiliis, ereada
para esse fim por Clemente viu, d'onde os
adversarios quizeram deduzir, que por hu
VIII manos respeitos, por gratidão ou por te
mor, deixaram cinco pontifices, pelo menos,
desde Paulo v até Benedicto xiu, trium-
Terminaremos omfim a nossa tarefa to phar o erro sobre eousas tão notáveis, de.
cando a questão sobre o facto relativo aos que dependiam os destinos do homem e o
ritos chineses, proscriptos ultimamcntc por modo de dirigir-se no comportamento da
Bento xiv, depois de terem sido permiltidos, vida espiritual, não condemnando, depois
em parte, por alguns de seus predecesso- de terem para isso sido instados pelos theo
res, o que deu nova occasião de argumen- logos da opinião contraria, as doutrinas
■tos aos adversarios da infallibilidadc. d aquelle jesuíta: como se fòra cousa de
Antes porém de discorrermos sobre este acreditar-se que os pontifices houvessem
•objccto, lembraremos aos leitores o que já mostrado tal fraqueza diante dos submis
no principio advertimos, que era nossa in sos e obedientes jesuítas, num século em
tenção fallar sómente dós factos mais con- que com o maior vigor e firmeza se oppo-
-sideVaveis (supposto que a proprio arbi zeram aos jansenistas. que eram apoiados
trio tocássemos ás vezes alguns mais ligei no poder terreno e na força do talento;
ros), com que se tem argumentado contra n'um século cm que tão energicamente
-a infallibidade, c não de todos numerica condemnaram as proposições gallicanas,
mente, não só porque desfeitos os argu que comtudo não versavam sobre pontos
mentos mais fortes cabiam por si mesmos do fé, e eram sustentadas por Bossuet e
os mais debeis, mas também por não tor por Luiz xiv; num século cm que com a
n ar mais longo e talvez fastidioso o nosso mais segura liberdade proscreveram o li
artigo. vro das Maximas dos Sanctos, escripto pelo
Por essa razão deixamos de fallar, por sublimo Fénélon!...
exemplo, das duas cartas de S. Leão Ma Deixadas, pois, essas e outras muitas fu
gno ao patriarcha Flaviano, na primeira tilidade* com que os adversarios da infal-
das quacs favorecia o pontifico por falsas libilidade nos successores de S. Pedro tecní
.informações a pessoa do heresiareha Euty- procurado combatel-a, passemos finalmen-
&
tc ú questão dos ritos chinezes, cm que rias outras dúvidas foi confirmado também
também parece fazerem os contrarios qual por Benedicto xiv na sua constituição E x
quer força de vela para demonstração da •juo singulari, impondo a todos os missio
sua desejada fallibilidade. nários a obrigação de prestarem juramen
Em memoria e para honra de Confucio, to de plena observância da constituição
costumavam alguns povos orientacs, prin Clementina, c não praclicarcm as exce-
cipalmente os da China, practicar certas pções ífella introduzidas pelo vigário apos
ceremonias religiosas, e celebrar sacrifí to! ico, patriarcha de Alexandria, Carlos
cios, assim na lua cheia como aos nove da Mediobarbo.
lua, e em outros diversos dias do anno; Ora, nós persuadimos-nos que da singela
usando também offerecer oblaçòcs a seus narração aqui apresentada a nossos leito
antepassados nos templos e cm casas para res se poderá bem conhecer quanto valha
isso destinadas, c mesmo em outra qual a contradicção entre Alexandre e Innocen-
quer parte, diante de taboletas, com as ima cio, e outra vez entre Clemente e Alexan
gens d'aquelles alli pintadas: á vista do dre, dizendo um ser licito aquillo que o ou
que, alguns missionários dos que trabalha tro declara prolubido. Mas assim como não
vam n’aquellcs sitios, zelosos da pureza, co é considerada injusta a sentença do juiz
meçaram a olhar logo como cousa super que como erro de facto julgou ‘secundum
sticiosa, e que não devia permittir-se aos allegata et probata, uma vez que fizesse as
convertidos á religião christã o presidir, o diligencias devidas na legalidade das pro
ministrar, c mesmo o assistir a similhanlcs vas, assim também não pôde dizer-se que
sacrifícios, assim como fazer taes oITertas; a decisão de qualquer d aquellcs pontifices,
10 passo que outros, na esperança de mais fundada nas informações, remeitidas por
icilmcníc converterem aquellcs povos e pessoas de cujo caracter se duvidava, c
mscrval-os mais firmes, sustentavam po- examinadas por congregações de-escolhi
3r-se-lhcs permittir aquclles ritos, consi- dos litteratos c theologos, fosse contra di
erando-os meramenlc civis c não religio reito. A contradicção dava-sc nas informa
sos. ções, que não obstante serem examinadas
Foi a dúvida apresentada em Roma, no com a prudência, humanamente possível,
tempo de Innocencio x, que por consulta deram alguma vez um resultado contrario
da congregação da Propaganda declarou á intenção do pontifico, salva todavia sem
em 1645—não serem pcrmitlidos os mencio pre sobre materias de facto, no si ita csl,
nados ritos como infectos de superstição c fíat.
idolatria, accrescentando a excommunhão Temos, pois, concluído o presente, já lon
tatee sententia?, reservada á saneia sé, aos go artigo sobre a infallibilidade do papa, de
missionários que obrassem em contrario. monstrada pela experienda de mais de de
Novas informações, comtudo, mais espe zoito séculos, em cujo largo periodo nem
cificadas e distinctas, apresentadas no pon um só facto se encontra com que possa
tificado de Alexandre v i i pelos missiona- provar-sc ter errado algum dos summos
narios da opinião contraria, suppondo ain pontifices, definindo ex cathedra, para ser
da civis aquellas ceremonias, deram moti obedecido como vigário de Jesus Christo-
vo a que este pontifico, por consulta da em assumpto de fé ou de doutrina, como
congregação da inquisição, em 1656, per- era o nosso proposto objecto.
inittissc d’aquel!as ditas ceremonias as que, Procuramos resumir os factos quanto era
segundo o exposto, eram inleiramcnte ci possível em harmonia com a clareza e ne
vis. cessaria noticia de circumstandas que os
Cresceram então ainda mais as dúvidas, acompanhavam, omittindo outros, como já
porque além de allcgar-se contradicção en dissemos, que nenhuma força accrescenta-
tre as decisões de Innocencio x c Alexan vam aos referidos, e só podiam servir para
dre vn, cada uma das partes opposlas, cm tornar o artigo, pela sua prolixidade, im
que figuravàhi consideráveis theologos co proprio do fim a (jue era destinado, porque-
mo Navarrelte e Varo, dominicanos, Bar- não foi o nosso scopo fazer um traclado-
toJi e Tellier, jesuítas, defendiam por es- completo sobre esta matéria, mas sómente
. cripto as suas opiniões, passando uns a ne nos propozemos dar uma indicação, que
gar mesmo a verdade dos factos expostos sirva a oHentar a opinião pública religio
pelos outros, até que o papa Clemente xi, sa; podendo aquclles que desejarem pro
examinadas todas as razões por um e ou fundar mais o assumpto consultar, v. g., a
tro lado produzidas, confirmou a decisão historia ecclesiastica do cardeal Orsi, con
de Innocencio, prohibindo inteiramento o tinuada por Becchetti, c o seu tractado da
uso dos ritos chinezes, o que depois de va infallibilidade do papa, ou outras obras, de
INF 56o
que melhores informações possam ter; ao A infallibilidade do chefe supremo da
mesmo tempo que devem fugir sempre de Igreja catholica christã, não é uma crença
lêrsem a indispensável prevenção aquellas nova, ou urna invenção de partido para
historias que como a de Fleury ou de Raci- exaltar suppostas ou* exaggcradas supre
nc fossem escriptas com infidelidade histó macias: é uma realidade; é uma das mais
rica, parcialidade criminosa, c animo hostil sublimes prorogativas inherentes ao pri
contra a Igreja c authoridado ecclesiastica, mado de honra c jurisdicção, que por di
desfigurando por isso tacs cscriptores mui reito divino compete ao summo pontifice,
tas vezes os factos, para fazei-os valer a como successor de S. Redro, vigário de Je
seus fins: pois é certo que da má esco sus Christo na terra.
lha de livros e da falta de critica no uso e Jamais a Igreja duvidou d’csta verdade;
intelligcncia d’ellcs, tem sido muitos leitoc o recurso que no espaço de tantos sécu
res, incautos, levados na sua boa fé a gran los houve sempre de todo o orbe catholico
des erros. á sancta sé de Roma, sobre as dúvidas ou
Não pertencemos a parcialidadcs ultra questões de dogma c de moral, ou mesmo
ou cismontanas: o nosso partido é o catho de pontos capitaes de disciplina geral, cor
lico rebanho, estreitamento unido em fé, respondido indefcctivelrncnte pelas respe
obediência e boa vontade ao seu unico prin ctivas decisões pontificias, tem prestado
cipal c universal pastor o summo pontifice, áquella mesma verdade o mais irrefraga-
bispo de Roma: e se contra elle ou a san vel tcstiinunho.
cta Igreja temos errado no que fica escri- Comtudo se, por um lado, a Igreja é fir
pto, confessamos ser ex abundantia e não memente estabelecida sobre aquella pedra
ex defectu amoris, sujeitando-nos, n’essa hy-—Cephas—que não póde resvalar sem que
pothcse, com a mais prompta obediência"c sobre a sua ruina prevaleçam as porta
rendida, submissão ao seu sapientissimo do inferno, por outra parte é assimilad.*
juizo. também, a uma barca de pescadores e
procelloso mar, que vai navegando, coi
batida sempre de contrarios e furiosos ve.
REFLEXÕES CAXONICO-IIISTORICAS tos por entre syrtes perigosas até chega
ao desejado porto: e fóra da qual, como nt
diluvio fóra da arca de Noé, não póde ha
I
ver esperança de salvação.
E quem não vê que a violência c os ata
Propondo-mc discorrer sobre uma das ques dos impios, as doutrinas heréticas e
mais necessarias c mais apreciáveis quali os sophismas dos innovadores são aqucl-
dades de que é revestido o primado de S. les tempestuosos ventos, aquellas syrtes pe
Pedro e seus successores, não entendo nem rigosas, que ameaçam de continuo fazer sos-
é proprio d’cstc logar descer á explicação sobrar a barca de* S. Redro, a Igreja de Je
de princípios elementares, que se suppoém sus Christo?
aprendidos nas aulas das respectivas disci Mas seria tão imprevidente o Divino Mes
plinas: indicarei sómente quando venha a tre que fosse confiar o leme da barca, o
proposito alguns bons livros, que a tal res governo da Igreja, a um piloto a quem não
peito podem ser consultados, assim como désse a exacta noticia práctica do rumo
outros que devem evitar-se. que invariavelmente deveria seguir por en
Supposto que o assumpto de que vou tre aquelles perigos para não fazer naufra
tractar ainda se não acha positiva c for- gio?
malmcnte julgado pela Igreja ou por seu Ora d'isto é que ninguém da eommu-
supremo chefe, porque então não seria ne nhão catholica duvidou até ao decimo quin
cessário mais do que referir o decreto ou to século, em que, segundo o historiador
bulla pontificia cm que se contivesse o seu Fleurv, começou a discorrer-se nas esco
definitivo juizo, ha cointudo tantas razões, las sobre a infallibilidade, contrariada sem
que direi secundarias, em favor dá verda pre pelos hereges e demais inimigos da
de porque pugno, que bem manifestam até Igreja, que apoz si levaram como em ou
á evidencia qual seja sobre o mesmo obje tra parte disse, sobre este objecto espíritos
cto não só o sentir da igreja de Roma, que não vulgares, gênios sublimes, alguns dos
ó a mãe e mestra das igrejas do orbe ca quaes, por outro modo, fizeram á Igreja pre-
tholico, mas também a geral crença da elaros serviços, que mais brilhantes seriam
christandade orthodoxa, que se não tem sem aquella* mancha.
deixado illaquear do espirito de contradic- Rara não irmos, pois, com os hereges,
çào. como desgraçadamente foram, n’esta par-
566 INF
tc, grandes capacidades, é quo devemos II
procurar, na expressão do doutor maximo
S. Jeronymo, adherir e cstrcitar-nos quan
to possível á cadeira de S. Pedro; não para Sem remontar aos tempos c des va rios
ir, fugindo de uni extremo, cahir n’outro, de Phocio, que por vingança dc lhe nao ser
que embora se supponha nào menos vicio approvada pela sancta igreja de Horna a
so, mas por seguir o espirito primitivo e usurpação da cadeira patriarehal de Con-
permanente sempre da Igreja, c o seu sen staniinopla e expulsão dc Sancto Ignacio,
tir sobre um ponto, do desprêso do qual levou a sua audacia contra a authoridade’
teem resultado para a religião o para o ge pontificia, a ponto dc fulminar cllo mosmo
nero humano, consequências as mais de excommunhão contra o papa Nicolau i, de
sastrosas, como demonstrarei por uma de- clarando, n’uma sua cncyclica dirigida aos
dueçao (pie passo a fazer, c que nào é, ain bispos do Oriente, que'tanto o pontifice
da q*uc ã primeira vista o pareça, desvio, como toda a Igreja, se achavam em erro,
mas sim illucidação do assumpto. e dando assim occasião c origem ao gran
Depois de ter feito notar cm outro arti de scisma, que depois de tantos seculos,
go pelos principacs factos consignados na ainda o Christianismo hoje solTrc e deplo
historia, que costumam ser allegados para ra, começarei dc outro periodo posterior,
prova da infallibilidade, que os pontiiices mas não menos fecundo ,cm pessimas con
nunca erraram fallando ex cathedra sobre sequências, que o desprêso da authoridade
objectos moraes ou dogmáticos, procurarei suprema do vigario de Christo na terra
mostrar agora n’cstas reflexões não só a veio lançar em todos os paizes da christan-
origem ou causa, e motivos da opposição dade.
á infallibilidade do pontifice, principalmen 'Fallo da quarta época da Igreja, a época
te n’cstes ultimos séculos, ein que maior da pseudo-refonna do Occidente, princi
morra lhe tem sido feita, mas lambem as piada pelos vãos esforços de Wiclef c João
onsequencias d’ahi produzidas, indicando Ilus, e levada a eíTòito por Martinho Luthe-
as épocas respectivas os signaes de rc- ro; bastando que a prégação das indulgên
.rovação que a sancta sé apostólica tem cias concedidas por Leão x, a lim de se ob
.'Cmpre manifestado contra essa opinião de terem as esmolas necessarias para a fabri
infallibilidade, tão prejudicial ao bem da ca do grandioso templo dc S. Pedro do
religião c á boa ordem e tranquillidade. Vaticano, fosse commcttida em Moguncia,
Serei longo, e talvez fastidioso aos indif não aos frades agostinianos, a que ellc per
ferentes ou desafiectos a similhantes assum tencia, mas sim aos dominicanos, para que
ptos; mas dos leitores verdadeiramcnlc ca clle começasse por vingança, como por vin
tholicos, e que apreciam, e desejam os gança tinha n’outro tempo procedido Pho-
triumphos da religião e da Igreja, espero cio, a declamar contra o abuso das indul
e até estou certo de obter a benevola at- gências: passou d’ahi não só a combater o
tençào; hão pelo merito do cslvlo e da for seu uso, mas também a divulgar outros
ma do discurso, cuja mediocridade sou o muitos erros contra a fé: negou a authori
primeiro a reconhecer, mas pelo valor in dade da Igreja e a infallibilidade do papa,
trinseco do seu objecto. chegando até a queimar publicamente na
Antes, porém, de tomar o fio do propos praça dc Wurtcmberg a condemnatoria bul-
to e indicado plano, deverei prevenir os la do mesmo Sancto Padre Leão x, c todas
meus leitores, de qualquer opinião que se as deerefaes dos summos pontiiices: rejei
jam, que longe dc ser frivolo ou de pouca tou de igual modo a tradição dos padres;
entidade o principal objecto das presentes e só admittiu a Escriptura* mas interpre
rellexòcs canonico-historicas, isto c, a pro- tada unicamente pela razão individual, pa
pugnação pela infallibilidade do papa na ra onde transportou a infallibilidade que
decisão das questões de fé; pelo contrario, negara ao papa.
é clJe dc tanta gravidade e -importanda, Deslocada, portanto, e vulgarisada assim
quanto que a asserção opposta se acha re a infallibilidade, cada um se persuadiu go-
provada por Alexandre viu na vigesima sal-a em maior grau que os outros; e é por
nona das proposições por ellc condemna- isso que já os seus discipulos Melaneton,
das, que é a seguinte:— Futilis et toties Carlostadio, Zuinglio c Ecolampadio presu
convulsa est assertio de pontificis romani miram exceder o mestre c haver subido a
supra concilium (ccumenicum auctoritate; maior auge de infallibilidade da razão in
atque in fide qucestionibvs decernen/Iis in- dividual na interpretação da Escriptura,
fullibilUate. Tom. 9. B ultarii, pag. 96. como demonstraram nos seus juizos rela
tivamente ao proprio sagrado corpo de Je-
INF 567
sus Christo sacramentado, negando não só de: dissolve os seus votos claustra es, c os da
a transubstanciação, como seu mestre Lu- freira Catharina de Bore, com quem se
thero, que só admittia a consubstanciarão casa em 1525: dispensa depois o Jandgra-
á maneira da união do fogo com o ferro vc de Esse, para receber uma segunda mu
cm braza, mas accrcsccntando com igual lher, sendo viva a primeira: proclama" a
direito de inerranda que nem isso alli ha poligamia, c declara demais d’isso abolida
via, porém sómente uma simples figura, a missa privada, por suggestão do diabo,
um signal, um symbolo do Salvador. como ellc proprio dizia.
Ainda uma terceira infallibilidade appare- Pouco etíicazes se tornam para suster a
cc infundida na pessoa de Calvino, que pro devastadora torrente, assim as censuras da
fessando os mesmos erros d'aquclles con Igreja como as providencias do imperador,
tra a suprema authoridado da Igreja, ac- contra as quacs protestam os lutheranos
cresccntou, seguindo a já referida infalli (e d\ahi o nome de—protestantes—) na die
bilidade da razão individual na interpreta ta de Spira, em 1529, ligando-se logo de
ção da Escriptura—que Jesus Christo nem pois em Smalkalda, para se oppôrem por
estava no sacramento do altar por consub todos os meios em defensa commum con
stanciarão, como ensinava o mestre Luthc- tra aquelle soberano, a quem apresentam
ro, nem só por figura, como diziam aquel- cm Augsburg, em 1530. pelas mãos do
lcs outros sacramentarios, mas sim estava proprio Luthero e de Melanclon a sua pro
com a sua virtude, que mandava do céo fissão de fé, chamada a confissão de Au
para unir, vivificar e nutrir os homens gusta.
como o sol, que permanecendo na celeste Inutilmente se succedcm as dietas sobre
região, se communica benigno á terra, este objecto em Francfort, em Ratisbona,
mandando-lhe os seus raios. Hagnenau, Spira, etc., a que faziam cara
E asssim progredindo, fortes das suas diversas reuniões Iutheranas em Sníalkalda
infallibilidades, chegaram os lutheranos das e outras partes; c o protestantismo tomr
differentes fracções"a dar mais de trezen tal corpo, que o imperador, julgando j:
tas interpretações diversas áqucllas sacro ineíficazcs todas as suas diligencias, re
sanctas e mysleriosas palavras de Jesus corre ao meio d'um concilio" geral, que
Christo na instituição do eucharistico sacra com effeito é, cm ultima e definitiva deli
mento—este é o meu corpo—sem que de beração, convocado por Paulo iii, cm 1545,
tantas interpretações se podessem achar ao para* Trento: mas recusando os hereges
menos duas que inteiramenle se confor debaixo de varios pretextos concorrer a
massem uma com a outra na intelligcncia ellc, e passando dos argumentos seientifi-
d’aquellas palavras. cos aos das armas, seis principes allemãcs
O alarme causado por similhantes dou e quatorze cidades impcriacs unem suas
trinas levou forçadamente Luthero á dieta forças não só contra a igreja catholica e
de Worms, cm 1521, d’onde confundido se suas doutrinas, mas também contra a au
retirou ao castello de Wctburg, chamado thoridade do imperador.
por ello—a sua Palhmos—e alli assistido O sangue derramado no campo da bata
d’aquella sua infallibilidade da razão indi lha, em que diversas vezes foram vencidos
vidual na interpretação da Escriptura, tra- os hereges, não bastou para conter a sua
ctou de ordenar a doutrina que mais ar audacia; c temendo aquelle soberano os
dentemente se propunha pregar aos povos, novos esforços que ellcs eontiuuamcnte fa
e que bem depressa- propagou por aquellcs ziam, manda publicar na dieta de Augs
paizes, porque as suas theorias fomenta burg, em 1548, o sen interin, isto é, uma
vam as paixões de todos—a ambição dos profissão de fé, toda catholica, excepto dous
soberanos com a usurparão da authorida- artigos que diziam respeito ao matrimonio
de e bens da Igreja, que lhes mottia por casa dos padres, e á communhão nas duas es-
—a liberdade dòs povos com o desenfrea- pecies, para que fosse observada, cmquan-
mento ou emancipação de todo o jugo de to o concilio não produzisse as suas deci
authoridade, principalmcntc religiosa. sões: o que foi altamente reprovado pelo
Passado aquelle pequeno revez, clle summo pontifice.
marcha de successo em successo; c já a Mas nem o interin tal qual era, nem o
dieta de Nurcmberg, que logo adiante se concilio poderam conter os extravios e as
seguiu, declara não poder dar á execução sempre progressivas exigências dos pro
o decreto de Carlos y contra os luthera testantes. e novas guerras ensanguentam
nos, e o núncio do papa retira-se. ainda a Europa, combatendo-se ao mesmo
Luthero cresce ao poder fundado, já se tempo por motivo politico e religioso, até
sabe, na base elastica da sua infallibilida que cansados todos da guerra, vem por
«68 INF
fim a paz c o tractado dc Wcstphalia, em Calvino c Zuinglio, com a similhança da
1648, sc bem que reprovado por lnnoccn- gerarchia, culto c ceremonias da igreja
cio x, constituir o codigo politico c a pri catholica, c que fórma a seita anglo-calvi-
meira lei fundamental do imperio germâ nista reformada.
nico; c foram então legalmente reconheci E alli sc viu um outro exemplo, como
das, e definitivamente fundadas c estabele em Allemanha, do quanto póde n’esta nos
cidas alli as igrejas protestantes pseudo-re- sa miserável natureza humana, o desen-
formadas. freameuto das paixões abandonadas a si
Os luthcranos porém tinham perdido as mesmas.
sim a religião verdadeira como o cnthu- Largando também agora este vigoroso
siasmo herético, c os negoeios do tempo, ramo da arvore Iutherana, convém acom
unicamente, passaram a formar o centro panhar outro na direcção que seguira,
dos seus principaes cuidados, contagio que, igualmentc desde o principio, para Fran
como era de suppôr, passou depois, cm pre ca, onde os sectarios foram conhecidos pelo
juízo da Igreja, a diversos governos catho nome dc hnguenotes (corredores nocturnos,
licos, como adiante sc verá. lobis-homens).
Hem depressa sc tornaram estes alli, ape
sar da fugida dc Calvino, dc Paris para a
III Suissa, numerosos e cada vez mais auda
zes, mesmo depois da mal succedida con
juração de Amboise, c do geral massacre
Deixado alli o tronco da arvore luthcra- de S. Bartholomcu, attrahindo á sua falsa
na, seguirei um dc seus principaes ramos doutrina e ao seu partido, personagens da
na direção que logo no principio tomara primeira ordem, incluindo até,além de ou
para Inglaterra c Escossia, onde os dis tros, um principe, que depois de ter sido
cipulos dc Calvino formaram a seita cha seu chefe (dos huguenotes) veio a empu
mada dos puritanos, isto é, rigidos calvi- nhar o sceptro dc França: da razão theolo
nistas ou presbyterianos, que acompanha gica passou ã razão da ‘espada, como a Al
dos d’aquella infallibilidade da razão indi lemanha, c batidos muitas vezes aquelles
vidual na interpretação da Escriptura, em hereges, c muitas vezes tolerados, conse
que Luthero convertera a infallibilidade guiram emfim que Henrique iv, seu antigo
do papa, igualaram aos bispos os simples chefe, lhes désse, pelo edito de Nantes, a
sacerdotes. liberdade de culto público.
Mas a infallibilidade de Luthero por meio Estabelecidos por este modo em França
da Escriptura, interpretada pela razão indi os calvinistas, é bem de suppôr o progresso
vidual, ainda não pareceu perfeita a Hc- que teriam alli as suas doutrinas, que
hert, que juntando uma nova seita de puro ainda que rejeitadas sempre pela grande
racionalismo ás trinta c nove em que alli maioria d’aquella nação, não póde calcu-
se dividiram em breve os calvinistas, ex Iar-se a intensidade do estrago que a sua
cluiu inteiramente a mesma Escriptura de proximidade e livre contacto causaram nos
qualquer modo interpretada; rejeitou toda espíritos, relativamente aos verdadeiros
a fé, toda ã crença, admittindo sómente a princípios da religião catholica.
razão, c esta cm sentido obvio e accommo- Luiz xiv quiz evitar esto grande mal, re
dado. Comtudo faltava ainda a ultima per vogando em 1686 o edito de Nantes, e pro-
feição ao systema; c os quaclcers ou tremu- hibindo n’aquelle reino o culto público pro
lantes, calvinistas que se diziam assistidos testante ou calvinista; mas as sementes es
do Espirito Sancto, proclamaram, com á tavam lançadas, o contagio tinha-se com-
mesma, ou superior inerranda, a perfeita muuicado,‘ e ainda de algum modo conti
e absoluta igualdade entre todos os ho nuava pela proximidade da Suissa, que se
mens. tornara o centro do calvinismo; c posto
Com taes elementos já .existentes na In que cm França se rejeitassem as heréticas
glaterra, foi facil a Henrique viu (o inimi theorias, adop*taram-se comtudo suas pés
go do lutheranismo, o defensor da Igreja) e simas consequências.
a sua filha Izabel, deixarem-se levar da tor Foi o jansenismo a primeira consequên
rente na consolidação da pseudo-reforma, cia do protestantismo applicado em Fran
abolindo alli, nos excessos da sua vingan ça, jansenistas formaram uma terrível
ça, a Igreja revelada, para ser por uma seita, que usando de nova e fina tactica,
iiiais completa infallibilidade substituída nunca até alli practicada, atacou nos seus
pela legal, que não é outra cousa senão fundamentos as decisões da Igreja, dispôz
uma mistura das doutrinas dc Luthero, os espíritos, e abriu os caminhos á incre-
INF 369
dulidade do scculo decimo oitavo, que se obrigou o papa Alexandre vn não só a con-
seguiu. denmar de novo, em 1664, as proposições
Nem por janscnismo se deve entender de Jansenio, tomadas no sentido do author
somente o contheudo nas cinco proposi (diziam que no livro de Jansenio se não
ções de Jansenio, bispo de Yprcs, conde* continha o que a Igreja rectamcntc condc-
demnadas a primeirii vez por Innocen- mnava), mas também ordenar um formu
cio x, e a doutrina de Qucsncll, de que lario que todo o clero devesse subscrever
fallarci adiante, mas todo o espirito que contra as indicadas distineções jansenistas:
animou esta perigosissima scita, a que disposição cstaVjuc por autíioridadc dc Luiz
adheriram insignes bispos, famosos theolo xiv se tornou em lei do estado, com penas
gos, magistrados, c até pessoas claustraes, aos refractarios.
de um c de outro sexo, de piedade edifi Não sendo isto bastante para que alguns
cante na apparenda, mas a quem faltava a bispos c varios doutores da Sarbona, con
humildade, que é o fundamento de toda a tra quem se procedeu segundo a lei, não
virtude. continuassem ainda a multiplicar as dis
Consistiu a principal íinura dos jansc- tineções c os subterfúgios como o obsequio
nistas em não se separarem claramentc da so silencio, c a reslricrão mental, ele., Cle
Igreja, depondo a divisa dos catholicos, mente ix procurou reduzir ã obediência
como tinham feito os lutheranos com as os bispos refractarios; c como depois da
suas cento e tantas di (Terentes scitas, mas promessa d’estes o pontifice não procedesse
antes mostrando querer chamar a religião contra alguns que tornaram ao vomito, a
chrislã á sua pureza primitiva; accrescen esta tolerante prudência chamaram p a i
do «que a Igreja apresentava a ultima Clementina, asseverando mais adiante no
phase da sua mortal carreira, que tinha conciliabulo de Pistoia, que aquellc summo
chegado á época da sua velhice, que falta pontifice approvára a distineção (jansenis-
va bem e rectamcntc, mas que nem sem tica) dc direito e dc facto, asserção que foi
pre comprchendia bem as suas mesmas de condemnada por Pio vi na bullá Auctorem
cisões (novo modo de negar a infallibilida- fidei, como falsa, temeraria, e injuriosa a
de), que convinha que outros as interpre Clemente ix.
tassem, illuminando-a sobre as suas mes
mas palavras.»
D’aqui um grande aviltamento ao poder IV
ecclesiastico pelas contínuas dcclamaçõcs
contra os pontifices, pelas opposições per-
inanontes do poder laical c seus ministros Continuando na ligeira dcscripção do
contra os bispos, chegando-se até a expul- janscnismo, como primeira conseqiiencia
sal-os das suas dioceses, assim como aos do protestantismo applicado em França,
parochos das suas parochias, e a usar-sc de direi que cmquanto a sancta sé procurava
outros varios procedimentos, só proprios por todos os meios dcbellar as doutrinas
dos impios inimigos da Igreja. janscnisticas, mais audaz parecia tornar-se,
Nào se duvidou mesmo fingir milagres e mais estragos causar o espirito da seita,
para justificar, com a mais refalsada hypo- de que pela morte de Arnaldo se tornara
crisia, os seus excessos, enganando assim chefe Quesncll; e o quesnellismo inteira-
os simples, e dando por tal modo occasiào mente infesto dos erros já condemnados
aos incrédulos para desacreditarem os mi cm Baio c Jansenio, achou ardentes defen
lagres verdadeiros. sores em França, onde fez fanatismo de
Argumentou-se finalmente com a dis- baixo da capa dc piedade, chegando mes
tineçao de facto c de direito, confessando- mo a passar por moda, e ató muitas damas
se já a infallibilidadc de direito, mas negan se tornaram qucsnellistas.
do-se a de facto, como se não houvessem Entãc, Clemente xr, querendo dar reme
factos tão estreitamente unidos com o do dio a tanto mal, condemnou, debaixo de
gma, e por isso chamados dogmaticos, que graves censuras, a doutrina dc Quesncll,
se a Igreja ou o seu chefe podessem errar por decreto dc 13 de julho de 1708: mas
n’ellcs, igualmente no dogma seriam falli- parecendo a Luiz xiv pouco efilcaz este
veis. meio, pediu ao pontifico que, discutido o
E aqui principalmentc naufragaram o negocio, fizesse, por meio de solcmnc con
elevado engenho de Pascal, a vasta erudi stituição, terminar toda a disputa; o'foi en
ção de Arnaldo, as proprias virtudes, e sa tão que o mesmo pontifice, ouvida uma
ber de Nicolau c de Launoio, assim como congregação de cardeacs c theologos, pu
de outros muitos que os seguiram, o que blicou cm 1713 a constituição unigenitus,
570 INF
condemnando n’clla cento c urna proposi Aqui deverei advertir que quando no-
ções cxtrahidas do livro das Reflexões mo meu artigo da infallibilidadc, prcccdcnto-
raes do referido Quesnell, com diversas mento publicado, eu disse, fallando da de*
qualificações de censuras, comprehcndidas cia ração gallicana sobre os limites do po
a de heresia. der pontificio, que os seus objectos não
Comtudo como os espíritos se achavam versavam sobre pontos dc fé, deve enten-
prevenidos para este lance, pela mesma dcr-sc que não estavam ainda decididos-
doutrina d’aquellc chefe jansenista, despre- como taes por um modo formal e positivo;
saram-se as cxcommunhões e os interdictos porque, ou o sejam ou o não sejam, cm-
com o pretexto de ser necessario cumprir quanto á sua natureza c esscncia, é cila
com o proprio dever; continuou-sc a do- sempre a mesma, assim antes como depois
gmalisar em sentido erroneo, a. pregar, a de uma decisão; o que varia são os cfTei-
dizer missa, a administrar os sacramentos tos, como aconteceria, v. g., na questão da
(como n’estc reino de Portugal fizeram os visão beatifica, em que pouco antes eu ha
intrusos e seus sectarios), e se viram bis via tocado, a qual tanto era ponto de fé an
pos, corpos ecclesiasticos, c escolas de tes da decisão formal dc Benedicto xu, como
theologia, appellar ab abusu do pontifice o ficou sendo depois, com a differença po
para o braço secular, c para o futuro con rém de não estar ainda até alli definida
cilio, que é inveterado costume dos hcrc- como tal.
ges; até que, cedendo o cardeal dc Noail- Tornando á declaração do clero gallica-
les, arcebispo do Paris, da difiiculdadc que no, isto c, dos poucos- bispos que, alli so
clle mesmo tinha, antes de uma nova expli acharam reunidos por ordem do rei, foi
cação, acccitou definitivamente a bulla em cila altamente reprovada pelo summo pon
1718; e assim terminaram as controversias tifice Innocencio xi; recusando além d’isso
janscnisticas e quesnellianas, supposto con as bullas dc bispos ou abbadcs* a todos
tinuasse o seu espirito, que depois se intro aquclles, d’entre os sacerdotes, que, ha
duziu grandomente na politica. vendo alli assistido, foram depois nomea
Mas fazendo pó atraz, buscarei, não lon dos, pelo mesmo soberano, para làes em
ge da primeira, a segunda consequência pregos.
do protestantismo applicado em França. E para que os inexperientes c pouco
Luiz xiv tinha-se tornado benemerito da aprofundadores de assumptos d’esta natu
Igreja por haver protegido nos seus esta reza possam fazer uma ideia das taes liber
dos a religião catholica, prohibindo aos cal- dades da chamada igreja gallicana, lem-
vinistas, pela revogação do edito dc Nan brar-lhes-hei o que dos seus fuudamcntos,
tes, o exercício público da sua commu- que são os quatro artigos, pensava certa
nhyo, c mais tarde o continuou a ser, pro notabilidade, cujo voto, posto não ser de
movendo por mais de uma vez a condc- theologo, deverá em certo modo ter bas
mnação do jansenismo; mas com quanto tante péso para muita gente, como de ho
b em - inclinado parecesse ser á religião mem, pelo menos, despreoccupado.
aquelle principe, comtudo indignado por Dizia, modo m ilitari, Napoleão Bonaparte,
que o papa Innoccncioxi não annuia a v a supponho que em algum de seus interval-
rias exigências suas, entre as quaes se con los ou momentos dc moderação religiosa,
tava uma certa regalia ou isempção na pes que quando houvesse querido perseguir a
soa do seu embaixador cm Pioma, apossou- Igreja teria montado a cavallo nos quatro
se da cidade d’Avinhão, e mandou rcupir artigos.
em Paris, no anno de 1C82, uma congre Era um d’ellc?, como acima fica dito, a
gação dc bispos, de que fez parte o pro negação da infallibilidadc do papa.
prio Bossuet, para decidirem sobre os limi
tes do poder pontificio.
Foram então redigidos alli os celebres V
quatro artigos, que constituem as chamadas
liberdades gallicanas; e o gallicanismo fi
cou sendo a segunda triste consequência Depois de ter escripto as duas primei
do protestantismo, applicado em França. ras 'consequências do protestantismo rece
N ’estes artigos se aífirniava, entre outras bido em França, isto é, o jansenismo c o
cousas, que o summo pontifice não era in- gallicanismo, ambas as quaes atacaram o
fallivel nas suas decisões, que era inferior poder e a infallibilidadc dos summos pon;
aos concilios geraes, e que não podia dis tifices, passarei a fallar da terceira, que e
pensar, só por seu arbitrio, nos canones da a incredulidade.
Igreja. .' Apoiada esta na sua. derivação do pro-
INF . 571
testantismo. d’nm lado n'essa escola dc mnm hoje o pestilente corpo da moderna
alheus, do que faziam parto Vanini com os philosophia.
seus dialogos sobre a natureza, Hobbcs Assim, pois, progrediu a incredulidade
com os Mementos philosophicos e eorn o na sua devastadora marcha, c a Voltaire se
Leviathun, em quo hostilisou nào monos a uniu João Jaques Rousseau—os dous maio
existência do Deus que os fundamentos da res corypheus da incredulidade, como Lu-
sua moral c do toda a sociedade; Locke thero e Calvino o tinham sido do protes
polo seu systema do sensações a quo tudo tantismo.
reduziu, ato a propria moral, c sobretudo Foi Rousseau o horoc destinado a com
Spinosa, que foi o primeiro a lançar os fun pletar o desenvolvimento dos princípios
damentos do moderno panthcisíno com o religiosos de Calvino, e da doutrina politi
seu Tradado theologico-politicoe com a ca do protestante Juricu, tomando d’eslc o
obra posthuma em que mostrou que tudo anarchico systema da soberania do povo,
era Meus, e que Deus eslava em tudo (a em que fundou o seu contracto social, e
seu modo), o que tudo existia por necessi d aquelle a já mencionada infallibilidade
dade da natureza, etc., etc.; eis que appa- da razào individual na interpretação da
rcco Bayle com o seu diccionario a estabe- Escriplura, por cujo meio veio a descobrir
cel-a fuiidamcntalmcntc (a incredulidade), lá na sua mente o puro deismo.
desenrolando assim a bandeira da comple Por esse meio, pois, avançou Rousseau,
ta revolta contra a divina religião catho passando muito além dc Calvino, o qual
lica. negou o mysterio da transubstanciacào,
Proclamou este os direitos da razào in porque não pòde comprehendel-o; Rous
dividual, negando portanto a authoridade seau negou todos os mysterios, porque to
da Igreja, e a infallibilidade do seu chefe, dos achou incomprehensiveis á sua razão
como tinham feito os protestantes, rejei individual.
tando todas as crenças, duvidando de todas Assim, caminhando sempre na variada
as verdades, introduzindo aqueíla liberda estrada da progressiva incredulidade, se
de de pensar, que tào commoda se torna a passou do sceplicismo de Bayle ao despre-
todas as paixões humanas; c viram-sc logo so de Voltaire, e d’este ao deismo de Rous-
cnfiloirados a seu lado os chamados espí scau.
ritos fortes. Mas a um outro ainda mais insondavel
Mas a abstrusào dos princípios de Bav- abysmo se dirigia aquella batida yia de
le, e a longa e incommoda leitura dos seus progressos, e por ella correram direitos ao
grossos volumes, nào estavam ao alcance atheismo llelvecio, Diderot, d’Argens, Mi-
de todos: Voltaire, o poeta energumeno, o rabeau, c outros taes philosophos, que ata
primeiro que deshonrou o nome de philo cando todas as verdades, querendo tudo ex
sopho, substituindo-o pelo de espirito forte, plicar no systema da natureza, não acha
veio desfazer c aplanar este embaraço, re ram no homem senão matéria, na socieda
correndo, por meio de pequenos opusculos, de nada mais descobriram que a força phy
ás armas da ironia contra os objectos mais sica, c no mundo só admittiram o acaso.
sagrados da nossa crença e do-nosso culto. Ao systema d estes philosophos dou com
Cobrindo-so com todas as mascaras, fez plemento d’Alembert com a sua Encyclo-
quanto era possível por diíTundir os ger- pedia, que em todos os ramos da scieucia
inens da corrupção religiosa e moral: phra humana encheu dVaquellc atheismo, que
ses sontimentacs, falsas citações, pomposa pretendia arraigar no coração dos povos:
erudição, sophismas, grande impostura de e d’esta maneira se estabeleceu em Fran
bencííceneia c humanidade, descripçòcs c ca, e ramificou por toda a parte aquella
pinturas voluptuosas, nada omitliu pára le seita de modernos philosophos, que des
var ao fim o seu plano, coroado aos sons truindo as crenças religiosas e as anti
dos ekeeraveis gritos—massacrai o infa gas instituições, leem sido os mais arden
me... tes apostolos da incredulidade...
Ora, assim como a doutrina de Bayle ti Todavia sitnilhantes doutrinas eram re
nha produzido os chamados espíritos fortes, batidas pelo clero, c refreadas pelo poder
assirn do progresso de Voltaire, na mesma civil, que na generalidade ainda procurava
carreira, nascoram outros cavalhc irosin- conservar intacta a fé, e illibados os costu
titulados bellos espíritos, que muito á von mes: n’cstas circumstandas, para melhor
tade c com absoluto dominio reinaram, poderem difTundir-se taes doutrinas, recor
principalmcnto no tempo e na corte de reu-se ao meio das sociedades secretas,
Luiz xv: e esses espíritos fortes c espíritos cujo duplicado fim é destruir o altar e o
bellos, são os que animaram e ainda ani- throno, libertando-se de toda a sorte d’au-
572 INF
thoridadc, ou procurando dominal-a, por chtc, c do escocez Rcid, admittiram a dou
quacsqucr mcios^quo sejam, ainda os niais trina do panthcismo, negaram o peccado
infames. original, c teem proclamado a theoria do
Alliados os philosophos coni os illumina- progresso continuo, ou uma indefinida c
dos das sociedades secretas, que depois se illimitada pcrfectibilidadc da natureza hu
chamaram principalmente franc-maçues ou mana, tanto no conhecimento da verdade,
pedreiros liores, não houve dique'a op- como na civilisação, na industria, e até ná
pôr-sc á devastadora torrente. propria religião, que tendo sido no princi
A mais horrorosa consequência das dou pio, dizem elles, formada pelo homem im
trinas religiosas e politicas d’estcs moder perfeita, é sempre capaz de maior perfei
nos philosophos, publicos c secretos, depois ção; c este tão decantado systema progres
da cxtincçfio dos jesuítas, como disposição sista vem a ser considerado debaixo de
preparatória, foi a grande revolução de tres relações, isto é, como industrial, poli
França, que fez gemor a humanidade, tico, c religioso.
inundando de sangue c de desgraças to Comtudo, jã depois d’cstas se teem visto
dos os paizes da Europa, começando a pôr outras mais recentes evoluções da incre
em execução os votos de Didcrot c de Mes- dulidade: c deixando de parle o magnetis
licr, que desejavam fosse enforcado o ul mo ou mesmerismo, que do seu inventor
timo rei com as tripas do ultimo sacerdo Mcsmcr, allemão, derivou este nome, por
te: c a religião c a Igreja soíTrcram males cujo systema se tem querido provar que
tão graves, que não é possível calcular os prophetas não foram senão uns magne-
nem descrever. tisadores, que os milagres de Jesus Christo
Apparecèu logo o seu fruclo religioso só foram elfeitos do magnetismo animal, c
na constituição civil do clero, cm que se que os sacramentos, de nenhuma parte se
transtornava*grandemente a ordem eccle não dalli, tiravam os seus eíTeilos, con
siastica, desconhecia-sc de todo a authori- cluirei com duas palavras sobre os novos
dade do summo pontifice; c passando mais racionalistas, uns racionalistas mais alam-
adiante, abandonada totalmentc á fé chris- bicados e não menos impios, porém mais
tà, proclamou-se a deusa da razão, substi- perigosos que os da antiga escola do cal-
tuiu-se ao Christianismo a idolatria. Nem vinista Hcrbert.
(Taquellcs impios c anarchicos princípios Estes novos racionalistas teem querido
e meios podiam esperar-se quaesquer ou que a philosophia c a razão humana de
tros melhores resultados: comtudo devia vam prevalecer em tudo: os seus princí
também chegar um feliz revés depois de pios, que foram aprendidos de Kant, de
tão infaustos triumphos: a abominação li Schelling, do Hcgel, de Jacobi c d’outros,
nha subido ao seu mais alto ponto d’asccn- applicaram-os também â scicncia da reli
são; era forçoso descer, c então começou a gião, c d’esta fusão philosophica e amalga-
rcacção religiosa, despertada por Chatcau- mica com os antigos princípios da theolo
briand, robustecida c fortificada por Ilo.- gia nasceu o novo racionalismo, que para
nald, le Maistre, Ia Monnais (cmquanto não melhor ser explicado se recorreu ao syste
aberrou), e Haller; mas como este objecto ma dos mythos, pretendendo assim provar-
parece d\algum modo conduzir a outro fim, se que a religião christà tendo principiado
proseguirei ainda a mostrar as novissimas mythica ou fabulosa em parte, precisa ser
e ultimas evoluções da incredulidade até depurada pela philosophia para se tornar
aos nossos dias e" meado d’este século xix. completamcntc verdadeira.
Vieram pois os san-simonistas ou san- Por ultimo apparcceram os communis-
•simonianos (progressistas), assim chama tas e socialistas, abortos tão informes, que
dos do nome do seu chefe Henrique de não merecem uma séria definição.
Saint-Simon, que sem abjurar o Christia E eis-aqui teem os meus leitores a ligei
nismo, expôz somente nos seus escriptos, ra dcscripção da terceira consequência do
em que todavia publicou alçuns uteis co protestantismo recebido cm França, isto é,
nhecimentos industriaes, ò. desejo que ti a incredulidade apresentada cm todas as
nha d’uma nova explicação da doutrina suas fôrmas, c cm todas cilas contraria
de Jesus Christo, como se os pontifices c sempre á inlãlibillidadc dos summos pon
os padres da Igreja não tivessem ainda tifices c sã doutrina da igreja catholica
.acertado com o seu verdadeiro sentido! christà.
Fallecido este no anno de 1825, intenta VI
ram os sectários desenvolver e reduzir a
•systema os seus princípios; c tomando al Ao espantoso quadro dos desvarios da
gum as idéias philosophicas do allemão Fi- razão humana abandonada a si mesma, ex-
INF 573
posto nas quatro precedentes partos d'cs- novembro de 1778, annunciada por Pio vi
tas reflexões, darei agora mais um retoque no consistorio de G de dezembro do mesmo
! para ficar, senão completo, porque isso exi anuo: sendo conUudo para lamentar que 0
giría rnelhor pincel, ao menos cm estado perjuro voltasse depois ao vomito.
tal, que bem claro apresente aos olhos do Do mesmo grêmio sahiu um Eybcl, pro
observador 0 assumpto a que fora dedi fessor de direito canonico em Vienna, que
cado. sendo já bem conhecido pelo seu livro con
Voltarei ao meado do século xvm, em tra a confissão auricular, condemnado por
que os libertinos de França, os pseudo- Pio vi no breve Mediator, apparcccu de
philosophos, assim d’aquellc* pai/, como da novo a público na occasião mesmo cm que
Allemanha c de quasi toda a Europa, co elle, summo pontifice, determinava passar
meçavam a vomitar 0 veneno, que desde á Allemanha, dando á luz um opusculo
muito tempo haviam engendrado ern seus intitulado Qnid est papa? com 0 depravado
apertados ccrebros. fim de fazer suíTocar os sentimentos de ve
Não tardaram os soberanos a deixarem- neração c respeito d,aquelles povos para
sc fascinar de certas apparendas, que com a saneia sé dc Roma e 0 seu bispo,
aquelles philosophos lhes representavam vigário de Jesus Christo.
como uteis c necessarias ao engrandeei- E é de notar que 0 cscriptor procurava
mcnlo do seu poder 0 prosperidade de seus authorisar-se com a doutrina gallieana dos
estados, e cahiram no laço, que não soube quatro artigos; não obstaute isso foi 0 Quid
ram ou não quizeram evitar. est Papa do professor Eybcl, condemnado
A Igreja, contra quem principalmentc se pelo mesmo sancto nadre* Pio vi no Rrcvc
encaminhavam os seus desígnios, solíreu Super soliditate de 28 de novembro de 178G:
muito; mas os proprios soberanos não teetn 0 author foi desterrado, c 0 seu livro pro
soflrido menos por essas suas criminosis scripto igualmente pela authoridade civil.
simas leviandades, nem menos soíírcram As pessimas idéias tinham-sc divulgado,
os povos que a Providencia Divina con e 0 clíeito devia esperar-se mais ou menos
fiara a seus cuidados, e de que haverão de proximo. Não tardou muito, apparccendo
dar estreitas contas aquelles principes dian bem depressa um plano de reforma, que
te do supremo juiz dos reis c dos povos nada menos trazia comsigo do que a dis
' da terra. posição para um scisma.
Progrediram em Allemanha. também Tomou-se pretexto da jurisdicção, que 0
| como cm França, as consequências do pro- summo pontifice mandava exercer alli pe
! testantismo, applicando-sc as falsas idéias los seus delegados, prinçipalmente quanto
I philosophicas á policia ecclesiastica; c 0 ás dispensas matrimoniaes, como creio que
; peior é que introduzidos os reformadores se fez já aqui, 0 que além dc tornar-se
' no grêmio do clero, d’alli sahiu em 1764 mais commodo para os próprios recorren
! um Febronio, isto é, um João Nicolau Hon- tes, foi 0 que livrou aquelles paizes de se
j theim, bispo de Miriofita, com 0 livro in- rem de todo absorvidos pelo protestantis
I titulado Justini Febronii de statu prwsenti mo.
_ Ecdesice liber, obra fcita.no gosto c espi- 0 proprio imperador José 11 foi 0 pri
: rito dos novos canonistas-philosopl)os, que meiro a supprimir por seu decreto 0 exer
Jtodos se esforçavam por desnaturar 0 go- cício de tal jurisdicção, e logo tres arcebis
1 verno da Igreja e destruir a authoridade pos eleitores, 0 de Colmnia, 0 de Mogun-
_ legitima do seu chefe supremo, renovando cia e o dc Treveri, unidos ao arcebispo dc
l todas as maximas dos protestantes contra Salzburg, formaram a chamada confedera
~~as authoridadcs ecclesiasticas. ção religiosa de Ems, approvaram os vin
Similhantc livro, confulado logo por mui- te c tres artigos scisinaticos alli redigidos
j tos theologos, espccialmenle pelo jesuíta pelos seus deputados, e começaram a dar
Francisco Antonio Zacharias, que lhe op- á execução 0 seu plano dc usurpação e re
■ poz 0 seu Anti-Fcbronio, 0 ainda depois 0 beldia contra a suprema authoridade pon
B Anti-Febronius vindicatus, em que, defen- tificia.
“ dendo os direitos e prorogativas da sancta Não cessava 0 núncio cm Colonia, de
Bsé de Roma, lançava por terra os anarchi- pois cardeal Pacca, de advertir aos naro-
cos princípios cVâquellc corypheu dos pseu- chos do eleitorado os inconvenientes ue tal
do-eanonistas, foi por fim condemnado por procedimento: nem Pio vi omittiu meio al
Clemente xm, no breve dirigido ao princi gum de fazer tornar ás antigas maximas
pe Clemente da Saxonia, bispo de Rapbtis- aquelles bispos extraviados, até mesmo di
bona, perante quem 0 aulhor d’aquclla pro rigindo breves a cada um d’elles, c mos
xim a obra fez a sua retractação no l.° dc trando-lhes que as suas prctcnçòes não só
374 INF
eram sem fundamento, mas até sc torna mittiam-se os systemas de Raio c de Qucs-
vam perniciosissimas pelos terríveis effei- ncl, c uma parte da doutrina de Jansenio
tos que produziram na Igreja. propondo-se por ultimo a convocação d ê
Entào os dous arcebispos de Treveri e um concilio nacional (que com eíTeito s c
de Moguncia se arrependeram de ter en convocou para Florcnça, porém «cm rosul-
trado na revoltosa liga, voltaram aos seus tado, porque os bispos alli reunidos não a n -
deveres, e se congrassaram com o papa: nuiram ás cxtravagancias de Ricci c d ese
acontecendo que os outros dous, o de Co jos do gran-duque.)
lonia, e o de Salzburg, no desterro a que Então Pio vi, pela sua bulla Auctorem fi
depois as guerras da geral revolução eu dei, dc 28 dc agosto dc 1794, condenmou de
ropéia os 'condemnaram, desejassem bas baixo dc diversos respeitos ou qualificações
tantes ^quellas nunciaturas que primeiro oitenta c cinco proposições extrahidas*das
tanto tinham aborrecido. artas e dos decretos d’aquellc synodo, e e n
Assim acabou a tal confederarão de Ems: tre estas sete como heréticas, sendo u m a
c o mesmo imperador José n, que varias d’ellas a seguinte (completa negação da in -
leis tinha feito promulgar contrarias á li fallibilidade do papa): «que nVstes ultim os
berdade c authoridadc da Igreja, sc doeu tempos se tinha espalhado uma obscurida
do.seu pcccado, c oito dias antes da sua de geral sobre muitas verdades importan
morte mandou que fossem revogadas, que tes da religião, que são a base da fé e da
se o não foram logo como elle ordenara,- moral de Jesus Christo.»
houve comtudo grande moderação no seu E entre varias outras cousas, reprova es-
uso, e hoje ainda mais pelas optimas dis pecialmentc o mesmo sancto padre Pio v i
posições do actual imperador para com a que os padres d,aqucllc synodo houvessem
sancta Igreja. inserido nos seus decretos dc fé os quatro
Estas politicas anti-religiosas communi- artigos da declaração gallicana, reprova
cavam-sc rapidamente de paizes a paizes e dos também já não* só por Innoccncio x i,
de nações a nações; e já os governos de como n’outro logar se disse, mas de novo
Portugal, de Nápoles, de Parma e outros, proscriptos por Alexandre viu na bulla In
tinham mostrado disposições hostis contra ter multiplices. E d’estc modo tiveram fim
a religião c a saneia sé de Roma: porém a aquellcs desvarios de Pistoia, a que se se
Toscana, onde reinava o grande duque Leo guiu a rctractação do seu principal author,
poldo, irmão do imperador José, de quem o bispo Ricci, que arrependido dc seus er
aquellc principe recebera ordem de defen ros c humilhado diante de Pio vu, pediu e
der alli as novas doutrinas recebidas cm obteve o perdão e a paz da Igreja, a quem
Allemanha, sobresahiu mais n’estas evolu tanto havia oiTendido.
ções contra a igreja catholica. Ora, se no sentir dos jansenistas de Pis
E na verdade foi escandaloso em sum toia sc tem te s te s ultimos tempos espalha
mo grau o celebre cònciliabulo de Pistoia, do uma obscuridade geral sobre muitas
reunido n’aquella conformidade por ordem verdades importantes da religião, que sàu
do bispo da mesma cidade do Pistoia e de a base da fé e da moral dc Jesus Christo,
Prado, Scipião Ricci, um dos mais arden segue-se que a luz da fé faltou ao vigário
tes contradictores das prorogativas c autho dc Jesus Christo, pastor dos pastores, bis
ridadc do chefe supremo da Igreja. po da igreja dc Roma, que é a mãe e mes
Depois de ter procurado dispor os ani- tra de todas as igrejas da christandadc ca
nios por todos os meios, que a sua malícia, tholica, o qual está julgando continuamen
protegida pelo gran-duque lhe põdc sugge te pontos de fé e dc doutrina, assim nas
ri r para elevar a eíTeito o seu revolucioná consultas que dc toda a parte sc lhe fazem,
rio plano, e despresadas as letras pontifi como na condemnação dos livros prohibi-
cias que lhe dirigira Pio vi para dcmovcl-o dos sobre toda a sorte dc matérias religio
do seu mau proposito, elle ao contrario sas, c sc lhe faltou a luz da fé indispensá
mais orgulhoso c cnsoberbecido convocou vel para esclarecer as trevas do erro, c
um synodo dos seus padres diocesanos com consequência neccssaria'quc elle seja falli-
o fim de sc proporem alli determinações vel. Mas como entre os princípios c as suas
aptas,a reformar a Igreja. necessarias consequências se dá uma gran
Com eíTeito, a 18 de setembro de 1786 de similhança, sc não identidade de natu
se fez a abertura do synodo, começando- reza, c aquellc principio estabelecido no
se por dizer que a Igreja podia estar su conciliabulo do Pistoia é herético, avaliem
jeita a alguns dias de obscuridade c de os leitores como deva ser reputada a natu
trevas: adoptavam-se depois os quatro ar reza da consequenda.
tigos da declaração gallicana de 1682: ad-
INF 575
VII que só tende á dissolução c esvaimento do
corpo mystico de Christo, que é a sua
Igreja.
Concluindo estas reflexões, que lenho of- Pelo contrario o dom da infaliibilidade é
fcrecido á consideração de meus leitores, aquella mão poderosa, que o Salvador es
para avaliarem os efíeilos da opinião con tendeu a Pedro sobre as aguas, para não se
traria á infaliibilidade do papa, c pondera submergir.
rem a reprovação que da parte da sancta O dom da infaliibilidade é o aço que tem
sé de Roma, que é mãe e mestra de todas pera e fortifica os elos da grande cadeia da
as igrejas do orbo catholico, tantas vezes aulhoridade com que o primeiro pastor li
tem merecido a sobredila opinião opposta ga c une a si e cm roda de si as ovelhas
á infaliibilidade, recordarei em poucas pa e cordeiros do rebanho, que Jesus Christo
lavras o que mais diíTusamcnte fura cscri- lhe confiara.
pto pelo decurso d’estas mesmas reflexões. Sem a crença da infaliibilidade tudo se
Mostrou-se como do despréso da autho- riam dúvidas,*tudo embaraçoso contradic-
ridade e negação da infaliibilidade pontifi ções, tudo escrúpulos, tudo* opiniões, tudo
cia nascera o íutheranisino ou o protestan incertezas.
tismo com todas as suas varias c multipli Sem o dom da infaliibilidade correría al
cadas fracções, por confiar-sc mais na au- guma vez fóra do rumo a barca de S. Pe
thoridade da razão individual do que na dro, em direcção ás ignoradas syrtcs, onde
do vigário de Jesus Christo na terra; sem remedio naufragaria.
Viu-se que do protestantismo, publica Negar este dom ao vigário de Jesus
mente estabelecido, sobretudo cm França, Christo, seria blasphcmar da Providencia
resultaram como immediatas consequên divina, que prevê e dispõe sempre as cou-
cias, c todas oppostas á infaliibilidade do sas com uma sabedoria infinitameute su
papa, o jansenismo, gallicanismo e a incre perior á limitada intelligencia humana.
dulidade nas suas variadissimas fôrmas, que Este é o sentir da primeira cadeira, a
por toda a parte foram grassando; sancta sé apostólica romana, mãe e mestra
Não deixou de notar-se como em Allc- de todas as igrejas da christandadc.
manha, o mesmo na propria Italia, se pro Esta é a doutrina que alli se ensina nas
curou também fazer prevalecer o jansenis escolas, e se defende nas academias; nem
mo c gallicanismo, sempre, porém, acossa outra seguiram os authorcs alli adoptados
dos pelas bullas pontificias, que os conde- para o ensino elementar, como Devoti para
mnavam, c algumas vezes pelas mesmas 0 direito canonico (podem vêr-sc os cscri-
leis civis, que os puniam como a Eybcl, ou ptores por clle indicados sobre o presente
tras polo remorso da consciência, que os assumpto, isto é, Bcllármino. Melchior Ca
forçava á rctràctação como ao bispo de Mi- no, Serry, Orsi, Rallcrine, Veith, Machio,
riolita, author do* Febronio, ou ao bispo ceteriquc).
Ricci, principal instrumento do reprovado Este é o pensar de todo o clero orthodo
*synodo de Pistoia. xo, e não faccioso contra a authoridade e
Dcscobrc-sc, portanto, cxcellentcmcnte prorogativas do summo pontifice: e tal fi
por todo o decurso das mencionadas refle cou sendo a crença do clero de França
xões, que existe de continuo dentro do uni- mesmo depois da surpreza que lhe fez Luiz
■ • versai rebanho, que junto com o seu supre- xiv, induzindo alguns do mesmo clero a as
I mo pastor fôrma a igreja de Jesus Christo, signarem a declaração galUcana dos qua
existe, digo, uma. facção opposicionista, que tro artigos, que tanto ainda querem abra
longe de procurar estreitar sempre cada çar hoje os pscudo-lhcologos e canonistas
I vez mais, como deve fazer todo o bom fiel, modernos.
os laços de união c unidade, que é indis Eis-ahi, pois, como quarenta c oito annos
pensável na igreja catholica entre os mem adiante pensava sem adulaçucs o verda
bros, que são os fieis, c a cabeça, que é o deiro clero de França, que reunido no dia
papa, para que possa vcrificar-sc o unum 11 de setembro de 1730, assim escrevia e
ovile, unus pastor, una fides, ao contrario expunha a Luiz xv:— «Senhor, procura-se
forceja sempre por debilitar c abater a pon apagar no coração de vossos subditos a
tificia aulhoridade, procurando csbulhal-a adhcsão á cadeira de S. Pedro, que distin
d’aquellas prorogativas, que a tornam mais gue a Igreja de todas as seitas que d’ella
respeitável, mais digna de ser obedecida, se teem separado; procuram-se todos os
! mais apta para consolidar a união c a uni meios para expôr ao despréso a pessoa c
dade, sem a qual não pôde existir a Igreja. as decisões do pac communi dos fieis. Se
Essa opposição é uma força centrifuga, nhor, que desordens não vemos c não tc-
576 INF
mos nós a temer? Nós o dizemos com dór, das sobre o modo de escapar á cumplicida
a subordinação cada dia sc enfraqueço, a de do mesmo scisma, dignou-sc sua san-
fó se perde, a heresia triumpha, c a incre etidade louvar muito, na sua resposta o
dulidade, mais tcrrivcl que a heresia, apro zelo dos recorrentes na defensa da sã dou
veita estas desordens. Fazei parar, ó Se trina sobre os direitos pontificios, liberda
nhor, com a vossa protecção o progresso de da Igreja, etc.
d’estes males. Yós nao reinareis sobre vos Ora um dos artigos da referida exposi
sos subditos com maior segurança do que ção, ó o seguinte: «Por essa razão dizem
quando fizerdes que a religião reine sobre e ensinam que o dom da inerranda ou in-
clles. Na submissão á Igreja elles aprende fallibilidadc que Jesus Christo pedira ao
rão a obediência e a fidelidade que se vos Eterno Pae, c d’cllc continuamente obtive
deve; e respeitando a sua apostólica au- ra cm favor de Pedro, como a pastor convi
thoridade, clles respeitarão mórmenlc a nha, para que houvesse na Igreja quem na
vossa.» fó confirmasse aos romanos pontifices, fòra-
Nào se attendeu ao clero de França: os llies transferido cm perpetua permanência,
tristissimos tempos chegaram, c as calami por bòcca dos quacs ó Pedro que falia e ex
dades presagiadas: e como se portou clle põe a verdade da fó aos que a procuram. *
com poucas cxccpções? O sangue derra 0 contheudo n’cste artigo, como cm to
mado, as perseguições, c os desterros, at- dos os outros da exposição do doutrina,
tcstain a sua fé e á sua adhcsào á cadeira que é uma protestação dé fó, foi approva-
de S. Pedro. do pelo summo pontifico, do seguinte modo:
O mesmo concilio, convocado por Napo- Dia 29 de abril de 1840. Ouvido o sanctis
leão, e aberto em Paris a 17 de junho de simo padre. A sagrada congregação dos
1811, posto que debaixo do terror c das negocios extraordinarios, a que o sanctis
bayonnetas, respeitou de tal modo a au- simo padre, nosso senhor, por Divina Pro
thoridade c prerogativas pontificias, que videncia papa Gregorio xvr, cominettcu o
nào annuindo o sancto padre Pio vii, ape conhecimento da representação feita a sua
sar de preso cm Savona, ao que Napoleào
alli queria julgado pelos bispos, estes vol 1 Quamobrcm dicunt ac doccnt inerran
taram para as suas dioceses, o concilio na tia;, seu infallibilitatis dotem pro Petro, u ti
cional, presidido pelo cardeal Fcschi, bispo que vclul pastore, a Jcsu Christo rogatam
de Lcào, primaz das Gallias, ficou cm nada, et certissime obtentam, ut nempe semper
c o imperador calou-se, procurando outros adesset in Ecclesia qui fratres confirmaret
meios de obter o seu intento, porque ain in fide, ad romanos pontifices, per quorum
da nào julgou que este fosse na sua gene os loquitur Petrus et praestat quwrcntibus fi
\ ralidade o adulador e condescendente cle dei veritatem, ut perpetuo permaneret, com
ro das liberdades gallicanas dos seus qua measse...
tro cavallos, segundo a expressão acima. Die 29 Aprilis 1840. E x audientia san
E quanto n’estcs ultimos tempos sc te ctissima Sacra Congregatio negotiis eccle
nha mostrado verdadeirameute orthodoxo, siasticis extraordinariis preeposita, cui SS.
defensor das boas doutrinas, c adherente e Dominus Noster Gregorius divina providen
submisso á sé apostólica o clero de França, tia P. P. X V I cognoscendas tradidit litteras
se se exceptuarcm alguns pouquíssimos a plurimis ecclesiasticis viris [Regni Lusi
aduladores ambiciosos, que nunca deixam tania; ad sanctitatem suam datas 23 Julii
d’apparccer n’uma ou n’outra parte, 6 cou- 1839, omnibus, qua; in illis exposita sunt,
sa tào notoria, que não precisa illucidação. sedulo graviter que perpensis, primum qui
Mas eu tenho um outro motivo especial e dem debito laudum preeeonio prosequiliir
pessoal que me confirma na crença da in- oratorum studium insana doctrina super
fallibilidadc nos romanos pontifices, com o juribus Summi Pontificis, Ecclcsiwque liber
qual terminarei as presentes reflexões. tate, et sacris immunitatibus propugnanda:
Quando eu tive a honra d e ' ser esco deinde vero ad dubia ab Oratoribus ipsis
lhido, ainda que sem merecimento meu, proposita respondet... etc. Quibus SS. Domi
por diversos ecclesiasticos respeitáveis, em no Nostro relatis per me infra scriptum en-
1839, para ir juntamenlc com o doutor nunciaUe Congregationis S am e Secreta
Manoel dos'Santos Lcça, apresentar ao rium , sanctitas sua hujtismodi Respontio-
sancto padre uma exposição da fó que pro nem benigne in omnibus approbavit, cam
fessava, e disciplina que'seguia, uma par que Oratoribus dari praecepit. Datum Ro-
te grande do clero de Portugal, que procu mce e Secretaria ejusdem Congregationis,
rava evitar o scisma, e pedir uma decisão die, mense, et anno praedictis.— Joannes
apostólica sobre as dúvidas então suscita Brunclli, Secretorius.
INF 577
sanctidade, com data de 23 de julho de que se desvanece, attendcndo-sc a que o
1839, por muitos ecclesiasticos de Portu sancto pontifice Gelasio. i se referia, como
gal, depois de examinar attentamentc e póde vér-se na Glossa, ao cscandalo, por
com madurcza quanto n’ella se .contém, ser então ura vchcmente indicio de here
elogia, primeiro de tudo, com a devida ac- sia, que davam aquelles catholicos, que á
clamação de louvores, o zelo dos recorren imitação dos manicheus, se abstinham do
tes na" defesa da sà doutrina sobre os di calix "na communhão, recebendo sómente
reitos do summo pontificado, e da liberda a especic do pão, quando lhes era livre
de e sagradas immunidades da Igreja: de receber também a do vinho, como gcral-
pois d’isso, respondendo ás dúvidas que os mente se practicava naquellctempo.
mesmos oradores propocm... ctc. Segue-se o facto attribuido a Vigilio,
O que tudo sendo proposto ao sanctissi que dizem condemnára ii’urna sua episto
mo padre, nosso senhor, por mim, abaixo la a crença de duas naturezas em Christo:
assignado, secretario da referida congrega mas tal epistola, como diz Baronio, ad an.
ção, sua sanctidade houve por bem appro- 538, § 15, ou é apocripha, ou então foi es-
var benignamente esta resposta cm todas cripta antes do legitimo papa, ern tempo
as suas partes, c determinar que assim de seu antecessor Silverio; porque depois
fosse dada aos recorrentes. Dada em Roma dc papa—nullus, affirma Bellarmino, in
pela secretaria da mesma Congregação, no ventus est in eo aut error aut erroris si
dia, mcz, e anuo supra.—João Brunclli, se mulatio, sed summa constantia in fide us
cretario. que ad mortem, ect., nem aliás deixariam
Depois d’isto nào comprehendo como o os summos pontifices e os padres dos sub
fiel christão possa deixar de crér o que tão sequentes concilios de fazer nisso reparo,
explicilamente crê c confirma o summo como fizeram relativamente ao papa Hono
pontifice, cabeça da Igreja, vigário de Je rio em objecto assimilado, qual eram as
sus Christo na terra. heresias dos monothelitas.
Quem preferir no assumpto proposto a Vem depois o nubat magis da resposta
sua individual razão, ou a dos seus com- attribuida a S. Gregorio ni, de quem o car
partidarios, â razão divinamente illustrada deal Baronio, ad an. 731, § 1, faz um juizo
d’aquellc que, por legitimo direito, occupa tão vantajoso, que o compara a S. Grego
a cadeira de S. Pedro, acautele-se do abys- rio Magno; tornando-se bem notável a sim
mo, que a sua mortal luzerna lhe não po plicidade de Graciano (ainda que ninguem
derá fazer descobrir senão depois do tom ignora a sua falta de critica na collecção
bo fatal. que fez, todavia cstimavcl n’aquelle tempo
Da minha parte procurarei sempre mar pela novidade) em suppor que aquellc pon
char á luz clara da doutrina, que, partindo tifice fosse capaz d’um tal absurdo, que ne
da suprema cadeira de Pedro, esparge por nhum fundamento póde ter nos seus pre
todo o mundo os seus vivos esplendores. cedentes, nem póde combinar-sc com a sua
reconhecida illustração, nem com a sabe
doria c prudência cóm que plenamente sa
ALGUNS FACTOS OMITTIDOS NO ARTIGO tisfez ás diversas consultas feitas pelo apos
DA INFALLIDILIDADE DO PAPA tolo ^Allomanha S. Bonifácio, nem com a
firmeza de fé c constanda intrepida que
mostrou contra os hereges inimigos da re
Por uma circumstaneia especial, c sem ligião e da Igreja.
exemplo para o diante, porque não tem "D^ondc deve eoncluir-se que ou o texto
aqui logar compôr tractados, mas somen é mutilado c não deixa comprehender o
te encaminhar opiniões pelas sendas que verdadeiro sentido do author, ou é apocri-
devem seguir no labyrinto de mais ou me pho, e deve ser por isso rejeitado in limi-
nos rasoaveis ou complicadas questões, ne, sendo fóra d'isto inuteis quaesquer
volto a esclarecer o mais rapidamente que combinações a que queiram esforçar-se os
mè seja possível, alguns factos omittiaos interpretes; pelo que não póde tal passa
no artigo— Da infallibilidadc da napa— gem, como se apresenta, ser adduzida para
com que, mal interpretados ou mal appli- fundamento d’accusação contra a infallibi-
cados, também se poderia querer comba lidade dos summos pontifices.
ter. a dita infallibilidade. Quanto á resposta de Nicolau i aos búl
Terá primeiro logar o cap. comperimus garos, que é- a ante-penultima das cento e
•12, de consewat. dist. 2, cm que se consi seis que por aquelle papa lhes foram da
dera çrande sacrilegio a communhão em das, em que declara que se os individuos
uma só cspecie: diíliculdade, porém, é esta, dc que que fallava a consulta—m nomine
37
578 INF
sanctce Trinitatis, vel tantum in nomine dre Nicolau i, antes cm seu favor se ob
Christi, sicut in Actis Apostolorum legimus, serva muita sabedoria, e a maior confor
baptisati sunt (unum quippe idemque est, ut midade com a Sagrada Escriptura.
sanctus exponit Ambrosius) constat eos non Polo .que diz respeito aos aclos do papa
esse denuo baptisandos, cet.—deve adver Formoso, reprovados por Estevão vi e Sér
ti r-sc que tal resposta se compòe na sua gio m, e approvados por Theodoro u e
integra de tres partes, a primeira das João ix, sobre o que observaram os mag-
quaes diz respeito á fé de quem recebia o deburgenscs, que cm procedimentos tão
baptismo, pois que se tractava principal- oppostos alguns dastes papas erraram, eu
mente de adultos, e nào á forma com que direi com Bellarmino, de Hom. Pout. lib.
era feito: a segunda refere-se á fé de quem 4, c. 12—que erraram Estevão c Sergio,
ministrava o mesmo baptismo, mandando- mas cm questão de facto, não de direito
se indagar se era christão ou pagão o ba- (esta não é a distineção jansenista), por
ptisante, porque lia via razões de suspeitar mau exemplo, c não pór falsa doutrina.
que não se désse verdadeiro sacramento, Nem Estevão tornou á ordenar ou con
sabendo-se que os pagãos faziam supersti- sagrar os ordenados por Formoso, sómen
ciosamentc diante de scus idolos certo ba te os destituiu, sendo depois restituidos por
ptismo com que pareciam querer sujeitar- Joqo ix, como afiirma Ségibcrto na sua
se a um unico Deus, que por palavra invo Chronica, citado por Du Mesnil, tom. 3,
cavam, ficando os baptisados pagãos como Doctr. et Discipl. E c c l c s lib. 42, § 1; e
d antes: e a terceira é relativa á fôrma, di como conta João Marin disputaram Gas
zendo o papa que os baptisados verbis euan- par Jucn, de Sacram., Francisco Ilallior
gelicis não precisavam novo baptismo, ain de sacr. clection. et ordinat ion, c Honorato
da que assim o tal baptisante como os ba Tourncly de Sacram, ordin.
ptisados estivessem cm erro parcial contra E é sobre o irregular procedimento in
a fé sobre as pessoas da Trindade, segun dividual d’Estevão e de Sérgio, quanto a
do a explicação de Sancto Agostinho, a que factos e não quanto a doutrina, queBaro-
o mesmo sancto padre Nicolau se refere, nio, ad au. 897, § 4, faz mui sensatas re
uma vez que se tivesse feito applicação da flexões dizendo—que por seus altos juizos
fôrma devida—verbis euangelicis. permittiu Deus que algumas vezes occu
A ddvida, portauto, está nas palavras do passem a cadeira pontifícia individuos pou
pontifice, naquella primeira parte—tan co dignos, como aquelles dous papas ele
tum in nomine Christi—que deve inteira vados ao fastigio sacerdotal pela violência
mente desvanecer-se depois que se sabe das facções, principalmcnle do marquez
que aquclla expressão se não refere á fôr de Toscãna, então poderosíssimo, para mos
ma do sacramento, porém sim á fé dos ba trar que a sua igreja não é obra que possa
ptisandos, pois que é applicada pelo papa ser trahida pelos homens, como acontece
no mesmo sentido em que se lé nos actos áquellas que são d’invcnção humana, mas
dos apostolos, c. 2, v. 38 —baptizetur unus que é uma instituição divina, que deverá
quisque vestrum in nomine Jesu Christi:— sem pre' conservar-se firme na fé, ou seja
o que Harduino na sua questão do baptis dirigida por maus ou por bons conducto
mo em nome de Christo muilo bem expli res supremos.
ca, mostrando que aquellas palavras in Por ultimo farei uma breve rellexão so
nomini Christi se não referem, como acima bre o argumento que contra a mesma in-
foi dito, á fôrma do baptismo, mas á fé em fallibilidade se querería tirar das reformas
Christo dos que eram baptisados, isto é— do martyrologio romano, e canonisação dos
se sendo perguntados no acto do baptismo sanctos.
se criam na Trindade, ou tão sómente, se É bem sabido como a canonisação ou a .
criam em Christo, como se lé nos actos veneração aos servos de Deus era"ordena
dos apostolos, c. 8, v. 12, e no v. 37, rcla- da ou introduzida pelos bispos nas suas
tivamente ao eunuco da rainha Candaces, dioceses, e alguma vez por uma mera tra
diziam que sim; claramentc constava en dição popular, que passava depois a gcnc-
tão que não deviam tornar a ser baptisa raíisar-se; e sem o rigoroso exame que
dos. posteriormente foi adoptado, se criam pia*
E este é também o sentido cm que o mente bemaventurados taes ou taes indi
papa se servira d’aquellas palavras, se viduos, d’onde se vé bem que uma refor
gundo a doutrina dos Sanctos Ambrosio e ma, que n’algum d’esses factos tivesse to
Agostinho, a que elle mesmo declara refe- gar, não prejudicaria a infallibilidade dos
rir-se: á vista do que nada de erro aqui ap- pontifices no sentido que logo no principio
parece que vá cm descrédito do sancto pa declarei.
INF o79
Porém, se depois do scculo x, ou mais dado o poder sem Pedro, para que se en
verdadeiramente do scculo xiv, em «pie tenda que os outros nàç podem sem elle,
principiou a realisar-sc a solemnc canonisa- e que elle, por privilegio, recebeu a ple
•ciio dus sanctos, na (juaT o papa pronuncia nitude do poder, para ligar os outros, c
fornialmcntc o seu jui/.o, houvesse qual nunca os outros a elle. A razão ó, por
quer facto por onde se provasse que nào que a origem do episcopado, pelo que res
-era sancto algum individuo que o summo peita ao poder mystico dc apascentar pela
pontifice por aquclla maneira tivesse de doutrina, c reger pelas leis, e juizos, foi na
clarado tal, poderia então esse tacto scr sua origem um,e a um só dado inteiramen
adduzido para prova da fallibilidadc sobre te, c cin um só firmado sem reserva—Tu
este objecto, no supremo chefe da Igreja. és Petrus et super hanc petram edificaho,
' Fóra d’csse caso não mc parece real- et. Tibi dabo claves regni Catiorum;— de
inentc haver causa para que seja aqui ve pois scr procurado em Pedro o funda
chamada a oanonisaçào dos sanctos, não mento para que, como origem e raiz, por
obstante as indirectas inducçócs a que direito divino, a unidade seja firmada não
d’ahi se qucrcria recorrer. só ontre os apostolos, mas também entre
os bispos, a fim de se conservar a carida
PRIMEIRA 0HJECÇÂ0 de e communhão; isto mesmo confessou
S. Cypriano, quando disse:—Petro primum
Dominus, super quem edificavit Ecclesiam,
«Sc o pontifice é infallivel, para que se et unde unitates originem—de sorte que o
celebram concilios geracs?» poder dc Pedro, é em lodo o rebanho de
A infallibilidadc do papa já anteriormen- Christo; e o mesmo que aos bispos foi
tc foi discutida; agora limitar-mc-hei só dado, lhe pertence por ser o centro d’on-
mente a responder á pergunta. dc sahe todo o summo poder: de maneira
Em primeiro logar, é certo que o sum que ninguem póde entregar-se de parte al
mo pontifice, por isso que é successor de guma d’elle contra sua vontade, pois que
S. Pedro, e vigário como elle de Jesus n’ellc está lodo o fundamento c u termo,
Christo, nào pôde deixar de. ter por legiti como fica dito.
ma successão o dom da infallibilidadc cm Quando Jesus Christo deu a todos jun
matérias de fé e bons costumes; porque tos com Pedro o pleno poder, dizendo-lhes:
lhe foi dado na pessoa de S. Pedro, quan —quatqnnque ligaverites et— onde está a
do Jesus Christo lhe disse:— Ego rogavi pro diversidade do poder, que já sómente ti
te, ut non defcciat fides tua, et tu aliquan- nha dado e entregue a Pedro? Ou onde
do confirma fratres tuos. Lue., cap. 22, estará mais pleno poder? É, pois, evidente
31, e 32. que cm Pedro está a raiz, e o termo do
Segundo S. Leão temos aqui tres cousas poder, assim como igualmente cm todos os
a distinguir: primeira, que os demonios outros, mas sempre com Pedro: de sorte
tiveram a permissão de tentar os apostolos; que cm Pedro está a raiz c o termo, c em
segunda, que Jesus Christo rogou unica todos, sempre com elle o termo; e em to
mente cm particular por Pedro, para que dos sempre por direito divino, emquanto
a fé d’ellc e de cada um em particular, são ministros de Christo, ou sejam aposto
em similhantes circumstandas, nunca ti los, prophetas ou evangelistas, pastores ou
vesse quebra. doutores, sempre para a edificação do cor
Deu igualmente aos mais apostolos, e po de Christo.
■aos bispos, seus successores, por lei ordi Portanto, estendendo-me a pouco mais
naria o dom da inerranda, tão sómente do que á resposta que devo dar á pergun
unidos áquclle que devia confirmal-os. É ta, tenham mais um pouco de paciência, se
sem .dúvida que Jesus Christo deu a S. lhes a prouver.
Pedro, nào só o poder de apascentar todos Os concilios geracs, quando são legíti
os lieis— Pasce Agnos meos—mas também mos, são tão infàlliveis como a Igreja dis
os apostolos, os bispos, c outros superio persa quando falia; porque a Igreja tan
res—Pasce Oves meas;—a elle independen- to ò— Unum Ovile—a uniea esposa de Je
temonte de todos os mais, lhe foi intimado sus Christo, estando junta, como dispersa;
— Tibi dabo claves regni Cattorum, quod- porém como o dom da inerranda foi dado
qunque ligaveris super terram erit ligatum só a Pedro, c aos mais unicamente unidos
in Cailis. a elle, segue-se que as definições do sum
De maneira que, diz um grande sabio, mo pontifice, fallando ex catíicdra, são tão
Alvaro Pelagio: «A .Pedro foi dado o po livres d’erro, como as da mesma igreja;
der sem os outros, mas aos outros nào foi porque Pedro por si só tem o dom da in
it
580 INF
fallibilidade ou inerranda, em materias de condemnado por outro concilio, fez o mes
fé, c a Igreja só o, terá unida a este, como mo perante Zozimo c Celestino, papas; Eu-
consultor principal, o definidor ultimo c tyches, condemnado pelo synodo hvpolitc-
supremo, com inteira liberdade, c como no, appcllou para S. Leão; S. Jcronymo,
cabeça de todo o corpo, c corpo que cons na questão se em Deus se dava uma ou
te de membros e cabeça: som dúvida é tres hypostases, respondeu, que as confes
ideia abstracta gastar-se tempo cm hostili- saria se Damasio assim o mandasse; Cv-
sar a cabeça contra o corpo, ou o corpo rillo Alexandrino, escrevendo na questão
contra a cabeça, porque n’cste caso já não do Ncstorio, diz: «um longo c antigo cos
temos corpo; isto só acontecerá na sua tume foi levar sempre tacs causas de to
eleição, para o que ha providencias nos das as igrejas ao romano pontifice, e obe
sagrados cânones; satisfeito o que, ahi te decer»: quasi nas mesmas palavras c sen
mos outra vez Pedro nos seus direitos, c tido escreveram os bispos francezcs ao pa
que emanaram d’ellc, junta mente com a pa S. Leão contra Eulyehcs: veja-sc uma
Igreja, ou da Igreja só n’clle, c por ellc carta que se acha entre as.de S. Leão.
representada. Era tão commurn o sentimento da infal-
Não negamos que os bispos teem voto libilidade do papa, que ninguem repclliu es
definitivo, e que sao columnas da verdade, ta verdade antes do século ix, nem scquei\
por direito divino: porém ellcs nunca le ao menos a pôz cm dúvida. Só Phocio,
rão o dom da inerranda senão unidos a, pela sua desmarcada ambição, se arrojou
quem ello se deu por direito divino ordi a negar a infallibilidade do papa, além de
nario, com o privilegio de confirmar em outros erros, aonde principiou o scisma gre
quem lhe foi mandado, isto é, por quem go, bem ignorante, do que affirma uma
manda c mandará no céo e na terra: isto carta de Dionisio a Thimoteo, narrando
mesmo está confirmado por ioda a anti o martyrio de S. Pedro c S. Paulo, expres-
guidade, principalmenle nas appellaçõcs sando-s’c este para com aqucllc—P ax le
que sempre se fizeram á sancta sé apostó ram Petre fundamentum ecclesiarum, pas
lica, como supremo e infallivèl tribunal. tor ovium, el agnorum Christi! — D'ondc
No* primeiro século, cm tempo que S. lambem Sancto Ambrosio, sohrc a visita
João Evangelista vivia, ou que linha falta de S. Paulo a S. Pedro, na primeira carta
do de sobre a terra, talvez menos de tres que dirigiu aos galalhas, diz: «Era justo
dias, ou quatro annos, suscitando-se em que S. Paulo desejasse vêr c visitar, a
Corintho grandes dúvidas c questões, a quem era o primeiro entre os apostolos, c
ninguem se recorreu senão a S. Clemen a quem o Salvador delegou o cuidado das
te, successor de S. Pedro. igrejas, dos pastores e dás ovelhas.»
No segundo século, Marciào, cxcommun- Em igual sentido escreveu o papa Inno-
gado c condemnado, recorreu á sancta sé cencio ao concilio de Carthago, denomina
apostólica, sendo successor de S. Pedro do Augustiano: «não por humana senten
Pio i. Epiph. heres. XLIL ça, mas por divino direito, sem que os
No terceiro, Fortunato c Felix appella bispos decidam primeiro, se recorre á sé
ram contra S. Cypriano para o papa Cor de S. Pedro—cujus auctoritate ju sta , aui
nelio; Brazilidcs, em JJespanha, para San fecerit pronuncialio form aretur»; — póde
cto Estevão (S. Cypriano, lib. l.°, epist. também vér-sc S..Bernardo ao papa Eugê
3.*); Dionisio Alexandrino, accusado por nio em tempos distantes; emfim, como a
um concilio, appcllou para o summo pon resposta sabe mais longa do que tenciona
tifice Dionisio Romano, com as suas cartas va, acabarei referindo "o que é frisante, c
apologeticas (S Athanazio, lib. de sentonc. sem réplica.’ Lucio, papa, e martyr do sé
Dionis.) culo ui, cm uma carta aos bispos de Fran
No quarto século, Ciciliano julgado por ça, e Hespanha, diz: «A igreja romana é
sete bispos, foi a final julgado pelo supre ãpostolica, é mãe de todas as igrejas, e cor
mo c ultimo tribunal, isto é, pelo papa rendo pelos caminhos da tradição, nunca
Melchiadcs; Athanasio Alexandrino, c Mar se provara que errára—Nunquam errasse
cello, depostos pelos oriontaes, recorreram probatur.*
ao supremo tribunal romano; Cuthadio, Em 318 o primeiro concilio de Nicea
contra os arianos, Paulino Antiocheno, con explica-se d’esta sorte: «Veneramos, se
tra os orientaes, todos recorreram ao suc gundo as Sanctas Escripturas e definições
cessor de S. Pedro. dos canones ao sanctissimo bispo da anti
No quinto século, Pelagio, condemnado ga Roma, como o primeiro e maior de to
solcmnemcntc pelos bispos africanos, ap- dos os bispos, e como Pedro, desde o prin
pellou para o romano pontifice; Apiario, cipio é vigário de Jesus Christo, c presi-
INF o81
dente da religião, perfeito ern todas as cou- fica dito, cm matérias de fé, e por isso clle
sas pertencentes ás igrejas, assim como a é illustrado, c como tal deve saber, c sabe
tudo que pertence a Christo, é senhor, rei até que ponto per si só póde decidir qual
tor de todos os principes chrislâos, de to quer verdade: sabe quanta disquisição se
das as provincias, de todas as gentes, é, fi faz precisa para as maiores ou menores
nalmente, aquclle cujo principado é lloma, importâncias; pelo mesmo dom da sua in
é similhante a Pedro, igual na aulhorida- errantia, em materias proprias, deve ollo
de, c tem de per si a dominação, e princi saber se é preciso consultar todos, ou
pado sobre os patriarchas. Ca*n. .'19.». parte de seus irmãos: sabe que os votos de
0 concilio latcrancnsc, no tempo de In- finitivos, assim como o seu deve ser tirado
nocencio in, cap. o.°, diz: «A igreja roma da Escriptura ou tradições sanctas, sabe
na. dispondo-o assim o Senhor, tem sobre que clle deve ser o quê confirma, e que
todas as igrejas o principado do poder or esta confirmação deve ser sem defeito, co
dinario, e é a mãe, c mestra de todos os mo lhe prouíetteu o Salvador; por isso
fieis de Christo.» aqui devemos ver n’elle todos os conheci
O concilio ecumênico de Klorença, nas mentos que lhe forem necessários para sa-
letras do união, diz: «Definimos *quc a hir triumphante do erro em todo o tempo,
sancta sé romana, c o romano pontifico, c cm todas as necessidades, porque o fim
teem o principado em todo o mundo, é requer os meios, e do contrario podíamos
successor de S. Pedro, verdadeiro vigário dizer que Jesus Christo fundou sobre areia,
de Christo, cabeça de toda a Igreja, como o que só pcnsal-o é injuria insultante.
pae, e doutor de todos os christàos, de tal Não sc diga que muitos pontifices teem
sorte tem unido a si o poder na pessoa de errado ern matérias de fé, e direito divinc
Pedro, por expressa vontade do mesmo Je porque quantos factos sc mencionam,
sus Christo, que clle tcin um poder pleno; maior parte são desfigurados, c outros ai
c concluindo, diz:—E t ipsi., in beato Petro, da que verdadeiros, não estão na razão
pascendi, et regendi, et gubernandi univer materias de fé, mas em matérias de fact
salem Ecclesiam á Domino Jcsu Christo, não revelados, onde podem errar, e de
Plenariam Potestatem Traditam esse.* cto erraram não só os pontifices, mas o:
Não despresarei de todo a unanimidade mesmos concilios geraes, de que podia aqui
dos padres do Tridentino na mesma defesa fazer menção, não menos de tres ou qua
d’esta verdade, que ha muitos annos li no tro concilios: assim como de tres pontifi
padre Pereira, que para bem dilTercnlc ces, uns em maiorias de factos, e outros
prova nòs acarretou, dizendo que sómente por falta de liberdade, c outros por serem
poucos impugnaram, e que Pio tv não sub intrusos, ou anti-papas: porém, fiquemos
screveu; linalmente, chamarei a Sancto aqui, para não enfadarmos o nosso curio
Agostidho para que venha responder ao so, que nos pergunta.
nosso discipulo que nos faz a pergunta (lib. Concluiremos com tres verdades: pri
70, ad B onif, cap. ult.) Supposto alguns meira, que o summo pontifice, sendo legi
concilios se juntaram para condcmnaçào de timo, estando em liberdade e fallando cx
heresias, foram incomparavelmente mui cathedra em materias de fé e bons costu
tas, c muitas mais, as que foram condc- mes, é infallivel; segunda, nunca o summo
mnadas sem concilio: sobretudo reporto- pontifice é obrigado a consultar todos os
me a Vicente Livincngc; este pergunta, c bispos senão quando clle o julgar necessá
responde. Para que são os concilios ge- rio para a discussão, feita a qual, com to
raes, senão para aquillo que antes se acredi dos ou com alguns, ao seu arbitrio, verifi-
tava com uma simples sinceridade, se acre car-se-ha então n’ellc o—Aon deficiet futes
dite em tempo com maior attenção, dili tua; terceira, haver ou não haver, celebra-
gencia e firmeza? rem-sc ou não, concilios geraes, nada faz,
O que antes lentamcnte sc ensinava, no nem dispòc contra a infallibilidadc do pa
futuro seja com maior cfiicacia pregado; o pa; por quanto a promessa da inerranda.
que com segurança se venerava antes, de foi dada por Jesus Christo tanto a clle, co
pois seja com o maior cuidado venerado c mo a Pedro; como aflirma o mesmo con
respeitado. Pódo vér-so in conímonit. cilio primeiro de Nicea, canon 39, que
Aqui temos a razão porque ha ou póde quasi se póde chamar o quarto concilio
haver concilios geraes, sem que por isso geral.—....Ita ille cujus principatus Romce
sc possa negar a infallibilidadc da cabcca est, Petro similis, et auctoritate par... huic
da Igreja. sanctioni, sirjuis contradixint, seu repn-
Além do que já dissemos, é certo que o averit: anathemati subjiciatur.
papa é assistido do Espirito Sancto, como
582 INF
SEGUNDA. 013JEÇCÂ0 bor se um concilio convocado, presidido, e-
confirmado pelo papa, é ou não superior
ao papa. Questão bem frivola, pois que
«0 papa é superior ao condio geral?» será o mesmo que perguntar se o papa é
^ Os padres congregados no concilio do ou não superior a si mesmo; ou também,
Constança, nas sessOes 4.* e 5.a, decidiram se assim o quizerem, se o papa só póde
ser o concilio geral superior ao ponti (ice rctractar, revogar, ou rescindir as deci
romano. Decisfvo esta, (pie, nascida na des sões c decretos feitos pelo papa, assistido
ordem e lumulto do grande scisma d’Avi- do corpo episcopal; então distinguiromos
nháu, e fabricada na cabeça fogosa d'um que estas decisões e decretos são em mate
Gerson, d’um Pedro d’Aly^ d’um Almain, ria de fé e costumes, ou em pontos mera-
etc., foi muito promptamente abraçada, com mente disciplinares. Se se tracta de deci
a maior avidez, por todos os hereges, se sões relativas á fé c costumes, nem o papa
ctarios, e novadores rebeldes aos decretos nem o concilio teem uma tal aulhoridade, e
da sé apostólica; pois que n’clla divisaram consequentemente, cm tal hypothese, nem
logo o mais especioso pretexto para zom o papa é superior ao concilio» nem o con
bar dos raios do Vaticano, defender e pro cilio superior ao papa, e a questão torna-
pagar seus erros ao abrigo de multiplica se ridicula. Se os pontos são de mera dis
das appellações para o futuro concilio, para ciplina, a questão vem a parar prccisa-
desterrarem da igreja catholica um juiz mcnlc em saber se o papa só, nos longos
supremo, permanente, de fácil recurso, c intervallos que separam os concilios gc-
inappellavel, e substituirem-lhe um tribu racs, póde dispensar, alterar, ou derogar
nal futuro, rarissimo, extremamente difíi- os decretos disciplinares, que de sua natu
eil, c summamente complicado nas condi reza não são immutavcis, quando circum
rdes que devem contestar a sua legitimi standas imperiosas assim o exigem. Ora,
dade, a fim de que, cm uliiino resultado, qual será o catholico que negue ao papa
viesse a parar o supremo juiz das contro esta aulhoridade? «0 papa, diz Bossuel (e
versias, na igreja catholica, ao puro e mero não é aulhor suspeito), tudo póde, quanto
juizo, óu espirito privado, e ficarem, por pedir a necessidade c grande utilidade da
este meio, justificadas todas as seitas, todos Igreja.»
os erros, todas as heresias, e a unidade da No segundo caso,* para que a questão te
igreja de Jesus Christo rasgada e despeda nha algum sentido, é necessário propôl-a
çada cm tantas crenças, quantas forem as n’estes termos: 0 corpo episcopal, reunido
cabeças dos novadores. sem papa, é ou não superior ao pápa? Mas
A questão, se o concilio é ou não supe então o concilio, por mais numeroso que-
rior ao papa, não é uma questão simples, seja, não é ecumenico, porque lhe falta um
como estes maus theologos suppoem, mas elemento essencial, qual é a sua cabeça, o
é complexa; tem duas partes: í . a Qual é a seu maioral, o seu principe, nem represen
natureza d’um concilio ecumenico, e quaes ta a igreja de Jesus Christo, a qual não é
os caracteres, cuja menor alteração des- um corpo decapitado c acephalo, mas um
troc a sua essencia. 2.a Sc o concilio, assim corpo perfeito, c composto de cabeça e de
constituído, é ou não superior ao papa. membros; não se verifica ivclle o emblema
Tractar a segunda questão, desentenden- de Jesus Christo: E t erit unum ovile, et
do-sc da primeira, como costumam fazer, umis Pastor; não póde significar o editicio
não é sómente um erro de dialectica, mas fundado sobre Pedro, nem se acha no Evan-
sim obrar de má fé, e, como diz o conde ellio (o que é muito para notar, o ácerca
de Maistre, um peccado contra a probida o que estes sophistas se fazem desenten
de. Este é comludo o constante methodo didos) que Jesus Christo fizesse promessa
d’estes sophistas: limitam-se sempre a pro alguma da sua assistência ao collegio apos-
clamar a superioridade do concilio, sem tolico, separadamente de Pedro, pois que
nunca descerem ao exame analylico d’uma quando lhes disse: Ecce ego vobiscum sum,
tal asserção. Tractemos de supprir este de estava Pedro na assembléia; quando lhes
feito. promettou que o Espirito Sancto lhes en
Qual é pois este concilio superior ao sinaria todas as cousas, Pedro achava-se
papa? Não é o diocesano, nem o nacional; ahi; quando lhes mandou ensinar todas as
elles o confessam: será então o concilio gentes, Pedro recebeu, juntamente com os
universal ou ecumenico? esta é a sua as seus collegas, a mesma ordem. Em uma
serção. Muito bem. Mas este concilio ecu palavra, todas as promessas, feitas no Evan
mênico é concilio com papa ou sem papa? gelho, ao collegio apostolico, são igualmen-
No primeiro caso a questão se reduz a sa tc communs a Pedro, que sempre se acha-
INF 58)1
va presente; isto é, sào sempre feitas ao nhecimento d’um só, corn exclusão do to
collegio apostolico, emquanto unido a Pe dos os outros. Em circumstandas tão ca
dro, o por Pedro presidido, a quem o mes lamitosas, o imperador Scgismundo reu
mo Jesus Christo tinha nomeado por ca niu cm Constança os bispos que pôde, e
beça, pastor, e principe do mesmo. Volte todos, sómente dá obediência de João xxui,
mos agora a medalha. que os havia convocado; mas logo no prin
Sc no Evangelho não achamos promes cipio, c nas primeiras sessões, separou-se
sas, feitas ao collegio apostolico, separado d’elles, para evadir-sc aos attentados que
de Pedro, achamos muitas, mais decisivas contra cllc viu se inachinavam. Os bispos
c mais terminantes, feitas a Pedro só, c cm das duas obedienciaS", dc Grcgorio xir, c
separado de seus collegas, ainda estando Bento xiii, não só quizeram não concorrer
ellcs presentes. A Pedro só disse Jesus ao concilio, mas. procuraram, com todo o
Christo: E l tibi dabo claves regni coelorum. esforço, impedil-o, protestando contra ellc.
A Pedro só disse Jesus Christo: Pasce oves A primeira cousa que fizeram os prelados
meas. A Pedro só disse Jesus Christo: Ego que correram a Constança, foi determinar
rogavi pro te, Petre, ut non deficiat fules que os votos se tomassem por nações, e
tua. A Pedro $d disse Jesus Christo: Con não por individuos; methodo inaudito, e
firma fratres tuos. A conclusão que natu- nunca d’antcs nem depois practicado nos
ralmcnic resulta d’esla simples observa concilios geraes, e que de algum modo li
ção, não póde ser outra, senão que toda a gava e restringia a liberdade de cada um
ãuthoridadc do corpo episcopal depende dá dos bispos.
sua união com a sua cabeça, e seu princi Divididos assim os prelados, opposios cm
pe: separado este, desapparecc o sugeito interesses, separados dc João xxm, e dos
das promessas de Jesus Christo, feitas não cardeaes que o acompanharam, impacien
separadamente aos membros do corpo pas tes e irritados pela contnidicção dos papas
toral, mas aos membros, cmquauto unidos renitentes, dominados pelas influencias de
á sua cabeça; e pelo contrario, que a au- soberanos discordantes: e, emfim, estimula
thoridade dc Pedro e de seus successores dos pelo ardente desejo de pôr termo ao
subsiste por si mesma sem depcndencia do scisma mais deplorável, que jamais aííli-
resto dos pastores, pois que Jesus Christo giu a Igreja, disseram entre si: «Nós nãc
as fez em particular a Pedro, separadamen pedemos dar paz â Igreja, c reformal-a na
te dos mais apostolos. Que pretendem pois cabeça c membros, sem que o papa nos
estes-sophistas, airoando-nos sempre os ou obedeça, c se sujeite ás nossas determina
vidos com a sua superioridade do concilio ções: bom remedio, pois! decretemos que
ao papa? Sc ellcs nos querem dizer que o ó papa é obrigado a obedeecr-nos. Mas o
corpo episcopal, separado do papa, c em p.apa, revestido por Jesus Christo do pri
opposição com o papa, é superior ao papa, mado de honra e jurisdieção na Igreja, não
além de se oppôrcm abertamente aos tex póde ser obrigado por um concilio que
tos referidos do Evangelho, atacam não não seja ecumênico. Decretemos pois que
menos o senso cornmuin; pois é o mesmo o nosso concilio é ecumenico, apesar da
que dizer que as ovelhas são superiores ao opposição que lhe fazem os bispos das
pastor, os filhos aos paes, c os subditos ao duas obediências, que o não querem reco
seu principe; paradoxo que só póde sahir nhecer por legitimo, c canonicamentc con
de cabeças mentecaptas, c que por isso stituído, c apesar *de carecer dc cabeça, e
neni merece attençào. centro dc unidade que o constitua um cor
Mas o sancto concilio de Constança?! po regular. Declaremos que nos havemos
Mas o sancto concilio de Basilea?!! Ah! constituído a nós mesmos em concilio ge
dissimuladores perigosos! vós, com a maior ral e ccumenico, que representamos a
astúcia c má fé, fingis e mostraes não en igreja catholica, que recebemos immcdia-
tender que o primeiro, nas sessões 4.a e tamente dc Jesus Christo todo o poder e
5.a, era uma mera assembléia, que nada authoridade, e que somos assistidos do Es
tinha de concilio ecumênico, c que o se pirito Saneio; c, postos estes principios, fica
gundo degenerou cm um conciliabulo de a proposição demonstrada; isto é,‘ que toda
scismaticos, levando a sua louca pretenção a pessoa de qualquer dignidade, ainda pa
até pronunciarem sentença dc deposição pal, é obrigada a obedecer-nos em tudo o
contra o papa Eugênio ív. Expliquemos que diz respeito á extirpação do scisma, e
isto. Havia muitos annos que a Igreja se reforma da Igreja.»
via dividida em tres partidos, cada um dos Eis-aqui como na sessão 4 / c õ.a do con
quacs reconhecia um papa differente, c cilio ou assembléia de Constança, foi deci
não era possível reunir-se toda no reco dida a superioridade do concilio ao papa.
584 INF
Sc a decisão fosse pelo contrario, isto é, se rioridade do concilio ao papa nas conse
aquelles bispos decretassem que o papa quências que d’clla devem necessariamen
era superior ao concilio, quanto se não ri te resultar. E certo que nenhuma socie
riam os jansenistas de nós! Pois sofTram dade, republica, ou reino, pódc subsistir,
também nossas risadas, quando com de se iTclles não houver uma authoridade su
cretos de taes sessões nos quizerem pro prema que julgue d’uma maneira perem
var que o papa é inferior ao concilio. ptória e inappcllavel todas as controver
É, além do referido, muito digno de ob- sias, disputas ou contestações que n’elle
scrvar-sc que depois, nas ultimas sessões se excitarem c poderem perverter e per
do concilio, se reuniram as tres obediên turbar a paz, harmonia c concordia entre
cias, e se elegeu, na sessão de 30 de outu os membros d’cssa sociedade, republica,
bro de 1417, Marlinho v, e foi unanime ou reino. Este principio, que cm politica
mente reconhecido pelo unico, verdadeiro, é um axioma, na religião catholica é um
e legitimo papa, isto é, depois que a assem dogma; pois que tendo a igreja de Jesus
bléia de Constança se tinha convertido em Christo por caracter essencial a unidade
verdadeiro concilio ecumênico, jamais se na doutrina, na moral, nos sacramentos,
attribuiu independente do papa o direito no governo, etc., ut sin t anum, dizia Jesus
de reformar a Igreja na sua cabeça c mem Christo a seu Eterno Pac, sicut nos unum
bros, nem de tal assumpto quizeram mais sumus, e como dizia o mesmo Senhor cm
tractar, resolvendo que o papa o fizesse outra occasião: Ut sint unum ovile, et unus
por si mesmo com a justiça e equidade Pastor, c pelo orgão do seu apostolo:JJnus
que a sua sabedoria lhe dictasse. Dominus, una fales, unum baptisma, como
No que os padres instaram muito, foi era poderia esta unidade manter-se, conservar-
obter de Martinho v a confirmação do que* se, e promover-se sem um juiz supremo
no concilio se havia tractado; isto é, o con das controversias que na Igreja se excita
cilio de Constança, quando era ecumenico, rem cm maneira de dogma, de moral, ou
reconheceu prácticamentc por seu superior disciplina? A sizania que o orgulho huma
aquelle que no tempo em que era apenas as no não cessa de semear no campo da Igre
sembléia de alguns bispos, havia declarado ja, os erros que o amor da singularidade
por seu inferior. Eis-aqui o que são os de forccja por introduzir, as dúvidas, as con
cretos da 4.a e 5.“ sessão de Constança— tendas e diçputas suscitadas entre os mes
ura vão espantalho com que os jansenistas mos fieis, e, cmfim, as doutrinas perigo
pretendem pôr medo, e enganar os igno sas, falsas, e anti-catholicas, que um espi
rantes e pouco instruídos na historia d’este rito de innovação e de independência, se
concilio. empenha em sustentar, tudo isto reclama
Com efleito Martinho v deu a bulla de uma authoridade soberana que córte, dis
confirmação. Mas que confirmou elle? To sipe, c faça desapparecer toda a divisão,
dos os decretos decididos conciliarmenle discordia e contenda, condemnando o erro,
cm matéria de fé, o que duas vezes repete; e estabelecendo a verdade d’um modo cla
isto é, os decretos contra os erros de Wi- ro, preciso e terminante.
clef e João Hus, e os que foram estabeleci - Esta authoridade, este juiz supremo, deve
dos depois da reunião das tres obediências, indispensavelmente ter as seguintes quali
presididas por elle mesmo, já eleito e re dades:
conhecido por verdadeiro e legitimo papa. 1* Deve ser universal; isto é, deve po
Mas que o corpo episcopal, separado do der estender-se a todo o corpo mystico de
papa, e em opposição com elle, possa fazer Jesus Christo, e de todos ser obedecido.
leis que obriguem o vigário de Jesus Chris 2. a Deve ser peremptória, que termine,
to, e pronunciar sobre o dogma de uma exlinga as contendas, e dissipe toda a dú
maneira divinamente infallivel, isso nem vida.
ainda por sonho veio jamais, ao pensamen 3. a Deve por isso ser inappcllavel; pois
to de Martinho v; diga-o a bulla do 10 de que onde ha logar para appellação, ha sem
março do mesmo anno, que este papa pro pre meios de illudir a sentença c sustar a
mulgou, em que reprova e condemna as decisão.
appellações dos decretos da sancta sé para 4. a Deve finalmonte ser infallivel, que
o futuro concilio, declarando ser a sé apos obrigue o entendimento, e subjugue o as-
tólica o tribunal supremo,, e o soberano senso do espirito; que se não limite a uma
juiz das controversias na igreja catholica. profissão externa da verdade, mas que exi
Eis-aqui como Martinho v confirmou as ja o sacrificio do mesmo juizo, em obsé
sessões 4> e 5." de Constança. quio da authoridade que falta.
Consideremos agora a opinião da supe Isto supposto, pergunto: qual ó na Igre-
ja cstc juiz supremo, universal, inappclla- arrogar esta authoridade, c ouviram o cla
vd , e infallivel? É a Igreja, responde toda mor unanime dos padres: Super/luos foras
a multidão jansenistica, e com ella o nosso mittite; Synodus Episcoporum est, non Cle
Pereira, o qual é a columna e firmamento ricorum.
da verdade: c o mesmo Jesus Christo o Restam ultimamente os bispos: estes po
disse nas palavras do presente texto: «Si dem considerar-se dispersos, ou reunidos
tibi non audierit dic Ecclesia:.* Analysemos em synodo ecumcnico. Considerados do
com algum vagar essa resposta, c dissipe primeiro modo, como podem constituir um
mos o equivoco, involtorio ordinario em tribunal que possa decidir promptamente
que estes theologos costumam dc ordina tantas dúvidas, e tão frequentes contesta
rio embrulhar as suas doutrinas. A Igreja ções, que todos os dias se estão excitando
é sem dúvida columna c firmamento da na Igreja? Seria necessário que a causa
verdade. Mas que Igreja é esta? A univer fosso levada ao tribunal de cada um dos
sal a todos os tempos, a todos os logarcs, a bispos, que cada um examinasse a maté
todas as pessoas, pastores, e ovelhas. N’csta ria, consultasse a Escriptura e,a tradição,
ó certo, c verdadeiro, é infallivel.— Quod ponderasse as razões pró e contra, c últi
semper, quod ubique, quod ab omnibus cre mamente désse a sua sentença. Ora,achan-
ditum est.—A sua voz é a voz da verdade, do-sc a Igreja dilTundida por toda a face
a voz de seu Esposo, a voz do Divino Es da terra, c havendo bispos em todas as
pirito. Eis-aqui o sentido em que a Igreja quatro partes do orbe, que tempo ou sé
é a columna da verdade. Tudo quanto se culos não seriam necessarios para se rea-
oppozer á sua voz, c ao seu universal en lisar esta progressiva discussão?
sino, é falso, é erroneo, é herético. Mas ^Entretanto a verdade seria opprimida, e
se nesta igreja se excitar alguma dúvida, o erro triumphante. Supponhamos porém
ou alguma controversia cm matérias de fé que a matéria chega emíim a estar por to
c de costumes, qual é o juiz que as ha de dos discutida, c cada um dos bispos tem
terminar e decidir? Não se deve confundir dado a sua decisão; é necessario examinar
(aqui vai o equivoco) a igreja universal se os votos são ou não concordes, se a de
com o juiz das controversias na Igreja, as cisão é unanime; pois sem esta unanimi
sim como se nào confunde o juiz ou tri dade, dizem os jansenistas que não ha de
bunal supremo de justiça do reino, com o cisão dogmatica. Para se conhecer esta
mesmo reino: assim conio as controversias unanimidade, é necessario recolher os vo
civis, excitadas no. reino, não podem rcsol- tos, comparal-os e examinar escrupulosa-
ver-se pelo mesmo reino, mas por um tri mente se estão ou não conformes. Quem
bunal distincto c investido d’esta authori- ha de fazer este exame? Se deixamos isso
dade, assim as controvérsias religiosas, ex ao cuidado dc cada um, ahi paramos no
citadas na Igreja, é forçoso que sejam de juizo privado. Supponhamos que alguns
cididas por um juiz supremo, instituído na bispos se encarregam d’esta commissão, c
Igreja, e distincto da mesma Igreja, c não que depois das competentes averiguações,
pela mesma Igreja. accordam em que os votos se acham con
Com cffeito, a Igreja não se distingue da formes, c que a sentença c uniforme. Mui
universalidade dos ficis catholicos: ora es to bem: mas quem nos assegura que os
tes podem dividir-se em duas grandes clas bispos commissarios sc não enganaram no
ses: pastores e ovelhas. O officio d’estas e seu juizo? '
ouvir, aprender, c obedecer, e por isso se Ás promessas do Salvador, dizem os mes
chama igreja discente, e hão pódc ter as mos jansenistas, não foram feitas a dous ou
sento no tribunal judiciario. A classe dos tres bispos, nem á menor nem ainda á
pastores pódc também dividir-sc em dous maior parte d’cllcs, mas a todos collectiva-
ramos: pastores da primeira ordem, os bis mente: Ecce ego vobiscum sum. Logo— non
pos; pastores da segunda ordem, os paro ad majorem partem, verum ad Pastorum
chos ou presbyteros; estes (nunca tiveram universitatem spectant. Conseguintemente,
voto decisivo na matéria èm que versas depois dc tantos rodeios, cireumloquios, c
sem as controversias, apesar de todas as ambages, achamos-nos como no principio:
cavillações dos jansenistas, cujo orgulho a questão indecisa, c o erro triumphando.
lhes metteu em cabeça que também eram Que diriamos nós do governo dc uma
constituídos juizes com os bispos, cm mate grande nação, na qual o juiz supremo das
rias de fé; o foram setnprc excluídos d’esta coutroversías fosse a universalidade dos
prerogativa, e nunca lhes foi reconhecida: magistrados dispersos por todas as provin-
testimunha o concilio universal cphesino,, cias do imperior Diriamos que seria este o
cm que alguns presbyteros se quizeram mais absurdo dc todos os governos. E se
5*86 INF
ria digno da sabedoria divina dar á sua possam sahir de seus estados, para compa
Igreja um similhante governo? recerem no logar destinado para a ccume-
Consideremos agora os bispos reunidos nifca assembléia. Ora, sendo estos sobera
em concilio. Nenhum concilio particular nos tantos e tão differentes nas idéias, nos
decide sem appellação. As suas decisões interesses, na politica, e na religião; uns
não fazem regra de fé, nem são infalliveis. catholicos, outros protestantes, outros scis-
E portanto indispensável um concilio ecu maticos, outros pagãos, etc., quem nos po
mênico. No tempo dos imperadores um derá assegurar da sua condescendência e
concilio geral não era muito diíficil. A docilidade cm tão delicado negocio?
Igreja era mais circumscripta: todas as mi- Supponhamos, emfim, vencidas todas es
tráspodiam ser movidas por um só sceptro. tas difiiculdadcs, e que os bispos chegam
Pórém hoje, que depois dos grandes des a reunir-se em concilio; mas onde está o
cobrimentos, o Catholicismo se acha diíTun- papa? Concilio sem papa, é, como já pon
dido pelas quatro partes da terra, e o po deramos, corpo som cabeça, que não re
der temporal dividido cm tantas sobera- presenta nem pódc representar a Igreja
nias independentes, um concilio ecumêni de Jesus Christo.
co parece uma chimera. As promessas do Salvador não foram
Ao papa, em razão do seu primado, é feitas aos bispos separados do papa, assim
que pertence convocar o concilio geral; e como não foram feitas aos apostolos, sepa
com elleito um concilio ecumênico só pódc rados de Pedro. Eis-nos aqui ainda sem
ser convocado por um poder ecumênico, concilio, depois do tantos tempos, diligen
como sensatamente adverte o conde dê cias e trabalhos.
Maistre, no seu tractado Du Pope. Mas prescindamos de todas estas diífí-
Supponhamos, pois, que o papa, tendo culdadcs.
examinado a questão, e decidido solemne- Supponlíamos que o papa quer o conci
mente, como vigário de Jesus Christo, o lio, convoca os bispos que as circumstan
que se deve crér, e proposto a toda a Igre d a s permittem, e que, reunidos ao cabe
ja, como regra de fé, a sua bulla dogma ça, discutem os pontos controversos, e de
tica, julga desnecessário e impertinente o terminam o que se deve crér, proscrevem
concilio geral, c não o quer convocar. c condemnam os erros, etc.: teremos con
Quid juris? responde como orgão de todos cluído o negocio?...
o grande jansenista Eybel. Em tal caso Devagar, nos diz, cm nome de todos os
convoqucm-sc os bispos uns aos outros. seus confrades, o jubilado jansenista Lvgd-
Bcllo expediente!... Quando é que um con nensc, nos seus lògares theologicos. Para
cilio foi por tal modo convocado? E como serem valiosas as decisões d’um concilio,
será possível uma tal convocação verificar- ainda ecumênico, é necessario que n’elle
se? Se os bispos da Europa convocarem os se verifiquem as seguintes condições:
da America, c estes os da Asia, etc., quan 1. " Que a maioria seja diligéntemente
tas vezes os convocantes ouviríam da bôe- discutida;
ca dos convocados aquella resposta de S. 2. a Que seja consultada a Escriptura e
Jeronymo a Pammachio: Ad Alexandrinum tradição;
Episcopum Palestina quid pertinet? Eis- 3. "*Que sejam ouvidas as partes litigan
aqui temos o primeiro obstaculo. E quan tes;
tos annos serão necessarios para que ,esta 4. ® Que haja a plena liberdade de votos;
convocação se verifique de um mpdo au 5. a Que o juizo seja unanime, etc.
thentico "e canonico, e nos possa constar Muito bem!... Mas como poderemos nós
que todos nec discrepante-a nec excepto, re saber se todos estes requisitos foram plc-
ceberam as letras convocatorias? Digo ncc namente preenchidos?... Não ha remedio;
excepto, porque tanto aireilo teem os bis é necessario que consultemos a historia,
pos de Quebec, de Baltimora, do México, do que examinemos as actas do concilio, que
Monte Libano, de Goa, de Pekim, etc., para interroguemos, as pessoas .que a eUe assis
serem convocados, como os de Lisboa, Pa tiram.
ris, Na poles,, etc. Consegüintemente eis-aqui sempre em
Supponhamos, porém, que depois de dez ultima analyse, segundo estes theologos,
ou vinte annos se consegue que todós os em que vem a parar o juiz ultimo, c su
bispos do orbe sejam convocados; teremos premo das controversias—no exame par
já concilio? Nada menos. Os bispos estão ticular de cada um, na razão individual, e,
dispersos por paizes, dominados por diffe emfim, no espirito privado. E que outra
rentes soberanos; é necessario que estes cousa pretenderam jamais quantos here-
concorram para permittir que os prelados ges houve no mundo?
INF 387
Por outra parto': esta unanimidade de rão sempre os refractarios para pôr cm
votos, pretendida pelos jansenistas, ha de dúvida, e ainda negarem que o concliio se
ser physica ou moral? Sc physica, em uma ache unanimemente recebido, e sem dis
assembléia deliberante c numerosa, é um crepância acceite por todas as igrejas, dis
phenomeno nunca acontecido. Em todos persas pola face da terra? Se basta um
os concilios, principalmente geracs, sem consentimento c approvacão tacita, nada
pre houve dissidentes, e portanto rara vez, adiantamos.
ou nunca, as questões sorào decididas c Como nos será possível assegurarmos-nos
terminadas. Bastará, dizem, a unanimidade <Funi tal consentimento? Como poderemos
moral... saber se as actas do concilio chegaram ao
Mas esta expressão é muito vaga; é ne conhecimento de todas as igrejas, se todas,
cessário que se determine precisamente o c cada uma d’ellas está bem informada do
numero de votos dissidentes que haja de motivo da convocação, do numero dos con
destruir • esta unanimidade. Uns diríam correntes, da liberdade que tiveram cm
mais, outros diríam menos, c íicará sem seus votos, se as matérias foram bem dis
pre ao arbitrio do juizo privado determi cutidas, se houve concordia nos juizos? E,
nar, se houve, ou não, unanimidade moral como também é necessario que haja una
precisa, para que a decisão seja canonica. nimidade n’cstc consenso das igrejas, como
Eis-nos aqui sempre com o pé no atoleiro. se provará esta unanimidade de consensos
Para evitar tantos inconvenientes, re tacitos ou de silêncios? Como distinguire-
correm os jansenistas ao unanime consen mos o silencio de approvacão, do silencio
so, e approvacão das igrejas particulares. de ignorância? Como se mostrará que não
Utrum concilium aliquod ait vere cecomcni- existo opposição, c, se alguma existe, como
cvm (diz o citado Lugdn, tom. l.°, pag. determinar o numero das igrejas dissiden
237) non posse certo nobis constare, nisi tes, que basta ou não, para destruir esta
ex 'unanimi Ecclesiarum consensu, et ap unanimidade moral?
probatione. Mas, para que tantas averiguações? nos
Que tal! Sc até aqui esta vamos mal, dizem os jansenistas; pois ainda*que não
agora estamos ainda peior. Por quanto: possam explanar-se exnctamente todas estas
l.°, por esta regra as igrejas de Utreche, e difficuldades, «nihilominus certum esse po
de Pistoia, poderão impedir que um conci test pro variis rerum circumstantiis (o mes
lio geral soja tido por vcrdadeirainente mo Lugdn., loc. cit.) quandonam adsit, vel
ecumênico; e pela mesma razão as igrejas absit unanimitas illa moralis. Generatim
lutheranas e calvinistas, de Aliomanha, as autem respondere licii eam tunc esse, cum
arianas e nestorianas, do Oriente, que dis- vere dici, potest omnes fere Ecclesias in ad
scnliram, c se oppozeram, as primeiras ao mittendam quandam doctrinam, (seu con
concilio de Trento, c as segundas ao de cilium) conspirare bene concordes. » Sem
Nicea, e Epheso, bastarão para porem em pre enigmas! Sempre obscuridades!
dúvida, se os-ditos concilios são ou não Mas quaes são essas venturosas circum-
ecumênicos. stancias que nos possam dar essa tão sus
Nem nos digam que o consenso c appro- pirada certeza? Que critério seguro c in-
vação que se exige, é das igrejas que não fallivel nos poderá guiar no reconheci
forem hereticas; pois que estas igrejas mento de que existem estas taes circum
por dissentirem, e se oppôrcm áquellcs standas, c que podemos com toda a segu
concilios, ó que são hereticas. É logo ne rança e verdade dizer que existe sem a'
cessario suppòl-os legitimos, e verdadeira- menor dúvida essa moral unanimidade?
mente ecumênicos, independentemento do ld precise definire (idem, loc. cit.) non po
consenso e approvacão das igrejas, e de test.
duzir d’outro principio esta sua qualidade, Muito bem! deixemos pois esse feliz des
sob pena do laborar a réplica em um so- cobrimento ao tino particular, ao talento c
lcnine petitio principii. sagacidade de cada um. Eis-nos aqui sem
Mas eu vou mais adiante, c em segundo pre com o negro caput mortuum—o espi
logar pergunto:—esle consenso ha de ser rito privado, o juizo individual,' o entendi
expresso, ou basta que seja tacito? Sc ex mento de cada particular, abandonado ás
presso, será necessario interrogar todas e suas proprias idéias, caprichos e paixões,
cada uma das igrejas do orbo. Quem ha ultimo residuo de nossas analyses, quando,
de encarregar-sc d’esta commissão? Que seguindo os princípios destes sophistas, exa
tempo será necessário para ouvil-as? Co minamos qual é na Igreja de Jesus Chris
mo nos podemos assegurar da authoridade to o supremo, e-in fallivel juiz das contro
das suas respostas? Que pretextos não te vérsias.
388 INF
Concluamos emfiin quo no systema jan- possa fazel-a vèr na Escriptura c tradi
scnistico, isto 6, quo o papa ó inferior ao ção. que é uma regra infallivcl, e que ellc
concilio, dohalde se buscará na Igreja uma expõe com caracteres visíveis. De manei
authoridade soberana, um tribunal perem ra que, procurando nós um juiz supremo,
ptorio, acccssivel e permanente que resol um tribunal infallivcl, mostram-nos uma
va as dúvidas, que termine as controver regra infallivcl, a Escriptura, e tradição.
sias, ponha fim a todas as disputas, casti Nào se duvida da infallibilidade da Escri
gue todos os discolos e rebeldes, e, emtim, ptura c da tradição; duvida-se da sua in-
que julgue e condemno, em ultima instan- tolligcncia; quer-se saber a sua verdadei
cia, todos os erros que nasçam no seio da ra interpretação: estaé a que se busca.
Igreja. Porém sào tão astutos estes pertur Como poderá constar que esse pequeno
badores, que nào será facil encontrar com numero do seguidores da sã doutrina leve
um só de seus livros, nos quaes não sus a ventura de achar e descobrir na Escri
tentem com o mais ostentoso apparato de ptura e tradição a verdadeira doutrina
provas que «necesse est in Ecclesia supre- da Igreja? Como poderão mostrar que a
mus aliquis, et infallibilis judex vivens, verdade está da sua parte, e que elles sào
spirans, semper vivens et subsistens, qui os verdadeiros interpretes da doutrina re
exortas in Ecclesia controversias infallibi- velada? E se esses caracteres, com que a
liter dirimat.» pretendem mostrar, forem obscuros e im
Passando porém a determinar qual seja perceptíveis para todos os mais, como po
este tribunal supremo, taes circumstan derão fazer que sejam para todos claros,
das requer, c tacs condições exige, que palpaveis e visíveis? Continuemos, pois, na
na práctica se torna absoldtamcnte iíluso- busca d’esto importante c necessário juiz
rio, c somente in nomine ac in abstracto; supremo, e d’csta authoridade infallivcl,
pois que, se perguntamos a estes sophistas, que se possa fazer por todos respeitar.
qual é esse juiz? esse jtribunal supremo? Será este juiz supremo o concilio ecu
será o papa? Nào, respondem logo; por mênico? Ah! esse sim, respondem cm uni
que o papa nào é mais infallivcl do que sono todos os do partido! Alas (aqui vai a
qualquer outro bispo. Será o papa coin a contramina) os concilios geraes, supposto
maior parte dos bispos? Também nào; por representem a Igreja, a qual é a columna
que a infallibilidade nào foi promettida á da verdade, e sejam por isso infalliveisnas
maior ou menor parte dos pastores, mas á suas decisões dogmaticas, comtudo, para
universalidade: Ecce ego vobiscum sum; c terem esta qualificação, é necessario que
pódc ser que o papa, ainda acompanhado sejam concilios legitima, e canonieamcntc
da maior parte dos bispos, erre nas suas ecumênicos; porém, esta legitimidade—
decisões, e que a verdade esteja da parte «non potest nobis certo constare, nisi ex
do menor numero. Será, pois, este menor unanimi Ecclesiarum consensu.» Lugdn.,
numero, quando da sua parte se achar a loc. cit.
verdade? Nào: porque, supposto esteja da E como nos poderá constar com certeza
parte d’esse menor numero, c que cllc en este unanime consenso e approvação de
sine a doutrina da Igreja, comtudo nào todas as igrejas particulares, dispersas pe
tem a authoridade. da Igreja. Atem-se á las quatro parles do orbe? Quantos pre
verdade da Escriptura c tradição, mas não textos terão sempre os sectários para pôr
tem a authoridade de tribunal* em dúvida, e ainda negarem que exista
Assim, o juizo d’cssc menor numero de real mente esse unanime consenso e appro
fieis seguidores da verdade, não é um juizo vação de todas as igrejas? Além d*isto os
infallivcl; porém, apoiado na doutrina an concilios ecumcuicos (por confissão dos
tiga da Igreja, tem a seu favor uma regra mesmos jansenistas) rarissime congregan
infallivcl. Não tem authoridade para fazer tur. Logo, para serem o juiz supremo das
que seja seguido o seu juizo; mas pódc fa controversias, carecem ainda os concilios
zer que .seja acreditada a tradição, que geraes d’uma condição necessaria c essen
ellc expõe com caracteres visíveis. Assim cial, como elles mesmos confessam, isto é,
falia Tamborini na sua Vera-ideia, etc. de serem um tribunal prompto, acccssivel
Depois de uma tal verbiagem, em que e permanente:—Semper vivens, et subsis
ficamos? O maior numero de pastores uni tens.—E realmcntc assim o pede o boiu
dos ao papa, não é esse juiz supremo, por senso, e a legislação de um bom governo.
que pódc errar. Nào é o menor numero, . Que se diria dò governo d’uma grande
ainda que deferida a verdade, porque não nação, cm que o tribunal supremo das dú
tem authoridade de tribunal, com quanto vidas, contendas e demandas, fosseui as
1
in f m
còrtcs, ou estados geraes da monarchia, rio; pois que Jesus Christo manda que sem
(|ue só se podessem congregar e reunir dc recurso seja logo reputado por um pagão,
secutos a secutos? separado e expulso da sociedade christã, o
Parece incrível que homens, os quaes se criminoso contumaz: Sit tibi sicut ethni
prezam de grandes talentos, tenham a cs- cus et publicanus.
tulticia dc vomitar taes absurdos. Temos demonstrado que este tribunal
Façamos tudo isto sensi vel com uni não póde ser o corpo dos pastores, disper
exempto. Gondeinnado um herege peto seu sos pela face da terra, sem que fiquem im
bispo, appella para o papa; se este confir punes todos os crimes; igualmente fica de
ma a sentença, appella para o concilio ge monstrado que não póde ser o concilio ge
rat; congregado este depois dc grandes de ral, pela extrema ditliculdadc que hoje ha
moras e diíliculdades, é tambem concle- de ser convocado, e cuja convocação seria
mnado o herege; mas este, bem instruido necessário repeti r-sc todas as vezes que
nos principies do jansenisnio, e obstinado fosse necessário punir o refractario incor
em seus erros, defende-se com a falta do rigível; o que não só seria summamcnte
consenso unanime da Igreja dispersa, que dilTicil, mas absolutamente impracticavel.
julga o unico critério certo e seguro de Resta, portanto, que pela palavra—Ec-
ter sido o concilio legitima mente ccumeni- cleske—se entenda como necessariamente
co; ora, como esta unanimidade só pode se deve entender, aquella authoridadc so
rá ser com certeza conhecida depois de berana que Jesus Christo estabeleceu na
séculos, segue-se que, entretanto que es sua Igreja, isto é, o pontifice romano, suc
ta approvaçào se nào verifica, nem as de cessor de S. Pedro, a quem n’ella instituiu
cisões do concilio leem força, nem haverá por seu vigário, encarregando-lhe o gover
obrigação d^bcdccer-lhe—ac proinde con no c administração de tão vasta sociedade,
sequens est, quod quasiionnes incertes et subordinando-lhe todas as authoridades
sine judice semper m aneant—As contro particulares, que a boa ordem exigia fos
versias se tornarão intermináveis, os here- sem propostas ás suas differentes divisões;
ges sem freio c sem corrccçào, a authori a quem revestido dc todo o ppder necessá
dadc da Igreja insultada, e seus filhos flu rio para ligar c manter em unidade todos
ctuando, continuamente agitados por todos osjncmbros d’cstc corpo mystico; a quem
os ventos de doutrinas. o mesmo Jesus Christo esiabeleecu tam
Eis-aqui como esta infernal seita tracta bem por pedra fundamental, e visivcl do
sempre de destruir com uma das mãos, o edifício sagrado—Super hanc petram edifi-
que, para inculcar calholicismo, parece cabo—n quem cspcciaímente entregou as
ter construído com a outra. Entretanto, chaves do reino dos céos— Et libi dabo
com a mais pharisaica hvpocrisia, alla claves liegni Ceelorum—a quem confiou to
mente protestam que são os filhos mais be do o seu rebanho—Pasce agnos meos, oves
neméritos da Igreja, os firmes sustcntacu- meas—no que se deve entender não só os
los da mais sã doutrina da veneranda an simples fieis, mas os pastores subalternos;
tiguidade, c os mais licis c legitimos disci pois, supposlo sejam pastores a respeito de
pulos dc sancto Agostinho; ao mesmo tem seus diocesanos, são comtudo ovelhas a
po que, por palavra, por escripto c por respeito do primario c soberano pastor,
obra, ha dous séculos, estão, apesar de como judiciosamcnte notou Bossuct, depois
repelidos anathemas, resistindo á voz de dc S. Bernardo, a quem constituiu cabeça
seus primeiros pastores.- da sociedade catholica, para n’ella manter
Para destruir a disciplina presente, re- a unidade, c destruir toda a divisão— Ut
tiram-sc aos tempos passados; para resis capite constiluto scismatis tollatur occasio,
tir ás decisões dogmaticas, appellam ao et sit unum ovile, et unus Pastor;—a a
tempo luturo; c quando a voz da Igreja quem finalmente a infallibilidade em suas
lhes falia, e os ex horta para retraclar seus decisões dogmaticas, sem a qual jamais
erros, respondem que não a conhecem. poderia desempenhar tão altas funcções?
Da longa discussão que deixamos expen- foi assegurada pela poderosa oração do
dida, é facil concluir, quanto seja falsa a Filho de Deus—Pro te rogavi, Petre, ut
interpretação, que ás palavras—dic Eccle- non deficiat fides tua.
sitv—deram, segundo diz Pereira, referin É, pois, no tribunal pontificio que sc
do o testimunhq de Eneas Silvio, os padres acham reunidos c verificados todos os ca
dc Constância, entendendo-as do corpo dos racteres essenciács, que constituem o su
pastores, ou do concilio geral. A palavra premo juiz das controvérsias na Igreja de
— Ecclesia—n’cstc logar, não póde enten- Jesus Christo. A sua authoridadc ê sobera
der-se, senão do supremo tribunal judicia na! Jesus Christo não instituiu outra que
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lhe seja superior. E universal; estende-se pa Libcrio como um prevaricador escan
a toda*a igreja catholica. È permanente e daloso. Sancto Hilário exclamava então—
sempre viva—Scmpcr vivens et subsistens. Anathema lib iá m c dictum, Liberi, et sociis
— E' de facil accesso. É peremptória; pois tuis. Iturum tibi anathema et tertio, prava-
que todo o refractario (pie lhe resistir, fica ricalor Uberi.— Firmiliano deCapadociaes
logo, por sentença de Jesus Christo, corta crevia no papa Estevão:— Te ipsum' excc-
do, e expulso da sociedade christã. E in- disti noli, te fallere. Dum enim putas omnes
appellavcl; Jesus Christo não lhe permitte a te abstineri jwssc, solum te ab omnibus
mais recurso—Sit tibi sicut Ethnicus, etc. abstinuisti.»
Emfim, é infaUivel nas suas decisões do Aqui os erros historicos vão pari passu
gmaticas— Non deficiat fales lu a — apesar com os erros de doutrina. A defesa con-
dos gritos, sophismas e caviltações do hu verlou-sc cm aceusaçào: desde que foi ne
mano orgulho. cessario amontoar erros sobre erros para
Sahir (Festa doutrina, é favorecer os er desculpar o asseverado, estava provado
ros, fomentar as seitas, promover divisões que a justificação era impossível.
e destruir a unidade da igreja catholica. Provaram que existia o faclo eondemnado
Eis os fruetos ordinarios da doutrina con pelo sanctissimo padre Pio ix? Nào. Pro
traria, como a expericncia nos tem infeliz varam que a admoestarão fora hypotheti
mente demonstrado. ca, o nào se verificava a hypothosc? Nào.
Pelo contrario. Confessaram o faclo, c
gloriaram-sc d’elle. Depois constituem-se
TERCEIRA 0DJECÇÀ0 juizes da suprema aulhoridade espiritual,
equiparam-sc a Paulo, que resistiu a S.
Pedro, julgam-se, tão infalliveis como o
Não é de hoje que os inimigos da Igreja concilio de Piza c o de Constança, contra
falsificam a historia para nggredirem o Grcgorio xu c Joào xxm, poem-sc á par de
oapa; não é de hoje que imputam aos ou Sancto Athanasio c Sancto Hilário, invo
ros o seu crime. Falsificam, e dizem que cam a authoridadc de Firmiliano de Capa
é a curia quem falsifica; juntam o cvnis- docia, arguem-nos de nào achar bom o di
mo á calumnia, a traição ao falso testimu- reito senào nas falsas decreta cs, c susten
nho,,e depois triumpham! tam por fim que se confirmara a doutrina
«É esta a doutrina que confirmou a dc nossos soberanos desde o principio da
dos nossos soberanos desde os princípios monarchia.
de monarchia até hoje. Não se podia Qual era a doutrina de nossos soberanos
reconhecer, sem se deshonrar, a doutri desde o principio da monarchia, havemos
na de que um breve apostolico nào póde de mostral-o muitas vezes. Mostraremos co
ser objectado. Os asinistas nào achando mo D. Sancho n promettia inteira obediên
bom direito senào nas falsas decrctacs de cia nas cousas ecclesiasticas ao bispo de
Jzidoro Mercador, podem ser logicos con Roma;.mostraremos qual era o direito por-
cedendo todo o poder temporal ao papa; tuguòz a respeito do placei no tempo de el-
mas o antiquissimo direito portuguez nào rei D. Diniz, D. João u c D. Joào iv; mos
admitte essas imposturas, c repelle as ar traremos que mesmo nos reinados de D.
rogantias d'uma curia onzoneira e devas Pedro i e D. João i, nunca se reconheceu
sa, como escreveram c provaram os nos nos governos temporãos o direito de resis
sos bons portuguezes d’outras eras. tir aos rescriptos dc Roma, e nem sequer
«Tem o papa razão? Nào: logo fizemos fazer-lhes rcllexõcs a nào serem dos impe
bem em lhe resistir. S. Paulo resistiu a trados; mostraremos emfim que nem a legis
Pedro— in faciem resisti quia reprehen lação do tempo d’el-rei D. José tolerava as
sibilis erat. absurdas pretenções dos nossos jansenistas
«Os papistas ignoram tudo, ou fingem de hoje. " *
ignoral-o. Que importa uma excommunhào As falsas dccretaes de que nos temos
do papa quando é iniqua? O papa Grcgo- servido, são decretos dos concilios, bullas
rio xii foi declarado scismatico no concilio apostólicas dc authoridadc incontestável, c
geral de Piza, c Joào xxm foi declarado concordatas entre a Igreja e o Esladò.
fautor do scisma no concilio geral de Cons- A consequência que d’aqui immediata-
tança. O papa Liborio cxcommungou San mente dimana, é obvia. A verdade não ca
cto A lhanasio, c comtudo Sancto Athanasio rece de sophismas; desdo que um acto nào
é que sustentava a- verdadeira doutrina póde justi ficar-se senão pela falsificação;
apostólica. A Igreja venerou o Sancto, con- desde que se faz derivar esse acto‘de um
siderou-o no seu gremio, e reputava o pa errado principio, dc uma doutrina univer-
salmentc condemnada, condcmnado fica o reira dú ao caso as proporções dc um gran
acto pclo proprio tjuc se constituira scu de altentado, c não duvida chamar escan
■defensor. dalosa praxe ao que S. Paulo apenas cha
Os erros de doutrina lemol-os mostrado, mou- reprchcnsivel, c sobre que um dos
■c continuaremos ainda. maiores homens da christandade o do mun
Onde estava algum S. Paulo, inspirado do não ousou emittir a sua opinião.
por Deus, que podésse resistir a Pedro? Fosse, porém, reprehensivel ou não o
•Qual foi a Damasco, ante cujos muros vis proceder de Pedro, em todo o caso a re
tes o clarão do céo, c depois dc callidos em sistência de Paulo não foi mais do que
terra pedistes perdão a Deus. e de sua uma desapprovação d’essc proceder, que
bòcca ouvistes— *cxurgi et sla super pedes lhe parecia uma fraqueza de animo: para
tuos: ad hoc enim apparui tibi et consti- isso tinha Paulo o podei* que também hoje
lu a m te ministrum testem eorum qiuu vi assiste ao confessor do papa.
distif» Mas temos ainda muitos mais factos his
Saulos, perseguidores dos christãos, di- toricos; temos as condcmnaçõcs de papas
zei-nos: qual foi o dia da vossa conversão, por concilios, as reprchcnsões dc Athana-
quando foi que vos disse o Divino Mestre: sio, etc. Veremos que papas, c concilios
— ingredimini civitatem? eram esses; veremos se os papas eram
«Fizemos bem em lhe resistir (a sua universalmentc reconhecidos na Igreja.
sanctidadc), dizeis vós! S. Paulo resistiu a É bem que se desenganem os poucos
Pedro—E i in faciem resisliti quia repre que ainda creem na boa fé dos falsificado
hensibilis erat:» res.
Mas que resistência foi essa? Desobede Poderá demonstrar-nos o sapientissimo
ceu por ventura Paulo, ou negou a supre doutor, que o concilio de Piza é uni ver
macia de Pcdro? Assim o pensaria quem sai mente adoptado como concilio ecumêni
não conhecesse como costumam fallar ver co? Foi ellc convocado pelo papa c appro-
dade estes oráculos. vado por elle? Quem era o papa no tempo
Essa resistência de Paulo não foi mais em que se reuniu o concilio? Seria Pedro
que uma desapprovação de proceder; Pe de Luna, ou Angelo Corrado?
dro recéando ollender os judeus vindos de Discutiremos ainda mais largamentc este
Jerusalém a Antiochia, fugia dc que o vis ponto, c veremos com que boa fé foi dado
sem comer com os gentios, para não os cs- o nome de papa a um que nem o proprio
candalisar. Paulo achava isto rcprchcnsiycl, concilio declarou tal.
queria que Pedro afirontasse os prejuí ■ Começamos a analyse da amostra janse
zos dos judeus convertidos, c desapprovuu nista acima transcripta.
aquella condescendência. Vejamos quem era Gregorio xn, e o que
Pedro era por ventura impcccavel? A foi o concilio geral de Fiza: veremos de
infallibilidadc não póde existir senão junta pois quem era João xxm.
com a impcccabilidade? Quereis que os Transferida para Aviuhão a séde ponti
concilios ecumênicos sejam compostos só ficia pclo papa Clemente v, o restituida a
mente dc séres impeccaveis, para que se Roma cm 1377 por Gregorio xi, que fallc-
reputem infalliveis nas decisões dogmati ceu no seguinte anno, seguiu-se o grande
cas? scisma do Occidente, scisma que provavel
Abonaes-vos com o padre Pereira, que mente nem houvera nascido, e dc certo
d’este acto de S. Paulo, dizia: «foi q mes não teria. tão deploráveis consequências,
mo que delatar á Igreja a falsa doutrina nem adquiriría tamanhas proporções, se a
ou escandalosa praxe dc Pedro.» má politica ou ambição, dividindo os po
Qual era a falsa doutrina? Que dogma vos da christandade, não viera complicar
cra posto em dúvida? mais a questão, se o poder temporal não
Se a praxe era ^escandalosa, não o devia se julgasse chamado a decidir pela espada,
escrever a escandalosa penna dc um orgu o que só á Igreja competia decidir pela pa
lhoso jansenista vendido ao poder. O que lavra.
Sancto Agostinho não ousou decidir, viuha Obedeciam uns ao papa eleito cm Roma,
decidil-o entre catholicos o author da Ten outros ao eleito em Avinhão: uns reinos
tativa. sustentavam este coutra aquclle, e chama
Sancto Agostinho na sua Ep. 82, louva vam scismaticos a seus adversarios; sus
tanto a justa inteireza de Paulo, como a tentavam outros aquelle contra este, e scis
sancta humildade dc Pedro; não se atre maticos chamavam igualmentc os primei
veu a censurar nenhum, c deixa a Deus o ros.
juizo entre estes seus servos: o padre Pe Todos protestavam que eram catholicos,
392 INF
que obedeciam ao verdadeiro pontifice, ao ellc, porque é a sua cabeça. Não ha conci
successor de Pedro, em quem reconheciam lio ecumenico separado dá cabeça da Igre
o chefe e cabeça visível da Igreja. Mas nào ja, nem a cabeça póde nunca reputar-se
havia papa universalmente reconhecido no viva,e ao mesmo tempo separada do corpo.
orbe catholico. Não ha pois concilio separado do papa
Em 1406 fora eleito em Roma, pelos car- nem papa separado do concilio.
deacs que alli se achavam, Angelo Corra* O concilio separado do verdadeiro e le
rio, que tomou o nome de Gregorio xn. gitimo papa, e em opposição com ellc, não
Era Avinhão havia sido eleito, por outra e concilio, é conciliabulo.* O papa, separa
fracção do sacro-collegio, Pedro de Luna, do do verdadeiro concilio, e em opposieão
que tomou o nome de Benedicto xni. com clle, não é papa, é anti-papa.
Esta eleição fòra feita com a condição Esta verdade, que todos, c por conse
de Pedro de Luua resignar, se o eleito em quência os dous contendorcs, rceonhepiam,
Roma fizesse o mesmo; e Pedro de Luna levava estes por uma rigorosa dcduceão lo
promettera com juramento de cumprir es gica, a não reconhecerem a legitimidade
sa condição. Quando depois em Roma se do concilio, nem obedecerem a suas inti
fez a eleição de Angelo Corrario, lambem mações. - .
se lhe impôz a mesma condição, c clle ac- Rep.utava-sc cada um d’clles legitimo
ceitou-a com juramento. papa, fosse isto embora, um erro; entre
Esperava-se assim, que cedendo um c tanto, uma vez admittido como verdade,
outro—pro bom pacis—sem desdouro para partindo-se d’elle, como de facto incontes
nenhum dos lados, acabaria o scisma, c tável, a consequência era o procedimento
um papa, universalmeirte reconhecido, e que tiveram.
cuja eleição canônica fosse incontestável, Desde o momento em que qualquer d’cl-
extirparia o scisma. les obedecesse á intimação do concilio; re
Entretanto por cada lado havia reinos e conhecia que não era legitimo papa, c isso
povos, cujo interesse era sustentar o papa era o que não queria confessar nem um
que haviam reconhecido. Quacs sustenta nem outro.
vam o verdadeiro c legitimo pastor? De Mas por sua parte o concilio reputari-■
Portugal sabemos, que sempre reconheceu do-os a ambos destituídos de legitimo ti
como verdadeiro pastor o papa eleito em tulo para o papado, julgava-se com direito
Roma. de os fazer citar e chamar perante si. .
Mas faltando Ângelo Corrario á promes Não citava o papa, mas os contendorcs
sa e condição jurada na sua eleição, podia do papado. A estes, pois, foi que o concilio
continuar a ser considerado como verda condcmnou e julgou inhabeis para se as
deiro e legitimo pastor? Julgaram que não, sentarem legitimamente na cadeira de Pe
tanto os cardeaes de Roma, como os de dro, desde o momento em que faltaram a
Avinhão; julgaram o mesmo a respeito de seus juramentos, e não satisfizeram á con
Pedro de Luna; e a verdade é, que faltan dição de sua eleição.
do o pastor, ninguem, senão elles, podia Ora, eis-ahi quem era esse Gregorio xir.
convocar um concilio para decidir tão gra É o papa que nos citam os jansenistas
ve questão. como exemplo para provar a superiorida
Eis-ahi porque resolveram convocar o de do concilio, c a fallibilidadc do papal
concilio de Piza. E o concilio, vistas as Convidavam os .povos para virem admi
condições da eleição de Angelo Corrario, rar como elles jogavam acertados botes
com ove Pedro de Luna, julgou que ne contra o catholicismo; queriam mostrar os
nhum d’elles podia ser papa, porque^ am milagres da sua espada desembainhada em
bos faltavam á condição de sua eleição. prol das doutrinas de Luthcro; inlrinchei-
Ambos foram citados para comparece ravam-se atraz dos padres do concilio de
rem perante o concilio: ambos recusaram, Piza; e por fim enterraram-se elles mesmos
porque ambos julgaram dever sustentar na sua propria espada, e os padres do con
as prorogativas de verdadeiros pontifices. cilio sacodem-os para fóra d’aquelle res
Os jansenistas apresentam o exemplo peitável recinto, onde não eram admitlidos
d’esta citação, e a deposição dos dous pon- os inimigos da Jgi;eja.
tendores sobre o papado: mas não vôcm, Depois d’isto uma pergunta: o sapientis-
que mesmo na recusa e contumacia d’estes simo padre mestre quererá comparar Pio
está uma prova de qual era a doutrina ix a Angelo Corrario, e a camara electiva
corrente c a tradição na Igreja. ao concilio de Piza? Se nem a camara ó
O papa legitimo e verdadeiro não póde concilio, e só por muito favor poderia me
ser citado pelo concilio, nem deposto por recer o nome de conciliabulo, nem-Pio ix
TNG 393
•solver o seu matrimonio com Catharina de vn dava sempre signaes de estar disposto
Aragão. a favorecer o divorcio do rei, e ao mesmo
. O melhor expediente que se achou foi le tempo collocava-se em estado de poder to
var o negocio a Roma. Lisongeavam-se de mar medidas contrarias. Elle nomeou o
que o papa seria favoravel, c nào se atre- cardeal Compage, que estava cm Roma,
. veria a recusar cousa alguma a um prin bispo de Salisbury, e o associou ao cardeal
cipe tão poderoso como o rei de Inglater Wolsey para julgar este negocio. Compage
ra. Encarregaram-se canonistas c thcolo- passava por muito sabio cm jurisprudên
os de procurar na Bulla de dispensa, que cia ecclesiastica, c tinha a reputação de ser
ulio u tinha concedido para o matrimonio virtuoso! Elle fez tudo para se recusar de
de Henrique com Catharina, nullidade so uma commissão tão delicada, mas final
bre quesepodesse insistir. Recommendou- mente cedeu ás instâncias do cardeal Wol
se-lhes também mostrar que o papa tinha sey.
ssido surprendido, que a Bulla tinha sido Comtudo a rainha Catharina não despre-
obtida sobre uma falsa exposição, c que sou cousa alguma para conduzir o impera
. por conseguinte era revogaveK dor e o archiduquc Fernando, seu sobri
Como o imperador tinha n’essa occasião nho, a protegerem-na, e os advertiu de to
. recluso o> papa Clemente viii, começaram das as difllculdades que se formavam contra
•as solicitações, esperando quo este papa o seu matrimonio.
• na situação em que sc achava usaria de Elles lhe aconselharam que não consen
condescendência. Kniglh, secretario de es tisse de modo algum em entrar n’um con
tado, partiu de Inglaterra no mez de julho vento, nem deixasse perder os seus di
de 1527. Nào pôde fallar ao papa, que es reitos, assegurando-a de que tinham bas
lava guardado no castello dcS. Angclopor tante poder cm Roma para lhe fazer dar
um capitão hespanhol; mas fez-lhe entregar justiça.
um memorial, pelo qual lhe pedia uma com- A rainha, contando com a protecção de
missão para o cardeal Wolsey, a fim de seus sobrinhos, recusou constantemente o
que julgasse este negocio em Inglaterra, as- divorcio, e não quiz escutar as proposições
. sociando a si alguns bispos. Outro artigo que lhe fizeram os bispos, comprados pelo
do memorial era para que o papa declarasse rei. O cardeal Compage, que tinha ido a
.nullo por uma Bulla o matrimonio do rei Inglaterra, não cessava de exhortar este
: com Catharina, porque o da mesma prin- príncipe da parte do papa de nào deixar
ceza com Arthur, irmão do rei, tinha sido a rainha, c de considerar na injuria que fa
consummado; e que o papa concedesse ao zia á sua reputação, e as guerras que te-
rei uma dispensa para casar com outra ria a sustentar contra o imperador.
i.mulher. Clemente vn respondeu favoravel- Mas vendo que o rei se não rendia ás ra
• mente a este memorial, e fez vôr que satis zões, juntou-se como o papa lhe tinha or
fa r ia aos:desejos de Henrique. denado áquclles que aconselhavam a Catha
Quando sc soube em Roma que o papa rina de se separar voluntariamente do rei
-se tinha evadido de noite, disfarçado em c de se recolher a um convento. A rainha
..mercador, e se tinha retirado para Orvie- não escutou Compage, mas mesmo ella
; te, o embaixador de. Inglaterra foi o pri apresentou a cópia de um Breve, quo con
meiro que se apresentou a felicital-o pelo tinha uma dispensa mais ampla que a da
í recobramento da sua liberdade. Bulla, sobre que os legados queriam jul
Apresentou-lhe.as razões as mais plausí gar este negocio, e que reparava todos os
v e i s para o induzir a conceder o que o rei defeitos d'ella.
.pedia. O papa pareceu tocado, c prometteu O rei, irado de vér adiantar tão pouco o
í fazer tudo o.que podesse favorecer a Hen- negocio que tinha tanto no coração, enviou
írique, mas achou pretextos apropriados pa- a Roma novos agentes para se juntarem
• rà demorar o negocio. aos embaixadores que ahi tinha. Estes
. O cardeal Wolsey escreveu uma carta agentes passaram por Paris, aonde Fran
de muita instancia, em que.lhe dizia entre cisco i lhes deu cartas, nas quaes ordenava
-outras cousas, que se elle recusava esta aos embaixadores, que também tinha em
-graça era de temer que o rei fosse procu Roma, que se juntassem áquclles que so
rrar remedio a outra parte, è formasse al- licitavam o favor de Henrique. Os envia
.gum a. empreza muito mais prejudicial á dos tendo .chegado à presença do papa, lhe
sancta sé, e que seu exemplo poderia ser fizeram as mais bellas promessâs para o
. seguido por outros. .Mas esta carta nào pro ganhar. E como Clemente vn era natural
duziu mai a eflfeito que as vi vas solicitações mente timido, elles fizeram entrever que se
-dos embaixadores de Inglaterra. Clemente elle não fosse favoravel a Henrique, podia
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contar que a Inglaterra estava perdida pa Como não restava outra cousa a fazer se
ra elle, e que os inglezes estavam ià todos não pronunciar a sentença, cada um se
dispostos a subtrahir-se á sancta se. O pa persuadia que seria tudo áhi terminado, c
pa respondeu gemendo, que se achava que os legados iam a dar um juizo defini
n’uma posição diíficil; que para qual tivo.
quer parte que se voltasse, não via senão A assembléia foi muito numerosa: o rei
precipícios, mas que punha a sua confian foi-se collocar n’uma camara Visinlia, para
ça em Deus, que não abandonaria a sua saber tudo o que sc passava. Mas ficaram
igreja: que finalmente tinha mostrado quan bem espantados quando se ouviu o cardeal
to favorecia o rei de Inglaterra, commel- Compage remetter a decisão do negocio
tendo o juizo da sua causa a dous legados, para o i.° d’outubro, dando como razão que
que lho eram afTeiçoados, que era pedir- era o tempo das grandes vocações cm Ro
lhe muito, exigir que violasse as leis da ma c que não podia recusar-s*e de seguir
Igreja, e sacrificar o imperador, a rainha este uso. Accresccntou que a raiuha não
Catharina, a honra c a dignidade da sancta queria consentir que o negocio fosse jul
sé. Esta resposta deu bem a conhecer as gado cm Inglaterra, c que cila recusava
verdadeiras disposições do papa. Depois reconhccel-os por juizes a elle e a Wolsey,
que tinha visto os negocios da França in que a final elle não ignorava o perigo a
teiramente arruinados na Italia, temia mais que se expunha, mas que devia menos at
que nunca ferir o imperador, e não o dis tendor ao perigo de perder a sua vida do
simulava. que a perda da salvação da sua alma.
O rei soube logo a verdadeira causa
d’estas demoras, porque soube que o papa
IV tinha avocado o negocio a Roma, para on
de elle estava citado, c a rainha. Prohibiu
qué se lhe significasse a avocação, foi para
Em 1528 o cardeal Wolsey trabalhou Grapton com Anna Bolena, e deu ordem á
cm fundar alguns collegios, è sobretudo rainha para se retirar. Anna Bolena seap-
em tornar celebre o d’Oxford. Com desí plicou a azedar o espirito do rei contra
gnio de agradar ao rei, supprimiu muitos Wolsey, e lhe disse com valor que se al
conventos, erigiu novos bispados e conver gum senhor tivesse feito tanto como este
teu abbadias cm cathcdraes. cardeal, não se lhe teria deixado muito
Estas emprezas foram approvadas no col tempo a cabeça sobre os hombros.
legio dos cardeaes. Clemente vii lhe per- Wolsey tendo*sc apresentado para fallar
mittiu também de fazer a visita de todos ao rei, Henrique mandou-lhe dizer que não
os conventos de Inglaterra. Este irou-se de queria vêl-o, c que poderia voltar com
mortificar os monges, mas sabendo que Compage. Isto foi o principio das suas des
; causava bastante tristeza ao rei pelas suas graças. Tirou-se-lhe o grande salario, que
' demoras, tractava de o consolar por outra lhe tinha sido dado por toda a vida, deu-se
parte, concedendo a seu favorito tudo o a Thomaz Morus, homem gcralmento esti
que elle lhe. pedia em favor das suas fun mado por causa da sua sciencia e da sua
dações. Mas Henrique desejava com muito inteireza. Apresentaram-se diversos artigos
araor casar com Anna Bolena, por soffrer de accusação contra Wolsey, e houve or
demora de muitos tempos; resolveu então dem de sáhir do seu palacio de York, o de
seguir o seu negocio diante dos legados. A se retirar a uma casa de campo, que lhe
rainha, tendo sido citada, recusou appare- pertencia, como bispo de Vinchestcr. Apos
cer perante elles, e foi condemnada por saram-se logo d’este palacio e dos bellos
contumaz. moveis com que estava ornado, c se fez um
Emquanto se procedia a informaç-Ões, o inventario de todos os seus bens, que eram
imperador quiz que o papa avocasse este numerosos. A sua sentença foi pronuncia
negocio do divorcio a Roma: o papa decla da: declarou-se decahido da protecção do
rou a sua resolução aos embaixadores de rei: os seus bens foram confiscados; e o
Inglaterra, e por mais esforços que elles juizo da sua pessoa entregue ao parlamen
fizessem para o dissuadir, representando- to. Foi accusado de ter abusado dos car
lhe que a sancta sé ia perder a Inglaterra gos de legado,' de chancellcr, do primeiro
sem esperanças de voltar, tudo isso foi inú ministro, e do favor de que o rei o tinha
til, e assignou a advocatoria a 15 de julho honrado.
de 1529. Ignorava a Inglaterra esta advo Estava-sc prestes a condemnal-o como
catoria; assim os legados continuaram as culpado de alta traição; mas Thomaz Cron-
suas sessões. A ultima foi a 23 de julho. suel, domestico do cardeal, um dos mem-
bros do parlamento, sustentou os interes ram regulados, c probibiu-sc aos capcllãcs
ses de seu amo com tanta sagacidade e fir dos grandes senhores o terem dous bene
meza que o tirou do perigo por esta vez. fícios com cura d’almas. No mesmo tempo
Mas no principio do anno seguinte de o rei enviou a Roma,um novo embaixador
1530 Wolsey caliiu enfermo de tristeza cm com muitos doutores, entre os quaes ia
Asther, logar do seu desterro. O rei toca Tliomaz Cranrner, que depois se tornou
do do seu estado lhe deu as suas boas gra inuito illustre. Este ultimo teve ordem de
ças. Os inimigos do cardeal se irritaram, escrever em favor do divorcio, e de apoiar
azedaram de novo o espirito do rei contra seus sentimentos, e sua decisão com todas
eíle, e o obrigaram a destcrral-o para o as provas e todos os testimunhos que po-
seu arccbispado de York. Wolsey prepa- desse achar nos canonistas, e nos theolo
rou-se para esta viagem por um retiro que gos. O livro de Thomaz Cranrner foi apre
fez cm Chatreux de Richemont. Pòz-se de sentado ao papa, que o remctleu com ou
pois em marcha acompanhado de 100 do tras memorias do cardeal Caetano para lhe
mesticos. Os seus inimigos lhe fizeram um fazer sua relação.
crim e diante do rei, e determinaram este Francisco i tinha encarregado o bispo dc
principe a fazel-o perder como culpado de Tarbcs, seu embaixador em Roma, para
alta traição. Vinte guardas tiveram ordem auxiliar o rei Henrique em tudo o que po-
de o conduzir a Londres, apesar dos pri desse.
vilégios da dignidade de cardeal, que clle Mas o imperador não quiz somente es
não deixou de allegar. Foi necessario dc- cutar os ofTerecimentos que lhe fez para
morar-sc em Leichcstcr por causa de uma ganhar o embaixador de Inglaterra. Este
febre violenta de que foi atacado, e que o principe empenhou mesmo a Clemente vii,
conduziu á sepultura em um dos ultimos para enviar a Henrique vm um Breve que
dias de novembro do mesmo anno dc 1530, lhe prohibia contrahir segundo matrimo
aos 61 annos de idade. Algumas horas an nio, antes que se tivesse julgado em Roma
tes de expirar, o logar-tencnte da torre deo negocio do divorcio. Foi necessario en
Londres, que o conduzia, quiz consolal-o, tão reduzir-se ás aberturas que tinha dado
dizendo-lhe que o rei nào ó tractava com riCranrner de consultar os homens mais sá
gor; mas Wolsey replicou que se clle tinha bios, e as mais celebres universidades da
alguma cousa a reprehender-se era de ter Europa, sem perder muito tempo com in
despresado os interesses de Deus pelos do úteis negociações na presença do papa.
rei, e que Deus, abandonando-o na velhice, Suppunha que se estas universidades de
o castigava d’esta injusta prcfercncia. Ah! clarassem conforme ao desejo do rei, que
— gritou elle—Deus nào me abandonaria se nào tinha podido conceder-lhe dispensa
se eu o tivesse servido tào (ielmentc como para o seu matrimonio com Catharina de
tenho servido o rei; mas Deus é justo, e Aragào, o papa se acharia forçado a julgar
castiga-me por lhe ter sido menos fiel do em seu favor. Este parecer cie Cranrner
que ao meu principe. deu tanto prazer ao rei, que clle gritou em
Estas palavras de um cardeal-ministro, transportes de alegria, que pelo golpe que
que se tinha elevado por sua ambição, e tinha dado, a poria pela orelha. Esta ex
que tinha sacrificado tudo á sua fortuna, pressão, ainda que grosseira, mostrava
fazem julgar que era ainda ordinario então quanto elle gostava d este expediente. En
testimunhar na morte sentimentos de re viou então homens babeis á Allcmanha, á
ligião, e que se tinha também apartado França c á ltalia para consultar as univer
<Tessa estupidez e d’essa extineção da fé, sidades.
que se lho notaram depois! Começou pelas d’Oxford, c de Cambri-
dge, a fim de saber o que os seus proprios
doutores pensavam do seu negocio. Mas
V apesar das promessas, ameaças, presentes
c violências, nào sc pôde ganhar senão um
pequeno numero de doutores, que decidi
O rei, sempre occupado do negocio do ram que o matrimonio do rei com Catha-
seu divorcio, e prevendo a divisão que ia rina, viuva de seu irmão, era contrario ao
rebentar entre elle e o papa, começou a direito divino. Escreveu de seu proprio
perseguir o clero do seu reino. punho á faculdade de theologia de Paris.
Limitoü-se, por então, a corrigir alguns O marechal de Montmorency solicitou vo
abusos, e seria louvado se fosse isto por tos de todas as partes, e conítudo a assem
motivo de religião. Os direitos que perten bléia que houve a este respeito, separou-
ciam aò clero protestante, c enterros, fo sc sem ter concluído cousa alguma. Hen-
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riquc viu obteve outra que se celebrou nos um grande, poder em Inglaterra. O cardeal
Malhurins a 22 (le julho de 1530, e na qual Wolsev tinha sido accusado de ter violado
a força de intrigas teve a seu favor 33 vo esto regulamento, o estava-se em estado dc-
tos contra 43. Este exemplo, junto ao di reprehendor a mesma falta a todos os mem
nheiro que nào se poupava, attrahiu mui bros do clero, e assim nào se deixou de o-
tas outras universidades de França e de lazer. O rei propunha-se a isto com dous-
Italia. fins: o primeiro era tirar muito dinheiro,
. Algumas em Allemanha, em Flandrcs, ao seu clero; o segundo era humilhar, e
e em Hespanha, nào quizeram dar o seu diminuir o credito que cllc tinha entre o
parecer, e os proprios protestantes recusa povo. Este principe nào ignorava que os
ram approvar o divorcio do rei Henrique. ecclesiasticos eram os mais oppostos ao-
Os maiores senhores da Inglaterra, tanto seu divorcio: cllc queria pol-os fora do
seculares, como ecclesiasticos, escreveram estado do lhe fazer mal, opprimindo-os, e
ao inesmo tempo uma carta muito forte a obrigando-os a morrer á sua clemencia. O
Clemente vii, para lhe apresentar as razoes clero vendo esta conjuração formada, creu
politicas que deviam conduzil-o a satisfa que era mais vantajoso snbmetter-se, que
zer as pretenções do rei. Elles diziam que resistir.
a este principe, nào tendo herdeiro da sua A provincia de Cantorbery se juntou, e-
coroa, e nào podendo mais esperar ter fi se conveio em óíTcrcecr ao rei cem mil li
lhos de Catharina, se lhe devia permittir bras sterlinas. Comoaquellcs que dirigiam
contrahir segundo matrimonio, para que o a acta d’este donativo, estavam de intelli-
reino nào ficasse depois exposto a guerras gencia com . a carta, deram então ahi ao
civis. A carta acaba por ameaças. rei o titulo de—Chèfe soberano da igreja da
O papa respondeu com força; mas me Inglaterra.
dindo do tal sorte seus termos, que nào A maior parte dos deputados se indigna
havia algum que podesse oITender o rei. ram de vér que se inseriam estas palavras
Comtudo, este principe temendo que elie em uma acta em que nào se tractava se
enviasse á Inglaterra alguma Bulla favorá não dc dar dinheiro ao rei, e queriam que
vel a Catharina, prohibiu a seus vassailos, se riscassem.
sob penas rigorosas, receber nada da corte Mas Thomaz Cromwcll tendo ido á as
de Roma. Resolveu ao inesmo tempo levar, sembléia com alguns senhores, declarou
o negocio do divorcio ao seu parlamento e que o titulo que se dava ao rei'lhe era
á assembléia do clero, e fazel-o em Ingla muito agradavel, e que sem este recusaria
terra sem lhe importar do que o papa po absolutamente as suas ofTertas.
dería fazer. Emfim, depois de prevenir o Nenhuma pessoa se atreveu a responder,
povo cm seu favor, fez imprimir e publi e a acta passou como se tinha redigido.
car um resumo das razoes que êllc tinha Alguns propozeram que se juntasse ahi es
de pedir o divorcio com a rainha. ta rcstricção: quanto a lei de Deus o pôde
permittir; mas rcspcitou-se esta proposi
ção. O rei testimunhou não estar menos
VI satisfeito do titulo que se lhe tinhd dado
na acta, do que do presente que o acompa
nhava. O clero da provincia dc York se
Este principe pensou depois seriamente juntou ao mesmo tempo, e resolveu dar
nos meios de mortificar o clero. Reprehen- também ao rei uma somma inuito conside
deu-o de ter violado a lei que tinha sido rável. Mas como a acta que se redigiu
promulgada em 1377, e que prolubia aos d’esta doação nào falia va da qualidade do
inglezes de obter na curte de Roma algur chefe supremo da igreja anglicana, se lhe
ma ex'pediçào contraria aos direitos do fez saber que o seu donativo não seria ac-
reino. ceitc se não désse ao rei o mesmo titulo
Tinha-se estabelecido uma lei para emba que o clero de Cantorbery, e cllc o conce
raçar os abusos que os papas faziam, do seu deu depois de algumas contestações.
poder, dando a maior parte dos bispados js, Quando o papa soube o que se passava
cardeacs que nào residiam n’elles, e tiravam em Inglaterra, fez expedir um Breve pelo
muito dinlieiro á Inglaterra. Muitos papas qual prõhibia a todos os prelados, e a todos
tinham tentado em vão fazel-a revogar; os. juizes de tomar conhecimento do nego
eJIa foi muitas vezes confirmada; mas com cio do divorcio, e de o julgar.
tudo isso nào tinha sido exacta mente ob Despresou-se este Breve em Inglaterra,
servada até ao tenipo do divorcio, e ós pa é as pessoas prudentes, que previam. as
pas tinham sempre continuado a exercer consequências que podiam resultar do com-
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Anna Bolena, que, passados poucos dias, é cer era muito sabio, mas o papa, obrigado
•coroada rainha dc Inglaterra. pelas instâncias dos imperiaes expediu uma
A ceremonia foi magnifica. Dous dias Bulla, que cassava a sentença do arcebispo
antes a nova rainha veio buscar-se a Lon de Cantorbery, e declarava que o rei seria
dres n’uma barca ornada de bandeirolas c excommungado, se por todo o mez dc se
seguida dc outras igualmcntc ornadas, on tembro nào collocasse o negocio no estado
d e se achavam todas as pessoas mais dis em que se achava, e nào despedisse Anna
tinctas do reino. Foi com este numeroso Bolena.
cortejo desembarcar á torre dc Londres, Henrique atacou a Bulla do papa, e man
aonde foi recebida com o estrondo de toda dou retirar os agentes que tinha em Roma.
a artilheria. No dia seguinte descansou, e O rei de França, Francisco i, tendo conhe
no immediato foi ao palacio dc Wittahal cimento d’estas tristes noticias, enviou Joào
vestida como rainha, c n’um apparato tão du Bellay, bispo dc Paris, á Inglaterra,
pomposo, que ainda se nào tinha visto si- para negociar um accommodo. Este prela
milhantc. do, depois de ter escutado as queixas de
No primeiro dc junho, Anna Bolena Henrique viu, pediu-lhe que suspendesse
marchou a pé sobre tapetes muito ricos, a rcsoluçào que havia tomado de se sub
de que estavam cobertas as ruas até á trahi r inteiramente á authoridadc do papa.
igreja, onde foi coroada com uma magni O rei consentiu n’isso, c du Bellay partiu
ficência extraordinaria. Depois da ceremo logo para conferenciar com o papa, c tra-
nia, houve um banquete soberbo, c Anna ctar de lhe apresentar as razoes que de
foi tractada como rainha. Alguns mczes viam embaraçal-o d’obrar com precipita
depois deu á luz uma filha, que recebeu ção. Mas logo depois da sua partida d’In-
o nome dc Izabcl. glatcrra, se começou a diyulgar, sem que
Depois que a sentença do divorcio se o rei se oppozcssc, que o poder do ponti
publicou, Henrique fel-o saber a Cathari- fice romano não era fundado sobre algum
na, que recusou submetter-se a ella. O rei direito, e nào era senão uma pura tyran-
mandou-lhe dizer que nào queria que ella nia; que todos os reinos, e sobre tudo o da
tomasse d’ahi por diante o nome de rainha, Inglaterra, gemiam debaixo d’este jugo in-
o que desherdava sua filha Maria, se nàó supportavel, que se tinha em vão tractado
satisfizesse a isto. de o sacudir depois dc trezentos annos; que
Mas nada foi capaz dc a mudar, ella suseste jugo, não podendo mais ser encerrad
tentou até á morte a validade do scu ma nos justos limites, era necessário aboli l-
trimonio com toda a dignidade d’uma rainha.inteiramente, que d’este modo a author
O rei que nào ameaçava cm vào, suffocan dade do papa não se estendería mais ei
do todos os sentimentos, depois maltractou relação ã Inglaterra, além dos limites d
inuito a princeza Maria, sua filha, e a desua diocese.
clarou incapaz de succeder no reino. Pou O bispo de Paris, tendo chegado a Ro
co tempo depois, fez noticiar seu divorcio ma, teve com o papa uma conferência, cujo
e seu novo casamento a todos os sobera resultado foi, que Henrique assignasse as
nos, c particularmente ao imperador. . proposições que o prelado apresentava da
sua parle; Clemente vii, da sua parte, de
putaria juizes para instruir o processo na
X cidade de Cambray, e depois pronuncia
ria o s.eu juizo. Tudo parecia favoravel,
como se julgou, que o rei obteria o pro
Quando em Roma se soube o que se ha cesso qtie desejava. Joào du Bellay enviou
via passado em Inglaterra, o papa resolveu á França c â Inglaterra uma lista dos car
proceder contra Henrique viii e contra o deaes qufe ellc se lisougeava de ter ganha
arcebispo de Cantorbory. Os cardeaes do do. Mas o papa viu-se de tal sorte aperta
partido do imperador,'desejando aprovei- do pelos ministros do imperador, que se
tár-se da disposição em que viam Clemente viu constrangido a declarar-lhes a palavra
vii, o apertaram muito para dar uma sen que tinha dado. Então elles redobraram
tença definitiva a favor de Catharina, c de suas instandas com tanto ardor, que elle
nào soffrer um insulto que se tinha feito á lhes prometteu de não mais se considerar
authoridadc da sancta sé. Mas outros mais como obrigado, se o correio não trouxesse
moderados, rcprcsentaram-Ihe que se nào a resposta dc Henrique no dia marcado.
devia precipitar em um negocio de tanta Tendo chegado este dia sem apparecer
responsabilidade, porque exporia um reino o correio, os imperiaes renovaram suas
inteiro a- separar-se aa Igreja. Este pare solicitações para determiuar o papa a pro-
nunciar a sentença d’excoinmunhão. 0 bis convencidos juridicamente. Nos outros ar
po de Paris peaiu uma demora dc seis tigos se approvava 0 estatuto que- tinha
dias, representando, que 11’uma estação tão abolido as annatas em que se ordenava
horrorosa (era no mez de março de 1534) que a eleição dos bispos fosse feita pelos
mil accidentes podiam retardar um correio, cabidos, e sagrados pelo arcebispo, sem re
principalmente quando era preciso atra correr a Roma; aboliu-sc 0 dinheiro de S.
vessar 0 mar. Accrescentou que 0 papa Pedro, todas as expedições de bullas, e as
depois d’esperar seis annos para julgar es dispensas que se enviariam ao arcebispo de
te negocio, poderia muito bem demorar Cantorbery. Praza a Deus que se limitas
ainda seis dias; mas nada pode obter. sem a isto. O matrimonio do rei com Ca
O papa, intimidado pelos cardaes do par tharina, viuva do principe Arthur, seu ir
tido do imperador, ajuntou a 23 dc marco mão, foi declarado nullo, e aquellc que elle
0 seu consistorio, onde 0 negocio foi jul havia contrahido com Anna Bolena, julga
gado. do legitimo, e a successão â coroa estabe
De vinte e dous cardeacs, houve deze lecida nos filhos que d’ella nascessem.
nove que condemnaram 0 rei d’Inglaterra. Ordenou-sc que todos os vassallos do
O papa declarou na sentença, que de rei, sem distineção, fossem obrigados a
harmonia com os cardeaes, cassava os pro dar juramento d’obedccerem a estes regu
cedimentos de Henrique, e que lhe orde lamentos. O parlamento declarou ao mes
nava de tornar a receber Catharina sua mo tempo que nem 0 rei nem seus vassal
esposa, eondemnando-o para com cila a to los pretenderíam apartar-se da verdadeira
das as despezas, cuja lenção reservava Igreja de Jesus Christo, nem dos artigos de
para si. fé recebidos pela igreja catholica.
Dous dias depois que esta sentença foi O rei nomeou trinta e duas pessoas, de-
promulgada, chegou 0 correio, que vinha zcscis da camara alta, 0 dezeseis da dos
declarar que 0 rei satisfaria 0 contracto communs, para examinarem as leis eccle
jue 0 bispo de Paris tinha feito em seu siasticas, 0 confirmarem ou annullarem
aome. Então muitos cardeacs propozeram aquèllas que julgassem conformes ou con
ao papa revogar a sentença, e 0 bispo, de trarias ás leis do reino.
Paris fez ao papa vivas arguições. Mas os
partidários do imperador embaraçaram
que 0 papa se desdissesse. Diz-se que elle XI
mostrou muita tristeza de 0 terem obriga
do a pronunciar a sentença com tanta pre
cipitação, c que examinou 0 que poderia Henrique viu, sabendo que uma parte
■fazer melhor n’uma tão horrorosa conjun de seus vassallos tinha tanto apego e res
ctura; mas não se mudou nada do que es peito a Catharina e á princcza Maria, sua
tava feito, e subsistiu a sentença. filha, como odio e horror a Anna Bolena e
Henrique vm teve conhecimento dos a toda a sua familia, enviou coinmissarios
procedimentos feitos contra elle em Roma. por todas as partes para receberem 0 jura
A ’ triste noticia do mau successo de todas mento d’obediencia a todos os novos regu
as suas negociações, não guardou mais lamentos. Reconhecia-se por este juramen
medidas no seu resentimento, e executou to a validade do segundo matrimonio; da-
a resolução que linha tomado de não ter va-se ao rei 0 titulo de chefe supremo da
mais correspondência alguma com Roma. igreja d’Inglaterra. João Fischer, bispo de
O parlamento, que não estava menos indi Rochester, e Thomaz Mooro, chanceller, fo
gnado do que 0 rei pelo procedimento do ram os unicos que recusaram dar este ju
papa, apresentou um regulamento que con ramento, e spa constância foi considerada
tinha diversos artigos tendentes todos a abo como uma revolta.- Como se representava
lirem 0 poder que elle exercia ha muitos a Mooro que não devia ser d’outra opinião
séculos, sobre tudo na Inglaterra. Com- diversa do grande- conselho d’Inglaterra:
tudo 0 parlamento n’estes artigos parecia «se eu fosse só contra todo 0 parlamento,
querer sempre conservar a doutrina catho respondeu este grailde homem, desconfia
lica, porque revogando a lei feita no rei ria dc mim mesmo, mas tenho a meu fa
nado de Henrique iv, pela qual era per- vor toda a Igreja, jque é 0 grando conselho
mittido aos bispos fazerem prender todas as dos christãos.» Metteram-no na torre dc
pessoas, que suppozessem ser herccticas, Londres com 0 bispo de Rochester, que foi
se confirmou ao mesmo tempo aquèllas privado de todos os seus bens; c posto na
que tinham sido feitas no tempo dé Ricar prisão quasi nu, tendo então d’idadc oiten
do 11 c de Henrique v contra os hereges, ta annosi O papá Clemente vn morreu n’es-
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le mesmo lenipo (no fim de 1534) e suecc- condemnavam seus novos regulamentos,
dou-lhc Paulo ui. foram as primeiras victimas do seu furor.
Esta morte não mudou nada nas medi Mas temendo que fosse accusado de não
das que o rei tinha tomado para romper ser addido á nova reforma, alTectou usar
inteiramente com a corte de Roma. do mesmo rigor para com aquelles que
O parlamento confirmou n’estc principe eram convencidos de a ter abraçado, e os
.a qualidade de chefe soberano ila igreja de fez morrer com os outros. Foi então que o
Inglaterra, c lhe adjudicou-os dízimos c as universo lamentou o supplicio dos dous
annatas. grandes homens que tinha a Inglaterra:’—
0 clero ficou ferido, porque julava que, Mooro, que tinha sido chanccller, 1 e Juão
tirando-se ao papa, se não exigiríam mais. Fischcr, bispo de Rochcstcr. Emquanto
Mas cointudo o rei não ficou ainda satis Fischcr estava na prisão, o seu zelo e va
feito, e lhe altribuiu mais a decima das lor apostolico foram premiados com a pur
rendas dos benefícios. pura pela sanclidadc de Clemente vm; mas
No principio de 153o appareccu uma isso mesmo concorreu para mais depressa
declaração do rei que prohibia dar o no obter a palma do martyrio.
me de papa ao bispo do Roma, c ordenava 0 rei, tendo-o sabido, ficou indignado, c
que se riscasse este nome de todos os li mandou pelos juizes perguntar ao prelado,
vros em que apparccessc. Esta ordem foi sc tinha procurado este favor do papa.
executada com extremo rigor. Pozeram-sc Fischer respondeu, que pela misericor
nas ladainhas estas palavras: «Da tyrannia dia de Deus, não tinha jamais sido ambi
do bispo de Roma e de seus detestáveis cioso; mas que quando mesmo se suppo-
excessos, livrai-nos Senhor.» zesse n’outro tempo de o ser, o estado em
Por mais zelo que parecesse ter o rei que sc achava, sua avançada iuade, a mor
por não conservar a doutrina catholica no te de que estava ameaçado a todos os in<
seu reino, as heresias de Lulhero não dei mentos, sua prisão e suas cadeias o just
xavam de fazer progresso. Suas obras es ficavam bem sobre este artigo.
tavam muito espalhadas, apesar das prohi- Uma resposta tão sabia não apaziguou c
bições severas que Henrique tinha feito de rei, que disse, mofando do papa: «Que en
as‘lêr c de conserval-as. vie o chapéo de cardeal quando quizer; eu
Viam-se cada dia novos libellos contra farei de sorte, que quando elle chegar, a
as desordens do clero, contra a invocação cabeça para quem fòr destinado não sub
dos -sanctos, contra as reliquias, contra o sista mais.»
merecimento das boas obras, e contra o Com efleito, Henrique determinou pro
culto das imagens. 0 rei, a quem se tinha cessar este venerável velho, que teve a ca
insinuado que, para justificar o resto do beça cortada a 21 de junho de 1535. Tinha
sou comportamento, devia parecer mais governado a igreja de Rochcster trinta
unido que nunca á religião catholica, fez annos, e tinha estabelecido ahi mui san
prender e queimar muifos hereges. 0 par ctos regulamentos. Passava por um dos
tido que tinha horror ao luthcranismo era melhores escriptorcs que toem -atacado Lu-
muito poderoso; mas o que o favorecia não thero e os outros novos hereges. Colligi-
era menos. Anna Bolcna declarou-se alta ram-sc todas as suas obras em um volume
mente por elle. Cranmer favorecia-o com in-folio, á testa das quaes se collocou o
todo o seu poder, contemporisando comtu- Tractado de Henrique VIII contra Lulhero,
do com o rei, por quem tinha exteriormen dedicado a Leão X; c julga-se que foi Fis
te uma cega complacência. Cromwell pa cher que ajudou este principe a compOl-o.
recia também mais inclinado ao lulhera- Além de muitos e excellentes tractados de
nismo que á fé catholica, ainda que se te controversia contra Luthero e*OEcolampa-
nha- mais fortes razoes para crêr que no de, escreveu muitas obras de piedade, que
fundo não tinha religião alguma. são muito estimadas. Era muito bom theo
Henrique vm não pensou mais que cm logo, e tinha estudado muito a Sagrada Es-
castigar todos aquelles que sc oppunham críptura e os Sanctos Padres.
aos seus designios. Muitos religiosos, que Mooro, companheiro da prisão de Fis
chcr, não tardou em o seguir no seu sup
1 A fam ilia Mooro era ama das Patri plicio. Quando soube da morte d'este pre
cias de Veneza, e entre outros grandes ho lado, elle disso a Deus que sc reconhecia
mens produziu o doge Christocão Mooro: indigno da gloria do martyrio, pois que era
ramificou-se em Inglaterra, e um de seus il muito inferior ao sancto bispo, que acaba
lustres netos foi João Morro, pae do vene va de o soíTrcr: comtudo lhe pedia por sua
rável Tliomaz Mooro. bondade de lhe dar parte do seu calix.
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Muitas pessoas de distincçâo o vieram ex cisarei d’ella para descer.» Depois de ter
hortar a submetter-se; mas como nào po- acabado a sua oração e cantado o psalma
deram abater a sua coragem, sua mulher —Miserere, tomou o povo por testimunha
veio depois dos outros, c lhe pediu que a de que morria na profissão da fé catholica,
nào abandonasse logo nem a seus lilhos apostólica, romana. Pôz depois a sua ca
nem à sua patria. beça no cepo para receber o golpe da mor
Como ella repetia muitas vezes a mesma te. SolTreu-a com a alegria e com a cou-
cousa, perguntou-lhe quanto podería ainda stancia dos martyres.
viver, segundo o curso da natureza: vinte As pessoas de bem gemeram á vista d’es-
annos, respondeu sua mulher. Nào ha pro te espectáculo, c adoraram os juizos do
vas, replicou Mooro, de que eu prefira vin Deus sobre os authores d'uma tão horrível
te annos á eternidade. Quando se viu que injustiça. Deu-se o seu corpo a sua filha,
elle perserverava na sua resolução, tira- que o fez sepultar honrosamente. Erasma
ram-se-lhe todos os seus livros. deixou-nos n'uma de suas cartas o retrato
Então teve todas as suas janellas fecha de Mooro, que é ahi representado coma
das, e não pensou mais do que entreter-se um homem completo.
com Deus. Seu carcereiro tendo-lhe per Era muito sabio, e sua piedade igualava
guntado que prazer achava n’e$tas trevas, a scicncia. A mais considerável das obras
elle respondeu alegremente:— «E preciso que nós temos d’elle é a Utupia, que con
fechar a loja quando toda a fazenda está tém em dous livros o plano d’uma republi
tirada;» é o nome que elle dava aos seus ca perfeita, á imitação de Platão.
livros. Perguntou-sc-lhc sobre os seus sen O agradavel e ulil acham-se igualmcnte
timentos a «espeito do estatuto que abolia n'esta obra.
cm Inglaterra a authoridade do papa. Res Tinha também escripto uma resposta ao
pondeu: «que esta authoridade era Icgiti- livro de M. Luthero contra o rei dTngla-
la, necessaria, e de direito divino, c que terra. Parece melhor escripta que a de
pm a graça de Deus, conservaria estes sen- Fischer, mas é menos profunda e menos
mentos até á morte.» Gritou-se que elle solida.
íanifestava por isso odio contra o rei. Compuz na sua prisão uma explicação
Protestou «que tinha sempre sido inviola- da Paixão de Jesus Christo, mas esta obra
velmente unido ao seu soberano.» Seu suc não está acabada.
cessor no cargo de chanceller perguntou- Finalmente tem-se d’clle uma bclla ora
lhe se era mais virtuoso c mais esclarecido ção tirada dos psalmos, para implorar o
ue tantos bispos e abbadcs, que pensavam soccorro de Deus na tentação.
'outra sorte. «A um bispo do vosso par A sua Vida de Ricardo 111 não está con
tido, replicou este grande homem, eu posso cluída. Escreveu também a de Eduardo V,
oppôr cem, que gosam da gloria celeste. O e Cartas. Ha d’elle os Commentarios a
numero dos martyres c dos confessores, Sancto Agostinho.
cujo sentimento eu sigo, vale bem o da no As suas obras foram impressas em Lo-
breza de hoje, e o poder de todos os con- vainc no anno de 1566. 1
cilios geraes equivalem bem ao do parla-
mento^Inglaterra.»
Este illustre captivo passou no sancto XII
exercício da oraçao o intervallo entre «à
condemnação e a morte. Na vespera escre
veu a uma de suas filhas com carvão so Fischer e Mooro não foram as unicas
bre um papel, que tinha apanhado, para victimas da crueldade de Henrique vm.
lhe dizer quC ardia no desejo de possuir o Antes dc serem decapitados, tinham sida
seu Deus, c de morrer no dia seguinte, arrastados pela lama um doutor em theo
que era a oitava do principe dos apostolos, logia, da abbadia dc Sion, tres chartreus,
e a festa da trasladação de S. Thomaz de e um sacerdote, pela mesma razão. Ti-
Cantorbery, dia infinitamente feliz para elle. nham-se dependurado, depois aberto, e por
Faliava assim, porque estava encantado de ultimo tinham-se-lhes arrancado os corações
morrer por seu apego á cadeira de S. Pe e as entranhas, e postos seus corpos em
dro, c porque tinha sempre tido uma de quartos. Durante este tempo, não houve
voção particular a S. Thomaz. Deus ouviu
seus votos, e a 6 de julho foi conduzido ao i Domingos Regi— Delia Vita di Toma-
cadafalso. Como a escada não era com so Moro— Biographic Universelle .-R o h r-
moda, disse a um dos criados do algoz: bacher— ülsloira Universelle de 1’Eglise Ca-
«Dai-me a mão para subir, e eu nãò pre tholiquc.
ING 603
homem algum do hem, que não recciasse relação sobre as rendas, fundações, e modo
a sua vida. ReiuaIdo Poolo, que depois foi como se conduziam na eleição dos supe
creado cardeal, e que se achava homisia- riores, a idade necessaria para fazer os vo
do, porque o rei tinha puxado muitas ve tos, c a fidelidade em os cumprir. Mostra
zes pela espada para o matar, dirigiu a va-se grande zelo c cuidado contra todas
este principe, do logar do exilio, um Tra- as desordens que se diziam então practica-
ciado da união da Igreja. Henrique vm das no seio das communidades, e enco-
muito mais se enfureceu contra ellc, e pro- briam-sc os verdadeiros desígnios que se
metteu cincoenta mil escudos áquelle que haviam tomado debaixo do bello nome de
lhe apresentasse a sua caheça. reformarão!...
O arcebispo de Cantorbery começou a O elfeito d’estas visitas foi dar ao mo
visita de sua provincia no mez de mâio do narcha o-pretexto que já de ha muito pro
mesmo anno (1535), mas sómente depois curava. Assim foram seguidas da suppres-
de ter obtido a permissão dó rei. Faziam-se são dos mosteiros, de cujas rendas este
assim todos os actos da jurisdicçào eccle principe se apropriou. Gritou-se entre os
siastica pela authoridade real, e não se lulheranos como entre os catholicos, diz o
trabalhava senão em confirmar bem ao grande Bossuet, contra esta sacrilega' de
rei a sua qualidade de chefe supremo da predação dos bens consagrados ao culto
igreja anglicana. Este principe revestiu divino; mas ao caracter de vingança que a
Cromwell da qualidade de seu vigário ge reforma anglicana tinha já no seu princi
ral no espiritual, e a de visitador de todos pio, foi necessario accrcscentar a d'uma
os mosteiros d’Inglalerra. Cromwell era de tão deshonrosa avareza; c este foi um dos
baixo nascimento. Depois de ter sido sol primeiros fruetos da primazia, de Henri
dado, puz-sc ao serviço do cardeal Wolsey, que, porque se arvorou em chefe da Igreja
de quem soube ganhar a confiança e fami para a roubar com este mesmo titulo. Os
liaridade. Passou-se pouco depois á corte, visitadores, que tinham ordem d’assustar*
c applicou-sc a estudar as inclinações do os religiosos, davam-lhes a entender todas
rei para o lisongoar em tudo. as crueldades que os esperavam. Insi-
Anna Bolena contribuiu muito para a nuavam-lbcs que para evitar estes tormen
elevação d’elle, e o sublimou, como por de tos, c ao mesmo tempo para encobrir as
graus, á dignidade de primeiro ministro. suas desordens, o melhor meio era resi
Alcm d’isso tendo-o o rei encarregado dc gnar a sua casa e os seus bens ao monar
todos os negocios ecclesiasticos, resultou cha, que tomaria a seu cuidado a subsis
d’ahi todo o mal que se veio a experimentar tência dc cada um d ellcs em particular.
pelo decurso do tempo, c um dos primeiros Esta cxhortação dos commissarios foi efíi-
conselhos que Cromwell deu ao monarcha, caz para com um grande numero de reli
foi o dc supprimit* todos os mosteiros. Hen giosos. Sua relação foi dopois posta cm pú
rique, agradando-se d’estc projecto, apre- blico, o se expunham então as desordens
sentou-o em conselho dc ministros, mas practicadas nos mosteiros. Tudo isto era
muitos se oppozcram c fizeram sentir que ficticio. Immediatamentc o rei na qualida
uina tal empreza podia ter então terríveis de dc chefe supremo da igreja d'Inglaterra,
consequências; o rei resolveu então traba expediu uma ordenança pela qual desliga
lhar n’isto pouco a pouco, c começou por va dos seus votos todus os monges que os
ordenar uma visita geral aos mosfeiros, a tivessem feito antes da idade de vinte e
fim de conhecer os titulos, a vida dos re quatro annos, e permittia a todos os outros
ligiosos e religiosas, c o modo como as re viverem como seculares, se o julgassem a
gras dc cada um eram observadas. Ellc proposito.
não duvidava que se descobrisso n’esta vi
sita muitos abusos, que serviriam.de pre X III
texto para executar o seu desígnio. Os
grandes desejos que se davam para se des
truírem os conventos, eram os seus bens. Paulo m tendo conhecimento de todos
A escolha que o monarcha havia feito de os excessos‘a que se entregava Henrique
Cromwell para esta visita, dava bem a co vm, julgou que não devia mais da sua
nhecer quaes eram as suas vistas. parte contemporisar cm cousa alguma
No mez d’outubro, Cromwell começou a com este principe. Não sómente o excom-
visita geral dos mosteiros, e nomeou*para mungou por uma Bulla solcmne, mas mes
este trabalho muitas pessoas, a quem deu mo declarou que desligava todos os seus
instrucçòes comprehendidas em oitenta c vassallos do seu juramento de fidelidade,
seis artigos, que entravam n’uma grande c que dava o seu reino ao primeiro que
604 ING
d’ello sc apossasse, determinava a todos os as grandezas c a todos os prazeres da ter
ecclesiasticos rctirarem-se-do seu dominio: ra. Ella recommcndava aos seus cuidados
ordenou á nobreza tomar armas contra elle, Maria, sua filha commum, pedindo-lhe quo
pôz o reiuo interdicto, prohibiu a todos os tivesse por cila entranhas de pac. Pedia-
christàos ter commercio algum com os in- jlie mais de dar accommodaçào a suas ires
glczcs, cassou todos os tractados que os damas de honra, e de dar a seus outros
soberanos tinham feito com este principe, domesticos um anno dos seus salarios aci
julgou infames os filhos que nascessem do ma do que lhe cra devido. Pinahieute,
segundo matrimonio, e exbortou os grandes ella lhe protestava que a unica cousa que
a fazerem-lhe guerra. Nada cra mais pro a allligia, deixando a vida, era nào ter a
prio do que uma tal Bulla para pôr o cú consolação de o vôr.
mulo aos males d’esta infeliz nação, e a Fez tirar duas cópias d’csta carta: en
tornal-os incuráveis. D’este modo*fez cila viou uma ao rei, e outra ao embaixador de
gemer todos aquelles que amavam since- Carlos v, na Inglaterra.
ramente a Igreja, e que estavam animados Henrique viu nào pòdc conter as lagri
do seu espirito. Henrique viu nào estava mas ao lòr a carta dYsta princcza mori
irado do poder encobrir os seus excessos bunda. Pareceu muito tocado, e pediu ao
debaixo a’àquclla que cllc podia rcprchen- embaixador de Carlos v que fosse imme-
der ao papa com tanto fundamento. Esta diatamente ter com ella c saudal-a da sua
Bulla, que é datada de 27 de novembro de parte. Mas o embaixador nào chegou a
153o, nào foi publicada sen^o depois de Kinbalton, onde ella estava, senão depois
passados tres annos. da sua morte. Esta princcza morreu no
principio de janeiro de 1530, o foi sepul
tada honrosamente na abbadia de Pelcrs-
X IV burgo, que Henrique vm converteu depois
em bispado. Este principe mandou que
toda a sua casa tomasse lucto. Anna Bo
Emquanto a igreja de Inglaterra estava lena fez, pelo contrario, brilhar a sua ale
n’este deplorável estado, a rainha Cathari- gria, e quando alguém a felicitava da mor
na tractava de fazer no seu desterro um te da sua rival, «eu nào me tenho entris
sancto uso da humilhação a que Henrique tecido, dizia ella, mas sempre lhe teria de
viu a tinha exposto. Ella procurava toda sejado uma morte menos gloriosa.»
a sua consolação no sancto exercício da
oração e na meditação das verdades eter
nas* Pareceu sempre muito submissa ás XV
ordens da Providencia, e ás terríveis pro
vas, pelas quacs era do agrado de Deus
soflrer. Mas a cólera de Deus não tardou a per
Anna Bolena não deixava escapar oc- seguir esta infeliz. 0 rei havia lido, pouco
casião alguma de a contristar. Chegou depois, uma violenta paixão por Joanna
mesmo a fazer prender um cordilheiro, Sevmour, uma das damas de honra de
seu confessor, que lhe procurava alguma Atina Bolena. Os inimigos d’esta entraram
consolação. Catharina escreveu a este reli nos sentimentos do rei, julgando causar
gioso uína carta muito edificante para o lhe prazer, e a accusaram de infiel. 0 rei
sustentar no seu eaptiveiro. c recebeu de a fez encerrar em Londres com outras cin
pois uma resposta que lhe foi muito agra- co pessoas, que passavam por suas cúm
davcl. plices. Quando ella soube que sua desgra
' Déus querendo terminar os males d’esta ça cra certa, .derramou abundantes lagri
piedosa princcza, permittiu que ella ca- mas; c de repente passou dt\ sua tristeza,
hisse n’uma debilidade que a conduziu, c das suas lagrimas, a grandes gargalha
pouco depois, á sepultura. das de riso como uma pessoa insensata.
Desde que o rei soube que ella estava As palavras que pronunciava no seu trans
nos seus ultimos instantes, fez-lhe testimu- porte contra seus favoritos, que a tinham
nhar a parte que tomava na sua doença. trahido, mostravam sensivelmente a tur-
Catharina dictou logo uma carta muito bação da sua consciência. Quando sc qui-
terna a este príncipe, a quem ella chama zcs*se justificaí-a das infamias de que a cai^
va seu muito caro rei, senhor, e esposo; regaram, seus proprios apologistas confes
ella lhe dizia que o amor que sempre lhe sam que seu agrado cra immodesto, suas
tinha tido, a obrigava a pedir que pensas liberdades indiscretas, seu comportamcnU)
se na sua salvação, c de a preferir a todas irregular, c liccncioso.
ING ÔOü
Não pódc deixar, diz M. Bossuct, de se tivesse voltado no instante da morte. Seja
reconhecer «a mão de Deus sobre esta prin- o que for, parece que Deus pretendia (pie
<-cza. Não gosou senão tres annos de glo o fim d'esta princeza, por mais horroroso
ria, em (pie tantos crimes a tinham esta que fosse, tivesse tanto de ridiculo, como
belecido. Uma nova paixão a arruinou, e de tragico. Seu irmão, e aquelles que fo
como a paixão que se teve por dia a ti ram accusados dc ter sido seus cúmplices,
nha elevado a Henrique, que lhe tinha sa tiveram também a cabeça cortada ires dias
crificado Calha ri na, a sacrificou a cila depois.
jnesmo a Joanna de Scymour. Passou-so todo este acontecimento no
Calha ri na, perdendo as boas graças do mcz de maio de 1536.
rei, conservou ao menos sua estima* até ao
fim, ao mesmo tempo que fez morrer Anna
Dolcna sobre um cadafalso como uma in X VI
fame. Mas a mão de Deus apparcceu sobre
tudo, em que o rei, sempre escravo das
suas paixões, fez cassar o seu matrimonio Depois que Henrique vnr, immolou ao
com Anna Dolcna em favor de Joanna de seu odio e ao seu furor aquella por quem
Scymour, como em favor de Anna tinha tinha antes excitado tantas e tão grandes
feiio a respeito do matrimonio de Cathari- perturbações no seu reino, casou no dia
na de Aragão. Dor um justo juizo de Deus, seguinte com Joanna de Scymour, sem lhe
Anna Bolona cahiu n’um abvsmo similhau- importar dos boatos que o’ público podia
to àquellc que linha cavado para a sua ri formar acerca de um comportamento tão
val innocentc. Mas Catharina sustentou até extraordinario. A princeza Maria, filha dc
á morte, com a dignidade dc rainha, a ver Catharina, accommodando-se ás circum
dade do seu matrimonio, c a honra do nas sta ncias daquclla época, procurou entrar
cimento de Maria: pelo contrario, por uma nas boas graças do rei, seu pac, e pediu-
deshonrosa complacência, Anna Rolena, re IITas por uma carta muito respeitosa. Hen
conheceu o que não era, que tinha casado rique, seu pac, annuiu ao pedido dc Maria
com Henrique durante a vida de milord sob condição d'assignar os tres seguintes
Perci, com o qual tinha antes contractado, artigos: 1° a invalidade do matrimônio de
e confessando contra sua consciência que Catharina, sua mãe: I o a renuncia ã au
seu matrimonio com o rei era nullo, en thoridade do papa; 3.° a primazia do rei,
volveu na sua deshonra sua (ilha Izabel. como chefe da igreja dc Inglaterra.
A fim de qu« se visse a justiça de Deus de Este passo da princeza Maria fez perder
um modo ainda mais manifesto iVesle me ao papa Paulo m a esperança que tinha
morável acontecimento, Cranmcr, esto mes concebido dc fazer revogar tudo o que se
mo Cranmcr que tinha cassado o matrimo havia feito em Inglaterra contra a sua au
nio de Catharina, cassou tamhcm o de An thoridade. Reconheceu logo que nada era
na, a quemella devia tudo. «Deus, contimia capaz de obrigar a Henrique viu a renun
M. Rossuct, feriu dc cegueira tudo o que ciar o poder que tinha usurpado sobre o
tinha contribuído para a ruptura de uní clero, isto é o que provava sobre tudo a
matrimonio lào solemnc como o de Catha suppressão que já tinha feilo da maior
rina.» A indigna fraqueza de Cranmcr, c parte dos mosteiros.
sua extrema ingratidão para com Anna, Final mente, o rei que queria dispôr dos
foram o horror de todas as pessoas dc seus bens, representou ao parlamento que
bem, e sua deshonrosa complacência em o grande numero de conventos no seu rei
cassar todos os matrimônios â vontade dc no, estava a cargo do estado, e pediu-lhe
Henrique, tiraram ã sua primeira sentença remedio para este mal pelos meios mais
toda a apparcncia de authoridade que o convenientes. Por consequência o parla
nome de um arcebispo lhe podia dar. mento suppriuiiu todos os mosteiros pe
A infeliz prinecza esperpu debalde do quenos, cuja renda era menor de 200 li
brar o rei, confessando tudo o que elle bras sterlinas, isto é, de 830 escudos. Allc-
queria: esta confissão não lhe salvou senão gou-sc por pretexto que estes mosteiros
o fogo, e Henrique lhe fez cortar a cabe sendo pobres tinham poucos religiosos, e
ça. No dia da execução consolou-se sobro que a disciplina cra mal observada.
6 que tinha ouvido dizer— que o executor O parlamento por outra lei deu ao rei
era mui habil, c além d’isto, accrcscentou todos estes conventos cm numero dc 3C6,
ella, eu tenho o pescoço assaz pequeno. com as igrejas, terras, e os bens que de
Ao mesmo tempo levou a mão ao pescoço, pois dependiam dos conventos, além das
e pòz-sc a rir. Talvez que a cabeça se lhe pratas, moveis, e ornamentos das igrejas.
39
60C IN G
v
620 IJíG
Bulla sobre Isabel, c de que modo ella tra- seu zelo pelo scisma c heresia, mostrou
ctou os catholicos, sobre tudo depois do sempre um desejo ardente e apaixonado
seu triumpho. Nada igualou seu odio con de dominar, uma duplicidade sem exení-
tra Roma, que tinha lançado sobre cila plQ, uma politica que lhe fez violar as
tantos anathemas, e que de tempos cm tem leis divinas e humanas, sobro tudo.no seu
pos exhortava seus vassallos a revoltarem- procedimento a respeito de Maria, rainha
se. Ella tornava-so ao mesmo tempo for da Escossia, c finalmenle uma dissimula
midável a todas as potências da Europa, e ção tão profunda, que a maior parte dos
fazia conquistas na America. passos d esta priticeza são enigmas, que
Depois da morte de Henrique m, rei de nào teem podido ainda ser explicados. An
França, em 1589, enviou spccorros a Hen tes de morrer, nomeou para seu successor
rique’ iv, e fez alliança com clle. Tinha Jacques vi, rei da Escossia, c filho de Ma
enviado antes aos protestantes da Franca ria Stuart, a quem ella tinha mandado cor
soccorros; que nào lhes tinham sido pouco tar a cabeça.
uteis em differentes occasiòes.
XXXIII
XXXII
Este monarcha summamentc aíTeiçoado
religião catholica não pôde, apesar de
grandes esforços, restabelecei-a no seu rei
tempo que a heresia fizesse progressos en no, porque a lutherana, como todos os seus
tre elles. Testimunhavam muito horror a ramos, oíTerccc ao coração humano mais
tudo o que Isabel fazia cm favor da pre altraclivos, c d’aqui a facilidade de se ar
tendida reforma, c projcctaram o desígnio raigar no corrompido espirito humano.
de se retirar da sua obediência. A rainha Até aqui as igrejas de Inglaterra eram
enviou tropas á Irlanda para subjugar os pastoreadas por sacerdotes pertencentes ás
rebeldes, e ao mesmo tempo ministros da communhõcs reformadas, e desejando o rei
reforma, que ella fez bispos, para ahi esta que ollas o fossem por ecclesiasticos ver
belecerem a mesma religião que em In dadeiramente catholicos, e chegando a con
glaterra. Este dobrado desígnio sahiu bem seguir isto que pretendia, acarretou contra
em algumas provincias, e a heresia fez ahi si o odio do conde Gaurico e dos seus so
progressos. A de ültonia foi a. mais con cios, sectarios acerrimos da reforma, que
stante em manter a sua liberdade, c em tramaram contra a sua vida, de cujo trama
conservar a religião catholica. escapou por um acaso.
O conde de Essex, favorito da rainha, Não eram passados muitos dias depois
que tinha tido sempre muito credito na da sua entrada real cm.Inglaterra, (pie se
côrle para com ella, tendo sido accusado patenteou um grande e horroroso attenta-
de ter conspirado contra a sua pessoa, se do, que os reformados haviam planeado
tornou o objecto de sua cólera, como tinha contra a sua real pessoa, familia, ministros
sido do seu criminoso apego, c perdeu a e parlamento, descobrindo-se então em
cabeça n’um cadafalso. Esta execução cau uma mina por baixo do salão da camara
sou logo depois tanta pena a IsabGl, que trinta c seis barris de polvora, constando que
morreu de tristeza no principio de abril, os conspiradores já haviam elegido para
no terceiro anno do século x v i i , aos seten rainha, de Inglaterra a Arbella, descenden
ta annos d’idadc, c quarenta e cinco do te de sangue real. Taes attenlados foram
seu reinado. imputados pelos reformados aos catholicos,
O odio que ella tinha sempre testimu- c estes os imputavam ápuelles. Estando as
nhado contra a igreja catholica, lhe tem cousas no concernente á religião ifoste es
procurado os maiores elogios da parte dos tado, a imprensa apresentava escriptos sub
. cscriptores protestantes. versivos da paz, da obediência e do res
E preciso convir que ella tinha um espi peito que se devia tributar ao soberano, in
rito fino e penetrante, que era muito tiabil sinuando, inclinando e como que arrastan
na arte de reinar, e que se fazia muitas do os animos a motins, á anarchia c ao odio
vezes admirar dos seus inimigos. Conser não só contra os catholicos, que prestavam
vou sempre gosto pelas bellas-artcs, que culto a Jesus Christo c imagens, mas tam
tinha cultivado na sua mocidade. Fatia bém declamavam contra o poder real. D'is-
va cinco ou seis linguas, e tinha traduzi to dão prova bem clara os detestáveis es
do diversos tractados do grego e do fran- criptos de J. Buchanam c de Estevão Juho
ccz na sua lingua natural. Mas além do Bruto.
ING G?l
Para mais facilmente se chegar ao co ou Puritanos. Esta seguia á risca as dou
nhecimento dos que poderíam ter commct- trinas de João Calvino, que nào reconhece
t ido similhantes attentados, inventou-se uma ritos alguns ecclesiasticos, nem jurisdicçào
nova fórmula de juramento, chamado ju alguma ecclesiastica superior; c aqueila
ramento ad legem, que todos deviam pres ainda conservava alguns ritos da igreja ro
tar sob pena de se lhes attribuir a conju mana: e é esta a religião que hoje se pro
ração, e que. consistia no seguinte:— 'O fessa na Inglaterra. A dos episcopacs é
papa nào tem direito algum tlc do.pòr os chamada dos protestantes moderados, a ou
principes, nem estes perdem alguns de tra dos exaltados.
seus direitos, ainda que sejam excominun- Estas duas facçòcs cxacerhnndo-se, che
gados por ellc; a ninguem é permittido at- garam a pegar.cm armas, occasionando-sc
ientar contra a vida do rei; a doutrina que uma sanguinolenta guerra, que primeira
ensina o contrario é impia. » mente se manifestou na Escócia, quando
Immcdiatamente esta doutrina f<ji con- el-rei lhes enviou a liturgia da igreja an
demnada pelo pontifico, assim como o ju glicana com prohiüição de seguir outra, c
ramento chamado ad legem. Os catholicos, por isso os Puritanos ofiendidos se levan
que já nào eram muitos, estavam divididos taram.
em virtude de similhante juramento, o os Para pacificar esta sublevação na Escó
reformados aproveitando-se d'csta oecasiào cia foi mandado o marechal Hamiltonio,
levaram o rei, que na realidade era catho mas nào pòde, apesar de todos os meios
lico. c tinha além d’isto ás qualidades de empregados, conseguir o restabelecimento
ser brando, humano c caritativo, a perse dos animos, que se achavam bastante exal
guir aquclles poucos catholicos que se re tados. O rei marchou em pessoa, mas pri
cusaram a prestar tal juramento. N’estc vado dos auxjlios pelo parlamento inglez,
tempo, isto é, cm IG2o morre Jacob ou Jac- porque pertencia ao partido exaltado, c por
ques i e succede-lhe seu filho Carlos i. isso teve de tractar a paz com os escocc-
zes. Voltando á. Inglaterra foi pelo senado
despojado da maior parte das prorogativas
X X X IV rea es.
Teve a infelicidade dc vèr que aquclles
que lhe oram verdadeiramente aíTeiçoados
O filho de Jacob i nunca pôde estar cm foram condenihados á morte. Apparéce pa
harmonia com os seus subditos. El-rei ti ra cumulo de todas as desgraças uma sei
nha em muita consideração as relevantes ta ainda mais infernal, chamada a dos inde
qualidades de Gregorio “Villor, duque de pendentes, a qual nào reconhece nem aau-
Bukingam, e por isso os parlamenta rios, le thoridade dos bispos, nem d’el-rei, ou dc
vados dc sua soberba, ambição c inveja leis algumas .ecclesiasticas ou civis: c na
nào podiam tolerar esta predilecção do rei lrcnte d’um exercito, a occultas formado e
para com o duque. Foi este o pômo da sej- posto cm campo, apparecc o impio, cruel c
sào que immcdiatamente sc manifestou: o barbaro Oliveirò Cromwell, como legado
parlamento repugnou sempre prestar obe supremo.
diência e soccorros a el-rei, emquanto o O rei tendo-se refugiado na Escócia, e
duq*uc dc Bukingam nào se apresentasse nào se considerando ahi sufíici entemente
em pessoa perante os tribunacs para se de seguro, retirou-sc para ,a ilha de Wigt, e
fender dos crimes que lhe eram imputados ahi foi preso pelo governador, c conduzido
pelos parlamentados. a Londres, oude subiu ao cadafalso em
Carlos não prestando, como devia, aqucl- im .
la attenção que sempre sc exige em simi
lhantes accusacòcs, antes enviando o dito
duque com soccorros aos hereges da Ro- XXXV
chella, sitiados pelo rei de França, de cuja
expedição obteve potjica ou nenhuma glo
ria, motivou ainda maior aversão contra A realeza inglcza terminou em 1649,
•ellc. Foi seu author Oliveirò Cromwell. Era
Já por este tempo os reformados estavam membro do parlamento inglez, depois foi
divididos cm duas diflerentes seitas, que elevado a commandante do exercito, e pela
reciprocamente sc odiavam inveclivando- sua authoridade sempre arrojada pôde con
se çontinuamente. seguir a dissolução do mesmo parlamento,
Èstas duas seitas tomaram os nomes dc compondo-o dc individuos da sua facção e
Anglicanos episcopacs e de Presbyterianos que partilhavam as suas idéias. Consegui-
40
do isto, conseguiu-se também a morte de sagacidade, que seu pac muito bem sabia,
Carlos i, e elle foi acclamado protector do manejar, foi julgado indigno e deposto no
reino dc Inglaterra, Hibernia e Escócia. anno seguinte.
Decretou logo a extincçào da realeza, e
posto que lançasse os fundamentos a uma
republica, transferindo o seu poder para o XXXVI
senado, teve a sagacidade de manobrar, dis
por, transtornar c barulhar o systema re
publicano, que sendo cllc simplesmente Torna apparecer a realeza na Inglaterra
protector do reino, tinha mais poder do com a acclamaeãodc Carlos n, quesóhe ao
que um rei absoluto. throno depois do filho do regicida. Traba
Os escocezes arrependeram-se de haver lha para generalisar em todo o reino a li
concorrido para a morte do infeliz Carlos, turgia anglicana. Os puritanos querem an
c com os successos dc Inglaterra subleva- tes ceder dc seus benefícios do que accei-
ram-sc c acclamaram por seu rei ao filho tal-a.
do assassinado, com o nome de Carlos n. El-rei, rccciando movimentos bellicosos,
Era já muito tardo o seu arrependimento. declara por um edito a liberdado de con
Olivòiro Croimvell mctte-sc de posso da Hi sciência: julgam os do partido exaltado que
bernia, c travando peleja com o exercito isto é a favor dos catholicos, pelo que se
cscocez, em que se achava Carlos n, o des viu obrigado a revogar o edito que havia
troça de tal maneira, que o principe viu-se feito publicar.
en/circumslancias de retirar-se para Fran Da sua parte o parlamento renova o ju
ca em habitos particulares. D’este modo, ramento ad legem, e determina que todos-
livre do seu rival, mudou de caracter: su recebam os sacramentos nas suas paro
biu ao throno por meio da impostura, das chias, renunciando por escripto á real pre
intrigas, da ambição c do assassínio. Por- sença dc Jesus Christo na Eucharistia.
tou-sc depois no governo com muita pru «Tal era, diz um moderno historiador, a
dência, rectidào, constância e valentia. discordia c o deplorável estado da Ingla
Fez a Inglaterra poderosa, dc maneira terra, outr’ora tão religiosa, tão rica c"tào
que as maiores potências da Europa a res florescente; tal era a furiosa tormenta que-
peitaram e temeram, e reconheceram en ia crivaudo dc rombos, c submergindo nas
tão cada uma de per si que a Inglaterra aguas britânicas a Nau do Pescador, quan
lhe era superior, reputando-a como a pri do de repente ella se vé boiar cm mar pa
meira potência da Europa. Até aqui nada cifico c bonançoso; mas esta subita bonan
se deve admirar, mas o que deve causar ça foi similhante a um dia, que, depois de
mais espanto ó o silencio que as testas co um tormentoso c carrancudo inverno, ama
roadas guardaram pelos actos de Oliveiro nhece claro, lindo e risonho, mas é precur
Croimvell,em olfensa da realeza, que tão vi sor dc nova c maior tormenta. Assim acon
lipendiada estava sendo pelo protector. teceu. *
Fizeram mais: reconheceram o poder do Carlos ir protegia occullamente os catho
assassínio; e o rei satisfez aos seus desejos licos, publicou um decreto a seu favor, c
mandando por fóra de França o persegui fez isto no momento em que declarava
do Carlos n, c d’este modo negava hospita guerra á Hollanda: o heretico parlamento-
lidade e asylo a um principe legitimo, e re desapprovou formalmente similhantcdecre-
conhecia como soberano um impio regici- to, c negou-lhe os subsídios emquanto elle-
da, satisfazendo aos seus desejos. Oliveiro o não revogasse. El-rei fez a vontade ao
era prosbyteriano cxaltadissimo, era o no parlamento revogando o decreto, c isto mais
vo ramo que tinha brotado do1lutheranis- azedou os luthcranos e republicanos, por
ino, que não reconhecia authoridade algu que não cessaram de tramar contra a vida
ma ecclesiastica superior. do monarcha è da sua familia.
Viveu sempre inquieto, a sua consciên
cia quasi nunca estava tranquilla— descon
fiava dc si proprio— por si julgava que to X X X V II
dos os homens eram maus, c que eram ca
pazes de o assassinarem—por isso viveu
quasi sempre encerrado no seu paJacio, Subiu ao throno dTnglaterra Jacob ou
onde terminou a existência cm 1GÒ8, quasi Jacques ir, irmão legitimo dc Carlos ii. Es
ao concluir 60 annos de idade. Seu filho te teve um filho por nome Montmucio, que-
Ricardo foi acclamado rei de Inglaterra, tendo sido educado na religião luthcrana.
porém destituído da astúcia, impostura c tramou contra seu tio uma forte conspira-
ING 623
ção, imputando-lho como grando crime o XXXVIII
ser catholico; mas descoberta a tempo esta
conspiração, tanto cllc como os chefes do
seu partido foram mortos. Este monarcha A Guilherme m succcdcu sua filha An
renunciou a heresia c o scisma, pediu ao na; a educação d’esta princeza era toda lu-
papa um núncio, o qual veio logo publica- therana, c por isso o estado da religião ca
mente residir cm Londres; sagrou quatro tholica nada melhorou. Esta rainha auxi
bispos, pelos quaes dividiu o reino, e co liou o imperador d^Vllemanha contra a
meçou logo a dar outras providencias mui França, e alcançou algumas victorias so
to favoráveis á Igreja, nao sem contradic- bre os hespanhoes, e também interveio na
ção do prudente pontifice, que não appro- paz que se assignou cm Utrecht.
vava procedimento tão repentino e peri Depois da sua morte subiu ao throno de
goso. Inglaterra Jorge Luiz, eleitor do Hanover,
Todos estes actos em favor do catholi- por acclamação do partido whig; o partido
cismo irritaram muito os hereges, c inci lory ou realista, dccahiu muito por esta
taram-nos a conspirar contra a vida do occasião, mas unindo-se aos principes
monarcha, c muito mais se azedaram de Stuarts, accenderam uma guerra civil, que
pois que souberam que o principe real era durou dous annos. Jorge triumphou sem
educado na mesma religião que seu pac pre. As suas grandes armadas embaraça
professava e protegia, como já dissemos, c ram o desembarque dos hespanhoes nas
por isso receavam que quando cllc tomas Américas c o dos russos no mar Baltico. A
se as redeas do governo desterrasse os lu- morte d’cste monarcha succedeu em 1727,
theranos dTnglaterra. Todos os sectarios e por este facto reinou em Inglaterra Jor
da reforma, que se haviam revoltado em ge ii.
consequência das garantias concedidas aos ‘ Junto d’este monarcha esteve por muito
catholicos, conspiraram unanimes contra o tempo o celebre e experimentado diploma
catholicismo' romano, seu inimigo com ta \Valpole, que fez prosperar a Inglater
muni. O principe de Orange, que era gen ra por espaço de doze annos.
ro de Jacob, apresenta-se nas costas d’In- Depois de"demiltir este celebre ministro
glaterra com uma armada de cincoenta a fortuna correu-lhe bastante adversa. To
naus de guerra, é acclamado rei, e irnme- mando parle na guerra da succcssão ac
dialamente se decreta que nenhum princi throno austríaco, na batalha de Dettingem
pe que professasse a religião romana rei ficou dò melhor condição, mas teve a infe
nasse em Inglaterra. licidade de ser vencido em Fontnoy, Lawe-
O legitimo monarcha, vendo-se ate mes fer, e na Arcadia. A batalha alcançada na
mo abandonado d’aquellcs cm quem mais Escócia sobre o pretendente Carlos* Eduar
confiava, rctirou-sc a França, onde foi aco do, e a famosa conquista das índias, fizeram
lhido com aquella grandeza c honra que esquecer todas as outras quebras. Falleceu
se costuma tributar ás cabeças coroadas, em 1760, e o seu successor foi Jorge m.
ainda mesmo no exilio. Nas guerras que se eíTeituaram desde
No desterro ainda mantinha esperanças 17o6 a 1763 contra a França c Áustria,
de recuperar o throno de que tinha sido ganhou muitas batalhas. As còlonias ingle-
despojado, para o que obteve auxílios, c zas da America revoltaram-se no seu rei
com este desígnio partiu para a Hibernia, nado, c proclamaram a sua independencia.
que ainda era catholica; mas sendo derro Esta foi a semente, que apenas lançada,
tado pelo principe, que jà então governa fez levantar uma guerra universal em to
va a Inglaterra, com o nome de Guilherme da a Europa, e fez correr rios de sangue
nr, recolheu-se pela segunda vez á França. em todas as nações. Apoiando a França
Ainda fez segunda tentativa, mas os seus esta guerra, a Inglaterra declarou-se im-
projectos foram baldados, e por ultimo mediatamente contra ella. Jorge, que desde
quem triumphou foi a morte, que o arre 1810 se achava demente, terminou os seus
batou cm 1701. No reinado de Guilherme dias em 1820, deixaudo para seu succes
m, ainda que curto, o catholicismo nao tor sor Jorge iv. A politica d’este monarcha,
nou a respirar em Inglaterra. Os quatro ainda hoje muito conhecida de nós, foi sem
bispos ou vigários apostolicos, que o nún pre varia c inconstante, e por isso deu cau
cio havia creado no reinado anterior, ainda sa a muitas revoluções, de que o nosso Por
se conservaram, assim como os seus suc tugal também partilhou por este tempo. Es
cessores, que os papas iam nomeando, mas teve primeiro no gromío do partido whig,
sem representação alguma. e pouco depois passou-se para o tory. Por
este tempo os vicariatos apostolicos conse
624 JA C
guiram mais algum respeito, c já se mos jam-se no artigo Anabaptislas suas diffe
travam com alguma forma exterior de go rentes seitas.
verno ecclesiastico; o rei nomeava o suc j tNPiFFEpiKTEs-^-Ramo d anabaptistas. Ve-
cessor do bispo fallecido, e o papa confir ja-se ò scií artigo.
mava-o. ir m ã o s p a. v id a p o b r e — ó o nome que to-
maram òs diseipüíõs\Te Duleino; assim se
XXXIX intitulavam ellcs mesmos debaixo do pre
texto de haverem renunciado tudo para
não terem senão uma vida apostólica.
É risonha c bella a pliase da religião ir m ã o s po la c o s — ó um nome que toma-
cliristã na Inglaterra n’estes ultimos tem ram bs sòcfniâhos para mostrarem que rei
pos. Em Windsor, pelos annos de 1845, nava entre elles a caridade, e que a sua
íundou-se uma capella para as pessoas ca confratcrnidadc era inviolável. Veja-se o
tholicas ahi poderem exercer os officios seu artigo.
religiosos. . JACOBEL—Vide Hussilas.
O representante d’Allemanha na capital IÍja c o b it a s —Eutychianos, ou monophysitas
dlnglaterra recebeu por esposa uma jo- da S^Titrrissim chamados do nome d’um
ven ingleza, educada no rito romano, e a famoso cutychiano chamado Baradée ou
esta solcmnidade assistiu o mui bem co Zcnzalo, que rcsuscitou, por assim dizer,
nhecido lord Wellington, assim como mui o cutychianismo, quasi extincto pelo con
tos personagens das mais elevadas gerar- cilio dc Calccdonia, em virtude das leis dos
chias, e isto fez com que a religião catho imperadores e da divisão dos eutychianos.
lica em Londres recebesse um novo realce. A eleição dos bispos e suas disputas so
Em Haynooth havia um seminario ca bre a religião, tinham dividido os eutychia
tholico, más algum tanto dcscahido, porém- nos n’uma infinidade de pequenas seitas,
no reinado da rainha Victoria é restabele que se guerrearam; além d’isso estavam
cido, e foi-lhe dada uma dotação por pro sem curas c sem bispos, c os chefes de
posta do ministro sir Robert Peel, que ob partido, encerrados nas prisões, proviam o
teve approvação por cento e dezeseis votos que aconteceria ao cutychianismo, se não
contra cento e quatorze; tudo isto prova ordenassem um patriarcha, que se reunisse
que os catholicos teem niaioria no seio do os eutychianos, e sustentasse sua coragem
parlamento. no meio das desgraças que os acabrunba-
Este seminario, já muito antes da sua vam.
dotação, recebia do estado nove mil libras Severo, patriarcha d’Antiochia, e os bis
sterhnas, mas esta somma não era suffi pos oppostos como clle ao concilio de Cal-
ciente para sustentar quinhentos semina cedonia,'escolheram para isso Jacques Ba-
ristas, que então contava, e por isso vo- radéc ou Zenzalo; ordeuaram-uo bispo de
tou-se-lhe a quantia permanente de vinte c Edessa, e lhe confirmaram a dignidade de
seis mil libras. Isto deu causa a que um metropolitano ecumênico.
celebre orador protestante, sir Robert In-, Jacques era um monge simples c igno
glis, desesperado de vêr a bandeira catho rante, mas ardente em zelo, e que julgou
lica levantar-se cada vez mais do abati poder compensar pela sua actividade e
mento em que por tantos annos tinha per pela austeridade de seus costumes, tudo o
manecido, prorompesse da tribuna n’cstes que lhe faltava pelo lado do talento. Anda
termos: «A brilhante bandeira do protes va coberto d’andrajos, e sob este exterior
tantismo, que por tanto tempo contempla humilde percorreu todo o Oriente, reuniu
mos cheios d’admiraçâo, está hoje despe todas as seitas dos eutychianos, rcaccen-
daçada, mas as cores protestantes existem deu o fanatismo em todos os espíritos, or
ainda no cimo da haste, e emquanto exis denou sacerdotes e bispos, e foi o restau
tir um fragmento d’esta bandeira, eu com rador do cutychianismo em todo o Oriente.
baterei sempre por c i l a ............. » Final É por esta razão que se deu o nome de ja-
mente a Inglaterra é de todos os paizes cobitas a todos os eutychianos ou mono
da Europa, aquelle em que o catholicismo physitas do ‘Oriente.A
tem feito mais progressos; consentem-se Depois da morte de Severo, Jacques Zen
alli os prelados nomeados pelo papa, e tal zalo ordenou Paulo, bispo d’Antiochia, a
vez brevemente se aproxime esse feliz dia,
em que ella abrace a fé romana, porque i Asseman. Bibliot. Orienta t. 2. Dis-
as innumeraveis conversões que ahi se sert. de M o n o p liy sp a g . 326. Renaudot,
teem feito assim o attestam Hist. Patriarch. Aley. Perpel. de la Foij t.
impeccaveis— Ramo d’anabaptistas. Ve 4, l. 2, o. 8.
JAC m
quem outros succcdcram até ao nosso sé e passou á Abyssinia, como se pôde vér
culo. nas palavras Cophtas c Abyssinios.
Os bispos ordenados por Jacques não re Os jacobitas não gosaram todavia d’um
sidiram n’csta cidade, mas em Am ida, cm- favor constante sob o dominio dos persas
quanto os imperadores romanos foram os c dos serracenos: elles foram perseguidos
senhores da Syria: entretanto o numero como todos os christãos pelos reis da Per
dos cutychianos no patriarchado d’Antio- sia e pelos califas avaros ou fanaticos; c
cliia era muito superior ao dos catholicos, muitos jacobitas c eatholicos espalhados
c o patriarchado d’Antiochia conservava as nas provincias, renunciaram a religião
duas Syrias, as duas Sicilias, à Mesopota christà, c abraçaram o mahometismo: to
mia, a Isauria, a Euphratisiana, c a Osroe- das as familias christãs que estavam na
na; todas estas dependências estão designa Nubia seguem hoje a religião de Maho-
das na excellente carta do patriarchado de met. 1
Antiochia de M. Danvillc, /. 2 do Oriente Taes foram as consequências dos rigo
ChristãOj pag. 670. res dos imperadores romanos contra os
A fé do concilio de Calcedonia não se heréticos, para a religião, para o estado,
sustentava cm todas estas provincias senão e para a salvação das almas.
pela authoridade dos imperadores, e pela Durante as conquistas dos principes do
severidade das leis, que cllcs haviam decre Occidente na Syria e no Oriente, os jaco-
tado contra todos quantos se oppunham ao bitas pareceram' querer reunir-se á igreja
concilio de Calcedonia. romana, porém nao o eíTeituaram.
Para se subtrahir á severidade das leis, Quando os principes do Oriente se tor
um grande numero d’cutyehianos passou naram senhores da Syria, o papa nomeou
á Persia e á Arabia, onde todas as sei um patriarcha para Antiochia, o qual ahi
tas proscriptas pelos imperadores romanos residiu até* ao anno de 1267, em que os
eram toleradas e viviam em paz entre si, musulmanos a retomaram.
mas todas inimigas da potência que as ti D’este modo ha dous patriarchas em
nha proscripto. 1 Antiochia, um romano e outro monophy
Entre os individuos que tinham recebi sista; cada um d’estes patriarchas tem so
do o concilio de Calcedonia, muitos perse si os bispos da sua communhão.
veraram em seus sentimentos, não se reu Os jacobitas possuem também igrejas cr
niam exteriormente na Igreja, e formavam todos os logares onde os nestorianos se teen
no proprio seio do império uma multidão estabelecido; c estas duas seitas, que du
dMnimigos occultos, que para se vingarem rante uma tão longa sequcncia d’amios en
da oppressão que soflnam, não aguarda cheram o imperio de turbaçòes e sedições,
vam senão uma occasião favoravel. vivem hoje em paz e communicam junta
Os persas souberam aproveitar-se d’estas mente. Quando Abulpharagc, patriarcha
disposições: fizeram a guerra áos romanos, dos jacobitas, morreu, o patriarcha nesto-
assolaram o imperio, e se apossaram de riano, que permanecia na mesma cidade,
muitas provincias. ordenou a todos os christãos que não tra
Os jacobitas tornaram a entrar cm todas balhassem, e que se reunissem na igreja.
as suas igrejas, porque os persas favore Todos os jacobitas gregos, e armemos se
ciam sempre as seitas proscriptas pelos im reuniram para fazerem o officio, e celebrar
peradores romanos; os serracenos usaram as exéquias d’este illustro jacobita.2
do mesmo meio para com os jacobitas, Os jacobitas não reconheciam senão uma
quando conquistaram o imperio dos per natureza em Jesus Christo, rejeitando o con
sas. D’cst’arte os catholicos foram oppri- cilio de Calcedonia, condemnando a carta
midos pelo jugo d’estes novos senhores, e de S. Leão, e olhando como defensores da
os jacobitas foram o partido triumphante. fé IMoscoro Barsumas, c os cutychianos
O patriarcha d’Antiochia rcentrou cm to condcmnadòs pelo concilio de Calcedonia.
dos os seus direitos, creou uma especie de Todos os inimigos do ontychianismo são,
coadjutor para enviar os missionários ao pelo contrario, a seus olhos, outros tantos
Oriente,eahi estabeleceu o monophysitismo. hereticos; não reconhecem senão uma na
O monophysitismo espalhou-se com eflei- tureza e uma pessoa em Jesus .Christo; po-
to no Oriente, e ao mesmo tempo e pelos
mesmos motivos se estendeu pelo Egypto 1 Asseman, loc. cit.
2 Asseman, loc. cit. t. 2, pag. 266.11 ré-
fute par-lá Pokoque, qui, d'après tm au~
i Asseman. ibid., t. % t. 3, part. 2. De teur mahométan, dit qxCAbulpharage atoit
S yrii Nestorianis, c. 4, 5. embrassé la religion inahométane.
626 JAG
róm não créem por isso que a natureza hu unido pcssoalmenle; porém, tornando-se o
mana e a natureza divina se confundam; corpo de Jesus Christo no que clle tinha
de modo que elles não estão, propriamente prodito, c que as palavras da consagração
fallando, alistados no erro d’Eutychcs, mas oíTerecem, o que nao é contrario ao dogma
no dos accphalos, que rejeitavam o conci- da transubstanciaçào, nada obrigava os ja
' lio de Calcedonia. cobitas a separarem-se do sentido dos ca
Elles teem todos os sacramentos da igre tholicos, c de recorrerem ao dogma da im
ja romana, e não differem senão sobre al pa nação.
gumas prácticas na administração d’ellcs, Além d’isso digo, que quando os jacobi
teem por exemplo conservado a circum- tas creram nos princípios da impanacão,
cisão, c marcam com um ferro cm braza a nao se poderia dizer que fossem elles os
creança logo que é baptisada; além d’isso primeiros authorcs do dogma da transub-
conservam a prece pelos finados. slanoiação, e que passassem da crenca da
Imputavam-lbcs falsamente alguns erros impanaçào á da transubstanciaçào.
sobre a Trindade, sobre a origem das al A impanaçào conduzia mais naturalmcn-
mas, e sobre os sacramentos. 1 te ao sentido figurado de Calvino, c a ne
M. de Ia Crozc accusa-os de crerem na gar a presença real, do que a reconhecer
impanaçào, c M. Asseman não parece afas a transubstanciaçào, que é uma consequên
tar-se muito d?este sentimento. M. de la cia da presença real. Não foi pois na cren
Croze vai mais longe, e pretende que o ça dos monopbysitas que o dogma da tran
dogma da transubstanciaçào nasceu no substanciaçào teve origem, como pretende
•Egypto, e que foi uma consequência, tira M. de la Croze.
da da opinião dos monophysistas: «Ella pa Os jacobitas elegem o sou patriarcha, o
rece á primeira vista, diz ellc, como uma qual depois da sua eleição, obtem dos prin
assumpção do pão c do vinho em uma união cipes em cujo império se acha, um diplo
hypostatica com o corpo e o sangue de Nos ma que o confirma no exercício da sua di
so Senhor, e não fazendo por esta união gnidade, c que obriga todos os jacobitas a
mais que uma natureza com clle.» M. de obedecerem-lhe. 1
la Croze prova o que diz por meio d’uma Levantam-se de tempos a tempos scis-
homília, na qual demonstra que Jesus mas eiUre os jacobitas: umas vezes sobre
Christo se uniu pessoalmente ao pão e ao a eleição dos patriarchas, outras sobre a
vinho. 2 lituYgia; o mais considerável foi o que di
Parece-me que se imputa com muita le vidiu o palriarchado d’Alexandria do dc
veza a impanacão aos jacobitas; os primei Antiochia. A causa d’este scisma foi que
ros monophysitas, que criam que a natu na igreja d’Anliochia se misturava oleo c
reza divina se tinha unido pessoalmente á sal no pão da Eucharistia. Acham-se nas
natureza humana, porque ella a tinha ab liturgias orientaes de M. Ucnaudot e de M.
sorvido, c que tendo-sc confundido em uma Asseman os ritos dos jacobitas.
só substancia, deviam naturaJmentc sup Ha eutro estes muitos monges; uns vi
por que este principio d’união se eITect.ua- vem reunidos, outros separados cm cellas
va pela relação do pão e do vinho na Eu e nos desertos, ou collocados sobre colu
charistia, deviam explicar estas, palavras mnas, pelo que são chamados sivliias; os
da consagração: este r o meu corpo, como superiores de todos estes mosteiros são* su
explicavam ãs de S. João: o Verbo se fez jeitos aos bispos.
carne, o Verbo se fez homem; ora este scu- Os governadores das provincias não dão
tido é bem differente da impanacão, pois gratuitamente o diploma dos patriarchas,
que na impanacão se suppõe que o pão c a sua avareza torna as deposições dos pa-
fica, depois da consagração, tal qual esta .triarchas mui frequentes. 2
va antes. Os jacobitas teem muitos jejuns, e estes
Quando os monopbysitas ou jacobitas co entre elles são muito rigorosos: a qiiarcs-
nheceram que eflectivamente a natureza ma, o jejum da Virgem, o dos apostolos, o
divina e a natureza humana não estavam do natal, e o dos nivitas, duram cada um
confundidas, mas que eram distinctas, pos muitas semanas. Além d’isso jejuam todo o
to que unidas, não pensavam que o pão anno ás quartas e sextas feiras.
fosse confundido com a pessoa de Jesus Durante toda a quaresma nenhum jaco-
Christo, mas sim que elle lhe tinha sido bita póde beber vinho, comer peixe, nem
sentido das proposições de Janscnio: um dos as faltas que se não podem evitar sem
•que é o sentido verdadeiro, natural e o pro a graça, que confiança podemos ter nos
prio de Janscnio: o outro que é um senti meritos do nosso Redemptor, nas promes
do falso, putativo, e impropriamente attri- sas de Deus, na sua misericordia infinita?
buido a este author. Dizem que eram he Sc para decidir da sorte eterna das suas
réticas as proposições tomadas n’cste ul creaturas, Deus prefere exercer a sua jus
timo sentido imaginado pelo summo pon tiça e o seu poder absoluto antes que a sua
tifico, mas não no sentido verdadeiro, pro bondade, se obra como Senhor irritado, e
prio c natural: o que importa accordar no não como Pae misericordioso, devemos tc-
primeiro subterfugio imaginado pelo dou mel-o sem dúvida, mas poderemos nós
tor Amoldo c seus adherentes. ama l-o?
Estava n’oste ponto a questão do jansc- Os jansenistas condemnam o temor de
nismo, c da sua condemnação, quando Ques- Deus como um sentimento servil, e é o uni- ^
ncl, padre do Oratorio, publicou as suas— co que nos inspiram; affectam pregar o \
Reflexões moraes sobre o Novo Testamento, amor de Deus, e empregam todas as suas |
em que diluiu todo o veneno da doutrina forças para o reprimirem. Tomam o titulo j
•de Janscnio. Viu-se então com mais evi faustuoso de defensores da graça, e de fa- f
dencia do que nunca, que os seus sectarios cto são os seus destruidores:* declamam
nunca tinham deixado de lhe estarem su contra os pelagianos, c ensinam uma dou
jeitos, e de a sustentarem, ainda no senti trina mais odiosa. Deus, dizem os pelagia
do eondemnado pela Igreja, apesar de to nos, não dá a graça porque não ó precisa
dos os protestos que faziam em contrario, para a práctica dás boas obras: as forças
e de impôl-a, seduzindo as consciências do homem bastam de per si.
simples e honestas. A condemnação do li No dizer dos semi-pclagianos a graça é
vro de Quesnel, imposta em 1715 pela necessaria para fazer o bem, mas Deus só
Bulla Unigenitus, de Clemente xi, deu lo- a dá aos que a merecem pelos seus bon
gar a novos excessos da parte dos secta desejos. Janscnio diz que a graça é abs(
rios obstinados d’csta doutrina. lutamente necessaria, mas Deus não a co|
/ , De todas as heresias nascidas do seio da cede muitas vezes porque nós a não mer
5 Igreja, não houve nenhuma que tivesse dc- ccmos. Erracs todos, responde-lhes um ci
"fensores mais subtis e mais hábeis. Para tholi co, a graça é absolulamentc nccessa
sustentarem as suas doutrinas emprega ria. Deus dá-ã a todos, não porque a me
ram mais esforços, erudição c persistência reçamos, mas porque Jesus Christo a me
do que para nenhuma outra.'Apesar das receu, c a obteve para todos, dá-a porque
vinte condemnaçõcs pronunciadas contra é justo, porque é bom e porque o seu amor
ellas ha mais d’um século, ha ainda um se estende até deixar morrer seu Filho pa
grande numèro de pessoas instruídas, que ra a redempção de todos. Tal é a lingua
as adoptam quer nos princípios, quer nas gem da Sagrada Escriptura, dos padres de
consequências, na supposição de que é a todos os séculos, da Igreja em todas as suas
doutrina de Sancto Agostinho. Muitos theo orações, de lodo o christão que crè sincc-
logos, sem cahir nos mesmos excessos, ramente em Jesus Christo, Salvador do
teem-se aproximado das opiniões rigorosas mundo. Qual d’estes diversos sentimentos
dos jansenistas, para não dar logar às ac- é mais conducente a inspirar-nos o reco
cusações que estes lhes fazem de pclagia- nhecimento, a confiança, o amor de Deus,
nismo, de relaxação, c de falsa moral. a coragem de renunciar ao peccado c de
Este phcnomeiio não seria de admirar perseverar na virtude?
se o systema de Janscnio fosse judicioso, Debaldc citam os jansenistas a cada pas
consolador e capaz de encaminhar os fieis so a authoridade de Sancto Agostinho: ou
á práctica da virtude e das boas obras; tro tanto faz Calviuo para sustentar os seus
mas tal não é porque não ha doutrina mais erros. Mas é falso que Sancto Agostinho ti
adequada para desconsolar uma consciên vesse os sentimentos que lhe atlribuem Cal
cia christã, para reprimir a confiança, o vino, Jansenio e os seus sectarios. Nunca
amor de D.eus e a coragem na práctica da ninguem apresentou com mais energia do
virtude, e para diminuir o nosso reconhe que ellc a misericórdia infinita de Deus, a
cimento para com Jesus Christo. Se apesar sua bondade para todos os homens, a cari
da redempção do mundo operada pelo Sal dade universal de Jesus Christo, a sua com
vador Diviuo, Deus ainda está irritado pe paixão pelos peccadores, a im mensi dade
la falta do primeiro homem, se ainda recu dos thesouros da graça divina, e a libera
sa a sua graça não só aos peccadores, mas lidade com que'Deus não cessa de os en
até aos justos, se lança á conta de pecca- cher.
632 JAN
Apenas Innocencio x condemnou o sys licitas quando se tracta de estabelecer uma
tema de Janscnio, foi esta doutrina victo- doutrina que se reputa verdadeira. Isto C-
riosamente refutada, cspccialmcntc pelo je mais que sufficiente para justificar o rigor
suíta Dcschamps n’uma obra intitulada De com que foram tractados alguns dos mais
Heresi Janseniana ab Apostólica sede méri fogosos jansenistas. Mosheim dcbalde quer
to proscripta, que foi publicada em 1654 persuadir que se exerceu contra clles uma
c que teve muitas edições. Esta obra está perseguição cruel c sanguinaria, todavia é
dividida em tres livros. certo que todas as penas que lhes foram
No primeiro mostra o author que Jan impostas se limitaram ao exilio, e alguns
scnio copiou dos hereges, cspccialmcntc de annos de prisão, sendo punidos não pelas
Luthcro e Calvino, tudo o que ensinou con suas opiniões, mas pelo seu comportamen
cernente ao livre arbitrio, á graça efficaz, to insolente c sedicioso.
à necessidade de peccar, á ignoraucia in Além das consequências perniciosas que
vencível, á impossibilidade do cumprir os se podem tirar da doutrina de Jansenio, o
mandamentos de Deus, á morte de Jesus modo porque foi defendida produziu os mais
Christo, á vontade que Deus tem de salvar pcrniciosôs resultados, porque gerou nas
todos os homens, e á distribuição da graça consciências um abalo, que se estendeu á
sufficiente. base da religião c abriu o caminho á in
No segundo livro prova que os erros de credulidade. As dcclamações c as satyras
Janscnio"sobre todos estes assumptos foram dos jansenistas contra os summos pontifi
já eondemnados pela Igreja, especialiuente ces, bispos e toda a hicrarchia aviltaram o-
pelo concilio de Trcnto. poder ecclesiastico. O seu desprêso pelos-
No terceiro mostra que Janscnio á imi padres que precederam a Sancto Agosti
tação de todos os chefes de seita, attribue nho, confirma as prevenções dos protestan
falsamenle a Sancto Agostinho opiniões que tes c dos socinianos contra a tradição dos
elle nunca leve, c formalmente opposlas primeiros séculos. Pelo que dizeu/parcce
ás ensinadas por este sancto doutor. Ne que Sancto Agostinho alterou absolutamen
nhum dos sectarios de Janscnio ousou re te esta tradição no quinto século, e que os
futar esta obra, c nem d’ella fallaram nun padres até esta época eram pelo menos sc-
ca, porqus é inalacavel. mipelagianos.
Os protestantes, bem convencidos da si- Os milagres falsos que forjaram.para il-
milhança que se dá entre o systema de ludir a gente simples, e que sustentaram
Janscnio sobre a graça, o entre o dos fun de fronte erguida, tornaram suspeitos aos
dadores da reforma, teem sustentado que deistas todos os testimunhos prestados so
é esta realmente a opinião de Sancto Agos bre milagres. A audacia com que muitos
tinho, mas por muitas vezes se lhes tem fanaticos arrostaram as leis, com as amea
demonstrado o contrario. ças, o com os castigos, e se apresentaram
Foi com muita satisfação que viram o ba â solfrer a morte antes do que desdizer-sc,
rulho que fez no seio dá igreja catholica o empanou a coragem dos antigos martyres.
livro de Janscnio, as disputas e a especic A arte com que os escriptores d’esla "seita
de scisma que causou, e a persistência com souberam encobrir os factos ou invental-os
que os seus defensores resistiram ás ccn- á medida dos seus desejos, authorisou o
. suras de Roma. pyrrhonismo historico dos litteratos moder
Fazem pomposos elogios ao talento, sa nos. Finalmente a mascara de piedade sob
ber, piedade c coragem d’estes'pretendidos que occultaram mil imposturas e até cri
discipulos de Sancto Agostinho, mas não mes, fez considerar os devotos em geral
ousam justificar os meios de que se servi como hypocritas e homens perigosos.
ram para sustentar o que chamavam a boa Seria pois para desejar que se podessem
causa. Mosheim, que reconhece a confor riscar as recordações ainda as mais leves
midade da doutrina dos jansenistas com a dos erros de Jansenio e das scenas escan
de Luthero De auctont. Concilii Dordrac. dalosas a que deram logar. Foi um exem
§ 7, confessa na sua Hist. Eccles. século 17, plo que deve ensinar aos theologos a con
sec. 2, parí. l.°, c. d, § 40, que cllcs em servarem-se em guarda contra o rigorismo
pregaram explicações capciosas, distineções em materiás de opinião e de moral, a limi
subtis, sophismas similhantes, c invectivas tarem-se aos dogmas da fé, e a desprende
idênticas, ás que censuravam aos seus ad rem-se de qualquer systema particular. Se
versarios; que recorreram á superstição, á a tractar rjuestões uteis se tivesse empre
impostura, e aos falsos milagres para dar gado tódo o tempo e trabalho que se con
força ao seu partido, o que sem dúvida sum iu a escrever a favor c contra ojan-
consideravam estas fraudes piedosas como senismo, em vez de tantas obras já esque-
JOA 633
•cidas teriamos outras que seriam dignas O erro do abbade Joaquim não teve de
•de se trausmittirem á posteridade. 1 fensores,- mas foi renovado pelo dr. Shcr-
jeroni>mp d e piiAGA—discipulo de João Hus.lok.
JQAQU1&-—afôbado de Flora na Calabria, Tinham-sc levantado, desde algum tem
ImãTluíquirido uma grande celebridade po, disputas cm Inglaterra sobre a Trinda
no fim do século 12.°, sob o pontificado de, c o socianismo havia feito progressos.
de Urbano m* c sob o de seus successores. M. Sherlok tomou a defesa da fé contra os
O livro das sentenças de Pedro Lom- socianos, e tractou de fazer vér que não
bardo tinha uma grande reputação; mas havia contradiccão no mysterio da Trin
posto que ellc houvesse servido de modello dade; c como todas as difficuldadcs dos so
a todos os theologos que o teem seguido, cianos são apoiadas, sobre o que este mys
não era todavia approvado geralmentc. O terio suppòo que muitas pessoas subsis
.abbade Joaquim escreveu contra o livro tem cm uma essencia numericamente uma;
•das sentenças, c atacou, entre outras, a M. Sherlok procura o que faz a essencia
proposição "cm que Pedro Lombardo diz e a unidade numérica da substancia. Go
que ha uma cousa immensa, infinita, e so mo ellc distingue duas sortes <Je substan
beranamente perfeita, que c o Pae, o Filho, cias, reconhece duas sortes .íFunida des.
e o Espirito Sancto. A substancia material é uma, pela união
O abbade Joaquim pretendia que esta ou pela justa posição de suas partes; mas
cousa soberana, na qual Pedro Lombardo a substancia espiritual, não tendo partes,
reunia as tres pessoas da Trindade, era tem um outro principio d'unidade.
I um sér soberano e distincto das tres pes A unidade, nos princípios creados, isto
soas, segundo Pedro Lombardo; e que as é, a unidade numérica, que faz que um es
sim era preciso, segundo os princípios d’cs- pirito seja distincto de todos os outros, nãc
te theologo, admittir quatro Deuses. é, segundo ellc, senão a percepção, o cc
Para evitar este erro, o abbade Joaquim nhecimcnto que cada espirito tem de
í reconhecia que o Pae, o Filho, c o Espirito mesmo, de seus pensamentos, de suas r
\ Sancto faziam um só sér, não porque elles zoes, ou de suas atíccçòes (ou a consciência
* existissem em uma substancia commum, Um espirito que tem só conhecimento d
\ mas porque estavam de tal sorte unidos de tudo o que se passa cm si mesmo, é exte
/ consentimento e vontade, que o eram tão riormente distincto do todos os outros es
/ estreitamente, como se fossem sómente um píritos, c os outros, que similhantemente
• sér; é assim que se diz que muitos homens conhecem só os seus pensamentos, são dis
fazem um só povo. tinctos d’cste primeiro espirito.
O abbade Joaquim provava a sua opi Suppunhamos, por exemplo, diz M. Slicr-
nião com as passagens em que Jesus Chris- lok, que tres espíritos crcados estão de tal
í to diz: «que quer que os seus discipulos sorte unidos, que cada um d’elles conhece
j não façam senao um, como seu pae e elle tão claramcnte as afiecções dos outros dous
$ não fazem mais que um;» pela, passagem como as suas proprias: é certo, continua
* <le S. João, que reduziu a unidade das pes M. Sherlok, que estas tres pessoas serão
soas á unidade do testimunho. uma cousa numericamente uuica, porque
O abbade Joaquim era pois tritheista, c ellas teem entre si o mesmo principio dc
não reconhecia senão de viva Voz "5üò o unidade, que se acha em cada uma, toma
Padre, o Filho, e o Espirito Sancto, não da separadamente, c antes da união.
faziam mais de que uma essencia c uma É assim, segundo este theólogo, que se
substancia. deve explicar a Trindade; porque Deus (ou
O erro do abbade Joaquim foi conde- o espirito infinito, e não um corpo infini-
mnado no J^atijo, mas não se tamente extenso) não tem uma unidade de
fez ahi menção da sua pessoa, porque ha partes, porque elle não tcni partes.
via submcitiao as suas obras á sancta sé . 2 D’esl’arte as tres pessoas da Trindade
conhecem-se reciprocamente todas tres tan
1 Extrahido do Dictionnaire theologique to como cada uma se conhece; ellas não
de Berqier. fazem senão uma só cousa numericamen
- S. Th. Opuscul. 24. Malhieu, Paris, te, ou antes a unidade numérica; é assim
ad an. 1479. Natal. Alex. in srec. 13. D'Ar- que as faculdades da nossa alma formam
gentrê, Collect. t. 1, pag. I. 19. È fora de uma substancia numericamente uma.
toda a verosimüiiança pretendei' com o apo É por este meio <|_ue a unidade que nos
logista do abbade Joaquim, que esta doutri- espíritos creados nao é senão moral, se
trina è falsamente imputatla: o apologista torna essencial nas tres pessoas, que são
não dá nenhuma prova. tão estreitamento unidas entre si, como o
634 JO A
homem o é a si proprio, c não como o ho 4.° A unidade de substancia é tal na di
mem o c a outro homem. vindade, que ella se allia todavia corn a
M. Shcrlok confirma a sua conjectura distineção das pessoas; ora na hypothcse
pelas palavras de Jesus Christo em S. João: de M. Shcrlok, não haveria eíTectivamcnte
«Estou em meu pae, c meu pae está cm distineção alguma entre as pessoas divinas;
mim;r, porque, diz elle, é preciso tomar as elle cahc no sabclianisnio, e não admitte
palavras de Jesus Christo cm seu sentido mais que uma distineção de nome; outra
proprio e natural, ou cm um sentido me- qualquer destruiría esta unidade numéri
thaphorico; ora não sc pódc tomal-as n’cs- ca, que é o seu objecto.
te ultimo sentido, porque a metaphora sup- / joaquim itas — é o nome que sc dá aos
pòc cssencialmentc a similhança que sc fque seguiram a doutrina do abbadc Joa
acha entre as cousas naturaes reaimente quim, nào sobre a Trindade, mas sobre a
existentes ou possiveis, e nào sc pódc di piorai.
zer que uma expressão seja uma metapho * 0 abbadc Joaquim visava a uma perfei
ra, sc não ha nem póde haver na nature ção extraordinaria; tinha-se pronunciado
za nada siinilhantc áquillo de que a ex fortemente contra a corrupção do século,
pressão dá a ideia. estava excessivamcnte prevenido pela vida
Ora, nào ha na natureza cousa que es eremitica, e pelo que sc chama vida inte
teja í/outra, de maneira que essa outra es rior e retirada; não queria que sc limitas
teja cm si; porque se um sòr estivesse n’ou- se a práctica dos preceitos do Evangelho.
tro, elle seria contido por esse outro, c por Algumas pessoas tomaram por isso pre
conseguinte era mais pequeno: e seria texto para dizerem que a lei do Evange
maior, sc contivesse o outro, o. que é con lho era imperfeita, c que precisava ser se
tradictorio. guida por outra mais perfeita: que esta
Ê preciso, pois, tomar as palavras de lei era a lei do espirito, a qual devia ser
resus Christo num sentido proprio; ora, eterna.
lão ha senão uma cspecic d’uniüo mutua- Esta lei do espirito não era mais que a
hente comprehensiva, a saber: o conheci collecçáo de maximas d’cssa falsa espiri
mento que cada sêr tem d’outro. Se o F i tualidade de que os joaquimitas faziam pro
lho, diz M. Sherlok, tem conhecimento de fissão, e que encerravam n’um livro ao
tudo o que existe-no Pae, da sua vontade, qual davam o nome d’Evangelho eterno.
de seu amor, etc., como elle o tem da sua . Os joaquimitas suppunham na religião
propria vontade, de seu amor, então elle tres épocas; a primeira começava no tem
conterá o Pae; o Pae está inteiramente po do Velho Testamento, a segunda no do
11’elle, porque conhece o que ha no Pae. É Novo Testamento; mas o Novo Testamento
forçoso dizer tanto de cada pessoa da Trin nào era uma lei perfeita; elle devia aca
dade como a respeito das outras?. 1 bar e dar logar a uma lei mas perfeita,
Olha-sc esta hypothcse como um verda que fosse eterna. Esta lei é a moral do ab
deiro tritheismo,' e foi atacada pelos theo badc Joaquim, que se dá no Evangelho
logos inglezes. eterno: ora ahi ensina-se, que, para pre
É facíl de ver: i.° Que esta hypothcse é gar o Evangelho eterno, é preciso andar
um verdadeiro tritheismo, c que ella sup- descalço, que nem Jesus Christo nem os
põe com eíTcito tres substancias necessa apostolos attingiram á perfeição da vida
rias, eternas, increadas, o que é absurdo. contemplativa; que desde Jesus Christo ató
2. ° É falso que o conhecimento perfeitoao abbadc Joaquim a vida activa linha sido
que uma substancia espiritual tom d outra util; mas depois que este abbadc appare-
não faça d*estas duas Substancias senão cera sobre a terra, a vida activa tinha-se
uma só substancia numérica, porque en tornado inútil, e a vida contemplativa, de
tão Deus não seria com effeito distincto que este abbadc havia dado o exemplo, era
dás almas humanas, o que é absurdo. bem mais util.*
3. ° M. Sherlok suppOc que duas substanTacs são os princípios do Evangelho
cias espirituaes podem ter a mesma con eterno; era elle cheio d’extravàgancias,
sciência; mas é uma contradicção formal o fundadas ordinariamente sobre qualquer
suppôr a mesma consciência numérica em interpretação mystica d’alguma passagem
mais substancias, e sc o Pae, o Filho, e o da Escriptura Sancta. 1
Espirito Sancto não teem senão uma con 0 Evangelho eterno foi attribuido a João-
sciência numérica, são tres pessoas n’uma de Roma, septimo geral dos irmãos meno-
só e mesma substancia.
1 Natat. Alex, in scec. 23, c. 3, art. 4-
i Justificação da d o u trin a da T iindadc. D'Argentrc, Collect. Jud. t. d, pag. 163.
LOL 635
ros; oniros attribuem-no a Amauri ou a riaco, c por uma assembléia de bisiios cm
alguns de seu* discipulos; quem qucr que Milão *
fosse, é certo que muitos religiosos appro- S. Jeronymo escreveu contra Joviniano,
varain esta obra, e alguns d’entre cllcs c sustentou os direitos da virgindade, do
quizeram ensinar esta doutrina na univer maneira a fazer cròr que condernnava o
sidade de Paris, no anno de I255.1 o matrimonio; houve queixas, e cllc fez
O Evangelho eterno foi condcmnado por vèr que o interpretavam mal: é pois, in-
/ Alexandre vi c pelo concilio d’Arles cm justamcnlc, que M. Barbeyrac o argue, de
\J 2 6 0 . * se ter contradicto.
jg\;ixj^xfí— havia passado os seus pri- k a b a l e — vide Cabala.
melros ániíos nas austeridades da vida mo tó)T;AHKREs—vide Quaquers.
( nastica, vivendo de pào c agua, caminhan L^ # S ^ o s —Seita danabaptistas; vide
do descalço, trajando habito negro, e tra este artigo.
balhando com suas màos para viver. i.KÃQ is y ;g i A - \ n — vide Iconoclastas.
Sahiu do seu mosteiro, que era cm Mi l i b e r t i n o s —Ramo d’anabaptistas.
lão, e se transportou a Roma; fatigado dos L()rXXiu)s—fíanio de frerotes ou beguards,
combates que havia dado a suas paixões. quintTVTíror chefe Gautier Lollard.
• ou seduzido pelas delicias de Roma, não Apesar das cruzadas, que tinham exter
tardou a entregar-se aos prazeres. minado tantos hereticos, c dos inquisido
Para justificar aos olhos do público, c res, que fizeram queimar uma infinidade,
quiçá aos seus proprios a sua mudança, d elles; apesar das fogueiras accésas em
Joviniano -sustentava que o bom passadio toda a Eyropa contra os sectarios, viam-sc
Í c a abstinência não eram em si nem bons a cada instante nascer novas seitas, que
nem maus, e que se podia usar indilTc- depressa se dividiam em outras muitas, e
"rcntcmcntc de todas as comidas, com tanto que renovavam todos os erros dos mani
que se usasse d’ellas em accãojlo graças. chcus, dos catharos, dos albigenses, etc.
Como Joviniano nao se limitava aos pra Foi assim que Gaultier Lollard formou
zeres da boa mesa, pretendeu que a vir sua seita. Ensinoii que Lucifer e os deme
gindade nào ora um*estado mais perfeito nios tinham sido expulsos do céo injusta
que o casamento; qqo eya falso ter a Mãe mente, c que nelle seriam restabelecidos
dft ^ s n Senhor ficado virgem flepois do um dia. Que S. Miguel e os outros anjos\
pa rto. ou quc fosse preciso. como os jna- culpados (Testa injustiça seriam conde-í
niefious, Har.^a, Tçsu.s *’Cbrjsto...um corpo ninados eternaniente com todos os homens/
pUpEbSiro; que tíb resto, aque.lles qõe fo que não fossem dos seus sentimentos. l)e s-\
ram regenerados pelo baptismo, nao po prosava as ceremonias da igreja, não r e -|
diam ser vencidos pelo demonio. que a conhecia a intèrccssào dos sanctos, e cria/
graça do baptismo igualava iodos os ho que os sacramentos eram inúteis. Se o ba
mens, e que como cíles não mereciam sc- ptismo é um sacramento, diz Lollard, todo
nào por ella, os que a conservavam gosa- banho o é também, c todo o banheiro
riam no céo uma recompensa igual. San Deus. Pretendia que a hostia consagrada^
cto Agostinho diz que Joviniano ajunlou a era um Deus imaginario; mofava da mis
a todos estes erros a opinião dos stoicos sa, dos padres c dos bispos, cujas ordena
sobre a igualdade dos pcccados. 3 ções dizia serem nullas:.o matrimonio, se
Joviniano teve muitos sectarios em Ro gundo clle, não é mais que uma prostitui
ma: viu-so uma multidão d’individuos, que ção jurada.
haviam vivido na continência e na morti Gaultier Lollard fez um grande numero
ficação, renunciarem a uma austeridade dc discipulos na Áustria, Bohemia, etc.
que” cllcs não acreditavam boa para cou- Estabeleceu dous homens escolhidos en
sa alguma, casarem-se, c levarem uma vi tre os seus discipulos, que chamou seus
da mortal e voluptuosa, que não fazia per apostolos, os quaes percorriam todos os an
der, segundo olles, nenhuma das vantagens nos a Allemanha para fortalecerem aquel-
que a religião nos proinettc. les que tinham adoptado os seus senti
Joviniano foi condem nado pelo papa Sy- mentos; entre estes doze discipulos havia
dous anciãos, que se chamavam os minis
1 Matai. Alcx. in saec. 23, c. 3, art. 4. tros da seita: estes dous ministros fingiam
D'Argentrè, Collcct. Jud. t. 1. pag. 163. entrar todos bs annos no Paraizo, onde re
" 2 lbiil. et fíist. Uuivers. Paris. t. 3. m g. cebiam d’Enoch e d’Elias o poder de remir
302.
3 Amb. Ep. 41. Aug. in Sub. c. 2. De 1 Ep. Siric.j l. 2. Cone. />00.1024. Amb.
Harcs. c. 82. llycron contr. Jovin. Ep. 52.
«36 LUT
todos os pcccados aos da sua scita, com tinham recebido â penitencia os bispos
municando este poder a muitos outros cm cabidos no arianismo.
cada cidade ou aldeia. Lucifer tinha-se tornado illustre na Igre
Os inquisidores mandaram prender Lol- ja pelo seu dcspriiso do mundo, pur seu
lard, e nao podendo vencer sua obstinação, amor ás letras saneias, pela pureza de sua
0 condemnaram: foi ao fogo sem medo e vida, c pela constância da siía fé: elle
sem arrependimento, descobrindo-se por coinmettc uma imprudência, nào o applau
esta occasiào um bom numero de seus dis dent, odeia todo o inundo; busca um pre
cipulos, dos quaes se fez, segundo Tritlie- texto para se separar de todos os bispos *,
!ÍJC, uma grande fogueira. e crê achar uma justa razão do se separar
O fogo reduziu Lollard a cinzas, mas da lei que elles tinham feito para receber
nào destruiu a sua seita; os lollards perpe na penitencia os que caliiram no aria
tuaram-se na Allemaníia, e passaram a nismo.
Flandres e a Inglaterra. Eis como o caracter decide muitas ve
A contenda d’cste reino com a curte de zes um homem para o scisma e para a
Roma conciliou para com os lollards a heresia.
aíTeicão de muitos inglezes, e a sua seita Lucifer teve sectarios, mas em pequeno
ahi fez progressos; o clero, porém, Ievan- 1numero; estavam espalhados na Sardcnha
tou contra elles as leis mais severas, e o e em Hespanha: estes sectarios apresenta
credito dos communs nào pôde impedir ([ue ram um requerimento aos imperadores
queimassem os lollards: com tudo isto Theodosio, Yalentiano e Arcadio, no qual
nào os destruiram ainda, reunindo-se elles fazem profissão de nào communicar nào
ao wielefilas, preparam a ruina *do clero somente com aquelles que tinham consen
de Inglaterra, c o scisma de Henrique viu, tido na heresia, mas também com aquelles,
entretanto que outros lollards preparavam mesmos que communieavam com as pes
na Bohemia o.s espirites para os erros de soas caludas iTella: é por isso que sào
Joào IIus, o para a guerra dos bussitas. 1 cm pequeno numero, dizem elles, c que
LiciFERiANos—Scismaticos que se sepa* evitam quasi todo o mundo: asseguram
raráTiTtfaTgreja catholica, porque o conci que o papa Damasio, Sancto Hilário, San
lio d’Alexandria tinha recebido á peniten cto Anastacio e outros confessores, rece
cia os bispos do concilio de Rimini. Eis o bendo os arianos á penitencia, tinham
motivo d’este scisma. traiu do a verdade.
Depois da morte de Constancio, Juliano Lucifer morreu cm seu scisma.
restituiu a todos os exilados a liberdade; c l u t h e r o —Aulhor da reforma conhecida
os bispos catholicos trabalhavam no resta sob o nome de religião lulherana. Vamos
belecimento da paz na Igreja. Sancto Anas examinar a origem e o progresso d'esta
tácio o Sancto Eusebio de Yerccil rcuni- reforma; exporemos em seguida o syste
ram um concilio cm Alexandria, no anno ma theologico de Luthero, c o refutare
\ d e 362, no qual se lavrou urn decreto ge mos.
ral para receber á communhào da Igreja
Iodos os bispos que haviam seguido o aria- DA ORIGEM DO LUTHERAXISMO
nismo. Como a igreja d’Antiochia estava
•dividida, enviaram Eusebio com ínstruc- Luthero nasceu em Islebc, cidade de Sa-
ções para pacificar esta igreja. xonia, no fim do lõ.° século»-(1483.)
Lucifer, cm logar de se transportar á Depois de ter acabado seuiTcsTudos de
Alexandria com Eusebio, passou direcla- grammatica cm Magdebourg e em Eisenacli,
mente á Antiochia, e ahi ordenou bispo a completou seu curso de philosophia cm
Paulino. Esta escolha, nào fez scnào au- Erford, e foi recebido mestre cm artes na
gmentar a perturbação, e ella tomou maio universidade d’csta cidade: entregou-se
res proporções do*que quando chegou cm seguida ao estudo de direito, destinan-
Eusebio: este ficou penetrado de dôr por do-se á advocacia. Um trovão que ma
vér que Lucifer, pela sua precipitação, tou a seu lado um de seus amigos, mudou
tornava o mal quasi incurável; todavia hão seu destino, o o determinou a entrar na
censurou Lucifer abertamente. ordem dos religiosos Agostinhos.
Lucifer oflcndeu-sc do Eusebio não ap- Estudou theologia cm Wirtcmberg. ad
provar o que tinha feito, separou-sc da sua quiriu o grau de doutor, foi feito profes-
communhào e da de todos os bispos que
1 Snlpic. Sever. 2. Am/), in Oral. de ahi
1 Dupin, 14.° século, pag. 436. D'Argen- tu S atyri Aug: JSp. 30. líycron, in Dial,
tr é , Collect. Judicior, t. 1. adversus Lucifer.
LUT «37
«or, e tornou-se celebre no principio do TetzeI, e lançaram mão da penna para de
16.° século. fender as indulgências; a disputa inflam-
A Europa estava tranquilla e todos os mou-sc: Luthero, que era d’urn caracter
•christãos viviam na communhào e sob a violento, enfureceu-se, c ultrapassou os li
/ obediência da igreja romana. Leào x oc- mites da moderação, da caridade e da su
j cupava a cadeira de S. Pedro: este papa bordinação; foi chamado a Roma, e Leão x
I .levara ao pontificado grandes qualidades, concedeu uma Bulla na qual declarava a
conhecia as bellas letras, amava c favore validade das indulgências, c pronunciava
c ia o merito; tinha humanidade, bondade, que em qualidade de successor de S. Pe
uma extrema liberalidade, e uma tamanha dro e de vigário de Christo, tinha o di-
aíTabilidade, que se via alguma cousa mais direito de as conceder; que esta era a dou
que de humano em suas maneiras; porém trina da igreja romana, senhora de todas
sua liberalidade e facilidade em dar, esgo as igrejas, e que era preciso receber esta
taram bem depressa os thesouros de Julio doutrina para viver na communhào: con
h, a quem tinha succedido, e absorveram cedeu em seguida uma Bulla, na qual con
suas rendas. 1 dem nava a doutrina de Luthero, ordenava
Entretanto Leão x formou o projecto de que se queimassem seus livros e o decla
acabar a magnifica igreja de S. Pedro, e rava a ellc mesmo heretico, se não se re
•concedeu indulgências áquclles que con tractasse no tempo que elle lhe marcava.
tribuissem para as despezas d’este edifício; Luthero appella d’esta Bulla para o con
a bulla das indulgências foi expedida, e cilio, e como o eleitor da Saxonia tinha
Leào x deu uma parte do rendimento d’es- gostado dos sentimentos de Luthero, este
ta indulgência a diflefentes pessoas, assi- doutor teve bastante iníluencia para fazer
gnando-lhcts a renda de qualquer provin queimar em Wirtemberg a Bulla de Leào x
cia. Esta audacia, que cm Luthero era uir
-i N’esta distribuição, doou tudo o que eíTeito do seu caracter, se olhou pelo suc
•recebia da Saxonia c ÍTuma parte d’Alle- cesso como um golpe de politica. O povo
manha a sua irmã, que encarregou Ar- que viu queimar por Luthero a Bulla de
chambaud d’esta cobrança de dinheiros. um papa, perdeu ma quinai mente esse te
Archambaud fez uma herdade, e os cobra mor religioso que lhe inspiravam os de
dores ou rendeiros confiavam a predica cretos do soberano pontifice, e a confiança
•das indulgências aos dominicanos. que tinha nas indulgências: d’alli a pouco
Os cobradores e prégadores das indul Luthero atacou em suas prédicas as indul
gências attribuiram-lhes uma efficacia ex gências, a authoridade do papa, e os ex
traordinaria, e prégando a indulgência, le cessos dos prégadores das indulgências;
vavam uma vida escandalosa: muitos das elle os-tornou odiosos, e creou um grande
tes negociantes espirituacs, diz Guichar numero de partidários.
din, chegaram até a conceder por vil pre As prédicas de Luthero começaram a
ço, e a jogar nas bodegas o poder de tirar fazer muito estrepito; quando hotive uma
ás almas do Purgatorio. 2 dieta em Worms (em 1521), Luthero ahi
Luthero levantou-se contra os excessos foi chamado, e se lavrou um decreto con
;v dos cobradores e dos prégadores das indul tra elle: n’cste decreto, Carlos v, depois de
gências, e contra as desordens d,aquclles ter narrado como Luthero tractava de es
•que as prégavam: é o assumpto d’uma de palhar seus erros na Alleraanha, declara
suas cartas ao arcebispo de Mayença. Es que, querendo seguir os traços dos impe
tudou a materia das indulgências, e pu radores romanos, seus predecessores, para
blicou theses, nas quaes censurava amar- satisfazer ao que deve á honra de Deus,
gamente os abusos das indulgências, e re ao respeito que tem ao papa, e ao que é
duzia seu cffcito quasi a zero. devido á dignidade imperial, de que elle é
Tctzcl, dominicano, que estava á testa revestido;-do conselho e do consentimento
dos prégadores das indulgências, fez pu dos eleitores, principes e estados do impe
blicar e sustentar theses contrarias na ci rio, e em execução da sentença do papa,
dade de Francfort em Brandcbourg. elle declara, que tem Martinho Luthero por
Estas theses foram uma como declaração notoriamente heretico, e ordena que seja
de guerra: muitos theologos se juntaram a tido por tal em todo o mundo, prohibindo a
todos de o receberem ou proteger, de qual
1 Guichardin, l. 2,1 4 . quer maneira que seja; mandando a todos
2 Guichardin, l. 18, n. 14. RainaJd, ad os principes c estados do imperio, sob as
<in. 1508. 99. Mciinbourg, Hist. du Lu th., penas ditas, de o prenderem c aprisionar
4. 1., Sess. 6. Seckendorf, s u r ,Maimb. depois do termo de 21 dias expirados, e de
638 LUT
perseguir seus cúmplices, adherentes e de que procuravam fazer proselytos, e que-
fensores, de os despojar de seus bens, mo espalhavam princípios contrarios á fé c á
veis e immoveis, etc. authoridade da Igreja: os livros de W iclcf
Logo que este edito se passou, Frederico c de João IIus, multiplicavam-se alii, c
de Saxonia fez partir secrctamentc' Luthc- liam-sc.
ro, c o fez conduzir a logar seguro; não se Os sectarios occultos, c uma parte das
executou o decreto da dieta contra os par obras de Wiclcf c de João IIus, atacavam
tidários de Luthero. alguns excessos manifestos, o uma autho
D’estc modo, a igreja de Roma, á qual ridade cujo abuso incommodava quasi todo'
tudo estava sujeito, que tinha armado a 0 inundo: por conseguinte a igreja do Ro
Europa inteira, feito tremer os sultões, de ma e o clero tinham muitos inimigos se
posto os reis, dado reinos; Roma, a quem cretos.
tudo obedecia, viu o seu poder e o do im Estes inimigos não eram todavia fanati
perio, quebrar-se contra Luthero e seus cos, ignorantes, ridiculos ou devassos, eram
discipulos. homens que raciocinavam, que pretendiam
Esta cspecie de phenomeno estava pre não atacar a Igreja, mas sim os abusos de
parado d.esdc longo tempo: as guerras que que os fieis estavam escandalisados, e que
cxtiiiguiram as artes o as sciendas no Oc destruíam a disciplina. Viu-se nos conci-
cidente, produziram grandes abusos no iios de Constança c de Basiléia homens ce
clero: tinham-se erguido n’estes séculos lebres pelas suas luzes e virtudes, pedir,
barbaros, sectarios que authorisavam estes mas inutilmente, a reforma dos abusos;
abusos, c a pretexto de os reformar haviam sabia-se que não se podia csperal-a c ob-
tornado sequazes aos henriquianos, petro- tel-a, senão reformando os abusos a des
brusianos, albigenses, vaudenses, etc. peito do clero e da corte de Roma, mas-
Os raios da Igreja, as armadas das cru a sua authoridade sempre temível, con
zadas, as fogueiras da inquisição tinham tinha todo o mundo, e havia cm uma in
destruído todas estas seitas, e no Occiden finidade de espíritos uma cspecie d’equi-
te tudo estava submetlido ao papa, c uni librio entre o desejo da reforma e o receio
do á igreja romana. da authoridade do clero. 1
Os papas e o clero, acostumados desde Luthero, atacando a authoridade do papa,
o Il.° século a subjugar tudo com o ana as indulgências, e o clero, rompeu esse
thema e as indulgências, quasi que não equilíbrio que produzia uin socego perigo
conheciam outro meio para combater a so, que se toma por tranquillidade; com-
heresia, senão a força; elles empregavam municou a uma infinidade de pessoas o
os raios da Igreja contha tudo o que se espirito de revolta contra a Igreja, e achou-
oppunha a seus desígnios ou a seus inte se de repente á testa d’um partido tão con
resses, que confundiam muitas vezes com siderável, que os principes d’AHemanha
os da Igreja e da religião; assim, depois julgaram não poder executar o decreto da
das guerras das cruzadas, tinha-se visto os dieta contra Luthero, sem excitar uma sc-
papas deporem os soberanos que não lhes dição.
obedeciam; os anti-papas excommungar os Demais, muitos d’estes principes não ti
reis que reconheciam seus competidores no nham consentido n’este decreto senão com
soberano pontificado; desligar do juramen repugnância: elles viam com muito pesar
to de fidelidade subditos d’estes soberános, sahir de seus estados sommas immensas,
conceder indulgências áquelles que os com que os directores das indulgências leva
batiam, dar seu reino aos que os conquis vam; não se affiigiam que atacassem c es
tavam; tinha-se visto os povos abandona treitassem o poder do clero, que elles te
rem seus soberanos, sacrificar sua fortuna, miam, c cujo abatimento pensavam acon
para obedecer aos decretos dos papas, e tecesse um dia. Emfim, as armas do tur
para ganhar as indulgências. co, que ameaçavam o imperio, fizeram re
A profunda ignorância pôde dar longa ceia r que fosse perigoso atear n’Al lema-
duração a um similhante poder; podia até nha uma guerra de religião, similhante á
ser immiitavel entre povos que não racio que tinha desolado a Bohemia um século-
cinavam; porém era preciso que o espirito antes.
dos povos d’Allemanha estivesse n’estc es
tado de immobilidade e quielação: todas 1 Vede sobre iodos estes factos as HisL
as seitas reformadoras que se tinham le e as Aut. Eccles. d'estes differentes tempos;
vantado desde os henriquianos, albigenses o Gonc. de Const.y o Cont. de Fleury. Bos-
c vaudenses, refugiaram-se na Allema- suet, Ilist. de F r e dos Var. Guicíi. HisL
nha; cilas tinham ahi partidários occultos, da Igreja Gall.
LUT 639-
D’cstc modo, o tempo, esse novador tão elle os ameaçava de gritar contra clles, se
formidável, havia insensivelmente prepa recusassem submetter-se. «Minhas preces,
rado tudo para fazer naufragar contra disse elle a um principe da casa deSaxo-
um religioso Agostinho a authoridade da nia, não serão um raio de Salmonée, nem
Igreja c o poder de Carlos v, e de uma um vão murmurio no ar; não se suspende
grande parte dos principes d’AHcóianha. assim a voz de Luthero, e eu desejo que
vossa alteza não a experimente em seu
prejuízo; minha prece é um baluarte in
DO PROGRESSO DE LUTHERO, DESDE SUA VOLTA vencível, mais poderosa que o proprio dia
A WIRTEMBERG ATÉ Á DIETA DE NUREMBERG bo; sem cila, ha muito tempo que não se.
fallaria mais de Luthero, e não se espanta
rão d’um tão grande milagre! »»
Luthero voltou a Wirtemberg; a uni Quando ameaçava alguém com os juizos
versidade adoptou suas opiniões: aboliu-se de Deus, vós dirieis que elle lia nos decre
a missa, atacou-se a authoridade dos bis tos eternos: á sua voz, tinham como certo
pos, c a propria ordem do episcopado: Lu os seus, que haviam dous anti-christos cla
thero tomou o titulo d'ecclesiastico, ou de ramente manifestos na Escriptura, o papa
pregador de Wirtemberg, com o fim, diz e o turco, dos quaes Luthero annunciava
elle, escrevendo aos bispos: «de que não a proxima ruina. Não era sómente o povo
pretendam ser causa d’ignorancia, que é a que tinha Luthero por propheta; os sábios,,
nova qualidade que se dá a si mesmo, com os theologos, os litteratos da sua commu-
um completo despréso d’elles e de Satanaz, nhão, o consideravam e o davam por tal,
que elle podia também com bom titulo cha tanto o império da imaginação e do enthu
mar-se evangelista, pela graça de Deus, e siasmo é extenso. 2
que ccrtamente Jesus Christo o chamava O ecclesiastico de Wirtemberg não go-
assim, e 0 tinha por ecclesiastico. sava todavia tranquillamente do seu trium
Em virtude d’esta celeste missão, Luthe pho: sua revolta contra a Igreja occasio-
ro fazia tudo na Igreja; pregava, visitava, nou uma multidão de seitas fanaticas e
corrigia, restringia as ceremonias, estabe sediciosas, que assolavam uma parte d’Al
lecia outras, instituia e destituía; estabele
lemanha. Carlostadio quiz levantar em Wir
ceu até um bispo em Nuremberg: sua temberg uma seita nova: Luthero foi ata
imaginação vehemente inflammava os es cado em uma infinidade d’escriptos: res
píritos, communicava seu enthusiasmo, e pondeu a tudo, atacou o clero, prégou
tornava-se o apostolo e o oraculo da Saxo- contra a corrupção dos costumes, e tradu
nia e d’uma grande parte d’Allemanha. ziu a Biblia em lingua vulgar: todos lêram
Espantado da rapidez dos seus progressos, a sua versão, e todo aquelle que a leu to
elle se julgou com effeito um homem ex mou parte nas disputas da religião.
traordinario: «Não puz ainda a mão na A Escriptura só era, segundo Luthero,.
menor pedra para a destruir, dizia elle; a regra da fé, e cada um estava no direito
não fiz chegar o fogo a nenhum mosteiro, de a interpretar; este principio seduziu um.
mas quasi todos os mosteiros estão arrui numero infinito de pessoas na Allemanha,
nados por uma penna e por uma bôea, e na Bohemia e na Hungria; mas era sobre
publica-se que, sem violência, eu só tenho tudo na Saxonia e na baixa Allemanha que
feito mais mal ao papa, do qu^.teria podi os sectários de Luthero se tinham multipli
do fazer algum rei com todas ás^forças do cado, e que eram animados d’um zelo ar
seu reino, 2»
1 dente e capaz de tudo emprehender.
Luthero pretendia que estes successos
eram o effeito de uma força sobrenatural gue
Deus dava a seus escriptos e a suas prédi- DO LU THERA NISMO, DESDE A DIETA
cas: elle o publicava e o povo o cria: at DE NUREMBERG A TÉ Á DIETA D’a UGSBOURG
tento ao progresso do seu imperio sobre
os espíritos, tomou o tom dos prophetas
contra os que se oppunham á sua doutri Tal era a extensão do lutheranismo,
na. Depois dè os ter exhortado a abraçal-a, quando os estados d’Allemanha se congre
garam em Nuremberg. Leão x era morto,
1 Ep. ad falso nominat. Ordin. Episco e Adriano vi tinha-lhe succedido: este no-
porum, Operum Lutherí, t. 2, foi. 30o.
Hist. das Variat., t. 1, pag. 30. 1 Ep. ad Georg. Dux. Sax., t. 2, foi.
2 T. 7, foi. 507, m } Hist. das Variat., 491.
t. i, pag. 30. 2 Sleidam, l. 3. Melanct., I. 3. Ep. 65.
*
vo pontifice enviou â dieta um núncio, tros príncipes, a approvação de seu decre
ara se queixar da liberdade que conce- to de reforma. A publicação d’esto regula
S iam a Luthero, e de não terem procedido mento oíTendcu todos os principes e bispos
á execução do edito de Worms. que n’ella não tinham querido consentir
Os estados responderam que os partidá na dieta: 0 descontentamento augmentou
rios de Luthero eram tão numerosos, que com as cartas imperiosas que Carlos v di
a execução do edito de Worms atearia rigiu á dicta; e os estados do imperio, ten
uma guerra civil. Os principes leigos for do-se reunido cm Spira, nos fins do mez
maram cm seguida um longo memorial dos do junho de 1525, deliberou-se, por ordem
seus motivos de queixa e de suas p reten do imperador, á vista das cartas d’este
ções contra a côrte de Roma e contra os principe, por meio das quaes ellc lhes de
ecclesiasticos; reduziram este memorial a clarava que ia passar á Italia para ahi se
cem artigos, aos quaes deram para isso o fazer coroar, c tomar com 0 papa as me
nome de centum gravamina: enviaram-no didas para a convocação d’um concilio.
ao papa, com protestação que não queriam N’este meio tempo, queria elle que se ob
nem podiam mais tolerar essas aíirontas, servasse 0 edito de Worms, e prohibia que
e que estavam resolvidos a empregar os se tractasse por mais tempo de matérias
meios mais proprios a reprimil-as. de religião na dieta.
Os principes queixavam-se das taxas que A maior parte das cidades responderam
se pagavam para as dispensas e absolvi que se no passado se não poderá observar
ções, do dinheiro que se tirava das indul 0 decreto de Worms, era agora ainda mais
gências, da evocação dos processos a Roma, perigoso tental-o, pois que as controversias
da isempção dos ecclesiasticos nas causas estavam mais animadas que nunca: pro
criminaes, etc. mulgou-se então um decreto, cuja substan
Todas estas queixas se reduziam a tres cia dizia que, como era necessário, para
principaes, a saber: que os ecclesiasticos pôr a ordem nas cousas da religião, e man
reduziam os povos á servidão; que os des ter a liberdade, haver um concilio legiti
pojavam dos seus bens, e que se apropria mo na Allemanha, ou procurar um que
vam da jurisdicção dos magistrados secula fosse universal, e reunil-o antes do termo
res. 1 de um anno, enviar-se-iam embaixadores
A dieta fez também um regulamento ao imperador, para supplicar-lhc olhasse
para acalmar os espíritos e defender a com compaixão para 0 estado tumultuoso
impressão ou o ensino d’alguma doutrina e miserável do imperio e voltasse quanto
nova. antes á Allemanha, para fazer reunir 0
Os lutheranos e os catholicos interpreta concilio: que emquanto senão reuniam .um
vam este decreto cada qual em seu provei e outro concilio, os principes c os estados
to, e pretenderam não ensinar mais que a das suas provincias tractariam de condu
doutrina dos padres e j l a Igreja: assim, zir-se em seus governos, a respeito do fa-
este decreto não fez senão atear o fogo da cto da religião, de modo que clles podes-
discordia. 2 sem dar boa conta a Deus e ao imperador.
Adriano vi reconhecia a necessidade de O imperador e 0 papa, depois de se te
reformar muitos abusos, e parecia deter rem desavindo e accommodado muitas ve
minado a trabalhar para essa reforma; po zes, restabeleceram emfim a paz, que os
rém morreu antes que tivesse podido exe- interesses temporaes tinham perturbado.
cutal-a. Um dos àrtigos do tractado, feito entre
Xulio de Médicis lhe succedeu, sob 9 0 imperador e 0 papa, foi que, se os lu
nome de Clemente vu: este papa enviou á theranos persistissem na sua revolta, 0 pa
dieta de Nuremberg um núncio que for pa empregaria para os exterminar as ar
mou uma especie de reforma para a Alle- mas espintuaes, e Carlos V, com Fernan
manha; mas achou-se que ella deixava sub do, as armas temporaes; que de resto, 0
sistir os abusos mais perigosos, e que não papa obrigaria os principes christãos a
preenchia perfeitamente os desejos da die juntarem-se com 0 imperador.
ta precedente. 3 Carlos v convocou os estados d’Allema
Entretanto, 0 legado conseguiu de Fer nha em Spira, no anno 1529. Depois de
nando, irmão do imperador, e muitos ou muitas contestações, fez-se um decreto,
que dizia* que aquelíes que tinham obser
1 F asciculos re ru m expetendarum , t. 1, vado 0 edito, de Worms deveríam conti
pag. 352. nuar a fazel-o, e tivessem 0 poder dc_a
2 Jbid. Sleidan., I. 1, pag. 50. elle obrigar seus povos, até á convocação
3 A n . 1524. ‘ d’um concilio; que a respeito dos que ti-
LUT flU
nham mudado de doutrina, c que nào po roar cm Bolonha, em 1530, passou á Al
diam abandonal-o sem temer alguma sedi- lemanha, e convocou uma dieta em Augs-
ção, se conservassem no que estava feito, bourg.
sem nada innovar mais, até ao mesmo 0 eleitor de Saxe, apresentou á dieta a
tempo; que a missa nào seria abolida, e profissão de fé dos protestantes; cila con
que nos proprios logares em que a nova sistia em duas partes: uma continha o do
reforma se havia estabelecido, nào se im gma—era em grande parte conforme á fé
pediría de a celebrar; que os pregadores catholica, mas negava a necessidade da
se abstcriam de propor novos dogmas, ou confissão; estabelecia que a Igreja era só
dogmas que fossem pouco fundados na composta de eleitos; attribuia sómente ás
Escriptura; porém que prégariarn o Evan disposições dos fieis os efTeitos dos sacra
gelho, segundo a interpretação approvada mentos, e negava a necessidade d’obras
pela Igreja, sem tocar nas cousas que es pias para a salvação.
tavam em disputa, até á determinação do A segunda parte era muito mais contra
concilio. ria á doutrina da Igreja: exigia a abolição
O eleitor de Saxe, o de Brandebourg, das missas resadas, e os votos monásticos;
os duques de Lunebourg, o landgravc de o restabelecimento da communhão sob as
Hesse, c o principe d’Anhalt, com quator duas especies; declarava que a tradição
ze das principaes cidades d’Allemanha, nào era uma regra de fé, c que todo o
declararam que nào podiam derogar o de poder ecclesiastico não consistia senão em
creto da dieta precedente, que tinha con prégar e administrar os sacramentos.
cedido a cada um a liberdade de religião Os theologos catholicos, e os theologos
ate â duração d’um concilio, c pretende protestantes, não poderam convir n’estes
ram que este decreto tendo sido feito com artigos, e a dieta se separou.
o consenso de todos, nào podia também Depois da partida dos protestantes, o im
ser mudado senão com o consentimento perador publicou um edito, por meio do qual
geral; que por conseguinte elles protesta prohibia se mudasse cousa alguma na mis
vam contra o decreto d’esta dieta. Torna sa e na administração dos sacramentos,
vam pública sua protestação, e o appêllo se destruíssem as imagens.
que fizeram' d’cssc decreto ao imperador Os protestantes entenderam que o imj
e a um concilio geral futuro, ou a um rador tinha resolvido submettel-os pi
concilio nacional; e foi d\aqui que o nome forca das armas, c por isso tomaram su
de protestantes foi dado a todos aquelles medidas para lhe resistir; o landgravc c
que faziam profissão da religião luthe- Hesse convocou os principes protestantes
rana. em Smalcade, onde fizeram uma liga con
No meio d’estes successos, Luthero não tra o imperador: escreveram em seguida
vivia sem pesares: Garlostadio, expulso da a todos os christãos, para lhes fazer co
Aliem anha por Luthero, retirára-se à Suis- nhecer os motivos que os tinham determi
sa, onde Zuinglio e OEcolampadio tomaram nado a abraçar a reforma, esperando que
sua defesa: sua doutrina tinha-se estabe um concilio pronunciasse sobre as maté
lecido na Suissa, e passado á Allemanha, rias de religião, que perturbavam a Alle
onde fazia progressos mui rapidos. Esta manha.
doutrina era absólutamonte contraria aos Luthero, que até então pensara que a
dogmas de Luthero; elle a combateu com reforma não devia estabelecer-se senão
transporte, e viu os partidários da reforma pela persuasão, e que ella devia sómente
repartil-a entre elle e os sacramentarios. defender-se pela paciência, authorisou a
Tractou-se, mas inutilmente, de reconci liga de Smalcade. 1
liar estes reformadores; nào houve nunca «Elle comparava o papa a um lobo en-
entre elles mais que uma união politica: raivado, contra o qual todos se armam ao
os sacramentarios e os lutheranos aggre- primeiro signal, sem esperar a ordem do
diam-se; e estes reformadores, que se jul magistrado: que se, encerrado cm um re
gavam os juizes absolutos das controvér cinto qualquer, o magistrado o solta, pó-
sias, achavam na Escriptura Sancta do de-sc continuar a perseguir esta fera, e
gmas diametralmente oppostos: cis-ahi o atacar impunemento aquelles que tives
que M. Basnage chama uma obra de luz. sem impedido que se provocasse: se O'
matassem n’este ataque, em logar de se
DO LUTHERANISMOj DEPOIS DA DIETA arrependerem d’isso, arrepender-se-iam,
DE ÀUGSBOURG: A TÉ A MORTE DE LUTHERO
1 N aim b ., I. 3. Seckem dorf, /. 3, sect. 2,
O. imperador, depois de se ter feito co § 3. H ist. des Variat., I. 6.
643 LUT
pelo contrario, de lhe nâo ter enterrado Foi neste tempo que o landgrave de
bem o cutello no seio. Eis como é preciso Hesse, aproveitando-se do seu credito no
tractar o papa: todos os que o defendem, partido protestante, obteve a permissão de
devem tombem ser tractados como os sol ter duas mulheres ao mesmo tempo: esto
dados d’uni chefe de ladrões, sejam clles acto de condescendência da parle dos theo
reis e Cesares. logos protestantes, o ligou irrevogalmente
Os protestantes tractaram, pois, o decre a seus interesses, e o tornou inimigo irre-
to do imperador com despréso, e esteve-se conciliavcl da igreja catholica, que não
proximo d’uma guerra igualmente perigo teria nunca tolerado a sua polvgamia.
sa aos dous partidos, e funesta á Allcmanha. Por mais importantes que fossem os nc-
O imperador, ameaçado d’uma guerra gocios da religião, clles não occupavam só
proxima com os turcos, fez com os prin o papa e os principes catholicos.
cipes protestantes um tractado: este tra- O imperador e o rei de França tinham
ctado era que haveria uma paz geral* en seus desígnios sobre a Italia, c o papa, ou
tre o imperador e todos os estados do im os protestantes não eram inúteis para estes
pério, tanto ecclesiasticos como seculares, projectos. Francisco i enviou embaixado
até á convocação d’um concilio geral, li res á assembléia de Smalcade, para ini
vre e christão; que ninguem por causa de ciar os protestantes a obrarem de concerto
religião poderia fazer a guerra a um ou com elle, relativamente ao logar onde o
tro: que haveria entre todos uma amizade concilio se devia reunir.
sincera, c uma concordia christã; que se Além d’isso, Carlos v, que via que o
durante um anno o concilio não se re papa não queria cmpenhal-o na guerra
unisse, os estados d’Allcmanha se reuni contra os protestantes, senão para o impe
ríam para regular as cousas da religião, e dir de se apoderar de Milão, dizia que
que o imperador suspendería todos os pro para justificar esta guerra era preciso
cessos intentados por motivos de religião, convocar um concilio, para fazer vòr que
por seu fiscal, ou por outros, contra o elle não tinha tomado as armas senão de
eleitor de Saxe e contra os alliados, até á pois de haver tentado todos os outros meios.
convocação d’um concilio, ou a assembléia O papa convocava, portanto, o concilio
dos estados. em Mantua, mas o duque 'de Mantua,
Logo que Carlos v expelliu os turcos da recusou a cidade, c o concilio foi crafim
Áustria, passou á Italia, para pedir ao papa indicado cm Trento, com o voto de Carlos v,
a reunião d’um concilio que podesse re e do Francisco i.
mediar os males d’Allemanha. O papa O império estava ameaçado d’uma guer
consentiu em indicar um; mas queria que ra eminente da parte dos*turcos, e o impe
os protestantes promettessem de se sub- rador pedia soccorro aos principes protes
metter a elle, e que os principes catholi tantes, que recusavam constantemente dar-
cos se obrigassem a tomar a defesa da lh’o, a menos que não lhes dessem certe
Igreja, contra aquelles que se recusassem za cTentreter a paz da religião, c de que
submetter. não seriam obrigados a obedecer ao con
Os principes protestantes recusaram es cilio de Trento. Nada foi capaz de os fazer
tas condições. Clemente v i i morreu, e Pau mudar de resolução, e o imperador reno
lo ui, que lhe succcdeu, resolveu reunir vou todos os tractados feitos com os pro
um concilio em Mantua, mas os protestan testantes até á dicta proxima, que elle in
tes declararam que não se submettiam dicou para o mez de janeiro seguinte, em
nunca a um concilio tido na Italia; elles Ratisbonna, em 1549.
queriam além cTisso que os seus doutores Emquanto o concilio se reunia, o eleitor
tivessem voz deliberativa no concilio. palatino introduziu nos seus estados a
0 concilio, que tinha sido olhado como communhão de calice, as preces publicas
o unico meio de reunir os protestantes á em lingua vulgar, o casamento dos sacer
Igreja, tornava-se, pois, impracticavel. dotes, e outros pontos da reforma.
O landgrave de Hesse nada esquecia Foi n’este mesmo anno qúe Luthero
para reconciliar os lutherauos com os morreu em Isleb, aonde tinha ido para
zuinglianos, que, apesar da necessidade de terminar as contestações que se haviam
se unirem para se sustentar contra as ar erguido entre os condes de Manfeld.
mas dos principes catholicos, não’ cessa
vam de se atacar.1 DO LUTHERANISMO, DEPOIS DA MORTE
DE LUTHERO A TÉ Á PAZ RELIGIOSA
1 Luthero, t. i. Sleidan, I 16. Hist. des
Variat., I. 8 . O imperador convocára em ,Ratisbon-
LUT 643
na uma conferência, a fim do terminar lio em Trcnto, c vendo que seria difiicil
as disputas religiosas, q u e. perturbavam obtel-o, procurou outros meios de pacificar
a Allcmanha por via das consciências. a Allemanha.
Quando chegou a Uatisbonna, a conferên Confiou-se ao imperador o cuidado d’es-
cia estava já interrompida: ellc se lasti colher as pessoas mais proprias para com
mou amargamente, c quiz que cada um por um formulário, que podesse convir a
propozesse o que sabia de mais proprio Iodos os partidos: estes theologos eompo-
para pacificar a Allcmanha: os protestan zoram um formulário dc religião, que foi
tes requereram um concilio nacional, mas em seguida examinado, e corrigido succes-
os embaixadores de Mavença c de Troves sivamente por protestantes c por catholi
approvaram o concilio de Trcnto, e suppli cos, aos quaes Fernando o cominunicava
caram ao imperador que o protegesse. para ter a sua approvação.
O imperador aprovcitou-sc d’csta dispo Este formulario continha os objectos que
sição, c se preparou para fazer a guerra se deviam crèr, attendendo que o concilio
ao'$ protestantes. Ligou-se coin o papa, que geral o tivesse inteiramente decidido: este
lhe forneceu dinheiro, c promclteu levar a formulario foi chamado o Ínterim.
metade das rendas da igreja dTIcspanha. O interim de Carlos v desagradou aos
€arlos v tractava, portanto, de publicar protestantes c aos catholicos; os protestan
que não fazia a guerra por motivos de re tes recusaram, pela maior parte, recebel-o,
ligião: porém o eleitor de Saxe, e o land- ou o receberam com tantas rcstricções,
grave dTIcsse publicaram um manifesto que o aniquilaram.
para fazer vér que esta guerra era uma O imperador encontrou muito mais dif-
guerra de religião, e que o imperador não ficuldadc na baixa Allemanha; a maior
tinha que queixar-se d’elles, nem alguma parle das cidades de Saxe recusaram re-
pretenção justa contra elles. cebel-o, e a cidade de Magdebourg o rejei
Os protestantes se prepararam com prom- tou com tanto despréso, que foi exautora-
plidão para a guerra, c levantaram um da, c sustentou longa guerra, que ali
exercito, que não impediu Carlos v de sub- mentou na baixa Allemanha um fogo, que,
mclter a alta Allcmanha. No anuo seguinte tres annos depois, consumiu os trophéos
os protestantes foram derrotados, e o elei dc Carlos v.
tor de Saxe foi prisioneiro. O landgravc Apesar do risco que se corria escreven
d’Hesse pensou então em fazer a paz: veio do contra o interim, viu-se appareccr uma
procurar o imperador, c foi retido con multidão d’obras contra este formulario,
tra a palavra expressa que o imperador da parte dos catholicos e dos protestantes.
lhe havia dado. Entretanto, Carlos v não abandonava o
O imperador levantou então grossas som- projecto de fazer receber o interim: para.
jnas sobre toda a Allcmanha, para a inde- ter bom exito, empregou as ameaças, c as
mnisaçào, dizia clle, dos gastos da guerra, carícias: forçou muitas cidades e* estados
que não havia emprehendido senão para a recebei-o, mas revoltou todos os espíri
bem d’ella mesma. tos.
O partido protestante parecia abatido; O concilio estava restabelecido cm Tron-
todavia ainda havia cidades que resistiam to, c Carlos v creu que ellc poderia restabe
ao imperador, c os povos conservavam to lecer o socego; empregou tudo para obter
do o seu aíTerro á reforma: o proprio Car que os protestantes podessem ser executa
los v tinha concedido a algumas cidades a dos no concilio, porém os protestantes e os
liberdade de conservar a religião luthera- bispos catholicos não poderam nunca con
na, e Maurício, duque dc Saxe, tractára vir sobre o modo porque os protestantes
com bondade Mélancton e os theologos de seriam admittidos na assembléia, e sobre
Wirtemberg; ellc até os cxhorlava a con o caracter que tomariam.
tinuarem seus trabalhos. Emquanto que a politica de Carlos v
O imperador manifestava um grande julgava fazer servir alternativamente o
desejo de terminar as contestações da reli- papa e os protestantes a suas vistas c in
* gião, que perturbavam a Allcmanha; teve teresses, todos os espíritos se sublevaram
uma dieta em 1574, na qual exigiu sub contra ellc. Henrique u aproveitou-se das
missão ao concilio de Trcnto; mas o papa suas disposições, e fez um tractado cora
havia transferido o concilio para Dolonha, Maurício dc Saxe e com os protestantes:
e esta trasladarão, que não fora approvada entrou era Lorraine, tomou Toul, Metz, e
pelos padres, tinha feito parar todas as Ycrdun, emquanto que Maurício de Saxe, á
operações do concilio. O imperador exigiu, testa dos protestantes, deu a liberdade ao
pois, que o papa fizesse continuar, o conci duque.
€44 LUT
Carlos v sentia que não podia resistir a gressos occultos da religião protestante, o
todos estes inimigos; fez a paz com os pro o estabelecimento da inquisição, subleva
testantes; deu a liberdade ao duque de ram os Paizes-Baixos contra Philippe, e fi
Saxe e ao landgravc d’Hesse. Por este zeram dos seus estados o theatro de uma
tractado de paz, concluído em Passaw, con guerra longa e cruel, que desmembrou pa
vieram que nem o imperador, nem algum ra sempre a Hollanda da monarchia hespa-
outro principe, poderia forçar a consciên nliola, e ahi estabeleceu o ealvinismo.
cia nem a vontade de qualquer sobre a A paz religiosa não sulfocou as dissen-
religião, de qualquer modo que fosse. En çòes da Allemanha: esta paz não esta ví
tão viram-sc todas as cidades protestantes ainda concluída, quando se arguiram de
chamar de novo os doutores da confissão uma parte c d’outra de diversas fracções,e
d’Augsbourg; entregaram-se-lhes as suas se aceusava o partido contrario de as ter
igrejas, as suas escolas, e o exercício livre praclicado; não havia juiz que podesse pro
da sua religião, até que a proxima dieta nunciar sobre estas infracçòcs; os dous par
achasse um meio d’cxtinguir para sempre tidos recusavam-se reciprocamente.
o principio d’eslas divisões. Os protestantes não estavam mais uni
Finalmente, tres annos depois fez-se em dos entre si, tinham-se dividido entre Zain-
Augsbourg a paz, que se chamou a paz glio e Luthero: a principal diíTerénça que
religiosa, e se inscreveram os artigos en os dividia logo, consistia na presença rcalr
tre as leis perpetuas do império. que Luthero reconhecia e que Zuinglio ne
Os principaes artigos são: Que os pro gava: o landgravc de Hesse fizera inutil
testantes gosarão da liberdade da con mente tudo o que podia para conciliar es
sciência, c que nem um nem outro partido tas duvidas; muitos dos lulheranos junta
poderá usar d’alguma violência, sob pre vam á confissão d^ugsbourg um escripto
texto de religião; que os bens ecclesiasti chamado Formulario de Concordia, por
cos, de que os protestantes se tinham apo meio do qual condemnavam a doutrina dos
derado, permanecerão seus, sem que se zuinglianos; sustentavam até que estes ulti
possa tiral-os em processo para isso peran mos não tinham direito algum á liberdade
te a camara de Spira; que os bispos não de consciência concedida aos da confissão
terão jurisdicção alguma sebre os da reli d’Augsbourg, porque tinham abandonado
gião protestante, mas que elles proprios se esta confissão.
governarão como o acharem conveniente: Os principes lutheranos obravam, na
que nenhum principe poderá attrahir á verdade, com mais moderação, mas não
sua religião os subditos d’outro, mas que recebiam os principes zuinglianos em suas
será permiltido aos subditos d’um princi assembléias senão como por favor, queren
pe que não seja da mesma religião que el do muito que elles gosassem os privilégios,
les, vender seus bens, e sahir das terras que, fallando a verdade, não lhes perten
da sua dominação; que estes artigos sub ciam: chegavam finalmente a expulsar, de
sistirão até que *se tenha decidido ácerca uma parte e d’outra, os theologos que não
da religião por meios legitimos. eram do sentimento dos principes.
Apesar d’estas divisões, a religião protes
tante progrediu na Allemanha: os bispos do
DO LUTHERANISMO; DEPOIS DA PAZ RELIGIOSA Alberstad e de Magdbourg, abraçando-a, ti
A TÉ Á PAZ DE W ESTPHALIA nham conservado os seus bispados na oc-
casião cm que o eleitor da Colonia, quo
quizera fazer a mesma cousa, havia perdi
A ultima liga dos protestantes tinha sido do o seu logar e a dignidade de eleitor que
•o escolho do poder de Carlos v; o rei de o imperador lhe tirara de sua unica von
França, que se havia reunido aos protes tade, sem consultar os outros eleitores: fez-
tantes, havia tomado os tres bispados. O se então uma união entre os principes cal-
imperador, depois de ter feito a sua paz vinistas e alguns dos lutheranos para se
com os protestantes, levantou um exercito oppôr aos catholicos que queriam oppri-
numeroso, e assediou Metz: esta empreza mil-os; mas esta união não produziu eífei-
foi o termo das suas prosperidades; elle to algum, porque o eleitor de Saxe, des
foi obrigado a levantar o cerco, e resolveu contente do seu comportamento, e irritado
acabar os seus dias no retiro. Resignou o por seus theologos, tanto como pelos catho
imperio a Fernando, seu irmão, e collocou licos, se persuadiu que os ealvinistas pro
Philippe, seu filho, no throno de Hcspanha. curavam sómcnto opprimir não só os lu
. O governo duro d’este prinçipe, a fereza theranos, mas também os catholicos.
o imprudência de seus ministros, os pro Os catholicos da sua parte fizeram uma
LUT 643
liga em Wirtzbourg, que elles chamaram creu poder apoderar-se do mar Baltico:
a Liga Catholica, cm opposição ã dos pro Walstcin entrou em Pomcrania, e declarou a
testantes, que se chamava a* União Evan guerra ao duque sob pretexto de que ha
gélica. Maximiliano de Baviera, antigo ini via bebido á saude do imperador com cer
migo do eleitor palatino, foi o seu chefe. veja.
O imperadores Fernando i, Maximiliano Gustavo Adolpho, rei da Suécia, Viu
ii e Bodolfo ii toleravam os protestantes, quanio era necessario oppôr-se ao projecto
em virtude de grandes sommas que lhes do imperador, e depois d’algumas negocia
tinham extorquido; concederam-lhes privi ções, tentadas inutilmente e rejeitadas pelo
légios, que Mathias quiz em vão tirar: de imperador com despròso, este principe de
pois de os ter obrigado a revoltar-se, e de clarou guerra ao imperador, e entrou em
pois de ter sido vencido, fura violentado a Pomcrania.
confirmar de novo os privilégios que Bo A França, os Estados-Unidos, a Inglater
dolfo ii tinha concedido aos bohcmios, e a ra, a Ilespanha, n’uma palavra toda a Eu
deixar-lhes a academia de Praga, um tri ropa tomou parte n’esta guerra, que durou
bunal de indicatura n’esta cidade, c a liber 30 annos, e acabou por uma paz geral, com
dade de cdificar templos, com juizes e de a qual os principes e os estados, tanto lu-
legados para a conservaçào de seus privi theranos como zuinglianos ou calvinistas
légios. obtiveram o livre exercício da sua religião
O numero de protestantes augmentava do consenso unanime do imperador, dos
todos os dias: a casa d’Austria c seus al- eleitores principes c estados das duas reli
liados resolveram oppòr-se ao seu adian giões. Foi além d’isso ordenado que nas as
tamento, e para o conseguir fizeram eleger sembléias ordinarias e na camara imperial
rei da Bohemia Fernando 11. Este princípc o numefo de chefes d’uma e d’outra reli
tinha muito zelo pela religião catholica; to gião seria igual.
davia prometteu solemnemente que nunca Toda a Europa garantiu a execução d’es-
tocaria nos privilégios outhorgados pelos te tractado entre os principes protestantes
seus predecessores aos bohemios, c que e os principes catholicos da Allemanha.
não se embaraçaria com a administração O núncio Fabiano Chigi oppôz-se a iste
do reino durante a vida de Mathias. com todo o seu poder, e o papa Innocencio
Pouco tempo depois os protestantes qui- x, por uma Bulla, declarou estes tractados
zeram fundar templos nas terras dos catho nullos, vãos, reprovados, frivolos, inváli
licos; estes oppozeram-se. Os protestantes dos, iniquos, injustos, condemnados, sem
tomaram as armas, excitaram uma sedi- força, e que ninguem era obrigado a obser-
çào, lançaram pelas jancllas tres magistra val-os, ainda que fossem fortificados por
dos de Praga: no campo toda a Bohemia um juramento.
se armou, e os protestantes pediram soc- Não guardaram mais respeito á Bulla
corro a seus irmãos. de Innocencio do que á protestação do seu
Tendo fallecido Mathias, Fernando quiz núncio. Vede a historia da Suécia, por Puf-
inutilmente tomar a administração da Bo fendorf, e a historia do tractado de West-
hemia; os bohcmios recusaram reconhe- phalia, pelo P. Bougeant.
cel-o por seu rei: elles declararam-no exau-
torado de todos os direitos que podería ter
sobre a Bohemia, pois que a cila havia envia DO LÜTHERANISMO NA SUÉCIA
do tropas durante a vida de Mathias. Ele-
geu-se em seu logar o eleitor palatino, que
acceitou a corôa, mas que depressa a aban A Suécia era catholica quando Luthero-
donou, não podendo mesmo conservar seus apparcceu; dous suecos, que tinham estu
antigos estados. dado com elle em Wirtemberg, levaram a
As tropas de Fernando não foram me sua doutrina para a Suécia; estava-se en
nos felizes contra o duque de Brunswick, tão na força da revolução, que roubou a
chefe do mesmo partido. Suécia ao rei da Dinamarca, e que collo-
Tudo se curvava pois debaixo da autho- cou no throno Gustavo Vasa: não se per
ridade imperial, e o imperador publicou um cebeu o progresso do lutheranismo.
edito em 1629, onde declarava que todos Gustavo, collocado no throno da Suécia,
os bens ecclesiasticos, de que os protestan d’onde acabava de expulsar o cunhado do
tes se tinham apoderado depois do tracta- imperador, tinha a receiar a authoridade
do de Passaw, seriam restituidos aos catho do papa consagrado a Carlos v, e o credi
licos. to do clero, sempre favoravel a Chris
Apoiado n’cstes successos, o imperador ti em o ,a pesar de sua tyrannia; alémd’isso
m LUT
Gustavo queria mudar o governo da Sué fazia succeder dcxtramenlc estas declara
cia, e reinar como monarcha absoluto em ções umas ás outras, e cilas não appare-
um paiz onde o clero era mantido om seus ciam senão a proporção do progresso que
direitos, no meio do despotismo e da ty- fazia o lutheranismo.
rannia de Christierno, e que formava, para O clero preveu os projectos de Gustavo
assim dizer, um monumento sempre sub sem poder suspcndel-os; a habilidade d’cs-
sistente da liberdade dos povos c dos limi te prineipe prevenia todas as suas tentati
tes impostos á authoridade real. vas, c tornava todos os seus esforços inú
Gustavo resolveu, pois, aniquilar na Sué teis. Despojou successivamente os bispos
cia o poder do papa e a authoridade do cle de seu poder e de seus bens. Ellc protes
ro; Luthero havia produzido este duplo ef- tava comtudo que era muito affoiçoado á
feito n’uma parte da Allemanha por suas religião catholica; porém quando viu que
declamações contra o clero; Gustavo favo a maior parte dos suecos tinha mudado de
receu o lutheranismo, e deu secretamente religião, declarou-se cmfim a si proprio lu-
ordem ao cavalheiro Anderson de proteger therano, c nomeou para o arcebispado de
Pétri e os outros lutheranos, c de lhes at- Upsal Lourenço Pétri, ao qual fez desposar
trahir as universidades da Allemanha. uma filha de seus parentes.
Eis a verdadeira causa da mudança de O rei fez-se cm seguida coroar por este
religião na Suécia: ó faltar á equidade e prelado, e depressa a Suécia se tornou
ao discernimento, attribuil-a às indulgên quasi toda luthcrana. O rei, os senadores,
cias publicadas na Suécia pelos olíiciaes de os bispos e toda a nobreza fizeram profis
Leão x, como diz o author d’um tractado são pública d’esta doutrina; mas como a
de historia ecclesiastica. 1 maior parte dos ecclesiasticos de segunda
Olaus e outros lutheranos, confiados na ordem c os curas do campo não tinham to
protecção do chanccller, trabalharam ar mado este partido senão por constrangi
dentemente para o estabelecimento do lu mento o fraqueza, via-se em muitas igre
theranismo: expunham-no todos os dias jas do reino uma mistura extravagante de
com o zelo e transporte proprio para su- ceremonias catholicas e de orações luthc-
blevar os povos contra a Igreja. ranas; sacerdotes c curas casados diziam
A maior parte d’estes doutores tinham a ainda a missa em muitas passagens, segun
superioridade da sciencia e da eloquência do o ritual e a liturgia romana; adininis-
sobre o clero, e mesmo certo ar de regu trava-se o sacramento do baptismo com as
laridade que dão os primeiros favores de orações e os exorcismos como na igreja ca
uma religião nova: eram escutados com tholica; enterravam-se os mortos" com as
•prazer pelo povo sempre ávido de novida mesmas preces que se empregam para sup-
des. e que as adopta sem exame, logo que plicar a Deus a consolação das almas dos
nãó exijam sacrificio, c que não tendam fieis, posto que a doutrina do Purgatorio
senão a abaixar os superiores. Uma appa fosse condemnada pelos lutheranos.
renda de favor que se espalhava impercc- O rei quiz estabelecer um culto unifor
■ptivelmente sobre os pregadores luthera me no seu reino; convocou uma assem
nos, lhes attrahia a attcnçào da côrte c da bléia geral de todo o clero da Suécia, em
primeira nobreza, que não via ainda senão forma de concilio.
os prelados atacados. O chanceller presidiu á assembléia em
Emquanto que estes doutores prégavam nome do rei; os bispos, os doutores c os
publicamente o lutheranismo, Gustavo pela pastores das principaes igrejas compozc-
sua parte procurava com aíTectação diffe ram este concilio lutherano. Pediram a
rentes protestos para destruir o poder tem confissão d’Augsbourg para regra de fé:
poral dos bispos e do clero; atacou, afórà renunciaram solemnemente á obediência
isso, os ecclesiasticos da segunda ordem, e que votavam ao chefe da Igreja; ordena
apoz clles os bispos. Exhibiu successiva- ram que se abolisse inteiramente o culto
mente muitas declarações contra os curas da igreja romana; defenderam a oração
•e bispos cm favor do povoe sobre objectos dos finados; receberam das igrejas lnlhe-
puramente temporaes, taes como a decla ranas da Aílemanha a maneira de adminis
ração que prohibe aos‘ bispos de se apro trar o baptismo e a ceia; declararam os ca
priarem dos bens e da successão dos ec samentos dos sacerdotes legitimos; pro
clesiasticos das suas dioceses: este príncipe screveram o celibato; approvaram de novo
a ordenação que os havia despojado de
t Tractado da Historia Ecclesiastica, seus privilégios e da maior parte de seus
com reflexões, em treze volumes, t. 9 , 1 3 3 bens: e os ecclesiasticos que fizeram estes
* 134. regulamentos eram quasi os mesmos quo
LUT 647
um anno anles tinham apparcntado tanto tou-se a Dantzich para ahi estabelecer o Iu-
zelo pela defesa da religião. theranismo: não exerceu immcdiatamente
Tiveram, todavia, grande diíficuldade cm o seu apostolado sem precaução, ensinan
•abolir a práctica e a disciplina da igreja do-o apenas nas casas particulares. No an
romana na administração dos sacramentos: no seguinte um religioso da ordem de S.
ouviam-se a este respeito queixumes em Francisco pregou muito mais abertamente
todo o reino, de sorte que Gustavo temeu contra a igreja romana, e persuadiu mui
os eíTeitos do descontentamento dos povos, tas pessoas. Estes novos proselytos lança
u ordenou aos pastores e aos ministros lu- ram os catholicos fóra dos cargos c dos lo-
theranos, que usassem de coudescendencia gares que occupavam, e encheram a cida
para com aquclles que roçavam com obsti de de perturbações.
nação as antigas ceremonias, e que não es Os catholicos*, despojados dos seus em
tabelecessem as novas senão quando achas pregos, levaram as suas queixas aos pés de
sem disposições favoráveis nos povos. 1 Segismundo i, que veio a Dantzick, despe
diu os magistrados intrusos, puniu severa
mente os sediciosos, e tirou aos evangéli
DO LUTHERANISMO NA DINAMARCA
cos ou lutheranos a liberdade de se reu
nirem.
Os dinamarquezes, depois de terem ex Entretanto os lutheranos espalhavam se
pulsado Christierno ii, elegeram para rei cretamente a sua doutrina na Polonia; fa
Frederico, duque de Holstein. Christierno ziam proselytos, e não aguardavam senão
voltou á Dinamarca, onde foi preso por uma occasião opportuna para manifestar-
Frederico, c encerrado em Callembourg. se com arruido.
Frederico teve por successor seu filho Esta occasião chegou no reinado do Se
Ghristierno m, que encontrou grandes op- gismundo Augusto, filho de Segismundo í:
posições no começo do seu reinado; a cau este principe, aliás com qualidades brilhan
sa era porque Christovão, conde d’Odem- tes, era fraco, voluptuoso, sem caracter, e
bourg, c a cidade de Lubeck queriam res tornou-se Ioucamenle apaixonado de Rad-
tabelecer Christierno n em seu reinado; zevil; quiz desposal-a e declaral-a rainha;
mas, posto que muitas provincias se tives necessitou do consentimento dos palatinos
sem já entregado, elle venceu todos estes e do senado, e teve respeitos e condescen
obstáculos com o auxilio de Gustavo, rei dendas para com a nobreza.
da Suécia, e se tornou senhor de Copenha- Entre os senhores e os palatinos muitos
gue em 1536; c porque os bispos lhe ti tinham adoptado as opiniões de Luthero, fi
nham sido.mui contrarios, foram excluídos zeram profissão publica da reforma, cila se
do convenio geral e depostos dos seus car estabeleceu em Dantzick, na Livonia e nos
gos. dominios de muitos palatinos.
0 rei fez-se coroar por um ministro pro Depressa a Polonia se tornou um asylo
testante, que Luthero lhe havia iniciado. para todos aquelles que professavam os
Este novo apostolo quiz fazer de papa sentimentos dos pretendidos reformadores.
na Dinamarca: em logar de sete bispos Blandrat, Lelie Socin, Okin, Gentilis e mui
que havia no reino, ordenou sete intenden tos outros, que tinham renovado o arianis-
tes parapreeucherem para o futuro as func- mo, refugiaram-se na Polonia. Estes re-
ções dos bispos, e fazer executar os regu cem-vindos attrahi ram logo a attenção e
lamentos que diziam respeito á ordem ec formaram um partido, que assustou igual
clesiastica. Practicou-se a mesma cousa no mente os catholicos e os protestantes.
reino da Noruega. A Polonia estava repleta de todas as sei
Tal foi o estabelecimento do lutheranis- tas, que despedaçaram o christianismo, que
mo na Dinamarca. 2 se faziam todas uma guerra cruel, mas que
se reuniam contra os catholicos, e que for
DO LUTHERANISMO NA POLONIA, NA HUNGRIA mavam um partido assaz poderoso para
E NA TRÀNSYLVANIA forçarem os catholicos a conceder a todos a
liberdade de consciência* c sob o reinado
No anno 1520 um lutherano transpor- de varios reis, em virtude dos Pacta con
venta, era permittido aos polacos ser hus-
1 Pujjfcndorf. Hist. Suec. Bazius, Hist. sitas, lutheranos, sacramentarios, calvinis-
Eccles. Suec. Revolução da Suécia, de Ver- tas, anabaptistas, arianos, pinezonianos, uni
totjt.l. tários,- trideistas, socinianos e antitrinita-
1 Puffendorf, Introd. á Hist. Universal, rios: tal foi o efTeito que a reforma produ
t. 3, c. 2. ziu na Polonia.
648 LÜT
Os socinianos foram banidos; os outros processo, c foi queimado como um sacri
sectarios gosam da tolerância. 1 lego.
O lutheranismo introduziu-se também na Os theologos, que haviam instruído Le-
Hungria na occasião das guerras de Fer Clerc, sahiram de Meaux; c alguns torna-
nando c de João de Sepus, que disputa ram-se ministros entre os reformados.
vam este reino; estabeleceu-se principal Um nobre d’Artois tomou uma via m ais
mente quando Lazaro Simenda, tendo che segura para espalhar os erros de Luthero:
gado ahi com as suas tropas tomou muitas traduziu as suas obras. Os erros luthera-
cidades, nas quacs collocou ministros lu- nos espalharam-se pois principalmente en
theranos, e d’onde expulsou os catholicos; tre os que sabiam lêr, c os lutheranos fo
elles uniram-se algumas vezes aos turcos, ram tractados desde logo com mais atten-
que os sustentaram contra os imperadores, ções no reinado de Francisco i. Este prin
e obtiveram o livre exercício da confissão cipe, amigo das letras c protector das pes
d’Augsbourg. soas lidas, usou logo de muita indulgência
Na Transylvania o lutheranismo e a re para com aquellcs que seguiam as opiniões
ligião catholica foram alternativamente a de Luthero; mas alfim o clero, espantado
religião dominante: a segunda foi quasi do progresso destas opiniões em França,
abolida no reinado de Gabriel Battori, e obteve do rei editos mui severos contra
não principiou a estabelecer-se senào de aquellcs que fossem convencidos de luthe
pois qne o imperador Leopoldo se tornou ranismo; e emquanto que Francisco i de
senbor d’ella. fendia os protestantes da Allemanha con
O kuheranismo estabeleceu-se também tra Carlos v, fazia queimar em França os
em Courlande, onde se tem conservado, e sectarios de Luthero.
tornado a religião nacional. O rigor dos castigos nào evitava o pro
gresso do erro, e os discipulos de Luthero
e de Zuinglio se espalharam em França: Cal
DO LUTHERANISMO F.M TRANÇA E EM OUTROS vino adoptou os seus princípios e formou
ESTADOS DA EUROPA uma seita nova, que suíTocou o lutheranis
mo em França. Vede o artigo Calvinistno.
O lutheranismo feç progressos mais ra
A faculdade de theologia condemnou os pidos c mais extensos nos Paizes-Baixos,
erros de Luthero quasi no seu nascimento. onde havia uma inquisição, mais abusos e
Esta censura solida, imparcial e sabia não muito menos illustraçãó que em França:
suspendeu a curiosidade: quizeram-se co fizeram lá morrer um grande numero de
nhecer as opiniões de um homem que ti lutheranos: estes rigores e a inquisição
nha dividido a Allemanha em duas facções, causaram a revolução, que arrebatou as
e que luetava contra os papas e contra o Provincias-Unidas a Hcspanha.
poder imperial. Os sectários de Zuinglio e de Calvino pe
Léram-se as suas obras, e teve approva- netraram nos Paizes-Baixos, como os lu
ções; porque ó impossível que um homem theranos, e tornaram-se a seita dominante.
que ataca abusos nào encontre approvado- Védc o artigo Ilollanda.
res. Na Inglaterra, Henrique vtu escreveu
Alguns ecclesiasticos, aíTciçoados ao bis •contra Luthero, e tractou rigorosamente os
po de Mcaux, adoptaram algumas das opi que adoptavam os ei'ros d’este reformador
niões de Luthero; communicaram-no a al c os dos sacramentados: disputava contra
gumas pessoas simples c ignorantes, mas elles, e os fazia queimar quando não os po
capazes de se inflammarem e de transmit- dia converter.
tirem o seu enthusiasmo; tal foi João Le Eduardo vi tolerou-os, c mesmo os favo
Clerc, cardador de lã, em Meaux, que foi receu: a rainha Maria, • que succedeu a
nomeado ministro do conventiculo que ti Eduardo, os fez queimar: Elisabeth, que
nha adoptado as opiniões lutheranas. succedeu a Maria, perseguiu os catholicos,
Este homem, d’um caracter violento, pre e estabeleceu om seu reino a religião pro
gou logo publicamente, e declarou que o testante, que tinha já ganho toda a Escó
papa era o Anti-Christo: foi préso, marea cia. Védc o artigo Inglaterra.
do e banido do reino; rétirou-se a Metz, on A Italia, a Hespanha e Portugal não es
de, tornando-se furioso, entrou nas igrejas caparam aos erros de Luthero; comtudo os
c despedaçou as imagens: fez-se-lhe um, •lutheranos não poderam formar ahi um
partido considerável.
Í
gou^dTvTncTade do Espirito Sancto. dos ^"mais inimigos com o partido particular.
Os novacianos tornaram-se o objecto do
zelo de Macedonio: soube que na Paphla
gonia existia um grande numero d’elles, e
por isso obteve do imperador quatro regi
mentos, que ahi enviou para os obrigar a
abraçarem o arianismo. Os novacianos, in
formados do projecto de Macedonio, toma
Depois da morte d'Alexandre, bispo de ram as armas, vieram ao encontro dos sol
Constantinopla, os defensores da consub- dados, bateram-sc com furor, aniquilaram
stancialidade do verbo elegeram para seu os quatro regimentos, e mataram quasi to
successor Paulo, c os arianos Macedonio. dos os soldados.
Constancio expulsou os dous candidatos, Algum tempo depois d’esta calamidade,
o collocou na Sé de Constantinopla a Euse- Macedonio quiz transportar o corpo de
bio de Nicomedia. Constantino para fóra da igreja dos Apos
Morrendo Euscbio, foram chamados Pau tolos, porque esta se achava em ruinas:
lo c‘Macedonio, cada um pelos seus parti uma parte do povo approvou esta traslada-
dários, e desde então começaram em Con ção, e outra sustentou que era uma impie
stantinopla as intrigas, a perturbação c as dade, e olhou esta trasladação como ultra
sedições. ge feito á memoria de Constantino. A esf
Constancio enviou Hermogenes a Con partido se uniram os catholicos, tornai
stantinopla para expulsar Paulo; o povo do-se elle considerável
oppôz-se-lhe, pegou em armas, incendiou Macedonio sabia d’estas opposições, nn.
o palacio, arrastou Hermogenes pelas ruas não julgava que um bispo devesse atten
c o espancou. O imperador voltou a Con del-as, e por isso fez transportar o corpo
stantinopla, expulsou Paulo, e privou a ci de Constantino para a igreja de Sancta
dade de metade do trigo que se distribuía Acacia; todo o povo alli eonlluiu; a con
aos habitantes; ninguem morreu, porque corrência dos dous partidos produziu nos
o povo apresentou-se-lhe chorando e pe espíritos uma cspecie de choque; irrita-
dindo perdão. ram-sc, vieram ás mãos, e a nave da igre
O imperador, que attribuia parte dos tu ja e a galeria ficaram repletas de sangue
multos a Macedonio, não quiz confirmar a e de carnificina.
sua eleição, e tão sómcntc lhe pcrmiltiu Constaucio, que então se achava no Oc
celebrar assembléias em sua própria igreja. cidente, sentindo quanto um homem do ca
As outras igrejas continuaram apparente- racter de Macedonio era perigoso na sé de
mente sob a direcção dos sacerdotes da Constantinopla, fel-o depor, posto que Ma
facção de Paulo, o qual voltou a Constan cedonio perseguisse os catholicos, que Con
tinopla pouco tempo depois da partida de stancio queria destruir.
Constancio, que ordenou ao perfeito do Macedonio, deposto por Constancio, con
pretorio de o expulsar, collocando Mace cebeu um odio violento contra os arianos,
donio cm seu logar. que Constancio protegia, c contra os ca
Philippe, prefeito do pretorio, fez pren tholicos, que tinham tomado partido contra
der Paulo, e apparccçu.em seu carro, ten elle; para se vingar, reconheceu a divin
do a seu lado Macedonio, que conduzia â dade do Verbo, que os arianos negavam,
sua igreja. e negou a divindade do Espirito Sancto,
Este mesmo povo que pedira perdão a que os catholicos reconheciam também
Constancio, correu á igreja para d’ella se como a divindade do Verbo.
Apoderar â força: os arianos e os catholi D’est’arte, com costumes irreprehensi-
cos quizeram expulsar-se reciprocamente; yeis, Macedonio era um ambicioso, um ty
a desordem c a confusão tornaram-se ex ranno, que tudo queria subjugar, um or
tremas; os soldados, julgando quo o povo gulhoso, que, para sustentar uma prirncira
se sublevava, carregáram sobre ellc, bate tentativa nas menores cousas, teria sacri
ram-se, c mais de tres mil pessoas foram ficado o imperio; um barbaro, çjue perse
mortas a cutiladas ou esganadas. 1 guia a sangue frio tudo o que não pensava
Depois d’esta horrível carnificina, Mace
donio subiu â cadeira episcopal, apoderou-
monte Sinai para livrar o seu povo. 4 passagens que havemos citado, c os racio
cínios que temos junto são sufficientes para
1 Isaias, 6 . Act. ultim. v. 25. os refutar. Os que desejarem entrar nes
2 Act. 5, v. 3. sas particularidades achai-às-hão nos theo
3 P rim a Cor. 2 2 , v. 4 . logos catholicos e protestantes.
4 Genes. 1 8 , v. 2 1 . Exod. 18, 19, etc. Nós diremos sóinente que M. Clarkc re-
MAN 663
conhece que estas passagens nào se podem Os remédios c os dcsvelos de Manés fo
explicar senão mui diíficilmentc, segundo ram inúteis; o filho do rei morreu, e fize
a hypothcsc sociniana, e que clíe não co ram prender Manés. 1
nhece resposta, porque não oppõe nenhu Achava-sc ainda préso, quando os seus
ma ás consequências que os catholicos ti dous discipulos Thomaz c Buddas vieram
ram, e é o que elle nào carece de fazer, dar-lhe conta da sua missão. Atcmorisados
quando se tracta de defender os socinianos. pelo estado em que acharam seu mestre,
Não pretendo por isto tornar M. Clarkc pediram-lhe para pensar no perigo em que
odioso; queria sómente inspirar áquellcs se achava. Manés escutou-os sem agitação,
que atacam os mysterios uma pouca.chi- calmou a sua inquietação, fez-lhes encarar
nha de modestia c de reserva, pondo ante o seu receio como uma fraqueza, reani
seus olhos um clero embaraçado c sem dar mou a sua coragem, inflammou a sua ima
réplica sobre matérias em que clles deci ginação, levantou-se, póz-se em oração, in
dem como mestres. spirou-lhes uma submissão cega ás suas
Não examinaremos aqui as difficuldadcs ordens, e uma coragem á prova de perigos.
pelas quaes se pretende provar que repu Thomaz e Buddas, dando conta da sua
gna haver cm Deus uma pessoa divina dis missão a Manés, lhe fizeram vôr que não
tincta do Padre; examina 1-as-hemos no ar tinham encontrado inimigos mais territeis
tigo A n ti-trin ita rio s. do que os christàos. Manés sentiu a neces
e manes—chamava-se originar iamente Cu- sidade de os conciliar, e formou o proje
/ bricus,liascido na Persia em 240: uma mu- cto de ligar seus princípios com os do
- lher de Ctesiphonte, muito rica, comprou-o Christianismo: enviou os seus discipulos a
| quando elle nào tinha ainda mais que sete comprar os livros dos christàos, e durante
' annos d’idadc; fel-o instruir com muito des a sua prisão accrescentou aos livros sagra
I velo, e deixou-lhe por sua morte todos os dos, ou supprimiu tudo o que era favorá
seus bens. vel ou contrario a seus princípios.2
Cubricus, possuidor d’um a grande for 1 Exlractamos originalmentc a historia
tu n a , foi residir perto de Palais, e tomou o de Manicheu ou de Manés d'uma peca an
• nome de Manés. tiga, que tem por titulo Acta Disputationi?
Manes achou entre os bens da sua bem- Archelai, episcopi mesopotamue et Mane
feitora livros d’um tal Scythiano; leu-os, c tis «haeresiarcha}.
viu que o espectáculo dos bens c dos ma Esta peça foi publicada debaixo d'este ti
les, cujo theatro é a terra, havia levado tulo por M. Zacagni, bibliothecario do V(t-
Scythiano a suppôr que o mundo é obra ticano. Vide Monumenta ecclesia} graecac
de dous princípios oppostos. dos quaes um et latinaí. Roma), 1698.
é cssencialmente bom, e o outro essencial ãf. de Valois inseriu quasi toda esta dis
mente mau; mas que sào ambos eternos e puta nas suas notas relativamente a Socra
independentes. Manés adoptou os princi- tes; acha-se cila no terceiro torno de l)om
pios de Scythiauo, traduziu os seus livros, Cellier, sobre os authores ecclesiasticos, em
I fez-lhes algumas mudanças, e deu o syste Fabricius, t. 2.
ma de Scythiano como obra sua. Não ex Foi sobre esta conferenda de Archelaus
poremos aqui esse systema, porque o ex que Sancto Estevão trabalhou em 371, Só
pomos no artigo Mamcheismo; diremos so crates em 430, e Heraclio no fim do. 16.*
mente que o bom e mau principio são a século; acha-se citada ríuma antiga cadeia
luz e as trevas. Manés teve ao principio grega a respeito de S. João. (Vêde Zacagni,
poucos discipulos. Pracf. pag. 11. Fabr. ibid.)
Tres dos seus discipulos chamados Tho- M. Beausobre reconhece que essas aclas
maz, Buddas, e Hermas, foram prégar a são antigas, mas julga que esta antiguida
sua doutrina nas cidades c burgos da pro de não prova a sua authenticidade, e não
vincia para onde Manés se tinha retirado levanta as difficuldades que fa z contra essa
depois de ter deixado a capital; c forman obra.
do logo maiores desígnios, enviou Thomaz Depois de ter lido mui attentamente as
e Buddas ao Egypto e á India, e reteve razões de M. Beausobre, não fui da sua
junto d’cllc Hermàs. opinião, e segui as actas da disputa de Cas
Durante a missão de Thomaz e de Bud car; darei n u m a nota algumas provas da
das, o filho de Sapor, rei da Persia, cahiu insufficiencia das razões sobre, que M. de
perigosamente enfermo. Beausobre rejeita como supposta a historia
Manés, que era douto em medicina, foi da disputa de Cascar.
chamado, ou elle mesmo se foi olTereccr * Este artigo é um dos grandes meios
para tractar este principe: coníiaram-llfo.
m MAN
Manes leu nos livros sagrados, que uma cios, nem uma má arvore bons fruetos, &
boa arvore uào póde produzir maus fru julgou poder sobre esta passagem estabe-
ctados com muito rigor: ellcs se multipli c o mau principio as trevas, c esta luz es
caram comtudo; c seis séculos depois de palhada na matéria tenebrosa, animava tu
Manes, nos tempos de trevas c de ignorân do que vivia.
cia, nós vemos os manichcus muíliplica- Vé-sc facilmente que os princípios do
rem-sc prodigiosamente, c fundarem um manicheismo sobre a natureza c origem da
estado, que fez tremer o imperio de Con- alma podiam conduzira maximas austeras,
stantinopla. É interessante conhecer as dif e a uma pureza de costumes que se podia
ferentes fôrmas que tomou esta seita, seus olhar como a perfeição da moral christà,
progressos e cíTeitos no Oriente c no Occi ou levar a um quictismo que deixava ope
dente. rar todas as paixões cm liberdade.
MANiCHBü^—Discipulos de Manés, ou se- Assim os espíritos simples ou superfi-
ctariosíua sua doutrina: os principacs dis ciaes, que não se ligam senão ás palavras,
cipulos de Manés foram Ita n a s, Uuddas e e que julgam só sobre as primeiras appa-
TUoma?, que foram ao Egypfó, á Syrui, ao rencias; os christàos teimosos da philoso-*
Oriente c á índia levar a doutrina de seu phia pythagorica, platônica c stoica; os..bo-|
mestre; elles supportaram ao principio bas mens d’um caracter duro, austeco, rigidoi
tantes desgraças, c fizeram poucos prosely c melancfiólTcó' ou d um temperamento vo
tos. Iremos primeiro expôr os seus princí luptuoso,, achavam no manicheismo princí
pios c a sua origem, e depois exporemos pios satisfactoriòs.
os seus progressos. Os primeiros discipulos de Manés não
tardaram pois em fazer proselytos, c estes
oram bastante numerosos na Africa pelos
§ I fins do terceiro século.
Como começaram os manichcus, os seus Como os imperadores romanos odiavam
princípios c a sua moral os persas, e olhavam os manicheus como
uma religião vinda da Persia, perseguiram
com rancor nacional os manicheus, antes
Os primeiros sectarios de Manés compo- que o Christianismo fosse a religião dos
zeram diversas obras para defender as suas imperadores, e por zelo pela religião; as
idéias, c como Manés tomara a qualidade sim os manichcus foram perseguidos qua
de apostolo de Jesus Christo, aproximaram si sem descanso; elles não podiam formar
tanto quanto lhes foi possível os princípios em todos estes tempos senão uma seita, de
philosophicos dc Manés aos dogmas do Chris alguma sôÜê-^CfUCta, que devesse cahir
tianismo: moderaram, pois, müito o syste nofiffltrfismo, c dos princípios geraes do
ma dc Manés, e fizeram a varios respeitos manicheismo tirar mil dogmas particula
dcsapparecer pelo menos na apparencia a res, absurdos, c uma alluviao dc prácticas
opposiçào do manicheismo e do Christia c dc fabulas insensatas.
nismo. Do modo que os manicheus eram perse
Outros discipulos dc Manés, taes como guidos, elles tomavam muitas precauções
Aristocritc, pretendiam que no fundo todas para não admittir no seu grêmio senão h o -,
as religiões, paga, judaica, christà, etc., mens seguros: assim tinham um certo tem- \
convinham no principio c nos dogmas, c po de provas, e havia entre elles cathccu- ]
que hão diíferiam senão em algumas cere menos, auditores e eleitos.
monias: cm ioda a parte, dizia elle, um Os ovintes ou auditores viviam quasi
"Deus supremo e deuses subalternos; aqui como os outros homens; para os eleitos ha
sob o nome do Deus, acolá sob o nome de via um genero dc vida totalmcnte differen
anjos; em toda a parte templos, sacrifícios, te, c uma moral mui singular formada so
orações, offerendas, recompensas e penas bre os princípios fundamentacs do mani-
na outra vida; envtoda a parte demoniosc chcismo.
um chefe, principal author dos crimes, e De modo que, como n’cste systema o
entarregado de os p u n ir.1 mundo era o efleito da irrupção que o mau
0 systema philosophico dc Manés e o seu principio fizera no imperio da luz, e acre
/sentimento sobre a origem da alma, tinha ditavam que o principio benefico não era
/idemais muita rekioão com a philosophia mais que a luz celeste; diziam que a parte
Jde Pythagoras c de Platão, c mesmo com d,e.Deus abandonada ás trevas cstava^és-
3/os princípios dos stoicos: elle acreditava páíhida gnOódos, os corpos .do.. cjSFjpla
que o bom principio não era senão a luz, terra, o que éíía.ahi se achava escravisada
c manchada: que aIguma^cTcstas.pareelías
1 Formula receptionis Manichworum, dò luz íião se libertariam nunca d>sta es-
apud Cottelerium in Patribus Apostolicis. crávldãòr'c permaneceríam ligadas por
\
608 MAN
.uma eternidade a um globo, de trevas, e.se colhidos dos nianichcus a estas consequên
•c^nservariain eleriiamente com os espíri cias que pareceram extraordinarias, c mes
tos tenebrosos. mo impossíveis n’um tal homem, (pie tem
5 Estás porções de luz celeste, ou do bom talvez mais de uma cousa d’esta especie a
'principio, espalhadas em toda a natureza, censurar.
o encerradas nos diversos orgàos, jornia- Entre os chefes dos nianichcus havia
. vam os animaes, as plantas, as arvores, e quem olhasse a necessidade de sc alimen
'gQraJnijcntc tudo o que tinha vida. tar debaixo d’um aspecto mais consolador;
Logo que unia das porções (ia luz cclcs- elles acreditavam que um eleito, comendo*
. te, e que era uma porção da divindade, lo- libertava as mais pequenas parles da di
<go, digo eu, que esta porção de luz estava vindade unidas ã materia que comia, c que
unida a um corpo pela via da geração, cila do seu eslomago cilas voavam ao céo, c sc \
. se achava ligada á matéria muito mais es- reuniam á sua origem: assim, era um acto \
itreitamente que d’antes; assim o casamen de religião, e uma obra do piedade subli
to não fazia senão perpetuar o capliveiro me, quando um eleito comia com excesso; j
idas almas, e cllcs couçhüiua.iIue_(i._çasa- elle se olhava, não como o salvador de u m /
‘imcnto ora jujn..cstad.o, imperfeito ,ç,.çrjjni- homem, mas de Deus. 1
E’ facil vér que os princípios fundanien-
(" Havia nianichcus que acreditavam que taos conduziam a consequências absoluta-
Ias arvores e as plantas tinham, assim co incntc dilTerentcs, c mesmo oppostas, se
mo os animaes, percepções; que viam, que gundo os caracteres e as circumstandas:
ouviam, e que eram capazes de sentir pra parece que imputavam aos nianichcus mui
zer c dõr: de sorte que .sc não podia co- tas d’cstas consequências, que elles mes
illier um frueto, cortar um legume, dccepar mos não tinham tirado; imputavam-lhes ^
juma arvore, sem que a arvore oú a plan lambem o commetter horrores e infamias)
ta se resentissem de dõr; e pretendiam que em suas assembléias secretas.
* o leite que sahe como uma lagrima da ü-
! gueira que sc arranca, era d’isto uma pro § ii
va sensível: c por esta razão que não que-
; riam que se arrancasse a menor herva, Do progresso c da extincrão dos maniçheus
í mesmo os espinhos, e posto que a agricul
tura seja a arte mais innocente, elles a con- Desde Dioclcciano até Anastacio, os im
f. demnavam, todavia, porque se nào podia peradores romanos fizeram todos grandes
í exercer, sem commetter uma infinidade de esforços pajra destruir os maniçheus: elles
morticidios. foram banidos, exilados, despojados de seus
| Parece que com taes. princípios os mani- bens; condemnados a perecer por meio de
! clicus deviam morrer de fome: elles acha dilTerentcs supplicios: renovaram-sç fre
ram o meio de evitar esta ' consequência. quentes vezes estas leis, c sc executaram
Persuadiram-se que homens tão sanctos rigorosamente perto de dous séculos (des
(ver
como cllcs deviam ter o privilegio de vi
do crime dos outros, protestando, to-
de 285' até 491).
No rqjnado de Anastacio houve mais in
i davia, pela sua innocencia: assim quando dulgência para com elles, em razão de sua
| se levava pão a um mauichcu eleito, elle mãe ser manicheia: c cllcs prégavam a sua
sc retirava um pouco á parte, fazia as mais doutrina com mais liberdade; porém foram
í terríveis imprecaçpes contra os que lh’o privados d’ella sob o dominio de Justino c
f traziam, depois, e dirigindo-se ao pão, dizia de seus successores.
7 suspirando: «Não fui ouquevos colhi, que Reinando Constancio, neto de Ilcraclio,
I vos moí; não vos amassei, não vos deitei ao uma mulher chamada Callinice, e mani
forno; assim, sou innocente de todos os ma cheia zelosa, tinha dous filhos, a quem cila
lles que tendes soíTrido: eu desejo ardente- nutriu nos mesmos princípios: estes jovens
| inente que aquelles que vol-os fizeram os chamavam-se Paulo e João; logo que esti
experimentem também.» veram em estado de prégnr o manicheis-
i Depois d’esta piedosa preparação, o es- mo, cila os enviou á Armenia, onde fize
?colhido comia com prazer, digeria sem es ram discipulos, que olhavam Paulo como o
crúpulo, e sc consolava com a esperança apostolo que lhes havia feito conhecer a
t que linha de que aquelles que lhe procu- verdade: tomaram o nome d’este apostolo,
I ravam do comer seriam pánidos rigorosa-
■ mente. * Disp. Archelai.' Epiph. Hccrcs 6. Ai"J-
Um mixto de extravagante sensualidade, de Moribus Manichceorum, de limr.es. op.
de superstição e de dureza conduzia os es imperfect. I. c. 6.
/
MAN 669
o sc chamaram paulinos (pelo meio do 7.° Um armênio, por nome Paulo, escapou-
século.) se, e levou comsigo dous filhos, instruiu-os,
Paulo teve por successor Constantino, pòz um à frente dos manicheus, e lhe deu
<]uo se chamava Sylvano. o nome de Timotheo: depois da morte d’cs-
Este Sylvano cinprehendeu reformar o ma* tc ultimo, Zacharias e José se disputaram
itichcisino e harmonisar o systema dos dons a qualidade de chefes dos manicheus, c
princípios com a Escriptura Sagrada; de sor formaram dous partidos: bateram-se; e os
to que a doutrina de Sylvano parecia toda serraccnos tendo feito uma irrupção n1es
exlrahida da Escriptura, tal como os ca tas regiões, degolaram quasi todo'o parti
tholicos a recebiam, e não queria reconhe do de Zacharias; José mais astuto, achou
cer outra regra de fé. AÍTectava servir-sc meio de agradar aos serraccnos, e de se re
dos termos da Escriptura, fallava como os tirar a Episparis, onde a sua chegada cau
orthodoxos, quando se referia ao corpo, c sou grande alegria. Um magistrado zeloso
ao sangue de Jesus Christo, á sua morte, pola religião, forçou José a saliir de Epispa
ao seu haptismo, á sua sepultura, c á re- ris, e elle se retirou a Antiochia, onde fez
surreição dos mortos; elle suppunha, como uma grande quantidade de proselytos. De
os orthodoxos, um Deus Supremo, mas di pois da morte de José, os paulinos se divi
zia que elle não linha no mundo imperio diram ainda cm dous partidos: um tinha
algum, pois (juc tudo ia mal: attribuia o por chefe Sergio, homem sagaz, e nascido
seu governo a um outro principio, cujo com todos os talentos ‘proprios para seduzir.
imperio nào sc estendia além d’cste mun 0 outro partido estava ligado a Daanes:
do, c acabaria com o mesmo. Tinha uma depois de muitas contestações, os dous par
nversão singular ás imagens e á cruz: era tidos vieram ás mãos, e se destruiríam, se
uma consequência do seu erro sobre a en Theodoto nào os reconciliasse, recordando-
carnação, sobre a morte e a rcsurrciçào lhes que eram irmàos, c fazendo-lhes sen
dc Jesus Christo, que nào reputava, reacs. tir que suas divisões os perderíam.
Condcmnava os catholicos como incursos A imperatriz Theodora, tendo tomado
nos erros do paganismo, honrando os san as redeas do governo durante a menorida-
ctos como divindades, o que cra contrario de de Miguel, cm 8 4 1, restabeleceu o cul
á Escriptura. Pretendia que era para oc- to das imagens, e julgou dever empregar
cultar aos leigos esta contradicçào entre o toda a sua authoridade para destruir os
culto da igreja catholica e a Escriptura, manicheus; enviou a todo o imperio ordem
que os sacerdotes prohibiam a leitura desta. de dcscobril-os, c de matar todos os que
Por meio d’cstas calumnias os inauichcus nào se convertessem. Mais de cem mil ho
seduziam muita gente, c^a sua seita nào se mens pereceram por ineio de diíTerentes
oITereeia aos espíritos simples senàocomo cspecies de supplicios.
urna sociedade de christàos, que fazia pro- Um tal Cerbeas, ligado a esla seita, sa
fissào d'uma perfeição extraordinaria. bendo que seu pac fòra crucificado, por
Sylvano ensinou à sua doutrina durante nào ler querido renunciar assuas crenças,
quasi vinte e sete annos, e fez muitos sectá se salvou com quatro mil homeus entre os
rios. O imperador Constantino, successor serraccnos, uniu-se a elles, e assolou as
dc Constaucio, informado dos progressos terras do imperio.
de Sylvano, encarregou um ofiflcial, chama .Os paulinos fundaram cm seguida mui
do Simào, dc ir prendel-o e de o fazer tas praças fortes, onde os manicheus, que
morrer. o terror dos supplicios tinha conserva
Tres annos depois da morte de Sylvano, do escondidos, se refugiaram c formaram
Simào que o havia feito apedrejar, deixou uma potência formidável pelo seu nume
secretam ente Constantinopla, foi procurar ro c pelo seu odio implacável contra os
os discipulos dc Sylvano. reuniu-os e tor- imperadores e contra os catholicos: viram-
nou-se seu chefe; tomou o nome de Ti to, se muitas vezes, unidos aos serraeenos, ou
c perverteu muita gente, pelo fim do 7.° sós, assolar as terras do imperio, e destruir
século. exercitos romanos. Uma batalha desgraça
Simào, c um tal Justino, tiveram contes da, na qual Chrisochir, seu chefe, foi mòr-
tação sobre o -sentido d’umá passagem da to, aniquilou esta nova potência, que os
Escriptura: Justino consultou o bispo de supplicios tinham creado, c que havia fei
Colonia; Justiniano n, successor dc Con to tremer o império de Constantinopla.1
stantino, informado pelo bispo de Colonia
de que havia manicheus, enviou ordens 1 Photius, de Manichceis repullulantibus,
para que fossem mortos todos aquclles que Bibliot. Croitsiana, pag. 349. Petrus Sicu
nào quizessem convcrtcr-se. lus, de Manichwis. Cedremis.
670 MAN
Que me seja permittido fixar um mo o author dos males quo a illigem o impé
mento a attenção do meu leitor sobro os rio.
acontecimentos que vcnlio de desenrolar Em seguida á derrota do exercito do
ante seus olhos. Chrisochir, os restos da seita dos manichcus
Manés ensina livremente sua doutrina se dispersaram do lado do Oriente, fizeram
em Cascar e em Didoride; Archelaus o alguns estabelecimentos na Bulgaria, c cer
combate com as armas da razão c da reli ca do 10.° século, se espalharam na Italia:
gião: dissipa seus sophismas; faz vér a tiveram estabelecimentos consideráveis na
verdade do Christianismo em toda a ple Lombardia, d’onde enviaram pregadores,,
nitude; e Manés é olhado por toda a pro que perverteram muita gente.
vincia como um impostor: ninguem caba Os novos manicheus tinham feito altera
lado pelas suas razoes, nem inllammado ções na sua doutrina; o systema dos dous-
por seu fanatismo. principios não estava bein desenvolvido;
Manés, desesperado, passou á Persia; mas haviam conservado todas as conse
Sapor o faz perecer, c seus discipulos al quências sobre a Incarnação, sobre a Eu
cançam proselytos. charistia, sobre a Virgem Sancta e sobre
Dioclcciano é informado do que ha no os Sacramentos.
império romano discipulos de Manés, con- Muitos dos que abraçaram estes eram
demnou ao fogo os chefes d’esta seita, e os enlhusjastas, que a pretendida sublimida
manichcus se^nultiplicam. de da moral manicheia havia seduzido;
Durante mais de 600 annos os exílios, taes foram alguns conegos d'Orleans, que-
os desterros e os supplicios são emprega tinham grande reputação de piedade.
dos, inutilmente, contra esta seita; na ine- O rei Roberto, sendo d’isto informado,,
noridade de Miguel, os manicheus espa- fez reunir um concilio, examinaram-so os
ham-so em todo o império: a piedade de erros dos novos manicheus, os bispos fize
Hicodora quer destruir esta seita; ella a ram inúteis esforços para os desenganar:
ére, seu zelo immola mais de cem mil «Pregai, responderam elles aos bispos,
manichcus obstinados, e do sangue xTestes pregai vossa doutrina aos homens grossei
infelizes vé sahir uma potência inimiga da ros e viciosos; quanto a nós, não abando
religião c do imperio, que foi longo tempo naremos as crenças que o Espirito Sancto
funesta a uma e a outro, e que apressou gravou em nossos corações; tarda-nos que
as conquistas dos serraccnos, o engrande- vós nos envieis ao supplicio, vémos nos
cimento do mahometismo, e a ruina do im ccos Jesus Christo que nos estende os bra
pério. ços, para nos conduzir cm triumpho á cor
Se Marcello, em cuja casa se eíTectuou a te celeste.»
conferência entre Manés c Archelaus, ti O rei Roberto os condemnou ao fogo, c-
vesse dito a Diocleciano: «Opponde aos elles se precipitaram nas chammas com
manicheus homens taes como Archelaus, grandes transportes d’alegria (anno 10â2.)
elles suspenderíam os progressos domani- Os manicheus fizeram muito mais pro
cheismo, como esse bispo abafou na sua gressos no Langucdoc e na Provença. Rc-
provincia esta seita nascente: o fogo da uniram-se muitos concilios contra elles, e
perseguição que vós ateaes contra elles, queimaram-sc muitos sectários, mas sem
fará sahir das cinzas d’esses sectarios uma extinguir a seita; elles penetraram mesmo
potência formidável para vossos successo na Allemanha, c passaram á Inglaterra;
res.» Diocleciano teria olhado Manés co em toda a parte fizeram proselytos, mas-
mo um insensato, e seus cortezãos teriam em toda a parte os combateram e os refu
sustentado que elle queria aviltar a autho- taram.
ridade soberana. O manicheismo perpetuado através de-
Se, quando Theodora dava suas ordens todos estes obstáculos, degenerou insensi
para exterminar de morte todos os mani velmente, o produziu no 12.° século e no-
cheus, um sabio, lendo no futuro, tivesse •I3.° essa multidão de seitas que faziam
dito á imperatriz: «Princeza, o principio profissão de reformar a religião c a Igre
do zelo que vos anima é louvável, mas os ja; taes foram os albigenses, os petrobru--
m eios que empregacs serão funestos á sianos, os hcnriquenscs, os discipulos de
Igreja e ao imperio»; este sabio teria sido Tanchelin, os popelicanos; é os catharos.1
olhado como um mau homem, e como um
inimigo da religião; depois da revolta de • Vide relativamente aos manicheus de
Carbéas não ha ninguem a quem não o te Italia e das Galias Acta concit., Aurelia-
nham imputado, o que não fosse eonde- nensis, Spicilrg, t. 2. Laba, conc., t. 9.
mnado como um manicheu, e punido como Virgnier, Bibliot. llist. 2, part., an. 102?,
b
MAN 671
MANiciiEiSMO— Systema dc Manés, que bens c dc males: os homens que experi
consistia cm conciliar, com os dogmas do mentavam successivamente estes bens e
Christianismo a opinião que suppõo que o estes males, haviam ellcs mesmos feito o
mundo o os phcnomenos da natureza tccm bern c o mal; algumas vezes partilhavam
por causa dous princípios eternos e neces seus fruetos e seus rebanhos, com seus al-
sários, dos quaes um é ossencialmentc liados; outras vezes assolavam as messes
bom, e o outro esscncialmento mau. dc seus inimigos, roubavam seus reba
Vamos desenvolver os princípios d’este nhos, c matavam animaes para se nutrir;
systema, e fazer vér seu absurdo, e como julgaram que séres insensíveis e similhan-
M. Bayle, por occasiào do combate do sys tes aos homens tornavam seus campos es-
tema do Manés apresentou uma multidão tereis, assolavam suas searas, e faziam pe
de dilficuldades contra a providencia c recer seus rebanhos.
contra a bondade de Deus. Exporemos as Como os homens não roubavam os fru
dilficuldades de M. Bayle cm favor do ma- etos c as messes dos outros, não matavam
nicheismo, c faremos vér que estas diífi- osanimaes senão para se nutrirem, julga
culdades que se repetem com tanta con ram que os séres invisíveis ou os espíritos,
fiança, são sophismas. não prejudicavam as searas, ou não faziam
morrer os animaes senão para seu susten
§ I to; créram impedil-os de fazer mal aos re
banhos e ás searas, ou mesmo aos homens,
Dos princípios do manichcismo dando-lhes de comer, c ofTerecendo-lhcs
antes de Manés uma parte dos legumes e da carne dos
animaes que matavam.
Esta partilha que os homens faziam dos
. Para descobrir os primeiros passos do seus alimentos com os séres invisíveis, aos
espirito humano no manichcismo, é mister quaes attribuiam a esterilidade dos seus
collocarmos-nos n’esses séculos barbaros, campos, ou a morte dos seus rebanhos, foi
em que as guerras, as paixões, c ,a igno entre estas nações barbaras o primeiro sa
rância, tinham desfigurado a ideia do Ente crificio.
Supremo, espalhado espessas trevas sobre Attribuiu-sc successivamente a estes es
o dogma da Providencia, e feito de uma píritos todns os gostos, todas as paixões
parte do genero humano nações selva humanas; renderam-lhes todas as especics
gens. de culto que podiam lisongear estas pai
Engolfados no esquecimento da sua ori xões ou estes gostos: tal é a origem d’esses
gem e do seu destino, os homens não se cultos religiosos tão insensatos, tão extra
viram mais se não como séres sensíveis, vagantes e tão obscenos, dos quaes a his
que experimentavam successivamente dif toria nos tem conservado os traços, e que
ferentes necessidades, taes como a fome, se encontram hoje todos entre os povos do
a sédc, etc., etc., e que eram affectados de novo mundo, á proporção do grau de luz
sensações agradaveis ou dolorosas, taes a que cada nação se ha elevado.
como o frio, o calor, etc. Esgotados inutilmente estes recursos pa
Guiados só pelo instincto, ellcs procura ra suster a corrente dos males, julgou-se
ram os fractos ou os legumes proprios a que havia genios insensíveis ás homena
nutri 1-os, aprenderam a cultival-os, crea gens dos homens, geniòs que tinham para
ram rebanhos, cobriram-se dc suas pelles, o mal uma determinação inflexível, e que
c formaram povos pastores e cultivado não procuravam na desgraça dos homens
res. mais do que um espectáculo.
A fertilidade, da terra não é constante: O imperio da natureza foi, pois, partilha
as tempestades, o rigor das estações, as in do entre duas cspecies de potências con
temperies do ar, fizeram perecer os fru- trarias, entre genios bons e genios malfa
ctos, os legumes e as messes; alimentos zejos: d’aqui vem essa religião barbara,
insalubres, ventos perniciosos, fizeram mor que, para se tornar propicia aos genios
rer os rebanhos; as doenças desolaram as malfazejos, offerecia victimas humanas, e
familias reunidas. votava á morte os povos vencidos.
Os homens viram-se então, cercados de Reflectindo sobre estes genios, que olha
vam como os senhores da natureza, viram
pag. 671. Regnier, contr. Valdenses, c.6, t. 4. nos eíTeitos que se lhes attribuiam grandes
Bibliot. PP.j part. 2, pag. 7õ9. Cone. Tu- diffcrençás,' c imaginaram desigualdades
ron. 3, c. 3. Cone. Tolos., an. 1119. Can. 3. nas forças e no poder d’estes genios; esta
Bossuet. Hostoire des Variations, 1. 2 .° beleceu-se, pois, uma especie de gradua
672 MAN
ção ou de hierarchia nas potências que ideia mais distincta, e uma noção mais
governavam a natureza; e como a imagi precisa d’estes dous princípios, d’onde nas
nação nào pôde sustentar o progresso ao cem primilivamente todos os bens e todos
infinito, concordou-se, emfim, em dous ge os males.
nios mais poderosos que todos os outros, A luz é o primeiro dos bens; ella cmbcl-
que partilhavam o imperio do mundo, e Icza a natureza, faz medrar as searas, e
que distribuíam os bens e os males, por amadurece os fruetos; sem ella, o homem
meio d’uma multidão innumeravcl de gê nào poderia nem distinguir as fruetos que
nios subalternos. o nutrem, nem evitar os precipícios de que
O espirito humano, elevado á ideia de a terra está semeada.
dous gênios, senhores absolutos da nature Nào se sabia então que o raio de luz
za, fixou toda a sua curiosidade sobre es que fecunda as campinas, elevava naatmos-
tes dous princípios, e sobre a averiguação phera saes c enxofres, e produzia os ven
dos meios proprios a iuteressal-os. tos que formam as borrascas e as tempes
O bom c o mau principio, sendo .deter tades; julgou-se que a luz era um princi
minados por sua natureza a produzir, um pio benefico, c a fonte de todos os bens.
todo o bem, e outro todo o mal possível, é Eram ao contrario as trevas que tra
certo que nào haveria senão o bem e o mal ziam eomsigo as tempestades, os furacões,
no mundo, se estes dous princípios não e a desolação: era dos abysmos profun
fossem independentes um do outro; c co dos e obscuros da terra que’ sahiam os va
mo estes dous princípios eram duas cau pores rnortaes, as torrentes d’enxofrc e do
sas primitivas e essenciaes de tudo o que fogo que assolavam as campinas: era no
se via no mundo, julgaram-nos eternos, centro da terra que residiam essas potên
necessarios e infinitos. cias formidáveis, que abalavam os seus
A especie de base, pela qual o espirito fundamentos: não duvidaram que as tre
humano se tinha elevado até dous princí vas ou a materia tenebrosa e obscura, fos
pios geraes, desappareceu então, e a hypo- sem o principio malefico c o foco de todos
thesc de dous princípios começou a gene- os males.
ralisar-se e a apresentar-se "ao espirito Concebiarii então a alma sómenlc como
como uma fôrma systematica. um principio de movimento do corpo hu
No mundo existe o bem e o mal; estes mano, c o espirito como uma fonte mo
dous eíTeitos suppoem duas causas, uma triz: como a luz era essencialmente activa,
boa e outra má: estas duas causas, ou olhou-sc a luz como um espirito; e como a
princípios eternos, necessarios e infinitos,materia tenebrosa estava também cm mo
produzem todo o bem e todo o mal que po vimento, suppôz-sc que ella era sensível è
dem produzir. intelligente, e que os demonios tenebrosos
Como aquclles que imaginaram estes eram espíritos materiaes.
dous princípios não haviam contemplado Como o céo é a fonte da luz, concebe
na natureza senão os phenomenos que ti ram o principio benefico como uma luz
nham relação com a falsidade dos homens, eterna, pura, espiritual e feliz, que, para
acharam na hypothese dos;dous princípios communicar sua felicidade, tinha produzi
um systema completo da natureza: a ima do outras intelligcncias, e formado nos
ginação representou estes dous princípios céos uma côrte de sêres venturosos e be
como dous monarchas, que se disputavam neficos como clle.
o império da natureza para fazer reinar a Quanto ao principio maléfico, ellc habi
felicidade e os prazeres, ou para tornal-o tava no centro da terra, e não era senão
em morada de perturbação e de horror: um espirito tenebroso o material. Agitado
imaginaram-se phalanges de genios inces sem cessar e sem regra, tinha produzido
santemente em guerra, e julgou-se ter espíritos tenebrosos como elle, inquietos,
achado a causa de todos os phenomenos: c turbulentos, sobre os quaes reinava.
tal era a philosophia d’uma parte do Orien Mas, porque estavam estes espíritos cm
te e da Persia, (Tonde sc espalhou em se guerra? porque se tinham confundido?
guida por differentes povos, onde tomou Sendo sua natureza essencialmente diffe
mil fôrmas diversas.1 rente, não deviam permanecer eternamen
Em muitas nações o espirito não foi te separados?
m ais longe; a curiosidade, mais activa en É uma questão que a curiosidade hu
tre outros homens, procurou formar uma mana não podia deixar de fajfcr; e eis co
mo foi resolvida.
i Wolf.j Manicheisin. anteManich. As- O bom c o mau principio, sendo inde
seman, Bibliot. O r i e n t t . 1, pag. U 2 . pendentes um do outro, occupavam a ini-
MAN 673
mcnsidade do espaço sem se conhecerem, í II
c por consequência sem fazerem esforços
um para com o outro: cada um estava no
espaço que occupava, como se existisse só Da união que Manés fez do systema
na natureza, fazendo o que sua essência dos dous princípios com o Christianismo
lhe determinava fazer, e não desejando
nada mais.
A habitação do principio tenebroso esta Manes tomara dos escriptos de Scvthieno
va cheia .d’espiritos, que se moviam essen-
o systema dos dous princípios; ensinára-o,
cialmente, porque só a felicidade ó tran e fizera discipulos. Os discipulos que en
quilla; e os movimentos dos espíritos tene
viou para espalhar sua doutrina, lhe parti
brosos, similhantes ã agitação dos homens ciparam que haviam achado nos christãos
infelizes, não tinham nem desígnio, nem inimigos formidáveis; Manés julgou que era
regra: a confusão, a perturbação, a desormister corrompel-os, e conciliar o Chris
dem e a discórdia, reinavam, pois, no seutianismo com o systema dos dous princí
imperio; os espíritos tenebrosos estiverampios: pretendeu achar na Escriptura os
em guerra, c deram-se batalhas; os venci dous princípios, aos quacs, segundo ollc, a
dos fugiam aos vencedores, c como o im razão conduzira os philosophos.
pério da luz c das trevas se locavam, os A Escriptura, dizia elíe, falla-nos da
vencidos, fugindo dos vencedores, atravescreação do homem, c nunca da dos demô
saram os limites do imperio das trevas, e nios/
passaram ao espaço luminoso, onde reina Apenas o homem é collocado no paraizo,
va o bom principio.1 Satanaz apparecc em scena, vem tentar o
A produccão do mundo era o elTeito homem, e o seduz.
d’esta irrupção do principio tenebroso na Este espirito malefico faz sem cessar
morada da luz; c para explicar como esta guerra ao Deus Supremo, e a Escriptura
dá aos demonios o titulo de potências, de
irrupção tinha produzido os differentes se
res que o mundo encerra, a imaginação soberanias, c de imperadores do mundo;
forjou hypothcscs, c systemas. assim, a Escriptura suppòe um principio
• tem -se contado mais do setenta seitas maléfico, opposto sem cessar ao principio
de manicheus, que, reunidas na crença de benefico; elle é no mal o que Deus é nc
dous princípios, um o bom, e outro o mau, bem.
se dividiam c se contradiziam sobre a na Sendo o diabo mau por sua natureza,
tureza d’estes seres, e sobre a maneira impossível,-dizia Manés, que Deus o tenhi
como o mundo tinha sahido do condido creado.
d’estes dous princípios. - Debaldc se respondia que o demonio fo
Uns pretendiam que o bom princi ra creado innoccnlc, justo e bom, e que se
pio, não tendo nem raios para suster o tinha tornado mau, abusando da sua li
mau principio, nem aguas para o inundar, berdade.
nem ferro para forjar armas, havia lança Manés replicava que o demonio era re
do alguns raios de luz aos genios tenebropresentado na Escriptura como um mal
sos, que se tinham occupado em arreba- vado, incorrigível, e esscnciaImente malfa
zejo: pretendia que se Deus havia creado
tal.-os, em fixal-os, e que por este meio não
haviam penetrado antes no seu imperio.3 o demonio bom e livre, elle não teria per
Outros pensavam que o principio bene dido sua liberdade por seu pcccado, e que
sua inclinação natural o conduziría ao bem,
fico, depois da irrupção do principio mate
rial, julgou que podia collocar a ordem na caso elle fosse bom na sua origem; julga
materia, e que havia tirado todos os cor va que repugnava á perfeição de Deus
pos organisados d’cste principio material: crear um espirito que devia ser a causa
era o systema de Pythagoras, que o achara do todos os males do universo, perder o
no Oriente, d’onde Manés também o to genero humano, e apoderar-se do imperio
mou. do mundo.
Manés não suppunha que o mau princi
pio ou o demonio fosse igual ao Deus bem-
1 Theodoret, Hceret. Fab., l. 1, c. 26. fazejo: suppunha, pelo contrario, que Deus
Fragment. Basilid. apude Grabe, Spicileg. tendo apercebido a irrupção do mau prin
PP. scbc. 2, pag. 39. cipio no seu imperio, havia enviado o es
2 Theodoret, ibid. pirito vivo, que tinha domado os demonios
3 lbid. e os captivàra nos ares, ou desterrara na
terra, onde não lhes tinha concedido poder
674 MAN
c liberdade senão tanto quanto julgava a 'ellas suas preciosas influencias: o sol, que
proposito para seus desígnios. é composto d’um fogo puro e purificante
Foi com o uso d’cste poder que os de facilita sua ascensão «ao céo, e desembar.a-
mônios formaram o homem e a mulher. ça-lhes as partes materiaes que «as sobre
Não entraremos nos detalhes das explica carregam.
ções que os manicheus dão dos phenome- Quando tod«as «as almas e todas as partes
nos, c da historia dos judeus, e da dos da substancia celeste forem sep «aradas da
christãos; essas explicações são absoluta materia, então chegará a consumm,aç«ão dos
mente arbitrarias, e quasi sempre absur séculos, o fogo maléfico sahirá das caver
das e ridiculas. nas onde o Creador o encerrou; o «anjo que
Todos convinham que a alma de Adão c sustem a terra na sua situação e no seu
as de todos os homens eram porções de equilíbrio, deixal-a-ha cahir nas chamm,as
luz celeste, que, unindo-se ao corpo, cs-, e lançará em seguida essa massa inutií
qucciam sua origem, c erravam de corpo fóra do recinto do mundo, n’essc logar
em corpo. que a Escriptura chama «as trevas exterio
Para as libertar, a Divina Providencia res: é ahi que os demonios serão dcstcrr.a-
serviu-se ao principio do ministerio dos dos p«ara sempre.
anjos bons, c que ensinaram aos patriar As almas mais desmazeladas, isto é, as
chas verdades salutares: estes as ensina que não tiverem acabado sua purificação,
ram a seus descendentes; e pará impedir quando esta eatastrophc chegar, terão para
que esta luz não se extinguisse inteira- castigo de sua negligencia o encargo de
mente, Deus não cessou de suscitar em conservar os demonios encerrados em suas
todos os tempos, c entre todas as nações, prisões, «a fim de impedir que não atten
sábios e prophetas, até que enviou á terra tem de fórma alguma contra o reino de
seu Filho. Deus.
Jesus Christo fez conhecer aos homens Os manicheus rejeitavam o antigo Tes
sua verdadeira origem, as causas do ca- tamento, porque clle suppõe que o Deus
ptiveiro da alma, e os meios de lhe resti Supremo produziu os bens e os males que
tuir sua primeira dignidade. se véem no m undo.1
Depois de ter operado uma infinidade de
milagres para confirmar sua doutrina, mos § III
trou-lhes na crucificação mystica, como el-
les devem morti ficar sem cessar sua carne
c suas paixões: fez-lhes vêr ainda pela re- Os princípios do manicheistno sào absurdos
surreiçao mystica, e por sua ascensão, que
a morte não destroe o homem, que ella não Os manicheus, c depois d’elles M. Bayle,
destroe senão sua prisão, que restitue às pretendem que partindo dos phenomenos
almas pacificas a liberdade de voltar á sua que nos olTerece a natureza, a razão chega
patria celeste. Eis o fundamento de todas a dous princípios eternos e necessários,
as austeridades, e da moral dos manicheus. dos quaes um é essencialmente bom, e o
Como não é possível que todas as almas outro essencialmente mau.
«adquiram uma perfeita pureza no decurso Para julgar se a sua opinião é uma hy-
d’uma vida mortal, os manicheus admit- pothese philosophica, supponhamos por um
tiam a transmigração das almas, mas elles momento que ignoramos nossa origem e a
diziam que as que não são justificadas por do mundo, e não «admitíamos como certo
um certo numero de revoluções, são entre senão nossa existência: «apoiados sobre este
gues aos demonios do ár para serem ali phenomeno, o mais incontestável para nós,'
mentadas c domíidas; que depois d’csta procuremos elevar-nos até á causa primi
rude penitencia, ellas são reenviadas para tiva que nos deu o sér.
outro corpo, como para uma nova escola, Por pouco que eu reflicta sobre mim
até que tendo adquirido o grau de purifi mesmo, comprehendo que não me dei a
cação sufficiente, atravessam a região da existência, c que a recebi.
ma*teria, e passam á lua: logo que esta é Mas qual é a causa a que devo a exis
cheia, o que acontece quando toda a su tência? recebeu-a ella mesma, de sorto
perficie é illuminada, entrega-as nas mãos que não ha na natureza senão uma lon
do sol, que as remette por seu turno ao lo- ga cadeia de causas e cíTeitos, de sorte que
gar que os manicheus chamam a columna nada ha que não tenha sido produzido?
da gloria.
O Espirito Sancto, que está no ar, assis 1 Aug. cont. Manich. Theodorei, Hcercl.
te continuamente ás almas, e espalha sobre Fab. 1. 1.* Conferenda d'Archelaus.
MAN 675
Esta supposição c impossível, porque en acho que os males são consequências ou
tão seria mister reconhecer que a cullec- effcitos das leis estabelecidas na natureza
çào das causas saliiu do nada sem razão pelo bem geral: é assim que o raio que
.alguma, o que 6 absurdo. Minha existên mata um animal, é o cffeito do vento que
cia c a de todos os seres que vejo, suppòe accumula os enxofres dispersos por tudo o
pois necessariamente um sèr eterno, in- que respira: nào é evidente que um sér
•crcado, que existe necessariamente, e per malfazejo nào teria estabelecido na natu
si mesmo. reza leis que, tendendo ao bem geral, ar
Eu reflecti sobre este sér, a fonte da rastam perigos inconvenientes? 1
existência de todos os seres, c acho que Entre os séres que habitam a terra, o
cllc é eterno, infinitamente intelligenle, c homem parece ser o objecto particular
todo-poderoso: n’uma palavra, que ellc tem das complacendas do author da natureza:
por sua natureza todas as perfciçòes. creatura alguma sobre a lerra não tem
Pois que este sêr, em virtude da neces mais recursos que elle para a felicidade;
sidade de sua existência, tem todas as per- experimenta todavia desgraças, mas veem
feiçòes, concluo que um sèr necessario, c quasi todas do abuso que fa*z das faculda
cssencialmcnlo mau é um absurdo, porque des que recebeu da natureza, e que esta
c impossível que dous seres que leem a vam destinadas a tornal-o feliz. Uma dis
mesma razão d’existir, sejam todavia de posição natural conduz todos os homens a
uma natureza, differente, pois que esta dif- amarem-se, a spccorrerem-se. c nào é se
ferença não teria razão sufficiente: não ha não suffocando' este germen de benevolên
pois senão um sér eterno, necessario, c cia que um homem faz a desgraça de ou
independente, que é a causa primitiva de tro. O homem nào é, pois, a obra de dous
todos os seres distinctos d’elle. princípios opposlos, e a intclligencia que o
Percorro os céos, e acho que elles foram crcou, é uma intelligencia benefica.
formados com intelligcnciac com desígnio, Assim, M. Bavle nào fez mais que um
pela mesma potência que os faz existir: sophisma despresivel, quando pretendeu
vejo que a potência infinita que lhes deu a que o manichcismo explicava mais feliz-
existência, pôde só formal-os, regularisar meiilc os phenomenos da natureza do que
os movimentos, e fazer reinar este equilí o theismo, pois que estes phenomenos sào
brio, sem o qual a natureza inteira não tidos como impossíveis na supposição dos
seria scnào um cáhos medonho: concluo dous princípios dos numicheus.
ainda que o mundo é obra da intclligencia 0 manichcismo.nào póde, pois, ser olha
creadora, e que é o cumulo dos absurdos do como uma hypothese, e os males que se
suppôr que clle é o cffeito do conllicto de vècm no mundo, nào podem justificar este
dous princípios inimigos que teem um po erro.
der igual, c dos quaes um quer a ordem, As difficuldades de Manés contra o Ve
e o outro a desordem. lho Testamento, tinham sido propostas por
Desço á torra, e'vejo que desde o inse Cerdon, por Marcion, e por Saturnino; te
cto até ao homem tudo lbi formado com mos respondido a ellas iTesles artigos. 0
designio pela potência creadora, e que to silencio e a Escriptura relativamente á
dos os phenomenos estào ahi ligados: nfio creaçào do demonio, não podem authori-
posso pois impcdir-mc de ciliar a terra sar á olhal-o como increado; nào era ne
como obra do Creador do universo, c o cessario que a Escriptura nos dissesse que
manichcismo,' que attribue a producçào a um espirito impotente c mau, que Deus
dous princípios inimigos, como um ab desterrou nos infernos, é uma creatura. 0
surdo. resto da doutrina de Manés foi refutado
Sobre esta lerra, onde acho tão eviden pelos princípios que se estabeleceram no
temente o designio c a razào da intelligcn- artigo Materialistas, onde se prova a espi
eia creadora, vejo seres sensíveis; elles ritualidade da alma. (Véde a este respeito o
tendem todos para a felicidade, e a nature .Exame, do Fatalismo, t. 2, onde se prova
za collocou estas creaturas no meio de tu que a alma é immaterial, que é uma sub
do o que é necessário para as tornar feli stancia, e nào uma porção da alma uni
zes. Estas creaturas sensíveis são pois tan versal.)
to como a terra: a obra de um ente bene
fico, e nào de dous princípios opposlos. dos 1 1'ide Derham, Thcologia physica. Nieu-
quaes um é bom c outro mau. icenlitj Demonstração de Deus pelas m ara
Os animaes, que a natureza parece des vilhas da natureza, Exame du Fatalismo,
tinar para a felicidade, experimentam to t. 3, art. 3, onde estas difjiculdades são tra-
davia o mal: procuro a origem d'isto, e ctadas minuciosamente.
676 MAN
§ IV gos; vedes aqui os restos de uma cidade
llorcscente, n outra parte vós nào podeis
Dificuldades de M. Bayle. em favor mesmo achar as ruinas: a historia nào é
fallando com propriedade, senào a compi
do manicheismo e contra a bondade de Deus
lação das ruínas e dos infortúnios do ge
nero humano.
Nada seria trio fastidioso e mais inútil, Mas notemos que estes dous males, um
que copiar aqui as difliculdadcs que se re mortal, outro physico, nào occupatu toda
duzem a princípios simples. a historia nem ioda a experienda dos par
ticulares; encontra-se em toda a parte o
bem moral e o bem physico, alguns exem
DIFFICULDADES DI! M. BAYLE
plos dc virtude, alguns exemplos de felici
TIRADAS DA PERMISSÃO DO MAL
dade, c é o que faz a dilíiculdadc a favor
dos tnanicheus, que só dào razão dos bens
As idéias mais seguras c mais esclare c dos males.
cidas da ordem, ensinam-nos que um sèr Sc o homem é a obra de um só princi
que existe per si mesmo, que e necessário pio soberanamente bom, soberanamente po
e eterno, deve ser unico, infinito, omnipo- tente, póde ser clle exposto ás doenças, ao
tente, e dotado de toda a sorte dc per- frio, ao calor, á fome, á sédc, á dOr, e ao
feições; assim, consultando estas idéias, pesar? póde elle ter tão más inclinações?
nada se encontra de mais absurdo que a pode commetter tantos crimes? a sobera
ivpothese dos dous princípios eternos, ne- na sanctidade póde produzir unia creatu
èssarios e independentes um do outro: ra criminosa? a soberana bondade póde
is o que se chama razoes à priori, cilas produzir uma creatura desgraçada? a so
,os couduzem necessariamente a rejeitar berana bondade, junta a urna potência in
esta hypolhese, e a nào admiltir senào um finita, nào accumula de bens a sua obra,
principio unico de todas as cousas. c nào desvia tudo o que poderia oíTendcl-á
Se nào era mister mais que isto para a ou morti íical-a?
bondado d’um systema, o processo termi Debalde se responderá que as desgraças
naria na confusão de Zoroaslro c dc todos do homem são consequências do abuso
os seus sectários. Mas nào ha systema que, que elle faz de sua liberdade: toda a scien-
para ser bom, nào tenha necessidade d’es- cia de Deus deve ter «previsto este abuso,
tas duas cousas: uma que as idéias sejam e sua bondade devia impedil-o; e quando
distinctas; a outra, que ós phenomenos da Deus nào tivesse previsto este abuso que o
natureza se podem explicar pela hypothc- homem faz de sua liberdade, devia julgar
sc d’um principio só. que pelo menos elle era possível: pois
Se lançamos os olhos sobre a terra, achaque, caso acontecesse, elle se julgava obri
mos que ella nào póde sahir das màos de gado a renunciar á sua bondade pater
um sèr bom e intelligente; as montanhas, nal para tornar todos os seus filhos mui
e os rochedos a desfiguram; o mar e os to miseráveis; teria determinado o homem
lagos cobrem-lhe a maior parte; ella ó in- ao bem moral, como o determinou ao bem
babitavel na zona torrida e nas zonas gla- physico; o não teria deixado na alma do
çiaes; os trovóes, as tempestades c os vul homem força alguma para se apartar das
cões a destroem. leis ás quacs a felicidade está ligada.
Os animaes estào sem cessar em guerra Se uma bondade tào limitada como a
c se destroem: sua vida nào c senào uma dos paes exige necessariamente que prove
longa cadeia de males e de dores, que ter jam, tanto quanto lhes é possível, o mau
minam apenas pela morte. uso que seus filhos poderíam fazer dos
O homem é mau e desditoso, c cada um o bens que lhes dào, com mais forte razão
conhece pelo que se passa no exterior d’el- uma bondade infinita e omnipotente pre
le, e pelo commercio que é obrigado a ter veniría os maus eíTeitos de seus dons; em
com o seu proximo: basta viver cinco ou logar de dar o franco arbitrio, ella velará
scis annos para licar convencido d’estes sempre etTicazmentc para impedir o mau
dous artigos; os que vivem muito, conhe abuso d’elles.
cem isto ainda mais claramente; as via
gens sào as lições perpetuas sobre este AS DIFFICULDADES DE M. BAYLE
ponto: cilas fazem vér por toda a parte os SÃO SOPHISMAS
monumentos da desgraça e da malvadcz
do homem, por toda a parte prisões e hos- As difliculdadcs dc M. Bayle, contra a
pitaes, por toda a parte patibulos e mendi bondade de Deus, encerram quatro espe-
MAN 077
cies de males incompatíveis, segundo esta que sc tracta, o axioma de direito:— Inci
critica, com a bondade, a sabedoria, a san- vile est nisi lota leye hispeclâ judicare.—
ctidade c o poder infinito de Deus: estes Dizia que devíamos julgar as obras de
males sào ãs pretendidas desordens que se Deus tão sabiamente, como Sócrates jul
veem nos phenomenos da natureza, o es gava as d*Heraclito, dizendo:— O que com
tado dos animaes, os males physicos, aos prehendi me agrada, creio que o resto não
quaes o homem está sujeito, tacs corno a mc agradaria menos, se eu o comprehen-
forne, a sede, e, finalmentc, os crimes dos desse.
homens. 2." É mister não ter lançado sobre a
M. Bayle pretende, pois, qucellesoacha terra uma vista philosophica, para olhar
na terra' dos lagos, e das montanhas, pois os lagos, os vulcões, etc., como desordens
que na atmosphcra se formam tempesta contrarias á bondade de Deus: porque é
des, c que o mundo não c obra d'um prin bom claro para todo o physico, que estas
cipio benefico. pretendidas desordens produzem grandes
Não vejo n’esta difileuldade mais que vantagens aos animaes que habitam a ter
um sophisma, indigno do inais mediocre ra, e que poucos males trazem comsigo.
philosopho. O furacão e o trovão, por exemplo, tornam
l.° t) movimento e a disposição da ma o ar salutar a tudo o que respira; sem o
téria, não é em si nem bom nem mau; não movimento que estes furacões produzem
haveria desordem na produccào das mon na atmosphcra, o ar que os animaes res
tanhas, dos furacões, das tempestades, etc., piram seria mortal para regiões inteiras,
senão tanto quanto estos phenomenos fos e o furacão não faz perecer senão um nu
sem contrários ao fim que Deus se propòz mero inlinitamentc pequeno d'animaes. 1
na creação do mundo physico. As difiiculdades que M. Bayle tira do
M. Bayle conhece este fim, ha percorri estado dos animaes, é mais especiosa, e
do à inímensidade da natureza, dividido não é mais solida: o estado dos animaes
todas as suas partes, distinguido sua liga é-nos muito desconhecido para se fazer
ção, suas relações, e decifrado o resultado d’cllo um principio contra uma verdade
das leis que arrastam comsigo essas des demonstrada, tal como a unidade e a bou-
ordens, que se olham como contrarias á dade de Deus. Além d’isso exageram-sc seus
vontade de Deus? males, c quando se examina sua condição,
Não considerando o mundo senão do la vê-se que elles tecin mais bens que inales,
do physico, pois que tudo está ligado no lintre elles a liberdade depende unicamen
physico, é mister consideral-o como uma te dos sentimentos que experimentam, e
maquina; ora, a perfeição d’uma maqui são felizes se teem mais sensações agrada-
na consiste naquillo que se quer derivar veis que dolorosas; e parece que tal é sua
d’uma razão generica, a saber: o fim para condição, como se vê em todos os authorcs
que foi feita, as razões que demonstram que teem escripto sobre a historia dos ani
porque cada uma de suas partes é preci maes.
samente tal qual é, e não d’outra fôrma, e O mal physico que o homem experimen
porque estas partes foram dispostas c li ta, escande.ee (Voutra sorte M. Bayle: se o
gadas precisamente d’esta maneira, e não hornem, diz ellc, é obra d’um principio so
íToulra. beranamente bom e omnipotente, póde elle
É certo que a maquina será perfeita, se ser exposto ás doenças, a dòr, ao frio, ao
todas as suas partes, sem exeepção, c sua calor, á fome, á sêdc* e ao pesar?
ordem, ou sua disposição, são taes como Que, pois? porque o homem tem frio,
devem ser para quo .a maquina seja per porque tem calor, porque tem sêdc, estar-
feita e cxactamenlo propria ao fim que se-ha authorisado a negar a bondade do
propôz fabricando-a. Ente Supremo! desconhecer-se-ha sua sa
M. Bayle nào conhecendo ó fim que bedoria, atacar-se-ha sua existência, mas
Deus se propòz na creação do mundo, reconheccl-as-hão todavia como uma ver
ignorando o destino d’esta grande maqui dade fundada sobre os princípios mais cla
na, achando-lhe leis geraes que tendem ao ros e mais incontestáveis da razão.
bem c á ordem, e que o produzem, póde E c acaso verdade, além cTisso, que a
acaso combater a bondade e a sabedoria
de Deus, por meio d’algumas desordens i Não podemos entrar em todos os porme-
particulares que sào ordem no todo, e que nores que estabelecem esta verdade; póde ver
não ollendom senão porque se não vò toda se a este. respeito Nieuwentit, Derham, o
a natureza. Exame do Fatalismo, t. 3, e outras muitas
M. Leibnitz applicava ao assümpto de obras.
678 MAN
sorte do liomera seja tào afllictiva como se mesmo, para ser feliz é preciso que possa
pretende? approvar-sc; c nunca o homem sente mais
A necessidade dc comer c a mais instan vivamente o prazer que procura a appro-
te das necessidades do homem, mas é fá vação dc si mesmo, que quando merece a
cil satisfazcl-a. Tudo o que pódc digerir- approvação dos outros homens, quando'
se nutre o homem; e a necessidade que procurou a felicidade dos outros, quando
aduba a refeição mais frugal, torna-a tào preencheu seus deveres, c quando não tor
deliciosa como os manjares mais procura nou pessoa alguma desgraçada. Eis os re
dos. cursos que a natureza ha posto no homem
O homem póde facilmente garantir-se do contra as desgraças ligadas á sua condicão;
rigor das estações. estão no coração dc todos os homens, c
Quando está sem dôr necessita, para ser não são ignorados senão dos barbaros, que
feliz, de varias percepções, c o espectáculo suíTocaram a voz da natureza.
da natureza olTerccc á sua necessidade um Que se julgue presentemente se o ho
fundo inesgotável dc divertimento e dc mem é obra d’um sór malclico, e se nào c
prazer. com razão que um antigo disse que c in
Ha, pois, na natureza um fundo dc feli justamente que o homem se queixa de sua
cidade sufficiente para todos os homens, sorte.
aberto a todos, facil a todos, quando se en Passemos ao mal moral, que faz a grande
cerram nos limites da natureza. difiiculdade dc M. Baylc, quero dizer, os ví
É verdade que, apesar d’cstas precau cios e crimes dos homens.
ções, os homens serão sujeitos ás doenças Sem dúvida, os homens são maus, c não
e aos accidentes da velhice; mas estas en se pódc pintar coin cores muito fortes seus
fermidades nào sào insupportaveis, c não pcccados c suas desordens, porque o mal
impedem que a vida seja um estado feliz, não é nunca ou quasi nunca necessário á
mesmo para o ancião enfermo, pois que clle sua felicidade; mas guarderno-nos d’impu-
não a deixa senão com pesar. tar estas desordens ao Ente Supremo, ou
No que vimos de dizer para justificar a de pensar que devem tornar sua felicida
bondade de Deus, nào temos considerado de duvidosa.
o homem senão como um sér capaz de Estas desordens, c estes crimes, são o
sensações agradaveis ou dolorosas, e espe- effeito do abuso que o homem faz dc sua
randosua felicidade ou 'sua desgraça dos liberdade; e nào é contrario á bondade do
objectos que actuam sobre seus orgãos; Ente Supremo crear um homem livre, que
mas clle tem para ser feliz outros rcciirsos possa conduzir-sc ao bem pela escolha, e
mais. que tem todavia o poder dc se dirigir ao
A natureza não faz crescer os homens mal. O sentimento da nossa liberdade, que
sobre a terra, como os cogumelos ou como nào póde existir senão nos seres livres,
as arvores; une os paes c os filhos pelos este sentimento, digo, faz-nos achar um
laços d’uma ternura mutua; os dcsvclos grande prazer na práctica da virtude, e
que o pac emprega na educação dc seu fi produz os remorsos que nos chamam ao
lho, procuram prazeres infinitamente mais dever: a liberdade não é pois um dom con
satisfatórios que as sensações. A ternura cedido ao homem por utn ente malfazejo,
e o reconhecimento tornam os paes caros pois que cila tende a tornar-nos melhores
a seus filhos, clles são dóceis â sua vonta c mais felizes.
de, alliviam seus males, susteem sua velhi Não é mister, de resto, olhar a terra co
ce, ofierccein um espectáculo satisfatório, mo uma morada dc crime c sem virtude:
consolam-nos das desgraças da velhice. faremos vêr mais abaixo quanto M. Bayle
Uma inclinação natural leva todos os ho é exagerado a este respeito; e muitos au-
mens a amarem-se, c a soccorrerem-sc; um thores teem provado que o bem, tanto na
desgraçado que se consola, procura um tural, conto moral, prevalece no mundo
prazer delicioso, e os cuidados que se dão sobre o mal: o leitor pódc consultar sobre
na consolação d’um infeliz fazem-lhe ex isto Shcrlok, Tractado da Providencia, ch.
perimentar* um sentimento de reconheci 7. Loibnitz, Ensaio sobre a Thcodida, etc.
mento e um agradecimento para com o Acabamos de expôr a natureza, c a ori
seu bemfeitor, que derrama em sua obra gem dos males que nos offcrcce o espectá
um prazer que adoça seus males. culo da natureza: vimos que nenhuma das
Finalmente, o homem ama-se, e o amor causas que produzem estes males, é a obra
que tem por clle mesmo não se limita a d’um principio eterno e maléfico; que na
procurar-se sensações vivas e agradaveis, instituição primitiva c na intenção do au-
é preciso que o homem seja contente de si thor da natureza, tudo tende ao bem, que
MAN 679
por consequenda o systema dos dous prin de lhes fazer bem: sua benevolência a res
cípios não explica os phenomcuos da na peito das creaturas e, pois, infinita, qual
tureza, e que tudo o que M. Baylc diz so quer que seja o bem que lhes faz: eis em
bre os males que nos afliigem, são mais as que sentido a bondade de Deus é infinita,
declarações d’um sophista, do que as du e não é n’esle sentido que cila deve fazer a
vidas d’um philosopho. esta creatura todo o bem possível: porque
a bondade infinita iTesto sentido, é impos
EXAME D’UMA INSTÂNCIA DE M. DAYLE
sível, pois que então seria preciso que o
Ente Supremo désse a todas as creaturas
todos os graus de perfeição possíveis, o que
M. Bayle pretende que o soberano poder é absurdo, porque não ha ultimo grau de
junto a uma bondade infinita, deve accu1 perfeição na creatura.
mular de bens a sua obra, c afastar d’clla A ideia da soberana bondade não exige,
tudo o que poderia oíTendcl-a ou aflligil-a; pois, que Deus faça ás suas creaturas todo
que a soberana bondade devia tirar ao ho o bem possível. Para que conserve absolu-
mem o poder de abusar de. suas faculda tamcnlc a qualidade d^nte soberanameute
des, e que Deus deixando ao homem este bernfazejo, basta pôr suas creaturas n’um
poder, não ama as suas creaturas mais do estado em que cilas preferem sua existên
que um pae que deixasse entre as mãos de cia ao nada, e no qual seja melhor ser,
seu filho uma espada com a qual soubesse que não ser absolufamenlc; não é necessá
que clle se mataria. O estado dos sanctos, rio que este estado seja o mais feliz possí
que estão irrevogavelmentc ligados á vir vel.
tude, não é um estado digno da sabedoria Crcar o homem com. o desejo da felici
c da sanctidade de Deus? dade, pôl-o no meio de todos os recursos
Demais, é certo que Deus podia, sem of- proprios para procurar a felicidade, dar-
fender a liberdade do homem, fazcl-o per- lhe todas as faculdades necessarias par?
severar infallivclmenlc na inriocencia e na fazer um bom uso d'estes recursos, é cci
virtude; nada impedia, pois, que Deus pre tamente fazer-lhe um grande bem.
venisse o abuso que o homem faz das suas Fazer depender a ventura de certas le
faculdades e que fizesse reinar em toda a que o homem póde observar, mas de qu
natureza a ordem e a felicidade; no en se pôde afastar, e fóra das quaes encontra c
tanto ha desordens, males, maus, c pccea- prazer e a dor, não impede que a existên
dores: é forçoso, pois, qué uma causa dif cia seja ainda um grande beneficio, digno
ferente do Ente Supremo, tinha tido parte da soberana bondade, e do reconhecimento
na producção do mundo e que esta causa do homem.
seja maléfica. A qualidade de ser soberanamente bom,
Todas as difficuldades que M. Baylc ha não exigia, pois, que Deus prevenisse o
repetido de mil maneiras no seu Dicciona- abuso que o homem podia fazer das suas
rio, c nas suas Respostas ás questões d'um faculdades; a soberana bondade torna Deus
pr.ovinciai, reduzem-se a éstes princípios, impotente para fazer o mal, e deixa-o ab-
qúç vamos examinar. solulamcnte livre sobre a existência de
É claro que toda a força d’esta instanda suas creaturas, sobre os graus de perfei
está n’isto: que é impossível que um ente ção c de felicidade que lhes concede.
soberanamente bom, soberanamente sancto A ideia da soberana bondade não exige,
e soberanamcnle poderoso, permitta que pois, que Deus previna todos os males que
haja o mal no mundo, porque é da essên estão sujeitos á imperfeição da creatura,
cia da soberana bondade impedir toda a ou ao abuso que cila faz d*as suas faculda
ospecic de mal. des: porque então Deus teria sido obrigado
Para sentir a falsidade d’estc raciocínio,' a dar-lhe um certo grau de perfeição antes
rocuremos formar uma ideia justa da so- do que outro, o que não está todavia eneçr-
erana bondade. rado na ideia da soberana bondade.
A bondade do Ente Supremo, de que fal Se Deus não se tinha proposto na crea-
íamos aqui, ó a sua benevolência. ção do mundo senão tornar os homens fe-
A benevolência d’um ente é tanto maior íizes por qualquer preço e por qualquer
quanto ellc tem menos necessidade de fa modo que fosse, teria sem dúvida afastado
zer o bem que faz: d’este modo,' como o d’ello todas as desgraças, e tel-o-ia despo
Ente Supremo é inteiramente sufficiente a jado do poder d’abusar dc suas faculdades.
si mesmo, está, se mc é licito exprimir as Mas, é contrario á bondade de Deus que
sim, infinitamente longe do necessitar, pa rer que o homem fosse feliz, mas que só
ra sua felicidade, de crcar.outros séres, e mente o fosse em certas condições, e se-
680 MAN
{ruindo certas leis, que estava em seu po Deus, dizem, não é acaso infinitamento
der observar ou violar. saneio? Sua sanctidade não lhe dá uma sobe
Deus via na sua omnipotência uma infi rana aversão para o mal? Não é necessario'
nidade de mundos possíveis; entre estes que lhe tenha faltado poder para o impedir*
mundos, não podia haver um onde a felici ou sabedoria para escolher os meios pro
dade das creaturas não fosse o fim princi prios a prevcnil-o?
pal, c no qual cila não entrasse senão sc- Para responder a esta difllculdadc, nãoé-
cundariamcnle? Não é possível que unia preciso mais que formarem-se ideiasjustas
das leis d*este mundo fosse, que Deus não da sanctidade de Deus, da sua sabedoria c
conccduria a felicidade senão ao bom uso do seu poder.
que o homem fizesse das suas faculdades, A sanctidade de Deus não é senão uma
e que Deus não prevenisse este mesmo vontade constante de nada fazer que seja
abuso? Não podia elle, sem violar as leis indigno d’clle; ora, não é indigno de Deus
da sua bondade, escolher este inundo, e crear os homens que podem abusar da sua
teria a creatura direito de se queixar? liberdade, porque esto poder está na essên
Concedendo a M. Bayle o que tem mui cia da propria creatura, o não é indigno de
tas vozes repetido, c que nunca tem prova Deus crear o homem com sua essência, ou
do, concedendo-lhe, dizia eu, que Deus nao então, a ser assim, é mister dizer que c in
podosse detenninar-se a crear o mundo, digno de Deus crear seres limitados.
senão para fazer creaturas felizes, está elle Debalde pretendiam com M. Bayle, que
bem certo de que sua sabedoria e sanctida- a sanctidade de Deus devia ao menos pre
dc não lhe proscrevessem leis na distribui venir o abuso que o homem faz da sua li
ção da felicidade? a bondade de Deus será berdade; porque a sanctidade não sendo em
apenas uma especic d’inslincto que o leva Deus senão a vontade constante de nada
a fazer o'bem sem regra e ccgamcnle? fazer que seja indigno d’ellc, é preciso que
O comportamento de Deus, se posso ex- fosse indigno de Deus não prevenir a que
primir-me assim, não deve ter o caracter da do homem, e é o que se não póde dizer:
dos attributos do Ente Supremo? o cara nãò é indigno de Deus permanecer immo-
cter da sua sabedoria c da sua intelügen- vcl quando a creatura pecca; exprime por
cia? Ora, uni mundo no qual Deus não tor sua immobilidadc que elle não tem neces
nasse felizes senão authomatos, ou no qual sidade das homenagens do homem: expri
tivesse obedecida a todos os caprichos e a me por este meio o juizo que faz d’elle
todas as extravagancias da sua creatura, é mesmo, isto é, que é independente da sua
acaso conforme á ideia da sua sabedoria c creatura.
á grandeza do Ente Supremo? A bondade A permissão do mal não e pois contraria
de Deus não deve obrar conforme ás leis á sanctidade de Deus, c todas as compara
da sabedoria, c tornar cada ente feliz, se ções de M. Bayle, taes como a d’uma mãe
gundo que elle é mais ou menos perfeito? ue leva sua filha ao baile, e a deixa se-
não era preciso para isto que a creatura
3 uzir, podendo garantil-a da seducção, são
fosse livre? Estcplano do mundo c contra scphismas, que tiram toda a sua força d’um
rio á ideia da soberana bondade! falso estado de questão que M. Bayle oíTc-
Final mente, pergunto a M. Bayle se co rece sem cessar aos seus leitores sobre a
nhece assaz a natureza do homem para origem do mal. A mãe não tem razão al
provar que Deus não o creou no estado guma para não impedir a seducção de sua
mais proprio a tomal-o feliz? Pergunto-lhe filha; não se dá o mesmo com Deus, em re
se conhece bem os desígnios de Deus para lação ao peccado do homem.
pronunciar que o mundo não tem um fim, A ideia da bondade humana não 6 a ideia
e não terá um desfecho que nos fará ver a d’uma bondade pura, é sempre ligada á
bondade ,dc Deus, mesmo nos males que ideia da justiça: o dever entra sempre um
occasionam nossos murmurios? A çermis- pouco na sua’composição, se c licito expri-
sãb do mal é então um mysterio, e não uma mir-me assim; é uma especie de commer
contradicção com a bondade soberana de cio, c uma observação d’osta lei geral, que
Deus; e nao se póde dizer que em virtude quer que façamos aos outros o que quería
da sua soberana bondade, Deus devia pre mos que nos fizessem a nós, sc estivésse
venir todos os males, c estabelecer uma mos nas mesmas circumstandas em que os
ordem de cousas na qual o homem não outros estão. A ventura da sociedade de
poderia tornar-se desgraçado. pende da observância d’csta lei: a socicda-
A sanctidade é, tanto como a bondade, de é mais ou menos feliz, segundo esta let
uma fonte do difliculdades a favor do ma- ó mais despresada, ou menos observada;
nicheismo. cada membro da sociedade é pois obriga-
M 681
do, por justiça, a não fazer aos outros o que meios destinados a elevar o homem á per
não queria que lhe fizessem se estivesse feição e a uma felicidade eterna. 1
collocado nas mesmas circumstandas. M. Bayle reconheceu que o origenista
Esta ideia da bondade humana não é ap- fazendo succeder uma eterna bernaventu-
plicavel á bondade de Deus, que para ser rança aos tormentos que hão de soíTrcr os
feliz não precisa nem da existência, nem condcmnadqs, havia levantado a mais gra-
da homenagem da sua creatura. vosa das diííiculdades do manichcismo; mas
Estes princípios fazem vér, que pelas leis que não havia comtudo refutado os inani-
da sua bondade, Deus não era constrangi chcus, que replicavam que era contrario á
do a crcar o homem no estado de felicidade, sua bondade conduzir suas creaturas á fe
ou a dar-lhe graças cíüeazes para o fazer licidade pelos soffriincntos c pelas penas.
perseverar infallivelmentc na virtude. Vê-se Eis a que se reduziu a disputa de AI. Bay
mesmo por estes princípios, que Deus pódc, le e de Al. le Clerc quanto ao essencial,
sem violar as leis da sua bondade, punir o que se achou abysmado n’uma multidão
homem que viola as leis que Deus estabe d’incidentes, c mesmo de personalidades,
leceu, e conceder-lhe um tempo de prova, que fizeram absolutarnente dcsapparccer o
durante o qual pcrdôa ao peccador peni estado da questão. 2
tente, e apoz o qual o homem se torna in
corrigível, c Deus juiz severo e inflexível. III
Resposta de D. Gaudin, cartaxo,
DOS D IFFERENTES ÀUTIIORES ás difjiculdades de AI. Baylc
QUE RESPONDERAM ÁS DIFFICULDADES
DE M. DAYLE Em 1704, um carluxo, de Paris, chama
do D. Alexandre Gaudin, deu á luz uma
obra intitulada—A distincrão e a natureza
M. Baylc preparava-se para estabelecer do bem c do mal, onde sê combate o erro
um pvrrhonismo universal; pretendeu que dos maniclicus, os sentimentos de Montagnc
.os sentimentos mais absurdos eram apoia c de Charron, e os de AL Bayle.
dos sobre princípios capazes dMmpòr-se á AI. Baylc pretendeu que este author ha
razão mais esclarecida, e que os dogmas via mui bem provado que o systema do
mais certos estavam expostos a difficulda dous princípios era falso c absurdo cm $
des invencíveis, c conduziam a consequên mesmo e sobre tudo nos pormenores a qiu
cias absurdas: conseguintemente a este pro os manicheus desciam; mas que isso não era
jecto, pretendeu que uma seita tão ridicula refutal-o a elle AI. Bayle, pois que reconhe
como a dos maniehcus, poderia fazer dif- cia essas verdades, c pretendia sómente que
ficuldadcs que nenhum philosopho ou theo a hypothcse manicheia, posto que fosse
logo, de qualquer seita que fosse, não po absurda, atacava o dogma da unidade de
deria resolver. Deus, por meio d'objecçòes que a razão não
O diccionario de M. Baylc teve tanta podia resolver: não deu outra resposta à
voga, suas diííiculdades contra a bondade obra do cartuxo, e a disputa não foi mais
dc'Deus fizeram tanto ruido, que os homens
celebres ou zelosos pela verdade se apres
saram a responder: não é talvez inútil fazer
conhecer os princípios que ellcs oppozeram Princípios de Al. King sobre a origem
a M. Bayle. do mal.
tabeleccr uma ordem de cousas na qual O habito cm que estão quasi todos os ho
nào concedesse ao homem esses soccorros, mens, de não admitlir senão o que clles
quo o fazem perseverar infallivelmente no podem imaginar, dispõe a favor d’estc erro:
bem, e era isto o que fazia a questão entre prctendc-sc até apoial-o nos suffragios de
os marcionitas e os catholicos: estas diffi- homens respeitáveis pelas suas luzes, c
culdadcs tão formidáveis, que M. Baylc tej pelo seu amor á religião, os quaes temen
ria fornecido aos marcionitas, nào são pois do pôr limites ao poder divino, julgaram
senão sophismas que não embaraçariam os que se não devia asseverar que Deus não
padres. podia elevar a matéria até á faculdade de
Os marcionitas pretendiam que o Velho pensar: taes são Lokc, Fabricio, etc. 1
Testamento nos representa o Creador como Nào foi preciso mais para erigir o mate
um ente malfazejo, porque pune os israe rialismo em opinião, c é debaixo d’esta
litas, porque lhes ordena a guerra ás na mascara de scepticismo, que se oíTorcce
ções visinhas c a destruição das nações in commumenlc hoje.
teiras. Digo commumcnte, porque ha materia
Mas na supposição de que Deus tinha que listas que teem ido mais longe que Loke c
rido que o homem fosse livre, era acaso Fabricio, e que teem pretendido que a dou
contrario á sua bondade punir o crime? trina1da immaterialidade, da simplicidade
Não é possível que tudo o que aconteceu e da indivisibilidade da substancia que pen
ao povo judaico, c as guerras que ellc fez, sa, é um verdadeiro atheismo, unicamente
entrassem no plano que a Intelligencia Su proprio para fornecer apoios ao spinosis-
prema formou? Quem póde saber se as mo. 2
guerras dos judeus não tendem ao lim que Nós ousamos oppôr a estes materialistas
D cus4se propuz? duas cousas: i.° que o materialismo não é
Finalmcnte,' digo que não ha opposição uma opiqião provável: 2.° que a immate
entre o Velho e o Novo Testamento: as leis rialidade da alma é uma verdade demons
do Velho Testamento são accommodadas ao trada.
caracter dos judeus, e ás circumstandas
em que a terra se achava então. §I
A lei judaica não era mais que a sombra
e a figura da religião christã; não é uma O materialismo não é uma opinião provavt
contradicção aniquilar á lei figurativa,quan
do os tempos marcados pela Providencia Quando apercebemos uma cousa immc-
para o nascimento do Christianismo são diatamente, ou vêmos um objecto que está
chegados. A natureza d’csta obra nào per ligado necessariamente com esta cousa, te
mitte entrar nos pormenores das contrarie mos certeza de que cila existe: assim eu
dades que os marcionitas pretendiam achar vejo immediatamcntc a relação que ha en
entre o Antigo c o Novo Testamento. Notarei tre duas vezes dous c quatro, c tenho a
sómente que a maior parte das difiiculdadcs certeza de que duas vezes dous são quatro.
dispersas nas obras modernas contra a re Da mesma sorte, vejo um homem deita
ligião, não são senão repetições d’essas dif- do, com os olhos fechados c sem movimento,
íiculdadcs que teem sido plenamentc resol mas vejo que respira e estou certo que vi
vidas pelos padres, c que não são mui bèm ve, porque a respiração está ligada neces
explicadas nos commentarios antigos e mo sariamente á vida.
dernos; e entre outros no Tertulliano con Se eu visse este homem deitado, sem
tra Marcion, 1. 4 e 5. movimento e sem respiração, eom o rosto
NASiBQXHEUJ— discipulo de Simão, foi um pallido e desfigurado, seria levado a crer
dos sele herelicos que primeiramente cor que estava morto, mas não teria a certeza,
romperam a pureza da fé; clle negava a porque a respiração d’este homem poderia
Providencia e a ressurreição dos mortos. ser insensível, e todavia sufficiente para o
(Theod. liceret. Fab. 1.I, c. L Conslit. Apost. fazer viver, e porque a pallidcz e a magre
I. 6, c. 6. Euseb. Hist. Eccles. I. 4, c. 22J za não estão ligadas necessariamente com a
é o nome
que Tertulliano dava aquélles que criam 1 Fabricius, Delectus argumentorum quee
que a alma sahia do seio da materia. veritatem religionis asserunt, c. 18. Loke,
Hermogenes tinha-se lançado a este erro Ensaio sobre o entendimento humano.
para conciliar com a bondade de Deus as 2 Tractado da natureza humana, no qual
desgraças e os vicios dos homens tão bem se procura in tn idu zir o methodo de racio
como as desordens physicas. Véde este ar cinar por experiendas em objectos de moral,
tigo. l. 2, part. 4, secç. 5.
.696 MAT
morte. Seria pois levado a crer que este a figura nada muda nas aíTeiçõcs interiores
homem está morto, mas nào terei a certe da matéria; assim, não se vé entre o movi
za, e meujuizo sobre a morte d’estc homem mento da materia c do pensamento analogia
nào seria mais do que provável, isto é, eu alguma.
veria alguma cousa que poderia ser o eíTei- Sinceramente: que analogia se vé entre
to da morte, mas que poderia tanvbcm vir a figura quadrada ou redonda que se dá a
d’uma outra causa, c que, por conseguinte, um pedaço de marmore, c o sentimento in
nào mo tornando certo da sua morte, nào terior de prazer ou de dòr de que a alma
é scnào provável. é alíectada?
Assim, a probabilidade tem o meio entre O juizo por meio do qual eu digo que
a certeza, no, qual nào temos logar algum um globo dTirn pé é dilTerente d’um de
de duvidar, c a ignorância absoluta na qual dous pés, é acaso um quadrado, um cubo,
nào temos razào alguma de a acreditar. um movimento prompto ou lento?
Uma cousa é pois deslituida de toda a E pois certo que não vémos na materia
probabilidade, quando nào temos razão al propriedade alguma, attributo algum, que
guma para crér n’clla. tenha alguma analogia ou alguma relação
As razões de crer n’uma cousa, tiram-se com o pensamento; do mesmo modo não
, da propria natureza d’esta cousa, das nos vémos na natureza, ou na essencia da ma
sas experiências, das nossas observações, teria, razão alguma que nos authorise a crér
ou finalmente da opinião c do testimunho que ella pôde pensar.
dos outros homens, c estes homens, são na Mas, diz-se, a descoberta da atlracção não
questão presente, os philosophos ou os pa pôde fazer suppòr que é possível haver na
dres da Igreja, dos quaes os materialistas materia qualquer propriedade desconheci
se fazem um apoio, e pelos quaes preten da, tal como a faculdade de sentir? -
dem provar que antes do 4.° século, não se Eu respondo a esses que fazem esta ob-
tinha na Igreja ideia clara sobre a espiri jecção:
tualidade da alma. 1. ü Que Ncwton játnais considerou a at-
traceào como uma propriedade da materia,
i.° Nada se encontra na natureza ou na es mas Vomo uma lei geral da natureza, pela
sencia da materia que authorise a julgar qual Deus havia estabelecido que um cor
que ella póde pensar. po se aproximasse d’outro corpo.
2. ° Os newtonianos, que consideravam a
d.° Não vémos na essencia da materia atlracção como uma propriedade da ma
que cila deva pensar, nem na natureza do téria, não poderam até aqui dar-lhe ideia
pensamento, que deva ser material; porque alguma.
seria tão evidente que a materia pensa, 3. ° Philosophos que fazem profissão de
como é evidente que dous mais dons são não crér senão no que vôcm claramente, e
quatro; seria tão evidente que um tronco que pretendem não admittir como verda
d’arvorc, um fragmento de marmore pen deiro, senão o que é fundado sobre factos
sam, como c evidente que elle é extenso e certos, cahem n’uma contradicção manisfes-
solido; absurdo que materialista algum não ta quando admiltem na materia uma pro
ousou até hoje avançar. priedade de que não teera ideia alguma; e
2.° Não vémos na natureza da matéria, que, segundo o mesmo Ncwton, nao é ne
que ella possa pensar; porque, para isso, cessario para explicar os phenomenos.
seria mister que conhecéssemos na mate 4. ° Digo qüc a atlracção considerada co
ria algum attributo, oti alguma proprieda mo uma propriedade essencial da materia,
de que tivesse analogia com o pensamento, c um absurdo: porque esta atlracção é uma
o que não existe. força motriz inherente e essencial á ma
Tudo o que conhecemos claramente na téria, de sorte que ella se encontraria em
materia, se reduz ao movimento e á figu uma massa da matéria que estivesse só no
ra; ora, nào vémos no movimento ou na fi- universo; ou é uma força motriz que se pro
' gura analogia alguma com o pensamento: duz, ou que nasce na materia pela presença
porque a figura e o movimento não mu d’um outro corpo.
dam a natureza ou a essencia da materia, A attracção não é uma força motriz es
e como nào vémos analogia-entre o pensa sencial á matéria, de maneira que se ache
mento e a natureza da. materia, não pode necessariamente n’um corpo que fosse só
mos vél-a entre o pensamento e a matéria no universo: porque, tendendo toda a for
em movimento, ou figurada d’uma certa ça motriz para um logar determinado, esse
maneira. O pensamento é um a affeição in -corpo no meio do vacuo newtoniano, de
terior do ente pensante, o movimento ou veria tender para um logar, primeiro do
MAT 697
que para um outro: o que é absurdo, pois ções da alma, quando supponho que a alma
que a attracçào considerada como uma pro fôrma ella propria suas idéias por meio,
priedade essencial da materia, nào tende ou por occasião das impressões que recebe.
antes para um logar do que para outro; Mas as mudanças que a alma experimen
é pois dizer um absurdo o avançar que a ta são impossíveis, se o pensamento é uma
attracçào c uma propriedade essencial da propriedade essencial da matéria: porque
matéria. então, todos os meus pensamentos devem
Nào se pódc dizer que a attracçào seja nascer do fundo da mesma materia, c as
uma.força motriz que nasça na matéria em mudanças que cercam a porção de materia,
presença d’um outro corpo; porque dous que é minha alma, nào mudando essa por
corpos que se poem em presença e que nào ção de matéria, a ordem das suas idéias
se tocam, nào experimentam mudança al não deve mudar.
guma, c nào podem por conscqucncfa ad De qualquer modo que eu disponha as
quirir por sua presença uma força motriz porções de materia que cercam a molécula
que ellcs nào tinham. que* pensa no meu cerebro, ella será sem
pre intrinsecamente o que era, e suas affei-
A attracçào nào é pois, nem um attributo
essencial da matéria, nem mesmo uma pro ções interiores, seus pensamentos, nào de
priedade que ella possa adquirir: é, como vem experimentar mudança, se ella pensa
pensava Newton, uma lei geral, pela qual csscncialmente.
Deus eslabeleceu que dous corpos tendes- Os materialistas dirão talvez que a maio
1 sem um para o outro; a attracçào não é ria nào pensa csscncialmente, mas que ad
pois senào o movimento d’um corpo, ou a quire essa faculdade pela organisação do
sua tendencia para um logar, e esta tendên
genero humano. Mas então essa organisa-
cia não tem mais analogia com o pensamen ção é necessaria para que a materia se tor
to, do que outro qualquer movimento. ne pensante, senão porque ella transmitte
á sede da alma as impressões dos corpos
Que se julgue presentemente se a attrac
çào que Newton descobriu, era para fazer extranhos, ou os golpes que nossos orgàos
suppôr que a materia poderia tornar-se ca recebem (Tclles, e n este caso ó mister ne
paz de sentir, e se aquellcs que o preten cessariamente suppor que o pensamento
diam não formaram esta asserção sobre não é senào um golpe que a materia rece
umap alavra que não entendiam, c sobre be; isto é, que a materia se torna pensan
uma propriedade chimcrica da materia? te quando recebe um golpe; por conseguinte
Por conseguinte, não achamos na natu o ferreiro que bale o ferro* faz a cada golpe
reza ou na essência da materia, razão al uma infinidade de seres pensantes; isto nao
guma de julgar que ella pensa. é uma consequência tirada para tornar o
materialismo ridiculo, é o proprio Tundo
2.° Nenhuma experienda nos authorisa a do systema, tal como Hobbcs o concebeu e
acreditar que a matéria pôde pensar. defendeu.
Mas póde suppôr-se que um golpe dado
As observações e as experiências sobre n’uma porção de materia, faça um ente
que se apoia a opiniào que suppôo que a pensante?
matéria pódc pensar, reduzem-se a duas Um golpe dado na matéria, não faz senão
cousas: 1 / as prodigiosas differenças que leval-a para um certo lado: ora, a materia
produzem no homem os differentes estados não póde tornar-se pensante, porque ten
do corpo: 2.* as observações que teem mos de, ou porque é impellida para um certo
trado que as fibras da carne conteem um lado, ao menos os materialistas não negaram
principio de movimento, que não é distin que o não podem conceber; além d*isso per
cto da mesma fibra. , gunto-lhes qual é esse lado para o qual é
Mas, as dilfercnças que produzem nas preciso impcllir a matéria para pensar? se
operações da alma os differentes estados ella cessará de pensar, quaudo fòr movida
do corpo, provam sim que. a alma está uni cm sentido contrario? Nào é em absurdo
da ao corpo e não que ella seja corporea, que a materia movida, ou impellida para
pois que cstns mudanças da alma aconte um certo lado, se torne pensante?
cidas pelas mudanças* que experimenta o Qual ó o philosopho, ou o materialista que
corpo, se explicam na opinião que suppõe admitte na materia uma qualidade que elle
a immaterialidade da alma, c que o matc- não póde conceber, e que não póde suppôr
rialismo está ainda sobre este objécto me sem .ser conduzido a absurdos? Ou qual é
nos satisfactorio que a opinião que suppõe o defensor da immaterialidade da alma, que
a.alma immaterial. recuse reconhecer na matéria esta mesma
Eu concebo estas mudanças^ nas opera propriedade?
698 MAT
2.* A irritabilidade que se descobriu nas to quanto podiam da immaterialidade da
fibras dos animaes, é uni principio pura- alma, quando examinavam só o pensamon-
mentc mechanico, uma disposição organica, to, e quando olhavam a alma como um
que produz nas fibras vibrações: ora esta corpo d’cxtrema subtileza; d’cste modo a
disposição mechanica de fibra, não tem ana razão elevava-os á immaterialidade da al
logia alguma com o pensamento, um pen ma, e a imaginação os retinha no materia-
samento não é uma vibração: se o fosse, lismo: sem suííragio não se faz, pois, de
uma rebocada, ou a mão que dedilha a cor modo algum uma probabilidade a favor do
da do alaúde, produziríam uma infinidade materialismo. Ouso asseverar que não se
de pensamentos nas cordas, ou antes uma rei contradicto sobre este ponto por ne
infinidade de seres pensantes. nhum d’aquelles, que na leitura dos anti
Que os materialistas se vangloriem de gos se toem applicado a seguir a marcha
ter que arguir similhantes consequências do espirito humano na indagação da ver
aos defensores da immaterialidade da almal dade.
A materialidade da alma é pois destituí M. Loke, mais circumspecto que os an
da de toda a probabilidade do lado da ex tigos, pretendeu que a extensão e o pensa
perientia e da observação. mento, sendo dous attributos da substancia,
Deus podia communicar a faculdade dó
pensar á própria substancia, â qual havia
A OPINIÃO DOS PHILOSOPHOS QUE JULGARAM communicado e extensão.
QUE A ALMA CORPOREA NÃO FÓRMA SENÃO Mas l.°, este raciocínio de M. Loke não
UMA PROI3ABILIDADE A FAVOR DO MATERIÀ- vale mais que o seguinte: póde-se n’um
LISMO. pedaço de mármore formar um cubo ou
um globo; por consequência o mesmo pe
daço de marmore póde ser ao mesmo tem
Quando se tracta de factos que não po po redondo enquadrado. Sophisma miserá
demos vér, o testimunho dos outros ho vel, c que não póde tornar intelligivcl a
mens é a fonte da probabilidade, c mesmo possibfiidade da união do pensamento e da
la certeza. Quando se tracta de simples extensão n’uma mesma substancia.
jpiniões, o seu parecer produz uma sorte 2.° E certo que os princípios de M. Loke
de probabilidade, porque não existindo sobro a possibilidade da união do pensa
nada sem razão,' se elles não ouviram o mento antes da materia, são absolutamente
que diziam, foram determinados ao seu pa contradictorios com seus princípios sobre
recer por qualquer razão apparente. a espiritualidade de Deus. Ora um homem
Mas não é menos certo que a probabili que se contradiz nada prova a favor dos
dade que nasce do seu parecer depende da sentimentos contradictorios que abraça: o
força da razão que determinou o seu jul sentimento de M. Loke não faz pois uma
gamento; examinaremos pois as razões so probabilidade a favor do matrimonio.
bre que os philosophos materialistas apoia Finalmcnte, se a materialidade da alma
vam as suas opiniões. teve seus partidários; a sua immaterialida
Muitos philosophos disseram que a alma de teve defensores, cujo suffragio fôrma
era material ou corporal, mas não foram uma probabilidade opposta áquella que
impcllidos a esta opinião senão porque não produz em favor do matrimonio, a autlio-
podiam imaginar nem uma substancia in ridade dos philosophos materialistas.
corporea e immaterial, nem como cila po N ’cste conflicto do probabilidade convém
dería obrar sobre o corpo; ora, a impossi comparar as authoridades oppostas, c se
bilidade d’imaginar uma cousa não ó uma ellas são iguaes, a probabilidade que se
razão de a crér impossível, pois que no pretende tirar d’estas authoridades ó ne- .
seu parecer não se póde imaginar nem nhuma; se são desiguaes, subtrahe-se a
conceber como a materia póde pensar, e é mais pequena da maior, e é o excesso da
por isto que uns olhavam o corpo em que maior sobre a mais pequena que determi
residia a faculdade de pensar, como um na a probabilidade.
pequeno corpo extremamente delicado, ou- Comparemos poiâ a authoridade dos'phi
’ tros julgavam que era o sangue, outros o losophos partidários da immaterialidade da
coração, e t c .1 alma com a authoridade dos philosophos
Estes philosophos aproximavam-se tan- materialistas.
Eu vejo entre os antigos, Platão, Aristo
i Vide as differentes opiniões dos philo teles, Parménides, etc. Entro os modernos
sophos antigos sobre a alma, em Cicero, de Bacon, Gassendi, Descartes, Leibnitz, Wolf,
Legibus; no Exam e do Fatal. t. i. Clark, Euler, etc., que todos créram na
MAT 699
imniatcrialidadc da alma, c que só a ensi mente intcllectuacs, descobriram que ellas
naram depois de meditarem muito n’essa suppunham um princípio simples o imma-
verdade, e de bem pesar todas as difficul- terial, e fizeram da alma um corpo o mais
dades que a combatem. Que se comparem subtil que poderam e o que mais se apro
com estes sulfragios os dos philosophos ximava da simplicidade. O mesmo Demo
materialistas, e que se pronuncie em favor crito não pôde impedir-se de dizer que a
de quaes a probabilidade deve ficar. faculdade de pensar residia n’um átomo,
Abandonemos este calculo á equidade do e que este átomo era indisivel e simples.
leitor, e façamos sómente duas reflexões Os pythagoricos, pelo contrario, que re
sobre este conflicto d’opiniões dos materia conheciam na natureza *ma intelligencia
listas e dos partidários da immaterialidade: suprema e immatcrial, tinham encarado a
l.° Os philosophos que julgaram a alma alma em suas opiniões puramente intellc-
material, nào fizeram senào ceder á pro ctuaes, e pensavam que era por suas ope
pensão que teem os homens d’imaginar rações que convinha julgar da natureza da
tudo, c à negligencia que impede a razão alma, e como estas operações suppoem
do se elevar acima dos sentidos; elles não evidentemente um principio* simples, en
tinham necessidade de razão para suppôr tenderam que a alma era uma substancia
a alma material, nem precisavam d’exa- simples e immaterial.
minal-a. Mas como esta substancia era unida a
Pelo contrario, os philosophos que jul um corpo, e como se não podia reconhecer
garam a alma immatcrial, venceram estes a sua influencia nos differentes movimen
obstáculos para elevarem seu espirito até tos do corpo humano, deram-lhe um pe
á ideia d’uma substancia simples e imma queno corpo, o mais subtil que poderam,
tcrial. c o mais aproximado da simplicidade da
Parece, pois, que elles tiverani fortes ra alma: este pequeno corpo, que á imagina
zões para adoptar esta opinião, e que só ção se representava distinctamcnte, era o
a isso foram forçados pela evidencia: por corpo essencial da alma, o qual era indivi-
que, quaudo a evidencia não é completa, a sivel, e de que ella jamais se poderia se
imaginação c a preguiça triumpham dos parar.
esforços da razão; ao menos não se póde Este pequeno corpo unido á alma, era
contestar que os philosophos que ensina para a imaginação uma especie de ponto
ram a immaterialidade da alma, não ne d’apoio, que a impedia de cahir no matc-
cessitaram, no exame d’essa ihateria, de rialismo, e de se revoltar contra a simpli
fazer muito mais esforços d’espirito, c mais cidade da alma, que a pura razão admittia.
uso de sua razão do.*que os philosophos Mas como este pequeno corpo era inse
materialistas. A presumpção é pois a favor parável da alma, e como não se concebia
dos primeiros: e um homem que, sobre como um corpo tão subtil podia iiroduzir
esta questão se conduzisse pela via da au- o movimento do corpo humano, envolveram
thoridade, não poderia mais, sem absurdo, este corpo essencial da alma n’uma espe-
determinar-se a favor do matrimonio. cic de corpo aerio, mais subtil que os cor
pos grosseiros, e que servia de meio de
coiumunicação entre o corpo essencial da
OS PADRES COMBATERAM O MATERIALISMO alma, e os órgãos grosseiros do corpo hu
mano.
Eis a cspecie d’escada pela qual os pla
Os philosophos que tinham indagado a tônicos faziam descer a alma até ao corpo:
natureza da alma, encerraram-na sob rela acha-se a prova no commentario de Hiero
ções totalmente differentes; uns, como Ana cles sobre os versos d'ouro, c no que diz
ximandro, Anaximenes, Leucippe, dirigi Yirgilio sobre o estado das almas crimino
ram sua attenção sobre os efleitos da al sas no inferno: «Algumas d’eslas almas,
ma no corpo bumano, e estas observações diz cllc, são suspensas c expostas aos ven
\ foram a base do seu systema sobre a*na- tos, c os crimes das outras são polidos sob
tureza da alma, julgando-a apenas uma es- uma vasta caverna, ou purgados pelo fogo,
pecie de força motriz, e acreditando que até que o tempo tenha lavado todas as no-
ella era um corpo, i doas que lhes tinham lançado, e que só fi
Quando das operações da alma sobre o que o puro sentimento aerio, c o simples
seu corpo passaram às operações pura- sentimento espiritual.» 1
Os padres, vendo que esta doutrina não
1 Vide o exame do Fatal. t. 1, segunda
época. 1 Eneida, l. 6, v. 735, etc.
700 MAT
cra contraria á immaterialidado da alma, traria ao espirito de Sancto Ireneo; este-
nem aos dogmas do Christianismo, adopta- padre, no logar citado, combato a metem-
ram-na por condescendência para com psycose, e pretende provar pela palavra
aquellos que queriam converter, e esta de S. Lazaro, que as almas depois da mor
opinião restabeleceu-se entre alguns chris- te nao precisam d'unir-sc aos corpos para
tàos. Julgaram que as almas depois da subsistir, porque teem uma figura huma
morte tinham corpos, mas suppunham que na, e nào é incorporea senão comparativa
ellas eram substancias immateriaes collo- mente com os corpos grosseiros, i
cadas n’estes corpos, c unidas indissolú Os partidários da metempsycose diziam
vel mente a clles. que a alma humana nào podia subsistir
Como os anjos teem muitas vezes appa- sein ser unida a um corpo, porque era um
rccido aos homens cm um corpo humano, sopro que se dissipava se nào fosse retido
houve padres que, consequentemente aos nos orgàos.
princípios da philosophia pythagorica, cre Sancto Ireneo responde a esta diflicul-
ram que eram também corpos aerios. 1 dade, que a alma 'depois da morte tem uma
Os padres pois chegaram a dizer que a existência real e solida, se assim mc posso
alma cra corporea, e não eram materialis expressar, porque tem uma figura humana,
tas! e que depois da morto é incorporea so
Demais, clles disputavam algumas vezes mente em relação aos corpos grosseiros, o
contra os philosophos que criam que a al que só faz suppor que Sancto" Ireneo cria
ma humana era uma porção da alma uni que as almas estavam unidas a um corpo
versal, uma sombra, uma certa virtude ou subtil, de que não se separavam senão de
ualidade occulta, e nào uma substancia. pois da morte; resposta esta que é inteira-
S s padres, para exprimirem que a alma mcnle desfavorável ao materialismo. *
cra uma substancia c nào uma porçào da A passagem mesmo de Saneio Ireneo
alma universal, diziam que a alma huma faz vér que este padre reconhecia substan
na era um corpo, isto é, uma substancia cias immateriaes, e diz que a alma não é
distincta, que tinha uma existência que lhe incorporea senão rclativamente aos cor
era propria, e separada d’outro qualquer pos grosseiros, o que suppõe que é corpo
ente como um corpo o é d’um outro corpo.2 rea relativamcnte a outras substancias, que
Finalmente, é certo que os padres deram não são unidas a corpos. Saneio Ireneo não
o nome de corpo a tudo o que julgavam é a favor do materialismo.
composto, ainda que fosse immaterial, e
que admiraram na alma differentes facul
dades, que olhavam como partes. d'ella; ORIGENES NÀO DUVIDOU DA IMMORTALIDADE
.avançaram, pois, a dizer, que a alma era DA ALMA
ura corpo, c que só Deus, que era isempto
de toda a composição, era incorporeo: dis
seram todas estas* cousas sem quererem Origcnes refuta expressamente aquelles
dizer por isso que a alma fosse com cffeito que acreditavam que Deus era corporeo:
um corpo m aterial.3 diz cllc que Deus não é nem um corpo
Appliquemos estes princípios aos padres que seja uma substancia simples, infelli-
cujo suffragio os materialistas reclamam. gente, isempta de toda a composição, que,
sob qualquer relação que se encare, ó uma
substancia simples; não é senão uma alma,
SANCTO IRENEO NÃO É FAVORAVEL Á OPINIÃO e fonte de todas as intelligencias.
QUE SUPPÕE QUE A MÀTKRIA PÓDE PENSAR . «Se Deus, diz elle, era um corpo, e como
o corpo é composto de materia, seria mister
também dizer que Deus é material, e sen
Diz-se que Sancto Ireneo julgou que a do a materia essencialmente corruptível,
alma era corporea, porque disse que cila seria necessario ainda dizer que Deus é
cra um sopro, que não era incorporea se corruptível.» 2
não comparativamente com os corpos gros Póde-sc crór que um homem como Ori-
s e ir o s , o que similava um corpo humano. genes, que conduz o materialismo ató estas
Esta consequência ó absolutamente con consequências, possa estar incerto sobre a
immaterialidado do Ente Supremo?
i Codworth, Syst. JnteUectuai, sess. 3 e 5.
> 2 Aug. de Hceres., c. 86. * Irren., I. 5. c. 7.
3 Gregor. Moral., I 2, c. 3. Damascen., 2 L. 1 , de Principiis, c. i ; l. 1, pog. 5 1 ,
I. 2, c. 3. edit. Benedict.
MAT 70L
EIlc apoia sobre estes princípios a im- teriaes: como dizia que a alma é corporea
tnatcrial idade da alma: «alguns asseveram ou material, ellc, que não reconhecia por
que o nosso homem interior, que foi feito substancias immateriaes, senão as que nào
á similhança de Deus, é corporeo; devem podem ser dissolvidas ou queimadas, e que
consequentemente a esta idéia fazer do assevera que a alma dos homens não pódc
mesmo Deus um ente corporeo, e. dar-lhe ser reduzida a cinzas da mesma fórma que
uma figura humana, o que se nào pódc fa as substancias dos anjos e dos thronos? 1
zer som impiedade. 1 Para terminar o que diz respeito a Ori
«Se ha homens que crécm que a alma é genes, advertiremos que o author da philo
um corpo, diz ellc n’outra parte, eu queria sophia do bom senso trabalhou á face d’al-
que mc mostrassem d’onde vi ria a esse gum citador infiel; porque Origcnes, no
corpo a faculdade de pensar, de se recor mesmo logar que ellc cita, sustenta preci-
dar, e a de contemplar as cousas invisí samente o contrario da opiniào que attri
veis.» 2 bue a este aulhor; 6 o que teria sido evi
Estar-se-ha acaso incerto da espirituali dente para todos os leitores, se M. d*Ar-
dade da alma e da sua immaterialidade gens citasse a passagem por inteiro.2
•quando se estabelecem similhantes priuci-
pios?
Que tem a oppòr M. líuet a estas passa TERTULLIANO NÀO K FAVORAVEL
gens para provar que Origcncs mão tinha AO MATEUIALIS.MO
opiniào fixa sobre a immaterialidade de
Deus, e sobre a da alma?
N’uma passagem do prefacio do seu livro Tertulliano provara contra Hermogenes,
do> Princípios, diz Origcnes que convém que a matéria não era increada; fez em se
examinar se Deus é corporeo, ou se tem guida uma obra para provar que a alma
alguma fórma, ou se é d’uma natureza dif nào é tirada da materia, como pretendia
ferente da dos outros corpos; se é da mes Hermogenes, mas que vinha immediata-
ma natureza do Espirito Sancto, e de to meute dc Deus, pois que a Escriptura nos
das as naturezas razoaveis.34 diz expressamente que era Deus que linha
No mesmo logar, Origcnes diz que vai inspirado ao.homem um sopro de vid a.3
tractar todos estes assumptos d’uma ma Finalmcnte, Tertulliano, para plcnamen-
neira differente da de que falia nas suas tc refutar aquelles que pretendiam que a
outras obras, nas quacs nào tractou esta alma sahia do seio da materia, e que esta
matéria a fundo nem expressamente. Esta nào era mais do que uma porção d’ella, em-
passagem nào quer dizer que elle muda prehendeu examinar as differentes opiniões
•d’opinião sobre estes objectos, pois que no dos philosophos, que .eram contrarios ao
mesmo livro dos Princípios estabeleceu que a religião nos ensina a respeito da al
formalmcnte a immaterialidade de Deus e ma: é este o objecto do seu livro da alma.
•da alma. Diz elle que muitos philosophos julga
Corno pôde M. ííuet concluir d'esla pas ram que a alma erà corporea, que uns a
sagem, que a Igreja nada havia definido fizeram sahir do corpo visível, outros do
sobre a immaterialidade da alma no século fogo, do sangue, etc.; que os sloicos se
d'Origenes? * aproximam mais da opinião dos christàos
Origenes, é. verdade, diz no seu livro n'aquillo em que consideram a alma como
dos Princípios, que só a natureza de Deus, ura espirito, porque este é uma especie de
isto é, do Padre, do Filbo, c do Espirito sopro.
Sancto tem isto de particular: «que c sem Tertulliano diz que os stoicos criam que
substancia alguma material, e sem socieda este sopro era um corpo, c que os platôni
de com outro corpo, que lhe seja unido.» 5 cos, pelo contrario, acreditavam que a al
Mas, ao menos, Origenes suppõe que as ma era incorporea: l.° porque lodo o corpo
.almas são unidas a um corpo, do qual sào era animado ou inanimado, e que nào se
- todavia distinctas, c não diz que sejam míi- podia dizer que a alma fosse um corpo ani
mado ou inanimado; e eis, segundo Tertul
1 Origen. Hom. 1, in pag. 420, Genes, liano, a prova que os platônicos davam.
•c. 1. «Sc a alma fosse um corpo animado, re
2 L. de Pnncip.j ibid. cebería o seu movimento d’um corpo cs-
3 Pr cem. lib. de Princip., pag. 420.
4 Origenian. I. 2, quevst. dc Anima, n. t L. cont. Celsum.
13, pag. '99! 2 In Jolmn. t. 2, pag. 214, èdit. Huetii.
5 L . de Princip. c. 6. 3 De Censu ammce: este liiro perdeu-se.
702 MAT
tranlio, e não seria já uma alma: se fosse pedocles, etc., nem do fogo, como Heracli
um corpo inanimado, seria movido por um to, nem mesmo o cther, como os stoicos: a
principio interior, o que não pódc convir alma não era, pois, segundo Tertulliano,
á alma, pois que então não seria cila que um corpo material, pois que o cther era o
movería o corpo, mas ella mesma que se ultimo grau de subtileza possível na mate
ria movida d’um lugar para outro como o ria.
corpo.» 1 2. ° Tertulliano sustenta que a divisão
Eis, segundo Tertulliano, o raciocínio dos cornos cm corpos animados e inani
dos platônicos para provar que a alma não mados é defeituosa, e que não se póde di
é um corpo. zer da alma que ella seja um corpo ani
Este author. que provara contra Hermo mado nem inanimado, o que seria um ab
genes que a alma vinha de Deus, porque surdo, se elle houvesse dito que a alma
0 Genesis nos dizia que Deus a havia pro eia um corpo ou urna porção de materia:
duzido soprando no homem, acreditava que porque, se a alma é uma porção de mate
a opinião dos platônicos não concordava ria ou um corpo, é mister necessariamente
com a explicação que havia dado da ori que ella seja um corpo animado ou inani
gem da alma. Ataca o raciocínio dos pla mado: porque a materia ou é bruta c in
tônicos, c pretende que não se póde dizer animada, ou vivente, organisada e ani
que a alma é um corpo animado, pois que mada.
ó a presença da alma que faz um corpo 3. ° Tertulliano sustenta positivamente
animado, ou é a sua ausência que o faz in que ha um meio entre o corpo animado c
animado, e que a alma não pódc ser o cf- o corpo inanimado, isto é, a causa que
feito que ella produz, que assim não se pó anima o corpo, a qual não é nem um cor
de dizer nem que a alma seja um corpo po animado, nem um corpo inanimado, c
animado ou inanimado, que o nome da al esta causa é a alma; assim, segundo Ter
ma imprime a sua substancia e a natureza tulliano, a alma c um principio, cuja pro
da sua substancia, e que não póde ter re priedade é animar um corpo, não sendo
lação nem coin a classe dos corpos anima ella um corpo: a alma, segundo Tertulliano,
dos, nem com a dos corpos inanimados, é pois distincta da matéria.
e que assim, o dilema dos platônicos con 4. ° Tertulliano diz que a alma é assim
duz absolutamente á falsidade. chamada por causa da sua substancia, e
Relativamcnte ao que os platônicos dizem nega todavia que a alma seja o fogo ou o
que a alma não póde ser movida, nem ex cther; suppõe, pois, que ella é uma sub
terior nem interiormente, Tertulliano pre stancia immaterial.
tende que a alma póde ser movida interior ò\° Tertulliano combate aqui a opinião
mente, como acontece na inspiração; que dos platônicos, que diziam que a alma era
a alma é movida interiormente, pois que uma certa virtude, uma especie d’abstrac-
produz os movimentos do corpo; que as ção de que se não podia fazer ideia algu
sim, se a mobilidade era a essencia do cor ma, c que não ora nada, segundo Tertul
po, os platônicos não poderíam negar que liano; não diz, pois, que a alma é um cor
a alma não fosse um corpo. po, senão para exprimir que é uma sub
Eis, segundo Tertulliano, o que a razão stancia, e é por isso que diz que a alma c
póde aconselhar aos platônicos; mas a Es- um corpo, mas um corpo dò seu genero.
criptura, segundo este aulhor, dá-nos a É assim que quando raciocina contra Her-
respeito das almas muitas mais luzes: diz- mogenes, que pretendia que a materia não
nos que as almas separadas dos corpos, são era nem corporea nem incorporea, porque
encerradas em prisões, e que soíTrcm; o era dotada de movimento, e que este era
que é impossível, diz Tertulliano, se ellas incorporeo, Tertulliano lhe diz que o movi
nada são, com Platão o pretende, porque, mento não é senão uma relação exterior
diz elle, a alma nada é, se não é corpo, do corpo, e que nada tem de substancial,
porque o que é incorporeo não é susceptí porque não c corporeo.1
vel d'algumas aíTeições, ás quaes a Escri- 6.° Tertulliano diz que é verdade que a
ptura nos diz que as almas sao sujeitas. alma é um corpo, e que é n’este sentido
É, pois, certo, que Tertulliano julgou que ella tem as dimensões que os philoso
que a alma tinha ou era um corpo; mas phos attribuem aos corpos, e que é figura
d.° elle não disse que fosse nem um corpo da; mas c certo que se póde crôr a alma
tirado da materia bruta, como Thales, Em- inimaterial, e suppôl-a extensa; esta opi-
t
1 Lib. de Anima. 1 Adversus Hermogen. c. 36.
MAT 703
nião é sustentada pelos theologos e por immutavel na sua natureza e na sua sub
philosophos muito orthodoxos. stancia.» *
7. ° Tertulliano, no livro da alma, refutaSe Tertulliano não foi considerado como
a opinião que distingue o espirito da alma, heretico, porque disse que Deus ou a al
e sustenta que ó absurdo suppor na alma ma eram um corpo, não é porque a Igreja
duas substancias, que o nome de espirito estivesse incerta sobre a immaterial ida
não ó senão um nome dado a uma funeção de de Deus, ou sobre a da alma; é porque
da alma, c não um sêr que se junta a cila, se julgava que Tertulliano dizendo que
pois que cila é simples c indivisível. Deus era um corpo, não tinha querido di
A alma é só, diz ellc, mas tem funeções zer que ellc fosso formado da materia, mas
, variadas c multiplicadas; assim, quando sómentc que era uma substancia ou um
Tertulliano diz que a alma é um corpo, é sêr existente em si mesmo.
visivel que não entende absolutamente ou Como, pois, tem o author da philosophia
tra cousa senão que a alma c uma sub do bom senso podido concluir da passa
stancia espiritual c immaterial, mas ex gem de Saneio Agostinho, que não se era
tensa. 1 heretico no tempo de Tertulliano, por sus
8. ° Tertulliano iTeste mesmo livro da tentar
al que Deus era material? Que ideia
ma. diz que ha demonstrado contra Her- deveremos formar do seu espirito, a não
mogcucs, que a alma vinha de Deus e não tomarmos isso por uma faltâ de logica?
da materia, e que provou que cila é livre, Para que, citando a passagem d*í Sancto
iinmortal, corporea, figurada e sim ples.2 Agostinho, este author supprimiu a razão
É pois certo que Tertulliano não deu á que este Sancto dá, pela qual Tertulliano
alma um corpo material, mas um corpo não foi considerado como heretico, quando
espiritual, isto é, uma extensão espiritual, fez Deus corporeo? Se o author é de boa
tal como muitos philosophos e theologos a fé, a sua philosophia não é a philosophia
atlribucm a Deus; estes não são taxados do bom senso.
de malcrialismo por pessoa alguma.
Tertulliano, que tinha muita imaginação,
olhava os seres inextensos dos platônicos SANCTO HILÁRIO CRIA NA 1MMATERIALIDADE
1 como chimeras, c cria que tudo o que exis DA ALMA
tia era extenso e corporeo, porque havia
extensão, e que nós conhecíamos os corpos
pela extensão; mas não acreditava que tudo Ninguem ensinou mais clara e mais for
o que era extenso fosse material, pois que malmente a immaterialidade da alma do
admitte substancias simples e indivisíveis. ,que Sancto Hilário; n’elle não é isto uma
Tertulliano não era pois materialista, e opinião, é um principio a que se refere to
eu não concebo como os seus commcnta- das as vezes que falia da alma.
dores e sábios distinctos não hesitaram em Quando explica estas palavras do psal
eollocar este author na fileira dos materia mo 118: são vossas mãos, Senhor, que mc
listas. hão formado, descreve a formação do ho
A ideia que vimos de dar da opinião de mem, e diz que os alimentos de todos os
Tertulliano sobre a natureza da alma, ar outros séres foram produzidos taes como
ranca, me parece, as difiiculdades que se eram no mesmo instante cm que Deus
tiram dos logares onde este padre diz que quiz que existissem; que não se vê na sua
Deus é um corpo: nós não fazemos aqui formação nem priucipio, nem progresso,
mais do que seguir a explicação de Sancto nem aperfeiçoamento; que um só acto da
Agostinho: «Tertulliano, diz este padre, sus- sua vontade" divina os fez como elles são,
• tenta que a alma ó um corpo figurado, e mas que não acontece assim com o ho
- que Deus é um corpo, mas não figurado. mem. Era necessario, segundo Sancto Hi
Tertulliano não tom sido todavia olhado lário, para os formar, que Deus unisse
por isso como um heretico: por quanto duas naturezas oppostas, e esta união de
acreditaram que dizia que Deus era um mandava duas operações differentes.
corpo, porque òllc não é o nada, porque Deus disse ao principio: «formemos o
não é o vacuo nem alguma qualidade do homem á nossa imagem e similhança»; de
corpo ou do alma, mas porque está intei pois tomou o pó, o formou o homem.
ramente em toda a parte, occupa todos os Na primeira operação, Deus produziu a
logares sem estar dividido, e permanece natureza interior do homem, isto é, a sua
alma, e ella não foi produzida ornando
1 De anima, c. 12,13, 14.
2 Ibid.c. 23. 1 Aug. Hcer. c. 36.
*
704 MAT
um a natureza estranha. Tudo o que a re Se M. Huet c aquellcs que o teem copia
solução da divindade produziu n’este in do leram com altenção toda a passagem
stante fura incorporeo, pois que produzira de Saneio Hilário, leríam visto que a pala
um ente á imagem de Deus: é na substan vra corporeo nào tem aqui um sentido fa
cia racional c incorporea, que resido nossa vorável ao materialismo.
similhança com a divindade. Sancto Hilário examina n’esta passagem
Que dilTerença entre esta primeira pro- as diííiculdadcs d’alguns homens grossei
ducção da divindade, e a segunda! Deus ros que pareciam duvidar da resurreioão,
toma o pó, e fôrma assim o homem; polin porque não concebiam como se poderíam
do a producção, cria-o: para o corpo, não alimentar no céo.
succede assim; cllo não o faz, nào o cria, Sancto Hilário diz-lhes primeiro que a s
fórina-o, e toma sua matéria da massa da promessas de Deus devem dissipar todas,
te r r a .1 as suas inquietações a este respeito. P ro
Quando este padre falia da immensidade cura em seguida"fazer-lhes comprehcmier
divina, e da presença de Deus em todos os como poderíam viver no céo: para is to ,
logares, diz que o Ente Supremo está in diz-lhes que não ha nada que nào s e ja
teiramente em toda a parte, como a alma corporeo na sua substancia e na sua c rea -
unida a um corpo está em todas as partes ção; o que quer dizer que Deus nào creo u
d’elle. A alma ainda que espalhada em to nada sem dar-lhe uma existência solida, c
das as partes do corpo humano, c presente iodas as qualidades necessarias para q u e
a todas as suas partes, nào é por isso divi tudo tenha a duração que lhe tiver pro-
sível como o corpo: os membros corrompi mettido.
dos, cortados, ou paralyticos, não alteram Esta explicação é conforme ao fim q u e
a integridade da alma. 2 Sancto Hilário se propunha, e a palavra
Deus nào é, segundo este padre, nem corporeo, corporeum, que tem algum as
corporeo, nem está unido a um corpo; e vezes este sentido no mesmo Sancto H ilá
não é formando o corpo do homem que rio, que diz que tudo o que é composto
Deus o fez á sua similhança; mas dando- teve um principio, pelo qual é corporifica-
lhe uma alma. É por isso que o Genesis do, a fim de que subsista; e é n’estc senti
não descreve a formação do corpo humano do que é mister entender o que este padre
senão muito tempo depois de nos ter dito diz na mesma passagem sobre as almas
que Deus havia feito o homem á sua ima que, separadas do corpo, teem no entre
gem: é por esta similhança da alma com tanto uma substancia corporea conforme â
a natureza divina, que ellá é racional, que sua natureza.
é incorporea e eterna. Nada tem de terres Se Saucto Hilário quizera dizer n’esta
tre, e de corporea. É sempre sobre estes passagem que nào ha nada que seja mate
princípios que Sancto Hilário falia da alma.3 rial, eis ao que se reduziría sua resposta:
Um padre que se explica tão expressa e inquíetaes-vos por não saber como vivereis
claramente sobre a immaterialidade da al depois da r e s u r r e i ç ã O j . c obraes uial; por
ma, não podia ser collocado no numero que nào ha nada que não seja material.
dos materialistas, senão oppondo-se a estas Para que Sancto Hilário abandonasse
passagens, outras d’este padre, contrarias n’esta occasião seus priucipios sobre a im
á immaterialidade da alma; era mister tirar materialidade da alma, era mister que o
das obras d’este padre, dúvidas razoaveis, materialismo respondesse ás difliculdades
ou difficuldades. consideráveis contra a im que elle se propunha esclarecer, e que
materialidade da alma. não fosse possível responder de outra fôr
Todavia M. Huet, para provar que San ma. Ora, é certo que o materialismo da
cto Hilário julgava a alma material, não alma não resolve estas difficuldades, e que
nos cila senão uma passagem d’este padre, pelo contrario as fortifica. Se a alma é ma
na qual elle diz que nada ha que não seja terial, deve-se estar muito mais embaraça
corporeo na sua substancia e na sua crea- do de viver no céo do que sendo ella im -
ção, e que as almas unidas aos seus cor material como os anjos.
pos, ou desprendidas d’este corpo, teem
uma substancia corporea conforme á sua SANCTO AMBROSIO JULGAVA A ALMA IMMATE-
natureza.4 RIA L, E NADA SE ENCONTRA N.ESTE PADRE
QUE FAVOREÇA O MATERIALISMO. '
1 Hilar. in Ps. 118. L itter. 10, n. 6, etc.
2 lbid. Litter. 19, n. 8. Sancto Ambrosio explica a creação do
3 In Psal. 129. homem como Sancto Hilário.
4 In Mathceum, pag. 632, 263. A vida do homem começou, diz elle,
MAT 705
quando Doas soprou sobro clle: osla vida funeçoos: porque a alma, segundo este pa
linda pela separação da alma c do corpo, dre, é indivisível; mais ligeira que as aves,
" mas o sòpro quo* recebo de Deus, não ó suas virtudes a elevam acima dos céos,
destruído quando se separa do corpo; com e Deus não a dividiu em partes como nos
prehendemus por isto quanto o quo Deus oniros seres, porque ella está unida á Trin
fez immcdiatamcntc no homem c differente dade, que só indivisível, ha dividido tudo.
do que formou c figurou, e é por isso que E por isto que os philosophos julgaram
a Escriptura diz que Deus fez o homem á quo a substancia superior do mundo, que
sua imagem, e que conta cm seguida que chamam o ethcr, não é composta dos ele
clle tomou o pó c formou o homem. mentos que formam os outros corpos; mas
0 que não foi formado do pó, não é nem que é uma luz pura, que nada tem da im-
terra, nem materia: c uma substancia in mundicie da terra, da humidade da agua,
corporea, admiravel, e immaterial; não é, do nebuloso do ar, ou do esplendor do fo
nem no corpo, nem na materia, mas na go; ó, segundo elles, uma quinta natureza
alma racional que é mister procurar a si- que, infinitamente mais rapida e mais le
mjlhança do homem com Deus; a alma não ve que as outras partes da natureza, e co
ó pois uma vil materia, cila nada tem cor mo a alma do mundo; porque as outras
poreo. 1*3 partes são misturadas com corpos estra
É pelo dogma da immaterialidade da al nhos c grosseiros.
ma que ellc eleva o homem, que o consola Mas, quanto a nós, continua Sancto Am
das desgraças da vida, que o sustem con brosio, crémos que nada ha isempto de
tra os horrores da morto: toda a moral composição material, senão a substancia
d’cste padre assenta sobre a immateriali da Trindade, queé dTima natureza simples
dade da alma. - c sem mistura, posto que alguns julguem
Com que fundamento se suppòc este pa que esta quinta essencia ó essa luz que
dre materialista? David chama o vestido do Senhor.
Com uma passagem cm que clle diz que E evidente que Sancto Ambrosio confirma
não ha nada que seja isempto de composi aqui a immaterialidade da alma, pois que
ção material, senão a Trindade. diz, que cila é indivisível c unida á San
Tomando esta passagem assim destaca ctissima Trindade, que é simples: que d’es-
da de tudo o que a precede, c do que a te modo, este padre não póde, duas linhas
segue, resultaria quando muito que Sancto acima, dizer que a alma é material, a me
Ambrosio julgava que todos os espíritos nos que o não supponham estulto ou in
creados estão unidos a um pequeno corpo sensato.
do qual jamais se separam. Sancto Ambro Não é menos claro que, íVcstn texto,
sio explica-se mui clara mente sobre a im Sancto Ambrosio não tem por objecto se
material idade da alma, para dar um outro não combater o systema da alma uni
sentido a esta passagem. versal, que os philosophos suppunham dis
Mas Sancto Ambrosio ifesta passagem persa no mundo, como um quinto elemen
não diz nada do que se lhe faz dizer. to; por conseguinte, não se tractava n’csse
Este padre, fallando dos sacrifícios, dizlogar da alma humana, mas d’uma das
que elles servem a revocar o homem a partes do inundo, que os philosophos olha
Deus, e a fazer-lhe conhecer que Deus, vam como um espirito, e Sancto Ambrosio
posto que no cimo do mundo, dispôz toda diz-lhes que não conhece para governar o
via as suas partes. . mundo, outra natureza simples senão Deus,
Do espectáculo da natureza, onde depara e que todos os elementos que servem a
com os traços ou antes com o caracter da manter a harmonia da natureza, são cor
Providencia, elle passa ás differentes par poreos, o que não tem relação alguma
tes do mundo e da terra: passa em segui com a alma.
da ao corpo humano, e diz que ó Deus que Eis-aqui o sentido natural da passagem
estabeleceu em todos os seus membros a de Sancto Ambrosio, a qual, vcrosimilmen-
harmonia que se admira. tc não foi lida ao todo por aquclles que
Quanto á alma, tem também suas divi julgaram que este padre era materialista.
sões, e estas divisões são suas differentes Os séculos posteriores aos padres, cuja
opinião vimos dc examinar, não fornecem
1 Ps. Ü 8 . S em . 10, n. 15, p. 1051, n. cousa alguma do que os materialistas pre
16, 18. Hexameron, l. 6, c. 7, n. 10,40. tendem authorisar-se; são apenas passagens
- De Noé et arca, c. 2o, p. 265. De Bo destacadas que podem explicar-se pelo que
no Mortis, c. 9, n. 38. temos dito sobre os differentes sentidos que
3 De Abrahâo, l. 2, c. 8, n. 58, p. 333. se ligaram ás palavras corpo, corporeo.
706 MEL
§ II rialismo é portanto um absurdo, c a imnia-
terialidado, da alma está demonstrada.
.1 immaterialidadc da alma é uma verdade A impossibilidade dc conceber como um
demonstrada principio simples obre sobre o corpo, c lhe
esteja unido, não é mais uma diíTiculdade
Os philosophos que dizem que a matéria contra a ímmalerialidadc da alma do que
pôde adquirir a faculdade dc pensar, sup- a impossibilidade dc conceber como nós
pocm, como Loke, que Deus pôde com- pensamos; c uma razao de duvidar da
municar á matéria a aetividade que pro existência do nosso pensamento.
duz o pensamento, ou como Ilobbcs, que a O materialista não tem, pois, razão algu
faculdade de pensar não é senão uma cer ma de duvidar da immaterialidadeda alma:
ta faculdade passiva dc receber as sensa assim esse sccpticismo de que os pretendi
ções. dos discipulos dc Loke blasonam, não ten
Em uma e outra supposição. a materia de senão a conservar o espirito incerto,
será necessariamente o sujeito do pensa entre um absurdo e uma verdade demon
mento; assim, para refutar estas duas hy- strada, c sc se construíssem taboas de pro
pothescs, basta fazer vér que a matéria nao babilidade para ahi dispor nossos conheci
pôde ser o sujeito do pensamento. mentos, o materialismo não acharia logar,
Quando reflectimos em nós mesmos, vi c não correspondería ate ao mais fraco
mos que todas as impressões dos objectos grau de probabilidade, e a immalerialida-
exteriores sobre nossos orgãos, se aproxi de da alma seria collocada ao lado das ver
mam do cerebro, e se reunem no principio dades mais certas. Não se entende, pois,
pensante: de sorte que é este principio que o estado da questão, quando se diz que
apercebe as côres, os soris, as figuras, e a a materialidade ou a immatcrialidade da
dureza dos corpos; porque o principio pen alma é uma opinião, cuja probabilidade
sante compara essas impressões, e não po maior ou menor dependerá das descober
dería comparal-as, se não fosse o mesmo tas que se fizerem no conhecimento das
principio que apercebe as côres e os sons. propriedades da matéria: porque, não so
Se este principio fosse composto de par mente não conhecemos nada que possa au-
tes, as percepções que reccberia seriara thorisar esta conjectura, o que ó sufficien
distribuídas as* suas parles, e nenhuma te para tornar a dúvida do materialista
d’ellas veria todas as impressões que fazem desarrazoada, mas ainda vômos que de fei
os corpos exteriores sobre os orgãos: ne to a materia não póde ser o sujeito do pen
nhuma das partes do principio pensante samento, o que faz do materialismo um
podería pois comparal-as. A faculdade que sentimento absurdo.
a alma tem de julgar, suppõe pois que não M e l c h i s e d e c i a n o s — Deu-se este nome aos
tem partes c que ó simples. hcOT^iãhõ^queTiegavam a divindade dc
Colloquemos, por exemplo, sobre um cor Jesus Christo, e que pretendiam que clle
po composto de quatro partes, a ideia dc 1 ra inferior aMelchisedec: Theodoto o ban-
um circulo; como este corpo não existe ueiro, é o aulhor d’esta heresia.
senão por meio de suas partes, não pódc Theodoto de Bysanço tinha renegado Je
também aperceber senão por ellas; o cor sus Christo, e para diminuir a enormidade
po composto de quatro partes não poderia de sua apostasia, pretendera que não bavia_
pois aperceber um quarto de circulo, se renegado senão um homem, porque J esu s
não porque cada uma de suas partes aper Christo não era senão um homem.
cebería um quarto de circulo; ora um cor Theodoto o banqueiro adoptou seu pare
po que tem quatro partes cada uma das cer, e pretendeu que Mclchiscdec era d «
quaes apercebería um quarto de circulo, uma natureza mais excellente que Jcsu—
não-póde aperceber um circulo, pois que a Christo.
ideia do circulo encerra quatro quartos Os erros são ordinariamente ao nasce
de circulo, e que no corpo composto de muito simples, e apoiados cm poucos a r g »
quatro partes, não ha alguma que aperce mcnlos: quando um erro se torna a op—
ba os quatro quartos de circulo. nião d’uma seita, seus partidários fazei
A simplicidade da alma é pois apoiada esforços para. o defender, os espíritos e n z
sobre suas próprias operações, e estas ope caram tudo sob a face quo favorece s e =
rações são impossíveis, sc a alma fôr com parecer, e aproveitando este lado, f a z e *
posta de partes e material. d’elle novas provas, e as mais leves v e r «
Os philosophos, que altribuem á materia similhanças se mudam cm princípios.
a faculdade de pensar, suppoem pois que D’est’arte, Theodoto o banqueiro, v en cB
a alma é composta, e cila não o é : o mate- que se applicavam a Jesus Christo estas p =
MEL 707
lavras (Tum. psalmo:—vós sois sacerdote, tes. e que estes tres homens eram Melchi
segundo a ordem de Mclchisedec— julgou sedec, Enoch e Elias. *
vér n’osto texlo uma razão peremptória Finalmentc, no nono século, sábios dis
contra a divindade de Jesus Christo, e todo tinctos pretenderam que Mclchisedec era
o esforço de seu espirito se voltou para o o proprio Jesus Christo.2
lado das provas que podiam estabelecer que A heresia dos antigos mclchisedccianos
Mclchisedec era superior a Jesus Christo. é absolutamente contraria á Escriptura, e
Este ponto torna-se o principio funda mesmo ao texto de S. Paulo, sobre que se
mental da opinião de Thcodolo o banqueiro apoiavam.
e de seus discípulos. Procurou-se todos os 1. ° Moysés não nos diz nada de Melchi
logares da Escriptura que fallavam de Mel- sedec que nos dè uma outra ideiaqueadn
chisedec. Viu-se que Moysés o representa rei visinho, que toma parle na victoria
va como o sacerdote do Altíssimo, que ha que se vinha de ganhar, c que d’ella se
via abençoado Abrahão; que S. Paulo as regosija, porque lhe era vantajosa.
severava que Mclchisedec não tinha pae, Se S. Paulo não houvesse tirado da ac
nem mãe, nem genealogia, nem principio do ção de Mclchisedec consequências mysti
dias, e nem fim de vida, sacrilicador para cas, c que não visse iTestc rei um typò do
sempre. Messias, não se leria visto cm Mclchisedec
Theodoto c seus, discipulos'concluiram mais que um soberano que reunião sacer
dhaqui que Melchiscdeç não era um homem dócio e a realeza como era então muito
como os outros homens, c que era supe usado; c por este motivo que os judeus, que
rior a Jesus Christo que linha começado c não recebem a Epistola aos hebreus, con
que morrera; finalmentc que Mclchisedec cordam quasi todos em reconhecer Melchi
era o primeiro pontifice do sacordocio eter sedec por um rei dc Chanaan, e alguns
no, por meio do qual conseguimos chegar até sustentaram que cllc era bastardo, em-
junto a Deus, e que devia ser o objecto do quanto que outros teimaram q u eera S em .3
culto dos homens. 2. ° A passagem do psalmo 110, que diz
Os discipulos dc Theodoto fizeram, pois, que Jesus Christo c sacerdote, segundo a
suas oblações c suas súpplicas cm nome de ordem de Mclchisedec, prova que o sacer
Mclchisedec, que olhavam como verdadeiro dócio de Jesus Christo era d’uma ordem
mediador entre Deus c os homens, c que differente do sacerdócio dos judeus, c que
devia abençoar-nos, como abençoou Abra o sacerdócio dc Mclchisedec era a figura
hão. 1 t ou symbolo de Jesus Christo; é assim que
Hicrax, pelos fins do 3.° século, adoptou o explica S. Paulo.
cm parte o erro de Theodoto, e pretendeu S. Paulo propue-se destacar os judeus dc
que Melchisedec era o Espirito Sancto. sacordocio da lei, dos que estavam excessi
S. Jcronynío refutou uma obra compostavamente preoccupados; para este etTeito, dii
no seu tenipo para provar que Mclchisedec que ha um sacordocio superior ao dos ju
era um anjo. deus, e elle o prova, porque Mclchisedec,
Pelos fins do derradeiro século, um ano- que o exercia, abençoou Abrahão, e co
nymo fez reviver em parte o erro de Theo brou os despojos que havia ganhado aos
doto a respeito de-Mclchisedec. reis vencidos, e havia exercido sobro toda
S. Paulo diz, que o primeiro homem era a sua posteridade uma verdadeira superio
terrestre, c nascido da terra; e que o se ridade, d’onde concluc, que sendo Jesus
gundo homem era celeste, e nascido, do Christo chamado por Pavid sacerdote, se
c éo .2 gundo a ordem do Mclchisedec, o sacerdó
IVcsta passagem, concluc este author que cio de Jesus Christo era inferior ao sacer
ha homens terrestres e homens celestes, c dócio da lei.
que. como S. Paulo diz que Mclchisedec foi É visível que é este o unico fim que S.
similhante a Jesus Christo, é forçoso que Paulo se propunha, e que para estabelecer
«1.1© seja também um homem celeste, o que esta opinião, não era necessário fazer de
explica felizmeníe, segundo este author, Melchisedec um ente superior a Jesus
•aquillo que a Escriptura nos ensina que Christo.
tres Magos vieram adorar Jesus Christo: É assim que c mister explicar estas pa-
como a Escriptura não nos diz nada sobre
estes Magos, o author anonymo julgou que 1 Petavius, Dogm. Thcol., i 3, de Opif.
«stes tres Magos eram tres* homens celes sex dientm.
2 Cuneus, Rpeub. dos Hebreus, t. l.c, /.
1 Epiph. Ilar. í>ò\ 3, c. 3.
2 Prima: Cor. 2o, v. 44. 3 Josephus de Bello Judaico, I. 7, c. 18.
708 MEN
lavras de S. Paulo, que são toda a diílicul- Quando S. Paulo diz que Melchiscdec
dade do sentimento dos mclehiscdécianos, sendo similhante ao Filho do Deus, ficou
c d’aquclles que julgaram que Melchiscdec sacrificador para sempre, quer dizer que
era o Espirito Sancto, um anjo, ou o mesmo como o Filho de Deus não teve nem pre
Jesus Christo, decessores, nem successores no seu sacer
S. Paulo diz— l.° que Melchiscdec nào dócio, aconteceu o mesmo com Melchisc
tinha pae, nem mãe, e nem genealogia. dec, que foi sacrificador também muito-
Este apostolo tendo desígnio de mostrar tempo, quanto o seu estado o permittiu:
que o sacerdócio de Jesus Christo é mais porque as palavras pcrpetuamcnle, sempre,
excellente que o d’Aarão, prova-o pelo ver tomam-se muitas vezes n’esse sentido pe
siculo do psalmo 110, onde diz que o Mes los cscriptores sagrados.1
sias seria sacrificador, segundo a ordem menand no— era samaritano d’um a al
de Melchiscdec. EUe faz ver que se pedia, deia chamada Capartaije: foi discipulo de
em nome da lei, que o sacrificador fosse Simão o Magico, fez grandes progressos na
nào só da tribu de Lcvi, mas ainda da fa magia, c formou uma seita nova depois da
milia d’Aarão; além d'isto, era preciso que morte de seu mestre.
fosse nascido d’um!i mulher israelita, que Simão havia pregado que elle era a gran
casando-sc com um sacrificador, se toruava de virtude de Deus, que era o Todo-Pode-
da familia d’Aarào. roso: Menandro tomou um titulo mais mo
Nào era preciso que ella tivesse sido ca desto, e menos espinhoso,'-disse que era o
sada, mas sim que fosse virgem; porque enviado de Deus.
se fosse viuva, ou de má vida, nào era per- Reconhecia como Simão um ente eterno
mittido ao sacrificador csposal-a; é porque e necessario, que era a fonte da existência,
os sacrificadores guardavam cuidadosa mas ensinava que a magcstade do Ente Su
mente suas genealogias, sem o que eram premo era occulta e desconhecida a todo o
excluídos do sacerdócio. mundo, e que não se sabia d’este sér outra
S. Paulo diz que Melchiscdec não teve pae eousa mais, senão que era a fonte da exis
sacrificador, nem mãe que tivesse as qua tência, e a força por meio da qual tudo
lidades exigidas pela lei na mulher d’um existia.
sacrificador, e nem genealogia sacerdotal. Uma multidão de genios sabidos do Ente
Como Nosso Senhor não era de raça sa Supremo, tinham, segundo Menandro, for
cerdotal, e como os judeus podiam dizer mado o mundo e os homens.
que por essa causa não podia ser sacrifi Os anjos creadores do mundo, por impo
cador, S. Paulo faz vêr que clle o era to tência, ou por malvadez, encerravam a al
davia, conforme a predicção do psalmo 110, ma humana em orgãos onde experimenta
segundo a ordem de Melchisedec, no qual va uma alternativa continua de bens e de
nào havia similhante lei. males; todos os males tinham sua fonte na
Mas, diz-se, a Escriptura assevera que fragilidade dos orgãos, e nào findavam se
Melchiscdec não teve nem começo de dias, não pelo maior dos males, pela morte.
nem fim de vida. Genios bemfazojos, tocados da desgraça
Isso não exprime ainda senão difleren- dos homens, haviam collocado sobre a ter
cas entre o sacerdócio da lei, c o de Mel ra recursos contra esses males; mas os ho
chisedec. Os levitas serviam o templo des mens ignoravam estes recursos, e Menan
de trinta annos até sessenta; póde-se dizer dro asseverava que era enviado pelos ge
que esta gente tinha um fim e um princi nios bemfazejos, para descobrir aos homens
pio de vida ministerial, se é permittido esses recursos, e ensinar-lhes o meio de
fallar assim. Além d’isto os soberanos sa- triumphar dos anjos creadores.
crificadores tinham um principio e um fim Este meio era o segredo de tornar os
do vida, em relação às funeções do sacer orgãos do homem inalteráveis, e consistia
dócio supremo, que não começavam a exer n’uma especie de banho magico que Me
cer senão depois da morte de seus prode nandro fazia tomar a seus discipulus, que
cessores, e que cessavam também d’exer- se chamava a verdadeira resurreição, por
cer morrendo. que aquelles que o recebiam nào envelhe
Não havia succedido o mesmo com Mel ciam nunca.
chisedec/ que não tivera limites marcados Menandro teve discipulos na Antiochia;
nas funeções de seu sacerdócio, e que não havia alli, ainda no tempo de S. Justino,
tivera nem predecessores, nem successo menandrianos que não duvidavam de que
res; de sorte que se podia dizer que elle fossem immortaes. Os homens amam tão
não havia tido nem principio, nem fim de
sua vida sacerdotal. i Exod. 21, v. 6. Jerem. 5, v. 22.
MES 70$
apaixonadamcnto a vida, vécm tâo pouco Escriptura, sempre tomadas á letra, Sabas
o grau preciso da sua decadência, que nào havia julgado que nós estavamos cercados
é, nem muito diílicil eonvcncel-os dc que de dernonios, e que Iodos os nossos pecca-
se pódc tornal-os imniortaes sobre a ter dos provinham de suggcstões d’esses espí
ra, nem mesmo impossível persuadir-lhes ritos perversos; acreditava que ao nascer
até ao momento da morte, de que recebe cada homem, um demonio se apoderava
ram o privilegio da immortalidade. 1 d’cllc, o arrastava aos vicios, e lhe fazia
D’est’artc, todos*os séculos teem lido, sob oommciter todos os pcccados em que ca-
outros nomes, menandrianos, que preten hia.
diam garantir-se da morte, umas vezes por Emquanto ao primeiro aclo dc renunciar
meio da religião, outras vezes pelos segre a si mesmo, que Sabas practicou, parece
dos da alchimia, ou pelas chimcras da ca que clle era sujeito a fortes tentações de
bala. No começo do nono século, um in- carne, e a Escriptura ensina-nos que o de
glez pretendeu que se o homem morria, monio da impureza se expelle por meio da
nào era scnào por costume; que poderia, oraçào. Sabas julgou que era esse o meio
se quizesse, viver n’este mundo sem temer de triumphar das tentações, e dc se con
a morte, e ser transferido para o céo, co servar sem peccado. Os sacramentos apa
mo outv’ora Enoch c Elias. gavam perfeitamente os peccados, segundo
O Sabas, mas nào destruiarn sua causa, e Sa
homem, diz M. Afgil, foi feito para vi
ver; Deus nào fez a morte senào depois bas considerava-os como prácticas indi (Te
qu o homem a attrahiu pelo peccado. Je rentes; um sacramento era, segundo elle,
sus Christo veio reparar os males que o como uma navalha de barba, que corta a
peccado causou no mundo, e procurar aos barba c deixa a raiz.
homens a immortalidade espiritual e cor Quando pela oraçào o homem se livrava
poral: ellcs recebem o penhor da immor do demonio que o cercava, elle nào conti
talidade corporal recebendo o baptismo, c nha já a causa do peccado, o Espirito San
se os christàos morrem, é porque perdem cto descia á alma purificada.
a f é .2 A Escriptura representa-nos o demonio
Seita de fanaticos: eis- como um leào esfaimado, que gira sem
aqui a origein dc seus erros c de suas ex cessar em volta de nós; Sabas se julgava
tra vagan cias. sem cessar investido por estes espiritos:
0 Evangelho diz que, para ser perfeito, era visto ás vezes no meio da oraçào agi
é mister renunciar a si mesmo, vender tar-sc violcntamente, arremessar-so ao a?
seus bens, dal-os aos pobres, e desligar-se c crer saltar por cima d'uma legiào de di
de tudo. monios: viam-no bater-se contra ellcs, fc
Um tal Sabas, animado d’um desejo ar zer os movimentos d’um homem que atir.
dente de chegar á perfeiçào evangélica, á setta; julgava despedir flechas contra os
tomou todas as suas passagens á letra, fez- dernonios.
se eunucho, vendeu seus bens, c distri A imaginaçào dc Sabas uào era tranquil
buiu-os pelos pobres. la durante o somno; elle julgava vér real-
Jesus Christo disse a seus discipulos— mente todos os phantasmas que ella lhe
nào trabalheis para o nutrimento que aca offerecia, e nào duvidava que seus visinhos
ba, mas para o que permanece na vida fossem revelações: creu-se propheta, attra
eterna.3 hiu a attençáo da multidào, cscandeceu as
Sabas concluiu d’esta passagem que o imaginações fracas, inspirou seus senti
trabalho era um crime, c formou uma lei mentos, e viu-se uma.chusma dc homens
de permanecer no mais rigoroso ocio: deu e dc mulheres vender seus bens, levar
seus bens- aos pobres, porque o Evangelho uma vida ociosa c vagabunda, orar sem
ordena renunciar ás riquezas; e nào tra cessar, e dormir promiscuamente nas ruas.
balhava para se nutrir, porque o Evange Estes desgraçados criam a atmosphcra
lho prohibe trabalhar para um nutrimento repleta de demônios, e nào duvidavam que
que acaba. os respirassem com o ar; para se desem
Apoiado em muitas outras passagens da baraçarem d’clles, assoavam-se e escarra
vam incessantemente: umas vezes viam-
1 Ivan., I. 2, c. 21. Tert. de Prcescript., nos luctar contra os dernonios, e despedir-
c. 5. liuseb., /. 3, c. 26. Jvstin. Apol. 2. lhes fiechas, outras vezes cahiam em exta-
Avg. de H tn\, c. 2. si; faziam prophecias, e julgavam vér a
2 Rcpubl. das Letivas 1700, novembro, Trindade.
j i r t . 5, png. 547. Nào se separaram da communhão dos
3 Jouo/Q, v. 27. catholicos, que olhavam como pobres crea-
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turas ignorantes c grosseiras, que busca Ezechicl nao faz promessas menos ma
vam estupidamente nos sacramentos forças gnificas. Eu vou abrir vossos tumulos, diz
contra os ataques do demonio. Deus, c farei sahir o meu povo dos scpul-
Os messallianos tinham feito progressos chros, reslituir-lhes-hei a vida, c vos resta
cm Edessa, foram d’alli expulsos por Fla belecerei no vosso paiz: então conhecereis
viano, bispo dTAntiochia, e se retiraram á que eu sou o Senhor. Ajuntarei os israeli
Pamphilia; aqui foram condemnados por tas tirando-os de todas as nações, por onde
um concilio, c passaram á Armenia, onde toem sido dispersos, serei sanctificado en
infectaram de seus erros muitos mostei tre elles á vista de todas as nações, habi
ros. tarão na terra que dei ao meu servo Ja-
Letorius, bispo de Melilenc, os fez quei cob: habital-a-hão sem medo, edificarào
mar iVostes mosteiros: os que escaparam casas, plantarão vinhas, c permanecerão
ás chammas, retiraram-se para a diocese em segurança, quando eu exercer meus
d’um outro bispo d’Armenia, que teve pie julgamentos, contra os que os rodeavam, c
dade d’elles c os tractou com doçura. que os teem maltractado, c então se co
MijLLENjvnios—Deu-se este nome aos que nhecerá que sou eu o Senhor c o Deus de
julgaram*que 'Jesus Christo reinaria sobre seu pae. 1
a terra com seus sanctos, n’uma nova Je Os judeus, que reconheciam que Jesus
rusalém, durante mil annos antes do dia Christo era o Messias, não perderam de
do juizo: cis-aqui o fundamento d’csla opi vista estas magnificas promessas, e houve
nião. alguns que acreditaram que teriam seu cf-
Os prophetas tinham promellido aos ju feito na segunda vinda de Jesus Christo.
deus que Deus os reuniría d’entrc todas Estes homens, metade judeus, c metade
as nações, e quando tivesse exercido seus christãos, acreditaram que depois de vinda
julgamentos, sobre todos os seus inimigos, do Anti-Chrislo c da ruina de todas as na
elles gosariam sobre a terra d’uma felici ções que se seguirem, se fará uma primei
dade perfeita: Deus annunciou por Isaias ra rosurreição, que não será senão para
que crearia novos céos, e uma terra nova. os justos, mas que os que se acharem en
Tudo o que existiu anteriormente, disse tão sobre a terra, bons e maus, serão con
Deus, pela bôea de Isaias, se apagará da servados em vida; os bons para obedecer
memoria sem que torne ao espirito, vós aos justos resuscitados, como a seus prin
vos reunireis, c sereis eternamente pene cipes; os maus para serem vencidos pelos
trados de alegria nas cousas que vou crcar, justos e lhes serem sujeitos; que Jesus Chris
porque vou tornar Jerusalem uma cidade to descerá então do ceo na sua gloria; que
cTalcgria, e seu povo um povo alegre. To em seguida a cidade de Jerusalem será rc-
marei minhas delicias em Jerusalem, acha cdificada de novo, augmentada e emhellc-
rei minha alegria no meu povo: nào se zada, e que se reedificará o templo. Os
ouvirão mais vozes lamentosas, nem tristes millenarios, marcavam até o logar onde
gritos: elles edificarão casas, e habital-as- um c outro seriam recdificados, e a exten
hão, plantarão vinhas e comcr-ihos-hào seus são que se lhes daria; diziam que as mu
fructos: não lhes succederá.edificar casas, ralhas da sua Jerusalem seriam feitas pe
e outrem habital-as, nem plantar vinhas, e las nações estrangeiras e conduzidas pelos
outrem comer-lhes os fruetos: porque a seus reis; que tudo o que era deserto, e
vida do meu povo igualará a das grandes principalmcnte o templo, seria revestido
arvores, e as obras de suas casas serão de de cyprestes, de pinheiros c de cedros; que
grande duração. as portas da cidade estariam sempre aber
Meus eleitos não trabalharão debalde, e tas, que levariam alii de dia e de noite to
não crearão filhos que lhes causem pesares, da a sorte de riquezas: applica vam a esta
porque serão a raça bemdita do Senhor, e Jerusalem o que se diz no capitulo 21 do
seus pequenos filhos sel-o-hão como elles. Apocalypse, e ao templo tudo o que se es
O lobo c o cordeiro irão pastarjuntamente; creveu em Ezechicl: c alli onde diziam
o leão e o boi comerão a palha, e o pó se que Jesus Christo reinaria mil annos so
rá o alimento da serpente; elles não noci- bre a terra, d’um reinado corporal, c que
varão nem matarão em toda a minha mon durante estes mil annos, os sanctos, os pa
tanha sancta, diz n Senhor.2 triarchas e os prophetas viveríam com elle
em um contentamento perfeito: é alli que
esperavam que Jesus Christo restituiria
1 Epiph. Hcer. 80. Theod. Hist. Eccles.,aos seus sanctos o centuplo do que tinham
I. 4, c. II. Auff. de H(erestJ c. 57. Photius,
Bibliot. Co d. 52. Isaice, c. 55, v. 47. 1 Ezcchielj c. 37, v. 2, 25, 26.
MON 711
deixado por ellc; alguns pretendiam que justos reinarão durante mil annos sobre a
os sanctos passariam este tempo cm fes terra com Jesus Christo. Julgou-se que es
tins; c que mesmo na bebida c na comida te apostolo não havia feito mais do que ex
liriam muito além dos limites d’uma justa plicar o que Ezcchicl tinha prcdicto; mui
moderação, c se entregariam a excessos tos christãos supprimiram d’este reino tem
incríveis: diziam que seria n’e5te reino poral a voluptuosidade que os christãos
que Jesus Christo beberia o vinho novo de grosseiros faziam entrar na felicidade dos
que fallára na ceia: pretendiam ainda que sanctos: é assim que Papias explicava o
haveria casamentos, ao menos para aqucl- capitulo 21 do Apocalypse.
les que vivessem aiuda na vinda de Jesus Esta opinião, despojada das idéias gros
Christo; que nasceríam meninos; que to seiras com que os christãos carnacs a ti
das as naçòes obedeceríam a Israel; que nham sobrecarregado, foi adoptada por
todas as creaturas serviríam os justos com muitos padres, tacs foram S. Justino, S.
uma inteira' promptidão; que haveria com- Ireneo, etc.
tudo guerras, triumphos, victoriosos c ven 0 grande numero dos authores eccle
cidos, a quem se faria soíTrcr a morte; pro- siasticos c dos martyres, que seguiram a
mettia-se n’esta nova Jerusalem uma abun opinião dos millenarios, fez com que S. Je-
danda- inesgotável d’ouro, .do prata, d’ani- ronymo não a condemnasse absolutamente;
macs, de toda a sorte de bens, c gcralmen- clle*antcs quer reservar todas essas cousas
tc de tudo o que os christãos, similhantes para o juizo de Deus, e pcrmitlir a cada
aos judeus, c que nào buscam senão a vo- um seguir seu parecer; o que não impede
luptuosidade do corpo, podem imaginar c d’elle a rejeitar como uma falsidade con
desejar; accrescentavam a isto que seriam traria á Escriptura, como um conto tão
circumcidados; que haveria um sabbado perigoso quanto ridiculo, c que se torna
perpetuo; que se immolariam victimas, e um principio para aquelles que lhe ajun-
que todos os homens viríam adorar a Deus tam fé. S. Philastro qualifica-a até de he
em Jerusalém, uns todos os sabbados, ou resia. Os orientaes, escrevendo contra S.
tros todos os mezes, e os mais afastados Cyrillo, tractam de fabulas c de tolices os
uma vez no anno; que se observaria toda mil annos d’Apollinario; e S. Cyrillo res
a lei, e que em vez de se transformarem os pondendo-lhes, declara que ellc não segu
judeus em christãos, estes se transforma de modo algum a crença d’Apollinario;
riam em judous.-É por este motivo que S. maior parte dos padres combateram cs
Jcronymo chama frequentemente á opinião erro, que não tinha já partidários conhec
dos millenarios, uma tradição c uma taboa dos no tempo de S. Jcronymo e de Sanei
judaica, c aos christãos que a crêem, chris Agostinho.1
tãos ajudiados, ou meio judeus. Esta opinião .renovou-sc entre os pietis-
Contavam maravilhas da fertilidade da tas d’Allemanha.2
terra, a qual, segundo elles, produziría to f MOXgxjiEij^vs—Ilereticos que não reco
das as cousas em todos os paizes, e que nheciam senaoum a só vontade e uma só
por conseguinte não haveria necessidade operação cm Jesus Christo.
de traficar; que depois que passasse o rei Este erro foi uma consequência do nes-
no de mil annos, o diabo reuniría os povos torianismo e do eutychianismo: vamos exa
da Scythia notados na Escriptura, sob o minar sua origem *c seus princípios, seus
nome de Gog c de Magog, os quacs com progressos e seu fim.
outras naçòes infiéis, retidas até então nas
extremidades da terra, viriam, solicitados DA ORIGEM E DOS PRIXCIPIOS
pelo demonio, atacar os sanctos na Judeia, DO MOXOTHELISMO
mas que Deus os suspendería e os mataria
por meio d’uma chuva de fogo, depois do
que os maus resuscitariam; que portanto Nestorio, para não confundir cm Jesus
este reino de mil annos, seria seguido*da Christo a natureza divina e a natureza hu
resurreição geral c eterna, e do juizo, e mana, havia sustentado que eram de tal
que então se cumpriría a palavra do Sal sorte distinctas, que formavam duas pes
vador, que não- haverá matrimonio, mas soas.
que seremos iguacs aos anjos, porque se Eutychcs, pelo contrario, para defender
remos os filhos da resurreição. a unid*ade da pessoa em Jesus Christo, ha-
Parece que Corintho fez vogar esta opi
nião, que lisongeia muito a imaginação, 1 Vid. Tillemont, t. 2, art. Millenarios,
para não ter partidários: creram vêl-a no pag. 300.
Apocalypse de S. João, que diz—que os 2 Stolcman Ixxicon.
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via dc tal sorte unido a natureza divina e O monolhelismo tem, pois, por base a
a natureza humana, que as confundira. dogma da unidade pessoal de Jesus Chris
A Igreja tinha decidido contra Nestorio to, que a Igreja definira contra Nestorio,.
que havia uma só pessoa cm Jesus Chris c a impossibilidade de conceber muitas ac
to, c contra Eutyches que havia duas na ções ou muitos agentes, onde não ha senão
turezas: todavia havia ainda nestorianos uma pessoa: este erro reduz-se a esto ra
c eulychianos: os eutychianos pretendiam ciocínio.
que não se podia condcmnar Eutyches Não pódc haver n’uma só pessoa senão
sem renovar o nestorianismo, c sem admit um só principio que quer, que se deter
ti r duas pessoas em Jesus Christo. Os nes mina; porque sendo a pessoa um individuo
torianos, pelo contrario, sustentaram que que existe em si mesmo, que contém um
não se podia condemnar Nestorio sem principio d’aceão, que tem uma vontade,
cahir no sabellianismo, c sem confundir, uma intelligencia distincta da vontade e
como Eutyches, a natureza divina c a na da intelligencia d outro qualquer principio/
tureza humana, e sem fazer d’cilas uma só é claro, dizem os monothelitas, que se não
substancia. podem suppôr muitas intelligencias e muitas
Toda a actividado do espirito se dirige a vontades distinctas, sem suppôr muitas pes
este ponto capital, cuja decisào parecia de soas: ora a Igreja estatuo que não ha cm
ver reunir todos os partidos: procurou-se Jesus Christo senão uma só pessoa; não-
os meios d'explicar como com efleito estas ha, pois, uma só vontade, uma só intelli
duas naturezas compunham uma só pes gencia: a natureza divina e a natureza hu
soa, posto que fossem mui distinctas. mana são, pois, de tal sorte unidas em Je
Julgou-se resolver esta difficuldade sup- sus Christo, que elle não tem duas' acções,
pondo que a natureza humana era rcal- duas vontades; porque então teria dous
mente distincta da divina; porque lhe era princípios activos e duas pessoas.
de tal modo unida, que não tinha acçào Os catholicos respondiam aos monothe-
iropria; quèoverho era o unico principio litas: l.°, que havia em Deus tres pessoas
clivo cm Jesus Christo; que a vontade o uma só vontade, porque elle não tinha
umana éra absolutamenlò passiva, como senão uma só natureza, que por consequên
.m instrumento nas mãos do artista. cia era da unidade da natureza que era
Eis em que consiste o monotholismo, mister concluir a unidade da vontade, e
que, como se vê, é tanto em sua origem não da unidade da pessoa.
um ramo do eutychianismo, como um ra
mo do nestorianismo: mas que no entan em Jesus Christo, porque não havia senão
to harmonisa melhor com o eutychianis a natureza divina, que, como senhora, que
mo: é por isto que foi adoptado pelos eu^ ria e obrava, mas que a natureza c vonta
tychianos, porém é mister não confuudil-o de humana não obravam propriamente, e
com o eutychianismo. 1 não eram consideradas senão como pura-
mente passivas, dc sorte que não queriam
1 per si mesmas, c que não queriam senão o
E/fectivamente os moiiolhelitas rejeita
vam o erro dos eulychianos; não negavam que a vontade divina lhes fizesse querei'; c
que houvesse duas naturezas em Jesus Chris por isso que elles diziam que havia uma sd
to e d'alguma sorte duas vontades, a saber: energia em Jesus Christo. (Vid. as cartas
a vontade divina e a vontade humana; mas de Cyro, de Sergio e de Honorio nas actas do
diziam que a vontade humana de Jesus sexto concilio geral, act. 12 e 13. Collo
Christo não era senão como um orgão, ou quium Pyrrhi cum. Maximo, apud. JBaron.,
como um instrumento de que a vontade di t. 8, pag. 691.) E assim que Suarez de
vina se servia, de sorte que a vontade hu Lugo, e muitos outros theologos receberam
m ana de Jesus Christo não queria, nem fa- o monothelismo, e esta opinião me pareceu
z a nada per si mesma, e não obrava senão muito melhor fundada que a dos theologos
como a vontade divina a movia e a impel- que’olJiam o monothelismo como um ramo
lia, como quando um homem tem n a sua do eutychianismo. {Vid. sobre esta ultima
mão um martello e bate com elle; nao se opinião.Petau, Dogmat. Theol., t. 5, l. 8,
attribue propriamente o golpe ao martello, c. k.)
mas á mão que o fez mover e obrar. Provam sufficientemente que o monothe
Ha todavia esta differença, que o homem lismo conduz ao eutychianismo, e que é por
e o martello que ferem não são menos que estas consequendas que o combateram; po
um a só e mesma pessoa. rém os monothelitas negavam estas conse
Os monothelitas diziam também que havia quendas, e não julgavam que sua opinião
só uma vontade pessoal e uma só operação conduzisse a ellas.
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Dc feito, se a unidade da pessoa trazia bém se devem sempre conceber todas as
•comsigo a unidade da vontade, a multipli operações da divindade, c não fazendo por
cidade das pessoas traria pelo contrario a meio d’esta união mais do que um só e o
multiplicidade dc vontades, e seria preciso mesmo operante, se me é licito fallar as
reconhecer em Deus Ires vontades, o que sim.
c falso. Por conseguinte estas operações são ado
2.° É essencial á natureza humana ser ráveis do modo como a humanidade de
capaz de querer, d’obrar, de sentir, de co Jesus Christo o é; isto é, que assim como
nhecer, de ter conhecimento de sua exis se adora pela mesma adoração o Verbo
tência; se não houvesse cm Jesus Christo feito carne, assim também se* adora pela
senão uni só principio que sentisse, que mesma adoração o Verbo operante, por
conhecesse, que quizesse, e que tivesse co sua dupla natureza, divina c humana. 1
nhecimento dc sua existência e dc suas
acções, a alma humana seria aniquilada c
confundida na natureza divina, com a qual DO PROGRESSO DO MOXOTIIEL1SMO
ella nào seria senão uma substancia, ou se
ria mister então que a natureza lmmana
fosse só, c que por conseguinte o Verbo Vimos que o monothelismo se apoiava
não se tivesse incarnado. O monothelismo n'este principio especial—que não se podem
que suppõe apenas uma só vontade em Je suppôr duas operações onde não ha senão
sus Christo, rccahe, pois, no cutychianis- um principio activo: que por consequência
mo, ou nega a incarnação. 1 não ha mais que uma operação cm Jesus
Portanto, ainda que não houvesse em Je Christo, pois que elle só tem uma pessoa.
sus Christo senão uma só pessoa que ope Refuta va-se solidamente este principio, c
rasse, clle todavia possuo muitas opera refutava-se sobretudo pelas consequências
ções; c as duas naturezas que compoem falsas a que conduzia. Mas os monotheli-
sua pessoa, e que concorrem a uma ac tas negando estas consequências, e preten
ção, teem cada uma suas operações, c é dendo que se lhe reconhecessem duas von
por isso que se chamam thcandricas, ou tades, devor-se-iam suppôr dous principio?
divinamente humanas. d’acção e duas pessoas, como Nestorio
As acções thcandricas não são, pois. uma ensinara.
só operação, são duas operações, uma di 0 monothelismo e a opinião dos catht
vina, e outra humana, que concorrem a licos olTereceram-se, pois, primeiro com
um mesmo cffeito; por conseguinte, quando duas opiniões theologicas: n’estc estado dc
Jesus Christo fazia milagres por meio do disputa cada um fazia valer sua opinião
seu contacto, a humanidade tocava o cor pelas consequências vantajosas que d'ella
po, e a divindade curava-o. se tiravam; e os mouothelitas pretendiam,
Eis a verdadeira noção das acções thean- d’uma maneira bastante especiosa, que sua
dricas: póde-sc todavia dizer, n’um sentido opinião era própria a procurar a reunião
mais generico, que todas as acções c todos dos nestorianos c dos eutychianos na Igreja.
os movimentos da humanidade de Jesus De feito, o monothelismo, que suppunha
€hristo eram thcandricos, isto é, acções di que a natureza humana era de tal modo
vinamente humanas, não só porque eram unida â natureza divina, que lhe era su
acções d’um Deus que recebera uma di bordinada em todas as acções, e que não
gnidade infinita da pessoa do Verbo, que obrava per si mesma, mas pela vontade di
a s operava por sua humanidade, mas ain vina, parecia levantar as difficuldadcs dos
da porque a humanidade de Jesus Christo nestorianos e dos eutychianos, pois que
nada operava, só separadamente; ella era suppunha em Jesus Christo duas naturezas
sempre governada c regida pela impressão mui distinctas, e um só principio d’acção,
do Verbo a quem servia d’instrumento. ou um só ente activo. N’uma palavra os
Se a humanidade de Jesus Christo que nestoriauos não podiam arguir aos mo-
ria qualquer cousa, o Verbo queria que nothelitas o confundir as duas naturezas,
ella a quizesse, e a impellia a querer, con pois que as suppunham distinctas e subor
forme o decreto dc sua sabedoria: da mes dinadas: por outro lado, os eutychianos
ma sorte, pois, que se deve conceber sem
pre a humanidade de Jesus Christo como 1 Nicole, sobre o symbolo, terceira tn-
junta sua divindade, e como fazendo só strucção. Vid. Damascm. de duabus in
compelia uma mesma pessoa, assim tam Chrish voluntatibus. Vasquès Vol. 5, t. I.
Disp. 73, c. 1. Combesis, Hist. Hcrres. Mo-
not., Petau, Dogm. Theol, t. 5, l. 8.
714 MON
não podiam arguir ao monothelismo o sup- Oriente, mas foi constantemente rejeitada
pôr com Nestorio duas pessoas em Jesus c condemnada pelos papas c pelos bispos
Christo, pois que nào suppunha n’elle se dc Bysanço, da Numydia, da Mauritania c
não um só principio activo, ou uma só ac dc toda a Africa, que se reuniram e ana-
ção. thematisaram o monothelismo.
Eis, me parece, o lado favoravel sob o Heraclius não havia previsto esta rebel-
qual os monothelitas offereciam seu pare lião, temeu-lho as consequências, retirou a
cer, c foi sob esta apparcncia que Hera- sua ectese, e declarou que esse edito era
clius o encarou: como este principe cuida obra de S ergio.1
va em reunir as partes que haviam despe Cyro, dc Jerusalém, e Sergio, de Con-
daçado a Igreja, e cm terminar as conten stantinopla, tinham morrido, mas haviam
das que tinham despovoado o império, ma sido substituídos por Pedro c Pyrrho, dous
nifestou grande gosto pelo monothelismo, monothelitas zelosos; c assim se sustenta
e quiz que lh’o ensinassem. 1 va o monothelismo no Oriente.
Cyro, patriarcha d’Alexandria, reuniu Heraclius não sobreviveu muito tempo á
um 'concilio, no qual fez determinar que sua ectese, e teve por successor Constan
não havia senão uma vontade cm Jesus tino seu filho, que não reinou senão quatro
Christo. 2 mezes; foi envenenado pela imperatriz Mar-
Sophrone, bispo de Damasco, e depois tine, sua sogra: o senado descobriu o cri
de Jerusalem, nào encarou o monothelismo’ me da imperatriz, c lhe fez cortar a lin
or este lado, viu só n’esta nova decisão gua; cortaram o nariz a seu filho, e o se
e Cyro um cutychianismo disfarçado; es nado elegeu Conslancio, filho dc Coustan-
creveu a Cyro, condemnou o decreto do tino, e neto dTIeraclius.
concilio d’Alexandria, e sustentou que ha Pyrrho foi suspeitado dc ter'participado
via duas operações e duas vontades em Je da conjuração dc Martine, fugiu para a
sus Christo, segundo as duas naturezas que Africa, c eíegcram cm seu logar Paulo,
existem n’elle; que não se podia sustentar que ainda era um monothelita, mas doce
que a natureza humana nao tinha acção, e moderado.
sem a .despojar de sua essência, sem a ani Constancio quiz sustentar a ectese ou a
quilar, e sem a confundir com a natureza exposição dc fó de seu avô; mas recebeu
divina. os deputados dos concilios d’Africa, que o
Cyro, c Sophrone escreveram para inte supphcavam quo não permittisso alguma
ressar cada um em favor da sua opinião, inlroducção nova na Igreja.2
a maior parte de pessoas quo elles podes- Os bispos d’Africa não estavam/pois, sob
sem, e se formaram dous novos partidos na o dominio do imperador, os serracenos
Igreja. tinham-se apoderado d’esta provincia, c
Sergio, patriarcha de Constanti nopla, re ameaçavam sem cessar o imperio de no
uniu um concilio, em que se decidiu que vas invasões.
havia em Jesus Christo duas naturezas, e 0 patriarcha sentiu quanto seria perigo
uma só vontade.3 so para o imperador alienar o espirito de
Cyro e Sérgio escreveram ao papa Ho seus vassallos, e perturbar o imperio, obri
norio, que, prevendo as consequências d’es- gando-os a subscrever para a ectese; obri
ta contestação, lhes aconselhou que não se gou Constancio a publicar uma fórmula de
servissem cios termos d’uma só vontade, fé, que podésse manter a paz na Igreja:
ou d’uma só operação, assim como tam esta fórmula foi celebrada sob o nome de
bém não dissessem que havia duas vonta o.
des. 4 imperador declarava n’este typo, gue
0 imperador Heraclius, authorisado pelo para conservar na Igreja a paz e *a uniuo,
concilio que Cyro e Sergio haviam reuni ordenava a todos os bispos, sacerdotes,
do, fez lavrar uma acta da decisão d’estes e doutores, que guardassem silencio sobre
concilios, na qual elle expunha a doutrina a vontade de Jesus Christo, e que não dis
dos monothelitas, e que fosse por esta cau putassem, nem pró nem contra, para sa
sa chamada Ectese. 3 ber se cm Jesus Çhristo havia uma, ou
A ectese foi recebida por muita gente no duas vontades.2
Logo que o typo foi conhecido no Occi
1 T h eo p h a n a n . 20. Frideijj c. 65. dente, Martinho i fez reunir um concilio
2 Cone. 6. Act. II. Baron, ad an. 634.
3 Cone. 6. A ct. II. Baron, ad an. 634. 1 Theopano, c. 30.
^ Ibid. 2 Cedron, Theoph. Baron, ad an. 616.
5 A palavra ectesis significa exposição. 3 Anast. Baron, ad an. 648.
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do conto c cinco bispos, que, depois de te rcccbem-sc as definições dos cinco primei
rem examinado e discutido a qucstào do ros concilios gcraes,*declara-sc que ha cm
monolhelismo, condemnaram este erro, a Jesus Christo duas vontades e duas opera
cclcse d’IIeraclius, c o typo de Conslan- ções, e que estas vontades se acham em
c io .1 uma só pessoa, sem divisão, sem mistura,
O decreto do concilio reunido pelo papa c sem mudança; estas duas vontades nào
Martinho i, irritou Conslancio; este impe são contrarias,* mas que a vontade huma
rador olhou-o como um altentado á sua na foge da vontade divina, e que lhe é sub-
autlioridade, exilou Martinho para Cherso mettida: prohibe-se ensinar o contrario,
neso, c fez eleger em seu logar Eugênio, sob pena de deposição para os bispos e
que aberta mente nào consentiu no erro para os clérigos, e d'cxcommunhào para
dos monolhelitas, que mudaram de lingua os leigos. A definição do concilio foi una
gem, c disseram que havia cm Jesus Chris nime, e só Macario se oppôz. 1
to uma c duas naturezas. 0 imperador, logo apoz o concilio, pu
Emquanto que Constando luctava assim blicou um edito contra os monothelitas,
contra a inílexivcl firmeza dos papas cdos estabeleceu a pena de deposição, ou antes
bispos, os scrraccnos penetravam de todas de deportação contra os clérigos c contra
as partes no imperio; e o imperador, que os monges;* a de proseripção e de privação
nào tinha forças capazes de resistirem, era d’pmpregos, contra as pessoas constituídas
obrigado a pedir e a comprar a paz: mor em cargos ou dignidades, c a de expulsão
reu deixando a Igreja dividida, o imperio de todas as cidades, contra os particula
repartido em facções, e atacado por um res.
numero infinito de inimigos. Justiniano, que succcdeu a Constantino,
confirmou as leis de seu pac contra os
monothelitas: tendo sido expulso por Leon-
DA EXTIXCÇÃO DO MONOTI1ELISMO ce, e restabelecido por Trebellius, quiz vin
gar-se dos habitantes de Chersoneso, que
o haviam maltractado durante o seu exilio
Constantino, filho de Conslancio, repri entre elles: fez passar a maior parle a fio
miu os inimigos do imperio, e trabalhou d’espada; mas alguns dos ofíiciaes tendo-se
em restabelecer a paz e a união na Igreja. refugiado no paiz dos Chazari, obrigaram
j\7ão havia já communhão alguma entre a estes povos a vingal-os, uniram-se a elles,
igreja de Constantinopla e a de Roma: pa formaram um exercito, atacaram as tropas
ra fazer cessar este scisma, Constantino de Justiniano, derrotaram-nas, e proclama
fez convocar o sexto concilio geral, que é ram Philipicus imperador.
o terceiro de Constantinopla: principiou a Philipicus marchou sobre Constantino-
funccionar no terceiro anno do imperio de
• Constantino, anno 680. 1 O concilio condemnoú Sergio, Pyrrho,
Os monolhelitas defenderam vivamente raulo e o papa Honorio, como monotheli
sua opinião, e foram refutados solidamen tas, ou como fautores do monolhelismo: es
te; Ma cario, bispo d’Antiochia, defendeu o te ultimo ponto foi muito disputado pelos
monolhelismo com todos os recursos do es defensores da infallibilidadc do papa. Esta
pirito e da erudição; mas sempre com boa discussão não pertence ao meu assumpto;
fé: protestou que antes se deixaria fazer achal-a-hão tractada pelo papa Alexandre,
em pedaços, do que reconhecer duas von Dissert. 2, in scecuhun 7, em Cambresis,
tades oirduas operações naturaes em Je Historia monothelita; cm Bellarmin, de
sus Christo: justificava sua resistência por summo pontifice, l. 4, c. 11, em Gretsen,
uma só das passagens dos padres, que se de summo pontifice, l. 4, c. 13, em Onuphre,
examinaram, c que se acharam pela maior in Honor, em Schotus, in Cod. 20, Bibliot.
'parte troncadas c alteradas: portanto a fir Photii; em Baron, em Binius, notis in vi
meza, ou antes a obstinação, não é sempre tam et Epist. Honorii Paper., in sextum con
o efTeito da convicção, e uma prova de boa cilium cecumenicum; in vitam Agathonis,
fé e de sinceridade nos hcreticos. Paper; in vitam Leonis; cni Pctau, Dogm.
0 concilio, depois de ter esclarecido to Theol. t. 5, /. 1, c. 19, 213; em Dupin, Bi
das as difficuldades dos monothelitas, pro- bliot., t. 5, em uma Dissertação sobre o
pôz uma definição de fé, que foi lida e ap- monothelismo, por M. o abbade de Corgne.
provada por todo o mundo. Os protestantes tractaram o mesmo objecto;
N’csta definição do sexto concilio geral, Chamier, t. 1. Forbesius, t. 2, l. 5. Spa-
nhein, introd. ad Hist. Sacram., t. 2. Bas-
1 Anast. Baron, ad an 648. nage, Hist. da Igreja.
716 MON
pia, onde nâo achou resistência alguma: recompensas temporaes; parece que Deus
d’alli ordenou que lhe enviassem a cabeça tractaria então o genero humano como se
de Justiniano, prisioneiro. 1 tracta uma crcança, que se faz obedecer
Philipicusnão tomou logo posse do thro ameaçando-a com a palmatória, ou promet-
no, senão esposando abertamente a causa tendo-lhe confcitos: elle enviou cm seguida
dos monolheiitas; convocou um concilio de prophetas, que elevaram o espirito dos is
bispos, todos monothclitas de coração, e raelitas.
por consequência mui dispostos a revogar Quando os prophetas fortificaram, por
o decreto do sexto concilio geral. assim dizer, a infaneia dos israelitas, e co
O imperador determinou-se a esto parti mo que os elevaram até á juventude, Jesus
do por causa de um monge monothelila. Christo descobriu aos homens os princípios
que, a acreditar o que diz Cedrenus. lhe da religião, mas por graduações, o sempre
havia predicto outr’ora que elle chegaria com uma especie d’economia, da qual a
ao imperio, c que lhe promettia ainda um Providencia parece ter-se feito uma loi na
r.cino longo c feliz se quizesse abolir a au- dispensarão das verdades reveladas: Jesus
thoridade e o decreto do sexto concilio, c Çhristo dizia muitas vezes a seus discipu
estabelecer o monotheiismo: o imperador, los que tinha ainda cousas importantes a
crédulo, excitou, pois, novas perturbações dizer-lhes, mas que ellcs não estavam ain
na Igreja e no imperio, para abolir o sex da em estado de as entender.
to concilio. Depois de se haver assim preparado,
A predicçào do monge não foi justifica prometteu enviar-lhes o-Espirito Sancto, c
da pela execução. subir ao céo.
Philipicus deixou assolar as terras do Os apostolos e seus successores espalha
imperio, durante o tempo que se occupa va ram a doutrina de Jesus Christo, e até a
das contendas da religião; tornou-se odio desenvolveram; conduziram por este meio
so aos povos, rebentaram-lhe os olhos,^e a Igreja ao grau de luz que devia esclare
deram o império a Anastácio, que o não cer os homens bastante para que Jesus
desfruetou muito tempò; foi desthronado Christo enviasse o paracleto, e para que o
poi\ Theodosio, que por seu turno o foi Espirito Sancto enviasse aos homens as
por Leão, a quem Anastacio tinha feito ge grandes verdades, que eram reservadas pa
neral de todas as tropas do imperio. ra a maturidade da Igreja,
Este Leão, é Leão Isauriano, que quiz Eu annunciarei que esta época é che
abolir as imagens, e foi chefe dos icono gada, se dizia Montan, c direi que sou o
clastas: véde este artigo. A questão do cul propheta escolhido pelo Espirito Sancto
to das imagens foi olvidar o monotheiismo, para annunciar aos homens essas verda
que comtudo ainda teve alguns partidários, des fortes que elles não estavam em esta
que se reuniram ou confundiram com os do d’ouvir na juventude da Igreja: fingirei
eutychianos. extasis, annunciarei uma moral mais aus-«
jiQNTAN— era da aldeia d’Ardaban, na tera que a que se practica, direi que sou
Phr^grãTpouco tempo depois de sua con entre as mãos de Deus como um instru
versão. formou o projecto de tornar-se o mento de que elle tira sons quando quer,'
chefe do Christianismo. e como quer: por este meio minha quali
Notou que Jesus Christo na Escriplura dade de propheta revoltará menos o amor
tinha promcltido aos christàos enviar-lhes proprio dos outros, não serei obrigado a
o Espirito Sancto; fundou sobre esta pro justificar a minha doutrina pelo raciocínio e
messa o systema de sua elevação, e pre pela discussão, não serei mesmo constran
tendeu ser o propheta promettido por Je gido a practicar a moral quo ensinar, tudo.
sus, Christo.2 obedecerá aos meus oráculos, e terei na
E facil, dizia Montan, fazer-se vér que Igreja uma authoridade suprema. 1
Deus não quiz manifestar logo ao mesmo Tal é o plano do comportamento que o
tempo todos os desígnios da sua Projiden- ambicioso Montan formou, e que empre-
cia sobre o genero humano; elle não dis hendeu executar. Elle pareceu agitado por
pensa, senão por graduações, e com uma movimentos extraordinarios: muitos dos
especie d’eeonornia, as verdades e os pre que o escutavam o tomaram por um pos
ceitos que devem cleval-o á perfeição: deu sesso ou por um insensato; outros o julga
ao principio leis simples aos israelitas, fa- ram verdadeiramente inspirado: uns o ex-.
zia-lh’as observar por meio de penas c de citavam a proplietisar, emquanto que ou
tros lhe prohibiam a falia.
1 Anno 711.
2 Euseb., I 5, c. 16. i Epiph. Hwr. 98.
MON 717
Os primeiros pretendiam que o enthu- pias,condemnaram-nas, e privaram da com-
siasmo de Montan nào era senão um furor munhão os que eram seus authores.
que lhe tirava a liberdade da razão, o que Os montanistas, assim separados da com-
não se encontrava em propheta algum ver niunhão da Igreja, formaram uma nova
dadeiro do Antigo ou do Novo Testamento; sociedade, que era principalmentc gover
pelo menos este parecer era conforme a nada por aqucllcs que se diziam prophe
crença dos padres: outros, pelo contrario, tas: Montan foi o seu chefe, e sc associa
sustentavam que a prophccia vinha d’uma ram a este cargo Priscilla c Maximilla.
violência espiritual, que chamavam uma Os montanistas perverteram inteiramen
loucura ou uma demcncia; era esta a opi te a igreja de Thiatira; a religião catholica
nião de Tertulliano. 1 foi alli extincta durante cerca de doze an
Montan dizia que não estava inspira nos. Os montanistas encheram quasi toda
do senão para ensinar uma moral mais a Phrygia, espalharam-se na Galaria, esta-
pura c mais perfeita que a que se ensina bel.eceram-se em Constantinopla, penetra
va e so pracíicava. Não se recusava na ram até á Africa, e seduziram Tertulliano,
igreja o perdão aos grandes crimes, e aos que se separou todavia d’cllcs no fim, mas
peccadores publicos, quando tinham feito ao que parece, sem condcmnar seus erros.
penitencia; Montan pregou que era preci Os montanistas concordavam todos em
so ^recusar-lhes para sempre a commu- reconhecer que o Espirito Sancto havia
nhão. e que a Igreja não tinha o poder de inspirado os apostolos, mas distinguiam o
os absolver. Obscrvava-sc a quaresma, dif Espirito Sancto do paracleto, e diziam que
ferentes jejuns na igreja; Montan prescre este havia inspirado Montan, e dito por
veu tres quaresmas, jejuns extraordinarios sua bôea cousas muito mais excellentes
c duas semanas de xerophagia, durante as que as que Jesus Christo tinha ensinado
quaes era mister não só abster-se de vian no*Evangelho.
das, mas também de tudo o que tinha cho Esta distineção do paracleto e do Espi
rume. A Igreja nunca havia condcmnado rito Saneio conduziu um discipulo de Mon
as segundas núpcias; Montan considerou-as tan, chamado Echines, a rellectir sobre as
como adultérios: a Igreja nunca tinha olha pessoas da Trindade, e a procurar sua dif-
do como um crime o fugir á perseguição; ferença; e Echines cahiu no sabellianismo.
Montan prohibiu fugir, ou tomar medidas Estes dous ramos dividiram-se em segui
para se furtar ás investigações dos perse da cm differentes pequenas sociedades, que
guidores. 2 só differiam em algumas prácticas ridicu
Os homens albergam no fundo de seu las, que cada um dos prophetas pretendia te
coração um certo sentimento de respeito rem-lhe sido reveladas: estas seitas tiveram
para* com a austeridade dos costumes; el- a sorte de todas as sociedades fundadas
les sentem não sei que prazer em obedecer sobre o cnthusiasmo, c separadas sobre a
a um propheta; o maravilhoso da prophe- unidade da Igreja: sua impostura foi des
cia agrada á imaginação, e a imaginação coberta, tornaram-se odiosas, ridiculas, e
nos ignorantes toma facilmente convulsões extinguiram-se. Taes foram as seitas dos
ou contorsões por extasis sobrenaturaes; tascordurgitas,dosascadurpitas, dos passa-
por conseguinte nào é d’admirar que se lorinchitas, e dos artotyritas. Os montanis
adoptassem as idéias de Montan, e que elle tas foram condemnados n’um concilio de
tivesse ao principio sectarios d’ellas. Hiéraples, com Theodoro, o surrador. 1
Duas mulheres, conhecidas sob o nome Montan deixou um livro de prophecias;
de Priscilla e de Maximilla, deixaram seus Priscilla e Maximilla também deixaram al
maridos para seguirem Montan; bem de gumas sentenças por escripto.
pressa ellas prophctisaram como elle, e Miltiades e Apollonio escreveram contra
viu-se dentro em pouco tempo uma multi os montanistas; só nos resta de suas obras
dão de prophetas montanistas de um e ou alguns fragmentos.2
tro sexo. 3 Éra facil destruir toda a doutrina de
Depois de muitas considerações e de um Montan.
longo exame, os bispos d’Asia declararam l.° Nada se via em Montan que fosse
as novas prophecias falsas, profanas e im- acima dos estratagemas ordinários dos im
postores; as convulsões e os extasis não de
í Euseb.y l. Si c. 17. Athan. Or. 4. Tcrl. mandavam senão exercício e destreza; são
de Monogamia.
2 Teri, de Pudicia, de Monogam. de Je 1 Itligus, Dissert. de Hceres., $wc. 2,
junio. c. 23.
3 Euseb.j l. 5, c. 3. 2 Euscb., Hist. Eccles., I. õ, c. 18.
46
718 MOS
algumas vezes o efieito do temperamento; ma para prescrever jejuns extraordinarios-
com imaginação viva e espirito fraco, pó- não pertence senão aos primeiros pastores
de-sc acreditar inspirado, c persuadil-o fazerem similhantes leis: foi este o motivo
aos outros; a historia fornece mil exem porque se condcmnou Montan a esto res
plos d’estas imposturas. peito, e não porque a Igreja juigasse que
2. ° E falso o dever sempre haver pro cila nao podia impedir a lei do jejum: é
phetas na Igreja, ou que clles sejam neces certo que seria aniquilar toda a authori
sarios para o desenvolvimento das verda dade legislativa entre os christãos recusar
des do Christianismo, pois quò Jesus Chris á Igreja esta authoridade.
to prometteu á sua Igreja de a favorecer Demais, a práctica do jejum e da qua
sempre no seu espirito. resma remontam aos primitivos tempos da
3. ° Os prophetas annandam os oráculos Igreja: nada ha, pois, mais injusto do que
divinos d'esta sorte: o Senhor disse. Em a arguição que os protestantes fazem aos
Montan, pelo contrario, c Deus que falia catholicos por renovarem a doutrina dos
immcdiatanicnle, de modo que parece que montanistas, fazendo uma lei da observân
Montan é o mesmo Deus. cia da quaresma.
4. *° Montan c seus primeiros discipulosA propria doutrina de Montan prova
levavam uma vida absolulamente contraria que a quaresma estava estabelecida no
á sua doutrina. tempo d’cste heresiarcha: Montan não te
5. ° Elles pretendiam provar a verdade ri a prescripto tres quaresmas, como uma
de suas prophecias pela authoridade dos maior perfeição, se não achasse a quares
martyres, c os catholicos lhes provavam ma estabelecida; assim como não conde-
que Themison, olhado por elles como um mnaria as segundas núpcias, se não achas
martyr, sozinha escapado da prisào dando se alguns authores ecclesiasticos, que, com
dinheiro: que um outro, chamado Alexan batendo os gnosticos, pareciam desappro-
dre, não foi condemnado como christào, var as segundas núpcias; da mesma sorte,,
mas sim por causa de seus roubos, e que não faria uma lei de recusar a absolvição
nenhum d’elles foi perseguido pelos pa aos grandes peccados, se não tivesse visto
gãos, ou pelos judeus por causa da reli na historia alguns factos, pelos quacs pa
gião. 1 recia que se havia recusado, em algumas
6. ° Montan tirava á Igreja o podercircumstandas,
de reconciliar áquelles que ti
remir todos os peccados, o que era con nham cahido na idolatria: o espirito hu
trario ás promessas de Jesus Christo, e mano jamais conunetleu faltas na serie de
á crença universal d’ella; porque quan seus erros, nem na descoberta de verda
do fosse verdade que se tivesse algumas des, quer prácticas, quer especulativas.
vezes recusado a absolvição áquelles que Mo s c o v i t a s , r u s s o s ou r o x o l a n s — eram
haviam cahido na idolatria, ou aos’homici- sem' a F tes^ tn scienciasre'subrliersos no
das, não era porque se duvidasse do po paganismo mais grosseiro no reinado do
der da Igreja; era por um principio de se Rurich, que começou no anno 762. As
veridade de que a Igreja promettia usar, e guerras c as ligações d’estes povos com os
que não estava mesmo em uso em toda a imperadores gregos fizeram-lhes conhecer
parte.2 a religião christã, c pelos fins do 10.° sé
7. ° Montan condemnava as segundas nú culo, Wolodomir, gran-duque dos mosco
pcias, e as olhava como adultérios, o que vitas, se fez baptisar, o esposou a irmã dos
era contrario á doutrina expressa de S. imperadores Bazilio e Constantino.
• Paulo, e ao uso da Igreja. Os annaes da Rússia contam que Wolo
8. domir, antes da sua conversão, era zeloso
° É um absurdo prohibir indistiricta-
nieDte a todos os christãos o fugir á perse adorador dos idolos, o principal dos quaes
guição; muitos sanctos tinham fugido para se chamava Perum. Depois do seu baptis
não cahirem nas mãos dos perseguidores. mo, mandou-o lançar ao rio.
9. ° Montan não tinha authoridade algu- O patriarcha de Constantinopla enviou
á Rússia um metropolita, que baptisou os
1 Euseb., Hist. Eccles., /. 5, c. 18. doze filhos de Wolodomir, c n'um só dia
2 Sirmond. Hist. Pomit., c. Í. Albaspi- vinte mil russos. '
neuSt l- 2. Observ., c. 11, 15, 17. Morin, Wolodomir fundou igrejas e escolas; per
L 9, de Pamif.j c. 20, sustentam que nunca correu cm seguida os seus estados com o
se tem recusado a absolvição aos grandes metropolita, para obrigar os povos a abra
crimes, mesmo públicos, quando os culpa çarem o Christianismo: muitas provincias
dos se submettiam á penitencia nas grandes se converteram, e outras persistiram obsti
igrejas. nadamente na idolatfia.
MOS 719
Desde esse tempo, a Moscovia conservou bispos e dos bispos, c fundou quatro gran
sempre, sem interrupção, a religião chris- des conventos, para os quaes teve a habi
tã-grega. Os gran-duques teem muitas ve lidade de accumular bens immensos, e que
zes tentado reunir-se á igreja romana: es lhe serviram para sustentar os seus quatro
te projecto renovou-se cm 1717, quando o metropolitanos, doze arcebispos, doze bis
czar Pedro, o grande, viu a França, mas pos, e uma grande quantidade d’outrcs ec
ficou sem eíTeilo. A occasiào d’csto proje clesiasticos que creou.
cto, a memoria dos doutores de Sorbona, e Nicon, depois d’estes estabelecimentos,
a resposta dos bispos de Moscovia, se acham mudou as leis ecclesiasticas, voltando-as cm
no tomo 3.° da Analysc das obras de M. seu proveito, sob pretexto de que as anti
Boursicr, impressa cm 1753, c no tomo 2.° gas traducções estavam cheias de defeitos,
da Descriprão do imperio da Rússia, im o que occas*ionou as discussões c os scismas
pressa em 1757. na igreja da Rússia.
Tendo o Christianismo feito grandes pro Depois de ter reformado as leis da Igre
gressos depois de Wolodomir, o numero ja, Nicon quiz ter assento com o czar no
dos arcebispos se augmentou ate sete. senado, e emittir seu voto na administração
Posto que os moscovitas recebessem a do Estado, sobre tudo nos negocios de jus
religião dos gregos, clles fizeram algumas tiça, quando se tractasse de fazer novas leis,
mudanças no governo ecclesiastico e mes- sob pretexto de que o patriarcha Philaret
ino em sua doutrina. havia gosado d’estes mesmos direitos, e ha
via tido uma especie d’inspecção geral so
bre o estado.
DO GOVERXO ECCLESIASTICO Representou cm seguida ao czar que nem
DOS MOSCOVITAS lhe era conveniente declarar a guerra aos
seus visinhos, nemfazera paz com elles,sem
consultaro seu patriarcha, cujo dever era ter
Os moscovitas receberam dos gregos a cuidado na salvação do principe e de toda
religião christã: o patriarcha de Constan- a nação; que devia dar contas a Deus de
tinopla estabeleceu um metropolitano em todas as almas do estado, e que era até ca
Novogorod, e n’outras cidades bispos, e sa paz d’auxiliar o czar por meio dos seus san
cerdotes. 1 ctos conselhos; porém descobriu-se ao de
0 metropolitano de moscovia foi declara pois que o verdadeiro motivo d’esta ultima
do patriarcha de toda a Rússia em 1588 representação, era que elle tinha tirado som-
pelo patriarcha de Constantinopla; e desde mas consideráveis ao rei da Polonia, para
este tempo houve patriarchas na Rússia procurar perturbar o estado por meio de sua
que foram reconhecidos pelos ^Alexan authoridade, c por outro lado para satisfa
dria, d’Antiochia e de Jerusalem, e que go- zer á sua ambição e ao seu orgulho.
saram das mesmas honras que elles; mas O czar e os* senadores responderam a
era preciso que tivessem o suffragio das Nicon que se o patriarcha Philaret tinha
tes patriarchas, e que fossem confirmados sido consultado sobre os negocios tempo
pelo de Constantinopla. rãos, não era por causa de sua dignidade
Um patriarcha da Rússia, chamado Ni ecclesiastica, mas porque era pac e tutor do
con, representou ao czar Alexis Michaelc- czar; que antes havia sido senador, empre
witz que era inútil eleger d’alli por diante gado na embaixada da Polonia, e melhor
um metropolitano com os suffragios dos pa versado que os outros senadores nos nego
triarchas orientaes, e fazer-lhesyér a confir cios estrangeiros; que depois de Philaret
mação; o czarapprovou o desígnio de Nicon, jamais se haviam consultado os patriarchas
que* escreveu ao patriarcha de Constantino sobre os negocios temporaes; que nenhum
pla que tinha sido elevado ã sua digni dos seus predecessores o havia exigido, e
dade pelo Espirito Sancto, e que não con que uma similhante innovaçào não podia
vinha que um patriarcha dependesse d ou tender senão á ruina do estado.
tro: mudou ao mesmo tempo de titulo, e Nicon não quiz affrouxar nada em suas
cm logar. de se chamar mui sanctificado, pretenções; excommungou muitos senado
como faziam seus predecessores, elle tomou res, forjou mil intrigas, e excitou o povo á
o nome de muito sancto. revolta. A carestia, tornando-se geral na
Nicon augmentou o numero dos arce Rússia, favoreceu seus disignios; o povo
mal contente depois d’algum tempo, e op
1 Despcrição do imperio da Rússia, pelo rimido da miseria, se sublevou, e o fogo
barão de Slralemberg, t. 2, c. 9. Religião dos a rebellião não foi extincto. senão com o
Moscovitas, c .L sangue dos moscovitas.
•
720 MOS
O povo havia reentrado no dever, mas confirma
o aquella que lhe agrada. Ila lam
patriarcha nào estava ainda domado, nào bem n’este synodo alguns membros tempo-
queria renunciar a nenhuma das suas pre- raes, como um procurador geral, um pri
tenções, e não ousavam empregar contra meiro secretario, c alguns secretários em
ello* a violência e a força; o povo estava já segundo logar.
disposto á revolta, e o faccioso Nicon sou Quando se tracta de negocios d’impor-
bera conquistar para seus interesses um tancia, é preciso lcval-os perante o czar,
grande numero de senadores descontentes, no senado, onde em casos tacs o synodo
e podia re-submergir o estado em novas se dirige em corpo, e toma assento abaixo
desordens. do senador. O synodo tem também sob sua
O czar Alexis resolveu terminar esta direcção, sua secretaria de justiça, sua ca
controvérsia por um synodo geral: fizeram- mara das finanças, e uma secretaria d’in-
se vir da Grécia, a dispensas do estado, tres strucção sobre as escolas c sobre a im
patriarchas, vinte e sete arcebispos, e dez prensa.
prelados, aos quaes se juntaram cento e cin- O clero da Rússia mantem eiii cada go
coenta ecclesiasticos da Rússia, em 1667. verno um arcebispo e alguns bispos.
O synodo tendo recebido c examinado as
queixas do czar, ordenou:
1. ° Que Nicon seria desauthorisado da D.ys SEITAS QUE SI3 FORMARAM
sua dignidade, e encerrado n’um convento, ENTRE OS MOSCOVITAS
onde vivería a pão e agua até o resto de
seus dias.
2. ° Que o patriarcha da Rússia seria eleiSeparou-se da igreja da Rússia uma cer
to, não separadamente pelos arcebispos, ta seita chamada steraiucrsi, ou os antigos
bispos e clero, mas conjuntamcntc com elles fieis, e que dá aos outros russos o nome
pelo czar e pelo senado; e que no caso que de roscolchiki, isto é, herético: esta seita
faltasse ao seu dever, quer tornando-se cul não se separou inleiramente senão no 16.°
pado de qualquer vicio grosseiro, quer d*ou- século, sob o patriarchado de Nicon, mas
tra cousa, seria julgado e punido pelo czar existiu muito tempo antes.
e pelo senado, segundo tivesse merecido. A maior parte d’estes sectarios não sa
3. ° Que o patriarcha de Constantinoplá bem lêr nem escrever,'e são quasi todos
não seria considerado como o unico chefe burguezes e paizanos d’uma grande simpli
da igreja grega; que não se lhe daria conta cidade: não teem igrejas públicas, e formam
dos redditos das decimas da Rússia, e que as suas assembléias em casas particulares.
competiría ao czar conceder-lhe a parte que A diííerença entre elles e os outros rus
julgasse a proposito. sos, quanto a crença, consiste nos artigos
4. seguintes:
° Que d’alli por diante não seria permit-
tido a ninguem vender, dar, nem legar seus l.° Pretendem que ó uma grande falta
bens aos conventos ou a outros ecclesias dizer tres vezes Allcluia, e não o dizer se
ticos. não duas vezes.
5. ° Que o patriarcha não crearia novosI o Que é preciso empregar sete pães na
bispos, nem fundariacousa alguma de novo, missa em logai* de cinco.
sem o consenso do czar e do senado. 3 . ' Que a cruz que se imprime sobre o
Os decretos do synodo não suspenderam pão da missa deve ser octogona e não qua
os projectos ambiciosos dos patriarchas, e drada, porque a travessa que sustentou
o czar Pedro, o grande, extinguiu está di Nosso Senbor na cruz é d’esta figura.
gnidade; substituiu o patriarchado para o 4. ° Que fazendo-se o signal da cruz não
. governo ecclesiastico por um synodo sempre se devem juntar os tres primeiros dedos
subsistente, fundado sobre bons regulamen como fazem os outros russos, mas sim
tos, e munido d’instrucções sufficientes para juntar o dedo annular e o dedo articular
todos os casos que podessem acontecer. ao pollegar pelas extremidades, sem cur
Este synodo ou collegio ecclesiastico é var o dédo index nem o do meio: os tres
■composto d’um presidente, dignidade que o rimeiros representando a Trindade, c os
czar se reservou para elle proprio, a um ous ultimos Jesus Christo, segundo as
vice-presidente, que é um arcebispo, de dez suas duas naturezas, como Deus e homem.
conselheiros bispos ede seis archimandritas, 5. ° Que os livros impressos depois do
n a qualidade d’assessores. patriarcha Nicon não devem ser recebi
Quando vaga algum logar de presidente; dos, mas que convém seguir os antigos, e
o u de conselheiro, o synodo e o senado no-, considerar Nicon como o Anti-Cbristo.'So
meiam duas pessoas, e o czar escolhe e bre o que convém notar, que os livros
MUL 721
compostos depois do patriarcha Nicon nada A religião lutherana, é, depois da grega,
mudam na doutrina, mas explicam somen a mais extensa; porque, sem fallar das pro
te algumas palavras obscuras. vincias conquistadas, como a Livonia, a Es-
6. ® Como os sacerdotes russos bebem thonia, c uma parte da Finlândia ou a Ca
aguardente, clles os julgam incapazes de rdia, ha duas igrejas lutheranas em Peters-
baptisar, de confessar, e de commungar. burg, duas em Moscow, c uma cm Bello-
7. ° Nào consideram o governo temporalgorod, sem contar as assembléias particu
como urn instituto christiio, e pretendem lares, de que ha uma cm casa de cada ge
que tudo deve ser repartido como entre neral estrangeiro, os quaes todos teem mi
irmãos. nistros adjuntos a seus palacios.
8. ° Sustentam que é permittido tirar aOs prisioneiros suecos tinham sua igreja
vida pelo amor de Jesus Christo, c que se pública na cidade de Tobolosk, c um exer- -
chega por isso a um grau mais eminente cicio livro da sua religião, tanto para elles
de beatitudé. como para a educação de seus filhos. A
Julgam todos estes artigos mui necessa direcção das igrejas c cscólas lutheranas
rios para a salvaçào, e quando são procu da Rússia é confiada a um superintenden
rados por sua crença, ou que se quer for- te geral, que habita em Moscow, e a-dous
çal-os a seguir a religião russa, acontece outros superintendentes estabelecidos um
muitas vezes reunirem-se por familias de na Livonia e outro na Esthonia. *
quatrocentos ou quinhentos em suas casas Os calvinistas e os catholicos romanos
ou cm granjas, onde se queimam vivos, teem também igrejas públicas cm Peters-
como sueccdeu no tempo em que M. o ba bong c em Moscow, mas é prolubido a es
rão de Stralemfierg estava na Syberia, onde tes ultimos attrahirem no paiz indilTerente-
muitas centeuas de steraicersi se queima mente todas as sortes de religiosos.
ram voluntariamente. Os armênios teem uma igreja pública e
Os stcrmuwsi consideram os outros rus um bispo em Astracan.
sos, e geralmente todos os que nào são do Os maliomelanos são a trigésima parte
seu parecer, como impuros e como pagãos; da Rússia; teem por toda a parte, nas ci
fogem da sua conversação, e não comem dades e no campo onde permanecem, suas
nem bebem com ellcs nas mesmas taças. assembléias e suas cscólas públicas: vão
Quando algum estrangeiro entra em sua com toda a liberdade aos logares consa
casa, lavam o logar onde ello se assentou, grados á sua devoção, como fariam cm
e os mais zelosos' varrem até o aposento Meca, em Mcdina, êtc.; permitte-se-lhes a
quando clle sahe. .Pretendem authorisar polygamia e todo e qualquer uso da sua
todas as suas prácticas por livros de S. religião.
Cyrillo, que são manifestamente suppostos, Os pagãos são tres vezes mais nume
mas dos quaes é impossível separar estes rosos na Rússia que os mahometanos,
sectarios supersticiosos, tanto mais quanto mas difTerem consideravelmente entre elles
elles são mais ignorantes ainda do que os quanto ao culto c às ceremonias da reli
russos. gião.
Pedro, o grande, julgou que, esclarecen- Estes pagãos, apesar de sua ignorância,
do-os, os converteria mais seguramente do são naturalmente bons. Não se vê entre
que pelos rigores, que tinham já custado elles alguma libertinagem, nem roubo, nem
áo estado muitos milhares de vassallos: or perjurio, nem vicio algum grosseiro; é mui
denou que os tolerassem, com tanto que raro achar entre elles homem algum que
não emprchendessem communicar as suas se possa arguir. Vêem-se n’elles acções de
idéias, e encarregou os bispos c os sacer probidade, de desinteresse, c de humani
dotes de procurarem conduzil-os á verda dade, como nós admiraríamos nos philoso
deira doutrina por meio de sermões edifi phos antigos: ha equivoco, pois, quando
cantes e d’uma vida exemplar. se diz que os homens sahem das mãos da
natureza, cruéis e avaros.1
....31ULTIPLIANS—Nome que se deu a certos
DAS RELIGIÕES TOLERADAS NA MOSCOVIA hercticòs safíidos dos novos adamitas; são
assim chamados porque pretendem que a
%
726 NES
pessoa humana, Jesus, Filho de Maria: cllc REFUTAÇÃO DO NESTORIÀNISMO
dizia que estas duas pessoas haviam sido
unidas por uma só c a mesma acção, de
sorte que ambas juntas não faziam mais E sem dúvida que o Verbo se uniu com
que um Jesus Christo, sem que suppozcsse a natureza humana: l.° A união do Verbo
entre as duas pessoas divina e humana se com a natureza humana não é o simples
não a mesma união e a mesma associação concurso da divindade c da humanidade
que vêmos entre o homem que faz uma para a salvação do genoro humano, tal
obra, e o instrumento de que este se ser qual é o de duas cousas absolulamenlc se
ve para fazel-a, de maneira que, juntos o paradas, e cujo cITeito tende ao mesmo
homem c o seu instrumento, podem ambos fim, porque a Escriptura nos diz que o
ter um nome communi. Verbo se fez carne, e que o Filho de Ma
Por exemplo, póde dar-se ao homem que ria é Deus, o que seria absurdo, se a união
mata e á espada com que mata, o nome do Verbo e da humanidade não fosse mais
de matadorj porque entre o homem c a que o simples concurso das duas nature
sua espada ba tal subordinação, união, e zas, como o é dizer-se que o homem que
associação, qual deve haver entre um agen se serve d'uma alavanca para levantar
te principal e o seu instrumento, e por vir qualquer péso se torna cm alavanca.
tude da sua associação póde dar-se o no 2. ° Esta união não é uma união simples
me de matador ao homem, á espada, e a de consenso de pensamentos, desejos, c in
ambos tomados juntamente, porque ambos clinações, porque assim como não póde di
concorrem para a mesma obra. zer-se que eu produzo as acções d’um ho
Porém, se considerarmos o homem e a mem, porque ellas são conformes com as
sua espada fóra d’esta associação e do con minhas inclinações, da mesma sorte não
curso para a mesma obra, cada um tem poderiamos dizer que Deus produziu as
seus attributos á parte; de sorte que nem acções de Jesus Christo, c que derramou o
podemos dizer que o homem é de ferro seu sangue, se em Jesus Christo não esti
nem ponteagudo, que são os attributos da vesse Deus unido com a humanidade se
espada, nem também que esta é vivente e não pela conformidade das acções do ho
racional, que são os do homem: porque mem com a natureza de Deus. *
seja qual fòr a associação que houver en 3. ° A união do Verbo com. a natureza
tre o homem e a espada, o homem e a es humana não é uma simples habitação da
pada não são todavia uma só pessoa. divindade na humanidade, nem também
Isto é o que se devia pensar acerca de uma simples influencia para governal-a.
Jesus Christo no parecer de Neslorio; e O piloto está unido d’esta maneira com o
assim mesmo diziam do Verbo e do ho seu navio, e d?esta mesma sorte habita
mem, a que estava unido, pelo que respei Deus nos seus sanctos; e comludo não ha
ta á obra para a qual elles concorriam, vemos de dizer que o piloto é o navio,
isto c, a salvação dos homens: mas consi nem Deus o' Sancto. O evangelista, pois,
derados fóra d'este objecto, e prescindindo não poderia dizer que o Verbo se fizera
do seu concurso para a salvação do gene carne, se a união do Verbo com a nature
ro humano, já não tinham cousa que os za humana não fosse mais que a simples,
unisse: não podia dizer-sc do Verbo o que habitação da divindade na humanidade, ou
pertencia ao homem, nem do homem o que uma mera influencia do Verbo para diri-
pertencia ao Verbo; e por isso mesmo, se gil-a.
gundo Nestorio, não podia dizer-se que .4.° A união do Verbo com a humanida
Maria era Mãe de Deus, o que suppõe com de não é.uma união d’informação, tal qual
evidencia que Nestorio considerava então é a união da alma e do corpo, porque a
o Verbo e o homem como duas pessoas: divindade não é a fórma da humanidade,
porque se não tivesse supposlo em Jesus e a humanidade não se torna materia dh
Christo mais que uma só, corre de plano divindade.
que haveria attribuido a esta pessoa tudo 5.° Pela união do Verbo com a humani
o que convém a cada uma das duas natu dade,-o Verbo se fez carne, o que não. póde
rezas, da mesma sorte que nós, que consi entender-se senão em qualquer d’estes tres
deramos o homem composto de um corpo sentidos; ou que o Verbo rcalmentc se con
e d’uma alma, dizemos que anda, que tem verteu em carne, ao que a razão repugna;
um corpo, ura espirito,, etc. Portanto, ne ou n’um sentido de similhança, isto é, que
gara com eíleito Nestorio a união hyposta o Verbo a certos respeitos tomou alguma
tica do Verbo com á natureza humana, e conformidade com a carae, o que também
suppunha em Jesus Christo duas pessoas. é absurdo; pois em que se fez a ella simi*
NES 727
Hiante o Verbo? ou finalmente, que o Ver cem d’um modo tão particular, que não
bo uniu a. si pcssoalmcnte a carne, o que podem pertencer a nenhum outro. D’esta
se confirma pela mesma passagem em que mesma sorte um anjo é uma pessoa, por
se diz que o Verbo depois de feito carne ser uma natureza intelligente completa,
habitou entre os homens, e que estes con que se termina em si mesmo, distincta de
templaram a sua gloria. qualquer outra, e incapaz de se commu-
É tal esta união, que as propriedades, nicár.
direitos, acções, soffrimentos, e outras cou- Diversamente deveriamos nós pensar do
sas similhantcs, que só podem assentar em corpo c da alma do homem, se estes antes
uma das naturezas, sâo attribuldas á pes da união existissem separados, porque fei
soa denominada pela outra, o que de ne tos para se unirem a fim de que da sua
nhuma sorte ou maneira tem logar, sem união resultasse isto a que chamamos ho
que ambas pertençam a uma só e á mes mem, nem o corpo humano sem alma po
ma pessoa: taes sao as passagens cm que dería desempenhar todas as funeções do
se diz: «que um Deus resgatou a sua Igre destino, nem a alma sem corpo fazer to
ja por seu sangue, c que Deus nào per das as operações para que foi crcada; por
doou a seu proprio Filho, mas o entregou tanto, a alma humana, separada do corpo,
á morte.» 1 não seria uma pessoa, pois que é forçoso
Se em Jesus Christo ha doas pessoas que seja, unida a ellc para que esta união
juutamcntc associadas pela mesma unçào, produza a pessoa. Podem, pois, duas natu
e subordinadas uma á outra para remirem rezas ou duas substancias nào fazer mais
o genero humano, nào póde dizer-se que que uma só pessoa, quando é tal a sua
uma seja a outra, como S. Joào affirma qualidade, que não é possivel satisfazerem
quando diz que o Verbo se fez carne, nem aos officios a que são destinadas, senão uni
attribuir-se a uma o que sómente pertence das, porque sóincntc assim formam uma
á outra, logo que se considerem fóra do natureza individual, intelligente, perfeita,
homem, e sem dcpeudencia do fim a que incommuuicavel e distincta de qualquer
ambas cooperam. outra.
Nào poderi a, pois, dizer-se, no sentir de Segundo estas noções, facilmente se at
Ncstorio, que o Filho de Deus tinha sido tinge como a nature*za humana e a divina
gerado d’uma mulher, que fóra apalpado não são em Jesus Christo mais que uma
com as mãos, visto com os olhos, que nas pessoa; porque não tendo sido formada a
cera e que morrera; assim como quando natureza humana de Jesus Christo em vir
Pedro matasse a Paulo com a sua espada, tude das leis ordinarias, mas por um prin
ainda que na verdade se podésse dizer que cipio sobrenatural, o seu primeiro c origi
a espada o matara, bem como que Pedro nario destino foi ser unida a outra, dc que
o matara; comtudo, abstraliindo d’este fim resulta não se terminar ella em si mesma,
commum, seria absurdo proferir-se que o c não ser completa como o são as outras
homem se tornara em espada, c que fóra creaturas humanas, que vem seguudo as
forjado pelo ferreiro,, porque taes expres leis ordinarias da natureza, porque estas
sões só quadram na união de muitas natu não tem o destino que acabamos dc notar
rezas cm unidades de pessoas, isto é, quan na de Jesus Christo. Como a natureza hu
do uma natureza de tal sorte esteja unida mana de Jesus Christo não póde por si
a outra, que ambas nào formem mais que mesma cumprir as funeções a que foi des
uma individual, ou um supposto dotado de tinada sem a sua união com o Verbo, é
intelligcncia, diverso de qualquer outro, e claro que .antes da união não é uma pes
incommunicavel. soa, e que- depois dc unida, o Verbo e a
Porém unindo Jesus Christo as duas na natureza humana não constituem mais que
turezas, como é possivel que não haja n’clle uma só, porque não são mais que uma só
mais que uma pessoa? Para resolvermos natureza individual, ou um supposto dota
a dúvida havemos de recordar-nos do que do d’intelligencia, completo, diálincto de
é orna pessoa. Uma pessoa é uma indivi qualquer outro, e incommunicavel.
dualidade ou um supposto dotado de intel- O erro de Nestorio, que não suppõe
ligencia, completo, distincto, e incommuni mais que uma união moral entre a natu
cavel a qualquer outro; assim, qualquer reza divina e humana, transtorna toda a
homem em particular é uma pessoa, que ordem da religião christã; porque então
tem acções, direitos, qualidades, soffrimen- Jesus Christo, nosso mediador c redem
tos, movimentos e aíTectos, que lhe perten- ptor, não passa de simples homem, o que
arruina o fundamento da mesma religião,
1 Act. 2. Ép. ad Rom. 6. conio já fizemos vér no artigo Arianos,
728 NES
provando sor a divindade do Verbo dogma Theodoro de Mopsucstia, c de dar uma no
fundamental. Nào ó pois o da união hy va fôrma ao Christianismo.
postatica, como alguns querem, uma mera Já notamos no artigo antecedente que o
e inútil especulação, porque serve para dogma da união hypostatica era igualmen
nos dar o exemplo de todas as virtudes, te recebido em Ioda a Igreja; na conformi
para nos instruir com authoridades, c para dade d’esta união podia dizer-se nào so
prevenir infinitos abusos em que os ho que Jesus Christo era homem c Deus, mas
mens teriam cabido, se por modello e por também que era homem Deus c um Deus
medeador entre Deus e elles nào tivessem homem, e assim se falia va universalmente.
mais que outro simples homem. Assim Como cm consequência d’este uso se di
olharam todos os padres para o dogma da zia que a Virgem Sanctissima era mãe de-
encarnação ou da união hypostatica: mas Christo e mãe de Deus, Nestorio atacou
é alheia d’cstc logar esta materia. 1 logo estas expressões, e pregou que o Ver
KESTonio — bispo de Constantinopla, c bo encarnara, mas que não sahfra do sa
author da heresia que d’elle tomou o no rado ventre da Virgem, porque já existia
me, foi condemnado e deposto no concilio esde a eternidade.
de Epheso. Nasceu na Syria, aonde se des Escandalisou-se o povo d’csta doutrina,
tinou á predica, que era a carreira ordi c ouvindo-a com indignação, interrompeu
naria das dignidades, e para a qual pos- o discurso do patriarcha: entrou logo a
suia todos os talentos que bem o podiam murmurar, a queixar-se, a cscandecer-se,
abalisar: tinha um exterior modesto, o ros e finalmenlc se amotinou contra Nestorio,.
to pallido e magro, foi geralmente applau- o qual por seu notorio valimento fez sen-
dido, e fez-se adorar do povo. tencear, prender, e açoutar os principacs
Depois da morte de Sisinnio dividiu-se a dcscou tentes. 1
igreja de Constantinopla sobre quem lhe A innovação de Npstorio deu grande
havia de succeder, e Theodosio, o moço, brado cm todo o Oriente; enviados os seus
para prevenir as discordias, chamou Nes- escriptos para o Egypto, os monges move
torio a occupar aquella cadeira episcopal. ram a questão enfre si, e consultaram a
A alta dignidade a que foi levado aíTer- S. Cyrillo, patriarcha d*Alexandria, o qual
vorou o seu zelo, e pretendendo inspiral-o lhes respondeu, pesaroso de que entre el
a Theodosio, no seu primeiro sermão lhe les se tivessem agitado taes questões, mas
disse: «Dai-me a terra purgada de here- que todavia julgava a Nestorio cahido em
ges, que eu vos darei o céo; auxiliai-me erro. 2
cm exterminal-cfc, que cu vos promotto um Nestorio induziu Phocio a responder a
soccorro eflicaz contra os persas.» 2 esta carta, c fez correr boato de que S.
Apenas Ncstorio se tinha assentado so Cyrillo governava mal a sua igreja, e que
bre a cadeira da capital, logo expulsou afiectava uma dominação tyrannica.3
d’esla os arianos, armou o povo contra cl- S. Cyrillo respondeu a Nestorio que não
les, demoliu as suas igrejas, e obteve do ora a sua carta a que turbara o socego da
imperador editos rigorosos para ultimar o Igreja, mas os quadernos que corriam de
seu exterm inio.3 baixo de nome de Nestorio, os quaes. ti
0 zelo de Nestorio e seus talentos lhe nham motivado tal escandalo, que jà al
conciliaram o favor do principe, o respeito guns não queriam dar a Jesus Christo o
dos cortezàos, e o amor do povo; tanto as nome de Deus, mas o de orgão e instru
sim, que até soube restaurar no espirito mento da divindaae; que todo o Oriente
de todos a boa memoria de S. João Chry- estava alborotado sobre este assumpto, e
soslomo, que Theophilo Antiocheno, tio de que Nestorio podia socegar os animos, ex
S. Cyrilío d’AIexandria, tornara odioso, e plicando e riscando o que lhe attribuiam,
fizera exterminar. Tendo, pois, assim es que não devia recusar á Sanctissima Vir
tabelecido .seu credito, e ganhando a con gem a qualidade de Mãe de Deus, e que
fiança por um zelo sobejo, que o povo sem por este meio restabelecería a paz na
pre ‘ applaude, Nestorio creu-se em situa Igreja.
ção de ensinar a doutrina que bebera de Respondeu Nestorio a S. Cyrillo, .que
sem embargo de que este havia faltado á
caridade fraternal a seu respeito, comtudo
1 Aug. de Doctrin. Chríst., I. d, c. 11,
13. Greg. Moral., L. 6, c. 8, 1 .7 , c. 6. Ni- 1 Act. Cone. Ephes.
cqje, Symbole, Instruet. 3. 2 Cyrilliits, Epist. ad Ceelestin.
2 Socrat., I. 7, c. 29. 3 Cone. Ephes. prima part. c. 12. Cyril.
3 . lbid. Ep. ad Nestoi'. secunda.
NES m
•desejava muito dar-lhe todos os signacs de todas as demais catholicas, seria deposto c
paz c dhinião: porém nào explicou a sua excommungado: o mesmo concilio decla
doutrina nem respondeu aos meios que S. rou também que os que se haviam sepa
Cyrillo lhe propunha para restaurar a paz. rado de Nestorio depois que ellc entrou a
S. Cyrillo em outra carta expôz a sua dou espargir esta doutrina, estavam no gremio
trina acerca da união hypostatica, preve da Igreja. 1
niu todos os abusos (pie d’ella se podiam S. Cyrillo congregou outro concilio no
fazer, mostrou que esta doutrina era fun Egypto, no qual resolveram se executasse
dada no concilio de Nicea, c acabou a car a sentença pronunciada pelos occidentaes
ta exhortando á paz a Neslorio. Este ar- contra Nestorio, e se deputaram quatro
guiu a S. Cyrillo (Tentendcr mal o concilio bispos para lh’a intimarem. A isto aecres-
de Nicea, e dc haver cahido cm varios er ceiitou S. Cyrillo uma profissão de fé, que
ros, e insistiu cm que nào havendo ne ellc queria que Nestorio subscrevese, como
nhum concilio usado dos termos dc Mãe também doze anathemas, nos quacs era *
de Deus, se podiam supprimir. condemnada a doutrina de Nestorio por to
Receando S. Cyrillo que estes sophismas das as faces pelas quacs podia ser pro
allucinasscm os fieis de Constantinopla, posta..
escreveu-lhes, mostrando que Nestorio e Nestorio não respondeu aos deputados
seus sequazes dividiam Jesus Christo em dc Alexandria senão com outros doze ana
duas pessoas, e insinuando-lhes que res themas contrarios aos de S. Cyrillo: e como
pondessem aos que os vituperavam dc per antes de todos estes procedimentos alcan
turbarem a paz da Igreja, e de nào obede çara de Theodosio a convocação d um con
cerem ao seu bispo, que nào eram ellcs, cilio geral cm Epheso, este se elfectuou
mas o mesmo bispo, quem motivava os em 431, e a elle concorreram S. Cyrillo
distúrbios e o cscandalo, pois ensinara cou- com cincoenta bispos africanos, c Nestori»
sas inauditas. com d ez.3
Estaopposição dos dous patriarchas ateou João de Antiochia não se apressou tai
o fogo da discordia, dc sorte que na mes to, ou porque os caminhos o embaraça
ma Constantinopla se formaram dous par sem, ou porque d’isto esperasse algur.
tidos, que de nada se esqueciam para faze bom etTcito, porém mandou dous deputa
rem odiosa a doutrina dos respectivos ad dos para assegurarem da sua prompta
versarios. chegada os bispos congregados em Ephe
Os inimigos de Nestorio accusavam-no de so, declarando que nem os que o acompa-
negar indircctamcnte a divindade dc Jesus vam nem elle estranhariam que sem elles
Christo, a quem só dava o nome de Porta se désse principio á celebração do concilio.1
Deus, e reduzia á condição de moro ho Portanto, S. Cyrillo, eos bispos do Egypto, e
mem: os seus sequazes censuravam a S. da Asia se juntaram cm vinte e dous dc
Cyrillo de vilipendiar a Divindade, abaten- junho do dito anno sem embargo de nào te
do-a a todas as enfermidades humanas, e rem chegado os legados da sancta sé. 3
lhe applicavam as zombarias com que os Chamado Nestorio ao concilio recusou
pagãos insultavam os fieis acerca do seu apresentar-se n’elle com o fundamento de
Deus crucificado. que não devia começar-se antes da chega
Em breve tempo os dous patriarchas in da dos orientacs; más os bispos, desatten-
formaram toda a Igreja das suas contro didas estas razões, entraram a examinar
versias. Acacio de Boercc e João de Antio seus erros, c como S. Cyrillo os fizera já
chia approvaram a doutrina de S. Cyrillo, mui patentes, de commum accordo foram
e condemnaram a Nestorio; mas sendo dc condemnados, e Nestorio deposto.
parecer que não deviam realçar-se com Passados vinte dias chegou a Epheso
tanto calor expressões pouco exâctas, pedi João de Antiochia, e formou com os seus
ram a S. Cyrillo quizesse apaziguar a Igre bispos um novo concilio, no qual accusa-
ja com seu silencio.
O papa Celestino, a quem S. Cyrillo e 1 Este concilio foi celebrado em agosto
Nestorio tinham escripto, convocou um de 430.
concilio em que foi approvada a doutrina 2 Este concilio celebrou-sc em novembro
de S. Cyrillo, c condemnada a dc Nestorio, de 430.
e no qual se determinou, que se Nestorio 3 Socrates, l. 7, c. 33. Relat. ad Irnpcr.
dez dias depois da intimação da sentença 2, part. Cone. Ephes. Act. 1.
do concilio, não condemna*sse a nova dou * Socrat.j ibid. c. 36. Evagr., l. 1, c. 3.
trina que introduzira, e não approvassc a Nicephor., I. 4, c. 34. Concil. Ephes.
das igrejas de Roma, d’Alcxandria, e de 5 Act. Cone. Ephes. Collect. de Lupus.
730 NES
ram Mcnnon de haver fechado as portas Os bispos do Egypto c os do Oriente de
da igreja aos bispos, c S. Cyrillo de ter pois de haverem alternado muitas cxcom-
renovado nos seus doze anathemas o erro munhões, mandaram cada um da sua par
de Apollinario: sobre esta accusação pro te deputados ao imperador. Tomaram par
nunciaram sentença de deposição contra te ifeste negocio os cortezãos, estes por Cy
Mcnnon, e contra S. Cyrillo. rillo, aquellcs por Nestorio: uns eram de
Emquanto isto se passou, chegaram os parecer que o imperador declarasse por
legados do papa, que na conformidade de legitimo quanto se fizera duma c d’outra
suas instrucções se uniram a S. Cyrillo, e parte; outros que se desse tudo por nullo, o
informados do que se tinha feito contra se mandassem vir bispos desinteressados pa
Nestorio, o. approvaram. Logo o concjlio ra examinarem o que se passara cm Ephb-
participou ao imperador que os legados so. Theodosio íluctuou por algum tempo
da igreja de Roma tinham assegurado que entro estes dous partidos, e tomou final-
todo o Occidente concordava com elles na mente o de approvar a deposição de Nes
sua doutrina, e que os mesmos legados torio e de Cyrillo, persuadido dc que, quan
condemnaram tambem a dc Nestorio e sua to a fé, estavam todos conformes, pois que
pessoa: passaram a cassar a deposição pro ambos recebiam o concilio de Nicea.
ferida contra S. Cyrillo, e Mennon, e cita Comtudo a sentença dc Theodosio não
ram a João de Antiochia, e a seus adhe restabeleceu a paz, porque os seqOazcs de
rentes. Nestorio, c os defensores do concilio pas
No mesmo dia affixou-se um edital em saram das disputas aos insultos, dos insul
que Cyrillo, e Mennon eram declarados tos ás armas, c d’improviso se viu proxi
depostos como hercges, e os outros bispos ma a romper uma guerra sanguinolenta
como seus fautores. entre os dous partidos. Então Theodosio,
No dia seguinte os padres do concilio de sem embargo de ter um caracter doce,
Epheso terceira vez fizeram citar a João fraco, e pacifico, igualmente se irritou con
de Antiochia: condemnaram os erros de tra Nestorio, e contra Cyrillo; c conhecen
Ario, Apollinario, Pelagio, 'e Celestino: c do que o que linha tomado em Nestorio
depois declararam fóra da communhão da
Igreja a João de Antiochia e a seus sequa- ninou por erros de que elle era isempto;
zes. 1 porque o■mesmo patriarcha havia condc-
mnado com todo o concilio os d'Apollina
1 Basnage, Le Clerc, La Croze e outros rio, de Ario, etc.
censuraram o procedimento do concilio dc 5.® Sc em todo este negocio houve dema
Epheso, mas sem razão: siada vivacidade, impute-se ao mesmo Nes
1. ° João de Antiochia não era seguido de torio, que foi^o primeiro que traclou com
mais que de quarenta bispos, e o concilio rigor os seus adversarios, que usou de pa
procedia regularmente começando a exami lavras injuriosas c ultrajantes, como bem
nar o negocio de Nestorio antes da sua che se vê da carta que dictou a Phocio; que em
gada. pregou meios violentos, e que fez intervir
n'isto a authoridade imperial: portanto, foi
2. ® João de Antiochia, depois iVella., podia
fazer que lhe dessem conta do que se pas- elle a verdadeira causa d'algum excesso, no
sára no concilio, e aequieseei' ou desap- caso que o houvesse.
provar. Os legados do papa Celestino, sem Não falíamos assim porque deixemos de
embargo de haverem chegado depois da sen persuadir-nos que o soffrimento e a indul
tença proferida contra Nestorio, não se se gência não sejam preferíveis ao rigor: o es
pararam de S. Cyrillo; communicaram-lhes pirito da Igreja é sempre o da doçura e da
o que se fizera contra Nestorio, e elles se caridade; nem se deve jam ais empregar a
uniram ao concilio. severidade se não depois de exhauridos to
3. * João de Antiochia não pôde censurar dos os meios dè brandura, e da indulgente
de erro algum o concilio de Epheso, e por caridade; mas, comtudo, a Jgreja vê-se em
consequenda o seu scisma não tinha mais certas occasiões necessitada a aimar-se da
fundamento que a omissão d'uma mera for severidade; e não se ha de crêr de leve que
m al dade; portanto, c claro não ter ju sta os primeiros pastores deixassem dc passar
razão para romper a unidade, e que o con por todos ós caminhos da doçura, antes que
cilio de Epheso não podia dispensar-se de o chegassem aos do rigor. E por ventura te
condemnar. mos nós toda a certeza de que os censura
4. ® João de Antiochia estava destituídoríamos, se conhecéssemos miudamente quan
de todo o direito para citar S. Cyrillo ao to fizeram, a fim de não serem obrigados a
seu concilio, e è sem dúvida que o conde- usarem d1esta severidade?
NES 731
por constância, c por zelo, nào era mais lemoncio, quo Theodosio ainda estava menos
que. os cfleitos de um humor violento e al satisfeito dos bispos do concilio, que dos
tivo, passou da estimação c do respeito á orientaes; que não vendo por todos os lados
aversão c ao desprésó. «Não mc fallem senão trevas, não queria decidir, mas que
mais cm Nestorio, dizia clle, basta que uma comtudo preferia os do concilio como ten
vez sc désse a conhecer.» 1 do por si os signaes da communhão catho
Tornou-se, pois, Nestorio odioso a toda lica. Tal foi o lim do concilio de Epheso,
a côrte, o seu nome per si só excitava a que a Igreja sempre recebeu sem difilcul-
indignação dos corlezãos, e eram lidos por dade como ecumenico, apesar da opposi-
scdiciosos os que ousavam tomar a sua çào que lhe fizeram os orientaes por algum
causa: informado elle d’isto pediu a per tempo, c sem fundamento algum.
missão de se recolher ao mosteiro, aonde Não podendo estes vér sem uma dòr ex
estava antes de passar á cadeira de Con- trema que o imperador restituisse á sua
stantinopla, e obtida que foi, partiu imme- igreja a S. Cyrillo, por elles deposto, João
diatamente com uma ufania estoica, que de Antiochia convocou uin conciliò forma
nunca o abandonou. do dos bispos que o acompanharam a Ephe
S. Cyrillo foi prêso, c posto cm boaso, c dos do Oriente, no qual foi confirma
guarda; e como na mente do imperador da a sentença de deposição proferida con
tinha sido deposto por todo o concilio, es tra S. Cyrillo. Este concilio escreveu logo
tando a ponto de o banir, os padres lhe a Theodosio, que os bispos, ecclesiasticos,
escreveram, mostrando que Cyrillo e Men- e povos do condado do Oriente se tinham
non só haviam sido condcmnados por trin unido para sustentarem a fc de Nicea até
ta bispos, que os julgaram sem fôrma de á morte, e que portanto aborreciam todos
processo, sem provas, e unicamente pelo os anathemas de S. Cyrillo, que elles im
desejo de vingarem a Nestorio: e estas cartas pugnavam como contrarios ao mesmo con
apadrinhadas com as instantes solicitações cilio; ràzão porque rogava ao imperador o
do abbade Dalmacio, que tudo conseguia com fizesse condemnar por todos. 1
a imperatriz, suspenderam a execução das Assim continuava na Igreja o scisma co
ordens passadas contra o sancto. D*c Nes meçado cm Epheso, não tendo communhão
torio nada mais quiz ouvir o imperador, e os do concilio do Oriente com aquelles que
fez ordenar para o substituir a Maximino. a conservaram com S. Cyrillo. 2
Os bispos do Egypto e do Oriente exis Não podia fazer-se, e ’conservar-se esta
tiam todavia em Epheso congregados e des ruptura sem muitos estímulos de parte a
unidos. Theodosio lhes escreveu que ten parte, c os povos a tomavam no rancor dos
tara, quanto lhe foi possível, assim por si, seus bispos: por todos os lados não se ou
como por seus ministros, a fim de reconci viam senão queixas, incitamentos c excom-
liar os animos, tendo que seria uma impie munhões, sem que os povos, nem ainda os
dade vér perturbada a paz da Igreja, e não mesmos bispos, podessem muitas vezes di
empregar todos os meios para socegal-a; zer do*que se traetava, e porque motivo se
que nào o podendo conseguir, resolvera ter dilaceravam os christãos uns aos outros
minar o concilio, mas que se com effeilo tão cruelmente; as pessoas mais chegadas
os bispos desejavam a paz sinceramente, se achavam as mais inimigas; cada qual
estava prompto a receber os novos expe satisfazia aos seus interesses particulares
dientes que clles quizessem propõ'r-lhe, que com o pretexto de ser zeloso pela Igreja, e
aliás não tinham mais que fazer, que rcti- tal era a desordem, que ninguém ousava
rarem-se com brevidade ás suas dioceses, sahir dTima cidade para outra, o que ex
que esta mesma permissão accordava aos punha a sanctidade da Igreja aos dicterios
orientaes, e que emquanto elle vivesse e insultos dos pagãos, dos judeus, e dos
nunca os condemnaria, por não serem con hereges. 3
vencidos de cousa nenhuma diante d’elle, Bem que Theodosio testimunhasse mui
não tendo havido pessoa que com elles qui- ta igualdade entro os- orientaes, e os seus
zesse entrar em conferência sobre os pon adversarios, com todo os defensores do con
tos controvertidos; e acabava protestando cilio ephesino eram sem comparação os
não ser elle o causador do scisma, c que mais fortes, já pela sua união com todo o
só Deus na verdade conhecia quem o era.2 Occidente, já porque o mesmo imperador
Do theor d’esta carta se póde julgar, dizTil- e a côrte estavam na sua communhão, de
I
■
1 Aug. in Iuliant Í..1 , c. 4. Mercator,
commonit. c. d. Aug. op. imperfect. I. 1, c.
18.
existiam restos, consumira d'alguma sorte
1 Bossuet, premier avertissement su r les 1 ' Pelag. I. 3. De lib. Ar bit r. citado por
lettr. de Jur. art. 34. S. Avg. de Grat. Christ. c. 4. de Gestis. P a-
2 Cone. Carth. 1. Cone. 52. Cone. Mi- Icestin. Ep. ad Sixt. c. 10.
lev. in E p. ad Innoc. Cone. Carth. 3. Veja- 2 Avg. de Grat. Chr.
se ácerca d’estas individuanões o artigo Pe 3 Aug. cont. Jnt. I. 4, c. 3 c 8. Ep. ad
lagio. Vossio, Noris, Garnier, Hist. Pela- Vital, de Grat. Chr. 3, 22, 23. Ep. 106, c.
giance Haresis. 18.
\
PHO 7o9
ccramqnte, como o prova Sancto Agosti sahir ^Alexandria. O papa Julio recebeu-o
nho. 1 A fé da Igreja sobre este particular na sua communhào, e em favor do mesmo
nunca variou, posto que nos conci lios de pronunciou sentença d’absolvição no con
Africa jamais foi defendida expressamente cilio do Roma.
a gratuidade da graça, ou porque nào qui- Photino, discipulo de Marcello, e que se
zesscin os padres éstender-se sobre esta persuadira encontrar nas suas obras os
questão, cm que algumas pessoas notavam sentimentos dc Sabellio, adoptou-os, c pro
seu embaraço, ou porque d'ella se passava fessou-os, sustentando que o Verbo não era
ao dogma da predestinação, que nào era mais (juc um attributo, e negando a sua
util locar. 2 união hypostatica com a natureza huma
Acerca d’este objecto nada mais foi de na: 1 mas apenas se principiou a desco
finido nos concilios celebrados contra os brir o seu erro, logo os bispos do Oriente
pelagianos, nem achamos que n’elles se o condemnaram n’um concilio celebrado
tractasse nem do modo como opera esta cm Antiochia em 3io, e os do Occidente
graça gratuita, nem da sua efficacia: todas em 346. Estes se congregaram dous an
estas questões foram necessarias conse nos depois para depurem a Photino, o que
quências das reflexões, que se fizeram so todavia não poderam acabar pela opposi-
bre os esoriptos de Sancto Agostinho con ção que tiveram da parte do povo: então
tra os pelagianos e acerca da predestina Marcello d’Ancyra recorreu ao imperador,
ção: 3 e para cada um se convencer d’isto pedindo-lhe uma conferência, c foi nomea
mesmo basta que reflexione na origem do do Basilio d’Antiochia para disputar com
pelagianismo, e como elle se foi desenno- Photino, o qual ficou confundido na dispu
vellando no principio de que partiu Pela ta, sendo logo desterra'do. Este havia es
gio, e nas questões que entravam por ne pargido seus erros no Illyrio, mas teve
cessidade no theor da sua defesa, d’onde poucos adherentes, porque' o partido de
se vè que o modo como a graça obra, era Ariano suffocou a sua heresia.
d’elle absolutamente alheio; e em substan p h o c io — Patriarcha da Igreja de Con-
cia, os concilios que condemnaram os pe stautinopla, foi o aulhor d’um scisina en
lagianos não proferiram decisão alguma Ire esta e a romana.
sobre este objecto. Miguel m havia-se entregado todo ao
A historia do pelagianismo e seus dogmas passatempos, largando a seu tio Bardas a
foi bem traetada por Yossio, pelo padre redeas do governo do imperio. Este mais
Garnicr, pelo cardeal Norio, e por Usscrio, poderoso e não menos dissoluto que Mi
nas suas antiguidades da igreja britannica. guel, casou-se com sua sobrinha,2 c o pa
p e u e a n o s ou p e r a t i c o s — Veja-se E vfra triarcha Ignacio, que condemnou altamen
tes. te o proceder dc Bardas, não o quiz ad
p e r f e i t o s — Nome que tomava a maior mitti r á sagrada communhão no dia da
parle dos hereges, que pretendiam refor Epiphania. Bardas, para se vingar d’Igna-
mar a Igreja ou practicar algumas virtudes cio, comprou testimunhas, que o accusa
extraordinarias. ram de haver feito morrer Methodio, seu
p h o t i n o — Originario da Galacia, foi a prodecessor, e congregando um concilio o
principio discipulo de Marcello, bispo de fez depôr, e collocou sobre a cadeira de
Ancyra. Marcello tinha assistido ao conci Constantinopla a Phocio.
lio de Nicea, aonde combateu os erros dos Era Phocio um homem rico e d’illustre
arianos, e depois escreveu contra Asturo e nascimento, que tendo cultivado as artes,
os outros bispos do partido d’Ario um li e abraçado todas as sciencias, se fizera
vro intitulado Da submissão de Jesus Chris apreciável por seu saber c prudência, e
to. Pondo n’esto livro algumas proposições por mui adestrado em manejar negocios;
favoráveis ao sabelliauismo, foi accusado mas sem embargo d’isso nem todos appro-
d’esta heresia pelos eusebianos, e condc- varam a deposição de Ignacio e a eleição
mnado pelo concilio de Constantinopla, que dc Phocio; o povo dividiu-se entre um c
os arianos celebraram no anno de 336, c outro, c logo rompeu a sedição.3
depois desterrado e constrangido a refu Para abafal-a, pediu ao papa Nicolau i
giar-se no Occidente, no mesmo tempo em mandasse a Constantinopla legados, que
que Sancto Athanasio se viu obrigado a
1 Epiph. ílcer. 71. Vincent. Lyrin. Com-
1 Ibid. Garnier, Hist. Pelag. Dissert. 2, monit. c. 16. Socrat. I. 2, c. 29. Sos. I. 4-
pag. 171. c. 6.
2 Gamier, ibid. Dissert. 7. 2 Cedren. Anast. an. 848.
3 Ibid. pag. 302. 3 N icetaSj Ign a t. tía ro n , a d a n . 860.
760 PHO
decidissem a contenda, e chegados que fo n alguns pontos de disciplina, tacs como
ram, o mesmo imperador com Phocio de na romana o uso de jejuar no sabbado, o
tal maneira os souberam deslumbrar, que de pcrmiltir leite e queijo na quaresma, o
viciaram as letras do papa, e convocaram d’obrigar todos os sacerdotes ao celibato,
um concilio. Mais de setenta testimunhas e outros; creu Phocio, arrodelado com es
falsas depozeram que Iguacio nào estava tes dilTcrenles objectos, poder atacar a
canoüicamentc ordenado, que fora intruso igreja romana, como empenhada em erros
pelo poder secular na igreja de Constanti e desordens intoleráveis; e portanto escre
nopla, e que n’clla governava com tyran- veu cartas a todas as igrejas do Oriente,
nia. Um só bispo requereu se examinasse as quaes fez passar também ao Occidente,
a verdade das testimunhas, parecendo du e convocou um concilio, que se separou
vidar d’ellas: e sendo tractado aspera c da commúnhão do papa e da sua igreja. 1
ignominiosamente, e expulso da assem Parecia concorrer tudo a fazer prosperar
bléia, ninguem mais ousou fallar cm favor os desígnios de Phocio; elle fazia quanto
de Ignacio, que foi deposto pelo concilio. queria na presença do imperador; era sá
E como quer á vista d’isto Mr. Basnage bio, eloquente, e as revoluções a que o Occi
que nào se deva declamar tanto contra a dente estava sujeito, havia muitos séculos,
deposição dlgnacio, e que fosse justa a sepultavam o clero na ignorância, tão fa
sentença dos bispos! 1 vorável e tão necessaria ao progresso das
Chegada ao conhecimento do papa a pre novidades e dos erros. Demais d’isto o
varicação dos seus legados e as falsida papa tinha no mesmo Occidente inimigos
des de Phocio, convocou um concilio cm poderosíssimos, taes como Luiz, imperador,
que o condemnou, 2 à volta do que Phocio Luiz, rei de França, Lothario, rei da Lorc-
congregando também outro, no qual algu na, alguns arcebispos e bispos; 2 porém
mas testimunhas falsas accusaram a Nico- Phocio allucinou-se, porque os bispos e os
lau de diversos crimes, foram expulsos do theologos da igreja latina refutaram as
concilio todos os que quizeram averiguar suas accusações, e no Occidente ninguem
\ verdade das testimunhas, e excommun- se separou do papa.
jado o papa Nicolau. E a que ponto não No Oriente, o imperador Miguel tinha
levia ter chegado a corrupção da corte de mandado assassinar a Bardas, c elle mes
Constantinopla, quando Phocio se abalan mo também foi morto por Basilio, o mace-
çou a similhantes imposturas! donio, que Miguel crcara eezar, e que se
Era muito desmedida a ambição de Pho havia senhoreado do império.’ O patriarcha
cio, e o seu caracter muito altivo, para teve o valor de lhe censurar o seu crime,
que elle se aquietasse com a excommu- e negou-lhe a commúnhão; Basilio man
nhào fulminada contra o papa: portanto dou-o prender n’um mosteiro, chamou
passou a formar o projecto de se fazer re Ignacio, escreveu ao papa, fez convocar
conhecer patriarcha universal, e de sepa um concilio, o qual depôz a Phocio, e res
rar toda a sua igreja da commúnhão da tabeleceu ignacio sobre a cadeira de Con
de Roma, cujo patriarcha era um obstá stantinopla. 3 Este é o oitavo concilio ge
culo invencível para suas pretenções, e ti ral, que restituiu a paz á Igreja, e restabe
nha até então gosado incontrastavelmcntc leceu a commúnhão entre os gregos e os
da primazia universal. latinos. Nicolau i já então era morto; foi
Nenhuma diversidade se encontrava en celebrado, governando Adriano u . 4
tre a fé da igreja de Constantinopla, e a Porém Phocio nào tirou a mira da ca
de Roma; mas bem que a grega reconhe deira de Constantinopla: lá do fundo do
cesse corno a latina, que o Espirito Sancto seu mosteiro armou laços á vaidade de Ba
-procede do Pae e do Filho, aquella conser silio, lisongeou-o, e insensivelmente foi re
vara o symbolo de Constantinopla, em que cobrando seu valimento, e as adherencias
não está expresso que o Espirito Sancto da côrte, de tal sorte, que obteve um quar-
procede do Filho. Esta addição nào se fize
ra com authoridade d*algum concilio; mas 1 Anast. in vit. Nicol. i. Nicet. apud
introduzida insensivelmente, fôra adoptadai Baron.
por todas as igrejas do rito romano. 2 fíeginald. Annal. Bertin. Hincmar, dc
Como as duas igrejas diíTeriam também Divorthio Lotharii et Thieberg. Baron, ad
an. 862. Avcntin, Annàl. I. 4.
1 Basnage. ü ist. de lÊ gl. I. 6, c. 6, pag. 3 Baron, ad an. 847. Cone. 8. Dupin,
328 t \ Hist. du neuviéme siócle, c. 9. Natal. Alex.
2 E pist. Nicol. I. 4,, 7, 10, 13. Ánastas. sec. 9. Dissert. 4.
in Nicol. 1. 4 Epist. Joan. 199.
PRA 761
lo cm palacio, c depois que Ignacio mor munhão entre a igreja romana e a dc Con
reu, tornou a subir á cadeira de que fôra stantinopla. 1
deposto. O mesmo imperador manejou a Alguns authores teem querido abonar a
sua reconciliação com a igreja de Roma, Phocio, mas sem razão, pois que não pódc
representando "ao papa que o restabeleci justificar-se a perfidia e insigne impostura
mento de Phocio era necessario para o bem d’ostc grande homem no que respeita ao
da paz e para a conciliação dos animos, patriarchado.2
accrcsccntando que até o patriarcha Igna- p e t r o b iu . sia x o s — Discipulos de Pedro dc
cio o desejara, em prova do que referia Bruys.
um escripto, no qual o mesmo o suppliea- p i e t i s t a s —Veja-se o artigo das seitas
va ao papa; além d’isto, Rasilio, cujas for formadas entre os lutheranos.
ças em ltalia começavam a recuperar-se, p r a x e a s — Era dc Phrygia, c tinha sido
deixava vér ao papa que cllc reebassaria monfanista, assim como Theodoto de By-
os serraccnos, que infestavam as costas da sancio; veio da Asia a Roma, e deixou*a
Campania, c que restitui ria á igreja dc Ro scita de Montano. Havendo soffrido os car
ma a Bulgaria, que o mesmo patriarcha ceres por amor da fó no pontificado dc Vi
Ignacio recusava ao papa. ctor, adquiriu reputação na Igreja.
Joào viu respondeu ao imperador que Theodoto de Bvsancio, que n’essc mes
sendo morto o patriarcha Ignacio, de feliz mo tempo cedera á perseguição para des
memoria, consentia que Phocio fosse reco culpar a sua fraqueza, proferiu que arre-
nhecido patriarcha de Constantinopla, ce negaudo de Jesus Christo, não arrenegàra
dendo á necessidade presente, e ao bem mais que d’um homem. Artemon e os he-
da paz; mas que antes d’isto Phocio daria reges conhecidos debaixo do nome de alo-
satisfação, e pediría perdão diante d’um sy ges, tinham adoptado o mesmo sentimento
nodo. 1 e sustentavam que Jesus Christo não e»
Quando as letras apostólicas e os lega Deus.
dos do papa chegaram a Constantinopla, A Igreja havia condemnado esta doul
Phocio fez congregar um concilio, em que na: ella ensinava, pois, contra Marci!
as cartas de Joào vm ao imperador c a Cedron, Corintho, e outros, que não ha
Phocio foram lidas, porém já falsiGcadas, mais que um só principio de tudo o q
porque n’ellas se supprimia o que dizia existe, e contra Theodoto, que Jesus Chru
respeito a Ignacio, o perdão que se dava to não era distincto do padre, pois que en
a Phocio, e a condcmnaçào do concilio que tão seria necessário reconhecer dous prin
elle congregara, c a que chamava o oitavo. cípios, e conceder a Theodoto que Jesus *
O que então eslava congregado pelo mes Christo não era Deus; a isto accrescentai
mo Phocio, o reconheceu por legitimo pa dizer o mesmo Deus: «Eu sou Deus, e fóra
triarcha, e condemnou o oitavo concilio, de mim não ha outros; o padre e eu somos
que tinha condemnado a Phocio.2 um; o que me vé, ve também a meu Pae;
Sabendo o papa que a paz estava resta eu estou no Pae, c o Pae está em mim.*
belecida, d’ella deu os parabéns ao impe Eis aqui, segundo nos parece, d’ondc
rador e a Phocio; mas quando conheceu veio o erro de Praxeas, e não das disputas
as condições com que fôra feita, conde sobre a distineção das pessoas, que por
mnou tudo o que os legados tinham obra entãu não tinham cabimento, e de que não
do. Martinho e Ariano, seus successores, se encontra vestigio algum em Tertulliano,
confirmaram sua sentença contra Phocio.3 diga o que disser M. Le Clerc.3
Por esse tempo morreu Rasilio, e Leão Cria Praxeas ser o seu sentimento o
vi, seu filho, lhe succedeu. Tinha este um
sobrinho: presumiu-se que Phocio desti 1 Zomav, Baron, ad an. 886. Curopa-
nava elcval-o ao imperio: disse-se a Leão, lat. Dup. ibid.
este creu-o, e logo expulsou Phocio da ca 2 Tudo o que respeita a Phocio se le nas
deira dc Constantinopla, sobre a qual col- cartas de Nicolau 1 c d'Ariano II. Vecus, l.
locou a seu irmão. Phocio retirou-se a um 3, de Processione Spirit, S. Nicetas, Vita
mosteiro, aonde acabou em paz os seus Ignatii. Schoms pref. sur la Biblioth. de
dias, e a sua retirada restabeleceu a com- Photius; Leo Allarius, dc Stjnodo Photiana;
Fleuru; Revolutions de Constantinople, par
1 Epist. Joan. 199. M. de Burigny, t. 3. Phocio fez grande nu
2 Baron, ad an. 879. Natal Alex. in sxc. mero, d-obras excellentes áceixa das quaes
9. Dissert. 4. Panopl. çonlr. Schism. Grccc. sc deve consultar a Bibliotheca dc Fabricio,
scec. 9, c. 2, pag. 16o. t. 9, c. 38, pag. 369.
2 Le Clerc, Hist. Eccles. ad an. 186.
3 Baron, Panopl. loc. cit.
762 PRA
meio unico d’evadir os systemas, que ad a unidade da substancia e a distineção das
mitti am muitos princípios', e Restabelecer pessoas: se Tertulliano houvesse ensinado
a unidade de Deus; portanto os seus dis que as tres pessoas da Trindade oram tres
cipulos foram chamados monarchicos; e substancias, não poderia dizer que não ha
como de não haver mais que uma só pes via divisão entre cilas, porque muitas sub
soa na divindade se seguia ser o padre o stancias são divididas, existindo necessa
que encarnara, padecera, etc., d’aqui veio riamente uma fóra da outra.
serem também denominados patripassianos. Se Tertulliano tivesse crido que tres pes
Tertulliano refutou o erro de Praxeas soas fossem tres substancias diversas, en
com muita força e solidez, oppondo-lhe a tre estas tres pessoas teria havido não so
doutrina da igreja universal, segundo a mente ordem e distineção, mas também di
qual, diz elle, de tal sorte crémos um só versidade; seria falso que o Pae e o Filho
Deus, que reconhecemos ao mesmo tempo fossem a mesma substancia, como elle o
ter este Deus um Filho, que é o seu Verbo, susteuta contra Praxeas, c uma eonlradic-
que d’elle sahiu, pelo qual foram crcadas çao èm que Tertulliano não podia cahir,
todas as cousas, e sem o qual nada foi fei não porque não possam os homens contra
to; que este Verbo foi enviado pelo Pae ao dizer-se, mas isto é sómente em conse
seio da Virgem, que d’ella nasceu homeni quências remotas, e não quando o sim e o
e Deus juntamente, Filho do homem e Fi não se tocam, por assim dizer, como acon
lho de Deus: que foi chamado Jesus Chris teceria se Tertulliano tivesse fallado, como
to, que padeceu, morreu, e foi sepultado: Le Clerc o faz fallar.
eis-aqui, accrescenta elle, qual é a regra da Quer Le Clerc que estas distineções que
Igreja e da fé, desde o priucipio do Chris Tertulliano põe entre as pessoas da Trin
tianismo. 1 dade não possam convir se não a tres sub
Le Clerc parece duvidar que Praxeas stancias, porque se ellas não suppoem que
confundisse as pessoas da Trindade; per as pessoas são tres substancias, sómente
suade-se que elle não negara ser o Pae dis estabelecem que as tres pessoas não são
tincto do Filho, e que tivera que esta dis- mais que tres modos ou tres relações di
ineção não fazia d elle duas substancias, e versas, o que Praxqas não negava."
|ue esta ultima distincçào ó a que Tertul- 1. ° Diga-nos M. Le Clerc em que se fun
iano sustentára contra Praxeas; mas é um da, para querer que Praxeas reconhecesse
aleive assacado a Tertulliano, o qual em uma distineção ainda modal entre as pes
toda a sua obra igualmenle sustenta, as soas da Trindade? toda a obra de Tertul
sim a unidade da substancia divina, como liano suppõe que Praxeas negara qualquer
a distineção das divinas pessoas. distineção entre as mesmas pessoas.
Nos capitulos terceiro e quarto diz Ter 2. ° Tertulliano no mesmo logar sobre
tulliano, que a Trindade das Pessoas em que M. Le Clerc faz esta reflexão, diz que
nada prejudica a unidade da natureza e a demonstrara como o Pae, o Filho, e o Es
monarchia que Praxeas presumia defen pirito Sancto fazem numero sem divisão,
der: seria destruil-a, diz elle, admittir ou o que seria absurdo, se elle tivesse crjdo
tro Deus mais que o Creador; quanto a que estas tres pessoas são tres substancias.
mim, que reconheço que o Filho é da mes 3. ° Não vêmos em Tertulliano que sup-
ma substancia do Pae, que elle nada obra ponha poder ser vista como uma distineção
sem a sua vontade, e que d’elle recebeu modal, o que elle suppõe entre as pessoas
toda a sua omnipotencia, que mais faço eu da Trindade; os modos não obram: care
que defender no Filho a monarchia que o cem d’acção propria, e não enviam outra
Pae lhe deu? e o mesmo digo do Espirito modificação, o que Tertulliano comludo
Sancto. reconhece nas pessoas da Trindade. M. Le
No capitulo sétimo diz Tertulliano a Clerc não podia concluir que a distineção
Praxeas: «Lembrai-vos sempre da regra admittida por Tertulliano fosse uma dis
que assenta que o Pae, o Filho, e o Espi tineção que suppozesse serem as tres pes
rito Sancto são inseparáveis. Quando digo soas tres substancias, senão na conformi
que o Pae é outro que o Filho e o Espirito dade Restar certo de não poder haver n’el-
Sancto, digo-o por necessidade; não é por las mais que duas sortes de distineções, a
assignalar diversidade, mas ordem; não modal, isto é, aquella que se acha nas mo
divisão, mas distineção; é outro em pessoa, dificações Ruma substancia, e a substancial,
não em substancia.» isto é* aquella que se acha entre as sub
Não póde exprimir-se ccm mais clareza stancias; isto é o que elle não prova. •
O resto das objecçòes de M. Le Clerc
1 Tert. Cont. Praxean, c. 2. contra Tertulliano nao é mais que um
PRE 763
abuso das comparações de que este se ser tal maneira, que não houvesse n’isto nem
ve para explicar o modo como as tres pes preferencia nem escolha, destruía todas as
soas da Trindade subsistem na divina sub idéias que a Escriptura nos oíTerece da Pro
stancia; comparações que Tertulliano offe- videncia acerca da salvação; que nada
rece trio sómente como imagens adequa acontecia que não fosse p*ela vontade do
das para fazerem comprehcnder o seu pen Deus, que tinha previsto c determinado
samento, e cujo abuso ellc previne, lem tudo; que a vontade de salvar os homens
brando de continuo ao seu leitor a unida não havia d’cntender-se acerca de todos
de da substancia. elles sem exccpção, e que devíamos cingir-
Seria também abusar das palavras que nos fielmente a omnipotencia divina, á sua
rer que Tertulliano sustentasse contra Pra- independencia, e crer finalmento que a sua
xeas serem as tres pessoas tres substan vontade não é determinada pelo homem. 1
cias, por se servir elle algumas vezes da O sancto confirmou e roborou todos estes
palavra substancia para designar a pessoa princípios no seu livro da Correcrão e da
subsistente, o que é ordinario entre os an Graça, da Predestinação e do Bom da Per
tigos, antes do concilio de Nicea, e ainda severança.
depois d’elle. M. Le Clerc não teria julga Em qualquer disputa, os argumentos fa
do assim Tertulliano, se tivesse seguido zem perder de vista os princípios, e elles
aquellas mesmas maximas que elle estabe se tornam em princípios, porque sobre os
lece para se fazer juizo do sentido d’um mesmos argumentos é que versa a disputa.
author. Veja-se o artigo Critica. D!esta sorte, a independencia de Deus nas
' p r e d e s t i n a c i a n i s m o — Este erro encer suas determinações, a sua omnipotencia, e
rava muitos capítulos: l.° que nào era ne o seu imperio absoluto sobre todas as crea
cessario ajuntar á graça de Deus o traba turas, foram os principaes objectos cm que
lho que o homem tem em obedecer; 2.° se occupou o entendimento. Créram encon
que desde o peccado do primeiro homem, trar n’estes princípios fundamentaes uma
o livre arbitrio está inteiramente cxtincto; como pedra de toque, por meio da qual se
3.° que Jesus Christo nào morreu por to podiam discernir todas as controversias
dos: 4.° que a presciencia divina força os relativas á graça, ao livre arbitrio, e á sal
homens, e violentamenle os condemna; c vação dos homens; e rejeitaram como er
que os condemnados o são por vontade de ros tudo o que não parecia conforme aos
Deus; que desde a eternidade, uns são pre mesmos princípios:
destinados á morte, e outros à vida. Olhando-se como ura dogma fundamen
Obrigados os pelagiauos a confessar o tal, e tomando-se á letra a corrupção do
peccado original e a necessidade da graça homem, ponderando-se que não ha cousa
interior, que esclarecia o entendimento, e que elle não tenha recebido e de que possa
movia a vontade do homem a que podésse loriar-se, e que cm tudo está dependente
fazer uma acção boa para a salvação, as c Deus, como nol-o diz a Escriptura, a li
severaram que esta graça dependia d’clle, berdade parece um erro.
e era concedida aos seus merecimentos: Suppondo-se que nada acontece senão o
affirmavam elles que Deus seria injusto se que Deus quer, é facil concluir que não
preferisse um homem a outro sem que quer a salvação dos condemnados, e que
houvesse diversidade nos seus sentimentos, quer a sua condemnação.
e insistiam em que esta diíTerença não se Reconhecendo-se que Deus tudo prevê c
compadecia com a bondade e sabedoria de tudo ordena, como se ha de suppôr liber
Deus, nem com o que nos ensina a Escri- dade no homem? Não seria ella um verda
ptura da vontade geral, que tem de salvar deiro poder para desconcertar os decretos
a todos os homens. da Providencia, e portanto contraria ao
Sancto Agostinho combateu estes princí dogma da omnipotencia e da providencia?
pios por todas as passagens da Escriptura, Sancto Agostinho sustentara igualmente
que provam que o homem não póde dis assim a omnipotencia como a liberdade;
cernir-se a si mesmo, que Deus não é in ensinara que as passagens que faliam da
justo negando a sua graça aos homens, pois vontade de salvar a todos os homens, po
que estão na massa da perdição; que não diam explicar-se acerca de todos sem ex-
tendo necessidade alguma aelles, como cepção, e que elle não se oppunha a estas
todo poderoso e independente que é, fazia explicações uma vez que ellas não impli
graça a quem queria, sem que aquelle a cassem nem com a omnipotencia de Deus,
quem a negasse tivesse direito de se quei nem com a gratuidade da graça; porém
xar; que esta vontade vaga de conceder a
graça geralraente a todos os homens em 1 Epist. ad Sixt. ad Vitalem.
764 PRE
não tinha explicado como se conciliavam calco foi condemnado, deposto, c mandado
estes dogmas, e exclamava com S. Paulo: para uma prisão.
O altitudo! Gotescalco insistiu em defender-se, e
Estão, pois, os dogmas da liberdade e da Hincmar escreveu contra elle. Persuadin-
predestinação entre dous princípios, c por do-se alguns que nos escriptos do Hincmar
pouco que se discrepe do meio na defesa havia cousas roprehensiveis, Ratramno,
d’um ou d’outro, corre-se o risco d’escor- monge de Corbia, e Prudcncio, bispo de
regar em algum d’elles: portanto não é de Troya, os impugnaram; Hincmar oppôz-
maravilhar que houvesse prcdestiuacianos lhcs Amauri, diacono de Trevos, c João
desde o quinto século, hem que fossem em Escoto Erigeno.
pequeno número para formar seita. Não Prudencio persuadiu-se achar o pelagia-
examinaremos precisamente quando esta nismo nos oscriptos de Escoto, e a igreja
heresia começou: limitar-nos-hemos em de Lyão encarregou ao diacono FIoYo o
mostrar que não é imaginaria, e que foi impugnal-os. Amolon, pelo mesmo tempo,
condemnada nos concilios d’Arles e de escreveu uma carta a Gotescalco, pela
Leão pelos íins do quinto século. 1 qual parece julgal-o criminoso; refuta-lhe-
Gotescalco, monge d’Orbais, no bispado muitas proposições que elle havia proferi
de Soissons, renovou esta heresia: era do, e vitupera q seu proceder, não suppor
muito versado nos escriptos de Sancto tando ensinar-se que um certo numero de
Agostinho, e uma propensão occulta o ar pessoas fosse predestinado desde a eterni
rastava para todas as questões abstractas; dade ás pessoas eternas, de sorto que ja
examinou segundo os princípios do sancto, mais podesse nem arrepender-se, nem sal
de que estava mui possuído, o mysterio da var-se. Tal é sem dúvida a doutrina de
predestinação e da graça, e occupa do uni Amolon; e M. Basnage não fez mais que
camente da omnipotcncia de Deus sobre sophismas para provar que este arcebispo
as suas creaturas, renovou o predestina- em substancia pensava como Gotescalco. 1
cianismo. As divisões que este monge occasionou
Ensinava: l.° que Deus antes de crcar na França, não provam, pois, que a igreja
■) mundo, e desde a eternidade, tinha pre- gallicana se dividisse ácerca. da sua dou
lestinado á vida eterna os que lhe pare- trina: defendia-se a sua pessoa, e conde-
;era, e os outros á morte eterna; esto de mnavam-se os seus erros. 2
creto fazia duas predestinações: uma á vi Tem-se debatido muito sobre a realida
da, outra á morte. 2.° Assim como os pre de da heresia dos predestinacianos, e so
destinados á morte não podem salvar-se, bre os sentimentos de Gotescalco;3 porém
da mesma sorte os que o são ã vida não importa pouco saber se com eíTeito havia
podem perder-se. 3.° Deus não quer que predestinacianos, ou se se deu este nome
todos os homens se salvem, mas sómente aos -discipulos de Sancto Agostinho; e é
os escolhidos. 4.° Jesus Christo não mor sem dúvida ter condernnado a Igreja os
reu por todos, mas sómente pelos que se erros que se attribuem aos predestinacia
hão de salvar. 5.° Depois da quçda do pri nos, e dever-se crêr que o livre arbitrio
meiro homem já não somos livres para não ficou extincto no homem pelo pecca-
obrar o bem, mas sómente para fazer o do, que Jesus Christo não morreu só pelos
mal.
Prégando Gotescalco aos povos esta dou 1 Noris, loc. cit. Vossius, Hist. Pelag.,
trina, que a muitos tinha posto em deses- I. 1, part. L jE p ist. 166, 168,169, 174, 186.
peração, foi condemnado no concilio de 2 Natal. Alex. in scec. 5.
Moguncia, em que- presidiu Raban, e logo 3 N oiis, Vossius, Pagi, loc. cit. Sirmond.
remeitido para a diocese de Rheims, em Praidestinatus. De novitio opere qui inscri
que.fora ordenado; 2 a remessa de Gotes bitur Pr cedestinatus, Autore Fr. Picincirdo
calco a Hincmar acompanhou uma carta Patavini, «i-4.°, pensam que houvera pre
de Raban, que lhe dava noticia dos seus destinacianos. TJsseiio quer o contrario. B ri
erros, e da decisão do concilio.; Hincmar tannicorum Eccles. Antiquit. Jansenius, de
convocou outro em Carisi, em que Gotes- Hcer. Pelag. I. 8. Forbesius, l. 8, c. 19, se
guem a Usserio; mas as suas razões parece
i Noi'is, Hist. Pelag., I. 2, c. 35. Pagi, que não contrapesam as do sentimento op-
ad an. 409. Le Prédestinatianisme, par Ic posto: o mais que poderíam provar é que os
P. Duchesne, m-4.°, 1724. . predestinacianos não foram assaz numero
~ Raban Ep. Synod. ad Hincmar, t. 8. sos p a ra fonnar uma seita. Vide a Hist.
Cone. Mobil. A m a i Benedict. t. 2, ad an. L itt. de Lyon. Dupin, N a ta l Alex. VHist.
de.rE gl. Gallicane, t. 6..
829.
PRE 765
predestinados, quo a presciencia de Dens seitas que a reforma n’ella produziu. No
não necessita a ninguem e que os que são de Vigilando refutamos os erros dos pres
condemnados, não o são pela vontade de byteranos.
Deus. Os presbyteranos ou puritanos haviam-
Sancto Agostinho ensinou estas verda se separado da igreja anglicana, porque
des, e não quiz que jamais se separassem ella ainda conservava parte das ceremo
dos dogmas da omnipotência de Deus so nias da romana, que tinham por supersti
bre o coração do homem, da gratuidade', e ciosas e contrarias á pureza do culto que
da necessidade da graça, da corrupção da Jesus Christo viera estabelecer, que é todo
natureza humana, e da certeza da predes espiritual. Tendo pois simplificado o culto
tinação. exterior, mas conservando todavia um e
Portanto devemos condcmnar igualmen,- algumas ceremonias, Roberto Browum,
te o pclagianismo, o semipelagianismo, e o ministro dTnglaterra, foi de parecer que
predcstinacianismo. A concordância de to ainda tinham demasiada parte os sentidos
das estas verdades é um mysterio: sendo no culto, que os puritanos davam a Deus,
como são constantes cada uma d’ellas, é e que para honral-o verdadeiramente em
impossível que entre si haja opposição, e espirito, se deviam abolir todas as orações
por isso, sem dúvida, se compadecem, bem de bôcca, e até a mesma dominical, e com
que ignoremos o como. Axerca d’estas este motivo se retirou de todas as igrejas
verdades, cuja concordância não attingi- em que se recitavam orações. Fez discipu
mos, devemos ter nào menos certeza que los que formaram seita; olhou-a como a
sobre a verdade da nossa creação, que é verdadeira igreja, e n’esse tempo os bru-
evidente, bem que não comprehendamos nistas se ajuntavam c prégavam nas suas
o como qualquer cousa é gerada. assembléias, em que todos tinham authori
p r e s b y t e r a n o s —Assim se chamam os re dade para prégar, sem que se exigisse vo
formados, que não quizeram conformar-se cação, como entre os calvinistas e puritanos.
com a lithurgia da igreja anglicana. Rece Os anglicanos, presbyteranos, e catholi
bendo esta a reforma, não adoptou senão cos, eram todos igualmente aversos aos
certas mudanças nos dogmas, e conservou brunistas, sendo punidos com rigor; des
a hierarchia com parte das ceremonias afogavam em vituperios contra a igreja in
que estavam em uso no reinado de I-Ienri- gleza, e imputavam-lhe quanto os protes
• que viu, c verdadeiramente só no de Isa tantes e calvinistas haviam dito contra a
bel se estabeleceu a reforma em Inglater romana: emfim tiveram martyres, e forma
ra; então foi que por divèrsas constituições ram seita; Browum foi o seu chefe, que to
* synodaes, confirmadas pelo parlamento, se mou o titulo de patriarcha da igreja cathd
ordenou o serviço divino e público, bem lic a .1
como ainda hoje se practica na igreja in- A variação que os presumidos reforma
gleza. dos fizeram no culto, e que os puritanos
Porém voltando para Inglaterra muitos adoptaram, não tinha outro principio mais
inglezes que haviam fugido no reinado de que o seu odio contra o clero, e o amor da
Maria, e que tinham abraçado a reforma novidade: parte dos reformadores conser
de Zuinglío e de Calvino/tiveram que a varam muitas ceremonias da igreja roma
reforma da igreja ingleza estava imperfei na, e os calvinistas foram reunidos em
ta, e ainda inficcionada d’alguns restos do communhão com estes reformados; por
pelagianismo. Não podiam tolerar que os tanto não davam estas ceremonias um mo
sacerdotes cantassem o officio com sobre- tivo racionavel para se dividirem da igreja
peliz, e mais que tudo combatiam a hie romana, e os reformadores não eram assis
rarchia e authoridade dos bispos, queren tidos da authoridade necessaria para em-
do que todos os sacerdotes ou ministros prehenderem as mudanças que fizeram.
tivessem igual authoridade, e que a Igreja No artigo Vigilando, cujos erros su sci
fosse governada por consistorios ou pres taram, os refutaremos: em Bruys póde-se
byteros compostos de ministros e d’alguns vêr a defesa do culto exterior. Os theolo
leigos anciães. Assim, chamavam a estes gos da igreja ingleza combateram os prin-1
presbyteranos e aos que seguiam a lithur eipios dos puritanos desde a sua separa
gia anglicana e que reconheciam a hierar ção até agora.2
chia, episcopaes.
Os presbyteranos soffreram uma opposi 1 Ross, des Religions du Monde, la pro
ção mui dilatada: foram tractados como fane séparation des Broucistes.
scismaticos, e ainda hoje o são pelos epis 2 Veja-se a Hist. Eccles. da GranrBre-,
copaes. Veja-se o artigo Inglaterra, e as tanha por Collier, da qual se acha um mui
766 PRI
PRESUMIDOS REFORMADOS — Vcja-SO R e- sem conseguir vér o papa Damaso, nem
forma. Sancto Ambrosio.
p r i s c i l i a n o — Chefe d’uma seita que se Dcsattendidos, pois, dos dous bispos, que
formou em Hespauha pelos fins do quarto tinham a maior authoridade na Igreja, vol
século, que alliava os erros dos gnosticos taram todos os seus esforços para Gracia
com os erros dos manicheus. Estes erros no, e por via de adherencias e de presen
foram trazidos á Hespanha por um certo tes, compraram Macedonio, mestre dos of-
Marcos, e adoptados por Prisciliano. ficios, e obtiveram um rescripto que annul-
Era este um homem d’importancia por lava o que Itacio alcançara contra elícs, e
seus cabedaes e nascimento, por sua natu os mandava restabelecer nas suas igrejas, i
ral eloquência, e por um genio bom, ca Voltaram os priscilianos a Hespanha, e ca
paz d’aturar fomes e vigilias, parco e des ptada a benevolencia do proconsul Volven
interessado, porém fogoso, inquieto, e pos d o, tornaram a entrar nas suas cathcdraes
suído d’uma curiosidade muito viva. Com sem opposição: e nimiamente exasperados
taes disposições, não é de maravilhar que contra os seus inimigos, nào se contentan
elle cahisse nos erros de Marcos, c viesse do com o seu restabelecimento, passaram
a parar chefe de seita. O seu exterior hu a perseguir Itacio como perturbador das
milde, a sua compostura e eloquência, des igrejas, e o fizeram condemnar rigorosa
lumbraram muita gente: deu o nome a mente.
seus discipulos, que rapidamente se espa Itacio fugiu para as Galhas, obteve o fa
lharam por grande parte da Hespanha, e vor do prefeito Gregorio, o qual ordenou
foram apadrinhados por muitos bispos. lhes trouxessem os cabeças de motim, e
Formando, pois, os priscilianos, conside d’isto informou o imperador para prevenir
rável partido, Hygino, bispo de Cordova, e os empenhos; porém tudo na côrte era ve
Idacio, de Mcriáa, oppozeram-se aos seus nal, e os priscilianos por meio d’uma gran
progressos, perseguiram-nos com muita vi de somma que deram a Macedonio, obtive
vacidade, irritaram-nos, e os multiplica ram que o imperador tirasse o conheci
ram: porém Hygino, que fôra quem pri mento d’estc negocio ao prefeito das Gal
meiro lhes declarára a guerra, perfilhou has, e que o passasse para o vigário de
por fim seus sentimentos, e os recebeu na Hespanha.2
sua communhão. Macedonio despachou officiaes para pren
Depois de varios debates, os bispos de derem Itacio, que estava em Treves, e o
Hespanha e d’Aquitania, tiveram um con conduzirem a Hespanha, mas elle evitou a
cilio em Saragoça; os priscilianos nào ou prisào, e ficou escondido na mesma cidade
saram expôr-se*à decisào do concilio, no até â revolta de Maximo. Chegado este
qual foram condemnados; porém Instancio usurpador a Treves, Itacio lhe apresentou
e Salviano, bispos priscilianos, longe de se um memorial contra os priscilianos, que
submetterem ao juizo do concilio, ordena naturalmente haviam de seguir as partes
ram Prisciliano bispo de Labila. Dous bis d’um principe, que os protegia, e inimigo
pos, oppostos aos priscilianos, seguindo do usurpador, ao menos emquanto o não ti
um mau conselho, diz Sulpicio Severo, re vessem grangeado.
correram aos juizes seculares para faze Maximo, pois, fez conduzir a Bordeus to
rem expellir das cidades os priscilianos, e dos os que se presumiram infectados dos
por mil vergonhosas solicitações obtive erros de Prisciliano; fizeram fallar Instan
ram do imperador Graciano um rescripto, cio primeiro, e como se defendeu mal, foi
que ordenava fossem expulsos os hereges declarado indigno do episcopado.
não só das igrejas e das cidades, mas de Prisciliano recusou responder diante dos
toda a parte. 1 bispos, e appellando para o imperador,
Espavoridos os priscilianos com este edi houve a fraqueza de o soíTrerem, quando
to, nao ousaram defender-se em juizo; os deviam, como diz Sulpicio Seve«o, conde
que se haviam arrogado o titulo de bispos, mnabo por contumaz, ou, se elles por al
cederam por si mesmos; os demais espa gum motivo lhe eram suspeitos, reservar
lharam-se. Instancio, Salviano e Prisciliano esta sentença para outros bispos, e não
foram a Roma e a Milão, sem que podes- para o imperador; eis-aqui quanto sabe
mos do concilio de Bordeus. Foram pois
levados a Treves, diante de Maximo, todos
bom extracto na Bibliotheca Ingleza, t. i,
pag. 181. A Hist. dos Puritanos, p o r Daniel
N éal, 1736, 3 vol. em inglez, in-ès~ 1 Sulpic. Severo, l 2.
i Sulpic. Severo, l. 2. 2 lbid.
PRI 767
os que estavam embrulhados n’csta aceu manifesta-sc muito beni a impressão que
sação. sobre os animos causou o seu modo de
Os bispos Itacio e Idacio seguiram-nos proceder, no panegyrico dc Theodosio, re
como accusadorcs, e com desdouro da re citado cm Roma pôr Pacato, estando pre
ligião, que elles faziam odiosa aos pagãos, sente o mesmo imperador, em 389, e n’ou-
pois que não se duvidava que estes bispos tro depois da morte de Maximo. «Viu-se,
obrassem mais por paixão que por zelo da diz este orador, sim, viu-se esta nova espe-
justiça. cie de delatores, bispos no nome, soldados
Por esse tempo achàva-sc S. Marlinho c algozes no eíTeito, que não contentes de
cm Troves para solicitar o perdão d'al- haverem despojado estes pobres infelizes
guns infelizes; empregou toda a sua cari dos bens de seus maiores, ainda cxcogita
dade, prudência e eloquência, cm persuadir vam pretextos para derramarem seu san
a Itacio que se deixasse dTmia aceusação, gue, tirando a vida áquelles que faziam
que desaulhorisava o episcopado; suppli- criminosos, como já os tinham feito neces
cou a Maximo que poupasse o sangue dos sitados: más o- que ainda horrorisa muito
culpados, representaudo-lhe que era bas mais, é que depois de haverem assistido a
iante serem declarados hereges pela sen estas criminaes sentenças, depois de sacia
tença dos bispos; que se expulsassem das rem os olhos com os seus tormentos, os
igrejas, c que não havia exemplo de que ouvidos com os seus gritos, depois de ha
uma causa ecclesiastica fosse sujeita a verem manejado as armas dos lictores, e
um juiz secular. Então Itacio, para preve ensopado as mãos no sangue dos executa
nir os effeitos do zelo de S. Marlinho, ac- dos, com ellas mesmas ainda ensanguenta
cusou-o dc heresia; mas este meio, que das, iam oíTereccr os sacrifícios.*
lhe tinha sortido elTcilo contra muitos ini A authoridade da justiça, a apparencia
migos, foi frustrado contra o sancto; so- do bem público, e a protecção do impera
brestevo-se na causa dos priscilianos cm- dor, estorvaram que por então se tractas
quanto S. Martinho se demorou em Treves, sem os que haviam perseguido os prisci
e na sua despedida Maximo lhe prometteu lianos com a severidade que mereciam
que não derramaria o sangue dos accusa- uns bispos que procuraram a morte a
dos, porém durante a ausência do sancto, tantas pessoas, bem que fossem culpadas;
Maximo acquicsceu finalmente aos conse porém Sancto Ambrosio e muitos outro;
lhos e solicitações dos bispos Magno e Ru prelados se separaram da sua communhão
fo. Este ultimo foi depois accusado e de S. Martinho também' a principio fez o mes
posto por causa de heresia. mo, mas depois communicou com elles, í
O imperador deixou, pois, os sentimen fim de salvar a vida a alguns priscilianos.
tos de doçura que S. Martinho lhe havia Depois da morte de Maximo, Itacio, e
inspirado, e submeltcu a causa dos prisci Idacio foram privados da communhão da
lianos a Evodio, prefeito do pretorio. Evo- Igreja, e o primeiro excommungado e re-
dio era justo, nias ardente e severo: por mettido para um desterro em que morreu..
duas vezes interrogou a Prisciliano, e por Era elle destituído da sanctidade e gra
sua própria confissão o convenceu de ha vidade d’um bispo, atrevido até ao descara
ver estudado doutrinas vergonhosas, tido mento, grande fallador, fanfarrão, e tracta-
assembléias nocturnas com mulheres cor va de priscilianos todos os que via jejuar,
ruptas, e de se ter posto a pregar nu. Evo e applicarem-se á leitura; mas sem embar
dio deu a sua informação a Maximo, o qual go d’isso teve partidários em França, aon-
condemnou á morte a Prisciliano e seus àe a sua condemnação fez eslrepito, e for
cúmplices: então Itacio retirou-se, e o im mou-se em seu favor um partido conside
perador nomeou em seu logar um advoga rável.
do do.fisco para continuar a aceusação; e Os priscilianos, da sua parte, tornando-se
á sua instancia foram executados de morte com a perseguição mais fanaticos, honra
Prisciliano, dous clérigos, e dous leigos. ram como martyres a todos os que haviam
Continuaram os processos, e ainda mor sido executados, e o seu erro grassou prin-
reram mais alguns priscilianos. cipalmonte na Galliza, aonde quasi todo o
A morte de Prisciliano não fez mais que povo estava contaminado d’esta heresia, e
estender a heresia, e emperrar os seus se até um bispo prisciliano chamado Sympo-
ctários, que tendo-o já por sancto, lhe de so, ordenou muitos bispos.
ram o culto de martyr, e por elle faziam o Sancto Ambrosio escreveu aos de Hispa-
maior dos seus juramentos. nha, pedindo-lhes que admittissem á paz
O supplicio dc Prisciliano c de seus se- os priscilianos, uma vez que estes conde
quazes tornou odiosos Itacio e Idacio, e mnassem seus maus procedimentos. *
Ceie-
768 PRO
braram um concilio em Toledo, no qual No meio, porém, d’esta prodigiosa acti
por um decreto foram admittidos; 1 nfio vidade, e d’estes esforços gigantescos, no
bastaram, porém, para suíTocar inteira ta-se uma cuusa, que não deixará de cha
mente esta heresia, a indulgência, e pru mar a altenção do qualquer homem pen
dência d’este concilio, celebrado em 400; sador:—o profundo silencio que guardam
alguns annos depois d’elle, Osorio lamcn- sobro seus princípios religiosos e sobre suas
tava-se a Saucto Agostinho, que os barba profissões do fé. Nada d’isto dizem aos po
ros que entraram na llespanha faziam vos a quem tractam de seduzir, contentan
n’ella menos estragos que estes falsos dou do-se sómente em seus escriptos de vili
tores: c tal era a confusão, que muitas pendiar a religião catholica, com o que, ao
pessoas largavam o paiz por causa d’ella .2 seu modo de vér, conseguem a propagação
Passados alguns annos, em 407, o impe do protestantismo. Este silencio é por cer
rador Honorio ordenou que os manicheus, to mui significativo, e diz por si só mais
os cataphrygos, c os priscilianos fossem do que cousa alguma. Tão más são as
privados, de todos os direitos civis, e seus suas theorias religiosas, que não se atre
bens adjudicados aos seus parentes mais vem a manifestal-as? Temem por ventura
proximos; que elles nada podessem rece que os povos horrorisados ao ouvil-as es-
ber dos outros, dar, nem acceitar, e que planar se afastem d’elles, como poderíam
até seus proprios escravos podessem de- fazel-o dos maiores inimigos do genero hu-
nuncial-os, e doixal-os, para se darem á
Igreja, renovando Theodosio, o moço, esta tes empregando a calumnia e a falsidade
le i ; 3 mas sem embargo de todos estes es para combater a religião catholica. Calvi
forços, ainda se encontravam muitos pris no recommendava já em seu tempo simi-
cilianos no sexto século, e em Praga se ce Ihante systema, julgando-o summamente ef-
lebrou um concilio contra e lle s.45 ficaz. Pelo que respeita aos jesuilas, dizia
p r o c l ia n o s —Ramo dos montanistas adhe elle, é necessário matal-os, ou ao menos es-
rentes a Proclo, os quaes nada alteraram magal-os debaixo do peso das mentiras e
da doutrina de Montano. Proclo quiz espa das calumnias: aut certe mendacies et ca
lhar a sua em Roma, e foi convencido de lumniis opprimendi sunt. (Ct. Maur. Se-
erro. 3 chenkl Jnstit. ju ris ecclesi. Landvih. t. 1, pag.
PRODIANITAS, ALIÁS IÍERMIOTITAS—DÍSCÍ- 500.) Os protestantes em todas as épocas teem
pulos de Hermias; veja-se este artigo. sempre participado das mesmas idéias,
p r o t e s t a n t i s m o — Ninguem ignora hoje como o demonstra a historia da papisa
os grandes esforços que o protestantismo Joanna, ridicula invenção de que elles mes
está fazendo para penetrar em todas as na mos se envergonham hoje, e outras fabulas
ções catholicas, e com especialidade na similhantcs. *
nossa patria;6 sabida é de todo o mundo a Em nosso tempo continuam ainda ado
assombrosa actividade de que os emissa ptando o mesmo systema. No folheto publi
rios das diversas communhões reforma cado em Edimburgo, no anno de 1856, cujo
das, e sobre tudo os da anglicana, desen titulo e Preservativo contra Roma, se diz que
volvem para conseguir seus fins, fazendo na Hespanha se lêpublicamente nas igrejas to
circular com profusão traducções da Bí dos os annos urna bulla do papa, na qual se
blia, feitas em harmonia com o canon de manda que os paes accusem seus filhos, e
suas respectivas igrejas, c uma multidão os filhos a seus paes, os maridos suas mu-N
de folhetos em que se discutem as prácti- Iheres, etc., se houverem dito uma palavra,
cas do catholieismo, e em que se pretende ou commettido uma acção contra a religião
provar, valendo-se para isto da falsidade catholica (pag. 4). Qual de nós, creados na
c da calumnia, que o poder espiritual que Hespanha, tem ouvido similhante cousaf
o papa exerce na Inglaterra, é um poder Com que descaramento mentem alguns ho
tyrannico, contrario ao espirito do Evange mens! O mais singular de tudo, é o escre
lho, e origem d’infmitos .m a les.7 ver-se isto èm Inglaterra, onde existe uma
lei (Àcta primeira do reinado dTsabel, clau-'
1 Amb. Ep. 52. sulas 17, 18 e 19), em virtude da qual o
2 Sulp, Severo, loc. cit. tribunal ecclesiastico, creado pela mesma,
3 Cod. Theod. 16. lit. 5, Z. 40, parj. 160, pôde fazer prestar a qualquer individuo,
l. 48, pag. 168. sobre quem recaiam suspeitas, um ju ra
4 Collect. Cone. mento pelo qual se obrigue a accusar-se a
5 Euseb. liist. Eccles. I. 6, c. 1 4 .. si mesmo, a seus amigos, irmãos e paes, de
6 Hespmha. baixo da pena de morte? Que dirá a isto o
7 Desde muito tempo estão os protestan- author do Preservativo contra Roma?
PRO 769
mano? Ah! porém vós, sabios ministros, ]julgue depois d’um modo imparcial. É isto
sem dúvida não tereis lido o que diz Ta-1 o que somente exigimos,
cito dos maus livros: «Nos funcraes d’estcs
se deixam vér as partes dcbcis, pelo mero
facto de havcl-os supprimido.» Jà vêdcs I
aonde iriamos parar, se applicasscmos esta
regra de Tacito ao vosso systema da pro
paganda. Muito más devem ser as vossas Que cousa é o protestantismo? É esta
doutrinas, quando com tanta destreza as naturahnentc a primeira pergunta que nos
occultaes. Porque não dizeis alguma cousa dirigirão nossos leitores, pergunta a que
sobro o vosso absurdo systema do livre ar vamos responder, copiando a definição que
bitrio, e sobre-os não menos exoticos da ne do protestantismo traz o Cathecismò angli
cessidade da graça e da inefficacia das boas cano. Segundo este, a religião reformada
obras? Porém em vão vos exigimos nada não é outra cousa mais do que o odio ao
d’isto; vós nunca o fareis, porque sabeis catholicismo, e a exclusão de todos os ca
quão triste papel representaria aquelle que tholicos para qualquer cargo ecclesiastico
no meado do século dezenove ensinasse, ou c iv il.1 Estranha é por certo a definição,
como crédes e publicamente ensinaram os não o sendo menos as consequências lógi
coryphcus d’essa seita, que o homem ca cas que d’ella derivam. Em primeiro logar
rece de liberdade para seguir o bem, sen notamos que, segundo o citado catholicis-
do impellido ao crime por uma força cega; mo, o protestantismo não consiste cm crêr
que as boas obras são não só inúteis, mas ou negar certos e determinados dogmas,
até prcjudiciaes; e que a intclligencia hu ou em admittir esta ou aquella profissão
mana íicou completamente destruída pelo de fé. Nada d’isto; odiando o catholicismo,
peccado d’Adão. Ide pregar essa doutrina já qualquer póde crêr que é bom o zeloso
entre os cafres, e elies vos arrojarão d’alli protestante, importando muito pouco que
como barbaros e inimigos da civilisação. seus princípios religiosos sejam diametral
Desde o sabio Erasmo, contemporâneo mente oppostos aos que ensina o Evang-
dos primeiros reformadores, até ao illus lho. O sectario do Corão, os que professa
tre Balmes, que viven em nossos dias, tem- a religião de Budha ou de Confucio, os pa
se escripto e dito muito acerca do protes ti da ri os do polylheisino, todos, todos podei
tantismo, pulverisando completamente, e ser bons protestantes, c na realidade o são
demonstrando até á evidencia, que suas pois clles todos—odeiam o catholicismo, e
doutrinas são absurdas, e que o estabeleci excluem os catholicos de qualquer officio
mento da chamada reforma, ha produzido ecclesiastico ou civil,—e é aqui, que, por
infinitos males, tanto nos paizes que tive uma rara coincidência, sua magestade ce
ram a infelicidade de a admittir, como nas leste, o imperador da China, e o sultão, o
demais nações que teern conservado inta eleito do Senhor, para exterminar os chm -
cta a fé de* Jesus Christo. As Variardes das tãos, pertencem a mesma conunnnhão que
igrejas protestantes de Bossuet, a Sumbofi o rei dTnglaterra, defensor da fé, e todos
ca de Moelher, o Protestantismo de Bal os mais principes c reis protestantes. Se
mes, a Historia da Reforma de Cobbelt, e estas comparações ferirem algumas susce
as Conferendas de Wiseman, foram outros ptibilidades, toruc-se a culpa á logica, e
tantos aríetes que descarregaram golpes não a nós.
terríveis sobre o debil edifício levantado Pelo que respeita á tolerância protes
por Luthero e Henrique viu; porém des- tante, as palavras já citadas do bom bispo
graçadamente estas obras notáveis são de Saint-David nada deixam que desejar.
pouco ou nada conhecidas pelo povo, que Segundo o que se indica por ellas, os ca
é quem hoje necessita mais que ninguém tholicos são uma especie de párias, cuja
saber o que é a pretendida reforma, toda visinhança contamina, e a quem grande
a vez que a elle se dirigem os laços dos favor se faz hoje em não os assassiuar...
sectarios do protestantismo. As classes me- juridicamente, como se fazia uos bons tem
diocremente illustradas, sabem a que ater- pos do Sancto Henrique viu c da rainha
se sobre este particular; ao povo, pois, a donzella.
esse povo que lé os folhetos que contra o Posto que seja certo que a cilada defini
catholicismo publicam os reformadores in- ção do cathecismò protestante indica d’um
glezes e norte-americanos, e que não sabe modo ckiro c preciso qual o espirito e ten-
ainda o que seja o protestantismo, é a
uem se dirige o presente escripto. Medite 1 'The Protestants. Catecliism, by the
etidaménte sobre o que n’elle dizemos, e' Bishop of Saint David, pag. 12.
7 70 PRO
dencias da reforma (a intolerância e o Apresentaram-se, pois, Com o caracter
odio implacavel ao catholicismo), lambem de reformadores, tractando de melhorar o
o é que n’ella nada se nos diz sobre prin estado moral da sociedade, e d’estabcleccr
cípios religiosos que admiltem e reconhe em toda a sua pureza o Christianismo pri
cem como verdadeiros os protestantes, que mitivo. Para desempenhar dignamente um
era do que, a nosso modo de vêr, devia papel tào importante, e levar a cabo um
exclusivamente tractar-se n’aquclic logar. proveito tào transcendente, era necessario
0 reverendo bispo de Saint-David, sem em que esses homens se houvessem distingui-
bargo, não julgou assim conveniente, como do por sua pureza de costumes, e pelo de
o não julgaram os outros ministros protes sejo de fazer virtuosos a todos os outros,
tantes, que d’este assumpto se tcem occu- inculcando-lhes os princípios mais sãos da
pado, pelo receio, sem dúvida alguma, de moral, caracteres pelos quaes sempre se
que o povo, se chegar a conhecer a verda teem distinguido os verdadeiros reforma
de, se aparte de tào detestáveis doutrinas, dores.
o que arrastaria comsigo, c falíamos só da Licurgo, o reformador das leis c costu
Inglaterra, a perda d’uma renda de mais de mes em Laccdemonia, era um homem sim
setecentos milhões de reales ao anno, que ples, virtuoso, e austero, amante enthusias-
desfrueta o clero anglicano. Ah! então os ta de sua patria, e tolerante e aíTavel até
ministros protestantes não poderíam, como ao extremo de chegar a mostrar carinho
fjz o bispo que havia em Winchester, pelos aos que com bastante descommedimento
annos de 1820 a 1824, repartir entre nove censuravam suas innovações e se oppu-
ou dez de seus parentes, trinta e dous be nham a cilas. * Condoído do estado dc pros
nefícios ecclesiasticos, deixar um cabedal tração c aviltamento em que se achava o seu
de vinte e nove milhões e meio de reales, paiz, realisou n’elle uma saudavel revolu
nem vender cerveja commum no paço epis ção socia! e politica, á qual deveu Lacede-
copal de Farnahan, ou cm qualquer outra monia o chegar a ser um dos estados mais
parte; 1 então o reitor ou cura da parochia poderosos e temidos da Grécia, conseguin
de Alderthon, na líampshire, que tem qui do ao mesmo tempo transformar em cida
nhentos freguezes, não desfruetaria uma dãos virtuosos homens submersos em toda
renda de quasi setenta mil reales (só de a casta de v icio s.2
dizimos),"nem o de Botley, povoação com Thales de Crcta, precursor de Licurgo,
quatrocentas almas, situada a leste de Kam- que preparou cm Lacedemonia os ânimos
shire, d’uma de mais d’oitenta mil reales;2 para a revolução, distinguiu-se também
e então não se repartiríam mil e quatro por suas virtudes, e pela pureza dos do
centas parochias entre trezentos e trinta e gmas que professava.3
dous individuos, como succedeu em Ingla Solon, reformador atheniense, deveu as
terra. Qual d’elles se ha do atrever, por suas virtudes á sua temperança e ao seu
tanto, a apresentar a verdade nua? Exigir amor pela justiça, «essa mãe das boas ac
isto seria exigir o impossível. Nós, todavia, ções, dizia elle, que põe freio á violência»/
que não lemos essas poderosas razões para a alta consideração de que gosou entre
calar, vamos supprir seu silencio, segun seus concidadãos. Foi quasi impossível o
do indicamos no principio d’este escripto. divorcio em A thenas,5 estabeleceu leis ri
A ideia dos fundadores do protestantis gorosíssimas contra os magistrados de cos
mo, ao separarem-se da communhão ca tumes depravados,6 melhorou a condição
tholica, não foi outra, segundo elles, do moral, social e politica dos athenienses, e
que a de reformar a religião christã, pur por ultimo desterrou-se voluntariamente,
gando-a da multidão de crenças falsas, julgando que a sua presença prejudicava
abusos innumeraveis, e prácticas pernicio a tranquillidade da sua patria.
sas, que os pontifices e o clero haviam in Deixando porém de parte os exemplos
troduzido na Igreja desde o tempo dos apos que nos oflerece a historia profana, e que
tolos. 3*
no século X V I o Christo allemâo. Sem elle
1 W . Cobbettj Refar. t. 1, pag. 157. o mundo estaria sempre no eiTO.
2 Id. Nueuv. Cart. pag. 164 e 167. 1 Plut. In. Lyc.
3 ' Varios escriptores protestantes, entre 2 Chat. E nsay sob as revol. part. I, c.
elles o bispo anglicano Newton (Disserta- XIII.
tions on the prophecies, t. 5, c. 10), dizem 3 Id. Id. c. XIX.
que os governos do papismo datam da idade * Poet. Minor. Grec. pag. 427.
apostólica. O Christianismo, segundo este, s Plut. In Solon, pag. 90, 91.
morreu no seu berço, havendo-o resuscitado 6 jEsch: In Tim. Laert. In Solon.
PRO 774
corroboram a verdade da nossa asserção, mais intimos. Quem que não fosse Luthe
basta notar que Deus escolheu para chefe ro haveria fallado dos dialogos que tinha
e reformador do seu povo, a um homem com o diabo, das lições dc theologia que
sumraamente justo c virtuoso, a quem a lhe dava este singular doutor, 12e das tres
Biblia, com essa sublime simplicidade que palavras de que se servia para afugental-o
a distingue, qualifica, dizendo que era ho quando o incommodava de mais, palavras
mem dc Deus: Moyses homo Dei. indecorosas, que não póde ouvil-as sem
E podia ser outra cousa? Ilavia Deus córar, a pessoa menos pudica, as quaes
por ventura dc encommendar a reforma podem vèr-se nas Memorias dc Luthero,
do seu povo a homens immoracs? Havia publicadas por Michelet? 2
de fazer depositários da verdade aos parti Parece impossível que o homem possa
dários do erro? Nào, mil vezes não. Quan chegar a tal estado d’insensatcz ou do de-
do o povo d’Isracl se apartava do caminho pravação.
da salvação, para fazel-o voltar a elle, não E que diremos das virtudes civicas, do
lhe enviava por certo homens corrompidos amor patrio do reformador allcmão, ven
c impios, tacs como Achab, Jorão, e Ocho- do-o assegurar que a Allcmanha, resistin
sias, enviava-lhe, sim, os prophetas Elias, do aos turcos, que ameaçavam sua inde
Eliseu, e Nathan, varões justos, que ar pendência, «resistia á vontade de D eus.»3
diam em zelo pela gloria do Senhor, e que Procedimento tão iniquio e infame é di
não temiam arrostar toda a qualidade dc gno do anathema e da execração univer
perigos, inclusivamcnte a mesma morte, sal. Abandonar cobardemcnte a patria,
em defesa da verdade. quando ella se acha em perigo! Os filhos
Em vista de tudo isto não podemos re da nobre nação allemã, felizmente, pensa
solver-nos a crér que Deus confiasse a ram sempre ‘de differente modo que o dou
missão de regenerar a igreja christà aos tor de Witemberg. O heroísmo de Koeruer
corypheus do protestantismo, homens em e de muitos outros, indica que não teen
quem não se encontrava nenhum dos ca olvidado aquelle dito d’um de seus melhe
racteres distinctivos dos verdadeiros refor res poetas: «A patria! Se nos faltarem ai
madores, e que, por sua corrupção, orgu mas para defendel-a, arranquemos as cruze
lho, ambição desmedida, sede insaciável de de ferro dos sepulchros dc nossos paes!»
riquezas, e carência absoluta de princípios Pelo que respeita aos princípios religio
religiosos, eram mais proprios para sub sos, póde dizer-se que Luthero carecia
verterem a sociedade, do que para reeon- d’elles, ou pelo menos que esteve toda a
struil-a c organisal-a. sua vida em uma dúvida perpetua acerca
' Começando por Luthero, que foi o pri d’este ponto. Para nos convencermos d’isto
meiro em proclamar a pretendida.reforma, não ha mais do que abrir ao acaso qual
sabemos d’elle que se separou da igreja quer de suas obras, ou* consultar o que
catholica, sómente por ter sido humilhado d’elle teem dito os biographos. O caracter
seu orgulho com a publicação da bulla em franco do chefe da reforma, e esta era tal
que se condemnavam seus ‘erros. Esta pai vez a unica boa qualidade que n’elle se en
xão era tão dominante n’elle, que chegou contrava, o atraiçoava a cada passo, obri
a dizer que não cedia em orgulho ao mesmo gando-o a manifestar-se tal qual era. «Ce
Salanaz.1 D’isto deu elle. por desgraça, re lebrando minha primeira missa, dizia elle
pelidas provas. Não podia soffrer a menor (Mem. de Luth. por Michel.), eu não tinhà
contradicção, encolerisando-se sobremodo f é . . . Logo vieram as tentações c as dúvi
com todos aquelles que dissentiam da sua das.» Em uma de suas obras, escreve elle:
opinião, insultando-os grosseiramente, como «Muitas vezes penso só comigo que quasi
fazia com o sabio Erasmo, ao qual forçou não sei onde estou, nem se ensino a verda
a dizer, que em sua velhice tinha de com de ou ?ião.» 4
bater com um javali furioso, e qualifican- Estas dúvidas, esta pouca certeza que ti
do-o com os epithetos mais infames e bai nha Luthero da verdade da doutrina que
xos. «Aquelle que crêr cousa differente do ensinava, o atormentaram até ao ultimo
que eu creio, dizia elle, está destinado ao momento. Pouco antes de morrer, excla
inferno.»2 Seu cynismo e aviltamento eram mou, luctando comsigo mesmo: «Minha
taes, que não se envergonhava de consi
gnar em seus escriptos factos que outro 1 De miss. prív. abr. t. 7, 226.
não referiría nem ainda a seus amigos 2 Tom. 3.°, pag. 186, l. 4.
3 Luth. Prop. 15, 17, 98, pag. 112. As-
1 Sleid. Uh. VI, pag. 494. sert. art. per Bull. dramnat. prop. 33.
2 Luth. Op. t. 2, 28. 4 Coloq. Isleb. de Christo.
772 POR
razão ncga-se agora a querer o que me eram em outro tempo debaixo do papis-
diz o Christo.» 1 mo.» 1
Calvino, o segundo chefe da reforma, Isto não necessita de commentarios. 0
era ainda mais immoral e indigno do que inimigo mais encarniçado da reforma não
Luthero. A uma arrogancia sem limites, e poderia jamais condeiimal-a tão fortemen
a uma intolerância nunca vista, reunia os te como o fez o proprio fundador.
vicios mais vergonhosos e execráveis, ten As palavras jã citadas de Luthero, não
do-os dado a esses actos nefandos, que at- são o unico testimunho que temos d’esta
trahiram a cólera divina sobre as cidades triste verdade. Melanchthon, occuppando-
de Pentapolis. 2 Que se podia esperar de se de todos aquelles que tinham era sua
um homem que ensinava terminantemente seita algum valimento, escreveu a Came
que «Deus é o author de todos os cri rario estas notáveis palavras: «São os que
mes?» 3 me rodeiam gente ignorante, que não co
Pelo que respeita á moralidade do fa nhece piedade nem disciplina.. . encontro-
moso Zuinglio, basta dizer que o mesmo, me como Daniel na cova dos leões.» -
fallando de si e de seus sequazes, escrevia Calvino já antes havia dito que o diabo
ao bispo de Constança n’estes tempos: se havia apoderado de todos e lle s.3
«Vossa grandeza conhece a vida vergo Na igreja de Strasburgo a corrupção de
nhosa que até agora temos tido com as costumes era tal, que Bucero, um dos che
mulheres.» 4 Luthero chegou a accusal-o fes do protestantismo, manifesta que alli
de pagão, dizendo que desesperava de sua ninguem buscava outra cousa senão satis
salvação,5 e que Satanaz reinava n’elle e fazer os seus appeltites.4 Calvino, fallando
em tòdos os seus sectarios. 6 dos evangélicos, dizia que «entre cem d a s
Carlostadio, outro dos chefes da refor tes, apenas se encontraria um que hou
ma, era, se havemos de dar credito a Me- vesse mudado de religião por outro motivo
lanchthon, um homem brutal, ignorante, do que para poder abandonar-se a toda a
que não conhecia a piedade nem a huma casta de deleites.» 5 Brentzen, discipulo de
nidade. 7 Este testimunho é de muita for Luthero, referindo-se, não a esta ou a ou
ça, tendo-se presente que Melanchthon era tra communhão reformada, mas a todas
b homem mais moderado e tolerante de em geral, dizia «que a vida impurissima
todos os reformadores. que passavam a maior parte dos protes
E não se creia que esta depravação de tantes, indicava que não acreditavam que
costumes se limitava aos reformadores; houvesse outra vida.» G Esta corrupção de
por desgraça exercia também seu funesto costumes, tão profunda c universal, faria
império sobre os reformados, sendo geral que Capiton, collega de Bucero, exclamas
entre todos os individuos das diversas sei- se horrorisado: «este edifício arruina-se;
tos protestantes.0 Pregando Luthero em tudo se vai a perder.» 7
certa occasião em Wittemberg, viu-se obri E que diremos da reforma em Inglater
gado a confessar esta verdade em termos, ra? que de Henrique viii, «o tyranno mais
por certo não ambiguos: «Desde que ha injusto, mais cruel, mais vil e mais sam
vemos ensinado nossa doutrina, disse elle, guinario que houve jamais no mundo?» 8
o mundo faz-se de dia para dia peor e mais Que do seu a latere Crammer, o qual mu
im pio. . . os homens são mais ambiciosos, dou tres ou quatro vezes de religião, e que
mais impudicos, e mais detestáveis do que finalmente da boa Beth «a peor de quantas
rainhas tem existido, incluindo a propria
1 Alzog. Unie. Guchichte der Christo Isabel?» 9
Kirche, t. 1, pag. 80. Meuzel, Nueve Hist. Sabidas são de todo o mundo as causas
de los Aleman. t. 2, pag. 427. que fizeram com que o protestantismo en-
2 Lessio. Qua fides, et religio sit capes
senda Consulatio. App. Utrum Calvinus 1 Lulh. Serm. 1557.
convictus fuerit sodomia?. 2 Mel. lih. 4, pag. 225.
3 Calv. ln stit. liv. 3, c. 27. Lessio op. 3 Dilue, expos. 839.
cit. App. Utrum Calvinus docurit Deum 4 Int. ep. Calv. pag. 500.
esse auctorem omnium scederum. 3 Comment. in 2.* epist. Petr. H 0, 2,
4 Alzog. Univ. geschichte der Christ. pag. 60.
Kirche t. 1, 3, pag. 400. e Homil. 35, in cap. 20. Luc.
5 P aro. Conf. Lulh. pag. 187. 7 Epist. ad Faret int epist. Calv. pag. 5.
e E pist. ad Jac. Prcefect. pag. 2. s W. Cobbett, Nov. Cart. pag. 22.
7' Mei. De vera et falsa religione, 2, pag. 9 W. Cobbett, R efo m . Protest. t. %
132. cart. 11.
PRO 773
■trasse em Inglaterra. Se Henrique viu não Christianismo, como é que cm vez de le-
houvesse querido divorciar-se de Cathari- val-a ao cabo, não conseguiram outra cou-
na d’Aragao, não se ha veria eíTeituado a sa mais do que perverter a sociedade, se
mudança de religião que se realisou no rei meando n’ella o germen da perdição, cujos
nado d este principe. «Eu desejaria, diz a fruetos amargos recolhemos hoje?
este proposito um escriptor inglez, Fitz Póde conceber-se similhante cousa? «Por
William, eu desejaria, pelo respeito aos seus fruetos, diz no Evangelho o divino
couselhos do meu paiz, não fallar do debil Mestre, devem ser conhecidos os falsos
motivo que produziu a revolução religiosa prophetas, que sendo lobos rapaces, veem
na Inglaterra. Quizera também, se fosse vestidos com pelles d’ovelha. Não se co
possível, oblitcrar de nossos annaes a lar lhem, cm verdade, dos espinhos uvas, nem
ga serie d’iniquidadcs, que acompanharam dos abrolhos figos.
a reforma na nossa uaçao.» 1 «Toda a arvore boa dá bons fruetos; to
Cornprehendemos em qualquer homem da a arvore má dá fruetos maus. Não póde
honrado, e que ame apaixonadamente a a boa arvore dar fruetos maus, nem a má
sua patria, estes sentimentos manifestados dal-os bons.» 1
ppr Fitz William. Elle se envergonharia, O protestantismo é uma d’essas más ar
e com razão, de recordar-se que houve em vores de que falia o Evangelho, que só
Inglaterra nm parlamento vil, que se pros mente produz fruetos amargos e estereis.
tituía até ao extremo de declarar que um D’esta verdade nos convenceremos comple
simples mandato do tyranno Henrique vm tamente quando fallarmos da ineííicacia
tinha tanta força como uma acla emanada das missões protestantes, assumpto de que
do mesmo parlamento;23que aquelle, no vamos occupar-nos na seguinte capitulo.
tempo do seu reinado, enviou ao patibulo
por questões de religião, cerca de setenta
e duas mil pessoas;3 divorciou-se com tres II
de suas mulheres por motivos futeis, des-
a Igreja de seus bens, e privou, da
S lade todos os seus súbditos; que a rai Póde dizer-se que o protestantismo, con
nha Isabel, aquclla fera que se deleitava siderado debaixo do ponto de vista religio
em assassinar seus vassallos, publicou as so, morreu ainda antes que seus mesmos
leis mais iniquas e tyrannicas que se co fundadores. Havendo satisfeito as vis pai
nhecem, e estabeleceu, em virtude das xões dos reformadores, e saciado a sêde
clausulas 17, 18, e 19 da acta primeira do de riquezas dos principes do norte, que ao
seu reinado, aquelle terrível tribunal ec poder temporal que exerciam quizeram
clesiastico, que estava isempto de proceder unir também o espiritual contra o que de
legalraonte, e d’obter testimunhas contra sejava o unico protestante de boa fé, Me-
as partes accusadas;4 e íinalmente que o lanchthon,2 parou seu vflo audaz.
anglicanismo, a religião estabelecida pela Não tinha por fundamento uma idéia
lei, deva a sua existência a Crammer, o grande e fecunda, capaz de regenerar a
homem mais hypocrita que tem havido em humanidade, e terminou sem progressos,
Inglaterra, o qual effectivamente a creou cumprida sua missão mesquinha. Passou o
no seu Cathecismo, e no seu livro de Ora século xvi e a primeira metade do xvu, e
ções. as gerações então existentes, alheias às
Quem, pois, em vista do que havemos paixões dos primeiros reformadores, repel-
dito, poderá assegurar que os fundadores liram o protestantismo, ou pelo menos o
do protestantismo verificaram na Igreja olharam com indifTerença, A igreja catho
uma reforma salutar, e que n’ella se en lica possuia já por ventura valiosos bens
contram os caracteres de verdadeiros re em Inglaterra, Allemanha, e outros paizes
formadores? Havia Deus de confiar tão ele do Norte, dos quaes poderia ser espoliada?
vada missão a uns homens perversos c im- De que servia, pois, então o protestantis
moraes, cujas obras e doutrina são dignas mo? Este não era já senão uma arma gas
da execração pública? E se Deus, eíTecti- ta, e rejeitaram-no por inútil. Os povos
vamente, lhes encommendou. a reforma do
1 Evang. de S. Matheus. cap. 7, v. 15,
i Cart. de Atic, pag. 113,114. 16, 17 e 19.
2 W. Cobbett., Reform. Protest., t. 1, 2 «Os principes e magistrados não de
pag. 141. vem estabelecer dogmas na Igreja, nem in
3 Chat. Ensay. sobre la litt. ingl. pag. 34. stituir o culto.* Melanchthon, lixam. o rd i\
4 W. Cobbett, Novas cartas, 2 / nandorum.
<
774 PRO
PRO 775
com a Revista Mensal Inglcza, que alli o Na America Meridional, c mesmo na Se-
Christianismo tem leito poucos ou ncnhuns ptcntrional, as missões protestantes não
progressos.1 Em Madras, a missão angli teem igualmente progredido cousa alguma,
cana tem conseguido tào sómento que re sendo impotentes os esforços que fazem os
cebesse o baptismo um manccbo, 2 o que sextarios da reforma para attrahir prosely
nào deixa de ser um progresso. Igual re tos. 1 Idêntico resultado hão tido as mis
sultado hão tido as estabelecidas em Dina- sões da Australia - e as das ilhas da Ocea
porc 3 c Cawnporc,4 ambas a cargo do ce nia, nas quaes os protestantes não teem
lebre Martyn. fe.ito outra cousa mais do que perverter os
Em Banghulpore o missionário christão indigenas, peorando sua condição.3
pôde baptisar, depois de grandes trabalhos, Isto é o que tem conseguido o protestan
a dous meninos, um de seis e outro de do tismo depois de tantos sacrifícios e de tan
ze annos.5 Hough, outro missionário pro tos esforços. Deus não tem remunerado seus
testante, entôa uma espccie de hosanna cm trabalhos, castigando-os ao contrario com
acção de graças por um caso de bom êxito uma esterilidade vergonhosa. Que indica
que pode obter em todo o tempo da sua isto? Não outra cousa senão que o protes
missão. 6 Os independentes estabelecidos tantismo está mui longe de ser a verda
em Calcutá c Serampur triumpharam de deira igreja de Jesus Christo, á qual con
pois de sete annos de trabalhos, da rebel tinuará esto a missão dc pregar o Evange
dia de um d’aquelles indigenas.7 Ao zelo lho (com exito, entende-se), a todas as
apostolico de D. Iludson, missionário nos creaturas; não outra cousa senão que a
reinos de A va e dc Pegu, se deve tal re reforma c um ramo separado do tronco,,
sultado, porque depois dc seis annos con por onde não corre já a seiva vivificante,
seguiu que um birman abraçasse o Chris que dá louçania c força, e faz produzir
tianismo. 8 Nem todos os missionários são optimos fruetos.
tào felizes que possam jactar-se de haver «Assim como o ramo da vide, diz Jesus
obtido os resultados salisfactorios que MM. Christo a seus apostolos, não pódc produ
Hongh e Chrislian tiveram. O de JaíTna es zir fruetos se não está unido á cepa, da
teve tão longe d’isto, que dizia descansa mesma sorte vós não podeis tão pouco pro-
ria em paz se conseguisse finalmenle con duzil-os, se não persistis em mim.» 4 O
verter um ou dous indigenas, do que du protestantismo não produz frueto algum;
vidava muito, pois as cousas, segundo elle, logo, não permanece em Christo; logo, não
apresentavam-se cm sua missão «debaixo é a verdadeira religião. Seja, pois, arranca
d’um ponto de vista tenebroso.» 9 da essa arvore esteril e lançada ao fogo;
As missões protestantes estabelecidas cm para que ha de occupar inutilmente a
Africa nào tcom dado melhor resultado. terra? 3
Para não sermos diffusos, limitar-nos-hc-
mos a dizer que as de Soosoo e Bulton tive III
ram de ser supprimidas em vista do pouco
adiantamento que se notava n’ellas. O es
tado de Kissey, Carlotte, Toun e Kent, não A esterilidade do protestantismo, de que
pôde ser mais triste, principalmente d’esta havemos fallado no capitulo anterior, não
ultima, cujo director, M. Randle, em vista deve, na verdade, maravilhar-nos em vista
do nenhum frueto que conseguia, se acha do singular systema, que, segundo indi-
va em uma grande npprehensào de sua
propria salvação espiritual.10 1 Nacional de Bruxelas, num. corresp.
a 10 de dezembro de 1829. — Traveis in
1 Month. Revieio, 1822, pag. 223. North America in the yearas 1827 and 1828,
2 Miss. Reg. tieth. report., pag. 153. by cap. Basil. Hall. v. 1. pag. 260.
3 Memoir. o f the Rev. Henry Martyn, 2 Rapport, of P. C., K. Soc. Lond. pag.
pag. 223. 34.
4 Jd. pag. 314. 3 Quarterly Revieio, pag. 440. Peirone,
5 Rapport o f the society for the propag., Prcelection. Theolog., t. 1, prop. 10. De
pag. 149. Steriht. Protest. Àcerca d’estes dados pôde
6 B) itish Critiò., 1825. vêr-se d erudita obra de Wiseman sobre a
7 IV. journal asiat. t. 2, pag. 38. esterilidade do protestantismo, da qual ha
8 Quarterly Review, 1822, pag. 223. vemos extrahido quasi tudo o que dizemos
1 9 Miss. Reg., pag. 205, 261. sobre as missões protestantes.
10 Rapport o f the society for the propag. 4 Evangcl. de S. João, c. 15, v. 4.
o f the Gospcl, pag. 68, 80, 83. 5 Evang. de S. Lucas, c. 13, v. 7.
776 PRO
camos no principio d’este cscripto, tccm humana nega-se a crér que haja homens
adoptado os protestantes para propagar que so apartem tanto, não já dos princí
suas idéias, c o silencio mais absoluto so pios moraes c religiosos, mas do bom sen
bre suas crenças e princípios religiosos. so c da boa logica.
Um parodoxo, uma cousa impossível, pare A fim de que ninguem possa taxar-nos
cerá este procedimento dos reformadores, e d’exaggerados no que dizemos, c de que o
sem embargo o é na realidade. A que pro povo hespanhol saiba a que fixar-se sobre
testante se ouviu jamais explicar o credo este particular, fallando-so tanto, como se
da reforma, manifestar os seus princípios falia, do protestantismo, vamos fazer vér o
religiosos, e provar que sua doutrina é a que este é, dogmaticamente considerado,
verdadeira doutrina de Jesus Christo? E com o que preencheremos o objecto prin
sendo isto assim, perguntarão alguns, para cipal do nosso trabalho.
que é tanto empenho da parte dos propa- Se as seitas protestantes convcem entre
gandistas protestantes, a fim de attrahirem si em algum ponto, é em admittir como
proselytos? Não é este um trabalho inútil? fundamento principal da religião o espiri
Como hão de conseguir seu intento, occul- to privado, ou a livre interpretação dos li
tando-se nas trevas, abstendo-se de pregar vros sanctos. Segundo este systema, cada
suas doutrinas, cousa que deveríam fazer, um é juiz competente em materias de re
a fim de que os povos conhecessem a supe ligião, podendo admittir ou rejeitar á sua
rioridade da reforma sobre todas as outras phantasia, esta ou aquella verdade de fé,'
religiões? Mui justas e opportunas são to- inventar, se lhe aprouver, novos dogmas,
■flas estas observações, e não sabemos o que estabelecer lambem preceitos novos, de
poderão responder a ellas os sectarios do clarar prejudiciaes os já existentes, e crear
protestantismo, a não ser que digam que finalmente uma religião a seu capricho,
se contentam cm semear a discordia no dizendo sómente que assim lhe é diclado
campo inimigo, sem tractarem de conse pelo seu espirito privado. Esto systema,
guir outro resultado, importando-lhes pou que na apparencia favorece a liberdade e
co que os individuos das outras religiões a razão humana, acha-se em contradicção
não sigam as doutrinas protestantes, com com a mesma doutrina protestante, segun
tanto que abjurem as suas proprias. Trium- do a qual a inlelligencia humana ficou
ho mesquinho é este; porém com elle se completamente aniquilada pelo peccado de
á por satisfeita a reforma, pois aspirar a Adão. Os primeiros reformadores o reco
mais, era vêr-se obrigada a patentear suas nheceram assim, e para evitar esta diffi-
crenças; c estas são taes, que, se assim o culdade appellaram para o recurso de de
fizera, em vez de conseguir bons resulta clarar que o Espirito Sancto era o que
dos, não faria outra cousa senão attrahir operava no homem, inspirando-lhe o que
sobre si o odio e o anathema universal.— havia de crér, e por conseguinte que este
«Com tudo isso, porém, dirão muitos, não não era mais do que um instrumento; e é
podemos levar-nos a crér que as doutrinas aqui que aquelles que accusavam o catho-
protestantes sejam tão absurdas como sup- licismo, porque admittia a infallibilidade
pondes. Não negaremos que alguns dos do papa e dos concilios, se viram obriga
seus dogmas sejam erroneos, que hajam dos a admittir a infallibilidade universal,
adulterado em parte a verdade, e que se toda a vez que o Espirito Sancto, que fal
separem bastante do espirito do Evange ia va pela bôcca dos fieis, não podia equi
lho; porém d’aqui a affirmar que suas vocar-se nem ensinar portanto o erro em
crenças são tão desconsoladoras e anti- vez da verdade. Os protestantes, sem em
christas, que se chegassem a manifestal-as bargo, dissentiam todos uns dos outros,
publicamente, todo o homem sensato se não podendo pôr-se d’accordo, nem ainda
apartaria horrorisado d’um systema tão emquanlo aos livros da Sagrada Escriptu-
monstruoso, ha uma grande distancia. EI- ra, que deviam admittir-se como canonicos.
les, pelo que respeita á reforma, se have Luthero, a darmos credito a Agzol, não
rão apartado de tudo quanto se queira da quiz receber como taes os cinco do Penta-
religião do Salvador, porém no fundo teem theuco. «Nós, dizia elle, não queremos vér
permanecido christãos.» nem -escutar a Moysés; 1 fóra a epistola de
Assim racioGionaram todas aquellas pes S. Thiago, essa epistola de paia, accrescen-
soas que não sabiam o que era o protes tava, que ensina que a fé sem boas obras
tantismo, cousa que não estranhamos, pois
o absurdo d*essa religião não póde conce
ber-se nem ainda depois d’estar bem orien i Univer. Geschichte der Christ. Kirche,
tado em seus dogmas e crenças; a razão t. 3j pay. 368. .
PRO 777
de nada serve; 1 abaixo também com a mais illustres, Grocio, cansado das luctas
epistola de S. Judas, com a de S. Paulo intestinas que havia entre seus correligio
aos hcbreus, com a segunda de S. Pedro, nários, não teve reparo em dizer: «que era
com a segunda c terceira de S. Joào, e necessario admittir o primado do papaj se
com o Apocalypse.» Calvino e seus secta queriam dar fim ás disputas.» 1
rios nào estavam conformes com osta opi Quasi do mesmo modo se expressa Puf-
nião de Luthero. «Rejeitemos embora, di fendorf.o inimigo mais encarniçado do ca
ziam, como apocryphos, o livro de Tobias, tholicismo: «A suspensão, disse élle, da au-
e todos os deutcro-canonicos do Antigo thoridade do romano pontifice, ha semeado
Testamento; porém admitíamos os do No- no mundo infinitos germens de discór
vo em todas as suas partes, como faz a dias.» 2 Calvino, a quem já havemos cita
igreja catholica. Porque razào hão de ser do, convencido como o estavam Beza 3 c
excluídas as epistolas de S. Thiago e todas Brcstchneider, 1 dous celebres protestan
as outras, cuja canonicidade negaes?» tes, do impossível que era estabelecer a
0 Espirito Sancto, pelo que fica dito, en unidade, a não ser refugiando-se para o
sinava aos lutheranos cousas dilTercntes catholicismo, disse: «que Deus collocou no
das que manifestara aos sectarios de Cal mundo um pontifice unico, para o qual
vino. olhassem todos, a fim de melhor se conser
Systema tào absurdo como o da livre in varem na unidade.» 5
terpretação, nào pode deixar de produzir Assim julgavam a reforma os mesmos
entre os protestantes a desordem e anar- corypheus d’ella, arrependidos, e com ra
chia mais espantosas. Um negava o que zão, por haverem ensinado a absurda dou
outro admittia como dogma de fé; cada trina do livre exame, que destruía em sua
um interpretava á sua phantasia a Sagrada base a unidade do dogma. Horrorisados
Èscriptura, não havendo duas pessoas que de sua propria obra, quizeram retroceder,
pensassem da mesma maneira em pontos porém já era tarde. Em vão o neo-ponti-
coucernentes á religião; Muncer, Herman, fice Luthero, levantado em sua cadeira de
Sweedemborg, Fox, Hacket, Nicolas, Har- Wartbourg, lançava o anathema contra os
lem, e outros muitos, criam, porque assim que haviam suscitado as turbulências de
lh’o ditava seu espirito privado, que a Bí Suavia, de Francfort, da Alsacia, do Pala-
blia sanccionava todas as suas maldades e tinado, do paiz de Bade, de Hcsse e da Ba-
extravagancias; em uma palavra, todos es viera. Elles mofavam da cólera do refor
tavam desorientados, sem saberem em que mador, por seu turno o amaldiçoavam,
fixar-se, nem ainda os mesmos corypheus declaravam que preferiam o papa a L
da reforma. Estes, ainda que tarde,'conhe thero.6
ceram o mal que haviam feito, prégando Este procedimento dos paizanos da All
tão absurda doutrina. «Se durar muito o manha, não podia, ao nosso modo de vêi
mundo, escrevia Luthero a Zuinglio, será criticar-se. Com que direito se atrevia Lu
de novo necessario, por causa das varias thero a condemnal-os? Não havia elle pro
interpretações da Èscriptura, que agora clamado o principio do livre exame? Não
circulam, para conservar a unidade da fé, havia por conseguinte destruído toda a au-
receber os decretos dos concilios e refu- thoridade, e deixado a cada individuo a li
giar-nos n’elles.» Melanchthon, em vista berdade para crôr o que melhor lhe pare
d’esta confusão espantosa, que reinava en cesse? Tão competente era Luthero, se
tre os protestantes, viu-se obrigado a dizer: gundo o principio protestante, para enten
«que o poder do papa serviría de muito der em assumptos religiosos, como o ulti
para conservar a unidade das doutrinas.»2 mo anabaptista. O Espirito Sancto illumi-
Calvino, homem sagaz, e que conhecia o nava-os igualmente a todos. **
damno que havia de fazer ao protestantis Luthero, espantado em vista d’este cata
mo a diversidade d’opiniòes, que existia clismo horroroso, teve tentações de voltar-
entre elles, escrevendo a Melanchthon, ex se de novo para o catholicismo, o que não
pressava-se nos seguintes termos: «Impor realisou por se oppôr a isto seu desmedido
ta muito que se não transmitia aos séculos
vindouros nenhuma suspeita das divisões 1 Votum pro pace Ecclesia.
quo ha entro nós.» 3 Um dos protestantes 2 De Monarch. Rom. Pontif.
3 Epist. ad Andr. Rudie.
1 \V. Cobbett, Rcform. Protest., t. 2, 4 De proselytis ecclesia Rom. et eccles.
pag. 101. evang.
2 Vide Balmes, Protest. t. 2, pag. 199* 3 lnst. 6, part. H .
3 Epist. Calv. all Nelanch., pag. 145. 6 Chat. Eus. sob. a litter. ingl. pag. 31.
778 PRO
orgulho. «Creio, escrevia ellc n’um d’esses Taes manifestações por parte dos pro
momentos lucidos, em que a verdade so- prios chefes da reforma, indicam quão des-
bresahia às paixões do sectário, creio que gostosos cllcs estavam de sua. propria
a igreja catholica é a verdadeira igreja, o obra, a qual destruiríam de bom grado, a
fundamento e a columna da verdade, e o nào se ter opposto a isto, cm uns seu des
logar sanctissim o.. . N’ella conserva Deus medido orgulho, como acontecia a Luthe
milagrosamente o baptismo, a remissão ro., segundo anteriormente dissemos; e nos
dos_ peccados, a absolvição, tanto na con outros sua excessiva timidez, como cm Me
fissão como no público, e*a imagem do cru lanchthon, e outros, finaltnonte, como em
cificado; i n’ella sem dúvida, tem eslado e Henrique vm o desejo de conservar os
está ainda a verdadeira igreja de Jesus bens que haviam roubado á Igreja.
Christo, e n’ella finalmente o Espirito San
cto conserva a verdadeira fó. 2 Que.con
fissão tão assombrosa! Que apologia tão IV
completa do catholicismo!
«Pôz o Senhor a palavra na bôcca do ho
mem que estava cego: na bôcca de Balaam A reforma com seu incomprchensivel
veio a maldizer a Israel, e o bemdisse pelo systema sobre o peccado original, o livre
contrario.» (Num. c. 23.) arbitrio, c necessidade das boas obras, ten
Pelo que respeita a Melanchthon, o dis deu a destruir á moral e a fazer do ho-
cipulo querido de Lulhcro, sabido é que meu um authomato, sem liberdade, sem
ultimamente ensinou que o papa «tinha o intelligencia, e portanto sem aptidão para
direito de convocar o concilio.» 3 c que obrar o bem.
«se lhe podia conceder a supremacia so Impossível parece que a razão humana
bre os outros bispos.» 4 se extravie até ao extremo d’inventar theo
rias tão absurdas c desconsoladoras, como
1 Eis-aqui Luthero defendendo indire- as propostas pelos corypheus do protestan
ctamente a absolvição na confissão, e o cul tismo, e acceites pelos outros individuos
to das imagens, essa bebida que envenena, c da communhão reformada.
essa práclica idolatrica, que fa z que dege Segundo o dogma protestante, a nature
nere a religião, segundo dizem os protes za humana, mero instrumento da graça
tantes. No livro De Captivitate Babilonca divina, a qual o obriga a obrar necessaria
(276), e no que escreveu contra os prophe mente, Jicou quasi destruída pelo peccado
tas celestes, se expressa o chefe da refor de Adão, tanto na parte moral como na
ma d'uma outra maneira, faltando dos pon intellectual, nào havendo relido alguma,
tos já mencionados. No primeiro d'elles diz nem ainda o livre arbitrio. 1
que entre os sacramentos verdadeiros se de Calvino assegura terminantemente que
ve contar a absolvição, que é o sacramen o homem mão é responsável pelos crimes
to da penitencia, e no segundo, que os pro que commcttc, e que estes devem impu
testantes de Alfemanha haviam feito muito tar-se sómente a Deus. «Satanaz, mesmo,
m al em derribar as imagens dos sanctos. diz elle, quando nos impelle para o mal,
Seu discipulo Melanchthon professava a nào é outra, cousa mais que o ministro de
mesma doutrina acerca do sacramento da Deus. Absalão commette um crime detes
penitencia, c o mesmo succedia com Henri tável, e sem embargo, Deus fa z sua esta
que VIU, o qual, se havemos de dar credito accão.» 2
ao historiador protestante Burnet, admittia festa mesma ideia a emitte, porém com
a absolvição do sacerdote como uma cousa maior clareza, no seu livro das institui
instituída por Jesus Christo, o mesmo que o ções, 3 onde se atreve a sustentar que
culto das imagens c existência do purgato «Deus é o author de todos os males,» e que
rio. Estes tres Christos da refonna admit- a graça impõe ao homem necessidade.
tiam , pois, a doutrina catholica sobre a pe A Calvino segue Theodoro de Beza, o
nitencia e o culto dos sanctos, objecto das qual em sua Exposição da fè en sin a:4
ira s dos modernos protestantes. E m que «que Deus faz todas as cousas segundo o
havemos de fixar-nos finalmcnte? No que
ensinaram estes, ou no que ensinaram Lu 1 Hirt. t. 1, 40, 3, pag. 292.
thero, Melanchthon, e Henrique VIII? 2 Ib. Ib. pag. 296.
2 Tract. de Abrog. Miss. Priv. 26. 3 Peron. Prcelect. Theolog. Tract. de
3 Melanchthon lio. IV, ep. 196. Grat. 391. Moelhes, A Symbolyque, pag. ò’2,
4 Concil. pag. 338. Apot. V, 167. VII, 73.
200. ' 4 Com. sob. a epist. aas Roman. IX, 18.
PRO 779
seu conselho, até aquellas que sào más e dez e monotonia em troca de que ninguem
•execráveis.» Luthero havia, antes de Beza, possa taxar-nos de exagerados nem de in-
assegurado o mesmo: «Deus, diz ellc em exactos em cousa alguma. Deixemos pois
seu livro de Livre arbitrio, i obra cm nós fallar os proprios reformadores. A concu-
o bcm c o mal.» «A vontade humana, ac- iscencia, dizem Melanchton, i Quenstedt,2
crescenta ellc na citada obra, é á similhan- rctschcneidcr;3 as confissões augustiana 4
ça de um jumento; se Deus chega e o obri e gallicana 5 e o cathccismo heidclbergen-
ga a ir por onde ellc quer, vai por alii, e s e , Gé um verdadeiro peccado, e por con
se chega Satanaz, vai por onde quer Sata- sequência todas as acções que o homem
n az.»i2 executa naluralmcnlc, e sem o auxilio da
Zuinglio é tào explicito como Luthero: graça divina, são peccados. As virtudes de
«O homem, diz elle, commellc todos os cri todos aquelles que professam religiões dif
mes por uma necessidade divina.» 3 Pelo ferentes da christà, accrcscentam clles, são
que respeita ás profissões de fé protestan crimes. «Se as acções do homem (citare
tes, basta saber que a Confissão Augustiana mos textualmente* as palavras de Molan-
ensina «que pelo peccado original perdeu chthon) podem alguma vez ser virtuosas, é
o homem completamcntc o livre arbitrio.* 4 quando elle as obra no Espirito Sancto,
Tal é o absurdo systema protestante so pois as que se fazem só pelo homem são
bre a liberdade humana. As consequências impuras... Nossas obras, nossos desejos,
terríveis que d’elle dimanam estão ao al não são mais que peccados.» N’isto não
cance de qualquer pessoa que raciocine fazia Melanchthon outrq cousa senão seguir
mediocrem ente. Nem o homem virtuoso é no todo a doutrina de seu mestre Luthero,
digno de prêmio, nem o criminoso de cas o qual havia ensinado «que as obras feitas
tigo; a justiça, tanto divina, como humana, pelos justos, são outros tantos crimes.» 7
quando condemna o delinquente obra de Eis-aqui o homem segundo o dogma
um modo iniquo e arbitrario, pois o ente protestante. Sua importância excede toda
privado de liberdade nào é responsável por a ponderação. Ultimo sér da creação, sua
suas acções. intelligencia destruída pelo peccado. nada
Como se ha de castigar o punhal de que póde pensar que verdadeiro seja, nem sua
se serviu um assassino para dar a morte a vontade impellida por uma força cega, se
qualquer homem? Podia elle por ventura guir outro caminho senão o da perdiçãi
deixar de obrar necessariamente não se- 0 Deus do protestantismo é injusto e crut
uindo o impulso da mão que o dirigiu? cm summo grau; é o Ahriman dos persa*
S uem exigiría similhante cousa? Applican A consequência immediata que se dedu;
do systema tão absurdo, a sociedade se de admittir a doutrina protestante sobre a
destruiría completamcnte; as noções do liberdade humana, é negar a necessidade
bem e do mal, do justo c do injusto, seriam das boas obras, c declarar que o crime em
eliminadas como inúteis; eu, é verdade, nada prejudica o homem. Assim o fizeram
roubo e mato; porém faço-o impellido por os primeiros reformadores, assegurando
uma necessidade divina, como dizia Zuin •que a práctica das virtudes e o cumpri
glio. Anathema a similhantes doutrinas, mento dos preceitos divinos são cousas in
que sanccionam o crime, rebaixam a vir úteis, e que os peccados, não sómente não
tude como uma cousa desprezível, e ten impedem a consecução da vida eterua, mas
dem a fazer do homem um sér mais des que cm certo modo servem para obtel-a,
graçado e miserável do que as mesmas toda a vez que Deus concede maior graça
ferasl Anathema a essas protestações con ao que é mais peccador. «Para com Deus,
tra a moral e contra a sanctidade dos cos disse Luthero, não necessitamos mais do que
tumes! Porém deixemo-nos de declama- da fé; devemos deixar a um lado as boas
ções, e voltemos á nossa ingrata tarefa de obras. Quanto mais criminoso é qualquer,
adduzir testimunhos; preferimos esta ari
1 Loc. Theolog. De pec. orig., pag. 168,
i Lib. 3, cap. 27. Lib. 2, cap. 3. Lessio, 158,360.
Quce fides et relig. sit copiscenaa consutat. 2 Theolog. did. pol. II, 135.
App. Utrum Calvinus docuerit Deum esse 3 Entwíkt der d o g m a tB erg ., § 94.
auctorem omnium scelerum. 4 Árt. 2.
2 Exposit. fidei, cap. 2, t. 2, fol. 444, s Art. 11.
op. Luth. 8 Qucest. 5.
3 Id., Id. 177. 7 Luth. Assert. omn. opp., tom. 2, pag.
4 Hahan. Estudos e critica, 1837, entre 670. Vid. Confut. Luth. rationum. Latons.
ga 4.* Doutrina de Zuinglio. doct. Lovan.
780 PRO
com tanta mais abundancia lhe infunde o Estas desconsoladoras theorias encheram
Senhor suas graças.»1 Os authorcs da Con de indignação a todos aqucllcs homens que
fissão Masfeláense participavam das mes respeitavam a virtude e aborreciam o cri
mas idéias que Luthero. «Sempre que me. Entre elles deve contar-se o protes
creias, se lê na citada confissão, que na tante Grocio, o qual levantou a voz, aiuda
igreja o homem deve ser bom, justo c cas que em vão, para anathematisar similhan
to, apartas-tc do Evangelho.» tes crimes. «Os peitos christãos, escrevia
Não contentes os protestantes com asse este celebre reformado, devem horrorisar-
gurar que as boas obras são inúteis, pas sc do dogma que ensina que os peccados
saram a dizer que eram prejudiciaes c que não podem prejudicar ao homem.» i
impediam a consecução da vida eterna. Admittidas idéias tão absurdas, tinham
Luthero assim o ensinou, segundo indi necessariamente de produzir seus resulta
ca Moelher, 2 fundando-se sem dúvida al dos; a cilas e não a outra cousa se deve
guma n’esta c similhantes passagens do ram os excessos e maldades dos anabaptis-
chefe da reforma: «A fé, diz clle em uma tas paizanos da Allemanha, que semearam
das suas obras, não justifica a não ser que a desolação em todo este paiz; dos autono-
esteja separada das boas obras.» 3 Amsdorf, mianos, que ensinavam que o prazer sen
um dos seus amigos mais intimos, confir sual, a embriaguez e a blasphemia são cou-
ma a mesma doutrina, dizendo: «que o as sas licitas;2 dos moggletonianos e labba-
segurar que as boas obras impedem a con tistas, ramificações da seita methodista,
secução da vida eterna, é uma cousa justa, que se entregavam aos vi cios mais vergo
verdadeiramente christã, conforme em tu nhosos, 3 e finalmente de todos aquelles
do com o que ensinaram S. Paulo e S. que criam que não ha obrigação alguma
Luthero.» 4 Em certa reunião, que se veri de observar os preceitos divinos,1 e que o
ficou em Altemburgo, varios protestantes adultério, o incesto e o homicidio nos hão
mais rigidos sustentaram também este prin de tornar mais sanctos sobre a terra e mais
cipio: «Os christãos que fazem boas obras gloriosos no c é o .5
ou créem na necessidade d’ellas, disseram Luthero e os outros coryphcus da seita,
elles, pertencem a Satanaz... As boas obras proclamados já similhantes princípios, não
são perniciosas e impedem a consecução tiveram reparo em admittir outras doutri
da vida eterna.»5 nas tão absurdas, taes como a não existên
Vejamos agora qual é a doutrina protes cia dos castigos na outra v id a ,6 a polyga-
tante sobre os cffeitos do peccado actual. m ia ,7 e a inefficacia do baptismo para la
«O christão, diz Luthero, não póde, ainda var os peccados,8 chegando alguns, como
que queira, ser privado por nenhuma clas os unitários, até ao extremo de negar a di
se de peccados, da beraavcnturança, pois vindade de Jesus Christo,9 e outros, como
estes não o prejudicam.» 6 «Se com a fé, o protestante Edelmann a sustentar que
accrcsccnta clle em outro logar, se póde não ha Deus, nem demonio, nem gloria,
comraetter um adultério não é peccado.» 7
«Sê peccador e pecca grandemente, escre 1 Discuss. Apolog. Riveti.
via elle a Auri fabro, porém mais grande 2 Chat. Cuat. Estuard., pag. 23.
mente tem fé em Jesus Christo. Por elle, 3 Ricard. H ill, vol. 3, pag. 10.
o peccado não poderá perder-nos, ainda 4 Assim o ensinaram Amsdorfio e Agrip-
quando mil e mil vezes cada dia nos entre ■oa, discipulos de Luthero. Veja-se Moore
guemos aos prazeres sensuaes e ao homi Voy. d'un jcun. Irland. á la recherche d'une
cidio.» 8 Melanchthon, seu discipulo, ensi reíigion, cap. 60.
nava o mesmo. «A homem fiel, dizia este, 5 Fretcher Duybeny Guid to the Cliurch,
não póde condemnal-o.»9 pag. 28.
6 *Na mansão dos finados não ha tor
1 De Piscatura Petri, Senn. mentos.*' Luther. oper., t. 4, pag. 109.
2 Symbol, t. 1, pag. 222. 7 Luthero, escrevendo em 13 de janeiro
3 Opp., t. 1, pag. 523. de 1523 a Jorge Bruck, chanceller do du
4 Werke Niktas von Amsdorf. que de Saxonia, dizia: *É-me impossível
5 Belarm. de justificat. Lib. IV, cap. i.° em virtude das Escripturas Sanctas o pro-
Vid. pract. Solid. D edar. IV , § 15, pag. 672. hibir a qualquer tom ar muitas mulheres
« De captivit Babylon., cop. de Bapt. ao mesmo tempo.* Igual ideia emitte em
^ Disput., t. l.°, 523. seus Commentarios sobre o Genesis.
8 Lutli., epist. ad joh. Aurifab., pag. 8 Zuing. Declarat, de peccat, orig.
3 August. Nicol. O Protestantismo c o
545.
9 Loc. Theolog., pag. 93. Socialismo, pag. 115.
nem inferno. * Cumpriu-se a predicção do paizes protestantes, onde com raras exce-
padre de Montaignc 2 de que o protestan pções eram desconhecidas as fôrmas repre
tismo havia de conduzir a um execrável sentativas, os principes, por temor á autho-
alheismo. ridade de Roma, não se atreviam a tvran-
Sc os estreitos limites d’um folheto nol-o nisar os povos, depois, uma vez romp’ido o
permittissem, nos espraiaríamos muito mais dique que impedia podessem exercer um
sobre este ponto, posto que cremos que o dominio completamcntc absoluto sobre seus
que fica dito c sufficiente para que o pú subditos, e imperando nas consciências
blico conheça o que ó o protestantismo, d’estes, nada foi sufficiente a retel-os de
considerado debaixo do ponto de vista do- seus projectos ambiciosos e tyrannicos.
matico. O absurdo da dita religião fica Isto casualmcntc era o que temia o refor
emonstrado evidentcmenle, sem que para mador Melanchthon, c por isso se oppòz á
isso tivéssemos que fazer outra cousã mais suppressão da gcrarchia da Igreja: «Se
do que deixar fallar os mesmos corypheus transtornamos o governo ecclesiastico, di
da reforma. Não se dirá pois que exagge- zia elle, a tyrannia será mais insupporta-
ramos os factos. Passemos agora a occu- vel do que nunca.» 12«Sinto, accrescentava
par-nos do protestantismo considerado em elle no prefacio de suas obras, que o jugo
suas irelações com a liberdade, assumpto de pau do pontifice (ligneum) seja substi
importante que merece um exame detido tuído pelo jugo de ferro dos principes.»
e maduro. Estas idéias de Melanchthon não eram por
desgraça as que dominavam nos outros
reformadores, e por isso os increpa forte
V mente o historiador protestante Bensen, nos
seguintes termos: «Emquanto que a igreja
catholica jamais authorisou, ao menos em
Foi por muitos acreditado, ainda que theoria, a oppressào por parte dos sacer
equivocamente, que o protestantismo favo dotes c dos principes, e que defendeu sem
receu a liberdade, servindo, e não pouco, pre com rigor os direitos dos individuos e
para que os povos se emancipassem, pois dos povos, os reformadores evangélicos,
destruiu a antiga sociedade cimentada so pelo contrario, foram os primeiros que pre
bre o despotismo e barbaridade, c conce garam e ensinaram entre os allemães a
deu ao homem os direitos de^ algumas cou- doutrina da escravidão.»2 Se um catholico
sas que se lhe negavam antes da reforma. assim fallassc, diriam que o cegava o es
Esta ideia absolutamènte falsa, necessita pirito de partido.
de ser refutada, por isso que uma parte Posto seja certo que Melanchthon temia
do povo lhe dá hoje assentimento, por ha ao principio essa tyrannia por parte dos
ver dado ouvidos a quatro declamadores principes, e que teria desejado que a au-
ue, ignorando completamente a historia thoridade d’estes principes se limitasse o
a reforma, e o que seus chefes pensavam mais possivel, também o é que mais adian
sobre as liberdades públicas, se poem a te variou completamente de idéias, exci
fallar dos immènsos benefícios que n’este tando-os a commetterem actos despóticos e
sentido trouxe á humanidade o movimen sanguinarios. Escrevendo ao margrave pa
to religioso, iniciado por Luthcro no século latino do Rheno, o qual queria estabelecer
xvi. A reforma, bem alto o dizemos, só a ordem nos seus estados por um modo
mente favoreceu o despotismo, afagando o benigno, poupando effusão de sangue, di
orgulho de alguns principes absolutos, e zia elle: «Um povo, tão grosseiro e tão
querendo fazer dos povos um rebanho de ignorante como o povo allemão, deveria ter
escravos, que estivesse sujeito ao poder ty muito menos liberdade ainda do que se llie
rannico d’aquelles. Muito brevemente de concede... Se a authoridade civil impõe tri
monstraremos a verdade da nossa asser butos sobre os bosques e bens communaes,
ção. njnguem póde oppôr-se a isto; se toma o
0 protestantismo, negando a authorida- dizimo das igrejas e o applica a outras,
de espiritual que o papa exerce sobre to forçoso é que os allemães o approvera e se
dos os fieis, declarou que pertencia de di accommodem a isto.»3 Não parece senão
reito aos principes, os quaes deviam re que o ministro dos cultos do rei da Prús
unir o poder ecclesiastico ao civil. Se an sia em 1844, M. Eichhorn, tinha presentes
tes, quando o catholicismo reinava nos
t Mel. Lib. IV, epist. 104.
1 Dic. GcettlichJceit der Vernunft. 2 Hist. da guerra dos camponezes, § 19.
2 Montaig. Ensay., I. % cap. 12. 3 jfracf. cont. qp doc. art. dos camp.
50
a
782 PRO
estas palavras de Melanchthon, quando dis quando Gustavo Wasa tractou de abolir o
se que em materia de religião, o mesmo culto catholico, temendo, e com razão, que
que em outra qualquer materia, os subdi tractasse, ajudado pelos hithcranos, de con
tos estão obrigados de direito divino a pres verter em uma tyrannia hereditaria a mo
tar (ao rei) a mais estricta obediencia. narchia, até então electiva, i Na França
Quando se expressou assim nenhum ca sómente uma parte da aristocracia favore
tholico? ceu as novas doutrinas; a classe media ne-
Luthero, exagerado cm tudo, pregou o gou-se a ãdmiltil-as, declarando-lhes uma
exterminio do povo d’um modo que tcria guerra de morte. A repugnância do povo
horrorisado o proprio Nero. «Creio, dizia inglez pela supposta reforma, era bem
elle na contestação qne deu aos doze arti manifesta. William Cobbett, occupando-se
gos dos aldeãos de Suabia, creio que todos d’cste assumpto, observa muito judiciosa-
cs aldeãos devem perecer antes do que os mente: «que quando a religião catholica foi
principes e magistrados... nenhuma mise restabelecida no Reino Unido, não foi ne
ricordia, nenhuma tolerância deve haver cessario infligir penas algumas para que o
com elles... Póde-se tractal-os como cães povo a abraçasse, ao passo que quando so
dam nados.»- «Não se deve perdoar, costu quiz fazer o mesmo com o culto protestam:
mava elle dizer, segundo refere Sleider, te, em tempo da rainha Isabel, se viram
aos que se mctlcm em qualquer sedição.»1 obrigados (os individuos do parlamento) a
Que contrastei Quasi ao mesmo tempo impôr toda a especie de castigos, excepto
que Luthero patenteava estes instinctos a morte no mesmo acto, para obter a sub
sanguinarios contra o povo, o jesuita Ma missão do povo.» 2 Na Suissa a reforma
riana e o religioso descalço, fr. João de não obteve bom exito senão nos cantòes^
Sancta Maria, ensinavam com permissão aristocráticos, e isto á custa de muito san
de Philippe m: o primeiro «que o rei deve gue, aniquilando-se completamente nos de
governar seus subditos como homens li- Schwitz, Uri, e Underwald, berço da liber
iires*, 2 e o segundo «que a monarchia, dade helvetica;3 as republicasse Veneza,
para que não degenere, não ha de ir solta e Gênova e a monarchia electiva da Polo-
e absoluta, e que o rei, seja quem for, se nia, tão pouco aadm ittiram .4 Em uma pa
resolva sem recorrer a seu conselho, saia lavra, o povo, em quasi todos os paizes da
dos termos da monarchia, e entre nos da Europa, se manifestou hostil ao principio
tyrannia.»3 protestante. E teria succedido isto se as
* Não é de estranhar, pois, que a reforma doutrinas de Luthero e outros reformado
encontrasse seu principal apoio nos prin res fossem tendentes a melhorar a condi
cipes absolutos, por isso que favorecia o ção das classes intimas da sociedade, e a
poder illimitado d’estes. Elles foram os impedir que os poderes absolutos gover
ue com mais calor patrocinaram a ideia nassem d’uma maneira cruel e tyrannica?
e Luthero,4 introduzindo a nova religião Crémos que não.
em oeus estados a sangue e a fogo, e a des Sc, já que o protestantismo nada faz em
peito de seus subditos, que em geral não favor da liberdade dos povos, ligando-se
se mostravam propícios a admittil-a como ao contrario com os principes para tyran-
fizeram Christian ji, Gustavo Wasa, e Al nisar aquelles, houvesse respeitado aó me
berto da Prússia.5 nos as idéias religiosas dos que pensavam
Os povos que conheciam que a reforma d’um modo differente que os seus adeptos,
prejudicava seus interesses, se oppozeram mostrando-se tolerante com elles, e sem
a ella tenazmente. Os dinamarquezes e no- tractar de obrigal-os pela .força a abjurar
rueguezes protestaram contra a determi sua fé, não haveria tantos motivos.para
nação de introduzir o protestantismo em condemnal-o, pois dir-se-ia que ao menos
seu paiz, adoptada p or Christian ii, em favoreceu a liberdade da consciência, ain
1520. Os suecos imitaram este exemplo, da que por outra parte houvesse ajudado
a supprimir todas as outras liberdades.
. i Sleider, lib. V. Porém mui longe d’isto, os reformadores
2 De rege et regis institutione. Lib. 1, do xvi século levaram sua intoleranda re
cap. 4. ligiosa até ao fanatismo, commettendo es-
3 Tractado da republica e politica chris-
tã para reis e principes, cap. l.° 1 Âug. Nicol. Idem, id.
4 Jureu. Vid. Alzog. Univ. geschichte, 2 W- Cobbett, Nova Cart. l . a
etc., tom. IV, pag. 76. 3 Chat. Ens. sob. a litt. ingl., pag. 36.
s August. Nicolas,. o Protestant. e o So Estudos hist., pag. 34. - /
cial., pag. 324, 326. • 4 Idem, id.
PRO 783
ses actos dc crueldade, do que a historia çuo, impondo pena de morte aos contra-
offeroco raros exemplos. ventores, o dar o menor auxilio a qualquer
0 chefe do protestantismo, o qual ensi sacerdote catholico, ou confessar-se com
nava que o Evangelho devia estabelecer-se elle, obrigando-se debaixo da mesma pena
por meio de sangue, 1 se podésse, teria' co os individuos da communhão romana a
meçado gostoso cm sua prégaçào fazendo frequentarem as igrejas protestantes. 1 Os
(são suas proprias palavras) urn pacote do generos de tormentos que empregava con
papa e dos cardeaes, e arrojando-o ao mar tra os criminosos cm materia de religião,
da Toscana. 2 eram os mais horrorosos que imaginar-se
Verdade é que, se não pôde conseguir podem. Lingard na nota 2 / do tomo 5.°
isto, teve ao menos a dita de vér queima de sua historia, fez d’elles uma dcscripção
dos seus collegas no apostolado, Mullcr, circumstanciada.
Krant e Peisker, por instigações do seu dis Fácil nos seria adduzir outra multidão
cipulo Melanchlhon. de factos que confirmassem mais e mais o
Isto era já uma consolação. Na Suissa que deixamos dito, taes como o dos pro
pereceram da mesma maneira, entre ou testantes da França, os quaes se atreveram
tros muitos, Servet c Gentilis, por sc have até a desprezar as cinzas dos mortos cm
rem opposto á doutrinado Calvino. Não se odio á religião catholica que ellcs haviam
indignaria este muito cm vista dcsimilhan- professado; 2 porém o até aqui exposto é
tes attcslados, mui pelo contrario os elo mais que sufficiente para se poder formar
giaria, por isso que estavam em harmonia uma ideia exacta de tão decantada tole
com sua doutrina sobro a tolerância reli rância protestante. /
giosa. «Aos hereges, havia elle dito, se deve Venham, pois, agora os sectarios da re
•obrigar com o direito da espada.» 3 Estas forma fallar-nos de liberdade e direitos, da
maximas caritativas e christãs foram de emancipação dos povos, da livre emissão
fendidas pelos protestantes até em nosso do pensamento, da ominosa tyrannia de
século, como vimos que o fizeram o doutor Roma, e de todas as mais cousas de que
Espe, 4 K rug,3 e Brenncr. 0 fazem menção para illudir a quatro ho
Ao fallar da tolerância religiosa dos re mens simples, que estão sempre promptos
formadores inglezes, a penna cahe de nos a dar ouvidos a qualquer charlatão que
sas mãos, negando-se a escrever os horro lhes falle em tom dogmático.
res de que as. desventuradas ilhas brilan- Em vez de caluinniarem grosseiramente
jiicas foram victimas na época de Henri o catholicismo, e de fatigar seus pulmões
que viu, Eduardo vi_e Isabel; n’essa época declamando contra^ o poder espiritual do
-em que, como diz um celebre escriptor in- romano pontifice, emancipem a desgraçada
glez, «a injustiça, a oppressão, a rapina, o Irlanda, modifiquem as iniquas leis eccle
-assassinato e o sacrilegio dominaram em siasticas que existem em Inglaterra,3 pré-
Inglaterra.» 7
Sabidas são de todo o mundo as cruel- 1 W. Cobbett, Reform. Protest., tom. 2,
•dades exercidas por Henrique viu desde pag. 22, 121, 122, 123.
<jue iniciou o movimento religioso em seu 2 Arquentil, Éspirit. de la Lig., tom. 1,
paiz, taes como o assassinato dos anaba- pag. 127.
iplistas hollandezes, a sentença de morte 3 Uma d'estas leis, e por ventura a
pronunciada contra o cadaver de S. Tho- mais irritante de todas, è aquella pela qual
maz de Cantorbcry, acto de barbaridade se obriga a pagar o dizimo, não só aos dis
naudita, e todos os outros, de que já deixa sidentes, mas ate áquclles que vicem do
mos feita menção nos capitulos anteriores. seu trabalho pessoal. (Actas 2.* e 3.a de
Enviar ao patibulo por questões puramen- Eduard. VI, cap. XIII.) O que se nega a
fe religiosas setenta e duas mil pessoasl isto, se não tem bens alguns que lhe pos
Nero por certo não chegou a tanto! sam embargar, é encarcerado em virtude
Pelo que respeita á rainha Isabel, basta da acta quinta do reinado de Jorge IV,
-dizer que declarou ser delicto d'alta trai- cap. XVIIL
Os ministros anglicanos são tão religio
1 Lu th. de Serv. Arbit., pag. 862. sos n'cste ponto, e tão escravos da lei, que
2 Adv. Pap., t. VII, pag. 940. nem ainda aos pobres jornaleiros dispen
3 Exposit. eiror. Serveti. sam o nagamento do dizimo que lhes cor-
4 Die Hoffnung des Siegés, etc. respomle (uns 2 por 100 aproximadamen
5 Die Kirchenverbesserung. te.) O revnendo M. Lundey, reitor de Lo-
0 Lichtblicki von protestanten, etc. katon, se queixou em 1833 dc que seu fre-
1 . Fitz-W illiam. Cart. de Atico. p. 114. guez Dodsioorth, jornaleiro, não havia pa-
*
784 PRO
guem a liberdade e não a tyrannia, como uteis e infructuosos. Correrás frenetica
por desgraça o está fazendo o clero protes apoz d’ella, e cada vez se arredará mais
tante nos Estados-Unidos, 1 cnvergonhcm- de ti, como o illusorio mar que o viajante»
se dos crimes commeltidos pelos corypheus victima da miragem, crê descobrir nos
da sua seita, obrem com relaçfio aos prin abrazados areacs do Egypto, ou como es
cípios evangélicos, sendo humildes e cari- ses fogos fatuos que fogem á medida que
tativos, c talvez a humanidade esqueça en alguém se vai aproximando a elles. Cre
tão o que tem sido o protestantismo até o ras, infeliz Tantalo, que vacs saciar tua se
presente. de devoradora no manancial sagrado da
sciencia, c suas aguas, quando quasi toca
rem teus lábios, se afastarão de ti rapidas,
VI
diminuindo, tinham produzido por fim processo infinito que Valentim suppunha
entes maléficos, que formaram o mundo, no mundo. Porém como podia existir este
moveram as guerras, e causaram todos os principio malefico, que Ptolomeu suppunha
males, que nos attribulam. e que não existia por si mesmo, se todos
Jesus Christo affirmava, que tudo fôra os entes tiravam sua origem de um sobe-
feito por clle, e portanto era falso o senti ranamente perfeito?
mento que attribuia a creação do mundo a . Era uma difíiculdade, que Ptolomeu que
princípios oppostos ao mesmo Senhor: a ria evadir por certa tradição, que não ex
posição, que queriam achar entre o Anti plicava 1
go, e Novo Testamento, e que servia de base p u c c ia n is t a s — Sectarios do sentimento dn
ao seu sentimento, desapparecia logo que Puccio, que asseveravam ter Jesus Christo
se ponderasse attentamente sobre a lei de satisfeito com sua morte por todos os ho
Moysés, e sobre as mudanças, que Jesus mens em tal maneira, que todos aquellos
Christo n’ella fizera. que tivessem de Deus um conhecimento
l.° O Decalogo, que c a base da lei ju natural, seriam salvos, bem que o não ti
daica, tem com evidencia o caracter d’nm vessem de Jesus Christo.
ente sabio, e benefico, e encerra a moral Puccio sustentou este sentimento em um
mais pura, c mais bem accommodada á fe livro, que dedicou ao Papa Clemente vnr,
licidade dos homens. A lei do Evangelho no anno de 1592, cujo titulo é o seguinte:
aperfeiçoou esta lei. De Christi Salvatoris efficacitate in omni-
As particulares, que parecem contravir bus, et singulis hominibus, quatenus ho
a bondade do legislador, assim como a de mines sunt, assertio Catholica cequitali di
Talião, e a que authorisa a vingança, são vin a, et humanai consentanea, universa
leis, que eram necessarias no tempo, e Je scriptura S. et PP. consensu spiritu dis
sus Christo, abolindo-as, nenhuma estabele cretionis probata, adversús scholas asseren
ceu contraria aos desígnios do Creador, tes quidem sufficientiam Servatoris Chris
pois que elle no Decalogo prohibe o homi ti, sed negantes ejus salutarem efficaciam in
cidio: e se aboliu a leie do divorcio, esta singulis, ad S. Pontificem Clementem VIII.
não era do Creador, mas um simples re Gonduc, 1592, in 8.° 2
gulamento de policia, estabelecido por Rethorio, no quarto século, pensou quasi
Moysés, como o mesmo Jesus Christo o af como elle, e Zuinglio no decimo quinto.
firma. Este erro póde ser um erro de coração;
Quanto ás leis ceremoniacs, e figurativas, é contrario ás palavras do mesmo Jesus
Jesus Christo falando com propriedade,não Christo o qual diz que ninguem vai a seu
as aboliu, porque elle conservou o espirito Pae senão por elle, e que, aquelle que não
: das mesmas, e não rejeitou, por assim di crêr, será condemnado 3
zer, mais que a casca. Puccio foi refutado por Osiandro, por
Jesus Christo destruindo os. sacrifícios Lysero, e por outros theologos alleraães,
da antiga lei, não disse que não deviam of- citados por Stockman.4
ferecer-se a Deus sacrifícios; disse que em p u r it a n o s —Veja-se Presbyteranos.
logar de animaes, ou deincenso, se lhe de p y r r o — Veja-se Monothclitas.
viam ofierecer afiectos, e sacrifícios-espi- QUADRISACRAMENTAES— Discipulos de Me-
rituaes; e assim se ha de dizer das outras Ianchthon, assim appellidádos por não ad-
leis. D’aqui concluía Ptolomeu, que a ju mittirem senão quatro sacramentos, o ba
daica, e a evangélica tinham por principio ptismo, a ceia ou communhão, a peniten
um Deus benefico, e não dous deuses op cia, e a ordem.
postos, e que o mundo não era obra do q u a k e r s — Esta palavra em inglez quer
Ente Supremo; porque, segundo Ptolomeu, dizer Tremedor: é o nome d’uma seita de
n’elle não havería mal. Portanto era o enthusiàstas, que tremem com todos os
Creador um Deus benefico, collocado no membros do seu corpo quando créem sen
centro do mundo, que creára, e no tir a inspiração divina. A origem, progres-
qual produzia todo o bem possível; mas
n’este mesmo mundo havia um principio 1 Philastro de Har. c. 39. Aug. de Har.
injusto, e mau que estava unido á mate c. 13. Tert. advers. Valent, c. 4. Epiph.
ria, e que produzia o mal: e para rebater Hcer. 33. Ircen. I. 1, c. 1, 6. GraL Spicileg.
os eííeitos da sua malignidade, é que ó Scec. 2. p. '68.
Deus Creador tinha enviado seu filho ao 2 Stockman Lexicon in nov. Punccia-
mundo. nistee.
Assim, pois, admittia Ptolomeu só quatro 3 Joan. 14. t\ 6. Marc. 16., v.. 16.
princípios, ou Eons' em logar d’aquelle 4 Loc. ci(.
QUA 79 7
so, costumes e dogmas d’esta scita singu mortificação, c que Jesus Christo nos ensi
lar merecem contemplação na Historia dos nou a honrar a Deus.
desvarios do entendimento humano. É, pois, sómente verdadeiro christãoaquel-
le que doma as suas paixões, que se ne
ga a toda a maledicência, e a qualquer in
DA ORIGEM DOS QUAKERS justiça, que não vé sem dôr o infeliz, que
reparte os seus bens com a pobreza, que
perdoa as injurias, que ama todos os ho
Pelo meio do século passado, Jorge Fox, mens como seus irmãos, que está sempre
sapateiro no condado de Leicester, empre prompto a dar a sua vida, antes queofien-
gava em lér a Escriptura Sancta todo o tem der a Deus: confrontai com estes princí
po em que não trabalhava, e bem que pios, dizia Fox, todas estas sociedades que
apenas sabia lêr, como tinha grande me se dizem christãs, e véde se ha alguma
mória, a aprendeu de cór quasi toda; se que mereça este nome. Estes presumidos
rio o melancholico desadorava de que os christãos teem por toda a parte um culto
companheiros se alliviassem de seus tra exterior. Sacramentos, ceremoniaes, litur
balhos com divertimentos, de que elle não gias e ritos, por meio dos quaes pretendem
podia gostar, e que condemnava com as agradar a Deus, c conseguir a sua salva
pereza. Veio, pois, a ser-lhes odioso, expul ção. Lançam fóra de todas as sociedades
saram-no de sua sociedade, e elle se entre christãs os que não observam estes ritos,
gou ao retiro, e ã meditação. e nellas recebem até muitas vezes com
Os vícios, e a dissipacao dos homens, a acatamento os maldizentes, voluptuosos,
conta que hão de dara l)eus dos dias pas vingativos e malvados.
sados na desordem, e no esquecimento de Os christãos mais observantes do culto
seus deveres, e o apparato do juizo ultimo, exterior enchem a sociedade civil e a Igre
eram o objecto das suas meditações; as ja de scisraas, extorsões e partidos, que se
sombrado com estas imagens terríveis, sup- aborrecem, e entre si disputam com furor
plicou a Deus o meio de se preservar da sobre uma dignidade, um grau, uma ho
geral corrupção, e presumiu ouvir uma menagem, e uma preferencia: nenhuma
voz, que lhe ordenava fugisse dos homens das sociedades christãs tributa, pois, a Deus
e vivesse no retiro. o culto puro e legitimo; todas, sem cxce-
Fox, desde este momento, rompeu toda a pluarmos ainda as igrejas reformadas, reca-
communicação humana; requintou a sua hiram no judaísmo: não será effectivamen-
melancholia, e viu-se logo cercado de de te ser judeu, não será d’alguma maneira res
mônios, que o tinham agarrado: orou, tabelecer a circumcisão, fazendo dependen
meditou, jejuou, e creu ouvir outra voz do te a justiça e a salvação do baptismo e dos
céo, e sentir uma luz, que dissipára os sacramentos? Pois os mesmos ministros da
seus temores, e alentara a sua alma. Igreja estão n’estes erros, e n’elles se man-
Não hesitou mais em que o céo velasse teem para se conservarem suas rendas e
sobre elle d’um modo particular; teve vi dignidades: de tal sorte, pois, se tem intro
sões, arrebatamentos, e extasis, e se per duzido a corrupção nas sociedades chris
suadiu que o céo lhe patenteava quanto tãs, que ha menos inconveniente em sof-
elle queria descortinar, pediu o conheci frer n’ellas todos os vicios e desordens,
mento do verdadeiro espirito do Christia que na empreza de reformal-as. Que resta,
nismo, e teve para si que Deus lhe reve pois, fazer aos que desejam salvar-se, dizia
lava tudo o que era necessario crér, e obrar Fox, senão o separarem-se de todas as
para a salvação, e lhe ordenara o ensinas igrejas christãs, honrarem a Deus com a
se aos mais homens. Fox largou, pois, práctica das virtudes, de que Jesus Christo
mão do seu officio, fez-se apostolo, e pro veio dar-nos o exemplo, e formarem uma
pheta, e publicou a reforma, que asseve sociedade religiosa, que sómente admitta
rava ser-lhe inspirada por Deus ácerca homens sobrios, pacientes, mortificados,
dos dogmas, e do culto dos christãos, cuja indulgentes, modestos, caritativos, e prom
pureza, dizia elle, estava alterada em todas ptos a sacrificarem socego, fortuna e vida,
as igrejas. Jesus Christo, accrescentava Fox, antes que a contaminarem-se na corrupção
aboliu a religião judaica; substituiu ao geral? Tal é a verdadeira igreja que Jesus
culto exterior e ceremonial dos judeus um Christo veio fundar, e fóra da qual não ha
culto espiritual, e externo, aos sacrifícios salvação. Prégava Fox esta doutrina nas.
dos touros, e dos bodes o sacrifício das tabernas, nas casas particulares, nas pra
paixões, e a práctica das virtudes; pela pe ças publicas e nos templos, gemendo e la
nitencia, caridade, justiça, bcneficencia, e mentando a cegueira dos homens; moveu,
5i
798 QUA
tocou e persuadiu; fez discipulos. Alentado um christão não deve oppôr a força á for
com tão bons successos, quiz fazer mila ça, ou pleitear por assumptos tempora es.
gres; asseverou havel-os feito: seus disci Os quakers olhavam todas as suas idéias
pulos os publicaram c oflcrcceram como como operações do Espirito Sancto, tinham
provas da verdade da sua doutrina; mas a como essência todas as maximas da sua
poucos passos prescindiram d’estas provas, scita, e mais facil lhes seria sacrificarem
asseverando que como Fox não annuncia- bens, liberdade e vida, que saudarem um
va uma nova religião, mas sómente vinha homem, darem um juramento, ou paga
recordar aos homens a práctica do Evan rem os dizimos. Como todos os quakers se
gelho, era desnecessário que ellê obrasse criam inspirados, nenhum houve que não
prodígios. Augmentou-se insensivelmente se tivesse por apostolo, destinado pela
o npmero de seus discipulos, c cllc formou Providencia para esclarecer alguma parte
uma sociedade religiosa, qúe nem tinha do mundo: a Inglaterra se viu logo coberta
culto exterior, nem liturgias, nem minis de uma multidão incrível de prcdicantcs,
tros, nem orações vocaes. Como Fox, por que por toda a parte encontravam imagi
meio da meditação, fora illuminado com nações vivas, e espíritos fracos, os quaes
as luzes do céo, *e tivera visões', e extasis, allucinaram: por toda a parte se viram
este foi o modelo sobro que formou as as magistrados, theologos, lavradores, solda
sembléias religiosas da sua seita. dos, pessoas de qualidade, mulheres casa
Quando os quakers estavam juntos, cada das e solteiras aggregarem-sc aos quakers,
um se entranhava em si mesmo, observan irem ás praças publicas e aos templos tre
do attentamente as operações do Espirito mer, prophetisar, e pregar contra a igre
Sancto, sobre sua alma: o que era de ima ja anglicana, perturbar o serviço divino
ginação mais viva, sentia primeiro a inspi nas igrejas, insultar seus ministros, e de
ração; logo quebrava o silencio, exhortava clamar com furor contra a corrupção de
toda a assembléia que attendesse ao que o todos os estados.
Espirito Sancto lhe inspirava, e discorria Todo o clero, e a maior parte do povo
acerca da abnegação de si mesmo, da ne se amotinou contra esta scita.nova, e os
cessidade de ser penitente, sobrio, justo, e magistrados se serviram de toda a sua au-
benefico: n’um instante a assembléia toda se thoridade para reprimir a audacia dos qua
sentia abalada, inflammava-se: corheçavam kers: investiram-nos, prenderam-nos, des-
todos a tremer, a inspiração se fazia geral; e pojaram-nos de seus bens; mas não fizeram’
então erà a qual mais alto, e por mais tempo mais que dar novo lustre á seita, e multi
fallava. Não hesitavam, pois, os quakers de plicar os sectarios. Bem que cada um d’el-
que fossem instruídos extraordinariamen ies se crêssc inspirado, Fox comtudo era
te pelo Espirito Sancto: tinham-se como o respeitado como seu chefe, e restaurador
seu templo, .criam sentir a sua presença, do Christianismo: este enviou cartas pas-
sabiam das assembléias graves, recolhidos, toraes, não só a todos os logarcs, onde os
silenciosos, e desdenhavam o fasto, as hon quakers tinham feito proselytos, mas a
ras e as riquezas. O quaker não via no qua- todos os soberanos do mundo, ao impera
ker mais do que um templo do Espirito dor, ao sultão, a el-rei de França, etc., pa
Sancto: todas as distineções da sociedade ra lhes intimar, da parte de Deus, que abra-
civil desappareciam a seus olhos, e elles çássem a sua doutrina: passaram a todos
se reputavam como uma familia que o Es ôs paizes homens, mulheres casadas, e sol
pirito Sancto illustrava e dirigia. Persua teiras a levarem estas cartas, e prégarem
didos os quakers de que só Deus merece a doutrina dos quakers, mas com mau suc
as nossas homenagens, nossa admiração, e cesso.
respeito, tractavam todos por tu, a nin Cromwell, que então reinava em Ingla
guem saudavam, e recusavam não só aos terra, quiz ver Fox, formou d’elle uma
magistrados, mas ainda aos reiá, toda a es- alta ideia, e concebeu estimação pela sua
pecie de homenagem; porém se preciso seita; porém passou um edito em que pro-
fosse partiríam seus bens, e sacrificariam hibia aos quakers que fizessem ajunta
seu descanso por aquelles mesmos, aos mentos publicos, e recommendava aos ma
<juaes nem davam salvação, nem tracta- gistrados que os acoutassem dos insultos;
mento. Nunca juravam, porque Jesus Chris mas Crorriwellnão foi obedecido nem pelos
to o prohibira: não queriam pagar dízimos, qpakers, nem pelos seus inimigos; aquel
porque tinham por um crime contribuir les continuaram a fazer assembléias, e es
para a conservação de ministros de uma tes a tractal-os com rigor, que todavia nao
igreja corrompida, bem que não estorva desalentou o seu zelo, nem suspendeu seus
vam que lh’os levassem, tendo para si que progressos, de tal sorte que passados dez
QUA 799
annos depois das primeiras producçõcs de da sua seita, mas as suas obras estavam
Fox (cm 1659), os quakcrs tiveram uma coalhad«as de furor, c de amargura, cheias
assembléia ou synodo geral no condado de de injurias, e até de blasphemias: cllcs
Bedfort, em que se acharam deputados de queriam que tudo dobrasse ao seu senti
todas as partes de Inglaterra. mento. Penn c Barclay nào pretendiam su
Os quakcrs foram traclados muito rigo jeitar ninguem, e unicamente recobrar os
rosamente depois da morte de Cromwell, direitos da consciência c da liberdade, di
quando os inglezes tornaram a chamar reitos a seu parecer, invioláveis em Ingla
Carlos ii, com quem os malquislaram, pin terra 1
tando-os como inimigos da Igreja, do Es Heprcsentaram os quakcrs como uma
tado. e d’el-rei. Prohihiram-so as suas as sociedade que só aspirava a restabelecer o
sembléias, c o parlamento determinou que Christianismo primitivo, c a formar de to
prestassem juramento de fidelidade a el- dos os homens uma familia religiosa, c que.
rei, sob pena dc serem banidos: porém nào nào queria nem dominar no estado, nem
se abstiveram d’aquellas, c constantcmonlc violentar ninguém a que pensasse como
repugnaram satisfazer a este. elles. Barclay publicou um CathecLvno, ou
Os" inimigos dos quakcrs, authorisados ConfissCio da fé, que tinha por base os prin
pelas leis, exercitaram sobre elles rigo cipies fuudamentaes do protestantismo: 2
res incríveis; os quakcrs nào oppozeram a final mente compuz theses theologicas, c o
seus inimigos mais que a paciência, c uma quakcrismo, que na sua origem nào fòra
pertinacia indomável, sem que nbnea os mais que um amontoado de visões e de
podessem dobrar á homenagem requerida, extravagancias, veio a ser um systema de
nem evitar suas assembléias. religião e de theologia, capaz de allucinar
Era Fox ura fanatico, melancholico e igno as mesmas pessoas esclarecidas e muito
rante, que a principio sómente seduzira a complicado para os theologos e protestan
baixa plebe, mais ignorante que ellc; mas tes.
coino no coração da maior parte dos ho Penn e Barclay não serviam ao qu«a-
mens existe a origem do fanatismo, Fox kerismo unicamente com seus cscriptos;
teve discipulos em diíTercntes estados, c o passaram a Hollanda e a Allemanha parí
quakcrismo insensivelmente se achou apa alli fazerem proselytos. Por esse tenqu
drinhado pelo entendimento e até pela eru (em 1681J deu Carlos n a Penn, e a seus
dição. O porte dos quakers foi cnlào mais herdeiros de propriedade, a provincia da
circumspecto: já nào ensinavam nas pra America, que esta «ao oeste do rio Warc,
ças publicas, nào pregavam nas tabernas, chamada, emqnanto era dos hollandezes,
nem entravam nos templos como loucos, a Novos Paizcs Baixos: esta concessão foi
insultarem os ministros, c perturbarem os feita cm prêmio dos serviços que fizera o
divinos officios. Finalmente, homens sábios, vice-almirante Penn, e de muitas sommas
taes como Guilherme Penn, Jorge Kcit, e que a coroa lhe devia ainda quando clle
Roberto Barclay entraram na sua seita, e morreu. El-rei mudou o nome d’este paiz
cila tomou entào nova fórma. em Pcnsylvania para honrar M. Penn c
Fox se afadigou muito com estas novida seus herdeiros, que declarou unicos pro
des, mas Penn e Barclay vieram a ser com prietarios e governadores da mesma.
cíTeito os cabeças da seita. Penn passou à America para dar leis ao
seu novo estado, cujas constituições funda-
mentaes estão em vinte c quatro artigos,
DO QUAKERISMO DEPOIS QUE PENN E BARCLAY dos quaes é este o primeiro: «Em nome
O ABRAÇARAM 1 dc Deus, pae d«as luzes e dos espíritos, au-
thor dos objectos de todo o conhecimento
divino, de toda a fé, c de todo o culto: De
Achavam-se em Penn, c Barclay com o claro e estabeleço por mim c pelos meus,
fanatismo, proprio para fazer «abraçar esta como primeira lei fundamental do governo
seita, grande erudiçào, entendimento, me d’este paiz, que toda a pessoa que nelle
thodo, e idéias elevadas: empregadas, pois, vivo, ou quizer estabelecer-se, gosará de
todas estas vantagens em favor do quake-
rismo, tomou clle outra figura. 1 Defesas das antigas, e ju stas liberda
Os quakers tinham cscripto em defesa des do povo, etc. Em ingleé.
5 Cathecismo, ou Confissão do Fé, orde
i Jorge Keit, excellente philosopho, e bom nado, e approvado na assembléia geral dos
theologo, largou a seita dos qualcers: por pitriarchas, c apostolos, debaixo do poder
tanto nâo faltaremos mais d'elle. do w sm o Jesus Christo. Em inglez.
*
800
plena liberdade para servir a Deus da ma SYSTEMA THEOLOGICO DOS QUAKERS
neira que em sua consciência julgar lhe é
mais agradavel, e emquanto aquella pessoa
nào mudar em licença esta liberdade chris- A soberana felicidade do homem consis
tã, e d’ella nào abusar em prejuízo d’ou- te no verdadeiro conhecimento de Deus, c
trem, fazendo, por exemplo, discursos inde de Jesus Christo, i
centes e profanos, faltando com desprõso Ninguem conhece o Pae, senão o Filho,
de Deus, de Jesus Christo, da Escriptura c aquellc a quem o Filho o revelou. A re
Sagrada, e da religião, ou commetiendo velação do Filho é no Espirito, c pelo Es
algum mal moral, ou fazendo injuria aos pirito. 2
demais, será protegida pelo magistrado ci Portanto o testimunho do Espirito é o
vil, e conservada na posse da sobredila li unico meio de adquirir o verdadeiro co
berdade christã.» nhecimento de Deus, que por ello se fez
Grande numero do quakers passaram a conhecer aos patriarchas, aos prophetas, c
Pcnsylvania para escapar aos rigores que aos apostolos.
sobre elles sc exerciam cm Inglaterra até Estas revelações de Deus pelo Espirito,
á morte de Carlos u. ou se façain por vozes externas, por appa-
O duque de York, que lhe succcdcu, rições, ou sonhos, ou por manifestações, e
tomando o nome de Jacobo n, era affeiçoa- illuminações interiores, são o objecto for
do á igreja romana, e formou o projecto mal da possa fé.
de recuperar a religião catholica em In Estas revelações internas nunca podem
glaterra, para cujo eíTeito promettia o li ser oppostas ao testimunho externo da Es
vre exercício de todas as religiões; e até criptura, nem á sà c recta razão; porque
assignalou uma estimação particular para esta revelação divina, ou illuminação in
com os quakers. Penn, que era o seu terna, é evidente e clara por si miesma, e-
mais intimo valido, se aproveitou de seu o entendimento a cila se accommoda tão
valimento, principalmente em favor dos necessariamente como aos primeiros prin
quakers, c para lhes dar entrada nos car cípios da razão: portanto, pois, não deve
gos e dignidades, obteve um edito que an- mos submetter ao exame da razão as reve
nullava outro em que sc mandava prestar lações interiores do Espirito Sancto.
o juramento aos que á elles aspiravam. D’estas sanctas revelações do espirito de
Nào dissimulava el-rei sua aíTeição pela Deus aos homens sanctos, procederam as
religião catholica, e não se duvidou que a Escripturas veridicas que contcem em pri
dispensa do juramento de fidelidade tives meiro logar uma relação fiel das acções do
se o alvo em restabelecer os catholicos nos povo de Deus em muitos séculos, como
cargos c dignidades. Os bispos queixaram- tambem muitas economias particulares da
se; el-rei so lhes respondia depondo-os, e Providencia, que as acompanhavam; em
aprisionando-os; o povo não hesitou mais segundo, uma relação prophetica de mui
sobre seus desígnios: alvoroçaram-se todas tas cousas, das quáes umas já passaram, c
as seitas com este projecto, sem exceptuar outras ainda hão de acontecer; em tercei
os mesmos quakers, que ainda receavam ro, uma ampla e completa relação dos.prin-
inais os catholicos do que os anglicanos: cipaes dogmas da doutrina de Christo, pré-
tudo se amotinou contra Jacobo n. Gui gada e representada em muitas e excellen
lherme, principe de Orange, subiu ao thro tes declarações, exhortações e sentenças,
no, que aquellc desamparou na chegada que foram ditas e escriptas por impulso
d’este a Inglaterra. No governo de Gui do Espirito Sancto em differentes tempos
lherme in fez o parlamento uma lei, pela a algumas igrejas e a seus pastores, se
qual concedeu o exercício de todas as re gundo as occasiões o pediam. Mas com
ligiões, excepto a catholica, e a sociniana. tudo isso não sendo as Escripturas mais
Desde este tempo gosam os quakers da que a declaração da origem, e não a ori
tolerância em Inglaterra, e vivem prote gem mesma, não devem em tudo ser esti
gidos pelas leis, e pelo estado; mas co madas como o fundamento principal de to
mo não foi abolida a- lei do juramento, e da a verdade e de todo o bonhccimento,
os quakers constantemente recusam pres- nem como a primeira regra da fé e dos
tal-o, sempre estão expostos a inquietações, costumes: bem que podem olhar-se como
c aos maus tractamentos dos magistrados uma segunda regra, subordinada ao Espi
ou tambem dos collectores dos dízimos, rito, do qual tiram a excellenda e a ccrte-
cujas concussões quasi sempre ficam im-
punidas. t Joan. 17, 3.
2 Math. 18, v. 27:
801
za que teem; pois que cilas dão verdadeiro seja no intimo do coração, é cada unt dos
c fiel lestiraunho da sua primeira origem. verdadeiros ministros do Evangelho, orde
Porque como nós só conhecemos a cer nado, disposto c assistido na obra. do mi
teza das mesmas pelo testiinunho inte nisterio; o por sua direcção, impulso e at-
rior do Espirito, e cilas testimunham tam tracçào, deve,cada um dos evangelistas e
bém ser o Espirito o guia por quem os pastores ehristàos, ser conduzido e com-
sanctos são conduzidos cm toda a verdade; mandado nas suas fadigas e ministérios
razão porque, segundo as Escripturas, o evangélicos, quanto aos lugares onde, quan
Espirito é o primeiro e principal condu to ás pessoas a quem, e quanto ao tempo
ctor: e com oção recebemos nem crémos em que deve servir: demais, aquclles que
nas Escripturas senão porque ellas proce receberam esta authoridade, podem e de
dem do Espirito, também por consequência vem pregar o Evangelho, bem que não te
é o Espirito mais originario, e principal nham cominissão humana, nem litteratura;
mente a regra. Toda a posteridade de Adão da mesma sorte que os destituídos da au
cahiu, e foi privada d’esla luz interior do thoridade d'cstc divino dom, posto que se
Espirito Saneio. Deus por sua infinita ca jam sábios, c aulhorisados pelas conunis-
ridade nos deu seu unico Filho, para que sões das igrejas e dos homens, só devem
fosse salvo qualquer que n’elle cresse: este reputar-se impostores e enganadores, e não
Filho illumina a todo o homem que vem a verdadeiros ministros do Evangelho. Todo
este mundo, ensina toda a justiça, tempe o verdadeiro culto e todo o serviço agra-
rança. c piedade; e esta luz aclara o cami davel a Deus, ó oíTerecido pelo seu Espiri
nho a todos, porque a redempção não é to, que move interiormente, que não se li
menos universal, que o peccaup original: mita, nem aos logarc*. nem aos tempos,,
portanto ha cm todos os homens uma luz nem ás pessoas; porquê bem que devamos
evangélica, e uma graça saudavel: e pela scrvil-o de continuo em estarmos sempre
mesma razão nós não* somos justificados penetrados de respeito na sua presença,
nem pelas proprias obras, produzidas por comtudo, quanto á significação exterior cn
nossa vontade, nem ainda pelas obras boas nossas súpplichs, louvores e pregações, nà
consideradas em si mesmas, mas sómente o havemos de fazer onde, c quando qu
por Jesus Christo. zermos, mas onde, e quando formos coi
O corpo do peecado c da morte foi tira
duzidos pelo impulso e inspirações occui
do iTaquelles em que foi inteiramente pro tas de seu Espirito cm nossos corações, as
duzida esta sancta e immaculada conce quacs ouve e acccita Deus, que nunca dei
pção, e seus corações de tal maneira vie xa de incitar-nos a ellas, quando convém,
ram a unir-se e*a sujeitar-se ã verdade, do que sómente elle c o juiz proprio.
que não obedecem a suggestões, nem tenta Qualquer outro culto, pois, ou sejam
ções algumas do demonio, c são livres do louvores, orações, ou pregações que o ho
peccado actual, da transgressão da lei de mem lhe ronde de propria vontade, e a
Deus, e quanto a isto são perfeitos; mas seu commodo, c que póde começar e aca
comtudo esta perfeição sempre ãdmitte um bar á sua descripçuo, ou seja por fôrmas
'augmento, e a possibilidade de pcccar exis determinadas como as liturgias, ou im
te de algum modo, quando o entendimento pensadamente concebidas pela força c fa
não está attento a Deus com grande des culdade natural do entendimento, não são
velo. mais que superstições, uma devoção vo
Bem que este dom de Deus, e graça in luntaria, c uma idolatria abominável dian
terior baste para operar a salvaçao, com te de Deus; deve, pois, rejeitar-se, rene
tudo póde tornar-se, e se torna cm conde- gar-se, e d’clla nos devemos separar.
mnação n’aquelles que lhe resistem; além Como não ba mais que um Deus e uma
de qúe, depois que ella obrou alguma cou- fé, tainbcm não ba mais que um baptismo,
sa em seus corações para os purificar, e não aquelle que nos lava as impurezas do
fazer sanctos, elles todavia podem descahir corpo* mas o lestimunho d’uma boa con
d’cste estado por desobediência; porém pó sciência diante de Deus pela resurreição
de adquirir-se iTesta vida tal grau de au de Jesus Christo; e esse baptismo tem al-
gmento, e tal firmeza na verdade, quo não uma cousa de puro e ^espiritual, a sa-
seja possível descahir de todo pola aposta er: o baptismo do espirito e de fogo, pelo
sia. qual somos, sepultados com elle, a fim de
Como por este dom, e luz de Deus rece que lavados e púrificados de nossas culpas,
bemos e nos foi revelado todo o conheci caminhemos em nova vida, de cujo baptis
mento nas cousas espirituaes, por elle da mo foi a figura de S. João, que se realisou
mesma sorte, manifestado e reçehidp que por algum tempo, c não foi ordenado para
802 QUA
sempre. Quanto ao dos meninos é uma rupção, para entreter a sua vaidade c o
pura tradição humana, de que não se en seu orgulho, e a pompa vã d’este século,
contra nem preceito nem praclica em toda da mesma sorte que os jogos inúteis, as
a Escriptura. recreações frivolas, os divertimentos, os
A cominunhào do corpo e do sangue de jogos de cartas, que sómentc servem para
Christo é interior e espiritual, c n’isto con cuusuinir inutilmente o precioso tempo, e
siste a participação da carne c do sangue afastar a alma da presença de Deus em
do mesmo Senhor, pelos quaes o homem in seu coração, de seu sancto temor, c do es
terior se nutre quotidianamente nos cora pirito evangélico, que deve ter os christàos
ções d’aquellcs cm que ellc habita, de que em fervor, e que os conduz á sociedade, e
é figura a repartição que elle fez do pão ao sincero temor de Deus.
com seus discipulos, do qual se serviam D’este principio conclue Barclay:
algumas vezes na igreja os que tinham t.° Que não é permiltido dar* aos ho
recebido a substancia, por conlemporisar mens titulos lisongeiros, como sanctidade,
com os fracos; da mesma sorte, absterem- magestade, eminência, cxcellencia, gran
se do sangue e das carnes suflocadas, la deza, senhoria, etc., nem servirem-se dos
varem os pés uns aos outros, e ungirem discursos communiente chamados cumpri-
com oleo os enfermos, são cousas ordena mentos. Os titulos não fazem parte algu
das com igual authoridade e solemnidade ma da obediência devida aos magistrados
que as primeiras; mas como não eram ou aos imperadores; na Escriptura não
mais que sombras d’outros melhores, ces achamos que similhantes titulos se dessem
sam para com aquelles que d’ellas obtive- aos reis, aos principes e aos nobres; aquel
. ram a substancia. les aos quaes se conferem, d’ordinario não
Por quanto Deus se apropriou o dominio leem sobre que elles assentem, e nenhu
e o poder sobre as consciências como o ma authoridade póde obrigar o christão a
unico que as pôde instruir e governar bem, que minta.
assim não é permiltido a ninguem seja 2. ° Que não é permiltido a um christão,
qual fòr sua authoridade no governo d’cs- pôr-se de joelhos, prostrar-se diante d’al-
te mundo, violentar as consciências alheias, gum homem, dobrar o corpo, ou descobrir
e portanto as mortes, desterros, proscri- a cabeça diante d’ellc.
pções, prisões, e quaesquer outras cousas 3. ° Que o christão não deve usar de su-
de similhante natureza, com que os ho perfluidades em seus vestidos, como intro
mens são attribulados só pelo exercício de duzidas tão sómente pela ostentação e pela
suas consciências, ou pela diversidade de vaidade.
seus cultos, procedem do espirito do mata 4. ° Que nãq deve servir-se de jogos, pas
dor Caim; e são contrarias ã verdade toda satempos, divertimentos, ou comédias, a
a vez que não se fizer mal nem ã vida, nem titulo de recreações, como cousas alheias
á fazenda do proximo, com pretexto de do silencio, compostura, e sobriedade chris-
consciência, c que nada se commetta per tã, porque os risos, divertimentos, jogds, c
nicioso á sociedade, e compatível com ella zombarias, facccias e vaniloquios, não são.
e com o commercio; no qual caso ha uma nem alegrias innocentes, nem liberdades
lei para castigar o delinquente, c a justiça christãs.
deve fazer-sc a todos sem excepção de pes 5. ° Que o christão não deve absoluta-
soa. mente jurar aos Sanctos Evangelhos, não
Como toda a religião tende principal só por alguma utilidade, e nos discursos
mente a retirar o homem do espirito e da ordinarios, o que também era prohibido na
vã conservação d’estc século, a introduzil-o lei de Moysés, mas nem ainda cm juizo,
na coramunbão interior com Deus, diante diante dos magistrados.
de quem, se sempre estivermos penetrados 6. ° Que não é permiltido aos christãos
de respeito, seremos julgados felizes; por resistirem ao mal, fazerem guerra, ou com
tanto, aquelles que se avisinham a este baterem em nenhum caso: primeiramente,
sancto temor, devem rejeitar e desistir de porque Jesus Christo nos manda amar os
todos esses habitos e costumes vãos, quer inimigos.
consistam em palavras, quer em acções, Em segundo losar, porque S. Paulo nos
taes como o de tirar o chapéo a um ho diz que as armas aa nossa guerra nào são
mem, ou descobrir a cabeça, dobrar.o joe carnaes, mas espirituaes. i
lho, e outras inílexões de corpo nas sauda Em terceiro logar, porque S. Thiago af
ções com essas loucas e supersticiosas for firma que os combates e dissensões pro-
malidades que as acompanham, cousas que
o homem excogitou no seu estado de cor i 2 Cor. 10, 4.
QUA 803
veem dos appetitos: e como os que são de Pedro c o conselho do anjo, nos incli
verdadeiramente cliristàos teem sacrifica narmos sómente diante de Deus, e não
do a carne com seus aíTectos c appetites, diante de nossos con-servos; e de não dar
conseguintemente não pedem entregar-se a ninguem o titulo de Senhor e de mestre
a ellcs, fazendo a guerra. fúra d’algumas relações particulares, se
Em quarto, porque os prophetas Isaias gundo o preceito de Jesus Christo; se e s - "
e Micheas prophetisaram em termos ex tas cousas, digo eu, nào sào vituperaveis,
pressos que, na montanha da casa do Eter logo nào o somos nós em obrar assim.
no, Christo havia de julgar as nações, c Se ser vão c extravagante em vestir,
que das espadas se forjariam as rellías dos usar de posturas na cara, encrespar e fri
arados. zar os cabellos, estar coberto (Touro, pra
Em quinto, porque o níesmo Senhor diz ta, pedras preciosas, fitas e rendas; se an
não ser o seu reino d’este mundo, e que dar com vestidos immodestos, se isto são
portanto não guerreem os seus servos: em os ornamentos proprios dos christàos, e
consequência do que, os que combatem se isto é ser humilde, docil, e mortificado,
nào sao nem seus discipulos, nem seus então na verdade são os nossos adversa
servos. 1 rios bons christàos, e nós uns orgulhosos,
Em sexto, porque o apostolo exorta aos singulares, e phantasticos, cm nos conten
cliristãos para que nào se defendam, nem tarmos com o que pede a necessidade e o
sequer se vinguem, tomando mal por mal; commodo, e em condemnarmos o que passa
mas que deponham a ira, porque a vin d’isto, como supérfluo, mas não d’outra
gança pertence ao Senhor: «não vos dei sorte.
xeis* vencer do mal, mas antes vencei o Se practicar os jogos, os passatempos e
mal pelo bem; se o vosso inimigo tiver comédias; se jogar cartas e dados; se can
fome, dai-lhe de comer; se tiver séde, dai- tar, dançar, e usar d’inslrumentos musi
lhe de beber.» 2 cos; se frequentar as platéias dos theatros
' Em sétimo e ultimo logar, porque Je e comédias; se mentir, contrafazer, ou sup
sus Christo convida seus filhos a levarem por c dissimular, é estar sempre cm te
a sua cruz, c nào a crucificarem e mata mor; se isto é obrar tudo em honra c glo
rem os outros; ensina-lhes a paciência e ria de Deus, passar nossos dias em temor
não a vingança, a lhaneza c não os fraudu e usar d’estc mundo como se d’elle nã
lentos estratagemas da guerra. usássemos; se isto não é conformarmos-nd
Tal é a ideia que Barclay nos dá da theo com os nossos appetites, então os noss<
logia c moral dos quakers, na sua Apolo adversarios sào bons christàos, modesto;
gia, a qual termina fazendo um parallelo mortificados, que se renunciam a si pro
cTestes com os demais christàos. prios, e nós justamente vituperaveis em os
Se dar e receber titulos de lisonja, de condemnar; mas não d’outra sorte.
que não se servem por causa das virtudes Se profanar o sancto nome de Deus, exi
inherentes ás pessoas, mas que pela maior gir o juramento por qualquer motivo, to
parte são usados por homens impios para mar a Deus por testimunha em cousas de
com outros que com elles se parecejn; se tal natureza, em que nenhum rei da ter
inclinar, arrastar o.p é com reverencia, e ra se creria honrado em ser chamado a
abater-se até ao chão um homem diante testimunho, sào deveres d'um homem chris-
d’outro; se dizerem um ao outro sou seu tão, confesso que nossos adversarios são
humilde criado, e isto o mais frequente excellentes christàos, e que nós faltamos
mente, sem desígnio algum real de serviço; ao que devemos; mas se o contrario é ver
se tal c a honra que vem de Deus, e não dade, a nossa obediência a Deus n’isso
a que vem do mundo, então com verdade mesmo necessariamente nos ha de mere
poderá dizer-se de nossos adversarios que cer o seu agrado.
sào ficis, e de nós que somos condemna Se o vingarmos-nos nós mesmos, ou tor
to s como orgulhosos e pertinazes em re nar injuria por injuria; se o combater por
cusarmos tudo isto. causas caducas; ir à guerra contra quem
Mas se recusarmos como Mardochée fazer nunca vimos, e com quem nunca tivemos
reverencias ao orgulhoso Aman, e como desavença nem contracto, estando demais
Eliseu dar titulos lisongeiros aos homens d’isto inteiramente ignorantes da causa da
cora receio do que por isto nos re^relienda uerra, e sómente porque os magistrados
o nosso Creador, e se, seguindo o exemplo as nações fomentam queixas uns contra
os outros, cujos motivos pela maior parte
1 Joan. 18, 36. ignoram os soldados que combalem, como
2 Rom. 12, 19. também por qual das partes está a razão
804 QUA
ou a injustiça; e sem embargo de tudo isto, ella seguia esta práctica com algumas igre
entrarem em furor até o ponto de destruir jas que lhe eram contiguas; todo o resto
e saquear tudo para que este ou aquellc da Igreja, diz Eusebio, tinha fixado no do
culto seja recebido ou abolido; se fazer mingo a soleinnidade da resurreição.
tacs cousas e muitas outras d’esta nature Houve diversos conci lios sobre este as
za é cumprir a lei de Christo, então, sem sumpto, e se o havemos de julgar pelo de
dúvida, os nossos adversarios são verda Epheso, o mesmo Victor foi o que escre
deiros christâos, e nós não mais que mise veu aos principaes bispos, pedindo-lhes
ráveis hereges, que até soffremos ser sa que congregassem os das suas provincias;
queados, présos, exterminados, batidos, e todos estes concilios concordaram em não
mal tractados sem resistência alguma, pon celebrar a resurreição fóra do domingo.
do nossa confiança unicamente cm Deus, Impugnou esta resolução universal Po
a fim de que elle nos defenda c nos condu lycrates, bispo d’Epheso,*que era um dos
za ao seu reino pelo caminho da cruz. mais consideráveis que então havia na
A apologia de Barclay, que sem contra- Igreja, e chefe de todos os da Asia. Escre
dicção é a melhor obra que se fez a favor veu-lhe Victor, rogando-lhe que juntasse
dos quakers, foi impugnada {por diversos os bispos da sua provincia, ameaçaudo-o
escriptos: l.° por Joào Browin, theologo até de o separar da sua communhão, se
presbyterano da Escócia, em uma obra in elle não accedesse ao sentimento dos mais,
titulada o Quaker ismo, e o verdadeiro ca e com effcito Polycrates congregou seus
minho do Paganismo; 2.° por Nicolau Ar irmãos em grande numero, na cidade de
naldo, professor em theologia em Franker, Epheso; mas todos seguiram o seu parecer,
na Frisa, Exercitation conive les theses e concluiram por não dever mudar-se a
theologiques de Barclay; 4.° por João Jorge tradição que haviam recebido de seus san
Bajer, theologo lutherano, doutor e profes ctos predecessores.
sor em Iene, n’uma obra intitulada: L o ri Victor condemnnu a opposição que os
gine de la veritable et salulaire connaissan- asiaticos fizeram ao restante da Igreja,
ce de Dieu; 4.° por Loltusio, no seu Anti- passando a communicar-lhes a excommu-
Barclay Allemand; 5.° por L. Ant. Reiser, nhão, e segundo muitos authores, a ex-
o seu Anti-Barcliuyus, etc. commungal-os com effeito; mas sem em
QUARTODECIMA.NOS, OU QUÀTUERDECIMANOS bargo d’isso os asiaticos insistiram na sua
-Assim foram appellidados os que insis- práctica, que todavia largaram, mas que foi
am em que se devia celebrar a Paschoa seguida pelas igrejas da Syria e da Meso
.os i4 da lua de março. potamia.
Parte dos fieis cria que se devia aca Feito Constantino senhor de todo o Orien
bar o jejum da Paschoa aos 14 da lua, fosse te era 323, ouviu com desprazer esta di
qual fosse o dia da semana em que elle versidade de usos sobre a festa da Paschoa,
cahisse, e se fizesse n’elle a festa da re- que verdadeiramente não rompia a com
surreição do Salvador; isto é o que haviam munhão, mas comtudo turbava a alegria
practicado S. Joào e S. Philippe, apostolos, d’esta grande solemu idade, e era como uma
S. Policarpo, S. Meliton, e outros grandes nódoa na belleza da Igreja, e por esta razão
homens da Asia menor; e portanto estava encarregou ao grande Osio do cuidado de
particularmente aferrada á mesma prácti- pacificar a Syria.
ca toda esta provincia. Outros fieis susten Osio não o pôde terminar, como lambem
tavam nào dever finalisar-se o jejum nem a heresia de Ario; portanto foi necessario
solemnisar a resurreição, senão no do congregar o concilio de Nicea para pôr
mingo; e esta práctica, que alíim prevale fim a um a e outra disputa, como effecti va-
ceu, era também fundada na tradição dos raente succedeu, porque o concilio orde
apostolos S. Pedro e S. Paulo, não porque nou que toda a igreja celebrasse a festa
fizessem alguma lei acerca d’isto, aiz So da Paschoa no mesmo dia, segundo o cos
crates, nem porque se possa d’elles referir tume de Roma, do Egypto, e da maior par
algum escripto; mas o seu exemplo era te dos outros paizes. Toda^ a Igreja se uni-
uma lei poderosíssima para seus discipu formisou com esta definição, porque os sy
los. A differente práctica que se seguia em ri os a elía acquiesceram, e o concilio de
tal materia, durou muito tempo sem des- Antiochia, confirmando o de Nicea, pelo
socegar a Igreja; occupando Victor a ca seu primeiro canón, depôz os ecclesiasti
deira de S. Pedro, foi agitado este negocio cos, e excommungou os seculares que ce-.
com muito mais calor do que antes tinha lébrassem a Paschoa em particular com os
sido. A Asia menor, coipo ja disse, obser judeus.
vava o décimo quarto dia da lua, mas só Reunida, pois, toda a Igreja na.practica
RAC 805
<le celebrar a Paschoa ao domingo, os par ma d’uma geral reputação de sanctidade,
ticulares que recusaram submelter-se a teve apologistas, clle e o quietismo. Ma
esta authoridade süprema, foram tidos por dame Guyon, igualmente celebre, foi de
hereges, e denominados quartodecimanos, fendida por M. de Fcnélon. Sobre o quie
isto é, observantes do quarto decimo dia tismo podem vér-se— Rclation du quietis-
de lua, no qual queriam se fizosse a Pas me. Recueil de differentes piéces concernant
choa. Por esta razào Sancto Epiphanio e le quietisme. Instruction de M. Bossuet sur
Thcodorcto poem no numero de hereges les états d'oraison. LHisloirc abrègé du
os quartodecimanos, c o sétimo canon do quietisme, que está no principio do sexto
primeiro concilio de Constantinopla os con volume das obras do mesmo author.
ta entre aquelles que eram recebidos pela Toda esta controvérsia foi terminada por
abjuraçào e pela unção.,1 uma decisão da saneia sé, á qual M. Féné
QüiETisMo—Esta palavra exprime o es lon se submetteu com uma simplicidade,
tado de repouso ou de impossibilidade a rjue provava igualmcnte a pureza das suas
que presumem chegar uma especie de mys intenções, a candura do seu coração, e a
ticos contemplativos, unindo-se a Deus pela elevação da sua alma.
meditação ou pela oração mental. raciona l ism o — Desde o dia cm que, ávi
Nós d’alguma sorte nos unimos aos obje do de conhecimentos, o homem comeu do
ctos pelo pensamento, e um objecto que frueto da arvore da sciencia do bem e do
leva todas as nossas attenções, parece iden mal, quiz julgar tudo pela razão. Quiz me
tificar-se comnosco. dir pela sua intelligencia as cousas divi
Olharam pois a meditação ou a contem nas. D’ahi a desordem das idéias religio
plação das perfeições divinas como um sas de certos povos, tanto no antigo tempo
meio de se unirem a Deus; forcejaram como na nossa época. A historia de todos
para se despegar de todos os objectos a os erros humanos é a historia da razão,
fim de se entregarem todos sem distracção que quiz insurgir-se contra a verdade re
á contemplação das perfeições divinas. Ex velada. Entretanto o nome de racionalis-
cogitaram methodos, e créram que a al mo foi reservado a estas escolas, que teem
ma podia contemplar sem distracção a di systematica e exclusivamente posto a ra-
vina essencia, e unir-se a ella iníimamen- zao por base de todas as crenças.
te; que uma vida tão perfeita da essencia Poderiamos distinguir tres épocas prin
divina era junta a um amor o mais arden cipaes, em que o racionalismo assim cora
te, que as faculdades da alma eram absor prehendido, dominou: 1.‘ Durante o reina
vidas pela sua união com Deus, e que ella do da philosophia grejia, Pythagoras pode
já não recebia mais alguma impressão dos ría servir de ponto de partida. O estudo
objectos terrestres: este estado da alma ó dos diversos systemas da philosophia ^ es
o que elles chamavam quietaçào ou quic- ta época pertence ao Diccionario da philo- '
tismo. sophia, que deverá expôr o que estes phi
São fáceis de colligir todôs os excessos losophos tinham da tradição c da sua sup-
a que o espirito humano póde chegar par posta razão.
tindo d’estes princípios, e que o quietismo A segunda época comprehende a escola
ha de tomar mil fôrmas diversas segundo d’Alexandria, que misturava o platonicis-
o caracter e as idéias d’aquelles que o ado- mo com o Christianismo. Foi esta escola
ptam; os gnosticos, carpocracianos, valen- que deu nascimento á multidão de seitas
tinianos, hesycastas, beguardos, illumina- gnosticas, que fizemos conhecer n’estc dic
dos, Molinos, Malabal, Guillot, madame cionario. 1
Guyon, M. de Fénélon são quietistas, mas A terceira época, a que póde tomar o
o seu quietismo é mui diverso. nome de racionalismo propriamente dito,
Molinos, que é um dos mais famigera é a do nosso tempo. No ultimo século ma-
dos, foi sacerdote hespanhol estabelecido nifestou-sc clle. debaixo do nome de philo-
em Roma pelo fim do decimo sétimo sécu suphismo; tinha por objecto atacar directa-
lo. Ensinou o quietismo no seu livro in mente o Christianismo, e destruil-o. Já fi
titulado a Direcção Espiritual, do qual se zemos conhecer esta especie de racionalis
condemnaram sessenta c oito proposições mo n’um grande numero d’artigos d’este
como hereticas e escandalosas. Molinos re- diccionario. Bergicr parece não ter tido
tractou-se, e foi condemnado a prisão per- por tarefa senão combatel-o. Ha mui pou-
• petua; como porém havia gosado em Ro-
i Vide Gnosticos, Valentiniano?, etc.. Vi
1 Veja-se Tcllemont, c. 3, pag. 102 e se de também Dic. de Théol. mor., t. % His
guintes. toria da Theologia.
806 RAC
cos artigos do seu diccionario cm que o mente indicar um excesso. A expericncia,
racionalismo philosophico do xvm scculo pois, a expericncia sensível e a ideia pura,
não esteja como causa. O racionalismo do tnes são, segundo creio, as duas bandeiras
nosso tempo fez-se christào para melhor distinctas, sob as quaes se póde collocar a
absorver o Christianismo. É sobretudo na maior parte das theorias laboriosamente
Allemanha que ellc nasceu e trasbordou engendradas para exprimir o principio dos
para todos os outros paizes. Já lhe consa nossos conhecimentos, a propria natureza
gramos grande numero d’artigos. da alma e os direitos da razão.
A causa do racionalismo procede d'esta Uns parecem ter attribuido tudo á expe
maxima orgulhosa, que o homem não deve rienda, outros á ideia. É preciso prestar
adm ittir senão o rjuc comprehende; maxima muita attençào a estas disposições exclusi
desmentida pela práctica quotidiana, por vas e contrarias dos homens que foram
que o homem tem o sentimento da sua chamados sábios no seio da humanidade.
existência e da sua vida, sem poder com- «Espíritos exclusivos e muito descon
prehendel-as. Ravignan deu uma conferên fiados, talvez, a respeito das puras e altas
cia, que combate o principio fundamental especulações do pensamento, apoderaram-
do racionalismo, c nós vamos extrahir se da materia e dos sentidos, e ahi se esta
d’ella as principaes passagens. beleceram como na sede da propria reali
«Pergunta cada um a si com admiração, dade, creram poder ahi beber todos os
diz este author, como tem podido ser que conhecimentos, e as idéias de todas as
em todo o curso dos séculos viesse tanta cousas. Adoptaram o cmpyrismo, do qual
incerteza c incoherencia travar c obseure- se seguiram immensos abusos.»
ccr as investigações'laboriosas em que a Ravignan traça a historia do empyrismo
alma se estudava a si mesma. A historia ou da philosophia experimental no Orien
da philosophia c em grande parte a histo te, na Grécia, na Inglaterra e na França.
ria dos trabalhos emprehendidos pelo es Expõe tanibcm a historia do idealismo, e
pirito humano para chegar a conhecer-se. recorda que os mais illustres representan
São também os archivos não somente os tes n’esta philosophia foram, com os con-
mais curiosos d'csludar, mas tambem os tcmplatjvos da India, Pythagoras, os meta-
mais instruetivos para quem os souber physicos d’Elba, e Platão, e desde o Chris
aproveitar. Quando se querem lèr com tianismo, Sancto Agostinho, Sancto Ansel
maduroza, e resumir attentamente os da mo, Descartes, Mallebranche, Bossuet, Fé-
dos philosophicos sobre a natureza da al nélon, Leibnitz. A escola ailemã veio de
ma, sobre o poder e os direitos da razão, pois, e o orador mostra que ella se preci
ve-sc então que estão em presença um do pitou em todos os abusos do idealismo
outro dous systemas principaes. mais exaggerado.
«Uns, feridos das impressões exteriores «Homens, diz elle,.a quem não faltavam
e sensíveis que acolhem o homem no ber certamente nem força, nem grande intelli-
ço, que o cercam e o acompanham em to gencia, separaram-se um dia de toda a li-
das as phases da sua existência mortal; fe ào da tradição. Despresaram os trabalhos
ridos d’estas relações sustentadas sem ces os verdadeiros sábios e todos os dados do
sar, exteriormente, pela acção dos orgãos senso commum: embriagaram-sc com os
e dos sentidos; uns, digo, teem crido que seus proprios pensamentos. O orgulho do
o fundamento dos nossos conhecimentos, espirito e as suas iIlusões, que elles dissi
o poder real da alma, e os direitos da ra mulavam a si mesmos, arrastaram-os mui
zão devem ser sobretudo baseados na ex to longe, muito longe do seu alvo. Então
periência. É a isto que se chama empyris- tudo vâcillou ás suas vistas, tudo pareceu
mo; e por esta palavra não quero sómente movediço diante de seus olhos; a sua vista
exprimir aqui o abuso, mas tambem o uso obscureceu-se. Não viram nada de estável,
da observação c da sensibilidade, conside nem de fixo: Não reconheceram bases,
radas, segundo alguns, como o proprio nem encontraram apoios. A fé era a terra
principio dos nossos conhecimentos. de refugio e de salvação. Estes homens já
«O outro systema, d’um espiritualismo não tinham fé. A pedra angular, o Christo
mais nobre e mais elevado, colloca a na permanente na Igreja* tinha-se transfor
tureza, da alma, os seus direitos e o seu mado para elles em vago phenomeno, em
poder primario na própria ideia puramen vã evolução da ideia, nada mais. Mas en
te intcllectual. Assim, por rnieio da ideia tão a vida verdadeira fugju d’estas almas,
pura, a alma concebe e desenvolve a ver que não tiveram por derradeira consola
dade pela sua propria energia e ^alor. E o ção e por ultima esperança senão um me
idealismo. N ’este ponto não quero tão so donho desespero em uma negação univer-
RAC 807
sal c absoluta. É preciso, pois, que o ho zer, por outros termos c cin termos muito
mem lique com coragem no seu bom sen simples, a ideia e a experiencia; e porque?
so, e evite com coragem os extremos, res porque ha simultaneamente no homem es
peite as bases estabelecidas e rellexionc tas duas cousas, estas duas faculdades, es
muito tempo antes de se decidir. É preci tes dous princípios: a ideia e a experiên
so que reconheça os limites com os direi cia. E é o que eu quiz significar associan
tos e a verdadeira acçào da razão huma do assim estas duas palavras: penso c exis
na.» to: expressão, uma do mundo logico ou do
Ha, segundo o grande orador, tres fon pensamento, c outra do mundo experimen
tes de conhecimento: a ideia, a experiên tal e sensível. Eis-ahi, pois, sc nós quere
cia c a fé. mos concebel-o, o duplo elemento que con
Se não quizermos acceitar senão os di stituo primeiro, á nossa vista, a natureza
reitos da ideia pura, arriscamos-nos a ca- intellectual do homem e a força primaria
hir n’um golpho de abstracçõcs; quem qui- da razão; a ideia, a vista intellectual c pu
zer acceitar sómente a. experienda dos ra do verdadeiro, e a experiencia, ou o
sentidos, curva a dignidade da intelligcncia conhecimento que os sentidos nos dão dos
e do espirito sob o jugo dos sentidos e dos objectos exteriores e sensíveis. Á primeira
orgãos; quem quizer em todas as cousas das faculdades, á ideia, correspondem to
sómente a authoridade c a fé, direi com das estas noções geraes, espirituaes, que
franqueza, torna a authoridade e a fé im não podem vir-nos pelos sentidos, taes cu-
possíveis a razão. Geralmcnte os philoso mo as noções do sêr, do verdadeiro, do
phos suppriment o homem e o dividem bom, do justo, ás quaes se deve juntar o
violentamente. Sc se acceitassc o homem amor necessário da beatitude, da precisão
tal como elle é, com as suas faculdades; de proceder para um fim, para um alvo,
sc se acceitassc o homem com a sua vista para um fim que seja completo e ultimo.
intellectual e pura, com a sua força expe E ahi tendes o fundo natural da nossa in
rimental e sensível, com a sua intima e telligcncia, e o que se póde chamar os pri
invencível precisão do verdades divinas meiros direitos constituídos da razão...
e reveladas, então sc teria o homem todo, «Que succede, pois, e que tenho eu a
a verdadeira natureza da alma, as condi dizer ainda? Ah! a razão impaciente agi
ções e os verdadeiros direitos da razão. ta-se, procura c procura, caminha e cami
Mas não é isto o que sc faz: toma-se uma nha sempre. De repente a sua vista st
faculdade, uma parte, uma forca do ho obseurecc, o seu vigor pára. Vacilla como
mem, c ahi se colloca toda a razao e toda um homem embriagado. Debate-se em vão
a philosophia. no seio das espessas trevas. Que sc pas
«Um exemplo famoso vai esclarecer o sou? É isto o que, longe d'alcance, longe
que eu acabo de enunciar. Quando Des da vista intclligente do homem, além dos
cartes appareceu, quiz peneirar todas as limites naturaes da experiencia c da ideia,
profundezas da alma, sondar a natureza além de todas ãs leis da evidencia, além,
intima da razão, c j-ecomeçar methodica- muito além, se estendem ainda as immen
mente toda a cadeia dos nossos conheci sas regiões da verdade. Sim, além ha ain
mentos. Foi então que elle pronunciou o da o invisível, o incomprchensivel, o infi
dito, que depois se tornou tão celebre: Pen nito! e não podeis duvidar d’isso, porque,
so, por cànsequnicia existo. Quanto a mim, sabeis que Deus habita na luz inaccessi vel.
parece-me que Descartes teria podido tam E mesmo na ordem humana ha ainda, lon
bém dizer: Penso e existo, ou existo e pen ge de nós, fóra do alcance da nossa vista,
so, porque nós temos igualmente a con da nossa intelligeneia, tempos, logarcs, to
sciência do nosso pensamento e da nossa dos os factos do passado. Mas para nos
exislencia. Haveis de convir, seguudocrcio: prendermos ao conhecimento de Deus, pa
estas verdades são simultâneas; e eviden ra chegarmos a esse caracter ultimo que
tes em igual grau para a razão. É por uma eu vos assignalava no principio, depois das
só percepção da alma que conhecemos a primeiras noções tradicionaes sobre a di
nossa existência lambem como o nosso vindade, confessemol-o, nem a ideia, nem
pensamento. a experiencia, nem a intuição, nem o ra
«Por onde, e ó.ahi que eu quero chegar, ciocínio podem aqui servir-nos de nada,,
por onde podeis bem comprehender que,pa porque se tracta de sondar as profundezas
ra ter a noção verdadeira da alma, ás condi do infinito, do medir a eternidade? Qual ú
ções constitutivas da razão, é preciso unir o homem que então não deve tremer? Se
judiciosamente um com outro o elemento nhor! quem virá, pois, em nosso auxilio!
cmpyrico e o elemento idealista, quer di «Temos fé. A fé caminha sempre, não
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teme nad?, nào teme lançar-se nas regiões nar a subir aos princípios primarios, á pro
do infinito e do incomprehensivcl. Entcn- pria essência das cousas; ou dirigindo as
dei-o assim, eu vol-o peço. A fé^ gloriosa suas vistas sobre estes mundos visíveis, que
extensão da razão, traz-lhe o que cila não ella lhe descubra os phenomenos, o lhe pe
tem, dá-lhe o que não pódc perceber nem netre as leis; marca, no meio da torrente
altingir. E um dom do Senhor, um benefi dos factos, a alta economia do governo do
cio da graça divina. inundo, então sempre ao abrigo tutelar da
«Oh! sim, vós não comprehendestes a fé, o homem inlelligente é livre e verda-
dignidade d’esta fé, vós que pretendeis que deiramenlc grande, mede toda a extensão
cila quer sujeitar, suíTocar, restringir a ra da terra e dos céos, não conhece obstácu
zão. Nào crédes, talvez, vós que me cscu- los nem barreiras, certo como está do ca
taes n’estè momento; talvez, em uma das minhar atraz da palavra e da aulhoridade
vossas horas motejadoras, julgueis dignos divina. É assim, c c assim sómente que a
de lastima os que crêem. Mas, tende cui razão se eleva e engrandece, protegida con
dado; não acceitamos a vossa compaixão tra os seus proprios desvairamcnlos; é as
nem a vossa piedade. Crentes, c crentes sim que ella se eleva até ao mais alto grau
sinceros, temos a razão como vós; como da sciencia verdadeira: sim, ella conquis
vós, c com cila, caminhamos; c mais que tou toda a sua. dignidade pela obediência
vós talvez, imos até aos seus limites; ad- que presta a esta lei, e torna-se o mais no
mittimos quanto ella admitte, tudo o que bre e o ultimo esforço do genio do homem,
vós admittis, c mais ainda, permitti-mc que assim que, dando ás suas forças todo o seu
vol-o diga. Mas no ponto em que vos de desenvolvimento, respeita os íimites da sua
tendes, nós avançamos ainda; onde vos des- natureza, c mereceu unir-se á luz e á glo
alentaes em vão, nós proseguimos, vence ria divina.
dores pacificos; onde balbuciaes, nós afllr- «Eu disse tudo o que queria dizer. Pa
mamos; onde duvidaes, nós crémos; onde rece-me que nós temos, posto que mui re
enlanguideceis incertos e desgraçados, nós sumidamente, fixado certas noções suffi
triumphamos e reinamos felizes. Tal é a cientes sobre a nossa natureza inlelligente
fé, e eis-ahi como ella vem levantar a di e sobre os direitos da razão. Resumo-as
gnidade do homem pelos mysterios divinos cm poucas palavras. Tres estados, ou Ires
que revela. É verdade, a fé submette-vos especies de conhecimento e d’aífirmação:
a uma aulhoridade, á authoridade da pala a evidencia óu intuição, o raciocínio ou de-
vra divina, que se dignou um dia demons ducção, a fé. São estes tres aclos ou func-
trar-se á razão do homem, porque a razão ções*da alma, que correspondem a outras
tinha, em virtude dos dons do Senhor, o tantas vias ou meios' de chegar a uma af-
direito de exigir esta demoustração e esta firmação certa: a ideia, a experiencia, a
prova. Um dia, sobre esta terra abençoa authoridade. Fóra d’isto. não receio dizel-o,
da da Judeia, pelos milagres e lições do Ho não ha verdadeira philosophia, não ha ver
mem Deus, esta manifestação da authori dadeira noção do homem, não ha justiça
dade divina completou-se. Entendeu-a a feita á natureza intelligentc. Para'acabar,
razão, concebeu-a, c estabeleceu-se a fé: fé se é possível, de afastar injustas repulsõcs,
eminentemente razoavcl, pois que nós a collocaremos directamente cm presença a
ensinamos, c repetimos continuamente; a philosophia e a authoridade catholica ou a
razão, para crér, não pódc, não deve sub- Igreja. Pediremos francamenteá philosophia
metter-se senão a uma authoridade razoa e á razão tudo o que ellas reclamam e exi
velmente acceitavel e perta... gem da authoridade e da fé catholica; c
«Não, a fé não vem, a authoridade divi reconheceremos que a philosophia obtem
na não vem deter o vôo da razão. Ao con com o catholicismo tudo o que tem direito
trario, a fé vem arrancar o espirito vacil de reclamar, c que o que naò obtem, não
lante do homem ao império das trevas e tom direito de o reclamar...
das incertezas insuperáveis a todos os seus «A razão reclama com justiça para o ho
esforços. E quando a fé tem estabelecido mem quatro cousas: o direito das idéias e
assim o seu tranquillo imperio, quando das verdades primarias; o direito da expe
reina no fundo dos nossos corações, então riencia e dos factos; soluções ftxas sobre as
a razão póde com segurança percorrer, grandes questões religiosas', final mento, um
medir, penetrar, sondar este universo im principio fecundo de sciencia, de civilisação
menso, tão generosamente deixado ás suas c de prosperidade. Pela fé, e só pela fé ca
livres investigações. Quer, recolhida em tholica, a razão obtem âqui quanto tem
si mesma, descer profundamente á alma direito dç exigir. ,
para estudar a sua natureza intima, e tor «l.° A sã philosophia, d’accordo neste
RAC 809
tidos como pagãos, c por consequência vantara entre o papa e a igreja dWfrica,
como totalmente incapazes para fazerem e Firmiliano approvou os sentimentos de
as funeções de ministros de Jesus Christo. S. Cypriano. D’uma c outra parlo se ateou
2. ° Como a Igreja é unica e se encerraa disputa com grande capricho; Sancto
em uma só communhào, forçosamente ha Estevão ameaçou os rebaptisantes com a cx-
de estar ou da parte de Novaciano ou da communhão, mas nào chegou a proferir-se,
de Corricllio. ou ao menos nenhum dos que o asseve
3. ° Novaciano nào podia dar o nome ram de produziram até agora prova convin
igreja ao seu partido, por lhe faltar a suc- cente do seu sentimento, porque entre a
cessào dos bispos, sendo ordenado fóra excommunhão c a repugnância que teve o
d’ella. papa Sancto Estevão em communiear com
4. ° Sendo os hereges c scismaticos des
os deputados d’Africa, ou uma ameaça de
tituídos do Espirito Sancto, nào podiam se separar de S. Cypriano, ha grande dif-
conferil-o aos que clles baptisavarn, da fercnca, e estas sãò as unicas provas cm
mesma sorte que o perdão dos peccados, que fundam que Sancto Estevão cxcom-
que nào podiam conceder sem que tives mungára a S. Cypriano. 1
sem o Espirito Sancto; que assim como Sancto Estevão morreu, e S. Xisto, seu
fóra da Igreja não póde haver salvação, successor, não controverteu mais sobre a
assim por consequência fóra d’ella não ha validade do baptismo dos hereges, que foi
verdadeiro baptismo, e que Novaciano não estabelecida n’um concilio pleno, segundo
devia olhar o seu partido como a verda a decisão do papa Sancto Estevão.
deira Igreja, ou que d’outra sorte se diría Não deslindaremos se elle. foi o de Ni
que Cornellio, o unico e legitimo succes cea ou de Aries, o que importa pouco, vis
sor de Fabião; Cornellio. que leveára a co to que por. ambos se mostra ser válido o
roa do martyrio, estava fóra da Igreja; em- dito baptismo.
íim prova pelo exemplo das tribus scisma- S. Cypriano nào se fundava mais que
ticas d’Israel, que Deus aborrece os scis em paralogismos: queria que o herege
maticos, c que portanto nem elles nem os que não tinha nem o Espirito Sancto nem
hereges leem o Espirito Sancto. a graça, nào podia conferil-a: mas é certo
5. Cypriano n’csta carta diz quanto po que tirando o baptismo a sua efficacia uni
dia dizer-se em favor do seu sentimento; camente da instituição de Jesus Christo,
mas esta não cortou todas as difficuldades fé do ministro, conio também o estado d
dos bispos de Numidia. Dezoito d’cstas culpa cm que este se achasse ao, tempo d
provincias escreveram novamente a S. Cy confcril-o, nào pôde estorvar o seu cíTeito
priano, o qual convocou um concilio em Dizer o mesmo sancto, que assim como
que se declarou que ninguem podia ser ninguem podia salvar-se fóra da verdadei
baptisado fóra da Igreja. Sem embargo da ra Igreja, assim nào podia haver verdadei
decisão do concilio d’Africa, muitos bispos ro baptismo entre os hereges, é outro pa-
preferiram o costume antigo ao sentimen ralogismo; porque como só pela heresia,
to de S. Cypriano, o qual convocou novo isto é, pela rcbelliào contra a authoridade
concilio, em que se acharam os bispos de da verdadeira Igreja é que se sahe d’ella,
Numidia e d’Africa; este segundo confir e entre as sociedades christãs só são havi
mou a decisão do primeiro de Carthago dos como hereges os que participam u’esta
sobre a nullidadc do baptismo dos hereges. rebellião, os que não teem parte n’clla per
O concilio informou ao papa Estevão do tencem â verdadeira Igreja; e tacs são os
ue havia decidido, mas o summo ponti- meninos e os adultos que estão n’uma igno
ce condemnou o juizo dos padres de Car rância invencível da rebellião da socieda
thago. A carta de Sancto Estevão perdeu- de em que elles vivem. Emfim, o papa San
se, mas das de S. Cypriano se collige in cto Estevão objectava a S. Cypriano uma
sistir muito o papa sobre a tradição e so tradição universal e immemoravcl; e S. Cy
bre a práctica universal da Igreja, na qual priano na sua carta a Quinto, reconhece a
nada se deve innovar. verdade da mesma, ao passo que pelo que
S. Cypriano, para sustentar-se contra a
authoridade da sé de Roma, convocou um
terceiro concilio composto (Toitcnta o sete i Vide Valois, o P. Alexandre Sçhelstra-
bispos africanos, numidios, c mauritanos; to. Os protestantes, assim como os catholi
n’elle foi confirmada a decisão dos dous cos, dividiram-se ácerca d'este ponto; mas
precedeutes sobre a nullidade do baptismo o nosso parecer foi mais por uma razão de
dos hereges. S. Cypriano escreveu a Fir- partido, que por fundamentos cxlrahidos
miliano ácerca da controvérsia que se le da historia.
813 REF
respeita ao seu sentimento, não sobe de parte; perturbaram os Paizcs-Baixos, de
Agrippino seu successor. ram occasiào a formar-se a republica das
Talvez, porém, nos perguntem como se provincias unidas, em que a religião de
introduziu o uso de rebaptisar os heroges? Calvino ficou dominante; penetraram pela
Eil-o aqui. Levantaram-se da Igreja alguns França, oude se multiplicaram, obtiveram
heregcs, que alteravam a fôrma do ba templos, e o livre exercido da sua religião
ptismo como os valentinianos, basilidia- por mais d’um século. Vejam-se os artigos
nos c outros. O baptismo d’estes era nullo, Ingleza (igreja), Hollanda, c Calvinistas.
e portanto baptisavam os que se conver Do seio da reforma de Luthero, de Zuin
tiam, quando haviam sido baptisados por glio, e de Calvino, nasceram mil dificren-
elles, o que de nenhuma sorte suffraga ao tes seitas, tão oppostas entre si, como ini
sentimento de S. Cypriano. 1 Os donatistas migas da igreja romana: laes foram os
adoptaram este sentimento, que Sancto anabaptistas, divididos em treze ou qua
Agostinho refutou egregiamente no seu li torze (veja-se este artigo); os sacram enta-
vro do Baptismo. rios cm nove; os confissionistas em vinte
r e f o r m a — É o nome que deram ao seu e quatro; os extravagantes, jjue tinham
sci§ffia todas as seitas que se separaram sentimentos opposlos á confissão d’Ausbur-
da igreja romana no principio do xvi sé go, em seis (vejam-se os artigos Luthero
culo. A historia ecclesiastica nào nos offe- e Lutlieranos)-, os calvinistas, que se divi
rece acontecimento mais estupendo. Esta diram em gomaristas, arminianos, supra-
va toda a Europa em socego: a mesma fé lapsarios, infra-Iapsarios, puritanos, c an
e os mesmos sacramentos uniam todas as glicanos (vejam-se todos estes artigos); e
igrejas; todas viviam sujeitas ao summo íinalmente Serveto, Okin, os socinianos, e
pontifice, e respeitavam-no como chefe da os novos arianos.
Igreja. Lcào x, que então occupava a ca A historia de todas estas seitas, é, fal-
leira de Roma, mandou á Allemanha c á lando com propriedade, a historia da re
uissa indulgências, de que o sordido in- forma, e quasi a de todo o entendimento
eresse fez abuso. Luthero levantou-se con- humano durante estes séculos.
ra este abuso, e passou logo a atacar as Em cada um dos artigos a ellas respe
mesmas indulgências, o papa, e a Igreja. ctivos, expozemos c refutamos seus princí
Metade da Allemanha armou-se em favor pios, reservando sómente para este o exa
de Luthero, e separou-se da igreja roma me dos que são communs a todos, porque
na, e o mesmo scisma arrastou comsigo a as sociedades christãs, que tomaram o ti
Dinamarca, a Suécia, parte da Hungria e tulo d’igrejas reformadas, separaram-se to
da Polonia. Yeja-se o artigo Luthero. das da romana com os seguintes pretex
Pelo mesmo tempo Zuinglio, parocho na tos: l.° que esta havia cahido em erros
Suissa, prégou contra as indulgências, ata que não permittiam existir na sua.com-
cou quasi todos os dogmas da igreja roma munhão; 2.° que a Escriptura era a uuica
na, aboliu todas as ceremonias, c desuniu regra da nossa fé; 3.° que qualquer fiel
da igreja catholica a maior parte da Suissa. era juiz do sentido da Escriptura, e tinha
Yeja-se o artigo Zuinglio. direito para julgar do que respeita á fé, e
Luthero e Zuinglio deram o nome de para sc separar da sociedade, que cahiu
reforma á mudança que fizeram no dogma no erro, unindo-se a outra, ou formando
e no culto, o tomaram a qualidade de re uma nova, em que restabeleça a fé c o
formadores- inspiraram o seu fanatismo, e culto á sua pureza.
formaram discipulos, que foram levar seus Vamos fazer patente: i.° que os erros
erros por toda a Europa; ensinaram-nos de que os presumidos reformadores cen
em Inglaterra, cuja igreja os perfilhou em' suram a igreja romana, não podiam autho-
risar a sua separação; 2.° que a Escriptu
i Vejam-se em Sancto Irencu, l. 1, c. ra não é a unica regra da fé; 3.° que não
18, as diferentes fo m o s de que usavam es toca aos simples fieis, mas aos bispos, suc
tes hei'eges: uns baptisavam em nome do cessores dos apostolos, julgar sobre as con
pae de todas as cousas, que era desconheci troversias da religião.
do; da verdade, que era a mae de tudo; de
Jesus, descido para resgatar as virtudes: ou
tros serviam-se de nomes extravagantes e
proprios para aturdir a imaginação, bapti-
sando em nome de Basyma, Cacaoase, Diar-
bada, etc. Os marcionitas em nome do Jus
to , do Bom, e do Mau.
REF 813
§I empregar todos os meios cxcogitaveis para
exterminal-os, sem dúvida proferiría uma
Os erros que os presumidos reformados lan proposição impia e herética, porque os
çam em roslo á igreja romana, nâo po crimes dos outros nunca dão direito para
diam authorisar a sua separarão. que cada qual os possa commetter, c as
sim ainda que uma igreja fosse heretica,
Os reformados pretendem justificar o seu por isso não seria justo calumnial-a, e em
scisma por este raciocínio: Ninguem póde pregar a traição para fazer morrer os seus
permanecer unido a uma seita, que obriga pastores.
a fazer profissão de diversos erros funda Portanto, ainda quando a igreja romana
men tacs. c a practicar um culto sacrilego fosse heretica e idolatra, que ó suppor um
c idolatra, como é a adoração da hóstia, impossível, os reformados nunca leriam
etc.; ora a igreja romana obriga a profes direito para estabelecer novo ministério,
sar diversos erros fundamcntacs, e a pra nem para usurpar o que estava estabele
cticar um culto sacrilego e idolatra: logo, cido, porque estas acções são prohibidas
ninguem deve persistir na sua commu- por ellas mesmas, sc*ndo sempre cousa
nltào, o todos os que estilo persuadidos da criminosa usurpar sem missão o poder
falsidade de seus dogmas c da impiedade temporal, o que não póde desculpar-se por
do seu culto, são obrigados a separar-se alguma circumstanda estranha. Porque
d’ella. sempre é usurpação criminosa attribuir-se
Nos artigos Lvlhero, Calvino, Zuinglio, um qualquer dom de Deus, que só d'ellc
etc., fazemos vér que a igreja romana não se póde receber, qual é o poder pastoral,
havia cabido em erro algum, e os protes menos que não esteja seguro de o haver
tantes mais esclarecidos teem sido força recebido, e que não possa proval-o aos
dos a reconhecer que ella não ensinava mais.
erro algum fundamental; 1 mas prescin Ora, Deus não revelou que no tempo da
dindo da discussão d’esle ponto, vamos nova lei, depois do primeiro estabeleci
examinar o sophisma dos protestantes. mento da Igreja, ainda havia de communi
Ha uma separação simples c negativa, car n’alguns casos extraordinarios o seu
q u e. mais consiste na negação de certos poder pastoral por caminho alheio de sue
actos dc communhao, que em acções posi cessão; por consequência ninguem pó<?
tivas contra a sociedade de que alguém se dar-se por seguro dc o haver recebido fói
separa: ha outra que póde chamar-se po d’esta successãq legitima; c todos os qi
sitiva, a qual encerra a creação d’uma so a si o attribuem, são notoriamente usu
ciedade separada, o estabelecimento d’um padores.1
novo ministerio, e a condcmnação positiva Para plena convicção d’csta verdade,
da primeira sociedade, a que alguém esta basta lembrar o estado em que estiveram
va unido. Os presumidos reformados não os reformados, segundo as mesmas hypo-
se contentavam com a primeira separação, theses dos seus ministros, porque não po
que consiste em não communicar com a dem representar-se d’outra sorte senão
igreja romana, no que elles asseveravam como hereges convertidos; elles tinham
ser mau e prolubido pela lei de Deus; for adorado a hóstia, invocado os sanctos, e
maram nova sociedade, nova Igreja, esta reverenciado às reliquias; cessaram depois
beleceram novos pastores, usurparam o de practicar este culto, e portanto no seu
ministerio ecclesiastico, pronunciaram cx- sentir haviam-se feito orthodoxos pela mu
communhão contra a igreja romana, de dança de sentimentos; é a isto que se dá
gradaram e lançaram fóra os seus pasto o nome de hereges convertidos.
res. É, pois, a separação dos protestantes, Todo o herege, pela heresia de que faz
um scisma indesculpável, porque a usurpa- profissão, perde o direito d’exercer legiti
ção do ministerio por si mesma é crimino mamente as funeçoes das ordens recebi
sa, c não póde justificar-se com a aíTectada das, bem que conserve o d’exercel-as váli
idolatria da igreja de que se separam. damente; e para haver de recobrar o exer
Se alguém, por exemplo, dissesse scr cício legitimo da sua authoridade, neces
permittido calumniar toda a sociedade, sita reconciliar-se com a Igreja. Ora com
quo obriga á heresia e a um culto idola que igreja se reconciliaram os presumi
tra, matar á traição os seus pastores, e dos reformados? O seu proceder foi mui
to alheio d’isto; começaram, congregando
1 Tillotson, Senn. t. 2. Serm. dl, pag. igrejas, sem authoridade, sem dependen-
17. Chilingvort, na obra intitulada La Re-
ligion Protestante est une voie súre. 1 Préjugés legitimes, pag. 135, etc.
8i4 REF
cia de ninguem, e sem lhes importar se que os evangelistas c os apostolos escre
havia ou nào uma igreja verdadeira a que veram? Acaso Jesus Christo assignalou a
se devessem u n ir .1 época em que havería de acabar o minis
Os reformados, pois, nào podem ter tido terio apostolico? Ou csqucoer-sc-iam os
mais que uma missão extraordinaria, e successores dos apóstolos da doutrina que
isto querem Beza, Calvino, c outros, mas lhes fora confiada? Mas se já nào existe
uma vocação extraordinaria carece ser um corpo encarregado d*estc sagrado de
provada pór milagres, c clles nào os fize posito, porque via sabemos nós que nào
ram.' Todos os catholicos que tractaram ha mais de quatro evangelhos, o que o
controversias, teem mostrado estes pontos Evangelho contéin a doutrina do Jesus
com a maior evidencia.2 Christo? Como se desliudaram os verda
Portanto os presumidos reformados eri deiros evangelhos d’essa multidão d'clles
giram uma igreja sem authoridade, e por falsos, que os heregos forjaram nos pri
consequência sào scismaticos, pois que se meiros séculos? Como se conheceram as
separaram da sociedade que estava em alterações feitas na Escriptura, sc nào ha
posse do ministerio, e da qual nào recebe via um corpo subsistente e duulrinante,
ram missão. que por tradição recebera c conservara o
que Jesus Christo e os apostolos haviam
§ II ensinado? S. Paulo ordena aos de Thessa
lonica que permaneçam firmes, e conser
A tradição é, não menos que a Escriptura, vem as tradições que aprenderam, ou das
a regra da nossa fé suas palavras ou dos seus cscriptos. 1
0 mesnio apostolo ordena a Timotheo
Os theologos dão o nome de tradição á que. evito as novidades profanas das pala
doutrina que vai passando de viva yoz, ou vras, c de toda a doutrina que traz falsa-
que está depositada nos cscriptos d’aquel- mente o nome de sciencia: quer que tome
les, aos quaes pertence o transfundil-a. Je por modelos da mesma doutrina as san
sus Christo a ensinou assim, c da mesma ctas instruceões que elle ouvira da sua
sorte a publicaram seus apostolos. O mes bôcca, e louva os corinthios por haverem
mo Senhor não lhes ordenou que a escre conservado as tradições e as regras que
vessem, mas que fossem prégal-a, c onsi- d’elle tinham recebido.2 Olha, pois, S. Pau
nal-a ás nações. Só depois de muito tempo, lo como um deposito c como uma regra a
e por circumstancias particulares, é que doutrina que elle ensinara aos corinthios:
os apostolos escreveram, e’ nem foram to ora, o sancto não sómcntc havia ensinado
dos, nem escreveram a todas as igrejas. a Timotheo por escripto, más também de
Os escriptos dos apostolos, dirigidos ás viva voz; portanto, ha uma tradição ou
igrejas particulares, nem conteem quanto uma doutrina que, de viva voz, se trans
elles poderíam ler escripto, nem quanto funde, c que deve conservar-se como a
Jesus Christo lhes ensinou, ou o Espirito doutrina conhecida na Sagrada Escriptura.
Sancto lhes havia inspirado: portanto, não A Igreja confundiu os hereges dos pri
póde duvidar-se que muitas das jgrejas meiros séculos, valentinianos, gnosticos, e
particulares, por espaço de annos, nào esti marcionitas, por meio da tradição.3 To
vessem sem escripto algum dos apostolos, dos os concilios combateram os erros pelo
e sem Escriptura Sancta. mesmo meio, ninguem duvida d’estes fa
Havia, pois, desde a instituição do Chris ctos; podem ser ignorados, mas não po
tianismo um corpo, ao qual Jesus Christo dem ser controvertidos por qualquer que
confiára o deposito da sua doutrina, e en tenha alguns vislumbres da historia eccle
carregara de ensinal-a. Este corpo a rece siastica.
beu, e transfundiu por via de tradição, e Do que acabamos de dizer se collige,
em virtude da mesma instituição de Jesus pois, claramente, que Daille só combateu
Christo estava incumbido de ensinar a a doutrina da igreja catholica sobre a tra
doutrina que recebera. Ora, acaso perdería dição, partindo d’um falso principio, pois
este corpo o direito de ensinal-a, depois que suppõe não se conhecer a mesma tra
dição senão pelas obras dos padres.4
1 Vejam-se as profissões de fé dos syno
dos de Gap, de la Rochelle, M. de Vallen- 1 Secunda ad Thessal., c. 2, v. 15’.
burgo no seu Tractado da Missão dos Pro 2 Prim a ad Corinth., c. 11, v. 2.
testantes. 3 lren. adversus Gnost., I. 3, c. 2.
2 Prétendus Reformes convamcus du 4 Rivet. Tractatus du PP. auctoritate.
Genevie, 1660. Traité de Vemploi des Pcres
schisme, l. 3, c. õ.
REF 815
D;v mesma sorte se deve pensar ácerca A doutrina da igreja romana sobre a
de tiulo o que os protestantes proferiram infallibilidadc das decisões dos primeiros
para provarem que a tradição é obscura pastores, é a doutrina de toda a antiguida
e incerta. A tradição, tomada como a in- de; toda a historia ecclesiastica prova esta
strucção do corpo Visível, a cujo cargo es verdade, reconhecida pelos protestantes em
tá o deposito da fé, nunca pôde ser incer quasi todas as profissões de fé que temos
ta, a sua incerteza levaria comsigo a do citado. Portanto, nào é do simples fiel o
Christianismo. julgar das controversias da fé. Se o fosse
só seria por via de inspiração ou de exa
i ui me. O primeiro meio até os mesmos pro
testantes o abandonaram; nào carece de
Se aos ‘p rimeiros pastores, successores dos refutação: é o principio que produziu os
apostolos, pertence julgar das controver anabaptistas, os quakers, os prophetas dos
sias da fc, c não aos simples fieis. Cevennos, etc.
O segundo, isto é, a via de exame, posto
Jesus Christo confiou aos seus apostolos que repugna menos, nào é mais segura.
a pregação da sua doutrina, c lhes pro- As sociedades christàs, separadas da igre
melteu estar com elles ate á consummaçào ja romana, affirmam que a Escriptura en
dos séculos: a elles é que disse: «ensinai cerra quanto sc deve crêr para a salvação,
ás nações; aquelle que vosouve, me ouve.» e é clara sobro todos ostes assumptos; do
É claro que estas promessas nào só res que concluem ser sufficiente para con
peitam aos apostolos, mas também a seus servar o deposito da fé. Porém pergunta
successores, que sào estabelecidos deposi mos, a quem pertence determinar, que ar
tários da doutrina de Jesus Christo, o en- tigos é necessário crêr para nos salvarmos?
cagregados de ensinal-a até á consumma Nào c isto sómente proprio d’aquelles, aos
çào dos séculos. Assim entendeu sempre quacs Jesus Christo encarregou que an
toda a Igreja as promessas feitas aos apos nuntiassem a sua doutrina, e aos quaes
tolos; e os protestantes teem sido obriga disse: «quem vos ouve, me ouve»? Em se
dos a.reconhecer n'esla promessa a per- gundo logar quereriamos saber, se quandi
petuidade c iufajlihilidade da Igreja.1 se suscita alguma controvérsia ácerca d
Rolo mesmo estabelecimento da Igreja, sentido da Escriptura, pertence a sua de
c natureza do ministerio que Jesus Christo cisão essencialmente aquelle corpo que Je
confiou aos apostolos e a seus successores, sus Christo encarregou de ensinar, e com
se vê claramenle serem elles os unicos jui quem prometteu estar até á consummaçào
zes da doutrina. O ministerio da instruc- dos séculos?
çào nào é diverso do ministerio que deci Julgar do sentido da Escriptura é deter
de sobre as diíTerenças da religião: como minar que idéias uniu Jesus Christo às
teriam estes authorídadc sufficiente para palavras que exprimem a sua doutrina.
ensinarem a doutrina de Jesus Christo até Sómente aquelles, aos quaes ordenou que
á consummaçào dos séculos, se lhes fal a ensinassem, c prometteu a sua assistên
tasse a de decidirem, e se pudessem enga cia, podem determinar infallivclmente que
nar-se em suas decisões? As profissões de idoias unia olle a estas palavras; sómente
fé, citadas na nota antecedente, suppoemo elles, pois, sào juizes infalliveis do sentido
que afflrmamos aqui. da Escriptura. Portanto, ainda sem exami
narmos se a Escriptura é clara nas cousas
pour te jugrment des differens en la Reli- necessarias para a salvação, diremos que,
fjion, par Jean Daillê, Genêvc, 1632. pela mesma natureza da Igreja, e pela in
1 Confessio Augustana, art. o, 7, 8, 21. stituição de Jesus Christo, os primeiros
Confessio Saxonica, De Ecclesia. Sijnlagma pastores são os juizes do sentido da Escri
Confessionum Fidei, qua; in diversis regnis ptura c das controversias que se levantam
et nationibus fuerunt edita. Geneva1. 1654, sobre a intelligcncia da mesma.
in-4.°, pag. 68, 69. 70. Confessio Wittem- Em terceiro logar, sem que disputemos
berg. De Ordine, ibid, pag. 119. De Eccle ácerca da clareza da Escriptura, nem exa
sia, pag. 132. Confessio liohemica, art. 8, minemos se ella contém quanto se deve
ibid, pag. 187, art. 9, pag. 188, 189, art. crór para sermos salvos, dizemos que quan
14, pag. 196. Confessio Argent in ensis, c. do o corpo dos pastores declara que um
13. De Officio, et Dignit Minislr., pag. 188. dogma pertence á fé, deve crér-se com a
Confessio Helvet, c. 17, pag. 31, 35. Cow- mesma certeza, com que crémos que o
fess. Gallic., pag. 3, art. 24. Confessio An Novo Testamento encerra a doutrina de
glicana, pag. 90. Jesus Christo. Quanto poderia dizer-se pa
816 REF
ra atacar a decisão d’este corpo a respeito § IV
de qualquer dogma, atacaria igualmente a
verdade e a aullienticidade da Escriptura, Resposta ás objeceõcs que se poem a favor
que nós conhecemos por meio d’este mes da via du exame
mo corpo, como já fizemos vòr pouco aci
ma no § 2.* «Ou os catholicos romanos, dizem o
<p
Em quarto togar, a via de exame que protestantes, suppoem infallivel a Igrej
p
querem substituir á authoridade da Igreja, em que nasceram, c o suppoem sem ex a
é perigosa para os homens mais esclareci me, ou examinaram com desvelo os fun
dos, c impracticavel para os simples; nào damentos da authoridade que lhes attri-
pódc, pois, ser a via que Deus escolheu buetn sem saberem porquê: pois cm simi-
para preservar os chrislàos do erro: por Ihante supposto deveria lambem approvar-
que Jesus Christo, que veio para todos os sc a adhesào que tem o mahomelano ao
homens, quer que todos conheçam a ver seu Alcorão; é pois forçoso examinar.
dade, e que se salvem. «Porém este exame é tào difiicil como o
Em quinto logar, attribuir aos simples methodo dos protestantes: se d’isto se du
fieis o direito dejulgarem as controversias vida, pondere-se o que é necessário para
que se levantam acerca da fé, é abrir a elle, advertindo que aqucllcs que o fazem,
• porta a todos os erros, destruir a unidade hão de considerar-se como desapegados de
da Igreja, c arruinar toda a disciplina. todas as sociedades chrislàs, e isemptos de
Para se convencerem d’isto, basta lançar qualquer prevenção, para lhes suppôrmos
uma vista de olhos sobre a reforma no seu sómente as luzes do bom senso.
nascimento: alli se vê uma infinidade de «A primeira cousa que ellos devem exa
seitas que se dilaceram, e que ensinam os minar ífesta proposição, a Igreja c in falli-
dogmas mais absurdos, c os chefes da mes vel, que querem se receba como verdadei
ma reforma lastimarem-se da licença dos ra, é se se sabe que cousa seja esta Igre
seus proselytos: escutemos os seus desaba ja, em que so diz residirainfallibilidade, c
fos. se por isto so entendem todos os chrislàos
Capiton, ministro de Strasburgo, escre que formaram os diíTerentcs corpos das
via em confidencia a Farei, que olles ti igrejas christàs de tal manpira, que quan
nham feito grande damno ás almas pela do estes christãos dizem de eommum ac-
precipitação com que sé separaram du pa cordo que uma cousa é verdadeira, se
pa: «a multidão, diz ellc, sacudiu o jugo devam render á sua authoridade? Se bas
inteiramente... arrojam-se a dizer-vos; es ta que o maior numero declare um senti
tou assaz instruído do Evangelho, sei lér mento por verdadeiro para se abraçar, e
por mim mesmo, não tenho necessidade de se isto assim fòr, se um pequeno numero
vós.» 1 de votos de mais ou de menos, é sufficien
«Os nossos, diz Beza, se deixam arreba te para authorisar, ou declarar por falsa
tar por qualquer vento de doutrina, já pa uma opinião? Se nào é preciso senão con
ra este lado, já para aquelle; e se agora sultar os sentimentos do tempo presente,
podemos saber qual é a sua crença ácerca ou desde o dos apostolos para conhecer
da religião, nào poderiamos ser fiadores a verdade d’estc sentimento? Quaes são
da que hão de ter áinanhã.» Em que con aquelles em que reside-a infallibilidade?
cordam sobre este ponto as igrejas que Se um pequeno numero de bispos juntos,
declaram a guerra ao papa? Se tomardes e com commissão de outros, são infalli-
o trabalho de correr por todos os artigos veis?
desde o primeiro até o ultimo, nenhum «Em segundo logar, se ha de saber cm
encontrareis, que não seja reconhecido por que consiste propriamente esta infallibili
alguns como de fé, e rejeitado por outros, dade da Igreja, se em ser sempre inspira
coino impios. 2 da, ou em sómente nos dizer cousas, sobre
as quaes nào póde enganar-se? E deverá
1 Cap. Ep. ad Farei, inter Ep. Calvin., também saber-se se esta infallibilidade so
paq. 4. edil. de Genêve. Préjugés legitimes, estende a tudo?
pag. 67. • «Em terceiro logar, se ha de esquadri
2 Beza. Ep. prim. Préjugés legitimes, nhar d’onde tirou a sua infallibilidade es
pag. 70. ta igreja christã? Os doutores que a affir-
mam, não devem crêr-se, sem que de suas
asserções dêcm outra prova mais que a
doutrina eommum, porque se tracta de
averiguar se esta doutrina ó a verdadeira,
nos 817
o sobre isto é que se questiona: igualmcn- não carece da discussão c do exame; crê,
le nào pódo dizer-se que devem concorrer sem receio de se enganar, quanto lhe pro
a Gscriplura c a Igreja, pois que todas as põe um corpo de pastores, encarregados
difíiculdades que acabamos de propôr, nào por Jesus Christo para ensinar, cuja mis
deixarn por isso de subsistir, sendo neces são c authoridade é atlestada por factos
sário que vamos comparando a crença que excluem toda a dúvida.
<Testa Igreja de século cm século com*o Subministra, pois, a igreja catholica aos
que diz a Escriptura, e vôr se se acçor- simples fieis um meio fácil, seguro e infal-
dam estes dons princípios, porque n’csle livel, para nào cahircm em erro algum
ponto a ninguém se pódo crér.»1 contrario á fé, ou á pureza do culto. E po
Respondemos que o catholico nào crê a derá dizer-se o mesmo da via de exame?
Igreja infallivcl por via de exame, nem de Os protestantes por mil fôrmas diversas
razão, mas por via de instrucçào. Por este leem objectado as dúvidas que acabamos
meio conheceu o simples fiel ser divino o de examinar: todas podem resolver-se pe
•Christianismo; soube quo Jesus Christo los princípios geracs que vimos de estabe
confiou a seus apostolos c successores a lecer, ao menos as que merecem mais at-
pregação da sua doutrina, que prometteu tcnçào. Temos excellentes obras úc contro
a uns*e outros a sua assistência ate á con- vérsia, que entraram u'estas miudezas: taes
summaeào dos séculos; c sabe por conse sào a Historia das Variações, 1. io; a Con
quência* que os successores dos apostolos ferenda de M. Dossuet com M. Claudio, e
liào de ensinar a verdade ate o fim do Prejuízos Legitimos, cap. 14, lo, 16, 17, e
mundo, e que o que ensinarem como ar 18; Presumidos Reformados convencidos do
tigo de fé, com efieito pertence á fé. scisma, 1. l.°; Reflexões sobre as differenças
Para estar seguro o simples fiel de que de Religião, por M. Pelisson; Chimeras de
<lcvc assim pensar sobre os dogmas defi Jurieu, pelo mesmo, e as suas respostas *
nidos pela Igreja, nào tem necessidade de M. Leibnitz; As duas vias oppostas em mi
discutir todas as questões que propõe M. ter ia de Religião, por M. Papin. 1
Le Clero; acha a soluçào de todas na in- rrgo sijad os— Seita de ana baptistas, qi
strucçào que recebe: que portanto é um riam sempre: vejam-se as diversas sciti
equivalente da via de exame, pois que o que houve d’clles.
põe em estado de responder ás objecções, rem on tra ntes— Vejam-se as difTercnlcs
com que pretendem fazer vacillante a sua seitas que se formaram em Hollanda, de
crença. pois que ifella se fez dominante o calvi-
Nào se submette o simples fiel á autho- nismo.
ridade dos primeiros pastores, fundado me ruetorio—Refere Philastrio ensinar Rhe-
ramente na palavra dos mesmos, mas nas torio que os homens nunca se enganavam,
razões que ellcs dào da sua doutrina, nas e que todos tinham razão; que nunca se
provas do facto de que qualquer se pódc riam condenmados por seus sentimentos,
segurar, em factos que qualquer juizo al porque todos haviam pensado o que deviam
cança, attestados por todos os monumen pensar. -
tos,*e tào certos como os primeiros princí ROsr.ELiNO—clérigo de Compicgne, ensi
pios da razào; n’uma palavra, nas mesmas nava philosophia pelos (ins do século onze
provas de qne se serviam para convencer (1095). Propòz que as ires Pessoas divinas
o herege, o infiel, o ignorante, e o sabio; eram tres cousas como tres anjos, porque
em factos de que o homem que não é es d’outra maneira poderia dizer-se que ha
túpido, nem insensato, se pódo certificar, viam encarnado o Pae c o Espirito Sancto;
como qualquer philosopho, e acerca dos comtudo, no seu sentir, o Pae, o Filho e o
quaes pôde, haver uma certeza, que excluc Espirito Sancto, não faziam mais que um
todo o temor do erro; e para deixarmos Deus, porque tinham o mesmo poder e a
n’este ponto uma réplica a M. Le Clerc, mesma vontade; porém cria que se pode
basta-nos o seu mesmo Tractado sobre a ríam denominar tres deuses, sè o uso nào
incredulidade. fosse contrario a este modo de exprimir.
Portanto, não conduz a Igreja os fieis É o erro dos tritheistas, c foi condomnado
por uma obediência cega, o de instincto, cm um concilio havido cm Compiegne, no
mas pelo meio da instrucçào e da luz, pelos anno de 1Õ92.
quaes o leva até á authoridade infallivcl da Roscelino abjurou o seu erro, mas pou-
Igreja. O fiel elevado a esta verdade, já
1 Todas estas obras se acham escriptas
1 Defense des sentimens des théologiens na lingua franccza.
de Hollande, pag. 3o. 2 Philastr. Aug. de I l n r e s c . 72.
818 SAB
co depois disse que sómente o havia abju Formou partido, que subsistiu por algum
ra do por temer que o povo ignorante o tempo, e Sancto Epiphanio refere que os sa-
matasse a pancadas. Sancto Anselmo o bellianosse dilTundiram em grande numero
refutou em um Tractado da fé, da Trinda pela Mesopotamia, e circumvisinhanras de
de,.e da Encarnarão. Toda a refutação do Roma. O concilio de Conslantinopla,*rejci-
sancto versa sobre este principio tãó sim lando seu baptismo, faz vér que^ tinham
ples e tào verdadeiro; isto é, que nào deve um corpo de communhào em 381. Sancto
raciocinar-se contra o que a fé nos ensina, Agostinho creu que esta seita estava ani
contra o que a Igreja cré, e que nào ha de quilada inleiramcnle no principio do quin
rejeitar-se o que nào se pódc comprehcn- to século. 1 Correndo o quarto, Photino, o
der, mas que devemos confessar que ha os anti-trinitarios, renovaram este erro.
muitas cousas superiores ã nossa intclli- No presente artigo tractaremos dos prin
gencia. 1 cípios do sabellianismo.
nuNCAiuos—Seita que tinha adoptado os Diniz de Alexandria impugnou com gran
erros dos patarinos, e que sustentava nào de zelo e luzimento o erro deSabellio; inas
se commetior peceado algum'mortal pela refiectiu-se que para fazer uma distineção
parte inferior do corpo: eslribados n’este mais sensível entre as Pessoas da Trinda
principio se entregavam a toda a sorte de de, punha dilTerença entre a natureza do
dissoluções.2 Pae e do Filho, pela que ha entre a vinha
RUiMTANOS—Nome que se deu aos dona- e o vinhateiro, entre o navio, c o carpin
tistãCponjue a fim de fazerem grassar sua teiro.
doutrina, atravessaram os rochedos, que Tanto que chegaram á noticia dc Diniz
cm latim se exprimem rapes. as consequeucias que tiravam d’estas com
küSSIA&os—Veja-se Moscovitas. parações, logo elle se explicou acerca da
H üSTicofeQu camponios—Nome que teve divindade de Jesus Christo, declarando ser
uma sei ia' ’<íe a na baptistas formada de pes da mesma natureza que seu Pae: também
soas rusticas e de vadios sabidos do cam sustentou nào ter jamais dito que houves
po, que debaixo do pretexto da religião, se tempo em que Deus nào fosse Pae: que
excitavam sediçôes nas cidades. o Filho recebera o sêr do Pae; mas que
sabelli,o— abraçou o erro de Praxeas, assim como nào é possível que deixe de
e de Noerio, nào pondo outra dilTerença haver resplandor quando ha luz, da mes
entre as Pessoas da Trindade, mais c|ue a ma sorte é impossível que o Filho, que é o
que ha entre as diversas operações d uma resplandor do Pae, nào seja eterno; einfim,
mesma cousa. Quando considerava a Deus, Diniz de Alexandria queixava-se de que
como fazendo decretos no seu conselho eter seus inimigos nào houvessem consultado
no, e resolvendo chamar os homens à sal um grande numero das suas cartas, aonde
vação, olhava-o como Pae; quando este mes se explicara com clareza, e que só se ape
mo Deus deseia á terra, e ao seio da Vir gassem áquellas em que refutava a Sabel-
gem, padecia c morria sobre a cruz, rha- lio, e que elles tinham mutilado em varias
mava-lhe Filho; e linalmentc, quando o parles.
considerava como empregando a sua eíli- Nào examinaremos aqui se Diniz dou
cacia na alma dos peccadores, dava-lho o azo ás accusações formadas contra elle;
nome de Espirito Sancto.3 tào sómente faremos algumas rellexões so
Na conformidade d?esla liypothese, nào bre o boato que correu a este respeito.
havia distineção alguma entre as Pessoas l.° Sabellio negava que o Pae e o Filho
divinas; os titulos do Pae, Filho c Espirito fossem distinctos, e os catholicos sustenta
Sancto, eram sómente uns nomes tomados vam o contrario; estes, pois, pela natureza
das diversas acções que Deus produzira da questão estavam propensos a admittir
para salvar os homens. entre as Pessoas divinas a maior distine
Sabellio não fez mais que revocar a he- ção possível: visto, pois, que as compara
t esia de Praxeas e de Noecio, apoiando-se ções de Diniz, que tomadas ã letra sup-
as mesmas razões: vejam-se setis artigos. poom ser Jesus Christo de diíTcrente natu
reza que o Pae, foram olhadas como erros
1 S. Anselm., I. 1. Ep. 35’. Ybo Carno- por serem contrarias á consubslancialidaT
tensis, Ep. 27. Abwlurd. Ep, 21, ad Epis- de do Verbo, era forçoso que este dogma
cop. Paris. D'Argentrc. Colfect. Jud., t. 3, nào só fosso ensinado distinctamente na
pag. 1. N atal. Àlex., scec. 11 et 12. Igreja, mas também que fosse olhado co-
2 Dnpin, 13 siècle, pag. 190.
3 Theodor. Hceret. Fab., I. 2, c. 9. Eu*
scb., I. 6, c. 7. Epiph. Hceret. 62. i Aug. de Hcer., c. 4.
SAT 819
mo um dogma fundamental da religião da mesma sorte que os judeus, observam
christà. o sabbado.
2. ° É claro que os catholicos sustenta SACCOPHOROS, ISTOREVESTIDOS DE SACCO—
vam quo o Pae, o Filho c o Espirito Sancto Haniõ dc tacianistas,'qúe se vestiam dTim
não eram nem nomes diflerenics dados á sacco, para melhor assignalarcm que re
natureza divina por causa dos diversos ef- nunciavam os bens do mundo. 1
íeitos que ella produzia, nem tres substan s a c r a m e n t a rios— Assim chamaram aos
cias, nem tres entes de uma natureza dif calvinistas”e'zíilnglianos, que negavam a
ferente. A crença da Igreja acerca da presença real.
Trindade era, pois, n’esse tempo tal qual SAnARRL.0—Veja-se Segarelo.
é hoje, e em Jurieu é ignorância crassa sanguinarios—Seita de anabaptistas, que
accusar a igreja catholica de haver varia só^Miidavám ern derramar o sangue da-
do sobre este dogma. qucllos que não pensavam como clles.
3. ° O exemplo de Diniz de Alexandria saturnino—era de Antiochia, c discipu
mostra ser desnecessário julgar que um lo dc‘Menandro, cujos sentimentos perfi
Padre não creu a consubstancialidade do lhou, dos quaes parece haver feito um sys
Verbo, por se acharem n’elle algumas com tema para explicar a producção do mun
parações, que exprimidas c tomadas rigo do, a dos homens, e os grandes aconteci
rosamente, conduzem a consequências op- mentos que haviam passado sobre a terra,
postas a este dogma. referidos nos livros de Moysés. Estes eram
Sandio, que quer provar o arianismo os objectos qne cntào se queriam, e são
em todos os padres que precederam ao com elTeito os que mais incitavam a curio
concilio dc Nicea, assevera que Diniz de sidade humana. -
Alexandria nunca fizera a apologia da sua Saturnino, para explicar estes factos
doutrina contra Sabellio, nem dera expli suppunha, como Menandro, um ente des
cações, nas quaes reconhecesse a c.onsub- conhecido aos homens, o qual tinha forma
stancialidade do Verbo, porque nada a es do os anjos, os arehanjos, e as outras na
te respeito disseram nem Eusebio. nem S. turezas espirituacs e celestes. Sete d'cste
Jeronymo, e porque Diniz de Alexandria anjos se tinham subtrahido do poder d
era morto, antes que o outro Diniz, a quem Pae de todas as cousas, creado o munde
elle se dirigiu, fosse elevado â cadeira dc e quanto n’ellc se encerra, sem que o Deu.
R om a:1 porém Sandio se engana; liq u a n Pae houvesse tido d’islo conhecimento al-
do se apoia com o silencio de Eusebio e gurn.
de S. Jeronymo, porque um c outro faliam Deus desceu para vér o que ellcs fize
dos quatro iivros que Diniz compòz sobre ram, e como apparcceu em fôrma visivel,
o sabellianismo: e ainda que não tivessem quizeram os anjos agarral-a, mas ella se
fallado, a collecção que Sancto Athanasio desvaneceu; então fizeram conselho, e ac-
faz das suas respostas basta para conven eordaram em formar entes, segundo o mo
cer lodo o homem racionavcl, de que áquel- delo da figura de Deus; c com elTeito or-
le respeito havia uma apologia.2 ganisaram um corpo similhante á imagem
2.° É certo que Diniz era bispo de Roma em que a divindade se llies havia oíTere-
quando Diniz de Alexandria fez a sua apo cido.
logia; o erro de Sandio vem dc que elle Porém o homem formado pelos anjos,
seguiu a Eusebio, que dá onze annos ao não podia andar senão de rojo sobre a
episcopado de Xisto, predecessor de Diniz, terra como os bichos. Deus, movido de
quando Xisto não foi mais que dous annos compaixão pela sua imagerm o animou
bispo de Roma, e por consequência Diniz com uma faisca de vida, então o homem
subiu á cadeira romana nove annos antes se levantou sobre os pés, fallou, racioci
do computo de Eusebio. Fóra {Visto o mes nou, e os anjos formaram mais homens.
mo Eusebio affirma que Diniz de Alexan É bem claro que, segundo este sentimento,
dria dedicara seus livros sobre o sabellia a alma dependia dos orgãos em que ella
nismo a Diniz, bispo de Roma.3 se introduzia, e que as suas funeções, qua
s a b b a t a r i o s — Seita de anabaptistas, que lidades, vicios e virtudes eram consequên
cias da conformação dos orgãos a que ella
1 Sandivs, de Scr.ipt. Eccles., pag. 42. estava unida. Por este meio explicava Sa-
Nucleus, Hist., 7 .4 , pag. 121.
2 Evseb. Hist. Eccles., I. 7, c. 26. Hie- 1 Cod. Thèod., I. 7, 9, et 11, Dasil. Ep.
ron., de Script. Eccles., pag. 69, pag. 23. ad Amphilochum. Canon. 47.
Athan. de Synod., pag. 918. 2 Iram., I. 1, c. 30, n. 5, /.‘2, c. 17, 10.
3 Ibid. Massuet, Dissert. 1, iiv h em., c. 48.
820 SEG
turnino felizmente, segundo o seu sentir, ção dos homens, mas negava que tivesse
as desordens physicas e moraes, sem pre encarnado c padecido.
juízo da sanctidade e omnipotencia do Deus Vendo, porém, sem embargo da mudan
Supremo. ça que Saturnino fez, um systema de Me
Estes anjos, creadores do mundo, haviam nandro, notamos: I.» que ellc estava aíTer-
dividido entre si o imperio do mesmo, c rado a este systema, consorvando-o quanto
estabelecido n'clle leis. Um dos sete anjos lhe foi possível, e que por consequência
creadores declarara guerra aos outros seis, nao fez mais mudanças que as que não
e o mundo ou Satanaz tinham também da podia deixar de fazer,*e que assim se viu
do leis, e feito appareccr prophetas. necessitado a reconhecer a Jesus Christo
Para livrar da tyrannia dos anjos e dos por Filho de Deus, c enviado por seu Pae
demonios as almas humanas, o Ente Su para salvar os homens.
premo enviara seu filho, cujo poder havia 2. ° Vêmos que Saturnino para conciliar
de destruir o imperio do Deus dos judeus, com a divindade de Jesus Christo o estado
e salvar os homens. Este Filho porém nào possível em que se achava sobre a terra,
fôra sujeito ao imperio dos anjos, nem não lhe deu mais que um eorpo phantasti
aprisionado em orgàos materiaes; nào ti co, que por consequência tinha repugnân
vera corpo, nào nascera, nào padecera, cia em o reconhecer como Filho de Deus,
nào morrera senào em apparcncia. Satur e não fez d’isto um dogma do seu systema,
nino cria evadir por este meio a diflicul- senào por lhe ser impossível ncgal-o.
dade que ha em conciliar os padccimcntos 3. ° As provas que davam os christãos da
de Jesus Christo com a sua divindade. divindade de Jesus Christo, eram factos que
Na conformidade de similhantes princí Saturnino podia muito bem averiguar, pois
pios, era o homem um ente desgraçado, que estava no tempo e nos logares em que
escravo dos anjos, por cllcs entregue ao elles tinham acontecido: para "não duvidar
peceado, e abysmado na desdita: era, pois, mos de que Saturnino os averiguaria, bas
a vida um dom funesto, e o prazer que ta que façamos conta com o amor proprio;
conduzia os homens a fazerem nascer ou sendo certo que um homem pertinaz no seu
tro homem, prazer barbaro, que ellcs de systema, como vêmos a Saturnino, nada ad
viam prohibir: portanto, foi esta lei da mitte que seja estranho ao mesmo systema,’
continência um dos pontos fuudamentaes senào o que não pôde negar, sem cahir em
da heresia de Saturnino; e seus discipulos, manifesto absurdo.
para a observarem mais segura mente, se Temos, pois, em Saturnino um testimu-
abstinham de comer carne e de tudo o que nho irrefragavel da verdade dos factos, que
podia excitar ao amor. provam a divindade de Jesus Christo; e as
Saturnino teve escolas e discipulos em suspeições que de. ordinario se oíTerecem
Syria: a morte, no seu sentir, era o retor contra os defensores da religião por não
no da alma para Deus, d’ondc cila tinha chamarem cm seu abono senão a chris
vindo. 1 tãos, não se realisam em Saturnino.
Abulpharage, na sua Historia das Dy- secundino—Philosopho d’Africa, que ap-
nastids, falia de Saturnino, a quem chama pareceu pelo anno de 40o, e defendeu os
Saturino. c a elle attribue haver dito que erros de Manes.
fôra o diabo que fizera a difierença dos secundo —discipulo de Valcntim, fez al
sexos, e que^por isso os homens olhavam gumas mudanças no numero e no sys
a desnudez como vergonhosa. tema da geraçao dos Eons; mas as mu
Menandro só conhecia um ente eterno e danças em similhantes systemas são tão ar
infinito, e dava a potências invisíveis o bitrarias, e se atoem a conjecturas tão in
imperio do mundo; tinha presumido de ser significantes e a razões tão frivolas, que é
o mundo d’estas potências, e de conceder cousa inútil seguir taes individuações.1
a immortalidade por uma especie de ba se g a r e lo , ou sagarelo ( jo r g e )— era um
ptismo magico. Saturnino, seu discipulo, homem da infima plebe, sem conhecimen
conservou o capital do seu systema, esfor tos c sem letras, que, não podendo conse
çou-se a concilial-o com a religião christã, e guir entrar na ordem franciscana, se ves
reconheceu que Jesus Christo era o Filho tiu como se costumam pintar os apostolos,
de Deus, enviado por seu Pae para salva- e vendendo uma pequena casa, que eram
todos os seus haveres, distribuiu o dinhei
ro não pelos pobres, mas por um bando de
i Ircen., I 1, c. 22. Tert. de anima, vadios, e d’ociosos. Propôz-so viver como
c. 23. Philastr. de H ar., c. 31. E pw h., 24.
Theod., I. 1, c. 3. Aug. de Hccr^, c. 3. 1 Epiph. Hcer. 32. Philastr. Hair. 40.
SEM 821
S. Francisco, e imitar a Jesus Christo; e fosse porque Sancto Agostinho, que tinha
para lançar a barra ainda além do saneio sido alma do concilio, achasse qne a ma
na sua similhança com o mesmo Senhor, téria não estava ainda assaz elucidada, e
fez-se circumcidar, enfaixar, metter em um temesse dar azo a novas diíTiculdades, que
berço, e quiz ser aleitado por uma mulher. retardassem a condeinnação dos pclagia-
A baixa plebe, que se apinhava cm torno nos, e subministrar novo incidente, sobre
d’csto chefe, digno d’ella, formou uma so que ainda houvesse que disputar, o que
ciedade de homens, que se denominaram na verdade c cercado de trevas; ou final-
Apostolicos. Estes mendigos vagabundos, mente porque os mesmos pelagianos hou
pretendiam fosse tudo commum, sem ex- vessem reconhecido uma graça indepen
ceptuar as mesmas mulheres; diziam que dente dos nossos merecimentos* e não di
Deus Pae linha governado o inundo com versificassem n’estc ponto dos catholicos,
severidade e justiça; que a graça e a sabe mais que em crérem que esta graça con
doria haviam caractcrisado o reino de Je sistia nos dons naturaes.
sus Christo, mas que este passara, c fora Esta espccie demissão, fosse qual fosse
seguido do do Espirito Sancto, que é um a causa d’ella, deu occasião a crer que a
reino d’amor e de caridade, em que esta é Igreja só definira contra os pelagianos o
a unica lei, mas lei que não admittia dis peccado original, a impossibilidade de vi
pensa, nem exccpçào. ver sem culpa, e a necessidade d’uma gra
[$$D'esta maneira, segundo Segarelo, nada ça interior; e que deixara indecisa a ques
do que se pedia por caridade se podia re tão da gratuidade da graça, assim como
cusar, bastava esta palavra para que os outras muitas que se tinham levantado en
seus sectários entregassem tudo, até as tre os pelagianos e os catholicos, no decur
proprias mulheres. Segarelo fez muitos sc- so de suas disputas: portanto se olhou este
o quazes:' por ordem da inquisição foi prèso ponto como questão problemática.
e queimado: e Dulcino, seu discipulo, se Comtudo, Sancto Agostinho nos seus li
pôz á testa dos apostolicos, como se póde vros sobre a graça c o livre arbitrio, sobre
vér no seu artigo.1 * a correcção c a graça, e na sua carta ao
seleuco — Philosopho da Galacia, que ado- papa Xisto, já havia*tractado esta questão,
' ptou os erros de Hermogenes; cria que a provando a gratuidade pelas passagens da
materia era eterna, e increada como Deus, Escriptura, que aílirmam não termos nada
e que os anjos formavam a alma de fogo, que não rccebessemos, e não sermos nós
e d’espirito; isto é, em summa, o systema de os que discernimos; servindo-se do exemplo
Pythagoras: nós havemos refutado estes de Jacob e de Esau, como base do seu
dous erros nos artigos Hermogenes e Mate sentimento: c para responder ás objccçôes
rialistas. 2 com que os pelagianos impugnavam estes
se m i - ariànos —É o nome que deram aos princípios, c salvar a justiça de Deus, se
que diziam que Jesus Christo não era con valera da comparação do oleiro, que da
substanciai; mas que todavia o reconhe mesma massa faz vasos de honra, e vasos
ciam d’uma natureza similhante. de ignominia.
SEMi-PELAGiANisiio— Sómente a palavra Emfim, tinha para si o sancto que, se se
basta para se entender que era o pelagia- créssc ser o homem arbitrio da propria
nismo adoçado: exporemos a origem d’este salvação, era oífendido o dogma da omni-
çrro. poteucia de Deus sobre o coração do ho
Obrigados os pelagianos a reconhecerem mem. Se Deus foz quanto quiz no céo c na
successivamcnte o peccado original c a ne terra, como faria dependente do homem a
cessidade d’umà graça interior, mas que sua salvação? Era, pois, necessario reco
rendo sempre fazer dependente do homem nhecer uma predestinação independente
a sua salvação e a sua virtude, tinham in do homem, sem que aquelle que não é
sistido cm q*ue esta graça devia conceder- predestinado tivesse direito para queixar-
se aos merecimentos. se. Deus, segundo Sancto Agostinho, co
Já Sancto Agostinho nas suas obras ha- roando os nossos merecimentos, coroa os
vi a deixado os pelagianos sem este ultimo seus dons; aquelles que forem condemna-
recurso; mas o concilio d’Africa nada de- dos, o serão, ou pelo peccado original, ou
ci dira expressamente sobre tal objecto, ou pelos seus proprios peccados. Sc forem va
sos de perdição, nao devem queixar-se,
1 Natai. Alex. in sac. 13, 14. D'Argen- porque são tirados da massa da perdição
trr, Collect. Jud., t. 1, pag. 272. Rainald, como aquelles que, tirados da mesma mas
ad an. 1308, n. 9. sa, se tornam vasos de misericórdia, não
9 Phylastr. Har. 54. devom por isso pavoncar-se.
822 SEM
Mas porque razão salva Deus a este, as suas obras; porém muitas pessoas de-
com preferência áqueile? A esta diflicul- consideração, por suas luzes c piedade, se
dado responde Sancto Agostinho que isto offenderam da doutrina do sancto, tendo
é um mysterio, que nào ha em Deus injus que elle fazia depender a sorte dos homens,
tiça, que os seus juizos sào impenetráveis, depois d’esta vida, de um decreto absoluta
mas sahios e justos. Na verdade, diz o san dc Deus, proferido desde a eternidade. Es
cto, se Deus salva por graça, nada deve ta doutrina pareceu dura e contraria, prin-
áquelles que nào salva, e sàó condemnados cipahncntc á dos padres gregos, que, obri
por justiça. gados a disputar contra os manieheus,
Digam-nos os que presumem que Deus marcionitas e philosophos fatalistas, pare
por esta escolha é acceitador de pessoas, ciam mais oppostos a este decreto de sal
qual ó o merecimento do tilho do infiel, ou var os homens antes de toda a previsão de
do homem mau que é baptisado, ao passo seus merecimentos.
que o filho de um pac christào c de uma Cassiano, que passara seus dias no Orien
mãe virtuosa, morre antes que se lhe pos te, onde se tinha applicado muito aos pa
sa administrar o baptismo? Devemos, pois. dres gregos, e com prefercncia a S. João
exclamar com o apostolo: «Oh profundidade Chrysostomo, inquietou-se com este decre
dos juizos de Deus!» etc. to absoluto; communicou as suas dúvidas,
Que poderão dizer os defensores do me examinou-se este decreto, e assentou-se
recimento do homem ao exemplo dc Jacob que Sancto Agostinho, nos seus últimos es-
e de Esau, que Deus escolhera antes que criptos contra os peíagianos, passara muito
fizessem cousa alguma dc bem ou de mal? além do que a igreja decidira, pois que
dirão qn« é o bem ou o mal que Deus ha cila nào decidira a gratuidade da graça; e
via previsto que fariam? Mas então nào licou o sentimento de Saneio Agostinho na
havería fatiado S. Paulo com acerto cm di classe das opiniões problemáticas.
zer sobro este mesmo exemplo que a difTc- Reconheciam, pois, contra os peíagianos
reuça da sorte dos dous irmãos nào era o pcccado original, e a necessidade d’uma
»bra nem dos seus esforços, nem da sua graça interior, mas olhavam como questão
/onlade, mas da misericordia do D eu s.1 problemática a causa porque esta graça
Sancto Agostinho estabelece os mesmos era concedida a uns, e negada a outros.*
princípios na sua carta a Vital: parece Portanto, lançando os olhos sobre este
principiar aniquilando o livre arbitrio, que formidável mysterio, viam a humanidade
elle compara com o dos.demonios, ensina submergida nas trevas e culpavel, e en
que nào deve crêr-se que Deus queira sal traram a indagar porque razão entre ho
var todos os homens, e dá differentes ex mens uns logravam a graça, ao passo que
plicações para mostrar que esta vontade infinidade de outros careciam d’ella. San
de Deus nào os comprehende a todos: en cto Agostinho unicamente oceupado em
sina ser o que prepara a vontade, e a faz estabelecer a gratuidade da graça, em hu
querer, o que a muda pela sua omnipo- milhar o livre arbitrio, que e orgulhoso, e
tente vontade: se assim não fosse. que razão em ter o homem dependente de Deus, cria
havería para dar graças a Deus? não poder encontrar esta razão no homem,
Corno as obras de Sancto Agostinho pa e a suppunha na vontade de Deus.
reciam destruir a liberdade, e metter os Mas, vista por um lado esta decisão, ain
homens na desesperação, n*ellas funda da ficava obscura: pois que razão ha para
dos alguns monges do monte Andrumet, que Deus queira dar a graça a um antes
concluiram que riào eram reprehensiveis que a outro? Querer é escolher, é prefe
os infractores das leis. O sancto, para des- rir: entre objectos absolutamente iguaes
enganal-os. lhes escreveu o livro da Correc- é impossível qualquer prefercncia: os ho
ção e da Gi'aca, aonde confirma estes prin mens abysmados na massa da perdição, e
cípios sobre a predestinação, sobre a ne antes de haverem feito alguma acção pes
cessidade da graça proveniente e gratuita, e soal, são absolutamente iguaes. Depois nào
sobre a fraqueza*do homem: diz que Deus póde preferir um d’clles a outro por um
desde a eternidade predestinou os homens decreto anterior ao merecimento pessoal
á salvação, sem alguma previsão das suas de cada um, pois tal preferencia equivoca-
boas obras, e sem motivo algum mais que se com a cega fatalidade, ou com o acaso.
a sua graça e a sua misericordia. Deus quer que todos os homens se sal
0 nome* que Sancto Agostinho alcançára vem: e como se póde verificar isto, se por
na controvérsia dos peíagianos,- espafhou um decreto eterno o absoluto, tem esco
lhido alguns para serem salvos sem res
1 Epist. ad Xist. peito a seus mereeifticntos, e-deixado to-
SEM 823
dos os demais na massa da perdição? Lo ti ficou o seu sentimento acorra da gratui
go, é necessario reconhecer que a* predes dade da graça e da predestinação: mostrou
tinação, e a vocação á graça, se fazem cm que era claramente ensinada na Escriptu
contemplação dos merecimentos do homem. ra, que não era injusta, pois que Deus nem
A Escriptura diz-nos que Jesus Christo devia a graça de vocação, nem o dom da
morreu por todos os homens: assim como perseverança; que, nascendo os homens
todos morrem em Adão, da mesma sorte pcccadores e privados da graça, nunca po
sào todos vivifieados em Jesus Christo. dia haver proporção entre as suas acções
Não pódc dizer-se que por isto haja en e a graça, que é um dom sobrenatural; que
tendido S. Paulo que uma parte do genero a graça e a vida eterna muitas vezes eram
humano podéssc receber a salvação por Je concedidas a meninos que não tinham ne
sus Christo; porque, para haver do ser nhum merecimento, que outros eram por
acertada esta contraposição que elle faz de Deus tirados d’esta vida emquanlo justos,
Jesus Christo com Adão, é indispensável- para prevenir a sua queda; que, por con
mente necessário que, assim como todos sequência, nem eram os merecimentos dos
os homens receberam de Adão um princi homens, nem a presciencia do uso que el
pio de corrupção e de morte, achem ein les haviam de fazer da graça, os que de
Jesus Christo um principio de resurreição terminavam ;l Deus o coneedel-a a uns #
e de vida, para o qual se podem habilitar: com preferencia a outros; que a razão da
porque, não estando extincto no homem o prefercncia que Deus dava a um homem
livre arbitrio, clle pódc ao menos conhecer sobre outro, era mysterio; que se buscas
a verdade da religião, desejar a sabedoria, sem embora as razões d’isto, e que elle as
e dispòr-so para rocebel-a por esle ultimo perfilharia, dado que, nem derogassem a
movimento, que todavia seria esteril e in- gratuidade da graça, nem a omnipotoncia.
sufllcionte sem a concomitância da graça. Não queria, pois, Sancto Agostinho que,
Quando apertavam os semi-pelagianos para defender a gratuidade da graça e da
com a epistola de S. Paulo aos romanos, predestinação, fosse indispensável suppôr
confessavam elles não acharem cousa que que Deus por um decreto absoluto, e sem
os satisfizesse acerca de varias passagens razão alguma, lá desde a eternidade tives
aa mesma epistola; porém, tinham para si se assentado condemnar uns, e salvar ou
que o mais prudente era guardarem silen tros: a predestinação, segundo Sancto Agos
cio sobre estes objectos, que o entendimen tinho, podia, pois, hão ter por principio nem.
to humano não podia descortinar; e sus um decreto absoluto de Deus, nem os me
tentavam que u sentimento de Sancto Agos recimentos dos homens, mas uma razão in-
tinho fazia frustradas as exhortaoões dos teirámonte diversa: pois quem pódc affir-
pregadores, e a edificação publica; que, mar que conhece todos os desígnios de
ainda sendo verdadeiro, deveria orcultar- Deus?
sc, pois era perigoso publicar uma doutri Entre o decreto absoluto que alvorotára
na que o povo não alcançava, c que não os semi-pelagianos, e o sentimento que at-
havia inconveniente algum em lhe escon tribuia a predestinação aos merecimentos
der. 1 dos homens, na verdade havia um meio;
Como não se definira contra os pelagia- mas os homens de partido nunca o encon
nos a gratuidade da graça, o sentimento tram entre o seu sentimento, e o de seus
dos semi-pelagianos ficou sendo, pois, um adversarios: pòrtanto. prosperava ainda o
problema, sobre o qual se dividiam sem semi-pelagianismo. Fizeram-se acerrimas,
romperem a união; e o semi-pelagianismo e porfiadas disputas entre os semi-pelagia
foi adoptado por homens, que as suas lu nos e os discipulos de Sancto Agostinho,
zes, assim como a sua piedade, tinham fei ao qual defenderam os papas Celestio, Gc-
to celebres; taes foram Fausto, Gcnuado, lazio e. Ilormidas; porém o semi-pelagia
Cassiano, e outros; e havia além d’isto pes nismo todavia dominava nas Gallias, aonde
soas que, sem tomarem partido acerca da a doutrina do Sancto Agostinho era mui
ratuidade da graça, não levavam a hem o impugnada. Vendo, pois, Cesario ainda tal
écrcto absoluto que Sancto Agostinho pa o partido que us discipulos do sancto o não
recia adm ittir.2 podiam dobrar, recorreu ao papa Felix ív,
O sancto doutor, nos seus livros a Pre o qual lhe mandou extractos das obfas do
destinarão, e o Dom da Perseverança, jus- mesmo sancto, que Cesario sem demora
pôz cm uso.
i 1 Prosper. Ep. ad Aug. Hitar. Ep. ad * Por esse tempo fazia Patricio Liberio em
7 Auq. Orange a dedicação do uma igreja. Cesa
2 lbid. rio, quo era seu amigo, e que valia muito
24 SET
com elle depois que o curara de certa en / skthianos—Era urna scita de gjM jcos
fermidade, partiu para a mesma ceremo assTrTTclfainados, porque honra vani parti-
nia, e achou doze bispos que lambem con cularmentc a Selh, que criam ser o mes
correram para o mesmo lim. Practicararn mo Jesus Christo. Reconheciam, como to
todos sobre as matérias da graça, congre dos os gnosticos, um Ente Supremo, im-
garam-se, c approvaram os artigos que ha mortal, bemaventurado; porém, persuadi
viam sido remeltidos a Cesario pelo papa dos de que no mundo havia irrcgularida-
Felix. A esta assembléia ó que se dà o des e imperfeições que nào podiam, no
nome de segundo concilio de Orange, que sentir d’elles, ter por principio um só ente
era composto de doze bispos, c a ella assis sabio e todo-poderoso, altribuiram a genios
tiram também oito leigos. a producçào do mundo.
O concilio publicou"vintc e cinco cano Tudo o que nos diz a historia dos diver
nes, que formaram uma das mais bellas sos estados porque tem passado o mundo
decisões que tem dado a Igreja. N’elles se e o genero humano, lhes pareceu suppòr
decidiu o dogma do peccado original, a ne que estas potências disputavam entre si o
cessidade, e a gratuidade da graça preve- imperio do mesnio mundo, querendo umas
niente para a salvação; condemnam-se as subordinar os homens, e outras libertal-os;
argucias e torcicollos dos semi-pelagianos, e como estes combates, lhes eram arduos
% e responde-se aos impropeiios que estes de explicar no supposto de ser o mundo
faziam aos catholicos de destruírem o li regido por um ente todo-poderoso, e lhes
vre arbitrio, e introduzirem o destino. De parecia que as potências que o governa
clara o concilio que todos os que sào ba- vam o faziam o melhor que era possível,
ptisados devem c podem, se quizerem, tra batcndo-sc já com ardil, já com força des
balhar pela sua salvaçào; que Deus nào coberta: para darem a razão de todos es
predestinou ninguem á condemnação, c tes phenomenos, imaginaram multidão de
sào excommungados os que levam a affir potências aptas para produzirem taes clfei-
mativa, sem que este sentimento possa pre tos. Eis-aqui, pois, como isto se passára,
judicar a doutrina d’aquelles que ensinam segundo as suas idéias.
ser Deus quem nos inspira por sua graça Concebiam clles o Ente Supremo como
o principio da fé c do amor, e o author da uma luz infinita: este era o pac de tudo, a
nossa conversão. que chamavam o primeiro homem.
Concluído o concilio, S. Cesario remet- O primeiro homem produzira um filho,
teu o resultado do mesmo ao papa Fclix iv, que era o segundo homem, o o filho do ho
mas sendo já morto antes que recebesse as mem. O Espirito Sancto, que passeava so
cartas, Bonifácio n, que lhe succedeii, ap- bre as aguas, sobre o càhos, sobre o abys-
provou estes canones: açha-se a sua carta mo, era, no seu sentir, a primeira mulher,
depois do concilio, ou no principio do Va da qual o primeiro homem e seu filho, ti
rios manuscriptos. nham tido um outro filho, a quem davam
Cesario morreu pelo fim do decimo sé o nome de Christo. Este filho sahira de sua
culo, e o semi-pelagianisnio diminuiu in mãe pelo lado direito, e se havia elevado,
sensivelmente. Elle se havia feito mais mas outra potência sahira do lado esquer
possante principalmente por haver affci- do, c tinha descido; esta era a sabedoria,
çoado a si grande numero de pessoas que que se abaixara sobre as aguas, aonde to-
não approvaram o direito absoluto: conde- mára corpo; mas voltando, por assim dizer,
mnado que foi pela Igreja este sentimento, a' si mesmo, sc tornara a levantar, e su
todas cilas abandonaram o partido do semi- bindo á sua morada eterna, formara o céo,
pelagianismo, que somente olhavam como c finalmenlo largara o corpo, logo que che
opposto ao decreto absoluto, e que defen gou á habitação do Ente Supremo.
dia o livre arbitrio contra os que propu- A sabedoria era fecunda, tinha produzi
gnavam a fatalidade. 1 do um filho, c este produzira outras seis
potências, ás quacs attribuiam os sethianos
1 Ácerca da historia do semi-pelagianis- as propriedades necessarias para causarem
mo devem têr-se as Ep. 225, ct 226 de S. os offeitos que no mundo se observavam.
Attg.j S. Prosper, contr. Collat.jCarment. de Entre estas potências suppunham desaven
ingrat. As obras de Fausto. As Conferên ças e guerras; c por este incio queriam ex
cias de Cassiano, Gennade, Tillem ont,}iis t. planar quanto se contava dos estados, por
Eccles., t. 13, 14, 16. Noris, Hist. Pclag., que o mundo havia passado; teudo que o
I. 2, c. 14 et 'seg. Vossius, Hist. Pelag., I. 6, Deus dos exercitos, a quem davam o tio-
pag. 338. Usserius A nti quit, e. 14. Hist. me de Jaldabaoth. cusoberbecido coin o
L ilt. de France, t. 2 et 3. seu poder, havia dito: «Eu sou o Deus Su-
SEY 825
premo, nenhum ente é mais do que eu.» pulos ignoravam a principio quo Christo
Sua màe, estranhando o seu orgulho, houvesse descido a Jesus. Este fez mila
lhe disso que o primeiro homem e o filho gres, pregou ser o filho do primeiro ho
do homem, lhe eram superiores. Irritado mem: os judeus o crucificaram, e eutào
Jaldabnoth cm vingança, chamou os ho Christo largou a Jesus, começado que foi
mens, o lhes disse: «façamos o homem á o supplicio.
nossa similhança», e logo formou o homem, O Christo resuscilou a Jesus, que, depois
e lhe inspirou um sopro de vida; immc- da sua resurreição, tomou um corpo glo
diatamente lhe formaram uma mulher, rioso, e nao foi mais reconhecido por seus
com a qual tiveram tracto os anjos, e d’cs- discipulos: depois subiu ao céo, ao qual
tc commercio nasceram outros anjos. attrahiu as almas bema ventu radas, sem
Jaldabaoth deu leis aos homens, e lhes que d’isto saiba o Creador.
vedou certo frueto. A màe de Jaldabaoth, Quando o espirito de luz que existe en
para sopear o orgulho de seu filho, desceu, tre os homens se reunir no céo, e formar
produziu uma serpente, a qual persuadiu uma Eon immorlal, será o fim do mundo.
a Eva que comesse do fruclo vedado. Se Alguns dos sethianos criam que a sabe
duzida Eva, persuadiu a Adão; e o Crea- doria se havia manifestado aos homens na
dor dos homens, oITondido pela sua desobe figura de serpente; portanto é verosimil
diência, os lançou fóra do Paraizo. que lhes chamassem ophitas por irrisào,
Adão c Eva, opprimidos da maldição do como se elles adorassem uma serpente.
Creador, não tiveram filhos: a serpente Houve ophitas differentes dos sethianos, os
desceu do céo á terra, submetteu os anjos, quaes renegavam de Jesus Christo: veja-se
c produziu outros seis, que foram inimi o artigo Ophitas. 1
gos dos homens, porque estes a haviam SEVEgp—viveu pouco depois de Taciano,
obrigado a deixar o céo. A serpente para c foi cnefe da scita dos severi anos. A ori
suavisar a sorte dos homens, os havia es gem do bem e do mal era por esse tempo
clarecido com uma luz sobrenatural, por a grande questão que todos se esforçavam
meio da qual acharam o seu sustento, e ti por elucidar. Creu Severo que o bem e o mal,
veram dous filhos, Caim c Abel. Caim, se que se viam no mundo, suppunham este
duzido pela serpente, matou Abel; mas, submettido a princípios oppostos, dos quaes
emfim, Adão c Eva, favorecidos pela sabe uns eram bons, outros maus; porém todos
doria, tiveram Seth e .Norca, d’onde veem subordinados a um Ente Supremo, que re
todos os homens. sidia no mais alto dos céos.
A serpente conduzia os homens a toda a Como o bem e o mal quasi por toda a
sorte do crimes, ao passo que a sabedoria parte andavam de mistura, Severo teve pa
impedia se extinguisse a luz entre elles. ra si que entre os bons e maus princípios
Irritado o Creador cada vez mais contra os houvera uma especie de contracto, ou
homens, inundou a terra com um diluvio, transacção, pelo qual tinham posto sobre
que aniquilaria a raça humana, se a sabe a terra igual quantidade de bens e de ma
doria não houvesse preservado na arca a les: e que para a formação do homem, que
Noc. que tornou a povoar a terra. é um connexo de qualidades estimaveis, e
Não podendo, pois, o Creador cxtinpuir viciosas, de razão e de paixòes, haviam co
os homens, quiz fazer com elles um pacto, operado igualmente os bons e os maus es
para o que escolheu Abrahào. Moysés, píritos.
descendente do Abrahào, em virtude do Segundo os princípios geraes d'este sys
mesmo pacto, tirou os hebreus do capti- tema, nada podia importar taulo ao homem
veiro do Egyplo, e lhes deu uma lei: de como conhecer distincta mente o que rece
pois escolheu Sete prophetas; mas a sabe bera das potências beneficas, c a parte que
doria lhes fez annunciar a Jesus Christo: n’ellc tiveram as maléficas.
e por este artificio se houve de tal manei 0 homem, no sentir de Severo, tinha
ra, que o Deus Creador, sem saber o que duas propriedades principaes e essenciacs,
obrava, fez nascer dous homens, um de que, d’alguma sorte, faziam o seu todo; a
Izabcl, e outro da Yirgem Maria. racional e a sensível: a sensibilidade era o
Fatigada a sabedoria dos desvelos que ti principio de todas as suas paixòes, c estas
nha com os homens, se queixou a sua màe, a origem do todas as suas desgraças, âo
a qual fez descer o Christo a Jesus para passo que a razão sempre lhe procurava
que o soccorresse. Descido que foi, nasceu
Jesus da Virgem por obra de Deus, e foi 1 Iram., l. i, c. 34. Epiph. Hcer. 34. Tert.
o mais sabio, o mais puro, o o mais iusto de Pvmscript., c. 47. Phitastr. de H m \, c. 3,
de todos os homens. Muitos de seus disci- de H c e r c . 79. Damasc. Han\ 39.
826 SIM
prazeros tranquillos e puros: Severo creu, ou destrezas, é sem dúvida que allucina-
pois, quo das potências beneficas recebera vam_ quasi todo o povo de Samaria, que
a razão, c das maleficas a sensibilidade. Simão levou as suas attenções, fez entrar
D’estes principio» geraes concluiu Seve Dositheo na classe dos homens ordinarios,
ro que, o assento da razão era obra.dos e foi appcllidado a grande virtude de Deus.
entes beneficos, e o das paixões, das potên Estando porém Simão no maior auge da
cias maleficas; portanto, os corpos huma sua gloria, pregou S. Philippe na Samaria,
nos, desde a cabeça até o umbigo, eram aonde fez milagres, quo desenganaram os
producçào do bom" principio, c o resto do samaritanos. Hcconheceram os prestígios
mau. do impostor, que foi abandonado de mui
Depois de assim formado o homem de tos; c elle mesmo se maravilhou do poder
duas partes tào contrarias pelo bom e mau que tinham os pregadores do Evangelho;
principio, estes pozcrain sobre a terra quanporém não os olhando senão como magi
to podia conservar-lhe a vida: o ente bene cos de ordem superior, c o baptismo, ora
fico o rodeou de alimentos proprios para ções e jejuns, como iniciação para os mys-
entreterem cã organisaçfio do corpo, sem terios do Christianismo, que, no seu pare
excitarem as paixões; c o malefico, de cer, nada mais eram quo uma espocie do
quanto podia accendel-as, e extinguir n’el- magia, fez-se baptisar, orava, jejuava, e
le a razão. era inseparável de S. Philippe, na esperan
N ’osta mesma conformidíide, como as ça de lhe apanhar o seu segredo.
desgraças quo afiligem os homens quasi Quando os apóstolos souberam que o '
sempre se vé provirem da embriaguez e Evangelho fôra recebido na Samaria, man
do amor, d’aqui concluiu Severo que o vi daram a ella S. João, e S. Pedro para con
nho c as mulheres haviam sido producções firmarem os fieis: impozeram-lhos as mãos,
do mau principio; c que, pelo-contrario, a e o Espirito Sancto desceu sobre elles vi
agua que conservava o homem em socego, sivelmente, o que bem se manifestava pelo
era producçào do bem. dom de prophecia, pelo das linguas, etc.
Os cncratistas ou facionistas, que acha Simão, cada vez mais assombrado do po
ram os princípios de Severo favoráveis ao der dos apostolos, quiz comprar a S. Pe
seu sentimento, se uniram com elle, e to dro o seu segredo, porque não formava
maram o nome de severianos.1 outra ideia do dom dos milagres: S. Pedro
sev er ia n o s — Discipulos de Severo, d e q u e
se horrorisou de tal proposição, e llfa es
acabamos de fallar. tranhou muito; e Simão, que*temia o poder
Ha lambem severianos assim chamados do Sancto, lhe ppdiu que orasse por elle. 1
por estarem ligados a Severo, chefe dos Com o dinheiro recusado por S. Pedro,
acephalos. comprou Simão uma merotriz por nome
sir.ENCiosos— E a s sim que se d e n o m in a m
Helena, que é verosimil servisse ás suas
o s que n ã o rendem c u lto s e n ã o em s ile n
operações magicas, e igualmentc aos seus
cio, passatempos.2 Com esta companhia se re
simão, por sobrenome o mago— ora da tirou para aquellas provincias, aonde não
villa de Gilton, na Samaria: foi discipulo estava ainda annunciado o Evangelho, e
do magico Dositheo, que se inculcou o Mes combateu a doutrina dos apostolos áccrea
sias, annunciado pelos prophetas: fez ex da origem do mundo c da Providencia.
traordinarios esforços para sobresahir a Poderá suppôr-se, dizia Simão, que o En
seu mestre na arte*dos prestígios, e o con te Supremo produzisse immediatamentc o
seguiu; pois, segundo affirmam, passava mundo? Se houvesse formado o homem,
illeso por entre as chammas, atravessava prescrcvcr-lhe-ia leis que elle sabia não
os ares como as aves, transformava-se, e havia de observar? Ou se quiz que Adão
apparecia em mil fôrmas diversas; a sna observasse os seus preceitos, qual é então
palavra abria as portas, fazia das pedras o poder d’cstc Creauor, que não preveniu
pão, e produzia arvores. 2 a queda do homem? Não, o Creador não é
Ou estes prestígios fossem eífeitos do um sér todo-poderoso, soberanamente per
pacto que Simão tinha com os domonios, feito e bom: é um ente inimigo dos ho
mens, que só lhes deu leis para ter crimi
1 Euséb. Hist. Eccles.j l. 4, c. 29. Epiph. nosos que punir. Tal é o systema, que Si-
Hcer. 44. mào subrogava á doutrina dos aposlolos,
2 NicephorCj /. 2. Hist. Eccles., c. 27.
Ciem. Recognit, I 2. Al. Basnage nega estes
factos, mas não dá razão alguma da sua 1 Ari. Apost., c. 8 ,v . tO.
opinião. 2 Tert. de Anima, c. 34.
SIM 827
<i pelo qual creu prevenir as dilllculdades tencias para ostentarem seu poder, produ
que Ilie podessem objeetar. 1 ziram o mundo, e para que os tivessem
Valia por então muito a philosophia pla por deuses supremos e incn»ados, retive
tônica no Oriente, ou, faltando com proprie ram sua mãe entre ellos, fazendo-lhe mil
dade, nào era o systema de Platão, que tal ultrages, e para que não voltasse a seu
vez não teve nenhum, mas em substancia pae, a encerraram no corpo d’uma mulher;
o sentimento, (pie reconhecia no mundo de sorte que de século em século se tinha
um espirito eterno, e infinito, pelo qual transfundido nos corpos de varias mulhe
tudo existe. Os platônicos não criam que res, como de um vaso em outro. Esta era
este espirito houvesse produzido immedia- a formosa Helena, que motivou a guerra
tamente o mundo que habitamos; mas ima de Troya, c transmigrando de corpo em
ginavam entre o Ente Supremo e as pro- corpo, se achava reduzida á infamia de es
ducções da terra uma cadeia dilatada de tar exposta cm um logar de devassidão.
espíritos ou de genios, por intervenção dos Eu quiz tirar Helena (festa situação ser
quaes explicavam todos os phcnoraénos: e vil e desprezível: procurei-a como"o pas
como estes genios não tinham poder iufi- tor procura a ovelha desgarrada, rorri os
nito, presumiram poder-se resistir a seus mundos, cncontrei-a, c quero reslituil-a ao
esforços por segredos ou encantos; por is seu primeiro esplendor.
so se achava incorporada a magia com es Assim pretendia Simão justificar o des-
te systema, o qual, segundo se mostra, era còco de associar-se na sua missão com
absolutam ente arbitrario nas suas indivi uma merctriz. Beausobre quer que a his
dualidades: tal foi o que Simão adoptou, e toria de Helena seja uma allegoria que
do qual pretendia capacitar o povo. designa a alma; mas esta opinião e muitas
Suppunha ellc uma intelligcncia supre outras mc pareceram mal fundadas, e so
ma, cuja feoundidade produzira outra in mente próprias para mostrar um homem
finidade de potências com propriedades di de engeuho, que impugna lestimuuhos po
versas até o infinito; entre estas potências sitivos por meio de conjecturas especiosas.
tomou para si o logar mais distincto; c so Correndo os mundos formados pelos an
bre esta base estabeleceu todo o seu sys jos, dizia Simão, vi que cada um ei a go
tema theologico, destinado a explicar ao vernado por uma potência principal; que
povo a origem do peccado no mundo, e a estas potências, emulas e ambiciosas, dispu
do mal, o restabelecimento da ordem,1 e tavam entre si o imperio do universo; que
redempção dos homens. Não. negava, pois, alternadamente exercitavam um poder ty
Simão estes dogmas, porém asseverava que rannico sobre o homem, prcscrevondo-lhe
os apostolos os explicavam mal: eis-áqui mil prácticas fatigantes e insensatas: con-
qual era o seu systema, cm substancia, que doendo-mc do genero humano, resolvi qyc-
servia de desenho a muitos hereges dos brar-lhe os grilhões, e pòl-o na sua liber
primeiros séculos; do que bem se collige dade, esclarecendo-o; para este fim tomei
que então se cria o peccado original, e se fôrma humana, c som o ser apparcci ho
esperava um redemptor. mem entre os homens.
Venho ensinar-lhes serem as differentes
religiões obra dos anjos, que, para terem
DO SYSTEMA DE SIMÃO
os homens debaixo do seu império, inspi
ravam os prophetas, c persuadiram que
Eu sou, dizia Simão, a palavra, a formo havia acções boas c más, que seriam puni
sura de Deus, o Paracleto, o Omnipotente; das ou recompensadas. Os homens alemo-
sou tudo o que ha cm Deus. Por minha risados com as ameaças, ou seduzidos com
omnipotencia produzi intelligencias dota as promessas, se negavam aos prazeres, ou
das do diversas propriedades, e lhes dei entregavam á mortificação: venho despre-
differentes graus de poder. Quando me occupal-os; não ha acção boa ou uiá por si
propuz a fazer o mundo, a primeira d es mesma; a minha graça, c não os seus me
tas intelligencias penetrou o meu desígnio, recimentos, é quem os salva; para isto bas
c quiz prevenir a minha vontade: desceu, ta crérem em mim* e cm Helena: portan
produziu os anjos e as outras potências c$- to, não folgo que meus discipulos dei‘ra-
pirituaes, ás quaes não deu conhecimento mem o seu sangue para sustentarem a mi
algum do sêr omnipotente, a quem devia nha doutrina. Acabado que for o tempo
a sua existência. Estes anjos e estas po- destinado pela minha misericórdia nara
iUustrar os homens, destruirei o mundo, c
i Fragmento das obras de Simão, repro não haverá salvação mais que para os
duzidas por Grabe. Spicileg. PP., pag. 308. meus discipulos: as almas d'estes, soltas
i
828 SIM
das prisões do corpo, gosarào da liberdade Simão, mas não se ajustam sobre o tempo.
dos espíritos puros, c ficarão debaixo da Sancto Irenco o S. Cyrillo de Jerusalem
tyrannia dos anjos, todas as que houverem dizem que por ordem do imperador Clau
rejeitado a minha doutrina.1 dio, e por consequência depois de morto
Tal era a doutrina de Simão: um pres Simão: e Sancto Agostinho, pelo contrario,
tigio, que lhe servia de prova, subjugava diz que esta estatua fôra erigida por per
a imaginação dos seus ouvintes; querem suasões do mesmo Simão: 1 porém alguns
ser seus discipulos; pedem o baptismo, o criticos celebres presumiram que se havia
fogo descia sobre as aguas, c Simão os ba- tomado a estatua do Deus Semon Sangas,
ptisava: 2 por tacs artifícios seduziu in- por uma de Simão, c eis-aqui o fundamen
numoraveis pessoas, e se fez adorar como to da sua conjectura.
0 verdadeiro Deus. Como conhecia a ex Sabe-se que os romanos, á imitação dos
tensão da credulidade, não ignorava que sabinos, adoravam um Semo Sanciis, que
as mais claras contradicções desappare- diziam ser o seu Hercules: e n’cslcs ulti
cem aos olhos deslumbrados com o mara mos tempos foi achada uma estatua na ilha
vilhoso, e que emquanto dura o encanto, do Tibre, aonde S. Justino diz fôra colloca-
a imaginação concilia as idéias entre si da a de Simão, a qual tem esta inscripção,
mais estranhas. Assim sustentava ser onrai- que se avisinha muito á que refere S. Jus
potente, bem. que fosse sujeito a todas as tino: Semoni Sanco (ou Sango) Deo fidio
enfermidades da natureza humana; dizia- sacrum. Sex. Pompeius Sp. L. Coi. Mnssia-
se a grande virtude de Deus, bem que ar nus quinquennalis. Decurio Bidentalis do
ruinasse toda a moral, e não podesse li num dedit. Esta estatua achada no pontifi
vrar os seus adoradores d’algum dos ma cado de Gregorio xra, em 1574, no mes
les que padeciam. mo logar em que S. Justino diz se levan
Os discipulos d’este embusteiro perpe tara a de Simão Mago, deu occasião a crér-se
tuaram a illusão por meio dos prestígios que S. Justino havia confundido Semon com
que a haviam produzido; e o povo, que Simão, principalmente porque os abrido
nunca se cansa cm examinar uma doutri res muitas vezes punham um 1 por um E,
na que não o violenta, adorava a Simão, e e também se encontra muitas vezes Semon
cria nos seus sacerdotes. Nota S. .Justino Sanctus, assim como Sancus, de sorte que
que pelo anno 15*0 quasi todos os samari- a inscripção* podia ser tal qual a refere S.
tanos e ainda alguns outros, em. diversos Justino, e nada ter de commum com Si
paizes, reconheciam a Simão pelo maior mão Mago. Entre os authores pagãos não
dos deuses; e no meio do terceiro século se achara rastos d’êste acontecimento, o
tinha adoradores, como se deixa vèr de que apenas seria possível, se fosse verda
certo author antigo, que impugnava a S. deiro; demais que os judeus eram o odio
Cypriano. de Claudio, e o senado perseguia os ma
Simão compôz muitos discursos contra gicos, e os exterminava de Roma. Final-
a fé de Jesus Christo, que tinham por ti mente, é sem dúvida que a apotheose só
tulo—/15 contradicções—dos quaes Grabe era concedida aos imperadores, e ainda
nos deu alguns fragmentos.3 Alguns dos a esses depois da morte: e como fariam de
discipulos de Simão quizeram fazer seita Simão um Deus durante a sua vida?
separada: um (Testes foi Menandro, que Tillemont sustenta que havendo S. Jus
variou em parte a doutrina de seu mestre, tino citado este facto na sua Apologia,
e seus sequazes se denominaram menan- dirigida ao senado, e se não fosse verda
drinos. Veja-se o artigo Menandro. deiro, o leriam logo convencido de falsi
dade: demais o sancto, continua Tillemont,
cita igualmente na segunda Apologia, e
DA ESTATUA LEVANTADA A SIMÃO
também no dialogo contra Triphon, co
E A SUA DISPUTA COM S. PEDRO
mo um facto que não carecia de ser pro
vado; por consequência, continua Tille
Aflirmam S. Justino e outros padres, mont, os pagãos que podiam convencel-o
que em Roma se levantou uma estatua a de falso, não duvidaram que se houvesse
levantado uma estatua a Simão, e em abo
1 Iram.j l 1, c. 20. Grab, edit. Mas- no d’estc sentimento cita a M. FIcury, etc.
su et, c. 23. Porém póde responder-se a Tillemont:
Ct/pr. de Baptism. l.° Que as apologias de S. Justino não
3 Dionis, de Divin. nominibus, c. 6,eram obras que o senado emprehendesse
pag. 594. Constit. Apost., I. 6, c. 8, 16.
Grab., Spicileg. PP-, pag. 305. i Justin., Apolog. 1, c. 34.
soe 829
refutar, e portanto nada prova o silencio ^ es respeitarem mais do que estes o Sacra
te em favor do sancto. 2.° Este facto era de mento da Eucharistia. 1
mui pouca importância para ser objecto socialismo—-Todo o homem que ama a
de controversia. 3.° Sendo notorio, como o verdade, deve ter a certeza de a não encon
inculcam, que razão ha para variarem trar n’aquelles que fogem d’ella, e que não
tanto os padres acerca do tempo em que se distinguem entre si senão na fórma de
a estatua se erigiu, dizendo uns que fòra aborrecel-a e combatcl-a.
vivendo Simão, e outro depois de morto? Em vão se busca a philosophia onde não
Se fosse tào conhecido o acto pelo qual o existe a verdade; c discorrendo os refor
imperador, e o senado haviam levantado a madores do mundo europeu a tão grandes
estatua a Simão, não se veria n’elle exacta- distancias uns dos outros, em vão se bus
mente se governava Nero ou Claudio? 1 cará também em suas theorias a philoso
Também nos parece que Tillemont não phia dos governos, capazes de proporcio-,
tinha os melhores fundamentos para se narem o bem, o bem de todos os bens, que
apoiar com a authoridade de M. Fleury: é a paz e a virtude em todas as classes da
este refere o facto da estatua, analysan- sociedade.
do a apologia de S. Justino; porém não Ninguem desconhece as difíerenças es-
o abona, nem o examina: finalmente, o pa senciaes que separam os muitos e diver
dre Petau, Ciaconio, M. de Valois, Rigault, sos partidos desde o momento 2 em que
Blondel, etc., reconhecem que S. Justino Satanaz parece ter rompido’a triplicada
se enganara.2 cadeia que o retinha no inferno, para inau
Muitos authores do quinto século refe gurar o seu reinado sobre a terra. Em
rem que Simão, havendo-se feito elevar França, em Hespanha, cm Portugal, na
sobre os ares por dous demonios em um Italia* na Allemanha, appareceu uma mul
carro de fogo, fôra precipitado pelas ora tidão de apostolos da civilisaçào, que ado
ções de S. Pedro e de S. Paulo, e morre ptando um novo projecto, e prégando uma
ra da sua queda: porém este facto é apo doutrina particular, cada um arrogou a
crypho; porque ainda prescindindo da dif- si o direito de evangelisar a seu inodq a
ficuldade que ha em o conciliar com a renovação de todas as cousas.
chronologia, é certo que a queda de Si A historia dos sessenta ou setenta ulti
mão pelas orações de S. Pedro era de mos annos, é onde o espirito observado
grande momento para que houvesse de encontra resolvidos os problemas do egoi
ser ignorada dos christãos, e não se ser mo e da ambição, acobertados com o noo
vissem d’ella os apologistas dos primeiros de philosophia.
séculos: e comtudo S. Justino, S. lreneo, Jâ abalisados escriptores vingaram a vei
e Tertulliano, que fallaram da estatua, na dadeira philosophia da nódoa feia e as
da dizem d’este acontecimento.3 querosa com que a tem procurado man
siscidenses —Tinham os mesmos senti char essa multidão de seitas immoraes e
mentos que os valdenses, excepto o de irreflectidas; e se hoje nos lembramos de
suas luctas e contendas, é só porque esta
1 Tacit. Anal., I. 2, cap. 7. opposição entre os reformadores é o ca
2 Petavins, in Epiph. Henr. Valesius, racter mais decisivo da falsidade de suas
ad Euseb., l. 2, c. 13. Desid. Heraldus, in maximas, e a prova mais concludente da
Arnob. et Tert. Rigalt. in Tert. Blondel de nuljidade de seus systeraas de reformas.
Sybilla, c. 2. Vandaie, Dissert, de Orac. É certo que a experientia já tem prova
Ittigius, Dissert. de D ar., $ect.,i, c. 1. do muito em defesa da humanidade, sedu
3 Os authores que referem a queda de zida e enganada pelos partidários da refor
Simão, attribuiram talvez a este impostor ma politica e religiosa: é verdade que com
o que Suetonio diz d’um tal que, em tm po difíiculdade se acha um homem do fino
de 'Nero, se elevou sobre os ares, e cahindo, juizo em toda a Europa; que se não ria de
se despedaçou. Esta conjectura dlttigio não despréso quando os farçantes das escolas
c destituida de verosimilhanr.a: corria tra
dição antiga que Simão voava; achou-se 1ileus.—Pessoas houve-que julgaram serem
um homem, governando Nero, que presu batidas por occasião da victoria que S. Pe
m ia tei' o segredo de voar, e julgava-se dro alcançara de Simão: mas m o é neces
que era Simão. Não ha cousa mais ordi sario que passemos a fazer reflexões sobre
naria que umas taes combinações. esta pí'ova. Veja-se David de La Roque,
A Paulo IV apresentavam medalhas que, Dissert. de Legione fulminant, pag.Siõ.
du m lado traziam a Nero, e do outro a 1 D upin, X I I I século .
S. Pedro, com esta inscripção—*Petrus Ga- 2 Falíamos do annb 1790.
53
830 SOC
reformistas, cujos ensaios nào teem tido cter de verdade, de que a mesma mentira
outros resultados senão miserias e desgra tem querido tirar partido em todos os tem
ças, pedem para occupar os governos e fa pos, como unica segurança da impostura.
zerem aquillo que só d’ellcs se póde espe Cubra-os dignominia a s’ua indiscrição e
rar por virtude e graça de suas palavras malignidade; quando todos aborreceram e
e promessas: é indubitavel que Voltaire, desacreditaram a religião, nenhum se pôz
Rousscau, Didcrot, Marat e Uobespierre, em dcsintelligencia com seus camaradas
nào se podem citar sem que sejam maldi para resolverem o que dariam aos povos
tos de todos e em todas as partes; assim em troco do Evangelho.
como os seus discipulos occultam çuidado- Unanimes todos os reformistas philoso
samente a sua origem, dissimulam seus phicos nas operaçóes para derribar a fé,
princípios, e se envergonham hoje dos ab dividiram-se puerilmente quando tracta
surdos da impiedade que os allucinou em ram de fazer fallar essa razão, que procu
outro tempo, sem poderem explicar a cau ravam restabelecer em seus direitos, dis
sa que serviu de pretexto para não senti persando-se em pequenas fracçôes, a fim
rem logo tanto delirio c impostura; mas, de que cada um fosse poi* sua parte fabri
de que serve tudo isto? Para variar o ca car systemas superficiaes, sem nexo, sem
minho, porém com o mesmo objecto, com consistência, e que se destroem por sua
o mesmo fim e com resultados mais fataes, mesma contrariedade, assim como se ridi-
que os já experimentados até hoje. cularisam por falta de intelligencia genui
Setenta annos de ensaios systematicos na e recta.
de governo, deram tempo para observar É esta a origem do socialismo, que é
as novas creaçoes da ambição e do espiri hoje o novo caracter que tomou a reforma
to orgulhoso, material e corrompido. Se politica, para continuar a obra da regene
tenta annos de predicas rcformadoras con ração europeia.
tra Christo, contra a sua Igreja e seus mi Consumidos os elementos encyclopedi-
nistros, produziram esses monstros de ir- cos sem resultado do utilidade alguma pa
eligião e de incredulidade contra quem se ra os povos; descridos estes em religião, e
ivanta a imprensa orthodoxa de todo o desvanecidas as illusões creadas pelos phi
undo, e pede que a religião, tão despre- losophos modernos; multiplicados os males
.da antes e expulsa ignominiosamente dos immensos, prostradas as massas por falta
ovos, fórme uma parte principalissima, de alimento *e força, ha homens que conhe
lalvez exclusiva na moralisação dos gover cem esta situação, e procuram aproveilal-a.
nos e dos governados; e eis-aqui conde- É verdade, e falíamos assim com a fran
mnada a philosophia impia pelos factos e queza que devemos e que nos é própria
opinião pública, e nào só condemnada por quando escrevemos em defesa da fam ilia
suas consequências, mas também por seus catholica. Os Proudhons, em França, os
princípios e fundamento de seus systemas, Mazzinis, na Italia, e os seus discipulos,
sem exceptuar um só de quantos se teem em Portugal, conheceram que o povo esta
representado na Europa. va desenganado, farto e enfastiado das fal
Tomem nota d’is to o s homens sensatos, sas promessas que lhes fizeram; conhece
e para não serem mais enganados para o ram também que renasce no coração so
futiiro, nunca esqueçam que a marcha da cial um sentimento religioso que faz sus
verdadeira philosophia deve ser nobre, pirar pela religião da igreja catholica; lem
franca, harmoniosa, cheia de vigor e ma- braram-se que todos os povos da Europa
gestade, porque tem por base a mesma uma vez já se levantaram em massa para
verdade, que é eterna, e fallando segundo pedir o impeFio da religião evangélica, e
o nosso pensamento, porque o seu fundo que se não o teem feito muitas vezes, é por
é a realidade da intelligencia infinita. que o receio do que succedeu então os
Escapou esta consideração tão simples contém e amedronta, porque ainda parece
aos philosophos reformistas, cuja prudên a alguns que o imperio do Christianismo
cia e saber tanto se applaudiu em seus não é possível sem a inquisição, porque
melhores dias; 1 e em seu desígnio de sub ainda dura a impressão que receberam
stituir ao Christianismo princípios alheios dos philosophos, pela qual olham os paro
á sua doutrina, nem sequer souberam imi chos e os frades como barbaros e cruéis;
tar a unidade, a concordia e aquelle cara- conheceram, finalmente, que no dia em
que se realisasse essa especie de receio
í . is to é, h a tres o u quatro annos que se que inspira, e que sem motivo nem fun
levantou co n tra elles o sy ste m a co m m u n ista damento algum se diz despotismo sacerdo
tal, era o ultimo de suas representações
e socialista.
soc 831
philosophicas; por esta causa se adianta-' por uma vestidura séria c se inculcam
ram para adular os povos, segundo o sen mestres d’urna doutrina verdadeiramente
tido religioso que fôrma seus desejos, e social c civilisadora, e favorecidos pelas
lhes disseram: «Tendes razão; todos os circumstandas que sustentam um desgos
reformistas foram uns miseráveis ímpios, to e um tedio quasi geral, promettem com
que vos enganaram para vos tornar cada emphase propria dos charlatães sanar to
vez mais infelizes; por isso nos encarrega das as doenças, e servindo-sc da hypocrisia
mos da vossa defesa; nossa unica divisa de Janscnio, systematisar um governo pa
será a fé christà, com ella vos daremos o ternal, segundo o modo que ensina e dis
réinado da justiça, segundo Christo, por põe o Evangelho: esta farça diabolica póde
que o socialismo que vos ensinamos, é o produzir consequências de uma natureza
mesmo que ensina o Evangelho.» tão particular, que obscurcça o fogo des
Infeliz Europa! se teus males tc obrigam truidor da impiedade e o egoismo a quem
a solTrer estes novos medicos, tua agonia ella substitue.
nâo será longa, é verdade, porque morre- Principiaremos por mostrar que ainda
rás ou serás a escrava do mais vil dos ty não ha um século que pompeu na Europa
rannos. Só ha um caminho para remediar a grande revolução, que banhou toda a sua
os males presentes e futuros, é a religião terra em sangue*, e cscandalisou o mundo
catholica ensinada por seus legitimos pas com seus delidos; tudo isto cm nome da
tores e ministros, practicada com inteira humanidade e da fraternidade que se acha
liberdade e independcncia, segundo o mo- va vilipendiada, escravisada ou desconhe
<lo disposto por Jesus Christo. Então se cida por o ascendente c ensino dos princí
verá que o socialismo de hoje é uma im pios catholicos; de sorte, que então, e mui
postura, como o vamos demonstrar no se to mais depois, a religião christà foi olha
guinte capitulo. - da como o unico inconveniente que encon
trava a humanidade para reconstruir-se
felizmente pela fraternidade natural, e o
O SOCIALISMO D ^O JE É UMA IMPOSTURA
Evangelho o inimigo da civilisação, do
EM SUA ORIGEM E EM SUAS CONSEQUÊNCIAS
adiantamento c do progresso. Assim era-
prchenderam os reformadores da rccon-
A ambição c o orgulho, que foram o strucção das nações europeias, começando
mananciardas desgraças do genero huma por atacar a religião, despojar a Igreja
no, continuam destruindo o germen da fe perseguir seus ministros, escarnecer d-
licidade, preparada por Deus para a espo doutrina evangélica, corrompendo as mas
l i e e para o individuo, ou para o homem, sas c os povos. Poréin agora que os pove
para as familias, para as nações e para to descobriram os seus embustes e artifícios
do o inundo. e estão dispostos a condemnar todos os de
Analysando-se cuidadosamente todas as li rios c farças ridiculas com que teem sido
theorias e systemas que desde a mais remo enganados, se apresentam os novissimos
ta antiguidade se apresentaram succossi- farçantes cm scena politica, e, acobertados
vamente para fortificar os direitos, acções com a hypocrisia a mais refinada, se col-
e interesses, com despréso dos princípios locam apparentcmcnte do lado das victi
indefectíveis da verdade eterna, achar-sc- mas; maldizem os seus verdugos, e que
hà sempre uma identidade palpavel, por rendo aproveitar-se do sentimeuto religio
mais que as palavras se alterem em sua so que renasce como nnieo recurso c alli-
essencia, em seu objecto e na injustiça de vio da humanidade afflicta, annunciam o
•suas pretenções. Seriamos, demasiado ex seu systema social como filho da religião
tensos se pretendessemos reproduzir quan do Evangelho, e proprio dos que professam
to a historia nos apresenta em confirmação e estimam o Christianismo.
(Testa verdade, e tardaríamos muito em Tal ó a sagacidade com que o socialis
chegar ao ponto principal, que hoje nos mo pretende substituir a philosophia im
interessa analysar para descobrir o ab pia, e enganar novamente os incautos ser
surdo do socialismo, que nada menos pre vindo-se da doçura e caridade que a Igre
tende que inculcar-se ensinado c robuste- ja aprendeu do Homem Divino, como se
cido com a doutrina do Evangelho. suas loucuras se podessem irmanar com
É esta uma scena que observando-se so a fraternidade e amor que o Evangelho
no espaço indefinido das idéias, move à recommenda aos christãos. Entremos ^ e s
compaixao e ao riso dos homens sábios e te denodado labyrintho de novissimas idéias
de coração recto: mas quando se vô que e descubramos o artificio cora que se acha
os actores trocam a vestidura theátral disposto o seu systema.
832 soe
Nenhum methodo nos parece mais pro e que já nao basta para satisfazer as suas
prio para descobrir o sophisma, que apre torpes e corrompidas paixões; ideia bem
sentar com claridade a doutrina sà da Igre distincta por certo do que encerra a dou
ja, segundo o Evangelho; foi a isto que trina de Jesus Christo, quando pela cari
nos propozemos, escrevendo o presente ar dade pretende formar uma familia de ir
tigo. mãos; porém, sem ameaçar a distineção ci
vil e social dos povos, pelo contrario, for
tifica da mesma maneira que a alma con
AMARÁS A DEUS E AO PROXIMO serva os diversos membros do organismo
COMO A TI MESMO 1 em sua actividade própria para obrar seni
confusão.
Pouca reflexão basta para conhecer a
Instituindo Jesus Christo uma sociedade grande diflerença que existe entre a poli
religiosa encarregada de ensinar a todos tica da mancommunidade social, syslema-
os homens estes preceitos, fundou uma so tisada por Proudhon e Mazzini, e Na que
ciedade universal, que de maneira alguma procede da caridade sancta e evangélica.
tem o menor ponto de contacto com as pre- Aquella representa o espirito de familia,
tenções ridiculas do socialismo moderno. E de corporação e de provincia, como op-
verdade que niíiguem póde crêr na fé da posto ao espirito nacional, e por consequên
Igreja sem a fazer extensiva á sociedade cia pretende desenvolver um estado entre
catholica, e ainda dizemos mais, porque a a extensão dos sentimentos mais naluraes
caridade, que é a pleniludeda lei, - faz pal e legitimos, e tornal-o livre com cidadãos
pitar o coração, aonde se asyla pelo bem escravos, forte com membros debeis, e
de toda a humanidade. Esta'palavra 3 in cheio de vigor e vida povoaudo-o de cadá
dica com bastante claridade o dogma ca veres. Esta, pelo contrario, nada destroe
tholico, e lembra aos homens que são uma de quanto naturalmente existe; o que faz
mesma carne e membros de um mesmo é trabalhar para que cada cousa occupe o
?orpo, cuja vida jamais se completará em- seu logar e concorra para a obra de Deus.
manto a divisão reinar entre elles. Assim Este quiz que os homens fossem mem
? que para. os corações verdadeiramente bros de uma familia, e o bom senso chris-
;atholicos existe um amor e interesse pre- tão começa por consagrar estes direitos,
Jominante, que é o da humanidade, a quem determinando que cada familia goze de
se subordinam todos os eflcitos e interes toda a liberdade d’acção que seja compatí
ses pessoaes. vel com a liberdade e direitos das mais
Por isso se lhes perguntarmos qual é o familias: a ordem natural exige imperio
partido politico a que pertencem, devem samente a associação de umas familias
responder com Tertulliano: Nós somos es com outras, formando grupos distinctos; o
tranhos a vossas facções e contendas... por bom senso christão quer que cada grupo
que nossa primeira divisa é a republica do ou communidade tenha toda a liberdade
genero humano. d’acçãoque seja compatível com a das ou
D’este cosmopolitanismo creado pelo Evan tras communidades. O bem d’estas exige
gelho, resulta um novo direito social, cujo que se circumscrevam a um logar deter
primeiro caracter consiste em regular os minado, chamemos-lhe provincia ou depar
deveres não só de homem a homem, mas tamento; o bom senso christão ensina que
também de familia a familia, de nação a cada um gosará de tanta liberdade quanta
nação, de cada individuo com todos, e de seja compatível com a das outras provin
todos com cada individuo, de sorte que re cias ou departamentos. O bem das provin
sulta uma verdadeira fraternidade, sem cias exige que debaixo da influencia de
que por ella se extinga a nacionalidade, certas affinidades se reuna e forme um
ou sem que a unidade social venha a ser corpo moral que se chama nação ou povo,
o mesmo que a unidade religiosa. cuja circumscripção está determinada por
Êis a pretenção estúpida do pantheismo condições geographicas ou historicas, e 0'
socialista, que pretende hóje sacrificar a bom senso christão consagra e defende o
ihdependencia como sacrificou antes os principio de sua independencia, com tanto
direitos das familias e communidades ao ue seja compatível com a liberdade e vida
ídolo de sua ambição, que chamou estado os mais povos e nações, e condemna essa
politica impia e homicida, que pretende ti
1 S. Matheus, c. 22, v. 39 e 40. / rar aos. povos e nações a sua liberdade e \
2 S. Paulo aos romanos, c .1 3 , v, 10. vida propria.
3 A caridade. Se a existência e prosperidade das na-
v
soc 833
ções pequenas exige que se unam pelo la pomposas c bem soantes pronunciadas pe
ço federal nos limites marcados pela natu los inimigos da religião, se as palavras hu
reza,’ o bom senso christào respeita os es manidade e fraternidade entre os indivi
tados confederados o maldiz os verdugos duos da nossa especie, que teem servido
que os pretendem destruir pela divisão, de pretexto aos reformadores até hoje, não
ou por uma absorpçào suffocante, que au tiveram outro sentido senão fazer que to
gmento o espaço de seus infinitos praze dos concorressem a satisfazer o egoismo
res. d’uns tantos hypocritas viciados c corrom
Ainda mais: se o interesse manifesto pidos: é bem certo que só variam os ad o
dos povos d’um mesmo continente consis res quando hoje se appella para a humani
te na boa harmonia d’uns para com ps ou dade e fraternidade dos povos, a fim de
tros, concorrendo a melhorar sua condição apresentar em sccna outros novos patriar
moral c material por uma troca fraternal chas, tão cheios de hypocrisia c maldade
de suas luzes e de seus productos agrico como os primeiros, c os que depois lhes
las e industriaes, a razào christà não vê succederam.
iVestcs grupos continentaes uns aggrega- Não ha mais que um systema de orga-
dos fortuitos c fatacs, mas sim que são dis .nisaçào social, justa, bcnciica c universal,
postos pela Providencia para formar a cujos princípios appareceram no. Evange
unidade religiosa, fazendo que os homens lho o cujas fôrmas se apresentam na Igre
se assimilem ao seu divino lypo pela sub ja, parochia, diocese c christandade; eis-
missão á lei de Jesus Christo, e satisfaçam aqui uma organisarâo trina da sociedade
as suas necessidades por um tributo pro religiosa: familia, nacionalidade e humani
gressivo c mais intelligente, para que vão dade; eis-aqui um socialismo evangélico,
accommodando os progressos da natureza conforme cm tudo ao modello da socieda
material ás necessidades da especie. de religiosa que fundou o Verbo divino.
E assim pelo estudo comparado do di A verdade sancta do Christianismo e a
reito divino, provado por factos sobrenatu- pureza da moral do Evangelho, não neces
raes, e manifestado pelo eneadeamento dos sitam de novas provas para se apresenta
naturaes, a razão se eleva até conservar o rem ao mundo como a unica taboa de sal
sysfema humanitário pelo qual se conser vação que a misericórdia de Deus olferec
vam todas as existências, e se. aperfeiçoam, aos mortaes desterrados pela culpa, e
conformando-sc á primeira lei fundamen unica lei reguladora de suas acções e di
tal, que se resume ifestas palavras—obe reitos. Apesar d’isso, a impiedade que a
diência e amor, obediência e caridade. tem combatido nos ultimo» séculos, vem
Quem pôde duvidar que estas duas vir hoje a dar um testimunho público que a
tudes civilisam os povos, assim como o or confirma mais e mais no meio do furor
gulho e o egoismo os einbrutecem, levan dos excessos e vicios.
do-os a um estado similhante ás hordas Que quer dizer esse empenho de recon
mais barbaras e selvagens? Os factos con struir novamente os povos da Europa, sys-
firmam o que annunciava o espirito de tematisando toda a politica debaixo de
Deus quando disse que a familia dos ju s idéias que se querem attribuir ás maxi
tos vive da obediência e do a m o r.1 mas e princípios evangélicos? Não ha mui
Obedecer é o mesmo que escutar a um to que em nome da humanidade, da liber
mestre capaz de nos guiar pelo caminho dade e do progresso se condemnava esta
da verdade; estè mestre é Deus, e a sua religião sançta, se proscrevia o seu culto,
igreja a quem dirige o mesmo Deus: amar se perseguiam os sacerdotes c demoliam
é desejar a todos os homens o bem e a fe os templos. Tanto no norte como no meio
licidade: eis-aqui as grandes virtudes theo- dia da Europa se arvorou uma bandeira
Jogaes, a fé e a caridade, pelas quaes se infernal, em que se liam estas palavras fa-
fôrma o plano da sociedade universal, se taes: «Em nome da civilisaçào fica ana-
gundo o Evangelho, cujo plano é digno do thematisado o culto catholico.» A reforma
nosso pae, que está nos céos, c bem diffe social não é possível emquanto senão acabar
rente do que se pretende deduzir d’elle, e com o Christianismo; «guerra de morte aos
se fixa na ruina de toda a religião, de toda principies e homens apostolicos.» E hoje
a patria e de toda afám ilia. Tal é a theo- quer-se fundar uma republica confedera
. ria do novo socialismo europeu. da de todos os homens c povos, e organi-
A experienda de tres sedulos ensina á sal-os a Mazzini, com estes mesmos prin-
geração presente o que valem as palavras cipios da religião que elles teem conde-
mnado, e depois qup as massas teem sido
1 Ecclesiastico, c. 3, v. i . enfraqüecidas na fé, e viciadas até o pon-
834 SOC
to de familiarisarem-se com os excessos vincias c aos estados a liberdade da acção
que nào admittem as tribus, ainila as mais para procurar o bem-estar e a felicidade.
selvagens, dos homens mais barbarus c in- Eis-aqui o socialismo do Evangelho, que
civis. condemna esse furor politico e que será
Pouco rellexiona quem nào descobre em uma verdade no momento em que se per
tudo isto um successo providencial, que mitia obrar com independencia aos homens
dará resultados favoráveis á humanidade, a quem disse Jesus Christo—Ide e prègat
depois que o fogo revolucionário consumir o meu Evangelho por lodo o mundo.— 1
os miasmas fetidos da escola reformadora, so c in ia n ism o — Doutrina dos socinianos,
que começou ha mais de tres séculos a da qual são olhados como authores Lelior
abalar os alicerces sociaes, c os agitou até e Fausto Socino, e que tem a sua origem
que appareceram os patriarchas do socia nos princípios da reforma.
lismo.
Ê certo, sim, é certo que a religião de
Jesus Christo recebeu e conserva a vida DA ORIGEM DO SOCINIANISMO
de todas as sociedades do mundo; é certo E DO SEU PROGRESSO
que ao atacal-a, a impiedade philosophica ATÉ Á MORTE DE LELIO SOCINO
tornou impossivcl a ordem e a paz de todo
o bom governo; é assim mesmo certo que
a agonia pesada e aíDictiva da Europa in Luthero havia atacado a authoridade da
teira nào se concluirá cmquanto que a re Igreja, da tradição, e dos sanctos padres;
ligião lhe nào applique os seus medica a Escriptura, no sentir d’este theologo, era
mentos e com elles restitua a força de que a unica regra da fé, e cada particular o
carecem suas cabeças, e seus membros, juiz da Escriptura. Entregue o christào a
isto é, os governos e os governados; porém si mesmo na interpretação da Escriptura,
isto nunca se conseguirá pelo caminho que nào teve mais guia quê os seus conheci
pmprehenderam Proudhon, Mazzini, e com mentos, e cada um dos presumidos refor
panheiros; o seu systema é immoral e im mados sómente achou n’ella o que era
pio, os seus passos anti-sociaes e anti-ca- conforme ás opiniões e idéias que linha
tholicos, as suas lendencias se dirigem ao recebido, ou aos princípios que elle mes
interesse pessoal, ao egoismo: adornando mo havia para si formado; e como quasi
este com bellezas apparentes, que debaixo todas as heresias não foram outra cousa
de diversas condições originaram a pobre mais que falsas interpretações da Escri
za, a miseria e oscrim es, que pesam hoje ptura, quasi todas se reproduziram n’u m '
sobre todas as classes da sociedade, e mais século em que o fanatismo e a licença ti
particularmente sobre a dos trabalhadores nham derramado pela maior parte da* Eu
e proletarios, não é possível que dê resul ropa os princípios da reforma. Viram-se,
tados diversos. pois, sahir do seio d’esta seita homens que
A sociedade universal é possível, já foi accommetteram até os dogmas que Luthe
conhecida de facto, seu principio consti ro respeitára; como a Trindade, a divinda
tutivo existe, elle é a alma e a vida do de de Jesus Christo, a eflicacia dos sacra
Christianismo, com elle os homens se unem mentos, e a necessidade do baptismo. (Ve
e amam como irmãos, porque a isso os jam-se os artigos Luthero, e as seitas que
obriga este preceito—Amarás o teu 'proxi sahiram do lutheranismo—Anabaptistas, e
mo,— que quer dizer amarás a todos os Arianos modernos.)
homens—como a ti mesmo;— com elle se Porém estas seitas, que eram pela maior
estabelece e consolida a ordem e a paz, parte nascidas do-fanatismo e da ignorân
porqpe vivifica todas? as existências, res cia, divididas entre si, enchiam a Allema-
peita todos os direitos, e consagra todos nha de divisões e turbulências.
os deveres; condemna a cada individuo de Emquanto estas dilaceravam a Allema-
fazer o que é util, e prohibe de fazer o que nha, os princípios da reforma, levados a
prejudica a outro individuo de sua espe- paizes em que o fogo do fanatismo não
cie; permitte ás familias melhorar a sua accíendia os animos, vecejavam, por as
condição, e aos estados augmentar a sua sim dizer, e arraigavam-se n’aquellas so
riqueza e bem-estar toda a vez que não ciedades, que presumiam de raciocinar.
offendam os outros estados è familias em Quatro pessoas das mais distinctas por
seus interesses respectivos, e nunca autho- sangue, titulos e empregos, fundaram em
risa o individuo, familia, nem o estado a Viceucia, cidade do estado veneziano, em
obrar em prejuizo dos-outros, d o u tr a sor
te concede ao homem, á família, ás- pro » AG
soc 83 5
1546, uma como academia, para n’cl!a se dou prender alguns socios, como Lelio So-
conferir sobre os pontos da religião, par- cino, Bernardo Okin, Pazuta, Gentilis, etc.,
ticularmcnle aquellcs que então faziam os quaes se refugiaram na Turquia, Suis-
mais ruido. A nuvem dc confusão que co sa, e Allcmanha.
bria quasi toda a Europa, abusos grossei Os chefes da presumida reforma não
ros e oíTensivos, que sc tinham concentra eram menos adversos que os christãos aos
do em todos os estados, e as superstições novos arianos, e Calvino havia feito quei
e crenças ridiculas ou perigosas que en mar Serveto: portanto não podendo os des
tão grassavam, fizeram persuadir a esta terrados de Vicencia ensinar livremente
sociedade que a religião carecia de refor os seus sentimentos n’aquelles logares, em
ma, c que o meio mais seguro para des- que o magistrado obedecia aos reformado
embaraçal-a das falsas opiniões, era não res, sc acoutaram emfim na Polonla, aon
admittir mais que o que ensina a Escri- de os novos arianos os professavam publi-
ptura, visto que esta por confissão do todos camcnte, apadrinhados por varios senho
encerrava a palavra ae Deus. res polacos, por clles seduzidos.
Como esta sociedade blasonava de eru Tinham igrejas e escolas; e congrega
dição e de philosophia, explicou a doutri ram synodos, nos quaes formaram decre
na* da Escriptura, segundo as regras da tos contra os que defendiam o dogma da
critica, que a seu modo tinha formado, e Trindade.
não admittiu como revelado senão o que Lelio Socino deixou a Suissa, e refugian
n’ella se via expressamente, isto é, o que do-se entre os novos arianos, lhes commu-
a razão alcançava; segundo o qual metho nicou o gosto da erudição e das linguas, os
do, reduziram o Christianismo aos artigos princípios da critica, e a arte de disputar:
seguintes: escreveu contra Calvino, fez commentarios
Da um Deus Altíssimo, que creou todas sobre a Escriptura, e ensinou aos anli-tri-
as cousas pelo poder do seu Verbo, e que nitarios a explicarem n’um sentido figura
pelo mesmo as governa. do e allcgorico as passagens que os refor
O Verbo é seu Filho, e este é Jesus de
mados lhes oppunham, para os obrigaren
Nazareth, Filho de Maria, verdadeiramen a reconhecer a Trindade e a divindade d
te homem, porem superior aos outros ho Jesus Christo. Elle teria feito mais ava
mens, e gorado dc uma Virgem por obra tajados serviços ao novo arianismo se
do Espirito Sancto. morte não o surprendera em 16 do mart
Este Filho é o promettido por Deus aos de 1562, em Zuric. Seu sobrinho Faust.
antigos patriarchas, e por ellc dado aos Socino ficou herdeiro dos seus bens e dos
homens; é o que lhes annuirciou o Evan- seus escriptos.
elho, e mostrou o caminho do céo morti-
cando a sua carne, e vivendo piedosa-
mente: morreu por ordem de seu Pae pa DO SOCINIANISMO
ra nos alcançar a remissão dos peccados; DEPOIS QUE FAUSTO FICOU SENDO O SEU CHEFE
resuscitou pelo poder do mesmo, ê está
glorioso no céo.
Aquelles que estão submettidos a Jesus O nome de Lelio Socino, e as cartas que
de Nazareth são justificados da parte de escrevia á sua familia, fizeram nascer mui
Deus, e os que n’elle tem piedade, recebem temporã em Fausto Socino a paixão da
o dom da immortalidade, que perderam controversia, e o desejo de se distinguir
em Adão. Só Jesus Christo e o Senhor, é n’ella: applicou-se com grande ardor á
o chefe do povo que lhe está sujeito, e o theologia, e na idade de vinte annos se
juiz dos vivos e dos mortos; e tomará a creu em estado de erigir-se mestre, e de
apparecer entre os homens no fim dos sé formar um novo systema de religião. O
culos. seu zelo, ainda mal sazonado, o levou tão
Eis-aqui os pontos aos quaes foi reduzi longe que, não contento de dogma tisar com
da a religião christã pela sociedade de Vi- os seus parentes e amigos, o quiz fazer
cencia; a Trindade, a consubstancialidade nas assembléias, xem que lhe davam entra
do Verbo, a divindade de Jesus Christo, etc., da o seu entendimento o qualidade. Infor
não eram no sentir da mesma sociedade mada porém d’isto a inquisição, quiz pren
mais que opiniões tomadas da philosophia der toda a familia de Socino: apanhou al
dos gregos, e não dogmas revelados. guns, q outros salvaram-se como poderam.
Os conciliabulos de Vicencia não pode- Fausto foi um d’estes, o qual tendo cerca
ram ser tão occultos, que deixassem de de vinte e tres annos, partiu para Lyon,
chegar á noticia do ministerio; este man d’onde, havida a noticia dà morte do tio,
836 SOC
e quo lhe deixara os seus escripios, foi lo lhe concedeu; que elle não passa d’um ho
go para Zuric a buscar a herança, princi- mem, o qual, pelos dons com que o céo o
palmente os papéis, e com este funesto preveniu, é nosso Mediador, nosso Pontifice,
thesouro voltou para a Italia. O seu no nosso Sacerdote; que não devemos adorar
me, nobreza e inlclligencia o fizeram lo mais que um Deus sem distincoào de pes
go mui acceitc na corte de Francisco, gran- soas, nem nos embaraçarmos em explicar
duque de Florcnça, aonde a galantcria, os quem é o Verbo, de que modo procede do
passatempos e a ambição o occuparam in Pae antes de todos os séculos, e como se
teiramente por espaço de doze annos; mas fez homem; que a presença real da divin
passados estes a paixão da controversia dade e da humanidade de Jesus Christo na
insensivelmente foi avassallando as outras, Eucharistia, assim como a efficacia do ba
de sorte que Fausto renunciou os empre ptismo para apagar o peccado original, de
gos, e formou o projecto de correr a Eu viam olhar-se como fabulas forjadas na
ropa a fim de ensinar a doutrina de seu imaginação humana, etc.
tio, e a sua. Agradou summaihcnte este desenho de
Depois de varias peregrinações, chegou religião a homens que só se haviam sepa
•em 1574 a Bazileia, aonde se demorou rado da crença das igrejas reformadas por
tres annos empregado unicamente nas ma não quererem reconhecer como ensinado
terias de religião e controversia, que estu na Escriptura senão o que elles compre-
dava com preferencia nos escriptos de seu hendiam. Os unitários, que faziam o par
•tio, cujos sentimentos adoptâra: querendo tido dominante entre os inimigos da divin
porém cnsinal-òs, veio a ser odioso aoslu- dade de Jesus Christo, o aggregaram ás
theranos, catholicos e protestantes, e en suas igrejas, e seguiram suas opiniões;
fastiado das contradicções que soíTria, pas muitas outras os imitaram, de sorte que
sou á Transylvania, e por ultimo á Polo- Socino veio «a ser o chefe de todas estas
uia, pèlo anno de 1579. igrejas.
N’esta haviam feito grandes progressos Por meio das instrucções e disputas
s anti-trinitarios, ou os novos arianos, que d’este novo chefe, entraram a luzir todas,
Ui tinham fundado muitas igrejas e escó- e os protestantes e calvinistas se alvorota-
ils, e gosavam de inteira liberdade: porém ram. Cincoenta ministros protestantes, con
ioda* estas igrejas variavam na sua cren gregados, chamaram os ministros princ-
ça, e quando Fausto chegou á Polonia, zowinos, para com elles pactuarem a re
formavam em certo modo sociedades diffe união; mas aquellcs que já haviam tomado
rentes, contando-se até trinta e duas, que partido por Fausto, os conduziram ao sy
sómente concordavam em não olharem a nodo, e os presumidos reformados não se
Jesus Christo como verdadeiro Deus. animando a fazer cara a um adversario
Fausto Socino quiz aggregar-se'a uma como Socino, quasi todos largaram o syno
d’ellas, porém os ministros que a regiam, do, sob color de que lhes não era perrnittido
.inteirados de que tinha muitos sentimentos lerem conferendas, nem sociedade algu
alheios dos que elles professavam, o repel- ma com pessoas que seguiam os erros dos
liram. Então afiectou não querer associar- ebionistas, samosatianos, arianos, e de quan
se em nenhuma, testimunhando porém ser tos n’outro tempo haviam sido excommiín-
amigo de todos, para melhor os trazer ás gados pela Igreja.
suas idéias: dizia-lhes que, na verdade, Volano, Nemojonio, Paíeologo, e alguns
Luthero e Calvino haviam feito notáveis outros menos escrupulosos, ou mais arro
serviços á religião, que se tinham dirigido jados. quizeram questionar com Socino pes-
com muito acerto para abaterem o templo soalniente: publicaram theses, que foram
do Anti-Christo de Roma, e dissiparem os defendidas no collegio de Posnania, aonde
erros que elle ensinava, mas que devia se achou Fausto Socino. Alli pretenderam
assentar-se em que nem elles, nem os que os presumidos reformados sustentar a di
se limitavam ao seu systema, haviam ainda vindade de Jesus Christo; mas valendo-se
•obrado cousa alguma para reedificarem da tradição, dos antigos padres e dos con-
o verdadeiro templo de Deus sobre as rui cilios, Fausto Sociuo oppôz a estas provas
nas d o d e Roma, e para renderem.ao gran quanto os protestantes tinham objectado
de Deus o coito que lhe é devido. aos catholicos sobre a tradição e sobre a
Para se ultimar isto, dizia Socino, se ba Igreja, para justificarem o seu scisma. «Os
.de estabelecer como a base da verdadeira padres e concilios podem enganar-se, di
religião que não ha mais que um só Deus; zia Soqino, e com eflfeito se teem enganado
que Jesus Christo sómente é seu Filho por algumas vezes;* entre os- homens não- ha
adopfão, e pelàs prerogatiyaS’ que Deus: juiz que tenha aiithoridadè infallivel e so-
soc 837
berana para decidir cm materias de fé: Parte dos socinianos entrou na igreja
somente á Escriptura pertence designar os catholica, muitos uniram-se aos protes
objectos da nossa crença: em vão, pois, mc tantes, mas o maior numero retirou-se
citaes a aulhoridadedós homens para me a Transylvania, Hungria, Prússia Ducal,
assegurar do ponto mais importante da re Moravia, Silesia, Marcha dc Brandcburgo,
ligião, qual é a divindade de Jesus. Christo.» Inglaterra c Hollanda: assim se livrou a
Conheceram os reformados que, para Polonia d’esta seita, depois dc a ter sup-
rebater Socino, careciam de outros meios, portado por mais dc ccm annos.
e assim o accusaram de haver ingerido nos Em todos os estados em que se refugia
seus escriptos maximas sediciosas. A pa ram, tiveram os socinianos poderosos ini
ciência, coragem, c manha de Socino, o migos, de sorte que não só nao fizeram es
fizeram triumphar de seus adversarios: tabelecimentos, mas unidos contra ellcs o
sem embargo dos revezes que soffreu, ti poder ecclesiastico e o civil, por toda a
nha grande numero de discipulos entre as parle foram condcmnados pelas leis eccle
pessoas de qualidade, e por fim obteve a siasticas e do Estado. Comtudo, como as
infeliz satisfação, que tanto havia appete- leis que os proscreviam não refutavam os
cido. Todas as igrejas da Polonia e Lituâ seus princípios, estes sc foram conservan
nia, tão differentes em prácticas, em mo do em segredo nos estados que baniram
ral e em dogmas, e que unicamente se o socinianismo, c muitos dos reformados
accordaram em não crerem que Jesus em Inglaterra, e pripcipalmente em Hollan
Christo fosse ò grande Deus consubstan da, passaram dos princípios da reforma
ciai ao Pae Eterno, se reuniram,, e não aos do socinianismo. (Vejam-se os artigos
formaram mais que uma só igreja, que Arianos modernos e Arminianos.)
tomou, e conserva ainda hoje o nome de
sociniana.
Com tudo não gosou Socino em paz da SYSTEMA THEOLOGICO DOS SOCINIANOS
gloria a que anhelára com tanta ancia: os
catholicos e protestantes lhe deram que
sentir, e morreu na aldeia de Luclavia, A Escriptura Sagrada, e principalmcnte
aonde se retirara para se acoutar de seus o Testamento Novo, é um livro divino, se
inimigos no anno de 1604, de idade de 65 gundo Socino, pará todo o homem razoá
annos. Sobre seu sepulchro pozeram este vel: este livro nos ensina que Deus, depois
epitaphio: de haver creado o homem, lhe deu leis,
que este as transgrediu, que o pcccado
Tota licet Babylon destruxit tecta Lulherus, grassou, e a religião se corrompeu; que os
Muros Calvinus, sed fundamenta Socinus. homens sc fizeram inimigos de Deus, e que
este Senhor enviou Jesus Christo para os
Como se dissessem: reconciliar com Ille, e lhes ensinar o quç
deviam obrar, e crèr para se salvarem. É
Tectos Luthero alue, muros Calvino, indubitavel ser Jesus Christo o enviado de
As bases de Babel Fausto Socino. Deus para concluir a obra da reconciliação
e da instrucção dos homens.
A seita sociniana, muito longe de esmo Não é menos certo. que o Novo Testa
recer com a morte do seu chefe, sc au- mento contém a doutrina dc Jesus Christo:
gmentou sobremaneira, e veio a fazer-se n’este livro divino havemos, pois, de inves
de consideração pelo grande numero dc tigar o que se deve crér e practicar para
sábios e pessoas de qualidade que perfi conseguir a salvação. Como não ha juiz,
lharam os seus princípios, chegando a tal ou interprete inCallivel do sentido da Es
auge, que alcançou nás dietas a liberdade criptura, havemos de cuidar em o descobrir
de consciência. pelas leis da .critica, e pelas luzes da razão.
Os catholicos, concedendo-a aos secta Socino, e seus discipulos se esmeravam,
rios, se haviam acurvado á exigencia dos pois, em indagar na Escriptura o systema
tempos; mas, serenados estes, resolveram de religião que Jesus Christo viera ensi
expellir os socinianos, contra os quaes se nar aos homens, e este estado produziu
uniram os protestantes, e a dieta ordenou esses commentarios sobre a Escriptura,
a sua extineção, determinando que, ou ab que formam quasi toda a bibliotheca dos
jurassem as heresias, ou tomassem partido Irmãos Polacos.
entre as communhões toleradas no reino, Socino e seus discipulos asseverando
cujo-decreto foi executado cora todo o ri não seguirem na interpretação dò Novo
gor. Tèstãráento mais que as íegrãs da critica
838 STA
o os princípios da razão, o explicaram de teem por causa geral o fundamento quo
um modo inintclligivel á mesma razão, e Socino tirou em parte da reforma; isto é,
tomaram em sentido metaphorico tudo o que o Novo Testamento contém por si só
que ella não alcançava: por este meio se a doutrina de Jesus Christo, mas que aos
pararam do Christianismo todos os myste- homens pertence interprctal-a, segundo os
rios, reduzindo a simples metaphoras as princípios da razão e as regras da critica.
verdades sublimes que excedem a órbita Já mostramos a falsidade d’este princi
da razão. pio, fazendo vér contra Lulhero, e contra
Segundo estes princípios, ensinaram não os reformados que ha um corpo de pasto
haver mais que um Deus creador do mun res encarregado de ensinar as verdades
do: o Padre, Filho e Espirito Sancto não que Jesus Christo ensinou aos homens.
são pessoas divinas, mas attributos de Veja-se no artigo Reforma o que se diz
Deus. D’esta maneira vieram renovar os para provar a authoridadc da tradição, na
erros de Sabellio e de Praxeas, que refu qual sómente a Igreja é juiz infallivcl das
tamos nos seus artigos, e no dos A nti-tri- controvérsias da fé, e que é absurdo attri-
nitarios. buir este direito ao simples fiel. Bem fun
Deus creou Adão, e lhe deu leis, Adão damentado este principio, o socinianismo
as violou, e feito pcccador, cahiu na igno se desvanece, e não é mais que um syste
rância e na desordem; a sua posteridade o ma imaginario, pois que se estriba sobre
imitou, e a terra foi coberta de trevas e um supposto absolutamente falso.
de peccadores. Os socinianos, pois, não s t a d h in g o s — Fanaticos da diocese d e
conheciam o peccado original, cujo erro Breina, que professavam os erros dos ma-
é refutado no artigo Pelagianos. nicheus. Eis-aqui o principio, augmento, e
Deus, compadecido da desgraça dos ho fim d’esta seita:
mens, enviou seu Filho ao mundo: este Fi Certa senhora de qualidade, mulher de
lho é um homem assim chamado, porque um militar, deu ao parocho a sua ofierta
Deus sobre elle derramou enchentes de em dia de Paschoa; achou este ser modica,
graças: d’esta sorte renovaram os socinia estranhou-a, e resolveu vingar-se. Acaba
nos o erro de Theodoto de Bizancio, que do o officio apresentou-se a senhora a m e
nós refutamos no seu artigo, e no dos sa da communhão, e o parocho, em Iogar
Arianos e Nestorio. da sagrada fórma, lhe metteu na bôcca a
Jesus Christo inspirado pelo mesmo Deus moeda que ella lhe oíTerccera. O recolhi
ensinou aos homens o que deviam crer e mento e pavor em que estava esta senho
praclicar para honrar a Deus, instruiu-os ra, não lhe deixaram attingir que cm lo-
de que havia outra vida, aonde a sua fide gar da hostia lhe pozeram na bôcca uma
lidade em practicar a sua doutrina seria peça metallica, e ella a guardou por al
recompensada, e a sua resistência punida. gum tempo sem o perceber; mas querendo
Tinha agradado a Deus que estas penas engulil-a, entrou no mais cruel tormento,
e recompensas fossem prêmio da virtude, quando achou a sagrada hostia subrogada
ou castigo da jlesordem: elle não escolhe em moeda: creu que se havia apresentado
ra entre os homens um certo numero pa indignamente á sagrada mesa, e que a
ra serem felizes, nem entregara o resto a transformação da hostia era castigo da sua
uma propensão viciosa, que havia de con- indignidade; penetrada da mais viva dôr,
duzil-os a condemnação; todos são livres: a agitação de sua alma appareceu no r o s
Jesus Christo deu a todos exemplos de vir to, e lhe mudou a physionomia; seu m ari
tude, todos receberam de Deus a luz da do o percebeu; averiguou a causa, e reque
razão; nenhum nasce corrompido, todos reu castigo; não se lhe deu satisfação; e lle
podem practicar a virtude: não ha pre desabafou, e inteirados seus amigos, lh e
destinação, nèm mais graça que estas in- aconselharam matasse o sacerdote, q u e
strucçòes e dons naturaes que o homem não queriam punir; assim o fez: foi logo
recebe de Deus. exeommungado, mas nem por isso esm o
Renovaram, pois, estes sectarios o erro receu. 1
dos pelagianos acerca do peccado original As cruzadas e os rigores da inquisição,
da natureza, da necessidade da graça e da não tinham exlincto os manicheus e albt-
predestinação. Tudo isto refutamos no Pe- genses, que, espalhados pela Allemanha,
lagianismo. Não entraremos em . maiores semeavam os seus erros: estes, aprovei
individuações sobre outros erros dos soci tando-se das disposições em que se acha
nianos, que são consequências dos que vam o militar exeommungado e seus am i-
acabamos de expôr, e que se refutam pe os, os persuadiram de que os ministros
los mesmos principiós: todos estes erros a Igreja não tinham poder para excom -
STE 839
mungar. Ouvidos favoravelmente, passa to a digestão e suas consequências, como
ram a ensinar-lhes que elles não só eram os demais alimentos.
maus ministros, mas ministros dc uma re Belo meio do nono século fez Paschasio
ligião má, que tinha por principio um en um tractado do corpo e do sangue de Nos
te inimigo dos homens, o qual nein mere so Senhor para os povos da Saxonia, ainda
cia as suas homenagens, nem o seu amor, pouco instruídos na religião christà, no
que só se deviam ao ente que fizera o ho qual estabelecia o dogma da presença real,
mem sensível ao prazer, e lhe permillia o e dizia que recebíamos na Eucharistia a
gosal-o. mesma carne e o mesmo corpo que nas
Adoptaram, pois, os stadhingos o dogma cera da Virgem.
dos dous princípios dos manicheus, e de Bem que Paschasio não seguisse n’este
ram cultü a Lucifer, e aos demonios em livro senão a doutrina da Igreja, e que an
assembléias, cm que a mais infame soltu tes d’elle cróssem todos os catholicos que
ra se voltou em exercício de piedade. A o corpo e sangue de Jesus Christo estavam
seita engrossou insensivelmente: manda- verdadeiramente presentes na Eucharistia,
•ram a cila missionários, que os stadhingos e que o pão e o vinho se mudavam no cor
insultaram, c fizeram morrer. D’estes cri po c sangue de Jesus Christo, não havia
mes passaram a persuadir-se que fariam costume de dizer formalmente que o corpo
gratos serviços a Lucifer em tirar a vida e sangue de Jesus Christo, era o mesmo
a todos os ministros do Christianismo: as que havia nascido da Virgem, i Portanto
sim * talaram os campos, saquearam as desagradaram estas expressões de Pascha
igrejas e mataram cruelmente os sacerdo sio: impugnaram-nas, elle as defendeu; a
tes. Os manicheus tinham sido queimados disputa fez ruido, os homens mais celebres
por se crér que se deviam queimar os he- tomaram n’ella parte, e se dividiram entre
reges; os manicheus ou stadhingos assas Paschasio e seus adversarios.
sinavam os sacerdotes, porque tinham pa Estes reconheciam da mesma sorte que
ra si que se deviam destruir os inimigos elle a presença real de Jesus Christo na
do Deus benefico. Eucharistia; sómente censuravam o modo
Como os seus rapidos progressos poze- de se exprimir: e portanto estavam todos
ram em cuidado os catholicos, o papa Gre- conformes no essencial d’este dogma. Po
gorio íx fez pregar uma cruzada contra os rém como em todos os homens que ra
stadhingos, concedendo a mesma indulgên ciocinam ha um principio de curiosidade
cia que tinham as cruzadas da Terra San sempre activo, que as contendas dos sá
cta. Logo appareceram em Friza multidão bios inclinam para os objectos em que se
d’elles, que vinham de Gueldria, llollanda, occupam, todos os entendimentos se volta
e Flandres, e á testa dos quaes se pozeram ram para o dogma da presença real na
o bispo de Brema, o duque de Brabante e Eucharistia: d’onde nasceram‘infinidade
o conde de Hollanda. de questões sobre as consequenicas do
, Os stadhingos, instruídos na disciplina mesmo dogma, entre as quaes se pergun
militar por um homem de guerra, que de tava se alguma parte da Eucharistia esta
ra principio á sua seita, marcharam con va sujeita a ser repellida como os outros-
tra o exercito dos cruzados, ofíereceram alimentos.
batalha, bateram-se com brio, mas foram Pensaram alguns que as especics do pào
totalmente desbaratados, de sorte que mais e do vinho que existem ainda depois da
de seis mil ficaram no campo, e a seita cx- consagração, estavam sujeitas ás differen
tin cta.1 Assim se encontra em todos os tes alterações porque passam os alimentos;
povos ignorantes uma disposição próxima outros, pelo contrario, créram ser indeco-
para o fanatismo, que só espera occasiào roso suppôr que qualquer cousa do que
para se manifestar, e esta se acha quasi pertence á Eucharistia passasse pelos di
sempre nos paizes em que o clero ó igno versos estados a que estão sujeitos os ali
rante. mentos ordinarios, e deram áquellcs que
s t a n c a r is t a s — Seita de lutheranos: ve levavam a opinião contraria o odioso no
jam-se as que sahiram do lutheranismo. me de stercoranistas; mas sem razão, pois-
s Ve u c o r a n t is t a s — É o que cré estar o ue ninguem cria que o corpo dc Jesus
corpo eucharistico de Jesus Christo sujei S hristo fosse digerido: não se citará author
algum que tal sustentasse, e os monumen-
Tinha grande aversão aos que comiam não trazia utilidade alguma á salvação,
carne de animaes, c que bebiarn vinho, que a virtude dos sacramentos dependia
fundado em que a fé prohibe o bebel-o aos da sanclidadc dos ministros, e finalmente
nazarenos, e em que o propheta Amos im se não deviam pagar dizimos.
putava aos judeus como um crime o have O povo ignorante e mal morigerado re
rem obrigado os nazarenos consagrados a cebeu ávidamente a doutrina de Tancheli-
Deus a heberem vinho. Assim chamaram no, e entrou a olhal-o como um apostolo
encratistas e hidroparastas aos sectarios enviado do céo para reformar a Igreja:
de Taciano, porque sómente oITereciam seus discipulos tomaram as armas, e o es
agua na celebração da Eucharistia. 1 coltavam quando ia prégar; diante d’elle
Taciano formou a sua seila no tempo arvoravam um estandarte, c uma espada:
de Marco Aurelio, pelo anno 172, a qual com este apparato prégava, e o povo o ou
grassou particularmentc em Antiochia, Ci via como um oráculo. Depois de o ter le
licia, Psidia, cm inuitas provincias da Asia vado a este ponto de illusão, entrou a pré
até Roma, nas Galhas, em Equilania, e gar que era Deus, e igual a Jesus Christo;
Hcspanha. Coinpôz muitas obras, das quaes dizendo que este Senhor nada tinha de di
não nos resta quasi nada. Os seus discipu vino senão o haver recebido o Espirito
los denominaram-se tacianistas, encratis Sancto, e como Tanchelino asseverava ha
tas, continentes, severianos, apotacticos e ver recebido como Jesus Christo a plenitu
saccophoros. de do Espirito Sancto, por consequência
taciturnos — Seita de anabaptistas: veja- não era inferior a elle. O povo assim o
se este artigo, e também o dos Silenciosos. creu, e portanto o honrou como a um ho
TANCHELINO OU TANCIIELMO— e r a lim SC- mem divino.
c u l a r q u e , e r ig in d o - s e p r e d ic a n te n o p r i n Este heresiarcha voluptuoso se aprovei
c ip io d o s é c u lo d u o d e c im o , p u b l i c o u d iííe - tou da illusão de seus discipulos para go-
r e n te s e r r o s . sar das mulheres mais formosas da sua
As invasões dos barbaros e as guerras seita, e os maridos e os paes, que, com o
tinham aniquilado as sciencias e corrom publico, oram testimunhas das suas devas
pido os costumes no Occidente, de sorte sidões, davam graças ao céo dos favores
que nos séculos undecimo c duodecimo que o homem divino concedia a suas mu
ainda reinavam a desordem e a ignorân lheres e tilhos.
cia: entre os seculares só se viam mortes, Tanchelino tinha principiado a sua mis
roubos, rapinas e violências; no clero sen- são, prégando contra a desordem dos cos
tiam-sc os resabios do mesmo contagio; tumes: a austeridade da sua moral, o ex
os bispos, abbades e clérigos iam á guer terior morliíicado, a aversão que mostrava
ra; a usura e simonia eram communs; a ter a prazeres, e o seu zelo contra os des
absolvição venal, o concubinato dos cléri comedimentos do clero, lhe haviam ganha
gos publico, e passava já por costume; os do a benevolencia dos povos; mas acabou
benefícios tinham-se tornado hereditarios: fazendo-lhes canonisar desordens ainda
algumas vezes se vendiam os bispados, vi mais monstruosas que aquellas contra as
vendo ainda os bispos; outras os senhores quaes se havia levantado, e sem que os
os deixavam em testamento a suas mulhe mesmos povos attentassem n’esta contra-
res, e muitos bispos diziam que não care dicção.
ciam nem de bens. ecclesiasticos, nem de Tanchelino, á frente dos seus sectarios,
canones, porque tudo tinham na sua bolsa. levava a perturbação e a morte por onde
Em Flandres, mais que em outra parte, quer que não fosse recebida a sua doutri
haviam chegado estas desordens ao maior na. Um sacerdote lhe quebrou a cabeça ao
ex cesso.2 embarcar-se, e seus discipulos então se es
N’esta provincia publicou, pois, Tanche- palharam pela Colonia e Utrechet: uns fo
lino os erros que entravam a grassar em ram queimados pelo povo, c outros parece
França, havia.perto de um século, contra haverem-se confundido com as catervas
o' papa, sacramentos e bispos, pregando de hereges que atacavam os sacramentos,
que o papa, os bispos, e todo o mais clero as ceremonias da Igreja e o cle r o .1
não se deviam ter em conta alguma, que tascadrugistas— Eram um ramo dos
as igrejas eram logares de prostituição, e montanistas, que, para denotarem tristeza,
os sacramentos profanações, que o do altar .punham o dedo no nariz emquanto ora
vam; isto significa a palavra tascadrügis-
; 1 Epiph, Avg. Han\t c. 25. C ypf.E ji.fi3, tas: também punham o dedo, na bôcca pa-
l. 8, edic. de Erasmo.
2 ü ist. Litter. de France, t. 7, p. 5, etc. • 1 D'Argentrc, Collect. Jud., t . 1, pag: i l ;
842 THE
ra récommendarem silencio. Esla seita,foi ou porque era impossível ofTuscar a evi
pouco numerosa: alguus (Telia apparcce- dencia dos factos sobre que d ia se funda
ram na Galacia. 1 Também lhes chama mentava, ou porque o poder temporal ti
ram passalorinchitas, patalorinchitas, asco-nha uma vigilância continua em tapar a
drupitas, etc. bòcea a todos os que se separaram da igre
' TERUio—é um dos presumidos apostoli- ja dos apostolos, para que não revelassem
còs, que se levantaram em França no sé as suas falsidades: mas quem duvidará
culo doze: conservou-se por muito tempo que este poder empregava contra os chris
escondido n’unia gruta em Corbigny, na tãos todos os seus cuidados, e todas as suas
diocese de Nevers, aonde finalmente foi forças?
préso e queimado: duas velhas, suas disci Portanto, se a religião christã foSso fal
pulas, soíTrcram o mesmo supplicio. Ter- sa, os seus progressos, c a extineção da
rio tinha dado a uma o nome de Igreja, e seita de Theobuto e de muitas outras, que
a outra o de Sancta Maria, para que, sen a impugnavam na sua origem, seria não
do perguntados os seus sectarios, podes- sómente um cfTeito sem causa, mas um fa-
som jurar por Sancta Maria, que-não ti eto acontecido contra o concurso de todas
nham outra fé que a da Sancta Igreja.2 as causas, que necessariamente haviam dc
THEOBUT.O, OU .THJ5.BUTO—MortO S. Jacol),
estorval-o.
por sobrenome o justo, foi eleito bispo de t h e o d o t o —Hcregc quo os authorcs ec
Jòrusalem Simeào, filho de Clcophas: Theo- clesiasticos associam a Cleobulo, e chefe
buto, que aspirava a esta dignidade, sepa de seita no tempo dos apostolos. Vejam-se
rou-se da igreja christã, ajuntou os sentino artigo Cleobulo as consequências que
mentos de differentes seitas dos judeus pase podem tirar em favor do Christianismo
ra formar uma: é quanto sabemos dos da extineção d’eslas seitas. Sem razão con
seus erros. fundiam este com Theodoto dc Bizan-
Aqui temos, pois, um discipulo dos mescio. 1*
mos apostolos, plcnamente instruído na re THEODOTO 0 V.VLENTINIANO —SÓ é COIlhC-
ligião christã, que, ancioso de vingar-se cido pelas suas eclogas, que o padre Cam-
d’ellcs, esquadrinha quanto pôde, e que besis deu á luz no Manuscripto da Biblio
assoalhando* a sua impostura, se llTa po- theca dus Dominicanos, da ru5a de St. Ho
désse provar, triumpharia com luzimenfo nore. Estas notas nada mais contecm que
dos primeiros christãos, que lhe haviam uma applieaçào da Escriptura ao systema
negado o bispado, e teria formado uma de Valentim. Theodoto quer iTclIas provar
seita capaz de aniquilar a religião: mas os differentes pontos da doutrina de Valen
sem embargo d’isso, esta se estabelece em tim por algumas passagens da Escriptura:
Jerusalem, e se derrama por toda a terra; esta obra foi commentada pelo padre Cam-
ao passo que de Theobuto apenas nos res besis, e se acha na Bibliotheca Grega de
tam os vestígios da sua ambição e aposta Fabricio, t. 5’, pag. 135.
sia, que nos subministram um monumento t h e o d o t o d e w zA N C io —chamado o sur-
incontrastavel da verdade do Christianis rador, do nome da sua profissão, affinnou
mo, c dos milagres que servem de base cá que Jesus Christo não era mais que um
divindade da sua religião. homem, e fez discipulos que se appellida-
ram theodocianos. Não foi isto em Theo
Se a religião christã houvesse sido falsa,
não se poderia sustentar contra taes inimi doto um erro de entendimento, mas uma
gos, salvo que o poder temporal lhes iinpo- heresia, em que o seu amor proprio so
zesse silencio, ordenando-lhes não desco quiz abrigar dos impropérios que elle cha
brissem as imposturas dos christãos: mas mara sobre si por sua apostasia.
bem pelo contrario esta authoridade tem Na perseguição que se levantou, impe
poral que os perseguia, apadrinhava e rando Marco Aurelio, foi préso Theodoto
alentava o rancor de seus inimigos. com.muitos christãos, que confessaram a
Jesus Christo, e obtiveram a corôa do mar
0 progresso da religião christã, e a ex-
tineçao das seitas que d’ella se separaram, tyrio. Theodoto renunciou a Jesus Chris
e que atacaram no seu nascimento, só por to: os fieis o improperavam, como merecia
algum d’estes dous meios póde explicasse, o seu delicto, e o zelo lhes inspirava no
fervor d’aquelles séculos; e para evitar a
1 Damascen. de Hcer., Hyeron. Com- indignação dos fieis de Bizancio, se reti-
ment. in E p. ad Galat. Philaslr. de Hcer.,
t Theodorei. Hxret. Fab., I. 2. Prcef.
c. 76. , , .
* Dupin. Hist. des Cone. du douzieme Euseb. Hist. Eccles., I. 4, c. 22. Notes d'Us-
set, su r VEp. de S. Ignace aux Trassiens.
s iè c le c . 6.
THE 843
tou a Roma, aonde, porém, sendo conheci versidade as primeiras das ultimas. Não é
do, foi olhado com horror. crivei que elles mesmos deixem de attin-
Theodoto a principio representava que gir quanto seja escandalosa esta temerida
o mesmo Jesus Christo se houvera com de; pois que, viciando assim as Escriptu
menos rigor com os que o offcndiam, pois ras, fazem vér ou que nào teem fé, se não
declarara que perdoava o que dissessem créem que o Espirito Sancto as dictou, ou
contra cllc; c íinalmcnte que o seu delicto que se teem por mais entendidos que o
não era tào grande como o faziam, porque mesmo Espirito Sancto: c não podem ne
renegando de Jesus Christo, nào renegara gar que venham d’elles taes mudanças,
senão de um homem, na verdade filho de pois que os exemplares em que se véê.m,
■uma Virgem por obra do Espirito Sancto, são cscriptos de seus punhos, e nào se po
mas sem outra prerogativa, que a de ter deríam mostrar em outros mais antigos
vida mais sancta, e virtude mais emi do que elles, para se dizer que as heberam
nente. 1 dos que os instruiram nos primeiros rudi
Alvorotaram-se todos com esta doutrina, mentos do Christianismo. Alguns d’clles
c o papa Victor excommungou a Theodo nem se cansaram cm corromper as Escri
to, o qual todavia achou discipulos que af- pturas, cortando de um golpe a lei e os
firmavam ser esta doutrina de seu mestre prophetas, com o pretexto de que lhes era
a que os apostolos ensinaram até o ponti sufficiente a graça do Evangelho.»1
ficado do Zepherino, o qual corrompera a A estas infidelidades ajuntaram os theo
da Igreja, fazendo um dogma da divindade docianos todas as subtilezas de uma logica
de Jesus Christo. frivola e teimosa. «Não conhecem a Jesus
Os catholicos refutavam isto com os tes- Christo, diz o author que acabo de citar,
timunhos da Escriptura, com os hymnos e tanto assim que não lhes importa o que se
canticos que os christàos tinham composto lé na palavra de Deus. mas curiosamente
desde o principio da Igreja, e com as obras estudam em vér por qual figura do syllo
dos authores ecclesiasticos que precede gismo sustentarão a sua heresia, e quando
ram a Victor, taes como S. Justino, Mil se lhes oflerece algum logar da Escriptu
tiades, Sancto Ireneo, Clemente Alexan ra, olham se faz argumento conjunctivo
drino, e Meliton, os quaes tinham ensi ou disjunctivo.» 2
nado e defendido a divindade de Jesus Os theodocianos fundavam o seu senti
Christo; e em fim pela mesma excommu- mento nas passagens da Escriptura em
nhào que Victor pronunciara contra Theo que Jesus Christo falia como homem,
doto. 2 supprimiam todas as que estabelecem
Os theodocianos porém para se defende sua divindade. Um dos principaes discipi
rem da evidencia d’estas razões, cortaram los de Theodoto de Bizancio, foi Theodot
da Escriptura tudo o que era coiitrario á o banqueiro, o qual para estabelecer mai
sua doutrina. «Elles sem pejo corrompe seguramente que Jesus Christo não er;
ram as Sagradas Escripturas, diz certo com effeito mais que um homem, asseve
author que os impugnava, aboliram a re- rou ser inferior a Melchisedec, e formou a
ra da antiga fé... e facilmente verão se seita dos melchisedecianos. Asclepiades, e
igo a verdade os que quizerem entregar- os mais de que falíamos no fragmento que
se a essa averiguação; sendo bastante o acabamos de referir, não fizeram seita.
■conferirem os exemplares, para lhes dar Já se vê do que temos dito, que pelos
nos olhos a differença: porque os ^Ascle fins do segundo século houve um Theo
piades não concordam com os de Theodo doto que, renegando de Jesus Christo, in-
to, e é facilimo encontrar cópias dos mes fcorreu na indignação de todos os ficis, e
mos pelo grande desvelo que teem seus foi excommungado por asseverar que não
discipulos em transcreverem as correcções, renegara mais que de um homem, nasci
ou melhor, as corrupções de seus mestres; do de uma virgem, e dotado de virtude e
a s cópias de Hermophilo também differem sanctidade eminente.
das mais, e as de Apollonio nem ainda l.° Do motivo que levou a Theodoto a
são coherentes entre si, tendo grande di negar a divindade de Jesus Christo, se vê
com evidencia que este herege só conce
dia ao mesmo Senhor aquellas qualidades
1 Autor. Àppend. ad Tert. de Prcescript.,
c. ultimo. Epiph. Hcer. 5 i. Theodoret, Hceret.
Fab., I. 2, c. ò'. 1 Catus, apud Euseb. H ist Eccles., I. 4,
. 2 Theodoret, i b i d c. 2. Euseb. Hist. c. 28.
Eccles., I. 4, c. 28. 2 Caius, ibid.
8Í4 UBI
quo não podia recusar-lhe: era, pois, in- para julgarem o sentido dos padres, do
contraslavel ser Jesus Christo nascido de que o author do Platonismo Descoberto,
um a Virgem, por obra do Espirito Sancto, Sandio, Jurieu, Wisthon, etc.
e dotado de uma virtude eminente; porque 6. ° Yê-se que os theodocianos apertados
Theodoto tinha grande interesse em recu com as prophecias, negam a sua authori-
sar-lhe estas prerogativas, muito engenho, dade; eram portanto claras, e facilmente
bastantes luzes, e pouco escrupulo em pro applicavois a Jesus Christo as que annun-
curar meios para defender os seus senti ciam o Messias, e que estabelecem a sua
mentos, pois que chegava a viciar as Es- divindade, pois que as corrompem, ou as
cripturas a fim de combater com mais ve- negam para haverem de impugnal-a. N’es-
rosimilhança a divindade de Jesus Chris te tempo todos os judeus c inlieis tinham
to. Eram logo sem controversia os factos luz sufficiente para conhecer a verdade da
e milagres que provavam ser elle nascido religião chrislã.
d’um& Virgem por operação do Espirito 7. ° Como Theodoto ensinava esta doutri
Sancto; a confissão de Theodoto a este res na em tempo de perseguição, não admira
peito é muito mais altcndivel que o testi- que, sem embargo de ser evidente a da
munho dos authores pagãos; e nos anima Igreja acerca da divindade de Jesus Chris
mos a aflirmar que o pyrrhonismo mais es to, fizesse discipulos: o que é de admirar
crupuloso não se lembraria de exigir ne é que não attrahisse.a si todos os*christãos,
nhum mais seguro. se a divindade de Jesus Christo não era
2.° A excommunhão de Theodoto prova um dogma sem contradicção na Igreja:
incontrastavelmente que a divindade de dez .christãos que houvessem impugnado
Jesus Christo era um dogma fundamental a Theodoto em favor dos factos que esta
ensinado na Igreja sem ambiguidade, e belecem a divindade de Jesus Christo, pre-
que formav^ a base da religião chrislã, ponderariàm incomparavelmente ao testi-
porque entrava nos canticos e hymnos munho de dez mil theologos contra este
compostos no berço do Christianismo, e facto. Ora, é sem dúvida que Theodoto não
havia sido ensinado pelos apostolos: por perverteu mais que um pequeno numero
que é impossivel que pessoas ignorantes c de discipulos, e que a.su a seita se extim
grosseiras, quaes eram os primeiros pré- guiu, ao passo que os christãos se multi
gadorès do Christianismo, em continente plicaram até o infinito, ainda no meio das
se elevassem a crêr a divindade do .Verbo, perseguições: qual é pois a philosophia, a
conduzidos pela mera luz da razão, verda critica, a equidade dos que asseveram que,
de que não impugnará na marcha do en a divindade de Jesus Christo não era ensi
tendimento humano, e dos que conhecem, nada claramentc durante os primeiros tres
por pouco que sega, a historia do mesmo. séculos da Igreja?
Que arrojo, pois, não é o d’aquelles que TURLUPiNOs— Fanaticos do xiv século, de
sustentam ser a divindade do Verbo um costumes estragados, os quaes ajuntavam
dogma platonico introduzido no Christia aos erros dos beguardos as infamias dos
nismo? As epistolas de S. Paulo em que a cynicos: foram excommungados por Gre-
divindade do Verbo é tão claramcnte en gorio Os principes christãos os puniram
sinada, serão acaso a obra d’algum pla severamente; foi queimado grande numero
tonico? d’elles, e .a severidade com o horror que
3. ° Os theodocianos tinham corrompido,excitava a sua infamia, aniquilaram logo
a Escriptura: era logo tão clara acerca da esta seita .1
divindade do Verbo, que as. subtilezas da u b i q u i s t a s ou u b i q u i t a r i o s —Lutlieranos
logica não podiam obscurecel-a. que tinham que o corpo de Jesus Christo,
4. em consequência da união hypostatica, se
° Não é difflcil descobrir a impostura
dos theodocianos cotejando os seus exem acha onde quer .que está á divindade. Os
plares da Escriptura com o canon da Igre sacramentados e os lutlieranos não podiam
ja; portanto haviam os catholicos conser ajustar:se ácerca da presença real de Je
vado a Escriptura sem vicio e sem mu sus Christo na Eucharistia:' negando-a os
dança. primeiros por lhes parecer impossivel que.
õ.° Oppoem-se aos theodocianos todos os o mesmo corpo estivesse em diversos lo-
authores ecclesiasticos que precederam ao gares ao mesmo tempq, Clustre e outros
papa Victor: portanto nao' duvidavam en lhes responderam què estando a humani
tão que estes padres houvessem ensinado dade de JesusEhristo unida ao Verbp, seu
a divindade dè Jesus Christo, e bem se
deixa vér que os contemporaneos de,Theo- i Prateole, Elenchus heeresium. Ber-
doto estavam em melhores-circumstanciás nard de Lutzenbourg Guguin, H i s t l . 9.
VAL 845
corpo so achava por Ioda a parte unido rio sómente oppunha contra os valdenses
com elle. a sua aulhoridade. Assim fizeram estes
Melanchlhon oppunha aos ubiquistas que mui rápidos progressos, e depois de todos
esta doutrina confundia as duas naturezas os comedimcntos possíveis, o papa os ex-
dc Jesus Crhisto, fazendo-o immenso, se commungou c condemnou com os mais
gundo a sua humanidade, e até segundo o monges, que então inundavam a França.
seu corpo; e que destruía o mysterio da Estimulados os valdenses com os raios
Eucharistia, ao qual sc tirava tudo o que da Igreja, atacaram a aulhoridade que os
tinha de particular, se Jesus Christo em- condemnára; e como Valdo e seus discipu
quanto homem só estava n’clle presente los tinham por base da sua doutrina a ne
como está no pau e na pedra. cessidade de sc renunciarem todos os bens
valdenses — Discipulos do Pedro Yaldo, para ser christào, declamaram contra a
negociante rico de Leão. A morte subita igreja romana, asseverando que ella cessa
d’um amigo, que cahiu quasi a seus pés, o va de ser a verdadeira Igreja depois que
obrigou a fazer profundas reflexões sobre possuía bens temporaes, que nem o papa,
a fragilidade da vida humana, e sobre o nem os bispos, nem os abbades, nem os
nada dos bens da terra; querendo renun clérigos podiam possuir bens de raiz, di-
ciar tudo isto para cuidar sómente na sua gnidades temporaes, feudos, nem direitos
salvação, distribuiu seus bens pelos pobres: reaes; e que os papas que haviam appro-
e desejando inspirar aos outros o desape vado ou excitado os principes para faze
go do mundo e o despojo das riquezas, rem a guerra, eram verdadeiros homici
cxhortou, pregou, e á força de pregar o das, e por consequência não tinham au-
desinteresse, se persuadiu" que a pobreza thoridade na Igreja. D’onde concluiram os
evangélica, sem a qual ninguem pódc ser valdenses que só n’elles estava a verdadei
christào, não permittia possuir cousa al ra igreja, porque clles só practicavam e
guma. ensinavam a pobreza evangélica.
Muitas pessoas seguiram o exemplo de Depois de assim estabelecidos, como sendo
Pedro Valdo, e pelo anno 1136 formaram ellcs a unica verdadeira igreja, affirma
uma seita, que se appellidou dos pobres de ram serem oS fieis todos iguaes, todos os
1 Lyão, pela pobreza que professavam. Val- sacerdotes terem direito para instruir, e
dò lhes explicava o Novo Testamento na que os sacerdotes c bispos eram destituí
lingua vulgar. dos de authoridade para UTo estorvar. Es
Accendeu-sc logo o zelo dos seus disci tas pretenções provavam com algumas pas
pulos, que nfio satisfeitos de practicarem a sagens da" Escriptura, taes como a de S.
pobreza, a pregaram, e sc erigiram aposto Mathens, em que Jesus Christo diz a seus
los, bem que nao fossem mais que simples discipulos «que todos são irmãos», a dc S.
seculares sem missão. Quiz a igreja de Lyon Pedro que diz aos fieis: «servi-vos mutua
' reduzil-os a justos limites, sem condcmnar mente, cada um segundo o dom que tiver
' os seus motivos, nem o seu zelo; porém recebido, como dispenseiros fieis das diffe
Valdo e seus discipulos, tinham de si mui rentes graças de Deus»; aquella de S.
altas idéias para que houvessem de acquies Marcos, em" que Jesus Christo prohibe a
cor aos conselhos da igreja de Lyon. Le -seus discipulos embaraçarem que um ho
vantaram-se insistindo cm que todos os mem lance fóra os demonios em seu no
christãos deviam saber a Escriptura, que me, bem que este homem não seguisse os
todos, eram sacerdotes, e obrigados a in apostolos.1
struir o proximo; e fundados sobre estes Quizeram, pois, os valdenses formar uma
princípios, que transtornavam o governo igreja nova, que affectavam ser a verda
de toda a Igreja, os valdenses continuaram deira igreja de Jesus Christo, a qual por
a prégar e a invectivar contra o clero. Se consequência tinha unicamente o poder de
a igreja lhes impunha silencio, respondiam excommungar e condemnar: e por este
o que os apostolos haviam respondido ao meio socegaram as consciências, inquietas
Synedrim dos judeus, quando^ estes lhes com os raios da Igreja. Para mais eíficaz-
prohibiam prégar a resurreição de Jesus mente separarem d’ellaos fieis? condemna
Christo: Devemos obedecei' a DenSj ou aos ram todas as suas ceremonias, a lei do je
homens? Os valdenses sabiam a Escriptura, jum, a necessidade da confissão, as ora
tinham o exterior mortificado e costumes ções pelos defunctos, o culto dos sanctos,
austeros, c cada proselyto vinha a ser um n’uma palavra, tudo o que podia conciliar
doutor. aos legitimos pastores o respeito e a affei-
J Além d’isto, a maior parte do clero mal
í morigerado e pouco instruído, de ordina 1 Math. 23. Prim . Petri, c. 4, v. 20.
54
i
846 VAL
cão dos povos: c finalmenlc para entreter os unicos hereges que perturbavam a re
estes na ignoranda, condemnaram os es ligião e o estado: os albigenscs ou mani-
tudos e academias, como escolas de vai cheus, os publicanos ou popelicanos, os
dade. henriquanos e outros, tinham formado na
Tal foi o desenho da religião que os val- França grandes partidos.
denses imaginaram para se defenderem Luiz vii fez empregar missionários na
dos anathemas da Igreja, e fazerem prose sua conversão; mas dcbaldc pregaram con
lytos. Não fundavam esta presumida re tra os valdenses. Philippe Augusto, seu fi
forma nem sobre a tradição, nem sobre a lho, recorreu ã aulhoridade, mandou ar-
aulhoridade dos conciliós, nem sobre os razar mais de trezentas casas de fidalgos,
cscriptos dos padres; mas sómente em al em que clles se congregavam; e entrou
gumas passagens da Escriptura, mal inter depois em Berry, aonde estes hereges com-
pretadas: portanto não formaram uma se mettiam horríveis crueldades: mais de sete
rie de tradição, que remontasse até Clau mil foram passados á espada, e dos que
dio de Turim. poderam fugir— uns, que depois foram cha
Os valdenses renovaram: i.° os erros de mados turlupinos, partiram para os Paizes-
Vigilando acerca das ceremonias da Igre Vallons e outros para a Bohcmia: os se
ja, do culto dos sanctos, das reliquias e da ctários de Valdo derramaram-sc pelo Lan-
hycrarchia da Igreja: 2.° os dos doualistas guedoe e pelo Delphinado.
sobre a nullidade dos sacramentos confe Os valdenses, que se tinham retirado ao
ridos por maus ministros, c sobre a natu Languedoc e á Provença, foram exlinctos
reza da Igreja: 3.° os dos iconoclastas: pelas terríveis cruzadas que se armaram
4.° a estes erros accrcscentaram que a contra os albigenses c contra os hereges,
Igreja não podia possuir bens. Temos re que tão espantosamente se haviam multi
futado estes erros nos artigos dos differen plicado nas provincias meredionaes da'
tes hereges que os levantaram, e o que é França. Os que se salvaram no Delphina
particular aos valdenses, não merece refu do, vendo-se inquietos pelo arcebispo d’Em-
tação séria. brun, retiraram-se a Val-Luiz e aos outros
Os valdenses não fundamentavam seus valles, aonde os inquisidores os seguiram.
desvarios senão cm algumas passagens da Porém não obtiveram estes esforços senão
Escriptura tomadas á letra. Muitos here o fazerem os valdenses mais dissimulados,
ges antes d’elles haviam já seguido este até que, fatigados das pesquizas da inqui
methodo, mas fizeram pouco progresso nos sição, se colligaram com os restos dos al
primeiros séculos da Igreja, porque então bigenses, c se retiraram á Gallia Cisalpina
os fieis e ministros d’ella eram esclareci e para entre os Alpes, aonde acharam asylo
dos: porém no principio do duodecimo sé nos povos infectos das heresias do nono c
culo, os povos e os ecclesiasticos eram duodecimo século.
ignorantes, e o sophisma mais grosseiro Como Affonso, rei d’Aragão, filho de Be-
para a maior parte dos ecclesiasticos era rengario iv, conde de Barccllona c mar-
uma difficuldade indissolúvel, e para o po quez de Provença, havia exterminado dos
vo uma razão evidente. seus estados todos os sectarios que não
Comtudo havia homens respeitáveis por quizeram converter-se, os provençaes se
suas luzes e pela regularidade de seus cos retiraram também aos valles. Nãó eram
tumes, mas, sendo raros, não podiam impe erseguidds com menos vivacidade em Bo
dir que os valdenses allucinassem muita êmia e Allemanha, d’ondc se recolheram
gente. Demais que a doutrina d’estes li- aos valles, aos quaes quotidianamente es
songeava as prelenções dos senhores, e tavam correndo outros hereges, expulsos
tendia a pôr em suas mãos as possessões da Lombardia e da Italia: assim, pois, es
das igrejas; portanto foram protegidos por tes differentes extermínios vieram a for
aquefíes, a cujos domínios se refugiaram mar nos valles do Piemonle uma povoação
expulsos de Lyon: e estes senhores, bem de hereges, que adoptaram a religião dos
que não adoptassem seus erros, estimavam valdenses.
oppôr os valdenses contra o clero, que O papa exhorlava el-rei de França, o
condemnava os mesmos senhores por ha duque de Saboya, o governo do delphina
verem despojado as igrejas. Assim, pois, do e o conselho delphinal a que se empe
acharam protectores e fizeram proselytos. nhassem na conversão d’estes hereges, e
Valdo, com alguns discipulos, retirou- até a obrigal-os a renunciar a heresia. As
se aos Paizes-Baixos fezendo grassar a sei exhortações do papa sortiram effeito, man
ta pela Picardia, e por outras provincias dando-se tropas aos valles.
da França. Porém os valdenses não eram Depois d’alguns annos, passando Luiz xu
VAL 847
á Italia, se achou pouco distante d’um dos fi.° Quem não tem o dom da continência,
retiros (Testes heregos, chamado Valputc, deve casar-se.
mandou-os atacar, houve grande mortan 10. ° Os ministros da palavra de Deus
dade, e persuadido el-rei que tinha aniqui podem possuir alguma cousa em particu
lado a heresia, pôz seu nome áqucllc reti lar para sustentarem suas familias.
ro, em que fizera morrer um lào prodigio 11. ° Sóincnte ha dous signaes sacramen-
so numero de horeges: chama-se hoje Val- tacs, o Baptismo e a Eucharistia.
Luiz. Recebidos estes artigos com alguns ou
Os valdenses se entranharam nos valles, tros de menos momento, c crendo-sc os
aonde insultaram a politica dos legados, o valdenses. mais fortes por esta união com
zelo dos missionários, os rigores da inqui os protestantes de Allemanha c os refor
sição e o poder dos principes catholicos: mados de França, resolveram professar a
exercitos inteiros foram consumidos na- nova crença: expulsaram dos valles, de
quelles espantosos retiros, e a final não que estavam senhores, os parochos e os
houve remédio senão conccdcr-se-lhes o outros sacerdotes, apoderando-se das igre
livre exercício da sua religião nos mesmos jas, das quaes se serviram para as suas
valles, reinando Philippe vu, duque dc Sa- pregações.
bovn, pelos fins do decimo quinto século A guerra de Francisco i contra o duque
(1488). de Saboya era favoravel ás suas emprezas; •
Então os valdenses, crcndo-sc insuperá mas tanto que estes principes se reconci
veis, c não contentes já com o livre exer liaram, Paulo m mandou insinuar ao du
cício da sua religião, mandaram predican- que de Saboya c ao parlamento dc Turim
tes aos cantõcs catholicos. O duque dc Sa- que os inimigos que tinham nos valles
boya, para reprimir a sua temeridade, en eram mais de temer do que os francezes;
viou um ofíicial com quinhentos homens, que, para bem da Igreja e do estado, de
que, entrando subitamente nos valles, tudo viam empenhar-se cm os exterminar. Pouco
levaram a ferro e fogo; mas os valdenses tempo depois mandou o mesmo sancto pa
tomaram as armas, e atacando de impro dre uma bulla cm que ordenava aos juizes
viso os piemontezes, os mataram quasi to do dito parlamento punissem com rigor as
dos, e então ficaram cm paz. pessoas que lhes fossem entregues pelos
Pelo meio do século décimo sexto Occo- inquisidores: executaram a bulla, seguindo
lampadio e Bucero escreveram aos valden o exemplo dos mais parlamentos de Frar
ses para que se unissem ás igrejas refor ça; mas viram-se queimar tantos valdens<
madas, e sem embargo de ser a sua cren em Turim, que parecia querer o seu pa
ça tão diversa, se eficctuou a união. lamento distinguir-se dos outros por esi
O formulario da fé continha os seguin modo de proceder. Porém, conservando-s.
tes artigos: ainda os valdenses nos valles, e não tendo
l.° O serviço de Deus não póde ser feito o duque de Saboya bastantes forças para
senão em espírito e verdade. dcsfrnil-os, recorreu a Francisco i; este
I o Os que são, e. hão de ser salvos, fo fez partir para o Piemonto um corpo de
ram escolhidos por Deus antes da creação tropas, que prendeu innumcravcis valden
do mundo.' ses, os quães foram queimados.
3. ° Todo o que estabelece o livre arbi Por este tempo morreu Francisco i. Hen
trio, nega a predestinação e a graça de rique u deixou em paz os valdensas, e d’el-
Deus. la gosaram ate que terminou*a guerra dc
4. ° Não podem chamar-se boas obras seHospanha e França, e que restabeleceu o
não as mandadas por Deus; nem más se duque de Sabova^nos seus estados.
não as que Deus prohibe. O papa mandou estranhar ao duque de
ò'.° Póde jurar-se pelo nome de Deus, Saboya o pouco zelo que mostrava contra
uma vez que não o tome em vão aquelle os valdenses, c este principe os fez atacar
que jura. pelas suas tropas; mas resistiram-lhe tão
6. ° A confissão auricular não é ordenadadenodadamente, que o duque se viu preci
por Deus, e quando algum pecca cm pú sado a conceder-lhes outra vez a paz, da
blico, deve confessar a culpa também pu- qual gosaram ate o anno de 1570, em que
blicamente. o duque Manoel fez uma liga olTensiva com.
7. ° Não ha dias determinados para o je varios principes da Europa contra os pro
jum do christào. testantes. Assignada que foi a liga, lhes
8. ° O casamento é permittido a toda aprohiWu as assembléias que não tivessem
sorte de pessoas de qualquer qualidade e a assistência do governo.
condição que sejam. Em Franca eram tractados os valdenses
»
848 VAL
com tanta mais severidade, que os obrigou absurdos palpaveis c contradicções mani
a fugirem para as terras novas, d’onde po festas. O entendimento repugna a similhan-
rém foram logo expulsos pelo zelo dos mis tes contradicções, não havendo homem que
sionários, favorecidos e apadrinhados pelos acredite que dous e dous são cinco, por
governadores d’aquellas provincias. As re que ninguém póde crer que uma cousa é,
feridas expedições e as guerras do duque e não é ao mesmo tempo: não eram, pois,
de Saboya, quê haviam despovoado os seus os erros dos valenlinianos senão erros es-
estados, o impossibilitavam para reduzir os tribados em princípios falsos, bem que es
barbetos ou valdenses; razão porque tomou peciosos, ou consequências mal deduzidas
o partido de os tolerar, com a condição de de princípios verdadeiros.
que não teriam templos, nem poderíam fa A extensão da seita de Valentini e o des
zer vir ministros estrangeiros. velo com que os padres refutaram seus
Cromwell se interessou a lim de que se erros, suppoem princípios que tinham afli-
lhes concedesse uma tolerância mais ex nidade com as idéias d’aquelle século: por
tensa, e provendo-os de dinheiro, se arma tanto consideramos que o exame do seu
ram, e se ateou de novo a guerra entre o systema podia contribuir para conhecer
duque de Saboya e os valdenses; mas, fi- qual era então o estado do entendimento,
nalmcnte, por medeação dos cantões da os princípios philosophicos que então vigo
Suissa, ainda tornaram a obter a tolerância ravam, a arte com que Valentini os conci
civil. liou com o Christianismo, e qual era a
Não se aquietaram os valdenses com es philosophia dos padres, da qual hoje em
ta tolerância; lançaram fóra os missioná dia se falia tão inconsideradamente, e de
rios, c, descobrindo-se que tinham corre ordinario a desproposito: e ainda, sem de-
lações com os inimigos do duque de Sa pendencia d'cstas considerações, o syste
boya, Amadeu determinou rechacal-os dos ma de Valenlim póde fazer um objecto in
seus estados. Luiz xiv, favorecendo os seus teressante para aquelles que prezam a his
projectos,' mandou tropas ao Piemonte, c toria do entendimento humano.
então o duque de Saboya publicou um de Do que deixamos dito, já se vê que a
creto, no qual prohibiu a todos os seus vas- systema de Valentini era um systema phi
sallos, hereges dos valles, continuarem no losophico e theologico; ou o sou systema
• exerci.cio da sua religião. Desobedeceram philosophico applicado á religião christa:
os valdenses, tornou a accender-se a guer examinemos estes dous objectos.
ra com mais vivacidade, até que finalmen-
to, depois de grandes fadigas e de muito
DOS PRINCÍPIOS PHILOSOPHICOS DE VALENT1M
sangue, os valdenses ou barbetos se sosti-
veram e os francezes se retiraram.
Alguns annos depois, unindo-se o duque Reconheciam os^çaldçus um Ente Su
de Saboya com a liga de Au^burgo, revo premo, como principio de todas as cousas;
gou os seus editos contra os barbetos, cha segundo elles pensavam este ente produ-
mou os fugitivos, concedendo-lhes o livre ziu genios, os quaes haviam produzido ou-
exercício de sua religião: desde esse tem Jtros menos perfeitos; e estes genios, cujo
po teem-se restabelecido, e teem sido uti •poder ia sempre a diminuir, formavam fi-
lissimos ao duque de Saboya contra os jnalmentc o mundo e o governavam. A phi
francezes.1* losophia caldaica tintía-se espalhado por
-'4 v a l e n d i — I-Ierege que appareceu pelo jquasi todos os povos, que cultivavam as
f m eíotfo segundo século: formou uma sei •sciencias; Pythagoras adoptou muitas de
ta notável, e os padres escreveram*muito suas idéias; Platão expôl-as com os encan-'
/ contra elle e contra os seus erros. Alguns tos da imaginação, e animou, por assim
§ criticos tiveram por tãoobscuro o que nos dizer, e persònalisou todos os attributos.
f resta do seu systema, que não hesitavam '• DiíTundidas por todo o Oriente a philo
em olhar Valentini e seus discipulos como sophia de Pythagoras, a de Platão e o sys
insensatos, e seus erros como um aggre- tema dajjjjmanações, os seus princípios
gado de extravagancias, indignas d'exame. .passaram"ãõ’Tlíristianismo, como bem se
Não suppômos que estes críticos quei vê do grande numero de heresias do pri
ram que os erros dos valenlinianos fossem meiro e segundo século: n’aquella região
não se conhecia outra philosophia, e parti
i Hist. des Albigeois et des Vaudóis, par cularmente em Alexandria, aonde Valen
le P. Benoit. D'Argentré, Collect. Jud., I. 1. tini estudára.1 Este, pois, enamorado dos-
Regina ld, D vpin, Fleury, de Thou, Hist. de
France. i Ircen., 1 .1, c. 10, l. 1, c. 13.
VAL 849
seus princípios, quiz transportal-os para o que este os considerava como quadros col-j
Christianismo, «seguindo todavia um me locados fóra de si; c por este meio expli-;
thodo inteirameíile alheio do que haviam cavam como o Ente Supremo havia pro
seguido os gnosticos c outros muitos he- duzido espíritos.
r e g e s.1 Como nós nào sómente temos idéias,
0 espectáculo das desgraças que attri mas sentimos paixões que nos arrebatam,
butam o genero humano, os seus vicios, e desejos violentos que nos agitam, estes
os seus crimes, a deshumanidade dos po desejos e paixões que nào nos illustram, e
derosos a respeito dos fracos, fizeram em nada representam, sào, pois, propriamente
Valcnlim impressões tào vivas, que não fallando, umas forças moventes que sahem
podia acreditar que homens tào perversos do fundo da nossa alma; c como a alma
fossem obra de um Deus justo, sancto e depois d’estas agitações torna a entrar cm
benefico. Creu que. os crimes traziam a socego, persuadiram que d’ella sabiam es
sua origem das paixões, e estas da maté tes desejos ou forças moventes: c assim
ria; suppôz que na matéria havia pactos presumiam haver atiingido o modo como
de diflerenlès espccies, e partes irregula o espirito podia produzir forças moventes,
res, que nào podiam ajustar-sc com as ou- ou espíritos motores, e agita*dos continua
■ tras. Creu que Deus unira as partes regu- mente.
lares; mas ficando misturadas as irregula- Porém como as paixões nem sempre
í res, que Deus despres«ára, com as produc- nos alteram, mas antes gosando de uma
ji-ções organisadas e regulares, cilas causa- paz serena experimentamos estados delan-
!vam as desordens: e assim se persuadiu guidez c de tristeza, aíTectos de odio ou
Valentim poder conciliar a Providencia de temor, que oíTuscam as nossas idéias, e
' com as desordens que reinam sobre a como que nos deixam sem acção, pareceu
terra. 2 que estas aíTeições, que tambeín sahem do
Porém, existindo tudo pelo Ente Supre fundo de nossa alma, tinham uma analogia
mo, como podia elle produzir uma mato- completa com a matéria bruta c insensível;
. ria indócil ás suas leis, e ser esta materia portanto se persuadiram poderem sahir
- producçào de um espirito infinitamente d’um principio espiritual espíritos c a mes
; bom? Esta objecção determinou Valentim ma matéria.
| a largar o seu primeiro sentimento, ou a Todavia como a Intelligencia Suprema não
■juntar ás suas primeiras idéias os princi- estava sujeita ás paixões humanas, era im
{ pios do systema dos platônicos,.no-quaLse possível fazer, sahir o mundo immediata-
suppuoha to e r /sa ín d o tudo fio. seio ,.do mente d’csta intelligencia; razão porque
Ente SupceihO, Ror .via. .dZema.oacàp, «bem imaginaram uma dilatada cadeia d’espíritos,
como a luz sabe do sol para so derramar cujo numero, conforme se deixa vér, era
por toda a natureza, ou,, ser viudo.-nos.-do arbitrario. Eis-aqui, segundo nos parece, a
outra-comparação dosJndiqs, .como os,fios serie de idéias que conduziram o enten-
f da aranha sahem do.corpo íta;mesma. dimento dos philosophos ao systema das \
Uma das maiores difficuldades deste emanações, adoptado por Valentim: vamos /
» systema é a producçào do mundo corpo- agora vér como este applicou os seus prin
j reo, porque vindo tudo da intelligencia cípios para o Christianismo.
l suprema por via d’emanaeão, como podia
$ sahir d’elia outra, cousa que não fossem
; espíritos, e existir a materia? Para expli- APPLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DE VALENTIM
carem, pois, iTesie systema a producçào PARA A RELIGIÃO CHR1STÂ
v < ' do mundo corporeo, esquadrinharam quan
to um espirito podia produzir, e sobre o
mesmo homem fizeram todas as observa Ensina a religião christã que a primeira
ções que podiam dar a conhecer as pro- producçào do Ente Supremo é seu Filho,
fiucções de que o espirito era capaz. q u e' por este fóra tudo creado, e que ha
/''"Notaram que o nosso espirito conhecia, um Espirito Sancto, uma sabedoria e infi
/formava idéias, ou imagens dos objectos: nidade d’espiritos de differentes ordens.
( estas jmagens oram entes reaes,produzj- Este foi o principal objecto que Valentim
\d o s pelo espirito, é d’elle .distinctos, pois encarou na religião christã, e portanto não
principiou pela explicação da origem do
1 Tert. de Pm scripL, c. 7. Epiph. Han\ mundo, como descreveu Moysés, mas pela
v31. Person. in Vindiciis Ignat. producçào do Verbo, da sabedoria e dos
2 Valent. Dissert. apud Grab. Dissert. espíritos inferiores; depois fez sahir das
PP. scec. 2, pag. 35. primeiras producções o mundo corporeo,
850 VAL
c as almas humanas; e íinalmcnte explicou viu que deviam ser viventes e aptos para
como estas almas estão submergidas nas pensar: o que também Valentini expressa
trevas, como se unem aos corpos, c como va por figura, dizendo que o casamento do-
entre todos os espíritos puros se formou -espirito e da verdade haviam produzido a
1 um Salvador, que livrou, illuminou os ho- Wida e a razão.
\ mens, e os fez capazes de se elevarem até Produzidas a vida e a razão, conheceu o
to s espíritos puros, e de gosarem da sua Espirito creador que podia formar homens,
' felicidade; cis-aqui as suas explicações. e com os homens formar uma sociedade
O Sér Supremo é um espirito "infinito,de entes pensantes, capazes de darem glo
omnipotente, que existe por si mesmo, e ria ao Ente Supremo, o que Valentim ex-
que por consequência é o unico eterno, nrimia, dizendo que, do casamento da ra-
porque tudo o que não existe por si mes-j 7.ão c da Yida, tinham sahido o homem e a.
1110 tem uma causa e um principio. Antcs^ igreja,
da época em que tudo o teve, o Ente Su- f Eons, ou os oito pri
premo existia só, e se contemplava no si meiros prmcíjfíoini(TIudo, segundo Valen
lencio c no descanso, existindo só com o tim, o qual os queria encontrar no princi
seu pensamento: conforme os platônicos, pio do Evangelho de S. João. Todos estes
nenhuma outra lousa era essencial a um Eons conheciam a Deus, mas o conhe
espirito, e pensavam que quando nós mes cimento que d’elle tinham era muito infe
mos nos examinamos, nada mais encon rior ao que tinha o Espirito, ou o Filho
tramos em nós que a nossa substancia e o unico.
nosso pensamento. Vendo a sabedoriaT«ultimo dos Eons,
Depois de infinidade de séculos, o Ente com desgoslo a prerõgativa do Filho unico
Supremo sahiu, por assim dizer, do seu ou do Espirito, esfurçou-se a formar unia
repouso, e quiz communicar a existência ideia que representasse o Ente Supremo;
a outros entes: mas este desejo vago de mas a que d’elle formou, não era mais
, commnnicar a sua existência nada have-J que uma imagem coiífusa; e portanto, sen
ria produzido, se o pensamento não o di-" do as producções dos outros Eons sub
rigisse, se não lhe tivesse fixado, por as stancias espirítuaes e inlelligentes, o es
sim dizer, um objecto, e traçado um pla forço que fez a Sabedoria para formar a
no: portanto foi necessário que o Ente Su iideia do Ente Supremo, só produziu uma
premo confiasse ao seu pensamento este substancia espiritual, informe, e de natu
desejo, para que elle podésse dirigir a sua reza absolutamente diversa das outras es-
execução, o que Valentim exprimia d’utii Species.
, modo figurado, dizendo que o Sér Supre- Assombrada a sabedoria das trevas em
; mo ou o Ifojlos deixara caliir este desejo que sò havia submergido, atlentou no seu
no seio do pensamento. 0 pensamento, pois, erro e temeridade; quiz dissipar a noite
formou o plano do mundo, que é aquelle que a cercava, fez esforços, e estes produ
mundo intelligivcl que os platônicos ima ziram forças na substancia informe: co-
ginavam em Deus. folieccu ser-lhe impossível dissipar as suas
0 Ente Supremo nimjaniente grande pa [trevas, e que só de Deus podia esperar a
ra execõtar por si mesmo este desígnio, virtude necessaria para recuperar a luz.
produziu um espirito, e o produziu unica Moveu-se o Ente Supremo pelo arre
mente pelo seu pensamento; porque o es-j pendimento da sabedoria: para tornal-a ao
pirito que pensa, produz unia imagem dis seu'primeiro esplendor, e prevenir esta
tincta meile mesmo, a qual imagem é umaj desordem nos mais Eons, oJEspirUo, ,_.o,u
substancia no systema dos valcntinianos, o . Filho unico^ p/oduz.i«..a..Çhr>to,Jsto.jé,
como parecia também ser no sentimento uma 1i^ líg e n ç x a ^ oa.Epns ,
dr». fllírnhs platônicos.
de alguns nlíífrmirtnc TfclA
Este A rn rin - quç. JlVçsTféz v é r . quemiío. podiam conhe
cninfn nprodu
espirito
zidò pelo pensamento era uma intelligeri| cer’o Ente Supremo,, e un; Éspiiãto,,San-
cia capaz de comprehendor o seu designioS cto;"ò : qual 1he s . ni os trou quaes eram as
• e dotada de um juizo infállivcl para a sua^ exc'cllTríciíis.‘'dÒ çeíi; estado, e o .que. de
execução; e portanto, conforme Valentim viam ao Ente Supremo, e os ensinou a
0 'espirito e a verdade haviam sahido d- loivarem-sé e á serem-lhe agradecidos.
seiò do pensamepto e era como o fruch Por este meio se firmaram os Eons no
do casamento do Ente Supremo com seu estado, .e formaram uma sociedade de
pensamento. espíritos, que existiam em perfeita brdeni..
0 Espírito, ou ó Filho unico, conheceu Conheceram estes espíritos as s.uas per-
estar destinado para produzir entes capa feições, e como o conhecimento de um es
zes do glorificarem o Ente Supremo, e pirito produz uma imagem distincta d’es-
VAL 851
deus. A’ vista, pois, de taes exemplos, ha Este respeito via-se gcralmente estabele
de crér qualquer leitor desprcoccupado ser cido quando Vigilaneio ousou combatel-o;
muito mais racionavcl admittir que os mar é facto provado por S. Jeronymo. «Então
tyres tenham conhecimento das orações commettemos sacrilégio, diz cllc a Vigi
que lhes dirigimos, do que nogar-llTas.» 1 lando, quando entramos nas igrejas dos
Do que acabamos de dizer pôde qual apostolos? Constantino o commetteu trasla
quer capacitar-se se eram assistidos d’al- dando as sanctas reliquias d’André, de Lu
gum fundamento Calvino, Chamier, Hos- cas, c de Timotheo para Constantinopla,
iniano, Bailleu, Vossio, Basnage, L’enfant, aonde os demonios bramem junto d’ellas,
arbeyrac e outros, para censurarem o e onde estes espíritos, de que Vigilaneio
culto dos sanctos de desarrazoado, furioso, está possuído, confessam sentir os oITeitos
blasphemo e idolatra.2 Se o culto dos san da sua presença; o imperador Arcadio é
ctos é idolatria, então os pagãos, Juliano um impio, que "transferiu para a Thracia
apostata, e Vigilaneio, conheceram melhor os ossos do bemaventurado Samuel, muito
este culto que os padres do quarto e quin depois da sua morto; todos os bispos, que
to século, que o defenderam; e ao passo teem trazido em vasos d’ouro e em sédas
que estes padres combatiam com tanto zelo cousas tão abjectas, não somente são im
e tão gloriosamente os novacianos, aria pios, mas insensatos; c tem sido uma lou
nos, manichcus, donalistas, c pelagianos, cura dos povos de todas_ as igrejas virem
estavam sendo os promotores e pregadores diante d’estas reliquias com tanto regosijo
da idolatria, e cooperando com todas as como se houvessem visto um propheta, e
suas forças para oxtinguirem a religião e em cardumes, que chegam desde a Pales
a piedade. s tina até Macedonia, cantando a uma voz
os louvores de Deus.» 1 É portanto uma
§ II ignorância grosseira da historia ecclesias
tica asseverar que o culto das reliquias
Do culto das relíquias começava a estabelecer-se no tempo de S.
Jeronymo.
' O culto das reliquias é um sentimento O respeito dos fieis para com ellas fo
natural que a religião authorisa. Moysés geral depois dc Vigilaneio, cujo erro nã
trasladou os ossos de Joseph quando sahiu fez progressos; e o culto das mesmas desd
do Egypto. O respeito que Osias tinha aos esse tempo sómente foi impugnado pelo
corpos* dos prophetas, os milagres obrados petrobrussianos c valdenscs, e pelos presu
pelos ossos de Eliseu e pelos vestidos de midos reformados, que d’aqui tomaram um
S. Paulo, justificam a veneração dqs chris- dos fundamentos para o scisma, asseve
tãos para com as reliquias dos sànctos.3 rando que a igreja catholica dava ás reli
Os que acompanharam Sancto Ignacio ao quias um culto idolatra. Porém é certo
logar do martyrio, recolheram com grande que nunca lhe deu um culto, que termi
desvelo os restos dos seus ossos, guarda nasse iTelIas, e 'que tivesse alguma rela
ram-os n’uma caixa, eslimando-os como ção com a idolatria, como o fez vôr M. de
um precioso thesouro, e em todos os an Meaux, na sua Exposição da Fé.
nos se ajuníavam no dia do seu martyrio Não subministrava, pois, este culto suffi
para. se alegrarem no Senhor da gloria ciente motivo para que os reformados se
d’este sancto. * separassem da igreja catholica; e M. Til-
Os fieis de Smirna recolheram com toda lotson' viu-se forçado a confessar que não
a diligencia as reliquias de S. Polycarpo.5 deveram de separar-sc d’ella porque esta
A igreja de Lyon teve sempre em grande fosse idolatra, mas sim porque era difficil
veneração as réliquias dos sanctos.6 deixar de o ser na sua communhão.2
Não deixa de haver abuso no culto que-
1 Grot. votum pro pace. se dá ás reliquias, e talvez houvesse mais
2 Calvin. Instit. I. 2, c. 20. Chamier, l. antes da reforma; mas a Igreja não ap-
20, c. 4. Hospin, Hist. Sacr., 2 parL Daillé, provava, antes bem condemnava estes abu
adversus Latiu, de Reliq. cultu Vossius} de sos. E por yentura alguns abusos introdu
ldol. U enfavt, Prêservalif. Basnag. ibid. zidos entre os fieis dao motivo sufficiente
Barbeyrac, fíep. au P. Gellier. para se romper a unidade? Toca aos par-
3 Reg. I. 4, c. 13. Ecclesiast. c. 48, act.
,
19 1 H y e r o n . c o n t r . V ig il.
2 Tillotson, semíão sobi'e estas palavras
* R ninart, A cta Martyrum.
3 lbid. pag. 33. de S. Paulo: *Elles serão salvos, mas pelo.
6 Ruinart, Acta Martyrum, pag. 67.
856 VIG
ticulares separarem-se da Igreja por nào na igreja primitiva; lei que havia causado
impedir esta esses abusos? Em que se tor infinitas desordens, e que para remcdial-as
naria a politica da Igreja, se homens sem é que os reformadores a haviam impugna
authoridade se créssem com direito Resta do; taes são os princípios de Chamicr, de
belecer n’ella a reforma? Kemnicio, dos theologos de Sedam e de
As objecções que M. Basnage põe con Saumur, de Jurieu, Basnage, c L’enfant.
tra o culto das reliquias, sempre se fun Barbeyrac, que no prefacio da sua tra-
dam no falso supposto de que os catholicos ducção de Pufiendoríio, c na sua resposta
honram os sanctos e suas reliquias com a D. Ccllicr copiou quanto pôde esquadri
um culto similhante ao que dào a Deus. nhar cm Lc Clerc contra os sanctos pa
Sobre esta matéria podem vêr-sc os sábios dres, renovou todas estas diíficuldades, e
e judiciosos authorcs que citam os.1 até quiz provar ser o celibato nocivo ao
bem da sociedade humana cm geral, c a
§ III ^ cada uma das sociedades cm particular;
por este lado principal mente é que a lei
Do celibato do celibato ha sido tão accommettida no
nosso século. Para julgarmos sobre estas
Alguns heregcs antigos olhavam todos objecções, examinaremos: i.° o que a igreja
os objectos que levam ao prazer como primitiva pensou acerca do celibato ou da
benefícios do Ente Supremo, e a lei que continência; 2.° se a Igreja podia obrigar
. prohibia usar d’elles, como obra d’um ente os seus ministros a observal-a; 3.° se o ce
malefico, que queria contrariar a Deus, c libato da igreja romana c prejudicial á so
tornar os homens infelizes; razão porque ciedade civil.
tinham d’a!guma sorte por um dever de
religião o procurarem os prazeres prohi- PRIMEIRA QUESTÃO
toidos: entre ellcs a copula carnal era um
acto ■virtuoso, e a continência uma fraque DO QUE A IGREJA PRIMITIVA PENSOU ACERCA
ja ou impiedade.2 Vigilancio, pelo contra DO CELIBATO E DA CONTINÊNCIA
io, olhava a copula como crime, e o ce-
bato como um estado que o fazia inevi A Escriptura representa-nos a continên
vei. cia voluntaria como estado de sanctidade
Luthcro no principio da reforma pregou particular: e para nos convencermos d’isto
m sermão, no qual se exprimia assim: bastará sopiente que lancemos os olhos
•Da mesma sorte que não está em meu sobre o cap. 7.° da primeira epistola de S.
poder o nào ser homem, assim também Paulo aos corinthios. Para se provar se
não posso viver sem mulher, c isto mc c ria inútil citarmos os theologos catholicos,
mais preciso que o comer, beber, e satis re.conhocendo esta verdade os mesmos pro
fazer as outras necessidades do corpo... testantes, como Grocio e Forbezio, os quaes
Se as mulheres se recusarem, será a pro nào negam que o Evangelho e S. Paulo
posito que os maridos lhes digam: se vós preferem a continência ao casamento. 1
não quereis, outra quererá; se a dama se Basta abrir os padres dos tres primeiros
negar, viva a criada.» 3 Zuinglio, Beza, e séculos para convencer-se qualquer de que
outros, seguiram o exemplo de Luthcro, o o celibato c a virgindade foram muito co
que fez dizer a Erasmo que a reforma nào nhecidos nos tres primeiros séculos do
era mais que uma comedia continuada, Christianismo. M. Dodxyel reconhece que
cujo desenredo era sempre o casamento. depois dos couselhos de S. Paulo, a esti
Os novos reformadores não poderam jus mação que se fazia da virgindade era ge
tificar as expressões de Luthero, Basnage, ral, c que desde o tempo dé S. Clemente
e outros protestantes; concordam em que havia muitas virgens; 2 pouco depois se
são indignas d’um patriarcha, porém não obrigaram a guardar continência por vo
deixaram í e defender-os seus princípios tos, os quaes são quasi tão antigos como o
acerca do celibato, asseverando ser lei in mesmo Christianismo:(assim se vê em S.
justa, impossível d’obscrvar, desconhecida
1 Grotius in c. 7, primis ad ‘Corinth.
1 Papebroc, Acta Sanct. t. 5. Mobillon, Forbesitts, l. i. Theol. Moral. I. 1, c. 12,
Pref. Act. SS. Fleury, D iscotas 3, su r le pag. 19.
Hist. Eccles. 2 Dodwel, Dissert. 2 sur la Chronolo-
2 Os antitaclos. gie des Papes, nas obras posthumas de Pcar-
3 Serm. Luther. son. .
VIG 857
Justino, Athenagoras, S. Clcmentc d’Allc- Sancto Epiphanio falia do celibato dos
xandria, Tertulliano e Origenes. » sacerdotes como geralmcnte estabelecido
E escusado examinarmos como se pen e observado cm todos os logarcs em que
sou acerca da continência nos scculos se estavam em vigor os canones da Igreja; e
guintes; ninguem ignora que no tempo de bem que reconheça que em alguns outros
Sancio Anifio estavam cheios de religiosos, se practicava o co*ntrario, diz que esta ex-
que a professavam, os desertos do Egypto cepção não era authorisada pelos canones,
c da Syria; desde cntfio se tom conservado e que só era tolerada por condescendor
no Oriente.12 Portanto não é a vida monas com a fraqueza, e introduzida pela negli
tica um abuso introduzido pela igreja ro gencia.
mana, pois que quasi é lào antigo como o Os canones dos apostolos determinam o
Christianismo.3 celibato, c não se ignora quo a disciplina
que n’elles se contém era observada pelos
SEGUNDA QUESTÃO' orientacs nos tres primeiros séculos da
Igreja. 1 Esta práctica não é menos geral
SE A IGREJA IMPOZ AOS SEUS MINISTROS entre os latinos, como se manifesta do ca
A LEI DO CELIBATO non 33 do concilio de Elvira, o qual pro
E SE ESTA LEI É INJUSTA hibe aos sacerdotes e aos diaconos, debaixo
de pena de deposição, o viverem com suas
O celibato não 6 uma'condição necessa mulheres; c pelos "fins do quarto século foi
ria por direito divino para receber o sa estabelecida a mesma lei no concilio de
cerdócio: porém entre os apostolos só al Carthago.2
cançamos que S. Pedro tivesse mulher, e Verdade é que a igreja latina durante a
se os mais as tiveram é necessario que perseguição não fez leis para castigar os
renunciassem o uso do matrimonio, pois clérigos que não observavam a da conti
ue na historia nào se faz menção alguma nência, c que havia alguns casados, ou
c seus filhos. que ordenados depois de o serem, conti
No tempo de Tertulliano e de S. Jero- nuavam no uso do matrimonio, uns porque
nymo pensava-se que sómente S. Pedro ti o suppunham permittido, outros porque
nha sido casado. 1 queriam que o fosse aos sacordotés dr
Verdade ó que os authores parecem di Christianismo, da mesma sorte que o er
vididos acerca do casamento de S. Paulo, aos da antiga lei.
mas todos conveem em que quando este Informado porém o papa Siricio d’cs
apostolo escreveu aos corinthios, fazia pro desordens, quando a perseguição cess
fissão de viver na continência, pois que deu perdão aos primeiros com a condk
elle mesmo assim o d iz .3 do que não receberíam mais ordens, nt
0 concilio de Nicea suppõe o celibato exerceríam as que tinham se nào obse*
um uso estabelecido na Igreja, pois pro vassem o celibato; depôz os segundos, e
hibe aos sacerdotes o lerem em suas casas prohibiu se ordenassem os casados, c se
mulheres que possam induzir suspeita, casassem os que já eram ordenados: no
permittirido-lhes sóniente viverem com suas que é evidente que o papa nào fazia mais
mães ou irmãs, o que deixa vér que não que restituir ao seu vigor uma lei já esta
tinham mulheres, porque debaixo do nome belecida e reconhecida na Igreja.
de irmã não podemos dizer que fosse com- No principio do quinto século Innocen-
prehendida a m ulher.6 cio i confirmou este direito de Siricio: 3 e
no meio do sexto fez Justiuo uma lei para
1 Jústin. Apol. Anthenagore Legat, pro confirmar, diz elle, os sanctos canones, que
Christ. Ciem. Alex. I. 3. Strom. Tert. Apol. prohibem o casamento dos sacerdotes.45
c. 9. Origen. cont. Cels. Pelo que acabamos de dizer fica eviden
2 Peipet. de la Foi, t. 5, pag. 299. te: I.° Que houve sempre na Igreja singu
2 *Mabillon, Praes, in primum saeculum lar veneração á virtude da continência.
Benedici, n. 5, etc. 2.° Que esta virtude não excede as forças
4 Tert. de Monogam. Hieron. contr. Jo- do homem, ajudado com os soccorros da
vinian.
5 Tert. ibid. c. 3. Epiph. lia r. 58. Hie
ron. Ep. 22. Avg. de Grat. et lib. arb. c. 4. 1 Can. 27.
Tlieodòret in Paul., diz que S. Paulo foi 2 Can. 2.
casado. Ciem. in Alex. I. 3. Strom. c. 30. 3 Innocent. Ep. 3.
Eusebe et S. Mèthode le nient. 4 L. 5, c. de Episcopis et clericis, col
6 Cone. Nic. Com. 4. lect. 4, t. 1.
858 VIG
graça. 3.° Que a igreja antiga a prescre Nem o uso da igreja grega authorisava
veu a seus ministros. a liberdade dos reformadores; esta, sim,
A lei do celibato, imposta aos sacerdotes permitte o casamento dos sacerdotes, mas
e diaconos pelo papa Siricio, c depois aos quando se tracta d’um ponto de disciplina
subdiaconos por Leão, nào é, pois, injusta, póde e deve cada qual seguir as leis da.
menos que nao se queira negar á Igreja o Igreja cm que se acha.
direito da legislação, c de pedir a seus mi
nistros certas virtudes ou qualidades, que TERCEIRA QUESTÃO
cila julgar necessarias, segundo o tempo c
as circumstandas: .portanto, é uma rebel- SE A -LEI 1)0 CELIBATO K CONTRARIA
liào inescusavel dos primeiros reformado À FELICIDADE DOS ESTADOS
res violarem os votos de continência que
baviam feito, c condemnarem a práctica A povoaçào, dizem alguns, anda tão,en
da Igreja assim estabelecida. leada com a felicidade dos estados, que os
Se Paphnucio reclamou contra a lei do legisladores mais sábios olhavam sempre
celibato no concilio niccno, é facto nimia- o celibato como um crime: ninguem igno
mente duvidoso, para authorisar um sim ra como elle era castigado em Sparta.
ples fiel a revoltar-se contra uma lei ge N’este principio se estribam para assal
ralmente observada na Igreja: Sómente tarem a doutrina da Igreja acerca do celi
Socrates e Sozomeno o referem. Eusobio bato: «0 casamento, dizein elles, é decoro
' nào fallà n’elle, M. Baylc o suppòe falso, e so, e necessário em todas as sociedades
a linal, assim este facto, como muitos ou civis: ó notorio que todos os legisladores
tros, provam que a lei do celibato nào sábios empregaram os expedientes mais
obrigou sempre na Igreja, mas nào que adequados a fim de obrigarem os cidadãos
esta carecesse de autlioridade para a pre ao casamento: isto supposto em um povo
screver. composto de christàos, persuadidos todos
Nas desordens do clero fazem o seu de que na continência ha uma grande san-
maior lincapé os reformadores para a in- ctidade, que faz os homens mais gratos a
fracçào da mesma lei: eram grandes, sem Deus do que o são no estado do matrimo
liivfda, bem que excessivamente exaggera- nio, não haveria casamento, porque todas
as exhortações dos escriptores sagrados
las pelos protestantes, e principalmcnte por
tendem a impôr como obrigação indispen
uricu, que, em defesa da reforma, amontoa,
sem escolba, sem discrição, sem critica c sável o aspirar â perfeição' e tornar-se-
sem pejo, infinidade de fabulas c de calu cada um mais agradavel a D e u s.1
mnias absurdas: mas estas desordens do Esta objecção mesmo em substancia tem-
clero provinham do geral transtorno em se transformado em mil diversos modos,
uepozeram a Europa inteira as invasões chegando ao ponto de fazer-se d'ella o fun
os barbaros. damento para presagiar que os protestan
0 clero, abysmado na mais profunda tes hão de vir a subjugar os estados ca
ignorância, incapaz de occupar-se nos seus tholicos: portanto vamos avaliar a sua for
devereà e estudos, ia como arrastado pela ça por meio d’algumas reflexões.
torrente da desordem geral, por effeitodas l.° A igreja catholica ensina ser a conti- *
mesmas causas que tornaram todos os po nencia um estado mais perfeito que o do
vos da Europa viciosos, ignorantes e des- casamento, mas ensina tamhem que é um
humanos; porém só á Igreja, que gemia dom particular, que nem todos são chama
debaixo d’estas desordens, assistia o direis dos a este estado, e que este mesmo torna
to de prescrever leis proprias para repri- a salvação mui perigosa, quando para elle
m il-a s.1*3 não ha vocação verdadeira: e é tanto as
sim que ordena provas para os que a elle
1 Veja-se sobre esta questão Sylvio, t. 4. pretendem consagrar-se. Ensina a igreja
Suppl. quest. 53. Juenin, de Impedim. Ma-
trim . Ferrand, réponse á iApologie de Ju- o celibato. D. Gêrvasio tractou também es
rieu. Leltres snr differens sujets de contro ta m ateria n'uma disséidàc.ão aue pôz no
verse, par M. VAbbè de Cordemoy, U ttr e s fim da vida de S. C ypriam . Ha também
3 et 4. Histoire des Concites Gcnéraux, no theologos que pretendem que o celibato é do
fim da qual se vê um excellente tractado direito divino. Veja-se Sylvio, loc. cit.; isto,
do celibato. Celliei', Apologie pour la Mora porém, não é mais que uma opinião sem
le des PP. Histoire du divorce de Hcnri fundamento.
VIU, 3 vol. in-12, 1688,- chez Boudot; no i Barbeyrac, Trailé de la Morale des
fim d'eüa se acham bellas dissertações sobre Percs, c. 8, pag. 113, etc.
WIC 839
catholica ser sancto o estado do casamen wiCLEF, ou joão wíclif— nasceu cm Wi-
to, c que a clle é chamado o maior nume clif, na provincia de York, peloanno 1329:
ro de homens, e portanto a sua doutrina estudou no collegio da Rainha, cm Oxford,
não leva todos os christãos ao celibato, c fez grandes progressos na philosophia e
nem a persuasão á continência será de es na theologia.
torvo para o casamento dos estados ca Em 1301 estabeleceu o arcebispo de Can-
tholicos. tuaria, cm Oxford, uma fundação para o es
2.° Um homem que se casa produz mui tado da logica c do direito, nâ qual havia
tos, e assim, segundo a carreira ordinaria de haver um guardião c onze collegiacs,
da natureza, os homens se hão de multi tres monges da igreja de Christo em Can-
plicar quanto baste para não poderem sub tuaria, e oito do clero secular. O mesmo
sistir no mesmo Iogar, e se vêrem obriga fundador deu o logar de guardião a corto
dos a'formar ‘novos estabelecimentos. As monge, do qual pouco tempo depois o ex
transmigracões que proveem da dema- pulsou para 11’elle pôr a Wiclef.
zia de vassállos, não se oppoem á felicida Morto 0 fundador, Simão Lengham, que
de dos estados, antes bem lhes são neces lhe succedeu, restituiu aos monges os loga-
sarias; porém a respeito dos mesmos esta res que tinham perdido. Wclef appcllou: 0
dos veem a ser perdidas. papa confirmou a sua expulsão, e quanto
Portanto, pois, não é opposta à felicida havia feito Lengham. Dous annos depois
de pública uma lei que absorve a süper- Wiclef obteve uma cadeira de theologia,
abundancia; quando se attribua ao celibato cujas funeções desempenhou com luzimeu-
este effeito: nem deve ter-se por nociva to, porém durante 0 curso theologico fez
em um estado no qual se cuide cm alen continuas deelamações contra os monges,
tar e favorecer a população; antes se pôde chegando até 0 ponto de os accusar de er
atfirmaf que, absorve a superfluidade de ros capitaes.
vassallos, que sempre se vê n’um estado Não eram menos desfavoráveis as dispo
bem governado, muito mais util, do que sições de Wiclef para com a côrte de Ro
o uso de destacar colonias; porque estas mâ, de sorte que, ou fosse por haver pei
são perdidas a respeito do estado d’onde dido 0 seu processo, ou pelas dissensõc
sahem, e o celibato da igreja catholica que havia entre os papas e a Inglaterrí
conserva os cidadãos, que aliás perdería. ou finalmente pela leitura de numerosa
Não é, pois, o celibato da igreja romana obras que tinham succcssivamente accom-
a quem devia imputar-se a despovoação meltido a igreja de Roma, taes como os
dos estados catholicos; se a houvesse, ou escriptos de Marsilo de Padua, e de João
tras seriam as causas. 0 amigo dos ho de Oliva, Wiclef investiu a côrte de Ro
mens, que está mui longe de merecer a ma nas suas lições de theologia, nos seus
suspeita de pouco zeloso a respeito da feli sermões e nos seus escriptos, e. não só
cidade dos estados, provou esta verdade juntou quanto se escrevera contra 0 seu
para qualquer que leia sem prevenção. poder e riquezas, mas impugnou a sua
0 celibato, que primeiramente foi prohi- authoridadc nas cousas puramente espi-
bido em Sparta e em Roma, foi depois to rituaes, e até quiz imputar-lhe erros no
lerado n’aquellas republicas. Além do que âmago da sua doutrina. Como 0 clero de
os gymnophoristas, entre os indios, os hy- Inglaterra, tomando sempre 0 partido dos
rophantes, entre os athenienses, e parte dos papas contra el-rei e contra 0 parlamento,
discipulos de Pythagoras viviam em 'celi tinha mantido 0 povo fiel á sancta sé, cm-
bato. 1 Portanto não é este contrario nem prehendeu Wiclef arruinar 0 credito do
ao poder dos estados, nem á felicidade dos clero, impugnando as suas pretonções, e
particulares. . ' quanto podia conciliar-lhe a confiança e
w a l f r e d o — Homem obscuro e ignoran respeito dos povos. Concorria também*que
te, o qual sustentava que a alma acabava as vivas e frequentes desavenças entre a
com o corpo. Appareceu pelos fins do sé côrte de Roma e Inglaterra desde João,
culo decimo. Durando, abbade de Castres, dito Sem Terra, tinham mal dispostos os
o refutou sem réplica, e o seu erro não te animos contra a mesma côrte, causando
ve consequências. 2 sempre um grande estimulo a lembrança
da excommunhão e deposição de aquelle
1 Hist. Critiq. du Celibat.j Acad. des principe, cuja corôa fôra lançada aos pés
Inscript., 1713. do legado, e tornada a pôr pelo mesmo
2 D'Acheri, Spicileg., t. 7, pag. 341. ministro sobre a cabeça do rei, a cessão
Mabillon, Prcef. in scec. 5. Benedict., § 3. de Inglaterra ao papa ô 0 tributo que este
Hist. Litter. de France, t. 5, pag. 11, 12. pôz sobre aquelle reino, e não menos dis-
860 W IG
que não tem ordem na igreja de Deus, de seus passados, recobram todos os seus
inas na sociedade dos demonios; que de direitos com um titulo mais legitimo que
pois da dotação da Igreja todos os papas o da conquista.
são precursores do Anti-Ghristo e vigários Todos os donativos que se fazem ao cle
do demonio; que assim ellcs como os car- ro deveríam ser esmolas livres, não im
dcaes sào instituídos, não por Jesus Chris postos forçados. O povo, cm consciência,
to, inas pelo demonio; que deve aconsclhar- deve negar o dizimo aos maus ministros,
sc aos Fieis que não peçam indulgências ao sem que lhe importem as censuras que se
papa, porque a bondade de Deus não se en incorrem por haver desempenhado esta
cerra nos muros de Roma ou de Avinhão; obrigação.
que nem o jTapa nem alguma outra potên Pretende Wiclef que para serem legiti
cia da terra tem poder para estorvar-nos mas as nomeações para benefícios, se deve
os meios da salvação que Jesus Christo restabelecer o*uso das eleições por sorte:
estabeleceu; que o papa e seus collegas é Jesus Christo só o que ordena, quando,
são phariseus c escribas, presumindo ter e como elle quer: um homem a quem a
o direito de fechar a porta do céo, aonde sua consciência dá o testimunho dc que
elles não hão de entrar, c não querem que satisfaz á lei de Jesus Christo, está certo
os mais entrem. de que é ordenado sacerdote pelo mes
O poder dos bispos não ó mais que ima mo Senhor.
ginario; qualquer simples sacerdote, cujos O livro da simonia nada mais é que a
costumes sejam regrados, tem mais poder repetição de quanto tinha dito contra os
espiritual que os prelados eleitos pelos religiosos. No da perfeição dos estados
cardeacs c nomeados pelo papa. quer que na Igreja não devam haver mais
Wiclef dá ás ordens religiosas o nome que duas ordens, o diaconato c o sacerdó
odioso de seitas, e particularmente se en cio; as outras são instituições monstruc
furece contra as quatro mendicantes, as sas.
quaes, segundo elle, são fundadas sobre a No livro intitulado da Ordem cliristã at;
hypocrisia. Os serracenos, que negavam o ca o dogma da presença real, c renova
Evangelho, são menos culpaveis diante de erro dos berengarios. Affirma que se sai
Deus do que estas seitas. O mahometismo vam os meninos mortos sem baptismo: re
e a vida dos cardeaes, conduzem por diffe pete o que tinha dito acerca dos monges
rentes derrotas, mas igualmente seguras e das ordens: tem por concubinato o casa
para o inferno. Sc os fieis são obrigados a mento de pessoas que não podem ter fi
honrar o corpo da Igreja, sua sancta mãe, lhos: nega que a Extrema-unção seja sa
•> nenhum ha que não deva trabalhar cm cramento: diz que o homem mais sancto
", puriíical-a d’estas seitas, que são quatro é o que tem mais poder na Igreja, c o uni
■> humores mortaes de que o seu corpo está co que possue a authoridade legitima, e
inficcionado. demais affirma que, para possuir com bom
A confissão é uma práclica instituida direito qualquer cousa sobre a terra, é
por lnnocencio nr, e não ha cousa mais necessario ser justo, e que este direito se
inútil; basta que nos arrependamos. Con perde logo que se commette qualquer pec-
demna o uso do chrisma no baptismo. cado mortal.
Ataca o dogma da transubstanciação. É bem de admirar vér que Wiclef arro-
O livro do sermão do Senhor sobre o jando-se a proferir esta maxima unicamente
monte, contém quatro livros, nos quaes com' o intuito de authorisar os fieis a des
quer elle provar que os apostolos tinham pojarem o clero de suas riquezas, nãò di
trabalhado por suas proprias mãos para visasse que por cila o estabelecia senhor
adquirir o sustento, e que não tornavam absoluto de todos os bens temporaes, pois
das esmolas mais que o simples necessa que na verdade só á Igreja pertence o jul
rio, concluindo d’aqui serem simoniacos gar se qualquer homem tem commcttido
i os clérigos que entram no estado eccle um peccado mortal: porque seria abrir
siastico com uma intenção differente. uma porta franca a todos os roubos e a
Os senhores temporaes teem direito pa todas as guerras entregar esta decisão aos
ra despojarem todos os ecclesiasticos das particulares, como queria Wiclef. Os fu
suas possessões, sem que necessitem da rores dos hussitas e dos anabaptistas, que
í intervenção do papa: é favorecer a here depois d'elle desolaram a Ailemanha, são
sia não se levantarem contra as possessões provas d’esta doutrina. Na mesma obra
da Igreja; bem que os antepassados dos sustenta que tudo acontece por necessi
fieis se desapropriassem d’estes bens, os dade.
1 descendentes d’estes, corrigindo os erros O Trialogue contém quatro livros, os a
. 55
$62 WIC
quaes não são outra cousa mais que a re Deus, torna-se em peccado mortal. Depois
petição de tudo o1que tinha dito contra as ataca as orações pelos defunctos. O livro
possessões temporaes do clero; alii conde do Dominio civil contém tres livros: d’cl-
mna a consagração das igrejas, as ceremo lcs sómente extrahiram os doutores dc
nias, e insiste sobre a nullidade das cen Oxford algurnas proposições contra os mon
suras e das cxcommunhòes da Igreja. ges, cujo sentido se não* alcança.
A obra intitulada Dialogos versa toda in Tudo o que acabamos d’cxpôr dos prin
teira sobre metaphysica abstracta, e se cípios de Wiclef, repete elle no seu iracta-
destina a combater a crença da presença do do Diabo, c nos seus livros de Doutri
real, por difilculdades que tira da mesma na do império do céo, e da Confissão. Tal
natureza da extensão, tendo por impossí é a sua doutrina, segundo se vê exposta
vel que os accidentes eucharisticos subsis na collecção dos conci lios d’Inglaterra, da
tam sem sujeito; que dous corpos existam da á luz pelos inglezes alguns annos de
no mesmo espaço, e que Deus possa pro pois: nada se encontra nos monumentos
duzir em o mesmo tempo um corpo em recolhidos pelos editores dos mesmos con-
differentes logares. Renova os erros d’Abae- cilios, que dê logar a crêr-sc que a Wi
lardo sobre os limites do poder divino, não clef imputassem sentimentos alheios, ou
querendo que Deus possa fazer mais do que o extracto dc seus livros fosse infiel.
que aquillo que já fez. Sem fundamento, pois, diz o doutor Burnet
No tractado da arte do sophista torna a que não se sabe realmentc se os sentimen
assanhar-se contra as possessões tempo- tos que se lhe attribuem são na verdade
raes da Igreja, e se remonta até â ideia seus, «pois que nada sabemos, diz elle, se
primitiva do direito dos homens sobre a não pelos seus inimigos, os quaes escreve
terra: pertencendo tudo a Deus, só elle ram com uma paixão propria para deixa
oóde dar ao homem um direito exclusivo rem em dúvida tudo o que proferiram.»1
obre qualquer cousa, e Deus não dá se- Os sectarios dc Wiclef, que eram mui
ão aos justos, e áquelles que teem a sua numerosos, c tão inimigos do clero como
raça. A qualidade de herdeiro, os titulos, este o era de Wiclef, não teriam deixado
s concessões c doações não estabelecem de dar todo o realce ás infelicidades dos
ámais um direito legitimo em favor do que extractos, e o seu silencio é uma approva-
pecca; tanto que este é privado da justiça ção formal da genuidade dos mesmos.
habitual e da graça, é usurpador.
O pae que morre no estado de justiça
não dá a seu filho o direito de lhe succe- DOS EFFEITOS DA DOUTRINA DE WICLEF
<ler, se não lhe merece a graça necessaria
para viver sanctamente, "e portanto, não
teem os homens sobre a terra mais direi As obras de Wiclef conleem, pois, prin
tos, nem mais lei que a caridade. Assim, cípios que quadram com differentes cara
pois, o amo que não tracta seu domestico cteres, adequados a diversos juízos, e fa
como quereria ser tractado se estivesse no voráveis á indisposição assaz geral em In
seu logar, pecca contra a caridade, perde glaterra contra o papa, contra o clero, e
a graça, descahe de seus direitos, e é des contra os monges; portanto, havia de ter
pojado de toda a authoridade legitima so discipulos.
bre o seu servo. O mesmo se deve dizer De nada se es'queceu o clero para suffo-
dos reis, dos papas e bispos, conforme Wi- car esta seita nascente, anathematisou os
clef, uma vez que elles commettara um wiclefitas e lollardos, que de alguma sorte
peccado mortal. se confundiam, obteve contra elles editos
Sendo a pobreza a primeira lei do Chris rigorosos, e com effeito foram queimados
tianismo, ninguem deve pôr demandas por alguns d’uma e outra seita. 2
bens temporaes, nem occupar-se senão das Mas, sem embargo d’isto, a doutrina de
cousas do céo; portanto, ninguem, sem pec W iclef dava tão grandes passos, que a ca
cado, póde occupar-se em julgar os negó mara dos communs, em 1404, offereceu a
cios profanos, e pela mesma razão se os el-rei uma representação em que lhe pe
barbaros assolarem um paiz, é mais con dia se apoderasse das rendas do clero, no
forme com o Evangelho supportar estas
desgraças, que rebater a forca com a força. 1 Burnet, Hisloire de la Reforme d'Angl.,
Deus não approva, segundo Wiclef, que l. 1, pag. 59.
os catholicos tenham dominação civil ou 2 Collecção dos Actos de Reymer, na
religiosa. A cólera, por mais leve que seja, continuação da H istoria de M. de Rapin
quando não tem por objecto a gloria de ThoiraSj t. 2, pag. 60. Cone. B rit.} t. 3.
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que elle não consentiu: em 1410 repetiu a dos em Roma, Vienna e Basiléia, aonde
mcsina representação: porém el-rei não so tomou o capello em artes; e lendo estu
mente a rejeitou, mas prohibiu á camara dado a theologia, foi parocho cm Glaris,
dos communs de intromctter-sc nos negó em 1006, c depois n’uma villa por nome
cios do clero: depois d’isto requereu a mes Nossa Senhora das Ermidas, famosa pela
ma camara para que se revogasse ou miti grande devoção com que muitos peregri
gasse o edito que condemnava os lollardos nos iam fazer alii suas oITertas. N’csta vil
ou wiclefilas, e este mesmo requerimento la descobriu muitos abusos, e vendo que o
foi indeferido, c durante a sessão el-rei fez povo estava possuído d’erros grosseiros,
queimar um lollardo. por meio de instrueçoes e de discursos,
Henrique v não tractou com menos ri entrou a esclarecel-o.
gor os lollardos, porém nem extinguiu esta Emquanto Zuinglio se applicava a cor
seita, nem a dos wiclefitas, que fez pro rigir estes abusos, Leão x mandou pregar
gressos occultos, mas consideráveis na indulgências na Allemanha pelos domini
camara dos communs, e preparou tudo canos, e na Suissa pelo franciscano Ber-
para o scisma de Henrique vm. Os livros nardino Samson. Levantou-se Zuinglio con
de Wiclef apparcceram em Allcmanha, tra o abuso que o franciscano fazia das in
aonde João Hus adoplou parte dos seus er dulgências, c o bispo de Constança lhe ap-
ros, e d’ellcs se serviu para amotinar os provou a resolução, porque também estava
povos contra o clero. resentido de quê elle entrasse na sua dio
Sopeada a seita dos hussitas não se ani cese sem permissão sua, e sem haver mos
quilou nos espíritos a doutrina de Wiclef, trado em Constança a genuidade das suas
que na Allemanha produziu essas differen bullas.
tes seitas de anabaptistas, que a desolaram Por esse tempo foi nomeado Zuinglio
logo que Luthero levantou o estandarte da pregador de Zurich, e pintou tão vivamente
rebelliào contra a Igreja. Veja-se o artigo os abusos, c até os excessos do francisca
Anabaptistas. no, que o consul de Zurich mandou fech?
Já refutamos os erros dos wiclefilas acer as portas ao conductor das indulgência
ca da presença real no artigo Berengario, Como todos estes abusos se fundavam e
e Berengarios, acerca das orações pelos tradições incertas, c ainda mesmo cm f.
mortos, das ceremonias da Igreja, do Sa bulas, Zuinglio para erradicar os abuso,
cramento, da ordem, o da superioridade atacou todas as tradições, querendo que se
dos bispos nos artigos Ano e Vigilando; se admittisse como verdadeiro o pertencen
ácerca da omnipotencia de Deus, em Abae- te á religião christà, o que é ensinado for
lardo; o seu sentimento sobre as indulgên malmente na Escriptura, e que se rejei
cias, cm Luthero, e sobre a confissão, em tasse como invenção humana tudo o que
Osma. por cila não podia provar-se.
Quanto á sua opinião sobre as posses O magistrado de Lausanne creu encon
sões temporaes do clero, é que não se trar na doutrina de Zuinglio um expe
funda senão no abuso que elle possa fazer diente seguro para derribar todos os abu
dos bens que possue; eu ma dissertação que sos, c para determinar os pontos em que
provasse poder o clero possuir legitima se devia obedecer ao papa e ao poder ec
mente esses bens, a ninguem persuadiría clesiastico. Portanto, foi dirigido aos paro
que o mesmo clero fazia mau uso d’elles, se chos, prégadores, beneficiados c curas Cal
estivéssemos no caso de se lhe poder cen mas nm edito do conselho, no qual se lhes
surar esse mau uso. ordenava que não prégassêm senão o que
Os albigenses, que ensinavam deverem- podésso provar-se pela palavra de Deus, e
se despojar os ecclesiasticos das suas pos que deixassem em silencio as doutrinas e
sessões, não tiveram sequazes mais zelo leis humanas.
sos, á excepçào de alguns usurarios, c de Tinham passado á Suissa os livros de
alguns senhores avarentos e tyrannos de Luthero contra as indulgências c contra a
seus vassallos. A cada passo se vôom re igreja de Roma, aonde eram lidos soíTre-
novar estas antigas deciamacões contra o gamente: Zuinglio da sua parte havia com-
clero, mas é muito raro acharem-se na ínunicado a muitos os seus sentimentos;
.bôcca dTmi homem que em si una as qua viu-se, pois, de improviso, uma chusma de
lidades de entendido, desinteressado, eari- prégadores, que não só atacavam os abu
tativo c modesto. sos, mas as mesmas indulgência^ o culto
z i s c a — Veja-se Hussitas. dos sanctos, os votos monasticos, o celiba
z u i n g l i o u l r i c — nasceu em Tackembur- to dos sacerdotes, a quaresma, a missa, etc.
go, em 1484, fez a carreira de seus estu O bispo de Constança, que approvára-^
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a Zuinglio quando cllc impugnava somen seus erros acerca da Eucharistia; e n s i n a i»
te os abusos, sahiu com uma pastoral con do que o corpo de Jesus Christo não e ste z r
tra os innovadores, c mandou deputados va alli realmenlc. Zuinglio não deixou f i =
aos outros cantoes, queixando-se da licença gir esta occasião tão favoravel ao designi
dos mesmos innovadores. Os mesmos can- que formara de abolir a missa.
tòes, congregados em Lucerna, lavraram Carlostadio cstribãra sua opinião en
um decreto, em 27 de mareo de 1522, prohi- ser impossível que um corpo estivesse cri
bindo aos ecclesiasticos a* pregação da no muitos logarcs ao mesmo tempo. L ulhercn
va doutrina: Zuinglio não obedeceu ao de lhe oppozera a authoridade da E scriptura--
creto, c continuou nas suas declamações: que expressamente diz serem os s y m b o lo s
os catholicos de Zurich combateram os re eucharisticos o corpo de Jesus Christo: ora—
formadores, e o povo se dividiu entre Zuin peremptória esta razão contra Zuinglio, que
glio e os ministros catholicos. estabelecia a sua reforma sobre o princi
Segundo o principio fundamental da re pio fundamental de que nada se deve en
forma do Zuinglio, todas as disputas da re sinar senão o que contém a Escriptura.
ligião deviam ser decididas unicamente Este argumento o atormentava de dia e de
pela Escriptura, e d’esta sorte se tornavam noite, seni poder atinar com a solução.
simples factos, não sendo preciso para sua Todavia pregava com a sua vehemencia
decisão mais que abrir a Escriptura, e ver ordinaria contra a igreja romana; o seu
de duas proposições oppostas qual se en partido se fazia dominante, accendéram-se
contrava no Antigo ou Novo Testamento. os animos, quebraram as imagens, c como
Vesta maneira era o magistrado o juiz crescia a turbulência na cidade, os magis
ompetente das disputas da religião, e o trados determinaram conferências sobre
onselho de Zuric ordenou aos ministros das as materias controvertidas. Depois dc mui
Igrejas da.sua jurisdicçào que se achassem tas, aboliram a missa, e successivamente
na capital, c supplicou áo bispo de Constan- todas as ceremonias da igreja romana;
ça que viesse ou mandasse os seus theolo abriram-se os claustros, quebraram-se os
gos. votos, casaram-se os parochos, e o mesmo
Os ministros obedeceram ao conselho, e Zuinglio também casou com uma viuva
o bispo enviou João Faber, seu vigário ge rica. Eis-aqui o primeiro eíTeito que a sua
ral, com os seus theologos. Apresentou reforma produziu no cantão de Zurich.
Zuinglio a sua doutrina em 67 artigos; A difllculdado dc conciliar o sentimento
porém Faber, que attenlou querer o con de Carlostadio sobre a Eucharistia com as
selho constituir-se juiz da doutrina, recu palavras dc Jesus Christo, que diz expres
sou entrar em conferência diante d’elle, samente— este é o meu corpo—lhe fazia dar
insistindo em que sómente á Igreja per volta ao miollo. Teve um sonho, no qual
tencia o julgar das controvérsias da reli se achava disputando com o secretario dc
gião, e se oíTereceu a responder por csçri- Zurich, que o baqueava sobre as palavras
pto aos artigos de Zuinglio, c que final da instituição, e d’improviso ,vé apparecer
mente ainda sem dependencia da sua res um phantasma branco e negro, que lhe
posta se devia esperar a resolução de um diz,estas palavras: «Cobarde, porque não
concilio, que era forçoso congregar-se. lhe respondes com o que está cscripto no
Sobre a escusa de Faber, o conselho fez Exodo, o cordeiro c a Paschoa, para dizer
publicar um edito em que prohibia ensi- que é o symbolo.»
nar-se outra cousa mais que o que se con Esta resposta do phantasma foi um
tinha na Escriptura, em consequência do triumpho para Zuinglio, e lhe varreu to
qual Gregorio Luti entrou a pregar con das as dúvidas sobre a Eucharistia. Por
tra as ceremonias da igreja romana, e con tanto ensinou ser cila a figura do corpo e
tra o fasto do clero. Queixou-se d’isto o do sangue de Jesus Christo, para o que
administrador das terras de S. João de Je achou na Escriptura outros exemplos, em
rusalém, e o magistrado condemnou Luti que o verbo é era tomado em logar de si
á prisão e a desterro. gnifica: então lhe parecca mui natural o
Zuinglio censurou na cadeira, e com sentimento de Carlostadio.
acrimonia, o procedimento do senado; o A explicação de Zuinglio, favoravel aos
conselho supremo annullou esta sentença, seus sentimentos e 'á imaginação, foi ado-
e ordenou que d’alli por diante corressem ptada por muitos reformados: todos que
perante^lle q§ negocios de religião: Luti riam abolir a missa, e como o dogma da
foi logo promovido para outra parochia: presença real formava um embaraço sobre
Carlostadio, expulso de Saxonia por Lu- este artigo, a explicação de Zuinglio cor
thero, retirou-se á Suissa, aonde levou os tava esse nó; Oecolampadio, Capiton e Bu-
ZUI
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FIM