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A— Í^CA í-tAA» CM-JL.

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DICCIONARIO UNIVERSAL

HERESIAS, ERROS E SCISMAS


DICCIONARIO UNIVERSAL
DAS

J ou
I
MEMORIAS
PARA

S E R V IR E M A. H IS T O R IA
DOS

DESVMUOS DO ENTENDIMENTO HUMANO


ÁCERCA
DA

RELIGIÃO CHRISTÃ
P R E C E D ID O
DE UM DISCURSO EM QUE SE INVESTIGA QUAL FOI A RELIGIÃO PRIMITIVA DOS HOMENS,
AS MUDANÇAS QUE SOFFREU A TÉ AO NASCIMENTO DO CHRISTIANISMO,
AS CAUSAS GKRAES, ENCADEAMENTO E EFFEITOS DAS HERESIAS QUE DIVIDIRAM OS CHR1STÃOS

/ EXTRAHIDO DÀS OBRAS


DE

M rs. P lu q u e t, B e rg ie r, AÇLonso do L ig o rio , G u y o t, P e rr o d il,


G u illo n /W e tz e r,W e lle , R o h r b a c h e r e o u tro s
E

TRADUZIDO
2 " }ò (o ê )
POR
J - 5V2-
A N TO N IO G O M ES P E R E I R A
PRESDYTERO DA DIOCESE DO PORTO
\ .

PORTO
EM CASA DE CRUZ COUTINHO-EDITOR
1 8 E 2 0 — CALDEIREIROS— 1 8 E 2 0

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O. S. R. Pesquisas Religiosas

Requieiçôo:_____________________

Preço:_________________________
Livraria ou D o a ç é o de:

D a t a : __

T o m b o :. 5 4 J z o

C la ssif.:

N a rra vm m t mihi iniqui fabulationes:


sed non ut lex tua.
p s a l m o c x v iii . 8 3 .

PORTO: 1867—TYP. DO JORNAL DO PORTO


Rua Ferreira Borges, 5 1
PREFACIO

As memorias para servirem á historia nharam com elTeito, um compendio da his­


(tos desvarios do entendimento humano acer­ toria dos erros, scismas e desvarios do
ca da Religião Christâ, ou o Diccionario entendimento humano acerca da religião
das heresias, erros e scismas, extrahido das christã, assumpto o mais attendivcl que
o b r a d o s melhores apologistas da religião póde considerar-se, e em que a verdade é
christâ, é um tractado muito util c neces­ da ultima importância para a felicidade do
sário. homem.
Os nomos dos illustres authores são tào Esta historia, reduzida com tanta pre­
conhecidos o tão bem reputados entre os cisão como clareza a um discurso, que
sábios, quo supérfluo seria dizer alguma serve de preliminar ao seu Diccionario, é
cousa do seu merecimento e utilidade. uma admiravel synthese em que se véem
O meu desígnio, quando me resolvi oa nascimento, o progresso, e a existência,
pôr em vulgar alguns dos escriptos de tào ou o fim de todos os erros, scismas e con-
illustres pensadores, foi facilitar ás pessoas tradicçòes, que tem sofirido a Igreja em
menos instruídas uma lição proveitosa. quasi ‘dezenove séculos; c o genio dos seus
Confesso que não é uma obra de pura chefes c fautores está desenhado com pin­
imaginação, que haja de captar a benevo­ celadas tào características, que não seria
lência do público á força de bcllezas, com preciso mais que pôr em grande as especies
que engodam, c recreiam o espirito as que que elles apontam na mesma singular or­
são mera mente d’cste genero: e talvez seja dem com que as distribuem, para se formar
esta a causa, porque entre as muitas e ex­ uma historia, na qual não houvesse que de­
cellentes tradurçôcs, que teem apparecido, sejar: mas satisfazendo, em grande parte a
não houve ainda quem preferisse o util isto' mesmo, os authores remcltem os seus
d’esta ao dcleitavel d’algumas outras, que, leitores aos artigos que mais interessam
supposto logrem a fortuna d’agradar pelos no fim do discurso, que fazem sobre cada
seus attractivos, comtudo sendo destituídas um dos séculos, auxiliando-se de tal sorte
d’aquclle merecimento solido, que convem os dous methodos que usam, que o pri­
a todos os tempos, e a todas as nações, ou meiro parece indispensável ao segundo
mais cedo, ou mais tarde hão de vir a ca- para o encadeamento dos factos, este ao
hir.no esquecimento. primeiro para averigual-os, e ambos uni­
É, pois, este Diccionario uma das felizes dos para contribuírem a uma instrucçào
produeçòes, que honram e esclarecem o breve e methodica sobre as matérias que
entendimento humano; e que pela impor- formam o todo da obra.
taijcyi Ho seu assumpto merecerá sempre Porém não devendo dilatar-me na ex­
o apreço e estima pública, emquanto hou- posição de um plano, que os authores de­
7 \ ver quem deseje eíBcazmonto instruir-se, senharam tão perfeitamente na sua intro-
e quem ame do coração a verdade; sem ducção, passo aos utilissimos fins, que n’ella
que os seus authores possam merecer a nos Insinuam, os quaes desejo estender aos
justa e judiciosa censura em quo d’ordi- meus compatriotas.
nario incorrem aauelles diccionaristas, que Dizem, pois, os authores, e o prova as-
não passando de definidores de nomes, com saz toda a sua obra:— «Que não ha cousa
. razão são accusados do fazerem os homens mais importante, que illustrar os homens
superficiacs, e d\atrazárem o progresso dos ácerca dos erros que impugnam a religião,
conhecimentos uteis, c necessários para e dos meios congruentes para prevenir as
uma solida instrucçào. suas funestas consequências.»—E na-ver­
EUes s^ rop ozen N n fazer, e desempe­ dade, que póde haver mais util, sobretudo
I

VI PREFACIO

no presente século, em que a philosophia trar-nos os chefes das seitas, c impugnar


nacionalista, insinuando-se como amiga da os seus princípios; não obstante o não se
humanidade, tem feito grassar maximas, ignorar em taes tempos quaes os seus pa­
que perturbam todos os estados, assim da triarchas c as suas maximas, apesar das
sociedade ecclesiastica, como da civil, de­ especiosas apparencias com que as cobre0 ,
primindo já a religião e seus ministros, jã e do incognito cm que viajam por toda a
os principes e seus tribunaes, ao que pa­ Europa, com habito de cavalleiros, de ci­
rece, com insano desígnio de arruinar as dadãos e de militares, tanto elles como os
solidas bases em que a authoridadc, e o alumnos da sua escola: comtudo, não vi­
poder das mesmas sociedades, se funda­ mos os seus nomes còm artigo particular
mentam? n’estc Diccionario, em que não faltam nem
Estas maximas se oíTcrecem aos olhos ainda aquclles heresiarchas, que apeuas
da mocidade inexperta, sempre ávida do como taes seriam conhecidos de quacsquer
que é novo, revestidas de todos os bri- outros authores, que não profundassem
v lhantes attraclivos da eloquência, que ar- tanto c tão individualmente os seus as­
Hjficiosamente escondem o seu mortifero sumptos. como bem testimunham as mui­
yèneno: a mão do escriptor astuto, e talvez tas notas c infinidade d’obras que citam os
usufructuario d’uma reputação adquirida sábios Pluquot, Bergier, AíTonso de Ligorio,
por meio de discursos, empenha todos os Guyot, Perrodil, Guillon, Wetzer, \W te ,
encantos da arte de persuadir para incul- Rohrbacher, c que elles revolveram todas,
cal-as, e para engrossar o seu partido á para nos pouparem n’uma breve lição os
custa da religião, a quem rouba tantos, fi­ seus trabalhos.
lhos e vassafíos fieis, quantos são os pro­ Todavia os motivos d’estc silencio dos
selytos que faz a sua sodiciosa doutrina. authores rne parecem justos, como é claro
Vemos os corypheus das mesmas rui- que a irreligião e incredulidade absoluta
tosas maximas, que tantos corações teem excedem a raia dos seus assumptos; mas
ontaminado nos nossos dias, cobertos sem- julgando eu que esta miserável tendência
re dos brilhantes escudos da virtude, da em que vémos presentemente o entendi­
olerancia, da beneficencia' e da humani­ mento humano para uma total increduli­
dade, exclamando contra a superstição e dade, traz o seu principio das heresias dos
fanatismo, contra a ignorância e abuso: precedentes séculos, me pareceu acertado
e quem poderá crer que, debaixo d’estas premunir os leitores, mostrando-lhes as
deslumbrantes apparendas, se abrigam e venenosas raizes de que brotou o raciona-
guerreiam os mais intrepidos soldados da lismo philosophico, e indicar-lhes o reme­
irreligião, os zombadores da Escriptura dio na impugnação das mesmas heresias, i
Saneia, e da moral evangélica, os ini­ refutadas iTeste*Diccionario.
migos de toda a authoridadc, assim ec­ Tinham os homens esgotado no decurso
os-. clesiastica, como civil, os panegyristas da de dezoito séculos todos os modos cxcogi-
liberdade e das paixões: finalmente, os que taveis de se allucinarem ácerca dos mys-
vilipendiam a sua mesma especie, aquel- terios da religião christã, cahindo de um
les que, confundindo a alma do homem erro em outro, que regularmente era em
com a do bruto, a fazem mortal, a degra­ extremo opposto ao primeiro, quando ap-
dam da sua mais relevante qualidade, e pareceram os presumidos reformadores, e
que, negando ao homem o livre alvedrio, estabelecendo por principio da sua refor­
o sujeitam ás cegas leis de uma necessi­ ma «que a Escriptura Sancta era a unica
dade absoluta? Nenhum prêmio para a regra da nossa fé, e cada um dos particu­
virtude, nenhum castigo para o vicio, ne­ lares o juiz do sentido da Escriptura», con­
nhum freio para as paixões, nenhum re­ duziram o entendimento, por efTeitcf dastes
morso, e também nenhuma consolação nas perigosos dogmas, a duvidar da verhade
desgraças adherentes á miserável natureza da mesma religião christã.
humana, são as horrjveis consequências A infallibilidade da Igreja, a authoridade ■
d’estas maximas, que arruinam toda a re­ dos concilios e sanctos padres, a tradição >j
ligião, toda a gerarchia e todos os vínculos, constante e o culto estabelecido em tantos
que prendem entre si a sociedade, e que séculos, tudo vinha a ser inferior e sujeito
sao totalmente indispensáveis para a sua ao ju izo d'um particular, e á sua razao
conservação. ou ao seu fanatismo. *
Porém, não obstante ser este racionalis- O fanatismo produziu então infinidade
mo o maior de todos os desvarios em que de extravagancias e de seitas, que nao so
póde precipitar-se o entendimento hutóa- eram condemnaveis pela Igreja, mas que
no, o principal objecto dosauthores é ‘mos­ até a mesma razão a H r r e c ia .^
PREFACIO VII
Adamitas, apostolicos, taciturnos impec- persuadirem, não só aos outros, mas ainda
caveis, os irmãos libertinos, os choròes, e a si mesmos, que nào ha Deus, para se
outros hereges, igualmcnte ridiculos, leva­ pouparem aos remorsos, que são compa­
ram o fanatismo ao ultimo remate da cx- nheiros inseparáveis da sua impiedade.
tp.vagancia. Se, pois, os dogmas perniciosos d’um só
Como todos estes delírios apparcceram hercsiarcha, Luthero, pelo encadcamento
n’um século em que os mais celebres phi­ das suas consequências tem produzido ab­
losophos do tem po— Bacon, Gassendi, c surdos tão execrandos, de quanta impor­
Descartes se empenharam com desvelo cm tância nào será para todos os fieis, c prin­
ensinar os homens a duvidar, e nào ad­ cipalmente para aquelles que leem a seu
mitti rem como verdade sehào o que a ra­ cargo doutrinar o proximo e conduzil-o pelo
zão mostrasse com evidencia, o fanatismo, caminho da verdade, que sejam instruídos
que nào podia solTrer este contraste por dos funestos eíTeitos, que sempre se segui­
muito tempo, forçosamente havia de ceder ram á Igreja c ao estado da introduceão
ás persuasões da philosophia., de opiniões peregrinas, que a religião côn-
Com eíTeito Lelio e Fausto Socino refor­ delnna? Quando de outra parte as mesmas
maram a mesma reforma, cortando dos differentes opiniões que se teem levantado
seus dogmas tudo o que era superior á umas contra as outras, e que a Providencia
razài^e como em muitos d’elles nào tem parece ter permittido para confundir e hu­
logar a evidencia para os que rejeitam a milhar o entendimento humano, fazem evi­
infallibilidade da Igreja e a authoridade dente a insuííiciência da razão para deci­
dos concilios, duvidou-se da revelação, e dir sobre os dogmas, e a necessidade de
consequentemente se erigiu a philosophia um ponto fixo que nos sirva de norte para
em tribunal supremo para decidir, ainda caminhar seguros pela fé vera da Igreja,
sobre os mysterios, cuja incomprehensibi- alumiada pelo Espirito Sancto; esta fé pu­
lidade excede a orbita limitada do enten­ ra e constante, que, atravesssando as con-
dimento humano. Eis-aqui, pois, a época tradicções mais vivas, se conservou sempre
e a origem do racionalismo philosophico.1 a mesma no decurso de tantos séculos, e
Desembaraçados os entendimentos de to­ que na sua immutabilidade traz comsigo
das as prisões que os tinham sujeitos cm impresso o caracter de divina.
obsequio á fé verdadeira, soltaram o vôo, A Igreja se contrista em presença dos
e seguiu cada um o seu enthusiasmo: Es- espantosos progressos irreligiosos que teen
criptura, revelação, evangelhos, creação, feito os perniciosos escriptos de Dupaty i
origem do mal, eternidade das penas, ma­ Febronio, de Bolingbrok, e Woorton, de
teria, alma, e outros similhantes pontos, Rousseau e Maripaux, de Mably e Fontenel-
tudo ficou debaixo da ampla jurisdicção da Ic, de Diderot e Alembert, de Vòltaire e Fre­
critica, sem mais guia que a do limitado derico n, de Maupertuis c Argens, de Tous-
entendimento humano, regularmente es­ saint e La Metrie, de Wcishaupt e Swach,
cravo das paixões que o allucinam, e que, de Knigge c Wolf, de Kant e Fichtc, de
seguindo nos seus juízos o impulso das Schelling e Hegel, de Krause e Cousin, e,
mesmas paixões, sentenciou sempre em finalmente, de muitos outros. Estes sexta­
favor da liberdade. rios nào poupam artifícios para ingerir a
D'aqui vem que estes a flcctados prote­ sizania em toda a seara da Igreja: a liber­
ctores da humanidade, quasi indifferentes dade a abraça; o interesse a facilita.
acerca das mais religiões, desencadeiam Estes motivos, pois, mc determinaram a
todo o seu furor contra a christà, porque pôr em vulgar as luminosas memorias dos
cila a todos coarcta o imperio das paixões, illustres theologos e canonistas— persuadi­
e T94uz o homem aos justos limites em do que a luz afugenta e ao mesmo passo
que ó encerram as leis da honestidade e previne a introducção das trevas, e de que
do decoro; c pela mesma razão é tão in- esta lição é a mais congruente para pre-
culcada e tão valida d’estes philosophos a munir os entendimentos contra o espirito
maxima da tolerância, que lhes franqueia da novidade, para fazer palpavel a verdade
o passo para todo o genero de libertina­ da religião, c caracter da infallibidade nas
gem, assim de coração como d’cspirilo. decisões, que teem explicado e propagado
Emfim, restava somente ao seu interesse os seus dogmas.
Os sábios acharão n’ellas com a facilidade
que offerece o methodo alphabetico, a se-
1 Vejam-se os artigos Luthero, Calvino,lecçào de quanto se póde appeteccr n’este
Socino, Reforma, Igreja ingleza, Anti-tri- assumpto; e todos uma instrucção util e
nitarioSj Aii&ios modénios, etc. necessaria pelo seu importantíssimo fim.

V
MEMORIAS
PARA SERVIREM Á HISTORIA
DOS.

DESVARIOS DO ENTENDIMENTO HUMANO


Ac e r c a da relig iã o christã
TO

XZSTT^OIDXTCJÇJ-iLO

O homem recebe da natureza um inven­ mas estas leis combatem as paixões, ou mor;
cível desejo d’adquirir conhecimentos, ces- tificam os sentidos: ella promette uma feli­
tendel-os, de ser feliz, e d’augmcntar sua cidade eterna c infinita; mas cm que ha de
felicidade. haver graus proporcionados aos mereci­
Manifesta-se este desejo no menino, no mentos: fmalmcnte ella ameaça com uma
selvagem, e no homem frivolo pela celeri­ desgraça eterna, aquelles que não creem
dade, com que tomam e abandonam os obje­ os seus dogmas, ou que não obedecem às
ctos novos; no homem d’espirito pelo es­ suas leis, e busca todos os meios necessá­
forço que faz para tudo conhecer, tudo ex­ rios para que se creiam as verdades que
plicar, tudo comprehendor; em todos por annuncia, e se desempenhem as obrigações
um amor insaciável do prazer, da gloria e que ella impõe; porém ella não destroe,
da perfeição. nem a actividade da alma, nem a inquieta­
É desejo este, que determinado alterna- ção do espirito, nem a fonte das paixões,
damente pelos sentidos, pelas paixões, e nem o imperio dos sentidos, e nem previne
pela imaginação, ou dirigido pela razão que em todos os homens os desvios da razão,
tirou os homens da ignorância e da barba­ ou os descaminhos do coração humano.
ria, formou as sociedades, estabeleceu leis. D’est’arte, o espirito humano" levou no es­
inventou as artes, deu nascimento ás scien- tudo dos dogmas da religião christã, na prâ-
cias, produziu todas as virtudes e todos os ctica das suas obrigações, princípios d’illu-
vicios, causou na sociedade todas as revo­ são, de desordem c aerro.
luções e mudanças; urdiu este labyrintho Collocado o christão, por assim dizer, en­
de verdades e d’erros, d’opiniões, e de sys- tre a authoridade da revelação, que lhe pro­
temas, de politica, de moral, de legislação, punha mysterios, e o desejo de se illustrar,
de philosophia, e de religião, no qual, ex­ que faz continuo esforço para comprehen-
cepto o povo judaico, q genero humano, di­ der e explicar tudo o ,que o entendimento
vagou até o nascimento do Christianismo. humano recebe como verdadeiro, creu os
Quando nasceu o Christianismo, os chris- mysterios, e procurou tornal-os intòlligiveis.
tãos voltaram este esforço para os dogmas, Não podia tornal-os intelligiveis senão por
e para a moral da religião christã. Os do­ meio das idéias que a razao lhe fornecia;
gmas que. ella ensina são evidentemente re­ aproximou os mysterios ás suas idéias ou
velados; mas muitos d’elles são mysterios: a seus princípios, substituiu algumas vezes
ella prescreve leis as mais proprias para fa­ suas idéias aos mysterios, ou não admittiu
zer o hom<g) feliz, mesmo sobre a terra; nos mysterios senão o que se accommodava
%
9
INTRODUCÇÃO

com os seus princípios, c com as suas idéias: que o Christianismo sc tornou a religião na­
arrastado como todos os homens pelo amor cional.
invencível da felicidade, determinado pela Os cíTeitos das heresias, tão oppostos ao
religião a procuraNa nas esperauças da outra espirito da religião, não são sern dúvida
vida, ao mesmo passo que os sentidos e as comparáveis com as vantagens que ella p rof
paixões lhe mostravam a felicidade nos cura aos homens c ás sociedades civis.
objectos que bs lisongeiam, ellc procurou O reinado do paganismo foi também o
conciliar o interesse das paixões e dos sen­ reinado do crime c da desordem. Ainda
tidos com as esperanças da religião, ou sa­ sem nos voltarmos para esses tempos que
crificou umã cousa á outra, c viu um cri­ nos ficam mais remotos, lancemos uma vista
me nas acções mais innocentes; fez das ac­ d’olhos sobre o estado do inundo, antes que
ções mais criminosas outros tantos actos o Christianismo sc dilatasse pelo império
ae virtude. romano. Vèeni-se, por toda a parte, nações
Este, altrahido pela felicidade que a re­ armadas para conquistar outras nações, vas-
ligião promette, esforçou-se para remontar sallos tyrannisados por soberanos, soberanos
até o seio da Divindade. Para fruir esta fe­ desthronisados pelos seus vassallos, cida­
licidade antes da morte, entregou-se á con­ dãos ambiciosos, que poom em ferros a sua
templação, teve visões, cahiu cm extasis, patria, que nenhum crime suspende, ne­
creu-se elevado sobre a impressão dos sen­ nhum remorso corrige: por toda a part*, o
tidos. acima das paixões, acima das neces­ fraco opprimido pelo poderoso, por toda a
sidades do corpo, que ellc abandona a tudo parte o direito natural desconhecido ou des-
o que o cerca: ao mesmo tempo que outro, presado, quasi aniquilada a ideia de justiça
ferido' da desgraça dos condemnados, via e da virtude, ou tão monstruosamente des­
por toda a parte demonios e inferno, e des- figurada, que se não cuidava mesmo de lhe
presava os deveres mais essenciacsdo Chris­ conservar as apparendas. Lance-se uma
tianismo, para se ligar a prácticas super­ vista sobre o estado do mundo, sob a do­
sticiosas ou barbaras, que a imaginação e minação dos Marios,dos Scillas, dos Cesares,
o terror lhe suggeriam. dos Tiberios, e dos Neros, etc.
Tal é, geralmente fallando, a ideia que No meio d’esta geral corrupção, o Chris­
se deve formar dos desconcertos do espi­ tianismo produz homens justos c desinte­
rito humano sobre o assumpto da religião ressados, que ousam accommelter o vicio, e
christã. trazer os seus similhantes á práctica das
Todos os homens teem o natural desejo virtudes as mais uteis para o bem da socie­
d’inspirar seus gostos e suas inclinações, e dade civil; fórma uma sociedade religiosa,
fazer adoptar suas opiniões e seus "costu­ que as practica, promette aos verdadeiros
mes; mas jamais é tão activo e tão empre- christãos uma recompensa eterna c infinita,
hendedor este desejo como quando animado e ameaça os maus com tormentos eternos.
do zelo da religião: manda esta, que traba­ Os que a abraçam, derramam seu sangue
lhemos não somente pela nossa, mas tam­ para confirmar sua doutrina, querem antes
bém pela salvação do proxiino; assim, o perder a vida, que commettcr um crime.
chrislão zeloso que cahiu no erro, o cnthu- Quem duvidará que uma tal doutrina, que
siasta, cuja imaginação produziu alguma a sociedade que a professa c que a practica,
práctica religiosa, se "se crê obrigado a eu- não seja o mais seguro meio para obviar a
sinal-a, e, sepóde, violenta todos os homens desordem, c inspirar as virtudes mais es-
a fallar, a pensar, e a viver como elle. sebeiaes ao bem da sociedade civil?
A igreja, que véla sobre o deposito da fé, É verdade que os christãos teem degene­
condemna o erro, prescreve os mais eflica- rado, que se dividiram, e que entre elles
zcs meios para atalhar os seus progressos: se tem visto, e nos estados, guerras de reli­
mas o christãò errante é muitas vezes indó­ gião, apenas conhecidas entre os pagãos; po­
cil á sua voz; e o defensor da verdade nem rém estas guerras tiram a sua origem, não
sempre se conserva dentro dos limites que dos princípios da religião', mas sim das pai­
ao verdadeiro zelo prescrevem a religião e xões que ella combate, e muitas vezes dos
a igreja. E, como a reacção tanto em o mo­ mesmos vicios do governo civil; muitas ve­
ral como em o physico é igual àacção,cré-se zes a cobiça, o espirito de dominação, ac­
empregar em defesa da verdade," quanto o cenderam o fanatismo; outras, os facciosos,
erro se permitte contra ella. e descontentes, se aproveitaram, para os
Produziram, pois, os erros dos christãos, seus intentos, do fanatismo, produzido pelas
„ heresias, seitas, e scismas, que hão dilace­ disputas dos christãos; muitas vezes a am­
rado a igreja, pozeràm em armas os chris­ bição e a politica se serviram do seu zelo
tãos, e em desordem os estados, onde quer sincero e virtuoso pana a exeoj^ão dos seus
INTRODl>CGAO 3
projectos; íinalmentc, nunca as heresias fo­ O esforço que inccssantemente faz o en­
ram tão funestas á tranquillidade pública, tendimento humano por dilatar os conheci­
como nos séculos ignorantes, ou nos esta­ mentos e augmcntar a sua felicidade, des­
dos corrompidos. Duvidar-sc-ha, quo ainda envolve estes germens, c faz nascer algum
iJestcs estados corrompidos, não se encon­ novo erro, ou reproduz os antigos debaixo
tre um grande numero quo crê as verdades de mil fôrmas diversas. As circumstandas
do Christianismo, c practicaas virtudes que cm que cllcs apparecem, c os caracteres
elle lhes ordena? Duvidar-sc-ha que a crença dòs seus authorcs ou partidários, fazem mais
d*estas verdades não atalhe muitos crimes ou menos rapido o seu progresso, e mais
e desordens ainda entre os maus christàos? ou menos perigosos os seus eíTcitos; mas
Que nos estados corrompidos não fórme a nenhum ha, que não seja nocivo, e todos po­
religião cm todas as condições almas vir­ dem arrastar funestas consequências, por­
tuosas e beneficas, que se dedicam ao soc- que todos nascem do fanatismo, ou podem
corro e consolação dos desgraçados? Poderá produzil-o. Que males não causou no oriente
final mente duvidar-se, que a persuasão das e no occidente, essa multidão d’crros c de
verdades da religião nao seja um remédio seitas, que se levantaram desde Ario até
para os infelizes, c o meio mais adequado Calvino?
para fazer que reine sobre a terra, a paz, O fanatismo é um zelo ardente, mas cego:
a humanidade, a doçura c a beneficência? fórma-sc, c sc accende no seio da ignorân­
Que seria da Europa, depois que se des­ cia, extingue-se, e sc aniquila em presença
truiu o imperio romano, se não fosse a reli­ da verdade. Nos séculos barbaros, c entre
gião christã? Teria a mesma sorte que hoje os povos ignorantes, é onde são formidáveis
experimentam a Grécia, a Asia menor, a os chefes fanaticos. Uma nação illustrada
Syria, o Egypto, todos os reinos do oriente: os olha como eufermos, dignos de compai­
os hunos, os godos, os vandalos, os alanos, xão, ou os tem por embusteiros, que só me­
os francos que conquistaram o occidente, recem indignação e desprêso.
não eram menos ferozes que os turcos, os Não ha pois*cousa mais interessante do
tartaros, que subjugaram o oriente. que illustrar os homens sobre os erros que
Aquelles que não conhecem a religião, atacam a religião, e sobre os meios condu­
c que impugnando-a, se persuadem comba­ centes para prevenir os eficitos da sua adhe-
ter em favor da humanidade, deixem pois são a estes erros, c o abuso que se pódc
•de pensar que cila seja contraria á felici­ fazer da sua confiança e do seu zelo. Sc fosse
dade dos homens, c d’attribuir-lhe as des­ possível, deveriam fazer-se correr c fami-
graças causadas pelas seitas e disputas dos liarisar estes conhecimentos cm todos os es­
chrístãos, c imputando-as á vigilância com tados, ou pelo menos fáceis d’adquirir a todo
que a igreja rejeita e condemna tudo o que al­ o homem que faz uso da razão.
tera a pureza da sua doutrina e do seu culto. Nós julgamos, que se podia, ciu parte,
Porém os que amam a religião o o estado, preencher este fim com memorias, que fi­
nem dissimulam os abusos que os interes­ zessem conhecer os desvarios do entendi­
ses c as paixões cobrem com a capa de re­ mento humano arespeito da religião christã;
ligião, nem as desgraças que foram conse­ a origem das heresias e dos erros, os prin­
quências dos scismas c das heresias. cípios em que ellas se teein firmado, a mar­
Qual poderia ser o abjecto do zelo. que cha que teem seguido, os meios dê que se
quizesse riscar a sua memória, ou dimi­ serviram para os seus progressos, desde o
nuir-lhe a grandeza? seu nascimento ate os nossos dias; que nos
No fundo do coração de Iodos os homens ensinassem que princípios se lhe oppoze-
está como escondido* o principio de fanatis­ ram, as razões com que se combateram c
mo, o nada o descobre tão promptamente, condemnaram, as precauções que foram to­
como as heresias, as seitas, e as disputas madas para estorvar a sua carreira, o bom
de religião: sómente cilas o podem bem ma­ exito que tiveram, c a causa porque ellas
nifestar em todos os corações, c dar ao fa­ se tornaram umas vezes inúteis, outras fu­
natismo uma actividade ê uma constância nestas.
capaz do tudo ousar, resistir, e sacrificar Com o auxilio d’estas memórias poder-
no interesse de partido. sc-ia distinguir seguramente o amor da ver­
Estas heresias, tão funestas â religião o dade, do espirito de partido, o zelo pela re­
•ás sociedades civis, trazem a sua origem ligião do iuterresse pessoal: não se confun­
das imperfeições ou das paixões adherentes diríam as opiniões permittidas cora os erros
natureza humana; e cáda século conserva coidemnados, nem o erro voluntario com a
d ’alguma sorte escondido o germen de to­ heresia: conhccer-sc-ia a extensão, e os li­
das as hercsÉfcs, c de tfldos os-erros. mites do zelo e da firmeza que a religião
4 QfTRODUCÇlO

ordena, a indulgência que inspira, a mode­ os gostos, os princípios philosophicos d’estc


ração e a prudência que prescreve. Alli ve­ século, e fizemos sahir d’cstas cousas as he­
ríam os christãos mais sábios e mais vir­ resias, os scismas, c as seilas, que pertur­
tuosos, que clles tiveram similhantes, e que baram a igreja durante este século, e sç^s
estes se enganaram; e então a sabedoria se­ efleitos em relação aos estados.
ria menos orgulhosa c mais sociável, e a Depois de havermos exposto .o nasci­
virtude nem seria contumaz, nem altiva. mento, a successão, a mistura dos erros o
Com estas disposições e conhecimentos, das seitas, c a especie de guerras que elles
quantos se não arrancariam das mãos do se fizeram, cxpulsando-sc, para assim dizer,
erro, quantos se preservariam da seducção? e destruindo-so uns aos outros, até o nosso
Que distúrbios e que males se não evitariam? século, fizemos de cada heresia assumpto
Da mesma sorte que na historia se pódc se­ para uma memoria particular, cm que ò lei­
guir n’estas memorias a ordem dos tempos, tor, com um relanccar d’olhos, pódc com-
ou fazer de cada heresia o objecto d’uma prehender o estado do espirito humano, pelo
memoria particular, que encerre tudo o que que diz respeito á religião christã, ao nas­
diz respeito a esta heresia. cimento d’esta heresia, e ás causas que a
O primeiro methodo oíTerece um quadro produziram; seguir o curso sem interru­
mais extenso, mais interessante para a curio­ pção; observar os elTeitos, pelo que mspeita .
sidade, mais agradavel á imaginação, mas á religião, ou á sociedade civil; vél-írespa-
faz passar .bruscamente o espirito d’um a lhar-so com brilho, estabelecer-se, extin-
outro assumpto, vinte vezes o conduz ao guir-se, e renascer debaixo de mil fôrmas
mesmo, c não permitte ao leitor de seguir differentes, ou dar nascimento a outros er­
uma heresia nos seus differentes estados, e ros, que a fazem esquecer.
hem lhe conhecer o caracter, nem ao his­ A esta historia da heresia, ou se nos é
toriador entrar no exame e na discussão dos permittido dizel-o assim, a esta historia da
seus priucipios, como se pódc fazer usando manobra das paixões e defe prejuízos, para
do segundo methodo. defender um partido, uma opinião, se ajun-
Para satisfazer, quanto nos é possível, a tou uma exposição systematica dos princi- j
este duplo fim, e reunir as vantagens dos pios philosophicos e theologicos de cada \
dous methodos, exporemos em um discurso erro, desde o seu nascimento até os nossos 1
preliminar as causas geraes das heresias, dias: examinaram-se os princípios, c fez-se i
e a especie d'ideia que as Jiga entre si, com vôr a sua falsidade. !
o movimento geral do entendimento hu­ Não nos esquecemos de fazer conhecer i
mano, que continuamente muda as idéias, os authorcs, que com mais successo com­
os gostos, e os costumes dos povos. bateram estes erros, c as questões de cri­
Todos os homens participam d’estas mu­ tica, ou theologicas, que, diga-se, nasceram
danças,, porque todos os juízos se movem, das disputas e dos combates dos theologos,
c gravitam, digamol-o assim, uns para os que atacavam ou defendiam a verdade, e
outros, como as partes da matéria: não ha que são (ousamos dizel-o) como pedras de
homem, cujas idéias e costumes, não sejam espera, em que o erro virá algum dia a fir­
produzidos ou modificados pelas idéias, pe­ mar algum systema.
los gostos, e pelos costumes da nação cm Gomo cada uma d’ostas memórias fôrma
que vive, dos povos que o cercam, do século uma especie de todo, que póde lér-se sepa­
que o precedeu; e os desvarios do entendi­ radamente, nós as dispozemos, não segundo
mento humano, pelo que é concernente à a ordem dos tempos, o que se tornava in­
religião christã, estão ligados ás revoluções útil depois da nossa historia geral das here­
dos estados, ás misturas des povos, á nis- sias, mas segundo a ordem alphabctica, que
toria geral do espirito humano, em relação faz mais commodo o uso d’este cscripto.
á religião e á moral. Assim, a primeira parte da presente obra :
Temos, pois, no nosso discurso prelimi­ contém uma historia seguida dos princípios
nar, remontado até á religião primitiva dos geraes, e causas geraes dos desvarios do |
homens, temos indagado se houve povos en­ espirito humano, cm relação áTeligião em
tre os quacs ella se haja conservado ou aper­ geral, e em relação á reíigião christã em
feiçoado; emfim seguimos o entendimento particular: a segunda, encerra uma historia
humano nas mudanças que fez n’csta reli­ detalhada das causas é dos effcitos (Testes
gião até ao nascimento do Christianismo. erros com a exposição e refutação de seus
Então fizemos de cada século uma especie princípios.
d’época, expozemos as idéias e os costumes,
DISCURSO PRELIMINAR

CAPITULO I

B a r e lig iã o p rim itiv a d os h om en s

Sc exceptuarmos alguns selvagens, não Testimunhos, os mais irrefragaveis, pro- •


lia l^nicns sem religião. Os povos mais an­ vam, pois, que o Theismo é a religião pri- l
tigos, os caldeos, os egypcios, os celtas, os mitiva dos homens, e o Polytheismo a sua J
germanos, os galos, ainda eram barbaros, corrupção.
e cada um tinha sua religião tão differente, Com^effcilo, se o Theismo não é a reli­
como o eram os seus costumes, c os cli­ gião primitiva dos homens, é forçoso que
mas que habitavam. Não obstante estas dif­ elles se tenham elevado do Polytheismo á
ferendas, elles conservavam dogmas com- crença d’um espirito infinito, que tirou o
|m u ns: criam todos que um principio espi- mundo do cahos. Vejamos, se é possível,
? ritual havia tirado o mundo do cáhos, e que os povos, entre os quaes nós havemos
| animara toda a natureza; que o Deus cc- encontrado o dogma d’uma intelligencia su­
r leste se tinha unido á terra, c por isso a prema, que tirou o mundo do cahos, subi­
honravam como a mãe dos D euses.1 ram a este ponto, partindo d’uma ignorân­
— Aristóteles faz ascender esta crença até cia grosseira, e passando por todos os graus
Í os primeiros habitadores da terra, e consi­ do Polytheismo, como quer mr. Humc. Para
dera toda a mythologia como a corrupção este citei to, supponhamol-os col locados so­
(Vestes dogmas*. «A mais remota antigui- bre a terra, e assistidos unicamente das fa­
«dade, diz clle, deixou aos séculos futuros, culdades que traz comsigo o homem quando
«rebuçada nas fabulas, a crença de que ha nasce.
«Deuses, e que a Divindade abraça toda a A necessidade e a curiosidade são as po­
«natureza; a isto ajuntaram depois o resto, tências motrizes do espirito' humano; ellc
«do que nos ensina a fabula para o per- procura as causas e a natureza dos pheno-
«suadirom ao povo, a fim de tornal-o mais menos que o interessam pelo espectáculo
«obediente ás leis, e para bem do Estado. que elles offereccm, ou pela relação que
«É por isèo que hão dito, que os Deuses se teem com a sua conservação c sua felici­
' «assimilham aos homens, ou a alguns ani- dade.
«maes, e outras cousas similhantes; se cs- 0 homem, sahindo das mãos da natureza,
«treniarmos a unica circumstanda que se di- e entregue, por assim dizer, ás unicas facul­
«zia no principio, a saber: que os Deuses dades que ella lhe dá, não deve ter por
«foram os primeiros na natureza, nada se guia n’esta indagação, senão os sentidos, a
«dizia que não conviesse á Divindade. Ha imaginação, sua experienda, e a analogia.
«apparencia de que as scicncias, tendo-se Sua experienda e seus sentidos lhe fa­
«perdido muitas vezes, ainda assim estes zem vér todos os phenomenos., como obje­
«sentimentos se conservaram até agora, ctos isolados ou produzidos por causas dif­
«como restos da doutrina dos antigos ho- ferentes; cada um d’estes phenomenos como
«mens. E somente (Vesta sorte que podemos um amontoado de differentes partes de ma­
«distinguir as opiniões de nossos paes, e as téria, que uma força movente une ou separa.
«d’aquclles que foram os primeiros sobre A experienda è os sentidos do homem,
«a terra.» 2 lhe teriam ainda ensinado que elle produz
movimento, que agita seu braço quando, e
1 Homero, Hesiodo, Ovidio, Herodoto,como quer, que póde dar aos differentes
Strabão, César, Tacitoi, etc. corpos que o cercam todos os movimen­
. 2 Aristoteles, metuph., liv. 12, cap. 8. tos, e todas as fôrmas que elle quer; re-
6 DISCURSO PRELIMINAR

unil-as, scparal-as, c mistural-as a sou ta- cáhos informe, senão porque tivesse des­
lantc. A analogia o havería, pois, conduzido coberto, que cllc "hão exislia necessaria­
a suppôr na natureza uma infinidade ^ e s­ mente, que tinha prrneipiado e que a ma­
píritos que produziam os phenomenos, a téria que o compunha não tinha por si mes­
imaginação os teria crcado em toda a parte; ma a potência motriz, c a intelligcncia nc*5
por toda a parte se collocariam, e explicado cessaria para formar os astros, estabclecer-
tudo por meio d’clles, como se vò entre os Ihcs a ordem, e dar-lhes a harmonia que
povos selvagens descobertos desde Christo- reina entre elles; que a matéria tinha re­
vão Colombo. cebido o seu movimento e a sua fôrma dc
A imaginação, que tão facilmente se ac­ um principio distincto d’clla, c immatcrial,
commoda aos genios,repugna pelo contrario que formára o mundo inteiro, c dado leis á
á ideia do cáhos, e os sentidos a combatem. natureza.
O espirito humano, no estado em que nós Para que os primeiros homens, no estado
o suppômos, não podoria, pois, chegar ao cm que os havemos supposto, se elevassem
conhecimento d’um cáhos anterior á forma­ por meio do raciocínio á crença d’um cá­
ção do mundo, senão depois de haver reco­ hos universal, c anterior ao mundo, não se­
n h ecid o a falsidade dos genios, aos quaes ria necessário somente que elles tivessem
cllc antes attribuiria os phenomenos da na­ sahido da barbaridade, e cultivado as ar­
tureza. tes e as scicncias, mas que tam bem^ie-
Para renunciar ao systema dos genios, gassem a conceber a ideia d’um espirito dis­
tão agrada vel e tão interessante para a ima­ tincto, c senhor absoluto da natureza.
ginação e fraqueza humana, era necessário Estes homens não se teriam, pois, elevado
ter reconhecido que nos phenomenos tudo ao Theismo, senão sobre os destroços c a
e opera nicchanicamento, o que suppõe extineção do Polytheismo; sobre uni conhe­
íccssariamente, no gênero humano, tal co- cimento sublime da natureza, sobre os prin­
o o temos supposto, uma longa serie d’ob- cípios d’uma metaphvsica, que teria dissi­
rvações, ligadas e comparadas entre si, pado todas as illusões dos sentidos, des­
na physica, e artes. truído todos os prejuízos da imaginação, cor­
Para chegar á crença do cáhos, depois de rigido todos os desvarios da razão sobre o
.laver reconhecido a falsidade do systema Polytheismo, c sobre as causas dos pheno­
de genios, era forçoso formar o projecto de menos.
remontar á origem do mundo, ter seguido Seria, pois, um absurdo, suppôr que na­
as producçõcs da natureza cm todos os seus ções que se conservaram barbaras, sem
estados, havel-as visto nascer d’um princi­ artes, c entregues ã idolatria mais repu­
pio commum, voltar a clle,c confundirem-se gnante, c, n’cste estado, formaram o projecto
alli de novo.. de investigar a origem do mundo, des­
As observações, que teriam feito julgar cobriram que cllc é obra d’uma intelligcn­
que no globo terrestre tudo esteve no princi­ cia infinita, immaterial, c que as causas dos
pio confundido, não poderiam persuadir que phenomenos da natureza estão ligadas.
(y Céo foi, primitivamente, mais que um Quando uma nação ignorante e grosseira
cáhos medonho. Nenhum dos phenomenos podésse conceber ô projecto de descobrir a
observados sobre a terra faz suppôr que a origem do inundo, dever-se-ia suppôr que
luz dos corpos celestes esteve coufundida todas, ao mesmo tempo, haviam formado
com as partes terrestres. este projecto, como era necessario que acon­
. As tempestades, as tormentas, os vulcões, tecesse, para so chegar á crença d’um cá­
que poem em desordem a atmosphera, e que hos? Quando cilas podéssem haver formado
abalam a terra, não actuamj nem levemente, este projecto, porque razão entre estas na­
sobre o sol, e sobre os astros: sua ordem ções, tão diíTerentes em seus gostos, em
e immutavel, suas revoluções são constan­ seus costumes, e em suas idéias, não se en­
tes, sua figura é inalterável: pelo menos, controu alguma que crésse que tudo fôra
e como os homens, no estado em que os sempre como actualmente é, como a igno­
suppômos, teriam visto o Céo. Assim, a rância conduz a crêl-o, e como muitos phi­
observação, longe de persuadir que os cor­ losophos o tem pensado? Como haverão to­
pos celestes haviam estado confundidos no dos chegado á crença de uma alma universal,
abysmo de que sahira a terra, pelo contra­ creadora do inundo, e do cáhos anterior a
rio, as stías observações conduziríam a sup­ formação dc todos os entes que vêmos?
pôr que o Céo e os astros, tinham sido sem­ Povos que cultivam o espirito, podem
pre taes, quaes os viam. elevar-se até princípios geraes, chegar a ver­
Não havería pois supposto o espirito dades communs, porque o espirito que se
humano, que o Céo fôra no principio um esclarece, dilata suas Idéias, o. as idéias
DISCURSO PRELIMINAR 7

quo conduzem á verdade são communs a possibilidade d’esta supposição, como cila
todos os homens; mas é impossível que po­ é destituída de provas,'ninguem a póde af-
vos differentes, immersos na ignorância, e firmar, fazendo d’cl!a o fundamento d’uma
que não cultivam seu espirito, hajam che­ historia, c avançar que uma opinião que se
gado a um principio geral, c creiam uni­ baseia sobre este supposto, é um sentimento
formemente um dogma sublime: porque a demonstrado, uma verdade attestada pelu
ignorância tende a meurtar as idéias, a de­ Oriente e Occidente. Aristoteles diz bom,
compor, digamol-o assim, todos os princí­ que ha apparencia, de que havondo-sc per­
pios geracs, para fazer idéias particulares, dido muitas vezes as sciendas, estas opi­
c não a reunir idéias particulares para d’cl- niões se conservaram como restos da dou­
las formar princípios geracs: o que tudo trina dos primeiros homens, o que suppõe
seria necessario para se elevar por via do que este philosopho olhava o Theismo como
raciocínio, c pelo espectáculo da natureza, a doutrina dos primeiros honlcns, e a sua
da ignorância absoluta, e do Polytheismo o religião primitiva. Elle diz mesmo expres-
mais grosseiro, ao dogma do cáhos, e da samente, que o Polytheismo é uma addição
alma universal: seria indispcnsavclmentc feita á doutrina dos primeiros homens.
necessario dizer-se que esta uniformidade Respondo em segundo logar.quc não póde
de crenças cm povos tão differentes fòra suppôr-se que os autepessados d’estes po­
oltRi do acaso, o que é absurdo. vos se houvessem elevado até á crença da
Entre o dogma d’uma intelligencia infi­ alma universal, c do cáhos. Posto que não
nita, que creou, que conserva o muiido, que admitta dúvida, que o entendimento hu­
o anima, e a ignorância em que os monu­ mano se possa elevar por via do raciocínio
mentos historicos nos representam estas na­ á crença d'uma intelligencia que formou o
ções, ha uma distancia que o entendimento mundo; posto que elle não possa chegar á
humano não póde alcançar d’um salto; é crença do cáhos sem reconhecer a existên­
reciso, pois, que ellas hajam recebido este cia cfesla intelligencia, todavia este conhe­
ogma; e ha na maneira de viver d’osta$ cimento não bastava para conceber que o
nações, nas suas situações, nas suas idéias, mundo tinha sido no principio um cáhos
tantas difiérenças, que é impossível terem informe c espantoso, porque já lizemos vér
ellas imaginado, ou conservado uniforme­ que não ha na natureza cousa quo conduza
mente este dogma, se não sahem d’uma só a crêr o cáhos, e que a razão, que vé a ne­
familia, e se o dogma d’uma intelligencia cessidade d’uma intelligencia omnipotente
suprema, que formou o mundo, não entrou para aproducção do mundo, da mesma sorte
na instrucção paterna. vé que não era necessário que ella o ti­
A crença do cáhos, precedeu o mundo; rasse d’um cáhos preexistente, c que ha uma
a d’uma alma universal, que tirou todos os infinidade de modos differentes para pro-
séres do cáhos, e anima toda a natureza, duzil-o.
tem, pois, sua origem na tradição comraum E quando o acaso tivesse podido condu­
a todos os povos, e anterior ão seu Poly- zir a esta opinião alguns philosophos, qual­
theismo. quer sociedade, seria possível, que condu­
Mas d’onde vem esta tradição? zisse todas as nações, e que todas a conser­
Não é possível, que, como o diz Aristóte­ vassem?
les na referida passagem, se hajam perdido Concordando estes philosophos sobre a .
muitas vezes as scieucias, os homens esti­ necessidade d’uma intelligencia suprema
vessem ao principio em um estado de sel­ para a producção do mundo, se haveríam
vagens, que se elevassem por todos os graus dividido em infinitos partidos, todos diffe­
do Polytheismo até á crença d’uma alma rentes, sobre o modo d’explicar a mancisa
universal, que havia tirado 6 mundo do cá­ como ella o produziu; da mesma sorte que
hos, e ainda mesmo até o Theismo? Não é os vémos unidos todós sobre a eternidade
possível, quo quando o genero humano che­ do mundo, e fazerem infinidade de syste-
gou a estes conhecimentos, uma revolução mas, para explicar a formação dos séres que
subita no globo terrestre fizesse perecer to­ elle contém.
dos os homens, á excepção do limitado nu­ Logo, em nenhuma supposição, poderam
mero que criam estes dogmas, que talvez até os homens elevar-se do Polytheismo á crença
créssem na existência d um Deus, mas que d’um espirito, ouo tirou o mundo do cáhos.
a necessidade e a mudança de seu estado É logo a intelligencia creadora, a que por
•fez cahir no barbarismo, e^no Polytheismo, si inesma se manifestou aos homens, fazen­
e que não conservaram senão a crença do do-lhes conhe.cer por uma via differente do
cáhos e da alma universal? raciocínio que ella tirára o murfdo do ca-
Respondo: primeiro, que concedendo a hos; ó, pois, o Theismo a religião primi­
DISCURSO PRELIMINAR

tiva dos homens; e a crença do cáhos e da dente da revelação, o mais superior grau
alma universal, que’se encontra na mais re­ de certeza de que a historia possa ser sus­
mota antiguidade, é a corrupção do Theis­ ceptível, sem que as escuridades que se en­
mo, e uma prova de que o Theismo foi a contram em alguns detalhes a hajam ^ en ­
religião primitiva do genero humano. fraquecer. Como pois se persuadiu mr. Hu­
Moysés, como historiador, ensina-nos o me, que remontando-se além de 1700 an­
que a razão, sustentada sobre os mais irrc- nos, se encontra lodo o genero humano ido­
. fragaveis monumentos, nos faz conhecer da latra, e nenhum vestigio d’uma religião mais
religião primitiva dos homens. perfeita? E como pôde aífirmar que a sua
Moysés, o mais antigo dos escriptores, opinião era uma verdade attestada pelo
ensina que uma iutelligencia omnipotente Oriente e pelo Occidente?
creou o mundo e tudo o que elle encerra; «Porém, diz mr. Hume, tanto quanto po-
que este sêr supremo esclareceu o homem, «dêmos seguir o fio da historia, encontra-
deu-lhe leis, e lhe propôz castigos ou prê­ «mos o genero humano entregue ao Poly-
mios; refere-nos que o homem violou as leis «theismo, e poderiamos persuadir-nos que
que lhe foram prescriptas: seu castigo, que «em tempos mais distantes, antes do desco-
se estendeu a todo o genero humano; as «brimento das artes e sciencias, tivessem
desordens de seus filhos; o castigo de suas «prevalecido os princípios do Theismo? Se-
desordens, por um dilüvio que submergiu «ria isto dizer-se, que os homens desccfcuri-
a terra debaixo das aguas, e fez perecer «ram a verdade emquanto eram barbaros
seus habitantes, á cxcepção de Noé e sua «e ignorantes, e que tinham cahido no erro,
familia. «logo que principiaram a instruir-se.
Moysés, nos diz, que a familia de Noé co «Nem sombra de verosimilhança tem esta
nhecia o verdadeiro Deus, mas que haven­ «opinião, antes é contraria ao que a expe-
do-se multiplicado e dividido, formara dif­ «riencia nos faz conhecer dos princípios e
ferentes nações, entre as quaes se tinha al- «opiniões dos povos barbaros.
ejado, e até extincto o conhecimento do «...........Por pouco que se medite sobre os
)eus verdadeiro, excepto entre os ju- «progressos naturaes dos nossos conheci-
:eus. «mentos, todos se persuadiram, que a mul-
Comparando o que Moysés nos ensina so­ «tidão ignorante havia de formar primeira-
lare a origem do mundo com a crença do «mente idéias bem grosseiras e bem baixas
cáhos e do dogma da alma universal, pa­ «d’um poder superior: como se pretende,
rece que elle não pediu emprestada a sua «que ella se tenha elevado d’improviso a
historia áquellas nações, entre as quaes «noção do sêr perfeitíssimo, que pòz a or-
achamos a crença do cáhos, e da alma uni­ «dem e a regularidade em todas as partes
versal, e que em nenhuma parte se tinha «da natureza? Crêr-se-ha que os homens
elevado a razão a estas idéias no tempo de «representassem a divindade como um es-
Moysés. O Genesis contém, pois, a tradi­ «pirito puro, como um sêr sapientissimo,
ção primitiva, ou fiel mente conservada, ou «todo poderoso, immenso, antes de o repre-
renovada por um modo extraordinario. «sentarem como um poder limitado, com
Não é menos certo que as nações em que «paixões, appetites, e orgãos similhantes
encontramos o dogma da alma universal, «aos nossos? Eu acreditara da mesma sorté
não deviam esta crença a Moysés, e que el- «que os palacios foram conhecidos antes
las odiavam os judeus. Todos os monumen­ «das cabanas, e que a geometria precedeu
tos da antiguidade se ajustam, aliás, com a «a agricultura. O entendimento não se eleva
historia de Moysés. Todos os annaes dos «senão gradualmente; não fórma ideia do
^povos remontam á época da dispersão dos «perfeito, senão fazendo abstracção do que
homens, assignalada por Moysés, e alli pa­ «o não é... Se alguma cousa podésse per-
ram como por combinação. Os criticos mais «turbar esta ordem natural dos nossos pen-
sábios reconheceram e provaram a confor­ «sarnentos, deveria ser um argumento igual-
midade da historia de Moysés com os mo­ «mente claro e invencível, que transporta-
numentos da mais remota antiguidade.1 «ria immediatamente nossas almas aos prin-
A historia de Moysés tem logo, indepen­ «cipios do Theismo, e lhes fez, para assim
«dizer, transpor d’um salto o vasto inter-
«vallo que existe entre a natureza humana
i V. Bochart. no seu Phaleg.G rot. de «e a natureza divina. Não nego, que, me-
Relig- com as notas de m r. de Le Clerc; o «diante estudo e exame, não possa tirar-se
Comm. de Le Clerc. sobre o Genesis; Jaque- este argumento da estructura do Universo;
lo t da existência de DeuSj dissert. 1. c. «mas o que me parece inconcebível, é que
26. A s notas de Le Clerc sobre Hesiodo. homens grosseiros tivessem capacidade
DISCURSO PRELIMINAR 9

«para o formar, quando conceberam as pri- ferentes graus do Polytheismo, era neces­
«mciras idéias d’uma religião.» 1 sario provar que o homem tinha sido, para
Todos esles raciocínios de mr. Hume, assim dizer, lançado sobre a terra, e aban­
.quando muito, provam que o Theismo não donado ás suas simples faculdades c pre-
.se estabeleceu entre os homens de repente, cisões, a seus desejos, ás impressões dos
ou por via da reflexão na supposioão de corpos que o rodeiam.
que o primeiro homem fosse creado tal, Mr. Hume nada disse para comprovar
.quaes nascem os d’agora, c que Deus os este facto, sem o que a sua opinião ácerca
deixasse entregues ás suas limitadas forças. da Religião primitiva dos homens, não passa
Porém, não será possível, que Deus ele­ dTima supposição chimerica, já destruída
vasse o primeiro hômem immediatamcnte por tudo quanto havemos dito sobre a Re­
.ao conhecimento do seu creador? Não é ligião primitiva; mas que nos occuparáum
.possível que o primeiro homem haja sido momento ainda, para melhor fazer sentir
creado com uma facilidade para conhecer quanto mr. Hume se illudiu sobre a mar­
a verdade, com uma sagacidade capaz de cha do espirito humano.
se fazer elevar rapidamente pela simples Supponhamos o homem formado pelo
contemplação do universo, e de si mesmo, acaso, ou lançado, digamol-o assim, pelo
ao conhecimento de Deus? Pretcnder-se-ha Creador sobre" a terra, e abandonado uni­
que a?nalureza não possa produzir intclli- camente ás suas faculdades taes, como mr.
gencias mais perfeitas, do que as nossas al­ Hume suppõe, que nós as recebemos da
mas? Não será possível que este primeiro natureza; façamos diligencia por descobrir
homem perdesse esta facilidade de conhe­ por meio da hisloria c da analogia, porque
cer a verdade, c que ella se negasse a seus serie d’idcias este homem pôde elevar-se
•descendentes? N’este supposto teriam os ao conhecimento d’uma intelligencia supre­
homens recebido o conhecimento de Deus ma, e em que estado se encontraria o en­
por via d’instrucção e d’educação. Apesar tendimento humano, quando chegasse a este
íla imperfeição do seu espirito, elles o ha­ conhecimento.
veríam concebido como um sér soberana­ O homem, tal como nós o suppômos, não
mente perfeito; os primeiros homens não tendo por mestre senão a necessidade, de­
haveríam adquirido a ideia da Divindade, morou-se muito tempo antes de reflectir so­
•çomo descobriram as artes ou os theore- bro as causas dos phenemenos: no princi­
mas de geometria. pio, não teria buscado senão a causa dos
Se é certo que. o homem não possa ele­ males, que tivesse experimentado, e as at-
var-se ao Theismo senão pelo raciocínio, e tribuira a,animaes similhantes aos que elle
em subindo da ideia d’um sêr limitado até temesse. É assim que os moxos attribuiram
A ideia d’um sér infinito, diga-me mr. Hume suas calamidades e molestias a um princi­
como, entretanto que nações as mais bem pio malfazejo, que elles suppunham ser um
policiadas, e mais cheias de luzes, se acham tigre invisível. 2
submergidas na idolatria, se encontra so­ Tcr-se-iam multiplicado os homens, e não
bre terra um povo sem artes, sem seien- haveríam sahido d’csta ignorância, senão
cias, separado de todos os povos, e entre com uma demora prodigiosa; c sómente no
este povo grosseiro a crença dTima intelli- fim de muito tempo attribuiriam ás almas
gencia suprema, que creou o mundo pela dos mortos uma parte de seus males; elles
sua omnipoteneia, e o governa pela sua teriam supposto nas almas d’estes bomens
providencia? Como se dá que os philoso­ mortos todos os gostos, todas as idéias, to­
phos mais esclarecidos e que mais hão me­ das as paixões dos homens vivos, e se oc-
ditado sobro a origem do mundo, e sobra a cupariam a lisongear estes gostos, ou a sa­
Divindade, não tenham jámais ensinado tisfazer estas paixões.
cousa tão sublime e tão simples acerca do Ter-se-iam por muito tempo fixado n’este
Sêr Supremo, como a crença d’este povo culto, e talvez até o em que um raro acaso lhes
ignorante e grosseiro, entre o qual, por con­ fizesse imaginar potestades invisíveis, e su-
fissão do mesmo mr. Hume, o Polytheismo pèriores aos homens, mas ás quacs elles te­
não era um dogma especulativo adquirido riam attribuido os desígnios, os gostos, as
pelo raciocínio tirado das maravilhas da fraquezas, e as paixões da humanidade, que
natureza? elles procurariam tornar propicias por to­
Para provar que o homem não pôde ele­ dos os actos que crêssem ser-lhes agrada-
var-se ao dogma da unidade de Deus, se­ veis; e estes actos constituiríam a' sua reli­
não pela via lenta do raciocínio, e pelos dif- gião.

1 Hume. hist. ref. da Religião, p. 4 ,5 ,6 . 2 Voyage de Coreal, c. I., pag. 251.


10 DISCURSO PRELIMINAR

Todavia, tcr-sc-iam formado sociedades; mas sim, á ideia vaga d’um genio mais po­
a guerra, c as paixões, se haveríam accen­ deroso que tudo o que se conhecia.
dito sobre a terra, os homens temeríam Nos povos idolatras, o respeito e os elo­
mais seus inimigos armados do que os se­ gios não crescem senão á medida que ollcs
res invisíveis: as forças do espirito se ha­ ligam mais successos á mesma causa; eis
veríam dirigido principalmente para os obje­ a marcha do espirito humano, c o funda­
ctos, que tornassem as sociedades mais tran­ mento da distineção das grandes e peque­
quillas. e mais felizes; as artes c as scien­ nas Divindades. *Os homens, pois, não se
d a s havcr-sc-iam aperfeiçoado muito mais haveríam elevado á ideia d’uma alma uni­
do que a mylhologia, que apenas seria cul­ versal á força d’exaggerar os elogios dados
tivada por ministros ignorantes, e interes­ aos genios, mas por uma dilatada serie de
sados em entreter os homens no culto d e s ­ observações que os tivesse conduzido a uma
sas potestades chimericas, que ellcs tinham unica cin esm a causa, c n’cste caso não fi­
imaginado. cariam submergidos n’uma estúpida igno­
É assim que os gregos, que haviam pas­ rância.
sado do estado selvagem para a vida poli­ Por outra parte, estes elogios exaggera-
ciada, tinham leis discrclissimas, c a mais dos, por meio dos quaes mr. Hume suppõe
insensata theologia: ó assim que o selva­ elevados os idolatras ao conhecimento de
gem, industriosissimo em tudo o que diz um Sêr Supremo, não se cornpadectrsi com
respeito ás primeiras necessidades,, é .dc o estado d’intelligencia d’estes povos, por­
uma incomprehensivel estupidez acerca de que elles julgavam seus Deuses rivacs, ze­
religião. losos e vingativos, e louvando um genio
Encontramos inteirãmento o contrario sem restricoão, teriam receio d’offender os
entre as mais antigas nações: no seu estado outros. Uma cxaggeração similhanto só tem
primitivo, tem uma theologia sublime, e são logar entre nações polidas, nem d’clla acha­
ignorantes, grosseiras, e sem artes. O ge­ remos exemplo algum entre os selvagens.
nero humano não foi, pois, collocadó sobre Finalmente, não póde provar-se que o
a terra no estado em que o suppõe mr. Theismo não é a religião primitiva dos ho­
Hume. mens, porque elles não teriam podido ca-
Mr. Hume, para explicar como estes ho­ hir no Polytheismo: Primeiro, porque o
mens idolatras poderam no estado d’igno- Theismo dos primeiros homens era uma
rancia elevar-se até o Thcismo, pretende instruccão e um dogma Iransmittido pela
fazel-os passar, á força d’e!ogios exaggera- tradição, o qual póde alterar-sé mais facil­
dos. da ideia das potestades invisíveis, que mente do que sendo adquirido por uma di­
adoravam, ao Theismo. 1 latada serie de meditações. Segundo, pro-
Mas é evidente que estas cxaggerações que, com effeito, os judeus, cujo Theismo
não podiam haver conduzido o homem do é incontestável, cahiram na idolatria. Em-
estado, em que o consideramos, á ideia, de fim, nós vamos mostrar como podia alte­
uma alma universal, que formou o mundo, rar-se, e com efleito se alterou este dogma.

1 Hume, ibid. pag. 47, 48, 55'.

CAPITULO II

D a a lte r a ç ã o da r e lig iã o p r im itiv a

Yimos o genero humano não se compondo dade, a mnocencia, c a frugalidade dos pri-
no seu começo senão d’uma familia que co­ meiros homens augmentaram rapidamente
nhecia e adorava uma intelligencia supre­ esta familia, que foi obrigada a estender-se,
ma, creadora do universo e pouco depois a dividir-se.
Esta familia cultivava a terra, e apascen­ Entre os animaes que habitam a terra,
tava rebanhos nas planicies do Oriente: é quasi todos são infinitamente mais fecundos -
de lá que todos os povos sahem. A bondade do que o homem; assim, os animaes herbívo­
do clima, a fecundidade da terra, a activi- ros, frugi voros, ou 'carnivoros, cercam, do
DISCURSO PRELIMINAR 11

alguma sorte, o gênero humano, c occupa- os rebanhos, aos quaes foi preciso, d’algu-
vam uma grande parte da terra, quando a ma sorte, conquistar as campinas férteis.
multiplicação dos homens os obrigou a se Fez -se, pois, a guerra aos animaes, e teve
afastarem "das suas primeiras habitações, c cada familia os seus caçadores, para defen­
a dividirem-se cm differentes corpos. der os rebanhos, c guardar as colheitas. Es­
listas colonias, guiadas na sua marcha tis caçadores tornaram-se os patronos das
pelo curso dos rios, pelas cadeias dos mon­ familias, seus chefes, c a final seus senho­
tes, pelos lagos c lagoas, encontravam suc- res. Nos séculos, que os chronologistas de­
cessivamentc regiões ferieis, desertos esté­ nominam «tempos heroicos», os homens
reis, cantõcs aonde o ar e as producçõcs da mais respeitados eram os mais valentes, os
terra eram nocivas, onde pereciam seus caçadores mais destros, os destruidores de
rebanhos. Encontravam poucos animacs anímaes perigosos.
íveslas regiões, ou estes animaes eram ma­ O exercício continuo da caça dispõe para
gros e mòrbosos; pelo contrario, os animacs a dureza, e até mesmo para"a ferocidade:
eram cm grande numero, c robustos nos os caçadores tornaram-se audaciosos, arro­
territórios férteis, e onde os pastos, os fru- jados," e deshumanos; os vínculos, que liga­
ctos, c grãos eram saudaveis. Espalhados vam os homens antes da sua divisão sc af-
os homens, tomaram os animaes por guias frouxaram: as familias que habitavam os dif­
e mestres; seguiram na sua derrota o voo ferentes cantõcs, olharam-se como socieda­
das aves, entenderam que os grãos que el- des estranhas.
la s . comiam com avidez eram beneficos; Estas familias não sc haviam distanciado
observaram nas entranhas dos animacs her­ umas das outras mais do que o espaço que
bívoros, ou nos frugivoros, as qualidades a necessidade as obrigava a occupar,"e logo
das plantas c dos lruclos, c se fixaram que sua multiplicação as forçou a esten-
iTaqucllcs logares onde todas estas indica­ der-se, suas possessões tocaram-se em l»re-
ções lhes promettiam uma habitação feliz. ve, comprimiram-se, disputaram-se a terra*
Tal é, verosimilmente, a origem'dos agou­ como tinham feito aos animaes, occupan-
ros, tirada do voo das aves, do seu môdo do-se cada familia cm defender suas plan­
de comer, e da inspccção das suas entranhas, tações, seus rebanhos, e sua vida contia os
espccie eVadivinhação simples c natural na homens e contra os animaes.
sua origem, e de que a superstição e o in­ Foi, pois, contínua, c quasi geral, a agres-
teresse fizeram uma ceremonia religiosa .são no renascimento do genero humano, e
destinada a descobrir os decretos do des­ como as familias inimigas tinham forças
tino. l / quasi iguacs, a guerra tornou-se viva, cruel,
D'esta maneira, por toda a parle aonde e porfiada.
se estabeleceram .as novas colonias sabidas i\r estas sociedades dispersas, não havia
dos plainos do Oriente, encontraram ani­ cousa que mais sc apreciasse do que saber
maes frugivoros, pascentes, ou carnivoros, atacar ou rcpellir o inimigo. O ardil, a força,
que devastavam as searas, e destroçavam a intrepidez dos guerreiros, forani o obje-

1 f Os adivinhos que consultavam as en­pelo grau do appetite com que os frangos co­
tranhas, chamavam-se. Á/uspicçs: os que fun­ miam; se comiam pouco diligentes e deixa­
davam as suas prophccias nó voo e canto vam cahir parte da comida, e principal-,
das aves, Augures. mente se a despresavam, era funesto o agou­
Os AniSpices eram chamados assim ab ro; mas se apanhavam soffrcgamenle o sus­
aris inspiciendis. Elles procuravam a von­ tento, e sem deixar cahir parte d'clle, era
tade dos Deuses nas entranhas dos animaes, então o presagio feliz. Finalmente os anti­
no coração, no ventre, no fígado, e bofes: era gos tiravam também presagios d'outros ani­
um presagio funesto, quando a victima ti­ macs, iaes como os lobos, a raposa, as le­
nha duplo fígado, e não tinha coração. bres, as doninhas, etc. Estes animaes car­
Os Augures tiravam as suas predicçòes nivoros acham-se sómcntc em terrenos abun­
do voo, ou do canto das aves, e estas predic- dantes de caça, e d'aqui presumiam que o
çues chamavam-se ÂusmeTos, derivando da paiz era bom para se habitar. O que nos
palavra latina avis et auspício. resta sobre estas adivinhações parece con­
Quando as predicçòes eram fundadas so­ firmar a • nossa conjectura acerca da ori­
bre o canto, chamavam-se Oscines, c quando gem d'estas prácticas, desconhecidas absolu­
se tiravam do vôo, Perpetes."0'Àugur subia tamente dos antigos, como se vê cm Cicero
a qualquer altura, e 'voltado para ó Oriente, de Divini., I. 1 et 2. Em Origenes contra
n'csta situação esperava o vôo das aves. Jul­ Celso. Este philosopho parecia suppôr uma
gavam também os Augures sobre o futuro, espccie dc commercio entre os Deuses e as aves.
12 DISCURSO PRELIMINAR

cto das palestras, e o assumpto principal §1


da instrucção; ellcs sorviam toda a atten-
ção: contavam-se as suas façanhas, cncare-
ciam-se, c gravando-se na memoria, in fla m-
mavam todas as imaginações, como ainda Dos differentes systeinas religiosos, que o en­
agora succede entre os selvagens. tendimento humano levantou sobre as ruí­
N’cstc estado d’enthusiasmo guerreiro, nas da religião primitiva.
c na infancia da razão, o dogma da creação
c da Providenda, a lembrança da origem
dos homens e das causas que" haviam cha­
mado sobre a terra a vingança do Ente Su­ Não era possível que todas as nações ini­
premo; o conhecimento dos seus attributos, migas se guerreassem constantemente, fi­
e dos deveres do homem, muito pouco in­ cando com iguacs vantagens no successo
teressavam. Yiu-se pouco distinctamcntc das armas, c se conservassem na especie
quanto eram necessários estes conhecimen­ d’equilibrio cm que d’antcs estavam. Houve
tos para a felicidade dos homens, c a morte nações victoriosas, que escolheram os cam­
levou das sociedades os Patriarchas, que pos mais férteis, e permaneceram cm paz,
alcançaram a grande época da regenera­ e nações vencidas, a quem sua fraqueza e
ção dò genero humano, c que estavam pe­ desbarato obrigaram a ceder as suas pos­
netrados d’estas immensas verdades, ver­ sessões, c a procurar estabelecimentos cm
dades que não foram ensinadas com a au- regiões afastadas, longe dos assaltos das
thoridade c persuasão, proprias para faze­ nações mais poderosas. Então a guerra ces­
rem no espirito impressões profundas; cilas sou sobre a terra.
não gravavam na memoria mais do que N’esta nova dispersão dos homens, as fa­
traços supèrficiaes, que o tempo, a agitação, milias, se acharam cm climas differentes.
•a desordem, c a paixão da guerra, apaga­ Umas encontraram prados, outras foram
ram. conduzidas a bosques; estas estabclcceram-
Tudo aquillo que se não podia conhecer se*em terras fecundas cm fruetos, c legu­
senão pelo espirito, ou o que requer um mes, aqucllas cm planicies, ou montanhas,
qualquer exame, alguma discussão, per­ em que predominavam terrenos ferteis,
deu-se insensivelmente, e se sepultou no areias, rochedos ou lagos. Todos os povos,
esquecimento entre povos, cm que a me­ pois, foram pastores, agricultores, ou se li­
moria era a única depositaria d’estas ver­ xaram em paizes, aonde a sorte os condu­
dades. De tudo o que os Patriarchas ha­ zira, ou se tornaram noipades.
viam ensinado, nada subsistiu além d’uma Não ha clima, nem região em que a
impressão forte c profunda. O dogma da terra seja sempre, c igualmente fértil: as
creação, deveu, pois, dcsappareccr d’entrc influencias do Céo não são constantemente
estes* povos, e a imaginação não ha devido beneficas; cm toda a parte ha annos este-
conservar mais do que a lembrança do ca­ reis; em toda a parte a atmosphera tem
bos, de que o mundo tinha sabido; da in- borrascas, tempestades, e ventos, que asso­
tclligencia que o havia tirado do diluvio, lam os campos, que espalham ó contagio,
que submergiu a terra, porque ella podia e trazem a morte.
exhibir todas estas formas, e porque oíTcre- D’esta sorte, no seio da paz, experimen­
ciam um espectáculo maravilhoso, c um taram todas as nações revezes capazes de
poder formidável. as aniquilar, c procuraram meios de se
Assim se deviam conservar estes dogmas, precaver d’elles.
e eíTectivamente se conservaram assaz uni­ Sabiam estas nações, que uma Intelligcn-
formemente em todas as nações, mas as cia omnipotento tinha tirado o mundo do
guerras, as calamidades, e os** tempos, cx- cá lios, formado todos os astros, produzido
tinguiram entre alguns povos, estes restos todos os corpos, submergido a terra de­
de luz, e apagaram todos os vcátigios da re­ baixo das aguas. Julgaram, que esta Intcl-
ligião primitiva. ligencia era a causa dos phenomenos for­
•Vejamos que religião o entendimento hu­ midáveis; que podia fazer perecer os ho­
mano levantou sobre as ruinas da religião mens; que ella formava as borrascas, as
dos primeiros homens, c qual fci a das na­ tempestades, e fazia soprar os ventos, sau­
ções que nada conservaram. dáveis, ou nocivos; csteriíisava, ou fecun­
dava a terra, em uma palavra ella produ­
zia tudo no Céo, c na terra, que por si só,
e a seu arbitrio, movia todas as partes da
natureza.^Concebeu-se, pois, que esta Intel-
DISCURSO P RELIMINAR 13

, ligencia se achava unida a todas as partes ti va passaram os caldcus ao Polythcismo


f da materia, pouco mais ou menos, como a mais grosseiro. 1
\ alma humana está unida ao corpo, por isso A theologia dos caldcus communicou-se
: que ella obrava sobre a matéria, como a verosi mil monte aos persas, antes de ser
alma humana sobre o seu corpo. desfigurada pela idolatria, c estes honra­
\ Assim, nào obstante a ignoranda e gros- ram Deus, ou a alma universal, no sol c
i seria das nações, antes cpie tivessem artes nos astros.
/ e sciendas, cilas sc elevaram rapidamente Os calores das provincias meridionaes
v ao dogma da alma universal, que produziu da Persia são incríveis: algumas vezes o
\tod o o mundo. lacre chega a derrcter-sc por eíTeito do
A Esta alma universal era um poder im- abrazado da atmosphcra, c os habitantes
menso, cm que o homem estava como emer- então não tem* outro refugio senão o de rc-
gido, que podia aniquilal-o, c que, todavia, colhcrcm-sc a logares occultos, c ahi se
o tinha formado, o deixava existir, o ro­ borrifarem com agua. 2
deava de bens e de males, dava a vida e a Correm de noite ventos refrigerantes; o
j morte. calor dcsapparcce com o sol, c com ellc
■ r O primeiro cffeito do dogma da almauni- renasce; e d’csta maneira os philosophos,
\ versai, excitou no homem um sentimento ou os observadores da. PersiaTÕn^iWiljara
{religioso, de respeito, de crença, c amor á Tuz dó sol çoniu para um. fogo, que pe­
‘para com este Summo podei1, e*o segundo, netrava todos os corpos," quê podia decom­
um esforço geral cm todas as nações, para por todas as suas partes, reunil-as c endu-
conhecerem como e porque a alma univer­ rcccl-as: que fazia brotar os fruetos, e os
sal produzia bens c males. Antes de nas­ grãos, viver, c morrer os animaes: d’aqui
cerem as artes e as sciendas, os^cajdcus, concluíam élles, que este elemento tinha
os {KirsuSj.ctè indios, os cgypcios,‘os~cSrfãs, em si mesmo quanto era necessário para
etc,, Unham s o c i c ^ f e im '1cqljegros dcjio- produzir os phenomenos: e PiFtaato,fol.cn- 1
mens. dcstinacfós^a estucTáf á^naturezá do tre .osucrsas. havido como a alma uniyer-
: es^rlio*" saL ò ojobiiictp dos seii&iCuUdsr— '
\ como e porque ellc se unia á matéria, A medida quê observaram a influencia
qual é a ordem dos phenomenos, a sua con- dos differentes elementos sobre a produc­
nexão, c os signacs que os annunciam. ção dos phenomenos, suppozeram ifestes
Foi na observação da natureza, que os elementos uma porção da alma universal,
philosophos procuraram a solução d’estas e lhes renderam um culto. Havia entre os
grandes questões: sobre a face, que cila lhe magos uns chamados curadores dos ele­
oíTerecia, levantou cada povo um systema mentos, que tinham cuidado dos Céós, das
theologico. aguas, dos rios e das fontes; c impediam,
Q.s caldcus, situados em um clima, aon­ quanto era possível, para que o ar não fos­
de o esplendor do sol nunca se escurece, se iníeccionado de algum mau odor, que o
e a noite é sempre alumiada pela brilhante fogo se não maculasse com alguma im­
luz das estrellas c da lua, áçrMfciram munditie, e a terra com algum corpo morto.
(fuc a iiaturezj^^MÍht»iya..poi;r meío^fa Vendo que o estado d?estes elementos
\uz, e que a alma universal scserviaclestc não era sempre uniforme, suppozeram n’el-
eleincnto para tudo penetrar: era pois por les fins, intenções, e motivos, c lhes offere-
meio ,<).ajn z do sol c dos asJro^jxiíç{o^- ciam sacrifícios para interessai-os na feli­
plrfto universal..produzia. tudo;'e òs cal- cidade dos homens: o culto dos elementos\
dütfs a‘diiraram o Deus supremo nos as- formou-se sobre as propriedades, que n’e l- /
. tros, onde lhes parecia ter ellc estabelecido ies descobriram: o fogo, por exemplo, que >
particularmentc a sua residência. consumia todas as materias combustíveis,|
Formando estes astros corpos separados, foi olhado como um elemento ávido d’estas
a imaginação lh’os representou como sêres materias, como uma cspccic de animal,
distinctos, que tinham funeções particula- que d’ellas sc nutria: persuadiram-se agra-
res e influencias differentes na producção
dos phenomenos; a ideia da alma univer­ 1 Euseb. prcup. Ev. I. 9. c. 10. Phylo
sal, muito abstracta para o povo, e comba­ de migratione mundi Selden de Diis Syriis,
tida pela imaginação c pelos sentidos, se proleg. c. 3. Stanley. Hist. Phil. Chald. part.
dissipou, c começaram a adorar os astros, 13. Sect. 2. c. 1 et 2. c. 39. B m ker, Hist.
como outras tantas potências, que gover­ Phil. t. 1 .1.2. c. 2.
navam o mundo. 2 Chardin, t. 3. p. 7. Tavern. t. 1. I
Assim é facil de comprehender, como 4. c. 1. p. 414. I. 5. c. 23. Le Brun3 1. 2.
d’esta primeira altcracã^ fl^rpjjgjàpjnjmi- pag. 322.
14 DISCURSO PRELIMINAR

dar-lhe accendendo' lenha, porque se lhe Na índia nos oflérece a natureza um dif­
dava o alimento: muitas vezes mesmo os ferente espectáculo. Debaixo do nome de
reis, c pessoas abastadas lançavam no fogo Arabia coipprehcn(liam os.antigos a penin­
pérolas, joias e perfumes preciosos, e a. es­ sula da índia, e quasi todo. o pai/, siluado
tes sacrifícios chamavam festins do fogo. debaixo da zonii:torri3ã.'
O raio era um fogo que consumia al­ TEisfa" viráfii extensão de terra é regada
gumas vezes as arvores, e as casas, matava por um numero infinito de rios e regatos,
as rezes, c ordinariamente cahia mais so­ que trasbordam, regularmente todos os an­
bro os montes, que sobre as planicies; cre­ nos, e communicam á terra admiravel fc-
ram que as montanhas lhe eram mais agra- cundidadc. As inundações dos rios, e a
daveis, e mais visinhas d’este elemento, e fertilidade que d’ellas sc segue, fixaram as
(ofiereccram-lhe sacrifícios sobre logarcs attenções dos observadores índios; elles
elevados; e como oj^iio, cahindo, matava olharam-nas como obra da alma universal,
animaes, e homens som os consumir, con- que iiarticularmente se conduzííí poíaagua,
jecturaram, que tap.ib.em. se al- a penetrava toda, a enlumccia, a inchava,
v inasdg§,aui.macs; c se inimolaram ao fogo lio- e se ensinuava por meio d’ella nas plantas.
mens e aninVáes. Foi, pouco mais ou me­ D’aqui julgaram, que a agua era o elemen­
nos, baseados n’csta mesma idéia que re­ to, de que ella se servia para communicar
graram o culto dos outros elem entos.1 a vida: os ríos eram os templos onde ella
Ao passo que os persas sc persuadiam residia por escolha, de que só sahia para
vór no fogo elementar o principio produ­ beneficiar os homens. As inundações dos
cente dos seres, póde ser que outros ficas­ rios foram favores,que a gratidão celebrou:
sem ligados á crença d’uma intelligcncia os indios honraram a agua c os rios com
omuipolente, que creára o miuido, c de os seus cultos.
que o fogo não era mais que o svmbolo; Não tinham estes rios. a mesma origem,
O ) talvez os parsgos 2 recebessem e tenham banhavam regiões differentes, formavam
conservado até agora esta doutrina? uma infinidade de curvas, c as percorriam
Nào é absolutamente impossível esta im- com variado movimento: persuadiram-se
mobilidadc do entendimento humano entre os indios que diversos poderes haviam ca­
os parseos; mas é muito difíicil de se crôr, vado os alveos dos rios, c os faziam correr
por se estribar sómente em conjecturas, e mais, ou menos rapidos; a alma universal
presumpções c não sabemos qiic se ache lhes pareceu dividida cm muitas partes,
suffici entemente provada. Toda a antigui­ que governava a natureza sobre diversos
dade concorda, que houve tempo, em que planos, c por differentes causas: honraram
.os parseos adoravam o fogo e o sol. Mr. estas potências nos rios, aonde as suppo-
Iíydc, o mais celebre defensor dos parseos, zeram residentes; as suas inundações fo­
não contesta este testimunho com razão ram graças, que o interesse se esforçou a
Ialguma decisiva, nem o combate, senão merecer," c que a gratidão celebrou. (Suan­
com a crença dos mesmos parseos. do estas inundações eram muito grandes,
Mas porque- não teriani os parseos ascen­ ou muito pequenas; estavam irritadas as
dido do culto do. fogo ao dogma da existên­ divindades dos rios, e se empenharam em
cia de Deus, depois que a Religião ehristã fazel-as propicias, por meio de, votos, fes­
havia feito conhecer o absurdo da idola­ tas, e dedicações de toda a especie, cujo
tria? Não se viram os Estoicos, para justi­ detalhe seria íongo para esta obra.
ficarem o Polytheismo, sustentar, que Júpi­ A índia é uma quasi ilha, e não se co­
ter, Ceres, Neptuno, etc., não eram mais do nhece cm todo o mundo torrão mqis fértil.
que os differentes attributos do espirito,nm- Os indios gosaram d’uma abundancia e de
v ersal? E quando fosse certo, que o culto uma tranquillidade que os multiplicou pro-
dcT, verdadeiro Deus se conservasse entre digiosamente; foram obrigados a cultivar a
os parseos, não seria menos verdade que terra, c como a fecundidadc dependia da
ellc sc alterou, e perdeu entre os p ersa s.3 agua, tiveram de formar canaes para a con-

1 Vide Herodoto, Clio, c. 4 .3 1 . Strabão, Saturnal. I. 1. c. 17. Braunius, I 4. Selcct.


l. 15. Vossius, loc. cil. sacr. Voss. de idol. I. 2. part. 2. c. 51.
2 :P arseos suo povos oriundos da Per­Brisson de Reg. Perf. principatu. Spond.
sia, mas não são propriamente persas. Ve­ miscel. p, 87, IJAntiquit. expliq. t. 2. part.
ja-se o P. Bluteau na palavra parseos. 2. b. 5 pag. 373. c. 6. Acad. des Inscript. t.
NOTA DO TRADUCTOR. 25. Traité de Ia Relig. des perses p a r M.
1'Abbè Fouchet.
3 V. os Commentadores sobre Macrob.

.(*5 ) Scov 0/1 ^ 14x^9


DISCURSO PRELIMINAR 15

duzir nas torras onde a 'inundação não Tal foi a religião que os Sacerdotes egy-
chegava. peios estabeleceram sobre os restos da re­
Estes canaes, cavados para fazer escoar ligião primitiva.
dos campos a agua dos rios, oíTercciam aos 0 entendimento humano não se eleva a
indios um refugio simples c seguro con­ princípios geraes senão pelo esforço que
tra as inundações excessivas^ ou diminu­ faz para dilatar suas ideias, e pclo-habito
tas, maios que os sacrifícios não impediam. de ligar os phenomenos, e os attribuir a
Facilmente advertiram, que, vastos canaes, uma mesma causa. Logo que cessa de li­
afundados cm certa altura, poderiauí absor­ gar estes phenomenos por meio do raciocí­
ver a quantidade nociva das inundações, nio c das observações, crê todos .os pheno­
ou supprir as aguas, que os rios não '(les­ menos separados,- e attribue cada um a
sem. Descobriram, pois, os indios, a arte uma causa difierente. Assim, o povo, cuja
de conduzir as aguas c de seccar as terras, intelligencia se não esclarecia, e os Sacer­
quando as outras nações estavam ainda dotes não instruíam, perdeu insensivel­
mui distantes de pensar nas artes, nas seien- mente de vista o dogma da alma universal,
cias, e na physica.1 c tributou culto ás plantas, aos animaes
Com estas vantagens, os indios se tor­ úteis, aos elementos.
naram nimiamente numerosos para cabe­ É verosimil, que os Sacerdotes egypcios
rem em pouco tempo, nas suas antigas pos­ estiveram por muito tempo de boa fé n’cs-\
sessões, se estenderam para a direita, c para tas ideias. Descobriram que a alma uni ver-/
a esquerda, c deveram de partir natural­ sal seguia leis invariáveis, d’estas se shFYi-\
mente para a China, e para o Egypto, aonde, ram para prognosticar o futuro, mantive-/
talvez, communicaram a arte de dessecar ram o povo na supcrsticção, na ignorância;
as terras, c de conduzir as aguas; a crença e a religião cm suas mãos veio a conver­
da alma universal, a das divindades, que el- ter-se n’um meio de que a politica se ser­
la havia formado, e as ceremonias religiosas. viu para agitar ou aquietar os povos.
Como a China não deve a sua fertilidade Comtudo, nem em todos os collegios do
ás enchentes regulares dos rios, a agua Egypto se conservou este dogma da almai
cessou de parecer alli o elemento, cm que universal, porque nem todos observavam a Ü
residia a almar.universal, e os indios transi natureza pela mesma face. No alto Egypto, ;
portados T T h in a, ornaram a alma univer­ por exemplo, cm que depois das enchentes i
sal como um espirito derramado em toda a? do Nilo se viam sahir do limo pôdre e sêc-
natureza: ou o lu. co, insectos e reptis, se creu que os ani-
No.Egypto, onde as inundações do Nilo macs, c as plantas eram formados pela se­
fecundavam a terra, se conservou o culto paração das partes aquosas, terrestres, e
das aguas, que se olhou como o elemento aereás, sem que se fizesse necessaria a in­
de que se servia a alma universal para vi- tervenção da alma universal na formação
viíicar os corpos, ou se os egypcios não dos corpos.1
receberam esta crença dos indios, a cila fo­ É talvez d’csta maneira que se deve con­
ram conduzidos pelo mesmo fio de idéias, ciliar o que Diogenes Laercio e Eusebio
porque tinham debaixo dos olhos phenome- nos referem da thgolpgia.ogcjilta dos cgy-
nos similhantes. pcios, ane não .admftüa. o conm rai.diuli-
* As plantas, legumes c fruetos, de que com os*
abundava o Egypto, e que eram produzi­ testununhos de Porpluro, de Jambhco, e do--,,
dos pela agua do Nilo, encerravam porções mesmo Eusebio, os quaes asseveram que}
d’esta alma, que parecia formal-os para se os egypcios attribuiam a formação do mun- ’
manifestar sensivel aos homens, c dar-lhes do a imi architecto intelligcute.2
em seus benefícios a prova da sua presen­ Os celtas, os. galos, c germanos, da mes­
ç a . A gratidão deu cultos á alma univer­ ma sorte que os povos 3c"quff acabamos
sal, ou á Divindade, nas plantas, como em de fallar, criam que uni^spirjtqjnfinitoo
um templo, aonde parecia que cila convi­ QOÚWPQLçnm animava, toda a^naUu'i£a7for-
dava os homens a render-lhe homenagens.. mava todòTos' corpos' jriráuziá todos os
O interesse e a fraqueza associaram logo a phenomenos: tiveram seus philosophos, e
este culto todos os elementos que concor-, Sacerdotes destinados para observarem as
riam para a producção dos fruetos. / leis dos phenomenos, as causas que deter-

1 Strab. I. 15. Plut. in Alex. A rnen 1 Diod, Sic. I. 1.


expedit, d'Alex. 1.7. Philostr. vita Appollon. 2 Easeb. preep. Ev. I. 2. c. 17. p. 115.
Porph. de abst. I. 14. Pallad. Clem. strom. Cudwort syst Intel simplic. in Arist. physic.
i. 1. L a Crose, Chr. des Indes. I. 8. p. 26&. P iat des Isid e t Osiride.
16 DISCURSO PRELIMINAR

minam o Ente Supremo a produzil-os, e os mens, das mulheres, etc., c para preveni­
meios de estorvar que clle produzisse estes rem as inundações julgaram os celtas q u e -
phenomenos terríveis, que faziam a infeli­ deviam fazer-se aos rios offerendas de to­
cidade dos homens. das as cspecies.
Situados n’um clima, e debaixo d’um Os antros, que encontravam estes povos
Cêo rigorosos, embrenhados na espessura errantes, pareciam-lhes cavados pelo esp i­
dos bosques, ou perpetuamente vagabundos rito universal para tragar os homens c os
entre os lagos, montanhas, rios, e lagoas, animaes; c sempre que os encontravam,
não observaram como physicos as produc- n’cllcs precipitavam alguns. As plantas cm.
ções da natureza, nem indagaram nos di­ que elles se persuadiam descobrir alguma
versos objectos, que ella oíTerccia, mais virtude util, lhes pareciam destinadas para
que os fins que se propunha o espirito uni­ merecer o respeito, o amor e o reconheci­
versal, c que cllcs imaginaram sempre as mento dos homens.
suas proprias idéias, os seus gostos, e as Os monumentos, que nos restam, acerca­
suas necessidades. da religião primitiva dos galos e dos celtas,
Não viram, pois, nos phenomenos, senão sobre os seus sacrifícios e adivinhações, são^
corpos, ou movimentos produzidos pela consequências dos princípios quc^lhes te­
união do espirito universal com a materia, mos attribuido, mas estes detalhes não p er­
e presumiram que esta união tinha um pra­ tencem á obra, que actualmentc damos, *
zer por fim, ou uma neçessidadc por prin­ Os que existem sobre a theologia dos
cipio. arabes antes de Mafoma, dos phenicios, e
Os Druidas 1 o os Dardos 2 procura- toscanos, nos ofíercccm os mesmos prin­
ram descobrir as líec^ ícíacles c prazeres cípios, os mesmos erros, c a mesma mar-
da alma universal, e prescreveram cultos cha. 2
e sacrifícios proprios para satisfazel-os.
Suppunham a alma universal derrama­ § II
da em toda a natureza, julgaram que ella
pretendia unir-se á materia comprazendo-
se particularmente nos grandes accumula- Da extineção da religião prim itiva
dos de materias solidas, que pareciam des­ em muitos povòs} e da que elles imaginaram j
tinados a attrahir a attenção dos homens,
e convidal-os a render alli suas homenagens
á alma universal, que não formara estes Depois que os homens altribuiram a es­
montòcs enormes, senão unindo-se a clles píritos particulares a producção dos pheno­
d'um modo particular. Tal é, em grande menos, o dogma da alma universal tornou-'
parte, a origem do culto, que estes povos se uma cspecie de mysterio encerrado nos
tributavam aos grandes penhascos, as ar­ collegios dos sacerdotes, ou um dogma es­
vores dcscommunacs, e aos vastos bosques. peculativo, que não se julgou mais com in­
A vida pastoril d’estes povos lhes tornou fluencia sobre a felicidade dos homens: ex-
necessaria a visinhança dos mananciaes, das tinguiu-se no espirito do povo, que d’alli
ribeiras, c dos rios: julgaram elles que o em diante não viu na natureza senão Deu­
espirito universal os fazia correr para feli­ ses, genios, e espíritos, aos quaes entrou a-
cidade dos homens, e dos animaes, c hon­ dirigir votos, c offerecer sacrifícios, porque j
raram a alma universal, ou o Sér Supremo somente d’cllcs esperava a sua felicidade.
nas ribeiras, e nos rios. A multiplicação contínua dos homens j;
Não era uniforme o curso dos rios: al­ n’estas nações, a impossibilidade de subsis­
gumas vezes sabiam do seu alveo, e inun­ tirem dentro de seus antigos limites, as
davam as Jerras. Notou-se que, trasbordán- guerras civis e questões particulares entre
do, arrastavam tudo quanto encontravam as familias, fizeram destacar d’ellas pequenas
na sua carreira, e se limitavam depois ao colonias, que se espalharam sobre a terra.
seu leito; d’aqui se persuadiram que estas
invasões tinham por fim apoderar-se dos 1 Hist. de Marseille, Relig. des Gaulois
fruetos das cabanas, dos inoveis, dos ho- Collect. des Hist. de F)'anra. Biblioth. Genn.
t. 37 an. 1737. p. 140. Peloutier, Histoire
1 D ruydas é o nome dos Sacerdotes dos des Celtes.
antigos galos. 2 Vede specimen Hist. Arab. e as notas-
2 Bardos se chamavam os poetas entre de Pocok. Senec queest. nát. 1 .1. c. 41. Sut-
os celtas, os guaes cantavam os seus heroes. das in voce Thyrren. Plutarq. in Sylla. Eu-
seb. preep. Evang. I. c. 9. Thedoret de cu- i
NOTAS DO TRADUCTOR. randis grec. affect. serm. 12.
DISCURSO PRELIMINAR 17

Entre estas colonias houve-as que nào As guerras cruéis que estas nações se
levaram collegios nem Sacerdotes, ou ás faziam, e o habito de viverem da caça, as
quacs a morte lh’os arrebatou: muitas (Tes­ espalhou por uma infinidade de regiões.
tas colonias nào conservaram senào a re­ Nenhum signal da sua origem conserva­
ligião práctica, e os sacrifícios, c as cere­ ram as nações selvagens, c por esta razão
monias religiosas: o dogma da alma univer­ as colonias das nações policiadas achavam
sal se extinguiu absolutamente entre cilas. por toda a parte homens, que sc julgavam
O curso das ribeiras, c rios, os lagos, nascidos da terra.
montanhas e desertos áridos guiaram a Aggregados estes selvagens, pelo medo
marcha d’estas fugitivas colonias; a guerra que tinham das feras e dos homens, tào
que se accendeu entre cilas, desavenças crucis como cilas, viram em cada um dos
particulares, as difficuldades dos caminlíos seus associados um protector, que amaram,
e mil accidentes similhantes destacaram e cuja morte era considerada como desgra­
d’estas colonias algumas familias ou ban­ ça, que atacava a sua existência e felicida­
dos particulares, c até alguma vez um ho­ de. A morte foi, entre estas sociedades, a
mem, c uma mulher que o receio dos ou­ primeira cousa sobre qne o seu raciocínio
tros homens ou das feras conduziu e man­ reflectiu, c de que cogitou os motivos.
teve nos logarcs mais inacccssiveis aos ani- Nào conheciam estes homens outra causa
maes ferozes, c aos homens; ao mesmo sensível da morte senão o odio dos homens
passo que outros, levados pelo acaso para ou o furor das feras: quasi sempre era a
paizes ferieis, ifellcs viveram com segu­ morte precedida por dòres internas, simi­
rança, e se multiplicaram. lhantes ás que causavam os animaes, ou
Os homens, a quem o temor separára do as feridas feitas pelos homens: olharam a
resto do genero humano, e conduzira aos morte como obra d’a!gum animal invisivil -
desertos, lagoas, ou retiros inaccessiveis, inimigo do genero humano, c que imagi­
unicamente se occuparam do cuidado de naram com um corpo similhante ao dos
se nutrir: riscaram-se do espirito d’cstes animaes que accommettiam os homens. É
homens solitarios todas as ideias que ti­ assim que os moxos acreditavam que todos
nham adquirido na sociedade, c seus filhos os males, que os afiligiam, llfos causava
tornandp-se selvagens, cahiram n’uma igno­ um tigre invisível.1
rância absoluta do Ente Supremo. Taes Não concebiam estes animaes malfazejos
eram os içtopliagos, que nem ao menos ti­ senão como invisíveis: não suppunham que
nham conservado''o uso de fallar, viviam elles tivessem outros motivos para fazer
em sociedade com as phocas, e que se cria mal aos homens mais do que a necessidade
terem habitado estes retiros desde a eter­ do sustento, c julgaram que se preservera-
nidade. Os homens que viviam, e que nào vam da sua malignidade saciando-lhes a
ousavam sahir d’elles, porque os animacs fome. Os homens repartiram naturalmentc
ferozes os esperavam' de cmbuscada á bor­ os alimentos com os sêres malfazejos e in­
da dos mesmos: taes eram os liylogüQs, visíveis, como ainda agora o practicam mui­
que se haviam refugiado no alto das arvo­ tas nações selvagens.
res, e se mantinham dos seus gômos; os Como estas offerendas não suspenderam
trogloditas, os garacoantas, c uma infinida­ o curso dos males, nem os golpes da mor­
de de outros selvagens brutos ou estúpidos, te, cessou-se de imputar aos imaginados
de que Herodoto, Diodoro de Sicila, Stra- sêres invisíveis as molestias e a morte; e
bào, c os viajantes antigos fazem menção. não podendo descobrir-se a causa nos sê­
Os homens, a quem o temor ou a for­ res estranhos, buscaram-se no mesmo ho­
tuna conduziram a terrenos seguros e fer- mem.
teis, n’cllcs se multiplicaram, e a crença A morte não deixava vestigio algum da
do Entre Supremo, e dti alma universal se sua acção; via-se a mesma configuração
obscureceu, e alterou por infinitos modos, exterior do corpo humano, sem que fosse
e sc extinguiu absolutamente entre aquel- destruída alguma das suas partes, as quaes
les, a quem o temor dos animacs ferozes, tão sómente eram privadas do movimento;,
e dos homens, c a diflQculdade de se sus­ portanto concluiu-se que o corpo humano
tentar tinham continuamente occupados: não continha essencialmente o principio do
taes eram as colonias do caçadores espa­ seu movimento, e que o recebia d’algum
lhados sobre as montanhas da Colchida na Ente, que d’cllc se separava pela. morte. O
Ilyria, os bes&as, os arçadeos, os desar„t(3s, corpo, privado do movimento, não deixa­
°s hyberianps, e t c .1 va perceber sensação, nem pensamento; o

Strabão l. 12. /. 7. I. 31. i Yoyagc de Coréal, t. 2.


18 DISCURSO PRELIMINAR

principio do movimento foi, pois, olhado píritos que os animavam, e rcconheceu-sc


tambcm como principio do sentimento c do nos espíritos separados dos corpos diversos
pensamento. graus de poder: os homens, que haviam
É assim que n’estas nações selvagens o sido mais fortes, eram lambem os espíritos
espectáculo da morte elevou o espirito hu­ mais poderosos. Não se duvidou de que os
mano aos entes invisíveis, activos, intelli- reis e os heroes, que eram os homens mais
gentes e sensíveis, que davam ao corpo hu­ fortes, não fossem os senhores dos ventos
mano o movimento c a vida, mas que não e da chuva. Os reis e os heroes mortos fo­
eram separaveis d'clle; e que unidos ao ram, pois, o principal objecto da attenção
corpo, para satisfazerem as suas necessida­ dos homens; não somente sc lhes oíTerece-
des, o deixavam, porque algum desarranjo, ram sacrifícios para os nutrir, mas procu­
desconhecido e occulto, lhes não permittia rou-se lisongear os gostos que elles tinham
já satisfazer estas necessidades, e os obri­ durante a vida, e que se não duvidou elles
gava a sahir d’elle. Entcndcu-sc que os es­ conservassem depois da morte.
píritos era a seu pesar que deixavam os Este desejo de lisongear os gostos per­
corpos, dos quaes porém se não afastavam manentes dos heroes mortos, produziu no
muito, a fim de poderem satisfazer as ne­ culto das Divindades todas as extravagan-
cessidades de que a sua separação os não cias possíveis. A morte d’um rei e d’um
isentava. heroe dissoluto, ou d*uma rainha voluptuo­
Mas emfim o tempo, que destruía os cor­ sa, fizeram nascer todos os cultos obscenos,
os, tirava aos espíritos toda a esperança que a historia antiga nos oíTerecc.
e voltarem aos mesmos, e então ellcs er­ O culto dos heroes fez esquecer os ou­
ravam nos ares, atormentados pela fome e tros mortos; ou sc creu que depois da sua
pela sêde. morte, como durante a sua. vida, estavam
Não perdendo os espíritos a sua activi- sujeitos aos genios dos heroes.
dade, e ignorando estas nações selvagens, Como estes haviam sido conquistadores
de que falíamos, as causas que põe o ar em celebres, ou hábeis capitães, e que a morte
movimento, acreditaram que as agitações lhes não roubava nem as suas luzes, nem
do ar eram süpplicas que estes espíritos as suas inclinações, creram vêr nos espíri­
faziam aos vivos para alcançarem d’elles tos dos heroes protectores, que podiam di­
alimentos, e como estes espíritos com as rigir as emprezas que meditavam, c não se
suas necessidades c actividade conservavam duvidou que elles podessem fazer conhecer
suas paixões, não se duvidou que elles se aos homens seus pensamentos c vontades
vingassem da insensibilidade dos homens, por inspirações anteriores, por apparições,
com turbilhões c tempestades excitadas no ou por sons formados no ar: estes efíeitos
ar, que era subordinado ao seu poder. não eram superiores ás suas forças; e es­
Viram estes povos nas almas dos mortos, tes povos tiveram oráculos.1
não sómente desgraçados, que a humanida­ As colonias que sc destacaram das gran­
de convidava a soccorrcr, mas ainda po­ des nações, c que passaram para paizes ha­
tências formidáveis que era perigoso não bitados* por povos, cuja religião acabamos de
satisfazer. Prepararam-sc, pois, e offcrece- descrever, encontraram-os dispostos para
ram-se alimentos aos mortos. acceitar a doutrina dos gênios, aos quaes
Os animaes, que comeram as offertas, fi­ elles attribuiam o governo do universo:
zeram persuadir que com effeito os mortos suas religiões se confundiram, e a crença
se sustentavam, e quando se notou que não dos genios foi gcralmente estabelecida so­
comiam os alimentos que se lhes prepara­ bre a terra: collocaram-os no sol e nos as­
vam, suppôz-se que elles não comiam se­ tros, e imaginou-se que o imperio da terra
não as partes mais subtis e espirituosas, as estava repartido entre estas potências.
uriicas proporcionadas aos orgãos dos es­ Não era sómente d’estas Divindades que
píritos. dependia a felicidade dos homens: o suc­
Portanto, pareceu alimento proprio o va­ cesso das emprezas, a saude, a riqueza, nem
por dó sangue, que corria d’um animal que sempre eram o frueto da razão, ou o apa-
se matava, e fizeram-se sacrifícios para nu­ nagio do merecimento e da prudencia; mui- -
trir os mortos e para os applacar. Tudo o tas vezes as emprezas mais bem concerta-
que era espirituoso c odorifero foi empre­
gado para este fim. 1 Hesiod. Theogon., v. 215, Opera et
Como os corpos, entregues a si mesmos, dies, v . 120. Le Clerc, Commont. sur ces
ficavam sem movimento, as diíTerenças que ouvrages. Vossius de Idol. Todos os via-
observavam nas forças dos homens, não jantes nos fazem vêr entre os povòs nova­
podiam vir senão dá* desigualdade dos es­ mente descobertos a mesma serie de idéias.
DISCURSO I RELIMI.NAR 19

das sc frustravam, entretanto que outras lhes asseguravam que seriam respeitados,
vingavam contra toda a apparenda; muitas c melhor servidos.
vezes o bom successo, ou a desgraça d’uma De tal sorte estavam persuadidos os ro­
ompreza, tinha sido causado ou acompa­ manos do poder dos Deuses tutelares, e da
nhado por alguma circumstanda notável; virtude da evocação, que occulta vam com
d’aqui se inferiu que causas desconhecidas extremo desvelo o nome de seus Deuses
aos homens, isto 6, que genios, não conhe­ tutelares. Acreditavam que por força da
cidos, conduziam o lio dos acontecimentos, consagração os genios ou os Deuses habi­
e levavam os homens á felicidade ou á des­ tavam as estatuas.1
graça por signacs que elles lhes davam por Gomo não suppunham limites na multi­
mil "modos diíTcrcntes, a que se devia, por dão dos gênios, a fraqueza e o interesso os
consequência, ter uma altenção escrupulo­ crearam para qualquer necessidade, e con­
sa. Tal foi entre estas nações a origem dos tra todas as desgraças: não sómente cada
presagios, dos genios amigos ou inimigos nação invocou genios de toda a cspccie,
dos homens, e das fadas, hem ou malfaze­ proprios para procurarcm.a sua felicidade;
jas. SuppOz-se o mundo cheio (Vestes gê­ mas em cada nação, cada condição, e em
nios: todos os successos, todos os movimon- todas as condições, cada familia*tcvc seus
tos, lim estrondo, um vaso cahido foi um geníos particulares.
presagio dado por algum genio. Povoou-sc As casas, os campos tiveram também
a atmosphcra (1’estes genios, que se honra­ seus genios: jamais deixara de fazer uni
vam, c que se imaginou poder tornar pro­ sacrificio ao genio do logar o piedoso Encas.
pícios rendendo-lhes cultos. Como o espirito humano não encarara os
0 culto dado a um genio, em geral, a phenomenos senão cm relação com a sua
nenhum lisongeava, c por consequenda não felicidade, creu todos os gênios occupados
interessava a algum em particular; além a servirem-no, ou a fazerem-lhe mal: attri­
d’isto era necessário á imaginação um de­ bui u-lhes todas as suas inclinações; jul­
terminado objecto; c ao homem" um genio gou-os determinados pelos motivos que o
que clle podésse instruir commodamenle determinavam, clle os considerou successi-
das suas necessidades: propOz-sc, pois, aos vamente sequiosos de sangue, ou ávidos d(
genios que sc iria a certo logar, onde sc gloria; olTereceu-lhcs sacrifícios, ou louvo
obrigariam por uma especic de voto a tri­ res c supplicas; cdificou-lhes templos, esta
butar-lhes um culto. bclcccu-lhes sacerdotes, instituiu-lhes fes­
Entre as nações pobres c grosseiras, c an­ tas; e como era (Veste culto que os homens
tes de haver esculptura, se contentavam cm esperavam toda a sua felicidade, o espirito
distinguir a habitação dos genios por al­ humano exhauriu todos os meios possiveis
gum signal particular. Uma arvore ou um de agradar a estes genios.
tronco cortado foram em Thespis c cm Sa­ Tal foi a origem e o progresso da idola­
mos os idolos de Juno: simples pedras, sem tria, que tinha infectado todas as nações: o
figura alguma particular, eram os idolos povo não conhecia outra religião.
do amor em Thespis, c de Hercules cm As colonias destacadas das grandes na­
Hycta; tacs são ainda agora os idolos Fei­ ções communicaram aos povos aonde se
tiços 1 entre os africanos. A faculdade de estabeleceram os restos da tradição, a que
fixar os gênios produziu os genios tutelares ainda conservavam acerca da origem do
e os geníos dos logares, de que toda a his­ mundo, do diluvio, c do destino do homem
toria está cheia; as ceremonias que os an­ depois da morte.
tigos chamavam evocações, não permitiem Esta tradição, ãobscurecida mestas colo­
sobro isto alguma dúvida. Para haverem nias, se uniu com as idéias, com a crença dos
de profanar qualquer logar que tinha sido povos, aonde foi levada; e d’aqui nasceu a
consagrado, corijuravam com toda a solc- mistura de idéias sublimes c de crenças ab­
mnidade os genios, para se retirarem; e surdas, que se encontram nos antigos poe­
quando se chegava ao ponto de tomar qual­ tas, historiadores e philosophos acerca da
quer cidade, para não eommctterem o sa­ natureza de Deus, das Divindades pagãs,
crilegio de fazer prisioneiros os Deuses tu­ da origem do mundo, e potências que o
telares, lhes suppiicavam que saliissem, e governam, do homem, c da outra v id a .2
passassem ao partido victorioso, no qual
1 Tito-Livio, l, o , c. 21-22.
1 Ciem. Alcx. Procrcp. c. 3. Tert. Apol. 2 Veja-se Hesiodo3 e as holas de Le
c. 18. Pausan. Boetie. 1.V). cap. 24-27. Mcm. Clerc, Homero3 Herodoto, Diodoro. Vossim
de 1’Acad. des Inscript. t. 23. Afriquc de do Idol. Vandale, de idol. explic. de la lablc
' Paper, voyages de Labat. d’Adonis, Bibli univ. c. 3, p. 7.
*•
20 DISCURSO PRELIMINAR

CAPITULO III

D a oi*igem_da p h ilo s o p h ia c a lte r a ç õ e s q u e e lla c a u so u


n a r e lig iã o q u e o s S a c e r d o te s tin h a m form a d o s o h r e
o s r e s to s da p r im itiv a .

Temos visto que Iodos os homens attri- cuja vida era muito agitada, c o clima mui­
buiram a genios os phcnomenos da natu­ to rigoroso para que podessem fazer obser­
reza: sómente os Sacerdotes os olhavam vações seguidas, c que, levando uma vida
como porções da alma universal, e procu­ errante, nao tinham necessidade de prever
ravam, pela observação da natureza, des­ os phenomenos perigosos para os evitar:
cobrir os gostos, as inclinações d’estas por­ taes foram os celtas, os galos c os germanos..
ções da alma universal, c prescreviam os Porém a previsão dos phenomenos não
sacrifícios, as orações, as o (Terendas e de­ era sufficiente para os povos que tinham
dicações que julgavam convenientes para estabelecimentos fixos, e que cultivavam a
calmarem a colora dos genios, ou merece­ terra: elles forccjavam por conhecer esta
rem os seus favores. successão de causas que formavam a ca­
Portanto, sómente dentro dos collcgios deia dos acontecimentos,’ a fim de desco­
dos Sacerdotes é que o espirito-humano brirem preservativos contra as suas des­
buscou pelo estudo dos phenomenos os gos­ graças.
tos, as inclinações, os desejos e intentos dos Os collegios dos Sacerdotes se converte­
gênios, ou porções da alma universal. ram em assembléias de philosophos, que in­
Nada havia de mais interessante do que dagaram como, e porque mechanismo se
satisfazer a proposito estes desejos, estas operava tudo em a natureza. Tendo assen­
necessidades; era o meio mais seguro para tado que n’ella tüdo estava ligado, attribui-
preservar os homens dos eíTeitos da cólera ram a um só principio todos os phenome­
dos genios; porém era necessario adivi- nos; e pretenderam descortinar como este1
nhal-os para os satisfazer. Os Sacerdotes havia prodqzido tudo.
dirigiram as suas attonções sobre tudo D’aqui se arrojou o entendimento huma­
aqui 11o que podia annunciar as necessida­ no a querer indagar as leis, segundo as
des, os desejos, ou as inclinações dos ge­ quaes tinha sido o mundo produzido, e se
nios que governavam a natureza; exami­ abalançou a explicar a sua origem, a for­
naram com cuidado todas as circumstan­ mar systemas, em os quaes suppunha cada
d a s que os acompanhavam; viram que es­ um seu principio, c o fazia obrar segundo-
tes phenomenos se repetiam com regulari­ as suas idéias, c os phenomenos que tinha
dade, e que ordinariamente eram acompa­ debaixo dos olhos: tal é a origem dos sys­
nhados das mesmas circumstandas: julga-, temas dos caldeus, persas, indios e egypcios.
ram que tudo estava ligado na natureza, c Estes systemas, encerrados por muito
que os phenomenos se podiam prever: os tempo nos collegios dos Sacerdotes, passa­
Sacerdotes regularam sojjre esta previsão ram ás escolas dos gregos, aonde o espiri­
as festas e os sacrifícios. to systematico produziu infinidade de*opi­
Em breve conheceram a inutilidade dos niões differentes, que as conquistas d’Ale­
sacrifícios, julgaram que os phenomenos xandre levaram ao Oriente, á Persia, Egy-
tinham uma causa communi, e que esta pto e índia.
causa seguia leis invioláveis: todos os ge­ Estes princípios se communicaram aos
nios desappareceram aos olhos dos Sacer­ judeus o aos samaritanos antes do nasci­
dotes, e não viram mais nos phenomenos mento do Christianismo. Por toda a parte
do que uma longa cadeia de successos, que se viram homens que n’elles se obstinavam,,
se seguiam e se produziam successiva- unindo-os a alguns dogmas dos judeus, e=
mente. depois aos do Christianismo, e é d’esta união*
.0 entendimento humano não passou avan­ que provém quasi todas as heresias dos tres»
te entre os povos grosseiros, ou pastores, primeiros séculos.
DISCURSO PRELIMINAR 21

§1 espaços, d’ondc os caldeus colligiram ser a


luz a potência movente que tinha produzi­
/ do os astros. Não se podia duvidar que
, / Dos princípios religiosos dos philosophos esta potência fosse intclligentc, e as opera­
caldeus ções da alma pareceram ter com a subti­
leza c actividade da luz tanta analogia, que
homens, ^pie só tinham por guia a imagi­
Vimos que os Sacerdotes caldeus consi­ nação, não hesitaram cm olhar a intelli­
deravam a luz como o elemento, por meio gencia como um attributo da luz, e a alma
■do qual a alma universal tinha produzido universal, ou a intclligencia suprema como
o mundo; persuadiram-se que d’este ele­ uma luz.
mento havia a alma universal formado os Pelas suas observações tinham alcança­
.astros, que eram montões de luz separados do os caldeus que os astros estavam a dis­
entre si; cada um dos quaes tinha uma ac­ tancias dcsiguacs da terra, e^que a luz se
ção particular, que parecia dirigir-se uni­ enfraquecia á medida que se avisinhava a
camente para a terra. Como a luz era a ella: persuadiram-se que a luz emanava
unica força movente da natureza, c cada d’uma origem infinitamente afastada da
um d’estes astros linha sua acção particu­ terra, que enchia das suas emanações a im-
lar, era forçoso que os phenomenos fossem, mensidade do espaço, e em certas distan­
por assim dizer, um resultado das influen­ cias formava astros'd’especic differente. A
cias particulares dos astros que estavam alma produetora do mundo foi, pois, con­
sobre o horisonte; e os philosophos caldeus cebida pelos philosophos caldeus debaixo
entenderam encontrar na sua disposição a da imagem d’um principio eterno c inex-
causa dos phenomenos, e no conhecimento haurivel de luz: creram que ella ora no
dos seus movimentos os meios de presa- universo o que é o sol para o espaço, que
gial-os. cllc aquenta e alumia.
Estás vistas, c talvez os excessivos calo­ Pois que a luz sernpre se ia enfraque­
res e ventos pestiferos que se encontram cendo, era necessario que o principio da
n’aquellas regiões em certos mezes, e de luz fosse d’uma subtileza e d’uma pureza
que não podem preservar-se senão retiran­ infinitamente superior a tudo, o que se pô­
do-se ás montanhas, conduziram os caldeus de imaginar, e por consequência soberana­
. aos grandes montes, que bordam o paiz que mente intclligentc. Afastando-se as emana­
elles habitavam: elevados sobre estes obser­ ções da sua origem, recebiam menos acti­
vatórios, que a natureza parece haver for­ vidade, e degeneravam da sua primeira
mado de proposito, elles estudaram a dis­ perfeição pelo decrescimento successivo da
posição dos astros e seus movimentos; vi­ sua actividade: cilas tinham, pois, formado
ram que os mesmos phenomenos eram sem­ entes c intclligencias differentes, segundo
pre acompanhados da mesma disposição estavam distantes da origem da luz, e íi-
dos astros, e que ós astros tinham movi­ nãlmente haviam perdido gradualmente a
mentos regulares, e uma marcha constan­ sua leveza; tinham-se condensado, tinham
te: d’aqui julgaram os Sacerdotes caldeus pesado umas sobre as outras, haviam-se
que os phenomenos eram ligados, e que os tornado materiacs, c tinham formado o
sacrifícios não lhes interrompiam o curso; cáhos.
entenderam que os phenomenos tinham Havia, pois, entre o Ser Supremo e •a
uma causa commum, que obrava por leis terra uma cadeia de entes intermedios,
e motivos desconhecidos, que era impor­ cujas perfeições diminuíam na proporção
tante descobrir, e que elles indagaram. do que estavam afastados da morada do
Os mesmos astros obedeciam a estas leis; Sér Supremo. Este ente tinha communica-
sua formação, sua disposição, suas influen­ do aos primeiros emanações de grau mais
cias eram as consequências d’estas leis ge- eminente, a intclligencia, força', fecundida-
raes, pelas quaes a natureza era governa­ de: todas as outras emanações participa­
da. Isto determinou os caldeus a procurar vam menos d’estcs attributos a medida
no mesmo Céo o conhecimento da causa que cilas se afastavam da intelligencia su­
produetora do mundo, c a das leis que ella prema; assim todos os differentes espaços
tinha seguido na formação dos séres, e na luminosos, que se estendiam desde a lua
produeçaoi dos phenomenos, porque alli es­ até á habitação da intelligencia suprema,
tava a força que tudo produzia. eram cheios de diversas ordens de espíritos.
Os astros eram montões de luzes, os es­ O espaço que rodeava o principio, ou a
paços, que occupavám, estavam cheios, ne­ origem das emanações, estava cheio do in-
nhuma outra força parecia obrar n’cstes telligencias puras e bemaventuradas.
22 DISCURSO PRELIMINAR

Immcdiatamènte por baixo ilas puras in- tecimentos desgraçados, c imaginaram uma
telligencias começava o inundo corporeo, espeeie de gerarcliia nos genios maus, como
ou o cmpyrico: <?stc era um espaço im­ já haviam supposto nos bons.
menso alumiado pela luz pura, que sabia Mas porque razão a intclligencia supre­
immcdiatamènte do Ser Supremo: estava ma, que era essencialmente boa, não sub­
cheio d’um fogo infmitamcnte menos puro, mergiu debaixo do seu poder esta multi­
que a luz primitiva; mas muito mais subtil dão de genios maleficos?
que todos os corpos. Creram uns que se não compadecia com
Por baixo do empyrio estava o etlier, ou a dignidade da intclligencia suprema lu­
um grande espaço cheio de fogo mais gros­ ctar ella propria contra estes genios; ou­
seiro que o do empyrio. tros entenderam que estes genios maus
Depois do cther estavam as cstrcllas fi­ pela sua natureza não podiam ser destruí­
xas espalhadas em um grande espaço, aon­ dos, e que a intelligencia suprema, não os
de as partes mais densas do fogo etherco podendo aniquilar, nem corrigir, os havia
se tinham ajuntado, e formado as estrellas. desterrado para o centro da terra, no es­
A este Céo das cstrcllas fixas se seguia paço que está debaixo da lua, aonde ellcs
o mundo dos planetas; era o espaço que exerciam seu imperio c sua malignidade;
continha o sol, a lua c os planetas. que para sustentar o genero humano con­
É n’esto espaço que se achava a ultima tra tão numerosos c formidáveis inimigos,
ordem dos seres, isto é, a matéria bruta, mandava a intelligencia suprema espíritos
que nào só era destituída de toda a activi- bons, que defendiam continuamente os ho­
dade, mas que resistia ás impressões c mo­ mens dos demonios materiaes. Como os
vimentos da luz. bons e maus gênios tivessem funeções par­
As differentes partes do mundo se toca­ ticulares, e differentes graus de poder, da­
vam umas nas outras, c os espíritos das vam-lhes os nomes que exprimiam suas
•egiòes superiores podiam obrar sobre as funeções.
nferiores, penetrar e descer a ellas. Estando ao cargo d’estes espíritos bene­
Como a materia do cálios fosse informe ficos proteger os homens e soccorrel-os nas
e sem movimento, era necessário que os suas necessidades, deviam ellcs entender a
espíritos das regiões superiores tivessem linguagem dos homens; creu-se, pois, que
formado a terra, c que as almas humanas estes tinham genios protectores contra to­
fossem espirito^ descidos das mesmas re­ das as desgraças, e que cada genio tinha
giões. seu nome, o qual bastava pronunciar para
O lhe fazer conhecer a necessidade que ha­
systema dos ealdeus resuscitou, pois,
todos bs genios que a razão tinha dester­ via de seu soccorro: inventaram-se, pois,
rado, e se lhes* attribuiram todas as pro- todos os nomes que podiam evocar o^ ge­
ducções, todos os phenomenos, todos os nios beneficos, ou fazer-lhes conhecer a ne­
movimentos produzidos sobre a terra: a cessidade dos homens. Esgotaram-se todas
formação do corpo humano, a producção as combinações das letras para formar um
dos fruetos, todos os dons da natureza “fo­ commercio “entre os homens e os genios, c
ram attribuidos a espíritos beneficos. eis-aqui uma origem da Cabala, que attri-
N ’estc mesmo espaço, que ó o sublunar, buia a nomes extravagantes a virtude de
no meio da noite, se viam formar tempes­ fazer comparecer os genios, de pôr os ho­
tades, saliir os relâmpagos da obscuridade mens em commercio com ellcs, c de obrar,
das, nuvens, c estalar o raio, que assolava por este meio, prodígios.
a terra: julgaram que havia espíritos tene­ Serviam também estes nomes algumas
brosos, c que nos ares estavam espalhados vezes para lançar fóra os genios maleficos;
demonios materiaes. era uma espeeie de exorcismos: porque,
Muitas vezes do seio da mesma terra se como criam que estes genios estavam des­
viam sahir labaredas de fogo; a terra es­ terrados no centro da terra, e não faziam
tremecia: suppozeram-sc potências terres-, mal, senão porque haviam iIludido a vigi­
tres, ou demonios no centro da terra, c lância dos genios destinados a guardal-os,
não tendo a materia actividade, todos os e que se tinham escapado na atmosphcra,
movimentos foram atttribuidos a gênios. cria-se que estes genios maleficos fugiam
As tempestades, os vulcões, as borras­ logo que ouviam pronunciar o* nome dos
cas parecia não terem outro fim senão o Anjos encarregados de os ter prisioneiros
de perturbar a felicidade humana. Persua­ nas cavernas subterraneas, e do os punir,
di nim -se que os demonios, qúc produziam quando d’òllas sahiUm.
tudo isto, eram maléficos, e aborreciam os Como áíppunham no nome dos gênios,
homens; attribuiram-se-lhes todos os acon­ ou no symbolo que exprimia o seu minis-

i
DISCURSO PRELIMINAR 23

terio uma virtude, que os obrigava a quem do movimento. Creram os persas vêr esta
os invocava, se creu que este nome grava­ causa no fogo; nenhum outro elemento lhes
do, ou cscripto sobre uma pedra, lixaria pareceu ter na natureza uma influencia
d’alguma sorte o genio junto d’aquelle que mais geral: ellc fazia nascer os grãos, cres­
o trouxesse; e é verosimil que fosse esta acer as plantas, c amadurar os fruetos: acha­
origem dos talismans fabricados com pa­ va-se na madeira, nas pedras, que friccio-
lavras, ou de figuras symbolicas. nadas, se aqueciam; inflaininava-se; sentia-
Como os demonios tinham orgãos, e os se no interior da terra. Os magos julga­
genios tutelares podiam não vir com cele­ ram, pois, que o fogo era o principio, a
ridade ás solicitacues dos homens, creu-sc matéria de todos os corpos, e a força mo­
precavcr-so dos seus ataques, pondo nos vente, que agitava todos os elementos.
iogares, por onde elles podiam passar, agu­ O calor descia do Céo sobre a terra, e
lhas e espadas, que agitavam para causar elles sabiam que ellc diminuia afastando-se
dôr aos demonios, quando as encontras­ da sua origem: inferiram que a uma certa
sem, e como a subtilidade dos corpos dos distancia do sol devia haver partes de fogo,
demonios podia garanti 1-os dos golpes das que formassem elementos differentes, e fi­
espadas, entenderam que era necessário nal mente, a materia bruta, e insensivcl.
expellil-os com maus cheiros, ou accenden­ Havia, pois, n’estc systema um sèr sem
do fogos. actividade, insensível, que resistia ao mo­
Na supposição de serem os demonios vimento do fogo, e era essência Imente op-
corporeos e sensíveis, julgaram-os capazes posto ao principio, que animava a nature­
de se apaixonar pelas mulheres; d’aqui pa­ za, á alma universal.
rece que veio a crença dos demonios incu­ Entre a matéria bruta e a alma univer­
bos, c infinidade de prácticas supersticio­sal, que eram como extremidades da ca­
sas, que não podiam ser exercidas senão deia dos séres, havia uma infinidade d
por mulheres: assim, por exemplo, para partes de fogo graduadas de differente act
ter chuva faziam dançar dez virgens vesti­ vida de.
das de encarnado, que se agitavam, que Na região que occupava a materia s
estendiam seus dedos para o sol, c faziam encontravam entes pensantes; tal ora a a,
certos signacs. Para suspenderem a sarai­ ma humana: o seu pensamento parecia c
va, pelo contrario, faziam deitar de costas cffeito da sua actividade. Os magos suppo-
quatro mulheres, e n’esta postura pronun­ zeram, portanto; entre a alma universal, e
ciavam certas palavras, depois levantavam a materia bruta, infinidade de espíritos dif­
os pés para o Céo, e os moviam: a estes ferentes, cuja sagacidade e intelligcncia de-
princípios, segundo a vorosimilhança, se crescia sueccssivamcnte: a certa distancia
póde attribuir o grande respeito, que ti­ da alma universal apenas eram sensíveis;
n h a m ás mulheres, que faziain uma consi­ c por ultimo, forças motrizes, que dimi­
derável figura na magia dos caldcus.1 nuíam até se converterem cm matéria
bruta.
Os magos suppozcram, pois, no mundo
II uma alma universal, d’onde sabiam intclli-
gcncias puras, que sómente obedeciam á
razão; séres intelligentes, e sensiveis, quê
Dos principifis obedeciam ao sentimento, c á razão; séres
persas puramente sensiveis, que seguiam sómente
as suas necessidades, ou seus desejos; for­
ças motrizes, que nem eram intelligentes,
Depois que os Magos 3 descobriram nem sensiveis; o que só tendiam a produ­
que todos os phenomenos estavam ligados zir movimento; c finalmente séres sem for­
por uma cadeia invisivcl aos sentidos, dei­ ça, c sem movimento, que formavam a
xaram de os altribuir á multidão de ge­ materia.
nios, que haviam imaginado em todos os N’estcs diversos séres crêram descobrir
elementos, o os attribuiram á causa com- princípios bastantes para formar todos os
muni, á potência, que animava a natureza, corpos, produzir todos os phenomenos so­
e que continha em si mesma o principio bre a terra, na atmosphera, no Céo, e so­
bretudo a mistura dos bens, o dos males.
1 Vide THist. de la Phil. Orient. de Examinando-se a natureza dos males,
Stanley. 4 que affligem os homens, descobre-se. que
2 Magos chamavam-se entre os orien- elles tem a sua origem na materia: c d’ella
taes os astrologos e philosophos. que nascem nossas necessidades c nossas
24 DISCURSO PRELIMINAR

«lôres; d’onde julgaram os magos, que a seus pensamentos e acções eram encadea­
matéria, ou as trevas eram um principio dos pela mesma necessidade que produzia
mau, c esscncialmentc opposto ao princi­ as emoções; nenhuma recompensa espera­
pio benefico, que era a luz. va a virtude, nenhum castigo estava reser­
Como concebiam o Sêr Supremo debaixo vado para o crime: nem mesmo cm tal sys­
<la imagem d’um manancial, do qual sabia tema se considerava que houvesse virtude
incessante uma torrente de luz; c que a ou crime; e por consequência nem religião,
imaginação não podia seguir esta torrente nem* moral para o mago que seguia estes
na immensidadc do espaço, nem se repre­ princípios philosophicos. Quanto áquelles
sentar como fosse inexhaurivel este ma­ que suppunham gênios bons c maus, a sua
nancial, se elle manava, sem reparar suas religião não se distinguhi da do povo, e os
forças, e reanimar sua fccundidadc, assen­ princípios religiosos crestes magos não con­
taram que todas as partes tenebrosas vol­ duzia á piedade, nem á virtude, c não tor­
tavam cm continuo giro ao seio do Sêr Su­ navam os homens bons, nem religiosos,
premo, aonde retomavam a sua actividadc mas supersticiosos c maus. Por toda a par­
primitiva. te onde foi um dogma da religião a crença
Assim, a inércia das partes tenebrosas do bom e do mau principio, fez-se muito
diminuía incessantemente, c a continuação mal para agradar ao mau principio, e mui­
dos séculos havia de restituir-lhe a activi­ to pouco bem para satisfazer ao bom.
dadc primitiva, fazer desapparecer a ma­
teria, c encher o mundo d’um fogo puro, e
de intelligencias sublimes c ditosas: este c
0 systema, que Plutarcho expõe d’um mo­
do figurado, quando diz que os persas ■j
acreditavam que ha um tempo marcado : Dos princípios religiosos dos philosophos
em que ó necessario que Arimane pere­ eggpcios
ça. 1
Outros magos creram, que com eífeito os
bens c os males eram produzidos por ge­ Os Sacerdotes cgypcios destinados a bus­
nios, que se compraziam em fazer bem aos car os meios de fazer propícios os genios,
homens, ou que sentiam satisfação pela a quem os homens julgavam dever a sua
sua desgraça: altribuiran^tudo a intelligen­ felicidade, observaram a origem, ordem e
cias, boas," ou más por natureza. A des­ seguimento dos phenomenos; descobriram
igualdade de seus oífeitos fez que julgas­ que um poder desconhecido ao vulgo os
sem assim proporcionadas as suas forças, ligava, que uma força, subordinada a leis
d’onde procedeu imaginarem nos genios constantes, os conduzia sem embargo dos
um a cspecie de graduação similhante á que votos e dos sacrifícios, e que os geniosj
se via nos phenomenos-*da natureza. ainda havendo-os, nada produziam.
A imaginação pôz termo a esta longa ca­ Para conhecerem as leis que seguia a
deia de genios bons e maus, com dous mais causa producente dos phenomenos, os in­
poderosos do que os outros, mas entre si strumentos c mechanismo de que ella se
iguaes; sem o que não sc teria visto no servia, observaram o nascimento dos ani-
mundo senão o bem ou o mal. Portanto maes e das plantas; e como o Egypto de­
suppozeram os magos em a natureza dous via á agua a sua fecundidade, crêram ser
princípios oppostos, que o amor do bem e este elemento o agente por meio do qual a
do mal conduziam a fazer os homens feli­ alma universal produzia todos os corpos.
zes ou desgraçados, aos quacs julgaram Crêram reencontral-a nas producções que
poder interessar a fazer bem ou mal; ^on­ se tornavam successivamente, terra, fogo,
de veio o uso de sacrificarem homens esco­ ar, etc. Julgaram que a alma< universal,
lhidos entre os infelizes, aos quaes, por um unindo-se a uma materia capaz de todas as
ou mais annos, subministravam todos os fôrmas, produzia todos os corpçs, e admit-
prazeres que elles desejassem: e assim tiram por principio de todos os sêres um
criam satisfazer ao principio mau, sem des­ espirito universal,'e a matéria.
agradar ao bom. 0 movimento geral d’esta, a fecundidade
Reduzia-se, pois, a religião dos philoso­ inalterável da terra e dos animaes lhes fez
phos persas a crêr em um ente necessa­ crêr que o espirito universal c a materia
rio, eterno e infinito, do qual tinha sahido tendiam necessariamente a unir-se, e a pro­
tüclo por via de emanação: os homens, os duzir entes viventes e anim ados.1

1 P lutarc. de Isid. et Oriside. 1 Plutarc. de Isid. et Oriside.


DISCURSO PRELIMINAR 25

As irregularidades o desformidades que Apesar d’estas precauções e do culto da­


observaram nas differentes producções da do aos rios, experimentaram calores exces­
natureza, fizeram-lhes julgar que o*espiri­ sivos, calamidades c annos estcrcis; as suas
to universal e a materia se uniam por uma campinas foram taladas por animacs bra-
attracçào invencível, c que a alma univer­ vios; elles e seus rebanhos, atacados por
sal propendia sempre para a producção de tigres c leões, de que a índia é cheia. Le­
corpos regulares; porém que a materia era vantaram-se pendências sobro a divisão das
indócil ás suas impressões, c se recusava aguas e das terras, c a mesma abundanda
aos seus desígnios, ou que era por um ce­ aeccndeu paixões contrarias á tranquillida-
go impulso que cila se unia á alma uni­ dc das familias.
versal. Continha, pois, a matéria uma forca Os indios, pois, se persuadiram que de­
ou principio de opposição áquclla ordem e viam recear o capricho das estações, os
regularidade que o espirito universal que­ elementos, as feras, as paixões c a cobica
ria pôr nas suas producções; c os philoso­ dos homens; procuraram prever e prevenir
phos egypeios suppozeram na materia um os phenomenos perigosos, a esterilidade da
principio maléfico ou mau. Tudo, pois, na terra, a inconstância dos genios; acautelar-
sua opinião, era produzido pela mistura ou se a si, os seus rebanhos c searas dos ata­
concurso d’um bom ou mau principio, que ques dos animaes; e a por um freio á co­
não eram senão forças moventes ou phy­ biça c iniquidade dos homens. Estabelece­
sicas. ram caçadores, que guardavam os reba­
Não reconheciam os philosophos egypeios nhos c 'campinas, philosophos destinados
n’estes dous princípios liberdade, nem leis: para preverem os phenomenos, e dirigirem
o espirito universal não tinha podido dar as paixões dos homens, entretanto que uma
leis aos homens; nem podia, nem queria outra parte da nação cultivava a terra, tra­
recompcnsal-os, ou punil-os: os seus prin­ cta va dos rebanhos, e fornecia uma subsis­
cípios philosophicos eram, portanto, destru­ tência commoda aos caçadores e philoso­
ctivos de toda a religião. phos. 1
Esta doutrina conservaram os philoso­ Estes ultimos fizeram da natureza e do
phos c os Sacerdotes egypeios dentro dos homem o objecto das suas investigações, c
seus collcgios com summo segredo, o qual se distribuiram em differentes classes, eom-
exigiram dos seus discipulos. Herodoto, municando-se o que tinham investigado; e
instruído por elles, declara haver-se impos­ d’esta sorte o entendimento humano" fez en­
to a si mesmo a lei de não fallar das cou- tre elles os progressos mais rapidos no
sas divinas do Egypto. 1 Nada se deixava conhecimento da natureza, estudo da Mo­
escapar da doutrina occulta senão o >que ral e da Legislação. Os tempos, as revolu­
podia accommodár-sc com a religião na­ ções, que a índia ha experimentado, o uso
cional, que era util á sociedade e ao bem cm que estavam os philosophos de não
dos particulares; a irreligião não procura transmiltirem suas observações e idéias se­
consolação nas desgraças adherentes á na­ não de viva voz^ nos occultam a marcha
tureza humana, nem remedio contra as das indagações d’estcs philosophos; mas pe­
paixões perigosas. los monumentos que nos restam acerca do
estado antigo d’cstes povos, se deixa vêr
que os philosophos, ao cargo dos quacs es­
tava o exame da natureza, jamais desce­
ram até ao ponto de querer presagiar os
Í 'Dos princípios religiosos dos philosophos acontecimentos particulares; que se appli­
\ indios caram com demasiado ardor á arte de pre­
ver e annunciar os maus tempos; c que
eram riscados da classe dos philosophos os
Já vimos como a índia deve a sua fccun- que tres vezes successivas se enganavam
' didade ás alluviõcs dos rios que a banham; nos seus prognosticos. 2
•que os povos as attribuiram a porções do Estes philosophos descobriram, conse­
•espirito universal, que elles olhavam como quentemente, a união entr,e os phenome­
■a alma da natureza; que honraram estes nos, e julgaram que uma força immensa
genios; e que aprenderam a arte de condu­ ligava ou dividia os corpos; que estes eram
zir as aguas, e de prevenir a esterilidade compostos de differentes elementos, cm que
que se segue ás demasiado grandes, ou ás a força movente obrava de diverso rnódo;
, muito pequenas inundações.
1 S trab.L 15.
i He)'od. I. 2, c. 5. 2 A nien, in Indicis»
26 DISCURSO PRELIMINAR

que, dc todos os elementos, a agua tinha a feito, sahiam c iam procurar opportunida-
parte principal na producção dos corpos, de para o fazerem, tendo por lei inviolá­
ou que cila mesma era o principio univer­ vel não jantarem sem que houvessem pra-
sal do nosso mundo. 1 cticado alguma boa obra. 1
Não perceberam no Céo a inconstância, Estavam, pois, os bracmanes occupados
e a versatilidade que se observava na at- de continuo em fazer- felizes os outros ho­
mosphcra e sobre a terra: por isso julga­ mens, procurando com incrível ardor as
ram que. um sér essência linente differente propriedades salutares dos mineraes c das
formara o Céo. plantas, os meios d’aperfeiçoarem as artes
D’aqui suppozeram n’elle um ente, que ou a legislação, as occasiõcs dc darem al-
obrava sempre com prudência e regulari­ livio ao infeliz, e de defenderem o oppri-
dade; e sobre a terra uma força sem tino. mido, a sua beneficencia se estendia a tudo
Todavia, como havia ordeni e methodo o que era sensível, c teriam por crime ha­
em muitas producções c phenomenos do ver comido qualquer animal. Assim termi­
mundo terrestre, julgaram que a razão que navam a sua carreira, persuadidos de que
no Céo reinava dirigira a força que agita­ a beneficencia c regularidade no desempe­
va as partes do mundo terrestre, c que ci­ nho d’cstas obrigações os elevaria gradual-
la o governava por porções separadas de mente á classe dos gênios superiores, c os
si mesma; e como haviam notado que tudo conduziría finalmente ao seio da Divinda­
em a natureza tinha connexão, eréram que de. 2
um genio, mais poderoso do que todos os Os homens que não desempenhavam a
outros, formara o plano do mundo, c dera obrigação que contrahiram em nascendo,
a cada mna das partes da natureza genios entregando-se aos prazeres dos sentidos, e
para dirigirem a força movente, segundo uc obedeciam ás suas paixões não tinham
as leis que ellc prescrevera. ireito a estas recompensas: suas almas,
Divisaram os philosophos indios, obser­ desatadas das prisões do corpo pela morte,
vando o homem, que este conhecia c esti­ entravam em outros corpos, aonde eram
mava a ordem, mas que regularmente era punidas e desgraçadas.
levado, apesar dos gritos da sua razão, para Não havia, pois* cousa mais funesta para
a desordem. Concluiram que o homem ti­ o homem do que ser escravo das paixões;
nha. em si mesmo uma parcella de espiri­ nada mais feliz do que morrer depois de
to celeste, que ama e conhece a ordem; e ter obrado bem. Entretanto que o homem,
outra da força movente, que nem a conhe­ entregue ás paixões, errava dc corpo em
ce, nem lhe tem amor. Procuraram os meios corpo, feito o ludibrio dos elementos; o phi­
de subjugar esta força movente, domando losopho virtuoso, em morrendo, voava ao
os corpos em que ella residia; e assentan­ seio da Divindade.
do que a medicina devia fazer uma parte Bracmanes houve sobre os quaes fizeram
da moral, procuraram os meios de acal­ impressão tão profunda estas idéias, que-
mar a effervescenda do sangue, e dc debi­ não hesitaram cm dar-se a morte, logo que
litar a sensibilidade dos orgãos, d’onde nas­ se persuadiram ter feito o bem a que o ho­
cia. a força das paixões. mem é obrigado: outros, para se eximirem
Na conformidade d’estas idéias, julgaram das paixões, fugiram do commercio dos
os philosophos indios que a alma humana homens, c se retiraram sobre montanhas
era uma particula do Ente Supremo, unida inaccessiveis ou para as cavernas, e ahi vi­
ao corpo para n’elle manter a ordem, quan­ viam em silencio. Alguns se votavam a to­
to podésse, e para concorrer ao fim geral da a sorte dc austeridades, a prácticas dur
a que cllé se propozera na formação do ras e muitas vezes ridiculas, que olhavam
mundo; pelo que ensinaram, que o homem como sacrifícios feitos ao Ente Supremo, e*
era obrigado a procurar todo o bem possí­ compensações do bem que ellc exigia do-
vel, e não tinha direito aos benefícios que homem: taes foram aqucllcs bracmanes
o Ente Supremo derrama sobre a terra que Onesicrito achou cm attitudes, nas
senão tanto,, quanto ellc desempenhasse es­ quaes se conservavam desde manhã até á
ta obrigação. Os bracmanes estabeleceram noite. 3
sobre este principio a regra da sua condu­ Quando uma tal ideia se torna dominante
cta, estando sempre em acção: quando se
juntavam para comer, perguntavam aos
mais novos, que bem tinham clles feito de­ 1 Âpulée in Florid.
pois que amanhecera, e se nada tinham 2 Strab. loc. cit.
3 Strab. loc. cit. Prophnr. de abssin-
i Strab. in Indicis. J.4.
DISCURSO PRELIMINAR 27
cm uma sociedade, o espirito se retem, c a Taes eram os princípios religiosos da
razão não faz mais progressos. É assim que philosophia dos indios antes que ella nas­
o temor das paixões e o desejo insensato cesse. entre os gregos, e talvez entre outros
da perfeição tornaram, pelo menos, imiteis povos: c não obstante as revoluções que a
homens, cuja philosophia religiosa dos Ín­ índia tem solTrido, estas opiniões se hão
dios tinha convertido toda a actividadc em conservado nVlla, e fazem ainda hoje a re­
beneficio da humanidade. ligião d’uma grande parte da Asia.

CAPITULO IV

D o s p r in c íp io s r e lig io so s d os p h ilo so p h o s d esd e o nas­


c im e n to da p h ilo so p h ia e n tr e os g r e g o s a té ã co n ­
q u ista da A sia p o r A lexan d re.

0 tempo, que multiplicava os homens, mos. Viram-se entre elles homens, que sa­
aproximava inccssantemcnte as grandes crificavam ao desejo de se esclarecer, o
nações das pequenas familias, que a neces­ seu repouso c a sua fortuna; e que viaja­
sidade, o temor, a guerra, ou o acaso ha­ ram entre os povos celebres pela sua habi­
viam espalhado sobre a terra, e que viviam lidade, sua prudência, c sua sabedoria: taes
sem artes, nem scicncias, sem leis c sem foram Pherecides, Thales, Pythagoras, Xc-
costumes. nephonte, etc., que visitaram o Egvpto, a
Não virani os sacerdotes das grandes Persia e a índia; sendo-lhes patentes em
nações com indilTerença a humanidade de­ toda a parte os collegios. 2
gradada c cmbrutccida n’estes homens sel­ Eram ensinadas e cultivadas nos colle­
vagens: persuadiram-os com o attractivo gios dos sacerdotes as scicncias todas: mas
da sua eloquência a viverem em sociedade, o conhecimento da origem do mundo”, e do
ou antes fizeram brotar aquellas sementes poder que produzia todos os seres e phe-
de humanidade, de justiça, e de beneficên­ nomenos, fazia o principal objecto dos seus
cia que a natureza pôz'no coração de to­ estudos. Foi para esto grande objecto que
dos os homens, e que a cobiça, a" ignorân­ os philosophos mencionados dirigiram os
cia e as paixões haviam sullocado: deram- esforços do seu espirito: cada um adoptou
lhes leis, c lh’as fizeram respeitar com o o systema que lhe pareceu mais satisfazia,
temor dos Deuses: taes foram Promctteo, ou reuniu, combinou, mudou a seu arbitrio
Lino, Orpheu, Museu, Eumolpo, Melampo e as idéias dos seus mestres.
Ilamolxio . 1 Thales, adoptou o systema dos philoso­
Os sábios, que policiaram estes povos, phos egypcios: ensinou que a agua era o
lhes trouxeram os systemas dos philoso­ elemento de que sahiam todos os corpos, e
phos caldeus, persas, egypcios, etc., mas que um espirito infinito agitava as partes,
occultos debaixo do vóo da allegoria: ollos as coordenava, c lhes fazia tomar todas as
não tinham philosophos que estudassem a fôrmas cm que. ella se mctamorphoseava;
natureza. observou a mesma prudente reserva dos
As colonias sahidas das grandes nações, sacerdotes egypcios; adorou, como o povo,
que tinham collegios de sacerdotes e phi­ os Deuses e genios, aos quaes o seu syste­
losophos occopados em aperfeiçoar a mo­ ma não dava influencia alguma na natu­
ral e estudar a natureza, conservaram re­ reza,
lações com a sua mctropolc, e se commu­ Pherecides e Heraclito, suppozeram que
nicaram com os povos que cultivavam as o fogo era o principio e a causa de tudo.
scicncias, c com os que não as conheciam. Xenophanes, mais maravilhado da ideia
Por esta cominunicação entrou a curiosi­
dade c a razão a elevarem-se entre os ulti-2 Piat, de Republ. I. 1. Horat. carm.
ode 12. Schalerst. Arístoph. in ran. Alcur-
1 JEsch. in Prometh. Vinct. Laert, l. sius de Sac. Eleusin, c. 2. Suid in Eumolp.
i. Diod. Sic l. 3. Appollodoro. I. 1.
28 DISCURSO PRELIMINAR

do infinito, que todos os philosophos admit- foi aberto seu sanctuario a todos os ho­
tiam, do que dos phcnomcnos, não suppuz mens que quizeram cultivar a sua razão.
no niuudo outra cousa mais que o infinito, Os discipulos d’estcs philosophos nem to­
o qual, por isso mesmo que era infinito, dos se contentaram plcnamcnlc com os sys-
era immovcl; d’onde concluiu, que os phe- temas de seus mestres.
nomenos nada mai^ eram do que prcce- A escola de Xenophanes se occupou por
pções do espirito. muito tempo cm explicar os phcnomcnos,
Pythagoras, viajou como Thales, pclo suppondo cm a natureza um sêr infinito e
Egyplo, Persia, Caldea e Indias; fez um immovel, c acabou admittindo infinidade de
systema, que, abrangendo em parte os de pequenos corpos, dotados dTuna força mo­
seus mestres, se avisinhava todavia mais á triz cm continuo movimento.
opinião dos persas: admitte no mundo uma Como,- pelos princípios d’estes philoso­
inlelligencia suprema, uma força movente, phos, a natureza não tinha desígnio, o ho­
sem intclligencia, c uma materia, sem in- mem, fallando com propriedade, não tinha
telligencia, sem fôrma c sem movimento. obrigações, nem destino; porém tendia a
Todos os phcnomcnos, no sentir de Py­ nin fim, que era o de querer ser feliz, c
thagoras, encerram estes ires princípios; descobriram estes philosophos que ello o
mas tendo observado iTellos uma ligação não era casualmente, nem o podia ser, se­
de relações, um fim geral, attribuiu ao ên- não pela temperança c virtude; e pclo pra­
cadeainento dos phcnomcnos a formação de zer que procura uma boa consciência. }
todas as partes do mundo, e suas correla­ Anaximandro, cm logar de admittir por
ções á intclligencia suprema, que só pude principio do mundo a agua e um espirito
dirigir a força motriz, c estabeleceu liga­ infinito, como Thales, não concedeu senão
ções eptro todas as partes da natureza. Ne­ um ente infinito, o qual, por isso mesmo,
nhuma parte concedeu aos genios na for­ que o era, continha, produzia, e era tudo
mação do mundo. por sua essência, e necessariamente.
Pythagoras, tinha descoberto analogia c Anaximenes, creu que este ente infinito
proporções entre as partes do mundo; tinha era o ar. Diogenes de Apollonia, ensinou
reconhecido que a belleza, a harmonia ou que este ar erajntclligente'.
a bondade eram o fim a que a intclligencia Anaxagoras, julgou que os princípios de
suprema se propozera na formação do mun­ todos os corpos eram pequenos corpos si-
do, c que as relações postas entre as par­ milhantcs aos grandes, que estavam con­
tes do universo eram os meios queempre- fundidos no seio da terra, e que o espirito
gára para ultimar o seu desígnio. Estas re­ universal reunia; mas como no mundo ha­
lações se exprimiam por números: por via irregularidades, foi de parecer, que a
exemplo, as que ha entre as distancias e os intervenção da sua intclligencia não ora
movimentos dos planetas, porque um está sufficiente para explicar tudo: creu haver
afastado, v. g., do sol um certo numero de cousas que existiam por necessidade, ou­
vezes mais ou menos que outro. Concluiu tras por acaso; e cmfim pensou que tudo
d’aqui Pythagoras, que o conhecimento era cheio de trevas, c nada certo. Archc-
d’cstes números era o que havia dirigido lau, discipulo d’Anaxagoras, creu que o
a intclligencia suprema. frio e o calor, produziam todos os corpos,
A alma do homem, no sentir de Pytha­ c ajuntou o estudo da physica ao da mo­
goras, era uma porção d’esta inlelligencia ral. Socrates, discipulo de Àrchclau, namo­
suprema, cuja união com o corpo a tinha rou-se da opinião de Anaxagoras sobre a
d’ella separado; e que á mesma voltava formação do mundo; mas este philosopho
logo que se achava desligada de toda a af- não explicava, nem porque esta intclligcn-
feição ás cousas corporaes: a morte, que cia tinha dado á matéria a ordem, que
separava a alma do corpo, não lhe tirava n’ella se admirava, nem cpial era o destino
estas aíleiçõcs; sómente a philosophia tinha de cada sôr, e o motivo de todas as partes
o poder do curar a alma. E cis-aqui o ob­ .do munflo: rejeitou um systema, que não
jecto de toda a moral de Pythagoras. (Vide dava algum fim, alguma sabedoria á intcl­
no Examen du Fataüsme o systema da mo­ ligencia, que ellc fazia intervir na produc-
ral de Pythagoras, c na vida d’cste philo­ ção do mundo: a natureza não Ihe.ofTcre-
sopho, pôr Daciér). cia senão mysterios impenetráveis: c creu
Por. onde quer que estes philosophos es­ que o sabio a devia deixar nas trevas, em
palharam as luzes que haviam adquirido,
obtiveram consideração, estabeleceram es­ 1 A moral d'e$tes philosophos foi expos­
colas, e tiveram discipulos. Assim a philo­ ta muito em detalhe no Exame do Fatalis­
sophia sahiu dos collcgios dos Sacerdotes, c mo, t. i.
DISCURSO PRELIMINAR 29

que cila se tinlui sepultado: voltou-se todo brada pelos astros sobre a terra, se insi­
para a moral. Na seita jonica nào houve nuava nos orgãos, e produzia entes anima­
mais physicos. dos; a esta força movente se unia uma por­
Socrates procurou no proprio coração do ção da intelligcncia universal, c formava
homem os princípios, que conduziani á fe­ uma alma, a qual tinha, por assim dizer, o
licidade, e achou que o homem não podia meio entre a materia, e o espirito.
ser ditoso senão pela justiça, pela benefi­ Assim a alma humana tinha duas partes,
cência, e por uma consciência pura: for­ uma que não era mais que a força mo­
mou uma escola de moral, mas os seus dis­ vente, e outra que era puramente intelli-
cipulos se separaram dos seus princípios, gente: a primeira era o principio das pai­
c procuraram a felicidade umas vezes no xões, e estava espalhada por todo o corpo
deleite, outrás no seguimento dos prazeres para n’ellc entreter a harmonia: todos os
innocentes, e outras, finalmcnte, na mesma movimentos, que entretem a harmonia,
morte. causam prazer. Tudo o que destroe, causa
Os discipulos de Pythagoras não foram dòr, segundo Timeu.
mais escrupúlosamentc afferrados aos prin­ As paixões, pois, dependiam dos corpos,
cípios de seu mestre. e a virtude do estado, dos humores, e do
Occcllo, e Empedocles attribuiram a for­ sangue. Para domar as paixões, segundo a
mação do mundo a forças diíTercntcs, c op- opinião de Timeu, era preciso dar ao san­
postas, que obravam sem intelligcncia, c gue o grau de fluidez necessario para pro­
sem razão. duzir nos corpos uma harmonia geral, com
Ti meu, suppòz, com Pythagoras, uma a força motriz tornada flexível, e a intelli-
materia capaz de tomar todas as fôrmas: genciapara a dirigir. Era preciso, pois, es­
uma fôrma motriz, que agitava as partes, clarecer a parte racional da alma, depois
c uma intelligcncia, que dirigia a mesma de haver socegado a força movente; c era
força. isto a obra da philosophia.
Reconheceu, como seu mestre, que esta Não acreditava Timeu que as almas fos­
intelligcncia tinha produzido um mundo re­ sem punidas, ou recompensadas depois da
gular c harmonico: julgou que cila traba­ morte. Os genios, os infernos, as furias,
lhara sobre um piano que havia formado. segundo este philosopho, não eram mais
Sem este plano cila não teria sabido o que que uns erros uteis para aquellcs a quem
pretendia fazer, nem posto o mundo em or­ a razão por si só não podia conduzir á vir­
dem, e harmonia: cila não seria differente tude. Platão, depois dc haver sido discí­
da força motriz, necessaria e cega. pulo de Sócrates, correu as differentes es­
Este plano era a ideia, a imagem, ou o colas dos philosophos. Talvez não formou
modello, que havia representado á intelli- opinião fixa sobre os systemas, que n’cilas
gencia suprema o mundo, antes que cllc se ensinavam; mas a sua imaginação se
existisse, que a havia dirigido na sua ac­ recreou cm desenvolver a de Timeu! c em
ção sobre a força motriz, c que cila con­ dar maiores proporções âs suas consequên­
templava, formando os elementos, os cor­ cias.
pos e o mundo. Ellc investigou dc novo o que Socrates
Este modello era distincto da intclligén- tinha buscado em Anaxagoras, a razão por­
cia producente do mundo, como o archite­ que a intelligcncia, que era essencialmente
cto o ó de seus desenhos. Timeu de Lo- distincta da força motriz, se determinara a
crcnse dividiu, pois, ainda a causa produ­ dirigil-a; como, dirigindo-a, podia tirar da
cente do mundo em um espirito, que diri­ materia todos os corpos: qual era a natu­
gia a força movente, c uma imagem, que a reza do modello, onde o plano, que tinha
determinava na escolha das direcções, que guiado a intelligcncia na producção do
proporcionava á força movento, c das fôr­ mundo: como ella o conservava cm ordem:
mas que dava á materia. d onde vinham as almas humanas: c qual
Assim foi que a alina universal, a quem era a sua sorte, e o seu destino.
os caldcus, os persas e os cgypcios attri­ Segundo Platão, o mundo ó um só, tudo
buiram a producção do mundo, se achou iVcllo 6 ligado, e não subsiste, senão pela
dividida em tres”princípios differentes, e harmonia das suas differentes partes. D’aqui
separados: uma força motriz, uma intclli- eoncluc Platão que a intelligcncia do mun­
gencia, c um a imagem, ou a ideia, que di­ do é uma só. (In Timeo).
rigia a intelligcncia, c que era, por conse­ Esta intelligcncia ó immatcrial, simples,
quência, como a sua razão. indivisível; os sentidos não podem alcancal-a,
No sentir do Timeu, a força motriz não e sómente nos eleva a razão ao conheci­
era senão o fogo: uma porção d’estc, vi­ mento da sua natureza e dos seus attributos.
30 DISCURSO PRELIMINAR

Como esta intelligencia c immaterial, olla todas as porções do mundo, conforme a ne­
ó cssencialmente distincta da forca motriz, cessidade que tinha para a explicação me­
não tem relação alguma necessaria com es­ chanica dos phenomenos: estava iio sol o
tes dous princípios, e é livremente que se seu centro, e depois collocada em todos os .
determinou a dar á matéria as diversas astros, c sóbre a terra, para ahi produzir
fôrmas, sob as quaes a vemos. as plantas, os animacs, etc. Estas porções
A força motriz obra sem alvo, a matéria da alma do mundo eram gênios, demortios
cede'áo"seu impulso sem razão, e seria todo e Deuses.
o mundo um eáhos, se cin a natureza nào Logo que os gênios haviam formado o
houvesse senão materia c movimento. Pelo corpo humano, uma porção da alma do
contrario, vê-se no mundo uma ordem c sv- mundo se insinuava nos seus orgãos, e for­
metria admiráveis; ellc encerra em si crea­ mava uma alma humana.
turas, que gosam d’este espectáculo, c (iuc Encerrada esta nos orgãos, recebia as
elle faz felizes. Foram logo o amor da or­ impressões dos corpos, c se fazia sensível,
dem, e a bondade, quem determinaram a era capaz de conhecer a verdade, o de sen­
intelligencia suprema a produzir o mundo: tir as paixões: estas não tinham por prin­
logo é boa, c sabia esta intelligencia: cila cipio e por objecto senão as impressões
produziu no mundo todo o bem, de que era dos corpos estranhos sobre os orgãos: alte­
capaz; c todo o mal, que n’elle vêmos, vem ravam na alma a parte puramente intclle-
da indocilidadc da matéria ás vontades da ctual, ou suspendiam seu exercício; cilas
intelligencia produetora do mundo. (In Ti­ depravavam a alma: a razão devia comba-
meo). tcl-as; c as victorias, que conseguia, a avi-
Para. produzir no mundo a ordem, que sinhavam aos puros espíritos, aos quaes se
admiramos, era forçoso que a intelligencia unia, quando não tinham mais ligação com
o conhecesse, c que contemplasse o model- os corpos: ã morte era o triumpho"* d’estas
lo, que lhe representava o mundo. (Ibid). almas, que soltas da materia, se reuniam
Este modcllo é a razão, ou o verbo da á sua origem, ou passavam a outras re­
intelligencia: Platão falia d’estc modello, giões, aonde não experimentavam mais a
umas vezes como um attributo da intelli­ tvrannia dos sentidos, c gosavam d’uma
gencia, outras parece olhai-o como uma perfeita felicidade. (Vide o Examen du Fa­
substancia distincta da intelligencia, que o tal. sobre Platão).
contempla, e outras vezes crér-se-ia que Era a contemplação da verdade, c da
elle considera o verbo como uma emana­ formosura do mundo iiitelligivei, a sobera­
ção da intelligencia, e que subsiste fóra na felicidade d’estas almas, e facilmente se
d’ella. (In Phileb. de RepubL, l. 7, et álibi). concebe todas as consequências, que uma
Como a intelligencia suprema c immatc- imaginação viva, e fecunda pôde tirar (Tes­
rial, indivisível e immovelj cila conheceu, tes princípios para a religião, e para a
que por si mesma) não podia dirigir a for­ moral.
ca motriz, por isso que esta era material, c Xenocrates não fez mudança alguma na
aivisjyel, c que para a dirigir era precisa doutrina de Platão: Zonam, em logar de
uma alma, que tivesse alguma relação com todos os entes, que Platão faz concorrer
os entes materiaes, c com a intelligencia, e para a producção do mundo, admitte uni­
que participasse das suas propriedades: esta camente dous princípios, um activo, outro
intelligencia produzia pois uma alma, que passivo, sem matéria, sem fôrma, som força
era intelligentc, c que tinha obrado com e sem movimento, e uma alma immensa,
desígnio sobre a força motriz. que a transportava e lhe dava mil figuras.
A intelligencia suprema tinha produzido Era esta alma um fogo, no sentir de Zo­
esta alma, segundo Platão, só pelo pensa­ nam, c este fogo obrava com intelligencia:
mento verosimilmente, porque este philo­ o mundo era sua obra, c tinha um fim: to­
sopho concebia que uní espirito que pen­ das as suas partes tendiam ao fim geral, e
sa, produz uma imagem distincta d elle todas por consequência tinham suas func-
mesmo, o parece que Platão attribuia a ções, e seus deveres; e a felicidade dos
esta imagem uma existência constante,' c particulares dependia da realisaeão d’esscs
fazia (p u a umà substancia: é uma conse­ deveres. 1
quência do seu sentir sobre o verbo, ou so­ Aristoteles afastou-se muito mais do sys­
bre a razão, (pie dirige a intelligencia su­ tema de Platão; elle reconheceu, como seu
prema nas suas producçõcs. mestre, a necessidade d’um primeiro mo­
Como esta alma era o agente, por meio tor intelligentc, sabio, immaterial e sobe-
do qual a intelligencia suprema produzira ranameuto feliz, que tinha dado o movi­
o mundo, Platão distribuiu esta alma cm mento á matéria, £ produzido intelligencias
DISCURSO PRELIMINAR 31

•capazes de conhecer a verdade; algumas e não foram mais religiosos; tal foi Estra-
estão espalhadas pelo Céo, aonde cntrctem tain, que nào admitte no mundo senào uma
a harmonia, que n’elle se admira. Refuta matéria esscncialmentc cm movimento.
perfcitamente bem os philosophos, que pre­ Os diversos systemas, que acabamos de
tendiam achar na materia só a razao suffi­ indicar, nào satisfaziam a razão, nem ainda
ciente da producção do mundo; porém aos philosophos, que os ensinavam. O en­
quando quer estabelecer um systema, sup- tendimento humano creava inccssantemcn-
põe uma matéria eterna, fôrmas eternas, tc novos systemas ou fazia reviver os an­
encerradas no seio da materia, c um mo­ tigos: houve philosophos que julgaram que
vimento eterno e necessário, que despren­ o sabio devia rejeitar todos estes systemas
de estas formas; une-as a differentes por­ ou pelo menos duvidar d’cllos; uns* porque
ções de materia, c produz todos os corpos: o homem era incapaz de distinguir o ver­
a alma humana é uma substancia eterna c dadeiro do falso; outros porque elle não
necessaria, como o movimento c a mate­ chegou ainda áquellc grau de luz que deve
ria. Taes sfio os princípios religiosos da produzir a convicção. 1
philosophia d’Aristoteles. (L. de anima de
Ceio). 1 Todos às princípios d’estes philosophos
Muitos discipulos da escola peripathetica se acham miudamente referidos no Exam. -
•se separaram dos princípios d’Aristotcles, du Fatalism., ao qual nos reportamos.

CAPITULO V

D o s p r in c íp io s r e lig io so s dos p h ilo so p h o s d esd e


a co n q u ista d’A lex a n d re
a té ã ex tiu cçã o d o seu im p ério
\

I Acabamos de vèr os progressos, que o annos d’idade, e foi declarado rei pelos ma
\ espirito humano fizera na Grécia com o fa- cedonios, que julgaram não permittir as
tj.yor da liberdade, e no meio das guerras necessidades do estado que no reino suc-
domesticas, c estrangeiras, que a agitaram; cedcsse Amintas.
ao passo que o luxo, o fausto, o despotismo, Em breve Philippe tornou florescente o
as paixões e a guerra levantavam e aniqui­ reino de Macedonia; finalmentc elle se fez
lavam os impérios no Oriente, assolavam declarar generalissimo de toda1a Grécia, e
as provincias, e corrompiam os costumes, formou o projecto de voltar contra a Pér­
aviltavam as almas, c manictavam a razão. sia as forças que os gregos tinham por tanto
Todo o resto da terra se achava selva­ tempo empregado contra si mesmos; porém
gem; ou sem leis, sem artes, c sem seien- foi assassinado, quando se preparava para
•cias. o executar.
Os homens grandes da Grécia ajuntavam Tinha Philippe um filho, e este filho era
á sciencia da guerra c do governo o estudo Alexandre. Apenas nascido, Philippe sc oc-
•das letras e da philosophia. Epaufiaornlag, cupou da sua educação: elle informou Aris­
o maior homem da Grécia no sentir de Ci­ tóteles: «Sabereis—aiz elle a este philoso-í
cero *, tinha por amigos os homens mais pho—que me nasceu um filho, de que dou'
virtuosos; e era em casa d’elle, que Eysi; graças aos Deuses, não tanto por m’o ha­
•das, celebre philosopho, dava as suas lições. verem dado, como pelo fazerem nascer vosso
• N’ella foi educado PÍUlififie; c ahi estava contemporaneo: espero que o fareis digno
ainda quando Perdicas, seu irmão, rei da de m e succeder, c de governar a Macedo­
Mãcedonia, morreu n’uma batalha. nia.» *
Perdicas deixava um Jilho infantil, o seu O successo excedeu as esperanças de Phi­
povo derrotado, e o estado em desordem: lippe. Alexandre, educado por Aristoteles,
tomou Philippe o governo aos vinte c dous c na idade de vinte annos, se apossou tão

1 Ciçero Tusc.j l i . 2 A u l Cel l 9. c. i.


32 DISCURSO PRELIMINAR

admiravelmente do plano de seu pac, que reducto: parentes todos os bons, c somente*
Í apesar d’uma multidão d’iniinigos, se fez
declarar general de todos os estados da Gré­
estranhos os maus. Quiz que os gregos e
os barbaros se não distinguissem pelo man­
cia, c conquistou o imperio dos persas com to, pela jactancia, pelo alfange, ou pelo cha-
g tal rapidez, que causará assombro cm to­ péo; mas olhados e difTcrençados, o grego,
dos os séculos. como a virtude, c o barbaro* o vicio; repu­
Tinha, pois, o tempo, reunido em Ale­ tando toí^os os virtuosos, gregos, c todos os
xandre o absoluto poder, c as luzes, que os viciosos, barbaros: tornando os trajes
quasi sempre andaram separados, além das cominuns, coinmuns as mesas, os casamen­
qualidades e talentos d’um heroc dotado da tos, a fôrma de viver, estando todos unidos
grandeza d’alma, e da bencíiccncia, que tào pela mistura do sangue, e a communhão
difiicultosamentc se conciliam: portanto ha­ dos filhos.. . De que prazer sc dominou á
viam de produzir sobre a terra as conquis­ vista d\aquellas bellas e sanctas bodas em
tas d'Alexandre uma revolução differente que reuniu n’uma mesma tenda cem espo­
de todas as que se tinham visto até então: sas persas casadas com outros tantos espo­
este principe formou, com cífeito, um pro­ sos maccdonios c gregos, achando-se elle-
jecto, como nenhum outro conquistador ha­ proprio coroado de fiòrcs, c entoando o pri­
via formado. meiro canto nupcial de Hymneu, como um
Á testa de todas as forças da Grécia c da cântico de geral amizade!» 1
Persia, não sc imaginou Alexandre sómente Não’sc viu que Alexandre fizesse servir
destinado para conquistar provincias, ou a seus triumphos os povos c reis que elle
subjugar povos^mas para reunir todos os vencera, ou que conquistasse para asse-
homens debaixo d’uma mesma lei, que nhorcar-se de suas riquezas, e fazer nações
alumiasse e conduzisse todos os espíritos, tributarias.
bem como o sol alumia por si só todos os Logo que depois d’uma porfiada resistên­
olhos; que fizesse desapparcccr d’cntrc cl- cia as cidades das índias lhe enviavam em­
les todas as diíTerenças que os tornam ini­ baixadores para se submetterem a elle, c
migos; que os ensinasse a viver e pensar alcançarem a paz, elle não exigia por con­
diíTcrentcmente, sem sc aborrecerem, e sem dição *mais do que dar-lhes Ampis por rei,
perturbarem o mundo, para forçar os ou­ que cilas tinham posto á frente da sua em­
tros a mudarem d’opinião. baixada. 2
Socrates, Platão, Zena.pi c outros, tiveram
iguSTpèhsamento; 'inás nem todos os ho­ 1 Plutar. cia fortuna d'Alexandre, trat.
mens eram assaz racionaveis para conhe­ primeiro, trad. cVAmiot. Arien. I. 7, c. 6 .
cer as suas vantagens, nem os philosophos Diod. Sic., I. 17.
sufficientementè poderosos para sujeitarem 2 Plutarc. Yida d’Alexandre.
aos seus sentimentos aquelles, que a razão Ibidem. Havia nas índias um Rei, cha­
não persuadisse. mado Taxise, senhor d u m paiz, segundo di­
Julgou Alexandre que era necessario zem, cie não menos extensão que todo o Egy-
unir a authoridadc á luz da razão para es­ pto, abundante o mais que é possível cm pas­
tabelecer entre os honiens o governo feliz tos e fruetos, e homem tão atilado, que cle-
e judicioso, que a virtude tinha feito ima­ pois de haver saudado Alexandre, lhe disse
ginar aos philosophos. Esperou poder es- assim: «Que necessidade temos nós, Alexan­
tabelecel-o entre os povos submettidos ao dre, de combater, ou fazer guerra um ao
seu império, suj eitando pelo seu poder aquel­ outro, se tu nao vens para nos tira r a agua,
les que a razão não persuadisse, os quaes, nem o resto do que precisamos para o nosso
depois de illustrados, conservariam por dis­ sustento, por cujas cousas unicamente os
crição e por gosto o que a principio só tc- homens sensatos elevem combater-se? Porque,
riam recebido por violência: «Consideran­ quanto aos outros bens c riquezas, se eu ti­
do-se—diz Plutarco—como um enviado do ver mais que tu, estou prompto c disposto
Céd, reformador, governador, e reconcilia- para repartir comtigo, e se menos, não te­
dor do universo, aquelles que elle não pôde rei dúvida em agradecer-te, quando queiras
reunir pelos conselhos da razão, constran­ comigo repartir.» Alexandre, comprazen-
geu-os pela força das armas, concentrando do-sè de o ouvir discorrer tão avisadamenter
o todo em um só ponto, fazendo-os beber, o abraçou, e lhe disse: «Acaso te persuadi­
diga-se assim, na mesma taça da amizade, rás tu que esta entrevista se h a de acabar
e confundindo as vidas, os costumes, os ca­ sem combate, não obstante as tuas boas pa­
samentos, os usos. Impôz a todos os homens lavras e amaveis carícias? Não, não, tu nada
j o dever de reconhecer a terra habitavel, como ganhaste com ellas, porque quero combater
i seu paiz, e seu campo como alcaçar e o e vencej'-te em urbanidade e cortezia, a fim
DISCURSO PRELIMINAR 3*

Encontra cm Taxisc um principe sábio sos de Homero, c os filhos dos persas, dos
e benefico, senhor cVum paiz rico, c (Vum susianianos, e ccdrosianos cantavam as tra­
povo feliz, longe de o combater, faz d’ellc gédias de Sophocles, c d’Euripedes.
seu amigo, seu alliado, louva a sua prudên­ Por morte d’cste conquistador, seu im - \
cia, admira a sua virtude, somente com cllc perio foi dividido c despedaçado pelas cruéis j
contende cm generosidade, recebe seus pre­ guerras que se fizeram entro si os seus suc- {
sentes, e IIVos faz maiores, aos quaes ac- cessorcs: .unicamente Ptoloineu governava
cresccnta mil talentos (Vouro em moeda. o Egypto com intelligcnçia, e a felicidade
D uma multidão de pequenos estados des­ Üe que gosava o seu império chamou a elle
unidos fórma provincias, que tornou felizes. todos os estrangeiros a quem as guerras,
Em todas as suas conquistas c viagens, ou o mau governo dos outros successores
foi Alexandre acompanhado por sábios, phi- (VAlexandrç obrigaram a deixar as suas pa­
losophos, c homens de letras. Todos os phi­ trias.
losophos c sábios de, qualquer paiz, seita, Alexandria, que este monarcha escolhera
ou religião que fossem, atlrahiram a sua para sua curte, sc tornou o asylo da vir­
attenção, excitaram a sua curiosidade, e tude, do merecimento, e dos talentos per­
obtiveram a sua estima: a sua corte reuniu seguidos, ou mal apreciados. Ptolomeu con­
os philosophos gregos, persas, o indios, e cedeu prorogativas aos sábios, e aos philo- \
os seus favores concedidos a todos, os dis- sophos de qualquer nação, paiz, ou seita \
pozeram insensivelmente a estimarom-sc c que fossem: erigiu.uma/academia, cm que 'i
communicarem mutuamente suas idéias. 1 elles sem distineçãb. investigavam a ver- \
A terra mudou do face em poder (Veste dade, e formou em favor dos sábios aquella •
conquistador philosopho: cessaram os po­ bibliotheca tão famosa que seus successo- :
vos de serem inimigos: cllc ensinou os ar- res augm entaram ,eosscrraccnos,nom eio
raehosianos a lavrarem a terra, aos hirca- doj&tiino.século dçstruiTtTYTr '.........
nos a contrahirçm casamentos dignos, aos Tinha, pois, o tempo junto em Alexan­
logdinianos a sustentarem seus paes decre­ dria todos os systemas, opiniões, e d esco-,
pitos, e não os matarem, aos persas a te­ brimentos do entendimento humano acerca
rem respeito a suas mães, não se casando da origem do mundo, das causas dos phc-
com ellas. nomenòs da natureza, e do destino dos ho­
Oh! maravilhosa philosophia! continua mens.
Plutarco, por meio da qual os indios ado­ N’esta especic de mistura de systemas e
ram os Deuses da Grécia, os schythas se­ opiniões de todos os philosophos, se uniram
pultam os mortos e não os comem mais! todas -as idéias que tinham analogia, e se
Depois que Alexandre civilisou a Asia, fun­ formaram novos systemas, como succede .
dou entre os barbaros mais de setenta ci­ nas misturas chimicas, onde todos os prin- :
dades, ás quaes deu leis, e o seu commer­ cipios, quê tem aííinidade, se aproximam,
cio adoçou as nações ferozes, entre as quaes se unem, c formam compostos novos.
ellas foram estabelecidas. Os systemas philosophicos de Pythagoras,
A protecção e a estima que ellc prodiga- Timeu e Platão, tinham principios communs
lisava ás scicncias e aos sábios, desenvol­ com os dos caldeus, persas, e egypçios: sup- :■
veram n’uma infinidade d’cspiritos o desejo punham todos um Ente Supremoj o. o con- ‘í
de se esclarecerem. Depois que Alexandre ccbiam, umas vezes como luz, ou como fogo,
domou e civilisou a Asia, diz Plutarco, o d’ondc sabiam os entes; outras como uma
passatempo d’aquellcs povos era lér os ver­ alma diíTundida por toda a natureza, e for­
mando todos os corpos pela sua actividade.
de que tu me não excedas em generosidade Todos olhavam a Intclligcncia Suprema co­
c bondade.» Assim, recebendo a elle muitos mo uma força (pie obrava essencialmente,
e bellos presentes, lhe correspondeu ainda e suppunham que a acção d’esta força ha­
com outros mais generosos; c finalmente, be­ via pfoduzido, por seus dccrecimentos suc­
bendo em uma ceia, o saudou com m il talen­ cessivos, a materia a que genios sahidos
tos d'ouro em moeda. Este presente desagra­ (Veste ente haviam dado a fórma, e da qual
dou assaz.a seus familiares, mas em troco tinham tirado todos os corpos.
lhe grangeou muitos corações dos principes Pelo contrario, Platão fazia obrar esta in.-
e senhores barbaros do paii. (Pintarc. art. telligencia com sabedoria c desígnio; o seu
Alexandre.) conhecimento c noder, abraçavam toda a
1 Elle fez enforcar alguns philosophos natureza: este philosopho mostrava no mun­
indios, que amotinavam os povos, e dos quaes do a ordem, a harmonia, sabedoria, e um
não podéra conseguir que deixasseiii de cla­ fim; e suppunha a natureza cheia de genios.
m ar contra elle. (Plutarc. ibidem.) Os philosophos persas, caldeus, c egy-
34 DISCURSO PRELIMINAR

pcios, deveram, pois, adoptar, c adoptaram egypcios é estes estrangeiros, despojados


. com cíTcito alguns princípios de Timeu, dc de suas riquezas por Physcon, e muitas ve­
; Locre, c de Platão sobre a origem do mun- zes compellidos a abandonar a sua for­
: do, sem comtudo abandonarem a crcnea tuna para conservarem a vida, se espalha­
dos genios. ram pelo Oriente, não levando comsigo ou­
Os philosophos do Oriente acreditavam tros recursos mais do que os seus talentos
mie a alma humana era umaproducção do c as suas luzes, 1
Ente Supremo, uma porção da alma do Alexandre, subjugando 0 Oriente, resti-
inundo, e destinada a encontrar a sua feli­ tuiu aos espíritos a liberdade, quc*a super­
cidade na contemplação do Ente Supremo, stição, 0 despotismo, e barbaria, parecia ha­
logo que ella tivesse rompido as cadeias, que verem cxtincto: honrou e recompensou,
a prendem á terra. :como bcmfeitorcs da humanidade, todos os
Esta ideia dc Platão sobre a origem e des­ yquo trabalhavam cm esclarcccl-a; c se a
tino da alma não se oppunhaaos princípios ànorte 0 não deixou desterrar a ignorância,
dos philosophos caldeus, egypcios c persas, •elle ao menos ensinou a estimar as scien­
ennobrecia 0 homem, e 0 consolava nas cias, e a procurar os sábios.
suas desgraças: estes philosophos adopta­ Assim os philosophos, que a tyrannia de
ram ainda as idéias de Platão sobre a ori­ Physcon forçara a sahir d’Alexandria e do
gem e destino da alma humana. Egypto, formaram em differentes regiões
__Os systemas d e Pythagoras, Timeu, c Pla- do Oriente escolas, que se tornaram como
tãp, que quasi não tinnain já sectários ná centros de luz, que illuminaram tudo 0 que
Grécia, res usei tarajn, pois, com brilho, em as cercava. Esforçaram-se em tornar seus
Alexandria; porém unidos á crença dos sentimentos intelligivcis, e os libertaram
philosophos persas, caldeus, egypcios, acer­ d’esta obscuridade mvsteriosa, dc que Py-
ca dos genios, a qual foi ado*ptnda pelos thagoras os tinha, cercado: desenvolveram
Idatonjcos, como os philosophos orientacs em uma infinidade d”espiritos 0 principio
tinham adoptado os princípios de Platão c de curiosidade que 0 homem tem dentro
dc Pythagoras. de si mesmo, acerca da sua origem e des­
D’esta maneira os philosophos caldeus, tino. Viu-se então um numero infinito de •
persas, e egypcios, reunidos cm Alexandria, homens de todos os estados, que adoptaram
não conceberam mais oEnte Supremo como os systemas dos philosophos platônicos de
um a simples força, mas como uma Intclli- Alexandria, e cujo espirito se elevou, por
gencia Omnipotente, que produzira 0 mun­ assim dizer, até 0 seio da Divindade, a fim
do com sabedoria e desígnio; que conhecia de descobrir alli ós motivos, os desígnios,
todas as suas partes, que conservava a or­ 0 leis d’este Ente Supremo 11a formação do
dem, que se interessava pelo homem, e que mundo; 0 fim particular dos entes que elle
podia estar em commercio com cllc, com- encerra, a lei geral de todos, e principal­
inunicando-se iminediatamente, ou por meio mente 0 destino e deveres do homem.
dos genios destinados a executarem os seus Na conformidade dos princípios de Pla­
decretos e vontades. tão, elles julgaram que 0 Sér Supremo se
O homem era uma intclligencia, que de- tinha proposto por fim na producção, a or­
cahiu pela sua propria depravação, ou foi dem e a harmonia; conforme os princípios
subordinado por potências inimigas, mas de' Pythagoras, creram que a' ordem, har­
que podia recuperar a sua liberdade e per­ monia e bclleza do Universo, dependiam
feição primitiva. do nexo de suas differentes partes; que 0
Álcxandria, tornada debaixo do dominio conhecimento d’este nexo, era quem tinha
dos ptolomcus 0 asylo das sciencias e das dirigido 0 Ente Supremo, ou as potências, *
letras, encerrava uni grande numero de ci­ a quem elle confiara 0 cuidado, de produ­
dadãos, que as cultivavam. zir, ou dc governai’ 0 mundo. Como estes
Physcon, sétimo successor de Ptolomcu nexos não podessem representar-se ao es­
. Lago, conservou os estabelecimentos de seus pirito senão por meio de números, con-
predecessores em favor das sciencias c dos cluiu-se, que estes tinham dirigido as po­
sábios, que sé perpetuaram no Egypto, no tências produetóras do mundo: que por
meio das guerras que 0 assolaram, e ainda consequência eçtes números continham unia
depois de ser provincia romana. força ou propriedade, capaz para deter­
Más 0 seu governo tyrannico, e sangui­ minarem, as potências produetoras do mun­
nario desterrou d’Alexàndria, c do Egypto do. Creu, pois, 0 homem, ter descoberto 9
uiiia quantidade pasmosa de familiàs na- meio dMmpcrar sobre as potências do hiun-
cionaés é estrangeiras, que alli se. tinham
estabelecido desde Ptóloincu Lago. Estes » Diod. Sic. I 12. Júst. i 38, c. 8.
DISCURSO PRELIMINAR 3o

<lo, e procurou nas differentes combina-] maior interesse, de (jue é capaz o coração
ções dos numeros um segredo para fazer! humano, e os seus princípios tinham accén-
mover a seu arbitrio os genios, os espiri- ] dido o fanatismo: ifaqui se vè facilmente,
tos, e os domonios. como estes homens inventaram uma infini­
Gomo cllos criam a alma degradada e hu­ dade de prácticas cbimericas, ou se separa­
milhada pela sua união ao corpo humano, ram da sociedade, para se occuparem na
buscaram com ardor os meios de se liber­ contemplarão, c formaram uma seita de phi­
tarem da tyrannia dos corpos, do sujeita- 1losophos puramente religiosos. Tudo con­
rem as paixões, o os sentidos pela austeri- j corria para se multiplicarem estes ultimos;
dado de seus costumes, e prácticas singu­ files tinham todos cnthusiasmo e fanatismo,
lares, pelo uso das plantas, ou dos minc-j eram muito proprios para inflammarem os
raes proprios para acalmarem o sangue, í espíritos, e communicar seus sentimentos;
e o impulso da força movente, (pie era a ] estes sentimentos agradavam á imaginação,
origem das paixões. Por este meio julga- i que se compraz a representar esta guerra
ram purificar a alma, e garantil-a nào só-1 continua entre genios c demonios. Todo
mente da necessidade de se. unir a. um o u -! este systema era hem mais adequado ao es­
tro corpo, depois da sua morte, mas ainda j pirito Tio povo. Finalmente, os povos do Egy-
poder-se elevar, mesmo ifcsla vida, até á pto c Oriente, eram desgraçados, e por con­
contemplação do Ente Supremo, que. era a sequência dispostos para receberem uma
partilha dos espíritos puros, e desprendí-j doutrina, que lhes ensinava a despresar os
dos de toda a affcição terrena. prazeres eas riquezas que os elevavam acima
Segundo o parecer (Vestes philosophos. 1do poder civil, e lhes mostravam um princi­
não oram os sentidos e paixões, os unicos' pio de felicidade, que nenhum poder lhes
obstáculos para a união da alma com o Ente j podia roubar.
Supremo: genios maligno.-, ambiciosos, ou Assim se fez popular a philosophia de
inimigos dos homens, os prendiam á terra, Platão, misturada com as idéias da philoso­
e aos seus corpos: era necessario enganar í phia ealdea no Oriente, e Egvpto, até á ex-
estes gênios, ganhal-os, vencel-os, ou inte­ tinccão do imperio dos successores iVAIe-
ressar os genios, amigos dos homens, para xandre.
se escapar aos genios maleficos, e para isto ] Também havia em todas estas regiões,
empregaram todas as prácticas da Theur- j philosophos sectarios d’Aristoteles, Stratão,
gia Caldca, que naturalmente se alliou com Epicuro o Zeuam, mas não formavam sei­
■o Platonisino e Pythagorismo. tas consideráveis.
Estavam animados estes philosophos pelo I

X .

CAPITULO VI
ér

D o s p r in c íp io s r e lig io s o s d os ju d e u s

Achavam-se o$#tfij£US, como fiuasi todos pirar, prophetisop a seus filhos tudo o que
•os povos da terra ■ ■ I K i havia cfacoutccer-lhcs; annuneiou o Mds-
((uaíido Deus fez sahirvA3j^^lp da Üa 1dea, sias, traçando-lho o caracter, c proraetteu
e o conduziu á terra de Canaan. Deus eon- a Judá, que não sahiria o sceptro da sua
tractou um pacto ou allianea com este Pa­ tribu até á vinda do Messias.
triarcha', c lhe prome.tteu uma posteridade, ] Os filhos de Jacob se multiplicaram no
que possuiría a terra que pilo habitava. As ! Egvpto, aonde vieram a £j^ià<a5tfOs. Por
mesmas promessas repetiu a Isaac, filho de j meio de inTTa'^rcs'TOLoTTiiTicir^esplencfoi*, Deus
Abrahão, e a Jacob, filho de Isaac. 1 os livrou do captive iro: deu-lhes leis, o os
Acontecimentos, dispostos pela Providen­ i trouxe á terra promettida. Os jiídeus for­
cia, conduziram ao Egvpto Jacob e a sua maram unia sociedade separada de todas
familia. Este Patriarcha, estando para ex- as nações, para darem , ao Ente Supremo
um eiíliõ legitimo, fundado sobi c estes prin­
1 D m iw on. 4, 39. Exodo 21. Dcutc- cípios:
roíh 6,-4, o, 13. , Não ha mais que. um Deus, ereador do
36 DISCURSO PRELIMINAR

Céo c da terra, que tudo governa pela sua de conservar sua religião sem mudança, o
providencia; somente cllc deve ser ainado sem mistura doutras: tudo quanto respei­
pelo homem, de todo o seu coração,, alma, tava á Religião, á moral e á sociedade ci­
c potências; cllc sómontc deve ser temido vil, era ensinado aos judeus desde a infân­
sobre todas as cousas, e seu nome deve ser cia, e explicado todos os sabbados, e dias
sancli ficado. festivos pelos prophetas, ou pelos levitas,
Elle tudo vò, até o mais recondito dos co­ os quaes lhes faziam uma deseripção terrí­
rações; é bom, justo, e misericordioso. Creou vel da theologia das outras nações, sendo-
o homem livre, deixando-lhe a escolha para lhes prolubido sob as maiores penas, o in -
fazer o bem ou o mal: deve o homem rece­ stru[rcm-sc nas suas sciencias.
ber com reconhecimento todas as bênçãos, Não havia mais que uma cidade c um
como vindas da mão de Deus, e com sub­ templo, cm que se podésse adorar: era este
missão todas as calamidades, como castigos como o centro da Religião. A successão dos
pílternaes, ou como provas. Bem que Deus sacrificadorcs, o constante cuidado em im-
seja misericordioso, os judeus, sem um vivo molar victimas, a necessidade d’oíTcrccer
pesar das suas faltas, não devem lisongcar- seus filhos, c d ahi ir todos os annos para
sc dnbtcr perdão, nem de vèr cbssar os ma­ se purificar, eram outros tantos meios pro­
les, que attrahirein sobre si por suas im- prios para reler os judeus na religião de.
moralidades. 1 seus maiores. Comtudo ellcs a corrompe­
Tal é a Religião c a moral, de que o povo ram, c viram-se em Jerusalem reis idola­
judaico, sem artes, nem sciendas, ignoran­ tras, c sacerdotes que profanaram o tem­
te, e grosseiro, a qualquer outro respeito, fa­ plo, e a religião, misturando o culto dos
zia profissão; ao mesmo passo que as na­ falsos Deuses com o do Ente Supremo.
ções mais celebres pela sua. habilidade nas Cessou Deus de proteger este povo infiel;
artes c nas sciendas, estavam sepultadas os assbâfts tomaram.. ç , demoliram Jerus­
nas trevas mais espessas acerca da natu­ além , destiw ã tii d templo, e fevaram capti-
reza, e existência do Ente Supremo, da ori­ vos osjudeus pafa Babylonia. Nó Hin d’um
gem do mundo, e do destino do homem. grãncíe captfvèlfõ, o templo e a cidade se
A estas sublimes idéias, aecrcscentavam recdilicaram.
os judeus esperanças magnificas: criam, r Depois que Alexandre conquistou a Asia,
que d’entrc ellcs, dá tribu e faça de David, jmuitos judeus se passaram para o Egypto,
nasccria um Salvador, que os havia do li­ Fe se estabeleceram em Alexandria, nó rci-
vrar de todos os males, c que attrahiria to-‘ inado d'estc conquistador, e os ptolomcus,.
das as nações ao conhecimento do verda- ms quaes lhes concederam os privilégios do
* deiro Deus. que gosavam os macedonios, e o livre exer­
A sua Religião não consistia sómente em cício da sua religião . 1
professar estas grandes verdades; cila tinha 0 tempo, que relaxava insensivelmente
ritos, ceremonias, sacrifícios, hólocaustos, os nós que prendiam os judeus á sua pa­
purificações c expiações: prescrevia aos ju­ tria, ia também insensivelmente intibiando
deus as le is mais adequadas para o bem da o seu respeito pela lei de Moyses, c seu
sociedade civil. Tudo era Divino na Igreja, odio aos estrangeiros: «Sahirám iTIsracl
c na Republica; porque Deus não era me­ filhos d’iniquidade, que a muitos davam
nos author dos regulamentos politicos, do este conselho: vamos, e confedcremo-nos
que dos ritos, e das ceremonias religiosas. com as nações circumvisinhas, porque de­
A observância das leis, que Deus pre­ pois que nós retiramos d’ellas, cahimos cm
screvera aos judeus, era seguida de recom­ muitas calamidades: e esto conselho agra­
pensas sensíveis, e presentes, esperando-as dou. Foram pois deputados alguns do povo,,
do Céo. Presidia a esta Igreja um Summo para fallarcm ao rei, o qual lhes deu a fa­
Sacrificador, nos lábios dó qual repousava culdade de viverem segundo os costumes,
a sabedoria e a verdade: sobre seu peito gentilicos; e ellcs edificaram cm Jerusalem
estavam o Urim c Thurim, por meio dos um collegio á maneira das outras nações. 2
quaes pronunciava o Senhor os seus orá­ «Os proprios sacerdotes não cuidaram
culos. mais nas funeções do altar, despresando o
E encerrada a nação judaica em suas templo e os sacrifícios. Corriam aos espe­
montanhas, c separada dos idolatras, havia ctáculos; não faziam caso algum do tudo a
que sc prestava honra no seu paiz; e nao
1 111 Beg. 8, 39. Deut. 8, ibiil acreditavam poder haver cousa mais digna
2 Genes. 40, v. 10. Beg. I. c. 7, v. 12.
' Ps. 21, v. 18. Is. 11, 8, 1 , 10. Ezech. 34, 1 PrideavXj Historia dos Judeus.
v. 23. 2 Machab. I 1 , c. L v. 15.
DISCURSO PRELIMINAR :i7

■o, grande do que sqbrcsahir cm tudo o que N’cllc se destinguem sete ordens de pha-
«era estimado entre ós gregos. Desenvolviam riscus: um não obedecia senão pela espe­
por isto; uma perigosa emulação entre si. rança do proveito, c da gloria: outro, não
Tinlijtip inveja dos costumes dos pagãos, e levantava os pés quando andava: o tercei-'
aíTeõtavàm cm tudo áquelles que antes ha­ ro, batia com a cabeça na parede, a fim de:
viam sido os inimigos eapitaes do seu paiz. » 1 derramar sangue: o quarto, occultava-a em ­
llouve, pois, judeus, que tomaram gosto uni capuz: o quinto perguntava com alti­
ás idéias dos gregos o estrangeiros, quccllcs vez: Que devo eu fazer? eu o farei. Que lia
se esforçaram por alliar com a sua religião, guc eu não tenha feito? O sexto, obedecia
ou para- a defender contra os pagãos, ou por amor, pela virtude, e pela recompensa:
para aclarar os logares obscuros dos livros e o ultimo não executava as ordens de Deus,
de Moysés, ou para iTcllcs descobrir as ver­ senão polo temor do castigo. Faziam todos
dades occulladas debaixo do véo da allego­ longas orações, negando-se. até ao somno
ria, e perdidas para aquelles que não co­ preciso: uns se deitavam sobre uma estreita •
nheciam a letra da lei, ou para combater e prancha, a fim de que não podessem garan­
separar da religião judaica os dogmas dif- tir-se d’uma queda perigosa no caso ifador-
ficeis ou pesados: tacs foram os phariscus, mecer profundamente; e outros, ainda mais
■saduccus, csscuos, c os philosophos judeus. austeros, semeavam sobre esta prancha es­
pinhos e ealhaus; jejuavam duas vezes na
semana, despedaçavam o corpo com acou-
I I tes, c faziam prolongadas preces, que reci­
tavam eoni o corpo innnovcl, e os olhos
fixos.
Qns phariscus Traziam a cabeça abaixada, com receio
de locar nos pés de Deus, que se elevam
sómente quatro pés acima da terra: não
Asseveram os phariscus que Deus linha levantavam os .pés para denotarem o pouco
íijuntado á lei dada sobre o monte Sinav, cuidado que lhes dava tudo o que podésse
, \ grande numero de ritos c dogmas, nuc Mov- rnolestal-os; e a fim de parecerem aos olhos
O / sjyH zm nassaiia posteridade sem os es­ do povo unicamente occupados das cousas
crever; ás verdadeiras tradições, accres- celestes, cobriam seus vestidos de phyla-
cenlaram infinidade de contos ridiculos, eterias, que continham certas sentenças da
ideias falsas, e princípios adoptados dos lei, e se lavavam mais vezes do que bs ou­
philosophos, que corromperam os dogmas tros, para inculcarem o extremo desvelo
e a lei. que tinham em ser puros.
Criam os phariscus, diz Joscpho, que tüj]o Os phariseus tinham um zelo ardente e
^e fazia pelo destino: porém não tiravam infatigável cm fazer proselytos, e este z c lo \
áwvontade o livro arbitrio, para se deter­ junto ás suas mortificações, os fazia vene- /
minar; porque no seu sentir usava Deus raveis aos olhos do povo. Chamavam-lhes
d’esta condição, e posto que tudo aconteça os sábios por excellenda, c seus discipu­
por seu decreto, ou por seu conselho, toda­ los diziam com enthusiasmo uns aos ou­
via conserva o homem o poder de fazer es­ tros: O sabio explica hoje. Tinham seus dis­
colher entre o vicio c a virtude. Acredi­ cipulos nTima espccie d’escravidão, e re­
tavam que as almas dos maus, depois da gravam com um poder absoluto tudo o que
morte, eram encerradas em nrisões. e sof- era concernente á religião. Dispunham do
friam supplicios eternos, ao passo que as espirito das mulheres e do povo; excitavam
dos boiis encontravam um facil regresso á a seu boi prazer as vagas d’estc mar tem­
yif|a r» i»nfrnvmn n illll outro corpo. pestuoso, e se tornaram temíveis aos reis . 1
Não entraremos no detalhe cie! suas tra-
diçoes, que o tempo multiplicou prodigio­ rusalem, ajuntou um commentario a Misna,
ri samonte, c que recolhidas cm trinta e dous 0 qual se chama Gamara: estas duas partes
l volumes in-folio, compocm o que se chama unidas, formam o Talmud de Jerusalém.
^ o Talmud. 2 Havendo-se depois transportado os judeus
para Babylonia, a 1li erigiram escolas cele­
1 Mach. I 2, c. 14. bres. e trabalharam no novo supplemento do
2 O Rabbi Judas, por sobrenome o San­ Misna, que foi acabado pelo fim do quinto
cto, vecollíeu todas as tradições de Moyses século. Chamam-lhe tombem Gamara, ou
até o meio do segundo secuto, c d'cllas com­ Talmud Babylonico. (Budoeus, Hist. Phil-
pôs um volume chamado—Misna: outro Rab- Hebreoerum.j
bi, chamado Jochanam, da synagoga de Je- 1 1 Math. 15, v. 16, cap. 9, v. % c. 23, v.

eo U -Q r J . ^
38 DISCURSO PRKLIMINAU

811 §1 1 1

Dos Saduceus Dos Es senis U

É vcrosimil (juc não foram os saduceus Os essenos honravam a Moysés como o


no principio senão o que são hoje os carai­ primeiro legislador, olhavam como outros
tas. isto é, rejeitavam as tra.die(jeS'dos ;qi- tantos blasphemes todos os que diziam mal
ligosTc não ãTTiTuttianr sóiiãõ ;f palavra es- dVIle, e os condemnavam ã morte. Eram
cnpfa. Tomavam, pois ao pó <!■•> oppostos aos phariseus, rejeitando as tradi­
<los os livros de Movsós, recjmlieeianujuc ções, c aos saduceus, crendo na immorta­
lieu s irõara o nmndoiielo se u p M ecTe o lidade da alma. Este ponto, o mais impor­
governava pela sua. providencia, que havia tante para a felicidade do homem, tinha li­
operado um numero infinito de prodígios xado toda a alienção dos essenos: a immor­
em favor dos judeus, e que para os gover­ talidade se ensinava na religião judaica: el­
nar estabelecera castigos c prêmios; mas les procuraram a prova no> raciocínio, e-
criam que. uns e outros eram puramente na mesma natureza da alma, ou fosse para
temporaes, nàu^passando os limites (Vesta se convencerem mais fortemente, elles pro­
vida. prios d’esta verdade, ou para responderem
" E stes judeus, inimigos das tradições, en­ aos sophismas dos saduceus, que parecia
tendiam que em Movses_sc nàü-üiicoiilrava haverem tomado seus princípios dos cpicu-
coiisa que fizessc-pcrsiunlir que as alm as ristas, e fazer como elles, residir o pensa­
sobrevivem ao-cnrpn. As opiniões dos cpi- mento na matéria, que se tornava intelligcn-
curicos, que suppoem que a alma morre com te pela organisaçàu das suas partes.
o corpo, e que ella não é mais do que uma Parece que os essenos buscaram entre
propriedade da sua organisaeão, não pare­ as opiniões dos philosophos gregos, um sys­
ceram mais conformes com- a religião de tema que explicasse a immortalidade da al­
Movsós, do que a de Pythagoras, Platão e ma, e a sua espiritualidade. Ü sentimento-,
Zenam; portanto foram summamenlc afer- de Zenam os satisfez, e elles o adoptaram.
rados ã letra da religião judaica, e nega­ Pelo menos PhilàiLiÍJQscph nos allinnam
ram a immortalidade da alma. " ’ crerem elles que a substancia da alma era
Não era talvez este erro dos saduceus o o que ha de mais subtil no cthei\ aluando-
de todos os caraitas ou cscriplurarios liga­ ao corpo porjjma esneciiMloncnnto natu-
dos á letra da lei, mas os phariseus, que ijdj e estava enceiraaa iTelle como íruma
eram seus inimigos, c inimigos violentos, o "prisão. A piprte, q.ue.4esti:uia o corpo,.não
imputaram apparentemente a toda a seita, aniquilava a alma, cniiio os saduceus o
pára a tornar-odiosa, ou porque elles o olha­ dízium: eíla rompia suas..cadeias; cjd^spe-
vam como uma consequência dos seus prin­ A íJJj h Jitò:iadái]ajiía--
cípios sobre a necessidade de rejeitar toda feníT^axaijaY a os 'Ceos, aonde gosava da
a cspccie de tradição; consequência, que sua Iiberdade na tural.
talvez não admitiam todos os caraitas. 1 Oestes principios sobre a natureza da
alma, passaram os essenos á moral do cs-
'13, 33. Lite, c. 4, v. 30, c. do, v. % c. J1, JMÍâpio: entenderam que tudo o que lí-
v. 38, ò'2, etc: Joseph. Antiq., /. J2. c. 22, /. sonjeava os sentidos, e accendia as paixões,
í3 , c. 23, /. d7. c. 3. Tivin, Scriptorum il­ augüicntava a escravidão da alma. Por­
lustrium de Tribus. Judccorum. Sictis syn- tanto as leis ceremoniaes, o ritos de Moy­
tagmu, Samuelis Basvagii a m a i. politico ses não se apresentavam aos essenos seuao
Eccles. tit. 1. Jiaddcei introd.. ad Philos. çp«i& aljegpria&i.desliiiada^ $ epsiníu^ms
Hccbr. Basnarj. tíisl. des Juifs, t. i. Pri- homens òsgmoiqs do sò elcyanein acima das
deàux, t: o, p. 47, 72, etc.
1 Math. 22. Marc. 22, .Luc. 20. Joseph. perio clqO.ei4i.fe,, .e. tri uiiiphai e i í i i p a i -
A nt. I. 13. c. 9. Vejam-se os aUthorcs cita- xòes. Os bciis e ã propjãódade, Vjiie este le­
dos. gislador promettia aos judeus, nào eram
Ainda hoje ha d}cstes caraitas, ou escri-
ptururios, qire esperam, como o resto dos bado, c do povo judaico, anda a passos ten­
-jiideus, üm Messias conquistador, a vinda tos. Vejam-se os authores citados, e no Sijn-
do qual é retardada pelos peccados do povo, tarjma, a dissertação de m r. Trigland sobre-
ou porque Sutilrno, que è a estreita do sab- esta seita.
DISCURSO PRELIMINAR 39

mais que o emblema da feljcidado prepa­ maus seriam precipitadas n’um logar pro­
rada para aquelles <|ue observavam os pre­ fundo o tenebroso, no qual ficariam expos­
ceitos escondidos debaixo do exterior da tas a todas as injurias a u m inverno eonti-
lei. mio e cheio de penas, que jamais são inter­
Os essenos se nfastaram, pois^ das jii.tlu- rompidas por algum favoravol intervallo.
; des, j)ara preservar-se Ha ecurupeãõPque Q^iessenos do.-Egypjo formavam uma
V. ífcllas reinava ordinariamente, e se corn- ideia niãTíFeTevadá da alma; não a conce­
municava aos seus habitantes como as mo­ biam como um ar subtil e ligeiro, mas como
lestias aos que respiram um ar infccciona- uma substancia destinada a conhecer a ver­
do: rçuniram-se c foriparam unia socieda- dade, e a vèr o mesmo Deus, que cra a fonte
; de particular, que não enlliesôuraya puro das verdades, e a luz que esclarecia os es­
nem prata, eoiiteiitándo-se com o necessa­ píritos, como o sol alumiava os corpos.
rio, c* viviam do trabalho dc suas inãos. Esta luz sómente se communicava ás al­
Àpplicavaui-se huuto á moral, c os seus mas isentas das paixões, desligadas dos cui­
: preceitos se consagravam todos ao amor dc dados que as prendem á terra, e superiores
Deus, da virtude o do proximo: davam, diz ás distracções que causam sobre os nossos
Philão, iutinitas provas do seu amor para sentidos as impressões dos objectos.
com Deus: por toda a vida guardavam uma 0 esforço que faziam para elevar-se a
constantfiLiiinalMaycl castidade: nunca ju­ este estado dMmpassibilidade, lhes procura­
ravam, nunca mòrítláin: attnTTuiam a Deus va extasis, nos quaes criam vèr a luz que
tudo o que era bom; c jamais o tinham por anhela vam, ficando embriagados de delicias:
author do mal. Faziam ver seu amor á vir­ accendia-se ifclles o fogo do enthusiasmo,
tude no seu desinteresse, no seu retiro da consideravam-se já como mortos para o
gloria e da ambição, na renuncia aos pra­ mundo, renunciavam os bens, os amigos, e
zeres, na sua. paciência, na sua simplici­ a sociedade, e se retiravam a alguma ca­
dade, na facilidade enj se contentar; na sua bana ou casa abandonada, para se entre­
modéstia, no seu respeito ás leis, uá firme­ garem á contemplação.
za da sua alma, etc. Emfiin, ellcs manifes­ - Na maior parte dos paizes do mundo,
tavam' seu amor para com o proximo, pela diz Philão, havia eremitas, mas aoude se
sua caridade, e comportamento igual para encontravam mais era no Egypto; havia-os
com todos; pela communicação"de seus em todas as suas provincias, principalmcntc
bens, e pela sua humanidade. No sentir nos arredores d*Alexandria, e sobre tudo
dos essenos, a natureza, como uma mãe omjrolta do lago Moria, sobre. uma emi­
commum, produzia c sustentava todos os nência muito commoda para a segurança,
homens da mesma maneira, e os havia feito c. onde o ar ç saudayei.
verdadeiramente irmãos: a concupiscenda Tinha cada um o seu pequeno oratorio,
tinha destruido| este parentesco; c os esse-, chamado Monestarion> para onde não con­
nos pretendiam restabclecel-o. duziam outros moveis mais do que a lei,
Espalharam-se os essenos na palestina, os prophetas, hymnos, c alguns outros li­
aonde formaram differentes confrarias, en­ vros.
tre as quaes t,udo ora commum. Ao nascer do sol pediam a Deus a sua
Como as paixões c a cobiça nasciam da benção, esta benção verdadeira, que illu-j
prganisação do corpo, os essenos entendiam mina c que abraza as almas, e as penetra J
-que devia ajuntar-sc ao estudo da moral o da luz celestial; ao pôr d’este astro, roga-..'
. conhecimento .dos .simples, p.roprios para vam a Deus que os seus espíritos desprendí-J
i- dos dos sentidos e das cousas sensíveis po- i
•?as enImnidadH; e jlesçpbrii:ani..c)anta.s; e dessem n’um perfeito recolhimento desco- \
>: pedriis, q brir a verdade. Todo o resto do dia era em­
Por to.dá ’ã parte se encontravam esse­ pregado no estudo das Sanctas Eseripturas, t
nos, aonde havia judeus; na Palestina, na o texto d a|,fl^e^raj)O T ^jlcs-q lh ^ 9..cajno ■>
Syria, e no Egypto. i ^ S S S í r nu? cs% Jm làs^m ais subfirqes)
. Todos esperavam a morte, como um preso nâuiptkfènt(^;tít c sõ dêviã intéfpre- \
espera* a liberdade. tar allegòricãmcntc para so decifrar o sen-;
Os L¥seuo^-da. Poleslina se persuadiam tido. \
-que quebradas queTossêm as prisões da Nem. Tcomiam,noaU).íM ^ I
carne, sua alma voava aos Céos, aonde en- dcLjiQStp o sol: alguns, arrebatados por um w
contraria uma habitação isenta de chuva, extraordinário desejo de conhecer o que
-neve, calores, e incommodos, c em vez d’isso buscavam, se esqueciam algumas vezes du-
-uni viração agradavel, que os refrigerava ranté tres dias, de tomar alimento. m
continuaíuente; ao passo que as almas dos Era Deus o objcctó de todas as suas m c - 1
40 DISCURSO PRELIMINAR

ditaçõcs, c até cm sonhos nào sc lhes re­ são outra cousa mais do que um ramo dos
presentavam scnào as bellezas e excellen­ essenos.
d a das perfeições divinas: muitas vezes A religião chrislã tem por aulhor o Mes­
dormindo, faziam discursos admiraveis d’cs- sias, promettido aosjudeus, verdadeiro Deus
ta divina philosophia. e verdadeiro Iloincm; nada d’isto se cncon-
Passavam sejs dias consecutivos no seu dra nos dogmas dos essenos. A religião chris-
oratorio sem d elle sahir, nem mesmo olhar lã ao nascer, tinha sacramentos: os essenos
para fóra: no sétimo reuniam-se cm um não os Unham. Jesus Christo ensinou a rc-
oratorio communi, aonde um dos mais hiW surreicão dos corpos; os essenos a nega­
heis fazia um discurso, depois do qual to-\ vam. Sc os christãos não eram outra cousa
• inavam juntos o seu alimento, isto é, u nf mais do que um ramo dos essenos, seria
■ pouco de pão com algum sal, c hyssopo. preciso que o proprio Jesus Ç h r islo jj^ s e
Durante a refeição guardavam o mais? sklo esseno, sepa radõ òii sccciohadn (la sua
. profundo silencio, c quando estava acabada, sgita^c que d’ella se houvesse tornado ini­
um dos da companhia propunha uma ques­ migo,"' pois que leria ensinado dogmas op-
tão sobre qualquer passagem da Escriplu- poslos aos princípios fundamentaes dos es­
ra; respondia outro, c o presidente decla­ senos. Os essenos tinham os seus templos
rava se a questão estava resolvida, accres- e as suas assembléias separadas; não com-
ccntando o que julgava a proposito: ap- muni cavam com os judeus, porque os não
plaudiam todos, levantavam-se, c cantavam consideravam assaz sanctos; não offercciam
um hymno: o resto do dia se passava em victimas, c condenmavnm os sacrifícios que
discursos sobre cousas divinas, c a noite a se faziam no templo. Como, pois, seria pos­
cantar até o nascer do sol. sível que os phariscus, os cscribas, c os sa-
As meditações dos essenos do Egypto ti­ duccus, que conlinuamente. lhe armavam
nham por objecto a , a ciladas, que propalavam que ellc não era
qüal, segundo ellcs, era como o homem, outra cousa mais do que um impostor, não
composta d]gspi rjto; ç..dQJ.£0Xl)Q- O corpo lhe tivessem nunca recordado a sua ori­
'la Escriptura era o sentido íitteral, e o inys- gem, nem lançado em rosto*que aniquila­
ico, ou o occulto, era a alma, c era ívcsta va a lei de Moysés? Como é que tantas sei­
iltimâ que estava a verdade c a vida. Phi- tas. inimigas do Christianismo, que~s£ des­
ão diz que elles estudavam a Escriptura envolveram. entre os judeus, no Eg.Vpto,
como philosophos, c tinham entre si mui­ nunca nénhumá if ellas fez uma similhanto
tos cscriptos dos chefes da sua seita, que arguicão aos christãos?
eram monumentos d’esta cspecie de scien­
d a allcgorica, que elles estudavam e pro­
curavam imitar. IV
Tudo o que o espirito humano póde ima­
ginar extravagante, se ofierecia sem dúvida
a estes homens continuamenlc entregues á Dos Samaritanos
meditação da Escriptura, guiados nas suas.
meditações por similhantes princípios, ate­
nuados" pelos jejuns contínuos, cscandeci O antigo reino de S a p ^ iíi era habitado
dos pela solidão, animados pelos motivos pelos isiaeh tasjj^ ,d ez‘tri bus ^ u e Jeroboão
que actuam mais poderosamente sobre o sçp a rou ^ oS S iu p ^ e^ ^ ü ^ lejn , no reinado
coraçào humano, a esperança d’uma im- de Roboão, filho dc SáíòínãÕ.
< mortalidade feliz, e o desejo da perfeição. Sahiianasar apoderou-se do reino de Sa­
Estes motivos parecia haverem elevado maria, transportou os seus habitantes para
os essenos acima da humanidade: nunca a as planicies da Caldea, c mandou repovoar
força dos tormentos, dos traclos do fogo o paiz da Samaria pelos cutcno.s. Esta co­
das rodas, c de todas as invenções as mais lonia foi devorada pelos leoesTpor ter tran­
terríveis, poderam arrancar-lhes uma unica sportado os seus idolos para a Terra San­
' palavra contra o seu Legislador, contra a cta. Essharadão enviou-lhe um Sacerdote
a sua consciência . 1 judeu com uma nova colonia para alli res­
f - Do que acabamos de dizer, fácil e de co- tabelecer o culto dos samaritanos; mas este
> nhcccr quanto se afastam da verdade aquel- sacerdote não pôde desprender absoluta­
\ Jes que pretenderam que os christãos não mente os novos habitantes do seu primeiro
culto, e fez um mixto da sua antiga religião
1 Josnph de Bello Jud. I 1, c. 12. Phi­ e da Samaritana. Por fim esta colonia abra­
lon dr vil. contempl. Os authores citados çou a r 0 j^ ão 4 dílaica, o os novos samarita-
sobre as seitas dos judeus. líos foram chamados os proselvtos &q.s Ifiüfis,
DISCURSO PRELIMINAR 41

porque era o temor (Tostes animacs quem os 1cQnlavamicoja.Qs gaflilgeus; os judeus posto
havia determinado a seguir a religião ju­ ! í[ cliíüJlmíòsãmento," 1 lies imputaram o
daica, da qual comludo se afastavam: l.° ; erro d’aquelles acerca da immortalidadc da
De todo o Canon dos judeus, do qual não | alma.
recebiam senão o PeniaJJiuico. 2.° Sacrifi­ Assim que os. ptolomeus se apoderaram
cavam sobtòPífWontc Uarisin. c não cm 1da Judeia e Samaria, os samaritanos se es-
Jerusalém, entendendo que não faziam mais | tabcléceram no Ègypto, assim como os ju­
do que conformar-se com o culto dos Pa­ deus. Como cllcs, tomaram gosto pelas scien­
triarchas, prodecessores de Moysés. .* 3.° d a s e pela philosophia, principalmente pela
Esperavam o Messias, como os*Judeus, o philosophia platônica, unida á caldaica, que
criam que o Messias seria não sómente consistia principalmenlc cm operar .çqii^as
um Pae, mas um Doutor, enviado por Deus admiráveis por eíTeito das virtudes oçciiltas
para os esclarecer. 4.® Observavam a lei das. pjaidas. pela astrologia c invocação dos
de Moysés com muita cxactidão, c não ti­ genios. Alguns samaritanos tinham alliado
nham inenos respeito que os judeus, pelo esta philosophia aos dogmas da sua reli­
Pontatheuco; mas a sua dedicarão á obser­ gião, c viu-se na Samaria pina especie de
vanda da lei, não era a prova de persegui- magicos, que se inculcavam como enviados
ção_ ou de supplicios. o.° Os samaritanos de Deus, os quaes seduziam o povo com
rejeitavam toda a sorte de tradições, c acre­ seus prestígios. A historia de Dosithcs c
ditavam na palavra escripta, íío que con- de Si mão não deixam este ponto cm dú­ W
vida. ,
1 Joan. 4.

CAPITULO VII

E sta d o p<n>liíico d o g cn cro Im iuauo d e p o is q u e sc e x tio -


guiox o im p e r io de A lcx a u d re a te o n a scim en to do
C h ristia n ism o .

Tinha sido o Oriente o berço do genero reiros fortes, atrevidos e ávidos dos despo-
humano, c as grandes familias n’elle esta­ jos da guerra, da qual tinham uma como
belecidas haviam inventado as artes c scien­ necessidade.
das, construído cidades, formado estados e Não faltava, pois, senão um guerreiro,
impérios, cmquanlo o Occidente era habi­ valente, ambicioso c de espirito elevado,
tado de povos pastores, ou selvagens. para formar na Italia um estado puramente
As guerras, a povoação excessiva, e ou­ guerreiro, o qual pela sua constituição, c
tros infinitos accidentes desmembraram das seus costumes tendesse sempre a engran-
nações policiadas algumas colonias, que na­ dccer-sc, c a desalojar os seus visinhos. Foi
vegando, procuraram novas habitações, e lloinulo este guerreiro,.c.-Roxq.aeste pitado,
formaram differentes estabelecimentos nos que*há súá origem não era mais qiic unia
paizes maritimos, principalmente na Italia. especie de arraial, povoado por aventurei­
Estas colonias adoçaram os costumes dos ros, a quem a esperança do saque, muitas
povos selvagens, entre os quaes sc estabe­ vezes da impunidade, ajuntou; mas que pela
leceram; e na Italia se formou uma multi- sua constituição primitiva e pela sua situa­
ào do pequenos estados independentes, ção havia de subjugar, c com elfoito subju­
Í ada um dos quaes tinha religião, leis e gou a Italia, a Grécia, o ’Oriente. a Hcspa-
ostumes.diversos, e que pela sua situação nha o as Gallias. Todos os povos conheci­
stavara muitas vezes em guerra . 1 dos tomaram partido nas guerras de Cesar
Assim, entretanto quo o luxo corrompia c de Pompeu. 1 .
•o enfraquecia os povos do Oriente, o tempo Receberam os romanos dos povos que
formava em um ponto do Occidente guer­

1 Cluvia•, U a i anliq. 1 Lucan. P harsal / . 1 . 3 . Flov. 1.4. c. 2.


42 DISCURSO PRELIMINAR

venceram, princípios de corrupção, que in­ ram; a elles se entregou sem pejo, c o uni
vadiram todos os estados c todas as ordens verso teve por senhor um principe, dado
da republica: a honra, o amor da liberdade o mais vergonhosas sensuahdades, avareftttE
da patria extinguiram-se: em Roma não se cruel, zeloso do seu poder e excessi vame n te
conheceram verdadeiros bens senão as ri­ desconfiado. Aos seus temores e descon­
quezas, e Roma encerrava em seu seio to­ fianças sacrificou infinitos cidadãos. N ã o s c
das as causas que haviam destruído todos viam em Roma senão delatores: e todo c_
es grandes impérios. 1 homem virtuoso ou rico era culpado. V iu -
Apesar da sua corrupção, Roma por uma se um pae aecusado por seu filho co m e
consequência da sua constituição havia de réo (Testado, sem fundamento, sem denun-
formar grandes capitães, politicos hábeis, ciador, e sem outras testimunhas, c este fi­
ambiciosos, que buscassem sujeitar sua racs lho protegido por Tiberio. Ninguem ousava
ma patria, e a mudar a republica cm mo­ interessar-se pelos accusados, nem chorai:
narchia. Cesar o emprehendeu c o conse­ pelos mortos: a corrupção e o temor haviam
guiu. 2 suíTocado a voz da natureza, interrompida
Os cidadãos, que arrancaram com avida .0 commercio o as obrigações da vida ci­
a Cesar a soberania, não restituiram a li­ vil. i
berdade á sua patria. Augusto, que lhe suc- As provincias saqueadas pelos barbaros-
ccdcu, foi mais poderoso do que olle, c suf­ ou pelos governadores, que Tiberio lhes en­
focando todas as discordias civis, reinou pa- viava, escolhidos d’entrc os seus libertos,,
cificamente sobre o mundo conhecido desde ou d^utre aquclles que se distingo iam cm_
a índia até Allemanha. Caprêa, não eram mais felizes. Confiado seu
Ainda mais omnipotenfe do que Augusto, governo a ministros d’uma avareza insa­
foi Tiberio, seu successor. Ellc tirou ao povo ciável, sem virtude, sem honra e sem hu­
a eleição dos magistrados, que Augusto lhe manidade, collocavam em todos os cargos
deixara, nomeava os consules, os governa­ homens tão maus e viciosos como elles, que
dores das provincias, os intendentes, todos os dispunham como senhores absolutos da vi­
oíficiaes c magistrados, dependia absoluta­ da c fortuna dos que lhes estavam subordi­
mente de Tiberio tudo o que exercia qual­ nados, porque conhecendo a indifferença do
quer porção d’autlioridade; na sua pessoa principe para com as desgraças (Taquellès,
reuniu íotlas as cspecies de magistratura, se tinham por seguros da impunidade dos
que se haviam creado em Roma, para se seus delictos. ~
contrabalançar, para conservar a liberdade Nomeou Tiberio por seu successor Caio
e para prevenir a oRpressão do povo pelo Caligula. Este principe tinha sido creado
senado, ou a do senado pelo, povo. no incio do exercito. Ao poder de soberano
D’est’arlc tinha Tiberio cm todo o impé­ ajuntou a ferocidade de soldado e um na-
rio romano a mais ab solu taeillimitadaau- Jural violento, impetuoso e cruel.
thoridade, sem que houvesse cousa capaz x Era lovianò, vario,
de a reprimir. derado. Os seus socios e amigos eram os
Tiberio viveu sem mancha emquantm histriões, farcistas e homens dissolutos; hou-
particular, ou emquanto commandòu oi| ve saudades de Tiberio, emquanto viveu
exercitos no tempo (TAuguslo. ArteiramentdjLCaligula, que finalmente foi assassinado.
occultou seus vícios durante a vida de Ger­ Desde a morte de Caligula, ficou o im­
mânico e Druso; foi.alternativamente bom pério á descripeão da soldadosca, que ac-
e mau durante a vida de sua mão; cruel clamava ou dcsthronnva os imperadores.
até o excesso, mas occulto nos seus praze­ Os differentes exercitos nomeavam cada um
res infames, emquanto amou ou tonieu Se­ o seu, c os horrores da guerra civil sc re­
jano. Logo que não sc recoiou de pessoa uniam aos vicios do governo dos imperado­
alguma, todos os seus vicios se desenfrea- res e á corrupção que infeccionava todo o
imperio. Toda a terra foi assolada pelo fogo
1 Lucan. I. 1. Tacit. anual. Dion. Cas­ da guerra até á eleição de Trajano.
sius. Saliist. D’csta maneira a ambição dos romanos,,
2 Não pretendemos esmiuçar as causas povo guerreiro c ignorante, que despresava
da grandeza c da decadência dos romanos: as scicncias e as artes, aniquilou a virtude
esse assumpto não pertence á nossa obra; e ie levou a desolação e a desgraça a toda a
*
os que n elle sc quizerem instruir • acharãd
* ~ parte, aonde Alexandre,,
’ ' ’heroe e . philoso
philoso-
esgotada essa m ateria nos Discursos de Ma-M)liOj se Jiavia. proposto levar a felicidade,
cliiavcl sobre Tito Livio, em S. EvremoiU \
nas Considerações de mr. de Montesquieu e 1 Tacit. Annal. I. 4.
em mr. o Abbade de Mably. 2 Idem et ibidem: ^ucton. m T ib
Discunso ruEu.MiNÂn 4$

communicar a luz, fazer reinar a paz, a tantas guerras emprehendidas, tanto san­
justiça e a virtude. gue derramado, tantos povos destruídos,
- Alexandre, no seu projecto de conquis- tantas façanhas, tantos triumphos, tanta po­
\ t a r o inundo, intentou unir todos os ho- litica, sabedoria, prudência, constância, va­
í meus. Formaram os romanos o projecto de lor; este projecto d’invadir tudo, tão bem
avassalar todos os povos desunindo-os. Ale­ formado, tão bem sustentado .c ultimado:
xandre queria conquistar todos os povos em que veio a parar, senào cm sustentar
para.. .tornar todos os homens felizes; c os a felicidade de cinco ou sois monstros? Que!
romanos para servirem de mèiò á sua par­ Este senado nào tinha feito desapparccer
ticular felicidade. Alexandre empregava o tantos reis, senão para cllo proprio cahir
poder militar para estabelecer entre os ho­ debaixo da mais vil escravidão d’alguns
mens a authoridade das leis; entre os ro­ dos seus mais indignos cidadãos c para se
manos o poder militar, aniquilou a authori- exterminar pelos seus proprios decretos?!
í dade das leis, tomou Roma a escrava do Não se realça, pois, a sua grandeza senão
$ imperador e das tropas, fez desapparccer para vér cahir com mais estrondo! Os ho­
| da terra a felicidade e a virtude. 1 mens não trabalham no augmento do seu
«lí iFisto, diz um homem celebre, que poder, senão para, cm prejuízo seu, o ve­
convém oflercccr um quadro das cousas rem passar a mais felizes mãos. 1
humanas: vejanvsc na historia de Roma
1 Considíralions sur les causes de la
1 Vide acima o que respeita a Alex. grandeur des rom. p. 171.
Plut. de la fort. des Rom. cl Alex.

SE sí í u I o do espiiraí® h a s E H t m o ácea’<ca da reSigiâo. mos*al c


scicflEcaas, d esd e a desdrm ção do im perao d e é&Sexau-
dfi*e a té ao u a seim eu to do Chsdstiamsano.

Romulo, fundador de Roma, estabeleceu legislação c a historia, despresavam as ar­


ivclla o culto dosJpe.psçs: que Eneas, Evan- tesão selençjas. Dous secülõs àntés clo ChTis-
dro, etc., Imtiam araz iao ;i Italia. Roma, liãmsiiio ãinda Catão se irritava contra os
grosseira, ignorante, pobre e guerroira,ixdíi- poetas e contra a poesia. 1 Com tudo, esta­
I»tou su cçessi vapi cnte os.Dcu.scs- das^nacijes vam elies cercados de povos, que cultivavam
qpc.ysií jijugqu,'6’estes Deuses tiveram seus as bellas-artes, as letras, a philosophia e
.Sacerdotes, seus sacrifícios c suas festivida­ scicucias. Na Grécia, no Êgyptó, na África,
des. OITcfeceram-so-lhes votos c foram con­ nas Gallias, se ensinavam todos os svslemas
sultados sobre o futuro; houve augures, dos,philosoplios, que as colônias gregas para
arnsnicos. adivinhos e mesagios, como en­ lã tinham levado. 2
tre todas hsüãçocs idolalrasP Seria impossível que os romanos deixas­
As continuas* dissidências entre o senado sem de tomar gosto pelas sciencias c pelas
e o povo, as guerras exteriores e o amor letras: a conquista do Egypto, Grécia c Gal­
da liberdade, fixaram por muito tempo lias os pòz cm commercio com os mais ce­
toda a attenção dos romanos a respeito dos lebres .philosophos. Muitos, pois, adoptaram
meios de conservar ou estender seus privi­ a moral c os princípios philosophicos de
légios no interior, c sua dominação exter­ SúeratasrZonam a PJa.tãq. A virtude dos ro-
na, Por muitos séculos não tomaram dos mauos, illustra da pela philosophia, adqui­
povos que submetteram m a iM o ^ u e a ^ u - riu um realce, uma firmeza, simplicidade e
persticòes c ccrçmQ.ni^- ^IiSipsas; c cohi doçura, que nào dão a naturezanm iaedu-
(luànto tive^seih 'cultivado a eloquência, a
1 Cic. Tuscul. 9. /. 1. c. 2. 3. 4.
1 Cic. de divid. Plut. Vie de Romulus et 2 Hist. Litt. de Franc, t. 1. E tat des Let-
de Numa Grónov. antiq. Romain. tres uvant te Christianisme.
44 Discunso PRELIMINAR

cação. Tal foi a virtude dc Scipião Africa­ do (pi o reinado das letras, c os poetas as­
no, dc I.iüHo e dc Furio. 1 sim "como os oradoreTToram philosophos:
Em breve o gosto da philosophia se dila­ Horacio, Ovidio e Virgílio, expozeram nas
tou e se tornou mais vivo; estudaram-se os suas obras os systemas philosophicos dos
\ systemas dos philosophos gregos em Roma gregos, e os fizeram familiares na côrle, e
e todos tiveram partidários. À philosophia a todos os leitores.
não ficou encerrada nas escolas; ella se lor- Roma, subjugada pelo poder arbitrario
' nou o assumpto dos entretenimentos c com d’Augusto, entregue aos prazeres c ao luxo,
desvelo se applicaram os romanos a dar ás já náo produziu mais do que espíritos su-
materias philosophicas a ordem, clareza q* perficiaese caracteres fracos: a philosophia .
graças proprias para as fazer intelligiveis? de Arislipo e de Epicuro era a dominante. £
e importantes a todas as inlelligencias. 2 Ainda foram mais baixos os caracteres, {
Os systemas philosophicos combatiam o e os espíritos menos solidos no governo de 1
Polytheismo, c a philosophia enervou cm Tiberio. Este principe, muitas vezes,*ficou ;
muitos espíritos o respeito o temor dos Deu­ attonito á vista do servilismo do senado . 1
ses, os princípios c os sentimentos dc mo­ 0 povo, cavalheiros c senadores- passa­
ral e dc virtude. Todos os ambiciosos e sen- vam a sua vida com os comediantes e com
suacs, todos os que tinham motivo para te­ os estriòes; acompanhavam-nos por toda a
mer a justiça dos Deuses, adoptaram syste­ parte, obsequiavam-nos; eram, como diz Se­
mas que os libertavam de remorsos c ter­ neca, escravos dos pantomimos. Roma esta­
rores da outra vida; não concorrendo pou­ va dividida em differentes partidos sobre o
co a corrupção dos costumes para conci­ merito, c sobre a prcemincncia dos ado­
liar sequazes á philosophia, principalmcntc res. Muitas vezes estes partidos convertiam
á de Epicuro . 3 «Creio, diz mr. dcMontes- o espectáculo cm um campo de batalha, e
quicu, que a seita de Epicuro, introduzida o senado se occupava sériamonte dos meios
em Roma pelos fins da republica, muito de reprimir estas desordens, umas vezes
contribuiu para corromper o coração c o diminuindo os interesses dos actores, ou­
espirito dos romanos. Os gregos tinham si­ tras prohibindo os senadores dc os visita­
do inficcionados antes d’elles, assim ellcs se rem. 2
corromperam mais depressa . 4 Todavia não D’esta maneira, pois, na maior parto do
faltavam philosophos que defendiam a exis­ imperio romano, todos os que tinham al­
tência dos Deuses e que haviam dado mui­ gum podor, authoridade ou adhercncia ao
ta claridade e força ás provas que estabe­ principe eram arrastados pelas necessida­
lecem a necessidade d’uma intelligencia su­ des, que são consequências do amor exces­
prema para produzir o mundo. O ostoicis- sivo dos prazeres c do luxo, sem que os
mo linha encontrado na natureza ordem c contivesse algum principio dc moral, do
proporções, que presuppunham que o mun­ honra, de religião, nem ainda de humani­
do era cTuma. causa intclligcnlo. Conheciam dade. As proseripções c execuções innume-
que o homem tinha um destino e deveres, raveis, que se viram no tempo dc Silla, o
que consistiam cm concorrer para o bem nos impérios do Tiberio, Claudio c Nero,
geral. Criam que o homem não podia ser haviam suíTocado em quasi todos os cora­
feliz senão preenchendo-os, c que era des­ ções aquclla preciosa semente de sensibili­
graçado quando d’elles se apartava. Este dade, que recebemos da natureza, o que faz
systema tinha partidários consideráveis nos brotar em nós os mesmos eífeitos e senti­
fins da republica; mas o numero diminuía mentos que vémos nos outros homens.
á medida que a corrupcão dos costumes se A ideia de liberdade estava riscada em
augmentava, e que a virtude se extinguia. quasi todos os espíritos c cxtincta a da vir­
Depois de cxtincta a republica, e impe­ tude em quasi todos os corações. Porém
rando Augusto, floresceram as artes: este ainda restavam algumas almas privilegia­
principe honrou todos os talentos, recom­ das. que a philosophia estoica preservara
pensou suas felizes producçõcs; scú rcina- da corrupção. Estas almas fortes c eleva­
das pela philosophia, sensíveis ás desgraças
1 Cic. pro Aurel. yro Muren. Tacit. an.do genero humano, communicaram a sua
/. 1 . c*. 16. \ magnanimidade; c no tempo de CJaudio,
- Cic. Tuse. I. i. c. 6. dc Nal. Dcor. /5 Nn£Q, Vespffijnno e Doiniciano, se viram»-
1 . c. 8. ' 1 cidadãos pTHBsophos, que atacaram o vicio
3 Discours'de César au Sénat dans Sa-
luste. Bet. Caíil. 1 Tacit. an. 1. II. c. 66. 71.
4 Consid. su r les causes de Ui grànd. des 2 Surfou, in Aiig. r. 45. Plin. 19. Sen.
rom. p. 171. .i < Ep. 47. Tacit. /. 5. c. 71.
DISCURSO PRELIMINAR 4o

(j a tyrannia, não esmorecendo íi vista dos contra o Polylheismo. Segundo, pessoas (pie
tormentos, e que morreram d’uma morte nfio sendo philosophos de profissão, cultiva­
digna de illustrar os niais bellos scculos da vam o seu entendimento, as letras e a phi­
republica. Era dominante em Roma esta losophia, e que vivendo com os philoso­
philosophia pelos fins do primeiro século. phos, tomavam parte das suas idéias. Ter­
Nero, Vespasiano e Domiciano, para sus­ ceiro, o povo que não emprega a sua intel-
penderem os seus progressos d^stçrrayarn ligcneia senão em pontos de interesse, c
d(^JRpjnm_tod osos- philosophos, porque Te- falhando propriamente, não faz esforços para
cclavãinl.que. .p.s.princípios, do estoicismo, se illustrar sóbre a religião, ou outros ob­
iilejHilicados com as idéias da liberdade, jectos especulativos, mas a quem o tempo
podiam tornar-se sedicíosps e erani odiqsos traz as verdades e idéias dos philosophos,
a imperodores liio per versos, como, Nei;o c depois de as haver feito passar por todas
DoííficTãno. as ordens do espirito, que separa o povo
'Dê'ttido o que dito fica se ve que na épo­ do philosopho, havcndo-Ihc dado por este
ca quo acabamos d’cxaminar, havia entre meio a clareza c simplicidade, proporcio­
os povos idolatras: primeiro philosophos que nadas á intelligencia do mesmo povo.
não suppunham na natureza mais do que Assim o esforço geral do espirito huma­
forcas moventes c matéria, ou que reco­ no tendia para á destruição da idolatria, e
nheciam um Ente Supremo, sábio c intelli- o povo tinha chegado„áqucllc grau de luz
gente, que formara o mundo, c o governa­ necessário para sentir o absurdo do Polv- /
va por leis immutaveis, ou confiava aos theismo, c as evidentes provas da cxisteii-/
gepios a sua administração. cia do Ente Supremo. Era esta época a d es-1
Todos estes philosophos, divididos acerca tinada pela Providencia para o nascimento f
da origem do mundo, estavam conformes do Christianismo.

PRIMEIRO SÉCULO

CAPITULO I

N a sc im en to do C h ristia n ism o , s e u s p r o g r e sso s e n tr e


o s ju d e u s, e o b stá c u lo s q u e n ’isso e n c o n tr a

O tempo marcado para o nascimento de rei de.Israel, produzindo revoltas em


do
Messias era chegado, e os judeus opprimi- Jerusalém, c em todo o reino da Judeia! 1
ílos pelos romanos, o por Herodes, que Au- Chegado que foi o tempo do seu minis-,
liustaJiuyiiweQnfiruji;^ terio, corre Jesus Christo o reino da Judeia, *
do Jyflá. esperavam com a n cird a d eo fi- patenteia aos judeus toda a grandeza da i
hertador, que lhes fura promedido. Nas­ corrupção humana: annuncia um Deus em i
ceu este,* finaímente, com todos os caracte­ tres pessoas; ensina, que é clle uma d’cl- *
res que o haviam do fazer conhecer, c dis­ las, encarnada, para resgatar os homens:
tinguir; mas a maior parte dos judeus per­ faz conhecer tudo o que ellcs devem a es­
suadidos do que o Messias havia de ser um tas tres pessoas; promette aos quo crêrem
conquistador famoso, o doseonhecerani em
Jesus Christo, c creram vél-o nos fanati­ 1 Joseph. Antiq. í. 17. c. 12. de M L L 2.
cos, que tomaram o seu nome, e o titulo c. 4. 5. 6.
46 DISCURSO PRELIMINAR

na. sua doutrina, o p radicarem sua lei, nào que se havia feito homem: (pie promettera
4i felicidade temporal, como os judeus gros­ uma felicidade eterna aos que cressem na
seiros esperavam, mas a espiritual, pura, sua doutrina e practieasscm a sua moral;
eterna. que havia provado por milagres a verdade
A beneftcencia, a simplicidade do cora­ das suas promessas. Estes homens annun-
ção, a verdade, a indulgência, o perdão das ciavain o que haviam visto, ou sabido da-
injurias, e amor aos inimigos, sao as obri­ quelles que o presenciaram; preferiam an­
gações que ellc prescreve para com os ho­ tes morrer do q’uc negar as verdades, que
mens; e para com Deus um culto d’amor, tinham a seu cargo ensinar; sua moral era
^acatam ento, temor, c d’cspcrança. Insti­ sublime e simples, c seus costumes irro-
tuo Sacramentos, que proporcionam aos prehensiveis.
homens os soccorros necessários para o Tinham-se visto philosophos atacar o Po-
desempenho das obrigardes que ellc impõe. lytheismo, mas com precaução ou com gra­
Prova com milagres a* divindade da sua cejo, e sem esclarecer os homens acerca
missão, e a verdade da sua doutrina. Esco­ da sua origem e destino: irellc tinham des­
lhe Apostolos que a preguem em toda a coberto, apesar da sua corrupção, semen­
terra. Morre, resuscita c sóbe ao Céo. tes de virtude, mas, em vão tinham procu­
/•’'* Annunciam os Apostolos, cm Jerusalém, rado mii remedio para a corrupção, um
í a doutrina de Jesu§ Christo, e a sua rc- freio para as paixões, e um motivo para a
I surrei cão; estabelecem a verdade de suas virtude cm todos os estados c cm todas as
f predicas sobre as mais claras provas, por circumstandas. Aquellcs que se haviam *
\ meio de milagres os mais inauditos. Tres tornado superiores ás paixões, não se con­
; mil judeus se convertem, e são baptisados. servavam n’essa altura senão pelo fanatis­
| Unem-se estes novos discipulos. Todos os mo, ou pelo orgulho. Mas não se tinha visto
ddias vão orar ao templo, e não ha entre ol- uma sociedade inteira de homens rústicos,
l les mais que um coração, e uma alma: é pela maior parte ignorantes, explicar o que
j -de todos, o que é de cada úm; entre elles os philosophos inutilmente tinham procura­
. não ha pobres, porque os que possuem ter- do saber sobre a origem do mundo, sobre
: ras ou casas, as vendem, e levam o seu a natureza, e. destino do homem; ensinar
; preço aos Apostolos, que logo o distribuem uma moral, que tende a produzir sobre a
por cada um, coiiforme sua necessidade. 1 terra uma concordia gerai, uma amizade
O progresso do Christianismo, a prega­ constante, uma paz perpetua, que põe o
ção dos Apostolos, os milagres que elles homem continuàmentc debaixo das vistas
operam e a virtude dos christãos accendem do Sèr Supremo e Omnipotcnte; que abor­
o odio dos judeus; a igreja é perseguida, os rece o crime o ama a virtude; que recom­
ch ristãos doJeru saJem sõ dispersam por pensa com eterna felicidade o culto, que
) tfwífi a Palestina, O-parte do O j^ to jio n d o lhe é dado, o bem que se faz aos outros
o s iudens tinham estabelecimentos e pas- homens, a paciência e a resignação nos
) sam Jogo a"mvgãr ã todos os povos . ' inales annexos á condição humana: e que
[ ^V iu-se, pois, sobre a terra uma socie­ pune com supplicius sem íim a impiedade
dade de homens, que atacava abertamente que o ofFcnde, o vicio que degrada o ho­
o paganismo, annunciando que não ha mais mem, c o crime (pie affecta o bem da so­
que um Deus, creador do Céo c da terra, ciedade. Emfim, practicavam os christãos
a sabedoria dó qual governa o mundo; que a moral que ensinavam, e preferiam antes
o homem, pelo abuso que fizera da liber­ morrer do que transgredir os seus precei­
dade, recebida do seu Creador, se corrom­ tos, ou deixar de os ensinar aos homens.
pera, que a sua corrupção tinha sido com- Os milagres e a graça secundavam seus es­
municada á sua posteridade; que Deus, forços; um numero "prodigioso de judeus e.
compadecido da desgraça dos homens, ha­ de pagãos abraçou o Christianismo. OlTere-
via mandado seu Filho a terra, para resga­ ceu, pois, a igreja christã ao mundo o mais
tai-os: que este Filho era igual a seu Páe; estupendo e interessante espectáculo: veja­
mos as heresias que a perturbaram.
1 A ct. 4.
DISCURSO PRELIMINAR 47

CAPITULO II

D as scism a s. d iv isõ e s e lic r e sia s q u e se levantaram


e n ír c os clieistã o s d u ra n te o p r im e ir o se eu Io

Já havia muito tcmpo quo a philosophia negaram a sua authoridade, combateram a


d’AIexandria tinha penetrado entre os ju­ doutrina dc Jesus Christo pelos princípios
deus c samãritaiios. Na conformidade dos dos philosophos, c substituiram ao dogma
princípios ülcsla philosophia era o Ente do Christianismo o svstcma das tMiiananlcs.
Supremo uina luz immensa de pureza o fc- [leias quaes procuravam exnlicar todos^s
cundidade infinitas; inininicraveis cspiritos jactos, (imTnão podiam contestar aos ehris-
tinham sahido do seu seio, formado.o mun­ taos: taes foram Sjnião. Menandro, Cleolm-
do, governa vam-no o produziam n’cllc to­ lo, The.odoto. Gortheo. Outros recebiam a
dos os phenomenos. drmtrina dos apostolos, unindo os seus prin­
r Levados estes princípios a Jerusalem e a cípios, umas vezes com a religião judaica,

Í Samaria, se coadonaram, como já vimos, j outras com a philosophia cTAIexandria.


com a crença dos judeus, e tinham servido [Olhavam os apostolos, como testimunhas,
para explicar os milagres dc Moyses, e toda que lhes attestavam factos, e procuravam
a historia do povo judaico. Muitas pessoas a explicação dos mesmos nos principies da
attribuiam todos os successos a gênios en­ | philosophia, que tinham àdoptado: taes eram
carregados do governo do universo. Qs ju­ | os christãos, a quem S. Paulo éxprohava,
deus c samaritanos. achavam-se na mais por se recrearem com fabulas e genealo-
\ i v j n r a c i ^ d a ^ í ^ j i ^ dajiPi^rjeao do [gias sem fim. 1 Muitos negaram ou altera-
Messias: suas desgraças,, a opjir(‘ssaõ_7íõ'- ; ram por explicações allegoricas tudo o (jue
baixo da qual gemiam, dirigia constantc- ■não podiam conciliar com os pi incipios do i
menlc seus cspiritos para este libertador. •systema religioso, que tinham formado. As-
Aquclles que obstinadamente criam nos Isim, nretendiam ós nazarenos nue os aposXj i>
princípios da philosophia d’Alexandria acre­ tolos náõ tinham comprchendido a doutri- j r»
ditavam que o Messias nào havia de li­ na dc Jesus u in s jo, o uniam oThristianis-/ £
bertar os judeus senão por meio de ge­ ino com o judaislúo. D’esta sorte Himeneu,
nios e pensaram que seria o Messias aquelle | Alexandre. Phileto. Hermogenes, efc.. reiei- í
que melhor os soubesse mandar, e fazer-se ; taram o dogflTTnia resurreieao dos corpos.
obedecer. IJfonvo. nortanlo. homens eme Iporque olhavam a união da alma e do cor-
^buscaram no estudo da magia a arte dc | po como um estado dc degradação, que não
dominar os gênios c onerar nrodigios. Des­ ! podia ser a recompensa da virtude.
co b riu ^ ^ ao menos, a de seduzir a imagi­ Eslribados n’estes princípios, não viam
nação por destrozas, ou por prestígios, e na religião christã senão uma moral desti­
viram-se judeus c samaritanos, que se cm- nada a elevar o homem acima dos sentidos,
ypenhavam em imitar os milagres dos apos­ e das paixões: levavam todos os seus con­
tolos, pretendendo, umas vezes, serem o selhos ao excesso, c faziam um crime dc
Messias, outras uma intelligencia em que se occupar cm nutrir o corpo; entretanto
Deus tinha depositado seu poder, outras um que outros persuadidos de que a alma é
genio benefico descido á terra para procu­ de sua natureza incapaz de ser corrompida
rar aos homens uma feliz iminortalidade, pelo corpo, se. entregavam sem escrupulo
não depois da morte, mas nesta mesma vi­ a todos os prazeres dos sentidos.
da; taes foram Qosiles. Sjü^o, e Menandro. Estes olhavam Jesus Christo como um
Como o Messias se havia de conhecer genio descido do Céo, que tomara a appa­
não sómente pelos milagres, mas pelos ca­ renda da humanidade para esclarecer os
racteres, debaixo dos quaes o tfinqam an- homens; aquclles, como um homem mais
nunciado os profetas, uns como Dositcs, os
alteraram para os apropriar a si; outros, * Paul. 1. Ep. ad Tim. C. 20. ibid. c.
que não podiam fazer a si esta applicacão, 3. v. 4. ad Tit. c. 3. v. 9. ad Col. c. 0. v. 1 . 6 .
48 DISCURSO PRELIMINAR

perfeito que os outros, a quem um genio gica, e se esforçaram a imitar os milagres?


celestial tinha dirigido; tacs foram os naza­ que ellc fizera" c a practicar uma moral
renos, Corinthio, os cbionitas e aquclles, a mais perfeita que a dos christãos: taes fo­
quem S. Paulo reprehende por levantarem ram AppQ^onio dc Thiancs, c seus discipu­
questões, mais proprias para excitar dis- los. 1
. cordias, do que para fundar o edifício de Os epicurios, pelo contrario, que nãoad—
3 Deus por meio da fé. 1 Todos foram con- mittiam na natureza senão materia c mo­
^ demnados nclos apostolos~õ sciiarados da vimento, necessarios e eternos, rejeitavam,
igreja, como corruntoros da lé. Não ob- sem mais exame, o que se lhes dizia dos
j slanh1, iodos tiveram mscipuios, que, assim christãos. Os acadêmicos, que faziam pro­
v. como seus mestres, asseveravam nao eusi- fissão de duvidar de tudo, e que viam que
* liar senão a "doutrina de Jesus Christo c a verdade ou falsidade da religião não era
lTâra/justijicar suas prctcncòcs sustentavam de consequência em relação ao estado do
uns, (juc Jesus Christo havia ensinado uma homem, depois da morte/tomaram pouco
3 dupla doutrina, uma publica, proporciona­ interesse no que ouviam a respeito dos
da á iiUelligoncia do povo, a qual se conti- christãos.
3 í níur n o livro do Novo testamento, c outra Os sacerdotes, os devotos idolatras, c tudo
*à» particular, que sómente ãioníiára a um pc- o que vivia do culto dos falsos Deuses, ar­
^ o ueno numero de discipulos, e não podia chitectos, musicos, vendedores dc perfu­
ser comnrehendida, senão por homens es- mes, csculptorcs c estaluarios se rebella­
clarccidos, a qual lhes íõra Iransmittida ram contra os christãos, imputaram-lhes to­
nclos discínulos de Paulo e s. ívlatheusT das as desgraças c desordens c de nada se.
Outros cerceavam dos livros do A ovo esqueceram pára os tornar odiosos. Os an­
•Testamento o que combatia* as suas opi­ ti-religiosos olharani o Christianismo como
niões: eompozcram novos Evangelhos, c uma nova superstição. Os magistrados e
cartas, que attribuiram aos apostolos. Al­ politicos, persuadidos do que toda a reli­
guns asseveravam não ensinar, senão a gião que accusa as' outras dc dar a Deus­
doutrina que Moysés, Zeroastró, Abrahão, um culto impio c sacrilego, tende a pertur­
Noé tinham ensinado, e que estava encer­ bar a paz dos estados, c a armar os cida­
rada cm livros, que traziam os seus no­ dãos uns oontra os outros, viram nos chris­
mes. tãos uns hòmcns perigosos. 2
Viram, pois. n’cste tempo não sómente Promulgaram-se leis contra os christãos,
differentes seitas, que tomaram o nome de que foram rigorosamente executadas por
ehristãs, mas também falsos Evangelhos, Nero, Galba. Othao, Vitellio, Vespasiano; e
cartas e livros suppostos, e attribuidos aos Tiãõ instáVido na'bxccução, foram re­
apostolos, aos homens celebres da antigui­ novadas no tempo dc Domiciano. Nerya,
dade c aos patriarchas. 3 ininMO^e_-ÃWigiie, fez ceS&if' as persegui-
Todas estas seitas, cheias d’cnthüsiastas, (•oese* violências contra toda a qualidade
. e de fanaticos, empregavam tudo o que po­ cie pessoas e contra os christãos. Não ob­
dia fazer prevalecer seus systemas religio­ stante todos estes obstáculos, a Igreja fun­
sos, (». os espalharam pelas provincias do dada pelos «apostolos, inalterável na sua dou­
Oriente. trina e incorruptível na sua moral, fazia
£ - Os philosophos pythagoricos olharam Je- prtigrcssos rápidos cm todo o imperio ro-.
Jjrsus. Christo como uma intelligencia, que mano, entretanto que a maior parte das sei­
^dom inava sobre os genios, por meio dama- tas, que vimos nascer, se desvaneceram ou
cahiram no esquecimento.
* I. Ad. Tim. 1. v. 4. etc. 22. c. 4. 2. 7.
ad TU. 4. v. 14. 1 Vil. Appol. Thyan. . .
- Jrcen. advei'S. Hcer. I. 1. c. 2o. /. 3. c. 2 Tacit. annat. I. d5. c. 36. Sueton, m '
v. 5. Ciem. Alex, strom. I. 7. c. 17. Neron. i. c. 16. .-
3 Fabric. Codez apocriph. Ciem. Álex. TacÂt. annal. I. 15. c. 44. Sulpit. Sev:.l•.
strom. I. 1. c. 15. I. 6. c. 6. Enseb. Hist. 2. Oi'ol. I. 7, c. 7. Lcict. de mort. pers* G-
Eccles. I. 3. c. 2o. Constit. Apost. 1.6 . Ci 16. Enseb. Hist. Eccles. I. 3. c. 20. c
PP. Apost. t. 1. pag. 344.
DISCURSO PRELIMINAR 40

CAPITULO III

C o n seq u ê n c ia s d o p r o g r e sso do C h ristian ism o


n o p r im e ir o sé c u lo

Os apostolos o os pregadores do Evange­ pidos, e mais brilhantes, c todas as seitas,


lho acharam em Jerusalcm, no Oriente, e que a combatem, desapparecem c se ani­
' em todo o imperio romano, inimigos de to- quilam. 1
• das as condições. A evidencia dos factos, que os apostolos
----- i.° Judeus* animados d’um odio violento annunciavam, está, pois, iinmcdiatamente
contra Jesus Christo e seus apostolos, entre ligada com o progresso do Christianismo, c
os quaes tinha o mesmo ensinado, e feito com a extineção d’estas seitas, que a ata­
os milagres que os apostolos attestavam. caram na sua nascença. Nós temos, portan­
- — 2.° Discipulos dos apostolos separados da to, diante dos olhos factos subsistentes, que
igreja christà, a quem o desejo da vingan­ estão necessariamente ligados com a ver­
ça animava, os quaes conheciam a fundo a dade do testimunho dos apostolos, e tão
religião christà, e nào deixariam de reve­ necessariamente ligados, como são os mo­
lar a impostura dos apostolos, se ellcs fos­ numentos mais authenticos com os factos
sem culpados. mais incontestáveis. Os lapsos do tempo, e
— 3.° Chefes de seita illuminados, prácticos a infidelidade dos testimunhos, não poderam
na controvérsia, hábeis na arte de persua­ alterar estes factos alliados com as préga-
dir o povo, animados pelo amor mais ex­ cões dos apostolos. A certeza d’estes factos
cessivo da celebridade, que oppunham aos é para nós igual á que tinham os contem­
apostolos todas as objecções excogitaveis, poraneos dos apostolos.
que nada esqueciam para as tornar sensí­ Não ha senão dous meios para explicar
veis, e triumphantes, que discutiam com a o progresso da religião christà, c a extine­
mais escrupulosa exactidão os factos, que ção das seitas, que d’ella se separaram, e
servem de base ao Christianismo, c que so­ que no seu nascimento a atacaram; estes
bre elles fizeram o exame mais rigoroso. meios são: ou a impossibilidade de escure­
-— .4.° Philosophos inimigos dos apostolos, cer a evidencia dos factos sobre que ella
que combatiam a sua doutrina, attribuiam se apoiava, ou uma attenção continua do
á magia os milagres de Jesus Christo, e dos poder secular, para impedir que aquelles
apostolos. que se separavam da igreja e dos apostolos
os° Pagãos aflerrados á idolatria, por con­ revelassem a sua falsidade. Ora, se alguma
vicção, por superstição, ou por interesse, cousa ha indubitavel, ó que o poder secu­
os quaes perseguiam os christãos encarni- lar empregava toda a sua vigilância c to­
çadamente. das as suas forças contra os christãos.
É póis sem dúvida, que os milagres de D’esta fórma, se a religião christã fosse
Jesus Christo, e os dos apostolos tinham falsa, os seus progressos e a extineção das
n’esse tempo um grau de certeza, e evi­ seitas, que a agrediram no seu nascimento,
dencia, que não admittiam contestação. seriam um efleito, não sómente sem causa,
Se taes milagres não houvessem tido este mas um facto acontecido, apesar do con­
grau de certeza, se os apostolos tivessem curso de todas as causas que deviam ne­
sido colhidos na mais leve infidelidade, seus cessariamente impedil-o.
inimigos o teriam manifestado; e esta infi­ Entre estes sectarios, muitos formaram
delidade não tinha necessidade de ser bem systemas para explicar como Jesus Christo
provada para suster absolutamente o pro­ era Filho unico de Deus: logó tinha Jesus
gresso de uma religião, que se apoiava Christo ensinado que elle era Filho unico
n’estes milagres, e combatia as paixões n’um
século cm que a corrupção era extrema.
Entretanto, foi nlcssc tempo mesmo que a 1 Theodoret. har. fab. Z. 1.
religião christà faz os progressos mais ra­
4
50 DISCURSO PRELIMINAR

do Deus, e confirmado, com milagres, esta Todas as interpretações que os socinia-


doutrina. nos dão ás passagens da Escriptura, que
Os apostolos separaram da igreja todos faliam da divindade de Jesus Christo, são
os que criam que Jesus Christo não era se­ logo contrarias ao sentido, que lhes davam
não uma creatura mais perfeita do que as os apostolos: o exemplo d’uin só hereje, se­
outras: portanto, era matéria de fé, no pro­ parado da igreja pelos apostolos, porque
prio tempo dos apostolos, que Jesus Christo tinha Jesus Christo na conta dum a mera
era eterno e vcrdddeiró Deus, é não uma creatura, aniquila todos os commentarios
creatura* o esta crença foi um ponto fun­ dos irmãos polacos.
damental do Christianismo.

SEGUNDO SÉCULO

CAPITULO I

E sta d o p o litic o e c iv il do m iiisd o

As desordens que reinavam no império até então desconhecidas. 1 Trajano percor­


desde Tiberio até Domiciano, pareciam an- reu, subjugou, assolou quasi todas as re­
nunciar a sua aniquilarão, ou sua divisão giões onde Alexandre tinha estendido seu
proxima; mas n qscnlha. d'mn inmerador imperio, e feito reinar a paz e a felicidade.
virtyflSQ.fl.çflnsçjT.yfr- Nerva foi este inine- Todos estes povos, cm outro tempo sub-
jJ lSgt; a sua elevação ao throno íez renãs- mettidos pacificamente ao império d’Alc-
cer o animo, e a esperança em todos os co­ xandre, aborreciam a dominação romana,
rações: os primeiros momentos do seu go- e não se continham senão pela força e pela
yerao ofiereceram a imagem do século de cffusão dc muito sangue. O Egypto’, Arabia
éuro, e todos os seus dias foram emprega­ c Lybia estavam a ponto de rebellar-se; os
d o s a estabelecer, sobre solidos alicerces, a marcomanos e os sarmatas atacavam o im­
felicidade do imperio: uniu duas cousas, perio. Adriano abandonou quási todas as
jaté então, incompatíveis, o poder soberano conquistanio~T7aian^~UTíínitou o imperio
Ido imperador, e a liberdade dos povos. 1 nÕEuphratcs. Voltou todàs~as"suas inten­
íBuscou por todo o imperio o homem mais ções para a paz, posto que fosse um excel­
distincto pelos seus talentos militares, bon­ lente general; concedeu pensões a muitos
dade o virtude para o fazer seu collega e reis barbaros; fez reinar a justiça no inte­
successor . 2 Nerva tinha filhos, parentes e rior doimperió; entretem um número con­
amigos, e entretanto foi n’um estrangeiro, siderável de tropas, ás quaes dá uma dis­
em Trajano, que Nerva encontrou estas ciplina admiravel, e que elle exercita in-
qualfdaaèsrNunca Roma foi tão poderosa cessantcmente, como se estivesse preparado
e soberba como sob o poder de Trajano: para a guerra.
clle fez reinar as leis no império, subjugou Antonino7 que lhe suecedeu, não se des­
os daceos, deu reis aos parthos, conquistou viou d'cstc plano, cuidãndolflais cm defen­
a Armenia, a Arabia-Feliz, e a Patréa, a der as raias do imperio, do que cm as es­
Assíria, e um numero incrível de nações tender. Roma jamais teve um imperador

* Tacit. Vit. Âgr. c. 3. i Dion Cassius in Trajan. Amien. Mar­


* Plin. Paneg. p. 10. Dion. Cassius 1 68. cei. I. 14.

\
u
>» DISCURSO PRELIMINAR Õ1
lão justo c virtuoso, e nenhum houve tão susteve o esforço dos barbaros c dos mais
respeitado das nações estrangeiras, 6 que povos inimigos; mas no interior era assola­
tivesse menos guerras que sustentar. 1 do por Commodo, e. por aquelles (pie go­
Não foi tão pacifico o reinado de Marco vernavam sob seu dominio. Alguns conju-
Aurelio, j uccc'ss~or jlõ Antonino: os parthos rados livraram a terra d’estc monstro, nas­
•c'ãfmomos atacaram o imperio no Oriente; cido para desgraça c vergonha da humani­
no Occidente os marcomanos, nariscos, her- dade.
inonduros, quados, mouros, <5 um numero PertinazJhe succedcu, c foi assassinado
incrível de nações barbaras penetraram no pelos soldados pretorianos, que pozeram o
imperio, roubaram c saquearam as cidades e império, em leilão. Juliano, homem riccTe
as provincias. Marco Aurelio alcançou gran­ voluptuoso, sem virtude, sem talento e sem
des victorias de todos estes inimigos; mas espirito, o comprou, c foi acclamado impe­
foi obrigado a permittir a muitos d’estes rador em Roma. Com a noticia da morte de
povos que se estabelecessem nas provincias Pertinaz, e da elevação de Juliano, os exer­
do imperio. citos do Oriente, da‘Illyria e. da Inglaterra
Commodo, filho c successor de Marco Au­ elegeram Niger. Albino e Severo.
rélio, excedeu cm vicios, crueldade e ex- Teve pois o império quatro senhores, que
travagancia todos os maus imperadores, se guerrearam com furor até o fim do sé­
que o tinham precedido. O imperio esteve culo, sendo a final, tres d’ellcs, vencidos
em armas contra o Oriente c Occidente; por Severo. 1

1 Dion Cassius Spartian. Capilolin Lam- - 1 Dion Cassius in excerpt. Vales. Spart.
prid. Jul. Capit. Hero.

CAPITULO IL

E sta d o da r e lig iã o d u ra n te o seg u n d o sé c u lo

Antes do nascimento do Christianismo, o do Christianismo; em toda a parte se obe­


Polvtheismo. os systemas dos philosophos. decia aos oráculos, aos augures, o se ado­
C a r e l i g i ã o j n d n .i c a 7 n v k l i n n i o g e n e r o h n - ravam estatuas de nau c Jcpedra: também
mano. se faziam ínlaTnes sacrificios a Serapis, c
Os idolatras, os nhilosophos. c ji.idcj.is se se inundavam victimas humanas; mas co­
oppozeranr*igualmento ao progresso do meçava-se a conhecer a absurdiílade e o
Christianismo, mas sem embargo de seüs horror d’este culto. Os egípcios foram ty -
esforços se multjplicaram os christãos, for­ pubqaaleJiQXiia, SeràntsTanéado no Tibre
mando uma sociedade, que se estendia por por detemiiiia^lQ-d^sciiadp. c os saenfi-
quasi todo o império romano. cios humanos, ]ior então nrohibidosaprãm
Assim se viam sobre a terra no princi­ iuleiranlento ãürofftdos no reinado de Cláu­
pio do segundo século qivil^religiõcs: o dio. 1 Assim se via uma cspecie de lucta
PpL\:tUçj£mo, os syst(^i\^dj^QSüSjiüS 4)hi- CTTTre a razão, a superstição c o Polythcismo.
losoplios. o Judaismo e o Christianismo, ca- No meio das agitações c transtornos do
(tauma das quacs fazia todos os esforços para imperio, apnarcccu ejiiLgriO-um-harbouaz,
destruir as outras, o ficar dominante cm annunciando^õ~õ Jifrciiador_dos gallos, c
iodo o mundo. tomm o U tulo dé 'Tíeng. Este fanatico teve
logoiüsciljulps; c todo o têmtoiTó^d^An-
I tu iij^ t a A ^ a j iq n t^
ce^ihOJXJidQral^quando a tropa de Yi-
tellio e os .niviljprõs dAntun ãceommet-
Do Pohjlheismo durante o segundo século tcram_e dosbaratáranTcstes fanaticosrUa-
ria, seu clPefe, foi préso c êxpostò asleras:

Dominava o Polythoismo no imncrio ro- 1 Tacit. annal. l. I. c. 8. o. Sueton. Plin.


mano c sobre todo o ~õrt)C no nascimento Hisi. J. 30:
52 DISCURSO PRELIMINAR

cilas não llic fizeram mal, e já o povo o mc favorito, lhe levantou templos, e creou
suppunha invulnerável, quando uma cuti- Sacerdotes para lhe dar um culto. 1
lada lhe tirou a vida . 1 Antpnino foi religioso observador dc to­
No tempo dc Vespasiano, VjUlfída^^LflüSm das as ceremonias do paganismo.
TacitoxbamajiAMiu cm dasJBructcros, era Marco Aurelio adoptoiUodas_as super-
reverenciada como uma deusa; c as suas sticões de Roma, e das outras nações: cria
prophecias fãzianf tomar as afmas a todos nos presagios, nos sonhos, c cm*todas as.
os povos d’Allemanha, ou os tinham em prácticas supersticiosas; os mesmos pagãos
paz. 2 faziam zombarias d’isso. Ainda se conserva
Respeitou Traiano o Ente, Supremo. c um distico em que os bois brancos desejam
comtudo permittía que se offerecessem sa­ que cllc não torne victorioso com receio
crifícios ás suas estatuas, c se jurasse pela de que extermine a sua raça. Spvcro col-
sua vida c pela sua eternidade. 3 locou Commodo na classe d q sjk iises, in-
Tinham-se prolubido os sacrifícios huma­ stftuRTTestas7 c' uni pontiTiceTem sua hon­
nos, e para evitar as desgraças dc que se ra, entretanto que expunha aos leões Nar-
achava ameaçado o imperio romano, pelo cizo, que tinha estrangulado este monstro. 2
( crime dc tres* vestaes, foram enterrados vi­ D’csta maneira se destruía o Polytheis-
vos na praça dos Bois dous homens, c duas mo, por assim dizer, a si mesmo, ao passo
mulheres das Gallias c da Grécia . 4 que a razão se illustrava, e ia ferir pelos
A^U^ ixq» is illus- fundamentos. Via-se pela nova creaçào do
tradosjiQ_seuj.C£iii1 ,o e um'dos mãís^rrpiT- Deuses, o que se devia ajuizar, o que se
sfíciosos: recorreu a toda a cspccie dc adi­ devia pensar dos antigos; e os defensores
vinhações c de magia; consagrou templos do Christianismo empregavam utilmente-
. a si mesmo: afogou Antinuo, com a espe- este argumento contra o Polytheismo . 3
j' rança de prolongar sua vida por este sa-
4 orificio, e depois da morte d’este seu infa-
1 Spart. Adr. vil.
1 Tacit. I. 4. c. 61. 2 M. Aurel. vit. Commed. vil. Sever. viL
2 lbidem de morib. Gennanr. Diod. Vai. p. 737.
3 Plin. pan. p. 4. I. 10. Ep. 89, 102. 3 Jnst. Apol. 1. Athenag. Tal. Tert.
4 Plut. quest. sur les Bom. Apol. etc.

CAPITULO III

D o s p r in c íp io s r e lig io s o s «los p h ilo so p h o s, e d o e sta d o


d o e n te n d im e n to h u m a n o ã ccrca das se ie n e ia s e m o ­
r a l d u r a n te o j e s u n d o s é c u lo

Domiciano, um dos mais viciosos, crucis, va por toda a. parte, não havendo pessoa
indigpos e despresiveis imperadores que que ousasse dizer seus sentimentos, nem
Roma teve, foi também um dos maiores ini­ escutar os alheios, por causa dos espiões,
migos das letras c da philosophia. derramados por todos os lados; e assim como
As crueldades d’este principe fizeram os romanos tinham visto a liberdade no-
perder ao senado os seus mais illustres mais alto grau nos tempos felizes da repu­
membros e aterrados os outros, ficaram re­ blica, viam agora o ultimo grau da escra­
duzidos, ou a calar-se, porque não ousavam vidão no governo domiciano. Ter-se-lhe-ia,
dizer o que pretendiam, ou a dizer, por ne­ com a falia, tirado mesmo a memoria, se
cessidade, o que não queriam. Convocava- fosse tão possivel esquecer, como c calar . 1
se o senado, para nada fazer, ou para au- Para extinguir sobre a terra, se tanto es­
thorisar osvmaiores crimes; de sorte que os tivesse cm seu poder, até a ideia da virtu-
melhores juízos estavam entorpecidos, froi-
xos c como brutalisados. 1 Tacit. vit. Agric. anual: l. 16. c. 26-
A-mesma consternação e silencio reina­ Sueton in Domit.
i V
DISCURSO PRELIMINAR 33

de, Domiciano desterrou, ou mandou ma­ A philosophia dos cvnicos c d’Epicuro


tar os philosophos, cujas lições tinham for­ póde impedir que o homem1murmure, c se
mado cidadãos virtuosos, que haviam ata­ queixe das suas desgraças; mas nem tira,
cado e perseguido o crime protegido pelo nem adoça o scnUmcnto iTellas. A moral de
imperador, a quem os tormentos não hor- Pythagoras. Platão e Zonam o isenta das
rorisaram, c cuja morte teria honrado os mesmas, ou o consola;TTpondo, por assim
mais bellos séculos da republica; tacs’ fo­ dizer, o homem fóra do alcance dos maus,
ram: Helvi de, Rnstjco. Seneciam. ele. sustenta a sua fraqueza, c lhe inllamma a
Muitos aos philosophos abandonaram a imaginação; portanto, foram mais geral-
sua profissão, outros fugiram para as extre­ mente adoptados, e se espalharam muito os
midades mais occidcntacs das Gallias, nos systemas moraes Testes tres philosophos.
desertos da Libia c da Scithia; mas deixar O espirito humano, que não havia procu­
ram em Roma discipulos, que cultivaram rado na philosophia outra cousa mais do
cm segredo a philosophia c as letras. Fo­ que um remedio contra a infelicidade, uniu
ram as letras que deram ao imperio o justo á moral, que adoptou, o culto dos Deuses, a
c virtuoso Nerva. Trajano. Adriano. Anto­ invocação dos geuios, a magia, a arte de
nino c Marco Aurelio. 1 adivinhar, e, cm uma palavra, tudo o que
Trajano tinlia-sc applicado pouco ás le­ a superstição e fraqueza haviam imaginado
tras, mas amava os sábios c respeitava os contra as desgraças. Adriano, um dos ho­
philosophos. 2 Durante o dominio d’este im­ mens mais esclarecidos do Teu século, re­
perador, as intclligcncias sahiram pouco a correu a todas as especics d adivinhaeões,
pouco do entorpecimento cm que a tyran- á magia e astrologia judiciaria. 1
nia de Domiciano as havia posto: nenhum Ainda mesmo entre os philosophos pla­
talento, nenhum homem de merito foi des­ tônicos houve alguns, como Apoleo. que
conhecido, ou deixou de ter recompensa no procuraram nos minei pios da magia a aTté
seu reinado. N’clle floresceram as letras, c JcipgraT prodígios: disclm ilosT r^oTlõuio
viram-se muitos c bons historiadores, poe­ d O S E ü à ,c q m O le x a m lr e ^ síL erigiram
tas, oradores c philosophos. em pronhetas. e _nor meio de prestigios j t
Adriano, Antonino c Março Amyli o fo­ iinpudencía-sejduziram muitas pessoas j lo
ram habcis_nãslctras e em philosophia. Seu povo, c a ilida a lgumas~dist inetas; tal Toi
roinadalbTõ dos sainoS, dOS liumenS de le­ ®iIumn,-hom£m 3 a_l)rimeira qua[idade,
tras e dos philosophos. l\oma, Athenas e que se casou ÇjluuUllh^Yyexandrç,pfir-
Alexandria tinham escolas celebres: tam- q u e^ tíL J jn p o sR E Z O eE u H E i, jiuiLera
bem as havia no Oriente e nas Gallias. Os emjn^icla,-e-a^ua^i]JU.a^ 2
nliüosofíhos^ desforrarias por Nem^Vüsnà- Bem que a philosophia oriental, a de Py­
s um oellõniiciano, tinham levado a luz da thagoras, Platão c Zcnam, separadas e des­
pmiosomua aos povo? barbaro^ unidas fossem as dominantes, todavia se
Desde Tiberio todos os vícios e paixões encontravam epjcurcos, peri patheticos e
fataes ao gênero humano andavam soltas e pvoihonicos: m ãsõccupadosacoiiiirater os
armadas d’authoridade. cstoicõsj plátonicos c os christãos, ou a con­
Não oíTerecia a sociedade recurso algum ciliar a philosophia de Aristotcíes com a
contra estas desgraças, porque o tempo ti­ de Platão. Assim estava empregada uma
nha depositado as forças da sociedade nas parte dos esforços do espirito humano em
mãos d’um unico homem, que tudo sacrifi­ dcbellar os erros que ellc proprio tinha
cava, á felicidade propria. O homem, pois, imaginado, e verdades que havia desco­
se determinou a procurar este remedio em berto;. cmquanto a outra parte se empre­
si mesmo, na sua razão e no seu interior; c gava cm defender a mistura das verdades
foi para a philosophia moral quc .se volta­ e erros que havia confundido. 3
ram todos os esforços do espirito humano
durante este século. Cada um adoptou a 1 Dion. I. 69. A d ria n .v it. Euseb. chron.
moral que melhor se coadunava aos seus 2 Apud. Florid. Metamor. Aug. de civit.
habitos, gostos e situação. Os caracteres I. 2. c. 12. Epist. 135. 137. 138. Lucian.
duros escolheram a inóral dos cynicos, os Pseudomart. seu de Alexandro pmstigiatore.
brando^ doces a d’Epicuro. 3 Aulugellc Noct. art. Suid. Lexic. Plii-
lostr. de vit. sopliist. Dl. Aurel. vil. Tiber.
1 Eutrop. Vict. Epitom. Dio. /. 6 1 Ta- Hist. des Emp. t. 2.
5i DISCURSO PRELIMINAR

CAPITULO IV

lis ta d o íI ips jsadcus ilsaraatc © segnm So sccasJ©

Depois da morte de Herodes, tornou-se a no (em 11 o ) na j\lexajxdria,_cm todo oJlgv-


Judia uma provincia do imperio romano. pTo^n«ajq^aida,' na Lybiã~Cv'rinaica. íio
Os judeus, submettidos aos romanos, con­
servaram a pureza do seu culto; e este povo, Quando Adriano quiz mandar uma colo­
que tão propenso era á idolatria, em outros nia para Jerusalem, o impostor Uarcoche-
tempos, estava disposto a rcbellar-sc, c b&s se íinnunciou aos*judeus como o Mes­
prompto a sacrificar a vida, antes que sof- sias. Uma pouca d’cslòpa accêsa, que tinha
frer cm Jerusalém cousa alguma, contraria na boca, por meio da qual exhalava fogo,
ao culto do Ente Supremo. Aniqtbjaram^c persuadiu ao povo que com eíTeito era clle
apenas souber-ani-urie^Pila tos Jizera__cntrar o esperado. Os principaes rabinos pulÍHca-
cm T crusa lem os estandartes romanos, nos ram (pie cllc era o Christo e os judeus o
quaes est a vMuruuxtjrgas~~;i'QCgtlt7is~rT7i‘cD3ri'- seguiram, c o proclamaram por seu Rei.
ííuíTolTerecer-se a m o rlc- aiTTE^, que v ir Ao principio despresaram os romanos
collocada no templo a estatua de Caligula. este impostor, mas tanto que o viram á
A mistura de idolatras c judeus, junta testa d’um exercito, e prestes a ser segui­
com a tyrannia dos governadores c inten­ do de todos os judeus, Adriapo mandou
dentes, produziu nos judeus um odio vio­ outro contra elle, que lhe:fez uma mor­
lento contra os romanos c idolatras, susten­ tandade prodigiosa; c por um cditOLforam
tada na esperança sempre subsistente d’um todiisjisJudeus_pxcin[^q§.^dejín^ar em
libertador, que havia de subjugar todas as Jerusalem, e de habitar cm qualquer dos
íações; pelo que, nãoja^dülL ^ ^ logardsTTonde esta cidade se podésse des­
ieJiL^cdieão^m.Ienisalfij)], c pon.toda^i cobrir. 1
ladea. Svria e Envido. Comtudo, não perderam os judeus a es­
"Vêsuasiauo se úôz em marcha contra el- perança de sahir da triste situação cm que
les: l^ ou JH to„Iòi:u sãI^ n , foz arrasar o se viam; esforçaram-se em fazer prosely­
tenjpjq^ c quasLtoila a-ciriade; "véndeiLJis tos, o se revoltavam logo que as circum­
j ddeus,J3ilCLi&&vaiiJ^^ standas lhes pareciam favoráveis. Nqjjxndu
persouj)daJBalostiu«Le^^ • segundo século se viu Severo obrigado à
A destruição de Jerusalem e do seu tem­ fazcrTfics JL-gucrra. 2
plo aniquilou tudo b que o culto judaico ti­ Eis o estado dos judeus depois da ruinaA
nha de mais augusto. Os judeus se acha­ de Jerusalem; dispersos por todo o orbe, e j
vam em estado de desunião e misturados não podendo já oíiorcccr sacrifícios em Je-1
com todos os povos. 1 rusalem, tiveram sjn^gasjxiutqda^a.iiitr - 1
Em todas as partes conservavam um im­ te ju i^ q n a c § J ic J .iisk to as I
placável odio. contra o resto do genero hu­ suasjjístm dadcs. Conservam a Gircimci-J
mano; ò a mais viva esperança da Yinda do sao, o sabbadoTl Paschoa, e algumas ou-)
Messias, concebida por cllcs, como um con­ tras cerémonias.
quistador que havia de subjugar todos os Os Sacerdotes que escaparam á desgraça
povos. de Jerusalem, occultaram-se na Palestina,
A religião,.pois, e o estado cm que se c procuraram reunir n’ella os restos da sua
viam, os conduzia continuamenle á revolta: nação. Como eram os m ais instruídos na
'para pôr em acção esta disposição, não fal­ religião e na lei, a ellcs recorreram os ju­
tava senão quem ousasse dizer-se o Mes­ deus dispersos,. p«ara se instruírem, c os-
sias, e que podésse, por algum, prestigio, S«acerdotes residentes na Palestina, esco­
fascinar c aquecer os espíritos, Foi «assim lheram entre si os mais hábeis, para irem
que elles se rebellaram, imperando Traja-
1 Euseb. Hist. Ecçl. I. 4, Dion. 1.68. 69.
1 Josepli. antiq. Judeor. de bello Judosio 2 Just. dial. p. 217. Tiliem. Hist. des-
T illm . Hist. des Èmp. t. L Emp. t. 2. p . 311. Sever. v ii. Oroz. I. 7.
DISCURSO PRELIMINAR 55
regular nas differentes synagogas o que res­ dispersos, o qual visitava as synagogas, e
peitava á doutrina, á lei, ás ceremonias, e que cllcs lhe pagavam os gostos da sua vi­
ao culto. O Sacerdote que ficava na Pales­ sita. 1 u
tina era o chefe do collegio, o qual se não
collocava distante de Jerusalcin, aonde os I
Sacerdotes esperavam vér restabelecido o 1 Tillem. Hist. des Emp. t. í.p . G70, clc.
templo. Este foi o patriarcha dos judeus Basnagc Hist. des Juifs t. 1. c. 1. 2.

CAPITULO V

E stad o e jurogrcsso do C liristianisono


n o seg u n d o sé c u lo

Penetrou a religião christã em todas as Os mesmos christãos oíTereceram ao impe­


provincias do imperio romano, c em todos rador apologias da sua religião. Adriano,
os povos coni quem tinha relações: os tem­ pois, prohibiu que se fizesse cargo das ac-
plos sc viam desertos, c os sacrifícios quasi cusaçoes tumultuosas do povo, c que se
interrompidos. O povo amotinado pelos Sa­ matassem os christãos sc se não provasse
cerdotes, c todos aqucllcs que o interesse que elles eram culpados d’um crime que
prendia ao culto dos Deuses, pediam a morte merecesse a morte. 1
dos christãos, e os magistrados para pre­ De nada sc esqueciam os Sacerdotes c o
venirem a sedição, viam-se obrigados a povo supersticioso, a fim de revogar este
punil-os; mas apesar d’csta severidade o edito: elles pintavam os christãos com as
numero dos christãos augmontava todos os còres mais negras, imputavam-lhes os ter­
dias; de sorte que tal rigor podia despo­ remotos, que tinham assolado muitas pro­
voar o imperio romano. Sabedor d’isto Tra­ vincias. Os estados da Asia c muitas pro­
jano, prohibiu que os procurassem, mas vincias requereram a Antoiiino a liberdade
ordenou que sendo déinmciàdds, fossem de os procurar c fazer morrer, mas não a
punidos. Porém essa lei não era capaz de poderam conseguir. Antonino cria que os
suster o progresso do Christianismo: os mi­ tractos e supplicios eram mais proprios
lagres, a pureza dos costumes dos chris­ para multiplicar os christãos, que para ex-
tãos, o zelo com que annunciavam a sua tinguil-os, c que era cousa injusta punir
religião, a constanda com que morriam homens que não tinham outro crime mais
antes que renuncial-a, as verdades conso- que o de não professarem a religião com­
ladoras que elles enunciavam, a felicidade muni, c que sc devia deixar á conta dos
eterna, que promettiam aos que morressem Deuses o aniquilar os christãos, e vingarem-
por Jesus Christo; c os favores sobrenatu- se d’uma seita que o Céo devia aborrecer
raes, que secundavam seus esforços, pro­ mais que os mesmos homens. 2
duziram um numero infinito de ehristaos. Marco Aurelio foi mais favoravcl ao zelo
Que força poderíam ter contra uma reli­ dos idolatras: confundiu os christãos com
gião siniilhantc os editos dos imperadores, as seitas dos gnosticos, cujos costumes eram
e a mesma morte, pela qual suspiravam os infames e os encarou como fanaticos, que
christãos? A lei, que prohibiu a busca dos corriam apoz a morte. ?ião havia cousa
christãos, foi vista por grande numero d’el- mais contraria aos princípios da philoso­
les como uma desgraça,. que os privava phia estoica, a qual acreditava que o homem
da coroa do martyrio*elles mesmos iam havia d’esperar a morte sem impaciência,
accusa r-se, dêclarando-se como taes aos c occupar o logar que a natureza lhe havia
magistrados. 1 assignalado, cmquanto assim o quizesse a
A sua virtude não tardou em ser conhe­ lei do destino. Este principe olhava o ar-
cida dos governadores, que escreveram a
Adriano, fazendo-lhe vér a sua innocencia. ! Just. Apol. 1. pro Christ. Rufin.. Hist.
E c c k l. 4. c. 9.
1 * T erM . ad scamil. c. 5. v. 82. edit. 2 Just. Apol. 1. p. 100. Rufin. Hist. 1 4.
Rigalt. c. 12.
DISCURSO PRELIMINAR

<lor com que os christãos buscavam a mor­ as seitas, cujos esforços eram sustentados
te, como uma desordem, não só religiosa, pelo furor do povo, pela authoridade das
mas politica; e portanto permittiu que se leis c poder soberano.
perseguissem. Tiveram algum intervallo de Este estado do Christianismo é attestado
repouso na vida de Commodo, c durante por todos os authorcs christãos, e até pelos
as revoluçóes, que tiraram o imperio a Per- mesmos pagãos. Plinio escreve a Trajano,
tinaz, Juliano, Niger e Albino; mas Severo que o Christianismo nào está sómente espa­
renovou a perseguição, sem comtudo retar­ lhado pelas cidades, mas pelos campos; Lu-
dar o progresso do Christianismo. ciano reconhece que tudo está cheio de
Emquanto os poderes assim os perse­ christãos.
guiam, os philosophos cynicos, epicurios, Estes christãos, de que o imperio estava
etc., atacavam os christãos e o Christianis­ cheio, não eram homens credulos c ávidos
mo; taes foram: Crescendo, Celso, Fronto- da novidade, nem uma populaça vil, su­
nio e um a multidão de sophistas, alguns persticiosa c estúpida; eram pessoas de to­
dos quacs pediam a morte dos christãos dos os estados c condições, cuja viveza fa­
furiosamenlc. 1 zia tremer os impostores, que queriam en­
Foi no meio de todos estes obstáculos ganar o povo; e o impostor Alexandre, de
que o Christianismo se estabeleceu em to­ que já falíamos, não os temia menos que
das as partes do mundo: em Roma, em os epicurios, na presença dos quaes elle
Athenas, em Alexandria, no meio das esco­ prolubia igualmente que se celebrássemos
las mais celebres dos philosophos de todas seus mysterios. 1

1 Cels. Just., Apol. pro Christ. 23. Eusebe, 1 Pline, Epist. I. 10. cp. 97. Lucian.
Hist. Orig., cont. Eccl. 1.4. c*. 16. Minuti Fèlix. Pscmlomant. § 2o. Justin. Tert. Apol.

CAPITULO VI

D a s h e r e s ia s e süita s q u e se lev a u ta ra m
d u r a n te o s e g u n d o s é c u lo

0 Oriente c Egypto estavam cheios que se descobriam, e se estes não dão toda
de
philosophos, que buscavam a origem do a luz, o espirito volta aos antigos princí­
mundo, a .pausa do mal, a natureza c desti­ pios, que concilia com suas novas opiniões.
no do homem, e que tinham adoptado os D’esta sorte, pois, os philosophos orien­
differentes systemas, que o entendimento taes, que adoptaram o Christianismo, não
humano formára sobre estes objectos. encontrando n’elle o esclarecimento d’uina
A religião christã explicava tudo o que infinidade de questões, que a curiosidade
elles tinham buscado sem frueto: eram os humana fôrma sobre a origem do mal, a
seus dogmas annunciados por homens de producção do mundo, etc., se retrahiram,
um proceder irreprehcnsivel, e confir­ diga-se assim, sobre os seus antigos princí­
mados por milagres os mais estrondosos. pios, que se tornaram um, como supple­
Achou, pois, o raciocínio humano na reli­ mento, aos dogmas do Christianismo, c que
gião christã a luz, que inutilmente procurá- se ligaram com estes em mil fôrmas diffe­
ra nos systemas philosophicos; abraçou-a rentes. É assim que o systema das emana­
■com avidez, e muitos philosophos orientaes ções dos caldcus. a j^renca Tios g ê nios, a
s e fizeram christãos zelosos. doutrina aos aoiís nrmcipios se uniram, em
A descoberta d’uma verdade fundamen­ parle, aos dogm a s do Lhrlstianismp, c ser-
tal faz no espirito uma impressão forte, sus­ virainj)gã~^üfíCãr aThistoria dafereação,
pende d’algura modo a sua actividadc e qjirigenraõrmal. a historia da JudébLa, ori-
desvanece todas as dificuldades que o ti­ gmiLxto Cnrístianismo. a redemncão dos_ho-
nham, em suspensão. Logo que esta impres­ mens por Jesus Christo, e formaram os sys­
são se enfraquece, renasce a curiosidade, temas theologicos de Saturnino, Basillcde,
pretende-se resolver todos os contras, que Cacpmu^es, EíTfra^es. Tafênfin, Çemon,
embaraçavam a questão pelos princípios Marcion, Hermogenes, Hérnnas, Bardeza-
DISCURSO PRELIMINAR

ocs, Apcllfts, Taciano, Severo. Horaceon, o império dos sentidos; porque era para este
«dos ScmJunos, dõs Xainitas o dós Opliítas. objecto que tendia 6 movimento geral dos
Quasi todos estes admittiam uma Ínteíli- espíritos n’cste século, como já vimos.

I
gcncia Suprema o gênios, dos quacs au- Esta disposição, ou tendência geral para
gmentavain ou,diminuíam o numero, e que a perfeição e gloria que nasce da austeri­
faziam obrar segundo o arbitrio da sua dade c "do rigorismo da moral, produziu
imaginação. Viram-se, pois, dogmas da phi­ entre os verdadeiros christãos alguns ho­
losophia oriental, pythagorica, platônica, mens, que levaram o espirito de mortifica­
estoica; princípios da cabala, prácticas da ção e de zelo pelo Christianismo muito lilcm
magia empregadas; não sómente para ex­ das obrigações, que a religião e a igreja
plicar os milagres e dogmas do Christianis­ impunham aos fieis.
mo, mas também para alcançar a benevo­ Não formavam estes homens zelosos uma
lência dos gênios, c para se elevar á per­ sociedade separada; mas como os distin-
feição. Aqui são os talismans. pelo meio guiam, creram ser mais perfeitos que os
«dos quaes se crê attrâlíir a graça, e fazel-a outros christãos, e a sua moral mais pura.
•descer do Céo; alli se trazem números: uns Um ambicioso se elevou d’entrc ellcs, pre­
para se desligarem da terra, c elevarem ao tendeu que a sua doutrina era mais per­
«Céo, renunciam a todos os prazeres; outros feita que a de Jesus Christo, annunciou-se
os olham como um tributo, que se deve como o reformador da religião, que Jesus
/ «pagar aos anjos creadorcs, ou como cousas Christo tinha ensinado: predisse que no
indifferentes, que nào podem degradar a Evangelho promettia Jesus Christo enviar o
alma, c por isso de nenhum se privam: jus­ Espirito Sancto para ensinar uma religião
tes jmda£Mujs>JÇQ^ 110 esta- mais perfeita que a sua; annunciou que
tfd 9 ülTTnnõcencia; aquclles condcmnam cllc era o Espirito Sancto ou o Profeta,
como um crime o uso dos alimentos pro­ pela boca do qual o Espirito Sancto fazia
prios para excitar as paixões. conhecer aos homens esta religião mais
Todos presumem practicar o que Jesus perfeita; teve extasis, fez discipulos, que
Christo veio ensinar aos homens para con- se jactavam de inspirados, formaram uma
<luzil-os ao Céo; reconheciam uns que cllc seita extensissima, que bem depressa se di­
era Filho de Deus; outros o tem por um vidiu em varios ramos, differentes unica­
anjo; alguns o creem um homem, sobre o mente em algumas prácticas ridiculas.
qual o Ente Supremo tinha derramado com Era um dos dogmas d’esta seita que não
grande abundancia os seus dons c que ti­ se podia evitar, o martyrio, e d’esta sorte
nha elevado sobre a condição hu.uana. Re­ muitos dos montanistas’ soffreram a morte
conhecem, pois, todos, senícxcepcão, a ver­ na perseguição, c comtudo se perpetuou a
dade dos milagres de Jesus Christo, c todos seita até o quinto século, no qual Montano
tinham feito alguma mudança cm seus sys- c seus sequazes foram condemnados cm
temas para cxplical-os. Eram logo estes um concilio c separados da igreja.
milagres bem incontestáveis, pois que o Esta, incorruptível na sua moral, assim
amor do systema não ousou ncgal-os. Eis como nos seus dogmas, estava, pois, igual­
o mais incorruptível, evidente e indubita- mente afastada dos extremos c dos exces­
vei testimunho, que se possa exhibír em fa­ sos: assim o estabelecimento da religião
vor d’um facto: é o amor proprio d’uma christã não é obra do cnthusiasino.
multidão de philosophos systematicos, ávi­ A maior parte das heresias dos dous pri­
dos de gloria c celebridade, que este facto meiros séculos eram uma al fiança de phi-^
obriga a mudarem seus systemas como pô­ losophia com os dogmas do Christianismo:
de vêr-sc consultando os artigos respecti­ os christãos philosophos as haviam comba­
vos a cada: um. tido pelos princípios da razão e da philoso­
Todos estes chefes de seitas se esforçam phia. A clcgancia de seus cscriptos, o seu
por fazer prevalecer suas opiniões sobre to­ feliz successo, a sua reputação voltaram
das as outras, enviam prcdicantes por toda naturalmente o espirito dos christãos para a
ji parte, os quaes pela austeridade da sua philosophia.
vida, ou pela sua moral liccnciosa, 'e por Tractou-sc a religião com methodo; dc-
algu n s prestígios, seduzem os povos, e lhes fendeu-se com provas tiradas da razão e
communicam seu fanatismo. Alguns d’estes dos princípios dos philosophos mais distin­
chefes formaram sociedades assaz extensas; ctos. Houve christãos, que para fazerem cri­
taes foram as seitas dos basilidianos, volen- veis os mysterios, quizeram conformal-os
cinianos c marcionitas, que se sustentavam ás idéias, que a razão nos fornece, avisi-
principalmente pela sua moral, que tendia nharam-os ás suas, c os alteraram: taes fo­
ii domar as paixões, c eximir o homem do ram Arthemam o Thcodoto, que combate-
o8 DISCURSO PRELIMINAR

raüu-a-Divindndo do Jesus, Christo, e os então deveriam reconhecer-se dous princí­


melrhisedccianos, que sustentaram que elle pios com Cerdonio, etc., ou conceder a Theo­
era inferior a Mclchiscdec. doto, que Jesus Christo não era Deus. P ra-
I Arlliemam, Theodoto e os mclchiscdccia- xeas foi condemnado como Theodoto, c n ã o
I nos foram eondcnmados pela igreja e se­ fez seita. Cria, pois, então distinctamcntc a
parados da communhào dos fieis, sendo igreia christã: l.° a consubstanciai idade d o
* combatidos pela Escriptura, pelos hymnos Verbo, pois que d ia cria que não havia
I o canticos, que os christãos tinham compos- mais que uma substancia eterna, necessa­
1 to no principio da igreja e pelos escriptos ria e infinita, o que Jesus Christo era ver­
dos authores ecclesiasticos, que haviam pre­ dadeiro Deus. É claro além d’isto que Pra-
cedido todos estes sectarios: tào fundamen­ xcas já mais teria cuidado cm confundir o
tal era o dogma da Divindade de Jesus Pae com o Filho, não fazendo dVlIcs mais
Christo, c ensinado tão distinctamcntc na que uma só pessoa, que obra diíTcrente­
igreja, que entrava nos canticos, compostos mente, se se houvesse crido que o Filho
quasi na época do nascimento do Christia­ era uma substancia distincta da substancia
nismo. do Pae. 2.° A igreja tinha por artigo de fé
A igreja ensinava, pois, contra a opinião a Trindade, tão distinctamcntc, coiiio a Di­
de Ma.uciam, Ceüloalo, Saturnino, etc., que vindade de Jesus Christo, c a olhava como
não havia mais que um scTDeUs, principio um dogma fundamental.
de tudo o que existe; c contra CyjiutOy-Ar- O aspecto d’estas cspccics, somente apo
Miemani.o~TImodatp, que Jesus Christo era tadas, bastaram para pôr por terra, e ani­
Deus verdadeiro. quilar todas as opiniões dos socinianos, o
Praxcas, contemporâneo de Theodoto. systema de Clark, Wisthon, etc., sobre â
uniu estas idéias, concluindo que Jesus Trindade, c consubstancialidado do Verbo.
Christo não era distincto do Padre, porque

CAPITULO VII

D o s c í í e i t o s d a s s e i t a s q a ic s e le v a a s ía r a in d o s a u t e o
p r im e ir o s é c u lo , e d o p r o g r e s s o d a p h ilo s o p h ia e n ­
t r e o s c h r is tã o s n o s e g u n d o s é c u lo

Os nltimos erros que temos exposto, su­ roubo, seria indigno d’um christão usar de
blevaram muitos christãos contra a philo­ uma dadiva recebida dos anjos amaldiçoa­
sophia, da qual se julgava serem o efleito. dos. 1 Pelo contrario criam os christãos phi­
Pretendiam uns que cila era perniciosa, e losophos que não sendo a philosophia senão
que tinha sido inventada pelo demonio para a indagaçao da verdade, era util a todos os
destruir a religião; outros que os anjos ex- homens, aos que não eram christãos, para
pellidus do Céo a tinham trazido aos ho­ conduzil-os á verdade, aos christãos, para
mens. Muitos conheciam que ella produzi­ defender a religião contra os sophistas,por-
ra alguns conhecimentos uteis, c não a que ella exercita o espirito e o torna pro­
olhavam coino invenção diabolica; atlri- prio para a meditação. 2 «Os que pretem
buindo-a a potências, que não sendo más, dem que a philosophia é inútil e que a lei
eram de inferior classe, e que não podiam basta, diziam os christãos philosophos, são
elevar o espirito ás verdades da religião, similhantes ao jardineiro, que sem cultivar
por serem d’ordem sobrenatural. Ernfinn, as arvores, espera colher tão doces fruetos,
muitos, obrigados a reconhecer nos phi­ como o cultivador hábil, assiduo, laborioso
losophos cousas sublimes, entendiam que e intciiigente.» 3
os anjos desterrados do Céo tinham trazido
a philosophia aos homens, e que, por con­ 1 Euseb. Hist. Eccles. I. 5. c. 28. Ciem:
sequência, era uma cspecie de roubo, de Alex. Strom. I. 1. .
que unrchristão não devia, nem podia, cm 2 Ciem. Alex. Strom. I. 1. p . 285.
consciência, fazer uso, e quando não fosse 3 lbideín pag. 291.
DISCURSO PRELIMINAR

A philosophia, pois, nào é obra do dc- e os christãos se dedicaram muito a ella


nionio, liem também dadiva das potências pelos fins do segundo século.
inferiores, e quando fossei um roubo trazi­ Esta philosophia por fim não era o sys­
do á terra pelos anjos rebeldes, porque ra­ tema de Platão, Aristoteles, Zenam e Pytha­
zão se não havia de tirar o bem do mal? goras; mas a escolha que os christãos fa­
Nenhuma parte tem o homem no furto de ziam das verdades que estes differentes phi­
que se aproveita: e por ventura não é da losophos tinham descoberto, c do que os
providencia geral tirar o bem do mal? A christãos se serviam para vencer a repu­
philosophia trazida pelos demonios seria gnância dos gentios, ou para explicarem os
como o fogo roubado por Prometheo. Ella mysterios e fazerem intelligiveis os dogmas
foi a que tirou os gregos da barbaria, e tem da religião; como se vê em S. Justino, S.
sido entre os inlicis o mesmo que a lei era Clemente e nas obras dos authorcs que te­
i entre os hebreus, e que o Evangelho é en­ mos citado.
tre os christãos. 1 Este projecto, porém, de converter os
Se a philosophia fosse um dom do demo- gentios pela conformidade dos dogmas dos
nio, teria ella conduzido os homens á vir­ philosophos com os do Christianismo, não
tude? e os mais virtuosos homens entre os se conteve sempre nos seus justos limites.
; pagãos, teriam sido educados nas escolas Sabendo-se que os romanos e gregos tinham
! dos philosophos? 2 S. Justino não louvou grande respeito ás prcdicçòes das sybillas,
menos a philosophia do que a religião, p se fabricaram oito livros de sybillás, que
; teve por defensores philosophos distinctos, annunciavam a vinda de Jesus Christo.
S. Justino, Alhenagoras, Milciadcs, S. Qua­ N’isto seguiam os christãos o exemplo
drato, S. Aristides, S.Irencco e Panteno. Es­ dos philosophos cgypcios, platônicos e py-
tes homens tão recommondavcis pelas suas thagoricos, que para dar peso ás suas opi­
virtudes como pelos seus conhecimentos, e niões, fabricaram obras, que attribuiram a
que defenderam a religião christãcom tanta authorcs de grande nome, como já temos
gloria c cíTeito, recommendavam aos que ponderado. Tinham para si que se deviam
instruíam, que juntassem o estudo da phi­ olhar os homens que estavam no erro como
losophia ao da religião. O exemplo e au- enfermos, que ó louvável curar, enganan-
thoridade d’estes illustres christãos venceu do-os. 1
as dcclamacòos dos inimigos da philosophia,
1 Fabr. liibl. Gare. t. 1. Dlondel des Sy-
billes. Origen. contre Cels. I. 5 . 71. 271 Lact.
1 Ciem. Alex. Slrom. pag. 323. instit. ilivin, I. 11, c. 15. Const. oral. ad.
2 Ibidem I. 6 . p. 693. Sanclos. Cndicort system. intel. t. 1.

CAPITULO I

lis ta d o p o litic o do m u n d o dna a n ic o te r c e ir o s é c u lo

As guerras de Severo contra os impera­ sar para os povos barbaros grande numero
dores Juliano, Niger c Albino, a vingança do cidiidãos c soldados romanos. Mas como
cruel que. elle exerceu contra todos os ami­ elle era excellente homem do guerra, e ti­
gos. c paflidarios d’ostes, a sua crueldade c nha genio, 0 imperio foi ainda tão possante
avareza assolaram 0 imperio, e fizeram pas­ no seu reinado, que fez tremer todos os
CO J ' DISCURSO PRKLIMINAR

povos circumvisinhos. Comtudo, as forças N’csta confusão dTun estado não p ó d r-


iVcstes cresciam, cmquanto o império se politica prever, nem acautelar a re v e ^
extenuava pela deserção dos romanos, que, como o physico não póile designar a o n
deixando a patria, levavam comsigo as ar­ fulminará o raio, c os cITeitos que clle
tes, principalmentc a da guerra, com o odio de produzir. Trcs dos maiores im peraC
concebido contra o imperio, c o conheci­ res que Roma leve, Alexandre, Aurelia
mento da sua fraqueza. O reinado de Se­ e Probo, foram todos assassinados, cora
vero tinha, pois, espalhado pelas circum vi - Heliogabalo e Caracalla. Da mesma sor~
sinhanças princípios de divisão e de re­ morria um imperador que tracta va cora
volta. pac os romanos, fazendo reinar a justiça
Caracalla, que lhe succedcu, não teve al­ a ordem, c aqucllc que largava as rede=
guma das qualidades de seu pac; e foi mais ao vicio e á desordem.
vicioso, cruel e avarento. Todos os princí­ Emquanlo o imperio esta va entregue a -
pios de sedição que a habilidade de Severo inimigos, que nutria no seu seio, e que der
tinha suíTocado no interior, se descobriam; pedaçavam, por assim dizer, com suas m à -
todo o odio dos povos que ellc havia conti­ as proprias entranhas, foi atacado sem i~
do, se desenfreou; ellc fez a guerra com tal terrupção pelos sythas, parthos, persas, g -
perfídia, que amotinou a maior parle das dos, hcrolcs, allemãcs, c por aquclla m u
nações estrangeiras; ao mesmo tempo que tidão de pequenos povos, conhecidos debir
o luxo, o amor das riquezas, a ambição c xo do nome de francos. Estes povos o ir
a voluptuosidndc, levados ao ultimo remate, vadiram por toda a parte. Comprou-se
ainda antes d’clle, tomavam de dia em dia paz áqucllcs mesmos a quem cila se havg
novas forças. ifalgum témpo concedido, porém não er
Fermentadas assim cm todo o império as durável. Os ricos dospojos que ellcs tira
paixões que produzem as revoluções, c o vam nas suas invasões, o dinheiro e poc
transtorno dos estados, dependia das mais sões, que se Jlics concediam, estabcleccrai*
leves circumstandas o atcar-sc n’elle o fogo entre clles c os romanos uma guerra, qu
da sedição e da guerra. Estas não podiam não fmalisou senão com o mesmo império
faltar aòndc estavam em movimento as pai­ Assim entre as nações selvagens com
xões todas, e todos os interesses se comba­ entre os povos civilisados se viam cxtincta
tiam. Mais de vinte imperadores iVestc sé­ a humanidade e amor da patria, c a virta
culo subiram ao throno; e quasi todos pela de civil: as paixões que a loucura produi
sedição ou pelo homicidio de seus prode­ diz Cicero, como outras tantas furias sobr
cessores. a terra, para desgraça dos homens, as pai
Apenas um imperador era morto, já o xões, dizemos nós, tinham aniquilado os ta
seu matador empunhava o sceptro, e qua­ lentos, corrompido os corações, extinguid
tro ou cinco pretendentes, cada um na van­ a luz, c quebrado todos os vínculos, qu
guarda do seu exercito, lhe disputavam o unem os homens, sem que alguma poten
império. Muitas vezes, entretanto que tudo cia politica fosse capaz de os conduzir ;
estava tranquillo, se ateava d’improviso o justiça, á decencia, ao amor da ordem . 1
fogo da sedição em quatro ou cinco provin­
cias; da mesma sorte que na tempestade o
assopro dos ventos, unindo os soes e enxo­
fres da atmosphcra, fórma uma multidão i Vide Hist. Aug. Scrip. Paris. 162
de trovões, e accende o raio cm uma infini­ Dion. Cass. Hist. ejusdem c aliorum excepti
dade de logarcs. per Valesinum.

CAPITULO II

E sta d o da r e lig iã o , sy ste m a s r e lig io s o s d o s ph ilosophos

O res os mais odiosos. Decretou q_genado hofr


Polythcismo era sempre a religião na­
cional. À superstição, a nsonja e interesse ras divinasTc deu o titulo de Deus a_yara-
adoravam todas as Divindades imagináveis, calla, o assassin^ jlíi^ ciL jia c o de seu ir­
c punham na classe dos Deuses imperado­ mão, o'aigoz do povo c dò senado, o n°r*
DISCURSO PRELIMINAR Gi
ror do genero humano: a maior parte dos ma acima das impressões, que a prendem
imperadores obtiveram as mesmas honras. ao corpo, e a dar vôo à parte sensível para
Offereeiam-se sacrifícios a todos os Deuses pôl-a em commercio cora os demonios, que
nos tempos de calamidade; mas as desor- tinham um pequeno corpo subtilissimo o
jdons e infelicidades eram extremas, como delicadíssimo, o qual podia ser comprehen-
já temos ponderado. Os defensores do Poly­ dido pela parte sensível da alma purifica­
theismo, perseguidores dos christàos, eram da e aperfeiçoada. 1
os homens mais protervos. Combatiam os Uma parte dos philosophos procuravam
christàos o Polytheismo por todos estes mo­ pois nos alimentos, plantas, mineracs, etc.,
tivos; fizeram vêr o seu absurdo no mais meios de dar a alma sensível um grau de
alto grau de evidencia, e combateram todos subtileza, que a fizesse capaz de vêr os de­
os philosophos, atacando seus fundamentos, monios, cmquanto outros, occupados da
principalmente pelas contradicções dos seus grandeza da sua origem e da sua destina-
systemas. Confcderaram-sc^poís os pagãos ção, despresavam este commercio para se
iC os philosolflios contra _qs Huistàos e col- elevarem por meio da contemplação até o
lucaüos, pa7*a assim dizer, entre a força das Ente Supremo, e se unirem intiínamentc
diíficuldades dos christàos c as razões que com elle . 2 O Christianismo forçou pois os :
Jos prendiam ás suas opiniões, c á defesa da philosophos, os mais celebres, a mudarem ]
[religião nacional, procuraram ncutralisar a religião popular, c reconhecerem a ver­
0 absurdo do Polytheismo, e desvanecer a dade dos milagres de Jesus Christo; mas el- /
jopposiçào que havia entre os systemas phi­ les negavam a sua divindade, reconheceu- i
losophicos. Em fim, Ammonio formomo nro- do-o tão somente por um homem extraor­
jecto da-CQnéílíàr-todas as religiões, e todas dinario, a quem a sciencia da theorgia ti­
as escolas dos philosophos. nha feito capaz d’obrar prodígios 3
; ^T uppoE eilc nüc todos os homens nrocu- Para authorisar esta opinião suppozcram
| ra v alu a^ \’erdãdcTe~olhou os sábios, vir- que Pythagoras, Empedocles, Architas, Ap-
:tnosos e henoiicos. como uma só familia. polonio de Thiana linham operado prodí­
A nlnlosõnlna ííu ivêstcs^ sábios ensina- gios, predizendo o futuro c ensinando uma
rniin não era contradictoria; Cillerent es moral tão pura como a de Jesus Christo.
íníodos TíFveFlTiialurcza linham dividido Tomaram a liberdade de imaginar e attri-
jseus. discipulos, e obscurecido seus princi- buir a estes philosophos tudo o que os po­
:pios communs, assim como a superstição dia igualar com elle. Foi isto o que produ­
1havia desfigurado a sua religião. A verda­ ziu a vida de Pythagoras, de Appolonio de
deira philosophia estava em separar a ver­ Thiana, por Porphirio e por Phylostrato,
dade das opiniões particulares, c purificar que são ovidentemente feitas para oppôr
a religião de tudo o que a superstição lhe aos christàos alguns adoradores de demo­
tinha aecresccntado. Jesus Christo, sogun- nios, que tiveram communicaçào com as
do Ammonio. não se" nropõzcra a outra potências celestes, c que eram homens vir­
cõusa. tuosos.
TõTnava-pois.Ammonio da doutrina de Quanto ao mais clles reconheciam que o
/Jesus Christo tudo o aue scaccordava com culto que estes homens celehres haviam
a_dosJíhiíosòidios-eg vdcios c de ElfliÜfl, re­ dado aos gênios, era muito differcutc do Po­
jeitando como alterações feitas pelos seus lytheismo grosseiro do povo, que tomava ao
discipulos o que era" repugnante ao syste­ pé da letra as allegorias, debaixo das quaes
ma que elle fabricara. os philosophos tinham representado as ope­
•Reconheciam um Ente necessario e iníi- rações dos genios, para fazel-as intelligi-
Jnito; este era Deus. Todos os seres haviam veis. Tudo o que havia d’absurdo no Poly­
pallido da substancia, c entre suas diversas theismo, desligado d’estas absurdidades, tor-
roducções suppunha uma infinidade de nou-se uma religião philosophica, que dava
enios e demonios de toda a espccie, aos culto a Genios a quem estava confiado o
jia e s attribuia todos os gostos proprios
liara explicar quanto nas differentes reli- 1 Fabr. BibL Grec. /. 4. 26. Euseb. Hist.
iões se contava de prodígios e de maravi- Eccles. I. 9. c. J9. B ru ler, Hist. Phil. t. 2.
has. p. 294. Mosheim, de rebus Christ.ante Const.
Era a alma humana, assim como estes Mag. scec. 2. §. 27. et seg.
demonios uma porção do Ente Supremo, e 2 Aug. de civit. I. 10. c. 9. Jambl. de
suppunha como os pylhagoricos duas par­ myst.
tes da alma: uma puramente intclligcnte, 3 Aug. /. de consensu Evang. t. 3. part.
outra sensível. Toda a philosophia no sen­ 2. c. 6. §. 11. p. o. de civit. Dei. 1 .19. c. 23.
tir d’Ammonio devia tender a elevar a al­ Lact. Instit. div. I. 4. c. 13.
Ò
62 d is c u r s o p r e l im in a r

governo do mundo, c criam que sua alma


era uma porção da substancia Divina, á DOS JUDEÕS DURANTE O TERCEIRO SÉCULO
qual se haviam de reunir logo que fossem
superiores ás paixões e impressões dos sen­ Os judeus estavam espalhados por todo o
tidos. * mundo; assim, os christãos achavam por
Tal foi a philosophia c a religião dos phi­ toda a parte contradictores c inimigos ca­
losophos do terceiro, século, porque a seita pazes de confundil-os, se pretendessem e n ­
Eclectica tinha absorvido quasi todas as ganar.
seitas, excepto a .cUEükuro. que ainda as­ Os reinados de Severo c Caracalla fnr.im
sim era pouco seguida, Cmit/ino, Herennio. favoráveis aos judeus, que obtiveram “m ui-
Orfoc-ncs. Plotino. Pronhirio, Ainolio. lJiem- los privilégios. Heliogabalo, Alexandre. e
çfes, Jamblico, sustentaram coin luziuiento muitos o u tr o s ^ ineraaorcs o.-T-th im m m ;
<à"~õscolaZd,Amiiianio: o numero de seus clles se multiplicaram, e a tranquillidade
sectários era considerável, e encerrava de que* gosaram n’csses reinados lhes per-
muitos senadores c pessoas poderosas. 2 mittiu estabelecer escolas c frcqucntal-as.
A de Tiburias veio a ser famosa. Em Ba­
bylonia tiveram doutores celebres c contro-
1 Porph, d'antr. nymph. versistas de grande nome. 12
2 Vide a Vida de Plolin, ou de Porphy-
re, Fabricius, Bibliot. G r e c t . 4. 1 Basnag. hist. des ju ifs, l. 6, c. 12, 13.

CAPITULO III

D o C r liisü a n ism o

Severo, que parece havia encarado como Galliano deu a paz á Igreja, permittindo
politico as differentes religiões que dividiam por um edito o livre exercício da religião
o imperio, tolerou ao principio tanto os christã, c fazendo-lhe restituir as suas Igre­
christãos como os judeus; mas receando jas c cemitérios. 1 Depois de reinar quinze
que aquellcs, crescendo em numero, saliis­ annos, este imperador foi assassinado, e
sem da obediência cm que se tinham con­ Claudio ii, que lhe suceedeu, perseguiu os
servado até então, entendeu que devia con- christãos, mas o seu reinado foi curto, c
serval-os cm estado de fraqueza, c prohi­ Aureliano lhes foi favoravel.
biti por isso que os vassallos do imperio Depois da morte d’este imperador, clles
abraçassem o Christianismo. Cria, talvez, professaram a sua religião em paz, quasi
que üependendo mais do soberano a reli­ até ao fnn do século.
gião pagã do que a christã c judaica, era Tinha crescido prodigiosamente o numero
preciso que a primeira.fosse a nacional. dos christãos, sobre tudo nos reinados que
Caracalla e Heliogabalo não se oppoze- permittiram o livre exercício da sua reli­
ram aos progressos do Christianismo, c gião: practieavam-a nos palacios, n’eflcs
Alexandre Severo, o melhor dos principes, occupavam cargos; tinham grangeado a af-
os favoreceu, admittiu no seu palacio, e se foição c confiança dos imperadores: gosa-
serviu de seus conselhos. 1 .. vam de grande credito. No império aonde
Maximino os perseguiu; .niíis Gordiano e tudo era escravo da riqueza c do favor,
Philippe os favoreceram. Decio, receando houve respeito a uma religião, que tinha se­
que vingassem a morte de Philippe, os ve- ctários cm palacio, e entre os validos dos
xou tyrannicamente, e cessou a persegui­ imperadores. Os Bispos, respeitados nas
ção. Gallo, successor de Decio, reslituiu a provincias, erigiram Igrejas. Assim se tor­
paz á Igreja, que depois perseguiu. Vale­ nou prodigioso o augmento do Christianis­
riano a tractou da mesma sorte. 2 mo. 2
Elle não se encerrava sómcntc no impe-
1 Oros. Hist. I. 7, c. 19. Euseb. hist. Ec-
cl. I.6, c. 29. Doduel, dissert. Cypr.
2 . Cypr. ep. oi. ad Anton. 1. ep. 36, 37, 1 Ibidem c. 13.
40. Euseb. hist. lib. G, § 7, c. 10. . 2 . Euseb. hist., I. 3, c. 1.
DISCURSO PRELIMINAR 63

rio romano: christãos zelosos o levaram aos sportaram a esses povos, com a luz do Evan­
povos barbaros, com quem a extensão do gelho, exemplo das mais sublimes virtu­
imperio tinha aberto commercio; algumas des. '
vezes os exercitos inimigos levaram escra­
vos, entre os quacs houve cbristãos que tran­ 1 Sozorn. /. 2, <:«p. 6.

CAPITULO IV

D as d isp u ta s c e rr o s q u e se Icrautaram e u tr e
os ch ristã q s

Temos visto como, pelo fim do ultimo sé­ rios; assim, a Trindade, a Divindade de Je­
culo, se ajuntava o estudo da philosophia sus Christo, a espiritualidade c immortali-
ao da religião, que a philosophia nem era dade da alma, eram ensinadas clara e dis-
o Platonismo nem o cstoicismo, mas a esco­ tinctamente na Igreja, porque c por estes
lha de tudo o que a razão achava verda­ actos de separação que é preciso julgar a
deiro em todos estes systemas. Segundo sua doutrina.
taes idéias, cada um se julgou com direito Entretanto que alguns christãos philoso­
para adoptar dos philosophos antigos quanto phos se desvairavam, forcejando por fazer
lhe parecesse a proposito para defender a intelligivcis os mysterios, outros mais feli­
religião, c tornar intçlligiveis os seus mys- zes atacavam todos estes gnostieos, que se
terios, porque a obscuridade d’estcs era um tinham levantado nos séculos precedentes,
dos maiores obstáculos dos philosophos e e os traziam ao bom caminho.
dos pagãos. Ainda a Igreja não tinha formulado leis
Os mysterios não são contrarios á razão, sobre o modo como se haviam de receber
mas sãò a cila superiores: a razão, pois, os herejes convertidos, e as Igrejas do Oriente
não ministra ideia alguma que possa fa- e da Africa, pondo-os entre o numero dos
zel-os comprehensivcis; e não podendo ele­ cathccumenòs, os rebaptisava. No Ocidente
varmos-nos pelo fio das nossas idéias a es­ não havia esta práctica, contentando-se com
sas verdades sublimes para fazel-as intclli- a imposição das mãos. Esta diversidade de
giveis, esforçaram-se em avisinhal-os ás disciplina formou grande controversia, e
idéias que nos fornece a razão; e assim fo­ quasi um scisma.
ram os mysterios por muitos alterados. Não só se convertiam os herejes, mas
Taes foram Beryllo, Noccio, Sabcllio, Paulo aqucllcs que no tempo das perseguições,
deSamosatc, Hierax, que, para fazerem com- tendo trahido a religião, pediam para re­
irchensiveis os mysterios da Trindade e conciliar-se com a Igreja. Queriam uns que
fncarnação, deram explicações, que os ani­
quilavam. Outros, como os arãbianos, para
fossem recebidos sein penitencia, outros
que se sujeitassem a cila, c outros que se
explicarem a Resurreição, suppozcram que lhes recusasse para sempre a entrada na
a alma não era mais que uma aíTcição dos Igreja.
corpos. Estas differentes opiniões deram princi­
Todos estes erros foram condcnmados, c pio a partidos, facções c seitas, de cujo nu­
separados do seio da Igreja os seus sectá­ mero foram os novacianos.
64 DISCURSO PRELIMINAR

QUAllTO SÉCULO

CAPITULO I

£ s ta d o p o litic o d o Im p e r io

Similhanlo áquellas regiões que, mar­ com Maximino, excellente homem de guerra;
geadas d’um mar tempestuoso, d’elle se de­ c creando dous Cesares, Gallcrio e Constan­
fendem com diques, os quaes, porém, con- do-Chloro. Julgou por este modo ter pre­
tinuamente impellidos dos ventos e das on­ venido as facções dos exercitos, cada uiu
das, sào emfim desmantelados por todas nimiamente fraco para que podésse dar o
aquellas partes que não podem resistir cá império ao seu general, assim como os cf-
vehemcncia d’um impulso superior, assim feitos da ambição dos generacs c impera­
estava o imperio romano cercado d’um dores. cada um dos quaes não ousaria em-
numero infinito de nações civilisadas ou sel­ prehender o dominio absoluto.
vagens, mas todas guerreiras, que forceja- Porém não fez Diocleciano com isto mais
vam por invadir c assolar o interior das suas que forçar a ambição a buscar caminhos
provincias: c bem como os terrenos cheios torcidos e occultos: teve o imperio romano
d'enxofre e de bitume, que a cada momento quatro senhores, que aspiravam todos ao
se infiammam e a si mesmos se arruinam, ao poder soberano, que se odeavam, forma­
encerrava clle dentro do seu proprio seio ram ligas, c sc fizeram guerra, até Constan­
principios de corrupção e de desordem, que tino, que reuniu todo o imperio, c o divi­
insensivelmente o enfraqueciam. diu por seus filhos, os quaes, em breve, des­
O habito do luxo c da intemperança ti­ contentes pela partilha, se pozeram em ar­
nha feito as riquezas tão necessarias como mas; foram atacados por usurpadores, e
os alimentos para a subsistência; a vontade morreram n’estas guerras, à exccpção de
arbitraria dos imperadores os distribuía: Constando,, que ainda reuniu o império.
por indignos favoritos, que serviam ás suas Durante todo este século, esteve ellc as­
paixões, ou por soldados cuja afieição se sim, reunido, ou desmembrado, governan­
lhes havia tornado necessaria depois que do Vallentiniano, Graciano, Theodosio, Ar­
as leis não tinham força, e os povos per­ cadio e Honorio.
dido a .virtude; porque esta soldadesca des­ Os povos barbaros o atacaram quasi con-
enfreada, por meio da qual os imperadores tinuamente; as desgraças que occasionaram
tinham dostruido as leis, dava o imperio, e estas guerras, e o numero de homens que
o tirava á sua descripção; ealém disto quasi ellas fizeram morrer, são incríveis. Ainda
todas as nações subjugadas, os persas, sei­ assim, o imperio subsistia: l.° porque Con­
tas, godos, francos, allemfies, etc., attrahi- stantino tinha suíTocado as causas interio­
dos pela esperança do saque, inundavam res das revoluções, aniquilando a autho­
as provincias: portanto não podia resistir o ridade dos Prefeitos do pretorio; 2.° porque
imperio a seus inimigos senão pelo poder o exercito do imperio era muito superior
militar; que por consequência tinha o po­ aos povos barbaros; 3.° porque estes, só ti­
der (Taniquilar a cada instante os impera­ nham a mira no saque, e não procuravam
dores e o inesmo imperio. Era pois indis- fazer conquistas. 1
pensavelmentc necessario conservar e con­
ter ao mesmo tempo as forças d’cstc corpo.
Conhecendo Diocleciano a situação aos 1 Tilm. Hist. des Emp. t. 4. Confid. sur
imperadores c do imperio, se persuadiu les causes de la gr and. aes rom. p ar AL de
prevenir as desgraças de que ellcs estavam Aiontcsquieu, et observ. sur les rom. par AL
ameaçados, repartindo a sua authoridade VAbbê de Mably.
DISCURSO PRELIMINAR 65-

Lj
CAPITULO II

E sta d o da r elig iã o

Diocleciano nào obstante ser homem de bado a terra; continha princípios de divi­
muita intelligencia, era summamcnte afTer- são e odio contra todos os homens; esperava
ràdo ás superstições pagas, mas nem por um rei que havia do destruir todos os im­
isso aborrecia os christàos, dos quaes tinha périos; emfím era odioso e cheio do prácti-
cheio o palacio, e os havia também entre cas, que repugnavam aos romanos e aos gre­
os guardas e entre os seus ministros. 1 Ma­ gos. Devia pois o imperador romano des­
ximino c Vallerio, rivaes de Constando, truir o judaísmo, em logar de fazer d’elle
aborreciam os christàos, c os perseguiam a religião dominante. O Polytheismo estava
no Oriente, ao mesmo tempo que Constan­ já reputado como um absurdo, e por con­
d o os protegia no Occidente; d’esta sorte sequência inútil para reformar os costumes.
o interesse das religiões, que dividiam o im­ A moral do Christianismo era pura e su­
perio, se uniu aos desígnios politicos dos blime; nem o imperador tinha vassallos mais.
imperadores; Constantino, filho de Constan­ fieis, nem o imperio cidadãos tão virtuosos*
do, os protegeu; Licino, seu rival c inimi­ justos e beneficos como os christàos: ne­
go, os preseguiu. nhum d’elles tomara parte nas conspirações,
Tinha-se multiplicado pasmosamente o formadas ainda contra' os seus mesmos pre-
numero dos christàos no Occidente, e era seguidores; portanto, Constantino, condu­
considerável no Oriente. Constantino veio zido por fins politicos, devia formar o pro­
em seu soccorro, e declarou guerra a Li­ jecto de fazer do Christianismo a religião
cinio, muito resolvido acontinual-a emquan- dominante do imperio; c além d’estcs mo­
to lhe nào tirasse um poder, de que abusa­ tivos puramente humanos, accresceram os
va tào indignamente centra os christàos, milagres que Deus obrou em seu favor con­
c ainda contra todos os subditos do impé­ tra Licinio e Constantino, pois fez restituir
rio. Viu-se, pois, este dividido, c posto em aos christàos as suas Igrejas e cdificar-lhes
armas para defender, e atacar o Christia­ outras novas; concedeu privilégios aos Bis­
nismo tres séculos depois do seu nasci­ pos e Ecclesiasticos, dotou as Igrejas, semi
mento. 2 comtudo forçar os pagãos a renunciar a
Licinio tinha feito vir uma multidão de sua religião.»
augures, sacrificadorcs, adivinhos, e sacer­ N’um dos seus editos, cllc se dirige a
dotes egypcios, os quaes deprecavam aos Deus, protestando o seu zelo pela extensão
Deuses; oíTereciam-lnes victimas e sacrifí­ do seu culto, mas declara ser sua vontado
cios de toda a especie, e promettiam victo­ que debaixo do seu imperio até os mesmos
ria a Licinio; ao passo que Constantino, cer­ impios gosem da paz e da tranquillidade*.
cado de Sacerdotes christàos, e precedido da persuadido de que é este o meio mais seguro
Cruz, implorava o auxilio do Deus Supre­ de conduzí l-os ao bom caminho; prohibe que
mo, e sómente d’elle esperava a victoria . 3 os inquietem, exhorta os seus subditos a
Este principe, no qual se viam grandes que se sofTrain uns aos outros, não obstante
defeitos, ao par de grandes qualidades e vis­ a diversidade de suas opiniões, que se com-
tas profundas, viu que as desgraças do im­ muniquem mutuamente suas luzes, sem
perio se originavam da corrupção dos cos­ empregar a força nem o constrangimento,
tumes, c que unicamente a religião as po­ porque em facto de religião, é cousa excel­
dia remediar. Nenhuma das religiões do lente sofTrer a morte, mas nào dal-a, como
imperio senão a christã, lhe pareceu que alguns christàos o pretendem, animados
satisfazia a isto:—o judaísmo tinha pertur- d’um zelo deshumano. 2
Todavia concedeu alguma cousa ao zelo*
1 Euseb. fíist. Bccíes. I. 8, c. 2.
2 Euseb. Hist. Eccles. I. 10, c. 2. Vit. 1 Euseb. v it. . Const. t. 4. Theod. i 4. c\.
Const. I. 2, p. 3. 20. Oros. I. 7. c. 28. Cod. Theod.
3 Euseb. ibid. 2 Euseb. vit. Const. I. 2, c. 60.
5
:( 1 4 Jt
66 DISCURSO PRELIMINAR

d’cslcs christãos, porque prohibiu os sacri­ povos barbaros, que havia muito faziam in­
fícios, fechou e demoliu os templos. 1 vasões no império romano, e tinham levado
Havia pois nos christãos um principio de comsigo christãos que os converteram. 1
zelo que tendia a empregar o poder secular A nação judaica nada perdia do aíTerro
contra as falsas religiões, que trabalhava â sua religião; queimava c apedrejava to­
continuamente, c por consequência havia dos aquelles que a abandonavam; inimigos
d’obtcr alguma cousa dos imperadores con­ do resto do genero humano, e sempre ob­
tra o paganismo, e aniquilal-o, quando so­ stinados na esperança de conquistar c sub­
bre o throno houvesse um imperador con­ jugar a terra, os jud*eus se revoltavam ape­
descendente com o seu zelo, como aconte­ nas alguma agitação no imperio parecia fa­
ceu com Theodosio e seus filhos, que de­ vorável ás suas esperanças. Constantino
moliram todos os templos, e prohibiram decretou leis severas contra cllcs, e seus fi­
sob pena de morte os sacrifícios. 2 lhos lhe fizeram a guerra. Constando pro­
0 poder e a gloria de Constantino, a tras- hibiu que se abraçasse a sua religião: fo­
ladação da cadeira imperial para Constan- ram tractados com menos rigor por Vallen-
tinopla; as victorias que alcançou de seus tiniano: Theodosio lhes concedeu o livre
inimigos, o estabelecimento brilhante do exercício da sua religião, c prohibiu os
Christianismo, c os milagres obrados em christãos de saquear ou demolir as syna­
seu favor, attrahiram sobre este principe a gogas. Elles tinham um juiz civil, e outro
attenção de toda a terra. Elle recebeu cm- ecclesiastico, oíficiaes c magistrados da sua
baixa*dores dos heros, os ethyopcs se con­ religião, cujas sentenças eram executadas
verteram, e pediram Bispos. em todos os pontos da sua religião ou dis­
A religião christã fez progressos entre os ciplina, e a respeito do mais estavam sub-
godos, e foi abraçada pela maior parte dos mettidos a todas as leis do imperio. 2

1 Cod. Theod. Fabr. lux Ev. t. c. x. 13.


Tillem. llist. des Emp. t. 4. Vie de Const. 1 Ruf. I. 1, c. 9, 10. Sacr. I. 1, c. 19,20.
notes sur cet Emp. Sezom. t. 2, c. 6, 7, 8. Fabr. lux oriens, c.
2 Cod. Theod. I. 15, t. I. leg. 16, /. 13, 10 e seguintes.
l. 16, etc. an. 399. 2 Basna. llist. des Juifs, l. o, c. 14.

CAPITULO m

E sta d o d o e s p ir ito h u m a n o , r e la tiv a m e n te ãs le tr a s,


se ie n e ia s e m o ra l

Desde Diocleciano até o tempo em que alma. Todos admiltiam um espirito infinito
e independente, do qual haviam sahido in­
Constantino foi o único reinante, o imperio
romano era assolado de guerras civis; ve finidade d’espiritos e a alma humana, os
atacado pelas nações contíguas, as quães quaes espíritos tinham proprias funeções e
também entre si andavam em continua destinos, segundo a sua natureza e quali­
dades; o mundo e os elementos estavam
lucta , 1 e no meio do tumulto e agitação da
guerra e das facções, os philosophos e os cheios d’elles: os homens podiam ter com­
mercio com todas estas ordens d’espiritos,
christãos eram quasi os unicos que cultiva­
vam as seieneias c as artes. vél-os e entretel-os, elevar-se até o. conhe­
cimento intimo da Divindade, e penetrar o
Quasi todos os philosophos pagãos tinham
adoptado o systema de Platão, que ajusta­ futuro pòr meio de differentes prácticas.
ram com os'princípios da philosophia cal- Esforçaram-se em justificar as do paga-
daica sobre a essencia da Divindade, ori­ pismo, e todos os seus sacrifícios: e ainda
gem do nuindo, providencia e natureza da nas mais repugnantes á razão e mais ob­
scenas, imaginaram allegorias.ou preceitos
i Mamert, paneg. Dioçlet. Aurel. Vict. de moral: os sacrifícios de Priapo e de Ve-
Eutrop. nus, eram, no sentir de Jamblico, ou ho-
DISCURSO PRELIMINAR G7
mcnagcns prestadas aos attributos do Ente princípios reconhecidos como verdadeiros
Supremo, ou conselhos destinados a ensi­ pelos philosophos mais celebres, não eram
nar (jue muitas vezes o mais seguro meio contrarios â religião, e que nos pontos em
de nos eximir da tyrannia das paixões é que o eram, os philosophos inesmo se con­
satislãzel-as, porque *cstc espectáculo, longe tradiziam ou se oppunham uns aos outros,
d’irrital-as, era proprio para reprimil-as, da c a razão os desmentia.
mesma sorte que os vicios representados D’csta maneira, pois, os ehristãos, assim
na tragédia ou na comedia corrigem os es­ como os philosophos platônicos, não admit-
pectadores. tiam os princípios philosophicos, senão em-
Quasi toda a philosophia, pois, se tornara quanto eram conformes aos da theologia
theologica: o livro de Jambiico sobre os christã, que veio a ser como base, sobre a'
mysterios é um tractado de theologia, cm qual assentaram todos os systemas philoso­
que o platonisnio visivelmente se cont-ilia phicos formados no Christianismo.
•com o Christianismo, e no meio de mil absur­ Como o estabelecimento da religião chris-
dos se vé muita agudeza d espirito, c algu­ lã era o objecto principal da Providencia,
mas vezes uma moral sublime. 1 e nada cm sua comparação havia que fosse
Como o Christianismo fosse fundado so­ tão importante, os ehristãos zelosos attri-
bre as prophecias, c estabelecido pelos mi­ buiam-lhe todos os successos politicos, e
lagres, os philosophos pagãos creram poder phenomenos da natureza, crendo que tudo
sustentar o Polytheismo por prodígios ou se obrava por uma providencia particular
prcdicçõos favoráveis ao culto dos idolos: de Deus, por intervenção dos anjos, c pelos
persuadidos de que no mundo se obrava demonios, aos quacs *Deus permittia obra­
tudo pelos genios, procuraram a arte de os rem sobre os elementos c sobre os espíri­
interessar, de fazer por sua intervenção tos, c que estavam continuamente occupa-
«ousas extraordinarias, c prophctisar o fu­ dos em combater os ehristãos; portanto foi
turo: assim os Platonicos do quarto século absolutamente despresado o estudo da na­
foram não só cnthusiastas, inas também má­ tureza; e grande numero de talentos pro-
gicos e adivinhos. Elles predisseram (pie pendeu para a crença da magia, dos sor­
teria Valente um successor, cujo nome ha­ tilégios c adivinhações, c para um temoi
via de principiar pelas letras Tlieod, pre- ridiculo aos espíritos e feiticeiros. Mas to­
dicção que foi funesta ao platonisnio. Va­ davia, entre os ehristãos, houve homens de
lente mandou matar todos os philosophos um genio sublime, c cujos cscriptos pode­
que pôde descobrir, procurou e entregou ríam dar grande lustre a todos os séculos;
ao fogo todos os seus livros. Destruiu-se taes foram Pamphilio, Eusebio, .Arnobio,
um tão grande numero d’ellcs, c era tal o Lactancio, os Gregorios, etc. Estes celebres
terror, que se sacrificaram, quasi sem exa­ cscriptorcs sc applicavam muito á instruc-
me, obras sem conto, de toda a cspccic . 2 çào dos povos; c no meio das facções da
Um enthusiasta se esforça para communicar guerra, que traziam em movimento o im­
suas idéias, e inspirar* aos outros as opi­ pério, e tudo transtornado, os Bispos, Sa­
niões, de que está persuadido: por esta ra­ cerdotes e authores ehristãos, animados pe­
zão os philosophos platônicos cultivaram los motivos, que mais poderosamente obram
a arte de persuadir, e se fizeram sophistas sobre o coração humano, se empenhavam
c rhetoricos. a illuminar os homens acerca da sua. ori­
Desde o final do terceiro século os chris- gem, e dogmas da sua religião; sobre a ver­
tàos cultivaram as scicncias com muito ar­ dadeira felicidade do homem, e recompen­
dor e luzimento: obrigados a defender a sas promettidas aos fieis ehristãos. Castiga­
religião contra os ataques dos philosophos, vam-se com o ultimo rigor todos os crimes
contra as imposturas dos Sacerdotes genti- contrarios ao bem da sociedade. 1
licos, c contra as objecções dós historiado­ Os philosophos pagãos, opprimidos pela
res, profundaram todos* os systemas philo­ forca das razões dos ehristãos, foram obri­
sophicos, e se fizeram historiadores c chro- gados a mudar toda a religião pagã, ou me­
nistas; a verdade da religião foi provada lhor, a fazerem riligiosa a philosophia, e
por todos os fundamentos, que subministra quanto poderam, conforme ao Christianis­
a razão c a historia; demonstraram que os mo. Assim se illustrava por toda a parte
o espirito humano, c a mòral se aperfei­
çoava: c já não se viam as desordens e eri-
1 Jambl. dc m yst. edit. G al Eunap. de
v it. Sophist:
2 Ámmien., I 29. Sozom., I. 6, c. 3o. 1 Concil. d'E lvir., d'Ancy, e .Nèocésa-
Soer., I. 4. c. lí>. rée, etc.
*
68
Ò - AiCwU' DISCURSO PRELIMINAR

mcs, que* se tinham visto no tempo de Ti­ rida a actividade, c 0 espirito d’intriga.'á
berio. virtude pacifica, e ao zelo illustrado, mas
Depois que o poder temporal tomou parte prudente. 1
nas disputas da religião, os pagãos, os chris-
tãos, e as diversas seitas, que entre elles se
tinham levantado, procuraram conciliar a DAS IIKUKSIAS DO QUARTO SÉCULO
benevolência da corte e dos imperadores
por meio d'elogios que lhes faziam nos dis­
cursos públicos, c principalmente nos pa­ Gosavam os Bispos de grande veneração
negyricos dos mesmos imperadores, que em toda a Igreja, e d’uma authoridade quasi
nas cidades principacs se recitavam. absoluta sobre os fieis. 2 Mas como nem to­
Assim se estudou no império com gran­ dos os christãos eram superiores á ambi­
de cuidado a arte de fallar, persuadir, e ção e cubiça que reinava no Imperio, c que
mover, despresando-se as sciencias, que havia infcceionado todas as ordens do Es­
apenas foram cultivadas por alguns philo­ tado, alguns houve que procuraram comí
sophos, que não attrahiram a aura popular, ardor as dignidades ecclesiasticas, c_que
nem o respeito da côrte, ficando na obscu­ formaram scisinas. Taes foram Donato, Col­
ridade a sua sabedoria, por então inútil aos ludio, AnoT” ™
partidos que se tinham levantado. PTaqueTles logares cm que eram cultiva­
Os cortezãos dum principe absoluto se das as sciencias e a philosophia, occupa-
occupam meramente no cuidado d’agradar, vam-sc os christãos em explicar os mys-
e na arte de lisonjear: são superficiaes, e terios, e principalmentc em dcscmbaraçal-os
pouco illuminados, más elegantes, e poli­ dos argumentos de Sabollio. Pcaxeas e ísoc-
dos; pensam pouco e fracamente, mas ex- çig, que no século precedente haviam en­
plicam-se com graça c delicadeza: d’esta. sinado não ser.em.as..Xr.esJ)cssQas. da Trin-
sorte veio a degenerar n’este século a elo­ dade scnãcLtr.esjaQiTies dados.á mesma sub­
quência, c se aperfeiçoou a arte de fallar; stancia, .s.egundoj) modo como cila se con­
os philosophos, oradores, e letrados, que siderava.
>retendiam captar as boas graças da côrte, ‘“A" Igreja tinha condemnado estes erros,,
u aspiravam a grande reputação, se fize-
E as nao explicou porque as Tres Pessoas-
im engenhosos e elegantes, mas superfi- 1 Trindade existiam n’uma só substan­
iaes. tia; a curiosidade e 0 desejo de fazer cri­
Os frivolos cortezãos, submergidos 11a v eis estes dogmas áquellcs que os rejeita­
molleza, c apaixonados pelo fausto, lison-, vam, voltou os espíritos em busca de idéias
jcavam a‘ preguiça e paixões do Principe, que podessem explical-os.
para merecerem a sua confiança c'favor: A rio, qae„.enipj^b_enden_esia..ex pJicaçào,
e os imperadores, tornando-se fracos, vo­ n e c ^ i|a y a , para estabelecer contra Sabel-
luptuosos, e vãos, foram dominados pelos lio a üistineção das Pessoas, não admittir
seus ministros e validos. muitas substancias increadas, como Mar-
N ’uma côrte cm que reinava 0 luxo c a cião, Cerdon, e outros; e se persuadiu
molleza, 0 merecimento e engenho foram evitar estes dous escolhos c fazer intelligi-
temidos ou despresados; 0 espirito c os ta­ vel 0 dogma da Trindade, suppondo as_tr.es
lentos agradaveis obtiveram as graças e a Pessoas tres Substancias: más que sómcntc
protecção; as riquezas conduziram ás di- 0 Fae era incrcado: portanto, fez da Pes­
gnidades; a arte de formar partidos, de se soa do Verbo uma creatura; depois d’elle
desfazer d'um concorrente, e der ri bar um Macedonio atacou a Divindade do Espirito
rival, obteve consideração, credito e poder: Sàncto.
todos os animos c partidos tendiam insensi­ Houve uuL.motim-contEa._os scus-órros,
velmente para a arte d’adquirir riquezas, que os partidarios-d!AxiCLfizeram crer ap-
ou de formar intrigas no Estado, na Igreja, parentêsTffivIdiram-se, c formaram bandos.
c na côrte. A virtude, 0 merecimento e en­ São ordinariamente simples as contesta­
genho, dcsappareceram;.os talentos dege­ ções e os erros nas suas origens, mas for­
neraram, c viram-se pelos fins do quarto mados que sejam os partidos, cada qual
século os princípios da noite, que escureceu toma' a peito defender as opiniões que ado-
os seguintes, e das desordens que aniqui­
laram 0 imperio romano. 1 Vejam-se os authores citados a respeito
Os mesmos christàos insensivelmente se de. Constantino
deixaram arrebatar da torrente, que arras­ 2 Igna. en. ad Smyrn. Cypr. epist. ad
tava a todos, e nos differentes partidos que Papin. Concil. Arei. can. 7, t. 1, Cone. V-
as suas disputas oceasionavam, foi prefe­ 1427.
DISCURSO I

gítou: já as intclligencias nada encaram, se­ _ A religião não tinha feito todos os chris-
não pela face que as favorece. Investigam- tãos superiores aos vicios do seu século;
se, pois, inlinidade de provas diíTerentcs, portanto encontraram-se em cada um dos
para as opiniões que se abraçam, e cada um bandos homens ardentes, facciosos, c inflam-
fazd’«aquellaqucaoscobriuuin principio fun­ mados pelo interesse do partido; e as dispu­
damental: tiram-se consequências, c, ou ca­ tas dos christàos produziram no imperio
bem em novos erros, ou recahem nos que guerras civis. A Africa e Oriente foram
pretendem evitar assiiu se dividiram os perturbados pelo scisma dos donatistas, e
Arjanos cm E.uscbianQS, SiinG^rlãnos, etc.; heresia d’Ario.
assim Marcelliad^A nyra,-PlQtjnjõc Eunoipjo, Como quasi todo o império se compunha
i -sc.precipitaram no Sahelljaiiismq, ãrguindo de christàos, prevendo Constantino os elici­
\ o dcfenucntlo A rio, o quãT também nào ti- tos das suas divisões, se esforçou a preca-
/ riha cabido no seu erro, senão por evitar vcl-os por via de doçura, e finalmcntc em
/ o Sabcllianismo: e da mesma sorte Appoli- reprimil-os pela força. Fez convocar con-
^ nario, combatendo Ario por muitas passa- cilios, desterrou e baniu, mas sem restabe­
) gens, que dão a Jesus Christo os attributos lecer a paz, porque cada partido se empe­
i -da Divindade, julgou que esta presidira a nhou em ganhar ministros, privados, cu-
V todas as suas acções, c que Jesus Christo nucos, c as danías que cercavam o impe­
Y só tinha uma alma sensitiva, mas não hu­ rador.
mana. O exemplo de Constantino, a protecção
Como os imperadores tomaram muita que cllc concedeu á Igreja, os elogios*de
parte n’estas discussões, o nome que cilas que o encheram, fizeram julgar a seus suc­
deram aos que se distinguiram, atacando cessores que nada podia conduzir mais se­
•ou defendendo a verdade, accenderam a guramente á gloria e immorlalidadc, que •
.ambição cm muitos homens mediocres, que pacificar os distúrbios da Igreja; c n’estr
se esforçaram cm merecer as attenções por disposições foram conservadas pelos mini
um zelo sobejo contra os hereges, pela aus­ tros e validos, cunucos e senhores da cõrt-
teridade de seus costumes, por alguma que todos vendiam a sua protecção, e dt
práctica particular e extraordinaria, ou ata­ clarando-se por algum partido, faziam uma
cando a disciplina da Igreja, ou o culto que particular figura no império: como as dif-
cila dá á Sanctissima Virgem. Tacs foram ferenças da religião se tornaram ncgocios
EqliutliQ.-Aadco. Aria Bonoso, Helvidio, d’Estado para os successores de Constan­
J oviniano. os collvrridianos. os uôscalçòs, tino, houve proseri peões, desterros, confis-
osuncssalIianos, PriscilIiano. caçõcs, e deposição de cargos para todos
Em inultos d’estes partidos era o fana­ aquellcs que a còrte nào julgava ortho­
tismo a disposição dominante: quasi todos doxos.
tiveram sequazes, c no meio das disputas Assim o interesse conduziu todos os es­
dos arianos è outros hereges, se viu multi­ píritos para o estudo dos dogmas, e as he­
dão de homens, que apoiados com alguma resias deveram succcdcr-sc umas ás outras,
passagem da Escriptura, vendiam os seus c vir a ser cilas um principio do destruição
bens, andavam descalços, crendo-se rodea­ do império romano. Foi pasmoso o numero
d os de demonios c cm lucta com elles, ou de subditos que passaram á Arabia, Persia,
immoveis e ociosos tinham para si que o c povos barbaros, contiguos ao imperio; e
•christão não deve trabalhar pelo sustento os que restaram, entregues á facçao e in­
que percebe. triga, nào viram no estado mais desgraça
Estava o imperio romano dilacerado pe­ que a de não poderem exterminar seus ad­
las facções c guerras civis desde Tiberio, versarios.
e os subditos opprimidos ainda no.tempo A diíTerença d'espiritos e de caracteres
■de Constantino pelos governadores das pro­ fez nascer divisões n’estes partidos, e se vi­
vincias, favoritos, e ofllciaes do íisco: tros ram scismas entre os orthodoxos como en­
•séculos de tyrannia, de guerras civis, re­ tre os hereges: laes foram os diversos ban­
voltas c calamidades, dispozeram os ani­ dos em que se dividiram os donatistas. taes
mos para a rcbcllião, e diíTundiram por no scisma da Antiochia foram Eustátio e
todo o imperio aquella acrimonia que com Lucifer, nos quacs essa divisão individual
tudo se irrita, o que produz a disposição nos mostrou todas as figuras que tomam as
jiroxima para a sublcvação. paixões, as preoccupações, e o zelo.

t
70 DISCURSO PRELIMINAR

QUINTO SÉCULO

No decurso do quarto scculo vimos gjm- Forcejou Theodosio por corrigir estas
D-crio cercado _dc nações barbaras que o m- desordens, mas inutilmente. Seus filhos,
fectavam, governado por ministros, corte- educados por validos ambiciosos, avaren­
zàos c validos, que vendiam as honras, di- tos c frivolos, taes quaes os tinha produzido
gnidades e empregos a homens sem probi­ o precedente século, por morte d’cste prin­
dade nem merecimento, e ainda mais fu­ cipe ficaram ainda muito novos senhores
nestos ao Estado que os mesmos barbaros. do império: cllo deu o Oriente a Arcadio o
As guerras que os imperadores se viram o Occidente a Honorio, ficando debaixo da
obrigados a sustentar, serviam de pretexto administração de kufino e Estilkào. Viam-
aos tributos que opprimiam os povos, c obri­ se, pois, n’estcTseculÕ7*tôcIas_.as^dcsordcns
gavam a entreter um exercito tão crescido, do precedente.
que assolava as provincias.

CAPITULO I

D o esta d o p o litic o c c iv il do O r ie n te

■, homem persuasivo, sagaz, lison- diíTerença o horrível abuso que Rufino, Eu­
» tvareza insaciável, c d’ambição des­ tropio c Eudoxia faziam da sua authorida-
medida, era senhor absoluto no império do de, fez pesquizar com o maior rigor e cui­
Oriente. Opprimiu os povos, vendeu a in­ dado se entre os ofíiciaes do palacio havia
dignos os empregos, e tornou odioso o go- hereges, e desterrou quantos n’elle desco­
S'erno a todo o imperio. Adquiriu inimigos, briu, por mais probidade que tivesse, e por
e presumindo-sc que aspirava ao sceptro, mais leve que fosse o seu erro. 1
foi assassinado por ordem do imperador. 1 No tempo de Theodosio, filho d’Arcadio,.
Q. eunuco Eutropio, que.ajmpj^aXijzJ5ii- as desgraças doTmperio augmentaram sem-
doxià expufeou, nao pelos attentados inau­ pre. Eduardo, como seu pac, da mesma
ditos que commettera, mas porque lhe ti­ sorte dominado pelos eunucos e cortezãos,
nha perdido o respeito, continuou os mes­ que o tinham emergido em prazeres em-
mos males. Toda a authoridadc d’Eutropio quanto’ as nações barbaras e ofíiciaes do
passou ás mãos d’Eudoxia, princeza ava­ fisco talavam e saqueavam as provincias,
renta e dominadajiel asaiasj)_£unxLC.osjque extinguiu o amor da patria no coração de
a cçrcaxam, pelo que se viram então juntas todos, passando-se muito para os povos bar­
todas as desordens, sofridas no tempo de baros. 2
Kufino c d’Eutropio. Quiz Marciano, successor de_ Theodosio,
Arcadia, indifferente ds desgraças do im­ corrigir todas estas desordens, mas viveu
perio, occupava-se cora o augmento da muito pouco para executar seu desígnio.
Igreja, c com os.meios d’expulsar dos seus As facções e os soldados deram c tiraram
estados todos os herejes: houve anno em
que publicou cinco editos sobre este obje­ 1 Zozim. Concil. hist. I. 2 <? 5. Soz. I. 7,.
cto; e o mesmo principe, que vira com in- c. 21, cod. Theod.
2 Excerpt. ex hist. goth. Ptisc. de lega.
i Oros. I 7, c. 37. Soer. I 6, c. í. So- tionibusincorp. Hist. Biant.Marcellin chron-
zom . /. 8, c. i . Procop. de Bel. Pers. I. c. 2.
DISCURSO PRELIMINAR 71

'o imperio: Leão i,.Zenão, BasiliçQ.e Anas- Foi por causa d’cstc amor respeitoso de
tacio, que occuparam successivamentc, o Marciano para com a Igreja que S. Leão
tTirono, foram viciosos, avarentos, fracos, exhortou Anatolio,. B ispo. de Constantirio-
sçnsuâes, e cruéis. pla, que emprchendesse sem receio algum
r Desde Constantino, possuia a Igreja gran- tudo o que julgasse util á religião:
>des bens, gosava de muitos privilégios e «Estou certo, diz elle, que "fazendo con­
Simmunidades, o que fazia dos Bispos um sistira sua gloria em serem servos de Deus,
( corpo separado das outras condiçòcs. Apic- receberão com affecto todos bs conselhos que
l dade„de Tlieod.osio lhes tinha concedido no­ lhes derdes a favor da Fé Catholica.» 1 De­
táveis honras, o dado muito credito, o qual pois da morte de Marciano, Anatolio co­
clles empregavam em favor da religião ca­ roou Leão.
tholica. Promulgou este principe quinze leis Sendo Anastacio declarado imperador pelo
contra os hereges, c seis contra os pagãos. senado, Eufemio,. successor d’Anatolio e
Ajm<jp£UC,Jlpnorío, persuadidos de que Bisno de Constantinopla, se oppóz, pretex-
Theodosio devia a sua propriedade e a glo­ tãndo~que~ell'c'como nerege, era indigno de
ria do seu reinado ao zelo pela religião ca­ governar christãos orthodoxos; e não ce­
tholica, confirmaram todas as leis de Theo­ deu ás instâncias do senado sem a condi­
dosio: seus successores os imitaram, e os ção de que o imperador daria por escripto
pagãos e hereges foram banidos, despoja­ promessa authentica de conservar a fé na
dos dos seus bens, e declarados inbabeis sua inteireza. 2
para possuir empregos. Erigiu-se pois no imperio do Oriente uma
Persuadiram-se os imperadores que nun­ potência distincta da dos imperadores, que
ca eram mais uteis ao estado, que quando não tinha soldados, mas que dominava os
trabalhavam para a Igreja, e que a verda­ espíritos, c podia excluir do império os que
deira fé era a base e o fundamento do im­ cila tinha separado da sua communhão. Foi
perio; e sabendo além disto quanto as cou- este século, pois, a. énoca em nno se tran­
sas de Deus são superiores às dos homens, sformaram os estados civil e politico do im­
se criam obrigados a empregar na conser­ pério do Oriente.
vação da fé todos os seus desvclos. 1

i Cone. t. 4. Tillem. ílist. des Emp. t. 1 Leo. Ep. 65, c. 3. Tillem. loc. cit.
6 , pag. 286. 2 Tillem. t. 6, p. 534.

CAPITULO II

E sta d o c iv il e p o litic o do O ccid en te

Eniduaiito Rufino reinava noOrientc de- ministro capaz; e os que o cercavam tinham
baixo do nónib d^rcàdeo, Estilicão,TfiTmes- pouca vontade de lh’o procurar. 1
ma. sorte no Occidente, abusava da confian­ Ucpeutinamente se viram tres impera­
ça de. Honorio, e.teve um fim similhante ao dores a disputar o sceptro na ltalia, Hes-
de Rufino. Estava o imperio cheio de des­ panha, e nas Gallias. A Inglaterra e os ar-
contentes e hereges, que Honorio e seus moricos sacudiram o jugo do imperio: as
prodecessores despojaram de seus bens e cidades das Gallias formaram estados livres,
empregos, dindividuos arruinados pelas ve- que se colligaram contra os alanos, vânda­
xações dos governadores e ministros, e pe­ los e suevos, os quacs, temendo estas ligas,
los* excessivos tributos: estes descontentes atravessaram os Pyrineus, c se derramaram
se sublevaram pela occasião da morte de por toda a Hcspanha, aonde fmalmcnte fun­
Estilicão. Os ministros que lhe succedcrara daram seus estados. 2 Posto n’csta horrível
não se achando em circumstancias de sus­
pender a desordem foram desgraçados, c os 1 Zoz. I. 5; Symmach. I. 9. Ep. 60. Aug.
que se lhes seguiram não foram melhores Ep. 129.
nem inais hábeis nem mais felizes. Honorio 2 Prosp. chron. Idant. fast. Osos. I. 7.
estava muito longe de poder escolher um Hist. Vanual. Per ec. par Théod. Ruinart.
'i v !\x.. t\vV v? DISCURSO PRELIMINAR

<confusão o imperio do Occidente, Honorio Fez-se acclamar imperador Avito, que


nào fez mais que inutois tentativas contra cm breve foi obrigado a abdicar. Majorino,
seus inimigos. Alarico tomou e saqueou que lhe succedeu, matou-o Ricimero. O pa­
'Roma. Ataulpho, que succedcu a este ge­ tricio Severo, amigo de Majorino se apos­
neral, apossou-sc do Languedoc: os bour- sou do imperio, e foi envenado por Rici­
guinhons asscnhorcaram-sc de Leão e de mero, seu amigo. 1
-urna parte das Gallias. 1 Depois d’um interregno de vinte mezes,
Tal era o estado em que Honorio deixou Anthcmio tomou posse do imperio, e foi as­
o imperio. João, seu primeiro secretario, se sassinado cinco annos depois por Ricimero,
•declarou imperador, c como tal foi reconhe­ que enthronisou Olybrio. Glicerio, mordo-
cido por todas as provincias. Aspar, que mo-mór o depôz pára se elevar a si, e foi
Theodosio enviou contra João, o aprisionou, também deposto pouco tempo depois por
e remetteu a Yallcntiniano, sobrinho de Ho­ Nepos.
norio, que lhe mandou cortar a cabeça, c Oreste obrigou Nepos a ab.andonar o im­
foi acclamado imperador. perio, e fez acclamar imperador seu filho
Yallenciniano se deixou governar por Romulo, «ao qu.al deu o nome d’Augusiulo.
•sua mãe, ministros, validos, c cunucos. No Os inimigos de Nepos chamaram á Italia
^scu reinado se apoderaram os vandalos de Odoacro, rei da Bohemia, que desbaratou
'grande parte da Africa: «as Gallias e a Ita­ Oreste c o matou. Odoacro se assenhoreou
lia foram assoladas pelos hunos, e a Ingla­ dTtalia sem tomar o titulo d’imperador, e
terra pelos escocezes. Maximo, cuja mu­ conservando o de rei foi adorado de seus
lher cllc tiilha violado, o assassinou, fazen- subditos.
do-sc proclamar imperador, c desposou Eu- Emquanto na Italia reinava Odoacro,
doxia, que por vingança chamou á Italia outro do mesmo nome, rei dos S.axonios,
•Gencerico, o qual talou as terras do impe­ tomou uma parte da Bretanha; os godos e
rio, ò saqueou Roma. 2 Maximo, indo em wisigodos se assenhorearam d’uma parte
seu seguimento, foi morto pelos romanos. das Gallias; c a potência romana se exlin-
guiu no Occidente.
1 Marcei, chron. pag. 210.
2 Prosp. chr. Procop. de bel. Vand. I. 1. 1 Marcei, chron.

CAPITULO III

£ s t a d o d o e s p ir ito h u m a n o acerca das sc ic n c ia s ,


le tr a s e m oral

Sem embargo dos editos dos imperado­ Foi ainda mais despresado que no sécu­
r e s e esforços dos christaos, ainda o Poly- lo precedente o estudo da natureza c da
theismo tinha sequazes que cuidavam com physica. Siri ano. Proculo, e outros d’este
efficacia em justiíical-o, imputando á sua ex- século, nada mais fizeram que compilar
-tineção todas as calamidades do imperio. Aristoteles e outros philosophos antigos 1
Os christaos refutavam o paganismo, e No principio d’elle, Arcadio e Honorio,
•estas controversias entretinham o estudo da então reinantes, viviam persuadidos de que
philosophia e o gosto da erudição em am­ Theodosio devia a gloria c felicidade do seu
bos os partidos. A philosophia era toda theo­ governo á sua piedade e zelo pela religião
logica, e absolutamente relíitiva á religião: christã e Fé Catholica. Estes principes fra­
era o pythagorismo e platonismo concilia­ cos e voluptuosos, não attentando que se
dos com o paganismo, a fim de justifical-o, devia attrinuir alguma parte aos seus ta-
e manejados também pelos christaos para
combatel-o. 1 Paulin adv. Gentil. Aug. de civ. Paul Oros.
adv. Pagan. Prud. adv. Symmach.
i Chysost. adv. Judcsos et Ethnicos, Théod. 1 Suid. ÍJixic. Phot. Bib. cod. 242. Fab.
-de cur. groec. affect. Ambr. Epist. 30. 31. Bibl. gr. t. 8, l. 5, c. 16.
DISCURSO PRELIMINAR
t
lentos politicos c militares, fizeram contra Viram-se pois n’estes séculos poucos phi­
os hereges e pagãos leis ainda mais seve­ losophos, muitos oradores, poetas c histo­
ras que as de Theodosio, c seu exemplo foi riadores, divididos e rivaes, quasi todos de­
seguido por Theodosio ir, Marciano, etc.; e dicados á Iisouja, ambição c intriga. A igno­
como nào consideravam cousa mais impor­ rância da philosophia, ó despréso das scien­
tante para a religião e felicidade do impe­ das exactas, o habito de lisongear, o receio
rio que a extineção da heresia e do paga­ d’oírender, e o desejo d’agradar debaixo do
nismo, hereges e pagãos foram banidos, governo de principes absolutos e afemina-
desterrados e despojados dos seus bens, di- dos, aniquilaram quasi todos os affectos no­
gnidades, e empregos. 1 bres e varonis, fizeram desapparecer as
Segundo esta disposição dos soberanos, grandes e sublimes idéias, extinguiram o
o zelo que molestava os*pagãos e hereges, fogo da imaginação, baniram o espirito phi­
ue ris atacavam nos seus templos, ou que losophico, e lhes substituiram o brilhante
’clles se apoderava, que descobria os oc­ falso; a feição cpigrammatica, as allusõcs
cultos ou dissipava as suas assembléias, foi forçadas, os* discursos empolados, as idéias
muito mais estimado que a caridade indul­ gigantescas, o amor do extraordinario, do
gente que se empenhava em illustral-os, inacreditável c maravilhoso, que são sem­
persuadil-os c vencel-os. Que Bispo houve pre a substituição dos pensamentos finos,
tão acreditado como Theophilo d’Alexan­ do estylo elegante e nobre, do sublime, das
dria, Ncstorio, e tantos outros, que não ti­ imagens, c do pathetico, n’um século em
nham mais merecimento que o ardor c in­ que o espirito philosophico e gosto se per­
discrição do seu zelo? dem e se corrompem: e o meio por onde o
A erudição, o gosto das scicncias, que a espirito humano desce necessariamente da
estimação pública, o respeito, c a necessi­ luz e do bom gosto á ignorância e bar­
dade cíe defender os dogmas tinham con­ baria.
servado entre os christãos, e produzido tão Os poetas, historiadores e oradores, que
grandes homens no principio d’este século, tinham necessidade do maravilhoso para
■se extinguiram, c as scicncias quasi não mover, interessar, e arrebatar, os procura­
tiveram entre os christãos quem as culti­ ram em todos os objectos, e como os não
vasse pelos fins do quinto século. Um im­ continha o espirito philosophico, nem os
perio aonde se crer que a felicidade tem­ illustrava a physica, nem a critica os con­
poral depende da extirpação do erro, que duzia, viram omaravilhoso cm toda a parte
extermina e queima os hereges e infiéis, onde desejaram encov^tral-o: foram os acon­
basta que tenha delatores e inquiridores; tecimentos sobrenaturacs, todos os pheno-
as scicncias hão de parecer n’elles perigo­ menos vistos menos vezes, e aos mais com-
sos. Não se chegou porém a estas conse­ rnuns deram o realce que lhes pareceu ca­
quências no quinto século, nem ellas se es­ paz d’augmentar a admiração e importân­
tenderam até á poesia, ã eloquência, c á cia; inventaram milagres, suppozeram his­
historia. No século precedente, e principio torias falsas, c o público, apaixonado dos
do quinto, tinham sido cultivadas com lu- portentos, tudo recebeu sem exame. A’ me­
zimento, e servindo para celebrar os elo­ dida que a luz se eufraquccia, se foram
gios dos imperadores eram validas na corte. pervertendo os costumes entre os christãos;
Eudoxia, mulher de Theodosio n, compoz porém no meio da corrupção geral, o Chris­
poesias sagradas, o recitou em publico al­ tianismo tinha conservado cm muitos de
guns discursos. Theodosio sempre recom­ seus filhos o amor da justiça, a probidade,
pensou magnificamcnte os seus panegyris­ o desintoresse, e uma sensibilidade terna
tas, chegando até a erigir-lhes estatuas. Es­ para com todos os infelizes. Estas virtudes
tabeleceu em Constantinopla vinte profes­ particulares suavisaram os estragos dos bar­
sores de humanidades, gregos e latinos, baros, as desordens do governo, as cala­
tres dc rhetorica, latinos, c cinco gregos, midades públicas, 1e talvez a ellas se de­
dous em direito, e um philosopho encarre­ vesse o não estar cxtincto o amor da pa­
gado d’indagar os segredos da natureza, tria, sem o qual nenhum estado póde sub­
que provavelmente eram as qualidades e sistir, o que somente a religião conserva
virtudes occultas c singulares das plantas cm tempos tão calamitosos.
e pedras, etc.; porque esta indagação re­ Depois que os imperadores julgaram não
creava muito á Theodosio. 2 haver cousa mais importante, tanto para a
Religião eomo para o^estado, como a extinc-
1 Sos. /. 8, c. 1. Leo epist. 21. Cone. t.
3, pag. 66, 67. t. 4. pag. 8, 9. Eclit. de Lab. 7, c. 21. Phot. cod. Ducange, Bysant. fa-
2 Const. Manaff. Breviar. chr. Socrat. I. mil. cod. Theod. I. 13.
74
J CwV DISCURSO PRELIMINAR

,ção das heresias, o zelo contra os liereticos losas; cmpregou-sc todo o cuidado em os-
'pareceu mais necessario do que a virtude, desculpar ou fazer menos odiosos: os cos­
e tomou o logar d’esta: dissimularam-se tumes se corromperam, e a moral entre
os defeitos e ainda os vicios das pessoas ze­ muitos christaos se alterou.

CAPITULO IV

D as h e r e sia s d o q u in to s é c u lo

Logo que nasceu o Christianismo se in­ Christo uma alma humana, mas que esta
clinaram os espíritos, guiados pela philo­ era distincta e separada do Verbo, o qual
sophia platônica e pythagorica, para o es­ a instruía e governava; porque d’outra
tudo e exame dos mysterios da Trindade e sorte forçosamente se havia de reconhecer
Divindade de Jesus Christo, e da uniào da que a Divindade padecera, e que tinha ad­
natureza divina e da natureza humana. quirido conhecimentos.
Estes mysterios, por assim dizer, estão Nestorio, discipyio_jíiJrJLeodoro dc Mo-
collocados entre dous abysmos, nos quacs psuêslià, possuído d’estes princípios, çon-
a curiosidade temeraria ou o zelo indiscreto cluiu uue a Divindade habitava na huma­
Í se haviam precipitado: tinham crido uns nidade como em um templo, o queUÕ ne­
que Jesus Christo não tomara corpo nem nhuma outra maneira estava uniüa a alma
se havia unido á natureza humana; outros humana: tiue nor consequência havfiPem
que Elle nào era mais do que um homem Jesus ChrisTõ duas Pessoas, o VerhõTque
dirigido pelo Espirito de Deus. era eterno, infinito, e increado: o homem
Pj^xeai-fiL^oet, para conservarem o do­ creado c finito: tudo o que uma em uma
gma da Trindacle, fizeram do Filho de Deus só Pessoa o Verbo e a natureza humana
uma substancia distmeta da substancia do lhe pareceu contrario á ideia da Divindade
Pae. Sahelljo- para defender a unidade da e Fé da Igreja. Condemnou como contrario
Divina Substancia, fez das Trcs Pessoas da a esta Fé o titulo de Mãe dp. PnpsTque se
Trindade tres attributos. Ario, pretendendo dava á Virgem Sanctissima.
evitar o erro de Sabcllio, c desembaraçar "intiammados os animos, ò zelo pela pureza
as difficuldades do mysterio da Trindade, da Fé penetrou em todos os estados: ojjpvo
tinha supposto que Jesus Christo era um só nlvoroton contra Nestorio. que logrando
Deus creado c distincto da substancia do grande authoridade da corte, obrigou a cas­
Pae. Appolinario. defendendo a consub- tigar com prisão e açoutes os descontentes.
stancialiuade do Verbo por diversas passa­ A"innovarim de-T&fttem^fez grandji-eatam-
gens, nas quaes a Escriptura dá a Jesus pido; os monges defenderam a prerogativa
Christo todos os attributos da Divindade, (TifSancta Virgem; S. Cyrillo psemvon con­
julgou que Elle nào tinha alma humana, e ti a Nestorio. a tprla a. Tgrpj.i fni imir)pdinta-
que a Divindade fazia todas as suas func- mente Sabedorn rin sim rQntPctnçjin For-
ções. Theofjoro flft Mopsuestia. para con­ maram-se partidos nas provincias, em Con-
vencer Appolinario, procurou na Escriptu­ stantinopola, e na Curte. Theodosio" ii fez
ra tudo o que podia estabelecer que Jesus convocar um condlkTem Epheso. ()s Bis-
Christo tinha uma alma distincta do Verbo. pos se dividiram: disputaram ;~das_disputas
Unindo todas às acções e affeições que a se passou aos insultos, dos insultos as ar-
Escriptura attribue a Jesus Christo, elle se masTe esteve nroxima a romper entre os
persuadiu encontrar algumas que nào só­ dous partidos uma guerrtLsanguenta.
mente suppunham que Jesus Christo tinha íNéstono e S. Cyrillo tinhamambosgran­
uma alma humana, mas que fizera acções de partido na côrte; e Theodosio, que se Via *
sómente proprias d’esta alma, quaes sao o muito embaraçado para mitigar o zelo qiie
seu padecer, o progresso dc conhecimen­ elle mesmo accendera depois de grandes
tos, a infamia, etc. disturbiosgasPi muita agitação na côrte, em
D ’aqui tinha concluído Tlreflílorn dftJMo- Epheso, $& ís provincias, condemnou final-
psuestía, que nào sómente havia em Jesus mente os espíritos de Nestorio, prohibiu aos
DISCURSO PRELIMINAR ’0 v 7o
ncstorianos que fizessem convcnticulos, des­ Para combater o nestorianismo, usou de
terrou para a Arabia os cabeças, c Hies expressões mais fortes, c receando separar (
confiscou os bens. em Jesus Christo a natureza humana c a i
Cederam muitos na occasiào, conservando Divina, como Nestorio as confundiu, ensi- \
para assim dizer o fogo da divisào occulto nando, que nào havia no mesmo Scnliõr \
nas cinzas do nestorianismo, sem tornarem mais que uma so natureza. isto é, al)ivín a. u
o titulo de ncstorianos. Um d’estcs, refu­ porque a humana linha tirado absorvida 1
giado na. Persia, se aproveitou do odio petajíivina, cuiiio uma gota d agua no vasto
íTaquclla nação' contra os romanos, para marT"-------- -----------------------
alii fundar sobre as ruinas das Igrejas Ca­ O credito que Eutyches tinha na curte
tholicas o nestorianismo, que de lá se es­ o sustentou contra um concilio de Constan-
palhou por toda a Asia, aonde, talvez, con­ tinopla, cJe.zjiuc_se_con.\ncasse outro,'cuja
ciliado nos séculos seguintes com a reli­ presidenefa teve Dioscoro. patriarcha _de
gião dos lamas, deu principio á potência Alexandria, no qual Eutvches foi restabe­
singular do Preste João. lecido, c seus ininngQsId.ePQstos, presidindo
$ ã o tinha o concilio d’Ephoso extincto o favor c ã violência a todos òs decretos
os nestoriãnosTTrrriitos se conservavam oc­ (ÍÊfe_Ípj]^no, formado c dTngiclo pelas'in-
cultos no Oriente com receio das disposi­ trigas ^ a c o r te ,, pefõTTuer com juit.CLtU.uJo
ções c desterros, cedendo á tempestade, sr>
se p línihnn a . cxtorsãõarrE
cliamau nfioín n
EpíicsoT nninmlr
apoiando
mas conservando um desejo ardente de seus decretos rneoüosio ii.
vingança contra S. Cyrillo c seus sequazes. Marciano, nuo suecédeu a Theodosio, fez
D’outrâ parto os defensores do concilio de ajuntar em Calcedonia outro concilio, que
Epheso aborreciam de mortc~os nestoria- condcmnou o erro d^utyches. Tuas s p
no?, ò"todos aquclles que ainda" conserva­ destrui r o seu partido;~êncheu o Oriente
vam alguma indulgência para com este d’alvorotos, sédiçôes n mortes. No meio
partido. Havia, pois, com elTeito, dous par­ de todos estes ■horrores moviam os euty-
tidos subsistentes, um dos quaes opprimido, chianos mil questões frivolas, dividiam-se
procurava evitar o perjurio, c preservar-se sobre estas mesmas questões, e formavam
das violências dos orthodoxos por fórmulas infinidade de pequenas seitas ridiculas e
de fé capciosas e equivocas, differentes das obscuras, que se perseguiam cruelmcnle-
de S. Cyrillo; e outro, victorioso, que per­ Assim accenderam o fogo do fanatismo em
seguia os ncstorianos em todos os seus sub­ todo aquelle império Nestorio c Eutvches,.
terfúgios. sem que a severidade ou o commediincnto
O zelo ardente e a cega desconfiança dos imperadores podésse fazer mais do que
para se assegurarem da sinceridade çTaquel- augmcntal-o. Os nestorianos e eutychianos
les a quem queriam fazer receber o conci­ successivamente encheram o império de
lio d’Épheso, imaginaram diversos modos motins c sedições; fizeram correr o san­
de proval-os, empregando nos seus discur­ gue em todas as mais provincias, c d'ellas
sos expressões as mais oppostas á distinc- desterraram infinitos vassallos, que foram
levar seus cabedaes e industria aos estran­
reza Divina eJnjfliana: serviam-se d’expres- geiros, instruil-os da fraqueza do império,
socs7 c(We"desígnavani nãojiómonte a união, e offerecer-lhes os seus braços para sé
mas ainda-a-Confnsào_das _duas_ naturezas. vingarem.
D’c.s.ta_sortc, depois que o nestorianismo Emquanto no Oriente alterava a curio­
foi.condcmntula^ tudo era nertinaz. fanatico. sidade humana os mystorios, querendo ex-
plical-os, o desejo da perfeição atacava no
_ ______ muito_zelo contra o Occidente os dogmas do Clíristianismo so­
nestorianismo, noucasZGÍzes^ u s^ m a d c T le bre a graça, liberdade do homem, c sua
costumes, um caracter obstinado c orgu- corrupção, querendo fazel-o capaz de che­
1hosorcõm ingunrcredi to. gar por si mesmo ao.grau mais sublime da
Xao podia deixar dcThaver um homem virtude, ou destruil-o de toda a actividade
d^stcTncPseculo quc~examinamos: galera para o bem, submettendo-o a um destino
Eutvches. monge com reputação de sancti- que lhe negava a escolha c a liberdade;
uaac, c que n a jü k to lograva avantaiado taes foram os pelagianos, os predcstinacia-
■eírnTfT:
conceffoTErie foi o„ primeiro __...
author dos ri- nos o scmi-pelagianos; mas nenhum d’estes
^?õFeí> tom rfue se tractaram os ncstorianos erros perturbou os estados.
noürfênte:---------------------------
76 DISCURSO PRELIMINAR

SEXTO SÉCULO

CAPITULO I

D a im p ér io do O r ie u te

Reinava Anastacio no principio do sexto victorias, fez um novo codigo; 1 e porque


século, e n clle se descobriram vicios, que, não deixavam, os eulychiauos de causai*
ou o seu estado particular, ou os projectos perturbações, ó imperador promulgou leis
da sua ambição tinham reprimido: vendeu severas contra cllcs, expulsou seus Bispos,
os cargos, acabrunhou os povos com tribu­ e já parecia morto o cutychianismo, quan­
tos, fez-se odioso: occasionou sedições em do se sentiu reviver nos'ultimos tempos do
Constantinopia e nas provincias. Por fóra seu governo.
foi atacado o império pelos persas, búlga­ Justino, successor é sobrinho de Justi­
ros, arabes, e outros povos scptemtrionaes niano, foi um principe fraco c libidinoso,
que assolavam as provincias, cmquanto da ue deixou assolar o imperio. O desenlacc
sua parte os governadores as exhauriam 3 as suas desgraças c a impotência cm que
com extorsões, de cujos eíTcitos faziam par­ se achava para atalhal-as, alteraram a sua
tilha com Anastacio. razão. Tiberio foi encarregado do governo, e
Os eutychianos c mais inimigos do con­ imperador depois de Justino. Teve por suc­
cilio de Calccdonia, que Zcnào inutilmente cessor Mauricio, debaixo de cujo mando
quizera reconciliar com os catholicos, for­ prosperou o império. Este ultimo teve a
mavam outra guerra domestica, cm favor gloria de restituir o throno a Chosroas,
da qual se declarou finalmcntc o impera­ sendo ellc proprio despojado dos seus es­
dor. Sublevaram-sc os catholicos. Vitaliano, tados por Phocas, a quem o exercito deu
um dos generaes do império, se pôz na sua o titulo d’Augusto.
frente; d’improviso se levantou um exer­
cito, que desbaratou as tropas do impera­
dor, c o forçou a deixar a empreza de per­ DO ESTADO DO OCCIDENTE
seguir os catholicos. Este era o estado cm
que Justino achou o imperio quando o' re­
cebeu das mãos dos soldados. Governou- Dominavam os godos na Itália no princi­
com summa prudência, e fez em favor da pio d’estc século. Belisario c Narsez, depois
religião catholica tudo quanto Anastacio d’um a porfiada e sanguinolenta guerra, a
fizera contra cila. O seu zelo indispoz Theo­ fizeram entrar segunda vez debaixo do po­
dorico, rei dTtalia, zelosissimo ariano. der de Justiniano. Roma foi tomada e res­
Succcdeu Justiniano a seu tio, e esteve taurada pelos godos c romanos alternati­
em guerra com os persas e hunos, que as­ vamente.
solaram o Illyrio e a Thracia; Belisario c Nas Galhas houve contínua guerra entre,
Narsez defenderam o império com muita os burgonhezes, visigodos e francos. Estes,
gloria, e conquistaram a Italia aos godos. que no precedente século estavam dividi-
Então, persuadido Justiniano que as leis
sabias contribuíam muito mais para a feli­ 1 Procop. de bel. Pers. de bello goth. AQR-
cidade dos povos que as mais relevantes thias hist. lnst. Bahluin. in Just.
DISCURSO PRELIMINAR 77

dos em muitas tribus, tacs como sallianos, tro filhos, que continuamente andaram em
rcipuarios, chamavos, chattos, etc., se reuni­ guerra, ou fosse pela sua própria inclina­
ram debaixo do poder de Clovis, excepto ção, ou pelas instigações de Fredegundes,
os ripuarios, que formavam uma tribu se­ senhora d’espirito revoltoso, d’animo ex­
parada, posto que reconhecessem por seu traordinario, c de tanta ambição, que não
rei a Clovis. 1 Depois de haver unido todos tinha cm conta alguma os maiores crimes,
os francos e conquistado a maior parte das com tanto que elles tivessem um resultado
Gallias, Clovis estabeleceu a corte do seu feliz.
império em Paris, aonde morreu em 31 i. Na Ilespanha e na África os gregos c
Seus íilhos dividiram os estados: Thierri, vandalos estavam em continua guerra, ou
havido d’uma concubina, foi rei de Metz; entre si, ou com os romanos. A Gran-Breta-
Childeberlo, de Paris; Clotario, de Soissons; nha por todo este século defendeu a sua
e Clodomiro, de Orleans. A’ forca de cri­ liberdade contra os saxonios, juttos e in-
m es c mortes reuniu Clotario todos estes glezes, e que emfim, depois de um século
estados, divididos depois entre os seus qua- de guerra, fundaram alii o seu imperio,
conhecido debaixo do nome de Heptarchia.
1 Greg. Tur. I. 2.

CAPITULO II

E sta d o das le tr a s e s c ie n d a s d u ra n te
o se x to sé c u lo

Anastácio, Justino, Justiniano, c seus suc­ N’uma tão geral e violenta agitação, pou­
cessores, não tinham pelas letras a paixão cas pessoas cultivavam o seu espirito e a
que vimos em Arcadio, Honorio, Theodo­ sua razão: o gosto das letras e das scien-
sio, Marciano, etc. Os grandes engenhos e eias não subsistia senão entre alguns sábios,
conhecimentos não foram uteis nem apre­ que resistiram á torrente, e que por sua
ciados. moderação e prudência viveram esqueci­
O império tinha-se tornado o frueto da dos ou se tornaram ridiculos e talvez odio­
ambição: o soldado, o ministro do impera­ sos. Não achamos n’este seeulo mais que
dor, ahi chegavam, formando partido no alguns rhetoricos e historiadores apreciá­
senado, no povo, na tropa, c excitando mo­ veis, c que eram ainda fruetos do prece­
tins. dente. Taes são Nonnosio, Hcsichio, Proco-
Os manieheos, os arianos, e sobretudo os pio, Paulo, o silencioso, Agalhias, o escolas-
eutvchianos, estavam animados d’um odio tico, alguns philosophos pagãos, que não
vivo contra os catholicos, os quaes de nada tomavam parte nos negocios, e que se oc­
se esqueciam contra inimigos tão activos, cupa vam em coadunar as opiniões d’Aris­
0 lhes oppunham a mais inllcxivel firmeza, tóteles, Platão e Pythagoras, como foram
e o zelo mais infatigável. Assim se via o Simplicio e muitos outros, aos quaes Jus­
imperio cheio d’ambíciosos, de parcialida- tiniano permiltiu que habitassem cm Athe­
d es e facções, não logrando credito ou con­ nas. Os catholicos tiveram ainda .assim bons
sideração quem não se alistava cm algu­ escriptores, theologos hábeis, raciocinado-
m as d ellas. res intelligentes; mas em pequeno numero,
Arrastados por esta cspccie de torrente, e nenhum d’elles comparável aos egregios
s e oceupavam todos os espíritos em gran- authores do precedente seeulo . 1
gear um protector, a perder um inimigo, No Occidente foi a Italia o theatro de
fazer um proselyto. Calumnias, delações, uma guerra sanguinolenta e continua en­
falsos testimunhos, imposturas, tudo se em­ tre os gregos, lombardos c romanos. As
pregava sem cscrupulo. 1 Gallias estavam submettidas aos burgonhe-

BibUoth. du sixieme siêcle, art. Jean Ma-


• Ev. I 4, 5, 6 . Theoil. le Lecteur, l 1 xence.
e t 2. H om isdas, Lettres à Possesseur} Dup. » Vide Pliot. BiW.
78 DISCURSO PRELIMINAR

zes e visigodos c francos, cuja dominação ptores dos bons ecclesiasticos, fez imaginar
se estendia quasi dos Pyrincus até os Al­ infinidade de curas c de castigos milagro­
pes. A Ilespanha, dilacerada pelas guerras sos. 1 Apparecoram innumcraveis collcc-
dos godos, vandalos e siievos; e flnalmente cõcs de historias maravilhosas, vidas de
a Gran-Bretanha invadida pelos juttos, in- Sanctos cheias de prodígios, apparições c
glezcs e saxonios. ' revelações ainda para os mais pequenos ob­
Todos estes conquistadores, sem scien- jectos da vida particular: c como estas his­
cias nem artes, subjugaram povos, que as torias faziam profunda impressão nos ani­
cultivavam, devendo a seus animos esfor­ mos, c os acccndiam cm desejos de serem
çados, c ordinariamente á perfídia as van­ o objecto das maravilhas que se referiam,
tagens e felicidade de suas emprezas: en­ individuos sem numero se esforçavam a
tre cllcs só tinha valor a bravura e a arte chamar sobre si estes soccorros extraordi­
d’enganar seu inimigo. As sciendas, as narios da Providencia.
letras e artes, ficaram sendo o patrimonio Impressiona-nos fortemente a cousa que
dos vencidos, e olhadas como a occupação se deseja com ardor, c se a imaginação é
dos covardes, e um objecto de despreso viva, dcsapparcccm todos os objectos* que
para os guerreiros, que conquistaram o Oc­ são estranhos a esta cousa: vè-se, crê-se
cidente. que cila existe, c quando se relata, é com
Não havendo, pois, motivo algum que es­ um enthusiasmo que subordina todas as ima­
timulasse os animos á cultura das letras, ginações, que a razão nào sustem: assim o
fez a ignoranda rapidos progressos: no fanatismo e a ignorância crèram vèr mara­
principio do sexto século já nào se enten- vilhas, c as persuadiram.
. diam os versos latinos, e excedia a intelli- É tão lisongeiro para o amor proprio,
gencia do público tudo o que nào era cs- tão consolador para a fraqueza humana, e
cripto cm cstylo baixo. e. grosseiro. tão importante, ainda para a mesma pie­
Refugiaram-se as letras c scicncias nos. dade, o ser conduzido immcdiatamonte pela
mosteiros e entre o clero, conservando-se Providencia; contavam*sc tantas historias
escolas nas cidades episcopaes e nos con­ em que cila intervinha d’um modo mila­
ventos, aonde se ensinavam as letras divi­ groso cm todas as circumstandas da vida
nas e humanas. Estas casas religiosas fo­ privada, que não se duvidou que a Divin­
ram o asylo da virtude, assim como das dade, os Anjos e Sanctos estivessem conti-
scicncias. Nào viram os bispos com olho nuamente occupados em soccorrer os ho­
indifferente os seus vencedores, ignorando mens, guial-os e instruil-os do que lhes
a verdadeira religião, e-elles emprehende- convinha saber, logo que fossem invoca­
ram illuminal-os. Como porém a ignoran­ dos; portanto se creu, que consultando a
d a c barbaria d’èstes conquistadores os fi­ Divindado, os Anjos, os Sanctos, se rece­
zesse menos hábeis para a instrucção; «era biam respostas c esclarecimentos acerca do
'preciso, dizem os sábios authorcs da histo­ futuro.
ria litteraria de França, que nos desígnios Sendo a ignorância tão profunda como
que Deus linha de conduzil-os á fé catho­ era extensa a superstição, c não tendo aqucl-
lica, alguma cousa os levasse pelos senti­ la capacidade para no*vos inventos, se ado­
dos: escolheu pois os milagres, como o meio ptaram todas as adivinhações usadas entre
mais proprio para fazer sobre estes povos os idolatras, sefn que parecessem crimino­
uma impressão sandavel. Faziam-se innu- sas, porque não tinham por objecto os de­
meraveis nos sepulchros de S. Martinho de mônios, mas o mesmo Deus, os Anjos ou
Tours, de Sancto Hilário de Poiticrs, de S. os Sanctos.
Germano em Auxerre, c de muitos outros D’esta maneira se persuadiram que abrin­
Sanctos: eram tão esplendidos c authenti­ do algum livro da Escriptura Saneia ao
cos, que os Bispos os propunham como uma acaso-, a Providencia conduzia a mão, c o
divisa certa e distinctiva da verdadeira re­ primeiro verso; continha a resposta que de­
ligião. É constante que foi isto quem obri­ sejavam sobre algum ponto intrincado. Ja
gou o grande Cio vis a abraçal-a.» 1 em outro tempo tinha Adriano empregado
Os cffeitos que produziram estes milagres a Eneida para este objecto. Chilperico es­
verdadeiros, fizeram crear outros imagina­ creveu uma carta a S; Martinho de Tours,.,
rios, que revestiram de circumstandas as e a fez collocar sobre o seu sepulchrò; ífclla *
mais adequadas para conduzir os ânimos ao rogava ao Sancto que lhe fizesse saber se
objecto a que se propunham: o desejo de iodia sem crime expulsar Boron da sua
Í
adquirir ricas oflertás ou d’intimidar os ra- greja, para aonde se tinha retirado.

1 Hist. lit. de Fr. t. 3, p. 3. i Hist. lit. de,Fr. t. 3, p, 3.


DISCURSO PRELIMINAR

D’esta crença cm que estavam de que a No sexto século foi pois que se desenvol­
Providencia intervinha d’um modo extraor­ veram todos estes germens de superstição
dinario, sendo requerida. ou rogada pelos e d’arte magica, que vimos formarem-se*no.
christãos, se concluiüque cila nào deixa­ século precedente.
ria sem castigo o perjúrio, a mentira c o Como o estado do espirito humano -00-.
crime de que se lhe pedisse justiça, nem contra va em todas estas prácticas os meios
permittiria que a innocencia perecesse em de saber ou produzir quanto lhe importava,
qualquer estado que ella estivesse. D’aqui não teve estimulo ou motivo algum para
nasceram todas as cspecies de provas de cultivar as letras e sciencias; e assim s e .
agua, de fogo; do juramento, e do duello, co­ aniquilou 0 gosto do estudo no Occidente1
nhecidas debaixo do nome de Juizo de Deus.
Os culpados ou protervos que queriam
conhecer o futuro, ou foram submettidos a
estas provas, procuraram na assistência dos 1 Grey. Turor. h. I. 4, 5, 7. Baluf. ca-
maus genios o soccorro que nào ousavam pil. t. 1. Fredeg. chron. Lc Gendre, mamrs
esperar da Providencia ou dos Sanctos, c de Fr. Fleury, dis. 3. sur 1'hisL. Tliicrs et
assim recorreram á nigromancia, á ma­ lc Brun. Traité des Superst. Ilist. lit. de
gia, etc. Fr. t. 3.

CAPITULO III

D as h e r esia s d o se x to s é c u lo

Não podendo Ario no terceiro século con -1jder a sua opinião, indagar como uma sub-
ciliar 0 mysterio da Trindade com a uni-1Istancia podia unir-se á outra, de modo que
dade da Substancia Divina, sustentou que depois d’unida não houvesse mais que uma,
o Verbo não existia na Substancia do Pa­ e se esta união tinha logar em Jesus Christo.
dre, posto que fosse Deus, e apoiava a sua Os erros de Ario, Appolinario, Nestorio
opinião com passagens em que Jesus Christo e Eutyches haviam pois introduzido na
se diz inferior a seu Pae, ou produzido no theologia as astúcias c subtilezas da diale­
tempo. ctica, e encaminhado os espiritos a exami­
Os catholicos, pelo contrario, provaram nar a união das duas naturezas. Elevado
que 0 Verbo era consubstanciai ao Pae, 0 espirito a estes grandes assumptos, inda­
por infinidade de passagens que estabele­ gou as causas, eíTeitos, propriedades, e con­
ciam a perfeita igualdade entre 0 Pae e 0 sequências d’csta união, tanto a respeito
Filho, fazendo vêr que os arianos se des­ da humanidade como da Divindade; mas
viavam do verdadeiro sentido da Escriptura. como estava eoarctado pelas suas subtilezas
Estes, da sua parte, querendo illudir a for­ e a ignorância 0 tinha embotado, nào exa­
ça das passagens, que os catholicos lhe op- minou taes objectos senão debaixo de rela­
punhain, foram obrigados a recorrer a expli­ ções pueris, inventando modos de fallar ex­
cações forçadas. traordinarios, e agitando questões nada me­
Para combater c defender Appolinario nos exquisitas.
quando asseverou que Jesus Christo não Assim, os eutychianos examinaram sc
tinha alma humana, foi preciso examinar transpirava 0 Corpo de Jesus Christo, se
o s differentes principios, que concorriam nas tinha necessidade de sustentar-se: sobre
acções de Jesus Christo. esta questão se dividiram, emquanto inda­
A opinião de Nestorio, que unia a natu­ gava Thimothco, sc depois da união das na­
reza Divina c humana, fazendo duas Pes­ turezas Divina e humana linha 0 mesmo Se­
soas distinctas, obrigou a examinar qual nhor ignorado alguma cousa.
ora a ideia ou essencia da personalidade, Alguns Monges schytas, para explicarem
c como duas tão diversas naturezas podiam mais claramcnte contra os nestorianos a
unir-se de sorte que não formassem mais união das duas naturezas, pretenderam que
quo uma só Pessoa. se devia dizer que um da Tiindadc tinha
Quando Eutyches sustentou que a natu­ padecido, e que era necessario fazer d’esta
reza Divina e a humana estavam confun­ proposição um artigo de fé.
didas, foi preciso para impugnar; e defen- Receando os catholicos que esta maneira
80 DISCURSO PRELIMINAR

d’exprimir favorecesse o eutychianismo, a donia, e homem dc grande credito na pre­


condemnaram; o clero, o povo, e a corte, sença do imperador. Theodoro, por vingança,,
porém, se dividiram, c escandcceram-se os persuadiu e alcançou de Justiniano um edito-
animos: o imperador tomou partido contra que condemnou Theodoro de Mopsuestia c-
os inonçes; e Vitaliano, que no tempo de seus escriptos, os de Theodoreto contra S.
Anastacio se pozera cm armas a favor dos Cyrillo, c a carta dTbas, que se tinha lido-
catholicos, sc declarou pelos monges. Houve no concilio de Calcedonia.
partidos inimigos, distúrbios e sediçòes. Fi- Depois d’empregar todos os meios que-
nalmente condemnaram o uso d’uma pro­ dieta a prudência, o Papa Vigilio oxcom-
posição, que excitava levantamentos no es­ niuugou os que recebiam o edito: foi esta
tado, e ameaçava o imperio d’uma guerra controvérsia muito alentada, e duroü tanto,
civil. que sómente no quinto concilio gorai se
Por se haver prohibido esta proposição, terminou. 1
concluiram outros monges qne era falso O semi-pelagianismo, que na França ti­
ue um da Trindade houvesse padecido, nha feito progressos, sem comtudo motivar
’onde concluiram que também nào tinha distúrbios civis, foi condemnado pelo con­
nascido um da Trindade, e por conseguinte cilio d’Orangc.
que a Sancta Virgem nào era a verdadeira Abraçaram a religião christã os francc-
Mãe de Deus. Nào causou menos pertur­ zes, ingíezes e saxonios; e os godos, suevos,
bações esta consequência, que a proposição hcrules, etc., renunciaram o arianismo; as­
quê a tinha occasionado, c se declarou que sim estava catholico todo o Occidente, unido
um ‘da Trindade padecera. 1 e sujeito á Sancta Sé, que teve a parto prin­
Quando o fogo do eutychianismo come­ cipal na conversão dos infiéis e hereges.
çou a extinguir-se, alguns monges da Pa­ No meio da desordem e confusão, quo
lestina leram as obras d’Origenes, e adopta­ reinava em ambos os impérios, a fé da
ram muitos dos seus erros; outros os com­ Igreja era tão pura como a sua moral: ella
bateram; fizeram-se proselytos e esta alte­ igualmente combatia todos os erros, abusos
ração causou movimentos fortes cm toda a e desordens. Os decretos e canones dos con-
Palestina; sendo notorio que o imperador cilios dão d’isto uma irrefragavel prova.
tinha grande gosto em tomar parte nos nc- Por toda a parte produzia homens illustres
gocios ecclesiasticos, c fazer regulamentos em sanctidade e virtudes, que nenhuma ou­
sobre as controversias, que se levantavam tra religião linha produzido. A cila deve­
acerca da religião, Pelagio, apocrisiario de mos nào estar hoje como esses povos bar­
Roma, se aproveitou d’esta disposição para baros, que atacaram o imperio do Occidente-
fazer condemnar as obras d’Origenes, que e o destruiram.
tinham por partidário zeloso a Theodoro
de Cesarea, inimigo do concilio do Calce-
1 Liberal Brebiar. c. 23. Baron. t. 7.
Noris. Hist. Pelag. I. 2, c. 20. Baron. Nicephor. Hist. Eccl. I. 47. Noris, diff. de
1
anual. t. 6, p. 659, /. 7, p. 413. o. Synod. Dup. Bibl. t. 6.

SÉTIMO SÉCULO

CAPITULO I

E sta d o d o O r ie n te

Phocas era senhor do imperio no prin­ Os barbaros assolaram o imperio cmquanto


cipio do sétimo século; tinha todos os ví­ Phocas destruía cabedacs e derramava o
cios. que deshonram a humanidade, sem sangue dos seus subditos.
qualidade alguma qüe o fizesse 'estimar. Heraclio livrou o imperio d’este monstro
DISCURSO PRELIMINAR 8f

cm 610; restaurou todas as provincias que dous pontos, isto c, que não havia mais
os persas lhe haviam tomado, c fez seu po­ que um Deus, e que Jesus Christo fora en­
der formidável no Oriente c Occidente. Ainda viado para o fazer conhecer, e para ensinar
o imperio de Constantinopla incluía parte aos homens uma moral perfeita.
da Italia, Grécia, Thracia, Mesopotamia, Era impossível que na agitação cm que
Syria, Palestina, Egypto e Africa; mas es­ se viam todos os animos, não houvesse em
tas vastas possessões se viam despovoadas alguma d’estas seitas quem reduzisse o
pelas guerras contínuas que o imperio sus­ Christianismo áquellos dous pontos, c não
tentava, pelos estragos dos barbaros, c po­ divisasse n’esta reducção o meio de confe­
der absoluto e arbitrario que os governa­ derar contra os catholicos todos os chris­
dores, insaciáveis e deshumanos, alli exer­ tãos da Arabia.
ciam, c pelos editos rigorosos dos impera­ Igualmente era impossível que d’esta pri­
dores contra todos os hereges. Gemiam de­ meira vista não concluísse algum, que tudo
baixo da opprcssào os subditos que ainda o que os christãos criam de mais era ac-
conservava o imperio, o qual para ninguem crcscentado á doutrina dc Jesus Christo;
era já patria. N’esta situação nào faltava que elles por consequência, á força de dis­
mais que uma potência mediocre que to­ cursar, corromperam o Christianismo, e
masse a peito desmembrar o imperio no que era necessário rcformal-o, lembrando
Oriente, como havia succedido com o do aos homens a unidade de Deus, e benefl-
Occidente. cencia e virtudes moraes, que Jesus Christo
Trabalhavam os proprios imperadores viera ensinar e que as disputas dos chris­
havia muito tempo em formar esta potên­ tãos haviam escurecido.
cia. No meio das guerras, que assolavam o Tinha pois o tempo aproximado na Ara­
resto da terra, tinham os arabes conservado bia todas as idéias que haviam de condu­
a paz e a liberdade. Entre elles se refugia­ zir o espirito humano a separar do Chris­
ram os cidadãos, descontentes e infelizes, tianismo aquclles mysterios que foram en­
os hereges proscriptos pelas leis dos impe­ tre os christãos o elemento da discordia, e
radores desde Constantino até Heraclio. a fazer sahir das seitas christãs, desterra­
Cada um professava em liberdade a sua das na Arabia, uma seita reformadora, que
religião: havia tribus idolatras; alguns eram não admittisse por dogmas fundamentaes
judeus, outros tinham abraçado a religião senão a unidade de Deus, as penas e recom­
christã, c finalmente alli se viam todas as pensas da outra vida; que reputasse a Je­
seitas levantadas desde o nascimento do sus Christo como um enviado de Deus, e
Christianismo. reclamasse aos homens a beneficcncia, a
Continha pois a Arabia forças capazes de práctica das virtudes moraes, e um culto
fazer conquistas no imperio romano; mas mais puro que o dos christãos.
o amor da independência, da liberdade, as Entre os que se achavam refugiados na.
tinha desunidas e incapazes d’esta empreza, Arabia, muitos que tinham sido dospoiados
retendo os arabes em seus antigos limites, de seus bens e empregos, ,e compellidos a
cmquanto algum não colligasse estas forças deixar a patria pelos editos dos imperado­
contra os estados visinhos, taes como a Per­ res, conservavam um odio implacável con­
sia ou o imperio grego, igualmcnte inca­ tra os catholicos, e era impossível que o
pazes de resistir ás suas forças unidas. projecto de reunir os christãos não fizesse
Tinham também os mesmos imperadores nascer o d’armal-os contra o império de­
disposto tudo para se colliarem estas for­ pois d’unidos, o de fazer receber a sua dou­
ças contra o seu imperio. A Arabia estava trina entre os arabes, e associar por este
cheia de judeus, de christãos de toda a es- meio para a sua vingança, uma nação g u er­
pecie, de sectários de quantas-heresias sur­ reira, ou ao menos espalhar por toda a Ara­
giram desde o nascimento do Christianis­ bia esta reforma do Christianismo. Era, pois,
mo. Havia muitos nazarenos, ebionitas, e entre os arabes, aonde estes christãos re­
seitas que atacavam a Divindade de Jesus formadores haviam de procurar um Apos­
Christo, e o criam um homem Divino, en­ tolo capaz de prégar e fazer que se rece­
viado por Deus para instruir os homens. besse a nova doutrina em toda a Arabia,
Os semi-arianos, que d’elle faziam um Deus reservando-se o cuidado de dirigil-o em
creado, contradizendo-se e destruindo a uni­ segredo. Porem não se havia d’offérecer
dade dc Deus; os nestorianos, que reconhe­ esta doutrina como reforma do Christianis­
ciam a Jesus Christo por Deus, tendo po­ mo, mas como uma religião nova, e o arabe
rém, que a Divindade não estava a EUe que houvesse d’ensinal-a como um Pro­
unida, senão como o estava a um propheta. pheta. Nada faltava pára isto senão um
Concordavam todas estas seitas sobre arabe ignorante, mas que tivesse espirito,
82 DISCURSO PRELIMINAR

simplicidade, c imaginação viva, cabeça ca­ dados intrepidos c invencíveis, de sorte que
paz do cnihusiasmo c fanatismo, coração em menos de dez annos professaram a sua
ambicioso, apaixonado, e a quem se po- lei todas as tribus arabes, recebeu embai­
désse fazer sentir o absurdo da idolatria, xadores dos soberanos de toda a peninsula;
c* persuadir que era ellc o enviado de Deus mandou Apostolos e vigários ás mais afas­
para ensinar aos homens uma religião pura tadas regiões, escreveu a lleraclio, ao rei
que lhe fôra revelada. da Persia e aos principes visinhos, empe-
Mafoma reuniu em si todos estas quali­ nhando-os a abraçarem a sua religião. 1
dades; o seu negocio o fez conhecer aos Abubecre, succ*essor de Mahomct, depois
christàos da Syria, Oriente e Arabia, que o de haver dcbellado as facções d’alguns Pro-.
escolheram para ser o Apostolo da medi­ phetas, que se levantaram, voltou toda a
tada reforma. Instruiram-o, inflammou-se, actividade dos arabes contra os estados vi­
creu que o Anjo S. Gabriel lhe apparecera sinhos; escreveu aos principes deHicmeno,
e ordenara que ensinasse á sua tribu a aos principaes da Meca, c a todos os mu-
unidade de Deus e uma moral pura: teve sulmanos da Arabia que levantassem o
raptos c extasis; referiu-os, inflaminou as maior numero de tropas que possível fosse,
imaginações, e communicou o seu enthu- c as enviassem a Medina. «Tenho desígnios,
siasmo; prommetteu aos que recebessem a lhe diz elle, de tirar a Syria das mãos dos
sua doutrina grandes recompensas, e fez infiéis, e quero que tenhaes para vós, que
a mais viva pintura das delicias destinadas obedeceis a Deus, combatendo peja propa­
para os que a crèssem. Persuadiu-se d’isto gação da nossa religião.»
um pequeno numero; fez proselytos, teve Viu-se em breve chegar a Medina um
contradictores, foi obrigado a fugir, achou pasmoso numero d’arabes, que faltos de vi­
e venceu difficuldades sem numero, e foi veres, esperavam sem murmurar nem se *
finalmcnle reconhecido pela sua tribu como affligir que o exercito se completasse, para
Propheta c Apostolo de Deus. se conduzirem aonde o califa lhes orde­
As difficuldades que Mafoma encontrou nasse. 2
e venceu, a sua prosperidade, o seu fana­ Por sua ordem partiram os musulmanos
tismo, e sem dúvida seus mestres, eleva­ contra os gregos e persas, e uma vez im­
ram o seu espirito, augmentaram a sua in­ presso este movimento no fanatismo dos
trepidez, estenderam as suas vistas, c avan- serracenos, foram expedidos da Arabia to­
tajaram os seus desígnios: elle formou o dos os judeus e christãos, subjugada parte
projecto d’obriçar a receber a sua religião da Persia, derramada a seita pelo Egypto
por todas as tribus e em toda a terra. e pela África, aonde se edificaram sobre as
Unem-se com as idéias militares, e to­ ruinas de quatro mil templos christãos, ido­
mam o caracter guerreiro, o enthusiasmo latras e persas, mil e quatrocentas mesqui­
e o zelo riligioso n’uma nação ignorante c tas no califado d^mar, successor d’Abu­
bellicosa. Foi menos pela persuasão, do que becre. 3
pela força, que Mahomct e seus discipulos No d’Othomano, que succedeu a Ornar, a
retenderam fazer receber sua doutrina: Persia foi inteiramente subjugada pelos
£ [ahomet foi um Propheta guerreiro, e seus arabes, o rei de Nubia se fez tributario
discipulos Apostolos sanguinarios: «Sou eu, d’este califa . 4
dizia Àly, prestando o juramento de fideli­ Suspenderam-se as. conquistas só no ca­
dade: sou eu, Propheta de Deus, quem ha lifado d’Aly, pelas divisões c guerras dos
de ser o teu visir? Arrancarei os dentes, arabes, que finalmente Moavic reuniu. Este
tirarei os olhos, rasgarei o ventre, e que­ fez correr uma tradição que os musulma-
brarei* as pernas até aos que se te oppo- nos haviam de tornar á capital dos Cesa-
zerem . » 1 res, e que seriam remittidos todos os pec- *
. O Propheta promettia o Paraizo a todos cados dos que se empregassem n’este sitio.
os que morresem pela sua doutrina: o céo Voaram os mahometanos debaixo dos cs-
se abria, por assim dizer, aos olhos do mu-
sulmão que media as armas com o inimigo;
a siia imaginação o transportava ao seio 1 ! Abulfed. c. 21. Alcor. su r ò', v. 8. sur
das delicias de que Mahomet fizera tão vi­ 8. v. 39. . Gagnier. I. 5.
vas pinturas. 2 Abul. Phar. Eutych. anual. Ockely.
Todos os seus discipulos se tornaram sol- Hist. des Sarr. t. i.
3 Ockely, Hist. des Sar. I. i. d'Herbelot [
Bibl. Or. art. Omar.
* Abufeld. v ii. Mah. c. 8. Gagriier, Vie 4 Elmancin. Hist. de Herbelot,’art. Oth-
d e M a h : l . i , c . 2. man.
DISCURSO PRELIMINAR 83
fandartcs do califa, sem que os fizesse es­ Jyazido, successor de Moavic, adiantou
morecer os perigos, nem causar as difli- as conquistas do lado do Oriente, sujeitou
culdades da empreza, que todavia se frus­ todo o Korasan, o Khorwarsan, e pôz cm
trou. contribuição os estados do principe de Sa-
Inutilmente se empenhou Heraclio cm marcanda.
suspender estes temerosos inimigos; Con­ Os arabes comludo não estavam ainda
stantino, seu filho, impondo-lhes um tributo, cm paz entre si. 1
lhes cedeu as provincias de que se haviam
apoderado. 1 Vide os authores citados.

CAPITULO II

E stad o do O ccid eu te

Ainda possuíam os imperadores gregos approvar as suas eleições. Dezenove se


algumas provincias na Italia, de que occu- contam congregados na Hespanha por todo
pavam os lombardos a maior parte. Esta este século.
porção da Italia a ellcs submettida, se di­ N’ellcs se encontram regulamentos mui­
vidia em ducados, dependentes dos exar- to sábios c muito uteis, assim para a mo­
chos de Ravena, como estes o eram dos ral como para a sociedade civil. Separa-
imperadores, c cada um d’ellcs forccjava ram-sc da communicação dos fieis os sul
por adquirir a independência. Do seu lado ditos que quebrantam a fé promettida a 1
trabalhavam de continuo os lombardos por soberanos, mas estes são exhortados a q
se engrandecerem e tornarem inúteis os governem seus povos com justiça e picdai
esforços que faziam os imperadores para e pronuncia-se excommunhãó contra
restabelecer na Italia o seu dominio. reis que em damno alheio abusam do st
Estava dividida a França em muitas pro­ poder. A este decreto geral se acha junh
vincias, cujas cabeças ou reis no principio uma sentença particular sobre o rei Suin-
tiveram cruéis guerras entre si, e depois tila, o quaUpor consentimento de toda a
•entregues aos prazeres, se abysmaram na iiação se privou do reino, confessando os
mollcza, deixando o cuidado dos ncgocios seus delitos no concilio quarto de Toledo.
a um primeiro ministro, conhecido pelo Em outros concilios é determinado que
nome do maire do palacio. os reis devam prestar juramento de não
A potência romana estava quasi aniqui­ tolerar inficis, e se declara cxcommunhào
lada nas Hespanhas: os soberanos que suc- contra aquelles que a violarem.
eederãm aos imperadores recebiam o scci Os saxonios, que conquistavam a Ingla­
ptro da mão dos grandes, que formavam terra e a dividiram cm sete reinos, tinham
bandos c intrigas; foram muitas vezes as­ eleito um monarcha, o qual nãó excedia a
sassinados pelos ambiciosos que se apode­ authoridade d’um general: estiveram cm
ravam do throno. Quatorze reis o occupa- perpetua guerra os soberanos, que gover­
v ram ri’cste século, c metade foram desthfo- navam estes sete reinos. Abraçaram a re­
nados ou mortos pelas traças d’alguns am-. ligião christã, e fundaram muitos mosteiros,
biciosos, servindo algumas vezes de pre­ ara. os quaes se viu recolherem-sc alguns
S
texto aos conjurados o zelo da religião. Quasi 'elles, renunciando o throno 1
todos estes reis fizeram celebrar concilios,
condemnar n’elles seus prcdecessorcs, e 1 ThoiraSj Hist. d'Angi l. I, p. 129.

*
8'* DISCURSO PRELIMINAR

CAPITULO III

E sta d o d o e s p ir ito hum io acerca das s c ie n d a s ,


le tr a s m oral

Vimos no Oriente passar o espirito hu- perio dos califas estava abrazado do seu
. mano do estudo da philosophia e das le­ fogo.
tras a uma paixão excessiva pelo maravi­ O fanatismo em Constantinopla não in-
lhoso, e d’csta ao despreso da philosophia: flammava senão as almas enervadas pelo
fazer infinidade de questões temerarias e luxo c molleza, abíitidas pela desgraça c
inúteis sobre os mysterios, c inventar for­ despotismo; não tendia a cousas grandes,
mulas de fé para descobrir os hercges oc­ nào inventava senão algumas prácticas re­
cultos. Este methodo se seguiu durante o ligiosas, nào produzia mais do que enredos,
sétimo século. motins populares, e sedicõcs: no império-
Os imperadores entregues «ás disputas dos califas, porém, tinha feito de cada sub­
theologicas, nào alentavam os talentos lit­ dito um guerreiro fanatico e religioso, que
terarios, e o gosto do maravilhoso, falto de se suppunba encarregado pelo Ceo para
luzes, coarctou todos os engenhos. Todavia restabelecer o mahometismo sobre toda
se deixaram subsistir os collegios, e o es- a terra, e fazol-o reinar em todas as na­
[udo da grammatica c linguas se perpetuou ções.
na capital; porém nenhum esforço se fez «Nós vos pedimos, diziam os generaes do
para chegar ás verdades geraes e aperfei­ califa, que declareis não haver mais que
çoar a razão; apenas se conservava um um só Deus, que Mahomet é seu Apostolo,
íeve conhecimento das opiniões ^Aristóte­ que ha de haver um dia de juizo, e que
les* os philosophos não passavam avante: Deus fará surgir os mortos da sepultura.
nada é tão fraco como os tractados de Phi- Desde que fizerdes esta declaração, não nos
jopono e dos philosophos d’este século. As será permittido derramar o vosso sangue,
obras polêmicas eram quasi todas sem força levar vossos bens e vossos filhos; se recu-
e sem methodo. 1 saes isto, consenti cm pagar tributo, c sub-
N’este século appareceu o Prado Espi­ mettei-vos sem demora, senão far-vos-hei ata­
r itu a l obra cheia d’apparições as mais sin­ car por homens, que fazem tanto caso'da
gulares, de prodígios incríveis, de mila­ morte como vós fazeis de beber um copo
gres os mais assombrosos, e menos neces­ de vinho.»
sários, a julgarmos segundo as idéias or­ Antes dos combates o general se punha
dinarias. Mas seja qual fôr a verdade de em oração á frente do exercito. «0’ Deusl
tudo o que se encerra n’esta obra, e mui­ dizia clle: confirmai nossas esperanças, e
tas outras, quanto ao mais, eram muito assisti áquelles que sustentam a vossa uni­
bem cscriptas. 2 Leram-as á porfia, e cré- dade contra os que vos despresam.» No
ram quanto n’ellas se contava, porque em campo da batalha Kadel gritava: «Paraizol
uma nação frivola c entregue ao luxo, sub­ Paraizo!»
siste ainda a elegancia depois que a luz se Os christãos da sua parte faziam procis­
extingue e os escriptorcs superficiales e sões c preces; os Bispos, levando o cruci­
amenos são d’alguma maneira os doutores fixo e o Evangelho a frente dos exercitos,
da nação. Tomam-se os seus gostos, e como exclamavam: «O’ Deusl se é verdadeira a
por instincto se abraçam as suas idéias. nossa religião, assisti-nos, e não nos entre­
Estas obras, pois, perpetuaram a paixão do gueis a nossos inimigos, mas destruí o op­
prodigioso, inflammaram as imaginações, c pressor, porque vós o conheceis. O’ Deusl
fizeram propender mais os espíritos para o assisti áquelles que fazem profissão da ver­
cnthusiasmo e fanatismo, emquanto o im* dade, e quê andam no bom caminho.»
Os mahometanos, testi munhas d’estas pro­
1 Phot. Bibliot. 23, 24, 30, 408. cissões e d’estas süpplicas, exclamavam:
2 Phot. Bibliot. Dup. Bibliot. septime «O’ Deusl estes desgraçados fazem orações
siécle. cheias d'idolatria, e vos associam outro Deus:
D iscunso 1’RELIMINAR 8o

mas nós reconhecemos vossa unidade, e con­ Igreja. Assim foram cilas e os ritos n’cste
fessamos que não ha outro fóra de vós: as- século, objecto principal dos concilios de
sisti-nos contra estes idolatras, pois vol-o todo o Occidente, que sugeitos a principes
pedimos pelo nosso Propheta Mahomet.» ignorantes c ferozes, que haviam abraçado
Se no condicto se viam vacillar os musul- a religião christã, mas que ainda não ti­
manos: «ignoraes vós, lhes dizia o general, nham adquirido o habito das virtudes, c
que qualquer que dá as costas ao inimigo que alternativamente obedeciam ás suas
ofTende a Deus e ao seu Propheta? Nào sa­ paixões e a seus remorsos; credulos e su­
beis que o Propheta disse que as portas do persticiosos, arrastados por todos os cri­
Paraizo nào se hào de abrir senão aos que mes pelas suas paixões, eram capazes do
tiverem combatido pela religiào? Que im­ tudo o que não pedia luz nem habito de
porta que o vosso capitão morra? Deus virtudes.
vive; Elle vé o que vós fazeis.» 1 Estes soberanos ignorantes e ferozes es­
D’csta sorte em todo o Oriente o fanatis­ tavam continuamente em armas para ata­
mo religioso c o amor do maravilhoso tinha car ou para se defender; á sua bravura
absorvido quasi todas as faculdades do es­ c á sua grande actividadc deviam o bom
pirito humano; nào se cultivavam as.lctras, exito de suas emprezas: e como tinhain sub­
■c as scicncias se extinguiram. 0 inesmo jugado povos esclarecidos e eloquentes, olha­
eíTcito produziram no Occidente acerca das vam com despréso para as letras e scien­
letras, as guerras dos povos barbaros. A das, que não foram cultivadas senão pelos
Italia tinha sido assolada pelos godos, visi- ecclesiasticos e religiosos, a quem a neces­
çodos e lombardos, pelos esforços empre­ sidade de se defender tornou também guer­
gados pelos imperadores para reconquis- reiros, e que cahiram pela maior parte na
tal-a a estes novos conquistadores, e pelas ignorância e na barbaria.
guerras internas, que se haviam desenvol­ Sómente a religião oppunha uma bar­
vido entre os differentes duques que a go­ reira ás paixões, á ignorância, á ferocidade;
vernavam. sómente a ella se deviam estes instantes de
Sómente a religião tinha offerccido um virtude, que se divisavam sobre a terra; so­
remedio contra estas calamidades: o zelo, mente cila mantinha a sua ideia; sómente
a piedade dos bispos, sacerdotes c monges ella conservou ás letras aquellcs asylos
era o allivio dos desgraçados, a consolação aonde sc trabalhava cm segredo para suavi-
dos afflictos, a barreira *que se oppunha a sar os costumes, dissipar a ferocidade, <
favor dos guerreiros, os quaes apesar da apossar a razão dos seus direitos c privile
sua ferocidade respeitavam a virtude c se gios, formando homens illustres, cuja vii
horrorisavani dos castigos da outra vida. tude grangeou a confiança dos soberanò
Os bispos, ecclesiasticos c monges, volta­ e dos povos, aos quaes se Yizeram necessa­
ram pois todos os seus esforços para a pie­ rias as suas luzes. Taes foram muitos Pa­
dade c práctiea das virtudes mais proprias pas e Bispos, Sancto Izidoro, S. Julião de
para impôr aos soberanos do Occidente, Toledo, S. Sulpicio, S. Columbano, etc.,
para lhes fazer recommendavcl a religião, que estabeleceram quasi por toda a parte
para attrahil-os ao exercício da moral chris- cscólas e mosteiros. 1
tã, e para arrancal-os da desordem, fazen-
do-Ihcs apreciar as ceremonias e o culto da
1 Hist. lit. de Fr. t. 3, p. 427, etc. Dup.
1 Ockely, hist. des SasraSj t. 1. Bibl. des Aut. Eccl. septieme siccle.

CAPITULO IV

D as h e r e s ia s d o s e tlm o s e e u lo

Tinha definido a. Igreja contra Ncstorio, sistiam em que não se podia condemnar
que não havia senão uma pessoa em Jesus Euthyches sem renovar o nestorianismo, c
Christo, e contra Eutyches, que n’ellc ha­ admittir duas Pessoas em Jesus Christo:
via duas naturezas. Comtudo não faltavam aquelles, pelo contrario, sustentavam que
ainda nestorianos e cutychianos; estes in­ nào se podia condemnar Nestôrio sem re-
86 DISCURSO PRELIMINAR

cahir no sabei 1ianisino, c confundir, como erro, que não suppunha em Jesus Ghristo
Eutyclies, ambas as naturezas. mais que uma só vontade, uma regra de
O estrepúo que fizeram o ncstorianismo fé, e uma lei do imperio.
c eutychianismo, a perturbação c agitação Esqueceu-se Ilcraclio da gloria que adqui­
de que encheram a Igreja e o imperio/ ti­ rira contra os persas c scrracenos, e nada
nham chamado todas as atfençõcs para este mais viu perigoso tanto para a religião
objecto, occupando-se ainda *d’clle depois como para o estado, como os inimigos do
que o nestonanismo c eutychianismo não seu edito, conhecido debaixo do nome do
formavam já partidos consideráveis. Ectese.
Já estavam discutidos o ncstorianismo e Seus successores se occuparam todos cm
eutychianismo; a Igreja decidiu, c a ver­ defender ou impugnar o monothelismo, cm-
dade do dogma ficou estabelecida: procu­ quanto as provincias eram vexadas pelos
rava-se cxplical-o: .esta é a marcha do dis­ governadores ou pelos intendentes, e des­
curso humano cm todas as disputas da re­ truídas pelos barbaros, que de toda a parte
ligião. ás invadiam.
Emprehcndeu-sc, pois, fazer palpavel, Mesmo h’este século uma manichea, re­
como duas naturezas, posto que distinctas, tirada nas montanhas d’Armenia, inspirou
não compunham mais que uma pessoa. Jul­ a seu filho o desígnio de fazer-se Apostolo
gou-se resolvida esta dilficuldade, suppondo da sua doutrina. Este se chamava Paulo:
que a natureza humana era realmcnte dis­ era cntlmsiasta, c fez seita, a que deu o seu
tincta da Divina, mas que de tal sorte lhe nome. Teve por successor Sylyano, que re­
estava unida, que não tinha acção propria: formou o manichcismo, e emprehendeu
que o Verbo era o unico principio activo ajustar o systema dos dous princípios com
cm Jesus Christo, c a vontade humana ab- a Escriptura, de sorte que parecia estri-
■solutamente passiva, como o é um instru­ bar-sc n’ella; e não queria que houvesse
mento nas mãos do artifice que o'maneja. outra regra de fé senão a mesma Escri­
Esta explicação pareceu acabar com as ptura. Arguia os catholicos de haverem ca-
liíliculdadcs do*s eutychianos c ncslorianos: hido nos erros do paganismo, e d’adorarem
Icraclio o olhou.como um meio d’cxlinguir os Sanctos como a Divindade: atTcctava
js restos das duas parcialidades, que tinham grande austeridade de costumes, e oíTerc-
resistido ás excommunhõcs dos concilios, cendo-se esta nova seita aos simples como
c ao poder dos imperadores. Satisfeito com uma sociedade, que fazia profissão do mais
tal ideia fez convocar concilio, c sahiu com perfeito Christianismo, os paulicianos fize­
um edito que fazia do monothclismo ou do ram grande progresso n’estc século.

OITAVO SEOULO

CAPITULO I

E sta d o do O r ie n te

O imperio dos califas era sem contradic- tractaram muito bem os povos, mas não
cão o mais poderoso do Oriente; estendia-se tardaram cm opprimil-os. Ambiciosos, ava­
desde Cantao até á Hespanha, e encerrava rentos, c descontentes, excitaram guerras
muitas provincias do imperio de Constan- civis, e revoltas que não se apaziguaram
tinopla. Enviaram os califas para as suas sem grande difficuldade c muita cíTusão,de
conquistas governadores, que ao principio sangue. A conquista da Hespanha e as íu-
DISCURSO PRELIMINAR I tt» 87

vasões nas Gallias, fizeram morrer um nu­ nistração, c da insensibilidade com que os
mero pasmoso d’arabes, godos, francczes, etc. imperadores olhavam para as desgraças do
Era o imperio de Constantinopla a proia estado, da ambição dos grandes c cortezãos,
dos serracenos, godos, hunos, lombardos, e da frivolidade que os tornava incapazes de
das intrigas c facçòcs que sc formavam, buscar remédios aos males públicos; da sua
cxtinguiam, e renasciam perpetuamente paixão insensata pelo luxo, que os condu­
dentro do seu seio. Justiniano, expellido dos zia a vender a sua protecção, e a acoutar
seus estados pelos fins do precedente sé­ da severidade das leis o s 'ministros e go­
culo, foi restabelecido no principio d’cstc, vernadores que tinham exhaurido as pro­
o oito annos depois assassinado; Phylippico, vincias e extincto o amor da patria no co­
que lhe succedeu, foi deposto. Anastacio, ração de todos os subditos.
successor de Phylippico, encerrou-o cm Nenhum dos imperadores, que subiram
um mosteiro Thcodoto, a quem o povo for­ ao throno n’estc século, sc esforçou em re­
çou a acccitar o império, do qual foi des- mediar tão grandes males; quasi todos se
apossado por Leão Isaurico. Leão reinou occupavam ou cm fazer que prevalecesse
vinte annos; Constantino Copronymo, vinte algum erro, que cllcs tinham abraçado, ou
c quatro. Leão, seu filho, cinco; Constan­ em restabelecer a paz na Igreja; e d’esta
tino Porphyrogenito, assassinaram-no depois sorte apenas Phylippico subiu ao throno se
de reinar* dezesete; c Irene, sua mulher, occupou dos meios d’estabelecer o mono-
foi deposta depois de governar cinco. thelismo; Leão Isaurico, e Constantino Co­
Não eram produzidas estas revoluções pronymo em abolir o culto das imagens;
tão frequentes c funestas ao imperio por Irene em restaural-o. 1 ’
algum corpo de magistrados, emulos do po­
der imperial; a sua origem vinha da'cor­
rupção dos costumes, dos vicios da admi­ 1 Cedren. Niceph. Theoph.

CAPITULO II

E stad o do O ccid en te

O edito de Leão Isaurico contra as ima­ no meio das desordens do Occidente, havia
gens causou turbulências na Italia, do que muitos papas, bispos, sacerdotes e monges,
os lombardos se aproveitaram para engran­ que desempenhavam todas as suas obri­
decer-se. 0 exarcha, que emprehendeu fa­ gações, soccorriam e consolavam os des­
zer executar o edito de Leão, foi cxcom- graçados, o instruíam os povos. Assim, ao
mungado pelo papa Gregorio; e este pon- passo que os soberanos, senhores e guer­
tiGce escreveu a Luitprando, rei dos lom- reiros exerciam sobre os corpos um impe­
bardõs, aos venezianos e cidades princi- rio de violência e de força, levantava a Re­
paes, empenhando-os a perseverarem na ligião uma potência, que imperava nas al­
fé. Rebellou-se a maior parte da Italia con­ mas e nos corações, por via da persuasão*
tra o imperador, que para ella fez marchar e pelos mais fortes motivos, que podem
todas as suas forças. Q papa chamou Luit­ mover o coração do homem.
prando, c por fim Carlos Martello em soc- Os progressos do poder religioso, igno­
corro de Roma, da qual foram expellidos rado da maior parte dos soberanos do se-
;todos os oíficiaes do imperador. Ullima- cülo precedente, devia ser notado pelos
mente, nò reinado de Astolfo, se apodera­ homens virtuosos, que se occupavam nu
ram os lombardos do Exarchado, e empre- governo e que desejavam a gloria da Reli-
henderam a conquista de Roma. ião c a felicidade dos povos; e pelos am-
Os papas, bispos, sacerdotes e monges iciosos, que queriam adquirir credito, ele­
tinham, pois, adquirido grande credito no var-se e engrandecer o seu poder: uns c
Occidente; e como não o teriam adquirido? outros igualmente haviam de divisar as
E llesgosavam de ricas possessões, e eranv vantagens que estes dous poderes juntos
•os unicos, que por estado professavam não conseguiríam, c assim deviam esihèrar-se
fazer mal a alguém, e beneficiada todos; em unil-os e concilial-os. Tinha^ pois, o
m DISCURSO PRELIMINAR

tempo tudo disposto para se formarem tra­ si só conter estes povos, c unicamente su­
ctados entre o sacerdócio e o imperio, e jeitando-os a leis, a que olles obedecessem
dar-se ao poder ecclesiastico um estado por persuasão e interesse, os faria felizes
differente do quepossuia a Igreja no impé­ c tranquillos: attentou, que para produzir
rio Oriental. esta obediência, era necessario illustrar-
D’esta maneira se empenliou Pepino cm lhes a razão, reprimir por meio de castigos
unir o poder civil e o ecclesiastico, para as paixões, que ella não refreasse c fazer
obviar as desordens, grangear a benevo­ temerosa a infracção das leis pela authori­
lência da nação c pôr as leis em observân­ dade da Religião. Empregou pois em favor
cia. Em um concilio, que fez convocar, se da felicidade dos seus povos a força, a luz
regulou tudó o que pareceu necessário, c a Religião, como outras tantas potências,
para evitar as desordens, auxiliar os fra­ que se auxiliam umas ás outras, e que rau-
cos c defender a Igreja. Carlos Martello, tuainente se ajudam.
uc a seus talentos militares era devedor Emquanto assim se occupava Carlos
2 a sua prosperidade, e cuja ambição temia Magno em felicitar seus Estados por meio
o poder da Igreja, pôz toda a diligencia por de providentes leis, a sua vigilância, acti-
aniquilal-a; mas nos ultimos periodos da vidade, valor e politica o asseguravam con­
sua vida se reconciliou com cila. Pepino, tra os ataques dos inimigos estrangeiros,
o Pequeno, depois de fazer declarar inha- pelas allianças, tractados e ligas, que fazia
bil para o governo Childcrico, foi eleito pe­ com os povos visinhos, pelo espirito mar­
los Estados, e se fez coroar por Bonifácio, cial em que mantinha a nação, e disciplina
arcebispo de Maguncia; auxiliou os papas que estabeleceu na sua tropa.
Zacharias c Estevão contra os lombardos, Tal foi o plano geral do governo, que
e augmentou as possessões da Igreja. O Carlos Magno se propôz estabelecer no Oc­
papa, da sua parte, o coroou de novo c un­ cidente, e que se foi descobrindo no de­
giu; e excommungou os francezcs, que do curso do seu reinado: d’clle nasceram to­
alli em diante elegessem monarchas fóra das as leis conhecidas debaixo do nome de
da linha de Pepino. capitulares, os estabelecimentos para a in-
Ultimamente o papa Adriano atacado pe­ strucção de toda a qualidade de homens do
los lombardos, chamou em seu soccorro seu imperio e os actos de força c violência
Carlos Magno, o qual destruiu aquella po­ que elle empregou, para fazer abraçar o
tência na Italia; confirmou as doações fei­ Christianismo ás nações idolatras, que sub-
tas á Igreja por Pepino, e foi coroado im­ jugára, e que lhe deram o nome d’Apostolo
perador do Oriente. 1 armado. *
Dilatou este principe os seus domínios A Inglaterra se achava dividida entre
muito além dos limites, que o imperio ro­ muitos soberanos, sem leis, e quasi sempre
mano tinha então no Occidente; estendeu-se armados uns contra os outros, cujas pai­
na Italia'até á Calabria, na Hespanha até o xões e ferocidade sómente podiam ser re­
Ebrio: reuniu á sua corôa todas as Gallias; primidas pelos terrores da Religião, c ado-
conquistou a Istria, Dalmacia, Hungria, çadas pela caridade christã. Trabalhavam
Transilvania, Valachia, Moldavia, a Polo- n’este objecto, com felicidade, alguns ho­
-nia até o Vistula e toda a Germania, que mens d’espirito verdadeiraménte apostoli-
comprehendia a Saxonia. co, os quaes dispozeram os ânimos, para
. • Estava cheio este vasto império de povos alli se formar uma sociedade mais bem mo-
facciosos, ignorantes, quasi sem educação rigerada. 1
e sem virtudes: parte d’estas nações con­ No principio d’este século, a Hespanha
quistadas eram idolatras e ferozes, acostu­ esteve sujeita a soberanos, que abusavam
madas a viver da pilhagem, e n’uma des­ do seu poder, não respeitando leis algu­
enfreada licença, e inimigas de. qualquer mas c fizeram infelizes os seus subditos.
authoridade, que tendesse a coarctar-lh’a, Um d’estes chamou a cila os serracenos,
promptas sempre a tomar as armas contra aos quaes se uniu parte da nação. Rodrigo
os seus senhores, e não tendo em conta foi desbaratado: o seu reino passou á do­
algum a os tractados. ou as mais solemnes minação dos califas, que dilataram a con­
obrigações. quista até ás,Gallias, d’onde foram recha­
Carlos Magno pêlo seu genio vasto e pro­ çados por Carlos Martello c Carlos Magno.
fundo conheceu que â força não podia por Alguns hespanhoes refugiados nas mon­
tanhas e reunidos por Pelayo, n’ellas for-

i Leo ostiensis Anast. Bibl. Paul. Diac


H ist. Longob.l. 3. c. 8. t Thoiras, ibid.
DISCURSO PRKLIMI5AR 89
.maram uma potência, que os scrracenos lharam seus progressos, c extinguiram fi-
ao principio despresaram, mas que veio nalmcnte o seu poder.1
cm breve pôr-se em estado de disputar-
Jhes a Hespanha; e cujos esforços, favore­
cidos pelas divisões dos mesmos scrrace­ 1 Hist. des Mariana, Révolutions d'Es-
nos, e sustentados por Carlos Magno, ata­ pagne.

CAPITULO III

E stad o d o e sp ir ito h u m a n o

Parece que tudo concorria para se cx- sua razão nos reinados dos Oinniados, c até
tinguir sobre a terra o amor das artes c a o califado de Almansor (757.)
luz das sciendas: o enthusiasmo religioso Viram-se eclypses e cometas no princi­
c militar dos mahometanos estava ainda pio do seu califado; soíTrcram-se terremo­
no seu vigor. Infinidade de rebellados c de tos, e seguiràm-sc algumas desordens, pelo
sectários se levantavam entre elles, c iguál- que se creu que estes phenomenos eram o
mente investiam as letras, a idolatria e to­ signal ou a causa. Quiz o Califa conhe-
das as religiões que difleriam da mahome- cel-os, e aprender a prevenil-os. Recorreu
tana. aos astronomos e philosophos, e os tirou da
Assim se viram sem agazalho nem favor obscuridade em que a barbaria de seus
as letras e sciencias, e obrigadas a escon­ predecessores os retivera; cm pouco pre-
der-se em todos os dòminios dos scrrace­ sou o seu commercio, e os chamou á côrte.
nos, que se estendiam desde Cantào até á Finalmente o projecto d’edifiear Bagdad, c
Hespanha, do Oriente ao Occidente e desde as suas enfermidades, lhe tornaram neces­
o Archipelago ao Mar das índias, do Se- sários medicos, geometras e mathematicos:
ptemtrião ao Meio-dia.1 buscou-os, enriqueceu-os, honrou-os, attra-
Os mahometanos nos seus princípios de­ hiu-os a Bagdad, e fez traduzir em arabico
claravam guerra a todos os que uão que­ e syriaco as obras dos authores gregos.
riam receber a sua religião; e não davam Mahodi-Hadi e Haroun Al-Rashid, seus
quartel aos vencidos. Depois dos primeiros successores, favoreceram os sábios: tinham
excessos do enthusiasmo aboliram uma lei, sempre junto a si um astrononio, que con­
q u e tornaria deserto todas as suas con­ sultavam, por ser ao mesmo tempo astrolo­
quistas, contentando-se em fazerem domi­ go: assim fez a astronomia entre os arabes
nante o mahometismo nos paizes conquis­ maiores progressos do que as outras scien­
tados: e á excepção da idolatria grossei­ cias. Não esclareceram demasiadamente a
ra, permittiram o livre exercício de to­ razão este favor, c recompensas dos sul-
das as religiões, principalmente d’aqucllas tões, mas resuscitaram o desejo de lér os au­
em favor das qúaes se houvesse cscripto, thores g regos.1
persuadidos, ao que parece, de que uma Apesar do empenho dos sábios e califas,
religião defendida por escriptorcs, tinha fa­ não se dissipavam as trevas, se não a pas­
c e s especiosas, capazes d’allucinarem a ra­ sos muito lentos: a maior parte dos maho­
zão, e de que era desgraça e não crime aos metanos, que davam exercicio ao seu espi­
olhos dos homens, cahir no erro, buscan- rito, occupavam-se meramente cm explicar
do-se a verdade. o Alcorão, moviam questões sem numero
Esta tolerância conservou no império dos sobre os dogmas do mahometismo, suas ce­
califas grande numero de christàos, judeus remonias e leis, e acerca das obrigações
e sábios illuminados e instruídos nas artes que elle prescreve; e. estas questões se fa­
e scicncias, que occultamente cultivavam a ziam tanto mais intrincadas, quanto os ara-

1 Homcbec. H ist. P M . I. õ. c. 9. Pokok, 1 A b u ja a sa r E lm a cin . Abulphar. Affe -


n o te su r A bulpha. Tophail. cite p a r B ru k . m a n . t . 1. et í . d'Herbelot. Bibl. o r aum
H ist.P h il. t . t . p a g . 15. a rt. A lm ansor, M ahadi, H aroun.
90 DISCURSO PRELIMINAR

lies se afastavam da primeira simplicidade servação, havia muito tempo que era ob-.
dos mahometanos.1 jecto de indifferença para o povo.
- Dividia-sc o povo ignorante, supersticio­ Depois da invasao dos lombardos, estava
so, e fanatico entre estes doutores ou se en­ a Italia dividida em differentes soberanias,.
tregou ao primeiro impostor, que queria il- cujos chefes incessantemente se occupavam
ludil-o por meio de algum prestigio ou sin­ da conservação ou do augmento do seu po­
gularidade; assim se viram os rawadianos der. Gemiam os povos debaixo do jugo de
honrar a Almansor como um Deus, c for­ tyrannos, derramando o seu sangue para
mar o desígnio d’assassinal-o, porque ellc satisfazerem á sua ambição. Todas estas
condemnou a sua impiedade.2 desordens tinham aniquilado as sciencias,.
No califado de Matai, o povo foi engana­ e pervertido os costumes na Italia: os pa­
do por algumas destrezas dum impostor, pas, bispos e ecclesiasticos, que cultivavam
conhecido pela autonomasia d'author de a sua razão, não cuidavam mais do que
Luas, porque fazia sahir de .certo poço um em restabelecer os boiis costumes, domar
corpo luminoso simillíante á lua. A* vista as paixões com o temor dos castigos eter­
d’este prodigio, o povo o tomou por um pro- nos, e fazer venerável a religião pela re­
heta, logo por um homem, cm quem resi- gularidade dos seus ministros, pelo augus­
S ia a divindade, c íinalmentc lhe tributou to apparato das suas ceremonias, capazes
as honras divinas. Contra todos estes im­ d’inculcar respeito em um século supersti­
postores foi preciso mover exercitos.3 cioso e ignorante ás almas mais ferozes e-
Agitavam o imperio de Constantinopla as ás mais fogosas paixões.
facções civis, politicas c theologicas em qnc Na França, as artes c sciencias, que, por
elle estava inteiramente dividido o oceupa- assim dizer; se tinham refugiado nos mos­
do: toda a authoridade, e politica dos impe­ teiros, forám d’clles expulsadas no oitavo-
radores se émpregava ou cm firmar as opi­ século. A tvrannia dos maires de palacio;
niões, que tinham adoptado, ou em conci­ as guerras de Carlos Martello contra Eudcs
liar os diversos partidos, que dividiam os d’Equitania, e contra os serracenos toma­
espíritos. Seu zelo nào se limitava ao impé­ ram guerreira a maior parte da nação, e
rio: viu-se Heraclio negociar com os prin­ tudo o que não empunhava as arma*s, foi
cipes de Hespanha para os empenhar a for­ victima da ferocidade militar. Carlos Mar­
çar os judeus a renunciar á sua religião, tello se apoderou dos bens ecclesiasticos, e
entretanto que se deixavam saquear as pro­ os deu aos seculares, os quaes em logar de
vincias do império. manter com elles os clérigos, sustentaram
Os que no século precedente haviam cul­ soldados. Os monges e clérigos, obrigados
tivado as letras, nào deixaram discipulos, a viver com elles, tomaram, seus costumes,
e o gosto das sciencias se aniquilou quasi e fmalmente para haverem de conservar
em todo o imperio de Constantinopla, ou as suas rendas, serviram também nos exer­
nào existiu senão entre homens obscuros, citos. 1
cujas luzes e talentos nenhuma influencia Tudo se transtornou, a ignorância foi ge­
tiveram sobre o seu século: viram-se pou­ ral pelo meio do oitavo século: nenhum
cos authores ainda ecclesias,ticos. S. João vestigio de scicncia e das bcllas-artes se viu
Damasceno é o unico em quem se encontra mais na França, e quasi em lodo o occi­
erudição, natureza e methodo.4 dente, aonde os ecclèsiasticos c monges ape­
N ’este século se fez ainda'mais forte a nas sabiam lér. 2
paixão pelo maravilhoso, que dominava nos Yimos como no meio d’estas trevas o
precedentes: houve mais credulidade; como vasto e penetrante, genio de Carlos, lançando
havia a certeza de que tudo era acreditado, mão de tudo o que podia elevar um estado
tomou-sc a liberdade de imaginar tudo; ao mais alto grau de poder, felicidade e glo­
uma apparição, uma revelação suppdsta po­ ria, formou o projecto de combater a igno­
dia causar grandes cffeitos no povo, e as rância c illuminar a razão; afastando-se da
questões religiosas foram de mais impor­ olitica superficial c barbata, que procura
tância do que á guerra dos barbaros o scr-
S
egradar a humanidade no . povo e' redu-
racenos, que atacavam o imperio, cuja con­ zil-o ào instincto dos brutos. De nada pois se
esqueceu Carlos Magno, que podésse escla­
1 M araci. H is t.s e c t. M ahum . recer todos os homens, óue viviam nos-seus
2 A bulphar. domínios: creõu nas cidades, villas c al­
3 A bulphar. E lm a c d'H erbelot, ibid. etdeias escolas para a instrucção gratuita das
a r t. H áken.
4 Fab. B ib. àrec. 1. 5 , c. 3: D up. B ib. des 1 Mobil. A ct. Bened. t. M .B o n if.E p . 131.
A u t. d u V lIIsie c le . 2 H ist. litt. de F r. t. h ,'p a g . 6.
DISCURSO PRELIMINAR 91
emancas do povo c dos paizanos; escreveu que a Religião conservara nos claustros, e
a todos os bispos e abbaaes, recommendan- entre o clero para a intelligcncia da Escri-
do-lhes, que as estabelecessem nas eathe- ptura Sancta, direcção do Calendario e Of-
draes c abbadias para o ensino das scien­ ficio-divino.
d a s o artes. Ello mesmo as estudou; c fez Todo o resto do século se empregou em
vir da Inglaterra e Italia os homens mais communicar ao publico estas noções super-
celebres, taes como Wulnefoido, Alauno, ficiaes. O espirito humano não se eleva na-
Clemente, etc. Logo todo o império se viu quelles séculos, em que sc esforça por es­
cheio de escolas, aonde se aperfeiçoou o palhar a luz, similhante aos rios* que per­
modo de lèr o latim, c sc ensinaram alguns dem da sua profundidade á proporção que
princípios de grammatica, arithmetica, lo­ sc espraiam.
gica, rhetorica, musica, c de astronomia,

CAPITULO IV

D o s erro s do e sp ir ito h u m an o
áccrca da r e lig iã o eh ristã

SuíTocada a razão, c desterradas as seien- a sua razão, homens, que, como Clemente,
cias pela ignoranda e desordem, se desen­ rejeitavam a authoridado dos concilios, e
frearam todas as paixões, e se pozeram em Sanctos Padres, atacavam o dogma da pre­
acção os princípios de superstição, que os destinação, a disciplinh e a moral da Igreja.
espíritos haviam concebido no século pre­ O des*ejo de reduzir á fé os mahometanos,
cedente. As paixões c a superstição confe­ que encaravam como idolatria o dogma da
deradas, tudo ousaram, tudo emprchende- divindade de Jesus Christo, conduziu na
rain, de tudo se persuadiram; pozcfam-se Hespanha Felix de Urgel ao Arianismo, en­
em uso todas as prácticas supersticiosas do sinando, que Jesus Christo não era filho de
Paganismo, inventaram-se algumas novas, Deus, por natureza, mas por adopção; po­
suppozeram-se apparições de anjos c demô­ rém não restam apparendas de que Cle­
nios, que se faziam intervir á vontade para mente deixasse discipulos, nem de que o
produzir nos animos os eíTeitos que se de­ erro do Felix d’Urgel fizesse progressos.
sejava: assim se viu Adelbcrto attrahir junto A Igreja, não sómente eondemnava estas
a si o povo em multidão, assegurando que imposturas e fazia vôr a falsidade d’este
um anjo lhe havia trazido das extremida­ pretendido maravilhoso, que servia d’apoio
des do mundo relíquias d’admiravel sancti- ao engano, e d’alimento á credulidade, mas
dade, c por virtude das quacs cllc podia ob­ também aos erros, que atacavam os do­
ter de Deus quanto quizesse: viu-se este gmas. Clemente e Felix d’Urgel foram con-
impostor distribuir ao povo as suas unhas demnados, c refutados solidamente: todos os
c cabeljos, e os fazer respeitar tanto como concilios e todos os escriptos atteslam esta
a s reliquias dos apostolos; viu-se o povo verdade. D’esta sorte, rio meio das desor­
deixar as igrejas, para se ajuntar em roda dens e das trevas, que reinavam sobre a
das cruzes, que elle erigia nos campos. terra, o corpo religioso encarregado do de­
Emquanto os analphabctos assim rece­ posito da fé, conservava sem alterarão a
biam sem. exame quanto a impostura in­ doutrina de Jesus Christo, a sua moral c o
ventava para os seduzir, se viram entre culto que elle estabelecera.
aquclles que sc esforçavam por esclarecer
92 DISCURSO PRELIMINAR •

NONO SÉCULO

CAPITULO I

D o O r ie n te

Os sorracenos eram sempre a potência todos os cargos, c cmfim do mesmo califa.


dominante sobre a terra. 0 califa Haroun Desthronaram, instituiram, assassinaram os
Abrashid dividiu por seus tres filhos o go­ califas, usurpada toda a sua authoridade,
verno dos seus estados. Amin, que era o da qual não lhes restou mais que uma ap­
mais velho, teve a Syria; o Irak, as tres parenda.
Armenias, a Mesopotamia, Assyria, Media, Da côrtc grassou logo o mal por toda a
Palestina, Egypto, e tudo o que seus pro­ nação; as virtudes e grandes qualidades dc
decessores conquistaram cm Africa, desde alguns califas não foram bastantes para
as fronteiras do Egypto e da Ethiopia até o restabelecer a ordem no governo e reduzir
estreito de Gibraltar, com a dignidade de os arabes á sua primeira simplicidade; afe-
Califa. minou-sc o valor; -infinidade de rebeldes
Mamoum, seu filho segundo, teve a Pér­ dilaceraram o imperio; os povos visinhos,
sia; o Herman, índias, Khorasan, Tabrcs- e os gregos o invadiram.
tan com a vasta provincia de Mawaralc- Viu-se final mente um reformador do ma-
nhar. hometismo levantar uma seita, que au-
Kasen, filho terceiro, teve a Armenia; Na- gmentando-se rapidamente, se pôz em ar­
tholia, Geórgia, Gircassia, e tudo o que os mas contra o califa. Este reformador era ho­
mahometànos possuíam na circum vis inhan- mem de vida muito austera, aíTirmando que
ça do ponto Euxino. 1 Deus lhe mandava fazer cincoenta vezes
Amin, que succedeu a Haroun, entregou oração ao dia; um grande numero de dis­
o governo a um visir, cuja administração cipulos o seguiu: o governador de Kurzcs-
forçou Mamoum a'revoltar-se contra seu ton, que viu os cultivadores interrompe­
irmão. Mamoum desbaratou as tropas de rem os seus trabalhos, para fazer as cin­
Amin, que perdeu a vida e o imperio 2; coenta orações, deu ordem para prender o
mas o reinado de Mamoum foi inquieto por reformador, que achando meios para sahir
sedições e revoltas, a- que elle pôz termo. da prisão, fugiu para outra provincia, aonde
Os califas, que lhe succederam, deram-se fez sequazes, e tornou a desapparecer.
a passatempos, ao luxo, ao fausto, á musi­ Seus discipulos pretenderam que elle ti­
ca, estimaram os entretenimentos agrada- vesse subido ao céo, porque era um verda­
veis, e os homens facetos, e entregaram o deiro propheta, enviado, para reformar o
governo do imperio a ministros, que dis­ Alcorão, ou melhor, para cxplical-o aos
tribuíam os empregos sem escolha, e sem mahometanos, que tomaram n um sentido
attenção ao bem publico. carnal, e á letra o que Mafoma dissera no
Tinham estes califas tomado para sua espiritual e allegorico.
uarda um corpo de turcos, cujo comman- No império de Constantinopla, assim
ante se ingeriu nos ncgocios do império. como entre os mahometanos, em todo este
Este chefe e os cortczãos, dispozeram de século, não se veem senão imperadores ele­
vados sobre o throno, c depostos por sedi­
1 H ist. Univ. 1 . 16, pag. 31. A bu ja a sa r, ções: o imperio continuamente atacado pe­
A l Tabor , E lm ancin , pag. 115. Roderic , los barbaros imperadores quasi sempre oc-
Tolet, pag. 19> 20. cupados cm abater ou restabelecer as ima­
2 E lm a n c in , A búlphar, E u ty c h . gens.
DISCURSO PRELIMINAR

CAPITULO II

D o O ccid en te

Carlos Magno reinou durante os primei­ sem princípios. Sómente os papas e os bis­
ros quatro annos d’este século; foi temido pos virtuosos reclamavam os direitos da
de todps os seus visinhos, e adorado dos humanidade, em favor dos povos opprimi-
povos sobre quem dominava: mas não é dos; e sómente elles, pelas suas virtudes, g
sufficiente a vida d’um só homem para ci- pelo temor das penas da outra vida, podiam
vilisar uma infinidade de povos diíTerentcs, cortar o passo a tantos males. Com cíTeito,
submergidos na ignorância, e para dar a apesar da ignorância e da desordem d’estc
nações guerreiras o liabito da virtude, da século, o temor dos castigos eternos estre­
moderação e da justiça. A sua prudência mecia os maus, e os remorsos da sua con­
tinha contido, de alguma maneira, os seus sciência os reconduziam aos bispos e á Reli-
povos, como o seu poder subjugado seus ião. Elles faziam os bispos juizes dos seus
inimigos. D’esta sorte, por pouco que fal­ ireitos, ou se uniam com elles para refor­
tasse de tào relevantes qualidades ao suc­ mar o Estado e a Igreja: assim os esta­
cessor de Carlos Magno, o imperio da França dos juntos cm Aix, tendo considerado as des­
havia de recahir na confusão c desordem, ordens de Lothario, o privaram da sua por­
de que elle o tinha tirado. ção de terra e a deram a seus dous irmãos,
A natureza talvez nào produzisse ainda depois de obrigal-os a prometter que ha­
successivamente dous homens taes como viam de governar seus povos segundo as
Carlos Magno. Luiz, o bom, seu filho, com leis de D eu s.1
excellentes qualidades, tinha grandes de­ Os concilios d’cstc século estão cheios de
feitos; era benefico c religioso, porém, fra­ exhortações e ameaças feitas aos soberanos,
co, sensual c inconstante, incapaz de abra­ que perturbavam a*paz, que abusavam do
çar o grande plano, que Carlos Magno ha­ seu poder e authoridade contra a Igreja,
via formado: d’clle não tomou mais, que contra os ficis e contra o bem publico;
algumas pequenas partes, que olhou como n’elles se lembram os momentos da morte
cssenciacs e fundamentaes; todo este grande aos soberanos c aos poderosos. Os eccle­
edifício se abalou; os bispos c os grandes siasticos eram pois não obstante o seu irre­
se levantaram, e os seus mesmos filhos, gular comportamento, os protectores unicos
aproveitando-se das suas faltas, da sua* fra­ da humanidade; se não fossem elles c a Re­
queza e das disposições do povo, formaram ligião, haver-se-ia extincto no Occidente
, revoltas c facções, que lhe tiraram, e res- toda a ideia da moral e da justiça.
tituiram a coroa por varias vezes. Sentava-se Roberto sobre o throno de In­
Seus filhos dividiram o. imperio cm tres glaterra no principio do nono século: teve
estados, ltalia, França c Allemanha. Nem por successores principes, ás vezes piedo­
os filhos de Luiz, nem a sua posteridade sos, e sempre fracos até Alfredo, o grande.
herdaram alguma das qualidades de Car­ Durante todo este tempo, os dinamarque-
los. Em todos os seus descendentes faltou zes fizeram invasões na Inglaterra, pene­
o genio, a intelligencia, o quasi sempre a traram no interior, e alli se estabeleceram,
virtude e a grandeza d’animo; dominados emquanto novos desembarques invadiram
pelas suas paixões, pelos prazeres, pelos esta ilha; todas as suas costas estavam de­
validos, a desordem foi sempre em au­ sertas e devastado o seu interior. Alfredo,
gmento. A ltalia, a Franca c a Allemanha o grande, quasi em todo o seu reinado, es­
estiveram cm continua discordia, e foram teve cm lucta com estes inimigos, e só­
dilaceradas por facções e guerras civis, mente no fim d’elle os afugentou, estabele­
emquanto as nações visinhas, os dinamar- cendo uma armada, que cruzava sobre as
quezes, normandos e serracenos assolavam costas de Inglaterra, e destruiu a dos dina-
a s provincias do imperio do Occidente. m arquezes.2
O bello plano do governo, estabelecido
por Carlos Magno, desappareccu; as leis se 1 B alu f cap. collept. des Hist. de Fr. t. 9.
viram sem força, e o espirito sem luzes e 2 Thoiras, Hist. d'Angl.
n , DISCURSO .PRELIMINAR

CAPITULO III

D o esta d o do e s p ir ito liiim au o

Haroun Alrashid, que reinava no fim do e que procurando momentos agradaveis,


século precedente, c princípios d’cste, pro­ para a vaidade, sem haverem jamais feito
sava os sábios e cultivava as sciencias, as alguém feliz, teem produzido um sem nu­
quaes os seus benefícios e estimação fize­ mero de desgraças.
ram reapparecer no Oriente, conservando- Almamom, que devia a sua felicidade ás
se, porém, sómente encerradas no seu pa- suas virtudes, c estas ás suas luzes, de
lacio; e como ellc era devoto em extremo, nada sc esqueceu que podésse instruir to­
tractou os cbristàos com tal rigor, que suf- dos os seus subditos: fundou escolas, ou
focou muitos talentos. Nem ao menos que­ academias publicas, em que ensinavam as
ria que as suas luzes se communicassem; sciencias.
e os sábios tiveram o valor de combater a Não se atreviam os theologos mahome-
sua vaidade. O doutor Malce, que um dia tanos a oppôr-sc a- estes estabelecimentos,
tinha d’explicar-lhe uma das suas obras, mas publicavam que Almamom certamentc
vendo que o califa mandava fechar a por­ havia de ser punido no outro mundo pela
ta, se lhe oppôz, dizendo que a sciencia de introducção das sciencias entre os arabes.1
nada aproveitava aos grandes, se não se Os successores de Almamom, posto que
communicava aos pequenos. 1 Um dos sá­ destituídos das suas luzes, protegeram as
bios, (jue este califa chamara para a sua fundações, que elle fizera cm favor das
côrte, foi encarregado da educação do seu sciencias, c se viram, principalmente, mui­
filho Almaihom. Almamom olhou a luz e tos astronomos, que publicavam observa­
as sciencias como os mais preciosos dons, ções exactissimas; outros sc deram á astro­
que o Céo podia conceder aos principes logia judiciaria;'e foi isto uma das causas
incumbidos do governo dos homens e da do progresso da astronomia, quando acerca
sua felicidade: procurou a luz entre os sá­ das outras sciencias nada mais se fez que
bios, que cllo creu serem d’alguma sorte traduzir e explicar os authores, que as tra­
destinados por Deus, c separados dos ou­ ctaram. 2 N
tros homens, para descobrirem a verdade, O imperio de Constantinopla estava muito
e lh’a faz conhecer. 2 longe de cultivar as sciencias com este ar­
Porém elle estava certo que o homem dor: Leão Isaurico destruira todos os es­
mais sabio não é infallivel; que se póde tabelecimentos que lhes eram favoráveis;
estar no erro, e possuir comtudo conheci­ as sciencias não foram seguidas senão por
mentos importantes; e julgou que o prin-. homens obscuros, desconhecidos, desppesa-
cipe amante da verdade, devia buscal-a dos. Foi pelos esforços que o califa Amon
entre os sábios de fama, fosse qualquer fez para attrahir á sua côrte o philosopho
que fosse a sua religião, a sua patriá c a Leão, que o imperador Theofilo veio a co­
sua seita; procurou todas as obras celebres nhecer o grande homem que n’elle possuia.
escriptas nas diversas lingíias, e as fez tra- .Theofilo animou sêu talento, e o tornou util,
djizir em arabico. convídando-o a ensinar.
Bem que Almamom se persuadisse que Bardas, que governava no tempo do im­
todas as artes e sciencias podiam ser uteis, perador Miguel, animado pelo exemplo dos
todavia não as julgava igualmente propor­ califas, e persuadido pelos conselhos de
cionadas para fazer a felicidade dos ho­ Phocio, cmprchendeu resuscitar as letras c
mens. Dava muito mais apreço á moral, sciencias no império grego: estabeleceu
que ensina a cohibir as paixões ou a pre­ rofessores de todas as sciencias ç artes,
servar do luxo c fausto, do que ás artes, eu privilégios e pensões aos mestres; c
ou sciencias, que os fomentam elisongeia’m;
. 1 Pokok, speciem. Hist. Arab. p. 166.
1 D'Herbelot, art. Haroum. . 2 j)’Hèrbelot, art. Mohckkcl, art. Mamou,
1 Abulphar. [art. WathchBiilah.
r i
DISCUnSO PRELIMINAR

lo g o as scicncias começaram por florescer, isso mesmo que eram feitas em um seçulo
c o gosto a renascer.1 Vé-sc porém dos ignorante, e para exercitar intclligcricias
monumentos que nos restam (Testes phi­ desprovidas d’idcias, haviam-dc ser futilis­
losophos e escriptores, que cllcs se não simas, e dar principio a infinidade de con­
propozeram a mais que a entender e imi­ troversias pueris, fazel-as importantes, e
ta r os antigos. 2 retardar os progressos da razão, applican-
No Occidenc animava Carlos Magno to­ do-sc a estas questões todos os esforços do
dos os estabelecimentos por elle feitos cm espirito: tal foi a que se levantou sobre o
favor das letras. No prodigioso numero de modo como Jesus Christo sahira do seio da
«cscólas, que fundara, se cultivava toda a Virgem.
litteratura sagrada e profana. Liam-sc os A confusão e desordem successivas á
bons authorcs latinos; porém todos estes morte de Carlos Magno aniquilaram en­
conhecimentos, que se buscavam, tendiam tre a nação o gosto das letras e das scien-
â intelligencia dos Sanctos Padres e Escri- cias, quê outra vez se tornaram a refugiar
ptura, sobre a qual fizeram muitos com­ nas cathedraes e mosteiros. Alli mesmo fo­
mentarios n’cste século. Entre os arabes, ram inquietal-os as perturbações civis e
pelo contrario, todos estes conhecimentos politicas, e desalojando-os dos seus asylos,
s e empregavam na explicação dos melho­ extinguiram até os primeiros raios da luz,
r es philosophos da antiguidade. que Carlos Magno tinha accendido no Oc­
Estudaram-se no Occidente a arithme­ cidente.
tica, astronomia c physica, assim como no As escolas c scicncias, que as invasões
imperio mahometano; mas n’estc se pro­ dos dinama rquezes e guerras interiores quasi
curava pela intelligencia do Céo, dos as­ tinham aniquilado na Inglaterra por mais
tros, e da Natureza presagiar o futuro, c de meio século, renasceram no governo
conhecer as leis dos phenomenos: no Oc­ d’Alfredo. Este principe, que, sem defeito
cidente o objecto de todas as sciendas era algum, possuía todas as virtudes e qualida­
a reforma do Calendario e a ordem das des que fazem admirar e adorar os sobe­
festas; como também a musica empregada ranos, era bom grammatico, philosopho,
cm cantar as poesias arabicas, servia no geometra e historiador.
Occidente para o officio da Igreja. Alfredo, summamcnte piedoso, tinha in­
Carlos Magno, para pôr em emulação os clinado todos os seus conhecimentos a fa­
eruditos, e em exercício o espirito, propu­ zer feliz a humanidade. Elles o dirigiram
nha questões de litteratura, de philosophia, a crear uma marinha, fortificar as praças
o u de theologia. Uma vez communicada e estabelecer leis tão sabias, que ainda ho­
esta primeira impressão, se perpetuou, c je, em parte, fazem feliz a Inglaterra. Co­
os homens mais illustrados se occuparam mo por si niesmo conhecia quanto eram
cm formar muitas questões subtis, que por necessarias para o bem da sociedade a luz
e a religião, fundou escolas de theologia,
arithmetica, musica e astronomia. Empe­
1 Zon. I. 3. Caelius Secundus Curio. Hist. nhou todos os sábios estrangeiros para que
Sarac. I. 2. viessem esclarecer a Inglaterra, attrahiu os
2 Leo Aliai, de Psellis Bibliot. Phot. Fa- artistas celebres, c de nada se esqueceu
bric. Bibi. grcec. I. 5. Hankius de Script. para inspirar aos inglezcs o gosto das le­
- groec. 9. foec. tras c das sciencias.

CAPITULO IV

D a s h e r e sia s, scism a s e d isp u ta s th e o lo g ic a s

Tínhamos mostrado, no governo de Irene, filo adoptaram os mesmos sentimentos; e


restabelecido e confirmado o culto das ima­ estas diíTerenças continuaram ainda, cau­
gens pelo segundo concilio de Nycea. Leão, sando dcsassocegos no imperio do Constan-
o Armênio, empenhou todos os seus cuida­ tinopla até o reinado da imperatriz Theó-
dos em abolil-o: Miguel, o Gago, c Theo- dora, que deu força de lei ao segundo concilio
96 DISCURSO PRELIMINAR

NiCcno, extinguiu a parcialidade iconoclas- ptura; mas sem fazer systemas, e adoptando-
tica, c empregou toda a sua authoridadc quasi sempre algumas idéias ou explica­
contra os manicheos. Deu ordem para em ções dos padres e authorcs ecclesiasticos.
todo o imperio se procurarem c matar to­ D’aqui nasceram multidão de questões-
dos os que se não convertessem. Mais de ou de controvérsias entre os theologos. Go-
cem mil morreram por differentes generos descalo excitou disputas longas e vivas so­
de supplicios. bre a predestinação. Um monge do Corbia,
Quatro mil, que escaparam ás pesquizas, apoiado na authoYidade do livro de Sancto-
e supplicios, se refugiaram entre os serra- Agostinho da Quantidade da alma, preten­
cenos, uniram-se a elles, talaram os cam­ deu que não houvesse mais que uma só
pos dd imperio, construiram fortalezas, ás alma em todo o genero humano. Um sa­
quaes se acolheram os manicheos, que o cerdote de Maguncia ensinou que Cicero e
temor conservára occultos, e formaram um Virgílio se salvaram. Ratramno, e Pascha-
poder formidável por seu numero, c pelo sio tiveram grande disputa sobre o modo
odio concebido contra os imperadores e ca­ como Jesus Christo estava na Eucharistia;
tholicos. Muitas vezes assolaram as terras sobre o modo cm que se tornam as Espé­
do imperio c desbarataram os seus exerci­ cies Eucharisticas; e ácerca do modo como
tos: uma batalha, na qual foi morto o seu a Sancta Virgem tinha dado á luz a Jesus
chefe, aniquilou este poderoso exercito, que Christo. Amalero examinou profundamente
os supplicios tinham creado c que havia se se. devia escrever Jesus com h; e se a
feito estremecer o imperador de Constan- palavra cherubim era do genero neutro ou
tinopla. masculino.
Depois que Theodora passou a sua au­ As diligencias que se fizeram para ex­
thoridadc as màos de Miguel, este principe plicar a Escriptura Sancta, para apagar
entregou o governo do imperio a Bardas, com ella as opiniões que se tinham ado-
seu tio, que casou com sua sobrinha. Op- ptado, conduziram aos sentidos mysticos,
pôz-se a isto Ignacio, patriarcha de Con- espirituaes e occultos, e fizeram cahir cm
stantinopla: Bardas o fez depôr e substituir detalhes ridiculos: assim achou Ilincmar
por Phocio. Houve divisões n’aquella capi­ verdades escondidas nos numeros dez, trin­
tal acerca dos' dous patriarchas e se decla­ ta, etc.; assim asseverou uma mulher ha­
rou uma sedição: Roma tomou partido por ver encontrado no Apocalypse que o fim
Ignacio; a Igreja de Constantinopla se se­ do mundo aconteceria no anno de 848; e
parou da latina, e o scisma não pôde ter como se persuadira ter recebido do Céo
fim, senão no vm concilio geral. uma missão para annuncial-o; annunciou,
O desenvolvimento que Carlos Magno ti­ e teve sequazes.1
nha dado ao espirito e á curiosidade, pro­
pondo questões aos theologos, sábios e eru­ 1 Dup. Dibl. 9. siéele. Hist. lit. de Fr. t.
ditos, ainda continuava n’esteseculo: quando 4. Le Bamf. Dissert sur Vètat des Sciences
as sciencias se encerravam nos claustros se depuis de la mort de Charlemagne, etc. Re-
dirigiu principalmente para a Religião: es­ cueilde piécespour Veclaircissement de VHist.
meraram-se em descortinar os mysterios, Fr. t. 2. à P ariz chcz Barrois.
explicar os dogmas, interpretar a Escri-

DECIMO SÉCULO

CAPITULO I

E sta d o d o O ricu te

O imperio mahometano estava dividido tropel d’impostores se levantou depois de


em differentes governos, sobre os quaes já Mahomet, e dividiu o enthusiasmo da nação,
não tinham os califás aquella authoridade fazendo-o mènos respeitável; e os cahfas
absoluta, que o fanatismo produzira. Um entregues ao luxo e passatempos, já nao
■ '|« v j &, t ( ^ v,:
DISCURSO PRELIMINAR I ‘ • 97

tinham aquella austeridade de costumes, e pcias; o patriarcha Nicolau o cxcommun-


aquella simplicidade, que fizera poderosos gou. Publicou um edito, que authorisava o
os primeiros successores do propheta. quarto casamento; o clero sc lhe oppóz.
Quando Ornar ia tomar posse das suas Leão não fez caso algum d’csta opposição;
conquistas, ia montado cm um camello, car­ um homem plebeu o maltractou, sem cõm-
regado de dous saccos cheios d’arroz, de tudo o matar; prenderam o regicida, ma>
trigo fervido c de fruetas. Diante de si le­ posto em tractos, não descobriu nenhum
vava um ôdre cheio d’agua, e á garupa um de seus cúmplices.
prato de pau, cm que comiam elle e seus Leão teve por successor seu filho Ale­
camaradas. Os vestidos, de que usava, eram xandre, que as suas demasias fizeram mor­
là de camello; sabia perfeitamente o Alco­ rer no fim de treze mezes. Nomeou para
rão e pregava com vehcmencia. Seus suc­ lhe succeder Constantino, seu sobrinho. Os
cessores tinham 10 mil cavallos e quarenta validos d’estc principe se apoderaram da
mil domésticos. authoridade, excitaram turbulências no im­
Enfraqucceu-se insensivelmente o res­ perio, e iresse meio tempo as provincias
peito á Religião e a submissão aos califas: foram saqueadas por os serraccnos.
os califas, que, do fundo da sua mesquita, Romano forçou Constantino a associal-o
tinham feito voar os arabes desde Cantão no imperio. OYilho de Romano dcsthronou
até llespanha, debalde appareccram com o seu pac, e foi elle proprio deposto e orde­
Alcorão, c todos os apparatos religiosos, nado. Depois que Constantino recobrou a
para atalharem as facçòes: tendo o Alcorão sua authoridade, mandou Leão c Nicephoro
ao peito, e no meio dos seus doutores, eram contra os serraccnos.
passados de parte a parte pelos fanaticos, Romano, filho de Constantino, seduzido
ambiciosos e descontentes, que, excitando pelos conselhos de Theophane, sua mulher,
sedições c revoltas no imperio, o inunda­ conspirou contra seu proprio pae e o fez
vam" com o sangue dos mahometanos. 1 envenenar. Depois d’este parricidio se en­
Não sc viu n’este século senão califas as­ tregou á devassidão, emquantoNicephoro se
sassinados ou depostos ao arbitrio da sol- cobria de gloria combatendo contra os ser­
dadesca, c pelas traças dos validos, ambi­ raccnos. O exercito acclamou por impera­
ciosos c descontentes. Em fim no meio do dor a Nicephoro, o qual cm breve foi vi­
mesmo século, a vasta extensão do império ctima d'outra conspiração, tramada por Zi-
mahometano, estava repartida em infini­ miccs, que subiu ao throno.
dade de provincias ou governos, sobre os Zimices imputou a morte de Romano a
quaes só possuia o califa uma especic de Theophane e Ablancio;vo patriarcha o obri­
preeminencia, mais concernente ás cousas gou a banil-os; fez-lhe prometter de revogar
da Religião do que ao governo politico; todos os editos contrarios ao bem da Igreja,«
toda a sua authoridade passou logo ás mãos seus privilégios, c o coroou. O seu reinad-
dos visires, ou dos validos, que sõ conser­ foi inquieto pelas conspirações, guerras,
vavam os califas, como uma cspecie de revoltas de muitas cidades "do Oriente, qui
phantasmas, que continham o respeito dos as vexações do eunucho Basilio, primeiro
povos, pouco mais ou menos, como eram ministro, tinham amotinado. Basilio, re­
cm França os reis do fim da primeira raça, ceando a justiça de Zimices, o fez envene­
entre as mãos dos maires de pala cio. nar, e reinou sob Constantino e Basilio, fi­
Em Constantinopla, reinava Leão, o phi­ lhos de Romano, que o imperador nomeara
losopho, no principio do decimo século: por successores. Os reinados de Constan­
suas virtudes c talentos, c a prudência do tino e Basilio foram cheios de revoltas e
seu governo não o poderam preservar das guerras, como os precedentes. 1
conspirações: quiz casar-se em quartas nu-

1 Abulfed ad an. 320. Abulphar. 1 Curapolat, Cedrcn, Zonar, Nicephor.

7
DISCURSO PRELIMINAR

CAPITULO II

D o O ccid en te

A Italia enclieu-se de guerras civis; osii no meio das desordens da França. Deixou
principes visinhos, e muitas vezes os b ar-1na tutella de Hugo Capeto, seu filho Luiz,
Laros, eram chamados pelas diversas par- que morreu depois de dczcsctc annos de
cialidadcs, que se formavam, e que des- reinado; c Hugo Capeto subiu ao throno.
gostando-sc em breve dos principes, chama­ Os vassallos se haviam feito poderosos nos
vam outros, que lhes vinham a ser igual­ reinados precedentes: cada fidalgo construía
mente insupportayeis. Emfim, Otom, cha­ castellos e fortalezas, a maior parte, sobre
mado por João xxii, extinguiu todos es­ as alturas, apoderavam-so das passagens
tes partidos, conquistou dos gregos a Apu­ dos rios, faziam violências aos mercadores,
lia c Calabria, uniu a Italia á Allemanha e pedindo tributos c impondo sensos muitas
n’ella fixou a capital do imperio. vezes extravagantes c ridiculos. Hugo Ca­
A França foi invadida pelos normandos, peto lhes fez guerra, teve homens de animo
aos quacs"Caiios, o simples, deixou a parte e virtude, que atacaram estes tyrannos, ou
da Neustria, chamada hoje Normandia. Os por melhor dizer, estes ladrões, obrigan­
senhores, descontentes de Carlos, elegeram do-os a reparar os males, que tinham cau­
a Roberto, irmão do rei Eudes. Carlos e sado: aqui teve principio a cavallcria an-
Roberto formaram ligas com seus visinhos. dante.
Depois da morte de Roberto, os estados ele­ Nào tinha mais socego a Allemanha: os
geram Raul, e Carlos abandonado de todos grandes estavam quasi sempre eni armas,
morreu prêso em Peronna. ou uns contra os outros, ou contra os im­
Apoz a morte de Raul, Hugo, o branco, peradores. Quando estes se viram desem­
conde de Paris c Orícans, chamou Luiz, fi­ baraçados dos inimigos tomaram parte nas
lho de Carlos, que passara a Inglaterra de­ guerras dos visinhos; assim esteve sempre
pois da desgraça de seu pae. Luiz do Ul­ a Allemanha sobre arm as.1
tramar formou o projecto d’abater os fidal­ Na Inglaterra houve intervallos de p az,
gos; fez ligas; os fidalgos as fizeram tam­ mas foi muitas vezes assollada pelos dina-
bém da sua parte, chamando cada qual já marquezes e dilacerada com guerras ci­
os búlgaros, já os normandos; e Luiz do vis. 2
Ultramar morreu deixando a França en­
tregue a estas faccões.
Lothario, seu filho, foi activo e guerrei­ t Hist. gcwralc d'Allemagnc.
ro, porém perfido; e morreu - envenenado, 2 Thoiras, t. 2.

CAPITULO III

D o e sta d o d o e s p ir ito h u m a n o

Por gosto, por habito ou vaidade os cos, e fazer que florescessem em seus esta­
califas alentavam os talentos, e attrahiam dos respectivos as artes e sciencias. D’esta
á sua corte os homens celebres. Os sul- sorte a desmembração do imperio dos ca­
tões, que usurparam a authoridade dos ca­ lifas, as guerras dos visires, sultões, emires
lifas, quizeram, assim como aquelles, ter e omras multiplicaram as' escolas c secun­
os seus astronomos, philosophos e medi­ daram uma infinidade de talentos, que fica-
DISCURSO PRELIMINAR 99

riam sepultados, se não estivessem debaixo losophos ou escriptorcs celebres no impe­


«dos olhos do soberano; c por meio dos sul- rio de Conslantinopla: o portentoso era o
tòcs cernires se derramou a luz por todo o gosto dominante, e talvez o meio unico de
•Oriente. Grande parte dos sábios se empre­ que os homens entendidos c virtuosos po-
gou sómente cm traduzir os antigos philo­ deram servir-se contra as paixões c vicios
sophos, ou no estudo das traducçõcs feitas do seu século: isto foi o que determinou
no século precedente. Outros commenta- Mctaphrasto a compilar as lendas dos san­
ram as obras tl’Aristoteles, e dos antigos, e ctos illustres por suas virtudes, e por infi­
até fizeram collcccõcs dos seus melhores nidade de prodígios extraordinarios e mui­
pensamentos. tas vezes suppostos. 1
Levantou-se entre os theologos mahome- Tinham-se formado no Occidente innu-
tanos lima sociedade de litteratos, que af­ meraveis estados, que continuamente tra­
firmaram nào se poder subir á perfeição, balhavam por se engrandecer,.ou por sc
sem se unir a philosophia com o Alcorão, e defender dos visinhos respectivos e dos
que formaram no mahometismo um novo normandos, scrraccnos c búlgaros, que de
systema philosophico. toda a parte invadiam a França, Italia e
' Dividiram-se os theologos mahometanos Inglaterra.
cm parcialidadcs differentes: havia entre Uma guerra tão geral c contínua enche­
ellcs os seus predestinacianos, pclagjanos, ra a Europa de desordens: não se respei­
optimistas, originistas, theologos, que com­ tava a humanidade nem os asylos da vir­
batiam as leis geraes, assim na moral, como tude, das sciencias c das letras. Todo o
na physica. Alguns negavam, que os maho­ mundo era obrigado a tomar armas em sua
metanos podéssem ser condcmnados a pe­ propria defesa; a guerra produziu a licença,
nas eternas. aeccndcu as paixões, extinguiu todas as íu-
Viram-se seitas, que sustentavam que a zcs nos theologos, nos guerreiros, na maior
Divindade residia cm todas as creaturas, e parte do clero secular e regular, e no povo.
partieularmente nos homens, quanto a na­ . Porém não tinha a desordem riscado in­
tureza permiltia; que alli participava mais teiramente dos espíritos as verdades da Re­
que nenhuma outra creatura da natureza ligião. Alguns homens virtuosos se apro­
divina, e até que era Deus. 1 veitaram d’cstes preciosos restos daJuz; e
Viu-se finalmente uni poeta, cujos ver­ pintando com vehementia os castigos pre­
sos eram tão porsuasivos e faziam cm quem parados para o crime, os representaram
os lia unia tal impressão, que o suppozc- nas mais espantosas imagens, e as unicas
ram inspirado: c cllc mesmo se imaginou, que podiam persuadir e abalar homens sem
c annunciou como um propheta, e foi re­ costumes, sem princípios c idéias, e inca­
conhecido como tal por muitas tribus. Foi pazes de reflexão.
preso; e para conseguir a liberdade, se viu • Faziam uma impressão profunda c per­
necessitado a renunciar ás suas pretenções, manente os castigos eternos, c os animos
c não fez mais sequazes. Enfraquecia pois vacillávam entre a vehemencia das paixões
o fanatismo á medida que a luz se derra­ c o terror dos castigos da outra vida. Es­
mava entre os mahometanos, e que se di­ tas duas potências sc equilibravam e trium-
latava c fazia popular. 2 phavam simultaneamente. Quando a paixão
No imperio de Constantino, Bardas, exci­ era extrema, riscava d’alguma sorte as
tado pelo exemplo dos principes arabes, e idéias da outra vida; mas quando sc debi­
por Phocio, tinha principiado nos fins do litava, ã imagem do inferno, os remorsos
ultimo século a • resuscitar as letras c as desenvolviam-se, c os homens apaixonados,
scicncias. Constantino Porphyrogcnito teve que são quasi sempre d’um caracter fraco,
a mesma mira, chamando de toda a parte recorriam a todos os meios imagináveis
philosophos, geometras c astronomos, que para expiarem seus delictos, e cahiam ^or­
ensinaram em Conslantinopla; mas não ha dinário na superstição; o mais leve aeci-
cousa tão diflicil como a reversão para a dente, todos os phenomenos, eram ou pre-
luz n’um estado cheio de facções religio­ sagios, ou obra diabolica. No fim do décimo
sas c politicas, entregue á superstição e século se tomou por apparição de demo-
emergido no luxo. nios, cm habito de cavalleiros, um furacão
Não sc vê, que este século produzisse phi- estranho, que aconteceu em Montmartrc,

1 Abulfcd, Polcolc, note in specim. H>st. 1 Bellarm. de Script. Eccles. Theod. Ilui-
Avab. (VHerbclot, art. Shalmagani, Susi, As- nart. prcef. gen. ad act. Mart. §. 1. n. 8.
hari. Leo Allat. de simonum script. Dup. Bib. 10.
2 jWHerbjtot, art. Motavodi. siécle.
*
d00 DISCURSO PRELIMINAR

perto de Paris, c que dorribou alguns mu­ Todos estes homens accrcscentaram aos fa­
ros antiquissimos, arrancou vinhas e des­ ctos verdadeiros circumstandas as mais
truiu* searas. 1 N’cstc scculo recorreram proprias para interessar áqueiles, diante de
aos augures c a todas as cspccies d adivi­ quem representavam. Estes contos oram
nhações e de provas practicadas nos prece­ pequenas novellas, que a necessidade de
dentes. 2 se divertir cm uma naçào ociosa, destituída
Alguns clérigos dc Rothario, bispo dc d’artes c scicncias, propagou e que oflerc-
Verona, nfio concebiam a Deus, senão de­ cia uma mistura de brio militar, de pai­
baixo d’uma forma corporea, e como um xões, de virtudes civis, de galanteio e dc
homem infinitamente poderoso, assentado religião. 1
sobre um throno d’ouro, cercado d’anjos, Bom que a desordem fosse extrema, to­
os quacs nada mais eram que homens ves­ davia não destruiu todas as fundações fei­
tidos de branco. Acreditava-se que no Céo tas em favor das letras e scicncias; houve
se passava tudo como na terra, e que S. ainda escolas famosas em Liege, Paris, Ar­
Miguel cantava todas as segundas feiras ras, Cambray, Leon e Luxeuil. 2 N’ellas se
missa no Paraizo.3 liam os antigos; buscavam entendel-os, mas
Familiarisadas, pois, as imaginações com as obras d*cslc século nào foram mais do
estes objectos, receberam como no prece­ que compilações das passagens dos mesmos
dente scculo, sem exame, infinidade de vi­ antigos. Finalmcnte os principes arabes, es­
sões c apparioões imaginadas ordinaria­ tabelecidos na Ilespanha, tiraram o Occi­
mente por homens virtuosos, mas simples.4 dente da indiíTerença cm que estava a res­
No meio d’agitaçào c do tumulto havia peito das scicncias ó philosophia, pelas em­
instantes de soccgó c intervalles dc paz. O baixadas que lhe dirigiram. EUes propo-
espirito humano carece entào de recrear-se; zeram diííiculdades contra a Religião Chris-
esta necessidade era que em todos os tem­ tã; buscaram-se sábios para lhes responder;
pos, c entre todos os povos, produziu nos e estes iam na companhia dos embaixado­
momentos da paz' e socego, o credito, acon­ res, que lhes mandavam. 3
tecimentos interessantes, acções famosas, 0 commercio com os serracenos do Oriente
heroes c guerreiros. e Occidente fez nascer o gosto pelas linguas
Tal havia sido, entre os antigos, a ori­ oriontacs, estudaram-se em muitas escolas,
gem da comedia, da tragédia, e d’uma par­ applicando-so á philosophia ^Aristoteles,
te das fabulas; dos bardos e scaldos entre que era o oráculo dos arabes; mas somente
os gallos, germanos e antigos dinamarque- se occupavam da sua logica.
zes, e dos" trovadores, menestreis e pclo- 0 decimo século, tão fecundo cm desgra­
tiqueiros c farcistas no século precedente. ças, abysmado na mais profunda ignorân­
cia, nãó viu nascer heresia alguma.
1 1j >, Bcevf.; loc. cit. p. 12o.
2 Martenr, ampliss. collect. I .4, p. 70,79. 1 Hnel. Ovig. des Romuns. Falconet,
3 Voijez dans le 2 Tome du Spicileg. Ia Hist. de l'Acad. des Inscript. t. d, p. 293.
réfulaiion de ccs extravagances, por Rocha- 2 Hist. lit. de Fr. t. 6.
rim . 3 Hist. lit. t. 6. Sa‘c. 4. Benedici, p. 3,
* Le Bcevf, loc. cit. p. 72. l. 14. Le Bamfj loc. cit.

UNDECIMO SÉCULO

CAPITULO I

E sta d o p o litic o d os im p é r io s

Conservava-se o império mahometano phantasmas sem authoridadc; os sultões go­


tal qual o representamos no fim do decimo vernavam como senhores absolutos, uma
século. Os califas não eram mais que uns multidão de descontentes e d’ambiciosos
1 ,4 y v v v v. v - v
DISCURSO PRELIMINAR 1 01

traziam o imperio cm discórdia. Mahmond, pontifice de virtude c dc extraordinaria


sultão de Bagdad, levou as suas armas con­ constância, que ousou atacar a desordem c
tra a índia, que subjugou; n’olla destruiu o abuso nas mesmas pessoas dos sobera­
a. idolatria, c estabeleceu o mahometismo nos. Gregorio vn se persuadiu que os ma­
até os reinos de Samorim e Gusaralc, em les da Europa nasciam principalmente na
que fez degolar mais de cincoenta mil ido­ corrupção dos costumes, no desenfreamento
latras. 1 das paixões, no abuso do poder: formou o
Einquanlo Mahmond assiin dilatava o projecto dc sujeitar este poder ás leis do
império mahometano, os turcos selpccidas Christianismo, á. cabeça visivel da Igreja;
se apoderaram de muitas provincias sujei­ de combater as paixões pelos mais podero­
tas aos sultòos. O califa, opprimido pelo sos motivos, que actuam sobre o christão,
sultão de Bagdad, o chamou e declarou-o o temor do inferno, a separação da Igreja,
seu cabeça e senhor de todos os estados que a cxcommuiihão acompanhada dc quanto a
Deus lhe* confiara, proclamando-o rei do podia fazer temerosa.
Oriente c do Occidente. 2 A pureza do motivo, que o animava, a
Os successores d’cstè engrandeceram os sua mesma virtude não lhe deixaram vêr
seus estados, fizeram guerra cruel e longa que o chefe da Igreja poderia abusar do
ao império de Constantinopla, tomaram a poder immenso, a que ellc lançava os fun­
Geórgia, e estenderam a sua dominação damentos; não imaginou n’cste poder se­
desde a Syria até o Bosphoro. não um remedio para as desgraças, que
O imperador Basilio, que principiara assolavam
a a Europa.
restabelecer o império de Constantinopla, As paixões não tinham extirteta a fé: os
teve em seu filho Constantino um succes­ povos estavam acabrunhados dc tribulaçoes,
sor, que deixando o governo ã discrição c destituídos das luzes necessarias para*dis­
dos ministroSj se entregou aos divertimen­ cernir os justos limites da authoridade da
tos. Aquclles, que se haviam distinguido Igreja. Não se considerava n’um principe
no tempo de Basilio, ou foram mortos, ou excommungado ou deposto pelo papa mais
despojados dos seus empregos. A perfidia, que um tyranno, um réprobo, um inimigo
o veneno, o parricidio foram em todo este da Beligião, um sustentaculo do inferno,
século os meios ordinarios pelos quacs sé um homem possuído do demonio. Obede­
elevaram ou depozeram os imperadores. cer-lhe, era obedecer ao mesmo demonio.
Por estas vicissitudcs se podem avaliar D'està sorte a sentença do papa, que de­
os vícios do governo c a infelicidade dos punha os reis, c a excommunhão, que os
povos, que aloin d’isto eram continuamente separava da Igreja, foram oráculos para os
expostos ás invasões dos búlgaros, serra- povos, raios para os soberanos.
cenos e turcos, aos quacs não estava o im­ Eram frequentes n’cste século as pere­
perio em situação de resistir, c que o ha­ grinações da terra 'sancta; c os peregrinos
veríam conquistado, se não fossem as divi­ atacados pelos turcos, que se haviam apo­
sões, que entre clles se levantaçam, c que derado da Palestina, fizeram na sua volta
só poderíam ser prevenidas, ou atalhadas pinturas lastimosas do que haviam soíírido
pela authoridade das le is .3 c da situação deplorável em que se via o
No Occidente, não havia mais socego, Christianismo d’aquella provincia.
nem mais união que no Oriente; alguns O papa, cm um concilio, cxhorta os chris-
soberanos virtuosos e de genio superior, tãos a subtrahirem a terra sancta do poder
que de tempos cm tempos appareciam, não dos infiéis; os bispos, os senhores, os po­
poderam restaurar a ordem, nem communi- vos, se arrebatam dc zelo;'mais dc seis­
•car suas virtudes c talentos, aos que lhes centos mil combatentes partem successiva-
succederam. mente para a Palestina, conquistam-a, e fun­
Emfim á cadeira dc S. Pedro subiu um dam no Oriente um novo imperio. Era de si
mesma louvável esta empreza; e a união dc
todos os christãos para um objecto de reli­
1 De Guines, Hist. des Huns, t. 9,p . 161. gião c utilidade commum, podia contribuir
2 Ibid. p. 197. para a suspensão das rivalidades, odios e
3 Curopalatc, Hist. compend. Lycos, an- interesses, que traziam em armas todos os
m l. part. 4. Zonar. christãos da Europa.
102 DISCURSO PRELIMINAR

CAPITULO II

E sta d o do rito h u iu a u o

Os tureos, que subjugaram a Persia, Sy­ uma revolução subita nas idéias, nos gos­
ria c Palestina protegeram os sabios, c se tos e nos costumes. A estimação que se
serviam dos seus conselhos: fundaram aca­ dava aos talentos litterarios, ás luzes c á
demias; nas suas cortes tiveram astrono- virtude enfraqueceu a paixão que havia
mos, poetas, philosophos e medicos. Por pela bravura feroz e pelos exercícios vio­
meio das conquistas que fizeram, foram lentos, que são sempre o refugio da igno­
levadas á India as sciendas e a philosophia rância e barbaria; o valor tornando-se hu­
dos arabes, e communicada a estes e ou­ mano, foi tão apreciável como a virtude; c
tros philosophos gregos a philosophia da os latrocínios c ducllos, que o ocio c a ne­
India. 1 Os orientaes já não eram simples cessidade d’alguma oecupação fizeram tão
traductores dos antigos; commcnlaram, ana- usuaos no século precedente, foram substi­
Ivsaram, discutiram as suas opiniões e prin­ tuídos pelos torneios.
cípios, e dando-lhcs ligamento e ordem, for­ Seguiu-se nas escolas por lodo o século
maram systemas. undecimo o methodo de Alcuino, conhecido
No imperio de Constantinopla foram pou­ debaixo do nome de Trivium e Quadri­
co cultivadas as scienciãs: a mocidade alii vium. Ensinava-se a grammatica, logica c
occupava-sc na caça, dança e enfeites, tra- dialectica, que era o Trivium; e depois se
:tando-se com o maior despréso as letras seguia a arithmetica, geometria, astrono­
3 scienciãs até Constantino Monomaco, em mia c musica, que era o Quadrivium.
cujo tempo Psello reanimou o estudo das Gomo as scienciãs eram ensinadas desde
letras, grammatica e philosophia; mas esta o principio nas cathedracs e mosteiros* to­
se empregava sómente em formar syllogis­ das se encaminhavam á religião e moral:
mos e sophismas sobre todos os assumptos; depois que se multiplicaram as escolas, e
exercício d’espirito, que mais embrutccia que a emulação* se communicou ao exte­
do que illuminava o entendimento. 2 rior, vieram a ser estas uma cspecie d’am-
No Occidente os anathemas da Igreja, o philhcatro aonde cada um buscava distin-
temor do inferno, as virtudes de muitos pa­ guir-se, sendo a philosophia o primeiro ob­
pas, bispos c abbades intimidaram as pai­ jecto de emulação, principalmente quando
xões: viram-se menos roubos, vexações e no meio d’este século se multiplicaram no
rapinas: tiveram mais respeito ás igrejas e Occidente as obras de Aristoteles, Aviccn-
mosteiros: estabeleceu-se a ordem e a dis­ na e Averroes, as introducções de Porphi-
ciplina: as letras e scienciãs foram, culti va­ rio c as cathégorias attribuidas a Sancto
das com socego: as escolas se abriram a Agostinho.
todos os que queriam instruir-se: a gene­ A arte de discorrer nada mais é, que a
rosa piedade das igrejas e mosteiros forne­ de comparar as cousas. desconhecidas com
cia de tudo o preciso aos talentos necessi­ as conhecidas, a lini de descobrir por este
tados: logo se viram frequentar as escolas cotejo aquellas, de que não ha conheci­
infinitos estudantes cheios de tal ardor e mento.
emulação, que so communicaram a todas Tinha Aristóteles ponderado que nos di­
as conâições c estados: reis, principes, se­ versos modos de comparar os objectos dos
nhores, princezas e senhoras todas culti­ nossos conhecimentos, havia alguns que
varam as letras; a luz, até então encerrada não rçodiam jamais esclarecer-nos acerca
nos claustros, fez uma especie d’explosão, (Vaquillo que pretendíamos alcançar, c que
que esclareceu toda a Europa e produziu eram falsas todas as consequências que se-
tiravam d'estas comparações. Todos os mo­
1 Abulphar, n. 352. dos de comparar as idéias foram por elle-x
2 Atine Com. I. 5. Alex. H a tik m de reduzidos a certas classes, assignando-lhes
Scrip. H ist. Bisant. part. i , c. 26..Fulr. aquclles cujas consequpncias eram falsas*
Bibl. grec. de Psellis. Por meio .destas especies de formula-
DISCURSO PRELIMINAR 103
rios, se via rapidamente quando uma conse­ A ideia de João Sophista, que natural­
quência era verdadeira; isto é ao que nas mente havia de fazer sentir a inutilidade dá
escolas se chama liguras dos syllogismos. philosophia d’este século, e conduzil-o ao
Acreditou-se pois vêr n’cstes formulários estudo das cousas, isto é, á observação e
um meio infaílivel c breve para conhecer aos factos, fazendo vêr que a philosophia
se havia engano, e se assegurarem da ver­ das escolas não podia jamais conduzir ao
dade dos juizos e opiniões que examina­ conhecimento da natureza nem do homem,
vam. produziu um cíTeito totalmcnte contrario.
As cathegorias nada mais eram que cer­ Insistiram os inimigos de João Sophista cm
tas classes, ás quaes tinham reduzido os que os objectos e idéias geraes e abstractas,
attributos, propriedades e qualidades, de existiam com effeito, e realmcnte na natu­
que todos os entes são capazes; de sorte reza.
que para discorrer sobre um objecto, e co­ Os sequazes de João atacaram este pare­
nhecer a sua essencia, relações c diíTeren- cer, e d’aqui se formaram as seitas dos
ças a respeito de qualquer outro, bastava nominaes c dos realistas, cujas controver­
attender por meio das regras syllogisticas sias observaram a maior parte dos esfor­
a qual das classes geraes se reduzia. As­ ços do espirito humano por muitos sécu­
sim, por exemplo, uma substancia, fazia los.
certa cathegoria, em que se examinava a Ficando sepultada a ideia de João So­
natureza da substancia em geral, e para se phista n’estas disputas, sómente seiscentos
julgar se tal objecto era uma substancia, annos depois foi reflectida por Bacon, que
examinavam se elle tinha as propriedades d’ella tirou esta consequência, que lhe era
essenciaes incluídas pa cathegoria da sub­ tão obvia; isto é, que a razão só podia iilu-
stancia. minar-se pela observação e conhecimento
Entendeu-se, pois, que em se conhecendo dos factos, e pelo estudo da natureza.
as cathegorias e figuras dos syllogismos, po­ Era absolutamente desconhecida a phy­
dia discorrer-sc sobre tudo c julgar de tudo, sica, se exccptuarmos alguma parle da his­
orque havia definições, ou noções geraes toria natural, como a dos animaes e pedras
e todas as especies’dc entes, c”se podiam preciosas, sobre que escreveram Ilildcber
comparar estas definições geraes com as to, bispo de Mans, c Marbonne, bispo d
ideiás ou definições dos entes particulares. Reunes. O maquinismo da natureza não s
Todo o raciocínio d’estes philosophos joga­ examinava, e os plienomenos extraordius
va, portanto, sobre idéias abstractas, e defi­ rios se reputavam sempre ou presagios
nições de nomes, sobrenomes, e não sobre ou cffcitos particulares da Providencia, c
idéias tomadas no seu exame, ou na obser­ se explicavam por meio de razões mysticas
vação d’aquella mesma cousa, acerca da e m oraes.1 A critica era tão desconhecida
qual se discorria. como a physica, razão porque havia grande
Um philosopho que foi olhado como so­ disposição n’este século para se attnbuir a
phista (João Sophista), notou que estas idéias prodígios todos os acontecimentos, e crêr
abstractas só tinham existência na imagi­ em tudo que se relatava.
nação, e nada exprimiam do que existe na Assim se exercitou muito o entendimento
natureza: d’aqui concluiu que a logica ti­ sem se illustrar, e o imperio da credulidade
nha sómente por objecto idéias abstractas, dilatou ainda bastante os seus limites n’este
ou para melhor dizer, as palavras que as século.
exprimiam. Muitos philosophos se olfende-
ram d’uma opinião que deprimia a diale­ 1 Fulbert. cp. 95, 96, 97. Hist. lit. t. 7,
ctica, ou melhor a philosophia, e insistiram p. 136, 283. Le Banif, Recueil des Dissert.
em que a logica tinha por objecto as Cou- su r VHist. Ecctes. de Paris, t. 2, p. 95, et
sas c não as palavras. suiv.

CAPITULO III

D as h e r e s ia s c scism a s

A cidade de Constantinopla estava entre­ sustcntal-a, formavam-se intrigas e parcia"


gue a recreios e divertimentos os mais fri­ lidades, c urdiam-se conjurações. Como to-
volos. Para satisfazer a esta tendencia e dos os espíritos eram arrastados por este
104 DISCURSO PRELIMINAR

movimento gerai, não se. coulieccu heresia para discorrer cm todas as cousas, cujos
no imperio de Constantinopla. Este estado nomes ellc soubesse, foi portanto o conheci­
do espirito, que suffoca heresias, descobre mento dos padres e authoros ecclesiasticos
as paixões quasi cm todos os estados, tor­ julgado desnecessário para fazer um theo­
na-as activas c maquinadoras, e quasi sem­ logo: a este estudo substituiu-se a arte de
pre dá principio ás divisões e aos scismas. fazer syllogismos, c por meio d’ella cm-
0 patriarcha Cerulario formou o projecto prchcndcu-sc tractar dogmas c explicar
de se fazer reconhecer patriarcha univer­ mystorios: por este methodo tendia o en­
sal; mas vendo que a Igreja do Roma seria tendimento a avisinhar os mysterios ás no­
um obstáculo invencível ás suas preten­ ções ou idéias que oíTcrcce a razão, c a al-
sões, rçsuscitou as accusaçõcs que Phocio teral-os: assim se precipitou Bérengario na
fizera a esta Igreja, de estar cabida cm er­ imprccação, querendo explicar o mysterio
ros perniciosos. Foi cxcominungado pelo da Eucharistia, e Roscclino no Trithcismo,
papa, que ellc excommungou também. querendo explicar o da Trindade.
Grangcou o animo do povo, adquiriu sc- Desbaratado o exercito de Chrisochir, os
quazes na corte, excitou sedicõcs, que amo­ restos da seita manichea se espalharam na
tinava ou apaziguava a seu talante, fez tre­ Italia, e se restabeleceram na Lombardia,
mer o imperador c dispôz do throno.- De­ d’ondc passaram a diflerentes estados da
pois da sua morte foi o imperio abrazado Europa. Estes novos manicheos tinham fei­
pelo fanatismo, que ellc accendéra, c que o to mudança na sua doutrina e professavam
poder imperial não pôde extinguir. amor á pobreza e á virtude, allucinando
No Occidente os individuos que se desti­ com estas apparencias algumas pessoas vir­
navam para o estado ecclesiastico, faziam tuosas, que foram presas e queimadas, sem
4i carreira dos seus estudos nas escolas, que ainda assim se aniquilasse esta seita.
applicando-se com prefercncia á dialectica; Os seus restos escondidos fermentaram cm
e como já temos visto, que um homem que segredo por todo o Occidente, de que vc-
havia estudado dialectica se presumia apto Tcmos os effeitos nos seguintes séculos.

DUODECIMO SÉCULO

CAPITULO I

E sta d o p o litic o e c iv il d o im p e r io

A turbulência e confusão eram extremas politico e moral ha a mesma propensão que


no Oriente; o novo estado que os christãos no.physico, e que os povos derramados na
tinham formado, foi um incentivo continuo superficie da terra se impcllem como os
d e guerras. Os sultões estavam sempre em elementos c pelo seu proprio péso deman­
.armas para estorvar os esforços das cru­ dam aquclles logares em que o luxo, o des­
zadas que inundavam a Syria, a Africa c potismo e a corrupção dos costumes tem
n Palestina. Os emires, que não tomaram enervado os animos, assim como o ar, a
parte na guerra dos cruzados, as tinham agua e o fogo se precipitam nos espaços
«ntre si, ou se occupavam em.repellir os vasios oruchcios d’um ar sem elasticidade
turcos, que chegavam ao imperio mahome- ou d’üm corpo sem resistência. Os antigos
tano. Finalmente viram-se vir da extremi­ domínios do imperio romaíio na Asia en­
dade do Tibet os tartaros commandados pelo fraquecidos pelo luxo, anarchia, desterros
Preste João, que dilatou os seus domínios dos hereges, vexações dos governadores,
até ás margens do Tigre. Parece que no desprêso das leis, e invasões dos barbaros,
DISCURSO PRELIMINAR 10o
parecia haverem-se tornado o paradeiro de Henrique iv. Pretendendo recobral-o Hen­
todas as n ações.1 rique v, foi excommungado e abandonado
O imperador de Constanlinopla, incapaz pela maior parte dos seus subditos; e de­
•de resistir aos serra conos, c receando os pois de vinte annos de guerra, em que to­
cruzados, se unia ora a uns, ora a outros, maram parte todos os principes christãos,
sem poder aproveitar-se nem das suas vi­ c que assolou a Italia c Allemanha, foi
ctorias, nem das suas perdas; esteve em constrangido a acccitar em todas as igre­
gu erra contra os turcos, scrracenos e prin­ jas do seu imperio as eleições canonicas e
cipes normandos, estabelecidos na Italia, c consagrações livres, a ccd*cr das investidu­
contra os exercitos cruzados. ras do anncl c baculç, c acccitar do papa
No interior se via atlribulado com fac­ a permissão d’assistir ás eleições, para man­
ções, revoltas e scismas; e os imperadores ter ifellas a tranquillidade. 1
pela maior parte educados na moleza c en­ A Inglaterra foi perturbada com as mes­
tregues aos regalos, ainda no meio das ca­ mas disputas.2
lamidades do estado, opprimiam os povos Augmcntou-sc, pois, com esta contenda
com tributos, e eram depostos ou assassi­ das investiduras o poder do papa c do cle­
nados: taes foram Andronico e Isac Ân­ ro, que sem dependcncia dos imperadores
gelo. 2 gosavam d'uin prodigioso numero de do­
Eslava o Occidente, assim como no pas­ mínios, terras e senhorios.
sado século, dividido em diversas provin­ Elevado a este apicc.de grandeza o po­
cias c estados, cujas cabeças viviam em der dos papas, veio a ser o objecto da am­
guerra entre si. O habito da díssipação cocio- bição, intriga e caballa; a sua influencia
sidade a tinha feito necessaria aos*senhores nos ncgocios civis c politicos da Europa,
c á nobreza, c os pequenos soberanos a olha­ fez da eleição dos papas um ponto de im­
vam como um remedio para impedir o en­ portância para todos os soberanos; por isso
grandecí mento das maiores potências. As­ se viram n’estc século anti-papas, que oc-
sim durou ainda no Occidente a perturba­ casionaram scismas, dividiram os sobera­
ção c a guerra d’estc século. nos da Europa, e fulminaram excommu-
Oppunham-sc os papas a estas desordens, nhões sobre os seus concorrentes c sobera­
chamando os soberanos á paz, e procura­ nos que os protegiam.3
vam voltar contra os usurpadores e injus­ O poder ecclesiastico veio pois a ser o
tos oppressores dos povos, e contra os in­ dominante da Europa, c como a alma de
ficis, esta paixão geral das armas e da todas as forças que ella encerrava; e por­
guerra. Portanto, é uma injustiça imputar tanto se achava sempre a potência reli­
a ambição ou á avareza dos papas os es­ giosa ao lado de todos os projectos de poli­
forços que ellcs fizeram para augmentar o tica no Occidente. Este poder desde então
seu poder c para restringir o dos princi­ havia de produzir todas as revoluções, ou
pes temporaes. Leibnits, cujo nome nào ca­ contribuir para ellas; ser atacado oíi defen­
rece de epitheto, que havia estudado a his­ dido pelos principes temporaes, segundo os
toria como philosopho e como politico, c seus interesses, enfraquecer-se, por pouco,
que conhecia melhor que qualquer outro o que abusasse do seu credito; e quando fos­
estado do Occidente durante este século se confiada a gênios ambiciosos e sem vir­
de desordem, reconhece que este poder dos tude, ou a homens virtuosos, sem luzes,
papas muitas vezes evitou grandes males. perder por falta de moderação, de saber
Para mais seguramente promoverem o ou de virtude, o que lhe pertencia justa­
bem e a paz, quizcram arrogar a si quanto mente, c que seria proveitoso conservar
lh es foi possível, do poder e direitos ele que para bem’ da christandade, como raciocina
gosavam os principes seculares e dos quaes Leibnits. 4
estes faziam quasi sempre um grande abu­
so: tal foi o direito das investiduras, á som­
bra do qual os soberanos vendiam os be­ 1 Hist. gên. d'AUmagne, t. 4. et. o.
nefícios, abbadias e bispados. Gregorio v ii , 2 Thoiras, t. 2.
atacou este direito e o tirou ao imperador 3 Baron. annal. t. 12. Platiu. Daniel,
Hist. de Fr. t. 1. Bernard, l. de consider.
Natal. Alcx. sxc. 12. appeiid. ad Baron. art.
1 De Gnignes, hist. des Huns. t. 4, l. 7, Fi'ising. Duchesnc, t. 4. Collect. Mabil. praaf.
l. 10, 11. Mosheim. hist. Tartar. Eccles. c. in Bernard. ep. 13, 17. Cone. t. 10. Hist.
1, §. 8, etc. Germ. scrip. Joan. Sarisb. cp. 64, 65, 60.
2 Ducange, Famil. Bisant. Zonar. Ni- Pagi.
ceph. * , 4 Codex Jur. Gent. diplomaticus.
106 DISCURSO PRELIMINAR

CAPITULO II

E sta d o d o e s p ir ito h u m a n o

Apesar das guerras que assolavam o logares, aonde jamais penetraria a luz ée
Oriente, n’ellc eram cultivadas as artes e elles não fossem. Hem que .os seus conhe­
sciencias: os califas, sultõcs, emires e visi-cimentos não se fizeram communs, e elles
resforam quasi todos sábios, poetas, philoso­ não inspiraram o proprio ardor, ao menos
phos e astronomos; as escolas ou acade­ diminuiram em parte as preoccupações da
mias espalhadas no imperio mahometano ignorância; c já as guerras não eram tão
foram respeitadas, c entre os arabes se vi­ fataes ás letras, como nos primeiros sécu­
ram theologos, que atacavam todas as reli­ los.
giões esentimentos dos philosophos, ao passo Além d’isto, como os soberanos nas suas
que outros se empenhavam cm justificar o guerras queriam ao menos pretextar a jus­
mahometismo pelos princípios da philoso­ tiça c o poder dos papas, tão formidável aos
phia. Não impediram estas disputas que soberanos, era sempre fundado sobre al­
clles tivessem philosophos, geometras, as­ guma razão d’ordem, de justiça, ou do bem
tronomos c chimicos; mas nenhum d’estes publico; as mesmas guerras fizeram os sá­
philosophos adquiriu tanta reputação cornô bios necessarios â Igreja e aos soberanos
Averroes, nem foi algum outro tão admira­ para defenderem os seus direitos, ou ata­
dor d’Aristotelcs, que cllc respeitava quasi carem os/alheios.
como um Deus, ou como o ente que mais A arte d’cscrcver e fallar, posta em des-
se tinha avisinhado da Divindade, c que prêso no precedente século, era mais ne­
conhecia todas as verdades, sem ter cahido cessaria no duodecimo, porque as decrc-
em algum e r r o .1 taes dos pontifices se dirigiam aos senho­
As continuas guerras do império de Con- res, aos simples fieis e aos povos, que em
stantinopla com os scrraccnos c frequentes algum modo se haviam constituído juizes
negociações entre os imperadores c os sul- nos litígios dos soberanos; cultivaram-se,
tões, que se oppunham sempre aos enviados pois, incomparavelmente, mais que no pre­
de Constantinopla, homens conspicuos, rea­ cedente século, o qual não produziu escri-
nimavam um pouco o estado das letras; e as ptores como um S. Bernardo, Melard, etc.
disputas da Igreja do Oriente com a Igreja As disputas dos papas, dos soberanos en­
do Occidente conduziram os theologos a se tre si e de di (Terentes ordens religiosas vol­
excitar, a escrever, a discorrer c a ínstrui- taram parte dos espíritos para o-estudo do
rem-sc para justificar o seu scisma: por­ direito civil c canonico, da historia eccle­
tanto n’este século appareceram alguns phi­ siastica c profana: fizeram-se muitas vidas
losophos, theologos c jurisconsultos.2 dé sanctos illustres, e até historias univer-
0 ardor que durante ò século passado s a c s .1
vimos accender-se no Occidente a favor das Conservaram em parte a sua grande re­
sciencias, a estimação que d’oIIas faziam os putação as escolas de philosophia: traduzi­
soberanos, a escolha que se fazia dos ho­ ram-se as obras d’Aristoteles, e dos arabes,
mens famosos para os primeiros cargos da que o tinham commentado, e sobretudo de
Igreja, os progressos que fizeram as ordens Averroes: todas as idéias aristotelicas pas­
cistersiense, chiniatense, charthuciana, c saram ao Occidente, aonde se viram philo­
a dos conegos regulares, multiplicaram em sophos que queriam reduzir tudo, até mes­
grande nutoero as escolas e academias no mo a Religião, aos seus princípios. Os theo­
Occidente. Em todas as abbadias, e quasi logos c.philosophos, para defenderem a Re­
em todos os mosteiros se viram muitas es­ ligião, se esforçaram a explicar os myste-
colas m enores.3 rios pelos princípios da razão, e a comba­
Os litteratos e os sábios ousaram atacar ter pelos da philosophia e authoridade dos
a .ignorância c barbaria em infinidade de philosophos, os argumentos dos novos dia­
lecticos. O espirito humano não fez pro­
1 D'Herbelot, art. Togrgj Abensoar, Even- gresso algum nas outras sciencias.
piule, Algalsel, Tophail, Bayle, Chauffepied,
Averroes, prcef. sur la Phys. d'Arist. 1 Dup. hist. du 12 siécle. Hist. litt. de
2 Duo. 12 siécle. Fr. Le Bceuf, diss. sur 1'Hist. Eccles. etc. t.
3 Hist. litter. de F)\ t. 9, p. 30. % p . 45.
DISCURSO PRELIMINAR 107

: % .,-A ?

CAPITULO III

D as h e r e sia s

Pola exposição que fizemos do estado do 6.° Os manicheos espalhados pelo Occi­
espirito humano no duodecimo século, vê-se: dente, tinham-se tornado circumspectos, e
1. ° Theologos que queriam conciliar mais os inimigos do clero, pelo rigor com que
dogmas da religião com os princípios e opi­ foram tractados, c ardia o fogo da vingança
niões philosophicas, caminharam entre dous nos corações d’estes fanaticos.
escolhos, cm que era facil naufragar a Continha pois o duodecimo século mui­
curiosidade indiscreta. tos princípios de divisão e erros acerca dos
2. ° As contestações dos papas com os dogmas,
so­ do poder c reforma dos costumes.
beranos, c as pretenções do clero, produ­ 0 tempo que avisinha e combina conti-
ziram infinidade d’escriptos e dcclamaçõcs nuamente as idéias c as paixões, unindo
contra o clero, contra o papa o contra os estes differentes princípios, produziu em
bispos, em que se atacavam os seus pode­ Abelard c Gilberto de Porrée erros sobre
res c direitos. A multiplicação das escolas ti­ os dogmas c mvsterios; cm Arnaldo de
nha espalhado estes escriptos e posto mui­ Brcssc o projecto de despojar o papa c o
tas pessoas cm estado de lêl-os e enten- clero de seus bens, e restabelecer em Roma
del-os. o governo da antiga republica; em Valdo,
3. ° As diligencias que se fizeram paraoil-convidar os christãos a viverem em com­
lustrar c reformar este século, nem dissipa­ muni, renunciando a toda a propriedade;
ram a igilorancia, nem restabeleceram a em Eon de TEtoile a persuasão de que cllc
ordem: parte do clero ficara submergido era Jesus Christo; cm Pedro de Bruys, cm
em uma grosseira ignorância, entregue á Tanchelim, em Tcrrico c nos apostolicos mul­
dissipação e muitas vezes á vida dissoluta. tidão d’erros c prácticas sempre ridiculas,
4. ° Havendo-se feito algumas traducções muitas vezes insensatas c oppostas, entre
da Escriptura em lingua vulgar, a multi­ si acerca dos sacramentos, c de tudo que
plicação das escolas pôz muitos particulares podia conciliar os animos dos bispos e do
cm estado de lêl-as, e d’abusar d’esta lição. clero: emfim, a reunião de todas estas sei­
ü.° O desejo d’adquirir nome era muito tas, na dos albigenscs; c os cruzados con­
geral entre os theologos, philosophos, eru­ tra esta seita.
ditos c leigos.

DECIMO TEKCEIRO SÉCULO

CAPÍTULO I

E sta d o p o litic o dos im p é r io s

O Oriente era occupado pelos mogoes, sas nações viviam em guerra continua. Gen-
turcos e serracenos, c pelos diversos povos giscan e seus successores arruinaram uma
occidentaes, que tinham formado um novo parte do império mahometano.
estado na Palestina o na Syria. Estas diver­ Aleixo, imperador de Constantinopla, foi
108 DISCURSO PRELIMINAR

assassinado por João Ducas; os principes iTAnjou, irmão de Luiz, a quem clle suc-
do Occidente, apoderando-se de Constanti- cessivarnente o tirou. As revoltas d’Alie­
nopla, lhe derain um imperador; c somente manha cessaram com a eleição de Rodolfo,
pelo meio do decimo terceiro século (1261) conde de Hasbourg. 1 .
recuperaram o throno os imperadores gre­ Não houve mais tranquillidade na Fran­
gos. os quacs estiveram continuamente cm ça e Inglaterra: n’estc século se viu o papa
armas contra os turcos, que tomaram parte tirar, dar, e tornar a tomar de novo a co­
dos seus estados. roa (^Inglaterra; constranger os reis a rc-
A Aliemanha foi dividida por varios prin­ nunciarem-lhe os reinos; desobrigar os súb­
cipes, que aspiraram ao imperio. Othon, (i- ditos do juramento de fidelidade: viram-sc
nalmcntc, foi reconhecido c coroado por também subditos abandonar seus sobera­
Innoccncio iii, em cujas mãos jurou defen­ nos. 2 Parte das provincias da França foi
der o patrimonio de S. Pedro. Pouco satis­ assolada pelas guerras dos cruzados contra
feito dos romanos, o imperador assolou as os albigenses., Todas estas revoltas alenta­
terras da. Igreja: o papa o dcpòz n’um con­ ram de novo ã paixão da guerra no Occi­
cilio geral: muitos principes cTAUemanlia dente.
elegeram Frederico: Othon abandonado de Era, pois, este ainda o theatro das dis­
alguns senhores, c fazendo liga com outros, cordias e das calamidades: alli as paixões
foi desbaratado; e deixou por sua morte a armavam os homens contra os homens,
Frederico em pacifica posse do imperio. mas não se viam aqucllcs horrores e cruel­
Este fez voto de passar aos logares sanctos, dades que se tinham visto antes de Con-
e doou algumas terras tá igreja de Roma. stantiuo, c durante as incursões dos barba­
Como expoliasse dos seus domínios dous ros no Occidcute, antes de haverem abra­
condes de Toscana, que se refugiaram em çado o Christianismo: nem também a asso-
Roma, se indispuz com o papa, c quiz ex­ íação que produziram durante este século
pulsar alguns bispos que este nomeara para no Oriente as armas dos inogoes, hunos,
muitas cidades da Italia. O papa pronun­ tartaros c todos esses povos, cujas paixões
ciou o anathema, c confederou os princi­ não eram refreadas pela R eligião.3
pes italianos contra Frederico, ajuntou con­
cilio, proferiu sentença de deposição, fez
eleger o Landgravo de Thuringia, c depois 1 Baluz. Misccll. t. 4. Hist. d'Aliem. t. o.
o conde de Hollanda, cxcommíingou Con- 2 Mezenti, Ilist. des Phil. Aug. Louis
rado, que depois da morte de Frederico VIII, S. Louis, etc. Thoiras, l. 8, 9. Rcvol.
fura eleito por parle da Aliemanha, tirou- d' Angletcrrc, I. 3.
lhe o reino de Sicilia, dando-o a Duarte, fi­ 3 Voijez Vliist. des Huns por M. de Gui-
lho do rei de Inglaterra, depois a Carlos gnes.

CAPITULO II

E sta d o do e s p ir ito lu im a u o d n ra u te
o d é c im o te r c e ir o sc c u lo

No principio d’estc século foram cultiva­ Oriente os ecclesiasticos, religiosos c cru­


das as letras no Oriente como no que lhe zados, multiplicaram no Occidente as obras
precedera. Os mogoes favoreceram os sá­ dos philosophos gregos, a lingua grega se
bios, e as scicncias tiveram luzimento no tornou mais familiar, e se traduziram as
seu imperio; mas as conquistas dos turcos obras d’Aristoteles, Platão, etc. O impera­
insensivelmente as aniquilaram em parte dor Frederico n as fez traduzir, c traduziu
do Oriente. elle mesmo; fundou escolas na Italia c na
No império de Constantinopla apparecc- Aliemanha.
ram alguns eruditos e philosophos; mas Na França se adquiriram c pozeram em
quasi todo o esforço do espirito humano se vulgar não* só as obras dos gregos, mas
occupou. com a justificação do scisma dos também as dos arabes, e não se ensinou
gregos, c refutação dos escriptos dos theo­ outra philosophia nas escolas: logo se viu
logos latinos. As viagens que fizeram no uma paixão ardente pelos philosophos gre-
DISCURSO PRELIMINAR 1 09

gos, sobretudo por Aristóteles: já se não soberanos que protegiam os albigensos fo­
contentavam com estudar a sua logica; es­ ram despojados dos seus domínios, cidades
tudaram a sua physica e metaphysica; ado­ notáveis entregues ás chanunas, o os seus
ptaram as suas opiniões, e theologos houve habitadores passados ao fio da espada. Para
e philosophos que ensinaram o dogma da destruir as reliquias da heresia, se resta­
alma universal, a eternidade do inundo e a beleceu a inquisição.
fatalidade absoluta. 1 Percorreram os inquisidores todas as ci­
Outros pretenderam conciliar com a Re- dades, fazendo desenterrar os hereges se­
ligiào as opiniões d’este philosopho; e sem pultados em sagrado, e queimando os vi­
attentarem n’isto, eram os dogmas da Re­ vos. Era infatigável o seu zelo e extremo
ligião os que elles queriam acconunodar o seu rigor: elles condemna vam á viagem
aos princípios ^Aristóteles. Assim Amauri da Terra Sancta, e cxeommungavam a to­
e David de Dinand se persuadiram vòr a dos os que não lhes obedeciam ccganiente.
explicação do Genesis no systema d’Aristo- A’s da guerra, succedcram novas cala­
tcles sobre a origem do mundo. Deus era midades: os povos estavam por toda a parle
a primeira materia, tudo o que havia pas­ ifaquolla consternação, que annuncia a re­
sado no mundo, todas as religiões, ainda volta: assassinaram os inquisidores e nào
mesino christã, eram phenomenos que ha­ houve remedio senão suspender o exercí­
viam de ser produzidos pelo movimento e cio da inquisição.
qualidades da primeira materia. O que maiVtinha contribuído para o pro­
Outros introduziram na theologia aquella gresso dos albigensos, valdcnses c das sei­
curiosidade que o gosto pela dialectica fi­ tas formadas no duodecimo século, era o
zera nascer e que cila entretinha; exami- apparente bom comportamento dos secta­
ram se a essência estava no Espirito San­ rios e a vida licenciosa de grande numero
cto, emquanto fórma, se o Espirito Sancto de catholicos c d’uma parte do clero: co­
procedia do Filho emquanto amor, ou so­ nheceu-se que era forçoso contrapur-lbcs
mente do Pae; se havia verdades eternas, exemplos de virtude, fazendo vér que todas
que nào fossem o mesmo Deus; se as al­ aquellas de que os hereges se jactavam,
mas bemaventuradas, c a mesma da Vir­ eram practicadas pelos catholicos; e como
gem, estariam no céo empyrio, ou no pri­ os valdcnses faziam profissão da renuncia
meiro cristallino. Sobre todos estes objectos dos seus bens, d’uma vida pobre c de se
se viram erros, que foram condemnados. - applicarem á oração, á leitura da Escri-
Prohibiu-sc a leitura da physica e meta­ ptura Sancta e á meditação, e de practica-
physica d’Aristóteles; esta prohibiçào irri­ rem á letra os conselhos evangélicos, houve
tou a curiosidade: Aristoteles ficou cm pos­ catholicos zelosos que distribuiram aos po­
sessão da admiração d’um grande numero bres os seus bens, trabalharam e viveram
de philosophos; c cmfim theologos eminen­ das suas mãos, meditaram na Escriptura
tes cm virtudes c erudição, tomaram a sua Sancta, pregaram contra os hereges e ze­
defesa, como foram Alberto Magno e S. laram a pureza dos costumes, tacs foram os
Thomaz. pobres catholicos, os humildes, etc.
As heresias que se levantaram n’ostc sé­ Estas sociedades approvadas e favoreci­
culo e as desintelligcncias dos papas occa- das pelos summos pontifices, fizeram nas­
sionaram muita applicação ao estudo da cer entre muitos catholicos o desejo de for­
theologia e direito canonico. mar estabelecimentos religiosos e por to­
Todavia as provincias meridionaes da da a parte se viram novas sociedades, as
França estavam cheias d’albigcnses, nos quaes se esmeravam na mais avantaja-
quaes não produziram eíTeito as missões; o da perfeição; foi n’cstc século quando se
papa fez pregar uma cruzada contra elles; fundaram as quatro ordens mendicantes,
correram logo em multidão tlamengos, nor­ a ordem da Redempção dos Captivos, etc.,
mandos, borguinhezes, etc., capitaneados e muitas outras se teriam visto, se no con­
por arcebispos e bispos, e pelos duques de cilio lateranense não fosse prohibida por
Borgonha, condes de Ncvers, de Montfor- Gregorio x a erecção de novas ordens.
te, etc. Propagaram-se muito todas cilas, princi-
As provincias meridionaes da França tor- palmente as quatro mendicantes; estes re­
naram-sc o theatro d’uma guerra cruel; os ligiosos, tão respeitados e uteis, principal­
mente na sua instituição, não estavam re­
tirados nos bosques e*nos desertos; habita­
1 DArgentré, Collect. jud. t. í. Exam. vam nas cidades e n’ellas viviam dos dona­
d u Fatal. t. i. tivos da piedade dos fieis. Desejaram tra­
2 IfArgentréj ibtd. Dup. 13. balhar pela salvação dos seus bemfeitores;
110 DISCURSO PRELIMINAR

o seu zelo activo estabeleceu prácticas de­ casiòcs n’um século em que os ecclesiasti­
votas, capazes de reanimar a piedade: pre­ cos, destituídos de- luzes, teern grande au-
gavam c confessavam; nas suas igrejas se thoridade c pretenções ainda maiores. As­
ganhavam indulgências. sim succcdeu que um parocho allemào nào
O zelo d’alguns d’estes religiosos, porém, satisfeito da oíTcrta que lhe fizera uma de
levou-os a invadir os direitos parochiaos; suas parochianas, em logar de sacramcn-
c muito natural era que uns homens que tal-a com uma Hóstia, lhe deu a commun-
se julgavam em estado mais perfeito que o gar o dinheiro que lhe trouxera; pediu jus­
clero, se presumissem mais aptos para con­ tiça o marido, e recusou-sc-lhe; elle matou
duzir o povo á perfeição. o 'parocho, c se fez cabeça d’uma multidão
A’s pretenções dosreligiosos se oppôz o de descontentes, que, tomando as armas,
clero secular, reclamando as leis c quei­ assolara o paiz. Prégou-se contra clles uma
xando-se de que era oíTendida a disciplina. cruzada em que o bispo de Brcme, o duque
Os religiosos da sua parte se defendiam de Brabante e o conde de Hollanda na van­
com os seus privilégios, e os papas os pro­ guarda dos cruzados debellaram c extin-
tegeram e condemnaram os seus adversa­ guiram n’uma batalha os studingos.
rios. 1 Emquanto o resto dos albigenses e val-
Nem os rigores da inquisição, nem os denses assim ataca va a authoridade da Igre­
exercitos dos cruzados cxtinguirani total- ja, outros sectarios se contentavam d’atacar
mente os albigenses e manlcheos; uns c o papa c os bispos, sustentando que ellcs
outros se haviam derramado pela Allema- eram hereges, c que, consequentemente,
nha, aonde semeavam em segredo os seus havia expirado entre ellcs o poder de con­
erros contra a Igreja, contra o culto e con­ ceder indulgências.
tra os sacramentos; cm todos os animos Quasi todos os espíritos se occupavam
andavam como occultos os princípios de fa­ dos assumptos de que acabamos de fallar;
natismo, que para se declararem, nào es­ só um pequeno numero se tinha afastado
peravam mais que uma acçào ou um abuso d’csta esteira, como foram S. Boavcntura e
escandaloso da parte do clero ou de qüal- S. Thomaz, em parte da philosophia e da
quer ecclesiastico; c nunca faltam estas oc- theologia, e Rogério Bacon, na physica.
Este-foi accusado de magico c como tal
préso e perseguido pelos franciscauos, seus
D'Argentrèj Collcct. Jud. 1 .1. irmãos.

DECIMO.QUARTO SÉCULO

CAPITULO I

E sta d o p o litic o d o s im p é r io s

O império de Constantinopla estava n’um crificando o estado ao seu rancor contra a


estado de contínua desordem: desde An- latina. Os turcos, fmalmentc, se estabele­
. dronno Palcologo, qiie se não viam n’elle ceram íiá Europa, e os principes do Occi­
rnáis que sedições e conjurações, tramadas dente já não tinham exercitos na Pales­
regularmente pelos filhos dos proprios im- tina.
eradores; o povo, indiíTerente ás çalami- A Italia, França, Allemanha c Inglaterra
S ades c desoraens politicas, só se occupa va
do scisma da Igreja de Constantinopla, sa­
estiveram quasi sempre em guerra conti­
nua; os summos pontifices Aexcommunga-
V
DISCURSO PRELIMINAR 111

ram os reis, pensionaram as igrejas; e, as­ les se julgaram com direito a depôr os so­
sim como no precedente século, se viram beranos. 1
.anti-papas, entre os quacs se dividiam os
■soberauos. 1 Raynald sur le 14 siécle. Balus. Hist.
Em tempo algum os summos pontifices des Pap. Avenion. Hist. du Sch. des Pap.
levaram tào longe as suas pretenções. El- par M. Dupuy.

CAPITULO II I t \ ' /frí C À í X A)

D o estad o do e sp ir ito htamanao c das h eresia s

As conquistas dos turcos extinguiram a era incrcada, incorruptive! c a mesma es­


emulação entre os sábios; alguns dos seus sência de Deus.
principes favoreceram as sciencias, mas o Atacou esta opinião outro monge cha­
fundo da nação era feroz e barbaro, c como mado Barlaam: os quictistas a defenderam;
não havia cóusa que lh’as fizesse estimar, encheu-se Constantinopla dos seus escri-
se extinguiram no seu imperio. ptos; grassou e persuadiu a sua doutrina,
No de Constantinopla havia muitos mon­ e houve na corte muitos quictistas que ora­
ges, alguns d'elles viviam no retiro cm vida vam continuamente, e com os olhos fixos
contemplativa, para a qual haviam estabe­ sobre o umbigo esperavam todo um dia
lecido maximas e prácticas adequadas. Era pela luz do Tabor: os maridos deixaram
o objecto de seus votos a gloria celestial, suas mulheres, para se entregarem, sem
que se tornou o assumpto de todas as suas distracção, a este sublime exercício; as mu­
meditações; agitavam-se, mencavam a ca­ lheres se queixaram, e Constantinopla sòf-
beça, reviravam os olhos e faziam diligen­ freu por este motivo grande perturbação c
cias incríveis para se elevarem sobre as discordia.
impressões dos sentidos, e por conseguirem Convocaram-se cinco concilios, aonde se
o desapego de todos os objectos que os cer­ decidiu que a luz do Tabor era incrcada.1
cavam e que lhes parecia terem suas al­ Emquanto duravam estas perturbações,
mas presas ao mundo. Então se confundiam os turcos atravessaram o Hellesponto,‘c se
na sua imaginação todos os objectos, nada jestabeleceram na Europa: tinham tomado
viam distinctamcnte, desapparecia tudo Õ muitas praças na Thracia, haviam-sc feito
•que era corporeo, e as fibras do cerebro senhores dAndrinopolo, aonde fizeram a
eram sómente agitadas por aquclla especic capital do seu imperio: e então conhece­
de vibrações, que produzem côrcs vivas, á ram os imperadores gregos quanto lhes
maneira de relâmpagos, quando o cerebro eram necessarios os latinos, c não cessa­
esta comprimido pela inchação /dos vasos vam de trabalhar pela reunião das duas
sanguineos, e ainda algumas vezes uma cs- igrejas; porém encontravam uma opposi-
p.ecic de deliquios, que tira quasi todo o çao invencível nos seus subditos, que se
sentimento, excepto o de certa luz extra­ entretinham sómcntc com a justificação do
ordinaria, que causa na alma uma recrea­ scisma e em fazerem algumas obras de
çã o deliciosa. 1 piedade. Todavia se escrevia muito bem, e
Os monges contemplativos, no fervor das as escolas de grammatica e rhetorica sub­
suas meditações, divisaram esta luz c a sistiam ainda em Constantinopla. 2
olharam como um raio da gloria dos bcin- O* desejo de sedistinguirem por uma san-
Aventurados, persuadindo-sc que a desco­ ctidade extraordinaria, que seinfiaminou no
briam no seu umbigo: e no principio do
decim o quarto século queria Palamas, mon­ 1 Addit, á la Bibi, des PP. 1762. der-
g e do Monte Athos, que fosse esta luz a niere partie, p. 136.
mesma que apparecera sobre o Tabor, que Dupin 14. siécle. Alex. 14. siccle. Panop.
adversus schism. grwc. Fabr. Bibl. grec. t.
1 Gazette $ Epidaure, 1761. 1. sem. n. 10. p. 444.
5’. 2. sem. n. 4. 2 Dupin, 14. siécle, ch. 6. loc. cit.
112 DISCURSO PRELIMINAR

Occidente por todo o século treze, se con­ res formaram as seitas dos begardos, fra-
verteu em uma especie de paixão epide- ticcllos ou irmãosinhos espirituaes, aposto*
'mica entre o povo, e nas religiões, du­ licos, dulcinistas, llagellantcs, turlupanos.
rante o decimo quarto século. Os francis- João xxu cxcommungou os fraiiccllos c-
canos se dividiram na fôrma dos seus há­ seus fautores. Os sectarios atacaram a au-
bitos, querendo uns trazcl-os curtos e de thoridade que os fulminava e distinguiram
pajino grosso, outros mais compridos c de duas Igrejas: uma toda exterior, que era
panno menos grosseiro; affirmaram muitos rica, possuía domínios c dignidades: o pa­
que elles não tinham nem ainda a proprie­ pa e os bispos, diziam os sectários, domi­
dade do que comiam. Os papas e sobera­ nam nesta igroja, da qual podem excluir
nos tomaram parle íVestas disputas: fulmi­ aquclles que cxcommungam; mas ha ou­
naram-se cxcommunhões contra elles; c tra inteiramente espiritual, que não tem
emfim muitos foram queimados. 1 mais encosto, que a sua pobreza, nem mais
Aqui os frades c leigos faziam consistir bens, que a sua virtude: Jesus Christo é a
a perfeição na mais rigorosa pràctica da cabeça d’esta igreja, c os irmãosinhos, os
pobreza* e com receio de terem direito a seus membros: o papa não tem imperio al­
alguma cousa, não trabalhavam nunca, c gum sobre ella. Afim de conciliarem o fa­
insistiam cm que não lhes permittia a sua vor dos principes, incluiram entre os seus
consciência trabalhar por um sustento ca­ erros algumas proposições contrarias «ás
duco. pretenções dos papas; sustentavam que es­
Alli se encontravam homens que para se tes não” eram mais successores de S. Pedro
avantajáreni mais que S. Francisco na si- do que os outros bispos, que não tinham
milhança com Jesus Christo, se faziam en­ poder algum nos estados dos principes
faixar, pôr em um berço, aleitar por uma christãos; c que eram absolutamente des­
ama e circumcidar. tituídos cío poder coacti vo.
Umas vezes apparecia um homem que Perscguiram-sc por toda a parte estes se­
asseverava ser S. Miguel, o que os seus ctários, queimando-se um pasmoso numero,
discipulos, depois da sua morte, tiveram sem que todavia se aniquilassem; elles se
pelo Espirito Sancto. Uns alíirmavam que espalharam e uniram aos restos dos albi-
seriam salvos todos os que vestissem o ha­ genses: taes foram os lollardos. Oodio con­
bito de S. Francisco, c que o sancto descia tra os papas, lhes adquiriu a protecção dos
todos os annos aotinfcrno. para tirar de lá inimigos da curte de Roma em uma parte
todos os seus filhos. Outros asseveravam da Europa: assim as fogueiras e os rigo­
que um anjo tinlia trazido certa carta em res levaram a toda a parte a obstinação do
que Jesus Christo declarava que para ob­ scisma, e os princípios da revolta contra os
ter o perdão dos peceados era preciso lar­ papas e Igreja, o estes princípios só depen­
gar a patria, c açoutar-sc por trinta e qua­diam d’uma cabeça que podésse dar-lhes
tro dias em memoria do tempo que ellc ti­ ordem, e fàzel-os mais especiosos, para
nha vivido no mundo. Todas estas opiniões produzirem seitas de maior consequência
tiveram sectarios c grassaram por toda a e ruido. '
Europa. Era diflicultoso que dcix.assc d’existir
Estes homens que tendiam para a per­ uma tal cabeça n’este século cm que ha-
feição, formavam uma sociedade, cujos via philosophos; andava agitado^ com tan­
membros se amavam-mais ternamente que to calor tudo o que tinha relação com os
os da sociedade geral. Attendendo que os papas e soberanos; e os papas haviam le­
seus esforços para a perfeição não os isen­ vado suas pretenções até o ponto de se de­
tavam da tyranniá das paixões, as olhavam clararem senhores de todas as coroas do
como uma ordem da natureza, a que era Universo. Esta cabeça eíTcctivainente se en­
forçoso obedecer, e cortando tudo o que controu na pessoa d’Wiclef, que atacou a
excedia a necessidade, tiveram a popula curte romana nos seus sermões e escriptos,
por um acto louvável, ou pelo menos inno- reunindo tudo o que se tinha dito contra o
cente, quando eram tentados; c um osculo, papa, clero, Igreja, ceremonias e sacra­
por um horroroso crime. mentos.
Todos estes bandos do homens c mulhe­ Nas escolas se estudava Aristoteles c os
arabes que o tinham commcntado: muitos
adoptaram seus princípios acerca da as­
i Rainald sur le 14 siécle. Vanding. trologia judiciaria, attribuindo áos astros
ann. minor. Balus. t. 1. Miscell. Emcric, todos os successos, c presumindo encontrar
D irect. Inquis, p. 2. Balus. vit. Pap. Ave- nas suas disposições a explicação de todos
nion. Du Boulai, hist. univ. t. 4. os acontecimentos civis, da origem e pro­
DISCURSO PRELIMINAR i l .T
gresso de todas as religiões e ate da chris- ram em desvarios: taes foram Utricourt,
tâ: tal foi Cceco Asculano. de Mcrcourt, Ekard.1
Outros receberam os princípios meta-
physicos d’estes philosophos, ou cmprchcn- 1 Dup. 14. siccle, iTArgentrè. Collect. jm l..
deram cpncilial-os com a religião; e acaba­ t. I, Examen, du Fanatismc, t. 1.

DECIMO QUINTO SÉCULO

CAPITULO I

E stad o p o litic o d os im p ério s

Morto (pie foi Bajazcto, seus filhos se di­ não teem em conta alguma a destruição dos-
vidiram, e ficou em paz o imperio dc Con- impérios; e os gregos encaravam conio uma
stantinopla; mas logo que Mahomct reuniu impiedade o vaeillar entre a perda do im­
os estados de seus irmãos, principiou de perio e a separação da Igreja latina. Ma­
novo a guerra contra os gregos. Estando o homct ii, aproveitando-se d’estas dcsordensr
imperio Oriental no ponto mais critico da bloqueou Constantinopla, e d’ella se fez se­
sua ruina, o imperador implorou o auxi­ nhor pelo meio do decimo quinto século.
lio dos principes do Occidente, resolveu a 0 império d’Allemanha estava em com­
união das duas igrejas, c a concluiu: mas pleta desordem: já os imperadores não ti­
não obstante o decreto da união attrahir nham poder na ltalia; João ii se havia uni­
grandes soccorros ao império de Constan- do ao duque d’Anjou contra Ladislau, rei
tinopla, clle não fez mudança alguma na de Nápoles; o duque de Milão, pretendia
disciplina grega, nem alteração na sua mo­ senhorear-se de Florença, Mantua, Bolo­
ral; comtudo isso, o clero nem quiz annuir nha, etc. Roberto, o pequeno, que succe-
a esta lei, nem admittir ás funeções eccle­ deu a Wenceslau, não pode restabelecer a
siasticas, aquclles que a tinham assignado. ordem no imperio, nem também seus suc­
Formou-se logo contra os parciaes da cessores. 1
união uma conspiração geral do clero c Na França reinava Carlos vi no princi­
povo, e principalmento dos mongès, que pio d’este século; tudo n’clla esteve tran­
sendo os unicos arbitros das consciências, stornado pela imbecilidade d’csto principe,
amotinaram até a infima plebe; c este le­ ambição dos duques de Borgonha e de Or-
vantamento geral fez retractar a maior 16311$' c assassinato d’este ultimo, que fez
parto dos que haviam manejado a união. passar a coroa á cabeça do rei de Ingla­
Declamaram-se contra o concilio dc Flo- terra: pelos esforços que fez Carlos vn para
rença, c todo o Oriente condenmou a união occupar o reino, pelas diflerenças do Del­
que n’cllo se fizera. phini com Carlos, seu pae, finalmente pe­
Quiz o imperador sustentar a sua obra, c las dissensões de Luiz xi com os duques
ameaçaram-no com a cxcommunhão se con­ dc Borgonha, Berrv, Bretanha, etc., e pelas
tinuasse a communicar com os latinos: em guerras de Carlos vm na ltalia contra parte
tal situação se achavam os estados do suc­ d’estcs soberanos. 2
cessor de Constantino Magno.
Emquanto os gregos assim se dilacera­ 1 Hist. gen. d'Allemagne du P. Bare. f_
vam, algumas praças do impeilo foram to­ 1. Hist. de 1'Emp. p ar Heiss. t. í et 2.
madas por Amurãte, e Mahomct n c tudo 2 Mex vie de Charles VI. Gerson op. t . f .
annunciava proxima a conquista dc Con- Thoiras, t. 2. Actes de Rymer, t. 8. E x -
stantinopla; mas o scisma e o fanatismo truits des Actes par M. Le Clerc, p. 84.
8
114 jV DISCURSO PRELIMINAR
ifX W A A
Eraquanto os soberanos e senhores as­ elegeu Amadeu de Saboya, que tomou o
sim luetavam entre si, Gregorio xn e Be­ nome de Felix v. Eugciíio cxcommungou
nedicto xin se disputavam a cadeira de Felix c o concilio. Os padres de Basilea
Roma. O concilio de Piza os depôz a am­ cassaram este decreto, c todo o Occidente
bos, nomeando João xxm . Então se viram esteve dividido entre estes dous papas até
tres papas, entre os quaes a Europa esteve á morte de Eugênio, a quem succedeu Ni-
dividida. Todos os soberanos se interessa­ colau v. A suavidade d’este pontifice res-
ram na extineção do scisma, que final­ tituiu a paz á Igreja: Felix cedeu, c o scis­
mente Tez terminar o concilio de Constan- ma acabou.
ça, não se vendo menos desordem no es­ Os successores de Nicolau v tomaram
tado ecclesiastico, que nos estados politi­ demasiada parte nas guerras da Italia, e se
cos; o concilio de Conslança indicou outro occuparam cm reunir os príncipes chris-
em Pavia, para se cuidar no restabeleci­ tãos contra os turcos, e no engrandeci-
mento da ordem c da disciplina: mas, por mento das "Suas proprias fam ilias.1
differentes razões, foi transferido este con­
cilio de Pavia para Senna, e de Senna para
Basilea. d’onde o papa Eugênio queria trans- 1 Gerson, t. 1. Gevsoniana, 1. 1, t. 2,
feril-o para Ferrara. Os padres juntos cm p a rt. 1 et 2. D upuy, Hist. d u schism . Rai-
Basilea se oppozeram a isso. O papa cas­ nauld, Spond, . Onunha. Colled. Concil. t.
sou o concilio; o concilio depôz o papa, e 11, 32, 13. L e n fa n t.

CAPITULO II

B a s h e r e s ia s

As questões que se tinham movido com authoridade espiritual, as ordens religio­


tanto fogo no precedente século, occupa- sas c os sacramentos: n’elles se punha co­
vam e dividiam quasi todos os ju íz o s no mo lei, negar os dizimos: e, n’uma palavra,
decimo qumto século: a maior parte dos as suas obras incluíam princípios adequa­
theologos e jurisconsultos atacavam ou de­ dos aos differentes caracteres, aos diversos
fendiam os direitos e pretenções dos papas modos que então havia de pensar, e favo­
é dos soberanos: esforçaram-se os religio­ ráveis a todos os que tinham algum inte­
sos na ampliação dos privilégios que Roma resso opposto á authoridade da Igreja, ao
lhes concedia, ê em captar a confiança dos poder do papa e ao clero.
povos em prejuízo do clero secular, que do Havia pois tres modos de pensar diffe­
seu lado combatia mui vivamente as pre­ rentes, que dominavam e traziam dividi­
tenções dos regulares. dos todos os juizos: no l.° se pretendia su­
A desordem e confusão do Occidente ha­ jeitar tudo ao poder do papa e da Igreja:
viam gerado paixões em todos os estados, no 2.? se faziam esforços para despojal-os
é no clero se via ordinariamente uma dis­ de tudo: no 3.° se queria conter 0 poder
solução, que era exagerada pelos seus ini­ do papa e do clero nos justos limites e re­
migos, e que as pessoas virtuosas queriam formar os abusos e corrupção introduzida
reprimir, restabelecendo a ordem e a dis­ nos costumes e no clero.
ciplina. Aonde 0 numero dos homens esclareci­
Os restos dos begardos e lollardos se ha­ dos e moderados era dominante prevaleceu
viam derramado por muitos logares, unin­ este terceiro modo de pensar: aonde este
do-se aos wiclefidas em Inglaterra, onde ti­ numero era mais pequeno, os dous primei­
nham um tal partido, que dava trabalho á ros sentimentos fermentaram, escandece-
authoridade real e aos esforços do clero ram os animos, produziram a discordia ou
para reprimil-o. accenderam a guerra, segundo a disposi­
Tinham-se multiplicado os escriptos de ção dos espíritos.
Wiclef, e corrido por toda a Europa: nol­ O reino c a Igreja de França cheios de
les era atacada a authoridade do papa e da homens esclarecidos, de 'theologos sábios e
Igreja, as suas posições temporaes, a sua d'universidades famosas, conservou a sua
DISCURSO PRELIMINAR \Ç / te C lJ L us

'libcrdado sem afastar-se do respeito c aca­ cxcommungava por motivos de pouco mo­
bamento devido á Sancta Sede: houve so­ mento, pelos seus interesses temporacs por
mente alguns desvarios, produzidos pelo exemplo: assevera que tal excoinmunhão
.zelo indiscreto, que foram condcmnados, não separa os fieis cffi Igreja; e uma vez
logo que se reílectiu n’elles, sem que tives­ que os papas podem abusar do seu poder,
sem defensores. pertence aos fieis julgar, se a excommu-
Na Inglaterra, em que as luzes eram nhào c justa ou injusta, e que os christàos
muito mais fracas, c maior o poder do teem na Escriptura um guia fiel para co-
papa, os wiclefitas c lollardos acharam nos nhecel-o.
ânimos disposições mais favoráveis: fize­ Assim as cxcommunhõcs fulminadas pe­
ram proselytos c formaram um corpo, que los papas conlrçi os soberanos, a extineção
protegido pela camara dos communs, en­ do poder, os supplicios dos albigenses c
grossou occultamente, nào podendo a au- valdcnses, o fanatismo de todas as seitas,
thoridade dos reis c do clero extinguil-o, e que no precedente século tendiam a uma
se augmentou com os supplicios. extraordinaria perfeição, combinado tudo
Levadas á Allcmanha as obras de Wi- com os progressos que fizera o espirito na
clcf, inílammaram os ânimos indispostos philosophia c theologia, produziram uni
contra o clero. Joào Ilus. as considerou systema de rebclliào contra a Igreja, mais
proprias para enfraquecer a authoridadc proprio para dominar as pessoas que ra­
do mesmo clero, o qual elle olhava como ciocinam, do que os erros dos albigenses,
um invencível obstaculo para a reforma valdenses e lollardos; mas de que podiam
dos costumes c restauração da disciplina; atalhar-se os progressos, iIlustrando-se a
-c pondo em ordem as idéias de Wiclcf, as razão c corrigindo-se o abuso. Nào se ap­
publicou nos seus sermões e persuadiu: o plicaram estes remédios: o magistrado fe
clero o atacou; foi emprazado para ir a prender os parciaes de João Hus, que f<
Roma, c expulso de Praga: elle cntào vol­ banido de Praga; elle se exacerbou conti
tou todas as suas vistas para os meios de a Igreja, contra o clero e contra o pap;
enfraquecer o poder do papa e do clero. foi citado para o concilio de Constançí
Joào xxiii fez pregar uma cruzada con­ aonde o queimaram. Seus discipulos se po-
tra Ladisiau, rei de Nápoles, concedendo zeram cm armas c se sublevaram; parti­
aos cruzados a mesma indulgência, que ram exercitos contra cllcs. Esta guerra
áquellcs'quc se cruzavam para ir á Terra chamou sobre a Bohcmia todos os fiagellos
.Sancta. da cólera divina; cila fez d’este reino e de
Joào Hus atacou esta bulla e as indul­ parte d’Allcmanha um deserto inundado de
gências que cila promette; protesta rctra- sangue humano, c coberto das cinzas e ruí­
ctar-se, se o capacitarem de que se enga­ nas das aldeias, mosteiros e cidades; e só
na; declara, que nem pretende apoiar La­ acabou quando o fanatismo se extinguiu.
disiau, nem ollender a authoridade que Se porventura, cm logar dos exercitos
Deus tinha dado ao papa; mas sómente op- enviados contra os hussitas, se tivessem
pôr-se ao abuso d’esta authoridade. . mandado á Bohcmia theologos hábeis c
> Depois d’estas protestardes, sustenta que prudentes, que instruíssem os povos, gran-
a cruzada é contraria á caridade evangé­ geassein a sua confiança c combatessem os
lica, porque a guerra trazeomsigo desor­ erros sem cólera c sem azedume, havería
dens e calamidades innumeraveis, por ser causado tantas calamidades á Bohcmia e á
ordenada a christàos contra christàos, por- humanidade a obstinação dos hussitas?
vque sendo christào o reino de Nápoles e fa­ As seitas fanaticas, suscitadas no século
zendo elle parte da Igreja, a bulla, que lhe precedente, já não subsistiam, e se viram
põe interdicto e o manda assolar, nào pro­ tão sómentc alguns fanaticos, que publica­
tege uma parte, senào destruindo a outra; ram cxtravagancias, como Sikardo, os ada­
que se o papa tivesse o poder de ordenar mitas, que resuscitaram cm parte as infa­
•a guerra, seria forçoso, ou attribuir-lhe mias dos gnosticos, c foram desbaratados
mais luzes que a Jesus Christo, ou que a por Zisca: alguns flamengos, que quizerani
•vida de Jesus Christo fosse menos preciosa inculcar-se prophetas, e um resto de hus­
que a dignidade e prerogativas dos papas; sitas, que se dissiparam nos bosques e vi­
pois que elle não permittira a S. Pedro que viam nas cavernas.1
'tomasse as armas para salvar-lh’a. Pre­
tendo que o papa nào fazia menos abuso
.do poder de punir, que do de perdoar, que 1 Voijez Vart. Hus et Hussites:

*
116 DISCURSO PRELIMINAR

DECIMO SEXTO SECULO

A conquista do imperio grego não satis­ Assim foi o papa obrigado a observar ao-
fez á ambição dos ottomanos, que atacando mesmo tempo as regras que a politica lhe
os estados *do Occidente, se estabeleceram prescrevia como principe e os deveres que
na Hungria. Já não era tão vivo o furor a Religião lhe impunha como cabeça da
das conquistas, como nos seus primeiros Igreja. No primeiro estado, não tinha ou­
estabelecimentos; mas, de quando em quan­ tra mira senão o seu cngrandccimcnto,
do, se reanimava: os seus projectos de nem outra lei mais que as maximas da po­
guerra inquietavam toda a Europa, c ou litica; como papa e cabeça da Igreja, ti­
suspendiam ou alteravam os dos sobera­ nha só por olijecto o bem da Religião, a
nos, principalmcntc d'Allemanha, para a paz dos christãos, a felicidade da Europa,
qual eram perigosos os movimentos dos e por lei a caridade, a justiça c a verdade.
turcos. Os summos pontifices se esforça­ 0 dever do cabeça da Igreja cedeu al­
ram cm colligar contra estes inimigos da gumas vezes ao interesse do soberano: as­
ehristandadc os príncipes christãos, mas sim se conduziu Julio ii como um prínci­
com pouco efleito. Levantaram decimas so­ pe, o não como papa, quando intentou lan­
bre o clero, que resistiu a este tributo. çar fóra da Italia os francezcs, porque o
No tempo de Carlos vm, tinham os fran- pae commum dos fieis deve evitar a guer­
cczes abandonado a Italia, depois do qüc ra, e effusão de sangue, tractando igual-
se tornaram inimigos os venezianos, o papa mente bem todos os príncipes christãos.
c Sforça. Luiz xu se aproveitou d’estas di­ Emfiui, houve papas que empregaram o
visões para recobrar a Italia. Alexandre vi seu poder temporal e espiritual no adian­
se uniu com clle, e em vinte dias se fez tamento das suas familias, ou na manuten­
senhor do Milancz. ção das suas paixões: d’csta qualidade fo­
O imperador Maximiliano d’Austria re­ ram Alexandre vi e Julio n no principio
ceava, que Luiz, unido com o papa, se fi­ d’este século.
zesse senhor da Italia, c transferisse a co­ Para fazer face aos gastos da guerra, os
roa imperial para a casa de França. Fer­ papas impozeram taxas sobre os bens”ec­
nando temia pelo reino da Sicilia, e não clesiasticos em todo o Occideute, levantando
podia executar o projecto de senhorear-sc sommas consideráveis de todos os estados
do de Nápoles emquanto os francezcs do­ christãos. 0 clero as soffria a seu pesar, e
minassem na Italia. Veio pois a ser a Ita­ recusou pagal-as em França e na Allcma-
lia o theatro da guerra e o alvo da ambi­ nha, tanto que conheceu com evidencia
ção dos reis de França, dos imperadores e que os papas se serviam d’ellas para os
ãos reis de Ilcspanha até á abdicação de seus interesses temporaes.
Carlos v. Entretanto, os papas gosaram n’cstcs rei­
Foi importante o poder do papa na Ita­ nos das annatas c de muitos outros direi­
lia e cm toda a Europa pelos seus esta­ tos pesadíssimos ao povo c ao clero, que
dos, pelo seu, imperio .sobre o espirito dos levavam grandes sommas para Roma, em­
povos, pela facilidade com que negociava pobrecendo os estados n’um tempq em que
em todas as cortes da Europa por meio ainda o commercio não reparava estas per­
dos bispos, ecclesiasticos c religiosos, que das, e com todo o desvelo se impedia a tras-
lhe estavam sujeitos, c que dirigindo as ladação de dinheiro para os paizes estran­
consciências dos reis, eram poderosos em geiros: em uma carta d’Erasmo se acha,
todas as cortes.' que eram visitados todos os que sahiam de
Estas vantagens fizeram buscar.com des­ Inglaterra, não se lhes permittindo levar
velo a alliança do papa por differentes prin­ comsigo mais que o valor de seis aiujelotes. 1
cipes, e não lhe permittindo os seus inte­
resses guardar a neutralidade entre as
grandes potências, se via precisado a to­ E ra m e , ep. 6o. UAmjcIot ctoit vne
mar partido como principe temporal. monnoie d'ov de 7 deniers 3 gr.ains.
DISCURSO PRELIMINAR

Enfraquecia-se, pois, no Occidente o po­ manha toma as armas cm defesa de Lu­


der do papa e do clero, e tinha muitos e thero, e muitos principes o protegem. O
poderosos inimigos. poder do turco, que ameaça o imperio,
Muitas pessoas illustradas nào ignora­ nào permitte fazer a guerra â estes princi­
vam que este poder que se atacava, inspi­ pes; Luthero muda na Religiào tudo o que
rara humanidade, dera costumes aos po­ lhe desagrada, faz-se apostolo d’uma parte
vos barbaros, que haviam conquistado o d’Allcmanha, que sc separa da igreja de
Occidente, c tinham para si, que os mes­ Roma.
mos abusos de que se formavam queixas, No mesmo tempo, Zuinglio, parocho de
eram menos funestos á humanidade que o Glarie, prega contra as indulgências que o
estado que precedera á época da grandeza franciscano Janson publica na Suissa, ataca
c poder temporal da Igrcja.de Roma e do quasi todos os dogmas da Igreja Romana,
clero. Alguns theologos c jurisconsultos es­ extinguiu todas as ceremonias, c separa da
creveram em favor dos seus direitos e pre­ Igreja Catholica uma grande parte da Suissa.
tenções, c os papas os defendiam com os Luthero c Zuinglio, appellidam reforma
anathemas e raios da Igreja. as mudanças que elles fazem no dogma e
Havia, pois, em todos os paizes catholi­ no culto, e tomam a qualidade de reforma­
cos um principio de interesse, que tendia dores. Produz quasi sempre este titulo o
incessantemcntc a sublcvar os animos con­ fanatismo no chefe, e o ateia no coração dos
tra a còrte de Roma, e um motivo de Reli­ seus discipulos; Luthero e Zuinglio toem sc-
gião, d’amor do bem publico e de temor quazes, que levam seus erros a toda a Eu­
que os sujeitava, Como nào se corrigia ne­ ropa, que aflrontam os supplicios c a mor­
nhum dos abusos de que se queixavam, e to­ te, fazem proselytos e communicam o seu
dos os dias se iam esclarecendo mais sobre fanatismo: os rigores c os supplicios o au-
estes abusos, a força do interesse contrario gmentam. A Dinamarca, Suécia c uma parte
aos papas augmentava, o os motivos de da Hungria são dominadas pelo scisma: a
submissão ao seu poder se diminuíam: as­ Igreja Anglicana adopta alguns dos seus er
sim sc crcou em uma infinidade de indivi­ ros: elles perturbam os Paizes-Baixos e oc
duos uma cspecie de equilíbrio entre o casionam a formação da republica e da
principio dMnteresse, que tendia á subleva- provincias unidas. *
ção cbntra Roma e o temor que a ella os Do seio da reforma de Luthero e Zuin­
sujeitava. glio salte um enxame de seitas diversas,
Estando as cousas n’csta situação, Leão x tão oppostas entre si, como inimigas .da
formou o projecto d’acabar a - magnifica Igreja de Roma: tacs foram os anabptis-
Igreja de S. Pedro: concedeu indulgências tas; subdivididos cm treze ou quatorze ra­
aos que contribuissem para este cdiücio; mos; os sacramenlarios, em nove; os con-
deu a sua irmã todo o rendimento d’esta fessionistas, em vinte e quatro; os extrava­
indulgência na Saxonia, c em parte d’Allc- gantes, que tinham opiniões oppostas à con­
raanha: cila incumbiu a Archambaldo do fissão de Ausburg, c se dividiram cm seis.
cuidado de fazer valer esta indulgência. De todas estas seitas se inundou a Allema-
Archambaldo a arrendou, os rendeiros in­ nha, e foram infeccionados os Paizes-Bai­
cumbiram aos dominicos a pregação da xos, Inglaterra o França. Emquanto o fa­
bulla; os collectores c pregadores exagera­ natismo assim propagava por toda a Eu­
vam as virtudes das indulgências que fo­ ropa os dogmas dos reformadores, o tempo
ram vendidas c jogadas nas casas de pasto. fazia nascer n’clla o amor do estudo e o
Levantou-se Luthero contra os excessos dos gosto pela erudição.
prégadores d’esta bulla e atacou as indul­ As pessoas instruídas na historia, na cri­
gências: Leão condcmnou a sua doutrina, c tica e nas linguas despresavam o estudo da
fez queimar os seus cscriptos: Luthero ap­ theologia, e tractaram com despréso os orá­
pella d’csta bulla para o concilio c a fez culos da escola: os theologos, da sua parte,
queimar em Witcmborg: o povo, que vé declamaram contra as bellas letras, affir­
queimar a bulla por um homem atrevido mando que ellas eram damnosas para a Re­
e intrepido, perde machinalmente aqucllc ligião: mas não se portou assim Luthero
acatamento religioso que lhe inspiravam com os homens eruditos c e.om os sábios,
os decretos dos soberanos pontifices. antes honrando-os com elogios, firmou no
Luthero passou immediatamentc a ata­ seu partido escriptores celebres; c d’csla
car nos seus sermões as indulgências e o sorte acharam os discipulos dos reforma­
papa: faz cortes o império, Carlos v lavrou dores disposições muito vantajosas nos mes­
decreto^ para sc prender Luthero, c dar mos sábios e homens eruditos. Estes ho­
execução á bulla de Leão x: parte d’Alle- mens eruditos, ou bellos espíritos, que eram
118 DISCURSO PRELIMINAR

mcramente uns theologos superficiacs, ou O tempo, que dilata a carreira das scien­
que absolutamente o não eram, se deixa­ d a s e espalha a luz, vai sempre extin­
ram allucinar facilmente pelos sophismas guindo os princípios do fanatismo nos pai­
dos reformadores: uni dito faceto contra os zes protestantes; c assim ha nas igrejas, se­
theologos, uma consequência ridicula, im­ paradas da Catholica, uma força, que oc-
putada aos catholicos, uma passagem da cultamente arrasta os animos para o soci-
Escriptura, mal entendida pelos commen- nianismo; e este separando do Christianis­
tàdores, um abuso retomado e corrigido fi­ mo tudo o que a razão não comprehende,'
zeram olhar os theologos como uns igno­ conduz a olhar-se a razão como a unica
rantes, e a reforma coinó a restauração do authoridade a que o homem deva submet-
Christianismo. A reforma não foi mais que ter-sc.
um acto de fanatismo; ella tinha por de­ Ao mesmo tempo cm que estes princí­
fensores homens d’espirito, sábios, cscripto- pios theologicos faziam um tal progresso-
res hábeis. nos paizes protestantes, os philosophos ce­
Divididos entre si os reformadores, como lebres Bacon, Gasscndi c Descartes decla­
já dissemos, nem tinham princípios segui­ ram a guerra contra as preoccupaçõos e
dos, nem corpo de doutrina, nem symbolo. contra a philosophia das escolas, c seoccu-
Calvino se abalançou a formal-o. Por pri­ pavam em conduzir os homens á indaga-'
meiro fundamento’*estabeleceu este princi­ ção das verdades naturacs, depois de ha-
pio commum a todos os protestantes: que a vcl-os ensinado a duvidar, c a não ter por
Escriptura Sancta era a única regra de fè, certo senão o que a razão lhes fazia evi­
c cada particular o ju iz do sentido da Es­ dente. 1
criptura. Firmado sobre esta base, Calvino Junto este methodo aos princípios da re­
affectou tirar da mesma Escriptura todos forma, havia de conduzir os espíritos a re­
os dogmas da sua reforma, e fez um sys­ jeitar como revelado tudo o que a razão
tema de religião, cujo methodo c clareza não comprehendia, a examinar até os fun­
igualavam a elcgancia do eslylo. damentos, a revelação, c a inquirir em to­
Formou, pois, uma nova reforma, que dos os dogmas concernentes á Religião,,
tinha por cabeça um theologo habil, excel­ não os princípios claros, que provam a sua
lente eseriptor, claro logico, um espirito certeza, mas as obscuridades, que nos em­
esclarecido, um sophista destro, e que a baraçam, para ter sobre estes objectos uma
estas qualidades unia uma imaginação for­ cabal evidencia.2
te, uma firmeza inflexível, e toda a- activi-, Por meio do commercio, que as letras
dade que dão ao fanatismo o amor de do­ estabeleceram entre todas as nações, que
minar e a ambição da fama: a sua doutrina cultivam a razão, se generalisarâm estes
fez rápidos progressos em todos os paizes princípios cm toda a Europa, e fazem o pri­
em que se cultivavam as letras, e princi- meiro objecto, sobre o qual se excita hoje,,
pálmente na França. em grande parte, a actividade do espirito
Apoiando-se nos" mesmos princípios, em humano.
que tinha estabelecido Calvino o seu sys­ D’esta maneira, o espirito humano, de­
tema, Socino separou do Christianismo to­ pois de haver esgotado todos os modos de
dos os mysterios que aquelle ainda con­ enganar-se sobre os dogmas e moral do
servava; e Scrveto achou não haver no Christianismo, pop dezoito séculos, foi con­
mundo mais que uina substancia, e que duzido no fim d’eíles pela mesma encadea-
todos os séres não eram senão modifica­ cão dos seus erros a duvidar da sua ver­
ções da Divindade.1 dade.
Adiuiltiam, pois, todas as seitas separa­ Já temos visto que esta dúvida não é
das da Igreja como unica regra de fé, a fundada na comparação que se faz dos
Escriptura, c cada particular por juiz do princípios, que estabelecem os dogmas da
sentido da mesma Escriptura. Como este Religião, com os argumentos que os com­
sentido só podia conhecer-se por meio de batem; mas nas obscuridades, espalhadas
uma inspiração, ou com os soceorros da sobre alguns pontos dogmaticos, c na per­
razão, o principio fundamental da reforma suasão em que se .está de dever-se rejeitar
tendia para o fanatismo, ou levava para como falso, ou como incerto, tudo o que se
um christianismo, que só havia de admit- não vê com evidencia. Esta dúvida, pois,
tir os dogmas, que a razão podésse com- póde não ter por principio senão a igno-
prehender, e o culto em que ella visse a
utilidade.
1 Voyez VExam. du Fat. t. 1.
i Voyez VExam. du Fat. t. 3. 3 Ibid. 1 .1, p . 171. etc.
,l,c .
DISCURSO PRELIMINAR í 19
rancia, ou a preguiça, porque se véem me­ maiores progressos entre as nações enge­
nos cousas, c com menos clareza á medida nhosas e frivolas, incapazes da circumspcc-
que alguém é mais ignorante e preguiçoso. çào, que pede o exame, c embuidas da ma­
Igualmente é certo que o pyirhonismo re­ xima de que se não deve receber por ver­
ligioso do nosso século ha de fazer muito dadeiro senào o que se vé claramcnte.

SÉCULOS DECIMO SEXTO, SÉTIMO E OITAYO

No fim do scculo 15.° e pnlncivips (Veste, a indiffereues. c o cscandalo deram entrada na


m ãiorparic aos naçõescatholicas, tendo cõnioxau sa immediata a álliança da nseudo-
sciencia corn^a seita reoalista. as doutrinas^dc-JoãoMhiS-.e. JeronmnoMcJPraan^ e
TnmitaprincipaimciúeasMesream das e estranhas discussões do conciliabulo de Basi-
lôa.—Algumas reflexões ácerca do caracter e doutrina de Martinho Luthei'o: das
dtjferentes seitas que d'cila nasceram em todo este tempo:—sua entrada em muitos
paizes catholicos, Franca, Allemanha, Hollanda, Suécia, etc. etc.—A doutrina de
Machiavel contida no livro que publicou em 151o.—Marco Antonio de Dominis, que
pretendeu allia r o catholicismo comj) calvinismo.—Cpr)Télió^ansen,^ ã o l fu: Verner
de_Hauranne. E s tè í heresiarchas são apoiados pela JrnmfiiTPorto-Real, por Baixos
e pelos jurisconsultos Vigor, Pilhou, Dupuis, e outros.— Ouakeiy. Molinos. authOi
do quictismo.—Spjnasn. resuscitando'o materialismo.— Os p i et istas,—os momos —o
saltantes,—os meraiilhadores .—os unitaidos.—os lafjíudmgxiQS—os socimanos,—(
npisrapaes.—ns
_ - - ,w. esmlterianos, etc.—As
'somerianos. cic. — a s perniciosas ooras
obras ac
de u
Duyaty,
u yaiy, .uojuesguieu
Febronio.—Na Inglaterra BoJjníjhxoke, e Woorton—Na França Rousseau—Mart
p m x ,— Mably,— Fontcnelle,— Djd£rot,— A lm bert, — Buflm, — VoJWre, — Frede­
rico II.—Mmivertuis —e o marques d’Argciis,—Xoj!£sanit,—e la ^te^?ie.—A ma-
çonaria d1Íngíateira trazida a Paris no tempo da Regência.— O ulum insino allc-
mão, q u e M eishauptxstabeJeceu, Swach coadjuvou, e Kninne deu àjuLLimaJbrma.—
0 philosophismo de Wolf. ou ailfalf±qmãIlas~dÕurinãs de Leibnilz e Descartes.—
Kant, ou a conciliação do scepticismo de flmuTcoin o fàtcüTsmõde Pryeslley.— O jan-
sem sta Camo. autfior da celebre constituição civil do clei'o, anvrovada pela assem-

doutrinas tiveram por defensores grande numero de martyres, d'escriptores distin­


ctos, e pontifeces.

Entremos n’uma época desastrosa pelos primogênita do casamento da pscudo-scien-


erros da soberba hercctica, no scculo 16.°, cia com a seita regalista: a humildade chris-
que tfue, escreveu Fr. Henrique Flores, el tã havia fugido das escolas, e a audacia
mas infeliz en esta classe, por ser como veio de novo tomar o assento que por pouco
une estanque, donde se recogieron todas tempo largara, mas com tanto furor de vin­
las suciedades, que por los heresiarchas an­ gança, que ameaçava o mais alto, sem d’isso •
teriores vomit ar on las hidras infernales;» se aperceber alguém: as doutrinas de João
. e na verdade o paganismo, o islamismo. c Hus, c Jeronvmo da Praga, sustentadas
o phocianismo, não íbram tão prejudiciaes com tenacidade, e derramadas a todo o
á IffrèjaaeDeus como a obra de Martinho trance, e principalmente as discussões do
Lutnero, que se erígíuTeste sècüIÓTfiíha conciliabulo de Basilea,tão desregradas e tão
120 DISCURSO PRELIMINAR

estranhas ao espirito evangélico, foram a que ia demonstrando pola acrimonia e li­


•causa immediata que eu assigno á indiffe- berdade nas argumentações pouco ajusta-
rença c escândalos da maior parte das na­ tadas uma c outra á humildade claustral
ções christãs nos ultimos tempos do século c bastou que o Sancto Padre Lcào x man­
.antecedente, e princípios d’este: essa indif- dasse pregar as indulgências, afim de sc
ferença c esses escândalos rcflectiram nas obterem esmolas para a fabrica da Igreja
escolas; lá se sanctificaram e se elevaram de S. Pedro pelos dominicanos em Allema-
ao caracter de systema; por outra parte a nha, quando até alli essa missão perten­
supremacia do poder temporal, tomando cera aos augustinianos, para Luthcro no
•cada vez maior vulto de caminho com es­ anno seguinte romper todos os laeos que o
sas maldades, produziu uni estado amea­ prendiam á Igreja dc Deus, chamando á
çador, e só faltava algum genio atrevido discussão dogmas catholicos, negando a su­
para se sentirem seus eíTcitos desgraçados; prema aulhoridade das decisões canonicas,
•esse genio appareceu cm Martinho Luthcro, estabelecendo assim o juizo privado como
que nascera cm Isbele, condado dc Mans- regra de fé nas suas famosas conclusões;
fesd na Saxonia, pelo ultimo quartel do sé­ atacado pelos verdadeiros catholicos, mas
culo passado; fez seus primeiros estudos protegido tenazmente pelo pseudo-sabio elei­
em Mágadebourg, e os maiores na univer­ tor de Saxe, foi de mal cm pcor defendendo
sidade dc Esford, onde recebeu o grau dc na cadeira novas conclusões em confirma­
bacharel em 1503, aos vinte anuos de sua ção daquellas, fazendo apparccer iVestas
idade, e dous adiante o dc mestre em ar- novos erros, c protestando que nada tinham
.tcs; começou logo a fazer prelecções da phi­ de hcrcctieas; incerto do bom resultado de
losophia d’Aristoteles, c a estudar o direito; sua causa, apparcntemente sc sujeitou á
mas aterrado com a* morte d’uni dc seus Igreja, mas pódc, a meu juizo, tomar-se por
amigos, que um raio despedaçou, c sem con­ bem sophistica a declaração ao bispo de
sultar sua vocação, chegando a persuadir-se Bandbourg, dc sc lhe sul^mcttcr, porque os
.pelo meado do "anno 1505, vestiu o habito factos anteriores, e sobre tudo os poste­
dos eremitas augustinianos, emittindo os riores, mostram, que nem o fez como a seu
Yotos solcmnes no seguinte, e passando a verdadeiro pastor, nem com intenção de
;cr Fr. Agostinho; atravessou pelas duras cumprir a promessa; examinada a* causa
provas do noviciado, firme na intenção de em Roma, o Saneio Padre, em 1518, con-
permanecer no claustro, apesar das claras demnou os erros impios do falso theologo,
provas dc não ser chamado por Deus, ex­ no que respeitava á questão das indulgên­
pressas na repugnância aos ministérios hu­ cias, declarando ser doutrina recebida na
mildes cm que o faziam empregar, c da ne­ Igreja dc Deus, que as indulgências apro­
nhuma' doçura n’esses pequenos tormentos, veitam a vivos e mortos: entretanto Luthero,
.quaudo o contrario encontra sempre a vo­ sabendo que o exame da sua causa con­
cação, chegando u persuadir-sc que por el- tinuava, appellou para o concilio geral, pro­
Jes se aviltava c compromeitia sua saude; testando que por isso não queria aíTrouxar
<dcu-se entretanto ao estudo da theologia es- a aulhoridade do Summo Pontifico, nem
colastica, das obras de Sancto Agostinho, duvidar do Primado da Sancta Igreja Ro­
e da Escriptura Sancta; subiu ao sacerdó­ mana, c continuou sustentando seus erros
cio, exerceu o magisterio na nova univer­ contraasindulgcncias: guerreado vivamente
sidade de Wittemberg, n’ella se fez bacha­ por Sacerdotes orthodoxos, respondia com
r e l em theologia, e se entregou á prégação; ar dc triumpho, e calumniando a todos de­
cm 1510 foi a Roma a negocios da sua or­ clarava que clle não reconhecia como re­
dem, e o seu enthusiasmo pela capital do gra de fé senão a Escriptura Sancta, inter­
mundo christão manifestou-se d’um modo pretada por clle mesmo; negava a Tradição
íncrivel, parecendo-lhe tudo digno d’elogio; c o Primado, seguiu atacando os votos re­
d ou s annos depois recebeu o grau de doutor ligiosos, o celibato clerical, e a distineção
em theologia n’essa universidade, debaixo entre Sacerdotes c leigos; por fim dc tudo
da protecção do eleitor de Saxe, Frederico, isto escreveu a Sua Sanctidadc uma carta,
chamado o sábio, e prometteu a Deus ensi­ que só póde ter, pela sua velhacaria, exem­
n ar e defender a Fé Catholica contra todas plar na de Phocio, mas que foi tanto além
ja.s heresias, ainda a custo do seu sangue, quanto na maldade o excedeu; e ao mesmo
c não tardou a calcar aos pés o seu jura- ténipo que aíTectava submissão, ostentava
jnento; apesar das inquietações interiores d’author da reforma religiosa: entretanto
q u e padecia no mosteiro, o seu exterior os seus escândalos já haviam revoltado as
.não desdisse até ao anno 1516; mas lá es­ duas universidades de. Colonia e Louvain,
ta v a a soberba encarnada cm sua alma, quasi lodo o clero, todos os Bispos, e o San-
DISCURSO PRELIMINAR 121

cto Padre contra cllc, por isso como o re­ sigo n’esta narração, porque 6 fundada em
curso estava no temporal, acolheu-se a Car­ legitimas provas, creram no monge de Wi-
los v, exaltando-o, segundoosseus princípios, temberg sobçc sua missão divina, como os
porque todo o christao era Sacerdote, Bispo, arabes creram cm Mahomet sobre suas en­
c Papa, d’ondc vinha sua supremacia pelo trevistas nocturnas com o Anjo Gabriel:»
poder, e notando-lhe a necessidade de fazer d’cste modo Luthero caminhou a seu fim
entrar o Papa na razão, ainda á ponta da obedecido por elles, c secundado de Melan-
•espada! Um tal monstro, carregado de cri­ chton para escrever impiedades, (1'Ulrico
mes, chamado reformador da doutrina de para manejar a arma do ridiculo, porque
Christo, a tanto se atreveu com auxilio dos a reforma d’um monstro tão escandaloso
homens da politica, para quem os interes­ não podia ser melhor plantada do que por
ses sào verdadeiro Deus! Fulminado pelos um impio, c por um editor de caricaturas;
raios da Igreja, em 15 de junho de 1520, mas o que parece impossível é que a se­
não hesitou diante de torpeza alguma, ap- riedade e o temor de Deus, que deviam sen­
pcllou da bulla para o concilio geral, ta­ tar-se ao lado dos soberanos, os desampa­
xando o Summo Pontifice de juiz iniquo, rassem a ponto de sc submetterení a tudo
licrcge, apostata, inimigo de toda a Eseri- quanto deshourava o espirito humano, que
ptura Sancta, c blasphemando da Igreja Ca­ é isso o que sc apresenta na origem c pro­
tholica c dos concilios; passou d’aqui a quei­ gressos da seita de Luthero! Entretanto na
mar na praça pública os livros de direito dieta de Forms de 2.'] d’outubro de 1520,
canonico, a bulla, a Summa de S. Thomaz, apesar das pomposas palavras do impera­
c os escriptos dos catholicos que o coude- dor Carlos v sobre a piedade de seus avós
mnavam; tocou a rebate contra o Pae com- e sua, o impio sahiu são e salvo para se­
mum dos ficis, e contra estes, c se decla­ mear seus erros; no anno seguinte a uni­
rou chefe d’uma seita abominável, fundada versidade de Paris condemnou esses erros
sobre a doutrina, que teve vontade de es­ (já um pouco tarde), c o imperador, receando
tabelecer! E os poderes da terra surdos a talvez as consequências de sua condescen­
tudo isto! mais claro, protegendo tudo isto, dência passada em relação aos domínios de
porque as suas vistas eram reunir, como Ilcspanha por causa da pureza orthodoxa de
no paganismo, o Sacerdocío ao império, que seus habitantes, mandou queimar os livros
o Christianismo nào comporta pela sua es­ do supposto reformador; porém Luthero
piritualidade, mas que por isso mesmo se zombou e progrediu, depositando.o sacer­
pretendeu sempre, visto que os politicos e dócio nas mãos dos leigos c das mulheres,
os jurisconsultos ha perto de dous mil an­ isto é, extinguindo o sacerdócio, tomou para
nos ainda não poderam conceber a natu­ o manter Catharina de Bore, religiosa, que
reza da religião do crucificado, c ainda me­
nos consentir que alguém tenha qualquer maus os crimes que elle proprio obra: Lu­
genero de dominio sobre elles! thero, d'esse modo, acceitando o fatalismo,
Com prazer incrível foi recebido o seu negou o livre arbitrio; (Vahi vem a impia
livro abominável do Captiveiro de Babylo- ideia que nos deu da Divindade, absoluta-
nia, não menos que a carta insolente, cs- mente idêntica á de Mahomet: todo o syste­
cripta por elle mesmo aos Bispos, na qual ma de Luthero, em sc estudando e compa­
sc chamou Martinho Lulhero por graça de rando, apresentará absurdos indignos do
Deus, Ecclesiastico de Wittembcrg, decla­ homem (e ainda mais de quem sc diz chris-
rando-lhes que havia tomado esse titulo com tão), e sua identidade com o do islam, pelo
o mais alto desprêso d'elle e de Satanaz:para que Solimão II estimava o novador, porque
que nào allegassem, dizia, ignoranda de sua ninguem mais que elle favorecia a sua causa.
nova qualidade d. Evangelista, e se não atre­ Sem agora lembrar os males espirituacs
vessem a informar-se ou a julgar de sua causados á Igreja de Deus, jjor esse torpe
doutrina, porque nem dava razão d'cila, nem systema, não posso eximir-me de fazer re­
perm itlia que fosse julgada por elles, nem cordação do muito que. a victoria de Lepanto,
mesmo pelos anjos! «Os barões allemãcs, do anno 1571, impediu os desastres tempo-
escreveu o abbade Rohrbacher,1 a quem raes da christandadc, porque o novo engran-
decimento do Turco, pelo favor d'algumas
1 Este sabio comparou perfeitamente a cortes da Europa e de similliante systema,
doutrina de Luthero á de Mahomet; e muito era para causar serios cuidados. S. Pio V
■bem, porque o falso propheta da Arabia es­ promoveu a expedirão, que teve um tão fe­
tabeleceu o fatalismo, e tirou a liberdade liz resultado, não só peta boa direcção que
ao homem, por isso suppondo Deus author lhe fez dar, mas pelo alto meivcintento de
d as boas c más acções, o fa z castigar nos suas orações a Deus: penso assim.
122 DISCURSO PRELIMINAR

fugiu do seu mosteiro com outras aposta­ avenças com aqucllc principe, convidou o
tas, e mudou a face das cousas, convertendo turco Solimão u para assolar as terras dos
os ecclesiasticos em operarios, e todos os christàos, c esto veio contra a Hungria, c
homens c mulheres cm pregadores; e fa­ pôz cerco a Vienna; Henrique viu ulngía-
zendo apostatar monges c monjas para ca- terra, que pelo seu livro contra Luthcro
sar-se, sendo um dos principacs d’aquellcs mereceu do Sancto Padre o nome de defen­
Fr. Alberto de Brandbourg, mestre de ca- sor da Fé, 1 mas que depois, repudiando
vallcria teutonica, que roubou á Igreja c sua mulher contra as leis da Igreja, para
a essa cavallcria o estado da Prússia, per- tomar outra, e sendo por isso cxcommun-
jurando, arvorando-se cm soberano tempo­ gado, se constituiu pontifice dTnglatcrra, e
ral, e casando-se: a doutrina de Luthcro, admittiu em seus estados o que antes re-
posto que sensual como a de Mahomet, ape­ prchendcra; mais adiante sua filha Maria
sar dos muitos sequazes, precisou accender restaurou quanto pôde o templo destruído:
a rebcllião, c serviu-se das armas para se porém Isabel, a espúria, seguiu as traças do
assentar com solidez, porque seus discipu­ pac, c sem ser virgem nem casada reinou
los se guerrearam uns aos outros, assolan­ e exerceu as maiores tyrannias com os ca­
do os paizes mais florescentes d’Allcmanha, tholicos, excedendo o pae, e não conhecendo
perpetrando sacrilégios inauditos nos tem­ igual senão em Nero e Dioclcciano: em
plos c mosteiros, e entregando-os á pilha­ Ilespanha já desde o século antecedente,
gem, bem como os castellos: uma sociedade debaixo do pretexto dc religião se havia es­
sem centro, e puramente anarchica, que re­ tabelecido a inquisição contra os judeus e
sultados devia ter? a scisào, separando-se contra os hereges, porém mais naluralmcntc
de Nicolau Storkio para ser patriarcha dos para se exercer uma influencia politica nos
anabaptistas, que negaram o baptismo aos negocios da Igreja, como acontecia em Fran­
meninos, ô persuadiram a igualdade e li­ ça (ha mais tempo), e persevero u commet­
berdade absoluta dos homens; André Car- iendo horrores cm nome de Jesus Christo;
lostadio, pac dos sacramentados, que ne­ do mesmo modo se levantou n’csto século
garam a Presença Real Eucharistica, de em Portugal, c debaixo das idênticas bases
que foram os principaes Zuinglio c João contra os catholicos em Allemanha, Hol­
Calvino, estabelecendo cada qual seu sys­ landa, Suécia, Noruega c Inglaterra, como
tema e partido; alraz d’elles Miguel Ser- no Japão; os ministros eram pela maior
veto, que disputou com todos, dogmatisou parte jurisconsultos ou politicos, por isso
contra os mysterios da Trindade e da Con- os maiores c mais hábeis instrumentos da
substancialidadc do Yerbo, e foi suppliciado politica e da supremacia temporal na Igreja;
por ordem dc Calvino; e os luthero-calvi- c os processos, como o seu texto apresenta,
nos, que fizeram um amalgama das suas provam a descrença c impiedade d’csses
seitas, hostilisando-se uns aos outros, e to­ homens: finalmente, para cumulo de todos
dos á Igreja dc Deus, assolando muitos paizes os males, no anno 1515 publicou Machiavcl
catholicos, principalmente a França, que um livro cm que reduziu a, systema bem
soflreu muito dos lulheranos, c ainda mais ordenado, para servir dc lição aos princi­
dos ealvinistas, e senhoreando-se d’outros pes e aos politicos, as doutrinas do despo­
fóra da Allemanha, como a Hollanda, em tismo propaladas pelos anteriores politicos
que os ultimos assentaram seu throno. Por e jurisconsultos, c em que- se sanccionam,
outro lado differentes soberanos em Allema- além d’outros attentados:— 1.° a falta dc fé-
nha, o da Suécia e outros se alistaram de­ e de justiça nos soberanos; 2.° que a poli­
baixo das bandeiras da heresia; protestando tica ou razão do estado não é subordinada
os germanos em 1529 contra as decisões á religião nem á moral christã, mas que o
da uieta de Spira (pouco favoráveis aos in- principe c o supremo juiz da explicação c
novadores), d’onde lhe veio o nome de pro­ da applicação d’essa moral!!! Machiavcl
testantes, como a todos os sectarios d’cssas morreu em 1527, depois de ter feito os
malditas doutrinas, que preferiram a des- maiores males á religião e á humanidade,
honra ao nome de bons christàos. Por or­ e não tractou da restituição até á hora ex­
dem dc Carlos v os seus generaes assola: trema; porém acabou com demonstrações
ram Roma, excedendo os irAlarico; sacri­ dc christão, recebendo os Sacramentos da
legamente attentaram contra a liberdade Igreja, c dando o ultimo suspiro nos braços
do SummoPastor; e elle mesmomais adiante,
pelo seu interim á moda dos imperadores
do Oriente, concedeu aos hereges d’Alleraa- 1 Que apesar de ser tm titulo dado pela
nba a liberdade da religião; o famoso Fran­ Summo Pontifice, d'elle usam seus succes­
cisco i de França, em Yirtude dc suas des­ sores.
DISCURSO PRELIMINAR 123

dos sacerdotes; mas seria tudo isso fingido tharina de Gênova, os illustres Sacerdotes
para dar mais força a seus erros? é o que Fetzel, Ecicio, Einser, c Prierias, que com­
se não sabe: appcflcmos entretanto para a bateram contra Luthero, Fr. Gomes de Lis­
misericórdia do Senhor, que teria compai­ boa, Bispo de Nazareth, Thomaz Moro, Tho­
xão de sua alma, c lhe faria graça, porque maz de Villa-Nova, Sancto Ignacio de Loyola,
cm qualquer hora que o pecca dor se arre- o Cardeal Polo, Luiz Lippomano, João Luiz
ponda o recebe como pac carinhoso. A Vives, Diogo de Paiva d’Andrade, Fr. Jero­
Igreja nunca teve século de tanta tribula- nymo da Azambuja, Fr. Francisco Foreiro,
çao, mas venceu, e carregada dos trium­ os Bispos João Soares, Fr. Gaspar de Leão,
phos que n’ellc obteve, passou avante glo­ Fr. Gaspar do Casal, Fr. Bartholomcu dos
riosa, porque Deus lhe assistiu, auxiliando Martyres, c Fr. Jeronymo Seripando, de
seus martyres a derramar até a ultima gôta queni mais tarde farei menção; os Sacerdotes
de sangue pela confirmação da Fé; cm In­ João d’Avila, Fr. Heitor Pinto, c Fr. Tho-
glaterra (n’csse reino até então modello de mé de Jesus, a virgem Saneia Thereza de
orthodoxia c piedade, c que só uma vez Jesus, S. Carlos Borromeu, Fr. Luiz de Gra­
peccoul) Thomaz Moro, chanceller do es­ nada, c S. João da Cruz; não foi inferior
tado, João Fishcr, Bispo de Rochester, c n’este século o zelo dos pastores nos Syno­
Cardeal da Sancta Igreja de Roma, os Prio­ dos, de que, além de muitos contra Luthero,
res do Ermo Cartusiano de Londres, Axi- e outros heresiarchas, merecem particular
holm c Belval com uin Sacerdote secular, menção o de Constantinopla contra os er­
Reinaldo, monge de Sião, e outros religiosos ros de Calvino, o de Diampcr no Malabar,
da ordem de S. Bruno, os Parci, conde de convocado e presidido pelo metropolitano
Northumbcrland c seu filho o conde d’Arun- de Goa Fr. Aleixo de Menezes para refor­
del, Cunthbcrto, Sacerdote, e vinte outros ma dos costumes; o penúltimo geral Late­
fieis, Edemundo Campeano, Roberto Pcr- ranense, presidido pela Sanctidade de Ju­
sons, Rodolfo Sherwln, Lucas Kirby, e lio ii, a fim de reprimir a audacia do con-
Eduardo Risthon, Sacerdotes, e Emerson, ciliabulo de Piza, tido ao raiar do século, e
coadjutor temporal da Sancta Companhia de reformar os costumes; porém o mais fa­
com outros Sacerdotes c leigos, foram sup- moso é o Tridcntino, ultimo geral até ao
pliciados por ordem da inquisição de Hen­ presente, presidido pelos legados dos Sum­
rique viu, e de sua filha Isabel; na Hollan- mos Pontifices Paulo m, Julio m, c Pio iv
da dezenove fieis, entre Sacerdotes e lei­ contra todos os erros c heresias até então
gos (onze dos quaes eram filhos de S. Fran­ propaladas pelo diabo; c fóra dos Synodos
cisco), acabaram feitos em pedaços pelos se tornaram notáveis por seus esforços em
calvinistas: no Japão, desde uma escrava beneficio da religião os vigários de Jesus
ate o Sacerdote Baptista, muitos obtiveram Christo a começar de Pio m, successor im -.
a palma das mãos dos idolatras: innumcra- mediato d’Alexandrc vi, e que apenas du­
veis foram os confessores que por sua alta rou vinte c seis dias, até Clemente vm, dos
piedade deram testimunho contra todas as quaes se se exceptuarem esse Pio m, Ur­
seitas, assim os Bispos Thomaz de Villa- bano v ii e Innocencio íx, que viveram pou­
Nova, Paulo d’Arezo, e Carlos Borromeu; co, todos pelejaram com valor c constância
os Sacerdotes Ladislau de Gielniow, João para manter o deposito sagrado contra os
de Liccis, Jeronymo Emiliano, Caetano de poderes da terra; c dignos de particular re-
Thcanna, o grande Ignacio de Layola, Pe­ commcndação foram pelas sublimes virtu­
dro d’Alcantara, Francisco deBorja,o«oro des de S. Pio v, Marcello i i , c Innocencio íx
Paulo Francisco Xavier, Luiz Beltrão, Fi- pela integridade da vida; Leão x pela scien­
lippe Nery, Simão Lipnieza, Nicolau Factor d a ,dc que deu provanapropriabulladecon-
c João da Cruz; os conversos Vicente de demnaçao de Luthero; Gregorio xm pelos es­
Aquila, João de Deus fportuguez), modello forços na propagação da Fé em regiões as
da caridade o penitencia, Felix de Cantali- mais distantes; Júlio m pelos de reconquis­
cio, Reynero, Salvador, Bento de Philadel­ tar á Igreja filhos errantes, como os syros;
phia, Paschoal Bailão, c Fclix de Apparicio Clemente vhi pelos que empregou em àttra-
(estes seis dos menores); c as castas vir­ hir á penitencia pelas graças Apostólicas,
gens Magdalcna de Paratiori, Margarida de no augmento do culto, e na diligencia dc
Ravenna, Stephania Quinzani, Catharina propagar os livros sagrados expurgados de
Mathei, Angela de Brescia, a prodiçiosaThc- erro; Julio ii pela cflicacia que poz cm li­
reza de Jesus, e Catharina de Ricci; e as bertar a Igreja da dependencia dos princi­
sanctas viuvas .Catharina de Gênova, Gen- pes italianos, e em restabelecer a liberdade
tila de Ravenna e Catharina Albcrtoni; dis- dTfalia; e Xisto v pela inexorável justiça
tinguiram-se por seus escriptos Sanctá Ca­ com que puniu crimes de toda a especie;
m DISCURSO PRELIMINAR

unidos ao centro d’União, pelejaram com c da graça, semeou erros detestáveis; * o


valor os veneráveis Bispos Olào Magno de João du Vcrger dc Hauranc, que refundiu
Upsal, Joào Fishcr de Rochester, Cardiner, nas suas obras os perniciosos conceitos de
de Winchester, Bonner de Londres, lleath Joào IIus, Wiclcf, Luthero, Calvino, da Do-
de Worcester, c Day de Chichester, com minis e outros: cis-ahi uns famosos autho-
muitos outros, contra as heresias: pela re­ res apoiados pela familia Porto Real, por
forma de costumes S. Thomaz de Yilla-Nova Barcos, e pelos jurisconsultos Vigor, Pilhou,
Yalenciano como por essa, c contra as pre­ Dupuis, o por muitos, sem cxceptuar o Ab-
venções barbaras do regalismo o venerável bade Flcury, posto que a esta seita cha­
bracharensc Pr. Bartholomeu dos Marty­ masse uma heresia a mais subtil; íinalmento
res; ao lado d’ellcs foram valentes auxi­ outros, perdidos, engrossaram as fileiras de
liares S. Jeronymo Emiliano, os religiosos Luthero, por exemplo os quakcrs ou treme-
jesuítas c cartuziauos em Inglaterra, e fóra dores, que estabeleceram a igualdade abso­
do sacerdócio o illustro Thomaz Moro; de­ luta entre os homens, mais strictamentc que
mais d’esses S. Caetano de Theanna, S. Pe­ no século passado alguns dos primeiros dis­
dro d’Alcantara, o venerável Jofto d’Avila, cipulos d’aquelle malvado hcresiarcha: se­
Fr. Thomé de Jesus, Manoel Vicgas, Fr. Ro­ cundada pelo jansenismo, a seita rega lista
que do Espirito Sancto, c sobre todos San­ dos politicos c jurisconsultos fez progressos
cto Ignacio, que Deus enviou ao mundo, incríveis, concorrendo o proprio clero, em
quando as lavas do inferno vomitaram Mar- França, na sua assembléia em 1682, cm que
tinho Luthero, porque contra tão grande se estabeleceram quatro impios artigos, con-
monstro era necessario um tào grande gi­ demnados pela Sanctidade d’Alexandre vm, 2
gante, como o fundador da Companhia de Je­ c contra que se pronunciaram, entre mui­
sus; a ordem jèrarchica se restabelecia, tos, os illustres Bispos d’Alet e Pamicrs,
.com a Fe, na Ethiopia, Africa Occidental, mas de que Bossuet, enganado, fez a apo­
Asia, America, onde as quinas portuguezas logia, por isso 0 castigou Deus no fim da
c os leões de Hcspanha haviam penetrado; vida, quando um magistrado leigo 0 forçou
e a Sancta Missào progrediu na Polonia a submetter sua instrucção pastoral á cen­
pelos trabalhos do beato Ladislau de Giel- sura d’um simples Sacerdote!
niow, na America pelos de S. Luiz Beltrão, A heresia e 0 scisma dc Phocio, que no
e por todo o Oriente desde a África até o século passado assentaram a cadeira da pes­
Japão, como pela Occeania,à custa dos suo­ tilência em Moscow, continuaram n’estc,
res de St Francisco Xavier; finalmente n’estc rasgando as entranhas de Christo, porque
século a Igreja recebeu, segundo erà pre­ (segundo se tem a (firmado) a nova dynastia
ciso, novos auxiliares no clero regular, des­ prussiana da Rússia levantou a Inquisição
tinado á pregação, entre o qual avultou, para queimar catholicos, 3 e ao mesmo tem-
como avulta, a Sancta Companhia de Jesus.
Vejamos o que se refere do século I7.°: as 1 Nas cinco famosas proposições contra
heresias estrondosas do século antecedente, a doutrina da graça c livre arbitrio, e em
os erros dos politicos e dos jurisconsultos, que Deus apparece aulhor de todos os pre-
o phocianisino c o velho paganismo reina­ radoSj pelo que a Sanctidade de Jnnocencio
ram n’este, c a seu lado nasceram e toma­ X as condemnou.
ram incremento a impiedade e o atheismo, 2 O padre Antonio Pereira de Figueiredo,
originada aquclla do mais torpe sensualis­ que no século 18.° foi 0 apostolo do rega­
mo, c este da falsa scicncia; taes foram os lismo em Portugal, fallamlo velhacamenle,
inimigos que então oífereceram combate conío era seu costume, sobre esta condmna-
sanguento á Igreja de Deus: os discipulos ção, disse: «Mas a doutrina contkcuda nos
de Luthero, Zuinglio.e Calvino progredi­ seus quatro artigos não deixa de se seguir
ram ramificando-sc, dividindo-se, c ainda e defender até hoje em quasi todos os esta­
perdendo terreno,mas sempre oppondo suas dos catholicos, fóra dos pontificios;» disse
atrocidades, e produzindo uma seita de que uma verdade expressando suas intenções;
o apostata de Dominis foi o inventor, pre­ mas a rectidao d'ellas é tão claramente de­
tendendo congraçar elementos hetercfge- monstrada, como quando esci'eveu que em
neos, o catholicismo e o calvinismo; a par França unicamente se oppozeram os dous
d’cste o Bispo de Ypres, Cornelio Jansen, es­ veneráveis prelados d'Alet e Pamiers. O pa­
creveu um livro a que deu o titulo de Au- dre José Morato respomleu a esse apostolo
gustinius, e cm que, como se encontrasse do erro com um bom livro.
tal doutrina nas obras do grande Bispo de 3 Do estudo que eu tenho feito sobre as
Hipona, por inculcar havcl-as lido dez ve­ inquisições, para chegar á sua or igem , e que
zes e trinta as que tractam do livre arbitrio me fe z ‘encontral-a nas doutrinas dos júris-
DISCURSO PRELIMINAR 12o

po um governo despotico a sou arbitrio c de athcismo, resuscitando os velhos conceitos


seus ministros. 1 0 paganismo, por outro do materialismo. Resistiu c triumphou a
lado, nò Japão e Corea, desde 160o, reno­ Igreja de Deus pela constância de seus
vou as antigas perseguições contra os ca­ martyres, que receberam a palma das mãos
tholicos, e continuou-as, "appareccndo em dos idolatras no Oriente, Miguel Faciémon,
1614, a modo de Galerio, motivando-as os João Tingoro, Thomaz, filho do primeiro, e
hereges hollandezcs c inglezes, e um novo Pedro, do segundo, Martha e seus filhos
Dioclcciano, na pessoa do imperador Gui- Thomaz, Mathias, Jacques e Justo, Adriano
xasu, e na de seu perverso filho Xogun- Tacafati, Joanna, sua mulher, Jacques e a
Saina em 1616, e d'ahi por diante; mas nào virgem Magdalena, seus filhos, Leão e Mar­
teve a consolação d'eneontrar senão um tha, sua mulher, Leão e Paulo, seu filho, os
apóstata entre os milhares de perseguidos; missionários Jeronymo d’Angclis, Dingo de
emquanto por outra parte, na desditosa Carvalho e Jacques Yuki da Sancta Compa­
Irlanda, o monstro Cromwcl, autlior do par- nhia, Ta fie e sua mulher, o illustre Sacerdote
ricidioquc a Inglaterra commettcra na pes­ Carlos Spinda, que no Japão e Corea subi­
soa dc Carlos i, seu rei e senhor, exerceu ram ã patria dos justos, com um numero
todo o genero de crueldade contra os ca­ grandissimo, entre Sacerdotes e religiosos
tholicos, como digno imitador d’Isabel cm jesuítas, franciscanos, dominicos, c eremi­
todo o genero de crimes: accresccram a tas, principes, senhores, plebeus, virgens,
todas estas calamidades os erros brutaes de matronas, e meninos, cm todas as persegui­
Molinos e de Spinosa, aqucllc, pretendendo ções, prineipalmcntc nas de 1614, 1616,
introduzir na vida espiritual as mais obscenas Í617, 1622, 1633, 1636, 1640, c 1352, sem
scnsualidades, c fazendo-se autlior da scitado mencionar os desterrados, que fizeram dos
quictism o,2 e este tornando-se apostolo do desertos d’essas regiões outras Thebaidas
egvpcias; na índia o bom padre Antonio de
consultos pagãos, resulta consideral-as ir­ Andrade; e no Madure o venerável Sacer­
m ã s; lendo ha pouco o processo dos templa- dote- João de Brito, que a sanctidade de
rios, publicado em França, entre muitos
factos que registei, um dclles foi a identi­ em primeiro logar vão posso crêr que um
dade de formulas com as da inquisição dc homem d'espirito, scienda e piedade como
Portugal; e. se cm alguma cousa ‘differc, é elle, podésse ainda remotamente escrever
no aperfeiçoamento das desta para maior cousa ainda remotamente assimilhada á
crueldade, mas todos em nome de Christo!!! doutrina de Molinos, e por outra parte a
Por isso até o nome do bello Philippe c para insistência feroz dos jansenistas c regalis-
mim de mau agouro c horror. tas em solicitar a condemnação dum a obra
1 Disse-se que o principe Fedor czar de Fênelonpelos tribunaes de lioma,são para
dessa dgnastia, pelo fa d o de ser cila d'ori­ mim de bastante suspeita: nas Maximas dos
gem pouco antiga, aboliu toda a nobreza Sanctos, alguma proposição não era sua, e
historica, e só admitliu a burogracia ou o mais sem dúvida não teve o desenvolvi­
a aristocracia dos empregos; c para illudir mento necessario, mas os inimigos suppoze-
as questões dos legitimos e verdadeiros no­ ram logo mal d u m homem que não adhcriu
bres pediu-lhes seus titulos para os exami­ a heresia alguma, e foi dado por autlior de
nar: e em os recebendo convocou uma as­ tudo: o livro condemnou-se como estava, c
sembléia composta do clero e dos ojjiciaes Fênèlon com a humildade d u m Saneio, obe­
da coroa; fez um discurso contra a nobreza deceu á censura; e d'isso não eram capazes
do nascimento, authorisando-o com textos de fazer esses que o accusaram! Bossuet fez
torcidos da Escriplura Sancta, e a questão a apologia dos quatro famosos artigos da
foi decidida como elle queria, porque o Pa­ assembléia de 1682, e das Reflexões Moraes
triarcha de Moscow depois de o apoiar com de Pascóal Quesnel, enganado, emquanto
iguaes textos, e tão perfulamentc torcidos, Fênèlon se revoltou contra umas e outras;
afjirmou, que o déspota estava inspirado pelo mas alguém enganando-o, imprimiu o seu
E spirito Sancto: se isto assim foi, o czar e livro com affectos ao amor da carne 1 Fêné­
o seu Patriarcha devem considerar-se im­ lon, defensor da legitima authoridade da
pios. Igreja, teve inimigos entre os defensores da
2 Aperfeiçoada com mais lorpezas no sé­ authoridade temporal sobre a Igreja; mas
culo 19.°, cm Portugal, pelo Bispo de B ra­ Silvestre Pinheiro Ferreira, querendo esta­
gança Antonio da Veiga. 0 quietismo foi belecer o deismo á sombra do Evangelho, em
objecto de grandes questões em França; e o Portugal, no século 19.°, alcançou apologis­
facto da condemnaç.ão do livi'o de Fênèlon tas da sua obra entre os homens das doutri­
é cousa que me tem dado muito que pensar: nas politicas.
126 DISCURSO PRELIMINAR

Pio ix lia pouco lançou no cathalogo dos tc, Gabriel dc Magalhães, V. Fr. Antonio
beatos; assassinados pelos islamitas cm Afri­ das Chagas, .Luiz Thornazino, Fr. Fran­
ca João do Padre, Sacerdote, cm Bysancio cisco de Sancto Agostinho dc Macedo, V.
André de Chio, além d’outros; pelos licrc- Bartholomeu do Quental, Rance, c dc mui­
ges na Ethiopia não poucos fieis, demais tos outros, como os illustres seculares,
uaqucjles que soíTreram a expulsão e os Leão Alacio c Carlos dc Frcsnc, senhor
horrores da miseria; pelos calvinistas Felix do Cange: assim triumjihou também pelo
de Siugmaring; c com o ferro dos hereges zelo dc seus pastores, a frente dos quaes;
scismaticos na Lithuania Josaphat, Bispo como luz refulgente, apparcceram os Sum­
de Poloczk: pela sanctidadc de seus con­ mos Pontifices desde Leão xi, successor do
fessores, os veneráveis Bispos Turibio de Clemente viu até Innocencio xii, devendo
Lima, Francisco de Salles, de Genebra, João entre cllcs recordar-sc com a mais saudosa
dc Ribeira, de Valenda, e Gregorio Luiz memoria Paulo v, Gregorio xiv, Innoccn-
Barbadigo, dc Padua; os illustres Sacerdotes cio x, Alexandre vn, c Innocencio xi, ao
Francisco Carrocido, fundador dos clérigos lado dos quacs pelejaram com valor apos-
regulares menores, André Avelino, Fran­ tolico os Bispos Thcotonio d’Evora, S. Turi­
cisco Solano, José de Lconissa, João Baptista bio dc Lima, Fr. Agostinho da Cruz Braga,
da Concciçfio, Camillo de Leílis, Lourenço Luiz dc Cerqucira, no Japão, S. Josaphat,
dc Brindes, que chegou ao termo da vida Bispo de Poloczk, S. Francisco de Salles,
quando estava Núncio cm Lisboa, Si mão dc Isaac Habert dc Uabres, AÍTonso Mendes, da
Roxas, Miguel dos Sanctos, João Francisco Ethiopia, e Fr. João Thomaz de Rocaberti,
Regis, Pedro Fourier, José Calasans, fun­ de Valencia; os Sacerdotes S. Francisco So­
dador das escolas pias, Pedro Claver, o lano, Jeronymo d’Angelis, Diogo dc Carva­
grande Vicente dc Paulo, fundador da con­ lho, Jacqucs Yuky, Matheus Ricci, S. Felix
gregação da missão, c José dc Cupcrtino, dc Sigmaring, André Duval, S. João do Pra­
os penitentes conversos da ordem dos me­ do, S."João Francisco Regis, Diogo de Mat­
nores André Ilibernon, Seraphim dc Mon- tos, Beato Pedro Fourier, Antonio Fernan­
tegranio, c Bernardo de Corleonc, o bom des, o grande S. Vicente de Paulo, S. José
Affonso Rodrigues, coadjutor temporal da dc Cupcrtino, e Antonio de Gouveia, Gabriel
Sancta Companhia dc Jesus, o pio Jacintho dc Magalhães, c o beato João de Brito: a
Galanti, as castas virgens Maria Magdalena, Missão Sancta progrediu d’um modo incrí­
de Pizzi, Rosa de Lima, Anna Maria de Je­ vel na Ethiopia, Japão, c Corca, dando ao
sus, Joanna Maria Bonomi, Jacinlha Maris- Christianismo grande numero de martyres
coti, fundadora das oblatas de Maria, e as e confessores; e apesar da opposição do pa­
virtuosas matronas Maria Victoria Fornari, ganismo e da heresia, que fizeram decretos
fundadora da Annunciada Celeste, c a ba- uexterminio e de morte, os triumphes sub­
roneza de Chantal Joanna Francisca Fre­ sistiram, e a semente evangélica ficou lan­
ni iot, fundadora da Ordem da Visitação: çada sobre a terra para produzir bons fru-
pela sciencia e cscriptos dos Bispos Bclar- ctos, quando aprouvesse á Divina Clemên­
mino dc Capua, c Cardeal da Sancta igreja cia; na China, Paraguáy, e outros pontos
de Roma, Luiz de Cerqucira de Tebcriades, da America, onde obtiveram muita gloria
S. Francisco de Salles, de Genebra, Fr. An­ os filhos dc Sancto Ignacio, dos quaes lem­
tonio de Gouveia, de Cyrene, Fr. Thomaz brarei o padre Claver, que se tornou bem
do Faria, de Targa, Agostinho Barbosa, de notável por seu zelo, piedade, e humildade;
Ughento, e Fr. João Thomaz dc Rocaberti entre os islamitas em África, onde o fervor
de Valencia; dos Sacerdotes Baronio, Car­ dc S. João dc Prado se elevou ao mais alto
deal da Sancta Igreja Romana, o venerável grau; no Madagascar e outros logares cm
Antonio da Conceição, Sebastião Barrades, que os filhos de S. Vicente de Paulo deram
Gabriel da Costa, Diogo dc Carvalho (mar­ a conhecer o espirito celestial que os ani­
tyr no Japão), Cosme de Magalhães, Fr. Af­ mava; entre os pagãos no Madure, a quem
fonso da Criiz, Fr. Gregorio das Chagas, o beato João dc Brito deveu subir á glo­
Simão Vaz Barbosa, João Roswide, André ria do martyrio; e por ultimo entre os he­
Duval, Cornelio Alapide, Fr. Abrahão Bzo- reges, aos quaes S. Felix dc Sigmaring pro­
vio, Diniz Petavio, Francisco Hallier, Fr. vou que os catholicos sabiam ter resignaçao
Agostinho Calmet, Fr. Lucas Wadingo, S. para morrer por Christo. Passemos ao sé­
Vicente de Paulo, João José Surin, Filippe culo 18.°: a obra de Luthero progrediu ac-
Labbe, João Bollando, Odorico Rcinaldo, Fr. crescentando, dividindo e confundindo seus
Fernando Ughcllo, Fr. Antonio de S. Vi­ elementos: estendendo-se desde o Saxe para
cente, Clemente Gallano, João Bona, Car­ o nascente, pôde introduzir-se na Palestina
deal da Sancta Igreja Romana, Carlos Coin- e n’oulros domínios do islam; para o sul
DISCURSO PRELIMINAR 127

chegou ate á Occeania; para o poente levou essa depravada seita, que passou sem ser
suas doutrinas á America; e para o norte combatida por Bossuet, c apoiado por Pas-
estabeleceu-se na Polonia, porque depois da coal Qucsncl, que se arvorou em chefe de
morte de Joào Sobieski, o salvador da Al- partido, c por muitos membros da Congre­
lemanha, cila admittiu por soberano um es­ gação do Oratorio (entre os quaes não tem
trangeiro protestante, que se fez catholico o ultimo logàr o padre Antonio Pereira de
para dominal-a; c com seus costumes des­ Figueiredo), c de quem foram fautores os
graçados occasionou a licença c a heresia; Bispos Montazct, de Leão, Fitz-James, de
mas cm castigo da eleição, este desgraçado Soisons, Colbert, dc Montepcllier, Bossuet
paiz veio a desmembrar-se para ser présa (sobrinho), de Troyes, Caylo d’Auxerre, per­
de hereges e scismaticos; a obra dc Luthcro, verteu a França, fez grande numero de pro­
senhora do poder na Dinamarca, Suécia, selytos nos estados catholicos, quiz innovar
Noruega, llollanda e Inglaterra, cm muitos ritos contra as determinações da Sancta Sc,
estados germanos, c nas suas colonias de arredou da frequência dos Sacramentos, por­
França, cada dia viu mais possantes os fun­ que o seu principio de perfeição é abster-se
damentos dc sua existência—a anarchia e d’clles, c levantou o desastroso scisma dc
immoralidadc,—porque a paz dos luthera- Ultreckt por um dc seus membros o orato-
nos propriamente taes, dos anabaptistas, riano Pedro Codde; o phocianismo, dc mis­
calvinistas, zuinglianos, anglicanos, e qua- tura com a impiedade do poder temporal,
kers; se foram alimentando n’umas partes sentados sobre o throno da Rússia, conti­
c nascendo em outras os pictislas, os mo­ nuou levando a sua influencia perniciosa
nos, os saltantes, os mergulhadores, os aria­ aos confins d’este vasto imperio, onde a jc-
nos, .os unitários, os latitudinarios, os soci- rarchia ecclesiastica tem cessado d’existir,
nianos, os episcopaes, os presbyterianos c interrompida a successão pela entrada de
muitos, que a modo dos atmos’d’Epicuro, lobos em Iogar de pastores legitimos:1 o is-
se preparam, se chocam, e se misturam lam em Africa proseguiu arvorado cm pi­
s e m . cessar, porque as pedras angulares rata, para fazer escravos os christãos, e no
cVcssc edifício são a vontade i 11imitada e a Oriente perseguiu a Igreja de Deus como
liberdade absoluta dos individuos: ao lado em toda a parte; c o paganismo suppliciou
(Teste transtorno d’ideias, que prova evi- atrozmente Sacerdotes, e fieis na Corca, n<
dentemente a miseria do homem, estava a China, e estados d’Anam; mas nada d*iss(
seita dos jurisconsultos e dos politicos, de­ é comparável cáscenalastimosa queapseudo
cidindo dos destinos da religião e da hu­ philosophia trouxe ao meio da França e da
manidade, decretando a desobediencia aos Europa inteira, apresentando a degenerarão
decretos da Igreja, ou perseguindo, em nome completa da intelligencia humana, c de que
de Christo, os dissidentes verdadeiros, se­ só houve exemplo na proximidade da época
não supposlos: c em nome dos reis, senão cm que se verificou o grande facto da Re-
de sua propria authoridade, os catholicos, dempção do genero humano; c se n’cssa
secundando essas maldades, Frederico ri, da não fosse universal similhante degenerarão,
Prússia, José 11, d\Allemanha, ambos impios, a do fim do seculo 19.° a teria excedido,
Catharina, da Rússia, adultera e regicida, os porém Deus não quer outro igual, senão á
ministros d’outros tres monarchas, liccncio- vespera do julgamento de todos os homens;
sos e fracos dous, cbem condescendente um ;1 na verdade os delírios de França foram su­
fomentando o espirito superficial c irreli­ periores aos de todo o mundo, n’aquella
gioso do século com suas obras Dupaty, época; comtudo na França mesmo, e em
Montcsquicu, e o mau Bispo João Nicolau,
de Hontcim, discipulo dcVan-Espen, debaixo 1 Em 1588 Jeremias II', Patriarcha pho-
do nome dc Febronio, e tendo força de lei ciano de Constant inopia, foi expulso desta
a s doutrinas dc Machiavel: por outra parte cidade pelos turcos; e acolhendo-sc á bene­
o jansenismo, fazendo causa commum com volência dos czareSj elevou a Metropole dc
Moscow a Patriarchal, collocando seu pre­
1 Os aconte.cimentos da bulla da Canoni-lado depois das Prelados das Patriarcfiaes
sação de S. Vicente de Paulo, o maior adversa­ do Oriente, e tornando-o independente do By-
rio dos jansenistas protegidos pelos tribunaes, santino: assim passaram as cousas até 1703,
das outras anteriores Vineam Domini, Uni­ em que essa dignidade Patriarchal foi abo­
genitus, e da posterior Auctorem Fidei; e lida, e a substituiu uma commissão impe­
os factos da inquisição e da extineção dos rial dc negocios ecclesiasticos, presidida por
jesu ítas são prova oastante da arroganda um coronel de cavalleria, ajudante d'ordens
e impiedade que no seculo 18.° dominavam do czar, e chamada sancto-synodotH É até
os poderes da terra. onde pôde chegar ò escarneo do sagrado!!!
128 DISCURSO PRELIMINAR

toda a parte, apesar dos esforços da impie­ positivo, como na abolição dos thronos; re­
dade, universaes nâo foram as loucuras, e bentou essa revolução em 1789, e não tar­
para o provar bastariam os martyrios, as dou a mostrar sua origem c fins, porque
perseguições, os desterros, e as desgraças a constituição civil do clero, redigida pelo
não so de milhares d’individuos, mas de mi­ advogado jansenista Camo, foi approvada
lhares de familias! 1 Desde o século 17.° pela assembléia constituinte, Luiz xvi a as-
o materialismo c o fatalismo em França, signou cm 24 d’agosto dc 1G90, c logo a
Inglaterra, Allcmanha e outros paiz.es iam França catholica sc recusou a acccital-a; mas
tendo acceitação, e começaram a dcclarar-sc a impiedade foi vencendo desde que o cura
ivestc de que ora tracto sem rebuço; Spi­ Gregorio apostatou com os Bispos dc An-
nosa c Bayle abriram o caminho, c segui­ tun, Talleyrand, e de Lydda, Gobcl; c obteve
ram-se por um lado Bolingbroke e Woor- completo triumpho cm 10 dc novembro de
ton com outros muitos inglezcs; por outro 1793, em que na propria cathedral dc Pa­
Rousseau, Mirapaux, Mablv, Fontenellc,Di- ris sc escarneceu da Divindade, adoran­
derot, Alcmbert, Buffon, Voltaire com os do-se a deusa da razão!!! D’aqui em diante
incredulos da encvclopedia, por outro Fre­ que se esperava dos loucos dominadores
derico ii, Maupertíiis e o marquez d’Argcns, de França? a desconjunoção da ordem ci­
que depois se arrependeram, Toussaint e vil, a começar pelo parricídio dc seu sobe­
la Mettric; a par d’estes conspiraram a ma- rano! E que mais? assassinarcm-sc uns aos-
çonaria d’Inglaterra, importada a Paris no outros c levar a nação ao estado mais anar-
tempo da regencia, e o illuminismo allemâo, chico que a terra ha visto, até que um ho­
que Weishaupt estabeleceu aproveitando mem pôz termo a essas inauditas desor­
os elementos maçonicos, c arvorando-sc cm dens. 1
chefe com o titulo de commandantc geral
dos escravos aue tomam anuas para reivin­ ços para o acabar; nem o atheismo nem a
dicar liberdade contra a republica Romana; deismo poderam contra elle; c essa religião
7ue Zwach coadjuvou poderosamente, e a nova, de que a politica necessita, e que a
que Kniggc deu a ultima fôrma, adoptando a chamada philosophia tem pretendido esta­
todos estes perdidos a maxima dos dous belecer, ainda não o substituiu: o que existe
grandes impios Diderot e Voltaire: «enfor­ e se não ha de acabar, cmquunto os sobera­
car o ultimo rei com as tripas do ultimo nos, attentando por seus verdadeiros inte­
Sacerdote;» e finalmente o philosophismo resses e dos povos confiados a seu mando,
de Yolf, ou amalgama das doutrinas dc Loi- não estabelecerem uma cruzada para salva­
bnitz e .Descartes, c o dc Kant, ou a con­ ção das sociedades, c a instabilidade abso­
ciliação do scepticismo de Humc com o fa­ luta a que os innovadores tein sujeitado tudo;
talismo de Pryestlcy; as sociedades secre­ e esse ç o castigo de suqs miserias, porque
tas estabelecidas por toda a parte, as esco­ nunca souberam acertar; e se alguma cousa
las acceitando taes doutrinas, e os cscriptos com o seu nome conseguiu a duração d'an­
propagando-as a todo o risco, auxiliando-se nos, c porque os aulhores não foram elles.
dos desvarios do poder temporal, produzi­ 1 Napoleão. Estou bem longe dc querer
ram os eíleitos desastrosos da revolução fazer a sua apologia, porque também perse­
franccza, e de todas as posteriores cm que guiu a Igreja de Deus; mas em castigo foi
só se tem tido mira na destruição do Chris­ morrei' desterrado sobre um rochedo no meio
tianismo 2 c de todo o principio religioso do Occcano. Anw as antigas dynastias, e de­
sejava vcl-as reslituidas, por isso não rendo
1 O protestante, St arde, segundo o ab- homenagens áquelle famoso general; mas por
bade Rohrbacher, disse que a revolução fran- outra parte o meu coração é muito mais at-
ceza, mesmo no que tinha de mais horrível, trahido pela sanctidadc do Christianismo;
era filha natural do philosophismo, como por isso não duvido confessar que as ihal-
este o era do protestantismo, reconheceu e dades dc Philippe, bello, Carlos VII e Luiz
contestou nos pseudo-philosophos modernos XI, a corrupção de Luiz X V , e a conde-
um a conjuração formada contra a religião mnação do episcopado francez pelos conse-.
e contra o estado; e fez vêr que p a ra se exe­ Iheiros (Testado no tempo de L uiz Philippe,
cutar\ um dos principàes meios foi a extinc- bem poderam ser a causa da queda fatal da
ção dos jesuítas, e a sua substituição pelas dynastia dc Hugo capeto em França, como
sociedades secretas, de illumina dos em Alle- a iniquidade de Napoleão para com o chefe
manha, e de franc-maçõcs em França, con­ da Igreja de Deus foi a causa da extineção
cluindo com esta notável allocução aos so­ da sua desccndmcia. Pertence á sua fami­
beranos «et nunc, reges, intclligite.» lia o soberano actual de Franca, c verdade,
2 Ainda dura, apesar de todos os esfor- mas como tem estado longe dc ser inimigo
DISCURSO PRELIMINAR 129

Luctou a Igreja de Deus contra tantas com outros Bispos, Sacerdotes o fieis: en­
perseguições, oppondo, como suas prbprias tre os confessores que a Igreja colloca so­
armas, a constanda dos martyres, a piedade bre seus altares, mencionarei o Bispo Af­
dos confessores, o zelo dos pastores, a sabe­ fonso Liguori, e os Sacerdotes José Oriol,
doria dos escriptores e o clamor dos mis­ Boaventura de Potenza, José Maria de Tho-
sionários, que cm toda a terra, segundo o maci, Francisco de Pozadas, Francisco Je-
exemplo dos Apostolos, deram testimunlio ronvmo, João José da Cruz, Angelo d’Acri,
de Christo Deus c Redemptor do genero Leonardo de Porto-Mauricio, o converso Ni-
humano; derramaram puro sangue confes­ colau de Longobardi, e a virgem Verônica
sando a Fé, ás mãos dos idolatras na Corca, Juliani, abbadcssa Scraphica: mostrou-se o
os irmãos Paulo In c Jaeques Kuan; na Chi­ zelo dos pastores nos Synodos, de que me­
na Pedro-Martyr Saus, Bispo de Maricastro, recem particular memória o Romano de
os Sacerdotes Royo, Alcober, Serrano, Dias, 1725, e o de Baltimore*de 1791 sobre ne­
Tristão de Attenis, e Antonio Henriques, e gócios disciplinares; c fóra d’cstas-sanctas
o catcchistaKo-hoitgcn; nos estados do Anam reuniões devem contar-sò tantos illustres
o Sacerdote Buccharclli cm companhia de Vigários de Jesus Christo, quantos em se­
nove fieis e outros Sacerdotes Bartholomcu rie successiva occuparam a cadeira de S.
Alvares, Manoel d’Abreu, Vicente da Cunha, Pedro, como foram Clemente xi, que prin­
João Gaspar Cralz, Malhous Affonso, Gil de cipiou no século antecedente, e mandou ex­
Frederico, além d’óutros; e ás mãos dos im­ pedir as duas famosas bullas Vineam Domini
pios cm Paris foram massacrados uns du­ e Unigenitus contra osjanscnistas; Innocen-
zentos e vinte ecclesiasticos, eptre os quaes eio xiir, excellente por sua doutrina, inte­
é necessario lembrar os Bispos d’Ar!es, João gridade de costumes e devoção ao Sanctis­
Maria Dulau, o de Saintcs, Francisco José simo Nome de Jesus; Bento xiu. notavel pelo
de Ia Rochefoucauld, c seu irmão Pedro seu amor á rcctidão e ao culto; Clemente
Luiz de Bcauvais, e o Sacerdote Francisco xii, virtuoso e amigo da paz e da devoção;
Luiz Kebert, superior dos eudistas; em Ver- Bento xiv, illustre pela sabedoria e cscri-
sailles o senhor de Castellane, Bispo de Mon­ ptos; Clemente xiu, de quem a bondade c
de, coni grande multidão de prisioneiros; a moderação se tornam credoras d’alto elo­
em Reims, Estevão Carlos Pacquot, cura dé gio; Gemente xiv, digno de piedade pela
S. João, e muitos outros; do mesmo modo tortura em que o pozeram os poderes da
que n’outros logares se foram multiplicando terra e os impios para extinguir osjesuitas,
as coroas, subiu ao Céo com a gloriosa pal­ c que deu exemplo da solicitude pela Igreja
ma, extenso numero de religiosas de diver­ n’essa messa extineção, porque previu, e
sas ordens, entre as quaes as madres The- bem, que Portugal, Hespanha, França, c
reza de Sancto Agostinho, Thereza Conso- Nápoles abraçavam os erros de Luthcro sem
lon, e Margarida Bonct; c posto que não rebuço se nãó o fizesse; o venerável Pio vi,
obtivessem o martyrio, soíTreram coni resi­ que mandou expedir a bulla Auctorem Fi­
gnação as mais violentas perseguições dos dei contra o jansenismo, e que muito sof-
hereges, os Bispos Jaeques Gordon, e Ale­ freu da impiedade; e Pio vii, que mais tarde
xandre Smit, e os Sacerdotes Gordon, Ca- veio a ser desterrado e a padecer tributa­
meron, e Maitland, e dos poderes da terra ções pela casa de Deus; ligados ao centro
e do jansenismo, o venerável Bispo de Pa­ a união da Igreja Catholica pelejaram- os
ris Christovão de Beaumont, e muitíssimos Bispos, de Mcaux, Jaeques Benigno de Bos-
jesuítas antes e depois de sua extineção, suot, embora se illudissc com o jansenismo;
de Cambrai, Francisco de Solignac de La-
de Deus, se assim continuar bem pôde ser mothe Fénélon, que mereceu por sua pie­
que o Senhor lhe dê perpcluidadc sobre o dade, sabedoria, constância cm defender o
throno. A dynastia Carltngia empunhou o principio da authoridade do Summo Ponti­
sceptro despojando os Mcrovingios, os Cape- fice, e ainda mais pela humildade com que
tos cingiram a coroa arrancando-a da ca­ ouviu a condemnação d’uma de suas obras;
beça de Pepino, o menor; Napoleão sanccio- dcMarcopolis, Withan, Saltzbourg, Leopoldo;
nou a tyrannia dos impios francezes da re­ de Paris, Christovão dcBeaumont; d’Amicns,
volução, mas seu sobrinho Luiz foi chamado Luiz Francisco do Orlcans de Ia Mottc; de
á F)'ança depois que cila desthronou um Clcrmont, Massillon; Sancto A (Tonso de Li-
principe, que levantara seu throno sobre os gouri, que subiu ao Céo em 1788, coroado
despojos da sua propria familia, c que era pelo merecimento da práclica constante de
filho de quem effjcazmente concorrera para todas as virtudes d’um verdadeiro Apostolo;
se estabelecer a impiedade cm França, e por de Baltimore, João Caroll; de Aix, BoisgeliD,
cila subir L uiz X V I ao cadafalso. * que com cento e vinte nove Bispos da Igreja
130 DISCURSO PRELIMINAR

de França protestou contra a constituição Matheus da Encarnação, João Evangelista,


. civil do clero; d’Agen, Bonac dc Poilicrs e Bento de Sancto Agostinho, Fr. Agostinho
Saint-Alaire, que recusaram jurar essa con­ Calmct, Fr. José Caetano, José Barbosa,
stituição, e foram seguidos de todos os Bis­ Luiz Antonio Muratori, José Agostinho Orsi,
pos da Igreja de França, excepto os de Sons, Pedro c Jcronymo Ballcrini, Godescardi,
Vivicrs, Orleans, c Antun; de Braga, Fr. Fr. João Lourcnço Bcrti, Butlcr, Fr. Hen­
Caetano Brandão, um dos pastores mais rique Flores, Fr. Thomaz Maria Mamachi,
exemplares da sua idade; de Lisboa, José Francisco Antonio Zacharias, Luiz Bailly,
Francisco de Mendonça; de Leiria, Manoel Nicolau Silvestre Bergicr, Claudio Fran­
d’Aguiar, além d’outros; os Sacerdotes beato cisco Nonnete, Bruuel, author da famosa
Francisco, de Pozadas; os dous Paulos Si- obra Parallelo das religiões, Affonso Mazza-
gneri, tio e sobrinho; beato Francisco Jc- reti, Aubry, Pluquet, Fr. Martinho Gerbert,
ronymo; Matheus Ripa; Miguel d’Eden, ab- Jacintho Scgismundo Gerdil, Cardeal da S.
bade da Congregação de Sancto Eliscu do J. R., Francisco de Jesus Maria Sarmento,
Libano; beato Angelo d’Acri; Carlos Frei Theodoro d’Almcida, e José Marato, 1 com
de Neufville: beato Leonardo, dc Porto Mau­ grande numero d’outros; as religiosas Ma­
rício; João Yatelol; Pedro Barbosa Canaes; ria Margarida de Jesus, Jacintha do San­
Gravton; Fr. Balthasar da Encarnação, fun­ ctissimo Sacramento, Maria da Gloria, Ma­
dador de monges reformados de S. Paulo ria Magdalcna do Sepulchro, Maria Michaela
das Covas de Montc-mór-o-novo; André do Sacramento, Maria do Céo, e ainda mais;
Withe; Thaycr, que de ministro presbyte- e os illustres seculares marquez dc Monde-
riano passou ao seio da Igreja, recebeu a jar, conde dc Mestre, e visconde de Bonald:
Sagrada Ordem do Sacerdócio, c foi um dos finalmente é necessário dizer que a missão
mais ardentes prégadores do Evangelho na se dilatou prodigiosamente, ouvindo-se o
America: Fournet c Leclerc, que recusa­ nome de Jesus Christo cm toda a terra, e
ram jurar a constituição civil do clero de chegando a crigir-se a cadeira pontificial
França com todos os ecclesiasticos da di­ emBaltimore, na America do norte, cm 1789,
reita da assembléia nacional, e foram segui­ c dando-se-lhe por primeiro pastor ao ve­
dos dos curas de S. Sulpiciò e S. Roque, e nerável Bispo João Caroll, que de muitos
mais de seiscentos Sacerdotes d’essa cidade; annos atraz era vigário Apostolico em todo
João Martinho Moye; Beaurcgard e muitís­ esse extensissimo paiz, onde os padres Gray-
simos: entre os que por seus escripto^bem ton e André Whitto renovaram a semente
mereceram, da Igreja de Deus, menciona­ evangélica, aquclle desde 1720 pclaPersyl-
rei os Bispos Luiz da Silva, d’Evora, Bos- vania, e este depois na colonia de Baltimore,
suet e Fénélon referidos, Daniel Huct, de como mais adiante o zeloso padre Thayer;
Abrancbes, João Fontamini, d’Ancira, Nuno a China era então regada pelos suores do
Alvares Pereira, de Lamego, João Claudio bom Sacerdote João Martinho Moye, e por
Somier, de Cesarea, Carlos de Plessis, de outros; do mesmo modo que os differentes
Argentre de Tulle, Massillon, referido, Po- paizes do Oriente infiel, não devendo esque­
lignac, de Auch, Luiz Antonio, de Bellaga e cer os esforços de Li e Thomaz Kong, am­
Moncada, de Cartagena, Ignacio de Sancta bos seculares na Corea, e na Inglaterra os
Thereza, de Gôa, Walmcsley, de Ramá, Ri­ dos Bispos de Marcopolis, de Taspia c de
cardo Challoner, de Debra, Fr. José Maria Ramá, 'preparando-se assim, apesar das for­
da Fonseca e Evora, do Porto, Luiz Fran­ ças de gigante, com que a impiedade com­
cisco de Orleans de la Motte, e Sancto Af- batia (e combate) uma época de maior glo­
fonso Liguri referidos, JoãoDomingos Mansi ria e mais extensos domínios da Igreja de
de Luca, Francisco de Pompignam, de Vien­ Deus no século em que vivemos.
na, de IaLucerne, de Langres, Boisgelin, re­ 4

ferido e outros; os Sacerdotes Manoel Ber- 1 Author da obra Exposição das verda­
nardes, Fr. Luiz de Souto-maior, o venerá­ des catholicas contra os fundamentos do
vel oratoriano José Vaz, Fr. João de Mabil- systema anarchico. E sta obra foi publicada
lon, beato Francisco de Pozadas, Paulo Se- posteriomientc em 1812, mas o desembargo
gneri, o velho, referido, Fr. José Assemani, do paço revoltou-se contra ella e a prohibiu,
Fr. Diniz de Sancta Martha, João Harduino, porque attenlava contra os ciros dos regar
com os differentes collectores dos monumen­ listas c dos jansenistas, e assim foi bom,
tos da Igreja Cacalica, Fr. Manoel de Deus, porque depois o seu author, quando houve
Honorio Tournely, Manoel Caetano de Sousa, liberdade d'imprensa, sustentou ainda me­
Fr. Martinho Pereira, Bertliier, Balto, Fr. lhor sua doutrina.
DISCURSO PRELIMINAR 131

CAPITULO II

R e fle x õ e s áccrca das fôrm as d e govern o

Tal ha sido a marcha da humanidade este indifferente a fórma mas nào o uso do
desde o grande facto da nossa Redempeão poder, de modo nenhum se alcançará o pre­
pelo Sacrificio da Cruz sobre a montanha tendido: é sim em relaçào ao viver das so­
do Calvario: em todos os acontecimentos do ciedades que se deve inquirir, e isso tenta­
longo periodo que eu tenho historiado, mos­ rei eu agora examinar: a fórma de go­
trasse ate á evidencia a Divindade do Chris­ verno mais excellente é aquella que dá maior
tianismo, porque se clle nào fosse obra de somma de benefícios ás sociedades: eis ahi
Deus, nào podia resistir por tantos séculos o principio geral e absoluto que nào se póde
aos ataques violentos da força bruta do po­ negar sem se querer passar por louco: por
der temporal, nem da intelligencia humana isso aquella fórma que produzir a felicidade
corrompida, mas vaidosa e ousada, e aindíf em grau inais elevado será a preferível.
meuos a infidelidades ás desordens d’aqucl- Extincto o governo patriarchal, appare-
lcs a quem Jesus Christo confiou o depo­ ceu a monarchia, a republica, e depois a
sito sagrado da sua doutrina: prova-se de mistura d’uma e outra, que nào é tão nova
um modo que nada deixa a desejar, que o como a pretendem fazer, são estas tres fôr­
Christianismo 'se vexa c se incommoda affli­ mas, mais ou menos variadas, que tem go­
cti vamente com o dominio externo dos po­ vernado c governam actualmente as socieda­
deres da terra, porque na sua razào ^ e s­ des humanas: na monarchia toda a acção
piritual nào póde ser impunemenle tocado parte d'um só, como do centro, na repu­
por braço profano; manifesta-sc com cla­ blica de muitos, e na ordem mixta o poder
reza que nenhuma fórma de governo é con­ subsiste originariamente na multidão que
traria á sua existência, porque todo o po­ constitue seus delegados, os quacs determi­
der vem de Deus na sua origem como ellc; nam o que em nome d’um se ha de obrar:
porém que o mau uso do poder c a anar- esta ultima fórma é pcrfeitamcnle uma de-
’chia sào seus adversarios, porque elle no generação da monarchia, ou a razão de seu
•seu modo de sór, c cm todas as circumstan­ sêr degenerado, e o mau meio de coarctar
das da vida, é guiado pela mão de Deus, o os abusos de seu poder, do mesmo modo
mau uso do poder vem do homem, c a anar- que à republica o é; porque se as influen­
chia procede do diabo; e se nós attendermos cias na hora do cscandalo da monarchia
a estes princípios, acharemos a verdadeira tendem consideravelmente á destruição do
causa da prosperidade das nações pela cn- nome real, como em Roma pelos dias de
fluencia benefica do Christianismo, encon­ Tarquinio, o soberbo, a fórma republicana se
trando nos governantes uma verdadeira ha de seguir necessariamente; se pelo con­
piedade filial para com a Igreja: reconhe- trario, como em França, quando a desgra­
ce-sc finalmentc, que bem longe d’impedir çada revolução da impiedade e da demago­
os progressos da scienda, se auxilia d’clla gia terminava, a fórma mixta apparcceu.
e lhe presta luzes para seguir sem tropeços Os primeiros vestígios mais salientes d’esta
a senda da verdade, porque buscando am­ terceira fórma remontam quasi ao meado
bos sua origem em Deus, elle adopta for­ do século 7.°, 1 em que na França d’um
m ulas externas e humanas para fazer en­ lado as menoridades, c do outro a educação
tender as doutrinas sublimes do Céo pela
razào obscurecida do homem, emquanto 1 Para corroborar o que acima se ex­
derrama sobre cila, para nào errar, as lu­ pende, veja-se o Exordium Vitae Karoli Ma­
zes Divinas de que abunda. Passarei agora gni no tomo 2.° da Historim Francorum
a expôr sobre a monarchia, a que tendem Scriptores por André du Chesne, pag. 94 et
minhas affeições (é preciso dizel-o alto): 95; Guisot na traducção de Eginhardo a
não entendo eu que se deva procurar a ex­ pag. 123 c 124 do tomo 3.° da Collection des
cellenda d’uma fórma de governo em rela­ Memoires relatifs á 1’histoirc de France; e
ção ao Christianismo, porque sendo para a Historia Critica.de Espafia a pag. 38 e 39.
*
132 DISCURSO PRELIMINAR

cfleminada, produzindo arjuellas immediata* pela razão de subditos deviam considerar


mento a maior inllucncia dos estranhos, c tanto seus filhos como os proprios de que sc-
esta a fraqueza dos soberanos, para logo se diziam paes; d’isso as sedições, c por cilas Òs
aviltarem, depositaram todo o poder nas governos mixtos ou as republicas. Mas, per­
maps dos seus ministros, os quacs, a fim gunto eu, não haverá outro remedio para
de o conservar, repartiram com os estados evitar a tyrannia? desgraçada condição da
a acção moral ou legislativa, retiveram o humanidade! estas degenerações da vida
manuo, c deixaram aos reis só o nome c chamada communi, nada leem”com o sêr o u
ornamentos exteriores da soberania: a am­ vida monarchiea: pois só havia meio d’ev i­
bição de dominar fez sustentar-se cada qual tar um mal cahindo n’outro? independente-
durante a menoridade d’um principe, e per­ mcnlc de recurso ao Céo e ao principio re ­
verter a sua educação, para quando che­ ligioso, que inspira o temor de Deus, á som ­
gasse ao estado d'abrir os olhos, d*uni lado bra do qual nunca os povos seriam mal g o ­
lhe obstasse a inllucncia adquirida pelos vernados, sem dúvida ainda temos recursos:
estados, c do outro o respeito, c ainda ter­ mas estarão no principio electivo? esse e
ror do mordomo do palácio, o fizesse viver sujeito a todos os inconvenientes da am bi­
quieto, satisfeito ou não, debaixo da autho- ção, a ponto de que devendo dar um rei
ridade d’aquellc por quem devia ser obede­ bom, nem sempre o-fez, e traz comsigo ou-
cido: uma similhante situação era violenta tl-o mal, a supposição da igualdade dc cla s­
ainda para os proprios ministros, porque ses, que é outro dos grandes transtornos
de hora para hora podia appareccr quem que podem vir á monarchia c a toda a or­
os derribasse do mando; por isso foram-se dem social: a nomeação do rei entre os mem­
prevenindo até poder derribar a dynastia bros da sua familia? essa está sujeita aos
Mcrovingia, substituil-a, c subtrahirem-sc á inconvenientes da afleição, e a estabilidade
influencia dos estados: as menoridades e c prosperidade dos estados só podem su b ­
uma educação má, por acanhada, são o pri­ sistir quando as entidades governativas não
meiro mal das monarchias, porque as con­ são dependentes do acaso para existir, m as
sequências necessariamente devem ser que, da natureza das cousas, c necessariamente:
durante cilas, e depois, os reinos venham os desejos de precaver, a todos esses males
a ser governados por homens ambiciosos, foi o que lançou ao meio dos estados a suc-
como aconteceu na decadência d’essa pri­ ccssão hereditaria; e para se gosar de todas !
meira dynastia dos francos; mas esse mal as vantagens que esta deve trazer, não ha a
não è o unico: ha outros nada inferiores, meu juizo, abstrahindo ainda dc procurar os
senão peores, originados da educação liccn- recursos cflicacissimos da religião, senão
çiosa c mesmo impia, direi, que se tem dado quatro meios, c com estes estou convencido
muitas vezes aos principes, porque d’clla que ninguem terá vontade de governos m ix­
resulta a tyrannia, faltando-lhes o temor de tos nem de repúblicas: l.° destinguir perfei-
Deus, e suppondo que tudo foi crcado para tamente as tres classes em que por força das
servir a seus appetites, quando ao contra­ necessidades sociaes se divide a sociedade,
rio os principes nasceram para se sacrifi­ c distinguir clara e precisamcntc as suas
carem sem reserva alguma ao bem estar attribuições em relação aos poderes do es­
dos povos; d’esta assim péssima educação, tado, c o modo de as exercer; 2.° obrigar
da ausência do temor de Deus e do amor com. emprego mesmo da violência, cada
da humanidade, vieram as adorações c pros­ qual a contribuir por meio do trabalho ao
trações aos soberanos na antiga*e moderna bem commum na vida social em que está
Asiá, d’onde passaram ao Christianismo, collocado; 3.° desterrar para longe, fugin­
chegando a fazer-se cscandalosaincntc den­ do-lhes como de peste, esses perniciosos li- >
tro dos templos, com desacato da Divindade, vros cm quo estão sanctificadas as doutri­
dos mysterios, c dos ministros do sacrificio, nas perversas dos juriscousultos c dos im ­
por se considerarem os soberanos como di­ pios, e aquellcs em que estão as leis dos
vindades, segundo se fazia no alto imperio pagãos, as postillas juridicas, com as obras
em dias do paganismo; e também d’isso vie­ de Machiavcl, Montcsquicu c siinilhantes;
ram os actos de deshumanidade practica- estabelecer novos codigos, cuja base sejam
dos pelos, reis idolatras, pelos califas c sul- as doutrinas do Christianismo, o amor da
tões musulmanos, e pelos monarchas chris- humanidade, e a justiça absoluta; fundar
tàos, arrancando vidas por suas proprias escolas cm que se aprendam todos os ra­
mãos, ou por alheias, só porque lhes des­ mos da historia e da philosophia; o com*
agradavam, e descuidando-sc da adminis­ metter exclusivamente aos alumnos d cilas
tração dos estados e de velar pela paz, pela o deposito sagrado da authóridade publicar
manutenção e pela saude dos homens, que 4.° e íinalmentc educar os príncipes conr
DISCURSO PRELIMINAR Í3 3

rigor, sujeitando-os a todos os incommo­ a si proprio um rei verdadeiramente filho


dos da cultura do espirito, insnirando-lhcs da vontade de Deus, como o poder é obra
ns idéias da justiça e da moral, costuman­ dc Deus. Os governos mixtos, do mesmo
do-os a supportar com resignação os traba­ modo que as republicas, encerram em si
lhos de qualquer ordem a que a humani­ o germen da anarchia e o principio da in-
dade está sujeita, patenteando-lhes sem re­ slabilidadc, e degeneram no despotismo,
serva as miserias das familias pobres, in- tendo passado uma grande parte da vida
culcando-lhcs a necessidade de rcmedial-as, na arbitrariedade: o exemplo de Roma pro­
concorrendo para que d’cllas se condoam, duzindo Sila, Nero, e Domiciano, devia es­
o fazendo-lhes sobre tudo ver que por sua tar tão presente como o da França, onde
condição não diíTerem do individuo mais hu­ um governo mixto terminou pclo*absolu-
milde" diante de Deus; que aqucllc indivi­ tisrno de Pepino c de Carlos o grande, que
duo, quando virtuoso, merece o amor da se não foram tyrannieamentc déspotas, de-
sociedade c os prêmios eternos, emqüanto vcu-o seu povo á poderosa influencia do
ellcs, se forem perversos, a execração dos ho­ Christianismo, c ao zelo c piedade dc seus
mens e os castigos do inferno; c que as pri­ Bispos e Saccídotcs, digam embora em con­
meiras qualidades do bom principe consis­ trario quanto quizerem. O dominio d’um só,
tem cm ser humilde, justo e prudente,.por­ que não tem mais a desejar, olícrccc a es­
que só d’essc modo será respeitado como tabilidade c o bem, emqüanto o de muitos,
imagem dc Deus, amado como os anjos que muito tem a pretender, está sujeito á
amam o Senhor, c como os filhos devem desordem c á instabilidade.
amar seus paes, porque assim constituirá

CAPITULO III

A cerca do estado do espãadto Iisimano


i

Entremos no vasto campo da historia da ao fogo, os physicos mechanicos a uma certa


intclligencia humana. Anteriormente ao força produzida pelas differentes partes dc
grande facto da’ nossa Redempção, todos os um todo, Democrito _c seus discipulos cha­
conhecimentos adquiridos pela natureza cor­ mando a essas differentes partes átomos, c
rupta cifram-sc no materialismo, panthcis- estabelecendo a necessidade dc sc reunirem
mo, sophisticismo, duelismo c mysticismo; e sc separarem, c Enicurio deixando-lhes
c depois d'cssc grande facto, cm se despre- a reunião c separaçao ao "acaso, todos el-
sando a revelação, não adiantamos mais, les excluiram em suas doutrinas a existên­
pois o desenvolvimento mais ou menos lu­ cia de Deus, Sér Intelligcntc è Poderoso;
minoso d’esscs princípios c novos termos mas para mim é notável que o fundador
porque tal desenvolvimento se explica, não da escola jonica, com os seus sequazes. fa­
tem novidade alguma; c as doutrinas mo­ zendo partir da idéia dc uma força vivente,
raes, deduzidas d’ahi, apresentam-se abso­ que .varia nas propriedades e fôrmas dc
lutamente conformes como é necessário: seus desenvolvimentos a explicação dyna-
apparcce entretanto uma contradiccão es­ miea da natureza, se afastassem por tal
pantosa ácerca do grande numero ^inven­ modo d’uma causa inlelligente. ou sujeitas­
tores e sequazes dos differentes systernas sem a Divindade a mudanças, segundo acon­
originados de tacs princípios, pois emqüanto teceu a Ita c b tp ; c não menos admiração
negam a existência de Deus ou excluem tenho, attendendô a quo, senão todos, alguns
d’ellc o poder dc crear e governar o mundo, do mesmo modo que :e ste ultimo, crescem
a justiça, bondade c misericórdia, uns con­ na Divindade, chegando muitas vezes a pe-
fessam a sua existência, c outros vivem uma notrar-se d’um respeito altamente religioso:
vid a sobria e exemplar, ou manifestam por quanto aos physicos mechanicos, não ad-
se u s actos o respeito que sc dcvcáscousas mittindo nascimonto algum propriamente
sagradas. Em relação ao materialismo: Tha­ tal, ou mudança de propriedades nem dc
le s imputando a crcação á agua, Anaxime­ fôrmas, segundo escreveu o sabio Schwartz,
nes, e Diogenes d’Apolonia ao ar, Heraclito acontece o mesmo, porque supponffôTõclõs
134 DISCURSO PRELIMINAR

a existência d’um único sér real—a mate­ e creador, c de que todas as almas huma­
ria— estes explicarão ào contrario dos pri­ nas eram uma parte integrante; eis ahi o-
meiros, a producção pelas relações exterio­ pantheismo, e d’ahi a apathia ou fatalismo
res apenas; mas apesar d’isso, um d’entre djesta seita, c sua austeridade pela razão
elles, por exemplo Empedocles, não só dava d imitar o Sér Perfeitíssimo, c não desdizer
culto aos deuses, mas era de costumes aus­ da perfeição do universo, que lhe provinha
teríssimos: os atomistas, modificando a dou­ da perfeição do author. Xenophanes, au­
trina mais antiga do concurso de difleren- thor da csçóIajl!Elea. com seus discipulos,
tes partes da matéria para composição e ao contrario da cscóla jonica, tendeu a um
decomposição do mundo visivel, estabele­ espiritualismo exclusivo, segundo Schwartz;
ceram um novo systema, dando a essas dif­ e não reconhecendo realidade nos séres su­
ferentes partes os meios necessários da pro­ balternos, se oppôz aos sectarios de Thales,
ducção e destruição sem auxilio d’agentc que em seus systemas negaram a existên­
externo; apesar d*isso, se me não engano, cia do Sér Soberano, como disse Rohrbacher
acharemos nos proprios clamores de Demo­ acerca de Permenidcs: os elcaticos consi­
crito contra a existência dos deuses, o grito derando a Deus Sér unico, negando á ma­
de sua consciência acerca do Ente-Supre- téria toda a realidade, suppondo que os phc-
mo, porque a depravação dos outros ho­ nomenos eram apenas percepções do espi­
mens o levou a proferir blasphemias, ao rito, não admittindo ao Homem destino nem
revés dos modernos incrédulos que o tem deveres, não podem escapar da nota de
feito por sua propria depravação; e com pautheistas.
respeito ás protestações d’Epicuro nos tem­ Póde conceber-se o motivo do materialis-
plos, não entendo qiíe possam provar algu­ mo de Thales, de sua escola, c dos atomis-
ma cousa pelo motivo da sua hypocrisia:^ las, como do pantheismo dos stoicos, mas
até aqui sobre materialismo antigo. Desde qual se dará do aihcismo do Phvrro e dos
que a Grécia imaginou a eternidade da ma­ scepticos? A superficial idãclo a esta seita
teria c a possibilidade da creação indepen- esta demonstrada, porque, procurando seus
dentemente d’uma causa intclligente, nunca professores a verdade não a encontram, e
mais deixou d’apparecer algnma cousa do perseverando na dúvida recusaram princí­
materialismo nas doutrinas philosophicas, pios fixos, por isso a realidade nada foi para
exclua ella absolutamente a Deus de todo elles, reprovando toda a extineção-a não
o concurso na formação e conservação do ser nominal; segundo elles a existência real
universo, ou o confunda com a materia: no do universo era um problema, e nulla a
primeiro systema convieram em geral os diíTerença entre a virtude e o vicio, como
jonicos e atomistas, c o segundo, admittido já tive óccasião d’expor; nias que se dirá
por alguns dos primeiros, foi a base da dou­ de Protagoras. Gorgias. lip p ias, Eçpdico,
trina dos stoicos: Zenon de Cittio, adversa­ Theodoro do Bysancio com seus discipuíos,
rio d’Epicuro pela austèndãdc de vida e metiendo iu ü o a ridículo, fazendo por outra
princípios moraes, e pae dos stoicos, sentiu parte consistir a sciencia na mentira, e en-
que Deus é o elemento activo, e a materia sinuando-se por ineio d’uma enganosa elo­
o passivo, por isso reconheceu a Deus como quência? os anteriores philosophos, embora
author dò universo, mas que Deus e o uni­ seus caminhos errados, procuravam a ver­
verso eram um todo á similhança do corpo dade de boa fé, e os proprios scepticos, posto
humano, de que a alma era sér intclligente que mais modernos, c podendo acceitar
seus conceitos, não foram tão torpes; nas
V ' Mais d'uma vez tenho sido'testimunha mãos dos sophistas tudo se aniquilou: a
de contradicções similhahtes, que não me­ existência dc Deus e do universo; o crime
recem outra resposta senão o silencio. «Pe­ foi defendido, e a innocencia accusada!—
los princípios da philosophia a razão das cou- «Se alguma cousa existe não se póde com­
sas é esta, mas aos olhos da religião passa-se prehendor, e se se comprehende não se póde-
tudo d’outro modo» dizem!!! E sta m iseiia é explicar!»
filha da mais supina ignoranda, ou de negra Tal foi a sua doutrina; mas apesar d’isso-
m á fé: no Christianismo só os altos mysterios havia para elles duas cousas reaes, que
são superiores á razão, posto que sua pos­ vinham a ser a lei humana c o uso da pa­
sibilidade por ella .se prove; mas auanto aos lavra para fazer variar as opiniões sobre
factos da creação, leis que regulam o uni­ direito, segundo suas conveniências! Socra­
verso, sêres que n'ellc habitam, decadência tes, o homem mais sensato da Grécia, ensi­
do homem e seu destino, va i tão longe a sa nou a existência d’um Deus Supremo, in­
philosophia como o Christianismo, e andam visível em si, visivel em suas obras, Sobe­
de.pleno accôrdo. rana Intclligencia, que formando o universo
DISCURSO PRELIMINAR 13!
o conserva o governa por meio de deuses phenomenos estes tres princípios, mas no­
subalternos igualmente invisíveis, e que tou cm todos uma ligaçao de relações e um
creou o homem, o tracta com bondade de fim geral, attribuiu o seu cncadcamenfò e
pae, c premiará ou castigará sua alma im- a formação de todas as partes do inundo e
mortal; mas ao lado de tudo isto, acceitando suas relações á Intelligencia Suprema, que
a doutrina d’Anaxagoras, em parte, sobre a regulou a força motriz, estabeleceu as re­
formação do mundo, resentiu-se da eterni­ lações e ligações entre todas as partes do
dade da matéria, por quanto a unidade que mundo; fez da alma humana uma porção
reconhecem em Deus refere-se á qualidade da Intelligencia Suprema, separada d’clla
de sér Puro e Intelligente, e n’essa hypo- emquanlo está unida ao corpo; e suas dou­
thesc abraçou o duclismo; Platão, o homem trinas moraes produziram homens d’uma
mais sabio da antiguidade, partilhando boas vida regularissima: explicando tudo por nu­
idéias, como seu mestre, creou na eterni­ meros, deu a conhecer a Intelligencia Su­
dade da materia com clle, mas considerou prema pelo impar, indivisível, absoluto, prin­
a Deus como causa primeira, formando a cipio de todas as cousas, que rege tudb,
alma do mundo, principio de todas as fôr­ sèr determinado, eterno, permanente, im-
mas corporaes e de todos as almas: das dou­ mutavel, similhante a si, e di (Terente de to­
trinas precedentes da escola jonica e dos das as cousas, mas que não pôde fazer puro
atomistas se concluo que se attendeu á o mundo pela intervenção do vacuo na sua
formação material do mundo por agentes formação, mas esta intervenção colloca o
do mesmo todo, dando-se ou não intelligcn- fundador da escola de Crotona*entre os dua-
cia a cssps agentes, mas na hypothese de listas: de todas as doutrinas de que eu até
Socrates c Platão o agente difTere, o operá­ aqui tenho tractado n’este paragrapho, a
rio é differente da obra, attendendo-se por mais sensata c a do dualismo puro, porque
isso não só á formação material, mas á con­ despresadas ou esquecidas as tradições
cepção da ídeia; entretanto que Aristóteles primitivas, difiicil era ao homem conceber
querendo dar outra fôrma ao systema de como o Ente Peçfeitissimo e Indivisível po­
seu mestre estabeleceu um Deus só occupa- dia crear um sèr imperfeito e divisível como
do de suas perfeições, e sem cuidado nos ho­ a materia, posto que lhe não era impossí­
mens e no resto do universo, que foi creado vel entender e mesmo explicar porque im­
não porque Deus qúizesse, mas pelo facto primiu fórma á matéria.
da existência de Deus; n’esta só hypothese Conforme Dcgerando, o mysticismo orien­
suppôz a Deus primeiro motor, c deixou á tal fundava-se n’estcs elementos:— Deus,
naturez^1 o restante, considerando-a como luz primeira—dous princípios do bem c do
fórma unida á materia desde toda a eterni­ mal—desenvolvimento da substancia divi- /
dade; demais d’isso toda a sua moral se es- na, e sua emanação progressiva—hymeneu /
tribou nas conveniências individuacs e so- mystico—genios ou espíritos superiores e \
ciaes; pelo que devemos reconhecer em Aris­ attributos personificados— instrumento da ^
toteles o author do deismo. Mais antigo é creação distincto do creador, emanado d’elle,
o systema pythagorico, que não examinava o verbo, a sabedoria, o homem primitivo e 1
os phenomenos physicos debaixo do ponto celeste—região intelíectual, e communica- ,>
de vista material, porém antes pelo contra­ ção da alma pelo extasi com a Intelligen- {
rio, e se destinava a indagar as leis e a har­ cia Suprema: na Persia Zerouane Akéréné J
monia nos princípios do mundo, debaixo do ou o Senhor de todas as 'éõusas, ô^Tõfllpo f
ponto de vista moral do bem e do mal; Py­ sem limites, o eterno, que produziu Or- \
thagoras, segundo disse o abbade Pluquet, muzd, o author do bem, o principe da 1
admittiu no universo uma Intelligencia Su­ c Ahriman, o author do mal, o principe das I
prema, uma força ipotriz sem intelligencia, trevas; Ormuzd produziu seis entes para
e uma matéria sem intelligencia, sem fór­ dirigir a creação, grande numero de che- j
ma, e sem movimento; suppôz em todos os fes e soldados do exercito celeste, o os ge- ]
nios tutelares ou anjos da guarda dos ho- )
\ 1 Em grande numero descriptos, nas es­ mens; Ahriman produziu demonios de que j
colas e conservação, apparece essa palavra sete se reconheceram os principaes: essas j
como synonimo da Divindade, ou vara sub­ duas legiões deviam combater d u r a n te jo -;
stituir esta. Desde muito creança reflecti ze mil annos, e o homem que peccara se-
que havia no emprego de similhante termo, duzidõ^põFAhriman e pela mulher, devia
intento de retirar das mãos de Deus a obra tomar parte na contenda ao lado de Or­
da creação; hoje serve-me para conhecer os muzd para não ser por elle punido: depois
sentirnentos religiosos ou a scienda daquel- da lucta, o reinado de Ahriman passou, Or­
les que fazem uso de tal termo. muzd reinou só, e a luz appareceu em toda
m o o u n o v 1'llHM M liSA U

a parte; Ormuzd, com o seu exercito, e elle. 1 Na China, o Tão (o verbo) ó princi­
Ahriman, tornado bom com suas legiões, pio, meio c fim doTodas as cousas, sem
oíTereceram sacrifício commuin ao Eterno, nome, porém existindo antes de todos os
e tudo se consuinmou; Ormuzd é o princi­ séres; antes do cáhos, que tem precedido o
pio e centro de todas as cousas, o que é, que nascimento do Céo c da terra, existia elle
é tudo. e conserva tudo, ao mesmo tempo é só, Sêr immenso, silencioso, e immutavel
o verbo da bondade, nascido da semente do agitando-se sem se alterar: o homem se re­
Eterno, produzido pela mistura da agua pri­ gula segundo a medida da terra, a terra
mitiva com o fogo primitivo, primeiro dos pela do Céo, o Céo pela de Tão, e este pela
seres, a sciencia, ò uispensador da sciencia, de si mesmo, rcgulando-se assim o universo
c a razão de tudo, a quem o Eterno propòz inteiro por elle, que é a razão eterna; elle
como rei por doze mil annos: segundo isto, produziu um, este dous, este tres, e estes
nào parece bem definida a natureza d’Or- todas as cousas, isto é, um mudou o nada
muzd, porque, como bem notou o abbadc, em sêr, os dous são as duas regras primor-
Rohrbacher, ora se identifica com o Eterno diaes, os tres essa mesma dualidade com
ora nào; entre os sòrcs produzidos por Or­ a harmonia, finalmente a unidade dos tres
muzd, o deus medeador dos persas, Mi­ constituiu tudo; as doutrinas prácticas que
thras é o author do sol e seu guia, que levou acompanhavam estas theorias eram sãs, por­
0 nome de demiurgo ao crcador, porque que tendiam a formar o coração pela mo­
disse expressamente haver formado o mun­ ral, c regulavam o sabio na contemplação,
do, e ser author da crcaçao. vivendo solitario, ao menos por certo tem­
s Na índia, Brahrn ó o Eterno, o sêr por po, applicando-sc a conhecer a verdade c a
' excellcncia, o mundo, o seu nome e a sua purificar suas acções pela virtude, e empre­
imagem; mas essa existência primeira, que ga udo seu tempo a pensar n’estc Tão. No
contém tudo cm si, é só a realmente sub­ Egypto não diíTeriam as doutrinas das rece­
sistente, todos os phenomenos tem sua causa bidas na índia ácerca da Divindade, esta­
em Brahrn; este nào c limitado nem pelo belecendo como lá, a metempsycose, as alle­
1 tempo nem pelo espaço, flnpcrecivel, a al- gorias, as personificações dos séres, das es­
Inia do mundo e a de cada ser em particu­ tações, dos ventos, ou melhor, transfor­
lar; o universo é Brahrn, vem d’elle, subsiste mando-se a Divindade, manifestando-se c
iTellc, e torna para elle; o sêr existente por reproduzindo-se em tudo. «Em uma pala­
si, a fôrma da sciencia e de mundos sem vra, disse o abbadc Rohrbacher, servindo
fnn; todos os mundos são um com elle, por­ todas as verdades de fundo a todos os er­
que existem por sua vontade; esta'vontade ros.» Eis-ahi como a corrupção, operando
eterna é o começo em todas as cousas, reve­ com toda a sua força sobre a intclligcncia
la-se na creação, na conservação e destrui­ humana, despresadas ou esquecidas as pri­
ção, no movimento e nas fôrmas do tempo mitivas tradições, estabeleceu, por meio
e do espaço; Brahrn é o sér supremo, que do estudo c dos esforços do espirito, dou­
: revelando-se como creador é Brahrn, como trinas mais ou menos absurdas, chegando-se
conservador é Vichonou, e como destruidor ao resultado d’excluir das suas obras a
é Siva; a cada sér d’esta trindade sup- Deus, suppondo que elle não existia; de o
posta se attribuiu uma mulher, e d’essas identificar com o universo; de duvidar da
tres juneções foram produzidas milhões de sua existência; d’cscarnecel-a! de conside­
divindades subalternas; mas todos os mun­ rar sua obra tão antiga como elle, reputan­
dos e todos os séres nào fazem mais que do-a sem existência real, ou com esta; de
um com o Sêr Supremo, porque existem dar-lhe acção sobre a materia, ou de ne-
por sua vontade; Deus só tem realidade es­ gar-lh’a; d admitlir o seu governo, ou de
sencialmente subsistente, e o resto compa­ separal-o totalmente dos homens e do uni­
rado a elle é como uma negação, a razão e verso; e d’explicar a sua existência o a sua
a virtude,_querendo que se destaque de todo obra debaixo do só ponto de vista religioso,
o resto pára se unir a Deus e fazer cora divinisando os séres creados, e fazendo-os
<elle um mesmo espirito: tudo isto atten­ parte integrante d’elle. Resta agora appli-
dendo á letra da prece indica «eu sou Deus» car essas doutrinas aos systemas que vigo­
importa um pantneismo ainda mais absurdo ravam ao tempo do Sacrifício do Calvario,
<jue o stoico: para practicar a vida mys­ e aos que nasceram depois d’essa época.
tica de modo o mais perfeito, os brahmas 2—Não appareceram depois da Redem-
s e retiram á solidão para conhecerem a
Brahrn; que é a luz das luzes e a sciencia 1 Não pertence aqui o systema das en­
das sciencias, porque só por meio da con­ carnações, porque c p o stm o r ao mysterio
templação se conhece se ha união e com do Calvario.
DISCURSO PRELIMINAR 137

pção do genero humano, por mais que o pre­ vos, fanaticos, c misanthropos. Pela Grécia,
tendam, idéias originacs; assim como n’cs- Itoma, e Alexandria, eram^ntão dominan­
scs antigos systemas se encontram muitas, t i os systemas antigõinia phiTõsoplna mais
reproducçòcs nos que seguiam essa época,
não ha outras novidades senão modificações,
se . cxccptuarmos cm alguns dos chamados
sábios inimigos do Christianismo, uma muito
notável pertinacia, uma muito mais refi­
nada maldade, c uma muito mais subida
corrupção; c noutros mais ignorância, mais gia7T;nt(»nil<»u'.-cmn APTTüllomo Ue Tlnana a
superficialidade. Penso que aos olhos des­ fr'ente, imitar por cila esses milagres. i7~vi-
prevenidos de qualquer pensador não se ycr urna vida mais perfeita, qual a d<tscluis-
apresentarão conceitos differentes d’este; c tãos, segundo disse Pluquct. Entre as no­
como eu poder entrarei n’cssc exame, quan­ vas creações viu o primeiro século de nossa i
to este cscripto o comporte: sem grande era uma'mistura dos systemas orientaes, e ,
trabalho se encontrará no fundo de todos do pythagorico e platonico, com os livros e1*
os systemas que vogavam ou se crearam de Moysés, como no systema de Philo, ju- ^
depois do primeiro século christão, o ma- deu d’Alexandria, c um dos homens'mais
tcrialismo, o sccpticismo, a sophistica, o sábios do seu tempo, que seguiu as traças
dualismo, e o mysticismo, cm os descreven­ d’Aristobulo, e principalmentc se fundou
do: entremos na primeira época, que leva­ nas doutrinas de Platão, dando-nos uma
rei até serem prohibidas as escolas da Gré­ obra de merito, e de que podemos obter aj-
cia por Justiniano. Principiando nela Ju- gumas luzes; c d’esscs mesmos systemas
deia, topamos com os sàfluccos,cuio.systeina com os livms-de Moysés. c com a doutrina
sTfuBfláva'nos livros de Moysés, maUnter- de Jesus Christo, apresentando-se no campe
PTetad^_aJiajiQUli3ãJosittümistas,-poiv da lucta seus authores c sectários com c
que^acccitando-dluiti-ladQ- que. D.cus cr_eou mais enthusiastico fanatismo, c consideran­
ojnm:ei'sOvOgovciaiaqwrsua_pr.oviclencia, do ao Salvador, uns como um genio que
c que favoreceu os israelitas cani-granilis- desceu do Céo, outros como um homem
simo j uwlcro 7fc prodigios; dloulro-erératn mais perfeito que os outros, e dirigido por
quc^j3„penas--por^llej3stahelQfiidas-qiai'a um genio celeste: PQi^-üxemplo Simào o
castigar o, homem, se referiamua-esta-vida, inago.pacd ^ tMin^fie!!^!^^?»/, dcsi mesmo .
e eram puramento temporaosr pnrque-sup- o VorlMPcTe-Iíens- o Parael(>to. o Todo-Po-
nòzêrani a alma humana apenas.nma,pro- derosúllQ -toadnrirtiitclligeucias, uma das
piiêdadc da bruanisacão,,,do-.corpQ^e--Por imiiis penetmn n seu desisnio da formação
isso, que com elle morre: com os phariseos, ddmmukL.
oj c produziu os amos e os outros
qüe adnultlnclo além dos Íivros is cie Movsi'
_ espíritos, uue tormarãm XLiuundo, e ttüil se
as’Tní(TTçoes verdadeiras ao revés d\aqucl- TSzercm Cfllisírlarnr onTrjft supreiqOS,
les, lhes ajuntavam grande numero de ri- prenderam sn;i___ mãer fi^rai"-11^e^jiurajcs,
nhrn)egJ
dícularias: o ao mesmo moaojiiie mtorpre- htrocliutfftm-sb no corno d’uma mulher,
tàvaTrnillorali'iiehtõ~o~s iivrõssanctos, o fa­ 3 aé~Síit!üln para see.nlo a fizeram passar a
ziam à doutrina de nmiagoras, reconhe­ out.ro eonpo: cllc havia d’acabar o mundo,
cendo alnetempsycosc, como os egypcios e não dava salvação senão aos seus disci­
e_índios: com ós essenos, que admittiam a pulos, que soltos das cadeias do corpo, go-
i nunortaljdade d a ^ 5na„CQntra„os.A)omei- savam da liberdade de puros espíritos: Cèr
ros. e regõnãvãml i s tradições contra os rintho. iudeu antiocheno. que ouviu os Apos-
segundos, emquanto adoptavam_asjlouii;i- toIõsêiO erusarem, estabeleceu um ?JLr Su-
uas~stõicas~sobre a natui:eza.e.espmtuali- prfvnTfwjuftMoi origem dãTexistência,.pro­
dáíSêHaralmã,' porque solta esta das prisões duziu espiritos, poderes ou gemos, com aif-
do cõrpoTsc tornava pura cõmo TTantcs, e ferentns. g paps de. perfeição, 0 ümã~ certa
não"mTresponsayel pòr.lçrmicg^passafips • yirinde-Qu forçtwnotriz qi^ rcguloii áTina-
IWlIIIWIA-W| |IUHUVt os~~ariios
o_s~dõminios d’esta seita estendianbse_des_de. terin. fprmou.o_múnclo, UUJVJ VouU genios
na^Tiíb^JEigy- 'teiTÊStes para governar o m md o c o slio -
pto, vivendo s.eus. professores na solidàcL e ihSnsui^ à c c r n t r ^ o^consi-
dçcau^òn^rdlíõ^^cfir-los~ee~M ãria,m as
nuo fo iu n T EiTtOao privilegiado, üue no
ifint^mjLdeiasjmais.5J,ib sen baptismo, o üfirl^t5r~d^ilhTrumco
turezadl\.alma; .e. canxo.^ êraneutas, frac- do Deus, desceu sobre~êUo em figura de
_______________
çãOõs_ess.QiiQSJjn, que "(Pèllcs soü íiTe- pomba, o l ho jovêlóú^õ^cõnhecimcnto do
r ençavam por Absolutamente contempláti- Pae, uuccTle annunciou aos IiõméntrcTor

S <*cIo(ajlçQ
rvj
138 DISCURSO PRELIMINAR

virtude do Christo obrou Jesus milagres: dignidade perderam o privilegio de puros


Menandro, discinnlo de Simão o mago. espíritos, c ficaram obedientes aos crcado-
depois da- morte de seu mestre, cstaben?- res dos corpos: que Jesus Christo foi um
ceu novo systema, cm que reconheceu um Ente mais favorecido de Deus, com força
Sêr eterno’ c necessario, accre^rnitando, para resistir aos anjos, c subir ao Ceo, ape­
que nada se sabia do Sèr SupfemJ, senao sar da má vontade d’ellcs, e que Deus deu
que era a fonte da existência, e \f g r ç a por- a mesma graça a todos os que o imitassem;
quçtudo existe; o mundo deveu ã sua exis­ por isso que todos os homens o podiam imi­
tência aos genios que sahiram do Ser Su- tar e merecer a gloria de que elle gosou:
remo; uns d’estcs, por impotência ou mal- ao contrario, antes d’cllc, Saturi no havia
S adc encerraram a alma humana dentro dito que Jesus Christo era filho deiDeus, e
de orgãos em que soffre a alternativa con­ enviado pelo Pae para salvação dos homens,
tinua dos bens e dos males, c que os ou­ porém attribuiu a um corpo phantastico; e
tros bemfazejos, tocados da desgraça dos sua severtdado-de^CQstumes o levou a que­
homens, pozeram recursos contra esses ma­ rer impediji_a geração humanaT Valcntim
les na terra; mas como os homens os igno­ desenvolveu uma producção dè cur.s iao
ram, ellc, Menandro, foi enviado por esses tranha, imaginou casamentos, desordens, e
genios bemfazejos, para lh’os descobrir; o contrariedades ao Sêr Supremo, que talvez
seu segredo consistiu n’uma cspecie de ba­ ninguem soubesse corromper melhor os li­
nho magico que fazia tomar a seus disci­ vros sanctos pretendendo applicar-lhcs os
pulos, chamado verdadeira resurreição, por­ conceitos mythicos do Oriente; o espirito ou
que, não envelheciam, segundo elle, os que demiurgo, que habitava na região luminosa,
o tomavam: Basilides, ouíiiQ^disciiíiikLjlc ê o creadbr que residia na terra, compos­
Simão o mago, suppoz que o mundo não tos de parle animal o parte espiritual, não
Í foi immediatam ente creado por Deus, mas conheciam o Sêr Supremo, c queriam ser
por inlelligencias que elle produziu; do Sêr considerados, como Deus, cãda qual em sua
Encreado saliiu a Intelligencia, d’esta o ver- habitação; o Salvador, que foi enviado pela
\ bo, d'csfe a prudência, d’esta a sabedoria intelligencia para livrar Achamot das pai­
c o poder, d’cstes os anjos de differentes xões, e o Christo que reuniu a forma á ma­
ordens até trezentas sessenta e cinco, a pri­ téria, separou a luz das outras paixões, e

i meira das quaes creou o Céo, e assim pro­


gressivamente; o seu systema moral, como
o de todos os gnostiços, fundava-se n’cssa
theoria das emanações, considerando-se per-
feTtcTÕSér Supremo, de que os particulares
fez apparcccr a terra; assim sua formula de
baptisar, como todas as noticias que nos
deu de Jesus Christo, importam ainda muito
maior extavagancia: Cerdon reconheceu o
Sêr Supremo, que produ^TTfi^piritos menos
sahiram; e um dos seus erros capitaes acer­ perfeitos que elle, mas que foram fecundos,
ca do Salvador, era que elle n ã a jnorreu, produzindo uma infinidade de gerações, for­
porém Simão (Pyreneu, e que os martyres maram o mundo, e causaram todos os acon­
( não morriam por Jesus Christo, mas por tecimentos sobre a terra; e como o mal re­
Simão Cyreneu: os nazareos, que imputa- pugna á natureza do Sêr Supremo, para se
/ r nm aos judeus e aos cnnsiaos interpre- livrar das difliculdades, admittiu, no prin­
tar mal a doutrina dos livros sanctos; uns cipio do bem e do mal, o dualismo; por este
vTOimi 'Uilirrvldírpirrure outros replitando modo, suppondo boa a lei dos christãos» a
a alma incapaz de se corromper com o corpo, deu como obra do bom principio ou bom
se entregavam sem escrupulo a todos os genio, e a Jesus Christo que a annunciou,
^prazeres sensuaes; e os ebionitas, que os fez passar por filho d’estc genio, e sem corpo
seguiram, roieitando^ão contrario líLuJTês verdadeiro mas apparente; rejeitou o Ve­
todo o reino fêsiamento excepto o Penta- lho Testamento, e do Novo so admíítiu o
ÜÕ! gnostiços
teuco. jNo século 1 ° os erros aos EvãngêlhoIdi"5. Lucas: os ophitas preten­
do*antecedente passaram a este, divididos dendo que a sabedoria se communicava ao
■Co em seitas, porque uns como nicolaitas do homem debaixo da figura d’uma serpente,
tempo dos Apostolos, e como ramo dos na- com verdade ou sem ella, passaram por ido­
4/fcci$ zareos se davam aos prazeres sensuaés, e latras: Montano, um dos grandes hypocri­
só admittiam a resurreição espiritual, visto tas que tem apparecido sobre a terra, e que
que o mysticismo por elles adoptado devia se fez passar pelo Espirito Sancto Paracleto,
levar a essas consequências: tal foi com ou­ que Jesus Christo prometteu aos Apostolos/
tros Cnrpncrates. addiccioriando ao syste­ e não fallava senão de martyrio, penitencia,
m a geral, que as almas humanas estão uni­ continência e jejum, entendeu que era ne­
das aos corpos, porque se esqueceram de cessário guardar mais duas quaresmas;
Deus, e degredadas assim de sua primeira disse que a Igreja não tinha poder de per-

CíA / íLoA/V'
DISCURSO PRELIMINAR 139

doar todos os pcccados; condcmnou as se­ alheias de seu espirito: Paulo dcSamosates
gundas núpcias; c apesar de suas suppos- negou finalmente a Divindade ac Jesus
tas austeridades, com que cnganoiLojirp- Christo, a quem, segundo elle, a sabedoria
prio Tertulliano, sua vida naCT se confor­ foi communicada extraordinariamente; c
ma va com o que por suas austeridades que­ para dizer que na Trindade não havia tres
ria inculcar: Theodoro de Dvsangio confes­ Deuses, serviu-sc d’outros termos novos e
sou que Jesus Christo nasceu d’uma virgem absurdos, tres attributos, pelos quaes a Di­
por obra do Espirito Sancto, mas sem al­ vindade se tem manifestado ao homem, sup-
guma prorogativa além d’uma vida sancta pondo uma só pessoa: Manes, que se quiz
e uma virtude mais eminente: por ultimo fazer passar pelo Espiritolsancto Paracleto,
terminarei acerca dos gnosticos com o que atacou a bondade e unidade de Deus, esta­
d’ellcs escreveu Degerando: («O primeiro belecendo os dous princípios do bem e do
/principio, segundo clles, c a luz primordial, mal, o velho dualismo: porque, segundo
\ fonte de toda a luz; o cahos, a rcgiào das elle, se o diabo fosse crcado por Deus, se­
trevas, occupava os profundos abvsmos: um ria consubstanciai a Deus (o que podia ser
liymcncu myslcrioso c fecundo unia o Sér verdade, se o systema das emanações fosse
Supremo, a alma celeste, mãe de todos os também uma verdade); e tirando* a liber­
sêres, ao principio da luz: um sequito de dade ao homem, deu a Jesus Christo um
emanações transmittia gradualrnentc uma corpo phantastico, reprovou as bodas e o
vida menos perfeita; a ideia emanada do uso da carne c do vinho, como tendo por
Pac Universal, o segundo homem, o homem author ao diabo: a par d’estes, Novato e
mortal, formou-se sobre o lypo do homem Novaciano. recusavam absolver os pecca-
ideal ou celeste; os sete principaes poderes dores que haviam prevaricado em artig
foram personificados em sete anios ou in -, de Fé, condcmnavam a Confirmação, ;
telligcucias supremas, que correspondiam ceremonias precedentes ao Baptismo, e
aos sete planetas, e os animavam; uma lu­ segundas bodas: emfim, dous grandes li
cta dos dous primeiros princípios se agitava mens. oue o Christianismo respeita’nò,qi
' inccssantemente na região dos sêres -inter- ensinaram dcJTom, Tertulliano, que se de
Mnediarios.» Quando este século estava a ter- xou arrastar á confissão dos erros de Mon
í minar, lançava Ammonio-Saccas. cm Ale- tano, levado de suas oppostas severidades,
I xandria, os fundamentos da escola nconla- porque para essas tendia muito; c Origenes,
tomea. que, disse um sabio, depois de ter ácerca de quem houve questão sobre uíTTc-
sympathisado com todas as doutrinas e todos rentes erros, principalmente sobre a pre­
os usos reputados barbaros, os venceu; mas existente das almas c da restauração de to­
o Christianismo lhe resistiu e o ameaçou, das as cousas, quando Jesus Christo entre­
porque inflexível cm seus princípios, e do­ gar o reino a seu Pae (porque isto não c
minando a civilisaçào grega, de mais em senão orientalismò puro, sobre as idéias da
mais foi ganhando terreno sobre' essa es­ mctcmpsycose, c do reino* de doze mil an­
cola; o pensamento do fundador esteve em nos): o neoplatonismo, que pretendia em
r1V r nnlP plaJ?Tn * Aristoteles nos pon­ resultado de seus esforços reunir todas as
tos principaes; mas nos séculos seguintes religiões e todas as seitas philosophicas,
veremos o resultado de seus esforços. En­ para o combater e a seus discipulos, susci­
( trando no 3.° século, deparamos com as se­ tou Deus na escola ecclesiastica ^Alexan­
guintes novidades: o mysticismo oriental, dria um sabio que nada ignorava das dou­
reunido com a philosophia da Grécia ás dou­ trinas d’essas seitas, S. Paqtenp, om estre
trinas judaicas e ao Christianismo, vigorava do illustre Clemente elToutros granflejl\o-
ainda n’este; porque Praxeas, Noet e Sabcl- mens que se oppozeram a essaLescólate-
lio não viram meio deseclescartar da mul­ nn v e ld o paganismo.V^xpíícaram~ds'"flo-
tiplicidade de deuses, senão admittindo cx- gm asda Igreja pelos termos philosophicos,
clusivaménte a unidade; e disseram que quanto podia efleituar-se: Plotino. discipulo
toda a distineçãb das Tres Divinas Pessoas e successor d’Ammonio, querendo levar as
era nominal; segundo elles,Deus resolvendo cousas por caminho differente de seu mes­
salvar os homens, se chamava Pae; descendo tre, aproveitou-se dos conceitos mythologi-
sobre a terra ao seio d’uma virgem, c pa­ cos, admittiu o inagismo, que esperou po­
decendo a morte da Cruz, se chamava Fi­ der justificar pefiTsympathia universal de
lho, e derramando suas graças sobre os pec- todas as cousas do mundo sensível, porque
cadores se chamava Espirito Sancto; isto essas cousas, conforme elle, apresentam em
não foi mais quo accommodarem na essên­ tudo o amor e o odio em opposicão um ao
cia e nas circumstandas as doutrinas ve­ outro; e em relação á práctica, a base d’esta
lhas ao Christianismo, quaudo eram muito escola era a identidade da perfeição intel-
» S ca-C£-«AyJ ^ClvJLc (At
CWfc/ô ) \ VaA.'- PWv «
v/VÍ0 l Q/\A-
140 DISCURSO PRELIMINAR

lectual com a moral: scguiu-sc Pornhirio. tenteado: qs noonlatoniros continuaram seu


que so declarou o philosopho, o Sacerdote systema, p.or...EflLçsio, Crysanto,’ e MaxiíjTb;
do Deus Supremo, cmquanto os do culto m aS ãs doutrinas de Plotino o Porphyrio
antigo o erani'flas divindades inferiores; re­ foram dccahindo, c appãrecêndo tendên­
conheceu a existência c o poder d’estas di­ cias para as formas oratorias. Pelo século
vindades; procurou demonstrar uma c ou­ 5.° continuou do mesmo modo. que antes,
tro, e estabeleceu a relação dos deuses su­ a philosophia, das antigas escolas a servir
balternos que compunham a numerosa gc- de base aos erros que vexaram o Christia­
rarchia dos genios com o Deus Supremo, nismo: Pelagio negou a necessidade da graça
Incorporeo, Immovel, c Indivisível; adrnil- para a salvação, c o pcccadó original *"Nes-
tindo assim a ligação do culto antigo com torio põz duas pessoas em Christo, dizendo
as doutrinas philosophicas, justificou as ce­ quc H blvluuauc habitava ifellc como cm
remonias c sacrifícios do paganismo, mas um templo, pelo merecer, em razão de sua
esteve sempre cm òpposiçào aberta com o vida incujpavol, c que a virgem foi sua mãe,
systema theurgico de seu mestre c com o e não mãe de Deus: Eutichcs. oppondo-se
Christianismo; Jambelico accoitou contra a Nestorio, negou duas existências em Chris­
Porphirio a theurgia, cslbrçou-sc pára esta- to, affirmando que a carne se converteu na
. bclccer um systeiná de theologia polythcis- substancia da Divindade desde o instante
tico, c sustentou que as estatuas dos deu­ da Encarnação; foi seguido por Dioscoro.
ses eram dotadas de força divina, porque que o defendeu com pertinacia, e por P&
esta estava espalhada em tudo. No século dro Cnaphco, invasor da Cadeira Patriar-
4.° os erros comecaram pelos donãtísTas, clíãl (TAntiochia, o qual ao trisagio San­
luõljigg.ayain a validade dos Sacramentos ctus acbrcscentou qui passus est pro nobis,
i'ados ncIoFlnã\ij7ir~cTeram due a Igreia para declarar que a Divindade padeceu, e
ãò era composta senão de justos; no fundo não a natureza humana: Vigilando final-
oderiios encontrar esses sentimentos em mente condcmnou. os jejuns, as vigilias, o
fontano. A rio, o mais prejudicial dos he- culto dos Sanctos, c ó celibato, declaran­
reges antes de Dliocio-e Luthcro. não que­ do-o fonte da impureza; estes c outros er­
rendo cãliir no erro de SabêíTio, mas pre­ ros d’este sectario parecem argumentos de
tendendo fazer-se notável, negou a Divin­ escarneo, e quando não tivessem outra ori­
dade do Verbo c sua Consubstancialidado. gem mais directa, era bem facil achal-a na
tendo d’csse modo a Jesus Christò por uma escola dos sophistas; c por similhante modo
pura creatura, porque era repugnante a encontramos o manancial de quantos o pre­
idéia da monade na triade, c da triade na cederam n’cste século entre as doutrinas
monade, a seu juizo, no sentido cm que gregas, sem que seja necessario fazer con­
eram tomadas essas idéias: Macedonio. frontação especial de cada um para ver quem
Bispo bvsantino, negou que o Espirito San­ lhe serviu cfexemplar: pouco durou a_çs-
cto fossè consubstanciai ao Pae e ao Filho, cóla d*Alexandria cheiraníín-aTsua-iotãrde-
porque cuidou que não estava expressa na caciencia: e se .conüeco_o seu insignificante
Escriptura sua Divindade: como Ariano não merito no Commentario ch Sijro. mestre dc
admitlia a Divindade do Verbo, por iü o re­ Proçulo, i pio-plantou em Athenas o .syste-
jeitou igualmente a do Espirito Sancto; e bem niaji^QplatQüka» e^üIjS^etubuIpojL^eus
notável se fez, não só pelo seu erro, mas pe­ discipulos, até que prohibindo Justiniano o
las notáveis perseguições, a quem por esse o ensino 7fa pfiTlosopIna n^nqnellprcídãTle~em
condemna va: Anoninaríq disse que as Tres 529Hos:jnais-celebnes,p.rQfcssoi,cs1 Isidoro.
Divinas Pessoas nao eram iguacs, c que o DanuKséio-e-SimpIicio se retiraram j i Pér­
Verbo tomou carne, mas nao alma no seio sia,-onde-não .encontraram aprotcceao nue
da virgem: P m çillanp renovou as erros dos esfiejavam. Novos svstemas encontraremos
gnosticos e manicheus: antes d’elle Helvi­ nò periodo seguinte, mas que não serão
dia, negou a virgindade a Maria Sanctissi­ mais que reproducçòes.
ma, emquanto os colyridianos a adoravam Duas escolas de philosophia predomina­
como deusa, e faziam suas mulherc&_sacer- ram na época que acabo de historiar, Qjlps.
dntisas de. sen culto: Jovimano. que repro­ gnosticos e a dos neonlatonicos: na prl-
duziu os conceitos errados dos manicheus, nieira quiz-se submetter o Christianismo
negou a desigualdade dos méritos, penas c ás doutrinas orientacs, negou-sé pela maior
prêmios, pregou a igualdade do celibato e parte a Divindade de Jesus Christo, admjt-
matrimonio, e juntou a tudo isto a vida tiu-sc o panthcisiho ou o dualismo, deu-se
mais desregrada, imitando os sectarios do origem as famosas heresias, arianismo, nei-
século 3.°, e seguindo os traços d’outros torianismo e eutychianismo, vindo essa es­
.mais antigos, cujas doutrinas se tcerii pa­ cola a terra depois do Christianismo para
o

DISCURSO PRELIMINAR 141

sustentar contra ellc dura guerra; na se­ Depois dc.âcfccliarem as escolas de Athenas,
gunda pretendeu-se amalgamar a philoso­ devemos considerar -toda. esta época cha­
phia giiígíiTprinçipalnicnte o platonísrno e mada meia-idade, apesar da sua deradentia
o pythagorismo, coin as doutrinas orien- entre ãs dlliercntcs nações, em que a eivi-
tacsj pondo-se de parte o Christianismo, lisação mais ou menos‘adiantada dominava
embora Annnoniojaaccas, primeiro mestre por este modo: no oriente christão. o cara­
d’esta escola^ tivesse cm vista attrahirdhc cter pronunciado eram ãs discussões sub­
os philosophos pagàos; mas inspirando o tis. ô abuso Oíi dialectica, o abandõnocTas
pensamento ele seu eleclismo a Plotino, as scicncias positivas c o desnreso dos cstiicfiis
cousas tomaram outra direcção, lançando dos phcnomenos do universo, de modo que
este outros, fundamentos a essa escola: eis a philosop lia, sem o apoio dos conhccimcn-
ahi o que muito bem disse um author re­ tos fundados na observação, ficou «privada
cente, Maupied. Oj)cnMQ,_QiLe_tfirmiiiou, igualmente da vida que" deve recepcr dãs
foi decahindo-UQUco a pouco, tornando-se alTccçocs generosas e das mtlncnciasnio-
esterií em indagações originaes, mas fértil
cm combinações mais ou menos desgraça­ riitiiw, a metaphysica e a dialectica de Aris­
das c cm commentarios infiéis: tendo-se tóteles, e as doutrinas orientaes da Pérsia
contrahido o habito de não pensar, e de jul­ misturadas com o Christianismo pelos ma-
gar só pela authoridade dos mestres, o re­ nicheos: d’aoui saturam os aphlardocitaspíi
sultado devia ser guiar a critica pelas com­ incorrup.tjvefs, que ciavam fiTipassibilidade
parações; entretanto o periodo, que se se­ ao corpo dc Jesus^Çhristo desde _sua conce­
guiu* foi o mais estéril para a historia do pção, e TòT esta heresia professada pelo im-
espirito humano; mas no meio d’esse espe­ pcf^òrTüstiiíiãno j, àutliõr dó famoso edi-
ctáculo afilictivo, podem appareeer algumas to, que nYandou fechar as escolas pagãsT
instrucções uleis: d’cste modo fez Dcgcrando mas que fòr*um dos príncipes mais.perni-
a comparação entre as duas épocas philo­ cjõsos aT&Téia d(TDcusT ós a rm enios. a fren­
sophicas, a que descreví, e aquella em que te d03~quae$~esteve Jacob Syrio, que ensi-
vou entrar. Porém quaes serão as causas noiLaos oue levaram seu nome superstições
d’csla decadência, que se encontra nos co­ pueris? cnuiuanto aifuefics adoptaraiiV o"er­
nhecimentos humanos desde o começo do ro "^ que a natureza * d o ^ rI Ji^ra.m uda-
século 6.° aíé~ao lõ_.°? Muito se tem dito y ç L jQ ü ^ 3 ^ im a lo ^ n ç to ^ jir q ç e d ia .d o
sobre as causas da degradação do espirito Pae; os monothclitasrclc quem, foi mestre
humano durante este longo espaço, c a mim ffiêodoro ua^Arabia, e lhes ensinou oue ém
rae parece, que será facil encontral-as em Jesus Christo fiávia só a~vontadeJJiviná:
se buscando debaixo de tres pontos dc vista: d’osto modo passou o século 6:°f ãõ fim do
i.° a corrupção das escolas, procedendo do quãl appareceu um homem grande, João
apparato d e‘ phrases, que cada dia se au­ Phitbnmfrininngo déclãrado-jlos-novos pla-
gmen tou com o desejo dc levar tudo mais tonicos, porque encontrou em snasdoutp-
pelos proprios conceitos, que pela verdade, nas a origem de graves damnos ao Chris-
e preferindo a argumentação .á contempla­ tianismo, refutou Porphyrio, mas querendo
ção; 2.°—a corrupção pela curiosidade in­ ca1cular os~Mvsteriõs Divinos pelas idéias
quieta de conhecer todos os objectos e for­ d(U5ãTão_.e Ãrisíi)te|és, sc_Jomou chqfe
mar systemas, para explicar o que a Reli­ d’uma seita, a dos trjthéitás, suppondo na.
gião não esclareceu (faliando com respeito Sanctissima Trindade, h es naturezas varti-
ao Christianismo), entendendo que os do­ cuTarês, esquecendo a naturezçTcpmmniL, e
gmas podiam ser explicados pelas prcoccu- cStabelecenuo tres deusesfJ T pelo 7.° reno-
pações philosophicas, dc que resultaram, varam o monotiicnsmo sergio, dc ‘Constan­
como escreveu Pluquet, todas as heresias ti nopla, GvroTdc AloxanTlmfe Macaiio. de
dos primeiros séculos; 3.°-r*a corrupção pela Antiochia, os georgianos, e Marão com sue
soberba, porque devendo o Christianismo seita, que excluiu de Jesus Christo .não sc
rccebor-sc com humildade, c sujeitar-lhe to­ du^ 3 'üidades,mias_dúas.hãtui,éza5, _e dua=
das as concepções humanas, desde sua ori­ ojieraeões. e de que os sectarios passados
gem vémos que .faltaram as creações ou quinhentos annos reconheceram os erros
as idéias originaes, reduzindo-se tudo a com­ entretanto para cumulo dos males veio ■
parações, e as escolas persistiram cm sua unitário Mohamed tão torpe, como se rte
soberba; por issa veio a degradação humana presentou ja: no século 8.° appareceram o_
ao ponto que se lamenta n’esses séculos iconomacos ou iconoclastasmoclast; (que^não. a ^
anteriores ao chamado renascimento das le­ mittiam o culto das sagradasJmagcns) do-
tras, mas depois d’clle, como nós veremos, quaes foi o maior fautor Leão Isauro, c
a humanidade não melhorou: penso assim. mais poderoso adversario o uiusire con fes
142 DISCURSO PRELIMINAR

sor de Christo S. João Damasceno: este bem pelos que abraçaram o partido jlc^Alj: os
aventurado padre, sem questão o homem kalifas prepararam succcssivámcnte, con­
mais sabio do seu século, viu, como Philo- formo o mesmo historiador, essa educação
pon, os males que do“ novo platonismo e dc intellectual dos arabes, e fizeram apparcccr
todos os erros philosophicos se seguiam ã entre elles as primeiras luzes das letras e
Igreja dc Deus, e quiz dar-lhes remedio, das scicncias, como foram os sábios EUMan-
porém seguiu uma vereda differente do fa­ sqpr. Aroun-al-Rascid e AlmainouiÇ o pri-
moso fundador do tritheismo, pondo antes meiro associou o estudo da legislação ao da
de tudo por diante dos oTffüs a humildade philosophia e astronômica, o segunclo mani­
christã, applicando a philosophia ao ensino festou a sua tendência para a poesia, e o
da theologia, e servindo-se d’ella com recli- ultimo juntou de toda a parte os cscriptos,
dào e prudência no desenvolvimento das que continham o deposito da antiga sabedo­
verdades orthodoxas, em que mostrou não ria dos chaldeus, persas e gregos, reuniu a
só a profundidade de seus conhecimentos, si os homens capazes de ensinar as doutri­
mas as luzes celestiaes que o auxiliaram: nas contidas n’esscs livros, e cm cada mes­
no século.D/» Miguel Psello, o velho, deu quita fez abrir uma escola; e com relação
vida a plnTosophia uos hovos plalonicos, e áJIcspanha. entrando no gosto que os anti­
deixou por discipulos PJjflgjp, dc quem já gos tmDitantcs tinham nolã instruo,cão, tor­
se viram os erros, e o imperador Leão, o naram-se celenres pela cultura das cidades
sãbiò, que restaurou o ensino” classico nos dê uordova e, Granada, gomo fora da penin­
seus domínios, e, que apesar de seus cul- sula o eram Rngdndj n-fotnrã, TrCIlCS, Tri-
ivados talentos e da opposição a Phocio, noli o Marrocos: João Philopon c S. João
ão deixou de ser supersticioso e dedicado Damasceno começaram primeiro que nin­
s prácticas mysteriosas das velhas escolas: guem a desbravar a rudez selvagem dos
o século 10.° a cegueira por Aristoteles, mahometanos, e se lhes seguiram no oriente
|ue ja vinha do antecedente, continuou ap- os medicos christãos João Mesuch. que mo­
parccendo nos commentarios, compilações veu Almamoun. o ultimo cTesses kalifas. a
e paraphrases, c dc que foram apologistas erigir osTestabelecimentos litterarios c foi o
Ni celas David. discipulo de Leão o sabio, c riirnptnr Ã~~5i>n filhr> GqpMn que
outro uavid, còmo Miguel Psello, o moço, traduziu do_ grego cm arabc os escriptos
e Entraste: no 12.°. Njcephero Belemnides, dos philosoj^os: enTnossa tornrõsHBispos.
que soube fazer melhor uso üe seus estu­ os Sacerdotes e os Monges, nuc-vlvíam no
dos, e confessou que o Espirito Sancto pro­ domimo do islam. inspiraram a esses con-
cedia do Filho: n o i3 .° , Gregorio de Chy- quístadores o gosto pclas-sciencias e os en-
nrc e Jorge Padrim^!^ com outros, que se si n ^ m n rpfjm ciro arabo que so mostrou
lhe seguiram mais ou menos illustres pelo cégo amador de Aristóteles foi__Ajkcndi.jque
seu saber. Entre arabes a philosophia fo­ escreveu differentes obras philosophicas, e
r m o u o .caminno que permiuia a oocdíencia alcançou os tempos dc Mcsucti e Gõnain:
' passiva d’esta gente cá sua regra de fé e á scgnirairuso no seculo^tOT^Moliainüd Ibn
- Tonladc do seus principes; os seus habitos Iarkhan AbnNars Al-farãnTauthor de dous
j formados sobre as doutrinas do korão só pequenos tractados,~Tegumlõ o espiriío da
%lhe permittiam adoptar as doutrinas de Aris- philosophia do mestre de Alexandre, o gran-
^totelcs, e na verdade o espirito do deismo dõnbnuSina íAviccnah aue-se-mostim aos
>da seita islamistica, que para fins puramente musulmanos, como unuiEQCligio de^cLencia
,temporaes admitte as futuras recompensas etn-differenles ramoTde sua^ppJicaçàít es-
J e o culto externo, não podia admittir senão crevQQdq5obJ^.as.Jtraças de^Aristoteles, e
o systema d’uiff philosopbo deista, pelo que illustrandcham esm o,.^ dc
-conduz ao fatalismo que essa gente pro- Jmjiostas:
3 fessa; os arabes associaram o estudo das ve.io.no se.ciilo U .° Al-ghazali urndos ara-
mathematicas e da medicina ao da philoso- hes mais distinctos, por seus csmaosTque
■phia; mas alguns entregando-se ás especu­ reproduziu o systema dc A vicena^ole tor­
la ç õ e s d’um idealismo mystico, as amalga­ nou nntavp.i ne.iosce.niicismo critico: no jl2.*
m a r a m com as doutrinas do korão, segundo século (ou nos fins do antecedente) Avicc-
Degerando; por isso (e o disse este sabio hron foi author das doutrinas, que produ-’
historiador) a philosophia entre os discipu­ ziram mais tarde em dous christãos francc-
los de Mohamed dividiu-se em dois ramos zes o absurdo de identificar o univcrsQ.com
jrincipaes, o primeiro comprehendendo a Deus, considerando-o a materia primeira,
J ogica e a metaphysica dc Aristoteles, e o
-segundo referindo-se á theologia mystica
reconhecendo n’ella as Tres Pessoas da San­
ctissima Trindade, dando a cada uma rei­
-adoptada por diversas seitas, principalmente nados differentes, e fazendo encarnar o Pae
DISCURSO PRELIMINAR 143

cm Abrahão, cujo reino acabou com a lei kalifas do oriente no começo do século \ l .•
escripta, o Filho cm Jesus Christo, cujo rei­ c principiou então a ser famosq escola de
no estava a passar, por isso os Sacramentos Cordova. que por idéias de política auxilia­
não tinham virtude, c ao Sacerdócio faltava ra poderosamente Kisham 2.°, conforme es­
jurisdicçàoeauthoridadc legitima, visto que creveu o acadêmico Antonio Ribeiro dos
o reino do Espirito Sancto era proximo, c a Santos, c da qual fôra primeiro professor o
Religião devia ser toda interior; c que tam­ Rabbi Moseh, um dos mais distinctos da es­
bém deram origem aos conceitos do famoso cola de Pombcdita, que viera a Hespanha,
Rayjnu nd j ^ uJlcu, Ahuibahvalidibn Reslid eque aqucllc principe não deixou voltar á
(A ^O ^és) naluxaLdc Cordova. reíutou^T- sua patria: dividiam-se essas cscólas em
ghazali, contribuiu poderÕsamcnte a consô- textualistas, porque seu estudo se restringia
luRTFiraulhoridade despótica quo Aristote­ á interpretação littcral do Texto Sagrado,
les tem exercido nos tempos posteriores, e d’onde veio q*ue nenhum subsidio externo
consummou a alliança do novo platonismo procuravam; em rabbanitas, que reputando
com operi patheticismo;e outros se segui ram insufíicientc o Texto Sagrado, se davam ao
escravos d’cssc systema, apresentando ao estudo das tradições; e em càbalistas, que
menos uma circumstanda nova: devendo interpretavam o Texto Sagradosobre certas
entre clles lembrar-se Lhonhail. author do regras dos antigos mestres, e o explicavam
livro, dito na lingua latina, Philosophus A m- por combinações de numeros e letras; por
todidactus, que não occultou a influencia isso estas duas ultimas seitas tinham rela­
exercida pelas doutrinas mysticas sobre ção com as escolas philosophicas: entre os
muitos dos arabes, c a sympathia d’estes p> rabbanitas sc professavam as doutrinas de
lo ncoplatouismo, attribuindo elle mesmo na Aristóteles,por quem havia grande venera­
introducção ás inspirações do extasi as lu­ ção, mas não sc despresava o neoplatonismo;
zes, que manifestaram ós sábios da sua gen­ e os cabalistas formaram um systema com­
te; mas é necessario advertir que a dou­ posto das doutrinas pythagoricas e platoni
trina da união intima da alma com Deus cas, dissenti ndo da nova cscóla de Platão
lançou mais raizes entre os sofís da Persia 1 porque cmquantoestaadmittiaa unidadeab-
segundo era necessario, tendo a vida con­ soluta e numérica do pantheismo, clles a re­
templativa como meio de se identificar com cusavam: estas escolas produziram homens
Deus, porque gradualmente por cila se che­ notáveis em todas as idades, mas eu apon­
ga ao ultimo grau da absorpção perfeita: tarei tres distinctos no século 12.°, que, se­
segui*amentc se ha dito bastante cm diffe­ gundo escreveu o acadêmico referido, me­
rentes logarcs d’este cscripto para se poder receram contar-se entre os maiores homens,
remontar á origem de tudo isto, c ao co­ que teve a synagoga, os rabbinos Moseh Bar
nhecimento do seu resultado moral. O povo Maimonides. Ahraham hen F / p . c David
de Israel teve sábios mestres, que depois de ben Josonfi Himchi. e de que os primeiros
.sua dispersão ensinaram nãs escolas de Na- d ousíom o rabbino Chinania ben Isaac re-
hardéa e de Sorá, pelas vlsinhanças do Eu- ceberam iguaes elogios d’outrosescriptores;
Iphrates, cm Pombcdita c Mchasiah na Ba- mas sem questão Maimonides os excedeu, c.
'nylonia e na Pérsia, para onde de toda a todos ellcs, mais ou menos, encontravam os
[terra ia esse povo aprender: porém todas fundamentos de suas doutrinas em as de
essas cscólas acabaram pela perseguição dos Aristoteles, dos arabes e de Alexandria. Ve­
remos entretanto até que ponto chegou a
1 Um idealismo exaltado é sobre que se degradação das escolas entre os christãos
fundam doutrinas mysticas que levam a latinos: para me conformar aos princípios
contemplação até ao extasi, e que fazem de­ recebidos, c segundo a disposição methodi­
riva r de união intima com a Divindade a ca de Digcrando, direi qiic os caracteres da
communicacão de toda a luz; esse idealismo philosophia escolastica, como chamam a
e seus resultados foram a base da scienda das cscólas occidentaes christãs da meia;
da China e índia, dos Magos, dos Gnosticos idade, fundavam-sc n’um principio de imi­
e da religião do Tybet, cujo reino espiritual tação da philosophia antiga de todas as es-
recebeu muitas fôrmas da seita nestoriana, cólas precedentes; na submissão ao jugo da
como os restantes cultos da Asia as adqui­ authoridade; na subordinação ao ensino re­
rira m do Judaísmo e do Christianismo, se­ ligioso, porque concentrada nos seminarios
gundo lembrei: esse idealismo e seus resulta­ (como hoje dizemos) e nos mosteiros,não po­
dos viram-se entre os judeus da Grécia, Ale­ dia ter outro destino; na adopção d’um me­
xan dria c Roma, entre os arabes e sofis da thodo imperfeito, como preliminar de toda a
Persia, como ponderou Degerando, e eu te­ doutrina positiva, que rio volver dos tempos
nho feito vêr. se ressentiu de mais a mais d’ossa imperfei- ,
4 , x/4 . ÍW v
fj. '7* f/tVVíAc*. 0f.m
y b o j i t , f
144 DISCURSO PRELIMINAR

çao, levando-sc as cousas a um dogmatismo dos levaram; mas é necessário dizer, quo
cegoc absoluto, e esqueccndo-so o estudo da apesar d’isso. no geral a cega obediência á
natureza physicae da historia moral: o novo authoridadc dos mestres, e esse dogmatismo
platonismo, einfim, a escola arabe, c final- absoluto, que se alardeia, só consistia no
mcnte Aristóteles reinaram com poder des­ methodo dascicncia, como affirmou o sabio
pótico nas escolas: as guerras violentas, que Rohrbacher; c na verdade não foi esse me­
deram cabo do império Occidental, c obri­ thodo, que perverteu Claudio, Bispo dc Tu­
garam a trocar o livro pela espada, bem rim.para sc fazer iconoclasta, mas o philo-
como a barbaridade dos conquistadores, con­ sophismo oriental, nem os casionistas, que
sumiram escriptos, c tiraram o soccgo, que atormentaram com suas loucuras e deboches
os bons estudos requerem, de modo que os a Andaluzia, nem o famoso Bispo Hosligazio
primeiros discipulos que substituiram no para negar a immcnsidade de Deus, nem
ensino os mestres do século o.° eram tão outros perdidos, mas as tonterias de Bysan-
inferiores que não podiam comparar-se-lhcs, cio e as relações com os .arabcs: no século
e o mal foi progredindo, até que a paz veio 10.° o Sancto Padre Silvestre ii, Fulherlo de
dar occasião á cultura dos espíritos, c o pen­ Chartrcse o monje Constantino entregaram-
samento de aprender cm Constantinopla, c se a todo o geubro de estudos, sem se ligar
onde quer que se abrisse uma cscóla,appa- espccialmcnte a este ou áqucllc systema; c
rcccu c durou muito tempo; mas no Oriente Cunzo dc Verona apresentou opiniões con­
as cousas passavam, como se tem visto, pelo trarias a Platão e Aristóteles sobre a reali­
que a instrucção do Occidente não podia ser dade objcctiva das noções geraes: no século
melhor que a*dos mestres, de quem se ou­ H.° S. Pedro Damião abandonando Aristóte­
viam lições; apesar d’isso o século 7.° pro- les admittiu, quanto ao methodo, algumas
luziu em líespanha uma luz brilhantíssima, idéias dos novos plalonicos, mas Berengario,
ilém de outras, Sancto Isidoro de Scvilha, negando a Presença Real na Eucharistia
que embora fosçc apenas um compilador, apresentou-se mais sequaz dos philosophos
ainda dc boa escolha, como disse Digerando, do paganismo, que justo apreciador de suas
não será muito facil encontrar n’esse século, obras, porque oppondo á fé os sentidos e a
cm todo o mundo, quem conhecesse a scien­ imaginação, preferindo a soberba á humil­
d a e tão universalmcntc como clle, e ainda dade christã, e occultando sua superficiali­
menos quem fizesse melhor uso d’ella, não dade com o abuso da dialectica, quiz antes
se ligando a systema algum, nem tendo ou­ imitar os erros das escolas peripathctieas do
tro fim senão a verdade cm suas indagações; que os sentimentos orthodoxos dos Padres
no século 8.° como que seguiram suas tra­ da Igreja; não foi assim o beato Lanfranco,
ças nas Ilhas Britannicas Adhelcno c ainda que o combateu, e soube derramar grandes
mais o venerável Beda, posto que d’el,le se luzes nasdoutrinas escolasticas guiadas por
diga que foi só compilador; seguiram o ce­ uma judiciosa prudência cxclusiva.dos dou­
lebre Alcuino,seu compatriota, restaurador tores christãos, e sobretudo d’aquelles que
dos estudos em França, c o wesigodo Theo- preferiram a humildade evangélica ao es­
dulpho, Bispo dc Orleãns, com o diacono de pirito faccioso c innovador: no sécfflp
Aquilca Paulo, e o Bispo d’essa igreja, Pau- 12.°, do mesmo modo obrou seu discipu­
lino, que promoveram na Italia essa restau­ lo Sancto Anselmo de Cantuaria, que se­
ração; mas emquanto os esforços (Testes guindo as traças de S. Pedro Damião, tomou,
grandeshomens progrediam d’uma maneira por guia dc seus trabalhos a Sancto Agosti­
incrível, as Bispos Felix d’Urgel e Elipando, nho, e porigual modo João de Salysburi, Bis­
de Toledo, imbuídos nas •doutrinas dos gnos- po de Charlres; Hildebcrto, Bispo deTours,.
ticos, e tomando por base a unidade de tão celebre por seu saber como por sua vir­
Deus, segundo se encontra no Alcorão, a tude, e que andou por.caminho bem diffe­
fim de attrahirem os islamitas ao Christia­ rente de Berengario, seu mestre, e Ilugo de
nismo, affirmaram que Nestorio, que em Je­ S. Victor, que soube dar preferencia a Pla­
su s Christo havia duas pessoas, e que em­ tão sobre Aristóteles, foi o primeiro d’este
quanto homem era filho adoptivo dc Deus, longo periodo, que fez estudo sobre a psyco-
subsistindo o primeiro nò erro, apesar da logia, e obrou como Sancto Anselmo em
renuncia do segundo: no século 9.° João seusestudos: differente caminho seguiu Ros-
Scoto renovou o novo platonismo em França cclin,que levantou a scisão na escola, insti­
e Inglaterra, e foi propriamente o fundador tuindo uma nova sciencia de palavras, e
do systema escolastico, qúepõr muito tempo uma.iiòva philosophia, attribuindo tudo á
permaneceu nas escolas christãs, é que eu força dos termos; e envolvendo a razão em
estou bem longe de defender por causa das imagens materiaes, mas Sancto Anselmo c-
questões pueris e do mau caminho que to­ João de Salysburi combateram esse princi-
DISCURSO PRELIMINAR 145

pio, c tTahi veio a distineção cnlrc nomi- das doutrinas do celebre fundador da cscóla
naes c realistas, (lando-se á escola de Ros- do Lyceu; mas, como disse aquelle historia­
cclin o primeiro nome, c aos seus contra­ dor, o nome do beato Alberto, o grande, e a
rios o segundo; Pedro Loinbardo, Bispo de authoridadc de S.Thoniaz deram outra direc­
Paris, e author do Mestre das Sentenças foi ção ás cousas, fazendo admiltir Aristóteles-
propriamente o fundador da escola realis­ todo inteiro, porque servindo-sc d elle não
ta; emquanto aquella de Roscclin produziu prevaricaram; por outro lado estabeleceram
Abailardo, que ensinou a desigualdade das uma nova senda á philosophia cscolastica.
Pessoas na Trindade Sanctissima, porém re- Kalles introduzindo as fôrmas syllogisticas-
tractou-sc; Arnaldo, de Brcscia, que por um no ensino da theologia; Guilherme d’Auvcr-
lado sentiu mal da Eucharistia, c por outro ge estudando todos os gregos, arabes o ju­
levou o cspiritualismo a recusar a posse dos deus, ordenou um corpo da sciencia philo­
bens temporaes ao clero; mas isso não foi sophica, em que apparecem alguns traços
senão por adular o poder temporal, inter­ de Platão, mas como theologo se mostrou
pretando maliciosamente a Sagrada Escri- fiel á doutrina da Igreja; Rogero Bacon, que
ptura; Gilberto, Bispo de Poiticrs, que deli- primorosamenle soube as sciendas physicas
rou, segundo sua escola, a ponto de consi­ e mathematicas; Vicente de Bcauvais, que
derar a Trindade Sanctissima não um Deus, procurou conciliara Platão com Aristoteles;
mas uma deidade, que não era Deus; e o Gil Colona, S. Boaventura, Pedro Juliào, que
Abbadc Joaquim, que, pretendendo comba­ depois subiu á cadeira de S. Pedro, Henri­
ter Pedro Lombardo, também sentiu mal da que e Ricardo de Mcdeavilla foram outros
Trindade Sanctissima; fóra d’estcs o século tantos doutores que bem mereceram por
12.° ainda viu Pedro de Bruis, inimigo da seus trabalhos litterarios; mas Duns Scot
Eucharistia, do culto, das preces e das boas sem dúvida adquiriu na escola maior dis-
obras; os albigenses, que se oppozcram com tineção, elevando seus estudos a uma esphera
os waldenses ás indulgências, á invocação mais alta, combatendo frente a frente com os
dos Sanctos, e ao poder ecclesiastico, e ado­ discipulos de S. Thomaz, e dando principio
ptaram expressamente erros dos manichcus; á famosa lucta cscolastica entre a ordem de
cDavid de Dinant com outros, os quaes to­ S. Francisco, a que pertencia, e a de S. Do­
dos se fundavam nas doutrinas dos gnosti- mingos, de que S. Thomaz fora filho, porque
cos,quc por esse tempo subsistiam cm Fran­ affirmava contra a outra parcialidade nãc
ca: o século 13.°, disse Degerando, se cara- terem as faculdades da alma existência dis­
cterisa debaixo d’uma relação duplice, por­ tincta entre si, nem existência separada da
que recolheu os clTeitos da cultura, que co­ alma: e sobre estes princípios se elevaram,
meçou a tornar-se geral, c porque os estu­ questões theologicas entre uns e outros, sem
dos* dos homens instruídos principiaram a comtudo d’um ou outro lado haver n’essas
abraçar uma csphera mais extensa, cncon- questões excessos em relaçào á fé; porém
trando-se, segundo esse historiador, o sc- isso não aconteceu com Raymundo Lullo,
undo.caracter especial d’este século em de Terraga, que se enlodou iio inixticismo*
ous factos positivos: o conhecimento dos c, como alguns outros, suas applicaçõcs a
escriptos dos arabes e das obras de Aristo­ levaram a errar no caminho do justo: os
teles; c isso veio determinar o espirito c a nominacs, que haviam terminado no século
fôrma da philosophia da sua época: os es­ que os viu nascer, resuscitaram no 14.° pa­
criptos de Aristóteles entraram então por ra entrarem em lucta contra os realistas*
inteiro na Europa, e com os de Averrdes uc os haviam destruido; Guilherme Ockam*
foram recebidos com grandissimo enthusias- iscipulo de Scot, que havia defendido o rea­
mo na Allcmanlia e França, sendo princi­ lismo com grande valentia, oppôz-se ao mes­
palmente o celebre Frederico Barba-roixa tre, combateu os argumentos em que elle
quem procurou vulgarisar aquelle philoso­ pretendeu fundar o seu triumpho, c tentou
pho, fazendo' traduzir o original grego de uma reforma difíicil, adoptando um systema
suas obras por Miguel Scot (foi isto cousa na­ simples e indicado pela naturezadas cousas*
tural, porqueo amigo de Mohamednão podia e apresentando independência e originali­
deixar de querer que as theorias do deismo c dade, segundo parece do sentir do historia­
do despotismo fossem cultivadas por seus dor, que principalmente sigo n’este periodo:
vassallos para ter mais auxiliares contra a contra elle e em favor de Scot se levantou
Igreja e a humanidade); entretanto a acade­ Burlcigh, que defendeu a realidade objecti-
m ia de Paris condemnava a lição das obras de va das noções geraes; mas o realismo teve
Aristoteles, e a Sancta Sé os erros do pan- adversarios era Jalabert, Masilio de Inghen,
theismo mixto dos novos platônicos reprodu­ Suisset, Buridan, o Cardeal de Ailly, e ou­
zido em França, e que se entendia origiuado tros a quem se não pôde negar muito merc-
146 DISCURSO PRELIMINAR

cimento; Gerson, sequaz da seita nominal, cm respeito da época da cscolastica: seja


entendeu congrassar o realismo com cila, como fôr, direi do periodo, que ora se apre­
dar uma nova direcção ás escolas c assignar senta, fazendo antes umas prevenções; c con­
os limites ao mixticismo; nota-se entretanto sistem cilas na razão da utilidade da scien­
uma difierença n’cste século acerca do 12.°: da: eu considero a philosophia do mesmo
lá as heresias sahirarn dos nominacs, e n’es- modo que as fôrmas do governo, cuja bon­
tc dos realistas, sendo bem para ponderar dade é relativa á maior somma de bens, que
que os primeiros, apesar dose oppOrem com trazem ao homem e ao todo social: se a phi­
todas as forças aos hussitas, defenderam o losophia, em logar de adoçar os costumes,
poder temporal contra a Sancta Sê, e justa- de concorrer para a felicidade do homem e
menle fulminados com excommunhõcs do do todo social, c de lhes conseguir ao menos
successor de S. Pedro, por sua adhesào aos uma vida menos atlribulada, promove suas
soberanos em despeito d’ellc, foram com uma desgraças, deixa de corresponder ao seu no­
barbaridade selvagem proscriptos e dester­ me e ao seu tim, porque em logar de indagar
rados por Luiz xi no século seguinte, talvez a verdade, sobre que se firma todo o bem,
por haverem combatido victoriosamciite os produz a mentira. 0 caracter geral d’este
iiereges húngaros, porque de todo o mal era periodo é a investigação, mas os seus resul­
capaz o íilho de Carlos de França; mas a tados nàò são de algum modo o que se in­
sua defesa foi tào vigorosa, que obtiveram culca, porque a soberba inchou os suppos-
completo triumpho: o nomilalismo, que con­ tos sábios, que, sem attenderem ao estado
servava as fôrmas exteriores da philosophia corrupto do genero humano, c despresando
%colastica, as combalia na sua esscncia, e absolutamente a humildade christã, ousam
ovocando uma investigação mais séria dos proferir, que pelos caminhos da sciencia hu­
idamcntos dos conhecimentos humanos, mana se pôde chegar a um estado de per­
elou a pouca duração d’csle periodo phi- feição intcllcctual repugnante á nossa natu­
I iphico: reconheceu-se por outra parte o reza; e, sem provar a bondade de seus sys-
isamento de tractar na escola a philoso- temaSjá força pretendem valer mais que os
ia corpuscular, já então mais dominante, antigos, e obrigar-nos a crér ccgamentc em
ue no século 12.°, quando Guilherme de suas doutrinas: não ha nada novo, idéias
ConcheSjUm dos novos platônicos d’esse sé­ originacs apenas se poderão encontrar nos
culo, tentou dar triumphos a Democrito e methodos; e sobre tudo isto não se arranca
Epicuro, pois Nicolau de Oulricourt pôz to­ uma confissão de pouca valia, se essa con­
dos os seus esforços para conseguir a res­ fissão não c uma d’essas ociosidades que a
tauração das sciencias physicas* desacredi­ convivência social apresenta a toda a hora:
tando os escolasticos, ao mesmo tempo que n’isto é que eu acho muita originalidade á
o precioso livro da Imitação de Jesus Christo chamada restauração; porque os apologistas
.aterrou as escolas insupportaveis pela sua de tantos benefícios esquecem-se de que em
soberba; da escola de Oxford, onde domi­ todas as idades, e na passada mesmo, que
nava o realismo, sahiu Wiclef, que vomitou cllcs confundem com a da ignorância, hou­
erros os mais absurdos contra o dogma, e ve mui tos varões illustres, que pensaram re-
mentiu tanto Sobre os factos (o que me faz ctissimamente em todos os ramos da scien­
crér o abandonoda historia por taes escolas, cia, e muito mais na moral, que é a que
ou a má fé, principal escora de todos os tem ligações mais intimas com a humani­
hereges); atacou os Sacramentos e a aulho- dade, chegaram até onde se\)odia desejar:
ridade dos Bispos, considerando seu poder argumenta-se com ousadia sobre a perfeição
imaginario: chamou aos Papas vigários do dos conhecimentos physicos, chimicos e ou­
demonio, e concedeu a todos absoluta inde­ tros: èm relação aos primeiros o systema
pendência para adquirir os meios de salva­ atomistico, excluindo a Deus de todo o con­
ção estabelecidos por Christo; e eram tam­ curso na obra do universo, c dando-se uma
bém realistas os hussitas, que adoptaram es­ certa virtude á materia, é o mais a que se
ses e outros, atormentando o corpo de Jesus tem chegado; ácerca da chimica devíamos
Christo n’estee no seguinte século, bem co­ primeiro indagar se antigamente uma judi-
mo outros por um mixticismo exaltado: a ciosa politica impediraounão seus progres­
origem d’estas doutrinas é facil de achar sos; e isso me parece necessário antes de
pelos, meios propostos n’estò escripto, e do apregoar a excellenda do dia de hoje a res­
mèsmo modo seus fins. peito de todas as applicações da philosophia
4.° Vejamos agora o que se tém chamado até e das mathematicas: seriam barbaros os go­
hoje restauraçao, e ácerca de que os sécu­ vernos que impedissem certos inventos, mas
los futuros necessariamente hão de emittir. não está provado que ellcs eram pouco ami­
seu juizo, que talvez será o mesmo de hoje- gos dos homens, e ainda menós o esta que
DISCURSO PRELIMINAR 147

tacs inventos sejam absolutamente bons: um á combinação d’cllas, como á invenção c


governo previdente c justo calcula primeiro amplificaçao de todas as verdades de ‘qual­
as conveniências; mas quando certos inte­ quer genero) foi o beato Raymundo Lullo;
resses dominam uns poucos de poderosos, mas toda essa sua arte era niais engenhosa
estes não se pejam do taxar os governos de do que apta ao fim proposto, porque se re­
ineptos e ignorantes: os governos, pretenden­ duz propriamente a uma sorte inencmonica
do rcpollir de si o labéo, condesccndem, c as ou caballa: nem esta, nem a Demonstrativa,
nações vão pouco a pouco dccahindo, porque nem a Geral (se tudo isto é seu) lhe deram
faltou a quem mandava a virtude moral, a mérito, porque esse ganhou-o por outras
scicncia, c a forçado que necessitava: basta obras, e por suas grandes virtudes. Seguiu
de considerações, sigamos os historiadores o author da Historia Critica (latina) da phi­
apologistas da* restauração. Tres cousas, se­ losophia com o poeta Dante, que caracteri-
gundo Dcslande, concorreram para esta: a sou como primeiro reformador da litteratu­
primeira foi o exemplo de algumas pessoas de ra mais elegante e da philosophia; continuou
espirilo c de gosto, que no século 14.° começa­ com Petrarcha cBoccacio, que concorreram
ram a reflectir sobre si,e a sacudir o jugo da com suas luzes no século I4.° para a refor­
barbaridade, como Dante, Petrarcha e Boc- ma do seguinte; c certamentc nãocahiram
cacio; a segunda foi a protecção esclarecida nas loucuras dos leguardos e outros perdi­
(e que se tornou em familiaridade), que a dos, que pretenderam imitar os antigos na-
maior parte dos principes de então deu aos zarcos, c foram imitados pelos quictistas
homens de tetras; e a terceira foi a vinda de modernos, nem nas de Wiclcf e Lolardo, de
alguns gregos, que se expatriaram volunta­ cuja philosophia muito aproveitou Luthero:
riamente c passaram a Veneza: conforme o assim mesmo as livres concepções d’uns e
mesmo author, outra se seguiu a isto, a fu­ outros serviram de base á famosa restaura­
ga de muitos gregos para Italia depois da ção do século 15.0 Vejamos os systemas
tomada de Conslanlinopla pelos turcos; pos­ d’este século: Platão foi o primeiro'philoso­
so eu concordar que na generalidade havia pho da antiguidade que estudou seriamente,
grande corrupção nas escolas, c que a re­ restaurando sua escola na Italia o grego
união d’esses factos pôde produzir uma re­ Jorge Gemisto, que assistira ao Sancto Syno­
forma; porém não entendo que se vá mais do de Florcnça; mas, segundo se diz, com
adiante, muito menos que por essa reforma bastante immodcração; scguiram-sc-lhco il­
se chegasse ao complemento dos bons dese­ lustre Prelado Besárião, que levou as cou­
jos; e sobretudo, com o que eu nunca convi­ sas a modo de iudagador prudente, porque
rei, é com o pensamento abstruso de que a além dcpioc orthodoxo, era um homem mui­
chamada reforma da Igreja fosse util para a to profundo; a familia Medieis, como estudio­
emenda da philosophia, como pretendeu sa e fautora d’esse systema, para cujo ensino
Bruckcr, porque nem vi até hoje que a òr- estabeleceu escolas* em Florença; Marsilio
thodoxia catholica impedisse os progressos Ficino, o primeiro professor de faes escolas;
da scicncia,nem encontro philosophos mais e João Pico de Mirandula, que um pouco se
sensatos c mais sábios do que (sem fallar inclinou á astrologia c á caballa, mas na sua
nos que os precederam) S. Clemente Roma­ apologia se submetteu ás decisões da Igreja:
no, S. Justino Martyr, S. Pantcno, Origcnes, é bem custoso caminhar com rectidão por
Clemente de Alexandria, S. Gregorio Na- esta philosophia, scin se prender um pouco
zianzeno, Sancto Efrem, Sancto Epiphanio, com as doutrinas da escola paga alexandri­
S. João Chrvsostomo, Sancto Agostinho, S. na, por isso mesmo que na época de que ora
Cvrillo de Alexandria, Sancto Isidoro de Sc- tracto, se quiz ser mais indagador, não se
vílha, S. João Damasceno, c muitos outros, isolando absolutamente das tradições dos
que todos foram catholicos romanos. Exis­ platônicos, veio logo Aristoteles, que o gre­
tia nas escolas o espirito de partido, e com go Theodoro de Gaza cuidou em restaurar,
cllc o defeito do conhecimento das linguas do mesmo modo que Jorge Trebizonda, os
c a pouca vontade de se esclarecer para quacs a modo da escola antecedente, acerca
consultar nos originaes os escriptos dos phi­ de Platão, quizeram levar Aristoteles acima
losophos antigos: tudo isto acabou no século de tudo, mas ellc havia passado pelas mãos
15.°; entretanto eu desejava que a emenda dos arabes e dos cscolasticos, e sua doutrina
de similhantes defeitos não viesse acompa­ era mais errônea (pie a do seu mestre: a so­
nhada de outros; mas tal c a sorte da intel- berba appareceu corno no periodo antece­
ligcncia humana! Bruckcr escreveu que o dente, e as contendas entre esta c aquella
primeiro reformador da philosophia (porque escola cscandalisaram um pouco: ao lado
com a sua Grande Arte pareceu guiar o es­ d’esses systemas vingava o de João Hus o
pirito humano a noções universalissimas c seu discipulo Joronymo de Praga, que sus-
148 DISCURSO PRELIMINAR

tentavamos erros antigos reproduzidos por outros erros tirou a liberdade a Deus; João-
Wiclcf, compunham a seu modo as doutrinas Lockc tão confuso, que talvez cllc mesmo se­
que propalavam, fundando-se na audacia não entendesse sobre a natureza da maté­
philosophica; c para se evadirem ápena me­ ria, e do qual disse um sabio moderno que
recida por seus crimes recusaram toda a não era mais christão, que Mohamcd ou o
authoridade, porque, por exemplo, conside­ gran-turco; entre os electicos notaram-sc o
rando a Igreja um corpo mystico, exclusi- chanceller Bacon, pae da philosophia expe­
vamente composto de justos e predestina­ rimental: Isaac Ncwton, restaurador das
dos, e não reconhecendo no Sancto Padre c sciencias exactas, c notável pela sua theoria
nos Bispos mais poder que o simplesmente da luz sobre que reproduziu as idéias d’um
ministerial, a salvo estavam para vomitar padre da Igreja, Descartes, creador de nova
quantas blasphcmias quizessem. No século escola de raciocinar: Lcibnitz, espirito pro­
16.® renovaram-se as velhas seitas de Pytha­ digioso, que profundou as doutrinas de to­
goras por Nicolau Copernico, sobre cujos dos os philosophos; Hugo Grocio, que cui­
trabalhos cuidaram de reformar a astrono­ dou de restaurara philosophia moral; e ain­
mia Tycho Brahe, Joào Kepler, e Galileo; da outros a cujo numero se deve juntar o
de Parmenides, por Bernardino Telcsio; do venerável Fénélon, se eu devo entender por
Aristóteles, por Nicolau Lconcio Thomaeo, clecticismo uma liberdade regrada de accei-
Nicolau Machaviel, Pedro Pomponeceo, Pau­ tar o que convém á< razão pura c á verda­
lo Jovio, Julio Cesar Vanini, Alexandre e de: de outro lado progrediam os erros de­
Francisco Picolimini: de Platào e dosstoi- testáveis dos discipulos do Machiavel;sc re­
cos, por Pedro Ramos, reformador da philo­ novavam por Miguel de Molinos os do velho
sophia nacional, e um dos maiores adversa­ quietismo; cda amalgama de differentes sei-
rios, ou para melhor dizer, inimigos que las apparcccu o janscuismo propagado por
tem tido Aristóteles, embora alguma eousa Marco Antonio de Dominis c Ilauramo; bem
se aproveitasse d'clle; dos escolasticos, por como o systérna de igualdade entre os ho­
Fr. Domingos Soto, e muitos outros: com mens e da liberdade de julgar sobre o Texto
estes seguiram alguns uma philosophia de Sagrado; ainda mais lata dò que o pretendeu
imaginação, raciocinando de má sorte sobre Luthero, propaladas pelos quakers ou visio­
certas doutrinas antigas, como o visionário nários inglezTes, que no fundo não é senão o
Thcophrato Paracelso; outros cm syncretis- deismo revestido de certas formulas christãs.
mo ou reconciliação do inconciliável, isto é, Século 18.®—a heresia collectiva, disse um
das Sagradas Letras com as seitas philosophi­ sabio historiador, conhecida debaixo do nome
cas, de que deram exemplo Guilherme Pos­ de philosophia do século 18.® herdou as here­
tei, Mucio Pansa, Eugubino e ainda mais; sias de Jansenio, Luthero, Calcino, assim
certos, oppondo-sc aos conceitos philosophi­ como de todas, as heresias anteriores com-
cos, mas baseando suas doutrinas sobre as prehendidos o mahomelismo c o paganismo;
dos philosophos, como Luthero, pae dos he- e a respeito do qual um philosopho recente
resiarchas modernos, Hoflman, e dilTcrentes: accrescentou—que um materialismo auda­
entre os electicos pozeram João Bruno, que cioso e um sccpticismo cego nascido dos
pôde ser um bom pantheisla; Jeronymo Car- princípios dò século 17.® se tornaram toda a
dan. obscuro e supersticioso; porém assim sabedoria do seguinte século frivolo, egoista
m c faltam forças para ter n’esta conta outro c sensual, que começou pela immoralidade, e
que não seja ó dontissimo João Luiz Vives, veioaacabar pelo sangue—d’aqui passou-se
pelo caminho recto que seguiu. No século segundo elle, ao racionalismo, característico
17.® continuaram os escolasticos, e apparc- do século actual, que para escapar ao scc­
ceram de novo os scepticos, dos quaes men­ pticismo vai cahir no pantheismo: 1 outro
cionarei o portuguez Francisco Sanches, Je­
ronymo Hirnhayin, o Bispo Huet, e Pedro 1 La philosophie française, fondée par
Bayíe, que andou por má estrada, e foi tido Descartes (não e sobre a sua dúvida metho­
por atheu: ao lado d’estes restauraram a dica que o author quiz faltar), fú t develóp-
escola jonica Claudio Berigardo, que não pée par Afalebranche dans le sens du plus
pôde também passar sem ser accusado de haut spiritualisme. Dejá ellc se mctlait en
atheu; as doutrinas panthoistas, Bento Spi­ harmonic avec le Christianisme; la voie ou-
nosa; as materialistas, Daniel Sennerlo, João verte; le tcrnps devait amener les perfectiori- \
Chrysostomo Magneno, Hobes e Pedro Gas- nements necessaires à la constitution d'une
sendi; que dobraram os joelhbs diante dos philosophie complete. Mais ces developpc-
velhos atomos; de Aristoteles, o padre Ma- ments furent arretes et violamment inter-
lebrancbes, que pretendendo accordar a phi­ rompus par Vintrodnction des doctrines de
losophia de Descartes com a Religião, entre Lockc. La philosophie de la sensalion, qui
V* j*'
DISCURSO PRELIMINAR 149

•cscriptor (Amando Saintcs), depois de dizer se em pouco toda a sua historia: materialis-
que Fortalcge tractando de Kant escreve­ nio representado por Didcrod; sccpticisino,
ra: «« philosophia contemporanea assimilha- inconscquencia c contradicção, representa­
sc a um immenso edifício composto todo de dos por Joào Jacques Rosseaú; sophisticismo
equenas casinhas, cada uma das quaes era c libertinagem representados por Vollaire;
•occupada por um philosopho, sendo Kant o superficialidade representada por Wolf, e
fundamento do cdijicio »accrescentou que era obscurantismo representado por Kant; tudo
exacto substituir Spinosa ao nome de Kant, isto pôz em acçào as al mas damnadas de Wcis-
e representar o edifício fluctuando nos ares: haupt, Zwach, Kniggc, Lanz, c de todos os
tal é a moderna philosophia, quero dizer, c seus associados occultos, e produziu o es­
o que nào podia deixar de ser com elemen­ pantoso facto da revolução desastrosa da
tos do século passado, como a d’essc o fora França no fim do século, com suas conse­
com a do século anterior; mas vejamos o (pie quências, que em todas as relações estamos
(Tesse século 18.° se pôde afllrmar. Resume- sentindo.
a va it des prccourseurs en France dans Vcco- vague et invtil dei.smc incapablc de regnxerer
fe dc Gassandi, setablit panni nous, et de- la raison affaiblie Cepemlant le loix eter-
v in t dominant vers lemelicu du 18.me siécle. nelles de Vordrc de conscrcation des socie-
Ce siécle frivole, equiste el sensuel, ve pou- tés avaient éte violces; rois et peuples
v a it avoir d'outre philosophie. II trouvait s'elaicnt laissé seduirc et enivrer par les le-
dans le systeme du philosophie anqlais, com- cons de Verreur parée des agrements de l'es-
mentée et perfectione par Condillac, taot Ia prit, aux appâts d'une-corruption elegante;
Science dont il sentait le besoin. Un matc- le clergé lui-meme dans une trop gr and
rialism e audacieux et un scepticismc aveu- nombre de scs membres, clait profondement
gle naquirenl des principes adoptes et devia­ dechu de la foi Chretianne, el de 1'esprit
ren t loute la sagesse d'une epoque qui pia- Chreticn. Tant de violations ne pauvaient
ç a it le bonlieur dans les jouissances mate- rester impunies, et le siécle, qui avait com-
riclles. Des voix eloquentes sans douto pro- mencè dans la debauchc, vint finir dans h
testerent contre des tendences aussi abjectes; sang.—Maret. Kssai sur le. Pantheisme, dam
mais ces voix furent impuissantes; la foi les Societés Modernes, chap. l.°
nc les animait jias; elles proclamaient un

DECIMO NOMO SÉCULO

ICstado polS lico c r e lig io s o dos im p cid os

A Igreja de Deus fundada sobre doutrinas do com todas as suas forças o espirito, cm-
absoluta mente conformes árazão c á digni­ quanto procuram aniquilal-a, precisam co­
dade do homem, c dirigida pela moral mais brir o rosto e voltar as costas ao campo da
pura, apesar da lucta feroz que contra cila batalha, onde a desfeita lhes cabe em sorte!
empenham a politica, a falsa sciencia c a Eis ahi a historia do Christianismo durante
corrupção mantida por uma e outra, cami­ dezenove séculos, direi melhor, desde a ori­
nha triumphante pelo tempo á eternidade, gem do mundo, porque o Christianismo foi
que é o seu destino! A ambição do dominio, revelado a Adão, promettido a Abrahão, c ma­
a impiedade e o sensualismo concorrem, ni festado no Homem-Dcus, no Filho da Vir­
sem o quererem, para suas victorias! O des­ gem! O primeiro inimigo da Igreja de Deus
potismo elevado á condição de poder, sem que disputa .sobre a authoridadc espiritual,
muitas Yezes ser percebido pelos proprios de que olla é a unica depositaria, a politica,
tyrannos; o erro usurpando com audacia o por outro nome, a ambição de donunio, ou
.assento da sabedoria; e a materia subjugan­ o despotismo, aprescntá-sc na lide â frente
150 DISCURSO PRELIMINAR

dos outros inimigos, c exige a obediência annunciaram não só os Mystcrios, os Pre­


ou morlel Os fundamentos d'essa lucta pen­ ceitos, a fôrma do Culto, mas a jerarchia c
dem de que os soberanos esquecendo-se que seus poderes, cc§tes contrastaram a consti­
sào christãos, ou não o sendo pretendem tuição da authoridadc temporal, como unica
como os imperadores romanos do tempo do no estado, ao mesmo tempo que o numero
paganismo, reter o titulo de Summos Ponti­ dos christãos dentro e fóra do Roma, no
fices, segundo disse um sabio dominicano, tempo de Nero, era tão avultado, como do
ainda nao ha muitos annos, e que eu con­ proprio numero dos martyres se deduz. A
tem pio no numero dos mais valentes solda­ jerarchia c os seus poderes não eram um
dos do exercito christão, o Padre Fr. Henri­ segredo desde o momento da pregação c
que Domingos Lacordaire! 1 Os combates escriplos dos Apostolos c seus discipulos:
tem sido muito violentos, mas os poderes da por isso assignar ás perseguições o só mo­
terra não venceram, até hoje, embora em­ tivo de opposiçào ao culto recebido c pro­
penhem a palavra, os grilhões, a espada, o fessado por lei no imperio, parece um gran­
cutello, e.... Conforme o illustre Sacerdote de absurdo: como ora possível, que os ho­
o espirito de dominio, que persegue constan­ mens illustrados ignorassem até onde podia
temente a Igreja de Deus, acceita o protes­ elevar-se a obediência passiva dos christãos
tantismo, porque. d’essc modo fica o unico aos seus Sacerdotes? não ouviam esses ho­
senhor da sociedade: é isto o que se encon­ mens as pregações, não liam os escriptos,
tra no volver dos séculos, durante os quacs não presenceavam a submissão dos marty­
ospodercsda terra deram provas nada equi­ res á voz dos pastores? Diga-se o que se qui-
vocas de sua tendopcia para emancipar-se zer, mas não mc convencerão de que entre
da authoridadc da Igreja, subordinal-a a seu os idolatras romanos c não romanos as
braço, c não só isso... muitas vezes tem au- perseguições se originaram apenas da re­
thorisado a licença, porque com cila se af- provação* do culto do paganismo pelos chris­
frouxam os deveres da obediência áquella tãos, salvo cm paizes selvagens: fallo das
authoridadc! Os vicios deNcro, monstro co­ perseguições decretadas pela authoridadc
roado, c o interesse dos ministros do culto civil. Depois de se dar no imperio a paz â
idolatra, seriam a unica causa da primei­ Igreja, que c o que se encontra da parte dos
ra perseguição que soíTieu a Christandade? governos? O proprio Constantino e seus fi­
Parece-me que não: sem dúvida que a rai­ lhos não repelliram a appellaçào dos aria­
va sacerdotal foi um dos motivos de per­ nos, e se arvoraram cm juizc*s do que lhe
seguição, bem como a perversidade do au- não pertencia, desterrando c perseguindo
tlior do incêndio de Roma foi o motor das catholicos apesar da opposição do grande
horríveis atrocidades practicadas n’cssa per-, Ozio de Cordova e de outros Bispos; e, para
seguição,segundo Tácito as referiu; mas cn- o dizer d’uma vez, de todos os imperadores
tendo*que alguma cousa mais deu impulso romanos, apenas Theodosio i conheceu toda
aos decretos de exterminio c morte, aquillo a extensão dos seus deveres para com aqucl-
mesmo que mais tarde teve força para obri­ les cm cujas mãos o Salvador depositou o
gar Alexandre Severo a consentir no marty­ poder sobre essa sociedade de que elle ó
rio do alguns christãos, isto é, a ambição de cabeça: mas quem era Theodosio? o me­
dominio dos jurisconsultos Ulpiano c Paulo, lhor principe que tem governado povos, c
porque desde o estabelecimento da Igreja se que, se uma vez peccou, soube emendar-
se, como outro não fez. Émquanto na Ita­
1 «Lorsque VEglise cWholiquevint s'elablir lia os barbaros, que dilaceraram o império
dansVempireromain, elle r íy trouva que une romano, levantavam os primeiros vestígios
seule authorité, 1'auihorilê civile. Les empe- do padroado, no Oriente Justiniano i o ele­
reurs, heretiers dela republique, avaient ajou- vou á cathegoria de principio, introduzindo
té a leurs titres de Cesars et VAvgnstes celui forçosamente Anthimo na Sancta Igreja
de Souverains Pontifes, et VEglise, en s'eta- Àpôstolica, e, estendendo seu dominio mais
blissantj n'eut pas unepretention moindre que longe, desterrou o servo de Deuf?, S. Silve-
celle-ci: de leur ôter ce titre de Souverains rio, por não querer obedecer a seus man­
Pontifes, et d elever á côté de la puissance ci­ dados, como depois perseguiu a Virgílio,
vile une puissance spiritucllc. Elle le fit, et seu successor, em razão de não satisfazer
des lors ces deux puissances ont marche côtc as pretenções heréticas da imperatriz Thco-
à côté. tantôt s'appuiant, tantôt se combat- dora: desde essa ópoca ora um, ora outro
tan t, tantôt se delaissant.» Sixieme Confe- soberano, movido por instigações dos polí­
rancc su r les Rapports de VEglise avecVor- ticos, mais ou menos se esforçou em tirar
de temporel, no tom. i.° das que leve na a liberdade á Igreja nas suás eleições, eonjo
Sancta Igreja Metropolitana de Paris. principal mente aconteceu durante o século
DISCURSO PRBLIMINAR 45C
10.°, cm que os cscandalos dos principes roso combateu c combate ao lado da poli­
de Italia chegaram n’essa parte ao maior tica anhelando a destruição do Christianis-
auge, ou cuidou de ingerir-se tyranni-
camcnte em seus negocios, acerca dos 9 de novembro de 1768; o decreto de 10
quacs Deus lhes não deu poder algum, e de .dezembro de 1600, porque se prohibi-
isso se viu nos factos de Heraclio, Constan­ ram os recursos na curia romana contra
te i, Leão isauro, Miguel períirogenito; c as decisões do tribunal da inquisirão, c a
porque os maus exemplos produzem o au­ carta regia de 12 de janeiro de 16*33 diri­
mento de torpezas, uma nova era mais gida ao inquisidor geral de Portugal reser­
esastrosa abriu nos finsdo século ll.°o n o - vando á coroa, sobre consulta da inquisi­
tavel Henrique de Allcmanha, que foi conti­ ção, todos os negocios d’este tribunal. Mui­
nuada por seu filho do mesmo nome no se­ tas são as provas dadas n'esta obra acerca
guinte e por Frederico i i , seu successor, no de taes factos, e quanto á inquisição, em
século 13.°, e na qual se distinguiu Filippe especial, diremos o seguinte:
bello de Franca no 14.® consummando a ini­ Havendo eu bradado n esta introducção
quidade, porquedesde essa época nunca mais contra a inquisição, chamando-lhe tribunal
os politicos deixaram de apregoar como dou­ politico, que se ingeria nas cousas da Igre­
trina a sujeição da Igreja ao poder temporal, ja , cumpre mostrar aqui as provas de que
fazendo apparecer mais ou menos claro nas se oppunlia ao Evangelho, para se saber até
leis c nos actos publicos esse horrível crime, que ponto o poder temporal abusou, em pro­
ou conforme dizemos, pcccado contra a pala­ veito seu, das faculdades concedidas pela
vra de Deusexpressapelaboccado Salvador Sancta Sé, acerca d'um tribunal contra os
e dos Apostolos: foi o espirito de dominio, hereges em Portugal.
c nada mais, ainda o repito, que pôz nas 1. " O Breve do Sancto Padre Paulo 3.®,
mãos dos politicos o latego contra aquelles datado de 20 de julho de 1535, contém uma
a quem Deus entregou cxclusivamentc o determinação para se conceder defesa a
governo da sua Igreja; mas o peor de tudo todo o accúsado, por haverem chegado á sua
isto é a perversidade altamente traiçoeira presença queixas fundadas de que se nega­
com que esses famosos discipulos de*Aris­ va contra todas as regras da justiça essa
toteles pretenderam queimar' homens em defesa: unde, expressou Sua Sanrtidade,
nome de Jesus Christo, involvcndo-sc no succedit, quod ae crimine haeresis hujus­
manto sacerdotal para lhes não serem im- modi accusati aut relati, etiam si innocen­
utadas similhantes atrocidades, e servin- tes sint, indefensi remanent. (Symmitica
o-sc da ignorância ou do zelo mal enten­ Lusitanica, tom. 23, fol. 114, ms. da Bi
dido de muitos Sacerdotes ate o ponto de bliotheca Real.)
os fazerem instrumentos d’essa sua inau­ 2. ® 0 Breve do mesmo Sancto Padre, di
dita perversidade! É tempo de se levantar rigido a El-Rei D. João III em 7 de feve­
um clamor ao pé de quem iniquamento reiro de 1537, ê textualmente do seguinte
clama contra a Igreja, é tempo de dizer modo: Regi PortugalHa’. Carissime, etiam
bem alto: «Vós, que em Hespanha e Portu­ superiori anno, sicut Magcstas tua novit,
gal queimaveis hereges e judeus, em Ingla­ ad ejus preces inquisitionem generalem con­
terra, na Hollànda, na Rússia e outros pai- tra haereticos Regni tui concessimus, id-
zes estrangulareis os catholicos, com a mes­ que libenter fecimus sperantes inde absque
ma hypocrisia e por meio de formulas idên­ justa alicujus quaerela Dei honorem ac Re­
ticas!» 1 Outro exercito não menos pode-1 ligionis nostrae propagationem subsecutu­
ram. Verum assiduis quacrclis, seu potius
lacrimis, nec. non Christianorum dicti Re­
1 Entre os factos que provam as ten­ gni tui moti non potuimus eos non audire,
dendas do poder temporal para dominar a etc. (ditos Symmitico e tom. fol. 65:) são
Igreja, e que a inquisição, ao menos em escusados commentarios.
Portugal, se governava pelas regras da ce­ 3. ° A infontiação de que o infante D
lebre escola que tem procurado arrancar o Henrique nãò podia ser inquisidor geral,
poder ao Summo Pontifice e aos Bispos, não contém as seguintes passagens: Dicant sus­
tem ultimo logar os que se inculcam a re­ tinentis electionem, seu nominatinem ip­
volução de 21 de junho de 1617, porque se sam (d'aqnclle principe) ab eodem Rege ri­
reduziu a escripto o costume sobre o modo te et recte ac etiam auctoritate Sute San­
que se ha de ter na occupação das tempo- ctitatis factam fuisse; quod Rex ipse hoc
ralidades dos Prelados Ordinarios que não potuit facere ex Verbis B u lk e .. . non cadit
obedecerii ao desembargo do paço, e a car­ in mentem Sanctitatem Suam hoc sic con­
ta regia dirigida ao cabido de Coimbra em cessisse. . . Unde, Reverendissime et Ilius-
Io2 DISCURSO PRELIMINAR

mo: n’csse estado, alistados os que presu­ ou aquellcs que pretendem tcl-a achado
mem saber tudo, ignorando toda a verdade, procurando-a, prevenidos pelo espirito do

trissime Domine, a non judice, non dispen­ que seus paes açoutavam um Crucifixo
sato cl suspecto ac contra juris formam, et ameaçando-a de queimar-lhe as mãos ríum
etiam a Principe scculari nominato, tot brazeiro que tinha diante, c extorauiu-lhe
processus, incarcerationes, condemnationes, d'esse modo a confissão d'uma falsidade; e o
cxccutioqos, damna, scandala, et inconve­ de insultar o pudor de mulheres casadas e
nientia sunt orta, et in dies magis orientur, donzellas, que estavam prêsas, com ditos c
si Sanctitatis Sum justitia, et misericordia actos 7ião só impudicos, mas insultantes da
non providerit, ut ab eadem misericorditer desgraça. (ditos Symmitica e tom. fol. 332 v.)
speratur (ditos Symmitica e tom. fol. 154 v.) C.° Ò Regimento do Conselho Geral da
4.° As notas dos crimes e excessos dos in­ Inquisição feito pelo Cardeal Infante D.
quisidores por todo o reino de Portugal apon­ Henrique no l.° de março de 1570 em algu­
tam algumas cousas, que mc pareceu necessá­ mas de suas disposições revela a verdadeira
rio m encionar:. . .Qui plures comburit,cre­ origem e espirito d'este tribunal.— 1,° cap.
dit majorem famam acquirerenon minus et 10.—Vindo algumas Bullas ou Breves dos
honorem, etin hoeseenervant putantesin eo Summos Pontifices, que sejam de graça aos
prmstare obsequium Deo et principibus, novamente convertidos ou de quaesquer
sperantes propterea majores honores, prm- outras cousas que pertençam ao estado ou
mia, redditus, et Prmlatias; et si qui ibi alte­ bom governo do Sancto Oílicio da Inquisi­
rius fuere intentionis, quos ad idem proposi­ ção, ou pareça que sào em prejuízo seu, se
tum convertere nequiverunt, hi fuerunt ex­ darão no Conselho, estando presente o in­
pulsi et rejecti ab olficio; quoniam si sunt quisidor geral; e se tomará resolução no
bonm intentionis et pii zeli dicunt non cs- que se deve fazer, e se dará conta *d’isso,
;e idoneos pro inquisitoribus.. Iste error sendo necessário a Sua Alteza. E sendo as
lascitur ex deputatis, de quibus princi- taes Bullas apresentadas aos inquisidores
es se confiderunt, et quibus tradiderunt das comarcas, cllcs mandarão ás partes que
urisdictionem, ac quibus cbmmittunl cla­ as tragam ao Conselho para se lhe dar o
mores et gemitus ac gravamina patientium despacho que mais convier ao serviço de
hujusmodi crudelitatis, quoniam illi elege­ Deus, conforme a direito, sem lhe ós inqui­
runt subdclegatos domorum, et prius eos do­ sidores darem mais outro despacho, porque
cuerunt, ac instruxerunt artem inquirendi n’este caso lhes não damos jurisdicoàò an­
et penes se multis diebus ad praticam re­ tes, porque nós queremos vér se nas taes
tinuerunt. quam illos deputarent affirman­ Bullas ha falsidade ou alguma cousa de
tes principibus eos esse idoneos.. . Inomni- que convenha dar conta a Sua Sanctidade.
bus domibus regni non servatur jus com­ —2.° pelos cap. 13 e 14 o Conselho era au-
mune, nec Bulla Inquisitionis.. . In toto Re­ thorisado a conhecer de appellações inter­
gno fuit denegata misericordia petentibus postas pelas partes ás sentenças dos ordina­
illam etiam nomine eorum existente rela­ rios.—3.° pelo cap. 21 o Conselho era au-
pso, et hoc modo combusti sunt omnes us­ thorisado a reclamar dos Ordinarios os pro­
que ad hodie contra formam Bullte. . . In cessos e présos que tivessem culpas perten­
omnibus Regni domibus sunt carceres con­ centes á Inquisição; e se elles os não remet-
tra formam Bullaj, iique fiunt etiam secreti tessem o inquisiàor geral os avocaria, con­
et privati in domibus aliquorum inquisito­ forme o Breve que tem de Sua Sanctidade
rum, atque mulieres pulchras detinent in (as promessas falsas, como foram sempre as
domibus sub propriis clavibus vel servito^ de qualquer pretenção do despotismo do po­
ru m su oru n .... In omnibus domibus Regni der temporal encarnado rí esta filha primo­
reperietur fuisse aliquas personas sine cul­ genita c predilecta da escola brutal, torna­
pa carccratas et postea sibi ordinatos qum- vam nullas todas as concessões da Sancta
sitos et traditos falsos lib ello s.. . Justitite se­ Sé:)—í.°— cap. 25.—No Conselho se passa­
culares et similiter inquisitores ordinant,ne rão as cartas em nome de El-Rei para todos
Christiani novi possint requirere suam jus­ os Viso-Reis, governadores, capitães, duques
titiam coram Suai Sanctitati, nec in hac em ais senhores, e justiças seculares fazerem
Sancta Sede A postólica.. . (ditos Symmit- tudo o que cumprir para o bom governo,
tic a et tom. fol, %o7.) e estado c favor do Sancto Oílicio; c estas
5.° A .noticia dos excessos dos inquisido­ cartas fará o secretario, e levando vista do
res de Coimbra manifesta igualmente casos Conselho para Sua Alteza assignar; etc.—
dignos de memoria, como, entre outros, o de 5.°—cap. 26.—Oinquisidor geral tera super­
obrigar um a menina de dez annos a dizer intendência na administração e despacho
DISCURSO PRELIMINAR 153

•erro ein seguindo sem critério c com pai­ plcsmentc a sua razão obscurccida em pre­
xão systeinas antigos, ou consultando sim- conceitos ou por interesses; felizmcnlc o

dos bens confiscados, c em tudo que tocar a sentença em 11 demarco de 1571. (Os autos
•este negocio, e ordenará aos juizes c dará a •Telia estão entre os do tribunal de Lisboa
fôrma que n’isso llie parecer dando primei­ no Archivo Nacional.)
ro d’isso conta a El-Rei; e no Conselho se 8. ° No processo de Francisco líenriques,
passarão as cartas cm nome de Sua Alte­ natural de Miranda do Doúro, c accusado
za para as justiças seculares se não intro- de culpas de judaísmo, depozeram como
metterem no conhecimento das cousas que testimunhas contra elle alguns ofjiciaes da
pertencem ao fisco.—6.° pelo cap. 27 se Inquisição, por terem estado de vigia, como
estabeleceu que os juizes c thesoureiro do era costume fazer-se a todos os presos, em
fisco seriam providos pelo inquisidor geral, togares para isso accommodados; e de seus
passando-se as cartas em nome de El-Rei. ditos, fundados cm meras conjecturas, se
Esses cap. 2o, 26 e 27 expressam n'este tr i­ fez carga ao accusado, auxiliando-se com
bunal a qualidade de tribunal civil, do mes­ elles suas proprias confissões contradicto­
mo modo que o I.#, porque se determinou rius, e‘as denuncias porque fora preso: so­
a annuenda do Rei para a creação de bre estes fundamentos recahiu uma senten­
todos os ofjiciaes, e a residenda do Con­ ça de relaxarão! Foi executada a sentença
selho e inquisidor geral na corte; demais o d'este infeliz’ no auto de fé de 1644. (b s
provam a licença do soberano para se fa­ autos Telia estão entre os do tribunal de
z e r esse regimento e sua confirmação pe­ Lisboa no Archivo Nacional.)
los reis D. Sebastião, D. Henrique.'D. Fi- 9. ° No processo de Maria de Freitas, na­
lippe i.°, que c isso que se encontra nos tural de Buarcos, e accusada de culpas de
subsequentes feitos por outros inquisido­ judaísmo, se lavrou a seguinte sentença:
res geraes. Christi Jesu nomine invocato, julgam e ‘de­
7.° No processo de Manoel Travassos, na­ claram a ré Maria de Freitas por verda­
tu ral de Lisboa, accusado de lutherano, ha deira relapsa no crime de heresia e apos­
certas notas á margem, c uma a fo i 36, que tasia da nossa Sancta Fé Catholica, c in­
diz: esta culpa cresceu depois do rco estar correu cm sentença de excommunhão maior
préso n’este cárcere (se prender por doido e cm confiscação *de todos os seus bens
um homem em seu ju izo, não tardará a applicados ao "fisco c camara real, c nas
perdei' a cabeça;) e outra a foi. 36 v. sobre mais penas cm direito contra similhantes
a palavra do accusado: que os inquisidores estabelecidas. E por se haver feito indigna
eram tyrannos, porque apertavam com clle. de misericórdia (posto que a pediu), como
Ti'avassos, como muitos outros presos, lan­ relapsa a relaxam (ainda que penitente),
çava em rosto aos ministros do tribunal sua etc. Não sei que a perversidade possa chegar
iniquidade, e isto bastava para vingança mais longe! Esta horrrivel sentença foi exe­
cruel da parte d'esses. Este homem, por seus cutada no auto de fé de 1671. (Os autos Tel­
escândalos, merecia aspero castigo, mas ia eslão entre os do tribunal de Coimbra no
não queria eu vêr que por cabeças coroadas Archivo Nacional.)
fosse condemnado á morte rícstes termos: 10. ° 0 processo de Maria Rosa do Espi­
Christi Jcsu nomine invocato. Declaram rito Sancto, natural de Soure, e accusada
que o réo Manoel Travassos foi e ao pre­ de feiticeira, c um dos monstros mais he­
sente é herege lutherano, e, como tal, he- diondos que produziu a Inquisição: não se
roge impenitente, ficto c simulado, confi- tracta aqui de crimes imputados em mate­
tente e dogmatista, o condemnam; e que ria de Religião, c que se provassem ou dei­
incorreu cm sentença de excommunhão xassem de provar, mas da prostituição de
maior, c nas outras penas em direito con­ uma depravadíssima adultera, de perguntas
tra os similhantes estabelecidas, c cm con- e respostas indecentissimas, e d'um desfe­
fiscação de todos os seus bens applicados cho tão ridiculamente indecente, que chega
para o fisco e coroa real, e o excluem do a ser revoltante a complacência com que se
grêmio c união da Sancta Madre Igreja, c faziam os interrogatorios á accusada, of­
o relaxam á justiça secular, a quem pedem fende tanto a moral, quanto eram desafo­
com muita instancia se haja com clle pio- radas as suas confissões: depois Tum a seríe
dòsamcnto, e não proceda a morte nem cf- inaudita de actos nauseantes e escandalo­
fusão de sangue. ( Este final, posto em to­ sos, foi condcmnada em um anno de reclu­
das as sentenças dos relaxados, era um são nos carceres, c cinco de degredo para
cprave insulto aos desgraçados rcos, porque Angola; mas fazendo novas confissões a
equivalia dizer ao fogo. ’ Foi publicada esta prazer dos inquisidores, a declararam ar-
Í5 & DISCURSO PRKLIMINÀR

Christianismo entre taes inimigos encon­ sariamente deviam produzir: a legislação


trou Simào, o mago, Vilgardo, ou os Tur- de todas as nações resente-se da impiedade
lupinos, que apenas souberam vomitar ton- ou da injustiça; o julgado ligado ás formulas
terias; Plotino, Porfirio,.Folix e Elipando, deixa levantar a cabeça com ar de trium­
ou Wiclef, que pozeram seus esforços cm pho ao juiz que condemna o innoccnte;
destruir abertamente a Religião de Jesus o crime deixa-se impune, porque o cul­
Christo, ou vicial-a com as sentenças das pado pôde evadir-so: cmfim o subdito não
escolas philosophicas; Valcnlim, Moliamcd, tem direitos, mas eslá ligado a deveres,
Phocio, Luthcro com seus sequazes, Ma- como ainda ha bem pouco tempo eu lií
chiavcl, Baile, Helvecio, Didcrot, Volncy, é isto o que a moral do Christianismo re­
Alemberl com quantos no passado século prova; mas o que a politica entende que
se presaram de espíritos fortes, e que por precisa para conter na obediência: eis aqui
interesses ou por maldade se apresenta­ a corrupção combatendo pelo braço da au­
ram na lucta: estas tres classes cm que thoridade publica contra as leis mais san­
entram todos quantos inimigos contra a ctas que o Salvador estabeleceu; c se d’essa
Igreja de Deus, não tem sido menos peri­ corrupção querem provas, nada ha mais
gosas do que a politica, porque além dé facil, eu as darei, porque cilas estão ao al­
crua guerra que cllcs fizeram, e que estão cance de todas as intelligcncias. Não é pos­
dispostos a fazer os que seguem suas dou­ sível deixar de lançar um stygina sobre as
trinas e sentimentos, produziram aqui a di­ causas da miseria das classes desvalidas
visão, e acolá a indiíTerença, que eu reputo nas sociedades, porque emquanto concor­
o peor de quantos males podem vir ás so­ rem a satisfazer ambições particulares por
ciedades. A par de tudo isto tem combatido favor da politica c dos suppostos sábios, a
a corrupção, originada da perversidade lei de Christo é espesinhada d’um modo o
com que os poderes atacam o Sanctuario mais infame! A olhos enxutos se encontra
á viva força, afagando e instigando sccrc- o Sacerdote que deu consolações no meio
tamente os pseudo-philosophos, ou provin- da dôr, o soldado que defendeu o seu paiz,
da d’essa indiíTerença que a contrariedade o magistrado, que soube ser recto, quando
. das escolas, os deboches e pregações livres lhe faltam as forças e arrimo, csmollando
e insidiosas dos presumidos sábios, neccs- <^e porta cm porta, ao mesmo tempo que

rependiâa, e, por pedir misericordia, se lhe peor depois dos arrazoados das sentenças,
commutou o degredo em 17 de outubro de ora filhas do odio, ora da mais torpe ambi­
1730 (á pobre Maria de Freitas, que não era ção, c sempre injustas c iniquas, ju n tava o
adultera nem deshonesta, nao lhe valeu o saciilcgio, antes de proferir o accordo ter­
arrependimento, nem a supplica de miseri­ rível da relaxarão, por estas palavras:
cordia!!!) e em 9 de novembro seguinte, por Christi Jesu nomine invocato!!! como se
ordem dos inquisidores de Evora, foi cum­ viu nos que acabo de lançar aqui.
p r ir o degredo em Faro. (Os autos estão en­ A Inquisição é um argumento da pouca
tre os do tribunal de Coimbra no Archivo ou nenhuma fé n'aquelles que a pediram e
Nacional.) a exemeram; porque não admittiram o
Persuado-me que nada mais é preciso pa­ principio fundamental do instrumento da
ra m ostrar com evidencia não só os horro­ conversão a palavra, nem a promessa de
res practicados por esse tribunal de sangue, Nosso Senhor Jesus Christo, de que quanto
mas a maldade com que se quiz fazer d'um se pedir a Seu Pae cm Seu Nome será con­
tribunal politico um tribunal d'uma religião cedido.
de amor, de paz e de salvação: se isto não A Inquisição é um argumento de torpeza
basta, apresentarei um seni numero de au­ brutal n'aquelles que a pediram e exerce­
tos m m es, em. que se invocava o nome de ram; porque é outro principio fundamental
Christo para .condemnar homens ao fogo! no Christianismo, a conversão absoluta­
e por outra parte Bullas e Breves de cas­ mente voluntaria, e deu o exemplo o nosso
sação de processos, de reprehensões da San­ Divino Salvador, que só essa admillia, di­
cta Sé, e outros documentos d'uma lucta zendo: Se alguém quizer vir atraz de mim,
quasi continua dos Papas com a nossa cor­ faça abnegação de si, tome sua cruz, e si-
te por causa dos procedimentos temerarios gá-me.
e iniquos da Inquisição. Este tribunal ne­ A Inquisição, finalmente, é um argumen­
fando para tudo invocava a authoridade to de perfidia naquelles que a pediram e
real; mas para dar toimentos dizia que es­ exerceram; porque enganaram a Saneia Sé,
ta v a authorisado pela Sancta Sé, e que o e persistiram tenazes em sua obra contra
fa zia p o r bem da Igreja de Deus; e o que é as reclamações do Chefe da Igreja de Deus.
DISCURSO PRELIMINAR 155
rios do dinheiro correm para as algibeiras que é o que yérnos cm Portugal? indiíTc-
d’uma mulher de theatro, porque cntrelcvc rença, indiflerença, indiíTerença! c é isto o
uiu sarau cantando c dançando, ou de quem que punge o meu pobre coração e mc faz
negoccia com o suor dos desgraçados c com derramar lagrimas sobre esta princeza das
a vida de milhares de infelizes*! Nào será nações que tão gloriosa foi j á . . . que domi­
isto opposto á lei que professa a Igreja de nava sobre os mares e sobre as terras mais
Deus? quereis saber os factos? é bem pou­ longinquas.. . e que plantou o Symbolo Au­
co custoso topar com elles! Nào será isto a gusto da Redempção da humanidade em
corrupção combatendo as leis sanctas do grande parle da Africa, da Asia, da America c
Evangelho pelo braço da politica c pelas da Oceania!.. Deixemos essas considerações
tacs concepções dos pscudo-philosophos? para vòr de que modo a Igreja de D*cus
esses c outros grandes males filhos da cor-, sahiu a campo apresentando batalha face
rupção, de envolta com os que cila está a face a seus inimigos.
produzindo pela impiedade, se encontram No estabelecimento ou restauração do
n’cste desgraçado século cm toda a parte; reino de Deus, a Igreja enviou seus mis­
mas se percorrermos os paizes Onde a ci- sionários a essa grande empreza, sem ou­
vilisação tem assento, encontraremos a tras armas, que a palavra e a austeridade
moral* Evangélica luctando contra a corru­ de costumes, expostos aos rigores dos cli­
pção em todas as nações, sem cxccptuar mas e das estações, á pobreza e á tyrannia
uma só fóra de nós, indo adiante a Fran­ dos poderes dá terra: eis ahi os soldados
ça, essa França que tantos escândalos deu de seu exercito c a provocação ao combate!
no século passado e ao raiar do presente! principia a lucta, e a defesa como o ataque
Entre uma infinidade de factos que provam
o da existência d’essa lucta, apresentou a voz? «Euntes docete omnes gentes» (Ide,
ella nas desordens da ultima transição da ensinai todas as gentes), accrescentou com
monarchia para a republica o lypo d'um o evangelista S. Matheus; se o Salvador os
verdadeiro Pastor, o Metropolitano de Pa­ mandou ensinar, onde a authoridade dos
ris, que appareccndo no meio do seu povo, poderes da terra para fazer calar? «Spiri­
pediu a paz, c se ofiercccu em holocausto tus Sanctus posuit Episcopos regere Ec­
pçlo termo das dasavençasl e já antes se clesiam Dei» (Os Bispos,que pôz o Espirit
naviam exposto ás iras do poder temporal Sancto no governo Aa Igreja), ainda com
os Bispos.de todas as suas Igrejas, pelejan­ Apostolo das gentes: se assim é que tem
do em columna cerrada cm defesa do sa­ politica a fazer com o governo da Igreja?
grado direito da liberdade do ensino!1 Mas Estabelece além d'isso as mui importan
tes proposições:—A Igreja deve ser inde­
1 Na questão famosa que coroou de glo­ pendente e*m seu magistério:—A Igreja de­
ria os Bispos das Igrejas de França na ce­ ve ?er livre em seu magisterio:—A Igreja
lebre lucta da liberdade de ensino, que o po­ deve ser livre cm suas relações com o che­
der temporal pretendia tolher, um d'esses fe visivcl:—A Igreja deve ser livre no exer­
prelados, Luiz Thiago Maurício de Bonald, cício de sua legitima authoridade:—A Igre­
cardeal presbytero da Sancta Igreja Roma­ ja deve ser livre no estabelecimento das
na, do titulo da Sanctissima Trindade no ordens religiosas. Muito desejavamos tran­
Monte-Pincio, arcebispo de Lyão e de Vien­ screver aqui o desenvolvimento das citadas
na, primaz das Gallias, etc., dirigiu por oc- proposições, mas os estreitos limites d'vma
casião da quaresma de 1846, uma Instruc- nota não o permitiem, epor isso a apresenta-
çao Pastoral (aos fieis da diocese de Lyão e remos no ftm do Diccionario como desenvol­
Vienna, que ô para mim, sem controversia, vimento á doutrina de que aqui falíamos.
um dos melhores escriptos sobre a liberdade da Um monumento de sã doutrina acerca da
Igreja, t Ego veni, ut vitam habeant, et abun­ authoridade da Igreja é a Instrucção Pas­
dantius habeant» (Eu venho para que os ho­ toral do doutor D. Antolino Monescillo, bis­
mens tenhamvida,e a tenham com abundan­ po de Calahorra e da Calzada, dirigida
d a ), disse o illustre sábio metropolitano com aos fieis da sua diocese por occasião da vol­
o discípulo amado, e, na verdade, se o Filho ta da cidade eterna, onde tinha ido assistir
de Deus veio á terra para tal fim, com que á canonisação dos m artyres do Japão. Tam­
direito se tolhe a liberdade da Igreja?... bém a transcrevergnos no fim d'este Dic­
«Tanquam Deo exhortante per nos» (ex- cionario, assim como o eloquente e magis-,
hortando-nos pelo orgão da Igreja), repetiu tra i discurso do snr. Bispo d'0rleans, pro­
com S. Paulo aos corinthos; pois se o poder nunciado na cathedral de Sancta Cruz, na
da palavra do Sacerdote ê tal, quem ha no sua volta de Roma no dia 27 de julho de
mundo com authoridadepara lhe embargar 1862.
156 DISCURSO PRELIMINAR

consistem na doçura d’uma eloquência ce­ prestados por mão interessada? negai-o
lestial com que se procuram attrahir os ini­ mas negai primeiro a existência de João
migos; na paciência com que se soíTrem as da Matta, Francisco d’Assiz, Ignacio de
injurias; na caridade com que, pela conver­ Loyola, Vicente de Paulo, c muitíssimos ou­
são d’clles, se dobra o joelho para orar ao tros homens, que nunca poderão ser imi­
Senhor, que tenha piedade d’elles, e se abai­ tados cm sua ardentíssima caridade senão
xa o pescoço oflcrcccndo a vida em holo­ pelos Sanctos. Na lucta contra os poderes
causto pela salvação dos proprios algozes! da terra c contra o philosophismo, a igreja
Podereis negar isto, espíritos fortes? negai de Deus, para conservar o deposito sagrado
embora, que a historia vos desmente: 11c- que o Divino Fundador lhe confiou, comba­
gai-o, mas negareis a existência dos mar­ teu pela voz de seus pastores, de seus sa­
tyres e dos confessores; negai-o, mas nega­ cerdotes, e dos outros ministros do San­
reis a existência dos Apostolos, dos disci­ ctuario, e pelos escriptos não só d’esses,
pulos do Salvador, e d’essa cadeia de San­ mas dos fieis; pelas congregações dos pas­
ctos, que prende o sacerdócio do século tores entre si, ou com o Summo Pontifice;
actual ao sacerdócio de Jesus Christo! ne­ c finalmentc reunindo-se este com o maior
gai-o, mas negareis os factos que se pas­ numero d’aquelles em nome de todos, faz
sam no dia presente em toda a terra! Visi­ expressa confissão de que recebeu dos Apos­
tai as cidades, as aldeias, as selvas da Asia, tolos o ponto da doutrina combalido, e que
da Africa, da Oceania e da America, ide ás esses o receberam de Jesus Christo, por isso
nações da Europa, onde o catholicismo é lança fóra do seu seio aquelle que não emitte,
vedado, e lá encontrareis o ministro do San­ igual confissão; este Tribunal não reconhece
ctuario, que não pertence ao claustro, ao superior sobre a terra, e o Espirito Sancto
lado de religiosos de quantas ordens a Igreja assiste para salvar do erro homens que não
de Deus tem approvado desde o grande An- são impeccaveis no acto solemnissimo de
tão ao abbade Rosmini: procurai, se que­ similhantc confissão, do mesmo modo que
reis saber o que é caridade ensinada por está sempre com elles no ensino c direcção
Aquelle que na montanha do Calva rio tfe- dos fieis; a este Tribunal Supremo serviu
liu ao Pae Celestial por quem o crucifica­ d’exemplar o Proto-Synodo dê Jerusalem,
ra! O zelo, paciência, abnegação de si pro­ em que reunidos os Apostolos e Bispos que
prio, e amor da humanidade por amor de lá se achavam, Pedro cxhortou seus irmãos
Deus, que se encontrou no principio, se­ a ouvir e a decidir questões que Paulo e
guiu por todas as gerações, de modo que Barnabé lhe haviam proposto, estes fizeram
um só resume todos os factos! E se quizer- a exposição, e depois (Touvidos todos, as suas
des allegar tyrannias, já vos disse que não vozes resoaram na sancta assembléia, de­
pertencem á Igreja, porque são factos ex­ clarando estar decidida a questão conforme
ternos de que a maldade dos individuos, o parecer do Espirito Sancto c d’elles; e
os poderes da terra, ou as seitas que se tem ninguem mais se atreveu a sentir o contra­
acobertado iniquamente com o manto do rio: este tribunal foi que declarou a Divin­
sagrado, tiveram e teoni toda a culpa. Na dade de Jesus Christo, e sua consubstan-
conservação pacifica do reino de Deus, a cialidade com todos os dogmas que a Igreja
Igreja põe á cabeceira do enfermo, leva ao Catholica tem hoje, e professa desde sua
centro das masmorras, faz apparecer junto instituição, porque os não propôz nem pro­
dos patibulos,-nos campos da batalha, lá põe novos; esse tribunal, isto é, os Bispos
onde quer que a humanidade padece, os com o Summo Pastor, algum ou alguns
seus ministros para dar consolações e to­ prelados em nome d’este, suppondo-se pre­
dos quantos socorros a humanidade pre­ sente, e approvando as decisões de todos
cisa: podeis negar isto, espíritos fortes? Ex- quantos concorrerram ao logar, se reuni­
cepçoes apresenta a historia, é verdade, mas ram em nome de todos os ausentes, e dis­
a Igreja será culpada? Se quereis vér mi­ cutiram livremente, porque assim declara­
lagres, deixai-lhe livre a escolha dos Bis­ ram a crença catholica em Nicéa, Constan-
pos e dós parochos, retirai a opposição fe­ tinopla, Epheso, Calcedonia, Latrão, Leão
roz á sua plena liberdade, e não morrereis de França, Vienna do Delfinado, Cónstança,
desesperados! Podereis negar que a Igreja Florençá e Trento; esse tribunal, emfim,
recebe os votos solem^es de muitos dos em quê toda a Igreja docente reunida não
seus filhos, que voluntariamente querem só testimunha em suas mais gloriosas tra­
expor a liberdade e a vida pela redempção dições, e recorda as suas mais assignaladas
dos captivos, pela civilisação dos selvagens, victorias, mas estreita os vínculos sagrados
e na assistência aos que gemem no leito da que ligam os Apostolos entre si, que os li­
morte sem soccorros, ou com soccorros gam com Pedro, e Pedro e os Apostolos
DISCURSO PRELIMINAR 157
com Christo, Summo Sacerdote, e author tyres não c esteril, porque todo ellc é amor:
detodo o legitimo Sacerdócio:1 eis ahi como a tribulaoão dos confessores não e esteril,
a Igreja combate, cstabelcccndo-sc, conser- porque o seu fim é o amor: o zelo dos pas­
vando-sc e defendendo as doutrinas da sal­ tores não é esteril, porque sua base é a sal­
vação. Encontracs vós, espíritos fortes,algu­ vação do proximo; o esforço de todos os
ma cousa na historia, que contradiga essas soldados da Cruz não é esteril, porque não
asserções? reparai, que talvez as apparen­ é interessado, não pretende cxclusivamente
tias vos enganem; c tende cuidado em não os despojos da batalha, mas que todos re­
confundir a maldade dos homens com a cebam igual parte dos méritos do sangue
sanctidadc da religião: se as vossas inda­ derramado na Cruz: militam, porque creem
gações forem profundas, c se inquirirdes nas promessas de Deus; militam, porque
sem prevenção os factos, achareis o espi­ esperam o cumprimento d’cllas; militam,
rito da Igreja puro, saneio, livre do pccca- porque amam a Deus, pretendendo que to­
do, e de todo o erro: o sacrificio dos mar- dos os homens creiam, esperem, c amem a
Deus, e d’esse modo amam os homens por
1 Não houve em tempo algum tanta ne­ amor de Deus, porque amando a Deus amam
cessidade d'um synodo geral, como desde as os homens come irmãos, reconhecem a Deus
desordens da França no fim do século pas­ como pae commum, que os creou, remiu,
sado até ao presente; e persuadido estou eu e sanctificou: eis ahi como o Christianismo
de que poucas vezes se tem apresentado tanta se funda na caridade, que exprime as rela­
opport unidade como hoje. A urgência pro­ ções mutuas dos filhos para com o pae; e
va-se em razão de que nunca a Igreja foi faz que, amando-se o pae, se amem todos
tão universalmente atacada, e tão forte­ os irmãos por amor d’elle. Como se amava
mente, pretendendo-se abalal-a pelos seus a Deus, ensinou Deus a Adão, e a todos os
fundamentos: d.° porque nunca o materia- patriarchas; e como Deus amava os homens,
lismo teve tantos creditos, e o deismo tão ex­ ensinou o Filho de Deus aos homens, offe-
tensos dominios;—2.° por causa da adopção rcccndo-se em holocausto pelos homens,
ainda mais geral do indifferentismo, que tem para que soubessem como se amavam os
feito obliterar as disposições disciplinares homens amando a Deus. Eis ahi o Chris­
d'um modo nunca visto, chegando ao sum­ tianismo, as suas tribulações, c os seus ini­
mo o abuso nos que devem mandar, e nos migos! Eis ahi o Christianismo, os seus
que devem obedecer, n'uns por'desleixo, e triumphos, e os'seus amigos! Eis ahi final­
noutros por ignoranda ou maldade;—3.° mente o Christianismo estabelecido para
pela precisão de substituir algumas d'estas guiar o homem desde o berço até á sepul­
disposições, e pôr outras em pleno vigor;— tura pelo caminho da eternidade, para fa­
4.° pela má interpretação que se está dando, zer o homem feliz n’csta e na outra vida,
mesmo entre os catholicos, á Sancta Escri- para ensinar ao homem a sciencia pela hu­
ptura, principalmente nos textos da creação, mildade, para lhe dar um governo, cujas
esquecendo-se todas as tradições, e torcen­ bases sejam a tranquillidade e 1a justiça,
do-se o sentido genuino da crença orthodo­ mas que o homem despresa pela soberba,
xa. A opportunidade prova-se:— 1.° pela e porque prefere a desventura á felicidade
■tendenda dos protestantes á unidade;—2.° em todas as suas relações.1
pela expectação geral de todos os christãos
que reconhecem a precisão de se cortarem
os abusos por uma vez;—3.° pela liberdade 1 O snr. J. B. C. de F. Castello-Branco,
que geralmente ao momento, os governos da na sua Introducção aos estudos biographi-
Europa parecem querer dar á Igreja, ao cos. Este illustre cscriptor seguiu na sua
menos em algumas nações mais poderosas. narração o sábio abbade Rohrbacher—Ilis-
Peço a Deus que inspire o Sancto Padre toire Üniverselle de VEglise Catholiquc, con-
Pio IX para a convocação, c a todos os so­ tinuée jusqdcn 1860, p a r J. Chautrel, sui-
beranos, que, para sua •p ropria estabilidade vie d'unc table generale, enticrement refon-
c paz das nações, de bom grado convenham due, par Leon Pauthier, e d'un atlas histo-
no que c allamente útil a toda a christan- rique specialement deressê pour Vouvrage
dade. p ar A. H. Dufour.
158 DISCURSO PRELIMINAR

R e s u m o c o n te n d o os p r in e ip a c s e r r o s do n o sso tem p o ,
q u e e stã o d e sig n a d o s nas a llo c u ç o e s, c u c y clica s e o u ­
tr a s c a rta s a p o stó lic a s d o N osso « a u c tissim o P a d re ,
o papa P i o IX

§1 C.° A fé de Christo ‘está cm opposição


com a razão humana, c a revelação divina
não só para nada serve, mas até*prejudica
PAKTHEISM O, NATURALISMO E RACIONALISMO
o aperfeiçoamento humano.
ABSOLUTO
(Encyclica de 9 de novembro de 1846.;
(Allocuçao de 9 de junho de 1862.;

7.° As prophecias e milagres expostos


1. ® Não existe nenhum Sér Divino, csu­contados nas Sanctas Escripturas são fic-
premo, perfeito na sua sabedoria e na sua çòes poeticas, c os mysterios da religião
, providencia, que seja distincto da univer- christã são um resumo dMnvestigaçõcs phi­
S salidade das cousas, c'portanto sujeito a losophicas; nos livros dos dous Testamen­
\ mudanças; Deus por isso mesmo manifes- tos ha invenções mythicas, e mesmo Jesus
! ta-se no. homem e no inundo, c todos os é um. mytho.
\ sêres são Deus e teem a propria substan- (Encyclica de 9 de novembro de 1846.;
■ cia de Deus. Deus é pois idêntico com o (Allocuçao de 9 de junho de 1862.;
mundo, e portanto o espirito com a mate­
ria, a necessidade com a liberdade, o ver­
dadeiro com o falso, o bem com o mal, e o
justo com o injusto. S II
(Allocuçao de 9 dejunho de 1862.;

2. ° Deve negar-se toda a acção de Deus


RACIONALISMO MODERADO
sobre os homens c sobre o mundo.
(Allocuçao de 9 de junho de 1862.;

3. ° A razão humana, considerada sem8. ° Como a razão humana é igual á pro­


relação alguma com Deus, é o arbitrio unico pria religião, as sciencias theologicas devem
do verdadeiro e do falso, do bem c do mal; ser tractadas como as sciencias philoso­
é a lei de si mesma, e pelas proprias for­ phicas.
ças é sufficiente para alcançar o bem. dos (Allocuçao de 9 de novembro de 1854.;
bens dos homens c dos povos.
(Allocuçao de 9 de junho de 1862.; 9. ° Todos os dogmas da reljgião christã,
sem distineção, cahem debaixo do dominio
4. da sciencia natural ou philosophica; e a ra­
° Todas, as verdades da religião deri­
vam da força nativa da razão humana; d’ondc zão humana, só pela sua cultura historica,
se segue que a razão é a regra suprema, pôde, pelos seus princípios c forças natu-
seguindo a qual o homem deve adquirir co­ raes, chegar ao conhecimento verdadeiro
nhecimento de todas as verdades de qual­ de todos os dogmas, ainda os mais recon­
quer especie que sejam. ditos, com tanto que esses dogmas tenham
(Ericyclica de 9 de novembro de 1846.; sido sujeitos ao exame da razao.
(Encyclica de 17 de marco de 1856.; (Carla ao arcebispo Frising em 11 de
(Allocuçao de 9 de junho de 1862.; dezembro de 1862.;
(Carta ao mesmo em 21 de dezembro
5. ° A revelação divina é imperfeita, c de 1863.;
por isso sujeita *a continuos e indefinidos
progressos, que correspondam ao desenvol­ 10. ° Como philosopho e philosophia são
vimento da razão humana. entidades differentes, aquclle tem direito c
(Encyclica de 9 de novembro de 1846.; dever de submetter-se á authoridade que
(Allocuçao de 9 de junho de 1862.; tiver reconhecido por verdadeira, mas a
DISCURSO PRELIMINAR 159

philosophia não póde nem deve reconhecer 17. ° Pelo menos deve-se ter esperança
authoridadc alguma. na salvação eterna de todos os que não vi­
(Cartas ao arcebispo Frising em 11 de vem no seio da Igreja christã.
dezembro de 1862 c 21 de dezembro (Allocução de 9 de novembro de 1854.)
de 1863.) (Encyclica de 17 d'agosto de 1863.)

11. ° A Igreja não só não deve, cm caso18. ° O protestantismo não é mais do


algum usar de rigores contra a philoso­ que uma fórma diversa da própria religião
phia, mas antes deve tolerar os erros da christã, fórma segundo a qual se póde ser
philosophia, c deixar-lhe o direito de se cor­ tão agradavcl a Deus como seguindo a Igreja
rigir a si mesma. catholica.
(Carla ao arcebispo Frising em II de (Encyclica: Vos scitis et nobiscum, em
dezembro de 1862.) 8 de dezembro de 1849.)

12. ° Os decretos da Sé Apostólica e das


congregações romanas impedem o livre pro­ § IV
gresso da scicncia.
(Carla ao arcebispo Frising em 21 de
dezembro de 1863.J SOCIALISMO, COMMUiNISMO, SOCIEDADES SECRE­
TAS, SOCIEDADES DIBLICAS, SOCIEDADES CLE-
13. ° O methodo e os princípios pelosRICO-LIUERAES
quaes os antigos doutores ecclesiasticos cul­
tivaram a theologia, não se adaptam ás
necessidades xla nossa época c ao progresso Estas cspecies de pestes teem sido mui­
•das sciendas. tas vezes condemnadas por sentenças for­
( Carta ao arcebisno Frising em 11 de muladas em termos gravissimos na Ency­
dezembro de 1863.J clica: Qui pluribus, em 9 de novembro de
1846; na allocução: Quibus quantisque, em
14. ° Deve-se estudar a philosophia sem 20 d’abril de 1849; na Encyclica: Nos utis
por fórma alguma se attender á revelação et nobiscum, cm 8 de dezembro de 1849;
sobrenatural. na allocução: Singulare quaedam, em 9 de
(Carta ao arcebispo Frising em 21 de dezembro de 1854; na Encyclica: Quanto
dezembro de 1863.,) conficiamur moerore, em 10 d’agosto de
1863.
N. B. Ao systema do racionalismo se
devem na maxima parte referir os erros de i v
Antonio Gunther, que foram condcmnados
na carta ao cardeal arcebispo de Colonia: ERROS RELATIVOS Á IGREJA E SEUS DIREITOS
Exim iam tuam, em 15 de junho de 1847;
c na carta ao arcebispo de Breslaw: Do­
lore haud mediocri, em 30 d’abril de 1860. 19. ° A Igreja não é uma verdadeira e
perfeita sociedade plenamente livre; não
gosa dos seus direitos proprios e constan­
i UI tes que lhe conferiu o seu divino fundador,
mas pertence ao poder civil definir quaes
são os direitos da Igreja, e os limites den­
INDIFFERENTISMO E LATITUDINÀRISMO
tro dos quaes póde exercel-os.
(Allocução de 9 de dezembro de 1854.)
15. ° É livre a cada um abraçar c pro­ (Allocução de 17 de dezembro de 1860.)
fessar a religião que tiver julgado verda­ (Allocução de 9 de junho de 1862.)
deira, usando das luzes da razão.
(Carta apostólica de 10 de junho de 185 l.J 20. ° O poder ecclesiastico não póde exer­
(Allocução de 9 de junho de 1862.) cer a sua authoridadc sem permissão e con­
sentimento do poder civil.
16. ° Os homons podem achar o cami­ (Allocução de 30 de setembro de 1861.)
nho da salvação eterna de todos os que não
vivem no seio da Igreja chrisiã. 21. ° A Igreja não tem direito de definir
(Encyclica de 9 de novembro de 1846.) dogmaticamente que a religião da Igreja
(Allocução de 17 de dezembro de 1847.) Catholica é a unica religião verdadeira.
(Encyclica de 47 de março de 1856.) (Carta apostólica de 10 de junho de 1851.)
160 DISCURSO PRELIMINAR

22. ° A obrigação que diz respeito aos processos civis ou criminacs dos clérigos-
governantes c cscrintorcs catholicos limi­ (Allocução de 27 de setembro de 1852~
ta-se ás cousas que foram definidas por jul- c 15 de setembro de 1856.)
amento infallivel da Igreja como dogmas
c fé que devem ser cridos por todos. 32. ® Sem violar nem a lei natural nem
(Carta ao arcebispo Frising em 21 de a equidade, podem ser revogadas as im-
dezembro de 1863.) munidades pcssoacs que exoneram os clé­
rigos da lei militar; esta obrogação é exi­
23. ° A Igreja não tem direito d'usar gida
de pelo progresso civil, principalmcntc
força, nem de nenhum poder temporal di­ nas sociedades modeladas pelos princípios
recto ou indirecto. do governo liberal.
(Carta apostólica de 22 d'agosto de 1851.) (Carta ao bispo de Montisregal, em 29
de setembro de 1864.)
24. ° Os pontifices romanos c os conci-
lios ecumênicos teem ultrapassado os li­ 33. ® Não pertence á jurisdicção eccle­
mites dos seus poderes, usurpado os direi­ siastica, por direito nenhum proprio e in-
tos dos principes, c teem mesmo commet- herente á sua esscncia, dirigir a doutrina
tido erros nas definições das questões de em materia de theologia.
dogma e de moral. (Carta ao arcebispo Frising em 21 de
(Carta apostólica de 10 de junho de 1851.) dezembro de 1863.)

25. ° Além dos poderes inherentes ao34. ® A doutrina dos que comparam o
episcopado tem-lhe o poder civil, tacita ou pontifice a um soberano livre c governando,
expressamente, conferido authoridade tem­ a Igreja universal, prevaleceu na idade
poral, que por isso mesmo lhe póde ser ti­ media.
rada pelo poder civil quando este quizer. (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1851.)
(Carta apostólica de 22 de junho de
1851.) 35. ® Nada impede que por sentença de
concilio geral ou por decisão de todos os
26. ° A Igreja não tem direito naturalpovos
e seja transferida a soberania pontifi­
legitimo d’adquirir c possuir. cai do bièpo e da cidade de Roma para ou­
(Carta apostólica de '18 de dezembro de tro bispo e para outra cidade.
1856.) (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1851.)
(Encyclica de 17 de setembro de 1863.)
36. ® A definição d’um concilio nacional
27. ° Os ministros da sancta Igreja enão o admitte discussões subsequentes, c o
pontifice romano devem ser absolutamente poder civil póde exigir que as questões não
excluídos de qualquer cuidado ou dominio vão além.
que seja relativo a cousas temporãos. (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1861.)
(Allocução de 22 de junho de 1862.)
37. ® Podem ser instituídas Igrejas na-
28. ° Os bispos não tem direito nem au-cionaes fóra do grêmio do soberano ponti­
thorisação do poder de promulgar as suas fice. o separadas.
cartas apostólicas. (Allocueão de 17 de dezembro de 1860,
(Allocueão de 15 de dezembro de 1856.) c de 17 de março de 1861.)

29. ® As graças espirituaes concedidas38. ® Muitos pontifices consentiram na


pelo pontifice romano devem ser^conside­ separação da Igreja cm oriental c Occi­
radas como não tendo efleito a não terem dental.*
sido imploradas pelo civil. (Carta apostólica de 22 d'agosto <fc!851.)
(Allocução de 15 de dezembro de 1856.)

30. ® A immunidade da Igreja e dos ec­ § VI


clesiasticos deriva a sua origem do direito
civil. - ERROS DA SOCIEDADE CIVIL, TANTO CONSIDE­
(Carta apostólica dè 10 de junho de 1863) RADA EM SI COMO NAS SUAS RELAÇÕES COM
A IGREJA.
31. ® Devem ser abolidas, mesmo sem
aviso, e apesar das reclamações da Sancta 39. ® O estado da republica, sendo a ori­
Sé, as jurisdicçõcs ecclesiasticas para os gem e fonte de todos os direitos, impõe-se
DISCURSO PRELIMINAR 161
pelo seu direito que não é circumscripto tas sem excepção a todos os filhos do povo,
por limites alguns. e os estabelecimentos públicos que são des­
(Allocução de 9 de junho de 1862.) tinados a ensinar aos jovens as letras e a
boa disciplina, estejam fóra da acção de
40. ° A doutrina da igreja catholica cqualquer authoridade ecclesiastica, de qual­
opposta iis leis e aos interesses da sociedade. quer influxo moderador e de qualquer in­
(Carta Encyclica de 9 de novembro de 1860.) gerência d’essa authoridade, e estejam com-
(Allocução de 20 d'abril de 1849.) plctamente sujeitos ao poder civil e politico
conforme o beneplacito dos governantes e
41. ° Ao poder civil, mesmo exercidodas opiniões communs da época.
por um principe infiel, pertence um poder (Epistola de 14 de julho de 1864.)
indirecto e negativo sobre as cousas sagra­
das; pertence-lhe nào só o direito que se 48. ® Aquelle. modo d’instruir a moci­
chama, exequatur, mas ainda o da appclla- dade, que consiste cm separar-se da fé ca­
ção que se chama ab abusu. tholica e do poder civil da Igreja, c em at-
(Carta apostólica de 22 d'agosto de 1851.) tender só aos conhecimentos dos objectos
naturaes, e dos fins da vida social, póde
42. ° Em conílicto entre os doiis pode­ ser approvado pelos catholicos.
res, deve prevalecer o poder civil. (Epistola de 14 de julho de 1864.)
(Carta apostólica de 22 d'agosto de 1851.)
49. ® A authoridade civil póde impedir
43. * O poder secular tem authoridadeque os ministros do culto c os fieis com-
de destruir, de declarar e tornar nullos os muniquem livremente entre si e com o pon­
convênios solemnes ou concordatas relati­ tifice romano.
vos ao uso dos direitos pertencentes á im- (Allocução de 9 de junho de 1862.'
munidade ecclesiastica, sem consentimento
d’esta, e mesmo contra sua vontade. 50. ® A’ authoridade secular pertence
(Allocução de 1 de novembro de 1850.) direito d’apresentar os bispos, e póde ex
gir d’elles que tomem posse das suas dioce
44. ® A authoridade civil pódc envol­zcs antes de terem recebido a instituiçãc
ver-se nas cousas relativas â religião, aos canonica e a carta apostólica da Sancta Sé.
costumes e ao governo espiritual; d’onde (Allocução de 15 de dezembro de 1856.)
se segue que tem competência sobre as in-
strucções que os pastores da igreja catho­ 51. ® Ainda mais, a authoridade secular
lica publicam, em harmonia com a sua mis­ tem direito de demittir das suas funeções
são, para a direcção das consciências. Ainda astoraes os bispos, e não é obrigada a obe-
mais, tem todo o poder a respeito da admi­ ecer ao soberano pontifice nas causas que
nistração dos diversos sacramentos e das digam respeito á instituição dos bispos e
disposições necessarias para recebel-os. dos bispados.
(Allocução. de 9 de junho de 1862.) (Carta apostólica de 10 de junho de 1851.)

45. ° A completa direcção das escolas 52. ® O governo póde no uso dos seus
públicas, nas quaes se educa à mocidade direitos mudar qualquer época fixada pela
dos estados christãos, exceptuando os semi­ Igreja para o cumprimento dos deveres re­
narios episcopaes, póde e deve ser attri- ligiosos d’ambos os sexos, e ordenar a to­
buida á authoridade civil, e attribuida de dos os estabelecimentos religiosos que não
tal modo que a nenhuma outra authoridade admittam, sem consentimento d’elle, pessoa
seja dado intrometter-se na disciplina das nenhuma a pronunciar votos solemnes.
escolas, no regimen dos estudos, na conces­ (Allocução de 15 de dezembro de 1856.)
são dos graus, na escolha ou approvação
dos professores. . 53. ® É preciso revogar as leis que di­
(Allocução .de 1 de novembro de 1850.) zem respeito à protecção dos estabeleci­
mentos religiosos, dos seus direito? e das
46. ° Ainda mais, nos proprios semina­suas funeções; além d’isso o. poder civil
rios dós clérigos, d methodo dos estudos póde prestar o seu apoio a todos que qui-
déve ser approvado pela authoridade civil. zerem deixar a vida religiosa e quebrar os
(Allocução de 15 de dezembro de 1856.) votos religiosos. Póde igualmente suppri-
mir os estabelecimentos religiosos, as col-
47. ® As melhores condições da sociedadelegiadas e os simples benefícios, -ainda que
civil exigem que as escólas populares, aber­ sejam de padroado, e subinetter os bens
162 DISCURSO PRELIMINAR

cTelles â alçada e administração d’authori- 62. ° É preciso proclamar e observar o


dade civil. principio da não intervenção.
(Allocucucs de 27. de setembro de 1862, (Allocução de 27 de setembro de 1860.)
de 22 de janeiro de 185o, e de 26
de julho de 1858.) 63. ° É licito negar obedioncia aos prin­
cipes legitimos e mesmo rebelar-se contra
54.° Os reis e os principes não só estão elles.
isentos da jurisdicção da Igreja, mas também (Carla encuclica de 9 de novembro de
nas questões litigiosas de jurisdicção são •1846.)
superiores á Igreja. (Allocução de 4 de outubro de 1847.)
(C arta aposlolica de 10 de junho de 1851.) (Encyctica de 8 de dezembro de 1849.)
(Carta apostólica de 25 de março de
o5.° A Igreja deve ser separada do es­ 1860.)
tado, e o estado da Igreja.
(Allocução de 27 de setembro de 1862.) 64. ° A violação d’um juramento sole-
mne, e mesmo qualquer acção culposa e
vergonhosa contraria á lei eterna, nãò só
não é censurável, mas até c licita e digna
§ VII de grandes elogios, quando fôr feita por
amor da patria.
(Allocução de 20 d'abril de 1849.)
ERROS ACERCA DA MORAL NATURAL E DA
MORAL CHRISTÂ
§ VIII
56. ° As leis moraes nào carecem da sanc-
ERROS ACERCA DO CASAMENTO CHRISTÃO
ção divina, e nào é necessario que as leis
humanas sejam conformes ao direito natu­
ral, e recebam a sua saneção de Deus.
57. ° A -sciencia das cousas philosophi­65. ° Não é racionalmente admissível que
cas e moraes c as leis podem e devem ser Christo tenha elevado o 'matrimonio á ca-
livres da influencia da authoridade divina thegoria de sacramento.
c ecclesiastica. (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1852.)
(Allucução de 9 de junho de 1862.)
66. ° O Sacramento do matrimpnio é ape­
58. ° Não é preciso reconhecer outras nas um accessorio do contracto, do qual
forças senão as que residem na materia; e póde ser separado, e o Sacramento consiste
o systema moral e a honestidade dos cos­ na benção nupcial.
tumes devem consistir em accumular e au-
gmentar riquezas por qualquer meio, e na (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1852.)
satisfação de todos os gôsos.
'(Allocução. Encyclica de 10 d'agosto 67. ° Pelo direito natural, o vinculo ma­
de 1863.) trimonial hão é indissolúvel, e em muitos
casos póde a authoridade civil determinar
59. ° O direito firma-se no facto mate­o divorcio.
rial. Todos os deveres do homem são pala­ (Allocução de 27 de setembro de 1852.)
vras ôcas de sentido, e todas as acções hu­
manas teem força de direito. 68. ° A Igreja não, tem poder d’estabele­
{Allocução de 9 de junho de 1862.) cer impedimentos ao casamento; pertence
isso é sociedade civil, que póde annullar os
60. ° A authoridade não é mais do que impedimentos existentes.
ia somma do numero e dás; forças mate- (Carta apostólica de 10 de junho de 1851.)
riaes.
(Allocução de 9 de junho de 1862.) 69. ° A Igreja, no decurso dos séculos,
começou a introduzir os impedimentos di­
61. ° Uma injustiça de facto coroada rimentes,
de usando nãò do seu direito pró*
bom exito eni nada prejudica a sanctidade rio, mas d’um direito pertencente ao po-
S
do direito. er civil. , •
(Allocução de 18 de março de 1861.) (Carta apostólica de 22 cCagosto de 1851.)
DISCURSO PRELIMINAR 163

70. ° Os canones do concilio do Trento, bilidade da realeza temporal com o poder


■que pronunciam anathema contra os que ne­ espiritual.
gam á Igreja a faculdade de decidir áccrca (Carta apostólica de 22 d'agosto de 1852.)
dos impedimentos dirimentes, nào são do-
maticos, e devem ser considerados como 76.° A perda do poder temporal que pos­
erivando-se d’um poder alheio. suo a Só Apostólica, contribuiría para feli­
(Carta apostólica dc 22 d'agosto de 1851.) cidade c liberdade da Igreja.
(Allocução de 20 d'abril de 1849.)
71. ° A fôrma prescripta pelo mesmo
concilio, sob pena de nuílidade, quando a N. B. Além d’cstes erros, explicitamente
lei civil estabelecer outra fôrma c quizer apontados, ha outros muitos reprovados
que cm virtude d’esta seja válido o matri­ pela doutrina certa que todos os catholicos
monio, não ó obrigatória. devem respeitar acerca do poder civil do
(Carta apostólica dc 22 d'agosto de 1851.) romano Pontifico. Essas doutrinas estão ex-
tensamente expostas nas allocuçõcs de 20
72. ° Foi Bonifácio vm o primeiro que d’abril de 1859, c de 20 de maio dc 1860;
declarou que o voto de castidade pronun­ na carta apostólica de 26 de março dc 1860;
ciado no acto da ordenação torna o matri­ nas allocuções dc 28 de setembro dc 1860,
monio nullo. de 18 dc marco de 1861, de 9 dc junho dc
(Carta aposiolica de 22 d'agosto de 1851.) 1862.

73. ° Um contracto civil pôde entre os


christãos fazer existir um matrimonio ver­ iX
dadeiro e falso, ou que o contracto dc ca­
samento entre christãos deva ser sempre
ERROS QUE SE REFEREM AO LIBERALISMO
um Sacramento, ou que o contracto seja
MODERNO
nullo, se não houver Sacramento.
(Carta ao rei da Sardenha em 9 de se­
tembro de 1852.)
(Allocução de 27 de setembro de 1852, 77. ° Em a nossa época já não ó util q
e 17 de dezembro de 1860.) a religião catholica seja julgada religião do
estado com exclusão de todas as outras.
74. ° As causas matriraoniaes ou nu- (Allocução de 26 de julho de 1855.)
pciaes pertencem, por sua natureza, á ju-
risdicção civil. 78. ° Por isso sabiamente determinar
(Carta apostólica de 22 d'agosto dc 1851.) as leis em alguns paizes catholicos que os
(Allocução de 27 de setembro de 1852.) emigrantes conservassem o livre exercício
do seu culto.
N. B. Ha ainda dous erros a respeito (Allocução dc 27 de setembro de 1852.)
da abolição do celibato dos clérigos, e acer­
ca da preferencia do estado de casamento 79. ° É falso que a liberdade civil
sobre o da virgindade. Foram refutados, o cada culto c o pleno poder concedido a to­
primeiro na encyclica de 9 de novembro dos de manifestar clara e publicamente as
d e 1846, o segundo na carta apostólica de suas opiniões e pensamentos, produza cor­
48 dc junho de 1851. rupção dos costumes e dos espíritos, e con­
tribua para a propagação da peste da indif-
§I X ferença.
(Allocução de 15 dc dezembro de 1856.)
ERROS ACERCA DO PODER CIVIL
DO SOBERANO PONTIFICE 80. ° O pontifice romano pôde e d
conciliar-se c transigir com o progresso, o
75. liberalismo, c a civilisaçào moderna.
° Os filhos da Igreja christã e catho­
lica discutem entre si acerca da compati­ (Allocução de 18 de março de 1861.]

*
DICCIONAEIO UNIVERSAL

DAS

HERESIAS, ERROS E SGISMAS

a b a e l a r d (Pedro)—Nasceu cm Palais, na de quasi todo o Occidente se tinha voltado


Bretanlía, pelos fins do seculo undecimo,1 para a philosophia.
d’uma familia nobre. Os seus amores c in- Depois que Abaelard abraçou a vida re­
felicidades, as suas disputas litterarias e ligiosa, applicou-se principalmcnte á theolo­
os seus erros o fizeram celebre. gia, e seus discipulos lbe pediram que ajun-
São assaz conhecidos os dislates do seu tasse ás authoridades que provavam os do­
erro, e seus infortúnios. Não considerare­ gmas da religião, algumas explicações que
mos aqui senão os esforços que elle fez por as tornassem intelligiveis; representando-
adiantar os conhecimentos humanos, as mu­ lhe ser cousa inútil dar-lhes palavras que
danças que introduziu no modo de tractar elles não entendiam; que nada se podia crér
a theologia, e os escolhos que encontrou. sem que antes se entendesse, e que era ri­
Depois da restauração das sciencias no diculo ensinar-se uma cousa da qual nã«
Occidente gor Carlos Magno, tinha-se ele­ tinham ideia, nem o que fallava, nem o
vado a naçao franceza, como por degraus, que ouviam; accrcscentando que o mesm
da orthographia á grammatica, c d’esta ás Senhor censurava esses mestres, como un.
bellas-letras, á poesia, philosophia, e ma­ cegos que conduziam outros cegos. 1
thematica, seguindo-se de certo modo aquella Tal era o gosto geral da nação, o qual
derrota que Alcuino tinha aberto. 2 nem sempre se conteve nos seus justos li­
A philosophia n’essc tempo constava só mites. Alguns philosophos, porque sabiam
d c tres partes: logica, moral, e physica; formar um syllogismo, se julgaram habili­
d’estas tres, a logica era quasi a unica que tados para examinar e dicidir soberana­
se cultivava, c cila incluia a metaphysica. mente de tudo: criam que por este meio
A logica era sómente a arte d’ordenar profundavam tudo, e esclareciam até os
debaixo de certas classes os differentes obje­ mesmos mysterios; e d’esta sorte tinham
ctos dos nossos conhecimentos, dc dar-lhes atacado o dogma da Trindade.'
nomes, e formar sobre ellcs discursos ou Determinado Abaelard por estas conside­
syllogismos. rações, ou talvez pelo seu proprio gosto, sc
Abaelard estudou a dialectica com muito arrojou a explicar os mysterios e as verda-»
ardor, e até com luzimento, reformou a de des da religião, a fazel-os* sensiveis por com­
Aristoteles, e vindo a ser o oraculo das es­ parações, c a combater com a authoridadc
colas, adquiriu uma grande reputação, por­ dos philosophos e seus principios as objcc-
que n’esse tempo o genio dos francczes c ções dos dialecticos que a atacavam. Este
e o objécto a que elle se propõe na sua in-
troducção á theologia, e na sua theologia
1 E r n im . christã. 2
2 Tendo projectado Alcuino restabelecer
as letras na França, principiou recommen- 1 Abael. Ep. 1, c. o. Opemm, p. 20.
'•dando a orthographia; logo compôs tracta- 2 A introducção á theologia se acha na
dos sobre a grammatica, rhetorica, diale- edição das obras d?Abaelard por Amboise,
*•cticà, e mathematicas. Vide Hist. Lit. de e a sua theologia christã no tom. õ do The­
França, t. 4. saurus Anecdotorum do P. òlartenne.
166 ABA
Era novo na Franca o methodo que Abae- a adoração que lhe é devida, porque duas
lard intentava seguir, e nào duvidou que cousas nos inspiram acatamento: o temor o
elle houvesse de ser estigmatisado por uma o amor. O poder e a sabedoria de Deus nol-o
cabala de homens, que depois foram appel- fazem temer, por sabermos que elle é o
lidados corniOcianos. Estes cornificianos nosso Juiz, que nos póde castigar, e a sua
nào podiam perqoar a um homem de mé­ bondade nos, inspira o seu amor, porque é
rito a consideração que elle obtinha, e pu­ justo que amemos aquelle de quem recebe­
blicaram que as sciencias ò os sábios dei­ mos tantos benefícios. 1
tariam a perder a religião e o estado. Atacavam os dialecticos principalmenta
Para prevenir os clamores d’cstes ho­ o dogma da Trindade, c por isso foi este
mens sempre dignos de desprêso, mas sem­ mysterio o principal objecto dos cuidados
pre acreditados, Abaelard estabeleceu como d’Abaelard.
um principio irrefragavel, nào haver co­ Jesus Christo, segundo Abaelard, não fez:
nhecimentos que nào sejam uteis c bons mais que patentear o mysterio da Trindade,
em si mesmo; que a philosophia é muito elle o encontrou nos prophetas e philoso­
proveitosa ainda para a theologia, quando phos antigos: tem por verosimil que estes
se estima a verdade e se pretende fazel-a conheceram o mysterio da Encarnação, as­
conhecer. A philosophia, diz elle, sómente sim como o da Trindade, e que Dciís lh’os
é damnosa para a religião na boca d'estes revelou em recompensa das suas virtudes:
sophistas, que se possuem do furor da ce­ d’esta ideia parto Abaelard, louvando as
lebridade; incapazes de profundar cousa al­ boas qualidades dos philosophos, a pureza
guma, querem fallar de tudo, e dizer sobre de seus costumes, a exccllencia de sua mo­
quanto tractam cousas nunca ouvidas: ellcs ral, e crè que se não deve desesperar da
procuram nos objectos, não o que póde es­ sua salvação. 2
clarecer utilmente, mas o que póde causar Passa logo aos argumentos dos dialecti­
assombro ou fazer rir. Estes sophistas ou cos, que resolve muito bem, aclarando os
charlatães da philosophia tomam porém o equívocos cm que consiste toda a sua força;
nome de philosophos, e não teem as seien- chega finalmente a uma das ditficuldades
cias, no sentir de Abaelard, inimigos mais priucipaes, isto é, á natureza de cada Pes­
perigosos; elles são os que, com eífeito, re­ soa, e á sda differença, que elle busca ex­
tardam o progresso da luz, e os que dão plicar. «A propriedade do Pae, diz Abae­
pêso aos clamores e calumnias da ignorân­ lard, é não ser gerado: a do Filho é a de
cia contra as sciencias e contra a philo­ ser gerado, e não ser feito nem creado; a
sophia. do Espirito Sancto, a de não ser feito nem
O verdadeiro philosopho, no sentir gerado.»
de
Abaelard, reconhece a verdade da religião, Pondera Abaelard que não ha exemplo
e se applica a conhecer bem o seu espirito; entre as creaturas, em que na mesma es­
mas se elle não dissipa a obscuridade que sência se achem tres pessoas, o que não
encobre os seus mysterios, pensa que não póde conceber-se senão por analogias ou
póde vêr nem comprehender tudo, e que comparações, e segundo este theologo não
é absurdo rejeitar um dogma, porque não é preciso procurar n’ellas uma similhança
se comprehende; e quando quem nol-o af­ perfeita.
firma não póde enganar-se nem engana os Para fazer perceptível o mysterio da Trin­
outros. I\T’csta disposição d’espirito compôz dade, elle se serve do exemplo d’um sêllo-
Abaelard, e queria que se lésse a sua theo­ composto da materia e da figura que n’ellc
logia. i está gravada; o sêllo nem é a materia só­
A theologia não encerra, segundo Abae­ mente, nem a figura, mas um todo composto
lard, cousa de tanto momento como a Trin­ d’uma e outra cousa, e todavia nenhuma
dade: os nomes das tres pessoas compre- outra cousa é mais que a materia assim
hendem o sér soberanamente perfeito. O po­ figurada, posto que a materia não seja a
der de Deus se assignal-a pelo nome de Pae, figura.
a sabedoria pelo do Filho, e a caridade de Elle distingue a procedência do Espirito
Deus para com os homens pelo do Espirito Sancto da geração do Verbo, cm que sendo
Sancto. Tres cousas, diz Abaelard, que são o Verbo a sabedoria, particip'a do poder do
o soberano bem, e o fundamento das nossas Pae, porque a sabedoria e uma especie de-
obrigações para com Deus'. poder, isto e, o poder do distinguir ò bem
A distineção d’esta$ tres pessoas é própria
para persuadir os homens a render a Deus 1 Inirod. Theol. I. i. Theolog. Christ-1-
i ; c . 2.
i Theol. Christ. 2 Ibidem.
ABA 167

do mal, do determinar o que se deve ou mais extensas e elevadas do que se encon­


não deve fazer. 1 tram nos theologos do seu século; mas é
O Espirito Sancto, sendo designado pelo igualmcnte certo que também continham
nome d’amor, que nâo é um poder, fallando expressões não usadas, opiniões extrava­
com propriedade, nâo é a substancia do gantes, comparações de que se podia abu­
Padre, posto que o Espirito Sancto comtudo sar, e ainda mesmo heresias reaes.
seja d’uma mesma substancia com o Padre. Álberic e Lotulphe, theologos da cidade
Depois d’isto explica Abaelard a eterni­ de Reiins, ciosos da reputação d’Abaelard,
dade das Tres Divinas Pessoas com o exem­ não vendo as suas obras senão por este lado,
plo da luz do sol, que juntamente com elle cncontraranv n’ellas erros monstruosos, c
existe no mesmo instante.2 denunciaram Abaelard ao seu arcebispo.
Havendo assim exposto e explicado o do­ Convocou-se concilio em Soissons, e foi ci­
gma da Trindade, examina o poder de Deus, tado Abaelard para n’elle comparecer. O
e se elle pôde fazer outra cousa do que o .povo, insufflado porAlberic e Lotulphe, con­
que fez. correu em tropel para insultar Abaelard,
Conhece muito bem a difllculdade da sua gritando que se devia exterminar este he-
questão, e para resolvel-a entra a indagar rege, que ensinava haver tres Deuses; ef-
o principio c ordem dos divinos decretos: feito clarissimo da ignorância e má fé dos
estabelece que a sabedoria e bondade do accusadores d’Abaelard, cujas expressões
Ente Supremo dirigem o seu poder, e col­ mais tendiam para o sabellianismo que
lige d’este principio que tudo quanto Deus para o trithgismo.1
roduziu lhe fora prescripto pela sua sa- Abaelard não compareceu no concilio se­
edoria e bondade; que se ha algum bem não para lançar o seu livro no fogo; posto
que elle não tenha feito, é porque a sua sa­ de joelhos, leu o symbolo de Sancto Atha­
bedoria não lhe permittiu fazel-o; e d’aqui nazio, declarando ser aquella a fé que pro­
concluiu que Deus não podia fazer senão fessava, e não outra, e foi encerrado no '
o que fez, e não podia deixar de o fazer.3 mosteiro de S. Medard de Soissons, d'onde
Eis aqui as duas principaes obras theo­ sahindo pouco tempo depois, tornou a en­
logicas d’Abaelard. trar nos seus exercícios theologicos. Pas
Também compôz explicações sobre a Ora­ sados vinte annos depois do concilio de Sois
ção Dominical, sobre os Symbolos dos Apos­ sons, Guilherme, abbade de S. Thyerri, si
tolos, e de Sancto Athanazio, e sobre alguns persuadiu encontrar cousas nos livros dt
logares da Escriptura; fez uma obra intitu­ Abaelard contrarias á verdadeira doutrina,
lada o Sim e o Não, que nada mais é que as quaes recopilou n’estas quatorze propo­
uma recopilação de passagens oppostas, ti­ sições que exprimem os seus erros. 2
radas da Escriptura ácerca de differentes 1. * Na Trindade ha differentes graus:
m aterias.4 o Pae é um pleno poder, o Filho é algum
Finalmente compôz um commentario so­ poder, e o Espirito Sancto não é poder al­
bre a Epistola de S. Paulo aos romanos, gum. 3
que não passa d’uma explicação litteral da 2. * O Espirito Sancto, sim, procede do
mesma Epistola, em que Abaelard não tem Pae e do Filho; mas nem é da substancia
outra mira que a de mostrar o encadea- do Pae, nem da substancia do F ilho.4
mento do discurso d’este apostolo.5
1 Abaelard Ep. 1, c. 9, edit.Amboesii.
2 Em 1139.
DOS ERROS QUE SE ENCONTRAM NAS OBRAS
3 Ê evidente por diversas passagens da
D’ABAELARD
introducção e da Theologia Christã d'Abae­
lard, que elle cria que o Pae, o Filho, e o
Foram recebidas com credito as obras Espirito Sancto são igualmente omnipoten­
do theologo Abaelard, e é certo que ellas tes: as expressões que aqui se lhe vituperavi,
encerravam cousas excellentes, e idéias se encontram rium logar onde Abaelard ex­
plica a differença da processão do Espirito
1 Ibidem l. i . Theol. Christ. I. 4 . Sancto, e da geração do Verbo, e expressa­
2 Ibidem. mente adverte qiie nem poi' isso ha de crer
3 Theolog. C h r is t.l. 3. Introd. àd Theo - que o Espirito Sancto não é Todo Podet% oso.
log. I. 3. Vide a Theologia Christã e a introducção á
4 E sta obra está m a nuscripta na B i- Theologia.
bliot. de S. Germano. 4 Abaelard não peccou aqui senão na ex­
5 N a collecçâo das obras de Abaelard pressão, pois que elle reconhece formalmente
dor Airiboise: que a Espirilo ê consubstanciai ao Pae.
3. * 0 diabo nunca teve poder algum so­ 12/ A fé é a estimação ou o juizo que
bre o homem, e o Filho de Deus nào encar­ se faz das cousas que nao vémos. *
nou para livral-o d’este captiveiro, mas tão 1 3 / Deus não póde fazer senão o quê
sóraente para instruil-o com sua doutrina tem feito, c aqui 11o que ha de ainda fazer. *
e exemplos, nem também soíTreu nem mor­ 14/ Jesus Christo não desceu aos Infer­
reu senão para fazer patente e rccommen- nos. 3
davel sua caridade para comnosoo. 1 /Ijiiilh e r m e de S. Thyerri, enviou a Geo-
4. a O Espirito Sancto é a alma doiroi, bispo de Chartres,’e a S . Bernardo, ab-
mundo. 234*789 bade de Claravai, estas proposições, com a
5 / Jesus Christo, Deus e Ilomem, nào igjira que cllc compozera contra Abaelard.
c a terceira pessoa da Trindade, ou o ho­ 0 abbade de Claraval, á vista da carta e
mem nào deve ser propriamente chamado obra de Guilherme de S. Thyerri contra
D e u s.3 Abaelard, sem que hesitasse em que este
6.* Nós podemos querer c fazer o bem houvesse cahido nos erros que lhe impu­
pelo livre arbitrio sem o soccorro da Graça.' tavam, lhe escreveu, que, ou se retractasse,
7 / No Sacramento do Altar, a fórma da ou corrigisse os seus escriplos.
primeira substancia fica no a r .5 Como Abaelard não condesccndcu com
8. a Nào se tira de Adão a culpa do pecS. Bernardo, o zelo d’este sancto abbade se
cado original, mas a p en a.6 infiammou, obrigando-o a escrever ao papa,
9. a Não ha peccado sem que o peccadoraos prelados da corte de Roma, e aos bis­
n’cllc consinta, e sem que cllc desprese a pos de França contra elle.
Deus. 7 0 sancto ‘abbadc faz d’Abaclard a mais
1 0 / A concupiscencia, a deleitaçào e a horrível pintura, diz ao papa que Abaelard
ignorância nào produzem peccado algum. 8 e Arnaldo de Bresse fizeram uma conjura­
1 1 / As sugestões diabolicas operam ção occulta contra Jesus Christo e contra
nos homens por um modo physico, isto c, a sua Igreja: que é um dragão infernal que
pelo toque de pedras, hervas, e outras cou- a persegue d’um modo tanto mais perigoso
sas, das quaes os demonios sabem a vir­ quanto mais disfarçado e occulto: «Elle, diz
tude. ,J o Sancto, quer perder as almas innocentes;
Mxio, Pelagio, e Nestorio, são menos de te-
*mer, porque n’elle só se ♦reunem todos es­
tes monstros, como se deixa vér do seu modo
1 E sta proposição c tirada do commen­ ide proceder, e dos seus cscriptos; finalmente
tario sobre a Epistola aos romanos; é o erro \ò um perseguidor da fé, um percursor do
dos pelagianos, e Abaelard a retractou. Este iAnti-Christo.4
erro está refutado no artigo Palagianismo. Aos olhos d’um leitor imparcial não será
2 É certo não ser este aqui o sentimento diflicultoso conhecer, segundo o que have­
de Abaelard, o qual tendo-se proposto a des­ mos dito d’Abaelard, quanto as accusações
cobrir o dogma da Trindade nos philoso­ de S. Bernardo são destituídas não so de
phos pagãos, creu que pela alma do mundo fundamento, mas ainda da apparencia d’elle.
elles entendiam o Espirito Sancto. Não faço esta reflexão para deslustrar a
3 Não se pôde negar que Abaelard falle justa veneração que ha para com este san­
como Nestorio; mas também é certo que elle cto e illustre abbade; mas quizera inspirar
reconhece em Jesus Christo uma só pessoa. ás pessoas que se deixam inflammar d’um
4 E sta proposição ê um erro pelaaiano, zelo ardente, alguma desconfiança das suas
e foi retractam por Abaelard. proprias idéias; e se me fosse possivcl, tor-
. 5 E sta proposição não exprime mais que
um a opinião theologica; Guilherme.de S. E sta proposição era combalida, sup-
Thyerri, que a refuta, pretendendo que os pondo-se gue Abaelard enfraquecia a cer­
accidentes existem no corpo de Jesus Christo, teza da fe.
não é menos contrario aos theologos que ad- 2 Abaelard retractou este erro. S. Ber­
m iltem os accidentes absolutos. nardo, que refutou os mais que se attrí-
8 Abaelard retractou esta proposição, buiam a Abaelard, nada disse d'este. Bem.
que é pelagiam . Ep. 90.
7 Abaelard nega haver proferido esta 3 Abaelard retractou este erro. D. Ger-
proposição, e não se acha nas suas obras. vasio pretendeu justificar quasi todas estas
8 Aoaelard retractou esta proposição. _ proposições. Vida d'Abaelard, tom: 2, l. 5, p.
9 E sta proposição contêm uma opinião 162. Vide também sobre a mesma m a tm a
recebida entre os philosophos do século de o P. Lobineau, Hist. da Bretanlia.-
Abaelard; isto não é um e n o theologico. « 4 B em ard, Ep. 330, 331, 336, 337. r
ABE 169

nal*os um pouco mais tardios cm condc- lho dos cardeaes, condemnára todos os ca­
mnar. Sc cm S. Bernardo, que linha uma pítulos d’AbaeIard c todos os erros, e jul­
alma tão illuminada c tão pura, houve zelo gara que os sequazes ou defensores da sua
em demasia, quanto não devemos nós des­ doutrina deviam ser separados da commu-
confiar do nosso, nós que estamos tào dis­ nhão dos fieis. ^
tantes do desinteresse e da caridade d’um Abaelard publicou uma protestação de í
S. Bernardo? fé, na qual asseverava diante de Deus que í
As cartas d’este sancto fizeram suspeita elle se não sentia culpavcl dos erros que *
á fé, c odiosa a pessoa d’Abaelard quasi lhe imputavam, que achando-sc algum nos
e.m toda a Igreja, do que ellc mesmo se seus escriptos, estava na resolução de o não
queixa ao arcebispo de Sens, a quem rogou defender, e prompto a corrigir e relractar
que fizesse vir o sancto ao concilio, que es­ tudo o que elle tivesse proferido sem razão:
tava proximo a congregar-se na mesma ci­ conseguintemente condemnou todos os er­
dade. ros em que o accusavam de haver cahido,
S. Bernardo veio, produziu as proposi­ e protestou que cria cm todas as verdades
ções extrahidas das obras d’Abaelard, e o opposlas aos mesmos erros.
intimou para que se desdissesse ou se justi­ Depois de publicada esta apologia, Abae­
ficasse. lard tomando o caminho de Roma, passou
. Algumas d’estas proposições, como já tc- pelo mosteiro de Cluni, aonde Pedro, o ve­
/ mos visto, não exprimiam os sentimentos nerável, que n’elle era abbade, o reteve, e
fi’Abaelard; outras podiam explicar-se, e o conciliou com S. Bernardo. Alli edificou
\ oram mal entendidas pelos denunciautes; e todos os religiosos, c no anno de 1142, com
\ fmalmente havia outras sobre as quaes sessenta e tres annos d’idade, morreu cm
\ Abaelard pretendia esclarecer. Mas com uma casa dependente de Cluni, para onde
i tanta vivacidade o instou o sancto, que Abae- se tinha retirado a fim de tractar da sua
t lard conheceu nos animos uma prevenção saude. 1
tão ardente, que julgou não dever entrar A.UECEDARI AXOS, . OU - ABECEDARIOS— raiUO
cm disputa, e temeu um motim do povo: d’a n a b a p tis ta s, os q u a e s affirin av am q u e
por estas considerações tomou o partido de p a r a h a v e r d e nos s a lv a r, e r a n e c e s sa rio
appellar para Roma, aonde contava alguns não s a b e r ler n e m e sc re v e r, e a té ig n o ra r
amigos, e intimada a appellação se retirou.1 a s p r im e ir a s le tra s do a lp h ab eto , o q u e lhes
Condemnaram-se no concilio as proposi­ d e u o n o m e d e abecedarianos.

Íções extrahidas das obras de Abaelard, sem Depois que Luthero atacou descoberta­
se fallar na pessoa d’elle, e se escreveu ao mente a authoridade da Igreja, a tradição
papa, informando-o da sentença dada pelo e os sanctos padres, estabeleceu que cada
concilio. 2 um dos particulares era juiz do sentido da
O papa respondeu que elle com o consc- Escriptura; Stork, seu discipulo, ensinou
que cada um dos fieis, como qualquer dou­
1 Olho Frising ensis de gestis Friderici, tor, podia conhecer o sentido da Escriptura,
c. 48. que o mesmo Deus era quem nos instruía,
2 Berengario, discipulo d'Abaelard, emque o estudo hos embaraçava para estar
uma apologia que fez a favor de seu mes­ attentos á sua voz, e que o unico meio de
tre, e D. Gervasio na vida <TAbaelard, ata­ prevenir estas distracções era não apren­
caram o procedimento do concilio; mas o der a lèr, porque os que sabiam lér esta­
primeiro não fez mais que declamar, e o se­ vam em estado perigoso para a sua sal­
gundo não prova que os padres do concilio ex­ vação.
cedessem o seu poder. Os bispos pronuncia­ Carlostad tornou-se sectario d’este erro,
ram sobre as proposições que lhe foram apre­ renunciou a universidade e a sua quali­
sentadas; e poderá duvidar-se que elles não dade de doutor para se fazer mariola, e se
tivessem esse direito? Elles não ouviam, di­ chamou o irmão André. Esta seita se es-
zem os apologistas, a defesa d'Abaelard, teudeu muito em Allemanha. 2
p a ra julgarem se as proposições que se de­ Em todos os tempos teve a ignorância
nunciaram ao concilio eram conformes ou defensores, que d’ella fizeram uma virtude
■contrarias à fé; porém sómente deveria ser cliristã, taes foram os gnosimacos, os cor-
ouvido Abaelard, se o concilio pronunciasse nificianos, no sétimo e no duodecimo século,
contra a sua pessoa. Vide d'Argentré, Col-
lect. Judiciar. de novis Erroribus, t. 1, p. 1 Vide os authores pouco antes citados.
21. Martene Obsemation. ad Théol. Abae- 2 Osiander, centur. 16, l. 2. Stokman Le-
la rdi, t. 5. Thesau. Anecdot. Natal. Alex. xic in voce Abecedarii. Vide os art. Carlos­
in scec. 12. Dissert.. 7:. tad, Anabaptistas.
i 70 ABY
c todos os séculos tiveram, c haverão de Os abyxins crêem na presença real c na
ter os seus guosimacos e os seus cornifi- transubstanciação; as lithurgias trazidas
cianos.
ABELONiTAS— rusticos da diocese de Hy- d'Alexandria, e tendo os cophtas conservado
p o n ^ q u e penetrados de veneração para o sacramento da extrema-unção ainda de­
Abel, presumiram ser necessario casar pois das conquistas dos serracenos, como
como elle, mas que não era preciso usar póde vêr-se no artigo Cophtas, que razão ha
do matrimonio; d’esta sorte os maridos e para que os abyxins tenham supprimido a
as mulheres viviam juntos, mas faziam pro­ confirmação?
fissão de continência, c adoptavam um me­ Mr. Ludolfo se funda no testimunho dos
nino c um a menina que lhes succediam. 1 missionários portugueses; porém aquellcs
AB S ^ iK E ^ T Ê ^ — nome que se dava aos em missionários, mais zelosos que illustrados,
cratitás e aos inanjcjieos, por quererem que provavelmente se enganaram, porque este
hM vesse abstinência do vinho e do casa­ sacramento não se administra na Ethiopia
mento, etc. da mesma fôrma que na Europa. Os aby­
.ABYSSINIOS, ABYXINS OU ETHIOPES— POVOS xins o conferem segundo meu ver, como os
d^tricãrcrhh^são euWcfiianos iacobitas. cophtas, depois do baptismo, e os missioná­
É difficil determinar "ó'tdínpo em que nas­ rios portugueses tomaram a confirmação
ceu o Christianismo na Ethiopia, mas é por uma ceremonia do mesmo baptismo, e
sem dúvida que lá foi levado antes de 32o, como não viram administrar a confirmação
porque o concilio de Nicea, celebrado no aos adultos, conjecturarum d)aqui que‘ os
mesmo anno, dá ao bispo da Ethiopia o sé­ ethiopes não reconheciam este sacramento.
timo logar depois do de Silencia. Do mesmo principio vem os erros d'estes
A Igreja de Abyssinia reconhece a de missionários ácerca da extrema-unção; é
Alexandria por sua mãe, e lhe é sujeita de certo que os cophtas conservaram este sa-
um modo tão particular, que nem gosa da ci'amento (veja-se o seu, artigo); c não ha ve-
iberdade d’cleger o seu bispo. rosimilhança para que se julgue que os aby­
Este costume, tão antigo como a convcr- xins, que teem recebido d'elles os seus metro­
ão da Abyssinia, está authorisado por uma politanos, não seguissem o costume da igreja
ollecçao de canones que os abyxins res­ dos cophtas.
peitam sem differença dos livros sanctos. Porém entre os cophtas não se adminis­
D’esta sorte seguiu a Abyssinia a fé da tra a extrema-unção como entre os latinos;
igreja d’Alexandria, e os abyxins ou ethio- além d'isso se applica depois da confissão,
pes se fizeram ou eutychia- e aos sãos da mesma sorte que aos enfer­
nos, depois que ò Ê g y p to p a sso u irdüTffl- mos. E como os missionários nao viram na
riãÇão dos turcos, e que os jacobitas se se- Ethiopia as ceremonias que practica a igreja
nhorearam do patriarchado d’Alexandria. latina, e criam que a extrema-unçao só de­
Os abyxins não tem pois outros erros se­ via applicar-se aos enfermos, se persuadi­
não os mesmos dos cophtas; crêem como ram que com effeito os abyxins não tinham
elles, tudo o que a Igreja romana cré so­ este sacramento.
bre os mysterios, mas rejeitam o concilio Esta conjectura ao. que me parece virá a
de Calcedónia e a carta de S. Leão, e não ser uma prova, se se fizer reflexão sobre o
querem reconhecer em Jesus Christo senão modo com que os cophtas administram a
uma natureza, bem que não julguem que extrema-unção. «0 sacerdote depois de ha­
a natureza divina e humana estejam con­ ver administrado a absolvição ao penitente,
fundidas na sua pessoa. 2 se fa z assistir por um diacono; principia
U ' Entre elles ha sete sacramentos como logo incensando, e toma uma alampada cujo
entre os catholicos, c não deve crêr-se que oleo benze, e lhe accende uma torcida; de­
lhes falte a confirmação e a extrema-un­ pois d'isto recita sete orações, que são al­
ção, como pensa mr. L udolf.3 ternadas por outras tantas luzes, toinadas
da Epistola de S. Thiago e outros logares-
1 Aug.Hcer. 86. da Escriptura (è o diacono quem as lê).
2 Perpet. de la Foi, t. 4, h 1, c. 11. Men­ Finalmente o sacerdote toma o oleo bento da-
des l. if C. 6. Ludolf. Hist. Etyop. I. 3, c. alampada com que fa z uma unção sobre a
8. Voyag. de Lobo p a r le Grand. testa, dizendo: *Deus te cure em nome dO'
3 Ludolfo, Hist. Eliop. I. 3, c. 5. Sobre Padre, do Filho, e do Espirito Sancto*; a
esta pretenção de m r. Ludolfo, fazemos al­ mesma unção fa z sobre todos os que assis­
gumas reflexões. tem, temendo, dizem elles, que o maligno-
Havendo os abyxins recebido sempre o seu espirito não passe a alguns dos assistentes.*
metropolitano ou o seu bispo do patriarcha (Noveaux Memoires de la Compagnie de Je-
ABY 17 1

por mr. Ludolf não permitiem de o duvi­ çòes pelos defuntos, e os cultos das reliquias
dar, pois que o exprimem formalmente. * conservaram-se entre os abyxins como en­
0 culto e invocoção dos Sanctos, as ora­ tre os cophlas. 1

stis dans le Levant, t. 6, Lettre du P. Ber- 3. ° Tem-se visto em Roma abyxins, que
nat. Perpetuité de la Foi, t. o, l. 5, c. 2.) affirmavam que a igreja da EÍhiopia crê
E' bem 'natural que a uns missionários na transubstanciação, porém mr. Ludolfo
que não tinham tido tempo para estudar a pretende que o seu testimunho seja suspeito,
litliurgia dos ethiopcs, lhes fosse muito dif- porque estes estavam comprovados pela côrte
ficulloso o reconhecer o sacramento da ex­ de Roma; mas deve-se crêrJjnparciai e sin­
trema-unção assim administrado. cero o seu abyxim nas respostas que lhe deu
1 Jiist. JEthyop. I. 3, c. 5. Mr. Ludolfo, depois que elle mesmo nos expõe no seu pre­
não obstante a clareza das Ulhurgias, in­ facio os serviços que tinha feito, e conti­
siste em que os abyxins não creem na tran- nuava a fazer ao seu abyxim?
substanciação, c se funda no testimunho do Mr. JAtdolfo terá mesmo toda , a certeza
abyxim Gregorio, que inquiriu sobre este ar­ de não haver suggerido a Gregorio as suas
tigo. respostas por meio das suas conversações,
Mr. Ludolfo lhe perguntou que queriam e talvez ainda pelo modo com que elle b in­
dizer as palavras sér transubstanciado, sêr quiriu.
convertido, c se cria que a substancia do 4. ° Emfim calculando os testimunhos,
pão, e do vinho, fosse convertida e trocada temos aàyxins estabelecidos em Roma, que
na substancia do Corpo e do Sangue de Je­ contradizem, e consequentemente annullam
sus Christo. 0 abyxim sem hesitar nem pe­ o testimunho de Gregorio; resta logo a au­
d ir alguma explicação dos termos, lhe res­ thoridade dás Ulhurgias, que contém o do­
pondeu que os abyxins não reconheciam gma da transubslanciaçao. (Vejam-se as
uma similhante conversão, que elles não se mesmas Ulhurgias na Perpet. de la Foi, t.
embaraçavam em questões tão intrincadas, 4, /. i, c. II. Lithurg. Orient. t. 2. Le
que quanto ao mais lhe parecia que o pão c Grawl, Dissert. 12, à la suite du Voyagcde
o vinho não se dizem convertidos e muda­ Abyssinie par le P. Lobo.
dos, senão porque elles representam o corpo 1 Mr. Ludulfo reconhece todos estes pon
e sangue de Jesus Christo, e passam assim tos, inas crê que são abusos introduzido.
dyum uso profano a um uso sagrado. Faça­ na igreja d’Abyssinia pelas pregações doi
mos algumas reflexões sobre esta resposta bispos, e outras cousas.
do abyxim. Esta asseveração é mal fundada; o la-
1. ° O abyxim não nega a transubstan­ lendario dos abyxins reconhecido por mr.
ciação; diz sómente que lhe parece que òs Ludolfo, prova que a igreja d'Abyssinia
abyxins não a conhecem, e que não tractam sempre invocou os Sanctos, e deu culto ás
questões tão espinhosas. Uma resposta si­ reliquias: as suas litliurgias contéem ora­
milhante poderá contrapesar a authoridade ções pelos mortos.
clara, e precisa das lithurgias dos ethiopcs. Mr. Ludolfo nada oppõe que seja raciona-
Além disso sendo certo que os cophtas creem vel contra estas provas; diz elle, por exem­
a presença real, que razão haverá para que plo, que a invocação se introduziu pelas pre­
os abyxins, que teem recebido d'elles o seu gações politicas dos bispos, e em toda a Abys-
patriarcha, c que adoptaram todos os seus sinia não lia mais que o Abuma ou metro­
erros variassem ácerca da Eucharistia? politano; demais d'isso nunca lá se fazem
2. ° O abyxim tracta de questão espi­ pregações.
nhosa o dogma da transubstanciação, e diz Mr. Ludolfo convém que os abyxins oram
que os abyxins não excitam questões simi- pelos mortos, mas insiste que nao teem co­
lhantes, porém não faz a mr. Jmdolfo al­ nhecimento do purgatorio. E sta assevera­
guma pergunta'sobre este dogma, não tem ção é igualmente falsa, sendo certo que os
embaraço algum, não pede explicação ou abyxins não negam o purgatorio, e que só­
esclarecimento algum sobre esta questão tão mente ha differentes opiniões sobre o estado
espinhosa, e que não se excita na Ethiopia. das almas depois da monde, posto que reco­
É sta precipitação em responder, suppõe que nheçam que para gosar da bemaventurança
elle não entendeu a pergunta que lhe fizera eterna seja preciso satisfazer á justiça di­
m r. Ludolfo, nem a resposta que elle deu; vina, e que as orações supprem o que bs ho­
ou que o abyxim queria responder de modo mens não poderão satisfazer.
que não desagradasse a mr. Ludolfo, de quem
elle conhecia os sentimentos ácerca da trans-
substanciação.
172 ABY
examinar-se pelas regras, e não pelos abu­
sos. Perpetui de la Foi, t. 4, p. 87, 102.
D E ALGUMAS PRÁCTICAS PARTICULARES Demais d’isto, a práctica da confissão não
EN TR E OS ABYXINS está cxtincta entre os abyxins, que se con­
fessam aos sacerdotes, e algumas vezes
ao metropolitano, c quando seaccusam ^ al­
1. * Os abyxins, assim como os cophtas,gum peccado grande, o metropolitano se.
tcem a ceremonia do baptismo de Jesus levanta, reprehende vivamente o pcccador
Christo, que mr. Renaudot c o-padre Tollis e chama os beleguins, que açoulam coní
tornaram apparentemente pela reiteração todo o vigor o penitente; então todos os
do baptismo. Yeja-se o artigo Cophtas. circumstantes que se acham na igreja sc
2. a Elles, assim como os cophtas, tecmchegam ao metropolitano, e obteem o per­
a circumcisae e outras prácticas judaicas, dão a favor do penitente, a quem elle dá
taes como a de se absterem do saugue e a absolvição. Ludolf, ibidem, 1. 2, c. C.
da carne dos animaes suíTocados, c ó mais 4. » O casamento entre os abyxins é tido
provável que elles tirem estas prácticas dos por sacramento, e eis aqui como Alvares
cophtas do que dos mahometanos c judeus, descreve a celebração d’um a que assistiu,
como pretende mr.de la Crozc no seu Chris­ feito pelo abuna ou metropolitano. «O es­
tianismo da Ethiopia. 1 poso e a esposa estavam á porta da igreja,
3. * Abulsclah, author egypcio, que aonde
es­ se tinha preparado uma espccic de
creveu ha perto de quatrocentos annos, diz leito, sobre o qual os mandou, assentar o
que os clhiopcs,.em logar de confessarem abuna, que fez uma procissão em roda d’el­
seus pcccados aos sacerdotes, os confessam les com cruz e incensario; depois pôz-lhes as
todos os annos diante d’um thuribulo em mãos sobre- as cabeças, dizendo: que da
que está ardendo incenso, crendo que as­ mesma sorte que elles hoje hão eram mais
sim alcançam o perdão. que uma mesma carne, assim não deviam
Miguel, metropolitano de Damictta, jus­ ter mais que uma vontade; e depois de lhes
tifica esta práctica no seu tractado contra dirigir um discurso conforme a estas pala­
a necessidade da confissão, e não é de ad­ vras, foi dizer missa, a que assistiram o es­
mirar que ella passasse á Ethiopia no tem­ poso e a esposa, e por um lhes deu a ben­
po dos patriarchas, João e Maria, que favo­ ção nupcial.» 1
reciam este abuso. 5. a O divorcio está em uso entre os
Zumzabo, porém, afíirmava que no seu abyxins; um marido, descontente de sua
paiz se confessava, e segundo a disciplina mulher, a repudia e a torna a receber com
dá igreja d’Alexandria, o deviam fazer. A o mesmo desembaraço: a infidelidade da
verdadeira tradição d’uma igreja deve pois mulher e do marido*, a esterilidade ou a
menor desintelligcncia, são entre elles cau­
sas mais que legitimas para se separarem.
1 Entre os cophtas. uns olhavam o cos-, O divorcio por causa d’adultorio facilmente
tum e da circumcisão como uma condescen­ se reconcilia, compondo-se com algum di­
denda que foram obrigados a ter com os nheiro a parte oíTendida: mas não é tão fa-
mahometanos, outros como práctica pura­ ,cil esta reconciliação quando entre os con­
mente civil. Os abyxins estão mais confor­ sortes tem havido pendências ou pancadas:
mes em pareceres sobre este objecto; mas al­ n’estc caso o juiz lhes permitte se casem
guns ha, que a respeitam como uma cere­ com outros; e quer mais qualquer ethyopo
monia religiosa e necessaria para a salva­ receber uma mulher que outro repudiou
ção. Certo religioso abijxim contou ao padre por adultera, do que uma que se deixou
Lobo que u m demonio se tinha affeiçoado a por desordem. 2
certa fonte, e vexava extraordinariamente 6. ° Os sacerdotes são casados entre os
os pobres religiosos que iam buscar agua, abyxins, assim como em todo o Oriente,
que Tecla Aimanat, fundador da sua or­ mas com esta restricção desconhecida en­
dem o tinha convertido, e que elle somente tre os reformados; diz mr. Renaudote, qiie
houvera difficuldade no ponto da circumci- nunca.se permittia aos sacerdotes, nem ain­
são, porque o diabo não queria ser circum- da aos diaçonos, casarem-se depois ^orde­
cidaao, mas Tecla Aimanat o persuadiu, e nados, e qiie o casamento d’um religioso e
fe z elle mesmo esta o p era çã o e o diabo to­
mando depois o habito religioso, m oireu ao 1 Dissert. ,13, à la suite du Voyagedu
fim de dez annos, com odor de sanctidade. P . L o b o ,m . . •,
O P. Lobo, Relação Historica dAbyssinia, 2 Lobo, loc. cit. p. 76. Tevcnot, in-folio •
traduetion de le ôrand, p. 202. t. 2, p . 3.
ABY 173

d’uma religiosa foi sempre olhado como sa­ mesmo rei não era reconhecido sem que
crilego. 1 fosse sagrado pelas mãos do Abuna, que
7. * A pluralidade das mulheres c outromuitas vezes se serviu d’esta authoridade
abuso, q ue os patriarchas d'Alexandria tem contra os usurpadores, para conservar a
pretendido remediar infruetuosamente. 2 dignidade real a quem de direito pertencia.1
8. * Não ha em todo o 'mundo paiz tãoOs reis d’Abyssinia teem feito as mais vi­
povoado d’ecclcsiasticos, d'igrejas e mostei­ vas solicitações para que o patriarcha de
ros como a Abyssinia: apenas se póde can­ Alexandria ordene bispos nos estados da
tar n’uma, que se não ouça em outra, e re­ Ethiopia, mas o patriarcha receando que,
gularmente em muitas. Elles cantam os se houvesse n’ella mais, se multiplicassem
psalmos de David, que teem na sua lingua tanto que viessem a eleger outro patriar­
traduzidos fielmente, assim como os outros cha, nunca consentiu se ordenasse em toda
livros da Sancta Eseriptura, á exccpção dos a Abyssinia mais do que um Abuna.
Machabcus, que comtudo reconhecem como Gosa este de muitas e grandes terras; e
canonicos. n’um paiz em que todos são escravos, os
9. * Cada mosteiro tem duas igrejas^uma rendeiros são inteiramente isentos de qual­
para os homens, c outra para as mulheres; quer tributo, ou nào pagara senão a elle,
na dos homens se canta em côro, e sempre com a cxcepção das terras que possue no
em pé, sem que jamais se ponham de joe­ reino de Tigre; também se faz para elle um
lhos, razão porque tem diversas commodi- peditorio de panno c sal, de que lhe pro­
dades de que usam para se apoiarem e sus­ vem grande rendimento. No espiritual não
tentar-se. reconhece outro superior senão o patriar­
Os seus instrumentos de musica consis­ cha d’Alexandria.
tem em pequenos tambores, que teem pen­ O Abuna é o unico que póde dar dispen­
durados ao pescoço, e tocam com ambas sas, e muitas vezes tem abusado da sua au­
as mãos. Os principaes e mais graves ec­ thoridade a este respeito, porque regular­
clesiasticos trazem estes instrumentos, e mente é ignorantíssimo, e não menos ava
também uns bordões com que batem no rento.
chão com toda a sua força, e com um es­ O Komos ou Hugenos é a primeira dign
tremecimento de todo o corpo. Principiam dade ecclesiastica, c equivale ao que nó
a sua musica batendo com o pé, e tocando chamamos arcypreste.
estes instrumentos suavemente; depois in- Na Abyssinia pão se conhecem as missas
flammando-sc pouco a pouco, os largam, c resadas ou particulares.
se poem a bater com as palmas, a saltar, Ha na Abyssinia conegos e monges: os
a dançar, a levantar as suas vozes quanto primeiros casam-sc, e muitas vezes passam
podem, sem guardarem mais pausa nem os canonieatos a seus filhos.
compasso nos seus cantos, e dizem elles que Os monges vivem no celibato, teem gran­
David lhes manda celebrar assim os divi­ de reputação, c de ordinario são emprega­
nos louvores, quando diz nos Psalmos:— dos nos mais importantes negocios. Elles
Omnes gentes, plaudite; manibus jubilite fazem os votos. Yejam-se Ludolfo e Lobo.
Deo, etc.

DOS ESFORÇOS QUE SE TEM FEITO PARA PRO­


DO GOVERNO ECCLESIASTICO DOS ABYXINS CURAR A REUNIÃO DA IGREJA D’ABYSSINIA
COM A IGREJA ROMANA

A igreja d’Abyssinia é governada por um


metropolitano ã que elles chamam Abuna, Quando os portuguezes penetraram pelo-
isto é, nosso pac; ella porém nào tem bispo mar Vermelho até á Ethiopia, estava a
algum suíTraganeo; é nomeado e sagrado igreja d’Abyssinia no estado que acabamgs
pelo patriarcha d’Alexandria, que para con­ de referir. A rainha Helena, avó c tiitora
servar esta igreja em maior sujeição, nunca de David, imperador da Ethiopia, vendo o
lhe dá metropolitano do p a iz.3 império atacado pelos seus visinhos, e in­
, Não obstante ser estrangeiro, e regular­ quieto pelas guerras domesticas, fez allian-
mente muito ignorante, este metropolitano ça com os portuguezes, e mandou um em­
teve algum dia tanta authoridade, que o baixador a el-rei D. Manoel, que também
fez partir outro para a Ethiopia; logo se
1 Perpet. de la Foi, t. 4, l. {. c. 12. principiou a fallar da reunião da igreja de
2 Lobo ibid.
3 Lobo ibid. í Lobo, Ludolfo, loc. cit.
174 ABY
Abyssinia com a romana. O imperador não des, que pelas suas letras; e os dous bispos
se mostrou contrario a estes desígnios, e Melchior Carneiro e André Ovicdo. Estes
Bermudes, medico do embaixador portu- prelados levaram comsigo dez jesuítas. O
guez, foi nomeado pelo patriarcha Marcos arcebispo ficou em Goa, c Ovicdo, bispo de
para lhe succeder. Ilierapolis, passou com alguns jesuitas á
N’estc tempo um principe mouro, cha­ Abyssinia, mas o imperador estorvou o suc­
mado Grané (ou Gaucher), commandantc cesso de suas pregações, e seu irmão Adar-
das tropas do rei d’Adel, invadiu e conquis­ nas, que lhe succedeu, foi ainda muito mais
tou a maior parte d’Abyssinia. David, as­ opposto do que elle á reunião desejada.
sustado com a rapidez d’*csta conquista, en­ Morreu o patriarcha Barreto, e Ovicdo
viou Joào Bermudes a pedir soccorro aos lhe succedeu; mas esta nova dignidade não
principes christãos. Bermudes foi a Roma, tornou a sua missão mais venturosa; o papa
passou a Lisboa, obteve do papa o titulo de o mandou sahir d’Abyssinia com os jesui­
patriarcha, e d’el-rei de Portugal o soccorro tas, c que passassem a outra parte; porém
que pedia o imperador, d’Abyssinia. Este­ Oviedo lhe respondeu que promptamente
vão da Gama apreslou uma frota, que en­ obedecería, mas que não podia sahir de
trou no mar Vermelho, e desembarcou so­ Abyssinia, porqpc os portos estavam fecha­
bre as costas d’Abyssinia quatrocentos sol­ dos pelos turcos; qüc seria melhor manda­
dados portuguezes, commandados por seu rem-lhe algum soccorro, do que chamal-o;
irmão Christovão da Gama, o qual repôz a que se elle tivesse unicamente quinhentos
coroa sobre a cabeça de David. soldados portuguezes, poderia fazer voltar
Depois d’esta feliz expedição dos portu­ os abyxins, submetter muitos povos idola­
guezes contra os mouros, quiz Bermudes tras, que do lado de Moçambique c de So-
obrigar o imperador a que prestasse nas fala havia um grande numero de gentios,
suas mãos juramento de fidelidade ao papa. que nada mais queriam que ser instruídos;
O zelo precipitado de Bermudes inspirou assim ficou na Abyssinia até á sua morte,
ao imperador tibieza para com a religião requerendo sempre soldados e tropas, e
catholica, e odio para a sua pessoa, que ja­ persuadido de que os abyxins não se sujei­
mais foi tractada pelo imperador com o res­ tariam voluntariamente à igreja romana.
peito que este patriarcha julgava lhe era As differentes revoluções que acontece­
devido. ram na Ethiopia, pozeram sobre o throno
O patriarcha o sentia vivamente, e se quei­ Mélasegud, que tomou o nome de sultão
xou com amargura de que o rei nem lhe Segud.
pedisse a benção, nem mandasse que os Depois da batalha que o fez senhor de
vassallos d’elle a recebessem, e pretendia Abyssinia, os jesuitas que tinham passado
que não ordenando que se lh’a tomasse, aquelle reino, foram felicital-o, c elle muito
violava o imperador na' pessoa d’elle pa­ benignamente os recebeu; fez vir o padre
triarcha o respeito que devia a Jesus Christo, Paes á sua presença, tractou-o com grande
a quem representava; assim lhe diz Ber­ distineção, e em uma audiência lhe testi-
mudes: «Vós sereis rejeitado, maldito, e cx- munhou que estimaria servir-se com algu­
coinmungado, se tornardes ás heresias dos mas tropas portuguezas.
jacobitas e discorianos do Egypto.» O rei O padre(Paes lhe assegurou que facil­
lhe respondeu que os christãos do Egypto mente as teria se quizesse abraçar a reli­
não eram hereges, mas sim os catholicos que gião romana: o rei assim lh’o prometteu,
adoravam quatro deuses, como os arianos, e o padre Paes escreveu ao papa, a el-rei
e accrescentou, que, se Bermudes não fosse 'D. Manoel, c ao vice-rei da India tres cartas
padre espiritual, o faria esquartejar. que o mesmo sultão Segud assignou.
Bermudes informou os portuguezes d e s ­ Não gosava o rei por então tranquillo do
tas desavenças, e as suas intrigas atearam seu imperio, e foi-lhe preciso extinguir fac­
a guerra entre o rei da Ethiopia e os por­ ções e atalhar revoltas, que se formaram
tuguezes, seus libertadores. 0 imperador no decurso de quasi dous annos; porém
Claudio com tudo se reconciliou com elles, tanto que se viu seguro sobre o throno, pu­
m as como os receava, os espalhou por dif­ blicou um edito pelo qual prohibia susten­
ferentes provincias, e obrigou Bermudes a tar que não havia em Jesus Christo mais
deixar a Ethiopia. que uma natureza, e condemnava á morte
Informados o papa e el-rei de Portugal os contraventores.
do què se passava ná Ethiopia, mandaram O metropolitano foi ter com o imperador,
para lá um patriarcha c dous bispos. Erá e se queixou de que elle houvesse publi­
o patriarcha João Nunes Barreto, mais rc- cado um edito sem o consultar; os grandes
commendavel pela sua dignidade e virtu­ e o povo murmuraram, os animos se acccn-
ABY 17$
deram, e o Ab una fulminou uma excom­ os povos, sob pena de morte, abraçassem a
munhão solcmne contra todos os que abra­ religião catholica, c se passaram ordens
çassem a religião romana, favorecessem a para se executar a lei nos que recusassem
união com esta igreja, ou disputassem so­ obedecer a cila. Houve uma sublevação ge­
bre as questões que d’clla dividiam a igreja ral, e os povos escolheram reis e elegeram
d’Abyssinia. chefes para defender a religião dos seus pas­
A ousadia do patriarcha irritou o rei, mas sados; o fogo do fanatismo se ateou por toda
•este não se atreveu a castigal-a, contentan­ a parte; temia-se de se contagiar, abraçan­
do-se em publicar um edito pelo qual con­ do o partido do imperador; aqui religiosos
cedia a liberdade de seguir a religião que c religiosas, para evitarem os catholicos,
os padres jesuilas haviam estabelecido pelas se precipitavam do alto d’estes rochedos es­
suas inslrucçõos e disputas, porém o me­ pantosos, cujo aspecto só faz estremecer a
tropolitano lançou uma nova excommunhão imaginação mais intrepida; alli os sacerdo­
contra todos aquelles que dissessem que em tes, levando á ^cabeça as pedras aras. ani­
Jesus Christo ha duas naturezas. mavam os rebeldes* promeltiam-lhes a vi­
As pessoas illustradas muito bem pre- ctoria, e se expunham aíToutamente aos gol­
viam que estas disputas haviam de produ­ pes da soldadcsca.
zir grandes perturbações; a mãe do rei, os Porém Mendes, tranquillo e omnipolente
grandes, o patriarcha, o clero, se lançaram como senhor absoluto, mudava na religião
aos pés d’el-rei, para conseguir d’elfe que quanto desapprovava, abrangendo seu zelo
não fizesse mudança alguma na religião; igualmente a distineção da heresia^ e a con­
mas ficando inflexivel este principe, os ani­ servação dos bens da igreja. A um prefeito
mos se azedaram, fez-se conselho, c resol­ do Prctorio, com beneplacito do imperador,
veram morrer pela defesa da sua antiga tendo-se apoderado d’algumas casas, qw
religião. certos monges reclamavam como suas, Men
Os jesuítas da sua parte publicaram li­ des o cxcommungou; com a nova d’esta ex
vros, instruíam, e se empenhavam em tirar communhào, o prefeito esmoreceu; a côrtc
do erro os abyxins, afloutavam o impera­ e o imperador^supplicaram o seu perdão a
dor, e o exhortavam a ter-se firme na re­ Mendes, e finalmente o abrandaram. Porém
solução que tomara; porém d’uma cspecie esta excommunhão offendeu profundamente
d’agitação surda rompeu a rebelliào em mui­ os grandes; elles não podiam soffrer, que
tas provincias. por umas casas que estavam em letigio com
Apesar d’estas revoluções, el-rei passou os monges, e que o imperador podia tirar
um edito em que prohibia o trabalhar no e conceder a seu arbitrio, um homem res­
sabbado, o que produziu novas revoltas, de peitável pelo seu nascimento, serviços e vir­
que o rei comtudo triumphou. Tanto que tudes, fosse excommungado por um pre­
elle suppôz os animos subjugados, fez pu­ lado estrangeiro. *
blicamente a profissão da religião romana, Estas sementes d’odio foram secundadas
e chegado que foi o patriarcha AÍTonso Men­ por uma continuação de severidades e de
des, que clle tinha pedido ao papa, o impe­ rigores da parte dé* Mendes, e os cortezãos
rador, posto de joelhos, fez sobre os Sanctos que lhe tinham descoberto o seu caracter,
Evangelhos um juramento em que promet- continuamente lhe pediam bagatellas, das
tia ao sancto padre Urbano, e a seus suc­ quaes tinham a certeza de ser desattendi-
cessores uma verdadeira obediência, sujei­ dos pela sua inflexibilidade, contando por
tando a seus pés com humildade sua pes­ este meio fazel-o odioso e despresivel, sen­
soa e seu imperio: qs principes, vice-reis, do felizes n’esta sua traça, pelo menos di­
ecclesiasticos, e clero, fizeram com igual minuir-lhe a estimação que d’elle fazia o
solemnidade a mesma protestação. imperador.
Prestaram depois juramento de fidelida­ Greseia todos os dias o numero de rebel­
de ao imperador e a seu filho. Ras Scclla des, e principiando a equilibrar o partido
Christos, irmão do imperador, o fez da. ma­ do rei, tanto a côrte como o exercito lhe
neira, seguinte: «Juro reconhecer o prin­ representaram a necessidade que havia de
cipe por herdeiro ao throno de seu pae, em- usar d’alguma tolerância' com os abyxins;
quanto elle sustentar e favorecer a Sancta elle consultou o patriarcha, o qual consen­
F é Catholica, sem o que serei eu o seu pri­ tiu n’isso, com a condição porém de que
meiro e maior inimigo.» Todos os capitaes fosse tacito e não por lei este consentimento.
do exercito, e seu filho mais velho, juraram O rei partiu logo a combater os rebeldes,
da mesma sorte, e com a mesma condição. e persuadindo-se de que era preciso fazer
Immediatamente depois, o imperador fez conhecer as suas disposições, que favore­
publicar em todo o seu exercito,, que todos ciam a tolerancía, publicou no seu exercito
176 ABY
a mudança d’algumas bagatellas, e a per­ O patriarcha Mendes foi buscar o impe­
missão dc se servirem dos livros antigos, rador, e lhe representou que uma simi-
uma vez que elles fossem revistos c corrigi­ lhante liberdade dc consciência excitaria
dos pelo patriarcha. guerras civis. O imperador respondeu so­
Affonso Mendes escreveu ao imperador mente estas palavras:— «Que posso eu fa­
acerca d’estc edito, e lhe pôz diante dos zer? eu já não tenho reino.»
olhos o exemplo do rei Osias, ferido de le­ Sultão Segud morreu pouco tempo de­
pra, por haver emprehendido uma cousa pois, e Basilides, seu filho e successor,
que pertencia tão sómente aos levitas. O apenas elevado ao throno, fez logo pren­
imperador respondeu que quando a reli­ der Ras Scella Christos, seu thio, por causa
gião romana apparecera no seu império, do juramento que tinha dado; ordenou ao
não^se tinha estabelecido nem pela préga- patriarcha que lhe remettesse todas as ar­
gação dos jesuítas, nem por alguns mila­ mas de fogo que tinha, e se retirasse in-
gres, mas pelas suas leis e editos, e-porque continente para Fremona, no reino de Tigre.
elle achava que os livros da igreja d’Abys- Mendes então oíTereceu diversas modifi­
sinia se ajustavam muito bem com os da cações, mas o imperador nenhuma accei-
romana. 1 tou: finalmente propôz disputas com os sá­
Mas nem ainda assim socegaram os ani­ bios da nação, e recebeu do imperador esta
mos estes comedimentos do imperador; foi única resposta: «Foi por ventura por meia
reciso pôr em armas o exercito; os fieis d’argumentos que vós estabelecestes a nossa'
ateram-se com um furor incrivel, e deixa­ fé, nao foi pela violência e pela tyrannia?»
ram coberto d’oito mil mortos o campo da O patriarcha foi obrigado a retirar-se a
batalha. Fremona, e de lá mandou pedir tropas ao
Então os cortezãos conduziram o .rei a vice-rei da índia; mas o imperador infor­
vér este espectáculo, e lhe fallaram assim: mado d’este desígnio, o mandou sahir dos
«Vede, senhor, tantos mil homens mortos; seus estados, e que se transportasse á ín­
não são mahometanos nem gentios; são os dia; foi preciso oDedecer. O imperador fez
vossos vassallos, o nosso sangue, os nossos vir do Êgypto um metropolitano, e se ex­
parentes. Ou vós leveis a victoria, ou sejaes pulsaram d’Abyssinia todos os missionários
o vencido, de .toda a sorte metteis a espada catholicos, oito annos depois de terem alli
nas vossas próprias entranhas: estes que entrado.
vos fazem a guerra, não tem de que vos O patriarcha chegou ás índias, represen­
eensurar, mas não gostam da lei que que­ tou ao vice-rei o estado dos catholicos de
reis impôr-lhes. Quantas mortes por motivo Abyssinia, e a necessidade de soccorrcl-os.
d’esta mudança? Estes povos não se occom- Ellè se propôz d’cnviar uma armada pelo
modam á religião romana; deixai-os viver mar Roxo, para tomar Macun e Arkiko,
na de seus paès, que d’outra sorte vós fica­ edificar alli uma boa fortaleza, e mantel-a
reis sem reino, e nós jámais teremos so- bem guarnecida, ganhar ou submetter o
cego.» Bharnagas, e forçal-o a entregar aos portu-
0 imperador, cahiu n’uma melancholia guezes o irmão de Negus, que elle tinha
profunda, e depois de longos combates inte­ prisioneiro, para collocal-o sobre o throno,
riores, publicou um edito que permittia a e excitar por este modo uma guerra civil.
todos a liberdade de seguirem o partido que O padre Jeronymo Lobo teve em Roma um
quizessem. discurso que com pouca diíTerença era o mes­
- . Este edito causou uma alegria inqrivel mo que fez crér ao papa, aos cardeaes, e
em todo o reino; a religião romana foi aban­ a todos òs que d’isto foram scientes, que os
donada por quasi todos os abyxins; tudo re- missionários teriam misturado nos seus dis­
soava alegres cantilenas. Fizeram-se canti­ cursos um pouco d’aquelle humor marcial
cos para conservar a memoria d’este grande que é naturalissimo á nação portugueza.
acontecimento, em qué se representavam os A resistenda que houve em Fremona e
missionários como hyenas 2 vindas dó Occi­ na Alfa, as tentativas e violências obradas
dente para devorar as ovelhas d’Abyssinia. para tirar Ras Scella Christos do seu exi­
lio, a desobediencia, ou para melhor dizer
1 Telles, p. 483. a revolta de Zamariano, aquelle zeloso e
2 H yená é uma especie de cão selvagem grande protector dos jesuítas, que unindo-
proprio d Abyssinia; estes animaes são 'peri- se aos rebeldes do monte Lásta morreu
gosíssimos: elles se ajuntam para accommet- com as armas em punho contra o seu rei,
ter3 e atacam as casas dos pastores e dos acabaram de persuadir que nem os catho­
lavradores. V. VHist. de Ludolf, eVAbrègé licos abyxins, nem õs missionários portu-
de son Hist. ín-12, m prinié á Paris. guezes, eram d’estas ovelhas que sem se
ADA 177
abalarem se deixam conduzir ao matadouro. disse. Por este meio alcançou a confiança
O papa e os cardeaes, prevenidos contra do povo, achou entrada cm muitas casas,
os-jesuilas, encarregaram esta missão aos attrahiu multidão de mulheres c povo que
capuchinhos fraucezes. Seis que pretende­ o respeitavam como homem d’uma sancti­
ram penetrar na Abyssinia, foram reconhe­ dade apostólica, c grande thaumaturgo.
cidos e condcmnados á morte pela mera Para melhor sustentar sua impostura por
qualidade de missionários latinos, e o im­ uma qualidade respeitável, á força de di­
perador até conservava em Sennaguen um nheiro comprou os votos d alguiis bispos
embaixador com o unico desígnio dMmpe- ignorantes, que contra todos os cânones lhe
dir que algum jesuita passasse á Abyssinia.1 conferiram o episeopado.
Comtudo havia n’ella pessoas sincera- Esta nova dignidade lhe inspirou tanta
meiitc votadas á igreja romana: o impera­ presumpção e orgulho, que tinha a ousadia
dor fez uma pesquiza rigorosa, e lhes man­ de compârar-se aos apostolos e martyres;
dou tirar a vida. Como temia estes catho­ negava-se a consagrar igrejas cm nome
licos occultos, cuidou em ter alliados; pôz d’clles, querendo somente dedical-as a si
da sua parte o H ym en, insinuou-lhe que proprio.
permittia o exercício da religião mahome- Distribuía pela plebe as suas unhas e ca-
tana, e até lhe pediu doutores da sua lei. bellos, e esta lhe dava igual veneração como
Foi conhecido este projecto, e o povo se al- se fossem reliquias de S. Pedro. Fazia pe­
vorotou cm todo o reino, sendo os monges quenas cruzes e oratorios, que collocav
•os primeiros que tomaram as armas, e que no campo perto das fontes, e obrigava
publicaram que era preciso desthronar o povo a que alli orasse publicamente, |
rei, e substiluil-o por um principe capaz sorte que as antigas igrejas se viam dese
de defender e conservar a religião. tas em menospréso dos bispos.
Não ha soberano que tenha poder tão des­ Finalmente, quando o povo chegava
pótico sobre a fortuna e vida de seus sub­ seus pés para confessar-se, elle lhe dizia.
ditos como o imperador d’Abyssinia; porém «Conheço os vossos peccados, e vossos mais
em um momento clle se viu em perigo de occultos pensamentos; não é necessário que
perder a sua coroa e a sua vida. Despediu vos confesseis:.ide-vos em paz, seguros da
o doutor mahometano que tinha chamado, vossa absolvição.» O povo se levantava, e
e desde esse tempo a religião cophta, ou o partia muito seguro de que os seus pecca­
euthychianismoéna Abyssinia a unica domi­ dos lhe eram remittidog.1
nante.2 Áecio, chefe dos Anomeos,v. este art. Tinha Adalbert composto a historia da
a d a l b e r t 3— era gaulez, e nasceu no prin­ sua vida; parece pelo começo d’esta peça,
cipio Ho“§í^ século, que foi o da ignorân­ que ainda se conserva, que ella não era
cia e das trevas, sempre fecundas em su­ mais que um tecido de visões, ^impostu­
persticiosos e enganadores; este é o rei­ ras, e de milagres fingidos. Adalbert se re­
nado da hypocrisia. presentava u ella nascido de pacs simples,
Desde os seus primeiros annos foi Adal- mas coroado por Deus no seio de sua mãe,
bert um hypocrita insigne; elle se jactava a qual dizia elle, que antes de o dar á luz,
de que um anjo era fórma humana lhe ha­ se persuadira vèr sahir do seu lado direito
via trazido das extremidades do mundo re­ um novilho, o que segundo a sua interpre­
liquias cTadmiravel sanctidade, por cuja tação, significava a graça que elle havia re­
virtude podia obter de Deus quanto lhe pe- cebido pelo ministério d’um anjo.
Outro escripto ^Adalbert é uma carta
-1 Le Grandj suit de la Relation du P. que elle attribuia a Jesus Christo, e suppu-
Lobo. nha ter vindo do céo pelo ministerio de S.
2 Relação da Abyssinia pelo P. Lobo, Miguel. Eis aqui o titulo da carta: «Em
traduzida do francez por le Gi'and. Conti­ nome de Deus, aqui começa a carta de N.
nuação d'esta mesma relação. Ludolf, Hist. S. Jesus Christo, que cahiu em Jerusalem,
(FEthiop.} l. 3, c. 9, 10, 11, 12, 13. Tellcs, e foi achada pelo archanjo S. Miguel á porta
Hist. d’Ethiop. em Thevenot. Nouvelle Hist. d’Ephrem. Lida, e copiada pela mão d’ura
d ' Abyssinie tiré de Ludolf, in-12, à P arís, sacerdote chamado João, que a mandou á
1684. La Crose, Christianisme d'Ethiop. Es­ cidade de Jeremias a outro sacerdote cha­
ta obra tem seus defeitos; é muito menos es­ mado Talasio, e Talasio a remetteu para a
tim ada mie o Christianismo das índias; o Arabia a outro sacerdote chamado Leoban,
. que se aisse contra Ludolf contém a refu­ e Leoban a mandou á cidade de Betsamia
tação da maior parte das faltas de la Crose. aonde ella foi recebida pelo sacerdote Ma-
3 Alguns lhe chamam Adelberto, e ou­
tros Alaeberto. t Bonif. Ep. 135.
»
178 ADA
cliario, que a remetteu á montanha do ar- mente a religião os conservava; mas as
chanjo S. Miguel, e a carta chegou pelo sciencias ecclesiasticas não deixaram de ro-
ministério d’uin anjo ã cidade de Roma ao sentir-sc d’csta desordem. O clero tornou-
sepulchro de S. Pedro, cm que cstào as cha­ se ignorantíssimo, pela necessidade em que
ves dos reinos dos céos; c os doze sacerdo­ d’ordinario se viram os ecclesiasticos de
tes, que estão em Roma, fizeram vigilia por adquirir por meio do trabalho o seu sus­
ires dias com jejuns e orações de dia e tento, e pelo despréso em que os barbaros
noite.» tinham as artes c sciencias. Os barbaros
Segundo a noção que nos dá d’csta carta convertidos conservavam ainda uma parte
•T o concilio de Roma, congregado pelo papa das suas superstições; tudo o que se offc-
v , Zacharias contra Adalbert, ella é a mesma recia estupendo era preferido ao verdadei­
\ que mr. Baluze fez imprimir juulo a um ro, como sempre aconteceu nos séculos da
manuscripto de Terragona no seu apcndice ignoraucia. Publicaram-se d’uma c d’outra
ás capitulares dos reis de França; esta carta parle milagres e armaricões d’csi)iritps: a
nada contém mau, ou que mereça fazer-se mesma piedade" stTpcni^uadlu'podeFsup-
menção. pôl-os pelo bem da religião, e não era pos­
A sua inutilidade ridicula á primeira sível que o interesse deixasse de servir-se
vista, me parece feita com bastante destre­ d’esles exemplos para seduzir o povo, como
za, e do modo mais adequado para alluci- fez Adalbert. Veja-se o terceiro discurso de
nar o povo; este sequito d’anjos, d’archan- mr. Fleury sobre a Historia Ecclesiastica, e
jos, e de sacerdotes, que communicaram a o tomo 4.° da Historia L itteraria de França.
carta, que a transportaram ad i (Terentes re­ a d a m i t a s — Hereges que nas suas assem­
giões, e por fim a Roma, e que se apresenta bléias se“jTunham nus, como Adão e Eva no
tudo a um tempo, fere a imaginação do estado da innoccncia. 1 Parece que os ha­
povo, que vè o movimento dos anjos, o as- via de differentes especies.
. sombro dos sacerdotes, e representando-se / i.° Carpocraoio c muitos outros here-
este jogo, forma de tudo um quadro que o .ges tinham dito que a alma h.umana.era
diverte, e se magoaria pensando em que a .uma emanação. da intellig.oncia .s.upxcxua, e
carta não fosse verdadeira, e está muito quê’fora encarcerada nos orgãos corporaes
longe de presumir que o enganam. \pelo Dòus Greador.
Temos ainda uma oração d’Adalbert, que k Este modo de contemplar o homem, in­
elle compozera para o uso dos seus sequa- spirou a seus discipulos uma alta ideia de
zes, e que começa assim: «Senhor Deus si mesmos, muito despréso’ á vida, e um
Todo Poderoso, Pae de Nosso Senhor Jesus odio violento contra o mesmo Crcador: cada
Christo, Alpha e Omcga, que está assentado um d’elles julgou ter por devçr quebran-
sobre o throno soberano, sobre os cheru- tar as leis que elle impozera aos homens,
hins e seraphins, eu vos rogo e vos conjuro, e provar que elle olhava a alma humana
anjo Uriel, anjo Raguel, anjo Tabuel, anjo como uma porção da Divindade, e todas as
Miguel, anjo Inias, anjo Tabuas, anjo Sa- acções da alma unidas ao corpo como ac­
hàoth, anjo Simiel, etc.» 1 ções em que o sabio e o christão não viam
Adalbert representava esta impia e ex- mais que uns movimentos cm si mesmos
^ travagante figura na França Occidental. S. indifferentes, e que em nada prejudicavam
/Bonifácio, que como homem verdadeira- a dignidade natural do homem.
mente apostolico trabalhava por destruir o 0 seu caracter orgulhoso, penetrado vi­
.erro n’aquella região, fez condemnar Adal- vamente d’esta consequência, fèz d’ella um
bert no concilio congregado :em Soissons, principio ao qual referiu toda a sua moral
inas o impostor muito longe de submetter- e toda a sua religião; elle não‘viu.mais o
' sè á sua decisão, redobrou depois a sua bem nem o mal, julgando-se similhante a
.audácia. Adão e a Eva, que no estado da innocen-
S. Bonifácio recorreu ao papa, o qual cia não os conheciam, e se persuadiu que
convocou um concilio em que Adalbert foi devia exprimir este 'sentimento, imitando a
condem nado.2 -Depois d’esta época nada sua ntidez quando estavam nò Paraizo Ter­
mais ácerca d*ellé -nos diz á historia, senão restre; ella pois veio a ser o caracter dis-
ue ‘S. Bonifácio o fez prender por ordem tinctivo da seita dos-adamitas.
os principes Çarlomano ê Pepino. * Esta. seita não fazia orações, e facilmente
A s erupções .dos barbaros no imperio ro­ se concebe que do.principio daindifferença
mano tinham arruinado os estudos, e só- das acções humanas, junto ao odio que ella
tinha ao Creador, se haviám de produzir,
1 Conc.j t. 6, p.' ií>S3.
2 No m ez d'outubro de 746 ou 748. 1 Epiph. Hceres. b 1.‘
c i­
ADA 179
•segando os caracteres c temperamentos de periores ecclesiasticos estavam com serie­
•cada um, costumes regularmente oppostos dade, c cada um no Iogar que convinha ã
•entre si, mas conformes ao principio fun­ sua ordem, e despidos faziam os seus ofii-
damental d’aquella seita; uns eram castos, cios. 1
ao mesmo tempo que outros se entregavam Os costumes d’csta seita foram no seu
a todos os excessos^ c tinham mil modos de principio irrcprchcnsiveis, e elles cxcom-
ser voluptuosos os castos. 1 — • mungavam sern remissão os que cabiam em
Todas estas contrariedades nos costu­ alguma fraqueza contraria á innoccncia que
mes dos adamitas, nào eram contradicções professavam; porém a seita não tardou cm
n’aquella scita, e causa assombro vér que corromper-se.
mr. de Dcausobre fizesse das mesmas con­ 3.° Quando a vida monastica se estabe­
trariedades um principio em que se funda leceu na Palestina, viram-sc alli prodígios
para negar que tivesse havido adamitas, so­ de penitencia, de pobreza, e de todas as
bre o qual principio ellc se creu authori- virtudes christãs; «alguns dos solitarios,
sado para exclamar contra a fidelidade e diz Evagro, inventaram um modo de viver
exactidào de Sancto Epiphanio.2 que parece superior a toda a força, e pe­
2.° Entre os gregos, macedoniòs, e ro­ nitencia humana; elles escolheram um de­
manos, havia o uso de descobrir a cabeça, serto exposto aos ardores do sol para sua
c de tirar parte dos vestidos quando pediam habitação, c ha homens c mulheres, que
graças com uma profunda humildade. Diz tendo alli entrado nus, excepto o que o pejo
ddutarco que Augusto conjurando o Senado não permitte nomear, aflrontam cm todas
fpara que nào o violentasse a acccitar a di- as estações ou os rigores do frio ou os ex­
Üctadura, se humilhou até á nudez. Este cessos da calma, despresam o uso dos ali- \
ttiso, pois, é verosimil que passasse aos chris- mentos de que se servem os outros homens, j
,tãos, como se vê pelo exemplo dos gregos c vivem contentes cm pastar como as.be.stas. ;
•convertidos, dos quacs diz S Paulo que ora­ «Ha alguns, posto què eifTinenor nume- 1
vam c prophetisavam com a cabeça desco­ ro, que quando por um dilatado exercido
berta ao contrario dos judeus. 3 de virtudes se teem elevado acima das pai­
Um christào fervoroso c penetrado d’uma xões, voltam ás cidades, introduzem-sc en
profunda humildade, naturalmente viu este tre a multidão, fazendo parecer que perde
modo d’orar como a expressão mais natu­ ram o juizo para aviltarem a vangloria
ral d’aquella submissão que o homem deve que, diz Catão, ser o ultimo vestido qut
.a Deus, c da homenagem interior que elle despem ainda os que são mais sábios.
rende á magestade Divina; além d’isso Adão «De tal sorte se tem feito superiores aos
e Eva, innocentes, assim oravam no Paraizo sentimentos da vaidade, que, se é preciso,
Terrestre. É pois facil de comprehcnder comem nas bodegas c tabernas, sem atten-
que com uma imaginação viva e um espi­ ção a logar nem a pessoas; entram muitas
rito fraco póde fazer-se da nudez no tempo vezes nos banhos públicos, c se banham
da oração uma cspecie d’acatamento, ou com indiíTcrença com toda a casta de gente;
pelo menos considcral-a como a maneira em tal modo teem vencido as paixões c
(Torar mais agradavel a Deus. O primeiro triumphado da natureza, que não ha vista
homem que ideou este modo d’orar, encon­ nem toque que possa excitar n'elles algum
trou imaginações que accenderam e forma- sentimento impuro. São homens quando se
iuaram a seita que chamaram dos adami­ acham entre homens, c parecem mulheres
tas, porque ella se authorisava com o exem- quando estão entre mulheres; emfim, para
<plo d’Adão e Eva; e com effeito é verosimil dizer tudo em poucas palavras, a sua vir­
que houvesse adamitas d’esta cspecie. Se­ tude segue leis contrárias às leis da natu­
gundo refere Sancto Epiphanio, elles des­ reza; c ainda quando são constrangidos a
piam seus vestidos no atrio ou vestibulo da servir-se das cousas mais necessarias á
igreja, c iam logo a tomar os seus logares, vida, jamais se concedem tanto, quanto a
nus como um menino quando nasce; os su- necessidade requer.»2
Eram estes homens muito extraordina­
1 Ciem. Alex. Z.,3. Strom. p. 31, l 1, p. rios c muito respeitados para haverem de
• 223. Epiph. H xres.õ l. Aug. Hxres. 31. Plii- ficar sem imitadores, c é possível que. uma .
lastr. c. 49. Isidor. Hispal. I. 8. Origen. c. falsa imitação d’estes solitarios pozesse em
5.' Damascen. c. 53. Pscudo-Hyeron, in in­ uso a nudez entre os seus falsos imitado-
dic. Hxres. c. 14.
2 -Bihí. Genn. 1, an. 1731. 1 Epiph. ibidi.
3 ;Alexander ab Alexandro Dierum Ge- 2 Evag. t. 4. de tr a i. du Prés. Cousin,
.nialidm, l. 1, c. 19. Plutarc. Vie Auguste. e. 21.
180 AER
res, e que coni o decurso do tempo cllcs se hospital, mas nem assim o ganhou. Acrio.
limitassem a esta feição, que parecia assaz continuamcntc se queixava c murmurava
propria para attrahir a attenção e os bcne- do seu bispo. Eustathio o ameaçou que
licios do vulgo. A similhança d’estes falsos usaria da sua authoridade para impôr-lho
imitadores dos solitarios da Palestina com silencio; então Aeriq atacou a authoridade
os antigos adamitas, fel-os appcllidar com d’Eustathio, c asseverou que o bispo não
este nome, dos quaes o mesmo mr. de era superior ao sacerdote.
Beausobre nos faz conhecer a possibilida­ Depois d’cstc primeiro acto d’indcpendcn-
de. 1 Osadamitas tornaram a apparetor no cia, Acrio aceommetteu tudo o que dava cre­
decimo.'JuaQp! século: são mais conheci­ dito a Eustathio, ou que lhe attrahia a esti­
dos pelo nome* 'de~ turluninos e irmãos^da mação da parte do povo, condemnou todas
vida nobre. dos quaes íaíTáremos sob este as ceremonias da Igreja, a celebração das
nome. Um fanatico, chamado Picardo, re­ 'festas, nas quaes o bispo apparccia com dis-
novou também osta scita, e houve adami­ tineção e luzimenlo; negou que fossem pre­
tas entre os anabaptistas. Vcjam-sc os ar­ cisas as orações pelos defuntos, c susten­
tigos Picardo e Anabaptistas. 2 tou que a Igreja não tinha o poder de de­
ADE^çjuo^-philosopho platonico, que ado- terminar os jejuns.
p to u o s prmeipios dos gnosticos como des­ Acrio depois de haver formado este pla­
envolvimentos ou desenvolvimento do pla- no de reforma, deixou o seu hospital, en­
tonismo; ajuntou muitos livros d’Alcxan- sinou suas opiniões, c persuadiu muitos ho­
dre e Lybico, c algumas presumidas reve­ mens e mulheres, que se separaram da
lações de Zoroastro, que alliou com os prin­ Igreja, seguiram-o, e formaram a seita dos
cípios do platonisnio e com os dos gnosti­ arianos. Como os lançaram fóra de todas
cos, c d’esta miscelânea compôz um corpo aTígrçjas, elles se ajuntavam nos bosques,
de doutrina, que allucinou muita gente no nas cavernas, e nas campinas, aonde algu­
3.° seculo. mas vezes se achavam cobertos de nevo.
Este mesmo Adelphio pretendeu ter ul- Aerio vivia no tempo de Sancto Epyplia-
xapassado Platão no conhecimento do Ente nio, e a sua seita subsistia ainda no do
Supremo. .Plotinio, que era o chefe dos pla­ Sancto Agostinho. 1 Os protestantes reno­
tônicos, o refutotf nas suas lições, e escre­ vavam os erros d’Acrio; nós vamos exami-
veu contra elle. Aurelio fez quarenta li­ nàl-os.
vros para rebater Zostriano, e Porphyrio
| itambem compôz muitos para mostrar que
V) de Zoroastro era novo e composto por <Tdà s u p e r io r id a d e d o s b is p o s so b r e
I ^.delphio e seus discipulos. OS SIMPLES SACERDOTES
Ainda se conserva a obra de Plotinio con-
* tra estes gnosticos puramente philosophos,
como se vetfiTcfença que Plotinio lhes at­ A Igreja 6 uma sociedade visivel, que tem
tribue. 3 o seu culto, as suas ceremonias, e suas leis;
a e r i o — era um monge que tinha seguido 6 pois necessario que haja superiores, e
o pãffídõ dos arianos, e amigo d’Eustathio.. uma ordem de homens, aos quaes pertença
Eustalhio foi eleito bispo de Constantino- ensinar, prégar, fazer leis, e vigiar sobre
pla, e Aerio se tornou o seu mais cruel a sua execução.
inimigo. 0 mesmo Jesus Christo foi o que estabe­
De nada se esqueceu Eustathio para obri­ leceu esta ordem na Igreja; elle encarregou
gar o seu amigo a perdoar-lhe a superiori­ aos apostolos que ensinassem; elle lhes con­
dade que lhe dava o seu emprego; encheu-o feriu o poder de perdoarem os peccados.
de provas d’amizade e estimação, ordenou-o Todo o novo Testamento nol-os representa
sacerdote, e lhe deu a intendencia do seu como os ministros de Deus, separados dos
restos dos fieis, e estabelecidos pelo Espi­
rito Sancto para governarem a Igreja.2
1 Parece que com effeito estes solitarios Ha pois n’ella ministros que por direito
tiveram falsos imitadores, porque o can. 29 divino teem uma verdadeira superioridade
do conc. Laudicea prohibe não sómente aos sobre os simples fieis. Não são iguaes na
leigos e aos sacerdotes, mas também aos Igreja todos os ministros; a ordem e hyerar-
monges, entrar nos banhos com as mulheres. chica, composta de bispos, de sacerdotes o
2 Ittigius de Hoeres. sect. 2, c. 4. Osian-
dei'j v. 61, cent. 19, v. 12. N a ta l Alex. in 1 An. 376. Epiph. Hair. 76. Avg. Hatr. 53-
scec. Í5 et 16, p. 90, 61. 2 Prim a Cor. c. 4. Secunda Cor. c. 3.
3 Plotinio, /. 18, p. 203. Act. c. 20.
AER 181

-diaconos. Os bispos são os successores dos aos seus sacerdotes que preguem o aria-
apostolos, e os apostolos eram uma ordem nisnm^qc
differente da ordem dos sacerdotes. do Ni cea, ou de mudar aaisciplina èstabe-
Vernos nos actos dos apostolos que S. lccí3a~para toda a Igreja por este concilio:
Paulo c S. Bcrnabé estabeleceram sacerdo­ ha pois n’ella uma authoridade superior ao
tes nas cidades, e que estes sacerdotes não bispo, a qual authoridade faz leis que o
pertenciam ao collegio dos apostolos: é dif­ bispo está obrigado a observar, c que elle
ferente a fórma da sua ordenação da de não pódc constranger a alguns dos seus sa­
quando se tracta d’escolher um apostolo: cerdotes a infringir; assim quando a Igreja
geralmentc se falla dos apostolos como de tem dado as leis, é do bispo o poder de fa-
uma”ordem distincta dos bispos:1 e para zcl-as observar, c de punir aquelles que as
o tribunal dos bispos são citados os sacer­ quebrantam.
dotes; assim teem os bispos pela sua insti­ Porém como um bispo em particular não
tuição, ou pela sua ordenação, c consequen­ é infallivel, pódc enganar-se sobre a obser­
temente por direito divino, uma superiori­ vância das leis, ou ácerca da sua applica-
dade d’ordem e de jurisdicção sobre os sim­ ção, e amplial-as demasiadamente; ha por
ples sacerdotes. isso um tribunal em que se julga se o bispo
Em todos os tempos a ordem episcopal se engana quando profere que tal pessoa
foi distincta da sacerdotal, e esta distineção não ouserva a lei, ou se elle dá á mesma
suppõe no bispo uma superioridade de di­ lei e ao seu proprio poder uma extensão
reito divino* acha-se assignalada formal- excessiva.
mente esta distineção nas cartas de Sancto Este tribunal era meramente ecclesias­
Ignacio, em Origenes c cm Tertulliano.2 tico, e nem podia ser d’oulra sorte, pois
s Os bispos eram os unicos que tinham o que a Igreja era uma sociedade puramente
Sdireito d’ordenar bispos, sacerdotes, c diaco- religiosa, cujas leis não tinham relação al­
vnos: e sempre se annullaram as ordenações guma com os interesses puramente tempo­
feitas pelos sacerdotes. rãos e civis: e como a alliança da Igreja
s** A igreja grega, os cophtas, e os nesto- e do estado em nada mudavam* a constitui­
( rianos, concordam n’este ponto com a igre- ção c essencia da mesma Igreja, fica send,
-ja latina.3 D’esta sorte o sentimento que claro que o poder ecclesiastico e civil s?
recusa aos bispos uma superioridade d’or- diversos, c não oppostos.
dem, de jurisdicção, e de honra sobre os
simples sacerdotes, é contrario á constitui­
ção da Igreja, á Escriptura, â tradição, e DA ORAÇÃO PELOS MORTOS
á práctica immemorial da mesma Igreja.
Hamondo e Pearson sobre este ponto re­
duziram os presbyterianos ao absurdo, e Lémos no livro segundo dos machabeus,
mr. Nicole refutou sem replica o que mr. que é um sancto e saudavel pensamento
•Claudio tinha dito em seu favor.4 Mas nin­ orar pelos mortos, para que lhe sejam re-
guem arguiu melhor os presbyterianos, nem mittidos seus peccados. 1 Segue-se, por­
defendeu melhor o episcopado contra Sau- tanto, haver peccados quepodem ser per­
maise e Blondel que o padre Petau. Ve­ doados no outro mundo pelos suffragios dos
jam -se os seus dogmas theologicos. vivos.
Como cada um dos bispos em particular Não podendo os protestantes responder
não é infallivel, assim elle não tem sobre a este argumento, negavam que fosse ca­
•os simples sacerdotes uma authoridade sem nonico o segundo livro dos machabeus, mas
.limite ou “um poder arbitrario. Um bispo, sem razão, porque elle foi posto no numero
por exemplo, não tem o direito d’ordenar dos canonicos por quasi todas as igrçjas
christãs, pelo decreto dTnnocencio i, e pelo
1 Act., c. 14. v . 10 c. lò\ íy cojiçüipjier,Ç.acthagD- A dúvida d!alguns
2 Ignac. Ep. ad Magnes, ad Ephes. Orig. pacTres c d’algumas igrejas particulares não
Hom. in Luc. 20. Tert. Coron. Militis. contrapesa o consentimento geral das ou­
3 Perpet. de la Foi, t. 3, p. 570; vejam-se tras.
■os artigos nestorianos, cophtas, abyxins, ja- Jesus Christo declara no Evangelho que
•cobitas. ha certos peccados que não se perdoam
4 Hamon, Dissert. cont. Blondel. Bin nem n’cste mundo, nem no outro, e d’aqui
(jliam, Autiquit. Eccl. Joannis Pearsoinii, concluiram os padres que havia peccados
•opera posth. Defensio Episcopatus Dicece-
san i, autore Henrico Mauritio. Prctendus
Bcformés convaincus de Sshisme, L 3, c. 10. Machab., I. 2, c. 12, v. 46.
182 AGN
'que se perdoavam no outro mundo, e que lheres, que alliciavam pessoas novas, e lhes
era preciso orar pelos mortos. ensinavam que nada era impuro para as-
Na Igreja houve sempre o costume de consciências puras.
orar por ellcs; assim se practica desde o Este ramo de gnosticos talvez tirou sua
segundo scculo, c Tertulliano o põe no nu­ denominação d’uma mulher chamada Aga-
mero das tradições apostólicas. Ora estas pc, que havendo sido instruída por um
deprccaçõcs que se faziam pelos mortos, certo Marcos, perverteu na Hcspanha mui­
não eram sómente para consolação dos vi­ tas mulheres de qualidade. Uma das maxi­
vos, ou para agradecer a Deus as mercês mas dos agapetas era ju ra r, e perjurar,.
que tinha feito aos mortos: era para al­ antes que revelar o segredo da sua seita. 1
cançar. o ailivio das suas penas. 1 AGARENEANOS OU AGARE+NOS— C O 1101110
Esta devoção se augmentou muito no que se ‘dêü .Valguns christãos, que no ineio
fim do scculo decimo e no principio do un­ do sétimo scculo renunciaram o Christia­
decimo por Sancto Odilão c pela ordem nismo para professarem o Alcorão. Nega­
cluniatense 2; e com elTeito, c muito digna ram a Trindade e sustentaram que Deus
da caridade christã esta devoção: o nosso não tinha filho, porque não tinha mulher.
amor a Jesus Christo deve ligar-nos a todo Estes christãos apóstatas foram chamados
o seu corpo e obrigar-nos a tomar parte agarenos, porque abraçaram a religião de
nos bens e nos males de todos os seus mem­ Mafoma c dos arabes* descendentes d’Is-
bros; da mesma sorte, pois, que nos deve- rnaelx fijbft d;Agar.2
uos interessar pela gloria dos sanctos, rc- AGEQXLTAS OU AQEpNESES— foi Ullia S eita
osijando-nos com a sua felicidade e com de homens devassos, que condemnava o
seus triumphos, assim também havemos casamento e a castidade, que clles olhavam
*. condocr-nos das penas que soíTrem os como uma sugestão do mau principio. En-
stos, que ainda tem de satisfazer á jus- tregavam-sc a toda a sorte d’infamia. Ap-
ça Divina, e orar por ellcs; todos os nos- pareceram pelos annos de G94, imperando
os controversistas tractaram optimamente Justiniano n e o papa Sérgio i. Foram con-
esta questão.' demnados no co^iJlítde^Lapgres.3
0 erro d’Aerio acerca da celebração das agnoetas—este nome quer dizer igno­
festas e das ceremonias foi em parte reno­ rantes: üeu-se i.°—aos discipulos deTheó-
vado pelos protestantes, e principalmente phronio, que no fim do iv século susten­
•pelos presbyterianos,algunsanabaptistas, c tava que Deus não conhecia tudpj^oquc
emfim pelos kouakres: nos seus artigos o eUc^dqüir®
tractaremos. '“*—**^' Este èrrò é absurdo, sendo incontrasta-
Sobre esta matéria póde vêr-sc a obra de vel que o Ente necessário tem um conheci­
Bruyeis, intitulada: Defense du culte exte- mento infinito: a unica difliculdade contra
rieur. a Omnisciencia de Deus tira-se do livre ar­
Aeschines — era um empyrico d’Athenas, bitrio. Os socinianos renovaram este erro.
qiie seguiu os erros dos montanistas: ensi­ Yeja-se o seu artigo.
nava que os apostolos tinham sido inspira­ 2.°— Deu-se o nome de Agqqctas aos que
dos pelo Espirito Sancto, c não pelo Para- pretenderam que Jesus Christo não sabja
clito: e que o Paraclito promettido dissera tudo, que Elle ignorava o dia do juizo, e o
por bôcca de Montano mais cousas e de logar aonde Lazaro estava sepultado.
mais importância, que o Evangelho.3 Os erros de Nestorio e d’Eutyques tinham
agapetas—esta palavra significa pessoas feito nascer uma infinidade de questões
queW ffinám: deu-se a um ramo de gnos- acerca da natureza de Jesus Christo, da
ticos que subsistia nos fins do quarto sé­ sua Divindade e Humanidade, domodo como
culo em 395. cilas estavam unidas c dos cíTeitos d’esta
S. Jeronymo representa esta aspecie de união. .
seita como composta principalmente de mu- Themistip, diacono ^Alexandria, indagou
se depois d’esta união, não havendo em Je­
1 Joan. 6, v. 27. Tcrt. de Monogam, c. sus Christo mais que uma Pessoa, Jesus
10. Aug. De curti pro mortuis, operum, t. 6, Christo ignorava alguma cousa: propôz a
р. 116. Senn. 32. Dê Verbis Apost. n. 172, sua dúvida a Thimotheo, bispo d’Alexan-
с. 2.C hrysost. Hom. in Ep. ad Philip, circa dria, o qual lhe respondeu que Jesus Christo
fin, nada ignorava: Themisthio cria lér o con-
2 Mabillon,' Prce. in 6 stec. Benedicti-
num , p. 449, n. 38. , 1 Aug., Hteres. 70. Stockman Lexicon.
3 lttigius. de Hcei:. p. 243. Hofman Le- 2 Stgdcman Lexicon.
xic. Slochnàn Lexicon. 3 Ibidem.
AGR 183
trario na Escriptura, por o proprio Jesus respondeu-lhes que eram cousas cujo co­
Christo dizer que nem os Anjos nem o Fi­ nhecimento só o Pae a si reservara, e que
lho, mas sómente o Pae, sabia o dia do não queria descobrir aos homens, nem per
juizo. si, nem pelos anjos do ceo, nem pelos pro­
Não se suppoe que os agnoetas attribuis­ phetas, nem pelo Filho; n’uma palavra, que
sem esta ignorância á alma dò Jesus Chris­ por este segredo impenetrável quçria o Pae
to, e não a sua Divindade; parece não te­ conservar-nos rt*uma vigilância e desvelo
rem feito esta distineção: como n’elle não continuo, e reprimir em nós a vã curiosi­
reconheciam mais que uma Pessoa, e Je­ dade e as indagações inúteis á salvação. 1
sus Christo havia dito que não sabia quando Forbcsio crê que com effeito a humani­
havia de ser o dia do juizo, cllcs conclui­ dade ou a alma de Jesus Christo ignorava.,
ram que Jesus Christo ignorava alguma o dia de juizo. Esta explicação é contraria 1
cousa. Parece, pois, que Relarmino se en­ aos sentimentos dos padres, mas não uma *
ganou acerca dos agnoetas.1 heresia. A alma humana de Jesus Christo,
E’ facil convencermo-nos d’isto mesmo, bem que unida hypostaticamcnto ao Verbo,
reflectindo sobre a origem d’esta seita, e não é infinita; ella póde em virtude d’esta
pela lição dos authores que escreveram união saber tudo o que deseja saber; mas
d’cila. * como não é infinita, não vê tudo d’uma vez;
0 erro dos agnoetas pão tem mais fun­ assim Jesus Christo nó tempo cm que di­
damento que a passagem em que Jesus zia a seus apostolos que ignorava o dia de
Christo diz que o Filho do Homem não juizo, podia não saber com certeza quando
sabe o dia do juizo, e já tinha sido esta o mundo havia de acabar.2
mesma passagem cm outro tempo motivo AGONiCELiTAS—é o nome d’aquelles que
d’uma grande disputa entre os aerianos e susíentávím"que se devia ojar.dejjé, e que
Íos catholicos, porque os primeiros conclui­ era uma superstição orar dc joelhõs.3
ram cTaqui que Jesus Christo não era Deus. a g r íc o l a (João IslebioJ—assim chamado
Para responder a esta objecção tinham por ser dTslebo ou Eisleben, no condado dí
dito alguns padres que emquantò homem, é Mansfeld, compatriota e contemporaneo d€
que Jesus Christo ignorava o dia do juizo, Luthero, foi também seu discipuld. No prin­
não porque eréssem que Jesus Christo como cipio sustentou o sentimento dc seu mes­
homem ignorava alguma cousa, pois que tre, com grande zelo, mas depois o aban­
cm virtude da união hypostatica estavam donou, c se tornou seu inimigo.
n’clle todos os thesouros da sabedoria e da Depois de mil variações na sua doutrina
sciencia, mas sómente que a humanidade e na sua fé, depois dc mil rctractações, e
separada da Divindade, mal podia per si mil recahidas, renovou um erro qúc Lu­
mesmo e pelas proprias luzes ter este co­ thero fôra obrigado a deixar; elle levando
nhecimento. 3 Outros padres créram que o adiante as consequências, se tornou chefe
Filho dc Deus quizera dizer que Elle não ti­ d’uma seita, a que chamaram a seita dos
nha sobre isso uma sciencia experimental.4 anomeos.
Alguns, finalmente, dizem que Jesus Christo ^TfnTTa Luthero ensinado que a fé nos ju s -\
ignorava em um certo sentido, o que Elle tifica, e que as boas obras sao desnecessa- }
1não julgava a proposito descobrir-nos; igno­ rias para a salvação. D’este principio de­
rava-o para nós, queria que nós o ignorás­ duzia Agricola que uma vez que o homem
semos. tinha a fé, já para elle não ha lei, que lhe
Tinham os apostolos perguntado a Jesus é superflua, ou seja para corrigil-o, ou para
Christo quando seria o fim do mundo e que governal-o, porque estando justificado peja
signaes haviam d’annuncial-o. fc, as obras lhe são inúteis, e se o não
Jesus Christo respondendo á segunda está, o ficará logo que faça um acto de fé.
parte da sua pergunta, disse tudo ó que Não queria pois Agricola que se prégasse
havia de preceder o dia do juizo, porque é a lei evangélica, mas sómente o Evange­
necessario que esses signaes sejam conhe­ lho; queria que ensinassem os princípios
cidos; a respeito da hora e do dia preciso,
1 Orig. Chrys. Aug. I. 8, qtuest. 61, l. 1.
De Trin. c. 12. De Genesi, contra Maur. c.
1 Bcllarmino de Christ. I 4, c. d. 23. jEstius in loc. diff. script. p. 441, in
2 Leont de Sectis, Acto prim . Isidor. I loc. 3. Sent. dist. 14 et 3. Calmet, sur S. Aia-
3. Origin c. 5. Damascen. thieu et s v r S. Marc., c. 24, et 12. N atal,
3 Athan. Senn. cont. Arian. Ambr. in Alex. in s(ec. 6, Dissci't. 7.
Luc. I. 8, Gregor. Naz. Orig. etc. 2 Forbes. Inst. Thcol. I. 3, c. 21.
4 Orig. in Math. Epiph. Hoer. 69. 3 Stockman.
184 ALB
que nos conduzem a crer, e não as maxi­ tificio sempre cíficaz para persuadir um
mas que nos dirigem a bem obrar. 1 povo estúpido.
Luthcro se levantou contra esta doutri­ A esta ignorância do clero c dos povos sé
na. Agricola se retractou muitas vezes, e devem pois attribuir os rapidos progressos,
outras tantas reincidiu; porque não aban­ das seitas que inundaram a Europa desde o
donando Luthero seus princípios acerca da oitavo século, c que accenderam guerras
justificação, e admittindo-os.com Agricola, porfiadas c tão cruéis que só tiveram fim
nem podia rcfutal-o solidamente, nem des- no passado. Ycjam-se os artigos BogomiloA
cnganal-o, por quanto as consequências de Tamquclino, Ganquclino, Pedro dc Brmjs3 y
Agricola eram evidentemente ligadas com Arnaldo dc Brcxa, Albigenses, Valdenses, \
os princípios de Luthero áccrca da justi­ Stadinghos, Capuciatos, Begardos, Frati- j
ficação. , cellos, WicUf, Hussitas, Luthero, A naba-J
Como Agricola rejeitava toda a cspccie ptistas, Reforma.
de lei, chamaram-se os séus discipulos Ano- a l b i g e n s e s —manicheos que infestaram
níeos, que quer dizer sem lei. o Languedoc no fim do século duodecimo.
'^ÒRirri.NiA.Nos—discipulos dc Aggrippa, A heresia dos paulicianpsjm manicheos
bispo" de Carthago, que rebaptisava aqucl- da Bulgária, fora trazidará França pof-fima*. .
les que tinham sido baptisados pelos here- velha, que allucinou muitos conegos d’Or-
ges. Yeja-se o artigo Rebaptizantes. lcans; e outros manicheos derramados pe­
ALDANEXSES—seita do oitavo século, cha- las provincias meridionacs da mesma Fran­
mada ãssíhT do logar cm que nasceu, que ça, haviam communicado n’ellas os seus
foi na Albania. 2 erros: a severidade com que foram tracta-
Sustentavam que era prolubido fazer al­ dos, c a busca rigorosa que d’elles se fez,
gum juramento; negavam oj)eçcadojarigi- não destruiram a heresia, e tornaram os
nal, a efficacia dds..saçí\ahi'cntÒs, e o TTVre herejes mais circumspectos.
arbitrio; rejeitavam a confissão auricolar Eram extremas, n’essc tempo, a igno­
jeomo inútil, e não queriam que se excom- rância e a dissolução dos costumes, ainda
[mungasse. mesmo entre, o clero, apesar das diligen­
. . Attribuia-se-lhes haverem crido que o cias que sc fizeram para restaurar os estu­
^inundo é eterno, e ensinado a transmigra- dos e a disciplina: homens mal morigera-
(ção das almas. \ dos c inertes desluslraram as funeções ec­
• Parece que admittiam também dous prin-j clesiasticas: a usura era commum, e em
■cipios eternos e contrarios, e que negavam; muitas igrejas tudo venal, ou fossem sa­
;,á Divindade dc Jesus Christo. Condemna-. cramentos, òu benefícios: os clérigos e sa­
| vam o casamento. cerdotes, os conegos e até os bispos se ca- •
' \ Portanto eram os albanenses um ramo asavam publicamente. 2
/ de manicheos, (jue se tinha renovado na Entre os seculares não se via senão mor­
í Albania, depois da súa destruição no Orien- tes, roubos e violências: os grandes se apo­
; te. Espalharam-se estes sectarios por toda deravam dos bonéficios, doavam-os, ven­
a.parte, formaram seitas e tiveram disci­ diam-os e até os deixavam em testamento.1
pulos. Na França os houve em muitos lo- Era o clero o objecto do odio e do desprêso
gares. do povo e dos grandes. 1
Éra n’esse século a ignorância profunda Os manicheos, que conservaram contra o
e quasi geral; e o clero principahnentc cleroüm rancor implacável, com um desejo
ignorantíssimo e por consequência pouco ardente de se vingarem dos rigores que se
regular, porque não é crivei que um clero tinham executado contra elles, se aprovei­
sem. luzes possa conservar os costumes por taram d’cstas disposições para assaltarem,
muito tempo, e o mesmo se deve dizer tudo o que conciliava o respeito ao clero;
áccrca do povo. .assim investiram contra os sacramentos,
. Estes restos de manicheos, assim espa­ içontra as ceremonias da Igreja, contra as
lhados pela Europa, eram muito ignoran­ jprerogativas do clero, pretenderam que nao
tes: elles illudiam o povo por meio d’uma [pagassem os dízimos, e condemnaram to­
apparencia de regularidade nos seus cos­ ldos os ecclesiasticos que possuíam bens de
tumes e na sua compostura, e gritando raiz; e como o terror das penas canonicas
contra os abusos e desordens, do clero; ar- era quem só continha o povo ignorante na
submissão ao clero, facilmente aeu ouvidos
1 Stockman Lexic. Sekendolf. Hist Luth.
1 . Gallia Christ. t . i . ° 3p . 19 V arix Apên­
L3,§82. ...
2 Stockman Lexic. m voce Albanenses dices, %. 44.
Sander, Baron. 2 Hist. L itt. de Franco, t. 6.
ALB 185

à s insinuações dos manichcos, c passou do tanto um dos prelados pregou e refutou


despréso dos ministros ao da doutrina que tão solidamente os erros, que os herecti-
cllcs ensinavam, das ceremonias, c sacra­ cos, intimidados pela força das suas razões
mentos que conferiam. » e pelo temor do conde de Tolosa, não ou­
Os manicheos, pelo contrario, condemna-' saram mais mostrar-se, nem fallar em pú-
vam as riquezas e devassidões do clero, mo­ jblico.
deravam o seu poder, c faziam ostentação I Não satisfeito o legado d’estas vantagens,
da pobreza e da vida regular; assim foram e cunfiaado pouco nvesle methodo, tão con­
logo tidos em conta d’apostolos. A heresia forme ao espirito da religião, fez pesquizas
manichca repentinamente fez na França um para descobrir os hereges, e obrigou por
grande ruido, teve'quantidade de sectários juramento a todos os catholicos, a denun­
cm differentes provincias, e foi apadrinha­ ciarem os que conhecessem c os seus fau­
da por muitos grandes, que haviam usurpa­ tores.
do os bens da Igreja, e que estavam con- Entre os denunciados, se achou um cha­
demnados a largal-os com pena d’cxcom- mado Pedro Mauranc, homem rico, c que
munhão por muitos concilios; d’csta ma­ era reputado como um chefe de hcrecticos:
neira os manichcos cm pouco tempo se fi­ induziram-o á força d’affagos e promessas
zeram formidáveis. • a que comparecesse perante o legado. Nas
Os papas enviaram legados ás provincias perguntas que lhe fizeram, declarou que o \
meridionacs da França, para atalharem o pão consagrado pelo ministerio do sacer- v
progresso d’este erro. S. Bernardo alli es­ dote, não era o corpo de Jesus Christo. Não
teve, 6 converteu muitos hereges, mas como lhe perguntaram mais os missionários: le- j
o sancto não communicava ao clero as suas vántaram-se, e não podendo conter as la­
luzes, os seus talentos c o seu zelo, apenas grimas á vista da blasfêmia que acabavam j
se retirava, logo a heresia recobrava no­ de ouvir, e da desgraça de quem a profe- j
vos alentos.1 ria, declararam Maurano herege, e o en- !
Os bispos c alguns senhores da provin­ t regaram ao conde de Tolosa, que o fez en- j
cia se ajuntaram cm Lombers, aonde os carcerar; os seus bens foram confiscados e
hereges tinham a protecção dos habitantes, os seus castellos demolidos.
muitos dos quacs eram cavalheiros: dispu­ Então, Pedro Maurano prometteuj con­
taram os bispos contra os chefes da here­ verter-se, e abjurar seus erros; saluu do
sia, convenceram-os de renovarem os er­ cárcere, apresentou-se cm ceroulas na pre­
ros dos manicheos, e os condemnaram. sença do povo, e prostrado aos pés do le­
Não foi bastante a condemnação d’cstes gado c de seus collegas lhes pediu perdão,
sectários, para que elles deixassem de fa­ reconheceu e abjurou os seus erros, nro-
zer proselytos na Provença, Borgonha, e mettendo submetter-se a todas as ordens
Flandr.es, aonde foram conliccidos pelos no­ do legado. Um dia depois, o bispo dc To­
mes de Pppclicgnos, P elican o s, Bons-Ho- losa c o abbade de S. Sernino foram bus- 1
mens, etc. Dl árchbispos^de NarbbhX e car Maurano á prisão, d’onde sahiu nú c l
Lyad, íizeram prender muitos d’clles, c fo­ descalço, e levando-o entre si o fustigavam I
ram queimados todos os que não quizeram de quando em quando, e o conduziram até
converter-se. 2 os degraus do altar, aonde prostrado aos
Passados poucos annos se multiplicaram pés do legado, abjurou dc novo seus er­
tão pasmosamente na provincia de Langue- ros. Confiscaram-lhe os bens, foi-lhe orde­
doc, que os bispos de Inglaterra, c França nado que dentro em quarenta dias partisse
mandaram prelados, os mais doutos dos seus para Je.rusalcm, e que alli se demorasse
estados, para defenderem a verdade e a re­ tres annos no serviço dos pobres, com a
ligião, c ordem aos senhores, seus vassal- promessa dc lhe serem restituidos os seus
los, para auxiliarem com seu poder, e to­ bens quando voltasse, á excepção dos cas­
dos os soccorros necessarios, o legado e tellos, que deixavam demolidos, em memo­
prelados que o pontifice enviasse para a ria da sua prevaricação. Foi condemnado
conversão d’aquelles hereges. além d’isto a pagar uma multa de quinhen­
Entraram em Tolosa o legado e os bis­ tas libras de dinheiro effectivo para o conde
pos entre os clamores insultantes d’um de Tolosa, seu senhor, a restituir ás igrejas
povo, que os tractava em alta voz de he­ os bens que lhe havia usurpado, entregar
réticos, d’apostatas, de hypocritas; entre- as usuras que tinha exigido, e reparar aos
pobres os damnos que lhes havia causado.1
1 H ist.de Languedoc, t. 2, l. 17, p. 547, Eis aqui quem foi Pedro Maurano, aquelle
/. 3, l. 19, p. 20.
2 Ibid. t. 3, p. ann. 1178. i Htst. de Longuedoc, t. 2 , 1 . 19, p. 48.
186 ALB
inimigo tão ardente do clero, aquelle gran­ losa, que recusou a paz, foi cxcommun-
de zelador da reforma. Descobriram-se mais gado, e por fim obrigado a acceital-a, c
alguns dos principaes hereges, que foram prometter de nunca mais favorecer os he­
convencidos do seu erro, c excommunga- reges, c de lhes fazer a guerra. Mas o conde
dos. Este foi todo o frueto da m issão.1 não se comportou depois d’uma maneira
Por esse tempo a guerra dividia os se­ conforme ao zelo dos legados, c o legado
nhores da provincia; e Rogério, visconde Pedro de Castclnau o cxcommungou.
d’Alby, poupou os hereges, olhando-os co­ Pouco tempo depois este legado foi as­
mo um recurso que tinha contra Raymun- sassinado, e suppondo o papa, não sem bas­
do, conde de Tolosa, seu grande inimigo. tante verosimilhança, que o conde de To­
Fortificaram-se em varios logarcs dos seus losa tivera parte n’esta morte, o excom-
domínios, e o papa Innocencio m sendo in­ mungou de novo, pôz interdicto nos seus
formado dos seus progressos,Enviou um domínios e desligou os seus subditos do ju­
legado ao Langucdoc. ramento de fidelidade, com o fundamento
Era este legado Henrique, abbade de de que não merecia se guardasse áqucile
Claraval, que acabava de ser elevado ao que não a guardava a Deus.
cardinalato c ao bispado d’Albano. Dous O papa informou d’esta cxcommunhão ao
annos antes, elle se tinha empregado na rei de França, cxhortando-o a tomar as ar­
missão em que fazia a principal figura o mas, e a despojar de seus bens o conde de
cardeal Chrysogono. Henrique, pela força Tolosa e seus fautores. Por ordem do mes­
da sua eloquência, persuadiu grande nu­ mo papa, o abbade de Cister com os reli­
mero de catholicos a tomarem as armas, e giosos da sua ordem, pregaram a cruzada
a seguirem-no; d’cstcs formou um pequeno contra o conde do Tolosa, e o fizeram em
corpo d’cxcrcito com que investiu os domí­ todo o reino, e como o papa concedia a
nios do visconde Rogério, pôl-os em sitio, mesma indulgência da Terra Saueta, todos
e tomou o castello de Lavaur. se apressaram a tomar as armas contra o
Era esta a sede principal dos hereges, e conde.
dous dos seus chefes, que foram prisionei­ Raymundo, para dissipar a tormenta que
ros no castello, se converteram. Logo o le­ lhe estava eminente, mandou embaixadores
gado fez marchar o seu exercito para a a Roma, e depois de muitas negociações,
Gasconha, aonde subjugou os hereges, tanto conseguiu a promessa da absolvição, no
pela força das suas pregações, como pelo caso de que se achasse innoccntef mas o
terror das suas armas. Depois de haver papa exigia como preliminar, que elle con­
terminado assim a sua expedição, o car­ de de Tolosa, poria em poder do seu legado
deal legado convocou alguns concilios para sete das suas fortalezas, em segurança da
regular os negocios da Igreja.2 Porém finda sua submissão á Sancta Sé.
que foi a expedição do cardeal, apenas os Innocencio m enviou Milan, seu notario,
povos se viram livres da impressão que o na qualidade de legado á latere, para exa­
temor lhes causava, deram ouvidos, como minar o negocio de Raymundo. O legado
d’antes, aos enganadores discursos dos ina- congregou um concilio cm Monte Limart,
nichcos, c o erro cobrou novos alentos.3 ^em que Raymundo compareceu, e estando
Os papas mandaram legados para sus­ nú até á cintura fez o seguinte juramento:
pender os progressos da heresia; mas as; «No anno duodecimo do pontificado do se­
guerras, que dividiam os principes, a igno­ nhor papa Innocencio m, aos dezoito de ju­
randa do clero, as desavenças entre os le­ nho: Eu, Raymundo, duque de Narbona,
gados e os bispos, deixaram quasi frustra­ juro aos Sanctos Evangelhos em presença
do o frueto das missões contra os hereges. das Sanctas Reliquias da Eucharistia, e do
Elles se aproveitaram d’cste estado de con­ Sancto Lenho da Verá Cruz, que obedece­
fusão, para pregarem publicamente a sua rei a todas as ordens do papa e ás vossas,
doutrina, e seduzir grande numero de ca­ mestre Milan, notario do senhor 'papa e le­
valheiros e senhores. gado da Sancta Sé Apostólica, e de qual-
N ’esta situação, os legados se applicaram uer outro legado da Sancta Sé, a respeito
a fazer cessar as guerras que assolavam a e todos, e de cada um dos artigos, pelos
provincia de Languedoc, e a reunir os se­ quaes eu estava, ou estou excommungado,
nhores entre si para empregarem as sutis ou seja pcl.o papa, ou pelo seu legado, ou
forças contra os hereges. O conde dé To- por outros, ou finalmente por direito; do
sorte que eu executarei de.boa fé o quo
1 Hist. de Languedoc, t. 2, l. 19, p . 48. fôr ordenado, assim por elle mesmo, como
2 Ibid. t. 3, p. 57. pelas suas letras, ou pelos seus legados
3 • Ibidem ann. 1204. acerca dos ditos artigos, mas principal-
ALB 187

mente dos seguintes.» Eram os artigos ha­ ás chammas. t «Elles, diz o padre Bento,
ver-se recusado a assignar a paz; nào ter passaram ao fio da espada todos os habita-
expulsado os hereges; haver-se tornado sus­ dores, sem dislineção de sexo nem de idade,
peito na fé; nào ter feito justiça aos seus saqueando e roubando por toda a parle’ o
inimigos; ter levantado impostos e salvos vendo depois que sete mil homens se na­
conductos indevidos; ter prendido alguns viam retirado para a igreja da Magdalcna,
bispos e os seus clérigos; ter invadido os com o designio de alli se entrincheirarem,
seus bens, etc. O conde consente que se ou fugirem ao furor dos vencedores, estes
dispensem os seus subditos do juramento seguindo os primeiros movimentos do seu
de fidelidade, no supposto de que elle re­ impetuoso furor, e nào sendo cornmanda- v
cuse obedecer ao papa em algum d’estes dos por pessoa alguma de respeito, se lan- \
artigos. çaram sobre aquelles infelizes, que tyran-
Dezcscis barões, subditos do conde, fize­ namente mataram, sem que escapasse um
ram a mesma promessa. Logo o legado or­ só.» 2
denou ao conde que reparasse todos os Feito o saque de Beziers partiram os
damnos que fizera, prohibiu-lhe impôr no­ cruzados para Careassona, e a sitiaram; de­
vos tributos de portagem, e que nào se in- pois dum ataque c uma resistência rigo­
tromettesse mais em ncgocios ecclesiasti­ rosíssimos c funestissimos, elles obrigaram
cos, etc. Depois que o conde prometteu ob­ os habitadores a render a cidade, salva tão
servar todas estas condições, o legado lhe sómcnle a vida: não trouxeram estes mise­
fez pôr uma estola ao pescoço, e pegando- ráveis mais que a camisa; e o conde Rogé­
lhe pelas extremidades, o "introduziu na rio foi mettido em um cárcere, aonde em
igreja, fustigando-o com um molho de va­ poucos dias morreu. Na sua sahida decla­
ras: emfim, depois d’esta humilhante cere­ raram os habitadores que todos eram ca -\
monia, lhe conferiu a absolvição.1 tholicos, á excepção de quatrocentos, osJ
r ' Entretanto o exercito dos cruzados se ia quacs foram presos e queimados.3
engrossando cada vez mais: viam-sc che­ Doaram-se todos os domínios de Rogério
gar cm cardumes flamengos, normandos, a Siinão de Monforte. Os cruzados, que só
borguinhezos, etc., conduzidos pelos arce­ tinham vindo para ganhar a indulgência,
b isp o s de Rcims, de Sens, de Roucn, pelos se retiraram, findos que foram os quarenta
bispos d’Autim, de Clermonte de Nevers, dias de serviço, que lhes eram impostos;
de Baycux, de Lisieux, e de Chartrcs, c mas os legados e Si mão de Monforte conti­
por um grande numero de ecclesiasticos. nuaram a"guerra contra os hereges c seus
Também entre os senhores seculares se protectores.
contavam o duque de Borgonha, os condes Raymundo, conde de Tolosa, se tinha
de Nevers, de Monforte, etc. O abbade de unido aos cruzados, c retirado como os
Cister, legado da Sancta Sé, foi nomeado mais depois da tomada de Careassona; mas
generalissimo d’csta expedição.2 ainda não era chegado a Tolosa, quando o
Rogério, visconde de Beziers, espavorido abbade de Cister e Raymundo de Moufor-
com esta terrível cruzada, procurou os le­ te, mandaram deputados para intimarem
gados, o lhes protestou que era catholico, tanto a elle como aos consules de Tolosa,
que detestava os' erros dos hereges e que sob pena de excommunhão, que entregas­
os nào favorecia; mas foram em vào todas sem aos barões do exercito todos os habi­
as suas protestações, que não se acredita­ tantes que os deputados lhes nomeassem,
ram, porque engrossando cada vez mais o e seus cabcdacs, a fim de que elles fizessem
exercito com os dilferentes corpos que se profissão de fé na presença dos barões do
lhe vinham ajunlando, conduzidos pelo arce­ exercito.
bispo de Bordéos, bispo de Limogcs, etc., to­ Simão do Monforte ameaçava o conde do
maram os cruzados varios castellos e quei­ Tolosa de que, no caso d’elle da sua parte
maram muitos hereges; e emfim, postado o recusar obedecer a estas ordens, iria so­
exercito na fronteira de Beziers, intimou aos bro elle, c levaria a guerra até o coração
catholicos, que lá estavam, que lhe entre­ de seus estados. Apesar de todas as pre­
gassem todos os hereges que houvesse. cauções que Raymundo tomou para evitar
Nào se submettendo a cidade a estas con­ a guerra, apesar das promessas que fez de
dições, os cruzados a sitiaram, a tomaram,
c feita cruel matança em sessenta mil ha­ ; 1 Hist. de Languedoc, p. 161.
bitadores, lhe deram saque e a entregaram r 2 Hist. dos AÍbigeois, p ar le P. Binoit,
t. 2, p. 104.
1 Hist. de iMnguedoCj t. 3, p. 162. 3 Hist. de Languedoc. Ibid. Hist. des Al-
2 lbidem, p . 161. bigeois, ibid. p. 106.
188 ALB
buscar e punir os hereges, apesar de mil Sancta, ou excommungavam tudo o que
protestos de fidelidade á religião, e de hor­ não lhes obedecia ccgamentc. A’s da guer­
ror á heresia, os legados c Simão de Mon- ra succcderam pois novas calamidades; os
forte voltaram contra ellc as forças da cru­ povos por toda a parle se achavam em
zada. Portanto o conde de Tòlosa se aprcs- uma consternação, que annuncia proxima
tou para a guerra e fez liga com differen­ a sedição e a revolta; muitos logarcs se
tes senhores da provincia. Engrossava e amotinaram; varios inquisidores morreram
diminuía o exercito do legado alternativa­ cruclmente, e foi preciso suspender o exer­
mente com as tropas dos cruzados, que cício da Inquisição, que depois se restabe­
concorriam de todas as partes da França leceu. 1
para ganharem a indulgência, e se retira­ Muitas vezes foi necessário pur limites
vam aos seus paizes, tanto que tinham ser­ ao zelo dos inquisidores, c ainda assim se
vido os quarenta dias; por esta razão eram queimaram muitos hereges. Diminuía o nu­
desiguaes e lentos os successos dos cruza­ mero d’estes pouco a pouco, e não consta
dos, cujas alternativas de força e de fra­ [que se celebrasse acto de fé desde 1383.
queza, mantinham entre Simão de Mon- fOs inquisidores ainda continuaram as suas
forte e seus inimigos, uma especie de equi­ pesquizas e não aspiravam senão a quei­
líbrio, que por muito tempo fez das pro­ mar; mas os summos pontifices, informa­
vincias meridionaes da França um theatro dos da irregularidade dos seus processos e
de confusão e de horrores. da injustiça das suas sentenças, lhes impo-
A facilidade de ganhar a indulgência, zeram leis severas; então o tribunal não ex­
em se cruzando contra os albigenses, ar­ citou mais motins, os hereges foram dimi­
ruinava as cruzadas do Oriente; e os prin- nuindo, e por fim se exlinguiram de todo.
tcip es confederados, principalmenle o rei Eraquanto os inquisidores procuravam
\d e França, que se tinha unido aos cruza­ com tanta exaclidão, e puniam os hereges
d o s , estavam desejosos da paz. O conde de tão severamente, um grande numero de
^Tolosa a fez, perdendo uma parte dos seus pessoas se deu á magia e aos sortilégios,
domínios; promettendo demolir os muros? e por outra parte se viram pastorinhos ar-
de Tolosa cã primeira voz do legado, e ju-; ranchar-se e matar desapiedadamente os
rando que elle pesquizaria os hereges e os judeus.
puniria severamente. Quantas desordens, quantos crimes, quan­
Não se exigiu de Raymundo que entre­ tas calamidades não offerece este século á
gasse individuo algum, nem teve a guerra ideia d’um christão que pondera! porém
outro eíTeito mais do que ser elle despo­ era summa a ignorância; não houve século
jado d’uma parte de seus domínios. em que se fulminassem mais excommu-
Para se ajustarem todos estes objectos, nhões, em que se queimassem mais here­
j passou Raymundo a Paris, e depois de as- ges, e cm que fòssem menos cultivadas as
l sentados, foi introduzido na igreja de Nos- sciencias e as artes.
í sa Senhora, descalço, e em ccroulas, e alli
j jurou observar todos os artigos menciona-
c--dos, e recebeu a absolvição. DA DOUTRINA DOS ALBIGENSES
Os principes confederados imitaram o
conde de Tolosa, e fizeram a paz, promet­
tendo trabalhar com zelo na extirpação da É constante por todos os monumentos do
heresia. tempo dos albigenses, que estes hereges
0 legado convocou muitos còncilios, eram
c um ramo djUftaiUÇ.l\e,os ou caUiaros;
entre outros um em Tolosa, em que os mias*o seTfmamcheismo differente d,aqucHe^
bispos, de accordo com os barões e senho­ de Manes. Elles suppunham que Deus ti­
res, tomaram as suas medidas contra os nha produzido Lucifer e os seus anjos, que
hereges; n’elle foram também admittidos Lucifer se revoltara contra Deus, que fora
dous consules de Tolosa, que prestaram ju ­ expulso do céo com os seus anjos, e que
ramento, em nome de toda a corporação, de desterrado de lá, tinha creado o mundo vi­
observarem os estatutos que se fizessem na sível, sobre o qual reinava; e que Deus,
J assembléia, concernentes á destruição da para restabelecer a. ordem, creára um se­
heresia, e se estabeleceu a Inquisição. gundo Filho, o qual era Jesus Christo; eis
Os inquisidores correram por todas as aqui porque os albigenses se chamaram
oidades fazendo desenterrar os hereges, se­ também arianos.
pultados em sagrado, e queimando os vi vos.
1 Hist. dê Languedoc, t. 3, l. 24, c. õ, t. 4,
Era infatigável o seu zelo e o seu rigor
N -extremo: condemna vam á viagem da Terra p. 184.
AMA 189

Portanto, c incontrastavel que os albi­ riguaeão era bem ocioso agglomerar tan­
genscs eram verdadeiros manicheos; todos tos sopbismas.1 Tinham os albigenscs além
os autliores contemporâneos o dizem, e os dos erros dos manicheos também o dos sa-
seus interrogatorios, de que ainda se con­ cramcnUiriqs, e n’isto se fundamentam paH
servam originaes, o attcstam e confirmam.1 aílirmarem que os albigenses eram precur­
Verdade é que os valdenses, boguinos e sores dos novos reformados.
outros heregcs penetraram no Languedoc, Os erros dos albigenses não eram obra
e alli foram condemnados, mas não é me­ do raciocínio, mas os effeitos do fanatismo,
nos certo que sempre estes hereges se dis- da ignorância e da aversão que ellcs ti­
tinguiram dos albigenscs, que nunca tive­ nham aos catholicos. Estão refutados n o s|
ram a sua denominação c se chamaram só­ artigos Manicheismo, Calvino e Lutliero. *
mente hereges.2 Emfim, Guilherme de Puy a l o g e s pu a l o c e a n o s — hereges do se­
Laurent, author contemporâneo, diz que os gundo seciiló, que'ser suppõe negarem, a
hereges que se haviam espalhado no Lan- Divindade.. d.o, Verbo: ellcs rejeitavam o
guedoc differiam entre si, que uns eram Evangelho, segundo S. João, e o Apocaly­
manicheos, outros valdenses, e que estes pse. 2
disputavam contra os primeiros, que sem Sc o seu erro fosse differente do de Theo-
düvida se chamaram ao diante albigenscs. doto de Bizancio, entraria nos princípios
Não devem pois confundir-se todas estas de SabellíQ, que negava que o Verbo fosse
| seitas, como faz mr. Basnage, c é certo que uma pessoa distiuctajlo Pãdre, oá nos sen­
I os albigenses eram verdadeiros manicheos, timentos dos íjnanos, que reconhecendo ser
* como o disse mr. Bossuet. o Verbo uma pessoa distincta do Padre, pg-
Que mr. Basnage ajunte aos valdenses, seguravam que fosse uma ..creatura.
henricanos, etc., os albigenses para d’elles amaüri—era um clérigo, natural de Be-
fazer uma communhão extensa e visível, no, ameia da diocese de Chartres, que es
que n’esse século tinha o dogma dos pro­ tudou em Paris pelo fim do duodecimo s(
testantes, é isso cousa que aos catholicos culo, e ensinou com credito no principi
pouco interessa de refutar. Porem não de­ do seguinte.3
vemos deixar de dizer, se bem que de pas­ Tinham então sido levados á Franca o
sagem, que Valdo^ de ninguem houve os livros d’Aristoteles: todos os philosophos
seus erros, e qüc‘elles não eram os- erros arabes o haviam tomado por guia no es­
dos protestantes. tudo da logica, que era quasi a unica parto
Também não receamos asseverar que da philosophia que então se cultivava; mas
mr. Basnage, sómente por meio de sophis- era cousa summamente diflicultosa ter-sc
mas. desculpou os albigenses do manicheis­ Aristóteles por um guia infallivcl na ave­
mo que se lhes imputa; todas as suas pro­ riguação da verdade, sem se presuppôrem
vas se reduzem a estabelecer que .havia n’elle grandes adiantamentos no conheci­
no Languedoc hereges oppostos aos mani­ mento dos objectos que examinara.
cheos, o que ninguem lhe contradiz; mas o Amauri passou do estudo da logica de
que se assevera é que os hereges chama­ Aristoteles ao da metaphysica e da physi­
dos albigenses eram manicheos, e que es­ ca, e seguiu este philosopho na averigua­
tes manicheos, que mr. Basnage não nega ção que cllc fizera da natureza e origem do
estarem no Languedoc, crain com efiei to a mundo.
mesma seita contra a_..qual .s&Jorm&u. a Aristoteles, na sua metaphysica, exami-i
cruzada, e qué^^éham oü a seita dos al- na todas as opiniões dos philosophos que
filgcnscs; é o que consta com evidencia de o precederam, nenhuma o satisfaz, e as
toàos os monumentos d’aquelle tempo, dos refuta todas: condemna Pithagoras, que}
concilios, dos interrogatorios, e pela dis- olha os numeros, ou antes os séres sim-j
tineção que sempre se fez entre os albi­ ples c inextensos como os elementos dosí
genses e valdenses; e a isto se reduz a corpos; Democrito que suppõe todos com-t
questão sobre o manicheismo imputado por postus d’atomos; Thales que tirara tudo daí
mr. Bossuet aos albigenses, e para cuja ave- agua, e a causa de todos os entes.
Depois de haver refutado todas estas opi-
1 Hist. de Languedoc, t. 4, p. 183, t. 3,
p . 135', 93, etc. Hist. des Albigcois, par le 1 Hist. des Eglises Reform. t. 1, periode
P. Benoit, t. 2. Pièces justificatives. 4, c. 9, p. 163. Hist. de YEgl. t. 2, l. 29, c. 3,
2 D'Argentré. Collect. Jud.'Hisloir. des p. 1400.
Croisades contre les Álbigeois, par le'P . 2 Epiph. Hcei\ 51. Philast. de Hcer., c.
Langlois, jesuite. Histoire de Languedoc. 600. Aug. de Hcer. c. 30. Tertull. de Prcefer.
Histoire des Álbigeois. 3 Rigord, ad anno 1209.
190 AMA
.niões, suppõc Arisl.otçiçs que todos os só- Filho c o Espirito Sancto, ás quaes attri-
res saheni d’uma matéria extensa, mas que buia o imperio do mundo, e que elle olhava
. de si mesma nào tem fôrma, nem figura, a como objecto da religião.
que clle chama matéria prima. Mas como a materia primeira estava cm
Esta matéria príina éxíste por si mesma, um movimento continuo e necessário, por­
o movimento que a agita é-necessário como tanto a religião e o mundo haviam dc aca­
cila, e posto que Aristóteles reconheça que bar, o todos os entes deviam dc tornar a
os espíritos sào entes immatcriaes, coíntudo entrar no scio da materia prima, que era
parece qnc algumas vezes suppõc que cl- o ente dos entes, o primeiro ente c o unico
les sahiram da matéria. indestructivel.
Estratào, seu discipulo, confrontando es­ religião, no pensar d'Amauri, tinha
tas differentes opiniões d’ArislotoIes, tinha tres épocas, que eram como os reinos das
crido que a matéria primeira bastava para -,tres pessoas da Trindade.
dar razão da existência de todos os seres, : O reino do Padre tinha durado o tempo
e que em se suppondo o movimento adhe­ Ma lei moysaica. O reino do Filho, ou a re­
rente á materia prima, se acharia n’ella a ligião christã, não ha dc durar sempre, as
causa e o principio de tudo. [ceremonias e os sacramentos, que no seu
Muito depois de Estratào, alguns philo­ sentir fazem a sua essência, não devem de
sophos árabes,'que commentaram Aristóte­ |ser eternos.
les, lhe attribuiram esta opinião, que pas­ Devia haver um tempo em que os sacra*
sou ao Occidente com os livros dos mes­ fmentos haviam dc cessar, e ter então prin­
mos commentadorcs. Martinho, o polaco, cipio a religião do Espirito Sancto, na qual
refere que João Escot Erigeno tinha ado- os homens já não terão necessidade de sa­
ptado este sentjmento, e que ensinara não cramentos, c hão de dar ao Sèr Supremo
haver no mundo mais que a matéria pri­ um culto puramente espiritual.
ma, que era tudo, e á qual dava o nome Esta época era o reino do Espirito San­
de Deus. 1 cto, reino annunciado, no sentir d’Amauri,
Ou fosse porque Amauri considerasse as­ na Escriptura, e que havia de succedcr á
sim o systema d’Aristoteles, ou porque elle religião christã, como esta havia succcdido
adoptasse o de Estratào, ou porque seguisse á moysaica. A religião christã era, pois, o
. os conunentadores arabes e a Escot Eri-o reino'dc Jesus Christo no mundo, e todos
. geno, elle na verdade creu ,auc^Dcus^não: os homens debaixo d’esta lei deviam olhar-
. ' J se como membros de Jesus Christo.
' Depois de haver ensinado a lógica com Levantou-se contra a doutrina d’Amauri
í muita reputação, Amauri se applicou ao toda a universidade de Paris: clle a defen­
:.estudo da Sagrada Escriptura, e quiz ex- deu e parece que era o seu principio fun­
í plical-a: Como tinha grande aferro ás suas damental este sophisma de logica.
j opiniões philosophicas, quiz encontral-as na A matéria prima c um ente simples, pois
Escriptura, e presumiu que alli as via: que não tem qualidade, nem quantidade,
] creu encontrar na relação de Movsés a ma- nem eousa alguma que possa determinar
teria primeira, o calios; que esta matéria um ente; ora o que não tem quantidade
.primeira era hão só a causa producente, nem qualidade é um ente simples; logo a
mas o fundo de que tinham sahido todos materia prima é um ente simples.
os séres, do modo que Moyses o referia. A religião c a theologia ensinam que
Toda a religião se offerecia então a Amau­ Deus é um Ente simples; entre os entes
Í ri, como o desenvolvimento dos phenome- simples não póde conceber-se diversidade,
nos que o movimento e a materia primeira porque estes só differiriam havendo, cm al­
haviam de apresentar, gum d’elles partes ou qualidades que não
j Esta foi a base sobre a qual fundou o houvesse no outro, e-então já não seriam
. &eu systema de religião christã. simples.
/ A materia primeira podia, pelas suas fór- Se não ha, nem póde haver differença
| mas diversas, produzir entes particulares, entre Deus e a materia prima, logo a ma­
|: é Amauri reconhecia na materia primeira teria prima é Deus, e d’este principio de­
J o que clle chamava Deus, por ser um Ente duzia Amauri lodo o seu systema de reli­
:$■necessario e infinito; Amauri, digo, reco­ gião, como já vimos..
nhecia, em Deus tres pessoas, o Padre, o Sendo condemnado pela uniyersidade,ap-
pcllou para o papa, o qual confirmou a
i Nicolaus Trinct. in suo chronico, t. 8. sentença da condemnação. Então Amauri
Spicileg. v • 560. DIArgentré, collect. Jud. se retráctou, e retirado a S. Martinho dos
t. I, p. 128. Campos, alli morreu dc desgosto c dc pe*
ANA 191
.zar. 1 Teve, por discipulo David de Dinan- nha armado d’estc principio fundamental
do. Ycja-se o seu artigo. da reforma, isto é, que só deve ter-se como
anabafçistas — se ita d e fan atico s, q u e se revelado c como necessário para a salva­
r e b a p lis a v a n i' e p ro h ib ia m o b a p tism o das ção, o que se encerra na Escriptura; cllo
c re a n ç a s . condemna como fontes contaminadas os pa­
dres, os concilies, os theologos e as bellas-
letras. A sciencia, no sentir de Stork, en­
DA OIUGEM DOS ANABAPTISTAS che,o coração d’orgulho e o entendimento
de conhecimentos profanos e perigosos. Por
este meio levou Stork para o seu partido os
Comba tendo Luthcro o dogma das indul- ignorantes, os tólos e o populacho, que na
encias, linha feito depender a justificação sua seita estavam ao nivei dos theologos c
o homem unicamente dos merecimentos doutores.
de Jesus Christo, que o christão se appli- Luthcro não tinha sómente ensinado que
cava pela fé. a Escriptura era a unica regra da fé c cada
Portanto, segundo o sentir d’estc chefe um dos fieis o juiz do sentido da Escriptu­
da reforma, não eram os sacramentos os ra, mas também que cada um dos fieis re­
ue justificavam, mas tão sómente a fé cebia luzes extraordinarias do Espirito San­
'aquclle que os recebia.2 D’estes princí­ cto. Ellc asseverou que o Espirito Sancto
pios concluiu um dos discipulos de Luthe- não recusava aos que lh’as pedissem as
ro, appellidado Stork, que o baptismo das mesmas illustrações com que ellc era fa­
creanças não podia justifical-os, c que era vorecido: estas luzes, pois, communicadas
perigo rebaptisar todos os christãos, visto aos fieis pelas inspirações c toques interio­
que elles foram baptisados, quando incapa­ res do Espirito Sanctó, eram no sentir de
zes de formar o acto de fé, por meio do Stork, a unica regra da sua fé e da sua
qual o christão a si mesmo applica os me­ moral.
recimentos de Jesus Christo. Carlostadio, Munccr e outros protestantes
Lulhero não havia fundado a sua dou­ ou invejosos do poder de Luthero, ou re
trina, nem sobre a tradição, nem sobre as voltados pela sua dureza, adoptavam os fun
decisões dos concilios,'nem sobre a aulho- damentos de Stork, e os anabaptistas for­
ridade dos padres; mas tão sómente na Es- maram em Wittemberg uma poderosa sei­
criptura: ora, dizia Stork, na Escriptura ta. Feitos cabeças d’esta seita Carlostadio e
não se encontra que seja preciso baptisar Muncer, correram d’igreja cm igreja, aba- \
as creanças; pelo contrario é necessário ca- tendo as imagens e destruindo todos os res- )
thechisar os que se baptisam, e que elles tos do culto catholico, que Luthero ainda J
creiam. Os meniuos nem podem instruir- conservara.
se, nem são capazes de formar acto de fé, Tanto que Luthero soube no seu retiro
sobre o que se deve crér para ser chris­ os progressos dos anabaptistas, partiu para
tão; portanto é o baptismo das crianças Wittemberg, pregou contra elles c fez des­
uma práctica opposta á Escriptura, c os terrar Stork, Muncer e Carlostadio. Este se
que foram baptisados na infancia, não o retirou a Orlemonde, d’onde passou á Suis-
receberam com efleito. sa, e alli lançou os fundamentos da dou­
Stork não propôz esta doutrina ao prin­ trina dos sacramqivtarios.
cipio senão como uma consequência dos Stork c Muncer percorreram a Suevia,
fundamentos da de Luthero acerca da jus­ a Thuringia, a Franconia, e semearam por
tificação, consequência que o mesmo Lu­ toda a parte a sua doutrina, prégando igual-
thero não quizera descobrir, segundo diz mente contra Luthero e contra o papa; este,
Stork, por circumspcccão ou por prudên­ dizia Stork, soçobrava as consciências com
cia. Este novo dogma de Stork, não foi por uma multidão de prácticas, pelo menos in­
então mais que um assumpto de conversa­ úteis; aquelle authorisava uma relaxação
ção- mas bem depressa se introduziu nas contraria ao Evangelho; e a sua reforma
escolas, pôz-se em theses, adquiriu partido não viera a parar cm outra cousa mais
.nos collegios, e fmalmente foi proposto nos que n’uma dissolução similhante á do ma-
pulpitos. hometismo. Os anabaptistas publicaram que
Stork para defender a sua opinião, se ti- Deus os havia enviado para abolirem a re­
ligião do papa nimiamente severa, c a so­
1 GuiUclm. 'Armoricus. Hist. de vila e ciedade de Luthcro muitó licenciosa, c para
gestis Philip, ad ann. 12Ò9. WArgenfré, loc. ser christão era preciso não cahir em vicio,
cit. S, Th. contre Gent. c. 17. c viver isempto de orgulho e de fausto.
2 Luth. de captivit. Babilon. p. 73. Os anabaptistas não pretendiam, como
192 ANA
Lufhero, tyrannisár as consciências; do esta differença de classes e de bens, que a
Deus sómente, segundo o seu systema, de­ tyrannia introduziu entre nós e os grandes
víamos esperar as luzes proprias para dis­ do mundo? Porque razão gemeremos nós
tinguir a verdade do erro, a verdadeira re­ debaixo da pobreza, c seremos accumula-
ligião da falsa. Deus declarava na Escri- dos de males, entretanto que elles se en­
ptura que havia de conceder o que se lhe pe­ golfam n’um mar de delicias? Não temos
disse; e assim, no sentir de Stork e de Mun­ nós direito á igualdade dos bens que de
cer, tínhamos um meio seguro de que não sua natureza são feitos para se dividirem
faltaria jamais a dar aos fieis senhas infal- sem distineção entre todos os homens? Res-
liveis, por onde conhecesse a sua vontade titui-nos, ricos do século, usurpadores, ava­
quando se lhe pedisse. A vontade de Deus rentos, restitui-nos esses bens que retendes
se manifestava por differentes modos, ora com injustiça; não somente como homens,,
por appariçõcs, ora por inspirações, e al­ mas ainda como christãos, temos o mesmo
gumas vezes por sonhos, como no tempo direito que vós a uma distribuição igual da
ldos prophetas. fortuna e das suas vantagens.
x Stork e Muncer acharam grande numero «Não vimos no nascimento da religião,
d’espirítos fracos, e de imaginações vivas, que os apostolos só tinham em attençao a
que ávidamente abraçaram os seus princí­ necessidade de cada um dos fieis na repar­
pios; elles se pozeram logo á testa d’uma tição do dinheiro que se vinha oflerecer
seita de homens que não raciocinavam, e a "seus pés? Não voltaram mais esses tem­
que não tinham outro guia mais do que os pos ditosos! E tu, infeliz rebanho de Jesus
ímpetos e delírios da sua imaginação, ou Christo, terás de gemer sempre na oppres-
os movimentos das suas paixões. são, debaixo das potências ecclesiasticas! 1
Vendo estes dous chefes quanto poder O Omnipotente espera que todos os povos
tinham para imprimir nos animos de seus destruam a tyrannia dos magistrados, que
discipulos todos os movimentos que qui- com as armas nas mãos recobrem a sua
zessem, não cuidaram mais em oppôr con­ liberdade, que não paguem tributos, e que
tra Luthero uma seita de controversistas; ponham os seus bens em commum
aspiraram a fundar no seio d’Allemanha «Aqui aos meus pés é que se devem tra­
uma nova monarchia. Porém alguns dos zer, assim como em outro tempo se amon­
discipulos não seguiram os ambiciosos de­ toavam aos dos apostolos; sim, meus irmãos,
sígnios dos seus chefes; e no mesmo tempo não possuir cousa alguma como própria é
em que Muncer julgava ser-lhe tudo per- o espirito do Christianismo no seu nasci­
mittido para estabelecer o seu novo impe­ mento; e não pagar aos principes os tribu­
rio, estes anabaptistas pacificos olhavam tos com que elles nos opprimem, é livrar-
como um crime a defesa mais legitima mo-nos do captiveiro de que Jesus Christo
contra aquelles que atacavam as suas pes­ nos resgatou.» 2
soas e os seus bens. Nós vamos, pois, se- ' O povo de Mulhausen viu em Muncer
uir os seus progressos e differentes esta- um propheta enviado do céo para libertal-o
os d’esta seita. da oppressão; lançaram fóra os magistra­
dos, pozeram-se em commum todos os bens,,
e Muncer foi respeitado como o juiz do
DOS ANABAPTISTAS CONQUISTADORES DESDE 4)ovo. Este novo Samuel escreveu ás cida­
SOBERANIA DE MUNCER A TÉ Á SUA MORTE des e aos soberanos que o fim da oppres­
são dos povos e da tyrannia dos soberanos
tinha chegado, que Deus lhe ordenàra que
Tinha-se sublevado uma parte d’Allema- exterminasse todos os tyrannos, e que es­
nha, por não poder supportar as vexações tabelecesse em pessoas de bem o governo
dos senhores e dos magistrados, e dérá de. todos os povos.
principio ao levantamento conhecido pela Pelas suas cartas e pelos seus apostplos,
denominação de guew a dos paisanos: esta Jituncer ateou o fogo da sedição na maior
sedição tinha abalado, por assim dizermos, parte d’Allemanha: viu-se em breve na
toda a Allemanha, que gemia debaixo da vanguarda d’um exercito numeroso, que
tyrannia dos grandes, e que parecia espe­ commettia grandes desordens; calamidades
rar sómente por um chefe. ainda maiores, ameaçavam a Allemanha,
Muncer se aproveitou d’estas disposições os. povos rebellados corriam de todas as
ara grangear a confiança do povo. «To-
os somos irmãos, dizia elle fallando ao 1 Oatrou. Hist. des Anab. Sleidan.
povo miudo reunido^ e só> temos um pae 2 Catrou, ibid Sleidan, 1 .10. SékemorI»-
commum, que é Adao; d’onde vem, pois, comment su r le Hist. du Luth.
ANA 193

partes para se alistarem ás ordens de Mun- consideravelmente: então correram por to­
cer. do o paiz, gritando: «Arrependei-vos, fazei
O Iandgravc dTIassia, e muitos senho­ penitencia, e sêde baptisados, a fim de que
res levantaram tropas, e investiram Mun- não venha sobre vós a ira de Deus.*
cer, antes que a elle se reunissem diffe­ O povo miudo sc ajuntou: todos os que
rentes corpos de revoltados, que já mar­ tinham recebido um segundo baptismo, cor­
chavam: o exercito de Munccr ficou desba­ reram logo pelas ruas, dando a mesma voz;
ratado, mais de sete mil anabaptistas mor­ muitas pessoas se uniram aos anabaptistas
reram n’csta derrota, e o mesmo Munccr por simplicidade, temendo com cffeito a có­
ficou captivo, e foi executado algum tempo lera divina com que os ameaçavam, c ou­
depois.1 tras porque temiam o ser roubadas.
O numero dos anabaptistas se augmen­
tou dentro de dous mezes a muitos mil, c
DOS ANABAPTISTAS DEPOIS DA MORTE DE MUN- tendo publicado os magistrados um edicto
CER ATÉ Á EXTINCÇÃO DO SEU REINO DE contra clles, correram ás armas, c se sc-
MUNSTER. nhorcaram da praça do Mercado. Os cida­
dãos se postaram ém outro bairro da cida-
dade: por espaço de tres dias guardaram-
A derrota de Munccr não aniquilou em se uns aos outros; por fim se concordaram
Allemanha o anabaptismo, que alli se man­ em que cada um dos partidos deporia as
teve c ainda cresceu, mas jã não formava armas, e que reciprocamente se tolerariam,
um partido digno de temer. Os anabaptis­ não obstante a differença de sentimentos
tas igualmente odiosos aos catholicos, aos acerca da religião. Porém os anabaptistas
protestantes e aos sacramcntarios, eram receando ser atacados de noite, emquanto
I condenmados e punidos cm toda a Allema­ estivessem desarmados, secretamente en­
nha. ' viaram mensageiros a differentes logares
Na Suissa clles amotinaram os cidadãos com cartas dirigidas aos seus apaixonados.
e os paisanos, porém com menos successo, Referiam estas cartas, que um propheta
porque a vigilância e a authoridade dos enviado por Deus chegara a Munster, que
magistrados desmancharam seus projectos, prophetisava acontecimentos estupendos, e
tractando-os com rigor, pois que só pode- que instruía os homens sobre os meios dc
ram alli perpetuar-se debaixo d’um grande obterem a salvação: um prodigioso numcr<
segredo. Em muitos cantõcs se tinha pro­ d’anabaptistas partiu para Munster. Entã<
ferido pena de morte contra os anabaptis­ os da cidade correram pelas ruas gritando
tas, e todos aquclles que frequentassem as «Retirai-vos, perversos, se quereis evitar
suas assembléias, c com cffeito se execu­ uma total destruição, porque sc esmagará
tou em grande numero d’cllcs. Ainda eram a cabeça a todos aquclles que recusarem
tractados' com mais rigor nos Paizes-Bai- rebaptisar-sc.» O clero c os cidadãos aban-~
xos e na Hollanda: estavam cheias as pri­ donaram então a cidade; os anabaptistas \
sões, c quasi todos os dias se levantavam saquearam as igrejas c as casas abandona- y
cadafalsos; mas por mais supplicios que se das, e á exccpção da Biblia, reduziram a
inventassem para aterrar os animos, cada cinzas todos os livros. Pouco tempo depois
vez crescia mais o numero dos fanaticos. a cidade foi cercada pelo bispo de Muns­
De quando em quando se elevavam en­ ter, e Mathison morto em uma sortida. A
tre os anabaptistas alguns chefes, que lhes morte de Mathison consternou os anaba­
promettiam tempos ditosos: taes foram Hof- ptistas; porém João Bekold sahiu n ú cor­
man, Tripnaker, etc. rendo pelas ruas, e gritando:*~To rei de
Depois d’cstès appareceu Mathison, pa­ Sião chega.» Practicado este acto, tornou
deiro dTíarlem, o qual enviou apostolos á a entrar em casa, tomou os seus vestidos,
Frisa, a Munster, etc.; como se tinha esta­ e não sahiu mais. No dia seguinte veio o
belecido em Munster a religião reformada, povo cm turmas saber a causa d’esta acção;
os anabaptistas haviam feito alli alguns pro­ João Bekold nada responde, e escreve: que
selytos, que receberam os novos apostolos. Deus lhe prendera a lingua por tres dias. J
Todo o seu corpo se ajuntou n’essa noite, Não se duvidou de que o milagre ope- 1
e recebeu do enviado de Mathison o espi­ rado em Zacharias não fosse renovado em 1
rito apostolico que elle esperava. João Bekold e se esperou com impaciência *
Conservaram-se escondidos os anabaptis­ o fim da sua mudez.
tas até que o seu numero se augmentou Passados os tres dias, Bekold se apre­
sentou ao povo, e declarou com um tom de
v 1 Catrouy Sleidam, Sekendorfj ibid. prophecia que Deus lhe ordenára se esta-
13
194- A-N.A
belecessem doze juizes sobre Israel; no­ lemanha e na Suissa continuamcule se re­
meou-os e. fez no governo d’esta cidade io­ produziram.
das as mudanças que lhe pareceu. Esta foi por Ioda a parte a sorte dos ana­
Quando Bekold se creu bem senhor dos baptistas, cujo principal desígnio era o de
animos dos povos, veio um certo ourives a formarem um reino temporal ou ainda uma
buscar os juizes, e lhes disse: «Eis aqui o monarchia universal pela destruição de to­
que disse o Senhor Deus Eterno: assim das as potências: dispersos sobre a terra e
como cm outro tempo eu estabelecia Saul descoroçoados das suas emprezas vieram a
rei sobre Israel, e depois d’clle a David, renunciar o projecto insensato de submet-
posto que nào fosse mais que um simples ter o universo as suas opiniões; o seu fa­
pastor, da mesma sorte eu estabeleço hoje natismo deixou de ser um furor guerrei­
rei em Sião a Bekold, meu propheta!» Um ro, c então se uniram com os anabaptistas
jOUtro propheta veio e apresentou uma es­ puros c pacificos.
pada a Bekold, dizendo: «Deus te faz rei,
} não sómente sobre Siào, mas sobre toda a
: terra.» Opovo arrrebatado d’alegria accla- DOS ANABAPTISTAS PACIFICOS
:m ou João Bekold rei de Sião, lizeram-lhe
um a coroa d’ouro e bateram moeda em seu
‘ nome. Não era essencial nos anabaptistas o es­
Apenas Bekold foi proclamado rei en­ pirito da revolta e da sedição, e Stork nãò
viou vinte c seis apostolos para fundarem achou cm toda a parte caracteres taes como
por toda a parte o seu imperio. Estes no­ o de Muncer: alguns de seus discipulos pelo
vos apostolos aonde quer que chegaram contrario cm vez de se rebellarem contra-
promoveram grandes distúrbios, principal­ as potências seculares, emprehenderam re­
mente na Hollanda, aonde João de Levde unir os anabaptistas dispersos cm dilleren-
asseverava que Deus lhe tinha dado Ains- tes partes d’Allemanha, fugir ás persegui­
terdam o muitas outras cidades. Como os ções dos magistrados e formar uma socie­
anabaplistas causaram n’ellas grandes des­ dade puramente religiosa. Taes foram Hu-
ordens, mataram um grande, numero d’ellcs. ter, Gabriel c Menno, que formaram as so­
0 rei de Sião soube com mágoa as des- ciedades dos irmãos da Moravia, e a dos
raças dos seus apostolos, e esmoreceu; o Mauronitas.
Bsanimo entrou em Munster, que pouco
ípois foi tomada pelo bispo, c n’ella pri-
oneiro o mesmo João de Lcvd, ou Bekold, DOS IRMÃOS DA MORAVIA
atanazado em 1536. D'csfa sorte finalisou
) reino dos anabnptistas cm Munster.
Huter e Gabriel, um e outro discipulos
de Stork, compraram na Moravia um ter­
DOS ANABAPTISTAS CONQUISTADORES, DEPOIS reno assaz extenso em sitio fértil mas in­
DA EXTINCÇÂO DO SEU REINO EM MUNSTER culto, depois percorreram pela Silesia, Bo-
liemia, Styria e Suissa, annunciando em toda
a parte que Deus escolhera um povo se­
Os anabaptistas foram perseguidos e cui- gundo o seu coração, que este povo vivia
dadosamente observados por todos os prin­ espalhado entre os paizes da idolatria, que
cipes c seus ministros, que tendo sempre o tempo de congregar-se Israel tinha che­
diante dos olhos o exemplo de Munster, gado, c que era necessario que os verda­
não lhes deram repouso algum. Na Hol­ deiros fieis saliissem do Egypto e passas­
landa não deixaram de fazer-se execuções sem á terra da promissão.
em muitos annos: passados dez depois da Depois que Huter reuniu anabaptistas
reducção de Munster, foram executados mui­ bastantes para formar uma sociedade, fez
tos anabaptistas que faziam diligencia para um symbolo dè^lcis. Continha este sym­
restabelecer o seu partido; alguns d’elles se bolo: *
escaparam, mas outros, morreram cont um 1.® Que Deus em todos os séculos esco­
válor estupendo: taes houve que podendo lhera uma nação saricta que clle fizera de­
salvar-se preferiram morrer, por se vêrem positaria do verdadeiro culto; que a diffi-
no estado de não poderem esperar torna­ culdade consistia em conhecer os seus mem­
rem -se melhores no decurso d’u m a v id a bros entre os filhos da perdioão^e reunifos
mais dilatada. Com o mesmo rigor forám cm um corpo pai a os conduzir ã terra pro-
tractados os anabaptistas na Inglaterra, mettida; que este corpo era sem dúvida o
aonde comtudo fizeram proselytos: na Al- que Huter congregava para o fixar na Mo-
ANA 195
ravia; finalmentc, que separar-se do chefe tendidas, emquanto o prcdicante explicava
oudespresar as leis do coiulucior d’Isracl, o mysterio, c finalmcntc este pronunciava
era o signal d’uma infallivcl coridemnação. em alta voz as seguintes palavras: «To-
2. ° Que se devem olhar como impias to­ •mai, meus irmãos, comei e annunciai a
das as sociedades, cujos bons não sào cóm- morto do Senhor.»
muns;. que não se póde ser rico cm parti­ Então todos comiam o pão: o ancião ia
cular e juntamente christão. depois correndo d’uns a outros com o seu
3. ° Que Jesus Christo não é Deus, mascalix, c o prcdicante dizia: «Bebci em nome
Propheta. de Christo c cm memória da sua morte.»
i.° Que os christãos não devem reconhe­ Hebiam todos do calix e depois ficavam em
cer outros magistrados senão os pastores uma cspecie (fextasis, de que somente sa-
ecclesiasticos. hiam pelas exhortaçõcs do prcdicante, o
5. ° Que quasi todos os signacs exterio­qual lhes explicava os cíTcitos que havia de
res de religião são contrarios á pureza do produzir n’elles o mysterio de que deviam
Christianismo, cujo culto ha de ser no co­ ter participado.
ração, e que não devem consorvar-sc ima­ Logo depois da communhão eram sepa­
gens, pois que Deus o prohibiu. rados da assembléia os apostolos que ha­
6. ° Que são verdadeiros inficis todos osviam de ir pregar ás provincias circumvi-
que não são rebaptisados; e os casamentos sinhas.
feitos antes da nova regeneração, são an- Entre os anabaptistas quasi não havia
nullados pelo novo contracto que se faz com outros exercícios de religião fóra da rece­
Jesus Christo. pção da ceia, excepto o ajuntarcm-sc por tur­
7. ° Que o baptismo não perdoa o pec-mas, todas as quartas feiras e domingos, em
cado original, não confere graça, nem é casas particulares para alli fazerem ou ou­
mais que um signal pelo qua; o christão se virem sermões sem ordem nem preparação.
entrega á Igreja, Os irmãos da Moravia habitavam sempre
8. ° Que a missa é uma invenção de Sa-no campo em terras de fidalgos que acha­
tanaz, o purgatorio um delirio e* a invoca­ vam mais utilidade cm arrendal-as a uma
ção dos sanctos uma injuria feita a Deus; colonia ^anabaptistas, parque sempre pa­
que o corpo de Jesus Christo não está rcal- gavam aos senhores o dobro do que lhe*
mente presente na Eucharistia. teriam produzido* nas mãos d’uni rendeiri
Taes são os dogmas que professavam os ordinario.
anabaptistas reunidos por Huter c que to­ Logo que lhes confiavam qualquer her­
maram o nome de irmãos da Moravia. dade, vinham residir n’ella todos juntos em
Como cutrc elles não se dava o baptismo um sitio separado que cercavam com esta­
senão ás pessoas d’uma idade madura, per­ cada: cada familia tinha alli a sua cabana,
guntava-se ao proselyto se cllc se tinha feita sem ornato, mas aceada no interior.
cxórcitado em algumas magistraturas o se No meio da colonia faziam aposentos pú­
renunciava a todo o fausto e pompa de Sa- blicos, destinados ás funcçòes das commu-
tanaz, que as acompanham: examinavamos nidades: alli se via um réfeitorio onde se
seus costumes, c só se julgava digno de ser ajuntavam todos ás horas do comer, e sa­
contado entre os irmãos quando com um las para trabalhar nos oflicios, que só po­
voto unanime gritava o povo: «Soja bapti- dem cxercer-sc a coberto. Tinham ahi um
sado.» Então o pastor tomando agoa a lan­ departamento cm que se creavam as crean-
çava sobre o proselyto, pronunciando estas ças da colonia, e não seria fácil explicar
palavras: «Eu tc bàpliso em nome do Pa­ com que desvelo as viuvas desempenhavam
dre, do Filho e do Espirito Sancto.» esta funeção.
Entre os huttcritas se tomava a commu- Em outro logar separado tinham uma
nhão ou a ceia duas vezes no anno, no escola pública para a instrucção da moci­
tempo que o sou chefe determinava para a dade, e d*esta sorte nem estava a cargo dos
communhão pública, c era ordinariamente paes o sustento nem a educação de seus
debaixo d’um tolde ou, palco, na sala que lilhos.
servia de refeitório aos irmãos que se ajun- Como os bens eram communs, um eco-
tavam para ter parte nos mysterios. nomo que se revesava todos os annos, per­
Principiava a ceremonia *pela lição do cebia os rendimentos da colonia e os fru-
Evangelho em lingua vulgar: sobre o que ctos do seu trabalho: a clle tocava prover
se-tinha lido fazia-se um sermão, c no fim a eommunidadc de todo o necessario: o
d’ello o ancião ia levar a cada um dos ir­ prcdicante c o archimadrita tinham uma
mãos um pedaço do pão communr. todos cspecie d’intendencia sobre a distribuição
. o recebiam nás suas mãos, que tinham es­ dos bens e boa ordem da disciplina.
*
196 ANA
A primeira regra era a do não tolerar então inventaram um genero de supplicio
ociosos entre os confrades. Desde que ama­ muito extravagante, que era fazerem cóce­
nhecia, depois da oração que cada um fa­ gas ao criminoso até que morresse.
zia cm particular, uns se espalhavam pelo . Os irmãos da Moravia não despendiam
campo para cultival-o, outros exercitavam quanto adquiriam. D'aqui vieram as rique­
nos seus laboratorios os oíficios que lhes zas que os economos de cada colonia amon­
tinham ensinado: ninguém vivia isempto toavam occultamentc, c de que só davam
do trabalho; e por isso logo que uma pes­ conta ao primeiro chefe de toda a seita.
soa nobre entrava na irmandade, era re­ EUa tinha um, conhecido sómente pelos ir­
duzida, segundo a sentença do Senhor, a mãos, que não se revelava no público. Á
comer o pao com o suor do seu rosto. disposição d’cstc chefe ou d’eslc primeiro
Todos os trabalhos se faziam em silen­ archimandrila, se empregava o supcrlluo
cio; rompcl-o no refeitório era um delicio. das colonias em proveito de toda a seita, c
Antes de tocar no comer, cada um dos ir­ muitas vezes aconteceu fazerem suas, por
mãos orava cm segredo por espaço de quasi compra, as mesmas terras que alugavam.
um quarto de hora, com as maos juntas
sobre a bôcca em uma espccie d’extasis;
1 não sahiam da mesa sem que fizessem ou­ DA DESTRUIÇÃO DOS IRMÃOS DA MORAVIA
tro quarto de oração; depois de comer, cada
um tornava ao seu trabalho.
Nas escolas entre os mesmos meninos Parecia conspirar-sc tudo a favor dos ir­
era observado o silencio rigorosa mente: mãos da Moravia: a nobreza tinha proveito
ter-se-iain supposto umas estatuas em tudo em fazer cultivar suas herdades por ho­
similhantos, porque o panno e o talhe do mens infatigáveis c fieis; e não se ouviam
vestido seguia tudo um só modello, assim queixas d’uma sociedade cujos regulamen­
nos irmãos como nas irmãs. tos parecia terem por objecto a utilidade
Nos casamentos não se attendia nem á pública. Mas não obstante isso, o zelo da
paixão nem ao interesse: o superior tinha religião prevaleceu á mesma utilidade no
um registo dos moços d\un e d’outro sexo; coração de Fernando: este principe, diz o
o mais velho era "destinado para a mais padre Catrou, ponderando tudo, concebeu
velha das raparigas: aquelle dos dous que ser perigoso fòrmar-se no seu reino uma
recusasse alliar-se com quem lhe cabia, republica independente dos magistrados ci­
passava a ser o ultimo dos que haviam de vis e adversa á obediência dos soberanos.
ser casados: então se deixava á sorte o seu O dobrado interesse da religião e do estado
acerto. o fez inimigo declarado, dos hutteritas cm
Celebrava-se com pouco apparato o dia particular, como elle já o era dos anaba-
das núpcias em que tao sómente o cconomo ptistas em geral.
augmenta va com algumas iguarias o jantar O marechal da Moravia recebeu, poisr
dos noivos, e esse dia era para ellcs um uma ordem para cxpellir os anabaptistas:
dia de festa, isemptando-os de trabalho. appellaram elles para a authoridade das
Então lhes destinavam uma cabana sepa­ leis que os tinha feito possuidores legiti­
rada dentro do cercado, com condição que mos dos domicílios: a nobreza e as cidades
a mulher se acharia todos os dias no seu da Moravia se empenharam na sua conser­
posto na casa do trabalho, e que o marido vação; mas nada houve que podésse do-
se transporia como do costume ao campo, brár Fernando: elle fez marchar tropas
ou aos logares cm que lhe cumpria satis­ contra os anabaptistas. Então, continua o
fazer ao seu officio. padre Catrou, os irmãos da Moravia aban­
Não tinha ainda o vicio corrompido es­ donaram suas habitações á avareza dos sol­
tas sociedades cm que não se encontrava dados, e sem darem o menor signal ^indi­
vestigio algum d’aquelles desmanchos de gnação ou de revolta, sahiram da Moravia
ue eram censuradas as differentes seitas aos bandos para se retirarem a um paiz
'anabaptistas: o quebrantamenlo das leis visinho, inculto, esteril e inhabitado.
era punido unicamente com penas espiri- Em pouco tempo a Moravia conheceu
tuaes, como a separação- da connnunhão; quanto perdera: queixou-se por yér terras
e os incorrigíveis eram mandados para o n’outro tempo tão ferieis c tão cultivadas
século. pela industria dos anabaptistas, tornadas
Quando acontecia que a cólera houvesse desertas ou despresadas depois da sua ex­
feito commetter alguma morte, nue fosse pulsão. Emquanto os hutteritas se acha-
perigoso deixar sem castigo, tinham em vam mprtos de fome nos seus desertos, os
horror a effusão do sangue do culpado, e habitantes da Moravia suspiravam pela res-
ANA 197

li tu icito (Vestes pobres desterrados, e pouco não restabeleceu n’ellas a ordem nem a
tardou que não se queixassem, que nào disciplina primitiva: ao desregramento dos
murmurassem, e que a Aloravia nào se anabaplistas se seguiu o desprêso dos po­
visse a ponto de romper n’uina sublevaçào. vos, e ao desprêso, a perseguição: final-
Foram chamados os anabaplistas, e \lo- mente pelos annos de 1620 esta communi-
p.ois do seu chamamento foi quando a dis­ dade, tão desfigurada, foi quasi cxtincta:
cordia perturbou estas colonias: cilas eram um grande numero d’irmãos se retirou a
governadas por Hutcr e Gabriel, dous ho­ Transylvania, aonde se uniu aos socinia-
mens de muito dilTerentc caracter. Huter nos, e depois que os quakers «e restabele­
declamava continuamenle contra a autho- ceram na Transylvania e receberam todas
ridade dos magistrados, prégava cm todo o as seitas chrislãs, passaram para cilas mui­
seu rigor a igualdade dos homens. Gabriel, tos dos anabaplistas da Moravia.
mais docil, queria que se conformassem
com as leis do paiz cm que viviam. Huter
e Gabriel se desavieram, e formaram duas n o s a n a h a p t i s t a s p a c íf ic o s d a h o l l a n d
seitas separadas, que reciprocamcnlc se ex- CHAMADOS MENNONITAS
****••"*'•■>«»,
•commungavam. Por esta razão se dividiram
os irmãos da Aloravia em gabrielistas e hut-
teritas. Huter c Gabriel, cada um para seu Dous irmãos, um dos quaes se chama'
lado, foram formar novos estabelecimentos, Ubbo e outro Theodoro Philippe, filhosd’m
sendo o designio (Vambos fazerem-se por pastor de Leward, depois de haverem abra­
toda a parle os unicos lavradores d AIle- çado a seita dos anabaptistas, foram feitos
manlia e os melhores artifices das cidades. bispos em 1534. Estes dous irmãos, que
Assim se achava nas colonias dos anaba- nunca approvaram nem os sentimentos
ptistas geralmcntc quanto era necessario nem os desígnios dos anabaptistas de Muns-
para abastecer todas as cidades. D’aqui vie­ ter acerca do reino temporal, depois da ex-
ram, diz o padre Gatrou, a ruinae os mur­ tineção d’estc ajuntaram o resto dos anaba­
múrios dos antigos habitadores do paiz: ptistas, projectando formar d’elles uma nova
além d’isso viu-se que Huter nas differen­ seita. Communicaram os seus desígnios a
tes provincias, aonde chegava, induzia os Mcnno, parocho em Friza, e o persuadiram
particulares a venderem-lhe bens para os a deixar a parochia para ser bispo dos ana­
seus estabelecimentos; foi preso como ini­ baptistas.
migo da sociedade e o queimaram como Tornado Alenno bispo dos anabaptistas,
herege. trabalhou com tal ardor e successo no es­
Depois da morte d’Huler, estas duas sei­ tabelecimento d'aquclla seita, que cm pouco
tas se uniram, mas relaxou-se nas colonias tempo foi recebida a sua doutrina por gran­
a disciplina, c introduziu-se o luxo e attra- de numero de pessoas cm Friza, cm West-
liiu a ella todos os vicios. Toda a prudên­ phalia, em Gueldes, llollanda, Brabante e
cia dos archimandrilas apenas era bastante em muitos outros logares.
para encobrir as desordens das colonias: Comtudo não deixou ella de soflrer for­
para obvial-as não se pregavam senão ra­ tes obstáculos, publicaram-se edictos seve­
zoes de politica; não se occupavam mais ros contra os mennonitas, morreram quei­
com Deus nem da severidade dos seus jul­ mados muitos (Velles, e um paisano d’Har-
gamentos. Pelo que respeita aos mysterios linghem, em Friza, foi executado de morte,
da Trindade e da Encarnação do Verbo, já só porque recebera em sua casa a Alenno
pareciam inteiramente esquecidos. Tolera­ Simonis.
vam todas as seitas do anabaptismo, sab­ Não tardaram cm dlvidir-se entre si os
batarios, clámilarlps, etc., do que traetare- mennonitas, surgiram grandes controver-
mos cm artigo á parte. sias acerca da cxcommunhão e se fez um
Como Gabriel se oppôz com todas as synodo cm Wismar, aonde Alenuo residia
suas forças a estas desordens, tornou-se N’este synodo se resolveu viva e forte­
odioso aos sectários, que o expulsaram da mente contra todos os que transgrediam as
Moravia: elle se retirou á Polonia, onde ordens: determinou-se que o marido aban
terminou na miseria uma vida sempre des­ donasse a mulher excommungada e igual
tinada ao estabelecimento e á gloria da sua mente a mulher seu marido, e que os pa
■seita.. rentes d’uma pessoa excommungada nãi
A communidadc dos irmãos da Moravia teriam com clles commercio algum.
não deixou de subsistir depois da expulsão N’uma assembléia que houve no mesm«
de Gabriel. Feldhallcr» se applicou unica­ anno em Mcklenbourgo, foi condemnad-
mente a enriquecer‘as suas colonias, mas este synodo, c n’eila se determinaram pra
1UU ANA
ccdimcntos menos rigorosos a respeito das protestantes gosaram do exercício livre da
pessoas que fossem julgadas dignas da cx- sua religião nas provincias unidas, empre­
comniunhão. Porém esta dilTorcnca causou garam logo todos os meios para os tornar
para o futuro outros scismas entre os ana­ {odiosos até os fazerem expulsar.
baptistas acerca de muitas questões que se Sem embargo das diílieuldadcs que ex­
agitaram sobre os meios de se servirem da perimentaram da parte das igrejas refor­
espada carnal, sem recorrerem ao magistra­ madas e dos magistrados do paiz àté o meio
do, e cscandcceram de tal sorte os animos, do ultimo século, as divisões continuaram.
que havendo Menno cxcommungado um Comludo em 1(532 sc congregou um svnodo
certo Cnyper, este por seu turno o excom- para trabalhar na reunião, e nVllc sc fez
mungou também. uma espccic de traclado de paz, que foi as-
No anuo seguinte se augmentou conside­ signadu por cento cincoenta o um menno-
ravelmente esta divisão dos anabaptistas, nitas; mas alguns annos depois surgiram
sobretudo em Emhden, aonde houve gran­ novos scismaticos n'esta seita.
des distúrbios por causa d’uma mulher, O mennonismo tem hoje dous grandes
cujo marido fòra excommungado: como ramos na Hotlanda, debaixo do nome dos
esta mulher não quizesse separar-se d’cllc quaes sc comprchendem todos os irmãos:
uns estavam em que devia ser cxcommun- é um o dos waterlandcrs, o outro o dos fla­
gada o outros se oppunham. mandos; mestes se comprchendem os men-
Escreveram a Menno, o qual respondeu nonitas frisões c os allemãcs, que são pro­
que não consent iria nunca que se usasse priamente a seita dos anabaptistas antigos,
d’um tão grande rigor a respeito da cxcom- na realidade mais moderados do que foram
munbão; mas sendo ameaçado ellc proprio os seus prodecessores cm Allcmanha e na
com cxcommunhão, pelos anabaptistas ri­ Suissa.
gidos, foi obrigado a transigir com o seu Entre os flamandos sc encontram mui­
sentimento. tos socinianos. Em 1664- o estado se viu
D*estas diversas opiniões acerca da cx- obrigado a interpor a sua aulhoridade para
communhão, é que vieram as diversas fac­ lhes prohibir o disputarem sobre a divin­
ções que ainda hoje separam os mennoni- dade dc Jesus Christo. Chamam-sc também
tas. Os mesmos anabaptistas rigidos se di- estes galenilas do nome de Galeno, celebre
ddiram também entre si de sorte que uns predi ca nte mennon i ta.
ão menos austeros, e outros mais rigoro- Além d’este ramo dc mennonismo, ha cm
í o s : todos se excommungaram reciproca- Amslerdam muitas pequenas assembléias
mente, e nada houve que podesse reconci­ menos conhecidas; estes mennonitas dilTc^
liar estes partidos. rem entre si cm diversos pontos de pouca
Morto que foi Menno, se augmentou o importância c as suas pequenas assembléias
scisma entre os seus sequazes, principal- sc formam sem ruido c secrelamcntc n’al-
mente entre os de Flandres c da Suissa: gumas casas particulares.
para o fazer cessar, os dous partidos toma­ As disputas que os galenitas tiveram en­
ram arbitros, e se compromcttcram no seu tre si acerca da divindade de Jesus Christo,
juizo os flamandos, que eram os mcnnoni- em 1(569, deram nascimento a uma nova
tas severos; foram condemnados, mas accu­ assembléia de menuonitas que se separou
saram os árbitros de parcialidade, rompe­ protestando contra as opiniões dos socinia­
ram todo o commercio com os mennonitas nos: estes continuaram a congregar-se de­
menos rigorosos, e tiveram por um delicio pois d’esse tempo n’uma igreja particular.
conversar, comer, fallar, ou ter com cllcs o Reconhecem, pois, os mennonitas a di­
menor tracto, aindam esm o no estado ^ a r ­ vindade dc Jesus Christo, e pretendem que
tigo dc morte. se não deve obedecer nem á Igreja, nem
• Separadas as provincias unidas da domi­ aos concilios, nem a alguma^issemblcia ec­
nação hespanhola, não foram mais perse­ clesiastica. Rejeitam .o baptismo das crcan-
guidos os anabaptistas. Guilherme r, prin­ ças, sustentam que nenhuma igreja deve
cipe d’Orange, teve necessidade d’uma som­ ser reputada verdadeira igreja, com exclu­
nia de dinheiro para sustentar a guerra, e são das outras, e que a reforma não deve
a pediu aos mennonitas, que lli’a enviaram. ter a consideração d’uma empreza execu­
Recebida a somma, o principe assignou tada por authoridade dc Deus c de Jesus
um a obrigação, e lhes fez perguntar qual Christo. Não créern que os sacerdotes e os
graca desejavam ellcs que se lhes conce­ diaconos tenham authoridade alguma por
desse; os mennonitas pediram a dc serem direito divino, c d’aqui concluem-que a cx-
tolerados, e concluída a revolução efíecti- communhão não tem logar depois dos apos­
vam ente o foram; mas apenas os ministros tolos, quo unicamente foram estabelecidos
ANG 199
por Deus; porém reconhecem a necessi­ depois da nova regeneração era fácil per-
dade d-obcdccer aos magistrados. severar-se de toda a culpa, c entendiam
Em 1660 os anabaptislas allemãos da Al- que com cffcito não pcccavam mais. Com
sacia subscreveram a confissão de fé dos este fundamento, cortavam na oração do­
anabaptislas ílamandos: os de Hamburgo minical aquellas palavras: «Perdoai-nos as
teem a mesma confissão de fé que os ana- nossas dividas;» a ninguem rogavam que
baptistas separados. Administram o baptis­ orasse por clles.
mo e a ceia com pouca differença como os 6. * Os ixuiãosiiJUaliops, os quacs tinha
irmãos da Moravia.1 que toda a servidão era contraria ao espi­
rito do Christianismo.
7. ° Os sabbMyjjQs, que criam ser prec
DAS SEITAS DEVOTAS QUE SE LEVANTARAM guardar o macio sabbado c não o do do­
" ENTRE OS ANARAPTISTAS mingo.
8. ° Os clanclularios. que diziam ser pr
ciso fallar em público como o commum
Erà um principio fundamental do ana- dos bomens, e que só em segredo devia
baptismo que Deus instruía immediata- cada um dizer o que pensava cm materia
mente os fieis, e que o Espirito Sancto lhes de religião.
inspirava o que deviam obrar e crèr, e to­ 9. ° Os manifestarios, que tinham sen
mava. pois, cada um dos anabaptislas como mentos diametraímente oppostos aos dos
verdades reveladas todas as suas idéias, clanclularios.
por mais extravagantes que fossem, c se 10. ° Os chorões, que imaginavam ser
viu uma multidão de seitas de anabaptis- as lagrimas~agraaaveis a Deus, c que uni­
tas que só tinham de commum a necessi­ camente se occupavam em adquirir a faci­
dade de baplisar os que já eram baptisa- lidade de chorar: elles misturavam sem­
dos, e que faziam dependente a salvação pre as suas lagrimas com o seu pão, e já-
de differentes prácticas. Tacs foram: mais se encontravam senão a suspirar.
1. ° Os adanikag, que cm numero de mais11. ° Os regqsi|ados, que estabelecera
de trezentos si2Íü:amjwjs sobre uma alta por principio que*aalegria e a boa mesa
montanha, persuadidos de que serjam ar­ era a honra a mais perfeita que podia tri­
rebatados ao céo em corpo e alma. butar-se ao author da natureza.
2. ° Os apostolicos. que practicavam ao12. ° Os it^iflerfiplçg, que em pontos
pé da letra a ordem que Jesus Christo déra religião não tufliam tomado partido, sup-
de prégar sobre os tectos, e não tinham pondo-as todas igualmente boas.
outros pulpitos senão a cobertura das ca­ 13. ° Os sangjUaati.os, que só pensav
sas, aonde subiam com agilidade, e d’alli derramar o sangue dos catholicos e dos
faziam ouvir a sua voz aos que passavam. protestantes.
3. ° Os taciturnos, pelo contrario, persua­14. ° Os ajifimaL^apQS, que negavam
didos de que estavam chegados aquelles Sancta Yirgeintoda a honra c todo o res­
tempos de tribulação predictos por S. Pau­ peito. 1
lo, cm que a porta do Evangelho deve es­ ANDRONie.OS^ u ^ u moN^A^ps—discipu-
tar fechada, se calavam obstinadamente loscTüm 'certo Andronico, que tinha ado-
-quando eram perguntados acerca da reli­ ptado os erros dos severianos: criam que
gião e do partido que devia tomar-sc b e s ­ a ametade sup'erior das mulheres era ob ra1
tes tempos tão penosos. de Deus, c a ametade inferior obra do
4. ° Os perfeitos, que se haviam separadodiabo. 2 Yeja-se o artigo Severíanos.
do mundo, a fim de desempenhar ao pé da a n g e l ic o s — parece existir esta seita des­
letra o preceito de não se conformarem de ITTÊrfipõ dos apostolos e que d’elles
com o século: um ar do serenidade ou de falia S. Paulo aos Colossenses: «Ninguém
satisfação, o menor sorriso era no seu pen­ vos roube o prêmio da vossa carreira, diz
sar attrahir a maldição de Jesus Christo: este apostolo, affectando parecer humilde
«Desgraçados vós, que rides, porque vós por um culto supersticioso dado aos anjos,
chorareis.»
5. ® Os im p.ecça^s, cuja crença era, que 1 Vejam-se os authores citados} e Kro-
mayer, in Scrutinio Religionum. Pantheon
1 Hist. Mennonitarum Descript d'Amstcr- Anabaptisticum e Enthrusiasticum, 1702,
dam. Cair ou, Hist. des Anabaptistes. Uma in-fol. Os theologos allemães escreveram
pequena Historia cVAnabaptistaSj em 12, muito sobre o aiiabaptismo. Veja-se Stok-
.impressa em Amsterdam e feita sobre ex­ man, Lexic. Hceres.
cellentes noticias. 2 Epiph. Hceres. 45.
*00 ANT
mcttendo-se a fallar de cousas que não sa­ rosos na presença de Deus e os créram
be, cntumecido pelas frívolas imaginações muito mais proprios para nos conciliar
d?um espirito humano e carnal. 1 com elleque o mesmo Jesus Christo,iHa­
Nada se vé nem na lei, nem nos prophe­ via angelicos no império de Severo até o
tas, nem nas prácticas dos sanctos do An­ anno 260,mas jánão existiamno tempode
tigo Testamento sobre o culto dos anjos: S.Epiphanio,que só tinhanoticia do nome
verdade é que quando elles apparcceram dastes hereges, mas ignoravacm que con­
e fali aram em nome de Deus, c como re­ sistiaa heresia e de que lhe derivava o
presentando-o receberam homenagens c nome. 2 Sancto Agostinho cré que elles
uma adoração; mas este culto c esta ado­ se appellidavam assim porque pretendiam
ração se referia a Deus de quem elles eram ter uma vida angélica.3
ministros e embaixadores. 2 Thcodorclo pondera que o culto dos an­
Depois que os judeus voltaram do capti- jos, que os sanctos apostolos tinham feito
veiro foram mais curiosos de conhecer os abraçar na Phrigia e na Psidia, alli se ra­
anjos e de distinguil-os pelas suas fuucções, dicara tanto que o concilio de Laudicéa,
e pelos seus nomes, c pouco a p o u co \ie- havido no anno de 357 ou 367, prohibiu
ram render-lhes algum cu lto .3 expressamente dirigirorações aos anjos, e
0 espirito humauo gosta de augmentar ainda hoje. accrescenta Theodorclo, allise
as prerogativas do objecto do seu culto, encontram oratoriosdedicadosa S.Miguel;
d’engrandecer c nobilitar tudo o que a elle mas o concilio diz simplesmente que não
pertence; d’esta sorte os que honraram os é preciso que os christãos abandonem a
anjos reverenciaram muito a lei de Moy­ Igreja de Deus nem que d'ellasaiam, que
ses, porque Deus a déra aos homens pelo invoquem os anjos e que façam assem­
ministerio dos mesmos anjos; creram que a bléiasseparadas.4
observância d’esta lei era necessaria para anglicana (religião)— veja-sein g l e s á r e ­
a salvação; e final mente que havendo-se lig iã o T '
servido Deus do ministerio dos anjos para ànqaieos— veja-seEunomeos.
ensinar a sua vontade aos homens por este anthT^ tas^ u ANTju.A^gjAs— Philastrio.,-
ministerio, deviam também os homens fa­ falla d’ cstes'seclarios^ sem saber cm qué
zer passar as suas orações a Deus, cuja tempo appareccram: elles olJia.vam_o,tra­
magestade era invisível c inacccssivel aos balho como um crime e passavamlTvidáa
mortaes. Ultimamente julgaram elles que dormir.
\ão podíamos ter mediadores mais pode- A^TpqPOMORPHITAS.OU.ANTROPfJIANOS’—
Criam quc Ticiis tinha um cõrpó dé figura
1 Ep. Paul. ad coloss., c. 2, v. 18. hjjjnaua, fundãíuíò-sé e*ní uina passagem'do
2 Exod., c. 3, v. 4 et 5. Josué, c. o, v. Genesis, aonde Deus diz: «Façamos o ho­
Ko. Genes., c. 18, v. 2. mem á nossa imagem» e n’outras da Escri-
3 Acham-se em Philon alguns discursos ptura, que attribuem a Deus braços, per­
sobre a natureza dos anjos, sobre os seus nas, e t c .5
officios, e sobre a distinccão dos bons e dos Houve d’estes hereges no quarto século
maus. Joseph, e depois a elle Prophirio, di­ e no principio do decimo (931).
ze m que os essenos na sua profissão se obri­ Este século ignorante e grosseiro só pro­
gam a conservar religiosamente os livros duzia erros d’esta especie; queriam imagi­
da sua seita, que era verosimil fossem os nar tudo, e tudo se lhes representava de­
livros sagrados, e os nomes dos anjos, o que baixo de fôrmas corporeas; os anjos con-
fa z conjecturar que elles lhes rendiam al­ cebiam-nos como homens com azas, vesti­
gum culto. O author do livro da pregação dos de branco, taes como se viam pintados
de S. Pedro, livro antiquissimo, citado por nas paredes das igrejas, e até entenderam
$. Clemente Alexandrino, diz que os judeus que no céo se passava tudo, com pouca dif-
davam um culto religioso aos anjos e ar- ferença, como na terra: muitos criam que
chanjos, e até aos mezes e á lua. Celso os S. Miguel celebrava a missa na presença
accusa d'adorarem não sómente os anjos,
m as também o céo. Mr. Gaulmin nas notas 1 Thcodoret. Theophilact. Gi'ot. Menoch.
sobre a historia de Moysés, (c. 4, p. 301) S. Christ. Hom. 7, ad Col. 2. Stockman Le-
c ita um livro composto pelo rabino, Abra- xicon.
hão Salomão, em que ha uma oração diri­ 2 Epiph. Hcer. 60.
gid a ao archanjo S. Miguel. Veja-se Calmet, 3 Aug.Hcer. c. 39.
comm ent su r S. Paul, Ep. au x Col. c. 2, v. 4 Calmet, loc. cit.
18, e a sua Dissert. su r les bons e mauvais 5 Nicephor. I. 11, c. 1 4 ,1 .13, c. 10. Ittig.
anjes. de Hcer. pag. 190.
ANT 201
<Ic Deus todas as segundas feiras, c por d’eslcs, chamado Paulino; mas enganou-se,
esta razào, n’este dia, mais que em qual­ o partido de Melecio lhe foi constante, c o
quer outro, se frequentavam os seus tem­ scisma permaneceu: os bispos do Oriente"s.
plos. 1 seguiram a Melecio, os do Occidente a Pau- 7
ANTIDIÇp.\tVRIANITAS OU ANTIMARIANOS— lino.
sâo os que negaram a virgindade da mãe Uma apparcncia de differença, cm ponto
de Jesus Christo, pretendendo que cila tivera de doutrina, manteve esta divisão: os mcle-
muitos filhos de S. José, porque no Evan­ cianos c os bispos orientaes sustentavam
gelho se diz que Jesus Christo tinha irmãos. que se devia dizer.-Que havia em Deus tres
Veja-se Helvidio. 2 hypostases, entendendo pela palavra hypos-,
aiíxüxqmianqs, isto é, inimigos da lei— lasc a pessoa.
Veja-se Agricolct, que foi o autbor da seita. '■'Paulino e os occidentaes temendo que o l
ANTiocuiA—O scisma d’esta cidade per­ termo hypostase se tomasse por natureza, i
maneceu. $ ^ ;;p o s; eis-aqui a sua origem: como succedcra em outro tempo, não q u e-;
tendo os arianos expulsado d’Antiochia a riam consentir que se dissesse que em Deus \
Eustathio, pozeram cm seu logar Eudoxio, havia tres hypostases, c sómente reconhc- \
-ariano zeloso; e muitos dos catholicos se ciam uma. Bem que não fosse esta mais que '
conservaram adherentes a Eustathio. Morto uma disputa de palavras, e que no fundo
este, e transferido Eudoxio a Constantino- conviessem na mesma doutrina, todavia el-
pla, houve grandes contendas c facções pa­ les falia vam c se persuadiam pensar dilTe-
ra prover a igreja d’Antiochia, esforçando- rentemente. 1 O scisma principiou a dissi­
se cada partido cm que a eleição rccahisse par-se pela convenção que Melecio e Pauli­
em algum de seus apaniguados; e depois no fizeram entre si, de que governariam si­
de grandes debates, se uniram todos os vo­ multaneamente a igreja ^Antiochia, e que
tos em favor de Melecio, que foi unanime­ morto um d’elles, não se ordenaria outro
mente escolhido. em seu logar, ficando bispo unicamente o
Melecio condcmnou nos seus sermões os que sobrevivesse: porém depois que morreu
sentimentos dos arianos, c foi desterrado. Melecio, os bispos do Oriente não attenden­
Os arianos elegeram em seu logar Eusoio, do a esta convenção, elegeram um, chama­
Í acerrimo fautor do arianismo: os catholicos do Flaviano; Paulino, pela sua parte, no-
que seguiram as partes de Melecio, se sc- meoiuTorclenou por seu successor a Evagro.
araram e fizeram á parte as suas assem- No concilio do Capua se commetteu irThèõ-
leias. 3 philo e aos bispos do Egypto a decisão d’cs-
Viu-se pois a Antiochia dividida em tres ta disputa; mas Flaviano os refutou, e de­
bandos: o dos catholicos adherentes a Eus­ pois da morte d’este, impediu Theophilo,
tathio, os quaes não quizeram communiear com os créditos que gosava para com o im­
nem com os arianos, nem com os catholicos perador, que se nomeasse outro bispo em
que seguiram a Melecio, porque o olhavam seu logar. Flaviancr ficou pois separado da
! como eleito pela facção dos arianos; o dos communhão dos bispos do Oriente, e só se
! catholicos que seguiam a Melecio, e o dos reuniu com ellcs em 393.
■arianos. Estes tres partidos encheram a ci- ANTiT.yÇTiUQí?—Hercgcs que professavam
| dade de divisões c desordens. Elevado que pordevér praçticar..tudo.o.qwejKftjH^Lbi-
l foi Juliano ao imperio, chamou todos os bis- do pela E^çcuiüira.
I pos desterrados; então Melecio, Luifer Ca- ”"Nò sentir d’estes hereges havia um ente
laritano, e Eusebio Vercellense partiram da bom, por essencia, que creára o mundo,
Thebaida para se restituirem ás suas igre­ aonde tudo era bom, c no qual as creatu­
jas. Eusebio foi a Alexandria, aonde con- ras innocentes e felizes tinham amado a
regou um concilio. Porém Luifer cm vez Deus. Estes homens, levados da necessida­
e ir também, partiu para Antiochia para de, ou attrahidos do prazer aos bens que
alli restabelecer a paz entre os eustalhianos derramara sobre a terra o author da natu­
e nxçlecianos. Como elle achasáê*õTêusta- reza, gosavam dos mesmos com reconheci­
thianos mais pertinazes contra a união, per­ mento, e sem remorsos; eram ditosos, e a
suadido de que os melccianos, que se mos­ paz reinava no meio d1ellcs. Uma das crea­
travam mais anciosos da paz, se uniriam turas que o ente benefico produzira, era
aos custathianos, instituiu bispo um chefe maligna; para cila a felicidade dos homens
tornava-se um espectáculo de mortificação,
1 Hist. Litteraire de France. t. 5. pag. 10. e ella emprehendeu perturbal-a; meditou
2 Epiph. Hcer. 78. sobre ò homem, e descobria que para o tor-
3 Philostrog. 1.6, c. 5. Sulpitius Severus
J.IO . T h e o d .l.iíe U . 1 Basil. Epist. 149, aliás 272.
202 ANT
nar infeliz bastava somente introduzir no ca, simples e indivisível substancia: p or­
mundo algumas idéias novas. Estabeleceu tanto sentiram que o Pae, o Filho c o E sp i­
pois nos espíritos a ideia do mal, q u eéd es- rito Sancto eram tres substancias distinctas-
honesta; prohibiu certas cousas como des- Sabei lio, Praxoas, Serveto c Socino tiv o ra n i
lioneslas, c ordenou outras como honestas; que nao permittindo a razão c a rev ela çã o
ao que a natureza inspirava ligou uma ideia suppòrcm-sc muitas substancias divinas
. de pejo, e os prohibiu debaixo de grandes nem unir em uma só substancia sim plesl
penas; e por estas leis, a urgência de satis­ tres pessoas essencialmento distinctas era
fazer a um a necessidade, que na instituição forçoso que o Pae, o Filho e o E sp irito S a n -
do author da natureza era uma origem*do clo não fossem pessoas, mas nomes differen­
prazeres, veio a tornar-se uma origem de tes dados ã substancia divina, segundo o s
males: a ideia do crime andava sempre an­ clfeitos que cila produzia?
nexa á ideia do bem, os remorsos se segui­ ■r Ha logo duas sortes de anlitrinilarios: o s
ram ao prazer, e o homem se via humi­ tritheistas, que suppoem que as tres pessoas
lhado logo que rcílectia na felicidade que sé? divinas são tres substancias, e os unitários
procurara. que suppoem que as tres pessoas não sã o
Collocado o homem entre as propensões- mais que tres denominações dadas á mesma
que recebe da natureza, c a lei que as con­ substancia.
demna, murmurou contra o seu Creador: Refutamos o trilheismo no artigo do a b ­
enchcu-sc o mundo de desordens e de infe­ bade Joaquim, e contra Clark e W isthon
lizes, que luctavam continuamente contra a mostramos que o Filho e o Espirito Sancto
natureza, ou que se atormentavam para il- são duas pessoas divinas, consubstanciaes
ludir a lei, ou para concilial-a com as suas ao Pae. Vejam-sé os artigos Ario, Macedo­
paixões. nio.
ir*-" Eis-aqui, segundo os antitacticos, a ori- Demais contra Sabellio e Praxeas se aeba
V gem do mal e a causa da infelicidade dos provado que o Pae, o Filho e o Espirito San­
'hom ens. Elles consideravam dever praclicar cto são tres pessoas e não tres nomes dados
quanto a lei prohibe, crendo que por este a uma só substancia. Portanto havemos es­
meio se resliluiam ao estado da innocencia tabelecido o Mysterio da Trindade contra
de que o homem só fòra tirado pelo author os tritheistas que admiltem tres pessoas di- f
da lei; destruir o imperio que elle usurpara vinas, mas fazem d’ellas tres substancias; }
sobro os homens, c vingar-se d'elle. e contra os unitários que não concedem
Os- antitacticos eram um ramo de cairçi- mais que uma substancia divina, mas que ;
tas; appareceram nos lins do segundo sécu­ olham as tres pessoas como tres nomes d if-'
lo, pelos annos de ICO. ferentes dados a esta substancia, para dis- )
Eram homens voluptuosos c superficiaes, tinguirem as suas correlações com os ho­
Vede o artigo Cainilas. 1 mens.
e o nome que em ge­ Os tritheistas e hnitarios, entre si tão op-
ral se d a aos que ii(
negam o mysterio da Trin­ postos áccrca d’cstc dogma, se fundam com-
dade. tudo sobre os mesmos princípios: tem elles
A revelação nos ensina que ha tres pes l.° que é impossível que tres pessoas exis­
soas divinas:, o Pae, o Filho e o Espirito tam num am osm asubstancia, simples,úni­
Sancto, as quaes existem na substancia .di­ ca, e indivisível; 2.° que sendo impossível,
vina: eis-aqui o mysterio da Trindade. A haver tres pessoas em uma só substancia, {
união das tres Pessoas em uma só e unica não poderia fazer-se d’isto um objecto ua
substancia simples e indivisível, faz toda a nossa crença, porque não poderiamos for-
difliculdade d’este mysterio. Póde pois negar­ mar uma ideia d’este mysterio, nem por con- j •
-se; o Cl suppondo què o Pae, o Filho c o Es- sequencia crêl-o.
l pirito Sancto não são tres pessoas, mas tres Ao artigo dos antitrinitarios pertence pro- p
^nomes differentes dados á mesma cousa, ou priamenle o exame d’estas duas difliciuda-
£que estas tres pessoas são tres substancias des, de que os seus erros são meras conse­
M v ersa s. O abbade Joaquim, alguns minis­ quências.
t r o s socinianos, Sherlok, Wisthon e Clark,
|créram que pela Escriptura não podia dei- I
jxar de reconhecer-se haver tres pessoas di­
vinas, nem tambem unil-as em um a só, uni- Será possível que Ires pessoas existam
em w na\só substancia?
1 Theodorct. Hoeret. Sab. 1 .1, c. 16. A tti­
gitis, de Hcer. sect. 2, c. 16. Bibl. Aut. Eccles. Suppõe-se. impossível uma cousa quando
scec. 2, a rt. 6. se une o sim e o não, isto é, sempre que.s*;
ANT 203

affirma que uma é e não é no mesmo tem­ 2. ° Deus é um ente simples.


po. Assim é impossível que Ires substancias 3. " Deus é isempto de toda a composição.
não façam mais que uma substancia; por­ 4. ° Deus é indivisível.
que então esta substancia seria unica c não 5. ° Deus não póde ser gerado.
o seria. G.° Deus não tem origem, e de ninguem
Porém não é assim quando se suppue que procede.
Ires pessoas existem n’uma substancia, por­
que sendo diíTereiílcs a pessoa e a substan­ ])o(jmas da Trindade
cia, a multiplicidade das pessoas não leva
comsigo a multiplicidade das substancias, 1. ° Ha uma Trindade ern Deus.
' nem a uuidade das substancias a unidade 2. ° Ha cm Deus tres pessoas realmcntc
das pessoas. A unidade da substancia não distinctas.
cxcluc pois a multiplicidade das pessoas, e 3. ° Em Deus sc conta o Padre, o Filho c
não se unem o sim c o m o quando se diz o Espirito Sancto.
que tres pessoas existem n’uma substancia. 4. ° O Padre não é o Filho, o Filho não ó
Para se julgar que duas cousas são in­ o Espirito Sancto, e o Espirito Sancto não
compatíveis, é preciso conlicccl-as, e conhe- é nem o Padre nem o Filho.
ccl-as claramente, porque o juizo que se 5. ° O Filho não é menos Deus Supremo
fôrma sobre a incompatibilidade de duas que o Padre,, porque d'outra sorte haveria
cousas, é o resultado da comparação que se dous; um Supremo e outro Subalterno; o
faz d’cstas duas cousas: não.se podem com­ Filho é gerado.
parar sem que se conheçam, nem fazer uma 6. ° O Espirito Sancto, Deus Supremo e
comparação sufficiente* para julgal-as in­ Omnipotente como o Padre e o Filho, pro­
compatíveis, sc uma c outra não se conhe­ cede do Padre c do Filho.
cem claramcntedebaixodaqucllas rclaçòes
cm que são comparáveis; não basta conhe­ 1. ° Quando o aulhor que acabamos de ci­
cer uma só. tar diz que é uma primeira verdade da ra­
Assim tenho eu fundamento para asseve­ zão que Deus é um, quer dizer, como todos
rar que o redondo e o quadrado são incom­ dizem, que não ha mais que uma substan­
patíveis, quando fórmo uma ideia clara da cia divina; quando os orthodoxos aííirmam
redondeza c da quadratura; mas é evidente que ha. uma Trindade cm Deus, não dizem
que faria um juizo não só temerario, mas que ha tres substancias divinas; portanto
| até insensato, se conhecendo o circulo,c sem ellcs não contradizem esta primeira ver­
| ter alguma ideia do vermelho, eu julgasse dade.
que o circulo era incompatível com o ver­ 2. ° Quando se diz que Deus é um ente
melho. simplicissimo, se entende que Deus não é
Não é menos vicioso o discurso dos anti- formado pela união de muitas partes; c quan­
Jlrinitarios: ellcs conhecem clara c incontes- do sc diz que cm Deus ha tres pessoas dis­
/ tavclmcnte que ha um ente necessário, so­ tinctas, não se diz que estas pessoas eom-
beranamente perfeito; mas não conhecem poem a substancia divina, mas diz-se que
nem a inunensidade de suas perfeiçòcs, nem n’esta substancia simples existem tres cou­
a infinidade dos seus attributos, nem teui sas que são analogas ao que nós chamamos
um a ideia clara do que é a pessoa cm Deus; pessoas: o dogma da Trindade não contra­
e comtudo julgam que as ires pessoas c a diz pois a simplicidade de Deus.
substancia divina são incompatíveis. 3. ° Demonstra a razão ser Deus isempto
Este vicio reina cm todos os discursos de composição, isto é, que a substancia di­
dos antitrinitarios, mas é mais notável no vina, ou ente necessário, não é formado
autlior das cartas sobre a religião essencial; pela união de differentes partes; mas o Pa­
e como cilas andam pelas mãos de todos, dre, o Filho, c o Espirito Sancto não são
m c persuadi não seria inútil fazer algumas partes, que componham a substancia do en­
reflexões sobre as.objccçòes, pelas quaes te necessário: estas tres pessoas existem na
clle combate o dogma da Trindade. O men­ substancia divina.
cionado aulhor faz o seguinte parallelo en­ 4. ° A razão nos ensina que Deus é iudi-
tre os princípios que a razão admitte como visivel, porque a substancia não é composta
evidentes sobre a natureza de Deus, c os de partes; ora o Padre, o Filho, e o Espi­
dogmas encerrados no mystorio. rito Sancto não são partes da substancia di­
vina.
Verdades immutavcis 5. ° A mesma razão nos dieta que Deus
não póde ser gerado, isto é, que existindo
l.° Deus é um. a substancia divina per si mesma, não se
204 ÀNT
pódc suppor, sem absurdo, que seja gerada primir a palavra, c ha muitas c indispensá­
ou produzida: mas quando se diz que em veis para conscrval-a, ou alguma outra q u e
Deus ha um Filho, que é gerado pelo Pac, exprima o mesmo que ella exprime.
nào se diz nem que a substancia divina seja Não passarei mais avante na impugna­
produzida, nem que haja n’ella cousa al- ção d’csto author, que, para provar qiu» a s
uma que seja tirada do nada, pois que se pessoas divinas não são mais que attribu­
iz que o Filho é coctcrno ao Padre, e ge­ tos, se estriba sobre as definições que d’e l -
rado, como se explicam os theologos, por las fazem alguns theologos. Á essência d a
uma operação necessaria, e emanente do questão não é saber como os theologos d e ­
Padre. finiram cada uma das divinas pessoas, m a s
6.° O mesmo se ha de dizer do Espirito se a Escriptura nos ensina que ha um P a e ,
Sancto. D’esla sorte o dogma da Trindade um Filho, e um Espirito Saneio, que são c o n -
não combate algum dos princípios da razão substanciaes, e que nem são attributos n e m
acerca da natureza, e dos attributos de.Dcus. relações da divindade com as creaturas, m a s
Porém, replica o mesmo author, não são tres cousas distinctas, c que tem os attribu­
as tres pessoas tres entes c tres entes di­ tos c propriedades que nós conhecemos d e ­
vinos? Se isto assim é. aqui temos tres Deu­ baixo da ideia da pessoa; cis-aqui a q u e s ­
ses bem distinctos. Respondo que estas tres tão de que sempre se desvia este author e
pessoas são tres cousas que existem na sub­ todos os mais antitrinitarios.
stancia divina, c por consequência não são
tres Divindades distinctas. Mas, prosegue
este author, que diíTerenea ha entre ente e UI
pessoa, porque sem isto iiada significa?
Respondo que esta palavra ente, na sua
generalidade, significa tudo o que se oppõe Sc o mysterio da Trindade pôde set' objecto
ao nada, e que debaixo d’esta generalidade da nossa crença ou da nossa fé
abraça as substancias e as aíTeições das
mesmas substancias; que a pessoa divina
não é uma sübslapcia, mas, se assim posso Para tornar-se possível a crença d um a
fallar, uma afloição da substancia divina cousa, é necessario que entendamos o s e n ­
que existe iPeslã* substancia, e que nem é tido dos lermos com que ella se explica, e
um attributo, nem uma simples relação da que essa cousa não esteja em contradicçào
substancia divina com as creaturas, mas al­ com os conhecimentos que adquirimos a n ­
guma cousa analoga ao que nós chamamos tes, e que temos por certos e evidentes.
uma pessoa, porque a revelação nol-o faz l.° E’ impossível que uma cousa se creia
conhecer debaixo d’estas feições, c com pro­ senão quando entendemos os termos em que
priedades que eu vejo nos entes a que cha­ ella nos é proposta, porque a fé olha s ó ­
mo pessoas. mente a verdade ou a falsidade das propo­
Nao devemos pois supprir a palavra pes­ sições, e se.hão de comprehendor os ter­
soa quando se falia da Trindade, como este mos de que é composta uma proposição, an­
author está persuadido; se clle fosse menos tes que possamos pronunciar sobre a ver­
superficial teria visto claramcnle que a sup- dade ou falsidade da mesma proposição, que
pressào d’estc nome não aplanava as difil- nada mais é que a convcnienoia ou descon-
ouldades, e que as divinas pessoas são re­ veniencia d’estes termos, ou das idéias que
presentadas na Escriptura debaixo de ras­ clles exprimem.
gos que não podem designar attributos da Quando não tenho conhecimento algum
divindade. As provas d’isto se acham nos do que representam as phrases que se em ­
aitigos Sabellio e Praxeas. O mesmo Clerc pregam em uma proposição, não posso fa­
reconhece que na Escriptura se encontram zer acto algum de raciocínio a esto respei-,
passagens difficilimas de explicar nahypo; to; não posso dizer: «creio ou não creio uma f
these dos socinianos. 1 tal cousa.» A minha intelligcncia está per- j
Portanto a suppressão da palavra pessoa feitamente no mesmo estado em que antes j
quando se falia do Padre, do Filho, c do Es­ estava, sem receber alguma nova determi-i
pirito Sancto, nada remedeia; quando d o u ­ nação; e se eu tiver sómente uma noção.ge^;
tra sorte havemos feito vér que o dogma ral e confusa dos termos, não poderei dar â;
da Trindade não é contrario a alguma ma­ proposição mais que um consentimento g e ­
xima da razão, nenhuma ha logo para sup- ral c confuso, de sorte que a evidencia da.
minha crença é sempre proporcionada aoí
i Bibl. Univers. t. 10, pag. 29. Vejam-seconhecimento que tenho da materia que
os art. Arianos e Macedonios. hei de crér.
ANT 205

Se sc pedir dc mim, por exemplo, que demos conceber da divindade, deve fundar-
creia que a é igual a ü, e eu nào souber se sobre algumas ideias accessorias á natu­
que cousa é a nem que cousa é b, e cm que reza divina, e a combinação das mesmas
consiste a igualdade, nada mais creio do ideias fôrma esta segunda noção, que expri­
que cria antes dc me ser feita esta propo­ mimos pela palavra pessoa: quando, por
sição, nem serei capaz d’algum acto dc fé exemplo, nomeamos a Deus Padre, forma­
determinado; o mais que poderei crer n’esta mos quanto o permitte a nossa intclligcn-
occàsiâo sc reduz a isto: que uma certa cia, a ideia de Deus como obrando dum
cousa tem relação a outra, c que aquillo tal modo a todos os respeitos, e com taes
que se pretende que eu creia, é affirmado relações: c quando nomeamos Deus Filho,
por pessoa de grandes conhecimentos, e que concebemos a mesma ideia de Deus obran­
merece ser acreditada, e que por conse­ do d’outra maneira a todos os respeitos, e
quência é verdadeira a proposição no sen­ com taes relações; o o mesmo acerca do Es­
tido que a tal pessoa a entende, mas nada pirito Sancto.*
mais sei do que d’antes sabia, e a minha A diíTerença que se acha entre o Padre,
fé, por esta proposição, não- adquiriu grau o Filho, c o Espirito Sancto, vem pois do seu
algum de conhecimento. diverso modo cTobrar; ao Padre pertence a
Quando eu saiba que a e b são duas li­ acção que caractcrisa o Padre, como a que
nhas, e que por estas duas linhas iguaes se caíacterisa o Filho pertence ao Filho; são
entendem duas linhas da mesma longitude, logo o Padre, o Filho, e o Espirito Sancto
este conhecimento não póde produzir mais tres princípios que tem cada um sua acção
que uma fé geral c confusa, isto é, que ha propria; podemos conseguintemente conce­
uma certa linha que tem o mesmo compri­ ber estes tres entes como tres pessoas, por­
mento que outra: mas sc por a e b se en­ que a palavra pessoa não significa mais que
tendem duas linhas rectas, qhc são os lados um certo ente intelligente que obra d’um
d’um triangulo concedido, c que eu creio certo modo, que existe em si, e que é in-
sob a palavra d’um mathematico, sem de­ communicavel. 1 Temos logo ideia dos ter­
monstração, que estas duas linhas são iguaes, mos que compocm esta proposição Deus <
é um acto de fé distincto c particular, pelo um em tres pessoas, ha um só Deus, trei
qual estou convencido da verdade d uma pessoas, Padre, Filho, c Espirito Sancto.
cousa que eu não cria, ou que antes igno­ Além d’isto não vèmos que seja contra­
rava. rio a alguma das verdades que conhece­
2.° Supponhamos agora que estou obri­ mos, que haja em Deus tres pessoas como
gado a crér que um só c o mesmo Deus é o fizemos vér no paragrapho precedente:
tres pessoas distinctas: eu não posso crér podemos logo crér o mysterio da Trindade,
senão quanto entendo dos termos d’esta pro­ ou formar sobre clle um acto de fé distin­
posição, e emquanto as idéias que elles ex­ cto c determinado.
primem não encerram contradicção c im­ Mas poderão dizer-nos: concebemos nós
plicância: para fazer pois um acto dc fé. so­ como estas tres pessoas podem existir cm
bre esta materia, devo examinar as ideias uma só, e a mesma substancia simples e
que tenho de Deus, da unidade, da identi­ indivisível; c se não concebemos como es­
dade, da distincrão, do numero, c da pessoa. tas tres pessoas existem cm uma mesma
Os nomes de Padre, Filho, e Espirito San­ substancia, como poderemos crér que com
cto não são como os nomes que exprimem effeito ellas alli-existam?
os attributos de Deus; estes exprimem tão Respondo que não tenho um conheci-
somente uma ideia incompleta da divinda­ ineuto tão claro da pessoa divina, nem uma
de; cada um d’aquelles porém significa um ideia tão aperfeiçoada, tão completa da sub­
ente que tem todos os attributos da divin­ stancia divina, que veja como as pessoas
dade. existem nesta substancia; mas para vér
Temos logo uma ideia completa de Deus, que com effeito ellas alli existem, basta que
antes de lhe darmos os nomes de Padre, de não encontre repugnância entre a ideia da
Filho, e dc Espirito Sancto, e cada um d a s­ substancia do ente necessario, e a ideia das
tes nomes encerra a ideia total da divinda­ tres pessoas divinas. Nào crémos nós que
de, e do mais alguma cousa que a nossa pensamos? E por ventura sabemos como
razão nào alcança, o que faz toda a distinc- pensamos? Pomos nós em dúvida a exis­
ç ã o q u e ha entre estas pessoas. tência da materia, bem que ignoremos a
Nós não podemos conceber nem crér tres sua natureza? Por ventura negamos os ef-
entes infinitos entro si, realmente distinctos,
e que tenham as mesmas perfeiçòes infini­ 1 Veja-se Vossio, JEtimolog. á palavra
tas: portanto a distineção pessoal que po­ pessoa. íla rtin ii Lexic., na mesma palavra.
206 ANT
feitos da electricidade, os dos trovões, os como a natureza d’csta obra nào permitte
phenomenos do iman, e o movimento? E que entremos na individuação de taes ar­
quem póde lisongear-se de conhecer como gumentos, nos limitaremos somente a lem­
se obram todas estas cóusas? brar o que diz mr. Bossuet sobre este as­
Examinamos nos artigos Sabellio, Pra- sumpto:
xeas, Arianos e Macedonio, outras objecções «A linguagem humana principia pelos
que podem pôr-sc ao mysterio da Trinda­ sentidos: tanto que o homem se eleva ao
de; mas nào fallarcmos do que mr. Bayle espirito como a segunda região, a cila
)õc no artigo Pirron, como uma prova transporta parte da sua linguagem primei­
H lonstrativa de que os mysterios são con­ ra; c assim tiramos a ideia da attenção ou.
trários ás verdades da-razão; é um sophis­ dá applicação do espirito d’um arco" apon­
ma que póde resolver o logico mais fraco, tado, c a dá comprchcnsão dTima mão que
c que os theologos tractam muito seria­ vai apanhando c prendendo aquillo cm que
mente, como o fez mr. La Placette.1 pega.
«Quando passamos d’csta segunda região
á suprema, que é a das cousas divinas,
§ III tanto cila é mais pura, quanto mais cus­
toso é ao nosso entendimento achar alli fir­
meza, quanto mais este é coagido a servir-
Sempre se creu dislinctamente na igreja sc nas cousas divinas da fraca linguagem
o dogma da Trindade dos sentidos, para suslcntar-sc com segu­
rança. Esta é a razão porque alli são tão
usuaes as expressões tiradas das cousas
Asseveraram os socinianos que o dogma sensíveis.
da Trindade fôra desconhecido nos primei­ «Todas as comparações exlrahidas das
ras séculos da Igreja; refutamos as suas cousas humanas, são como elfeitos neccs-
rozõcs quando falíamos da consubstancia- rios da força que faz o nosso entendimento
lidadc do Verbo c do Espirito Sancto nos quando arrebatado ao-céo, e rccahido pelo
artigos Arianos, Modernos, c Macedonios. seu proprio péso na materia de que se que­
0 ministro Jurieu renovou este erro para ria desviar, se segura como aos ramos
desembaraçar as igrejas protestantes das dTima arvore, no que a mesma matéria
consequências que nasciam d,as variações tem de mais elevado e menos impuro, a fim
de que mr. Bossuet as accusa va na "sua de não se deixar recahir c abysmar n’ella
pistoria das mesmas variações. Este mi- inteiramente.
íistro pretendeu que a Igreja variara acer­ «Se arrebatados pela fé ousamos elevar
ca dos mysterios, e que até o concilio de nossos voos ao nascimento do Verbo Eter­
Nicca não tivera senão uma fé informe no, com receio de que allucinados pelas
sobre a Trindade.2 imagens dos sentidos que nos cercam, e por
No artigo Ario provamos que a divinda­ assim dizer nos bloqueiam, vamos cahir
de e consubslancialidadc do Verbo foram cm representar nas divinas pessoas as.dif-
sempre cridas, o para maior individuação ferenças d’idades, as imperfeições d’um me­
remettemos os leitores ao sabio Bullo", a nino recem-nascido, c todas as baixezas das
nu*, de Meaux, etc. N’este Iogar observare­ gerações vulgares; o Espirito Sancto no li­
mos sómente que a Igreja condcnmou em vro da Sabedoria nos oíTerecc o que ha
todo o tempo assim os que criam que o Pa­ mais bello o mais puro em toda a nature­
dre, o Filho, c o Espirito Sancto eram tres za, isto é, a luz no sol como na sua mãe, e
simples denominações da substancia divi­ a mesma luz no raio como no* seu frueto:
na, como os que as olhavam como tres sub­ alli se figura de repente um nascimento
stancias distinctas; d’onde evidentemente sem imperfeição, c o sol fecundo, logo que
se segue que a Igreja creu sempre o do­ principia a existir como a imagem mais
gma da Trindade como hoje se cré. perfeita d’aquellc que existindo sempre, 6
As objecções que poem os antitrinitarios sempre fecundo.
e socinianos a este respeito, nascem das Demorados na nossa queda sobre esto
comparações que se lêem nos sanctos pa­ bello objecto, d’alli tornamos a formar um
dres sobre o mysterio da. Trindade; mas voo mais feliz, dizendo a nós mesmos que
se nos corpos, se na mesma materia se en­
1 Réponse à deux objections sur Vori­ contra um nascimento tão formoso, com
gine du m al et s u r le Mystère de la Trini- muita mais razão devemos crér que o Fi­
té; un volume in-12, àssez rare. lho e Deus sahc de seu Pae como o res-
2 Tableau du Socianisme, Jettre 6. plendor que reflectiu da sua eterna luz, co-
ANT 207

mo uma doce cxhalação da sua infinita cla­ á união inseparável do Padre c do Filho,
ridadecom o o espelho sem mancha da sua do que é ou parece ser á sua igualdade o
magestade, c a imagem da sua bondade per­ raio de Tertulliano, porque separadas as
feita. É o que nos diz o livro da Sabedo­ duas tochas, se verá arder uma quando a
ria .1 outra estiver apagada, e ficamos muito lon­
■Mas se os nossos presumidos reforma­ ge da comparação do raio que existe sem­
dos não querem receber d’elle estas bellas pre adherente ão corpo do sol.
expressões, S. Paulo l!t’as ajunta n’uma só «Deve pois dizer-se n’uma palavra que
palavra, quando chama ao Filho de Deus de cada uma das comparações só se ha de
o r esplendor da gloria, e a estampa da sub­ tomar o que ha de bello c perfeito, e assim
stancia de seu Pae. 2 se acharia o Filho de Deus mais insepara-
f «Não ha cousa que mostre melhor no vclmentc unido ao seu Pae, do que o sào
Padre c no Filho a mesma natureza, a mes­ ao sol os seus proprios raios, e mais igual
ma eternidade, o mesmo poder, do que esta a elle do que o são todas as tochas áquella
bella comparação do sol e dos seus raios, em que se accenderam, porque elle não é
que, levados â espaços immensos, fazem sómente um Deus sahido d’um Deus, mas
sempre um mesmo corpo com o sol, e con­ um Deus só com aquclle do qual sahiu; o
tém toda a sua virtude. Mas quem não sen­ que não tem entre si as creaturas com que
tirá todavia que esta comparação, posto possa comparar-se.
que a mais bclla de todas, degenera neces­ E o que aplana esta doutrina, ó que to­
sariamente como as outras; se se quizer dos os sanctos padres fazem a Deus immuta-
altercar nào poderá dizer-se que o raio vcl, c não menos o fazem espiritual c indi­
sem se* desapegar do corpo do sol, soíTre visível no seu sér, sem grandeza, sem di­
diversas diminuições, ou, como dizem os visão, sem côr, sem tudo o que fere os sen-x
pintores, que as tintas da luz nào sào igual­tidos, c incomprehcnsivel a tudo o que não
mente vivas é espirito...
Para não deixar conceber aos homens «Logo quem é Dcus,é Deus todo inteiro,
uma similhante ideia do Filho de Deus, e não degenera de Deus por alguma parte.
S.-Justino, o primeiro de todos, apresenta Todos os sanctos padres convém uniforme­
> ao espirito outro exemplo que tira da na­ mente sobre a perfeita simplicidade do en­
tureza do fogo tão vivo c tão activo no te divino; e o mesmo Tertulliano, que a fal­
prompto nascimento da chamma d’uma to­ lar sem rebuço, corporalisa todas as cousas
cha, que repentinamente se accende por divinas, porque tainbem a sua linguagem
outra: alli se repara de todo a desigualda­ inculcando a palavra corpo, póde ter signi­
de que a razão parecia deixar entre o Pa­ ficado substancia, não deixa de convir es­
dre e o Filho; porque nas duas tochas se crevendo contra Hermogenes, primeira­
vê uma chamma igual, c accésa uma sem mente com elle, como d’um principio com­
diminuição da outra. As divisões e porções muni, que Deus nào tem partes, e que é
que nos offendiam na comparação do raio, indivisível, de sorte que elevando as suas

O.S.Ü.
desapparccem. S. Justino expressamente ob­ idéias pelos princípios que clles mesmos
serva que aqui não ha nem degradarão, nos deram, não nos restará mais n’aquel-
nem diminuição, nem partilha. 3 les raios, n’aquellas extensões, n’aquellas
«Até rar. Jurieu pondera que este mar­ porções de luz e da substancia, que a ori­
tyr satisfaz plonamente ao que a igualdade gem commum do Filho c do Espirito San­
requeria. Ellc pois se dá por contente com cto, d’um principio infinitamente commu­
o mesmo sancto a este respeito, e se dá por nicativo; c a dizer a verdade, aquillo mes­
pouco satisfeito com Tertulliano a respeito mo que disse o Filho de Deus, fallando do
das suas proporções e partes.4 Espirito Sancto: Elle toma do meu, ou do
«Porém se não estivesse preoccupado dos que eu tenho de meu, como eu tomo de meu
erros que busca nos sanctos padres, basta­ Pae, com o qual tudo me é commum.
ria só dizer-lhe que tudo tende ao mesmo «Não'sc devia pois imaginar na doutrina
fim; que das comparações se deve tomar dos sanctos padres aquclla monstruosa des­
sómente não o grosseiro e o baixo como igualdade, debaixo do pretexto d’estas ex­
elle faz, porquê d’outra sorte essa tocha pressões, que ellcs muito bem souberam
.accésa de S. Justino não seria menos fatal apurar, dizendo com tudo isso que o Filho
de Deus sahira Perfeito do Perfeito, Eterno
1 Sapient. 7, v. 2o e 26. do Eterno, Deus de Deus. E o que dizia S:
2 Hcebr. 1, 3. Gregorio, appelüdado por cxcellencia tliau-
3 Lib. adversus Thryph. maturgo, ou o milagroso; e S. Clemente
4 Tableau dü Socidnisme, let. 6, pag. 229. Alexandrino .dizia também que elle era o
208 APE
Vei bo nascido Perfeito do Pac Perfeito. Elie a Trindade; e d'alli tiramos tres consequên­
não lho fez depender a sua perfeição d’um cias.
grande nascimento, e seu Pae o produz A primeira, que o dogma da Trindade
perfeito como clle mesmo; por esta razão não e uma crença introduzida pelos platô­
não somente o Padre, mas também em par­ nicos, como pretende o author do platonis-
ticular o Filho é todo bom, todo formoso, e mo descoberto, e mr. Lc Clere na sua Bi­
por consequência todo Perfeito. 1 bliotheca escolhida, e na sua Bibliotheca
É logo mais claro que a luz do dia, que universal. 1
jamais entrou no espirito dos sanctos pa­ A segunda consequenda é que a crença
dres a ideia de desigualdade; antes pelo da Trindade não era confusa e vaga como
contrario acabamos de vér que para evi- quer mr. Lc Clcrc sempre que falia d’este
tal-a, depois de haverem nomeado, segundo mysterio.
a ordem, o Filho c o Pae com o designie de A terceira é quo o author das Cartas so­
mostrar que se o Filho é o segundo, isto bre a reliqião essencial se oppõc a toda a
não se entende na perfeição, na dignidade, antiguidade christã, quando diz que se de­
na honra. Longe de o suppõrem desigual, vem supprimir os nomes de Trindade c de
elles o faziam cm tudo e por tudo um com pessoas, e que olha este dogma como in ­
cite, da mesma sorte que o Espirito San­ útil. Sc conhecesse melhor a historia da re­
cto; c a fim de que se tomasse a unidade ligião christã, c a sua essência, não pensa­
na perfeição, como se dc\rc tomar tudo, o ria assim. Toda a economia da religião-
que deve scr attribuido a Deus, declara­ christã suppõe este mysterio, e o christão
vam que Deus era uma só e a mesma cou- não pódc conhecer o que deve a Deus, igno­
sa, perfeilamente uma, superior a tudo o rando como as tres pessoas da Trindade
que ê unido, e á unidade mesma.> 2 concorrem para a obra da sua salvarão: não
No restante da advertência, mr. Bossuet nos foi pois revelado este mysterio para
entra em algumas individuações acerca do scr o objecto das nossas especulações, mas
concilio de Nicea, dos desacertos de Jurieu, para que melhor podessemos comprehen­
que não podemos seguir, mas que ó pre­ dor o amor de Deus para coiu os homens.
ciso lé r .3 E por ventura será inútil um tal conheci­
, Não entraremos nos pormenores das diíü- mento para desempenharmos os deveres da
culdades que os socinianos tiram da Escri- religião?
ptura, nem emprchenderemos refutar as apelles—discipulo de Marcião pelos an-
falsas explicações que dão ás passagens da nos*fflf!fEo. sómente admittia um principio
mesma, em qúc. se funda o dogma da Trin­ eterno e necessário. Era esta uma opinião
dade. As interpretações socinianas se acham a que Apelles se prendeu por uma cspccie
optimamente impugnadas pelos theologos; de instincto, e da qual, dizia ellc mesmo,
mas ninguem o fez melhor que o sabio pa­ que não podia dár a prova.
dre Petau, que n’cste ponto, como em mui­ A diíüculdade de conciliar a origem do­
tos outros, vale por todos os theologos.45 mai com o principio bom e omuipolento, cu­
Os inglezes tractaram muito bem este ja existerícía ellc reconhecia, o levou a jul­
dogma,, e entre outros se podem vér os gar que este ente nenhum cuidado tinha
theologos de que falíamos nos artigos A ria­ das cousas da terra. Que elle creára anjos,,
nos modernos, e Macedonio. Sobre tudo vc- c entre outros que nomeava, o Anjo do Fo-
ja-se Isaac B arroto.h o, que creou o nosso mundo sobre o mo-
Nos artigos Arianos e Macedonio, faze­ ello d’outro superior e mais perfeito. Mas
mos vér a divindade c a consubstanciali- como este crcador era mau, o mundo o era
dade do Verbo e do Espirito Sancto, ensi­ também.
nada na Escriptura e pelos apostolos como Reconhecia que Jesus Christo era filho
o fundamento da religião christã; nos arti­ de Deus soberano, e que não só viera nos
gos Sabellio e Praxeas mostramos que a ultimos tempos com o Espirito Sancto para
Igreja condemnou sempre os que negaram salvar os que criam n’clle, e para lhes dar
conhecimento das cousas celestiaes, mas-
juntamente para obrigal-os a despresar o
1 Greg. N y s s D e vita Greg. Neoces. Ciem. creador e todas as suas obras.
Alex. Pedag. 1.5,6. Assim se avisinhava nos seus sentimen­
2 Ciem. Alex. Pedag. 3, e ultim. Strom. tos a Marcião, mas não cria como este, que
9. Pedag. I, c. 8. Jesus Christo só tomára um corpo phan-
3 Bossuet, Avertiss. 6.
* Petau, Dogm. Thcol. t. 2. 1 Biblioth. choisiej art. erit. Bibli, univ-
5 Isaaci Barrows Opuscula. 1.10, art. 8. E x tra it de la Vic d'Eusebe.
APH 209

tastico: porém para não o fazcr dependente tra os Uvros de Moysés consistia em que
do Deus creador, dizia que Jesus Christo Deus não podia ter ameaçado a Adão com
formara seu corpo das partes de todos os a morte se comesse do frúcto vedado, por­
céos por onde havia passado, descendo á que não a conhecendo Adão, não podia
terra, e que voltando a clles, restituira a tel-a por castigo. 1 Tertulliano escreveu
cada uin o que d’clles tomara. contra Apelles, mas não apparece hoje a
Apelles, como se vê, uniu parte das idéias sua obra.
dos gnosticos aos princípios geraes de Mar- Rodon também a refutou, e cis-aqui o
cião: imaginava que as almas foram crea- que d’elle nos refere: «Tive, diz clle, uma
das sobre os céos. Elias, no seu sentir, nào conferência com este velho venerável pela
eram absolutamente incorporeas, a sub­ sua idade, c pela regularidade exterior da
stancia espiritual, ou a alma estava unida sua vida; e como lhe fiz vêr que se enga­
a um pequeno corpo subtilissimo, e esta nava cm muitas cousas, elle se viu obriga­
extrema subtileza se elevava aos céos. Alli do a dizer, que não deviam profundar-se
as intelligencias puras e innocentes con­ tanto as matérias da rejigiào, que cada um
templavam o Ente Supremo, e gosavam de devia ficar na sua crença, que os que es­
uma perfeita felicidade sein abaixarem as peravam em Jesus Crucificado se salva­
suas vistas sobre o globo terrestre. riam se fizessem boas obras, c que a elle
O Deus creador produziu fruetos e flo­ nada lhe parecia tão obscuro como a di­
res cujo prefume, elevando-se, lisongeára vindade.
os orgaos delicados dos espíritos celestes, «Não deixei de o instar, continuou Ro­
clles se baixaram á terra cTonde subiram don, e de pedir-lhe a razão porque elle não
estes prefumes, e o ente creador que lhes conhecia mais que um só principio, e que,
havia armado um tal laço, os envolveu na prova tinha d’isto mesmo elle, que nega­
materia para conserval-os debaixo do seu va a verdade dos prophetas que nol-o at-
imperio. testam.
Emergidas as almas na materia, se agi­ «Rcspondcu-mo que as prophecias se
taram, e pelos seus esforços formaram cor­ condemnavam a si mesmas porque nada
pos similhantes aos corpos subtis, que ti- diziam que verdade fosse, que eram todas
. nham antes de descerem á terra: os corpos falsas, e que não se acordavam entre si,
aereos que clles tinham no céo, no sentir antes se contradiziam umas ás outras, mas
de Apelles, foram como os moldes cm que ao mesmo tempo me confessou que nào ti­
'as almas tinham fundido os seus corpos nha razão para mostrar que não havia mais
terrestres. Estes corpos aereos tinham dous que um principio, e que sómente por um
sexos differentes, e d’esta sorte as almas certo instincto seguia este sentimento.
descidas do céo, e envoltas na materia, ha­ «Conjurei-o para me dizer a verdade, e
viam formado corpos machos, ou femeas, jurou que fallava sinccramente, que igno­
segundo o sexo da alma que o formava. rava o* como não houvesse mais que um
Tertulliano chama a Apelles o deprava- Deus sem priucipio, mas que assim o cria.
dor da continência de Marcião, e diz que «Quanto a mim, continuou Rodon, eu fi-
ellc se retirou para Alexandria, por fugir a quei condemnando o sou erro, e riudo-me
seu mestre depois de haver abusado d’uma. da sua ignornneia, p^r não havpr cousa
mulher. Accrescenta, que voltando algum mais ridicula do que um homem cpie se
tempo depois, igual mente corrompido, bem tem por mestre dos outros, c não póde al­
que nào de todo, Marcionita, cahira nos legar alguma prova da sua doutrina.» 2
laços d’outra mulher, que se tinha tornado a p e l l i t a s — Nome dos sectarios d’Appel-
uma prostituída. lesr~""~
Esta mulher cria ter apparioõcs maravi­ açhtartodoctàs—-eram os discipulos de
lhosas e vêr a Jesus Christo em fôrma de Juliano* dc"Hàlicarnasso, que asseveravam
menino, e outras vezes era S. Paulo que que o corpo de Jesus Christo fora impassi-
lhe apparecia. Acreditavam que ella fazia vel, porque çra incorruptível. Apparece-
milagres, e que vivia do pào celestial. Um ram pelo anno de 4 6 3 .3
dos seus principaes milagres consistia em
fazer entrar n’uma garrafa de vidro debôca 1 Autor Append. ad Tert. de Prascript.
. muito estreita um grande pão, que depois A m br.l. 1 de Paradiso. Origen. I. 6, cont.
tirava com os seus dedos. Cels.
Apelles, que rejejtava todos os livros de 2 Rhodon, apud Euseb. I. 5, c. 13. Epiph.
Moysés c dos prophetas, compoz um das Hccr. 44, Ang. Hcei\ 23. TerL de Prcescript.
revelações e prophecias de Pnylomena, c c. 30, 31. Baron, ad an. 146.
cria n’ellas. Um dos seus argumentos con­ 3 Niceph. I. 17, c. 29. Dainascen.
110 ARO
a p o c a iu t a s — Este nome significa segu- mas não se acham muitos que adoptem
rança^eni fióndade. Parece que esta seita uma opinião tão estranha. 1
seja um ramo do manichcismo. Appareceu Attribuc-se a Apollinario haver susten­
cm 279, e ensinava que a alma humana tado que a divindade sofirera, que mor­
era uma porção da divindade.1 rera, etc.; mas estes erros mais sao conse­
apollTnario — Lispò cleLaudicea, cria que quências tiradas dos princípios d’Apollina-
Jesus (Jiirísto encarnara c tomara um cor­ rio, que as opiniões d’estc bispo. A ideia
po humano; mas que não tomara alma hu­ que d’clla nos dão os authorcs ecclesiasti­
mana, ou ao menos (iue aquella alma hu­ cos, não nos permitte que pensemos (Tou-
mana que o Verbo assumira, não era uma tra sorte.‘Apollinario foi tido gcralmentc
intelligencia, mas uma alma sensitiva, que pelo primeiro do seu tempo em saber, eru­
não tinha razão nem entendimento. dição, e piedade. Devemos pois ter grande
Tinha sido Apollinario um dos mais zc- desconfiança das nossas proprias luzes, e
Uosos defensores da consubstancialidade do não menos indulgência com os homens que
ÈVerbo: ellc a approvou contra os arianos se enganam, porque a scicncia, o engenho,
rpor infinidade de passagens em que a Es- e a piedade, nem sempre nos preservam
criptura dá a Jesus Christo todos os attri­ dos desvarios.
butos da divindade: julgou que uma alma 0 tempo em que Apollinario ensinou este
humana era inútil cm Jesus Christo, e lhe erro é incerto, mas elle floresceu polos fins
parecia desnecessária alguma das opera­ do quarto seculol imperando Juliano. A
ções que pedem intelligencia e razão, por­ sua heresia foi logo condcnmada no conci­
que a divindade presidira a todas as suas lio d’Alcxandria, congregado no anno de
acções, e fizera todas as funeções da alma 362, presidindo Sancto Athanasio depois
em Jesus Christo.2 da morte de Constancio: o mesmo concilio
Mas como Jesus Christo experimentou se condemnou o erro sem que se nomeasse
sentimentos que não podem convir á di­ o author d’elle. O papa Damaso o conde­
vindade, Apollinario lhe suppõe uma alma mnou também, c depôz Apollinario; emfim
serisitiva. Tinha esta opinião seu funda­ a sua opinião foi proscripta no segundo
mento nos princípios da philosophia pytha- concilio ecumênico, congregado cm Con-
gorica, que súppõe no homem duas almas, stantinopla- 2
uraa que raciocina c é pura intelligencia, . O erro d’Apollinario foi combatido por
Jque não póde soíTrer a agitação das pai­ Sancto Athanasio, pelos SS. Gregorio Na-
xões, o outra incapaz de raciocinar, c que zianzeno c Nysseno, por Theodoreto, e por
é unicamente sensível. Os princípios d’esta Sancto Ambrosio.3
philosophia se acham expostos mais indivi­ a£QJ44íjAMT a s — Nome que tiveram os
dualmente no Exame do Fatalismo. discipuloTfrApolIinario.
É facil refutar este erro, porque a Es- ^qrHA^usT^s — Sectarios d’Apophancs,
criptura nos ensina que Jesus Christo era quc íof discípulo de Manes.
homem em tudo similhante aos mais ho­ AçpsTpLicos— Foi o nome que teve um
mens, excepto no peccado.3 ramo dos'Iencratitas, que presumia imitar
Ella nos diz que Jesus Christo na sua in­ perfeitamente os apóstolos. Veja-se o ar­
fância crescia e se ifortificava em espirito tigo Apoctacticos. Também foi commum
e sabedoria,4 o que não tem Iogar senão este nome a todas as pequenas seitas dos
a respeito da sua alma racional. O Verbo reformadores, que appareceram no duode­
não podia crescer em sabedoria, nem a al­ cimo século, e se derramaram por diffe­
ma animal cm luz. rentes provincias da França. Vejam-se os
Coratudo, Wisthon abraçou o sentimento Albigenscs, Valdenses.
d’Apollinario, e diz' que o Verbo sofirera: Estas pequenas seitas tinham erros op­
e desejando que este sentimento seja rece­ ostos, c regularmente prácticas contrarias,
bido entre os christãos, pretende apoial-o ongregaram-se vários concilios em que
nos testimunhos d’alguns sanctos padres, foram condemnados. Dos apostolicos foram
que viveram depois do concilio de Nicea; queimados muitos em differentes provin-

1 Patres Apost.
2 Epist. Synod. Cone. Alex. Theodoret,
1 Stockman Lexicon. Hist. I. 9, c. iO. Concil. Constant.
2 Vincent. Lirin. Commonit. c. 17. Aug. 3 Alhan. Ep. ad Epilect. I d}lncarn.
de Hcei\ c. 55. Greg. de Nyss. cont. Apol. Theod. Dial. de
3 Paul. ad Hebr. 4, 15. Incomprehensibili. Hceret. Fab. I. 5,- v. 13.
* Luc. 2, v. 40. Auct. de Myster. Jncar.
ARA 211
cias, c estes sectarios soflrcram os suppli- Aii.ums.„ou Ait.unANqs—é o nome que se
cios com tal constância, que Erviuo não dá a uma seita que no terceiro século ata­
podia comprehcnder como os membros do cou a iumiorlalidade.da-aluía, sem todavia
(lemonio tivessem tão grande constância negar que houvesse outra vida depois da
pelos seus erros, como os verdadeiros lieis presente: clles tinham para si que a alma
pela verdade. 1 morria com o corpo, e depois resuscitava
A seita dos apostolicos se renovou por com clle.
um homem da plebe. Veja-se a historia Sobre esta matéria houve na Arabia uma
(Vesta seita singular na palavra Segarei. grande assembléia, á qual assistiu Orige-
IIouvc também entre os anabaptistas al­ nes, que fallou n’clla com tanta solidez e
guns que se appcllidaram apostolicos. Vc- moderação, que aquelles que tinham cahi-
ja-sc o artigo das seitas anabaptistas. do no erro dos arabianos o abandonaram
AgQiA£Tjços—Ramo dos eucratitas ouia- inteiramente. Origenes esclareceu os ara­
thuííSSI, que aos differentes erros dos cu- bianos sem os irritar, c clles se converte­
eratitas ajuntavam a necessidade de renun-. ram sinceramente; nunca o rigor extinguiu
ciar os bens do mundo, c que olhavam como tão projnptamcntc uma heresia. Os golpes
reprobos todos os que os possuíam. Al­ da aulhoridade ou fazem hypocritas ou não
guns se viram na Cicilia e Pamphilia pelos atalham o progresso do erro, senão tirando
iins do segundo século, mas foram pouco á intclligcncia a sua força, e extinguindo
numerosos. Nenhum foi queimado: primei­ pouco a pouco as suas luzes. Eu bradaria
ramente moveram a compaixão, depois fo­ sempre, se podésse, a todos os que tcom a
ram tidos em despréso, e assim se extin- seu cargo o governo das almas: «Esclare­
;guiu a seita. Não aconteceu da mesma cei os homens; tractai com doçura os que
sorte quando no duodecimo século se re­ se enganam, se quereis convcrtel-os soli­
novou a dos apotaclicos, que tomaram o damente, c aniquilar o erro. Haveis vós
nome dapostolicos. Houve contra cllestaes por ventura esquecido que estar n’ellc em
rigores, que foram alguns queimados; e ponto de religião, não seja ter cabido n’um
para os extinguir na França, se levantaram precipício, e ser infeliz, e que os infelizes
exercitos. Vejam-se os artigos Apostolicos, merecem indulgência c respeito?» Eu lhes
Albigenses, Valdenses. 2 diria; «Todo o homem que propala um erro,
• aqlluuanqs— Nome que tiveram tam­ ou está cm boa fé ou é um embusteiro que
bém os eucratitas. seduz os homeus de boa fé, c que procu
aquaticq§—Hereges que criam que a ram a verdade. Sc está de boa fé, vós
agíílHffã um principio coetcrno a Deus. convertereis segura c sinccramente, escla
Hermogenes havia ensinado que a ma­ recendo-o; a aulhoridade fulminando-o sen
téria era coctcrna a Deus, para poder ima­ o esclarecer, o firmaria no erro sem espe­
ginar um sugeito do qual Deus podésse ti­ rança ^arrependimento. Se o homem que
rar o mundo visível. Quizeram seus disci­ espalha o erro c um velhaco que induz
pulos investigar a natureza d’csta materia, para o inal alguns proselytos de boa fé,
■ijuc servira (Tassumpto á acção de Deus, vós atalhacs seguramente o progresso da
e apparentem ente adaptaram o systema de scducção fazendo vêr que clle se engana.
p ia les, que olhava a agua como principio A autíioridade que se emprega contra este
üe todos os entes. É assim que o espirito seductor, sem o refutar e sem provar cla-
humano, depois de se haver elevado sobre ramente a falsidade da sua doutrina, o fa­
•os systemas dos antigos com o auxilio da ria mais querido de seus sequazes, c então
religião, tornava a clles por curiosidade e já não ficareis em estado d’illustral-o, nem
pela tendenda que sempre tem para tudo tereis outro recurso contra o seu partido
im aginar.3 senão o rigor, a violência, e os supplicios.
ara — foi um herege que asseverava que «Porém quando o uso que vós fizésseis
.atév?Hficsmo Jesus Christo não fora iseni- de taes meios não tivesse inconveniente
•pto do peccado original.* nem causasse algum mal, seria por ventura
melhor o seu offeito que o da persuasão c
1 Bemard. Senn. in Cant. 65, 66. A/a- da suavidade? Um homem a quem quei-
bil Analect. t. 3, p. 551. D'Argentré, Collcct. racs obrigar por aulhoridade a deixar suas
■Jud. t. 3, p. 23. Natal. Alexander, sa;c. 42. opiniões, quando menos, supporá que não
2 Epiph. lia r. 61. Aug. Har. 40. Da- vos acliacs em estado d'esclarecel-o, ou que
mascen. lia r. 61. o despresaes cm demasia para que vos di­
, 3' Slockman Lexicon. gneis illustral-o c persuadil-o; c não é justo
4 Euseb. Hist. I. 6, c. 37. Aug. de Har. que uma similhante suspeita caia sobre os
.c 28. Nicephor. Hist. L 5, c. 23. successores dos apostolos; quando S. Paulo
*
212 ARI
nos diz: «Nós ensinamos, provamos, de­ dro, o Filho, c o Espirito Sancto eram tão
monstramos.» somente tres nomes dados á divindade, e
a r c h o n t i cos—Seita de valentinianos denão tres pessoas, e como havia pouco tem­
que fòTOTnòr Pedro o eremita. Esta seita po que fòra condemnado este erro, ainda
appareccu pelos annos do 160, governando tinha sequazes.
Antonino Pio. 1 A argúcia d'A rio naturalmenlo se incli­
ARLVN.isiRD-—Heresia d’Ario, que consistia nou a comparar a explicação d’Alexandre
em negar alcojisubstaucialidade, da. Verbo, com o que a Igreja definira contra Sabel­
ou da segunda pessoa da-Trindade, que lio, c creu que não podia alliar-sc a simpli­
clle òlhava conio uma creatura. cidade da substancia divina com a distinc-
Exporemos a origem e progresso d’esle ção das pessoas, que a Igreja ensinava con­
erro até á morte d’Ario. Consideraremos o tra o mcsino Sabellio.
arianismo desde a morte d’A rio até á sua No sentir d’Ario não podiam dislinguir-
extineção. Vél-o-hemos renascer nó Occi­ se muitas pessoas, no que é simples, ou era
dente no decimo quinto e decimo oitavo preciso que estas, por exemplo, o Padre o ■
século. Examinaremos seus princípios, e o Filho não fossem mais que nomes diffe­
os refutaremos. rentes que se davam á mesma cousa se­
gundo os diversos effeitos que cila produ­
zia; o que linha sido condemnado em Sa-
ii bcllio, e era contrario á ideia que nos dá
a Escriptura do Padre c do Filho, que cila.
nos representa entre si tão distinctos como
Da origem do arianismo, o são o cffeito da sua causa: o Padre gera
c progresso d'eslc erro até á morte d'Ario c o Filho é gerado; o Pae não foi produ­
zido, e é sem principio; o Filho tem um, e
foi produzido.
• Explicava Alexandre, bispo d’Alexandria, D’osta sorte Àrio, para não cahir na he-
em presença dos seus parochos c clérigos l*c$ia de Sabellio, que confundia as pessoas
o mysterio da Trindade, querendo conci­ da Trindade, fez do Padre e do Filho duas
liar a Trindade das pessoas com a unidade differentes, c sustentou que o Filho era uma.
de Deus, c explicar como existiam as Ires creatura. 1 Mostrou Alexandre que Ario
pessoas n’uma unica e simples substancia; não tinha uma ideia justa da pessoa do
pois que Socrates refere dizer Alexandre Verbo, que este era eterno como o Padre,
que na Trindade havia unidade, e que para e não produzido em tempo, o que aniqui­
isto se servia d'uma palavra que não so­ laria o dogma da divindade do Verbo.
Í mente significa unidade, mas também sim­ Ario, todo possuído da força do seu ar­
plicidade: dizia clle que na Trindade ha­ gumento, não se occupou mais que cm rc-
via monada, ou que a Trindade era uma torquir os d’Ale^andre, c cm provar que
monada. 2 o Verbo era uma creatura.
•A ideia da simplicidade da monada c da Esta doutrina perturbou a igreja d’Ale­
Trindade se oílereceram simultaneamente xandria, e veio a ser o principal objecto da
á inlelligencia d'Ario, que assistia aos dis­ disputa. Perdeu-se de vista Sabellio; Ario
cursos d’Alexandre, e como por este mes­ se empenhou sómente em provar que o
mo eram conduzidos os espíritos ao empe­ Verbo tinha sido creado, e o partido ad­
nho de comprehendor o mysterio da Trin­ verso em defender a sua eternidade;2 c
dade, ellc se esforçou em conceber como como os sophismas seduzem sempre que se
tres pessoas distinctas existiam n’uma sim­ impugna algum mysterio, Ario fez sequa­
ples substancia. Não pôde conceber o mys­ zes e causou divisões no clero d’Alexan­
terio, e o creu impossível. dria.
Examinando Sabellio o mysterio da Trin­ Persuadiu-se Alexandre, que permittindo
dade, creu não poder concilíal-o com a uni­ a Ario e a seus partidários que disputas­
dade de Deus, senão suppondo que o Pa- sem c propozessem as suas difficuldades,
eJIes se desenganariam melhor que por
1 Aug. Hoer. c. ^0. Epiph. tícer. 40. T/ieo- meio de condemnações c actos d’authori*
doret, Hceret. Fab. I. 1, c. 2. dade, os quaes sendo precipitados, raras
2 Socrates, l. 1, c. 4. Monadon esse in vezes atalham os progressos do erro, sem-
Trinitate, o que nâo quer dizer união, como
traduziu m r. de Valois, mas simplicidade. 1 Lettrc d'Arius à Euseb. Epiph. Ilcer..
Veja-se Basnage, Annal. Politico-Ecclesias- 69. Alhan. t. 1, pag. 63o.
itic, /. 2, pag. 664. 2 Socrat. I I, c. 6.
ARI 213

'prc irritam, c nunca esclarecem. Mas logo ceber um filho coeterno a seu Pae. Foz to­
•que Alexandre ponderou que a sua mode­ dos os esforços para comprehendor como
ração podcria ter consequências desastro­ um filho podia ser coeterno a seu pae; da
sas, congregou um concilio em Alexandria, sua impotência om conceber o mysterio
no qual Ario defendeu a sua doutrina. Pre­ passou ã persuasão de que era eflectiva-
tendeu que o Verbo tivesse sido tirado do mente impossível, e d’csta impossibilidade
nada, pois que era impossível ser eterno tinha feito a base da sua opinião; portanto
como seu Pae, da mesma sorte que nào cria d’uma parte ser impossível que o Ver­
poderia conccbcr-se que o Filho sempre bo fosse coeterno a seu Pae, e da outra via '
tivesse existido com seu Pae. «Nào 6 claro, tão claramente ensinada a divindade do
dizia ellc, que então o Filho seria gerado, Verbo na Eseriptura, c pela Igreja, que lhe
e nào o seria. Além de que se o Pae não não era possível desconhccel-a.
tirou o Filho do nada, o tirou forçosamente D’aqui concluiu Ario que a creação do
•da sua substancia, o que é um impossível. Verbo e a sua divindade eram duas verda­
«A Escriplura, dizia ainda ellc, também des, que deviam crér-sc, e reconhecendo
nos não dá. outra ideia do Verbo: o Verbo, que o Verbo era uma creatura, cria com
•diz ellc proprio no capitulo 8 dos Provér­ tudo que era verdadeiro Deus e igual a seu
bios, que Deus o crcou no principio da sua Pae. O amor proprio c a preoecupaçào as­
carreira. Deus diz que clle o gerou, c este sim mudam aos olhos dos homens os mys-
modo de produzir é uma verdadeira crea- terios cm absurdos, c as contradicções mais
ção, pois que a Escriplura o applica igual­ evidentes cm verdades manifestas" Ario ti­
mente tanto aos homens como ao Verbo, nha rejeitado a Trindade, que ellc não com-
como se vé nas passagens n u que Deus prehendia, mas que nào tem em si contra-
-diz que gerára filhos que o desprcsaram.1» dicçào, e não suppunha conlradizer-sejinin-
Os padres do concilio ^Alexandria, fun­ do no Verbo a essencia da divindade c da
dados ifcstas confissões, ou melhor ífcstcs creatura, suppondo que o Verbo tinha to­
princípios d’Ario, o sentenciaram. «Sc o das as perfeições, c sustentando que lhe
Verbo, diziam ellcs, é uma creatura, tem faltava a primeira de todas, que é d’existir
,todas as imperfeições da creatura, está su­ por si mesmo.
jeito a todas as mudanças, não é omnipo- O concilio ^Alexandria definiu que o-*.
tente, nem sábe tudo; porque estas imper­ Verbo era Deus, e coeterno a seu Pae; eon-
feições seguem cssencialmcntc o sér de demnou a doutrina d’Ario, e excommun-.
creatura, por mais perfeito que se julgue.» gou a sua pessoa; porém o hcrcsiarcha não
A s consequências eram evidentes, e Ario se abalou com a sentença do concilio; con­
não podia ignoral-as. tinuou a defender a sua opinião, expôl-a
Encarada d’csta sorte sua doutrina, os sem rebuço, c mandou a sua profissão de
padres do concilio provaram ser falsa por fé a muitos bispos, pedindo-lhe que ou o
todas as passagens da Eseriptura, que at- illuminassem se estava em erro, ou o pro­
tribuem ao Verbo a immortalidade e omni- tegessem e amparassem se era catholico.1
sciencia, por todos os que expressamente É "natural em todos os homens certo alle­
dizem que tudo por ellc fora feito, e que cto que obra sempre em favor dTim ho­
nada sem ellc se fizera. mem, que foi condcmnado, principalmente
Estas ultimas passagens subministravam quando elle protesta que nada mais deseja
nos padres argumentos decisivos, porque que illustrar-se para haver de sesubmetter:
se nada do que foi creado o foi sem o Ver­ portanto achou Ario protectores ainda en­
bo, é evidente que elle não foi creado, por­ tre os bispos. Euscbio de Nicomedia con­
que então alguma cousa seria creada sem gregou um concilio composto dos bispos da
clle, pois que um ente de nenhum modo provincia de Bytliinia, c este concilio es­
é causa de si mesmo. creveu circulares a todos os bispos do
A’ evidencia d’estas provas, tiradas da Oriente para induzil-os a que recebessem
Eseriptura, ajuntaram os padres do conci­ Ario na sua communhão como a um ho­
lio a doutrina da igreja universal, que sem­ mem que defendia a verdade, e para o mes­
pre reconheceu a divindade do Verbo, e se­ mo fim escreveu também a Alexandre.
parou da sua communhão os que a impu­ Alexandre, como rcconvcnção, escreveu
gnaram. circulares cm que muito censurava Euse-
Ario achou-se então como collocado en­ bio de proteger Ario, c de recommcndal-o
tre a necessidade de reconhecer a divin­ aos bispos. A carta d’Alcxandre irritou Eu-
dade do Verbo, c a impossibilidade de con-

1 'Sozomencj l. 2. 1 Carta d'Ario a Euseb. Epiph. loc. cit.


314 ARI

sebio, c tornou inimigos irroconciliavcis es­ vendo mesmo logares onde se abateram as
tes dous prelados. estatuas do imperador, porque ellc queria
Gondcmnado Ario por Alexandre e por que sc tolerassem os arianos. 1
um concilio, mas defendido por muitos bis­ Faziam então os christãos uma parte con­
pos, nào se apresentava senao como um in­ siderável do império romano, e ponderando
feliz que se perseguia, pelo que divulgou a Constantino que. nào podia dispensar-se de
sua doutrina, e até o mesmo povo se inte­ tomar parte nas suas pendências, c que era
ressou em seu favor. , preciso apazigual-as, convocou um concilio
»- Era Ario homem d’alta estatura, magro do todas as provincias do mesmo império,
! c socco; cm seu rosto se via estampada a cujos bispos se congregaram cm Nicea no
imagem da melancholia; tinha uma com­ anno de 325L
postura grave, trazia sempre vestidos os Juntos osl)ispos, formaram assembléias
habitos ecclesiasticos, e encantava pela sua­ particulares, aonde chamaram Ario para
vidade da sua conversação; como era poeta sc instruírem dos seus sentimentos. Ouvido
e musico, compunha canções espirituaes que foi Ario, pareceu a alguns condcmnar
para os homens do povo c pessoas devotas; toda a novidade, c contentarem-se cm fal­
e pondo em cantico a sua doutrina, consc- lar do Filho nos mesmos termos do que se
5 guiu por este mcio fazel-a popular. Já do haviam' servido seus predcccssorcs; outros
xm esm o expediente se tinham servido antes estavam em que não sc deviam receber
j; d’Ario, Valontim c Armonio, e com clle sem exame as expressões dos antigos: dc-
l mu itas vezes prosperaram as heresias. Apol- zesctc favoreceram as novas expressões de
% linario, depois d’Ario, assim propagou os Ario, c dirigiram uma nova profissão de
Vseús erros melhor que por sons escriplos.1 fé segundo os seus sentimentos; mas ape­
I)’esta sorte sc engrossou o partido d’Ario nas cila'se tinha acabado de Iér, na assem­
insensivelmente, c nào obstante a subtileza bléia sc gritou que era falsa, e foram inju­
das questões que agitava, elle soube tornar riados como perfidos á fé. 2
importante até para o povo a sua contenda. Propozcram condemnar as expressões
Divjdiram-se os bispos, o clero c o povo; de que sc serviam os arianos fallando de
em 'breve se exacerbaram as disputas, fi­ Jesus Christo, taes como são estas: Que
zeram grande estampido, e os comedian­ ellc fora tirado do nada, que houve tempo
tes, que então eram pagãos, tomaram d\aqui que clle não existia. PropOz-sc dc se servir
motivo para pôr a religião christã cm sce- das mesmas phrases da Escriptura, assim
na nos thoatros. como estas: O Filho é unico da sua natu-
Constantino, que no principio d’csta dis­ reza, c a razão, o poder, a unica sabedoria
cussão, sómcntc a olhou como politico, es­ de seu Pae, o esplendor da sua gloria, etc.
creveu a Alexandre c a Ario dizendo-lhes Mas declarando os arianos que estavam
que eram loucos dividindo-se por cousas promptos a admiltir uma confissão conce­
que não entendiam e que nenhuma impor­ bida em taes termos, recearam os orthodo­
tância tinhahi.2 Mas era de muita conse­ xos que os explicassem cm mau sentido, e
quência o erro d’A rio para que os catholi­ por esta razão quizeram ajuntar que: o Fi­
cos houvessem de ficar na indiíTercnça que lho era da substancia do Pae, porque rí isto
Constantino lhes, aconselhava. Alexandre se distinguia das creaturas.
escreveu para toda a parte a fim d’alalhar Perguntou-se pois aos arianos sc criam
. os progressos do erro e fazer conhecer o que o Filho não era uma creatura, mas o
seu perigo. poder, a sabedoria unica, c cm tudo a ima­
D’outro lado Ario c seus sequazes faziam gem do Pae, e finalmonto verdadeiro Deus.
todos os esforços para desacreditar a dou­ Créram os arianos quo estas expressões
trina ^Alexandre, c tanto os arianos como poderíam convir á ideia que cllcs tinham
os catholicos imputavam reciprocamente formado da divindade do Filho, e declara­
aos seus adversarios as consequências mais ram estarem promptos a subscrever esta
odiosas que podiam tirar dos seus princí­ profissão.
pios. Porém como se tinha reflcctido que Eu-
Os contínuos choques inflammaram os sebio dc Nicomedia, na carta que léra, rejei­
dous partidos, levando-os até á sedição, ha­ tava o tormo consubstanciai, sc creu não
poder melhor exprimir a doutrina ortho­
1 VidcErnesti Cypriani,'Dissert. de Pro­doxa, o excluir todo o equivoco, quo usan-
pagatione Hccres., per Cantilenas, Lond.
1720, m-8.°
2 Apud Euseb. in Vit. Const. c. 63. So- 1 Euseb. ibid. I. 3, c. 4.
crat. /. i, c. 7. 2 Socrat. L i , c. 8.
ARI IIS
do d’este termo tanto mais quanto os aria­ cederia que viesse á sua presença, e o tor­
nos o recuavam 1 naria a inandar com honra para Alexan­
Os orthodoxos conceberam a sua profis­ dria.
são n’cstes termos: «Crémos em um só Se­ Obedeceu Ario, e apresentou ao impe­
nhor Jesus Christo, Filho de Deus, Filho rador uma profissão de fé cm que decla­
unico do Padre, Deus nascido de Deus, luz rava: «que o Filho nascera do Pao antes
emanada da luz, verdadeiro Deus, nascido de todos os séculos, c que a razão, que é
de Deus verdadeiro, gerado c não feito, con­ Deus, fizera todas as cousas, assim no céo
substanciai a seu Pae.* 2 como na» terra.»
Dizendo-se que o Filho era consubstan­ Se Constantino ficou verdadeiramente sa­
ciai a seu Pac, não se tomava esta palavra tisfeito d’esta declaração, era forçoso que,
na acccpção em que se toma quando se falia ou tivesse mudado dc sentimentos, ou não
dos corpos ou dos animaes mortaes, por­ comprehendesse o symbolo de Nicea, ou
que o Filho uão era consubstanciai do Pac, que com effeito o sacerdote ariano houvesse
nem por uma divisão da substancia divina mudado as disposições de Constantino res-
da qual cllc tivesse alguma parte, nem por peetivamentc ao arianismo.
alguma mudança d’esta mesma substancia: Como quer que fosse, elle permittiu que
queria dizer-se sómente que o Filho não Ario voltasse a Alexandria, c desde esso
era de substancia diversa da substancia do tempo os bispos arianos lentamente recu­
Pac. Tal foi a decisão do concilio de Nicea peraram o favor, e foram restituidos ás
áccrca do erro d'Ario; elle se terminou em suas igrejas os desterrados.
2o (TagOhto, e Constantino desterrou os que Não tinham produzido mais que appa­
não quizerain subscrevel-o. Alexandre, bis­ rendas de socego os edictos de Constantino
po d’Alexandria, morreu pouco depois, c contra os arianos: pouco e pouco se reani­
cm seu logar foi eleito Athnnasio, diacono maram as disputas, e já tinham grandes
da mesma igreja, cuja eleição Constantino alentos quando os bispos exilados foram
approvou. chamados.
Verosimilmentc foi por esse'tempo que A’ força d’examinar a palavra consub­
Constantino fez a sua constituição contra to­ stanciai, bispos houve que se escandalisa-
das as assembléias dos hereges, ou fossem ram; disputou-se, desavieram-sc, c por fim
públicas ou particulares. Pela mesma con­ se atacaram com extremo ardor. «As suas
stituição dava o imperador as suas capellas contendas, diz Sócrates, não eram pouco
aos catholicos, e confiscava as casas em similhantes a um combate nocturno: os
que se encontrassem praclicando devoções. que rejeitavam o termo consubstanciai ti­
Éuscbio accrcscenta que o edicto do impe­ nham que os outros introduziam ifello o
rador continha que se faria apprchcnsão sentimento dc Sabellio e de Montano, e os
de todos os livros herecticos que se encon­ tractavam d’impios, que negavam a exis­
trassem. tência do Filho de Deus: pelo contrario, os
Este edicto e muitos outros diminuiram que n’elle faziam aílinco, crendo que os ou­
prodigiosamente o partido d’Ario, e pare­ tros queriam introduzir a pluridade de Deu­
ceram cxtinctas quasi todas as heresias no ses, lhes tinham tal aversao, como se se in­
imperio romano. tentasse restabelecer o paganismo. Eusta-
Comtudo, Ario ainda tinha muitos sequa- thio, bispo d’Antiochia, accusava Euscbio
zes, c entre os occultos um sacerdote que de Ccsarca dc corromper a crença do con­
Constância recommendou a seu irmão Con­ cilio niceno: Euscbio o negava, e pelo con­
stantino, estando para morrer, como um trario accusava Eustathio dc sabellianis-
homem d’extrcmada virtude,-e muito leal mo.» 1
ao serviço de sua casa. Este sacerdote, que É pois certo pelo quo o mesmo Sócrates
logo adquiriu a confiança e estimação de refere, que entre os defensores d’Ario ha-
Constantino, o entreteve acerca d’Ario, re- via muitos que não inpugnavam a consub-
presentando-llfo como um homem virtuoso, stancialidade do Verbo, e que rejeitavam
injustamente perseguido, e cujos sentimen­ a palavra consubstanciai, não porque ella
tos eram conformes aos do mesmo concilio exprimisse que Jesus Christo existia na
que o condenmára. mesma substancia cm que existia o Padre,
Constantino ficou suspenso coin este dis­ mas porque presumiam que se dava a esta
curso, e prometteu que se Ario quizosse expressão um sentido contrario á distinc-
subscrever o concilio dc Nicea,-elle lhe con- ção das pessoas da Trindade, e favoravel
ao orro dc Sabellio, que o confundia.
1 Ambr. I. 3 de Fide, c. ultimo
2 Socrat. I. i, c. 8i 1 Socrat. L i, c. 28.
216 ARI
Para se decidir sobre os diversos senti­ durante esta ceremonia, Eusebio de Cesa­
mentos d’Eustathio c Eusebio, se congre­ rea fez muitos discursos que encantaram
gou uni concilio em Anliochia.no anno de o imperador.
329, composto de bispos que tinham assi- Depois da dedicação, os bispos congre­
gnado violentamcntc o concilio de Nicea. gados em Jerusalém receberam á commu-
N ’elle foi Eustathio condemnado e deposto, nhão Ario c Eusoio, pelas rccommcndações
c se elegeu Eusebio de Cesarea para oc- do imperador, o qual desterrou Sancto Atha­
cupar a cadeira d’Antiochia. nasio para Troves, e chamou Ario a Con­
A cidade se dividiu entre Eusebio c Eus­ stanti nopla, receando que a sua presença
tathio; uns queriam a conservação d'cstc, motivasse alguns distúrbios em Alexan-,
outros desejavam em seu logar aquelle. dria. 1 Chegado que foi Ario a Constanlino-
Tornaram ambos os partidos as armas, c pla, o imperador lhe propôz que assignasse
estavam a ponto d ese investir quando chc- o concilio de Nicea, o que clle executou; e
ou um otTlcial do imperador, que persua- o mesmo imperador, depois que se assegu­
t iu o povo (|ue Eustathio merecia a deposi­ rou da fé cTArio, escreveu a Alexandre,
ção, e Eusebio suslcvc o motim. bispo de Constantinopla, para que o rece­
' " Eusebio de Cesarea recusou a cadeira besse na sua communhão; mas Alexandre
d’Antiochia, e para a occupar elegeram Eu- protestou que o não recebería, e Ario mor­
fromio, sacerdote de Capadocia. Eustathio reu durante esta contenda.
foi desterrado.
Deposto Eustathio, trabalhou o concilio
para que Ario voltasse a Alexandria, aonde ESTADO DO ARIANISMO DEPOIS DA MORTE
Sancto Athanasio nuo permittiria que tor­ d ' a r io
nasse a entrar. 0 imperador, a instancias
do concilio, ordenou a Sancto Athanasio que
recebesse Ario, mas o sancto respondeu Atacado Constantino d’uma indisposição
quo não se recebiam na Igreja os que ha­ notável, c sentindo proximo o seu íim, en­
viam sido cxcommungados. tregou cm segredo suas ultimas disposições
A adhesão de Sancto Athanasio ao con­ ao sacerdote ariano que sua irmã lhe rc-
cilio de Nicea irritara igualmente os mcle- commendára. Determinou-lhe que sómente
cianos e os arianos. Estes dous partidos se a Constando as entregasse, c morreu. N ul­
reuniram contra elle, e o accusaram de ha­ las dividia Constantino por seus Ires filhos
ver imposto urna especie de tributo sobre o imperio: a Constantino dava as Galhas,
o Egypto, c de haver fornecido dinheiro a Ilcspanha o Inglaterra; a Constando a Asia,
alguns scdiciosos, de ter despedaçado um Syria, e Egypto; c a Constante a Illyria, Ita­
calix, voltado a mesa d’uma igreja, c quei­ lia, c Africa.
mado 09 livros-sanctos. Tambem o accusa­ Finalmonto entregou o sacerdote ariano
ram de ter cortado o braco a um bispo me- a Constando o deposito que Constantino
leciano, c de se servir d1cllc para opera­ lhe confiara: e como esta partilha lisongea-
ções magicas. va muito a sua ambição, concebeu affecto
Por si mesmo reconheceu Constantino a c respeito a este padre, deu-lhe credito, e
falsidade das duas primeiras accusações, e lhe ordenou que o viesse vér repetidas
quanto às outras commetteu a averiguação vezes.
aos bispos, que se congregaram em Tyro 0 valimento do padre ariano para com
no anno de 334. o imperador o fez bem acceite da impera­
Os bispos da Libia, Egypto, Asia e Eu­ triz, e lhe facilitou estreitas amizades com
ropa, juntos em Tyro, aeputaram alguns os eunucos, partieularmente Eusebio, ca-
bispos arianos a Alexandria para synaica- marista-mór de Constando, que elle tornou
rem contra Sancto Athanasio, o qual desde ariano, assim como a imperatriz e as senho­
logo protestou contra tudo o que o concilio ras da corte. Diz Sancto Athanasio que en­
resolvesse, e se retirou para Jerusalém, tão os arianos se tornaram temíveis para
aonde estava então o imperador. 0 sancto todos, porque eram sustentados com o cre­
foi considerado culpado segundo as infor­ dito das damas. 1
mações do Egypto, e os bispos juntos em Communicou-se logo o veneno do aria-
Tyro o depozeram pelos crimes de que era nismo aos cortezàos e á cidade ^Antio­
accusado. chia, onde Constando tinha a sua ordina­
Deposto que foi Sancto Athanasio, o im­ ria residência, e d’alli se derramou por to­
perador escreveu aos bispos que immedia- das as provincias do Oriente: «Em todas
mente viessem a Jerusalem, para alli faze­
rem a dedicação da igreja dos apostolos, e 1 Socrat. I. 6, c. 33.
ARI 217
as casas sc via, diz Socrates, uma guerra tinopla a Paulo, mas o povo amotinado pOz
•de dialectica, que-logo produziu unia dis­ fogo á pousada dc Hermogenes, prendeu-o,
cordia e confusão geral.» e atado a uma corda, depois d’arrastado pela
Suspenderam o zelo de Constancio pelos cidade, o matou a pancadas. Então Constam
arianos, as guerras dos persas, a sublcva- cio em pessoa foi a Constantinopla, puniu
■ção dos armênios, e as sediçòcs dos exer­ o povo, e lançou fóra a Paulo, que sc re­
citos, mas logo que voltou a Constantino- fugiou na Italia junto ao papa Julio.
pla, fez celebrar abi uni concilio composto A cila se tinham retirado também San­
dc bispos arianos, os quaes depozeram da cto Athanasio c muitos*orthodoxos, que alli
•cadeira da mesma cidade a Paulo, substi- viviam tranquillos debaixo da protecção de
tuindo-o por Euscbio dc Nicomedia. Constante, o qual compadecido das divisões
Depois da deposição dc Paulo, partiu que perturbavam a Igreja, escreveu a Cons-
Constancio para Antiochia, para fazer a de­ tancio, empenhando-o a convocar um con­
dicação dTima igreja que Constantino edi- cilio ecumênico, para restabelecer a paz.
ficára. Alii sc ajuntaram uoventa ou no­ Sancto Athanasio e outros prelados roga­
venta e sete bispos. ram a Çonstante que apressasse a celebra­
Aprovei taram-se d’esta occasião Euscbio ção do concilio: o mesmo sancto lhe con­
c os arianos, para afastar Sancto Athana- tou com as lagrimas nos olhos as calami­
sio d’Alexandria, aonde ellc voltara de­ dades que os arianos lhe tinham feito sof-
pois que o ajustado encontro dos tres im­ frer, lembrou-lhe a gloria dc seu pae, o
peradores em Pannonia linha occasionado grande concilio que elle fizera congregar
a restituição dos bispos desterrados. Dcpo- em Nicea, c o desvello com que solidara,
zeram-no com o pretexto de haver tornado com a authoridadc das suas leis, tudo o que
-a entrar na sua sé de moto proprio, c Grc- os padres dicidiram n’aquelle concilio, ao
-gorio foi ordenado em seu logar. qual ellc mesmo pessóalmente assistira.
Constituído Eusebio o chefe e a alma da Como a dòr dc Sancto Athanasio brilhou
facção ariana, se fez um formulario de fé, muito em seus discursos c queixumes, pe­
no qual se supprimiu a palavra consub­ netrou profundamente o imperador, e (
stanciai, e se enviou a todas as cidades. moveu a imitar o zelo de seu pae, de sort|
Passado algum tempo fabricou-se outro, que apenas acabou d’ouvir a Sancto Atha
onde se dizia que Jesus Christo possuía a nasio, logo escreveu a seu irmão Constau
•divindade immutavelmentc, que ellc era a cio, persuadindo-o a conservar inviolavel-
imagem sem differença da substancia, da menlc a piedade que Constantino, seu pae,
vontade, do poder, e da gloria do Padre. lhes deixara como por successão, e repre-
Finalmente fizeram terceiro, mas obscuro, sentando-lhc que aquellc grande principe,
áccrca da divindade de Jesus Christo, me­ havendo com cila assegurado o seu impe­
nos a asserção dc que o Filho .de Deus é rio, exterminara os tyrannos, que eram os
perfeito. 1 inimigos dos romanos, e subjugara os bar­
• Era pois a divindade de Jesus Christo baros. 1
bem constante, c ensinada na Igreja muito Acordou Constantino com seu irmão a
universalmentc; pois que o partido d’Euse- convocaeão d’um concilio, para o qual os
bio, que se compunha de homens conspi­ bispos do Occidente c do Oriente se con­
cuos, inimigo violento dos orthodoxos, e gregaram em Sardica no anno de 349; mas
omnipotente na presença de Constancio, os orientaes se retiraram logo a Phyloppoli,
. não se animou a impugnal-a, c reconhecia cidade de Thracia, que obedecia a Constan­
a, divindade dc Jesus Christo, negando a cio, porque os occidentaes não quizeram
sua comubstancialidade. Este partido d’Eu- excluir do congresso a Sancto Athanasio,
sebio foi o mesmo a que chamaram semi- visto que ellcTòra declarado innocente pelo
ariano, opposto aos arianos, mas sempre concilio de R om a.2
unido a clles contra os catholicos. Juntos em Sardica, os occidentaes con­
N ’este tempo morreu Eusebio, bispo de servaram o symbolo de Nicca, sem mu­
•Constantinopla, é o povo restabeleceu Paulo; dança alguma, declararam innocentes os
mas os eusebianos elegeram Macedonio, e bispos depostos pelos arianos, c depozeram
se formou um scisma e uma guerra civil, os principaes cabeças dos mesmos. Em re­
que encheu Constantinopla dc perturbações presália os orientaes confirmaram tudo o
e de mortes. que haviam feito contra Sancto Athanasio
Constancio mandou Hermogens, general
d e cavalleria, para lançar fóra de Constan- 1 Vic de S. Athan. por Herman, t. I, l.
5, c. 28, pag. 527.
1 Socrat. I. 2, c. iO. Hilar. Synod. 2 Socrates, L 2, c. 20.
318 ARI

e contra os mais bispos catholicos, separa­ Seleucia, no qual vinha expresso que o Fi­
ram da sua communhão os que haviam lho de Deus era similhante a sou Pao em
communicado com os bispos depostos, c substancia e esscncia, mas supprimia-se a
fizeram um formulario de fé em que sup- palavra consubstanciai.
primiram a palavra consubstanciai. 1 O concilio de Rimini rejeitou a profissão
Feitos os concilios, os bispos juntos cm ou formulário, estando pelo de Nicea, a
Sardica o Phyloppoli voltaram ás suas res­ anathemalisou de novo o erro d’Ario. Ur­
pectivas igrejas. sacio c Valente, que não quizeram assignar
Constante informóu a seu irmão Constan­ os anathemas- pronunciados contra Ario,.
d o do que se passára em Sardica, pedin­ foram também condemnados por consenso
do-lhe o restabelecimento de Sancto Atlia- unanime de todos os bispos.
nasio em taes termos, que Constando não O imperador desapprovou o concilio, e
lh’o pude recusar. «Tenho, escreve cllc, enviou aos bispos o formulario de Syrmich,
em minha casa, Paulo e Athanasio, dous para que o assignassem, com ordem ao go­
homens que eu conheço serem perseguidos vernador de não deixar sahir de Rimini
por causa da sua piedade; se vós me pro- bispo algum sem que houvesse assignado;.
metlerdes rcstabeleccl-os c punir os seus c continha a mesma ordem que o gover­
inimigos, eu vol-os enviarei, aliás cu mes­ nador desterrasse os que desobedecessem,
mo irci restituil-os ás suas calhedraes.» quando não excedessem o numero de quin­
Pouco tempo depois, Constante foi ata­ ze. Resistiram os bispos de Rimini por mais
cado e morto por Magncncio: mas este, foi de quatro mezes, apesar dos maus tracta-
logo destroçado por Constando, que se tor­ mcnlos que soííreram, mas posto que não
nou senhor da Italia e de tudo o que Con­ estivessem inteiramente vencidos, parece­
stante possuia. ram cmfim muito quebrantados. Então Ur­
Constando tomou a felicidade das suas sacio c Valente, aproveitando-se do seu aba­
armas contra Magncncio por uma confir­ timento, lhes representaram que cllos sof-
mação da pureza dos seus sentimentos, friam fóra de proposito, que podiam dar
crendo que Deus apoiava a sua fé, a sua fim a seus trabalhos c ás inquietações da
religião, pelas victorias que alcançava; con­ Igreja som serem traidores á fé, pois quo
vocou um concilio nas Gallias, fez condc- o formulário que o imperador lhes propu­
mnar de novo Sancto Athanasio, e publi­ nha não era ariano, que cllc exprimia a fé
cou um edicto pelo qual seriam banidos to­ catholica, e não diíTeria do de Nicca senão
dos os que não o condemnassem. pela falta do termo consubstanciai, do qual
O papa Liberio pediu a Constando a con­comtudo exprimia o sentido, porque for­
vocação d’outro concilio em Milão, c iTisto malmente dizia que o Filho é similhante cm
consentiu o imperador. Iíavia alli poucos ludo a seu Pae, e não sómente por um ac-
orientaes: estes por preliminar requereram côrdo de vontade, mas ainda em substancia
que se assignasse a condem nação de San­ e essência.
cto Athanasio; oppozeram-sc os occidentacs, Os bispos, acabrunhados com as attribula-
gritou-se muito d’uma e outra parte, e por ções, deram ouvidos aos discursos de Va­
fim se separaram os bispos sem se ultimar lente, e tomadas todas as cautelas possí­
cousa alguma. O imperador desterrou os veis para prevenir as consequências que
que recusaram assignar a condemnação de podéssem tirar-se da mudança que ellos fa­
Sancto Athanasio, e o mesmo papa Liberio, ziam no symbolo de Nicca, pronunciaram
que não quiz subscrevel-a, foi banido. em alta voz, c fizeram pronunciar da mes­
Fatigado Constando de todas estas con­ ma sorte anathema contra todos os que
testações, quiz finalmente estabelecer uma não reconhecessem «que Jesus Chrisío era
paz geral, e- resolveu a convocação d’um Deus, verdadeiro Deus, eterno com seu
concilio para terminar todas as disputas, Pae, ou que dissessem que houve tempo
mas a difliculdade d’unir no mesmo logar em que o Filhò não existira.» N um a pala­
os occidentacs e os orientaes, fez com que vra, pronunciava-so excommunhão contra
se congregassem uns em Seleucia, e outros todos os que, confessando *que o Filho de
em Rimini. Concorreram a Rimini mais Deus é Deus, não dissessem que existia an­
de quatrocentos bispos, oitenta dos quaes tes de todos os tempos, que se podem concc-
seguiam o arianismo; Ursacio e Valente, bor, mas suppozeram alguma cousa antes
que. eram do mesmo partido, apresenta­ d’elle. •
ram ao concilio o formulário que haviam Tomadas estas precauções, os bispos con­
feito em Syrmich antes que partissem para gregados cm Rimini assignaram ò formu­
lário quo Valente e Ursacio tinham proposto,
1 Hilar. Frag. 2A, 22, 24. e obtiveram a liberdado de voltar ás stias
ARI 249
dioceses. O imperador obrigou os do Seleu- de Juliano, c expòr-se »á morte, do que au-
cia a firmar a mesma fórmula, e passou thorisar uma acção, que podesse deixar
logo a pronunciar pena do banimento a to­ suspeita a sua fe; mas elevado ao impe­
dos os que recusassem assignal-a. 1 rio, entendeu que não devia perseguir os
Triumpha vam os arianos depois do con­ inimigos da religião; distinguiu cuidado-
cilio de Rimiui, c pretenderam que todo o samente os deveres de christão, e os de
mundo fosse ariano; mas é facil vér quanto imperador: como christão submetteu a sua
era ehimcrico oste triumpho. Elles mesmos fé ao juizo da Igreja, c seguiu todas as re­
estavam d’isto tào persuadidos, que immo- gras, que cila prescrevia aos simples fieis;
diatamente depois do concilio alteraram o como imperador, creu não ter outra lei,
formulario de Rimini; e logo depois indu­ que a felicidade do imperio. 1
ziram Constancio a que convocasse outro Emquanto irtiperador, e legislador, se jul­
concilio para reformar a profissão de Ri­ gou obrigado a fazer convergir todos os
mini, c declarar que o Filho era dissimi- animos, no pensamento da felicidade do es­
líiantc ao Pac em substancia c em vonta­ tado, e a proteger para o mesmo dTeito os
des; e seria esta profissão a decima nona, cidadãos uteis, e virtuosos, de qualquer re­
porém elles não ousaram deixal-a vir á ligião, c seita que elles fossem. Deu leis
lu z .2 em favor do clero christão, e do pagão: os
A morte de Constancio transtornou seus pontifices pagãos foram restituidos aos seus
projectos. Juliano, que lhe succedeu, odia­ privilégios, c se lhes decretaram as mes­
va os primeiros funccionarios de Constan­ mas hoftras que aos condes.2
cio, c principalmente a Euscbio, camareiro- Elle nem quiz governar a Igreja, nem
mór: chamou os desterrados, e permittiu pronunciar sobre os seus dogmas, c leis;
a todos os christãos que professassem cm da mesma sorte que não queria, que o cle­
liberdade cada um os seus sentimentos. ro tomasse parte nos ncgocios do imperio.
Então a fé nicena recobrou o seu esplen­ Assim, quando os bispos congregados na
dor, c o arianismo perdeu muitos sequazes. Illiria, lhe enviaram a sua decisão sobre a
Joviniano, que succedeu a Juliano, não consubstanciai idade do Verbo, c acerca da
cuidou mais que cm restabelecer a fé de necessidade de conservar iuviolavelmentc
Nicca, chamou Sancto Athanasio, c queria o symbolo de Nicea, lhes respondeu Va-
pôr em paz a Igreja; mas a brevidade do lcnciniano, que elle cria na decisão, c de­
seu governo frustrou estes projectos, por- sejava que a sua doutrina fosse ensinada
ue reinou sómente sete mczes c vinte por toda a parte, cm tal fôrma, porém, que
ias. 3 Depois da morte de Joviniano, o não se vexassem aquclles que recusassem
exercito escolheu por imperador a Valen­ subscrever o juizo do concilio, para que
tiniano. Este principe sinccramcntc dado não se entendesse, que os que seguiam a
á fé de Nicca, e zeloso da religião christã, doutrina do concilio, mais que a Deus, obe­
ainda não era mais que tribuno das guar: deciam ao imperador.3
das, qu.ándo conhecendo a aversão qué Ju­ Não vèmos que a tolerância, c protec­
liano tinha aos christãos, e o seu zelo pelo ção que Valentiniano concedia a todas as
rcstabclccimonto do paganismo, não receou sociedades religiosas fizessem olhar este
patentear a sua dedicação pela religião principe como "um herege, ou inimigo da
christã ao proprio tempo cm que Juliano religião, ou lhe adquirissem alguma deno­
dava provas do seu zelo pelo paganismo. minação odiosa, antes os mesmos authores
Valentiniano foi desterrado, e teria per­ ecclesiasticos nol-o representam coiuo um
dido a vida, se o imperador não receasse confessor.
tornal-o illustre com o martyrio. 1 Cha­ Os catholicos do Oriente não eram assim
mado do seu desterro, Joviniano o pôz na tractados. 0 principe Ariano, que iVellc
frente da companhia dos escudeiros da sua governava, zeloso até o furor, desterrou,
guarda: e morto Joviniano, o exercito o baniu, fez morrer muitos bispos, o catho­
acclamou imperador. licos votados á fé de Nicea, e pôz em todas
Valentiniano, emquanto tribuno das guar­ as igrejas do condado do Oriente bispos
das, mais querería incorrer na desgraça arianos. A situação dos negocios do impe­
rio não pormittia quo Valentiniano so op-
l ' Sosom. I. 4, c. 26.
2 lbid. Socrat. I. 2; c. 9o. Atlrni. de. Syn. 1 Socrates. I. 4, c. I. Sozam. I. 6, c. 6.
pay. 96. Titleniont, i. 6, 5, 21. Theodor. Hist. Eccles. I. 4, c. 6, 8.
3 Ammhiian. Marcei, pag. 308. Socrat. I. 2 Codez Theod. I. 15, tit. 7. Leg. I. Til-
3, c. 26. leuwnt, l. 6.
* Sozom. I. 6, c. 6. 3 lbid. Theod. ibid.
220 ARI
pozcssc ás crueldades de Valente. Assim, A moderação dos prelados catholicos tor­
debaixo do governo d’cstes dous principes, nou odiosos os bispos arianos, que rejeita­
o arianismo triumphava no Oriente, e a ram estas proposições; c houve cidades em
fé catholica se ensinava cm liberdade por que se viu o bispo ariano abandonado de
todo o Occidente; e sem que n’csto se empre­ todo o seu partido, oaltrahido pela doçaira
gasse força, ou violência alguma, o aria- do bispo catholico, conhecer a verdade, c
nismo ficou quasi extincto. No Oriente, pelo professar a consubstancialidadc do Verbo.1
contrario, os arianos tinham por si Valen­ 0 imperio estava no interior dilacerado
te, e contra si a maior parte do povo, que pelas facções, c no exterior invadido pelos
se conservava pennanentemente affecto á barbaros; c Graciano para melhor suppor-
fé de Nicea. tar o péso dos ncgocios do estado, associou
N’cste calamitoso tempo, sem temor das ao governo a Theodosio.
perseguições, se viram os Bazilios, os Gre- Mais zeloso que Graciano pela fé de Ni­
gorios reprehenderem a Valente das suas cea, este principe fez uma lei cm que or­
injustiças, e propugnarem com heróica fir­ denou a todos os seus vassallos, que se­
meza pela consubstancialidadc do Verbo. guissem a fé, assienada pelo papa Dama-
0 Egyplo tinha estado cm socego, mas so, c por Pedro de Alexandria, declarando
por morte de Sancto Athanasio, querendo que sómente se reputariam catholicos os
os arianos pôr-lhe um bispo da sua seita, que a seguissem, e que os outros seriam
lançaram fóra Pedro, que o sancto orde­ tidos por infames, como hereges, c puni­
nara seu successor. Oppozcram-sc os ca­ dos com diversas penas. Mas apesar d’cstas
tholicos cm favor de Pedro, mas os aria­ leis, os arianos fizeram assembléias, c ainda
nos alToutados por Valente, prenderam, po- muitos d’cllcs conservaram as suas cathc-
zeram a ferros, e mataram todos os que dracs.
o seguiam. Estava Alexandria como uma Sancto Amphyloco, bispo de Iconio, so­
cidade levada por assalto. Os arianos se licitou íortemente o imperador para que
senhorearam logo das igrejas; caos bispos, coni elTeito prohibisse os convcnticulos dos
que elles, elegeram para o Egypto, se con­ arianos, mas Theodosio recusou constante­
cedeu o poder de banir da Igreja todos os mente ás inspirações do seu zelo, c somen­
que seguissem a fé niccna. 1 te cedeu a um piedoso estratagema, de que
Entretanto que o arianismo assim asso­ o sancto bispo se serviu para persuadir o
lava o imperio, os godos, c sarracenos o imperador, que não devia facilitar aos aria­
invadiram; c occupado Valente cm defen­ nos a liberdade de se congregarem.
der-se d’estes inimigos formidáveis, cessou Acabava de ser declarado por Augusto,
a perseguição. Valente marchou contra os Arcadio, filho de Theodosio, e Sancto Am­
godos; o seu exercito foi destroçado, elle phyloco, que se achava no palacio, nenhu­
fugiu, e morreu queimado n’uma casa, cm ma demonstração de respeito patenteou por
que se havia recolhido.2 Arcadio. Reparou Theodosio n’isto, e lhe ad­
Graciano, então unico senhor do imperio, vertiu, que fosse fazer-lhe a devida sauda­
seguiu as maximas de Valentianiano, seu ção; entao o sancto se chegou a elle, e lhe
pae, deixando a todos em liberdade, para fez algumas carícias, como se fura a um
seguirem a religião da sua escolha, á ex- menino, mas nenhum d’aquellcs' signaes
cepção do manichcismo, phocinianismo, e de respeito com que era costume tracta-
dos sentimentos de Eunomio; e fez vir para rem-se os imperadores, c logo voltando-se
as suas igrejas os bispos que d’ellas ti­ para o imperador lhe disse, que bastava
nham cxpellido os arianos. Muitos dos con­ tcstimunhar-lhc' a elle os seus respeitos,
fessores, que voltaram dos extermínios, sem os tributar a Arcadio.
testimunharam maior amor á unidade da Theodosio, encolcrisado com esta respos­
Igreja, do que á sua dignidade, consentin­ ta, mandou sahir de palacio a Amphyloco,
do que os arianos ficassem bispos, unin­ o qual ao retirar-se, lhe fallou assim: —
do-se á fé, e communhão dos catholicos, e «Vós vedes, senhor, que não podeis sofTrer
lhes pediram com instandas, que não au- a injuria que se faz a vosso filho, e que
gmentassem a divisão d’aquclla Igreja, que vos encheu d’ira contra os que lhe negam
Jesus Christo, e os apostolos lhes haviam o devido acatamento; pois não duvideis
deixado, e que as dissensões, c uma vergo­ que o Deus do Universo não aborreça da
nhosa paixao de dominar dilacerára por mesma sorte os que blasphemam contra o
tantas partes. seu unico filho, não lhe tributando as mes­
mas honras, que a elle, e que deixe de abo-
1 Sozom. I. 6, c. 20.
2 Ibid. c. 39, 40. 1 Sozom. /. 7, c. 2. Socrat. I. 5, c. 2.
ARI 22i
minai-os como ingralos ao scu salvador, e nortancia encontrar a sua doutrina nos pa­
bemfeitor.» 1 Theodosio, ao qual impediam dres dos tres primeiros séculos; principal-
razoes de estado, de prohibir os conventi- mento no governo de Theodosio, pois que
culos dos arianos, cedeu a este apologo do este principe se propunha a julgar pela sua
sancto, e promulgou uma lei, em que pro­ authoridade todos os partidos.
lubia as assembleias dos hereges. Não se havendo, pois, ajustado os chefes
Era o partido dos arianos nimiamente de parcialidade cm fôrma alguma nas suas
poderoso, e extenso, para que estas leis conferências, trouxe cada um por escripto
houvessem de se executar com exacção. o scu formulario de fé: Theodosio, depois
Continuaram os conventiculos, inquietaram de examinai-os, declarou que era sua von­
os catholicos, e se tornaram mais denoda- tade, que se seguisse a profissão de Nicea,
dos. Além d’isto se tinham levantado ou­ prohibiu os conventiculos dos hereges, lan­
tras heresias; e no interior do império ha­ çou fóra das cidades a uns, notou a outros
via uma agitação surda, mas violenta. com a infamia, c os despojou dos privilé­
Emprchcndêu Theodosio restabelecer o gios de cidadãos.
socego, unindo todos estes partidos: man­ Comludo não foram observadas cm ri­
dou vir os chefes á sua presença, a fim de gor estas leis. Theodosio as olhava como
obrigal-os a convir n’uma regra conunum, comminatorias, destinadas a intimidar seus
que podesse servir para julgar da verdade, subditos, a conduzil-os á verdade, e não a
ou falsidade das suas opiniões; c propuz a punil-os. Por mais d’uma vez renovou es­
todos os partidos, c principalmente aos tas leis, promulgou outra cm que prohibia
arianos, que tomassem como regra a Escri- se disputasse em público sobre a religião;
ptura, e os padres que precederam a Ario. e ultimamcnlc, pelo fim do quarto século,
Não agradou aos arianos este meio, que exterminou de Constanlinopla todos os bis­
havia sido suggcrido ao imperador por um pos, e sacerdotes arianos.
defensor da consubstancialidadc, e vendo o A imperatriz Justina, que reinava na Ita-
principe que ellcs rejeitavam a authori- lra, na llliria, e na Africa, debaixo do no­
dade dos padres, que tinham precedido o me de Valcnciniano, seu filho menor, quiz
concilio niccno, eq u e as conferências nada restabelecer o arianismo, e prohibiu, com
ultimavam, ordenou a cada um dos chefes pena de morte, que se inquietassem os que
do partido que désse por escriplo o formu­ faziam profissão de seguir a doutrina do
lário de fé que queriam professar. concilio de Rimini: mas foram vãos osseus
D’esta maneira, recusavam os arianos, esforços: a profissão do arianismo era já
110'quarto século, estar pela doutrina dos velha, novas heresias absorviam uma gran­
padres que precederam a Ario acerca da de parte do espirito de parcialidade, c de
consubstancialidadc do Verbo; c vem-se disputa; todos estes partidos se concentra­
nos dizer no décimo sétimo, que os padres vam, por assim dizer, c os arianos não po­
que viverem antes do concilio de Nicca, dendo estender-se mais, se voltaram d al­
eram arianos, ou não conheciam a con- guma sorte sobre si mesmos, c para dar
substanciliadadc do V erbo! Sc tivesse ha­ alimento á inquietação do seu espirito, agi­
vido alguma obscuridade no modo com taram entre si novas questões, dividiram-
que os padres se exprimiram sobre este se c formaram diversos ramos. Examina­
dogma, por ventura os arianos, que pelo ram, por exemplo, se o nome de Pae con­
menos eram também exercitados como os viría a Deus, antes que elle tivesse pro­
catholicos na controversia, não teriam achar duzido a Jesus Christo, sustentando uns a
do n’esses padres os seus dogmas, da mes­ affirmativa, e outros a negativa, se formou
ma sorte que os catholicos? um scisma entre elles: outras divisões suc-
N’aquclle tempo nada poderam contra cederam a estas, c os partidos se multi­
este dogma as passagens dos padres dos plicaram. Estes partidos não se communi­
tres primeiros séculos, com que hoje se caram mais entre si, chamaram-se nomes
presume combater a consubstancialidadc odiosos, fizeram-se ridiculos, cahiram no
do Verbo, c teremos nós a ousadia de crér despréso, e insensivelmente se extingui-
que entendemos melhor estas passagens, c ram,'dc sorte que no fim do quarto século,
a doutrina dos tres primeiros séculos da já os arianos nao tinham bispos, nem igre­
Igreja do que os mesmos catholicos, c jas no imperio rom ano.1 Todavia se con­
arianos do terceiro c quarto século? Sem servaram ainda alguns particulares cccle-
dúvida havia entre os arianos homens
conspicuos, e aos quacs seria de muita im-
1 Vejam-se estes fa d o s em Socrates, So-
1 Sozom. I. 7, c. 6. zomenio e Theodoreto.
m A RI

siasticos, c leigos que seguiam a doutrina dures de examinarem os dogmas recebidos


de Ario, mas já não faziam corpo. em todas as communhòes chrislãs, c rejei-
' Ainda subsistia o arianismo eutre os go- tal-os, se iTollcs não descobria os caracte­
dos, aonde cllc começara a estabelecer-se res da revelação, ou os não achava absur­
desde o tempo de. Constantino, entre os dos.
vandalos, que se asscnhorcaram d’A frica, Esta liberdade fez renascer logo entre os
e entre os borguinhezes, aos quacs os go- protestantes, entre outras heresias antigas,
dos o haviam communicado. Os godos não o arianismo. Capicon, Cellario, outros lu-
tinham menos zelo pela dilatarão do aria­ theranos, e Scrveto, guiados por estes prin­
nismo que pela do seu imperio: elles fize­ cípios, submetteram ao seu exame particu­
ram degolar.a maior parte dos bispos ca­ lar todos os dogmas da religião, rejeitaram
tholicos, c empregaram contra a religião o Mysterio da Trindade, e combateram a
catholica tudo o que o fanatismo podia ins: consubstnncialidadc do Verbo.
pirar a uns barbaros, que nem conheciam I)erramou-se o arianismo por Allema-
a humanidade, nem a justiça. 1 nha e Polonia, formou infinidade de seitas,
Os borguinhezes, que se* estabeleceram passou á llollanda e Inglaterra, por Okin,
nas Gallias nos princípios do quinto sécu­ Bucero, ele.
lo, c que tinham recebido a fé catholica O duque de Sommerset, tutor de Eduar­
poucos annos depois, eahiram no arianis­ do vi, os tinha chamado para ensinar em
mo pelo meio do quinto século. Porem Inglaterra a doutrina de Zuiuglio: mas Bu­
sendo estes menos barbaros que os go­ cero c Okin, que pregavam em público o
dos, alguns prelados conspicuos pelas suas zuinglianismo, ensinavam o arianismo nas
luzes, como pela sua piedade, tacs como suas conversões e conversações particula­
Sancto Avito, impugnaram o arianismo com res.
tal força, que converteram Segismundo, rei Alguns dos seus discipulos, mais zelosos
dos borguinhezes, e restauraram entre es­ que os mestres, o pregaram publicamente,
tes povos a religião catholica.2 e foram queimados pelos apostolos da re­
Os francezes receberam também o aria­ forma.
nismo, quando renunciaram a idolatria. A Depois da morte de Eduardo vi,a rainha
passagem d’esta para o arianismo é mais Maria lançou fóra da Inglaterra os estran­
fácil que para o dogma da consubstan­ geiros, que eram inais de trinta mil, con­
ciai idade. Quando Cio vis se converteu, o taminados de differentes heresias; mas es­
arianismo se extinguiu insensivelmente na tes estrangeiros deixaram o fermento, c o
França. germen do arianismo.
Havendo emprehendido a rainha Maria
restabelecer a religião catholica na Ingla­
DA nESURREIÇÃO DO ARIANISMO NA EUROPA terra, empregou contra os protestantes toda
a severidade c rigor, que pôde inspirar
o mais ardente zelo: então os dous parti­
Sahiu o arianismo do seio do fanatismo dos, catholico e protestante concentraram,
accendidopela reforma: um predicante ana- por assim dizer, todos os odios, todos os
baptista se inculcou neto de Deus, negou a interesses, c quasi todas as paixões; os aria­
divindade de Jesus Christo, e fez discipu­ nos occuparam menos os cuidados; todo o
los. 3 Logo os princípios da reforma con­ zelo de Maria se dirigiu contra os protes­
duziram alguns theologos a este erro. tantes, c o mesmo Cranmcr, arcebispo do
A Escriptura Sagrada é entre os protes­ Cantuaria, que fizera queimar os arianos,
tantes a unica regra de fc, a que elles se morreu n’uma fogueira como protestante.
devem submetter, e cada particular o in­ No reinado de Izabcl, as fogueiras se
terprete da Escriptura, e por consequência apagaram: ella restabeleceu a religião pro­
o juiz das controvérsias que se levantam testante, tolerando os que não a contradi­
acerca da religião. ziam.
Por este principio fundamental da refor­ N’esta cspccic de paz, tornaram ■a ap-
ma, cada particular tinha o direito de jul­ parecer todas as pequenas seitas, que a
gar a igreja catholica, e ainda ós reforma- agitação violenta do reinado de Maria ti­
vera como suffocadas; mas temendo Izabel
1 Sidonius, /. 7, E p 6, édit. de Simond, que cilas alterassem a tranquillidade pú­
pag. 1023. blica, baniu os enthusiastas, anabaptistas e
2 Adonis Chronie, ad, an. 492, f. 6. Iii- arianos.
blioth. PP. édit. Ludg. 1677. Jacob i, que era instruído, escreveu con­
3 A rt, anabaptistas. tra elles, e queimou todos os que não pôde
ARI m
•converter, de qualquer qualidade que fos­ princípios do Evangelho, pelos quaes se
sem, e por mais serviços que houvessem poderia julgar da importância das contro­
feito ao estado. versias que havia entre elles. Para esto
Esta severidade, que deu victimas ao fim distinguiu os artigos que era forçoso
.arianismo, multiplicou os arianos. * crêr, dos que podem ignorar-se ou negar-
As perturbações e guerras civis, que as­ se, e foi de opinião que uma vez que se re­
solaram a Inglaterra, deram muita liber­ cebessem as cousas no essencial, não sc de­
dade ás differentes seitas no reinado de Car­ via altercar sobre a materia que ordinaria­
los i. mente era desconhecida.
Depois da morte d’estc, o parlamento Portanto, reduziu a crença necessaria
propriamente não consistia em mais que para ser christão aos pontos mais simples,
n’uma camara de communs, composta de e teve que para sel-o, bastava crêr que Je­
pequeno numero de membros, todos inde­ sus Christo 6 Filho unico de Deus: olha
pendentes, anabaptistas, ou afferrados a ou­ para a consubstancialidade do Verbo, como
tras seitas, entre os quaes dominavam os para um dogma desconhecido dos primei­
independentes. ros christàos, e assevera que no tempo de
Queriam estes reduzir o reino a repu­ S. Jusiino se tinham ainda por christàos os
blica, c que tivesse cada uma das igrejas o que criam que Jesus Christo era um ho­
poder de se governar a si mesma, inde­ mem nascido de homem: e que sc fallava
pendente da anglicana.2 Emquanto Crom- d’estes sem injurial-os, mas que depois que
wel foi o protector do reino, todas as dif­ se questionou acerca d’estas matérias, o ca­
ferentes seitas, que se formaram em Ingla­ lor da disputa, c os partidos que se forma­
terra, gosaram da tolerância. ram na igreja christã sobre este assumpto,
Consequentemente ao systema da iude- fizeram parecer importantes estas dissen-
pendencia religiosa, que n’ella se preten­ sões, assim com pouca difierença, como o
dia estabelecer, certo ariano appareceu com trabalho que ha em achar e polir os dia­
um cathccismó, que a seu parecer incluia mantes os faz mais preciosos: porque final-
todos os pontos fundamentacs, tirados, se­ mente, diz elle. bem que se tracte da natu­
gundo o que elle dizia, moramento da Es- reza divina, d’aqui não sc segue que tudo
criptura, sem commento, sem glosa, e sem o que d’ella se diz seja d’importancia. 1
consequências. Esta obra, dizia elle, era A universidade de Oxford condemnou
composta cm favor d’aquelles que prefe­ e fez queimar o livro do doutor Bury, c
riam o nome de christàos ao de qualquer esta sentença lhe adquiriu partido.2 Assim
outra seita. Como o cathecismo ensinava o sc disputou muito na Inglaterra acerca da
arianismo, fez amotinar todos os orthodo­ divindade de Jesus Christo, c a attenção
xos, que levaram as suas queixas á presen­ das pessoas que cultivavam as letras, e*se
ça de Cromwel. Apesar da lei, que se pro- dedicavam ao estudo da theologia se exci­
mulgára para tolerar todas as seitas, Crom­ tou, ê as conduziu para esta importaute
w el mandou prender o author do cathe­ materia. 3
cismo, e o metteu n’uma masmorra, aonde Mr. Loke. pouco satisfeito dos differentes
o deixou morrer á miseria; mas não bus­ syslcmas de theologia que elle examiuára,
cou os arianos, que se conservaram occul- estudou a religião e seguiu n’cste estudo o
tamente em Inglaterra nos reinados de Car­ mesmo methodo que havia seguido no do
los, e de Jacob n. espirito humano. Resolveu procurar o co­
Tinha também feito progressos em Hol- nhecimento da religião unicaméntc na Es-
landa o arianismo, levado a cila pelos ana­ criplura Sagrada, para a qual appellavam'
baptistas, os quaes fizeram proselytos, e todos os protestantes, c renovou o senti­
com o favor da tolerância, que obtiveram mento do doutor Bury. *
á'força de dinheiro, se multiplicaram con­ Socino, e os seus sectarios, haviam asse­
sideravelmente nos fins do decimo sexto verado atrevidamente que antes do con­
século. cilio de Nicea os christàos tinham senti-
Quando o rei Guilherme resolveu con­
vocar o clero inglez, com o projecto de 1 UEvangile nud., etc. par un véritable
unir os protestantes, o doutor Bury se per­ Fils de VEglisc Anglicano., 1690, ín-4.° Esta
suadiu que o melhor meio de conseguil-o obra é escripta em inglez, e se acha fielmen­
seria expôr simplesmente os- primeiros te em francez na Biblioth. univers. t. 19,
pag. 29.
1 Hist. cTAngl. par Thoiras Abrcgé des 2 Ibid.
Actes de Rymcr. 3 Ibid.
2 Ibid. * Le Christianisme raUonnablc.
224 ARI
menfos conformes aos seus sobre a pessoa Mr. Wisthon, antes de dar principio ao*
do Filho de Deus; c posto que Episcopio seu exame, já tinha julgado: ellc se persua­
sustentasse a divindade de Jcsus Christo dira haver encontrado alguma difierença
contra Socino, comtudo attesta que o fa­ entre a doutrina dos tres primeiros sécu­
moso symbolo que traz o nome de ni ceno, los, e a da igreja anglicana acerca da Trin­
fòra ordenado no meio da perturbação e dade, c sem que elle o advertisse, tudo se
das disputas. 1 lhe representava debaixo da face que fa­
Zuicker se tinba affoutado a asseverar vorecia este seu primeiro juizo, que, por
que os padres de Nicea eram os authores assim dizer, se escondia a Mr. Wisthon, e
a esta doutrina; Curcellio pensou que as o resultado de todas as suas leituras fo­
razões de Zuicker eram solidas c sem ré­ ram os sentimentos d’Ario, que elle ensi­
plica; 2 e Sandio, qpe abraçara o novo aria- nou no seu Christianismo primitivo resta­
nismo, se empenhou em fortificar o senti­ belecido.
mento de Zuicker, dando á luz uma Histo­ Mr. Wisthon foi condemnado pelo clero
ria Ecclesiastica em que expunha os senti­ de Inglaterra, que o separou da igrejeà in-
mentos dos padres dos tres primeiros sé­ glcza, porque corrompia a sua doutrina, c
culos acerca da divindade do Verbo, e se o privou dos seus empregos; mas o gover­
ersuadiu provar que elles ensinaram uma no não o puniu com severidade, porque
outrina contraria á dos orthodoxos.3 ellc não violava as leis da sociedade civil.
Mr. Bullo refutou Zuicker c Sandio, os Pouco depois Mr. Clark pretendeu con­
quaes todavia acharam defensores cm In­ ciliar com o symbolo niceno a doutrina
glaterra. 4 dos arianos sobre a pessoa de Jesus Chris­
N’cstes escriptos se viram todos os' re­ to. i
cursos da erudição, e muitas vezes as ar­ A camara baixa do clero fez subir suas
gutias da logica empregadas, ou em de­ queixas contra elle; este para obviar as per­
fender, ou impugnar a consubstancialidade seguições, mandou um escripto á assem­
do Verbo. D’esta sorte ia o tempo fazendo bléia cm que declarava crer que o Filho
insensivelmente esta questão mais impor­ era gerado desde a eternidade; a camara'
tante, c excitando as attenções dos sábios alta íicou satisfeita com esta declaração.
theologos c philosophos. Na segunda edição da sua. obra, Clark
Mr. Wisthon, no principio do nono se- supprimiu quanto havia dito na primeira,
. culo, examinou esta questão, c creu achar para conciliar o seu systema com o sym­
difierença entre a doutrina da igreja dos bolo de Nicea; e jamais acceitou alg’um
tres primeiros séculos, e a da igreja an­ beneficio que o obrigasse a assignar este
glicana acerca da Trindade. Sentiu quanto symbolo. Os theologos inglezes impugna­
era importante este ponto, c se resolveu a ram os sentimentos de Mr. Clark; e esto
profundar tudo o que subministrava a an­ doutor os defendeu. 2
tiguidade divina e ecclesiastica, n’esta ma­ Associou-se Mr. Chub a Mr. Clark’ para
teria. Leu duas vezes o Testamento Novo, combaterem a consubstancialidade do Ver­
todos os authores ecclesiasticos, e todos os bo, pretendendo provar que o Filho fosse
fragmentos até ao fim do segundo século, um ente inferior ao Padre, o qual somen­
e rccopilou d’aqui tudo, o que era concer­ te era Deus. Chub dedicou a sua obra ao
nente á Trindade; e para que nada lhe fu­ cler o .3
gisse n’esta matéria, leu a defesa do con­ A rainha Maria restabeleceu os catholi­
cilio de Nicea por Bullo, e cotejou com cos em Inglaterra; c fez queimar os pro­
os authores que ellc citava os seus extra­ testantes. Izabel restabeleceu os protestan-
ctos. 5
1 La dòclnne de VEcriture touchant la
1 Instit. Theol. I. 4, sect. 1. Trinitc, en trois parties, ou Von rassemble,
2 Irenicum Irenicorum, Curcelleus, qua- ou l'on compare, ou Von explique lesprin-
ternio Dissert. cipaux passages de la Liturgie de VEgli-
3 Cliristoph Sandii Nucleus, Hist. Eccles. sc anglicane, par rapport à cette doctrine.
in- 4.° Lond. in-8.° 1712.
4 Defensio fidei Nicamce, de prim itiva et 2 Hist. des Ouvrages considerables et des
apostolicâ traditione, etc. cont. ZuicJcmm, Brochures qui ont paru de part et d’autre
Becueil des QEuvres de Bull, par Grabe, in- dans les disputes de la Trinité, depuis 1712,
fol. 1703. Jugement des Per es, etc., opposê jusqxCen 1720. Lond. in-8.° 1720.
à la defense de la Foi de Nicée, in-4.° 1695. 3 Tm Suprèmatie du Perc, etc., p a r Tho-
s Wisthon, Christianisme primitis réta- mas Chub, membre Laique de VEglise An­
bli. glicane.
ARI 225
tes, fez enforcar os catholicos, c expulsou a Clark por este haver declarado que cria
f os arianos. Jacob i, que adoptou a reforma, que o Filho de Deus fura gerado desde a
tolerou os catholicos, e queimou os arianos. eternidade 1
Hoje os arianos, condemnados pola igreja
ingleza, como hcrcgcs, nem sào pcsquiza- § I
dos, nem punidos.
O arianismo antigo, na sua origem, era
um erro de entendimento; teve o seu prin­ Princípios pelos quaes intentam os inimigos
cipio no meio das assembléias pacificas do da consubstancialidade do Verbo provar
clero da Alexandria; logo foi moderada­ que cila não seja um dogma fundamen­
mente impugnado e defendido, fazendo tal.
progressos, os bispos se ajuntaram, e foi
condem nado por ellcs; queixou-se Ario e 0 doutor Burv para unir as seitas que
achou defensores ardentes que tomassem dividiram a Inglaterra, e reduzir a religião
a peito os seus interesses, como também christã a certos pontos simplices c com-
zelosos adversarios. Condemnados que fo­ muns a todas as sociedades que se appelli-
ram Ario c os seus defensores, atacaram dam christãos, investiga que cousa s^eja o
o juizo da igreja, c fizeram uma facção. Evangelho que pregaram Jesus Christo, c
Ateou-se entre cíles o fanatismo, dividi­ os seus apostolos.
ram-se, c formaram uma multidão de sei­ Para havermo-nos de instruir sobre este
tas fanaticas. artipo, no sentir de Burv, não necessitamos
0 arianismo moderno, pelo contrario, sa- nem de logica nem de’ metaphysica, nem
hido do seio do fanatismo, foi no seu nas­ d’outras sciencias, nem também é necessá­
cimento o erro de um bando de enthu- rio lòr-se algum systema de theologia, pois
siastas que não raciocinavam; e é hoje que Nosso Senhor não respondeu áquelle
um erro systematico que se pretende apoiar que lhe perguntou que devia fazer para sal­
com a Escriptura, e com as luzes da razão var-se, senão as palavras seguintes:«Que é
mais apurada. o que está escripto na lei? Que lêdes vós n'el-
Assim não produz fanaticos actualmentc la?» Isto é, que não ha necessidade de Iér- .
este systema, mas allucina muitos dos que se o Evangelho, no qual se promcltc a sal­
se presam de raciocinar, e tem feito em In- vação, umas vezes á fé, outras á penitencia,
laterra taes progressos, que nos nossos outras a uma c outra juntamente; aquella
ias se fundou, a fim de impugnal-o, um le­ e fundamental mente a alliança a que de­
gado similhante ao que Bayle fizera em ou­ vemos unir-nos.
tro tempo para combater o alheism o.1 Mas que cousa é lei? Qual é o seu objc
As opiniões inglezas correm em França cto?
ha muito tempo: os sentimentos de Loke, A lei tem dous objectos, que são a pes
Wisthon e Clark acerca da divindade de soa em que crémos, e a doutrina que re­
Jesus Christo, não são alli desconhecidos; cebemos.
o author da obra intitulada Lettres sur Ia Na fé que devemos ter na pessoa de Je­
religion essenlielle, adoptou os seus princí­ sus Christo se hão de considerar duas cou-
pios, e por este meio se veem nas mãos de sas: a primeira consiste em saber que qua­
muitos leitores. Innumeras pessoas léem o lidade de pessoa quer Nosso Senhor que
Christianisme raisonnable, e portanto en­ nós creiamos; c a segunda comprehendor
tendí que depois de haver exposto a origem com acerto o que o mesmo Senhor crô
e progresso do novo arianismo, não seria em si.
inútil impugnar os seus princípios. Os titulos que toma Jesus Christo, ou que
São de duas sortes os novos arianos: uns lhe dão os apostolos, são: os de Filho do Ho­
créem que o dogma da consubstancialidade mem, o que ha de vir, o Messias, ou Chris­
do Verbo é problema, e que acerca d’elle o to, o Filho de Deus, etc.
erro não oxclue da salvação, nem também Como estes termos, tomados n’uma accc-
deve excluir da Igreja; outros, pelo contra­ pção vaga, podem convir a outras pessoas,
rio, asseveram que a consubstancialidade Jesus Christo se nomeia não sóraente o Fi­
''Io Verbo é um erro perigoso, contrario â lho de Deus, mas o seu Filho unico: este
vazào, á Escriptura, e á tradição: assim o titulo é a unção que ellc recebeu antes que
jjJcria Wisthon, que fez asperas reprehensões viesse ao mundo, e o eleva sobre todas as

1 Madamc Myer instituiu um legado pio 1 Veja-se toda esta disputa na Biblioth.
' de oito sermões contra o arianismo. Veja-se Ang. e dans M m oires Littéraires de la Gnui-
a Biblioth. Anglaise, t. 7. de-Brctagne.
15
226 ARI
naturezas a que a Escriptura chama Deus. consequência não se falhava da consub-
• Todos estes caracteres denotam uma stancialidade do Verbo, que é uma questão X
grandeza tão immensa, diz o doutor Bury, dilficilima, c infinitamente superior a capa­
que depois de havermos fóilo todps os es­ cidade daqucllcs, aos quaes Jesus Christo
forços para descurtinal-a inteiramente, na­ e os seus apostolos annunciaram priincira-
da mais nos resta que a convicção de não mcnle 0 seu Evangelho.
a poder comprehender. Emfim, segundo 0 doutor Bury, no tem­
Bem longe de que esta incomprehensibi- po de S. Justino tinham-se por verdadeiros
lidadc nos em peçadeter n'ellc a confiança christãos os que pensavam ser Jesus Chris­
que de nós requer; por esta mesma razão é to um homem nascido de homem.
que crémos mclle, assim como nos confia­ Loke, assim como 0 doutor Bury, fez
mos na luz, porque aquclla mesma luz que um extracto de tudo 0 que dizem de Jesus
deslumbra os nossos olhos, quando os fita­ Christo os seus apostolos no Evangelho, e
mos no seu manancial, nos descobre todos nos actos d’aquelles que pretendiam con­
os objectos sobre que ella cabe. verter, e por este meio imaginou alcançar
Eis-aqui quanto nos é necessario para quanto os apostolos requeriam dos chris-
crér em Jesus Christo. Não temos necessi­ tàos.
dade de conhecer mais da sua pessoa para Creu Mr. Loke, em consequência d’cste
crêl-o c obedeccl-o, assim como não é pre­ exame, que a religião christã tinha por
ciso ao viandante conhecer a natureza do base 0 dogma da redempção, c concluo que
sol para tirar d'clle as utilidades de que para conhecer a religião christã se devia
necessita: assim como 0 sol não alumia 0 examinar cm que consistia a redempção
mundo para attrahir 0 reflexo do diamante, do genero humano, isto é, 0 estado a que 0
ou os louvores do philosopho, da mesma peccado de Adão reduzira os homens, e
sorte 0 sol do alto não apparcce com al­ como Jesus Christo restituira 0 genero hu­
gum outro desígnio, senão para trazer a mano ao da graça primitiva.
saude da alma. Os que d’ellc julgam de ou­ Pcrsuadiu-sc que aquclle do qual Adão
tra maneira 0 deshonram muito, e negam decahira, era de perfeita obediência, e de­
mais verdadeiramente a sua divindade do signado no Novo Testamento pela palavra
que os hereges, pois que estes suppoem justiça. Durante este estado de obediência,
necessariamente alguma proporção entre habitava Adão no Paraizo terrestre, aonde
Deus e 0 homem. estava a arvore da vida, e d'clle foi expul­
Não é preciso que saibamos de Jesus so depois da sua desobediencia, perdendo
Christo senão aquillo, sem 0 que, c impos­ desde aquclle momento 0 privilegio da im-
sível crermos n’elle. mortalidade. Entrou pois a morte no mun­
O doutor Bury pretende provar pela res­ do; c eis-aqui como todos os homens mor­
posta que Nosso Senhor deu aos judeus, rem em Adão, toda a sua posteridade que
quando elles lhe disseram: «Porque razão nasceu fóra do Paraizo terrestre havia de
nos tens em dúvida por tanto tempo? Se és ser mortal.
Christo, dize-o claramente. » Veio Jesus Christo amumeiar j.o s ho­
Jesus Christo não lhes deu mais respos­ mens uma lei, cuja observância nao isém-
ta senão: * Que Deus era seu Pae.» Não cui­ pta da morte, mas lhes procura a felicidade
da em expôr os seus direitos, nada lhes diz de resuscitarem e de não poderem mais per­
do que elle fora em si mesmo antes de to­ der 0 privilegio da ímmortalidade depois
do 0 tempo, mas somente 0 que era relati­ d’esta resurreição.
vamente ao mundo; supprimiu 0 que exce­ D’aqui paása Loke a examinar qual era
dia a sua intelligencia, contentando-se em esta lei, á observância da qual se promet-
lhes dizer quanto era bastante para pro­ tia a Ímmortalidade, e que fazia a essencia
duzir n’elles uma convicção saudavel. do Christianismo. Creu elle descobrir que
Não se poderá duvidar d’este sentimento Jesus Christo e seus apostolos olhavam co­
no parecer do doutor Bury, se houver at- mo christãos todos os que criam que Jesus
tenção á simplicidade e ignorância d’aquel- Christo, Filho de Maria, era 0 Messias, e que
les a quem Jesus Christo annunciou prir nada mais pretendiam; portanto reduziu 0
meiramente 0 seu Evangelho, e á facilida­ essencial da religião christã a este unico
de com que os apostolos conferiam 0 ba­ ponto.
ptismo aos novos convertidos: a historia do Este artigo levava comsigo uma inteira
eunuco da rainha da Ethiopia, e tres mil submissão ao que Jesus Christo ensinara, e
pessoas convertidas n’um unico sermão de uma obrigação estreita de practicar 0 que
S. Pedro, provam que era jireciso saber elle tinha mandado: e èsta disposição do es­
muito pouco para ser christao, e que por pirito suppunha também, no sentir de Loke,
ARI 227
um grande desejo de conhecer o que Jesus homens, c que faziam a essencia da sua dou­
Christo ensinara, c de practicar os seus pre­ trina, c o fundamento do culto que viera es­
ceitos: mas é claro no seu parecer que nào tabelecer sobre a terra.
se sabia da submissão que fazia a essên­ O principio fundamental de Bury, e Lokc
cia do Christianismo, quando havia algum é pois absolutamente falso: vejamos agora
engano acerca da doutrina e dos preceitos se a eonsubstancialidade do Verbo faz par­
de Jesus Christo, c que por consequência te d’cstas verdades fundamentacs; e para
aqucllc que cria que Jesus Christo ensinara proval-o, mostrarei: l.° que o conhecimen­
ser consubstanciai a seu pac, devia crér a to da pessoa de Jesus Christo fazia uma par­
eonsubstancialidade; mas que os que criam te essencial do Christianismo; 2.° que com
que cllo ensinara ser uma creatura, deviam effeito Jesus Christo ensinou que clle era
rejeital-a. consubstanciai a seu Pae.
O author d’uma dissertação, que se acha
no fim da obra intitulada Ce Christianisme
raisonnable, pretende por este meio reunir l.° O conhecimento da pessoa e natureza de
todas as sociedades christãs, pois que todas Jesus Christo faziam uma parte essencial
reconhecem que Jesus Christo, Filho de Ma­ da doutrina que o mesmo Christo ensinou
ria, é o Messias, i aos homens.

ui Do Novo Testamento consta claramente


que Jesus Christo veio ao mundo para fa­
zer conhecer aos homens um Deus cm tres
Falsidade dos princípios expostos pessoas, que o culto por clle estabelecido
é fundado sobre as relações das mesmas di­
vinas pessoas, cssenciafe necessario ao ho­
Jesus Christo é representado no Novo mem para ser christão: assim Jesus Christo
Testamento como redemptor do gênero hu­ não se fez conhecer unicamente debaixo da
mano, mediador entre Deus c os homens, denominação vaga de Filho de Deus, ma
mestre para illuminal-os, c legislador que também nós deu noções claras da naturez
ha de prescrever-lhes um novo culto c uma ou essencia da sua pessoa, se era coctern
moral mais perfeita. É evidente que para c consubstanciai a seu Pae, ou tão sómcn
satisfazer a todos estes titulos, nào bastava uma simples creatura. Eis-aqui as provas
que Jesus Christo ensinasse aos homens 1.* O.culto que Jesus Christo veio esta
que era o Filho de Deus, ou o Messias. Je­ bolccer nào era sómente exterior, mas era
sus Christo tendo-se feito conhecer dos ho­ um culto principalmentc interno.
mens como o Messias ou como o Filho uni­ O homem não póde dar um culto interno
co de Deus, lhes ensinou verdades desco­ senão pelos juizos que fôrma o seu enten­
nhecidas, prescreveu-lhes um culto, e deu- dimento, e pelos movimentos do seu cora­
lhes leis; e nào bastava para ser christão ção, c só rende seus cultos a um ente, quan­
o crér que Jesus Christo, Filho de Maria, do por via dos mesmos juizos reconhece
fôra o Messias, era também indispensável n’clle grandeza, excellcncia c perfeição.
crér as verdades que clle viera revelar aos Como o culto que Jesus Christo veio en­
sinar se funda em espirito e verdade, ellc
1 A obra intitulada Le Christianisme não havia'de querer que o julgassem uma
raisonnable, foi traduzida em franccz por pura creatura, sendo consubstanciai a seu
Air. Costa, e a primeira vez impressa cm Pae, nem que o tivessem por verdadeiro
1696. O doutor João Eduardo escreveu con­ Deus, c eoelerno a seu Pae, sendo uma
tra cila um livro, intitulado Le socinianis- creatura produzida em tempo.
me démasque. Londres, ín-8.°, 1690. Air. Não era logo possível que os homens pe­
Lolce respondeu a esta obra com as seguin­ los seus juizos dessem um culto legitimo a
tes:—Premicrc defense du Livre du Christia­ Jesus Christo, «enão na conformidade do
nisme raisonnable contre les imputations du que o mesmo Senhor lhes fizesse conhecer
docteur Edouard, Lond. 1696, etc., et dans la da sua essencia, se clle era consubstanciai
meme année.Sccondc defense, etc. Ces defen­ a seu Pae, ou sómente uma mera creatura.
ses se trouvent dans Veiilion du Christia­ Logo nào podia Jesus Christo fazer-se co­
nisme raisonnable de 1715. On y a jo in t une nhecer dos homens debaixo da simples qua­
dissertation sur les moyens de reunir tous lidade de Filho de Deus, ou de Messias,
les chrétièns, et un Ti'aitc de la Religion sem expôl-os a cahir n’um erro funda­
des Dames. mental acerca da pessoa, a olhal-o cpmo
228 ARI
simples creatura, bcm c]ue fosse Deus, ou necessário que Jesus Christo instruísse os
a tributar-lhe as honras divinas, posto que seus discipulos; porque se ha de olhar como
fosse puramente homem. artigo fundamental num a religião um pon­
Dos affectos da nossa alma havemos de to, sobre o qual não póde haver engano,
dizer forçosamente o mesmo que acabamos sem que sc mude a essência da mesma re­
de dizer cios juizos do nosso entendimento: ligião, e sem o conhecimento do qual não
o homem rende um culto pelos merecimen­ se póde dar o culto que cila prescreve.
tos da sua alma, isto é, pelos a (Tectos de
respeito, reconhecimento c amor; estes, em
relação a Jesus Christo, hão dc ser essen­ 2.° Jesus Christo fez conhecer aos homens
cialmente diversos na conformidade dc ser que era consubstanciai a seu pae, c não
um Deus consubstanciai a seu Pae, ou de sc tinham por christãos os que não pro­
fessavam esta verdade.
ser uma simples creatura.
Honrar como uma simples creatura a Je­
sus Christo, Filho dc Deus, e Deus verda­ Que Jesus Christo tomou todos os titulos
deiro, é impiedade; honral-o como Filho dc c attributos do Ente Supremo, é um ponto
Deus coeterno, c consubstanciai a seu Pae, reconhecido por Wisthon, e Clark. Acha-
sendo simples creatura, c idolatria: por­ se expressa esta verdade no Novo Testa­
tanto era impossível que vindo Jesus Chris­ mento em tantas passagens e de.tantas ma­
to para ensinar os homens a adorar a Deus neiras que talvez não haja outro ponto de
em espirito e verdade, se fizesse conhecer doutrina, que n’ellc se ensine mais repeti­
debaixo d’uma denominação vaga, que po­ da ou expressamente: ora não se póde jul­
dia conduzil-os á idolatria ou á impiedade, gar melhor da importância d’uma doutri­
omittindo o mesmo Senhor os meios dc pre­ na, c da necessidade dc a crer, que pela
caver d’esta culpa os homens, dos quacs to­ frequente menção, que d’ella sc faz, pelo
davia clle exigia um culto. peso que sc dá ao que sc diz a seu respei­
2.° Jesus Christo veio ao mundo, não só to, e pelas diversas phrases com que sc diz.
jara fazer conhecer aos homens Deus Pae, S. João põe d’alguma sorte a Divindade
[ebaixo da simples qualidade dc crcador, de Jesus Christo como a base da religião e '
l conservador do universo, mas também do Evangelho: «No princípio, diz clle, era
para manifestar-lhes que a suaineflavel mi­ o Verbo, e o Verbo era Deus.» Esto apos­
sericórdia para. com clles enviou seu Filho tolo, que viu nascer a heresia de Cerintho,
ao mundo a fim de livral-os da morte, e do e d’Ebion, os quaes olhavam Jesus Christo
peccado: c como era cousa essencial para como um homem, lhes oppôz o seu Evan­
a religião que o homem conhecesse toda a gelho, que clle começou pelas mais preci­
grandeza da bondade c misericordia divina, sas e formaes declarações da eternidade,
ei‘a portanto indispensavelmenle necessa­ omnipotcncia e existência necessaria de Je­
rio fazer evidente se este Filho, que Deus sus Christo: recusou communicar-sc com
enviou ao mundo para remir o genero hu­ Cerintho, que não conhecia a divindade de
mano, era uma simples creatura, mais per­ Jesus Christo; e os apostolos, ou seus suc­
feita que as outras, q u uma pessoa divina, cessores immediatos, separaram da igreja
consubstanciai a seu Pae. christã todos aquellesque não reconheciam
Se Jesus Christo não tivesse preenchido esta grande verdade. Era pois a divindade
para com os homens outro ministerio mais ou consubstancialidade do Verbo no berço
que o de mero enviado, se unicamente vies­ do Christianismo um dogma, cuja crença
se para lhes revelar algumas ceremonias, se tinha por indispensável para ser verda­
pelas quaes Deus queria ser honrado, se­ deiramente christão, e não basta crér que
ria bastante fazer-lhes conhecer a verdade Jesus Christo, Filho dc Maria, era o Messias,
da sua missão; mas Jesus Christo é o me­ porque Ebion c Cerintho reconheciam este
diador dos homens, o seu sacerdote, o seu artigo.
Deus, e clles lhe devem um culto que não As pessoas, a quem os apostolos annun-
podem tributar-lhe sem pierfeito conheci­ ciaram o Evangelho, dirão talvez, eram
mento da sua Pessoa, sem saberem sc è ignorantes, grosseiras, c não podiam com-
verdadeiro Deus consubstanciai a seu Pae, prehender o mysterio da encarnação. Toda
ou uma creatura, porque o cuíto que os a força d’este argumento provém da igno­
christãos devem a Jesus Christo é essencial­ rância em que se suppoem os judeus ácor-
mente differente, segundo Jesus Christo é ca da pessoa do Messias, c é falso que elles
verdadeiro Deus, ou uma simples creatura. estivessem n’esta ignorância. Os judeus o
A consubstancialidade do Verbo é pois esperavam;' este objecto importava a todos.
um artigo fundamental sobre o qual era Os judeus conheciam os seus caracteres,
ARI 229
titulos c pcrfciçõcs, entendiam as prophe­ estas cousas tão claras para os judeus que
tias, que o annunciavam no mesmo sen­ deixassem de achar n^llas alguma obscu­
tido, que lhes deram Jesus Christo e os ridade c trabalho para comprchendcl-as, c
seus apostolos, do sorte que nào havia dif- d’aqui nasciam as perguntas que fizeram
ferença senão na applicação que Jesus a Jesus Christo. Porém os judeus moder­
Christo e os seus apostolos faziam das pro- nos se desviaram de todos os princípios da
phecias a Jesus, Filho de Maria; assim para antiga igreja judaica; c assim não admira
converterem os seus povos nào era preciso que clles olhem o Messias como um sim­
mais que provar que com eíTcito Iodos os ples homem; mas não deve julgar-se a
rasgos em que os prophetas annunciavam crença da antiga igreja judaica pela que
o Messias se verificaram cm Jesus Christo, tiveram os judeus depois da ruina de Jeru­
o que era facil de fazer cm um sermào. salém.
0 Messias era o maior objecto de todas Emfim, argucm-sc os catholicos com uma
as prophccias; c por meio das prcdicçòes passagem de S. Justino, que parece sup-
continuadas foi sempre crescendo a luz a pôr que a primitiva Igreja não olhava a
respeito d’cste objecto, á medida que se consubstancialidadc de Jesus Christo como
avisinhava o tempo da sua manifestação: um ponto fundamental.
assim, muito antes do nascimento de Jesus Como desde o tempo d’Episcopio todos
Christo, os caracteres específicos que ha­ os seus partidários repisam esta passagem,
viam de distinguir o Messias, deviam de es­ não me parece inútil examinal-a; é ella ti­
tar lixos e conhecidos entre os judeus ao rada do dialogo com Triphon.
tempo em que elle annunciou a sua dou­ «Mas, ó Triphon (diz S. Justino), não se
trina, sendo certo que a esperança do Mes­ segue d’ahi que Jesus não seja o Christo,
sias era entao mais viva c mais geral que ou o Messias de Deus; ainda quando eu
nunca. D’esta sorte vêmos que Jesus Christo não podesse provar que este filho do Crea
e os apostolos, quando faliam do Messias, dor do mundo existiu antes, que elle é Dcuí
allegam os oráculos do Antigo Testamento nascido emquanto homem da Virgem, um
como conhecidos e entendidos pelos judeus, vez quc/ se tenha mostrado que elle foi
c tomados por clles no mesmo sentido qué Christo' de Deus, seja além dhsso com
lhes davam Jesus Christo e os apostolos. quer que deva ser; porque se eu não moi
É certo que os judeus olharam a palavra trar que elle existiu antes, e que nasceu
ou o Verbo como uma pessoa divina. 0 homem, sujeito ás mesmas enfermidades,
principio do Evangelho de S. João faz d’isto que nós sendo carne, segundo o conselho,
uma prova (Socino não a impugnou; elle c vontade do Pae, o que poderá dizer-se
pretende sómente que esta pessoa seja um com justiça, c que eu n’isso errei, mas não
simples homem); ora que verosimilhança se poderá negar que elle não seja o Chris­
póde haver para que S. João, que era ju­ to, bem que appareça como um homem
deu c que escrevia principalmente para os nascido de homem, e que se aílirme que
judeus, usasse d’esta palavra n’uma acc-e- elle foi feito Christo por eleição; porque,
peão inteiramente differente da que ella ti- meus caros amigos, algum ha da nossa
nfia na sua nação? Ou se esse fosse o seu profissão que confessando ser elle o Chris­
desígnio, porque não diria elle uma só pa­ to, comtudo aífirmam que é homem, o que
lavra para o advertir? e, pelo contrario, não é totalmente o meu sentimento; e não
porque motivo principia como quem muito se acham muitos que o digam, sendo da
bem conhece que é percebido, e que diz cou: mesma opinião que eu sou: porque Jesus
sas notorias áquelles a quem escreve? Christo nao nos mandou- crer as tradições
Além d1isto, é constante pelos escriptores c doutrinas dos homens, mas o que publi­
judeus, por Phylon, c pelas Paraphrases caram os sanctos prophetas.»
Caldaicas, que ós antigos judeus olhavam Esta passagem de S. Justino, longe de fa­
o Verbo como uma pessoa divina; ora é vorecer a opinião d’Episcopio, o condemna.
:scm dúvida que a igreja judaica creu que O sancto faz alli um argumento a Triphon,
o Verbo era o Messias. 1 Não eram todas que se chama ad hominem. É claro que
n’cllc' sómente quer dizer, que quando Tri­
1 Juizo da antiga igreja judaica contra phon nào quizesse admittir que Jesus Chris­
os unitários sobre à Trindade, e sobre a di­ to era Deus, nem reconhecer a solidez das
vindade de Nosso Senhor Salvador. Lond. razões que expôz para proval-o, ainda a
1699. Esta obra está cm inglez, d'ella se causa dos christãos não seria desespera­
acha um excellente cxtractoi em francez, da, pois que ha quantidade d’outras pro­
Repub. des Letti'cs 1699. Nóvembre art. 3. vas, c grande numero de caracteres que
Decembre art. l.° cstíibclccem ser Jesus Christo de Nazareth
230 ARI
o Messias prodicto pelos prophetas, o que difficuldades concernentes á pessoa do Es­
elle confirma pela opinião dos cbionitas, e pirito Sancio; aqui nos occuparemos so­
d’outros hercges; os quaes, bcm que recu­ mente d aquclles que impugnam a divin­
sem confessar a Jesus Christo por mais de dade do Filho.
um simples homem, não deixam d’abraçar 1. ° Tem para si os novos arianos que o
a sua doutrina, como do verdadeiro Mes­ Filho procedendo do Pae não é indepen­
sias. dente, nem por consequência o Ente Su­
É claro ser este o verdadeiro sentido de premo, ou Deus, pois que a noção da di­
S. Justino, cn ão que deixe de ser provada vindade suprema inclue a existência ne­
a divindade de Jesus Christo, pois que elle cessaria c independente, a existência por
affirma expressamente que os prophetas c si mesmo.
o mesmo Jesus Christo ensinaram a divin­ 2. ° Elles convém que o Filho se chamo
dade do Messias. Deus na Escriptura, mas estão persuadidos
Porque S. Justino se exprime por estas que isto não seja tanto cm relação á sua
palavras, alguns dos nossos, faliando d’a- csscncia metaphysica, como por causa dos
quelles que olhavam a Jesus Christo como ministérios que elle occupa acerca dos ho­
um homem, presumem tirar d’aqui uma mens, sobre os quaes exercita os direitos
grande força para o seu argumento. da divindade.
•Porém este modo de fallar não quer di­ 3. ° Todas as operações do Filho, ou seja
zer que S. Justiuo suppozessc que se podia na creação do mundo," ou em todo o resto
ser christão sem crer que Jesus Christo da sua missão, são operações do poder do
era Deus, porque o saneio podia dizer Padre, que lhe foi commuhicado, e o Filho
d’aqucllcs, que negando a divindade de Je­ reconheceu sempre a superioridade do Pa­
sus Christo faziam profissão do Christianis­ dre, o que prova a sua dependenda, c que
mo, elles são dos nossos, por opposição aos por consequência não é Deus.
judeus, sem todavia os querer reconhecer 4. °' Jesus Christo antes da sua encarna­
Dor verdadeiros .christàos; assim como o ção não tinha um culto particular, toda a
nesrno sancto na segunda apologia, falian- adoração se dava ao Pae; sómente depois
io dos discipulos de Simào, Menandro, e que résuscitou é que teve um culto, e esse
Marcião, diz que a todos chamam chris- não era fundado senão sobre as relações
tãos, da mesma sorte que se dá o nome de que elle linha com os homens na qualida­
philosophos a diversas pessoas, bem que de de Mediador, Redemptor c Intercessor,
sejam de sentimentos inteiramente oppos- senão sobre a qualidade de Ente Supremo
tos. 1 ou existente por si mesmo.
5. ° Sc o Filho, ou a segunda pessoa, á
qual se dá na Escriptura o nome c titulo
OBJECÇOES DOS ARIANOS MODERNOS CONTRA O de Deus, fosse consubstanciai ao Pae, se­
DOGMA DA CONSUBSTANCIAL1DADE DO VERBO riam unidas iTuma só substancia simples
ambas as pessoas, c então se deveria di­
zer forçosamente como Sabellio, que esta­
Reconheceram os arianos modernos não vam confundidas e não eram mais que pu-
Ilu 1 V
/i lllúio VjuO uím. LOCwuv» r:?: denominações exteriores da substancia
todas as co.usas, que é uma substancia in- divina.
telligente, immaterial, sem composição, e G,° Perguntam os novos arianos quacs
sem divisão. Reconheceram também que a são os padres dos Ires primeiros sccúlos
Escriptura nos ensina que ha Ires pessoas que faliam da consubstancialidade do Fi­
divinas, Padre, Filho e Espirito Sancto, e lho, sobre que se fundaram os de Nicea,
que estas tres pessoas são distinctas; mas para conservarem o termo consubstanciai
pretendem elles que d’cstas tres pessoas o condemnado no concilio d’Antiochia?
Pae unicamente seja a substancia necessa­ 7. ° Também perguntam como vieram a
ria, ou a causa suprema que produziu tudo, ser artigos fundamcntacs a igualdade do
e que ás outras pessoas sejam creaturas. Pae c do Filho, que no tempo d’Origenes
No artigo Macedonio examinaremos as era o erro d’um pequeno, numero do ho­
mens, e a geração do Filho desconhecida
1 Judicium Eccleshe Calholicce trium no século do concilio de Nicca?
priorum soeculorum, de necessitate credendi 8. ° Affirmam elles que todos os padres
quod Dominus noster /. C. sit verus Deus, que precederam ao concilio de Nicea en­
assertum contra Simonem Episcopum, au­ sinaram que o Filho é inferior ao Pae.
ctore, Bullo. Recueiljles Ouvrages de Bull, Funda-so M. Wisthon principalmento so­
p a r Grabe, in fol. 170o. bre as constituições apostólicas, e nas car-
ARI 231
tas dc Sancto Ignacio. EIIc presume que na substancia divina; que não era uma
as constituições foram dictadas pelos apos­ producção essencial do Pac, e que por con­
tolos a S. Clemente, c o tinham sido aos sequência não era uma pessoa eterna como
mesmos apostolos por Jesus Christo, du­ elle, o cuja existência tom a sua origem .
rante os quarenta dias depois da sua rc- na mesma necessidade absoluta que faz exis­
surreição, insistindo M. Wisthon, em que tir o Pae.
se assim nào fosse, Jesus Christo haveria Para provar que Jesus Christo é uma
deixado a sua Igreja sem um corpo dc leis, creatura, porque tem uma existência inde­
o que se nào deve pensar. pendente, seria necessário mostrar que não
Quanto a Sancto Ignacio assevera que podia ser gerado necessariamente pelo Pae
sómente as suas grandes cartas sejam obra na mesma substancia cm que este existe,
d’estc padre, c nào as pequenas, que ao c que nào tem os mesmos attributos que
seu parecer foram truncadas. nascem da essencia do ente necessario, por­
Eu vou examinar e combater estas diííi- que se o Filho fòr gerado necessariamente
culdades. e esscncialmentepclo Pae na substancia di­
vina, se tiver todos os attributos necessários
do Ente Supremo, não se lhe póde recusar
O SENTIMENTO DE MTSTHON E CLARK a necessidade da existência, que faz a es­
É CONTRARIO Á ESCRIPTURA sentia do Ente Supremo, bem que seja ge­
rado pelo Pae.
Clark, no seu Tractado da Existência de
l.° Sustentam que sendo o Filho gerado Deus, prova que ha um ente necessario e
pelo Pac nào tem uma existência indepen­ existente, ou por si mesmo, ou pela neces­
dente, c por consequência nào é o Deus sidade da sua natureza, porque é impossi-
Salvador. Esta objecçào nào é mais que vel que tudo o que existe nascesse do na­
um sophisma. da; assim, pelos princípios d’este theologo,
Nada existe sem «uma razào que o faça a necessidade absoluta dc existir não se
existir; esta razào está ou na mesma cousa, oppòc á existência dependente senão quan­
ou fóra d’ella; se está na mesma cousa, do o ente, cuja existência dependente fosse
esta cousa existe por si mesma, e tem uma tirada do nada, o que se não póde aflirmar
existência independente; se a razào que faz de Jesus Christo, que é gerado necessaria
existir uma cousa está fóra d’ella, entào a e essencial mente pelo Pac, c por conse­
sua existência é dependente, e ella é pro­ quência eterno como elle, e não foi tirado
duzida. Se a cousa produzida é uma sub­ do nada. Por ventura não nos diz a Escri
stancia distincta da substancia da cousa ptura que nada do que foi feito se faz ser
producente, o ente produzido é uma crea­ elle, logo elle não foi feito, logo não c un
tura; mas se a cousa produzida nào é uma creatura, e assim nào póde dizer-se que
substancia distincta da cousa producente, Filho não seja o Deus Supremo por t
se é uma producção necessaria c essencial, uma existência dependente.
entào ella não ó uma creatura, é cocterna 2. ° É falso que a palavra Deus, quand
e consubstanciai ao seu principio, e a sua na Escriptura se applica a Jesus Christo,
existência, posto que dependente, não ô nnn rouba mais que uma «iomífioí»'*™ v o ­
uma imperfeição, c não a reduz- á classe tiva ás funeções que elle exerce a respeito
das creaturas. Ora os orthodoxos, que de­ dos homens. Não é por ventura o Filho
fendem a divindade de Jesus Christo, reco­ chamado Deus cm mil logares da Escri­
nhecendo que elle é gerado pelo Pae, sus­ ptura por um modo o mais absoluto? Não
tentam que é gerado necessariamente pelo lhe dá ella todos os attributos do Ente Su­
Pae antes de todo o tempo; geração que premo?
não inclue nem posteridade na existência, O mesmo Clark, e os seus partidários
nem dependencia que leve comsigo algu­ são obrigados a convir n’isto; c logo for­
ma imperfeição, e que por consequência çoso conceder que o Filho é consubstan­
-não impede que seja conveniente ao Filho ciai ao Pae, ou suppôr uma creatura infi­
de Deus o titulo de Deus Supremo. nita e soberanamente perfeita.
Assim, -para haverem de mostrar que o 3. a Tendo o Filho todos os attributos d
Filho é uma creatura, não basta que se Ente Supremo, não se póde dizer que elle
rove que elle tem uma existência depen- obre tão sómente por um poder empresta­
ente, é preciso fazer-sc vêr que esta dc- do, que suppõe não ser mais que uma
- pendencia levava comsigo alguma imper­ creatura.
feição, que o Filho era uma substancia dis­ 4. ° Como toda a harmonia da religiã
tincta do Pae, e não uma pessoa existente sc funda nas relações das tres pessoas da
232 ARI
Trindade, para com os homens, não 6 de ventura o dogma da consubslancialidadc
admirar que a Escriptura nos faça vôr a algumas similhantes? i
pessoa de Jesus Christo, principalmcnlc
sobre estas mesmas relações, c que o culto
que lhe tributa seja fuiidado sobre cilas: O DOGMA DA CONSUBSTANCIALIDADE
além d’isto é indubitavel que os christãos NÃO CONDUZ AO SABELLIANISMO
devem a Jesus Christo um culto igual ao
que se dá á pessoa do Pae, o que seria
uma idolatria real, se fosse certo que Je­ As pessoas da Trindade, no sentir de
sus Christo não era um Deus supremo, Sabcllio, nada mais eram que differentes
mas um Deus subalterno. denominações que se davam a Deus, se­
Como o doutor Clark ataca o systema gundo as diversas relações, debaixo das
comraum, unicamente pelo achar contrario quaes se consideravam; assim o Pae não
á Escriptura e á razão, pede o bom senso era mais que Deus, considerado como fa­
que examinemos se a razão c a Escriptura zendo decretos no seu conselho eterno, e
se accommodam melhor ao systema aeste resolvendo chamar os homens á salvação;
sabio theologo. quando este mesmo Deus descia á terra ao.
O menos que se deve esperar, e que seiose da Virgem, quando soíTria e morria
póde exigir d’um homem que rejeita uma sobre a cruz, se chamava Filho; e final-
opinião meramente pelas dificuldades que mente se appellidava Espirito Sancto quan­
a acompanham, é que aquclla que elle pre­ do se considerava Deus, como empregando
fere não esteja sujeita a objccções muito na alma toda a sua efficacia c poder para
maiores; porem este é o defeito do syste­ a conversão dos pcccadores.2
ma do doutor Clark. Assim, para que o dogma da consub­
Confessa elle que Jesus Christo tem as slancialidadc conduzisse ao sáboilianismo,
propriedades infinitas de Deus, a eternida­ era necessario ser impossível que existis­
de, omnipotcncia, omnisciencia, etc., n ’uma sem duas pessoas distinctas na substancia
oalavra todos os attributos, excepto a su- divinU, das quaes uma fosse o Pae, c outra
erioridade; porém como podem estas pro- o Filho, porque sendo possível que existam
riedades infinitas communicar-se a uma na substancia divina dous entes distinctos,
fatura, que necessariamente é finita? é evidente que não se segue a opinião de
Se Jesus Christo não é consubstanciai ao Sabcllio, suppoudü-60 que o Filho é con­
Jae, não póde comprehcnder-se como dei­ substanciai a seu Pae.
xe de ser uma creatura finita, e tirada do Pergunto eu agora aos novos arianos, se
nada, como o são todas as outras. Muito elles crêem que seja impossivcl que mui­
menos ainda póde comprehender-sc, como tos entes, que nem são substancias, nem
sejam devidas ao Filho as, mesmas honras parles da substancia, existam n’uma sub­
que ao Pae, se um e outro não são igual­ stancia simples?
mente participantes da mesma natureza di­ É uma contradicção manifesta suppôrem-
vina; entretanto que a Escriptura nos or­ se muitas substancias n’uma só, c simples
dena que tributemos a Jesus Christo o mes­ substancia; mas não o é suppôr n’uma
mo culto que a seu Pae. 1 substancia simples muitas cousas que nem
E como nos provará m r Clark, que, se­ sejam substancias, nem partes substanciaes
gundo o seu sentimento, não nos prescreva da substancia divina.
então a Escriptura um culto d’idolatria? Na verdade nós ignoramos como estas
Suppõe este doutor não haver mais que pessoas existam n’uma substancia simples;
um só objecto do culto divino, e suppõe mas por ventura sabemos nós como as fa­
ser preciso adorar o Filho que não é mais culdades de perceber, julgar e querer que
que uma creatura: suppõe não haver mais são entre si tao distinctas, existam na nossa
que um Deus verdadeiro, que existe per si alma, que é sem dúvida uma substancia sim­
mesmo, e dá o . titulo de verdadeiro Deus ples?
ao Filho, que não é mais que uma crea­ Na Escriptura se dão a Jesus Christo tão
tura. claramcnte os attributos do Ente Supremo,
Eis-aqui as dificuldades tiradas dos pro­ que sómente uma contradicção, ou um
prios termos de M. Clark; e contém por absurdo manifesto poderíam authorisar-
nos a duvidar da sua divindade; ora esta-

i Joan. I / 19, 37. Mare. I, 3. Luc. 2, 1 Veja-se VExtrait de Clark, Bibliot.


4.; ad. Hebr. 1, 10. Matt. 27, 9, 30. Psalm. choisie, loc. cit.
102, 15. Zach. 11, 22. Es. 40, 1. Osée 1, 7. 2 Veja-se o artigo Sabellio.
ARI 233
mos muito longe de perceber esta contra- tia na mesma substancia; pois que 6 im­
•dicção, ou este absurdo no dogma da di­ possível reconhecer que Jesus Christo seja
vindade de Jesus Christo. Deus, assim como seu Pae, e suppòr que
O absurdo, ou a contradicção d’um sen­ elle não tem muitas substancias divinas sem
timento somente, se vê quando se une o se crêr distinctamcnte que o Pae c o Filho
sim e o não, quando se affirma c se nega existem na mesma substancia, c por con­
uma mesma cousa; ora ninguem póde mos­ sequenda, sem se crêr na consubstanciali-
trar que no dogma da divindade de Jesus dade do Filho, posto que nem sempre se
Christo se affirmo c negue a mesma cousa, exprimisse esta crença pela palavra con-
uc se una o sim e o não. A maior parte substancialidade.
os que decidem com tanta altivez sobre i.° A Igreja, durante os tres primeiros
taes objectos, carecem absolutamente d es­ séculos, rendeu a Jesus Christo o culto que
tas noções, c não devem tomar a mal que se deve ao verdadeiro Deus, c separou da
eu os advirta, de que os clarkes e os wis- sua communhão todos os que negavam a
thons se viram embaraçados na defesa das divindade de Jesus Christo, como Cerintho,
suas opiniões, e que jamais se persuadiram Theodoto, etc.
que cilas fossem isemptas d’objecçòes. Ella não condemnava com menos rigor
Clark, e Wisthon, depois d’um serio e aquelles que, como Praxeas, Noecio, Sa-
profundo exame da doutrina da Escriptura bellio, etc., não impugnando a divindade do
e dos primeiros séculos da Igreja áccrca Filho asseveravam não ser elle uma pessoa
da divindade de Jesus Christo, abandona­ distincta do Pae.
ram o arianismo grosseiro, que o suppõe Reconhecia pois a Igreja que Jesus Christo
uma pura creatura. era Deus, e que era distincto do Pae. Ella
0 mesmo doutor Clark reconhece ex­ não podia reconhecer que fosse Deus c dis­
pressamente que não nos dizendo a Escri­ tincto do Pae senão na conformidade de
ptura de que modo o Filho deriva o seu crêr que o Pae e o Filho eram duas sub­
sêr do Pae, ninguem deve arrojar-so a de­ stancias ou duas pessoas differentes na
terminai-o, e que igualmcntc devem edn- mesma substancia.
surar-sc tanto os que dizem que o Filho foi É certo que a Igreja condemnou todos os
produzido do nada, como os que affirmam que admittiain muitos princípios distinctos
que elle é a substancia que existe per si e necessarios, que ella nunca reconheceu
mesma. mais que uma substancia eterna c infinita
Quanto distam dos clarkes e dos wis- existente per si mesma, c que fulminou ex-
thons estes que, sem titubear, hoje decidem comffiunhão contra Marciào, Hermogenes e
contra a divindade de Jesus Christo? 1 todos aquelles que suppunham muitas sub­
stancias infinitas c necessarias.
Não queria, pois, a Igreja que a pessoa
A CONSUBSTÀNCIALIDADE DO VEUB0 FOI SEM­ do Filho fosse uma substancia distincta da
PRE UM DOGMA FUNDAMENTAL ANTES DE substancia do Pae; ella cria logo que o Fi­
ARIO lho existia na mesma substancia em que
existia o Pae, e por consequência tinha de
fé que lhe era consubstanciai.
A Igreja, nos tres primeiros séculos, con- 0 erro de Sabellio, Noecio e Praxeas, que
demnava igualmente tanto os que admit- confundiam as divinas pessoas, o dos herc-
tiam muitos deuses como os que negavam ges, que admittiam muitas substancias eter­
a divindade de Jesus Christo. Reconhecia- nas e infinitas, e o que atacava a divindade
se, pois, pela igreja christã a divindade de de Jesus Christo, foram condemnados como
Jesus Christo de tal maneira que ella sepa­ novas heresias, sem que se hesitasse sobre
rava da sua communhão aquelles que re­ a sua condemnãção. Era muito dislincta-
conhecendo que Jesus Christo era Deus, mente crida a consubstancialidade do Ver­
confessavam muitos deuses; portanto não bo; pois que se Jesus Christo não é consub­
crfa ella que houvesse muitas substancias stanciai a seu Pae, é* forçoso ou que elle
divinas. não seja'Deus, e que Cerintho, Theodoto,
Logo tinha de fé a Igreja que Jesus Christo etc., tivessem razão para negar a sua di­
era consubstanciai a seu Pae, ou que exis­ vindade, ou se elle é Deus, não sendo con­
substanciai, é forçoso que seja uma sub­
1 Veja-se Clark, Doctrine de VEscripture stancia distincta da substancia do Pae, e
s u r la Tiinité. Wisthon, Christianisme re- que por consequência haja muitas substan­
tabli. Mémoives Historiques, sur la Vie du cias necessarias, como Marcião, Hermoge­
Docteur Clark, par Wtsthon. nes, e os manicheos o suppunham; ou, fi-
234 ARI
nalmcntc, se Jesus Christo não 6 nem urna dogma, c os bispos, que ao principio se­
pessoa distincta do Pae c consubstanciai a guiam as partes d’Ario, não negavam a
ellc, nem uma substancia distincta da sub­ consubstancialidade do Verbo, mas enga­
stancia do Pae, é preciso que seja. como nados por elle criam que o concilio d’Ale-
affirma Sabellio, o mesmo Deus considerado xandria dissera que o Filho não fôra ge­
debaixo de differentes relações, e não urna rado, e que Ario não tinha sido condcmnado
pessoa distincta do Pae. senão por sustentar que o Filho era gerado
Não podia, pois, a Igreja condemnar to­ c não era um ente que existia som gera­
dos estes erros, apenas ellcs appareceram, ção. 1
e sem vacillar, senão porque o dogma da O mesmo Euscbio diz que a geração do
consubstancialidade era crido c conhecido Verbo 6 ineífavcl, o que seria absurdo se
mui formal c distinctamente, bem que não acaso ellc suppozcssc ser o Verbo uma
se expressasse sempre pelo mesmo titulo creatura. Os bispos que, ao principio, to­
ou termo. maram o partido d’Ario, não criam, pois,
Professando, pois, a Igreja a consubstan­ então que o Verbo fosse uma creatura, e
cialidade do Verbo, estava igual mente afas­ sómente chegaram a este erro depois quo
tada do sabellianismo e do thrithcismo: se desavicram com Alexandre.
M. Lc Clerc caliiu n’um engano, sobre­ 4.° O embaraço em que se viam os aria­
maneira grosseiro para um homem tal como nos para dizer que o Filho não era consub­
ellc, quando disse que os padres que não stanciai a sèu Pae,- a sua má fé, a multi­
tinham pensado como Ario, reconheciam dão de formulas que ellcs fizeram successi-
tres substancias divinas. 1 vamente; todas as astúcias de que se ser­
viam para supprimir a palavra consubstan­
ciai, provaram que a consubstancialidade
NO NASCIMENTO DO ARIANISMO ENSINAVA A do Verbp se ensinava muito distinctamente
JGREJA DISTINCTAMENTE A CONSUBSTANCIA­ na Igreja, e que a doutrina d’Ario era
LIDADE DO VERBO desconhecida, nova c odiosa.
o.° Dividiram-se os arianos entre si; uns
queriam que o Verbo fosse simples crea­
1. ° Ario primeiramente combatia as ex­
tura, outros pretendiam que não fosse pre­
pressões de que usava Alexandre, fallando ciso dizer-se que o Verbo era uma simples
da Trindade, e provava que as tres divinas creatura. Era impossível esta divisão se a
pessoas não existiam n’uma substancia sim­ consubstancialidade não tivesse sido ensi­
ples, porque eram entre si distinctas como nada pela Igreja; porque os arianos tinham
o eííeilo da causa: o que no sentir d’Ario concebido um grande rancor contra os ca­
era impossível n’uma substancia simples. tholicos para que deixassem de pôr a Jesus
Pretendia Alexandre que o sentimento Christo no numero das creaturas, se tal se
d’Ario atacava a divindade de Jesus Christo. atrevessem, e não receiassem revoltar con­
Ario não se abalançou a negar a divindade tra si os fieis; ou se clles mesmos não ti­
de Jesus Christo; reconheceu que era Deus, vessem adhesão ao dogma da consubstan­
mas que era gerado cm tempo. cialidade.
s*innfV.çe miQ Jesus Christo fora produ­ Pela historia do arianismo se vê clara­
zido èm tempo, é sustentar que era Deus, mente que só á força de discursos o subti­
é uma contradicção manifesta, e bem se vê lezas se chegou a este erro, c por conse­
que os princípios d’Ario o conduziam a quência que elle não era a crença do povo
negar a divindade do Filho. Elle depois não christão nem a da Igreja.
reconheceu que Jesus Christo fosse Deus,
senão porque lhe era impossível o ncgal-o;
e por consequência se ensinava a divin­ NÃO SE PÓDE ARGUIR A IGREJA DE VARIAÇÃO
dade do Filho quando Ario cahiu no erro. ALGUMA ACERCADO DOGMA DA CONSUBSTAN­
2. ° O concilio d’Alexandria condemnouCIALIDADE
Ario por esta mesma razão, de que elle es­
tabelecia princípios oppostos á divindade
do Verbo; condemnação absurda se a di­ Dizem os arianos modernos que o conci­
vindade do Verbo fosse um dogma desco­ lio de Antiochia, congregado sessenta annos
nhecido pela Igreja. . antes do niceno, proscrevera o termo con­
3. ° Ninguem lia que argua o juizo substanciai
do que o concilio de Nicea consa­
concilio d’Alexandria d’introduzir um novo grou. Uma mesma palavra, diz M. Le Clerc,

i Le Clerc, Biblioth. chret. t. 3, pag. 99. 1 Theodoret. Hist. Ecclcs. I. 1, c. 5, 6.


ARI 235
podería ter, em tão pouco tempo, dous sen­ arianos, que pozeram todo o seu empenho
tidos lào diíTerenlcs? Dir-sc-ha que os pa­ cm tirar do symbolo de Nicea a palavra
dres de Nicea ignoravam o que se passava consubstanciaicomtudo nunca se atreve­
cm Antiochia? Uu, diz M. wistlion, teriani ram a afllrmar que fura condem nada; c se­
ellcs uma nova revelação? ria possível que ellcs ignorassem que o
Respondo: primeiro que este canon do concilio d’Antiochia celebrado sessenta an­
concilio sobre quem Wistlion e Lc Clere nos antes d’Ario, a tinha condemnado? É
fundam o seu triumpho, parece supposto. portanto muito verosimil que o concilio de
Não temos hoje as actas do concilio d’An- Antiochia não condemnasse com eíTcito a
tiochia, c só sabemos que elle condemnasse pa 1avra cons ubsta ncial.
a palavra consubstanciai por vir citado este Respondo: segundo que se é verdade que
facto n’uma carta do concilio d'Ancyra. o concilio d’Antiochia condemnou a palavra
Compunha-se este concilio de bispos, que consubstanciai não foi no inesmo sentido
por amor da paz ou por lisongearem Con- em que a tomou o concilio de Nicea, por­
stancio, queriam conservar o dogma da di­ que nem os mesmos arianos depois da carta
vindade de Jesus Christo, c supprimir a pa­ do concilio d’Anliochia se serviram da con­
lavra consubstanciai. EUes analhemisavam, dcmnação d’aquelle termo contra os ortho­
pois, a doutrina d Ario, e condemnaram a doxos.
palavra consubstanciai. Informaram-os da Se com eíTcito Paulo de Samosata sc ser­
sua decisão, e na carta escripta em nome viu da palavra consubstancialj era n’uma
do concilio se diz, que o concilio d’Antio­ accepção inteiramente contraria ao sentido
chia tinha condemnado a palavra consub­ cm que se tomava no concilio de Nicea.
stanciai. Não temos mais prova da celebra­ Paulo de Samosata, que não se poupava a
ção do concilio d’Antiochia do que esta diligencias para roubar a Jesus Christo o
carta escripta por ordem dos padres do de nome c titulo de Deus, sc acaso se serviu
Ancyra. . do termo consubstanciai, foi sómente nc
Refere esta carta que os bispos do con­ sentido seguinte:
cilio d’Antiochia depois da condcmnação «Se o Filho é consubstanciai ao Pae com-
de Paulo de Samosata, escreveram uma vós catholicos o asseveraes, seguir-sc-h;
cm que declaravam haverem-no condemna­ d’aqui que a substancia divina é dividi d:
do por asseverar que o Filho e o Pae eram cm duas parles, uma das quaes c o Pae, c
o mesmo Deus. Eis aqui, segundo o author outra o Filho, c que por consequência ha
da carta do concilio d’Ancyra, a razão que alguma substancia divina anterior ao Pae
oíTerecem do seu juizo contra Paulo de Sa­ e ao Filho, e que depois so dividiu em duas.»
mosata os padres d’Antiochia. Os padres d’Antiochia lendo horror a uma
Eusebio nos conservou um grande fra­ similhante consequência, e d’outra parte fa­
gmento d’esta carta, em que dizem os pa­ zendo pouco caso dos termos, uma vez que
dres do concilio que condemnaram Paulo se conservasse o fundo da doutrina, creram
de Samosata por sustentar que o Filho viera que para tirar todo o pretexto ás cavilaçòes
da terra c não é de Deus. d'estc herege, se devia prohibir o uso da
Sancto Hilário 1 e Sancto Anastacio não palavra consubstanciai quando se fallassc
viram esta carta do concilio d’Antiochia de Jesus Christo.
tal qual era cilada na do concilio d’Ancyra; Vindo depois os arianos, c negando a
portanto não c provada esta condcmnação mesma cousa, que sc exprimia por este ter­
do termo consubstanciai no concilio ^A n­ mo, isto é, a divindade do Filho, os padres
tiochia, senão por um author que viveu do concilio de Nicea julgaram a proposito
mais de cem annos depois d’elle, que não renovar o uso d’uma palavra de que se ha­
a viu, ou que a falsificou; pois que se deve viam servido os doutores antes do concilio
dizer aos padres do concilio d’Antiochia o d’Antiochia, c que sómente fòra prescripta
contrario do que ellcs dizem segundo o fra­ para não dar causa ás argucias de Paulo
gmento que Eusebio.nos conservou. de Samosata.
Nada so encontra n’este fragmento que
seja contrario á palavra consubstanciai: c OS PADRES DO CONCILIO DE NICEA EXPRIM I­
poderá crêr-se que Eusebio não tivesse visto RAM CLARAMENTE O SEU JUIZO ACERCA DA
na carta do concilio d’Antiochia a condc- DOUTRINA d ’a RIO, SEM QUE DEIXASSEM AL­
nmação d’um termo por cuja suppressão GUM EQU1Y0C0 NA PALAVRA GONSUBSTAN-
elle tomou tantas fadigas? ou se porventura CIAL
a viu será crivei que o supprimisse? Os
Courcellcs c M. Lo Clcrc presumem que
1 S. Hil. de Synod. pag. 1196. os padres do concilio de Nicea não pensa­
236 ARI
ram acerca da consubstanciai idade do Ver­ consubstanciai jamais se usou senão para
bo como nós pensamos hoje, c que elles significar individuos da mesma cspccie; as­
créram que o Filho era consubstanciai ao sim diz o concilio de Calcedonia, que o Fi­
Pae, por ser uma substancia similhante á lho é consubstanciai ao Pae, segundo a di­
substancia do P a e ;1 mas esta opinião é des­ vindade, c consubstanciai a nós segundo a
tituída de provas e de fundamento. humanidade.1
Muito antes do concilio de Nicea alguns Respondo ser verdade que os authoros
simples fieis accusaram S. Dionisio ^A le­ profanos regularmente se serviram da pala­
xandria de não crer que o Filho era. con­ vra consubstanciai para significarem sub­
substanciai ao Pae. O papa c o concilio de stancias d’uma mesma cspecie, mas lemos
Roma receberam as suas accusaçõcs, e de­ visto que esta palavra foi da mesma sorte
cidiram que o filho era consubstanciai ao usada pelos christãos para significarem pes­
Pae. Justificou-se o sancto, mostrando que soas differentes que existiam na mesma sub­
o haviam calumniado, c que cllc cria ser stancia.
o Filho consubstanciai ão Pae. Era logo esta Assim antes como depois do concilio de
expressão. n’esse tempo, a mais clara, a Nicea a palavra consubstanciai significava
mais natural, e a mais propria para expri­ ou substancias d’uma mesma natureza, ou
mir a fé da Igreja. pessoas, que existiam na mesma substancia.
0 mesmo Eusebio na carta que escre­ Em um c outro sentido foi usada pelo
veu depois do concilio de Nicea, confessa concilio de Calcedonia: no segundo, para
que os antigos padres se serviam do termo exprimir a consubstancialidadc do Verbo;
consubstanciaij e S. Pamphilio fez vêr que no primeiro, para significar que o corpo de
Origcnes ensinara cm termos formaes que Jesus Christo era da mesma essencia que o
'O Filho era consubstanciai ao Pae. 2 nosso.
Os esforços que fizeram os arianos para Seria necessario que M. Le Clerc fizesse
cortarem no symbolo de Nicea a palavra vér que o concilio de Calcedonia não to­
consubstanciai provam sobremaneira que mara a palavra consubstanciai no primeiro
ella exprime clarissima eexactissimamcnte sentido, mas isso é o que é falso: os padres
a fé da Igreja, e quando tivesse havido al­ do concilio de Nicea ensinaram pois a con-
guma obscuridade n’csta expressão, os pa­ substancialidade tal qual nós hoje a con­
dres do concilio de Nicea a tinham dissi­ fessamos.
pado.
Elles còm cífeito declararam que esta ex­
pressão: o Filho é consubstanciai a sm Pae, OS AUTIIORES ECCLESIASTICOS QUE PRECEDE­
não deve ser tomada no sentido que se lhe RAM AO COXCILIO DE NICEA, E ENSINARAM
dtá quando se falia dos corpos ou dos ani- A CONSUBSTANCIÀLIDE DO VERBO
macs, pois que esta geração não se faz nem
por divisão, nem por troca, nem por con­
versão da substancia ou da Yirtude do Pae, Desde o concilio de Nicea, o dogma da
nem d’alguma outra maneira que denote consubstancialidadc do Verbo foi ensinado
qualquer passibilidade, e que nada de tudo constantemente pela Igreja. Pensaram os
isso poderia convir a uma natureza não ge­ socinianos que era absurdo pretender que
rada, qual é a do. Pae: que este termo con­ um dogma forjado n’estes ultimós séculos
substanciai denota unicamente que o Filho fosse verdadeiro assim, posto que elles fa­
de Deus não tem similhança alguma com çam pouco caso da tradição dos padres, pro­
as creaturas.»3 curaram achar uma época antes da qual
Poder-se-ia exprimir mais claramente o não fosse conhecida a consubstancialidadc
dogma da consubstancialidadc, tal qual a do Verbo, e assentaram esta época antes
Igreja hoje o ensina? E não é evidente que do concilio niceno.
se o Filho fosse uma substancia differente Ousaram pois Socino, Sandio, c Zuicker
do Pae, elle deveria ser produzido d’algu- sustentar que os padres dos tres primeiros
ma das maneiras que o concilio excluo? séculos tinham sido arianos. Clark, Wis-
Porém diz AI. Lo Clerc que a palavra th on ,2 e os seus sequazes adoptaram este
juizo acerca da doutrina dos padres, ò os
1 Courcelles, Quaternio Dissert. Le Clerc, arianos modernos entendem que os padres
Defenses des Sentimens des Théologiens de dos tres primeiros séculos não conheceram
Hollande, Lettre 3. Bibliot. Ch. t. 3, art.
1, art. ciit. ep. 3, t. 3. 1 Le Clerc, loc. cit.
2 Theod. Hist. Eccles. I I, c. 12. 2 Christianisme prim itif rétabli par Wis-
3 Act. Cone. Nic. Act. 12. ton.
ARI 237
o dogma da divindade do Verbo tal qual os scmbleia se no exame das questões se teria
orthodoxos o ensinam prcscntcnicnle. Era respeito aos padres que viveram antes das
necessario ou que o erro prevalecesse no divisões que perturbavam o Christianismo,
concilio de Nicca, c por consequenda se ou se rejeitariam ccxcommungariam a sua
deviam pôr as cousas no primeiro estado, doutrina.
ou que fosse certo que os padres do con­ 0 orthodoxo que dera o conselho estava
cilio niccno fizessem um artigo de fé d’uma persuadido que ninguem ousaria rejeitar a
cousa sem a qual os seus prodecessores ti­ doutrina dos padres, e que d’esta sorte bas­
nham sido verdadeiros christàos c grandes taria produzir as suas passagens, o que era
sanctos; em consequência de que não ha­ facil, para mostrar a eternidade do Filho.
via obrigação de nos submettermos a um Teslimunharam muita veneração para
juizo que o concilio de Nicca por seu gosto com os padres todos os chefes das seitas.
impozera sobre as consciências. O imperador os instou perguntando-lhes se
E’ bem evidente quanto importa dissipar queriam lomal-os por juizes sobre os pon­
as nuvens que se esforçam a derramar so­ tos controvertidos. Elles então hesitaram c
bre a fé dos padres que precederam ao con­ fizeram vér que não queriam ser julgados
cilio de Nicea: e eu me proponho a tirar pela doutrina d’aquelles.1
a sua justificação da mesma historia do Não obstante a clareza da Escriptura so­
arianismo, e das suas obras. bre o dogma da consubstancialidade do
Verbo, queriam os arianos encontrar n’elle
que não era consubstanciai, e não acceita-
PRIMEIRA PROVA TIRADA DA HISTORIA vam outra regra para a sua fé. Estes mes­
DO ARIAXISMO mos arianos rejeitam a authoridade dos pa­
dres, e não querem que se decida a ques­
tão pelos seus votos. Logo, pensaram sem­
Os padivs do concilio d’Alexandria oppo- pre os arianos que os padres dos tres pri­
zeram aos arianos a novidade da sua opi­ meiros séculos tinham crido c ensinado a
nião, e o juizo de toda a antiguidade; mas consubstancialidade do Filho. Sobre este
Ario e os seus sequazes recusaram sub- ponto concordam com o concilio de Nicea,
metter-so a isto. 1 e a sua constante repulsa na admissão do
Todavia Ario sentiu que era importante juizo dos padres não permitte suspeitar que
para cllc não ensinar uma doutrina contra­ os do concilio de Nicca se enganassem ou
ria a toda a antiguidade, c ousou sustentar quizessem enganar os outros quando decla;
ue sómente seguia a que tinha recebido raram que o seu symbolo era conforme á
os antigos, e até d’Alexandre. doutrina dc toda a antiguidade.
Mas bem depressa renunciaram os aria­ M. Le Clerc sustenta que os padres do
nos a esta pretenção, e logo que os bispos concilio niccno não entendiam a doutrina
do concilio dc Nicea propozçram que Ario dc seus prodecessores, porque não poderam
e a sua doutrina se julgariam pela tradição combinar-sc senão depois de grandes alte­
c pelos padres, Eusebio requereu que se rações, o que prova com o testimunho de
deviam guiar pela Escriptura sern se atten­ Eusebio, o qual refere que sómente depois
dor a tradições incertas o duvidosas. 2 de muitas c reciprocas contradlcçõcs se for­
Estava seguramente Eusebio tanto em mou a sentença do concilio. 2
estado como os nossos arianos modernos Sobre esta diíDculdade de M. Le Clerc
de descobrir nos padres dos tres primeiros se deve ponderar o seguinte: i.° Uma gran­
séculos os sentimentos d’Ario; porém elle de faltfi dc logica c de critica, porque Eu­
recusa estes padres, c quer que Ario se sebio diz bem que os padres do concilio de
julgue sómente pela Escriptura. Nicea tiveram altercações muito vivas e
Era logo então bem evidente que a dou­ porfiadas; mas não nos diz que estas ver­
trina dos padres dos tres primeiros séculos sassem sobre o objecto de determinar se os
não favorecia o arianismo. padres que tinham precedido ao mesmo
Querendo Theodosio no fim do quarto concilio ensinaram a consubstancialidade.
século reunir todas as seitas de que o im­ Le Clerc é quem nol-o affirma de propria
pério se achava cheio, ajuntou os seus che­ authoridade, ou antes elle o addiciona ao
fes. dizer d’Eusebio.
Um defensor da fé de Nicea empenhou 2.° É sem dúvida que os arianos não
o imperador para quo soubesse d’esta as- quizeram estar pelos testimunhos dos pa-
1 Theod. Hist. Eccles. I. 1, c. 4. 1 Sowates l. 3, c. 10.
2 Sozom. I. 1, c. 17. 2 Euseb. Vita const. c. 7.
238 AUI
drcs: podcria M. Lc Clcrc ignorar eslc fa- séculos leem por objecto instruir os fieis,
cio? E sc o conheceu, como affirma elle combater os horeges, c defender a religião
que os padres do concilio de Nicea tinham contra os judeus e pagãos.
disputado por muito tempo antes d’assen- Quando elles exhortani os fieis á virtude,
tarem se os padres dos ires primeiros sé­ é pondo-lhes diante dos olhos um Deus
culos tinham crido o dogma da consubstan­ morto por clles, o qual lia de ser o seu juiz,
ciai idade? como foi o seu redemptor c o seu advogado.
Le Clerc depois de haver assegurado com Quando Cerintho, Ebion, Thcodoto, etc.,
tanta confiança que es padres do concilio atacam-a divindade do Verbo, Saneio Igna-
não entenderam o sentimento dos seus pro­ cio, S. Polycarpo, Saneio Ircnco, S. Justino
decessores acerca da consubstanciai idade, o outros muitos escriplorcs instruídos pelos
diz: «Mas supponhamos que clles a enten­ mesmos apostolos, combatem estes hereges
dessem facilmente em um tempo em que ha­ e os confundem com a authoriuade de Je­
via innumeravefs obras que hoje nos faltam, sus Christo c dos apostolos. 1
c muitos soccorros de que actualmcnte es­ Quando Praxeas, Noccio c Sabcllio ata­
tamos destituídos; d’aqui não se segue de cam a Trindade sustentando que as pessoas
sorte alguma que nos seja muito fácil com­ divinas não sfio mais que tres nomes diffe­
prehendor a doutrina do concilio de Nicca, rentes dados á mesma cousa, os padres im­
e dos que lhe precederam; para o que de­ pugnam este erro, e a Igreja o condemna.
veriamos ter actualmcnte cs mesmos soc­ Os mesmos padres que combatem Corin­
corros.» 1 tho, o qual negava que Jesus Christo fosse
Sc por confissão de Le Clerc estamos pri­Deus, c Praxeas, que não suppunha n’ellò
vados dos necessários soccorros para co­ uma pessoa distincta do padre, impugnam
nhecer claramente a doutrina dos padres igualmcnte Hermogenes, Marcião, c outros
que precederam ao concilio de Nicca, o se hereges, que admiltiam muitos princípios
os padres do mesmo concilio os tinham, ou muitas substancias necessarias; c pro­
como decide elle tão aflbutamente que cllesvam contra elles ser impossível que hajam
não entenderam os sentimentos dos padres muitas substancias necessarias, muitos en­
dos Ires primeiros séculos? tes soberanamente perfeitos.
Se Sandio, Courcellcs, etc., estivessem Suppunham pois estes padres: l.° que Je­
destituídos dos soccorros necessarios para sus Christo era verdadeiro Deus, 2.° que
a intelligencia exacta dos padres dos tres era uma pessoa distincta do Padre, 3.° que
primeiros séculos, poderiamos nós, sem ab­ o Padre c o Filho existiam na mesma sub­
surdo, preferir as suas asserções ao testi-stancia, c eu digo que estes tres princípios
munho e júizo dos padres dó concilio de estavam gravados bem distinctamcntc no
Nicca, que affirmam que seus prcdecesso- seu espirito, c eram claramcnte ensinados
res ensinaram a consubstancialidade do na Igreja.
Yerbo? Se elles tivessem crido que o Pac e o
Pensar-se-ha que os arianos, que os seus Filho eram dous verdadeiros deuses c duas
defensores, que um Eusebio, por exemplo, substancias differentes, não poderíam sus­
não estivessem em estado de notar as faltas tentar contra Hermogenes, Marcião, Apel­
dos padres do concilio na interpretação que les, e os manichcus, que não havia muitas
davam ás obras dos padres, que lhes haviam substancias necessarias e soberanamente
precedido? perfeitas, sem cahirem n’uma contradicção
Com tudo isso, Eusebio não os argue de que não podia escapar aos seus adversa­
interpretarem mal as passagens dos padres, rios. E se tivessem ensinado contra Ce­
insiste em que se não deve estar pelo seu rintho, Thcodoto, etc., ser o Filho um ver­
juizo, o que suppõe evidentemente que os dadeiro Deus, mas não consubstanciai ao
padres de Nicea não se enganaram na in­ Pae, Theodoto, Artemon, etc., os leriain ar-
terpretação das obras dos padres acerca da guido de se contradizerem, d’admittirem
consubstancialidade.2 muitos entes soberanamente perfeitos, e
muitos princípios eternos c necessarios, o
SEGUNDA PROVA TIRADA DAS PROPRIAS OBRAS que elles todavia tinham olhado como ab­
DOS PADRES surdo quando escreveram contra Hermo­
genes, Marcião, etc.
As obras dos padres dos tres primeiros Que ignorância c presumpção não deve­
ria suppôr-se nos padres que houvessem
1 Defenses des senlimens des Theolog. de
líoll. Lett. 4. i Euseb. liist. I 5, c. 20. IJycron. ad-
2 Theodoret, Hist. Eccl., l 1, c. 12. vers. Helvidium, c. 9.
ARI 239
callido cm tacs contradicções, c nos here­ INJUSTIÇAS E FRAQUEZAS DAS ODJECÇÕES DOS
ges que os não tivessem revelado nem ao ARIANOS MODERNOS CONTRA OS PADRES DOS
menos percebido! TRES PRIMEIROS SÉCULOS
i Porém os padres dos Ires primeiros se-
/ culos tinham erudição, eram bons logicos
e mathematicos, sabiam aprofundar um exa­ Antes do concilio de Nicea não se encon­
me, discutiam com cxactidão; e os hereges tram padres que deixassem d’ensinar que
d’ordinario não eram homens mediocres. Jesus Christo era eterno, Filho de Deus c
Este principio geral é applicavel a todos verdadeiro Deus, todos constantemente sup-
os padres, c particularmente a Tertulliano, poem a divindade de Jesus Christo c a sua
que defendeu também a Trindade contra consubstancialidade, ou seja combatendo os
Praxeas, e.exprimiu a consubstancialidadc hereges, ou defendendo a religião contra
do Verbo contra este herege com tal cla­ os judeus. A divindade c a consubstancia-
reza que não se esqueceu d’alguma das pre­ lidade de Jesus Christo é a base sobre que
cauções necessarias para prevenir qualquer se estabelece o culto que elles lhe tribu­
abuso que se podésse fazer das suas ex­ tam.
pressões. Vejam-se os artigos Praxeas, Her­ Reconhecem os arianos modernos todos
mogenesx Mar dão.- estes factos, que são irrefragaveis, mas as­
Provam os padres dos tres primeiros sé­ severam achar nos mesmos padres algu­
culos contra os judeus, que Jesus Christo mas passagens que parecem fazer de Je­
é o Messias promeltido, e que é Deus: S. sus Christo uma simples creatura, c por
Justino, Tertulliano, Origenes, etc., estabe­ confissão do mesmo Le Clerc, toda a ques­
lecem contra elles a divindade de Jesus tão sobre este objecto se reduz a saber de
Christo. 1 quaes d’estas passagens se deve conjectu-
Provado que foi por S. Justino unirem-se rar o sentimento dos padres, e quaes são
cm Jesus' Christo todos os caracteres de aquellas que hão de servir de interpreta­
Messias, e que este é verdadeiro Deus, não ção ás outras: se são as palavras que pa­
teve Triphon mais difíiculdado em conce­ recem dizer que o Filho de Deus não é eter­
ber como o Messias, Filho de Deus, c Deus no, as que se hão de tomar cm rigor, ou
clle mesmo, se dignou fazer-se homem, c as que parecem assegurar o contrario. 1
morrer pelos homens. Pela exposição que acabamos de fazer da
Em toda esta disputa não arguem os ju­ doutrina dos padres, julgamos já decidida
deus a S. Justino de combater o dogma da esta questão, porque suppondo os padres
unidade de Deus; portanto é claro que o nas suas obras contra os hereges a consub­
sancto ensinava duas cousas: a primeira, stancialidade do Verbo, e sendo cila com­
ser Jesus Christo verdadeiro Deus; e a se­ provada pelo culto que elles tributam a Je­
gunda não haver muitos dpuses. sus Christo, é evidente que o dogma da con­
O mesmo que acabamos de dizer de S. substancialidadc estava claro e distincta-
Justino se applica cxactamente a Tertullia­ mente impresso no seu espirito. A sua re­
no, ao qual também os judeus não' arguem ligião seria essencial mente diversa, e elles
de crêr muitos deuses. teriam empregado contra os hereges c ju­
0 judeu contra quem disputa Origenes, deus princípios essencialmentc differentes,
ataca a religião christã com o fundamento se crêssem que Jesus Christo era uma crea­
de ser absurdo adorar um Deus morto, e tura; portanto não era esse o espirito dos.
humilhado. Origenes responde ás dificul­ padres.
dades do judeu, suppondo que em Jesus As passagens nas quaes parece que elles
Christo está unida a natureza divina e a na­ não faliam do Filho ou de Jesus Christo se­
tureza hurnaua, sem temer que lhe redar- não como d’uma simples creatura, não con­
! guam que clle admitte muitos deuses. Além tém pois o sentimento dos mesmos padres;
ao que, é evidente que todas as objecçõcs se ellas se tomam á letra, devem logo in-
ue Celso tira da humilíação e soíTrimcntos torpretar-sc os seus sentimentos pelas pas­
e Jesus Christo, cahem por terra, se Jesus sagens, nas quaes os padres ensinam a con­
Christo não foi verdadeiro Deus, porém Ori­ substancialidade do Verbo.
genes não se serve sómente d’esta simples Uma vez que se estabelece algum prin-
resposta, mas recorre ao mysterio da en­
carnação; logo cré ellc na consubstanciali-
dade do Verbo. 1 Le Clerc, Defense des Senhmens Theo­
logicus de Hollande, Lettre 3, pag. 76. Ars.
1 Justin, Dial. cum Tryph. Tert. inJad. crit. t. 3, ep. 3, pag. 96. Bibl. Univ. t. 10,
Origen. cont. Celse. art. 8.
240 ARI
cipio, e que este faz a base de todos os es- affirma que elles fossem arianos; diz uni­
criptos, e a regra da sua moral, é injustiça, camente que se exprimiram com pouca exa-
é absurdo julgar que aquclle que estabe­ clid«ào, confessando aliás que estes padres
lece este principio não o crê, porque lhe créram o dogma da eonsubstancialidade, o
escapou qualquer phrasc, que tomada cm qual foi plemamcnte provado pelo mesmo
rigor, é contraria ao mesmo principio. theologo; portanto nào podem os arúanos
Nào se compadece com os defeitos da reclamar o voto do padre Petau.
humanidade uma exactidào de linguagem Nào é possível emprchcndcr uma justifi­
c d’expressao tào grande que nào possam cação individual dos padres dos tres pri­
encontrar-se no author o mais systcmatico, meiros séculos; ejla se encontra cm Bullo,
expressões e phrases, que tomadas littcral- Moine, Bossuet, e n’um tractado excellente
mente e no rigor grammatical, nào pare­ da divindade de Jesus Christo, que é obra
çam conduzir a consequências oppostas aos d’um sabio benedictino. 1
seus princípios. Porém seria injustiça c Também se lerá com gosto uma obra de
absurdo procurar o sentimento do author M. B.ayle cscripta sobre este assumpto con­
n’estas expressões, c isto é o que fazem os tra o ministro Jurieu, que tinha fallado dos
novos arianos relativamente aos padres dos padres dos tres primeiros séculos, como
tres primeiros séculos. faliam os modernos arianos.2
A eonsubstancialidade do Verbo é um Wislhou pensou achar o seu sentimento
principio sobre que se funda a religião dos nas constituições apostólicas, que elle pre­
padres. Elles combateram todos os erros tendeu authorisar como uma obra ditada
que a atacavam, elles a suppoem cm todos pelo proprio Jesus Christo aos «apostolos nos
os seus escriptos, e comtudo se assevera quarenta dias, desde a sua resurreição até
que os padres foram arianos por se acha­ a ascenção, cheg.ando a affirmar que a igreja
rem nos seus escriptos algumas phrases, christã não poderia subsistir sem estas con­
que tomadas litteralmente, suppoem que stituições. Elias, segundo Wisthon, contecin
Jesus Christo ou é inferior a seu Pac, ou o «árianismo.
uma substancia d’ellc distincta. Também aqui vêmos em M. Wisthon um
Examinem-se as passagens citadas por estranho cffeito de prevenção, porque l.°
Saudio e Zuicker; nào receio que se encon­ é certo que as constituições apostólicas não
tre alguma em que os padres, fallando do contccm o arianismo; 2.° «ainda é mais evi­
Verbo, estabeleçam como principio que elle dente que ellas são d’um author do quarto
é uma creatura, ou que é uma substancia século. A prova d’estas duas asserções sc
differente do Pae. «acha nos padres apostolicos de Cotelier,
Todas estas passagens ou são compara­ edição de M. Le C lcrc.3
ções destinadas a explicar o mysterio da Quanto ás epistolas de Síincto Ignacio, de
eração eterna do Filho, ou explicações que que M. Wisthon reclama a authoridade,
ão os padres em resposta «ás difficuldades é sem dúvida que as p«assagens que este
com que os instam; ou finalmente são ex­ cita s«ão das edições feitas pelos arianos,
plicações d’algum logar difficil da Escri- como o reconheceram todos os sábios an­
ptura. tes de M. Wisthon, e como M. Le Clerc
Mas por ventura é n’estas passagens aon­ o fez ver, refutando o mesmo Wisthon. *
de se deve investigar a doutrina dos padres
acerca da eonsubstancialidade do Verbo? 1 Judicium Ecclesia} Catholica} trium
Poderão oppôr-se estas passagens ás pro­ priorum sa}culorum, etc. Defensio Fidei Ni­
vas que estabelecem que elles ensinaram cone, dans le Recueil des Ouvrages de Bull,
este dogma? Edit, de Gi'abe, in-fol. 1703.
Como os novos arianos citam em seu fa­ Varia Sacra, etc., cura Stephani Le Moine.
vor o padre Petau, nos persuadimos dever 2 vol. in-4.°, 1685, t. 1.
fazer notar quanto estava distante este sá­ Sixieme Avertissement contre Jurieu, par
bio jesuita de pensar como elles acerca dos mr. Bossuet: de la Divinité de J. C. par D.
padres dos tres primeiros séculos. Maran, chez Colombat, 3. vol. m-12.°, 1751,
Nós não temos mais que parte das obras t: 2.
dos tres primeiros séculos; e quando entre 2 Janua calorum reserata cunctis Reli­
aquellas mesmas que nos restam achasse gionibus, à celebri admodum viro D. Petro
o padre Petau que algumas fallavam com Jurieu.
menos exactidào, poderia d’ahi concluir-se 3 Cotelier, Judicium, de Constitutioni­
que èste grande theologo tinha por,arianos bus Apostolicis, t. 1. PP. Apostolicorum,
os padres que precederam ao concilio de pag. 194.
Nicea? Quanto ao mais, o padre Petau não 4 PP. Apostolici de Cotelier, édit. de le
ARM 241
A natureza (Testa obra nào nos permitte dicções c absurdos, que não poderam salvar
entrar em tacs discussões; ponderarei uni­ as argucias de Clark c de Wisthon.
camente que M. Le Clcrc nào era nem 0 orthodoxo, opoiado sobre a revelação
contrario aos arianos, nem favoravel aos que c certa, admitte a consubstancialidade
padres, c que clle ató havia asseverado que que não comprehende c não concebe clara-
os padres que precederam ao concilio de mente, mas em que elle não acha contra-
Nicea eram arianos. dicçõcs; e este dogma lhe desenvolve admi­
ravelmente todo o systerna da religião chris­
tã. O arianismo pelo contrario nega a di­
CONCLUSÃO GERAL D ^ S T E ARTIGO vindade de Jesus Christo, em que elle as­
sim como o orthodoxo, não vê eontradicção,
e cahe em absurdos e contradicções sem nu­
Pelo que, todo o edifício do avianismo mero. Comprehendc-se pois claramente não
moderno se abate, examinados que sejam a consubstancialidade do Verbo, mas a ver­
os seus princípios; e as grandes objecções dade d’este dogma, c o absurdo do arianis­
que se oppoem com tanta confiança aos de­ mo que a nega. O leitor justo sentenceie
fensores da consubstanciai idade, sào aos qual é o que offende a maxima de nào ad-
olhos da critica, sophismas que trazem toda mittir senão o que se concebe claramente,
a sua força no abuso que se faz d’uma ma­ se o ariano ou o orthodoxo.
xima excellente quando é bem entendida. No artigo AiiLüfip ifp rios examinem-so
Pretende-se que se não deve admiltir se­ as diíficuldades qüe~ se oppoem á consub­
não o que se concebe claramcntc; e como stancialidade, e que tiram a sua força da
não se vô com esta clareza o modo como o impossibilidade de se unir n’uma mesma
Filho é consubstanciai ao Pae, se julgam substancia o Pae e o Filho.
authorisados para rejeitar o dogma da con- armemos—Ramo dos eutichianos ou mo-
subslancialidãde. nopUfsitás,' que rejeitaram o concilio de
Na conformidade d’este principio, tomam Calcedonia, e se uniram aos jacobitas pelo
á letra todas as passagens que faliam de meado do século sexto.
Jesus Christo como d’uma creatura, c n’um A religião christã tinha sido levada i
sentido melhaphorico todas as nue expri­ Armenia, antes d’existir o governo de Con
mem a sua divindade por mais claras que stanti no, por Gregorio, por autonomasia
cilas sejam. Porém não se vê com eviden­ Illuminado, e n’ella se conservou cm tod
cia que ha cousas que nós não podemos a sua pureza até o tempo do patriarch
comprehendor nem conceber claramente, Narsés, que no meado do sexto século coi.
e que comtudo são incontestáveis? Não gregou um concilio de dez bispos, no qua
concebemos nós claramente, que quando se declarou em favor da heresia dos rao-
uma authoridade infallivel nos assegura es­ nophysitas, ou fosse por lhe ser affectuoso,
tas cousas, ellas se tornam tão certas como ou por lisongear os persas que procura­
a mesma authoridade que as attesta, por vam introduzir a divisão entre os gregos e
mais obscuras e inaccessiveis que sejam á os armênios, unidos, uns e outros, pela op-
nossa razão? posição commum á idolatria dos persas.1
Na conformidade d’estc principio, que é Este patriarcha, o primeiro que fez o scis-
irrefragavel, não é evidente que devemos ma da sua nação, teve sete successores que
tomar a letra as passagens que nos faliam o mantiveram por espaço de cento e doze
da consubstancialidade do Verbo, uma vez annos.
que este dogma é evidentemente supposto Durante este primeiro scisma, soffrcram
na Escriptura, que clle faz a base da reli­ muito os armênios da parte dos persas.
gião, e que foi estabelecido por Jesus Chris­ Logo que Heraclio os derrotou, os armê­
to, c ensinado pelos apostolos, como funda­ nios se mostraram dispostos a unir-se á
mento da religião christã, como se tem pro­ igreja catholica. Congregou-se um concilio
vado aos arianos por mil vezes? que condemnou quanto havia feito Níusés,
Todo o systema da religião christã se en­ e que reuniu os armênios á Igreja.
tende optimamente quando se firma sobre Durou esta união cento e cinco annos,
a divindade de Jesus Christo, e na consub­ mas tornou a renovar-se o scisma no prin-
stancialidade do Verbo; c pelo contrario o
arianismo, que a nega, é cheio de contra- 1 Oriens Christianus, t. i , p. 1353. Nar• „
ratio de rebus Armenorum, apud Conbesis
Clercj t. 2, de Bibl. anc. et mod. t. 22, part. auctuar. Bibliot. PP. t 2. Aesseman Bibliot.
% pag. 337. Dup. Biblioth. des Auteurs Ec- Or. t. 3, part. 2, pag. 37. Mém. des Mission
cies., t. 1, pag. 47. de la Compagnie de Jesus dans le Levant, t. 3.
24-2 ÀRM
cipio do oitavo século. João Agniense, por nalmente um concilio no principio do sé­
ordem d’Omar, chefe dos serracenos, c com culo décimo-quarto, no qual se reconheceu
o favor do califa de Babylonia, reuniu um que Jesus Christo tinha duas naturezas, o
concilio d’alguns bispos armênios, e do seis duas vontades. Este concilio compunha-se
assyrios. N’cllc fez definir que nào havia dc vinte c seis bispos, dez vertabjets ou
em'Jesus Christo mais que uma natureza, doutores, c sete abbades. .
uma vontade, c uma operação; d’esta sorte Os scismaticos levantaram-se contra o
uniram o monothelismo corti o monophy- synodo, c protestaram contra tudo o que
sismo. n’ello se havia feito, c ha quem diga que
Também se ordenou cm um concilio que fizeram assassinar Haylon o seu filho Leão,
para o futuro não se misturasse a agua no que favoreciam a reunião. Para vencer esta
sancto sacrificio da missa, para nào se si­ repugnância, o successor dc Leão m fez
gnificar na mistura da agua e do vinho, congregar um novo concilio, o qual confir­
que em Jesus Christo ha duas naturezas. mou quanto se'havia feito no precedente,
Como este patriarcha era tão hypocrita e os monophysilas oppozcram-se como ao
como artificioso, soube adquirir a reputa­ outro.
ção de sancto, para o que não foi preciso Portanto mallogrou-se a reunião, c os ar­
mais que affectar um exterior mortifieado, mênios monophysilas não cessaram d’in-
e fazer pastoraes severas, uma das quaes sultar os catholicos, c de lhes excitar per­
prohibia, nos dias de jejum, o uso do pei­ seguições. Passados alguns annos depois da
xe, azeito e vinho, tão rigorosamente como celebração do concilio, morreu Oscin n, e
o da carne e dos ovos. os scismaticos tornaram a entrar nas di-
Durou o scisma, renovado por este pa­ gnidades ecclesiasticas.
triarcha, até o fim do século nono. Alguns Depois da morte dc Gregorio, um monge
outros patriarchas qup tentaram a reunião chamado Gyriaco, apaixonado pelo scisma,
foram depostos. Vendo Kacik os estragos roubou da cidade de Sis a sancta reliquia
que os turcos faziam na Armênia, transfe­ da mão direita de S. Gregorio, levou-a a
riu a sua còrle para Sebaste, para se pôr Eelm iadzin, aonde adquiriu bastante re­
ao abrigo da protecção dos imperadores putação para se fazer eleger patriarcha pe­
gregos. Foi n’estc tempo que Kacik, senhor los scismaticos. Assim principiou o scisma
armênio, emprehendeu levantar-se com a do patriarcha dos armênios, que ainda hoje
Armenia Menor; tomou o titulo de rei, con­ dura, porque Sis conservou até o presente
quistou a Cicilia, e parte da Capadocia. o seu patriarcha, cuja jurisdicção se esten­
Leão, que succedeu a Kacik, achou-se de sobre a Cilicia e a Syria; E elm iadzin
cercado d’inlieis, que ameaçavam de o ata­ conserva o seu.
car: recorreu aos latinos, então poderosos Não gosou Cyriaco, por muito tempo, da
no Oriente, c para os affeiçoar a si, procu­ sua usurpação, porque foi expulso cm 1447,
rou grangear o favor do papa, que era a dous annos depois que o elegeram.
- alma dos exercitos, e de todos os movimen­ Então os tres pretendentes ao patriar-
tos dos principes occidentaes. Rogou ao chado, entraram de posse d’ellc: um, cha­
papa Celestino m que lhe enviasse um car­ mado Zacharias, levou a sancta reliquia da
deal para celebrar a ceremonia da sua co­ mão de S. Gregorio para a ilha d’Aghtamor,
roação. Este principe favoreceu muito os onde já tinha havido patriarcha, e alli for­
catholicos na Armenia, e dispòz os seus mou um terceiro patriarchado, ou, para
vassallos para a reunião com a igreja ro­ melhor dizer, o renovou, porque esta divi­
mana; mas isto frustròu-se; os esforços que são do patriarchado era muito antiga.
fizeram os patriarchas, e a opposição dos Causaram estes patriarchas muitas des­
scismaticos pozeram mesmo a Armenia em ordens e dissensões na Armenia, porque
desordem. todos queriam possuir a reliquia de S. Gre­
Estas divisões enfraqueceram-na consi­ gorio; e como elles pagavam uçna grande
deravelmente; e os tartaros aproveitaram- som ma ao rei da Persia pela investidura,
se d’ellas para a invadirem: assenhorea- e um tributo annual muito considerável,
ram-se da Geórgia e da Armenia Maior, e não, podiam satisfazer a esta despeza sem
destruiram a cidade de Daun, em que se o soccorro da reliquia, que dava um gran­
contavam mais de mil igrejas, e mais de de producto.
cem mil familias. Cha-Abas, que foi a causa das suas dis­
Os siiccessores de Leão, depois de have­ sensões, fez vir a reliquia a Ispahan, e con­
rem sustentado diversos ataques dos ser­ feriu, por authoridade absoluta, o patriar­
racenos, e de os invadirem também por seu chado a Melchisedech, que se obrigou a pa­
turno, unidos aos tartaros, convocaram fi­ gar-lhe. em cada anno dous mil escudos:
ARM 243
•era isto uma exorbitanda, c o patriarcha Além do que as orações, os canticos c os
jiào podendo satisfazer ao tributo, fugiu hymnos os mais antigos da igreja arme­
para Constantinopla. nia, contradizem esses mesmos erros. 1
Desde esse tempo teem desejado alguns Acham-se nos seus livros c rituaes as
patriarchas reunir-se á igreja romana, mas orações pelos defuntos, o culto dos sanctos,
sem poder persuadil-o á nação; comtudo o das reliquias, nTima palavra, toda a cren­
os missionários hão alli convertido muitos ça da igreja romana: íixa-se a época das
scismalicos, e trabalham ainda hoje, com mudanças que tem acontecido n’esta igreja.
frueto, na reunião da igreja armênia com Não devem pois imputar-se á igreja ro­
a catholica. 1 mana as innovaçõcs que os protestantes
Actualmcnte se acham divididos os ar­ lhe assacam, pois que achamos a sua crença
mênios cm francos c scismalicos: os fran­ n’uma igreja que não dependia do papa/e
cos são aquellcs que frei Dartholomcu, do­ esta conformidade de crença com a dou­
minico. enviado pelo papa João x x i i , con­ trina da igreja romana, também não é um
verteu á fé catholica. Elios habitam cm sete cíTcito do commercio dos armênios com os
aldeias, n’um cantão fértil, chamado Abre- latinos, ou da necessidade que ollos tives­
ner. Também ha alguns na Polonia sujei­ sem dos papas no tempo das cruzadas, como
tos a um patriarcha que.se subrnetteu á se M. de la Crose quer c pretendia persua­
apostólica, em 1616. - dil-o. 2
Esta crença da igreja romana está con­
DA CRENÇA DOS ARMENIOS SCISMATICOS sagrada nos*rituacs e nas preces da igreja
d’Armênia, muito mais antigos que o com­
O erro capital dos armênios c não rcco- mercio dos armênios com os latinos.3
vnbcccrem o concilio de Calccdonia. Fóra Comtudo ha entre os armênios alguns
<l’esto c it o , a fallar propriamente, não dif- abusos e alguns vestígios de opiniões ju ­
ferem da igreja romana senão no rito. daicas: elles observam o tempo que pre­
Teem todos ò s sacramentos. screve a lei de Moysés para a purificação
Ha também entre ellcs alguns erros acer­ das mulheres: abstem-se de todos os ani-
ca da proccssão do Espirito Sancto, e do macs que a mesma lei declarou immun­
estado das almas depois da morte; porque dos, de que oxceptuam a carne de porco,
creem que as almas não serão punidas ou sem que possam, comtudo, dar o funda­
1 recompensadas, senão no dia do juizo uni­ mento d’csta excepção. Elles se julgarian
versal. Também creem alguns que Deus réos de pcccado sc tivessem comido a carn
/creou todas as almas no principio do mun­ d’algum animal suíToeado no seu sangue
ido, e que Jesus Christo tirou as que esta- Como os judeus, elles offcrecem a Deus *
[vam no inferno; que não ha purgatorio, e sacrificio de animacs que immolam á porta
Ique as almas separadas dos corpos a adam das suas igrejas pelo ministério dos seus
Vsrrantes na região do ar. sacerdotes, emergem o dedo no sangue da
, Porém não pertencem estes erros á igreja victima, e com elle molhado fazem uma
/da Armenia; são erros partic ulares que se cruz sobre a sua porta.
\introduziram entro ollo* pdo commercio 0 sacerdote reserva para si metade da
que teem lido cnm «- goiros, porque victima, e os que Ufa apresentaram conso­
jamais houve questão v •■•a. de tacs erros mem os restos; cm todas as boas festas fa­
quando se tractou da ■ a» coni a igreja zem similhantes sacrifícios para obterem a
rom ana.3 cura das suas enfermidades, ou outros be­
nefícios temporãos.4
1 E xtrail de la letlre dn P. Monnier sur Deus que havia proscripto aos judeus as
VArmenie, t. 3. des Mémoires des Missions de suas ceremonias c sacrifícios, promelteu-
la Compagnie de Jesus dans le Levant. Esta Ihcs bens temporãos se observassem a sua
carta ê muito ulil e interessante; nada ha
melhor áccrca da Armenia. O padre Le Quint
tractou muito bem esta materia no seu— 1 Nouveaux Mémoires, ibid. Lcttre de
Oriens Christianus. 1'abbè dê Villefroy, avcc une traduclion fran-
- La Turquie Chrétienne sovs la puis- çaise des Cantiqucs Armeniens. Journal de
sancte protection de Louis le Grand, par Trevoux, 1734.
M. de la Croix, à Paris, chez Herissant, 2 Christianis7ne d'Ethiopie, p ar la Cro-
469o. ze, part. 4.
3 Vejam-se as Actas do Concilio da Ar­ 3 Nouveaux Mcm. ibid. Lettre de Fabbé
menia, celebrado em 1342, t. 7. Collect. dn de Villefroy, ibid.
P. Martenne. 4 Ibidem.
m ARM
lei; Jesus Christo, pelo contrario, sómente dcpôl-o se d’cllc não c contente, o que traz
prometteu bens espirituaos; porém os ar­ o bispo nTim continuo receio.
mênios, para gosarem das vantagens das Também na igreja da Armenia ha ver­
duas allianças, juntam á ftrofisssão da rcli- tabjets ou doutores, que não tcem diflicul-
• giào christà a pràctica da lei judaica. dade em tomar o passo aos bispos que não
são doutores. Usam dc baculo, c tcem uma
missão geral para pregarem onde quize-
DO GOVERNO ECCLESIASTICO DOS ARMENIOS rem; muitos são superiores dc mosteiros,
outros correm por toda a parle fazendo os
seus sermões, que o povo escuta com res­
Os armênios tcem um patriarcha que faz peito.
a sua residência em Echmiadzin, o qual é Para conseguir c usar do titulo de dou­
reconhecido por todos como o chefe da tor, não teem mais despeza que haver sido-
igreja armenia, c do governo ecclesiastico. discipulos d’um vertabjet. Aqucllc que uma
Toma o nome e a qualidade de pastor ca­ vez o adquiriu, o pódc communicar a to­
tholico c universal de toda a nação. É dos os discipulos que julga dignos: c ape­
eleito á pluralidade de votos dos bispos que nas elles leem aprendido o nome dos san­
se acham em Echmiadzin; e o acto da sua ctos padres, algumas passagens da historia
eleição se envia á corte da Pérsia, para ob­ ecclesiastica, principalmcnto as que teem
ter o beneplacito regio. relação ás suas opiniões errôneas, estão
Compra-se este beneplácito debaixo de doutores consummados.
especioso pretexto d’um presente para S. M. Estes vertabjets fazem-se respeitar mui­
e seus ministros; mas se a ambição e a par­ to; recebem assentados as pessoas que os
cialidade dividem os votos, c produzem uma visitam, sem excepção dos mesmos sacer­
eleição dupla, então o patriarchado é posto dotes. Dão alguns passos com respeito para
cm leilão, e adjudicado ao ultimo licitante lhes beijar a mão, e depois retiram-se tres
que mais offerece. ou quatro, c pocin-se de joelhos para ou­
O rei nem sempre espera que se faça a vir os seus conselhos. Os melhores logares
íleição; ellc a previne quando quer, c sem dos seus sermões são historias fabulosas
•ospeito a cila, nomeia, para patriarcha, que se dirigem a conservar o povo n’uma
quem lhe apraz. O patriarcha arroga-se um quantidade dc prácticas supersticiosas.
poder absoluto sobre os bispos e arcebis­ Os vertabjets pregam assentados, e aca­
pos; mas de facto o seu direito reduz-sc a bado o sermão, faz-se um peditorio para
confirmar as eleições feitas pelas igrejas elles. Os bispos que não são vertabjets, são
particulares, ou as nomeações que vem da obrigados a pregar dc pé. Observam estes
parte do gran-senhor. vertabjets, nove mezes no anno, o jejum
São muito consideráveis as rendas do pa­ mais rigoroso, e o celibato por toda a sua
triarcha, montando todos os annos, pelo vida. São uns ambiciosos que querem do­
menos, a cem mil escudos, e apesar de ser m in a re que tudò sacrificam a esta paixão.
tão rico, nem por isso ostenta magnificên­ Por este exterior austero dominam o povo
cia, porque veste como um simples monge, ignorante, e entreteem-no na mesma igno­
não coine mais que legumes, nem bebe se­ rância, que é a base do credito e do poder
não agua, e vive n’um mosteiro como os dos vertabjets; declamam continuamente
outros monges. Esta avultada renda do pa­ contra os Jjalinos, e contra os missionários-
triarcha saho parte das terras pertencentes que podem abrir-lhe os olhos, conservan­
ao seu mosteiro, parte das contribuições de do, quanto é possível, o povo c o clero na
todo o seu povo, c é quasi toda empregada superstição c na ignorância. A sciencia dos
em comprar a protecção da côrte, manter sacerdotes consiste em saber lér corrente­
o mosteiro, reparar c ornar as igrejas, con­ mente o Missal, e entender as rubricas:
tribuir para os gastos da nação, e pagar o toda a Sua preparação para receberem o
tributo por muitos pobres, cuja indigcncia sacerdócio, consiste em estarem na igreja
seria uma occasião próxima para abando­ quarenta dias: no ultimo são ordenados;
narem o Christianismo. n’esle mesmo dia celebram a sua primeira
Todos os bispos vivem como o patriar­ missa, a que se segue um grande jantar.
cha, e comtudo estes homens são scismati- Emquanto este dura, a papodia, isto é, a
cos, formam intrigas c caballas para obter mulher do novo sacerdote, está assentada
dignidades ecclesiasticas. Cada igreja par­ iTum escabello, com os olhos vendados, a
ticular tem seu conselho composto dos an­ bôcca e os ouvidos tapados, para signifi­
ciãos mais consideráveis: çste conselho car a circumspecçao com que se deve por­
elege o bispo, e presume ter direito para tar acerca das funeções sagradas em que-
ARM 245
■seu marido principia a empregar-se. Sem­ de Deus o dogma da predestinação c da fa­
pre que um sacerdote ha de dizer missa, talidade, á qual Calvino sujeitou o homem,
passa a noite na igreja. a todos ensinaram que Deus queria que to­
Os filhos do sacerdote, assim que sabem dos se salvassem, e que concedia uma graça
lér, sfio apresentados pelo seu mestre ao com que o podiam conseguir. Como Armi­
bispo, que os ordena desde a idade de dez nio e seus discípulos, assim como os demais
ou doze annos. O bispo recebe dozo soidos reformados, não reconheciam authoridadc
•por cada um dos que ordena. 1 ■ infallivel que fosse depositaria das verda­
Ai^MiNioJJambo)—Nasceu cm Ondcwa- des reveladas, e que fixasse a crença dos
ter, na Hollanda, cm loGO, isto é, quando christãos, c olhavam a Escriptura como a
era o forte da revolução. Estudou na uni­ unica regra de fé, e cada um dos particu­
versidade de Lcydc, c foi logo mandado lares como o juiz do sentido da Escriptura,
para Genebra á custa dos magistrados de interpretaram quanto cila diz acerca da
Amsterdam, em lo82, a fim d’alli se aper­ graça e predestinação, segundo os princí­
feiçoar nos seus estudos. Defendeu, com pios d’cquidadc c beneficencia, que eram
grande calor, a philosophia de Ramus. Mar- naturaes do seu coração c caracter; e não "
tinho Lydio, professor de theologia cm Fra- se fixando na doutrina da igreja romana
ncker, cncarrcgou-o de refutar certo es- sobre a predestiuação c a graça, c não re­
cripto cm que os parochos de Delft comba­ conhecendo também escolha nem predesti­
tiam a doutrina de Theodoro de Beza acer­ nação, passaram insensivelmente aos erros
ca da predestinação. Examinou Arminio a dos pclagianos c scmi-pelagianos.
obra dos ministros, parochos de Delft, ba­ Como os arminianos criam ser cada um
lanceou as razões, e finalmenfe adoptou as dos particulares um juiz nato do sentido da
opiniões que se propozera a impugnar. Não Escriptura, por uma consequência de seu
podendo conceber um Deus tal como o fi­ caracter c princípios d’equidade, não se ar­
guravam Calvino e Reza, isto é, predesti­ rogaram o direito de constrangerem os
nando os homens ao pcccado c á condemna­ mais a pensar c discorrer como elles, crer
b o , assim como á virtude e á gloria eter­ que deviam viver cm paz com os que ir
na, pretendeu clle que sendo Deus um justo terpretassem a Escriptura difTerentcmcnt
juiz e um Pac misericordioso, tinha feito d’onde nasce a geral tolerância dos arir
de toda a eternidade esta distineção entre nianos para com todas as seitas christãs,
os homens: que áqucllcs que se emendas­ a liberdade que elles concedem para qt
sem dos seus peccados, e pozessem a sua qualquer possa honrar a Deus como julga,
confiança em Jesus Christo, seriam perdoa­ que a Escriptura lh’o prescreve.
das suas más acções, c gosariam d’uma Sendo cada particular o juiz da Escri­
vida eterna, mas que os peccadorcs seriam ptura, sem estar obrigado a seguir a tra­
punidos; que era agradavel a Deus que to­ dição, torna-se a razão o juiz do sentido
dos os homens renunciassem seus pccca- da" Escriptura. Portanto todo o arminiano
dos, c que chegados ao conhecimento da que se applicou a examinar os dogmas do
verdade, perseverassem constantes; mas Christianismo, avisinhou insensivelmente
que elle a ninguem constrangia; que a dou­ os mesmos dogmas ás idéias que a sua ra­
trina de Beza e de Calvino faziam a Deus zão lhe fornecia, e rejeitou como contrario
author do peccado, c endureciam os ho­ á Escriptura tudo o que não comprchen-
mens nos seus maus hábitos, inspirando- deu; porque sendo obrigado o particular a
lhes a ideia d’uma sanctidadc fatal.2 crér c interpretar a Escriptura, elle só po­
Gomar, professor de theologia cm Loyde, dia crer o que podia comprehendor.
tomou a defesa dos sentimentos de Calvino Seguindo pois os arminianos escrupulo-
c Beza; c portanto Arminio e Beza fizeram samente os princípios da reforma sobre o
na Hollanda dous partidos. No artigo Hol­ juiz das controversias, teem-se unido insen­
landa expomos as deso.rdens que elles mo­ sivelmente, ao menos em parte, aos soci-
tivaram nas provincias unidas; aqui so­ niauos. Segundo a noção que acabamos de
mente examinaremos Arminio c seus se­ dar do arminianismo, é claro que não pôde
ctarios, como uma sociedade de theologos haver n’elle symbolo e profissão de fé que
e discursadores. seja fixa, excepto a crença da Escriptura,
Não podendo pois Arminio e seus disci­ e a regra fundamental da reforma, isto é,
pulos conciliar com as idéias da bondade que cada particular é juiz do sentido da
Escriptura.
1 Nouveaux Mémoires, ibid. Brandt que íios deu a profissão dc fé dos
1 Histoire de la Rêforme des Pcm-Das, arminianos, declara que elles não constran­
gem pessoa alguma a abraçal-a tal qual
246 ARN
d!ú a propõe, c ella ó concebida em termos do papa aos objectos da religião, e restabe­
que assim o catholico como o sociniano po­ lecer o senado.
dem alli encontrar o seu dogma. 1 0 povo, allucinado com estas idéias, in­
Os arminianos contam entre os seus al­ sultou os grandes c os cardeaes; inves­
guns homens da primeira ordem, como a ti u-os,e saqueou os seus palacios.1 Adriano
Episcopio, Courcclles, Troeis e Ie Clcrc. iv exeonunungou Arnaldo c seus sequazes,
Os calvinistas leem escripto muito contra c pôz interdicto ao povo, cinquanto este não
os arminianos, censurando-os de haverem lançasse fóra de Roma aqucllc sedicioso
cahido nos erros dos socinianos, e não é sem monge. Postos os romanos entro o temor
fuudamento esta censura, apesar do que do interdicto e as seguranças que lhes dava
disserem os arminianos; mas isto nào é Arnaldo não hesitaram cm tomar o partido
uma refutação, nem os princípios dos cal- da obediência.
vinisias são’ capazes de sustentar a sua Os arnaldistas obrigados a deixar a ci­
causa sem que os arminianos possam re- dade, se retiraram para a Toscana, aonde
torquir-lhc os argumentos; sómentc os ca­ tiveram bom acolhimento do povo, que con­
tholicos podem refulal-ós solidamente e sem siderava Arnaldo de Brexa como um pro-
replica, provando-lhes que é á Igreja a phcla;2 porém pouco depois elle foi préso
quem pertence interpretar a Escriptura, e pelo cardeal Gcrardo; c apesar dos empe­
ensinar-nos o que Jesus Christo revelou. nhes dos viscondes de Campania, que o ti­
No artigo llollanda .expomos o estado nham tornado a pôr cm liberdade, foi con­
actual dos arminianos nas provincias uni­ duzido a Roma, c condem nado pelo go­
das: elles formaram cm Holstein um esta­ verno da cidade a ser atado a um poste,
belecimento notável, aonde se retiraram queimado vivo, c o seu corpo reduzido a
muitos para evitar a perseguição em Hol- cinzas, para que o povo não honrasse as
landa. O rei de Dinamarca lhes conce- suas reliquias.
deu'faculdadc par.a edificarem alli uma ci­ Assim o temor do interdicto forçou o
dade, que se tornou considerável c conhe­ povo a fazer queimar um homem que elle
cida debaixo do nome de Fridcrastad. Esta estimava como sancto: c aqucllc mesmo
eita verosimilmente virá a absorver todas povo quo tinha crido cm Arnaldo de Brexa,
s reformadas.2 quando pregava contra a authoridade do
A g NALDOI DE .h ^ ^ r j - V O Í O ^ ( l a ítalia CSlll- papa, o abandonou tanto que este a empre­
gou contra elle c contra Arnaldo.
taudo á Italia, tomou o habito monastico. aldo ui: y ilLj \ Assi m chamado
Não era destituído de espirito, nem de ta­ dd^TOpW^^ pelo fim do
lentos para a predica, e ardia em desejos século dezoito, na opinião da maior parte
de ganhar fama. Para couseguil-a era pre­ dos escriptores. Estudadas as humanidades,
ciso adquirir um paiaido considerável, dar so apaixonou pela chimica em que fez gran­
nome a alguma seita, c atacar grandes ini­ des progressos, e depois se dedicou á phi­
migos. Arnaldo atacou monges, clérigos, losophia e medicina. Havendo percorrido
sacerdotes, c bispos: pregou que nào po­ as escolas de França, passou á Hcspanha,
diam possuir bens de raiz, nem feudos, e para n’ella ouvir os philosophos arabes, que
que todos os que os possuíam seriam con­ então sc julgavam os maiores naturalistas.
dem nados. Passou depois á ítalia a conferenciar com
- Recebeu o povo ávida mcnt,c esta dou­ certos philosophos pythagorieos, que esta­
trina; o clero se assustou de vêr a sua vam cm grande reputação; logo formou o
grande acceitação, e o papa Innocencio ii proposito dc passar ã Grécia para conferen­
o expulsou da ítalia, aonde porem elle vol­ ciar com os sábios que ainda alli restavam;
tou logo que soube da morte d’cstc. Achou mas as guerras que assolaram eslas regiões
Arnaldo, sobre a cadeira de S. Pedro, Eu­ o impediram, rctirando-so a Paris, aonde
gênio ui, c o povo a ponto de sc revoltar ensinou e practicou a medicina com muitos
contra o papa. D’esla occasião se aprovei­ creditos.3
tou para prégar contra o sancto padre, c Arrebatado Arnaldo pela sua natural cu-
aíToutaudo o povo, propOz aos romanos res­
tabelecer o ahtigo governo, que fizera os 1 Olho Frisingensis, l. 4. de' Gestis Fri-
seus passados senhores dc toda a terra, c derici, c. 20.
ensinou ser preciso reduzir a authoridade . 2 Dupin, Hist. de Controv. du douzième
siccle, c. G. J)'Argentrc, Collecl. Jud. de nov.
error. t. 1, pag. 26. Natal, Alex. in swc. 12.
1 B randt, Jlist. de Ia Béfor. t. 3. 3 Neceron Mem. t. 34, pag. 82. Fabricius
2 Hofman Lexicon, in voce Arminius. Bibliot. Lat. mediae, et infm . t. 4, pag. 359.
ART 247

riosidado, tinha corrido superficialmcntc naldo eram ligadas o formavam algum sys­
quasi todas as sciencias, c adquirido tal re­ tema; o que parece é que eile odiava os fra­
putação, que sc persuadiu ser capaz dc tu­ des e ecclesiasticos; e nada ha que nos con­
do, ò* cahiu cm muitos erros. vide a suppôl-o theologo illustrado, por cuja
Eis-aqui os que cllc sustentava: razão não disputaremos com M. Chaufepie-
I. de, se clle foi um dos pcrcursores dos no­
° A natureza humana, cm Jesus Chris-
/ to, c cm tudo igual á divina. vos reformados.12
V 2.° A alma dc Jesus Christo, logo depois Arnaldo dc Villa Nova, de alguma sorte
j da sua união, soube tudo o que sabia a di- foi o fundador de uma seita conhecida pelo
l vindade. nome de arnaldistas, que fez algum pro­
3. ° O demouio perverteu todo o genero gresso principalmente na Hespanha. Assim,
humano, e fez acabar a fé. nem ás excommunhõcs, nem as cruzadas,
4. ° Os frades corrompem a doutrina nem dc os rigores da inquisição, que foram
Jesus Christo, não leem caridade, e scrào tantos nos séculos treze e quatorze, poderam
còndemnados. atalhar a liberdade de pensar c escrever;
o.° O estudo da philosophia deve dester- nem também a dos predicantcs e fanaticos,
rar-sc das escolas, c os theologos fizeram que produzi ram n’estc século infinidade de
muito mal cm scrvir-sc dellc. seitas, taes como as dos begardos, aposto-
6. licos, fraticellos, lollardos, etc.
° A revelação feita a Cyrillo é mais pre­
ciosa que a Sagrada Escriptura. Um grau mais dc luz teria tornado ridi­
7. ° As obras dc misericórdia são mais culas todas estas seitas, e as ha veria ani­
agradaveis a Deus que o sacrificio do al­ quilado. As 15 proposições referidas foram
tar. condcmnadas em Tarrãgona pelo inquisidor
8. ° As fundações dos bcnoíhios ou das em 1317. Arnaldo dc Villa Nova chamado
missas são inúteis. a Roma para tractar com o papa Clemen­
9. ° O que reune uma grande congrega­ te v, morreu na embarcação que o condu­
ção de mendigos, c que lünda capellas ou zia, c foi enterrado em Gênova no anno de
missas perpetuas, incorre na condemnação 1313.
eterna. arnaldo de m ontanier — natural dc Pc-
•10.° O sacerdote que oficrece o sancto, sa­ cicci (ia, ha Catalunha,Ensinava que Jesus
crificio, c quem o faz oíTcrccer, nada do seu Christo c seus apostolos nada possuíam err
ofTcrecem a Deus. particular nem em commum; que nenluu
II. ° A Paixão dc Jesus Christo ó mais d’aquelles que trazia o habito dc S. Frai
bem representada nas esmolas, que no sa­ cisco sc condemharia; que este sancto de
crificio do altar. cia todos os annos ao purgatorio, c (Velle
12. ° No sacrificio da missa, Deus nãorava é os seus filhos, para os fazer subir
louvado por obras, mas só por palavras. paraizo, e finalmente, que a ordem d e »
13. ° Nas constituições dos papas nada Francisco
ha seria eterna.
que não seja obra humana. Foi citado perante o tribunal da inquisi­
14. ° Deus não ameaçou com a conde­ ção, aonde sc relractou dc tudo o que tinha
mnação eterna os que peccam, mas tão só­ proferido; mas esta retractação não foi sin­
mente os que dão mau exemplo. cera, e ellc dc novo publicou os seus delí­
15'.° 0 .m undo ha de aç^«y^OLiumtL(dc rios. Prenderam-no segunda vez ua diocese
1335. t d’Urgcl, c Emyrieo, que n’ella era bispo,
"Todas estas differentes proposições são condcmnou a Arnaldo a cárcere perpetuo.
extrahidas de varias obras compostas por Isto prova que a ignorância não preserva
Arnaldo de Villa Nova; taes são os livros do erro, nem nos faz dóceis á verdade e
intitulados:— Da Humanidade, e Paciência obedientes aos superiores ecclesiasticos. Se
-de Jesus Christo, O Fim do Mundo, A Cari­ Arnaldo tivesse mais luzes, hem haveria
dade, e tc .2 publicado taes extravagancias. nem resisti­
Não vémos se estas proposições em Ar- do aos superiores; tcl-o-iam desenganado.
a r n a l d i s t a s — Discipulos de Arnaldo de
1 Nicol. Emene, Direct. Inquisit, pag. V i l í a N ^ —
282. Edit. 1583. Niceron, loc. cit. Cent. Ma- ARTEMANO OU ARTEMAS— HcrCgO OUC h e-
gd. cent. 13, c. 4. Hofman. Lcxicon Dup. 14 gavaTTlivindãdc^u^Jesus Christo, cujos
saec. pag. 431. Natal Alex. saec. 13. D'Ar-
gentre, t. 1, pag. 267.
2 D'Argcntrc Ibid. Tritheni Chronie. Hir- 1 Prateol. Elench. Hist. Har. pag. 66. Fa­
saygiensi, t. 1. ad ann. 1310, pag. 123. His- bricius, Bibliot. medix ctc. infim, l, 1. jug.
toire Prov. Catalauncs. 35o.
248 ATH
princípios eram os mesmos que os de Theo- nham junto do seu altar um balão, c asso-
doto de Bysancio. Veja-se este a r lig o .1 prando-o muito para estar bem inchado,
ARTOTYRiTAS— Ramo dos Montanistas, as- dansavam em roda d'ellc. Consideravam
sini cTiainailos porque offercciam nos seus este balão como um symbolo proprio para
mystcrios pào e queijo. Ellcs admittiam as exprimir que estavam cheios de Espirito
mulheres ao saccrdocio, e episcopato. Ti­ Sancto, porque lal era a sua pretenção.
nha Montano tomado a qualidade de refor­ Veja-se o artigo Montano 1
mador, c seus discipulos, levados do mesmo AscopnuGiiAs—O mesmo que ascitas.
espirito, procuravam continuamentc aper­ asçqwmtas—Especie de archonticos que
feiçoar a disciplina da igreja; c d’aqui vi­ despedaçavam os vasos sagrados pelo odio
nha que qualquer montanista que imagi­ que tinham ás oblações feitas na Igreja. Pu­
nava um novo modo de honrar a Deus, fa­ blicaram os seus erros pelos annos de 173.
zia da sua práctica um artigo fundamental, Rejeitavam o antigo Testamento; negavam
e formava uma seita. Fazendo reflexão al­ a necessidade das boas obras, c as despre-
guns montanistas que os primeiros homens savam, presumindo que para ser sancto,
dos seus sacrifícios oíTercciam a Deus fru- bastava o conhecimento de Deus. Suppu­
ctos da terra c producçõcs dos seus reba­ nham que cada esphcra do mundo era go­
nhos, se persuadiram que deviam imitar a vernada por um anjo. 2
práctica dos primeiros patriarchas, c oíTere- Af^jELSiio*—1.°—Todo o homem dominado
cer a Deus pào e queijo. Como Montano ti­ pelos affèbtos, sujeita-lhes o seu pensar, e
nha associado ao seu ministerio de propheta por elles regula as suas acções.
a Priscilla c Maximilla, concluiram d’aqui Um bem longo cathalogo de aberrações do
os artotyritas que as mulheres podiam ser espirito humano, assaz conhecidas do todos,
promovidas ao saccrdocio c ao episcopato, nos patenteia a verdade de que o espirito
e não queriam que se fizesse diíTcrcnça al­ de cada um aflere por elles seus pensa­
guma entre os dous sexos para o ministé­ mentos, que em seguida procura rcalisar.
rio da religião; pois que Deus não a fazia D’aqui vem que a sentença da Escriptura
na communicação dos seus dons,.c das qua­ a lingua falia segundo os desejos do cora­
lidades proprias para conduzirem os fieis e ção, 2 explica a causa de tantos absurdos e
governar a igreja. disparates, que ao proprio indouto, não
A penitencia, mortificação e pesar de ha­ apaixonado, provocam o riso, c que toda­
ver ofiendido a Deus, eram no parecer dos via teem todos achado defensores exalta­
montanistas os primeiros deveres do chris- dos, e mais d um apologista frenetico que
tão. O mais essencial do ministerio consis­ lhes procura o engrandecimenlo.
tia em fazer nascer no coração dos chris- 0 erro c a falsidade poderíam por ven­
tãos estes sentimentos, e parece que os mon­ tura ser o resultado da razão, bem dirigida
tanistas suppunham as mulheres mais pró­ c regulada?
prias para inspirar nos homens aquelles Nao, por certo: mas então devemos bus­
affectos, e mais capazes para os internecer car sua origem no principio opposto: e este
verosimilmente pela facilidade que pre­ será a má direcção da razão.
sumiram haver no sexo feminino para se Deve porém haver causas que a promo­
apaixonar vivamente, ou para o pàrccer, vam e que convém averiguar.
ainda quando o não é, c talvez pela dispo­ Mas o nosso alvo hoje é sómente o atheis-
sição que elles suppunham nos homens para mo, ou a insensata opinião dos que ante­
abraçar os sentimentos das mulheres, c in- pondo a razão com toda a sua limitação c
ternecerem-se sobre a infelicidade da que mediocridade, ao proprio creador que a
está afflicta, e penetrarem-se da dôr de que produziu, ouàam elevar seus vôos ainda
ella parece penetrada. além da eternidade, dizendo: não ha Deus.
Yiam-se, diz S.Epiphanio, entrar nas suas Depois d’isto, que serve de fundamento
igrejas sete donzellas, vestidas de branco, ao seu nome, já se não sobresaltam ao pen­
com uma tocha na mão, para representar sar na aniquilação da propria substancia
as prophetizas; alli choravam e lastimavam espiritual, e com a intrepidez de espíritos
a miseria dos homens, e com estas afflic- fortes encaram um nada, onde resolver-se
ções conduziam o povo a uma especie de «
penitencia. 2 1 Aug. de Hcer. c. 62. Autor. Prccdcst. c.
Afiqijfcs—Seita de montanistas que pu­ 62. Philaslr. c. 75.
2 Thcod. Hcer. Fab. I. 1, c. 10. Jttig. de
1 Euscb. Hist. Eccl. I. 5, c. 28. Tlieodor. Hcer. Sect. 2, c. 14, § 2.
Hceret. Fab. I. 2, c. 4. J E x abundantia enim cordis os loqui*
2 Epiphan. Hcer. 49. Âug. de Hcer. c. 28. tu r. S. Lucas. c. 45.
ATH 249

•talvez no fim da pronuneiação daquella blas- Surdo aos gritos da consciência, secun­
phemia. ' dada pela razão, em seus lucidos intcrval-
A causa d’estc systema absurdo é a cor­ los gritará espavorido:—Não ha Deus: de
rupção do coração, que allucina o entendi­ ora ávanle meus excessos serão permittidos
mento, dictando-lhe as idéias que deve for­ c a impunidade reinará.
mar para serem ambos coherentos. E mais um passo para a eternidade, e esta
0 desenganara sem remédio o louco que as­
atheismo é, pois, uma ccnsequcncia ne­
cessaria da depravação c perversidade da sim pensar!!!
vontade, sendo, como é, um producto im­ O dogma social da independência de toda
mediato do entendimento. a authoridade divina e humana, bem á ma­
Sendo o gòso do bem, real ou apparente, neira da elevação d’um ministro corrupto,
•o fito de todos as acções do homem para o tem por base o axioma do poeta Epicureo:
obter, busca este todos os homens que a a utilidade e a fonte do justo e do honesto.1
não se dirigirem áquelle, cederíam ao aban­ Deixemos pronunciar o caracter dos que
dono. professam o atheismo por uma authoridade
Nenhum homem poderá recusar cm seu cm nada suspeitaL2 que assim se expressa
coração um logar á crença de um Deus, se­ a seu respeito: «S<7o almas manchadas, com
não quando deseje que ellc não exista por todo o genero de vicios, e capazes dos mais
via d’algum fim que repute um bem. horríveis crimes, que roflectindo que o te­
A lembrança de que os crimes não fica­ mor do inferno vem algumas vezes pertur­
rão impunes,"existindo um juiz recto, co­ bar-lhes o socego, c comprehendendo que
nhecedor de todas as circumstandas do cri­ lhes seria vantajoso o não haver Deus, pro­
me, distante do suborno, e falsos juramen­ curam d’isso persuadir-se a si proprios»;
tos sem permittir nem ainda composição al­ e mais adiante: «desde o momento em que
guma das partes, faz estremecer o devasso o homem é capaz de ser atheu, e de fazer
que por um só momento se demore n’clla. esforços para chegar a ellc, está já possuí­
E d’aqui proveem os contínuos desgostos, do dá mais espantosa malicia que póde ca­
que ralam a consciência, os remorsos, com­ ber n’uma alma, c se Deus não faz um mi­
panheiros inseparáveis do peccado, e os tor­ lagre para convertel-o, commctterá todos os
mentos que minam a existência, consumin­ crimes que poder, ainda que seja impossí­
do-a a fogo lento. vel chegar jamais ao ponto de ser rcalmen-
Este estado, como violento e o mais in­ te atheu.»
ferior de todos os que podem sobrevir a Estas expressões, sahidas da penna do
um desgraçado mortal, não pode ser per­ propugnador ardente do atheismo, são di­
manente c durável. gnas de se registarem como um brado in­
N ’elle uma continua anciedade c inquie­ voluntário da verdade.
tação, cobrindo de sombras o espirito, um 2.°—Se do relance percorrermos essas
pesadello involvendo o coração, c uma pro­ paginas infames da vida dos atheus de to­
funda melancholia fazendo-o concentrar dos os tempos, encontramos tal deprava­
comsigo, ainda no seio das orgias mais fes- ção, e moral tão corrupta, que só a lem­
tivaes, porque a consciência do crime, bem brança produz em nós bem penivel mágoa.
como o genio do mal, em toda a parte o per­ Mas qual a razão, de que na antiguidade
segue, o forçam a aproveitar todos os re­ sejam tão raros os atheus como esses abor­
cursos c todos os meios para se subtrahir tos da natureza, só produzidos do tempos a
a tão deplorável posição. tempos, c que hoje sejam tão frequentes os
Um meio poderoso para o conseguir acha- que se dizem professar tão ccrcbrina opi­
1-o-ia na expulsão das paixões, e nas cren­ nião?
ças religiosas, mediante o arrependimento e Seria n’aqueila época menor a corrupção
os tão efficazes recursos que a Igreja, mãe do que hoje?
carinhosa, subministra em tantos aos que se Antes pelo contrario.
lançam em seus braços. Então eram, no pensar dos homens des­
Mas essas paixões, ah! não quer ou jul­ vairados, os deuses, os primeiros modellos
ga que não póde desarraigal-os, desapos- da desmoralisação, que sómente transluzia
sando-as d’um império, a que o coração se em todos os actos religiosos.
submettera voluntario. Não havia em tal caso interesse em ne-
E então que procurando o remedio no
trilho opposto, mais se entranha no mal; e
começa a levantar castellos no ar com que 1 Atque ipsa utilitas ju sti prope mater et
possa derrubar o throno de Deus, pelo me­ cequi. Horat. I. 1, satyr. 3.
nos do logar que occupava em seu coração. 2 Bayle Pensees divers. §. 177.
250 ATH
gar a existcncia cie Deus senão para os que os modernos o cardeal do Polignac, que no
queriam subir ao mais alio grau de corru­ seu Anti-Lucrecio fustiga os novos athle­
pção, ou para os que não podendo conce­ tas da honra deEpicuro cm harmonia com a
ber a Deus com tacs imagens, se abraça­ crença de 18 séculos.
vam ao alhcismo, discorrendo que tacs deu­ E que homem, por mais cordato, não
ses não podiam existir, c que quando os obraria como Epicuro depois de adoptar a
houvesse reprovariam as suas desordens. maxima que nenhum prazer é mau de si e
Nos tempos modernos, pelo contrario, que só deve fugir-se d'e.lle quando d ’ahi di­
possuidores das verdadeiras idéias religio­ manem maiores inquietardes que delicias?
sas, que foram reveladas pela propria ver­ Ha quem n*clle elogie a virtude da amiza­
dade, em fórma visivcl, c mais necessário de; mas essa mesma era consequência le­
o emprego d’este meio a quem o impulso gitima d’aquelle principio para gosar dos
das paixões guia cm seus actos. prazeres que cila produz.
É notável em abono do que dizemos, o , Da moral dos modernos nada diremos.
não apparccer um só que se diga atheu, E de todos bem conhecida para não des­
cujos costumes sejam sem mancha e escân­ mentir o nosso pensar.
dalo, ou ao menos regulares no exterior. Todavia Bayle que não deixa perder ne­
Os seus desejos injustos, arvorados cm nhum sophisma favoravcl ix(sanrtalH) causa
princípios, os compellem a considerar-se no do atheismo a par dTuna classe de quem
mesmo plano dos demais animaes c a crér não pódc desviar nossas accusaçõcs, diz ha­
que com esta vida finalisou tudo para o ho­ ver outra a que chama de homens de gra-
mem, sendo a lembrança da outra uma fic­ vidade, alheios aos deleites e vaidades da
ção de timoratos, que "deveríam seguir o terra... a quem uma longa série de medita­
conselho de Lucrecio—temer o Acqueronte ções profundas, posto que mal dirigidas, pre­
é grande quimera—este vil temor deve ser cipitou no abysmo da impiedade.
cxpcltido d'alma. Eis-aqui uma inépcia que só a má fé de
A’ medida que cada um, condescendendo um cscriptor de talento pódc explicar.
com as proprias-inclinações, vai abrindo o Todos os que negam a existência de Deus
coração ao gosto dos excessos, a religião rejeitam a immorialidadc da alma, e por­
começa de perder terreno. tanto com a m o$e tudo termina para ciles.
O mesmo acontece em maior escala nas Qual será, pois, a esperança que os ani­
nações, porque são cousas incompatíveis. me á práctica da virtude, qual o incentivo
Quem ha que não conheça a devassidão que os conterá em seus deveres, quando a
dos costumes de Iloracio, Petronio, Lucre­ natureza viciada parece arrastal-os ao cri­
cio, c todos os mais da escola de Epicuro? me?
Éstc tão digno mestre de discipulos tão Poderá contrafazer suas inclinações o ho­
corruptos, foi o typo da immoralidade. mem que em acção nenhuma vé conse­
É verdade que sendo o apostolo dos atheus, quências más ou funestas?
os modernos quizcrain vcndcl-o como vir­ Poderá ser alheio aos deleites sensuaes o
tuoso, sem queimarem os documentos con­ que adopta por dogma a fruição d’clles no
trários por impossível. maior grau que seja dado ao homem?
Buyle, seguindo os passos de Pedro Ga- Poderá ser homem de gravidade quem
zendó, a quem primeiro coube a gloria de nada vendo apoz este mundo, e fazendo con­
acarretar, com eloquência sobre Epicuro sistir a felicidade no maior gôso dos bens
uma reputação de que nunca gosára, disse terrenos, os despresa c abandona sem um
d’cllc: poderoso motivo cm contrario?
«Epicuro que negava a jyi'ovidenvia e im- E u seria o primeiro a dizer que d’aqui
mortalidade da alm a/é um dos antigos phi­ á demencia não distaria intervallo.
losophos que viveu exemp!armente.* A ideia de atheu repugna esscnoialmentc
Porém asseveram o contrario.como mais com a de homem de gi-avidade, alheio aos
conhecedores da verdade Cicero, Plutarco, deleites e vaidades do mundo.
Sexto Epirico, Seneca e Atcnco do tempo de Nem todos, ó verdade, teem os mesmos
Commodo, qtie pinta os jardins de Epicuro vicios e o mesmo grau de corrupção, por­
como um lupanar de devassidão, em cuja que algumas vezes não deixa isso do de­
loria teve não pequena parte a decantada pender da differença de temperamentos que
£ eoncia. faz variar as inclinações.
Segundo a fé que nos merecem escripto- Porém o que dizemos é que lodo o atheu
res, assaz contemporaneos, escusado é ou­ cede ao impulso das paixões para que mais
virmos a este respeito S; Clemente Alexan­ propende.
drino, Lactancio, Santo Ambrosio, e entre 3.°—Concordamos que pódc concorrer
ATII 2ol
para aquclla opinião absurda urna longa se­ compatibilidade entre o vicio e a virtude, o
rie dc meditações profundas mal dirigidas. não, querendo resistir á propria inclinação,
Estas, porem, cm si sãu já uma conse­ para serem concludentes buscam princí­
quência do perversidade do coração, que pios em que basear seu proceder.
ou aspira á impunidade do vicio, óu abun­ Para que o athcismo, porém, fosse o re­
da cm orgulho, superior á crença das ver­ sultado de meditações profundas, cumpria
dades que os outros creem lirmcmentc que os athcus se applicassem com serieda­
como manancial de felicidade. de ao estudo religioso.
São, pois, estas meditações um producto Mas não é isto o que acontece.
da vontade que para aquclle lado inclinou Os dias e as noites, de ordinario, são por
o entendimento. Supponhamos a um ho­ elles dissipados na escola de todos os pas­
mem em tudo bem regulado, que por isso satempos e dissoluções.
não tivesse interesse cm negar qualquer Só buscam cm grande parto os livros
verdade religiosa. nalgum intervallo para desenfado, o entre
Quanto aos preceitos moraes, que por si estes sómcnto os immoraos e obscenos como
mesmo cumpria já, não tardaria cm rcco- guia de seu proceder, que sabe consequên­
nbccçv que elles sómente prohibem o que cia legitima dc taes princípios.
um bom c carinhoso pae vedaria aos seus O sarcasmo, as ironias, a irrisão dos mi­
filhos; e que pelo contrario só determinam nistros sagrados e de tudo o que seja reli­
o vantajoso que é. gioso, dc envolta com aleivosias, são repeti­
Os mesmos athcus dotados de amor para das com applauso nas conversações, c as­
com seus filhos, procuram desviar-lhes o sembléias.
que elles teem haurido a longos tragos. Mas nada manifestam tanto como a pro­
E isto equivale a uma confissão tacita do pria intenção, pois que taes ditos cm ne­
que formalmente os condemna. nhum parallelo podem estar com o argu­
Na crença, porém, das verdades dogma­ mento mais infirme.
ticas não vaciliaria um homem tal, visto que Este gcncro dc atheus, hoje mais salien­
cilas algumas vezes produzem no espirito tes, são em tudo similhantes ao antigo Lu-
uma força de persuasão invencível aos so- ciano, excepto na educação, talento e elo­
phismas mais ardilosos, quando se abafam quência pela maior parte.
as paixões. São estes os que com o manto do ano-
Não fosse porém assim. nymo, por não quererem parecer o que são,
A religião propõe aos lieis os seus manda­ procuram em folhetos que cheguem as mãos
mentos como prêmios infinitos,c commina a da classe imperita da sociedade c falta de
contravenção com penas lambem infinitas. critica—o povo—dissiminar as idéias anti-
O athcismo, d’outro lado, tem como prê­sociacs destruidoras da propriedade, dos di­
mios a impunidade do crime com a per­ reitos antiquissimos, e da religião.
missão dc todos os excessos, nivelando a Não se pejam de dar a um público pro-,
morte do homem com a dos mais animacs, vas de crassa estupidez e perversidade des­
cujo encanto só poderá attrahir o devasso. marcada, deturpando os factos, de que só
Mas não tem saneção penal. aproveitam os que lhes convcem.
Em vista d’isto o homem prudente não llazão tem de pur um véo sobre o nome
hesitaria na escolha, porque este sempre quem espalha aleivosias c quem mostra que
procura o partido mais seguro. nem ao menos tem ouvido uma só regra dc
E só a razão desapaixonada vendo as ter­ dialectica.
ríveis consequências dos excessos, e fazen­ Crimes individuacs, filhos da fragilidade
do-os evitar, aplainaria o caminho para a humana, não se podem lançar cm rosto a
crença religiosa. uma classe, quo não póde obviar aos des-
A carreira, pois, do vicio trilhada pelos varios dc todos os seus membros.
athcus manifesta ser este o interesse que Do contrario todas as instituições, por
d’ahi colhem. mais sagradas, teriam de derrubar-se, c tc-
Perdido este interesso voltam por si mes­ riamos de pretender o impossível de que
mos ao seio dà religião. todos fossemos anjos.
Em nosso abono corre a experiência. Se um sacerdote commette excessos, não
O homem com um vicio inveterado, para é a Igreja quem lh’os approva, antes con­
o justificar, procura todos os subterfúgios, demna, nem somos nós quem lh’os louva­
torturando quanto pódc a razão. mos, antes censuramos, mas sómente den­
Mas a is.to estão mais siijeitos os homens tro de nossa alma, ou na presença da com­
sábios. petente auíhoridade como caridosos.
Estes não conhecendo, como o iguorante, Comparemos um tal sacerdote, filho do
252 ATH
peccado, com esses apostolos zelosos que para os infamar c ultrajar, os alcunham do
por entre todos os perigos transportam aos estúpidos e hypocritas.
povos incultos a religião c a civilisaçao; Mas os factos provam-se com testimunhas
e procuremos tal dedicaçao nos das ou­ e isto não o fazem.
tras communhõcs a beneficio da humani­ São asserções gratuitas.
dade. Votemos, portanto, os encobertos authores
Cotejemos este com esfoutros, que aflfron- da mentira a abominação, ou antes á com­
tando todos os aleives que lhes cospem os paixão; por isso que com sciencia super­
sybaritas do tempo que anhelam pelo me- ficial ou de novellas o seu forte esta no
lhorainento da sociedade, missionando no grande numero dc companheiros iolatium
paiz que por desgraça tanto carece de mo­ est miseris socios habere malorum.
ralidade, a cuja falta se deve o atrazo da E diga ainda alguém que o atheismo não
•civilisaçao. é producto em sua origem de coração in-
Os eminentes serviços dos missionários quinado, pelo menos, do desejo do crime c
pesam tanto no coração dos impios que, do vicio.

CAPITULO I

E x istê n c ia d e D e n s d em o n stra d a cnntB(a o s a th c u s

Deus, Religião, Revelação, Escripturas, Tradição e Igreja: taes são os pontos


fmdamcntaes da crença catholica—a summa substancial da doutrina do Christianismo

Um Deus, author soberano de todo o uni­ Senhor a Moysés, seu servo; e por elle nos
verso: uma religião sancta e divina, que o revelou a nós.
glorifica e o honra: uma reveláção que an- Parece incrível que haja quem ponha em
nuncia seus dogmas e fixa, outrosim as re­ dúvida a existência do Ente Summo,—prin­
gras dos costumes: um deposito sagrado da cipio de todos os outros entes c causa d’cl-
mesma revelação augusta nas Escripturas les!... Parece mais incrível ainda que se en­
e na tradição: uma zeladora incansável que contrem desgraçados que afincadamcnte a
vigia por ella, e a guarda pura; bem como neguem, se obstinem em contrarial-a! 1...
uma mestra infalhvel que nol-a explica, Ha todavia uma e outra cousa, digo-o
abrindo-nos seus sentidos com segurança e com extrema mágoa.
acerto; uma zeladora e mestra na Igreja do Por similhante motivo a demonstração
proprio Filho de Deus: seis verdades altís­ d’aquella existência soberana não póde—
simas, cujo conhecimento é essencialmente não deve falhar aqui. Ella assim como é,
. necessario a todo o homem que vem a este em geral, o fundamento de toda a verdade
mundo;—verdades altíssimas, cuja profis­ religiosa, é por isso também a que presta
são explicita se torna indispensável absolu­ o alicerce firmissimo a todo o systema de
tamente para que ao mesmo homem seja evangélica doutrina que.m e hei proposto
dado obter, alfim, a eterna bemaventurança estabelecer e explanar nas paginas d’este
que ao crente é ao christão está promettida diccionario.
nos céos. Entretanto, a despeito da sua importân­
Nós—sdgundo nos cumpre—respeitan­ cia supretfia, serei mais breve no desenvol­
do-as com acatamento profundo, tractare- vimento de objecto tão magestoso, do que
mos de todas. Hoje começaremos pela pri­ terei de o ser, por ventura, na exposição e
meira d’ellas, base de tudo e de todas, de­ na prova de bastantes mais assumptos, com
baixo de qualquer consideração em que se os quaes tenho de me occupar n’este tra­
contemple:—a existência d’um Deus. balho a que me submetti de presente.
É elle aquelle Ente Perfeitíssimo que A existência de Deus brilha de per si como
existe desde toda a eternidade, porque o sol aos olhos do homom—mesmo o mais
existe de si:— existe pela virtude da. pro­ simples, o mais acanhado até em intelligen-
pria natureza.—E u sou o^que sou: dizia o cia. São poucos—bem poucos por fortuna—
ÀTH 253

aqucllcs que a contestam: a maxima par­ Monstro em humana fôrma, a que te aba­
te... direi antes c melhor, a quasi totalidade lanças?!... Louco, miserável, insensato!!...
dos homens a adora e abraça. Tenho sobe­ Tira se pódes, tira Deus ao mundo, e re-
jas razões, por conseguinte, para mais de­ vê-te, mal aventurado, nos cíTeitos pavoro­
pressa a commemorat* cheio de veneração sos de tua obra maldita. Queres um mundo
e de respeito, do que demorar-me com ex­ sem Deus?... Repara, vê bem. O que en­
cesso em fazer d’clla longa demonstração. contras n’clle?...
Apenas aecrcscentarci alguma cousa ao que Encontras por toda a parte o vicio sem
já está dito: c accrescental-o-hei pela preci­ castigo; sem galardão a virtude. O mal­
são contrastavcl tanto quanto pela conve­ vado triumphante; o justo abandonado.
niência manifesta, de consolidar bem o ci­ Nem aqui; nem na eternidade—que a não
mento sobre o qual tem de estribar-se o ha, senão ha Deus—aquelle será punido:
plano de instrucção c doutrina que mc hei será recompensada esta. Terá punição o
formado. perverso; o justo cantará victoria.
Quem lér ajuize e decida. Sem mais de­ Queres um mundo sem Deus?... Repara
longas entro na matéria. —Repara bem. O que encontras n’elle?...
Ha um Deus que nos crcou: este o pre­ Encontras homens sem freio: encontras
gão do universo inteiro. leis sem vigor: encontras paixões recres­
E que sublime é elle!... Quanto é ma- centes: encontras feras sanhudas: encon­
gestoso este annuncioü... Quanto é prazen- tras a desordem c o cahos: encontras a de­
teira esta voz da natureza!!... Quanto nos solação e horror: encontras anarchia em
deve ser grata tal noticia!!... Quanto não tudo.
tem ella para nós de consoladora e de van­ Mas virai o quadro, miseráveis philoso­
tajosa!!... Todos os motivos que mais po­ phastros: virai-o e cobri-vos de pejo:—en­
dem interessar ao homem se reunem aqui. chei-vos de confusão e vergonha.
Se existe um Deus, existe não menos um Um Deus preside aqui ao mundo que
Pae que nos deu também a existência. E formou: é tudo grande: é ludo excelso:
qual é o pae que não ama, não protege maravilha é tudo.
seu filho?... O espectáculo do universo, que um Deus
Se existe um Deus, existe não menos um tira do nada c que um Deus governa, as­
juiz rectissimo. E quem não folgará de que sombra por sua magestade: arrebata por
se lhe faça escrupulosa, imparcial justi­ sua belleza: surprende por sua perfeição:
ça?!.. encanta-nos por sua regularidade: falla-nos
Se existe um Deus, existe não menos um sempre de Deus: e não move só, arrasta ao
Senhor Omnipotcnte. E quem deixará de seu convencimento as intelligencias mais

CJ.S.n. FoxTíiià
se extasiar cm face de grandeza tanta, lar­ rudes: subjuga, prostra, triumpha das von­
gamente despendida cm nosso favor, nosso tades até as mais obstinadas—mais duras.
proveito?... Os céos annunciam a magnificência de
Se existe um Deus, existe não menos um sua gloria; e no vasto—bello quadro do fir­
Legislador Supremo. E a quem não alen­ mamento—véem-se debuchadas com pasmo
tará a ideia de que ha nos céos um Ente as grandezas de sua virtude immensa, os
Superior aos potentados, aos legisladores prodígios de seu braço vigoroso.
da terra, que lhes ha de pedir contas estrei­ Aqui a variada infinidade dos séres, que
tas do uso ou abuso que houverem feito do povoam a terra, nos suspende c nos enleia:
poder que se lhes confiou em beneficio a ordem de suas relações e dependencias
nosso?... nos espanta: a perfeição de sua estruetura
Se existe um Deus, existe não menos um admiravcl nos eleva:* a multidão de suas
bemfeitor munificente em summo grau. E propriedades portentosas nos deixa absor­
a quem nãO inundará de consolação e de tos: c o curso sempre inalterado—em or­
conforto, a quem não encherá de deliciosa dem ao fim que se lhes marcára, presta-nos
esperança uma certeza d’estas?... não menor occasião de nos repassarmos dos
Pae:— é o nosso protector e o nosso amigo. sentimentos mais vivos de veneração e de
Juiz:— ha de castigar o mau, premiar o bom. pasmo. A altiira dos montes, a profundi­
Omnipotentc:—tudo regula para melhor dade dos valles: o matizado dos prados: a
em vantagem nossa. Legislador:—ha tudo fecundidade dos campos: a abundanda das
estatuído quanto é mister para o bem das fontes: o delicado das flores: o sasonado
suas creaturas. Bemfeitor Supremo:—ó elle dos pomos: a variedade dos fruetos: tudo,
a fonte incxhaurivel de nossos dons, nossas n’uma palavra, tudo quanto n’ella se apre­
venturas. senta brada que existe um Deus:—tudo os­
Atheu, o que te atreves a proclamar?!... tenta aos olhos do homem em extremo as-
254 ÀTH
sombro, quando cm tal repara, a riqueza, conduzir com segurança ao porto deman­
a sabedoria c o poder do autlior soberano dado o frágil baixei que o vai sulcando.__
que a formou do nada. Nós vémos que tudo, n uma palavra, tudo
Alii,- remontando-nos á região dos astros, quanto n clle se apresenta brada que existe
se seu brilho nos cega e deslumbra a vista, Deus:— tudo ostenta aos olhos do homem
a constanda estupenda de suas leis inva­ em extremo assombro, quando cm tal re­
riáveis, que o volver de tantos séculos não para, a riqueza, a sabedoria -e o poder do
tem podido desmentir no mais pequeno e Author Soberano, que o formou do nada.
imperceptível apice, abysma-nos com razão Além se antulham cardumes sobro car­
e nos embaraça:—faz-nos vergar com ra­ dumes de animacs que giram c vivem na
zão debaixo dhim pêso incalculável de pro­ terra e nos ares, nas aguas e algum até no
fundissima adoração c respeito. Seu giro mesmo fogo:—animacs innumeraveis por
em orbitas nunca excedidas-e nunca en­ sua quantidade, variadissimos em suas cs-
curtadas: seu numero, além de prodigioso, pccies, distinctos uns dos outros cm subido
infinito quasi: as normas invariáveis pelas grau por suas propriedades c instinctos:—
quaes se regem, que já os chamam para se animacs que cada qual em si é uma mara­
não distanciarem inconvenientemente, já os vilha da natureza por sua estruclura c m e­
arredam e alongam para se conservarem chanismo; muitos por sua elegancia c bol-
em proporcionado intervallo: a força in­ leza;. todos, sem cxcepção, pela maneira
gente que suspensos os faz rodar sobre adequada com que estão organisados em
nossas cabeças: a influencia d’cstes: a massa ordem a seus destinos não menos que pela
enorme d,á*quellcs: a claridade d’uns: o invariável constância com que marcham ao
scintillar dos outros: tudo, n’uma palavra, preenchimento dos fins particulares para
tudo quanto n’ellcs se apresenta brada que os quaes tudo induz a concluir haviam sido
existe Deus:—tudo ostenta aos olhos do ho­ de principio persignados por uma sabedo­
mem em extremo assombro, quando em ria infinita—por um poder sem limites:—
tal repara, a riqueza, a sabedoria e o po- c animacs que, -segundo a phrase concci-
ler do Author Soberano que o formou do tuosa do douto e piedoso arcebispo duque
íada. de Cambray, o insigne de La Mottc Fénélon,
Acolá nós vémos o mar em sua extensão ainda são mais dignos do admiração do que
incommensuravcl; e todos os plienomenos são os astros c os proprios céos.
grandiosos que n’ollo se observam são mais A ave com a plumagem que a cmbcllcza
que tudo capazes de nos transportar e nos e o receio constante que a protege e defen­
encher de extasi — Nós vimos a espaçosa de: o peixe no seio das aguas.com suas es­
congregação das aguas conservando com camas prateadas e sua reproducção incrí­
cscrupulo o logar que no globo occupa, vel, fabulosa quasi: o leão com sua agili­
beijar reverente, as balisas que se lhe pre­ dade c vigor, aterrando—dominando os
screveram, e que nunca será licito trans­ bosques: a aguia, reinando na região dos
gredir.— Nós vémos o successivo fluxo ares por sua intrepidez igualmente que pelo
o refluxo dos mares, agora fugindo preci­ terror que inspiram as garras dospodaça-
pitados do seu centro para as extremida­ doras de que a natureza a dotara: o ele­
des, e logo deixando as extremidades para phante que cm instincto excede a todos, e
de novo se recolherem com força ao mesmo que mais do que instincto parece haver-lhe
centro, d’onde se apartaram.—Nós vémos cabido em sorlo intelligencia e razão: o cão
todos os rios correrem a desaguar no grande com sua fidelidade: o cavallo com sua ar­
Oceano, que coinpletamente circunda a rogância c seus brios: o boi com sua força
terra e faz d’ella toda uma ilha immensa; e seu prestimo, submettido inteiramente na
vémos todos correrem a perder-se ahi, e os vida como na morte ao serviço o á utili­
vapores, que d’elle se elevam, subirem e dade do homem: o veado com sua velo­
condensar nos ares corpulentas nuvens cidade e suas fôrmas esbeltas:. a raposa
que devem mais tarde descer em copiosa com sua sagacidade e finura: o Gamello
chuva para humedecer—fertilisar o solo. com suas longas, pernas, e notável absti­
Estes sabem sem cessar de seu vasto am-, nência de comida e de bebida por largos
bito para que se não transborde: aquelles dias, como lhe eonvém na vastidão dos de­
veem de continuo confundir-se n’elle para sertos de que é habitador: a serpento na
que se não esgote.—Nós vémos o furor celeridade com que se arrasta, umas vezes
d’e»te elemento èmbravecido, arremessando mudamente, outras sibilla furiosa—furiosa
suas ondas ás nuvens e ás estrelías, e des­ se arremessa e salta: o castor no seu inte­
cendo aos abysmos em cavernosas vagas, resse pelos trabalhos—particular o com­
scrcnar-se ao leve aceno da divindade para muni—que influe sobre modo no espirito
ATH
do sociabilidade que mais que muito os dis­ —á face do espectáculo grandioso que nos
tingue, no governo de sua bem ordenada oíTcrecc em qualquer ponto em que o en­
republica a que todo se vota c consagra: a caremos. Valente, porem, como já é, ella
abelha com seus segredos, com seu regi­ recresce mais e mais em força irresistível
men e grande proficuidade: os mesmos ver­ á medida que penetramos mais, também, no
mes que pisamos: os insectos que despre- seio da mesma natureza:—cavamos mais
samos: os animalejos pequeníssimos que fundamente na indagação e no exame dos
nos escapam á vista peia proporção ainda séres que constituem á maravilha do uni­
assim de suas partes e orgãos:—todos, verso inteiro.
num a palavra, todos desde o maior ao me­ Por certo, o quadro da crcação é sur-
nor, desde o mais feroz ao mais manso, prendente em si e arrebatador: entretan­
desde o mais elegante ao mais mal gciloso to, se a perspectiva do universo, conside­
e nojento, todos e em tudo, quanto n’elles rado no seu todo portentoso, se essa per­
se apresenta, bradam que existe Deus:— spectiva é grande e poderosa para levar re­
todos ostentam aos olhos do homem cm ex­ cta e determiuadameute o homem ao co­
tremo assombro, quando cm tal repara, a nhecimento d'uma causa que, por forçosa
riqueza, a sabedoria e o poder do Author necessidade, deve dc ser maior— muito
Soberano, que o formou do nada. maior ainda e mais poderosa—essa perspe­
-Vem a proposito aqui, mais do que cm ctiva não 6 dc menor força e valor para
parte alguma, exclamar agora com o real nos conduzir seguros ao mesmissimo re­
propheta:—Senhor... Senhor, que motivos sultado, quando nos entretenhamos apenas
lia para admirar o teu nome em toda a ex­ com a inspecção detida e refiectida de cada
tensão da terra! 1... Tua magnificência elc- uma de suas partes—as mais pequenas até
va-se ao décimo dos céos. São clles obra 'Deus, com quanto máximo, brilha por um
de tuas mãos omnipotentes. Tu fundaste a modo esplendoroso nos entes, minimos que
lua c as estrollas. E’ tua a terra em toda a sejam, a que a sua dextra excelsa deu a
vasta amplitude que te aprouve dispensar- existência, c fez d’cst’arte comprebende-
lhe. Teu é o universo, e tudo quanto iVelle rcm-sc no todo magestosissimo—no vasto
habita. Tu dominas sobre os mares, e sua c refulgente alcaçar da natureza creada.
força inqualificável: abrandas, tão depressa Embora as palavras sejam outras: haja
queres, o furor medonho das ondas embra- embora variantes nos termos com que an­
vocidas. Todas as tuas obras dão testimu- tes o paraphrasiei do que o alleguei, é este
nho solemnissimo do teu poder—da tua va­ no fundo o pensamento digno d’um genio
lentia immensa. Senhor!... Senhor, que mo­ distincto da antiguidade, que merece recor­
tivos ha para admirar e engrandecer teu dar-se a todo o instante; que a todo o ins­
nome na vasta extensão de toda a terra!!... tante por igual se acha verificado com plena
—Bcmdito seja por vós o Deus do céo. cxactidào, com rigor indisivel.
Confessai perante os viventes toda a sua Eminet in minimis maximus ipse D e u s.__
grande misericordia-^sua vontade podero­ Tanto isto assim é, que sábios, muitos e
síssima. esclarecidos, hão demonstrado a existência
Assim cnmo o-determinava a TobiasRa- irrcfragavel d’um Deus pela consideração
pbael, o enviado de junto do throno do Al­ mesmo de cousás—ã primeira vista insi­
tíssimo para o curar da cegueira em que gnificantes talvez. Toom-a demonstrado de
gemia; assim o devemos repetir com elle: uma maneira que se maravilha muito rião
ou diremos antes com os meninos da for­ convence menos. Teem-a demonstrado, dc
nalha ardente de Babilônia:—bemdigam, feito, por uma maneira terminante.
louvem c superexaltem ao Senhor suas Vedes aquelle verme pequeníssimo?...
obras para todo o sempre. Os anjos e os Nem vedes—inferis só pelo som que elle
céos, o sol e a lua, as aguas c as estrellas, ahi está e existe?... É um animal perfeito:
a geada e o orvalho, o frio o o calor, os nada lhe falta para que o seja completo. Se
gelos e as neves; noites e dias, luz e trevas, aquelle mal se percebe, se esto escapa à
relâmpagos e tempestades, montes c outei­ vista, cm que ponto serão seus orgãos—in­
ros, rios e fontes; tudo que se move nas dispensáveis, essenciaes para a vida?... Pois
aguas, tudo o que germina na terra, tudo curvai-vos peraute os prodígios da Omni-
o que vôa rios ares, tudo. o que vive nos potencia!... Seu machinismo é acabado;
campos, todos os filhos dos homens louvem suas funeções regulares. Um c outro tem
e bemdigam o Creador Omnipotente:—lou­ corpo; tem cabeça; tem boca; tem coração;
vem e exaltem seu nome glorioso. tem entranhas. 'Este, como aquelle, tem
Tal é a prova evidente e incontrastavcl nervos; tem musculos; tem veias; tem ar­
quo resalta do simples intuito da natureza terias; tem sangue; tem humores; tem tudo
256 ATH
— tudo quanto é necessario, e conformo é existência d’um principio infinitamente
necessario para fazer d’ello um sêr vivente, grande—poderoso infinitamente.
também construído e disposto como qual­ Este o Deus que devemos adorar. Só cllc
quer dos animaes mais nobres—mais avul- era capaz—o unico capaz de os conceber
tantcs. desde os séculos eternos, e de os produzir
Que poder!... Que saber!... para o orga- depois no tempo predeterminado. Se o Todo
nisar assim:—para assim o-constituir!!... Poderoso brilha nas grandes producções da
Oh!... Existe um Deus, sem dúvida. Pros- natureza, cllc não brilha n’estcs phenome-
tremo-nos na terra, cheios de pasmo e de nos minutissimos que passam para nós des­
respeito, ante o throno elevado de sua glo­ apercebidos, porque não sabemos avalial-os.
ria e magestade suprema que nas alturas Eminet in minimis maxi7nns ipse Deus.
occupa. Estas cousas pequenas—estes ato­ Acerca de objecto tão indisivclmente gran­
mos quasi imperceptíveis da natureza ani­ dioso resta infinito a expôr. Ainda que
mal— estes e outros ainda, deixai-m’o di­ pouco, alguma cousa mais cxpendcrci no-
zer, infinitamente ainda mais pequenos, le­ capitulo seguinte.
vam-nos, queiramos ou não queiramos, á

CAPITULO II

D e u s, su a e x istê n c ia

Perguntei á natureza primeiro—se exis­ por isso em favor d’estes o argumento


tia Deus?... Indaguei depois da minha pro­ apontado apenas. Elle é possante: é irre­
pria razão e consciência, bem como da ra­ sistível. Ponha-se em toda a clareza a va­
zão c consciência de todos os povos e na­ lentia de que se reveste.
ções—dos homens todos, qual era seu sen­ D’est’arlc os sophismas dos athcus cahem
timento a tal respeito? A resposta foi una­ por terra: a dúvida até torna-se impossível.
nime e geral; foi esta:—e x i s t e d e u s . Triumpha a grande verdade: a impostura
0 que a natureza, na parte physica, dos impios desmascarasse: cahe fulminada.
al­
lega para fundamentar sua opinião respei­ Que eu existo é certo, porque penso. 0
tável já se ouviu. Ouça-se agora como a ra­ que discorro, o que combino, o que calculo,
zão e os homens todos se expressam na de­ o que argumento, o que escrevo, dá d’isso
monstração do mesmo assumpto venerando: testimunho incontrastavel; constitue uraa
— emittindo seu voto mais que muito va­ certeza plenissima; faz uma prova segura.
lioso em materia tão transcendental, em Que tempos houve cm que não existia,
objecto tão magestoso e augusto. visto que não cogitava, afllança-nVo a con­
A razão, pois, o que diz cita?... sciência intima; c que tempos hão de vir
Escutemos. Sua voz é solemne: é grave depois nos quaes não hei de existir—sobre
sobremaneira. Escutemol-a. a terra ao menos—convcnce-m’o a mesma
Eu existo, c existo contingentemente.— por muitas e obvias considerações.
Quem é tal não póde—elle mesmo ser a Sou, logo, um ente de existência passa­
causa da sua existência: é força que a te­ geira.
nha d’outro recebido. Esse outro, fonte da Sou, logo, um ente que não existo pela
minha existência, fonte não menos de tudo necessidade da minha natureza.
quanto contingente fôr, deve ser um eúte Sou, logo, um ente que tive principio e
eterno, um ente- necessario. E is o verda­ que hei de ter fim em minha existência.
deiro Deus: o creador do universo: a ori­ Sou, logo, um ente—não necessario; mas
gem unica e soberana da existência de to­ contingente.
dos os contingentes. Sou, logo, um ente quo para existir de­
È forçoso que todos comprehendam, eu pendi d’outro.
escrevo aqui para doutos e indoutos— e Sou um ente que existo por maneira que
quiçá para estes mais que para aquelles. podia bem não ter existido, nem existir ao
Á ’quelles ó assaz patente a força gigan­ resente: como por largos annos c séculos
tesca, colossal, hercúlea da razão, que indi­ ei de cessar de existir sobre a terra.
cada fica: não assim a estes. Desenvolva-se Sou, em verdade, um sér; sou, porém,
ATH 257
um sér do numero dos contingentes. Quan­ nha de ser inevitavelmente—ou um pro­
do esta deducçuo o não evidenciasse o fa­ gresso infinito ascendente de causas con­
riam, sem deixar cm meu animo a menor tingentes, sem quct essa c a ideia immensa
perplexidade, outras muitas ponderações: se fosse prender cm um annel necessário,
muitos outros raciocínios, qual mais impo­ d’ondc partisse: ou o nada, como manan­
nente, o concluiríam sem réplica. cial unico do existente: ou um ente neces­
Sc o não fora, eu seria independente e sário, sem outra qualquer alternativa que
mudavcl, perfeitíssimo: eu seria eterno: se­ nos termos expendidos não tem cabimento
ria necessario. nem sequer plausibilidadc, ou um ente ne­
Eterno eu, que tenho a consciência de cessário por natureza e essência, que não
que nem sempre existi; c que a tenho, ou- provindo d’outro algum além d’elle, não
trosim, que não hei de existir para sem­ precisando de tal, a tudo—o contingente c
pre!... Necessario eu, que tenho a consciên­ creado, houvesse liberalisado a existência
cia que não existo de mim!... Independente pela virtude e excellenda propria de que
eu, que tenho a consciência que o meu exis­ é dotado.
tir me foi dado—d’outrcm o rccebil... O progresso em infinito de contingentes
Perfeitíssimo eu. que tenho a consciên­ sem ente algum necessário, onde vão pren­
cia de que se reune em mim um aggre- der c d’onde partam em ultimo resultado, é
gado externo de imperfeições c de defei­ mais do que um absurdo; é uma monstruo­
tos!... Immudavel eu, que tenho a consciên­ sidade horrível, repellida pelos princípios
cia de que em mim se operam alterações mais sãos da mais pura philosophia.
continuas; estou sujeito a mudanças inces­ O nada, dado como causa efficiente da
santes, sou victima—triste victima, de in­ existência do mundo, é segunda e revol­
termináveis transtornos no physico e no tante repugnância, igual se não maior do
moral!!! que aquella que a sciencia fulmina, a on-
Outra convicção que não fosse a da' mi­ tosophia aniquila. Vai de encontro a um
nha independencia absoluta para a existên­ axioma manifesto da razão, e tanto basta.
cia e para a conservação d’um Sér Supe­ É doutrina da mais incontroversa falsidade;
rior a mim e anterior a mim: outra per­ porque—do nada nada se pôde fazer por
suasão diversa da persuasão arreigada da virtude propria. Dar ò nada como causa de
contingência do meu sér seria delirio, não alguma cousa, é não assignar cousa ne­
seria absurdo. Não seria prova ^aberração nhuma. É fazer existir um elTcito sem a
mental; sel-o-ia de imbecilidade intellc- sua causa. É desatinar, não é philosophar
ctual. Causaria só lastima: nào merecería Resta o e n t e n e c e s s a r io . Com elle tud(
as honras, nem o empenho de qualquer re­ no universo se explica e corre bem. Sen
futação. Isto assentado—que outra cousa elle o mundo, formado da primeira à ul
é permittido discursar em face do que a tima de partes contingentes, seria a confu­
razão dita, a consciência confirma?... Isto são de todos os princípios, a subversão de
assentado, assentemos também no que de­ todas as idéias, o transtorno de todas as
verá ser esse outro ente d’onde venho. Qual theorias—as melhores estabelecidas, a ruina
convém que se reconheça ser a natureza de todos os systemas—os mais esclareci­
d’aquello, que é o author primeiro da mi­ dos.
nha existência; d’aquclle, de cujas mãos Seria uma contradicção perenne: uma
ella se derivou para mim; que m’a conce­ antilogia perpetua. Seria ainda mais do
deu a seu gosto. que isto; pois seria, embora existente de
Esse ente é forçoso que seja—ou contin­ facto, seria em si o maximo dos impossí­
gente como eu, ou necessario infallivel- veis.
mente. Não ha aqui meio termo. Ninguem Dizer isto, é proclamar bem alto a crença
ainda o descobriu: ninguem o descobrirá racional:—é consolidar vigorosamente o do­
jámais. gma sancto, a opinião universal da existên­
Será contingente o author primitivo da cia de Deus.
rainha existência? e s s e e n t e n e c e s s a r io , e por conseguinte
Nào é: repugna que o seja. Para o sér eterno, independente, immudavel, perfei­
era mister que elle mesmo tivesse havido tíssimo, é elle.
d’outro— que não de si a existência de que e s s e e n t e sem causa de existência—fóra
gosava. O mesmo se repetia n’esse de quem de si: causa entretanto de todo o existente,
eile procedido havia: e a continuar assim é elle.
em toda a serie de quantos se fossem an­ e s s e e n t e in c r e à d o , que creou céos e as­
teriormente apresentando, a continuar, a tros; terra e mares; montes e valles; rios »
consequência indeclinável—justissima ti­ fontes; o homem e todos os animaes, é elle.
zoo ATH
É... ó o Dous supremo de toda a natureza: hir conclusão mais erronea. O que se in­
é o Author Omnipotente do universo in­ culca como raciocínio perfeito, não passa
teiro. de ser—ou um sophisma detestável, ou
Logo, brada a razão, clama a consciên­ uma ignorância crassa. E em todo o caso,
cia— LOGO EXISTE DEUS! ha ahi o atropellamento completo das regras*
Impio, em vão te estorces!... Atheu men­ mais elementares c conhecidas da arte de
tecapto c louco, esbravejas cmbaldo c sem cogitar. Por malicia ou sem malicia elle lá
proveito!... está: não póde desconhecer-se.
Tudo quanto opponhas é miseria. Tudo Abusa-se aqui das palavras como das
quanto arengues é demencia.—Vergonhoso noções por cilas representadas?... É cavilla-
paralogismo, ou torpe alcivosia. ção infame. Mostra-se, pelo que se diz, não
Corrc-le, peja-te, tu mesmo, de tuas ob- haver conhecimento de verdades triviaes?...
jecçõcs insensatas!... N’eIIas ou sobeja a É então grosseiro idiotismo—infantil, su­
malicia ou falta o senso commum. pina ignorância.
Perfido c ingrato, aviltas a humanidade; Uma cousa tanto, quanto a outra, nem
deshonras a natureza. acredita quem as possuc, nem prejudica o
Mas que dizes?... Vejo-tc gesticular dogma sacrosancto—a doutrina consoladora
como um energumeno. Com o rosto em da existência d’um Deus.
fogo, com ar sanhudo, com gesto irado, Deus é incontroversamente o p r im e ir o
com olhar ardente, com voz cava e rou- e n t e e a p r im e ir a v e r d a d e em si, quero
quenha, qijc vociferas tu?... Ouço-te já per- dizer, a primeira verdade metaphysica.
feitamente. Agora o sei. Isto se concede de bom grado. Deus não
Vê quanto sou leal—quanto sou franco. é, todavia, não é para mim verdade logica,
Tens razão. Olil... tu a tens, sem dúvida, venho a dizer, a primeira verdade que mi­
nos princípios que invocas. nha razão ha reconhecido. Tauto basta para
Apesar d’isso, nada conseguiste. Do que destruir o reparo mal cabido do insipiente
argumentas, não se conclue o que tu que­ que desconhece... ou melhor, que cm seu
res. Sc tal argumentação é sincera, la­ coração deseja que não haja Deus. Tanto
mento tua cegueira. Se c capciosa e refal- basta para sustentar—para robustecer a
sada, dclesto tua malicia: fazem-me horror demonstração oíTcrccida, c que tão desassi-
tuas intenções damnadas. sadamente se pretendeu contrariar.
Sim: Deus—a existir (redargues tu: e Embora elle exista primeiro que eu, pri­
tirada a feição de incredulidade e dúvida, meiro que tudo, desde a eternidade, c sem
que não te esqueceste de pôr bem a claro: principio: embora isto assim seja, primeiro
tirado esse pyrrhonismo insolente com que que da de Deus, tenho noticia da minha
insultas a razão, a natureza, o genero hu­ existeucia. Sentidos e experienda, razão e
mano; tirado elle, o que estabeleces é de cousciencia se conspiram, á uma, para m’a
uma precisão e rigor inexccdiveis.) Deus inculcarem para logo, para m a convence­
— a existir,—tem dc ser o primeiro dos rem de prompto.
entes todos: ha de, elle mesmo, ha de ser A esta certeza outras se veem alliar, que
o maior—o melhor—o primeiro ente. As­ a acompanham ou a seguem de perto;-ou­
sim como não póde ter outro antes de si, tras, cujo conhecimento precede, por igual,
do qual dependesse para existir; outro, em minha intelligencia, o conhecimento de
igual mente, não é possível que tenha antes Deus.
de si, pelo qual possa por maneira alguma Sem jámais o haver visto, eu vejo o uni­
vir a ser demonstrado. Emprehender, pois, verso em sua amplidão pasmosa, em sua
levar ao espirito o convencimento da exis­ magnitude estupenda. Vejo suas perfeições
tência d’um sêr primeiro, que se chame e e bellezas. Vejo suas imperfeições e defei­
seja Deus, pòr demonstração— e demon­ tos. Vejo suas alterações e mudanças. Vejo
stração metaphysica, é tentar o absurdo: suas irregularidades que se succedem a
é ter o arrojo de pretender realisar o que miudo. Vejo seus transtornos que se repe­
de si se não presta a chegar á realidade. tem frequentes. Vejo.... vejo, no cabo de
D e mais, se nó mundo ha Deus, é elle de tudo isto, sua contingência innegavel.
necessidade a primeira das verdades. Eis Com quanto grandes verdades, nenhuma
como impossível é o demonstral-o; porque ha ahi, entre ellas, que seja em si a pri­
a primeira verdade, isto nem admitte ques­ meira verdade: são, no entanto, todas el­
tão, a primeira verdade não póde ser de­ las primeiras verdades para mim, era rela­
monstrada. ção áquella.
De premissas exactissimas nunca, desde Nenhuma que seja a primeira verdade
que os homens discorrem, nunca se fez sa- metaphysica em si: todas, de certo, primei-
ATH 259

T a s verdades lo g ic a s para mim; verdades A’vantc. É assaz n’este terreno. Um ou­


■que vieram ao meu conhecimento primeiro tro convida á sua exploração: cntre-sc
de que viesse á minha alma o conheci­ n’clle.
mento dc Deus. Philosophos, que blasonacs dc *I l u s t r a ­
D’eslas c com estas argumento para tor­ d o s , quando sois apenas genios mesqui­
nar palpavel a existencia d’uma causa pri­ nhos, espíritos tenebrosos: quero ser com-
meira, de mim c da natureza, que sendo vosco d’uma bizarria extrema, não espe­
contingentes, uma e outro, eu e clla, não rada talvez, por ventura nunca practicada.
podíamos existir dc n ó s : existir por virtude Quero sel-o: sel-o-hei, apesar de tudo.
.propria. Quem c rico pódc sem detrimento usar
D’eslas c com estas, reforçados por no­ as condescendencías que muito lhe aprou­
vos princípios metaphysicos, que me sub­ ver: e eu aqui pela opulência immensa da
ministra a razão e que acima licam expen- materia estou no caso dc ser á minha von­
didos, chego, quanto posso, ao conheci­ tade generoso, dc dispensar favores a meu
mento dc qual deva ser.... ha dc ser a na­ bel-prazer.
tureza d’cssa primeira causa: eterna, ne­ Supponha-sc que a existencia de Deus
cessaria, immutavel, perfeitíssima. não é susceptível dc se demonstrar m e la -
A primeira causa assim é Deus. p ln j s ic a m e n te . Falso, falsissimo, como é,
Se Deus, pois, c em si a primeira ver­ conceda-sc isso por um rasgo supremo da
dade m e t a p h y s i c a , não é para mim a pri­ bizarria que promelti.
meira verdade lo g ic a : já o disse e o repito Agrada-vos?...
ainda. Sc, como é o primeiro ente, é a pri­ Pois ainda assim, quando falhasse essr
meira verdade que existe, não é o primeiro que se intitula c é — demonstração m e le
ente, nem a primeira verdade que conheço. p h y s i c a — nem por isso a existencia dc Dei
É, partindo d’estas que tenho de antemão, ficaria menos inconcussa, menos fundi
que eu mc elevo áquclla, até alii occulta mentada. Elia c p h y s i c a c m o r a lm e n te tã
dc todo para mim. comprovada, como o pódc ser pela mai.
Quem contestará, se entende os termos metaphysica dc todas as demonstrações.
e anda dc boa fc, quem contestará que Sc a razão a attesta, o universo, segundo
fundando-se nos dictamcs da razão, illus- já fiz vér no capitulo l.°, a altos brados a
trada pelos da experienda; cstribando-sc apregoa não menos. Não menos que a ra­
nos testimunhos mais intimos da consciên­ zão c o universo, a testimunham por uma
cia, que os dos sentidos corroboram, 6 a maneira terminante... porque a testimunham
demonstração que d’aqui resulta, uma de­ com incrível c assombrosa unanimidade os
monstração metaphysica, uma demonstra­ povos todos; quasi sem excepção a huma­
ção rigorosa?... A quem não apparcccrá nidade inteira. Consultem-se" as historias
como mctaphysico, como cxactissimamente das nações da terra em antigos e moder­
demonstrado *o theorema que se houver nos tempos; cilas nos informarão que em
prestabclecido, e que fôr legitima conse­ todas se rendem homenagens a esta ver­
quência dc premissas de tal ordem... É o dade augusta, a esta persuasão veneranda.
que acontece com o argumento incontro­ Leiam-se os livros dos homens mais cele­
verso, concludente sobre modo, que produzi. bres que os séculos hão produzido; a exis­
Chamei-lhe demonstração, c demonstra­ tencia de Deus está lá consignada da pri­
ção metaphysica, porque*ellc o c. Chamci- meira á ultima das suas paginas na gran­
lhc demonstração, e demonstração meta­ de maioria d’elles. Dcixai-mc expressar
physica, c assim o consideram, o teem cha­ d’cst’arte. na maxima parte de seus cscri-
mado assim theologos e philosophos, quan­ ptos famosos vè-so estampado esse conven­
tos, n'uma palavra, se teem occupado de cimento em todos os periodos, cm todas as
objecto similhante.' linhas, em todas as edições, cm todas e cada
Véde no exposto como em prova da p r i ­ uma de suas phrases.
m e ir a v e r d a d e em si; mas nao logo para As excepçòes, se as ha, são tão raras, c
nós, se pódc formar uma demonstração cm sobre raras são tão insignificantes e des-
todo o seu rigor, em toda a pleuitucle dos presiveis, mesmo n’estcs nossos tempos mal­
seus efleitos luminosos: demonstração, que fadados dc corrupção e de impudente li­
subindo das verdades por nós primeira­ bertinagem, mórmênte as verdadeiras, que
mente conhecidas até a noticia, certa e nem a pena vale dc se fallar n'ellas.
clara, d’css’outra que, não obstante ser de Faz-se mister ser mais buçal que os sel­
todas a primeira, ao tempo de alcançarmos vagens, ou mais brutal que as mesmas fe­
aqucllas era ainda por nós ignorada, nol-a ras, mais irracional ainda que os proprios
va evidenciar incontrastavelmentc. irracionacs, para em boa fé se desconhecer
260 ATH
a Deus e negar-se sua existência. A não o sectário, mal-aventurado sectario d’ ellar
ser isto, que envergonha e contrista, com amo-o, porque ó irmão; anccio salval-o,
quanto se verifique, felizmente, n’um pu­ porque ó proximo.
nhado d’homcns desvairados, a não ser isto Que!... Contcstaes a concordia do gene­
o clamor do genero humano sua valente e ro humano sobre este ponto?!...
reforçado, entoando em todos os confins do Que!.... Fallaes-mc em muitos sábios-
mundo hymnos sinceros ao Author do uni­ atheus?!... '
verso. Que!... Allcgacs muitos povos que nemi
Harmonia tão estupenda é formada pe­ conhecem Deus, nem lhe prestam culto?!...
las vozes das gentes todas, das mais anti­ Dcsilludi-vos, se sois sinceros: envergo­
gas c das mais modernas, das mais longi- nhai-vos, se o não sois.
quas c das mais proximas, assim das mais Sábios atheus—aonde?... Entre os anti­
como das menos conhecidas, das que exis­ gos?... Nos modernos tempos?...
tem c das que já lá vão. Ora ponha-se tenno, é tempo, a capri­
N’este concerto surprendente entram em chosas obstinações.
perfeita afinação os povos todos, os civili- Na antiguidade os que a plebe grosseira
sados, os barbaros, os selvagens, as mes­ e cmbrutccida alcunhou de atheus, eram
mas hordas nomades, até as tribus erran­ os que melhor sentiam a divindade.
tes. Todas as linguas leem accentos para o Aquelles que o povolco devasso c igno­
celebrar: todos os paizes teem eccos para rantíssimo, a turba insana, atulhada em
reproduzir seu nome augusto em repeti­ torpeza c insaciável de immoralidades, ac-
dos e jubilosos sons: todas as idades são cusou e fez sentenciar por juizes fracos,
accordcs em lazer pública sua existência por tribunacs indignos, cheios de pusilani-
sacrosancta, cm reconhecer sua virtude e midade, vergando ao terror— esses, está
poder. hoje, e de ha muito, está provado que fo­
f Por isso, exclama extasiado o eloquentís­ ram por entre as trevas c os horrores do
simo orador romano, c se não o maior, um gentilismo os mais puros adoradores d’um
sem dúvida dos maiores de seus grandes Deus Supremo.
philosophos, de seus sábios distinctos: Atheus—Socrates, Protagoras, Eveheme-
«Se a razão o convence (é Cicero quem ro, Prodico, Critias?... Calumnia!...
falia) se a razão o convence: se o .conven­ Atheus os discipulos c seguidores de
cem factos portentosos: se o acreditam os Epicuro?... Calumnia!...
povos, as nações, os gregos, os barbaros, Atheus os christãos dos séculos primiti­
os nossos antepassados todos: se esta per­ vos?... Calumnia, calumnia monstruosa!....
suasão foi partilhada sempre pelos philoso­ Para isto se dizer, como se disse, d’aquel-
phos, pelos poetas, pelos homens de saber les philosophos era necessario uma estupi­
mais profundo, por aquelles todos que con­ dez ou uma malvadez extrema.
stituiram republicas, que edificaram cida­ Para isto se dizer, como se disse dos
des: se os mesmos brutos como que o apre­ epicuristas, era necessario ignorar a fundo
goam: se ha isto tudo, ficaremos na dúvida a doutrina d’esta escola, desconhecer seus
quando temos em prol d’esta verdade su­ dogmas. Erravam horrivelmente; mas fosse
blime o consenso universal dos homens to­ qual fosse seu systema ácerca da divinda­
dos, a aulhoridade constante da natureza de, faziam explicita profissão da existência
inteira?...» de Deus. Se era um Deus mole, frouxo,
Não, mil vezes não, respondo eu. Não, indolente, preguiçoso, sem cuidar do mun­
mil vezes não, devem responder comigo; do tendo-o creado; se era um Deus mau e
respondem, de feito, c respondem em bra­ falso: falsos e maus eram os deuses todos
do unanime todas as creaturas. do polytheismo. As idéias de todos eram
Também aqui mc não esquivarei a atten- detestáveis: sua crença em Deus era inne-
der-vos, enraivados inimigos do meu Deus. gavel.
Apraz-me escutar-vos. Oxalá mc fora dado Para isto se dizer, como se disse, pelos
pela solidez das provas tanto quanto pela pagãos contra os christãos, e que se disse,
laciencia e doçura, ganhar-vos para a fe- ahi estão em prova, entre outros, Arnobio,
{ icidade, ganhando-vos para a religião. Minucio c Justino; como se dissc contra os
Tomai nota c ficai certos que se alguma christãos, ora forçoso haver, a par d’uma
vez a phrase, quasi sem eu o querer, é ignorância suprema- dos princípios áagra-
mais dura, a linguagem mais acrimoniosa, dos e divinissimos do Christianismo, o odio
é o erro que tenho em vista, não o homem: figadal c rancoroso com que pela mais atroz
dirijo-me não á pessoa, mas á doutrina. A das injustiças os perseguiram sem termo.
doutrina anhelo estigmatisal*a como má: Atheus entre os sábios modernos?... Por
ATH 261

Deus!... Tirai meia dúzia, se tantos, de ho­ Então, accrcscenlo ainda, deve-se escre­
mens dissolutos c perdidos, ambiciosos de ver sobre isto com calor, com efficacia, e
fama, anhelantes de celebridade, e eis ahi com insistência louvável para illustrar os
'tudo. rudes, que os impios se afadigam por per­
Adverti, ainda assim, que esses mesmos verter. Deve-se escrever para desviar os
nem eram atheus: apparcntavam sel-o. Não incautos, suster alguns d’elles até que tal­
■eram atheus da cabeça, eram-o do coraçào. vez já toquem as bordas do precipício hor­
Não eram positivos,*eram negativos. Não rível para o qual os teem ido impellindo tei-
estavam persuadidos que não havia Deus, mosamente c com fúria. Deve-se escrever
desejavam que o não houvesse. As suas para atalhar muita perdição, ruinas lamen­
vacillaçõcs, as suas contra dicções incessan­ tosas. Deve-se escrever para ao monos sal­
tes n’cste particular o certificam de sobejo. var estes quando mesmo não seja practi-
Nem eram sábios, como pretendeis: eram cavel converter aquelles.
insipientes; porque só o insipiente é que Quanto ás nações que se inculcam igno­
diz na forca do seu desejo—Não ha Deus. rando Deus, não lhe dando culto, quanto
Bem percebo o que mc objectacs:-—se a cilas, uma palavra basta.
não ha atheus, a que vem este teu afan e A historia desmente hoje narrações tão
trabalho?... se os não ha, supérflua cousa é insensatas, tão absurdos boatos. Ainda de
intentar rcfulal-os. proposito ou sem proposito, reina aqui ca­
Não os ha verdadeiros; e todavia o que lumnia, como reinára alli. O barbaro que
•emprchendo, e immensos teem cmprchcn- mais longe parecer estar de toda a ideia
dido, é convcnienlissimo não só, é neces­ de Deus á primeira apparenda e quiçá de­
sario mais que muito, é indispensável. pois de algum tracto; tractado mais de es­
Não se dão atheus que o sejam verda­ paço, sondado a fundo, e interrogado com
deiros, repito, que o sejam de entendimen­ diligencia, deixa cntre-eonheccr para logo
to: dão-se, no entanto, alguns hypocritas a noticia indistincta, imperfeita embora, de
do atheismo, atheus que o são da vontade. um Senhor do mundo e d’um Deus. Teme-»
Estes poem tudo em acção para persuadir c o respeita.
.aos rudes erro tão fatal; para arrastar in­ O campo que oíTcrecc a demonstraçà
cautos a esta voragem medonha. Os fins, moral, é vasto, tão vasto como a terra tod.
clles os sabem (c eu lambem): o empenho Por agora não o explorarei mais. Não
que empregam n!islo, é ardente, ó incan­ consentem os limites d’um capitulo, cir
sável. cumscriptos em demasia.
«Então, rctorquir-vos-hei como o escla­ Quem desejar vêr este ponto perfeita-
recido padre Tournemin, deve-se então es­ mente desenvolvido, poderá consultar a
crever sobre a existência de Deus para obra que ha pouco publiquei, sob o titulo
confundir aquelles que á custa de falso ra­ da—Brado da Razão e da Fé,—pois que
ciocinar se quereríam tornar atheus deve­ na presente conjunctura não me c possível
ras, se isso fosse possível: aquelles que pre­ dar-lhe aqui maior desenvolvimento.
tendiam vêr se por simílhante meio se con­
venciam de tal.»

CAPITULO III

D e u s. su a u n id ad e c su as p e r fe iç õ e s

Eu sou o que sou. sericórdia, c misericordia infinita em que


Em menos não c possível dizer mais!.... muito timbra, do alto dos céos inclina suas
Não póde encontrar-se pensamento mais vistas sobre a terra. As miserias d’um povo
grandioso e sublime, expresso em phrase que sempre amára, e amára tanto, se lhe
mais resumida c concisa!... É pensamento antolham c se coudoc. Repara nas tribula-
•d’um Deus: assim convinha que fosse. A ções dos filhos de Abraliãp e de Jacob na
•expressão é sua, e isto basta. terra do Egypto; e baixa rapido o decreto
O Eterno movido pelas entranhas»da mi­ que deve terminatas d’uma vez.
262 ATH
Lá chama o adoptivo da filha de Pharaó D’aqui a sua bondade sem par, sua mi­
para o encarregar da missão de libertar sericordia sem igual, sua justiça sem que­
seu povo. bra, seu poder sem limites, sua scicncia.
Lá o intima para se apresentar em face completa, sua providencia suprema, seu
do monarcha vanelorioso e soberbo a fim mando e seu império sobre tudo, e em todo
de lhe dar a conhecer cm seu nome as o tempo absoluto e soberano.
disposições do Senhor Supremo, que é Rei Eis um conjuncto de verdades—verda­
dos Reis; que é só elle o unico e o verda­ des e doutrina de transcendência summa,
deiro dominador de todos os que dominam. que tudo se conspira para nos revelar; e
Lá repelle seus receios c o segura cm que é do maximo interesse do homem tei-o
seus temores. sempre presente, conhecer a fundo. Nos
Lá lhe lavra a famosa credencial, que pontos da religião que não ultrapassam o
deve acredital-o, perante os filhos d’Israel. alcance natural da humana intclligencia, é
Enviado do Altíssimo junto ao tyranno fe­ perfeita a harmonia da razão com a fé:
roz que os opprimia e vexava. aqui não é só perfeita, aqui, permilla-sc-me
e u sou o q u e sou—lhes significarás da dizel-o assim, é perfeitíssima. São verda­
minha parte. Dá-lhes a saber que a q u e l l e des estas que raciocínio e authoridade di­
q u e É , é esse quem te manda libcrtal-os. ctam de commum accôrdo—por igual in-
Fal-os bem certos que a q u e l l e q u e é , é culcam—são verdades que brilham tanto
esse que te envia ao rei a prescrever-lhe ao philosopho pelas luzes da razão, quanto
uas ordens e a intimar-lhe sua vontade se patenteiam ao cliristão nos oráculos da.
berana. revelação.
Ego s im qui sum. Eu sou aquelle que sou. 0 niesmo Deus, tres vezes sancto, que
Qui est, misit me ad vos. Manda-me a nos diz nas Escripturas: Eu sou aquelle que
s para vos assegurar de suas intenções sou, é esse proprio que uma por uma nos
mignas em beneficio vosso; manda-me a confirma na certeza infallivel d’estas ver­
ós aquelle que existe de si. dades sagradas. Esse Deus Altíssimo que
O que existe de si!!... ordena a Moysés annunciar ao povo israe­
É isto o mais e o melhor que um Deus lita: 0 que me enviou a vós, faz-nos sciente
mesmo póde dizer ao homem de sua natu­ não menos d’estas verdades solenmes que
reza divina. animam e consolam; que marcam ao crente-
O que existe de si!!... o comportamento a seguir, ao passo que de­
É isto o mais a que é dado attingir a vem regular nossa carreira em ordem á fe­
acanhada intclligencia humana na compre- licidade que anhelamos na terra, com refe­
hensão possivel d’uma essencia infinita. rencia á bemaventurança eterna, a que as­
Dizer que existe de si3 é dizer que existe piramos nos céos.
pela necessidade, apenas, da propria natu­ Approximai-vos com respeito e temor ao ■
reza. sanctuario da minha gloria. E u sou o Se­
Dizer que existe só e apenas pela neces­ nhor. Ego Dominus; está escripto no Levi-
sidade da propria natureza, é dizer que tico: o espirito do Pae celestial o inspirou.
existe desde toda a eternidade. E u sou o Senhor. Ego Dominus.
Dizer que existe de toda a eternidade, é E u sou o Senhor!?... E que Senhor 1... É
dizer que existe sem principio da sua exis­ um Senhor único cm sua essencia, a par
tência, sendo antes o principio de todo o do qual fôra desacato horrivel admittir-se
existente. outro.
Dizer que existe sem principio .de exis­ Nada tanto como isto as Letras sagradas
tência, é dizer que tem em si, unicamente nos inculcam.
em si, tudo quanta é sufficiente, superabun- É n’cllas que se vê cm o Deuteronomio •
dante até para a sua existência e duração que Deus nenhum ha.mais além d’aquello
sempiterna. que fizera á força de portentos espantosos,
Dizer-se isto é dizer-se independente. Di­ cora uma virtude magna, sahir do Egypto •
zer-se isto é dizer-se perfeitíssimo; é dizer os filhos de Jacob, que a tyrannia do mau
que um ente tal e tão augusto tem em si e rei escravisava. É n’ellas que se manifesta
por si todas as perfeições possíveis: é dizer por David, no segundo dos reis, não haver
que esse ente venerando c sanctissimo pos- òutro Deus similhante ao Excelso, nem ou­
sue todas c cada uma de suas perfeições tro Deus afóra elle. É n’ellas que se acha
no grau mais alto que é possivel dar-se. escripto por Isaias: «Só tu és o Deus de
D ’áqai a sua unidade; porque o infinito todos os reinos da terra, tu que fizeste o-
é também immenso; e immenso e infinito céo e a mesma terra.» E n’ellas que está
não póda haver senão um. consignado por Oseas, em preceito expresso-
ATH 263

aos israelitas, aue—só o Deus que os salvou aos hebreus, com o rei propheta, que o
da barbarie do Egypto, é o Deus verda­ throno do Altíssimo ha de permanecer até
deiro, á excopção do qual nenhum deverão ao século dos séculos, e que seus annos não
reconhecer. E’ n’ellas que está exarado por acabarão jamais. D’est’ai'te o evangelista
S. João no seu Evangelho, e por S. Paulo amado nos revela, prophetisando cm Pat­
aos de Galatha, que:—Deus... Deus verda­ mos, que é elle o Alfa e o Omega, o principio
deiro só um existe. e o fim, segundo o mesmo Oinnipotente lhe
Eu sou o Senhor?!... E que Senhor!! É houvera dito.
um Senhor Excelso, que com a efficacia dc Eu sou o Senhor?!... E que Senhor!... É
sua vontade poderosíssima arranca o mun­ Senhor Immenso, incircumscripto, que tudo
do do nada; metteu a ordem no cahos; das enche e occupa.
trevas fez surgir a luz: um Senhor Excclso, Por isso Salomão ao consagrar-lhe em
que com a valentia de seu braço omnipo- Jerusalém o templo maravilhoso que fizera
tente tudo conserva, e sustenta tudo. erigir em honra do seu nome sacrosancto,
Assim é cllc o proprio que nol-o declara falia ao povo e lhe diz que nem o céo, nem
em repetidas passagens das divinas Escri- a immensidade sequer dos céos todos o
pturas. póde comprehender. Por isso David annun-
Alli elle nos certifica de que é um Se­ cia que em parte alguma é dado subtra-
nhor Todo Poderoso: um Senhor fortissimo, hir-se ao poder do seu espirito. «Sc subir
ao qual nada ha que seja impossível, nem aos céos, são suas palavras cmphaticas, tu
difficil mesmo. Alli se lê no Apocalypse, por alli estás; se descermos infernos, estás tam
entre louvores immensos, tão estrondosos bem presente.» Por isso os cherubins cia
como o clamor da multidão innumeravel, mam um para o outro, em Isaias: «És trel
como a voz das torrentes, como o ribombo vezes sancto, ó Deus dos exercitos, toda
de espantosos trovões, se lê o testimunho terra está cheia da lua gloria e da tua gran
reverente de todos aquelles que o temem, deza incommensuravcl.» Por isso em Jere­
de todos os seus servos, grandes e peque­ mias o Eterno mesmo nos attesta que céo
nos, que clamavam, dizendo: «O Senhor é c terra é tudo occupado por elle. Por isso
na realidade um Deus Omnipotentem Alli, S. Paulo préga em Athenas, no centro do
desde o primeiro ao ultimo dos Livros Agio- Areopago: «Nós todos, sabei-o alhenienses,
graplios, começando no Genesis e terminan­ nós todos n’elle vivemos, n’ellc nos move­
do no livro das visões do desterrado de Pat­ mos, existimos n’elle.» ,
mos, todos á uma apresentam provas ir- Eu sou o Senhor?!... E que Senhor!... E
refragaveis da sua virtude infinita, em que um Senhor que, juiz rectissimo, tudo e todos
creou os céos e a terra; o mar, e tudo o julga com uma justiça inteira: dá a cada
que n’elle ha; o que vémos c o que não um a paga conforme seus merecimentos.
vémos; o universo inteiro em toda a ma- Testifica-o assim Job quando enuncia que
gestade e esplendor grandioso de que se «está longe de Deus a impiedade; longe...
reveste. Bastou elle proferir uma palavra, mui longe do Oranipotentc a iniquidade.
nos assevera o Psalmista em sua phrase Elle retribue ao homem segundo os cami­
sublime, bastou que proferisse uma palavra, nhos por onde o homem marcha.» Testifi­
foi tudo feito; mandou, apenas mandou, e ca-o assim o aulhor do psalmo 9o, ao cer­
tudo.existiu de quanto existe. «Elle... elle só, tificar-nos que «tudo exulta ante a face do
proclama Isaias, fez tudo: estendeu os céos, Altíssimo, que vem para julgar a terra:
deu estabilidade á terra com aquella dextra exulta porque a ha de julgar em toda a
otcntissima, com a qual (David o cantou sua amplitude, em sua vasta e extensa re­
S epois) o mesmo é tocar os montes que re- dondeza, com a equidade que o caracte-
duzil-os a fumo: deu estabilidade á terra, risa: ha de julgar os povos* com a exacti-
para a qual se olhar attento, a fará tremer dão da verdade que constitue n’elle a pró­
até aos fundamentos.» pria natureza, sua essencia sanctissima.»
Eu sou o Senhor!?... E que Senhor!... É Testi fica-o assim Jeremias, seu propheta,
um Senhor Sempiterno, sem principio nem muito antes de nascido, predesignado já
fim de siia existência, sendo antes o fim e para ser no meio das nações; por quanto
o principio de todas as creaturas. ahi se encontra exarado que cada qual tem
D’est’arte bem nos assegura Job que o a receber do Arbitro Supremo o que me­
numero dos seus annos não é possível con­ recer de justiça, á medida do que lhe com­
tar-se. D’est’arte Tobias o appcllida o Rei petir, attentas as veredas que houver bri­
dos séculos, e Isaias nos affirma que é elle lhado. Testifica-o por modo igual b. Ma-
dos entes o primeiro, dos entes è o novis­ theus e-S. Paulo, ambos accordes em asse­
simo. D’est’arte o grande apostolo assevera gurar-nos que «o Filho do homem ha de
264 ATH
vir acompanhado dos anjos em grande glo­ mesmo pelos animos os mais prevenidos:
ria, e que entào dispensará prêmios ou cas­ atteste-sc para essa reunião de circumstan­
tigos, quaes forem devidos ás obras que se das notáveis, ainda na hypothese dc que
tiverem practicado.» se esteja preoccupado d’um sentimento ad­
E u sou o Senhor?!... E que Senhor, em- verso. Encare-se, decida-se, e a valentia da
fiml... «É um Senhor tào bom como fiel, verdade triumphará de todos os obstáculos.
diz entre muitos o prophetico filho d1Amo*; Triumphará por certo; e quando hajam per-
tào sancto como misericordioso, declara, tinazes em a não querer confessar, elles
com bastantes mais, o sanctificado filho de proprios a sentirão cm si; dentro de si lhe
Helcias; tào cheio de sciencia como de pro­ tributarão homenagem.
videncia; tào digno de ser temido, tào di­ Os argumentos mais simplices são, por
gno de ser adorado, tào digno de ser ser­ vezes, os mais concludentes também. Vou
vido com pontualidade e escrupulo, como adduzir um pois que se em sua contextura
em um e outro dos Testamentos se nos é singelo, é irresistível na força de demon­
conta a cada passo, nas phrases as mais stração evidente que encerra na propria
explicitas, nos termos os mais formaes.» simplicidade que o distingue sobre modo.
Vôdes esta consonância tào completa?... No universo, apesar de seu esplendor, que
Notaes esta uniformidade tào acabada, tào deslumbra, enxerga-se a mistura bem pro­
perfeita entre a razào e a fé, que se pro­ nunciada c distincta de muitas perfeições
nunciam, no maior accôrdo, sobre o obje­ que encantam, a par de imperfeições não
cto relevante, por extremo dos attributos pequenas que o olfuscam e desfeiam. Veri­
de- um Deus? Notai-a; pois convém, e mui- ficadas ellas, sua contingência é visivel. Sua
o, que a advirtaes. Notai-a, que. é de inte- contingência, uma vez manifesta, leva-nos
•esse, c de interesse summo, que fiqueis por forçosa consequência ao conhecimento
Telia possuídos, a ponto de não poder res- d’uma causa necessaria que lhe désse o
ar dúvida alguma, sér. Esta causa existe: esta causa é Deus.
Ficai todavia igualmente certos que mes­ Incontrastavelmente nada mais se precisa
mo por impossível, se a razão e a fé se ca­ que a só observação rcílectida do mundo,
lassem a tal respeito, a voz só do universo para sermos conduzidos sem esforço ao
nos bradaria tão alto... sua vista unicamente grande resultado, ao qual a philosophia de
poderia tanto, que ella, de per si apenas, mãos dadas com a revelação—philosophia e
seria assazmente esforçada para levar a revelação que sempre se auxiliam em ma­
convicção n’este assumpto ao fundo dos co­ terias ao alcance da natural intelligencia,
rações os mais obstinados. Aquella perspe­ quando esta é divina, e aquella não é pre-
ctiva mesma do quadro assombroso Ja na­ tenciosa e falsa—ao grande resultado, ao
tureza que nos elevou directamente até ao qual a philosophia de màos dadas com a
conhecimento da existência de Deus, essa revelação celeste se empenharam ha pouco
mesmissima perspectiva, embora indirccta- por nos fazer chegar.
mente, nos sublima também ao conheci­ Por esta tanto quanto por aquella; por
mento seguro da existência de um só Deus, uma igualmente que por outra, está a to­
e das perfeições infinitas que formam sua dos patente que o ente que creou céos e
essencia divina, terra, é um ente eterno, que sendo eterno,
É mister recordar que não ha effeitò sem é necessário não menos; sendo necessario.
causa. é independente, é infinito sem dúvida, e que
Cumpre se tenha presente que nenhum sendo infinito é perfeitíssimo na extensão,
effeito póde ser superior á sua causa. De como o deve... o ha de ser por força na in­
contrario verificar-se-ia o caso estranho de tensidade também dos attributos que o re­
dar alguém o que não tem, ou pelo menos vestem c o constituem.
de ir dar a outrem mais do que em si te­ Eis a conclusão a que queria trazer os
nha, o que repugna. que lêrem, fazendo-os profundar até ella,
Ponha-se tudo isto ante os olhos do espi­ com suavidade e sem custo. Resumil-a-hei:
rito, de um lado. é esta.
Colloque-se do outro -a magnificência, a Quanto a theosophia nos ensina dos attri­
magestade surprendente do espectáculo que butos divinos, outro tanto a theologia reve­
o universo offerece. No meio de tanto bri­ lada nos certifica ácerca dos mesmos attri­
lho, a despeito de bellezas tào insignes, re- butos; e o que a primeira e segunda nos
flexione-se não menos que ainda assim des­ evidenceiam, a mera observação da natu- *
tacam da sua superfície; em seu seio se reza nol-o esclarece c convence. Pelos tes-
descortinam imperfeições não poucas, de­ timunhos da fé, pelos dictames da razão,
feitos bem perceptíveis. Encare-se tudo, pela simples reflexão sobre a vista da na-
ATH 565

turcza, o ente que crcou o mundo 6 neces­ feitíssimo e unico. Tal é Deus: perfeitís­
sario c eterno. Este para ser necessario, simo e unico.
tem de existir dc si; para existir de si tem Reconheçamos sua existência; confesse­
de ser absolutamente independente; para mos sua unidade; adoremos seus attributos
ser absolutamente independente, tem de ser perfeitíssimos, c suas perfciçòes infinitas.
infinito; para ser infinito, tem de ser per­

CAPITULO IV

B em s, OinmipotcucSa, C rcaçáo, C onservação

É admiravel a harmonia da razão com a Ha pouco nós o vimos no que respeitava


fé!... Barafustem quanto quizerem os eter­ a Deus e seus attributos sagrados, suas per-
nos inimigos da religião: esta é uma gran­ feiçdes infinitas, suas cxccllencias sanctis­
de verdade. simas. Que Deus existe, a razão- o demon­
A’parte os mysterios augustos do Chris­ stra, a fé nol-o annuncia também.
tianismo, a não se contarem alguns, pou­ Que elle é um, um só, a razão o con­
cos artigos dc doutrina e fé christã, que a vence, a fé nos certifica não menos.
revelação nos dieta, a intelligencia nao al­ O que é o Pae, o Author, o Crcador, c
cança:* artigos que em nada contradizem a Conservador do universo, a razão o afiirm:
razão e seus princípios luminosos, a des­ a fé o consolida igualinente.
peito do que em contrario á turba dos in­ Que é infinito cm justiça e bondade infi­
credulos apraz assoalhar sem prova: arti­ nita, misericordioso sem*termo, recto, im­
gos que transcendendo apenas o alcance parcial sem limites, a razão tanto quanto a
por extremo acanhado da natural compre­ fé o comparam á uma.
hensio humana, o crente adora suhmisso, Que é eterno e necessário, independente
alegre e.jubiloso, em face da occasião que e immenso, poderosíssimo e sapientissimo,
assim se lhe proporciona, de sujeitar a hu­ immutavel c veracissimo, vigilante e pro­
mildade do seu nada á sublimidade mages- vidente, beneficentissimo e optimo, a razão
tosa do saber infinito do Deus em quem o évidenceia, a fé, outrosim, o proclama, e
confia: artigos que apesar do ardor deses­ protesta.
perado da impiedade frenetica, desatinada, Uma não ha das suas propriedades ado­
delirante, apesar d’istò e de tudo hão trium- ráveis, d’aqucllas que theosophistas c theo­
phado ha mais de dezoito séculos comple­ logos denominam physicas, a par das que
tos, e triumpharão por todos os futuros até usam intitular ?novaes. assim das negativas
á consummação dos mesmos, dos paralo- como das positivas, sejam embora das com­
gismos despresiveis, das declamações mi­ municativas, ou das que são por sua natu­
seráveis com que a heresia de uma parte, reza taes que por maneira e fórma alguma
da outra a iireligião em crua sanha, se podem ser communicadas de Deus ao ho­
teem empenhado cm combatel-os: artigos mem: uma unica não ha que reconhecida
que formam n’um só complexo a materia pelas luzes da razão, pelos oráculos da fé,
especialissima do Evangelho sacrosancto não tenha por igual vindo constar bem ex­
do Filho do Altíssimo; a não serem elles... plicita e expressa. Serviu assaz a este pro­
elles, que só nos cumpre receber e acatar posito o que se leu no capitulo precedente.
na fé do Senhor Omnipotente e Optimo, que A alliança intima entre estas duas fontes
se dignou communical-os ao homem no de­ de verdades sacratissimas, é ahi manifesta,
cidido interesse pela sua salvação e eterna e por tal arte, que nada mais sobre simi-
vida... elles, a respeito dos quaes nunca lhante assumpto é mister accrescentar.
deixara de ser temeraria e louca qualquer Entretanto se isto é assim em geral, em
pretenção de os attingir ou explicar: a não particular é incontroverso não menos, que
serem elles, tudo o mais entre uma e ou­ reclamam não pela sua transcendência, que
tra é consonância, é accôrdo, accôrdo per­ é summa cm todos pela virulência, sim, e
feito, acabado, exactissima consonância. O rancoroso azedume com que, se todos mui­
que aquelle diz, esta confirma: esta corro­ to, uns mais que outros, hão sido acerra-
bora o que aquelle ensina e pregôa. damente contrariados—reclamam, sem ad-
266 ATH
mittir a menor dúvida, um exame mais de­ nancial perenne de incríveis e misoraveis
tido, mais amplo desenvolvimento. Tenho desvarios.
para mim que ao menos, com referencia a Sc estes são erros, c erros graves, não
alguns d’clles, muito convirá que isto se podiam por isso deixar de agradar á mo­
faça. Tenho-o assim, e como assim o en­ derna libertinagem, ecco infatigável e insi­
tendo, assim o vou desempenhar no pre­ pida repisadora, em nossos dias, de tudo-
sente capitulo, e quiçá me reservarei para quanto houve do mais revoltante e mais
outros mais. impio nos dias da antiguidade.
0 ’ Omnipotencia do Excelso, visivcl por- 0 que lá disseram, rejiovaram cá. Pela
tentosamentc na obra estupenda da creação mesma maneira que se'expressaram nas
do mundo, e na conservação prodigiosa trevas espessas do gcnlilismo dominante
tanto quanto aquella é extraordinaria e ma­ Democrito, Zenão, Aristóteles, Platão e Epi­
ravilhosa em extremo; sua providencia vi­ curo; por esse mesmo theor, obstinando-se
gilante de continuo sobre o universo que a desviar as vistas dos brilhantes resplen-
creára com poder illimitado, e que com o dores com que a revelação nos ha creado,
mesmo conserva: sua justiça rectissima, e que tudo illustram; sem olhos para vé-
distribuída com imparcialidade c inteireza rem, sem ouvidos para ouvirem, sem fé,
sobre o bom e o mau, o justo e o injusto: sem moral, sem religião e sem Deus: é por
sua simplicidade que lhe compete como a esse mesmo theor que se tein feito um pra­
puro espirito, e sua immensidadc com a zer supremo de o reproduzirem n’estes sé­
qual enche os céos e occupa a terra, hão culos vertiginosos, os espíritos tresloucados
sido o alvo mais constante dos mais enrai- que a si proprios se denominam fortes, ao
vados tiros da velha impiedade, e do mo­ passo que no sentir e no dizer de todos são
derno philosophismo. fracos em vez de fortes, são obscurecidos e
Bastantes escolas na antiguidade susten­ não illuminados, são pervertores, são per­
taram que o mundo era eterno. Não sur- versos.
jjrende similhante desatino em homens com Pouco, mui pouco, é assaz para os con­
a razão viciada, corrompida altamente; ho­ fundir na embriaguez de suas sonhadas
mens aos quaes as paixões só influíam, a victorias; mui pouco que seja é de mais
revelação não luzia. para derribar o collosso de iniquidade, que a
Não "poucos, apenas variando d’um para obcecação e a malicia se tem aprazido ar­
outro erro, affirmavam que elle era feito, chitectar em ruina de muitos, para escân­
sim: era-o todavia d’uma materia preexis­ dalo de todos. Fé e razão os esmaga: a fé
tente desde muito, preexistente nada me­ na simplicidade divina de que se acompa­
nos que desde a eternidade. Para os sectá­ nha, a razão na robustez invencível dos
rios d’estas o mundo tinha sido formado, mais rectos e sãos princípios, que a enca­
não tinha sido creado. Nem isto admira minham e regulam.
também. Na falta de todo o auxilio supe­ Deus é o Author Omnipotente do mundo.
rior da luz sobrenatural vinda do alto, guia­ Segundo esta e aquella, elle o creou pela
dos unicamente pelos delírios da própria sua vontade poderosíssima. Foi, segundo
intelligencia sobre acanhada, enferma, è uma e outra, a sua dextra potente que o
entenebrecida, não lhes era dado remontar arrancou aos abysmos do nada que o pre­
seus vôos ás regiões d’esta verdade sublime. cedia, para a realidade e positivismo da
Outras ainda despropositavam mais, se existência de que gosar. D’est’arte se di­
póde ser mais, com efleito, áccrca da ori­ gnam revelar-nos os livros sanctos, deposito
gem que assignavam á obra primorosa do augusto de verdades sacratissimas.
mundo e da natureza. Do si mui desvane­ E’ assim que Moysés nol-o testifica no
cidos, ufanos a não mais com seu saber ex­ seu Pentatheuco. Dos cinco livros que o
quisito, sem que o mais leve rubor lhes co­ compoem, o primeiro é destinado principal­
lorisse as faces, era nenhuma causa, a causa mente para commemorar o facto estupendo
que attribuiam á sua existência. Era ne­ da creação do universo.
nhuma, que a tanto equivale fazel-a o re­ 0 Genesis a esta se dedica por um modo
sultado do mero e fortuito acaso, cego, im­ especial: e se esta não é o unico objecto,
potente, absurdo, repugnante, paradoxal e é sem dúvida a que n’ella antecede a to­
impossível. E que estranheza ha aqui?... A dos, é o seu mais saliente e mais maravi­
razão, a pobre razão do homem abando­ lhoso assumpto.
nada ás suas forças sem outro apoio (quan­ S. Jeronymo, na carta dirigida a Paulino,
do a consciência o não dissesse, demasiado resumindo’ em poucas palavras ov argu­
o evidenciaria a cxperiencia); a debil ra­ mento total do Genesis, bem que reconheça
zão do homem em termos taes, é um ma­ que no fim d’elle se tracta da sahida dos
ATH 267

hebreus, impcllidos pela fome, da terra dc que o author, qualquer que ellc seja da Sa­
Chanaan para a terra do Egypto; bem que piência, divino sem questão, canonico in-
mencione o fallar-se anteccdentcmcnto da controvcrsamente; que Isaias, que Daniel,
confusão das linguas, e dispersão dos loucos que Malachias, que a mão dos machabeos,
filhos dos homens, em pena da sua auda­ se expressam para significar a omnipoten-
cia c demenda manifestadas, a não restar cia do Excelso, feita manifesta na obra da
a menor hesitação, na fabrica da torre de creação.
Babel que tiveram o arrojo, quasi incon­ Po*ssuidos do mesmo espirito, é outrosim
cebível, de intentar elevar até ir emparc- com idêntica lucidez e emphasc, que S. Ma-
lhar-se cm sua summidadc com o proprio theus no seu Evangelho, que S. Pedro nos
céo; bem que ainda antes nos diga que o actos dos apostolos, que S. Paulo em suas
Genesis se occupa da divisão da terra pelo epistolas, que o discipulo predilocto, antes
descendente de Noé, nos assegura termi- no Evangelho e depois no Apocalypse, es­
nantemente que os dous ernpenhos princi- tes como aquellcs se enunciam todos, pre­
paes do grande legislador israelita, ao es- tendendo glorificar na feitura dos céos e da
crevcl-o, eram—mais que tudo, e primeiro terra o Senhor Supremo, cuja palavra, ella
que tudo, deixar consignada por um modo só, bastou para do nada que eram, os tra­
incontrastavel a historia eminentemente as­ zer em breve á realidade da existência que
sombrosa da creação do mundo pelo Omni- houve por bem dispensar-lhes generoso.
polente, e a do começo do genero humano «Abrçihão, tu és abençoado pelo Deus Ex­
que alli, em painel tão radioso, avulta como celso, pelo Excelso e grande Deus que
sendo uma notável, nobilissima parte em creou o céo e creou a terra.» É Melchise-
excesso, da mesma creação. dcch, rei de Salem, e sacerdote do Altís­
Tanto este acontecimento estupendo, que simo, que correndo por celeste disposição
só um Deus podia planear, e só a um Deus ao seu encontro, lh’o vem annunciar, como
era dado levar ao cabo, é prodigioso sobre se vé no capitulo decimo quarto do divino
modo, e chega em si a ser, sem contesta­ Genesis.
ção, o maximo dos prodígios; outro tanto é Vês o céo com a toda a sua magnificên­
surprendente não menos, e energica a lin­ cia?... Cuidado!... Quando o olhares exta­
guagem que emprega para o referir o in­ siado, e admirares alli o sol, que espargindo
signe e venerando propheta, legislador de por toda a parte seus raios, faz em tudo
Israel. sentir a benefica influencia de seu calor vi­
Disse Deus: «Faça-sc a luz.» E a luz foi vificante, quando o olhares maravilhado e
feita. admirares a lua que preside, na doçura da.
Tal é a phrase admiravel de concisão e sua claridade, ao silencio da noite, como
valentia, de que lá se serve para nos signi­ aquelle preside, na duração dos tempos, ao
ficar com valentia lambem o poder efficacis- bulicio dos dias, quando o olhares arreba­
simo d’aquelle que com sua palavra ape­ tado e admirares alli os astros todos, que o
nas do nada fez existir tudo: luz, céos, terra, abrilhantam e ornam... Cuidado!... outra
mares, sol, lua, estrellas, os reptis e os vo­ vez t’o advirto. Não caias no erro de os
láteis, os peixes grandes e os pequenos, os adorares. Adora... adora um, mas o Senhor
animacs da terra, de toda a especie, c o ho­ teu Deus; foi eUe quem os creou.
mem, alfim, que lhe agradou creal-o á sua É este o espirito, e esta a intelligencia
imagem magestosa, c a sua similhança au­ das palavras com as quaes Moysés no ca­
gusta. pitulo quarto do Deuteronomio cxhorta o
Tal é a phrase cheia d’uma sublimidade povo que libertava da tyranni a de Pharaó,
divina, que um homem inspirado pelo Altís­ e da durissima escravidão que o opprimira
simo soube... pôde achar mais que adequa­ no Egypto: este é o sentido das palavras,
da para nos dar a possível ideia da virtude com as quaes, depois de o haver excitado
poderosíssima do Eterno, que por efleito, á observanda dos mandamentos da lei, o
só e unicamente, de simplices actos de sua admoesta que se não despenhe no crime e
vontade irresistível, e dos abysmos inson- desvarios horrendos da torpe idolatria, para
davois do não ser, foi assaz potente para aa squerosidade da qual uma tendenda des­
extrahir de prompto o mundo cm todo o graçada o arrastava sem termo. Ai de ti,
seu deslumbrante brilhantismo, o universo Israel, se o não fizeres!...
inteiro em sua magnitude espantosa. «A mão do Eterno alcançará pesada os
Dominados pelo mesmo espirito, é por que delinquirem. O Senhor é fogo, que
igual, com a mesma clareza e força, que abraza e consome. É um Deus cioso. A elle
Melchisedech no já citado Genesis, qúe Moy­ só adorarás, pois que só elle é de tudo o
ses no Deuteronomio outra vez, que David, Creador, munificcnte o poderosíssimo: —
268 ATH
dos astros no firmamento, dos peixes no der illimitado se estende sobre toda a car­
seio das aguas, dos animaes que povoam ne.»
a terra, dos voláteis, que voltejam de con­ Tal ó a resposta resoluta c firme que Da­
tinuo na vasta região dos ares. niel não trepida dar ao monarcha de Baby­
«Vós o dissestes, ó Deus; e tudo foi para lonia, que sobre csje ponto o interroga.
logo chamado á existência. Vós lançastes «Por ventura não ha um pae para nós
um sopro sobre o nada; c eis aqui o uni­ todos?... Por ventura não ha um Deus que
verso appareccu creado. Não ha quem re­ nos crcou?...»
sistir possa ao brado da vossa voz omnipo- Pergunta Malachias, indignado com ra­
tente, que abala os montes desde seus fun­ zão contra o orgulho fatal que leva triste-
damentos, e derrete as pedras como se fos­ mente o homem a despresar seus irmãos.
sem céra.» Esta pergunta, não menos que aquella res­
É a bella e valorosa Judith a que assim posta, são ainda dous argumentos nervosos
se pronuncia, exalçado o grande Adonai, que a Biblia nos subministra; na creação
entoando-lhe hymnos cordeaes de louvor c se baseia; a omnipotcncia é visivcl.
sinceras graças pela maravilha de Bethu- E para terminar por uma maneira nota­
lia, sua patria, a quem tanto amava, em velmente frisante, na ausência d’outras
destruição e ruina do inimigo feroz que a muitas testimunhas que omitto, deixarei
havia reduzido ás ultimas extremidades. que fallc a corajosa mãe dos maeliabeus.
«EUe o disse, e foi tudo feito: ellc o or­ Edifica, ao mesmo passo que instruo. Quan­
denou, e tudo em continente foi creado se­ do arrebata, convence. Edifica c arrebata
gundo o ordenára.» seu proceder de heroina. Instrue e con­
É o rei psalmista que a imita depois nos vence sua palavra inspiradora.
sons accordes da sua harpa divina, nas me­ «Filho, olha; repara bem para o céo c
lodias suaves de seu canto inspirado com para a terra; olha, repara bem para tudo
que celebra a valentia do author soberano, quanto n'elles ha; olha, repara bem que
do qual já outr’ora houvera dito: «que com isto tudo foi o Senhor que o arrancou do
uma palavra apenas, firmára os céos; com nada, como do nada lhe aprouve arrancar
o só espirito de sua bôcca déra instantanea igualmente toda a raça dos humanos, dos
existência ao apparato immenso da gran­ homens, a progenie inteira.»
deza e da magestade com que elles se or­ Por tal arte esta mulher forte e varonil
namentam. não hesita persuadir o mais joven de seus
«Foi o Excelso que crcou isto tudo; foi filhos em lace mesmo do cruel Antiocho.
pile quem fez que existissem todas as cou- Ella prefere vêl-os acabar entre tormentos,
sas que existem: elle que nem se alegra todos sete cm um só dia, e cila propria aca­
jamais na perdição dos viventes.» bar com elles, á menor desobediência aos
Clama a Sabedoria no principio logo preceitos da lei suprema, que o Omnipo-
d’esse livro respeitável e sancto, que assim tente Creador do mundo se havia dignado
se intitula. Seu escriptor agiógrapho, no transmittir-lhes por Moysés.
empenho que tomou a peito, senão de re­ Aqui tendes textos bastantes das Escri-
petir as palavras, de referir por certo as pturas da antiga lei, e muitos outros se po­
sentenças do famoso Salomão, é mais um deríam adduzir, se tanto fosse mister, ante
athleta robusto, que mandado do alto, se os quaes toda a contestação se torna absur­
apressa a acudir decidido pela sustenta­ da: a dúvida sincera é impossível até.
ção e defesa d’esta verdade sanctissima. Se por crear se entende a producção do
Lê-se no Ecclesiastico que, sem a mini­ nada—-só pela força da vontade, pelo impe­
ma excepção, tudo foi creado pelo rei invi­ rio dá voz do quê assim o quer e ordena,
cto. que vive desde os séculos eternos, e é isto o que nos asseguram fóra feito pelo
continuará a viver eternamente sem fim. Deus que tudo póde, ao dar a existência
Está escripto cm Isaias n’um trecho: ao universo, algumas e não poucas das
«que fôra o mesmo quem creára a terra passagens apontadas. Creação e omnipo-
em toda a extensão dos seus termos.» N e u ­ tencià são n’ellas salientes no grau subido
tro «que os céos são creatura sua.» E ain­ em que o são os resplendores mais brilhan­
da n’outros e n’outros, vezes repetidas e tes do sol em dia claro ao tocar seu zenith
por expressões bem formaes, que se en­ á hora meridiana.
contra aqui, além, consignada esta doutrina Nas demais, se desde logo que se enca­
inconcussa. rem, esta verdade sacrosancta não translu-
«Não, eu não presto culto a Bel, falso zir a todos com vivacidade igual, com ful­
deus que tu adoras; só o presto ao Deus gor tamanho, uma simples reflexão que se
vivo, creador do céo e da terra, cujo po­ faça, será de sobejo para apresentar ra-
ATH 269

diosa ás vistas deslumbradas do adversa­ pequena. Do ponto em que me acho col-


rio leal, do observador respeitoso. locado mal diviso ao longe a balisa, com
Tracta-so cm todas cilas da creação no quanto a fixasse um pouco distanciada, a
mais restricto sentido, com referencia á que intentava chegar.
accepçào mais rigorosa e preciosa. A pala­ Temos um adagio portuguez, que me
vra creação c sacramental n’essas todas: alenta sobremodo no apuro em que me en­
a intelligencia constante nos padres que as contro. Mais do que n’csta occasiào nunca
explicam, na igreja que os interpreta. elle veio a proposito.
Extenso vai o capitulo cm extremo: e «N’um dia me cscacea o espaço?... N e u ­
todavia do campo que me propuz percor­ tros me sobrará talvez.»
rer, tenho andado apenas uma porção bem

CAPITULO V

O iim lpoícsiida, C reação, C onservação

Jámais doutrina alguma da religião teve arremessado sanhudos, tem investido com
por testimunhos, nem tantos, nem mais de­ furia.
cisivos, nem assim mais Crisantes, do que Folheie-se entre outros o Evangelho es-
a doutrina sancta da omnipotcncia do Eter­ cripto pelo discipulo bem amado, e logo
no, a crença arreigada em todo o Christia­ em seu principio, no principio mesmo do
nismo, da creação do universo pelo mesmo, capitulo primeiro, se irá dar de frente com
da suã conservação portentosa. a mais solcmnc declaração, em ordem a
Nunca algum outro dogma foi tão accor- similhante assumpto.
demente sanccionado nas paginas do Ve­ «Pelo Verbo do Eterno todas as cousas
lho e do N oyo Testamento; do Velho e do foram feitas (nol-o assegura em sua lin­
Novo Testamento cm verdade, pois que ás guagem suave o apostolo da caridade); pelo
passagens que se lécm n’aquelle, apontadas Verbo do Eterno todas as cousas foram fei­
muitas, que não todas, no capitulo prece­ tas em termos tacs, que sem elle nem um
dente, bastantes se seguem n’cste, bastan­ átomo sequer existiría do que existe feito.
tes se continuam a reproduzir em todo este, Omnia per ipsum facta sunt et sine ipso
que nada cedem ás primeiras na força de factum est nihil, quod factum est.»
provar, que as acompanha. Se elle fez todas as cousas, todas! se nada
De bom grado me não prevalecerei de havia na origem dos tempos, e d’esse nada
não poucas, que com quanto demasiado o foi tudo feito, ludo o que foi feito: se esse
demonstrem e o convençam, podem pro­ tudo que existe e que sahiu do nada existe
porcionar todavia commoda occasião, posto só pela palavra do Altíssimo: in principio
que por maneira alguma leal ou justo mo- erat Verbum... Omnia per ipsum facta sunt;
tivo, para teimosas contestações. se crear é tirar do nada para a existência
As incontroversas e claras superabun- pela virtude apenas da palavra, só por ef-
dam immenso. É d’ellas, c só d’ellas que feito d’um acto de vontade potentissima,
quero lançar mão para proseguir no con­ que é assaz valente para do nada extrahir
veniente desenvolvimento d’esta matéria, tudo, por quanto sobre o nada a nenhum
em summo ponto interessante. É com el- outro instrumento era, é, ou será possível
las, unicamente conv cilas, que tenho re­ por fórma alguma operar: se isto na reali­
solvido collocar além do alcance dos tiros dade se passa por tal arte, eis o texto do
de raivosos adversarios esta materia altís­ ultimo dos Evangelhos, eis a omnipotencia
sima, que em todo o tempo c a todo o tran­ em toda a sua lucidez, eis a creação em
ce a orthodoxia ha sustentado com denodo; sua plenitude e rigor.
e contra a qual cm todo o tempo não me­ Por mais superficialmente que as phra­
nos, já o erro nas trevas em que se ali­ ses precitadas se analysem, apparece em
menta e vive, já a impiedade na refalsada breve por um lado a omnipotencia d’aquelle
doblez que a caracterisa c distingue, se hão que do nada tudo produziu; por outro a
z 7 l) ATH
creação do universo arrancado a esse nada mas que em ontologia se demonstram n o
pela efficacia da palavra do Excelso, produ­ maximo da evidencia.
zido por aquella omnipotencia. Ento contingente é aquellc que não existe
Muito é isto para o esclarecimento da de si, mas d’outro. Como tal é dependente:
verdade, que se pretende desaíTrontar de como dependente não póde ser necessario:
todas as névoas, tornar incontrastavel a como necessário não é... não póde ser eter­
despeito das mais furiosas investidas de no: como não é eterno, c todavia existente,
quaesquer ataques. Não parcis entretanto. não podendo ter de si a existência; não a
Levai ainda mais avante vossas investiga­ podendo ter sempre em ultima analyso d e
ções. Em objecto d’esta magnitude, de tão outro contingente também, porque haveria
transcendente importância, nada ha su­ n’esse caso o progresso anterior ao infinito
pérfluo. de causas contingentes sem alguma neces­
Folheai, folheai comigo as demais escri- saria de que aquellas dependessem, o q u e
tturas da lei augusta do Crucificado. Fo- repugna; não a podendo ter recebido do
Í heài-as do primeiro ao ultimo dos seus li­ nada, por isso que então o nada, cllc p o r
vros: do Evangelho de S. Mathcus ao de si, seria a causa efficiente d’alguma cousa,
S. João, do Evangelho de S. João á ultima o que além d’absurdo é impossível intrin-
das Epistolas, da Epistola Catholica de S. scccamcntc, obstando-lhe como lhe obsta
Judas ao fim do Apocalypse, e por toda a o axioma, que do nada nada se fa z por s u a
parte encontrareis inequívocos testimunhos natureza c forca propria: é mister então,
que cada vez mais e melhor vos confirmem e é forçoso que a existência da cadeia d e
na exaclidão escrupulosa d’esta doutrina entes, que constituem o mundo, lhe tenha
sanctissima. vindo d’um ente necessário, que tendo o
Em S. Matheus está cila annunciada. Nos sér por virtude, toda c só sua, de ninguem
actos dos apostolos em mais d’uma párte dependeu ou depende.
se lê: Na Epistola aos fieis de Corintho, S. Tudo isto são princípios incontrastaveis
Paulo terminantemente a confessa, como perante a mais depurada motaphysica, e
o proclama outro sim além d’isto, primeira, princípios sobre geralmente acceitès aqui,
segunda, terceira, quarta, quinta e sexta já estabelecidos n’este mesmo capitulo, evi­
vez, nas Epistolas aos ephesios, aos' collos- denciados já.
senses, e aos hebreus. No livro das Vi­ Certo tanto quanto isto é, faça-se appli-
sões do Desterrado em Patmos em di (Teren­ cação ao objecto sujeito.
tes logares ella se nos revela com inexcedi- 0 mundo existe; é de primeira intuição.
vel clareza. O mundo é contingente, porque é mudavel.
Ao facto agora dos oráculos das Escri- Esta ultima proposição é incontroversa não
pturas, consultai em seguida a tradição e menos por intuição que por experienda; e
os padres, os concilios e a Igreja, e todos a outra é sua consequência legitima.
se pronunciarão com voz unanime a prol Se o mundo porque é mudavel, é con­
da certeza infallivel do ensino orthodoxo tingente, o mundo não é eterno. Se não é
da creação do universo. O crente tem ahi eterno e existe, é o eficito d’uma causa ne-
de sobejo com que fortifique sua fé contra .cessaria, e como tal eterna, independente,
as machinações incessantes dos impios e immutavel. Esta causa assim é Deus; é por­
dos descridos. tanto o mundo feito por Deus.
Mas que!... porque boquejei em vós tanto De que o fez?... Por qual modo o fez?...
alarido, clamores tão desentoados?!... Por Tirando-o de si?... Impossível!... D’essasorte
certo a razão que vos assiste é nenhuma; elle seria uma parte ou uma emanação da
por isso vossa celeuma é tamanha. Calai- divindade; e um ente mudavel, um ente
vos, insensatos. Sei bem o que pretendeis defeituosissimo, um ente contingente não
dizer: eu vos satisfaço plenamente e de póde ser parte nem emanação essencial
prompto no que inculcaes tanto desejar. d’um ente necessario, immudavel, perfei­
Calai-vos pois. tíssimo. Se o fôra, esse ente constaria por
Quereis a razão, que não a fé, para vos tal guisa de partes heterogeheas, repugnan­
convencerdes?... Tel-a-heis; descansai segu­ tes mesmo, ou d’attributos que mutuamente
ros. A razão no entanto, ficai-o entendendo se chocavam e se destruíam, o que não
desde já, a mesma, a só razão sem a fé vos póde ser.
esmaga e subterra em vossa requintada, ou Tirando-o da materia preexistente o etor-
talvez, e mais depressa, em vossa affeclada na?... Impossível!... A materia de que o
incredulidade. universo se fórma não é eterna nem póde
Todo o contingente é mudavel, c todo o ser eterna. Conhece-se pelas mesmas ra­
mudavel é contingente: são dous theore- zões d’intuição e d’experienda pelas quaes
ATH 271

se conheceu e reconhece que o mundo que perfeições possíveis, e todas e cada uma
se fórma d’ella, o não é por maneira al­ d’ellas no grau maior que é possível.
guma. Ora eis ahi o que ó um absurdo supre­
Afora cilas, que a materia do mundo é mo. Se ambos os entes eternos que sup-
susceptível de mudança, e sendo-o, nào 6 pondes teem, todas as mesmissimas quali­
nem necessaria nem eterna; o proprio fa- dades e perfeições intensivas e extensivas,
cto da transicção, na hypothese dada, em­ não são dous, é um, um apenas.
bora nào concedida, o proprio facto da Se ambos não as possuem, nem todas
transicçào do estado anterior para o estado nem as mesmas, nem na mesma força, ne­
osterior á constituição do mundo, se se nhum d’ellcs por mais que lhe chamem é
ésse, o tornaria palpavel aos menos ver­ perfeitíssimo, e por isso não é eterno. Se
sados nos princípios da sciencia. um só as tem assim, o outro não, aquelle,
D’onde o tirou pois?... Do que resta; do e não este, é que é perfeitíssimo. Aquelle,
nada. Logo Deus é o creador: é creatura e não este é que é eterno. Consequente­
o mundo. Vede... vêde aqui como a razào mente é repugante existirem dous entes
vos confunde. Ella diz isto, e diz ainda perfeitíssimos; repugnante também c exis­
mais, mas isto hasta. Ao brado de sua voz tirem dous entes eternos. Ou um ou ne­
ossante, vossas artimanhas feridas pela nhum. Se um, examine-se qual seja. A
ase se desmoronam miseravelmente. questão está entre Deus e o mundo, ou
Debalde... é debalde que sustentaes po­ quando menos entre Deus e a materia, da
der-se por um modo igual áquelle, pelo qual o mundo se diz haver sido formado.
qual se affirma que Deus é eterno, poder- A ser Deus eterno, o mundo não o é;
se .convencer que o mundo, outro sim o é, nem a matéria da qual se pretende que
ou pelo menos essa materia preexistente elle fôra feito o é, mas creada. A sel-o,
da qual nos falia quem assegura que elle quer esta quer aquelle, Deus não é eterno,
fôra feito antes que creado. c se o não é não existe Deus.
Sustentaes isso?... Muito bem. Dissestes Podia terminar já aqui o argumento, e
o que vos parecia ou aprouve: reparai no d’um modo triumphante. Era sufficiente
entanto n’uma só difficuldade que se vos para isso ponderar que a existência de
oppõe resoluta. Grande ou pequena, como Deus fica demonstradissima nos capítulos
vos agradar qualifical-a; tomai sentido em antecedentes, e que a eternidade do mundo
vós. Ella vos derruba c victima. Vinde, ou da matéria, que tende a destruil-a, é ira-
vós e ella, ante o tribunal d’uma razão es­ mensissimamente falsa, logo que d'ella se
clarecida, d’uma razão recta; vinde a este, segue um absurdo immensissimo, qual este.
visto que desdenhaes o supremo da reve­ Segue-se, a menos que se não queira sus­
lação; vinde, allendei á sua sentença, c tentar o nefando pantheismo. Equivalería
acatai-a. proceder similhante a despenhar-se n outro
De duas uma. Ou o mundo é eterno, c abysmo não maior, que o não póde haver
quando não, elle, a materia preexistente igual sem dúvida. Mais ao diante lá lhe
eterna existe, existindo simultaneamente tenho um logar reservado. Não mc escapa
outro ente eterno, e que se chama Deus: por certo. Hei de refutal-o.
ou verificando-se ser o mundo eterno, e Ainda que terminava bem o argumento
quando elle o não seja, verificando-se ser terminando-o assim, não o faço. Apraz-me
eterna a materia de que o mesmo mundo seguir outro caminho, mórmente com re­
é constituído, não ha similhanto Deus. lação á matéria mundana.
Na primeira d’estas supposições tinha- Ponha-se a eternidade d’cssa materia.
mos dous entes eternos. Affirmar que ha Como no universo, além dos corpos ha es­
dous entes eternos, é affirmar que ha dous píritos, pois ha entes cogitantes, pensado­
entes necessarios. Affirmar que ha dous res, e materia cogitante e pensadora é con­
entes necessarios, é affirmar que ha dous tradictorio; como havendo natureza physica
entes independentes. Affirmar que ha dous e impensante, ha por igual modo natureza
entes independentes, é affirmar que ha dous intellectual e moral: esta ou tem d’existir
entes immutaveis. Affirmar que ha dous sem razão sufficiente,—primeiro parodoxo
entes immutaveis, é affirmar que ha dous e repugnância; ou tem na materia eterna
entes infinitos. Affirmar que ha dous entes a razão sufficiente da sua existência,—se­
infinitos, é affirmar que ha dous entes per­ gundo parodoxo e repugnância.
feitíssimos. Affirmar que ha dous entes No primeiro caso ia-se de frente contra
perfeitíssimos, é affirmar que ha dous en­ o axioma, de que nada se faz ou existe sem
tes que teem em si todas e cada uma, sem razão sufficiente. No segundo atacava-se
sombra d’excepção, todas e cada uma das cara a cara outro axioma, de que o effeito
não pôde ser mais nobre que a sua causa. castigo vinha desfechar' inexorável sobre o
E o espirito racional é-o incontroversa- criminoso do sacrilego desacato.
mentc sobre a matéria bruta. Já o asseve­ «D’aqui (avança um escriptor insigne, de
rei, repito-o. Sào dous parodoxos enormes, saber immenso, c d’erudição vastíssima)
duas repugnancias monstruosas. d’aqui vem a profunda veneração dos ju­
O que vos parece?... Ante cilas fica re­deus pelo numero sete.»
duzido a pó intangível o vosso systema im­ Dcbalde... mui debalde os modernos ra-
pio da eternidade do mundo, a vossa eter­ cionalistas, libertinos da quinta essencia,
na materia. intentam contestar até o reconhecimento
Venha a eternidade da existência de Deus: d’estc grande principio, d’este dogma im­
tudo se explica satisfactoriamcnte, tudo vai portante e sancto pelos padres da igreja de
de plano, corre tudo ás maravilhas. Jesus Christo. Todos á uma o sustentam e
Existe, fóra de controversia, existe Deus. o confessam. Aquelle mesmo com o qual
Dous entes eternos não podem existir. Por os adversarios encarniçados mais se pre­
um corollario infallivcl, vosso mundo eter­ valecem, S. Justino os pulvorisa e tortura.
no e materia eterna sào ou illusões tristis­ E calumnia manifesta tudo quanto n’este-
simas, ou infames decepções. sentido lhe assacam. A má fe é um assaz
Dcbalde... c dcbalde que saltando do cam­ deplorável recurso!...
po do raciocínio para o da authoridade, Supponha-se que algum logar das dou­
onde vos entreteis de contínuo a esgarava­ tas obras d’este padre respeitável tinha
tar dúvidas e difficuldades, é debalde que certa obscuridade, c que vinha a dúvida
levaes a audacia da obstinação até ao ponto apoz esta. Supponha-se, conceda-se mesmo-
de negardes que a doutrina sublime da para fartar vontades. Os logares menos
creação fosse conhecida, fosse adoptada claros devem ser interpretados pelos mais
pelos judeus. Sois useiros e veseiros n’isto; claros: é esta uma regra de hermeneutica,
insurgis-vos contra a evidencia. A mathe­ que tem achado sempre seguidores, nunca
matica, a physica, a moral, para vós é o contradictores.
mesmo. Em vos não fazendo conta, vai Discorrendo segundo esta prescripção da
tudo raso. arte d’entender com exactidão as palavras
Lá estão os textos clarissimos, positivis- dos outros, e applicando-a á questão pre­
simos, que vos citei do Testamento Antigo: sente, toda a hesitação a similhante res­
lá estão elles para vos responder, E quando peito que não seja systema e vergonhosa­
isto não fosse sufficiente para vós, que com mente systematica, desapparece como fumo.
raiva canina tudo despedaçaes, lá está es­ Eu não sei que possa haver mais claro,
tatuída na lei a sancti ficação dos sabbados: mais explicito, mais concludente n’um tal
lá está comminada não menos que a terrí­ assumpto, do que este padre o é na sua
vel pena de morte contra os violadores famosissima «Exposição aos gregos.» A dis-
d’este mandamento solemne. tineção por elle feita, e que figura n’ella
Ordenação notável!... Sancção rigorosís­ entre Creador e obreiro, dissipa toda a in­
sima!... La está tudo isto para vos desmen­ certeza.
tir. A que fim a observância do dia se­ «Consiste a differença d’um ao outro
ptimo, levada ao auge tamanho ^ auste­ (são palavras suas) que o Creador não tem
ridade?... Com que justificar a rigidez éx- necessidade senão da própria potência para
trema da comminação de morte contra produzir os sêres, emquanto que o segun­
os transgressores de tal preceito?... E pa­ do, o obreiro, sem materia preexistente não-
tente. póde realisar a sua obra.»
A razão de tudo procure-se na creação: Depois d’isto saiba-se que S. Justino no-
ahi se achará. O sabbado era d’ella uma Dialogo com Tryphon confessa ter estudado
commcmoração continuada: o descanso a doutrina da creação em Moysés e nos
n’elle determinado, um como oitavario per­ prophetas, e que fora d’estes que a apren­
petuo para celebrar o descanso em que o dera. Acreditava d’esta arte que Deus era I
Livro Sancto affirmára ter ficado o Excelso creado no sentido das Escripturas, isto é,
em seguida ao complemento pela feitura verdadeiro Creador, que do nada tirou por
do homem, da grande obra da creação que um poder infinito o mundo todo, que ao •
emprehendera. Era por causa d’estes so­ imperio de sua voz possante, dos abysmos
beranos motivos, aqui c alli distinctamenfe da não oxistencia fez surgir de prompto o
expressos em diversas partes dos differen­ universo inteiro. Não o era em conformi­
tes livros das Escripturas do povo israeli- dade cora a doutrina de Platão, philosopho
tico, era para inculcar bem a fundo quanto preclaro por muitos titulos, que cahia en­
respeito se lhes devia, que o formidável tretanto no absurdo monstruoso de consi-
ATH 273

derar eterna a materia da qual o universo Bastantes outros padres foram como este
havia sido formado. Tanto isto c certo, que accusados de platonismo no negocio da
o proprio S. Justino se propôz a refutar a creação. Era, na phrase de S. Justino ha
opinifio erronea do celebre fundador da pouco allegada, fazer a Deus obreiro e não
academia, o logra seu fim por argumentos creador. Injuriavam-nos a elles, como in­
victoriosos, e por observações sem réplica. juriavam este.

CAPITULO VI

D eu s, C onservação

' Da conservação diz-se o mesmo que da poder d’inimigos raivosos que só tentara
creação. E a continuação da acção com prejudical-o, anhelam só destruil-o. A des­
que se deu a existência. Parte do mesmo peito de toda a sua sanha e fúria em que
braço: demanda igual poder. Só quem fôr se arrebatam, faça-o o Omnipolente afor­
creador poderá ser conservador. Creação tunado na terra sobre modo: na mesma o
e conservação: uma e outra são duas ver­ vivifique e o conserve: Dominus conservet
dades incontestáveis da razão: dous dogmas eum, et vevificet eum, et beatum faciat eum
sacratissimos da religião: Deus que nos in terra.
creou é o mesmo que nos conserva. É ou não é a que lhe appetece a verda­
N’estes termos nos faliam as Escriptu- deira, a rigorosa conservação?... É a con­
ras. N’este sentido se pronuncia a razão. servação de que se tractata que se men­
N’éste ponto, á siinilhança d’outros muitos, ciona aqui. E' essa a conservação que se
ellas se dão as mãos para nos instruírem. roga ao Excelso em favor do justo e do ca­
Fallam-nos as Escripturas no psalmo 15, ridoso, pois que do Excelso tão sómente,
v. 1: «Conserva-me, Senhor, porque espe­ e de ninguem mais, ella depende.
rei em ti.» Assim se exprime o rei pro­ Fallam-nos as Escripturas no Livro da
pheta, mostrando bem claro que só ao Sapiencia onde a conservação está mani-
Eterno pertence conservar, e que é n’elle, festamente enunciada: «Por que modo as
por isso, que'põe toda a esperança da sua cousas poderi am permanecer, se vós o não
conservação. quizesseis?... ou conservarem-se sem vossa
Fallam-nos as Escripturas no psalmo 40, determinação?...» Assim nol-o declara o cs-
v. 2: «o Senhor o conserve e lhe dê a vida, criptor sagrado no livro agiógrapho, que
e o faça bem-aventurado na terra, e o não entre os canonicos se designa com aquelle
entregue ao poder de seus inimigos.» As­ titulo, e o declara por maneira tão inequi-
sim o supplica ao Altíssimo, David, seu au- voca e tão frisante, que esta passagem bas­
thor sagrado. taria, ella só por si, para ultimar na pre­
Segundo elle, tem de ser bem-aventu­ sença de juizes d’animo imparcial e circum­
rado nos céos o homem caritativo e esmo­ specto o mais embaraçoso pleito, e decidir
lei; que pensa nos meios d’alliviar o pobre, e acabar por uma vez a mais complicada
do soccorrer o desvalido; e que chegada a e accêsa controvérsia que sobre este as­
occasião, obra para com um e para com sumpto podésse ter-se suscitado.
outro conforme ha pensado, em auxilio de Fallam-nos as Escripturas em varios ou­
ambos, e o amor do proximo demanda da tros de seus livros e em não poucos outros
sua religiosidade. A’ recompensa que o es­ logares que se léem aqui, alli, na conti­
pera nas alturas, deseja o psalmista se ve­ nuação das paginas sacrosanctas de que se
nham agrupar... melhor; deseja que aquella, compoem. Estes que, energicos como o são,
ineffavel no céo, seja antecedida por gosos não avalio íodavia por necessario reprodu­
5 preciosos na terra, dos quaes, varão por zir agora ao lado dos proximamente tran­
tal arte recommendavel perante Deus e pe- scriptos e ponderados, estorçam-se quanto
s rante os homens, lhe parece tornar-se di- quizerem os adversarios rancorosos da ver­
m gnamente credor:—larga vida, e vida bem dade, fechem hermeticamente a entrada a
ditosa na terra, para o que é mister que toda e qualquer dúvida n’este particular.
= exista superior sempre, nunca sujeito ao Entretanto, quando mesmo sobre isto e
18
274 ATH
apesar d’isto se verificasse ainda subsis­ rompera e se tornára indigna dos benefi-
tir alguma, a mais simples e por igual a cios que o Senhor Todo Podoroso sobre
mais obvia das considerações possíveis, cila com mão larga havia liberal isado.
consideração solidissima na qual os prin­ Alli é o fogo e o euxofre que descem do
cípios adoraveis da fé se apertam em es­ céo a consumir as cidades do Pentapolis
treito enlace com os dictames mais prova­ em tremenda punição de suas abominações
dos da inlelligencia, uma consideração d e s­ execráveis, exceptuada Segor, que dera
tas a desvanecería completamente. asylo seguro e guarida a Lot e aos seus, que
Que Deus é o conservador do universo fugiam apressados de Sodoma por manda­
demonstra-se em toda a clareza, porque c mento expresso do Altíssimo, que assim llTo
elle do mundo o Senhor Supremo. ordenára.
Que Deus é do universo o Senhor Sobe­ Acolá são: a vara d’Aarão, que se con­
rano, manifesta-se a não mais, por isso que verte cm serpente, serpente que mata e de­
foi elle o que lhe impôz a lei invariável e vora todas quantas os magos de Pharaó por
constante em seu curso ordinario, segundo meio d’encantamento e maleficio haviam
a qual o mesmo tem sido regulado íia se­ produzido á imitação do enviado do senhor:
rie immensissima e grandiosa dos phcno- as aguas em lodo o Egypto, no rio, nos ri­
raenos physicos que apresenta desde o beiros, nos regatos, nos lagos c nas lagoas,
momento primeiro em que existiu até ao que repentinamente se tornam cm sangue:
presente, e o será sem questão até o ulti­ as rãs e os gafanhotos que em cardumes
mo momento que lhe está prescripto, até infinitos a um mero signal dãquelle que o
que sôe, em harmonia com os decretos eter­ Eterno chamára o propheta de Moysés, co­
nos da Providencia, a hora extrema da du­ brem toda a terra do reino do Pharaó: as
ração temporaria que n’elles imprescripti- trevas horríveis que se apalpam por tres
veímente lhe ha sido consignada. dias entre os egypcios, emquanto a luz bri­
Que Deus é o author das normas physi­ lha como de costume nas habitações d’Is-
cas pelas quaes o universo se rege, depre- rael: horríveis, densissimas trevas, que d’es-
-hende-se incontroversamente do facto irre­ t’arte se espalham a um leve aeêno apenas
cusável da suspensão d’essas mesmas leis do Deus de Pharaó, conforme ao grande
em casos repetidos á vontade do Eterno. Adonai aprouve denominar o filho adopti­
Se o Excelso as suspende logo *que assim vo do rei que se dignâra escolher para ser
lhe apraz, o Excebo é d’ellas o author, o o libertador do seu povo da oppressao feroz,
legislador verdadeiro, visto que só tem po- na qual gemia no volver de largos annos;
■der para dispensar nas leis ou alteral-as, e por entre outros portentos, muitos c as­
•aqu&Ile que o teve assaz para as constituir. sombrosos em extremo, a mortandade ge­
E que Deus ha alterado, ha dispensado ral dos primogenitos do Egypto n’uma noi­
por muitas vezes as leis da natureza ope­ te, a hora assignalada, a principiar no pro­
rando prodígios a milhares, que só podem prio primogenito do moriarcha endurecido,
Tealisar-se com a alteração momentanea e acabando no do ultimo escravo; desde o
d’essas leis naturaes, as Escripturas o at- primogenito do homem até aos primoge­
-testam: a Biblia Sancta ahi está para o le s-; nitos dos seus gados.
-timunhar incessantemente. Abra-se, folheie- N’esta parte é o mar que se fende ao so­
-se ao acaso, e em cada pagina quasi se de- pro d’um furacão violento e abrazador, e
-parará com uma, e quiçá mais provas d e s­ que fórma com suas aguas da direita e da
ses successos estupendos, ante os quaes o esquerda duas muralhas firmissimas para
crente se extasia, mas reconhece e adora darem passagem a pé enxuto ao povo israe-
-submisso, ante os quaes o incredulo raiva litico, que ia sacrificar no deserto ao Deus
e se enfurece, mas é forçado a confessar, dós seus maiores, d’Abrahão, dTsaac, e de
mau grado seú, a impotência absoluta em Jacob, para seguir depois para a terra do
que se acha de os combater com frueto, chananeu, do hetheu, do amorrheu, do phe-
• menos, müitò menos de os contrariar e reseu, do heveu, e do jebuseu, que muito
■destruir. (Tantes lhe estava promettida.
Aqui é o mundo que parece abysmado N’aquella é o movimento apparente do
nas aguas do diluvio universal, nas quaes sol, mas verdadeiro da terra, que?se sus­
boia unicamente a arca com oito pessoas pende á voz de Josué pelo espaço d’um dia,
por todas: Noé e sua esposa, seus tres fi­ para ultimar a derrota dos cinco reis dos
lhos e suas mulheres, para serem os paes amorrheus e seus exercitos numerosos, que
da nova geração humana, que devia sub­ tinham vindo aggredir os gabaonitás, e a
stituir a primeira, que tanto e tão profun­ conquistar-lhes sua cidade em pena de se
damente com o correr dos tempos se cor­ alliarem com Israel, que odiavam.
ATII 27o

Deixados muitos outros, e passando do continuar a omnipotente acção primeira,


'Velho ao Novo Testamento: agora os coxos com a qual lhe dera o sér, para que elle
.andam; os cegos véem; os surdos ouvem: sc conserve: se retirada um instante essa
o s leprosos sào limpos; os paralyticos cura­ força conservadora, n’um instante, tudo,
dos com uma palavra só, ou com o conta­ para logo voltaria ao nada, d’ondc sabido
cto unicamente da mão do Uomem-Dcus. havia: a obra de Deus. é menos perfeita...
Logo a seu mandado os mortos resusci­ é ao revés muito, muitíssimo mais defei­
tant: o filho da viuva de Naim c restitui- tuosa que a obra do homem com toda a
do vivo a sua mãe inconsolável; a filha do sua reconhecida impotência, com toda a
Archisynagogo a seus consternados paes; sua insuííiciencia c acanhada mesquinhez.
Lazaro, apesar de quatridiano, a Martha e A natureza assim não c um padrão de glo­
.a Maria, que choravam na amargura da ria para o ente poderosíssimo que a creou:
■sua dór profunda a morte do irmão que ó antes um monumento de vergonha para
tanto amavam. aquellc, que nos lermos em que se inculca,
Depois, alfim, para não tecer um catha- a tirou do nada.
logo interminável de sobre uns outros pro­ Quando vistes, ou ouvistes dizer que
dígios, qual mais surprendente c mais ex­ qualquer artifice necessita estar sempre a
traordinario, qual mais decisivo c mais in­ amparar, sempre e sem descontinuaçãc, o
controverso, centcnares de sobrenaturacs seu artefacto para que elle dure e subsis­
maravilhas, que lá se contam practicadas ta?... Quando?...
pelos apostolos e discipulos de Jesus na pré- Fal-o da primeira vez cm resultado de
gação e na propagação por todo o orbe do sua pcricia e poder. Assim feito, perma­
Evangelho sacro-sancto do Filho do Eterno. nece livre de toda a dependenda de seu
0 universo existe c permanece, a natu­author, e permanece estranho a ella por
reza conserva-se c se desenvolve; dura no dias, mezes, annos, e em occasiòes até por
mundo a ordem physica, c consolida-se pela séculos.
efficacia das leis que lhe foram postas para Para existir, embora precisou d’clle: para
por ellas subsistir, e por cilas se regular. continuar, continua por si sem elle. D’elle
Tirem-as d’uma vez para sempre. teve a existência, de si a conservação. N’clle
0 universo acabou, destruiu-se a natu-deu-se a potência de o trazer á realidade,
.reza. cm si acha-se a capacidade de prolongar
Deus, que as dictou ao mundo, por isso essa existência que recebera, que por seu
que, como exposto fica, em casos frequen­ author lhe houvera sido outhorgada. A es­
tes ha podido dispensar n’cllas, conforme tatua, o quadro, a casa, por exemplo, con­
bem lhe apraz, e muito quer;—Deus, que servam-se fóra de toda a influencia ou acção
.as dictou ao mundo, é pois quem as con­ de quem as faz sobre ellas: longe não só,
serva. Pela razão suprema de que foi seu le­ mas além mesmo da vida do esculptor que
gislador sapientissimo, c também sem con­ cinzclou a estatua, do pintor que desenhou
trariedade, seu conservador omnipotente. c coloriu o quadro, do architecto que tra­
Ha um reparo curioso por parte d’alguns çou a planta, e do pedreiro que edificou a
.argumentadores embirrentos, que tem aqui casa. A conservação, portanto, no sentido
todo o logar:—reparo que tenho a condes­ em que se estabelece e se ensina, a conser­
cendência de qualificar apenas de curioso, vação é indigna de Deus. Fazer Deus con­
quando sem rigidez nem acrimonia, demais servador, é fazer Deus inferior ao homem,
<o conheço eu, deveria capitular de miserá­ com respeito á sua obra.
vel:—argumentadores, a quem só appellido Parece incrivel, na verdade, que haja
de embirrentos, ao passo que, assaz o sei, quem se não peje de produzir argumen­
me cumpria stygmatisal-os com o nome em tos d’cstes: ha-o, porém. Por qualquer dos
demasia bem cabido de mal intencionados lados que sc antolhe, é superficialidade, é
ergotistas, do sophismadores accintosos. pcquice.
Pretende-se affectar o dogma da conser­ Ao que se prevalece d’elle, se compre­
vação, fazendo-o como que passar nada me­ hende o vicio em que labora, sobra-lhe des-
nos que por injurioso a Deus c ás suas per- caro: senão, não chega a alcançal-o, sua
feições;—injurioso á sua sabedoria, e á sua esphera intellectual está a par do zero. A
virtude infinitas, com as quaes foi super- paridade é nenhuma, por isso a argumen­
. abundantemente poderoso para crear o tação é inepta.
universo; Não sc tracta da materia do artefacto hu­
Se a Deus (é interessante escutal-os. Rc- mano: essa achou-a já o operário existente
-signemo-nos portanto) é mister em todos os quando manuseava a sua obra. Tracta-sc
momentos de duração do mundo estar a só apenas das modificações que lhe impri-
276 ATII
mia, d’onde provém a feilura d’ella, sua Conserva-sc por emquanto o m e s m o o
existencia artificiosa. Resulta d’aqui que a quer assim. No momento em que a vontade
razão sufficiente d’essas modificações no divina cesse, o universo inteiro volta ao-
acto de se imprimirem na materia que d’ci­ nada d’onde sahira.
las é suscepti vel, está na força physica e E isto argue defeito, faz injuria a Deus?!
artistica do obreirq. A razão sufficiente, no Esta supremacia universal c inabalavel des-
entanto, da conservação d’essas modifica­ lustra-o, ou honra-o por ventura?!! Pobres
ções, depois de impressas na materia, já insensatos!... Causaes-mc dó.
não se encontra no artifice, pertence á pro­ Quanto melhor fariam estes philosophos
pria materia demasiado capaz de as reter pequenitos, que andam a pôr pechas em
em si c por si, independente de mais nada, tudo, cm tudo enxergam motivos para fa­
até que um agente niais forte, ou o tem­ zer reparos pueris, e suscitam sobretudo
po, ou outra causa externa, superando a seccantes, sempiternas dúvidas: quanto me­
firmeza c adhesào com que as conserva, lhor seria se estes engrossadores de ninha­
lh’as venha destruir, ou alterar pelo menos. rias, c que á sombra d’ellas aspiram a cam­
N’uma palavra: a existencia da matéria par de homensarrões, querem ser avalia­
vem de Deus. A existencia do artefacto dos por sábios de polpa e grande vulto:—
vem do homem. A conservação da existen­ quanto mais assisados andariam sc em lo-
cia artificiosa está na propria matéria que gar de exemplos, nos quaes quasi nenhuma
a fórma, e nas leis que a regulam—a inér­ ou talvez nenhuma analogia existe, justa­
cia, a união, e ligação intima de suas par­ mente no sentido em que os tomam, e dc-
tes componentes, c na força com que re­ ligcnceiam fortalecer-se com olles: quanto
pelle tudo que possa concorrer para a des­ procederíam mais avisadamente, sc pos-
truir ou alterar emquanto não é vencida pondo a estatua, o quadro, a casa, com re­
por uma potência maior. ferencia aos artifices, seus authores; similes
Não do mesmo modo a conservação dos aventados, c que tanto os vieram lançar em
;êrcs da natureza, com referencia à Deus, pungentes embaraços: quanto mereceríam
]ue os creou. A razão sufliciente da conti­ melhor serem altendidos, se se lembrassem,
nuação da sua existencia continua a dar-se e nos lembrassem a bella comparação do
sempre cm Deus, como n’cllc se déra a ra­ Pae no que respeita ao Filho: mórmente
zão sufficiente, da sua existencia primeira. não de qualquer, mas d’um pac bom no
A razão sufliciente da existencia no pri­ que interessa mais de perto não a qual­
meiro momento foi a vontade do eterno: a quer, mas a um filho amado!...
razão sufliciente da continuação da exis­ Fizessem-o clies: e desde logo muito ao
tencia em todos os momentos "successivos contrario de desdenharem do dogma da con­
é ainda, como de principio, a vontade do servação; se llies afiguraria ser racional
eterno. Sem esta vontade no instante pri­ e sancto, digno de Deus; crédor da nossa
meiro o sèr não existia: sem esta vontade gratidão; mais um titulo para o nosso aca­
em qualquer dos seus outros instantes dei­ tamento e deferencia; novo e avantajado
xou de existir immediatamcnte, não sc con­ beneficio, que mais nos devesse penhorar a
serva mais. nós, em cujo proveito ellc reverte todo; que
Vê-se que as razões sufficientes da con­ mais proprio fosso para magnificar o Deus
tinuação da existencia, da obra com rela­ muniíiccnte, que se ha dignado dispensal-o,
ção ao obreiro, e do mundo com respeito todo ellc, em favor nosso.
â Deus, são de todo o ponto diversas. Eis o Como fazel-o, todavia?!... Como, ou por-,
porquê n’uma conservação não se verifica que motivo esperar que o fizessem clies?!...
o que na outra acontece. A Ui dá-se sem o Isso não lhes quadra lá para certos fins.
operario que fez a obra. Cá não se dá sem Inimigos do tudo que verdadeiro seja, e seja
Deus que creou o mundo. justo, apostatas da razão tanto quanto da
Vê-se afóra isto, que tão longe está o que religião, fogem d’isso a bandeiras despre-
n’esta se verifica de ser opprobrioso ao Al­ gadas. Tal passo, discorrem clies de si para
tíssimo, que lhe é soberanamente glorioso. si, e uns com outros, tal passo era uma sim-
Mostra-se por tal guisa que ellc é sempre pleza em nós indesculpável. O que serve ao
o Senhor Supremo, e absoluto do universo. homem religioso não nos presta a nós. Por
Este existe de contínuo debaixo do impé­ isso não o obterá de nós.
rio poderosíssimo do seu querer, na depen­ Embora. O que vós não fareis, porque
dência incessante de sua vontade sanctis­ não quereis; e não. quereis, porque não vqs
sima. convem; eu o farei, porque o quero, pri­
Existiu, tão breve o q u e t u d o p ó d e assim meira razão. Segunda, porque m e é conve­
o quiz. niente, e o é em muito.
ATH 277

Ao coração de um pac, que o 6 deveras, do filho com a conservação por Deus do


scu.lilho é sempre um objecto por extremo mundo e do homem. Não é que ache aqui
■caro: 6 sempre o objecto querido, pelo qual um simile perfeito. Bem longe. Iía uma dif-
palpita sem cessar, mais ardentemente se ferença avultante e essencial. Eu a sei: eu
interessa. Desde a hora primeira da sua a conheço, eu a declaro.
existência, c por toda a duração da sua Quero mostrar principalmentc que o cui­
vida, jamais o desampara. Cerca-o de cui­ dado de Deus em repetir todos os momen­
dados c disvellos, de carinhos c de vigilân­ tos da existência d’cslc c d,aqucllc, a mes­
cia, de diligencias e esforços para que con- ma acção com que os crcou, c pela qual os
tinúc a viver, e a viver bem. conserva, o homem na vida c no seu guso;
É isto csmcrar-sc, sem dúvida, pela sua o mundo na duração c na ordem physica
conservação c bem estar, ó empenhar-se esse cuidado paternal não é improprio, in­
para lhe obter a mais larga e mais feliz exis­ decente, degradante, injurioso ao Senhor
tência, que possível seja. Supremo, que o despende sobre as suas
A partir do berço, os passos dados no in­ creaturas, qual extremoso pac para com
tuito de poder proporcionar-lhe uma c ou­ um filho estremecido. Não o é... não: é in­
tra, sua conservação c bem estar, devem teiramente ao revés do que a bastantes já
contar-sc pelo numero dos seus dias... não; tem agradado desatinar.
pelos minutos de cada dia em que existe. Terminarei declarando: que chegar a esta
Assim é Deus para com o homem, e para altura é antes penetrar no terreno da Pro-
com o universo. A ferça que emprega no videnda, do que conter-me nos limites stri­
primeiro instante da existência do homem ctos da conservação, que mc cumpre ven­
e do mundo, é a mesma que continúa a tilar. Se comprehendo isso, comprehendo
empregar em todos os instantes successi­ por igual, e desejo fazer comprehender não
vos da existência de ambos, pai a que a am­ menos que conservarão e providencia es­
bos seja dado continuar a existir e conscr- tão cm alguns pontos*em tal contacto (c este
var-se, aquelle no prolongamento da vida é um d’cllcs) que por vezes se confundem:
c seu bem estar, este na duração dos sécu­ não se distinguem por vezes.
los, na regularidade e boa ordem que n’elle D'est’arte, da conservação para a provi­
estabeleceu por suas leis. dencia a passagem é tão* natural e rapida
Quem lér, entenda-me. que, levado por esse declive, eu hei de tra-
Dizendo isto, não quero comparar os dis­ ctal-a immediatamente no capitulo seguinte.
vellos do pae pela conservação e felicidade

CAPILULO VII

P r o v h lc u c ia

Deus, Providencia: eis duas idéias magestosas de todo o ponto inseparáveis

Desallial-as seria destruil-as. Sem a se­ cional, tão distinctamente racional é elle,
gunda a primeira não é só uma miserrima que no iminenso turbilhão de seitas, na va­
inconsequencia: é mais, muito mais do que riedade tão estranha das escolas dos seus
isso, é um absurdo, uma contradicção fla­ sábios, posto que algumas, as dos Demo-
grante, um impossível. crítos, dos Stoicos, dos Platonicos também,
É este um sentimento racional c de fé, admittindo o fado, a negassem indirecta-
a que nenhum christão se póde esquivar: e mente, só uma se atreveu a contrarial-a de
tão racional, tão distinctamente racional é frente; a oppôr-se-lhe directa c immediata­
elle que, transiuzindo ainda por entre as mente.
, trevas e os negrumes do gentilismo, apenas Tanto isto é assim, que os proprios Stoi­
por excepção, e excepçâo bem rara, lá mes­ cos, notáveis grandemente por titulos sa­
mo, apenas, pôde ser desconhecido. Tão ra­ lientes sobremodo, elles proprios apesar do
278 ATH
fado, que hoje mesmo não 6 bem liquido Aquclla nos certifica outrosiin que o mes­
em que o fizessem consentir, o que enten­ mo vigia diligente sobre olle, o rego c o en­
dessem por tal; elles proprios, a despeito caminha sem cessar em inteira conformi­
d’isso confessavam a Providencia. De envol­ dade com os desígnios adoraveis, que tivera
ta com o fim, era uma miserável providen- cm mira ao rcalisar o acto omnipotente,
dencia sem dúvida, mas confessavam, al- que do nada o arrancou para a existência.
fim, c se declaravam d’ella acerrimos pro­ Escute-se esta: quero dizer, attenda-sc á-
pugna dores. Por igual lheor os platônicos razão. O que diz ella?...
procediam não menos. A negação da Providencia (eis o que ella
Foi a Epicuro só, c sua sordida escola, proclama) é urna nefanda impiedade; mais
a quem coube vergonha similhante. Foi que uma impiedade nefanda, é uma fonte
àquellc seu maioral c aos porcos do seu re­ perenne de successivas impiedades: é, em
banho, a quem pertenceu afli dar o escân­ ultima analysc, é o athcismo com todos os
dalo de se abalançarem ã cara descoberta horrores que o precedem, que o seguem,,
a tão revoltante attentado. que sempre o acompanham em todo o tem­
Nos termos a que essa turba de homens po e por toda a parte.
immoraes, que para opprobrio da philoso­ Sem providencia, Deus é para nós um ente
phia não se pejavam de se appellidarem indilíercnte não só, despresivel mesmo. Se
philosophos, nos termos a que essa seita de­ a elle da sua parte nada se lhe dá do níun-
vassa ousou lcval-o, tudo o mais o oluou do, por isso, em nada se importa com o ho­
com indignação. mem: ao homem pela sua parte lambem
Nem podia deixar de assim aeonteçcr; para nada lhe serve Deus. Depois de crea-
porque theoria sacrilega por tal arte, dou­ do na creação geral do universo (sem pro­
trina tão monstruosa, tão impia, se não é, videncia, esta hypothesc é de mero favor.
desde logo, o athcismo descorado, conduz Um Deus, que não fosse providente, não era
a cllc inevitavelmente. Nem assim podia perfeitíssimo, ou, por outra, infinito intensiva
deixar do ser; porque opinião por tal sorte a extensivamente em suas porfeições. N’cste
perniciosa e desolante, se concede ao mun­ caso não podia ter o poder infinito, que se
do um Deus em nome, rouba-lh’o na reali­ chama omnipotentia. Se,pois de não ser pro­
dade; segundo a phrase conceituosa, tanto vidente, se deduz logicamente não ter omni-
quanto inexcedivelmcnte exacta d’um dos polencia; e se sem ella não pôde ser crca-
gênios mais espirituosos c atilados, de que dor, a hvpothese que estabeleço em confor­
se ufanou com justiça a antiga Roma. midade com muitos que assim o dizem, e
Horror, horror eterno, pela época omi­ assim o fazem, considerando-o creador não
nosa em que vivemos!... O que lá foi raro, sendo providente, é de pura graça, mas vá.
é cá frequente: faz-se agora gala do que São estas novas illusões absurdissimas do
era reputado então aviltamento e deshon- não reconhecimento da Providencia. Veja-
raü ... Digo-o com pesar, não com referen­ se que tal é o principio d’onde as mesmas
cia a este unico objecto; digo-o com mágoa nascem!... Manterei, no entanto, a supposi-
a outros muitos respeitos. ção figurada de creador sem ser providente,
Os adversarios do dogma sancto e ineffa- toda graciosa como ella é, e desentranharei
velmcnte consolador d’uma providencia que d’ahi as consequências palpaveis.) Depois
tudo regule, e disponha tudo, negrejam em de creado por Deus o homem na creação ge­
nossos dias como nunca. Está-sc condemna- ral do universo, nenhuma necessidade tem
do tristemcnle a escutar por toda a parte mais de tal Deus sem providencia.
blasphcmias contra ella, que amarguram e Nada lhe interessa que elle. continue ou
anceiam. cesse de existir; que seja bom ou seja mau;
Soam de contínuo em menoscabo seu justo ou injusto; eterno ou temporario; ne­
zombarias e dicterios que irritam a indole cessario ou contingente; sabio ou ignorante;
mais soíTredora: poem em eftervcscencia poderoso ou fraco; perfeitíssimo ou defei-
indisivel os animos mais tolerantes, os es­ tuosissimo. Isto nada lhe toca.
píritos mais pacificos, os corações mais in­ Tracta-sc d’um'sêr, que em nenhuma re­
dulgentes. lação está com o homem uma vez existen-.
Entretanto, em que pêse ao incredulo e te;nem o homem com tal ser. Tenha o que
ao deista, se nada ha mais preciso, nada ha tiver, seja o que fòr, exista, não exista, ó
mais certo. Fé e razão, ambas se conspiram elle o unico a quem isso respeita, a nós
para nol-o annunciar. Se esta nos assegura nada.
que um Deus formou o mundo... oh! não Que tecido de enormidades!... Que cadeia
o formou inquestionavelmente para o en­ do espantosos delírios!...
tregar a si proprio. Que é feito dò grande Deus do universo,
ATH 279
que a razão nos demonstra, a revelação nos este faria vér a torpe face da corrupção e
annuncia?... , perversão universaes, e n’ellas o assassino
Que 6 feito do amor supremo que lhe feroz da vida do homem c da vida dos po­
devemos, como a creador e bcmfcitor in­ vos, que tudo mata c destroc tudo.
cessante, que a razão nos demonstra e a De feito a vingar esta desgraça medonha,
revelação nos annuncia?... bem individual c bem estar social, tudo se­
Que é feito do temor saudavol de que ria impellido para esta voragem tenebrosa:
devemos estar repassados para com elle?... tudo sorvido pela garganta voraz d’cstc Ma-
Temor filial não só qual o do bom filho elstron infernal. Estava o caso em que o cri­
para um pae digno, a quem por isso que o me se podesse perpetrar occulto, podesse
ama, teme ofiender, receia desagradar, fi­ ficar impunido pelos tribunacs e lei huma­
lial não só, mesmo o servil?... na; e eram inevitáveis as mais negras cala­
Temor que elle de nós exige,e nós obriga­ midades, as mais assombrosas catastrophes.
dos estamos a manter ante a terribilidade A honra como a vida, a segurança da pes­
dos castigos, com os quaes nos ameaça, se soa como da propriedade, os prazeres legi­
fôrmos maus, para que bons sejamos?Temor timos como os gôsos innocentes, as commo-
que lhe é devido na qualidade de soberano didades mais permittidas como os mais jus­
Senhor, c juiz inexorável que a razão nos tos interesses, tudo, tudo ahi ficava á mercê
demonstra, e a revelação nos annuncia. do primeiro faccinora, astuto, sagaz bastante
Que c feito da veneração e respeito que para escapar á cega e manca justiça da so­
nos cumpre guardar para com elle, porque ciedade. Tudo, tudo estava ahi á disposição
elle, que já vimos nos creou, é também que do primeiro desalmado quetentasse atacal-o,
nos conserva? mudando ás vezes de momento uma ditosa
Veneração e respeito inseparáveis do re­ existência n’um abysmo insondavcl e pro­
conhecimento de que ó elle do mundo o fundissimo de consternação espantosa, d(
conservador poderoso, segundo a razão nos tribulaçõcs sem par.
demonstra, e a revelação nos annuncia?... Felizmente d’c$ta alluvião de males in
Que é feito do culto da maior obediência supportaveís, vindos por tal motivo, estamos
e servidão, que sem quebra nem escusa é nós livres, graças ao Altíssimo!... Ha pro­
dever nosso prestar-lhe como a omnipoten- videncia, é quanto basta.
te?... Culto e dever que a razão nos demons­ Ha providencia. A razão nos descansa a
tra, e a revelação nos annuncia?... este respeito, e o que a razão nos affirma,
Que é feito da honra c louvor sincero, a revelação o confirma.
que ser a natureza perfeitíssima como é, Ha providencia, porque ha Deus: e Deus
de nós demanda? é um ente perfeito infinitamente.
Tributo de louvor c honra, ao qual se Ha providencia, porque Deus é um ente
faltássemos, faltaríamos á mais sagrada das infinitamente perfeito: e sendo-o, deve ter...
nossas obrigações, conforme a razão nos de­ ha de ter... tem por certo todas as perfei-
monstra, c a revelação nos annuncia?... ções possíveis.
Que é feito, íTuma palavra, da religião Ha providencia, porque Deus possuo to­
em seus princípios theorcticos, se Deus não das as possíveis perfeições; c a esta, que é
existe, ou se, existindo, nada tem comnosco uma d’ellas, é excellente, e das primeiras,
nem nós com elle, que vale o mesmo?... Se tem-a sem dúvida.
não vigia sobre o universo?... Se deixa o ho­ O que se diria de um pae, que de animo
mem nas mãos de seus conselhos sem lhe frio, coração insensível, de si repellisse du­
merecer cuidado de que sejam rectos ou ini- ramente o filho a quem déra o sêr?... O que
uios, bons ou maus, justos ou violentos,' se deveria divulgar d elle em altos brados
etestaveis e perversos, ou excellentes e e perante todos: d’elle que, quando mesmo
saudaveis?... lhe custasse, quanto mais nada* lhe custan­
É isto horrível quanto á doutrina, em do, regel-o, governal-o, vigiar sobre seu
comparação porém das horribilidades que comportamento, c protegcl-o, o abandonasse
d’aqui resultam para a práctica, á face dos sem querer saber cousa alguma do seu exis­
atrozes corollarios que derivam d’aqui para tir, e da sua sorto: cruel e desapiedado o
a moral, aquelle posto ao pé d’est’outro qua­ abandonasse, á inexperiencia dos annos, ás
dro, embora medonho em excesso, passa ain­ verduras da idade, ao frenesi .das paixões,
da a parecer— consolador não digo— digo á seducção dos exemplos, ás instigações dos
pouco carregado: se lisonjeiro não, quasi malvados, ás sugestões de amigos "impru­
aprazível 11... dentes, ao fitror dos inimigos, á immoral1;
Aquelle representaria a feia catadura da dade dos tempos, á desgraça, á miséria, á
irreligião cm triumpho, o que é desolante: perdição e á morte?
280 ATH
O que seria de razão pensar-se, muito clarecer desde ha muito. Deferido de uma
mais dizer-se d’um pae d’estes, se d inh pae para outra vez não cabe no possível espa-
lhe cabe o nome venerando? çal-o mais.
Dir-se-ia com a mais reconhecida das Ha, pódc haver um reparo a que reputo
verdades, entre execrações e acres censu­ necessário acudir de prompto: reparo que
ras, e quanto mais acres tanto mais bem ca­ quiçá terá occorrido a simplices c a mal­
bidas, dir-se-ia d’clle que estava tão longe dosos; a inimigos não só que até a amigos.
de ser pae, como o estava de scr bom. Dir- Quero satisfazer aos primeiros c aos segun­
se-ia, sim, e. dir-se-ia com universal as­ dos: aos inimigos para os refutar, aos ami­
sentimento, que ao revés do pae era urna gos para os informar: para instruir os sim­
fera... nem issol... que as feras amam, guar­ plices, para desarmar os maldosos.
dam seus filhos; era um aborto informe, um Sei de mais que as provas da revelação
monstro desnaturado. nada valem para o incredulo que combato.
Ohl... Deus não pôde ser isto. Deus é pro­ N’ella não acredita: mofa ou despresa por
vidente de certo. isso o que d’ella consta: zomba ou rejeita
Não posso demorar-me na consideração de plano quaesquer argumentos de lá tira­
contraria: tremo de horror. Questão n’cstc dos, com os quacs se lembrem de preten­
ponto é maldade requintada, senão é siza- der convencel-o. A quem isto intentar é mis­
nia completa. ter antecipadamente demonstrar-lhe da re­
Em apoio da razão que só se tem feito velação, a existência c verdade, para depois
escutar até aqui, vem logo a fé cm seus então e só então, lhe argumentar com cila.
oráculos sagrado^. Como aquella, esta cla­ Outro procedimento que não seja este é
ma por igual: ha providencia. inopportuno e baldado.
Ha providencia, porque o Senhor de tudo Reconheço a precisão de demonstrar ao
cura que crcou: dil-o o espirito que do pae libertino a necessidade da existência da di­
procede no livro da Sabedoria. vina revelação, bem como de lhe fazer pa­
Ha providencia, porque o Eterno de tudo tente qual ella seja e onde se encerra.
e de nós todos tem cuidado incessante: dil-o Tenho descrentes a combater, e crentes
S. Pedro na sua Epistola primeira. a doutrinar. Tanto levo em vista confundir
Ha providencia; por esta mesma palavra o impio, como empenho em confirmar o
nol-a certifica o livro inspirado da heroina christão em sua crença sancta, para que
de Bethulia. robustecido n’ella, resista aos ataques dos
Ha providencia, porque terminantemente perversos que querem transvial-o: para
nol-a assevera David em varios dos seus que não vacille e succumba.
psalmos divinos. Para estes nos pontos em que hei tocado
Ha providencia, porque por termos equi­ a razão e as Éscripturas. Uma e outras ad­
valentes nol-a assegura o proprio Salvador mitte ellc e reverenceia. Para os descridos
no Evangelho de S. Matheus. a razão: ella, ella só basta por si, porque
Ha providencia, porque distinclamente ella só o fulmina em seus erros.
nol-a menciona S. Lucas em seu Evange­ É assim que o pensei. É assim que o te­
lho Sagrado. nho desempenhado até agora. É assim, a
Ha providencia, porque muitos outros tes- final, que procedo aqui. Ao incredulo, ar­
timunhos das Escripturas nol-a certificam gumento-lhe com a razão, sem por ora o
sem que restar possa a menor hesitação em apertar com as Escripturas. Ao fiel, illus-
tal assumpto. tro-o com estas apoz convencel-o com aquel­
A providencia, como a attenção e a von­ la. Com uma e com as outras o corroboro
tade do omnipotente para que se conserve a e alento.
ordem physica e moral no universo, por ellc Quero que os impios se convertam, mas
estabelecida no acto de o crear: a providen­ não quero que os christãos se desvairem.
cia, entendida como o cuidado e vigilanda Quero os impios salvos, e não quero que os
summa, com que o Excelso tudo governa e christãos se percam. Quero arrancar os im­
rege tudo nas cousas da natureza: a provi­ pios á sua iniquidade; e quero permunir.os
dencia está portanto consignada nos livros christãos, tornando-os assaz fortes em sua
e em differentes paginas de um e de outro crença para não serem arrastados á ruina
Testamento. pelas tentativas dos maus. Quero... quero
Falta muito a expender, que deixarei para mais que tudo, quando não possa ganhar
o seguinte capitulo. Ainda sobre esta ma­ os primeiros para a religião e para o céo,
téria me hei de entreter alli. Agora tenho quero primeiro que tudo, sobre tudo, mais
por indispensável explicar-me quanto an­ que tudo arreigar os segundos nos dogmas
tes sobre um ponto, que desejo e intento es­ sagrados da lei sacrosancta da Cruz do Ho-
ATH 281
mem Deus; rctcl-os firraes, decididos n’clla: tes, tem sido meu scopo principal eviden­
empenhar-me para que possam conservar ciar nos dogmas da religião verdadeira de
as esperanças, os direitos mesmo que lhe fo­ Christo que sepuimos, os catholicos sob o
ram adquiridos pelo sangue de Jesus Chris­ estandarte da Cruz, a mais perfeita harmo­
to, á bemaventurança que apenas em seu nia entre a razão e a fé.
acto se poderá obter. A maneira, unica maneira de patentear
Em conclusão: até que haja demonstrado essa harmonia insigne, é a que tenho ado-
a verdade e a divindade dos livros sanctos, ptado. Tanto não estou arrependido de a
o que d’elles cito é para o seguidor do Evan­ haver posto em práctica no que está tra-
gelho que já n’elles acredita e se consola ctado, que estou na deliberada resolução
•com sua doutrina sancta. Está a razão para de a continuar a seguir no que continuar
o incredulo: para o crente é cila um re­ a tractar.
forço apenas. Demonstrada que seja aquella A não ser nos Mysterios, cm tudo o mais
divindade e verdade, o que d’elles produzir cila se dá.
é para o christão como para o incrédulo. Nem a desconheço, c como, se ella é tão
Para este, porque já tem o dever prova­ luminosa c brilhante?!...
do de os acatar e attender. Para aquclle, Como?!... Nem mc desviarei jámais ape­
porque sempre os acatou e attendeu: e sar de quaesquer reparos, censuras mesmo
como sempre fez, assim o fará sempre. (estas e aquelles, ou insensatos ou mali­
Quando não seja tudo para todos, tome gnos) apesar d’elles c d’ellas não me des­
cada qual seu quinhão. viarei da senda pela qual marchado tenho,
Do meu proceder accresce novo motivo. c que entendo adequada aos fins que me
Afóra o exposto, tem sido em tudo quan­ proponho tractar.
to cscripto deixo nos capítulos anteceden­

CAPITULO VIII

P r o v id e n c ia (con tin u ação )

No capitulo v ii já fica demonstrada da Não, um Deus sem providencia não é


maneira a mais concludente e irrefragavel Deus. As paixões inflammadas podem em­
a Providencia divina. Accrescentaremos to­ bora levar algum infeliz a esforçar-se sem
davia algumas razoes, para firmar mais se crér n’um tal Deus; mas a razao despre-
tanto é possível esta verdade consoladora. occupada procura examinar esse monstro
Como no capitulo antecedente se dizia: é para admirar até onde chega a loucura hu­
um flagrante absurdo acreditar n’um Deus mana.
sem providencia. Descrer da providencia é um atheismo
Já Lactancio disse: Se existe um Deus, ne­ práctico mais incoherente ainda que o
cessariamente é providente. Uma cousa sem atheismo de systema, porque é admitlir um
a outra repugna absolutamente existir, e Deus que não é Deus, um sér com attribu­
nem ainda pôde conceber-se. 1 Crêr n’um tos repugnantes, um impossível, um nada.
ente soberano e eterno, que, como por um «0 que importa crêr em Deus, disse um
acto de escarneo atroz, se compraz em ar­ eloquente orador, se d’elle se não fórma
remessar mundos ao meio do espaço, é a mais que um idolo desterrado no fundo do
maior das loucuras. Olympo, que teria olhos para não vér, e ou­
Abstrahi da providencia, separai Deus do vidos para não ouvir, se se desarma sua
universo, o que vos fica? Uma cathegoria vã, , e se é representado como um pae
um ente chimerico, uma palavra sem sen­
S indade, um monarcha sem poder, um
tido. juiz sem equidade.» 1
Mas vejamos â luz da razão como quem
1 De ira Dei cap. ix, pag. (mihi) 505. Si
est Deus, utique providens est, ut Deus...
Alteram enim sine altero nec esse prorsus, 1 Frayssinous. Defesa do Christianismo,
nec intelligi potest. tom. 1, pag. (mihi) 136.
282 ATH
acredita em Deus é levado pela força da mento em que Deus retirasse o seu braço-
verdade a acreditar na providencia. creador. 1
Deus é o sêr. Foi clle mesmo que disse E n’outra parte insistiu: que se Deus
a Moysés: Ego sum qui sum. Todos o s ou­ suspender a sua força creadora, o univer­
tros seres que nào sào elle, existem por sua so... não poderá conservar a exislencia nem
virtude, e d’elle recebem um pallido reflexo um só m om ento.2
de exislencia. Nada podemos considerar Nem mesmo, se quizermos fallar com
fora de Deus, tudo existe n’elle, clle vê lodo o rigor, se póde dizer que ha conser­
tudo, e tudo cria n’uma ideia eterna, unica vação ou providencia em ordem a Deus,
e simplissima, que é a sua mesma essencia. como para elle não ha passado ou futuro,
Fóra d’elle só o nada!... mas existe n’um presente infinito, segue-se
E, pois, absurdo separar Deus do uni­ que é n’um acto unico c sempre presente
verso. O acto mais insignificante dá-se no que tudo faz e tudo conhece. E d’aqui se vê
seu seio, pada existe que nào exista, por quanto é miserável a ignorância d’aqucllcs
elle, nào se move uma so folha que nào seja que julgam degradar a divindade, fazen­
em Deus e por Deus. Sào as leis da natu­ do-a cuidar nos acontecimentos insignifi­
reza que tudo regulam, dizem alguns: as­ cantes que se passam n’este mundo de mi­
sim o crémos nós também, mas essas leis sérias. Deus não cuida nos objectos gran­
em que tanto se falia, o que sào senão a des ou pequenos, vê tudo e tudo ama na
vontade de Deus, o mesmo Deus obrando sua essencia eterna. Nenhum sêr é para
immediatamcnte? Prescindi um momento elle dcspresivel ou indigno. Não ha para
de Deus, diz Sancto Agostinho, e toda a na­ elle diíTcrenças, conhece por igual todos os
tureza desapparccerá no abysmo do n a d a .1 entes n’uma ideia immutavel, o grjo de pó
É o maior dos delírios o dizer-se que que o vento leva não existe menos em Deus,,
'eus senão importa com o mundo. Pois nem por elle ê mais despresado do que esse
ue!... Póde dar-se cousa alguma que esta firmamento que arrebata a nossa admira­
ão seja a manifestação, a realisação, por ção.
ssim dizer, do pensamento eterno, da von- Podemos, portanto, concluir, que ha uma
.ade immutavel de Deus? Como se atre­ providencia divina que véla sobre todas as
vem-. pois, a dizer alguns philosophos que creaturas.
Deus se hão importa com aquillo que só Ila providencia, porque o mesmo motivo
por elle existe?!... Em ordem ao universo que levou Deus a crear o universo, o deve
em geral, e ás suas leis, e a todos os acon­ levar a ter cuidado da sua obra. E t quis
tecimentos quaesquer, dizer que não ha operator, diz Sancto Ambrosio, negligat ope­
providencia immediata e actual, é negar que ris sui curam? Quis descí'at et destituat,,
tudo exista em Deus, é negar a existência quod ipse condendum putavit? 3 E se isto
do Sêr Supremo. Muitos estão possuídos de acontece entre os homens, com quanta mais
um grande erro, julgam que uma substan­ razão deve acontecer na summa perfeição?
cia, depois do crcada, continua a existir de De certo seria indigno de Deus crear o mun­
per si, e não admittem a conservação di­ do para o deixar de lodo abandonado.
vina senão d’um modo indirecto o negativo. Ha providencia, porque todos os sêresdo
E este um d’aquelles erros que mostra a universo, a uma voz, nol-a attestam. Vêde
mais varrida ignorância d’aquillo de que se como essas massas enormes giram no es­
tracta. Efiectivamente, quem souber o que paço regularmente, sempre debaixo d’uma
é existência, quem d’ella. formar a mais pe­ harmonia quo attesta a presença da divin­
quena ideia, não cahirá n’um tal absurdo. dade; e se descerdes a examinar um ver­
Se um sêr qualquer existisse um momento me da terra, ahi mesmo achareis provas in­
per si, elle teria uma existência plena, se­ contestáveis de que o mundo é governado •
ria independente, seria eterno, seria Deus! por uma intelligencia infinita. Através dos
Em Deus, diz um profundo philosopho, a cataclysmos, das tempestades, de todas es­
conservação e a creação são um mesmo sas que nos parecem desordens aterrado­
acto, unico e permanente.2 ras, descobre-se uma ordem admiravel.
Já Sancto Agostinho havia dito que não Tudo obedece a uma cousa cheia de sa­
era o mundo á maneira d’um edifício, que bedoria e poder; tudo concorre para um
existia independente do architecto que o fa­ todo harmonioso; se um atomo fosse ani-
bricara; mas que deixaria de existir no m o-

1 Sancto Agostinho iv. De Genesi ad lit­ 1 Sancto Agost. Loc. cit


teram , cap. 11. 2 L. 22. de Civitat. Dei. cap. 24., w.° 2.
2 Malebranche. vm. m etapli.n .• 7. 3 S. Ambrosi. De Offic., cap. 13. Lib. 1.
ATH 283

quilado, póde scr, que segundo as leis con­ este globo, a que chamamos terra, como
stituídas, o universo inteiro se desconcer­ rei de todos os séres que o povoam; tudo
taria. n’elle denota um destino sublime; ellc
Ha, cmfim, providencia, porque ncgal-a transforma pela arte os mesmos séres da
é negar a existência de Deus, é destruir a crcação; submette todos os animacs ao seu
divindade, como acima mostramos. Admit- dominio; lucta com os mesmos elementos,
tida uma cousa, seria absurdo repugnante c, como que despresando o logar cm que
não admillir a outra. Basta conhecer os ter­ habita, eleva a fronte para os céos, c o seu
mos da questão para não restarem dúvidas espirito vaga pelo espaço infinito, buscando
a este respeito. entre as cspheras um bem que não encon­
Temos fallado da providencia em geral; tra na terra. E seria acaso digno da sabe­
tractaremos agora da mesma providencia doria e bondade de Deus abandonar esta
na ordem moral. E um ponto de summa nobre creatura que collocára rei da crea-
importância, por isso que por muitos é ne­ ção? Como poderia Deus despresar os seus
gado, ao menos indircctamcnte. generosos esforços? Não seria faltar aos
fins, aos altos fins que não podia deixar de
propôr-sc creando o mundo, o abandonar
o homem a si mesmo? Attendamos que um
homem qualquer não seria talvez capaz de
commetter uma tão grande injustiça, não
Como todos os seres do universo, os ho­ poderia ser tal e tão mau, como muitos
mens estão sob a vigilância da providen­ philosophos nos querem representar Deus,
cia Divina; como todos, foram creados para que é a mesma justiça e bondade!
um fnn certo, e não faltaram os meios para Mas para responder ás blasphemias d es­
o conseguir, porque isso accusari a inscien- ses philosophos indignos, ahi está a huma­
cia ou impotência na divindade. Haverá, nidade inteira. Examinai a historia antiga
porém, uma providencia especial sobre o e moderna, os povos civilisados assim coma
homem? Velará Deus sobre as nossas ne­ os selvagens, e o antigo e novo mundo; não
cessidades? Ouvirá as nossas queixas? At- encontrareis os mesmos costumes e as mes­
tenderá os gemidos do innocente opprimi- mas leis; não encontrareis povos vivendo
do? Influirá emfim sobre a sorte dos po­ pela norma dos outros á maneira dos irra-
vos, ou o genero humano mover-sc-ha ao cionaes; por toda a parte achareis diversi­
acaso sobre a face da terra? Eis o que nos dade. Ha comtudo um ponto em que os
propomos examinar. homens não diversificam; por mais civili-
Não c nosso intento avaliar as disputas sada ou selvagem qne se tenha tornado
eternas entre os augustinianos, os thomis- uma sociedade, ella reconhecerá sempre
tas e discipulos de Molina a este respeito; um poder superior c sobrenatural que re­
nem tão pouco queremos tocar na melin­ gula os destinos da humanidade assim como
drosa questão da graça, que, além de in­ do universo inteiro.
teiramente inopportuna, demanda conheci­ Quando o homem se vê n’um grande
mentos e agudeza que de todo nos falle- risco, quando uma calamidade está emi­
ccm. É só pelo lado philosophico que ra­ nente, no perigo da tormenta, no ardor das
pidamente vamos tocar este ponto. A cada batalhas, n’uma palavra, quando nada ha
passo se ouvem queixas contra Deus, quasi a esperar da terra, os olhos erguem-se na-
sempre sqattribuem ao acaso os aconteci­ turalmentc ao céo a implorar soccorro. Col-
mentos mais extraordinarios, c não éraro locai o selvagem, o fatalista e o atheu mais
também ouvir em nossos dias, quem se­ pertinaz e obstinado sobre um baixei ex­
guindo os passos de Rousseau, zombe das posto ao furor das ondas, no auge d’uma
preces que os afflictos endereçam ao céo. procella horrorosa; quando os abysmos do
Vejamos o fundamento que podem ter es­ mar se abrirem como para o tragar, n’esse
tas queixas e zombarias. instante supremo, em que elle vai a sub­
Primeiramente, admittida a providencia mergir-se no medonho barathro tão pro­
geral, é evidente que .não póde deixar de fundo e sombrio como seu futuro, pergun­
se admittir a providencia especial sobre o to: esse homem, qualquer que elle seja,
homem. deixará de soltar um grito do fundo do
Não ha dúvida que o homem é uma no­ peito a pedir soccorro ao céo?
bre creatura, que vale milhões de mundos, N’uma palavra, se examinardes a face
se ahi não suppozermos uma creatura in- da terra, não encontrareis um só povo sem
telligente capaz de amar o bem; não ha religião; não encontrareis um só que não
diivída que o homem foi collocado sobre tenha as suas divindades a quem invoque;
284 ATH
quo nào tenha os seus sacrifícios,.os seus com o que passam os homens, perguntare­
hymnos sagrados e o seu culto. mos com Silviano,1 para que erguemos dia­
Os pagãos multiplicaram os deuses, e riamente as mãos ao céo? Para que vamos
cada vicio, cada virtude, os mares, os bos­ fazer nossas supplicas diante dos altares?
ques, tudo tinha a sua divindade respe­ Se Deus não pôde ou não quer ajudar-nos;
ctiva; mas através d’esses erros grosseiros, diremos ainda com Cicero,2 se clle absolu­
transparece a crença n’um sêr superior que tamente não cura do que fazemos... porque
se invocava e em que se tinha confiança. c que lhe endereçamos nossos cultos, nossas
Os mais celebres philosophos consagraram homenagens e nossas preces?
esta crença n’um ente sobrenatural, a quem Mas, o que é mais ainda, esses loucos
convinha erguer o coração; os legisladores, descrentes da Providencia vão contra o
para melhor se fazerem respeitar, inculca- testimunho da sua propria consciência, e
ram-se inspirados do céo; emfim, templos, não poucas vezes desmentem com as obras
Ti'ctimas, os agouros, todas as superstições aquillo que professam no gabinete philo­
mostram nos idolatras, ainda os mais bar­ sophico. D’um antigo atheu se conta, que
baros e grosseiros, uma crença constante no perigo dTuna tormenta, invocara a Pro­
na divindade e sentimentos nunca desmen­ videncia que negava, e que Bias espirituo-
tidos de religião. samente lhe dissera que se calasse, pois
Ora tudo isto, como mui judiciosamente temia que Deus viesse a conhecer que alli
observa Frayssinous, seria não sómente in­ eslava um alheu. Yoltaire, diz-se, que ater­
útil, mas inteiramente insensato, se a di­ rado por uma tempestade, se vira dobrar o
vindade fosse indifferente ao que se passa joelho diante dos seus satellites; e de Rous­
sobre a terra. 1 seau todos sabem, que, como para dar um
D’este modo os que combatem a Provi­ desmentido solemnc ao que escrevia, foi
dencia, destroem a religião pelos seus fun­ encontrado a resar fervidamente dentro
damentos. Si Dei Providentia non pm sidet dos templos.
'cbus humanis, diz Sancto Agostinho, nihil Tudo, portanto, nos obriga a acreditar
'St de religione satagendum.2 n’uma providencia. É uma verdade conso-
D’este modo, diremos com um celebre ladora que o nosso coração precisa crêr e
ascriptor3 a quem podiam applicar-se as que jamais deixará de existir no fundo de
suas mesmas palavras, d’este modo os ad­ nós mesmos.
versarios da Providenda tiram aos afflictos Não ha ninguem que não tenha horas
a ultima consolação da sua miseria, aos de extremo soffrimento: o que seria de nós
poderosos e aos ricos o unico freio das se não acreditássemos n’um Deus que não
suas paixões, e arrancam do fundo dos co­ só póde valer-nos, mas que está prestes a
rações o remorso do crime e a esperança fazel-o, logo que a clle recorramos de todo
da virtude. o coração?!...
D ’este modo, finalmente, aquclles que ne­ Parece-nos que o que fica dito n’este e
gam que Deus se interessa pelos homens, no antecedente capitulo bastaria para dis­
erguem-se contra o testimunho de todo o sipar todas as dúvidas acerca da Providen­
genero humano, e, com os seus systemas, cia. Tencionamos, todavia, responder ainda
veem taxar de loucura aquillo que existe a algumas objecções que se costumam op-
firme na consciência, da humanidade. .Por­ pôr a esta verdade. Ha todo o interesse
que, na verdade, se Deus se não importa em arreigar profundamente a crença na
Providencia Divina.
1 Loc. cit.
2 Tomo 8, pag. (mihi) 67. 1 De Providentia, liv. 1.
3 Rousseau. 2 De natura Deorum, lib. 1, cap. 1.

CAPITULO IX

D e u s , P r o v id e n c ia

Deixamos provado que a todo o uni­ vé e tudo ama na sua essencia simplicis­
verso e a cada uma das suas partes assiste sima e immutavel. Vamos agora, segundo
a providencia d’um Deus eterno, que tudo o que promettemos, responder a algumas
ATH m
objccçoes que se costumam oppôr contra ça, o crime e a hypocrisia a campearem
esta crença tào universal c racionavel aíToutos por sobre a virtude e innocencia
quanto consoladora. despresadas c opprimidas! Certamente, a
Nào procuraremos enfraquecer essas ob- humanidade c uma raça de séres infelizes,
jecçõcs para depois lhes respondermos com com quem ninguem sê importa!...»
mais vantagem. Esforçar-nos-hemos, pelo Eis-aqui como discorrem alguns infeli­
contrario, em apresentar os adversarios da zes, mais insensatos do que infelizes, mais
Providencia com toda a força o energia do injustos ainda do que insensatos. Sábios
raciocínio que lhes é possível, para mais escriptores, catholicos ou philosophos, teem
cabalmente mostrarmos que realmento ne­ respondido d’um modo victorioso aos seus
nhuma teem nem podem ter. blasfemos argumentos. Reproduziremos cm
«Lançai os olhos por esse mundo, dizem resumo o que se tem dito de mais solido,
elles; vêr-vos-heis obrigados a dar-lhe o reportando-nos principalmente a Frayssi-
nome tào característico de valle de lagri­ nous.
mas', nome que até a Igreja consagrou Antes, porém, de tudo, temos a assentar
n’uma das suas orações c cuja exactidão um ponto admittido como incontestável en­
a experiencia propria nos confirma bem tre todos os philosophos dogmatístas. «A
infelizmente. O que sào os homens? pobres primeira regra da nossa logica, diremos
creaturas, lançadas por ahi ao acaso sobre com Bossuet, c que não devemos abando­
a face da terra. Na sua loucura ou na sua nar as verdades uma vez conhecidas clara­
nfelicidadc, védel-os ahi a guerrearem-se mente, embora tenhamos difliculdade em
mutuamente, altribuindo uns aos outros as conciliar; mas quê, pelo contrario, de­
os nomes de fanaticos, visionários, igno­ vemos, por assim dizer, segurar sempre
rantes, insensatos ou criminosos. Emquan- fortemente as duas extremidades da cadeia,
to uns riem, outros choram, o sabio inves­ ainda que não vejamos bem o' centro por
tiga placidamente no remanso do gabinete onde se continua o encadcamento.» 1
os arcanos da natureza, e julga loucos os É esta uma regra que desejamos estabe­
que dizem caminhar ao campo da gloria lecer seguramente, porque a cila temos de
incendidos em ardor guerreiro e ávidos do recorrer com frequência no decurso d a s­
sangue humano, e estes zombam da philo­ tes nossos trabalhos. E era cila já suffi­
sophia do sabio: o christão lamenta a am­ ciente resposta a todas e quaesquer objec-
bição c voluptuosidade do homem do mun­ çòes contra a Providencia; todavia nào é
do, e este nào despresa menos a simplici­ só este o recurso que temos contra os ad­
dade do christão. E’ tudo assim! Onde está versarios. Vejamos como são falsos ou ine­
a felicidade? Não védes alli o pobre esta­ ptos os seus argumentos.
lando de fome na sua cenzala, emquanto Convimos em que n’este mundo se não
o opulento se entrega ao gôso vaidoso e gosa uma felicidade perfeita; não são os
malerialisado dos prazeres d’um dia? Não homens comtudo tão desgraçados como os
védes o innocente gemer sob a oppressão querem fazer. Ninguem ha que, sem em­
d’aquclles em quem a perversidade não bargo de quantos trabalhos e penas quei­
impede a fortuna? Não védes. emfim, o ram imaginar, não experimente no decurso
mundo, todo elle obedecendo ás maquina­ da vida sentimentos de prazer e alegria e
ções do egoismo, da ambição, da hypocri- se não sinta animado ao menos pela espe­
sia e do crime? rança.
«A virtude é tanto unia raridade exce­ Os homens são desgraçados, é verdade;
pcional, que cila é apontada como exem­ mas devemos lembrar-nos que essa mesma
plo digno d’admiraçào; e aquillo que devia infelicidade é sempre obra das suas mãos.
ser a práctica ordinaria entre os homens, Aquelle que procura ser feliz pela satisfação
chama-se heroísmo como se merecesse o da sua consciência, aquelle que só dirige as
nome pomposo d’heroc aquelle que, muito suas acções à virtude c ao cumprimento da
simplesmente, faz o que deve! vontade de Deus, esse será venturoso ape­
«Onde está o direito da virtude e o res­ sar de todas as adversidades. Aquelle, pelo
peito á innocencia? Onde está a felicidade, contrario, que só procura a satisfação das
onde a ordem? Tudo obedece á força ou á suas paixões, sem attender á iniquidade
astúcia, e as nações curvam-se sob os Na- dos meios, esse sim, jamais sentirá socego
poleões e os Cromwels, c os povos cedem em seu coração; embora se esforçará por
aos impulsos que do fundo de clubs tene­ suffocar com novos crimes o grito affli-
brosos lhes imprimem meia duzia de ho­
mens tão insignificantes, quanto mal inten­
cionados! Oh! Por toda a parte a desgra­ i Ti'aite chi libre arbitre, cap. 4.
A TII

ctivo da consciência, o espectro medonho dole, da educação, das circumstandas, que


do remorso apparecer-lhe-ha no meio das (Vuma vontade completamente livre, diz
orgias e por entre os festins para lhe der­ ainda o incrédulo. Mudai a sorto dos ho­
ramar amargo fel em todos os prazeres. É mens, e talvez que vereis os virtuosos con­
n’este terrível estado que o homem se sente vertidos em perversos, c aquellcs a quem
accommettido de desespéro, e ousa accusar os seus crimes faziam abomináveis torna­
Deus da sua infelicidade, não attendendo dos anjos de pureza. Ora, para que é esta
que cila é ura justo castigo das más obras, desigualdade de condições? Eu sou lerdo,
infligido pela Providencia. tenho más inclinações, etc.; bem: não te­
Mas os homens virtuosos não são os me­ nho eu porém o mesmo direito que New-
nos expostos a duras tribulações, insiste o ton a uma intelligencia elevada; não podia
incredulo. Assim o acreditamos nós lam­ ter um bom natural como tantos sanctos
bem, e a experiencia não nos deixa dúvida que ahi se admiram?... Se ha uma Provi­
a este respeito. É, porém, mister advertir dencia, cila parece ser a mesma authora
que o homem justo nunca é desgraçado, das desordens c dos crimes, visto que es­
sejam quaes forem as tribulações que o tes são quasi sempre o frueto obrigado de
persigam. O -seu espirito tendo por norte condições que essa Providencia podia e de­
a Deiis, permanece seguro, inalterável, em- via remover.
quanto a tormenta brarae eni volta. E se­ Respondamos a estas razões cm que nada
não attentai bem: jamais ouvireis chamar- mais ha que uma subtil cavillação. Primei­
se infeliz aquelle que de todo se votou á ramente ó preciso que não formemos uma
virtude; e, como mui acertadamentc diz o falsa ideia da justiça. Não podemos dizer
illustre bispo d’Hermopolis, o homem vir­ que temos direito a mais ou menos perfei­
tuoso póde facilmente soíTrcr; mas, no re­ ção, porque Deus não é obrigado a dar-
manso de sua alma pura, não querería nos nem ainda a existência. Tudo o que
Irocar o seu destino pelo dos maus que nos concede é gratuito; é pois uma louca
parecessem os mais venturosos d’entrc os injustiça e ingratidão accusal-o de nos ter
mortaes; e as cadeias de que podésse ser dado pouco, quando nada era obrigado a
carregado, lhe seriam mais doces que to­ dar-nos, nem temos a admirar-nos ou a sa­
das as corôas do fteio triumphante. ber o motivo para que ellc outhorgou mais
D’est’arte só são verdadeiramente infeli­ a uns que a outros.
zes os que se desviam do destino para que Alguma cousa eomludo podemos ainda
foram creados, no que só ellcs tem culpa, attingir d’essc motivo que teria a Providen­
ao passo que os virtuosos gosam d’inalte- cia para produzir a desigualdade de condi­
ravel felicidade mesmo no meio dos traba­ ções entre os homens. Essa desigualdade
lhos mais acerbos; e assim se revela a é sem dúvida mais gloriosa para Deus, e
Providencia ahi mesmo onde o incrédulo torna a creação da humanidade mais per­
julga achar um.argumento contra ella. feita. Não nos illudamos; não julguemos
E se eflectivamente vemos a virtude que o crcador do mundo deveria ter só em
quasi sempre perseguida, sujeita aos furo­ vista este ou aquelle homem. Se no mundo
res da prepoteucia, e parecendo luctar com moral houvesse perfeita uniformidade, to­
uma fortuna adversa, ao passo que o vicio dos os homens seriam talvez mais perfei­
campeia desafirontado e triumphante; isso tos do que são agora alguns, mas a huma­
mesmo entra nos desienios profundíssimos nidade valeria menos, e a obra de Deus se­
da Providencia. A adversidade serve de ria mais imperfeita. Não haveriam tantas
acrisolar a virtude, e é justamente entre virtudes admiraveis como a generosidade,
os soffrimentos e trabalhos que esta se a modestia, a compaixão; que digo eu? não
torna mais nobre e heroica. A dedicação haveria nenhuma d’essas virtudes heróicas
a resignação, a coragem, a caridade c ou­ que mais honram o genero humano; não
tras muitas virtudes existiríam acaso tão haveria essa harmonia maravilhosa que
brilhantes, se a tranquillidade e boa for­ sustenta a sociedade com tantos gostos, pro­
tuna fossem sempre o apanagio d’uma vida fissões e estados diversos. A variedade,
honesta c religiosa? Não vémos nós dia­ compondo-se n’uma unidade harmônica, é
riamente que raro é o homem, aliás vir­ o característico de todas as obras perfeitas,
tuoso n’outra condição, que se não deixa e vós o achaes com efleito em todas as de
ennervar, logo que chega á prosperidade? A Deus, assim no mundo physico como mo­
adversidade é, pois, um paternal beneficio ral. Prescindindo portanto d’este ou da-
destinado pela Providencia ao homem vir­ quclle homem para só attender ao fim ge­
tuoso. ral da humanidade, nós achamos desigual­
Mas a virtude parece mais filha da in­ dade de condições que tanto cscandilisam o
ATH 287

incredulo: é mais uma prova da Providen­ culo de desordens, iniquidades, dolosos tra­
cia, que cllc combale. mas, etc. Aqui como em todas as outras
É lambem falso que a virlude seja o fru­ objecções, longe ^encontrarmos motivo de
s t o obrigado das circumstandas. De feito, duvidar da Providencia, nós somos pelo
sejam estas quacs forem, o homem é sem­ contrario mais obrigados ainda a acreditar
pre livre no obrar; c esses homens que sào n’clla. Na verdade não c uma prova fortis­
perversos poderíam, apesar da indole, da sima de que Deus preside aos destinos hu­
educação e de tudo o mais que os pôde le­ manos, a conservação c harmonia das so­
var ao crime, poderíam sem dúvida ser ho­ ciedades a despeito da rcbellião c choque
mens de virtude e honra. A experiência das paixões que tendem a tudo confundir
confirma isto mesmo. Não vêmos nós es­ c destruir? Como se explicará sem a Pro­
corregar a uma vida criminosa homens videncia esta verdade incontestável, que
em quem conhecemos excellentes inclina­ apesar da liberdade dos agentes moraes
ções? E não sabemos pelo contrario que ho­ não ha dúvida que as leis geraes da histo­
mens de virtude tiveram a vencer muitas ria dominam todos os factos particulares?
vezes perversas inclinações, inveterados Ha desordens, ninguem o duvida, e essas
habitos, ou a superar dilficilimos obstácu­ desordens permittidas pela Divindade, são
los? Não sào d'islo prova Sócrates na an­ todavia unico e exclusivo elfeito de causas
tiguidade, e milhares de sanctos na histo­ livres, mas o que nem todos advertem é
ria da Igreja?... Digam o que quizerem, que a Providencia sabe tirar bem dos mes­
será sempre verdade que o homem é livre mos males, e as proprias desordens faz en­
em todas as suas acções imputaveis, e que trar na ordem geral, e tudo emfim faz con­
-a perversidade nu n s não é menos filha da correr para maior bclleza c perfeição da
liberdade, do que em outros a virtude é o sua obra. Assim, se vós vos collqcardes em
írueto d’uma resolução corajosa e igual- um ponto superior d’onde avisteis todo o
mente livre. curso dos séculos passados, admirar-vos-
De resto, seja qualquer que fôr o estado heis da maravilhosa successão d’aconteci-
om que o homem se ache, elle póde sem­ mentos que revelam a presença d'uma Prq
pre conseguir o seu alto destino, e ser por videncia omnisciente, que sem lhe destrui
consequência feliz. O cavouqueiro mais mi­ a liberdade, dirige aos seus sanctos fin
serável, se na esphera em que foi collocado esta inquieta humanidade que parece mo
fizer o bem e cumprir o dever, não ha dú­ ver-se ao acaso. Apontaremos um facto.
vida que será mais ditoso, e mesmo a sua Essa paz geral, essa florescência do impe­
vida será mais nobre e heroica do que a rio romano, não se conhece visivelmente
de muitos homens de talento e poder, que ser preparada desde o começo dos tempos,
nasceram n’uma alta posição, mas que cor­ através da sucessão dos impérios do Oriente,
rompidos pelo egoismo, trabalharam só para para a vinda do Messias?
si sem desempenharem a missão de que Examinai a historia: vereis que as revo­
foram incumbidos pela Providencia. luções, os cataclysmos politicos, as proprias
Desenganemo-nos: em toda a parte po­ heresias e perseguições são empregadas por
demos ser felizes; em qualquer logar po­ Deus como castigo dos povos, como prova­
demos conseguir o nosso destino. Ricos ou ção e corroboraçao dos justos, etc. Assim
pobres, sábios ou ignorantes, estimados ou vêmos que foram precisas as perseguições
despresados, tractemos d’agradar a Deus, dos tres primeiros séculos para o estabele­
que é aquillo para que fomos crcados, fa­ cimento do Christianismo, e que todas as
çamos o bem, practiquemos a virtude, e guerras feitas á Igreja, desde Luthero até
ninguem será mais feliz que nós. «Sejamos aos philosophos dos nossos dias, teem ser­
mais moderados em nossos desejos, diz o vido de lhe conservar a pureza, porque não
precitado Frayssinous, mais reservados em temos dúvida em aCfirmar que seria quasi
nossos discursos, mais rasoaveis em nossos impossível ou pelo menos muito difficil que
projectos, mais sobrios, mais comedidos, o catholicismo se conservasse puro no meio
mais afastados dos prazeres e vicios que d’uma prosperidade duradoura e continua,
ennervam juntamente a alma e o corpo, e e isso mesmo seria uma prova de que elle
nós veremos desapparecer o maior numero era obra humana. N’uma palavra: um at­
dos males que soflremos.» tento c bem intencionado observador vê
Responderemos agora áquelles que di­ em todos os acontecimentos o dedo da Pro­
zem que tanto não existe uma Providencia, videncia; e certamente se se rasgasse este
que nós vémos que tudo obedece à astúcia, véo que nos priva de vêr os desígnios do
a hypocrisia, ao crime, o que toda a terra Altíssimo, certamente dizemos nos, fica­
offerece ao observador um vasto espectá­ ríamos aifmirados de vêr como tudo está
288 ATH
debaixo da sua influencia immediata e sa- mal—que reservamos para o capitulo sc-
pientissima. uinte, onde nos propomos tractar da bon-
Resta-nos ainda tractar d’uma questão ade de Deus, como conclusão do que ha­
melindrosissima—a existência e origem do vemos dito da Providencia.

CAPITULO X

D e u s, su a b ou d ad e c sa u ctid a d e

Não se póde perguntar se Deus é bom e E n’este pouco que temos dito parece-
sancto, porque esta pergunta seria o mes­ nos ter já com palavras sobejas demonstra­
mo que est outra—Deus é DeuS? Em ge­ do o que nos propúnhamos n’estc capitulo..
ral todas as questões relativas á divindade Muitas pessoas desejariam talvez mais pa­
ficam decididas e esclarecidas desde que lavras, porém se estas são necessarias quan­
se provou a sua existência. do se tracta de matérias d’imaginação, el-
O que é Deus? É a suprema razão las são por certo muito prejudiciaes quando
de
tudo, é esse sol das intelligencias a que os se quer com rigorosa exactidão provar as
philosophos modernos, em sua linguagem uteis verdades da metaphysica, que são
abstrusa chamam razão impessoal, é aquelle também da religião. Aquellas simplices pa^
irincipio eterno em que descansa tudo, que lavras ditas por Deus a Moysés: Ego sum
az que a verdade não seja o erro, que o qui sum, valem os mais eruditos, os mais
usto se não confunda com o injusto, e que logicos, e os mais volumosos tractados dos
) bello seja eternamente bello. Reparai em philosophos sobre a divindade, ou antes
todos os séres: achaes em todos alguma explicam mais do que poderam explicar to­
cousa de perfeito, alguma cousa que e per­ dos elles.
manentemente bello: é Deus nas suas obras, Eu podia recorrer ao argumento ordina­
é o cunho do Eterno impresso nas creatu­ rio de que se servem muitos para mostrar
ras. Ahi tendes um perverso: a sua vida é a bondade e sanctidade divina, isto é, enu­
uma vida horrorosa de crimes: não respeita merando os muitos benefícios que de sua
nenhumas leis, destruiu todos os instinctos mão recebemos, a existência, a liberdade,
beneficos da natureza, e parece não gosar a intelligencia, etc. E assim, se chamamos
de liberdade senão para transtornar a or­ bom áquelle que reparte benefícios, c en­
dem moral e attentar contra Deus e contra che de bens os seus dependentes, como o
os homens. Pois bem: ahi n’esse homem não chamaremos a Deus, a este pae bene­
ha ainda alguma cousa de bello e perfeito; fico e amoroso que nos deu a existência de
é a sua mesma liberdade, a sua intclligen- tantos dotes enriquecida?...
cia, a sua existência, o.fundo do seu sér. Porém este argumento, aliás util, por isso
Tiido o que ha no universo de bom, de mesmo que falia d’um modo frizante á ima­
perfeito, de bcllo, é Deus mesmo: por ou­ ginação das rudes capacidades, é insuffi-
tra, nenhuma cousa tem perfeição alguma ciente aos olhos da sciencia, e digamol-o-
senão em Deus e por Deus. Nada póde ser sem rebuço, é mesmo inepto se se exami­
justo senão porque Deus o é; a bondade, nar á luz d’uma logica esclarecida e recta.
a belleza, podem existir nas creaturas, por­ Effecti vamente elle suppõe o que se pre­
que existem n’um grau infinito em Deus; tende provar, jíorque se nós não acredi­
a verdade seria para nós uma chimera se tássemos na bondade divina, isto é, n’um
não existisse um ente eterno; que é a mes­ principio eterno de bondade, não chama­
m a verdade. Emfim, repetiremos ainda em ríamos bons aquelles sêres que espalham
duas palavras: Deus é a razão suprema de em volta de si liberaes munificentias. E
tudo, o principio soberano de todas as cou- como se quizessemos excitar alguém ao
sas. Ainda uma vez pois é absurdo per­ amor de Deus, apresentando-lhe o exem­
guntar se Deus é bom e sancto, visto que plo do amor que nós devemos aos nossos
elle é o principio de toda a bondade e san- bemfeitores; razões, diz Balmes, que não
etidade, e sem elle estas bellas qualidades satisfazem no ponto de Yista da sciencia,
nem ainda seriam concebidas pôr nós. porque se podessemos duvidar do amor
ATH 289
que nos obriga ao sér infinito, duvidaría­ serve para apreciar a moralidade, e loca
mos tariibem do amor quo nos obriga áqucl- d’uma maneira feliz os affectos d’alma.
les que nos fazem bom! por outras pala­ Ninguem pense que nos oppômos a um
vras, sendo o amor obrigatorio a Deus, o modo de fallar que é usual nos livros mys­
que explica, e a unica razão do amor aos ticos, c que tem mesmo o mérito incontes­
benifcitores, é absurdo apresentar este co­ tável de tocar os instinctos do coração, sem
mo motivo para nos excitar áquclle. se oppur d’uma maneira directa áo rigor
Com isto, porém, não queremos proscre­ da verdade.
ver essa linguagem menos rigorosa debaixb No seguinte capitulo tractaremos da
do ponto de vista logico, mas que, todavia, existência e origem do mal.

CAPITULO XI

D e u s, sua bon d ad e e sanetfdad e (co n tin u a çã o )

Ninguém ignora a importância da ques­ fossem Deus, o que repugna. Assim é a


tão debatida em philosophia sobre a ori­ mesma natureza das cousas que faz que
gem do mal. Já Epicuro dizia: ou Deus nós não sejamos infinitos ou perfeitos; c
quer tirar os males e nCio pôde, ou póde e argumentar contra as nossas imperfeições
não quer, ou quer e pôde. No primeiro naturaes, é em certo modo exigir «pie nós
caso, Deus é impotente, o que repugna; no deviamos ser creaturas perfeitas, o que em
segundo, é mau, o que igualmente é impos­ ultima analvsc vem a ser exigir o simul
sível; na ultima supposicão, como explicar esse et non esse, isto é, o mais repugnante
tantos males que affligem a humanidade? 1 de todos os absurdos. Não ha pois mal me­
E este é ainda o argumento de que depois taphysico; a falta de perfeições que se dá,
se serviram os manichcus, e mais moder­ e por força ha de dar-se nos seres creados,
namente o incredulo Bayle. não faz que elles sejam um bem c grande
Para repetirmos mais uma vez essa res- bem, nem portanto sobre este absurdo fun­
josla decisiva que de philosopho em phi- damento se póde cimentar nenhuma objee-
{osopho se tem vindo reproduzir até nos ção séria contra a bondade de Deus.
livros elementares, precisamos a distineção O mal physico, como o dá a entender cla-
da Leybnitz em mal metaphysico, physico ramente esta expressão, vem a ser aquelle
e moral. Sabemos que estas divisões, ainda que affecta o nosso corpo: é a dõr, o des-
que feitas ou authorisadas por grandes gê­ prazer, a doença, tudo emfim que somos
nios, não agradam a certas pessoas pela obrigados a soíTrer por causa da nossa na­
muito simples e tenninante razão de que tureza corporea durante esta vida de misé­
sabem a escolastica. A esses taes, preve­ rias. Porém isto que chamamos mal não é
nindo-os de passagem, só temos a dizer senão um grande bem estabelecido pela
que, depois defe profundos juizos que da divindade como meio.salutar para auxi­
escolastica, ou do seu maior representante, liar a nossa conservação, para nos preve­
S. Thomaz, teem feito Balmes c os sábios nir dos perigos, ou como correctivo aos
philosophos italianos, 2 é tempo que vão nossos deveres e aberrações da lei natu­
acabando certas pretenções d’um eclcctis- ral. Assim a doença, por exemplo, do que
mo não sei se ridiculo, filho da ignorância tanto nos queixamos e que tanto nos faz
c presumpção. soffrer é realmcnte um bem, porque ella
Os philosophos entendem por mal meta­ nos avisa que temos a tractar de repara­
physico as imperfeições inherentes á nossa ções da nossa economia animal que se d<$-
natureza. E este, é já claro de vêr, que troc. Sem a doença, o homem morrería
nem verdadeiro mal é, visto que para elle quasi insensivelmente, não poderia prolon­
não- existir seria forçoso que as creaturas gar tanto a siia existência, não recuaria
ante os maiores crimes, não tractaria em­
1 Vide Lactancio. De ira Dei, cap. 13. fim da sua conservação. A fome, que é
2 E' claro que nos não referimos aqui sem dúvida um flagello de tantos desgra­
aos antologistas da escola de Gioberti, etc. çados, ninguem póde negar que é um be-
19
290 ATH
neficio concedido por Deus; c ella que faz á divindade, pugna contra o seu destino, e
que procuremos sustento ao nosso corpo, torna-se digno de castigo. Elle faz um mal,
é cila que faz que os homens se deem ao é verdade, mas um mal para elle; o seu
trabalho, é cila que põe em movimento as peccado foi ainda um bem na ordem ge­
sociedades, que fomenta o commercio e a ral, porque foi o acto d’uma creatura li­
mesma industria c excita os homens á vre, c foi portanto uma manifestação do
vida activa. poder de Deus. O homem vai depois sof-
A fome é como o instincto corporal da frer a pena do seu peccado; mas então
conservação, tirai-a c vereis milhares de ainda elle é uma manifestação da justiça
homens morrerem de inedia, por descuido divina, entra tanto nos desígnios da Provi­
ou de proposito. dencia. c exalta tanto a Deus como o bem-
Além di isso, todos estes que chamamos aventurado. Para bem -comprehendor isto,
males physicos, entram ccrtamcntc como devemos crér que o homem é uma perso­
arte principal no plano da creação, no nalidade, um ca inleiramenle distincto de
S estino sublime da humanidade. D’elles de-
endem todas as virtudes, todas as relações
Deus; mas um sér creado por Deus. O ho­
mem pois considerado em todas as suas
e homem para homem ou de sociedade obras cm relação a Deus é sempre um
para sociedade; sem elles nào haveríam bem, porque é uma obra de Deus; os pcc-
soíTrimentos, é verdade; mas c por isso cados porém são obras do homem, são
mesmo que sem elles não haveríam essas males cm relação a elle; com os peccados
virtudes heroicas dos que soífrem, nào ha­ elle entra ainda na ordem geral, mas in-
veríam essas luctas generosas do homem felizmenle entra n’cssa ordem só para ma­
. contra o infortunio, não haveria esta ele­ nifestar a justiça de Deus.
vação para Deus do espirito attribulado, Podemos ainda ponderar que sendo o
não haveria cmfim nem mesmo prazeres, peccado uma consequência da nossa liber­
porque estes nascem do contraste com a dade, os muitos peccados não provam se­
dôr. Suppondc que por um momento se não a muita liberdade. Ora sendo a liber­
destruíam esses males physicos, o genero dade o titulo da nossa grandeza na es­
humano cahiria n’um cahos horroroso, nào cala dos séres, tanta maior liberdade, tanta
caminharia mais para o seu nobre destino, maior grandeza. Logo o peccado não é senão
e a obra de Deus acabaria por si mesma. a prova d’uma grandeza que despresamos.
D’este modo fica evidentissimo que não Qucrieis que houvesse menos peccados?
ha mal physico, pois que clle é pelo con­ É o mesmo que querer que Deus limitasse
trario um grande bem que entra nos pro­ a grandeza e sublimidade da nossa natu­
fundos mas sempre beneficos desígnios do reza. Pensai que Deus nos fez grandes pela
Altissimo: e a objecção que por este mo­ liberdade, que nós é que nos fazemos pe­
tivo fazem os adversarios da bondade di­ quenos pelo peccado, c então por certo
vina, não é mais fundamentada que aquclla longe de blasphemar contra a Providencia,
que tem por base o chamado mal mctaphy- seremos gratos aos seus benefícios, e odia­
sico. remos os abusos que d’estes fazemos.
Resta, pois, o mal moral, isto é, o pec- Emfiin, fallando só a linguagem philoso­
cado, aquelie sobre que mais insistem os phica, se tudo nos prova que ha Deus, o
nossos adversarios. Emquanto ás outras peccado prova-nos que ha de haver cas­
especies de males temos mostrado que o tigo, e este que ha de haver prêmio; isto
não são; mas o mal. moral, perguntar-nos- é ,o peccado é prova d’uma'vida futura de
hão elles, talvez, podeis vós negar que seja felicidade e de amor. O maior bem d’esta
um mal? Rigoroso, absolutamente um mal? vida ha de e deve ser medido pelo maior
Sim, negamos. O peccado não é absoluta­ merecimento e este pela maior liberdade.
mente ura mal. Expliquemo-nos. Mal no Por conseguinte argumentar contra a bon­
sentido absoluto, seria aquillo que concor­ dade de Deus com o grande numero de
resse para o bem geral, que não estivesse peccados, é argumentar contra a grandeza
em? conformidade com os desígnios altissi- da liberdade e portanto contra a elevação
mps da Providencia. Vejamos se o pcc- do nosso ulterior destino, isto é, contra um
rande, o maximo beneficio que Deus po-
cadu concorre ou não para o bem geral.
• Deus creou os homens livres para ma­
S ia fazer ao homem. É argumentar contra
nifestação das suas perfeições infinitas. A a bondade de Deus com o grandioso e su­
lei que lhes impôz foi a de o amarem, e blime de seus mesmos benefícios.
esta lei tem como principio eterno b amor Depois do que temos dito, não tem logar
que Deus tem a si mesmo. Quando o ho­ a .objecção seguinte: «Convindo era que
mem falta áquella lei de amor, desobedece Deus nao tem culpa dos peccados dos bo-
ATII 291

mens, parece que seria niais proprio de não tem mais motivo de recorrer a um
sua bondade nfio crcar o mundo, visto que principio mau, c a nós só nos resta amar,
n’clle se tinham de dar mais malcs que amar sempre aquelle Deus, só elle bom, só
bens.» elle sancto. Nemo bonus nisi solus Deus.
Concluiremos portanto que também não Non est sanctus, ut est Dominus, neque
ha mal moral; não existe mal algum quo enim est alius extra te.
deslustre a bondade divina; os manichcus

CAPITULO XII

Dcws e scaa ju stiça

Havendo mostrado como Deus ó a sum­ de reconhecer c admirar o seu honrado


ma bondade, do que deixamos dito se in­ caracter?
fere claramonte que cllc c tambem infi- É quê os homens teem no coração im­
nitamente justo, isto é, que cllc não é in- presso o sentimento de Deus; é que elles
dificrente ao vicio ou á virtude, mas que amam naturalmente tudo o que é justo,
pclo contrario tem estabelecido uma outra porque a justiça é Deus mesmo. Esse ma­
vida em que a ordem moral será cterna- gistrado é como uma imagem da divindade
mente reparada, recebendo todos os ho­ e por isso attrahe a nossa estima, o nosso
mens um prêmio ou castigo condigno de respeito c o nosso amor.
suas acções na terra. Este capitulo cscre- Em que consiste porém a justiça divina?
vemol-o com tanto mais gosto, por isso Já o deixamos dito acima; consiste em ser
que sabemos que muitas pessoas se hem remuneradora, cm estabefecer um eéo para
não neguem formalmentc cm Deus o attri­ os justos c um inferno para os reprobos.
buto da justiça, se esforçani comtudo em Houve já um philosopho que ousou es­
concilial-o com opiniões erroneas, ou (o crever com seriedade que Deus se não im­
uc acontece ainda mais vezes) o desatten- portava com as nossas acções, porque nem
em cm suas acções c palavras. ellas accrcsccntavam, nem diminuíam á
■ D’este modo, nós tractarcmos ainda me­ gloria divina. É claro que um tal absurdo
nos de provar logicamente a justiça de nem resposta merece. Pois que! Será in­
Deus, que ninguém que n’elle creia ou­ di (Terente a Deus a horrorosa perversi­
sará negar, do que cm fazel-a considerar dade do filho parricida que não treme de
como nol-a mostra a razão c a fé. manchar as mãos no sangue do que lhe
Não nos demoraremos em provar em deu a vida? Será para Deus o mesmo um
Deus aquelle attributo, porque julgamos Caim o um Abel? Um Ncro incendiando
trabalho escusado. Com cífeito, para nos Roma c um Tito fazendo as suas delicias?
persuadirmos que Deus é justo não são ne­ Certamente que a divindade nada perde ou
cessarios raciocínios, não é mister a philo­ ganha com estas acções, porque é infinita,
sophia empolada dos homens da escóla.... mas isto não quer dizer que ella não difle-
. É ou não é a justiça uma perfeição? rença o criminoso do homem virtuoso...
. Se o é, como ninguem o nega, por forca Fazemos apenas uma observação que nos
existe um . Deus, typo divino e eterno de parece peremptoria. Sc vicio ou virtude são
toda a perfeição, e principio de todo o sôr. indifferentes, qual.é então o fim do homem?
Védc aquelle magistrado, inflexível como a A ordem moral é pois uma mentira? Por­
lei, respeitável como o seu logar, que ad­ que, se não ha merito e demerito, o homem
ministra a todos justiça com rectidão. A não póde aspirar a alguma grandeza, é um
prepotência não o verga; jámais se cur­ miserável joguete d’um Deus caprichoso
va as seducçõos, aos empenhos c ás amea­ que, por cscarnco, se compraz cm susten­
ças. Porque é que os homens se inclinam tai-o no meio do mundo, talvez pelo mesmo
diante d’esse magistrado? porque é que o motivo que os antigos soberanos conserva­
respeitam? porque ó que amam a sua re­ vam os jogracs cm suas cortes. Mais ainda:
ctidão? porque é que os mesmos a quem segundo aquella opinião, a natureza, tsto é,
elle inflige dure castigo não podem deixar Deus imprimiu-nos no coração um senti-
*
292 ATH
mento mentiroso, visto que nos collocou ca da eternidade das penas infernaes. Pois
ahi o amor da justiça como d’uma belleza que!—dizem ellcs—Deus, que é summo
emanando da eterna perfeição, nào sendo amor, que é todo misericordia, ha de fa­
ella mais que uma chimcra, uma illusão zer eternamente infelizes os pobres homens-
para sustentar a sociedade. Na verdade, que se deixaram eahir ífalguns peccados?
muito mal iria aos homens se se dessem E’ impossível. Isso é pintar-nos Deus vin­
a escutar as doutrinas d’estes tacs illumi- gativo, e como um tyranno inexorável,,
nados racionalistas. lendo sempre empunhada a espada d’uma
Mas nós fazemos injuria aos nossos lei­ justiça mais cruel que severa.
tores, occupando-nos ha refutarão de para­ Esla linguagem especiosa que falia tão
doxos d’cstc lote. Nào lia dúvida. Quem lisongeira ás nossas paixões, c ao nosso-
lançar um volver d'olhos por este mundo, amor proprio seduz muitos incautos. É por
vera a cada passo a virtude jazendo sob a isso que nós queremos acautelar os nossos
opprcssào de prepotência, verá o pobre leitores contra ella, aquelles que lhe déem
muitas vezes virtuoso, morrendo de traba­ ouvidos, porque desde esse momento dei­
lho e de fome, emquanto o opulento, o mil- xarão de acreditar na justiça divina, e tor-
lionario, que formou talvez o seu thesouro nam-se similhantes áquelles que ligassem-
extorquindo ao pobre obolo a obolo, se ri nos uma. venda nos olhos para se deixar eahir
seus palacios das misérias do povo e passa insensivelmente n’um abysmo profundo!
a vida cm orgias medonhas, ou n’ura luxo O homem que commetter um peccadò
sumptuoso que faria a felicidade de muitas fica, por esse só facto,-digno d’uma eterni­
familias, verá em fim quasi sempre trium­ dade de penas.
phando o forte Jo fraco, o astuto do sim­ Na verdade, sendo o nosso fim amar a
ples, o crime da virtude. E nào velará um Deus, sendo esse todo o nosso destino,
Deus justo sobre este mundo? E o infeliz, aquellc que commette um peccado desobe­
o des vai ido, o pobre, nào terá uma só es­ dece a Deus, mente ao seu destino, sahe
perança que llic reanime o peito? E esta fóra da ordem em que foi collocado, e cabe
ordení, que se chama a ordem do mundo, então todo sob a espada da severidade di­
ha de durar sempre? Nào, mil vezes nào. vina. Deus deixaria de o ser se o não cas­
Felizmente a philosophia absurda dos ra­ tigasse. O seu amor, a sua misericordia
cionalistas soberbos nào apparecc entre os nadalcem agora com esse homem, que já
homens senào para ser escarnecida. não póde ser mais que a manifestação de
O povo, a humanidade pensa d’outra ma­ sua justiça.
neira, acredita n’um Deus remunerador, e Nem se diga que para o castigar bastava
a religiào que ensina a adorar aquclle Se­ um milhão ou quantos milhões quizerem
nhor, que é o Deus de Sabaoth, c que é ao de séculos. Em tal caso também o céo não
mesmo tempo o Deus dos fracos, e dos hu­ poderia ser eterno. Qualquer acção tem uní
mildes, a religiào que ensina a esperar na- merito ou demerito infinito, e só uma eter­
quelle que fez descer os poderosos dos seus nidade póde castigar devidamente um pec­
assentos dourados para exaltar os humil­ cado ou premiar uma virtude. Supponde
des, essa benefica religiào ha de luzir ahi que depois d’um numero indefinido de sé­
sempre como pharol eterno no meio das culos o inferno acabava: os condemnados
sociedades, em que custe a quantos incre­ entrariam na mesma linha dos escolhidos.
dulos e racionalistas aprouver ao genio do O passado já não existia. Fora como um
mal mandar ao mundo. instante que se dissipou, agora era uma
, Seguramente depois d’esta vida uma ou­ eternidade de gôso. Tudo o que acaba, diz
tra se seguirá cm que a ordem moral será Sancto Agostinho, é breve. E é assim. Só o
para sempre restabelecida, em que o ho­ presente, isto é,' só o eterno é grande. Cem
mem colherá o frueto das suas obras em milhões de séculos de inferno ou de céo,
(pie desapçareceram as illusões de rique­ seriam como um momento: passavam e fi­
zas, sciencia e fausto, para só valer a vir­ cavam em nada.
tude, em que finalmente o crime será eter­ Imaginai dous homens vivendo o mesmo
namente castigado e a virtude receberá tempo, um soífrendo, outro gosando, mas
uma coroa immarcessivel. Aqui ainda po­ que emfim morrem: considerai-os no ul­
rém temos a refutar um erro que é assaz timo instante àa vida. Qual dos dous é o
vulgar. A muitos parece mais rasoavel a mais feliz pelo passado? O passado é sem­
doutrina d’alguns doutores mussulmanos, pre nada.
que ensinam que pelo menos nem todos Assim, debaixo d’esta salutar doutrina,
os condemnados soíTrerão eternamente, do ensinada pela razão e confirmada pela fe,
que o que nos ensina a nossa religião ácer- a ordem moral reapparece e a harmonia
ATH 293
<lo mundo manifosta-se-nos digna de Deus. que por força ha de vir, chegará e não tar­
Os homens são todos iguacs perante Deus: dará. 1
ser rico ou pobre, ser um genio como By- Sejamos justos: cumpramos o dever,
jou, ou um simples como José Labro, scr amemos a Deus, e esperemos n’elle, clle
um Alexandre, conquistador do mundo, ou nos sustenta com a sua mão omnipotente.-
um pobre zagalejo vivendo na sua cenzala, 0 rico, o poderoso da terra, murchará como
pouco importa. Todo o homem é igualmente a herva exposta aos ardores do sol na cal­
capaz de altingir o seu destino, e, se ha van­ ma do meio d ia .3 «As almas, porém, dos
tagem da parte de alguém, é ccrtamente da justos estão nas mãos de Deus, c não as
parte do pobre, do desvalido, do que geme tocará o tormento da morte. Parece aos
sob a tyrannia, porque o soflrimcnto é um olhos dos insensatos que morrem: c o seu
thesouro aos olhos de Deus, o qual vejo di­ transito é reputado por afllicção, c a jor­
zer aos homens:—felizes os que choram, fe­ nada que fazem separando-se* de nós, ex­
lizes os que padecem fome, felizes os que sof- terminio: mas elles estão em paz. E se
frem por amor da justiça. 1 soffrcm tormentos diante dos homens, a
Concluiremos fazendo-uma pergunta: se sua esperança está cheia de immortalida-
é verdade o que temos dito, como por cer­ de. Yexados em poucas cousas, cm muitas
to ninguem nos contestará, como é que lhes será bem retribuido; porque Deus os
ainda ahi apparecc quem se chame infeliz? tenta e os acha dignos de si. Elle os prova
Dé duas uma: ou essa infelicidade provém como ouro na fornalha, e os recebe como
do remorso da consciência e do temor da uma hostia de holocausto, e a seu tempo
justiça divina, ou então é uma loucura pre- haverá d’elles consideração. Os justos res­
sistir n’uma infelicidade que todos tem na plandecerão, c discorrerão como faiscas
mão remediar; ou, o que é mais vulgar, pelo meio d’um cannavial. Elles julgarão
•essa infelicidade provem dos soffrimentos as nações, e dominarão os povos, e seu
temporaes, da fome, da oppressão, da doen­ Senhor reinará para sempre.» 4
ça, da ingratidão que se soíTre, e então, at-
tenda-se bem n’isto, chamar-se infeliz é » S. Paulo Hebr. 10.
uma renegação de fé, é um insulto á jus­ 2 Pr. 36.
tiça divina, que nos diz por S. Paulo:—ain­ 3 Jacob. 1.
d a um pouco, mais, um instante, e aquclle 4 Estas bellissimas palacras são toma­
das do cap. 3.° da Sabedoria, segundo a •
1 S. Ma th. cap. 5. traducção litteral do padre Pereira.

CAPITULO XIII

D e u s, rccopilaçã© d os c a p ítu lo s a u tec e d c u tc s

Não continuaremos a demonstrar espeei- é esse fogo mysterioso e inconsumptivel


íicamente todos os attributos da divindade que vivifica o universo, que dá a tudo vida,
que nos são conhecidos; seria isso um tra­ que sustenta os mundos na immensidade
balho mais curioso que util, cujas vanta- do espaço e anima o microscopicò insecto
ens não conpensaria cerlamente a fasti- escondido nos orifícios da terra. É pois
f iosa prolixidade que era forçoso ter: rc- pelo menos trabalho escusado provar que
mettemos portanto os nossos leitores aos uma qualquer perfeição se da em Deus,
diversos livros que tractam d’esta doutrina quando nós temos estabelecido que nada é
demasiado perluxa e cscolastica. perfeição senão porque é mais ou menos
Como já o deixamos dito n’outra parte, conforme com o divino sêr que existe des­
todos os attributos de Deus ficam implici­ de toda a eternidade.
tamente demonstrados quando se estabele­ Perguntareis agora se Deus é omnipoten-
c e u com certeza a verdade da sua existên­ te, intelligentissimo, misericordioso, etc.?
cia. Porque Deus é a condição, ou antes Como o duvidareis um instante, se Deus
o principio, o typo eterno de toda a perfei­ quer dizer isso mesmo, quer dizer o que é
ção, é a causa primeira que tudo explica, infinito, o que é eterno, o que é...
m ATII
0 que nos cumpre principal mente é dei­ anjo perdido nas sombras, grandioso c
xarmos bem estabelecida, bem assentada desgraçado como Satanaz!
esta verdade, a existência de Deus; só as­ Alas não é só a arte, não é só a sciencia
sim proseguiremos com uma logica aíTouta, que precisa de Deus; precisa d’ellc a vida
c segura de si mesma estes nossos humil­ de todo o homem sobre a terra. O atheismo
des trabalhos, cm que nos forçamos por ex­ torna infeliz o homem cm qualquer condi­
plicar em linguagem comesinha c chã ao ção que o eolloqueis. «Percorramos a vida
povo, a quem exclusivamente nos endere­ humana, diz um escriptor celebre,» come­
çamos, as verdades mais sublimes c im­ cemos pelos pobres c desafortunados, visto
portantes. que elles são o maior numero n’estc mundo.
Deus existe; cis-aqui o que é mister ter Pois bem, innumeravcl familia dos desgra­
sempre diante dos olhos. A sciencia, assim çados! E a vós que o atheismo c util? Hcs-
como a religião, não podem prescindir por pondei. Mas que! nem uma voz! nem uma
um momento d’csla verdade, a mais salu­ só voz!... Eu ouço um cântico d’esperança
tar, a mais sublime de todas que o homem e suspiros que se elevam aos pés do Se­
pôde conhecer. Deus é a harmonia no uni­ nhor. Estes creem: passemos aos felizes.
verso, é a unidade na multiplice variedade «Parece-nos que o homem afortunado
dos seres, é a luz da intelligeneia; prescendi não tem interesse algum em ser atlieu. É
d’elle por um instante, c vereis o mundo re- tão doce para cllc pensar que os seus dias
cahir repentinamente no cahos, vereis cx- se prolongarão além d’esta vida! Com que
tinguir-se essa luz que brilha no meio do desesperação não deixaria ellc este mundo,
universo, vós mesmos vos achareis em tre­ se se persuadisse que se separaria para
vas e horrorisados, não sabendo explicar o todo o sempre da felicidade! Em vão todos
enigma d’csta machina grandiosa suspensa os bens do.seculò se accumulariam-sobro
no meio do espaço, não sabendo comprc- a sua cabeça; apenas serviríam de lhe tor­
hendec a vida, fareis muito se vos abstiver- nar mais horrorosa a ideia do nada...
des de procurar com um punhal no seio «O guerreiro marcha ao combate: será
das vossas entranhas a verdade que se vos athcu este filho da gloria? Aquelle que as­
esconde. pira a uma vida sem fim, consentirá em
Examinai as scicncias, prescrutai a phi­ acabar para sempre? Apparecci sobre vos­
losophia, (tue ó a primeira, que é a mais sas nuvens trovejantes, innumeraveis solda­
universal de todas ellas: a sua ultima pala­ dos, antigas legiões da patria! Famosos he­
vra c Deus. roes de Portugal, vós ó Castros, Gamas c
Quando os homens deixam de ter os olhos Albuqucrques, apparecci! 2 Dizei aos he­
fixos n’cstc sol que tudo illumina, védo-os roes da nossa idade, lá do alto da cidade
cahir de repente nas trevas do erro, c ap- sancta, que o bravo não jaz todo no tumulo,
parccerem então Spinosas, Hobbcs, Berke- e que depois d’elle alguma cousa resta mais
leis, Fichtes ou Voltaircs. que um vão renome.»
Examinai ainda as artes: o que é esse E assim nas restantes classes da socie­
ideal inattingivel que existe na mente dos dade. Ninguem ha n’este mundo que não
artistas, e que é como o architypo único do precise, que não sinta no fundo do seu co­
bello? O que é esse fogo, esse Deus adsit ração uma necessidade intima de Deus. Oh!
in nobis, esse genio que illumina a alma sem Deus como seriamos infelizes! Nem
do poeta? um raio de luz brilharia por entre as tre­
A ultima palavra da arte é também Deus; vas do nosso espirito, nem uma pequena cs-
e um verdadeiro artista, um poeta do fun­ perauça nos aquecería o peito! Depois das
do d’alma que não crê em Deus, é pelo me­ amarguras d’esta vida, toda cila tão triste,
nos uma anomalia. O abuso do genio não o homem nada mais tinha a esperar que o
faz que cllc deixe de ter em si um dom su ­ silencio tenebroso da campa, por onde se
blime, uma inspiração permamente, uma sumiria para sempre no abysmo do nada!
luz d’alma cm que d homem c chamado a A nossa vida era uma lagrima, um triste
vér de mais perto a Deus. O genio'incre­ lampejo no meio das trevas, do nada onde
dulo é trevas, e produz os cantos lugubres ficaríamos eternamente sepultados! Yerda-
de Byron: o artista seni Deus lança-se ello deiramente o atheismo é a morte.
mesmo n’um medonho abysmo, onde o seu
tormento é tanto maior,‘quanto era des­ 1 Chateaub.— Genie du Christianisme.
tinado a percorrer uma orbita radiosa o 2 Pedimos venia para tradu zir d'esta
acima do vulgar dos homens. O genio cren­ maneira. No original lê-se Fameuses mili-
te e que comprehende a sua missão, é quasi ces de Ia France, ct niaintenant milices du-
Deus na terra; o genio sem Deus é uni ciel, paraissez!
ATH 29 i

Qual é o homem que é completamente humano. Coin elle, a esperança, a vida; sem
feliz aqui n’csta terra de miserias? E toda­ ellc, a morte por toda a parte, por toda a
via qual 6 também o homem que nào as­ parte trevas, e o universo inteiro sendo para
pira a uma felicidade completa; ainda mais, nós um enigma indecifrável, e a vida um
que nào sente no fundo cTalma um como cscarneo atroz.
presentimento,uma doce esperançado que Também Deus existiu sempre na con­
ainda ha de ser plenamcnte feliz? sciência da humanidade, e a qualquer povo
Quando um Deus nào existisse, seria ain­ que nos dirijamos encontraremos sempre
da assim util á humanidade acreditar na uma crença ifum a divindade, muitas ve­
sua existência. zes forjada a capricho, mas que mesmo de­
Ha tantos infelizes sobre a terra! quern monstra bem a necessidade rigorosa que o
lhes fará luzir uin raio de esperançai Os homem tem de recorrer a um ente supe­
venturosos, os opulentos, os grandes da rior. Um athcu disse: primus in orbe Deus
terra? Esses cm geral sào pouco para si facit limor. Isto que no sentido do author
mesmos, nada lhes importa o que soíTrem é impio e absurdo, tem comludo uma si­
os seus similhantos, e teem até todo o cui­ gnificação verdadeira e contraproducente
dado de que os não vá perturbar no meio ao que o poeta queria estabelecer. De fa-
do seu gôso o pensamento da miséria alheia. cto, dado que o temor fizesse imaginar um
Entretanto, o indigente, o desvalido, o fraco Deus, d’onde nascia o temor? Não era elle
soíTre e soffre muito! Quauto não sofTrc o já um presentiraento, um reconhecimento
pobre pac que assiste ao tormento profun­ da divindade? Porque sem Deus, esse te­
do de seus filhos, que vé a morte ir todos mor é inexplicável e absurdo, visto que
os dias extinguindo o viço d’aquellas faces nada havendo superior ao homem, nada
mimosas que ainda agora desabrochavam ha que elle possa temer.
ao calor da vida! Oh! e o que não soffre Deus existiu sempre na consciência da
uma pobre mãe que sente uma filha que­ humanidade, dizemos nós, e é incontesta-
rida e innocente conspurcada pela infamia velmente assim. Desde o tempo em que a
dos vis! O que não soíTre... o que não sof- historia nos mostra os povos surginuo da
fremos todos nós! Sim, porque todos nós noite dos tempos até aos maravilhosos des­
soffremos mais ou menos d’estes soíTri- cobrimentos dos nossos dias, ainda se não
mentos que occultamos aos homens; que encontrou um povo, uma nação, uma tribu
ninguem adivinha, que só revelamos a Deus. que não tivesse a sua religião. Póde-se di­
Soflremos pois todos, toda a vida é um tor­ zer: o genero humano acredita, e acreditou
mento, é uma lucta, é uma amargura pro­ sempre em Deus.
longada, em que o riso só serve de tornar E este Deus em que todos os homens
mais amargas as lagrimas. E quem nos va­ acreditam, não é o Deus mundo. Todos dis-
lerá n’este nosso soffrer? Que venham to­ tinguimos inteiramente entre nós e a di­
dos os homens que solTrera; ha ahi alguém vindade; nos pagãos, ainda os mais grossei­
que achasse verdadeira consolação das suas ros, acontece o mesmo, pois que nós ds vê-
lagrimas fóra de Deus? Quem é que não sen­ mos orando a Deus, offerecendo-lhc sacri­
tiu elevar-se-lhe o coração a Deus durante fícios.
o amargor das suas penas? O pantheismo (de que fallaremos n’outra
Quem não pensou em Deus no tempo da parto) ou o Deus mundo, não é mais do que
adversidade? Os homens despresam muitas uma variante do horrendo atheismo pro­
vezes os nossos direitos, somos muitas vezes clamado por alguns insensatos.
opprimidos, e emfim, achamos no homem Não obstante, o pantheismo é o grande
a cada passo um inimigo que nos supplan­ erro do tempo, que procura ganhar raizes
ta; mas quanto nào é consolador dizer com- no terreno arido do racionalismo; e nós não
sigo mesmo: ha um Deus; como senão sente passaremos adiante sem que acautelemos
então o homem reanimado e como desap- os nossos leitores contra este erro sobre to­
parecem diante d’elle todas essas nuvens dos terrível.
caliginosas que annunciavam a tempesta­ O espirito livre da reforma protestante
de! Com Deus, a vida póde ainda ser e é levou os pensadores allemães a um laby­
muitas vezes um soffrimento, mas esse rintho do pensamentos abstrusos, que teem
soffrimcnto é placido c tranquillo? e n’elle sido d’um péssimo resultado. O orgulhoso
mesmo existe uma esperança animadora. transcendentalismo de Kant, conduziu ao
D’esta maneira, o homem soffre, mas não pantheismo idealista de Fichte, e ao não
é infeliz. menos absurdo hegelismo. Estas doutrinas
Deus portanto é uma necessidade para tem achado algum ecco na França, e, se
o homem, para a sociedade, para o genero bem que alguns espíritos .rectos, e illustra-
296 AUD
dos tenham feito inteira justiça aos atrevi­ lebrar a Paschoa com os judeus, presumin­
dos e inintelligiveis discipulos do philoso­ do que o concilio de Nicca mudara a prá-
pho de Koenisgberg, nào ha dúvida que ctica da Igreja por condcsccnder com Con­
ellas, só com serem nomeadas, produzem stantino, ao qual se julgou lisongear, fazen­
já em alguns espíritos uma certa impres­ do cahir a Paschoa no dia do seu nasci­
são de respeito c admiraçào. mento. 1
É mister comtudo desenganar os incau­ Entre os audeos havia uma práclica sin­
tos contra a pretendida profundeza da ne­ gular para a remissão dos peccados: ti­
bulosa philosophia allemà. Para que os nos­ nham elles parte dos livros canonicos, e
sos leitores desde já ajuizem d’esta mons­ além d’estcs, muitos outros apocryphos que
truosa e impia philosophia, basta dizer-lhes respeitavam e tinham por mais mysterio-
que cila tem pretendido destruir Deus para sos ainda que os livros sagrados; punham
divinisar o eu, systema o mais absurdo, o estes livros cm duas fileiras, d’uma parte
mais ridiculo, e o mais alheu de quantos os sagrados, d’outra os apocryphos, e man­
para desgraça nossa tem sido forjados pe­ davam aos peccadores que passassem por
los philosophastros de todos os tempos. entre elles, depois do que lhes conferiam
a^ iocia^os—Hercges do século xm, que a absolvição.
criain que a alma morria com o corpo, e Como Audeo se fazia escoltar por muitas
que todos os pcccados eram iguacs.1 pessoas do povo, os bispos catholicos o de­
AuiinOj segundo Thedoreto, e audio , se- nunciaram ao imperador, que o desterrou
guííclSbancto Epiphanio—Era de Mesopo­ para a Scithia, atravessando a qual se cn-
tamia, e celebre n’aquella provincia pela tranhou muito adiante, no paiz dos godos,
sua fó e zelo da gloria de D'eus; elle es­ n’elle catechisou muitas pessoas, estabele­
crevia pelo meado do século iv. ceu mosteiros, a práctica da virgindade, e
Quando via na Igreja alguma desordem, as regras da vida solitaria; o que durou
reprehendia com altivez os sacerdotes, e até 372, em que foram expulsos da Gothia
ainda os mesmos bispos; e se encontrava os christãos na perseguição d’Athanarico.
algum sacerdote ou bispo aíTerrado ao di­ Sancto Epiphanio parece dizer que Au­
nheiro, ou vivendo em moleza, murmurava deo já não vivia n’esse tempo. A sua seita,
d’elle, e o arguia. amargamente. A sua cen­ depois d'cllc, foi governada por alguns bis­
sura c ousadia o tornaram emfim insuppor- pos que tinha estabelecido; porém estes
tavel: contradiziam-no, injuriavam-no, e al­ já lambem eram mortos em 377, em que
gumas vezes o mal tracta vam. os audeos se acharam reduzidos a um nu­
O zelo que linha pela salvação do proxi­
mero limitado. Elles se ajuntaram perto dc
mo, c sem dúvida o prazer de censurar, o Euphrates e da Mesopotamia, particular-
sustiveram por muito tempo contra estes mente em duas aldeias do territorio da Col-
opprobrios, mas finalmcnle veio a separar- chidia. Muitos dos que haviam sido expul­
se da Igreja. sos da Gothia, vieram habitar a Colchidia,
Taes são ordinariamente os effeitos que e ainda os mesmos que se tinham espalha­
produz uma extrema vaidade nos homens do nos mosteiros do Monte Tauro, ou na
de curta intelligencia, e d’uma grave aus­ Palestina, e Arabia se reuniram com os au­
teridade de costumes. Se se houvessem ana- deos da Colchidia.
lysado as causas do scisma de Audeo, tal­ Habitavam em mosteiros ou em cabanas
vez se encontrasse que elle não era mais no campo, e perto das cidades. Não se tra-
que um melancholico orgulhoso sem scien­ ctavam com os catholicos, porque no seu
d a e sem espirito, que aborrecia os seus sentir, eram viciosos, ou communicavam
superiores, os homens e os prazeres. ,cora os viciosos; pelo que, nunca o audeo
Uma franqueza audaciosa, que ataca os fallava com um catholico por mais sancto
superiores, tem imperio natural sobre os c virtuoso que fosse; e até deixaram o no­
caracteres fracos e espiritos revoltosos; por me de christãos, tomando o de audeos, ou
íSso, foi seguido Audeo de muita gente, e audeanps.2
até um bispo approvou o seu scisma, e lhe É claro que Audeo, no principio do seu
conferiu a ordem episcopal. scisma, nào cahiu em erro de fé, porque os
Foi pois Audeo cabeça d’uma seita, cujo seus inimigos não o censuraram d’algum
caracter era uma aversao invencível a toda n’esse tempo; mas parece que depois, seus
a especie de condescendenda, a que os au-
deos davam o odioso nome de respeito hu­ 1 Epiph. Hceres. 70. Tlieodoret. Hceret.
mano. Por este motivo, quizeram elles ce- Fàb. I. 4, c. 10.
2 Petau, Dogm. theol., t. 1, l. 2, cap i
t Cent. Magd. Cent. 13, c. 5. g 8, 9.
BAG 297
discipulos, attribuiram a Deus mãos, olhos dissenções e fazer cessar todos os pleitos.
e ouvidos. Theodorcto c Sancto Agostinho Entendiam ser contra o espirito do Chris­
o affirmaram, seguindo a Sancto Epipha- tianismo citar alguém perante a justiça;
nio. pelo que se viam na Allemanha alguns ana­
O padre Petau ere que Theodorcto c baptistas, que criam ser-lhes ordenado por
Sancto Agostinho entenderam mal a San­ Deus que despojassem de seus bens todos
cto Epiphanio, por dizer este padre que os os que não pensassem como elles, e que
audeos tinham conservado a pureza da fé, levassem a morte, o fogo, c a dessolação
posto que se obstinassem muito acerca de por onde quer que não fosse recebida sua
um ponto de pouca importância, que nào doutrina, ao mesmo passo que outros ana­
podia entender-se o erro dos anthropomor- baptistas se deixavam expoliar de todos os
phitas. seus bens c tirar a vida sem se queixarem.
Pódc responder-se ao padre Petau, que Eis-aqui até onde tinham conduzido os es­
bem que os audeanos attribuissem a Deus píritos os princípios da reforma, e comtudo
uma fórma humana, todavia eram ortho­ nol-a inculcam como uma obra de luz e um
doxos acerca da Trindade, de sorte que o partido necessário para desenvolver a ver­
seu erro sobre as passagens da Escriptura, dade das trevas em que a igreja romana o
que attribucm a Deus a forma humana, pa­ tinha sepultado. Os bacularios appellida-
recia nào haver mudado em cousa alguma vam-se lambem steblcrianos, da palavra
a sua fé. steb, que significava bordão. 1
Sancto Epiphanio, pois, nada encontra üageaiio— era de Lcypsic, e viveu no
n’elles reprehensivel senào o atrevimento niêiò do século 17.° A serie dos seus estu­
com que definiam no em que consistia a dos o conduziu a investigar os motivos por­
similhança do homem com Deus, e nào no que Deus se poderia ter determinado a crcar
essencial da mesma explicação; pois é cer­ entes distinctos d’elle mesmo.
to que Sancto Epiphanio refuta n’este mes­ Sobre esta questão se haviam dividido
mo logar o erro dos anthropomorphitas. muitos philosophos e theologos, tendo uns
Talvez que os audeanos não vissem as que Deus sómente creára o mundo para
consequências do seu erro acerca d’este ar­ fazer brilhar seus attributos, c outros que
tigo, ou que Sancto Epiphanio, levado da para se fazer adorar por entes livres.
austeridade dos seus costumes, do que pa­ Bagcmio creu que um ente intelligente
rece fazer grande apreço, se inclinasse a não se determinava a obrar senão por amor,
interpretar com indulgência a explicação e que só obrava fóra de si mesmo por amor
dos audeos; mas sem dúvida é injustiça d’aquelle objecto para o qual se determi­
querer provar-se por esta indulgência do nava. Que o amor para com a creatura c
Sancto a respeito (Tolles, que este sancto o determinara a creal-a, e presume fazei
padre favorecesse o erro dos anthropomor­ sensivel o seu systema com o exemplo dc
phitas, que refutou expressamente. rnanccbo a quem os attractivos d’uma só
' Os audeanos cahiram também n’aquelles pessoa apaixonam e subordinam. Como as
erros do manichcismo: parecem ter para creaturas não existiam antes que Deus se
si, que Deus não creára as trevas, nem o determinasse a creal-as, é claro que elle se
fogo, nem a agua, mas que estes tres ele­ não tinha determinado a creal-as senão pela
mentos não tinham causa, e eram eternos. ideia que lh’as representava; portanto não
Também parece que elles degeneraram da fazia Bagcmio mais que renovar o syste­
sua primeira austeridade, e se desregraram ma de Platão, que Valcntim procurara unir
muito em costum es.1 ao do Christianismo.2
bacularios —Seita d’anabaptistas, que se Parece que Bagcmio não formou seita;
forfífó^emTlSâS, c se chamou assim por­ e nós referimos seu erro unicamente para
que aos erros geraes dos anabaptistas, ac- mostrar que nos homens e suas opiniões
crescentavam que era um crime trazer ou­ ha uma especie de revolução que successi-
tras armas mais que um bordão, e que não vamente os faz apparccer de novo, e que o
cra permittido repellir a força pela força, espirito humano encontra com pouca diffe-
pois que Jesus Christo ordena aos christàos rença os mesmos escolhos, sempre que pre-
que ofTereçam a face áquelles que os offen-
aem. 1 Veja-se o artigo Anabaptistas, suas dif­
0 amor da paz, que Jesus Christo viera ferentes seitas. Stockman Lexicon. Prctre-
fazer reinar sobre a ferra, no sentir d’es- ju s C atai Hcm\
les anabaptistas, devia extinguir todas as 2 Veja-se o artigo Valentim. No 1 .1.° do
Examen du Fatalisme se acha explicado o
1 Veja-se Thedoret. Hcci'et. Fab. I .4, c. 9. systema de Platão.
298 BAI
tende passar a esphera dos conhecimentos por seu modello, porque o tinha pelo mais
que são quinhoados ao homem. A’cerca do exacto nas matérias que traclára; portanto
que importa, c é necessario conhecer ca­ applicou-se muito a comprehcnder bem a
balmente, já temos chegado-a uma perfeita doutrina d’estc sancto padre, principalmen­
luz e certeza; mas quando os conhecimen­ te ácerca da graça, porque os protestantes,
tos se tornam o objecto da curiosidade, en­ como já dissemos, a (Teclavam não seguir
tão a luz desapparece ou diminue, princi­ outra sobre estes objectos, e não se podia
piam as trevas, a perplexidade, e esta é a impugnal-os mais eíFicazmcnle do que com
região das conjecturas, o imperio da opi­ a doutrina d’cstc padre. 1
nião e do erro. Portanto, é a revelação um Sancto Agostinho tinha provado contra
grande beneficio que gosamos a este res­ os pelagianos a necessidade da graça pelas
peito, pois que ella nos preserva de todos passagens em que a Escriptura nos ensina
os erros que o entendimento humano larga que nao podemos cousa alguma sem Deus,
e reassume logo que discorre entregue á que d’elle vem toda a nossa força, que a
sua inquietação e curiosidade.1 nossa natureza está corrupta, e que nasce­
bai^ íusaííL— c o nome que se dá ao sys­ mos filhos da ira. Pelagio tinha opposto a
tema theologico, contido em setenta e tres estas provas a liberdade do homem, que
proposições, condomnadas por Pio v, e ti­ seria aniquilado se a graça lhe fosse ne­
radas em grande parte dos escriptos, ou cessaria.
resumidas das lições de Miguel Bay, cha­ Não tinha Sancto Agostinho atacado a li­
mado mais ordinariamente Bayo; bem que berdade do homem, mas sim presumido es­
este theologo não seja nomeado na bulla, tar elle n’uma impossibilidade absoluta para
e que entre as proposições condcmnadas conseguir a salvação sem o soccorro da gra­
haja muitas que ou não são d’elle, ou não ça, e ensinara que o mesmo Adão, sem este
teem relação ás materias da Graça, vamos soccorro, não poderia ter perseverado na
examinar os princípios e origem d’este sys­ justiça original, e que por consequência
tema, os cíTeitos que produziu, a sua con- não só era impossível que o homem depois
demnação, e consequências que d’ella se da queda se salvasse por suas próprias for­
seguiram. ças, destruídas pelo pcecado original, mas
que até necessitava d’uma graça mais eíü-
DA ORIGEM E PRINCÍPIOS DO BAIANISMQ caz que a que teve o mesmo Adão.
♦rrcswws».
Eis o que Bayo viu nas obras de Sancto
Nasceu Miguel Bayo em Malin, aldeia de Agostinho: creu que a mudança que fez no
Haynaut, em 1513, e fez seus estudos em homem o peccado d’Adão desembaraçava
’Lovania, aonde ensinou philosophia, e to- todas as difficuldades ácerca da liberdade
, mou o grau de doutor em 1550. No anno do homem, e da necessidade da graça. 2
; seguinte foi escolhido para occupar a ca- Sancto Agostinho provara o peccatio ori­
■deira da Sagrada Escriptura. ginal e a corrupção do homem, pela con­
Tinham feito muito progresso em Flan- cupiscenda a que está sujeito desde o in­
dres e nos Paizes-Baixos as idéias de Lu- stante cm que nasce, pelas miserias que
thero, Calvino, e Zuinglio. Os protestantes soflre, pela morte, e por todas as desgra­
não reconheciam mais regra de fé que a ças, que depois da quéda d’Adão, acompa­
Escriptura; porém havia alguns sanctos pa­ nham sempre a humanidade. Provára tam­
dres, cuja authoridado respeitavam, e ainda bém que o homem não existia no estado
mesmo presumiam que os seus sentimen­ em que Adão fora creado, porque debaixo
tos ácerca da graça e predestinação não do governo d’um Deus justo, sabio, bom, e
eram outros senão os de Sancto Agostinho. sancto não póde nascer o homem nem cor­
Bayo formou o projecto de reduzir o es­ rompido nem desgraçado.3
tudo da theologia, principalmente á Escri­ D’aqui concluiu Bayo que não sómente
ptura e aos antigos padres, para os quaes era o estado da innocencia aquelle em que
testimunhavam sua veneração os hereges; Deus resolvera crear o homem, mas tam­
seguir o methodo dos mesmos padres na bém quo a justiça, sabedoria, c bondade de
discussão dos pontos controvertidos, e aban­ Deus não poderia haver-lhe dado o sêr sem
donar o escolastico, que desagradava muito as graças e perfeições do mesmo estado.
aos protestantes.
Fez pois este theologo um estudo serio 1 Carta de Bayo ao cardeal Simonet, no
nas obras de Sançto Agostinho, e o tomou fim da collecção das obras de Bayo, in-12.
2 Veja-se o artigo Pelagio.
i Vide esta cadeia d'erros no t. l.° de le 3 Ibid. Vejam-se também as obras de S.
Exam en du fatalisme. Agostinho contra os pelagianos.
BAI 299
Que' a justiça, d’Adão nào era na verdade podia suspender ou obrar as impressões
essencial ao homem cm tal sentido, que fosse que i^ellcs faziain os corpos estranhos.
tào inherente á natureza humana, que o ho­ Pelo peccado perdeu o império que li­
mem nào podésse existir sem ellaj mas que nha sobre os sentidos c a graça que lhe
era essencial ao homem, para nao ser vi­ era necessaria para perseverar na justiça;
cioso, depravado, c incapaz de satisfazer ao c arrastado necessariamente para a crea­
seu destino. tura pelo péso da concupiscencia, não pôde
Portanto, dizia Bayo, um homem pôde resistir a esta propensão.1
existir sem bons olhos ou bons ouvidos; Não 6 pois Deus quem produz os pecca-
Tnas se só tiver olhos c ouvidos taes cujos dos do homem como Luthero e Calvino te-
nervos não sejam capazes de levar ao ce­ merariamente haviam asseverado; é o mes­
rebro as impressões das cores e dos sons, mo homem que se inclina para a creatura
não poderá satisfazer as funeções a que o pelo seu proprio péso e propensão, c n’isto
homem está destinado. 1 Não podia Deus consiste a sua liberdade, por nào ser vio­
pois fazer o homem tal qual elle hoje existe, lentado por uma cousa estranha. A sua
isto é, sujeito á concupiscentia, e sem um vontade não é constrangida, o homem pec­
imperio absoluto sobre os sentidos; porque ca porque quer, e não quer violentado; obe­
sem este império a alma é escrava do cor­ dece á sua inclinação c não a uma cousa es­
po, e nào se compadece esta desordem em tranha; portanto é livre. 2
uma creatura que sahe das mãos de D eus.2 O homem até póde escolher e determi-
Portanto foi o homem privado da integri­ nar-sc por juizo nas cousas relativas a esta
dade da sua natureza depois do peccado vida, e portanto o livre arbitrio nào está
original, ficando escravo da concupiscen­ cxtincto.3 Reconhece Bayo que os doutores
tia, e sem mais forças que para peccar. catholicos que escreveram contra os here-
Segundo o sentir de Bayo não é esta dou­ ges não pensam d esta maneira acerca do
trina contraria ao dogma da liberdade. Tres livre arbitrio, fazendo-o consistir no poder
seitas principalmente a atacaram, diz este dc fazer ou não fazer uma cousa, isto é,
theologo: os estoianos, os manicheus, c os n’uma isempçào de toda a necessidade; po
discipulos de Luthero e de Calvino. róm cré que ellcs se afastaram do senti]
Os primeiros submettiam todas as acções de Sancto Agostinho, e ligando-se ao Evan
humanas ao destino, que tudo produzia no gelho faz consistir o livre arbitrio em qui
homem; os segundos suppunham ser a na­ a vontade do homem nào esteja exposta a
tureza humana essencial mente, má e vi­ alguma necessidade exterior, sem que seja
ciosa; Luthero e Calvino, finalmente, ensi­ necessario que elle tenha o poder de nào
naram que o homem estava dabaixo da di­ fazer o que faz, e de fazer o cjuc não fa z.1
recção da Providencia como um autômato Tal é a doutrina que Bayo c Hcsselo ensi­
nas" mãos d’um machinista; que nada fa­ naram emLovania ácerca da graça c da for­
zia não só por ser incapaz d’obrar, e por­ ça do homem, a qual foi adoptadá por mui­
que Deus o determinava cm todas as suas- tos theologos.
acções por um poder invencível, mas tam­ Bayo, Hcsselo, ou seus partidários ti­
bém porque Deus produzia só, e immedia- nham também outras opiniões difFercntes
tamente todas as acções humanas.3 do sentimento commum dos doutores a res­
No sentir dc Bayo, estes tres inimigos da peito do merecimento da Conceição da Vir­
liberdade se enganavam, e elle cria ser gem, etc., que omittimos.
congruente o seu systema para refutal-os.
Eis-aqui o que elle èra.
Deus tinha creado livremente o homem DOS EFFEITOS I U DOUTRINA DE BAYO
e o crcára livre. Adão peccou livremente,
e portanto não foi arrastado pela lei do des­
tino. Antes do peccado, o primeiro homem Quando voltaram á Lovania os theologos
fora justo, innocente, c ornado de virtudes; que tinham ido ão. concilio de Trento, fica­
assim nào era má a natureza humana, como ram estupefactos ouvindo as opiniões de
pensavam os manicheus; e* o primeiro ho­ Bayo, e o progresso que ellas tinham feito.
mem n’este'estado dominava o seu corpo; «Quem foi o diabo, exclamava um d’elles,
os sentidos estavam sujeitos á sua vontade, quem foi o diabo que introduziu na nossa

1 Dc prima hominis ju stitia , c. 2, 3, 1 L. 1, de bono justitia}.


H et 12. 2 De lib. Arbitr.
2 Ibid. c. 3, 4, 6, 7. 3 Ibid. c. 11.
3 Vejam-se os artigos Luthero e CaWino. 4 Ibid. c.S .
t
300 BAI
escola esta sizania'durantG a nossa ausên­ imputadas a Bayo, denunciando-o com o
cia?» fundamento do que cilas eram quasi todas
Os sentimentos de Bayo foram impugna­ suspeitas d’erro ou dc heresia. O cardeal
dos pelos theologos dos Paizes-Baixos, prin­ communicou estas proposições a Bayo, o
cipalmente pelos religiosos franciscanos, qual negou que fossem suas algumas d'cl-
que seguiam a escola d’Escoto, diametral- las, c sustentou que as outras eram mal
mente opposta aos princípios de Bayo acer­ dirigidas, concebidas cm termos ambiguos,
ca das forças do homem. c capazes d’um mau sentido, do qual es­
Escoto reconhecia que o homem sómente tava muito afastado. Não passou por en­
pelas forças da natureza podia fazer algu­ tão muito avante a controversia, e Bayo
mas boas obras, que Deus podia conpedcr foi deputado ao concilio de Trento com
a estas boas obras algumas graças; mas Hcssclo. 1 Tornado que foi Bayo do conci­
que cilas per si só não podiam"ser meritó­ lio, acabou d’imprimir as suas obras, c en­
rias por não se dar proporção alguma en­ tão se renovaram as disputas com mais ca­
tre as obras que não teem mais que um lor que nunca, e se extrahi ram dos seus
merecimento puramente natural, e a graça escriptos muitas proposições, que foram en­
que é d’ordem sobrenatural. viadas á lícspanha, para se fazerem con-
Não satisfeito Bayo com haver emittido demnar; c os franciscanos deputaram a
o seu sentimento, elle tinha atacado tam­ Philippe dous religiosos, um confessor de
bém vivamente todas as opiniões que lhe Maria d’Áustria, outro muito valido do du­
eram contrarias; c até os defensores d e s­ que d’Alba, a fim de fazer intervir o rei
tas se haviam persuadido de que Bayo nas n’este negocio.
suas lições os tinha atacado a elles com
pouco commedimpnto; estes da sua parle
investiram contra os theologos, a disputa DO juízo da sancta s é acerca
se ateou, e os adversários de Bayo denun­ das proposições a ttribu ida s a dayo
ciaram á faculdade de theologia de Paris
dezoito proposições que elle e seus disci­
pulos tinham proferido, e que continham Haviam-se extrahido dos escriptos de
os princípios da doutrina que acabamos de Bayo, de seus discursos, e dos de seus dis­
expôr, além d’outras opiniões, que é inútil cipulos setenta c seis proposições, que são
discutir, qual é a que siijeita a Sanctissima quasi o desenvolvimento que acabamos de
Virgem á lei do peccado original., expôr da doutrina d’aquelle theologo, as
Condemnou a faculdade de theologia es­ quacs podem reduzir-se aos princípios se­
tas proposições, de que Bayo defendeu a guintes:
maior parte. O cardeal de Granvelle, go­ 0 estado do homem innocente é o seu es­
vernador dos Paizes-Baixos, vendo que os tado natural, e Deus não o podia crear em
animos se exaltavam, c receando que as outro. Seus merecimentos n’este estado não
duas universidades de Lovania e Paris en­ devem chamar-se'graças, e elle podia por
trassem em contenda, obteve do papa um sua natureza merecer a vida eterna. De­
breve que o authorisava para tudo o que pois do peccado todas as obras dos homens
elle julgasse à proposito, a fim d’acalmar a feitas sem assistência da graça são pecca-
disputa. dos; portanto, peccado são tod*as as acções
0 mesmo cardeal impôz silencio aos dousdos infiéis, e até a mesma infidelidade ne­
partidos, e escreveu a Philippe n represen­ gativa o é.
tando-lhe quanto seria perigoso para Bayo A liberdade, na phrase da Escriptura, é
e Hessello, e ao mesmo tempo nocivo á Igre­ a redempção do peccado; ella é compatível
ja um procedimento nimiamente aspero, com a necessidade; os movimentos da con­
cujas consequências poderíam ser fataes, cupiscenda, bem que involuntarios, sãopro-
c o aconselhava a não seguir em todo este hibidos pelo preceito e pcccados nos bapti-
negocio outro meio senão o da doçura, e sados, quando estes tornam a recahir n’um
louvou muito a catholicidade, scicncia e estado de culpa.
piedade de Bayo e de Hcssclo. Philippe ap- Póde encontrar-se a caridade no homem
provou o procedimento do cardeal de Gran­ que ainda não obteve a remissão de seus
velle, e pareceu restabelecida a paz na uni­ peccados. O peccado mortal não se perdoa
versidade. por uma contrição perfeita, que encerro o
Comtudo os adversarios de Bayo não tar­
daram em começar de novo as hostilidades: 1 Baianri. p. 35, 194. Litlera Cardin.
apresentaram ao cardeal de Granvelle um Granvelle, quee Vesontii in Abbatia S. Vi-
memorial que continha varias proposições centii asseveratur.
!

I 301
voto dc receber o baptismo ou a absolvi­ O cardeal Granvelle, encarregado da exe­
ção senão se recebem natural mente. cução da bulla, commetteu este negocio a
Ninguém nascou iscmpto do peccado ori­ Morillon, seu vigário geral, ordenando-lhe
ginal, e os. trabalhos que solTreram a Vir­ que procedesse com uma caridade verda­
em Sanctissima c os sanctos, são castigos deiramente christã, a fim de reparar com
o peccado original ou actual. suavidade a falta de Bayo, o que, diz o car­
Póde merecer-sc a vida eterna antes de deal, fará mais honra á universidade e a
estar justificado; não deve dizer-se que o elles mesmos, c lhes redundará em maior
homem satisfaz por obras de penitencia, credito do que conduzindo-se com aspereza.
mas que em vista d’cstas acções é que nos Marillon convocou em particular a fa­
é applicada a satisfação de Jesus Christo. culdade de theologia a 17 de novembro dc
Pio v condcmnou as proposições que ti­ 1570; publicou a bulla de Pio v na assem­
nham esta doutrina: «Nós condemnamos bléia da mesma faculdade sem deixar d'ella
estas proposições, diz ellc, cm rigor, e no cópia; requereu que os doutores env theo­
proprio sentido dos termos d’aquelles que logia a subscrevessem, c lhes perguntou se
as affirmaram, posto que haja algumas que
possam d’alguma maneira sustentar-sc, isto mnadas pela bulla no sentido cm que ellc as
é, n’um sentido distante da significação pro­ ensinara, e exigiu da universidade de Lo-
pria dos termos, e da intenção dos que vunia que ensinasse a contradictoria de to­
d’elles se serviram.» 1 das estas proposições para se confoimar
com a bulla.
1 Os defensores de Bayo teem d?outra 4. * Urbano VIII fez imprimir a consti­
sorte a pronuncia da bulla, tendo que deve tuição de Pio V.com a virgula depois de
ser assim: *Nós condemnamos estas propo­ possinf, e não depois d’intento.
sições, bem que entre cilas haja algumas 5. # A Sancta Sé exigiu das universida­
que possam d'alguma sorte sustentar-se em des de Lovania e de Duai a acceitação da
rigore no sentido proprio dos termos d'aquel- bulla, pura c simples, e quiz que desta mes­
les que as proferiram.» A differença d'estes ma acceitação se declarasse que nenhuma
dous modos de lêr depende aum a virgula das proposições pôde ser sustentada, toman
posta depois da palavra possint, de que to­ do-se no rigor das pulavras e no proprie
dos se convenceram lendo a bulla em latim» sentido das mesmas.
«Quas quidem sententias, stricto coram no­ 6. a Os defensores de Bayo asseveram que
bis examine ponderatas, quanquam non­ na cópia da bulla enviada pelo mesmo papa
nullae aliquo pacto sustineri possint, in ri­ e depositada nos archivos da faculdade de
gore et proprio verborum sensu ab aucto­ Lovania, para n'elles servir d'original, não
ribus intento damnamus.» É claro que a ha virgula nem divisão d artigos, de que não
virgula que está depois ífintento, collocada póde atinar-se a dislincção senão pelas le­
depois de possint, fa z um sentido absolu­ tras maiusculas que apparecem no princi­
tamente diverso. pio de cada artigo (Dissert. sur les bulles
Os defensores de Bayo insistiram em que contre Baius, pag. 68.j
devia lêr-se a virgula depois d’intento, e não E d esta mesma supposição não devere­
depois de possint, sobre o que faremos al­ mos nós referir-nos acerca do sentido da
gumas reflexões: bulla a Urbano VIII, a Gregorío XIII, e aos
1 / Uma censura dogmatica tem sempre princípios da critica, que não pennitlem
por objectd o sentido proprio e natural das collocar a virgula depois de possint, como
proposições, e a censura do papa seria in­ já o fizemos ver nas primeiras reflexões?
justa, informe, e absurda, se proscrevesse 7. a Nas cartas que o cardeal de Granvelle
as setenta e seis pi'oposições c livros de que escreveu a Morillon para a execução da bul­
são extrahidas unicamente, por causa d'um la, c claro que em Roma se cria que o mesmo
sentido estranho que não tem nem no livro cardeal pensava terem-se condemnado os li­
nem no espirito dos authores, mas que se vros e sentimentos de Bayo. (Inter opera
lhe pôde dar. Baii, t. 2, v. 50.) Veja-se 1'Histoive du Baia-
2. * O cardeal de Granvelle encarregadonisme, ou de 1'Hei'esie de Baius, avec des no­
do negocio do bayanismo por Pio V, decla­ tes historiques, chronologiques, et suivés de
rou que Bayo' incorrera nas censuras ful­ eclaircissemens, etc., par le père Jean Ba-
minadas na bulla por havei' defendido as ptiste Duchesne de la Compagnie de Jesus; a
proposições no mesmo sentido litteral do au- Douai in-4°, 1731.
thor. Traité historique et dogmatique sur la do-
3. * Gregorio XIII obrigou Bayo a con­ctrine de Baius, et sur Vautoiité des Papes,
fessar que as suas pi'oposiçÕes eram conde- qui 1'ont condamné, 1739, 2 vol. m-12.®
302 BAI
queriam obedecer á constituição do papa, CONSEQUÊNCIAS DAS CONTROVÉRSIAS
que acabava de lhes apresentar. Seis dou­ LEVANTADAS SOBRE A DOUTRINA DE BAYO
tores de Lovania e o mesmo Bayo se sub-
metteram.
Como este não se nomeava na bulla ex­ Apesar das precauções que se haviam
pressamente, ficou na universidade de Lo­ tomado para sulTocar o espirito de divisão
vania, e até foi n’olla chanceller, e conser­ entre os theologos dos Paizcs-Baixos, con­
vador dos seus privilégios cm 1578. Porém tinuaram os debates na faculdade de theo­
n’este mesmo anno se atearam de novo as logia de Lovania. Bayo se reputou sempre
questões que pareciam extinctas. Bayo de suspeito de aíTcrro ás opiniões que a bulla
uma parte foi accusado de conservar ainda proscrevera, c até foi altamente accusado
os erros condonmados; d’outras se suscitou de não querer obrigar os candidatos a que
uma dúvida sobre a authenticidade da bul­ prestassem juramento de submissão a esta
la, querendo uns que cila fosse supposta, bulla, e de haver tido e ousado propor que
e outros subreptiva. se raiasse o artigo do juramento que d’cllcs
O rei de Hespanha patrocinou perante se requeria antes da recepção dos graus.
Grcgorio x iii a solicitação d’alguns theolo­ Foram remellidas estas accusaçõcs ao pa­
gos de Lovania para acalmar estas contro­ dre Toleto, jesuíta, a quem no mesmo tempo
vérsias, e o papa publicou uma bulla em se dirigiram muitas proposições concernen­
que vinha inleiramente copiada a de Pio v, tes á doutrina e procedimento de Bayo, e
sem a confirmar por expresso, nem condc- o jesuíta commcttcu o juizo d’estas propo­
mnar de novo os artigos que n’ella se con- sições ás universidades d’Alcalá e de Sala-
inham, mas declarando unicamente que manca, que as censuraram. O bispo dcVer-
ílla fôra achada nos registros de Pio v, e celli, núncio do papa em Flandres, para res­
juc se lhe devia dar fé. Notificada esta tabelecer a paz entre os theologos de Lo­
bulla á faculdade de theologia de Lovania vania, fez compor um corpo de doutrinas
pelo padre Toleto, jesuíta, confessor de Grc­ opposto aos artigos censurados na bulla de
gorio x iii , e encarregado de a fazer execu­ Pio v, e todo o corpo da faculdade se obri­
tar, Bayo declarou que condemnava os ar­ gou com juramento a tel-o por norma dos
tigos que iTella se continham segundo o es­ seus sentimentos.1
pirito da mesma bulla, e da maneira que Depois d’cste corpo de doutrina, se assen­
n’ella se condemnavam. tava que a paz estava tão consolidada en­
Os doutores de Lovania fizeram a mes­ tre os theologos de Lovania, que não have­
ma declaração; o mesmo Bayo assignou ría cousa que a alterasse quando as opi­
este acto em que reconhecia haver susten­ niões que ensinaram dous theologos jesuí­
tado muitas das sessenta e seis proposições tas, Lcssio e Hamclio, acerca da graça e da
arguidas na bulla, e que estas eram con- predestinação, vieram renovar todas as dis­
demnadas no mesmo sentido em que elle putas. Não havia cousa mais opposta aos
as tinha ensinado. Bayo assignou este acto sentimentos de Bayo, que as opiniões de
cm março de 1580, e Grcgorio xm lhe es­ Lessio.
creveu logo um breve attencioso, remet- Suppunha este theologo que Deus, depois
tendo-lhe a cópia da bulla de Pio v, que do pcccado de Adão, assistiu a todos os ho­
elle havia pedido. A condemnação de Pio v mens com meios sufficientes contra o pec-
foi confirmada por Urbano vm em 1642. cado, e com auxílios para adquirirem a
Disputou-se muito acerca da authoridade vida eterna; que a Escriptura estava cheia
d’estas bullas, mas como tal discussão não de preceitos c de exhortações concernentes
é do meu assumpto, indicarei sómente os á conversão dos peccadóres, d’onde con­
authores que d’ella tractaram .1 cluía também Lessio que Deus lhes conce­
dia um auxilio sufficiente para se poderem
1 Le père Duchesne, loc. cit. Cinquieme converter, porque elle não manda cousas
Instruet. Pastor de mr. Languet arch. de impossíveis. Lessio presumia que Saneio
Sens. p. 877, e Instruet. Pastor de mr. de Agostinho verosimilmente não expozera es­
Cambrai, 1735. Traité Historiquc cite ci-des- tas palavras da epistola a Thimotheo: «Deus
sus. Dissert. sur les Bulles contre Baius, et quer que todos os homens sejam salvos»,
sur le elat de nature pure, p ar le P. de segundo a intenção do apostolo, dizendo
Gennes 1722, 2 vol. in-12.° que S. Paulo tinha entendido querer Deus
que se salvassem todos os que são salvos.

i Baiann. ibidem. Dupinf Histoire du sei-


zieme siècle.
BAI 303

Ensinava Lcssio que todos os logarcs da sio, e encarregou d’cstc emprego Jacobo
Sagrada Escriptura quo dizem ser impos­ Janson, amigo apaixonado de Bayo, e mes­
sível a conversão de certas pessoas, devem tre Janson.
■ontendcr-sc de tal sorte, que o termo im­ A universidade de Duai, que se póde cha­
possível signifique o que é cm extremo dif- mar filha da de Lovania, movida pelo exem­
ficultoso. Sustentava que o que ignora in­ plo dc sua mãe, e talvez tão inimiga como
vencivelmente a fé, era obrigado a obser­ ella dos novos collegios dos jesuitas, fez
var os preceitos naturacs, isto é, o Deca­ uma censura das suas proposições, simi-
logo, e que tinha um auxilio sufficiente lliante á de Lovania. Elias tinham sido re-
para os cumprir,.porque Deus a ninguem rnettidas a Duai pelos arcebispos de Cam-
obriga ao impossível: que d’outra sorte se brai c Malinas, c pelo bispo de Gandc. Gui­
rocahiria nos erros dos hereges que aífir- lherme Eslio, doutor de Lovania, transfe­
mam havcr-sc perdido o livre arbitrio para rido a Duai, foi o que ordenou esta censura
o bem, depois do pcccado original. Cria que mais forte e mais extensa ainda de que a
a predestinação para a gloria não se fazia de Lovania.
antes da previsão dos merecimentos, e que Os*jesuitas mandaram a Roma a censura
quando fosse di (Terente a opinião de Sancto de Lovania. Xisto v, que então occupava a
Agostinho, isso não importaria muito. cadeira de S. Pedro, despachou ordens ao
Lcssio ensinava também algumas cousas núncio dos Paizes-Baixos, para accommo-
concernentes á Escriptura Sagrada, que se dar esta contenda. O núncio passou a Lo­
oppunham aos sentimentos dos doutores de vania, e fez reunir, em sua casa, a facul­
Lovania, mas que não tinham correlação dade: alli se acharam doze doutores, entre
alguma com o bayonismo. D’esle objécto os quaes se contavam Miguel Bayo, Henri­
não trataremos; sobre ellc se pódo vêr a que Granio, c João Lens. Depois das for­
Censura da Faculdade de Theologia dc Lo­ malidades ordinarias, insinuou o núncio
vania, impressa cm Paris cm 1641. como desejava que a faculdade reduzisse
Na universidade de Lovania havia alguns a certos artigos o que estava em disputa:
doutores que conservaram sempre disposi­ Lens c Granio assim o fizeram; o núncio
ção favoravel pelas opiniões de Bayo: além prohibiu que os dous partidos disputassem
de que era tão grande a authoridade dc dc viva voz ou por escripto sobre estas ma­
Sancto Agostinho n’aquella universidade, térias, e ambos se sujeitaram á prohibição.
que a doutrina de Lessio alvoroçou muita Prohibiu igualmcntc o núncio, sob pena
gente, e ha bastantes conjecturas de que de excommunhão, que alguém tomasse in­
Bayo se aproveitara d’estas disposições, e teresse quer pela faculdade, quer pelos je­
empregara o seu credito para fazer cen­ suitas; que ninguém disputasse, ou em pú­
surar a doutrina de Lessio. blico ou em particular, condemnando um
Com eííeito a* faculdade dc theologia de ou outro sentimento que a igreja romana,
Lovania censurou trinta proposições extra- mestra de todas, ainda não tinha conde-
hidas dos livros de Lessio, como contendo, mnado. Excommuugou, além d’isso, em ge­
pela maior parte, uma doutrina inteira­ ral, todas as pessoas que tractassem o do­
mente opposla á que Sancto Agostinho en­ gma dc qualquer dos dous partidos de sus­
sinara cm muitos de seus escriptos acer­ peito, escandaloso, ou perigoso, emquanto
ca da graça, e do livre arbitrio. Ella decla­ a sancta sé o não tivesse julgado. Por esta
rava que havendo sido sempre extremosa- mesma determinação permittia o núncio a
mente respeitada a authoridade dc Sancto Lessio e Hamelio que ensinassem a sua
Agostinho na Escriptura, pelos concilios, doutrina, uma vez que não refutassem os
papas, e authores ecclesiasticos, ós mais il­ sentimentos de seus adversarios, e dava
lustres, não estar por cila era ultrajar uns também a mesma liberdade ao partido op-
e outros; c finalmente que as proposições posto.
de Lessio renovaram e resuscitaram todas N’este mesmo anuo, Luiz Molina, jesuita
as dos semi-pelagianos de Marselha, tão so- hespanhol, que fòra professor em theolo­
lemnemente conaemnadas pela sancta s é . 1 gia na universidade d’Evora, em Portugal,
A faculdade de theologia dc Lovania en­ publicou a sua obra intitulada: A Concor­
viou a sua censura a todas as igrejas dos dia da Graça, e do Livro Arbitrio. Os domi­
Paizes-Baixos, c para perpetuar quanto lhe nicos de Valhadolid sustentaram uma dis­
fosse possível suas opiniões acerca das ma­ puta pública em favor da doutrina opposta
terias controvertidas, instituiu uma cadeira á de Molina, no anno de 1590, e, desde esse
pública de theologia para refutar as de Les- tempo, as duas ordens principiaram a in-
vestir-se. Clemente vm impôz silencio aos
1 Hist. Congreg. de Auxiliis, l. 1, c. 7. dous partidos por um breve de 15 d’agosto
304 BAI
de 1594. Philippe u deu ordens similhantes Morreu Jansenio antes de publicar a sua
nos seus estados, mas nào foram executa­ obra, que appareceu em Paris em 1640. 0
das, c o papa, instado pelos dous partidos, es­ cardeal de Richclieu, que aborrecera a Jan­
tabeleceu em Roma uma congregação para senio, cmquanto vivia quiz refutar o seu
julgar sobre este negocio, de sorte que d alli livro; c commettcu csta empreza a Isaac
em diante nào houve mais controversias so­ Haberto, magistral de Paris, e depois bispa
bre este assumpto. 1 de Vabres. 1 Ilaberto deu principio ao seu
Em uma historia particular veem as con­ ataque contra Jansenio por tres sermões,
sequências e cffeitos d’estas congregações, em que dizia quo o Sancto Agostinho de’
que nào dizem respeito senão aos jesuítas Jansenio era um Sancto Agostinho mal en­
c dom inicos.2 tendido, mal explicado, mal allegado, e ul­
As disputas acerca da graça c da pre­ trajou cm extremo os jansenistas.
destinação, não tinham terminado mais em .Antonio Arnaldo tomou a defesa do bispo
Lovania do que cm Hespanha. Os sequazes dTpres; llaberto respondeu n’uma obra,
de Bayo pretenderam que as proposições que intitulou Defesa da Fé; replicou Ar­
condemnadas, tomadas em um certo sen­ naldo, por^uma segunda apologia, a que
tido, não continham outra doutrina que não Haberlo não respondeu, mas publicou ou­
fosse a de Sancto Agostinho. Lessio, c seus tra obra em que expunha os sentimentos
partidários, asseveraram, por seu turno, dos padres gregos acerca da graça. Urbano
uc suas opiniões não eram contrarias à viu depois de haver examinado com des­
outrina do mesmo sancto doutor, e todas velo o livro de Jansenio, o prohibiu, como
as disputas dos theologos de Lovania acerca renovando algumas das proposições de
da graça e predestinação, se reduziram in­ Bayo, já condemnadas por Pio v, e por
sensivelmente a saber qual era o sentimento Gregorio xm. Jansenio, no corpo da sua
de Sancto Agostinho; c Janson encarrega­ obra, fere muitas vezes Molina, Lessio, o
do de combater a doutrina de Lessio, se todos os que pensam como ellcs; e no fim
occupou a combatcl-a pelos princípios do d’ella põe um parallelo das suas opiniões,
mesmo sancto. Admittia Lessio uma graça com as dos semi-pelagianos de Marselha.
concedida a todos os homens para se sal­ Como Lessio e Molina eram membros
varem, c cm todos os infiéis um auxilio mo­ d’uma sociedade fecunda em sábios c theo­
ral, para satisfazerem a lei natural. logos consummados,que tinham combatido
Entre os discipulos de Jansenio havia de com grande lustre os erros dos protestan­
appareccr naturalmente algum que com­ tes, tiveram defensores entre seus irmãos,
batesse os princípios de Lessio pela autho- e até entre os doutores de Lovania e de
ridade de Sancto Agostinho, c que bus­ Paris.
casse encontrar n’este sancto padre,—que Viram-sc pois cm França dous partidos,
Deus não quer salvar todos os homens, um dos quaes presumia defender a dou­
que ordena cousas impossíveis, e que não trina de Sancto Agostinho, e combater os
quer que todos os homens se salvem.—E erros dos pelagianos e semi-pelagianos nos
muito verosimil que Jansenio lésse n’esta seus adversários, ao passo que o outro as­
disposição Sancto Agostinho. Sobre elle severava defender a liberdade do homem,
fez um" estudo profundo, passou dez vezes e a bondade de Deus contra os erros de
todas as obras d’este sancto, e trinta seus Luthero e Calvino.
escriptos contra Pelagio. Alli achou natu­ Exacerbaram-se os animos cm França,
ralmente a mesma doutrina que procura­ os doutores dividiram-se, e o syndico da
va. 3 Porém esta doutrina sahiu da penna faculdade representou na assembléia do
de Jansenio n’uma ordem systematica que primeiro-de julho, que entre os bacharéis
não tinha até então, e apresentou-se como se iam introduzindo idéias perigosas, c que
a explicação das verdades que Sancto Agos­ seria necessario examinar partieularmente
tinho defendera e elucidara contra os pe- sete proposições que elle recitou.
lagianos, cujos princípios Lessio e Molina As cinco primeiras eram concernentes á
renovavam. doutrina da graça, e são as mesmas que ao

1 Trad. de VEgl. Rom. part. 4,pag. 184, 1 Jansenio era autlior d'uma obra inti­
etc. tulada Mars Gallicus, e rCélla sustentava os
2 Hist. Congreg. d'Auxiliis, Auclore Au- interesses da Hespanha contra a França,
gust. de Blanc. com quem ella estava então em guerra: dis­
3 Corneli Jansen. Episcopi Ipr ensis, Au­ se que esta foi a origem do odio d'este car­
gustinus Synopsis vitee Auctoris, t. 1, libr. deal contra Jansenio. Apol. des Gèns. pag.
preemial. c. 10, t. 2. 144.
BÀI 305

depois fizeram tanto ruido. A sexta e se- riosa, que deroga a misericórdia divina, e
tinia diziam respeito á penitencia. heretica.
Nomearam-se commissarios, formou-se No mesmo dia que a bulla se expediu,
uma censura das proposições; appellaram Innocencio enviou-a com um breve ao rei
d’ella, como d’abuso, sessenta doutores; o dc França, c escreveu também uutro aos
parlamento prohibiu que se publicasse o bispos do mesmo reino.
projecto da censura, c que se disputasse so­ Em 9 dc julho fez o rei uma declaração
bre as proposições que n’clla se continham, dirigida aos arcebispos c bispos de França,
emquanto a corte de Roma não ordenasse em que se diz que não contendo a consti­
o contrario. Esta determinação foi de o de tuição dlnnoecncio cousa alguma que seja
outubro de 1649; porém os defensores e contraria ás liberdades da igreja gallicana,
adversarios de Janscnio pozeram tudo cm é seu animo que ella se publique em todo
obra para fazer prevalecer seus respecti­ o reino. Trinta bispos que n’este tempo se
vos sentimentos. achavam em Paris, escreveram uma carta
Pelo fim do anno seguinte o bispo de Va- gratulatoria, d’accordo com o cardeal Ma-
bres escreveu uma carta latina que encer­ zarino, e os mesmos prelados dirigiram ou­
rava as cinco proposições, rogando ao papa tra circular aos mais bispos.
uc as julgasse, e empenhou varios prela- Tinham reconhecido sempre os defenso­
os para ensinal-a, a fim de a enviar de­ res dc Jansenio, nas proposições condemua-
pois á Curia. Innocencio x fez examinar as das, um mau sentido, mas asseveravam que
cinco proposições, e publicou em 1643 uma este mau sentido não era o dc Jansenio.
bulla, datada em 31 de maio, na qual diz Trinta e oito bispos, congregados em Pa­
que havendo-se suscitado na França algu­ ris, escreveram ao papa uma carta, datada
mas controvérsias acerca das opiniões de em 28 dc março dc 1654, na qual ponde­
Jansenio, e particularmente sobre cinco ravam «que um pequeno numero d’eccle
proposições, elle tinha sido rogado para jul­ siasticos rebaixavam vergonhosamente
ga l-as. As proposições sào: magestade do decreto apostolico, como
1. a Alguns preceitos de Deus são impos­ não houvesse terminado senão controvf
síveis aos justos, segundo suas forças pre­ sias, inventadas por divertimento; que ell
sentes, bem que clles desejem c procurem faziam na verdade profissão dc condemn.
observal-os; porque estão da graça destituí­ as cinco proposições, porém n’um sentid
dos, pela qual são possíveis. differente do de Jansenio, e que por este
2. a No estado da natureza corrupta nãoartificio pretendiam deixar aberto um cam­
se resiste nunca á graça interior. po, para n’cllc renovarem as mesmas dis­
3. a Para merecer e desmerecer no estadoputas: que a fim de prevenir estes incon­
da natureza corrupta, não se requer no ho­ venientes, os bispos infra-escriptos, congre­
mem a liberdade que exclue a necessidade; gados em Paris, tinham declarado por uma
mas basta ter aquella que excluc a violên­ carta circular junta áquella, que elles es­
cia. creviam ao papa que estas cinco proposi­
4. a Os scmi-pelagianos admitliam a ne­ções eram de Jansenio, que sua sanctidade
cessidade d’uma graça interior, proveniente as tinha condemnado cm termos expressos
para cada acção cni particular, ainda em e clarissimos nb sentido do mesmo Janse­
principio da fé, e eram hereges em preten­ nio, c que se poderíam castigar como here­
der que esta graça fosse de tal natureza, ges os que as sustentassem.»
que a vontade tivesse o arbitrio de resistir- Innocencio. x respondeu por um breve,
lhe ou consentir n’ella. de 29 de setembro, no qual lhes agradecia
5. a É um erro dos scmi-pelagianos di­o que elles. tinham trabalhado para fazer
zer-se que Jesus Christo morrera e derra­ executar a sua constituição, e diz que nas
mara seu sangue por todos os homens. cinco proposições de Cornelio Jansenio elle
A primeira proposição foi declarada te­ havia condemnado a doutrina contheuda
meraria, impia, e blasphema, digna ^ana­ no seu livro.
thema e heretica. O clero de França, junto em Paris, escre­
A segunda heretica. veu em 2 setembro dc 1656 uma carta as-
A terceira heretica. signada por todos os prelados e outros de­
A quarta falsa e heretica. • putados da assembléia geral, em cuja se re­
A quinta falsa, temeraria, e escandalosa, presentava ao papa q u e «os jansenistás pro­
e se ella se entender no sentido de que Je­ curavam reduzir a controversia a questão
sus Christo não morreu, senão unicamente de facto, na qual ensinavam elles que a
pela salvação dos predestinados, o papa a Igreja podia errar, e assim tornavam inútil
condemna como impia, blasphema, inju- o breve de Innocencio x, e rogavam a sua
306 BAR
sanctidade que confirmasse esta condemna- Os quatro bispos se reconciliaram com
ção, como se a questão de direito c de fa- Clemente ix e Luiz xiv, e não teve mais Io-
cto fosse toda uma. » gar em França a distineção de facto e de
A mesma assembléia do clero recebeu o direito. 1 E já pareciam estar supitas as
breve de Alexandre vii, que confirmava a disputas, pela submissão dos quatro bispos
bulla dlnnoccncio x, e expressamente de­ quando cm 1701 se viu appareccr um im­
clarava que as proposições tinham sido con- presso, intitulado Casos de Consciência, re­
demnadas no sentido de Janseuio. solvidos por quarenta doutores da facul­
Os defensores d’este asseveravam que o dade de Paris, muitos dos quaes depois de­
breve não obrigava a ninguém a assignar clararam haver assignado por engano csía
o formulario; c ainda mesmo alguns bispos obra.
não exigiam que olle se assignasse. O rei N ellcs sc definia que qualquer confessor
rogou ao papa a que enviasse um formu- podia absolver o penitente que tivesse as­
• lario, e o sancto padre passou uma bulla signado pura c simplesmente a condcmna-
em 25 de fevereiro de 1665, em que ellc ção do livro, c proposições de Jansenio, bem
vinha inserto, com ordem a todos os bispos que assignando-a não crêsso n’csta decisão
para o fazerem assignar. Era concebido quanto ao facto, c que não tivesse outra
nos termos seguintes: vista mais que a de guardar sobre esta
«Eu, N., me submetto á constituição apos­ questão um silencio respeitoso. Este im­
tólica de Innoeencio x, passada em 21 de presso foi condemnado por M. de Noailles,
Maio de 1665, e rejeito c condemno as cin­ arcebispo de Paris, e pelo maior numero
co proposições exírahidas do livro de Cor­ de bispos, e^ todos os que haviam subscri­
nelio Jansenio, intitulado Auguslinius, no pto a decisão dos Casos de Consciência, se
sentido do mesmo aulhor, como a sancta sé retractaram, excepto um, que a Sobborna
apostólica as condeinnou pela constituição excluiu da sua corporação.2
sobredita. É o que eu juro, assim Dous me* Finalmente Clemente xi pôz fim a todas
ajude, e estes sanctos Evangelhos.» estas disputas na sua constituição de 17 de
Este formulario foi autliorisado por uma julho de 1703, na qual, depois de haver re­
lei do principe no parlamento, e recebido ferido as constituições d’Innocencio x e de
por todos os bispos; devem porém exce- Alexandre viii, declara «não prestar a obe­
ptuar-se d’este o de Alet, Pamierz, Beauvais, diência necessaria ás constituições dos pon­
e de Anvers. tifices, sobre a questão presente, aquelle
A favor d’estes escreveram a Clemente ix, que as não repebe com um silencio respei­
c também ao rei outros dezenove, represen- toso.» O clero, junto em Paris em 1705. re­
tando-lhes que «om tal negocio de nenhuma cebeu esta bulla, e a acceitou.
maneira se tractava da fé, e que todo o bardesanes—nasceu na Syria, e foi um
crime dos quatro bispos consistia em se ha­ dos mais illustres defensores da religião
verem opposto a uma nova e perniciosa christã. Vivia imperando Marco Aurelio,
doutrina, contraria a todos os çrincipios de que conquistou a Mesopotamia no anno de
religião, aos interesses do rei, e 'á segu­ 166. Como este principe, era opposto ao
rança do estado, pela qual se queria attri- Christianismo, Appollonio, seu valido, quiz
buir ao papa o que só pertence a Deus, fa­ induzir Bardesanesva que renunciasse a fé,
zendo o papa infallivel, até nos mesmos fa­ mas este respondeu que não temia a morte,
ctos; e supplicavam ao rei que quizesse es­ nem poderia evital-a, ainda quando fizesse
cutar as justificações dos quatro bispos.» o que o imperador d’elle exigia.
Deniz Talan, ad vogado do rei, se queixou Este homem tão conspicuo por seus talen­
ao parlamento, dizendo que se faziam ca­ tos e virtudes, cahiu na heresia dos valen-
balas e conventiculos illicitos, a fim de que tinianos. Admittiu muitas gerações de aeo-
os bispos assignassem uma carta dirigida nas, c negou a resurreição. Nao sabemos
ao rei, em que se continham maximas ca­ claraqjpnte qual fosse a serie d’idcias que
pazes de perturbar a paz da Igreja, e de conduziu Bardesanes a este erro, do qual
' ennervar a auíhoridade das leis e bullas re- se afastou depois algum tanto, sem que
istradas no parlamento acerca da doutrina comtudo o renunciasse inteiramente.
e Jansenio. Aprendamos pois com tal exemplo; que
Em consequência d’isto, prohibiu o par­ talvez não ha -erro, que visto por um certo
lamento que se imprimisse ou publicasse a lado, não seja capaz de allucinar uma ra-
carta mencionada, e quaesquer outros es-
criptos similhantes, sob pena de serem tra- 1 Veja-se o Journal de S. Amòur. Pieces
ctados os que o fizessem como perturbado­ touchant les quatre Evêques.
res do socego publico. x2 Antonio Arnaldo.
\S 307
zão esclarecida c animada do amor da ver­ ser a habitação d’uma alma pura e inno-
dade; o aprendamos também qual deve ser ccnte. 1
nossa indulgência para com aqucllcs que Reconhecia Bardesanes a imniorlalidade
se precipitam no erro, c qufto pouco deve­ da alma, a liberdade, a omnipoteneia, e pro­
mos ensoberbeccr-nos de havel-o evitado. videncia de Deus. -
A quóda de Bardesanes prova, segundo nos Este philosopho tinha comb.atido o des­
parece, que Ciere, c outros criticos como tino ou a fatalidade n'uma obra conspicua,
clle, tcom feito mal cm traclar o erro de de que Eusebio nos conservou grande fra­
Valentim como um amontoado de absur­ gmento: cria que as almas nào estavam su­
dos, (pio nem mereciam ser examinados. jeitas «ao destino, mas que nos corpos tudo
Verdade é que Bardesanes nào persistiu era submeltido ás leis da fatalidade.3
neste erro,mas cahiu cm outros. Ellepro­ . jjAsiupEs—era da Alexandria, e vivia no
curava, assim como os philosophos c theo­ pnncipícnio, século n; estava então muito
logos do seu tempo, resolver esta grande em voga em Alexandria a nlulosonhia de
questão: «que motivo lia para haver mal Pithagoras e Platão. Na mesma cidade se
no mundo?» Eis-aqui como elle a resolvia: havia annunciado felizmente a religião
Dizer-se que Deus fez o mal é um absur­ christã, o as scit«a$ separadas do Christia- •
do; devemos suppôr que o mal tem causa nismo já n’clla tinham peneirado.
differente de Deus. Esta causa, segundo As investigíições dos philosophos toma- -
Bardesanes, era Satanaz ou o dcinonio, que vam então corno principal objecto a origem j
elle olhava como inimigo de Deus, mas nào do mundo, o sobretudo a do mal no mesmo -
como creatura sua. mundo. Basilidcs olhou esta segunda ques­
Nào suppozcra que Satanaz deixasse de tão como a mais interessante para a curio-,
ser creatura de Deus bom, só para nào pôr sidade human.a, procurou a sua explicação»
a cargo do Ente Supremo os males que se nos livros dos philosophos, nós escriptos *
viam no mundo; elle pois não concedeu a de Simão, na escola de Menandro, e ainda
Satanaz «algum dos seus «attributos da divin­ entre os mesmos christãos.
dade, excepto o de existir por si mesmo, Nenhum o s.atisfez plcnamcnte acerca
sem altentar que é inteiramente perfeito d’csta grande difliculdíide, c para resol-
um ente que por si mesmo existe; portauto vel-a formou elle mesmo um systema com­
clle admittia um principio do mal distincto posto dos princípios de Pithagòras c de Si- j
do Ente Supremo, bem que não reconhecia mão, dos dogmas dos christãos e da crença'*
mais que um só Deus. dos judeus. 4
Por uma consequência, d’esta opinião, Suppôz Basilides que o mundo nào fora
não concedia Bardesanes a Satanaz parte creado immediatainentc p clo J jntcSqpre-
alguma da administração do mundo, senão qs, porfnlell ígencl arquFelleprodu-
a que era necessaria para explicar a ori­ zfgi. ‘Esfe era o systema da 'th W itn n rdif-
gem do mal; c d?esta sorte, segundo a opi­ fículdíide de conciliar a origem do mal com
nião de Bardesanes, Deus çrpára o mundo a bondade do Ente Supremo, linha fixa­
c o homem; mas o homem que elle creára do n’esta supposição qu«asi todas as seitas
no principio, nào era um homem revestido que cmprehcuderám explicar a origem do
de carne, mas uma «alma Unida a um corpo mundo, c do mal. Simão, Men«andrò c Sa­
subtil, c conforme á sua naturez«a. turnino todos suppunham um Ente Supre- \
Esta era a alma que tinha sido formada mo que produzira intelligencias, e attri- \
á imagem de Deus, e que cnganíida pelas buiam a origem do mal á imperfeição d’es- \
astúcias do demonio, havia transgredido a tas mesmas intelligencias subalternas, que
lei do mesmo Deus, o que obrigara oCrc«a- fazia cada um d’elles obrar pelo modo mais
dor a expulsal-a do Paraizo, c a ligal-a a
um corpo carnal, que era como a sua pri­
são. Dizia Bardesíuics que estas eram «as 1 Origen. Dial. cont. Marcion % sect. 3, et
tunicas de pêllo com que Deus tinha co­ pag. 70, 71.
berto Adão o Eva depois do pcccado. 2 Euseb. de Prcep. Evangel. c. 10.
Era pois consequência do mesmo pecc«a- 3 Euseb. Hi&l.Eccles. I. 4, c. 30. Epiph.
do, segundo Bardesanes, a união da alma Iícer 36. Photius, Bib. cod. 223. Epiph.
a um corpo carnal, e d’aqui tirava elle «as prcep. /. 6, c. 30. Ilist. Bardesmm et Bar-
seguintes conclusões: 1.* que Jesus Christo deanistarum, in-4.°, 1780, por Strunzius
nem tomára um corpo humano; 2." que Ittig. de Hcer. pag. 133.
nós não havemos de rcsuscitar com o mes­ * Fragm. I. 13. Comment. Basilid. em
mo corpo que temos sobre a terra, mas sim Grab. Spicileg. PP. sceculi 2, pag. 39. Ciem.
com um corpo subtil c celestial, que deve Àlex. I. 4. Strom. pag. 506.
308 BAS
adequado para a explicação da difliculdadc •a*figura de Simão Cyreneu, dando-lhe
que o embaraçava sua; e que d’esta sorte os judeus haviam
Não era sufficiente então explicar em crucificado Si mão cm logar de Jesus Chris-
ceral o modo como o mal physico se intro­ )to, que então se estava rindo d’elles, sem
duzira no mundo; precisava-se também dar que o vissem; e que depois subira aos céos
a razão das desordens c da miseria dos ho­ (sem que jamais fosse conhecido de nin­
mens, explicar em particular a historia das guém. i Assim se persuadia Basilides que
desgraças dos judeus, fazer comprehensi-' não se devia soffrer a morte por Jesus
vel como o Ente Supremo ti ve rã vistas de Christo, porque, não havendo elle sido
misericordia para com o genero humano c morto, mas Simão Cvrencu, os martyres
enviara seu Filho ao mundo para remil-o. morriam por este, c não por Jesus Christo. *
E eis-aqui, pois, quaes foram os princípios ** A dependência em que õs homens vi­
de Basilides acerca de todos estes objectos. viam dos anjos, ora uma objecção contra
• O ente increado tinha produzido, segun­ a bondade de Deus. Basilides á resolvia,
d o Basilides, a intelligencia; a intelligencia dizendo que as almas peccavam em uma
/produziu o Verbo; o Verbo produziu a vida anterior á sua união com o corpo, e
* prudência; a prudência, a sabedoria e o que esta união era um estado d’expiação,
i poder; c a sabedoria c o poder, produzi- de que a alma sómente sahia depois de se
* ram as virtudes, as potestades e os anjos. haver purificado, passando successi vamen-
Os anjos eram de diflerentes ordens, e te de corpo cm corpo, até haver satisfeito
a primeira d’cstas ordens produziu o pri­ a justiça divina, que não dava outros cas­
meiro céo, e assim se foram seguindo até tigos, mas que comtudo não perdoava se­
o numero de 360.Í1 Os anjos que occupam não as fallas involuntarias.3 Cria Basilides.
o ultimo dos céos* fizeram o mundo: por­ haver em nós duas almas, adoptando este’
tanto não é d’admirar que n e llc se veja o sentimento dos pilhagoricos, a fim de con­
bem e o mal. O imperio do mondo foi re­ ciliar os combates das paixões e da ra- /
partido entre elles, e ao principe dos anjos zã o .4 —
do céo, em que se acha a terra, tocaram •' Havia-se applicado muito á magia, e
os judeus, por cuja razão obrou elle em arece-me que estava preoccupadissimo
seu favor tantos prodígios; mas querendo í bs delírios da cabala: elje suppunha uma
este anjo ambicioso submetter todas as na- grande virtude na palavra abrasas ou abra-
1 ções aos judeus, então se colligaram con-; xas. A origem d’osta opinião singular, que
| tra elle todos os outros anjos, e todas as* principalmenlc o fez celebre, a meu vér,
' nações se fizeram inimigas da judaica. mí esta que vou explanar.
Éstas idéias se conformavam em parte S Pithagoras, de quem Basilides adoptára
com a crença dos antigos hebreus, que se ‘ó s principios, reconhecia com os caldeus,
i persuadiam que cada uma das nações es- °éus mestres, a existência d’uma intclli-
í tava debaixo da protecção de seu an jo.2 encia suprema que tinha formado o mun-
Gemiam os homens, e estavam opprimi-,
dos da tyrannia, desde que a ambição dos,,J
anjos tinha posto em armas as nações; e zÔ£& ná sua producção, meditou sobre
então o Ente Supremo," condoído da suai natureza, a fim de descobrir as leis que
sorte, enviou seu primeiro filho, ou a intel­ iclla seguia nos phenomenos, e d alcançar
ligencia, Jesus ou o Christo, para libertar o fio que ligava os acontecimentos.
; os homens que n’elle cressem. j^Foram suas primeiras vistas sobre o
O Salvador, no sentir de Basilides, fez os ;eéo, aonde o author da natureza parece
I milagres referidos pelos christãos, mas elic [manifestar mais claramente seus desígnios.
*não crê que o mesmo Senhor encarnara. í‘Como n’ello descobriu uma ordem admirá­
A difficuldadc que tinha em conciliar o es­ vel, e uma harmonia constante, julgou que
tado da^humiliação e de dor em que Jesus esta ordem e harmonia que alli reinavam,
Christo appareeera no mundo, foi verosi- não eram mais que relações que se divisa­
milmente quem o determinou a sustentar vam entre as distancias dos corpos celestes
que n’elle não houvera mais que as appa­ e seus reciprocos movimentos. A distancia
rendas (Thomem, e que na paixão tomara o. movimento são grandezas, estas gran-
nr i n r

i Os princípios philosophicos d’este sys-1 Epiphan. llcer. 24.


| terna se acham expostos no artigo Satur- 2 Iren. 1 .1. c. 32.
' nino. 3 Ciem. Alex. Strom. I. 4, pag. 396, l o,
2 Deuteron. 32. v. 8. Daniel, c. 10. v. pac/. 398. Origen. in Math. Ti'act. 8.
20, 21. Veja-se o artigo Angelicos. * Ciem. Alex. 1.2. Strom. pag. 299.
BAS 309
•dezas teem partes, as maiores das quaes t_eJÜgejiçia que produziu q mundo residia
nada mais sào que as mais pequenas mul­ nçLSíiC e d’aiíi' enviava as suas influencias
tiplicadas um certo numero de vezes a toda a natureza, Basilides, que adoptára
TVacta m n n n ír o cn n vn i< !m in m nnp r
D esta maneira se exprimiam por n u m era philosophia pithagoriea, colligiu que não
ros as distancias e os movimentos dos cor havia cousa mais propria para attrahir as
pos celestes; e a mesma Intclligencia Su­ influencias beneficas da Intclligencia Su- |
prema, antes da producção do mundo, nào prema que o numero 36o; e porque os nu- >
.as conhecia senão por numeros puramente meros se exprimiam pelas letras do alpha-'
intelligivcis. Portanto, segundo Pithagoras, beto, escolheu n’estc aquellas, cuja serie'
sobre a relação que a Intclligencia Supre­ podésse exprimir o mesmo numero; c d e s­
ma divisava entre os numeros intelligivcis, tas se formou a palavra abraxas. i
tinha ella formado e executado o plano do Crendo-se, pois, que a palavra abraxas
mundo. '-i tinha a poderosa virtude de attrahir as in- /
A relação dos números entre si, não çj fluências da intelligencia producente do !
arbitraria á que ha d’igualdade entre duas mundo, fizeram gravar este nome sobre J
vezes dous, c quatro; é uma relação neces­ pedra, a que chamam abnueas, de que ha
saria, independente e immutavcl. Como a um 11rodi glbso' W iih e ie e n id iversos gabi­
relação dos numeros não seja arbitraria, e netes da Europa. E como Pithagoras 'sup-
a. ordem das producções da Intclligencia pôz que a intelligencia producente do mun­
Suprema dependa da relação que ha entre do residia no sol, á palavra abraxas se
os numeros, é claro haver números que ajuntou a imagem do sol, para explicar a
teem uma relação essencial com a ordem virtude que se lhe attribuia.
e harmonia, e que a Intclligencia Suprema, Estavam então os homens fortemente \
que ama a mesma ordem c harmonia, se- preoccupados da virtude dos talismans; }
,gue nas suas acções as correlações d’estcs portanto se espalharam os abraxas quasi
numeros, e não pódc* separar-se d’cllas. por toda a parte, e em logar do sol se gra­
O conhecimento d’csta relação, ou esta vavam ifellcs diversos symbolos proprios
relação mesma, c, pois, a lei que dirige a para caractcrisal-o, c finalmente os diíTe
Intelligencia Suprema nas suas producções, rentes favores que d’ellc se esperavam
e como estas relações se exprimem pro­ como se vê n’um d’cstes abraxas, que re­
priamente por numeros, suppozcram nos presentava certo homem montado cm um
combates uma força ou um poder capaz touro, com esta inscripção: Restitui ao seu
de determinar a intelligencia a produzir logar a matriz (Vesta mulher, vós, que re-
certos esforços mais depressa que os ou­ gulaes o cirso do sol.
tros. \ Eis-aqui, a meu vêr, d’ondc nasceu esta
Na conformidade d’estas idéias se invesl prodigiosa variedade ttabraxas que notou
tigou quaes eram os numeros que maif c de que nos deu effigies o padre Mont-
compraziam ao Ente Supremo: viu-se quej faucão.2 Como os christãos criam ser Je­
só havia um sol, e se julgou ser-lhe agra-/ sus Christo o Deus Creador, os que haviam
davel a unidade: /viram-se sete planetas, e>rl adoptado os princípios de Pithagoras, s e ,
também d’aqui se concluiu que o numero persuadiram que Jesus Christo estava no }
•de sete era da sua predilecção. Tal era a sol e pensaram que os abraxas podiam /
philosophia de Pithagoras, que se tinha di­ também attrahir, sobre aquelles que os tra­
vulgado pelo Oriente durante o i c n sé­ ziam, as graças de Jesus Christo, e para se
culos do Christianismo, c que durou ainda distingui reni* dos basilidianos, é d’outros
por muito tempo depois. .-v cabalistas. fizeram gravar a sua figura so­
Basilides, que adoptcáha os princípios da] bre os abraxas, porque os christãos não
philosophia pithagoriea, se esmerou como; só criam também nos talismans, mas no
•os outros a indagar quaes eram os nume-/ tempo de S. João Chrysostomo havia al-
ros que mais agradavam á Intelligencia},guns que traziam medalhas d’Alexandre
Suprema, e reflcctindo que o anno era
•composto de 365 dias, e que formando o
sol estes dias pelas suas successivas revo­ 1 As letras da palavra abraxas cx j
luções em torno da terra, tornava a dar '?nem em grego 365; A vale 1, B vale
principio á sua carreira, tanto que havia vale 100, X vale 80, S vale 20. Assim, para
th
findado as trezentas sessenta e cinco revo- se exprimirem cm caracteres gregos 365, se
luçõos, d'atmi; c o n c M Q a s iljito ^ a a a .m haviam d'unir as letras que formam a pa­
■este numerinoL ue m ^ ^ a d a v a ajntcl- lavra abraxas.
1 Montefaucon Antiquite expliquée, t. 2,
E como Pitííãgoras ensinára que a in- l. 3, pag. 353.
Magno, persuadidos de que cilas tinham aquclles sectários apparenlavam; e como
sua virtude persorverativa. » os valdenscs professavam a renuncia dos
O numero das revoluções que o sol fazia seus bens, se condcnmavam a viver uma
á volta da terra, parecia o termo que se vida pobre, applicada á oração, á lição da
havia prescripto á intclligcneia creadora. Escriptura, á meditação, e practiear á le­
Esta palavra pareceu propria para expri­ tra os conselhos evangélicos; houve tam­
mir a essência c natureza do Ente Supre­ bém catholicos que deram seus bens aos
mo, e por cila foi significada por Basilides: nobres que viviam do trabalho das suas
assim se formaram primitivamente os no­ mãos e meditavam na Escriptura, que pre­
( mes dos homens sobre suas qualidades gavam contra os hereges, pagavam as dé­
pessoaes. cimas e tributos, guardavam castidade, etc.:
Basilides tinha composto vinte c quatro taes foram os irmãos catholicos ou humi­
livros sobre o Evangelho, c clle mesmo liatos e outros.
jformou um Evangelho que trazia o seu Estas sociedades, approvadas pelos sum­
fnome: fez também prophecias que attribuia mos pontifices, fizeram nascer em muitos
í a um homem que jamais existira, c que catholicos zelosos o desejo de fundar diffe­
^elle apnellidava Barccobgs oii Barcoph. 12 rentes religiões. Não se viam senão novas
Basilides foi refutado por Aggrippa, ap- sociedades, cada uma das quacs caprichava
pellidado Castor, seu filho Isidoro lhe suc- d’exceder ás outras cm perfeição ou por uma
cedeu. Veja-se o seu artigo. perfeição singular. N’cssc século se forma­
ba^iliül^nos — Discipulos de Basilides. ram as quatro ordens mendicantes c da rc-
Celebraram com grande festa o baptismo dempção dos captivos, a de Sancta Maria
de Jesus Christo. Ainda os havia no tem­ das Mercês, as dos Servitas, Celestinos, etc.:
po de Sancto Epiphanio. mas ninguém se, c se teriam visto muitas outras, se o conci­
dava ao trabalho de refutal-os, c tracta- 1 lio lateranense.não prohibisse inventar no­
vam-os como energúmenos.3 Os basilidia- vas regras ou fundar novas ordens reli­
nos se derramaram pela Hespanha c pelas giosas.
Gallias, para onde levaram os seus abi'a- Ainda vogava no xiv século esta emula­
xçis. A fraqueza c superstição os adopta­ ção que havia em se distinguirem os de­
ram e carregaram d’infinidade d’emblemas votos por alguma práctica exquisita, c se
differentes, que não tinham mais funda­ viu quantidade de pessoas tomarem diver­
mento que a imaginação dos que os tra­ sas fôrmas d’habito, e sujeitarem-se a prá-
ziam. Alguns sábios procuraram n’elles os ctieas singulares, conformes a seus gostos
mysterios do Christianismo, mas suas con­ ou ás idéias que tinham .concebido da per­
jecturas por ninguem foram recebidas; os feição do Christianismo.
criticos os convenceram de falsas.1 Como Estes devotos, ou por gosto, ou por poli­
* os basilidianos tinham adoptado parte dos tica, se uniram e formaram sociedades par­
s princípios dos cabalistas, fallaremos d’el- ticulares cm differentes logares, onde se
Mes no seu artigo. encontraram. Viram-se em Allemanha, na
ngGUARDOS ou beguardos—Falsos devotos França, na Italia, e eram conhecidos pelas
que sel^ W iW M ^ fn ^ ^ ern a n h a no prin­ denominações de fíeghardos, h-mãosinhos,
cipio do xrv século. Nada havia contribudo Fratricellòs, Dvlcinistas, Bisochos, Aposto-
tanto para o progresso dos albigenses, val- ticos, etc.
denses, e de outras seitas, que surgiram Todas estas seitas se formaram separa­
nos séculos xii c xm, como a honestidade damente, e não tinham chefe commum:
apparente de costumes dos sectarios, e a parece que os irmãosinhos tiveram seu
vida licenciosa da maior parte dos catho­ chefe particular, como também os dulci-
licos e de muitos ecclesiasticos. nistas; porém os beghardos se formaram
Sentiu-se a necessidade de contrapôr-lhcs pela união de differentes pessoas, homens
exemplos de virtude, é fazer vér que eram c mulheres que pretendiam viver de um
practicadas pelos catholicos, como as que modo mais perfeito que os outros fieis.
Havia, no sentir dos beghardos, um grau
1 Chrisostom. Catechesi secunda. do perfeição a que deviam aspirar todos
2 Grab. Spiciteg. scec. 2, pag. 18. Euseb.os christãos, além do qual se nao podia ir;
I 4, c. 7. porque, não sendo assim, deveria admit-
3 Epiph. Hair. 14. Damascen. de Roer.tir-se na perfeição um progresso até o in­
c. 24. finito, e poderi a haver entes mais perfeitos
* Veja-se Basnage. Histoir. des Juifs, que Jesus Christo, o qual emquanto homem
t. 2, l. 3, c. 26. Montefaucon. Antiquite não tinha mais que uma perfeição limi­
expliquéej t. 2. tada.
BER 311
Chegado que fosso o homem ao ultimo 7. ° O simples osculo d’uma mulher é
remate da perfeição possível á humani­ um peccado mortal; mas o acto carnal com
dade, já não havia necessidade nem dc de­ cila não é peccado.
precar a graça, nem d’exerccr as virtu­ 8. ° Não é necessário que os perfeitos se
des; cllcs então sc julgavam impcccavcis o levantem ou façam algum acto d’adoração
já desde esta vida principiavam a gosar da quando se eleva o corpo dc Jesus Christo,
possível bcmavenlurança. porque seria para elles uma imperfeição
Os bcghardos que tendiam, ou que já ti­ descerem da pureza e da altura da sua
nham chegado á impeccabilidade, forma­ contemplação para pensarem no Sacra­
ram uma sociedade de individuos que sc mento da Eucharistia ou na Paixão de Je­
amavam com mais ternura que nas outras. sus Christo. 1
Attentaram, porém, que ainda estavam pre­ No sentir de Emeruo, elles tinham ainda
sos a um corpo sujeito á tyrannia das pai­ mais erros, inas alguns parecem estudados
xões, que entre elles eram vivas, como o para justificar seus princípios contra os
são sempre entre as sociedades fanaticas; argumentos com que os impugnaram; tal
era preciso ceder a sua vehcmencia e pro­ ó a proposição que diz que a'alma não é
curar um pretexto que lhes salvasse a re­ csscncialmente a fórma do corpo. Esta
putação. proposição parece ser proferida para ex­
Portanto distinguiram no amor a sen­ plicar aimpeccabilidade ou cspecic de im-
sualidade ou a voluptuosidade da necessi­ passibilidadc que os bcghardos queriam fa­
dade: esta era no seu sentir, uma ordem zer possivel, a meu vér, suppondo que a
de natureza, a que podia obedecer-se inno- alma póde separar-se do corpo.2
centemente, mas qualquer prazer que pas­ A condemnação dos bcghardos não e?
sava d’esta necessidade, se capitulava por tinguiu a sua seita; um appcllidado Bc
delicto. toldo a estabeleceu em Spira, e em divi
Assim, a copula se tinha por um acto sos Jogares d’AUemanha.3
louvável, ou ao menos innocente, mas o Parte dos seus erros foi adoptada pel
osculo era um peccado enorme. Foram fratricellos, ou irmãosinhos, e pelos dulc
condemnados estes erros n’um concilio de nistas, não porque os recebessem dos mes
Vienna, governando a igreja Clemente v, mos bcghardos, mas porque similhantes
em 1311. seitas acabam sempre em costumes depra­
A sua doutrina se reduziu a oito arti­ vados. Os fratricellos tinham erros parti­
gos, que todos se seguem do principio fun­ culares. Veja-se o seu artigo.
damental; isto é, de que o homem n’esta Não devem confundir-se cem os beghar-
vida pódc chegar ao ultimo grau dc per­ dos, de que acabamos de fallar, os begui-
feição possível á humanidade. nos c beguinas que fazem a ordem ter­
1. ° O homem póde adquirir n’esta vida ceira.
um tal grau de perfeição, que se torne im- herenger ( béràxgér)—nasceu em Tours,
peccavel, e chegar a'um estado tal, que pelo~finf'd<fséculo x. Feito o curso do seus
não possa crescer em graça. estudos em Chartrcs, sendo mestre Ful-
2. berto, voltou a Tours, aonde o escolheram
° Os que chegaram a este apicc já não
devem jejuar, porque n’esta situação os para ensinar nas escolas públicas de S.
sentidos da tal maneira se acham subordi­ Martinho, foi thesoureiro da . igreja v de
nados ao espirito e á razão, que o homem Tours, e depois arccdiago dAngcrs, sem
póde conceder livremente ao seu corpo o deixar o logar de mestre escola dc Tours.
que lhe agrade. Atacou o dogma da transubstanciação, ab-
3. ° Os que chegaram a este estado juroude seu erro, reincidiu n’ellc, e o reto­
liberdade, já não estão obrigados a obede­ mou muitas vezes; mas emfim morreu no
cer, nem a practicar os preceitos da Igreja. seio da Igreja.
4. ° Póde o homem chegar á bemavontu-Para melhor se conhecer a origem do seu
rança final n’esta vida, e obter o mesmo desvario, nos é preciso lembrar as dispu-
grau de perfeição que haverá dc ter na
outra.
5. ° Toda a creatura espiritual é natural-1 Dupin, siécle d4.°, paq. 366. D'A r gentrè
mente bemaventurada, e a alma não ca­ Collect.Jud. t. 1, pag. 276. Natal. Alcx. in
rece da luz da gloria, para se elevar á vi­ scec. 10.
são e gôso de Deus. 2 Directorium Inquisit. part. 2, querrf.
6. ° A práctica das virtudes é para 7,ospag. 249.
homens imperfeitos, mas a alma perfeita 3 Trithrn. in Ckron. hirsangiens, t. 2,
se dispensa de practical-as. pag. 231. D'Argentrc, loc. cit.
tas que se levantaram pelo fim do século o corpo c sangue de Jesus Christo, e que
nono áccrca da Euchaçistia. cila mesma nao fosse o seu verdadeiro
Compozera n’esse tempo um monge cha­ corpo, mas cria que o Verbo se unia ao
mado Paseacio, abbade de Cor.bia, um tra- pão e ao vinho, e que por esta união cllcs
ctado—Do corpo c sangue de Nosso Senhor se tornavam em corpo c sangue de Jesus,
Jesus Chrislo, no qual estabelecia o dogma sem que todavia se mudasse a natureza ou
da presença real, c sustentava que o corpo essencia physica, e que deixassem de sor
que nós recebemos na Eucharistia, é o o que antes eram.
mesmo que nascera da Virgem. Cria Berengcr não se poder negar a
Bem que Paseacio n’esta obra tivesse presença real, e reconhecia ser a Eucha­
seguido a doutrina da Igreja, e que antes ristia o verdadeiro corpo de Jesus Christo;
d’clle houvessem crido todos os catholicos que o pão e vinho eram, depois da consa­
que o corpo e sangue de Jesus Christo es­ gração, o mesmo que antes; e concluía,
tavam presentes na Eucharistia, comtudo que o pão c vinho se tornavam em corpo
não era costume o dizer-se formahncnte c sangue de Jesus Christo, sem mudarem
que o corpo de Jesus Christo na Eucharis­ de natureza, o que era impossível sem se
tia fosse aquelle mesmo que nascera da suppôr que o Verbo se unia ao pão e ao
Sanctissima Virgem. 1 vin h o.1
Desagradando estas expressões de Pas- Ensinando Berengcr esta doutrina na es­
cacio, foram atacadas; elle as defendeu e a cola de Tours, tudo se sublcvou. Levou-se
disputa se fez estrepitosa. A’cerca d’ellas a Roma uma das cartas que elle escrevera
se dividiram os homens mais celebres da- a Lanfranco, em que defendia a sua opi­
quelle século, e houve muitos escriptos nião. Lida que foi a carta n’um concilio con­
impugnando-as ou defendendo-as, porque vocado por Leão ix, cm 1050, ífelle se pre­
quanto ao dogma nào se discordavam. screveu a doutrina de Berenger, e se excom-
As disputas que se levantam entre ho­ mungou a sua pessoa. Informado da con-
mens celebres, se agitam e reinam, por as­ demnação, se retirou á abbadia de Preaux,
sim dizer, muito tempo ainda depois de e se esforçou por attrahir ao seu partido
seu nascimento. Berengcr, que ensinava Guilherme, duque da íNormandia; porém
theologia em Tours, examinou os escri­ este principe fez juntar os bispos da pro­
ptos de Paseacio e suas impugnações. vincia que o condemnaram.
Dizia Paseacio que recebíamos na Eu­ Como Berenger atacava um mysterio
charistia o corpo e sangue de Jesus Christo, incomprehensi vel á razão, e em que á fé
que comíamos aquelle mesmo corpo, que se oppunham a imaginação e os sentidos,
nascera da Virgem Sanctissima; e que, não podia deixar de ter sectarios; mas
supposto ficasse o pão em apparencia, se concluiram d’aqui pessoas tão conspicuas,
podia affirmar que o mesmo corpo e san­ como M. Claudio e M. de La Roque, que
gue que nós recebíamos no pão, era o que havia na Igreja muitos individuos que re,-
estivera pregado na Cruz, e que o sangue jeitavam o dogma da transubslanciação. E
que correra do lado de Jesus Christo era um erro de logica inconcebível:
o que recebíamos no calix. 2 1. ° Porque toda a heresia que ataca um
Via Berenger que o pão e vinho conser­ mysterio, tem faces assaz especiosas para
vavam, depois da consagração, as mesmas allucinar á primeira vista os superficiaes
propriedades e qualidades que tinham an­ e ignorantes; e se devesse concluir-se que
tes d’ella, e que produziam os mesmos ef- na Igreja era ensinada uma opinião, por­
feitos; e d’aqui concluiu que o pão e o que aquelle que a publicou achou sequa-
vinho não eram o corpo e sangue que zes, seria consequência infallivel que todas
nascera da Virgem, e que fora cravado na as heresias e erros tinham sido ensinados
cruz; portanto ensinou que o pão e vinho na Igreja, porque, com effeito, não houve
não se transubstanciavam no corpo e san­ heresiarcha que deixasse de os ter.
gue de Jesus Christo, mas comtudo não 2. ° Testimunham todos os historiadores
atacou a presença real. Reconhecia elle que fôra vista como nova a opinião de Be­
que nem a Escriptura, nem a tradição renger, e não podem citar os protestantes
permiltiam duvidar-se que na Eucharistia author antigo que aííirme d’alguma sorte
não se contivesse real e verdadeiramente que Berenger achara na Igreja alguém da
sua opinião, nem que o seu erro fosse sus­
1 Mabillon, Prosf. in 4. seec. Bened. part. tentado por pessoas que o aprendesse d’ou-
2, c. 1, § 4.
2 Tract de Corp. Domini, Ep. ad Fru- 1 Mabillon, Prcef. in 6. scecul. Benedici.
degard. §. 3, pag. 473.
BER 313
tro fóra cTcIlc; de quem todos aflfirmam ser poem os monumentos historicos, pelos quacs
o unico motor d’estas inquietações. 1 nós conhecemos estes inimigos da trans-
0 erro de Bcrengcr se condemnou em substanciação; porque d’elles se deprehen­
todos os concilios onde foi denunciado, de claramentc que estes hereges tinham
como nos de Varselia, nos de Tours e Pa­ de mais outros erros, dos quacs o histo­
ris. Bcrengcr compareceu no de Tours, c riador nos diz, que não são do seu assum­
n’clle o abjurou; mas ou obrava com dis­ pto, o que não convém aos discipulos de
simulação, ou não estava inteiramente no Berenger. 1
sentir do concilio, porque depois d’eUo rein­ Quanto ao mais, esta presumida perpe-
cidiu e ensinou o mesmo erro. tuidade da doutrina de Berenger, que M.
Nicolau ii congregou outro concilio em Basnagc tanto se esforça em estabelecer
que Bcrenger defendeu as suas opiniões; desde o nono século até á reforma, não é
mas sendo convencido por Abbon e Lan- aquella perpetuidade da fé, que convém á
franco, abjurou o erro e queimou os seus da verdadeira Igreja, e que faz o caracter
escriptos. da verdade.
Parecia sincera esta sua profissão de fé, Mas não é de admirar que se perpetuasse
mas apenas voltou á França, logo se. arre­ um erro que fez tanto estrondo como o de
pendeu de haver queimado os escriptos, Berenger; e talvez não haja heresia, que de­
condcmnou o seu sentimento, e protestou pois de vir á luz, á força de investigações,
contra a sua ultima retractação, asseve­ de inducçõcs e sophismas, não encontrasse
rando, que lhe fora dictada por Humberto, sectarios nos séculos precedentes também
e que por medo a firmara; portanto conti­ ou melhor que a dos protestantes: por ven­
nuou a ensinar sua doutrina. tura Sandio não encontrou arianos em to
Final mente, Grcgorio vu fez um conci­ dos os séculos? 2
lio em Roma no anno de 1079, em que Be- Porém não é uma tal succcssão, a qi
renger reconheceu, e condemnou também çaracterisa a doutrina da verdadeira Igrej,
o seu erro. O papa o tractou com indulgên­ E necessário para isso: l.° que esta perpt
cia e bondade, e àté escreveu em seu favor tuidade seja tal que se não possa assignai
ao arcebispo de Tours, e ao bispo d’Angers. época, cm que ella fosse desconhecida na
Depois d’este concilio, Berenger se retirou Igreja como o erro de Berenger, o qual
á ilha de S. Cosme, visiuha da cidade de immediatamentc que lhe oppozeram a re­
Tours, e alli morreu no anno de 1088. clamação de toda a Igreja contra o seu erro,
A retractação, e penitencia de Berenger, recorreu a dizer que toda ella perecera. 3
não foram bastantes para que muitos de 2.° Sendo a verdadeira Igreja uma socie­
seus discipulos deixassem de persistir nos dade visível, e devendo ser catholica, isto é,
erros de seu mestre; mas está muito longe a sociedade religiosa mais extensa, pode­
da verdade, que fossem tantos como pre­ rão por ventura representar a Igreja de Je­
tendem Claudio, La Roque, e Basnagc, aos sus Christo alguns sectários obscuros que
quacs contradizem n’esta parte os historia­ ensinam e perpetuam occultamcnte seus
dores contemporaneos de Berenger. erros, que são odiosos a todos os fieis, e
Guimondo, arcebispo d’Aversa, author condemnados por toda a Igreja ó que não
do seu tempo, certifica expressamente que teem nem igreja nem ministerio, nem juris-
Berenger jamais tivera por si nem uma só dicção, nem authoridade? O que eu digo
aldeia, e que sómente o seguiam alguns aqui dos berengeres é irrefragavcl. La Ro­
ignorantes. Todos os monumentos histori­ que e Basnage nada mais poderam encon­
cos que existem d’esso tempo, se confor­ trar em seu favor.
mam a este testimunho; e por ventura deve­ Nem todos os berengeres foram unanime
rão preferir-se a elles os de Guilherme, de e constantemente afferrados ao erro do seu
Malmesburg, que viveu cm 1242, e de Ma- chefe; negavam que o pão e o vinho se
tlieus de Wcstminster, que só viveu no sé­ transubstanciasse no corpo e sangue de
culo xiv? 2 Jesus Christo; mas algunè d’elles não po­
É verdade que se encontram no século diam conceber como o Verbo se unisse ao
xu individuos que negavam a transubstán- pão e ao vinho, e d’aqui concluíam que o
ciação, mas não se vé que fossem discipu­
los de Berenger. Parece que assim o sup- 1 Spicileg. (PAcheri. t. 2, pag. 243. Leib-
n itz Accessiones historicae c. 6, 8.° anno,
1 Perpet. de la Foi, t. 1, l. 9, c. 7, pag. 1262.
657. 2 Sandius, Hist. Eccles.
2 Perpet. de la Foi,1. 1, l. 9, c. 1, pag. 3 Berengarius apud Lancfranc, c. 23.
Perpet. de la Foi, l. 9.
314 BER
ão e o vinho não eram o corpo c sangue ignorante se houvesse presuadido que Je­
e Jesus Christo, c que sómente por metha- sus Christo nào podia tel-as proferido no
pliora assim se dizia, porque elles represen­ seu sentido obvio c lilteral.
tavam o mèsmo sagrado corpo o sangue. l.° É certo que Jesus Christo não prepa­
D’esta sorte Bercnger e seus discipulos ne­ rou seus discipulos para tomarem no sen­
gavam a transubstanciação, mas aquellcs tido methaphorico as palavras de que se ser­
criam que o pào se tornava em corpo de viu na instituição da Eucharistia; mas pelo
Jesus Christo, e estes que sómente o repre­ contrario, antes d’instituir o mesino Sacra­
sentava. mento, lhes disse que a sua carne era ver­
A maior parte dos heresiarchas e secta­ dadeiramente uma comida, e seu sangue
rios que succederam a Bercnger, abraça­ uma bebida, que os que não comessem sua
ram este ultimo sentimento, e o uniram a carne, c não bebessem seu sangue, não te-
outros erros antigos e igualmente heréti­ riam a vida eterna; e tinha promettido dar-
cos; taes foram Pedro de Bruys, Henrique lhes este pão. Os judeus que lhe ouviram
de Tolosa, Arnaldo de Brexa, os albigen- uma tal expressão, se perguntavam uns aos
ses, Amauri de Chartrcs, e muito tempo de­ outros como. era possível que Jesus Chris­
pois Wiclef, os lollardos, os phaboristas. to désse a comer sua carne, e o Senhor
Emlim, Carlostadio, Zuinglio c Calvino re­ não respondeu aos seus reparos, senão re­
novaram o mesmo erro, c Jmlhero seguiu petindo: que a sua carne era verdadeira­
o sentimento deBerenger, e sustentou a ira- mente uma comida, e seu sangue uma be­
panaçâo. bida, e que se elles não comessem a carne
Como consiste n’estes dous pontos um do Filho do Homem, e não bebessem seu
dos maiores obstáculos para a união das sangue, não teriam a vida eterna.
igrejas reformadas, nos persuadimos que Jesus Christo promeltia então a seus dis­
será util tractal-os mais largamente. cipulos dar-lhes sua carne a comer, a sua
verdadeira carne, e concordam todos os mi­
nistros dos reformados, que no capitulo vi
DO DOGMA DA PRESENÇA REAL de S. João, se falia sempre da verdadeira
carne de Jesus Christo. Portanto, espera­
vam os discipulos que elle lhes daria ver­
Nào ha materia em que se tenha escri- dadeiramente sua carne c seu sangue a be­
pto tanto. Referir as obras compostas sobre ber, mas ignoravam como executaria sua
a Eucharistia, seria fazer uma obra: por­ promessa.
tanto vamos reduzir a pontos simples as Na instituição da Eucharistia, Jesus Chris­
razões que a provam, e as objecções que a to lhes determinou que comam o pão que
impugnam. elle benzeu, certificando-os de que este pão
é seu corpo. Assim, longe de haver adver­
tido seus apostolos, de que deveríam to­
O DOGMA DA PRESENÇA REAL É ENSINADO mar-se n’um sentido methaphorico as pala­
NA ESCRIPTURA vras da instituição da Eucharistia, os tinha
preparado para que as tomassem no senti­
do natural c á letra. Portanto, as allegorias
Quando Jesus Christo instituiu a Eucha­ e*"imagens, debaixo das quaes Jesus Chris­
ristia, tendo o pào em suas mãos sagradas, to se representou algumas vezes, não po­
disse: «Este é o meu corpo» c a Escriptura diam conduzir os discipulos a interpreta­
járnais nos falia d’este sacramento, senão rem n’uin sentido methaphorico as palavras
em termos, que tomados á letra e n’um sen­ da instituição da Eucharistia.
tido natural, exprimem a presença real do Promettera Jesus Christo a seus discipu­
corpo e sangue de Jesus Christo, e não que los dar-lhes a comer seu corpo, seu verda­
o pao e o vinho sejam a figura do mesmo deiro corpo, e d’esfe divino sustento fazia
sagrado corpo e sangue. dependente a vida eterna. A tardança os
Para sermos authorisados a tomar as pa­ tinha suspensos, pois que o mesmo Senhor
lavras da Escriptura n’um sentido figura­ lhes havia já annunciado sua morte. A im­
do, e sustentar-se que a Eucharistia é a fi­ portância d’esta promessa, que elles tra­
gura do corpo e sangue de Jesus Christo, ziam sempre representada no seu espirito,
seria preciso ou que o mesmo Senhor nos não lhes permittia, pois, nem deixarem de
tivesse advertido não tomar as expressões conhecer seu complemento na instituição
de que se servia no sentido natural, ou que da Eucharistia, nem persuadirem-so que
tomadas n’elle exprimissem üm absurdo Jesus Christo lhes désse no pão do Sacra­
tão palpavel e grosseiro, que o homem mais mento a figura de seu corpo; portanto nao
BER 315

podiam deixar dc tomar as palavras da in­ tro cidades imperiaes que seguiam a opi­
stituição no seu sentido proprio c natural; c nião de Zuinglio, sc visse na necessidade
o Senhor, longe dc os haver prevenido de de induzir estas mesmas cidades a fazerem
que faltava d um modo allcgorico, de al­ uma protestação dc fé, cm que reconhe­
guma sorte os havia preparado a tomarem ciam que Jesus Christo déra a seus disci­
suas expressões no sentido litlcral. pulos a comer seu verdadeiro corpo, c a
Collocando-nos n’este ponto de vista, que beber seu verdadeiro sangue? Porque ra­
ê o unico como se deve olhar a questão, se zão, n’uma carta escripta ao duque de Bru-
colhe facilmente que MM. Claudio c Bas- nswick-Lunebourg, protestou cllc que cria
nage não passaram de formar sophismas em Zuinglio c /Eco lampadi o, que o verda­
para provar que o espirito dos apostolos deiro corpo c sangue de Jesus Christo es­
estava assaz preparado no sentido metha- tavam presentes na Eucharistia? 1
phorico,pela propria ceremonia daPaschoa, Emíirn, se é verdade, que o sentido figu­
que Jesus Christo celebrava, e pelo uso de rado se apresenta naturalmente ao espirito,
se servir dc allegorias c parabolas. Por­ porque% razão aquellcs mesmos povos aos
tanto, Jesus Christo e os evangelistas não quacs Bucer tinha prégado o sentido figu­
nos previnem para que devamos tomar as rado, tornaram ao dogma da presença real,
palavras da instituição cm um sentido fi­ logo que ellc e Cupiton, em attenção'aos lu-
gurado. théranos, deixaram de repetir constantc-
Em segundo logar, não se pódc dizer que mente aos seus ouvidos esta opinião? 2
o sentido lilteral c obvio das palavras da Mas dir-se-ha: Os apostolos não viam evi­
instituição Eucharistica encerrem contra- dentemente que comendo o pão que Chris­
dicção sensível ou absurdo palpavel, de sor­ to benzera, não podiam comer o corpo que
te que ouvindo-se estas palavras, o espirito tinham diante dc seus olhos?
deixe o sentido natural e passe ao figurado; Respondo que o espirito vê como impos­
porque então jámais teria entrado no dos sível somente aquillo que encerra cm si o
apostolos e christãos o dogma da presença sim c o não, isto é, o que affirma o que
real; além do que, nunca se poderia haver uma cousa é, e não é no mesmo tempo; mas
estabelecido ou ao menos se teriam visto não ha contradicção em que o corpo de Je
na igreja christà reclamações contra este sus Christo se ache debaixo das especics
grande dogma, e o maior numero se teria do pão c do vinho, porque é possível.
ligado ao sentido methaphorico. 1. ° Que o pão e o vinho se convertam em
Porém, quando Berenger atacou o do­ corpo c sangue de Jesus Christo, como o
gma da transubstanciação, toda a Igreja suppoem os que seguem a impanaçào.
cria na presença real, nem os protestantes 2. ° É possível que Deus fórme na sub­
até agora pòderam assignar um tempo em stancia do pão, c na do vinho um corpo
que eilc não fosse crido, ou um século em humano, a que se una a alma de Jesus
que a Igreja tivesse de fé que a Eucha­ Christo, como examinou M. Varignon.
ristia não era mais que a figura do corpo 3. ° Não se vê que seja impossível que o
de Christo. Se o sentido figurado é .o que corpo dc Jesus Christo so ache debaixo das
se offerccc ao espirito quando se ouvem as especies de pão e vinho, como é na reali­
palavras da instituição Eucharistica, por­ dade, e se fará vêr quando fallarmos da
que razão foi abandonado de todo o mun­ transubstanciação.
do Carlostadio, quaudo suppôz este sentido? Em segundo logar respondo: que os apos­
Porque razão Zuinglio consumiu mais de tolos conhecendo a omnipotcncia e verdade
quatro aniios para achar que as palavras: infallivel de Jesus Christo, não tinham ne­
Este è o meu corpo, deviam entender-se: cessidade de conceber se era possível o
Este representa o meu corjjo. 1 que ellc lhes dizia, para interpretarem seu
Se o sentido figurado é o que se olTcrecc discurso em um sentido natural e à letra.
ao espirito, que razão tiveram Luthero, e Crêram que com eíTeito o^pão se tornara
seus sequazes para tomar constantemen­ em corpo e sangue dc Jesus Christo, bem
te no natural c á letra'as palavras da in­ que não entendessem como isto podia ope­
stituição Eucharistica, bem como as tomam rar-se. E por ventura deixa de se crér o
os catholicos? Que razão houve para que mysterio da Trindade por ser impossível a
Bucer, a fim dc interessar os principes pro­ sua comprehensão?
testantes de Allemanha cm favor das qua-

1 Zningl., de vera religione, pag. 202. Resp. 1 Hospin. pag. 2,121. Perpet. de la Foi,
ad Luthcr. pag. 400. Ep. ad Pomeram, pag. ô. 4.
256. Perpet. de la Foi, t. 2, l. 1, c. 2. 2 Ibid. c. 17.
OlU U lit i

SEMPRE SE ENSINOU NA IGREJA O DOGMA Esta mudança de crença só se poderia


DA PRESENÇA REAL fazer de dous modos, ou de repente ou
pouco a pouco: a primeira supposição é
impossível, porque seria preciso que os
A celebração do mysterio da Eucharistia christãos depois de haverem crido até esse
fez sempre a parte principal do culto dos tempo que o corpo de Jesus Christo não
cliristãos desde o nascimento da Igreja. Os estava presente na Eucharistia, todos jun­
apostolos se ajuntavam para celebral-o, c tamente principiassem a crêr o contrario,
n ella estabeleceram a fórma da sua cele­ de sorte que havendo-so adormecido, por
bração. 1 assim dizer, na crença de que a Eucharis­
Benziam o pão, e diziam que este pão e tia era sómenlc a figura do corpo de Jesus
vinho eram o corpo e sangue de Jesus Christo, todos despertassem persuadidos de
Christo, e na presença do corpo de Christo que realmentc continha o seu corpo e san­
é que estava toda a importanda d’este Sa­ gue.
cramento, relativamente aos christãos. Esta E impossível que uma multidão de igre­
' era a base de sou respeito para com o Sa­ jas de differentes communhòcs, derramadas
cramento, e nada havia mais importante cm diversas regiões, inimigas e sem com-
que o conhecer perfeitamente o grau de re­ municação entre si, se ajustassem em re­
verencia que lhe era devido, pois que elle jeitar a crença da ausência real do corpo
dava a morte eterna aos que o recebiam de Christo na-*Eucharistia, que cilas tinham
indignamente. crido sempre, para professar a presença
Para prestar a este Sacramento o res­ real que' ninguem cria; e que ácerca d’este
peito que lhe era devido, c rccebel-o di­ ponto se pozessem do mesmo accordo sem
gnamente, era necessario saber-se se o que que se communicassem, e sem que produ­
se recebia era Jesus Christo na realidade, zisse alguma controversia esta novidade na
seu corpo e seu sangue, ou sua figura, c o sua doutrina.
seu symbolo; e portanto os apostolos e pri­ Se as igrejas christãs passaram da crença
meiros christãos não podiam estar indeci­ da ausência real do corpo de Christo á da
sos e indeterminados acerca da presença sua presença, é então preciso que esta mu­
do corpo de Christo na Eucharistia: elles dança se fizesse pouco a pouco, e, n’csta.
haviam de crêr ou a presença real. ou a supposição, deveria haver um tempo em
ausência real do corpo de Christo. que: «esta opinião não seria seguida mais
Todas as sociedades christãs separadas que por um limitado numero de pessoas;
da igreja romana, desde o quarto século que a este succedesso outro, em que o nu­
até Berenger, criam a presença real do cor­ mero fosse já muito crescido, e em que já
po de Christo na Eucharistia; os nestoria- igualasse o dos fieis que não criam a pre­
nos, armênios, jacobitas, cophtas. cthiopcs, sença real de Jesus Christo na Eucharistia:
e gregos ainda hoje a reconhecem . 2 Esta outro em que este sentimento prevalecesse
era a fé de todas as sociedades catholicas, em votos, bem que com opposição de grande
quando os berengarios atacaram a presença numero d’clles, quoainda estivessem aíTerra-
real, e esta crença geral entre os christãos; dos á sua antiga doutrina; e finalmentc ou­
portanto, é preciso ou quo ella seja tão an­ tro em que elle reinasse pacificamcnte e
tiga como a mesma Igreja, ou que todas as sém opposição, que é o estado em que os
sociedades christãs passassem da crença da calvinistas são forçados a confessar que se *
i ausência real á da presença real do corpo achava a crença da presença real, quan­
de Jesus Christo na Eucharistia. do Berenger principiou a excitar disputas
Se é certo que a Igreja não podia passar ácerca d’ella.» 1
da crença da ausência real á da presença Em qualquer das supposições, era im­
real, est*á demonstrado que a presença foi possível não se haverem levantado contro­
sempre n’ella ensinada, e professada desde versias na Igreja, entre os que criam a au­
os apostolos até Berenger; ora é sem dúvi­ sência real, e os que criam a presença real.
da que a Igreja não poaia passar da crença As mais pequenas mudanças na disciplina,
da ausência real, á da presença real do as mais leves alterações nos dogmas me­
corpo e sangue de Jesus Christo na Eucha­ nos explicados e menos conhecidos, as cau­
ristia. , saram sempre. Não houve erro nem he­
resia que não fossem impugnados no seu
1 Act. 2, v. 42, 46. principio; e seria possível que se ensinasse
2 Vejam-se estes artigos, em que a sua sem contradicção o dogma da presença real
crença sobre a Eucharistia é examinada em
•particular. i Perpet. de la Foi, vol. in-12, pag. 19
BER 317

n’uma igrcjaem que se tivesse crido a ausên­ tão grosseira, e não as convencesse da falsa
cia? Como se teriam mudado todo o culto, impressão que lhe haviam feito as suas
e todas as ceremonias, sem que ninguem palavras?
se oppozesse a esta mudança? Porém, des­ Poderá crér-se que todos os pastores fos­
de o tempo dos apostolos até Berenger, cm sem tão cegos e tão imprudentes que se
ue era universalmcnte crido na Igreja o servissem de palavras apropriadas para
ogma da presença real, nào se acha a me­ conduzir ao erro as suas ovelhas, sem que
nor prova de que alguém publicando que, jamais explicassem tão perigosos equívo­
Jesus Christo estava realmente na Eucha­ cos? E se estas palavras não eram de si
ristia, se lembrasse de propor uma opinião mesmas sujeitas a um mau sentido, nem
diversa da crença commum da Igreja do mal explicadas, senão por um pequeno nu­
seu tempo ou da Igreja antiga. mero de pessoas ignorantes, como seria pos­
Não se descobre que alguém fosse de­ sível que os fieis mais illustrados e que que-
nunciado publicamente aos bispos e conci- tidianamente conversavam com os simples,
lios por haver publicado do viva voz, ou por algumas das acções ou palavras d’cs-
por escripto, que Jesus Christo estava rcal- tes não descobrissem* o reprehensivej erro
mente na bòcca d’aquellcs que recebiam a em que estavam imbuídos, o que deveria
Eucharistia. Não se encontra que algum necessariamente produzir uma dilucidação,
dos padres, que algum bispo, qúc algum c não poderia deixar de ser conhecido dos
concilio se oppozcssem a esta crença, testi- pastores, os quaes immcdiatamente seriam
munhando que havia entre o povo quem obrigados a declarar cm público a má in-
grosseira e perigosamente se enganasse, telligencia que se havia dado a suas pala­
crendo que Jesus Christo estava presente vras, abusando-se d’cllas e tomando-se em
sobre a terra, da mesma sorte que no céo. um sentido falsissimo e inteiramente con­
Não se acha que algum escriptor ecclesias­ trario ás suas intenções?
tico, nem que algum prégador jamais se Porém qual seria* a razão porque este
queixassem de que em seu tempo se intro­ equívocos só entre o nono e decimo si
duzia uma idolatria perniciosa, c digna da culo entraram a enganar o mundo, con
condemnação, adorando a Jesus Christo, aflirmam os reformados, se na celebraçã
como realíuentc presente nas espeeies de da missa, e na pregação da divina palavn
pão c vinho. 1 nunca se serviu a Igreja d’outras para ex­
Porém dir-se-ha talvez que estas razões plicar este mysterio, senão das mesmas de
fazem ver na verdade que a crença da pre­ que antes se servia? E que cousa poderá
sença real se não iatroduziu por meio de imaginar-se mais digna de riso de que di-
controvérsia, nem por individuos que ex- zer-sc que as mesmas palavras fossem en­
pontaneamente mudassem de sentimentos, tendidas universalmcnte d’um mesmo mo­
ou pretendessem innovar e alterar a cren­ do em certo tempo, e que em outro se en-
ça da Igreja; mas que isso não prova que tedessem universalmente em um sentido
não podésse introduzir-se d’um modo ainda opposto, sem que ninguem attentasse n’es-
mais inseusivel, qual é, que os mesmos pas­ ta incohercncia?
tores da Igreja, persuadidos de que o corpo
de Christo estava cm figura na Eucharistia,
com tudo annunciassem esta verdade em TODOS OS PADRES ENSINARAM O DOGMA
termos tão ambiguos que os simples tomas­ DA PRESENÇA REAL
sem suas palavras em sentido contrario á
sua intenção, e entrassem na opinião da
presença real, como se ella fosse a dos pas­
tores. Extrahindo os sanctos padres a sua dou­
Mas bem que um tal equivoco podésse trina acerca da Eucharistia, do que ensi­
induzir no erro um pequeuo numero de naram os apostolos, para se julgar o seu
pessoas simples, é o ultimo remate do ab­ sentimento, só se deve examinar se elles
surdo querer persuadir que podessem en­ entenderam as palavras: Este c o meu cor­
ganar-se todos os christaos do universo, po., no sentido figurado ou no de realidade.
porque poderá imaginar-se sem extrava- Ora é certo que um e outro d’estes dous
gancia, que sendo mal entendidas as pa­ sentidos teem signaes e caracteres que lhes
lavras dos pastores por um grande numero são proprios, e que se devem encontrar nas
de pessoas de todas as partes do mundo, expressões dos padres, os quaes sómente
nenhum d’ellcs descortinasse esta illusão fallaram a este respeito na conformidade
cTaquelle dos dous sentidos que tinham no
1 Perpet. de ia Foi, vol. in-12, pag. 23. seu espirito.
348 BER
Quando se crê que as palavras da insti­ mos produzir aqui as provas d’is to, mas
tuição Eucharistica—Este é o meu corpo— achar-sc-hão na Perpêtuité de 1a Foi. i
exprimem estar o corpo de Jesus Christo 3. ° Os padres reconheceram que a Eu­
realmente presente, tomam-sc n’um senti­ charistia produzia a graça, e aitribuiram
do natural, que sem trabalho se oITcrcco a efficacia do sacramento á presença real
ao espirito de todos, e é forçoso que isto do corpo de Christo. É outro ponto que na
assim seja, segundo os princípios dos calvi- Perpêtuité de la Foi se segue até á demon­
nistas, uma vez que elles asseveram que a stração. 2
Igreja, sem controversia alguma, passara 4. ° Os padres fallaram sempre da Eucha­
da crença da ausência real á da presença ristia como d’um sacramento que continha
real, pelo unico meio das palavras— Este é. rcalmcnle o corpo c sangue de Jesus Christo.
o meu corpo;—porém tomadas as mesmas 5. ° Para conhecermos o sentimento dos
no sentido natural, exprimem uma eousa padres acerca da presença real do corpo
incomprehensivel; portanto o sentido litte­ de Christo na Eucharistia, não devemos res-
ra! c da presença real é facil, e a eousa que tringir-nos a um pequeno numero das suas
elle exprime é diflicilima. passagens; havemos de considerar cm ge­
Quando se crê que estas palavras—Este ral todos os legares cm que elles tractam
é o meu corpo—significam—Esta é a figu­ d’esta materia. Ora é indubitavel, por infi­
ra do meu corpo—este sentido é diílicili- nidade de passagens e de razões que pro­
mo de descobrir, e o espirito naturalmente duzem uma total certeza, que os padres
o repugna; c para prova não empenhamos dos seis primeiros séculos tomaram as pa­
mais razões do que o que dissemos de Zuin- lavras da instituição da Eucharistia no sen­
dio, que esteve quatro annos persuadido tido proprio c littcral; é pois sem dúvida
e que o corpo de Jesus Christo não estava que o figurado nunca lhes veio á mente, e
3almente na Eucharistia, antes de poder elles reconheceram uma verdadeira con­
char que o sentido das palavras— Este c versão da substancia do pão na do corpo
meu corpo—era—Esta é a figura do meu de Jesus Christo.
corpo;—portanto é certo que o sentido fi­ Portanto, ainda que nos sanctos padres
gurado das palavras de Jesus Christo é dif- se encontrassem algumas passagens em
ficilimo e o mais inverso. Mas é sem dú­ que elles dessem á Eucharistia os nomes
vida que elle exprime uma eousa facil de de—signat, imagem, figura, — não devera
comprchender, isto c, que o pão e o vinho d’aqui concluir-se que elles não criam na
são os symbolos do seu corpo e sangue c presença real. 3
podem produzir na alma eíTeitos saudá­ 6. ° Como as especies do pão e do vinho
veis, o que nào c mais difficil d’alcançar ainda existiam depois da consagração, não ó
que a producção da graça por meio do ba­ impossível que os padres ainda depois d’ella
ptismo. dessem á Eucharistia o nome de pão c vi­
Portanto o sentido dos catholicos é muito nho: porém elles exprimiram os symbolos
facil nos termos, mas exprime uma eousa Eucharisticos por idéias populares e não
diíTlcil de conceber; d sentido dos calviriis- phylosophicas; e claramente se vê servi­
tas pelo contrario é opposto ás regras da rem-se destas expressões para se coufor-
linguagem, e por consequência muito dif- marem á linguagem do povo, por quanto
ficultoso de conceber, mas exprime uma affirmam constantemente que o pão c o vi­
eousa que o não é, antes muito facil. nho se convertem no corpo c sangue de
1. ° Os sanctos padres nunca cmprehon- Jesus Cliristo.
deram explicar o sentido d’estas palavras: 7. ° Pelas palavras da consagração, a
—Este é o meu corpo, —c bem que sempre substancia do pão e do vinho no sentir dos
explicassem com grande cuidado todas as padres, se convertem na do corpo dc Christo;
mcthaphoras, jamais escreveram eousa al­ porém este não se vê immediatamenle: nos­
guma para obviar que os fieis não as to­ sos sentidos só véem as especies dc pão e
massem no sentido dos catholicos, c por­ de vinho;, assim depois da consagração, el-
tanto créram que as palavras—Este é o las são os signaes ou o typo do corpo dc
meu corpo— deviam tomar-se no sentido Jesus Christo.
natural, e á letra. Portanto, podem os padres haver dado
2. ° É certo que todos os padres olha­ aos symbolos Eucharisticos o nome de si-
ram a Eucharistia como um mysterio in­
comprehensivel, como um objecto de fé. V T. 2, l 3 e 4. Nat. Alex. Dissert. 12
Sempre recorreram á omnipotoncia divina in sxc. 1 1 .
para proval-o, o que certamente não tem 2 Perpét. de la Foi, ibid. I. õ.
logar no sentido dos calvinistas. Não pode­ 3 Perpét. de la Foi, t. 2, l. 1, c. 1.
BER 319

:gnaes do corpo c sangue de Jesus Christo, mos pela maior parte abandonaram. Va­
sem que todavia deva d’aqui concluir-se mos pois reduzir aos pontos mais simples
que nao criam na presença real. 1 os seus principaes argumentos.

DA TRANSUDSTANCIAÇÃO CONTRA PRIMEIRA OBJECÇÃO


BERENGER E LUTHERO

Presumem os protestantes que seja ab­


Pelas palavras da consagração, o pão e surdo suppór-se que o corpo de Jesus Chris­
o vinho são convertidos no corpo e sangue to, que era um corpo humano ao menos
de Jesus Christo, pois que por ellas o mes­ de cinco pés, sc encerre na mais pequena
mo corpo e sangue ficam realmente pre­ partícula sensível do pão ou do vinho, por­
sentes na Eucharistia, de sorte que o pão que então seria preciso que as partes do
e vinho se convertem em corpo c sangue seu corpo se compenetrassem, c que por
de Jesus Christo. consequência perdesse a materia a sua ex­
0 corpo ’e sangue de Jesus Christo cm tensão c impenctrabilidadc, o que é impos­
que o pão e vinho se convertem, é o mesmo sível, pois que a mesma omnipotencia di­
corpo que por nós se entregou, é o mesmo vina não póde despojar uma cousa da sua
sangue derramado na cruz por nossos pcc- essencia.
cados, o que não póde dizer-se do pão e Respondo— 1.°, que esta difliculdade se
do vinho sem grande absurdo. 2 desvanece no systema que suppõe que a
Portanto, depois das palavras da consa­ extensão é comp*osta de pontos inextensos.
gração, já na Eucharistia não ha pão nem Respondo—2.°, que o mais que poderi?
vinho, pois se converteram cm corpo c san­ d’ahi concluir-se é que a essencia da ma
gue de Christo. teria não consiste nem na extensão, nen
Esta conversão se chama transubstan­ na impenetrabilidade, como Descartes c
ciação, e bem que similhanle dogma não se Gassendi o pensaram, mas em alguma
exprimisse pela mesma palavra senão nos cousa que nós não conhecemos.
tiltimos séculos, comtudo é conhecido des­ Respondo—3.°, que não está provado ser
de que se conhece a presença real. O con­ impossível que o corpo d’um homem de
cilio latcranense cm 121o, o" de Constança cinco pés sc reduza a um espaço igual ao
em 1414, os de Florença e o tridentino o das especiesEucharisticas: por ventura uão
definiram. Todos os padres e todas as li- se condensa o ar até ao ponto de o fazer
thurgias do sacrificio da missa supplicam occupar um espaço quatro mil vezes me­
que o pão e o vinho se convertam no cor­ nor do que clle occupa no seu estado na­
po e sangue de Jesus Christo. 3 tural? E se a industria humana póde en­
A palavra transubstanciação exprime curtar ou dilatar o corpo tão prodigiosa­
optimamente esta conversão, e o seu uso mente, não poderá Deus reduzir um corpo
não deve dosapprovar-sc por não se achar humano á grandeza das cspecies Eucharis-
na Escriptura, pois que também não se en­ ticas?
contram n’ella as palavras trindade c con-
substancialidade, as quaes comtudo os pro­
testantes não condemnam. Se o concilio la- SEGUNDA OBJECÇÃO
teranense mencionado, podia consagrar a
palavra transubstanciação, o nyceno con­
sagrou igualmente o termo consubstanciai. ' Se o pão e o vinho se convertessem no
Os lutheranos c calvinistas tão oppostos corpo e sangue de Jesus Christo na Eucha­
acerca da presença real, se colligam contra ristia, o mesmo sagrado corpo c sangue
a transubstanciação, impugnando este do­ forçosamente haveríam d’estar debaixo das
gma por infinidade de sophismas de logica, especies Eucharisticas; e como a consagra­
de grammatica, e cujo exame seria igual­ ção sc faz no mesmo tempo em diversos
mente inútil c fastidioso, e que elles mes- logares, seria preciso que o corpo de Jesus
Christo, aquelle mesmo que está no céo,
se achasse em muitos logares ao mesmo
1 Perpét. de la Foi, t. i, l. 8, et t. 3, l tempo, o que é absurdo.
3, c. 5. Natal. Alex. Dissert%12 in sccc. 11. Respondo não ser impossível que um
2 Math. 26. Marc. 24. Luc. 22. Paul ad corpo esteja ao mesmo tempo em aiversos
Corinth. 21. logares, que por consequência não é im­
3 Perpét. de la Foi, t. 2, c. 6, pag. S86. possível que o de Jesus Christo esteja no
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ceo c cm toda a parte, cm que sc consa­ stanciarâo destroe todos os fundamentos
gra. Eis-aqui a minha prova: da religião christã. A religião é, diz-se
Um corpo em movimento, existe em fundada cm milagres e sobre factos que
muitos logares durante um tempo deter­ sómente se conhecem pelo testimunho dos
minado. Um corpo, por exemplo, que com sentidos; d’esta maneira, suppôr-se que
uma grande velocidade, no espaço d’um póde enganar-nos o testimunho constante
segundo, corre a distancia d’um pé, acha- c unanime dos sentidos, é estremecer os
se cm sessenta pés differentes, se se move fundamentos da religião; e comtudo é isto
por espaço d’um minuto. mesmo o que os catholicos são forçados a
Porém, sc em logar d’um grau de velo­ confessar no dogma da transubstanciação,
cidade, lhe concedcssemos sessenta, corre­ porque os sentidos altestam constantes e
ría este sessenta pés em um segundo, e unanimemente a todos os homens que a
conseguintemente sc acharia em sessenta Eucharistia, depois da consagração, ainda
logares differentes durante um segundo. é pão c vinho; não obstante o dogma que
Sc em logar de sessenta graus de velo­ nos ensina que com effcilo já alli não ha
cidade lhe concedcssemos cento c vinte, nem uma cousa nem outra. Esta objecção
se acharia n’estes sessenta logares ou par­ pareceu victoriosa aos mais hábeis profes­
tes d’cspaço durante um terceiro: assim tantes. 1
auginentaiído a velocidade até o infinito, Responde-se a ella— 1.°, que nós não co­
nào ha porção de tempo tão pequena du­ nhecemos os corpos senão por impressões
rante a qual não possa um corpo estar em excitadas na nossa alma; que estas podem
muitos logares: ou por outra, a rapidez do excitar-se independentemente dos corpos,
movimento póde ser tal, que na mesma c por uma operação immediata de Deus
pequena duração imaginável corra um sobre a nossa alma; e, portanto, não ha
corpo um espaço concedido, e se ache por connoxão necessaria entre o testimunlio
consequência cm muitos logares, durante dos sentidos c a existência dos objectos,
o mais pequeno espaço de tempo que póde cuja existência elles nos relatam. A cer­
imaginar-se. teza do testimunho dos sentidos depende,
A mais pequena porção imaginável de pois, da que nós temos de que Deus não
tempo é para nós um instante indivisível, excita em nós, ou não permitte que espí­
portanto é possível qufc o mesmo corpo ritos superiores a nós excitem em nossa
esteja não só relativamente a nós, mas alma as impressões que attribuimos aos
rcalmcnte em muitos logares no mesmo corpos.
tempo, e para isto não é preciso senão jul­ Assim é possível que Deus faça sobro
gar a distancia limitada dos logares e a nossa alma as impressões que nos attri­
velocidade infinita. buimos ao pão e ao vinho, bem que já alli
Além d’isto, o movimento, no sentir de não haja um a nem outra cousa, e qual­
muitos philosophos, não é mais que a exis­ quer que assim o suppozesse, não enfra­
tência, ou a creação successiva de um quecería- a certeza do testimunho dos sen­
corpo em differentés pontos do espaço, e a tidos, se se lembrasse que o mesmo Deus
creação é um.acto da vontade divina; ora, n’esta occasião nos advertira que não crés­
quem duvidará que a vontade divina possa semos nos sentidos. Ora isto é o que sus­
crear tão prompta e rapidamente o mesmo tentam os catholicos; porque tendo feito
corpo, e es.te corpo exista ao mesmo tempo Deus conhecer que pela consagração o pão
em muitos logares, seja qual fôr a distan­ e o vinho se convertiam no corpo e sangue
cia, e por mais curta que seja a duração? de Jesus Christo, elle nos advertiu suffi-
Não é, logo, repugnante que Deus faça cientcmente que não nos confiássemos nesta
existir um corpo em muitos logares ao circumstanda no testimunho dos sentidos.
mesmo tempo, e que este corpo ahi seja Porém esta circumstanda em que Deus
transportado, ainda mesmo sem passar pe­ nos adverte que não demos credito aos
los intervallos que os separam. sentidos, longe d’enfraquecer o testimu-
Quanto ao mais, não pretendemos expli­ ■nho dos mesmos, o confirma relativamente
car o mysterio da transubstanciação, mas
tão sómente patentear que não se prova i Claude, Réponse au second Traitc de
que elle repugne á razão, o que basta para la Perpèlaitc de la Foi, premiere partie, c.
fazer cahir as objecções dos protestantes. 5 , pag. 75. Abbadie, Ré/lexion sur la pre-
sence réclle, JJ385, tn-12; Traité de la Re-
TERCEIRA 0BJECÇÃ0 ligion Refonnêe, t. 1, sect. I. Tillotson,
Sei-m., t. 5. Réjlexions anciennes et nou-
Insiste-se em que o dogma da transub- velles sur VEucharistie, 1718. Genève.
BER 321
a todos os objectos acerca dos quacsjnao quece a verdade do seu testimunho sobre
fez aos homens uma similhante advertên­ os milagres e factos que servem de prova
cia; tacs são a existência dos corpos, o á religião christã.
nascimento, milagres, a paixão e resurrei- BEHNÀRDO DF. THUIUNGÍÀ— e r a UD1 C r c m i-
ção de Nosso Senhor, objectos que conser­ t a , q u e , p e l o m e a d o d o d é c i m o s é c u l o , an-
vam por consequência o mais alto grau de n u n c i o u e s t a r p r o x i m o o fim d o m u n d o .
certeza, ainda nos princípios dos catholi­ Fundava a sua opinião n’uma passagem
cos e no dogma da transubstanciação. 1 do Apocalypse, que diz que «passados mil
Responde-se cm segundo logar, que o annos e mais, a antiga serpente se soltará,
testimunho dos sentidos acerca dos symbo- e as almas dos justos entrarão na vida, e
los Eucharisticos, nem é falso cm si mes­ reinarão com Jesus Christo.»
mo, nem contrario ao dogma da transub­ Pretendia Bernardo que esta serpente era
stanciação. o Anti-Christo, e estando proximo o anno de
Attestam os nossos sentidos que depois 960, a vinda do Anti-Christo era proxima, e
da consagração se acha aos nossos olhos por consequência o fim do mundo.
e em nossas mãos um objecto que tem to­ Para dar mais pêso á sua opinião, a for­
das as propriedades do pao e do vinho; po­ tificava com um discurso ridiculo, mas que
rém não nos aííirmam que não podia fa­ para muitos foi convincente: asseverava
zer-se, nem com eíTeito se fizera uma con­ que quando o dia da annunciação da San­
versão interior da substancia do pão c do vi­ cta Yirgem cahisse á sexta feira sancta, se­
nho na do corpo e sangue de Jesus Christo. ria um signal certo de que o fim do mundo
Esta mudança não é da alçada dos senti­ estava proximo. Ernfim,o eremita Bernardo
dos; o seu testimunho nada d’isto pódc di­ assegurava que Deus lhe revelara que o
zer, e por consequência não é contrario ao iyundo acabaria cedo.
dogma. O espanto que causou nma pintura viva
Que é pois o que nos dizem os sentidos do fim do mundo, a passagem do Apoca­
de positivo áçerca da Eucharistia depois lypse, a segurança com que Bernardo ai
da consagração? Nenhuma outra cousa se­ nunciava que Deus lhe havia revelado
não que aos nossos olhos se apresenta um fim do mundo, persuadiram infinidade
objecto que tem as propriedades do pão e pessoas de todos os estados; os mesm
do vinho; mas por ventura é impossível pregadores o annunciaram nos seus st
que Deus faça que os raios da luz que ca- mões, e fizeram assustar todos os animo
hem sobre 6 espaço, que occupam o pão e Succedcu um eclipse do sol n’cssc tempo,
vinho, sejam reflectidos depois da consa­ todos esmoreceram crendo que estava aca­
gração como o eram antes d’ella? Será im­ bado o mundo, c que o dia do juizo final
possível que a evaporação das partes in­ era chegado; cada um fugia c pretendia
sensíveis que faziam o cheiro do pão e do esconder-se nos rochedos, nas grutas, e nas
vinho antes da consagração, se hajam con­ cavernas.
servado sem se dissiparem? Será impossí­ A volta da luz do sol não soccgou os es­
vel que uma força de repulsão espalhada píritos. Gcberga, mulher de Luiz do Ultra­
em roda do corpo e sangue de Jesus Chris­ mar, não sabia que fizesse: empenhou os
to, tome a fôrma das especies Eucharisti- theologos para que derramassem suas lu­
cas, e produza á solidez que alli descobrem zes n’esta materia, e então appareceram
nossos sentidos? Não, sem dúvida; todas diversos escriptos para provar que o tempo
estas cousas são possíveis, e se ellas exis­ do Anti-Christo estava ainda afastado.
tissem, formariam um objecto tal qual nos­ Finalmentc como no principio do século
sos sentidos nol-o representam. décimo primeiro ainda o mundò existia
Nossos sentidos portanto não nos enga­ como no decimo, o erro annunciado pelo
nam denunciando-nos que ha á nossa vista eremita Bernardo se dissipou.
um objecto que obra sobre nossos orgãos, .J3ERYLLO— bispo de Bostres, na Arabia,
como n’ella operam o pão e o vinho; mas depo!s"üe haver governado algum tempo a
nós nos enganaríamos julgando que este sua igreja com bastante reputação, cahiu
objecto é pão, uma vez que os nossos sen­ no erro. Creu que Jesus Christo não exis­
tidos não attestassem que não pedia ser ou­ tira antes da encarnação, tendo para si que
tra cousa. só principiara a ser Deus quando nascera
0 dogma da transubstanciação não sup- da Virgem, e accrescentava que clle não
põe que nossos sentidos nos enganem acer­ fòra Deus porque o Padre n’cllc habitava
ca da existência dos objectos, nem enfra- como nos prophetas, que é o erro d’Arte-
mão.
1 Pérpetuité de la Foi, t. 3, l. 7, c. 11. Empenharam Origenes para que con-
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rénciasse com Bcrillo; esto foi a Bostrcs, c draL notável. Estes presumidos prophetas
com elle se demorou até profundar bem a eram quasi sempre grandes impostores:
sua opinião; e conhecida que foi lh’a refu­ ainda que é difiicil que os homens igno­
tou, c Bcrillo convencido pelas razões d’Ori- rantes o sejam por muito tempo com sim­
genes, abandonou immediatamente o seu plicidade, e não se tornem enganadores,
erro . 1 logo que a sua profissão os pódc conduzir
Taes são os direitos da verdade sobro o á fortuna.
espirito humano, quando ella nos é oíTere- N’estos séculos de ignorância c supersti­
cida pela razão, pela doçura e caridade. ção brotaram alguns germens do erro dos
Estes mesmos foram os meios de que Ori- paulicianos, que subsistiam ainda, e se al-
genes se serviu para extinguir o erro dos iiaram com os dos messalianos.
arabianos, que negavam a immortalidade Basilio, o medico, fez uma miscellanea
da alma; um zelo ardente, impetuoso, e d’cstes erros. Era elle um velho que tinha
pouco esclarecido teria irritado Bcrillo. a já o rosto dcscahido, e que andava vestido
scientia e doçura de Origenes o arranca­ de monge. Logo no principio fez doze dis­
ram do erro, e o tornaram do partido da cipulos, a quem chamou seus apostolos, os
verdade . 2 quaes divulgavam sua doutrina, mas com
UííASa^-cra judeu; passou á seita dos grande cuidado e circumspecção.
vaíenlimanos, e ajuntou ao systema de Va­ 0 imperador Aleixo Commeno quiz vêl-o,
lentini algumas prácticas judaicas, ás quaes fingiu ser seu discipulo, e assim o obrigou
era aíTerrado; tal é a celebração da Pas- a patentear-lhe toda a sua doutrina. Tinha
choa aos quatorze da lua. 3 Aleixo mandado pôr por detraz d’uma cor­
BgGOMiLos— Este nome é composto de tina um secretario que escrevia tudo o que
d u asp am ras esclavonias, que significam dizia Basilio. Este artificio do imperador
solicitadores da misericórdia divina. 4 foi feliz, porque Basilio lhe expôz sem dis­
Deu-se a certos hereges da Bulgaria, dis­ farce, todo o seu systema.
cipulos de um medico nomeado Basilio, o Então o imperador fez convocar o se­
qual no tempo do imperador Aleixo Com- nado, os ofliciaes militares, o patriarcha, e
meno, renovou os erros dos paulicianos. o clero: leu-se n’esta assembléia o rnanu-
A guerra dos barbaros, e a perseguição scripto que continha a doutrina de Basilio,
dos iconoclastas, tinham quasi cxtincto os a qual elle não sómente não negou, mas se
estudos no imperio grego, os quaes se re­ offereceu a sustentar quanto havia dito, de­
cuperaram algum tanto pelos cuidados dc clarando estar muito prompto para soíTrer
Phocio, no tempo de Basilio Macedonio, no o fogo; os tormentos mais cruéis, e a mes­
de Leão, o philosopho, c no de seus succes­ ma morte, porque se lisongeava de que os
sores. anjos de tudo o livrariam.
Porém quando o espirito humano volta Fizeram-se todos os esforços que eram
para a luz, os seus passos são talvez ainda possíveis para desimaginal-o do seu erro,
mais lentos do que os primeiros que tinha mas tudo fruslradamente; foi condemnado
dado para a verdade. Fallava-se e escre- ao fogo. O imperador approvou a sentença,
via-se melhor que nos séculos precedentes, e depois de feitas novas diligencias para
mas a superstição e o amor do maravi­ convertel-o, se accendeu uma grande fo­
lhoso, inseparáveis da ignorância, domina­ gueira no meio do Ippodromo: 1 collocou-se
vam ainda em quasi todos os espíritos. Os uma cruz do outro lado, e se disse a Basi­
imperadores subiam ou desciam do throno lio que escolhese a cruz ou a fogueira.
sempre por um presagio; sempre havia em Requeria o povo que se condemnassem
qualquer ilha um monge famoso pela aus­ ao mesmo supplicio os seus sectarios, mas
teridade de sua vida, que promettia o im­ Aleixo os fez conduzir a uma prisão, aon­
perio a algum cabo de guerra, e o novo de alguns renunciaram ao seu erro; porém
imperador o fazia bispo d’alguma calhe- outros houve que não se poderam fazer
mudar de sentimentos. É verosimil que o
1 artificio de que o imperador usou a res­
Martenc, amplissima collect. t. 4, pag.
860. AbbOj Apolaget. ad calcem codicis ca­ peito de Basilio, e o rigor com quo foi con­
nonum veleris'Ecclesiae Romance, á Fran­ demnado e executado, contribuissem gara
cisco PithaéOj pag. 401. Hist. Litteraire de a obstinação dos seus discipulos; e não é
Fi'ance, t. 5, pag. 13. certo que aquelles que abjuraram os seus
z Euseb. I. 6, c. 20, 33. erros, os abjurassem sinceramente.
3 Auctor Append. apud Tert. de Pfm s-
cript. c. 53. 1 Ippodromo era uma especie de pica­
* Ducong. Glossaire. deiro.
CA13 323
Um professor de Wirtcmberg dou á luz caldeus
•uma historia dos bogomilos em 1711: so­
bre esta seita se podem vêr Baronio, Spon­
de, Eutymio, e Anna Commena. 1 Tinham os caldcus conservado a crença
b o n o s o — bispo do Sardica, atacava como d’um Ente Supremo, que existia por si mes­
Juvcniano a virgindade perpetua da Vir­ mo, que produzira o mundo, e que o go­
gem Sanctissima, asseverando que ella ti­ vernava. Como nada havia tão importante
vera outros filhos depois de Jesus Christo, á curiosidade humana como o conheci­
de quem cllc negava também a divindade mento d’esle ente, c o das leis ás quaes elle
como Photino; de sorte que os photinianos submettera o inundo, os caldcus se entre­
foram depois chamados boiyma^os. Foi con- garam a estes objectos muito mais que os
demnado no ccnciiio de Capua, congregado outros povos, determinados verosimiImcnte
para extinguir o scisma de Antiochia. pela belleza do clima, pela tranquillidade
BROUN!stas—Ramo dos presbyterianos, da sua vida, e também por uma esppeiede
discipulos do Brown. Veja-se o artigo Pres- inquietação que aos mesmos objectos arre­
byterianos. bata o entendimento humano, e cujas cir­
BUgD&s—Chamava-se assim Thcrebinto; cumstandas suíTocam c descobrem a sua
foi o mestre de Manes: veja-se este artigo. actividadc. Elles pois emprehenderam ad­
c a b a l a ou c a b b a l a — como se escreve quirir estes conhecimentos com os soccor-
em nebreu, no uso ordinário quer dizer ros da imaginação, ou para melhor dizer \
tradição, mas significa a arte de conhecer foi a mesma imaginação a que fundou o )
e explicar a essencia e operações do Ente systema da theologia, e*da cosmogonia cal-
Supremo, das potências espirituaes, c das daica.
forças da natureza, e de determinar a ac­ Como o Ente Supremo era a origem dr
ção das mesmas por figuras symbolicas, exislencia c da fecundidade, créram os ca'
pela ordem em que são dispostas as letras deus ser elle no universo com pouca dilTt
do alphabeto, por combinações de núme­ rença o mesmo que é o sol a respeito d
ros, e inversões das letras*da Escriptura, terra: portanto imaginaram o Ente Supre
c por meio dos sentidos occultos que n’ella mo como um fogo ou como uma luz; mas
se presumem descobrir. não permittindo a razão que Deus fosse
O modo como chegou o entendimento visto como um ente material, elles o tive­
liumano a similhantes idéias não se ha de ram por uma. luz infinitamente mais bri­
procurar entre os cabalistas, c é cousa lhante, mais activa e mais subtil que a luz
muito obscura entre os mesmos authores do sol; d’ordinario assim concilia o enten­
que fallaram da cabala. Porém sem que dimento humano a razão com a imaginação.
entremos cm taes averiguações, expore­ Uma vez que os caldeus conceberam o
mos nossas conjecturas áccrca da origem Ente Supremo como uma luz que a tudo
da cabala, e depois fallaremos da mistura dava existência, vida, e intelligencia, con­
dos seus princípios com os do Christianis­ ceberam logo a creação do mundo como
mo, feita pelos primeiros hereges, e do se­ uma emanação da mesma luz. Estas ema­
quito que teve nos séculos posteriores. nações iam perdendo a actividade á medida
do que se afastavam da sua origem; pelo
decremento successivo d’esta actividadc
HA.ORIGEM DA CABALA perderam a sua leveza, condensaram-se, e,
por assim dizer, entraram a carregar umas
sobre as outras, e assim se tornaram ma-
-■ Crémos que entre os caldcus lambem a teriaes, e formaram todas as especies de
cabala tirou os seus princípios da philoso­ entes que o mundo encerra.
phia de Pythagoras e Platao. As heresias D’esta maneira, segundo o systema cal-
dos tres primeiros séculos em grande parte daico, o principio das emanações ou a In- :
nasceram da mistura d’estes diversos prin­ telligcncia Suprema era rodeado d’uma luz
cípios com os dogmas do Christianismo: o c ^ r,esplgpd,ar_e.j)ure.za excedem quanto
desenvolvimento d’estes princípios talvez se póde imaginar. 0 éspáço luminoso'que
recreará o espirito áquelles que desejam rôdeia ò principio ou origem das emana­
instruir-se na historia da religião e do en­ ções está cheio d’intelligencias puras, e bem-
tendimento humano. aventuradas. Immediatamente por baixo da ;
habitação das puras intelligencias principia ?
1 Eutymius Panopl., part. 2, tit. 23,o mundo corporeo ou o erapyreo: é esto u m ;
Anne Commène, Baron, et Sponde, ad an. espaço immenso, illüminado pela luz que;
1148. sabe immediatamente do Ente Supremo, -
*
m CAB
cheio d’um fogo infinitamente menos puro união; e porque a materia se considerava
jq ue a luz primitiva, mas indivisivelmente sem actividadc, e absolutamente incapaz dc- '
|m a is subtil e menos denso que todos os mover-sc por si mesma, a produeçao dos
I corpos. Por baixo do empyreo é o ether ou fruetos, a formação do corpo humano, e to­
| um grande espaço cheio d’um fogo mais dos os dons da natureza, foram attribuidos\
:• grosseiro que o do empyreo, mas que o a espíritos beneficos: elles regiam o sol na \
fogo do mesmo empyreo aquenta. Depois sua carreira, distribuíam as chuvas, fecun- \
; do ether estão as estrellas fixas espalhadas davam a terra, c se lhes attribuiam forcas /
por um espaço immenso, aonde as partes e ministérios differentes.
mais densas do fogo ethcrco se conchega- N ’cste mesmo espaço, que está por baixo-
ram, c formaram as estrellas. O mundo da lua, e na alta noite se presentiam for­
dos planetas se segue ao céo das estrellas mar as tormentas; os relâmpagos rasgavam
fixas, e é o espaço que encerram o sol, a a nuvem, e d’csta despedia o raio que as­
• lua, e os planetas. N’cstc espaço se acha a solava a terra: creu-se que havia espíritos
ultima ordem dos entes, isto e, a matéria, tenebrosos, e demonios materiaes espalha­
■que não sómente é destituída de toda a acti- dos pela almosphera.
vidade, mas que também recusa as impres­ Muitas vezes lá do centro da terra, em
sões e movimentos da luz. que tudo são trevas, se viam surgir turbi­
Havia pois entre o Ente Supremo e os lhões dc fogo, c os vulcões a faziam estre­
que estão sobre a terra uma cadeia d’estes mecer: (fagui se coljjgiii_que no centro da
intermedios, cujas perfeições diminuíam á terra halhlavanid criTõn iosi).iuiotençiasi{ue
nedida da sua distancia do primeiro ente. produziam taes phenpnienos; e porque a
. Intel ligcncia Suprema havia communi- matéria'se cria sem actividade, e incapaz
ído ás primeiras emanações, no grau de movimento proprio, a estes genios se
iais eminente, a intclligencia, força c fe- attribuiram todos.
mndidade, e todas as outras participa­ Como parecia qné as tormentas, os vul­
vam mais ou menos d’cstes attributos, se­ cões e trovões se destinavam a perturbar a
gundo estavam afastados da Intelligcncia felicidade humana, d’aqui se inferiu serem
Suprema. maleficos, e inimigos do homem os demo­
£ Como as partes luminosas são espíritos nios que os produziam; attribuiram-se-lhes-
^ n o systema das emanações, os diversos cs- todas as catastrophes adversas, e se imagi­
paços luminosos que se estendem desde a nou uma cspecic de hierarchia nos maus
lua até á habitação da Intclligencia Supre­ genios, como já nos bons se linha imagi­
ma estão cheios* d’espiritòs de differentes nado: mas ácerca da razão porque alntel-
ordens. O espaço que está por baixo da lua ligencia Soberana, essencialmente boa, não
c illumina a terra; portanto é este espaço subjugava debaixo do seu poder estes gê­
{■d’onde os espíritos descem sobre cila. Es- nios maleficos, os juizos se dividiram.
« te s antes de descerem abaixo da lua se Créram uns que sendo indecoroso á In-
{unem a um corpo ethereo que lhe serve telligencia Suprema o luctar ella mesma
'dé vehiculo, e por meio do qual podem vêr contra os maus genios, se incumbira esta
Se conhecer os objectos que encerra o mun­ guerra aos genios bons: outros que não
do sublunar. estes genios, maus por natureza, não po­
.. Segundo os caldeus as almas humanas diam ser destruídos, c que não podendo a
?não eram mais que estes espíritos que com Soberana Intelligcncia aniquilaU>s,nem col-
8'seus corpos cthereos se uniam aos fetos tili­ ligil-os, os tinha exterminado para o centro
is manos. Como o dogma da transmigração da terra, e para o espaço que ha por baixo
era uma consequência natural d’estes prin­ da lua, aonde elles exerciam seu imperio e
cípios, suppozeram os caldeus que as al­ malignidade, e que para defender o genero
mas unidas aos corpos por vontade do Ente humano de tantos, tão perigosos e formidá­
Supremo, soltas que fossem pela morte de veis inimigos, enviára ao mundo terrestre
um, entravam em outro. espíritos beneficos, que protegessem os ho­
O mens contra os demonios materiaes.
entendimento humano sempro inquieto
ácerca do seu destino, investigou o fim que Como os bons c maus genios tinham mi­
se propozera o Ente Supremo, unindo os nistérios particulares e graus diversos dc
espíritos ao corpo humano: a ideia da §ua poder, deram-se-lhes nomes que exprimiam,
bondade, a elegancia do espectáculo da na­ suas funeções e poderes.
tu reza , e a relação que tem tudo o que a Yisto que os espíritos beneficos estavam
terra produz com o prazer do homem, de­ encarregados de socoorrer os homens nas
ram occasião a colligir que a alma era suas necessidades, era muito necessario
unida ao corpo a fim de ser ditosa, por esta que elles entendessem a linguagem hu-
CAB 32o
mana quando fosso implorado o seu au­ DA CABALA NASCIDA DOS PRINCÍPIOS
xilio. Creu-se que os homens tinham gê­ DE PYTHAGORAS
nios protectores contra todas as infelicida-
des, e cada um dos gênios seu nome, que
bastava pronunciar para lhes fazer patente Os philosophos gregos, pela maior parte,\
a necessidade que havia do seu soccorro; nào viram mais que movimento e materia j
c a fim de o terem certo, se excogitaram os cm todos os phenomenos que pelos cald eu ^
nomes que mais podiam convir aos genios eram altribuidos aos genios. ^ ■
beneficos, fazendo-lhes conhecer as necessi­ Corno os ealdeus, seus mestres, reco- f
dades humanas: e como os nomes nào sào nhcceu Pythagoras a existência d’uma In-
scnào combinações das letras do alpha­ tclligencia Suprema que tinha formado o
beto, se creu encontrar os dos gênios, de mundo; e pensava que a ordem, regulari­
que tinham necessidade, combinando-as dif- dade, c harmonia que n’elle se descobrem,
ferentemente. A mera pronuncia do nome nào podiam nascer do movimento da ma­
«d’aquelle genio de que havia necessidade, téria; portanto admiltiu no mundo uma In-
era uma cspecie d’invocação ou oraçfio, á telligencia Suprema que ordenara as suas
qual se cria que o genio não podesse recu­ partes, c todos os movimentos da natureza
sar-se: e eis-aqui a origem da cabala, que lhe pareceram uma continuação das leis
.attribuia a nomes phantasticos a virtude estabelecidas para a distribuição dos movi­
d’attrahir os genios, d’entrar no seu com­ mentos pela mesma intelligencia: os genios
mercio, e de fazer prodígios. dos ealdeus dcsappareceram a seus olhos,
D’cstcs mesmos nomes se serviam tam­ e nào viu na natureza senào uma Intelli­
bém, algumas vezes, como d’uma especie gencia Suprema, a materia e o movimento.
■de exorcismos para expellir os maus ge­ Porém reílectindo que no magnifico es­
nios, porque estavam na fé de que estes pectáculo da natureza havia irregularida­
haviam sido exterminados para o centro da des e desordens que nào deviam altribuir-
terra, e que o mal que faziam era por teV se á Intelligencia Suprema, pois que ella
illudido a vigilância dos gênios bons en­ estimava a ordem e harmonia; conjectu
carregados da sua guarda, fugindo para a rando serem produzidas pelo movimout
atmosphera. Igualmente se cria que estes da materia, que a Intelligencia Suprem,
genios malignos fugiam tanto que ouviam nào podia suster nem corrigir, coneluii
o nome d’aquclles que os tinham encerra­ que a intelligencia producente do mundo
dos, como faz um préso fugido que ouve nào era o principio do movimento, e ad-v
chamar pelo seu guarda. mittiu na natureza da matéria uma força'
Como no nome dos genios, ou nos sym- movente que a agitava, c uma intelligencia \
bolos que exprimiam os seus ministérios, que nào produzia a materia nem o movi- j
se suppunha tal virtude ou força que os mento, mas que determinava a força mo-j
obrigava a aeudir a quem os invocava, se vente, e que por este modo formara o cor- •
creu que o nome ou o symbolo do genio, po e o mundo.
gravado ou eseripto, fixaria, por assim di­ Quiz este philosopho conhecer as leis que
zer, o mesmo genio junto áquelle que o seguia a intelligencia producente do mundo
trouxesse. Esta é verosimilmente a origem na distribuiçào dos movimentos: viu que so­
•dos talismans feitos de palavras gravadas, bre a terra a regularidade dos corpos e dos
ou de figuras symbolicas. phenomenos era dependente das relações
Todas estas prácticas se usavam entre que tinham entre si os movimentos que
•os ealdeus, e em quasi todos os povos do concorriam para a sua producção: olhando
Oriente: assim o attestam os monumentos para o céo divisou que os corpos celestes
da historia da sua theologia c philosophia, estavam collocados em differentes distan­
que concorrem para justificar nossas con­ cias, e que faziam as suas revoluções em
jecturas sobre a origem da cabala. 1 tempos diversos e proporcionados às suas
respectivas distancias: d’eslas observações
colligiu que a ordem c harmonia depen­
1 Veja-se VHist. de la Philosòphie Orien­ diam das relações dos movimentos, e das
tale, par Stanley. Le Commentaire Philoso- distancias dos corpos; portanto, no sentir de
phique de M. le Clere, dans le second volu­ Pythagoras, o conhecimento d’estas relações
me. Pauli Bcrgeri Cabalisnms Judaico Chris- era o que tinha dirigido a intelligencia pro­
iianuSj Wirtemberg, 1707, 'in-4.° ducente do mundo na distribuição dos mo­
vimentos.
A distancia e o movimento sào uns cer­
tos tamanhos ou grandezas: estes tamanhos
326 CAB
ou grandezas teem partes; os maiores nadaralma do mundo; a isto accrcsecntava qua
mais são que os mais pctjucnos certo nu-Jo primeiro era o paç do-segundo, e que
mero de vezes multiplicados: portanto as este produzira 0 terceiro.
distancias c os movimentos que deviam O Deus Supremo estava collocado no cen­
concorrer para a producção dos animaes tro do mundo. «Tudo está, dizia elle, cm
ou das plantas, c dar proporção ás suas1 volta do rei de tudo, c tudo existe por sua
partes, se exprimiam por numeros, e a In -1 causa; elle ó a origem de todos os bens; as
telligcncia Suprema, antes de produzir o cousas da segunda ordem estão em torno
mundo, sómente as conhecia por numeros do segundo; as da terceira em volta do ter­
puramente intelligiveis, e segundo Pytha­ ceiro.»
goras sobro a relação que a Soberana In- /^ ‘CfCreador, segundo Platão, tinha formado
telligencia descobria entre estes numeros Fo inundo perfeitíssimo, unindo uma natu­
intelligiveis, cila havia formado c execu-J reza corporea, e uiya creatura incorporea.
tàdo* o plano do universo. Distribuía 0 mundo em tres partes: na pri­
Estas relações dos números não são ar meira collocava os entes celcstiacs e os
bitrarias; o que ha d’igualdade entre duasj deuses; as intélligencias elhereas e os de­
vezes dous e quatro, ó necessaria, indepen-f1 mônios bons, que são os interpretes e men­
dente c immutavel: não sendo pois arbi-i sageiros das causas concernentes aos bens
trarias estas relações dos numeros, c de­ dos homens, eram da segunda parto; c íi-
pendendo da relação que ha cnlrè os mes­ nalmentc a terceira c inferior parte do
mos numeros a ordem das producçõcs da mundo cnceçrava as intélligencias terres­
Intelligencia Suprema, é claro haver núme­ tres, c as almas dos homens immorlacs. Os
ros que teem uma relação essencial com a entes superiores governavam os inferiores,
ordem c harmonia, c que a Intelligencia mas Deus que era 0 Creador c Pae de to­
Soberana, que ama a ordem, segue as rela­ dos, reinava sobre tudo, c este paternal
ções d’estes numeros, c não pódc afastar-se imperio nada mais era que a sua provi­
cTclles na distribuição dos movimentos. dencia, pela qual elle dá a cada um dos
Portanto a lei que dirigia a Intelligencia entes 0 que lhe toca. 2
Suprema nas suas producçõcs, era 0 conhe­ São pois unidas as diversas ordens ^ es­
cimento das relações, ou "as mesmas rela­ píritos que 0 mundo encerra; eis-aqui como
ções: e como estas se exprimem por nu­ a philosophia platônica explicava a sua
meros, n’ellas suppozeram uma força ou união. As divindades da segunda ordem
um poder capaz de determinar a Intelligen­ andavam em roda das primeiras intelligcn-
cia Suprema a produzir certos cffcitos, mais cias; então estas primeiras communicavam
(Ijue outros, e segundo estas idéias so in­ às segundas a mesma essencia e poder que
vestigou quaes seriam os numeros que ao cilas tinham, e d’esta maneira se mantinha
Ente Supremo mais agradavam. Assim se a união entre as diversas ordens d’espiri-
inventou uma espccie de cabala arithme­ tos que 0 Ente Supremo produzira . 3
tica, nascida dos princípios da philosophia Por esta ordem, segundo os principios da
Pythagorica. 1 philosophia platônica, podia 0 espirito hu­
mano, pela sua uniãò ás diversas ordens
d’espiritos, clevar-se á mais alta jjerfeição,
DA CABALA PROVENIENTE DOS PRINCÍPIOS e não deviam deixar de procurar-se com
DE PLATÃO fervor os meios de chegar a esta união.
Eis-aqui pois outra especie de cabala que
havia de originar-se da philosophia platô­
/ Creu Platão haver, um Deus Supremo, nica.
( espiritual, c invisível, a que elle chamava
y 0 sêr e 0 bem, por essencia, c 0 pae c a
V causa dc todas as coesas. Suppunha abaixo 1 Voyez son Timée, sa seconde et sa si-
d’este Deus Supremo outro ente inferior, a xieme Lettre.
que dava 0 nome dé razão, conductor das 2 ' Hierocles, de Providentia, apud Pho-
cousas presentes e futuras, e creador do tivm .
universo. Finalmente conhecia ainda um 3 JambL, De m ystsr. JEgypt., sect. I, c.
terceiro-énte que nomeava espirito ou a 19. Não é este aqui 0 systema de Platão, que
talvez 0 não tinha: mas a opinião a que
1 Yeja-se Laert. I. 8. Stobée, Eclog. Phy-elle parece haver dado preferencia, e á qual t
sic. c. % Jambli, de'Mystei'. Thcodwet, The- se accrescentaram algumas idéias d'outros.
rap. I. l i . Examen au Fatalismo, t. 1, à Veja-se /'Examen du Fatalisme sobre a phi­
Varticle de la Philosophie Pythagoricienne. losophia de Platão.
CAB 327
DA UNIÃO DOS PRINCÍPIOS DA CADALA Porém como a religião christà instruindo
COM O CHRISTIANISMO o homem com solidez acerca do que essen­
cial mente deve conhecer, a fim de ser vir­
tuoso, e de merecer a eterna bemaventu-
A doutrina dos caldcus acerca da origem rança, guarda silencio sobre os objectos
do mundo, dos deuses, e dos genios, a sua que sómente podem importar á curiosi­
astrologia e magia se haviam espalhado por dade, e satisfazer a vangloria: como não
todo o Oriente, e se introduziram entre os explica o modo como Deus produziu tudo
judeus c os samaritanos. Os egypcios ti­ pela sua bondade, não nos dá ideia da crea-
nham também parte das suas opiniões e ção, nem nós podemos imaginal-a por mais
das suas prácticas: portanto, quando Ale­ que a razão nos mostre claramcntc a sua
xandre e seus successores levaram ao Egy- verdade: como a religião não nos diz o por­
pto e á Syria as sciencias dos gregos, acha­ quê nem o como Deus crcou o mundo tal
vam-se mais dispostos os entendimentos a qual existe; porque razão ha n’ellc imper­
receberem as idéias de Pythagoras e de feições; como se conserva e como se une a
Platão, que se coadunavam com a theolo­ alma ao corpo humano: quiz a curiosidade
gia caldaica e egypcia, do que o systema inquieta conhecer todos estes objectos, e
dos demais philosophos gregos: tornou pois formar systemas para explicar tudo o que
a resuscitar no Oriente e Egypto a philo­ a revelação não individúa. Portanto os phD>x
sophia pythagorica, sepultada no esqueci­ losophos convertidos pretenderam explicar \
mento entre os gregos. os dogmas do Christianismo pelos princi- f
f Antes do nascimento do Christianismo se pios de que estavam prevenidos, e d’aqui •;
/ uniram as opiniões de Pythagoras com as nasceram quasi todas as heresias dos tres /
j de Platão, e dos systemas d’cstes dous phi- primeiros séculos. *H
I losophos se formou um de philosophia e de Quizeram os platônicos e pythagorico
| theologia que prevaleceu a todos: desta alliar os dogmas do Christianismo com
/ maneira a doutrina dos genios, o systema systema das emanações e princípios dac
í das emanações, a arte d’imperar os genios, bala que havemos exposto: iags foram (
| a sciencia das propriedades e virtudes dos gnosficos, IdasiluLes, Satunfijjq, "‘VMetadffi
i mesmos, da mesma sorte que a magia vo- Marcos, Euphrates, dos quaés expomoS os
' gavam muito no Oriente no nascimento do princípios em seus artigos.
Christianismo. Os judeus igualmente adoptaram os prin­
A religião christà esclarecia o entendi­ cípios da cabala; não emprehenderemos fi­
mento humano ácerca dos embaraços .de xar o tempo, mas é sem dúvida que a ella
que elle procurava desenvolver-sé por se applicaram sobre maneira, e que pre-v
meio dos systemas dos philosophos: ensi­ tenderam achar nas diversas collocações \
nava aos homens que um sér oranipotênte das letras do alphabeto hebreu grandes /
e perfeitíssimo fizera existir tudo mera­ mysterios: alguns houve que adoptaram
mente pela sua vontade, que elle quiz que svstema das emanações. e_o disfarçaram
houvesse mundo, e o houve com efleito; debaixo" do nom ê d e senfurots, que quasi
que o conservava e o regia; que havia tres naocli iierenrdàT^m ò'dos valentinianos. *
pessoas n’este Ente Supremo; que o ho­ Elles até pretenderam' dar a estes conheci­
mem fora creado innocente, que desobede­ mentos uma origem divina, e apoiaram j
cera a Deus, e por sua desobediencia se suas opiniões todas sobre authoridades que ?
tornára culpado o infeliz; C[ue o seu deli- remontavam a Moysés, e ainda a Adão;-
cto e a sua desgraça passara a seus des­ sendo verosimil quê a palavra cabala, que)
cendentes, que uma Idas divinas pessoas as­ quer dizer tradição, d’aqui se derivasse.-
sumira á humanidade, e satisfazendo á di­ O certo é que os judeus tinham uma tra­
vina justiça, reconciliára os homens com dição, mas não o é menos que os cabalis-
Deus, que uma hemaventurança eterna era tas não a seguiram, ou que de tal maneira
promettida aos que se aproveitassem das
graças do Redemptor, e practicassem as 1 Os sephirots são a parte mais conside- \
virtudes que elle viera ensinar com o seu ravel da cabala: ha dez, os quaes se repre­
exemplo. Estas verdades se annunciavam sentam algumas vezes debaixo da figura de
pelos apostolos, e eram confirmadas por uma arvore, porque uns são como a ra iz, e
milagres os mais assombrosos e incontras- outros como os ramos que d'ella nascem: es­
taveis, e os philosophos platônicos e py- tes dez sephirots são: a corô4 sabejioria,
thagoricos, cujos princípios tinham mais inteUigencia, forca,ou savendade.’ mjseri- /
afinidade com os dogmas do Christianismo, çordia, màgmincenciaTfielleza. victoriat o - "
as abraçaram. lia , fundamento e o reinoT"'
328 CAI
a desfiguraram, que não póde ser de akfíãs de suas obras tcstimunham uma eru-
guma utilidade a sua cabala. Os seus cs4 dirão assombrosa. Taes foram Marcos Mo-
ni - m tf tK A o o ô n n h n n r n e a i n i n l n l l i n l i m l x n « x 1___ d . r ____________• . ’ * ;
criptores são obcuros c ininlelligivcis, e as- ro, c talvez Cudwoth, Knorio, o author da
explicações philosophicas que se lhes dãc<: obra intitulada—Cabala denudata—na qual
nada tem que deixe de ser trivial, e que nã< SG-dcsenvolvo uma erudição prodigiosaHT-
se possa saber melhor por outra parttí nalmente o allcinão Jonas Scharmio escre­
Contentar-nos-hemos com indicar os au? veu no principio do scculo decimo oitavo
thores que d’ella tractam. V cm fayor da cabala, c presumiu achar uma
Depois da tomada de Constantinopla pe­ perfeita conformidade entre cila, a philo­
Ç los turcos, os gregos trouxeram para o Oc­ sophia pcripathetica e a religião christã. *
cidente as philosophias de Platão, Aristote­ Os princípios dos cabalistas modernos,
/ les, e Pythagoras, e para dilucidal-as se ser­ são com pouca diíTerença os que expoze-
viram dos commentadores serracenos: e es­ mos fallando da sua origem: quanto a ap-
tes que haviam adoptado em grande parte plicação que d’ellcs fazem, bem que seja
as sciencias dos philosophos do Oriente c diversa nas suas individuações, no essen­
d’Alexandria, fizeram passar ao Occidente cial é a mesma. As explicações d'estes
a philosophia de Platão e Pythagoras uni­ princípios e as consequências que d’elles
das juntamente, e carregadas de infinidade fcc podem colligir, são tão arbitrarias e tão
de idéias estranhas, e de prácticas super obscuro o methodo dos cabalistas, que é
sticíosas. igualmente impossível e inútil seguir o en­
Não se estudaram as linguas com menos tendimento humano em tal labyrintho de
ardor que a philosophia: aprendeu-se o erros, d’idcias insanas e de prácticas ridi­
grego, arabico e hebreu, e alguns sábios culas, porque ordinariamente, ou para me­
liouve que insensivelmente tomaram as lhor dizer, nunca são atadas pela razão ou
opiniões dos philosophos gregos, arabes ouf pelo engenho. Nós já citamos os authores
jiideus, e que adoptaram as suas idéias caí que podem dar uma prova convincente do
balísticas: taes foram Reuchlino, Pico de 1# que dizemos.
Mirandola, Jorge de Veneza e Agrippa, que; __ c a x n i j a s — ITereges que assim foram cha-
-------------
renovaram-------- ----------------j-
o systema e os delírios — 'ãhados, da ca­porque respeitavam a Caim: appa-
bala. 2 1 Finalmente no xvn século se ateou receram pelos annos 159. Eis-aqui a ori­
em Allemanha e Inglaterra um ardor es­ gem d’esta veneração:
tranho pelo conhecimento das linguas orien- Durante o primeiro século e princípios
taes e pelo rabbinismo. Como quasi todos do segundo houve um grande empenho
os rabbinos teem alguma tintura da cabala, por saber individualmente a historia da
aquellcs authores que os lêram adoptaram creação e a origem do mal, e se adoptou
suas idéias, e na Inglaterra e Allemanha já o systema das emanações, já o dos dous
se encontraram sábios que fizeram incri prmçipios. Por pouco fundamentada'que
veis diligencias para restabelecer a ca- seja qualquer hypothese, infallivelmente se
: bala, e para achar nos seus princípios to torna um principio para o entendimento
dos os dogmas da religião christã; c mui de muitos dos que a adoptaram, c estes já
então não se occupam em proval-a, ou so-
1 Basnage, Hist. des Juifs, t. 2. Bud- lidal-a, antes bem a applicam como uma
dceuSj, Introducti, ad Phil. Hebrceomm. Lo- verdade fundamental para explicarem os
sius Biqa, Dissert. in-b.° 1706. Joannis phenomenos.
Chrisostoph. Wolsii, Biblioth. Hebrcea, part. O systema das emanações, e o que sup-
2. Hamburg. in-4.° 1711. Jacobi Rhenfordiij punha um bom e um mau principio pas­
Opera Philologica, Ultraject. 1722, in-4.° saram em muitos entendimentos por ver­
Pauli Bergerij Cabalism. Judaico-Christia- dades irrefragaveis, das quaes tiravam os
nus Wittenberg, 1797 in-4.° Mem. de VAcad. princípios na explicação dos phenomenos;
des Inscript., t. 9,37. Brucker} Hist. Phi- e cada um se creu authorisado para sup-
los., t. 2 . pôr mais ou menos genios, e pôr na pro-
2 Joan. Pici. Mirand. Conclusiones Ca- ducção, no poder, ou no modo de obrar
balasticx 71, secundum opinionem propriam dos mesmos todas aquellas differenças que
ex ipsis Hebrceorum sapientium fundamen­ lhe pareciam necessarias a fim ^explica­
tis Christianam Religion. confirmantes. Reu- rem os phenomenos que mais impressão
clin, de A rte Cabalislica, de Verbo Mirifico.
Georg. Venetus de Harmonia totius mundi.
Promptuarium rerum theolog. Agrippa, de 1 Jonce Conradi Scharmii, Introductio
Occulta Phil. Voyez Brucker, Hist. Philos. in Dialecticam Caballceorum, Brunsvigce
t. 4, Period. 3, /. 2, part. 1, c. 4. 1703, in-8.»
CAL 329
lhes faziam, ou que os demais tinham dei­ todas as infamias que se podessem imagi­
xado de explicar. nar, dizendo que cada uma das acções in­
A maior parte das seitas que precede^ fames tinha um anjo tutelar, que invoca­
ram aos cainitas, explicaram a origem do vam quando a commettiam. 1
bem c do mal, suppondo uma intelligcncia Tinham livros apocryphos, como o Evan­
benefica que tirava do seu seio espíritos gelho de Judas, e outros cscriptos feitos
felizes c innocentes, mas que eram encar­ para exhortar a destruir as obras do Crea­
cerados em orgàos materiaes pelo crcadorJ dor: havia um intitulado a Assenção de S.
que era malefico. Paulo, em que se tracta do rapto d’este
Nào tinham explicado d’um modo que apostolo, e os cainitas tinham n’elle inge­
satisfizesse a todos d’onde vinha a diversi­ rido cousas nefandas.
dade que se observava nos espíritos c ca­ Uma mulher d’esta seita chamada Quin-
racteres dos homens; portanto entre os se­ tella, vindo á Africa no tempo de Tertul­
ctários do systçma d’estcs dous princípios, liano, ahi perverteu muitas pessoas, par-
houve quem emprehendeu explical-a: sup- ticularmente destruindo o baptismo: d’aqui
pôz que estes dous princípios ou potências proveio chamarem-se quintillianistas os se­
tinham produzido Adào e Eva, e que logo ctarios desta mulhcr;~Trptn*e^ljue ella
depois cada um d’elles tomara um corpo, ajuntou ás infamias dos cainitas horríveis
e tivera commercio com Eva; que cada um prácticas. 2
‘dos filhos nascidos d’este tracto tinha o Phylastrio faz uma seita particular dos
caracter d’aquella potência que lhe havia que honravam a Judas. 3 O imperador Mi­
dado a vida: e por este meio explicavam a guel lhe tinha uma grande veneração, e o
difierença do caracter de Caim e de Abel, quiz fazer canonisar. Ulornebcch falia de
o^igualmente a de todos os homens. um anabaptista que pensava acerca de Ju­
Como Abel se havia assignalado pela süa das como os cainitas. 3 Também se deu
submissão ao Deus creador da terra, elles; aos cainitas o nome de judaitas. 6
o olhavam comogobra d’um Deus a que CÀLREUS OU NESJORIA.NOS DA SYRIA— C 0
chamavam 4/Mcf. Caim pelo contrario, que ;nome qüe sê'dá âos nestoriarios do Oriente
matara Abel, porque este servia o Deus ípara distinguil-os dos do Occidente que só
creador, era obra da sabedoria e do prin­ 'subsistiam no imperio romano até o séti­
cipio supremo; e portanto foi no seu pare­ mo século. A origem do nestorianismo en­
cer o primeiro dos sábios e o primeiro ob­ tre os caldeus remonta ao tempo do pa-
jecto da veneração. ^— tm rcha.^£slQrip, o qual sendo conde-
Corria de plano d’este seu fundamental nmado e deposto em Epheso pelo concilio
principio, honrarem elles todos os que pelo do Occidente, foi absolvido e apadrinhada
antigo Testamento eram réprobos, como a sua causa pelos bispos do Oriente, que
Caim, Esau, Core e os sodomitas: eram depozeram S. Cyrillo e condemnaram seus
todos olhados como filhos da sabedoria, e anathemas, ou os canones que os conti­
inimigos do principio creador. Judas en­ nham e suas obras contra Nestorio. Todas
trou no mesmo sequito dos veneráveis: as igrejas do Oriente, c entre outras a de
este, segundo os cainitas, era o unico que Edessa seguiram o parecer de João de An­
sabia o segredo da creação dos homens, c tiochia, e dos bispos que execraram S. Cy­
por isso tinha entregado a Jesus Christo, rillo, ficando unidos a Nestorio.
ou fosse, diziam estes impios, porque des­ Havia em Edessa uma escola christã
cobrisse querer Jesus Christo aniquilar a para a instrucção dos persas, c n’ella se
virtude e os esforços valorosos com que inspirava um odio vehemente contra S.
os homens se oppoem ao Deus Creador, Cyrillo, c disposições favoráveis a Nesto­
ou para procurar aos mesmos homens os rio e á sua doutrina: alli se liam as obras
grandes bens que lhes resultavam da morte d’este heresiarcha e as de Theodoro Mop-
de Jesus Christo, e que as potências ami­
gas do Creador queriam impedir, oppondo-
se á sua morte: portanto louvavam estes 1 Theodoret. Hceret. Fab., I. i, c. 15. Tert.
hereges a Judas como um homem admirá­ de Prascript. 39. Iroen. et Epiph., loc. cit.
vel e lhe rendiam acções de graças. 1 Aug. de Han\s c. 18.
Asseveravam elles que para se alcançar 2 Tert. de Bapt.
a salvação, se deviam obrar todos os gene- 3 De Hoer., c. 34, 36.
neros dTacções, e faziam consistir a razão 4 Theop. Raynand, de Juda Proditore3
apurada em commetter descaradamente pag. 689.
5 Hornebec. Controvers., pag. 390.
1 Ircen., 1 1, c. 35, aliás 38. 6 Ittigius, de Hcer., sect. 2, § 4, 5.
330 CAL
sucsteno, cm que olle bebora os erros. Tam­ convocou alguns concilios em que fez re­
bém Ibas, por meio da sua carta a Maris, ceber o nestorianismo; e mudou na disci­
tinha espalhado entre os persas alguns plina quanto podia desagradar a el-rei da
novedios ou apparencias do nestoriauismo. Persia, favorecer a liberdade, e attrahir o
Rabulas, bispo de Edessa, se reconciliou clero ao seu partido. Assim foram autho-
com S. Cyrillp, e expelliu de Edessa todos risados os monges, sacerdotes e clérigos
os persas adlíerentes a Nestorio; e Barsu- para poderem casar até sete vezes, com
mas, um dos expulsos, veio a ser bispo de condição porém que á sétima só desposa-
Nisibia, na Persia, e formou o projecto de riam uma viuva que era reputada como
restabelecer n’ella o nestorianismo. uma meia mulher. 1
Entre os reis da Persia o os imperado­ Como Barsumas achou opposição, c mui­
res havia um odio innato e uma descon­ tos christãos forternente aflerradòs á dou­
fiança extrema: tudo o que era approvado trina do concilio d’Epheso, obteve do im­
em um dos impérios se tornava odioso e perador uma carta com que levou o ter­
suspeito ao outro, e.esta antipathia só de­ ror e a desolação por ioda a parle, não
terminou por vezes assim os imperadores poupando nem bispos, nem sacerdotes,
romanos, como os reis da Persia a favore­ nem monges, nem os simples fieis que re­
cerem ou a perseguirem um partido. cusavam subscrever sua doutrina. Mor­
Barsumas soube manejar dextramente reram mais de sete mil christãos na horrí­
estas disposições para fazer suspeitos e vel missão de Barsumas, innumeraveis ou­
odiosos os catholicos a Pherose, que então tros fugiram, deixando a patria, e desam­
reinava na Pérsia. «Em vossos Estados, parando as igrejas, 2 e todas as da provin­
senhor, lhe disse elle, ha quantidade de cia por onde andou Barsumas, foram en­
christãos que tem muito affecto aos roma­ tregues a homens que applaudiam as suas
nos, e até ao seu imperador; mas este affe­ crueldades.
cto é formado pela religião: os vinculos Estabelecido o nestorianismo á força de
que os prendem ao seu soberano e á pa­ mortes, de violências e a fu m total trans­
tria nada valem em comparação d’aquel- torno da disciplina, Barsumas fundou es­
les que a religião aperta com os laços de colas em que se ensinasse, e morreu. En­
uma mesma crença. Portanto são os chris­ tão os nestorianos querendo um cabeça,
tãos dos vossos estados, amigos dos roma­ collocaram Babeu na cadeira de Seleucia.
nos, seus espias, e inimigos nossos: todos Era Babeu um leigo casado, com filhos,
desejam viver sujeitos a um principe que e já avançado em annos; logo que entrou !
professe a mesma religião e a mesma fé. no episcopado quiz assignalar-se por um \
Quereis vós, senhor, assegurar-vos da sua concilio que convocou, em o qual se esta­
fidelidade, romper toda a communicação beleceu por lei que todos os sacerdotes e
entre ellcs e os romanos, e inspirar aos fieis que viviam no mundo fossem casados:
christãos, vossos vassallos, um odio impla­ no mesmo concilio foi approvada a dou­
cável contra esses inimigos do vosso po­ trina de Nestorio e confirmado tudo o que
der? Pois semeai entre elles divisões de fizera Barsumas. Immediatamente appare-
religião, fazei que todos os christãos de ceram innumeraveis escriptorcs que toma­
vossos estados sejam nestorianos é ficai ram a peito justificar o nestorianismo e o
certo de que não tendes que recear nem procedimento dos seus primeiros apostolos
perfídia, nem deserção da parte de vossos na Persia.
subditos. Os nestorianos professam uma O tempo, a impostura, os sophismas, a
paixão particular pelos reis da Persia; e audacia, as traças e o valimento dos nes­
este artigo da doutrina de Nestorio .a fez torianos escureceram a verdade, pozeram
um objecto de odio entre qs romanos, e em todas as sés bispos dedicados aos seus (_
motivou as barbaras perseguições que os interesses, e derramaram o nestorianismo r
imperadores teem exercitado contra todos por toda a Syria, Mesopotamia, Caldeia, e
os nestorianos do seu império.» 1 Pherose por todos os dominios de Chosroès, que
ficou enfeitiçado com este projecto de Bar­ não tolerou n’elles outra religião, e perse- -
sumas e lhe prometteu favorecel-o. guiu tyrannamente os christãos que não
A esta empreza ajuntou o bispo de Ni­ quizerara abraçal-o. Gosaram os nestoria­
sibia outros bispos e condiscipulos: logo nos do mesmó favor com os successores de

1 A ssm a n . Bibl. Orienta t. i, pag. 35-1, 1 A ssm a n , t. 2, part. 2, c. 6, § 2.


t. 2, pag. 403, t. 3, pag. 68,' ibid. p a rt. 2, 2 A ssm a ib ib id part. i , pag. 393, part.
c. 3, § 2, c. 4, c. 7. 2, c. 4.
;
CAL 331
Chosroiis, c se firmaram em todas as igre­ taes conjecturas, a que o leitor dará o grau
jas que possuíam. 1 de vcrosimilhança que lhe parecer.
Nao foram menos poderosos debaixo do Os viajantes tem encontrado na Tartaria
imperio de Mafoma, d’Omar e dos califas, e no Cataio alguns nestorianos dispersos e
que conquistaram muitas provincias do im­ submergidos n’uma profunda ignorância:
perio romano; do sorte que no meio do sé­ entre elles não ha escolas, nem bispos, nem
timo século estava o nestorianismo derra­ pastores esclarecidos: sómente são visi­
mado pela Arabia, Egypto, Media, Bactria- tados pouco mais ou menos de cincoenta
Da, Hireania, índia, etc. Em todas as re­ em cincoenta annos por um bispo que
giões estabeleceram igrejas os nestorianos; confere a ordem sacerdotal ás familias in­
mandaram bispos e missionários á Tarta- teiras e até a meninos que ainda estão nas
ria e ao Cataio, peneiraram até á China, c manti lhas. « A sua igreja do Malabar era
se estenderam por toda a costa do Mala- a mais celebre, mas hoje é governada a
bar. 2 maior parte por bispos da communhão ro­
Como os bispos da Persia eram depen­ mana. 2
dentes do patriarchado de Antiochia, os
caldeus ou nestorianos depois do seu scis-
ma elegeram um patriarcha, cuja jurisdic- DA DOUTRIXA DOS CALDEUS
ção abrangia todas as igrejas christàs es­
palhadas pelas vastas regiões em que es­
tava estabelecido o nestorianismo. Quando 1. ° Os nestorianos da Syria ou caldeus}
os lartaros transtornaram o imperio dos ca­ não conhecem a união hypostatica do Verbo
lifas, concederam aos christãos o livre exer­ corn a natureza humaíia, e, admittem cm
cício de sua religião, e o nestorianismo con­ Jesus Christo duas pessoas. É este erro cia-i
servou no seu governo todas as vantagens ramcnle ensinado nas suas obras: assim o*'
que gosava. demonstraram os authorcs da Perpetuidadej
Depois que os turcos destruiram a do­ da Fé, e M. Asseman; 3 para o que citam!
minação dos tartaros na Syria, Caldeia e algumas obras desconhecidas a MM. Si-1
Persiâ, também os nestorianos se conser­ mão, Gcddes e de la Crosc, que por conse-i
varam, mas perderam muitas igrejas. As qucncianão tiveram fundamento para af-!
alternadas revoluções que sofíreu o.Oriente firmar que o erro dos nestorianos da Sy-
pelas guerras dos^serraeenos, invasões dos ria era uma chimera ou uma questão de \
tartaros e conquistas dos turcos, destrui­ nome. *
ram as suas escolas, interromperam a com- 2. ° Elles creem a Trindade, mas adop
municação entre o patriarcha e as igrejas ram o erro dos gregos ácerca da proccssão í
que lhe' eram submetlidas, formaram dos do Espirito Sancto, dizendo que não pro- j
nestorianos do Oriente corpos separados, cede do Padre. 3 5
alteraram seus dogmas e mudaram a dis­ 3. ° Negam 0 peccado original.
ciplina. 4. ° Créem que as almas foram creadas :
Como os nestorianos deviam receber o com 0 mundo, e que se unem aos corpos, >
seu bispo necessariamente do patriarcha, ao passo que estes são formados.
quando morria o d’uma cidade, era neces­ o.° Créem que depois da morte as almas \
sário ir postular-lhe outro: c talvez que são privadas de todo 0 sentimento, e des- *
a extrema difficuldade que havia de man­
dar deputados á Syria la do fim da grande 1 Voyage de Rubruquis, pag. 60. Des-
Tartaria, determinasse os sacerdotes nesto­ cription de la Tartarie. Hist. des Huns par
rianos a fingirem que o seu bispo era im- jtf. Guignes.
mortal, e que fosse esta a origem do gran 2 La Crose, Christianisme des Indes.
Lama. 3 Perpet. de la Foi, t. 4, l. 1, c. 5. As­
Por um concilio que houve em tempo seman, Bibliot. Or., t. 3, part. 1, c. 7, § 4,
de Babeu, podiam casar-se os bispos nesto­ pag. 210.
rianos; e- talvez que algum principe nesto- •1 Simon, traduetion du voyage du P.
riano quizesse unir o sacerdócio e o impe­ Dandini au Mont Liban, pag. 382. Gcddes,
rio, e que essa fosse a origem do Preste traduetion du Synode de Diamper. Hist.
João. Eu porém não paro mais tempo em abregée de 1'Eglise de Malabar.
Cet Auteur ne m m te pas toute la con-
fiance que lui donne M. de la Croze. Voyez
1 Asseman, t. 2, pag. 110, ibid. pari. 2, sur cela la Perpet. de la Foi, t. 4, l. 10, c.
c.^% % pag.Sl. 8, t. 5, l. 9, c. 9 et passin.
2 Ibid. pag. 410. 3 Asseman, loc. cit.
332 CAL
terradas para o paraizo terrestre, c que no pois que os livros de que ainda usa con-
dia do juízo todas tornarão a seus corpos; teem esta doutrina, e os caldeus a conser­
as bemaventuradas subirão ao céo c as varam depois de separados da igreja ro­
precitas ficarão sobre a terra. mana. 1
6. ° Crécm que a felicidade dos sanctos Estes livros dos caldeus dão uma incon-
consiste na vista da humanidade de Jesus trastavel prova de que antes da separação
Christo e em revelações, c não na visão dos nestorianos, ensinava toda a Igreja o
intuitiva. que ainda hoje ensina a igreja romana, c
7. ° Teem para si que hão de ter fim as­que era tida esta doutrina como de Jesus
sim as penas dos demonios, como as dos Christo, e transmittida pelos apostolos, pois
condemnados. 1 que os nestorianos não ousaram alleral-a.
Em Asseman se encontra todo o respeito
aos ritos, ceremonias, c lithurgia dos cal­
DO QUE OS CALDEUS TEM DE COMMUM, deus, como também os seus patriarchas e
COM A IGREJA ROMANA metropolitanos, os seus mosteiros e escó-
las
(jo Ão) — nasceu cm Noyon no
Os nestorianos conservaram a fé da principio do século xvr, e começou a sua
igreja romana áccrca da Eucharistia e de carreira litteraria em Paris, no collegio
mais Sacramentos, do que se acham pro­ da Marcha; estudou philosophia com uni
vas convincentes na Perpetuidade da Fé. hespanhol no de Montaigu, e direito, sen­
em M. Asseman. 2 do seus mestres Pedro da Estrella em Or-
A este respeito cahiu La Crose cm notá­ lcans, e Alciato em Bourgcs. N’csta cidade
veis enganos. i.° Quando aíTirniou que no ;tomou conhecimento com Wolmar, allemão,
Malabar se via uma igreja, que estando ha e professor de grego, e com elle aprendeu
doze séculos sem communicação com as a mesma lingua, a syriaea e a hebraica.
igrejas de Roma, Constantinopla, Alexan­ Principiavam então a grassar na França
dria e Antiochia conservava a maior parte as opiniões de Luthero c Zuinglio. Wol­
dos dogmas admittidos pelos protestantes, mar, mestre e amigo de Calvino, as seguia
pois que elles são rejeitados em tudo, ou cm segredo, e Calvino as adoptou de seu
em parte pelas mesmas igrejas. 3 mestre, c dos presumidos reformadores.
2. * Quando asseverou não haver seita A morte de seu pae o chamou a Noyon,
alguma no Christianismo que mais se avi aonde se demorou pouco tempo; tornou
sinhasse á verdade que a dos nestorianos, para Paris, e alli compôz um commentario
os quaes, diz elle, só mente foram desacre­ -sobre o traetado da clemencia de Seneca.
ditados pela injustiça.de seus inimigos. 4 A poufcos passos se fez conhecido dos que
3. ° Quando assim presume inculcar occultamentc
a haviam abraçado a reforma,
antiguidade das prácticas das igrejas re­ porém não os imitou na discrição; o seu
formadas. Com eíTeito todos os livros e ri- zelo rompeu com vehcmcncia; quizeram
fuaes dos caldeus dão fé de que elles rece­ prendcl-o, c elle se retirou de Paris, e logo
bem como canonicos todos os livros que de França para Basiléia, aonde se dedicou
a igreja romana tem por taes. N’elles se á defesa da mesma reforma.
acha a doutrina da presença real, e se al­ Debaixo do nome de reformadores, e
guns se afastaram d’ella, é sómente na ex -1 reformados se comprehendia aquelle tro­
plicação que quizeram dar d’este myste pel de sectários lutheranos, carlostadianos,
rio . 5 anabaptistas, zuinglianos, ubiquitarios, etc.,
E finalmente quando verdade fosse que? que cobriam a Allemanha, e se derrama­
a igreja do Malabar não tivesse esta crenn ram na Italia, França c Paizes-Baixos; e
ça, d’aqui nada mais podería colligir-se se­ cuja doutrina consistia principalmente em
não que ella alterára a fé que recebera; execrações contra o clero, contra o papa,
e contra os abusos, e contra todas as po­
1 Asseman, ibid. tências, assim ecclesiasticas como civis.
2 Perpet. de la Foi, t. 4. L i, c. 7 , 1. 10, Os reformados não tinham nem princi-
c. 8. Bibliot. Or. d'Asseman, t. 3, p a r t . 2. ios seguidos, nem corpo de doutrina, nem
3 Christi des Indes, Préface et dans Vou- §b isciplina,nem symbolo. Emprehendeu Cal­
w age, pag. 341, 342. Edit d'Hollande. vino estabelecer "a reforma sobre princípios
4 Dissert. hist. sur divers sujets, t. 1. theologicos, e formar um corpo de doutrina
Recherches sur la Religion Chrét. dans les
Indes. 1 Asseman, loc. cit., § 23.
5 Asseman, loc. cit., § 12. 2 Ibid., t. 3, parí. 2,.c. 11, 12, 13,14-
CAL 333
que unisse os dogmas que d’clla tinha ado- ziguara com a expulsão de Calvino, o qual
ptado, e no qual saliissem os mesmos do­ tinha já feito um poderoso partido, que em
gmas dos do Christianismo, como conse­ fim prevalecendo ao de seus inimigos, o
quências dos seus princípios: n’uma pala­ fez tornar a chamar tres annos depois de
vra, queria formar um symbolo para os re­ expulso: e então c que elle tomou em Ge­
formados. Este era o unico meio de reu- nebra uma authoridade absoluta, que con­
nil-os, e fazer da reforma uma religião ra- servou até á morte: regulou a disciplina
soavcl: e este é o objecto que se propõe com pouca diíferença, como hoje se vó ain­
nas suas instituições christàs. da nas igrejas que se presumem reforma­
Depois de as haver feito imprimir, pas­ das: estabeleceu consislorios,colloquios, sy-/
sou á Italia com o desígnio de vêr a du- nodos, anciões, diaconos e orgias: dirigiu)
ueza de Ferrara, filha de Luiz xn, mas o a fórrna de orar e prégar, o inodo como se?
uque receando que o acolhimento de Cal­ havia de celebrar a ceia, baptisar c enter-/
vino em sua casa o embaraçasse com o rar os mortos. Estabeleceu uma jurisdic-v
papa, o obrigou a sahir de seus estados. cão consistorial,á qual presumiu poder con-/
Tornou Calvino a França, d’onde logo par­ ferir o direito de impôr censuras e penas)
tiu para Strasburgo, e passando em Gene­ canonicas, e até mesmo de cxcommungarA
bra, aonde lia reic Virct haviam principiado Depois fez um cathecismo latino c francez,/
a fundar a religião' protestante, o magistra­ muito diverso do primeiro que déra á luz,) •
do, o consistorio, e povo, o obrigaram a ac- e obrigou os magistrados c povo a que pro-í
ceitar um logar de pregador, e de mestre mettessem a sua perpetua conservação.
em 1536. Dous annos depois ordenou Cal­ O rigor com que exercia Calvino sua au­
vino um formulário de fé, e um cathecismo thoridade illimitada, e os direitos do seu
que fez receber em Genebra, aonde elle consistorio lhe adquiriram innumeraveis
abjurou solemnemente a religião catholica. inimigos, e causaram alguns distúrbios na
Todo o povo jurou observar os artigos de cidade, mas os seus talentos e a sua con­
doutrina que elle havia ordenado. stância de tudo triumpharam: inflexível
Como se houvesse estabelecido a reforma em seus sentimentos, e invariável em suas
em Zuriçk, Berne, e outros logares, em um determinações, era capaz de sacrificar tudo
synodo feito cm Berne, se determinaram os por manter uma práctica indifTerentc, como
seguintes pontos: por defender as primeiras verdades da re­
1. ligião. Um homem de tal caracter, com
° Que na ceia não se serviríam do pão
levedo. grandes talentos, c austeridade nos costu­
2. mes chega a ultimar quanto pretende, e in-
° Que nas igrejas haveria pias baptis-
maes. falUvelmente subordina a multidão e os
3. ° Que sc celebraria em todos os diascaracteres frouxos, que por fim mais que­
sanctos da mesma sorte que nos domingos. rem submetter-se a tudo, que luctar con­
O novo reformador, que condemnàra cm tinuamente contra a dominação, armada da
suas instituições todas as ceremonias da .eloquência, e do saber.
igreja romana, não querendo deixar d’ellas Comtudo isso não gosava Calvino cm paz
algum vestigio, recusou conformar-se com dos seus triumphos: apenas uma facção se /
o synodo de Berne. Fez-se conselho: os ini­ extinguia, novos inimigos impugnavam sua j
migos de Calvino mostraram sem trabalho doutrina. Bolsec, carmelita apostata, o accu- \
que Genebra tinha em Calvino não um re- sou de fazer a Deus author do pcccado, e
formador, mas um mestre, que reclamando quiz provar-lhe a accusação. Calvino o foi
Í a liberdade christã em seus cscriptos, no visitar, pretendendo afleiçoal-o a si, mas
i seu modo de proceder era um déspota in- inutilmente, e Bolsec principiou a ser ou­
j flexível. Calvino, Farei, e seus socios fo- vido coríi applauso. Calvino, que tinha assis­
1 1 ram expulsos de Genebra. tido* occulto a uma das suas conferências,
Retirou-se Calvino a Strasburgo, aonde acabada que foi, rompeu a scena, e para:
fundou uma igreja franceza, que logo fez refutal-o amontoou todas as passagens da;
numerosa o concurso dos protestantes, que Escriptura e de Sancto Agostinho, que pa-r
(
abandonavam a França pelo rigor com que reciam favorecer os seus sentimentos acer­
n’ella eram tractados. N’esta cidade se ca­ ca da predestinação: porém, como Calvino;
sou com a viuva d’um anabaptista que elle abusava d’estas passagens, e dem ais d’issoi
tinha convertido. Os seus talentos lhe ad­ se exprimia com desmedida cólera, não ris-^
quiriram muita estimação na mesma ci­ cou do espirito dos ouvintes a impressão;
dade; e os protestantes que n’ella residiam que n’elles fizeram as accusações de B oi-)
o deputaram para a Dieta de Ratisbona. sec: portanto induziu o magistrado a pren- 5
Todavia a cidade de Genebra não se apa­ del-o, e prêso, o tractaram .indignamente,
334 CAL
com o pretexto de haver causado escân­ contra este antilrinitario: assentaram todos
dalo, e perturbação na igreja. ser réo de morte, e do mesmo voto foi Cal­
Ainda este apostata de Genebra cstirou vino: portanto foi condemnado pelos ma­
mais suas precauções, e sua vingança con­ gistrados de Genebra a morrer queimado
tra Bolsec: escreveu aos cantões da Suissa, vivo.
que se devia livrar a terra d’este homem E como é possível que uns magistrados
pernicioso, a fim de que não infeccionassc que não conheciam juiz infallivcl do sen­
com seu veneno as regiões visinhas: porém tido da Escriplura, podessem queimar Ser-
um fidalgo, que gosava de grande conside­ veto, porque n’ella encontrava um diverso
ração, e a quem Calvino empenhara na re­ do que Calvino, e elles mesmos alli desco­
forma, por nome M. Falais, juslamentc in­ briram? Eis-aqui pois qual era a logica e
dignado d’este procedimento, preveniu os qual a equidade das primeiras conquistas
cantões contra os desígnios do reformador, da reforma. Calvino c os ministros protes­
o qual se satisfez de que Bolsec fosse exter­ tantes, que por base da mesma estabelece­
minado de Genebra, como convencido de ram ser a Escriplura a unica norma da
sedicioso c de Pelagiano. 1 nossa fé, e cada um dos particulares o juiz
Tractavam-se, pois, de sediciosos e ini­ da intclligencia da Escriptura, este mesmo
migos da tranquillidade pública os que ou­ Calvino, e estes mesmos ministros protes­
savam contradizer a Calvino; eram tidos tantes faziam queimar Serveto, que via
por pelagianos que mereciam a morte os n’clla um sentido diverso do que elles viam,
que criam, que segundo seus princípios, fizeram queimar Serveto, que na realidade
era Deus o author do peccado. Eis-aqui o se enganava grosseiramente sobre um do­
reformador que desencadeava as suas iras gma fundamental, mas que sem crime po­
contra a aficctada tyranuia da igreja ro­ dia não condcscender coin o juizo dos mi­
mana. nistros protestantes, e de Calvino, pois que
N’esta mesma igreja se disputa sobre a nenhum d’elles,nem seus consistorios eram
/natureza, e efficacia da graça: os que se- infallivcis, e que não foi a elles a quem
( guem a graça cfficaz por si mesma, e a Deus disse: Quem vos ouve a vós, ouve-me
{ promoção physica presumem não se poder a mim.
{ negar a sua opinião sem cahir no pelagia- Calvino, porém, teve a audacia de fazer
/ nismo, e os theologos de sentimento con- a apologia do seu procedimento acerca de
\ trario rejeitam a graça efficaz por si mes- Serveto, c emprehendeu provar que se de­
/ ma, e a promoção physica por crérem que via dar pena de morte aos hereges. 1
> ella faz a Deus author do peccado: porém Lelio Socino e Castallion escreveram con­
> jamais se ouviu dizer a estes theologos que tra Calvino, e foram refutados por Theo­
S deviam ser queimados os seus adversarios. doro de Beza. 2
0 exterminio de Bolsec augmentou ini­ E todavia os reformadores e ministros
migos a Calvino, os quaes não o julgando protestantes se enfureceram contra os ri­
inteiramente justificado da imputação odio­ gores que se usavam nos paizes catholicos
sa de fazer a Deus author da culpa, princi­ a seu respeito, em que os protestantes pu­
piaram a fallar denodadamente contra a sua nidos foram condemnados por uma autho-
doutrina acerca da predestinação, e até al­ ridade infaljivel, qual é a da Igreja. Eis-
guns pastores de Berne quizeram sobre esta aqui a que não attendem os que presumem
materia accusal-o criminalmente.Bolsec re­ desculpar Calvino, com o pretexto de que
novou em Berne as suas accusações, e Cas- elle cm tal procedimento não fizera mais
tillon, que também fora expulso de Gene­ que ceder á preoccupação do seu século
bra por ser do mesmo sentimento, o des­ áccrca do castigo dos hereges; e além d’isto
acreditava em Basiléia. 2 ó certo que Calvino haveria tractado Bol­
Ser veto, que n’esse tempo se havia refu­ sec da mesma sorte que a Serveto, se lhe
giado era Genebra, fugido d’uma prisão em fosse possivel, bem que Bolsec pensasse
que estava recluso na França, foi préso por sobre a predestinação como muitos theolo­
ordem de Calvino, que fez proceder contra gos luthcranos; portanto foi a natureza dos
©lie com o maior rigor. Cousultou os ma­ erros de Serveto a que accendeu o zelo do
gistrados -de Basiléia, Berne è Zurick acer­
ca da sentença que devia pronunciar-se
1 Fid. expositio errorum Michaclis Ser-
1 Spond. ad an. 1345. Hist. de Genève, veti} et brevis eorumdem refutatio, ubi doce­
t. 2, pag. 33. Prcfaces des Lettrcs de Calvin tu r ju re gladii coercendos esse Hamticos, an.
à M. Falais. 1554.
2 An. 1552. 2 Hcereticis à Magistratu punieiulis.
CAL 335
•Calvino: Bayle é muito mais justo sobre este diu em quatro livros, cujos princípios pas­
artigo do que o seu continuador. 1 samos a expòr.
0 supplicio de Serveto não suspendeu
•em Genebra a licença de pensar: os italia­
nos que abraçaram os erros de Calvino, se PRIMEIRO LIVRO DAS SUAS INSTITUIÇÕES
haviam alli refugiado, e formaram uma
igreja italiana, cm que Gentilis, Blandrato,
etc., renovaram o arianismo em 1558. A religião suppõe o conhecimento de
Gentilis foi préso, c morrería como Ser­ Deus c do homem. Toda a natureza expri­
veto, se não se retractasse: sahiu de Gene­ me c publica a existência, attributos e bc-
bra c passou ao territorio de Berne, aonde neficios do Ente Supremo; o sentimento da
renovando os seus erros, lhe cortaram a nossa fraqueza, e as proprias necessida­
•cabeça cm 1566. des continuamente nos fazem lembrar um
Okin não teve melhor acolhimento de Deus: a sua ideia está gravada em nossa
Calvino do que Gentilis: parecendo seguir alma; ninguem a póde ignorar; todos os
o arianismo foi por ellc expulso de Gene­ povos reconhecem uma divindade: mas a
bra. ignoranda, as paixões e a imaginação in­
Não se occupava Calvino sómente em fir­ ventaram deuses, e o Deus Supremo quasi
mar a sua reforma em Genebra: escrevia era desconhecido em todo o orbe; portanto
de contínuo á França, á Allemanha, á Po- era necessario para conduzir o homem a
lonia contra os anabaptistas, contra os anti- Deus um meio mais seguro que o espectá­
trinitarios, e contra os catholicos. 2 culo da natureza e que a razão humana.
Também as suas disputas não lhe emba­ A bondade de Deus o concedeu aos ho­
raçavam o commentar a Escriptura Sancta, mens na revelação que elle mesmo nos fez
e escrever innumeraveis cartas a diversos do que devíamos saber.
particulares. Este chefe da reforma linha Porém desde muito tempo a esta parte
pois uma actividade de espirito prodigiosa: não tornou Deus a favorecer-nos com suas
foi sabio, escrevia com pureza e methodo, revelações, não enviou prophetas nem ho­
e ninguem se aproveitava com mais des­ mens inspirados, mas a sua providencia
treza, nem fazia vér melhor as faces que conservou as revelações que ellc fizera aos
eram favoráveis á sua opinião: mas era de homens, e que são conhecidas na Escri­
um caracter duro, inflexível e tyrannico. O ptura. Temos pois no antigo e novo Testa­
prefacio das suas instituições é uma obra mento quanto é necessário para conhecer
prima de sagacidade, e n’uma palavra não a Deus, sua essencia c attributos, e culto
se lhe podem negar grandes talentos, da que lhe devemos, e nossas obrigações a res­
mesma sorte que não se lhe devem escu­ peito dos homens. 1
recer um caracter odioso e gravissimos de­ Porém como nos consta que o que nós
feitos. chamamos Escriptura Sancta seja com ef-
Elle foi o primeiro que tractou as maté­ feito revelada? Como sabemos que a reve­
rias theologicas com pureza de cstvlo, sem lação que cila contém não foi alterada?
usar da fôrma escolastica, e quando o es­ Como distinguimos os livros canonicos dos
pirito de partido o não cegava, é inegável apocryphos? Não pertence á Igreja fixar a
que era theologo e bom logico: as suas dis­ nossa crença sobre todos estes artigos? Aqui
putas contra Serveto e Gentilis, contra os se desespera Calvino, e desata a sua cólera
antitrinitarios e anabaptistas, deixam um em injurias assaz pesadas contra os catho­
grande sentimento do abuso que fez de licos: estes homens sacrilegos, diz elle, só
seus talentos. Morreu no meio de suas’in- demandam a nossa condescendência sobre
quietacões e trabalhos, em 21 de maio de todos éstes artigos, a fim de darem á Igreja
1564. ‘ um poder illimitado, e de lhe subordinar
De suas obras se fez uma collecção em todos os homens, todas as potências, todas
nove volumes in-folio. Veja-se o artigo Re­ as consciências. Assim falia aquelle mesmo
forma. que fez queimar Serveto por se não con­
calvinism o — Doutrina de Calvino: nós a formar com os seus sentimentos, e que se
extrahimos das suas instituições christãs: podesse, teria tractado igualmente a Bolsec
já no artigo Calvino dissemos como elle se por se afoutar a dizer que os de Calvino
determinou a compor esta obra, que divi­
1 Este é o primeiro passo de todos os re­
1 A ri. Beze, note F.Supplément de Bay­ formadores desde os albigenses. Calvino nada
le , a rt. Servet. mais disse ácerca (Cisto do que elles: no ar­
2 E pist. Calvin. tigo Reforma o refutaremos.
336 CAL
ácerca da predestinação faziam a Deus au- nir os idolos, so não para sor unicaménto
thor do pcccado. adorado. 1
Calvino torna logo á sua objecção; a au- Bem que a Escriptura nos ensine não
thoridadc da Igreja, diz elle, nada mais é haver mais que uma divindade, n’ella to­
que um tcstimunho humano que pódc en­ davia se descobre que este Deus encerra
ganar, e que não dá segurança bastante tres pessoas, Padre, Filho e Espirito San­
para pacificar as consciências: é necessário cto, e que com tudo não são tres substan­
que o Espirito Sancto confirme este tcsti­ cias, mas tres pessoas: Calvino tracta tam­
munho da Igreja por outro interior, que o bém este artigo como homem bem enten­
mesmo Espirito Sancto que fallou pelos dido. 2
prophetas, entre em nossos corações para Ensina-nos a Escriptura que este Deus
nos affiancar que os mesmos prophetas nào em tres pessoas é o crcador do universo,
disseram ‘senão o que Deus lhes revelou: que formou o mundo visivcl, que crcou os
esta cspecic de inspiração particular, c o anjos c os homens: Calvino tracta cm par­
que nos certifica da verdade da Escriptura. ticular do homem, das funeções da sua al­
Esta inspiração porém que nos certifica ma, da sua queda e da perda da liberdade
de conter a Escriptura a divina revelação, de que gosava no estado da innocencia.
não.é finalmentc senão para os fieis, por­ Todas as creaturas de Deus, segundo Cal­
que Calvino não nega que a authoridade da vino, estão subordinadas á sua providencia:
Igreja deixe de ser o meio c o meio unico elle confuta os sophismas dos cpicureos e
para demonstrar ao incrédulo a divindade os dos philosophos que seguem o acaso ou
da Escriptura. 1 Elle até expõe muito as destino. 3
provas de serem divinos estes livros sagra­ Também encontra na Escriptura que
dos,mas quer que clles não possam produ­ Deus dispozera tudo, que tudo produz as­
zir uma certeza completa sem o testimunho sim no mundo moral como no physico, c
interior do Espirito Sancto. 2 que fez no céo e na terra quanto llío agra­
Como a Escriptura seja revelada e o Es­ dou: d’aqui tira por consequência que os
pirito Sancto nos instrua para conhecermos peccados e virtudes dos homens são obra
o seu sentido, c descobrirmos as verdades da sua vontade: se Deus, diz elle, não ope­
que cila encerra, devem olhar-se como fa­ rasse todas as nossas determinações em'
naticos e insensatos aquelles sectarios que nossa alma, a Escriptura nos enganaria
desdenham a sua lição, e que presumem quando nos diz que Deus tira a prudência
haver-lhes revelado ò Espirito Sancto im­ aos velhos e o animo aos principes da terra
mediata ou extraordinariamente quanto se para que se percam. Asseverar que Deus
deve fazer ou crer, como se a Escriptura sómente permitte estes males, e que não
não fosse sufficiente, c S. Paulo e os apos­ os quer e não os produz, é transtornar to­
tolos não tivessem recommcndado a lição das as regras da linguagem e todos os prin­
dos prophetas. 3 cípios da interpretação da Escriptura. 4
Depois de haver estabelecido a Escri­
ptura como a unica regra da nossa fé,
Calvino entra a investigar o que cila nos SEGUNDO LIVRO
ensina ácerca de Deus, e acha logo apre­
sentar-nos a cada passo o Deus verdadeiro
em opposiçào aos Deuses da gentilidade, e Indaga Calvino o estado do homem so­
fazer-nos conhecer os attributos, sua uni­ bre a terra: acha na Escriptura que Adão,
dade, eternidade^ justiça, bondade, omni- o pae do genero humano, fôra creado no
potencia e misericórdia. da innocencia, que peccára., c que o pccca­
Como quer que na Escriptura se prohiba do transcendera á sua posteridade, de sorte
representar a Deus, fazer imagens ou Ído­ que todos os homens nascem peccadores e
los, e não haja n’ella cousa mais rigorosa-
mente prohibida, d’aqui conduc Calvino, 1 Ibid. c. 10, 11, 12. Os iconoclastas an-
que os catholicos, que authorisaram o cultotes de Calvino pensaram da mesma sorte, os
aas imagens, recahiram na idolatria, por­ calvinistas fizeram d'isto um dos princípios
que Deus não tivera tanto desvelo em ba­ fundamentaes da sv a reforma: no artigo
Iconoclastas os refutaremos.
i Jnst. I. i, c. 7. 2 Jbid. c. 13.
• 2 Jbid. c. 8. No artigo Reforma fazemos 3 Jbid. c. 14, 15, 16, 17.
vêr quanto é peiigoso este caminho, quanto 4 Jbid. c. 18. Os predestinacianos tinham
é falso e opposto á Escriptura. sustentado este eiro antes de Calvino. Veja-
3 Jbid. c. 9. se o sext artigo. ‘
CAL 337
filhos da ira: as potências de sua alma fi­ TERCEIRO LIVRO
caram iufeccionados da culpa que contra-
hiram; o principio das suas acções é uma
concupisccncia viciosa, c d’clla nascem to­ N’cste livro tracta Calvino dos meios de
das as suas deliberações. 1 nos aproveitarmos dos merecimentos de Je­
O homem não tem força para resistir sus
á Christo. A Escriptura nos ensina que
concupisccncia; é uma chimcra a liberdade para sermos participantes das graças do
de que se desvanece, confunde o livre com Redemptor, é preciso que nos unamos a
o voluntario, c cré escolher com liberdade elle c nos façamos seus membros. Esta
por não ser constrangido c querer o mal união se faz pela operação do Espirito San­
que faz. Funda Calvino esta fraqueza do cto, que principalmcntc’ por meio da fé nos
homem para o bem cm todas as passagens conduz a Jesus Christo. Para nos unirmos
da Escriptura, em que se diz que elle não a elle é preciso crér, e não é a carne nem
póde conduzir-se a Deus senão por Jesus o sangue que nos faz crér d’um modo ne­
Christo, que é Deus quem n’elle opera o cessario para sermos seus membros; é um
bem, e que sem elle nada póde. 2 dom do céo, segundo o mesmo Jesus Chris­
Como todas as potências do homem este­ to. «És bemaventurado, diz elle a S. Pedro,
jam corrompidas, c elle não tenha força porque não foi a carne nem o sangue quem
para resistir á concupisccncia viciosa que te revelou quem eu seja, mas o Pac Celes­
continuamente o domina, fica evidente não tial, etc.» S. Paulo diz que os d’Epheso se
poder por si produzir mais que acções vi­ fizeram cbrislãos pelo Espirito Sancto de
ciosas e peccados: Calvino presume provar promissão, o que prova haver um mestre
também esta consequência pela Escriptura, interior, por cujo movimento a promessa
que alfirma haverem-se desviado todos os da salvaçao penetra nossas almas, e sem a
homens do caminho da virtude, c estar sua qual a mesma promessa não seria mais que
bôcca cheia de maldições. 3 um som vão que feriria nossos ouvidos sem
Porém ainda que o*homem traga dentro persuadir e sem mover nossas vontades.
de si mesmo um principio de corrupção, Diz o mesmo apostolo, que os thessaloni-
todavia o demonio tem grande parte nas censes foram escolhidos por Deus na san-
suas desordens, segundo Calvino: 4 assim ctificação do Espirito Sancto e na fé da ver­
pensava elle sobre a influencia do demonio dade; Jd’ondc conclue Calvino querer S.
acerca de nossas acções: e um século de­ Paulo ensinar-nos que a fé vem do Espirito
pois Bekker Calvinista asseverou que o de­ Sancto, e que ella é quem nos torna mem­
monio nenhum poder tinha no mundo, e bros de Jesus Christo, e que o mesmo Se­
presumia entender a Escriptura também nhor promettera a seus discipulos enviar-
como Calvino. 5 Comtudo não abandonou lhes o Espirito Sancto para enchel-os da sa­
Deus o homem á sua desgraça: seu Filho bedoria divina que o mundo não podia co­
veio ao mundo para resgatal-o c satisfazer nhecer; por isso se diz suggerir este Sancto
por elle. Em todo o restante do segundo Espirito aos apostolos tudo o que Jesus
livro, Calvino estabelece ser Jesus Christo Christo lhes ensinara: 1 e pela mesma ra­
mediador entre Deus e os homens, Deus e zão tanto recommenda S. Paule o mysterio
homem, e não haver n’elle mais que uma do Espirito Sancto, porque debalde annun-
pessoa, bem que n’csta divina pessoa haja ciariam a verdade os apostolos e prégado-
duas naturezas. Investiga em que consiste res se o Espirito Sancto não conduzisse a
a mediação de Jesus Christo, como nos me­ Jesus Christo todos os que lhe foram dados
receu a graça, e n’elle descobre principal- por seu Pae.
mente tres caracteres que podem esclare­ A fé, que nos une a Jesus Christo e nos
cer-nos acerca d’este grande objecto, o de faz seus membros, não é unicamente um
propheta, o de rei e o de sacerdote. Sobro juizo pelo qual pronunciamos que Deus
este plano formou M. Claudio o seu Tra- não póde enganar-se nem enganar-nos, e
ctado de Jesus Christo. que é verdadeiro quanto se acha revelado;
nem também um juizo pelo qual pronun­
ciamos que Deus é justo e castiga o pec-
1 L. 2, c. 21. cado: este modo d’olharmos para elle nol-o
2 L. 2, 'c. 2. faria odioso.
3 C. 3. Da mesma sorte não é um juizo pelo
4 C. 4. qual pronunciamos em geral ser Deus san­
5 Le monde enchantê. cto, bom e misericordioso: é um conheci-
338 CAL
mento certo da sua benevolencia para com- ella tem as qualidades ou o grau necessa­
nosco, fundado sobre a verdade da promessa rio para obter a remissão dos peccados, o
gratuita de Jesus Christo, e produzida em portanto se ignora sempre se clles estão ou
nossas almas pelo Espirito Sancto: ninguem não estão remiltidos, incerteza que inteira­
é verdadeiro fiel sem estar assim firme­ mente desbarata o systema de Calvino so­
mente persuadido da sua salvação, affian- bre o principio da justificação, que precede
çado nas promessas de Jesus Christo: é ne­ á penitencia como a causa precede ao seu
cessario que o verdadeiro fiel, como S. Pau­ eíTeito.
lo, esteja certo de que nem a morte, nem Quanto á confissão ella não é fundada na
a vida, nem as potências o podem separar Escriptura, diz Calvino, mas uma invenção
da caridade de Jesus Christo: tal ó no sen­ humana, introduzida para tyrannisar os
tir de Calvino a doutrina constante do mes­ fieis. 1
mo apostolo. 1 Emfim, continua o reformador, os catho­
Não é incompatível esta certeza da sal­ licos estão em um erro damnoso quando
vação com as tentações que atacam a nossa fazem depender da satisfação o perdão dos
fé, porque não a houve mais viva que a de peccados, porque assim dão ás acções hu­
David, e comtudo elle se nos representa manas um merecimento capaz de satisfazer
em diversos logares como litubiante, ou, á justiça divina, c porque assim destroem a
para melhor dizer, como tentado de falta graça gratuita e a misericordia de Deus. 2
de confiança. Estas tentações contra a fé D estes princípios conclue Calvino que
não são dúvidas, mas embaraços que pro­ as indulgências c o purgatorio, que os ca­
vém da sua mesma obscuridade; não ve­ tholicos olham como supplemento da satis­
mos com clareza sufficiente para que dei­ fação dos peccadores convertidos ou justifi­
temos de ignorar muitas cousas, mas esta cados, são invenções humanas que aniqui­
gnorancia no verdadeiro fiel não debilita lam no espirito dos christãos o valor da re-
a sua persuasão. 2 dempção de Jesus Christo. 3
A persuasão ou esperança firme d’um Depois de haver expostos os princípios
fiel na sua salvação, anda annexa ao co­ da justificação e seus cíTeitos, Calvino ex­
nhecimento e uso daquelles meios, pelos plica o como o christão se ha de conduzir
quaes Deus resolveu salvar os homens; por­ depois de justificado, falia d’abncgação pro­
tanto o fiel que cré que ha de ser salvo, crê pria das adversidades e da necessidade de
que o não será sem fazer penitencia: e d’esta meditar sobre a vida futura: 4 torna á jus­
maneira está a penitencia tão necessaria­ tificação nos capitulos seguintes, estenden­
mente ligada com a fé como o eíTeito e a do, e explicando ainda mais os seus prin­
causa . 3 cípios, responde ás objecções e ataca o mé­
A penitencia, segundo Calvino, é a con­ rito das obras. 5
versão do peccador para Deus, produzida No capitulo xix tracta da liberdade chris-
pelo saudavel temor dos seus juizos; este tã. A primeira vantagem, d’esta liberdade é
temor é o motivo de que se serviram os isemptar-nos do jugo da fé e das ceremo­
apostatas e os prophetas: elle faz com que nias; não porque seja preciso abolir as leis
o peccador mude de vida e o torna cir­ da religião, diz Calvino, mas um christão ha
cumspecto no seu modo de proceder e de de saber que não deve a sua justificação á
pensar; produz um desejo sincero de sa­ observância das leis. A segunda vantagem
tisfazer á divina justiça a mortificação da é não cumprir a lei por obedecer á mesma
carne, o amor de Deus e do proximo; eis- lei, mas para nos conformarmos á vontade
aqui a ideia da penitencia, que a Escriptura de Deus. A terceira consiste na liberdade
nos offerece. 4 d’usar cada um a seu arbitrio das cousas in­
Os catholicos, no sentido de Calvino, es­ differentes: presume Calvino, por exempjo,
tão distantes da verdade acerca da peniten­ eximir os christãos do jugo da superstição,
cia, fazendo-a consistir na confissão e na
satisfação. A necessidade da contrição, se­ 1 Calvino renova o erro de Pedro d'Os-
gundo este presumido reformador, põe os ma. Veja-se este artigo.
homens em desesperação, jamais se sabe se 2 L. 3. Inst. c. 4. Luthero dissera o mes­
mo antes de Calvino: em seu artigo o con-
1 Estes sâo em substancia os princípios fútamos.
de Luthero acerca da justificação. No seu 3 Ibid. 5. E também esta uma opinião
artigo refutamos este erro. de Luthero, que no seu artigo refutamos.
2 Inst. I. 3, c. 2. 4 Ibid. c. 6, 7, 8, 9, 10.
3 Ibid. c. 3. s Ibid. c. i i , 12, até 1 ,9 . Luthero tinha
* Ibid. c. 3. feito o mesmo. Veja-se o seu artigo.
iL 339
pacificar infinidade de consciências, ator­ não ha salvação c na qual se recebe a fé
mentadas de escrúpulos sobre quantidade que une a Jesus Christo.
de leis que ordenam ou prohibem cousas, Mas presumindo cada uma das igrejas
■que nào 'são boas nem más por si mesmas. 1 christãs ter esta qualidade com exclusão
No capitulo xx falia da necessidade da das mais: como’ se ha de distinguir das ou­
oração c das disposições para cila; c asse­ tras a que com offeito é verdadeira? Quaes
vera que não devemos orar senão a Deus, serão seus caracteres? Qual o seu governo,
condemnando como impiedade a intcrccs- e quaes os seus sacramentos? Eis-aqui o que
são dos sanctos. 2 Calvino propõe examinar no quarto livro
Tendo examinado as causas e os effeitos de suas instituições.
da justificação, entra a indagar porque não
teem todos aquclla fé que justifica. Encon­
tra esta razão na sclecção que Deus fez dos DOS MEIOS EXTERIORES PELOS QUAES DEUS
escolhidos para a vida eterna, c dos repro­ NOS FEZ ENTRAR E NOS CONSERVA NA SO­
bos para o inferno: esquadrinha a razão CIEDADE DE JESUS CHRISTO.
d’èsta escolha: acha na Escriptura que
Deus amára Jacob c aborrecera Esau an­
tes que tivessem feito bem ou mal; e d’aqui S. Paulo nos diz que Jesus Christo para
conclue que se não ha de buscar a razão pôr em execução todos os seus desígnios,
d’esta preferencia fóra de Deus, cuja von­ nos dera apostolos, prophetas, evangelis­
tade foi salvar uns c perder outros: a causa tas, doutores, e pastores, que trabalhas­
da reprovação não consiste nem na previ­ sem na perfeição dos sanctos, nas funeções
são de sua impcnitencianem no peccado de do seu ministerio, na edificação do corpo
Adão. de Christo, até que todos chegássemos á
Quiz Deus que houvesse escolhidos e re­ unidade d’uma mesma fé, c d'um mesmo’
probos, para ter sugeitos sobre os quaes po- conhecimento do Filho de Deus, ao estado
désse exercitar a sua misericordia c a sua d’um homem perfeito, e á medida da idade
justiça; e da mesma sorte que cllc prepa­ e da plenitude, segundo a qual Jesus Christo
rou e deu aos predestinados a fé que jus­ ha dc ser formado em nós. Deus que por
tifica, assim também dispôz tudo para im­ um só acto da sua vontade podia sanctiíi-
pedir que se aproveitassem das graças da car todos os escolhidos, quiz que pela Igreja
redempção aquelles que destinara para vi­ e n’ella fossem instruídos, e se aperfeiçoas­
ctimas da sua vingança: obcecou-os, endu­ sem; portanto escolheu uma igreja visível,
receu-os e fez que a mesma pregação, que que conservasse a pregação da sua dou­
converteu os escolhidos, abysmassc no pec­ trina, c os sacramentos que instituiu para
cado os que elle queria puiiir. sanctificação dos predesliuados. Os mem­
Tal é o systema de Calvino acerca da di­ bros d’csta Igreja são pois unidos pela pre­
versa sorte dos homens na outra vida, e gação da mesma doutrina, c participação
depois da resuroição, que tem por. certa . 3 dos mesmos sacramentos. Já vimos nas ex­
pressões dc S. Paulo ser esta a sua essên­
cia; são logo os caracteres c as divisas da
QUARTO LIVRO verdadeira Igreja a administração dos sa­
cramentos, e a prégação da palavra de
Deus. Por esta noção da Igreja bebida na
Portanto os fieis se aproveitam dos me­ Escriptura, segundo Calvino, se vè encer­
ritos de Jesus Christo, unindo-se com elle, rar nrella peccadorcs, c que na mesma se
e 6 a fé quem os une: unidos formam pois podem ensinar opiniões oppostas, uma vez
uma igreja que abrange todos os fieis, to­ que não destruam a doutrina dc Jesus Chris­
dos os escolhidos, todos os predestinados; to e dos apostolos. Portanto não devem ser
c assim é ella universal e catholica, e a so­ separados d’csta Igreja os que sustentam
ciedade de todos os sanctos, fóra da qual opiniões diversas, e os membros que não
são sanctos nem perfeitos.
Calvino, segundo estos princípios, faz vêr
1 È o erro de Audeo, que refutamos no que os donatistas, catharos e anabaptistas
seu artigo. dilaceram a unidade da Igreja, e peccarn
2 Condemnou-se este erro em Vigilando. contra a caridade quando insistem em que
Veja-se o seu artigo. a igreja visível se compõe sómente de ho­
3 Eis-aqui o Predcstinianismo menos mens perfeitos e predestinados. 1
adoçado, ou, para melhor dizer, o Mani-
•cheísmo. i Inst. I 4, c. 1.
*
340 BAI
Porém quando uma sociedade ensina er­ os degraus pelos quaes elle chegou ao po­
ros que arruinam os fundamentos da dou­ der que hoje possuc. 1
trina de Jesus Christo e de seus apostolos, Havendo pi ovado Calvino que na Igreja
uando corrompem o culto, que o mesmo deve haver um ministerio, examina qual é
enhor instituiu, então devemos separar- a sua authoridadc, c lhe dá tres objectos-
nos d’esta Igreja, por mais extensa c antiga a doutrina, a jurisdicção, e o poder do le­
que ella seja, porque cm tal supposição nao gislar. 0 ministerio ecclesiastico não póde
podemos alli salvar-nos, por faltarem os ensinar como doutrina da Igreja senão o
meios exteriores que Jesus Christo estabe­ que contém na Escriptura, e portanto as
leceu para a salvação dos homens, isto é, o decisões dos concilios a ninguém obrigam
ministério da palavra, e a administração e sem razão se presumem infallivcis nos
dos sacramentos. seus juizos estas assembléias. 2
D’aqui concluo Calvino não ser a roma­ Concede que o ministerio ecclesiastico-
na a verdadeira igreja, por haver cahido possa fazer leis para a policia da Igreja
na idolatria, por que a ceia, isto é, a rece­ conservação da paz, etc., mas nega que es­
pção da Eucharistia veio a ser um acto sa­ tas obriguem em consciência acerca do
crilego, c porque a mesma igreja tinha culto c da disciplina, e tracta com uma tv-
suílocado com innumcraveis superstições rannia odiosa as que fez a respeito da con­
o culto estabelecido por Jesus Christo e fissão, do culto, c das ceremonias. 3
pelos apostolos. Debalde se insistiría em Não tem pois a jurisdicção da. Igreja mais
que a igreja catholica tinha succcdido aos objecto que os costumes e a conservação
apostolos; isso é verdade, mas ella corrom­ da ordem da mesma Igreja, nem póde cas­
peu o deposito da fé: comludo Deus con­ tigar senão com penas puramenle espiri-
servou sempre n’esta igreja algumas pes- tuaes, separando de si pela cxcommunhão
oas que mantiveram a sua pureza c o uso os que depois das admoestações ordinarias
3gitimo dos sacramentos. não se emendarn, cscandalisam c corrom­
Estas pessoas foram lançadas fóra do pem os fieis. Também sobre este objecto
,eu seio, e cilas mesmas se separaram por Calvino censura a Igreja de haver abusado
não poderem mais supportar a corrupção do seu poder, principalmcnte a respeito dos
da igreja romana: esta igreja pois já não votos monasticos. 4
tem ministério legitimo, nem a administra­ A verdadeira Igreja tem dous caracteres,,
ção dos sacramentos, nem a prégaçào da segundo Calvino: a pregação da doutrina
pura palavra de Deus 1 de Jesus Christo e a administração dos ver­
No nascimento da Igreja foram escolhi­ dadeiros sacramentos; havendo tractado o
dos os seus ministros mesmo por Jesus que respeita á pregação c á Igreja, tracta
Christo; os apostolos estabeleceram duas dos sacramentos. 5
ordens: pastores e diaconos. Ninguem en­ Todas as religiões tiveram os seus sa­
trava no ministerio sem que a elle fosse cramentos, isto é, signaes externos destina­
chamado, e a vocação dependia do suirra- dos a exprimir as promessas ou os bene-
gio dos outros ministros, e do consenti­ ficios da divindade; a verdadeira religião
mento do povo: esta vocação manifestava- teve sempre os seus, como foram a arvore
se pela imposição das mãos, e quer Cal­ da vida no estado da innoceucia, o arco
vino que ella se conserve por ter para si
que nada do que os apostolos practicavam 1 Ibid. c. 6,7.São em substancia os prin­
era indiíTerente e inútil. 2 cípios dos gregos sobre a primazia do papa,
Depois d’isto examinava Calvino as mu­ mas Calvino os leva muito mais adiante do
danças que tem havido no modo de cha­ que elles: á excepção das injurias, que só
mar os fieis ao ministerio sagrado, e se en­ merecem desprêso, confutamos o erro de
furece contra a igreja romana e contra os Calvino acerca do papa no artigo Gregos.
papas, que no seu sentir variaram toda a 2 Ibid. c. 8 e 9. Os donatistas, monta-
ordem primitiva. 3 Passa depois a investir nistas, albigenses, em uma palavra, todas
contra a primazia dó papa, esquadrinhando as heresias tiveram as mesmas pretenções.
Fazemos vêr a sua falsidade no artigo Re­
forma.
1 Ibid. c. 2. Calvino to m a aqui ao eiro 3 lbid. c. 10.
dos donatislas, de Wiclef, de João Hns a 4 Ibid. c. 11, 12, 13. Vigilando antes
de Luthero acerca da natureza da Igreja. de Calvino havia atacado os votos: foi con-
Veja-se a sua refutação no artigo Reforma. demnado. Veja-se o seu artigo.
2 lbid. c. 3. 5 No artigo Reforma fazemos vêr a fal­
3 Ibid. c. 4, 5. sidade d'estas opiniões.
CAL 341
iris para Noé c sua posteridade, a circum­ os sacramentos da lei antiga o os da lei
cisio depois da vocação de Abrahào, e os nova.
signaes que Deus deií ao povo judaico para Finalmente conduc affirmando não ha­
confirmar as promessas que lhe fizera para ver mais do que dous sacramentos: o ba­
scgural-o na fé, c laes foram também os ptismo c a Eucharistia, porque só estes
signaes que deu a Gcdeão. são communs a todos os ficis, e necessa­
Quiz o Senhor que tivessem também os rios á constituição da Igreja. 1 O baptismo
christãos seus signaes e seus sacramentos, é o signal da nossa iniciação c da nossa
isto é, os seus caracteres visíveis, que os entrada na Igreja, ou a marca exterior da
confirmassem na fé das promessas que Deus nossa união em Jesus Christo. Por este sa­
lhes íizer; c como Calvino attribue á fé a cramento somos justificados, c se nos appli-
obra da salvação, os sacramentos não são cam os merecimentos da redempeão: por­
meios para cfla senão cmquanto contri­ tanto affirma Calvino que o baptismo não
buem para fazer nascer a mesma fé, ou é sómente um remedio contra o pcccado
para a fortificarem. original e contra os males commettidos an­
Portanto ellc define os sacramentos sgm- tes da sua recepção, mas também contra
bolos exteriores pelos quaes Deus imprime todos os que se podem commctter depois
em nossas consciências as promessas da sua de o haver recebido, de sorte que a lem­
benevolência a nosso respeito para susten­ brança do nosso baptismo é bastante para
ta r a nossa fe3 e pelos quaes rendemos na os apagar.
presença dos anjos e dos homens o testimu- Como a virtude e efleito do baptismo não
nho da nossa piedade para com Deus. possam destruir-se pelos peccados commet­
Os sacramentos não são pois vãos signaes tidos depois d’elle; assim uma vez justifi­
sem efficacia, destinados a pôr diante dos cados pelo baptismo, jamais podemos per­
olhos as promessas de Jesus Christo, nem der a nossa justiça. 2
também signaes que tenham cm si mesmos Por este dogma pretende Calvino pôr
um a virtude escondida e occulta; são effi- em socego as consciências timoratas, e ata­
cazcs porque obra Deus em nossas almas lhar que venham a cahir na desesperarão,
quando nos são applicados. mas de nenhuma sorte largar a redea ac
Calvino pretendeudo achar aqui um meio vicio. Attribue ao baptismo de S. João <
entre os catholicos e lutheranos, é obscuro, mesmo eíTeito que ao de Jesus Christo (
embaraçado, e parece não haver compre- dos apostolos.
hendido bem a doutrina da igreja romana Na administração d’este sacramento con­
Acerca dos sacramentos, e da sua efficacia: demna todos os exorcismos e ceremonias
umas vezes a vitupera de se haver enga­ da igreja catholica, e quer que se adminis­
nado a respeito dos sacramentos, attribuin- tre aos meninos, refutando os anabaptistas
do não sei que virtude occulta aos elemen­ e partieularmente a Scrveto, que tomara
tos dos sacramentos, que operam como uma a sua defesa. 3
especie de magia; outras a censura d!exag­ A ceia ou a Eucharistia é o segundo sa­
erar a virtude dos sacramentos, ensinan- cramento que Calvino admitte: este não
o que produzem em nossas almas o seu foi instituído sómente para nos representar
effeito, uma vez que não lhe ponhamos ob­ a morte e paixão de Jesus Çhristo, como pre­
stáculos: doutrina monstruosa, diz ellc, dia­ tendem Zuinglio, Occolarhpadio e outros,
bolica, e que perde infinidade de pessoas, mas para nos fazer realmente participantes
fazendo-lhes esperar do signal corporeo a da sua carne e do seu sangue. Calvino tem
salvação, que não podem obter senão de por absurdo, contrario á Escriptura, o não
Deus. a se reconhecer na Eucharistia mais que a
Como os sacramentos não sejam senão figura do corpo de Jesus Christo. E eviden­
signaes pelos quaes Deus imprime em nos­ temente clara a promessa que o mesmo
sas almas as promessas da sua benevolên­ Senhor nos faz de nos dar a comer a sua
cia para sustentar nossa fé, e pelos quaes carne e a beber o seu sangue, c a este di-
também nós testimunhamos a nossa pie­
dade para com Deus, d’aqui conclue Cal­ 1 Ibid. c. 14. Os valdenses e albigenses
vino haverem-se enganado os catholicos sustentaram os mesmos eiros antes de Lu-
sem fundamento, fazendo differença entre thero e de Calvino. No artigo Luthero os
confutamos.
2 Também n'este ponto não è Calcino
1 Explicamos a opinião dos catholicos, mais que um eçco dos hereges que o prece­
e refutamos o erro de Calvino no artigo Lu- deram. Veja-sê o artigo Luthero.
tliero. 3 Inst. I 4, c. 15, 16.
342 CAL
vino banquete attribue taes elicitos, que berdade christã, mostra que o Christianis­
não podem convir a uma simples repre­ mo não se oppõe ao governo politico; que
sentação. Portanto rejeita Calvino a opi­ um christão pode ser um magistrado justo
nião ele Zuinglio, e crê que comemos rcal- um rei bom c poderoso; que os chrlstãos
mente o corpo e carne de Jesus Christo, devem respeitar o magistrado, ser obedien­
porém a carne e o sangue sacratissimo tes ás potências temporãos e civis, que hão
não residem no pão, mas unem-se a nós pertence aos particulares arguir seus pro­
quando recebemos os symbolos Eucharis- cedimentos, c que estes lhes devem uma
ticos, ou para melhor dizer somos nós uni­ obediência illimitada em tudo o que é tem­
dos à sua carne como ao seu espirito. Não poral, e sempre que não mandam cousas
se ha de impugnar esta doutrina pela dif­ contrarias á religião, porque iTestc caso
icu ld a d e que ha em comprehender como deveríam lembrar-se do quê diz S. Pedro:
se une a nós a carne de Jesus Christo, que Por ventura havemos de ser mais obedien­
está no céo. Deverão por ventura propor­ tes aos homens do que a Deus? Aos erros
cionar-se as obras do Deus ás nossas idéias? que acabamos dMndividuar, ajunta Calvino,,
Não é o poder divino infinitamente supe­ nas outras suas obras, mais alguns que não
rior á intelligencia humana? merecem ponderação.
D’csta maneira reconhece Calvino co­
mermos i\ps realmcntc o corpo de Jesus
Christo, mas não o crê nem unido ao pão REFLEXÕES SOBRE O SYSTEMA DE CALVINO
e ao vinho como Luthero, nem existente
debaixo das espccies pela transubstancia-
ção como os catholicos. Temos portanto já Pela exposição que acabamos de fazer
tres diversos modos d’expjicar o que a Sa­ do systema de Calvino e notas que lhe ajun-
grada Escriptura nos diz acerca da Eucha­ tamos, se vê claramcntc que os dogmas que
ristia, desde que os presumidos reforma­ elle impugna já tinham sido negados e com­
dores se separaram da Igreja até o tempo batidos por diversas seitas. Todas estas fo­
de Calvino, sendo estas tres oppostas expli­ ram condemnadas quando se levantaram,
cações dadas por tres cabeças de partido, e fizeram distinctos systemas: os seus er­
que todos presumem não seguirem outra ros passaram até o decimo sexto século, ou
regra mais que a Escriptura, e ser esta por alguns restos dos sectários que se ti­
sufficientemente clara para que os sim­ nham espalhado, ou pelos monumentos his­
ples fieis por ella distingam as opiniões toricos.
verdadeiras ou falsas nas questões que se O tempo, que ajunta assim as verdades
movem concernentes á religião. 1 No sen­ como os erros, tinha amontoado todos os
tir d’este heresiarcha os catholicos roma­ dos iconoclastas, donatistas, berengarios,
nos aniquilaram o sacramento da Eucha­ predestinacianos, vigilancios, etc., nos al-
ristia pela missa, que ellc olha como um sa­ bigenses, valdenses, beguardos, e fratricel-
crilegio. 2 los, cm Wiclefe, e João Hus, nos irmãos
Reconheceu Calvino que todas as igre­ de Bohemia, em Luthero, nos anabaptistas,
jas christãs, antes da presumida reforma, em Carlostadio, em Zuinglio, etc., mas to.-
reconheciam além do baptismo c Eucha­ dos estes erros estavam cm montão, e Lu­
ristia outros cinco sacramentos, mas clle thero ensinava uns, c impugnava outros.
os não impugna, asseverando que são uni­ Apparcccu Calvino: tinha genio, emprchen-
camente umas ceremonias de mera insti­ deu pôl-os cm ordem c methodo, ligando-os
tuição humana, que não se encontram na e estabelecendo princípios geraes d’onde
Escriptura, c que não podem ser olhadas podesse tirar todos os sentimentos oppos-
como sacramentos, porque sendo estes uns tos á igreja romana, e firmou como base
signaes pelos quaes Deus imprime em nos­ do seu systema: que a Escriptura era a
sas almas as suas promessas, sómente elle única regra da nossa fé! Já mostramos
tem o poder d’instruil-os. 3 como sobre este principio estabelece Cal­
No vigesimo e ultimo capitulo combate vino toda a sua doutrina.
a doutrina dos anabaplistas acerca da li­ Depois de haver assim ligado e umdp
todos os erros, que entram no seu systema
1 Ibid. c. 17. de reforma, os catholicos o investiram por
2 Ibid. c. 18. Calvino também aqui não diversas partes, e os discipulos de Calvino
tem a gloria de ser o primeiro. No artigo tomaram a peito defender as differentes opi­
Luthero expomos a doutrina da igi'eja ca- niões de seu mestre: cada um dos erros
tholica, de Calvino foi tomado á parte, o dep ma­
3 Ibid. c. 19. Veja-se o artigo Luthero. téria a infinidade de controversistas d uma
CAL 343
e outra communhão: c estas alterações ab­ Como o zelo d’alguns invadisse varias
sorveram uma grande porção dos empe- vezes os direitos parochiaes, o clero secu­
nhos do entendimento humano por quasi lar se oppôz ás suas pretenções, protes­
dous séculos em toda a Europa. Que innu- tando pelos que lhes davam as leis, c se
meraveis escriptos não appareceram acer­ queixou de que era offendida a disciplina:
ca da presença real, da Igreja, do juiz das os religiosos da sua parte se apoiavam
controversias, da confissão, das orações pe­ nos privilégios, c não se esquecendo de
los mortos, das indulgências, e do papa? quanto poderíam interessar o papa cm
Veja-se o artigo Reforma. seu favor, lhe attribuiam uma authoridadc
Foi adoptada a doutrina de Calvino pe­ illimitada, principalmente acerca das in­
los reformados da França; estabeleceu-se dulgências de que algumas vezes oxag-
nos Paizes-Baixos, em Inglaterra, e parte geravam a virtude: finalmente exaltavam
d’Allemanha; mas principalmente na Fran­ com excesso, e regularmente com hyper­
ça fez grandes progressos, e excitou muitos boles ridiculas as de seus patriarchas ou
distúrbios: d’estes vamos fallar no artigo dos sanctos das suas ordens, e o poder de
Calvinistas. Do seu estabelecimento nos suas intcrcessões.
Paizes-Baixos tractarcmos no artigo Hol- Combalia o clero esta doutrina, c entre
landa. os ecclesiasticos seculares taes houve que
calvinistas—Discipulos de Calvino: já se lançaram no extremo opposto, negando
vimos que elle os teve em toda a Europa, a virtude das indulgências, e disputando
e principalmente na França, aonde moti­ ao soberano pontifice as mais incontrasta-
varam grandes turbulências: vamos agora veis prerogativas. Tinha pois a França al­
examinar a origem, progresso, c descobri­ gumas pessoas, que por um zelo ignorante
mento do calvinismo no mesmo reino. Mas e indiscreto se haviam desviado d’aquelle
para melhor se manifestarem as causas do prudente meio, que seguia a igreja galli-
seu progresso, deveremos remontar aos cana.
tempos que precederam ao seu nascimento. Estes queixumes na.realidade não ti­
nham perturbado a França: a faculdade
DO ESTADO DA FRANÇA NO PRINCIPIO dc theologia, que vigiava sobre as innova-
DA REFORMA ções, condcmnando-as c refutando-as, ata­
lhava os seus progressos, mas cilas de tem
Não tinha sido a França como fôra a po em tempo recobravam alentos, e conse
Allemanha o asylo e o theatro das heresias quentemente entretinham alguns espirito1,
e do fanatismo, que durante os séculos dé­ dispostos a gostarem dos novos dogmas
cimo terceiro e dous seguintes tinham per­ acerca do papa, das indulgências, da in-
turbado a Igreja: os scismas que houve tercessão dos sanctos, c das prácticas de­
entre os papas, c as dissenções d’estes com votas. 1
os soberanos, não diminuiram os sentimen­ 2. ° Pelos fins do decimo quinto século,
tos d’amor, submissão, e respeito devidos á Alexandre vi escandalisou toda a Igreja
sancta sé: alli igualmente se condemna vam com a sua ambição e costumes.
os excessos dos sectarios, e os abusos que 3. ° Julio ii, seu sucessor, foi inimigo in
serviam de pretexto à sua rebellião: mas exorável de Luiz xii e da França. Luiz
como ainda assim a reforma insensivel­ congregou os- bispos do seu reino, e n’esta
mente se foi ingerindo na França e n’ella assembléia fez declarar ser permittido fa­
se veio a estabelecer com muito íuzimento, zer guerra ao papa por motivos puramente
arece-nos importante fazer vér as causas temporaes: o mesmo principe ajuntou um
’este successo: concilio em Piza, aonde o pontifice foi ci­
i.° Tinham-se multiplicado muito em tado e declarado inimigo da paz, incorri­
França as ordens religiosas, principalmen- gível, e suspenso de toda a administração.
tc as quatro mendicantes. Estes religiosos Luiz usava de todas as traças, a fim de
tão respeitáveis e tão uteis á Igreja não tornar odioso á França e a toda a Europa
estavam retirados nos desertos e nas bre- o papa Julio; e este da sua parte arrastado
nhas: habitavam nas cidades, e viviam dos pela inclinação guerreira, e pela ambição,
donativos da piedade dos fieis: querendo que lhe eram naturaes, favorecia as inten­
trabalhar na salvação dos seus bem feitores, ções de Luiz, e assim foi visto este ponti-
o seu zelo activo estabeleceu prácticas de­
votas approvadas pelos soberanos pontifi­
ces, e aptas para reanimarem a piedade; 1 Collect. Jud. de novis erroribus, t. 2.
prégavam, ouviam confissões, e nas suas Hist. de FEgl. Gallic. t. 16. Dup. quinzième
igrejas se lucravam indulgências. siécle. Conlin. de Fleury.
344 CAL
fice bloqueando praças, dando batalhas, tica, c no conhecimento das linguas, des-
montando a cavallo como um simples ofíi- presaram o estudo da theologia e tracta­
cial, visitando as baterias e trincheiras, ram com desdem os oráculos da cscóla.
afoutando as tropas, e expondo ao fogo a Os theologos da sua parle defendiam o me­
sua propria pessoa. EUe revoltou contra thodo cscolastico e desacreditavam o es­
Luiz toda a Italia, despojou-o de quanto tudo das bellas-letras, como fatal e da­
n’ella possuia, e não satisfeito de combater mnoso para a religião.
com as armas temporãos empregou contra Porém não se portava assim Luthero com
a França as da Igreja. Viu a França ex- as pessoas eruditas; cllc as honrava com
commungado um rei que adorava, o "reino elogios, e d'esta maneira aíTciçoou ao seu
interdicto, os vassallos dispensados da fide­ partido muitos sábios c cscriptores de fa­
lidade que juraram, e finalmentc viu que ma, razão porque quando os seus discipu­
este papa privou a cidade de Lyão do di­ los penetraram na França, acharam nos
reito de ter feiras francas, com o motivo mesmos eruditos disposições favoráveis a
de haver dado asylo aos bispos do concilio Luthero c contrarias aos theologos.
de Piza. Os eruditos, que não passavam de theo­
Isto não eram dissencõcs theologicas, mas logos supcrficiacs, ou que absolutamente
queixumes do povo e da còrte, do cidadão, o não eram, facilmente foram illaqueados
ve do militar nào menos que do magistrado. pelas argucias dos reformadores: um pi­
Tomou parle n’esta desavença a França in­ que, uma consequência ridicula imputada
teira, c nào se pôde duvidar que cila dei­ aos catholicos, um abuso reprehendido c
xasse d’infiuir nos animos dos francczes corrigido por Luthero, c uma passagem
sentimentos contrarios ao respeito e sub­ da Escriptura mal interpretada pelos com-
missão devidos á sancta sé, porque a au- mentadores, fizeram olhar a reforma como
horidade mais legitima vem a parar sus- o estabelecimento do Christianismo.
eitosa quando se faz d’ella um abuso ma- Portanto quando as obras e os discipu­
ifesto, e quando este abuso ataca a feli- los de Luthero entraram na França, havia
idade c o socegodos estados. em quasi todas as ordens do estado ho­
4. ° Bem que a Igreja estivesse muito mens propensos a admittir alguns dos prin­
longe de ser tal qual a àrguiam os presu­ cípios da reforma, e aptos para persua-
midos reformados, não se podia escurecer dil-os aos outros: os que se afastaram da
que n’clla havia notáveis abusos, que o fé catholica, não adoptaram logo os mes­
mesmo povo nao ignorava que Julio ma­ mos pontos da reforma, mas cada um ia
nifestara mais zelo pela aequisição de ter­ abraçando a doutrina que atacava o que
ras, que pela reforma dos costumes e da lhes desprazia, ou fosse no dogma, ou na
disciplina, c que Leão x, que lhe succedeu, disciplina da igreja catholica.
não deu mostras de mais zelo por estes
objectos que seu antecessor. DECOMOSE INTRODUZIUAREFORMAEMFRANÇA
5. ° Também havia notáveis abusos nas
E DO SEU PROGRESSO
esmolas que se pediam por motivo dMndul- ATÉ O NASCIMENTO DO CALVINISMO .
gencias ou d’algumas reliquias singulares:
os commissarios, que faziam estes peditó­
rios nos bispados, publicavam muitas fal­ A reforma appareceu logo em Meaux
sidades, e induziam o povo á superstição com algum esplendor. Guilherme Briçon-
e ao erro, e os ministros da curia eccle­ net, bispo da mesma cidade em 1521, era
siastica moviam e estiravam os processos amante das letras e das sciencias, e proje-
para extorquirem o dinheiro por mil fôr­ ctaudo reformar o seu clero fez vir da uni­
mas. 1 versidade de Paris alguns professores fa­
6. ° No décimo quinto século e no rei­ mosos, entre os quaes foram Le Fevre de
nado de Luiz xii se cultivaram em_França Etaples, Farei, Roussel e Vatable. Nào tar­
a theologia e o direito; no principio do de­ dou muito o bispo de Meaux em advertir
cimo sexto houve grande paixão pelas lin­ que Farei estava contaminado das novas
guas, e os sábios chamados de toda a parte opiniões, portanto o despediu.
or Francisco i, admittidos á sua familiari- Porém como os partidários da reforma
ade, e elevados ás dfgnidades da igreja e já tinham instruído em segredo alguns ha-
do estado, inclinaram as_bellas-letras o ge­ bitadores da cidade c feito vulgares os seus
nio da nação, dos cortezãos, e dos grandes. erros; os presumidos reformados formaram
Os que eram versados na historia, na cri- seita, c escolheram por seu ministro um
cardador de lá, chamado João Le Clerc, o
i Hist. de l'Egl. Gal t. 11. qual sem outra missão se pôz a prégar e a
CAL 34o
administrar os sacramentos aos seus secta­ casos da maior ponderação passaram ás
rios. Eis-aqui qual foi a primeira igreja da suspeitas e até aos escrúpulos; 1 de sorte
reforma em França. que muitas vezes pareceu motivo sufficiente
Fermentado o zelo dos novos reformados, para a prisão, para o desterro c para a
unidos no logar cm que ouviam seus ser­ queima a mais leve analogia no procedi­
mões; alli de tal sorte se escandeceram e mento d’um homem com os princípios dos
inflammaram, que fizeram em bocados pu- reformados. 2
blicamcnte certa bulla do papa em que se Não se suspenderam os progressos da
ordenava um jejum e concediam indulgên­ heresia pela vigilância c severidade dos
cias, c pozeram editaes nas praças públi­ tribunaes que a perseguiam; os dogmas da
cas, tractando o papa d’Anti-Christo. nova reforma se perpetuaram cm Paris, em
Foram présos estes fanaticos, açoutados, Mcaux c em Roucn: parochos, religiosos,
marcados e banidos: Joào Le Clerc vero- doutores em theologia e em direito os ado­
similménte fóra do numero d’estcs, porque ptaram, os ensinaram e persuadiram ao
se retirou a Mctz, aonde o seu zelo o tor­ povo, aos magistrados, aos fidalgos e ás
nou furioso, foi queimado. 1 mulheres.3 Viu-se a França innundada de
Todavia se multiplicavam em França os livros de toda a especie, ascéticos, dogma­
livros de Luthero, Carlostadio, Melancton e ticos c polêmicos que atearam o fogo do fa-
Zuinglio, não obstante o serem condemna­ uatismo: em Paris se derramaram satyras
t o s pela faculdade de theologia. execrandas contra a Sanctissima Eucharis­
Fizcram-sc concilios em quasi todas as tia com invectivas grosseiras e injuriosas
provincias em que foram prescriptos os no­ ao clero secular e regular, e tal foi a ou­
vos sentimentos, depois de serem cxactissi- sadia, que chegaram a pregar estes libellos
mamente discutidos, e o parlamento bus­ no mesmo castello de Blois, em que então
cou com o maior desvelo e fez prender al­ estava a corte.4
guns dos seus sectários. Francisco i nos Como as mesmas satyras se renovassem
seus princípios suspendeu os effeitos do em Paris, Francisco i publicou um edital
zelo do parlamento e concedeu liberdade a formidável contra os hereges; e a fim de
muitos (Telles; mas finalmentc os seus at- reparar os attentados offensivos da religião,
tentados' contra a religião catholica, os in­ fez na mesma cidade uma procissão sole-
fames libellos que espalhavam contra el- rane, depois da qual foram queimados seis
rei, as instâncias da faculdade de theologia dos principacs cúmplices d’estes dclictos, c
c os queixumes repetidos do parlamento, para que a morte fosse mais dolorosa se
deliberaram aquelle principe a permittir inveutou uma especie de polé, por meio da
uc sentenciassem os presumidos reforma- qual eram guindados ao alto estes miserá­
os, segundo o rigor das leis estabelecidas veis, e depois os deixavam cahir sobre as
contra os horeges. chammas, até que assim Analisassem suas
Determinando o mesmo monarcha que vidas neste terrível tormento. Outras dô-
se continuasse o processo de certo fidalgo zoito pessoas infeccionadas do mesmo cri­
chamado Berquin, a quem elle tinha acou- me foram igualmcnte punidas; c todos eram
tado das pesquizas do parlamento, e que francezes.5
atacava a Saborna, doze ministros nomea­ Os principacs protestantes, colligados com
dos por el-rei conferiram sobre o processo Francisco i contra Carlos v, se queixaram
intentado contra Berquin, o qual conven­ de que em França fossem tractados tão des-
cido de lutherano foi sentenciado a vêr apiedadamente uns homens que não tinham
queimar os seus livros, a ter a lingua cor­ outro delicto que o de pensarem ácerca da
tada c a ser recluso cm um cárcere todo o religião como os protestantes da Allema-
resto da sua vida. Appellou para el-rei e
para o papa, e os ministros que o julga­ 1 Hist. de VEgl. Gallic. t. 18, l. 32, pag.
ram na sua appellação, o condemnaram ás 160.
chammas, em que morreu cm 22 d’abril de 2 Erasmi Epist..
1329. 2 Hist. de Paris, pag. 988. Hist. des Ar-
D’esta maneira pois castigavam cm Fran­ chev. de Roucn, pag. 603. Hist. de Meaux, t.
ça os sequazes dos novos erros; mas dos 1, pag. 338. D'Argentrc, t. 2, pag. 9.
4 Hist. de Paris, pag. 996. Du Boulay, t.
6, pag. 248. Hist. de VEgl. Gallic. ibid. Cont.
• 1 Dup. xvi século, t. 1, c. 2, § 30. D. de Fleury.
Duplessis, Hist. de VEgl. de Meaux, t. 4, pag. 5 Du Boulay, ibid. pag. 149. Hist. de VEgl
321. Du Boulay, Hist. de VUniversite de Gallic. I. 18, pag. 160. Cont. de Fleury, l.
Paris, t. 6, pag. 181. 133, art. 70, t. 70, t. 27, pag. 310.
346 CAL
nha. Porém o monarcha respondeu a estes resia; * mas nem o rigor nem a vigilância
queixumes que aquellcs que clle fizera poderam extinguir cabalmcntc o fanatismo
queimar não eram sómente hereges, mas da reforma. O numero dos sectarios se au­
seditiosos; e até insinuou aos principes pro­ mentava assim nas cidades como nas al-
testantes que elle estimaria ter em França eias; as suas assembléias principiavam a
alguns dos seus theologos. 1 fazer-se públicas e nas janellas se canta­
N’cssc tempo o cardeal de Bellay deu vam os psalmos de Marot. Prenderam-so
principio a uma especie de negociação com cm Meaux mais de sessenta, quatorze dos
Melancton: este theologo remetleu certa quaes foram queimados, caminhando para
memoria, que continha unia como profissão as chanunas como sc fossem para o trium­
de fé, na qual os dogmas catholicos em que pho. 2 Em Leon, Langres, Bourges, Angers,
os luthcranos punham mais objccções, se Autun, Troves, Issoudun c Rouen se di­
viam modificados com tal disfarce, que os vulgavam igualmente os seus erros. Tal
simples fieis poderíam ter este cscripto por era a situação cm que se achava a religião
muito conforme â verdadeira doutrina.2 em França na morte de Francisco i, que
Porém a faculdade de theologia paten­ foi cm 1557.
teou a falsidade das explicações de Melan­ Henrique n não teve por ella menos zelo
cton, hem que a mencionada memória ti­ que seu pae, e o assignalou quando fez a
nha já grassado em Paris e allucinado sua entrada em Paris. Depois de magnifi­
muitas pessoas, que a censura da mesma cos torneios c um combate naval, se fez
faculdade não- dcsengauou.3 procissão solcmne, e el-rei jantou no pala-
cio episcopal, aonde foi comprimentado por
todas as corporações; na tarde do mesmo
DO NASCIMENTO E PROGRESSO DO CÀLVINISMO dia forain executados muitos hereges em
NA FRANÇA A TÉ Á MORTE DE HENRIQUE II diversos bairros da cidade, e el-rei voltan­
do ao seu palacio de Tournelles, d’ellc v iu
queimar algu n s.3
Tal era o estado da França quando Cal­ Renovou este principe todos os editos
vino publicou as suas instituições, em que contra elles, vedou a impressão ou venda
ordenou a reforma em corpo de doutrina: de qualquer livro que não tivesse a appro-
divulgada a sua obra teve sequazes, c em vação da faculdade de theologia, e que as
muito breve tempo uniu todos os reforma­ pessoas que não fossem letradas disputas­
dos da França: 4 porém el-rei, que não sem em pontos de religião: também prohi­
perdia de vista os interesses da Igreja, mul­ biu a todas, sem excepção, o prestar qual­
tiplicava editos sobre editos contra os se­ quer soccorro aos que haviam sahido do
ctarios, segundo a liberdade de pensar se reino por causa de heresia.4
ia fazendo mais vulgar e mais dam nosa.5 Depois d’este edito se accenderam as fo­
• Yendo-se apparecer quantidade de cen­ gueiras por todo o reino, e em nenhuma
suras da faculdade de theologia de Paris parte se perdoava aos innovadores: eram
contra religiosos de diversas ordens e va­ todos queimados com terrível execução em
rios cscriptos que lhe eram delatados,6 de­ Bordeus, Nimes, Paris, Tolosa, Saumur e
terminou el-rei que a mesma faculdade or­ Lyão; mas ainda assim ia fazendo o erro no­
denasse um formulario, e prohibiu debaixo vos progressos até entre os magistrados. El-
de graves penas que se ensinasse no seu rei tirou a estes o conhecimento do crimo
reino outra doutrina; mas apesar de tudo da heresia e o deu aos juizes ecclesiasticos,
se augmentava o partido do erro ainda en­ ordenando a todos os governadores que pu­
tre os religiosos, e até na mesma faculdade nissem os que fossem sentenciados por el­
de theologia. les, e pelos inquisidores, sem attenderem ás
Esta proferia sentenças doutrinaes, e os suas appellações.5 O cardeal de Lorena ob-
tribunaes regios determinavam castigos
contra os prégadores e partidários da he­
1 D'Argentréj t. 2, pag. 238, an. 1538,
1543, 44, 45.
1 Cont. de Fleui'y, ibid. 2 jRrá* , n»
. 2 Hist. de VEgl. Gallic. ibid. pag. 265. 3 Hist. de VEgl. Gallic. t. 18, pag. 496.
3 D'Argentré, t. 1, pag. 381, etc., an. De Thou, l. 6, édit. in-4.°, 1 .1, de la traduc-
1535. tion.
4 Veja-se o artigo Calvino. 4 Hist. de VEgl. Gallic. t. 18, pag. 497.
3 Hist. de VEgl. Gallic. t. 18, pag. 136. 5 Veja-se d'Argentre, t. 2, e os authoi'es
3 Ibid. pouco antes citados.
CAL 347
teve esta declaração c a levou ao parla­ em cuja afouteza consistia todo o mereci­
mento. mento.
Este porém representou a el-rei, que por Nào se faziam porém estes estabeleci­
um tal edito desamparava S. M. os seus mentos sem contradicção, os protestantes
vassallos, e entregava a honra, a fama, a eram castigados em lodo o reino com ri­
fortuna, e até a vida dos mesmos ao poder gor extremo, sempre que se podiam desco­
ecclesiastico, que supprimindo a appella- brir: os editos publicados contra elles se
çào, que era o unico refugio da innoccncia, renovaram com a clausula, sem prejuízo da
suhmettia seus subditos a um poder illegi­ jurisdicçuo real.
timo. «Nós tomamos ainda a liberdade dc El-rei* pronunciou pena dc morte contra
accresccnlar, diziam as exposições do par­ todos os hereges e contra as pessoas que
lamento, que visto nào haverem servido até tivessem passado a Genebra depois da pro-
agora os supplicios d’estes desgraçados, que hibição que d’isso fizera, e os juizes fo­
quotidianamente são punidos por motivo da ram também inhibidos de modificar esta
religião, senão para fazerem detestar o cri­ pena. 1
me sem corrigirem o erro, nos pareceu Assim se castigavam sempre os protes­
conforme ás regras da equidade e da re­ tantes, mas o zelo já começava a entibiar-
cta razão que se devia caminhar sobre as se nos parlamentos, que muitas vezes se
pegadas da antiga Igreja, que nào empre­ achavam divididos acerca dos hereges que
gou o ferro para estabelecer e dilatar a fé, lhes eram dilatados. - Os principes de Gui­
mas sómente a pureza da doutrina junta se representaram a el-rei com grande fer­
com a vida exemplar de seus prelados: ve­ vor o progresso que fazia a heresia e a ti-
mos pois que V. M. se deve applicar intei­ bieza com que se portavam os parlamentos:
ramente a conservar a religião pelos mes­ el-rei se mostrou mui pesaroso, foi ao par­
mos meios porque ella se fundou, c que lamento e fez prender os conselheiros que
ninguem ha fóra de V. M. que os possa fa­ ousavam emprchender a defesa dos sectá­
zer effectivos: d’esta maneira estamos cer­ rios. 3
tos que se haverá de remediar o mal, an­ Porém a morte suspendeu os intentos de
tes que chegue a grassar mais longe, eque Henrique n contra a heresia; porque este
se atalharão os progressos das opiniões er­ principe foi assassinado no meio dos rigosi-
roneas que atacam a religião; mas se pelo jos públicos, e dos torneios com que então
contrario se despresarem estes remedios celebrava os casamentos de sua irmã c de
eflicazes, nem haverá leis nem editos suffi­ sua filha.4
cientes para suppril-os.» 1*
Estas sentidas exposições do parlamento
estorvaram que se rejeitasse o edito, mas DO ESTADO DO CALVINISTAS DEPOIS DA MORTE
não suspenderam as inquirições contra os DE HENRIQUE II
calvinistas, cujo numero quotidianamente
se-.augmentava. Ajuntavam-se ém Paris, a
sua aversão contra os catholicos crescia to­ Francisco ii succedeu a Henrique, seu
dos os dias, e tanto assim que um calvinisla pae: a rainha mãe, que desejava governar,
zeloso testimunhou n’uma das suas assem­ e temia que el-rei de Navarra e o principe
bléias grande repugnância em que fosse de Condé so apoderassem da administra­
baptisado pelo sacerdote catholico um seu ção do estado, se uniu aos principes de Gui­
filho; e tomando-se deliberação acerca do se, aos quaes encarregou el-rei de França
seu embaraço, elegeram certo”mancebo, por o governo do reino.
nome Biviere, para satisfazer as funeções Os nobres, cujo poder era muito grande
do parocho, e desde então se ostabeleceu nas inquietações domesticas, enjoados das
um consistorio na conformidade d’aquelle guerras passadas, viviam rio socego das
que havia fundado Calvino em Genebra. suas casas sem lhes importar os negocios
Muitas cidades notáveis seguiram o exem­ do estado; o povo se satisfazia com que
plo da capital: as assembléias se fizeram lhe diminuissem os tributos, e quanto ao
mais numerosas em Blois, Tours, Angers, mais lhe era indifferente que governasse
Rouen, Bourges c Orleans, e quasi em toda na côrte este ou aquelle: o clero porém es­
a parte se estabeleceram consistorios: os tava muito propenso aos principes dc Gui-
mais dos pastores eram artifices, ou moços
1 Ibid.
2 De Thou, l. 17, t.% pag. 437.
i De Thou, l 16, t. % pag. 375. Hist. de 3 Ibid, pag. 668.
TEglise Gallic. t. 1, pag. 616. 4 No armo de 1559.
348 CAL
se, que haviam assignalado o seu zelo pela Guises e communicaram mutuamente os
religião catholica, e eram inimigos irrecon- seus desejos: ponderaram as suas forças, c
ciliaveis dos protestantes. como o maior numero não podesse esperar
Para aíTeiçoarem mais a si este poderoso melhoramento debaixo da dominação dos
corpo, os principes de Guise moveram no­ Guises, formaram o projecto dc os* privar
vamente os processos dos conselheiros do da authoridade. Tomou-se por pretexto que
parlamento, presos no governo de Henri­ elles haviam usurpado a soberania sem o
que n; e o conselheiro de Bourg foi exe­ consentimento dos estados, que estes prin­
cutado; continuou-se a devassar de todos cipes, abusando da pusilanimidade de el-
aquclles que por motivo das novas opiniões rei, se apoderaram da tropa, dissipavam as
faziam conventiculos occultos; prenderam- rendas, opprimiam a liberdade pública e
se muitos; aos que fugiram lhes confisca­ perseguiam homens innocentes e zelosos
ram e pozeram os moveis a pregão: toda pela reforma da Igreja.
Paris estava atroada das vozerias dos por­ . Até quizeram pretextar estes sediciosos
teiros que denunciavam os mesmosjno- projectos com apparencias de direito e for­
veis, ou a prescripção dos fugitivos: não se malidades judiciaes; sobre esta materia fi­
encontravam senão cartazes sobre as casas, zeram muitas conferências occultas, toma­
aonde algumas vezes eram achados meni­ ram os pareceres de varios jurisconsultos
nos que seus pacs e mães não poderam le­ de França e Allemanha, e dos theologos
var comsigo pela sua tenra idade e que conspicuos entre os protestantes, que julga­
enterneciam as ruas c as praças com seus ram dever-se oppôr a forca á dominação
gritos e gemidos; estas devassas rigorosas pouco legitima dos Guises, uma vez que sc
se fizeram em todo o rein o.1 procedesse com authoridade de principes
Levados a tal extremidade os protestan­ de sangue, que em casos taes se deviam
tes, mas cada vez mais denodados pelo gran- reputar magistrados supremos natos, e que
le numero cm que augmentavam, fizeram se combatesse com moderação e tempero
correr infames libellos e sediciosas noticias debaixo da direcção d’um principe da raça
contra a rainha mãe e principes de Guise,2 real, e com o consentimento dos estados do
porem não havia ainda no reino signal de reino, ou da melhor e mais sã parte dos
algum tumulto: el-rei era reverenciado e mesmos. Foram também de parecer que
absolutamente obedecido, os governadores não seria necessario communicar a el-rei
e magistrados exerciam sua plena authori- estes designios, porque a sua pouca idade
dade, e assim a nobreza como o povo ti­ e expcriencia o faziam inhabil para os ne­
nham grande horror á sedição e ao motim. gócios, e estando como captivo pelos Gui­
Tudo pois vivia em socego, mas esta ses, não podia tomar um partido saudavel
paz exterior escondia um descontentamen­ a seus vassallos.
to quasi geral entre os grandes, que só Os authores d’esta empreza, quaesquer
muito a seu pesar supportava o governo que elles fossem, cuidaram na escolha d’ura
dos principes de Guise. Os protestantes con- chefe, e lançaram suas vistas sobre o prin­
tinuamente inquietos e sempre expostos á cipe de Coiídé, mais disposto pela sua co­
dura exigencia de perderem a patria, os ragem e indigencia, e pelo odio que tinha
amigos, os bens, e a liberdade, ou aliás a aos Guises, a atacar seus inimigos, que a
vida em terríveis tormentos, desejavam um receber vilipendios. Escondeu-se porem o
governo menos severo, e não o podiam es­ nome d’este illustre chefe, e pozeram á
perar emquanto que os principes de Gui­ testa dos conjurados la Renaudie, chamado
se gosassem da sua authoridade; finalmen­ la Foret. Este cavalleiro, de uma familia
te havia um avultado numero de pessoas illustre do Pcrigord, era alentado e muito
que a indigencia, as dividas, e enormes cri­ resoluto; teve uma dilatada demanda que
mes, de que reeeiavam o castigo, faziam ap- perdeu, e por sentença foi condemnado a
parecer os motins e revoluções do estado.3 pagar uma grande somriia, e banido por
Teem os descontentes um particular ta­ certo tempo por causa d’alguns titulos fal­
lento para se fazerem reciprocamente co­ sos que juntara no decurso do processo. La
nhecidos; uma especie de instincto os leva Renaudie passára o tempo do seu desterro
uns para os outros, e quasi maquinalmente em Genebra e Lousane, aonde adquiriu
produz entre elles a confiança e o affecto: muitos amigos, entre os que alli sc tinham
portanto se uniram todos os inimigos dos refugiado.
Este homem, pois, d’um espirito vivo e
1 De Thou, ibid. insinuante, correu, debaixo do nome sup-
2 Ibid. I. 23. posto, todas as provincias de França, viu
3 De Thou, I 13. todos os protestantes, assegurou-se das suas
CAL 349

disposições, c ajuntou em Nantes todos os encontraram quem os capitaneasse; descon­


principacs. Alli se ajustou uma formula de tentes, que anhelavam occasião para a vin­
protestardes, pela qual suppunha elle pôr gança, espíritos revoltosos que desejavam
a sua consciência em seguro. Léram-se os a rebellião, soldados e ofliciaes despedidos
pareceres c decisões dos doutores em theo­ do serviço, e incapazes de sc acostumarem
logia c direito, e os artigos de reforma con­ a uma vida tranquilla, e desgraçados que
tra os Guises, c se tomaram todas as medi­ a sua indigencia fazia inimigos do* governo,
das para a sua execução. e para os quaes uma guerra civil era van­
Assentaram que antes de tudo, um nu­ tajosa.
mero grande de pessoas, em quem nào Sufibcava estas sedições particulares o
houvesse suspeita, se iriain sem armas a peso da authoridade regia, mas as pessoas
Blois, e apresentariam a el-rei urna nova encarregadas das ordens dos principes de
representação contra os Guises, c que se Guise, commettiam grandes desatinos nos
estes principes não quizessem dar conta da logares em que os protestantes se haviam
sua administração e afastarem-se da côrle, armado para defender o livre exercício
os investiríam com armas, c que finalmentc da sua religião: enforcavam os protestan­
o principe de Conde, (pie tinha determi­ tes e os mesmos parochos ou ministros, e
nado s.e occultasse até então o seu nome, muitas vezes quebrantaram as mais solc-
so poria na frente dos conjurados. Antes rnnes promessas de que se lhes concede­
de se separarem os chefes da conjuração, ría o mesmo exercício, se se rendessem.
tiraram por sorte as provincias de que cadá Estes rigores e estes procedimentos refal-
um havia de conduzir os soccorros. sados, tornaram implacável o seu odio, e
Ignorando os principes deLorena a con­ lhes tiraram todas as esperanças de uma
juração tramada contra elles, foram avisa­ sorte menos cruel.
dos por cartas d’Allcmanha, a que não que­ O zelo dos catholicos aflervorados con
riam dar credito, mas um protestante, em as vistas da religião, c com os interesse]
cuja casa se alojava Renaudie, quando vi­ da politica, presumia ser uma infidclidad
nha a Paris, lhes abriu os olhos; elles co­ contra a Igreja e contra o estado admitth
nheceram finalmcnte o perigo, e cuidaram alguma especie de mitigação nas leis pro­
em evital-o. El-rei partiu de Blois para Am- mulgadas contra a heresia. Portanto en­
boisc. cerrava a França em seu seio dous pos­
Os conjurados que não desistiam dos seus santes c irrcconciliavcis partidos, ambos
intentos, seguiam a el-rei, dirigindo-se para armados pela religião, um favorecido pe­
o mesmo sitio, mas os principes de Guise las leis e sustentado pelo poder soberano,
fizeram prender parte d’elles, antes que se e outro inflammado pelo fanatismo e posto
unissem, c muitos foram mortos no cami­ nas extremidades da desesperação. Tal era
nho, um dos quaes era Renaudie; o resto a situação d’aquelle reino na morte de Fran­
suspendeu a marcha, e se salvou: os prê- cisco n.
sos confessaram a conspiração, insistindo
todos em que cila não tinha outro objecto DO ESTADO DOS CALVINISTAS DESDE A ELEV A ­
mais que o duque de Guise, e declararam ÇÃO DE CARLOS IX AO THRONO, A TÉ QUE O
que nunca tiveram desígnios nem contra a PRINCIPE DE CONDE SE PÒZ a TESTA DOS
vida, nem contra a authoridade real. PROTESTANTES.
Os delinquentes foram sentenciados com
muita acceleração: parte d’elles apparece-
ram de manhã* pendurados das ameias da Carlos ix succcdcu a Francisco n, e a rai­
muralha do castello, outros foram afoga­ nha foi declarada regente com el-rei de Na-
dos na mesma noite, alguns padeceram du­ varra. A côrte se encheu de partidos, e as
rante o dia, mas sem se descobrirem seus provincias de inquietações: atacavam-se
nomes. OLoirc estava coberto de cadáve­ uns aos outros com palavras picantes, de-
res, as ruas de sangue, que corria em rios, clamações, injurias, e. zombarias, c se pro­
c as praças públicas dê corpos pendurados vocavam com os odiosos nomes de parti­
cm patibulos. dos, lractando-se de papistas e huguenoles;
Não esmoreceu porém o valor dos pro­ os pregadores assopravam o fogo da discor­
testantes com o mau successo da conjura­ dia, c incitavam o povo para que se oppo-
ção .d’Amboise, antes cada vez mais per­ zesse ás emprezas do almirante Coligny,
suadidos dc que não deviam esperar do que altamente promettia fazer prégar e es­
governo dos principes da Guise um tracta- tabelecer a nova reforma nas provincias,
mento menos severo, tomaram as armas sem causar n’ellas algum distúrbio. •
em diversas provincias, e por toda a parte Houve motins populares em muitas, e se
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viram rcbèlliões verdadeiras em Amiens, Na mesma assembléia do parlamento so
Pontoise, c Bcauvais. El-rei mandou a to­ indicaram-conferências sobre as matérias
das as provincias uma lei em que prohi- de religião em Poissy, c se concederam sal­
bia se usasse dos odiosos nomes de hugue- vos conductos aos ministros para irem a
notc c papista, e que ninguem fosse pri­ cilas. N’estas conferências não se tractou
vado da segurança, socego e liberdade cm propriamente senão de dous objectos, que
que vivia: pela mesma lei determinava a foram a Igreja c a Eucharistia. O artigo
soltura dos que tinham sido presos por mo­ Igreja era olhado pelos catholicos como um
tivo de religião, e pcrmittia a todos os que principio geral que arruinava pelos alicer­
desertaram do reino pela mesma causa que ces todas as igrejas novas, c entre os ou­
a cllc podessem voltar. tros pontos particulares nenhum parecia
O parlamento, por uma sua decisão, pro- mais importante que a Eucharistia.
hibiu se publicasse esta lei, mas cila em üs calvinistas apresentaram ã assembléia
quasi toda a parte obteve o seu efleito, au- uma profissão de fc falsa, capciosa, obscura
gmentou notavelmente o numero dos pro­ e inintclligivcl, c recusaram assignaraque
testantes, e fez as suas assembléias mais propunham os catholicos: desta maneira
frequentes. Queixou-se o cardeal doLorena vieram a ser de nenhuma utilidade estas
de que se abusasse do edito de el-rei, es­ conferências, em que os theologos protes­
tendendo-se em excesso a liberdade que tantes testimunharam pouca humildade, e
elle permittia; que as aldeias, villas, e cida­ demasiada obstinação c capricho; e a pe­
des ostentavam de terem assembléias por tulância e discursos de Beza alvoroçaram
mais que fossem prohibidas, e que todos todos os animos, e enojaram até os mes­
corriam aos sermões dos protestantes, e mos protestantes. Depois das conferências
n’clles se deixavam allucinar, largando a de Poissy, todos os dias surgiam novas
maior parte a antiga religião. inquietações; Paris estava agitada com mo­
Para atalhar os eíTeitos da sua decla­ vimentos sediciosos que faziam recear ca­
ração, convocou el-rei um parlamento a lamidades maiores, c para prevenil-as con­
que assistiu, e n’elle se deliberou o edito, vocou el-rei em S. Germano uma nume­
chamado de julho, pelo mez cm que foi feito. rosa assembléia de presidentes e de conse­
Por elle' ordenava el-rei a todos os seus lheiros, eleitos de todos os parlamentos do
vassallos que vivessem em paz, e se absti- reino, aonde se formou o edito que tomou
vessem dMnjurias, opprobrios, e maus tra- o nome do mez de janeiro, em que foi pu­
ctamentos: prohibia todas as recrutas de blicado.
gente de guerra, e quanto podesse ter ap- N’elle se determinava que os protestan­
parencia de facção; accrescentava que os tes largassem em continente aos ecclesias­
pregadores não usassem de expressões ni- ticos os templos, casas, terras, dízimos, of-
miamente fortes, e de palavras que condu­ fertas, e geralmente todos os bens de que
zissem ao motim, isto com pena de morte; se haviam apoderado, e que d’ellcs os dei­
commettia o conhecimento e sentença b e s ­ xariam gosar em paz; que não deitariam
tas matérias, em ultima alçada, aos gover­ por terra para o futuro nem as estatuas,
nadores das provincias, e* aos presidiaes; nem as cruzes, nem as imagens, nem fa­
ordenava se seguisse na administração dos riam cousaque podesse escandalisar e; per­
sacramentos a práctica e usos da igreja turbar a tranquillidade pública, que os que
romana: reservava para os juizes eccle­ fizessem o contrario teriam pena de morte
siasticos o conhecimento da sentença do sem remissão; quç os protestantes não po­
crime d’heresia, prescrevia aos juizes re­ deríam fazer nos*recintos das cidades al­
gios que não pronunciassem outra pena gumas assembléias públicas ou particula­
mais que a de proscripção contra aquelles res, de dia ou de noite, ou fosse para pré-
que se achassem sufficientemente culpados gar, ou para orar, emquanto no concilio
ara serem entregues ao braço secular, geral se não decidissem os pontos contro­
g ua magestade declarava final mente que vertidos, ou sua magestade não determi­
subsistiríam todas as suas leis emquanto nasse outra cousa: que não se daria incom­
um concilio geral ou nacional não tivesse modo algum aos protestantes que assistis­
decidido d’outra maneira. Com o edito se sem nas suas assembléias, uma vez que se
publicou uma tregoa geral com esqueci­ fizessem fóra das cidades; que os magis­
mento de todo o passado, a favor dos que trados c juizes não deveríam inquietal-os,
tinham motivado distúrbios ácerca dos ob­ antes os protegeríam e acoutariam dos in­
jectos de religião, uma vez que para o fu­ sultos que lhes quizessem fazer: que os
turo Yivesscm em paz como bons catholi­ mesmos magistrados e juizes dos logares
cos. procederíam com todo o rigor da léi con-
CAL 351
tra os que excitassem algum motim de re­ tido nimiamento possante: o duque entrou
ligião, quacsquer que fossem: que os minis­ em Paris como ern triumpho; o condesta-
tros protestantes seriam obrigados a rece­ vel foi destruir os logares em que os cal­
ber os magistrados nas suas assembléias: vinistas se juntavam para ouvirem os seus
que os protestantes não poderíam celebrar sermões cm Paris e seus contornos, e a
algum colloquio, synodo, conferência, ou rainha se viu na necessidade de se unir ao
consistorio, senão cm presença dos magis­ triumvirato, abandonando o principe de
trados: que para estes fariam suas appcíla- Condé, com quem se ligára primeiramente
çoes: que os seus estatutos seriam commu- para resistir ao mesmo triumvirato. Tinha
nlcados aos mesmos, e teriam a sua appro- esta por si os catholicos, e o principe de
vação: que nada proporiam contrario ao Condé os protestantes; a França se via di­
symbolo niceno, e que nos seus sermões vidida n’estes dous partidos, que mortal*
se absteriam de toda a declamação contra mente se aborreciam, e estavam em ar­
os catholicos, c contra seus dogmas. 1 mas. O triumvirato resolveu declarar a
Este edito foi registrado no parlamento guerra ao principe de Condé, c aos do seu
unicamente por condescendência com el- partido.
rei: os catholicos viam com pesar que os
protestantes gosavam do livre exercício da
sua religião, c era impossível que na si­ DO ESTADO DOS CALVINISTAS DESDE A DECLA­
tuação em que estavam os animos, assim RAÇÃO DA GUERRA DO PRINCIPE DE CONDÉ
os catholicos como os protestantes, aquie­ A TÉ Á MORTE DE CARLOS IX
tassem inteiramente na observância de tal
edito. Os catholicos foram os primeiros
que o infringiram em Vassi, pequena villa O príncipe de Condé, informado que foi
de, Campanha, pouco distante de Joinville, da mudança da rainha, se retirou a Or-
em que os protestantes tinham comprado leans, escreveu a todas as igrejas protes­
uma especie de granja, de que fizeram um tantes e publicou um manifesto em que ex­
templo, e aonde elles se congregavam. punha que o fim dos seus adversarios em
Passando o duque de Guise n’esta ci­ todos os seus procedimentos fòra tirar a li­
dade, quando os calvinistas iam para a sua berdade de consciência, concedida pelos
assembléia, a comitiva do duque os insul­ editos de el-rei aos que queriam abraçar
tou; tornaram elles injuria por injuria, e uma doutrina mais pura; assim o provava
vieram ás mãos; correu o duque a atalhar por muitos factos, e entre outros pela car-
a desordem, mas ao entrar no templo re­ nagein.de Vassi, cuja impunidade elle to­
cebeu uma leve ferida, e vendo-lhe a sua mava como uma declaração da sedição e
gente correr o sangue, cahiu sobre os pro­ da guerra que se queria accendcr por toda
testantes, sem que a contivesse nem as a parte do reino: declarava não tomar as
ameaças, nem a authoridade do duque: en­ armas por motivo algum d’interesse parti­
tre homens e mulheres, mais de sessenta cular, mas tão sómente por satisfazer o que
pessoas foram mortas, suffocadas, c feridas, devia a Deus, a el-rei e á patria, e para ti­
c mais de duzentas ficaram maltractadas: rar do captiveiro o soberano e sua familia.
tal é a aventura a que chamam a matança Igualmente se publicou uma. cópia do
de Yassi, successo de mero acaso, e que tractado que o principe de Condé fizera com
deu occasião a uma guerra civil. os seus conselheiros a fim de restituir ao so­
Estava el-rei n’esse tempo em Monceaux: berano a liberdade da sua pessoa, e aos vas-
. o principe de Conde lhe representou esta sallos a de suas consciências. Por este mesmo
j catastrophe como a desobediencia mais for­ acto o declaravam os protestantes legitimo
mal aos seus editos, e como uma rebel- protector e defensor do reino de França, e
; lião que pedia o mais severo castigo, e re- n’esta qualidade promettiam obediência á
i queria primeiro de tudo á rainha que fosse sua pessoa ou a quem por elle fosse no­
í inliibida a entrada em Paris áquelles de cu- meado para substituir o seu logar quando
i jas mãos corria ainda o sangue innocente. não podesse obrar por si mesmo: obriga­
; Estavam os protestantes bem longe de vam-se para a execução do mesmo tracta­
. obter o que requeriam: o duque de Guise, do a fornecer-lhe armas, cavallos, dinheiro
o condestavel de Montemorency, e o mare­ e tudo que preciso fosse para a guerra; e
chal de Sancto André, formavam um par­ finalmente se sujeitavam a toda a sorte de
penas e de supplicios se d’alguma maneira
1 M m . de Castelnau, l. 3, c. 7, edit. de o quebrantassem. Este tractado foi feito
! Bruxeties 1731, t. 1, pag. 81. Additions de em 1562. Assim se achava armada uma
le Laboureur, ibid. pag. 760. De Thou, l. 20. metade da França contra a outra, e depois
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de muitas negociações em quo os triumvi­ tregoa que uma lei de paz: foi mal obser­
ros faziam sempre entrar a extincçfio da vado.
religião protestante, a guerra começou de Carlos ix, que tomou o governo do rei-
novo entre os dous partidos, e com tal fu­ no, annullou por meio de interpretações a
ror que nos causaria assombro nas histo­ maior parte dos privilégios concedidos aos
rias das nações mais barbaras. Uma reso­ protestantes, e os parlamentos requereram
lução do parlamento declarou proscriptos que fosso prohibida a profissão pública d e
os protestantes, ordenou que os perseguis­ qualquer outra religião fóra da catholica.
sem e permittiu que os matassem. Facil­ Tornaram ás armas os protestantes em
mente se colligem as desordens que se se­ 1567: a França foi outra vez assolada com
guiríam a uma declaração similhante: ja­ a guerra civil, que somente acabou com
mais se viram tantas represálias de vin­ um novo edito confirmativo do que se ti­
gança, tantas acções terríveis da parte dos nha publicado cinco annos atraz (em 1563),
catholicos c dos protestantes em todas as e sendo registrado no parlamento cessou a
cidades do reino. A morte do duque de guerra.
Guise foi uma consequência d’cstc furor. Não obstante estas apparoncias de paz,
Poltrot, que o assassinou, declarou haver- tudo tendia para a guerra: os catholicos
lhe sido suggcrido este designio pelo almi­ diziam que os huguenotes jamais se davam
rante, e confirmado por Beza e outro mi­ por satisfeitos, que depois de haverem obti­
nistro; e até fez vêr que os reformados não do da benignidade d’cl-rei um edito de par­
teriam iTisso muito embaraço.1 ticipação cm prêmio dos males que tinham
O duque de Guise estando a morrer acon­ feito, trabalhavam continuamente por es-
selhou ã rainha que fizesse a paz, e n’ella tcndel-o em sua vantagem e cm prejuízo
se trabalhou, c el-rei fez publicar um edito do mesmo soberano. A troco d’isto volta­
em 19 de março de 1563, pelo qual conce­ vam os protestantes que haviam tomado as
dia aos senhores que tinham poder para fa­ armas por causa da religião e da liberdade
zer administrar justiça, o livre e pleno exer­ de consciência, que se lhes concedera em
cício da sua religião no districto de seus se­ apparencia por um edito, mas que lhes to­
nhorios, e permittia a todos os nobres a lhiam em realidade, pois que em diversos
mesma liberdade quanto ás suas casas, só­ logares estorvavam as suas assembléias;
mente uma vez que não morassem em ci­ que o fim da ultima accommodação não
dades ou villas sujeitas a senhores que ti­ fôra restabelecer a tranquillidade, ínas tão
vessem a sobredita prerogativa de fazer sómente desarmar os religionarios debaixo
administrar justiça, excepto as de'el-rei: do pretexto da paz, e supeal-os tanto que os
o mesmo edito ordenava que em todos os vissem desapercebidos. Ateou-se pois de
bailiados dependentes immediatamente da novo a guerra d’uma e d’outra parte com
jurisdicção dos parlamentos, se assignari a mais furor que nunca. A França tornou a
aos mesmos um logar em que fizessem o inundar-se do sangue francez um anno de­
exercício público da sua religião: confir- pois do edito de paz. O duque d’Anjou com-
mava-se-Ihes a liberdade de terem as suas mandou o exercito de el-rei seu irmão, e o
assembléias em todas as cidades, de que es­ principe de Conde o dos protestantes: este
tavam senhores antes de 7 de março de foi morto pelo decurso da guerra na bata­
1563. O edito trazia perdão e esquecimento lha de Jarnac, e o principe de Bearn se pôz
de todo o passado; desobrigava o principe na frente do seu partido cm 1570.
de Conde de dar conta dos dinheiros da co­ Tornou-se a tractar de paz, e se concluiu
roa que tinha consumido nos gastos da por um edito registrado no parlamento em
guerra, declarando este principe fiel sobri­ ■11 d’agosto de 1570, que concedia amnis-
nho de el-rei e muito afieiçoado ao reino; tia, que é um geral perdão, renovava todos
e reconhecia que os senhores, fidalgos, of- os editos feitos em favor dos protestantes,
ficiaes da tropa e todos os demais emfim e lhes concedia quatro cidades de segu­
que haviam seguido o mesmo partido por rança a Rochella, Montauban,,Cognac c la
motivos de religião, nada tinham obrado ou Charité, que os principes de Navarra e
fosse relativamente á guerra, ou1á admi­ Condé se obrigavam a restituir dous annos
nistração da justiça, senão por justificadas dep ois.1
razões- e pelo serviço de sua magestade. Como porém estas resoluções eram ins­
Bem que este edito fosse registrado em piradas pela exigencia dos tempos, resol­
todo o reino, todavia elle mais era uma veu el-rei extinguir d’uma vez a facção dos
1 De Thou, l 47. Traduction,, édit. ín-4.%
i De ThoUj l. 34. t. 4,-
CAL 353
protestantes c terminar a guerra, fazendo ficaram os povos em todas as cidades, nin­
morrer todos os cabeças de partido. Con- guem havia que não reputasse absoluta­
sideravam-sc as traças para attrahil-os a mente arruinada a facção dos protestan­
Paris, e para levar ao cabo a sua extinc- tes; foi á missa um grande numero d’elles,
ção com a de todos os sectarios. A execu­ e outros se retiraram a diversas cidades
ção da empreza foi confiada ao duque de em que os sectarios eram mais numero­
Guise, que o assassinato de seu pac fizera sos. N’cstas cidades porém faziam os mi­
inimigo irreconciliavel do almirante, e na nistros dos protestantes em seus sermões
noite de 24 d’agosto, dia de S. Bartholo- tão pavorosas pinturas de seus estragos,
meu, se principiou em Paris uma horrível que elles de commum accordo resolveram,
carniceria. Durou sete dias esta assolação que visto haver jurado a côrtc a sua total
dos protestantes, e n’esse pequeno espaço ruina por meios tão deshumanos, era for­
morreram em Paris mais de cinco mil pes­ çoso defenderem-se até á ultima extremi­
soas, entre as quaes se contavam de qui­ dade: com efleito em menos dfum anno re­
nhentos até seiscentos fidalgos; não se pou­ cobraram forças, e se viu principiar em
pavam nem velhos, nem meninos, nem mu­ França uma quarta guerra entre os pro­
lheres pejadas; uns foram apunhalados, ou­ testantes e catholicos.
tros cahiram aos golpes de espada ou a ti­ Para os desbaratar d’uma vez levantou
ros, muitos precipitados das janellas, ou­ el-rei tres exercitos; mas os protestantes,
tros passados a chuços e outros machuca­ que a desesperação e o furor tornaram in­
dos com maços c alavancas: a individua- vencíveis, lhes fiz*eram cara em toda a par­
ção das crueldades com que então se hou­ te, e Carlos ix depois de dons annos de
veram os catholicos, faz estremecer qual­ guerra sem os haver submettido, morreu
quer leitor, em quem não estejam absolu­ em 1574, aos 25 dè sua idade. 1
tamente extinctos os affectos de humani­
dade. DOS CALVIN1STAS DURANTE O REINADO
«Como as ordens expedidas para a sua d ’h e n r i q u e III
ruina correram por toda a França, fize­
ram estranhos eíTeitos, principalmênte em Pouco antes da morte de Carlps ix, Hen
Rouen, Leão e Tolosa. Cinco conselheiros rique m fôra eleito rei 'da Polonia, e toi
do parlamento d’esta cidade foram enfor­ nando á França para ser elevado sobre
cados com as becas encarnadas: de vinte throno, ainda "encontrou o reino dilacera
até trinta mil homens morreram degolados do com a guerra civil, a que pôz fim con.
em diversos logares; os rios com os cada- um quinto edito de pacificação. Concedeu
ver.es conduziam o horror c a peste a to­ aos protestantes o livre exercício de sua
dos os paizes que banhavam.» 1 religião em todas as provincias do reino,
Algumas provincias houve isemptas d’esta sem exccpção de tempo nem de logar, e
catastrophe; a cidade de Lizieux o foi pelo sem restricção alguma, comtanto que os
zelo verdadeiramente christão e pela cari­ senhores particulares não se oppozessem
dade do seu bispo; jamais consentiu que se a isso; permittiu-lhes poderem em todo o
fizesse algum accinté aos protestantes; e reino administrar sacramentos, celebrar
assim aconteceu que um grande numero, matrimônios, ter escolas públicas, consis-
no seu bispado, se reuniu á Igreja Catho­ torios e synodos, com a condição porém
lica, e que apenas n’elle ficou um só. 2 que assistiría a elles um ministro de Sua
«Levadas as noticias d’aquella carniceria Magcstade. Intentava el-rei que para o fu­
aos papas estranhos, quasi cm toda a parte turo podessem também possuir igualmente
causaram horror: mas o odio da heresia como os demais vassallos todos os empre­
fez que em Roma fossem bem recebidas, gos, cargos e dignidades do estado, e já
e na Hcspanha seapplaudiram por desva­ lhes concedia que nos parlamentos do reino
necerem os receios que havia d’uma de­ houvesse tantos protestantes como catholi­
claração de guerra da parte da França.» 3 cos, e finalmente lhes dava por cidades de
Depois da morte de tantos cabos, da dis­ seguro Beaucaire, Agoas mortas, em Lan-
persão da nobreza que restara entre os guedoc, Issoudun, em Alvcrnia, etc. Este
protestantes o do esmorecimento em que edito foi registrado em um Throno de Jus­
tiça, 2 havido em 14 de maio de 1576.
1 Bossuet, Àbr. de VHist. de France, l.
17, t. 12, pag. 832. De Thou, ibid. 1 Bossuet, ibid. I. 17. De Thou, loc. cit.
2 Mezerai, t. 2, pag. 43. Gallia ChrisU 2 Throno de Justiça ê uma sessão soh‘-
D e Thou, l. 53. mne do parlamento, a que el-rei de França
3 Bossuet, ibid. assiste no seu throno.
23
354 CAL
Murmuraram d’elle os catholicos alta­ savam n’esta materia como os colligados.
mente; os inimigos do principe de Condé e Por estes meios procuravam acroditar os
os cortczãos descontentes fomentavam os principes de Guise, c fazer aborrecer e vi­
seus queixumes, e affeiçoando pouco a lipendiar el-rei c os principes do sangue
pouco o povo de diversas cidades, quando real.
se persuadiram ter já bem affeiçoada sua O monarcha nada d’isto ignorava, mas
authoridade, formaram uma liga occulta para rebater a desordem era preciso refle-
debaixo do especioso pretexto de defen­ ctir e obrar, e o habito da dissipaoão o ti­
derem a religião dos atrevidos intentos nha incapaz de tudo isso: entregue á mol-
dos hereges, cujo partido engrossava de leza e ociosidade, estragava em ridiculas
dia em dia«, e de reformarem o que a ni­ profusões as suas rendas, e estafava os po­
mia bondade d’el-rei deixara defeituoso no vos com impostos, parecendo não reservar
governo. Paris., como capital, quiz dar o seu poder para outra cousa mais que para
exemplo. Um negociante de perfumes, e fazer registrar editos pecu niários, nem jul­
seu filho, conselheiro do Chatclet, foram os gar perigosa no estado outra potência que
primeiros e os mais zelosos pregadores aquella que podesse disputar-lhe a autho­
d’esta união. ridade d’impôr novos tributos. Insensivel á
Pelo seu formulario, que devia ser assi- indigencia e gemidos dos povos, não co­
gnado em nome da Sanctissima Trindade nhecia outra desgraça que a falta de di­
or todos os senhores principes, barões, fi- nheiro para seus validos e seus pueris di­
algos e cidadãos, cada particular se obri­ vertimentos, e deixava aos principes de Lo­
gava com juramento «a viver e morrer na rena a liberdade de emprchenderem tudo,
liga pela honra e restabelecimento da reli- assim como aos prégadores a de tudo di­
ligião e pela conservação do verdadeiro zerem a favor da liga.
culto de Deus, tal qual se observa na san­ Todavia a fim de mostrar quanto amava
cta igreja romana.» a religião e aborrecia a heresia, resolveu
Com a noticia d’esta nova união entra­ arruinar os protestantes, despojal-os das
ram logo os catholicos a tractar mal os suas dimiidades e empregos e de toda a
rotestantes nas. provincias mais visinhas authoridade que em França possuíam. 1
a côrte, c já não se viam mais que libel­ Mandou o duque d’Epornon a el-rei de
los sediciosos. A liga foi assignada por in- Navarra, herdeiro presumido da coroa, a
numeraveis senhores, e veio a fazer-se em empenhal-o a voltar á religião catholica,
tal maneira temerosa, que el-rei foi obri­ persuadido que daria um mortal golpe ao
gado a declarar-se o chefe d’ella, c n’um partido protestante, se podesse desligar
congresso dos estados, havido em 1576, se d’elle aquelle principe. Porém os catholi­
resolveu não tolerar mais que uma reli­ cos associados para a extirpação da here­
gião. Começou pois de novo a guerra, que sia, interpretaram muito diversamente esta
acabou por "outro edito confirmativo do an­ partida do duque; como o aborreciam dé
tecedente, que fôra firmado havia só tres morte, diziam que ella não tivera por fim
mezes. conservar a paz, reduzir el-rei de Navarra
Todavia os cabeças da liga ou da facção e conter os protestantes no seu dever, mas
não se davam á ociosidade, tinham enchido concluir uma liga com este principe e com
a côrte, a cidade e o reino d’emissarios, os hereges para ruina dos catholicos.
que publicavam prepararem-se os protes­ Voltou o duque d’Epernon com a no­
tantes para uma nova guerra civil; os pre­ ticia de que el-rei de Navarra estava reso­
gadores romperam em invectivas contra a luto a persistir na religião protestante; e
heresia, amargurando-se de que a desgraça d’aqui se presumiu que sendo este prin­
tinha levado a religião ao ultimo remate cipe o herdeiro mais proximo á corôa, fi­
da decadência: annunciavam estas calami­ caria a França em poder d’hereges depois
dades nos pulpitos, nas escolas, nas assem­ da morte d’Henrique m.
bléias e até no mesmo tribunal da peniten­ Espalhados pelos emissarios da liga es­
cia, e assim induziam as pessoas simples tes rumores, desenvolveram por todo o
e credulas, exhortando-as a fazer tracta- reino o espirito de rebelliào contra ura
dos de sociedade: aos povos recommenda- principe que por outra parte opprimia os
vara os principes de Lorena, como defen­ vassaílos com tributos, e que se havia feito
sores zelosos da religião de seus passados, despresivel por seu porte pouco digno d’um
elevando a sua fé e piedade ao mais alto soberano. Fallava o povo despejadamente,
ponto; e muitas vezes arguindo indirecta- os prégadores declamavam nos pulpitos, e
mente de dissimulação e covardia as pes­
soas mais respeitáveis, mas que não pen­ t D e Thon , l . 76, t. 6, pag. 30.
CAL 35o
só cuidavam em infundir nos animos o ter­ para manter o espirito da rebellião, or­
ror; fizeram-se assembléias nas cidades, le­ denando-se procissões em todas as igrejas
vantaram-se tropas nas aldeias e nomea* da cidade, em que se ornavam os altares
ram-se cabos para ellas, cujos nomes oc­ com pedrarias, e vasos d’ouro e prata, que
cultos se haviam de romper na occasião levavam as attenções de todo o povo. Final-
mais opportuna. mente rompeu a conjuração contra el-rei,
Chegaram de toda a parte estas noticias que se viu obrigado a sahir de Paris.1 En­
á côrte, o el-rei finalmente se capacitou de tão appareceram em França tres exercitos,
que já não eram tanto de recear os protes­ o da coroa, o da liga e o dos protestantes.
tantes, como os principes de Guise; por­ Como o dos ligados crescia a olhos vis­
tanto prohibiu todas as confederações, c tos, el-rei se accommodou com elles; e cm
recrutas de tropa sob pena do lesa-ínagcs- 1588, no mez de julho, sahiu com um edi­
tadc: 1 porém os confederados da liga não to, no qual depois de se estender ácerca do
desistiram d’alistar gente, e formando um zelo que sempre mostrára por manter a
exercito, forçaram el-rei a vedar em todo união entre os catholicos e conservar a re­
o seu reino o exercido de qualquer reli­ ligião, se obrigava com juramento a tra­
gião que não fosse a catholica romana, balhar efiicazmente em rcstabelccel-a, e a
com pena de morte contra os infractorcs, extirpar o scisma c heresias condemnados
revogando e annullando todos os preceden­ pelos sanctos concilios, e em particular
tes editos, que concediam aos protestantes pelo de Trento, promeltendo não fazer des­
o livre exercício da sua; c que debaixo da cansar as armas, sem que os hereges fos­
mesma pena todos hoiivessem de sahir do sem desbaratados inleiramcntc. Declarava
reino no termo d’um mez. No mesmo edito el-rei por seu gosto que todos os principes,
eram declarados os hereges indignos dos senhores e estados do reino, todas as ci­
cargos ou empregos públicos e inhabeis dades commerciantes e universidades to­
para possuil-os: e em contemplação do massem com clle o mesmo empenho, e que
zelo que os ligados haviam mostrado pela além d’isso jurassem não reconhecer por
religião christã, el-rei se esquecia de tudo seu rei senão um principe catholico. 2
o que estes tinham emprehendido ou den­ Foi declarado o duque de Guise genera­
tro ou fóra do reino durante aquelje rebo­ lissimo do reino, e se continuou a guerra
liço. 2 contra os protestantes; porém rellectindo
“Xisto v, que então occupava a cadeira de cl-rei que todas estas dissensões tinham le­
S. Pedro, excommungou el-rei de Na varra, vado ao mais alto grau de poder o duque
e Henrique m apertou com a execução do de Guise, se resolveu a fazel-o morrer, e
seu ultimo edito contra os protestantes: se persuadiu que por este meio destruía a
porém este rigor longe d’acovardal-os ser­ a liga: portanto o mandou assassinar cm
viu sómente para os azedar. El-rei de Na- Blois.
varra fez correr um edito contrario ao d’el- A noticia d’este assassinato encolerisou
rci de França, e todo o reino se pôz em ar­ os ligados: o duque de Maycna, frmão do
mas. 3 morto, se pôz á frente d’elles: a Sorbona de­
Em Paris, onde era o fóco do fanatismo clarou que os vassallos de Henrique m es­
da liga, se publicava favorecer el-rei o par­ tavam desobrigados do juramento de fide­
tido adverso, e haver já dentro da cidade lidade: foi nomeado generalissimo do rei­
mais de dez mil protestantes ou politicos, no o mesmo duque de Mayena: levanta­
termo odioso, com que denominavam os ram-se tropas, e a liga fez guerra a Henri­
que eram afieiçoados a el-rei e aos interes­ que ui. As cidades mais notáveis abraça­
ses do bem público. ram os interesses da liga, e Henrique“m
Estes discursos escandeceram os cida­ foi obrigado a unir-se com el-rei de Na-
dãos c o povo miudo: os prégadores des­ varra.
ataram em invectivas contra el-rei de Na- Então se espalharam em Paris e por toda
varra e contra o mesmo tei de França, que a França innumeraveis cscriptos seditiosos:
arguiam de favorecer aquelle principe he- a Sorbona fez riscar o nome d’el-rei das
rege; e os confessores por fim descobriam orações que se dizem no canon da missa
o que os prégadores não ousavam dizer. pelos soberanos, e finalmente o excom­
Também pelo mesmo tempo foram in­ mungou. 3 0 papa fez o mesmo, e por ul­
ventadas varias prácticas de piedade, aptas timo remate Jaques Clemente, dominico, o

1 De Tliou, l. 80, t. 7, pag. 393. 1 De Tliou, l. 90, t. 7, pag. 194.


2 lb id .L 81. 2 Ibid. I. 91, t. 8, pag. 237.
3 Ibid,, l. 82, pag. 523. 3 De ThoUj l. 95. .
*
%
356 CAL
assassinou, persuadindo-so fazer serviço a nham cxpellido o marechal do Joyouse
Deus, c uma obra digna de salvação.1 Os lançaram agua benta cm todos os quartos"
pregadores compararam Clemente a Ju- e proferiram mil execrações contra el-rei; i
dith, Henrique a Holophcrnes, o livramento 0 papa mandou um legado para susten­
de Paris ao de Bethulia: appareccram im­ tar o zelo da liga, e a Sorbona vendo que
pressos varios libellos, nos quacs o assas­ entre os ligados havia alguns escrúpulos
sino era louvado como um sancto martyr, da sua resistência a cl-rci, declarou nao se-
e a eíllgie d’estc homem protervo foi ex­ dever seguir em consciência o partido de
posta nos altares á veneração pública. Henrique iv, pagar-lhe impostos nem tri­
butos, porque um herege relapso não po­
dia ter direito ã coròa, e que o papa o ti­
DOS CALVIKISTAS DEPOIS DA MORTE nha para cxconunungar os reis de França. 2
DE HENRIQUE III ATÉ Á DE HENRIQUE IV Este decreto foi assignado pelo clero, e pu­
blicado em Paris.
El-rei de Hespanha fez saber aos ligados
Henrique m morreu sem filhos, c a co­ que viría soccorrel-os, c determinou uma
roa pertencia sem cantradicção a el-rei de collecta de dinheiros do clero para esta ex­
Navarra; porém o exercito se pòz logo em pedição, c para estorvar os soccorros que
divisão, c não foi reconhecido Henrique d’Allemanha se mandavam a Henrique iv. 3
senão depois de haver jurado que-mante- Emquanto contra este faziam os ligados
ria na sua pureza a religião catholica ro­ uma guerra viva porfiada, morreu 0 car­
mana, e que não faria inuovação alguma deal de «Bourbon, que fora acclamado rei
em seus dogmas e disciplina: finalmente debaixo do nome de Carlos x: porém a mor­
elíe renovou a promessa muitas vezes re­ te d’estc cardeal nada fez mudar no syste­
petida de que estaria pela decisão d’um con­ ma dos colligados. A Sorbona declarou que
cilio geral ou nacional, assegurando com- Henrique de Bourbon como herege e inimi-
tudo não consentir em toda a extensão do a da Igreja não podia ser rei, e que quan-
reino o exercício público d’alguma outra 0 no fôro externo obtivesse uma absolvi­
religião que não fosse a catholica romana, ção, como era de recear que a sua conver­
excepto n’aquellas praças de que os pro­ são não fosse sincera, e não tendesse â
testantes estavam actualmente de posse, ruina da religião, os francezcs deviam em­
em observância do tractado feito com Hen­ baraçar que elíe subisse ao throno dos reis
rique ui. christianissimos.4
Porém o duque deMayena, na qualidade Continuou pois a guerra entre Henrique
de generalissimo do reino, fez declarar rei e os colligados, mas com muito diíTercnte
o cardeal de Bourbon, debaixo do nome de successo: grande numero de cidades e mui­
Carlos x. O parlamento de Tolosa lavrou tas provincias reconheciam a el-rei: uma
um assento para se darem todos os annos assembléia de prelados declarou nulla a
solemnes graças a Deus pela morte de Hen­ excommunhão proferida contra os que se­
rique iii; prohihiu sob graves penas reco­ guiam os interesses de Henrique iv, que fi-
nhecer Henrique de Bourbon, que se dizia nalmentc, fazendo-se instruir, abjurou a re­
rei de França, e mandou que todos os pa­ ligião protestante, c foi sagrado em Char-
rochos publicassem a bulla d’excommu- tr e s .5 Então começou a decahir 0 partido
nhão fulminada contra a sua pessoa. E en­ da liga; Paris reconheceu Henrique, e a
tretanto o duque de Mayena tractava com Sorbona lavrou um decreto para estabele­
a Hespanha para d’clla obter soccorros. cer a necessidade que havia d’obedecer-
Também o parlamento de Rouen orde­ lhe. Nada mais faltava, diz M. de Thou, en­
nou se tomassem as armas em favor da tre todas as ordens, senão os jesuítas e ca­
liga, e em Tolosa se faziam procissões guer­ puchinhos, os quaes tinham para si serem
reiras. Um religioso ia no meio d’ellas com desobrigados d’obedecer ao soberano, affir­
um crucifixo nas mãos, e voltando-se ora mando que se devia esperar a voz do papa.
a uma parte ora a outra, dizia: haverá al­ Para segurança do Paris foram banidos
guém que recuse alistar-se n'esta sancta m i­ muitos theologos* facciosos, 0 ficou restabe-
lícia? se houver alguém tão covarde que não
se una comnosco, eu vos dou permissão para 1 De Thou, l. 97.
que o mateis sem tem or1de serdes censura­ 2 Ibid. I 98, t. 7, pag. 603, 604.
dos. Depois da procissão, parte dos ligados 3 lbid.pag. 607.
foi ao palacio archipiscopal, d’onde já ti­ 4 Ibid. pag. 640.
5 De Thou, l. 9 9 , 1.101, t. 7, pag. 800, t.
i I b i d . l 96. 8, /. 108.
CAL 357
Iccido o socego; cslc exemplo de Paris se- principacs ministros do estado em se con­
^uiram-no muitas outras cidades.1 A liga servarem na que tinham, apoiando a rai­
porém continuou na sua resistência por nha: os grandes se esforçaram a sahir do
mais tempo, mas finalmente reconciliado abatimento em que os pozêra o reinado pre­
que foi el-rei com a Igreja e absolvido pelo cedente, servindo-se os mais babeis da pai­
papa, o duque de Mayena se submetteu xão dos outros para arruinarem a autho­
também, c Henrique ficou na posse de todo ridade de seus inimigos, ou para firmarem
o seu rein o.2 a sua.
Obtiveram os protestantes outro edito de Com esta mira o marechal deBuillon in­
pacificação similhante ao que já por quatro duzia os protestantes a que se reunissem
tczcs haviam alcançado, e bem que o tem­ c requeressem urna cabal execução do edi­
po tinha gasto por assim dizer o fanatismo to de Nantes, na fórma que com cila se ha­
da naçào, todavia ainda estava em seu vi­ via pactuado, c elles por meio de seus de­
gor o zelo entre alguns catholicos, que olha­ putados pediram satisfação a el-rei áccrca
ram o edito como um golpe fatal á religião, de vinte e cinco artigos. Tractados pela
c Henrique como o seu mais cruel inimigo. côrtc com vilipendio, o principe de Conde
Não tinha pois já que temer o soberano soube aproveitar-se do descontentamento
dos exercitos da liga, mas sim dos punhaes dos protestantes para os obrigar a decla­
dos particulares, cujo furor alTronta os rarem-se por elles: e por fim o condcsta-
perigos, e se mette' n’clles com prazer. vel de Luynes, com seus maus tractamen-
D’esta maneira um calecciro por nome Bar- tos, os determinou a tomarem as armas,
riere, ouvindo affirmar que seria uma ac­ que não encostaram cmquanto lhes não foi
ção meritoria matar el-rei, e que se mor­ confirmado o de Nantes por outro edito de
resse em tal empreza sua alma seria tran­ accommodamento, registrado em 22 de no­
sportada pelos anjos ao seio de Deus, aonde vembro de 1622.
gosaria uma eterna dita, este homem, que Na conformidade d’este se devia arrazar
por outra parte eslava desgostoso da vida, o forte Luiz, que estava mil passos distante
formou o desígnio d’assassinar Henrique ív. de Rochclla, mas como dous annos depois
Veio a Paris, mas agitado dos remorsos e ainda existia, de novo principiaram as hos­
vacillante, alli encontrou directores e theo­ tilidades, c não tiveram fim senão em 1629
logos. que lhe dissiparam os temores c ti­ com um tractado que restabelecia o edito
raram os escrúpulos: comprou um punhal de Nantes e alguns outros, que mandavam
c partiu para Mclun, para ahi matar el-rei, restituir os templos aos calvinistas: 1 po­
porém foi préso; a principio recusou des­ rém foram demolidas todas as fortificações
cobrir os que o haviam instigado a fazer das praças, que elles occupavam, e o par­
este horrível parricidio, porque lhe tinham tido dos calvinistas, privado totalmente das
•dito que se tal obrasse seria cternamente suas cidades de seguro, ficou pendente da
condem nado, mas um dominico o desenga­ mera benevolência d’cl-rei.
nou, c o rco descobriu tudo.3 Desde então principiou a diminuir a
João Chatel tomou a mesma empreza um olhos vistos, e Luiz xiv, que annullou o
anno depois; passados quatro, Rcdicoux, in- edito de Nantes, empregou a doçura e a
ílammado pelas prégações e pelos elogios severidade a fim de reunir os calvinistas do
que se faziam a Jaques Clemente, formou seu reino á igreja romana: converteram-sc
o mesmo projecto, e por fim Ravaillac o vários, porém muitos milhares de homens,
executou em 1610, matando um dos me­ de mulheres, c d’artifices passaram aos
lhores reis que teve a França.4 paizes estrangeiros. Segundo o calculo de
alguns foram mais d’oitocentos mil. 2
Para bem se apreciarem as calamidades,
DOS CALVINISTAS DE FRANÇA
que a reforma causou na França, seria ne­
DEPOIS DA MORTE DE HENRIQUE IV
cessario accrescentar a perda que ella sof-
freu na revogação do edito de Nantes, a
Morto Henrique o Grande, a rainha cui­ somma de pessoas que morreram nas guer­
dou em estabelecer sua authoridade, c os ras c nos patibulos desde a primeira fo­
gueira que se acccndeu contra os refor­
1 De Thou, l. 109. mados até á revogação do mencionado edi­
2 Ibid. I. 113. to, c todos os cidadaos que desertaram do
3 De Thou, l. 107, t. 8, pag. 322. Jour­
nal de Henri IV, t. 1, p. 41o et suiv. Hist.
4c la Universitc, t. 6. 1 Mem. du Duc. de Rolean.
4 De Thou, ibid, 2 Hist. de Fi'anç. t. 14, pag. 243.
358 CAM
reino desde a proseri pção de João Clcrc ate de que estavam encarregados: talvez não
o reinado de Luiz xiv. Deveria também ava­ seja util ao estado permittir que elles se
liar-se todo o prejuízo que receberam a po- multipliquem em França; porém sc fossem
voação, as artes e os costumes, o progresso tractados com commiseração, com caridade
da luz em um reino, em que por mais de e doçura, nao seria de esperar que se re­
século e meio os cidadãos armados e divi­ unissem a Igreja? Eis-aqui segundo mc pa­
didos faziam guerra uns contra os outros, rece um pensamento que não deveu toda
e tão cruelmente como os alanos, unos e go- a attenção que merece a alguns authores
dos a tinham feito a toda a Europa; e em que escreveram n’esta matéria.
uma palavra deveríam memorar-sc todas / cam is ^a r d o s — Nome dos fanaticos dos Ce
as vantagens que tiveram os estrangeiros^ venífòs, que se presumiam prophetas, e que
de tantas desgraças. sc amotinaram no principio do x v i i século
Eis-aqui os eífeítos que produziu na Fran­ (cm 1703); appellidavam-se os camisardos,
ça uma reforma que nem fazia a fé mais porque traziam sobre os vestidos uma ca­
pura, nem a moral mais perfeita, que rc- misa (que assim se chama no dialecto de
suscitava multidão de erros condemnados Langucdoc), ou segundo alguns dizem, por
nos primeiros séculos, cujos dogmas trans­ |causa d’um certo vestido de panno de li-
tornavam os princípios da moral, negavam mho, que ordinariamente se usa nas mon­
a liberdade.do homem, e o punham na dc- tanhas d’aquclle paiz.
sesperação,' ou lhe inspiravam uma segu­ Estava quasi extincto em França o cal­
rança funesta, que tirava todos os motivos vi nismo, depois da revogação do édito de
para practicar a virtude, e que finalmcnte Nantes: os restos d’este partido, espalhados
;c separava duma igreja, a qual os mes- por diversas provincias, e obrigados a es­
.nos protestantes mais conspicuos são pre­ conderem-se, não vendo algum recurso hu­
cisados a confessar não poder arguir-se de mano, que podesse pòl-os no estado de pre­
algum erro fundamental, ou seia na sua fé, cisarem a Luiz xiv-a conceder-lhes os pri­
ou na sua moral, ou no seu culto. vilégios, e liberdade de consciência de que
haviam gosado com seus predecessores, a
fim de sustentarem a fé dos calvinistas dis­
DO ESTADO DOS CALVINISTAS EM FRANÇA
persos, appellaram para soccorros extraor­
DEPOIS DA REVOGAÇÃO DO EDITO DE NANTES
dinarios c para os prodígios..Nos primei­
ros quatro annos depois de rasgado o edi­
Revogado que foi o edito de Nantes, fi­ to, se divulgou entre todos os reformados
caram em França muitos calvinistas. Con­ ouvirem-sc pelos ares, em roda d’aquelles
tinuaram a pesquizal-os, expozeram-se to­ sitios em que estiveram os seus templos, al­
dos os empenhos possíveis para que elles guns sons tão perfeitamente similhantesaos
tornasssm ao seio da Igreja. Reduzidos a dos psalmos, que os protestantes contavam
desesperação e animados por alguns pre­ que não poderíam tomar-se por outra cou-
sumidos prophetas, se tornaram «ás armas sa: era celestial a melodia, e as vozes an­
nos montes Cevcnnos. D’este acontecimento gelicas pronunciavam os psalmos segundo
porém fallaremos no artigo Camisardos ou a versão de Clemente Marot e de Theodoro
Camisars. de Beza. Fonun ouvidas estas vozes em
Trabalharam muito os principes protes­ Bearnc, em Vassy, nos Cevennos, etc-, al­
tantes na paz de Utrecht a favor dos calvi­ guns ministros fugitivos eram acompanha-.
nistas, e obtiveram a liberdade dos que es­ dos d’esta psalmodia divina, e a mesma
tavam prêsos, ou nas galés, porém não se trombeta,1 não os abandonou senão depois
refriou o zelo contra elles. El-rei publicou de haverem salvado as fronteiras do reino,
uma declaração em que lhes prohibia a c de estarem em paiz de segurança.
sahida de seus estados, e aos refugiados 0 ministro Jurieu ajuntou com desvelo
permittia que voltassem a elles sem alguma os testimunhos d’cstes portentos, e colligi-
permissão particular: portanto se véem os ram d’aqui, que havendo Deus feito fogueiras
• protestantes em França actualmeute em tal no ineio dos ares, assim reprehenaia a sua
situação, que não são tolerados, nem bani­ providencia indirectamente os protestantes
dos; mas estão como detidos ou prisionei­ da França de se haverem calado covarde­
ros. mente. 2
Debateu-se muito, ba pouco tempo a esta
parte, se se lhes devia conceder ou não a 1 É usual nos coros de França uma es-
tolerância civil: os cidadãos zelosos julga­ pecie de baixão, que conserva a corda coral.
ram que sim, mas os bispos seguiram o con­ 2 Da carta pastoral de Jurieu, anno
trario, receando que contaminassem os fieis 1686, consta esta conclusão extravagante.
CAM 35»
Em um paiz opprimido os prodígios e as que queriam aproveitar-se do fanatismo dos
visões quasi sempre annunciam algum.as calvinistas para excitar uma guerra civil
prophecias destinadas a sustentar a lé.pela e de* religião.
esperança d,uma feliz liberdade. Em todos Um calvinista velho, por nome Serra, es­
os logares cm que se haviam promulgado colheu nas suas visinhanças quinze rapazes,
leis contra a aflectada reforma, prohibmdo que seus pacs lhe confiaram voluntariamen­
o exercício, c banindo os infractorcs, sur­ te, e fez que á sua mulher, que elle asso­
giram prophetas que annunciaram proxi­ ciou ao mesmo ministerio, se entregasse
mo o termo da oppressào. igual numero de raparigas. Todos ellcs não
D’esta maneira quando os editos severos tinham recebido por primeira lição do Chris­
dos imperadores aniquilaram o partido pro­ tianismo senão os. sentimentos *de horror e
testante dos estados da casa d’Austria, Rot- de aversão á igreja romana; portanto esta­
tero, Drabicio, Christina, Poniatonia e Co- vam naturalmente dispostos para o fanatis­
menio annunciaram a destruição da casa mo, e além d’isso eram summamcnte igno­
austríaca por meio de exercitos que ha­ rantes. Situados no meio das montanhas do
viam de vir umas vezes do norte, outras do Delphinado, embrenhados nas devezas, cer­
Oriente: Gustavo Adolpho, Carlos Gustavo, cados de rochedos e de precipícios, afasta­
Cromwel, Rayostki foram alternadamente dos de todo o commercio, tinham um gran­
preconisados executores d’estas predicções de respeito a Serra, a quem todos os pro­
magnificas. 1 testantes do Cantão reverenciavam como a
Jurieu, que anhelava mais que nenhum um heroc do seu partido.
outro protestante a destruição da igreja ro­ Serra os persuadiu que Deus lhe déra o
mana, teve por inspirados todos estes fa­ seu espirito, e que elle tinha o poder de
naticos: o concurso de tantos prophetas mo­ communicaí-o a quem lhe parecesse, e os
dernos não lhe permittiu hesitar que Deus havia escolhido para os fazer prophetas, e
tivesse resolvido destruir o papismo; porém prophetisas, uma vez que elles quizessen)
como via nas suas prophecias incoheren- dispôr-sc para receber tão grande dom da
cias, que não lhe permiltiam aquietar ricl- maneira que Deus lhes prescrevera. Os ra­
las o seu coração, resolveu sondar elle mes­ pazes encantados da sua sorte se sujeita­
mo os oráculos divinos, para descobrir n'el- ram a quanto Serra lhes ordenou. A pri­
Ies alguma cousa mais terminante acerca meira preparação para a prophecia foi um
do triumpho da sua religião: procurou es- jejum de tres dias, depois do qual Serra os
tabelecel-o nos oráculos que prediziam os embellezou com visões, apparições c inspi­
destinos da Igreja, isto é, no Apocalypse, e rações: encheu-os d’idcias as mais assom­
achou no capitulo xvi a historia completa brosas e de esperanças magnificas: fez-lhes
da ruina do papismo. 2 tomar de cór as passagens do Christianis­
Annunciou pois este ministro a todo o mo em que se falia do Anti-Christo, da des­
orbe a extineçao da religião romana, e o truição do seu imperio, e do livramento da
reinado do calvinismo: iremos bem depres­ Igreja, dizendo-lhes que o papa era este An-
sa, dizia elle, levar a verdade até sobre o ti-Christo, que o imperio que havia de ser
throno da mentira, e a elevação do que aca­ destruído era o papismo, e que o livramen­
bam de lançar por terra se fará d’uma ma­ to da Igreja era a restauração da presumi­
neira tão gloriosa, que será o assombro de da reforma.
todo o orbe. Serra ao mesmo tempo ensinava os novos
Este restabelecimento glorioso dos refor­ prophetas a acompanharem seus discursos
mados se fará, dizia M. Jurieu, sem perda de varias visagens e tregeitos aptos para al-
de sangue, ou com perda de çouco; e isto lucinar as pessoas simples; deitavam-se de
mesmo não deverá ser nem a força d er­ costas, cerravam os olhos, inchavam o ven­
mas, nem por meio dos ministros, mas pela tre c as guelas, e se deixavam cahir em
effusão do Espirito de D eu s.3 um somno profundo, do qual, despertando
Alguns ministros protestantes adoptaram repentinamente entravam a publicar com
as idéias de Jurieu, levaram-nas aos ceven- um tom altivo quanto se offerecia á sua
nos, e as insinuaram ou fosse por crédulos imaginação desvairada.
ou por induzidos pelos inimigos de França, Logo que algum dos que aspirava ao
dom de propheta estava bem ensaiado para
1 Comenius,, Hist. Revelat. Bayle. Dist. representar o seu papel, o propheta mestre
a rt. K otwus Drabicins Comenius. ajuntava o seu pequeno rebanho, punha no
2 Accomplissement des propheties Bmeys. meio o pretendente, e lhe dizia que era che­
Hist. du Fanatismc, l. l.°, pag. 400. gado o tempo da sua inspiração, depois do
3 Ibid. pag. 2. Unité de rEglise,Preface. que, com um ar grave e mysterioso, lne dava
360 CAM
um osculo, e lhe insuíflava na bôca, decla- mesmos por terra como mortos, e sontiam
rando-lhc que tinha recebido o espirito pro­ um gôso inexplicável quando a si torna­
phetico, emquanto os demais, arrebatados vam.
d’assombro, esperavam com respeito o nas­ Esta especie de ministério, não era exerci­
cimento do novo propheta, e anhelavam cm tado sómente por pessoas de madura idade
segredo o momento feliz d’outra similhante c respeitáveis por seu caracter, mas por
sorte. Passado pouco tempo, o mesmo Serra pastores de quinze ou dezeseis annos, e al­
não podendo já conter o ardor dc que abra- gumas vezes de oito ou nove, que se ajun-
zára seus discipulos, os despediu, enviau- tavam, faziam consistorio, e n’elle obriga­
do-os a logares aonde creu que elles iriam vam a cincocnta ou sessenta penitentes a
dilatar seu esplendor. dar satisfação da sua apostasia, isto é, de
No momento da despedida os exhortou haverem voltado á igreja romana: estes me­
a communicarem o dom de prophecia a to­ ninos desempenhavam as funeções do mi­
dos os que julgassem dignos, depois de os nistério com authoridade de mestres, ar-
haverem ensaiado da mesma sorte que el­ guiam os peccadores severamente, elles
les o tinham sido, c lhes reiterou os protes­ mesmos lhes ditavam a oração, pela qual
tos que lhes havia dado de que tudo quan­ haviam de testimunhar a Deus seu arre­
to predissessem aconteceria infallivelmente. pendimento, c a concluíam com uma ab­
Os animos dos povos, aos quacs se dirigiam solvição concebida n’cstes termos:— «Deus
estes novos prophetas, estavam muito dis­ vos perdoe.»
postos para os servirem com respeito: a sua Eram varios os impetos d’estes prophe­
prevenção, a leitura das cartas pastoracs de tas; por via de regra cahiam no chão, ador­
Jurieu, a solidão em que viviam, os roche­ meciam ou ficavam n’um entorpecimento,
dos e montanhas que habitavam, o seu odio algumas vezes seguido de movimentos con­
contra os catholicos e o rigor extremo com vulsivos: as excepções da regra foi agita­
que estes os tractavam, os haviam prepara­ rem-se c prophetisarem acordados, ja em
do para ter em conta de propheta qualquer simples extasi, já com algumas convulsões.
que lhes annunciasse com enthusiasmo, e As prophecias dos visionários do Delphi­
de um modo extraordinario a ruina da re­ nado eram confusas, concebidas em mau
ligião catholica. francez, e estylo baixo e grosseiro, de ordi­
Distinguiram-se entre os demais dous dis­ nario diCQcil de entender áquelles que não
cipulos de Serra, que foram a pastora de tinham uso do dialecto de Vivarais e do
Crest, sobrenomeada a bella Izabcl, e Gra- Delphinado. As suas prégações eram simi-
briel Astier, na aldeia de Clien, no Delphi- lhantes ás prophecias: a torto e a direito
nado. A primeira partiu para Gracianopoli, amontoavam todas as expressões e passa­
onde depois de haver representado o seu gens da Biblia, que tinham conservado na
papel por algum tempo, foi présa, ejw uco memoria, e estas eram as bellas cxhorta-
depois convertida; mas esta deserção não ções que arrancavam as lagrimas dos ou­
extinguiu o espirito prophetico. Os outros vintes.
discipulos se derramaram no Delphinado e Antes que principiassem a fallar estes
no Vivarais, e tão pasmosàmente se mul­ prophetas, passavam quatro ou cinco dias
tiplicaram os prophetas, que havia aldeias sem comer, e depois d’isso apenas tomavam
que não tinham outros habitadores; n’uma algum sustento: faziam sangrar os meninos;
noite se levantaram duzentos ou trezentos sempre uma molestia precedia ao seu dom
novos inspirados, que prégavam e prophe- de prophecia: também as novas prophetisas
tisavam de contínuo em público e no mejo affirmavam que antes de cahir no lethar­
das aldeias, e eram escutados por multidão go, experimentavam um não sei quê, que
de ouvintes, que de joelhos recebiam os seus lhes subia pouco a pouco desde os pés até
oráculos. á garganta, e tanto que ficavam sopitas,
Quando na assembléia se encontravam e nada mais sentiam: e muitas testimunhas
peccadores notáveis, os prophetas os cha­ asseveravam que durante a prophecia (que
mavam a si, e entravam em grandes con­ era do tamanho do somno) não se podia
vulsões e em terríveis tormentos em quan­ despertar o propheta ou a prophetisa, nem
to não chegavam para elles, mas logo que picando-os com um alfinete, nem dando-lhes
vinham, lhes punham as mãos sobre a ca­ fortes beliscões.1
beça, e gritavam misericordia e graça, ex­
hortando os peccadores ao arrependimento
e os circumstantes a pedir a Deus que lhes 1 C arta escripta de Genebra em 1689. Ce- j
perdoasse seus peccados: se os peccadores remonies Religieus, t. 4, pag. 154 e seg. t. i.°
se arrependiam sinceramente, cahiam elles desíettres de Tlechier.
CAP 361
Estes fanaticos ou foram sempre ou vie­ fim das suas inspirações. Fage era tolo.
ram a parar em embusteiros: descobriu-se Logo que prophetisaram em Londres, M.
de que modo cllcs ensaiavam os novos pro­ Fatio, da sociedade real de Londres, c ma­
phetas e como os inspiravam: foram con­ thematico famoso, se declarou seu prote­
vencidos de impostura na mesma Genebra, ctor e interprete.
.aonde dous do Vivarais e do Delphinado Im^rimiram-se as prophecias de Marion,
pretenderam em 1689 continuar os seus en­ que não constavam senão d’inveclivas con­
ganos. Estes prophetas fizeram ajuntamen­ tra a corrupção do século, da Igreja, e dc
tos tumultuosos no Delphinado e em Viva- seus ministros, ameaças contra a Ingla­
rais, que foram desbaratados por M. de Bro- terra, etc. Em pouco tempo tiveram os ca-
glia, tenente general, e por M. de Basvella, misardos partido bastante para merecer as
intendente da provincia. observações do governo, que os fez pren­
Porém não obstante isso persistiu o fogo der: foram muitas vezes perguntados, e
do fanatismo, e o espirito prophetico se Fage declarou nos interrogatorios haver
perpetuou occullamente, e manteve entre tirado a vida a varios homens meramente
os calvinistas a esperança da restauração por instigação do Espirito Sancto, c que
da sua seita. Os habitantes d’estas provin­ nenhum escrupulo fazia de matar seu pro­
cias eram quasi todos hereges, educados e prio pac se recebesse ordem de o fazer.
nutridos grosseiramente; estavam possuí­ Os prophetas e seu sectário Fatio foram
dos das manias das inspirações que* a soli­ condemnados a pagar vinte marcos e pre­
dão, seu modo de vida, e talvez o zelo in­ sos á golilha n’um theatro, que se levan­
discreto e duro dos catholicos fortificava tou na Praça Charrin Grosse em 9 de de­
de tal sorte, que n’aquelles paizes o enlhu- zembro de *1707. Veja-se a Clavis Prophe­
siasmo e fanatismo só esperavam a occa- tica de Marion, o Jornal dos Sábios, 1707,
sião para se pôr em movimento. A impo­ e a Republica das JMras.
tência, ou colorada ou verdadeira de paga­ y ^CAPUciATOS—Fanaticos que faziam ums
rem o tributo da capilaçCio, foi a causa ou 'espécie efe scisma civil c religiosa separa
o pretexto que fez descobrir o fanatismo c dos dos demais homens, e que tomaram poi
a má vontade d’estes povos: amotinaram- distinetivo da sua sociedade particular cer­
se, appareceram logo sobre a scena os pro­ to capuz branco, dc cuja extremidade pen-J
phetas; as potências que estavam em guer­ dia uma pequena lamina de chumbo. A p-|
ra contra a França os fomentaram, e a pro­ pareceram em 1186.
vincia de Languedoc foi o theatro d’uma; N'este século se tinham visto em discor­
das mais terríveis e crucis guerras civis: dia o sacerdócio e o imperio, a igreja ro­
que se teem visto. mana dividida em scismas, e os papas elei­
Estes novos prophetas foram os camisar­ tos por diversos partidos cxcommunga-
dos, por profissão inimigos jurados de quan­ rem-se alternadamente com os reis c esta­
to tinha o nome e caracter de catholico ro­ dos, que seguiam seus adversarios. Os pon­
mano, e cra este o principal artigo da sua tifices estavam em lucta com imperadores;
religião: persuadidos que tinham mereci­ os reis e os bispos differentes acerca de
mento diante de Deus em matar deshuma- seus direitos: tinham-sé levantado heresias
namente os sacerdotes, roubar e queimar monstruosas e ridiculas, e não se haviam
as igrejas, acompanhavam estas desordens rebatido d’outra sorte senão por via de
com a leitura da divina palavra, com o guerras, que encheram a França e toda„a
canto dos psalmos, e com a oração. Europa de calamidades e desordens; todas
A rebellião dos camisardos só terminou as potências abusaram de sua authoridade,
em 1709. As desordens que cila motivou e parecia que nenhuma fosse legitima por
encontram-se referidas com demasiada mi- se julgar que todas ellas só tivessem por
nudencia na Historia do Fanatismo dos nos­ lei a violência. Assim, cada qual se presu­
sos dias, por Brueys. mia com direito para se separar, por não
Em 1706 tres prophetas camisardos, Ma- haver já sociedade aonde a força fosse a lei
rion, Fage, e Cavalier passaram a Ingla­ e a norma da justiça.
terra, e n’ella prophetisaram; Marion, prin­ O espectáculo das infelicidades de que a
cipal actor, era serio, e a fidelidade da sua Europa foi o theatro, fez entrar esta ideia
memoria o fazia capaz d’aprender e repre­ na cabeça d’um rachador de lenha, que,
sentar grandes papéis; Cavalier, que era o ou por fanatismo ou por industria, ou tal­
mais novo e alentado, desempenhou com vez por um e outro motivo, publicou que
luzimento tudo o que dependia puramente a Virgem Sanctissima lhe apparecera, e lhe
do corpo; porém menos sisudo que Marion, dera a sua imagem e a de seu Filho com
não podia algumas vezes conter o riso no esta inscripção: Cordeiro de Deus, que ti-
362 CAR
raes os peccados do mundo, dai-nos paz. Luthero sahiu do seu retiro para se od-
Accrescentava o radiador que a mesma Por as innovações de Carlostadio e o obri­
Senhora lhe havia ordenado levasse esta gou a deixar Wirtemberg. Carlostadio en­
imagem ao bispo de Puy, afim de que elle tão se retirou a Orlemonde, cidade de T a -
pregasse que os que desejassem procurar ringia, dependente do eleitor da Saxonia
a paz da Igreja houvessem de formar uma e alli se desatou cm vituperios contra
confederação ou sociedade, que arvorasse procedimento de Luthero, que arguia de li-
esta imagem e trouxesse uns capuzes bran­ songeiro para com o papa. Estas disputas
cos, que seriam como o symbolo da sua in­ excitaram turbulência, e o eleitor a fim d e
nocentia, e da paz que elles queriam res­ apazigual-as mandou Luthero a Orlemonde.
tabelecer. Além d’isto ordenava a Virgem De caminho prégou em Gênova, estando
Sanctissima que os restauradores do so- presente Carlostadio, ao qual não deixou
cego se obrigassem por juramento a con­ de tractar de sedicioso: acabado o sermão
servar entre si uma harmonia inalterável, Carlostadio procurou Luthero na Ursa Ne­
e a fazerem guerra contra todos os inimi­ gra, aonde se alojara, c depois de se haver-
gos da p a z .1 justificado da sedição de que o arguia, de­
Teve logo socios o rachador, e entre elles clarou a Luthero não poder conformar-se
varios bispos, consules e homens de todos com o seu sentimento acerca da presença
os estados c condições, que tomaram o ca­ real.
puz branco e formaram uma sociedade, cu­ Luthero com ar de desprêso o desafiou a
jos membros estavam industriosamente uni­ escrever contra elle, promettendo-lhe um
dos entre si e separados de todas as outras florim d’ouro se tal emprehendesse: accei-
sociedades, que olhavam como inimigas, e tou-se o desafio, beberam á saude um do
ás quaes presumiam ter direito para to­ outro, e ficou a guerra declarada entre estes
mar quanto lhes era necessario. Esta seita dòus apostolos da reforma.
fez grandes progressos na Borgonha e em Carlostadio ao separar-se de Luthero lhe
Bcrry: para rebatel-os levantaram tropas disse: Veja-te eu ainda sobre um cadafalso:
varios bispos e senhores do paiz, que em e eu a li, lhe tornou Luthero, com o pesco­
breves momentos a dissiparam. 2 ço estorccgado antes de sahir da cidade. 1
Quando o abuso da authoridade chega a Luthero, que foi muito mal recebido em
certo auge não produz uma só seita de si- Orlemonde, e esteve quasi morto por insti­
milhante caracter: n’cste mesmo século c gações de Carlostadio, se queixou ao elei­
nos seguintes foram vistas muitas outras. tor, o qual o obrigou a sahir de Orlemon­
Taes eram os stadinghs, circoncilliões, al- de: então partiu para a Suissa, aonde Zuin-
bigenses, valdenses e as conjurações que fi­ glio e Oecolampadio tomaram a sua defesa,
zeram os barões de França para se apode­ e alli se formou a seita dos sacramenta­
rarem dos bens da Igreja e a despojarem dos, tão opposta aos lutheranos. Carlosta-
de seus privilégios nos pontificados de Iu- dio tinha adoptado alguns erros dos anaba-
nocencio iv, Innocentio v e Bonifácio v h l 3 plistas c se declarara abecedariano. Yeja-
/ carlostadio — Presbytero ou arcediago e -se este artigo.
/ nroles^õrainheologia em Wirtemberg, foi CARPOCRATES OU OARJÇOÇR^S — VIVia HO
5 logo no principio um dos mais zelosos de- tempÓiIé~Basilides e a e Saturnino, pouco
5 fensores da doutrina de Luthero. Quando mais ou menos: suppunha còmo elles que
» este se viu obrigado a esconder-se na cida o mundo fòra produzido pelos anjos e ado-
delia de Westeburgo, Carlostadio pôz ,por ptou todos os princípios da magia; mas em-
terra as imagens, aboliu as missas resadas * prehendeu explicar d’um modo mais sim­
a confissão auricular, o preceito do jejum ples a origem do mal, que era o despenhà-
e da abstinência das carnes, estabeleceu a deiro aonde quasi sempre se ia precipitar
communhão em ambas as especies, foi o a deb.il razão dos hereges d’aquelle século.
primeiro que deu aos sacerdotes o exem­ Parece que em vez de submetter á fé.os
plo de casarem, e permittiu aos religiosos princípios philosophicos, n’elles procurou
o egresso dos seus mosteiros e a renuncia a solução d’este grande problema, e quiz
dos votos. alliar com elles a religião christã.
Segundo os princípios de Platão, suppu­
1 Robert. de Mont. append. ad Corogra- nha elle que as almas humanas estavam
phiam Sigeberti apud Stormm, pag. 774.
2 Labb. Nouv. M bliot. t. 1, pag. 477. 1 Luth. L. Calixt judie. n.° 19. Hospin.
D'Argentré> Collect. Jud. t. i, pag. 123. ad an. 1521.
3 Duchesne, t. 5, pag. 714. U Argentre, 2 Bossuet, Hist. des Variat. I. 2, arL
ibid. 8, 9.
/
I

CAT 363
unidas aos corpos por so haverem esqueci­ formar-se ácerca d’isto com certa passa­
do de Deus, c que degredadas de sua pri­ gem do Evangelho que diz: «Quando via­
meira dignidade perderam o privilegio de jardes com vosso inimigo cuidai cm vos pre­
puros espíritos c desceram ao mundo cor­ caver de seus ataques, receando que elle
poreo, em que eram sujeitas aos anjos crea- vos entregue ao juiz e que vos faça condu­
dores do mesmo mundo. Todas as luzes de zir á prisão, d’ondc não saiaes sem ter sa­
que haviam sido dotadas no estado primi­ tisfeito até o ultimo real.»
tivo se tinham apagado: esta era a causa Os carpocracianos tinham os anjos crea­
da ignorância cm que nascem todos os ho­ dores como inimigos que se regosijavam de
mens, e os debeis conhecimentos a que se vér os homens procurar os prazeres e entre-
iam elevando com tanto trabalho nào eram, garem-se a elles: e para evitarem o emba­
segundo Carpocras, outra cousa mais que raço de resistir a seus ataques se entrega­
reminiscencias. vam a todos os seus desejos.1
A alma de Jesus Christo, que na outra Tinham os carpocracianos os seus encan­
vida se tinha esquecido menos de Deus que tamentos, os seus segredos e a sua magia
as demais, tivera menos trabalho cm sahir como todas as seitas que attribuiam a for­
da ignorância em que o pcccado submergira mação do mundo e os successos importan­
os homens: os seus esforços attrahi ram so­ tes aos homens, a genios sujeitos a todas as
bre si os favores do Ente Supremo e Deus paixões c fraquezas humanas. Os seus se­
lhe communicára tal força, que o fazia su­ ctarios eram marcados na orelha: excita­
perior e capaz de resistir aos anjos e de rc- ram a indignação dos pagãos c occasiona-
montar-se ao céo, apesar dos seus estorvos. ram muitas calumnias aos christàos, que
Deus concedia a mesma graça aos que imi­ os pagãos confundiam com elles. 2 ___
tavam a Jesus Christo e que conheciam ser f ca t iia r o s — Esta palavra quer dizer puro. 7
espíritos infinitamente superiores aos cor-1 Os monxTCnistas, manicheos, novacianos e $
pos. albigenscs tomaram o mesmo nome. Vejam- ■
Com este conhecimento* segundo Carpo­ se os seus artigos.
cras, o homem se elevava acima das fra­ -"'C a t h o licism o e s e u s in im ig o s —A verdade
quezas da natureza humana, sua carne era por SL“rçiTélMffl tttôòbrir, sempre
atormentada sem que elle soíTressc; as im­ apparecc superior a todos os erros c so-
pressões dos corpos estranhos sobre seus phismas.
orgãos nào o subordinavam: elle soffria Se aqui se esconde, acolá brilha cm todo
sem fraqueza, era incorruptível no meio o seu esplendor.
dos prazeres, porque nào os olhava senão Poderá sim por algum tempo offuscar-sc,
como movimentos da materia, que um es­ mas nunca predominar o erro por longo
pirito bem persuadido de sua grandeza en­ tempo, nem em toda a parte.
cara com superioridade. Immovel no meio E se isto é exacto, não o c menos que os
dos acontecimentos que agitam os homens, seus inimigos quasi nunca a atacam aber­
e inflexível qual o rochedo no meio das on­ tamente, mas ordinariamente servem-sc das
das, que dominio podem ter sobre um tal armas do dolo e mentira para triumphar.
homem os anjos creadores? Mostram-se animados do zelo, imparciali­
N’cste conhecimento da própria dignida­ dade e desinteresse para occultar a verdade
de consistia pois a perfídia humana: Jesus c fazer reinar o erro.
Christo nada mais tivera: todos os homens E quando elles se julgam os unicos que
podiam imital-o e merecer a gloria de que possuem a bossa da sciencia, então tomando
elle gosava. Na conformidade d’estas idéias um tom pithagorico, c dando-se ares de ex­
os carpocraciancs nào viam a acçào corpo­ clusivistas nas letras, pensam ter tocado a
rea que fosse boa ou má: o temperamento meta dos seus fins, que são o triumpho do
ou a educação decidia acerca dos seus cos­ erro contra a verdade.
tumes: portanto eram ordinariamente ho­ Assim é que a guerra feita á religião é
mens estragados, como sempre acontece em uma guerra infame e traiçoeira, porque os
todas as seitas que se fundam em similhan- seus inimigos não ousam apresentar-se fran­
tes princípios. camente, aizendo o que querem e usando
Alguns d’estes sectários reputavam os da lealdade nos argumentos.
razeres mais vergonhosos como tributos
S e que a alma era devedora aos anjos crea­
dores e que o homem havia de satisfazer 1 Ciem. Alex. 1.3. Strom. pag. 312. Phi-
para recobrar a liberdade original: por este lastr. de Hcer. Ircen. I. 1, c. 24. Euseb. I. 4,
meio as acções mais nefandas se tornavam c. 7. Hist. Eccles. Epiph. hcer. 27.
actos de virtude, e affectavam elles con 2 Euseb. Ircen. Epiph. ibid.
364 CAT
Estes novos phariseus não combatem o no século i SunãpJIago, Menandro, Niçolau
catholicismo com a razão e o raciocínio, Geciutho e .Ebion. ~ ^
ue se assim o fizessem já ha muito ^ N o 11 Saturnino, B.asilidcs, os gnosticos
S íavcria incredulos e impíos. Ellcs com-J os valentinianos, marcionitas, montanistas
batem-no por meios hypocritas e insedio* ,e eucratitas.
sos, por meio de soplíismas c calumnias, ^ No ui os novacianos, sabellianos, paulia-
por meio da mentira c do ridiculo. E coino mistas c manicheus.
em escarneo do bom senso e da razão cha-< ^ No iv os donatistas, arianos, maccdonios,
mam-se racionalistas e philosophos. \ apolinaristas e priscillianistas.
Ha dezenove séculos que Jesus Christo /^ ‘No v os pelagianos, nestorianos c outy-
appareceu entre os homens c lhes prcgòui chianos.
uma religião, que sondo o complemento d;y *7 No vi os agnoelas, os defensores dos tres
lei velha, tocou a perfeição; e esta religião,\ capítulos.
sempre pura no dogma, na moral e na dis- "”~No vii os monothclitas e paulicianos.
ciplina é a mesma que hoje existe com o:~"No viu os iconoclastas,
nome de Catholicismo. JTNo ix Sergio e Focio.
Ora aqui temos um facto que é ncccssa-< ^ jN o xi Bercngario e Cerulario.
rio examinar. ^ No xu Tanquillino, os petrobrusiasnos,
Todo o homem, ou seja christão, ou pa-* ^Abaelardo c os valdenses.
gão, ou mahometano, ou deista, ou a th eu ,,^ N o xm os albigenses e os beguinos.
mas que pense c raciocine, tem necessaria- ^ No xiv João Wiclef.
mente de parar junto d’este facto—o Chris-^^No xv João Ilus e Jeronymo de Praga,
tianismo—; não pódc ser insensível a essa LJNTo XVI Luthcro, Calvino, Zuinglio, Soci-
mudança que um homem, a quem os ju- m o e outros muitos,
deus crucificaram, veio operar no mundo, J ^ N o xvn os arminianos, os jansenistas, os
c que mudou a face religiosa, moral e so­ .guietistas c os kokcrs.
cial de todos os povos. ,? rNo xviii os appellantes c os cncyclope-
Ora o Christianismo existe ha dezenove distas, e os phylosophos racionalistas, e fi-
séculos, sempre o mesmo nos seus princí­ Inalmentc no século xix uma chusma de
pios, consequências e fins. seitas impias c abomináveis, em cujo nu­
Aqui offcrece-se logo á mente do pensa­ mero entram os pedreiros livres, earbona-
dor uma reflexão. Um facto, que dura tão Irios, illuminados, socialistas e cominunis-
longo tempo sem alteração nos seus prin­ llgs-
cípios, nas suas consequências e nas suas Todos estes hereges e inimigos da reli­
circumstancias, deve necessariamente ser gião catholica apparcccram cm diversos
tido como verdadeiro, porque a mentira e tempos: e apenas espalharam as suas dou­
o erro não reinam tanto tempo. trinas, foram logo 'condemnados por diver­
Ainda outra circumstancia ha de notar: sos papas e concilios, e combatidos por dif­
o erro póde durar algum tempo quando ferentes homens que professaram a sã dou­
ninguem o combate, mas quando uma qual­ trina.
quer doutrina é combatida por diversos Ora uma crença tão combatida e sempre
modos, em diversos logares, em diversos triumphante não póde deixar de ser a unica
tempos e por diversos homens dotados de verdadeira.
differentes opiniões, interesses e paixões, e Ainda mais. Durante tres séculos os que
apesar d’isso ella triumpha sempre, não seguiam esta crença eram condemnados á
póde ser um erro; porque se o fosse deve­ morte, passando por tormentos que só o no-
riamos então renegar da razão humana. meal-os causa horror. Os perseguidores of-
Ora o catholicismo está n’esse caso. Teve fereciam promessas, riquezas e prazeres
oppositores de todas as classes e ordens, que aos christãos como prêmio da sua aposta­
se serviram de differentes meios em varios sia, e clles tudo recusavam e antes que­
tempos e logares no longo espaço de deze­ riam morrer por aquelia crença. O sangue
nove séculos; mas elle ainda hoje existe dos christãos produzia novos crentes da re­
com a mesma fé, com a mesma doutrina e ligião do Crucificado.
com os mesmos princípios. Certamente uma religião com taes cir­
Isto humanamente nao se póde conceber. cumstancias e predicados não póde ser obra
Mas se isto assim mesmo fosse obra de ho de homens, mas sim obra d’um Deus.
mens devia ser abençoada tal obra e aca­
tada de todos.
A religião christã-catholica teve por con­
tradictores aos seus dogmas e á sua moral
CAT 3G5
II além, S. Hilário, Eusebio, S. Efrem, S. Ba-
silio Magno, S. Gregorio de Nessea e de Na-
zianzo, S. Epiphanio, S. Ambrosio, S. João
Succodc muitas vezes que uma ideia com­ Chrysostomo, Arnobio e Lactancio.
primida, ou mais cedo ou mais tarde vence. No v S. Jcronymo, S. Agostinho, S. Cy­
E se o Christianismo fosse só combalido, e rillo d’Alexandria, S. Leão i, papa, S. Pe­
apesar d’isso triumphasse, podcr-se-ia dizer dro Chrysologo, Cassiano, S. Paulino de
que o triumpho nasceu da opprcssão. Nora, Paulo Orosio, c S. Hilário d’Arles.
Mas não foi só isso. No vi S. Gregorio Magno, S. Fulgencio,
Essa crença, o Christianismo, foi defen­ Cassiodoro, S. Gregorio de Tours, Evagrio
dida por homens os mais sábios, mesmo no e S. Simão Styllita.
meio dos tyrannos, perseguidores c inimi­ No vii Theoílacto, S. Maximo, S. Isidoro
gos. de Scvilha, e S. Ildcfonso.
Essa crença foi discutida por talentos os No viu Beda, S. Germão, arcebispo de
mais sublimes e por elles abraçada, des- Constantinopla, Paulo Diacono, e Alcuino.
presada a crença contraria. No ix Haymon, Paschasio, Rabão Mou­
Homens os mais virtuosos a seguiram, e ro, S. Remigio, Floro Diacono, e Dungalo.
muitos deram por ella o seu sangue. Al­ No x, que é chamado o século do ferro,
guns authorcs teem formado o computo de por causa da espessa noite de ignorância,
dous milhões quinhentos cincoenta e cinco c dureza dos entendimentos, brilharam as­
mil martyres que morreram pela fé de Je­ sim mesmo Simcão Metafrastes, Flodoardo,
sus Christo, e repartido o seu numero pe­ Luithprando, c S. Odon, abbade.
los dias do anno, caberíam a cada um dia No xi S. Pedro Damiào, S. Anselmo, Lan
sete mil; e eram pessoas de toda a idade, franco, Bruno de Signia, Abberico, mong<
sexo e condição. Sua constância não podia Hugo, Humberto, cardeal, e Guitmundo.
deixar de ser o eíTeito da persuasão ou in­ No xu Rupcrto, abbade, S. Bernardo, Eu
tima convicção da verdade do Christianismo. tymio, Hugo de S. Victor, S. Norberto, S.
Não era esta persuasão filha dos prejuí­ Thomaz, e"Ricardo dc S. Victor.
zos da educação, não, porque müitas pes­ No xu Alexandre d’Hales,S.Boaventura,
soas educadas no paganismo^ com prejuízos Alberto Magno, Agostinho Triumpho, Egi-
contrarios á religião christã, abandonavam dio, Bacon, e Raymundo Martini.
os idolos e prestavam culto ao Deus do Cal­ No xiv Scoto, Guilherme Ocham, o idio­
vário, derramando o seu sangue por essa ta, e Nicolau de Lyra.
crença. No xv Pedro d’Áilly, Gerson, Nicolau de
Isto diz alguma cousa. Muitas vezes os Cusa, S. João de Capistrano, S. Antonino,
maiores inimigos d’essa crença, conhecida S. Bernardino de Senna, S. Lourenço Justi­
a verdade, a abraçavam. niano, Thomaz de Kempis, S. Vicente Fer­
E os homens que isto faziam, nao obra­ rer, Tostado, Thomaz Valdense, Bessarion,
vam por ambição ou por interesse. Elles João de Torre-Queimada, e Dionisio Car-
deixavam os prazeres mundanos, vendiam thusiano.
quanto possuíam para darem aos pobres, No x y i João Driedo, ambos os Sotos, Mel-
e professavam o Christianismo. Abandona­ chior Cano, Medina, Molina, Lessio, Vata-
vam as commodidades da vida, e seguiam blo, Maldonado, Ambrosio Flondino, João
uma religião que nenhuns interesses ma- Hoffmeister, Alberto Pighio, Hosio, Seri-
teriaes lhes assegurava. pamdo, Reginaldo Polo, Affonso de Castro,
N'estas circumstandas está o catholi- c Erasmo de Roterodam.
cismo. No xvii Vasques, Soares, Sylvio, Ba-
Esta sublime religião teve por apologis­ ronio/Bellarmino, Bona, Sirmond, Petau,
tas e defensores, além d’outros muitos sá­ Harduino, Becano, Fevardencio, Tillemont,
bios, os seguintes, cujos nomes bastavam Descamps, Ripalda, Bossuet, Fénélon, Gret-
de per si para todos se curvarem perante ser, Vito Erhcmanno, Adrianno e Pedro de
o Evangelho e a crença catholica; a saber: Halemburcb, Thomazino, Annato, e João
No século ii S. Ignacio. Polycarpo, S. Jus­ Moraincs.
tino, S. Ireneu, Athenagoras e Clemente Ale­ No xvm Mabillon, Calmet, Graveson,
xandrino. Mansi, Roncaglia, Huecio, Balusio, Munla-
No século ui Tertulliano, Minucio Feliz, ri, Gotti, Monaglia, Orsi, Berti, Zaccharias,
Origenes, S. Dionisio Alexandrino, S. Cy­ Chateaubriand, Bergier, e outros muitos
priano, S. Gregorio Thaumaturgo e Sym­ que viveram n’esse século, c n’este xix em
macho. que vivemos.
No iv S. Athanasio, S. Cyrillo de Jerus­ Ora uma religião que tem por si simi-
366 CAT
lhantes homens, não póde deixar de ser Os seus discipulos, taes como os gnosti-
uma religião verdadeira, porque tão grande cos, depois intitularam-se—Filhos da luz.
numero de sábios e homens virtuosos cm Sancto Agostinho, que antes da sua con­
diversos tempos, não podiam dar tal testi- versão era manicheu, nos descreve os er­
munho a favor do erro e da mentira. ros o vicios abomináveis d’esta seita, bem
E que á vista d’isto nos venha agora, no como Sancto Epiphanio; e S. Cyrillo hor-
século dezenove, essa chusma d’impios c rorisa-se quando narra as suas infamias e
incredulos, escoria das letras e abortos da torpezas.
scicncia, tractar de fanatismo c superstição Os manicheus disfarçavam-se com vários
a religião christão-calholica, que tão gran­ nomes, e Theodosio, o grande, instituiu
des homens abraçaram, seguiram, confes­ contra elles uma especic de inquisição.
saram, e muitos confirmaram, dando por Priscilliano formou outra seita terrível, cu-
ella o seu sangue!!... jos membros foram condemnados á morte
Como poderíam doze homens, sem scicn­ pelo imperador Maximo. Os priscillianis-
cia e sem meios, pobres pescadores, como tas constituiram-se em lojas secretas, á
eram os apostolos, fazer-se acreditar pe­ maneira dos mações dos nossos dias, e
los philosophos e até pelos sacerdotes dos n’ellas juravam guardar o maior segredo,
idolos, empenhados cm sustentar o culto c practicavam a mais desenfreada luxuria.
dos deuses do paganismo, sendo tal crença Assim nol-o refere o historiador Bercastcl,
um absurdo? Como poderíam? Seria isso Sulpicio Severo e S. Jeronymo. -
possível?... Não provará tudo isto que essa No século oitavo appareceram no Oriente
religião que elles prégavam, tinha uma os iconoclastas, que destruiram as imagens
força divina a que ninguem podia resistir, sagradas, e combateram com as armas na
e que por.conseguinte era verdadeira?... mão contra os imperadores. A imperatriz
A’ vista d’isto ainda haverá inimigos Irene, e Theodora perseguiram-nos, e esta
d’csta sancta religião, que a combatam, ultima condemnou á morte mais de cem
que tractem a sua fé d’uma impostura, mil.
os dogmas d’absurdos, os sacramentos de Os albigenses practicavam taes maldades,
nullidades, a devoção de fanatismo, e o que até os mesmos reis da França, como
culto de superstição?!... S. Luiz ix, iitipozeram contra elles pena
É capaz do fazer em pedaços um cora­ de morte.
ção que tem sentimentos. Elles fizeram correr rios de sangue, e pa­
ra se encobrir estabeleciam, como os pris-
cillianistas, suas lojas por toda a parte, sen­
III do a cabeça da seita na Bulgaria.
Nas ordenações de S. Luiz mandam-se
Temos mostrado por alguns argumentos queimar vivos. Fleury, Bcrcastel, e com
tirados da razão, que a verdade existe no especialidade Baronio hos faliam dos erros
catholicismo. Fizemos vér que uma crença e vicios d’estes hereges.
-tão combatida e sempre triumphante, se­ Antes de continuarmos esta lista de ser-%
guida, abraçada c defendida pelos genios pentes venenosas, responderemos aqui a ’
mais atilados, pelos varões mais virtuosos, uma pergunta que nos poderão fazer. Tal­
não podia ser falsa, olhada simplesmente vez nos objectarão que opiniões religiosas
pela razão. não mereciam tamanho castigo; que tal
E que qualidades tinham e teem os ini­ pena se não compadece com o espirito do
migos da religião? Com que espirito com­ Evangelho; que isto era uma intolerância
batiam e combatem os dogmas e a moral da parte dos catholicos, ou dos reis que
•do Christianismo? Vejamos ao menos al­ puniam com tanto rigor.
guns. É na verdade muito attendivel esta ob-
Em geral são todos de costumes pessi­ jecção, ainda que mostra ignorância da
mos, e d’uma moral corrupta e estragada. historia. Estes hereges não apresentavam
A sua sciencia não passa- de um vão or­ simplesmente o caracter dogmatisante, el­
gulho. les além d’isso se rcbellavam contra o po­
Cubrico, ou Manes, que deu o nome á der constituído, c se tornavam revolucio­
seita dos manichcus, era d’umfa moral tão nários. Eis-aqui a razão porque os reis os
pessima, e professava uma doutrina tão puniam de morte. Nunca nenhum tribunal
pestifera, que até foi mandado esfolar vivo terreno castigoü opiniões, senão depois que
pelo rei da Persia Sapor. Sendo escravo de são traduzidas em factos. De internis solus
condição inventou a crença da liberdade e Deus.
da igualdade.
CAT 367
Dito isto, prosigamos com a enumeração de Roma, vai prender em Jesus Christo; e
dos chefes das heresias e da sua moral. todas as outras prendem em seus inven­
Luthcro, chefe dos protestantes, foi um tores, que foram homens imraoraes e abo­
monstro cm todo o sentido. mináveis.
Fez aposlatar uma freira, c sendo religioso Além d’isso muitos d’elles não inventa­
casou publicamenle com cila. O'seu erro ram nada de novo, porque a sua doutrina
começou por uma questão pessoal, d’ondo já tinha sido proscripta cm outros hereges.
se prova que foi uma vingança mesquinha No catholicismo véraos sempre unanimi­
e não a persuasão que o levou a separar- dade de crença, divisões e sub-divisões nos
se do catholicismo. O papa Leão x pros­ seus inimigos. Todos conspiram contra a
creveu os seus erros, e elle appellou hypo­ religião verdadeira, todos votam odio com
crita e audazmente da sua bulla para um especialidade ao papa; no mais estão divi­
concilio geral. Mas depois, quando se cele­ didos, nem elles se entendem a si mesmos.
brou o concilio geral de Trento, nem Lu-
thero nem os seus sectarios quizerara es­
tar pela sua decisão. Tal é o caracter de IV
todos os que desconhecem a supremacia
do papa.
Melancton cahiu em erros os mais de­ Costumam os impios e incrédulos mo­
ploráveis e absurdos crassos. dernos responder as razões mais fortes,
Conta Floremundo que perguntando-lhe claras e convincentes. Não creio, não se
sua mãe, estando elle proximo á morte, conformam com a minha razão. Com isto
qual era a melhor religião, respondera: teem dito tudo, e ficam muito satisfeitos, e
«As novas são agradaveis, mas a catholica se julgam triumphantes.
é certa e segura.» Não admira, porque Ao ouvil-os em todas as questões appel­
, quando se fecham os olhos do corpo, ordi­ lar para a razão, julgar-se-ia que os apolo­
nariamente se abrem os da alma. gistas da religião catholica só querem uma
Zuinglio gloriava-se de tractar com o obediência cega, uma fé servil, e que ex­
demonio, e nunca houve homem mais pra- cluem a razão dos seus argumentos.
guejador. A Igreja não exclue a recta razão, nen
_ João Calvino commetteu crimes tão hor­ os argumentos que n’ella se fundara. Ra
ro ro so s que foi marcado nas costas com donabile obsequium, diz S. Paulo. A razàc
. ferro em brasa, e a final morreu na deses- é que conduz o homem á fé, diz Sancto
peração. Leia-se Bergier, que nos explica Agostinho, o homem mais sabio, o logico
'o s erros, os crimes e a punição d’este mal­ mais profundo, dotado d’um genio vasto,
vado. d’um espirito subtil e vigoroso, mas o mais
Cornelio Jansenio foi o maior hypocrita submisso e obediente á Igreja, porque che­
que tem havido. Pretendeu em Lovania gou a dizer que não acreditaria no Evan­
vestir a roupeta jesuitica, mas os padres gelho, se não o obrigasse a isso a authori-
(parece que adivinhando) lh’a negaram. Na dade da Igreja.
universidade de Salamanca quiz iniciar na O que a Igreja condemna é o abuso da
sua seita proselytos, mas nada conseguiu, razão, ou o chamado racionalismo, assim
porque foi descoberto pela inquisição, e como o abuso da philosophia ou o philoso-
teve de fugir para a França. Depois com phismo.
-outros partidários formou o projecto de Mas dizei-me, philosophos inimigos do
Bourg-Fontaine em que tractavam de des­ catholicismo: Que razão é a vossa, de que
truir a Igreja pela mesma Igreja, usando vos servis contra a religião? Por ventura
de meios insidiosos para melhor illudirem. será mais illustrada do que a de Sancto
È isto o que nos refere o insuspeito Be- Agostinho, de S. Jeronymo, de Tertulliano,
rault-Bercastel que o publicou no meio dos de Fénélon, de Bossuet, de Bergier, de
seu s inimigos o ninguem o contradisse. Chateaubriand, de Frayssinous de Ventu­
O jansenismo tem sido a seita mais pes­ ra, de Lacordaire e de tantos outros?
tifera e hedionda que o inferno abortou na Por ventura só vós é que vêdes as cou-
face da terra. Alliou-se a final com o ma- sas como ellas são; e tantos sábios, littera­
çonismo, produzindo a terrível e de nefasta tos, philosophos, physicos, mathematicos,
memória revolução franceza, como confessa astronomos e poetas distinctos, que teem
o mesmo de Potter. prestado a homenagem da crença á reli­
Eis-aqui as cabeças mais notáveis das seL gião catholica, estariam cegos?
tas quo se teem levantado contra a igreja Já mostramos quaes foram os fins e o
catholica. A Igreja que tem por chefe o bispo caracter dos principaes chefes de seitas
368 CAT
que romperam os laços de união com a Os seus discipulos teem-no imitado n’csse-
igreja romana, unica verdadeira, até que charlatanismo, porque conheceram que a
apparcceu o monstro do janseuismo. religião christã não podia ser combatida de
Dêmos a ultima demão a este hediondo boa fé, e com argumentos fundados na ra­
quadro dos desvarios humanos. zão, mas só com chicanas c com as armas
O que tem produzido tantos impios e in­traiçoeiras da mentira.
credulos, não tem sido a intima convicção, Eis-aqui os inimigos da religião, única
mas sim a corrupção dos costumes, o amor verdadeira, que pelo seu proceder estão*
da gloria, a complacência com um século mostrando ainda mais claramente a sua
corrupto, o desprêso da authoridade da má causa, e que o catholicismo é divino.
Igreja, e um orgulho vão e uma sciencia E uma religião que tem similhantes con­
superficial, que não aprofunda nem inves­ tradictores, poderá deixar de ser a unica
tiga nada nas verdadeiras e solidas fontes, divina?...
e muitas vezes a mais crassa ignorância. Comparemos os homens que teem de­
Quantos inimigos jurados ao Christia­ fendido a Igreja com os que a teem ata­
nismo o teem estudado para o combater, e cado, veja-se a differença do caracter e de
este estudo emprehendido com animo hos­ meios de que se serviam, e se conhecerá
til. mas com boa fé, os tem feito abraçar que a verdade existe no Christianismo ca­
o Christianismo, e ser os seus mais arden­ tholico romano, c o erro em todas as ou­
tes defensores?! tras seitas, seja qual fõr o nome que ellas
A maior parte dos impios o são, porque adoptem.
a religião é contraria ás suas paixões. Não
se mostrará um inimigo da religião catho­
lica que seja virtuoso e justo, modesto, V
leal e franco, cidadão probo e pacifico, e
verdadeiro sabio.
Voltairc foi um homem immoral e mor­
reu na furia e desesperação. Foi, é verda­ Ha dezenove séculos que se operou um
de, dotado de talento de que se serviu para grande facto na face da terra, como já dis­
ridiculisar as cousas sérias. Elle conheceu semos. Este facto, que é o Christianismo,
bem o século em que viveu, viu que era mudou tudo o que então existia, os costu­
frivolo e não profundava as cousas. Ser­ mes, as leis, o homem e a sociedade.
viu-se pois da mentira, empregada com Nada houve que podésse estorvar o pro­
graça e sal atico. De resto, nas obras de gresso da religião christã. A tuba apostó­
Yoltaire não se encontram serião menti­ lica soou d’um a outro polo, e logo cahi-
ras, imposturas, contradicções e erros ma­ ram por terra os simulacros do paganismo,
nifestos, e nada de fundo. Avança propo­ escudados pelo poder dos Cesares, pela elo­
sições com um tom de confiança que illude quência dos philosophos, pela impostura
um espirito desprevenido; e isto muitas dos sacerdotes, e pelas paixões dos homens.
vezes sem dar provas, manejando sempre Sem que n’esta rapida propagação inter-
a arma do ridiculo contra as cousas mais venha Deus, não se póde explicar este fa­
graves e sérias. Outras vezes attribue ao cto. Mas mettei ahi o poder do Altíssimo, e
catholicismo opiniões que elle condemna, tudo se explicará mui facilmente.
e isto para indispor contra elle as pessoas Eis-aqui uma observação que faz o sabio
de boa fé. Gaume na sua obra monumental, o Cathe-
Fallando do Diccionario philosophico de cismo de Persevwança:
Yoltaire, exprime-se assim um author: *0 «Ha dezenove séculos que o mundo adora
veneno que elle espalha é um aroma im- um judeu, que foi crucificado, e nada ha
pestado que insensivelmente se insinua em mais miserável e odioso que adorar um
toda a massa do sangue. Conceitos enge­ homem justiçado com tanta infamia. Desde
nhosos, gracejos subtis e agradaveis, bons que o mundo adora esse judeu crucificado
ditos agudos, antitheses brilhantes, contra­ tornou-se muito mais virtuoso, muito mais
posições surprendentes, pinturas amenas, livre, e muito mais perfeito. Todas as na­
reflexões atrevidas, expressões energicas, ções não sahem da barbaria e degradação
emfim, todas as graças do estylo, todas as senão adorando esse judeu crucificado, e
flores do genio e aa imaginação ahi são aquellas que o recusam adorar permane­
empregadas com profusão.» cem na barbaria; e se o deixam d’adorar
E é assim. Quanto ao mais Voltaire nao recahem de novo n’ella.»
fez outra cousa que usar da mentira, da Excellentemente. Nem mais nem menos.
superficialidade e do ridiculo em tudo. Se esse judeu crucificado não é um Deus,
CAT 369
se a sua doutrina não é a unica verdadeira, opiniões na doutrina dogmatica da Igreja,
não sabemos como se possa explicar que não são mais que o erro com as suas di­
todo o mundo acreditasse essa doutrina, e versas fôrmas.
abraçasse e adorasse o seu author. Nem o manicheismo, nem o arianismo,
Seria esse o maior dos absurdos, e ne­ nem o protestantismo, nem o racionalismo,
gar que Christo seja um Deus, e que a sua podem ser a verdade christã, porque não
doutrina é divina, á vista da sua rapida ensinam a mesma doutrina que ensinou
propagação por todo o mundo, attentas as Jesus Christo, porque quebraram os lacos
suas circumstandas, é um absurdo maior da unidade, e porque tiveram por authores
que negar a escuridade das trevas e a cla­ não um Deus, mas homens despeitados,
ridade da luz. A verdade é uma só, o erro sensuaes e innovadores.
pôde ser de muitos modos. Só a Igreja, que tem por cabeça o bispo
Eis-aqui um axioma clarissimo. de Homa, ou, por outra, só o catholicismo
Ha muitas religiões na terra, mas a re­ é que tem todos os caracteres da verdade,
ligião deve necessariamente ser uma só, porque a sua crença omnimoda c tolàl é a
porque Deus não póde admittir contradic- mesma que Jesus Christo ensinou.
ções na sua doutrina. Os hereges antes de fazerem scisão na
A nossa razão não póde conceber como doutrina da Igreja seguiam-nos. Se a sua
Deus approva opiniões c crenças que se nova crença é a verdadeira, segue-se natu­
destroem umas ás outras. O que é, é; Deus ralmente que até ahi não havia religião
não póde querer ser crido senão d’uma verdadeira, o que é impossível, repugnan­
maneira. A religião verdadeira deve pois do com a Providencia divina.
ser uma só com exclusão de todas as ou­ Logo, só a igreja catholica, de que clles
tras. se separaram, é a unica divina e verda­
Quando o Christianismo appareceu en­ deira.
tre os homens, o mundo era quasi todo ido­ Escutemos a Sancto Agostinho (liv. con-
latra. De duas uma, ou o paganismo era tr. a Epist. fundam., cap. 4 e 5): «Muitas
a verdade ou o Christianismo. D’aqui não cousas me detem na Igreja: o consenti­
se póde fugir. mento dos povos e das nações, a authori-
Quanto ao judaísmo, elle refundiu-so no dade que esta Igreja tem adquirido, autho-
Christianismo, que não é mais que o seu ridade principiada com milagres, nutrida
complemento e perfeição. Jesus Christo dis­ com a esperança, augmentada com a cari­
se: Non veni solvere legem, sed adimplere. dade, fortificada com a antiguidade. De-
Se admittirmos a verdade do gentilismo, tem-me a successão continuada dos bis­
então existente, admiltiremos um absurdo, pos, que até agora occupam a sé de S. Pe­
porque o mundo deixou o culto dos idolos dro, a quem Jesus Christo depois da resur-
e fez-se christão. Logo forçosamente temos reição incumbiu o governo das suas ove­
de crêr que o Christianismo é a crença ver­ lhas. Detem-me enfim o mesmo nome de
dadeira, que tem relação com todas as ne­ igreja catholica............................................»
cessidades do homem, que é proporcionado Não se póde fallar melhor, nem em me­
a todos os espíritos, e que se tem conser­ nos palavras exprimir mais idéias. O con­
vado na sua integridade através dos sécu­ sentimento dos povos e das nações, isto é,
los e das revoluções. a crença geral e unanime de todo o mun­
Similhante á luz, que dissipa as trevas do a favor da Igreja; a authoridade da
da noite, e faz conhecidos e visíveis todos Igreja, isto é, a sua divindade, que se pa­
os objectos, que jaziam sepultados na es­ tenteia na sua origem, no seu progresso e
curidade, o Christianismo fez desapparecer desenvolvimento, na sua doutrina e na sua
a religião dos idolos e ficou a brilhar em duração sempre intacta e incorrupta; a suc­
toda a face da terra. cessão dos bispos de Roma regendo os povos,
Ora o catholicismo é essa mesma reli­ isto é, o haver um só pastor, um só chefe
gião que Jesus Christo ensinou aos ho­ da Igreja, um papa supremo a quem todos
mens, que os apostolos prégaram a todas obedecem, e finalmente o mesmo nome da
as gentes, e que pura. e sem mácula tem igreja catholica, isto é, a sua universali­
atravessado todas as gerações. dade, o cila encontrar-se em todos os tem­
Desde o primeiro século esta religião pos c logares; tudo isto, diz Sancto Agosti­
tem admittido uma só fé, uma só moral, nho, é o que faz conservar-me n’esta Igreja,
g um só culto no essencial, e uma só cabeça, porque sem dúvida taes caracteres só po­
■ porque este é o caracter da verdade, o ser dem encontrar-se no que é verdadeiro e
I uma só em todos os tempos e logares. Às divino. Sancto Agostinho ainda diz mais:
I diversas seitas que tem havido, as diversas Eu não acreditaria no Evangelho se a isso
370 CAT.
me não movesse a authoridadc da igreja ca- c com cila muitas vezes as suas commodi-
tholica. dades e interesses particulares, o abraçam
Só o ealholicismo é verdadeiro, porque a religião catholica romana. Senhoras da
a religião verdadeira deve sem questão ser mais alta nobreza entram no grêmio da
catholica. Igreja, que tem por cabeça o romano pon­
tifice.
Isto não póde ser filho senão da intima
VI convicção; d’entre os catholicos ha algu­
mas apostasias, que teem por origem a
ambição ou a avareza, e sempre as pai­
Os incrédulos, os sceplicos c os impios xões c os interesses. E mesmo esses taes,
clamam: os renegados, começam por ser despeita­
«Ha no mundo muitas religiões; todos dos, depois cabem n uma indiíTerença reli­
os seus sequazes dizem que a sua é a ver­ giosa, no scepticismo, e nunca teem o vi­
dadeira, e que as outras sao falsas, de modo gor da crença.
que ninguém pódc julgar qual d’elles tem Porém o protestante, o mahometano ou
razão. Todas são falsas; cada um phantasiou judeu convertido ao catholicismo, abjura o
uma religião, c formou um Deus a seu ca­ seu erro com toda a energia, com toda a
pricho.» '. - . publicidade, e algumas vezes com a maior
Eis-ãqui os parodoxos da increduiidade solcmnidade, e torna-se d’ahi em diante um
atheisla. valente c corajoso defensor da verdade ca­
Collocai-vos, vós, ó philosophos raciona- tholica,
*listas, collocai-vos diante do protestantis­ Talvez que dentr.o de poucos annos te­
mo com' as suas diversas phases, diante do nhamos a consolação de vôr toda a Gran-
mahometismo e do catholicismo, mas de boa Brctanha catholica, tornando ao centro de
fé. Raciocinai, analysai, argumentai usando que a separou um principe devasso e des­
das verdadeiras armas da razão e com o peitado.
fim de descobrirdes a verdade, c o vosso Na Hollanda, na Persia, na Dinamarca,
trabalho dará em resultado o declarardes na Suécia, ataca-se abertamente o calvi-
que só o catholicismo é verdadeiro. nismo, lutheranismo, e préga-se c escrc-
Ainda mais. Vá um sacerdote pagão, um ve-se a favor do catholicismo.
mahometano, um protestante e um padre Em toda a Allemanha se refuta o racio-
catholico, pregar cada um a sua religião, nalismo, e se poem á luz do dia os nefandos
por exemplo, a Groenlândia, á Rússia ame­ systemas do philosophismo. E que succede?
ricana, á Patagônia, e a outros estados sel­ E’ vérmos todos os dias rarearem as filei­
vagens d’America; sim, pregue cada ura ras do atheisino svstematico e do jansenis-
d-elles a sua doutrina, áquelles povos bar­ mo, e crescer o exercito catholico, forte
baros e em tribus nômades, e veja-se qual com os seus novos soldados, que debanda­
d’elles faz proselytos, e qual terá mais se­ ram do campo do erro.
quazes.- Todos abraçarão o catholicismo, Na França, mesmo no centro da volu­
porque a verdade sobresahe em toda a ptuosa Paris, d’onde nos veio maior mal,
parte. ataca-se fortemente o scepticismo e o ma-
A experiencia d’isto temol-a nas missões terialismo seguido por philosophos insen­
dos catholicos e protestantes. satos, e já alli se observa uma vigorosa
• O missionário catholico leva a toda a reacção catholica, e vai perdendo terreno o
parte a luz, a civilisação, o Evangelho, em- volteranismo, que tantos incrementos ga­
flm a verdade, e nada lhe póde resistir, nhou com as suas revoluções politicas, íi- _
ainda que todos os poderes da terra e do lhas do principio pagão. Batc-se em todo o =
inferno conspirem contra ella. mundo a impiedade e incredulidade, no
Ainda temos outra reflexão a fazer. meio dos mesmos impios c incredulos.
Existe o catholicismo em todas as par­ E porque fazem isto os catholicos?
tes do mundo, e os seus sequazes defen­ É porque a verdade defende-se em toda _
dem corajosamente a sua doutrina em to­ a parte, sem receio, no meio dos seus mes- :
das ellas. mos perseguidores, e apparecem sempre ■
Na Inglaterra protestante combate-se o corajosos defensores, que nada temem.
protestantismo, e defende-se a Igreja e o Porém os impios e. inimigos do catholi- =
papa. Alli são espantosas as conversões ao cismo não obram d’esse modo, porque a |
catholicismo de pessoas de todas as clas­ sua causa é a do erro, e o erro ou mais _
ses, sexos e condições. Muitos clérigos, que cedo ou mais tarde se dá a conhecer.
seguem a religião anglicana, a abandonam, Desde Voltaire e os encyclopedistas, qual l
CER 371
é o que tem combatido o oatholicismo clara o valor do S. Grcgorio vir, a sabedoria de
o aberlamente com o raciocínio c a intelli- Bento xiv, e a piedade de Clemente xnr.
goncia? Uns scrvem-so do anonymo, outros Emmudecei, ó impios, porque a religião
dizem e desdizem. Alguns, e hoje quasi que triumpha, e os vossos erros provam a seu
a maior parte, trazem de continuo na bucca favor. Eis-ahi pois o catholicismo cm frente
a palavra Christianismo, e querem achar a dos seus inimigos, no longo espaço de de­
práctica do Evangelho em seu systema er­ zenove séculos.
roneo, ao passo que renegam a Igreja e o Escolhei. Tudo falia a favor da igreja
catholicismo. catholica, c tudo conspira contra seus ini­
Apenas Proudhon teve a franqueza de migos.
se declarar atheista, ainda que os seus cs- / CKCKO asculaxo — astrologo do d u q u e d e \
criptos estão cheios de contradicçõcs mani- {(Calabria, sustentava que se formavam nos nc *5
festas. Ainda Proudhon teve a coragem de 'céos espíritos malignos, os quaes obriga-
dizer que a lei revolucionaria era atheista, vam os ’homens, por meio * das constclla-
apesar d’Odilon Barrot se ter desdito. ções, a fazer cousas estupendas, e afilr-
Ouçamol-o: inava que os astros impunham aos corpos
«A*obra suprema da revolução de xtx é e aos espíritos uma necessidade absoluta
destruir o catholicismo sobre a terra: de sorte que Jesus Christo
M. Odilon Barrot fez mal cm se relra- não fòra pobre nem padecera, se nào por
ctar: o atheismo legal é o primeiro artigo haver nascido debaixo do certa constclla-
do nosso direito público. çào que produzia necessariamente um tal
Algumas linhas mais abaixo diz: efleito; c que o Anti-Ghristo seria rico c
«A revolução nào transige com as divin­ poderoso porque havia de nascer debaixo
dades.» (Tdeia geral da revolução no sc- d’outra inteiramente contraria. Este astro­
. culo quatorze por P. J. Proudhon). logo faLquÊÍmado^j^J^27. P __
É necessário archivar estas confissões, ^ cf. r d o x — era syriaco d'origem: primeiA
porque partem d’authoridadc insuspeita. ramente adoptou bs princípios de Simão e i
Porém o resto dos impios só usa da liypo- Saturnino, reconhecendo como clles a ex is-1
crisia. Mazzini e Kossuth faliam cm Deus tencia d’um Ente Supremo, que produzira1
e no povo, apesar de que cllcs são inimi­ espíritos menos perfeitos que ellc; estes es­
gos de Deus e do povo, c formam associa­ píritos fecundos, como o pae de .todas as
ções terríveis, cujas armas são o punhal, o cousas, produziram immensidade de gera­
roubo, o assassínio e a irreligiào. ções diversas, cujo poder, que vinha sem­
No dia 24 de março de 1852 os chama­ pre a diminuir, formara o mundo e produ­
dos amigos da Italia, com Mazzini ã frente, zira sobre a terra todos os acontecimentos.
fizeram uma reunião cm Inglaterra, na Assim, remontando dos effeitos ás suas cau­
qual o inimigo de Deus p dos homens sus­ sas, se achava por primeiro principio de
tentou que se devia destruir o papado, não tudo o Ente Supremo.
só como poder temporal, mas também co­ Se os pheuoincnos, que o mundo nos of-
mo poder espiritual. fercce, nada mais fossem que deslocaçõcs
Porém serão baldados os seus esfor­ da materia, collisões dos corpos e movi­
ços. mentos, correría de plano que as emana­
O catholicismo triumpha c triumphàrá ções da primeira causa, isto é, os genios
sempre. O throno pontificio está cada vez óu foFças moventes produziam tudo; mas
’mais firme na sua base, porque alli está havia no niuudo espíritos amargurados,
sentado um pastor vigilante. A barca de atormoutadòs c infelizes. Além d’isto o En­
Pedro não naufraga, porque o seu piloto é te Supremo era uma intelligeucia summa-
o mais atilado. mente perfeita, sábia e benefica; e como
E que assim o não fosse, Jesus Christo podería encontrar-se em um tal ente a
disse-o ao primeiro pontifice, sobre quem causa das calamidades, que aíltigem o ge­
está fundada a Igreja: nero humano?
Portai inferi non prcvvalebunt adversus Tudo istokreconheciam Simão e Satur­
eam. nino, sem haverem reflectido na dificul­
Comtudo o sanctissimo Pio ix é um dos dade que ha em conciliar a existência dos
pontifices mais sábios e virtuosos quo teem maus genios com o systema, o qual sup-
occupado a cadeira apostólica. Tem atra­ põe vir tudo do Ente Supremo por via de
vessado no seu governo uma das épocas emanação: porém Ccrdon encarando o sys-
mais tempestuosas e criticas para a reli­
g iã o , mas elle tudo tem superado com ani- 1 Dup. Bibliot. 14 siéck. Spond. ad an.
juo varonil e resignação christã. Herdou 1327.
372 CER
tema de Saturnino por cstc lado fraco, teve pira beneficencia, perdão, suavidade e m i­
para si que Simão, Saturnino, c todos os sericordia; portanto era a lei dos christàos
sequaces do systema das emanações se en­ obra do bom principio, e Jesus Christo, que
ganaram, fazendo vir tudo do Ente Supre­ a annunciára, verdadeiro filho do mesmo
mo; e que se deviam suppôr na natureza bom principio.
dous princípios, um bom e outro mau, por- Este principio beuofico não sujeitou seu
uc havendo genios maléficos uns mais po- filho ás desgraças da humanidade, nem sua
erosos e outros menos, necessariamente, bondade o permiltia, bem que para instruc-
remontando á origem, se havia de chegar ção dos homens fosse necessario que ollosc
a um principio cm que se achasse a pri­ revestisse das apparencias da carne, por­
meira raiz do ,mal, que se descobre pela que a realidade de seus padecimenlos se­
successão dos tempos, o que no sentir de ria um triste espectáculo, que o mesmo
Cerdon repugnou á natureza do Ente Su­ bom principio se teria dado a si mesmo,
premo. c que não se compadecia com a sua natu­
Com efieito na doutrina de Simão e Sa­ reza. 1 Prevenido d’cstas idéias, Cerdon re­
turnino, o Ente Supremo, que elles olha­ jeitou o Testamento Velho, não admittia do
vam como o pac do todas as cousas, se in­ Novo senão o Evangelho de S. Lucas, e
teressava bastante na sorte dos homens ainda esse não era inteiro.
para enviar-lhes seu unico filho, a fim de Este hercsiarca, diz Sancto Ircneu, pe­
destruir o imperio dos maus demonios; diu perdão de seus erros, e passou depois-
portanto o mesmo Ente Supremo, respei­ algum tempo, ora ensinando occultamente
tado como a causa e principio de tudo, a heresia, que abjurára, ora abjurando de
aborrecia os maus genios: isto supposto, novo, ora convencido da sua pertinacia, c
como os deixava cllc subsistir se podia portanto separado da communhào dos fieis..
destruil-os, e como permiltia suas maligni- Teve por discipulo Marcião, que foi tam­
dades se d’elle dependiam a sua existência bém cabeça de seita: consultando o artigo
e o seu poder? Forçosamente pois se ha­ d’este se podem vér as diversas fôrmas que
viam de suppôr no mundo, segundo o sen­ toma o erro de Cerdon; este encadeamento
tir de Cerdon, dous princípios necessaria­ dos desvarios do juizo humano é o prin-
mente independentes, um bom, que produ­ sil interesse da historia. _ ....... _
zira os genios beneficos, e outro mau, que e .eul^tuo—era um judeu antiochono, queft
produzira os maleficos. dedicou muito á philosophia; residia em \
Cerdon, que só havia observado a natu­ jcrusalem no tempo dos apostolos. A p lii- '
reza por via dos phenomenos, creu ter en­ losophia que então vogava no Oriente era
contrado n’estes dous princípios com a fe-< uma mistura da caldaica e das idéias py-
Ücidade do homem a razão de tudo e a ex-á thagoricas c platônicas. Suppunham um
plicação de quanto se contava dos diversos’ Ente Supremo, que produzira genios, po­
estados do genero humano, porque esse era tências capazes d’obrarem c de produzi­
o principal objecto de quasi todos os sys- rem outros genios e espiritos; d’elles po­
temas que até então se haviam imaginado. voaram o mundo, e os faziam intervir co­
Como o bem e o mal tinham princípios mo deuses da machina para explicarem
essencialmente differentes, attribuiam ao quanto imaginavam. Cerintho reduziu á
bom principio tudo o que era bem, e ao simplicidade estes princípios para os appli-
mau tudo o que era mal. A creação dos car á historia do mundo: reconhecia um
espíritos, que eram capazes do prazer, e Ente Supremo, que era a origem da exis­
que sempre tendiam para a felicidade, se tência, e que produzia espiritos, potências
attribuia ao ente benefico: os corpos, pelo ou genios com diversos graus de perfeição.
contrario, a que as almas estavam unidas, Entre as producções do Ente Supremo
e que de mil modos as afiligiam, eram havia uma certa virtude ou potência infi­
obra do principio mau. Da mesma sorte nitamente superior ás perfeições do estado
era attribuida a um d’estes entes malignos supremo, collòcada, por assim dizer, em
a lei dos judeus, que parecendo a Cerdon uma distancia infinita d’elle, e quo igno­
um complexo de prácticas difRceis e peno­ rava o author da sua existência; era vero-
sas, não podia ter outro author. Um d a s­ similmente a ultima das producções do Ente
tes espiritos malignos fôra quem ordenara Supremo, uma especie de força movente
áquelle povo as cruéis guerras que elle fi­
zera ás nações da Palestina: e o Deus dos i Iram. I. 1, c. 28, 37, l. 3, c. 4. Tert.
judeus diz em Isaias: sou eu o weaclor do de pm script. c. 51. Pliilaslr. de Hcer. c. 44.
m al Epiph. H ar. 41. Aitg. de Hcer. c. 21. Theo­
Pelo contrario no Christianismo tudo res­ dorei. Hcer. Fab. I. 1, c. 24.
1

CUR 373
ou de força ;plastica, apta para ordenar a Façamos agora algumas observações sobre
materia c formar o mundo. 1 o seu erro.
D’este poder tinham sabido eom o mundo 1. ° Cerintho era um grande inimigo dos
anjos ou genios terrestres, que se apodera­ apostolos, e combatia vivamente a sua dou­
ram dò império do mesmo mundo e gover­ trina: vivendo como viveu no seu tempo,
navam os homens. Um d’estes genios tinha estava em situação de convencei-os se fos­
dado leis aos judeus; e por este modo creu sem enganadores; porém reconhecia que
Cerintho poder dar razão de toda a histo­ Jesus Cliristo fizera milagres: tinham logo
rio judaica. estes então um grau de certeza ou d iv i­
Jesus Christo, segundo Cerintho, aííir- denda, que não permiltia se altercasse so­
mava ter vindo ao mundo para abolir a bre a sua verdade.
lei, e livrar os homens da tyrannia dos 2. ° Para fazer compatíveis os attributos
maus anjos; o mesmo Senhor'provou sua do Filho unico de Deus com o estado de
missão com milagres, c os apostolos os at- humiliação em que Jesus Christo apparc-
testavam, e elles mesmos os confirmavam ceu, suppunha Cerintho cm Jesus Christo
com outros prodígios. Assim se via Cerin­ dous entes diíTcrentes: Jesus, filho de Ma­
tho obrigado a suppor que o Ente Supre­ ria, e o Christo, que descera do céo; por­
mo eíTcctivamente se interessava na sorte tanto é evidente que Jesus Christo ensinou
dos homens, e que enviara seu unico Fi­ ser Filho unico de Deus, e que confirmou
lho Jesus Christo para os instruir e salvar. com milagres esta doutrina de maneira
Porém, como poderia nascer de Maria o qüe Cerintho nem pôde impugnar este do­
Filho unico do Ente Supremo, que em si gma nem os milagres, uma vez que se em­
continha a plenitude da divindade? Não ha­ penhou' em explicar como Jesus Christo
via cousa mais opposta aos m .ncipios de era o Filho unico de Deus.
•Cerintho, c assim reputava elle como ab­ 3. ° Os apostolos expulsaram da Igreja a
surdo dizcr-sc que o Filho unico do Ente Cerintho, olhando-o como corruptor da dou­
Supremo nascera e padecera. Copitudo Je­ trina de Jesus Christo; portanto desde o
sus Christo affirmára ser elle o Christo, o tempo dos mesmos apostolos era a divin­
Filho de Deus: para haver de conciliar dade de Jesus Christo um dogma funda­
idéias tão oppostas, segundo o sentir de mental do Christianismo, digam o que dis­
Cerintho, dizia elle que Jesus nascera de serem os sociniauos, e na conformidade
Joseph e de Maria como os demais homens dos mesmos Bury, Loke, e tc .1 «w
mas que os excedia em prudência <‘ jus­ CHILIASTES OU MILLENARIOS—VCja-SC C S te^
tiça; que quando Jesus foi baptisado ° vprtigo. " ^ w /
Christo ou o Filho unico de Deus descera ■^ramisTiÀxisiiQjç . piuj*qsQ£UiSMO—A’lerta,
sobre elle em figura d’uma pomba, c lhe christãos, alerta; soldados da fé catholica, I
revelara o conhecimento de seu Pác, até álerta... não despreseiso grito de alarma í
então desconhecido, e que por este meio o de uma sentinella apostólica romana, que |
havia feito conhecer aos homens. Jesus fez vos convida a occupar os vossos postos de
milagres por virtude de Christo; logo de­ honra c de gloria, nos vastos acampamen­
pois foi perseguido pelos judeus c entre­ tos de nossa sancta religião, impenetráveis
gue aos algozes: e então o Christo se sepa­ sempre ás incursões de seus perfidos ad­
rou d’elle e subiu á presença de seu Pac versarios, se defendidos com denodo c leal­
sem soíTrer cousa alguma: quanto a Jesus dade.
elle fora crucificado c morto, e havia re- No momento, camaradas, em que os ini­
suscitado. 2 migos do Christianismo, a titulo de desfor-
Cerintho escrevera em favor da sua dou­ çar as liberdades humanas, cerceadas pelo
trina algumas revelações, que affirmava ha­ espirito do jesuitismo, cujas fogueiras in-
verem-lhe sido feitas por um anjo; reco­ quisitoriaes são (ainda hoje!...) o seu ca-
nhecia a necessidade do baptismo para nos vallo de batalha, se esforçam por alistar
•salvarmos, e cria que depois da resurrei- novos soldados, colher duplas munições, e
eão se haviam de gosar por mil annos so­ rearmar suas devastadas tendas, acastran-
bre a terra todos os prazeres dos sentidos.3 do-se cm redor de sua esfarrapada ban­
deira, a cuja legenda fronteira o livre exame,
escripta pela mão do egoismo e ociosidade,
1 Theod. Hist. I 2, c. 3. Ircen. I. i, c. corresponde pelo avesso que tão cuidado-
15, l 5, c. 11. Epiph. H ar. 28.
2 Im n . I. 1, c. 26. Epiph. Hcer. 28. Aug. 1 Bury, Christianisme, nud. Loke, Chris­
de Hcer. c. 8. Tert. de prcesci ipt. c. 48. tianisme raisonable. Estes erros acham-se
2 Euseb. Hist. Eccles. I 3, c. 28. refutados no artigo Arianos.
374 CHR
samentc nos occultam, outra em que se lè thcon, e occupado seu tumulo pelo im ­
—mentha—gravada^pelo incontestável tes- mundo lodo de Mirabeau; esse tumulo m o -
timunlio dos factos, na invariável ordem numentoso que attestava a religiosa grati­
dos tempos; em um tal momento, nao seria dão de um povo christianissimo, que ll f o
só fraqueza e culpavel ‘desmazelo, seria havia levantado com tanto enthusiasino
abominável relaxação, seria maldade im­ para descanso d’cssas cinzas que o S ena
perdoável abandonar o posto que á face mais tarde, cioso de tão excellente the-
dos altares, perante o delegado do Divino souro, recebeu solicito cm seu seio, fu -
Mestre, juramos defender; deixando á hy- cindo apressado á vista de tantos horro­
pocrisia e ao egoismo arvorar o fatal pen- res, para ir dcposital-as na sagrada c vasta
dão do racionalismo sobre as ruinas do es­ sepultura do circumvago oceano.
tandarte da cruz, d’onde pendem tantos O brado, porém, que convoca ás arm a
trophéos, quantos hão sido os combates al­ não vos. ministra espadas nem lanças eoiii
cançados sempre contra esse precario po­ que junqueis dc cadavcres de impenden­
der'do inferno, que agora parece querer tes contumazes os arraiaes dc tão frágeis
levantar de novo seu collo lá do denso pó> quanto barbaros inimigos; as armas q u e
sobre que fez rolar sua propria cabeça, de­ vos concede c aconselha, são apenas a r e ­
pois de haver-lhe immolado victimas de signação nas tempestades da vida; a fé n a s
toda a cspccie, cujo sangue sc repellia, promessas do Salvador; a paciência e m
porque ainda mesmo a jorros pela terra, supportar os embates da incredulidade; o
o sangue innocente de Luiz xvi e seu fi­ o uso opportuno dc uma razão animada
lho; de uma Antoinette, sua digna esposa, pela religião, c esclarecida pela unica d o u ­
tão respeitável por sua instrucção, como trina revelada; mas uma razão modesta;
por sua exemplar firmeza _de caracter; de repito ainda, c não presumpçosa, que r e ­
uma Elisabetb, credora dos mais altos res­ pudie o auxilio da religião, c negue a n e ­
peitos por suas excellentes virtudes, e cessidade de revealção; nem a paciência
cujo unico crime era ser pia, religiosa, e do indolente, que nos leva ao iudifieren-
irmã desditosa d esse rei generoso, d’esse tismo; ncni a fé que acompanha o ocioso,
Socrates'resignado á injuria e ao suppli­ que nos conduz ao fatalismo; nem a r e si­
cio: de uma Lamballe (princeza de) tão gnação do perdido, que nos condemna á
belía quão virtuosa; de um la Rochefau- muda inacção; isso não, porque taes virtu­
cauld (duque de) o Mecenas da França, des eram apenas disfarçados crimes; n ão
notável protector das sciencias e das le­ seria por esse methodo'que nós defende­
tras; de um.Baylly distincto philosopho e riamos como nos cumpre, nossas institui­
astrônomo; travava forte combate, ou fu­ ções sagradas, e que daríamos provas de
gia espavorido de sangue criminoso dos sua origem divina; ao contrario é-nos for­
Robespierre, dos Marat, dos Danton, dos çoso dar lestimunho expresso e o mais p ro­
Desmolins, dos Vergniaud, Gensonné, Du- nunciado da identidade da nossa doutrina,
cos, c dos Brissot, quando entre o sagrado d’essa doutrina, que emanada lá do céo por
e o profano se ateava dura guerra, levando uma ordem successiva de revelações d ivi­
de vencida a execranda sombra de Mira- nas, e attestada na terra pelos'actos do
beau aos preciosos c venerandos restos de proprio Deus humanado, é a unica capaz
. Sancta Genoveva, a quem esses francos de­ e necessaria para felicitar a humanidade,
generados da antiga raça dos vencedores a quem protestamos servir, até com sacri­
'dos barbaros hunos, que essa sancta pia, ficio da propria vida, se algum dia seu s
.corajosa e patriotica, havia feito parar ao tyrannós, como nos primeiros séculos da
mero som de sua voz, no meio de sua de­ Igreja, lhe declararem nova guerra d’esse
vastadora marcha pelo .coração da França exterminio, que o anjo das trevas lhes tem
agonisante! concederam por maior home­ feito conceber, mas dcbaldc; pois que con­
nagem a profanada praça de Greve, para tra a palavra divina não ha forças que
onde foi arrojada; por único tributo, uma prevaleçam—et portee inferis n on pm vale-
fogueira que a reduzia a cinzas; e o Sena, bunt adversus eam:—essa palavra divina,
rubro pelo sangue de pios christãos, que que repetida pela bucca dos apostolos, e
fugia, como corrido de vergonha, a.occul- exarada nas longas paginas do livro da
tar essa cOr de verdadeiro pejo, que lhe verdade, d'esse livro unico, inimitável e
havia assumado ao rosto de suas limpidas sancto, a cúja leitura cahem inermes, na­
aguas, ao teslimunhar tantos horrores, pof turalmente fascinados pelas leis da ver­
tumulo das preciosas cinzas d’esses restos dade, que brilha em tantas paraholas sen-
venerandos, para de logo ser seu templo tenciòsas, em tantas admoestações pater-
sagrado transformado em um profauo pan- nacs, cm tantas leis eternas, as turbasmtal
CHR 375
aconselhadas ainda pelos demagogos e hy- numerar, e supérfluo mesmo, porque vós
ocritas, a fim de sustentar essa torpe ban- os conheceis, mau grado c aversão que
S eira alada pelo sceplicismo c atheismo,
cuja legenda o—livre exame—as turbas ou
lhes votaes, desmentem vossas argucias e
alcivosias; as palavras divinas, as verda­
nào tem ou não entendem, porque escravi- des inexcusaveis que clles conteem, perse­
sadas assim aos appetitos sensuacs e a toda guem-vos como inexorável phantasma, por
sorte de paixões degradantes, nem ao me­ todos os delírios de vossos loucos pensa­
nos lhes resta a faculdade de atleuder li­ mentos, e a incííicacia de vossas forças,
vremente, e raciocinar sobre os dados da tantas vezes empregadas, quantas balda­
consciência moral. das, vos dará emfim a consciência de vossa
Emquanto porém esses indifferentiatas, fraqueza, miseros ingratos! que esquecidos
os mais perigosos inimigos de Deus, athcus de vossa natureza, negaes até um precario
disfarçados, porque-falleccndo-lhcs a cora- tributo, a quem deveis veneração eterna!...
em de declarar-se, fingem, sob pretexto Continuai pois, se ainda vós apraz, em
c tolcrancia, defender todas as seitas, to­ vossa fatal pertinacia; mergulhai-vos n’csse
das as religiões, igualmcnle fáceis em con- immundo lodaçal do pantheismo; dei ficai a
dcmual-as todas, porque nenhuma seguem, razão, que assim se vos deixa obcecar pelo
o assim não lhes pesa vêl-as aflrontadas egoismo; que um dia, envergonhados de
todas, c eondcmnadas ao mais aviltante vossos desatinos, renegareis atterrados tan­
despréso e ultrage; principahnentc os si­ tos erros, mas talvez já sem remedio! junto
mulados christãos, que achando preferível á borda do tenebroso scpulchro, arrepen­
a religião cm que nasceram, ora,a religião didos de haverdes trocado as eternas vor-
de Mjyfamede. ora a seita de Ario, logo o dades, contidas n’essc grande livro que ora
protestantismo de Luthero, pouco depois a condemnaes sem fundamento, polas fabu­
heresia de Calvino, furtam-se ás leis de to­ las ridiculas e impracticavcis de vosso con­
das ellas como apóstatas licenciosos da tracto social, parto abortivo da imaginação
propria consciência: emquanto, dizia eu, soberba e esquentada de uma intelligencia
lhes fallecc também a coragem para cha- presidida pela consciência erronea, sob
mar-nos, como aos nossos irmãos de ou- fatal influencia de um egoismo extrenu
tr’ora, cuja gloria é bem para invejar, a mente ignominioso!...
dar testimunho de nosso proprio sangue É esta uma verdade incontestável, é esl
em fé explicita de nossa sancta crença, a minha inabalavel convicção.
arca unica de esperança em que navega­
remos á vida eterna, a demandar essa fe­
II
licidade, cuja posse disputamos incessante
e poríiadamentc, levados de um sentimento
commurn e innato, a que deve necessaria­ O mais forte contendor milita sempre ao
mente corresponder uma realidade, mas sancto serviço do Christianismo: sua causa
que jamais alguém viu rcalisado n’oste é a da humanidade, o peito do Salvador,
valle de lagrimas, emquanto desleaes só seu impenetrável escudo, sua divisa a fé
nos insidiam com laços do philosophismo, constante, a verdade seu glorioso trophéo,
receosos do enristar íts lanças do sccpti- e sua corôa inauferivel o eterno descanso
cismo, tantas vezes rechaçadas pelo duro junto ao throno da immortalidade.
embate do broquel das verdades eternas, Seu estandarte sagrado, alçado sobre o
sobre que descansa a igreja catholica apos­ Golgotha, tremulará em todo o sempre
tólica romana, não soflramos calados esses inexpugnável, ora sobre o altar do sacri­
olpes dolosos, que sob apparencias de ver- ficio, ora sobre a cupula do campauario,
ade, e coloridos com engenho, descarre­ como a bandeira do tempo sobre o castello
gam surrateiros no estandarte da cruz, que da eternidade... ondulando sempre incor­
com fé pünica fingem defender, aprovei­ rupto e inabalavel, mau grado o continuo
tando assim, sob caracter de amigos, occa- vcndaval do volver de todos os dias.
sioes mais opportunas para com risco o de­ Toda a vez que á face de novas cohor­
molirem, c com clle toda a. base da socie­ tes, de perfidos alliados ou barbaros inimi­
dade, que para cllcs são dons espantalhos gos, é preciso hasteal-o e defender-lhe a
sem significação ou utilidade alguma, c me­ base, um immenso concurso de valorosos
ra especulação do tyrannos ambiciosos, de e dedicados soldados disputam entre si a
embusteiros e supersticiosos ignorantes!... gloriosa palma de guial-o á victoria por
Ahi estão porém os livros sagrados que, toda a parte que o philosophismo confct-
além de milhões de factos que militam a maz, sob o já gasto pretexto de destorçar
favor de nossa causa, que fora impossível as liberdades humanas, deificar a razãot
‘376 CHR
armado de ascorosos sarcasmos e bifor­ bispo de Nicomedia, e do imperador Con­
mes sophismas (armas sordidas, forjadas stantino, c mais tarde pela decidida protec­
na hedionda officina do inferno, sobre a ção de Constancio c outros dos seus suc­
immunda bigorna da torpe mentira, pela cessores, cila teria morrido, da mesma" co­
mão nefanda c requeimada da inveja sata- lica que o seu instituidor (condcmnado ao
nica!) ousa levantar-lhe novas barricadas, anathema pelo primeiro concilio ecumê­
a despeito de tantas derrotas soffridas quan­ nico, o de Niceia, e por outros, e á morte
tas batalhas guerreadas; d’onde jamais esse pela Sanctissima Trindade, que elle negará
inimigo commuin do Christianismo c da na sua pretendida entrada triumpha! na
sociedade, colheu outros despojos que as Igreja, e subida ao patriarchado d’Alcxan-
palpitantes entranhas de milhares de victi­ driaj se a incursão dos barbaros lhes não
mas humanas, immolados ás suas brutaes viesse dar calor e actividade; pois que só
e ferinas ambições sobre o nefando altar nos estúpidos c feros corações dos vânda­
do anli-chrislao egoísmo! Eis cmfim a ter­ los, dos borgonhezes, e dos lombardos, pôde
rível realidade cm que se traduzem tantas essa seita, filha legitima do egoismo, adqui­
rbmessas fabulosas com que embalam a rir uma vida de 348 annos, que terminou
oa fé do espirito humano, sempre disposto emfim pela abjuração de Ariberto i, ultimo
a crêr na possibilidade d’uma perfeita ven­ rei ariano dos lombardos; porque.os dias e
tura sobre a terra do desterro, que transi­ as noites se transmittiram cm sua muda
tamos todos rodeados sempre das fadigas linguagem á verdadeira sciencia, e os mor-
inherentes a uma viagem tão activa no tão taes não poderam deixar de escutal-a, como
curto espaço d’esta primeira vida! eloquente e simplesmente nos ensina o psal­
Ainda assim se uma ou outra vez nos mista:
abandona Deus a nossos proprios recur­
sos, é só para nos acordar nossa fraqueza, Dies diei eructat verbum,
e apoz elia nossos deveres; uma vez reco­ E t nox nocti indicat scientiam.
nhecidos, a Providencia vela sem intermis-
são sobre nossas necessidades, e o mais Se os discipulos do Manes se agitam na
forte contendor continua pela causa da so­ solução do grande problema da existencia
ciedade, que é a mesma causa do Chris­ de um Deus, que se compadeça com a he-
tianismo, contra a qual não prevalecerão terogeneidade da existencia do bem e do
s portas do inferno. E t porta1 inferi non mal, que elles attribuiam a dous princípios
rcevalebunt adversus eam. necessarios e independentes, do centro de
Se uma seita pois de arianos se levanta suas proprias phalanges lhes deserta o
sob as ordens do ambicioso hcresiarcha de mais liabil e corajoso de seus soldados, e
Cyrenaica, que pérfido a seu sagrado mi­ corre a depor -suas armas aos pés de um
nisterio principiou cm 312 a pregar um dos mais famosos centuriões da milicia
complexo de paradoxos, que elle denomi­ christã, o celebre bispo de Milão, Sancto
nava doutrina religiosa, combatendo a uni­ Ambrozio, cujas virtudes respeitou, e te­
dade e consubstancialidade da Trindade Sa­ meu a propria espada de Theodosio, o gran­
crosancta, a Divindade de Jesus Christo, de, e abjurando seus erros vai esse mesmo
etc., tomam, entre tantos'varões conspi­ soldado, o primeiro padre da igreja latina,
cuos, a dianteira, Athanasio e Alexandre, instituidor dos seminarios (Sancto Agosti­
celebres bispos d’Alexandria, e enristando nho, nascido em Tagaste, na Numidia, no
por toda a parte que a falsa doutrina ap- anno 354, de pae pagão, e de mãe christã,
parece, a lança inconcussa das verdades Sancta Monica) levar a devastação ás co­
reveladas, que chegam até nós, e continua­ lumnas do exercito em que outr’ora mili-
rão por diante seu caminho á posteridade, tára, e cuja causa agora debate com cora­
viajando socegadas nas sagradas paginas gem e lealdade, fazendo pública à mais in­
da historia universal, e na fé da tradição genua confissão de seus erros, para eterno
universal e concorde, levarão os destroços opprobrio do egoismo, e da hypocrisia dos
ás filas inimigas, que mais tarde jazerão fatuos e covardes inimigos do Christia­
sem alento e sem crença junto aos pés pie­ nismo, que ora procuram encobrir-so com
dosos da caridade chnstã, essa filha legi­ uma já debotada capa de virtude, emquanto
tima do céo, e de Deus a mais amada, que não apparece algum novo Behrão, que da
desde logo os recebeu no hospital dos in­ verdade cioso, lhes descubra as ulceras da
validos da fé, e lhes curou com piedade as mentira que cuidadosamente encobrem sob
chagas ascorosas de^scus perniciosos er­ a rugosa pelle do torpe embuste; sorte bem
ros; e ainda que esta heresia tomou um merecida, que coube também ao ousado es­
vulto ao nascer pelo apoio de Eusebio, cravo mamcheu, author da mesma heresia,

«
CHR 377
que acabou por scr esfolado vivo cm 274, da sapiência c poder divino, murmura me­
por ordem do principe Behrão, successor lancholica c insinuante aos ouvidos de todos
de Hormisdas, que então presidia aos des­ os mortaes; o mais forte contendor, pois,
tinos da Persia: Talis vita, finis ita! repito ainda, milita sempre sob o estan­
Se um Luthero, se um Calvino, em sum­ darte da christandadc, que jámais será der-
ma, ousam levantar seu collo lá do im­ ribada pelo poder do inferno. Et portee
mundo lodaçal de paixões ignóbeis, ati­ inferi non prajvalebunt adversus eam.
rando ao Christianismo Catholico Aposto- Restava porém ainda aos delgados lábios
lico Romano uma luva sordida de suas am­ da hedionda avareza soprar sua garrocha
bições c vinganças nefarias, mau grado o de perfidia sobre a inabalavcl crenca de
nojo que causa,*uma longa cohorte de es­ tantos séculos; e os beiços originaes do afi­
forçados propugnadores sem medo e sem lado Yoltaire cumpriram de prompto tal
receio mesmo a levantam, até que Bossuet, missão: está proxima, dizia o espirito forte
o invencível Benigno Bossuet, veste as ar­ do sabiundo mestre Francisco Maria Arouet
mas, trava a batalha da discussão, para de e de seus aíTeiçoados discipulos, está pro­
logo fazer succumbir, sob o duro açoute do xima a época do triumpho do philosophis-
sabre irresistível de sua razão esclarecida mo sobre as verdades reveladas do rançoso
nos altos mystcrios da fé do Christianismo, Christianismo, e a presagiada sentença que
os perfidos inimigos da sociedade humana, condemnava á morte repentina a crença
partos abortivos de um philosophismo tão inveterada de fanatiqueiros avós, foi victo-
absurdo quanto impracticavel, e tão fatuo riada com uma interminada salva de es­
■quanto pretencioso, cujas doutrinas todas trondosos apoiados, desde logo correspondi­
reunidas e ornadas de seus mais fortes ar­ dos pelo monótono e descompassado som
gumentos, ou antes de seusí sarcasmos e d’uma voz que lhes era bem similhante: a
sophismas, não poderam por lima só vez, do Cerbero Trifauce, porteiro-mór do Pan­
um momento sequer, eclipsar a luz da ver­ demônio de suas sessões; força era pois não
dade, que reflecte expontaneamente de cada despresar o ultimo momento de combate
um pensamento, de cada uma expressão para que se não traduzisse ainda mais esta
d’esse genio encantador, como do astro do vez em vergonhosa burla o cataclismo pre-
dia quando alumia lá do firmamento; cada conisado que ia mergulhar na seio de sur
uma de suas palavras symbolisa uma cs- inundação o signal da salvação, a cruz d
trella no céo, e uma victoria na terra; as Salvador! mas como a dura experienc
almas como as espadas cedem ao seu im­ lhes havia mostrado que uma discussão s
petuoso impulso; até a do mesmo Turena ria e franca era impotente para obter
não ousou resistir-lhe... Ah! como é forte completa victoria que elles anteviam em mt
a palavra de Deus humanado, explicada ros sonhos, força lhes foi recorrer a outro
aos homens pelos verdadeiros orgãos do genero de armas; e nos salões cxplendidos
Christianismo! O proprio vencedor do gran das madamas Geoffrin, Teucin e outros,
Condé, esse novo eollosso da França, cujo ornados de artezãos dourados e engrinal-
bronzeo peito não poderam penetrar cen- dados de flóres d’artc, eucontraram o cy-
tenares de imperiaes bayonnctas, é atraves­ nismo do mestre Yoltaire e a leviandade de
sado pela palavra de Bossuet, e seu inexo­ Fontenelle ao calor das iguarias e ao per­
rável coração impenetrável sempre, ou in­ fume dos licores, vastos arsenaes onde re-
sensível á terrível harmonia das trompas e fundir e aperfeiçoar as armas abjectas do
bombardas de mistura com o rancor dos sarcasmo e do escarnco, com que perfida-
obuzes e clarins, não pôde resistir um mo­ mente atacaram a sanctidade dos livros de
mento sequer ás columnas do fogo da ver­ Moysés, a fé dos prophetas e por conse­
dade que, como do rouco Etua, as lavare- quência a divindade de Jesus Christo, etc.,
das se despediam em turbilhões da bôcca etc., desgraçados contendores que não ou­
do grande orador christão, sem os appara­ sam encarar de face o vulto severo e pio
tos de guerreiro, bem longe do tremendo do Christianismo 1 c ainda assim... desgra-
«campo da batàllia, no pacifico recinto de çadamente crearam proselytosl...
um templo de Christo, onde o silencio mys- «É que os tempos, como disse o sabio
terioso e eloquente das campas,, de harmo­ De Lurges, surpréso de dôr e dc indigna­
nia com o doce som de hymnos saerados, ção, estavam maduros para impiedadel os
•qual brisa suave, em noite tranquilla, so­ costumes licenciosos gerados nos ultimos
prando brand,amente aos ouvidos do pen­ annos do precedente reinado, que se occul-
sador profundo, absorto na contemplação de tavam em razão do respeito ao temor que
tantos luzeiros inimitáveis, que povoam um ainda infundia o monarcha, se mostraram
firmamento de anil como testimunhas fieis despejadamente em toda a sua nudez. Quem
378 CHR
pregou a incredulidade já não foi o philo- III
sophismo, foi a devasáidão! antes dos frau-
cezes aprenderem a descrer, haviam apren­
dido a nào obrar. O atheismo foi systema- Dcbalde se teem cansado os mais preten-
tisado, por isso que já a maior parte dos ciosos philosophos, enfatuados antes pela
homens punha nos prazeres e deleites ma- sua temeraria ousadia do que pela sua li­
teriacs o unico cuidado da vida. Os so­ vre seicncia, em substituir na instrucção
phistas d’então, á imitação dos que antes dos povos uma cosmogonia philosophica á
d'elles foram, nada mais fizeram quo apro- cosmogonia religiosa, fundada nào como
vcitar-sc das disposições que occorriam. A cila cm meros inventos e imaginarias con­
semente depositada na mente humana não cepções, mas sim nas verdades unicas re­
fortifica senão quando uma causa anterior veladas, nas tradições de todos os povos
a dispõe para a fecundação. Um systema existentes e extinctós do todas ascren ca s,1
não deita raizes nas intelligencias senão c amparada pela fé, condição essencial d’esta
quando certas necessidades, que se coadu­ nossa vida que só depara coin a realidade
nam com os princípios d’cllc, lhe facili­ nas lagrimas, alimento na esperança c con­
tam a assimilação c o ageitam ao tempera­ solação na caridade.
mento da época em que se manifesta. Sem
opportunidadc nào ha doutrina opportuna, 1 È bem para notar que em mytliologia
e em igual paridade a este respeito se acham e em summa em todas as falmlas inventa­
a verdade e a mentira, com a differença po­ das para explicar abs gentios c pagãos, etc.,
rém que a primeira subsiste e a segunda etc., o grande problema da natureza e sua
passa.» causa primeira e necessaria, tudo converge
Assim parecia triuuiphar o racionalismo para um centro commum, attestando ao
supplantando a verdade c propalando a mesmo tempo a authenlicidade da revelação,.
mentira! e nenhuma voz se levantou acaso apoz a necessidade d. um Deus Supremo, que
para anathematisar essa filha espúria da todos os povos inventaram como mcllior o
desvairada razão, divorciada da verdade e podiam conceber; tanto elles estavam con­
ornada com os seductores enfeites da pros­ vencidos da necessidade de sua existência.
tituição que satisfazia, ou antes entretinha O furto practiçado por Prometheo, a caixa
as dámnàdas e exterminadoras paixões de de Pandora, a Meschia e Meschane (Adão e
seus adoradores?! Oh! não façamos essa Eva) dos Parsis; a degenerarão da especie
injuria ao bom senso da humanidade; ao humana deplorada pelos indoiis; a Isis (V ir­
contrario, a voz commum do mundo todo gem c mãe do futuro libertador dos drui-
eccoou unisona e grave aos surdos ouvi­ das); o Zodíaco dos persas '(Virgem e filho);
dos dos pseudo-sacerdotes da razão: mal­ a Sching-Mou. (Mãe sancta) dos chinas; o
vados, lhe bradou, quereis acabar com a Mithra (mediador das numerosas almas de
nossa sociedade, a filha mais querida do toda a terra) dos persas; o Orus (mestre
Christianismo?!... Elles porém conscrva- doutor) mediador dos egypcios, etc., etc.,
ram-sc ainda surdos a esses clamores; sua nada menos representam que a cópia fiel do
obra safanica continuou ainda por diante; quadro original do Genesis, trasladado pela
a razão devia ser cleificada... cila porém foi mão da tradição para tantos povos, sob di­
a victima, o altar, a guilhotina e a mais he­ versas fôrmas c variadas sombras, mas re­
dionda ambição, o idolo mais caro de suas presentando sempre um mesmo pensamento,
funestas adorações: sobre esse altar infando uma verdade incontestável— In principio
correu o sangue do justo de involta com o Deus creavit ccelum et terram, etc., etc. No
do criminoso! Assim era preciso; o mundo principio creou Deus o céo e a tetra , for­
enlu.dado por este, precisava ser lavado mou depois o homem á sua similhança, deu-
por aquelle; c o nosso reprehcnsivel des­ lhe tinia mulher por consocia, addicionando-
leixo, a nossa criminosa tolerância carecia Ihe o imperio do mundo com todos os bens
uma punição! ella chegou!... A’lcrta, pois, do Paraizo, á excepcão d'um frueto único;
soldados da fé catholica, álerta; a reinci­ o liomem não guaràou porém a prohibicão,
dência no crime importa como consequên­ foi ingrato ao seu creador e peccou; d ahi
cia necessaria a reincidência na pena, e procedeu o mal que opprime toda a sua des­
esta costuma augmentar tantos graus quan­ cendenda, que ficou escrava do mesmo pec-
tas são as vezes que n’aquelle se reincide... cado; d'ahi a necessidade da redempção hu­
e a segunda lição será mais severa que a mana a preço d'uma victim a, qual o pro­
primeira!... É esta uma incontrastavel ver­ prio filho de‘Dcus feito homem e nascido de
dade, é esta a minha convicção. uma Viracm; eis a crença fiel de todos os-
povos e de todas as éras.
CHR 379
Cada lição dada á massa immensa dos que as próprias verdades, que julgamos ad­
povos, cuja totalidade consta de genios me­ quiridas pelo mero trabalho de nosso espi­
diocres e incapazes d’uma explicação mc- rito, essas mesmas não as reputamos tacs
thaphysica, pelo enfatuado e livro philoso- senão pelo instincto da fé? «Se estamos
phisnío só tem produzido cm suas cabe­ certos da existência do mundo exterior,
ças uma confusão fatal, abrindo a seus pés diz com bem fundada razão um publicista
ábysmos inevitáveis cm que veem sepultar- contemporâneo, é porque damos credito aos
se mestres c discipulos. sentidos: se não duvidamos das verdades
Na primeira pagina do Genesis, explica­ de primeira intuição é porque temos fé na
da com a simplicidade característica da razão humana: e n’um e outro caso essa fé
verdade pelo philosopho christào (o padre), c um instincto, é uma lei de nossas conce­
aprende o marido c a esposa, o filho e o pções.
servo a alta scicncia da creação do mundo "«Se o testinumho dos homens pódc ser
e formação do homem, o que grossos volu­ falso, lambem a razão pódo enganar-nos,
mes de "discursos philosophicos não pode- também os sentidos muitas vezes illudem.
ram fazer-lhes comprehcndcr. Se lançar­ A realidade objecti va das cousas, que por
mos ainda nossas vistas sobre o quadro li­ nós inesmos conhecemos, não se funda se­
vre em que nos pintam a sempre citada lei não na crença illimitada com que acatamos
natural, que aos olhos do pliilosophistno a authoridade dos sentidos ou da razão.»
parece ter existência propria e construir a Ou a crença, ou a dúvida, ou a fé, ou o
grande alma do mundo (parto abortivo do scepticismo; não ha meio termo. Esses, que
mero acaso!...) o que vemos? supérfluas de- tanto exaltam a razão e deprimem a fé,
clamações, baldas de successo e de utili­ mal pensam que a homenagem rendida á
dade; e a illudida humanidade nunca chega razão não passa d’um instincto de fé. Os
a descobrir a certa vereda de seus sagra­ motivos d’essa homenagem sentem-se, não
dos deveres, que uma só expressão do se calculam: a razão da razão crê-se, não
Christianismo, a caridade, lhe faz compre­ se demonstra. Tirai ao homem a crença na
hendor com a mais simples c mais natural divindade, que alimento deixaes á alma? O
explicação—amar a Deus sobre todas as vacuo!...
sos e aó proximo como a nós mesmos. É tempo pois de reagir contra tão funes
Eis, mau grado,- todos os sophisraas, a tas theorias. Esse inditTerentisfho rcligios*
unica synthese possível de toda a lei que do século é uma imbecilidade abjecta. «Sã
mereça este nome natural, revelada ou es- confessemos a Deus unicamente nos lábios
criptá. Para que pois substituir na instruc- renegando-o no coração.
ção da humanidade c direcção da sociedade A religião não é só para o povo, curvem-
um systema tão fácil, tão sublime e tão ac- se diante das suas crenças esses espíritos
cessivcl a todas as capacidades, satisfazen­ orgulhosos, que se ufanam da aristocracia
do a todos os espíritos; aos mediocres pela do talento, continha o mesmo escriptor, o
clareza e aos transcendentes, pela sublimi­ talento não é a vaidade, é a simplicidade
dade! para que substituil-o por um syste­ do espirito, é o ardor vivo das crenças. O
ma, fundado em meras hvpothcses tão en­ orgulho do talento é a mais formal nega­
contradas como os pensamentos, tão pre­ ção d’clle, é o opprobrio dos intitulados sá­
carias como o entendimento humano que as bios, dos novos castellões que açoutam as
figura?!... Que mais ensinaes vós em todas turbas com seus escarneos.
as vossas longas e incomprehcnsiveis dis­ E comtudo parecem ainda acreditar que
sertações, fundadas no livre exame do que esse orgulho se compadece com o senti­
o philosopho christào na simples oração do mento e simplicidade da sabedoria!... É
Padre Nosso escudado pela fé?! Se ensinaes porque não reflectem que o genio mais il-
o mesmo, para que tão arduo trabalho sem­ lustrado e sem contradicção aquelle que me­
pre mal succedido, quando o podeis conse­ lhor comprehende a sua fraqueza, e que
guir com doçura e simplicidade? Se ensi­ conscio d’ella busca na fé o amparo da ra­
naes o contrario, como quereis que nossos zão, que uma vez abandonada e circum­
corações amem c abracem vossas doutrinas scripta a seus pretenciosos recursos do li­
que assim tendem a materialisar-nos, c im­ vre exame, voga ao ludibrio das procello­
portam a nossa destruição?... sas ondas no mar immenso da cruel incer­
Sc é pois um principio vosso negar a ne­ teza, sem bússola e sem estrella, e sem pos­
cessidade da fé, que outro meio inventareis sibilidade de aíTerrar jamais o porto da sal­
- inais simples e tão profícuo para que vossa vação; instrumentos que só poderá encon­
doutrina seja crida por tautos, que nunca po- trar na fé, na crença o na religião: em nenhu­
doram coraprchcnder-vos!... Ignoraes acaso ma parte depara mais com uma taboa de
380 CHR
esperança; cm todo o logar o desespéro; o possa tornar orgulhoso? Obterá acaso os
naufragio pois é inevitável c um insonaa- precisos dados para se julgar um sabio con-
vel abysmo na sua eterna sepultura!... E summado, independente c capaz de inven­
quem sabe se dcbalde me canso em dar tar mundos, astros, etc., etc., assignalar-
provas d’esta verdade!... lhcs vida, logar c rotação? Oh! ao contra­
Oh! talvez!... pois que factos, argumen­ rio cllc se convencerá, á medida de suas
tos e intimações, tudo, tudo prescreveu para descobertas, de que o homem é real mente
esses fatuos admiradores da razào, que se mais ignorante c mais fraco do que ello
abstrahindo da admiração que devem ao mesmo se suppõe, sua intclligcncia muito
Creador e ao todo creado, não se pesam de mais limitada do que ellc pensava, e que
despresar o todo para só acatarem uma pe­ com cíTeito lhe resta muito mais que saber
quenina parte da creação. Preslaes reve­ do (pie cllc nunca imaginaria antes d’eslcs
rentes e admirados um culto de idolatria a novos cabcdaes de sciencia, adquiridos no
uma simples unha da estatua, e quaes mi­ mais accurado estudo dos planetas, etc., e
seros idolatras profanacs o seu todo colos­ na apreciação de tantos phenomenos que
sal; e o que é mais, cobris de impropérios nos escapam ao mais amplo circulo de to­
o seu estatuario, sem reílectirdes que a dos os numeros imagináveis. Em taes ma­
não valer o seu engenho e trabalho, essa térias, sem uma pouca de fé e uma crença
estatua não passaria d’uma materia vil e viva, não ha mais a satisfazer nossa natu­
obscura, e menos seria formada a unha ral ambição de saber, cada dia mais des­
que ora admiraes. pertada em presença dos variadissimos
Vêde vós a que vil extremo vos arrosta phenomenos que nos a (Tectam a sensibili­
essa deidade que pretendeis ter libertado dade e nos agitam o sentimento a toda a
do dominio da fé christã (até a injuriaes de hora e cm todos os sentidos.
ter sido misera escrava!...) para divinisal-a! Deus é infinito, immenso, suas faculda­
que perigosa não é a vossa temeridade, e des illimitadas, c por consequência acima
que vão o vosso livre saber, que ousa in­ de nossa razão; suas obras incomprehensi-
ventar um novo Deus, quando nem capa- veis, suas leis invariáveis!... e o mais hu­
íidade tendes para reconhecer e venerar o milde christão sabe-o perfeitamente, ou
jue sempre existiu!... quanto é possível saber-se; porque todo
Mas qual Deus, qual creação, me inter­ este cabedal de sciencia nos é fornecido
roga ousado o philosophismo por seu orgão pela nossa crença, filha de nossa fé, bem
luminar o barão de Holbach, qual Deus, fundada na revelação muda e expressa: ex­
qual creação, se tudo que existe é devido pressa na tradição e nas sagradas paginas
ao mero acaso, se nada mais existe que da unica historia; e muda nos phenomenos
materia, se ella mesmo existe et (eterno et da mesma natureza. E torna-se tudo isto
per se, independente de nenhum principio e d’uma intuição tal, que o comprehende
com faculdade de pensar, raciocinar c com­ assim o grande como o pequeno, o igno­
parar em razão da grande alma que lhe é rante como o sabio!...
inherente? E, com efleito, eu mesmo con­ Ainda quando sejam- rcaes verdades as
fesso que vol-o concedería de barato se ti­ conclusões de vossos estudos, que cada vez
vesse de avaliar do senso commum de to­ vos devem convencer mais da necessidade
dos os povos e da habilidade do espirito 4’um principio regulador, que assim collo-
humano pelos vossos juizos e raciocínios, cou esses vastos e innumeraveis corpos
que em verdade mais se assimilam a par­ sem se perturbarem em seus cursos sob
tos abortivos de ociosa materia, do que a suas leis pàrciaes, sujeitos a um systema
actos reflectidos d’um pensador conscien­ geral, como attesta a ordem invariável de
cioso, como vós quereis inculcar, em plena tantos séculos, sobre que fundaram suas
contradicçào com os vossos mais favoritos crenças Copernico, Keppler e Newlon; com­
princípios, a vossa sapiência encyclopedi- parai, digo, todas as vossas descobertas com
cal... um sem numero de outros systemas que
O vos são incognitos, e com as leis qüe re­
que e pois a sabedoria se ella não curva
sua fronte altiva perante o principio infal- gem a immensa, a incompreliensivel ma­
livel de todo o saber? Depois de percorrer china do universo, e dir-me-heis então se
com o pensamento o espaço, cujo termo ha paridade possível, se ha motivo plausí­
jamais alcança em seu mais rapido vôo, e vel para vos considerardes consummados
medir um a um todos os pontos do firma­ sabedores e blasonar de terdes dado com o
mento em busca de novos mundos, em problema de Deus e da natureza fóra do
pesquiza de incognitos séres; o que resta auxilio da revelação c da fé.
ao pobre mortal de suas descobertas que o Emfim, em tudo quanto descobrirdes não
CHR 381
haverá tal motivo para assim incrementar feito o que na actualidadc seria mais apre­
o orgulho á humanidade, que ao menor cho­ ciado:—um systema de atheismo para as
que perde esse sopro de vida que lhe ani­ pessoas de instrucção, um manifesto con­
ma a existência; tal ó a ordem dos plieno- tra os sacerdotes; *e tudo isto combinado
menos da natureza, que tudo quanto des­ com adopção de certas fabulas de que o
cobrirdes, repito ainda, só servirá a mos­ povo necessita c que satisfaz ao mesmo
trar mais evidente a existência d’um prin­ tempo o poder e a vaidade.»
cipio regulador, em summa, d’um Deus: c Véde-vos n’cstc espelho apostolos do di-
que nós comparativamente ao todo somos vinisado philosophismo, c dizei-me depois
em parte insignificantes insectos, que só por se a authoridade d’cste personagem, que
misericordia do mesmo Deus podemos con­ tem sido toda vossa, também é suspeita
servar o uso de tantas faculdades que pa­ para vós?... ou então não vos pese, a exem­
recem exceder o nosso nada!... plo d’clle, confessar que toda a vez que
Uma pouca de scicncia, dizia Bacon, le­ o philosophismo abandonado a seus pro­
va-nos ao atheismo, c mais de sciencia á prios recursos pretendeu dar solução do
religião—A liltre Science leads to athcism, grande problema da creação, desligando
tem deixado de ser attcstadà por um sem seu principio da causa primeira, que a
numero de testimunhas insuspeitas, e en­ crença da necessaria revelação nos tom
tre ellas notarei o celebre Bcnjamin Cons­ feito *comprchcnder, ou pclo^menos crer,
tant, que durante o seu exilio na Allema- sente-se para logo navegar a voga solta
nha, tempo em que se occupou a compôr por um pélago immenso de dúvidas inven­
a sua obra sobre a religião, escreveu d’ahi cíveis, encalhando a cada hora nas espes­
uma carta a um seu amigo (M. Hochct) cm sas syrtes das pobrezas e miserias huma­
que lhe dá conta de seu novo trabalho, em nas, é que clle torna ainda mais miserá­
um trecho da qual se expressa da fôrma veis, sepultando-as para sempre áquem da
seguinte: «Eu renovei todo o plano e mais eternidade; d’csse Iogar da esperança unica
de tres quartos dos capitulos da minha His­ que nos acena lá dos confins do futuro e
toria do Polytheismo. Assim me foi preciso, que nos pódc tornar mais tolerável est?
não só para chegar á ordem que eu tinha vida precaria, que nos seria por demai
imaginado e que julgo ter obtido, mas tam­ miserável, se apoz cila nada mais restass
bém porque, como vós sabeis, eu já não á ambiciosa humanidade que de todo csj |
sou mais esso philosopho intrepido que numero infinito de diversos entes, que r
não creia da existência de outro mundo e presentam no variadissimo quadro da cre;
que tão satisfeito d’estc se alegra por não ção, seria o unico genero que não chega
haver outro. A minha obra é uma prova ria a cumprir nenhuma missão rasoavel;
singular do que diz Bacon, que uma pouca vér-se-ia em summa privada de todas aquel-
de sciencia leva ao atheismo, c mais de scien­ las vantagens que a nenhum ente da crea­
cia á religião. É positiva mente aprofundan­ ção foram negadas, todos cumprem sua
do os factos, colligindo-os de todas as par­ missão; a do homem pois (creatura a mais
tes c aflrontando diíficuldadcs sem numero perfeita) seria a unica incompleta; que mi­
que ellcs oppoem á incredulidade, que eu seria 1... que systema de philosophar!...
me tenho visto forçado a recuar para as
idéias religiosas; eu o tenho feito de muito
boa fé, porque "cada passo retrogrado me IV
tem sido mui custoso. Ainda presentemente
todos os meus habitos c todas as minhas
lembranças são philosophicas, c defendo Deixemo-nos emfim de viajar lá pelas al­
ponto por ponto tudo o que a religião re­ tas regiões da metaphysica, porque n'cssa
conquista sobre mim. Ba mesmo n’isto um gloriosa, porém ardua viagem, podem pe­
sacrifício de amor proprio; porque é difii- netrar também os travessos ventos do so­
cil, segundo eu creio, achar uma logica phisma, e abalar nas mentes desprevenidas
mais severa do que aquella de que eu me o voo d’essc balão em que nos tínhamos
tinha servido para atacar todas as opiniões proposto viajar até Deus: cá mesmo, ser-
d’esse genero. O meu livro não tinha abso­ peando pela terra, apreciando os pheno-
lutamente senão o direito de marchar no menos e descobrindo-lhes modestamente as
sentido opposto ao que presontemento me causas, também depararemos estrada se­
parece verdadeiro e bom, e eu teria alcan­ gura para tocar com os nossos pensamen­
çado uma victoria indubitavel; eu teria tos e prosas a meta do caminho que nos
ainda alcançado outra vantagem, porque propozemos—demonstrar a primazia e ne-
com muitas levianas inclinações eu teria cessidadevda lei da fé, com exclusão mesmo
m CHR
do livre philosophismo,—para quem a lei é cada século passado, que constituem o gran­
um phantasma vão que só sujeita os espíri­ de livro da verdadeira historia, tudo isso
tos fracos. Dir-nos-hão pòrém os espíritos para nós será nada?
fortes—qual será mais velho, a lei ou o As ruinas inonumentosas de tantas ri­
philosophismo? quezas oriçnlaes, de tantas cidades sober­
Se este c mais velho ou pelo menos coé- bas, de tantas obras colossaes que cobriam
vo d’aquella, porque a não dominou logo a face da terra coin sua base, c aíTronta-
ao nascer, se ella nasceu também por aca­ vam os astros com seu vertice minaz, c
so; se porém alguém a fez nascer, porque que hoje se apresentam a nossos olhos: e
a não preveniu logo com o philosophismo, meditações como vivos apontamentos, no­
que mais tarde tinha de supplantal-a, c tas o cscholios da mais remota historia,
emancipar d’ella a razão, pondo-a cm plena que nos arranca o assentimento, sc ousa­
liberdade, sem lei, sem Deus, sem rei, (oh! mos negal-o, ás verdades que nos relata,
que licença!!!) submettida apenas ao fatal tudo, tudo isto não merece a mera home­
dominio áa vontade do sugeito?... Kespon- nagem de vossa razão?! Ah! loucos perti-
der-me-heis com eíTeito—que o sabio não nazes que, mau grado a vossa consciência,
carece de lei, que bem se regula elle pelos vos mostraes appareutementc satisfeitos e
dictames da sua couscioncia; e eu vol-o contentes de vossos erros; qual o vosso
concedería em verdade se os vossos argu­ successo?
mentos podessem uma vez sequer destruir Oh! cmmudeccis, e com razão: o horror
os muitos factos que tantos séculos passados que vos deve ter causado o frueto do ra-
nos teem testado em bem triste herança, des­ cionalismo, deve também ler-vos seccado
de que ha memória de homens, assim nas para sempre o orgão da voz; baldo será
paginas da historia, que muito importa apre­ vosse esforço, pois, para expressar-vos, e
ciar, como nas tradições de todos os po­ o quadro das illusões, por demais sombrio,
vos; fins promissos de que podemos tirar para tentardes ainda apresental-o aos olhos
uma conclusão verdadeira e que vos des- lacrimosos da olTendida humanidade! Eu
troo plenamente; e d’ondc conhecerá elle mesmo me compadeço de vosso estado de
que é bem regulado em seu proceder? Não remorsos, se ainda tendes consciência, ou
serão pela comparação que em apreciação de degradação, se nem vislumbres d’ella
de seüs actos estabelece entre a consciên­ vos restam; n’um o n’outro caso ha moti­
cia e a lei? Demais—poderão acaso sér sá­ vos para a dor; mas nem em ambos para
bios todos os homens? Ninguem haverá a esperança que aquellcs divisam ainda
tão louco e temerário que ouse aífirmal-o; por acaso corno taboa de salvação no des­
e então? provada assim a impossibilidade compassado subir c baixar das procellas,
de chegarem todos á comprchensão de seus que os baldeiam de mistura com estes,
deveres e á apreciação do^ actos humanos, que, já esquecidos de si e da vida, naufra­
por meio do vosso decantado philosophis­ gam sem alma, mas não morrem sem dòr!...
mo, quereis privar do exercício do bem Eu, pois, conscio de vossa incapacidade e
um sem numero de capacidades de todas conunovido de vosso soffrcr, passo a repre­
as escalas?... É assim que estabeleceis a sentar por vós uma parte dos fruetos de
igualdade entre os homens, cegando-os para vossas doutrinas racionalistas, reproduzin­
trepidarem sem trilho fóra do unico cami­ do o triste e fiel quadro do christianissimo
nho que a lei lhes aponta e alumia? Pode­ Chateaubriand, em que esse amigo da ver­
reis vós, meia duzia de philosophos pre- dade nos dá minuciosa conta das victimas
tenciosos e enfatuados, com o apparente d’essa revolução que abalou o mundo eu­
successo que também a desordem vos pre­ ropeu, filha genuina c a inais amada do li­
para ás vezes para abysmar-vos, podereis vre philosophismo, desposado pela soberba,
vós, digo, sustentar o embate dos destinos em presença do sophisma da mentira, que
da massa immensa dos povos, privada da assistiram como testimunhas á boda fatal,
unica scicncia que os esclarece? qual a lei e que já hoje conta um bom numero de
da unica balisa que os guia? qual a.fé? bem travêssas netas, e igualmente barba­
Conforme as velhas crenças de seus sem­ ras!
pre venerados avós, rasgando assim os Tal é a que nos dias do junho de 1848
m a is. sagrados testamentos cm que elles, juncou de cadaveres as ruas da louca Pa­
cuidadosos de nosso futuro, nos legaram ris, c a que partejada pelo grande principe
tantas verdades que ora constituem o mais de Ganino, sedento do sangue dos Rossis,
precioso patrimonio de nosso viver presente expulsou da capital do mundo christão o
e futuro, cada facto, cada memoria que lê- principe da paz, o symbolo da virtude, o
moà todos os dias nas longas paginas de instrumento da caridade c misericordia de
CHR 283
'Deus!... e tantas outras quo doloroso seria Transporte. 34:764
continuar a mencionar. Demais quo, para
.avalial-as todas, basta conhecer os eiTeitos Sacerdotes fuzilados . 300
d’uma: et crimine ab uno disce omnes:—as­ ídem afogados . . . 460
sim se expressava perante Dido, o heroe de Nobres idem . . . 1:400
Virgílio. Deixemos pois fallar o immortal Operários idem . . 5:300
cscriptor, que transido de dôr assim prin­ Victimas em Lyon. . 31:000
cipia com uma reprovada ironia a descre­
ver o lugubre quadro dos desatinos de sua Sonnna. 73:224
França civilisada, mas racionalista! Este
tribunal era sem appellação (le tribunal Total . 1,032:58o
revolutionnaire.)
Eis-aqui a grande base sobre que deve­
mos assentar a nossa admiração: honra
seja feita á equidade revolucionaria!...
honra á justiça da caverna! Agora, com-
pulscmosoS actos emanados d’esta justiça. N’cstcs números nào sào comprchcndi-
O republicano Prudhommc, que não abor­ dos os mortos em Versailles, nos Carmos,
recia a revolução c que escreveu quando na Abbadia, na Neveira de Avignon, os
ainda o sangue estava quente, nos deixou fuzilados de Toulon e dc Marseille, depois
seis volumes de relações circumstanciadas. dos cercos d’estas duas cidades, e os de­
Dous d’estes seis volumes constituem um golados da pequena cidade provcnçal de
diccionario cm que cada criminoso se acha Bcdoin, cuja população foi absolutarnente
inscripto por ordem alphabetica, com seu aniquilada. Para a execução da lei dos
nome, pronomes, idade, logar do nasci­ suspeitos de 21 de setembro de 1793, mais
mento, qualidade, domicilio, profissão, data dc cincocnta mil commissòes revoluciona­
e motivo da condemnando, dia e logar da rias foram estabelecidas por toda a Fran­
execução. Ahi se acham entre os guilhoti­ ça. Conforme os calculos do convencional
nados* 18:613 victimas, distribuídas da fôr­ Cambou, cilas custavam annualmente qui­
ma seguinte: nhentos c noventa c uui milhões. Cada
membro d’esta commissão recebia tres fran­
E x -n o b res............................... 1:278 cos por dia e ellos eram quinhentos e qua­
Mulheres, idem......................... 750 renta mil: eram quinhentos e quarenta
Mulheres dc trabalhadores e mil accusadorcs que tinham o direito de
operários............................... 1:467 designar as victimas como dignas de morte.
R e lig io so s................................ 350 Só em Paris se contavam sessenta commis-
Sacerdotes............................... 1:135 sòes revolucionarias, e cada uma d'ellas ti­
Homens plebeus de diversos nha sua prisão para detenção dos suspei­
e s t a d o s ............................... 13:633 tos. Vós notareis que não são simplcsmcute
nobres, sacerdotes, religiosos que liguram
Somma. . . 18:613 aqui no registro mortuário; se se tractasse
d’essas classes, o terror seria verdadeira­
Mulheres mortas em conse­ mente a virtude: canalha!... louca espe-
quência de partos prema­ cie!... Mas ois-ahi 18:923 homens plebeus,
turos . . . . . . . 3:400 de diversos estados, e 2:231 mulheres de
Mulheres gravidas e paridas . 348 trabalhadores ou operários, 2:000 crean-
Mulheres mortas na Yandée . 15:000 ças guilhotinadas, afogadas c fuziladas:
Creanças, idem, idem . . . 22:000 em Bordeaux executava-se por crime de
Mortos na Yandée. . . . 900:000 negociantismo. Mulheres!... não sabeis vós
que em nenhum paiz, em nenhuma nàção
Somma. . . 940:748 da terra, cm nenhuma proscripção poli­
tica jamais foram as mulheres entregues
Yictimas do proconsulado de ao algoz, á excepção de algumas cabeças
Carrier cm Nantes . . . 32:000 isoladas em Roma no tempo dos imperado­
Creanças fuziladas. . . . 500 res, na Inglaterra no de Henrique vui, da
Idem afogadas......................... 1:500 rainha Maria e de Jacob ii?
Mulheres fuziladas. . . . 264 Foi só o terror o que deu ao mundo o
Idem afogadas. . . . . 500 covarde e desapiedado espectáculo de as­
sassinato juridico de mulheres c creanoas,
. Somma. . . 34:764 em massa. O girondino RioufTe, préso com
384 CHR
Virgniaux, madame Rolland c seus amigos tmguir: ó grito da dòr maternal, quanto
na Conciergeric, refere o que segue nas foste agudo... mas sem efleitol... Algumas
suas Memorias de um prcso: mulheres morreram na carreta e ainda as­
«As mulheres as mais bellas, jovens as sim seus cadaveres foram á guilhotinai,
mais interessanles cahiam confusamenle não tinha eu visto, poucos dias antes di>
n’este sorvedouro (a Abbadia), donde só 9 thermidor, outras mulheres arrastadas
sahiam para ir ás dúzias inundar com o á morte? ellas se tinham declarado gravi­
seu sangue o cadafalso. das... E são homens, francezos, a quem
«Dir-se-ia que o governo estava nas mãos seus philosophos os mais eloquentes pre­
d’estes homens depravados, que não con­ gam ha sessenta annos a humanidade e a
tentes de insultar o sexo satisfazendo seus tolerância?...
prazeres monstruosos, lhe votam ainda um «Já na praça de Sancto Antonio se ha­
odio implacável. Jovens mulheres "ravi­ via cavado um aquedueto immenso para
das, outras que acabavam de dar á luz, e esgoto do sangue. Digamol-o, por maior
que se achavam ainda n’este estado de horror que sintamos ao dizel-o, todos os
fraqueza c de pallidez, consequência do dias o sangue humano era baldeado a cân­
grande trabalho da natureza, que seria res­ taros no momento da execução, por qua­
peitado pelos povos os mais selvagens; ou­ tro homens que se occupava*m em o va-
tras, cujo leite se tinha suspendido de re­ sar n’esse aquedueto. Era ás tres horas da
pente, ou pelo terror ou porque de seus tarde que estas longas procissões de victi­
peitos lhes tinham arrancado seus filhos, mas desciam ao tribunal, c atravessavam
eram de dia e de noite precipitadas n’este lentamente, por baixo de longas abóbadas,
abysmo. Eram arrastadas de enxovias cm no meio dos presos, que se punham em fi­
enxovias com suas fracas mãos encadea­ leira para as vér passar com uma avidez
das em indignos ferros: algumas teem aqui sem igual. Eu vi quarenta magistrados do
apparecido com gargalharias ao pescoço. parlamento de Paris, trinta e tres do par­
Umas entravam desmaiadas e levadas em lamento de Tolosa, marchando á morte
braços dos carcereiros a quem desperta­ com o mesmo ar com que n’oulro tempo
vam o riso; outras em estado de estupe- se apresentavam nas ceremonias públicas;
facção, que as tornava como imbecis; nos eu vi trinta rendeiros geraos caminhando
ultimos mezes sobretudo (antes do 9 ther- com passo firme e tranquillo; os vinte e
midor), aqui se observava uma actividade cinco primeiros, negociantes de Seden, la­
própria dos infernos! de dia e de noite mentando, quando iam morrer, dez mil
os ferrolhos se agitavam; sessenta pessoas obreiros que deixavam sem pão. Eu vi
chegavam á noite para ir ao cadafalso; no esse Baysscr, o espanto dos rebeldes da
outro dia ellas eram substituídas por ou­ Vendée e o mais illustre guerreiro que teve
tras cem, a quem esperava a mesma sorte a França; eu vi todos esses gencraes que a
no dia seguinte. Quatorze moças de Ver- victoria acabava de cobrir de louros mu­
dum, d’uma candura sem exemplo e que dados repenfinamente em cyprestes; emfim
tinham o ar de virgens, adornadas para todos esses jovens militares tão vigorosos...
uma. festa pública, foram simultaneamente marchavam silenciosamente... não sabiam
conduzidas ao cadafalso. Ellas desappare- senão morrer!!!...»
ceram de repente c foram ceifadas na pri­ Prudhommc vai completar este quadro:
mavera da vida. O palco das mulheres, no «A missão de Le-Bon, nos departamentos
dia seguinte ao de sua morte, apresentava das fronteiras do norte, póde ser compa­
o aspecto de um jardim privado de suas rada á apparição d’essas negras furias tão
flôres pela tempestade. Eu nunca vi entre terríveis nos tempos do paganismo...» Nos
nós desesperaçao igual á que nos causou dias de festa a orchestra estava colloeada
similhante barbaria. ao lado do cadafalso; Le-Bon dizia ás mo­
«Vinte mulheres de Poitou, pobres cam- ças que alli se achavam: «Segui a voz da
ponezas pela maior parte, foram igualmente natureza, entregai-vos nos braços de vos­
assassinadas: parece-me ainda estar vendo sos amantes.» Meninos por elle corrompi­
essas desgraçadas victimas, estendidas no dos lhe formavam uma guarda, e eram os
pateo da Conciergene, opprimidas pela fa­ espiões de seus parentes. Alguns tinham
diga de uma longa viagem e dormindo so­ pequenas guilhotinas com que sc diver­
bre as lages... No momento de partir para tiam dando a morte a passaros e a ratos.
o supplicio, foi arrancado do seio de uma Sabe-se que Le-Bon, depois de ter abusado
d’cstas infelizes um menino que ella ama­ d’uma mulher, que se lhe tinha entregado
mentava, e que n’esse mesmo momento para salvar seu marido, fez morrer este ho­
sorvia o leite cuja fonte o algoz ia ex- mem aos olhos d’esta mulher, para quem
CIR 385
não ficou mais que o horror de seu sacrifí­ Que liberdade republicana!... Que hjran-
cio; genero este de atrocidades tão repeti­ nia da liberdade!... a que jámais houve
das em outros logares, que Prudhominc diz monstro que assimilar-se-lhe possa, nem
se não poderíam contar. haverá, a não provir do mesmo principio.
Carrier se distinguiu cm Nantes: «Perto Dcbaldc procurarei nos annacs de toda a
de oitenta mulheres, extrahidas do depo­ historia, entre os actos da mais dura tyran-
sito, trazidas a este campo de carnagem, nia dos Busiris, Phalaris, Dionisios, Syllas,
ahi foram fuziladas, depois foram despidos Marios, Tiberios, Caligulas, Neros, Díoclc-
seus corpos c n’cste estado ficaram por cianos, Commodos, c de quanto selvagem
espaço de tres dias. Quinhentos meninos tem viajado sobre a face do globo, factos
de ambos os sexos, de que os mais idosos que de longe se assimilem á inaudita bar­
tinham quatorze annos, forani conduzidos baridade d’esses algozes francos, cujos no­
ao mesmo logar para ahi serem fuzilados. mes mc horroriso de repetir!!! E tudo isto
Nunca espectáculo algum foi mais tocante é obra vossa, darnnados philosophos, cn-
nem mais espantoso; a pequenez de sua cyclopcdistas, liberacs, racionalistasü... E
estatura punha muitos ao abrigo das balas; ainda podereis tolerar a vista da huma­
clles desatam suas cadeias, e se dispersam nidade dilacerada, que com severo vulto de
por entre os batalhões de seus algozes, e reprovação pela memoria ainda fresca de
procuram um refugio entre seus joelhos, tantas victimas, vos lança olhos de irremis-
que abraçam fortemente, levantando para sivel execração, condemnando-vos á eterna
elles'scu íosto, cm que se pintam ao mes­ ignominia e infernal exilio...
mo tempo a innocencia e o espanto. 0 que esperaes, pois ainda, réos confes­
«Nada faz impressão sobre estes exter- sos e condemnadosü... Já que não podeis
minadores, que os degolam a seus pés!... mais destruir tantas provas, vesti-vos ao
«Uma quantidade de mulheres, a maior menos de sacco, cobri-vos de cilicios, cm-
parle gravidas, c outras apertando seus fi­ pocirai-vos de cinzas, e de rastos pelo chão,
lhos contra o seio, são conduzidas a bordo como a serpente traiçoeira, percorrei cm
das barcas... As innocentes carícias, os sor­ penitencial romaria o* orbe inteiro, implo­
risos d’estas tenras victimas vertem na al­ rai o perdão de Deus c dos homens, de
ma das desoladas mães um sentimento que tudo cmfirn quanto ha de sagrado e pro­
acaba de despedaçar suas entranhas; ellas fano, já que nada escapou á violação sa-
respondem com vivacidade ás ternas carí­ tanica de vosso libidinoso e insaciável fu­
cias das creanças, lembrando-se que é pela ror!... e os fieis christãos, unicos que sa
ultima vez! 11...» bem perdoar injurias, porque conhecem í
Uma d’ellas acaba de parir sobre a areia, fraqueza do vosso nada, vos ajudarão com
dando-lhe os algozes apenas tempo de ter­ suas orações, que em todo o caso serão
minar tão grande trabalho; clles avançam, proveitosas á humanidade. Eis ainda os
são todas amontoadas na barca, c, depois meus ardentes votos.
de as terem despido, prendem-lhes as mãos -■^CHRisTOMAcos—É o nome generico, de-l
atraz das costas. Os gritos os mais agu­ baixo do ([uai Sancto Athanazio compre-*
dos, as exprobações as mais amargas d e s­ hende todos os hereges que erraram ácer-
tas desgraçadas* mães, se fazem ouvir por ca da natureza ou da pessoa de Jesus
toda a parte contra os algozes; Touquet, Christo. 1
Robin e Lamberty lhes respondem com gol ;p\py^iCELUõES—Deram este nome tome n o ?
pes de sabro, e a timida belleza já assaz quarto século'aos donatistas furiosos,
>sos. Ve- {
occupada cm occultar sua nudez aos mons ja-se o artigo Donatistas. Também m assim |
tros que a ultrajam, desvia, bramindo, suas chamaram a certos predicantes que appa-
vistas de sua companheira desfigurada pelo receram na Allemanha no meio do decimo
sangue, c que já vacillante vem render a terceiro século (1248).
seus pós o ultimo suspiro. Mas o signal es­ Ninguem ignora os grandes debates que
tá dado; os carpinteiros com golpes do ma­ teve com os summos pontifices o impera­
chado arrombam as portinholas e a onda dor Frederico, e a excommunhão fulmi­
as sepulta para sempre!!!... nada contra elle, no concilio de Leão, por
«Eis o objecto de vossos hymnos, vos Innocencio iv. Durante o fogo d’estas al­
repito em conclusão com o mesmo Cha- tercações se levantou na Allemanha uma
teaubriand, milhares de execuções em me­ sociedade, que, debaixo do pretexto de de­
nos de tres annos, em virtude d’uma lei fender o partido do imperador, prégava
uc privava os accusados de testimunhas, que o papa era herege, c que os seus bis-
3 c defensores e de appcllaçãoL.»
1 Athan. I. de Decret. Synod. Nis com.
25
386 CLE
pos, e demais prelados o eram também, qualquer christão podia desposar-sc com a
simoniacos; que estando em peccado mor­ viuva de seu irmão: afflrmava que Jesus
tal todos os sacerdotes, já não tinham o po­ Christo descendo aos infernos, d’elles tinha
der de consagrar, e que eram sectarios: tirado todos os condemnados, ainda os mes­
que nem o papa, nem os bispos, nem al­ mos inficis c idolatras; além d’estcs tinha
gum dos viventes, tinham direito para pro- outros muitos erros áccrca da predestina­
hibir os divinos officios; c que os que ção. Foi condemnado com Adalberto no
tal faziam eram enganadores e hereges; c concilio de Soissons e cm outros celebra­
que os frades menores c pregadores per­ dos em Roma. 1
vertiam a Igreja com suas falsas préga Os sábios authores da historia litteraria
ções, e que fora da sociedade dos circum de França, parece olharem este Clemente
cclliões ninguem vivia conforme ao Evan­ como um dos que trabalhou no restabele­
gelho. cimento das letras, governando Carlos Ma­
Depois de haverem pregado estas maxi­ gno, c que tinha sido mestre de llccton, ab-
mas, declararam a seus ouvintes que lhes bade do mosteiro de Richemond, na diocese
dariam indulgências, não taes quaes o papa de Constança, e depois embaixador de Car­
e os bispos haviam imaginado, mas indul­ los Magno em Constantinopla, e bispo de
gências que vinham da parte de Deus. Es Basilea. Presume-se também haver sido
tes hereges causaram muito damno ao par elle regente dos estudos do palacio. 2
tido de Frederico, e d’elle separaram mui­ Quanto ao mais ha d’elle muito pouca
tos catholicos.1 noticia; c não é inverosimil que n u m sé­
x^^CLANcuLAnios—Nome d’uma seita d’ana- culo cm que se suppozeram e alteraram
' bapRITlTs^que”diziam ser necessario fallar tantas obras dos padres, um homem que
em püblico, comó o commum dos homens, principiou a introduzir as luzes da critica
e dizer sómente em particular o que pen­ no estudo da theologia, rejeitasse como de
sava cada um em materia de religião. Ve­ pouco momento as obras dos padres, e des­
ja-se o artigo Anabaptistas, e suas diver- vairasse. Era natural que o erro de Cle­
sa^u.seitas. mente conduzisse os entendimentos ao es­
\ T iT fflig — arinntnn no principio tudo da critica, mas em um século tão igno­
I do nório século o erro dos iconoclastas, d rante não se seguiu tal eíTeito: o seu erro
de Vigilando'.2 Alguns abusos que notou nem foi util, nem damnoso; e condemnado
a este respeito .na devoção dos fieis, o con­ não teve defensores, nem deixou disci­
duziram a impugnar a veneração das reli­ pulos.
quias e imagens. Comtudo não se armem os protectores
Era Claudio um dos christãos mais fer­ da ignorância com este exemplo contra as
vorosos do seu século, mas não pensava sciencias, porque n’este século nimiamente
com moderação c acerto áccrca do culto ignorante, para haverem de se adoptar os
das imagens c reliquias. Foi refutado por erros de Clemente, enganou os povos um
Dunghle, por João d’Orleans, e condenmado tropel d’embusteiros, e foram ávidamente
no concilio de Paris, que declarou ser ne­ recebidos os erros mais absurdos, prega­
cessario conservar nas igrejas as sagradas dos por fanaticos os mais ignorantes. Os
imagens para instrucção do povo, mas que costumes eram tão estragados, quanto a
nem se haviam de adorar, nem dar-lhes ignorância era profunda: a desordem e a
um culto supersticioso.3 superstição sempre cresciam á proporção
«T QLF.MF.yirp—Era originario da Escossia: do decremento da luz. Confronte-se o ar­
/ rejeitava os canones e os concilios, os tra- tigo Adalberto com o artigo Clemente: estes
* ctados dos sanctos padres acerca da reli­ dous homens foram ;condemnados no mes­
gião, e suas explicações sobre a Escriptura: mo concilio.
não recebia as obras de S. Jeronymo, de CLEODio ou CLEOBULO—foi um herege con-
Sancto Agostinho, e de S. Grégorio, e sus­ teffipÕfãimo^e^Imão; combateu a religião
tentava que podia ser bispo depois de ha­ christã, e capitaneou a seita dos cleobianos.
ver tido aous filhos adulterinos, e dizia que Negava a authoridade dos prophetas, a
omnipotencia de Deus, e a resurreição; at-
tribuia aos anjos a creação do mundo, e
i Dup. X III Siécle, pag. 190. D'Argen-
tré, loc. cit.
3 Mabillon Annal. Ord. Bened. I. 29, n.
52, 60, 61. Cone. t. 7, pag. 1942. Hist. Lit- 1 Cone. t. 4. Bonif. Ep. 135.
téraire de France, t. 4, pag. 256, 490. 2 Hist. Littéraire de France, t. 4, pag.
3 lbid. 8, 15.
COL 387
asseverava que Jesus Christo não nascera gados com a verdade da pregação dos apos­
d’uma V irgem .1 tolos: elles preponderam aos escrúpulos do
D’esla maneira encontraram os aposto­ scepticismo, c ás objecções de Craiage. A
los e primeiros pregadores do Evangelho sua certeza é pura, mas igual á que (Tcllcs
na Palestina, traditores c contraditores, tinham os coetancos dos apostolos.
que eram cabeças das seitas; homens es­ c2b.*yiU42í>0—Foi um celebre valcntiniano
clarecidos c exercitados na controvérsia, que parece haver applicado ao systema de
entendidos na arte de persuadir o povo, Valcntim os princípios da cabala c da as­
animados do interesse do systema, se assim trologia. 1
posso cxplicar-mc, c da ambição da fama, coLUTuq—Prcsbvtcro de Alexandria, pa­
uc era a paixão ordinaria dos corypheus rocho d‘uma das freguezias da mesma ci­
e todas as seitas. dade, ensinou que Deus não sómente não
Uns adversarios d’esta cspecie oppunham era author do mal, mas lambem que não
aos apostolos todas as objecções que po­ havia mal que d’elle viesse. Refere Sancto
diam cxcogitar, c nada ommittuam a fim de Epiphanio que emquanto Ario fazia grassar
as fazerem persuasivas c victoriosas; por­ d’uma parte a sua impiedade, outros paro­
tanto é claro que os factos que servem de chos, como Colutho, Sarmatho, etc., prega­
base ao Christianismo, foram então discu­ vam diversas opiniões, e que os povos, divi­
tidos com a exactidão mais rigorosa, c so­ didos cm sentimentos, dividiam da mesma
bre elles se fez o mais individual exame. sorte seus louvores, prezando-se uns de
Sc os apostolos fossem apanhados na me­ arignos, e outros de coluthcanos.2
nor infidelidade, seus inimigos a teriam as­ O desejo de adquirir fama produziu a
soalhado, c bem provada que olla fosse, re- heresia de Colutho, porém como era de ta­
bateria os progressos d’uma religião, cuja lentos medianos, e vivia n’um século illu-
moral combatia as paixões, e propunha á minado, teve poucos discipulos.
razão mysterios incomprchensivcis. Pode­ É natural aos homens de luzes medio­
mos julgar d’aquclles tempos pelos nossos: cres a ambição de dominar sobre os de­
se a presumpeao c as paixões tranformam mais homens", mas a mediocridade jamais
hoje cm demonstrações um chuveiro de soube mcncar grandes expedientes para
seitas, que fóra de todo o proposito dispa­ grangear este dominio: assim se separou
ram contra a religião umas allegorias, que, Colutho d’Alexandre, capeando sua ambi­
simplesmente expressadas, não offcrccem á ção com o débil pretexto de que o bispo
razão mais que mofas rasteiras c sediças; de Alexandria era nimiamente circumspe­
que clTcito não fariam sobre os espíritos cto com Ario. Rara elle tomar um tal par­
esses inimigos dos apostolos, se lhes podes- tido não precisava nem de talentos, nem
sem ter lançado cm rosto com fundamento de luzes, nem de merecimentos: esta é a
alguma infidelidade ou impostura? Porem unica traça de que usam os ambiciosos igno­
n’essc mesmo tempo foi quando a religião rantes para fazerem estrondo, c pela qual
christã fez os mais rapidos c estrondosos levarão sempre a sua entre os nescios; mas
progressos, c que a olhos vistos desappare- aos olhos dos sábios sempre os tornou ri­
ceram, e se aniquilaram todas as seita que diculos. Colutho depois de se haver sepa­
a combatiam.2 rado d’Alexandre, se fez bispo de propria
Portanto a evidencia dos factos que os authoridade: o concilio d’Alexandria o de-
apostolos annunciavam, era irrcfragavel- pôz de seu imaginado episeopado, e o re­
•mente ligada con tos progressos do Chris­ duziu ao estado de presbytero.
tianismo, c com a extineção das seitas que D’esta sorte veio a parar no esqueci­
o impugnaram desde o seu nascimento; mento Colutho, assim como os outros fra­
pois que temos debaixo dos olhos factos sub­ cos embrulhadores, que tinham projectado
sistentes, que são necessariamente ligados fazerem-se famosos e estabelecer seitas.
com a verdade do testimunho dos aposto­ Em séculos ignorantes haveríam formado
los, e tão necessariamente ligados, como o scismas perigosos, porque Adalberto, Wal-
são os monumentos mais authenticos com do, Arnaldo de Brexa e muitos outros, que
os factos mais irrefragaveis. Nem o lapso assolaram a Igreja, não preponderavam a
do tempo, nem a infidelidade dos testimu- Colutho, porém estes appareccram em urp
nlios poderão jamais variar estes factos li- século, em que parte do clero sem costu­
mes c sem luzes queria dominar tudo, e
1 Constit. Apost. I 6, c. 8. Théodor. Rcr-
ret. Fab. I. 3. Prcef. Euscb. Hist. Eccles. I. 1 Autor. Apend. ad Tert. de Prcescript.
4 , c. 21. c. 53.
2 Theodorei, ibid. 2 Epiph. Hcer. 69. Philastr. Kan\ 98.
388 COP
sómente defendia a religião por meio dos ca c para entre os arabes, aonde eram to­
golpes da authoridade. leradas todas as religiões. *
—Eram certos devotos da Os que permaneceram no Egypto esta­
Virgem Sanctissima, que lhe tributavam um vam subjugados, mas violentos, c conser­
culto singular, olTereciam-lhe pastcllões, varam contra os imperadores romanos um
que em grego se chamam Collyrides, d’onde rancor invencível: os maus tractamenlos
houveram onomodciCollyridianos. As mu­ dos governadores e ofllciaes do imperio, os
lheres eram as sacerdotisas d’esta ccremo'- vilipendios c ultrajes por que faziam pas­
nia: tinham um carrinho com seu assento sar os egypcios, c mais de cem mil mortos
quadrado, que cobriam com uma toalha, e desapiedadamento cm diversas occasiõcs
em certo tempo do anno apresentavam um por haverem recusado reconhecer por le­
pão, que oíTcrcciam em nome de Maria, c gitimo o concilio de Calccdonia, tinham ar­
depois tomava cada uma a sua parle. San­ raigado no coração de todos os egypcios
cto Epiphanio combateu esta práctica como um odio implacável contra os imperadores
um acto dMdolatria, e com o fundamento de e um ancioso desejo de se vingarem do
que as mulheres não podiam ter parte no sa­ quem os opprimia.2
cerdócio. 1 Os patriarchas da sua seita mandaram
pqxsr.iExciosos—E o nome que se dá a vigários para os manterem n’estas disposi­
algunríiTÜTgos hereges, que não conheciam ções e os conservarem constantes contra as
outra regra, nem outro legislador mais que leis dos imperadores: no tempo dTIeraclio
a sua consciência: este erro foi renovado enviava o patriarcha Benjamin do fundo
no xvi século por certo allemão, de nome dos desertos do baixo Egypto o seu vigário
Mathias Koutscn, que d’clle passou ao atheis- Agathon, disfarçado em torneiro, a consolar
mo. Veja-se o exame do Fatalismo, 1.l.° os egypcios, conferir-lhes os sacramentos e
(w h t a s , coFiTAS ou -CQEIAS—E o nome levar-lhes a Eucharistia.
que daíTaos egypcios efiristãos, jacobitas Encerrava pois o Egypto dous povos quo
ou monophisitas para os differençarem dos se aborreciam de morte, os gregos ou ro­
outros habitantes do Egypto. Para melhor manos, que occupavam todos os empregos
darmos a conhecer a sua origem, devemos e dignidades, e dos quaes se compunha a
remontar ao tempo de Dioscoro. maior parte das tropas; e outro povo, a sa­
Dioscoro, patriarcha d’Alcxandria, foi ber, os egypcios, que eram incomparavel­
acerrimo promotor do eutychianismo: a mente mais numerosos, e que formavam os
authoridade que lhe dava o seu emprego, cidadãos, lavradores e artifices.
as suas generosidades, que o fizeram ado­ N’csta situação se achava o Egypto, quan­
rar do povo, e o horror que industriosa- do os scrracenos conquistaram à Palestina
mente inspirou a todos os egypcios a res­ c a Syria: os mesmos egypcios os convida­
peito dos inimigos d’Eutyches, que repre­ ram ao seu paiz, c por um traclado que ce­
sentou como nestorianos, derramaram o lebraram com Amrou, general d’Omar, se
eutychianismo por todo o Egypto. uniram a elle contra es romanos, e poze-
O concilio de Calccdonia, que depôz Dios­ ram os egypcios debaixo do dominio dos
coro, irritou os animos e áccendeu o fana­ scrracenos.' Todos os gregos ou romanos
tismo em toda aquella região: a severidade fugiram e abandonaram o Egypto, que
das leis dos imperadores contra os inimi­ d’ahi cm diante só foi habitado pelos natu­
gos do concilio, c os artificios dos sequazes raes c scrracenos, os quaes pozeram um
de Dioscoro alentaram o fanatismo, c en­ tributo pessoal sobre os egypcios, c resti-
cheram todo o Egypto de reboliço, de divi­ tuiram á posse de seus privilégios o pa­
sões e de motins. triarcha Benjamin.
Final mente, o poder imperial estabeleceu Como os jacobitas quasi todos.eram na-
a authoridade do concilio: de Constantino-
pla eram nomeados para o Egypto patriar­ 1 Hist. Palriarch. Alexand. pug. 164.
chas, bispos, magistrados e governadores, 2 Quando os govmiadores comiam, fa­
excluídos os naturaes de todas as dignida- ziam sustentar a mesa par quatro egypcios,
des ecclesiasticas, militares e civis; mas e limpavam as mãos ás suas barbas, que
nem assim se extinguiu o fanatismo: parte era o vilipendio mais insupportavel que llies
dos inimigos do concilio de Calcedonia se podiam fazer, e que ainda hoje excita a có­
retirou para o alto Egypto, outra parte sa- lera c o odio dos egypcios contra os impera-
hiu das terras do imperio, e passou á Áfri­ radores romanos. Também não se riscou
ainda da sua memoria a horrível mortan­
dade que houve para os obrigar a receberem
1 Epiph. H ar. 79. o concilio de Calcedonia.
COP 389

turacs do Egyplo, cm muito pouco tempo D.V DOUTRINA DOS COPHTAS


perderam o uso da lingua grega, c fizeram
os olíleios ria do paiz, como ainda hoje suc­
cede. São pois os cophtas todos egypcios, Os cophtas rejeitam o concilio de Calce-
que fazendo profissão da crença dos jacobi- donia c a carta de S. João a Flaviano, e
tas, estão sujeitos ao patriarcha ^Alexan­ não querem convir que haja duas nature­
dria, c fazem os ofiicios na lingua vulgar. 1 zas em Jesus Christo, posto que conheçam
Os cophtas primciramcnle gosaram de que a divindade c a humanidade não estão
todos os privilégios que lhes concedera confundidas na sua pessoa; c á excepção
Amrou, general d’Omar, a quem o Egypto d’esta especic de monophisismo, não teem
se entregou, para o que tarnbem concorria historia particular: convccm corn os catho­
o receio que tinham os serraccnos de que licos, c com os gregos orthodoxos c scis-
os egypcios, sendo maltractados, tornassem maticos cm todos os outros pontos concer­
a chamar os romanos; porém tanto que os nentes á religião. 1
governadores serracenos tiveram noticia É claro por todos os livros, symbolos e
que Leão se rcbellára contra Justiniano, e rituacs dos cophtas reconhecerem clles a
que os romanos depunham c crcavam im­ presença real, darem culto ás imagens, ro­
peradores, segundo suas phantasias, logo garem pelos mortos, c terem todas aquellas
lhes prohibiram o exercício pübliGO da re­ prácticas que serviram de pretexto ao scis­
ligião christão. 2 E então lhes foi preciso ma dos presumistas reformados.
comprarem aos prefeitos a tolerância que Esta igreja porém está separada da ro­
haviam practicado, c os serracenos vieram mana ha mais de mil e duzentos annos, e
a parar em tyrannos e perseguidores cruéis, portanto ou tudo quanto a mesma igreja
que os toleravam unicamente para tirar de Roma crê c practica hoje acerca da Eu­
d’elles tributos arbitrarios e contribuições charistia, dos sacramentos, do purgatorio
excessivas. c das imagens era ensinado e practicado
Porém no meio d’cstas perseguições, e antes do scisma de Dioscoro por aquella
apesar dos scismas que os dividiram, os mesma igreja de que os cophtas, assim
cophtas se contiveram, e até se vangloria­ como os latinos, faziam uma parte, ou é
vam de que cm todos esses tempos tiveram forçoso que as igrejas cophta e latina fizes­
martyres e confessores, sanctos c milagres; sem as alterações que os reformados ar-
e por meio de tacs imposturas manicem gúcm na sua crença, na sua liturgia e no
ainda hoje no seu scisma o povo credulo e seu culto: mas é impossível que se déssem
ignorante.3 as mãos ácerca de tantos objectos, sobre os
As revoluções succcdidasno imperio dos quacs não havia necessidade alguma de se
califas não tem suavisado a sorte dos co­ reunirem.
phtas e dos christãos, que apesar de tantos Portanto é palpavcl que ao tempo do
ostorvos, se teem comtudo perpetuado no scisma d’Eutyches ensinava e practicava a
Egypto até os nossos dias. igreja catholica o que hoje ensina e pra­
Em todo elle não ha nação mais tyran- ctica ácerca da Eucharistia, sacramentos,
nisada que os cophtas, porque entre clles culto dos sanctos e da oração pelos mor­
não ha pessoa que se possa fazer estimar tos; se pois houve mudança nos pontos que
dos turcos pelas letras ou temer pela au- hoje professa foi antes do mesmo Eutychcs;
thoridade: são vistos de todos como o re­ porém é indubitavel que toda a igrcj.a, an­
busco do genero humano. Seu numero é tes do concilio de Calcedonia, cria e pra­
boje limitadíssimo: quando Amrou con­ cticava quanto a igreja romana crê e pra­
quistou o Egypto eram mais de seiscentos ctica hoje ácerca de todos estes objectos.
mil os que pagavam tributos; hoje não pas­ No artigo Ncstorio provamos ser geral esta
sam de qujnzc mil. * Vamos examinar o crença antes do primeiro concilio ^Ephe­
estado actual d’esta seita pelo que toca á so, c"‘ainda antes do niceno, c que era im­
religião. possível que esta crença fosse então nova
na igreja.
É logo a crença da igreja romana a da
1 Benandot, Perpet. de la Foi, t. 4, /. 1, igreja primitiva: que razão tiveram poisos
c. 9. Hist. Patriarch. Alex. part. 2. Const.
de Bollandus, mez de junho 79, etc. 1 Benandot, hist. Patr. Alex.. pag. 336,
2 Hist. Patriarch: Alex. pag. 183. part. 2. Perpet. de la Foi, t. 4, l. l.°, et 9.
3 lbid. pag. 182. fíolland. junho, 1, 5. Nouveaux hlemoires
L Nowvelle relation d'un voyage fait en de la compagnie de Jesus, dans le Levant, t.
Egypte par Vaussct, pari. Io, pag. 288. 1. Lettre du Pèrc Bertan au Père Fleurian.
390 COP
primeiros reformadores para sc separarem Bem que os sacerdotes não tenham obri­
d’ella? Que motivo justifica os protestantes gação d’observar a castidade, comtudo h a
dos nossos dias para não voltarem a uma alguns que nem são casados, nem o foram
igreja, que unicamente crê o que a Igreja Entre os cophtas não se procura com gran­
cria nos primeiros séculos, aquelles sécu­ de ancia o estado sacerdotal, antes regular­
los tão fecundos em portentos de virtude, mente é preciso conslrangel-os a que o accei-
que produziram tantos martyres e tantos tem. Como os sacerdotes são exlrahidos do
sanctos? E como poderá Mr. Tillotion obje- povo, que sómente vive do seu trabalho, at-
ctar-nos a affectada difficuldade de se sal­ tendem a que este emprego lhes rouba a
var na igreja romaua para justificar o scis- maior parte do tempo, e lhes estorva seus
ma das igrejas reformadas? officios, porque a Igreja os utilisa pouco
Teem asseverado os protestantes que o ainda que clles hajam de manter grande fa­
patriarcha Machario alterara a liturgia dos milia. Muitas vezes são vistos sahir das
cophtas, c queriam provar com esta mu­ lojas na idade de treze annos para serem
dança ser possível haver outro patriarcha es­ elevados ao sacerdócio: ainda que até en ­
tabelecido na Igreja alguma nova doutrina, tão hajam sido tecelões, alfaiates, ourives e
sem quç.,a ella se oppozcssem, e por con­ abridores, c como saibam lêr em cophta,
sequência sem que se podesse assignalar a isto basta^ porque a missa e o officio se d i­
época de tal mudança: porém o exemplo zem n’esla lingua, que a maior parte n à o
do patriarcha Machario não é proprio para entende.
provar as suas conjecturas, porque os co­ Os sacerdotes jamais prégam, e comtudo
phtas tinham muitos usos, que não eram são summamente reverenciados do povo, c
fundados sobre a tradição, c o patriarcha as pessoas de maior consideração c respeito
o poder de mudal-os, sem que esta altera­ se curvam diante d’elles para beijar-lhes a
ção causasse na igreja cophta alguma dif­ mão, e os rogam para que lh'a ponham s o ­
ficuldade; porém não se ha de pensar assim bre a cabeça. 1
acerca da Eucharistia e dos demais sacra­
mentos; os patriarchas jamais ousaram em-
prehender alguma mudança sobre estes DOS JEJUNS DOS COPHTAS
objectos, e se alguma vez intentaram va­
riações sobre pontos que não eram mera­
mente dè liturgia, sempre causaram gran­ •São os cophtas como os demais christaos
des turbulências.1 do Oriente muito observantes do jejum:
teem quatro quaresmas no anuo; a primeira
é a que precede á Paschoa, e principia nove
DO GOVERNO ECCLESIASTICO DOS COPHTAS dias antes da que observam os latinos; pas­
sam sem comer, nem beber, nem fumar ató
se acabar o officio, que ó perto d’uma hora:
A igreja cophta conservou sempre o seu a segunda é de quarenta e tres dias para o
governo, sendo , a que menos se tem des­ clero e de vinte e tres para os outros: esta
viado da sua instituição. O seu primeiro quaresma é antes do natal: a terceira se
chefe é o patriarcha d"’Alexandria, succes­ practíca antes da festividade dos apostolos
sor de S. Marcos, e depois d’elle são os S. Pedro e S. Paulo, anda por espaço de
bispos em numero de onze ou doze, os sa­ treze dias, e principia depois da semana de
cerdotes, diaconos, clérigos inferiores, mon­ Pentecostes: a quarta é antes da Assurn-
ges e leigos. pção, e dura quinze dias. Não ha idade
Para a eleição do patriarcha se ajuntam proscripta entre elles para jejuar: e não se
no Cairo os bispos, sacerdotes e principaes poderá crêr a grande conta em que elles
da nação, c sempre se escolhe o patriarcha teem as duas quaresmas e jejuns.
entre os monges, porque é da instituição
que elle tinha vivido em castidade por toda
a suã vida. D’ALGUMAS PRÁCTICÀS PARTICULARES
Os bispos estão em tal dependencia do ar­ ENTRE OS COPHTAS
cebispo: elle os elege, póde-os depôr e cx-
commungar, c clles são nas provincias os
recebedores das rendas do patriarcha, que i.° Os cophtas administram o sacramen­
consistem n’uma decima destinada á sua to da extrema-unção juntamente com o da
conservação.
1 Renandot, hist. Patriarch. Alex. Collect.
1 Renandot, loc. cit., pag. 496. Liturgiar Oiiental.
DAV 391
penitencia: não negam que S. Thiago re- phos sectarios d’Antitestenes, que pisavam
commcndou este sacramento para os enfer­ aos pés toda a especie de regra de costu­
mos; porém distinguem tres generos de mo­ mes c de decoro: o mesmo nome tiveram-no
lestias, as do corpo, as da alma, que são os os turlupinos, que se entregavam publica-
peccados, e as do espirito, que são as aíllic- mente e sem remorsos ás dissoluções mais
çÕes; o teem para si que a unção ó util para vergonhosas.
todos. Eis-aqui o modo como elles admi­ CYBENAjCos— Appareceram pelos annos
nistram este sacramento. de 19o, e affirmaram não ser preciso orar,
0 sacerdote depois de haver dado a ab­ porque Jesus Christo dissera que sabia de
solvição ao penitente, assistido d’um diaco­ que nós necessitavamos.1
no, principia incensando, e logo toma uma dadoçs—Chefe dos messalianos. Veja-se
alampada, cujo oleo benze, e n’ella accende este artigo.
uma torcida, depois reza sete oraçòes, c ou­ d a v id d e d jx a x d o —adoptou os princípios
tras tantas lições, extrahidas da epistola de d’Amauri seu mestre, e escreveu para o
S. Thiago, toma o oleo bento, e com clle justificar. Ainda se conservavam em Fran­
faz uma unção sobre a testa, dizendo Deus ca restos dos catharos ou manicheus, vin­
te cure em%nome do Padre e do Filho: unge dos da Italia, que atacavam a authoridade
igualmente a todos òs assistentes, receian- dos ministros da Igreja, as ceremonias e
do, dizem elles, que o maligno espirito passe os sacramentos: negavam a resurreição, a
para algum dos mesmos. distiDCção do vicio e da virtude, etc.* Per­
2. ° Teem nas suas igrejas grandes pias suadidos
ou de acharem no systema d’Amauri
lavadouros, que enchem d’agua no dia da provas para suas opiniões, o adoptaram e
Epiphania: o sacerdote a benze, c n’ella asseveravam que o Deus Padre cncarnára
mergulha os meninos; o povo camponez se em Abrahão, o Deus Filho em Jesus Chris­
mette dentro d’ellas; nas praias do Nilo fa­ to, que o reino de Jesus Christo havia ac;
zem a benção sobre o mesmo rio, cm que bado, c que por consequência já os sacr
a plebe logo se entra a banhar. Este costu­ mentos não tinham virtude, e os ministr
me ha-o também entre os abyxins. Não se­ jurisdicção, nem authoridade legitima, p(
ria talvez esta ceremonia a que fez persua­ que era chegado o reino do Espirito Sane.
dir a alguns que os cophtas honravam o e que a religião devia ser toda interior.
Nilo como a uma divindade? D’aqui concluiram estes sectarios que to
3. ® Está em uso entre os cophtas dissol­
das as acções corporeas eram indifferentes.
verem o matrimonio não sómente em caso Os sectários, que são de ordinário homens
d’adulterio, mas também quando ha gran­ ardentes, arrebatados e cheios de paixão,
des enfermidades, antipathias, dissensões no jámais deixaram de tirar taes consequên­
governo domestico, e muitas vezes por mero cias de princípios similhantes aos d’Amau-
desgosto. A parte que pretende dissolver o ri, e d’elles se serviram em todo o tempo a
seu matrimonio se dirige logo ao patriar­ fim de se entregarem denodadamente a to­
cha ou ao seu bispo para requerer-lh’o, e dos os prazeres. Estes restos dos catharos
se o patriarcha não póde dissuadil-a, lh’a se entregaram pois a toda a sorte de de­
concede. Quando o prelado a nega, vão pe­ vassidões com o pretexto de que era che­
rante o CaniSj ou magistrado turco, fazem gado o reino do Espirito Sancto, que as
dissolver o seu casamento e contractam ou­ acções corporeas eram indifferentes, e que
tro á turca, a que elles chamam casamento por consequência a lei prolubia as d’uma
de justiça. certa ordem, e prescrevia as d’outra, e já
4. ° Teem o uso da circumcisão, que to­não tinha força, e a ninguem obrigava: por­
maram dos mahometanos ou dos judeus, tanto se precipitavam nos maiores excessos,
mas nà verdade nós poderiamos reputal-a e fizeram uma seita, que a principio foi oc­
menos, como ceremonia religiosa, do que culta, e que depois descobriram alguns fal­
como iim uso do paiz, porque posto que sos proselytos.
d’ella'façam menção os seus rituaes, pare­ Certo ourives, por nome Guilherme, era
ce haverem adoptado este costume unica­ o seu cabeça, e se jactava de enviado de
mente por condescendência com os maho­ Deus; prophetisava que antes de cinco an­
metanos: também se absteem do sangue e nos soffreria o mundo quatro pragas; a fo­
da carne dos animaes suífocados.1 __ _ me nos povos, a espada nos principes, os
f 1Tiveram este nome os philoso terremotos nas cidades e o fogo nos prela­
dos da Igreja: tractava o papa d’Anti-Chris-
1 Nouveaux Memoires de Missions de là to, todos os ecclesiasticos de seus membros,
Compagnic de Jesus dans le Levant, t. 2,
loc. cit. Offinann. Lexicon.
392 DEC
e Roma de Babylonia. Também prophetisa- reis caos povos, c para separarem por este
va que el-rei Philippe Augusto muito bre­ artificio as almas simples da communhão
vemente poria todas as nações debaixo da da igreja de Jesus Christo. É com o intuito
obediência do Espirito Sancto. de remediar taes inconvenientes, que nós
Foram présos quatorze d’estes sectarios, arcebispos e bispos, reunidos em Paris por
c conduzidos ao concilio, que cntào se fazia ordem do rei, com outros delegados, que
em Paris: cathequisaram-os, mas perseve­ representamos a igreja gallicana, temos jul­
rando em seus erros dez d’elles, foram quei­ gado conveniente apoz uma madura delibe­
mados no mez de dezembro de 1210. Da mes­ ração, estabelecer e declarar:
ma fôrma tractaram a memoria d’Ainauri, «l.° Que o padre sancto c seus successo­
cujos ossos foram desenterrados e queima­ res, vigários de Jesus Christo, assim como
dos. No mesmo concilio foram condemna- toda a Igreja, não receberam poder de Deus
dos os livros de metliaphysica, e physica de senão sobre as cousas espiriluacs c que
Aristóteles, que eram vistos como as fon­ dizem respeito á salvação, c não sobre as
tes dos erros d’Amauri, c se queimaram cousas temporaes c civis; Jesus Christo en­
também as obras de David de Dinando. Esta sinando-nos que seu reino não é (Veste mun­
seita não era mais que uma tropa de fana­ do, e n’outro logar, que é preciso dar a Cé­
ticos dissolutos, que não podiam ser olhados sar o que c de Ccsar e a Deus o que c de
como reformados, porque nenhum de seus Deus; c que assim este preceito do apostolo
princípios era honesto; também não podiam S. Paulo não pôde em nada ser alterado ou
consideral-os como- defensores da religião, destruído: Que toda a pessoa seja submissa
viam-se morrer sem interesse, e a sua seita aos poderes superiores; porque não ha po­
se extinguiu.1 der que não venha de Deus, e c ellc que or­
p fv ip Jorge— Yeia-se Jorge. dena os que existem sobre a terra; aquclle
n r n r t B t y " no RLKfM DE FRANCA DE 1682 pois que se oppòe aos poderes, resiste ao pro­
—E^r.a mfòlaraçao Toi muito tempo consi­ prio Deus. Declaramos por consequência
derada pelo clero francez como uma de que os reis e soberanos não submissos
siias regras incontestáveis c como o palla- a poder algum ecclesiastico, por ordem
dio de suas liberdades. Ha poucas doutri­ de Deus, nas cousas temporaes, não po­
nas que tenham sido o objecto d’uma mais dem ser depostos directa nem indirccta-
viva e d’uma mais longa discussão. Para mente pela authoridade dos chefes da Igre­
ractar com ordem o que diz respeito ádc- ja; que seus vassallos não podem ser 'dis­
laração de 1682, principiaremos referindo pensados da submissão c da obediência que
» texto; em seguida faremos a sua historia; lhes devem, nem absolvidos do juramento
e finalmentc pesaremos o valor da doutrina do fidelidade; e que esta doutrina, necessa­
que contém. ria para a tranquillidade pública, e não
menos vantajosa para a Igreja que para o
ARTIGO i estado, deve ser inviolavelmentc seguida
como conforme á palavra de Deus, á tra­
Texto da declaração de 1682 dição dos sanctos padres, e aos exemplos
dos sanctos.
«Muita gente se esforça por arruinar os «2.° Que a plenitude de poder que a san­
decretos da igreja gallicana e 'suas liber­ cta sé apostólica e os successores do padre
dades, que nossos avoengos sustentaram sancto, vigário de Jesus Christo, leem sobre
xjom tanto zelo, e por destruir seus funda­ as cousas espirituaes é tal, que os decretos
mentos, apoiados nos sanctos canones e na do sancto concilio ecumcnico de Constança,
tradição dos padres. Acontece também que contidos nas sessões 4 e 5, approvados pela
sob pretexto d’estas liberdades, não temem sancta sé apostólica, confirmados pela prá-
atacar a primazia do sancto padre e dos ctica de toda a Igreja e dos pontifices ro­
pontifices romanos, seus successores, insti­ manos, e observados religiosamente cm to­
tuída por Jesus Christo; a obediência que dos os tempos pela igreja gallicana, perma­
lhes é devida por todos os christãos, e a necem em sua força e virtude, e que a
magestade, tão venerável aos olhos de to­ igreja de França nao approva a opinião
das as nações da sé apostólica, onde se en­ dos que atacam estes decretos, ou que os
sina á fé e se conserva a unidade da Igreja. enfraquecem, dizendo que sua authoridado
Os hereges por outro lado nada omittem não é bem estabelecida, que não são appro­
para apresentar esta potência, que mantém vados, ou que só dizem respeito ao tempo
a paz da Igreja, como insupportavel aos do scisma.
«3.° Que assim o uso do poder apostolico
1 D'Argentrê Collect. Jud. t. 1. deve ser regrado segundo os canones feitos
DEC 393
pelo espirito de Deus e consagrados pelo espantosos excessos; lançou-se como media­
respeito geral: que as regras, costumes e neiro entre ellcs c a Igreja, esquecendo o
constituições no reino e na igreja gallicana que em outro qualquer se encontra, e mais
devem ter sua força e virtude, c os usos dos senhor de si, seria o primeiro a perceber
nossos padres permanecerem inabalavcis; que a Igreja não acccita similhante media­
(pio 6 mesmo da grandeza da sancta sé apos­ ção; que, nada tendo a ceder, não negoceia
tólica que as leis e costumes estabelecidos nunca, e que em qualquer grau que se al­
do consentimento d’csta sé respeitável e das tera a sua doutrina, se ella espera com pa­
igrejas subsistam invariavelmente. ciência o seu arrependimento, o momento
«4.° Que o papa tem a principal parte virá em que a propria caridade chame a
■nas questões da fé; que estes decretos at- justiça e a necessidade de pronunciar sua
tingem todas as igrejas, c cada uma em sentença irrevogável.
particular; mas que nào obstante o seu jul­ «A fim de deixar aos espíritos tempo de
gamento não é infallivcl, a menos que o' se acalmarem, Bossuet tentou demorar as
consentimento da Igreja não intervenha. cousas; propôz examinar a tradição sobre
«Temos resolvido enviar a todas as igre­ o objecto submettido ás deliberações da as­
jas de França, c aos bispos que àhi presi­ sembléia. Xão foi escutado. O rei queria
dem por authoridadc do Espirito Sancto, uma decisão prompta; seus ministros op-
estas maximas que recebemos dos nossos punham-sc vivamente a toda .a especie de
padres, a fim de que digamos todos a mes­ delonga, e os prelados, da sua parte, não
ma cousa, nutramos todos os mesmos sen­ mostravam menos zelo cm comprazer com
timentos, e sigamos todos a mesma dou­ o monarcha; desde então Bossuet não pen­
trina.» sou mais cm afastar o scisma eminente de
que a França estava ameaçada, adoçando
ARTIGO II ao menos pelas fôrmas da expressão, as
maximas que não podia impedir que se
Historia da famosa declaração proclamassem; illudido pelo louvável de­
sejo d’evitar um mal presente, o grande
Levantàra-se um desagradavel pleito rc- homem não prevê que os preparava mais
lativamente á realeza. O bispo de Pamiers perigosos para o futuro. Alguma cousa to­
appellou para a còrte de Roma; Innocencio davia o atormentava, e vagas inquietações
xr sustenta vivamente a causa do appellan­ se elevavam em sua alma, como o attestam
te. D’ahi um conílicto desagradavel entre muitas passagens do seu sermão sobre a
o rei e o papa. «A maior parte dos bispos, Unidade. Com etTeito, a arte das palavras
diz Fénélon, se precipita d’um movimento não podia mudar o fundo da doutrina que
cego do lado para onde o rei se inclina, o o clero tinha ordem d’adoptar solemncmen-
que nào é para estranhar; ellcs mão co­ te...........A declaração do clero de França
nhecem senão o rei de quem recebem sua foi recebida com uma especie d’estupor pe­
dignidade, sua authoridadc*, suas riquezas; las igrejas estrangeiras. O papa Innocencio
emquanto que, no presente estado de cou- xi aflligiu-se profundamente, fallou viva­
sas, pensam nada ter a esperar, nem a te­ mente d’este fastidioso pleito, vituperou,
mer da sé apostólica. Vêem toda a disci­ mas a condemnação d’elle estava reservada
plina entre as mãos do rei, e ha quem os para Alexandre viu. A 30 de janeiro de
tenha ouvido muitas vezes repetir que, mes­ 1691, vendo-se a ponto de comparecer uo
mo em matéria de dogma, quer para esta­ tribunal do soberano juiz, e, como elle mes­
belecer, quer para condemnar, é mister con­ mo disse, não querendo que o taxassem de
sultar ò vento da côrle. Ha todavia ainda negligente, fez publicar a bulla Inter mul­
alguns piedosos bispos que fortaleceríam tiplices em presença de doze cardeaes; eis-
na direita senda a maior parte dos outros, aqui um extracto d’esta peça tão impor­
se a multidão não fosse arrastada ao mau tante:
lado por chefes corrompidos em seus sen­ «Depois de ter ouvido um grande nu­
timentos. mero de nossos irmãos, nossos cardeaes da
«Bossuet, diz M. de Lamenais, que nin­ sancta igreja romana, e de ter visto as re­
guem accusará de ter partilhado estas vis soluções de muitos doutores em theologia
paixões (as dos bispos que se precipitam c em direito canonico, que especialmente
cegamente do lado para onde o rei se in­ designados por nós para examinar esta
clina), mas que não era inteiramenlc isem- causa, a discutiram com todo o cuidado e
pto d’uma certa fraqueza de corte, Bossuet nos pozeram ao facto de todos os seus por­
tentou moderar o calor d’estes confrades. menores; seguindo os passos dTnnocencio
Via-os prestes a precipitarem-se nos mais xi, nosso predecessor, de feliz memória, quo
394 DEC
reprovou, annullou e baniu tudo o que se claramus.» Bossuet havia já declarado o
havia feito na dita assembléia, na questão da fahioso abeat quo libuerit. Luiz xiv juntou-
realeza, com tudo o que se lhe seguiu; que­ lhe uma carta muito respeitosa. «Sanctis­
rendo além d’isso que se considerem como simo padre, dizia elle, esperei sempre muito-
especificadas aqui as actas da assembléia da elevação do vossa sanctidade ao pontifi­
de 1682, tanto no que diz respeito á exten­ cado, para gloria da Igreja, e ornamento
são do direito da realeza, como no que toca da nossa sancta religião; experimento agora
á declaração, sobre o poder ecclesiastico, os eíTeitos da alegria cm tudo o que vossa
assim como também todos os mandatos, sanctidade faz de grande e de util para o
sentenças e editos: Declaramos, depois de bem d’uma e d’outra. Isto redobra o meu
uma madura deliberação e em virtude da respeito filial para com vossa sanctidade;
lenitude da authoridade apostólica, que to­ e como procuro testimunhar-lh’o pelas pro­
S as as cousas o cada uma das cousas que vas mais fortes de que sou capaz, tenho o
foram feitas na sobredita assembléia do prazer de fazer saber a vossa sanctidade
clero de França de 16S2, não só o que toca que dei as ordens necessarias para que as
á extensão do direito da realeza, mas á de­ ordens contidas no meu edito de 2 de marco
claração sobre o poder ecclesiastico e ás de 1682, concernentes á declaração feita pelo
quatro proposições que elle contém, com clero do reino, ao que as conjecturas d’en-
todos os mandatos, sentenças, editos, etc., tão me obrigaram, não tenham consequên­
são de pleno direito nullas, invalidas, illu- cia alguma; c como desejo não sómente que
sorias, plena e inteiramente destituídas de vossa sanctidade seja informada dos meus
força e d’efTeito desde o principio; que são sentimentos, mas também que todo o mun­
e ainda o serão perpetuamente, c que nin­ do saiba, por teslimunho público, a venera­
guém é obrigado a obscrval-as ou observar ção que tributo ás vossas grandes qualida­
qualquer uma d’ellas, fossem embora mu­ des, não duvido que vossa sanctidade m e
nidas do sêllo do juramento. Declaramos corresponda também por todas as sortes de
ainda que se devem considerar como não provas e de testimunhos de sua afieição pa­
acontecidas e como se nunca tivessem exis­ ternal para comigo. Entretanto rogo a Deus
tido. E todavia, para maior precaução e que conserve vossa sanctidade felizmente
por necessidade, de nosso proprio movi­ durante longos annos.»
mento, de sciencia certa, depois d’uma ma­ Luiz xiv, julgando sem dúvida ter feito
dura deliberação e em virtude da plenitu­ bastante, não pensou mais nos quatro arti­
de do nosso poder, improvamos, banimos, gos: tinha então cuidados que lhe pareciam
invalidamos, anuullamos e despojamos ple­ mais importantes; e teve, no fim do seu rei-
na e inteiramente de toda a força e eíTeito nado, tantos negocios a tractar, que quasi
os actos e disposições sobredilas e todas as se não poderia criminal-o por não ter ve­
outras cousas acima mencionadas, e pro­ lado mais nas consequências funestas de
testamos perante Deus contra ellas e de sua sua negligencia sobre este ponto.
nullidadc.» Seus successores, e sobre tudo os parla­
Não entraremos aqui na exposição das mentos, perseguiram de novo a execução
medidas adoptadas pelo chefe da Igreja, re- da famosa declaração, e todos os professo­
lativamcnte aos privilégios dos embaixado­ res de theologia, tomando posse de suas ca­
res. Feridos dos males que iam derramar deiras, foram obrigados por juramento a
sobre a igreja de França, os prelados es­ ensinar os quatro artigos. Esperemos que
creveram esta carta ao papa Innocencio xu: a verdadeira liberdade religiosa não porá
«Prostrados aos pés de vossa sanctidade, obstáculos á liberdade d’opiniÕes.
professamos c declaramos que estamos ex­
tremamente desgostosos, e além de tudo o ' ARTIGO III
que se possa dizer, do que se practicou na
assembléia sobredita, que tão soberana­ Authoridade da declaração
mente desagradou a vossa sanctidade e a
vossos predecessores. Assim tudo o que Tendo sido banida por Innocencio xi.
pôde ser tido como ordenado n’esta assem­ Alexandre vm, e Pio vi, a declaração é,
bléia, concernente ao poder ecclesiastico e sem valor. No entanto um homem conven­
á authoridade pontificial, nós o temos e de­ cido das doutrinas que ella encerra, nao
claramos que se deve ter como não orde­ deve inquietar-se por isso. Eis a questão
nado. Quidquid in iisdem commitiis circa que deu logar a esta decisão:
ecclesiasticam potestatem et pontificiam au- «Sanctissimo Padre, N...... confessor em
tlw ritatem decretum conscribi potuit, pro França, consulta mui humildemente vossa
non decreto habemus et habendum esse de­ sanctidade, para saber se póde e deve ab-
DEC 395
solvor os ecclesiasticos que recusam sub- em vigor; outros nos direitos concedidos
meltcr-so á condemnabo pronunciada pela por Jesus Christo ao seu vigário. O pensa­
sancta sé, dos quatro artigos do clero de mento dos primeiros respeita á historia do
França. Seria bom se se podessem cortar direito canonico, o dos segundos vai occu-
bastantes questões, e apaziguar bastantes par-nos.
perturbações de consciência.» Julgaríamos inútil observar que, pelo di­
Resposta:—«A sagrada penitenciaria, de­ reito do seu cargo, o papa tem o poder de
pois de ter maduramente examinado a ques­ instruir os principes, de lhes inflingir pe­
tão proposta, julgou dever responder que nas canonicas, quando commettam faltas
em verdade a declaração do clero de Fran­ graves no governo da republica, se algum
ça, de 1682, foi fortemente improvada pela amigo dos reis não tentasse subtrahil-os a
saneia sé. e seus actos banidos, declarados toda a jurisdicção dos soberanos pontifices,
nullos, e de nenhum cíTeito; que todavia porque então não poderíam ser excommun-
nenhuma nota de censura theologica foi gados pelo faclo do seu cargo, pois que po­
applicada á doutrina que cila encerra; que dem exceder-se (Fteury).
por consequência se podem absolver sacra- A questão precisa é pois saber se o papa
mentalmente os sacerdotes que adherem tem direito de depôr os reis.
ainda a esta doutrina de boa fé, c com uma Alguns theologos concederam ao papa
intima persuasão; com tanto que d’outra um poder sobre iodo o universo, tanto nas
parte os julguem dignos de absolvição.» cousas ecclesiasticas como nas politicas, de
Vamos agora examinar a authoridade de sorte que poderia fazer passar o dominio
cada um d’estes artigos. temporal d um principe a outro. Esta opi­
nião é tão pouco fundada, que não nos do­
temos a discutil-a. Rejeitando completa­
§1 mente o poder directo, Bellarmcn reconhe­
ce um poder indirecto. Consiste elle no di­
Primeiro artigo da declaração
reito de dispor dos bens dos fieis, e das co­
• roas dos reis christãos, quando o bem d
O artigo primeiro que referimos acima, sociedade o exige. O chefe da Igreja c
póde dividir-se em duas partes: na pri­ interprete da justiça c da verdade; de'
meira declara-se que os reis c os sobera­ pois poder regular os interesses mundan
nos não são submetlidos a poder algum ec­ segundo uma c outra. Consequentemente
clesiastico, por ordem de Deus, nas cousas estes princípios o papa deve ser juiz da
temporaes. Segundo esta maxima a Igreja divisões que se effeituasscm entre os reis
não teria authoridade alguma para regular e os povos. Póde declarar quando ha abu­
os negocios de moral e de consciência, que so do poder da parte do soberano, e des­
respeitam ás cousas temporaes. Seria pois ligar os vasssallos do juramento de fideli­
subtrahir os poderes da terra á authorida­ dade quandó o bem da justiça, da verdade,
de da Igreja nos mais importantes e mais e da religião o exigirem. Seria bem bello e
numerosos affazeres de consciência. Os san­ bem util para o repouso do mundo, se os
ctos padres não o teem comprehendido: ve­ reis e os povos acceitassem o papa para
mos Sancto Ambrosio fechar a entrada da soberano arbitro. Hoje todos confessam que
.Igreja ao imperador Theodosio por causa os papas, que na idade media exerceram
da matança de Thessalonica. A acção do tão largamentc o direito de depor os reis,
rande imperador estava certamente no renderam um serviço immenso â socie­
ominio do seu poder temporal. A declara­ dade.
ção tendería pois a accusar Sancto Ambro­ Não obstante a opinião que parece ge­
sio de ter practicado um excesso de poder. ralmente admittida, que o papa não tem
A segunda parte do primeiro artigo diz: poder algum directo ou indirecto sobre o
que os reis e os soberanos não podem ser de­ poder temporal dos reis, em 1826, o clero
postos directa nem indirectamente pelos che­ dTrlanda e os vigários apostolicos dTngla-
fes da Igreja, e que seus vassallos não po­ terra professaram a mesma doutrina. Em
dem ser desligados do juramento de fideli­ 1789 as faculdades de theologia de Paris,
dade. Esta questão foi outr’ora vivamente de Douai, de Louvain, de Salamanca e d’Al-
controvertida. calá, declararam que a Igreja não tem o
Na idade media o papado havia tocado o direito de desligar os vassallos do jura­
apogeu do seu poder. Dava coroas, depu­ mento de fidelidade.
nha -os reis, marcava os limites dos impé­ Nós julgamos dever accrescentar a opi­
rios. Quaes eram os titulos d’um tal poder? nião d’alguns theologos de grande renome:
Uns achavam-nos no direito público então «Não ha argumento, diz Fénélon, pelo qual
396 DEC
os criticos excitem um odio mais violento §H
contra a authoridade da sé apostólica, do
ue o que elles extrahem da bulla Unam Segundo artigo da declararão
anctam, do Bonifácio viu.» Dizem elles
que este papa estatuiu n’essa bulla que o O segundo artigo estabelece a superiori­
soberauo pontifice, na qualidade de monar- dade do concilio geral sobre o papa, conse­
cha universal, póde tirar ou dar, a seu bel- quente com clle mesmo o gallicanismo ten­
prazer, todos os reinos da terra. do declarado o papa fallivcl, devia procu­
Mas Bonifácio, a quem faziam esta im- rar-lhe um juiz. Este juiz não podia ser ou­
putaçào, por causa de suas contendas com tro senão o concilio geral. Se o concilio ge­
Philippe, o Bello, justificou-sc assim n’um ral ó juiz do papa, é necessariamente seu
discurso pronunciado em 1302, perante o superior.
consistorio: Üs ultramontanos fazem distineção entre
«Ha quarenta annos que somos versados um papa duvidoso, e aqucllc cujos direitos
no direito, e que sabemos que existem dous são incontestáveis. No caso de dúvida dos
poderes ordenados por Deus; quem pois po­ poderes rcacs d’um papa, é impossível dei­
dería julgar que uma tào grande loucura, xar a uma authoridade incerta um poder
uma tào grande estulticia, tivesse jamais cujo valor dos actos depende absolutamente
entrado cm nosso espirito?» da sua legitimidade. Ora quem póde ser
Os cardeacs também n’uma carta escri­ juiz? Só o concilio geral. Também os con-
ta d’Anagnie aos duques, condes, c nobres cilios de Bale c de Constança, c a práctica
o reino de França, justificaram o papa da Igreja nos mostram o concilio geral su­
n’csles termos: perior ao papa duvidoso. Mas, no caso em
«Queremos que tenhaes como certo que que a authoridade do papa c certa, pôr o
o soberano pontifico, nosso senhor, nunca papa abaixo do concilio, é mentir á Escri-
escreveu ao dito rei que devesse ser-lhe ptura, que estabelece positivamente, c sem
sujeito temporalmente sobre o pó de seu condição, a superioridade do papa sobre
’eino,'nem rccebel-o d’cllc.» toda a Igreja ( Vide Primazia). É constituir
Gerson exprime-se assim sobre o poder um absurdo; porque o papa é a càbeça. o
antifical, relativamente ás cousas tempo- presidente d’um concilio geral. Querer que
ics: «Não se deve dizer que os reis e os o corpo obre sem cabeça não é uma ano­
rincipcs derivam, do papa, e da Igreja suas malia? Mais que isso, é um absurdo. É con­
.erras e heranças, de sorte que o papa tem tradizer a doutrina dos' concilios geraes,
sobre elles unia authoridade civil e juridi­ que, provavelmente, deviam ser tão zelosos
ca, como alguns accusam falsamente Boni­ defensores de seus direitos, como a assem­
fácio vra de o ter pensado. bléia de 1682.
«Entretanto, todos os homens, principes Ora eis o que disse o segundo concilio
e outros, sao sujeitos ao papa tanto quanto geral de Leão: O papa tem uma prim azia
elles quizerem abusar da sua jurisdicçào, suprema e inteira com a soberania e a ple­
do seu poder temporal, c da sua soberania nitude de poder sobre, todo o universo. To­
contra a lei divina e natural; c este poder das as igrejas lhe são sujeitas, c os bis­
superior do papa póde chamar-se antes di- pos de todas cilas lhe devem respeito c obe­
rectivo e regulador, do que civil c juridico. diência. A prorogativa da igreja romana
E t potest superioritas illa nominari potes- não póde ser violada, nem nos concilios ge- *
tas directiva c ordinativa, potius quam civi­ raes, nem nos outros concilios. Mais tarue,
les vel ju ridicae E effectivamente «era, diz em Florença, foi declarado, d’accordo com
Fénélon, entre as nações catholicas um os gregos, que o papa tem um pleno poder
principio recebido c profundamente gra­ para pastorear, reger e governar a igreja
vado nos espíritos, que o poder supremo universal. Certamente! Em taes maximas
não podia ser confiado senão a um prin­ é impossível achar o direito de appéllo do
cipe catholico, e que era urna Ici ou uma papa ao concilio geral! O quinto concilio
condição do contracto tacito entre os povos geral de Latrão declara expressamente que
e o principe: que os povos não obedece­ a authoridade do pontifice romano está aci­
ríam ao principe senão tanto quanto o prin­ ma de todos os concilios (Auctoritatem ha­
cipe obedecesse á religião catholica. Por ef- bet super omnia concilia). Nós não citare­
feito d’esta lei todos pensavam que a nação mos as diversas constituições dos papas que
estava desligada do juramento de fidelida­ declaram suas sentenças infalliveis, que
de, logo que despresando este pacto, o prin­ prohibem toda a espccíe de appéllo de seus
cipe se revoltasse contra a religião.» julgamentos (Gelasio, Njcoláu i. Vide Lab-
be, t. iv, col. 1179.)
DEC 397
Temos já discutido a authoridadc do con­ cio xi não dissesse respeito de modo algum
cilio de Constança. Julgamos todavia ac­ aos dogmas da fé. Carta inútil, se estes bis­
crescentur aqui uma pagina escripta pelos pos não estivessem tão pouco instruídos
authorcs da Dissertação historica sobre as como o resto dos francezes, o que a as­
liberdades da igreja gallicana. sembléia, que se julgava occupada com a
Pará reconhecer que todo este segundo realeza, devia publicar antes de se sepa­
artigo conduz á falsidade, recordai-vos que rar. Não era pois a igreja gallicana que
o papa Martinho v não approvou o conci­ fallava pela bócca dos prelados da assem­
lio de Constança senão nas materias do­ bléia, mas sim aquelles que faziam fallar
gmaticas, e sómente quando representava sua igreja como lhes aprazia para as cir­
a igreja universal: omnia et singula deter­ cumstandas, e o advertiam cm seguida para
minata conclusa et decreta in m a t e r i i s f i ­ prevenir suas inquietações.
d e i per preesens concilium conciliaiialer te­ «Não direi que se quizeram fazer nascer
nere.... ipsa gue sic c o n c i l i a l i t e r facta ap- diíliculdades onde as não havia. Mas é certo
provare et ralificarc, et n o n a l i t e r neque que para levantar esta de que se tracta,
alio modo (Martin. V, sess. 45, concil. somos não sómente esclarecidos pelos pri­
Const.) meiros séculos da Igreja, mas investidos
Ora, sem fallar das diíliculdades que nas­ de luzes; tomemos os actos do concilio
cem do concilialitcr, isto c, da representa­ ecumênico d’Epheso, no anno 431, sob o
ção real ou não da igreja universal na pontificado de Celestino i.
quarta sessão, não é verdade que a supe­ «O papa S. Celestino, Da epistola que di­
rioridade dos concilios geraes sobre o so­ rigiu aos padres d’este concilio, disse-lhes:
berano pontifice, de accordo com todo o «Em virtude de vossa solicitude, enviamos
mundo, está na classe das opiniòcs? Mar­ junto a y ó s nossos sanctos irmãos, Arcadio e
tinho v não approvou, pois, o concilio de Projecto, bispos, e Philippe, nosso sacerdote,
Constança, n’cste ponto. E’portanto evidente. para estarem presentes a tudo o que se fi­
que se não póde, sem ir contra a verdade zer, c para pôr em execução o que temos
do facto, dar como approvados pelos papas prudentemente ordenado.» Direximus p n
e pela Igreja cm geral, os decrctòs d’este nostra sollicitudine sanctos fratres... Arcc
concilio que Martinho v, seus successores, dium et Projectum, episcopus, et Philippun
e a Igreja em gerál não approvaram njun- presbyteruiii nostrum, qui iis quee aguntu
ca. D outra Sorte M. Bossuet não toria po­ intersint et quee a nobis antea statuta sun
dido dizer na sua obra intitulada: Defen­ exsequantur (Concil. Lat., t. m, pag. 618.)
sio Cleri gallicam, que não pedia para o «Figurai-vos duzentos e setenta e quatro
systema do clero de França senão a liber­ patriarchas, arcebispos, c bispos reunidos.
dade de opinião. Dous bispos e um simples sacerdote que
De resto, que os padres de Constança só entram no meio d’clles; são os legados do
teem fallado para um tempo de scisnia, pa- papa: as cartas de que são portadores esta­
recc-mc que se póde concluir do seu pro­ belecem-nos presidentes do concilio. O papa
prio decreto, que não falia de concilio se­ diz que os envia para continuar com a exe­
não como sendo reunido para a extirpação cução do que já decretou, c nenhum dos
do scisma. Mas o comportamento que se­ membros d’está assembléia põe em dúvida
guiram depois não dá logar a dúvidas, pois a superioridade do pontifice romano sobre
que em todo o paiz da christandadc o sus­ o concilio; nenhum representa 'que elle
tentaram sempre, sem que houvesse de sua deve, pelo contrario, submetter seus decre­
parte, que eu saiba, a superioridade do papa tos ao concilio.
sobre os concilios geraes. E tal era ainda «Projecto, bispo e legado dc S. Celestino,
o sentimento d’uma grande parte do clero não diz aos padres d’Epheso que este papa
de França em 1682. É pois bem para ad­ lhes envia seus decretos para os examinar,
mirar que a assembléia tenha pronunciado mas para que partindo do ponto em que
que a igreja gallicana não approvava aquel- parou, e seguindo a mesma linha, acabem
les que punham em dúvida estes decre­ o que começaram. Ut ca qnce et dudum
tos. Pois com que direito os prelados d’csta ante definire, et nunc in memoriam revo­
assembléia taxavam d’improvação de uma care dignatus est} ju x ta communis fides re-
igreja particular, o julgamento d’outras gulaih, Catholica: que ecclesia: utilitatem, ad
igrejas do mundo? Não acrediteis que a finem numeris omnibus absolutum deduci ju ­
igreja gallicana os, tivesse encarregado beatis. (Ibid.)
d’isso. Elles dirigiram uma carta aos ou­ «0 concilio tendo respondido por accla-
tros bispos do reino, em que notaram for­ mação á leitura das cartas do papa, Phi­
malmente que sua contenda com Innoccn- lippe, sacerdote e também legado, agradece
398 DEC
aos padres o terem adherido a S. Celestino, bou-se por reenvial-os perante o papa: Qui
não por uma deferencia de simples hones­ contradicent Romam ambulent (Ibid).
tidade, mas por dever; «porque vossa san- «Peço-vos que me digaes se é possivcl
ctidade não ignora, lhe diz cite, que o bem- mostrar mais submissão do que os padres
aventurado apostolo S. Pedro, é o chefe de de Calccdonia aos decretos e a authoridado
toda a fé, c mesmo dos apostolos.» Non do soberano pontifice. Ora se dous dos con-
enim ignorat vestra beatitudo, totius fidei, cilios mais celebres que se teem formado
vel etiam apostolorum caput esse beatum na Igreja, reconheceram de uma maneira
apostolum Petrum... «Viveu até ao pre­ tão notável a superioridade da papa, que
sente, accrcscenta clle, e viverá sempre em força poderíam ter as razões sobre que
seus successores, e é por cllcs que escreve pretendem fundar-se para a combater?
seu juizo.» Qui ad hoc usque tempus et sem- Como imaginar, com elicito, sem torcer a
per in suis successoribus vivit et judicium cabeça, que os membros possam estar aci­
exercet (Ibid.) ma do chefe, c dar-lhe leis?
« Nenhum dos padres d’este concilio
achou esta linguagem nova, nem exclamou - § III
contra estas prorogativas da sé apostólica.
«O que se passou no concilio de Calcc- Terceiro artigo da declaração
donia, em 451, não é menos decisivo. Pas-
chasin c Lucence, bispos, e Bonifácio, sa­ O terceiro artigo diz que o papa não
cerdote, presidiram cm nome de S. Leão, póde usar do seu poder senão conforme­
papa. Ora estando estes legados no meio mente aos sanctos canones. Em um tempo
do concilio, que se compunha de 636 bis­ amante do progresso, querer encadear a
pos, Paschasin disse (pie o sancto pontifice, vontade da sancta sé á observância exacta
cujas ordens traziam, havia prohibido que dos antigos cânones, é dizer que a disci­
Dioscoro, bispo d’Alexandria, tomasse as­ plina da Igreja é essencialmente estaciona­
sento na assembléia, e que queria que clle ria, que nao deve ter razão alguma de fal­
fosse simplesmente chamado para ser ou­ tas, de necessidades novas.
vido; é preciso quo observemos esta or­ Não se deu loucura maior. O papa Pio
dem, accrescenta elle, immediatamcnte: vii deu por meio da concordata o bofelão
que saia pois se não vos oppondes, senão mais vigoroso que é possível dar-se no ar­
nós nos retiramos. Roc nos observare, ne- tigo terceiro da declaração. A razão c os
cesse est, si ergo, praecipit vestra magnifi­ factos condemnam pois esta disposição da
centia, aut ille egrediatur, aut nos eximus assembléia de 1682. Julgamos dever tirar
(Concil. Lab. tom. iv, pag. 49-4). as consequências desgraçadas que podem
«Tendo os mesmos legados'lido a sen­ deduzir-se d’esta maxima.
tença de deposição, o concilio apresentou A primeira d’estas consequências foi em­
o seu decreto; mas como se tractava de o brulhar todas as nações na disputa; sem
proclamar, c como os legados tinham per­ esta confusão, eíTectivamente, é. impossível
cebido que a definição não encerrava exa- sustentar muito tempo uma opinião falsa.
ctamente a c*arta que o papa tinha dirigido Julgou-se pois que as doutrinas romanas
a Flaviano, patriarcha de Constantinopla, punham a pura e simples vontade do papa
disseram com firmeza que se não adheris- no logar de todas as leis; attribuiam ao
sem á carta do soberano pontifice, lhes fi­ pontifice romano o direito de dispensar os
zesse o concilio entregfcr suas commissões cânones sem razão, de os abrogar sem mo­
para se ausentarem, e que o concilio fosse tivo assim como sem utilidade, e de lhes
transferido para outro logar. Si non con­ substituir outras regras que lhe aprou-
sentiunt epistolce apostolici et beatissimi pa­ vesse.
gat Leonis, jubete nobis rescripta dari, re­ N’uma palavra, julgou-se, ou pelo me­
vertamur et alibi synodus celebretur (Ibid. nos gritou-se bem alto que o papa não
pagv 557.) . se julgava sujeito ás leis naturaes e divi­
«E tendo os padres do concilio intimado nas, pois que Fleury, que é no meu enten­
em seguida os bispos do Egypto para res­ der, diz M. Frayssinous, aquelle de nossos
ponderem claramente se recebiam a carta escriptores que melhor conheceu o fundo das
de Leão, desde qué responderam que a re­ nossas liberdades, e que deu d'ellas a mais
cebiam e que subscreviam a isso: Muito ju sta ideia, 1 Fleury faz consistir uma das
beral disseram os padres, que se insira o
que olla contém na definição: Ergo quee in
ea continentur inserantur definitioni (Ibid.) i Verdadeiros princípios da igreja gallic.
«E como ainda hayia descontentes,-aca­ pag. 51.
DEC 399
liberdades gallicanas em repellir toda a se d’estas gredosas palavras, e fizeram
dispensa em similhante materia. Esta con­ para seu uso um artigo que correspondia
fusão d’ideias foi de tal sorte longe, que, cxactamentc ao terceiro da celebre decla­
mesmo cm nossos dias, os redactores da ração; depois fizeram o pequeno raciocínio
Gazeta de França ousaram dizer que os que se segue:
theologos romanos attribuiam ao papa o di­ Declarando que o poder pontificai deve
reito de abrogor ou de modificar os dogmas. ser regulado pelos concilios e instituições
Da mesma sorte estranhos dasvarios fer­ dos padres, rccusaes ao papa o direito de
mentaram na cabeça de leigos, c produzi­ elle só explicar estes concilios c estas in­
ram a respeito da sancta sé essas descon­ stituições, como também de pronunciar, se
fianças, essas aversões odiosas, cujas funes­ ha logar de fazer alguma cxccpção, e ten­
tas consequências ainda hoje vémos. Uma des perfeitamcnle razão: porque* sem isso,
vez perdido o habito de considerar o sobe­ para que vos serviría a barreira nue cle-
rano pontifice como um pac, qualificaram- vaes diante do poder da sancta se? Mas,
no de soberano estrangeiro, c julgaram-se ao mesmo tempo, com a vossa benevolente
com direito d’examinar seus actos, de os adopção da pragmatica, accresccntaes que
julgar, de resistir ás suas ordens mais for- o poder dos ordinarios, isto é, o vosso so­
maes, e. de obrigar o clero a fazer o mes­ bre os leigos, deve ser regulado da mesma
mo. Ora, que razões podiam allegar para maneira; vós authorisaes-nos pois a obrar
nâo ser do partido que se poderia chamar para coinvosco como fazeis para com o
d’opposição contra a sancta'sé, quando se papa; os parlamentos poderão, por conse­
fazia abertamente profissão de considerar quência, examinar vossos mandamentos,
as pretenções pontificias como exageradas, certificar-se se respeitaes os canones feitos
destructivas d’uma sabia disciplina, e con­ pelo espirito de Deus, as regras, os costu­
trarias ás sans tradições da antiguidade? mes e as constituições recebidas no reino e
Achavam-se pois n’um estado de fraqueza na igreja gallicana, assim como os usos dos
deplorável contra os inimigos da igreja ro­ nossos padres, que, segundo dizeis, devem
mana, aos quaes se forneciam armas de que permanecer inabalaveis. Se os inferiores do
bem souberam servir-se. papa teem direito d’examinar seus decre­
Uma outra consequência do gallicanismo tos, e de os considerar como nullos quande
dos bispos, foi dcixal-os sem força para se não os achem conformes ás regras, porqu*
defenderem, quando os quizeram avassal- razão nós, vossos inferiores, não poderia
lar. De feito, os princípios mais destructi­ mos fazer o mesmo a respeito dos vosso
vos de toda a authoridade, tendo sido pos­ mandamentos?
tos na dianteira pelos membros do clero Para responder a uma tal logica, seria
mais elevado, se apoderaram d’elles os mister ou estabelecer como principio que,
leigos, e não tardaram a applical-os cm em toda a especie de conflicto entre os bis­
proveito seu. D’ahi essas sentenças multi­ pos e seus inferiores, o papa era o juiz su­
plicadas dos parlamentos para embaraçar premo, ao qual todos deviam obediência,
o exercício da jurisdtcção ecclesiastica. De­ ou crigir-se per si mesmo em tribunal sem
pois que se acostumaram a examinar as appello.
bullas e a impedir a sua publicação, acha­ Ora o primeiro meio estava em opposi-
ram muito simples examinar os manda­ ção manifesta com a declaração; o segundo
mentos e supprimil-os. Haviam-se prestado era contrario aos primeiros principios do
de bom grado a executar as sentenças de catholicismo.
proscripção contra S. Gregorio vii, e a sup- Ficaram pois n’uma posição falsa; os
primir do breviario romano o officio d’este parlamentos continuaram a fazer guerra
illustre c corajoso defensor dos direitos da aos bispos, estes reiteraram suas inúteis
Igreja; que mais natural, depois d’isto, que representações, e tudo acabou, como se
obrigar os bispos a, darem sepultura aos sabe, pela constituição civil do clero e pela
hereges? proscripção de todo o episcopado.
Bossuet havia dito: «As liberdades da Então estes mesmos Dispôs que, na sua
igreja gallicana estão todas n’estas precio­ afflicção, não quizeram chamar o pontifice
sas palavras de S. Luiz: O direito commum supremo em seu soccorro, estes bispos que
e o poder dos ordinários, segundo os conci-
çamos observar aqui que a pragmatica de
lios geraes e as instituições dos sanctos pa­
dres. *> Ora, os parlamentos apoderaram- S. Luiz foi demonstrada apoci'ypha. Vid.
uma solida discussão dc M. de Tliomassy,
1 Sermão sobre a unidade da Igreja. no Correspondente de 10 de novembro a
Edit. de Versaiües, tom. 15, pag. 554. Fa­ 1844.
400 DEC
julgaram que bastava negociar com os reis por dizer que cilas obrigam todas as igre­
da terra para conjurar uma tempestade jas? Não ha aqui uma tal ou qual contra-
suscitada pelo inferno contra a Igreja, ou­ dicção?
viram de longe o golpe que feriu o monar- «O clero de França, dizem, não deu a
cha, cuja protecção tinham implorado, c doutrina da sua declaração como umá re­
comprehenderam que a salvação não po­ gra de fé, de que não era permittido afas-
dia vir-lhes senão d’esta Igreja eterna, á tar-sc; c todavia, n’cssc mesmo anno, um
qual todas as outras foram confiadas. bacharel tendo-a combatido á face da fa­
De feito, o pontifice romano restabeleceu culdade de Paris, foi expulso da assem­
em pouco tempo as minas das igrejas de bléia como um perjuro sem pudor, que
França, e como se á Providencia aprou- calcava aos pés publicamente o juramento
vessé* condemnar energicamente o passa­ que havia prestado nos seus actos prece­
do, quiz ella que o papa trabalhasse só dentes. Havia pois um aclo preliminar á
no restabelecimento da religião entre nós; entrada das graduações, em que o candi­
ella lhe impôz mesmo a necessidade não dato contrahia uma obrigação tão sagrada
sómente de não chamar os bispos em seu c mais solemnc, se é possível, do que as
auxilio, mas também de os privar de suas promessas do seu baptismo, pois que se re­
sédes a despeito do heroísmo do seu com­ jeitava com ignominia aqucllc que a que- *
portamento e seu titulo do confessor da fé. brantasse. Ccrtamentc, ,cis bastantes cou-
Eis-aqui quacs teem sido em ultimo logar sas para uma doutrina cTondc não era per­
os resultados do gallicanismo. mittido desviar-se. É mister convir que a
situação do candidato ajuramentado torna­
§ IV va-se bem penosa, quando, depois de ter
compulsado os escriptos de Bernardo, de
Quarto artigo da declararão Alberto, o grande, de Boaventura, de Tho-
maz d’Aquino, de Richard, de Hugo, de S.
«Os julgamentos do papa não são infal- Victor, c de tantos homens justamente ce­
livcis a menos que o consentimento da lebres, quer nacionaes, quer estrangeiros,
Igreja não intervenha.» que illustraram as escolas e a igreja de
Já combatemos esta maxima no nosso França, nada havia encontrado que se as­
artigo—Infallibilidade do papa.— Contente- similasse a muitos d’estes artigos; quando
mo-nos em dar aqui. um extracto da Dis­ elle lia no sabio Duval, ancião de Sorbo-
sertação citada mais acima: na, e decano da faculdade de theologia de
«Pertence principalmente ao papa deci­ Paris, antagonista intrépido do famoso Ri-
dir em materia de fé; e seus decretos obri­ cher, que, ainda que seus adversarios o
gam todas as igrejas.... negassem, era evidente que os antigos bis­
«Os fieis apoiavam-se n’isto em Hespa- pos de França tinham sempre reconhecido
nha, na Italia, na Allemanha e n’outras a infallibilidade sobre as matérias de fé,
partes; e por isso sua fé era submissa e nos successores de S. Pedro. Velint, nolint
inabalavel, quando o papa pronunciava. adversarii, liquido constat vcteics ecclesia:
Mas a assembléia accrcscenta: «suas deci­ gallicanai procei'es hanc in summus pontifi­
sões todavia, não são absolutamente segu­ cibus infallibilitatem semper agnovisse. Sem
ras, senão depois de terem sido acceites dúvida que similhantes authoridades eram
pela Igreja. bem proprias para contrapesar no espirito
«Esta addição leva a crér que podería do candidato as dos doutores modernos,
dizer-se que o*que o papa decidisse em ma­ que, sob sua palavra, lhe haviam feito ju­
teria de fé, não fosse acccitc pqla Igreja; rar o contrario.
cousa que nunca aconteceu, e que não ti­ «Tudo o que o clero tem dito de mais
nha ainda vindo ao espirito de pessoa al­ forte, accrescentam, é que se declarou—pa­
guma. Esta addição torna a fé indecisa: e ra o que considerou como verdadeiro o sen­
o que é uma fé sem firmeza? O que é a timento dos catholicos.
fé d’um homem que cré tudo, pensando «E como podia o clero sustentar esta lin-
que poderia acontecer que não fosse pre­ uagem, depois do que vimos de vêr? Os
ciso crér? Póde sua fé ser mais forte que eputados dos jansenistas haviam julgado
seu motivo, que a conserva suspensa e por d’outra sorte na sua volta de Roma, pois
assim dizer, no-ar, até que a acceitação da que tinham assentado na infallibilidade do
Igreja seja provada? Demais, se as deci­ papa diante d’um ministro de Zurich, com
sões do soberano pontifice não são abso- receio.de que não os olhasse como separa­
lutanientc seguras, senão depois de terem dos da fé romana, se a combatessem: tanto
sido acceites pela Igreja, porque se começa esta opinião era conhecida como geralmen-
DEC 401
tc estabelecida entre os catholicos. Eis o fa- se tinha passado no reinado de tantos pon­
cto tal qual é contado por Leydechcr, na tifices... que os julgamentos dados pelo vi-
vida de Jansenio: gario de Jesus Christo, para fortalecer a
«Estes deputados tendo chegado a Zu- regra da fé, sobre a Consulta dos bispos,
rich, cm 1653, alguns mezes depojs da quer sua opinião seja ahi inserida ou não,
condenmação das cinco proposições por In- são apoiados sobre a authoridade divina c
noccncio x, foram recebidos com toda a soberana que elle tem sobre toda a Igreja, c
sorte de demonstrações d’amizadc pelo ce­ á qual todos os christãos são obrigados a
lebre Henrique Hottinger, ministro cm Zu- submetter sua razão. Estes prelados convi­
rich. Durante a ceia, este ministro os põz nham pois que os decretos do soberano
ao facto do successo da sua deputação: no pontifico, sobre similhante matéria, eram
correr da conversação, fez-lhes uma objec- infallivcis, c sem dúvida*que não exigiam
çâo que não deixava de os embaraçar: que tivesse sido sempre consultado, por­
«Não rcceiaes, lhes disse elle, que as pro­ que não é esta consulta que faz sua autho­
posições que sustentastes em Roma, e que ridade, e seria ridiculo pretender que a in­
foram alli condcmnadas, não sejam muito terrogação dos bispos, que consultam, tor­
orthodoxas? Como é possível que, depois na o papa, que responde, infallivel.
d’isso, ouseis sustentar a infallibilidade do Antes d’essc tempo a assembléia do cle­
papa nos seus julgamentos? O abbade de ro, de 1626, quatro annos antes da morte
Valcroissant, que era o oraculo da compa­ do famoso Richer, distinguindo a igreja ro­
nhia, respondeu que isso era um erro d’ac- mana da pessoa do papa, exprimia-se as­
çào da parte do papa. Um erro d’acçãol sim n’uma carta dirigida a todos os bispos
replicou o ministro; quél o soberano pon­ e arcebispos do reino:
tifice, juiz infallivel das disputas que se «É dar uma grande prova do nosso amor
elevam na religião, obra com tanta pre­ para com Deus, honrar aquelles que esta­
cipitação n’uma cousa d’esta importância? beleceram seus vigários sobre a terra, e
Certamente, não querería nunca, em ma­ que revestiram do poder de nos traçar re­
téria de fé, receber cora um julgamento ir- gras certas, no que interessa â nossa sal­
refragavel o julgamento d’um homemsinho vação. Como esta prerogativa não foi dada
tão temerário. Aqui estes senhores mostra­ sobre todos senão ao soberano pontifice,
ram no seu semblante que nada mais sa­ cum super omnes soli data sit summo pon­
biam dizer. (Vita. Jans., pag. 659.) tifici, é muito justo que elles mesmos (os
Este sentimento da infallibilidade do pa­ arcebispos e bispos), reconhecendo que são
pa, em materia de fé, estava pois bem ar­ seus sujeitos, lhe rendam com humildade
raigado no espirito dos catholicos, pois que toda a especic de honras e de respeitos;
teriam córado de vergonha sustentando um d’onde acontecerá que o resto dos íieis se­
outro. Como podia pois a assembléia de guirá sem difliculdade o. grande exemplo
1682 declarar que o contrario lhe pare­ do corpo episcopal. É para que exhorte-
cera ser o verdadeiro sentimento dos ca- mos os bispos a honrar a sancta sé apostó­
th.olicos? lica da igreja romana, apoiada sobre as
Mas remontemos á época em que a bul- promessas infallivcis de Deus e fecundada
la de Innocencio x, contra o livro de Jan­ pelo sangue dos apostolos c dos martyres,
senio, appareceu em França. Os bispos a qual, para nos servirmos dos termos de
que se achavam em Paris (era em 1653) Sancto Athanasio, é a cabeça sagrada ^on­
reuniram-sc cm casa do cardeal Mazarino, de todas as outras igrejas, que são seus
em numero de trinta (t. 22, pag. 84.) Quatro membros, tiram seu vigor e sua vida.
dias depois de terem concluído unanime­ «Nós os exhortamos também a honrar
mente pela acccitação, escreveram ao papa o soberano pontifice, nosso pae, chefe visí­
para o certificarem da sua sincera adhc- vel de toda a Igreja, vigário de Deus so­
são. Estes prelados, em sua carta datada bre a terra, bispo dos bispos e dos patriar­
de 15 de julho, dizem que recebem o de­ chas; n’uma palavra, successor de S. Pe­
creto que Innocencio x vinha de publicar dro, etn quem o apostolado e o episcopado
contra a heresia de Jansenio, no mesmo começou, sobre quem Jesus Christo fundou
espirito com que haviam recebido outr’ora sua Igreja, dando-lhe as chaves do reino
a condemnação da heresia contraria por dos ceos e a indefectibilidade na fé, a qual
Innocencio i; que a Igreja d’então se tinha tem permanecido até hoje pela virtude di­
apressado a suDscrever á decisão emanada vina, firme e inabalavel em seus successo­
da séde, cuja communhão faz o laço da res; o que faz que todos os orthodoxos jul­
unidade: bem instruída não só pelas pro­ garam dever render-lhe, e ás sanctas con­
messas feitas a Pedro, mas ainda pelo que stituições emanadas d’elles, toda a sorte
402 DEC
d’obcdiencia; c ainda uma vez exhortamos o julgamento do papa não é sujeito a revi­
a continuar a fazer o mesmo, a reprimir são, e que ninguém póde julgar depois
os refractarios que ousam pôr em dúvida d’clle: o que tudo o concilio approvou o
uma authoridade tão sagrada, fortalecida confirmou. Este concilio é relatado na lista
por tantas leis diviuas e humanas, e a tri­ dos do século xi, no anno 1085, na collcc-
lhar a senda que tiverem traçado aos fieis, ção da imprensa real.
que não deixarão de os seguir.» (Convent. «Mas um outro facto que se acha na
cler. gall. ad Regn. Ave et Episc. 20 de ja­ mesma historia ecclesiastica, e que não é
neiro de 1626, art. 137.) menos concludente, é que em 1580, o clero
«Gomo pois conciliar a assembléia de de França fez os maiores esforços para se
1682 com a de 1626? Busca r-se-ha uma receber a bulla in Cama Domini, que con-
miserável falta na palavra indefcctibilida- demnava os que sustentavam que o conci­
de? Pergunto-o a lodo aquelle que tem o lio geral está acima do papa, e feria d’ex-
senso justo e desembaraçado de todo o communhão áquelles que appellavam ou
prejuizo. A assembléia de 1626 reconhece favoreciam os appcllos do julgamento do
que a prerogativa de traçar regras certas papa ao futuro concilio. O parlamento de­
no que interessa â salvação, nao foi dada clarou que se intimidariam os bispos que
sobre todos senão ao soberano pontífice; publicassem esta bulla, e que todavia se
que a indefectibilidadc na fé tem perma­ lançaria mão do seu temporal. No entanto
necido até hoje firme e inabalável nos suc­ é claro que o clero de França, em 1580,
cessores de S. Pedro; cila motiva sobre tinha, sobre a authoridade cio soberano
esta indefectibilidadc a obediência inteira pontifice, uma opinião diametralmcnte op-
que todos os orthodoxos julgaram dever posla á da assembléia de 1682.
render-lho, e ás sanctas constituições ema­ «M. o cardeal de Noailles, n’uma carta
nadas d’elles; é ainda sobre esta indefecti- a Clemente xi, exprimia-se n’estcs lermos:
bilidade que ella funda a submissão, na «Sanctissimo padre, quando o clero disse
qual cxhorta os bispos a perseverar, e as que as constituições dos soberanos pontifi­
punições a inflingir áquelles que ousas­ ces acceites pelo corpo dos bispos, obrigam
sem pôr era dúvida uma authoridade tão toda a Igreja, não queria dizer que a fo r­
sagrada. Que significa pois a palavra inde­ malidade d'uma tal acceitação fosse neces­
fectibilidadc, se não diz o mesmo, que in- saria, para que ellas devessem ser tidas co­
fallibilidade?. E esta assembléia tem por mo regra de fé e de doutrina; mas julgou
ventura pensado em fazer depender a cer­ que era d’uma grande importância des­
teza d’uma bulla dogmatica da acceitação truir inteiramente o ultimo recurso dos jan-
da Igreja, pois que estabelece para princi­ senistas, e tirar-lhes todo o meio de esca­
pio que esta acceitação teve sempre logar par nos nossos quartéis, por um princi­
entre os orthodoxos, e que exhorta os pre­ pio que elles mesmos concedem. O clero
lados a manterem-se na mesma submissão, não teve a presumpção de querer submet-
e a reprimir áquelles que einprehenderem ter a seu parecer é* exame ás ordens dos
afastar-se d’ella? Accrescentando ao seu soberanos pontifices.» ( Carla de S. E. M.
quarto artigo, que as decisões dos papas, o card. de Noailles, arc. de Paris, a Cle­
em matéria de fé, não são absolutamente mente X I )
seguras senão depois de terem sido accei- «Mas o clero teria tido necessidade b e s­
tes pela Igreja, a assembléia de 1682 não tas explicações, para tirar todo o subterfu­
fez mais do que lançar o equivoco no que gio aos jansenistas, se a assembléia de 1682
era bem claro, e fornecer um alimento não lhes houvesse fornecido o ultimo re­
perpetuo aos espíritos inquietos. curso que sè via obrigado a destruir?
«Tive occasião de vôr aqui uma historia «O mesmo clero assignou ainda uma de­
ecclesiastica, que penso ser escripta pelo claração totalmente similhante com os ar­
abbade Fantin des Odoarts: é ella de um cebispos de Tolosa e de Bourges (em Pa­
author que não se póde accusar, lendo sua ris, em 10 de março de 1710): «Osinnova-
obra, de parcialidade em favor dos*papas. dores que abusam de tudo, diziam estes
Encontra-se alii um facto que não soíTre prelados, podem abusar d’algumas expres­
réplica. Othão, legado da sancta sé, cele­ sões do processo verbal da assembléia de
brou, diz elle (t. 26, pag. 259), um conci­ 1705... E é a proposito, para prevenir suas
lio em Quedlinbourg, depois das festas de más interpretações, explicar a verdadeira
Paschoa, com os bispos e os abbades que intenção d’esta assembléia: assim, nós, co­
reconheciam o papa Gregorio. Produziram- mo tendo tido parte em todas as delibera­
se ahi os decretos dos padres no tocante á ções, o sendo testimunhas de tudo o que
primazia da saucta sé. Inferiram d’isso que se passou, declarámos... 4.° Que finalmen-
DEI 403
to, cila não pretendeu que as assembléias II
do clero tivessem o podei' d'examinar as
decisões dogmaticas dos papas, para se tor­ Não podemos conceber que sc possa ima­
narem seus juizes e elevar-se em tribunaes ginar cousa mais inconsequente que o
superiores. deismo. Em verdade admiltir um Deus, c
«Não é claro que esta assembléia teria não o reconhecer como tal, não o adorar,
andado melhor se não empregasse essas não lhe render nenhurn culto, nenhuma ho­
expressões de que os innovadores abusa­ menagem, viver como se elle não existisse,
vam c que era fóra de proposito que a de­ como se nenhumas relações nos ligassem
claração de 1682 as havia d’algum modo com elle; não acreditar que elle se mani­
consagrado?» festasse ao homem para o glorificar como
DEisMQ—Sc ha uma verdade demonstra- elle merece, ou para lhe ensinar o cami­
da,*011 que não admitte dúvida, nem con­ nho que devia seguir, para chegar ao seu
testação, é que eutro o Christianismo e destino; viu-se já cousa mais absurda? não
atheismo não ha meio termo, e que aquelle parece sél-o tanto, e mais, que o mesmo
que deixar de ser chrislão, ha de viver como atheismo, por muito monstruoso ou absur­
athcu, quer se appcllidc pantheista, mate­ do que seja?
rialista, fatalista, sceptico, indiíTerentista ou Entende-se o deista, ou antes não sc en­
deista—é a mesma cousa; tudo isso sc ci­ vergonha elle de si mesmo, quando finge
fra n’uma palavra só: no atheismo. As pa­ acreditar n’um Deus, que não regulou por
lavras não mudam a essencia das cousas. nenhuma lei as acções do homem" que ape­
Dizem que alguns, abandonando a reli­ nas o creou c entregou aos seus caprichos;
gião christã, se teem refugiado no deismo que nos dispensou por isso de toda a su­
ou na religião natural'. jeição e obrigação para com elle. e de todo
Nada ha mais falso. o esforço e sacrificio para lhe agradar? Que
A religião natural não existe em parte é uma divindade, que não entra por cousa
alguma: o deismo não é uma ideia religio­ nenhuma no meu espirito, que não rne re­
sa, uma profissão de fé, uma crença qual­ puto obrigado a invocai-a, a amal-a, e ado-
quer; é a total carência d’ella: não é uma ral-a, que não mc impõe obrigações, nem
lei, não se circumscrcvc cm alguns precei­ deveres, que se reduz a ter d’ella um co­
tos de moral; é o total abandono d’el,les, nhecimento especulativo, abstracto c inútil?
ou antes, é um protesto contra ellcs todos: Que divindade aquella, que* se me não
não é um culto; é a total rejeição d’clle: apresenta, nem com uma crença que illu­
não c uma homenagem, um tributo de res­ mine ou captive o meu entendimento, nem
peito prestado cá divindade; é a indiíTereu- com uma regra, que deva dirigir as minhas
ça e o despréso para com cila: não é uma acções, nem com um culto com que Ih<
verdade que se acate e venere; é um phan­ preste uma homenagem de reconhecimen
tasma da imaginação que se illude, é um to, que seja um acto vivo d’amor, ou un
jogo d’espirito que se escarnece, é uma testimunho de servidão e obediência!!
nullidade philosophica, é um problema ir- Que é um Deus estranho ao meu espi­
resoluvcl, que não pertence ao coração, com rito c «ao incu coração, senão um phantas­
que pouco se importa o espirito, e com ma de que escarneço? De que vale conser­
que ainda se entende menos; é quando var o nome de Deus com todos os efieitos
muito uma opinião especulativa, abstracta, do atheismo? Que é uma divind«ade que me
incerta, e vacillante, objecto das investiga­ deixa ás ceg«as sobre o meu destino, sem
ções ou das inúteis discussões dos philoso­ saber se devo limitar as minhas esperan-
phos; todavia tão absurda, tão monstruosa ç«as à terra que piso, ou sc devo cogitar em
e extravagante como o puro «atheismo, ou alguma cousa além d'ella? Que não me es­
a positiva negação de Deus, ou de uma in­ clarece sobre o que mais me importa sa-
teligência suprema, que dá a tudo a exis­ ber, sobre a resolução que devo tomar, que
tência, o sôr e a vida. deve dirigir os meus actos, na vida pre­
Eis-aqui como o homem sem fé encara sente, c de que dependem os meus destinos
ò primeiro dos séres, de que todos os ou­ na eternidade?
tros procedem, ou a primeira verdade, de Que divindade aquella que me não dá
que todas as outras dependem: e é para o como regra das minhas acções, senão a pai-
demonstrar que escrevo algumas palavras x«ão que mc domina, que mc não impõe
sobre o deismo e sobre as eternas incerte­ outros deveres, senão aquelles que mc di-
zas ou monstruosos desvarios da philoso­ ct.ar o orgulho do meu espirito ou a cor­
phia antiga c moderna. rupção do meu coração; que me faz arbi­
tro da minha sorte, do meu destino e das
404 DEI
minhas acções, sem saber quaes sejam ou tir o seu destino em scrvil-o no templo, para
devam ser? Que divindade aquella quem e gosal-o c louval-o sem fim na eternidade?
deixa dictar a lei a mim mesmo, reconhe­ Que fraqueza c que miseria a do ho­
cer por bom ou mau o que eu quero que mem, que, entregue a si mesmo, desco­
o seja; avaliar do justo c injusto segundo nhece logo o seu Creador, não o reconhece
os meus prejuízos, paixões c interesses; mais como seu legislador, torna o seu es­
desarranjar á minha vontade a ordem mo­ pirito e o seu coração independentes d^elle,
ral do universo, constituir-me o architecto nega-lhe toda a obediência, deslica-se de
da minha felicidade, ou fazer-uma a meu toda a obrigação, não lhe dá mais culto,
gosto c a meu modo? Que phantasma! Que nem signal algum de respeito e 'homena­
ridicula divindade! gem, vive sem Deus, sem regra e sem
Um ente metaphysico c abstracto, que lrcio, não escuta outra voz senão a das
só pertence ao gabinete c ás disputas dos suas paixões, precipita-so em monstruosos
philosophos, que"nenhuma influencia exer­ erros, c espantosos desvarios! Eis-aqui co­
ce sobre os destinos e o comportamento do mo o homem, entregue a si mesmo, tracta
homem! Que maravilha, pois, que uma si- aquelle que o crcou, que o dotou d’uma
milhantc divindade seja para o deista um razão sublime, que o eleva até o seu thro­
jogo d’espirito ou um objecto de desprêso no, que o revestiu d’um espirito susceptí­
ou d’indiflerenea? E na verdade uma di­ vel de o contemplar, e d’uin coracão ca­
vindade que nàb regulou por nenhuma lei paz dc o amar c de lhe dar aquelle culta
o mou comportamento, pódc tomar-me con­ de summo amor, obsequio c servidão que
tas d’ellc? a creatura deve ao creador, c a que não
Se mc não patenteou um fim para que póde faltar sem crime.
devo dirigir-me, póde ser arbitra dos meus Mas como é que o homem chega a esta
destinos? Não terei eu direito para procu­ aberração d!espirito, a este embrutecimen-
rar o que mais me agradar? Se ella me to ou corrupção do coração? Como não co­
fez senhor das minhas acções, porque não nhece ello que tem uma grande missão a
as regularei á minha vontade? a quem de­ cumprir, grandes deveres a satisfazer para
verei eu dar conta d’ellas, senão-a mim com o seu Creador, que não podia collo-
mesmo? Se me não impuz deveres, como cal-o n’este mundo, para ter o mesmo des­
me póde castigar pèla transgressão d’cl- tino dos irracionaes? Como não conhece
les? elle que traz dentro em si cscripta a prova
Cousa notável, que só por si basta para d’um destino eterno que o espera?
mostrar a necessidade d’uma divindade de Não vê elle que este desejo, que Deus
que o homem não seja author, ou que elle infundiu em seu coração, que o traz sem­
não fórme á medida do seu desejo. pre em uma continuada anciedade, sem
Todo aquelle que abandona a religião nunca poder satisfazel-o, é uma prova de
ou nega descaradamente a existência de que existe uma outra vida, éftn que este
Deus, ou fórma uma divindade monstruo­ desejo deve ser satisfeito? Como não vê
sa, que não reconhece ou que insulta, isto elle, que, marchando tudo na ordem natu­
é, ou elle se mostra indiíferente para com ral aos seus fins por meio dc leis justas e
ella, como o bruto é indifierente á mão sabias, não podia ser creado sem desí­
que o sustenta, ou se faz ingrato e crimi­ gnios? que não podia ser dotado de facul­
noso pelas injurias que lhe arroga, e pelo dades que o ennobrecem, que o elevam
desprêso com que a tracta. Qual é aquelle acima de si niesmo e do universo, sem què
que abandonou a religião, que não escar­ fosse destinado para um fim grande e su­
neceu da immortalidade da alma, ou não blime; sem que fosse destinado para o gôso
faz d’ella um problema, uma opinião espe­ d’um bem maior que o mundo, para esse
culativa, em que o pró e contra não estãò bem, que anhela como complemento da
sujeitos a demonstração; que por este facto sua felicidade, de que precisa para encher
não cortou ou não destruiu todas as rela­ este vasio que sente, esta séde de felici­
ções e toda a communicacão com a di­ dade, que o acompanha para toda a par­
vindade; desligando-se de ioda a obediên­ te, que o faz desfallecer de nojo c amar­
cia e sujeição para com ella, como se não gura ainda no seio dos maiores prazeres,
existisse oü lhe fosse indifferente? Qual é que cresce á proporção dos objectos que
aquelle que a considerou como fundamento procura para satisfazel-a; similhante ao
dos seus deveres, como devendo occupar-se fogo, que quanto mais devora mais se in­
com ella, como seu Deus e Senhor, como flamma e mais ardente se faz?
seu pae e creador, como seu principio e Que bem ha, que corresponda aos desti­
unico fim? Qual é aquelle, que fez consis­ nos d’uma alma eterna, a não ser um bem
DEI 405
<jternp como cila, que nào pereça como o do-nos interiormente da nossa immortali­
tempo, mas que exista além d'ollc, na re­ dade.
gião da immortalidade, aonde tem de lixar Sc o impio se recolhesse dentro de si
o seu destino? Que pódc satisfazer os de­ mesmo para meditar, se calculasse c se
sejos que sentimos a nào ser o gôso d’essc examinasse bem o seu coração, cm vez de
bem supremo e infinito, que comprehende se deixar arrastar por suas paixões, c de
cm si todos os bens, que só corresponde andar bebendo parodoxos vergonhosos, ab-
á immensidadc dos nossos desejos, cm que juraria sem demora os seus erros, rende­
o nosso coração deve repousar como seu ría com todo o universo uma solcmne ho­
•centro o unico fim, que nos attrahirá a si menagem á verdade.
u’um extasis eterno d’amor e alegria, que Ó homem não desce até fazer-se simi-
exclue iodo o outro desejo, porque não Ihantc ao caracol, até vèr no cão um seu
póde haver nenhum aonde a satisfação se­ irmão, até confundir-se com os vermes, se­
ja completa e o gôso summo e perfeito? não por uma aberração d’espirito incom-
Acaso estes pensamentos sublimes, que prchensivel, senão negando a existência
se estendem até á eternidade, estes vastos da divindade ou fazendo d’clla uma ideia
desejos, que teem a Deus por termo e ob­ monstruosa, que importa no mesmo atheis-
jecto, medir-sc-hão pelo mesmo compasso, mo.
ou terão a mesma sorte que o instincto dos Um Deus, que é a suprema razão de to­
mais vis animacs? Sc o homem está desti­ das as cousas. formaria o homem para lhe
nado para vór na morte ou na aniquila- mostrar no gõso das suas depravadas in­
ção o fim das suas esperanças, ou para cor­ clinações e na satisfação dos seus crimes c
rer apoz d’uma sombra que lhe foge sem maldades a suprema felicidade a que póde
que possa apanhal-a, para que são estes de­ chegar? Será o homem tanto mais feliz
sejos que nos transportam ate aos céos e quanto mais brutal c deshumano fôr, quan­
que nos fazem contemplar como nossa ha­ to mais se afastar do seu Deus e das suas
bitação? obrigações, quanto mais procurar a sua
Que significam estas homenagens que os felicidade cm seus affectos desordenados,
nossos corações rendem ás acções heroi­ na iniquidade do seu procedimento, na sol­
cas, ás almas dos homens grandes, c o res­ tura de suas paixões criminosas, ou na ori­
peito que tributamos á sua memoria, se ci­ gem dos males que aífligem a humani­
las são um testimunho a favor da immor- dade?
talidadc? Que horror c que injuria feita á divin­
Nada ha pois no universo em que a vir­ dade!!
tude não illustre o homem, que não-mude Por ventura verá Deus com os mesmos
os tumulos em altares, cm que ella não re­ olhos aquellc a quem o dever é a suprema
ceba a final cultos e respeitos: e qual será lei a que obedece, que não duvida sacrifi­
a causa d’cste testimunho, senão porque se car-lhe a propria vida, como aqueH’outro
entende que a gloria das suas acções e dos que na prostergação d’elle faz consistir a
seus illustres feitos não desce com ellcs á sua felicidade, que não duvida sacrifical-o
sepultura, mas os acompanha á região da a uma paixão cruel ou a um vil interesse,
immortalidade? —que não duvida para proveito seu, des-
Quem querería honrar um fraco vapor honrar ou fazer desgraçados seus irmãos?
confundido com as nuvens e com a corru­ Acaso nào fará elle diíTerença entre o
pção, e quem julgaria dignas de veneração infame parricida c o filho terno e submisso;
ou dos seus respeitos algumas exhalações entre o coração sensível e generoso, que
espalhadas por esses ares, se fosse certo se compraz cm fazer bem e o infame egoís­
que nada existe d’csscs heroes, e que a ta, c o sordido avarento, surdo aos clamo­
morte aniquilou tudo? res da humanidade afflicta, que escarnece
da sua miseria, não se importando senão
de si?
III Não fará elle diíTerença entre o monstro
que crava um punhal nas entranhas de seu
irmão para lhe arrancar a vida, c a alma
O sentido interior, quo não pódc absolu- generosa c bemfeitora que salva a vida
taraente suffocar-se, não nos determina a dos outros á custa da sua?
tributar homenagens â virtude, senão por­ Em que abysmo de cegueira sc não per­
que nos dita que ella vive além do tumulo; de o homem, quando perde a luz da fé!!
e não nos leva a consagrar respeito ás al­ Como se atreve elle a degradar c aviltar
mas dos homens grandes, senão seguran­ a divindade até fazel-a despresivcl?
406 DEI
Não terá cila que dar áquelles que a ser­ quando cessamos de lhe manifestar por
vem? Abandonará cila os seus amigos para actos internos e externos que o reconhe­
nunca mais os conhecer? Será como o ho­ cemos por nosso Deus e Senhor; quando
mem que acompanha o amigo á sepultura, deixamos de lhe manifestar por nossas ac­
c depois nào tem mais que lhe faça? Como ções que o reverenciamos por sua gran­
se atreve cllc a escarnecel-a, ou a fazer deza; que lhe damos continuadas aerões
irrisorio o seu poder? Acaso escarnecerão de graças por sua bondade; e que implo­
d’clla o impio c o malvado, que se subtra- ramos a sua clemência, confessando as nos­
hem ao seu imperio? Nào será ella ciosa sas miserias, e desarmamos a sua justiça
da sua gloria? Nada faria Deus para asse­ reconhecendo as nossas culpas. É pois‘a
gurar o .seu poder, para ser respeitado e divindade do deista um puro phantasma, ó
obedecido? Como se atreve elle a fazel-o uma inconsequcncia, ou antes um absurdo.
inconsequente c iniquo? Será Deus legis­ O deismo ó um atheismo práctico, me­
lador para abandonar as suas leis ao ca­ nos consequente* e tão fecundo em resul­
pricho de cada um, importando-lhe tanto tados fatacs como o atheismo d’opiniào ou
que sejam observadas com fidelidade, como o puro materialismo.
transgredidas com furor, dando igual ga­ Aquelle, pois, que não quizer viver como
lardão áquclle que o serve fielmente, como christão, ha de viver como atheu, não sondo
áquelle que o insulta c ultraja? o deismo, còmo diz Bossuet, mais que um
Como o faz elle absurdo, isto c, author atheismo disfarçado.
d’uma obra tão indigna da sua sabedoria, Mas se dissemos que o deismo é incon­
como da sua justiça? sequente c absurdo, o systema contrario a
Proscreva-se da7ace da terra o nome da elle, ou d’um Deus, manifestando-se ao ho­
divindade, ou não se duvide mais da im- mem deve ser consequente e rasoavel.
mortalidade da alma, do prêmio para a vir­ So Deus não podia crear-nos sem algum
tude, e do castigo para o vicio. destino, que se póde imaginar de mais con­
Um Deus indiflerente ao vicio e á vir­ forme á bondade e infinita sabedoria de
tude é um phantasma ridiculo, é um ente Deus do que manifestar-se ao homem co­
despresivel, é um monstro forjado pelas mo seu Deus e Senhor, como seu pae e
paixões em delirio!! Creador, fazer-lhe conhecer a sua vontade,
Mas que mostra este tecido de desvarios para que não se extravie do seu fim?
do homem que abandona a religião? Que Que pae ha, que deixe d’instruir seus
prova elle? Que o homem entregue a si filhos e prescrever-lhes a regra do seu com­
mesmo se perde n’um labyrintho d’erros portamento? e Deus, o melhor dos paes,
e d’extravagaucias incomprehensiveis, não abandonaria a creatura mais perfeita, que
conserva uma só idéia religiosa, mas ana- sahiu das suas mãos, aquelle que elle fez
thematisa-as e destroe-as todas! á sua imagem e similhança, e entrcgal-a-ia
Tanto é verdade que o orgulho do ho­ á sua phantasia para ser victima de seus
mem não soíTresuperioridade, e que quan­ erros e das suas paixões?
do não reconhece o seu Creador como seu Que rei ha que deixe de se interessar
legislador, se constitue em divindade, se na felicidade de seus vassallos, que não
adora a si mesmo, não reconhecendo mais procure dirigil-os por meio de leis justas e
nem lei nem juiz a que obedeça!! sabias a um glorioso fim? e só Deus, o su­
Como é logo verdade que não ha reli­ premo rei do céo e da terra, o ente sapien-
gião sem que a divindade se manifeste ao tissimo e perfeitíssimo, a soberana razão
homem, como seu Deus e Senhor, como de todas as cousas, creaVia o homem sem
seu juiz e supremo arbitro dos seus desti­ respeito á sua gloria, sem outro fim c ou­
nos! Como é verdade que não ha religião tro objecto mais que condemnal-o á morte
sem que uma crença positiva, sem precei­ e ao nada? não parece isto repugnante ao
tos e sem um culto, que seja d’elle a viva fim da creação, não sendo possível conce­
expressão, ou sem que se nos mostre cm ber-se que fosse outro senão a manifesta­
uma lei a regra dos nossos deveres, e na ção da sua gloria, ou antes não se vê que
saneção d’ella, ou no prêmio e castigo, que ísto é um visível absurdo?
estabelece um grande bem no seu cumpri­ Aquelle pois, que rejeita a revelação,
mento, e um grande mal na sua transgres­ vendo-se na necessidade d’acredital-a, não
são! é levado naturalmente ao atheismo,_ ou a
Não ha religião, quando da ideia de duvidar da existência do Creador, não po­
Deus se separa o dominio supremo que dendo combinal-a com um procedimento
tem sobre as suas creaturas, a dependen- tão indigno da sua grandeza e da sua sa­
cia e relações que nos ligam com elle; bedoria?
DEI 407
O dcismo, não sondo um systema reli­ termo entre o Christianismo c o athcismo,
gioso, uma crença qualquer, mas simples­ e que^ aquellc que não quizer viver como
mente uma ideia vaga, especulativa e este- christão ha do viver como atheu, sendo in-
ril acerca da divindade, de que não co­ diíTcrcnte que se appellidc panlheista, ma­
nhece mais que o nome, que não pódc fi- terialista, sccptico, fatalista, indifferentista,
xar-se no coração, que por sua natureza ou deista, porque os nomes não mudam a
está condemnado a uma osciIlação eterna, essencia das cousas.
que não exerce nenhuma influencia sobre
os nossos sentimentos e sobre o nosso com­
portamento, importa sem diíTcrcnça nenhu­ IV
ma no mesmo que o athcismo.
A philosophia, que algumas vezes se tem
proclamado deista não é o ensino d’algu- N’um discurso feito para mostrar que
ma ideia religiosa; é a aniquilação d’ellas fóra da religião não ha uma só ideia reli­
todas, porque a philosophia arrancando o giosa, ou, por outra, que não ha mais que
Christianismo do coração, lança o homem atheimo, ou uma rcbellião contra Deus,
necessariamente na incerteza, n’um vasto ainda mc resta dizer alguma cousa mais
campo d’opiniões, que não teem mais apoio terminante.
que os humores c caprichos de cada um; e E na verdade, que se poderá apresentar
não c com opiniões incertas e vacillantes, de mais decisivo c vergonhoso para o es­
que a cada momento se mudam c desva­ pirito humano, ou para mostrar o que é o
necem, que se dirigem os espíritos; mas homem sem fé e sem religião, do que esse
com crenças e habitos religiosos, que cila abysmo de cegueira c ignorância, sobre tu­
não pódc- crcar, c muito menos prescre­ do o que ba de mais importante—Deus e
ver ou impôr aos outros, de que o resulta­ os nossos destinos—que se não envergo­
do é o athcismo ou a total carência de nha de patentear a seus discipulos esse ho­
idéias religiosas, seja qualquer que fôr o mem desgraçadamente muito famoso, que
appellido com que ella se denomine. se constituiu o corypheu da impiedade, que
Não ha pois fóra da religião, senão aíheis- por seus talentos extraordinarios, seu es-
mo, c por toda a parte athcismo, porque o tylo seductor, pelo jocoso e satyrico da sus
deus da philosophia não é um ente real, é dicção, fecundidade e riqueza de seu onge
um ente puramente ideal, é um phantas­ nho, universalidade de seus conhecimei
ma da imaginação, que cada um reveste tos, merece como esçriptor um nome a pí
das côres que lhe parece, figurando-o sem­ d’um Pascal, Arnaud, Nicollc, Boileau, Ri
pre monstruoso e absurdo, acabando por cinc; que como historiador rivalisa con
isso pelo entregar ao despréso; c a philo­ Bossuet, como poeta, talvez com o author
sophia aqui não c inconsequente. da Athalia, mas qué visto pela sua nulli-
Se a sua divindade, desde que nos creou, dade philosophica, mobilidade de seus sen­
se não embaraçou mais comnosco, se nos timentos, inconstância de suas opiniões re­
abandonou para sempre, para que havemos ligiosas (de que farei um extracto tirado
de procural-a, para que havemos de in- das suas obras, que apresentarei ao pübli-
vocal-a c render-lhe homenagem, ou tra- co como prova d’este artigo), é a vergonha
ctar de lhe agradar? Porque não vivere­ e a confusão da razão humana, se não é o
mos á medida do nosso desejo, como mui­ cume da demencia e da loucura, que em
to bem nos parecer, sem nos importarmos sua vaidade e em seu ridiculo orgulho,
com ella, visto que ella se não importa concebendo o projecto d’arruinar o Chris­
comnosco? tianismo, e destruir os prejuizos do gene­
Mas como tudo isto é soberanamente ro humano, achando-se sem ideia alguma
absurdo e monstruoso, é por isso que des­ religiosa, e também sem nenhuma convic­
de o momento em que a existência de Deus ção, mendiga de seus discipulos um prin­
é uma convicção para o nosso espirito, o cipio cm que se fixe, um raio de luz que
Christianimo se apresenta logo com todos o esclareça; porém cm vez d’elle, não ven­
os seus dogmas, com uma força tal que do cm torno de si senão densas trevas, que
subjuga a nossa alma, e que elle tem a não póde dissipar a fraqueza de seu espi­
gloria de não deixar aos seus inimigos se­ rito, procura um triste refugio n’um pir-
não o atheismo, isto é, o que ha de mais rhonismo universal, em não acreditar na­
louco, despresivel e insensato. Tiraremos da, ou em duvidar de tudo.
pois em conclusão, sem medo de sermos 0 ’ cegueira incomprehensivelü
desmentidos, ou desafiando todo o' mundo Este homem, que não deixa aos seus
para que nos desminta, que não ha meio discípulos senão ás ruinas da fé, senão o
408 DEI
vasio dc todas as idéias, a nullidade de to­ tima e da veneração dos homens, sem que
das as opiniões, o tormento da dúvida, e a lhes deixe cousa alguma que occupe o seu
cegueira do espirito, morre na primeira logar, sem que lhes caiba outra gloria se­
cidade do universo em luxo e grandeza, não a do anjo exterminador, a de aniqui­
em sciencia c corrupção, cercado d’um lar e destruir tudo para que só reine a
preslito immenso, que lhe dá as honras desolação e a morte, a paz e o silencio dos
de mestre, que o applaude, que o celebra tumulos!
com transportes d’admiração, e imprime 0 ’ espirito inconsequente, obstinado e
no seu século o seu espirito, quero dizer, cego: se não tens uma divindade que ado­
esse espirito de irreligião e impiedade, de res, ou uma verdade que reconheças a’fa­
orgulho c dMndependencia, de corrupção e vor dc quem trabalhas! que motivo para
d’immoralidade, que prepara, para nos ser­ esse furor que te trausporta? Eis-aqui a
virmos das expressões d’um seu apologis­ philosophia d’este [impio: elle não formou
ta, essas revoluções politicas e religiosas, um symbolo qualquer, um systema qual­
que mudam a face da Europa, ou antes quer, mas intentou destruil-os todos; não
que a inundam dc sangue, de crimes e tomou por thema uma verdade, mas ani­
desordens! quilou-as todas; destruiu todos os dogmas,
Mas aonde se encontrará uma escola todas as crenças religiosas, sem que tives­
mais vergonhosa, e mais degradante para se um só principio, uma só verdade que
aquelles que a frequentam? Aonde um lhes substituisse; acabou com todos os cul­
chefe mais inconsequente, mais contradi­ tos, com todas as homenagens que se ren­
ctorio e absurdo? dem á divindade, sem que ensinasse uma
Este coryphcu da impiedade, ao passo só com que ella fosse honrada e respei­
que se constitue chefe d’uma vasta conspi­ tada; acabou com toda a ideia de religião
ração contra o Christianismo, c que excita e crença positiva, com toda a idéia de cul­
)s seus discipulos a unirem-se, e a redo- to exterior e respeito á divindade, com to­
jrarem d’esforços para acabar com a su- da a ideia de dependenda e de communi-
íerstição e esmagar o infame, faz profis­ cação entre a creatura e o Creador, sem
sões de fé catholica, e poucos dias antes de que deixasse regra alguma que nos diri­
sua morte envia uma ao abbade Gauthior, gisse, ou vinculo algum que ligasse Deus
em que lhe declara a sua intenção de mor­ com os homens, o céò com a- terra, em
rer no seio da igreja catholica, aonde nas­ cuja escola, não havendo um systema que
cera; levanta-se contra todos os dogmas e se estabeleça, uma sciencia que se apren­
contra todas as crénças do genero huma­ da, um principio que se proclame, uma
no, reconhecendo a impossibilidade de che­ fé em que se creia, reduz-se a que se pro­
gar ao conhecimento d’alguma verdade, teste contra toda a fé, a que todos os sym-
que se lhes substitua, sem que tenha a con­ bolos se rejeitem, a que todos os systemas
vicção de que propondo-so a destruir um se destruam, a que toda a sciencia se in-
erro se não esbarre em outro peior e mais utilise, a que todas as opiniões se abando­
funesto; propõe-se a destruir tudo quanto nem, sem que se ache uma só que se repu­
existe sem que tenha cousa alguma que te verdadeira ou que sirva de gharol ao es­
levante nas ruínas, sem que deixe ao ho­ pirito humano, cuja escola nao é por isso
mem uma só verdade que invoque, ou em de luz, mas de trevas, não é dc sabedoria,
que se fixe, e fundamente o seu compor­ mas d’iguorancia, não é um laboratorio
tamento, sem que lhe mostre no meio das de compor ou machina de construir, mas
trevas de que o cobre, um clarão que guie de tudo decompor, aniquilar e destruir; é
seus passos: propõe-se a destruir umas tre­ uma escola em que se ignora o conheci­
vas para crear outras mais profundas, mais mento da primeira verdade, que as encer­
espessas e tenebrosas; propõe-se a destruir ra em si todas, em que se faz da sua exis­
os mysterios da religião, porqiie são incom- tência, das nossas relações e dcpendencia
prehensiveis, para cahir n’esses abysmos com ella, da moralidade das acções, do
de cegueira, que o confundem, e de que nosso destino, do fundamento dos nossos
elle se retira sem se atrever a saldal-os; deveres, um problema, um objecto de dis­
para fazer dos primeiros princípios dos nos­ cussão, de que se exclue a certeza, como
sos conhecimentos e investigações ques­ sendo só própria dos charlatães, uma ques­
tões indecifráveis, objectos d’interminaveis tão metaphysica de que um—nada.sei-^-é
disputas pela circumstanda de que o véo a unica resposta rasoavel; é uma .escola
que os cobre é impenetrável á razão do em que o mestre é tão ignorante como os
homem, que não tem outra missão senão a discipulos, em que tudo se põe em ques­
de acabar com tudo o que é objecto da es­ tão e nada se resolve, em que tudo se exa-
DEI 409
mina e nada sc esclarece, cm que aquellc mais torpes e abomináveis que sejam seus
pergunta a estes o que elles pensam do dogmas, por mais contradictorios e oppos-
primeiro sér, sc clle será tal como se diz, tos que sejam entre si: 6 a escola do deis-
so teremos com clle relações como sc figu­ ta, do pantheista, do materialista, do sce-
ram, ou se tudo isto deve entrar no nu­ ptico, do indiflerentista; é a fonte c o ma­
mero dos phantasmas c das cliimcras com nancial de todas as extravagancias c mon­
que sc deixa fascinar o genero humano, c struosidades cm matérias de religião; por­
cm que os discipulos trio espertalhões como que todos elles diinanam do seu grande ar­
o mestre, não julgam isso entre os obje­ tigo de fé—que Deus não sc manifestou ao
ctos serios de que deva occupar-se o espi­ homem para lhe revelar o caminho que de­
rito humano! via seguir para chegar ao seu destino—
Com que expressões descreverei esse co- sendo d’isso consequentia necessaria, que
rypheu da impiedade, que ora crê em Deus, fica ao arbitrio de cada "um determinal-o
ora renega da sua existência; ora lhe pa­ como bem lhe parecer, c que toda a reve­
rece uma verdade incontestável, ora um lação se deve destruir como prejudicial c
enygma indecifrável; ora admitte um ente opposta á razão, ou o que importa no mes­
eterno separado da materia com acção li­ mo, que Deus nos abandonou c entregou a
vre sobre ella, ora coctcrno, confundido nosso proprio juizo, devendo cada um se­
com a materia, ou escravo d’ella; que aca­ guir o que este lhe dictar.
ba por não admittir nenhuma verdade, ou Eis-aqui porque muitos dos seus disci-
por duvidar d’ellas todas? cipulos se deitaram a pregar e a moralisar
Como deverá ser descripto um homem o mundo com o athcisnio iriais brutal e
que se diz philosopho, sem princípios ne- grosseiro, fallando tantas vezes de forças
nhuns seguros em nenhuma materia, sus­ da natureza, de fatalidade, de necessidade,
tentando já o pró, já o contra, ou variando de mundo eterno e improduzido, dando-
eternamente de sentimentos cm moral, em nos palavras por cousas, effeitos por cau­
philosophia, e cm religião? Como deverá sas, leis por aquelles que as constituiram,
ser avaliado um homem, que lisongeando- não se envergonhando de fallar de Deus
se d’esmagar o infame e procurar um epi­ como d’um ente imaginario, ou quando
táfio para pôr no tumulo do Christianismo, muito d’um problema, que não está sujeito
se não envergonha de confessar a nullida- á demonstração da alma, como d’um resul­
de das suas opiniões e que nada tem que tado da organisação da materia, da vidr
lhe opponha ou qüe lhe substitua, a não ser futura como d’uma invenção da politica, o
a inconsistência ou a vergonha dos seus quando muito como d’uma opinião cm qu
systemas? Mas quem sc não encherá de o pró não, é melhor demonstrado que
admirarão, que com tanta ignorância se fi­ contra, do"livre arbitrio como d’um e m
zesse tão grande guerra á verdade, e que do vicio e da virtude como d’uma inven­
com tanta petulância se podéssem dominar ção humana, que varia, segundo as leis e
e seduzir os espíritos, e que este homem os costumes dos povos, da moralidade das
adquirisse uma celebridade, que tão fu­ acções como d’uma ficção, que tem por
nesta tem sido ao genero humano! Com fundamento o clima, a "politica, c os pre­
uma tal linguagem, com taes princípios e juízos, e do bom ou mau, segundo convém
com tal doutrina, que discipulos produzi­ ou desconvém physicamentc!
ría este mestre? Que opiniões seriam as
suas? Acaso parariam diante do abysmo,
que elle se não atreveu a sondar, ou pre­ Y
tendendo passar-lhe a barra, aonde os con­
duziría o seu orgulho? A absurdos e mon­
struosidades ainda maiores que todas aquel- Que discipulos podia produzir o chefe de
las que póde produzir o espirito humano uma escola que não tem ou que não creou
abandonado a si mesmo. para seus sectários nenhuma crença, ne­
Não ha impio, seja qualquor que fôr o nhum symbolo, nenhum credo, e que não
nome com que se appellide ou o credo que fórma juizo, nem opinião sobre o que ha de
professe, que se não gabe de o ter por mes­ mais importante para a vida, que vacilla
tre, de ter aprendido na sua escola, ou de eternamente sobre a base de nossos conhe­
ter bebido nas suas obras a sua infame cimentos, sobre o fundamento de nossos de­
scientia, ou o seu furor contra a religião. veres, que ignora emfim se temos moral­
A sua escola não é d’estes ou d’aquel- mente obrigações a cumprir e desempenhar
le s inimigos da religião, não é d’estes ou para com Deus, para com o nosso proximo,
d ’aquelles sectarios, é de todos elles, por e para com a sociedade em que Deus nos
410 DEI
fez nascer, gue sobre todos estes pontos tue todos os dogmas, todas as crenças to­
não teve pejo de revelar, que o cobrem das as verdades, todos os syslemas, todos-
densas trevas c incertezas eternas? os princípios da moral, todas as regras da
Que conhecimentos se podem adquirir justiça por um. nada sei de Deus e das mi­
n’uma escola em que estas grandes verda­ nhas relações com elle, por um nada sei
des, um Deus, uma Providencia, uma vida do meu destino e dos meus deveres, por­
futura não passa de um objecto de disputa que não está demonstrado, se tudo acaba
e de inúteis investigações, em que a pri­ com a vida ou se existe alguma cousa
meira verdade é um problema, em que fi­ além do tumulo, se devo levantar o meu
ca ao arbitrio de cada um avalial-o, admit- pensamento para o céo, se fixal-o unica­
til-o, ou rejeitai-o, como melhor lhe agra­ mente na terra, se olhar para Deus como
dar, sendo sempre o mesmo cm qualquer objecto das minhas esperanças, se despre-
das hypothcses, isto é, sempre uma nulli- sal-o, como cousa que me é indiíTcrente e
dade philosophica, em que a primeira pre­ inútil?
cisão do homem, a luz do seu espirito, o Que horror, ou antes, que abominável
■ primeiro dos seus séres por sua natureza, doutrina! Que escola de virtude! Que li­
de que todos os outros derivam a sua exis­ ção de moralidade! Que cartilha para ser­
tência, se não liga ao homem como um vir de regra e de instrucção ao genero hu­
ente necessario, como nosso creador, como mano!
nosso principio c ultimo fim? Em que parle do universo se encontra­
Viu-se já uma sciencia mais baixa, mais rá outra que se assimile com esta? E que
abjecta c dcspresivel? seria d’aquclle povo em que ella se en­
Que sciencia aquella em que a existên­ contrasse, isto é, que se deixasse entre­
cia do homem, as suas obrigações, os seus gue a si mesmo sem nenhuma fé, sem ne­
deveres, o seu destino é um enigma inde­ nhum principio que o dirigisse, ou que
cifrável, cm que elle tem de ficar suspenso lhe servisse de norte ou de guia do seu
entre a existência de Deus c do alheismo, comportamento?
entre a providencia e o fatalismo, entre o E é este nada, esta nullidade eterna, que
materialismo, que nos sepulta debaixo da se pretendeu substituir ao Christianismo,
pedra do tumulo e a immortalidade, que ou antes eis-aqui em que sc encerrava a
nos abre as portas da eternidade e nos en­ sciencia d’esse famoso sophista, que preten­
trega ao juizo de Deus? deu destruir o Christianismo, que sc arvo­
Que sciencia aquella, que desconhece o rou cm mestre do genero humano, que se­
que mais convém á nossa natureza, o que pultado n’uma profunda ignorância, que
a pódé felicitar, ou conduzir ao. seu verda­ envolto n’uma cegueira incurável quiz il-
deiro fim, que nos deixa n’uma dúvida luminar o homem e destruir os seus pre­
eterna, ou n’uma irritação fatal, sobre a juízos!
decisão de que dependem as nossas acções Quem mais que elle necessitava de ser
ou que regulemos com acerto o nosso com­ esclarecido? Aonde se encontraria quem
portamento e os nossos affectos? fosse mais cego e mais ignorante?
Que sciencia aquella, qúe não tem uma Com effeito não será cego e ignorante
verdade, que substitua as creuças do ge­ aquelle que desconhece o fundamento dos
nero humano, que occupe o vasio que dei­ seus deveres, que reputa indiflerento aquil-
xa no nosso espirito, que não fórma um lo que mais lhe interessa? Que juizo e que
credo, um symbolo, uma fé qualquer, uma discernimento aquelle que não tracta de
crença qualquer, mas que as destroe todas, inquirir—que sou eu? para onde caminho?
que não nos dá uma lei, uma norma, uma que será de mim para o futuro? o meu
regra qualquer, mas nos deixa sem ne­ destino será o do animal que pasta ou o
nhuma? da planta que vegeta? ficarei enterrra-
. Que sciencia aquella, qué nada tem que do debaixo do tumulo ou deverei cogitar
òfferèça ao homem, nem uma só palavra n’uma vida além d’esta? e que será lá de
com que o felicite, ou lhe sirva de confor­ mim? encontrarei a felicidade ou a des­
to na desgraça, nem uma só com que o graça? e que deverei eu fazer para mere­
afaste do vicio, nem uma só com que lhe cer uma e evitar a outra?—Acaso não se­
persuada a virtude, nem uma só que lhe rão estas questões da mais alta transcen­
sirva de caminho ou de norte de suas ac­ dência? poder-se-ha excogitar alguma cou­
ções; que se nos falia algumas vezes de sa mais importante e de maiores conse­
um a lei, nem elle sabe qual seja, nem se quências? e acaso sobre o que, ha de mais
julga obrigado a cumpril-a ou tomal-a por graVe e importante hão terá o homem
fundamentos dos seus deveres; que substi­ meio nenhum de chegar ao conhecimento
DEI 4U

da verdade? estará fóra do seu alcance o Que maior prova nos podia cila dar de
que mais lhe convém saber? que não foi feita para esclarecer o genero
Acaso nenhuma luz existe para o ho­ humano c que em vão se procura a verda­
mem? Estará elle condcmnado a espessas de na sua escola?
trevas desde o seu berço até o seu tumulo? É assim que a philosophia nos tem lan­
Que se pódc cxcogitar de mais funesto çado n’uma região desconhecida, que ne­
do que esta fatal indiíTercnça com que a nhuma luz esclarece, n’um pégo immenso
philosophia encara o negocio mais impor­ sem fundo c sem praia, em que se nào di­
tante que ha sobre a terra, sem que pre­ visa porto de salvamento, n’um deserto sem
tenda indagar se existe outra vida álem termo e sem sahida, n’um labyrintho em
d’csla, ou se existe um Deus que deva ser que todas as veredas perdem c desenca­
o nosso juiz? minham.
Mas se existe uma vida além d’csta, não
deverei eu cogitar n’ella? Deverei entre-
gar-me só ás cousas da terra? Nào deve­ VI
rei elevar-me acima d’clla, á região da irn-
morlalidadc que mc espera?
Acaso deverei julgar por cousa indifTe- Que é a scicncia do incrédulo? Uma ca­
rcute a parte mais nobre do meu sér; este rência de toda a fé, uina abstencia de toda
espirito que vive e pensa em mim, maior a crença c de todos os princípios, é uma
que o universo, que abraça e mede em negação de Deus, do seu culto e das suas
suas concepções, que se lança no infinito leis, ê o orgulho do homem divinisado, ou
rompendo os limites do tempo c do espa­ não reconhecendo outras leis senão as que
ço, que ba de sobreviver ás ruinas do dictar a si mesmo, é o homem entregue ás
universo para subsistir eternamente? suas paixões c á sua louca phantasia, é, em
Acaso nos pertence mais este corpo que uma palavra só, a sciencia do incredulo
perece, do que este espirito que vive sem­ um sorvedouro immenso, aonde se abys-
pre? E mais preciosa a vida do corpo que mam c se perdem todos os princípios e to­
a do espirito, mais o tempo que a eterni­ das as verdades, sem que escape uma só,
dade? Serão mais sensíveis os males pre­ a que se possa ater o espirito humano.
sentes que os futuros, mais os que acabam Em que abysmo se não despenha o hc
que aquelles que duram sempre? mem, diz um illustre escriptor, quando um
Se ha um Deus, em cujo tribunal tenha­ ycz sacode o jugo da fé! elle fluctua coi
mos um dia de apparcccr, não será da pri­ todo o vento de doutrina, não póde fixai
meira necessidade que trabalhemos por ap- se em opinião alguma, e muito menos fa
parecer sem mancha diante d’elle, ou em zer d’ella o seu symbolo, o seu credo, ou
não cahirmos culpados nas mãos da sua a regra do seu comportamento!!
justiça? Que regra se póde derivar d um juizo
Ser-nos-ha indiíTerentc aquclle em cuja vario, d’uuia opinião inconstante, d’um pro­
mão está a nossa sorte c de cuja vontade blema irresuluvel, ou d’um enigma indeci­
dependem os nossos destinos? precipitar- frável?
nos-hemos nos abysmos eternos sem nos Tudo o que cerca o homem sem fé 6
importar a sorte que lá nos espera? Tudo um mysterio para elle; esta universalidade
será objecto dos cuidados e da curiosidade de cousas que o confunde e de que elle
do homem, menos o destino de uma eter­ nada entende, o indisivel ponto que occupa
nidade? Acaso deverá o homem jogar á no meio de espaços immensos sem saber
sorte, ou fazer zombaria do seu destino? como, nem para que, uma eternidade que
Póde o homem adormecer a similhante o precede, outra que deve absorvei-o em
respeito n ’uma indiíTercnça estúpida ou sua fugitiva existência, tudo é para elle
n’um lethargo mortal? e será isto força de um abysmo, tudo se lhe prende a um eni­
espirito, ou força de demência e de loucu­ gma que não tem solução.
ra? 0 ’ cegueira incomprehensivel! o que Gomo c para que apparcceu o homeni
é de summo interesse da vida presente e sobre a terra, eis-aqui o escolho da philo­
da futura, o que é de summa importância sophia antiga e moderna, eis-aqui o pro­
e de tão alta transcendência, que nem o blema que ella nunca pude resolver, e na­
homem póde comprehender, o que emfim da melhor o mostra como a historia das
é de summo interesse para todos e a todos seitas religiosas, antes do nascimento de
os respeitos, é aquillo que a philosophia ou Jesus Christo, e os monstruosos desvarios
declara indiíTerentc, ou que não encontra da philosophia moderna.
em si luzes para poder resolvçr. Eis-aqui a razão d’essa mutabilidade das
412 DEI
opiniões, d’cssas contradicções vergonho­ querem acreditar em mysterios incomprc-
sas, d’essas eternas incertezas, d’essas ques­ hensiveis, seguem uns apoz dos outros er­
tões que Voltaire propunha a seus adeptos, ros tào visíveis c tão monstruosos, que são
a Alambert, Didcrot, e a Frederico u, rei a vergonha c o vilipendio da razào, sem
da Prússia, sobre a existência de Deus, so­ que d’elles tenham convicção: eiles vivem
bre as nossas relações com clle, sobre a e morrem na horrível incerteza se o na­
inimortal idade da alma, sobre o nosso des­ da é o fim da sua carreira, ou se os es­
tino, a que seus adeptos, tão ignorantes co­ pera a justiça de um Deus para os casti­
mo clle, declaravam nào saber responder. gar; nenhum meio posto em práctica para
E este miserável, cheio de cegueira, de tornar a Deus propicio, para applacar sua
demencia e orgulho, tinha a imprudência ira por causa dos seus crimes, e por isso
de dizer que nào acreditava em mysterios, nenhum pensamento lisongeiro, nenhuma
quando elle era para si mesmo uní grande esperança de um estado mais feliz, nenhum
mysterio, quando de tudo o que via nào meio termo entre estes dous extremos; uma
sabia dar a razão. indiííercnça estúpida, o lethargo que prece­
Que gloria pois é a d’estes homens? Que de a agonia da morte, ou um futuro cheio
galardào esperam pelos seus feitos? ne­ de horríveis approhcnsões; eis-aqui a sua
nhum. «Eiles nào confiam, diz Bossuet, se­ sorte, eis-aqui o seú destino!!
não na sorte do nada; mas essa tão mise­ E que se póde imaginar de mais desgra­
rável, como c que certeza podem ter d’cl- çado do que uma similhante sorte?
la? Quem tem a certeza de que Deus hão Eis-aqui toda a philosophia do impio,
existe, ou que não cuida das cousas d’este eis-aqui toda a sua scicncia em materia de
mundo? Quem é que lhes póde assegurar religião!
que Deus não crcou o homem para o re­ Como é logo verdade que a religião vem
conhecer como Deus e Senhor? que não de Deus, porque sem ella não ha mais que
tem obrigações a cumprir para com clle, e trevas, porque só ella nos descobre a ra­
que póde por isso viver á medida do seu zão da nossa existência, do nosso fim e do
desejo? Quem póde assegurar-se que ha nosso destino, porque só ella nos apresenta
de escapar á sua justiça, vilipendiar o seu Deus creando o homem para um fim digno
poder, ou subtrahir-se ao imperio d’aquelle da sua grandeza, e que, se nos dotou da
que domina sobre o raio e a tempestade, faculdade de o conhecermos, foi para um
que tem uma eternidade á sua disposição, dia o glorificarmos como clle merecia; por­
que vive e reina além dos tempos? que só ella nos mostra que esta desordem
Qual é pois o credo do impio, ou do ho­ morai que nos afllige, será um dia repa­
mem sem fé? Qual é a> ua esperança? é o rada, porque o tempo presente não é mais
nada: mas que nada é este? é o nada do que a aurora da eternidade.
seu espirito, é o nada da sua razão, é esta
nullidade, é esta insufficiencia, que se co­
nhecem a si mesmos para formar um juizo YI I
em que possam fixar-se, que se não invalide
ou desfaça logo por outros juizos ou por
novas idéias. É, pois, verdade que. a religião vem de
Sem fé, sem nenhuma regra, sem ne­ Deus, porque cm toda á parte onde se des­
nhuma convicção, não acreditando em na­ conhece a sua authoridade, predominam
da, não esperando em nada, elle vai de in­ erros grosseiros, dúvidas eternas, vergo­
certeza em incerteza, de abysmo em abys- nhosas incertezas, ou monstruosos desva-
mo até esbarrar-se no que lia de mais hor­ riosl
rível, até cahir no atheismo, até perder-so Não é só a philosophia moderna que as­
n’um furor que quasi não tem logar nos sim se degrada: a philosophia antiga não
espíritos. ■' foi mais feliz.
Mas não se julgue que clles param aqui, Qual foi o dogma que ella teve por alvo
porque isso lhes daria a segurança d’al- sobre a existência e natureza de Deus, e
guma cousa, e não a teem de nenhuma: sobre o nosso destino? Que absurdos se
eiles vão até onde mesmos não sabçm que não encontram n*essas cosmogonias anti­
vão, até duvidarem de tudo, até duvida­ gas ou cm tudo o que disseram os poetas
rem de si mesmos e dos objectos que os e philosophos sobre a origem do mundo,
cercam. sobre a natureza de Deus, formação do
Os absurdos em que cahem são mil ve­ universo e existência do homem?!
zes mais insustentáveis, que as verdades, Qual é d’elles que deu a Dous a honra
cuja sublimidade os assusta; o porque não e a gloria que lhe é devida, apresentando-o
DEI 413
como crcador do homem e do universo, c lcs que julgaram o mundo eterno emquan­
como Supremo Senhor de todas as cousas? to á sua materia e á sua fórma: segundo,
Qual c aquellc que o reconheceu corno d’aquellcs que julgaram a materia eterna,
o unico Ente que existe por sua propria mas não emquanto á sua fórma, acabando
natureza, c de que todos os outros rece­ por dividir cm duas classes os philosophos,
beram a existência, o sèr c a vida por ef- que admittindo a eternidade da matéria,
feilo da sua bondade c da sua omnipoten- reconheceram todavia um sèr intelligente
cia? como architecto do mundo.
Não o suppozcram cllcs inhabil ou im­ Uns d’clles não reconheceram outra sub­
potente para crear a materia? E que des- stancia senão a natureza dotada dc enten­
varios, consequências absurdas se não de­ dimento, de iilustração e de vida: os outros
viam naturalmcnte seguir d’cste primeiro admittiram a Deus e a materia como dous
erro sobre a natureza e essência do pri­ entes eternos separados e distinctos um do
meiro sèr?! outro, sujeita porém a materia á acção de
Aquellcs que negam a Deus o poder de Deus.
crear a materia, devem necessariamente Emquanto aos da primeira opinião, prin­
admittir uma d’cstas duas proposições: ou cipiarei por Ocello Lucano, cuja authorida-
a matéria existe desde toda a eternidade co­ dc e antiguidade se teem opposto á de Moy­
mo sujeito passivo das operações de Deus, ses, ainda que elle viveu um pouco antes
ou a matéria é o unico ente "existente por de Platão.
si mesmo. Este Ocello Lucano era um acerrimo de­
Mas uma c outra proposição não conduz fensor da eternidade do mundo, c fez um
aos maiores absurdos e ás mais revoltan­ pequeno tractado, que ainda hoje existe,
tes impiedades? A primeira, que suppõe para provar que o mundo não teve princi­
dous princípios co-eternos e existentes por pio nem fim, e que é por sua natureza eter­
si mesmos, não é uma contradicção mani­ no, perfeito e indestructivel.
festa? e a outra, que suppõe que a materia Aristoteles considera o mundo como ums
existiu sempre como a vèmos com peque­ emanação necessaria do poder de Deus,
nas diíTerenças, ó acaso menos contradicto­ por conseguinte não eterno como elle, pel
ria e inconsequente? Na verdade, tudo o razão de que Deus não podia existir un
que nós vèmos, ou seja em relação á fórma momento sem manifestar pelas suas obrai
presente do mundo, á situação "e ao movi­ a sua gloria, á similhança do sol, que não
mento das suas partes, ou seja em relação póde existir sem dar luz e claridade.
á matéria em si mesmo, sem respeito á Segundo a sua doutrina, não só a maté­
sua fórma actual, é não só precário, mas ria dos céos c da terra é eterna, mas o
dependente c o mais alheio possivcl da mesmo genero humano c todas as espccies
ideia d’um ente necessário. de animaes teem subsistido sempre por
Emquanto á segunda opinião de dous en­ uma serie de gerações, sem principio e sem
tes co-eternos e improduzidos, que maior interrupção.
absurdo do que fazer um escravo do outro; Pretenderam dar alguns a esta opinião
porque é da essencia d’um ente increado de Aristoteles um sentido rasoavel, fundan-
ser independente na sua essencia e nas suas do-sc na eternidade do decreto de Deus
propriedades, não necessitando senão de si para a creação do universo en a indivisibili­
mesmo para as suas operações, não lhe fal­ dade da sua existência, sem considerarem
tando cousa alguma para a sua perfeição, que similhante doutrina faz pVoceder as
não podendo receber modificações d’oútro obras de Deus, não d’um effeito livre da
sèr para a sua maneira de existir sem de- sua vontade, mas irresistível de sua natu­
teriorar-se. reza, sendo ainda esta opinião summamento
Apesar porém dos absurdos de qualquer injuriosa á divindade, emquanto faz neces­
d’cstas duas proposições, não houve philo­ sarias as creaturas para a honra e para a
sopho na antiguidade que não abraçasse al- gloria do Creadòr.
uma d’ellas; e é para o mostrar que vou Os sentimentos dc Aristoteles sobre a
’um rapido lauco de vista passar sobre eternidade do mundo foram abraçados por
toda a philosophia antiga, mostrando que a muitos, e entre estes por Origenes: notan­
ideia dc creação foi estranha a toda ella. do dc passagem que no século vi se ensi­
Para proceder com alguma ordem no meio navam publicamente as suas doutrinas, em
d’este labyrintho do opiniões e de contra- Alexandria, por Amonio, discipulo de Pro­
dicções em que se encontra, farei as se- clo, e ainda hoje ellas teem voga entro os
güintos divisões: mahometanos, tendo sido abraçadas por al­
Primeiramente fallarei da opinião d’aquel- guns dos seus mais sábios sectarios.
414 DEI
Segundo Xenophanes, que foi o fundador nemur et unum est, et Deus, et socii ejus
da seita cleatica, no universo não ha mais suum et membra. Sen. cap. 92.
que uma só substancia, Deus e o mundo O mesmo sentimento se nota em Luca­
suo uma c a mesma cousa: tudo o que no. L. 9.° de Pharsal.—Jupiter est quod-
existe é um unico sêr que permaneço sem­ qumque vides, quocunque moveris.
pre o mesmo, e eis-aqui o unico Deus que Um author, que morreu nos princípios
existe, ou o unico Deus verdadeiro. d’cstc século, que se fez tão celebro c co­
Esta doutrina foi seguida pelos seus dis­ nhecido pelos seus paradoxos, como depois
cipulos Zenão de Elea, Parmenides, Mclis- foi despresado e aviltado por elles, abraçou
scs, Stilpào c pelos philosophos megarie- também a mesma doutrina, pois que elle
nos. sustenta que não ha outra substancia além
Dcbalde Simplicio, interpretando a Aris- d’csla immensa cousa que vémos—Denuis
toles. pretende dar um sentido metaphysico origine des Cultos. Tom. l.°, cap. 1."
á opinião de Xenophanes. Que systemas, ou antes que montão de
Stratonio Lampraceno disse que o mun­ monstruosidades c cxtravagancias! Que se
do fòra ingenito e que existia ab eterno póde imaginar de mais absurdo do que fa­
pela sua própria virtude. zer de Deus a causa e o offcito dos males
Alexandre Epicureo, que se suppõe ser physicos e moraes do universo?
contemporâneo de Plutareo, ensinava que Do que fazer da matéria a mais vil de
Deus era material: que todas as eousas for­ todas as eousas, o theatro de todas as mu­
mam uma só essência, ou que todas as cou- danças, o campo de batalha de todos os
sas são cssencialmente Deus, e que as fôr­ combafes, este ser eterno e improduzido,
mas são accidentes sem existência real. sempre o mesmo, em que não ha variação
No século xiii foi desenterrado c quei­ nem sombra de mudança?
mado o cadaver de Almarico por ter ensi­ Mas passando á segunda opinião, que a
nado esta doutrina. substancia do universo é eterna ainda que
Pedro Abailard foi accusado por ter dado não seja a fórma, em que cila hoje se acha,
esta extravagancia. que foi a mais seguida entre os antigos
Ha uma seita famosa no Japão que en­ pelo axioma—que de nada, nada se faz; al­
sina quasi o mesmo, isto é, que não ha guns d’estcs explicaram a formação do uni­
senão um principio de todas as eousas, verso unicamente por princípios mechani­
cujo principio communica a sua essência cos, c pela força e actividade da materia, c
aos entes particulares de fórraa, que fazem outros julgaram que deviam recorrer á in­
com elle a mesma essência c n’ellc se re­ tervenção d’uma intelligcncia superior: mas
solvem quando são destruídos. todos estes, ou quasi todos estes suppoem
Entre os mahometanos também ha uma que a origem da terra provém do cáhos ou
seita chamada Alzenadika, que estabelece d’uma massa opaca c fluida sem distineção
como cousa certa que tudo o que existe no de elementos, composta de toda a sorte de
mundo, ou que tudo o que vimos ó Deus. partes em confusão c sem fórma alguma
O famoso Abu-Mosscn passa por ter se­ determinada.
guido esta opinião, c por ter acreditado que Parece que Ovidio foi de differente opi­
todas as eousas parlem c se resolvem n’um nião e que concebeu o cáhos como homo­
rincipio commum, isto é, em Deus: os ara- gêneo, porque no bella descripção que d^lle
es dão a esta opinião o nome de metaphy- nos faz no liv. l.° das suas Metamorphoses
sica de resolução. nos diz que a natureza tinha então uma só
A doutrina, que reconheceu no universo face, o que todavia não combina com os
uma alma, que o anima, que se communi­ princípios que elle introduziu na sua com­
ca aos differentes sêres, c que fórma com posição.
elles uma só essencia, e que tão univcrsal- Principiando pelos philosophos da pri­
mente está espalhada no Oriente, era mui­ meira opinião c principalmente pelas cos-
to commum entre os antigos; constituía -a mogonias mais antigas dos phenicios, dos
parte principal do systema stoico. egypcios, dos caldeus c babylonios, a pri­
Segundo Plinio, maturalista, o céo deve meira, isto é, a dos phenicios, que refe­
considerar-se como uma divindade eterna, re Sanchoniaton, escriplor phenicio, n’um
immensa sem principio e sem fim—mun­ fragmento que nos conservou Eusebio dc
dum numen esse credi par est aeternum, im­ Cesarea, não faz entrar Deus por cousa ne­
mensum, neque genitum, neque interiturum nhuma na formação do universo.
umquam. Lib. 2.°, cap. d.° Segundo Diodoro da Sicilia, que também
Seneca também parece ser da mesma nos deixou a sua, e que se suppõe ser a dos
opinião, quando diz—totum hoc, quo conti­ egypcios, a natureza se constituiu por si
DEI 415
mesma independente da acção de qualquer Homero, deixou-nos uma theologia muito
outro ente. confusa c muito extravagante.
Eusebio de Ccsarca fórma sobre ambos Com effeito. ao passo que guarda um
os systemas o mesmo juizo, dizendo que profundo silencio sobre uma intclligencia
n’um e n’outro em vez de Deus se lhe sub­ suprema, faz d’um dragão monstruoso um
stituiu uma formação do univerno fortuita dos seus primeiros princípios; apesar po­
c expontânea. rém d’esta extravagancia, a maior parte dos
Para confirmar este seu juizo, refere clle gregos o teem considerado não como um
uma passagem de Porphirio, que na sua simples poeta, mas como um philosopho
carta a Anebo, sacerdote egypcio, diz que profundo, fazendo das suas fabulas que di­
Cheremon e outros julgaram’ que nada ha­ zem respeito aos deuses, allegorias admirá­
via anterior a este mundo visivcl, que os veis e sublimes mysterios, a cuja opinião
planetas c os signos de Zodiaco eram os deve Orpheu a honra de ter passado por
verdadeiros deuses dos egypcios, que o sol um homem inspirado.
devia considerar-se como o crcador do uni­ Supposlo pois elle fosse o grande apos­
verso. concluindo Eusebio, que mesmo se­ tolo do polytheismo, enire os gregos tem-se
gundo a theologia secreta dos egypcios, não figurado como reconhecendo um Deus su­
havia outros deuses mais que as estrellas premo como principio de todas as cousas,
c os planetas; não se devendo a formação fundando-se esta presumpção na grande es­
do universo, nem a um principio espiri­ tima que fizeram d'ellc as duas seitas de
tual, nem a uma ou muitas divindades, philosophos mais religiosos, os pythagori-
mas unicamente ao sol pela sua acção so­ cos e os platônicos; e esta opinião favorá­
bre os elementos. vel a Orpheu, a que parece mesmo terem
O resumo qde nos deixou da philosophia subscripto alguns dos padres da Igreja, não
egypeia Diogenes Laercio, é precisamente será despida de fundamentos se se reco­
conforme a esta doutrina, ou a que a ma­ nhecer que o resumo da cosmogonia de
teria foi primeiro principio de que sahiram Orpheu, feito por Thimoteo Cronographo,
os quatro elementos e todos os animaes, e contém a verdadeira doutrina d’este poeta.
ue o sol e a lua eram as suas divindades, Notarei de passagem que elle foi o pri­
ebaixo dos nomes de—Osiris e Isis. meiro que introduziu entre os gregos o ce­
Emquanto aos caldeus c babylonios, ain­ lebre ovo do mundo, que provavelmente ti­
da que Diodoro diz que elles acreditaram rou da theologia dos egypcios, que á simi-
que a natureza do mundo era eterna c que Ihança de muitas nações antigas represen­
o universo não Tora gerado, nem estava su­ taram o mundo debaixo d’este symbolo.
jeito á corrupção, no entanto Berosio, que
merece mais credito pela sua antiguidade
c porque era da Caldea, faz preceder á for­ YIII
mação do universo a agua envolta em es­
pessas trevas, sahindo do seu seio os ho­
mens e os differentes animaes. Os primeiros naturalistas quasi todos al-
Segundo os poetas, o mundo sahiu do tribuem a producção de todas as cousas ao
cáhos sem assistência da divindade, e ainda Oceano ou á agua, c é por esta razão que
que elles digam que o amor presidiu ao os deuses juravam pela agua da lagôa sty-
arranjo das partes da materia, c por este gia, como pela cousa mais antiga e vene­
amor queiram alguns entender um princi­ rável, e é por esta razão ainda que Home­
pio activo separado da materia, parece-me ro chama ao Oceano o pae dos deuses e a
mais natural que elles quizessem explicar origem de todas as cousas, e que Thallcs,
o accordo e harmonia dos elementos de­ author da seita jonica, dizia que a agua era
pois que acabou a guerra intestina que os o principio de que todas as cousas eram
desunia, porque, segundo elles, o amor nas­ compostas e em que- a final todas se resol­
ceu do cahos, bem como os deuses que ver­ viam.
dadeiramente não eram outra cousa senão Parece porém que fazendo da agua flui­
os corpos celestes, os elementos e as diffe­ da o primeiro principio de tudo, não en­
rentes partes da natureza, personificadas ou tenderam a agua elementar mas o cáhos,
deificadas. que era uma substancia, segundo a signi­
Orpheu, que foi o principal introductor ficação da palavra grega.
dos ritos religiosos do paganismo entre os Segundo a theologia de Hesiodo, ainda
gregos, c que parece foi elle o author dos ue muito confusa, é do cáhos e do amor
nomes dos deuses, da sua genealogia e dif­ c que elle faz o mais bello dos deuses que
ferentes funeçoes, em que foi seguido por precede tudo.
416 DEI
Segundo esta extravagante philosophia, do univorso, e a attribuia ao seu concurso
não sómente a materia, os elementos, o. fortuito c ao seu movimento continuo cm
fogo, o ar, a agua e a terra existiam antes um espaço infinito desde toda a eternida­
de Deus, sendo elles mesmos deuses, mas de, do que resultou depois de infinitas com­
os homens e os differentes animaes. Ainda binações o mundo organisado como ora o
que alguns tenham pretendido justificar vêmos.
Thalles da imputação de atheismo, que­ E que admiravel philosophia a d’este Epi­
rendo que elle admittisse um principio de curo, admiltindo a eternidade do mundo
que tudo tinha sido formado da agua, c formando os corpos do partes de materia
para prova d’isso citem a Cicero e Laer- infinitamente pequenas, fazendo sahir a
cio, no entanto é também certo que o mes­ terra, os céos, os planetas, as estrellas, os
mo Cicero, Laercio e uma infinidade d o u ­ mineracs e os mesmos homens do movi­
tros attribuem unanimemente a Aoaxago- mento obliquo d*cstes átomos, reprodu­
ras a honra de ser elle o primeiro que re­ zindo-se pela geração os differentes entes
jeitou o acaso como author da ordem do viventes logo que aquclles perderam a sua
universo, e o attribuiu a uma intelligencia força productoral
suprema, o que parece mostrar que todos Que sensata philosophia a d’este Epi­
os philosophos da seita jonica, que prece­ curo! Admittiu os orgãos e as differentes
deram Anaxagoras, eram atheus ou mate­ partes dos corpos animaes crcados sem
rialistas, c é por isso que Aristoteles com destino, devendo os seus usos ao emprego
razão chama a Thalles o principe d’csta phi­ machinal que dfelles fizeram os differentes
losophia. . . animaes.
Anexcmandres reconhecia por primeiro Passando aos philosophos, que admittin-
principio do universo uma materia primi­ do a eternidade da materia reconheceram
tiva e infinita, a que elle nào dá nome. todavia um sér intelligente como architeto
É d’esta materia que foram formados os do mundo, alguns d’estes não admitliram
corpos celestes, e é da sua fermentação que outra substancia senão a mesma natureza,
nasceram todos os animaes, sendo produ­ que elles suppozeram dotada ^entendimen­
zidos os homens do ventre dos peixes, aon­ to, de razão, c de vida; e outros conside­
de se conservaram até que podessem ali­ raram Deus e a matéria como dous séres
mentar-se por si, sendo depois vomitados separados e distinctos um do outro.
sobre a terra. A primeira opinião, que não dista muito
Aneximnes, discipulo de Anexemandres, do espinosismo, parece ter sido a de Dio­
não negava a existência dos deuses, mas genes d’Apolonia, de Hippaso, de Hetha-
estava tão longe de lhes attribuir a forma­ ponto, de Heraclito, e dos stoicos.
ção do universo, que os considerava como Hippaso c Heraclito fizeram do fogo o
producçõos d’um ar infinito, de que fazia primeiro principio de todas as cousas, re­
o principio de todas as cousas. solvendo-se a final n’clle depois de certos
Plutarco, depois de ter exposto a opinião periodos de tempo, e fizeram ainda d’este
d’estes dous philosophos e mostrar que am­ fogo o mesmo Deus.
bos elles se tinham enganado, attribuindo a ' Heraclito o descreveu como uma sub­
formação do mundo sómente á materia stancia, que pela sua subtileza penetra c
sem a intervenção da divindade, faz a se­ circula em todo o universo.
guinte judiciosá reflexão—que a materia é O famoso Hippocrates fazia da divindade
tão capaz de produzir alguma cousa como a mesma ideia que Heraclito, pois que elle
é um pouco de barro de se organisar em fazia d’este fogo um sêr immortal, que via,
fôrma de vaso por si mesmo, sem a indus­ ouvia, c sabia todas as cousas, tanto pre­
tria e intelligencia do oleiro.—Diogenes de sentes como futuras.
Apollonia corrigiu a opinião de seu mestre Os stoicos admittiam dous princípios pri­
Aneximnes, estabelecendo o ar como pri­ mários: Deus e a materia, um activo e
meiro principio do universo, mas o ar do­ outro passivo, ainda que ambos corporaes,
tado de força divina, sem o que elle nada porque elles não reconheciam substancia
teria produzido. immaterial, o que verdadeiramente era re-
Todos sabem que o systema dos áto­ duzil-os a um só.
mos, que uns attribuem a Leucipio e ou­ Elles diziam que Deus, o qual conside­
tros a Democrito, e de que Epicuro pre­ ravam como architecto do mundô, era um
tendeu dar-se por author, e que depois da ente immortal, dotado de razão, que go­
sua morte teve grande voga, e parece mes­ vernava o mundo e todas as cousas pela
mo ter prevalecido sobre todos os outros sua providencia; mas representavam-no or­
systemas, excluía a divindade da formação dinariamente como uma substancia ignea,
DEI 417

sem figura, que se metamorphoscava em referidas, e que quasi se confunde com o


todas as cousas, ou como um fogo artifi­ espinosismo, salvo em suppòr que o mun­
cial, procedendo systcmaticamentc á for­ do esteve em outro tempo em estado diffe­
mação do mundo, contendo em si os mo- rente (Vaquelle em que se acha hoje.
dellos, segundo os quaes cada cousa se fôr­ Ha outra no reino de Sião, e entre os ju­
ma consoante o seu destino. deus modernos, que parece derivar a ori­
Esta substancia, segundo elles, vivifica gem de todas as cousas de emanações de
e penetra todo o universo, e cada uma das uma causa primitiva, tornando depois a en­
suas partes, como a alma vivifica o corpo, trar n’ella.
ou a differente parte da matéria, que elle Passando agora áquelles philosophos, que
anima. admittiram dous princípios independentes
É por esta razão que clles consideram o um do outro, c existentes desde toda a eter­
mundo como um Deus, c cada parle do nidade,—Deus e a materia,—citaremos a
mundo como uma porção da divindade; Platão, a Pythagoras, c Anaxagoras entre
sem embargo porém de confundirem Deus outros muitos.
com o mundo, tinham como certo que de­ Não se sabe precisamente qual foi a opi­
pois de certos periodos de tempo o uni­ nião de Prerccides, mestre de Pythagoras:
verso seria consumido pelo fogo, absorven­ as primeiras palavras d’um tractado, que
do Deus em si todas as particulas d’elle, e existia ainda no tempo de Diogenes Laer-.
reproduzindo-as ou communicando-as no­ cio, parecem indicar que elle acreditava em
vamente por meio d’uma nova extracçâo tres princípios eternos—Júpiter, o tempo, e
ou reproducção. a terra.
Ha entre os homens de letras da índia Pythagoras passa também por ter admit-
uma opinião muito similhante a esta, pre­ tido dous princípios existentes por si mes­
tendendo que o Ente Supremo tem não só­ mos, uma monade ou unidade, uma diada
mente formado as almas da sua própria ou dualidade.
substancia, mas mesmo todas as partes do Pela unidade geralmente se suppõe qu(
universo,' e que esta producção não resul­ elle quiz entender Deus ou um principi
ta do sèr immutavel como causa efíiciente activb, ainda que alguém ha também qu
(Telia, mas d’uma extrácção ou extensão queira entender pelas monades de Pythd
actual da natureza divina, bem como a goras os átomos; o que elle porém quiz en
destruição dos séres particulares não é se­ tender por diadas, ninguem o sabe dizer
não uma nova entrada na substancia divi­ com certeza, o que tem dado logar a diffe­
na, d’onde emanaram, o que elles tractam rentes opiniões, que o tempo não permitte
d’exerccr pelo exemplo seguinte: expôr.
Comparam a Deus com uma aranha de Architas de Tarento, que também era py-
immensa grandeza, tirando a materia de thagorico, admittia igualmente dous prin­
que formou a sua teia do seu proprio seio, cípios eternos: Deus e a materia, suppondo
urdindo-a com uma arte admiravel, con­ que Deus era *o author da fôrma em que
templando-a por muito tempo, e recolhen­ ella hoje se acha, ou da arte com que ella
do depois em si todos os fios, d’onde resulta foi reduzida á organisação actual.
uma espccic d’aniquilação dos differentes Thimeu de Locres, que também era py-
séres: elles ainda fazem outra comparação, thagorico, acreditava na preexistencia da
dizendo que Deus se assimila a um im­ matéria; parece porém ter concebido o
menso oceano, que contém em si uma im- mundo como um Deus produzido.
mensidade de vasos cheios d’agua, que Não é pois verdadeira a opinião d’aquel-
d’elle procedem, que n’elle nadam, c quan­ les que o accusavam de ter acreditado na
do se quebram ou rompem, o fiúido que eternidade do genero humano, e ter-se as­
conteem derrama-se e confunde-se no mes­ sociado por isso com Aristoteles e Ocello
mo oceano d’onde foi extrahido e de que Lucano.
fazia parle.
Ha opiniões idênticas na China, sendo IX
bem conhecida a que faz de Deus a alma
material dos céos, que limita o seu poder,
sem que muitas vezes possa fazer-se obe­ Platão, a exemplo de Socrates, de quem
decer; e a de Foé, que parece fazer do va­ foi discipulo, admittiu tres princípios eter­
cuo ou do nada o principio de todas as nos: Deus, a materia, a ideia ou o modello,
cousas. segundo o qual Deus tinha feito todas as
Ha também no Japão uma muito simi­ cousas;
lhante, ou que pouco differe das opiniões Herodes intentou provar que Platão ti-
27
418 DEI
nha reconhecido a creação da materia, e Este philosopho não podendo explicar a
ainda que seja certo que se encontram origem do mal, por não poder attribuil-o
nas suas obras algumas expressões favorá­ a um ente essencial mente bom; ou á ma­
veis a esta opinião, no entanto ha outros teria, por ser um sujeito passivo, admitte
logarcs d’ellas em que se diz tào claramen­ outro principio co-oterno a Deus e á maté­
te o contrario, que não admitte a mais pe­ ria, ou um genio malfazejo; e para dar
quena dúvida sobre qual fosse a sua ver­ mais peso á sua opinião, junta aos argu­
dadeira doutrina. mentos authoridades, pretendendo mostrar
Plutarco quer que Platão admillisse dous que foi esta a crença de todas as nações e
princípios intelligentes, um bom e outro dos mais sábios philosophos da antiguidade.
mau. Se a brevidade a que me propuz me
Sobre a formação do universo a doutri­ permittisse lançar a vista sobre todos os
na de Platão ora—que a materia não tinha philosophos, reproduziría outros desvarios
ao principio fôrma alguma determinada e como estes; mas para que me hei de cansar
que movendo-se irregularmente, Deus, que mais, depois de ler fallado d’esscs chefes
prefere a ordem á desordem, convertera a da seita, que tiveram numerosos discipulos
materia em quatro elementos, formaudo e que formaram escolas, que tão famigera­
d’ellcs o mundo e todas as cousas, confor­ das foram do mundo?
me o modello que tinha em si mesmo; que Eis-aqui a que os philosophos chegaram
Deus tinha dado ao mundo uma figura es- pelas suas investigações, e ao passo que se
pherica como mais perfeita e uma alma perdiam n’um labyrintho d’erros c opiniões
intelligente, porque um sér animado, é mais monstruosas sobre a primeira origem das
excellente que um sér inanimado. cousas, alguns povos formavam uma ideia
Elle pretendia ainda que o mundo era mais ou menos distincta da creação do uni­
incorruptível não por sua natureza, mas verso, referindo-se ás idéias tradicionaes,
pela Providencia que o preserva de toda a que tinham recebido da mais remota anti­
corrupção; elle queria ainda que não só­ guidade, entro os quaes podia referir os tos-
mente o universo fosse animado, mas tam­ canos, os druidas, os magos, os persas e ou­
bém differentes partes, que, dizia, serem tros.
deuses inferiores ao Deus Supremo, mas Mas á vista dos absurdos e opiniões mons­
superiores aos homens, c por isso dignos truosas dos philosophos, que são o Deuca-
de serem honrados por elles; elle fazia dos lião e Pirrha, a idade de ouro e a idade de
corpos celeste^ deuses, suppunha mesmo ferro, celebradas nos poetas;' o elephante
que a terra era um deus, e dos mais anti­ na índia sustentando o globo; o honfem sa­
gos que existiam no mundo sublunar, e bido de uma concha no Groenland; a gran­
criticava a Anaxagoras, que concebia os de lebre no Canadá; o sol crcador do Pe­
planetas e as estrellas como séres inani­ ru; o nascimento de Askus e Emla na
mados. Scandinavia?
Anaxagoras não fez intervir a divindade N’estc montão de desvarios do espirito
na formação do uuiverso senão quando de humano sobre a origem do mundo, quem
outra maneira não pôde evadir-se das dif- não ficará surprendido de admiração a vis­
ficuldades que o embaraçavam; de resto ta da narração de Moysés tão bella, tão
concedeu tudo ás forças da natureza. simples, tão razoavel e tão natural sobre a
Empedocles parece ter seguido o syste­ creação e destino do homem? Quem pode­
ma dos átomos. rá desconhecer a differença immensa en­
Archelau admittiu como primeiro prin­ tre o erro grosseiro e a verdade sublime,
cipio dos átomos um sem numero de par­ entre a pureza do original e a corrupção
ticulas singulares, ainda que outros que­ das cópias, entre a traducção verdadeira e
rem que elle reconhecia um ar infinito, as viciadas?
que se convertia já em fogo, jã em ar, se­ Qual é aquelle que tendo lido a narra­
gundo a differente temperatura a que se ção de Moysés terá deixado de notar a cor­
chegava. respondência e a harmonia do todo com
Anaxagoras e Archelau suppozeram os cada uma das suas partes, formand,o esta
homens produzidos pelo calor da terra, que unidade maravilhosa, este bello quadro que
lhes ministrou um alimento viscoso simi- patenteia o genio e habilidade do artifice
lhante ao leite, reproduzindo-se depois pela seu author.
união dos dous sexos. Que se póde conceber de mais alto e su­
Plutarco reconheceu expressamente a blime, de mais magnifico e conforme com
eternidade da materia, declarando explici­ a razão e com a grandeza do Sér Supre­
tamente que não podia ser: tirada do nada. mo do que este Deus de Moysés no princí-
DEI 419

•pio dos tempos, tirando o homem c todas contra; c assim o mostra elle, porque de­
as eousas do nada. só pola forra da sua pois de muito discorrer ou ter dissertado
palavra; dizendo—faça-se a luz—e a luz largamente sobre esta materia, se não li-
iinmediatamcnte alumiando todo o univer­ songeia de ter dissipado todas as dúvidas,
so, suspendendo o sol no meio (Trona abó­ ou de ter chegado ao pleno conhecimento
bada immensa, attrahindo á roda de si to­ da verdade; e por isso concluo que nos de­
dos os planetas como se dominasse sobre el- vemos sujeitar com gosto á lei da morte;
Jes, como se viessem fcstejal-o c render-lhe porque, ou cila nos leva a melhor vida. ou
suas homenagens; cobrindo a terra de ar­ nos priva de lodo o sentimento—ut. 'aut
vores de fruetos, planetas, vcgetacs para in (cternum, ct plane in nostrum domum
regalo do homem, bala*nceando emfim sobre remigremus aut omni sensu, molestiaque
o globo as montanhas c os mares, como carre cimus. Tuse. l.°, § 49.
para annunciar este feliz consorcio, de que É por esta mesma liberdade philosophi­
Deus é o sacerdote supremo, a terra o lei­ ca. que elle n’um logar ridicuiisa como
to nupcial c o genero humano a posteri­ pueril, o temor da outra vida; destruindo
dade. assim toda a importanda d’esta verdade,
Porém se os philosophos só disseram cou- pois de que serve acreditar na immortali­
sas absurdas sobre a origem do mundo, cl- dade da alma se se não teme a outra vida,
les não mostraram mais que ignorância so­ ou se não tem influencia sobre o nosso
bre o nosso destino. * . comportamento? e n’oulro dá como pouco
A immortalidade da alma, este dogma tão verosimil, o que pouco antes julgara sel-o
importante, a base da moral e os funda­ muito. Cie., cie natura deorum, liv. 2.
mentos dos nossos deveres, em que repou- Cousa, notável; Cicero tendo discorrido
.sam a tranquillidadc pública e a seguran­ sobre a immortalidade da alma, não lhe
ça individual, os direitos dc todos c de ca­ parece tel-a demonstrado, antes manifesta
da fim cm particular, por nenhum sabio, claramentc as suas dúvidas; e Lucrccio em­
por nenhuma seita foi definido com clare­ penhado em destruil-a, deixa escapar (tanto
za; algumas vozes o reconheciam, outras pôde a força da yerdadel que se não con­
o combatiam; ora era apresentado como vence do que disse, c que dá como certo
um doscjo“do coração, ora como uma dú­ para os outros, o que elle para si não repu­
vida da razão; emfim este dogma tão trans­ ta que o seja; eis-aqui como se explica no
cendente não era mais que um objecto de seu livro l.°:
disputa e de controversia philosophica, c
quasi um jogo d’cspirito para todos os phi­ Ignoratur enim quee sit natura animee.
losophos. Nata sil, an contra nascentibus, insinuetur
Socrates ao despedir-sc dc seus amigos, Et simul intereat nobis cum morte direpta.
para ser conduzido á morte, exita sobre a
immortalidclde da alma, duvida que algu­ Seneca chama «i immortalidade da alma
ma cousa sobreviva de nós, ou se tudo se uni sonho lisongeiro.
•confunde no tumulo: indica elle que o co­ Cesar fazia zombaria d’ella á face do se­
nhecimento d’csta verdade só pertence a nado.
Deus. Tacito parecia conccdcl-a como privile­
Cicero, quando nas suas obras falia da gio ás almas dos homens grandes—Si non
immortalidade da alma, não a apresenta cum corpore magnev anima• extinguuntur,
como uma verdade demonstrada e iufalli- placide requiesce, diz elle, fallando da mor­
vel: mas umas vezes como uma opinião te dc Germano.
verosimil ou provável — Quavis, diz elle, Urna grande parte dos philosophos anti­
fallando da immortalidade da alma, ut po­ gos rejeitaram-na sem disfarce, a dc mui­
tero, explicabo, nec tamen quasi Pitliius tas passagens dc Homero, dc Hesiodo, de
Apollo, certa ut sunt, et fixa, quee dixero; Pindaro, de Climaco, dc Lucreeio, de Yir-
u ltra enim, quo progredior quam ut verosi- ffilio, de Ovidio, de Juvenal, e d’outros se
m ilia videam non liabeo—outras vezes co­ deprehende claramente que o dogma do
mo um desejo do coração, dc que a razão immortalidade da alma e da outra vida,
pouco se convence—Néscio, quomodo, dum não passava de un: problema, sobre que
lego, assentio: cum posui librum, et mecum tomavam a liberdade de discorrer, já de
ipse de immortalitate animorum coepi cogi-, •uma, já de outra maneira, sem que pre­
tare, assentio omnis illa elabitur. Liv. l.° tendessem resolvel-o. •
quest.—È por isso que tracta a immortali­ No tempo de Augusto a libertinagem de
dade da alma como uma questão acadêmi­ espirito tinha chegado a ponto que este
ca, cm que é permittido argumentar pró e dogma se ridiculisava nos theatros, c se
*
420 DEI
cantava nelles publicamente— post mor­ peito a gloria do Creador, admitlindo um
tem nihil est, ipsaque mors nihil, spem po­ Deus que não manifestou ao homem o seu
nant avidi, soliciti metum. É isto que faz destino, que o abandonou a si mesmo para
dizer a Bossuct que antes de Jesus Christo ser victima dos seus erros c das suas pai­
a immortalidade da alma não era um do­ xões; isto é, que figuraram o Creador pro­
gma reconhecido, c que mesmo entre os cedendo d’uma maneira que o deshonra e
judeus, apesar de terem na Escriptura a avilta; isto é tão indigno da sua grandeza
certeza d’uma vida futura, fazia tão pouco como da sua gloria, de que a natural con­
este dogma o fundamento da sua consti­ sequência parece ser que. uma similhante
tuição religiosa, que os saduceus, sem o divindade é um ente sem realidade, uma
reconhecerem, eram admittidos ao saccr- chirncra de imaginação, uma contradicçào
docio— Cest un des caracteres du peuple do espirito, ou antes uma monstruosidade
nauveau, de poser pour fondement de la re- na natureza: c se isto é verdade, também
ligion, la foi de Ia vie future, et ce devant o é que os authores ou sectarios d’cste sys­
Ure le fruit de la venu e du Messie. Disert. tema monstruoso teem estabelecido ou pro­
sur Vhistoire univ., 2.a parte. clamado uma especic de alheismo mais bru­
tal, mais grosseiro c degradante, se nos é
licito explicar assim, do que aquelles que
X descaradamente negam a existência d’uma
primeira causa, que dá a tudo o sér, a
exisfencia c a vida.
Em conclusão do que fica dito, se a phi­ Em verdade como poderarn cllos conce­
losophia pois não professa nenhum credo, ber uma divindade inconsequente c absur­
nenhum dogma, nem mesmo o da existên­ da? Como fizeram d'ella os fundamentos
cia de Deus, que manifesta claramentc o dos seus systemas c a figuraram como o
espectáculo da natureza, as maravilhas do unico Deus existente c possível? Como é
cco c da terra, nem mesmo o da immorta­ que o espirito humano póde conceber um
lidade da alma, que é uma consequência Deus sem providencia, sem culto, sem ho­
necessaria d’aquella verdade, de que ternos menagens e sacrifícios, um rei sem res­
em nós mesmos a prova concludente n’este peito c sem vassallos, um senhor sem au-
desejo de felicidade que sentimos, que nun­ thoridade e sem dependencia, um pae in-
ca vêmos satisfeito, de que nos convence o difierente ao bem de seus filhos sem que
sentido intimo n’esse tribunal interior que prescreva regras do subordinação e obe­
nos julga primeiro que todos os outros, diência, um legislador emfim sem desígnios
que se nos dá galardão pelo bem feito, e sem sabedoria? Como concebeu o espi­
pelo mal nos dá vituperio, nos accusa c rito humano uma divindade para blasphe-
profere essa sentença de condcmnação, que mar d’clla a todos os momentos, para a
é um annuncio, uni correio anlicipado da- condemnar ao desprôso e ao ridiculo? Co­
quella que nos espera no tribunal do Su­ mo concebeu clle uma divindade sem ne­
premo Juiz....................................................... nhuma ideia religiosa, um systema reli­
De que serve a philosophia ou antes a gioso sem nenhuma religião? Se falia al­
sciencia do impio? Acaso pódo haver cou- gumas vezes da divindade, é sem saber
sa mais inútil ou prejudicial? se cila existe; se da alma, é sem saber se
Se o homem em perdendo a luz da fé existem espíritos, ou se tudo é materia;
não escuta a voz da natureza, se desconhe­ se do nosso destino, é sem saber qual clle
ce o seu Crcador, se lhe não rende nenhum seja; se de deveres moraes c religiosos, è
culto, nenhum tributo de respeito e home­ ignorando se existem relações entre Deus
nagem, se vive coiuo se clle não existisse, e o homem, e qual seja o seu objecto c. fun­
se fóra da religião não ha mais que atheis- damento.
mo, aquelle a quem clle causa horror, Ah! o homem concebeu e admittiu tudo
aquelle a quem Deus é uma convicção c isto, porque não ha absurdos que ellc não
o seu culto é uma necessidade, póde exi- admitia, ou em que o espirito humano se
tar um momento em se recolher á arca não precipite, quando uma vez abandonou
sancta da religião para o salvar do naufra­ a religião, c o seu coração se penetrou de
gio, no meio das aguas do diluvio? corrupção e o seu espirito se cobriu de
Tenho emfim chegado ao cabo d’este lon> trevas ê cegueira !•
go capitulo, em que me propuz fallar do Que é pois o deismo, ou ò deus da phi­
svstema d’aquelles, que tomando por fuu- losophia? é quando muito, uma abstracção
damento o maior de todos os absurdos, philosophica em que o espirito humano es­
teem concebido o homem creado sem res­ tará sempre mais disposto a rejeitar, que a
DEI 421

admittir que não pertence ao coração, com r Disse que imprimiu no seu século o seu
que pouco se importa o espirito, e de que espirito de corrupção e de immoralidade.
clle ainda entende menos, que não póde Pai a aquelles que nos faliam da gravi­
passar d'uma opinião especulativa, abstra­ dade dos costumes de Voltaire, remettel-os-
cta, incerta c vacillante, que importa no hemos ao poema—la Puccllc d'Orlcans—
mesmo que o atheismo, ou tão inconse­ que por sua libertinagem e indecência, ex­
quente c absurda como a positiva negação citou a indignação ainda dos menos escru­
de Deus. pulosos, devendo considerar-se como só di­
Não será pois verdade que fóra da reli­ gna d’um homem, para quem a hònra e a
gião não ha uma só ideia religiosa c que reputação não passam d’um nome vão.
quem não quizer ser christão ha de viver Citar-lhes-hemos o seu— Optimismo— a
como athcu? É a proposição que me-pro- maior parte dos seus contos, o seu poema
puz demonstrar. sobre a lei natural, aonde reina o escân­
dalo c a indecência, o seu poema sobre o
desastre de Lisboa, em que insulta a mes­
XI ma divindade e que mereceu a censura do
mesmo J. J. Rousscau.
Emquanto a essa vasta conspiração con­
tra o Christianismo, de que elle foi o che­
Disse, fallando de Yoltairc, referindo-me fe, citaremos a carta que lhe escreveu Fre­
ao testimunho d’um dos seus discipulos, derico n, rei da Prússia, no anno de 1767,
que clle preparara as revoluções públicas em que se exprime assim:
e religiosas, que inundaram a Europa de «Que século tão desgraçado para a côrte
sangue, de crimes e desordem. de Roma, diz Frederico; batem-a na Polo-
Na biographia universal Feller, ci­ nia, e expulsam de França e de Portugal
tam-se para prova d*esta verdade, muitos os seus guarda-corpos (os seus mais va­
cscriptores que assim o teem reconhecido, lentes esquadrões.)
e entre estes o Mercúrio de França de. 7 «Os philosophos minam por toda a parte
(Tagosto de 1790, cm que seus authores 1 o throno pontificio, tudo está perdido para
mostram que a revolução franccza de 1789 elle; é necessário um milagre para salvar
foi obra de Voltairc, e que, se clle não viu a Igreja, c vós tereis a gloria de a enter­
tudo o que se fez, foi quem fez tudo o que rar c fazer-lhe o epitaphio.»
se viu. Em outra carta, por occasião da expul­
são dos jesuítas d^lespauha, lhe diz o mes­
mo Frederico:
1 Os homens pensadores, dizem clles, re­ «Acabamos de conseguir outra vanta­
conhecerão que Voltairc è o arande movei gem; os jesuítas são expulsos do reino de
d'esta revolução que enche de assombro a ílcspanha; que se não deve esperar do sé­
Europa, que espalha o terror nas cortes e culo que se segue a este?....
a esperança no meio dos povos; foi clle que «O machado está á raiz da arvore, os
fez cahir o maior sustentaculo do despotis­ philosophos levantam-se contra os abusos
mo (o poder sacerdotal), se clle não tivesse d’uma superstição reverenciada, este offi­
quebrado este jugo, nunca o povo teria re­ cio (a Igreja catholica) vai cahir por terra;
conquistado a sua independcncia e liberda­ os annacs de todas as nações transmittirão
de, ou desfeito os grilhões que o maneata- á posteridade que Voltaire foi o promotor
vam. Foi Voltairc que fez a razão popular d’esta revolução, que se consummou no sé­
em França; se clle não ensinasse o povo a culo xix.»
pensar, este nunca sabeida o que era, nem Que mentirosas prophecias! aonde se en­
teria sabido usar da siia força para se li­ contrarão mais falsas e mais desgraçadas
bertar da tyvannia. É o pensamento dos para os seus authores?
sábios que prepara as revoluções, mas c o Em vez'de Voltairc enterrar a Igreja,
o braço do povo que as executa. E repetia foi cila que o mandou enterrar, e custou
tantas vezes ao povo que a sua maior des­ muito trabalho aos seus parentes, e secta­
graça era ser tôlo e covarde, que clle dei­ rios para obter d’ella esta graça.
xou de ser uma c outra cousa.» Basta-nos Bem longe de Voltairc fazer o epitaphio,
por ora este testimunho entre muitos que para pôr no seu tumulo, elle a julgou tão
podia produzir, c que omitto por brevidade, forte, e tão cheia de vida ao tempo da sua
e d'elle já o mundo póde conhecer por expe­ morte, que ainda lhe fez humildes súpplicas
rienda o que se lucra com a leitura das para se reconciliar com ella c ser recebido
suas obras. cm seu seio, se bem que alternadas com os

i
gritos dc dcsosperação do impio agonisaji- plicadamcnte acima do que anda impres­
tc ‘, e com transportes de furor similhan- so nas memórias dos jesuitas, o numere*
tes aos de Orestes. d’almas, que por industria d’estes varões
Das cartas citadas, vô-sc ainda que a cx- apostolicos, passaram das trevas da ííomili-
tincçào dos jesuitas entrava no grande pla­ dade para as mui claras o bemfazejas lu­
no da conspiração contra o Cliristiauismo, zes do Evangelho sancto.
a que parece nao foram estranhos os jan- «Não foi portanto exagerado um poeta,
senistas que na revolução de 1789 se uni­ nem jesuíta, nem sacerdote, mas christào
ram com os revolucionários, para dar caho o imparcial, que ao extinguir-so a compa­
da religião na França. nhia de Jesus, desabafou n’csta maviosa c
Tudo o que havia de philosophos c jan- elegantíssima queixa:— «Se os esquadrões
senistas, ou para o dizer com mais proprie­ cclestiacs podessem chorar, as suas lagri­
dade, todos os inimigos da religião applau­ mas traspassariam o firmamento c apre­
di ram a extineção dos jesuitas e julgaram sentariam uma nova cspccie de chuva, que
vôr n’ella o triumpho da sua causa. inundaria a terra.» 1
Esta celebre ordem oppunha-lhcs, pois, Se porém os christãos verteram lagrimas
uma harreira invencível, que clles assen­ de sangue ao vôr a extineção d’csta ordem
taram dever destruir primeiro que tudo; é celebre, que tantos serviços tinha presta­
este o seu maior elogio c o seu triumpho, e do á religião e á sociedade, os philosophos
o maior brazío da sua gloria. julgaram vôr na sua extineção a ruina da
Teve dous milhares de razões um arce­ Igreja, ou pelo monos uma grande victo­
bispo nosso e pio cscriptor para exclamar: ria, que lhes abria o caminho para novos
«Sc os anjos do céo podessem baixar a es­ triumphos e para a execução dos seus pla­
te mundo para nos declararem os immen­ nos, não se descuidando todavia em machi­
sos fruetos das missões dos jesuitas, por nar contra todas as ordens religiosas; c cis-
certo ficaríamos suspensos c assombrados, aqui porque clles declararam beneméritos
c poderiamos sem temeridade romper das da philosophia todos os governos, que quan­
vozes do propheta evangelista, quando viu do não podessem extinguil-as dTima vez,
essa multidão, sem conta, d’almas ditosas, principiassem por reduzil-as c acabar com
escolhidas dc todas as gentes, tribus, po­ ellas pouco a pouco. (Veja-se a carta de
vos e linguas, para serem eternos adorado­ Frederico a Vollairc, de 124 dc março de
res da magestade divina. 1767, e a de Voltaire a Frederico, de 25
«Se os demonios fossem capazes dc au­ d’abril do mesmo anno.)
xiliar uma causa justa, clles proprios con­ No breve de Pio vi, dirigido aos bispos
fessariam scr desmedido, c mais que tri- francezcs, por occasião da extineção das
ordens religiosas, na assembléia dc Fran­
1 VoUcdrc morreu por fim implorando ça, de 1790. dá este papa a razão das iras
os
soccorros d'esta mesma igreja, que tinha dos revolucionários contra ellas—Suppressi
perseguido; bem que dirigindo suas suppli­ sunt, diz ellc, igitur ordines, fam ut in
cas humildes ao abbiule Gauthier, de envol­ eorum invaderetur bona, quam ne amplius
ta com os furores e a raiva de um impio quis existerit, qui populos ab errore, ac mo­
desesperado. rum corruptione revocaret.
Porém em que tempo morreu este infame
apóstata da religião? Circumstanda muito
digna é esta de notar-se. Morreu exacta- X II
mente no praso que era mister para des­
mentir outra prophecia sua, similhante á de
Frederico. Tinha escripto aquelle impio ao Já que toquei incidcntemento nas ordens
seu discipulo d'Alembert, no anno de 1758, religiosas, não posso abster-me dc fazer
esta blasphemia:— «Esperai ainda vinte an­ uma reflexão, e vem a ser, que todos aquel-
nos, e vereis no que pára Deus, e que boa les que se teem levantado contra a Igreja
sorte o espera.»—Ao findarem ' estes vinte ou desconhecido a sua authoridade, teem
annos, no de 1776, desappareceu da terra principiado por decretar ou promover a
aquelle monstro, que teve a ousadia de des­ sua extineção.
afiar o céo, e anm nciar a Deus para o Luthero, Calvino, Beza e Zuinglio princi-
mesmo anno a mesma sorte. Assim è que se
castigam os falsos prophetas e as impieda­ 1 N este sentido patenteava o Palatino
des. (Instruccão pastoral dos bispos de Le- de Cracoviá, e o general dos exercitos da Po-
rida, Tortosá, Barcelona, Urgel, c Pam- lonia, Wenccslau Rzewusco, a extineção dos
plona.) jesuitas.
DEI 423
piaram por declamar com furor contra ro dc fogo, que devia tornar a apparécer no
ellas. fim dos tempos?!
O patriarcha ou o chefe principal da re­ A vida domestica pode gloriar-se dc ter
forma, tão orgulhoso como corrupto e im- por seus authores os prophetas S. João Ba­
inoral, principiou por seduzir uma freira ptista c o mesmo Jesus Christo, que mui­
com quem se casou pública e escandalosa­ tas vezes se'retirou sobre as montanhas
mente. para orar.
Os principes d’AUcmanha, cm virtude Os tharapeutas 1 deram-nos o modcllo
das doutrinas dos seus mestres, saciaram dos primeiros mosteiros chrLtãos; mas se
logo a sua avareza, apoderando-so de to­ se póde dizer que a vida domestica é dc
dos os seus bens. O mesmo foi practicado todas as idades e dos maiores servos de
pelo tyranno Henrique viu dTnglaterra, Deus, e que cila nasceu com o Christianis­
pelo ambicioso Gustavo Vasa na Suécia, mo, com que signaes dc approvação a não
pelo turbulento o escandaloso Christiano manifesta Deus aos homens!
na Dinamarca, c por toda a magna cater­ Que maravilhas não exporíamos se fizés­
va de reformadores, 1 que produziu o sé­ semos a historia dos Paulos, dos Antonios,
culo dezeseis para vergonha c confusão do e dos sanctos da Thebaida, que encheram
espirito humano, que perturbaram a Igreja, o Carmcllo c o Libano de portentosas obras
c destruiram a religião n’uma boa parte de penitencia!!
da Europa. Os philosophos do século de­ Que espectáculo! estes sanctos hymnos,
zoito, c todos os revolucionários que lhes esta infinidade de vozes, entoando a* gloria
abraçaram os princípios ou lhes seguiram e as maravilhas do Senhor, que converte­
as maximas, mostraram o mesmo furor ram os desertos em templos, dedicados aos
contra ellas; porém isto só prova a sua im­ louvores de Deus! Quantas vezes as musi­
portância, e a estima e veneração cm que cas celestes se não confundiram com o
sempre foram tidas na Igreja; e entre uma murmurio e estrepilo das ondas, e quantas
infinidade de testimunhos, que podia pro­ vezes os anachoretas não tiveram por hos­
duzir para prova d’esta verdade, citarei S. pedes os serafins!! Os leòes lhes serviram
João Chrisostomo, que se levantou com de mensageiros, c os corvos lhes ministra
. toda a força do seu zelo, do seu talento e ram o maná celeste. As cidades mais opv
eloquência contra os seus detractores, e S. lentas invejaram a sua reputação, e tive
Grcgorio Magno, que prohibiu debaixo de ram ciuincs da sua gloria.
graves penas que molestassem os regula­ Que diriamos se confessássemos a histo­
res ou lhes tirassem as suas rendas e pro­ ria dos do monte Sinai, do logar em que
priedades debaixo de qualquer pretexto Jchovah declarava os seus oráculos aos he-
que fosse. breus, ou aquclle cm que Jesus Christo
É sabido o apreço que d’ellas fazia S. desappareccu da face da terra!!
Luiz, rei de França, e o grande Alfredo, Mas se tudo isto os torna muito rc.com-
rei d’Inglaterra, e a estima em que sem- mendaveis, que diriamos da sua instruc-
ire foram tidas por todos os principes re- Ção, que se identifica com a religião, e que
f igiosos c pios. E como podia deixar de e uma necessaria consequência d’ella! A
ser assim, se é verdade que uma cousa é sua proscripção ou prohibição em qual­
tanto mais venerada, quanto maior é a sua quer estado, que outra cousa é senão um
antiguidade! desmentido ao Evangelho, e uma injuria
Que direito não teem ellas ao nosso res- feita á religião; porque é uma condcmna-
^ peito e veneração?! ção de profissão pública dos conselhos evan­
O propheta Elias, fugindo â corrupção gélicos, c d’essc genero de vida recommen-
d’lsrael, retira-se nas margens do Jordão, dado sempre na Igreja como mais confor­
e ahi vive de hervas o raizes com seus dis­ me com a doutrina dos apostolos e com o
cipulos. espirito religioso, que consiste em viver
Que não teriam dito os poetas gregos, desapegado do mundo para chegar á per­
diz um celebre escriptor, se tivessem en­ feição christã ou á caridade?!
contrado por fundador dos seus collegios E que é ainda esta prohibição, como diz
um homem transportado ao céo, n’um car- o padre papa Pio vi no citado Breve, se­
não um ultrage feito aos seus fundadores,
que a Igreja pôz no cathalogo dos sanctos,
1 Que se lançaram como lobos; esfaima-e que todos os dias expõe á sua veneração,
dos sobre os despojos dás ordens religiosas,
e a isto ou para isto é que se fez a refor- 1 Monges christCws, que habitavam junto
m a, d iz um escriptor protestante. . ao lago de Meris no Egypto.
424 DEI
para lhes imitarmos a virtude e lhes con­
seguirmos o exemplo? que não fizeram es­ XIII
tas fundações senão por efleito de revolu­
ção divina, como declara ainda o mesmo
papa? Quando eu escrcvi os artigos proceden­
Condcmnar pois as ordens religiosas, é tes sobre o deismo, tinha então tenção de
seguir os princípios dos hereges, e de to­ dizer alguma cousa sobre a philosophia de
dos os inimigos da religião; é condemnar a Kant ou sobre o decantado philosophismo
Igreja, é condemnar todos os conci lios e allemão, que occupa uma parte tão notá­
todos os papas, que as authorisaram, é con­ vel na historia dos desvarios do espirito
demnar todos os sanctos padres, todos os humano, e que tanto servia para o fim a
sanctos doutores, que lhes teceram os maio­ que me propunha de mostrar que não ha
res elogios, c Rellas fizeram a apologia: é princípios religiosos fóra da religião, e que
condemnar todos os principes, todos os ho­ a philosophia, seja qualquer que fôr o no­
mens illustres por sua sciencia ou piedade, me com que se appellide, kantista, raciona-
que as julgaram importantes ao estado e á lista, sceptica, ou indiflerentista, não é se­
Igreja, c condemnar lodo o universo pio não a total carência ou negação R elles; po­
e religioso, é condemnar a experienda do rém desisti de o fazer, porque me pareceu
todos os séculos, que mostra que nada se melhor tractar d’ella n’um artigo separado.
' tem descoberto mais util para dilatar a fé, No entanto, como ainda não sei quando
propagar a religião, instruir os fieis, mora- poderei tractar Reste objecto com a exten­
lisar os povos, corrigir e reformar os cos­ são que ellc exige, pareceu-me não ser fóra
tumes, e ajudar os bispos e os parochos no de proposito dizer já alguma cousa Ruma
exercício do seu laborioso ministerio, e philosophia que seus apaixonados exaltam
ainda, direi mais, que debaixo de todas as até ás nuvens, e que parece, á vista dos
onsiderações e a todos os respeitos, e ain- elogios que lhe fazem, ler alguma cousa
a em relação ás letras, ás sciencias e ás de sobrenatural e maravilhosa, para que
artes, ao commercio, á industria e á nave­ se veja que é tão abjecta e degradante para
gação, o inundo lhes deve serviços impagá­ o espirito humano, como é toda a sciencia
veis, que só podem ser desconhecidos pelo que prescinde das lüzes da fé e da religião,
espirito de libertinagem e de irreligião, de e que tem por ultimo esteio c fundamento
que são boas testimunhas as ordens milita­ o orgulho do homem, e as fracas luzes do
res, os cavalleiros de Malta, a ordem teuto-. seu espirito.
nica, os cavalleiros de Calatrava ou de S. Escriptores judiciosos, profundamente
Thiago de Hespanha, as missões da Ame­ versados nas obras Reste celebre escriptor,
rica, do Levante, da Italia, da China, do Pa- que lhe examinaram a doutrina, seguiram
raguay, do Guyanna, das Antilhas, da nova as tendências, e Rella fizeram a historia,
Hespanha, e uin sem numero Restabeleci­ lhe teem feito as mais acres e vehementes
mentos tão uteis como gloriosos á humani­ censuras.
dade, que são obra sua. Elles a teem accusado de ter introduzido
Direi por ultimo que a Igreja as tem as­ uma phraseologia barbara, contraria ás re­
sim achado de muito interesse para arre­ gras da boa grammatica, ainda do bom
dar do povo christão os castigos da justiça senso e da discreta razão, de ter innovado
divina, pois sempre na Igreja se acreditou por systema e sem necessidade, de ter co­
na efficacia das orações das pessoas consa­ berto a sua sciencia Rum véo quasi impe­
gradas ao serviço de Deus, de que são tes­ netrável, de ter derramado sobre ella as
timunhas irrefragaveis S. Gregorio Magno sombras Ruma linguagem mysteriosa, de
nas seguintes palavras, fallanao do estado ter sido author de systemas'tão funestos
em que os longobardos tinham posto Ro­ como absurdos, de ter espalhado emfim a
ma:— Se não fossem as súpplicas das reli­ dúvida e a incerteza sobre os conhecimen­
giosas, j á nenhum de nós subsistiría aqui tos que mais interessam á humanidade, de
ha tantos annos, entre as espadas dos lon- ter desviado a mocidade pela força e pelo
gobardos.—E Benedito xiv, fallando das suas prestigio do talento, das sciencias positivas
religiosas de Bolonha, diz—esta cidade, af­ e dos estudos serios e graves, e por efleito
flicta com tantas calamidades e ha tantos Rum idealismo transcendente e sobre ma­
arínos, já não podia subsistir m ais, se as neira rigoroso, de ter precipitado os seus
orações continuas ctas minhas religiosas não discipulo? nos mais funestos erros, condu­
tivessem desarmado a cólera do ceo. zindo uns ao scepticismo, outros a uma no­
va especie Respinosismo, outros a um idea­
lismo absoluto, e todos elles a systemas pes-
DEI 425
.•simos, tão absurdos como funestos á huma­ e n’uma ideologia vaga c escurissima; e
nidade. acontece com elle o que 'quasi sempre
Estas accusaçõcs graves, diz a biogra- acontece com os innovadores ou authores
phia universal de Feller, são desgraçada- de seita.
mente verdadeiras, e o kantismo, levado á Sc uns levados do espirito da libertina­
França, acabou de nos confirmar nas jus- gem, da curiosidade ou amor da novidade
tas.prevenções que tínhamos contra elle. e independencia o admiram, outros véem
É certo porém que elle na França tem n’clle um espirito audacioso e atrevido, que
-feito poucos progressos, segundo o afiirma se lançou fóra dos seus justos limites, que
o mesmo author. pretendeu reprovar por eíTeito do seu or­
Mas cingindo-me eu hoje ao que preci­ gulho e vaidade tudo quanto existe, para
samente me propuz tractar, e prescindindo estabelecer sobre as suas ruinas systemas
de tudo o mais, são. seguros os seus prin­ falsos ou impios, e sempre funestos c pre-
cípios sobre a existência de Deus e a mo­ judicialissimos, não vendo n’elle senão um
ralidade das suas acções? Estava elle pro­ novo inimigo da religião que a destroe, in­
fundamente convencido d’estas verdades? tentando explical-a â seu modo, c não ven­
DiSsc, prescindindo de tudo o mais, por­ do na sua razão pura alguma critica, por­
que não venho hoje fazer o processo á phi­ que elle pretende afierir o Christianismo
losophia de Kant, ou ajuniar todas as pe- mais que o puro deismo.
as que se encontraram nas suas obras, Com effeito Kant não considera o Chris­
oas ou más, para analysal-as c para o con- tianismo senão como uma ethica ou syste­
•demnar c absolver por cilas: isto é traba­ ma moral de que elle exclue todo o culto
lho de muito vulto; cingir-me-hei sómente externo, todas as ceremonias, orações c sa­
ao que não póde ser contestado, porque é crifícios, manifestando por isso que não.
•de notoriedade conhecida, e por isso nota­ acredita em seus mysterios, c fazendo de
rei sómente que na sua primeira obra, pu­ Jesus Christo um ente segundo a sua ideia:
blicada em 176o (se me não engano), em porém esta sua theoria, assim como tudo o
que elle pela primeira vez manifesta a sua que sahiu da sua penna, é tão embaraçado •
doutrina, a qual tem tanto ^extraordina­ e tão diííicil d’entender, que os seus famo­
rio como d’inintelligivel, que intitulou: — sos discipulos Scheling c Fitcho, que se ga­
Unica base para a demonstração da exis­ bam de a ter aperfeiçoado, teem-se consu­
tência de Deus,—esta unica base não é mido em vigilias c trabalhos para a expli­
mais que um montão de parodoxos, que car, e cada um o tem feito a seu modo, de
elle mesmo destruiu, substituindo-lhes ou­ que resultou formar cada um d’elles uma
tros que teem tanto d’extraordinarios e in- nova escola, que não é menos escura e te­
intelligiveis como os primeiros. nebrosa que a de seu mestre: tanto foi o
Na sua critica da razão pura, nega que seu empenho cm se fazerem claras e in-
do argumento physicó c theologico para a telligivcisl!
demonstração da existência de Deus se Podíamos juntar a estes outros iguaes,
possa tirar razão convincente. mas os limites d’uma tão breve nota não
Pouco antes da sua morte, perguntando- o permittem.
se-lhe o que pensava a respeito da immor- Esta doutrina hierogliphica foi emfim ado-
talidade da alma e da vida futura, respon­ ptada em uma grande parte das universi­
deu só duas palavras, mas estas sem equi­ dades d’Allemanha. Mas de que tem ella
voco—nada decidido. servido? pergunta um judicioso eseriplor.
Já antes, por uma similhante pergunta, Acaso para esclarecer os homens sobre
elle tinha dado em resposta—que não ti­ os seus deveres, ou para arraigal-os nos
nha ou que não concebia a ideia d’um es­ solidos princípios da religião e da moral,
tado futuro,—como se por elle o não con­ ou fíizel-os melhores e mais virtuosos? Não:
ceber, não podésse existir. é tudo pelo contrario. Se tem servido, é
No entanto um homem, que apesar,das para propagar a irreligião, augmentar o
suas metaphysicas profundas não póde des­ espirito da incredulidade, da independen­
cobrir fundamento nem base para a mo­ cia e do orgulho, é, n’uma palavra, só para
ral,- escreve .sobre ella, e pretende que a corromper e desmoralisar mais o mundo.
sua theoria de costumes prevaleça sobre Um cseriptor, que se declarou apologis­
todas as outras. Nos seus prolongamentos ta de Kant, depois de ter dado grande apre­
para o estudo da metaphysica—nos prin­ ço ás suas descobertas idealogicas, convém
cípios metaphysicos da sua doutrina—na nos seus princípios de irreligião e impie­
theoria da virtude—e na religião, d’accordo dade.—0 espirito aíflige-se, diz elle, em vér
com a razão, Kant perde-se em abstracções nas suas obras o empenho que elle mostra
426 DON
cm negar ao Christianismo a sua origem com Ceciliano e não com Majorin e com
celeste. Donato, seu successor.
É pois a nova philosophia de Kant um Este sclsma produzido por uma vingan­
novo systema, que a impiedade descobriu ça particular perturbou a Igreja por mais
para combater o Christianismo: é uma no­ d um século, encheu a Africa de calamida­
va campanha sob a direcção d’outros che­ des e de horror, esgotou os rigores e a pa­
fes: nào se combate abertamente a religião ciência de tres imperadores, c sómente ce­
como no systema de Voltaire, isto c, por deu ao tempo; similhante aos vulcões, que
uma guerra viva c por manifestas hostili­ o mineiro imprudente accende, e que só
dades contra ella; pretende-se conseguir o sc extinguem depois que o fogo tem consu­
mesmo fim por um modo mais pacifico, mido o enxofre e bitume, que elles encer­
mas talvez mais pernicioso, porque é mais ram nas suas entranhas.
astuto c manhoso: explica-se o Christianis­ Será muito importante conhecer-se per-
mo pela razão para o destruir: faz-se d'ellc feitamente a origem c o progresso d’um tal
um systema de philosophia moral como o scisma, c que sigamos individualmente os
de Zoroastres ou Confucio ou de qualquer seus elfcitos.
outro philosopho, isto é, considera-se como
uma obra puramente humana, e como tal DO SCISMA DOS DONATISTAS ANTES DE DONATO
sc explica.
Esta guerra ou esta nova cspccie de A religião christã nãò foi levada á Africa
combate tem muita similbança com aquel- pelos apostolos, mas n’clla fez grandes pro­
le que os jansenistas fizeram á Igreja, in­ gressos no segundo século, e se estabelece-,
tentando destruil-a pela.mesma Igreja, pon­ ram na mesma região muitas igrejas, ape­
do cm execução talvez o systema melhor sar das grandes perseguições que soíTre-
combinado que o inferno podia suggerir ram, e que foram mais cruéis, imperando
contra ella. Dioclcciano, Galerio e Maxencio. Durava
Se os jansenistas pois tractaram de des­ ainda a ultima, quando Mensurio, bispo de
truir a Igreja pela Igreja, os kanlistas pre­ Carthago, foi chamado por Maxencio: e antes
tendem destruir o Christianismo pela sua de partir confiou a alguns velhos os vasos
razão critica, ou pelas suas explicações da Igreja, e dou a clareza do que se conti­
philosophicas. nha na entrega a certa velha, para que no
Emquanto ao mais, clle é tão absurdo e caso de morrei’ na jornada, ella a pozesse
íão monstruoso, como todos os syslemas nas mãos do seu successor. Morreu com
philosophicos de que se baniu a religião; cffeito Mensurio na sua volta para Cartha­
sem nenhuma fé, sem nenhum dogma, sem go; e por esse tempo Maxencio deu paz á
nenhum symbolo, sem nenhum principio Igreja. »
religioso, faz-se assentar em parodoxos a Para nomearem successor a Mensurio
existência do primeiro sêr, e n’uma base se ajuntaram cm Carthago os bispos da
incerta, vacillante, e não definida a morali­ provincia, e de unanime consenso foi elci^
dade das acções. to Ceciliano, e ordenado por Felix d’Aptu-
Que bella philosophia!! Que escola de n h a .2
virtude!! Que grande systema do moral Chegou á mão do novo bispo a relação
para instrucção do genero humano!!! dos vasos sagrados, que entregara o seu pre-
d e s c a l ç o s — Hcregcs que asseveravam decessor aos mencionados velhos, os quaes
ser preciso andar descalço para conseguir suppunham que se ignorava o tal deposito,,
a ssalvação.12 e porque Ceciliano os obrigou a darem con­
DOCETAs ou d o c i t a s —Hereges que nega­ ta d’elles, lhe conceberam um odio violen­
vam que Jeslis con sto encarnara.2 to. 3
DONATisTAs— Scismaticos que sc separa- Botro e Celestio, duas pessoas de reputa­
ranfí 'dacommunhão de Ceciliano,por­ ção entre o clero de Carthago, tinham as­
que esteera ordenado por Felix,bispo ap- pirado um e outro á cadeira episcopal, e
tungitano, que ellesarguiam de haver en­ resentidos de que lhe fosse preferido Ceci­
tregado os livrose vasossagrados durante liano, sc uniram aos velhos, e desabafaram
a perseguição; 2.°de toda a Igreja,porque eni declamações contra e lle .4
toda ellatinhaficadounidaem communhão
19 Optat., I. I. Aug. Litt. Petili., I. 2, c-
87.
1 Aug. (VHceres, 68. 2 Ibid.
2 Clement. Alex. Strom., I. 7. Theodo­ 3 Optat, ibid. Aug. in Parm.
rei., I 5. Horret. Fab. * Ibid.
DON 427

Concorreu tambem que no tempo em no, calumniarãin-no, alvoroçaram os animos,


que Ceciliano era diacono certa senhora e fizeram alguns motins entre o povo.
poderosa, por nome Lucilia, estava desde Constantino, que depois da derrota de
então como separada da Igreja. 1 Lucilia Maxcncio reinava na Italia c na Africa, foi
pois se uniu aos inimigos dc Ceciliano, c avisado d’csta inquietação, e ordenou ao
formou partido contra elle: este partido proconsul da província o ao perfeito do pre-
cresceu, tomou calor, c resolvendo arrui­ torio que sc informassem dos que pertur­
nai-o, excogitou meios para fazer annullar bavam a paz da Igreja, c atalhassem seus
a sua ordenação. intentos.
Ceciliano tinha sido ordenado por Felix Os partidários dc Majorin, informados
d\Áptunha, sem que houvessem concorrido das ordens do imperador, lhe apresentaram
para a sua ordenação os bispos de Numi­ uma memoria, em que arguiam a Cecilia­
dia. Portanto os inimigos*de Ceciliano ar- no dc muitos crimes.
guiam-na dc nulla,e não só por não haverem Temia Constantino as consequências dc
sido convocados os ditos bispos, mas lam­ uma dissensão religiosa n’aquella provin­
bem porque a ordenação fôra feita por Fe­ cia, novamenle submettida, c não querendo
lix d’Aptunha. que durante a perseguição descontentar alguns dos dous partidos, re­
entregara os vasos sagrados da Igreja e os cusou ser juiz ifclla, c commcttcu a deci­
livros sanctos. Esta prevaricação sc repu­ são aos prelados.
tava na igreja de Carthago como. uma cs- Ceciliano partiu para Roma com dez bis­
pccie dc apostasia, e eram tidos por nullos pos do seu partido, e Donato das Casas Ne­
os sacramentos conferidos pelos que n’ella gras foi lambem com outros tantos da par­
haviam incorrido. cialidade de Majorin: e como não podes-
Persuadiram-se pois os inimigos dc Ce­ sem provar cousa alguma dos crimes de
ciliano haverem encontrado dous expedien­ que arguiam Ceciliano, portanto ficou estr
tes seguros para perdcl-o: chamaram a Car­ havido por innocentc.
thago os bispos dc Numidia: Lucilia os tra- Justificado innocentc dos crimes que lh
ctou magniíicamcnte, e congregando-se, car­ imputavam, o concilio não condemnou c
regados" dc presentes, fizeram citar Ceci­ seus accusadores. O papa Mcltiades, qu
liano. n’elle presidia, se oflereceu a escrever car­
O povo não permittiu que o seu bispo tas de communhão aos que tinham sido or­
comparecesse: c este respondeu aos depu­ denados por Majorin, e reconhecei-os por
tados dos bispos dc Numidia, que scaquel- bispos; c, finalmente, sc assentou que em
les que lhe haviam conferido a ordem eram todos os logarcs cm que se achassem dous
traidores, que não podiam confcrir-llfa com ordenados, um por Majorin e outro por
eíteito, não tinham mais que rcordeual-o. Ceciliano, fosse conservado o primeiro or­
Não sc persuadia Ceciliano que com eflei- denado, e que o ultimo se proveria cm ou­
to Felix d’Aplunha fosse traidor, c por esta tra sé. 1
resposta queria abrir caminho á composi­ Porém como no concilio dc Roma não se
ção, e presumia suspender os seus inimi­ pronunciou, nem sobre o juizo de Cartha­
gos, mas elles a tomaram como uma confis­ go, nem sobre os pontos concernentes a Fe-,
são do crime de Felix, e declarando va­ lix d’Aplunha, os sequazes de Majorin ar-
cante a sé do Carthago, procederam a nova guiram dc precipitado o juizo do mesmo
eleição, c ordenaram um chamado Majo- coucilio romano, insistindo em que não
rin, domestico de Lucilia, que era leitor, fóra sufficientcmente informado, visto que
sendo Ceciliano diacono.2 não quizera tomar conhecimento do nego­
Apesar da sentença dos bispos de Numi­ cio de Fclix, que todavia era no sentir
dia, toda a Igreja ficou communicando com d’clles o ponto da contestação.
Ceciliano, e a elle e não a Majorin eram Constantino fez congregar um concilio
dirigidas as cartas dos bispos do Ultramar: mais numeroso cm Aries, aonde Ceciliano
mas o partido dos aggressores é de ordi­ outra vez foi declarado innocentc, e julga­
nario mais tenaz no seu rancor, mais alti­ das calumniosas as accusaçõcs de seus ini­
vo, c mais ousado que aquelle que se de­ migos. O concilio informou*o imperador da
fende: assim os partidários de Majorin es­ sentença que proferira, e da pertinacia dos
creveram a todas as igrejas contra Cecilia- inimigos do accusado.2 O imperador então
chamou á côrte os bispos adherentes a Majo-

1 Optat, ibid. Aug. in Parm. 1 Optat., I. 1. Collat. Carthag. apud Aug.


2 Opt. ibid. Avg. ibid. ei in Gaud. in et El . 43.
Prim. in Crescens. 2 Euseb., I. 10, c. 5.
428 DON
rin, os quacs cm breve tempo fizeram pro­ péso poderia dar ás razoes do partido dc
tectores, que pediram ao imperador que Majorin um homem de engenho como Do­
julgasse elle mesmo este negocio. nato, o qual com effeilo as ornou de tal
Constantino, ou por cansado, ou por con­ sorte, que fez grassar muito mais o erro.
descendente aos lisongeiros que o bloquea­ Então o partido do Majorin recebeu dc
vam, consentiu em revér elle mesmo a cau­ alguma maneira nova existência do seu
sa de Ceciliano, e Majorin, promettendo novo corypheu: tomou seu nome, c todas
ue o primeiro seria condemnado, se po- as pessoas que seguiam a Donato se deno­
ésse ser convencido d*um só crime que minaram donatistas, c como é facil adquirir
fosse, dos que lhe imputavam.1 a authoridade absoluta sobre um partido a
N’csta mesma revista Ceciliano foi de­ que se dá nome, Donato foi cm pouco tem­
clarado innocente, e seus inimigos calu- po o oraculo e o tyranno dos donatistas, que
mniadores; mas clles publicaram, que o pararam cm suas mãos como uma especio
imperador fòra enganado por Hosio, que de authomatos, a que elle dava a direcção
lhe suggcrira este juizo; o scisma conti­ e o movimento que lhe parecia. 1
nuou, c pouco depois morreu Majorin. Fazia Donato o mais elevado conceito de
si mesmo, c olhava com vilipendio para os
demais homens, para os magistrados, c até
DO SCISMA DOS DONATI ST AS DESDE A ELEIÇÃO para o mesmo imperador. Todos os seus
DE DONATO ATÉ Á SUA MORTE sequazes adoptaram esta maneira de pen­
sar; os donatistas nada mais viam que lhes
fosse superior senão Donato, e se presu­
Morto Majorin, os bispos seus adheren­ miam nascidos para dominar sobre to­
tes elegeram para succcder-lhe a Donato, dos os espíritos, c commandarcm o genero
não o das Casas Negras, mas outro dotado humano. Animados por esta especio dc fa­
dc grandes qualidades: tinha o entendi­ natismo d’amor proprio, que só apparecia
mento ornado por um dilatado estudo das com visos de religião e de zelo, allucinaram
bellas lettras; era eloquente, sabio, e re- a muitos: e Constantino para desbaratar o
:ommendàvel pela inteireza de seus costu­ scisma confiscou as igrejas dos donatistas
mes, e por seu desinteresse. 2 para os seus domínios.
Este homem consagrou todos os seus ta­ Este acto de authoridade fez de todos
lentos á defesa do seu partido, compôz al­ clles outros tantos furiosos, que não conho-
gumas obras para juslifical-o, e allucinou ccndo nem limites, nem leis, expulsaram
muita gente. os catholicos de muitas igrejas, e não qui-
A maior parte da igreja d’Africa tinha zeram mais communical-os: porém Cons­
por nullos os sacramentos conferidos pelos tantino, temendo as consequências da se­
lieregcs e pelos pecca dores. veridade, escreveu aos bispos d’Africa para
Setenta bispos em concilio tinham decla­ que usassem dc doçura com ellcs, e que a
rado Felix d’Aptunha convencido de trai­ Deus reservassem a vingança dos seus fu­
dor; e o mesmo Ceciliano parecia havel-o rores.
reconhecido por tal, pois que pedira lhe Todavia elle os aborrecia, e não cessava
reiterassem a ordem episcopal. O concilio de tractal-os com rigor, senão porque te­
de Roma, que confirmara a ordenação de mia excitar em Africa algum tumulto. 2
Ceciliano, não quizera pronunciar sobre o Donato que assim o conjecturou, se per­
juizo dos bispos de Numidia, e por isso não suadiu nao ter outro refugio contra o zelo
invalidou a ordenação de Ceciliano, não dos catholicos, que inspirar a seus disci­
porque julgasse Felix innocente, mas por­ pulos uma convicção e segurança taes que
que a igreja latina reputava por válidos os os fizessem superiores á força, á*evidencia,
sacramentos conferidos pelos hereges. e até ao temor da mesma morte. Obrou
Podendo pois mostrar-se duvidosa a in­ alguns prestígios; fel-os passar por mila­
nocentia de Felix acerca dos crimes de que gres, e foram cridos; e outros donatistas
o arguia o partido adverso, e portanto or­ se jactaram também de haver feito cousas
denado Ceciliano por um traidor, e tendo prodigiosas, orando sobre o sepulchro de
uasi toda a igreja d’Africa por nullos to- alguns da sua communhão.
os os sacramentos conferidos pelos here­ Pouco tempo depois pretendeu cada um
ges e peccadores, é facil de colligir quanto dos bispos da seita ser infallivel c impec-

1 Aug. Epis. 162,168. Euseb. vita Const. 1 Opt. ibid. Aug. in Cruscent. in Par-
I. 1, c. 44. 4 mm.
2 Opt., I. 3. Aug. Lett. Petil. 2 Euscb. Vit. Cont., I. 15, c. 45.
DON 429
cavei: isto sc creu, c veio a ser o scisma uma penha, e Donato em um poço. Donato
um mal sem remedio. Persuadiram-se os e Marculpho foram logo contados entre os
donatistas que nâo podiam perder-se, se­ martyres, e a gloria do martyrio veio a ser
guindo os seus bispos; o quando estavam a paixão dominante dos circumcelliões. Não
convencidos pela evidencia da verdade, se atacavam sómente os catholicos: corriam
cerravam á banda, tendo, que iam seguros cm cardumes a investir os pagãos nas suas
no seu scisma, porque eram ovelhas, c se- maiores festividades para que os matassem,
uiam os seus pastores, os quaes respon- pondo o ponto ás seitas, que lhes atiravam
eriam por clles diante de Deus. 1 os mesmos pagãos; os quaos também se
D’cste grau de confiança passaram logo persuadiam honrarem seus deuses, sacrifi­
a pcrsuadir-sc necessitados a defender o cando-lhes aquellcs furiosos. »
►artido de Donato: um tropel de donatistas Quando estas occasiõcs lhes faltavam, of-
{ argou sua^ occupações, renunciou a agri­ fereciam quanto dinheiro possuíam para
cultura, c tomou as armas para defendero que os matassem, e sc não tinhain com que
seu partido contra os catholicos: appellida- comprar a gloria do martyrio, iam ás es­
ram-sc Agnósticos, ou Combatentes, porque tradas e obrigavam os que encontravam a
eram, diziam elles, os soldados de Jesus lhes tirarem a vida, comminando-lhes a
Christo contra o diabo; c como divagavam morte sc recusassem dar-lhes aquella de­
sem habitação certa, c para acharem de que sejada gloria.2
se sustentar, andavam em roda das casas A severidade de Macario, e as leis do im­
dos paisanos, que os appclidaram Circum- perador se tornaram pois inúteis contra os
celliões. 2 circumcelliões e contra os donatistas, e não
Eram suas armas bastões e não espadas, poderarn obrigal-os a communicarem com
porque Jesus Christo prohibira a S. Pedro os catholicos, porque mais gueriam soíTrer
o uso d’ella: com os taes bastões esmiga­ a morte que exercer um só acto de com-
lhavam os ossos a qualquer: c quando que­ municação com elles: umas vezes se pre­
riam usar de misericórdia com algum, lhe cipitavam do alto dos rochedos, outras re-
dàvam uma só bastonada: chamavam-sc a cciando a propria fraqueza, e que os cons­
estas armas Israelitas. 3 trangessem a reunirem-se com os catholi
No tempo de suas expedições contra os cos, accendiam elles mesmos uma fogueir
catholicos, cantavam louvor a Deus; esta em que se arrojavam, c morriam satisfe
era a senha, c com cila entravam a derra­ tos: via-se todos os dias a terra tingida t
mar o sangue humano: tudo dcsapparccia sangue d’cstes desgraçados, todos os di;
á sua chegada; os bispos donatistas, apoia­ se viam cardumes de homens e mulhcrc.
dos d’esta formidável milicia, levavam a que, engatinhando, subiam as montanhas
dissolução aonde queriam, e expelliam de mais escarpadas, e d’ellas sc lançavam no
suas igrejas os catholicos.4 meio dos rochedos c dos precipícios.
Depois da morte de Constantino, Cons­ Honrava o povo os cadaveres d’estes sui­
tante, ífue dominou em Africa, mandou a cidas, como honra a Igreja os corpos dos
ella Paulo e Macario a levarem esmolas, e martyres, e celebrava todos os annos o dia
cxhortarcm á paz os seus vassallos; mas da sua morte como uma festividade, c elles
Donato recusou receber as esmolas de pretendiam justificar suas mortes volunta­
Constante: cerraram as portas da cidade rias com o exemplo de Rasias, c morriam
de Bagai a Macario: cm pouços momentos persuadidos de que iam receber a coroa
este foi investido pelos circumcelliões, e do martyrio.3
obrigado a fazer vir tropas, a que os cir-
cumcclliõcs fizeram cara, e se combateu com 1 Aug. Cont. Litt. P. 1.2, c. 20. in Joan.
furor, sendo estes finalmente derrotados; c Hom. 11.
Macario irritado com tal procedimento, tra- 2 Opt. I. 3. Theod., I. 4, c. 6. Aug. Hcer.
ctou os donatistas com grande rigor. 69. Epis. õO.
Queixaram-se elles, clamando que os per­ 3 Rasias foi um judeu extremosamente
seguiam, e publicaram que os catholicos zeloso da sua religião. Nicanor procurando
haviam precipitado Marculpho do alto de pervertel-o, enviou cincoenta soldados para
o prenderem n u m a torre, em que elle esta­
1 Aug. th Parmen., I. 2, c. 10. va, e Rasias, que se viu a ponto de ser ap-
2 As casas dos paisanos chamavam-seprehendido, metteu cm si uma estocada, es­
cellas. timando mais morrer nobremente, que vêr-
3 Aug. d'Han\, c. 69. Theod., I. 4, c. 6.sc sujeito a pcccadorcs, e soffrer ultrages
Opt. 1.3. indignos do seu nascimento; mas como na-
4 Ibid quellc repente o golpe lhe não tirasse logo a
430 DON
Macario á força de rigores debilitou mui­ catholicos; em Africa se fizeram absolutos
to o partido de Donato, os donatistas so­ c quasi tudo vergou debaixo d,aquclle ter­
mente conservaram algumas igrejas, os bis­ rível partido. Então os bispos dos mesmos
pos se espalharam, Donato morreu no des­ se ajuntaram cm numero de mais de tre­
terro e Maximiano lhe succedeu. zentos e dez, c mandaram pôr em peniten­
cia povos inteiros, porque se nào haviam
separado dos catholicos. 1
D0 SCISMÀ DOS DONATISTAS DEPOIS QUE MOIUIEU Alguns annos depois Bogalo, bispo tíc
DONATO ATÉ Á SUA EXTINCÇÃO Mauritania, se separou dos donatistas vc-
rosimilmente por desapprovar os circum-
celliòcs: os donatistas sentiram com amar­
Subindo Juliano ao throno imperial, cha­ gura esta divisão, c exercitando o poder
mou todos os que estavam exterminados secular contra os rogatistas, extinguiram
por motivo de religião, c permiltiu aos bis­ este partido. Por esse mesmo tenipo, cm
pos donatistas que voltassem ás suas ca- que ferviam as calumnias 'dos donatistas
thedraes: 1 pretenderam cllcs tornar a en­ contra a Igreja, Parmeniano, seu bispo cm
trar iVaqücllas de que os catholicos se'ha­ Carthago, cmprchcndcu justificar o scisma
viam apoderado; e levando-os á força de com seus cscriptos, propondo provar na
armas, quasi todas as igrejas se viram sua obra ser nullo o baptismo dos herc-
cheias de homens feitos em postas, d’abor- ges, e estarem estes cxcluidos da Igreja.
tos,dc mulheres, c meninos cruelmentc as­ Sancto Optato o refutou: então o fanatismo
sassinados. Sustentados os donatistas pe­ entrou a dcscahir, e muitos dos sectarios
los governadores, cxpelliram finalmente os enxergaram a verdade. Tyconio provou a
validade do baptismo, dos hereges, condc-
vida, quando viu entrar os soldados em tro­ mnou a rebaplisação, c fez vèr que se de­
pel, com extraordinaria firmeza, correu á viam tolerar os abusos, e os mesmos pcc-
muralha, c d'ella se precipitou sobre o povo, cados que nào se podiam corrigir, sem que
'ubiu a um penhasco escarpado, e rasgan- por ís s q se houvesse de romper a unidade.
io o ventre, tirou as entranhas, e as lan­ Parmeniano impugnou os princípios de Ty­
ou sobre o mesmo povo, invocando o domi­ conio, c Sancto Agostinho a carta de Par­
nador da vida e da alma para que em um meniano.
dia Uda restituisse; e assim morreu. Ma- Como os donatistas não tinham pór prin­
chab., 1. 2, c. 2o, v. 39 e seguintes. cipio do unidade senão a precisão de se
Os judeus contam Rasias entre os seus sustentaram contra os catholicos, tanto que
mais illustres m artyres, c presumem pro­ adquiriram credito, logo se dividiram em
var com o seu exemplo, e com o de Saul, e multidão de seitas, c de ramos differen­
Sansão haver certos lances em que a morte tes. 2 Estiveram suspensos os odios pes-
voluntaria não só c perm itlida, mas ainda soaes cmquanto a perseguição durava, mas
louvável e meritória: são estes: l.° Quaiulo logo qúe entraram cm paz, recobraram a
ha ju sta desconfiança das proprias forras, e sua actividade.
receio d’aquiescer debaixo do pêso dá per­ Sendo Primiano bispo de Carthago, tiuha
seguição. 2.° Quando se prevê, que se cahir- sofirido muitos acintes da parte de Donato:
mos nas mãos dos inimigos, cllcs se haverão quiz vingar-sc d’clles no diacono Maximia­
de-servir d'esta occasiào para insultar o no, parente do dito Donato, proferindo uma
Senhor, e blasphemor o seu saneio nome. sentença contra cllò: defendeu-se Maximia­
Alguns theologos pretendem justificar Ra­ no, e muitos bispos congregados em Car­
sias, dizendo que obreira por uma inspira- thago cassaram a sentença de Primiano;
ção particular, e o justificam também com inquiriram sobre o procedimento d’cstc, c
o exemplo d'algumas Virgens, que antes se achando que tinha commettido crimes atro­
quizeram m atar que perder sua virgindade. zes, o depozeram, o ordenaram em seu Io-
(Lyran. Tirin. Serrar, in 12. Machàb. 1, 4.) gar o mesmo Maximiano.
Sancto Agostinho e S. Tliomaz sustentaram, Convocou Primiano outro concilio dc
que não havendo sido approvada a historia trezentos e dez bispos, que o declararam
de Rasias, mas simplesmente referida na innocente,e condemnaram Maximiano com
E scriptura, dfella nada se póde concluir todos os que haviam tido parto na sua or­
p a ra justificar a sua acção, quanto ao mo­ denação, e informando os procunsules da
ral. (Aug. Ep. 61, aliás 204. Lib. Cont. Gau­ sentença do concilio dc Bagai, lhes pediu
dent. c. 31. S. Thomaz prim a secundce art.
5, ad 5, pag. 64.) 1 Opt. I. 2.
* Opt. I 2 . 2 Aug. Ep. 48.
DON 431
execução das leis do estado contra os he­ Esta lei pòz cm paz a de Carthago: no
reges,*c fez expedir das suas igrejas os que anno seguinte o imperador isemptou das
haviam sido condemnados no concilio que penas incorridas, por motivo de scisma, to­
elle congregara, destruindo assim a igreja dos os que tornassem á Igreja; e finalmente
de Maximiano, c duraram as contestações tres annos depois permittiu aós scísmaticos
d’estes dous partidos todo o tempo do* go­ o livre exercido üa sua religião; mas at­
verno de quatro proconsules. tendendo ás instandas dos padres do con­
Optato, bispo de Tangada, muito valido cilio de Carthago, revogou este edito por
de Gildon, commandanle d’Africa, se ser­ outro em que ordenou se castigassem com
viu de todo o seu credito para perseguir a pena ultima os hereges e scísmaticos.
os catholicos, rogatistas, e maximianistas, Finalmentc pediram conferendas os do­
e foi chamado o llagello d’Africa por es­ natistas e catholicos, e Honorio, por um
paço de dez annos. As suas crueldades só edito do anno de 410, concedeu que os bis­
terminaram com a morte de Gildoh, que pos de ambos os partidos se ajuntassem
havendo aspirado á soberania, foi desbara­ para disputar publieamente. Abriram-se as
tado, c esganou-sc. conferências no anno seguinte, em que sc
Informado Honorio d’estas desordens, acharam duzentos c oitenta c um bispos
condemnou á morte, por uma lei, todos os catholicos, e duzentos c setenta e nove do­
que fossem convencidos de haver inves­ natistas, entre os quacs foram escolhidos
tido c perturbado os catholicos. N’cssc tem­ para disputar sete de cada um dos parti­
po, pois, principiaram elles a fazer conci- dos.
Jios, a escrever, e a pregar. Depois de tres dias de disputa, o conde
Porém a protecção concedida aos catho­ Marcellino pronunciou em favor dos catho­
licos ateou de novo toda a raiva c todo o licos, c na conformidade do que o mesmo
furor dos donalislas: não houve igreja ca-, referiu ao imperador, e cste.por uma lei do
tholica isempta dos seus insultos; prendiam anno 412 impôz grandes muitas aos dona­
nas estradas todos os que iam pregar a tistas, desterrou os seus bispos, e adjudi­
união c a paz, o seu zelo barbaro não res­ cou os bens das suas igrejas aos catho­
peitava nem ainda os mesmos bispos e os licos.
circumcelliões derramados pelos campos; Este golpe de severidade, igual ao raio
exercitavam mil deshumanidades contra que cahe sobre o enxofre e o bitume, tor­
os catholicos, que ousavam oflereccr a paz. nou a atear o fogo dos donatistas; vo 1tarar
e incitar os donatistas á união. ás armas, assassinaram cruelmente os ca
0 concilio de Carthago mandou deputa­ tholicós, e a si mesmos, estimando mais
dos ao imperador para que acoutasse dos morte, que voltarem á communhão da Igrc
insultos dos donatistas os catholicos que ja: mas a prudência c firmeza do condt
prégavam a verdade, ou que a defendiam Marcellino reprimiram logo os seus furo­
com seus escriptos: Sahcto Agostinho, po­ res. 1 Os bispos donatistas publicaram que
rém, c outros bispos, foram de sentir que Marcellino fora comprado pelos catholicos,
que não sc deviam pedir castigos contra e quo não lhes permittira se defendessem,
elles: o mesmo sancto linha para si que mas Sancto Agostinho fez vér claramente
não se devia forçar ninguem a abraçar a suas calumnias.
unidade, mas que por meio de conferên­ Theodosio, o moço, renovou as leis de Ho­
cias, disputas, e razõos, se havia de obrar, norio contra os donatistas, e debilitou mais
persuadir, c vencer, para que os hereges ainda o seu partido. Pouco tempo depois os
declarados não se voltassem catholicos fin­ vandalos se fizeram senhores d’Africa, c
gidos. maltrataram igualmente os catholicos e os
Porém os donatistas haviam enchido o donatistas: o fanatismo d’estes enfraqueceu
estado de desordens, e perturbado a tran- notavelmente; reanimou-se porém no go­
quillidadc püblica: eram assassinos, incen­ verno do imperador Mauricio, mas •este
diários c sediciosos, c o imperador res­ principe fez executar as leis publicadas
ponsável ao público de leis mais severas contra os donatistas, que ficaram disper­
contra tão perniciosos sectarios, que já não sos por differentes cantos d’Africa, c não
estavam nas circumstandas da tolerância tornaram a formar partido.
civil, nem da ecclesiastica, c n’esta justa
consideração ordenou, sob graves penas,
que os scísmaticos voltassem á Igreja.1 1 Collat. Carthag. an. 411 habita. Nio.
nov. Collcct. conc. Balussi, apud Aug. Brel-
1 Aug. Ep. 50. Codex Theod. 16, tit. 6, liculus Collationis cum Donatistis, adit. Be- ‘
liv. 3, pag. 195. nedict. I. 9, pag. 545.
432 DON
DOS ERROS DOS DONATISTAS blema de uma mulher sem defeito o em
que não ha cousa reprchensivel. i *
O Novo Testamento ainda é mais claro-
Nasce quasi sempre o scisma do erro, e terminanto no sentir dos donatistas’ S
ou elle o produz. Os donatistas haviam-sc Paulo expressamente diz que Jesus Christo-
separado da Igreja por insistirem em que amara a sua igreja, que a sanctificára, e
era nulla a ordenação de Ceciliano, como que cila e pura, e sem mancha. 2
feita por Felix d’Aptunha, que era traidor; Tinham elles para si que a verdadeira
portanto foram naturalmente conduzidos a igreja era composta d um pequeno nume­
negar a validade dos sacramentos conferi­ ro de justos, que a grande extensão não
dos pelos hereges e peccadores. D’este prin­ lhe era essencial, que se incluira cm Abra-
cipio se seguia que a Igreja era composta hao, Isaac, e Jacob, e que na Escriptura
de justos, e que por boa consequência Ce­ estava designada no emblema d’uma porta
ciliano, Felix (TAptunha, que o ordenara, o estreita, pela qual entram poucos, etc. 3
papa Meltiades, que o absolvera, e muitos Para justificar 0 seu scisma sé serviam
de seus irmãos, convencidos de crimes, de­ do exemplo de Elias c Eliseu, que se reti­
viam ser depostos, e expellidos da Igreja; raram da communicação dos Samaritanos
que seus peccados os liavfy feito cessar de e se apoiaram no que Deus disse por bôccá
serem membros de Jesus Christo, que to­ de Ageo: que elle detesta uma nação man­
dos os que defenderam e communicaram chada pelo peccado, e om que é immundo
com elles, se fizeram seus cúmplices, ap- quanto oflerece. 4
provando-os, c que assim nãó sómente a Fizeram vér os catholicos estarem em
igreja de Africa, mas todas as do mundo, erro os donatistas ácerca da natureza e da
que se ligaram em communhão com os do extensão da Igreja, provando que ella era
partido de Ceciliano, havendo-se contami­ representada na Escriptura como uma so­
nado, deixaram de ser parte da verdadeira ciedade que encerra bons e maus, c que 0
igreja de Jesus Christo, que estava redu­ mesmo Jesus Christo a havia assim desi­
zida ao pequeno numero d’aquelles que gnado, já 11a comparação da rede lançada
nào quizeram communicar com os preva­ no mar, e que recebe peixes de todas as
ricadores, e que se conservaram sem essa qualidades, já na do campo em que 0 ho­
mancha. Portanto criam que a Igreja se mem inimigo ingeriu a sizania, já na eira
compunha unicamente de justos, e que el­ em que está a palha misturada com 0 bom
les eram esta Igreja. trigo.5
Reduzia-se, pois, a tres pomos toda a A igreja antiga comprehendia 110 seu
disputa dos catholicos e dos donatistas: l.° gremio peccadores: Aarão e Moysés nào
se Felix tinha os crimes de que o arguiam; fizeram scisma, e comtudo na igreja dTs-
2.° se na supposição de os ter poderia or­ rael havia sacrilégios: Saul e David per­
denar válidamente a Ceciliano; 3.° se a tenciam á igreja de Judá: havia maus sa­
Igreja se compunha unicamente de justos cerdotes e maus judeus na igreja judaica,
e de sanctos, ou se encerrava bons e maus. c na mesma sociedade de que Jeremias,
Na historia que acabamos de referir do Isaias, Daniel e Esequiel eram membros. 6
scisma dos donatistas, vimos que elles ja­ S. João não se separou dos peccadores, c
mais provaram contra Felix c contra Ceci­ os olhava como dentro do gremio da Igre­
liano algum dos crimes de que os accusa- ja, apesar dos seus peccados: esta é a idéia
vam: no artigo Rebaptisantes mostramos que nos dá S. Paulo da mesma Igreja.'0
serem válidos os sacramentos conferidos culto, ás orações, as ceremonias, tão anti­
pelos hereges e .peccadores: agora vamos gas como a mesma Igreja, suppoem que
vér e mostrar o erro dos donatistas ácerca ella encerra peccadores.7
da Igreja.
Presumiam elles que a Igreja se compu­
nha unicamente de justos, e, o provavam 1 Cant. c. 5.
pelos caracteres que lhe dao os prophe­ 2 Ad Ephes. 5, 2. Cor. c. 11.
tas, e pelas imagens com que os mesmos a 3 Aug. de Unitate Eccles. Collat. Car-
annunciam. Isaias nol-a representa, diziam thag. t. 9, edit. bcnedict. Collect. Balusii.
elles, como uma cidade sancta, em que não 4 Aggaei, c. 2, v. 14, 15.
deve entrar nenhum impuro e incircum- 5 Matth. 15, 38.
ciso, e só ha de conter um povo sancto. 1234567 6 Aug. cont. Ep. Parmen. I. 2, c. 7. De
O Cântico nol-a descreve debaixo do em­ Unit. Eccl. c. 13.
7 Ad Rom. 4, v. 24. Hcebreòr. 9, v. 12-
1 lsaias—52, 62, 35. Ad Tim. prima, c. 2.
DOS 433
Todas as passagens cm que a igreja nos consequência nunca se dá motivo justa
6 representada como uma sociedade pura, para romper com ella os vínculos da com-
de que os peccadores sào os excluídos, de­ munhão, e são scismaticas todas as socie­
vem entender-se da igreja triumphante, no dades que d’ella se separam.
sentir de Sancto Agostinho. * Sobre a terra Antes das disputas que Luthero, Zuin-
é ella uma sociedade religiosa composta de glio, e Calvino excitaram no Occidente, era
homens unidos exteriormente pela com- a igreja romana, sem controvérsia, a igreja
iuunhão dos mesmos sacramentos, e pela catholica, e estavam na sua communhão
obediência aos legitimos pastores, e inte­ todos os que abraçaram a reforma; por­
riormente pela fé, pela esperança, e cari­ tanto não se podiam" separar d’clla sem se­
dade. rem scismaticos, porque não podem arguir
Podemos pois distinguir na Igreja uma a igreja catholica de sustentar nem um só
parte exterior c visivel, que é como o seu dogma que não fosse propugnado por gran­
corpo, e outra invisível e interior, que é des sanctos; c por consequência elles em
como a sua alma: portanto se unicamente todos os tempos poderam salvar-se na
consideramos a parte interior da, Igreja, igreja romana: portanto não havia no de
poderemos dizer que os hereges e pecca­ Luthero, Zuinglio, e Calvino, razão alguma
dores nào pertencem a ella; mas nào é me- legitima para se separarem d’ella, como fi­
, nos verdade que elles pertençam ao corpo zeram os chefes da reforma.
da mesma; e assim deverão bxplicar-se os Não é pois a igreja reformada a verda­
diversos logares em que Sancto Agostinho, deira igreja, c os que abraçaram a sua
e depois d’élle muitos outros theologos, di­ communhão estão destituídos de funda­
zem que os peccadores nào sào membros mentos para se conservarem separados da
da Igreja. O cardeal Bcllarmino deu solu­ romana. Isto c o que o* clero de França,,
ção a todas estas objecções na comparação no fim do século passado, queria que exa­
ao homem, que é confposto d’um corpo e minassem os presumidos reformadores; e
d’unm alma, e do qual um braço não deixa a que todos os catholicos deveríam ainda
de ser parte, posto que esteja paralytico. hoje exhortal-os, e nós nos persuadimos
Os catholicos não provavam com menos que este methodo tão prudentemente pro­
força e evidencia que uma sociedade re­ posto, reuniría muitos dos protestantes á
duzida a uma só parte da Igreja d’Africa igreja catholica; porém será impossível que
não podia ser a verdadeira igreja, por tal methodo surta cíTeito, se elles aborrece­
quanto nos annunciam todos os prophetas rem os catholicos, e estiverem irritados
que a de Jesus Christo se ha de derramar contra elles, persuadidos de que os que­
por todo o orbe.12 rem tyrannisar, e não esclarecer. A ques­
' O mesmo Senhor a si applica todas as tão do scisma dos protestantes foi esgotada
suas prophecias, dizendo que era necessá­ por M. Nicolau, na sua excellente obra in­
rio que Christo soffresse, e que se prégasse titulada: Os presumidos reformados conven­
em seu nome a penitencia, e remissem dos cidos de scisma.
peccados a todas as nações, principiando DOSiTHEp— foi um magico de Samaria
em Jerusalém.3 Todos os sanctos padres qu'^affiífffãva ser o Messias; é tido pelo
antes dos donatistas haviam pensado que a primeiro heresiarcha. Os samaritanos eram
igreja de Jesus Christo, a verdadeira igreja, afferrados á lei de Moysés assim como os
devia ser a catholica; por este nome se dis- judeus, e da mesma sorte esperavam o
tinguia desde o tempo de S. Polycarpo das Messias. A ambição humana não podia as­
demais seitas que se levantaram no Chris­ pirar a cousa maior que á gloria do Mes­
tianismo. 4 Finalmente esta era a doutrina sias, e era impossível que entre nações que
de toda a Igreja contra os donatistas.5 o esperavam, deixasse de haver ambiciosos
Portanto pois jamais é licita a separação que lhe usurpassem o titulo, e contrafizes-
da igreja catholica por ser a verdadeira, sem os caracteres.
na qual sempre podemos salvar-nos, e por Tinha sido o Messias annunciado pelos
prophetas, e havia de assignalar seu po­
1 Aug. I. 2. Retract. c. 18. der por milagres os mais estupendos: de­
2 Genes. 12. Isaiae, 49, 54. Malacli. 1. veríam pois d’occupar-se muito na arte de
Ps. 2, 20, 49, 55, 71. obrar prodígios, e talvez a estas vistas, uni­
3 Luc. 25, v. 44, 47. Act. 1, v. 8. das ao progresso do pythagorismo e plato-
4 Euseb. Hist. I.4,15. Cyril. Catech. 18, nismo, e á philosophia cabalistica, deva­
circa fin, Aug. cont. Ep. fundam, c. 7. Cypv. mos attribuir a paixão da magia, que tanto
de Unit. Eccles. grassou entre os judeus e samaritanos, an­
5 Aug. eant. Crescent. tes do nascimento do Christianismo. Seja.
434 EBI
porém bem ou mal fundada esta conjectu­ sustentam haver no mundo dous princípios
ra, quanto ao mais é sem dúvida certo que eternos e necessarios, um dos quaes pro­
- Dositheo se applicou fòrtementc á magia, duz todo o bem, o outro todo o mal. Vc-
e que allucinou a imaginação com prestí­ jam-sc os artigos Marcião c Manes.
gios, encantos, e ligeireza de mãos. LelS° nascido em Novara, na
Annunciou-se Dositheo pelo Messias, c Lombardia, foi discipulo de Sagarelo, e de­
foi acreditado: e como os prophetas o cara- pois da morte de seu mestre se fez cabeca
cterisavam debaixo de rasgos que sómente da sua seita, que tomou o nome de apostó­
podiam convir a Jesus Christo, mudou as lica. Veja-se o artigo Sagarelo.
prophecias, e as apropripu a si: seus dis­ dM k e r s o u t j j w r s — O protestantismo
cipulos sustentaram ser elle o Messias pro­ fracciona-se n’uma multidão de seitas. De­
dicto pelos prophetas. pois de ler durante muito tempo declama­
Trazia Dositheo uma comitiva de trinta do contra as instituições monasticas dos
discipulos, que eram tantos quantos os dias catholicos, os protestantes tiveram também
do mez, e não queria mais; e com elles ti­ seus monges. Gonrado Seysel sentiu-se com
nha admittido uma mulher, a quem cha­ desejos de retirar-se á solidão.
mava Lua: observava a circumcisão,>e je- Dirige-se a vinte léguas da Philadelphia,
juava muito. Para fazer crér que tinha su­ edi fica uma cella, planta amoreiras, e al-
bido ao céo, se escondeu em certa caver­ uns arbustos. Foi depressa seguido dos
na, retirada dos olhos de todos, na qual se evotos d’um e d’outro sexo. Desde 1777
deixou morrer á fome. contavam-se quinhentas cellas. Assevera-se
Os sectarios d’este enganador estimavam que a colonia tem hoje mais de trinta mil
muito a virgindade, e se prosavam tanto sectários. Entre elles tudo é commum: tra­
d’esta virtude, que olhavam com despréso zem barba comprida, usam um vestido que
oara o resto do genero humano: desdenha­ roja no chão, com cintura e capuz. Não co­
ram a companhia de qualquer que não mem carne senão nas grandes reuniões
pensasse, e vivesse como elles. Tinham communs. Seu symbolo é mui differente
prácticas singulares, ás quaes eram nimia- do dos catholicos. Negam a eternidade das
mente aíTerrados:-tal era a de existirem penas, não reconhecem peccado original;
por vinte e quatro horas na mesma pos­ por consequência não dão o baptismo se­
tura em que se achavam quando o sabbado não aos adultos; é conferido por immer-
principiava. são: é por isso que estes sectários são cha­
Esta immobilidade era uma consequên­ mados dunkers, que significa embeber, mer­
cia da prohibição de trabalhar no sabbado: gulhar. A moral dos dunkers é bella. Guar­
com prácticas similhantes se tinham estes dam o celibato: os que se casam são sepa­
sectarios por superiores aos homens mais rados da colonia. Condemnam a guerra, os
esclarecidos, aos cidadãos mais virtuosos, e processos, a escravidão. Teem por laço a
ás almas mais beneficas: estando por es­ fraternidade. Tudo isto é. mui bello de lon­
paço de vinte e quatro horas postos de pé, ge, mas parece que ha grandes vicios soli­
e com a mão direita ou esquerda~cstendi- tarios nas cellas dos dunkers...
da, tinham para si que agradavam a Deus e b i o n i t a s — Esta palavra, em hebreu,'si-
mais do que se se houvessem agitado muito gnífíca pobre, e foi dado este nome a certa
para consolar os afflictos, e dar allivio aos seita de hereges que tinham adoptado os
desgraçados. sentimentos dos nazarenos, a cuja doutrina
Ainda subsistia no Egypto esta seita no ajuntaram outras prácticas e erros, que lhes
sexto sécu lo.1 Por morte d’um dos disci­ eram particulares. Os nazarenos, por exem­
pulos de Dositheo, entrou em seu logar o plo, recebiam toda a escriptura que se en­
celebre Simão Mago, que logo excedeu seu. cerrava no canon dos judeus; os ebionitas,
mestre, e se fez cabeça de seita. pelo contrario, rejeitavam todos os prophe­
Ç y ^ D U^LisTAs—é o nome que deram aos que tas, tinham horror aos nomes de David,
Salomão, Jeremias, e Ezequiel; o por Es­
1 Euseb. Hist. Eccles. I. 5. c. 22. Ort- criptura Sancta unicamente recebiam o
gen. Tract. 27, in Math. I. i, cont. Celsum; Penthateuco.
c. 4 4 / 1. 6, pag. 288, edit. Spencerí. Patriar- Origenes distinguiu duas qualidades de
c h e l % c. 2, Philocal. c. 1, pag. 36. Origen. ebionitas: uns criam que Jesus Christo nas­
Hiictl l. 2, pag. 319. Photius Bibliot. cod. cera d’uma virgem, como o criam também
230,' pag. 466, edit. gr.;pag. 331, edit. lat. os nazarenos, d os outros pensavam que
Epiph. Hcer. 13. Hieron. adversus Lucif. c. nascera como os demais homens.
8. Tert. de P rm cript. c. 44, Philastr. de Hce- Alguns ebionitas eram sobrios e castos,
res. c. 4. outros não recebiam na sua seita pessoa
ECG 435
. alguma que não fosse casada, e ainda an­ ctismo, em dous volumes m-12, que appa-
tes da puberdade, c além d’isso permittiam receram cm 1756.
a poligamia: não comiam animal algum, Não nos parece muito necessario exami­
nem o que d’cllcs era proveniente, como nar minuciosamcnte tudo o que Mosheim,
leite, ovos, etc. na sua Hist. christà, 2.° século, § 26, c
Serviam-se da mesma sorte que os naza­ Drueker, na sua Hist. critica da philos...
renos, do Evangelho de S. Mathcus, mas ti- tom; 2.°, disseram do celebre Anjjnonio
nham-no corrompido cm muitas passagens, &iccas, quQ.jjassa nmUer^sidíL<> .fundaIlor
e d’elle tiraram, a genealogia de Jesus da nhilosoiihia^M ect/ça, na escola d’Ale­
Christo, que os nazarenos conservaram. xandria. Foi este philosopho constantemen­
Além do Evangelho cm hebreu, segundo te aíTeiçoado ao Christianismo ou desertor
S. Mathcus, os ebionilas adoptaram muitos da fé? christão no exterior c pagão no-co­
outros livros debaixo dos nomes de S. Tliia- ração? Houve dous Ammonios, um chris-
go, S. João, c de outros apostolos, c se ser­ tãó e outro pagão, que confundiram? Dis­
viam também das viagens de S. Pedro. se elle tudo o que seus discipulos escre­
Muitos se persuadiram ser os ebionilas veram pelo correr do tempo, ou rnuda-
um ramo dos nazarenos, c outros créram ram-lhcs a doutrina cm muitas cousas? Co­
formar cllos uma seita inteiramente diver­ lheram seus dogmas entre os orientacs ou
sa: esta questão, pouco importante, e tal­ nos escriptos dos philosophos gregos? To­
vez muito ardua de decidir, foi examinada das estas .questões não nos parecem tão im­
pelo padre Lo Quien nas suas dissertações portantes como a estes dous sábios criticos;
sobre S. João Damasceno. Origenes, S. João e, a despeito de toda a sua erudição, se
Damasceno, Eusebio, e Sancto Ircnio, tra­ conseguiram sobre isto tudo exacerbar cor
ctaram da heresia dos ebioni' s . 1 jecturas. Faremos até vêr que as levara?
Os ebionitas c os nazaren a, que assim muito além, quando quizeram provar qi
eram divididos em diversas seitas, e que a philosophia ecclectica ou o novo platoni
se contradiziam na sua crença e na sua mo, introduzido na Igreja pelos padres, nu
moral, comtudo se uniam acerca de um dou em muitas cousas a doutrina e a mo
ponto, qual era reconhecerem ser Jesus o ral dos apostolos; é uma calumnia que Mo­
Messias: é portanto indubitavel que clle sheim se esmerou em provar na sua dis­
veio revestido de todos os caracteres que sertação De turbata per receniiores platôni­
o annunciavam. cos ecclesia, mas que nós teremos cuidado
j^gclecticos—Philosophos do III (‘ do IV de refutar. Yidc Platonismo o Padres da
seaiío^lirfgréja, assim chamados do grego Igreja.
—eu escolho,—porque ellcs escolhiam as Parece que Deus permittiu o desvario
)piniões que lhes pareciam melhores nas dos ecclecticos para cobrir de confusão os
M erentes seitas de philosophia, sem se li- partidários da philosophia incredula. Não
jarem a escola alguma; foram também cha­ se póde deixar de fazer sobre este objecto
mados novos platônicos, porque seguiam muitas observações importantes, lendo a
cm muitas cousaTas idéias dc Platão. Plo- historia que Bruckcr fez, c que os nossos lit­
tin, Porphyrio, Jamblique, Maximo, Euna- teratos desfiguraram.— i.° Longe de que­
pe, o imperador Juliano, eram d’cste nu­ rer adoptar o dogma da unidade de Deus,
mero. Todos foram inimigos do Christia- ensinado e professado pelos christãos, os
fnismo, e a maior parte empregou o seu ecclecticos fizeram todo o possivel por sof-
I credito em soprar o fogo da perseguição focal-o, para fundar o polytheismo c a ido­
contra os christãos. latria sobre raciocínios philosophicos, para
' O quadro do imaginação que os nossos acreditar o systema de Platão. Na verdade,
litteratos modernos traçaram d’esta seita, elles admiram um Deus supremo, do qual
as imposturas que lhe juntaram, as calu­ tinham sahido todos os espíritos por ema­
mnias que arriscaram por esta occasião nação; mas entenderam que Deus, submer­
contra os padres da Igreja, foram solida­ so n’uma ociosidade absoluta, tinha deixa­
mente refutados na Hisf. critica do Eccle- do aos genios ou espíritos inferiores, o cui­
dado dc formar e de governar o mundo;
que era a elles que o culto devia ser diri­
1 Origen. cont. Ccls. Epiph. Han\ 10. gido, e não ao Deus supremo.
Ircen. 1, c. 20. Euseb. Hist. Eccles. I. 3, c. Ora, dc que serve um Deus sem provi­
27. Parmi les Modernes on peut consulter dencia, que não se intromette em cousa al-
le Clei'c, Hist. Ecchs. pag. 476, an. 72. liti­ uma, e ao qual não somos obrigados a ren­
gium Dissert. du Hares. scec. 1, c. 6. Le P. er um culto? Por isto vêmos a falsidade
Quien, Dissert. su r S. Jean Damasc. do que foi sustentado por muitos philoso-
436 ECG
phos modernos, a saber, que o culto ren­ dades douradas, etc. (Vide Brucker, llist
dido aos deuses inferiores se dirigia ao da philos., tomo 2.°,pag. 370, 380; tomo vi
Deus supremo.—2.° Brucker faz vôr. que Appendix, pag. 361.)—Os quequizerem fa­
os ecclecticos tinliam juntado a theoria do zer um parallelo do procedimento dos eccle­
paganismo á philosophia por um motivo cticos com o dos nossos philosophos mo­
d’ambicão e d’interesse, para se lhes altri- dernos, acharão uma simillianca perfeita. Se
buir todo o credito e todas as vantagens que sç exceptuarcm os falsos milagres e a ma­
alcançariam uma e outra. gia, de que estes últimos nào fizeram uso,
A primeira fonte do seu odio contra o não despresaram nenhum dos outros meios
Christianismo foi a inveja: os christàos da­ dc seducção. Quando não se tem lido a his­
vam à lüz o absurdo do systema dos eccle­ toria, imagina-se que o Christianismo nun­
cticos, a falsidade de seus raciocínios, a as­ ca experimentou ataques tão terríveis como
túcia de seu procedimento^ como lhes de­ hoje: enganam-se; o que vémos nào é mais
veríam estes perdoar? Nào admira pois do que a repetição do que se passou no ív
que elles tenham excitado, tanto quanto século da Igreja.—6.° Muitos dos philoso­
poderam, a crueldade dos perseguidores: phos que abraçaram o Christianismo não o
S. Justino foi entregue ao supplicio pelas fizeram de boa fé; trouxeram-lhe o seu ca­
accusacões d’um philosopho chamado Cres- racter embusteiro c seu espirito falso. Qui-
cent, qúc queria mal a Taciano (Tatiani zeram accommodar a crença christà com
Orat., n.° 19.) Lactancio queixa-se do odio seus systemas de philosophia. Os sábios no­
de dous philosophos do seu tempo, que nào taram que os éons dos valcnlinianos c dos
nomeia, mas que se julgam ser Porphyrio e differentes ramos dos gnosticos, não eram
Hierocles. (Jusi, d i v i n 1. v, c. 2.)—3.° Para mais do que as intelligencias ou genios for­
levar avante, os seus projectos nào poupa­ jados pelos platônicos ou ecclecticos.
ram nem os embustes nem a mentira. Como Não approvaremos todavia o que julga­
íão podiam negar os milagres de Jesus ram Brucker, Mosheim c outros criticos
Christo, attribuiram-nos á thiurgia ou á ma- protestantes, que parecem muito inclinados
íia, de que elles mesmos faziam profissão. a favorecer o socinianismo. Dizem elles que
Disseram que Jesus fôra um philosopho os ecclecticos, mesmo sinccramente conver­
thiurgista que pensava como elles, mas que tidos, laes como S. Justino, Athenagoras,
os christàos desfiguraram e transformaram Hermias, Origcncs, S. Clemente d’Alexan-
sua doutrina. Attribuirain milagres a Py­ dria, etc., levaram suas idéias philosophi­
thagoras, a Appollonio de Tyane, a Ploti- cas á theologia christà. Até ao presente não
no; blasonavam de lambem o*s operar por vémos que dogma do ecclcclismo tenha pas*
meio da thiurgia. Sabe-se até que ponto Ju­ sado ao nosso symbolo; vémos, pelo con­
liano se preoccupou d’esta arte odiosa, e a trario, os padres dc que vimos de fallar
que sacrifícios abomináveis este erro deu muito attentos em refutar os philosophos,
logar. Os proprios apologistas do ecclectis- sem perdoar mais aos platônicos do que
mo não ousaram contradizel-o.—4.° Estes aos outros.—Ainda que fosse verdade que
philosophos valeram-se do mesmo artificio todos os erros altribuidos a Origenes fo­
para apagar a impressão que podiam fazer ram nascidos da philosophia ecclectica, que
as virtudes dc Jesus Christo c de seus dis­ se seguiria? Estes erros jamais fizeram
cipulos; altribuiram virtudes heróicas-aos parte da theologia christà, pois que teem
philosophos que os haviam precedido, e es­ sido refutados e condemna dos. Achar-sc-
forçaram-se por persuadir que eram san­ hão nos escriptos dos outros padres que vi­
ctos. Suppozeram falsas obras, sob os no­ veram no tempo d'Origencs, ou immedia-
mes d’Hermes, d’Orphéo, de Zoroastro, etc., tamente depois d’elle?
e estamparam n’ellas sua doutrina para Quando Brucker quer persuadir-nos de
fazer crêr que era muito antiga e que ti­ que a maneira como Origenes concebeu o
nha sido seguida pelos maipres homens da mysterio da SS. Trindade, c o que disse do
antiguidade—5.° Como a moral p u r a e su ­ Verbo eterno, foi tomado do plalonismo,
blime do Christianismo subjugava os espí­ tomo ui, pag. 446, mostra uma tintura de
ritos e ganhava os corações, os ecclecticos socinianismo que não lhe faz muita honra.
fizeram alarde da moral austera dos stoi- Só lhe restava dizer, como os incrédulos,
cos, e a glorificaram nas suas obras. D’ahi que o primeiro capitulo do Evangelho, se­
os livros de Porphyrio sobre a abstinência, gundo S. João, foi feito por um platonico.
onde se julga ouvir fallar um philosopho — Alguns d’estes criticos limitaram-se a
da Thebaida; a Vida de Pythagoras por sustentar que os padres tomaram do paga­
Jamblique; os Commentarios de Simplicio nismo muitas das nossas ceremonias; é uma
sobre Epictete, de Hierocles sotnv as ver­ outra imaginação que teremos cuidado do
ECC 437
refutar tractando de cada um d’estos ritos bros e d’orgãos tomados aqui c alli, ajusta­
cm particular: entendemos pelo contrario dos com mais ou menos arte, mas que não
que estas ceremonias foram sabiamente podem constituir um corpo vivo.
instituídas para servir de preservativo aos A verdade diz-se, nào pertence a syste­
fieis contra as superstições do paganismo. ma algum, porque cila nào seria mais a
—Finalmente, outros pensaram, com mais verdade pura e universal, se se deixasse
verosimilhança, que os ccclecticos se appli­ formular n’uma theoria particular. Não é
caram a imitar muitos ritos da nossa reli­ nem nas obras de taes philosophos, nem
gião, c a aproximar, tanto quanto lhes era nas opiniões de tal século ou de tal povo
possível, o paganismo do Christianismo. que cumpre procurar a philosophia: é em
Como achar a verdade no meio de tantas todos os escriptos, cm todos os pensamen­
conjecturas oppostas? tos, cm todas as especulações dos homens,
Nào approvaremos também o que disse cm todos os factos pelos quacs se manifes­
Bruckcr dos padres da Igreja em geral, ta e se exprime a vida da humanidade. A
que nào foram isemptos do espirito dbloso philosophia não está pois por fazer; nào é
dos ccclecticos, e que julgaram, como elles, o genio do homem que a faz: faz-se per si
que era permittido empregar a mentira c mesma pelo desenvolvimento ãclual do mun­
as fraudes piedosas para servir utilmente do, de que o homem é parte integrante; faz-
a religião, tomo 2.°, pag. 389. se ledos os dias, todos os instantes, é a mar­
É uma calumnia aventurada sem prova. cha progressiva do genero humano, é a his­
Estào acaso bem certos de que as obras toria: a tarefa do philosopho é desembara-
apocryphas o suppostas, que appareceram çal-a das fôrmas caducas, sob as quaes ella
nos qüatro ou cinco primeiros séculos, fo­ se produziu, e certificar o que é immuta-
ram forjadas pelos padres da Igreja, e nào vel e necessario no meio do que é variavel
por escriplorcs dcsauthorisados? Quasi to­ c contingente.—Muito bem! mas para fa­
das apresentam o cunho da heresia; logo zer esta distineção, para operar esta repa­
nào foram feitas pelos padres, mas por he- ração, é mister olhos seguros, vista firme e
reges. exercitada; ó mister o critério da verdade;
Enoja que nas discussões, mesmo pura­ ó mister uma medida, uma regra infallivel;
mente litterarias, c que nào pertencem nem e onde irá tomal-a a philosophia eeclectica?
á theologia nem á religião, os authores pro­ Nào é n’uma doutrina humana, pois que
testantes deixem sempre penetrar sua pre­ nenhuma d’essas doutrinas encerra a ver
venção contra os padres da Igreja, c pare­ dade pura, e porque é'justamente por iss
çam alTectar fornecer armas aos incredu- que é mister o ccclectismo: appellam tan
íos. bem para a razão universal, para a razà
Na palavra Platonismo acabaremos de absolutaI ainda bem se essa razão absoli
justificar os padres, e faremos vér que não •ta se mostrasse sób uma fôrma que llu
foram nem platônicos nem ecclccticos.^Vide fosse propria, e nos désse assim a convic­
Economia c Fraude piedosa. ção de que é ella que nos falia; mas não
O ccclcctismo tomou um mui amplo lo- acontece assim no estudo das cousas natu-
gar na philosophia moderna, e se apresen­ raes: alli, a razão universal nào nos falia
tou como o. non plus ultra da sciencia. 0 senão por meio de razões privadas; alli, ha
theologo deve poder julgal-o. sempre homens entre mim c ella; é sem­
0 ccclcctismo, diz M. Riambourg, assi-pre um homem que se declara seu orgão
gnalou a angustia do racionalismo antigo. e interprete; c quando o philosopho nos
E’ o signa 1 precursor do fim do racionalis­ diz: Eis-aqui o que disse a razão absoluta!
mo contra o seu principio. Naturalmente, isto apenas significa: Eis-aqui o que eu,
o racionalismo tende a dividir: o ecclcctis- na rninha consciência e na minha razão
mo quer conduzir á unidade. propria, julguei conforme á razão univer­
0 sal. 0 ecclectismo não possuindo este crité­
ccclcctismo alexandrino apoiava-se em
uma mentira: «Os systemas não são con­ rio tão necessário da verdade, é impossivel
trários.» 0 ccclectismo moderno funda-se que o seu ensino não seja obscuro, vago,
em um absurdo: «Bem que sejam contrá­ incoherente: ellc não tem doutrina propria­
rios, os systemas podem concordar.» mente dita; é um quadro brilhante ónde to­
«0 ccclcctismo no século xix, diz M. Bau- das as opiniões humanas devem ter Jogar;
tain (Psychologia experimental, prefacio), é verdadeiras ou falsas, exprimem os pensa­
o que foi em todos os tempos, um syncre- mentos humanos, c teem assim direito ao
tismo, um resumo d’opiniões ou de pensa­ respeito do philosopho; não é mister jul-
mentos humanos que se aggregam sem se gal-as por suas consequências moraes, uteis
fundir, ou, por outra, uma reunião de menv ou nocivas, beneficas ou perniciosas; teem
438 ECC
todas, considerando-as philosopliicamcntc, e contraria, o abandono á fatalidade, a ser­
o mesmo valor, sào fôrmas diversas da ver­ vidão da necessidade sob os exteriores da
dade unica. Mas, se todas as doutrinas são independcncia. Esta philosophia tão rica dc
boas tanto quanto, as expressões foihnaes promessas, mas tão pobre de cíTeitos, como
da razão do homem, todas as accões sel-o- a historia o dirá, está julgada hoje, e não é
hão igualmente como manifestações da sua já a esta escola que uma juventude gene­
actividadc livre; não ha ahi nem ordem nem rosa irá buscar grandes idéias, sentimen­
desordem para um sêr intclligente, que não tos profundos, altas inspirações.
conhece lei nem fim. «M. Cousin, o corypheu‘da philosophia
O crime ò' um faclo como a virtude; bem
do nosso tempo, póde ser olhado como o
que oppostos cm seus resultados para o in­ chefe do ccclcctismo moderno. Suas dou­
dividuo e para a sociedade, similam-sc em trinas philosophicas foram julgadas por M.
qüe um c outro exprimem um modo da li­ Gaciano Arnould, que pertence á mesma
berdade, e eis sómente o que lhes dá um escola, mas que sem dúvida não possuo os
valor philosophico. mesmos princípios. A apreciação é severa;
As acções humanas não teem importân­ mas não ó a nós que M. Cousin deve lan­
cia senão á proporção que ajudam ou im­ çar as culpas; é um discipulo da sua esco­
pedem o desenvolvimento da humanidade, la que o julga.
que deve sempre ir avante, nào imporia «Depois dc ter sido successivamente dis­
em que sentido ou para que termo, condu­ cipulo do M. Condillac, dc M. Loromiguic-
zida pela razão universal, que não póde re, de M. Roycr-Collard, dos Escocezes, dc
transviar-se, porque não ha duas vias de Kanl, dc Platão, c dc Proclo, M. Cousin,
aperfeiçoamento: não se tracta senão de meditando, sobre estas variações do seu es­
sér, de existir e de se mover. As socieda­ pirito, pensou que ellas vinham dc que to­
des sabem tanto onde vão como os indivi­ dos os syslemas são cm parte verdadeiros
duos; nascem c perecem, manifestando em e cm parte falsos, como elle mesmo diz.
todo o tempo da sua duração uma porção «Ecclcctismo significa escolha. Em theso
da vida geral, e servindo cTapoio ás gera­ geral, escolher suppõe cinco cousas, a sa­
ções futuras, como a cilas mesmas serviram ber: que o objecto procurado ó do numero
ás que as precederam; representam seu pa­ dos objectos actualmenle existentes; que
pel na scena do mundo, e depois passam. estes objectos estão á nossa disposição; que
Um século, por mais pervertido que pareça, .sabemos qual objecto buscamos; que sabe­
traz em si sua justificação: c que era des­ mos como cumpre procural-o; que sabe­
tinado a representar tal phasc da humani­ mos em fim quaes os signaes por que o ha­
dade; a impressão penosa que produz so­ vemos dc reconhecer. Na ordem particu­
bre nossas almas é um combate dc senti­ lar da philosophia, o ecclcctismo suppõe:
mento e dc prejuízo. Visto philosophica- l.° que a verdade philosophica é do nume­
mente e em si mesmo, é tão mau como qual­ ro das opiniões emittidas até hoje; 2.° que
quer outro, e perante a verdade/ vale em estas opiniões não são todas conhecidas;
sua existência os séculos de virtude e de 3.° que sabemos perfeitamente qual é o ob­
felicidade; é o acontecimento que decide do jecto da philosophia; 4.° que sabemos qual
direito; é o successo que prova a legitimi­ é o methodo philosophico; õ.° finalmente,
dade; a justiça está na necessidade, porque que sabemos qual o signal porque se re­
tudo o que existe é um facto, e todo o fa- conhece a verdade philosophica.
cto é. o que deve ser por aqui 11o só que é. «Ora, primoiramente, se M. Cousin af-
Taes são as lamentáveis consequências da jirmou que a verdade philosophica é do
philosophia ccclectica na sciencia como na numero das opiniões emittidas até hoje,
moral; eis onde rematou o grande movi- não o provou dc modo algum, porque sua
ipentó philosophico do nosso século; é aqui theoria do erro, que lhe serve de primeira
que elle veio perder-se, deixando nos espí­ prova à priori, além de não ser a verda­
ritos que agitou, e como ultimo resultado, deira theoria do erro, nada prova; porque
d’um lado uma especie dc indiíTercnça o seu quadro historico d’opiuiõcs passadas,
para com a verdade, na qual já não creem, que é a sua segunda prova à posteriori,
porque á força de íh’a mostrar em toda a além de ser muito incompleto e muitas ve­
parte, vieram a não vél-a em parte algu­ zes infiel, nada prova; porque seu quadro
ma; e d’outro lado, no procedimento da do presente, no qual mostra os povos da
vida, com uma grande pretenção ao su­ Europa ajustando-se pará procurar conci­
blime. á dedicação, com todas as apparen­ liar todos os elementos do passado n’um
d a s (io heroísmo, um passaporte de pai­ systema dc politica ponderada, mesclada
xões, a aversão por tudô o que embaraça d’anarchia, d’aristocracia c dc democracia,
que é a sua terceira prova, nada prova. cha que segue habitualmcnte, e sobretudo
Em segundo logar, M. Cousin disse muitas pela exposição do systema que ensinou em
vezes que nào conhecia as opiniões do ultimo logar... Eis-aqui o tecido: 1
Oriente, anteriores ao tempo da Grécia. Os
primeiros tempos da Grécia são também
pouco conhecidos. Discule-sc todos os dias EXPOSIÇÃO METHODICA DO SYSTEMA
sobre as verdadeiras opiniões de Platão, e DE M. COUSIN
d’Aristóteles. Todos os sophistas dão logar
a tantas discussões quantas elles mesmos
outr’ora sustentavam. Os alexandrinos, os « l.a Definirão.— A substancia é o que
padres da Igreja e os cscolasticos, são mui­ não suppõe cousa alguma além do si rela­
tas vezes citados; mas quem os leu? Quan­ tivamente á existência, ou o que é em si e
do se quer dizer com verdade o que scria- per si, segundo a etymologia, ens in se^et
mente se pensou, é-se forçado a procla­ per se subsistens (substans, substantia.
mar que uma grande parte das opiniões «O que não suppõe cousa alguma além
philosophicas, é uma extraordinaria inco­ de si, relativamentc á existência, chama-se
gnita. Em terceiro logar, não é muito facil absoluto ou infinito.
saber qual é o objecto da philosophia, tal <Axioma.— Dous absolutos ou infinitos
como M. Cousin o dá a entender nas suas são absurdos.
ultimas obras. «Porque, segundo elle, as «Syllogismo.—A substancia é absoluta ou
idéias são os unicos objectos proprios da infinita, segundo a definição. Ora, o abso­
philosophia, e as ideias são o pensamento luto ou o infinito é um só*, segundo o axio­
sob sua fórma natural, a fórma adequada ma. Logo, a substancia é uma, ou não ha
do pensamento, o proprio pensamento com- senão uma só substancia.3
prehendendo-se e conhccendo-se; as ideias «Escolio.—Substancia e sér são dous ter­
não toem senão um caracter, é ser intel- mos synonymos.
Iigiveis, e são só inlelligiveis; não repre­ « 2 / Definição.—Deus é o sér, como tão
sentam nada, absolutamente nada, senão bem disse Mo*ysés: Sou o qüe sou, isto é, o
ellas mesmas, e existem sós; as ideias são sér em si e por si absoluto.
Deus; e a philosophia é o culto das ideias, «O absoluto ou infinito chama-se neces
e é essencialmente idêntico á religião.» Em sario.
quarto logar, M. Cousin só diz algumas pa­ «Axioma.—Modus essendi sequitur essi
lavras sobre a maneira d’estudar a philo­ O sér tem seus modos que são da mesnn
sophia. Em compensação alarga-se longa­ natureza que elle.
mente sobre o piethodo a seguir para des­ «Syllogismo.—Deus é o sér necessario,
cobrir em si e por si a verdade philosophi­ segundo a definição. Ora, o sér necessário
ca. Em quinto logar, íinalmente, M. Cou­
sin não diz em parte alguma qual o signal
para se reconhecer a verdade philosophica 1 Algumas notas de que acompanho aqui
entre as opiniões mixtas de verdadeiro e a exposição methodica do systema de M.
de falso. Cousin, não são lo d a sa s objecções que se
«Logo, tres consequências se seguem lhe podem fazer; mas são fundamentaes. Se­
d’aqui: a primeira, é que M. Cousin não rá conveniente no entanto lêr a exposição
demonstrou a verdade do principio funda­ do systema sem interrupção e não se occu-
mental do ecclectismo. Submettido á ana- par d'estas notas senão n'uma segunda lei­
lyse, esto principio parece verdadeiro so­ tura.
mente n’este sentido: que o homem não 2 Definindo assim a substancia, M. Cou­
adopta erro algum que não, tenha alguma sin deu a esta palavra um sentido differen­
affinidade com a verdade. É falso n’oulros te do que lhe dá ordinaiiamente; podia-o
sentidos. A segunda consequência, é que fazer. Mas no decurso da obra serve-se d'el-
M. Cousin não pôde applicar seu prinGipio la no sentido ordinario; não o devia fazer.
do ecclectismo; porque confessa que uma Esta duplicidade de sentido para a mesma
parte da historia da philosophia, e talvez palavra gera um dos seus erros fundamen­
que, algumas vezes, mesmo esta, a estudou taes, q pantheismo.
n ’um espirito um pouco systematico: seu 3 Esta doutrina não é outra cousa mais
bloqueio estava feito. A terceira consequên­ que o pantheismo de Spinosa. Demais, é
cia, é que M. Cousin nào quiz applicar seu para notar que o principio logico da dou­
principio do ecclectismo. Está isto demons­ trina de Spinosa foi também uma definição'
trado pela analyse do methodo recommen- da substancia, que M. Cousin não fez mais
dado por M. Cousin, pela indicação da mar­ que repetir.
'440 ECC
lera modos necessarios, segundo o axioma. «4.- Definição.— O phenomeno é o nuo
Logo, Deus tem modos necessarios. 1 suppoc alguma cousa além de si, rclativa-
«3.* Definição.— Os modos do Deus são mente á existência no qué c pelo que é i
ideias. «A causa é o que faz com que o pheno­
«Ora, l.° sendo infinito c uno, Deus tem meno exista.
necessariamente a ideia d*unidadc c d’infi- «Escolio.—O que faz com que o pheno­
nito. 2.° Deus não tem csta ideia sem sa­ meno exista é a mesma causa que o phe­
ber; mas sabe necessariamente seu modo nomeno suppòe além de si, relativamente
como se sabe a si mesmo. Sabendo e ao a existência. Estas duas proposições são
mesmo tempo sendo sabido, Deus é dous. synonymas.
A dualidade é variedade. O diverso é fini­ «Phenomeno c eíTeito são lambem dous
to. A ideia de variedade c de finito é a se­ termos synonymos.
gunda ideia deJDeus. 3.° Estas duas ideias «Att/owa.— Todo o phenomeno suppõe
não existem em Deus sem laço nem união; além de si a substancia.
m as uma intima relação as une necessa­ «Corollario.—A substancia é causa.
riamente, procedendo d’uma c d’outra, e «Syllogismo.—Os objectos, cujo todo é o
. coexistindo em ambas. A ideia d’csta rela­ mundo, e aquellcs cujo todo é a humani­
ção da unidade com a variedade c do infi­ dade, são phenomenos, segundo a defini­
nito com o finito é a terceira ideia de Deus. ção: porque cada um d'cllcs suppòe algu­
«E estas tres ideias são os modos neces­ ma cousa além de si, relativamente á exis­
sarios do sér necessario, absoluto, infinito, tência. Ora, os phcnomeuos teem relação
que é o sér cm si e per si, ou uma sub­ com a substancia e com a causa que é
stancia. Para designar estas ideias aos íjue Deus, segundo o axioma e o que precede.
escutam, é-se obrigado a nomeal-as uma Logo, o mundo c a humanidade são os phe­
depois da outra, successivamente; mas, na nomenos de Deus.
realidade, não ba successão entre cilas;
existem simultaneamente; c ao mesmo tem­
po, Deus é a unidade, variedade, e relação da relação do mundo com Deus estão no es­
da unidade com a variedade; é ao mesmo pirito humano. Logo o espirito humano é
tempo infinito, finito e relação do infinito Deus, o mundo c a relação do mundo com
com o finito; unidade que se desenvolve em Deus. Mas esta ultima proposição não está
Iriplicidade, e tripli cidade que se resolve em de modo algum incluída nas premissas; a
unidade; unidade de triplicidade que c só conclusão legitima c sómente que as ideias
real, mas que perecería completamente[ sem de Deus, do mundo e da relação de Deus
uma só d'estas tres ideias. Porque estas tres com o mundo estão no espirito humano.
ideias são os modos de Deus. necessários %.°—Devs, ao mesmo tempo infinito, finito e
como elle, tendo todos o mesmo valor, e relação do finito com o infinito, é um ajun­
constituindo juntamente uma unidade in- tamento de palavras com as quaes as ideias
•decomposta. Tal é Deus, e este Deus não repugnam ' conciliar-se. Por outro lado, o
é outro senão o Deus de Platão, o Deus da Deus, ao mesmo tempo infinito, finito e re­
orthodoxia christã, o Deus que préga o ca- lação do finito com o infinito não pôde ser
thecismo aos mais pobres d’espirito, e aos mais que o universo, do qual não se distin­
mais pequenos dos m eninos.2 gue. Um Deus que não e distincto do uni­
verso simila-sc muito á negação de Deus,
1 ilf. Cousin cahe ainda relativamente á como um espirito que não é distincto dos
palavra necessario, na mesma falta que oigãos se simila muito á negação do espi­
commetteu a respeito da palavra substan­ rito. O pantheismo de M. Cousin é pelo me­
cia. Esta segunda falta produz o seu se­ nos trtnâo do athcismo. 3.®—Posto que se
gundo erro fundamental, o fatalismo uni­ possam fazer vêr muitas comas cm Platão e
versal. sobretudo n'um mysterio, è todavia pennit-
2 Sobre isto tudo, eis-aqui tres obser­ tido duvidar que a Trindade, segundo M.
vações: 4 .°—Ha aqui um sophisma pouco Comin, possa nunca ser mostrada nem na
contestável. M. Cousin diz: As ideias são pretendida trindade platônica, nem na trin­
os modos de Deus, concedo. Ora, as ideias dade catholica.
d'infinito, de finito, e de relação do finito i E sta definição de phenomeno, por M.
com o infinito estão em Deus, concedo. Lo­ Comin, dá logar ‘á mesma obsewação que- a
go D eus-é infinito, finito, e relação do fi­ definição da substancia, assim como o uso
n ito com o infinito, nego. É como se eu dis­ que em seguida fa z d'esta palavra. Estas
sesse: as ideias são os modos do espirito hu­ duas faltas fazem uma só e geram o mes­
mano: ora, as ideias de Deus, do mundo, e mo èrro, o pantheismo.
ECC 441
«5.°—A apparição dos phcnomcnos de «Tal é o mundo, manifestação necessa­
Deus c a creação. ria de Deus, do qual representa necessa­
tOs phcnomenos dc Deus tecm o mesmo riamente os modos ou ideias. 1
•caracter que cite. «7.°— Não ha senão esta humanidade,
iÉ porque a creação 6 necessaria, abso­ segunda parte da creação.
luta c infinita.1 «E porque— 1.° a vida da humanidade
«6.°— A creação, manifestação de Deus, corre necessariamente, segundo leis irnmu-
manifesta-o necessariamente tal como elle taveis c geraes; é a ideia d’unidade e de
•é com suas ideias ou modos. infinito: 2.° as leis desenvolvem-sc necessa­
«É porque—1.° o mundo em geral, pri­ riamente em factos variaveis c particula­
meira parte da creação, c necessariamente res; e a ideia de variedade e de finito: 3.°
unico. A idcia d’umco e d’infinito, que 6 os factos teem necessariamente relação com
um modo necessario de Deus, é tambem as leis; é a ideia da relação da unidade com
um modo necessario do mundo. 2.° O mun­ a variedade e do infinito com o finito.
do ó necessariamente diverso. A idcia de «Assim a humanidade atravessou duas
variedade e dMnfinito, que é um modo ne­ civilisações; cila v<* a terceira: l.° a pri­
cessario de Deus, é tambem um modo ne­ meira civilisação foi a do immovel Orien­
cessario do mundo. 3.° O mundo é neces­ te; ideia d’unidade e dMnfinito: 2.° a se­
sariamente alliança d’unidadc c de varie­ gunda foi a da movei Grécia; ideia da va*
dade (uni-verso.) riedade e do finito: 3.° a terceira é a civi-
«A ideia da relação da variedade com a lisação moderna; ideia da relação do infi­
unidade c do finito com o infinito, que é nito" com o finito.—Por uma consequência
um modo necessario de Deus, e tambem necessaria, a primeira d’estas civilisações
um modo necessario do mundo. escoou-se nos logares que representam a
«Esta unidade, esta variedade e esta re­ ideia d’unico e d’infinito: a segunda nos ru-
lação da unidade com a variedade, é a vida presenla a ideia de variedade c dc finito;
do mundo, sua duração, harmonia e belle- a terceira tem sua séde principal na terra
za: ó tambem o que faz o caracter benefico de França, mixto d’unidade c dc variedade,
de suas leis. que representa a idçia da relação do infi­
«Da mesma sorte, na astronomia, na phy­ nito com o finito.
sica e na mechanica, ha necessariamente: «Assim, no seio da humanidade, os po­
d.° lei d’altracção; é a ideia d’unidade c vos— 1.° umas vezes vivem sob uma ordem
d’infinito: 2.° lei d’expansão; é a ideia da despótica; unidade e inGnito: 2.° outras ve­
variedade e de finito: 3.° relação d’attrac- zes são levados pelo sopro d'uma liberda­
ção com a expansão; é a ideia da relação de anarchica; variedade c finito: 3.° final­
•âa unidade com a variedade, do finito com mente, param n’um estado que concilia a
o infinito. liberdade c a ordem; relação da unidade e
«Na chimica e na physiologia vegetal e do infinito com a variedade c o finito, etc. 2
animal, ha necessariamente: l.° Lei de co­ «Assim, no seio dos povos, os que se cha­
hesão e assimilação; é a ideia d’unidadc c mam grandes honiens— 1* são os represen­
d’infinito: 2.°'lei'*d’incohesão e de dessimi- tantes do povo; unidade e infinito: 2.° elles
lação; é a ideia de variedade e de finito: mesmos são individuos; variedade e finito:
3.° relação da cohesão e da assimilação 3.° são ao mesmo tempo representantes do
com seus contrarios; é a ideia da unidade
com a variedade e do finito com o infinito. 1 Isto não é mais que um jogo d'imagi­
«Finalmente, na simples geographia, ha nação; ideias fluctuantes com palavras dou­
necessariamente: l.° grandes mares, gran­ radas. Sem dúvida os grandes factos natu-
des rios, e planicies inconcussas; unidade raes, citados por M. Cousin, são verdadei­
e infinito: 2.° pequenos mares, regatos, col­ ros; mas se se perguntasse a um physico o
linas e valles; variedade e finito: 3.° a re­ ue pensa de sua razão da lei da attracção
lação de todas estas cousas; relação da uni­ os corpos, ou a um chimico o que pensa
dade com a variedade, e do finito com o de sua razão da lei de cohesão, que respon­
infinito. deríam estes sábios?
2 Varios factos humanitários e sociaes
1 As ideias de creação c de infinito são aqui citados não são verdadeiros: outros só
eontradictonat. Uma creatura infinita não com restricçães podeião ser tomados como
seria uma ci'eatura; um infinito ci'cado não taes. Mas quando mesmo todos o fossem com­
seria um infinito. O pantíieismo supprime pletamente, a razão que dá M. Cousin não
de facto a creação. M. Cousin suppritniu a poderá ser tomada como imaginai'ia senão
■causa, deixando a palavra. nos casos precedentes.
442 ECC
povo c individuos; relação da unidade com simples e uno; unidade c infinito: 2.» o m a-
a variedade.— O grande homem é ao mes­ terialismo, que não vê senão a matéria
mo tempo povo e clle; é a identidade da multipla c plural; variedade c finito: 3.* a
generalidade e da individualidade n’uma conciliação do materialismo c do idealis­
medida tal que a generalidade não suíToca mo; relação do finito e do infinito.
a individualidade, c que ao mesmo tempo «Assim, finalrnente, as leis da razão, seus
esta não destroe aquclla, dando-lhe uma elementos ou idéias são necessariamente:
forca nova. Não é sómente um individuo, l.° o uno e o infinito; 2.* o varido c o fi­
mas tem relação com uma ideia geral que nito; 3.° a relação do uno com o variado,
determina c realisa... O grande homem c a do infinito com o finito, e todos os conhe­
harmonia da particularidade c da genera­ cimentos ou scicncias humanas não são se­
lidade; não o é senão por este preço, por não o desenvolvimento necessário d’estas
esta dupla condição de representar o espi­ idéias, d’cstes elementos e d’cslas leis. 1
rito geral de seu" povo, e de o representar Porque a razão que se chama humana ou
soh a fórma da realidade, de tal sorte que do homem não pódc ser distincta da razão
a generalidade não abate a particularida­ que se chama divina ou de Deus. Ella lhe
de, e que esta não dissolve aquclla; que a é necessariamente idêntica, e não é huma­
particularidade c a generalidade, o infinito na senão por isso só que faz sua apparição
e o finito, fundam-se iVe^ta verdadeira gran­ no homem, phenomeno necessário de Deus.
deza humana. • «8.° A apparição de Deus no homem
«Assim, todos os individuos grandes ou por meio de sua razão ou verbo, é o obje­
pequenos, leem necessariamente tres facul­ cto do dogma de Deus feito homem, ou da
dades: 1.* a razão, cujo caracter ó a uni­ razão encarnada, ou do Verbo feito carne.
versalidade e o absoluto; unidade c infi­ Esta encarnação c necessaria, perpetua,
nito: 2.a a sensibilidade, cujo caracter é o universal ou catholica; leve sempre logar
seu opposto; variedade c infinito: 3.a a li­ no passado, em cada homem, c em cada
berdade, cujo officio ó conciliar a razão e instante da vida de cada homem; da mes­
a sensibilidade; relação do finito com o in- ma sorte teve sempre logar no presente, e
in ito.1 tel-o-ha também sempre no futuro. Todos
«Assim, na sensibilidade, ha necessaria­ os homens são irmãos do Christo, isto é,
mente: L° o egoísmo, que é potência de que o que o cathecismo ensina d’elle só é
concentração; unidade e infinito: 2.° a sym­ rigorosamente verdadeiro de cada um d’el­
pathia, que é potência d’expansão; varie­ les.
dade e finito: 3.° a alliança do egoismo e «Sem a apparição do Verbo divino na
da sympathia; relação da unidade com a carne humana, ou sem a encarnação da di­
variedade. vindade na humanidade, esta seria vil, pe­
«Assim, na razão ha necessariamente: quena, degradação e nada. Mas o Verbo
i.° a espontaneidade, que vè o objecto in­ encarnando-se n’ella a ennobrecc, engram
teiro d’uma vista total ou synthetica; uni­ dece, eleva e resgata. Este resgate é o obje­
dade e infinito: 2.° a reflexão, que o vê par- cto do dogma da redempção, idêntica á en­
ticularmentc em miudeza ou anal.yticamen- carnação, como ella necessaria, perpetua,
te; variedade e finito: 3.° a alliança da es- universal ou catholica.
ontaneidade e da reflexão; relação do in- « £ este Verbo redemptor e encarnado,
nilo com o finito.—A espontaneidade é re­ Deus e homem ao mesmo tempo, substan­
velação primitiva, fé, religião, poesia e in­ cia divina n’uma fórma humana, sêr infi­
spiração; a reflexão é exame da revelação, nito, eterno, immenso, n’unt phenomeno fi­
sciencia, philosophia, prosa e meditação; a nito, passageiro e local, é também o m e-
terceira é alliança da inspiração e da medi­
tação, da revelação c do exame, da scien­
cia e da fé, da religião e da philosophia, 1 Se nos demoramos no verdadeiro, quer
da poesia e da prosa. isso dizer sómente que os objectos percebi­
«Assim, entre os systemas philosophicos dos por nós são finitos; que cada um d'elles
nascidos da razão, ha necessariamente: l.° nos suggere a ideia d'alguma cousa d'infi­
o idealismo, que não vê senão o espirito nito, e que concebemos os objectos finitos
conio existindo no infinito e pelo infinito;
i mas que distancm ha d'estas proposições ás
E sta theoria das faculdades do espi­
rito , extremamente vaga e geral, não tem que fazem as sciendas humanas!... e como
na verdade valor scientifico. Nada se ado­ ellas pouco ou nada as auxiliam!... No en­
p ta aos factos senão alterando-se e alteran­ tanto são o principal fundamento do syste­
do-os a elles proprios. m a de AL Cousin.
EGC 443

diador necessario entre o homem c Deus. questão ó facil terminar-se pela inspecção
Ninguem pódc ir até Deus senão por meio de suas obras.
do Christo: quer dizer, que cada homem «Consultemos os seus Fragmentos (Pref.
se resgata a Deus pela razão, que é o Ver­ pag. x l , !.• ed.); eis-aqui as suas palavras,
bo. Mas o Verbo era antes do nascimento para as quaes peço a maior attenção: «O
_d’Abrahão, e continua 'a ser com cada ho­ Deus da consciência não é um Deus ab­
mem até ao fim dos séculos, porque o Ver­ stracto, um rei solitário, desterrado além
bo é o proprio homem, e este c o Verbo da creação, sobre o throno deserto d’uma
são Deus. eternidade silenciosa c d’uma existência
«Tal é o systema de M. Cousin... absoluta que se parece com o proprio nada
«A quantas objccções este systema se ex­ da existência: é um Deus ao mesmo tem­
põe! Sao tacs que não pôde ser sustentado po verdadeiro e real, ás vezes substancia
cm nenhuma de suas partes... e causa, seqiprc substancia e causa, não
«Um grande mal intellcctual, feito por M. sendo substancia senão tanto quanto é cau­
Cousin, foi, sem contradicção, fortificar na sa, e causa senão tanto quanto é substan­
juventude que o escutava ou o lia, a ten­ cia, isto é, causa absoluta, um c muitos,
dência hoje commum de contcntar-sc de eternidade e tempo, espaço c numero, es­
grandes palavras, que se não comprchen- sência e vida, indivisibilidade e totalida­
dem, a não fallar senão por meio de for­ de, principio, fim c meio; na summidadc
mulas ou de princípios absolutos, e a pre­ do sêr, c no seu mais humilde grau; infi­
ferir em tudo esses bosquejos vagos e gc- nito c finito juntamente; triple emtim, isto
raes, que não são desprovidos de certa bel- é, alternalivamente Deus, natureza, c hu­
leza, mas bellcza estéril, e que escondem manidade. Com etfeito, se Deus não é tudo,
muitas vezes uma ignorância real sob uma não é nada; se é absolutamente indivisível
falsa apparencia de sciencia, farrapos de em si, é inaccessivel, c por consequência
miséria sob os ouropéis dourados do char­ incomprehensi vel, c sua incomprehensibi-
latão... M. Cousin, que era bcllamcntc do­ lidade é para nós sua destruição.»
tado de tudo o que necessitava para luctar «Pesemos todas as palavras d’estc pe­
vantajosamente contra este despotismo, cur­ riodo, á exccpção das primeiras, que são
vou à fronte; sacrificou-se á moda, e sa- quasi enygmaticas e sobre tudo mui sus­
crificando-sc na sua alta posição, augmen- peitas. Os membros das phrases seguintes,
tou a reputação do falso Deus, e tornou seu que são perfeitamente claros, nos dispen­
idolo mais diflicil d’abater. Que o verda­ sam d’esse exame. Deus é tempo, esparo c
deiro Deus lhe perdoe! numero. Que prova apresenta M. Cousin
«Os resultados de seu ensino foram tam­ para o decidir com tanta affouteza? Ne­
bém funestos á moral em alguns pontos. nhuma. Mas como o tempo, o espaço, e o
Sua doutrina do pantheismo fatalista e opti- numero são limitados c não podem entrar
mista tende sómente a destruir a virtude n’uma substancia simples, começa a deixar
no seu principio, que é a crença nos de­ perceber n’isto o pantheismo que tem no
veres de luctar contra a desgraça c o mal. espirito... Deus mostra-se na summidadc do
Nada menos do que isto. É nesta lucta, no­ sêr, e no seu mais humilde grau. Póde por
bremente sustentada, que consiste a belle- ventura haver diversos graus do sér, uns
za do caracter; muitas pessoas julgaram superiores aos outros na perfeição sobera­
aprender de M. Cousin a consideral-a como na? Por outra, qual é o mais humilde grau
uma chimcra c uhia nccedade; obrani con­ do sér? É evidentemente aquelle que oc­
sequentemente. cupa os corpos rudes c materiaos disper­
«Finalmente, sob o ponto de vista de re­ sos no universo. Estes corpos fazem parte
ligioso, só conseguiu fazer atheus, tornar-se do sêr divino. O mesmo erro... Deus é ju n ­
mau christão, c parodiar o catholicismo. tamente finita e infinito. Eis seguramente
Muitos dos que foram seus discipulos tor­ a mais monstruosa e revoltante alliança de
naram-se san-simonianos. palavras de que ha talvez exemplo; porque
«Monsenhor Clausel de Montais mostrou é evidente que um sêr finito sob certa re­
n’uma serie de cartas, todos os perigos da lação não ó infinito em sua essencia. Mas
philosophia de M. Cousin. Citaremos um quando se pretende que Deus está con­
fragmento. strangido na materia, c que ella faz parte
«E primeiro que tudo, diz o prelado, o de sua essencia, a união d’estas duas pala­
author grita contra os que taxaram sua vras parece á primeira vista um pouco me­
doutrina de pantheismo. Assevera, com o nos repugnante. É pois a este estado que
tom mais firme e decidido, que pelo con­ o author reduz a divindade. Seguem-se ex­
trario, o combateu sempre. Esta primeira pressões tão atrevidas, que não se acredita­
riam, se a clareza c precisão dos termos das da sua substancia^ c como esta su b ­
não tornassem impossível um engano: Fi­ stancia adoravel é simples, indivisivcl, im -
nalmente Deus c triplice, isto c, alternativa- mutavel, inalterável, incapaz, num a pala­
mente Deus, natureza e humanidade. A dou­ vra, de se transformar, é mister necessa­
trina do Deus-universo brota d’estas pala­ riamente concluir que todas as cousas pro­
vras d'uma maneira tão viva e tão pene­ duzidas por ellc participam da sua su b ­
trante, que não exigiría um commentario, stancia, são a sua propria substancia, de
mesmo para um infante. O primeiro sêr é sorte que tudo é Deus no universo. Imagi­
alternativamente Deus, natureza e huma­ ne-se quantas subtilezas se quizer, que nao
nidade. Como explicar melhor que todas se escapará nunca a esta consequência.
as cousas existeutes não fazem senão um «Finaliscmos este artigo por um indicio
todo unico? Todavia o author sabe achar mui surprendente. Ninguém ignora que
novas expressões para traduzir o mesmo Spinosa deu o seu nome ao pantheismo
pensamento. Se Deus não é tudo, não é na­ moderno. Ora o chefe da escola philoso­
da. É exactamentc a divisa e a palavra de, phica actual mostra por este judeu hollan-
ordem dos panthcistas. Sim, se Deus não dez uma predilecção ou antes um cnttyi-
é réptil, tigre, panthera, não é nada. De­ siasmo que manifesta uma viva sympathia.
testável blasphemia, que deve no entanto Fórma a respeito d’este homem um juizo
proferir aquellc que sustenta uma tal opi­ que não póde deixar d’excitar uma extre­
nião. A incomprehensibilidade de Deus é ma surpreza. Não lhe acha, me parece,
para nós a sua destruirão. Ora c prccisa- outro defeito senão o ter sido muito reli­
mente o contrario, segundo a opinião de gioso: Longe de ser um atheu, diz ellc, Sqri-
todo o homem capaz da mais leve reflexão. nnsa possue de tal sorte o sentimento dc
«Que espirito com efleito não é tocado Deus, que perde o sentimento do homem;
d’esta verdade, quê vistas finitas como as c um excesso dc que ninguem o julgaria
nossas são muito curtas para penetrar to­ capaz. O nos^o escriptor acrescenta: Seu
das as profundezas do infinito? D’onde se livro é no fundo um hymno mystico, um
segue que se Deus fosse comprehcndido impulso c um gemido da alma para com
por nós, não seria infinito, não seria Deus. elle, que só póde legilmiamente dizer: E u
Mas não, o author dos Fragmentos, como sou o que sou. Sim, sem dúvida, Spinosa
se vê em todos os seus livros, não quer canta aquelle que é, mas que é á maneira
que haja mysterios para a razão humana. dos pantheistas: quando se tracta de Deus,
SuStenta que póde abraçar todo o infinito. o judeu d’Ainsterdam não conhece outro.
Ail que resulta pois? É que ellc equipara Parece evidente que aquelle que se deixa
a nossa intelligencia á sabedoria increada, acariciar quasi arrebatadamente por este
que faz a sua apotheose, e que sem o pen­ cantico mystico, não póde ser senão um
sar, sem dúvida, erige o execrável altar da philosopho affeiçoado á mesma escóla. Fi-
deusa Razão. nalmcnte, cis-aqui as palavras mais ex­
«Eis pois o sentido bem claro em todas traordinarias, creio eu, que tenho lido: se­
as suas minuciosidades d'csto longo pe­ guramente ha poucas pessoas que não pos-
riodo. Affirmo com confiança que nunca sam.dizer outro tanto. Fallando de Spinosa,
se enunciou o pantheismo d’uma maneira exprime-se n’estes termos: O author com o
mais explicita, mais clara, mais cathego- qual mais se assimila este pretendido atheu,
rica. Não póde escapar a author algum, é o desconhecido author da Imitação dc Je­
que a nossa philosophia era insaciável de sus Christo (Fragmentos, tom.2, pag. 164,
repetições e de figuras para pôr mais vi­ 165.)
gorosamente em relevo esta deplorável dou­ «Quê! esse homem tão venerável, tao
trina. Accrescentemos, mas inutilmente, piedoso, e ao mesmo tempo d’uma alma c
alguma prova mais. d’um espirito tão elevados, a respeito do
«Deus, segundo o mesmo escriptor, tira qual Fonlenblle proferiu uma phrase co­
o mundo não do nada que não existe, mas nhecida de todo- o mundo, que Leibnitz ad­
d'elle, que é a existência absoluta. (Introd. mirava, era pois como uma imagem e um
á Hist. da Philosophia, 5.a liç., pag. 27.) Pois retrato anticipado do judeu apostata! Po-
que Deus não tira o mundo do nada, por de-sc levar mais longe a gloria d’essc im­
isso que não existe, tira-o por consequência pio, execrado hà dous séculos por todos os
d’uma cousa que existe, isto é, d’uma sub­ povos civilisados? E como é possível dei­
stancia effectiva e real. Ora, no instante xar de crêr que aquelle que o louva com
que precedeu a creação, não havia outra uma effusao tão viva c com tão singulares
substancia senão a substancia divina. Se­ transportes, approva e mesmo partilha seus
gue-se que Deus tirou todas as cousas crea- sentimentos?
ECC 445
«Dir-sc-ha talvez que ellc reprovou mui­ contrários. Mas não é evidente que entre
tas vezes esso systema do Dcus-universo. duas doutrinas, das quaes uma ataca todas
Mas comludo dizer o pró e o contra não é as paixões, c a outra as lisongeia, entre o
retractar-se, sobre tudo se persiste em di- theismo, por exemplo, que colloca sobro
zcl-os sobre o mesmo objecto... Retractou- nossas cabeças um Senhor, um juiz formi­
se, mas como? quem o acreditará? Algu­ dável, e o panthcismo, que mostra um Deus
mas vezes mesmo pretendendo desappro- obrigado na materia, e por isso mesmo im­
var a sua profissão de crença panthcistica, potente c como que estúpido, não é evi­
renova-a c confirma-a. Eis um exemplo dente, repito, que ifesta alternativa, um
proprio a excitar vivamente a curiosidade. grande numero de homens, ou entregues
N’um dos prefácios que estão á frente da as illusões da juventude, ou pouco instrui-
3.a edição, p. 19, o philosopho que nos oc­ dos ou pouco tocados do que tem relação
cupa repelle ao principio com uma extre­ com Deus e com a salvação da alma, dei­
ma vivacidade a accusação do panthcismo. xassem o systema que os contraria, c abra­
Lança de passagem estas* palavras, que tris­ çassem com ardor aquclle que alarga a
temente nos surprenderam, a saber: que o rédea ás suas inclinações c lhes authorisa
seu Deus não é o Deus morlo da escolas- todos os excessos, todos os arrebatamen-
tica (como se a escola tivesse jamais reco­ tos, todos os caprichos?
nhecido outro Deus que não fosse o Deus «É pois incontestável que o pantheismo
vivo dos christãos); e apoz uma explicação domina todos essas doutrinas que querem
cheia de calor em fórma d’apo!ogia, faz chamar philosophicas: e o que accrescenta
uma horrivel reincidência, isto é, refere o muito á preponderância dada a esta dou­
grande periodo citado mais acima, apoia- trina pelo author, é uma circumstanda, que
se n’csla passagem, e confessa-a authcnti- é mui essencial notar. Com effeito, se elle
camento dc novo. Na verdade, por um se- houvesse abjurado tão monstruosa opinião,
mi-remorso, suspende-se ante estas expres­ parece que se admiraria de ter podido abra-
sões fataes: triplo emfim, isto é, alternati- çal-a e defendel-a, que gemeria profunda­
vamente Deus, natureza, e humanidade; mente á vista d’essas linhas que tivesse a
porém cita tudo o que precede. Ora quando desgraça d’escrever n’essc intuito, que que­
se diz que Deus é tempo, espaço e numero, rería apagal-as com suas lagrimas, c que
que é infinito e finito, etc., exprime-se su- sc apressaria cm fazer desapparccer o me­
perabundantemente a doutrina do pantheis- nor vestigio d’ellas. Mas acontece precisa­
mo. E’ assim que elle rccahe no abysmo ao mente o contrario: fez reimprimir o gran­
qual pretende ter sempre escapado, c que de periodo já mencionado em todas as edi­
se torna a deixar arrastar pela inclinação ções das suas obras; acha-se pelo menos
de systema, c pelo imperioso ascendente na terceira edição, que appareceu doze an­
dc seu secreto e profundo pensamento. nos depois da primeira, e que tenho á vis­
«É esta, devemos convir, uma estranha ta. Não tocou, não mudou uma só palavra,
maneira dc se corrigir. As outras palino­ uma só syllaba. Como conciliar o seu ar­
dias do author, que quasi não merecem es­ rependimento com esse cuidado tão perse­
te nome, são, é verdade, d'um outro cara­ verante em reavivar aos olhos do público
cter; mas são vagas, indirectas, mal apoia­ um texto que deveria a todo o custo sub-
das, e de modo algum concludentes. D’ahi trahir-llfo, e fazer-llfo, se possível fosse,
que sc segue? É que se estas modificações esquecer para sempre?
ennervam um pouco a força do grande* pe­ «Observamos estas cousas, aproxima-
riodo, por exemplo o que citei mais acima, mol-as, c tiramos d’ellas tristes inducções;
c onde o pantheismo é professado com tan­ não é visivel, com efleito, que a impressão
ta precisão, solemnidade e esplendor, por produzida por taes livros é medida sobre
outro lado este periodo, com a lucidez ex­ todas estas circumstandas? E quanto é dif­
trema e o vigor de suas expressões, des- fidi que um joven, sobre tudo, que as leu
troe todo o valor d’essas retractações amor­ dc boa fé, e que os toma para regra de
tecidas e incompletas, nas quaes temos des­ seus juizos e dc suas crenças, não saia
de logo o direito dc só vér palliativos, pa­ d’csta leitura com o pantheismo no cora­
linodias concertadas e pouco dignas de con­ ção, ou ao menos com uma predilecção
fiança. Esta observação é, me parece, d’um manifesta por este detestável systema?
m ui grande péso, e ainda mesmo que os «Esta consequência é afflictiva, mas é-o
dous termos oppostos d’cstas contradicções ainda mais ciuando se considera que o pan­
fossem d’uma igual energia, que poderia theismo é, n um sentido, mais pernicioso e
resultar? Que o author deixaria a cada mais funesto á sociedade que o mesmo
um a escolha dc dous partidos diversos ou atheismo. O atheu limita-se a considerar
446 ECC
o crime como indiíTerente; sua cegueira oxame tão doloroso c que tanto insulta a
nào vai mais longe; mas a opinião do pan- nossa fé. Sc os devemos acreditar, a re­
theista, que julga ser uma porção da eter­ velação verdadeira, segundo clles, é a ra­
na essencia, torna respeitáveis a seus ollios zão, é o espectáculo da natureza c a im ­
todos os seus actos; ella consagra seus er­ pressão que faz em nossas almas. (Ensaio
ros, sanctifica todos os seus exames, divi- sobre a Historia da Philosophia cm Franca
nisa seus mais odiosos c mais negros at- no século dezenove, por M..., professsor áe
tentados. Quem não estremecería aqui, philosophia.) A razão, dizem clles, é lilte-
quem não veria um medonho perigo n’es­ ralmente uma revelação; c o mediador ne­
tas impressões recebidas por tantos leito­ cessario entre Deus c o homem, é esse Ver­
res? E como calcular os males que aguar­ bo feito carne, que serve d'interpretc a Deus,
dam uma sociedade cm cujo seio as dou­ c de prcccptor ao homem, homem alternati­
trinas de que acabo de fallar fossem mes­ vamente e Deus ao mesmo tempo... o Deus
mo algum disfarce, diíTundidas por mil ca- do qene.ro humano. Ora pódc haver dous
naes e ao abrigo d’um titulo especioso c mediadores divinos (sua duplicidade seria
honroso? inútil, c d\alguma sorte serviríam dobsta-
«Se as verdades mais elevadas, mais re­ culo um ao outro); não póde haver dous
verenciadas foram tão perigosas c audacio­ Verbos feitos carne; o imperio do genero
samente atacadas pelos modernos philoso­ humano não póde ser dividido entre dous
phos, tenho, necessidade de dizer que não deuses differentes. Segue-se que a razão é
pouparam também outras verdades oriun­ tudo, que «supplanta Jesus Christo, c que o
das d’ellas? tenho necessidade de mostrar culto (Teste Deus salvador não é mais que
de que maneira tractam o Christianismo? uma allegoria, uma ficção, um mytho. E s­
É facií julgar pelo que já se tem visto. O ta deificação da razão, e o aniquilamento
artigo mais augusto da nossa fé, a Trin­ do Christianismo, que é a sua consequên­
dade, na unidade da qual adoramos o Pa­ cia, e o fundo de todo o seu systema. Em
dre, o Filho, c o Espirito Sancto, que é todos os logares dos seus livros acha-se es­
para clles? Já vol-o disse; nào véem n’este ta intenção bem ou mal disfarçada... Es-
symbolo mais que o Deus triplo, que é al- forçam-se em occultar, pelo menos na ame-
ternalivamente Deus, natureza e humani­ tade, estas monstruosas imaginações... Sim,
dade. Depois d’isto, em que se torna a en­ iTestc intuito inventaram um estratagema,
carnação da segunda pessoa, a redempção mas um estratagema grosseiro; eil-o:
e toda a nossa religião? Mas não é só isto. «Sob o nome de mysticismo, termo ajus­
«Que discipulo do Evangelho nào geme­ tado, pelo qual designam a crença no so­
ría profundamente ao lêr as palavras se­ brenatural e nos mysterios, e que esten­
guintes: A philosophia é paciente; feliz em dem ao culto protestante, porque teem a
ver as massas entre os bi'aç.os do Christia­ fraqueza de crêr em Jesus Christo; sob o
nismo, contenta-se estendendo-lhe docemen­ véo d’esta dominação insultam a religião
te a mão, e ajudando-o a elevar-se mais al­ do Christo, escarneccm-na, aviltam-na, ca-
to ainda (Introd. d Hist. da Philosophia, 2." lumniam-na, religam-na no povo c nasíwos-
liç., pag. 38.) Que compaixão insultante e sas; fazem d’ella o termo opposto á razão
divisória! Vós: o védes: cllc quer lançar e á reflexão: decidem que ella marcou o
uma vista d?interesse sobre a religião chris- seu tempo (d’onde seria forçoso concluir
tã; adapta-se, faz-se mais- pequeno para des­ que Jesus Christo, que lhe prometteu unia
cer até cila; digna-se prestar o seu apoio duração sem fim, enganou o mundo); fi-
ao Christianismo, tão digno de piedade, que nalmênte, quando querem fazer-lhe mais
produziu tão poiicas virtudes resplenden­ honra, declaram com altivez que ella é o
tes, que foi defendido por tão poucos ho­ antecursor, c figura-vacuo, o involucro de
mens d’um genio eminente, que fez tão sua propria philosophia, a qual bem de­
poucas conquistas no universo. Estcndc- pressa triumphante, abrirá uma era afor­
se-lhe a mão docemente, com bondade, com tunada de liberdade sem peias, de felicida­
uma tocante condescendência; e para qué? de sem mixto, e formará a unica religião
para o elevar mais acima. E até onde o quer verdadeira. Abstenho-me dc qualificar esta
pois fazer subir? presume-se: até á altura presumpção e dfclirio.
da sua philosophia. Ai! vós a conheceis já. «Como encaram elles o que tem relaçaó
Póde-se acaso zombar, com um despréso com a existência e immortaliddde da al­
tão incrível de toda a circumspecção, de ma? Antes de responder devo notar que
uma religião crida e venerada no mundo inventaram um methodo que se chamou
inteiro? psychologico. Esta vã e perniciosa novidade
«Façamos urn esforço para continuar um consiste em transportar o grande meio de

i
EGC 447
•conhecer o que Deus nos deu, do espirito parte do mundo, havería sein dúvida lou­
ao coração e do entendimento á consciên­ cura, c por consequência algum mal em
cia. Investiram por esta causa a ordem e destruil-o sem razão, cm mutilal-o por ca­
o destino das faculdades de que o Crcador pricho. No entanto, não seria crime nem
nos proviu. Deus vinga a sua obra quando injuria; seria uma offensa á natureza, e
ousam tocar n’clla; pediram luzes a este não a um sér moral.» Ensaio sobre a ílist.
methodo c nào obtiveram senão equívocos, da Phil. em França no século dezenove, t.
erros, e espessas nuvens. Um exemplo de­ 2, pag. 257.)
cisivo, ouso dizcl-o, e que tem relação com E’ assim que uma doutrina repellida com
a verdade de que se tracta n’estc momen­ horror pela religião, por- todos os séculos
to, isto é, com a espiritualidade da alma, e por iodos os povos, o ate pelo instincto
confirma esta observação. 0 celebre philo­ dos animaes; que uma doutrina que se­
sopho, cuja recente perda deploramos (Gouf- pulta na desolação familias sem numero,
froi), confessou abertamente que o dogma e nos torna n’estc momento o escandalo do
de que falíamos não achava nem prova universo, é consagrada, é sellada pelas ma­
nem apoio na actual sciencia philosophica. ximas dos que se lisongciam de ter entre
Não poderam, sem uma confiança incrível, nós a suprema direcção do pensamento, c
negar, como fizeram, a realidade d’esta sobre que repousam ós futuros destinos da
opinião concebida cm termos tão formaes França. Sim, despedaçam, ou antes cons­
como estes: È mister deixar dormir esta purcam o codigo da moral, destroem toda
questão (a da immatcrialidadc e immorta- a sanctidade de seus preceitos, corrompem
lidadc da alma); no estado presente da scien­ todos os princípios de felicidade que elle
cia, é até impossível encetal-a (Esboço de encerra, transformam-no n’uma fonte de
Phil. moral, Prcf. do trad., pag. cxxxvi). sangue e de lagrimas. Eis pois a que se
Hoje temos mais conhecimentos relativa­ rendeu toda essa philosophia. Ella não <
mente a esta questão, e revelações feitas mais que um acerbo de temeridades into
depois da rnorte do author, que acabo de leraveis, de princípios falsos, que formad
designar, nos deram a conhecer que esse uma oííensa sacrilega á essencia de Deu
methodo psychologico não havia podido re- e ás suas perfeições, que fazem esvaeccr c
primil-o, ou mesmo que o havia collocado dogma da immortalidade da alma. que ani­
no pendor d'um pyrrhonismo universal, cm quilam o Christianismo, que desterram do
cujo seio se extinguiu essa vida toda de inundo a virtude, c fazem pedaços a regra
meditação e estudo. dos costumes.
t Deverei fallar da moral? Em que a «Agora pergunto: o caracter d’cstes es-
tornam elles? Que base lhe dão? Ah! elles criptorcs, considerados como escriptorcs c
lhe tiram toda a força, toda a saneção. As­ como philosophos (porque longe de mim o
sim desarmada, que virtude póde cila fa­ tocar em suas qualidades privadas), me­
zer brotar? que vicios póde reprimir? que rece que se colloqucm cegamente cm suas
excessos está em estado de prevenir? Um mãos os mais preciosos thesouros da pa­
•horrível flagello desola a nossa França: é tria, sua felicidade c grandezas futuras, a
o suicídio. Que dique lhe oppoem, *que sorte d uma religião que por tanto tempo
preservativo para esse acto espantoso de foi o seu apoio, a sua gloria, o objecto do seu
dosespôro? Nenhum; facilitam-no,, promo­ respeito e amor? Qual é a sua maneira de
vem-no pelo contrario. Com o seu pau- philosophar? onde está a sua lógica? onde
theisnío, seu material ismo, ou, se o que­ está a connexão, a gravidade, a utilidade
rem, com o seu espiritualismo, que não de suas maximas? Que respeito teem elles
•traz apoz si obrigação alguma moral, met- para com as leis que sempre dirigiram a
tem o punhal na màb do desgraçado,.que razão? Sabem-no aquellcs que os teem lido
despedaça o seio, impellido antes por sua com discernimento. Em geral, julgam-se
fatal doutrina que por vãs angustias, para dispensados de provar o que avançam, e
as quaes poderia muitas vezes achar um muitas vezes apresentar no logar da de­
remedio facil. E querem a prova? Achal-a monstração uma torrente d’asserções deci­
hão n’estas revoltantes palavras do pro­ sivas, d’expressões inintelligiveis, de figu­
fessor philosopho, muitas vezes citado: «0 ras violentas para atordoar o leitor, logho-
•corpo depende da alma por certas relações machia, phraseologia vaga e pomposa, ro­
muito intimas; é-lhe necesssario como in­ deios sophisticos para mostrar, occultar,
strumento d’acçào, para ser tractado com reproduzir, e disfarçar proposições contra­
indiflerença. Nao porque tenha direitos aos rias ás opiniões geraes e verdadeiras. Apoz
cuidados que lhe são proprios; é apenas esta flexibilidade e astúcia, o que mais dis­
physico em si mesmo. Eueito da ordem, tingue suas obras é uma obscuridade mais
448 EON
ou menos profunda. Também não é raro judeu, por nome Elxai, se uniu aos ebio­
achar um homem de senso, que depois de nitas, e compôz certo livro que encerrava,
ter estudado seus livros com um verdadei­ dizia elle, algumas prophetias, c uma sa­
ro desejo do se instruir, confesse que essa bedoria inteiramente divina. Os clccsaitas
leitura havia fatigado horrivelmente seu affirmaram que havia descido do céo. El­
cerebro, e que só havia lucrado trevas e xai era reputado pelos sectários como uma.
um langor oppressivo. potência revelada, communicada pelos pro­
Desgraçadamente estas trevas nem sem­ phetas, porque o seu nome cm hebreu quer
pre são impenetráveis, e as paixões sabem dizer que é revelado: até reverenciavam os
lér perfeitamente através das nuvens. Não, da sua raça, a ponto de os adorarem, c de
essas doutrinas não merecem o nome de se supporem obrigados a morrer por elles.
philosophia. Em vez d’esclarecer o espirito, No imperio de Valente ainda se conserva­
só produzem dúvidas, perplexidades cruéis, ram duas irmãs da familia d’Elxai, ou da
e uma horrível confusão d’ideias. Posso raça abençoada, como elles a appellidavam
empregar a esto respeito as palavras de S. chamadas Martha, e Marthena; eram con­
Paulo: Videte ne quis vos decipiat per phi­ sideradas como deusas pelos clccsaitas
losophiam et inanem fallaciam (Coloss. n, quando appareciam em público, elles as
8): Tomai sentido, não vos deixeis tran- acompanhavam em tropel, ajuntavàm a
sviar por uma philosophia enganadora e terra que pisavam, e a saliva que cus­
vasia de luzes e dos bens que promette. piam: guardavam estas cousas, e as tra­
Tal é o verdadeiro caracter d’csscs syste- ziam comsigo como preservativos singula­
mas, que enfeitam com um nome que lhes res. 1
não pertence. São similhantcs a esses va­ Tinham algumas orações hebraicas, que
sos sobre que inscrevem um nome pom­ queriam se rezassem sem se entender. M.
poso, para persuadir que encerram essen­ Basnagc provou muito bem que os clccsai­
tias raras e preciosas, mas que só occul­ tas nào provinham dos essenios.2
am uma vã poeira misturada dos mais EycRATiTAS—Veia-se o artigo Taciano.
dprtaes venenos.» ,N, eon da e s t r e l l a —era um cavalheiro
EJXESAITAS, OU OSSONJA.XOS, E ^ M P S E A N O S bretão, que vivia no duodecimo século.
—Era uma seita'dc fanaticos quê ájíttítã'- Pronunciava-se então tão mal o latim, que
ram a algumas prácticas christas os erros em vez de se proferir eum como nós o pro­
dos ebionitas, os princípios d’astrologia ju­ nunciamos hoje, proferiam eon: e assim no
! diciaria, as prácticas da magia, a invoca­ credo em logar de cantarem per eum qui
ção dos demonios, a arte dos encantamen­ venturus est judicare vivos, et mortuos,
tos, e observavam as ceremonias judaicas. cantavam per eon qui.
Nas idéias d’estes hereges não se deve Sobre esta pronuncia, Eon da Estrella so­
buscar nem ligação, nem coberencia: elles nha ser elle de quem se.dizia no symbolo
adoravam um só Deus, c presumiam dar- que viria julgar os vivos e mortos; c esta
lhe grande honra em se banharem muitas visão o enleia, esquenta-se a sua imagina­
vezes no dia; reconheciam um Christo, um ção, e se persuade ser o juiz dos vivos e
Messias, a que davam o nome de Rei Gran­ dos mortos, e por consequência o Filho de
de. Ignora-se porém se criam que Jesus Deus: publica-o, o povo o cré, ajuntá-se, e
Christo fosse o Messias, ou algum outro o segue em tropel por diversas provincias
que não tivesse ainda vindo: davam-lhe de França, aonde elle saqueia muitas ca­
uma fórma humana, invisível de perto, de sas, e principalmente os mosteiros. Distri­
trinta e oito léguas d’altura, e seus mem­ buiu em diversas ordens os seus discipu­
bros eram proporcionados a este talhe: los, sendo uns anjos, outros apostolos: este
criam que o Espirito Sancto era uma mu­ se chamava o ju ízo, aquelle a sabedoria,
lher, porque a palavra que o exprime em outro a dominação ou a scienda, etc.
hebreu é dó genero feminino, e talvez tam­ Muitos senhores enviaram gente para
bém porque havendo o Espirito Sancto des­ prender Eon da Estrella, mas como elle
cido sobre Jesus Christo, no seu baptismo, a tractava bem e lhe dava dinheiro, nin­
em fórma de pomba, e tendo dito Jesus guem o quiz prender, e publicaram que
Christo que elle era o seu filho muito ama­ era um magico que encantava os que o
do, colligiram d’aqui ser o Espirito Sancto pretendiam capturar: esta impostura foi ge­
uma mulher, a fim de não darem dous ralmente acreditada, porém o arcebispo de
paes a J esu s.1 Reims o fez aprisionar, e então se disse
• Governando o imperador Trajano, um
1 Epiph. Hcer. 19.
1 Grab. Spicileg. PP. 2 Basnagej Annales Eccles. t. 1.
EUN 449
que os demonios o tinham desamparado. abundantemente o Author da Natureza;
0 mesmo arcebispo o apresentou no conci­ mas a paixão e a ignorância foram as que
lio, que por ordem do papa Eugênio m se rompendo esta igualdade c união commum,.
congregou na mesma cidade de Rcims, introduziram o mal no mundo: as idéias da
contra os erros de Gilberto de Porrée. Fize­ propriedade exclusiva nào entraram no
ram-lhe perguntas, e se viu que nada mais plano da Intelligencia Suprema, mas são.
era que um insensato: condemnaram-no a obra dos homens.
cárcere perpetuo; porém fizeram queimar Estes pois, formando leis, tinham sahido
ojuizo c a scienda, c alguns outros de seus da ordem, c para tornarem a entrar n’ella,.
discipulos, que nào quizeram reconhecer a era forçoso abolil-as, e restabelecer o es­
falsidade das prclenções de Eon da Es- tado da igualdade cm que o mundo fôra
trella. 1 formado.
No mesmo século em que parte do povo D’aqui concluo Epiphanio que a união,
era allucinado por Eon da Estrella, Pedro commum das mulheres era o restabeleci­
de Bruys, Tanchefino, Henrique, e muitos mento da ordem, bem como a união com­
outros fanaticos, ensinavam diversos erros, mum dos fruetos da terra: os desejos que
e amotinavam os povos contra o clero: de recebemos da natureza são os nossos direi­
outra parte os theologos se dividiam nas tos, no seu sentir, e uns titulos contra os
escolas, levantavam questões theologicas, quaes nada pôde prescrever. Comprovára
as mais subtis, e formavam partidos op- estes princípios pelas passagens de S. Pau--
postos e inimigos; mas o povo nào tomava lo, que dizem que não se conhecia o pec-
parte nos seus odios, porque era nimia- cado antes da lei, e que não haveria pec-
mente ignorante para haver de se interes­ cado algum se não houvesse lei. Assim jus­
sar em suas altercações. tificava toda a moral dos carpocracianos, e
Este mesmo povo, summamente igno­ combatia a do Evangelho.
rante acerca da religião, porque as luzes Epiphanio morreu da idade de dezesetc
ou a ignorância do povo são sempre pro­ annos: foi reverenciado como um Deus,
porcionada^ ás luzes ou á ignorância do consagraram-lhe um templo em Samé, ci­
clero, se deixava induzir e se apaixonava dade de Cephalonia, leve altares, c em seu
pelò primeiro impostor que o queria enga­ nome erigiram uma academia.
nar: e jamais faltaram espíritos que o in­ Todos os primeiros dias do mez se ajun-
tentassem em séculos ignorantes. tavam os cephalonicos no seu templo para
.jffiPHÃBlfc-niho de Carpocrates, foi in­ celebrar a festa da sua dedicação; oiíere-
struído na philosophia platônica, e creu en­ ciam-lhe sacrifícios; faziam banquetes, e
contrar n’eila princípios proprios para ex­ cantavam hymnos em seu louvor.1
plicar a origem do mal, e para justificar a Veja-se Presbyterianos.
moral de sou pae. Suppunha um principio EsõunsisTAs—Seita de montanistas, que
eterno, infinito, e incomprehcnsivel, e allia- confundiam as pessoas da Trindade. (Ve­
va com este principio fundamental o sys­ ja-se o artigo Montano). Sabellio fez cele­
tema de Valentini. bre esta opinião. Veja-se o seu artigo.
Para dar a razão da origem do mal, re­ EU.ÇHITAS Oü..EÜTYCH1TAS—Discipulos de
montou até ás idéias primitivas do bem e Siriíao, que criam ser as almas unidas aos
do mal, do justo e do injusto, c se persua­ corpos, para se entregarem n’elles a toda a \
diu não ser divérsa a bondade da justiça sorte de sensualidades: este sentimento era/
nò Ente Supremo. O universo olhado de­ o mesmo dos, antitacticos, e dos cainitas.
baixo d’um tal ponto de vista, jamais offe- Vcjam-sc os seus artigos.2
receu a Epiphanio cousa alguma, que fosse EüNQMio—era originário de Capadocia, e
contraria á bondade de' Deus. tinhTgràndes talentos naturaes: intruiram-
Nasce o sol igual mente para todos os no alguns sacerdotes arianos, aos quaes
animacs: a terra a todos oflerece com elle se uniu, adoptando seus sentimentos:
igualdade suas producoõcs e benefícios: constituído bispo de Cyzico, veio a ser
todos podem satisfazer suas necessidades, ariano acèrrimo.
e por consequência a natureza proporcio­ Para defender o seu partido recahiu no.
na a todos uma igual felicidade: tudo o sabcllianismo, do qual Ario se persuadira
que respira é sobre a terra, como uma
grande familia, a cujas necessidades provê
1 Theod. Hcer. Fáb. 1.1, c. 5. Epiph. Hvr.
32. Iram. I. i, c. l i . Ciem. Alex. Strom. 1.3.
1 D Argeníréj Collect. Jud. N a ta l Alex. pag. 428. Grab. Spicileg. PP.
in scec. 12. D vp. Bibíiót. douzim e siêcle. 2 Theodoret, Hcir. Fab. /. 5, c. 9.
-450 EUN
não poder fugir sem negar a divindade do jam substancias, nem partes das mesmas
Verbo.1 substancias.
Ario para não cahir no erro de Sabellio, Sendo infinita a divina substancia, quem
que confundia as pessoas da Trindade, fez teria 0 arrojo d’affirmar que ella com effei-
ao Padre e do Filho duas pessoas distin­ to não iríclue cm si princípios differentes
ctas, e sustentou ser o Filho uma creatu­ que nem sejam substancias, nem partes
ra: era pois a divindade de Jesus Christo cFelIas? Para haver de se affirmar tal pro­
0 eixo sobre que rodavam todas as dispu­ posição não seria forçoso vdr individual­
tas dos catholicos e dos arianos. Aquclles mente a essencia da divindade, comprchen-
admittiam na substancia divina um Pae del-a, e conhecer a Deus tão perfeitamente
que não era gerado, e um Filho que o era, como se conhece clle mesmo?
sendo todavia consubstanciai e coeterno a Esta é a razão porque os padres que re­
seu Pae. Estes não podiam illudir a força futam Eunomio, taes como S. Basilio, e S.
dos argumentos que os catholicos lhes op- Chrysostomo, lhe objectam a incomprehen-
punliam, tirados da Escriptura, em que a sibilidade da divindade; 1 porque também
divindade de Jesus Christo era evidente­ nós de boamente pensaríamos como Vas-
mente ensinada. ques, que Eunomio não se persuadia co­
N’cstas circumstandas pois julgou Eu- nhecer a substancia divina, como 0 mesmo
nomio ser forçoso examinar o dogma em Deus a conhece, por mais que affirmasse
si mesmo, c vêr se com effeito se podiam ter d’c!la um perfeito conhecimento.2 D e
admitlir na substancia divina dous princí­ uma maneira tal bem poderia asseverar o
pios, dos quaes um fosse gerado, e o ou­ geometra mais fraco vêr 0 circulo que elle
tro nào. Para resolver a diííiculdade par­ traça tão perfeitamente como 0 geometra
tiu d’um ponto, reconhecido pelos catholi­ mais conspicuo, e que, não menos do que
cos e pelos arianos, que era a simplicidade este, 0 ve todo e inteiro, sem que todavia
de Deus. Creu não se poderem suppôr em fique persuadido de conhecer tão indivi­
uma cousa simples dous princípios, um dos dualmente, como Clairaut todas as proprie­
quaes fosse gerado, e outro gerante: podia dades do mesmo circulo.
no sentir d’Eunomio, uma cousa simples Reconhecia Eunomio, como os catholi­
ter diversas relações, mas não podia con­ cos, um Pae, um Filho, e um Espirito San­
ter diversos princípios. cto, mas olhava como creaturas 0 Filho, e
Já d’cste mesmo principio havia concluí­ 0 Espirito Sancto, e cria que este era uma
do Ario, a fim d’evitar o sabellianismo, que producção do Filho: exprimia esta crença
confundia as pessoas da Trindade, serem o 110 seu baptismo, que dava em nome ao
Pae e o Filho duas substancias distinctas; Padre, que não era gerado, do Filho, que
e como d’outra parte não se podiam admit- era gerado, e do Espirito Sancto, que era
tir dous deuses, julgara que o Verbo ou o produzido pelo Filho; e em consequência
Filho não era Deus, mas creatura. d’este seu sentimento supprimia as tres
D’isto mesmo concluiu Eunomio, não só immersões. Também não mettia na agua se­
que não podiam suppôr-se na essencia di­ não a cabeça e 0 peito das pessoas que ba-
vina um Pae c um Filho, mas nem ainda ptizava, tendo por infames, e indignas do
admitlir n’ella muitos attributos; e que a baptismo as partes inferiores.
sabedoria, a verdade e a justiça, não eram Como 0 erro de Eunomio era uma espe­
senão a mesma essencia divina, conside­ culação pouco propria para fazer grande
rada debaixo de relações diversas, e nomes sequito, devemos reflectir que para conci­
differentes dados á mesma cousa, segundo liar discipulos necessitava de ajuntar á sua
as relações que cila tinha com os objectos opinião algum principio de moral commo­
exteriores. Eis-aqui o erro que Eunomio do: portanto ensinou que os que conser­
ajantou ao arianismo: funda-se sobre uip vassem fielmente sua doutrina, não pode­
principio falso, como passamos a provar. 2 ríam perder a graça, por maior que fosse
Uma substancia simples não póde conter 0 peccado que commettessem:3 porém este
muitos princípios que sejam substancias, expediente, de que d’ordinario se serviam
ou partes das substancias; proferil-o seria
cahir n’uma contradieção manifesta: mas 1 Basil. Ep. 166. Chrysost. de incom-
não vémos que uma substancia simples não prehensib. Dei natura.
possa encerrar muitas cousas que nem se- 2 Vas quez, in prim a part. Disput. 37,
cap. 3.
3 Theodoret. Heeret. Fab., 1.4., c. 3. At/^.
1 Socrat. I. 4, c. 12. Epiph. Hcer.70. de Jíceret. Epiph. Hceret. 76. Baron, ad an.
2 G reg.Nyss. Orat. 12. 356.
•EUN 451

os cabeças de seita, nem sempre sortiu vaçao que o seu temperamento, nem meio
•oíTcito. A de Eunomio foi inteiramente ex- mais prudente para conservar sua virtude
tincta no tempo de Theodosio. 1 e assegurar a salvação que o mesmo que
EUNQMiAjtos—Discipulo? d’Eunomio; tam- tomára Origenes para confundir a calu­
bciruTics chamaram cüWWfMpJj da palavra mnia; portanto se fez cunuco, c defendeu
anomeon, que significa dissimilhante, por que este ado de prudência e de virtude,
dizerem elles que o Filho e o Espirito San­ não se devia excluir das dignidades eccle­
cto difleriam cm tudo do Padre: também siasticas. No principio tractaram com in­
os appellidaram UjmlQfluLgs. Veja-se este dulgência um tal desvario; mas como ia
artigo. fazendo progressos, lançaram fóra da Igre­
EUN^ ipfiursYcq^^qs—Ramo dos euno- ja a Valesio e seus discipulos, os quacs se
mianos, que sê separaram pela questão do retiraram para um canlao da Arabia.
conhecimento ou da sciencia de Jesus Chris­ Valesio não tinha por discipulos senão
to, conservando poróm os principacs erros homens, que estando em continua lucta
(VEunomio; e segundo Niccphoro, tinham com o espirito tentador, por causa do seu
um chefe por nome Eupsycho.2 São estes eu- temperamento ardente, c da sua imagina­
nomiocupsychianos os mesmos, aos quacs ção viva, se persuadiram ser esta práctica
Sozomeno denomina eulychianos, c da por o unico meio de se preservarem da culpa,
■cabeca um chamado Eutycho; porém não e d!affiançarem sua salvação; e como todos
ha duyida que Nicephoro,'e Sozomeno fal­ os que são animados d’uma paixão vehe­
iam da inesma seita; pois que Nicephoro mente, ou arrebatados do impulso do seu
copiou a Sozomeno, mas ha erro sobre o natural, não suppoem nos outros homens
nome do cabeça da seita .3 M. de Valois senão aquelles mesmos princípios e senti­
nas suas notas sobre Sozomeno, e Fronton- mentos, de que elles são agitados, tiveram
du-Duc nas que fez sobre Nicephoro, as­ os valesianos que todos os homens que
sim o advertiram, sem dizerem qual b el­ não se mutilassem, estavam no caminhe
les- se enganara. da perdição, e entregues ao peccado.
e u n ucos ou v a l e sia n o s — Hereges que se Como o Evangelho ordena que todos o
mutilavam' e nao~pernííttiam que seus dis­ christãos trabalhem pela salvação do sei
cipulos comessem cousa que tivesse vida, proximo, os valesianos se persuadiram nãc
emquanto não estivessem n’esse estado. haver meio mais seguro para o desempe­
^.Origenes para confundir a calumnia, que nho d’csta obrigação que pôr seu proxi­
| fazia correr fastidiosos boatos acerca de mo, quanto lhes fosse possível, no mesmo
£ receber na sua escóla donzcllas de pou- estado de segurança em que elles se con­
[ ca idade, se mutilou elle mesmo, e assim sideravam: portanto faziam todos os es­
S atalhou todos os discursos que offendiam a forços por persuadil-os á necessidade de
*ssua virtude. se fazerem eunucos; e quaudo não podiam
f Esta delicadeza com que Origenes tra- persuadil-os, então os olhavam como crean-
? ctou a sua reputação, foi tomada por uns ças, ou como enfermos em delirio, a cuja
j como um acto de relevante virtude, e por repugnância seria barbaridade ter algum
Soutros como um impeto de zelo irregular, e respeito, quando se tractasse de lhe appli-
• extravagante: a sanctidade de sua vida e a car um remedio infallivel, bem que lhe
jM & M

emincncia de sua virtude deram occasião fosse desagradavel.


j i esta diversidade de sentimentos. Tinham pois os valesianos por uma obri­
Demetrio, patriarcha d’Alexandria, ad­ gação indispensável da caridade christã
mirou a acção d’Origenes, e o patriarcha mutilar todos os homens de que podessem
de Jerusalem o consagrou sacerdote: ou­ senhorear-se, e não deixavam de fazer esta
tros porém a capitularam de barbaro, cen­ operação a todos os que passavam pelo
surando haver sido elevado ao saccrdocio seu territorio, que portanto veio a ser o
um sugeito que por sua mutilação, se fize­ terror dos viajantes, os quaes nada recea­
ra incapaz para elle. vam tanto como ir dar desgarrados na-
Valesio, que havia nascido com uma dis­ quclle paiz. Verosimilmente é esta a razão,
posição vehemente para o amor, o que vi­ segundo Sancto Epiphanio, porque fallaram
via no ardente clima da Arabia, nao co­ muito d’estes hereges, que se conheceram
nhecia inimigo mais formidável da sua sal- pouco.1 Por occasião d’este desvario fez o
concilio de Nicea o nono .canon, que pro-

1 Codex Theod ., I 8.
2 Niceph ., l. 22, c. 30. 1 E piph. H a r. 36. A v g . H a r. 37. Fleu-
3 Sozom .j l. 7, c. 17. n jj H ist. Eccles., I. 11. B a ro n , ad an. 249.
*
452 EUP
hibc rcccber na ordem clerical os que sc Euphrates verosimilmente cria que sen­
mulilam a si m csm os.1 do determinado o ente necessário pela sua
Quanto ó extravagante o entendimento natureza a produzir tres entes diversos c
humano! O mesmo concilio que ordenava o numero tres d’alguma fôrma o termo de-
esto canon contra os valesianos, fez tam­ todas as producçòes do ente necessário era
bém outro contra os ecclesiasticos que ce­ forçoso admitlirem-se tres Padres, tres Fi­
lebravam contractos d’adopçào, pelos quaes lhos c li es Espíritos Sanctos: c como Jesus
um sacerdote tomava para sua casa uma Christo, que era filho de Deus, tinha a na­
viuva ou uma donzella, debaixo do nom e, tureza humana, cria Euphrates que os tres
de irmã ou de sobrinha espiritual. A insti­ Filhos eram tres homeus.
tuição d’estas familias espirituaes era fun­ A segunda parte do mundo incluia um
dada no exemplo de Jesus Christo, que se numero infinito de potências diversas, c fi­
recolhia a casa de Martha, e de Magdale- nalmente a terceira encerrava o que os ho­
na, e no de S. Paulo, que trazia em sua mens chamam ordinariamente mundo. To­
companhia uma mulher irmã. das estas partes do universo eram absolu­
Este ultimo costume se tinha estabeleci­ tamente separadas, e deviam estar sem
do nos primeiros séculos da igreja; não communicaçào; mas as potências da ter­
era cousa rara vèrcm-sc viver juntas pes­ ceira parle haviam attrahido á sua csphera
soas novas d’um e d’outro sexo, e para as essencias da segunda parte do mundo,
triumpharem da carne mais gloriosamen­ c as tinham aprisionadas.
te, arrojavam-se ao mais forte perigo, quan­ Pelo tempo de Herodes, o Filho de Deus
do os valesianos tinham para si que não desceu da morada da Trindade para livrar
podiam preservar-se d’ellt\ senão fazendo- as potências que tinham cabido nos laços
se incapazes da tentação. Que pensaríamos das potências da terceira parte do mundo:
porém nós, que justamente capitularemos e este Filho de Deus era um honrem que
d’insensatas estas duas seitas da tolerância linha tres naturezas, tres corpos e tres po­
ue o nosso século concede a uma especie tências.
e valesianos; incomparavelmente mais bar­ Cria Euphrates verosimilmente que o
baros e com mais justa razão despresiveis, Filho de Deus devia de ter estas tres es­
os quaes na mutilação só teem por objecto sencias ou naturezas para encher os deve­
a perfeição da voz das victimas da sua ava­ res de libertador das potências que tinham
reza? cahido da segunda parte do mundo na ter­
e u t h r a t e s —da cidade de Pera, na Cili­ ceira, e talvez assim sc persuadia também
cia, admittia tres Deuses, tres Yerbo$, tres explicar a razão porque o Filho Jesus Chris­
Espíritos Sanctos. to fora escolhido para redemptor das po­
Entre os philosophos que tinham indaga­ tências descabidas com prcfercncia ás ou­
do a natureza do mundo, alguns o olhavam tras pessoas da Trindade.
como um grande todo, cujas partes eram li­ Depois que as potências da segunda parte
gadas, e não suppunham na natureza mais do mundo houverem subido á sua patria,
que um só mundo, conio Ocello de Luca­ isto a que chamamos o nosso mundo, ha
nia ensinara, e não muitos, como Leucipse, de acabar, segundo a opinião de Euphra­
Epicuro e outros philosophos tinham sus­ tes. 1
tentado. 0 padre Harduino tem para si que o qua­
Euphrates adoptou o fundo d’este syste­ dragésimo oitavo dos cânones attribuidos
ma, e não admittia a serie de mundos dif­ aos apostolos, foi feito contra os discipulos
ferentes, a que recorriam a maior parte d’Euphrates, e que o symbolo que se diz
dos chefes de seita para conciliar a phi­ de Sancto Alhanasio teve em mira estes
losophia com a religião, ou para explicar hereges, no verso em que diz:—ha um sò
seus dogmas: elle suppunha um só mun­ Padre, e não tres Padres, um só Filho, e
do, no qual distinguia tres partes, que en­ não tres Filhos. 2
cerravam tres ordens d’entes absolutamen­ Quanto a nós, parece-nos que Euphrates
te diversos. e Adamas adoptaram o systema philoso­
A primeira parte do mundo incluia o phico d’Ocello, c que sc esmeraram pelo
ente necessario e increado, que elle conce­ conciliar com o dogma da Trindade, com
bia á maneira de um grande manancial, o da divindade de Jesus Christo, e com a
ue fazia sahir do seu seio tres Padres, tres sua qualidade de mediador, c que por isso
ilhos, e tres Espíritos Sanctos.
1 Theodoret, Haret. Fab., I. 1, cap. 18.
1 Cone. Nycçen. Collect. Cone. Hist. du Philastr.
cone. de Nicéc, in 8.*, vn vol. 1 Hardouiiij de triplici Baptismo.
EUT 453
só ollos ajuntaram aos princípios geraes truir nos simples fieis a obediência de­
irOccllo algumas idéias pythagoricas ácer- vida aos legitimos pastores, que estas as­
- ca da virtude dos numeros. 1 sembléias similhantes ás d'Eustalhio, e os
E que certeza não deviam de ter estes homens, tacs como ellc tncrecem não me­
dogmas entro os christãos, visto que se em­ nos a attenção dos magistrados que a dos
penharam cm concilial-os com o systema primeiros prelados da Igreja.
dròccllo, com o qual não tem clles affini- EUSTATiiiAxos—É o nome que tiveram os
dade alguma, antes lhe são oppostos? E seqüazes do monge Eustathio, de que falía­
que responderão a esta pergunta os que mos no precedente artigo.
presumem serem os mesmos dogmas fa­ Eyiycfirçs — era abbadc d'um mosteiro,
bricados pelos platônicos? perto de Constantinopla: ensinava que a na-,
, Euphrates teve discipulos que formaram tureza divina c a natureza humana se ha-\
a seita dos pereanos, ou prácticos do nome viam misturado, não formando depois daS
Pera, que era a cidade em que cllc ensi­ encarnação mais que uma só natureza/
nava. porque á humana se confundia na divina,
Eqpiiiyfoomíaxos—Hereges do (juarto sé­ como uma gota d agua que cahc no mar.
culo, qúc uniam os erros d’Eunomio com O^concilio (TEphcso, e os esforços que
os de Thoophonio. Sócrates diz que a di­ fez Joao^(TcXntíòcíiKÍ depois da sua recon­
versidade dos erros d’um c d’outro é tão ciliação com S. Cyrillo, a íim de que o
leve que não merece individuar-sc.2 mesmo concilio fosse recebido, não extin-
Ey^VTJjjP—Persuade-se Baroni o ser o guiram cabalmcnte o nestorianismo. As de­
nome de um monge ao qual Sancto Epi- posições, e desterros tinham produzido no
phanio chama Eutacto: vivia no quarto sé­ Oriente infinidade de nestorianos occultos,
culo. 3 Estava este monge tão loucamcntc que cediam á tempestade, rnas conserva­
prcoccupado do seu estado, que condemna- vam um ancioso desejo de se vingarem de
va qualquer outro: c a este erro accrescen-S. Cyrillo e dos seus seqüazes; c além
tou os seguinte^, que foram delatados ao d*isto os defensores do concilio d’Epheso
concilio de fíangres: l.° Condemnava o ca­ aborreciam muito os nestorianos, e a todos
samento, e separava as mulheres dos ma­ os que (conservavam algum resto d’indul-
ridos, alfirmando que as pessoas casadas gcncia para com clles.
se não podiam salvar. 2.° Prolubia aos seus Havia pois dous partidos subsistentes de­
sectários que orassem dentro de casa. 3.° pois do concilio d’Ephcso, dos quaes um
Obrigava-os a deixarem seus bens, como opprimido procurava fugir ao prejuizo e
incompatíveis com a esperança do Paraizo. preservar-se das violências dos orthodoxos
4.® Retirava-os das assembléias dos fieis por meio de profissões de fé capciosas, equi­
para tcl-as occultas com ellcs, e lhes faziavocas c diversas das de S. Cyrillo; outro
trazer um vestido particular. o.° Queria victorioso, que não consentia nos tòrcicol-
que ipjuasscm nos domingos, e dizia que los dos nestorianos c de seus fautores, e se
os jejuns ordinarios da igreja eram inúteis,esmerava em os deixar sem subterfúgios.
depois de se haver chegado a um tal grau Homens de um zela ardente e de uma des­
de pureza, que ellc excogitava. G.° Tinha confiança pouco illuminada deveram pois
horror ás capellas consagradas em honra d’excogÍtar differentes modos de provar a
dos martyres, c ás assembléias que n’ellas boa fc d’aquellcs, aos quaes obrigavam a
se faziam. receber o concilio d’Epheso, c de se servi­
r Muitas mulheres induzidas pelos discur- rem em seus discursos de termos os mais
/• s o s de Eustathio repudiaram seus mari- oppostos ás distineções que fazia Nèstorio
( dos, e varios escravos fugiram da casa de das duas naturezas; e era natural que estes
T seus senhores. A doutrina de Eustathio foi usassem d’cxpressões que não somente de­
delatada ao sobredito concilio de Gangres. csignassem a união, mas ainda a confusão
n’ellc proscripta no anno dc.342. * das duas naturezas.
Não ha cousa mais contraria ao espirito Além do que a união da natureza divina c
da religião, nem mais adequada para des- da natureza humana, que em Jesus Christo
fôrma uma só pessoa, é um mysterio, e por
1 VoycZj sur la vertu attachéc aux nom- pouco que discrepassem do dogma, que nos
breSj Vart. Caballe, Rasilide, Manes. ensina serem as duas naturezas de tal sorte
2 Socrat., I. 5, c. 24. unidas, que não formam mais que uma só
3 Baron. ad an. 319. pessoa, era facil tomar a unidade da natu­
4 Epipli. Han\ 40. Socrat., I. 2, c. 23. reza pela unidade da pessoa c confundiy
Sozom., I. 3, c. 3. B asii Ep. 74, et 81. Ni- estas duas naturezas n’uma só, a fim de
cephore, l. 9, c. 16. não deixarem de unil-as, e de não reco-
454 EUT
nhoceíem em Jesus Christo duas pessoas, paixao se junta com a ignorância, não ve
como fez Nestorio. senão extremos; o prudente meio que os
. Démais d’isto os nestorianos e seus pro- separa, e cm que reside a verdade, somen­
( tectores desadbravam com o triumpho de te o divisam os entendimentos esclarecidos
) S. Cyrillo e do seu partido: accusavam-o circumspectos e moderados. *
1 de renovar o apollinarismo, e de nào reco­ Ensinava pois Eutyches a seus monges
nhecer em Jesus Christo mais que uma na­ que não havia cm Jesus Christo mais que
tureza, o nào podiam deixar de pôr n’uma uma natureza, c não queria que se disses­
rigorosa balança todas as expressões de se ser cllc consubstanciai a seu pae, se­
seus inimigos, para as julgarem, e de se gundo a natureza divina, e a nós, segundo
desatarem em calumnias contra ellcs, pu- a natureza humana, crendo que a natureza
• blicando que ensinavam o erro de Apolli- humana havia sido absorvida pela divina
nario, uma vez que em duas expressões como uma gota d’agua que houvesso en­
* faltassem os apices da cxactidào, quando trado no mar, ou da mesma sorte que é
fallavam na união das duas naturezas em absorvida pelo fogo a matéria combustível
Jesus Christo. que se lança cm uma fornalha: tanto as­
Assim estava tudo preparado depois da sim, que cm Jesus Christo já não conside­
condcmnação do nestorianismo para uma rava nada de humano, c a natureza huma­
heresia opposla, para se formar na Igreja na em seu sentir d’alguma sorte se tinha
outra seita obstinada, fanática e perigosa; convertido em natureza divina. 3
e para que ella viesse â luz, nada mais fal­ Não era pois o erro de Eutyches uma
tava que um homem que tivesse zelo so­ questão de nome, como assevera M. de La
bejo contra o nestorianismo, poucas luzes, Croze;2 porque suppondo que a natureza
austeridade de costumes, caracter pertinaz humana fôra absorvida pela divina, e con­
e algum credito. fundida com cila, de sorte que não fazia
T' Este homem foi Eutycjics, o qual, como com a mesma senão uma só natureza, des­
todos os demais moiTfgesT tomara .partido pojava a Jesus Christo da qualidade de
contra Nestorio. Como estava em reputa- mediador, e destruía a verdade dos pade­
■çãõlíc grande sanctidadc, c linha na côrle cí mentos, da morte e da resurreição de Je­
bastante estimação, S. Cyrillo o havia lison- sus Christo, por quanto pertencem todas
geado, empenhando-o a servir a verdade estas cousas á natureza humana, e á reali­
com o credito que lograva para com a im­ dade d’uma alma humana, c d’um corpo
peratriz. 1 Por esta mesma razão concebe­ humano, unidos á pessoa do Verbo, e nao
ra o mesmo Eutyches muito odio contra os ao mesmo Verbo. Se este não tomou nossa
nestorianos, e até se faz verosimil que fos­ natureza, todas as victorias que pôde alcan­
se o primeiro author dos rigores que con­ çar da morte c do inferno, não satisfazem
tra clles se exerceram no Oriente: 2 que- por n ó s .3
brantado da velhice como estava, ainda os Em uma palavra, se a natureza humana
annos não tinham moderado o seu zélo, des­ é de tal sorte absorvida pela divina, que
cobria o nestorianismo* em toda a parte, em Jesus Christo ha sómcntc a divina, re-
olhava por inimigos da verdade todos os cahe Eutyches no erro de Cerintho, de Ba-
que conservavam a favor dos nestorianos silides, de Saturnino e dos gnosticos, que ti­
alguma commiseração ou indulgência, c cui­ nham para si não ter Jesus Christo encar­
dava em inspirar no coração das pessoas nado, e não se haver revestido senão das
poderosas a acrimonia do zelo que o roía.3 apparencias da humanidade: e eis-aqui o
Para combater o nestorianismo usava das quo assombra que M. de Ia Croze não divi­
expressões mais fortes, c a fim de não cahir sasse no eutychianismo.
em suppôr duas pessoas em Jesus Christo Eutyches diflundiu seu pernicioso erro
por baver n’elle duas naturezas, suppôz que primeiramente pelo grande numero de
estas naturezas estavam de tal sorte unidas, monges que dirigia, e depois pelos de fóra
que não faziam mais que uma só, e assim que o vinham visitar: enlaçou n’clle mui­
as confundiu ambas, para ficar mais segu­ tas pessoas simples, e pouco instruídas: o
ro de não admiti ir em Jesus Christo duas erro grassou pelo Egypto, e passou ao
pessoas, como fizera Nestorio. Quando a Oriente, aonde os nestorianos conservaram
protectores, e Eutyches pelo seu indiscreto
1 Synod. C a n c . 203. Balus., novat
Collect. Cone., pag. 909. 1 Apud Theodor. D ial in confusus. Cone.
2 Tillem., t. dò', pag, 482. Const. act. 3.
3 Leo, Ep. 39. Theodov. Ep. 82, pag. 2 Hist. du Clirist. d'Ethiopie, l 1, p. 26.
91o. 3 Leoj Ep. 25, /. 2. Theoit. pag. 247.
I
EUT 4oo
zelo fizera inimigos, ainda entre as mesmas fez com que o imperador altendesse a uma
essoas apaixonadas do concilio d’Epheso.
S s bispos do Oriente foram os primeiros
representação que elle lhe oíTereccu, cheia
de calumnias contra o concilio que o con-
que atacaram o erro de Eutyclies, c escre­ demnára, e em que requeria ser julgado
veram ao imperador acerca d’csla nova he­ por outro. 0 imperador fez convocar um
resia, 1 em Epheso, em que deu plena authoridade
Eusebio, bispo de Doryleo, que fura um a Dioscoro, patriarcha de Alexandria. Par­
dos primeiros que se levantou contra Nes- tiram os bispos para Epheso: S. Leão man­
torio, c que então se tinha ligado com Eu­ dou seus legados; mas juntos que foram os
tyches, fez diligencia por ifíustral-o, mas bispos, recusaram a assistência dos mes­
debalde. Este bispo, a fim de atalhar o pro­ mos legados, com o pretexto de que logo
gresso do erro, offereceu uma representa­ que haviam chegado, tinham ido a casa de
ção contra Eutyclies aos bispos congrega­ Flaviano, que era o accusador d’Eutyches:
dos em Constantinopla para julgarem sobre illudiram as letras do papa, não quizeram
certa contenda que se movera entre FIo- dar ouvidos a Eusebio de Doryleo, c fize­
reneio, metropolitano de Lydia, e dous dos ram a abertura do concilio, lendo as actas
seus suffragancos. N’esta representação ac­ do de Constantinopla; quando chegaram á
cusa va elle a Eutyches d’heresia sem espe­ sessão em que Eusebio de Doryleo instava
cificar cm que ella consistisse, promettendo Eutyches para que reconhecesse em Jesus
porem sustentar a accusaçào, e pedia a Fla­ Christo duas naturezas, ainda depois da
viano e ao concilio com ás maiores instân­ encarnação, exclamou o concilio que Euse-
cias que não desdenhassem este ponto, c fi­ sebio devia ser queimado vivo, c feito em
zessem vir perante elles o accusado. quartos por ultrajar a Jesus Christo.
Eutyches recusou comparecer sob pre­ Não se contentou Dioscoro, que n’el!e
texto de haver feito voto de não sahir do presidia, com estes clamores; requereu que
mosteiro; e logo despachou dous de seus os que não podessem fazer ouvir seus vo­
monges a diversos mosteiros, a fim de os tos, levantassem as mãos em testimunho de
sublevar contra Flaviano. Estes enviados que consentiam no anathema das duas na­
diziam aos monges que visitavam, que el­ turezas; e d’esta maneira cada um d’elles
les muito brevemente seriam opprimidos execrou os que davam a Jesus Christo duas
pelo patriarcha, se não se unissem a Euty­ naturezas; clamando que fossem banidos,
clies contra elle; e além d’isto lhes propu­ mortos, e despedaçados os que eram de tal
nham certo escripto para assignar, cujo sentimento.1
fim se ignorou. Depois do que Eutyches foi declarado
Também o concilio depois de repetir a orthodoxo, restabelecido ou confirmado no
notificação a Eutyches para que appare- sacerdócio, c no governo do seu mosteiro.
cesse, o* coinminou com depozição: elle en­ Logo depois leu Dioscoro a prohibição
tão se escusou por enfermo, e por não po­ que o concilio d’Epheso fazia de qualquer
der sahir do mosteiro. outra profissão de fé, que não fosse a do
Final mente, depois de mil mentiras, com­ concilio de Nicea, e requereu que os bis­
pareceu, e foi convencido de haver ensina­ pos proferissem se aquelle que houvesse
do estar confundidas em Jesus Christo as excogitado alguma cousa de mais, era su­
duas naturezas. 0 concilio não podendo jeito aos castigos ordenados pelo concilio.
desirnaginal-o, nem vencer sua pertinacia, Ninguem contradisse a Dioscoro, e elle,
o privou da dignidade ecclesiastica, da com- aproveitando-se d’este instante de silencio,
munhão da. Igreja, e do governo do mos­ fez lêr uma sentença de deposição contra
teiro; e a condemnação foi assignada por Flaviano e contra Eusebio dc Doryleo. 2
vinte e nove bispos. Oppozeram-se a este sentimento os lega­
É portanto muito claro pelo procedi­ dos de S. Leão: muitos bispos se prostra­
mento d’Eutyches, e respostas que deu no ram aos pés de Dioscoro, para que sup-
concilio de Constantinopla, sustentar elle primisse esta sentença; mas elle lhes res­
com eífeito a confusão das duas naturezas pondeu que não diria senão o que tinha
em Jesus Christo, e não ser condeninado dito, ainda que houvessem de lhe cortar a
por uma questão de nome, ou por uma má lingua; e vendo que os bispos persistiam
intclligencia. 2 n’aquella humilde postura^ fez entrar na
0 credito que Eutyches tinha na corte, igreja o proconsul com cadeias, e grande
numero de soldados, e de gente armáda.
1 Isid. Telus., L í . Ep. 4i0, t. 4. Cone.,
pag. 54, i7 , 157. Facuna., I. 8, cap. 5. 1 Cone., t. 4. Cone. Const.
2 Cone., t. 4. Cone. Const. 2 Jbid,
•456 EUT
Tudo era tumulto: não se falia va senão sem mudança, sem divisão, sem separação*
cm depor c desterrar os que não annuis­ de sorte que as propriedades das duas na­
sem á condemnação de Flaviano, ou tra­ turezas subsistem, e convcem a uma mes­
ctassem de mitigar o seu rigor: finalmcn- ma pessoa que não é dividida cm duas
to, um dos bispos declarou que Flaviano e mas que é um só Jesus Christo, Filho de
Euscbio não sómente deviam ser depostos, Deus, como se diz no symbolo niceno.
mas formalmente os condemnou a perde­ Esta formula foi unànimemente appro-
rem a vida. 1 vada. 1
Immcdiatamente o entraram a pisar aos Ensinava pois a Igreja contra Nestorio
pés, o recebeu tantos golpes, que d’ellcs não haver mais que uma pessoa em Jesus
morreu em breve tem po.2 Christo, e contra Eutyches haver n’elle
Logo depois Dioscoro depôz os bispos duas naturezas.
mais "venerandos e esclarecidos, c restabe­ Se o Espirito Sancto não presidiu ás de­
leceu todos os maus, que haviam sido de­ cisões do concilio d’Epheso, se este conci­
postos. Thcodoreto foi condemnado como lio foi composto sómente de homens fac­
herege, prohibindo-se que lhe dessem vi­ ciosos e apaixonados, digam-nos como era
veres e asylo. Assim se terminou o se­ possível, que taes homens, entregues á ve-
gundo concilio d’Ephcso. hemencia das paixões, divididos cm ban­
Allucinado Theodosio por Chrysapho, seu dos, que todos querem que prevaleçam os
primeiro ministro, louvou e confirmou com seus sentimentos e fulminam excomníunhão
uma lei a extorsão d’Epheso. Debakle em­ contra os seus adversarios, poderam ajus-
pregou S. Leão todo o seu credito, e seus tar-sc para formar um juizo, que nada me­
talentos para obter do imperador que se nos contrario ao nestorianismo, que ao eu-
congregasse no Occidente oulro concilio tychianismo, igual mente condemna va todos
em que"fosse examinado o negocio de Fla­ os partidos: nos não daremos outra respos­
viano, e cTEutyches. ta ás declamações de Basnage e dos outros
Theodosio respondeu que já congregara inimigos do concilio de Calcedonia. 2
m cm Epheso, aonde a controversia fora Terminado que foi o mesmo, nos princí­
laminada, e que era inútil, ou ainda im- pios de novembro de 451, Marciano man­
jssivel obrar-sc mais sobre tal materia. dou por uma lei, que todos observassem
Marciano, que succedcu a Theodosio em seus decretos, a qual renovou e confirmou
.50, entrou em sentimentos diversos; por­ segunda vez, e fez uma terceira severissi­
que Pulcheria, que, dando-lhe a mão ^ e s­ ma contra os sectarios d’Eutyches, e con­
posa, o collocára no throno, respeitava mui­ tra os monges-que tinham motivado quasi
to o bispo de Roma. Convocou pois o im­ toda a desordem.
perador outro concilio em Calcedonia, o O concilio de Calcedonia confirmou tudo
qual foi celebrado na magnifica igreja de o que se tinha determinado contra Euty­
Sancta Eufemia, estando presentes os com- ches no de Constantinopla, e este heresiar-
missarios e ofDciaes do imperador, e os cha deposto, expulso do seu mosteiro, c
conselheiros d’estado, que todavia não po- desterrado, ainda defendeu por algum tem­
deram evitar se excitasse n’elle grande tu­ po o seu desvario; mas emfim recahiu na
multo. Revoga-se quanto se havia feito em obscuridade e no esquecimento de que ja­
Epheso, foram restabelecidos os bispos de­ mais teria sahido se não fosse o seu fana­
postos, c finalmenlc os padres formaram tismo: a historia não falia mais d’elle de­
uma profissão de fé, em que se continha a pois do anno de 454. Este cabeça de par­
approvação dos symbolos de Nicôa e Con- tido morto ou ignorado, teve ainda com tu­
'tantinopla, das cartas synodicas de S. Cy- do alguns sequazes, que excitaram novas
i illo a Nestorio, e aos orientaes, e também turbulências: d’estas vamos tractar debaixo
da carta de S. Leão. do nome d’eutychianos.3
Declara o concilio que, seguindo os es- Erro d’Eutyches, que en­
criptos dos sanctos padres, fazia profissão sinava nao haver em Jesus Christo duas
■de crér um só e unico Jesus Christo Nosso naturezas, e que a natureza humana tinha
Senhor, Filho de Deus, perfeito na sua di­ sido absorvida pela divina. Veja-se E uty­
vindade, e perfeito na sua humanidade: ches.
consubstanciai a Deus, segundo a sua di­
vindade, e a nós, segundo a humanidade:
que n’elle havia duas naturezas unidas, 1 Leo, Ep. 29, t. 4. Cone.
2 Basnage, Hist. Ecclesiaste l. 20, c. 5 ,
1 Cone., t. 4. Cone. Const. pag. 515.
2 Zonar. Niceph. Leo, Ep. 92, l. 2, c. 2. 3 T ille m o n t. 15, pag. 722.
EUT 457
e u j y c i h a j í í q s — Sectários do erro d’Euty- e reduzidas a cinzas as casas d’aquellos
•ches. que defendiam a fé do concilio de Calce­
Já vimos o que elles fizeram ate á morte donia, e que recusavam communicar com
d’este heresiarcha: passaremos agora a exa­ Theodosio. Emíim, á vista de tantos estra­
minar o que obraram depois do concilio de gos, dir-se-ia que aquclla infeliz provincia
Calcedonia. Este concilio nào pacificou a tinha soíTrido uma invasão dc barbaros,
Igreja de tal sorte que deixassem dc ficar sem que estas calamidades bastassem para
Ainda eutychianos, que excitassem tumul­ desenganar os povos, porque o falso zelo
tos c desordens na Palestina. do impostor Theodosio os deslumbrava tão
Um monge, por nome Theodosio, que as­ sobremaneira, que muitas cidades lhe vi­
sistira ao mesmo concilio, não quiz sub- nham pedir bispos voluntariamente.
metter-se ao seu juizo, e levou comsigo al­ Para occorrer a tantas desordens, partiu
guns outros monges, por meio dos quaes Dorotheo, governador da Palestina, da Ara­
fez amotinar a Palestina contra o concilio bia, aonde então se occupava na guerra,
de Calcedonia. mas chegando a-Jerusalem, achou" fecha­
Theodosio c seus adherentes publicaram das as portas da cidade por ordem d’Eu-
que o concilio insidiáca a verdade, que au- doxia, c não lhe foi concedido entrar íTel-
thorisava c fazia entrar de novo na Igreja la, sem que promettesse seguir o partido
o ímpio dogma de Nestorio, e violava a fé que os monges e o povo da cidade haviam
nicena; que estabelecendo a crença das duas abraçado.
naturezas em Jesu£ Christo, obrigava a ado­ Chegada que foi a Marciano esta novi­
rar dous Filhos, dous Christos, e duas Pes­ dade, este fez destacar para Jerusalem uma
soas, e para Theodosio mais afiançar estas forte guarnição, que expulsou o monge
imposturas, forjou umas actas falsas, que Theodosio, e "deixou cm paz a cidade.
imputou ao concilio, nas quaes se liam as A tropa que foi aquartclada nos conven­
mesmas calumnias que contra elle publi­ tos dos monges, os insultava. Queixaram-
cava. se estes á imperatriz Pulcheria, dirigindo-
Residia por esse tempo na Palestina a lhe uma representação, em que fallavam,
imperatriz Eudoxia, viuva do imperador não em tom de supplicantes, mas no de
Theodosio ii, a qual patrocinava anciosa- sediciosos e inimigos das leis de Deus e do
mente Dioscoro, a quem o concilio depo- Estado; porque em vez de viverem no so-
zera, e que sempre conservava adhesão cego da sua profissão e de se portarem co­
ao partido d’Eutyches, no qual o mencio­ mo discipulos dos prelados, sc erigiam cm
nado imperador estivera firme até á morte. doutores, e mestres absolutos da doutrina,
A imperatriz recebeu em sua casa o mon­ e da Igreja, c até negavam com grande af-
ge Theodosio, e o alentou no desígnio que fouteza terem sido elles a causa de tantos
formara de se oppôr ao concilio de Calce­ desatinos. Comtudo o imperador usou de
donia: immediatamente se uniu a elle uma indulgência com estes protervos monges:
multidão dc monges, que viviam das libe­ desimaginou os povos da falsa ideia cm
ralidades da imperatriz; os simples, e as que os mesmos monges os tinham posto
pessoas menos instruídas, crêram nas ca­ acerca da sua fé, e ficou restabelecida .a
lumnias de Theodosio, e toda a Palestina paz. i
se amotinou logo contra o concilio de Cal­ Não foi menos ruidosa a perturbação
cedonia, e se pôz em armas para defender que houve no Egypto: Dioscoro fôra de­
este sedicioso monge, que soube aprovei- posto pelo concilio de Calcedonia, e substi­
tar-sc da effervescenda do povo, fazendo- tuído por S. Protero: mas bem que a elei­
se declarar bispo dc Jerusalem, d’onde ex­ ção d’estc sancto fosse inteiramente con­
pulsou Juvenal, bispo legitimo. A nova di­ forme aos cânones, comtudo a ella se se­
gnidade de Theodosio ajuntou em roda d’el- guiu muita turbulência.
le todos os vadios da Palestina, e este novo Araotinou-se o povo .contra os magistra­
apostolo, escoltado d’uma tal milicia, per­ dos, e querendo a tropa rebatel-o, cutrou
seguiu, depôz e lançou fóra de suas igre­ elle em furor, investiu os soldados, c lhes
ja s todos os bispos que não ^pprovavam fez voltar as costas, seguindo-os até á igreja
seus excessos^ de S. João Baptista, aonde, postos em sitio,
Também uina multidão de monges, dis­ os venceu, e por ultimo os queimou v iv o s.2
persos pelas casas, publicava querer o im­
perador restabelecer o nestorianismo, e por 1 Cone., t. 4. Leo, Ep. 87. Cotelier. iUo-
similhante traça induziam o povo, torna­ num. Eccles. Grcec.
vam odioso o imperador e excitavam mo­ 2 Evagr., I. 2, c. o, l 3, c. 31. Leo, Ep..
tins em toda a Palestina: eram saqueadas 93.
458 EUT
Marciano puniu severamcnto o povo de expulsos ou desterrados, e condemnava a
Alexandria, c os sediciosos ficaram logo Nestoéio e Eutyches. Porém Basilisco não
subjugados; porém os habitantes estavam gosou por muito tempo do império: Zenão
de tal maneira infeccionados do cutychia- o recuperou, c declarando logo por nullo
nismo, que Marciano no l.° d’agosto de 456 tudo quanto aquelle tinha feito, começaram
renovou todos os rigores, que tres annos dc novo os reboliços, os partidos depunham
antes havia ordenado contra esta seita. respectivamente os bispos que lhes eram
As leis porém nào dobraram d’opinião o sujeitos, e estabeleciam outros; e as cathc-
partido de Dioscoro; este bispo carregado dracs mais notáveis, ou eram usurpadas,
de delictos era adorado de seus sequazes ou conferidas pelos mais arrojados ao ar­
na vida, e depois da morte foi honrado co­ tificio, á vileza e ao perjurio.1
mo um grande sancto.1 Occupado Zenão cm extinguir as facções
Apesar de todos estes obstáculos o impe­ politicas, e cm resistir aos inimigos do im­
rador fazia receber o concilio de Calcedo- perio, não se deliberava a tomar um par­
nia, e já parecia estar tudo a elle sujeito; tido certo sobre as divisões dos catholicos
mas Thimotheo e Eluro persistiam todavia c dos eutychianos; queria muito mais re-
no partido de Dioscoro com quatro ou cin­ concilial-os; c assim o intentou. A diyisão,
co bispos, e um pequeno numero do apol- que havia entre os catholicos c eutychia­
linaristas c d’eutychianos. Estes scismati- nos, respeitava principalmcnte o concilio
cos haviam sido condemnados pela Igreja, de Calcedonia; estes o rejeitavam como ir­
e banidos por Marciano; mas por morte do regular, e como renovando o neslorianis-
mesmo imperador amotinaram o povo de mo; aquelles, pelo contrario, queriam abso­
Alexandria. Eluro fez assassinar Protero, lutamente que fosse assignado por todos, o
e que o declarassem bispo, ordenou sacer­ que se conservasse como indispensável con­
dotes, captou o Patricio Aspar, encheu o tra o eutychianismo.
Egypto de violências, é se teve por algum Parecia pois que um e outro partido de­
tenipo com os seus adversarios: 2 mas em- sejavam que se ensinasse a união das duas
fim S. Gennado descortinou a verdade ao naturezas, e que ao mesmo tempo se co­
imperador Leão, e obteve um edito contra nhecesse que cilas não estavam confundi­
Eluro, que foi expulso d’Alcxandria, des­ das: os catholicos queriam que se conser­
terrado para Gangres, e depois removido vasse o concilio de Calcedonia como neces­
para Chersoneso, por haver feito em Gan­ sario para cortar os passos ao eutychianis­
gres alguns conventiculos scismaticos. mo, c os eutychianos que se condemnasse,
Depois da morte do imperador Leão sa- para rebater o neslorianismo.
liiu Eluro do seu desterro, e fez muitas, Á vista d’estas circumstandas se persua­
bem que frustradas diligencias, para obter diu Zenão, que anathematisando Nestor io e
de Zenão que se congregasse um concilio Eutyches satisfaria ás pretenções d’um e de
em que fosse julgado o de Calcedonia; mas outro partido, e que então não sendo já pre­
sendo Zenão desthronisado por Basilisco, ciso o concilio de Calcedonia, poderia elle
este deu ouvidos a Eluro, e cassou por um por consequência fazer approvar a sua sup-
edito tudo o que se fizera no concilio de pressão, e reunir assim os dous partidos:
Calcedonia; ordenando além d’isto, que se é o que elle tentava na sua 1ienotica, isto
ronuueiasse anathema contra a carta de é, no Edito da União, edito que não conti­
. Leão: desterrou, depôz, e perseguiu to­ nha heresia alguma, que confirmava a fé
dos os que não quizeram aquiescer a seus do concilio de Calcedonia, e condemnava
mandatos; e assim assignaram mais de qui­ com effeito o nestorianismo e o eutychia­
nhentas pessoas a condemnação do conci­ nismo. 2
lio. 3 Porém não restabeleceu a paz o edito de
Oppôz-se á perseguição Aeacio, patriar­ Zenão: alguns o subscreveram, mas foi re­
cha de Constantinopla: o povo se amotinou, jeitado pela maior parte assim dos euly-
rotestando reduzir a cinzas a cidade, se chianos como dos catholicos, por não ata­
zessem algum acinte ao patriarcha; e en­ lhar o progresso do erro. Os catholicos não
tão Basilisco, temeroso, revogou o seu edito queriam desistir da necessidade de ser ge­
por outro, em que restabelecia os bispos ralmente assignado o concilio de Calcedo-
nia, e os eutychianos estavam pertinazes na

1 Evagr. Ibid.
2 Cotelicr, Monum. Eccles. G m c., t. 3. 1 Evagr., I. 3, c. 8.
Balus. Àppend. Cone., t. 4, m g. 894. 2 Evagr i, l. 2, c. 10. Leo Bysant. art.
Lab. Cone., t. 4, pag. 1081. 5, 6. ■

0
EUT 459
condemnação do mosmo concilio, c a re­ dita: esta innovaçào desagradou aos fieis,
queriam ao imperador.1 os quaes comtudo obedeceram, rccciando
Comtudo quiz Zenào fazer receber o seu a indignaçào do imperador. Porém entran­
edito, e depôz muitos metropolitanos e bis­ do cm certo dia alguns monges na igreja,
pos, que recusaram subscrevcl-o: 2 portan­ cm logar da addiçào cantaram o verso de
to se formaram tres partidos, que estavam um psalmo: o povo alvoroçado exclamou
muito alentados, quando Anastacio succc- logo: Vieram a jn'oposito os orthodoxos: to­
deu a Zenào. O novo imperador a fim de dos os sequazes do concilio de Calcedonia
os apaziguar punia iguahnentc assim os cantaram o verso com os monges: os euty­
uc queriam fazer abraçar o concilio de chianos o desapprovaram.
alcedonia, aonde nào estava recebido, co­ Interrompe-se o officio, investem-se na
mo os que o condemnavam, o publicavam igreja: o povo sahe fóra, toma as armas,
que nào devia rcceber-sc.3 Por esta razào leva tudo a ferro e fogo, e nào se applaca
Anastacio entrou no terceiro partido, a que senào dí^iüis-4^~dez% .n4Íljn o rtes.1 Entào
chamaram incertos ou hesitantes. cuidou Anastacio mãis‘seriaffíen(e que nun­
Cada um d’estes tres poderosos partidos ca em exlinguir um partido tào formidável,
faziam os maiores esforços para aniquilar e resolveu fazer condemnar o concilio de
os outros, e Anastacio, que se via rodeado Calcedonia: de tudo se serviu para ultimar
d’inimigos formidáveis, tinha muito tento os seus intentos, c á força de lisonjas, de
com todos, principalmente com o dos ca­ perseguições e de ameaças obrigava mui­
tholicos, cujo zelo o inquietava mais. O te­ tos bispos a receberem a eondemnaçào do
mor se tornou em odio, que ellc descobriu mesmo concilio.
apenas se pôde desenvolver da guerra da Depois de se haver assegurado por estes
Persia, declarando-se abertamente em fa­ meios dos seus consentimentos, fez convo­
vor dos eutychianos. Obrigou os que sup- car um concilio em Sidon, composto de oi­
punha apaixonados do concilio de Calccdo- tenta bispos, os quaes condemnaram o de
nia, c todas as suas guardas, a acccitarcm Calcedonia, á excepção de Flaviano, bispo
o edito do imperador Zenào, e escolheu to­ de Antiochia, e um outro, que se oppoze
dos os seus officiaes entre os eutychianos. ram ao decreto, e que portanto foram dc
Oppôz-se com todas as forças a estes de­ postos.
sígnios do imperador Macedonio, patriar­ Comtudo Flaviano nào se separou d’Ai
cha de Constantinopla: o povo adorava o tiochia. Por meio d’algun$ monges quizt
seu bispo, e o imperador nào se tinha por ram induzil-o a subscrever o concilio dt
seguro na capital; portanto lançou fóra Sidon, e passaram a usar dc violência; ou­
d’ella a Macedonio, pôz em seu logar um tros monges orthodoxos acudiram era soc-
chamado Thimolhco, desterrou os partidá­ corro de Flaviano; o povo seguiu o mesmo
rios mais zelosos de Macedonio, c fez quei­ partido, e em defesa do seu bispo cahiu so­
mar as actas do concilio de Calcedonia. bre os monges eutychianos, c houve alli
Havia por esse tempo na igreja do Orien­ uma horrível mortandade.2 O imperador
te o uso de cantar o povo, quanto o sacer­ que estava bloqueado de cutychiauos, lan­
dote chegava ao altar, Deus sancto, Deus çou fóra Flaviano, e pôz na cadeira ^An­
forte, Deus immortal; a que davam o no­ tiochia o famoso Severo, acerrimo n’aquella
me de Trisagion; 4 ao qual accrescentou seita: e no governo d’estc usurpador sof-
Pedro Foulon as palavras: que fostes cruci­ freram muito os catholicos em todo aquelle
ficado por nóSj tende piedade de nós. patriarchado.
Como esta addiçào, que podia ter um * N’esse mesmo tempo, em que Anastacio
bom sentido, era usada dos eutychianos, empregava toda a sua authoridade para
pareceu suspeita aos catholicos, persuadi­ constranger os catholicos a condemnarem
dos de que continha a doutrina dos euty­ o concilio de Calcedonia, um de seus ge-
chianos theopaschilas, que asseveravam ter neraes, por nome Vitaliano, se declarou
padecido a Divindade. protcct,or dos orthodoxos; no breve espaço
Apenas Thimotheo havia subido á cadei­ de tres dias levantou um temeroso exerci­
ra de Constantinopla, logo ordenou que o to, c porque o imperador nào quiz restabe­
Trisagion se cantasse cora a addiçào sobre- lecer nas suas cathcdraes os bispos que ti­
nha expulsado d’ellas, se senhoreou da Moe­
sia e da Thracia, desbaratou as tropas do
1 Cone., I. 4.
2 Ibid.
3 Evagr., I. 3, c. 30. 1 Evagr., I. 33, 44. Vita Theodos.
4 Photius., Bib. Cod. 212. ' 2 Ib id .c . 32.
460 EUT
imperador, c se postou diante de Constan- perador desterrara, tres bispos culychia-
tinopla com seu exercito victorioso.1 nos, escondidos nos desertos do Egvpio or­
Entào Anastacio mandou a Vitaliano denaram cm seu logar Pedro Zejago, e’ as­
grande somma de dinheiro, prometteu res­ sim perpetuaram quasi occultamente os
tituir ás suas igrejas os bispos desterrados, seus patriarchas até o principio do sétimo
deu palavra de convocar um concilio para século.
terminar as contendas de religião: e Vita­ Levantaram-se novas dissensões theologi­
liano se afastou de Constantinopla, c des­ cas entre os monges do Egypto acerca da
pediu o seu exercito. O imperador por al­ doutrina d'Origencs. Justiniano, ou fosse
gum tempo deu esperanças do cumprir as por habito, ou por gosto, tomou parte nul­
promessas, c entretanto se esmerou cm las, e publicou um edito contra a doutrina
grangear os corações do povo, lisongeou d’Origcncs: os sequazes d’Origencs, aliás
com empregos a Vitaliano, c persuadido adversos ao concilio de Calccdonia, que os
que foi de que já não tinha d’ellc que te­ inimigos d’Origenes defendiam, persuadi­
mer, passou a novas tentativas para ani- ram ao imperador, que se elle condemnas­
uilar a authoridade do concilio de Calco- se Theodoro do Mopsuestia, Theodorcto e
onia; porém morreu sem haver ultimado Ibas, como havia condemnado a Origenes,
este desígnio. 2 faria render á Igreja todos os eutychianos’
Succcdeu a Anastacio Justino, perfeito do os quaes unicamente rejeitavam ó concilio
pretorio, que foi eleito pelos soldados: o de Calccdonia por haver approvado os cs-
novo imperador expulsou os eutychianos criptos d’estcs bispos: Justiniano nada so­
das cathedracs, que haviam usurpado, res­ licitou tanto como vél-os condcmnados, e
tabeleceu os orthodoxos, c mandou que publicou um edito contra estes tres bispos,
fosse recebido em todo o império o conci­ posto que já fossem mortos.
lio de Calccdonia. Entào os bispos se oc­ Produziu este edito uma grande alterca­
cuparam em reparar os damnos da igreja: ção, persuadindo-sc muitos que elle faria a
convocaram-se concilios, depozeram-se os authoridade do concilio de Calcedonia: e
eutychianos, os quaes foram banidos, des­ foi necessário, para terminar este negocio,
terrados c punidos como o tinham sido os um novo concilio, que é o quinto geral da
catholicos no tempo1d’Anastacio. Igreja, c o segundo geral de Constantino-
Justiniano, que succedeu a Justino, seu pla.
tio, declarou-se em favor dos orthodoxos; Justiniano, que fizera condemnar os tres
mas a imperatriz favorecia os eutychianos: capítulos pelas solicitações d’Eusebio de Ce-
esta obteve do imperador, que se fizessem sarea, que era eutychiano no coração, ca-
conferências para reunir, se fosse possível, hiu finalmenle elle mesmo no cutvchianis-
os dous partidos; porém não produzindo mo dos incorruptíveis:1 para fazer abraçar
ellas o eíTeito desejado, foram seguidas de este erro empregou todos os meios de que
uma lei das mais severas contra os euty­ tinha usado a fim de que fosse recebido o
chianos, que desde então sómente foram concilio de Calcedonia; mas a morto sus­
tolerados. pendeu os seus intentos. 2
Comtudo ainda era. grande o seu nume­ Recobraram pois os eutychianos algum
ro. Severo, que no tempo d’Anastacio fòra íavor pelos íius do governo de Justiniano,
patriarcha d’Antiochia, tinha alli multipli­ e no de seus successores, os quaes se em­
cado os eutychianos ou acephalos, que re­ penharam em os reconciliar com os catho­
jeitavam o concilio de Calcedonia: olle mes­ licos: mas as diligencias que para isso se
mo .estabelecera na cadeira d,’Edessa Jac- fizeram produziram uma nova heresia, que
ques Baradeo, ou Zanzalo, que sendo d’ella era como um ramo do eutychianismo, e
expulso pelos imperadores romanos, se re­ que occupou todos os entendimentos: foi o
tirou para as terras dos persas, e por todo monothelismo.
o Oriente ordenou sacerdotes, instituiu bis­ Parecia pois absolutamente extincto o eu­
pos e formou a seita dos jacobitas. tychianismo nas provincias do imperio ro­
0 . mesmo Severo expulso e escondido, mano, quando as conquistas dos scrrace-
ordenou no seu retiro a Sergio para lhe nos o fizeram reproduzir com luzimento no
succeder; e assim tiveram sempre os eu­
tychianos um patriarcha de Antiochia oc­ 1 Entre os eutychianos havia alguns que
culto. Finalmente, depois da morte de Theo­ asseveravam que Jesus Christo tomara um
dosio, patriarcha d’Alexandria, que o im- corço incorruptível, e que não estava sujei­
to ás enfermidades.
1 Evagr., I. 2, c. 32. 2 Evagr., I. 4, c. 39. 40, 41. Baron, ad
2 Ibid. an. 363. Pagi, ad an. 365.
FEL 461
Oricnle c no Egypto, d’onde passou á Ar­ perverter Theodoro Volkarte Kornheert;
mênia c á Abyssinia. Vejam-se os artigos as disputas foram tão frequentes como in­
Copias, Jacobilas, Armenios e Abyxins. úteis, porque quando Nicolau não sabia
Os eutychianos no meio dos distúrbios responder a Theodoro, recorria ao espirito,
de que haviam enchido o império, agita­ que lhe ordenava, dizia elle, que se calasse.
vam mil questões frivolas, dividiam-se ácer- Comtudo não deixou de ter discipulos este
,ca d’estas mesmas questões, e se perse­ cnthusiasta, os quaes, «á maneira de seu
guiam tyrannamente: tal foi a que se sus­ mestre, se criam homens deificados. Fez
citou sobre a incorruptibilidade da carne alguns livros, taes como o Evangelho do
de Jesus Christo antes da sua resurreiçào, Reino, e a Terra de Paz, etc.
em que o povo d’Alcxandria se amotinou A seita da familia do amor tornou a ap-
contra o seu bispo, que tomara o partido parecer em Inglaterra no principio do sé­
da affirmativa, c taes eram os acephalos, culo decimo sétimo (em 1604) e apresen­
uc reconheciam duas naturezas cm Jesus tou a el-rei Jacobo uma profissão de fé,
2 hristo, mas nào queriam assignar o con­ em que declara ser esta seita diversa da
cilio de Calcedonia; c os theopaschitas, que dos brounistas. Estes sectarios fazem pro­
criam que a Divindade fora crucificada, c fissão de obedecer aos magistrados de qual­
cuja cabeça era Pedro Foulon.1 quer religião que sejam: é entre elles um
O ponto fundamental. 1
eutychianismo foi combalido por Thco-
doreto, bispo de Cyro, em vinte e sete li­ FA^mçg—Esta palavra, segundo alguns,
vros, dos quaes se acha o extracto na Bi­ veni aiuni termo grego que significa luz, e
bliotheca de Phocio (Cod. 46), e em tres d’ella se leem servido para designar um ho­
dialogos intitulados o Immutavcl, o Incon­ mem illuminado e inspirado. Outros a de­
fuso, o Impassível; por Gelasio em um li­ rivam de Fanum, que significa templo, de
vro intitulado Das duas naturezas; por que fizeram a palavra fanatico, para indi­
Vigilio, que escreveu cinco livros contra car um homem que faz extravagancias em/
Ncstorio e contra Eutyches; por Maxencio roda dos templos, e que prophetisa como.’
e Ferrando, c por muitos outros, que Lcon- um insensato.2 Mas seja qualquer que fõr
cio indica na sua obra contra os eutychia­ a sua etymologia, hoje se applica a um
nos c neslorianos. Vejam-se Colleclion de homem, que, tomando por inspirações os
Canisius, édit. de Basnage, et la Bibliot. de elTeitos d’uma imaginação desordenada, se
PhotiuSj Cod. 29, 30, cré instruído nas verdades da fé por uma
FA.MJUA; ou c a s a p p a m o r -—é o nome illustraçào particular, e faz acções de de­
que toniou^dWa seita que fazia consistir a voção e de piedade desarrazoadas e estra­
perfeição da religião na caridade, e que nhas. Não formam pois os fanaticos uma
excluia a esperança e a fé como imperfei­ seita particular: encontram-se em todas as
ções. Os associados da Família do Amor seitas, como em todas as religiões.
faziam, pois, profissão de se amar, e não Da palavra fanatico se formou fanatismo,
practicar senão actos de caridade; por esta isto é, uma disposição de espirito, que faz
razão se presumiam não compor mais que tomar por inspiração divina os phantas-
uma família, cujos membros estavam uni­ mas d’uma imaginação desordenada. Por
dos pela caridade. esta definição se collige que a historia do
Amavam todos os homens, c assentavam fanatismo não é uma das porções menos
que jamais devia haver entre clles querel­ interessantes da historia do entendimento
las nem.odios, por terem diversidade de humano; mas como este objecto não é da
sentimentos acerca da religião: também a nossa obra, unicamente nos determinamos
caridade, no sentir d’estes sectarios, fazia o a explicar aqui a palavra fanatico, porque
homem superior ás leis, e o tornava im- d’ella nos servimos ordinariamente.
peccavel. f e l i x — bispo d’Urgel, na Catalunha, en­
Teve esta seita por seu author um certo sinou que Jesus Christo, segundo a huma­
Henrique Nicolau de Munster, o qual pri- nidade, sómente era filho adoptivo de Deus,
meiramente se presumia de homem ins­ como os homens são chamados na Escri-
pirado, e pouco depois se deu por deifi- ptura filhos de Deus. O nome dc filho de
cado. Jactava-se de ser maior que Jesus
Christo, o qual, dizia elle, não fôra mais 1 Stohnan. Lexicon, voce Familia. Hist,
que o seu typo, ou a sua imagem. dc la Rcform. des Paus Baix. par Brandi,
Pelos annos de 1540 fez diligencias por t. 1, pag. 84.
2 Veja-se Hofman. Lexicon. Godfrey so­
1 Vejam-se Nycephor. Hist. Eccles., 1.18, bre o Digest. I. 21, tit. de Edil. edict. 1 .1,
c. 53. Leont. de Lutis Eutych. § 9, 10. Vossius Etymol. Du Cang. Gloss.
462 FEL
Deus, no sentir de Felix, não era senão um novo nome: e assim como na primeira
um modo KTexprimir mais particularmente geração em que nós nascemos, segundo a
a escolha que Deus fizera da humanidade carne, não podemos tirar nossa origem s e ­
de Jesus Chr isto. não de Adão, da mesma sorte na segunda
Os arabes ou serracenos, depois de ha­ que ójjspiritual, não recebemos a graca dá
verem derrotado muitas vezes as tropas de adopção senão por Jesus Christo, que rece­
Heradio, se assenhorearam da Syria c do be uma c outra, a primeira da Virgem, su a
Egypto: espalharam-se depois pela Africa, Mãe, e a segunda em seu baptismo.
tomaram Carthago, entraram de posse da Jesus Christo em sua humanidade c F i­
Numidia e da Mauritania, e, pela entrega lho de David, Filho de Deus: não é possi-
do conde Julião, se apossaram da Hcspa- vel que um homem tenha dous paes s e ­
nha. gundo a natureza; logo c um natural, e
Senhorcados das Hcspanhas os serrace­ outro adoptivo. A adopção nada mais é que
nos, deram aos christãos juizes da sua re­ uma eleição, uma graça, uma applicacão
ligião, como os califas o tinham practicado por escolha e por vontade, e todos cs*tes
na Asia, aonde até admittiram alguns bis­ caracteres attribue a Escriptura a Jesus
pos nos seus conselhos. Ainda foram inais Christo.1
bem tractados por Abdalazis, filho e suc­ Para mostrar que Jesus Christo emquan-
cessor de Musa, que conquistou as ITespa- to homem não c mais que um Deus nun­
i nhas. Por este meio se encheram ellas de cupativo, isto é, de nome, Felix raciocinava
| christãos, de judeus, c de mahometanos, assim, segundo o testimunho do mesmo
que todos queriam converter uns aos ou­ Jesus Christo: a Escriptura denomina deu­
tros, c propunham respectivamente seus ses aquelles a quem a palavra de Deus ó
argumentos. dirigida por causa da graça que recebe­
Como o principal artigo da crença dos ram; portanto como Jesus Christo parti­
mahometanos consiste na unidade de Deus, cipa da natureza humana, participa tam­
• tractam elles de idolatras todos os que na bém d’csta denominação da divindade, as­
divindade reconhecem algum numero: con­ sim como de todas as demais graças, posto
fessam de boamente que Jesus Christo fòra que d’um modo mais ex cellen te/S. Pedro
um grande propheta, que tinha o espirito diz que Jesus Christo fazia milagres, por­
de Deus, mas não podem sofTrer que seja que Deus era com elle.2 S. Paulo diz que
chainado Deus por sua natureza. Os ju­ Deus está em Jesus Christo, reconciliando
deus estavam então, e ainda hoje nos mes­ assim o mundo.3 Não dizem que Jesus
mos princípios, bem que o Messias lhes Christo era D eus.4
fosse annunciado pelos prophetas, como o Como Deus, Jesus Christo é esscncial-
filho natural de Deus. mente bom, mas como homem, posto que
Portanto assim os judeus como os ma­ seja bom, não o é cssenciahnente, c por
hometanos atacavam os christãos acerca si mesmo: se foi verdadeiro Deus depois
da divindade de Jesus Christo, c insistiam de concebido no seio da Virgem, como diz
que se lhe não devia dar o titulo de Filho elle, cm Isaias, que- Deus o formou seu
de Deus. Para responderem ás objccções servo no seio de sua Mãe?5 Como se com­
ue se lhes punham, sem alterar o dogma padece que aquelle que é verdadeiro Deus
a unidade de Deus, diziam os christãos da tome,as vezes de servo, como Jesus Christo
Hespanha que Jesus Christo não era Filho na fórma d’escravo; por quanto provam
de Deus por sua natureza, mas por ado- que elle é Filho de Deus e da sua serva,
pção: parece que esta resposta foi adopta- não sómente por obediência, como a maior
da por alguns sacerdotes de Cordova, e parte o quer, mas também por nature­
commumente recebida na Hespanha.1 za? E de que fórma será elle eternamente
Elipando, discipulo que fôra de Felix de sujeito ao Padre, se não ha diííerença en­
-Urgel, o consultou para saber o que pen­ tre a sua divindade e a sua humanidade?6
sava de Jesus Christo, e se o cria Filho na- Jesus Christo é um mediador, um advo­
-tural ou adoptivo. Felix lhe respondeu que gado dos peccadores, junto do Padre, o que
segundo a natureza humana nao era mais
que filho adoptivo ou nuncupativo, isto é,
•de nome sómente, e sustentou esta opinião 1 Alcuin, l. 1, 2, 3, cont. Felicem.
em alguns de seus escriptos. 2 Act. 10, v. 38.
Sendo Jesus Christo, segundo Felix de 3 Cor. 2, 5, v. 19.
Urgel, um novo homem, devia também ter 4 Alcuin, ibid.
5 Isaice, 49, v. 4.
1 Alcuin, Ep. 1$. 6 Alcuin, /.í>.
FLA 463
se não tia dc entender de Deus, mas do A principal objccção dc Fclix de Urgei
homem, cuja natureza tomou. consistia em que não estando o homem es-
Para provar todas estas proposições, Fe­
scncialmcntc, e por sua natureza unido á
lix dTTrgcl citava muitas passagens da Es- divindade, o homem em Jesus Christo não
criptura e dos sanctos padres, que trun- era Filho de Deus senão por eleição c por
cava c extorquia do seu sentido genuino; escolha. Esta objccção nada mais é que
e principalmentc se fundava na lithurgia um sophisma: a nãó sc respeitar senão a
dc Hespanha, em que se achava frequente­ elevação da natureza humana á união hy­
mente que o Filho de Deus adoptára a na­ postatica do Verbo, pódc muito bem dizer-
tureza humana. se que o Filho dc Maria é Filho dc Deus
«Responderam a Felix d’Urgel que a Igre- por graça, porque por mera graça do Ver­
jaT stava em paz quando a sua opinião se bo Eterno foi que elle quiz toníar a si a
principiou a divulgar, c que cila a inquie­natureza humana, e sem a graça jamais te-
tara: lizcram-lhc vér que esta sua opinião,ria cabimento esta proposição: o homem é
como quer que elle a figurasse, não era Deus, o Filho de Maria é Fillio de Deus; as­
outra cousa senão a de Nestorio; porque sim se sc olhar com este respeito o princi­
uma vez que sc distinguissem cm Jesus pio pelo qual se fez a encarnação, o Filho .
Christo dons filhos, um natural e outro de Maria é Filho dc Deus por graça.
adoptivo, era forçoso que a natureza hu­ Porém se se considerar a natureza hu­
mana e a divina fossem duas pessoas em mana unida hypostaticamcnte ao Verbo,
Jesus Christo: por quanto, desde o primei­ ou, para nos servirmos dos termos da es­
ro instante que encarnou, o Verbo c a na­ cola, se se considerar a união hypostatica
tureza humana são unidos com união hy­ in facto esse, è claro que o Filho dc Maria
postatica, não ha no Verbo mais que unia é o Filho dc Deus por natureza; porque
pessoa, e o homem tem todos os titulos de não fazendo a natureza divina e a natureza
divindade; d’onde se segue devermos dizer humana, depois da encarnação, mais que
que o Filho de Maria é Deus por sua na­ uma só Pessoa, que é o Fiího dc Maria,
tureza, o que nada mais quer dizer senão este é o Filho de Deus pela eterna gera
que a mesma Pessoa, que é Filho de Maria, ção.1
c Filho de Deus pela geração eterna. D’esta Felix d’Urgel foi condemnado no conc
mesma sorte, na ordem natural, posto que lio de Balisbona, e abjurou seu erro, er.
a alma do Filho não sahisse do Pae, como que reincidiu depois que voltou á sua dio
o seu corpo, elle não deixou de ser todo cesc. Foi citado para o concilio dc Franc­
inteiro o proprio Filho d’aquellc que pro­ fort, no qual o depozeram do bispado por í
duziu seu corpo. causa dc suas frequentes recahidas, c o I
. Se o Filho da Virgem não é mais que o desterraram para Leão, por toda a s u a /
Filho adoptivo de Deus, de que pessoa da vida, que elle terminou sem se desenga­
Trindade é elle Filho? Sem dúvida da pes­ nar. Veja-se o Padre le Coinle, anno 779,
soa do Filho, que tomou a natureza hu­ n. 1617.
mana, e portanto não será mais que o Fi­ flagellantes— Penitentes fanaticos e
lho adoptivo do Padre Eterno. atrabiliarios,~que se açoutavam desapieda-
É um engano pretender-se provar que damente, e que attribuiam á disciplina
Jesus Christo não é propriamente Deus, maior virtude para apagar peccados, do
por se dizer que Deus estava n'elle: por aos sacramentos.
quanto se deveria também dizer que o Não ba cousa mais conforme ao espirito
Verbo não era Deus, nem também o mes­ do Christianismo, que a mortificação da
mo Padre, porque diz Jesus Christo: Meu carne o dos sentidos; S. Paulo castigava o
Pae está em mim, e eu estou em meu Pae. seu corpo, e o reduzia á escravidão: este
Provou-se que Felix d’Urgel applicava mal espirito povoou de penitentes os desertos l
a s passagens dos padres, ou que as trun- do Oriente, aonde elles practicavam incrí­
cava, como também que todos eram con­ veis austeridades: não parece que as fla-
trarios ao seu sentimento.1 gellações voluntarias fizessem parte d’estes
rigores, mas é sem dúvida que os tribu-
1 naes civis se serviam d’ellas no castigo dos
Alcuin loc. cit. Paulino de Equilea;
Bento d'Aniane; as cartas do papa Adriano criminosos.2
no concilio de Francfort, que se acham nos 01havara-se pois as disciplinas como ex-
concilios de França do P. Labe, t. 7, pag.
104. Simondo t. 2: na Bibliotheca dos pa­ 1 Veja-se a reftUação de Nestorio, no seu
dres t. 4, pag. 2, «os Concilios do padre artigo.
Labe, t. 7, pag. 1014. 2 Boileau. Hist. des Flagellans, c. 9.
464 FLA
piações: os açoutes de Jesus Christo, e os indignado contra as depravações do século
exemplos dos apostolos, e dos martyres, fi­ e que a rogos da Bcmavcnturada Virgem
zeram vêr as flagellações voluntarias não c do mesmo anjo, respondera que se os
só como obras satisfactorias, mas tambem pcccadorcs queriam obter misericórdia, de­
como obras meritorias que podiam obter o via cada um sahir da sua patria, c açou-
perdão dos pcccados dos que executavam tar-se por trinta e quatro dias; cm memo­
sobre si esta mortificação, como também ria do tempo que Jesus Christo vivera no
d’aquelles pelos quacs eram oíTerecidas: mundo: assim fizeram innumcravcis pro­
cilavam-se exemplos de condcmnados, res­ selytos. Clemente vi condemnou esta seita:
gatados por este meio; a superstição e a os bispos da Allemanha, na conformidade
ignorância receberam ávidamente simi- do seu breve, prohibiram as associações
íhantes imposturas, e assim vieram a ser dos flagellantes, e a seita se dissipou.1
as flagellações frequentes no undecimo e Ella porém tornou a apparecer cm Mis-
duodecimo* século. nia pelo principio do decimo quinto século,
Finalmente estas idéias produziram pelo cm 1414.
fim do décimo terceiro século (cm 12C0) a Um certo Conrado renovou a fabula da
scita dos flagellantes, da qual um monge carta posta pelos anjos sobre o altar de S.
' de Sancta Justina de Padua refere o nas­ Pedro, que instituía a flagellação: asseve­
cimento da maneira seguinte: rava ser aquclla a época do fim da autho-
«Estando toda a Italia, diz ellc, submer­ ridade do papa e dos bispos, os quaes ti­
gida em peccados c vi cios de toda a espe- nham perdido toda a jurisdicção na Igreja,
cie, d’improviso se ingirc uma superstição depois que se estabelecera a sociedade dos
inaudita, primeiramente entre os perusia- flagellantes; que os sacramentos já não ti­
nos, logo depois entre os romanos, e final­ nham virtude; que a verdadeira religião
mente por quasi todos os povos da Italia, sómente existia entre os flagellantes, e que
pe tal sorte se tem apoderado d’elles o ninguém podia salvar-se senão fazendo-se
[emor do juizo final, que as pessoas no- baptisar no proprio sangue. O inquisidor
orcs,as de baixa esphera,c de todo e qual­ fez prender estes novos flagellantes, e fo­
quer estado, se poem quasi nuas, e andam ram queimados mais de noventa.2 Se os
em procissão pelas ruas, levando cada uma flagellantes se tivessem feito mais podero­
seu açoute, e fustigando-se com elle nas sos que o inquisidor, o teriam feito quei-
costas, até sahir o sangue; arrancam do ,mar a elle, c a todos os que não se quizes-
peito sentidas queixas c dolorosos suspi­ sem açoutar.
ros, c derramam rios de lagrimas: estes Ainda hoje ha confrarias de flagellan­
exemplos de penitencias produziram logo tes em Italia, Hespanha, e Allemanha, que
felizes eíTeitos, vendo-se muitas reconcilia­ devemos distinguir muito d’estcs sectarios
ções, restituições, etc.» de que acabamos de tractar. O padre Ma-
Repentinamente se espalharam estes pe­ billon viu em Turin, na sexta-feira sancta,
nitentes por toda a Italia, mas foram dimi­ uma procissão de flagellantes assalariados:
nuindo, porque o papa não quiz appro- «Principiaram a açoutar-se, diz ellc, na
val-os, nem os principes lhes permittiram igreja cathedral, muito lentamente, cm-
fundações nos seus estados.1 quanto não chegava sua alteza real, que
-Quasi um século depois que esta seita não tardou meia hora; mas tanto que ap­
appareceu a primeira vez, uma peste que pareceu este principe, descarregaram um
se sentiu na Allemanha, no meio do decimo chuveiro de golpes sobre as espaduas, já
quarto século, a fez resuscitar de repente. dilaceradas, c então sahiu a procissão da
Corriam os sectarios em cardumes por o igreja. Seria uma instituição muito pia se
paiz todo; tinham um chefe principal, e ou­ estas pessoas se fustigassem assim por um
tros dous superiores, aos quaes. obedeciam pesar sincero de seus peccados, c com a
cegamcnte; arvoravam nas suas procissões intenção de fazerem uma penitencia públi­
um estandarte de séda carmezim, pintado, ca, e não por darem ao mundo uma espe-
e assim percorriam pelas villas e cidades. i cie de espectáculo.»3
Atropellava-se o povo para gosar de um Gerson escreveu contra os flagellantes,
tal espectáculo, e tanto que estava junto se e se persuadia que os prelados, parochos,
açoutavam c liam certa carta que diziam
ser, em substancia, a que um anjo havia 1 D*Argentréj Collect. Jud. I. 1,pag. 361.
trazido á Igreja de S. Pedro de Roma, .pela Natal Alex. in scec. 13 et 14. Boileau, loc.
qual o anjo declarava estar Jesus Christo cit.
2 Cont. de Fleury, t. 21, pag. 206.
1 Boileau, ibid. 3 Musceum Italicum, pag. 80.
FRA 465
e doutores, deviam reprimir esta seita com ctissima Trindade. A scita dos socinianos
suas cxhortações, e os principes com sua produziu a dos deistas, que acharam mais
autlioridade.1 O abbadc Roileau impugnou conforme á razão não admittir nem mys­
as flagcllaçõcs voluntarias,2 mas o padre terio nem revelação divina.
Gretzcr tornou a sua defesa; M. Thiers es­ Vieram depois os materialistas, os atheus
creveu contra a historia dos flagellantes: systematicos, e pretenderam que a espiri­
esta refutação 6 prolixa, fraca, c enfado­ tualidade e a immortalidade da alma, a na­
nha. 3 tureza c os attributos da divindade apre­
füàsça,— Breve noticia do scisma dc sentavam mysterios impenetráveis e até
França durante a primeira revolução—A contrarios á razão, e que não deviam ser
historia da seita dos scismaticos francezes,menos rejeitados do que a revelação c os
que esteve a separar da igreja catholica a mysterios do Christianismo.
França e os paizes por esta invadidos, está Estes systemas d’incredulidadc que ti­
necessariamente ligada com a da revolu­ nham fermentado e feito muitos estragos
ção franceza, que a produziu e a fez ser­ nos paizes protestantes, principalmente na
vir á execução dos desígnios da impiedade. Inglaterra, manifestaram-se na França des­
Para bem conhecer a sua origem, fins, pro­ de o começo do século xvm, onde forma­
gressos, o diversas vicissitudes, cumpre to­ram uma seita com o bello nome de philo­
mar as cousas de mais alto, e recordar a sophia, e se espalharam por meio do abu­
historia da seita dos impios conjurados con­so de todo o genero de talentos com um
tra a religião, que executou successiva- ardor que pareceu chegar a frenesi.
mente, durante a revolução, todos os seus Esta nova seita conjurada contra a reli­
projectos contra a igreja catholica e contragião, igualmenlc conspirava contra a mo­
o Christianismo em geral. narchia. Excitando para seus fins todas as
paixões, havia obtido os mais funestos re­
sultados, tinha-se apossado do imperio da
CONSPIRAÇÃO DOS MAL CHAMADOS PHILOSOPHOS opinião, e posto quasi todos os espíritos era
CONTRA A RELIGIÃO fermentação; assim, os symptomas d’uma
revolução religiosa e politica se desenvol­
veram com rapidez assustadora nos annos
0 espirito revolucionário, que se mani­ que precederam a convocação dos Estados
festou no século xvi, e que tantas pertur­ Geraes em 1789.
bações produziu na christandade, nao ces­ Esta assembléia, que segundo as fôrmas
sou desde então de fermentar na Europa, antigas do reino devia compôr-se do clero,
c a revolução do século xviu não póde dei­ nobreza, c terceiro estado, deliberando por
xar de ser considerada como obra sua, e ordem, foi mudada desde a sua abertura
o complemento dos seus trabalhos. pela fusão das tres ordens n'uma assem­
Os chamados reformadores do século bléia nacional, e desde então tudo deixou
xvi rejeitando a autlioridade da Igreja em prever funestas*consequencias.
matéria de religião, proclamaram a sagra­ As assembléias das provincias, nomean­
da Escriptura como a única regra da fé, e do os deputados aos Estados Geraes, tinham
entregaram a sua interpretação ao juizo declarado nos diplomas a sua vontade po­
particular, ao espirito privado de cada um sitiva de manter a religião catholica, im­
dos christãos. Reunidos todos na conjura­ pondo expressamente este dever a seus de­
ção formada contra a Igreja, haviam logo putados; porém os mandatos d'estas assem­
aividir-sc entre si sobre o symbolo da fé bléias foram annullados; os deputados pro­
que deviam adoptar, e ha trezentos annos clamaram-se representantes de toda a na­
que os seus successores não teem podido ção, e por consequência livres e indepen­
jamais concordar a este respeito. dentes de todas as clausulas e restricções
Sujeitando a interpretação da Sagrada postas aos seu poderes.
Escriptura ao juizo da razão, Zuinglio e A assembléia nacional apressou-se a des­
Calvino rejeitaram o dogma da presença envolver o plano d’ataque formado contra
real de Jesus Christo e o mysterio da San- a religião, mas evitou muito mostral-o no
seu complexo e nos monstruosos 'excessos
1 Gei'son, t. 2, pag. 660. que o haviam d’assignalar ao horror do
2 Hist. Flagellantium. mundo.
3 Dc Spontanea Disciplinarum seu Fla­ Para não.sublevar o povo, ainda geral­
gellorum Cruce, Colonice 1660, in-12. Criti­ mente affeiçoado á religião catholica, feve
que de 1'Histoire des Flagellans, par J. B. a politica de conservar a principio todo o
Thiei'S. culto externo, até os ministros da Igreja
30
466 FRA
nos diversos graus de gcrarchia; mas pro- os directorios dc departamentos ou de dis­
curou-sc quo elles fossem menos os minis­ trictos designarão aos eleitos qualquer bis­
tros da Igreja do que delegados do poder po a quem deverão recorrer para recebe­
civil, e com este intuito se fizeram leis, que rem d'cll« a sua confirmação.»
transtornaram a disciplina geral da Igreja, Facil era conhecer quanto estes artigos
atacaram o dogma, e originaram a pro- decretados pela assembléia nacional eram
scripção do clero catholico. contrarios aos princípios e governo da igre­
ja catholica, porque são dogmas da fé ca­
CONSTITUIÇÃO C1IAMADA CIVIL DO CLERO tholica professados em todo o tempo e cm
toda a parte.
A assembléia principiou dando o grande 1. ° Que Jesus Christo estabeleceu uma
golpe- meditado c provocado, havia muito ordem de pastores para governar a Igreja,
tempo, pela seita dos impios: com o pre­ e que para este fim lhes deu um poder e
texto de soccorrer o estado, confiscou para jurisdicção espiritual, distincta, e indepen­
a nação todos os bens ecclesiasticos, e logo dente do poder temporal.
depois attentou até aos direitos espirituaes 2. ° Que para exercer o ministerio eccle­
e á liberdade da Igreja, dando-lhe uma siastico não basta ser ordenado, mas que
nova constituição, que perfidamente intitu­ é necessário também receber a missão da
lou constituição civil, para fazer acreditar authoridade da Igreja; principio opposto
que não tocava no espiritual. em todos os séculos a todos os novadores
Eis-aqui as suas principaes disposições: e especialmente aos heresiarchas do sé­
«As dioceses terão (sem concorrência da culo xvi. 1
authoridade ecclesiastica) uma nova de­ 3. ° Que os aclos de jurisdicção exercidos
marcação, que será conforme á dos depar­ sem a missão da Igreja são radicalmente
tamentos. invalidos e dc nenhum efleito.2
(Por efleito d’esta primeira disposição 4. ° Que existe uma gcrarchia ecclesias­
>upprimia-sc um numero considerável de tica instituída por Jesus Christo; que o pa­
intigos bispados e se erigiam alguns no- pa, bispo de Roma,jtem um primado de
/os.) honra c jurisdicção a que os fieis, sacerdo­
«Os bispos serão nomeados pelas assem­ tes, e bispos devem cega obedieucia.3
bléias populares e confirmados pelos me­ ò’.° Que os bispos, cuja cabeça é o papa,
tropolitanos, sem recorrerem á saneia sé são estabelecidos para governar a Igreja, e
para a instituição cauonica. que 'são de direito divino superiores aos
«As dioceses" serão administradas por um presbyteros.4
conselho de sacerdotes de que os bispos Todos estes dogmas da doutrina catho­
somente serão os presidentes. lica eram manifestamente atacados c vio*
«Na vagatura das sés episcopaes a admi­ lados por leis puramente civis, que tinham
nistração das dioceses pertencerá de pleno por objecto mudar as leis da Igreja sobre
direito a um sacerdote designado pelos de­ a instituição dos seus ministros, ç attribuir
cretos. aos metropolitanos contra as disposições ca­
«Os parochos serão igualmente nomea­ nônicas a authoridade de dar aos bispos
dos pelos eleitores leigos, e este titulo de eleitos a confirmação, que só podiam re­
nomeação lhes bastará para exercerem va- ceber do papa; não deixar aos bispos ou­
lidamente as suas funeções. * tras relações com o papa, senão as de
«Todos os membros do clero, bispos, pa­ uma declaração irrisória de communhão
rochos, e outros com o titulo de benefícios com elle; não* reconhecer a jurisdicção es­
ou oflicios serão obrigados a dar o jura­ piritual de bispo algum residente fóra de
mento de guardar a constituição decretada, França, sem ainda exceptuar a do papa re­
sob pena dc destituição de seus benefícios, sidente em Roma; finalmente tirar a uns
empregos, o funeções, incorrida só pelo fa- pastores a jurisdicção espiritual, e confe-
cto da recusa do juramento. ril-a a outros; restringil-a a estes, e am-
«Proceder-se-ha á eleição de novos titu­ plial-a áquelles; subordinar a authoridade
lares para substituírem os bispos, paro­ dos bispos a um conselho de sacerdotes; e,
chos, e os mais que recusarem o jura­ na vagatura das sés episcopaes, attribuil-a a
mento.
1 Cone. Trid. ses. 23, can. 7.
ARTIGO ADD1CI0NÀDQ Á CONSTITUIÇÃO 2 Professio fidei, ju x ta dispositionem
cone. trid. prcescripta.
«Na falta dos metropolitanos ou dos an­ 3 Cone. Trid. ses. 14, c. 7.
tigos bispos que recusarem o juramento, 4 Ibid. ses. 23, cap. 4.
FRA 467
um sacerdote chamado pelos decretos á ad­ Entretanto a assembléia nacional tinha
ministração das dioceses, que a Igreja con­ decretado outros sele artigos conformes aos
fiava aos cabidos das cathcdraes. primeiros cinco; logo depois, para segurar
Rcsultava pois dos princípios catholicos, a execução d’estes decretos, tinha passado
que todos os bispos, parochos, e outros com um novo, pelo qual prescrevia, debaixo de
cura d’almas, estabelecidos em execução graves penas aos bispos, vigários geracs,
da constituição civil do clero, não tinham parochos, directores de seminarios, e mais
jurisdicção alguma espiritual, que eram scis- encarregados de funeções ecclesiasticas o
maticos, separados da communhão dos le­ darem. iTum tempo d*cterminado, o jura­
gitimos pastores e intrusos, estabelecidos mento de guardar a constituição decretada.
unicamcule pelo poder leigo. De sua exis­ O rei escreveu novamente ao papa, par­
tência, cm virtude da constituição decreta­ ticipando-lhe que se via obrigado a sanc-
da pela assembléia nacional, tiveram cllcs cionar este ultimo decreto, c chegava a pe­
o nome de constitucionaes. dir-lhe que interpozesse a sua authoridade
para lhe legitimar a execução, e que ex-
hortasse os metropolitanos e os bispos do
CORRESPONDÊNCIA DE PIO VI reino a consentirem nas mudanças intro­
0 0 M 0 REI LUIZ XVI duzidas pela nova constituição.
SOBRE A CONSTITUIÇÃO CIVIL DO CLERO A congregação dos cardeaes annunciada
pelo papa celebrou-se efiectivamente, c exa­
minaram-se n’ella successivamente todos
Logo que o summo pontifice foi sabedor os artigos decretados: para remover toda
dos primeiros artigos decretados pela as­ a suspeita de malevolência ou precipitação,
sembléia nacional com o titulo de consti­ resolveu-se unanimemente que era neces­
tuição civil do clero, sua sanctidade man­ sário exigir os sentimentos dos bispos de
dou fazer em Roma preces públicas, e es­ França sobre a materia proposta, e sobre
creveu ao rei uma carta em que lhe pedia os meios, se alguns podessem indicar, de
com instancia que não desse a sua sanc- conciliar os mesmos artigos com os princí­
çáo a estes artigos para não fazer cahir a pios da desciplina ecclesiastica.
nação no erro, c o reino no scisimç E para Porém a assembléia nacional avançava
que as suas exhortações e supplicas fizes­ com rapidez: o decreto do juramento tini
sem no espirito do rei mais profunda im­ sido sanccionado, e logo posto em execuç;
pressão, sua sanctidade dirigiu ao mesmo
tempo dous breves, um ao arcebispo de
Bordcus, ministro (Testado, e outro ao ar­ PRESTAÇÃO DO JURAMENTO RIGOROSAMEN"
cebispo de Vienna, chancéller, advertin­ EXIGIDA
do-os paternalmcnte queajuntassem os seus
conselhos aos d’cllo para com o rei, a fim
de o desviar de conceder uma saneção, que A constituição civil do clero foi confun­
introduziría o scisma na França, e entre­dida com a constituição politica decretada
garia as igrejas a pastores intrusos e sempela assembléia nacional. 0 juramento pro­
authoridade c jurisdicção espiritual.1 scripto estendia-se sem cxcepção a todos
Da sua parte Luiz xvi escrevia ao papa os decretos, c era exprimido n’estes ter­
e lhe pedia que approvasse provisional- mos: Juro guardar com todo o meu poder
mente os cinco primeiros artigos decreta­ a constituição do reino decretada peta as­
dos, aos quaes elle se vira obrigado a darsembléia nacional, c acceite pelo rei.
a sua saucção. 0 papa sentia-se pczaroso Os ecclesiasticos, membros da assem­
por não poder conceder a approvação pe­ bléia, tinham proposto uma formula que
dida; mas desejaudo tirar aos inimigos da restringia o jurameuto aos objectos pura-
Igreja todo o pretexto de o accusarem de mente civis; mas foi rejeitada, e exigiu-se
não querer prestar-se a via alguma de con­a prestação pura e simples do juramento
ciliação, respondeu que ia examinar com decretado.
madureza n’uma congregação geral dos Era chegado o dia designado para ulti­
cardeaes os artigos de que se tractava, c mo praso, 4 de janeiro de 1791, e os mem­
pedia ao rei que os fizesse também exami­ bros ecclesiasticos da assembléia foram
nar por todos os bispos do seu reino, c lhechamados para pronunciar a cathegorica
désse a saber os sentimentos d’estes. formula pura e simples do juramento.
Todos os bispos, em numero de trinta, e
i Breves de 10 de março e de 13 d'abril seguindo seu exemplo os ecclesiasticos da
de 1791. segunda ordem a recusaram com invenci-
*
468 FRA
vel constanda, c nào houve nem um só res sentimentos, ao que o cxhortava com
prejuro. bondade paternal.
Dosde o dia seguinte em diante, grande Esta carta ao cardeal de Brienne ora da
numero ^ecclesiasticos que tinham dado o 23 do fevereiro de 1791, c a 10 do marco
juramento nas sessões precedentes o retra­ seguinte o papa dirigiu aos arcebispos e
ctaram, declarando que nào tinham enten­ bispos, membros da assembléia nacional
dido dal-o senào para os objectos tempo- um breve cm que discutia succcssivamentó
raes, e nào para o que tocava no espiri­ todos os artigos da nova constituição da
tual. clero, c mostrava como cila se oppòe aos
Tractou-sc de fazer executar sem demo­ princípios da fé catholica, ás leis geraes da
ra a lei do juramento cm todo o reino c disciplina ecclesiastica, á doutrina dos pa­
até na Corscga: mas experimentou-se uma dres da Igreja e definição dos concilios, ás
resistência quasi geral; um arcebispo so­ maximas representadas até então em Fran­
mente e tres bispos de França, o famoso ça—pelo clero e pelo poder civil—como sa­
cardeal de Brienne c os bispos d’Antun, o gradas e invioláveis; comparava os artigos
d’Orleães e de Viviers foram os unicos que da constituição com diversas heresias con-
se deixaram arrastar pela seducçào ou aba­ demnadas pela Igreja, e provava que são a
ter pelo temor. Cento vinte e sete se con­ sua renovação. Accrescentava que sem em­
servaram fieis. bargo se absteve de declarar separados do
O maior numero d’ecclesiasticos da se­ seio da Igreja os authores da constituirão,
gunda ordem oppôz igual fortaleza e resis­ e que julgava dever usar de toda a doçura
tência. Ate em Paris, onde particularmen­ e paciência para evitar um scisma deplo­
te se tinham empregado todos os meios de rável, c trazer a paz ao clero c á nacão.
seducçào e terror, d’oitocentos sacerdotes
occupados nas funeções do sagrado minis-
erio, setecentos e trinta permaneceram CONSUMMAÇÀO DO SCISMA PELAS ORDENAÇÕES
nílexiveis; e de quarenta conegos da me- DE BISPOS CONSTITUCIONAES
ropole, só um prevaricou.
Os bispos passaram nas suas dioceses
cartas patentes para justificar a recusa— A assembléia nacional, sem se conter
que fizeram—do juramento, c para preca­ com as reclamações do papa e dos bispos
ver o clero e os .fieis contra a cxecuçào dos proseguia os seus desígnios, e precipitava
decretos scismaticos da assembléia. o reino no scisma; já em execução dos seus
decretos, a 24 de fevereiro, o bispo d’Au-
lun assistido dos bispos in partibus, de Ba­
j u íz o d o u t r in a l d o p a p a bylonia c de Lidda, linha ordenado dous
SOBRE A CONSTITUIÇÃO CIVIL DO CLERO bispos, um para Quimpcr e outro para
Soissons; a 27 do mesmo mez o bispo de
Lidda, assistido dos dous novos bispos, or­
O arcebispo de Sens tinha querido, em denou outro para Dax, c a G de março or­
uma carta ao papa, justificar-se de ter denou mais quatro, um para Beauvais, ou­
prestado o juramento, c da execução que tro para Evreux, o terceiro para Moulins,'
pretendia dar por sua authoridadc espiri­ o quarto para Chaeauroux, e ellc mesmo
tual aos decretos da assembléia nacional. foi nomeado e estabelecido arcebispo de
O papa na sua resposta o reprehendeu Paris. D’esta sorte as ordenações se multi­
com rigor da sua prevaricação, e lhe disse: plicaram successivamente nos departamen­
«Que nào podéra fazer á purpura roma­ tos. Os novos bispos empregaram nas fune­
na, com que era decorado, maior des- ções os sacerdotes que deram o juramento,
honra do que a de dar o juramento, o qual e ordenaram de novo quantos poderam, sem
era contrario aos juramentos os mais san­ escolha e sem decencia, a fim de formarem
ctos e solemnes a que estava ligado; que para si um esqueleto de clero.
continha um aggregado e o suca) de muitas Tal é a genealogia dos bispos e mais mi­
hwesiaSj e què aquelles que o haviam pre- nistros constitucionaes.
scripto nào tiveram outro fim debaixo do
pretexto de reforma senão o de airu in ar
CONDEMNAÇÃO DAS ORDENAÇÕES
a religião catholica pelos seus fundamen­
CONSTITUCIONAES
tos.»
O papa ameaçava também o arcebispo
de o despojar da sua dignidade de cardeal Informado da consummaeão do scisma,
(o que depois fez), senão voltasse a melho­ o papa não hesitou era pronunciar as pe-
FRA 469
nas incorridas por clTcito das ordenações copal os bispos d’Autun, de Babylonia, c
religiosas. Lidda, sacrilegos consagrantes ou assisten­
O summo pontifice tinha recebido a Ex­ tes, c suspensos do excrcicio da ordem sa­
posição dos princípios sobre, a constituição cerdotal, e de todas as outras todos aquel-
civil* do clero, assignada por todos os arce­ les que por seu auxilio, obra, consenti­
bispos e bispos, membros da assembléia; sa­ mento ou conselho, tiverem contribuído
bia que a generalidade dos outros bispos para estas exccrandas sagrações.»
lhe adheria, e tinha conhecimento das car­ «Prohibe depois, debaixo da mesma pe­
ta s c instrucçõcs pasloraes dos bispos pu­ na de suspensão, aos bispos sacrilegamente
blicadas contra o juramento, c contra a ordenados o exercerem qualquer funeção
constituição civil do clero, seu objecto. Em de jurisdicção episcopal, declarando niillo
todos estes cscriplos viu elle os mesmos e de nenhum efleito tudo o que tiverem a
princípios que expozera no seu breve de temeridade d’attentar n’cste genero.»
10 de março, e a declaração solcmnc da «Prohibe também, debaixo da pena de
incompatibilidade da nova constituição com suspensão, aos consagrantes c consagrados
a fé, authoridadc, e unidade da Igreja. Ti­ o exercerem funeção alguma episcopal, e
nha portanto todos os documentos que a declara que todos os que receberem d’el-
sua sabedoria lhe fizera desejar; podia pro­ les algumas ordens, ficarão por isso mes­
nunciar com tanta mais confiança que os mo ligados pela suspensão, e se as exer­
bispos de França tinham declarado o pro­ cerem, incursos na irregularidade.»
prio juizo, submeltendo-o á sua decisão. Para prevenir maiores males, o papa de­
O papa dirigiu pois cm data de 13 de cretou «que todas as mais eleições de bis­
abril de 1791 um breve aos cardeaes, ar­ pos c parochos, que se fizerem de futuro
cebispos c bispos, aos cabidos, ao clero e em conformidade da constituição civil do
ao povo de França. N’clle, drnois de recor­ clero, serão illegitimas, sacrilegas, c de ne­
dar os seus esforços para impedir o scis- nhum efieito, que os eleitos não terão ju
ma e o juizo uniforme dos bispos de Fran­ risdicção alguma ecclesiastica ou espir
ça contra a constituição c juramento, refu­ tual. *
ta os pretextos dos authores do scisma, e «Que os bispos e parochos que tiverei
pronuncia,— «em virtude da authoridadc sido ordenados estarão igualmente sem ji
♦apostólica* com o parecer dos cardeaes da risdicção, da qual nenhum exercicio se po
sancta igreja romana, c em conformidade derão arrogar sem incorrerem na pena de
dos votos (da generalidade dos bispos de nullidadc, e na de suspensão, dc que só po­
França, que todos os arcebispos, bispos, ab- derão ser absolvidos por authoridadc da
bades, vigários geraes, conegos, parochos, sancta sé. Adverte cmtim aos prcvericado-
sacerdotes, e outros quaesquer pertencen­ res que se se obstinarem na sua rebellião,
tes á milicia ecclesiastica, que deram pura não poderá deixar de lhes fulminar o ana­
e simplesmente, como foi proscripto pela thema, e denuncial-os á igreja universal
assembléia nacional, o juramento civico, como scismaticos, e separados da sua eom-
fonte envenenada de todos os erros, c que muuhão.»
não o retractarem dentro de quarenta dias
contados da data do breve, serão suspensos
do exercício de todas as ordens, e sujeitos CONTINUAÇÃO E PROGRESSOS DO SCISMA.
á irregularidade, se algumas exercerem.» PERSEGUIÇÃO CONTRA OS CATHOLICOS
•Declara com especialidade que «as elei­
ções dos novos bispos, que appellida por seus
nomes, e pelos titulos das sés a que eram Os breves de 13 d’abril e dc 10 de mar­
chamados, são illegitimas, sacrilegas, c to­ ço de 1791 foram recebidos e publicados
talmente nullas, e quo olle as cassa, abole, pelos bispos dc França: um condcmnava
e abroga.» os erros capitaes da constituição civil do
«Declara mais e decreta que as sagra­ clero; o outro pronunciava as penas incor­
ções dos mesmos bispos tem sido e são il­ ridas pelos que adheriam a esta constitui­
legitimas, sacrilegas, feitas contra os sa­ ção. Estava dado o juizo pela cabeça su­
grados canones, c quo por consequência prema da igreja, e reconhecido legitimo
os eleitos e ordenados estão sem jurisdicção pela generalidade dos bispos de França.
alguma espiritual para o governo das al­ Que podiam oppôr a uma tal authoridade
mas, e suspensos de todo o excrcicio da alguns bispos ordenados com despréso de
ordem episcopal.» todas as leis da Igreja, e sem titulo algum
«Declara também nomeadamente sus­ de missão ecclesiastica e espiritual?
pensos dc todo o exercicio da ordem epis­ Porém a facção dos constitucionaes ani-
470 FRA
mada pelo espirito revolucionário, e sus­ dotes catholicos, o até aos cadavercs dos
tentada pelas leis, c pelo governo, não es­ que tinham recebido dos mesmos minis­
tava disposta a retrogradar: procurou so­ tros os ultimos sacramentos.
mente pretextos para curar a suarcbcllião Havia muito tempo que o projecto de
e infidelidade, pondo cm dúvida, c até ne­ proscripção dc todos os ministros catholi­
gando a aulhenticidado dos breves do sum­ cos estava decidido: por mais submissos
mo pontifice, e attribuindo-os aos inimigos que se mostrassem ás leis civis, elles eram
da assembléia nacional, e do povo franccz. perseguidos com horríveis calumnias para
Invocou depois as liberdades da igreja os tornar odiosos c provocar contra elles
galicana, e pretendeu que não tendo sido novos furores. Já tinha sido passado o
estes breves recebidos pelo poder civil, decreto de deportação, mas o rei recu-
ainda quando fossem authenticos, nenhu­ sára sanccional-o: c dia 10 de agosto de
ma força tinham, nem produziam obriga­ 1792, que abriu a sepultura á monarchia,
ção alguma, como se pertencesse ao poder livrou os conspiradores da necessidade da
civil impedir o elTeito dos juizos da Igreja sancçào real, c a 2G do mesmo mcz pas­
sobre a constituição divina, e o das penas saram elles o decreto absoluto de depor­
cspirituacs decretadas contra os prevari­ tação dos bispos e sacerdotes catholicos.
cadores. Os constitucionacs pois foram por Quinze dias lhes foram marcados para obe­
diante na execução dc seus planos; as or­ decerem, debaixo da pena de serem depor­
denações dos bispos e sacerdotes continua­ tados para a Guiana Franccza os que não
ram á nuiltiplicar-se, c d’esta sorte a igre­ se conformassem com a lei.
ja scismatica achou-se organisada em todo Viram-se então as estradas cobertas de
o reino. sacerdotes que se dirigiam ás fronteiras; a
Comludo os bispos e sacerdotes catholi­ maior parte foram expostos a ultrajes, rou­
cos, a quem foram prohibidas as funeções bos e maus tractos, e grande numero foi
annexas a seus titulos, conservavam geral- morto, por não obedecer a uma lei tão in­
mcnlc a confiança em nome da liberdade justa como cruel.
dos cultosj cujo principio ainda não tinha Todavia, atrozes precauções tinham sido
sido atacado, e exerciam o seu ministerio tomadas d’antemão para reter victimas: al­
em algumas igrejas ou capellas. A multidão guns bispos e uma multidão de sacerdotes
dos fieis, que recoiTiam a ellcs, atlrahiu- tinham sido présos e mettidos em diversas-
lhes uma perseguição mais ou menos vio­ prisões, em Paris e outras cidades do rei­
lenta, e que se tornou quasi geral até ao no. Chegaram os horrorosos dias 2 e 3 de
decreto da sua deportação. setembro, nos quaes foram mortos o arce­
Os bispos foram expulsos dos logares de bispo de Aries, os bispos dc Beauvais e de
retiro, que tinham escolhido nas suas dio­ Saintes, e perto de duzentos sacerdotes:
ceses. Os parochos e outros sacerdotes fo­ estas matanças multiplicaram-se ao mesmo
ram proscriptos das suas parochias; gran­ tempo em muitas provincias.
de numero d’clles foram lançados nas pri­
sões; a maior parte experimentaram cruéis
ultrajes e maus tractos, e muitos foram h o r r ív e is e x c e s s o s d a im p ie d a d e
deshumanamente mortos.
Os sacerdotes, que pela condescendência
d’algumas administrações tinham dado o Depois da mortandade e dispersão dos
juramento com rcstricções sobre as cousas ministros catholicos, os constitucionaes pa­
espirituaes, foram tractados com tanto ri­ reciam ficar senhores do campo, e já não
gor, como os que o tinham recusado, logo ter rivaes a temer; mas houveram de co­
que se viu que elles não tinham communi- nhecer qne tinham sido empregados e sus­
cação alguma com os bispos constitucio- tentados só com o fim de servirem de in­
naes. strumentos para oppressão do clero catho­
O odio dos intrusos e o furor dos jacobi- lico e para o triumpho da impiedade; e esta
nos exerceram-se até com os simples fieis, armação da igreja constitucional, que fòra
cora as mulheres, e com as religiosas que elevada como uin vão simulacro para en­
não queriam communicar cóm os sacerdo­ ganar o povo e romper todas as relações
tes constitucionaes. Catholicos de todos os com a authoridade ecclesiastica, cahiu de
sexos, idades e condições foram ultrajados, repente á voz da impiedade.
acutilados e açoutados, em consequência do A seita conjurada contra a religião não
que muitos perderam a vida. A raiva se tardou com elTeito a declarar-se aberta­
estendeu aos consortes que tinham feito mente contra os mesmos constitucionaes,
abençoar os seus matrimônios por sacer­ e contra toda a seita que professasse o
FRA 471
Christianismo; cila proscrevia todo o culto á França dos diversos paizes do seu des­
christão debaixo do nome odioso de fana­ terro; mostraram-se successivamente com
tismo, c lhe substituiu o atheismo debaixo liberdade; viram-se cercados da confiança N
da fôrma do culto idolatrico da razão. Ain­ e respeito devido á virtude muito tempo
da fez mais; exigiu dos ministros das di­ opprimida; exerceram o sagrado ministe­
versas communhões christãs um acto pú­ rio com felizes resultados, e ém toda a
blico d’aposlasia; viram-se então ministros parte tiveram a consolação de vér voltar
protestantes entregar-lhe os vasos da ceia, á unidade um grande numero de sacerdo­
e as Sagradas Escripturas; uma multidão tes constitucionacs. Só na diocese de Rouen
de sacerdotes constitucionacs assignar uma se contaram em um anno perto do seisccn-
infame formula de renunciação ao sacer­ tas rctractações. Finalmente, debaixo da
dócio. de verdadeira apostasia, e mais de protecção de uma nova legislatura, que se
vinte bispos d’csta seita abjurar o seu es­ encaminhava ao restabelecimento da reli­
tado, reconhecer que tinham sido uns char- gião c da monarchia, ellcs iam levantar por
latãcs e entregar-se aos mais vergonhosos toda a parte os altares do culto catholico,
excessos. quando uma nova crise revolucionaria (a
Os ministros catholicos foram tractados de 18 de fruetidor ou 4 de setembro de
com mais crueldade, mas ao menos d’um 1797) os pôz outra vez no estado de op-
modo mais horroroso. Foi decretada pena pressão, e os proscreveu com novo furor.
de morte contra os que se subtrahissem á Os ministros constitucionacs sempre pro­
lei de deportação, ou que depois de a te­ tegidos pelas leis viram-se novamente sós
rem soíírido, tornassem a entrar cm Fran­ em posse do exercício do culto público: rc-
ça: grande numero eíTectivamente foi im- uniram-se, reorganisaram-se nos diversos
molado, maior numero ainda pereceu nas departamentos; espalharam escriptos, mul­
masmorras, ou em navios destinados a de- tiplicaram ainda as ordenações sacrilegas
portal-os além dos mares. até se juntarem em Paris n’um suppost
Alguns bispos constitucionacs, Gobel, concilio nacional; fizeram todos os esfoi
Fauchet, Lamourctte, e Roux, pereceram ços e não pouparam meios para sustenta
também victimas da facção a cujos planos â sua igreja vacillante, até a grande époc
tinham servido; e condemnados a uma mor­ da concordata.
te violenta, deram provas de remorsos, re­
nunciando ao scisma c ao erro. Outros bis­
pos mais felizes repararam livremente em CONCORDATA ENTRE O PAPA PIO VII
diversas épocas, c com mais ou menos pu­ E O GOVERNO FRANCEZ
blicidade sua adhesão ao scisma, e gran­
de numero de sacerdotes deu á Igreja a
mesma consolação. Os constitucionaes de nenhuma sorte que­
riam desistir do partido de negar a authen-
ticidado dos juizos emanados da Sancta Sé
SITUAÇÃO DOS SACERDOTES CATHOLICOS sobre a constituição civil do clero, mas a
E DOS CONSTITUCIONAES Providencia permitliu que no meio das suas
DEPOIS DOS TEMPOS DO TERROR victorias na Italia o general Bonapartc che­
gasse a dar a este respeito uma prova que
não deixasse mais logar á iilusão, nem pre­
Quando depois da queda do tyranno Ro- texto á má fé. Ameaçando Roma, tinha elle
bespierre houve alguma liberdade de vol­ exigido que o papa retractasse os seus
tar á profissão, e culto do Christianismo, breves contra a pretenção da igreja consti­
os principaes cabeças dos constitucionacs tucional; porém Pio vi, constante nos seus
trabalharam em reanimar o seu partido: e princípios c fiel á sua consciência, tinha
o reorganisaram com quantos poderam re­ preferido o desterro e o captiveiro, e n el-
unir dos seus adherentes por mais mancha­ les morreu.
dos que estivessem do crime d’apostasia, e Desde a sua exaltação ao throno pontifi­
de outros infames excessos; e assim sus­ cio, o papa Pio vii manifestou os mesmos
tentados pelas leis restabeleceram-se nas princípios do seu antecessor sobre os nc-
funeções do culto público em toda a parte, gocios ecclesiasticos de França. Na carta
onde lhes foi possível. encyclica dirigida aos antigos bispos de
Os ministros catholicos, posto que ainda França, considera-os como os unicos e ver­
sujeitos ao rigor das leis, sahiram de di­ dadeiros titulares, e legitimos bispos; lou­
versos retiros em que se tinham subtrahido va o seu zelo, firmeza e fidelidade a sã dou­
aos furores revolucionários, ou voltaram trina, felicita-o? dos soffrimentos que antes
472 FRA
quizeram supportar, do que manchar-se lhe que se certificasse da sua submissão a
com um juramento execrando, e impio, li­ sancta sé. Dos doze bispos constitucionaes
gar-se pelo crime, c nào obedecer aos juí­ oito sómente recusaram dar ao papa a satis­
zos da sé apostólica. fação exigida. O legado instou com elles para
Quando por motivo de concluir a con­ se renderem; elles resistiram com altivez:
cordata com o governo francoz, Pio vu se queixaram-se ao ministro que os protegia
viu na dura necessidade de exigir a demis­ e este declarou que o governo não queria
são dos bispos, nào a pediu senào aos an­ retractação, mas uma simples adhesão á
tigos bispos, considcrandò-os como os uni­ concordata. O legado não podia transigir
cos legitimos bispos das sés episcopaes da com esta condição nem conceder a institui­
França. ção sem proceder á absolvição das censu­
De muito differente modo tractou os con­ ras, para o que tinha ellc formado um de­
stitucionaes; fez-lhes significar pelo snr. creto que deyia ser entregue a cada um
arcebispo de Corintho, seu enviado junto dos bispos depois de terem dado signaes de
do governo francez— «que se apressassem emenda, c de se mostrarem dispostos a con­
a voltar á unidade, que cada um d’elles formar-se com elles. Este decreto continha
cm cartas dirigidas a sua sanctidade pro­ que aquelle a quem se entregava— «ti­
fessasse uma inteira obediência e subm is-: nha abandonado a sé episcopal, que prece­
sào ao pontifice romano; que declarassem dentemente oecupára sem a instituição da
sinceramente adlierir e plcnamentc sujei­ sancta sé; que tinha promettido a obediên­
tar-se ás decisões da sancta sé sobre os ne­ cia e submissão ao summo pontifice, e ti­
gócios ecclesiasticos de França, e que dei­ nha declarado adherir, e submclter-se aos
xassem logo as sés que tinham occupado juizos emanados da sancta sé sobre os ne­
sem a instituição da sé apostólica.» gócios ecclesiasticos de França;» depois do
Emfim, na bulla da confirmação da con­ que o legado declarava absolvido de Iodas
cordata, supprimindo as antigas sés epis­ as censuras, e dispensado em todas as irre­
copaes para estabelecer novas, o papa no­ gularidades, impondo-lhe por penitencia re­
meia todas as sés taes quaes existiam an­ za r uma vez os sete Psalmos Pcnitenciacs e
tes da revolução, sem comprehendor as no­ obrigando-o a conservar cuidadosamente a
vas sés erigidas pelos decretos da assem­ unidade pelo laço da paz.
bléia nacional, nào lendo portanto, consi­ A grande diÍBculdadc era obter a sub­
deração alguma com a circumscripção das missão dos oito bispos. Monsenhor Ber-
dioceses, feita em execução da constituição nicr, bispo d’Orleans e negociador da con­
civil do clero. cordata, encarregou-se d’islo; obteve d e s ­
D’esta sorte Pio vu, seguia exactamentc ses bispos a assignatura d’uma carta res­
os principios de Pio vr, assim como tinha peitosa dirigida ao summo pontifice; entre­
elogiado o seu zelo, trabalhos, c animosa gou a cada um o decreto d’absolvição, e
dedicacão cm combater os erros, c defen­ atteslou que elles o receberam com o res­
der a doutrina e unidade da Igreja. Com- peito conveniente, e que se conformaram
tudo o governo francez exigiu imperiosa­ com as suas disposições.
mente que muitos constitucionaes fossem Foram pois conceclidas as bullas da in­
comprehendidos no numero dos que se ha­ stituição, e todos os documentos enviados
viam de instituir em execução da concor­ para Roma: o summo pontifice o communi-
data. Era já para elles um grande passo o cou aos cardeaes em uma congregação 1
adherir á concordata, considerar as suas annunciando-lhes que os bispos «tractados
chamadas sés, e titulos como aniquillados, com uma bondade singular e paternal, se
e sujeitarem-se a receber a sua instituição tinham reconciliado com a sancta sé, e que
da authoridade da sancta sé; mas além d is­ tinham satisfeito á Igreja esta divida ne­
to deviam dar uma segurança da sua fé, e cessaria.» 2
uma prova edificativa da sua submissão á
sé apostólica. Sustentados por um celebre 1 Allocução aos cardeaes em 24 de maio
ministro, que foi sempre seu protector, os de 1802.
constitucionaes resistiram abertamente ao 2 A concordata foi assignada em lõ de
que lhes exigira o snr. arcebispo de Co­ julho de 1801, confirmada em Roma pela
rintho, e se limitaram a apresentar a sua bulla,Ecclesia Christi de 15 de agosto se­
demissão nas mãos do governo. guinte, e ratificada em Paris, em 8 de se­
O papa não variou nas suas determina­ tembro do mesmo anno. Em 4 de outubro
ções, e nos poderes que concedeu ao car­ chegou a esta capital o cardeal Caprara,
deal de Caprara, seu legado á latere para enviado pelo sancto padre como seu legado
a instituição dos novos Bispos, prescreveu- a latere, e em 29 de novembro Pio VII pela
FRA 473
Todavia, alguns dos bispos, ate alli con­ Porém quando sua sanctidadc se achou cm
stitucionacs, venao-se instituídos, publica­ Paris cm 1804, elles foram obrigados a as-
ram cm tom de jactancia que nenhuma re- signar nas suas màos uma formula que nào
tractação fizeram, que resistiram a quanto deixava subterfugio á má fé, pois era con­
se lhes exigira, c perseveravam nos mes­ cebida n’cstcs termos: «Declaro na pre­
mos sentimentos. Se os devemos acreditar, sença de Deus, que professo adhesào, e
segue-se que o papa fora enganado por submissão aos juizos da sancta sé, c da
falsas informações, e que clles obtiveram a Igreja catholica apostólica romana sobre os
sua confirmação d’um modo fraudulento. negocios ecclesiasticos de França. Suppli­
co a sua sanctidade que mc conceda a sua
bulla Qui Christi Domini fez a nova cir- benção apostólica.» 1
cumscripção das dioceses. Em 2 d'abril de Em attenção á politica do governo, quo
•1802 a concordata foi communicada ao cor­ queria evitar o estrondo das retractações,
po legislativo, e declarada lei do Estado, o cardeal legado, regulando o prose*gui-
mas por urna fraude que muito affligiu o mento que deviam ter os bispos a respeito
sancto padre Pio VII, o governo fez ado- dos sacerdotes constitucionacs, determinou
ptar pelo corpo legislativo, juntamente com que se exigiría dos que quizessem conci­
a concordata e com o nome de Artigos Orga­ liar-se c o m \ Igreja «a declaração escripta
nicos, varias disposições relativas ao exer­ de adhesão á concordata, e de communhão
cido do culto, disposições tyrannicas, que com o bispo enviado pelo summo pontifi­
iendiam a cscravisar ‘a Igreja. Prohibiam, ce.» Depois d’isto devia o bispo exhortal-os
por exemplo, que os bispos conferissem or­ a pôr cm ordem as suas consciências. •
dens sem annuenda do governo; prescre­ Um grande numero de bispos que qui-
viam que os vigários geraes do bispo conti­ zerani certificar-se melhor da doutrina dos
nuariam a governar a diocese, ainda de­ sacerdotes constitucionaes, exigiram além
pois da morte d1este, contra os direitos do d’isto cm particular a adhesão aos juizos
cabido; regulavam minuciosamente muitos da sancta sé sobre os negocios ecclesiasticos
pontos que pertencem á aulhoridade eccle­ de França.
siastica, e collocavam esta em uma de­ Apesar das declarações assignadas, prii
pendenda absoluta dos agentes do governo. cipalmenle nas dioceses onde sómente s
Estes artigos foram apresentados como a exigiu a prescripta pelo legado, muitos s
fôrma e condição do restabelecimento da cerdotes constitucionacs, imitando o exen
religião catholica em França, e pela data e pio dos bispos do seu partido, jactarain-s^
modo da publicação pareciam fazer parte publicamente que nào fizeram retracta-
da concordata: comtudo, bem longe de serem ção, e persistiram nos mesmos sentimentos
approvados pela sancta sé, pelo contrario que tinham professado antes da concordata.
Pio VII exigiu que se modificassem ou mu­ E’ o que causou mais ou menos desassocc-
dassem os que estavam em opposição ás re­ gos, discordias, e perturbações em diver­
gras da Igreja, e na sua aüocução de 24 de sas dioceses, c princlpalménte naquellas
maio informou os cardeaes das reclamações que eram administradas pelos bispos con­
que a este respeito havia dirigido ao primei­ stitucionaes, que depois da sua instituição
ro consul. canonica tinham manifestado uma escan­
Ultimamente, em dia de Paschoa, 18 de dalosa obstinação nos seus primeiros sen­
abril de 1802, o restabelecimento da reli­ timentos.
gião catholica em França foi solemnisado Porém os mesmos bispos, principalmente
na catliedral de Paris por um Tc-Dcum, a depois do acto de submissão, que assigna­
ue assistiram os consules. O cardeal lega- ram cm Paris nas mãos do papa, guarda­
o celebrou a missa, vinte dos prelados, no- ram ao menos mais comedi mento c mode­
vamente confimnados, deram o juramento, ração; os sacerdotes do seu partido segui­
I e um antigo •prelado de Boisgelin, arcebispo ram o seu exemplo, c pôdc-sc esperar que
- o scisma desarraigado nas igrejas de Fran­
que foi de A ix e agoi'a de Tours, pronun­
ciou um discurso em que mostrou a Provi­ ca pela instituição canonica dos pastores,
dencia servindo-se dos acontecimentos c en­ âeixaria também de dividir os corações, e
caminhando-os ao teimio marcado nos seus de remover a confiança.
deci'etos. Assim a concordata foi uma época FRATRICELLOS OU IRMÃOSINHOS— O d e s e jo
de conversão do povo francez á religião, e de se distinguirem por uma sanctidade ex­

I se cila nao fora, a ignoranda e a immora- traordinaria não era menos vivo na Italia,
lidade continuariam a fazer progressos, e
que seria de Fi'ança? 1 Allocução aos cardeaes em 26 de ju ­
(NOTA DO TRADUCTOR.) lho de 1805.
474 PR A
que na Allcmanba, aonde tinha produzido e até do Christianismo. Não negavam a au­
os beguardos pelo decimo quarto século. thoridade do papa, mas somente a preten­
Alguns frades menores obtiveram de Celes­ diam restringir, .asseverando que as suas
tino v a permissão de viverem como ere­ cxcommunhões não podiam ligar os fra­
mitas, e de practicarem á letra a regra de tricellos: 1.» porque elles tinham sido ap-
S. Francisco. Muitos religiosos. debaixo do provados por Celestino v, e porque um
pretexto de viverem mais retirados, e cm papa não podia destruir o que seu prode­
maior perfeição, sahiram de seus conven­ cessor estabelecera: 2.» porque a sua so­
tos, varios seculares os imitaram, e todos ciedade era aulhorisada no Evangelho
estes, que aspiravam a uma vida mais per­ contra o qual não tinha poder algum o"
feita, se uniram, chamaram-se irmãos e for­ papa: 3.° fmalmente para atalharem toda c
maram uma seita: os franciscanos se ap- qualquer instancia, distinguiram duas igre­
pellidaram irmãos, os seculares irmãosi- jas, uma totalmcnte exterior, rica e pos­
nhos, ou fratricellos, ou bisochos. suidora de domínios c dignidades, na qual
Este tropel de frades sabidos de seus con­ dominavam o papa c os bispos, que por-
ventos viviam sem regra, sein superiores, tauto podiam d’ella excluir os que excom-
e faziam consistir toda a perfeição christã mungavam; outra inteiramente espiritual
na absoluta renuncia de toda a proprieda­ que não se fundava senão na sua pobreza,
de, porque na pobreza consistia o principal c que não tinha outros fundos mais que a s
caracter da regra de S. Francisco, á qual suas virtudes: d’esta era a cabeça Jesus
eram estranhamente afferrados os francis­ Christo, e os fratricellos os membros: o
canos, Macerota, e um outro, que deram papa não linha n’ella imperio algum, nem
principio a esta seita. authoridade, e as suas cxcommunhões a
Os fratricellos passeavam ou cantavam, ninguem podiam excluir d’esta igreja.
c para observarem mais à risca o voto da D'um tal principio concluiram os fratri­
pobreza jámais trabalhavam, receiando por cellos que fora da sua igreja não havia sa­
meio do trabalho adquirir direito a alguma cramentos, que os ministros peccadores não
cousa: da mesma sorte que os massilianos, podiam conferil-os, e desenvolvendo esto
diziam que se devia orar continuamente principio fundamental do seu scisma, reno­
para não cahir em tentação; c se acaso os varam os diversos erros dos donatistas, a l-
arguiam d’ociosos, diziam que a sua con­ bigenses, e valdenses.1
sciência lhes não permittia trabalharem por Espalhando-se por toda a Italia para pré-
um sustento caduco, e só o queriam fazer garem estes desvarios, e amotinarem os
pelo celestial, consistindo este espiritual fieis contra o papa, João xxn escreveu con­
trabalho na meditação, na oração en o can­ tra elles a todos os principes, e encarre­
to. 1 gou aos inquisidores que os sentenciassem
Apesar d’esta austerissima renuncia, os rigorosamente. 2 Os fratricellos, porém, a
fratricellos eram bem providos de tudo: fim de pôrem d.o seu partido os principes,
grande multidão d’artifices, carvoeiros, pas­ que o papa excitava contra elles, mistura­
tores e carpinteiros largaram suas occupa- ram entre os seus erros algumas proposi­
ções, suas casas e seus rebanhos para to­ ções contrarias ás pretenções do papa, sus­
marem o habito de fratricellos: todos os tentando que elles não eram mais succes­
religiosos descontentes do seu estado, prin- sores de Pedro que os outros bispos; que
cipalmente alguns franciscanos, sob pre­ não tinham poder algum nos estados dos
texto d’observarem mais cxactamente a re­ principes christãos, c que eram absoluta­
gra de S. Francisco, deixaram seus con­ mente destituídos de todo o poder coactivo.
ventos, c engrossaram a seita dos fratricel­ A concorrência de todas estas traças sus-
los, os quaes se estenderam pela Toscana, teve por algum tempo os fratricellos con­
Calabria, etc. tra a anthoridade do papa: todavia foram
Viu João xxii o abuso d’estas sociedades, queimados muitos, cuja perda ainda iam
prohibiu-as, e excommungou os fratricellos reparando os novos proselytos: mas final-
e seus fautores.2 Os fratricellos investiram monte não tendo já igrejas nem ministros,
a authoridade, que contra elles fulminava, entraram na presumpção de que aos fra­
fundando-se no especioso pretexto da po­ tricellos assistia todo 6 poder de absolver
breza evangélica, em que consistia a pri­ e de consagrar, e asseveravam ser inútil
meira obrigação da ordem de S.-Francisco, orar nas igrejas sagradas.
Os franciscanos uniram seqs esforços
1 A n n . 1294. D ’A rgentré Collect. Jud.
R a y n a ld . a n n . 1317, n. 56. 1 R a yn a ld ad an n . 4318, n . 460.
2 Ibid. 2 lbid.
GIL 47$
aos do papa para a cxtincção dos íratri- philosophia era reduzida a tractar da sub­
ccllos; c esta seita, depois de luctar por stancia, qual idade, attributos, c dc outras
muito tempo contra os ataques dos papas, abstrações similhantes.1
se dissipou: os restos passaram á Allema- 0 mesmo methodo passou ás escólas de
nha, aonde subsistiram protegidos de Luiz theologia, cujos differentes objectos foram
de Bavicra, inimigo de Joào xxu, c se con­ tractados segundo as regras da dialectica.
fundiram com os beguardos. Os theologos dos séculos precedentes nào
Deu-se o nome de fratricellos indistin- escreviam sobre as verdades theologicas,
ctamente áquella multidão de seitas que senão quando a necessidade de dcfendcl-as
inundaram a Europa no decimo terceiro os obrigavam a tomar a penna; mas tanto
século, e principio do seguinte: todas ellas que a dialectica foi introduzida nas escó­
se precipitaram nas mais horríveis desor­ las de theologia, tractaram os seus diver­
dens, renovaram as infamias dos gnosticos, sos objectos por gosto e por divertimento,
c dos adamitas, asseveraram que nem Je­ e logo appareceu uma multidão de traota-
sus Christo nem os apostolos tinham guar­ dos theologicos.
dado continência, porque tiveram mulhe­ Gilberto de Porréc seguiu o gosto do seu
res suas, ou alheias. Entre estes sectarios século: depois de se haver applicado muito
houve alguns que sustentavam que o adul­ á philosophia, estudou a theologia, e ató
terio e o incesto nào eram peccados, sendo compôz varias obras theologicas, tractando
commcttidos entre os da sua seita.1 os dogmas da religião segundo as leis da
Tal c, com pouca diíícrença, o quadro dialectica. Assim, fallandb da Trindade,
que nos oflercce um século ignorante, pre­ examinou a natureza das pessoas divinas,
cedido d’outros ainda mais, em que nào se seus attributos c propriedades, que difle-
poupavam nem o sangue nem o ferro: toda rença havia entre a essencia das pessoas '
a Europa estava cheia d’exercitos de cru­ suas propriedades, entre Deus e a natun
zados, dc fogueiras, e ^inquisidores: ha­ za divina, entre a natureza divina e os ?
viam-se destruído os hereges, c feito dili­ tributos de Deus.
gencias por corrigir as desordens que clles Como todos estes objectos tinham defir
objcctavam aos catholicos, emprehenden- ções diversas, Gilberto julgou que todos e
do-sc a reforma dos costumes; porem não íes eram differentes, que a essencia ou na
se cuidando em esclarecer os entendimen­ tureza de Deus, a sua divindade, sabedoria,
tos, a mesma reforma, que fòra vista como bondade e grandeza, não eram o mesmo
um preservativo contra a seducçào dos al- Deus, mas a fórma pela qual elle é Deus.
bigenscs c valdenscs, conduziu a todos os Eis-aqui, ao que parece, o verdadeiro sen­
erros, c originou as seitas dos fratricellos, timento de Gilberto de Porrée; d’csta ma­
dos beguardos, dc Sagarel, etc., porque não neira olhava elle os attributos de Deus e a
tinha por principio senão uma piedade sem divindade como fôrmas differentes, e Deus
luz. ou o ente soberanamente perfeito como a
ngNiiLis v^f.ENTrM—Vcia-sc Socinianos. collecção d’estas fôrmas: este era o seu
erro fundamental, d’onde tinha concluido
Gi l b e r t o ^ ík\ p o r r é e —nasceu em Poitiers
no líu^cnvurseculoTIS^cssc tempo se ha­ que as propriedades das pessoas divinas
viam multiplicado no Oriente as escólas de não eram estas pessoas, e que a natureza
philosophia e de theologia, aportaram á divina não tinha encarnado.
França os livros d’Arisloteles, os commen­ Conservava Gilherto os mesmos princí­
tarios que Averroés fez ás obras d’aquclle pios quando foi eleito bispo de Poitiers, e
philosopho, as interpretações de Porphirio, os explicou n’um discurso que fez ao seu
e as cathcgorias attribuidas a Sancto Agos­ clero. Arnaldo e Calon, seus dous arcedia-
tinho. 2 gos, o denunciaram ao papa Eugênio in,
A logica cm que consistia quasi toda a que estava então em Sena, a ponto de pas­
philosophia, não era mais do que a arto de sar á França, aonde, logo quo chegou, fez
ordenar os objectos cm certas classes, dar- examinar a accusaçào em que lhe delata­
lhes diversos nomes, analysar, por assim di­ vam o bispo de Poitiers.
zer, estes mesmos nomes, distinguir as dif­ Este prelado foi chamado a uma assem­
ferentes qualidades d’objectos, e assignalar bléia, havida em Paris em 1147, e depois
às suas diversidades c relações. Toda a ao concilio de Reims celebrado no anno
seguinte, no qual foram condemnados seus
1 D 'A rgcntrc loc. cit. sentimentos. Gilberto se retractou, e se re­
2 D uchesne, t. 4, pag. 259. Mabillon. A n - conciliou sinceramente com os seus arce-
nal. Bened. I. 71, pag. 88. H ist . L ittéra ire
de F ranco, t. 9, pag. 45, 180. 1 Hist. L itt. t. 7, pag. 130.
476 GNO
diagos. Alguns de seus discipulos insisti­ vangloriavam d ensinar uma doutrina ele­
ram no erro, mas não formaram partido. vada e diíficil; mas 6 sem dúvida que os
Eis-aqui pois um philosopho que reco­ padres e authores ecclesiasticos deram este
nheceu sinceramente que se enganara, e nome .aos discipulos de Simão ou basili-
seus discipulos não fazem uma seita re­ dianos. etc. '" • ” _
belde c facciosa: igualmente aconteceu o ~~Comtudo Sancto Epiphanio, Sancto Agos-
mesmo a Abaelardo, c no mesmo século.1 tinlio, etc., nos faliam dos gnosticos como
O erro de Gilberto de Porrée destruía, de uma seita particular, que tomara e*to
como temos visto, a simplicidade de Deus; nome por se persuadirem seus sectários
por esta consequenda impugnou S. Ber­ d’entender melhor as cousas divinas do
nardo os seus princípios. Parece que este que os d’outras seitas. Sancto Epiphanio
bispo suppunha que a substancia de Deus principalmentc falia dos gnosticos como dc
não tinha por si mesma os attributos ou uma seita que conhece, e que JÀnliauima
as propriedades que constituem a divin­ dputcina,aai;lLç.uJ.ar, que elle alcançára pela
dade, mas que a collecção d’estes attribu­ lição dos livros que os gnosticos tinham
tos, que são a divindade, era uma especie composto; o que não se oppunha ao uso,
dc fôrma que se unia á substancia divina, que era frequente, do darem o nome de
ou que ainda mesmo lhe não era essencial. gnosticos aos que haviam adoptado alguns
Portanto o Ente Supremo, ou o ente por dos princípios dos mesmos: fóra dUsso"não
si mesmo, segundo Gilberto de Porrée, não se oppõe cá opinião de Sancto Epiphanio
era cssencialmente eterno, sabio, bom, etc., alguma objecção real. Seja porém como
porque não encerrava na sua ideia a col­ quer que fôr, nós vamos cuidar em des­
lecção dos attributos que faziam a divin­ crever quaes eram os princípios geraes
dade. A substancia do ente necessário não dos gnosticos, e como estes princípios, ado-
era Deus senão porque a collecção d’estes ptados successivamentc por diversos here­
attributos estava unida á sua substancia. ges, tomaram varias fôrmas, e produziram
Persuadimos-nos porém não dever con- differentes seitas.
fundir-se a opinião dos escotistas com o. S. Paulo adverte a Thimotheo que evite
erro de Gilberto de Porrée, porque aquelles-^as novidades profanas, e todas as opposi-
na
...........
verdade
— ..................
créem que ................
os attributos
$ões, quedeobjecta uma sciencia falsamente
Deus são distinctos da sua essençia, mas-: chamada gnose, a qual tem desencaminina­
créem comtudo que nascem necessaria­ do a alguns que d’ella fazem profissão, e
mente d’esta esscncia, como da sua fonte, que se não deixe embelecar com fabulas e
ou do seu principio; e que a existência por genealogias sem fim, que mais servem para
si mesmo encerra necessariamente a infi­ excitar disputas, que para estabelecer pela
nidade, a intelligencia, a bondade, e todas fé o edifício de D eus.1
as perfeições. Segundo estas passagens de S. Paulo, e o
gnosimaco—Este termo é composto de sentir de Sancto Epiphanio, parece que o
duãTpalavras gregas: genosis, que significa caracter principal da gnose era iniqginar
scienda, c malte, que significa destruição. multidões de gerações dc eonas,2 ou dc
Deram este nome a certos hereges do sé­ genios a qué^ínxmül«áffTarprôduc-cão do
timo século, que condemnavam as scien- mundo, e todos os acontecimentos: eis-aqui
cias, e todos os conhecimentos, ainda os verosimilraente a origem de seu senti­
mesmos que se adquiriam pela lição da Sa­ mento.
grada Escriptura; porque para alcançar a /-Reconheciam os gnosticos um Ente Su­
salvação, era necessario viver bem, e não premo que existia por si mesmo, e que
ser sabio.2 dava existência a todos os entes; porém
GNosTicos—Este nome significa homem crêram encontrar no mundo algumas ir­
sabio o ftmoso. Os primeiros heregès o regularidades, desordens, e contradicçõcs,
tomaram, porque se jactavam de ter co- ítTonde colligiram que o mundo não sahira
r»ho/»im
nhecimentos í»ntnc e
/» luzes nvtmnrflinnrinQ E
ln*oc extraordinarios. F .immPfliflfflmfillíft
immediatamente rin mim*; do
dass mãos rln Ent.p. Snnrfi-
Ente Supre­
uma questão entre os sábios se os gnosti- mo, soberanamente sabio, e infinitamente
cos constituiam uma seita particular, ou; perfeito. Era forçoso, no seu sentir, que
se se dava este nome a todos os que se
1 Prim a ad Thimoth. 6, v. 20. Iianiond.
1 Vejam-se- acerca de Gilberto de Porrée, Dissert. de Jure EpiscopatuSj applica aos
Pelau, Dogm. Theol. 1 .1, l. 2, c. 8. D'Argen- gnosticos grande numero de passagens de
tré, Colleçt. Jud. Dup. X II siêcle, c. 8. Nat. S. Paulo.
Alex. Hist. Eccl. Soec. 13, art. 9. 2 No artigo Valentiniaiios se explica que
2 Damascen. de Hcer. Hcer. 88. cousa sejam eonas ou aeonas.
GNO 477

houvesse uma coisa menos perfeita; por-\ cos, distinguiam o creador do universo de
tanto suppozcram que o Ente Supremo Deus, que sc fez declarar aos homens por
produzira outro menos perfeito que ellc. seu filho, o qual elles reconheciam pelo
Esta primeira producçào nfio bastava Christo.1
para crear o inundo; por quanto n’elle se Assevera Saneio Ireneo que posto elles t i- ,
divisavam movimentos oppostos, c grande vessem opiniões muito diversas acerca de \
variedade de phenomenos contrarios, c que Jesus Christo, comtudo se ajustavam no \
não podiam ser attribuidos a uma só, e á* ponto de negar o que diz S. João: que o
mesma causa: portanto imaginaram que^ Verbo sc fez carne, assentando todos em /
esta primeira producçào dera a existência que o Verbo de Deus, e o Christo, que cl-
a outros entes. les punham entre as primeiras producções
Depois d’estc primeiro passo imagina­ da divindade, tinha apparecido no mundo
ram no mundo diversas potências, segun­ sem encarnar, sem nascer nem da Virgem,
do a necessidade que d^Uas tinham para nem de qualquer outro modo que fosse.
a explicação dos phenomenos que obser­ Como Jesus Christo não viera senão
vavam, e (Testas potências formaram idéias para salvar os homens, i§KLé, np^seutir
analogas aos cíTcilos que lhes attribuiam, dos gnosticos, para os iílustrar.e.mstruir,
do que nasceram todas as gerações d o i não ' Ilie davam munropêira'çués que as in­
eonas, dos gemos, ou dos anj^s, taes comtf dispensáveis para este objecto, e criam que
<T7$oms ou íríntclligencia, o Logos ou o* as apparendas da humanidade bastavam
Verbo," a Phrgnpsc ou a prudência, Sophify para este fim. Para salvar os homens só
ou DwiamvTou. a sabedoria e o poder, ele.'; erá necessario instruil-os, porque a sua
PoucÕ"mais ou menos assim desenvolvia; corrupção o apego á terra provinham da
Hesiodo -Q_cáhos, e explaiíava" àToríííação. ignorância em que estavam ácerca da sua
do mundo pelo amor, etc., e também com propria grandeza, dignidade, e destino ori­
pouca differença os peripalheticos assim, ginal.
imaginaram algumas virtudes ou qualida­ Desde que as almas humanas estavam
des occultas para todos os phenomenos. > aprisionadas em orgãos corporeos, sómente
O objecto principal dos gnosticos não era se podia esclarecer o espirito por interven­
explicar os phenomenos da natureza, mas ção dos sentidos, e para que Jesus Christo
dar a razão do que a histpi;ia nos expli­ podesse conversar com os homens e ' in­
c a v i acerca do povo judaico, c do que os struil-os, necessitava tomar as apparendas
christãr^~Contaváin dê Jesus Christo. Sup- id’um corpo; porém não se tinha unido a.
pózeram pois muitos mundos produzidos este corpo phantastico da mesma sorte que •
pelos anjos; que um d’estes anjos gover­ a nossa alma está unida ao corpo humano: }
nava o nosso, c imaginaram umas vezes teimilhante união, no pensar dos gnosticos,'
mais, outras menos mundos e anjos, e lhes •além de ser desnecessária para intruir os
attribuiam diversas qualidades, segundo homens, havería desauthorisado o Salva­
ellcs consideravam as cousas. dor: portanto a obra da redempção não
Assim muitos reconheciam dous princí­ era da parte de Jesus Christo mais que
pios: um bom, e outro mau. Diziam outros um ministério d’intrucção.
que havia dez^péos, a que davam nomes, A sua doutrina podia ser ensinada a to­
segundo suas phantasias: ao principe do dos os homens, porque todos tinham or­
sétimo, subindo desde o inferior, chama­ gãos aptos para a escutar, c ouvir um h o-,
vam alguns Sçibahot: e a este attribuiam a mem que falia, mas nem todos eram capa-)
creacãp^gj^éo^Q^.tciy^i, c subordinavam zes da instrueçao que Jesus Christo viera\
oS*TftiiroiTseisl cèosTqüe lhe ficavam debai­ trazer ao mundo. Segundo os princípios (
xo, e muitos anjos; também o faziam au- dos pylhagoricos c platônicos, distinguiam ^
thor da lei dos judeus: suppunham-lhe a os gnosticos tres partes na natureza; a na- *
fórma de jumento ou de porco, o que vc- tureza material pu hvlica, a natureza.phy- \
( rosimilmentc deu occasiào á censura que sina nn nnimalTc ji .natureza . pneumatica;
os pagãos faziam aos primeiros christaos ou espiritual: entre os homens ãdmTltfãiuN,
de adorarem um jumento. Ignora-se que pouco mais ou menos estas mesmas diver- /
principio tivessem para dar uma tal fórma sidades, distinguindo toda a massa da h u-)
ao principe do sétimo céo; mas é de crôr manidade em homens materiacs ou h y li-\
que não fosse isto mais que um emblema. cos, animaes ou physicos, e espirituaes ou
No oitavo céo collocavam o seu BarJjello, pneumaticos.
a que umas vezes davam o nome'de paé,
outras o de mãe do universo. Aflirmam al­ i Aug. Hcer. c. 16. Ep. 26, c. 10, n. 91.
guns que os que se denominaram gnosti­ Epiph. H(crt 26. Theot. Apol. c. 36. Iren.
478 GNO
Os primeiros eram authomatos que uni- abatimento do homem não consistia cm sa­
Ccamente obedeciam aos movimentos da ma- tisfazer as paixões, mas em olhal-as como a
Xteria, e eram incapazes de receber alguma origem da felicidade do homem, o como o
(idéia, dc seguir um raciocínio, c de se in­ seu fim.
struírem : n’olles tudo dependia da matéria, É facil conjecturar que uns taes prin­
/soflnam todas as suas alternaçõcs, c nào cípios haviam de conduzir forçosamente a
>tinham destino differente. Os homens ani- todas as desordens possíveis, e que par­
fm aes ou physicos nào eram intraetaveis, tindo os gnosticos do projecto d’uma per­
ynem incapazes de raciocinar, como os ma- feição sublime, haviam de precipitar-se nas
yteriaes; porém nào podiam elevar-se sobre devassidões mais vergonhosas. Elles que­
(a s cousas sensíveis, e aos objectos pura- riam alliar com os seus princípios as ver­
f mente intellectuacs; portanto era depen- dades c moral do Christianismo, ou, para
dente a sua salvaçào das suas acções; isto melhor dizer, olhavam os mesmos princí­
E queria dizer verosimilmento que podiam pios como a perfeição de Jesus Christo.
i perder-se ou salvar-se segundo os habitos Vejamos como um bispo gnostico os jus­
/ “que tivessem adquirido por seus actos, ou tificava: «Eu imito, dizia elle, aquelles de­
>os desapegassem dos affectos terrenos, ou sertores que passam ao campo dos inimi­
} o s prendessem a elles. Os espirituacs, pelo gos com o pretexto dc lhes fazer serviços,
{ contrario, se elevavam acima dos sentidos, mas effectivamente para os perder. Üm
Z'e na contemplação dos objectos puramente gnostico, um sabio ha de conhecer tudo:
yespirituacs não perdiam de vista a sua ori- pois que merecimento póde haver em nos
ig em e o seu destino, e nào havendo cousa privar d’uma cousa que nào conhecemos?
<vque os podosse prender á terra, triumpha- O merecimento não consiste na abnegação
t vam de todas as paixões, que lyi annisavam dos prazeres, mas em sabermos usar duel­
\o s outros homens. les, como senhores, c em subordinar os ap-
Os gnosticos pois se jactavam de teç.o- pelites ao nosso império, quando estamos
brix.na E ^ ip tu ra sentidos occultos, c vòr- entre os seus braços: cmquanto a mim eu
d^es^§ubl|n)es, é de se fazerem inaccessi- assim uso d’ellcs, e não os abraço senão
veís as paixões por meio d’estas verdades. com o desígnio de os suflocar.»1 *
E é sem dúvida que o espirito humano é. * Finalmentc houve gnosticos que esm e­
capaz de elevar-se a taes especulações, e( rando-se em conhecer o jogo e imperio'das
talvez nào seja impossivel parar n’elfas pon paixões, para triumphar d^llas c viverem
alguns instantes, mas esta sublimidade nào como puros espíritos, insensivelmente ca-
póde ser o seu estado sobre a torra. Cada hiram em uma opinião contraria, e cré-
um dos homens coaduna em si as ires es- rram que os homens não eram com clTeilo
*pecies em que os gnosticos dividiam o gc- ^senão animaes; que a espiritualidade de
. lnero humano; e o gnostico, o mais conven-( que elles se ostentavam tão ufanos, era
ícido da sua perfeição, era com effeito um' uma chimera, o que nào se difTcrcnçavam
$ homem material, animal, e espiritual: o dos quadrupedes, dos reptis, c das aves
f péso do seu corpo o fazia logo recahir so- senão pela configuração dos seus orgãos:
-b re a terra; a sensibilidade animal reco­ tal foi aquelle ramo* de gnosticos, a que
brava os seus direitos, c então as paixões deram o nome de Borboritas.
renasciam e se inílammavam. S' Dividiram-se estes hereges, como acaba­
} Todos os gnosticos pois declararam guer­ mos de dizer, em diversos ramos, que toma­
ra ás paixões, e para vencel-as empregava ram difTerentes nomes, umas vezes tirados
cada um d’elles armas diversas: uns, para do caracter distincliyo de suas opiniões, ou­
c triumphar d’ellas, se separaram dos obje- tras do cabeça da seita; taes foram os bar-
, < ctos que as faziam nascer, o se abstiveram tyelonitaSj os coddeanos, os levitas, os cutu-
• dc tudo o que as fortificava; outros as des­ xliitas, os stratioritas, os oipkritas, os se-
armavam, por assim dizer, extenuando todo {chianos, os florianos, os phibèonitas, os za-
* o seu vigor; estes, para as combater mais heanosj os borboritas.
*■4 vantajosamente, queriam conhecel-as, e Alguns d’elles recebiam o Antigo e Novo
para melhor as conhecer se entregavam Testamento: attribuiam ao espirito de ver­
a todos os seus movimentos, e se observa- dade o que parecia favorecel-os, c o que
; vam; aquelles as tinham como distracções os impugnava
-------. „ ao espirito
* da mentira, por-
-
’ importunas, que perturbavam o homem na nue assentavam que as prophecias vinham
contemplação das cousas celestiaes, e d e/d e deuses differentes. Tinham um livro
que era forçoso desembaraçarem-se, satis-lque diziam fòra composto por n*u*
fazendo-as, ou ainda prevenindo todos os •
seus appetitos, tendo para si que a culpa c I 1 Ciem. A le x .Strom. I. 3, pag. 411.
GON 479
lhcr <lc Noé, um poema intitulado o Evan­ nal; suppõc-sc que tendo todos os homens
gelho da Perfeição, o Evangelho d'Eva, os parte no mesmo peccado, c nascendo filhos
Livros de Sclhj as Revelações d'Adão, as da ira, todos nascem dignos do inferno; mas
Questões de Afaria c o sen Parlo, a Prophe- que Deus pela sua misericordia resolvera
cia de Bahuba, e o Evangelho de Philippe. 1 tirar alguns da massa da perdição, c fa-
A base fundamental do systema moral zel-os morrer na justiça, deixando n’essa
dos gnosticos era o systema melaphysico massa os outros. Quanto ã liberdade, o sy­
das emanações, isto é, aquclle que suppu* nodo não a nega abertamente como Luthe­
nha liãver um Ente Soberano perfeito, de ro e Calvino; reconhece no homem forças
que dimana vam todos os entes particula­ naturacs para conhecer c practicar o bem,
res, como dimanava a luz do sol. A expo­ mas sustenta que as suas acções são sempre
sição d’cste systema aclia-se nos artigos Ca­ viciosas, porque sempre nascem d’um co­
bala, Basilides, Valentiano, e Marcos. Os ração corrompido; reconhece que a graça
gnosticos perpetuaram-se até o quarto sé­ não obra no homem como u’um tronco ou
culo, como se pódc vér cm Saneio Epiph. n’um authomato, que conserva á vontáde
Hcer. 26. — ______ _ as suas propriedades, e não a constrange,
GgTÃR/Francisco)—Theologo protestante apesar de si mesma, isto é, que a não faz
/ e IenfiTem Lcyde, conhecido pela sua dis- querer sem querer.1
/ puta com Arminio. Ensinava Calvino que Que estranha theologia! diz M. Bossuet:
[ Deus predestinava igualmente os escolhi- não é quererem embrulhar tudo, explica­
l dos para a gloria, e os reprobos para a rem-se tão fracamente acerca do livre ar­
1 condcmnáção eterna; que o mesmo Deus bitrio? Não se lançaram em rosto á igreja
I produzia no homem o vicio e a virtude, catholica variações similhantes: cila con-
1 poraue.Q homem não crailm ? . e a neccs- demnou sempre* igualmente os pelagianos,
* sidade o determinava em todas as suas ac­ que negavam a necessidade da graça; os
ções. Esta doutrina ensinada por Luthero semi-pelagianos, que não admittiam *a sua
tinha sido impugnada pelos seus proprios gratuidade e a predestinação; os predesti-
discipulos: e entre os protestantes sempre nacianos, que impugnavam a liberdade,
houve algum theologo que a combateu, que presumiam ter Deus creado um ccrtc
como foi Arminio, theologo de Leyde, e col­ numero de homens para os condemnar, c
lega de Gomar. Gomar tomou a defesa de que os reprovados eram destituídos das
Calvino e sustentou que a opinião d’Armi­ graças necessarias para se salvarem, as
nio tendia a fazer os homens orgulhosos e quaes sómente concedia aos escolhidos.
arrogantes, e tirava a Deus a gloria de ser Eis-aqui a doutrina da igreja catholica,
o author das boas disposições do espirito, doutrina sobre a qual cila nunca variou;
e do coração do homem: com estas decla- e por maior que tenha sido a liberdade,
mações, Gomar pôz da sua parte os minis­ que permitte aos theologos para explana­
tros, os prégadores c o povo. No artigo rem estes dogmas, jamais lhes consentiu
Ilollanda expomos como o principe Maurí­ proporem ou dfefenderem estas explicações,
cio tomou partido pelos gomaristas, c se senão emquanto reconheciam que cilas não
aproveitou d’esta dissenção para fazer mor­ impugnavam a doutrina da igreja contra
rer Barnevelt. os pelagianos, semi-pelagianos, e predesti-
Os gomaristas obtiveram que se congre­ nacianos: e d’aqui se pôde julgar se Bas-
gasse um synodo, em que foram discutidos nage e Jurieu tinham fundamento para ar-
os sentimentos d’Arminio, e a doutrina de guir a mesma igreja de haver variado acer­
Calvino. As actas d’este synodo estão bem ca da predestinação e da graça.2 — —.
ordenadas, mas n’ellas se vé extremamente Gonçalves (Martinho)-—Nasceu em Cucn-v
variada a doutrina d’este reformador, e ca, ná Bèspanhã; pretendeu ser o Anjo S. /
abandonado o decreto absoluto, pelo qual Miguel, para quem Deus tinha reservado f
elle assevera que Deus destinou desde a a cadeira de Lucifer, e que algum dia ha- \
eternidade a maior parte dos homens ás via de combater contra o Anti-Christo. O
chammas eternas, e que em consequência inquisidor para refutar a visão de Gonçal­
os pôz em um encadeamento de causas que ves fez morrer queimado este infeliz.
os conduz ao peccado e á impcnitencia fi­ Depois dá "sua morte quiz Nicolau, o ca-
nal. labrez, seu discipulo, inculcal-o por Filho
No mesmo synqdo se suppõe que o de­
creto de condemnar teve por motivo a qué- 1 Corpus et Syntagma Confessionum
da. do primeiro, homem, c o peccado origi- Fidei in-4.° Hist. de la Refonne des Pays-
Bas par Brandi. I. 2.
1 Epiph. Hcer. 26. Aug. Iren. loc. cit. 2 Bossuet, Hist. des Variet. I. 14.
480 GRE
de Deus; pregou que o Espirito Sancto ha­ velmente se elevaram sobre os patriarchas-
via de encarnar um dia, e que Gonçalves d’Alcxandria e de Antiochia, e por fim ar­
no dia do juizo final havia de livrar todos rogaram a si o titulo de patriarchas ecu­
os condemnados por meio da sua inter- mênicos ou universaes.
cessão. Como os papas se oppunham porfiada-
Nicolau pregou estes desvarios cm Bar­ mente ás suas emprezas, e conservavam
celona, foi condemnado pelo inquisidor, e ainda os seus direitos, c grande respeito
morreu nas chammas. Gonçalves appare- em todo o Oriente, Phocio que n’elles via
ceu no século quatorze.1 um obstaculo invencível ás pretenções dos
1 gouthÉo—discipulo de Si mão Mago, não patriarchas de Constantinopla, emprehen-
< fez na doutrina de seu mestre senão algu- deu separar-se da igreja latina, arguindo-a
/ mas leves mudanças, segundo allirmam al- de que defendia erros perniciosos, 1 mas o
\ guns aulhores. Outros o poein no numero seu projecto não teve o successo que d’ellc
dos primeiros sete hereges, que depois da esperava: Phocio foi expulso da sua sé, e
ascenção de Jesus Christo corromperam a depois d’um pequeno scisrna, tornaram a
doutrina da nova Igreja, e dos quaes mais unir-se as duas igrejas.
se conhecem os nomes do que os dogmas. Comtudo existiam entre ellas algumas
Unicamente sabemos com certeza que elles cousas occultas para a rotura: os patriar­
impugnavam o culto que os apostolos c os chas não aflrouxavam as pretençòcs ao ti­
✓ •christãos davam a Jesus, Christo, eq u e ne- tulo de ccumenicos, nem os papas de se
\g a v a m a rcsiii reição dos mortos.'2 opporem a ellas constantemente; portanto
gqtoscalc^ . q^ ^ p^ escalco— Veja-se 0 estes princípios de divisão, que Phocio ima­
artigo* Vfé^sunacianos. ginara, não podiam deixar de rcsuscitar o
guegos—Scisma dos gregos é a separa­ scisrna, logo que occupasse a cadeira de
ção’oãigrcja de Constantinopla da igreja Constantinopla um patriarcha ambicioso,
romana. Para se poder julgar melhor o querido do povo, e que tivesse valimento
idso dos aggravos dos gregos contra os la- com o imperador: tal foi Miguel Cerula-
inos, nos persuadimos ser a proposito re- rio.
jordar em poucas palavras a origem da Viu este patriarcha na igreja romana
grandeza do patriarcha de Constantinopla. uma barreira invencível para os seus am­
Antes de se transferir para ella a cadei­ biciosos projectos, c que para reinar abso­
ra imperial de Roma, se contavam na Igre­ lutamente sobre o Oriente era necessario
ja sómente tres patriarchas, o de Roma, o fazer separar d’ella a igreja grega: já o pa­
d’Antiochia, c o d’Alcxandria: além d’estes triarcha Phocio tinha facilitado esta derro­
patriarchados havia tres dioceses, cada uma ta á ambição dos seus successores.
das quaes era sujeita a seu primaz, e que Miguel fez entrar nos mesmos interesses
não dependiam d*algum patriarcha: estas o bispo de Acrida, metropolitano da Bulgá­
tres dioceses eram a d’Asia, sujeita ao pri­ ria, e ambos escreveram uma carta a Joao,
maz d’Epheso, a de Thracia;' ao de Hera­ bispo de Tranina Apulia, a fim de que elle
clea, c a do Ponto, ao de Cesarèa.3 a communicasse ao papa e á igreja do Oc­
N’este tempo ainda Constantinopla não ti­ cidente.
nha bispo, ou se o tinha, não era de consi­ Continha esta carta quatro pontos, em
deração, ou dependia do metropolitano de que accusavam a igreja latina; l.° que cila
H eraclea.4 se servia do pão asino no sacrificio; 2.° que
Depois de trasladada a cadeira imperial os latinos comiam queijo, animaes e carnes
para Constantinopla, fizeram-se de muita suflocadas; 3.° que jejuavam no sabbado;
consideração os bispos d’esta cidade; vie­ 4.® que não contavam Alleluia na Quares­
ram a obter a preeminencia e jurisdicção ma. 2 Com outros pretextos igualmente fri­
sobre a Thracia, Asia e Ponto; 5 insensi- volos Miguel Cerulario fez fechar as igre­
jas de Constantinopla, e tirou a todos os
1 Dup. 14 siècle. Natal. Alex., 14 scec. abbades e religiosos, que não quizeram re­
D'Argcntre, Collect. Jud., t. 1, p. 376, an. nunciar ás ceremonias da igreja latina, os
1356. mosteiros que possuíam na mesma capital.
2 Theodor. B ar., Fab. I. 1, cap. 1. Con- Leão ix respondeu á mencionada carta,
stit. Apost., I. 6, c. 6. Nicephore, hist. ec- realçando muito a dignidade da igreja ro-
cles., I. 4, c. 7. Ittigius, de B a r., sect. 1, f. 5.
3 Pagi. ad an. 37. Oriens. Clirist. l.° \

Patriarch. Const. c. l .° 1 Veja-se o artigo Phocio. Baron. Dup*


4 Panoplia adversus schisma greeeorum. Oriens. Christ.
3 Ibid. 2 Ibid. -
GRE 481
mana, lançando em rosto ao patriarcha a mação do imperador, que se portou com
sua ingratidão para com ella, c justifican- elle mui reconhecido. 1
do-a acerca das prcácticas de que Miguel a Não tardou porém muito Cerulario em
arguia: e ou fosse porque Cerulario dese­ abusar do stu favor, querendo tomar so­
jasse a paz sinccramente, ou porque Con- bre o principe uma authoridade tão abso­
stantinopla, que então necessitava do papa luta, que chegou a ameaçal-o que se não
c do imperador do Occidente contra os nor­ abraçasse os seus conselhos, lhe faria per­
mandos, que estavam a ponto de se apode­ der a*coroa, que elle mesmo lhe pozera na
rarem de tudo o que lhe restava na Italia, cabeça. O imperador que temia a grande
obrigasse o patriarcha a dissimular por al­ influencia de Cerulario sobre o espirito do
gum tempo; este escreveu ao papa, suppli- povo, o fez prender occultamente e o man­
cando-lhc que desse a paz á Igreja, e o mes­ dou para um desterro em que morreu; pôz
mo fez o imperador, protestando-lhe os seus na cadeira de Constantinoplá Constantino
bons officios a favor da união. Lichnude, c o scisma continuou; mas toda­
O papa mandou legados a Constantino- via os papas conservavam correlações com
pla, que o imperador recebeu benignamen­ os imperadores.2 Motivos mui poderosos
te, mas o patriarcha nem quiz conferenciar os tinham dependentes dos papas, porque
com ellcs, nem ainda vél-os; e não podendo então reinavam os exercitos dos cruzados,
os legados vencer a obstinação de Miguel, o cuja marcha elles dirigiam, e podiam fa-
cxcommungaram publicamente na presen­ zel-os mover do império do Oriente: c além
ça do imperador e dos grandes. O patriar­ d’isto as dissensões dos imperadores do Oc­
cha, irritado d’este procedimento, c da ap- cidente com os mesmos papas tinham feito
provaeão que a elle dava o imperador, ex­ renascer as esperanças aos imperadores
citou íun motim, e desde então não ousou do Oriente de restaurarem algum dia o do­
mais o imperador oppôr-sc ao acto de scis- minio da Italia.
ma, que Cerulario meditava. O patriarcha Os papas se aproveitaram d’estas dispo­
cxcommungou os legados, machinou quanto sições para conservarem correspondências
pôde para fazer o papa odioso, e estender com os gregos, e para fazerem extinguir o
o scisma procurando novos motivos de ro- odio, e as prevenções que os tinham em
tura entre as duas igrejas, de sorte que as discórdia com os latinos. Porém esta intel-l
mais leves diversidades na liturgia ou na ligencia entre os imperadores e os papas
disciplina vieram a parar em crimes enor­ foi interrompida pela carnagem dos lati­
mes. nos, que estavam em Constantinopla, go­
Por morte de Constantino Monomaeo pas­ vernando o imperador Adronico, e pela to­
sou o imperio a Theodoro, e depois a Miguel mada da mesma cidade pelos exercitos dos
t i , continuando o scisma, sem que o impe­ mesmos latinos.
rador o favorecesse. Miguel vi. para lison- N’esse tempo estava dividido o imperio
gear o senado e o povo, escolheu entre clles entre os latinos, Theodoro Lascaris, que se
os governadores e os demais officiaes do havia retirado a Nicea, c os netos d’An-
imperio; c os officiaes do exercito, indigna­ dronico que estabeleceram imperio em Tre-
dos com esta preferencia, elegeram por im­ bizonda. Os latinos tinham seu patriarcha
perador a Isaac Commeno. Cerulario, que em Constantinopla, e Germano, patriarcha
não foi d’accordo comosdesigniosdeMiguel, dos gregos, se retirara a Nicea: missiona-
uiz também ter um imperador, que d’elle vara então no Oriente cinco frades meno­
cpendesse: para isto urdiu um levanta­ res, que moveram a trabalhar na reunião
mento, fingiu apazigual-o, c parecendo ce­ das duas igrejas o patriarcha Germano;
der á força, e ao desejo de preservar o este deu parte do seu projecto ao impera­
imperio .d’uma total ruina, fez abrir as por­ dor João Vatacio, que o approvou, e o mes­
tas de Constantinopla a Isaac Commeno; e mo Germano escreveu ao papa e aos car-
mandou logo quatro metropolitanos a Mi­ deaes sobre este assumpto.
guel vi, cognominado Stratioticus, os quaes O patriarcha de Constantinopla, que as­
Ihc declararam ser indispcnsavelmente ne­ pirava a um império absoluto sobre toda a
cessario por bem do império, que elle o re­ Igreja, o successor de Cerulario, que pre­
nunciasse. Porém, torna Miguel aos emis­ tendia elevar os imperadores ao solio, c
sários, que me promette o patriarcha em desthronal-os a seu arbítrio, na sua carta
troco do imperio? O reino dos céos, lhes censura c lança em rosto ao papa o seu
responderam elles: com tal promessa Mi­
guel depôz a purpura, e se retirou â sua J Zonat, l. Í8. Cedren, pag. 801. D«-
casa, ou a um mosteiro; c por meio d’esta cange, Glossar.
traça obteve o patriarcha uma grande esti­ 2 Curopalat, Psellus, Zonar,
482 GRE
imperio tyrannico, suas execuções violen­ litica a reunião das duas igrejas, diligen­
tas, e os censos que exigia (Taquellcs que ciou o imperador quanto pôde para cffe-
lhe eram sujeitos: o papa objectava da sua ctual-a; c, depois d’innumeraveis dilQcul-
parte ao patriarcha a injustiça de suas pre- dades, mandou embaixadores ao concilio
tenções, e a ingratidão do patriarcha para de Leão, que apresentaram uma profissão
com a igreja romana; comparava o scisma do fé, tal qual o papa a havia requerido, e
dos gregos com o de Samaria, e declarava uma carta de vinte c seis metropolitanos
que as duas espadas lhe pertenciam. da Asia, que declaravam receber os ar­
Á vista á’estas cartas é bem de colligir tigos que até alli eram a causa da divisão
que d’uma e d’outra parte havia disposi­ entre as duas igrejas. 1
ções pouco sinceras para a paz; porem o 0 imperador julgava indispensável a
papa enviou religiosos, que tiveram corn os união para o bem do imperio, mas o clero
gregos algumas conferências: n’cllas se dis­ c o povo olhavam-na como a ruina da reli­
putou com acrimonia: mas emfim furam gião, e faziam pouco apreço de que se con­
reduzidas todas as controvérsias aos dous servasse um imperio em que o povo desde
pontos da proccssão do Espirito Sancto, e muito tempo não experimentava senão ca­
do uso do pão asmo: sobre cllcs disputa­ lamidades, que unicamente a religião fazia
ram muito, mas final mento se separaram supportaveis pelas esperanças da felicidade
sem se ajustarem em cousa alguma. que ella promette aos fieis.
Theodòro Lascaris, que succedeu a Va- Amotinaram-se todos contra o projecto
tacio, não deu mostras de grande empe­ de reunião, e a turbulência cresceu com
nho pela união das duas igrejas, mas Mi­ os actos d’authoridade que usou o impe­
guel Paleologo, que se apoderou do impe­ rador para trazer o clero, os bispos e os
rio depois d’cllc, tendo reconquistado Con- monges ao seu parecer. O déspota do Epi­
stantinopla aos latinos, e prevendo que o ro, e o duque de Patras declararam que
papa não deixaria d’armar contra elle os tinham por hereges o papa, o imperador e
principes do Occidente, resolveu unir a todos os que eram sujeitos ao papa.
igreja grega e latina, para se preservar Então o imperador levantou exercitos
das terríveis cruzadas, que faziam tremer contra estes rebeldes, mas não pôde achar
os imperadores em Constantinopla, os sul- generaes que combatessem contra os scis-
iões em Babylonia e no Cairo, e até os tár­ maticos; e o duque de Patras congregou
taros na Persia. um synodo de perto de um cento de mon­
Enviou pois Miguel Paleologo embaixa­ ges, muitos abbades e oito bispos, que ce­
dores ao papa, dando-lhe os titulos mais li- lebraram um concilio em que foram cx-
songeiros, e testimunhando-lhe uma gran­ commungados o papa, o imperador e todos
de ancia de vér em boa harmonia as duas os que desejavam a reunião.
igrejas. Urbano v, que occupava a cadeira Miguel nao affrouxava no projecto de
de S. Pedro, manifestou muito contentamen­ elTectual-a, e se indignava contra os que a
to á vista das disposições de Miguel Paleolo­ impediam, mas a severidade nada mais fa­
go e do desejo que élle tinha de concluir a zia que augmentar o fanatismo. Constanti­
união: «N’este caso, diz elle ao imperador, nopla estava cheia de libellos infamatorios
nós vos fazemos vér quanto é util o poder contra o imperador, que fez publicar uma
da sancta sé aos principes que estão na lei com pena de morte contra todos os que
sua communhão, se lhes sobrevem alguma tendo encontrado algum, em vez de o quei­
guerra ou desavença: a igreja romana,^co­ marem, o léssem ou o deixassem de lèr,
mo boa mãe, lhes tira as armas das mãos, mas esta lei não suspendendo nem a licen­
e com sua authoridade os obriga a fazer a ça, nem a curiosidade, infundiu cm todos
paz: se vós tornardes ao seu grêmio (con­ ôs corações um implacável odio contra o
tinuava) ella vos apoiará não sómente com imperador, e fez nascer em todos os ani­
o soccorro dos genovezes e dos demais la­ mos um grande despréso á magestade im­
tinos; mas, sendo necessário, com a força perial.
dos reis e principes catholicos do mundo Estando as cousas n’esta situação, che­
inteiro: porém emquanto estiverdes^ sepa­ garam os núncios, que o papa mandara ao
rado da obediência da sancta sé, não po­ Oriente depois do concilio de Leão, a fim
demos soffrer em consciência que os geno­ de se consummar a reunião projectada, e
vezes ou.quaesquer outros latinos vos pres­ requeriam que os gregos reformassem o
tem algum soccorro.» 1 seu symbolo, e a elle ajuntassem a pala­
Vindo pois a parar n’um objecto de po- vra Filioquc. Era tão inesperada esta pre-

1 Fleury, l. 85, n. 18. 1 Reginald. ad ann. 1274, w. 60.


GRE 483
Tenoão para o imperador, que quando se gou a João Palcologo a dividir com cllc o
havia traclado da reuniào notóoverno de império: porém não podendo os dous impe­
Vatacio, tinha consentido o papa Innoccn- radores reinar em paz, tomaram as armas
cio iv que os gregos continuassem a can­ c chamaram em seu soccorro os servianos,
tar o symboloeonformc o seu antigo uso: os búlgaros, os turcos, etc.
c portanto conjecturando o imperador que Durante esta desordem passaram os tur­
se quizesse satisfazer ao papa, corria o ris­ cos o Hellesponto, c se estabeleceram na
co d’um levantamento geral, recusou fazer Europa pelo meio do décimo quarto sécu­
no symbolo a mudança que os núncios re­ lo: Arnurat tomou logo muitas fortalezas
queriam. Ellcs se retiraram, c o papa ex- na Thracia, e se apoderou d’Andrinopole,
commungou o imperador. 1 em que fundou a capital do seu imperio.
Os termos cm que foi’ concebida a cx- Então conheceram os imperadores gre­
communhão eram os seguintes: «Declara­ gos a necessidade que tinham dos latinos,
mos cxcommungado Miguel Palcologo, que c não se pouparam a diligencias a fim de
se diz imperador dos gregos, como fautor reunirem as duas igrejas; mas encontra­
do antigo scisma c da sua heresia; c pro- ram sempre nos seus yassallos uma repu­
hibimos a todos os reis, principes, senho­ gnância invencível. João Paleologo, aperta­
res, c quaesquer outros de qualquer con­ do pelos turcos, se sujeitou a quanto d’cllc
dição que sejam, e a todas as cidades c se­ pedia Urbano v, mas não obteve senão de-
nados que façam com cllc alguma socie­ beis soccorros. Seu filho Manoel passou ao
dade ou confederação, cmquanto estiver Occidente a pedir auxilio contra Bajazeto,
•cxcommungado, ou lhe déern ajuda ou con­ que tinha posto cm sitio Constantinopla;
selho rclativaincntc ás causas da sua cx- mas correu dcbalde por Italia, França, Al-
communhão.» lemanha c Inglaterra, sem alcançar mais
Martinho iv a renovou por fres vezes, e que um pequeno auxilio d'cl-rei dc Fran­
ella ainda subsistia no anno <io 1282, cm ça; de sorte que veio a parar inimigo do
que Miguel acabou a vida, opprimida de latinos, e escreveu contra ellcs sobre
tristeza e d’cnfado. Andronico, seu filho, proccssão do Espirito Sancto.1
annullou quanto se obrara cm favor da Porém como o imperio grego já toca^
união: fez congregar cm Constantinopla na época da sua ruína, João Paleologo s
um concilio, no qual foi condcmnado o viu necessitado a começar de novo uma
projecto da mesma por quarenta c dous negociação com os latinos: mandou embai­
bispos, que n’cllc assignaram. Clemente v xadores* ao imperador Scgismundo, c ao
cxcommungou Andronico, é o scisma con­ papa; o cllc mesmo foi ao concilio, que se
tinuou. havia dc celebrar em Ferrara, e se trans­
Miguel havendo perdido a seu filho, fez feriu para Florcnça, acompanhado do pa­
declarar imperador a Andronico, seu neto, triarcha Joscph, c dum grande numero de
que se rebcllou contra cllc, c o obrigou a prelados c de pessoas consideráveis; c alli,
largar o império cm 1328, quatro annos depois de muitas conferências c grandes
antes da sua morto. Andronico, o moço, debates, linalmentc se concluiu a união.
deixou dous filhos, João, c Manoel, dos Em consequência da mesma prometteu
quacs o mais velho foi declarado impera­ o papa ao imperador: i.° entreter todos os
dor por seu pae; mas não tendo ainda mais annos trezentos soldados, c duas galeras
de nove annos, lhe deram por seu tutor e para guardar a cidade dc Constantinopla:
protector do império, na sua menoridade, a 2.° que as galeras que levassem os pere­
João Cantacuzono, que satisfez ás obriga­ grinos a Jerusalém, iriam a Constantino­
ções de tutor do principe, c de protector pla: 3.° que quando o imperador necessi­
do império. tasse de vinte galeras por seis mezes, ou
Porém o patriarcha Joscph, que presu­ dc dez por um anno, o papa llTas apresta-
m ia pertencer-lhe o emprego de tutor do ria: 4.° que se ellc tivesse necessidade dc
principe, fez Cantacuzono suspeito á impe­ tropas do terra, o mesmo papa solicitaria
ratriz: esta mandou prender os parentes com todo o empenho os principes christãos
do tutor, e lhe ordenou a cllc que abdi­ do Occidente para o soccorrcrciu com el-
casse o seu cargo. Estava n’esse tempo las.
Cantacuzono á testa d’um exercito, que Não continha o decreto d’união erro al­
commandava contra os servianos; recusou gum, nem fazia a menor mudaqça na dis­
obedecer, os officiaes o reduziram a tomar ciplina dos gregos, ou na sua moral: n’elle
.a purpura, foi acclamado imperador, c obri­ era reconhecida a primazia do papa, que

1 No anno de 1281. 1 Dup., X IV século, pag. 312.


*
-484 GRE
nenhuma outra igreja lhe tinha impugna­ força alguma a eleição sem o beneplacito
do: demais d’isto a uniào procurava im­ do gran-senhor, a quem o patriarcha vai
portantíssimas adhcrcncias ao imperio de pedir a sua confirmação.
Constantinopla: porém o clero nem quiz As ambiciosas contendas com que é per­
acquiescer ao decreto, nem admittir ás turbado o patriarchado, c as dissenções
funcções ecclesiasticas, os que o haviam que muito ordinariamente acontecem‘en­
assignado. Inuncdiatamentc se urdiu con­ tre os ecclesiasticos por conseguil-o, teem
tra os sequazcs da uniào uma conspiração causado na Igreja grandes desordens; e
geral do clero, do povo, e principalmentc como para obter esta eminente dignidade,
dos monges, que sendo os unicos arbitros não se requeira senão dinheiro, os minis­
das consciências, amotinaram todos os ci­ tros da Porta depõem e lançam fóra os pa­
dadãos, e até a mais haixa plebe. Esta re- triarchas, por pouco que lhes oírereçam os
belliào geral fez relractar a maior parte novos pretendentes ao emprego.
dos que haviam assistido ao concilio de Não se conservando pois os patriarchas
Florcnça: impugnavam-no, e lodo o Orien­ senão por meio das somnias immensas que
te concícmnou a uniào que n’elle se fizera. dão aós visires, e cuidando estes com desvelo
O imperador quiz levar avante a sua obra, em suscitar-lhes de tempos cm tempos al­
mas foi ameaçado com a excommunhão, gum competidor, a fim de tereni pretex­
se não desistisse do seu empenho, e de to para pedir novas contribuições ao pa­
communicar com os latinos: a tal estado se triarcha, este para pagal-as levanta novos
via reduzido um successor de Constantino tributos sobre os bispos, que também os
0 Magno. multiplicam sobre os fieis, para ficarem
Emquanto os gregos assim se dilacera­ com a sobrecellente; de sorte que os mes­
vam, Anmrat, e Mahomct n so iam senho- mos bispos sentiríam muito que os pa­
reando das praças do imperio, c se apres- triarchas possuíssem em paz a sua Igreja, t
tavam para a conquista de Constantinopla; Os d’Antiochia e Jerusalém são tão po­
nas o scisma c o fanatismo nenhum caso bres, que apenas podem subsistir, c não
azem da destruição do imperio, e os gre- gosam de grande consideração. Não se en­
fos tinham pelo ultimo remate da impie­ cerra sómente nos ditos tres patriarchas a
dade hesitarem entre a conservação do igreja grega; além d’cstes ha o d’Alexan-
scisma e a perda do mesmo: porém a in- dria; c também os moscovitas seguem os
differença dos latinos, na situação em que mesmos erros, e o mesmo scisma,"como se
se via o imperio do Oriente, nao é menos verá no artigo Moscovitas. Os bispos, da.
de notar que o fanatismo dos gregos: Ma- mesma sorte que os patriarchas, não po­
homet ii aproveitando-se d’esta occasião, dem exercitar suas funeções sem uma com-
sitiou Constantinopla, e d'ella se fez se­ missão, ou baratz do gran-senhor: somen­
nhor. 1 te em virtude da mesma são protegidos, e
subsistem os seus conventos: eis-aqui os
ESTADO DA IGREJA GREGA DEPOIS DA TOMADA termos em que é concebida esta commis-
DE CONSTANTINOPLA são, ou baratz. «A ordenança, o decreto
da nobre e real assignatura tio grande es­
Scnlioroada que foi a capital do império tado, c do throno sublime da bella firma
por Mahomet, o patriarcha Jorge se reti­ imperial, que obriga a todo o universo que
rou para a Italia, e os cliristãos que fica­ pela assistência de Deus, e pela protecção
ram cm Constantinopla, suspenderam o do soberano bemfeitor é recebida por toda
exercício público da religião: mas infor­ a parte, e á qual cm consequência tudo
mado d’isto Mahomct lhes ordenou que ele­ obedece.
gessem um patriarcha. Elegeram Genna- «O padre, por nome André Suffiano, que
do: o sultão o fez vir a palacío, deu-lhe um tem em seu poder este feliz mandato do
baculo c um cavallo branco, sobre o qual imperador, em virtude d’estas patentes do
Gennado foi até á igreja dos Apostolos con­ grande estado é creado bispo do ilha de
duzido por alguns bispos, e pelos ofliciaes Schio, que faz profissão de seguir o rito
do sultão. Chegado que foi Gennado á igre­ latino.
ja, o patriarcha d’Heraclea lhe deu posse «Tendo o dito padre apresentado o seu
na cadeira patriarchal: 2 e ainda hoje é antigo baratz para o fazer renovar, c nago
esta a fôrma, pela qual são instituídos os ao nosso thesourciro real o direito ordina*
patriarchas de Constantinopla; mas não tem
1 Hist. de Vetat, present. de VEglisegre-
1 Deceas., cap. 57. que, p ar R icavt., cap. 3, pag. 31. Oriens.
2 Oriens Christ., t. 1, pag. 312. Christ., loc. cit. '
GRE 48o
rio dc seiscentos apres, eu lhe concedo o ciar o Evangelho com a oração e com o
presente baralz como um complemento de jejum; principia na semana depois de Pen­
Telicidado. Portanto lhe ordeno que vá ser tecostes, e dura até o S. Pedro: a quarta
bispo da ilha dc Schio, segundo o seu an­ começa no primeiro de agosto, edura quin­
tigo costume, c suas vàs c inúteis ceremo­ ze dias.
nias, querendo, e mandando que todos os Além (Pestas quaresmas tem outros je­
■cliristàos d’esta ilha, assim grandes como juns; e clles os observam todos com gran­
pequenos sacerdotes, religiosos c outros, de exactidão, tendo para si, que os que
que fizerem profissão do rito latino, reco­ sem necessidade quebram as leis da absti­
nhecerão por seu bispo o dito André Suf- nência, são (Tio criminosos, como os que
fiano, e que em todos os ncgociosquedfelle eommcttcm um roubo, ou um adulterio: a
dependerem, c forem pertencentes ao seu educação c o habito lhes fazem ter cm tal
cargo, a clle se dirijam, sem se desviarem conta, que se persuadem não poder sub­
das sentenças legitimas que o mesmo ti­ sistir o Christianismo sem a sua observân­
ver proferido; que da mesma sorte nin­ cia, c ser melhor deixarem perecer um ho­
guem embarace, que segundo as suas vãs c mem, do que darem-lhe uma substancia
inúteis ceremonias estabeleça, ou deponha que lhe conserve a vida. Porém acabada a
os sacerdotes, ou pessoas religiosas, como quaresma se entregam inteirarnente ao pra­
elle julgar que o tenham merecido; que zer c aos passatempos.
nenhum sacerdote ou monge ouse casar
qualquer pessoa que seja sem a permissão
DA DOUTRINA DA IGREJA GREGA
d’este bispo; que todo o .testamento feito cm
favor das igrejas pobres por algum sacer­
dote moribundo soja bom e válido; que A igreja grega professa todos os dogmas
acontecendo repudiar a seu marido algu­ que professa a igreja latina, de que se
ma mulher ehristã da jurisdicção d’esle acharão convenientes provas cm diversos
bispo, ou algum homem a sua mulher, authorcs. 1
ninguem, excepto clle, possa conceder-lhe MM. Ricaut. e Smith reconhecem esta
■o divorcio, nem se intrometia cm tal ma­ conformidade da crença dos gregos com o
teria: emllm, que possua as vinhas, jar­ latinos: M. Smith confessa que clles ter
dins, prados, etc.» 1 sete sacramentos: mas sem embargo d'c:
Os sacerdotes seculares tiram a sua prin­
ta confissão, assôvcra havcrem-sc afastt
cipal substancia da caridade do povo, mas do da doutrina da antiga igreja grega, *
como esta virtude se tem esfriado em ex­ que no tocante a estes objectos tomaram
tremo, se vèem quasi reduzidos a vender as idéias dos latinos: porém tal asseve­
os divinos mysterios, dc que são deposi­ ração c destituída dc provas, c tem con­
tarios: portanto nem uma pessoa recebe tra si a verdade; i.°. porque os lithurgios
a absolvição, nem é admittida ao sacra­ gregos suppoem que os sete sacramentos
mento da penitencia, nem faz baptisar seus conferem graça; 2.°, porque os padres gre­
filhos, nem contrahe matrimonio, nem ob­ gos que precederam ao scisma faliam de
tem uma excommunhão contra outro, nem sele sacramentos, como a igreja latina; 3.°,
ainda a sagrada communhão para os en­ porque Phocio e Ccrulario jámais objecta­
fermos, sem preceder a convenção de pre- ram aos latinos alguma diversidade da
•ço, em que os sacerdotes fazem o melhor igreja grega acerca dos sacramentos, o que
ajuste que podem .2 elles nao deixariam dc fazer se tivessem
alguma cousa que censurar: e será de crêr
por ventura que pessoas que se separavam
DOS JEJUNS DOS GREGOS da igreja latina, porque cila jejuava nos
sabbados, porque não cantava Atlelvia du­
ranto a quaresma, se esquecessem de cen­
Os gregos teem quatro jejuns, ou quares­ surar a doutrina da igreja latina áccrca
mas: a primeira principia em quinze de
novembro, ou quarenta dias antes de Na­ i Petri Arcudii, concordia Ecclesia? Orien­
tal; a segunda ó a nossa; a terceira ó o talis, et Occidentalis. Allatias de Ecclesice
jejum, a que chamam dos Sanctos Aposto­ Orientalis, et Occidentalis perpetua consen­
los, c que observam na consideração dc sione. Censura Orientalis Ecclesia: de pra:-
que os apostolos se preparam para annun- cipuis nostri swculi Har et iconi m Dogmati­
bus. Perpeluitc de la Foi, t. 3, /. 9. Ricaut,
1 fíicaut, ibid. loc. cit. Smith, de Statu hodierno Ecclesia:
2 Ibid. I Gra?ra?.
486 GRE
dos sacramentos, se a grega não tivesse M. Smith, capellão do cavalheiro ITarvcy
tido a mesma doutrina sobre estes obje­ em Constantinopla, cm 1668, reconhece a
ctos? 4.° e finalmente, os gregos modernos mesma verdade; c presume que esta con­
que admittem sete sacramentos, como os formidade da crença actuai dos gregos não
latinos, persistem todavia no scisma, logo dá victoria aos catholicos, porque ad a pre­
não abraçam os sete sacramentos, por com- sença real é um dogma que elles aprende­
prazerem com os latinos, como aflcctada- ram na cscóla dos latinos. *
mente affirma M. Smith. Porém como nos persuadirá d’isto M_
O ponto que tem sido mais difílcil de pro­ Smith, que no mesmo logar nos ensina se-~
var acerca d’esta conformidade das duas rem os gregos tão aíTerrados á doutrina e
igrejas, 6 a crença da presença real e da costumes de seus antepassados, que olham
transubstanciação; porque tendo assevera­ como um delicto a mais leve mudança no
do o author da* Pcrpctuidade da Fé, que no que respeita á Eucharistia, e que cm con­
tempo de Berengario, c ainda depois, todas sequência d’estc aflinco se conserva entre*
as igrejas christas estavam unanimemente elles o uso do pão fermentado?
conformes acerca da presença real, M. Clau­ Quem se persuadirá que os latinos fize­
dio negou este facto, sustentando que a ram passar os gregos da crença da ausên­
transubstanciação era desconhecida em to­ cia real á da presença, sem que esta mu­
do o orbe, cxce*plo na igreja romana, e que dança causasse alguma controvérsia entre-
nem os gregos, nem os armênios, nem os os gregos, que não haviam lido communi-
jacobitas, nem os ethiopes, nem cm geral cação com os latinos? porque seria que
alguns christàos, fóra dos que estavam su­ desde o momento qpi que o patriarcha Cy-
jeitos ao papa, criam na presença real, nem rillo, seduzido c comprado pelos protestan­
na transubstanciação.1 tes, propondo aos gregos a doutrina de Cal­
O author da Perpetuidadc da Fé respon­ vino, todos se sublevaram contra clle?
deu a M. Claudio: este defendeu as provas Porém, diz M. Smith, esta crença é tão
(jue tinha dado sobre a crença dos gregos, nova entre os gregos, que a palavra Me-
aquelle refutou a defesa de M. Claudio. 2 lousiosis, que significa Transubstanciação,
Finalmente os sábios authores da Perpc- unicamente se encontra entre os modernos,
tuidade da Fé levaram até o porito de de­ c era desconhecida ainda no tempo de Gen-
monstração a conformidade da crença da nado. que foi patriarcha depois da tomada
igreja grega com a igreja latina quanto á de Constantinopla. Convimos em que a pa­
presença real, produzindo infinidade d!at- lavra Metousiosis não se lé nem nos padres,,
tcstaçõés dos arcebispos, bispos, abbadcs e nem nas lithurgias, nem nos symbolos, mas
monges gregos, assim particulares, como sem dúvida se encontra a cousa que ella
tiradas dos synodos convocados pelo pa­ significa, acontecendo com d ia o mesmo
triarcha; c o padre Paris, conego regular que aconteceu com o termo Omousion, de
de Sancta Genoveva, provou optimamente o que se serviu a Igreja para significar mais
mesmo, como lambem M. Simão. claramente a divindade do Yerbo, e para
Não se dando por satisfeito M. Claudio exprimir melhor que clle existia na mes­
com estas atlcstaçòcs, escreveu ao capellão ma substancia cm que o padre existia. .
do embaixador dlnglaterra, para segurar- Quanto à Gennado clle se serviu da pa­
se da verdade das mesmas. O capellão, por lavra Metousiosis, sem embargo de ser
nome M. Conel, lhe respondeu que os gre- acerrimo inimigo dos latinos. Estes dous
os criam na presença real, c se consolava pontos foram provados por Simão, e por M.
’esta confissão forçada, censurando-os de Rcnaudot, que patentearam optimamente
serem nimiamente ignorantes.3 os enganos de M. Smith, principalmente
áccrca de Cyrillo Lucar, de cuja confissão
1 Réfutation de la réponse d'un minis­ ou profissão de fé tanto se teem vangloria­
tre, à Ia suite de ce qiCon appelle commu- do os calvinistas.2
nément la petite Perpétuitê de la Foi, pag. Cyrillo Lucar era de Candia, teve rela­
464. Claude, Rép. à la perpét. 3. part. c. 8. ções muito estreitas com os calvinistas, e-
Rèp. à M. Claude, l. 1, c. o, etc. adoptou os seus sentimentos: á forca de ma­
2 Perpet. de la Foi, t. 3, l. 2, 3, 4. La quinações (por não dizer mais) Cyrillo se
crcance de 1'eglise greque defendu par le P. fez nomear patriarcha de Constantinopla:
Paris. 2. vol. in 12. Rist. critique de la
Crcance des Nations du Levant.
3 Memoires litteraires de la Gi'ande Bre- 1 Smith. loc. cit. pag. 102.
tagn. t. 9, pag. 131. Crcance de VEglise 2 Perpet. de la Foi, t. 4, l. 5, c. 2, pag..
Orient. p a r Simon. 345. Simon, Créance de l'Eglise Orient.
GRE 487
e então appareceu com uma profissão de pulsão d’estc patriarcha: mas sem embar­
fé, toda calvinista.1 go d’isso, apenas Parthenio subiu á cadeira
Hottingcr fez imprimir esta profissão de patriarchal, convocou um concilio de vinte
fé, e triumphou; mas os lutheranos, e en­ e cinco bispos, entre os quacs se achava o
tre os calvinistas Grossio e Albcrtin, não a metropolitano de Moscovia, e n’ellc, depois
tiveram pela confissão da fc da igreja grc- de discutidos de novo os artigos de Cyrillo
a, mas como a de Cyrillo tão somente: e Lucar, foram condcmnados pelo juizo de
sem dúvida que este patriarcha não a todos os bispos, como o haviam sido no
communicou ao seu clero, e que cila foi concilio congregado por Cyrillo de Berea.
impugnada pelos gregos, c rejeitada por Á vista do que poderá julgar-sc com acerto
conter uma doutrina contraria a crença da se Cyrillo Lucar é tido pelos gregos na con­
sua igreja. O mesmo Cyrillo tão pouco a ta de martyr, como o sustentanTMM. Clau­
linha pela confissão da igreja oriental, que dio, Smith, Aymond, etc. 1
enviando-a, declara detestar os erros dos Emfim, achando-sc junto em Bclcm Do-
latinos e as superstições dos gregos, e roga sitheo, patriarcha de Jerusalem, e muitos '
a M. Leger, que alteste que elle morre na fé metropolitanos, bispos, e outros ecclesias­
de Calvino.2 ticos da communhao grega, para fazerem
E fallaria d’csta maneira um patriarcha a dedicação d’um'a nova igreja, M. de Noin-
de Constanlinopla, que houvesse proposto tel, embaixador de França em Constantino­
á sua igreja a confissão da fc, que elle en­ pla, fez propor a esta assembléia que exa­
viava? Declararia, que detestava os erros minasse a verdade das provas, que MM.
dos gregos, se fosse certo que esta profis­ de Porto Real tinham promettido na Perpe-
são tivesse sido approvada pela sua igreja? tuidade da Fé sobre a conformidade d:
Poderão pois os calvinistas tirar alguma crença dos gregos e dos latinos acerca d*
.vantagem mais d’esta confissão, que o ap- transubstanciação. O patriarcha de Jerusa1
provarem que Cyrillo era calvinista, e que lem e outros prelados reconheceram que ;
seguia uma doutrina opposta á da igreja confissão de fé de Cyrillo Lucar não conti­
grega? nha a doutrina da igreja do Oriente, c con­
A este Cyrillo Lucar succede outro Cy­ demnaram a dos calvinistas.2
rillo Berea, o qual para reparar a honra da Os protestantes mais bem instruídos, taes
igreja grega, um tanto desdourada com a como Smith e Allix, reconheciam a autho-
apostasia de seu antecessor, e com a pro­ ridade deste synodo, que não pôde ser visto
fissão de fé, que elle falsamente lhe attri- como uma assembléia de gregos latinisa-
buira, congregou um concilio em que fo­ dos, pois que Dositheo era dos maiores ini­
ram presentes o patriarcha de Jerusalem e migos dos latinos.3
d’Alexandria com vinte c tres dos mais fa­ 0 exame do concilio de Jerusalem faz
mosos bispos do Oriente, e todos os minis­ grande parte do grosso volume em 4.°, que
tros da igreja de Constantinopla. N’este sy­ deu á luz Aymon, debaixo do especioso ti­
nodo examinaram a confissão de fé de Cy­ tulo de Monumentos authenticos da religião
rillo Lucar, e fulminaram excommunhão dos gregos. Esta obra não é mais do que a
contra a sua pessoa, execrando quasi todos repetição do que disseram MM. Claudio,
os pontos da mesma confissão, principal­ Smith, etc., e que já foi impugnada por MM.
mente o que elle havia ensinado de que o Simão, Renaudot, c pelo padre Paris.*
pão e o vinho eram transubstanciados no Sem embargo de ser pouco perigosa a
corpo e sangue de Jesus Christo pela ben­ obra de M. Aymon, acha-se refutada por
ção do sacerdote e vinda do Espirito San­ outra de M. Renaudot, que já indicamos,
cto. 3 feita de pensado para este fim.
Pouco tempo depois, Cyrillo de Berea foi
expulso por Parthenio, que se fez reconhe­ 1 Perpet. de la Foi, t. 1, l. i, t 4, l. 9.
cer patriarcha de Constantinopla. Jámais 2 A cópia d'este concilio vê-se na Per-
houve um homem que menos interesse ti­ petuidade da Fé, t. 3, l. 8, c. 16. O origi­
vesse cm conservar em pé os decretos de nal foi enviado a el-rei Luiz XIV, c posto na
Cyrillo de Berea, do que Parthenio, que bibliotheca real, d'onde foi roubado por M.
pelo contrario o tinha grande em o fazer Aymon. Veja-se La Defense de la Perpetui-
passar por herege, a fim de justificar a ex- té de la Foi contra as calumnias d'um li­
vro intitulado Monuments authentiques em
1 Perpet. de la Foi, t. 1, /. 4, c. 6, pag. 8.° Obra do abbade Renaudot.
299. 3 Smith Miscellanea. Allix. Notes sur Ne-
2 Hottinger Anaclet., pag. 303. ctaire.
3 Perpet. de la Foi, t. 1, l 4, c. 7. 4 Já indicamos esta nota.
488 GRE

DA ÀUTHORIDÀDE DO CLERO SOBRE O POVO n’uma grande e profunda ignorância, e no


terror dos demonios, que são os alicerces
cm que se fundamenta a sua mesma au-
Os gregos respeitam notavelmente o cle­ thoridade.
ro: sujeitam-se aos seus ecclesiasticos, ou
seja no espiritual, ou ainda no temporal:
decide o metropolitano todas as suas con­ d ’a l g u m a s o p i n i õ e s e s u p e r s t i ç õ e s
troversias, segundo diz S. Paulo; «quando DOS GREGOS
algum dos nossos tiver qualquer dilTerença
com outro, ousará clle ir a juizo perante os
iniquos, e não perante os sanctos?» Quando os gregos assentam a primeira
O temor da excommunhão é o mais po­ pedra d’um edifício, 0 sacerdote abençoa a
deroso motivo para os reduzir á obediên­ obra, e os operarios; e tanto que este se
cia, e faz tão grande impressão sobre os aparta, matam um gallo ou um carneiro,
seus espíritos, que os peccadores obstina­ e enterram 0 sangue debaixo da primeira
dos e endurecidos estremecem quando ou­ pedra, crendo que por este meio attrahem a
vem uma sentença, que os separa da uni­ felicidade sobre a casa: se desejam mal a al­
dade da igreja, que faz a sua conversão es­ guém, tomam a medida da sua altura 0 lar­
candalosa, e obriga os fieis a negarem-lhe gura em uma linha ou em um traço de
até aquelles caritativos soccorros, que o pau, levam-na ao pedreiro ou carpinteiro,
Christianismo e a humanidade mandam dar que vai assentar os fundamentos da casa,
a todos os homens. Crêem elles entre ou­ e lhe dão dinheiro para que metta esta me­
tras muitas cousas, que o corpo d’um ex- dida na parede, ou na obra de carpinteria,
commungado jamais póde voltar a seus ficando persuadidos de que 0 seu inimigo
primeiros princípios, sem que se levante a não viverá mais em apodrecendo 0 fio ou 0
sentença da excommunhão; que um demo- pau da medida.
nio entra no corpo da pessoa, que morre Créem afferradamente que em Io d’agos­
excommungada, e o preserva da corrupção, to, dia da Assumpção, todos os rios do mun­
animando-o, e fazendo obrar com pouca do vão ao Egypto: a razão d’este sentimen­
differença, como a alma anima, e faz obrar to é notarem elles que por este tempo tem
os corpos. diminuído todos á excepção do Nilo, que
Pensam que estes mortos excommunga- então inunda aquclla região: e estão mui­
dos, durante a noite comem, passeiam, di­ to credulos, que estas inundações são uma
gerem e se nutrem: e a este respeito con­ benção continua do céo sobre 0 Egypto, em
servam todos os contos dos vampiros. 12 recompensa da protecção que n’elle tive­
Sem embargo de ser tão trivial o uso das ram 0 Salvador do mundo, e sua mãe con­
excommunhões entre os gregos, que pare­ tra a perseguição d’llerodes.
ce deveríam ter perdido a força, e torna- Os gregos, da mesma sorte que todos os
rem-se desprezíveis, todavia o temor da demais povos do Levante, ainda crêem nos
excommunhão não se enfraqueceu ainda, c talismans. Em Alepo fazem os gafanhotos
jamais foi tão grande o acatamento com grandes estragos: alli ha certas aves, a que
que recebem as sentenças da sua igreja: os arabes chamam Smirmor, que comem e
n’este respeito os conservam o terror, que destroem muitos d’estes insectos; os gre­
inspiram os termos em que são concebidas gos para attrahirem estas aves tem uma
as sentenças de excommunhões, e a natu­ especie de-talisman; mandam buscar agua
reza dos effeitos, que os gregos lhes attri- a um lago de Samarcanda, e crêem que esta
buem; effeitos de çjue nenhum duvida pe- agua tem a virtude de attrahir 0 Smirmor.
l«*is continuas prácticas em que os sacerdo­ Ricaut refere esta ceremonia da maneira
tes lh’os inculcam. 2 seguinte:
Por meio d’este terror 0 clero conserva Principia a procissão á. porta de Damas­
os povos pertinazes do scisma, e d’elles tira co, que está da parte do meio dia; cada re­
as contribuições que deve pagar aos visi- ligião e cada seita assiste al,li com signaes
res: portanto é grande 0 interesse que tem d’uma extraordinaria devoção, segundo os
este clero scismatico em conservar 0 povo seus usos particulares, e fazendo levar
diante de si a insignia que a caracterisa:
1 Vampiros são entre ós allemães uns d’esta maneira se vêem apparecer a lei, 0
entes phantasticos, que elles julgam suga­ Evangelho e 0 Alcorão: todos vão cantando
rem 0 sangue dos phtysicos. hymnos ao seu modo; e entre elles se dis­
2 Ricaut, E ta t present de Veglise gre- tinguem os mahometanos em luzimento, le­
que. . vando perto de cem ricas bandeiras do seu
GHE 489
«propheta, conduzidas pelos Schaighs, que â fe da Igreja, cujas funeções clle exercitou
•força de gritarem, espumara e se tornam sempre ou por si mesmo, ou pelos seus le­
.furiosos. gados. A prova se vé nos concilios geraes
Em uma d’estas procissões houve con­ e na condemnação de todas as heresias.
tenda sobre a prccedencia entre os chris- Os mesmos gregos nunca impugnaram
tãos c os judeus: estes a pretendiam em esta primazia antes do scisma: a historia
razào da antiguidade; mas os mahometanos ecclesiastica nos provê de mil exemplos de
julgaram em favor dos christãos por serem seu exercício sobre a sé de Constantiuopla.
mais virtuosos que os judeus, c porque pa­ S. Gregorio o diz expressamente: «Quem
gavam mais do que ellcs pelo livre exercí­ duvida que a sancta igreja dc Constantino-
cio da sua religião. A agua sobredita nào pla nào seja sujeita á só apostólica? O im­
■deve passar por alguma arcada, e por isso perador e o bispo d’esta cidade o annun-
logo que chegue a Alepo é tirada por cima ciam constantemente.« ! Os papas exerci­
das muralhas, e a vão depositar devota- taram esta primazia sobre o mesmo Pho-
mente na m esquita.1 cio, como bem se manifesta em seu ar­
tigo.
Igualmcnle ora reconhecida a primazia
DOS PONTOS DE DOUTRINA, OU DISCIPLINA, do papa nos patriarchados d*Antiochia, Ale­
QUE SERVEM DE PRETEXTO xandria c Jerusalem. Thimoteo, arcebispo
AO SCISMA DOS GREGOS d1Alexandria, foi reprehendido pelo papa
Simplicio de haver recitado o nome de Dios-
coro nas Dypticas. e o mesmo Thimoteo
Tres pontos principaes separam hoje os d’isto pediu perdão’ ao papa.2
gregos dos latinos—1.° condemnam a addi- Quando Ccrulario se separou da igreja
ção que os latinos fizeram ao symbolo de do occidente fez quanto pôde para levar
•Constantiuopla, para exprimirem que o Es­ comsigo no seu scisma a Pedro d’Anlio-
pirito Sancto procede do Padre;—2.° nào chia; mas Pedro sustentou a primazia do
uerem conhecer a primazia do papa;— papa contra Ccrulario.3
.° insistem em que se nào póde consagrar Toda a igreja d’Africa reconhecia d
com pão asmo. mesma sorte a primazia do papa: assim
O primeiro d’estes pontos o refutamos no mostram as historias dos donatistas c d<
artigo Macedonio: vamos fazer algumas re­ pelagianos: S. Gregorio fornece mil excn
flexões acerca dos dous seguintes. pios d’actos de primazia exercitados sobr.
a igreja d’Africa.4
Os primeiros reformadores, nos princí­
DA PRIMAZIA DO PAPA pios das suas altercações, reconheciam a
primazia do papa: João Hus, condcmnado
pelo arcebispo de Praga, d’elle appella para
A Igreja é uma sociedade; tem leis, cul­ a se apostólica: Jeronymo de Praga appro-
to, disciplina, ministros para ensinar tudo vou o juizo do concilio de Constância so­
isto, um ministerio para o fazer observar, bre os artigos do Wiclcf c dTIus.3
e um tribunal para decidir sobre as con­ Luthero no principio de seu scisma tra-
troversias que se levantam ácèrca da fé, ctava de caiumniadores os que o haviam
da moral e da disciplina: tal é a Igreja que querido infamar diante de Leão x; «cum e
Jesus Christo instituiu. prostro a vossos pés, diz clle, disposto a ou­
Em uma sociedade como esta é indispen­ vir a Jesus Christo que em vós falia.»6 Elle
sável que haja um chefe. Jesus Christo lh’o lhe roga se digne ouvil-o como uma ove­
deu em S. Pedro, e seus successores, quan­ lha entregue ao seu cuidado, protesta que
do a fundou. Os papas e os concilios reco­ reconhece o supremo poder da igreja ro­
nheceram esta verdade em todos os tem­ mana, confessando que cm todos os tem-
pos; e a prova d-isto se encontra em todos
os theologos. Não é menos certo ser o bis­
po de Roma o successor de S. Pedro, e ha­ 1 Gregorio. Ep. pag. 941.
ver sido transmittida a este successor a 2 Cone., I. 4, pag. 1031.
primazia da Igreja. Assim o reconhecem 3 Benery Bandect., t. l.°, pag. 154.
todos os padres, e em todos os tempos hou­ 4 Ibid., t. 2.°, pag. 561, 611, 694, 916 e
ve recurso ao bispo de Roma, como ao che- 976, t. 2.®, pag. 142 e 1186. Traité de C m -
toritè des papes, 1 .1.°, 1 .1.®, c. 3, 4.
5 Cone., t. 12, pag. 164.
1 Ricaut ibid. 6 Luth. op., t. 1, pag. 10.
490 GRE
pos foram os papas os primeiros na hierar- sua diocese, que tem prorogativas particu­
chia da Igreja. 1 lares, e um poder temporal sobre o que se
Zuinglio confessa ser necessario, que chama estado ecclesiastico, mas reconhece
haja um cljefe ná Igreja. 2 Melanchton con­ que estas cousas são adquiridas, e não as
sentiu que se deixasse ao papa a sua au- tem por direito divino; que é inferior ao
thoridade, c conhecia que cila podia ser concilio ecumenico, que o póde depôr, c
u til.3 que elle não póde depôr os bispos, nem
Henrique vm, rei d’Inglatcrra, a princi­ absolver os vassallos do juramento de fide­
pio defendeu contra Luthero a primazia do lidade para com os seus soberanos.t
papa e da igreja romana. Leào x lhe con­ Os theologos ultramontanos tem outras
ferira o titulo de defensor da f é . 4 muitas diversas idéias do primado do papa:
Grocio quer que o bispo de Roma deva as obras, que se fizeram em defçsa das pre-
presidir sobre toda a Igreja: a experiencia, tenções da côrte de Roma, se acham juntas
como elle diz, tem confirmado ser precisa em uma collccção de vinte e um volumes
uma cabeça em toda ella para conservar a in-folio: 2 estas prclenções tem sido viva­
unidade; e affirma que Melanchton, e Jacob mente debatidas pelos theologos francezes;
i, rei dTnglaterra, assim o reconheceram. mas a este respeito bastará lér a Defesa do
Grocio levanta uma difficuldadc e diz: mas clero gallicano.
0 papa por ventura nào póde abusar do
seu poder? Não devemos obedecer-lhe, res­
ponde Grocio, quando seus mandamentos ÜO USO DO PAO ASMO NA EUCHARISTIA
são contrários aos canones; mas por isso
não havemos de impugnar-lhe a sua au-
thoridade, nem negar-lhe a obediência, Todos os padres reconheceram que Je­
quando forem justos: se a isto se houvesse sus Christo se serviu do pão asmo na ulti­
attendido, continüa elle, teriamos uma igre­ ma ceia, instituindo a Eucharistia: nós não
ja reformada e unida.5 examinamos aqui se elle fez com cíTeito a
O clero de França, c todas as universi- ultima ceia com os judeus, ou se se anti-
iades do reino, reconheciam a mesma ver- cipou ao termo dos azimos; tão sómente
lade, sem que todavia crêssem que o papa concluímos pelo teslimunho unanime dos
osse infallivel, ou que tivesse algum po­ padres, que estes toem assentado poder con­
der sobre a temporalidade des reis. A pri­ sagrar-se a Eucharistia com pão asmo.
mazia do papa na Igreja é uma primazia Comtudo o exemplo de Jesus Christo não
de honra e jurisdicção; a elle toca fazer foi uma lei que obrigasse necessariamente
observar os canones da Igreja por todo o a Igreja a usar do pao asmo na consagra­
mundo, cçnvocar concilios, e .excommun- ção da Eucharistia, havendo-se servido
gar os quê recusam assistir a ellcs. d’ellc o mesmo Senhor, tão somente pela
Bem que não sejam infalliveis as deci­ circumstanda de não ser permittido aos
sões dos papas, comtudo devem ser de judeus servirem-se d’outro no tempo da
um grande péso, e merecer muito respeito. Paschoa, e é muito verosimil que para os
Elles podem fazer novas leis geraes, e pro- apostolos fosse indiíTercnte um ou outro
pôl-as á Igreja; mas não leem força de lei uso.
senão pela acceitação: o clero de França Parece que persuadidos os primeiros pa­
reconhece serem estes direitos as conse­ dres, que estabeleceram a disciplina da Igre­
quências do primado, e que o papa o tem ja, de que Nosso Senhor se servira do pão
por direito divino: não sabemos como póde asmo na instituição da Eucharistia, orde­
reconhecer a primazia, e contrariar este naram que d’elle se servissem na missa por
ultimo ponto.6 guardar a uniformidade, e que os gregos
Também reconhece o clero de França pelo contrario, tendo para si não deverem
que o papa é metropolitano, e patriarcha na ligar-se a uma cousa que sómente provi­
nha da práctica da lei judaica, preferiram
1 Luth. op.j pag. 285, t. 2, p. I. o uso do pão fermentado; porém não será
2 Zuingl. op., t. 1, pag. 27. facil d’assentar, e cada uma das igrejas es­
, 3 Ibid.j t. 4, pag. 825. teve sempre no mesmo uso em que está
4 Reinald. ad ann. 1521, n. 94. hoje, e é sem dúvida ser o do pão asmo
5 Grot.j i. 5, pag. 617, 948. antiquissimo na igreja latina, e n’ella ge­
6 Veja-se Bellarm. de Sum. Pontif. Mel- ralmente estabelecido antes do scisma de
chior Canus de Loc. Theol., /. 6. Dupin Dis-
sert de antiqua. Eccles. Disciplin. Defensio 1 Defensio Cleri Gallicani.
cleri gallic. 2 Bibliot. Pontif.
HEN 491
Phocio, sem que jamais lhe fosse até então cadas, ou consagradas aos demonios; ou­
censurado.1 tros pensam terem este nome por offerece-
Nada se encontra na Escriplura, na tra­ rem sangue humano na celebração dos
dição, nos padres, nas lilhurgias, que con­ mysterios. ■
demno o uso do pão asmo; c demais d’isto i i e n r i q u e d e b r u y s — era um eremita,
é sem dúvida, que o pão asmo póde ser a que no principio do século xi adoptou os
materia da Eucharistia, da mesma sorte erros de Pedro de Bruys. Veja-se este ar­
que o pão fermentado. Finalmentc, a igre­ tigo.
ja latina, conservando o pão asmo, não con­ Negava que o baptismo fosse util aos
demna os gregos, que se servem de pão le­ meninos, condemnava o uso das igrejas e
vado; assim nao podia o uso da igreja lati­ dos templos, rejeitava o culto da cruz, pro­
na a respeito do pão asmo ser uma cousa lubia a celebração da missa, e ensinava
legitima para que os gregos se separassem que se não devia orar pelos mortos. Tinha
da sua communhão.2 recebido esta doutrina de Pedro de Bruys,
Os gregos modernos teem cscripto para que a pregou em Provença, e que foi ex­
justificarem o seu scisma. Scyropulo Cru- pulso d’esta cidade por causa das suas des-
cifero, da igreja de Constantinopla, fez uma envolturas.
historia do concilio de Florença, cm que se Como a violência que Pedro empregava
desata em impropérios contra a igreja ro­ a fim d’cstabelecer sua doutrina se havia
mana. M. Creyghton, capellào d’el-rci de frustrado de tal sorte que elle foi queima­
Inglaterra, a traduziu em latim, e lhe pôz do em S. Gilles, Henrique sc voltou para
notas c um prefacio, em que excede o seu o expediente da insinuação e da singulari­
author em invectivas contra a mesma igre­ dade, a fim d’adquirir sectarios. Era um
ja. Este mesmo traductor foi refutado por moço d elevada estatura, trazia o cabello
M. Allassi, guarda da Bibliotheca do Vati­ curto, a barba rapada, andava mal vestido,
cano. muito depressa, e descalço, ainda no rigor
M. Alix também traduziu do grego a re­ do inverno; os seus olhos e semblante se
futação, que Nectario fez da authoridade do viam sempre agitados como um mar tem­
papa, debaixo d’csle titulo: Beatissimi et pestuoso, tinha um ar rasgado, a voz forte
sapientissimi magna, et sanctae urbis Jeru­ c apta para infundir terror; vivia d'um mo­
salém Patriarcha Domini Nectarii refuta­ do mui differente dos mais; regularmente
tio thesium de papae imperio, quas ad ipsum recolhia-se nas cabanas dos paizanos, de
attulerunt fratres, qui Hyerosolimce agunt, dia estava debaixo dos alpendres, mas co­
in- 8.° 1702. mia e deitava-se em logares descobertos.
0 padre Le Quien, debaixo do nome de Por este modo adquiriu logo estimações de
Stcphanus de Aliimura refutou a Nectario um grande sancto: as senhoras publicavam
no livro intitulado: Panoplia adversus schis­ suas virtudes e diziam que lhe eram reve­
ma greeeorum, Paris, in-4.° lados os interiores das consciências e os
HBLviDio—foi um ariano, que apenas ti­ peccados mais occultos.
nha a primeira tintura das letras, escreveu Divulgando-se esta reputação de Henri­
um livro contra a virgindade da Sancta que por todo o bispado de Mans, supplica-
Virgem, o presumia provar pela Escriptu- ram-lhe que fosse ao mesmo bispado, e elle
ra que Jesus Christo tivera irmãos. Os se­ para lã mandou dous de seus discipulos,
ctarios d’cste erro foram appellidados an- que foram recebidos do povo como dous
tiddcomariqnitas. 3 anjos.
u ^ a-tItas — S. Clemente nomeia estes Apoz elles partiu Henrique, c sendo re­
hSTbges sem explicar cm que consistisse a cebido com as mais distinctas honras, ob­
sua heresia.4 Spcncer presumiu serem as­ teve do bispo a permissão de prégar c en­
sim chamados por comerem carnes sufío- sinar: o povo atropellava-se para ouvil-o,
e o clero exhortava o povo para que fosse
1 Mabillon. loc. cit. Ciampini, Conjectu­ às suas pregações.
ra de perpetuo azimorum usu. Bom. in-4.° Henrique, eloquente por natureza, e com
2 Allatius in Bobert. Creygthonis appa­ uma voz de trovão, fez crêr em breve tem­
ratum . Sirmond. Disquisit. de Azimo. Bona. po ser um homem apostolico, e seguro qúe
I. 1, c. 23. Liturgiarum Mabillon. Praef in foi da confiança do povo, principiou a en­
soec. Ordinis Benedict. Lupus t. 3 schol. in sinar seus erros.
D ur. Cone. de actis Leonis. Produzindo os sermões d’este impostor e
3 Hieron. cont. Heluid. Aug. Haer., 84. ignorante um elTeito inesperado, o povo en-
Epiph. Hcei\ 78.
4 Ciem. Alex. I. 7, Strom. 1 Spencer, Dissert. ad Act., c. 15, v. 20.
495 HER

trou cm cólera contra o clero, e tractou os HKHACLiiOà’ — adoplou o systema de Va­


sacerdotes, concgos, e clérigos como a cx- lentini, em que fez algumas mudanças: te­
commungados: recusava vender a seus do­ ve um grande trabalho cm ajustar com
mesticos o preciso, queria arruinar-lhes ellc a doutrina do Evangelho, e fez para
suas casas, roubar-lhes os seus bens, c este fim commentarios muito extensos so­
apedrejar ou enforcar suas pessoas. Al­ bre o de S. João c de S. Lucas.
guns foram arrastados pelo lodo e espan­ Haviam já emprehendido muitos autlio-
cados cruelmente. res ecclesiasticos explicar a sagrada Es­
O cabido de Mans suspendeu Henrique criptura: n’clla tudo suppunham precioso,
do exercício de pregar, com pena d’cxcom- c crendo que todas as suas palavras conti­
munhfio, mas foram mallractados os que nham verdades uteis c importantes, procu­
lhe intimaram a suspensão, c cllc conti­ ravam sentidos occultos nas cousas que
nuou a pregar até que voltou o bispo Hil- pareciam mais simples; c d'cstc mesmo
deberto, que tinha ido a Roma. methodo se serviam para explicar as pas­
Nào foi porém refutando os erros de Hen­ sagens diííiceis d’entcndcr no sentido ob­
rique que Hildeberto atalhou as desordens; vio e liltcral. Assim sc persuadiu llera-
conduziu diante do povo este pregador, e cleon poder coadunar com o Evangelho o
lhe perguntou que profissão era a sua. A systema Valentiniano, c teve indisivcl tra­
esta pergunta, que Henrique não entendia, balho para tirar d’ellc alguns sentidos al-
nada respondeu: proseguiu inquirindo que legoricos, que contivessem o systema das
emprego tinha ellc na igreja, e respondeu- Eonas.
lhe ser diacono. Como Heracleon era um valcntiniano
Hildeberto perguntou-lhe se assistira pertinaz no seu systema, levado do empe­
n’aquelle dia aos ofiicios divinos c Henri­ nho que tomou em o descobrir na Escri­
que respondeu que não; então o prelado ptura, adoplou as allegorias mais forçadas,
principiou a cantar os hymnos de Nossa c recorreu a explicações, que nem se fun­
Senhora, c o impostor, que os ignorava, davam na tradição *nem na razão: por­
ficou vexado e confuso; confessou que não tanto é claro que não podia negar a autlio-
sabia nada, e que sómente se applieára a ridade da Escriptura, c que estava bem
fazer discursos ao povo. Hildeberto o pro- convencido de que um systema que não se
hibiu de prégar no seu bispado, e ordenou conformava com o Evangelho não era ver­
que saliisse d’elle. Deixou Mans, foi para dadeiro: ellc pois nos dá uma evidente pro­
o Perigord, precorreu o Languedoc c va de que aquellas mesmas pessoas, que
Provença, onde fez alguns discipulos. mais interesse tinham em negar a authori-
Enviando o papa Eugênio m um legado dade da Escriptura, não ousavam empre-
a estas provincias, e partindo também para hcndel-o; e temos n’elle mesmo uma testi-
ellas S. Bernardo, a fim de preservarem os munha que examinou e discutiu as provas
povos dos erros e do.fanatismo que as as da sua divindade.
solava, Henrique fugiu, mas foi préso nos Heracleon á força d’estas explicações fez
cárceres do arcebispo de Tolosa, onde mor­ receber por muitos christãos o systema de
reu. 1 Valcntirn, c formou a seita dos heracleoni-
É também este um dos patriarchas dos tas. Origenos refutou os seus commenta­
reformadores, com quem M. Basna^e quer rios, e d’elles tirou Grabbc os fragmentos
provar a perpetuidade da doutrina dos pro dos mesmos que hoje conservam os,1 c que
testantes acerca da necessidade que afie não são, como já dissemos, senão umas ex­
ctam de não sc tomar como regra de fé plicações allegoricas destituídas de verosi-
senão a Escriptura, independente da tra­ milhança, sempre arbitrarias e ordinaria­
dição. 2 mente ridiculas.
iiENRicANos—Discípulos de Henrique de nfjmiAs—era da Galacia: adoptou o er­
Bfuy^rSSrramaram-se pelas provincias me- ro de Hermogencs ácerca da eternidade do
ridionaes, confundiram-se com os albigen- ^rnundo, e creu que Deus era matéria, mas
ses, e acabaram com elles. Veja-se o arth uma materia animada, c mais subtil que
go A/bigenses, em que se expendem as cau-' os elementos do corpo. Este sentimento de
sas do progresso que fizeram os predican-, Hermias não era mais que o sxstoma ine
tes, que se*levantaram no xi século. tapbysico dos estoicos com o qual — sc • -
■ jV * !'''
1 Goffridus, l. 3. De vita S. Beniard. c. 1 Philoslorg. de Hceres. c. 41. Autor.
5. D'Argentrc, t. 1, pag. Io. Apperul. apiul Tcrt. 4, 49.'Aug. de liar. c.
2 Basnage, Hist. des Egl. Rêf. t. 1, Pc- 16. Epiph. Hcer. 36. Grabbe3 Spicileg. /c-
riod. 4, c. 6, pag. 145. eundi sccculi, pag. 80.
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morou a conciliar os dogmas do Christia­ ílectindo em seus primeiros sentimentos,
nismo. Ello fazia sahir a alma da terra, quererá concilial-os o melhor que poder
pensava que o mal provinha ora de Deus, com os novos principios que acabou de ad­
ora da terra; que o corpo de Jesus Christo quirir. Nao d’outra sorte succcdeu a Her-
não estava no céo, mas que depois dc sua mogenes, o qual quiz conciliar com os do
gloriosa rcsurrciçào, o mesmo Sanhor o Christianismo os da philosophia estoica. **•«.
pozera no sol, o que é muito conforme com Reconheciam, os estQicos no mundo um
o dcsprôso com que os cstoicos olhavam Enteou premo c infinitámento perfeito; mas
para o corpo. esUTenté, nô sentir dos mesmos era uma
Hcrmias, pois, segundo os seus prin­ alma immensa, misturada, e confundida
cípios philosophicos, tinha a resurreição cóni_A matéria, aprisionada em uma infini­
por um facto contrario á ideia da grande­ dade de corpos diversos, e submettida á
za o da perfeição do Filho de Deus; mas cega vehementia dos elementos. Esta dif-
não o negava,* c somente suppunha que ficuldade havia feito grande impressão no
Jesus Christo depositara o seu corpo no espirito de Hermogenes, como se deixa vér
sol. Portanto não podia Hcrmias pôr em do livro que Tertulliano escreveu contra
dúvida n’cssc tempo a resurreiçào de Je­ cllc. Os christãos, pelo contrario, ensinavam
sus Christo, c certaincnte não era um ho­ que um espirito eterno, existente por si
mem que rendesse o seu entendimento a mesmo, soberanamente perfeito e distincto
provas dc pouco peso. É logo uma arroja­ do mundo, tinha produzido tudo meramen-
da temeridade olhar-se hoje a resurreição le pela sua vontade; a palavra omnipotente
como um tacto crido dc leve, adoptado sêm d’este espirito tirou do nada o cáhos e to­
critica, c tão sómente pelos primeiros chris- das as creaturas. Elle mandou que hou­
tãos. vesse tudo o que ha, c assim foi.
Cria Hcrmias, como os cstoicos, compô- Arrebatado Hermogenes da belleza d’esta
rem-se as almas humanas de fogo e d’espi- ideia, não vacillou entre o dogma da al­
rilo: rejeitava o baptismo da Igreja, fun­ ma universal, e a religião christa, que ado-
dado cm dizer S. João que Jesus Christo ptou sem restricção alguma: masrenectin-
baptisou no fogo c no espirito. O mundo, do, creu que a religião christã não expli
segundo Hcrmias, era o inferno; e o conti­ cava como no mundo havia mal, sendo (
nuo nascimento dos meninos, a resurrei­ ente creador soberanamente bom e o se
ção; assim, presumia cllc conciliar os do­ nhor absoluto da natureza, e colligiu (Vaqui
gmas da religião com os princípios do cs- que os christãos davam nimia extensão ao
toicismo. Teve discipulos, que tomaram o poder d’este Ente Supremo: logo em seu
nome de hermiatRas: estavam retirados na espirito se despertaram todas as idéias dos
Galacia, aonde fizeram proselytos.1 éstoicos acerca da eternidade da materia,
f H erm og en es— abraçou a religião chris- e da explicação das desordens que se veem
depolTReTiaver estudado a philosophia no mundo, c* presumiu dever procurar-se
S toica, e alliou os princípios da sua,phiIo- a causa da origem do mal na materia, que
phia com os dogmas do Christianismo. sendo eterna c increada, resiste á bondade
A sua heresia consistiu cm suppôr a exis­ do Ente Supremo.
tência d’uma matéria increada, sem movi- N’esta materia, a seu parecer se achava
?mento, sem principio, cocterna a Deus, c a causa de todos os males, os sentimentos
da qual o mesmo Deus formara o mundo. que nos aífiigem, as paixões que nos ly-
Em todos os homens, que estudam um rannisam n’ella leem a sua origem; e to­
systema, ha certa difliculdadc principal, a dos os monstros são eífeitos da indocilida-
uc referem as demais, ou que não lh’as dc da materia c da sua resistência inflexi-
3 eixa sentir em toda a sua força. Se apre­ vel ás leis, que o Ente Supremo estabele­
sentardes ao espirito d’um d’estes homens ceu para a geração dos corpos.
uma ideia que resolva a sua dúvida, elle Se a materia não fosse eterna e increada,
a abraçará sem restricção e sem reserva, dizia Hermogenes, seria forçoso que Deus
e no mesmo instante lhe hão de desappa- tirasse o mundo ou da sua propria sub­
recer todas as outras; porém, tanto que stancia, o que é absurdo, porque em tal
esta primeira impressão, que tem um pou­ caso Deus seria divisível, ou do nada, ou
co d’enthusiasmo, se enfraquecer, renasce­ d’uma materia coeterna com elle mesmo.
rão as objeeções, e lhe parecerá que tinha Mão pódc dizer-se que Deus tirara o mun­
dado damasiada extensão a seus principios, do do nada, por quanto, sendo Deus essen­
c que necessita de modifical-os; então, re- cialmente bom, não tiraria do nada um
mundo cheio de calamidades e de desor­
i Phylastr. de Han\ c. 5o, 56. dens: poderia haver oecorrido a ellas, se o
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tivesse tirado do nada, c sua bondade não trabalhou, diz elle, tem um movimento va­
as haveria solTrido. Logo, é forçoso que go c indiíTerente a todas as sortes de de­
j)cus formasse o mundo d’uma materia terminações. Se a determinação do movi­
feo eterna com elle, c que o não formasse mento da materia é eterna e necessaria
ijsenão trabalhando sobre um fundo inde­ como ella, Deus não pôde nem modifical-a
pendente d’elle. nem mudal-a; c se o movimento da mate­
A Escriptura, segundo Hermogenes, em ria não é mais que uma dcslocação vaga
nenhuma parte diz que Deus formasse do e indiíTerente a todas as sortes de determi­
nada a materia; antes pelo contrario, dizia nações, não tem ella por sua natureza al­
elle, nos representa a Deus formando o guma determinação para o mal, ou algu­
mundo e todos os corpos d’unia materia ma opposição para o bem: todo o mal pro­
preexistente, informe, invisível; cila diz: cede pois da intelligcncia que a põz cm
«Deus fez o céo e a terra no seu principio, obra, e consequentemente Hermogenes não
ou em um principio, in principio.» Este explica a sua origem.
principio em que Deus formou o ceo c a 4.° Faz vér Tertulliano, que Hermoge­
terra não era senão a matéria preexistente nes explicou mal a narração de Moyses, e
c eterna como Deus; a ideia da creação da que abusou do equivoco da palavra prin­
materia não está expressa na Escriptura cipio in principio, de que se serve no Ge­
cm parte alguma. nesis.
Esta materia informe era agitada por A palavra principio, diz Tertulliano, póde
um movimento vago sem desígnio c sem designar a ordem da existência das eou-
objecto; Deus nos c representado na Es­ sas, ou a potência que as fez existir, ou a
criptura como dirigindo este movimento, matéria de que se tiram as mesmas cou-
e modificando-o do modo necessario para sas. A palavra principium em Moyses não
produzir os corpos, os animacs, c as plan­ serve mais que para exprimir o principio
tas. Sendo a materia increada c eterna, c da existência.—In principio Deus fecit coe­
o movimento uma força cega, não abraça lum et terram, significa: «No principio fez
escrupulosamente as leis que Deus lhe pre­ Deus o céo e a terra»; e não como tradu­
screveu; c as desordens que ha no mundo ziu Hermogenes: «Deus fez o céo e a terra
são cfleitos da sua resistência. Esta hypo- cm um principio, que era a materia»; por­
these satisfez a imaginação de Hermoge­ que quando a palavra principium c em­
nes, que para explicar â origem do mal, pregada para exprimir o sujeito ou a ma­
teve para si deverem unir-se os princípios teria com que se fôrma uma cousa, não
dos estoicos acerca da natureza da mate­ dizemos que a cousa seja formada n’este
ria com os dos christãos sobre a potência principio, mas é feita d’este principio; não
producente do mundo. dizemos que se fez uma medalha em pra­
ta, mas de prata.
Moyses, no Genesis, se propõe a dar a
BEFUTA-SE A OPINIÃO DE HERMOGENES historia do principio do mundo: para sa­
tisfazer a este objecto, neccssarimcnte nos
havia de indicar os princípios que concor­
Prova Tertulliano contra Hermogenes: reram para esta producção, isto é, nos ha­
l.° Que não podia fazer-se da materia um via de fallar de Deus como do principio
ente eterno e increado sem a igualar a activo ou da causa producente do mundo,
Deus, porque tendo por si mesma a exis­ que é effeito da sua acção; e da matéria
tência, ella teria todas as perfeições, e que que foi o sujeito, do qual elle tirou o
o mesmo Hermogenes não se abalançou a mundo. Se Moyses se persuadisse que
aflirmar. Deus tirara, o niundo d’uma matéria que
2. ° Tertulliano faz vér que Hermogenes lhe era coeterna, ter-nos-ia fallado d’csta
não dá alguma ideia distincta d’esta mate­ materia, mas nada no^ diz d'ella; logo não
ria coeterna a Deus, a que elle chama existia antes da creaçao do mundo, c ella,
umas vezes corporea, outras incorporea; segundo a narração de Moysés, foi tirada
que elle olha o movimento já como um do nada.
ente diverso da materia, já como a mesma Porém replicava Hermogenes que Moy­
materia, bem que o movimento nada mais sés diz que antos que Deus formasse o céo
seja que um accidente da mesma. e a terra, esta era informe e invisível, que
3. ° Demonstra Tertulliano que Hermoge­ suppõe a preexistência, e que ella era eter­
nes pela sua hypolhcse não pódc dar a ra­ na e increada.
zão da origem do mal no mundo: esta ma­ «Vós não mc objectareis aqui, diz Tertul­
teria, sobre a qual vós presumis que Deus liano, senão alguma argúcia; quereis provar
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a existência c eternidade da materia por di­ não se duvidava, pois que elle tracta de
zer Moysés a terra era; mas nào se pódc opinião nova o sentimento que suppôe a
dizer que uma cousa o é tanto que rece­ materia eterna, o que basta (por não nos
beu a sua existência? demorarmos) para patentear o juizo que se
«Estas palavras a terra era não suppoem deve fazer da verdade e da erudição de to­
senão a existência da materia, e nào a ra­ dos os que com tanta afToutcza aíTirmam
zão pela qual cila existe; portanto não ha não ser conhecida a creação nos primeiros
na narração de Moysés cousa alguma que séculos.
aulhoriso a opinião de Hermogenes acerca Alguns asseveram crér Hermogenes que
da eternidade da materia. «Mas, finalmen­ o corpo de Jesus Christo estava no sol, e
te, instava Hermogenes, a Escriptura cm que os demonios se haviam de dissolver
nenhuma parte nos diz que a materia fosse algum dia, c entrar no seio da matéria
tirada do nada.» prima.
«A Escriptura refere que ella leve um h e r m o c i m a n o s — Discipulos de Hcrmogc-*
principio, responde Tertulliano, e por con­ nes, que foram muitos: dous dos mais fa- \
sequência que foi tirada do nada.» mosos eram Hermias e Seleuco, que fize- ]
Sc o mundo tivesse sido tirado de uma ram seitas particulares. Yejain-se os seus/
materia preexistente, a Escriptura nol-o artigos.
havería dito, como fez a respeito de todas ii e s y ç h a s t e s — Monges gregos, que ensi­
as outras producções: quando Moysés nos naram o gujgjismo, pelo meio do scculo de­
conta a producçào das plantas, as tira da cimo primeiro."Siineão, o moço, abbadc de
terra; quando nos refere a dos peixes, os Xerocerso, tinha levado muito longe os
tira da agua, etc. O mesmo logar de Moy­ exercícios da vida contemplativa, e dado
sés, que Hermogenes cita cm abono da maximas aos seus monges, que oravam e
sua opinião, aniquila todos os seus princí­ meditavam continuamente, para n’ella se
pios; por quanto, n’essa passagem, diz Moy­ aperfeiçoarem.
sés que a terra era imperfeita e informe, Como a gloria celestial era o objecto de *
o que não póde convir senão a uni ente todos os seus votos, não tinham outra ma- \
produzido c tirado do nada. teria as suas meditações: agiti^am-se, tor- ;
Quanto á objecção de Hermogenes sobre ciam a cabeça, c reviravam os olhos, fa- ;
a permissão do mal que ha no mundo, sup- zendo incríveis esforços para se elevarem
pondo que este fôra creado por um ente sobre as impressões dos sentidos, e se sol-
omnipotente, responde, Tertulliano que o tarem de todos os objectos que os cerca- \
mal que ha no mundo não é contrario á vam, e que lhes parecia aíTeiçoarem suas \
bondade nem á omnipotencia de Deus, por­ almas á terra: n’este estado lódos os obje­
que virá tempo em que tudo ha de entrar ctos se confundiam na sua imaginaçao,
na ordem: 1 e esta resposta é victoriosa nada viam distinctamente; todos os corpos •
principalmente contra Hermogenes, que desappareciam, c as fibras do cerebro já ;
reconhecia a authoridadc da Escriptura, e não eram agitadas senão por aquellas vi­
da revelação. Os que atacam a bondade de brações que produzem innumeraveis cores
Deus sem saber qual é o plano que o Ente vivas, como de relâmpagos, quando o ce­
Supremo se propôz na creação do mundo, rebro é comprimido pela inflammação dos
não o podem fazer senão a forca de so- vasos sanguineos.
phismas. No fervor das suas meditações tomaram
M. Le Clerc não faz justiça a Tertullia­ os discipulos de Simeão estas fugitivas lu- -
no acerca do modo como elle refuta a Her­ zes pela luz celestial, tiveram-na por um •
mogenes, e até é de crér que não com- raio da gloria dos bemaventurados; c^iiain
prehendou inteiramente o sentido das suas que tendQjQS_o.lhps fix q sj^n to o ,saJU es
objecçõcs, que não impugnavam directa- offerecia esta hiz.
mente a possibilidade da creação, mas que Foram censurados estes visionários: Si­
de todo rodavam sob a impossibilidade de meão, abbade de Sancto Ammas, os defen­
conciliar a permissão do mal com a crea­ deu e tractou de homens carnacs c terres­
ção.2 tres, inimigos dos hesychastes, os quaes go-
Tertulliano com prudência se encerrou saram da liberdade de procurar por meio
n’estes limites, sem que cuidasse em esta­ de suas meditações aquellas visões que os
belecer a necessidade da creação, de que faziam ditosos.
No principio do decimo quarto século,
Gregorio Palamas, monge do monto Athos,
* Tertul. contr. Hermog. que deixára as honras e a fortuna pela
2 Le Clerc, Hist. Eccles. an. 158. vida monastica, adoptou as regras que si-
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mcão prescrevera, e lhes deu muito lus­ servir-se de Palamas para concluírem a
tre. sua paz, o , fizeram absolver em um syno­
^ Escreveu sobre a natureza da luz que do, que condcmnou o patriarcha João, já
\ o s contemplativos divisavam sobre o seu defunto, e Cantacuzeno fez eleger éhi seu
/' umbigo, asseverando não ser diversa da logãr a Isidoro, sectario acerrimo das opi­
\ que houve noThabor; que esta luz era in- niões dos hesychastes.
. creada e incorruptível, e bem que não Com este motivo os barlaamitas se sepa­
i a essencia de Deus, era uma operação da raram da communhão de Isidoro; e para
•divindade a sua graça, a sua gloria, c o haver de se estabelecer a paz entre estes
'resplendor também que sahia da sua es­ dous partidos, os dous imperadores Canta­
sencia. cuzeno e João Paleologo, fizeram congre­
Um monge, por nome Barlaam, impu­ gar novo concilio, composto de vinte e cin­
gnou o sentimento dos hesychastes, con­ co metropolitanos, de alguns bispos, e do
cernente á natureza da luz que tinha ap- muitos sacerdotes e monges.
parccido sobre o Thabor, affirmando que Foram citados para comparecer n’elle
esta luz não era increada, c que a opinião os inimigos de Palamas: tractou-se da luz
de Palamas parecia admittir muitas divin­ do Thabor; e pouco depois se discutiram
dades subalternas, e emanadas da divinda­ algumas questões, que respeitavam á es­
de substancial. Cotigregou-se.um.concilio sencia e operação divina, as quaes propôz
- para decidir a questão, que principiava a o mesmo imperador. Referiram-se todas as
5 fazer estrondo, c n’elle foi condemnado passagens dos padres para as explicar, e
5 Barlaam. não se examinando com menos desvelo a>
Outro monge, chamado Acyndino, tomou doutrina de Barlaam, foi condemnado este
a peito a sua defesa: congregou-se um con­ com Acyndino, e todos os seus sequazes, e
cilio, no qual foi convencido Àcyiidinò de approvada a profissão de fé dos monges do
seguir a opinião de Barlaam, e de crér que monte Athos.
a luz do Thabor era crcada: Acyndino e A celebração d’cste concilio foi pelo anno
Barlaam foram condemnados; impôz-se si­ [1345. i
lencio sobjp estas controversias, c prohi- É notável o numero das obras compos­
biu-se, debaixo de pena de excommunhão, tas a favor c contra os hesychastes, mas
que fossem accusados os monges de he­ quasi todas ellas estão ainda manuscri-
resia. ptas, havendo muitas na bibliotheca de Coi­
Não satisfeitos porém ainda os hesychas­ flin.2
tes ou palamitas d’esta victoria, encheram Em outro artigo nos propo-
ConstantinüpTãae seus escriptos contra zemos a expender n’estc a historia, origem
Barlaam; divulgaram e fizeram receber a e estabelecimento do calvinismo nas Pro­
sua doutrina. vincias Unidas, ao que vamos satisfazer.
De repente Constantinopla se viu cheia
/ de quietistas, que oravam continuamente,
\ e com os olhos inclinados para o umbigo, DA REFORMA NOS PAIZES-BAIXOS DESDE LU-
| uesperavam toda a luz do Thabor. THERO A TÉ QUE SE FORMOU A LIGA, CO­
Os maridos largavam suas mulheres para NHECIDA DEBAIXO DO NOME DE COMPRO­
■se entregarem sem distracção a este subli- MISSO.
i me exercício, e os hesychastes lhes davam f
/ a tonsura monacal: queixavam-se as mu-
Vlheres, e em toda a côrte resoava a pertur­ '"'Grassando a doutrina de Luthcro pelos
bação, e a discordia. Paizes Baixos, no anno de 1521, Carlos v
Quiz o patriarcha occorrer ás desordens, fez publicar um cartaz contra ella, c no­
mas não dando os hesychastes nem pelas meou dous inquisidores, que mandaram
suas admoestações, nem pelos seus precei­ prender todos os que julgaram infcccio-
tos, os expulsou da cidade; e convogando i nados das opiniões d’aquetle heresiarca:
Ç u m concilio, que se compôz do paíFiarcha muitos religiosos Agostinhos foram d’es-
v de Antiochia, e de outros bispos, n’elle foi
condemnado Gregorio Palamas, suas opi­ 1 Dupin. X IV siccIOj pag. 322. Nat. Alex.
niões, e os sectarios das mesmas. Mas como in scec. 15. Panolia adversus Schisma Grce-
esta condemnação se fizesse durante o go­ corum Centúria, 13, c. 3, pag. 381. Fabri­
verno da imperatriz Anna, que foi emquan- cius, Bibliot. Grtec. t. 10, pag. 454. Alla-
to Cantacuzeno estava desterrado, logo que tiuSj etc.
este se senhoreou de Constantinopla, a im­ 2 Veja-se o cathalogo da bibliotheca de
peratriz Anna e João Paleologo querendo! Coiflin.
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te numero; dous morreram queimados, e respondeu, que mais queria ser despojado
o seu supplicio fez decantados os erros, de todos os seus estados, que possuil-os in­
que a cllc deram occasião. A este primei­ fectos com a heresia.
ro edito ajuntou Carlos v muitos outros, Também pelo mesmo tempo appareecu
nos quacs eram condcmnados todos os hc- n’aquclle paiz urna bulla de Paulo iv, para \
reges a perder a vida, os relapsos a ser a erccção de tres novos bispados, a qual j
queimados, e as mulheres enterradas vi­ expressamente dizia que os novos bispos, i
vas, alliviando-se porém da morte os que assistidos de seus cabidos, fariam as vezes >
se convertessem, com tanto que nem fos­ d’inquisidores nas suas dioceses. Accres-
sem relapsos, nem estivessem presos. 1 ceu que para as fundações dos novos bis­
Por este mencionado edito era prohibido, pados, se assignavam rendas e terras tira­
com pena de morte e confiscaçào de bens, das a algumas abbadias, c outras commu-
que ninguém recebesse em sua casa al­ nidades religiosas. Os abbades e as commu-
gum herege; todas as pessoas suspeitas de nidades queixaram-se, e souberam avaliar
heresia eram excluídas dos empregos hon- tanto os seus direitos, que por fim não
? rosos; c para que melhor se descobrissem houve remedio senão virem os bispos á
\ os hereges, se promettia aos accusadorcs composição com clles, e deixarem-lhes uma
1metade dos bens dos delatados, se nào boa parte do que possuíam.
{ excedessem a somma. de cem libras de Os magistrados d’Anvers, de Lovaina, Ru-
.{Flandres. remond, Deventer, Groninguc, e de Lawar-
Os anabaptistas, que desolavam a Alle- de presentindo quanto a sua authoridade
manha, penetraram então nos Paizes Bai­ se debilitaria pela dos bispos, se oppozeram
xos, e foram punidos com mais rigor ain­ vigorosamente ã bulla, e encontraram meios
da, que os lutheranos: c em breve subiu o para impedir aos bispos a entrada nas ci­
fanatismo a tal ponto, que se viram assim dades, ou para os expulsar d’ella$.
estes como aquclles disputar entre si a Esta opposição dos catholicos aos desí­
gloria de irem para as fogueiras e patibu­ gnios da corte de Roma, deu novos alentos
los com o menor sentimento, e a maior aos sectarios, que então fallaram com mais
constância; e o que mais é, e não póde re­ liberdade contra a curia, e muitas pessoas
ferir-se sem estremecer, viram-se alguns creram não vér n’el!es senão cidadãos ze­
d’estcs presumidos reformados, lançar as losos, e inimigos da oppressão: o seu nu­
mãos sacrilegas á sagrada hostià, quan­ mero cresceu notavelmente, e cmfim, em
do o sacerdote a elevava, quebral-a e pi- 1559 fizeram apparecer uma profissão de
h sal-a aos pés pela gloria de Deus, queren- fé, que continha trinta e sele artigos, qua­
] do assim mostrar que cila não continha a si todos oppostos á doutrina da igreja ro­
I Jesus Christo; esperarem com semblante mana, e conformes á de Genebra: por esta
( socegado que os prendessem, e sofTrcrem razão as sociedades que a receberam, to­
\ sem murmurar terríveis mortes. Este era maram logo o titulo d’igrejas reforma­
\o miserrimo estado em que se achavam os das. 1
Paizes Baixos, quando Carlos v resignou a
(. Hespanha em Philippe, seu filho.
\ Philippe confirmou os editos de seu pae, DO CALVIN1SMO EM IIOLLANDA DESDE A LIGA
e fez punir com igual severidade os luthe- ATK QUE O PRÍNCIPE d ’ORANGE
ranos c os anabaptistas. As execuções mul­ SE PÔZ EM ARMAS
{ tiplicaram os hereges, e os tornaram tão
resolutos, que se viram corporações intei­
ras de protestantes emprehenderem tirar Tão sobremaneira havia alvoroçado os
. das mãos dos executores, os que eram animes o terror da inquisição, que a no­
!• conduzidos ao supplicio.2 breza fez uma liga occulta para estorvar o
j Luiz Philippe, a fim de rebater mais se- seu estabelecimento, e com igual empenho
j guramente os progressos da heresia, esta- os mais zelosos catholicos abraçaram o mes­
j boleccu a inquisição nos Paizes Baixos, mo projecto: foi conhecida esta liga debai­
; como na Hespanha; e representando-lhe xo do nome de compromisso; mas não po­
um dos seus ministros que a severidade dendo a nobreza~'fcórifédeíada maquinar
poderia fazor-lh’os perder, ou ao menos al­ com tanto segredo, que deixasse de chegar
gumas d’aquellas provincias, Philippe lhe aos ouvidos da governadora um rumor
confuso dos seus desígnios, el-rei Philippe
1 Hist. de la Reform. des Pays-Bas, par a fim de socegar os ânimos mandou de Ma-
B randi, t. i , l. 2.
2 Jbidj pag. 35. 1 lbid., t. 1, l. 5, pag. 106.
498 HOL
drid um decreto que condemnava ás galés ram em armas, saquearam o convento das
os prcdicantes, os escriptorcs protestantes, religiosas de Wolevergem, aonde quebra­
c todos os que os recebessem em suas ca­ ram as imagens, c tudo o que era destina­
sas, ou permittissem que n’ellas fizessem do ao serviço divino; subitamente se der­
suas assembléias. Portanto se ajuntaram ramou cm tal maneira pela maior parte
. os ministros nos bosques, ou nos campos, das provincias iconoclastas, que cm termo
t aonde concorriam algumas vezes de sete a de tres dias foram depedradas mais de
oito mil pessoas: alli pregavam, e depois quatrocentas igrejas. Viam-sc no tumulto
das pregações cantavam alguns psalmos. 1 tantos ladrões, e mulheres dissolutas, e fó-
Pelo estrepito das assembléias tào públi­ ra d’estes era o numero tão limitado, que
cas e tào numerosas conheceu a princeza igualmente cscandalisava a falsa devoção
Margarida, governadora dos Paizcs Bai­ d’uns, c a insolência dos outros.
xos, que o numero dos protestantes e des­ Taes eram os fundadores da reforma cm
cendentes era muito maior, do que ella Ilollanda: uma vil plebe, que sob pretexto
pensava; e mandou aos magistrados d’An- de zelo religioso se entregava aos maiores
vers que fizessem expulsar todos os fran- desatinos, c pisava aos pés as leis divinas
cezes, e impedissem absolutamente todas c humanas; c que engrossando com estes
as assembléias.2 motins o partido dos protestantes, os affou-
Os magistrados assim o executaram, pro- tava a fazerem públicos os seus exercícios
hibindo por um edital todas as assembléias em algumas das maiores cidades, c até de
que eram públicas; mas logo receberam se apoderarem de muitas de suas igrejas, i
uma representação, cm que se lhes pro­ Assombrada a duqueza de Parma á vis­
punha, (juc havendo-se multiplicado de tal ta de tão rapidos progressos, prometteu
sorte o numero dos reformados, que já lhes abolir o Sancto Officio, regular os negocios
não era pdssivel ajuntarem-sc occultamcn- da religião, e obter d’cl-rci o congresso dos
tc, se rogava aos mesmos magistrados, per­ estados; mas Philippe, que tinha outros de­
mittissem estas assembléias, assignando to­ sígnios, c que esperava aproveitar-se d’cs-
gares aptos para ellas; e que esta liberdade tas circumstandas para estabelecer nos
attrahiria ao seu paiz innumeraveis fran- Paizes-Baixps uma authoridadc absoluta, a
cezes e allemães. fim de ultimar seus projectos, se dispunha
A governadora fez publicar um edital, a arruinar o principe d’Orange com os
que de novo ordenava a seus ministros condes d’Egmont e d’lIorn.
que dissipassem todas as assembléias, e fi­ Uma carta que continha este desígnio,
zessem enforcar cm Misericordia todos os veio ás mãos do principe d’Orangc, que a
predicantes dos reformados. participou aos seus mais intimos amigos,
Era este procedimento uma falta de pa­ os quaes se uniram, e fizeram participação
lavra á nobreza confederada, a quem se ti­ a el-rei sobre a necessidade que havia de
nha promettido esperar a resposta de Phi­ tolerar as seitas, reprimindo-as: portanto
lippe, e que se lisongeava de que nada se sómente foram castigados os novos icono­
emprehenderia sem que se deliberasse nos clastas, e o governo se tornou odioso aos
estados geraes: produziu pois este edital protestantes, sem todavia se reconciliar com
um pessimo efleito, e fez descobrir um os catholicos, extremamente offendidos da
queixume, e geral murmuraçào: muitas impiedade dos presumidos reformados. 2
cidades, até a d’Anvers, recusaram pro- Havia pois em Hollanda tres partidos
mulgal-o em fórma: as pregações públicas differentes: os catholicos inimigos da inqui­
foram mais frequentes; houve desordens, sição, e defensores dos privilégios nacio-
principalmente era Anvers, aonde a sedi- naes; os catholicos dedicados á corte d’Hcs-
cão estava á ponto de romper, e não se po­ panha, c que tudo queriam sacrificar pela
tieram impedir as assembléias. Este exem- ruina dos reformados; e finalmcntc os pro­
lo reforçou o animo dos sectarios, e em testantes fanaticos, que pretendiam conser-
reves instantes se viram estabelecidas var-se, e estenderem a sua presumida re­
igrejas, que se diziam reformadas em Lille forma.
Tournai, Valenciennas, e nas provincias Estes pediram soccorro aos principes
d’Utrecht, e d’Hollanda. protestantes d’AUemanha, que exigiram
0 fanatismo dos protestantes, alentado (Telles que assignassem a confissão d’Aus-
com este successo produziu novas desor­ burgs, o que os reformados absolutamente
dens: no districto de Sancto Omer se poze- recusaram. Portanto fizeram os lutheranos

1 Ibid., t. 1, l. 6, pag. 150. 1 lbid., t. 1, l. 7, pag. 139.


2 Ibid., pag. 131. 2 Ibid.
HOL 409

■c calvinistas dos Paizes-Baixos duas seitas te a sua patria, e sem embargo das provi­
•separadas, que rcciprocamcnto sc excom- dencias com que a duqueza de Parma quiz
mungaram, e os lullieranos sc reuniram acautelar a deserção, por editos que fez pu­
com os catholicos contra a reforma d’An- blicar, não foi ouvida. O duque d'Alba da
vers, que tinha tomado as armas para de­ sua parte cm nada mitigou a severidade,
fender a sua causa. Então os catholi­ c ate erigiu um tribunal, a que deu o no­
cos sc aproveitaram d’esta divisão para nne de í ’oniidÜüJlas4pjpjjIllo11s.
recuperar alguns logares que os rcligio- Estabeleceu este por maxima fundamen­
narios lhes tinham usurpado, c se apode­ tal «ser um crime de lesa-magestade fazer\
raram d’outros em que elles faziam as suas representações contra a fundação dos no- j
prégações; e a corte d’Hespanha, que sup- vos bispados, contra a inquisição, c contra *
pòz desbaratada a liga, exigiu dos senho­ as leis penacs; ou crer que o*Sancto Üífi- \
res, nobres c magistrados, que jurassem cio fosse obrigado a attender aos privile- '
sustentar a religião catholica romana, pu­ gios e alvarás, ou dizer que el-rei estava }
nir os sacrilegos, c extirpar as heresias; e ligado aos seus povos por promessas ou [
por fim, querendo assegurar-se dos povos, juramentos.» Este conselho se compunha i
obrigou a todos sem cxcepção a tomarem de hespanhoes, e tinha por presidente a
o s mesmos empenhos. João de Vargas, que se annunciou ao pú­
Os reformados para fugirem á tempes­ blico da maneira seguinte: «Todos os ha­
tade que desfechava sobre elles, volunta­ bitantes das provincias merecem ser en­
riamente se pensionaram, elegeram um forcados, os hereges por haverem saquea­
caixa geral, levantaram tropas, senhorea- do as igrejas, e os catholicos por não as
ram-sc de Bois-lc-Duc, c alli se fizeram for­ haverem defendido.» 1
tes. Foram menos ditosos em Utrecht c Rctirou-se a governadora, c deixou toda
Flcssinguc, porque o partido que havia a administração ao duque, o qual fez tirar
tentado esta ultima expedição, foi destroça­ a vida a muita gente: mil coitoccntaspes-)
do pelos catholicos d’Anvcrs. Os reforma­ soas morreram em pouco tempo ás mãos
dos (Vesta cidade, com a nova da derrota do algoz, e passou-se ordem para serem
de seus irmãos, correram ás armas, e a punidos como hereges, e com a maior se­
cidade sc viu cheia de mortes c perturba­ veridade, todos os habitantes dos Paizes
ção, que o principe d’Orangc não pôde re­ Baixos, excepto aquellas pessoas de que (
bater, senão armando contra os calvinistas conselho dos tumultos houvesse dado uma
os catholicos e lutheranos. relação favoravel.
El-rei dTlespanha se fez logo senhor ab­
soluto cm Valcnccnas, Cambrai, Mastriss,
Hassct, Bois-lc-Duc, etc., c tractados os re­ 1)0 CALVINISMO NOS PAIZES-BAIXOS DESDE
formados com o ultimo rigor, muitos per­ QUE TOMOU AS ARMAS O PRINCIPE D ORANGE
deram a cabeça, e os ministros foram en­ ATÉ Á PACIFICAÇÃO DE GAND
forcados. 1 O principe d’Orangc temendo
correr a mesma tormenta que desolava os
protestantes, cuidou em os reunir com os Suspiravam os povos por um libertador,
lutheranos; mas, frustrados os seus inten­ e não tinham outro senão o priucipc de
tos, se retirou para Allemanha, a qual sc Orangc: dirisindo-se pois a clle de toda a
encheu de refugiados, porque nos Paizes- parte, o resolveram a soccorrer a sua pa- .
Baixos continuaram tacs rigores, que os tria. Os principes protestantes (VAllema-
patibulos sc viam sempre cobertos de cor­ nha lhe pcrmitliram levantar tropas; todos
pos justiçados. os protestantes o abasteceram de dinheiro;
N’cstas criticas circumstandas mandou as igrejas de Londres, de Clcves, etc., lhe
el-rei de Hespanha áquelles paizes o duque mandaram sonunas notáveis: o principe
<l’Alba, na frente de mil e duzentos homens formou um exercito, c declarou as razões
de cavalleria, c de oito mil infantes (em que o determinavam a tomar as armas:
•1567 c 1568.) Entrou o duque em Bruxel- «Conservando o respeito devido ao sobera­
las, e depois de haver distribuído as suas no dos Paizes-Baixos, queriam manter os
tropas pelos contornos, fez prender os con­ antigos privilégios, abolir as leis penaes,
des d’Horn e d’Egmont, c muitas outras restabelecer a paz do estado, c livrar as
pessoas de consideração: esta noticia at- provincias do jugo hespanhol.» Foi nomea­
terrou todos os animos: mais de vinte mil do generalissimo o conde Luiz, que mar-
habitantes desampararam prccipitadamen-

1 Ibid., I. 8. 1 lbid., t. 1, /. 8, pag. 164.


soo HOL
cIiqu para Gucldré, tomou Werd c Dam, o dos d’Hollanda já então cuidavam em dar
ganhou uma batalha. fórma ao projecto da sua liberdade.
A vergonha c dòr quo sentiu o duque O primeiro passo que deram para este
d\Alba com oste dcsdouro, irritaram sua fim foi um acto que parece contrario a elle
natural ferocidade: baniu o principe de porque juntos em Lcyde prohibiram o
Orangc, e seu irmão Luiz, e lhe confiscou exercitio da religião romana, cuja resolu­
os bens: os condes d’Egmont,- e d’Horn, ção oflendia directamente as promessas do
morreram no cadafalso com mais de vinte principe d’Orangc, a capitulação do mui­
. cavalheiros e barões. Precedido (festas on- tas cidades, as resoluções d’Haya, c a con­
\ das de sangue, se pôz em campanha o du- fidencia que devia estabelecer-se entre os
: que, c deu batalha ao conde Luiz, que fi- diversos partidos que se haviam empenha­
• cou destroçado: então os reformados c ana- do na mesma rebellião: mas todas estas
baptistas soflrcram os ultimos rigores: no razões, tão attendiveis como eram. cede­
| espaço de tres dias cincoenta pessoas per- ram á urgência cm que se viram dc pôr
' deraín a cabeça tão somente cm Valcn- um muro dc separação entre os hespa-
. ciennas; mas cm menos d’um anuo o du- nhoes c as provincias.
\ que d’Alba tornou desertas mais de cem Pouco depois foram tiradas as igrejas
mil casas, e povoou todos os estados visi- aos catholicos, c estes excluídos dos cargos
nhos dc vassallos do seu soberano.1 c da magistratura, pcrmiltindo-se-lhes po­
Não ignorava o governo os motivos de rém a liberdade de se ajuntarem particu-
seu rigor, mas sem se compadecer do tan­ larmentc. A religião que se professava cm
tos males, fez publicar um novo edito para Genebra e no Palatinado, veio a ser a do­
extirpar as heresias. O duque para melhor minante n’estas provincias. Os lutheranos
descobrir os infeccionados, tinha espias por c anabaptistas foram tolerados como ca­
todas as ruas, que observassem os animos, tholicos. 1
e disposições do povo; e continuou a punir
com o maior excesso os reformados e ana-
baptistas. Gemiam pois todos os partidos, DO CALYINISMO NOS PAIZES-BAIXOS
ainda o dos mesmos catholicos, debaixo do DESDE A PACIFICAÇÃO DE GAND
jugo hespanhol, e como a todos appetecia ATÉ SE FORMAR A REPUBLICA D’II0LLANDA
uma revolução, todos se uniram finalmente
contra o duque d’Alba. O principe d’Oran-
gc se fez senhor de muitas cidades, aonde D. Luiz de Rcquesens morreu pouco de­
a nova religião foi permittida e exercitada;pois de succeder ao duque d’Alba no go­
mas em muitos logares houve capitulações verno dos Paizcs Baixos; por sua morte, o
expressas em favor da antiga, e as ordens exercito hespanhol, dividido em pellolões,
do principe geralmente prohibiam que se entrou a roubar por toda a parte, c os sol­
violentasse alguém em pontos de consciên­ dados, entregues ao seu natural furor, fi­
cia, e que dc nenhum modo se oíTendes- zeram tacs estragos, e commetteram tantos
sem os catholicos. delictos cm Brabanlc e Flandres, que o
Foi chamado a Hespanba o duque d’Al- conselho d’estado os proclamou traidores
Xba, aonde elle se lisongeava dc haver cn- e rebeldes ao soberano: mas não rebaten­
[ treguc ao algoz m^is-de,-duzentos,,mil..,he- do as desordens esta declaração do conse­
y r eges _ej:ehgjdos, sem contar os que mor­ lho, se fez um tractadó d’alliança entre os
reram na guerra. Vargas, que o acompa­ estados de Brabante, Flandres, Artois, Hai-
nhara, acçresccntava que os Paizes-Baixos naut, e outros alliados de uma parte, e os
se perderam por demasiada indulgência: estados de Ilollanda, Zelanda c os seus
«A misericordia, dizia elle, está no ceo; a confederados da outra.
justiça está na terra.» 2 D. Luiz de Requc- Por este ajuste foram perdoadas reci­
sen^succedeu ao duque, e intentou repa­ procamente as injurias passadas, c todos
rar por via de doçura os males, que pro­ se uniram para a expulsão dos hespanhoes
duzira a barbara severidade dc seu ante­ e estrangeiros, propondo que se obteria a
cessor; mas já estavam os animos em tal convocação dos estados, e que todos esta­
situação, que nem a severidade os intimi­ riam pela sua decisão; c n’este acto mes­
dava, nem a doçura os adquiria: os esta­ mo os hollandezes e zcíandezes promettiam
não intentar cousa alguma contra a reli­
gião catholica, fóra da sua jurisdicção, por­
1 Ibid.j 1 .1.°, /. 9. tlist. (TEnghienSj par que ainda existiam as leis penaes em to-
Colins, jwy. 509.
2 Ibid., t. i.°, 7. 10, pag. 220. i Ib id . t. i , l 1 0 .
HOL 501
das as provincias confederadas; c o prin­ uma representação ao archiduque para ob­
cipe de Orange, confirmado nos empregos ter o mesmo exercício público.
d’almirante c governador da Hollanda, Ze­ Em consequência d’csta representação, o
landa, e Bommcl, havia de commandar, archiduque c o conselho d’cstado foVma-
como chefe, as forças alliadas, alé á total ram um projecto de paz religiosa, de que
extineção dos hespanhoes. deram parte ás provincias, ficando ellas in-
N’csÍcs pontos consistiu o tractado,a que teiramente livres para o adoptar ou não.
se deu o nome de Pacificarão de Gana, c Este projecto deixava a todos cm per­
que os estados fizeram appróvar pelos theo­ feita liberdade de consciência, restabelecia
logos, pelas universidades catholicas, pelos a religião catholica nos logarcs aonde fòra
jurisconsultos, parochos, bispos c abbades. abolida, se n'clles ainda houvessem cem
Por esse tempo chegou D. Joào ^Áus­ pessoas que a requeressem; dizia que nos
tria aos Paizcs Baixos para tomar posse do outros Jogares se seguiría a pluralidade
seu governo; omprchcndcu, mas sem cITei- dos votos, c que da mesma sorte se obser­
to, romper o Iractado da Pacificarão de varia acerca da religião reformada, aonde
Gand, c foi declarado inimigo do paiz; e a cila não estivesse ainda estabelecida; que
provincia d’Utrccht se uniu ás outras pro­ nenhuma pessoa entraria nas igrejas de
vincias com condição de que seria conser­ diversa communhão para n’cllas dar es­
vada a religião catholica, c cxcluida qual­ cândalo, e que a eleição dos magistrados c
quer outra.1 ofiiciacs se faria pela diflerença do mere­
No seguinte anno grande parte dos se­ cimento, c não da religião.
nhores dos Paizcs Baixos, temendo o poder Este projecto não fez mais que irritar os
do principe de Orange, oíTcreceram o go­ protestantes e os catholicos; estes não qui-
verno ao archiduque Mathias, que d’ellc zeram conceder nada aos protestantes: c
tomou posse cm 1578. Este novo governa­ aquclles não contentes com uma simples
dor estabeleceu o principe de Orange por tolerância, emprchenderam obter por for­
seu stathouder general, c elles ambos de­ ça o que nào podiam tomar como por jus­
ram palavra, debaixo de juramento, de tiça; entregaram-se ao seu fanatismo, aon­
manter a Pacificação de Gand, de conser­ de quer que foram mais fortes, de sorte
var a tranquillidacle pública, e principal­ tal que as mesmas pessoas que d’antes
mente. de não permittirem se emprehen- obravam d’accordo contra os hespanhoes
desse cousa alguma contra a religião ca­ seus communs inimigos, voltaram as ar
tholica. mas umas contra as outras, c se investiran
Porém os reformados, entumecidos com tão cruelmcntc, que o projecto da paz veio
a volta que tomaram as cousas, deram um accender cm todas as provincias uma guer­
notável exemplo da insolência e do orgu­ ra civil tão cruel, como a que as mesmas
lho do homem no estado da prosperidade: tinham sustentado contra os hespanhoes.1
os d’Amsterdam fizeram amotinar a baixa Os povos d’Artois, d’Hainaut, c os habi­
plebe, tomaram o palacio da camara, ex­ tantes de Douai se colligaram para manter
pulsaram os monges e os sacerdotes, fize­ a religião romana, a authoridade real, c a
ram em pedaços as imagens, apoderaram- Pacificarão de Gand, c para se opporem á
se das igrejas,- e obrigaram os catholicos a paz religiosa: e o principe d*Orange, sup-
nào ter assembléias senão em casas parti­ pondo necessario oppôr outra liga á dos
culares; e ainda esta indulgência pareceu catholicos, uniu os paizcs de Gueldre, Zu-
demasiada a alguns. Em Arlem fizeram pten, Hollanda, Zelanda, Utrecht, e dos
pouco mais ou menos iguaes desatinos. Commelandos de Friza, que estão entre o
Os reformados de Flandrcs e Brabantc Ems o o Lawcrs. A união se pactuou em
não estavam tão fortes que emprehendes- Utrecht, no dia 10 de janeiro de 1579, dc-
sem fazer cousas tão façanhosas; mas, to­ elarando-se no preliminar que não se pre­
mando grandes liberdades, prégaram e ad­ tendia infringir a Pacificarão de Gand.
ministraram a communhão publicamente Esta confederação, chamada a união de
em vários logarcs, sem respeito algum á Utrecht, c que produziu a republica das
prohibição que d’isto se tinha feito pouco provincias unidas, recebeu logo novas for­
antes. Finalmente requereram o públi­ ças por se lhe ajuntar a Friza, Brabante, c
co oxcrcicio da sua religião, e esta süp- parte de Flandrcs, c era concebida nos se­
plica foi approvada pelo synodo nacional guintes termos: «Que os confederados se
que houve cm Dordrccht, o qual dirigiu uniam perpetuamente para não fazer mais
que um só c o mesmo estado, mas que se-

i Anno 1557. Ibid. /. 11. i Ibid. M l et 12.


50â HOL

ria cada uma das provincias independente valiosas senão depois da approvacão do-
das outras, e soberana entro si quanto ao burgomestre.
seu governo particular, e que por conse­ Einquanto estas divisões interiores tra­
quência cada uma estabelecería entre si o ziam agitada a republica, cila era no inte­
governo ecclesiastico, c conservaria a reli­ rior invadida pelas potências estrangeiras,
gião que lhe agradasse; c se dava um ma­ e o principe d'Orangc defendia a sua liber­
nifesto de que os confederados estavam dade por todos os expedientes que inspi­
dispostos a receber na liga as provincias ram o genio e o valor: e já a Hollanda es­
que não quizessem tolerar senão a religião tava a ponto de o declarar conde d’està
romana, uma vez que se submettessem aos provincia, quando foi morto d’um tiro de
mesmos artigos.» pistola por um burguinhão, em Delft, no
A Pacificação de Gand, a paz religiosa, c dia 10 de julho de 1584. Consternada a re­
a união de Ütrècht, não soccgaram os ani­ publica, com este acontecimento inespera­
mos: de novo começaram os tumultos em do, as provincias unidas se offereceram a
Anvers, Gand, etc., aonde os ecclesiasticos Henrique m, que não se via em estado de
foram maltractados: em Utreclit, Beuges, receber nem de amparar este povo, pelas
Bois-le-Duc, e em muitos outros logarcsjos inquietações que lhe causava a liga no seu
reformados nem tiveram mais sujeição, proprio reino: portanto se oíTercceram as
nem mais prudência, c por fim aconteceu mesmas provincias a Isabel, rainha ^In­
o mesmo que se receava; porque em Ar- glaterra, que lhe rejeitou a soberania, mas
tois, Hainaut, e os outros povos vallões, fi­ lhe concedeu alguns soccorros, com a con­
zeram paz com Philippe ii, e tornaram á dição porém de que ella teria'guarnições
sua obcdieucia: este foi o effeito das conti­ inglczas nas cidades que são as chaves da
nuas infracções que os reformados faziam Hollanda e da Zelanda.
por toda a parte contra o tractado de Gand, Commandava os inglezcs o conde de Ly-
e de suas frequentes perfidias contra os ca­ castre, o qual com a ajuda dos ministros
tholicos romanos, insultando os sacerdotes augmentou a confusão c o reboliço, razão
e parochos, despedaçando as imagens, e de- porque as provincias se voltaram para
oedrando as igrejas, das quaes expulsavam Maurício, filho do principe d’Orangc, que
)s mesmos catholicos. por seu valor c por sua felicidade propria,
Sem embargo de se achar a republica sustentou a vacillante fortuna das provin­
muito supeada pelos hespanhoes, mais de­ cias unidas: elegeram o stathoudcr d’Ulrc-
bil pela separação dos vallões, e dilacera­ cht, Gueldrc, ZuplUen, Hollanda, e Zelan­
da pelos catholicos e lutheranos, c por in- da; e elle alcançou tacs vantagens contra
numeraveis seitas de anabaptistas, alguns os hespanhoes, que deu aos confederados
ministros reformados suscitaram disputas tempo de respirarem.
importunas acerca da policia ecclesiastica; Henrique m tinha sido assassinado, o
pretendiam uns que o magistrado tivesse a Henrique iv conquistava então o reino d e
principal parte na. escolha de seus paro­ França: Philippe, cego do odio que tinha a
chos ou ministros, c outros que ella depen­ este principe, se uniu contra elle aos col-
desse do Consistorio. ligados, e mandou a França o duque de
tfo meio d’cstas discordias e tumultos Parma. Os hollandczes se* fizeram mais
os ministros se juntaram e deram á igreja animosos, e o seu poder igualou bem de­
reformada de Hollanda a disciplina que pressa o seu valor: depois de se manterem
Calvino estabelecera em Genebra: mas não por muito tempo na defensiva, assaz feli­
obstante isso ollas foram agitadas por mil zes em poderem nos princípios resistir aos
divisões intestinas, e principalmente pelos seus inimigos, principiaram a atacal-os, c
muitos esforços que fizeram para sujeitar íinalinente lhes tiraram as provincias visi-
a si os magistrados, e para impedir que se nhas: a.victoria foi quasi sempre sua com­
concedesse »ás outras religiões aquella mes­ panheira inseparável no mar c cm terra,
ma tolerância que os reformados, logo nos nos sitios c nas batalhas.-1 •
seus princípios, requeriam dos catholicos Fizeram novas leis, regularam a admi­
como uma justiça.1 nistração das suas rendas, sustiveram a
Finalmente as disputas do clero e dos guerra contra a Hespanha por quatorze
magistrados terminaram em que estes hou­ annos, ligaram-se contra ella com a Ingla­
vessem igualdade de votos nas eleições terra e a França, e por fim chegaram a
com os ministros, c juc cilas não fossem
1 Em 1648. Veja-se De. T lm . I. 10-
Traité de Muneter, Hist. du Traité de
Jbid. I 13 et 14. ptalie.
HOL 50:)
tal grau de poder, que os põz em estado cm Jesus Christo, seriam absolvidos desuas
de se fazerem reconhecer por toda a Eu­ culpas, e gosariam da vida eterna; mas que
ropa por uma nação livre, sobre a qual os pcccadorcs endurecidos e impenitentes
não tinha a Ilcspanha que pretender. seriam castigados; que Deus folgava muito
de que todos os homens renunciassem os
seus peccados, e que depois de chegarem
DAS SEITAS QUE SE FORMARAM NA IIOLLANDA a conhecer a verdade, n’clla perseveras­
DEPOIS QUE O CALVINISMO sem constantes, mas que não constrangia
FOI n ’e LLA A RELIGIÃO DOMINANTE ninguem.» i
Gomar tomou a defesa de Calvino sus­
tentando que «Deus por um decreto eter­
As provincias unidas e levantadas con­ no havia ordenado que entre os homens
tra a Hcspanha c contra a inquisição, vie­ uns fossem salvos, c outros prescriptos, de
ram a parar cm asylo de todas as seitas que se seguia que uns eram attrahidos á
chrislãs, condemnadas pela inquisição e graça, c que assim attrahidos não podiam
pelas leis d’Hcspanha; como os estados da cahir; mas que Deus permittia que todos
Hollanda as protegiam, os anabaptistas fo­ os outros ficassem na corrupção da natu­
ram tractados com mais humanidade, e os reza humana, e nas suas iniquidades.»
theologos protestantes atacaram em seus Gomar não contente com defender a sua
sermões e escriptos esta indulgência dos opinião, publicou que a doutrina de Armi­
magistrados, sustentando não poderem cl- nio abalava os fundamentos da reforma, e
les conceder a liberdade do consiencia, e introduzia o papismo e o jesuitismo.
deverem punir os hereges: tacs eram as Combateram Arminio a maior parte
pretenções do clero protestante contra os dos ministros e pregadores, mas elle tam­
socinianos, anabaptistas, etc., no meio das bém achou quem o defendesse: as escolas
calamidades da guerra e desassocegos que tomaram parte n’esta controversia, que
causavam ás provincias unidas os esforços d’ellas passou aos pulpitos, e d’estes ao
de Hespanha, que talvez podiam submet- povo; c alguns pregadores se queixaram
tcl-as ao jugo que sacudiram, por não lhes amargamente de que se pozesse em dúvi­
permittirem a mesma tolerância que im­ da a profissão de fé, que tinha sido scllada
pugnavam. com o sangue de tantos martyres.2
N’estc tempo em que os theologos pro­ Os estados da Hollanda toniaram conhe­
testantes forcejavain por armar o povo e cimento d’estas disputas, e fizeram quanto
os magistrados contra os socinianos, ana­ foi possível por apazigual-as, mas sem ef-
baptistas, lutheranos, etc., ellcs mesmos es­ feito, porque tomando calor os dous parti­
tavam divididos entre si acerca da graça, dos, tudo embaraçaram, c as duas seitas
da predestinação, e do merecimento das vieram a ser duas* facções; porém obtendo
obras, e as suas controvérsias produziram a de Gomar cm breve tempo a superiori­
divisões, bandos, e uma guerra de reli­ dade, os arminianos olTcreceram aos- esta­
gião. dos da Hollanda uma representação em
Calvino tinha negado a liberdade do ho­ que se justificavam das accusações dos go­
mem, e sustentado que Deus não predesli- ma ri tas, que os censuravam de quererem
nára menos os homens ao peecado e á con- fazer innovações na religião. Insistiam el-
demnação, que á virtude e á bemaventu- les em que se devia examinar a profissão
rança: esta doutrina, que muitos protes­ de fé, e o cathccismo; depois do que de­
tantes censuraram em Luthero, foi impu­ ram exposição da doutrina dos seus adver­
gnada contra Calvino, naquelle mesmo sarios, c da sua. Esta representação, apre­
tempo que elle podia tudo em Genebra: sentada pelos arminianos, lhes deu o nome
ella encontrou adversarios mais formidá­ de remontrante.Sj e aos gomaristas que of-
veis nos Paizes Baixos, e entre os reforma­ fercceram outra opposta, chamaram con-
dos, os quaes tiveram que a doutrina de tra-remontrantes. 3
Calvino, acerca da predestinação, não fazia Os estados impozeram silencio sobre os
um ponto principal da reforma. matérias controvertidas pelas duas parcia-
Arminio, parocho em Amstcrdam, e pro­
fessor em Leyde, se declarou contra Calvi­ Hist. de la Reforme des Pays-BaSj t. i,
no; cria este ministro «que sendo Deus pag. 364.
justo Juiz e Pae misericordioso de toda a 2 lbid. pag 365, 369.
eternidade, fizera esta distineção entro os 3 Jâ expozemos os princípios theologi­
homens: quo os que se emendassem de cos d'estas duas seitas nos artigos Arminio
sous peccados, e pozessem a sua confiança e Gomar.
504 HOL
lidadcs, e as cxhortaram a viver em paz; D’aqui passou a ordenar á tropa quo
mas nào sendo approvado este partido por nao obedecesse aos magistrados, e obrigou
todas as cidades, os ministros continuaram os estados geraes a que escrevessem* aos
a declamar contra os arminianos, c a fa- magistrados das cidades, determinando-lhes
zcl-os mal vistos. que despedissem as tropas levantadas para
Gomo varios cavalheiros d’Amsterdam, e a segurança pública; porém os estados par-
até alguns magistrados da mesma cidade, cularcs, que a este proposito não se per­
logo no principio da reforma, tivessem re­ suadiram sujeitos a outras ordens mais
jeitado a doutrina de Calvino acerca da que ás dos estados das suas provincias, não
predestinação, e outros dogmas d’estc theo­ tiveram respeito algum ás dos estados ge-
logo, os descontentes dos ditos se declara­ racs.
ram em favor das opiniões dos remontran­ 0 principe tractou este procedimento de
tes, e aggregando-se a estes alguns mem­ rebcllião, e conveio com os estados geraes
bros da igreja de Wallona, fizeram todos em marchar elle mesmo, com as tropas
sua assembléia particular. que commandava, a extinguir esta solda-
Os remontrantes, incitados com o exem­ dcsca levantada irrcgularmente, e a depôr
plo d’estes, e com as tentativas dos ministros os magistrados arminianos; prendeu tudo
gomaristas, formaram também suas assem­ quanto resistia á sua authoridadc tyran­
bléias particulares na provincia da Hollan- nica, c á sua justiça militar, e, aproveitan­
da: a plebe as investiu, fez em pedaços a do-se d’esta opportunidade, fez prender e
cadeira do presidente, e lhe demoliría a cortar a cabeça a Barnevelt, um dos mais
casa, se o motim não fosse desbaratado.. No illustres defensores da liberdade das pro­
domingo seguinte saquearam a de um re- vincias unidas.
montrante, cavalheiro rico; razão porque Barnevelt havia sido tão util ás provin­
os remontrantes d’ííoIlanda e Utrecht, pre­ cias unidas, no seu gabinete, como o foram
vendo a tormenta, formaram entre si união os principes de Orange á frente do exer­
mais estreita, por um acto particular. cito: a liberdade pública nada tinha que
Viu-se pois o magistrado na urgência de temer de Barnevelt; mas foi sacrificado á
tomar parle n’estas dissensões theologicas, vingança do principe d’Orangc, que podia
publicando um edito que ordenava aos aniquilar a liberdade das provincias, e que
dous partidos que se tolerassem, porque talvez teudo formado o projecto de se fa­
os predicantes não se limitando a cathe- zer dictador das mesmas, temia encontrar
chisar, assopravam também o fogo da sedi- n’elle um obstaculo insuperável.1
ção. Este edito porém amotinou todos os Apoiados os gomaristas com o credito e
gomaristas de tal maneira, que receando- poder do principe d’Orange, fizeram con­
se as antigas sedições, o grande pensiona- vocar um synodo em Dordrccht, em que
rio JBarncvell propòz aos estados se conce­ foram condèmnados os arminianos, e con­
desse aos magistrados da provincia o po­ firmada a doutrina de Calvino ácerca da
der de levantarem tropas para reprimir os predestinação e da graça.2
sediciosos, e prover a segurança de suas Em virtude do mesmo synodo, fizeram
cidades. Bordecht, Amsterdam e outras banir, expulsar, e prender os arminianos,
tres cidades, favoráveis aos gomaristas, pro­ que sómente depois da morte do principe
testaram contra o parecer de Barnevelt, foram tractados com menos rigor, e final­
mas elle comtudo foi seguido, e os estados, mente cm 1630 conseguiram a tolerância.
na conformidade do mesmo, firmaram um É pois o calvinismo a religião dominante
decreto em 4 d’agosto de 1617. em Hollanda, e em todas as cidades e vil­
Havendo já muito tempo que o principe las dependentes das provincias unidas; po­
Maurício de Nassau aborrecia a Barnevelt, rém os que seguem a profissão d’Ausbur-
se persuadiu poder aniquilar a authorida- go, os remontrantes e os arminianos, teem
de d’este magistrado á sombra das dis­ muitos templos: os anabaptistas, cujo nu­
sensões religiosas. Queixou-se de que ten­ mero se augmentou consideravelmente de­
do os estados resolvido o levantamento das pois que foram expulsos do condado de
tropas sem o seu consentimento, dcsautho- Berne, teem também suas assembléias: os
risavam a sua dignidade de governador e socinianos são iguálmente tolerados cm
de capitão general: e porque taes pretèn- Hollanda, e quasi todos se aggregaram aos
ções não podiam sustentar-se sem os votos
do povo, se declarou em favor dos goma­ 1 Veja-se du Mauricr, Le Vassor, et le
ristas, que tinham altrahido ao seu partido Clerc.
o mesmo povo, e eram inimigos capitaes 2 Vejam-se os artigos Gomar e Armi­
de Barnevelt. nio.
HUS 505
anabaptistas, ou aos anninianos. Os puri­ attribuia a causa primitiva de todos os ví­
tanos e kuakrcs teem suas assembléias. Os cios de que o censuravam.
catholicos romanos são tolerados, e pos­ Rcconunendava este sectario a lição dos
suem algumas capellas particulares, mas livros dos hereges, suppondo quo viesse
c maior o seu numero nas ajdeias do que muito a proposito para fazer persuadir a
nas cidades. Finalmcntc os judeus teem na necessidade d’csta reforma, pela audacia
Hollanda suas synagogas, duas em Amster- com que ellcs pintavam as desordens do
dam, uma cm Rotterdam, etc. A tolerân­ clero: c no seu sentir se devia permittir a
cia das provincias unidas tem sido muito leitura dos mesmos, porque n’ellcs se acha­
censurada, e M. Basnage a quiz justificar.1 vam algumas verdades mais bem discuti­
nos (joão n^J_nn^iQXq pp. hussinets, or­ das ou mais fortemente expressadas, e ti­
dinariamente chamado joão nus-—foi assim nha para si não ser de temer tal permis­
appellidado, segundo o uso do seu tempo, são, uma vez que fossem solidamente refu­
do nome de uma cidade ou villa da Bohe- tados os erros que n’elles se encerravam.
mia, dlgnde e,ra,natural. Fez a^carrePra de Ainda então não linha João Hus adopta-
estudo em Praga, aonde tomou o grau de do alguns dos erros de Wiclef, mas com
mestre em artes, e veio a ser o decano da a sua audacia, a boa acccitação que tive­
faculdade de theologia, e finalmente reitor ram os seus sermões, e a lição de Wiclef
da universidade, no principio do decimo indispozeram contra o clero*infinidade de
quinto século. 2 pessoas, e causou inquietação o projecto
O immediato produzira multidão de sei­ da doutrina. Foi citado para comparecer
tas, que, enfurecidas contra a curte de cm Roma, e expulso de Praga: logo se con­
Roma c contra o clero, accommetteram a demnaram os livros de Wiclef, de que fo­
authoridade dos papas e da Igreja; mas os ram queimados mais de duzentos volumes,
inimigos.do clero, de Roma, c da igreja, e puniram severamente as pessoas que os
não eram sómente enthusiastas e fanati­ conservavam.1
cos, eram religiosos theologos, homens sá­ João Hus tomou a defesa de Wiclef, sem
bios como João d’01iva, Marcilio de Padua, que todavia justificasse os seus erros, que
Wiclef, e todos aquelles franciscanos que aliás condemnava; mas pretendia elle pro­
escreveram para provar que os filhos de S. var pela authoridade dos padres, dos pa­
Francisco não podiam possuir nada como pas, dos canones, c da razão, que não se
proprio, e que nem eram senhores da sopa deviam queimar os livros dos hereges, e
que comiam, atacando a authoridade do particularmente os de Wiclef, de cuja vir­
papa, que condemnava esta opinião. tude e merecimento a universidade de Ox­
As obras de todos estes correram geral- ford linha dado os testimuuhos mais authen­
menle, e as de W iclef sobre tudo se divul­ ticos. «A essencia da heresia, dizia elle,
garam na Bohemia: além d’isto o estado consiste na obstinação da resistência á ver­
actual do clero augmentava o peso a estes dade; quem sabe se W iclef se arrependeu?
sediciosos cscriptos, porque o viam carre­ eu nao assevero que elle deixasse de ser
gado de riquezas e submergido na igno­ herege, mas também não me presumo com
rância, não oppôr a seus inimigos senão a direito para afiirmar que o fosse.»
authoridade e o valimento que tinham jun­ Segundo o seu sentir, era um pensar de­
to dos principes; viam anti-papas disputa­ masiadamente favoravel aos hereges, e dar
rem a cadeira de S. Pedro, excommun- aos fieis uma ideia muito vantajosa dos so-
gando-se reciprocamente, e fazerem pré- phismas d’aquclles, o prohibir-lhes suas
gar cruzadas contra os principes que obe­ obras, por se suppôr que cilas infallivcl-
deciam aos seus competidores. mente induzam no erro as pessoas que as
Esle espectáculo, pois, e a leitura dos li* lêrem. Instrui o povo, dizia elle, ponde-o
vros dos inimigos da Igreja, produziram em estado de discernir a falsidade de seus
cm varios animos o desejo d’uma reforma princípios; esteja bastantemente instruído
na disciplina c no clero; e João Hus, olhan- para que os possa comparar com a dou­
do-a como unico remedio para as calami­ trina da Escriptura, e assim distinguirá fa­
dades da Igreja, teve o arrojo de a prégar, cilmente nos livros dos hereges o que a
levantando-se contra a ignorância, contra ella é conforme do que lhe é contrario:
o s costumes e riqueza do clero, a que elle este é o meio mais seguro para rebater os
progressos do erro.
Principiava, pois, João Hus a estabelecer
1 Stup. Relig. des Holland. Hist des Pro-
' vinces Unies, par Basnage, 1 .1, pag 135. 1 L E nfant. Hist. du Cone. dtPise. /En.
2 Em 1409. Silvius. Les Hist. de Bohemc.
304 HOL
lidades, e as cxhortaram a viver cm paz; D’aqui passou a ordenar á tropa que
mas nào sendo approvado este partido por não obedecesse aos magistrados, e obrigou
todas as cidades, os ministros continuaram os estados geraes a que escrevessem* aos
a declamar contra os arminianos, c a fa- magistrados das cidades, determinando-lhes
zcl-os mal vistos. que despedissem as tropas levantadas para
Como varios cavalheiros d’Amsterdam, e a segurança pública; porem os estados par-
até alguns magistrados da mesma cidade, culares, que a este proposito não se per­
logo no principio da reforma, tivessem re­ suadiram sujeitos a outras ordens mais
jeitado a doutrina dc Calvino acerca da que ás dos estados das suas provincias, não
predestinação, e outros dogmas d’estc theo­ tiveram respeito algum ás dos estados gc-
logo, os descontentes dos ditos se declara­ racs.
ram em favor das opiniões dos remontran­ 0 principe tractou este procedimento de
tes, e agçregando-so a estes alguns mem­ rebellião, e conveio com os estados geraes
bros da igreja de Wallona, fizeram todos em marchar clle mesmo, com as tropas
sua assembléia particular. que commandava, a exlinguir esta solda-
Os remontrantes, incitados com o exem­ desca levantada irrcgularmente, e a depôr
plo d’estes, e com as tentativas dos ministros os magistrados arminianos; prendeu tudo
gomaristas, formaram também suas assem­ quanto resistia á sua aulhoridade tyran­
bléias particulares na provincia da Hollan- nica, c á sua justiça militar, e, aproveitan-
da: a plebe as investiu, fez em pedaços a do-se d’esta opportunidade, fez prender e
cadeira do presidente, e lhe demoliría jx cortar a cabeça a Barnevelt, um dos inais
casa, se o motim não fosse desbaratado. No illustres defensores da liberdade das pro­
domingo seguinte saquearam a de um re- vincias unidas.
montrante, cavalheiro rico; razão porque Barnevelt havia sido tão util ás provin­
os remontrantes d’IIollanda e Utrecht, pre­ cias unidas, no seu gabinete, como 0 foram
vendo a tormenta, formaram entre si união os principes de Orangc á frente do exer­
mais estreita, por um acto particular. cito: a liberdade pública nada tinha que
Viu-se pois o magistrado na urgência de temer de Barnevelt; mas foi sacrificado á
tomar parte 11’estas dissensões theologicas, vingança do principe d’Orange, que podia
publicando um edito que ordenava aos aniquilar a liberdade das provincias, e que
dous partidos que se tolerassem, porque talvez tendo formado 0 projecto de se fa­
os predicantes não se limitando a cathc- zer dictador das mesmas, temia encontrar
chisar, assopravam também 0 fogo da sedi- 11’elle um obstaculo insuperável.1
ção. Este edito porém amotinou todos os Apoiados os gomaristas com 0 credito c
gomaristas de tal maneira, que receando- poder do principe d’Orange, fizeram con­
se as antigas sedições, 0 grande pensiona- vocar um synodo em Dordrccht, em que
rio Barncvelt propbz aos estados se conce­ foram condèmnados os arminianos, e con­
desse aos magistrados da provincia 0 po­ firmada a doutrina de Calvino acerca da
der dc levantarem tropas para reprimir os predestinação e da graça.2
sediciosos, e prover a segurança de suas Em virtude do mesmo synodo, fizeram
• cidades. Bordecht, Amsterdam e outras banir, expulsar, e prender os arminianos,
tres cidades, favoráveis aos gomaristas, pro­ que sómente depois da morte do principe
testaram contra 0 parecer dc Barnevelt, foram tractados com menos rigor, e final­
mas clle comtudo foi seguido, e os estados, mente em 1630 conseguiram a tolerância.
na conformidade do mesmo, firmaram um É pois 0 calvinismo a religião dominante
decreto em 4 d’agosto dc 1617. em Hollanda, e em todas as cidades e vil­
Havendo já muito tempo que 0 principe las dependentes das provincias unidas; po­
Maurício de Nassau aborrecia a Barnevelt, rém os que seguem a profissão d’Ausbur-
se persuadiu poder aniquilar a authorida- go, os remontrantes e os arminianos, teem
de d’este magistrado á sombra das dis­ muitos templos: os anabaplistas, cujo nu­
sensões religiosas. Queixou-se de que ten­ mero se augmentou consideravelmente de­
do os estados resolvido 0 levantamento das pois que foram expulsos do condado de
tropas sem 0 seu consentimento, desautho- Berne, teem também suas assembléias: os
risavam a sua dignidade de governador e socinianos são igualmente tolerados cm
de capitão general: e porque taes preten- Hollanda, e quasi todos se aggregaram aos
ções não podiam sustentar-se sem os votos
do povo, se declarou em favor dos goma­ 1 Veja-se du Mauricr, Le Vassor, et te
ristas, que tinham altrahido ao seu partido Clerc.
0 mesmo povo, e eram inimigos capitaes 2 Vejam-se os artigos Gomar e Armi­
de B arnevelt. nio.
HUS 505
íinabaptistas, ou aos arminianos. Os puri­ attribuia a causa primitiva de todos os ví­
tanos c kuakrcs teem suas assembléias. Os cios de que o censuravam.
catholicos romanos são tolerados, e pos­ Rccommendava este sectario a lição dos
suem algumas capellas particulares, mas livros dos hereges, suppondo que* viesse
é maior o seu numero nas ajdeias do que muito a proposito para fazer persuadir a
nas cidades. Finalmcntc os judeus teem na necessidade d’csta reforma, pela audacia
ílollanda suas synagogas, duas cm Amstcr- com que clles pintavam as desordens do
dam, uma cm Rotterdam, etc. A tolerân­ clero: c no seu sentir se devia permittir a
cia das provincias unidas tem sido muito leitura dos mesmos, porque n’elles se acha­
censurada, e M. Basnagc a quiz justificar.1 vam algumas verdades mais bem discuti­
nus OoÃo j ieI ím l jo AO-DE iiussiNETS. or­ das ou mais fortemente expressadas, e ti­
dinariamente chamado joâó nus— fói assim nha para si não ser de temer tal permis­
appellidado, segundo o uso do seu tempo, são, uma vez que fossem solidamente refu­
do nome de uma cidade ou viüa da Bohe- tados os erros que n’ellcs se encerravam.
mia, (Tflndc ej;a..natural. Fez a^carrefra de Ainda então não tinha João Hus adopla-
estu d oem Praga,' aonde tomou o grau de do alguns dos erros de Wiclef, mas com
mestre cm artes, e veio a ser o decano da a sua audacia, a boa acceitação que tive­
faculdade de theologia, e finalmente reitor ram os seus sermões, c a lição de Wiclef
da universidade, no principio do decimo indispozeram contra o clero*infinidade de
quinto século.2 pessoas, e causou inquietação o projecto
O immediato produzira multidão de sei­ da doutrina. Foi citado para comparecer
tas, que, enfurecidas coutra a curte de em Roma, e expulso de Praga: logo se con­
Roma e contra o clero, accommetteram a demnaram os livros de Wiclef, de que fo­
authoridade dos papas e da Igreja; mas os ram queimados mais de duzentos volumes,
inim igos. do clero, de Roma, e da igreja, e puniram severameute as pessoas que os
não eram sómente enthusiastas e fanati­ conservavam.1
cos, eram religiosos theologos, homens sá­ João Hus tomou a defesa de Wiclef, sem
bios como João d’01iva, Marcilio de Padua, que todavia justificasse os seus erros, que
Wiclef, e todos aquelles franciscanos que aliás condemnava; mas pretendia elle pro­
escreveram para provar que os filhos de S. var pela authoridade dos padres, dos pa­
Francisco não podiam possuir nada como pas, dos canones, e da razão, que não se
proprio, e que nem eram senhores da sopa deviam queimar os livros dos hereges, e
que comiam, atacando a authoridade do particularmente os de Wiclef, de cuja vir­
papa, que condemnava esta opinião. tude e merecimento a universidade de Ox­
As obras de todos estes correram geral- ford linha dado os teslimunhos mais authen­
mente, e as de W iclef sobre tudo se divul­ ticos. «A esscncia da heresia, dizia elle,
garam na Bohemia: além d’isto o estado consiste na obstinação da resistenda á ver­
actual do clero augmentava o peso a estes dade^ quem sabe se W iclef se arrependeu?
sediciosos cscriptos, porque o viam carre­ eu não assevero que elle deixasse de ser
gado de riquezas e submergido na igno­ herege, mas também não mo presumo com
rância, não oppôr a seus inimigos senão a direito para afBrmar que o fosse.»
authoridade e o valimento que tinham jun­ Segundo o seu sentir, era um pensar dc-
to dos principes; viam anti-papas disputa­ masiadamente favoravel aos hereges, e dar
rem a cadeira de S. Pedro, excommun- aos fieis uma ideia muito vantajosa dos so-
gando-se reciprocamente, e fazerem pré- phismas d’aqucllcs, o prohibir-lhes suas
ar cruzadas contra os principes que obc- obras, por se suppor que ellas infallivel-
eciam aos seus competidores. mente induzam no erro as pessoas que as
Este espectáculo, pois, e a leitura dos li» lêrem. Instrui o povo, dizia elle, ponde-o
vros dos inimigos da Igreja, produziram em estado de discernir a falsidade de seus
cm varios animos o desejo d’uma reforma princípios; esteja bastantemente instruído
na disciplina o no clero; e João Hus, olhan­ para que os possa comparar com a dou­
do-a como unico remedio para as calami­ trina da Escriptura, c assim distinguirá fa­
dades da Igreja, teve o arrojo de a pregar, cilmente nos livros dos hereges o que a
levantando-se contra a ignorância, contra ella é. conforme do que lhe é contrario:
os costumes e riqueza do clero, a que elle este é o meio mais seguro para rebater os
progressos do erro.
Principiava, pois, João Hus a estabelecer
1 Stup. Relig. des Holland. Hist des Pro-
' vinces Unies, par Basnagc, t. i, pag 135. t VEnfani. Hist. du Cone. de Pise. /En.
2 Em 1409. Silvius. Les Hist. dc Boheme. .
506 HUS
a Escriptura como a única regra de fé, c beranos pontifices, mas tao sómente oppôr-
os simples fieis como os juizes competen­ sc ao abuso da mesma. Feitas estas protos-
tes das controvérsias da mesma fé, porque tações, sustenta João Hus quc a cruzada
ellc nào seguia os erros de W iclef acerca ordenada por João xxm é contraria á c a ­
da transubstanciaçào, da authoridade da ridade evangélica, porque a guerra traz.
Igreja, do papa, etc.; mas tão sómente se comsigo innumeravcis calamidades c des­
conformava com aquellc herege em asse­ ordens, porque se ordena a christãos con­
verar que os reis tinham poder para ex­ tra christãos; porque nem os ecclesiasti­
poliar as igrejas das suas possessões tem- cos nem os bispos, nem os papas podem
poraes, e que os povos podiam recusar-lhes fazer guerra, principalmcnte por interes­
os pagamentos dos dizimos. 1 ses temporaes; porque sendo christão o
reino de Nápoles, e fazendo uma parte da
Morto o arcebispo Sbinko, João Hus tor­
nou a Praga em tempo que João xxm man­ Igreja, a bulla, quc põe interdicto este.rei­
dara pregar uma cruzada contra Ladislau, no e o manda assolar, não protege um a
rei de Nápoles. Na bulla que a ordenava parte da Igreja senão destruindo outra;
tpedia o papa pela aspcrsào do sangue de que a ter o papa algum poder para orde­
Jesus Christo a todos os imperadores e nar a guerra, era forçoso quc clle fosse
mais illuslrado que Jesus Christo, ou que
principes da christandade, a todos os pre­
a vida de Jesus Christo valesse menos que
lados das igrejas, a todos os mosteiros, a
a dignidade e prerogativas do papa, pois
todas as universidades, a todos os particu­
que o mesmo Senhor não permittira a S .
lares d’um e outro sexo, ecclesiasticos, e
seculares de qualquer condição, grau, ou Pedro que arrancasse a espada para sal­
dignidade que fosse, que se apreslassem var-lhe a vida.
para perseguirem e exterminarem a Ladis­ Nào atacou João Hus nem o poder que
lau e seus cúmplices cm defesa do estado teem os sacerdotes para absolver dos pcc­
e da honra da Igreja, c da sua própria.» cados, nein a necessidade do sacramento
Concedia o papa aos que se armassem da penitencia, nem ainda o dogma das in­
para seguir esta guerra, a mesma indulgên­dulgências tomado em si mesmo; mas con­
cia da cruzada da Terra Sancta, proinct- demna va tão sómente o seu abuso: dizia,
quc no seu pensar o explicavam mal aos
tendo iguaes graças aos que, não combaten­
do em pessoa, mandassem á sua custa, se­ fieis, e que estes se esperançavam nimia-
gundo as posses e condições de cada um, mente nas indulgências; cria,*por exemplo,
pessoas aptas para combaterem; c tomava que ellas não se podiam conceder por uma
uns e outros com suas familias e bens de­ contribuição para os cruzados.
baixo da sua protecção e da de S. Pedro, Igualmente asseverava não se abusar
determinando aos prelados, que procedes­ menos dc poder de punir, que do poder
sem com censuras ecclesiasticas, e até sede perdoar, e que o papa excommungava
valessem do braço secular contra todos os por motivos muito leves, e por seus inte­
que quizessem ínolestar os cruzados em resses pessoacs; que uma tal excommu-
seus bens e familias, não obstante qual­ nhão não separa os fieis do corpo da Igre­
quer appellação. A bulla promettia plena ja, c que pois que o papa podia abusar do
remissão dos* pcccados aos prégadores e seu poder, impondo aos lieis estas penas,
collectores das cruzadas, suspendia ou an-a elles tocava vér e examinar se eram jus­
nullava todas as outras indulgências até tas ou injustas, c uma vez quc se persua­
então concedidas pela sancta sé, e tractavadissem ser injustas, não as deviam tem er.1
a Gregorio xii, concorrente de João xxm , Como este principo dava um golpe fatal
na authoridade dos papas e do clero, quc
de herege, de scismatico, e de filho da m al­
dição. 2 João Hus olhava como um obstaculo in­
João Hus impugnou esta bulla c as in­ vencível para a reforma que desejava, pôz
dulgências que ella promettia, protestando n’elle todo o seu empenho; e para assegu­
retractar-se quando lhe fizessem vêr que rar as consciências contra o temor da ex-
se enganara; porque nem era seu animo communhão, cmprchendcu mostrar que a
defender Ladislau, nem sustentar as pre- injusta não separava com efleito da com-
tençoes de Gregorio xii, nem accomrnettcr munhão dos fieis; tal é a doutrina que elle
a authoridade que Deus tinha dado aos so­ intenta estabelecer no seu Tractado da
Igreja.
1 Veja-se Joannis Hus Hist. et Mqnum. Por base d*este tractado propõe elle ser
2 Acham-se estas bullas na collecçõo das
obras de João Hus, t. 1, pag. 175. E dição 1 Disputatio Joan. Hus advers. indul
nauremberga. Papal. Ia cit.,pag. 175.
HUS 307
a Igreja uni corpo mystico de que Jesus Como todos estes princípios eram sus­
Christo é a cabeça, e os justos e os predes­ tentados por declamaçóes patheticas e ve­
tinados sào os membros: e como nenhum hementes contra a riqueza, costumes, e
dos predestinados possa perder-se, não é ignorância do clero, c principaluicntc con­
possível que nenhum dos seus membros tra a authoridade que cllc exercia sobre
seja separado d’ella por algum poder; e os fieis por vivas pinturas das calamidades
portanto a cxcommunhão não póde cx- do Christianismo, e pela regularidade de
cluil-os da vida eterna. Os reprobos não vida de João Hus, veio a tornar-se este
pertencem a esta igreja, nem d’ella sào theologo o oraculo d uma parte do povo.
verdadeiros membros; estão sim dentro do Os seus discipulos enfureceram-sc contra o
seu corpo, porque participam do mesmo clero, e atacaram as indulgências, ao pas­
culto e dos mesmos sacramentos, mas nem so que os pregadores das mesmas se em­
por isso são do corpo da Igreja, bem como penhavam em declamar contra João Hus
os humores viciosos que residem no corpo e seus sectarios, os quaes improperavani
humano, não são parte do mesmo corpo. os mesmos pregadores, e davam ao papa
Portanto o papa e os cardcaes compoem 0 nome de Anti-Christo.
o corpo da Igreja, mas aquelle não é a sua Fez o magistrado prender alguns, aos
cabeça. Porém o papa c os bispos, que são quaes mandou cortar a cabeça; e bem que
no ministerio os successores dos apostolos, este aclo de rigor não causasse motim,
teem o poder de ligar c desligar, mas se­ comtudo os sectários roubaram os corpos
gundo João Hus, não c senão um poder dos justiçados, e os honraram como a mar­
ministerial, que não liga por si mesmo: tyres. Porém os discipulos d’este heresiar-
por quanto o poder de ligar não tem mais cha se multiplicavam, e como el-rei da Bo-
extensão que o de desligar, e é sem dúvi­ hemia publicou um edito pelo qual tirava
da que o de desligar nos bispos c sacerdo­ aos ecclesiasticos mal morigerados as suas
tes não é senão ministerial, e que sómente rendas e dizimos, os hussitas authorisados
Jesus Christo desliga com effeito; pois que com ellc, delatavam todos os dias algum
para se justificar um peccador, é necessá­ d’estc caracter: assim veio a ser o clero o
rio um poder infinito, quo só a Deus per­ objecto d’uma cspecie ^inquisição: c mui­
tence: d aqui tira João Hus por conclusão, tos ecclesiasticos, para não serem desbulha-
que a contrição é sufficiente para remittir dos dos seus beneficies, se pozeram da par­
as culpas, e que a absolvição não as per­ te dos hussitas, e o zelo dos catholicos prin­
doa. mas tão sómente as declara perdoadas. cipiou a esm orecer.1
No sou parecer, o papa c os bispos abu­ Conrado, arcebispo de Praga, a fim dc o
sam do poder puramente ministerial, c a reanimar, póz interdicto na cidade dc Pra­
Igreja nao deixaria de subsistir, quando ga, e cm todos os logares em que habitasse
nao houvesse papa nem cardeacs; pois que João Hus, prohibindo que n^lles se pre­
os christàos leem na Escriptura uma guia gasse c fizessem os divinos officios durante
segura para os governar. Comtudo não a sua assistência, e ainda por alguns dias
deve pensar-sc que os bispos não tenham depois.2 João Hus sahiu de Praga, mas as
direito algum ã obediência dos fieis, mas suas obras continuaram a ser lidas iTaqucl-
esta sujeição não se ha de estender ás or­ la cidade, c ellc a compor outras mais in­
dens manlfestamente injustas e contrarias solentes e injuriosas á igreja romana: taes
á Escriptura, porque a obediência dos fieis sào a sua Anatomia dos membros do Anti-
ha de ser racionavcl. Christo, a Abominarão dos sacerdotes e
Todas estas materias são tractadas por monges cam a es, a Abolição das seitas e
João llus com bastante ordem e methodo; sociedades religiosas e condições humanas.
n’cllc se veem invectivas grosseiras, mas Todos estes odiosos escriptos, por confis­
esse era o tom do seu século; e os livros são de M. LEnfant são tão oppostos ao gosto
d’estc hcrcsiarcha teeni servido de reper­ do nosso século como ao caracter evangé­
torio aos reformadores que o seguiram. lico; 3 mas foram recebidos avidamente
Taes sào os princípios theologicos sobre pelo povo, de sorte, que se formou uma
que cllc fundava a resistência que punha seita formidável, que tinha cm divisão a
ás ordens dos papas, e o plano da reforma Bohemia, c que igualmente se oppunha ao
que pretendia estabelecer na Igreja, ad- clero c aos magistrados.
stringindo o seu poder, e dando aos sim-
n p le s fieis uma liberdade que com effeito 1 Colchi Hist. Hussit, l 1, pag. 62.
a n iq u ila v a a da Igreja. 1 2 lbid. V E nfant. Cone. de Pise, 1.1, pag.
237,
1 Joan. Hus de Ecclesia militante. 1 3 Na collecção das obras de João Hus.
508 HUS
f ' João Hus foi denunciado no concilio de entradas c sabidas, por qualquer direito
v . Constança por um professor de theologia que seja, c deixando-o passar livre c segu­
e um parocho de Praga, c como el-rei da ramente, demorar-se, parar o voltar, c pro-
Bohemia folgava que elle se achasse no vendo-o com bons passaportes em honra c
mesmo concilio, foi pedido para Joào IIus respeito da magestade imperial. Dado em
um salvo-conducto ao imperador Segis- Spira cm 18 d’outubro de 1414.» NMsto se
mundo. Chegado que elle foi a Constança, fundam os que censuram o concilio de
teve suas conferências com alguns car- Constança dc falta dc fé a João Hus, sobre
deaes, cm que protestou que nao presu­ a qual censura fazemos algumas reflexões:
mia ensinar nem heresia nem erro, c que 1. “ João Hus não tinha direito para se
se o convencessem do contrario se retra- dispensar da citação do concilio dc Con­
ctaria; mas continuava a divulgar os seus stança, pois que el-rei da Bohemia c o im­
sentimentos com grande obstinação e calor. perador, d’accordo com o mesmo concilio,
D’esta maneira não promettia João Hus lhe ordenavam que a elle fosse. N’isto con­
obedecer ao concilio, nem acquiescer ao vém M. L’Enfant. 1
seu juizo senão no que fosse convencido: Se João Hus era obrigado a obedecer á
elle assim mesmo o diz n’uma carta em citação do concilio, era-o também ao juizo
que aflirma não ter jamais promettido a do mesmo: ora, é absurdo citar-sc alguém
sua obediência senão debaixo da condição para um tribunal, ao qual é naturalmente
de ser convencido, porque em muitas con­ sujeito, e prometter-lhe que elle não será
ferências particulares c públicas havia pro­ obrigado ao juizo do mesmo tribunal: por­
testado que se submetteria ao concilio, tanto não é dc presumir que a intenção dc
quando lhe fizessem vôr que escrevera, en­ Segismundo fosse tomar a João Hus tlebai-
sinara, c divulgara alguma cousa contra­ xo da sua protecção cm tal maneira, que
ria á verdade. 1 cila lhe valesse no caso de ser condemna-
Como era bem d’esperar que João Hus, do pelo concilio.
homem tão aferrado ao seu parecer, c que 2. a O salvo-conducto não diz que não
estava tão ufano por se considerar cabeça possa ser préso João Hus, seja. qualquer
d’um partido, aò qual se tinha insinuado que for a sentença que o concilio profira
por inspirado, não se sujeitaria ã sentença sobre sua doutrina e pessoa; mas é conce­
do concilio; c que sem embargo do que dido tão sómente para que faça a sua der­
elle determinasse, continuaria a divulgar rota desde Praga até Constança, em que
a sua doutrina opposta ã Igreja e á socie­ era difiicil viajar, principalmcntc a João
dade civil, resolveram assegurar-se da sua Hus, que tinha, cm Allcmanha grande nu­
pessoa: o consul de Praga, que o acompa­ mero dMnimigos, depois que elle fizera ti­
nhava, protestou logo pelo salvo-conducto rar aos allemães os privilegies de que go-
concedido por Segismundo; mas prenden- savam na universidade de Praga, d’ondc
do-sc João Hus, não se creu que fosse vio­ todos os allemães se haviam retirado.
lado o mesmo salvo-conducto, como com 3 / O mesmo João Hus não queria que
efleito se não 'violara. o salvo-conducto que pedira e alcançara,
Eis-aqui o salvo-conducto, tal qual o re­ o assegurasse de não ser punida a suá re­
fere M. L’Enfant: sistência ao concilio, como se manifesta de
cartas que escreveu antes de partir para
«Segismundo pela Graça de Deus, etc. Praga, em que diz esperar encontrar no
A todos saude, etc. Recommendamos com concilio mais inimigos do que teve Jesus
uma plena afTeição o venerando homem, Christo em Jerusalem; c em uma das mes­
o Mestre João Hus, bacharel em theologia, mas cartas pede orações aos seus amigos,
c mestre em artes, portador das presentes, para que sendo condemnado, dé gloria a
que se dirige ao concilio de Constança em Deus com um fim christão, fallando da sua
Bohemia, o qual nós temos tomado debai­ volta como dc cousa muito incerta. E se­
xo da nossa protecção c tutela e da do im­ ria esta por ventura a linguagem d’um ho­
perio, desejando que na sua chegada o re- mem que se cresse aeoutado,das conse­
cebaes benignamente, c o tracteis bem, as­ quências do concilio pelo salvo-conducto
sistindo-lho com o necessario para abre­ do imperador? 2
viar c assegurar a sua jornada, assim por 4.a Insiste L’Enfant, em que João Hus
mar como por terra, sem que se lhe tome sómente pedira o salvo-conducto para Con-
cousa, alguma, ou sua ou dos seus, nas
1 Hist. du Cone. de Const., 1 .1, pag. 37.
i Jean Hus, Lettre i5. V E nfant, Hist. 2 Hist. du Cone. de Const., t. 1, pag.
des Cone. dc Const., I. 1, pag. 307. 39, 40.
HUS 509
stança, c não para a viagem desde Praga Nomearam-se commissa rios para a causa
ató á dita cidade; mas que razão havería de João Hus, os quacs produziram trinta
para que o salvo-conducto nào fallassc na artigos, extrahidos dos mesrnos seus livros,
morada de João ílus em Constança, se elle que contecm toda a sua doutrina tal qual
o tivesse pedido para salvar a sua impu­ a expozemos. Verificadas que foram as
nidade na mesma cidade? proposições extrahidas dos mesmos.livros
0 mesmo M. L’Enfant reconheceu que do delatado, declarou o concilio que mui­
João Hus linha na sua derrota infinidade tas d’ellas eram erroneas e outras escan­
d’inimigos; e como deixaria de prcsumir-sc dalosas e oíTensivas aos pios ouvidos, que
contra os seus insultos, quando se dirigia uma grande parte eram temerarias e sedi-
a Constança? ciosas, outras notoriamente heréticas c con-
João líus, para se dispensar de obedecer demnadas pelos sanctos padres e concilios.
á citação de João xxiu para comparecer Degredado João Hus, o imperador o ap-
no concilio, não se fundara senão na difii- prehendeu como advogado e defensor da
culdade da viagem, c pouca segurança dos Igreja, e o entregou ao magistrado dc Con­
caminhos; c porque razão não seria tam­ stança para ser executado. Nào se poupou
bém esta mesma difficuldadc o motivo pelo nada para o obrigarem a reconhecer seus
qual pedisse o salvo-conducto? Em uma erros; nías elle, inflexível, caminhou para
palavra, se sómente o procurou para aílian- o fogo sem pavor c sem remorsos. 1 Este
çar a sua volta de Constança para Praga, supplicio amotinou todos os discipulos de
ou para estar seguro em Constança, por­ João Hus, que tomaram as armas, e asso­
que razão não faz d’isto expressa menção laram a Bohemia. Vejam-se as suas conse­
o salvo-conducto, fosse um seguro ou pro­ quências no artigo seguinte.
messa de que não prenderíam em Constan­ iiu ssjt a s — Sectários de João Hus: ti­
ça a João Hus, quando a sua doutrina fos­ nham-se multiplicado muito na Bohemia e
se condemnada pelo concilio, nem de que Pomcrania antes do concilio de Constança,
elle não seria sentenciado segundo as leis, que os cxconunungou a todos.
se recusasse obedecer ao mesmo? Emquanto este hcresiarcha estava em
5. a Não se queixam os bohemios nas Constança, certo doutor da Saxonia foi ter
suas cartas, depois da captura de João Hus, com Jacòbel, parocho de Praga, e lhe disse
de que o prendessem, mas sómente de o que se admirava de que um homem tão
prenderem, sem que fosse ouvido, o que sabio e tão sancto como elle, não tivesse
era contrario ao salvo-conducto;attendido attentado n'um grande erro, que havi;
diziam cartas, que el-rei da Bohemia ha­ muito tempo se havia introduzido na Igre
via pedido um salvo-conducto, cm conse­ ja, isto é, a suppressão do uso do calix m
quência do qual João Hus devia ser ouvido administração da Eucharistia, que era op-
publicamente, e não estava sujeito ao con­ posta ao mandamento de Jesus Christo, que
cilio, senão depois de convencido d’onsinar diz: «se não comerdes a carne do Filho do
uma doutrina contraria á Escriptura; por­ Homem, e nào beberdes o seu sangue, nào
quanto os Bohemios reconheciam qtfc em tereis a vida em vós.» 2 Jacobel allucinado
tal caso el-rei o submettera á sentença c com este sophisma entrou a pregar a com-
decisão do concilio. 1 munhão cm ambas as especics, c publicou
6. theses contra a communhão em uma só.
a João Hus tinha obtido um salvo-con-,
dueto para vir ao concilio a dar a razão' Estavam n esse tempo no seu maior auge
da sua doutrina: assim o dizem expressa­ as controvérsias de João Hus: o povo c a
mente as cartas aos bohemios; mas elle em Igreja viam-se no maior desassoccgo, e em
vez dc se encerrar n’estes limites, conti­ uma especie d’anarchia, que faz desejar
nuava a dogmatisar e a espargir seus er­ com ancia toda a novidade. Demais d’isto
ros; e o salvo-conducto, sem duvida, nào Jacobel foi favorecido po.r outro parocho:
authorisava esta licença, e portanto o con­ o sophisma que os allucinava attrahiu tam­
cilio, fazendo-o prender, ainda antes de con­ bém o povo; e estes dous parochos deram
vencido do erro, não infringia o salvo-con­ a communhão em ambas as especics.
ducto. Oppôz-se o clero a esta innovação: Jaco­
7. ° João Hus pretendeu fugir dc Con­ bel foi expulso da sua parochia, c cxcom-
stança, e a salvo-conducto não lhe conce­ mungado pelo arcebispo; mas esta pena já
dia a liberdade dc fugir, nem Wcnceslau
a havia requerido.2 1 L E n fan t loé. cit. Nat. Alex. in scec.
15. Dujün in s a ‘C. Raynald ad an. 1415 et
1 Veja-se Raynaldo ad an. 141o. seg.
2 Veja-se Raynaldo ad. an. 1415’ n. 31. 2 Joan. C.
510 HUS
não refreava a ninguém. Jacobel persua­ ccrdocio a muitos hussitas; c desde então
dido por João Hus de que uma cxcomniu- principiou o povo a olhar o desuso da com­
nhão injusta não deve embaraçar a s a t i s ­
munhão em ambas as cspecics como uma
fação dos proprios deveres, pregou (Tflllipráctica prejudicial, que condemnavi os
em diante com mais zelo, c o clero dc Pra­christaos, e a contraria como indispensá­
ga denunciou esta doutrina ao concilio dc vel para a salvação. O clero, que recusava
Constança. Estava então João Hus ifesta esta, veio a parar odioso, c os hussitas, que
mesma cidade, aonde os discipulos de Ja­ administravam a communhão em ambas as
cobel o consultaram, c elle não sómente cspecics. foram reverenciados como apos­
approvou este sentimento, mas escreveu cmtolos que procuravam a salvação do povo,
favor da communhào em uma c outra cs- e que eram perseguidos injustamente; tudo
pecie. 1 pois estava annunciando um scisma na Bo-
hemia.
Adoptaram pois os hussitas esta opinião
dc Jacobel, c a necessidade dc commun- Não ignorava o concilio de Constança a
gar debaixo das duas cspecics entrou no disposição cm que os animos se achavam
corpo da sua doutrina. Os theologos ca­ n’aquellc reino: Martinho v quiz ordenar
tholicos impugnaram a innovação, o conci­uma cruzada contra elle, mas Segismundo
lio a condemnou: mas não estando Jaco­ o dissuadiu, c o papa tomou o partido dc
escrever aos bohemios c dc lhes enviar um
bel e os hussitas pelo seu juizo, a commu-
nlião nas duas cspccies fez grandes pro­legado; porém as cousas estavam em si­
gressos cm Bobem ia e Moravi a, favorecida
tuação cm que as cartas e os legados não
em alguns logares pelos senhores c pelo faziam mais que atiçar o fogo. João Do-
povo, bem que aliás soíTrcsse obstáculosmingues, cardeal de S. Xisto, escreveu ao
d’uns c outros. papa, dizendo-lhe que já eram infruetiferas
No territorio de Bcchin encontrou for­
contra os hussitas a lingua e a penna, e
midáveis adversarios, porque os parochosque não devia hesitar-se sohrc a tomada
c vigários dc mão armada rechaçaram os das armas contra os hereges obstinados.
sacerdotes que davam a communhão cm Não tinha concorrido pouco o mesmo
ambas as cspccies, como a outros tantos cardeal para chegarem as cousas a esta
\xcommungados. Então alguns d’cstes sa-extremidade, pelo^rigor que havia exerci­
erdotes se retiraram para uma montanha,
do contra os hussitas: a queima d’um sa­
n que levantaram uma barraca, c n’cllacerdote e d’um secular foram como a se­
tziam o serviço divino, c davam ao povo
nha para a rcbcllião contra os catholicos.
i communhão em ambas as espccies; a Estes c os hussitas se pozeram cm armas:
esta montanha chamaram Thabor, talvez Zisca. sectario acerrimo dos mesmos, c ea-
por causa da tenda que n’clla erigiram; marista de Wcnceslau correu as campinas,
porque a palavra Thabor, no idioma da Bo-saqueou os mosteiros, expclliu os monges,
heinia, quer dizer terra ou campo. 2 apodcrou-sc das riquezas das igrejas, e for­
Logo para cila concorreu um numero mou o projecto de edificar uma cidade so­
pasmoso dc pessoas, que comnuingavam bro a montanha de Thabor, e de fazer mel­
em ambas as cspccies, c as que tinham la uma praça que fosse a capital d’estes se­
esta práctica se chamaram Thaboritas. ctários.
Como o supplicio de João Hus, a cxcom- Vieram pois os hussitas a parar n’uma
munhão fulminada contra seus discipulos, seita ignorante, fanatica c guerreira, á qual
e a condemnação da communhão em am­ se uniram todas as que se tinham revolta­
bas as cspecics alvoraçaram muita gente, do contra a igreja romana. Estas insinua­
vam seus erros, e os introduziram entre
os hussitas apaixonados* e ardentes, se ser­
viram d’cstes mesmos motivos para inci­ os hussitas retirados ao Thabor: porém em
tar o povo contra o clero. Fundavam clles Praga e outros diversos logares da Bohe-
a necessidade da communhão assim admi­ mia os hussitas, exccptuando a commu­
nistrada n’uma passagem da Escriptura, nhão cm ambas as espccies, c os erros de
e até na palavra de Jesus Christo, que di­João Hus não se desviaram da crença da
zia que ninguem teria vida, se não bebesseigreja romana: portanto se dividiram em
o seu sangue: o sophisma que formaram duas seitas principacs logo desde a sua
sobre esta passagem allucinou o bispo de origem.
Nicopolis, o qual conferiu ordens c o sa- Os do Thabor, que eram uns como ba­
nidos c soldados, adoptaram os erros d’al-
1 Ü E nfant, Hist. du Cone. de Const., guns valdenses, e d’alguns sacramcntarios,
6. 1, pag. 271. que entre clles se haviam refugiado, os
2 Supplement d la guerre des hnssit. (juacs condemnaram as ceremonias da
HUS 511
Igreja, c formaram a seita dos thaborilas: turcos, Zisca proseguiu nos seus estragos,
pelo contrario todos os que persistiram af- e fortificou 0 Thabor.
íorrados ás ceremonias da igreja romana t Estava perto d’esta montanha a cidade
s e chamaram calixlinos, porque davam a d’Aust: Zisca rcceiando que 0 senhor da
•communhão do calix ao povo.1 Estas duas mesma, catholico zeloso, c muito animado
seitas tiveram discordias muito grandes, e contra os hussitas, inquietasse os thabori-
jamais se uniram sobre os artigos da sua tas, a tomou por assalto em uma noite do
confissão de fc: mas sempre que se tra- carnaval, cm que 0 seu governador estava
ctava d’atacar a igreja romana se colliga- ausente, e os habitantes submergidos no
vam, c com esta uniào prosperavam muito. somno, ou entregues ás demasias du tem­
po. Levaram a cidade antes que cila atteu-
tasse, que era accommcttida: todos os seus
DO TROGRESSO DOS HUSSITAS habitantes foram passados a fio d’espada, c
ella reduzida a cinzas: d aqui passou Zisca
a toda a diligencia a Sedlils, que levada
Antes de se declararem divididos os hus- lambem por assalto, teve a mesma desgra­
sitas, Scgismuiído fizera ajuntar as guarni- çada sorte. Ulric, senhor d ambas, foi mor­
•ções, que tinha em Bohcmia, para se oppòr to n’csta ultima.
as suas assembléias; mas elles unindo-se, Havia cm Praga quantidade d’hussitas,
lhe fizeram cara, de sorte que entre as tro­ mas ainda não era entre elles constante 0
pas de Segismundo, c os hussitas, houve livre exercício da communhào nas duas cs-
combates muito sanguinolentos. Zisca es­ pecies: os thaboritas lhe propozerain que
creveu a todos, cxhortando-os a tomarem se unissem a elles, para se senhorcarcm de
as armas; fez do Thabor uma cidade e uma Praga, destruírem 0 governo monarehico,
fortaleza: e disciplinando-os pouco a pouco c fazerem da Bohemia uma republica: ac-
na arte militar, entrou em Praga, aonde os ceitaram a proposição, c unidos os calixti-
hussitas, animados com a presença d’este nos aos thaboritas,* bloquearam Wisrade c
chefe, saquearam e demoliram varios mos­ a tomaram por escala. 1 Zisca se haveria
teiros, c tiraram a vida barbaramente a feito senhor da cidade, se os embaixadores
muitos monges c catholicos: 0 mesmo Zis­ do imperador não tivessem obrigado os
ca matou um sacerdote, depois de lhe ha­ hussitas a acceitarem uma trégua de qua­
ver despido os habitos sacerdotaes: e pas­ tro mczes, com a condição de que a todos
sou logo com os hussitas á cidade da Ca­ seria livre commungarcm cm uma ou cm
mera, aonde sabia estarem juntos os sena­ ambas as cspecies, e que não se tolheríam
dores, para tomarem 0 seu accordo contra a ninguem os dous modos de commungar
elles. que os hussitas não expulsariam os rei'
Onze dos senadores fugiram, outros fo­ giosos e as religiosas, c que entregariar
ram présos, ou arremessados das janellas Wisrade.
com 0 juiz c alguns cidadãos: a plebe en­ Depois d’csta trégua, Segismundo teve
furecida esperava os corpos nas pontas das uma Dieta cm Broun, ou Urina; d’onde es­
lanças, em dardos c forquetas, emquanto creveu á nobreza e aos magistrados de Pra­
João de Premonstrato a incitava, mostran­ ga, para que se achassem n’ella; foram c
do um quadro cm que se via pintado 0 ca­ pediram a liberdade de consciência; mas
lix. esta condição não agradou ao imperador,
No dia seguinte os hussitas levaram os que declarou querer governar, como go­
mosteiros a ferro e fogo. Os magistrados vernara Carlos iv, 0 qual publicara editos
não tinham premeditado isto, quando pou­ severos coutra os hereges.
co tempo antes d’esta catastrophe fizeram Ficaram pois triumphantes os catholicos;
cortar a cabeça a muitos hussitas no átrio e os hussitas, consternados, partiram uns
da casa da camara. Wenceslau, consterna­ para 0 Thabor, para se unirem a Zisca, c
do com esta noticia, foi ferido d’uma apo­ outros para Sadomils, buscando a Hussi-
plexia, de que morreu. A rainha Sophia nets, senhor poderoso e hussita apaixona­
fez contra Zisca algumas tentativas; mas do. O imperador considerando não dever
foram frustradas; e não podendo Segis­ entrar em Praga, marchou para Brcslau,
mundo restabelecer a ordem em Bohemia, na Silesia, aonde assentou que se fizessem
por estar occupado em Hungria contra os algumas execuções sanguinolentas, entre as

1 Wisrade è uma fortaleza separada da


1 V E nfant, Cone. de Baste, t, 2, pag. cidade de Praga pelo rio Moldou, que passa
122, 124 ’ * J entre-meio.
512 HUS
uaes foi a de se esquartejar um tbaborita e a fogo c sangue destruiu os de Breslau.
e Praga, que prégava a communhào cm N’csse tempo lhe chegou um grande soc-
ambas as especies. Pelo mesmo tempo man­ corro de Moravia, com o qual quiz recupe­
dou o núncio apostolico publicar em Brcs- rar Praga; mas o seu exercito foi desbara­
lau a cruzada de Martinho v contra os hus- tado, e cllo mesmo se viu na urgência de
sitas. largar o campo aos inimigos.
Chegadas estas noticias aos bohcmios, Olhavam-se pois os hussitas c os catholi­
juraram todos nào receber jíimais a Sc- cos cntào como duas nações diversas, que
gismundo por seu rei, e defenderent a com- assolavam a Bohemia, c exerciam uma so­
munhào cm ambas as especies, até derra­ bre a outra crueldades inauditas, e estra­
marem a ultima gota de sangue: começa­ nhas ás mesmas nações mais barbaras. Se­
ram de novo as hostilidades na cidade e gismundo levantou ainda um novo exerci­
nos campos; escreveram cartas circulares to, c outra vez foi desbaratado por Zisca
a todos os do reino, exhortando-os a emba­ vcudo-se na necessidade de retirar-se a
raçar a entrada ao imperador: c se viu Hungria.
unia guerra declarada entre este e os hus- Zisca havia muitos annos que estava ce­
sitas. go, mas sem embargo da sua cegueira, as
O imperador pôz cm pé um exercito de forças do imperio nào eram capazes de
mais de cem mil homens, que foi destro­ o rebater. Segismundo querendo tractar
çado por onde quer que tentou entrar na da paz com cílc, lhe mandou embaixado­
Bohemia: bloqueou a cidade de Praga, mas res, oíTereccndo-íhe o governo da Bohemia
depois de perder muita gente, levantou o com as condições mais uteis c honrosas, se
sitio. O duque de Baviera, que militava quizesse trazer á sua obediência os rebel­
neste exercito, falia a este respeito ao seu des; mas a peste desconcertou este proje­
chanceller nos seguintes term os:1 cto, porque Zisca foi d’ella ferido c mor­
«Temos atacado os bohcmios: por cin­ reu. 1
co vezes fomos derrotados com perda das
tropas dos nossos exercitos, das nossas 1 O seu corpo foi transferido a Craslau,
machinas e instrumentos bellicos, das nos­ cidade notável da Bohemia, e enterrado na
sas provisões e dos serventes do exercito: cathedral da mesma: è fabula dizer-se, que
a maior parte da nossa gente morreu no ellc dera ordem, estando a morrer, para
combate, e o resto na fugida': emfim, nào ue da sua peite se fizesse um tambor. Theo-
sei porque fatalidade, quasi sempre temos aldo affirma, que ainda no seu tempo sc
voltado as costas antes de vér o inimigo.» lia este epitaphio: «Aqui ja z João Zisca,
Segismundo, depois de haver desolado que não cedeu a nenhum general na arte da
a Bohemia, e perdido a maior parte do seu guerra: rigoroso vingador do orgulho e da
exercito, licenciou a tropa que lhe restava. avareza dos ecclesiasticos, e ardente defen­
D’esta maneira pois ficou Zisca senhor sor da patria: em favor d'cila fiz eu só tudo
da Bohemia, aonde levou tudo a fogo e san­ o que fizeram na republica de Roma Apio
gue, e demoliu os mosteiros: o seu exerci­ Claudio, o Cego, com seus conselhos, e Mar­
to engrossava a olhos vistos, c para expe­ co Furio Camillo com seu valor; fui sem­
rimentar o valor das suas tropas, as con­ pre fiel á minha fortuna, c cila a mim: ce­
duziu á pequena villa de Bzieran, em que go como estava vi sempre as opporlunidadcs
havia uma fortaleza: levou uma o outra, c para obrar: venci onze vezes em batalha
alli queimou sete sacerdotes. De lá passou campal: tomei a mim a causa dos infelizes
a Prachaticz; comminou-a para que se ren­ e indigentes contra os sacerdotes sensuaes,
desse, e lançasse fóra todos os catholicos; e carregados de gordura, e experimentei o
mas rejeitando estas condições os habitan­ soccorro de Deus n'csta empreza. Se o sen
tes, Zisca lhe mandou dar 'o assalto, e to­ odio c inveja o não tivessem impedido, seria
mada, a reduziu a cinzáfe. eu contado entre as mais illustres persona­
Os thaboritas de Praga, e os cidadãos que gens: porém apesar do papa, os meus bssos
se haviam colligado com os hussitas, tra­ descansam n'estc logar sancto.*
ziam na sua frente generaes d’um valor e A maça de Zisca estava pendurada ju n ­
destreza reconhecidos, que assolavam as to do Êpitaphio. Conta Balbino, que Fer­
terras dos senhores catholicos; c Segismun­ nando I perguntára um dia de quenyfôra
do, pará nâo ceder em barbaridade a Zis­ aquella maça, c que depois d'algum silencia
ca, e aos hussitas, talava com os seus hus- dos cortezdos, que não ousavam dizer nada,
sares todos os contornos de Cuthemberga, um mais atrevido lhe respondera havei' sido
de Zisca. O imperador sahiu logo da igreja
1 U E n fan t, Guer. des Hussit. e da cidade, e passou a um logar da outra
HUS 313

Por morte de Zisca o seu império se di­ ram dos quatro pontos, c o concilio não
vidiu em tres corpos: um elegeu por chefe lh'os quiz conceder. Voltaram pois os de­
a Procopio Rasa, por antonomasia o Gran­ putados para a Bohemia, c continuaram as
de: outro não quiz chefe algum, c estes hostilidades, mas os thaboritas soíTreram
lmssitas se chamaram Orphãos; os do ter­ revezes, em que os dous Procopios foram
ceiro corpo tomaram o nome d’Orcbitas, e destroçados e mortos; c enfraquecidos pela
escolheram gcncracs: porém esta divisão perda d’cstes dous cabos, e por muitos
não lhes obstava para que deixassem de outros desbarates, acccdcram mais facil­
se unir estreitamento, quando o interesse mente ás proposições de paz. O concilio
era commum: deram á Bohemia o nome lhes mandou deputados, que fizeram um
de Terra da Promissão, c aos allcmàcs, que tractado com os bohemios, no qual se ajus­
lhe ficavam contiguos, a uns chamaram tava, que clles c os moravos se reuniríam
' Idomeus, a outros Morabitas, a estes Ama- á Igreja, e se conformariam cm tudo a seus
lecitas, áquclles Philisteus: e na verdade ritos, á excepção da communhão em am­
estes Ires corpos d’hussitas tractaram as bas as especies, que ficava sendo promcl-
provincias visinhas da Bohemia com o mes­ tida áquclles, entre os quaes era usual; que
mo rancor com que os israelitas haviam o concilio decidiría se isto se deveria pra-
tractado os povos da Palestina. cticar por preceito divino ou não, e regu­
Renovou o papa as suas exhorlações e laria por uma lei geral, se o julgasse a pro­
instâncias para clTcctuar a segunda cruza­ posito, para a utilidade c salvação dos lieis:
da contra clles; c a Allemanha pôz em pé que se os bohemios depois persistissem em
um exercito de cem mil homens; porém os querer commungar em ambas as espe­
imperiaes, sem embargo da superioridade, cies, mandariam uma embaixada ao conci­
foram desbaratados, c os hussitas continua­ lio, o qual deixaria aos sacerdotes da Bo­
ram a assolação, apesar d’uma e outra cru­ hemia e Moravia a liberdade de adminis­
zada, cujos exercitos igualmente derrota­ trarem assim a communhão ás pessoas que
ram. tivessem chegado á idade de discrição que
Considerando pois o papa c o imperador a desejassem, uma vez que publicamente
que era impossível reduzir os bohcmios á fossem advertidos os povos, de que a car­
força d’armas, propozeram conferendas c ne de Jesus Christo não existia sómente de­
meios de accommodação: convidaram-nos baixo das especies do pão, nem o sangue
para o concilio de Basifea, dando-lhes salvos- sómente debaixo das especies do vinho,
conductos tfles, quacs ellcs os desejassem: os mas que o mesmo Senhor estava todo de­
'deputados dos hussitas se dirigiram tá mes­ baixo de cada uma d’ellas.
ma cidade cm numero de trezentos, á testa O imperador conveio também cm deixar
dos quaes estava o famoso Procopio, disci­ como cm penhor os bens das igrejas, aos
pulo de Zisca, João de Rokisanc, sacerdo­ que estavam de posse d’elles, até que em
te, discipulo de Jacobel, e alguns outros troco dos mesmos recebessem um corto
hussitas de consideração. preço.
Reduziram elles as suas pretenções a qua­ Dã sua p.artc os bohemios convinham em
tro artigos capitaes.— 1.® que u Eucharistia que voltassem os religiosos c os catholicos,
fosse administrada aos leigos em ambas as com condição porém de que os mosteiros
especies.— 2.° que a palavra de Deus fosse demolidos não se reedificariam. As igrejas
prégada livremente por todas as pessoas a da Bohemia ficaram á disposição do papa,
quem tocava, isto c, por todos os sacerdo­ e deram-sc seis annos aos orphãos e ihabo-
tes.—3.° que os ecclesiasticos não tivessem ritas, para se resolverem a acceder ao tra­
mais bens, nem do minios temporaes.—4.° ctado.
que os crimes publicos fossem punidos pe­ Depois d’isto, fez o imperador a sua en­
los magistrados. trada em Praga, aonde morreu no anno se­
Debateu-sc muito sobre estes artigos; guinte, que era o de 1437, e Alberto da
mas tanto as disputas püblicas, como as Áustria, que desposára sua filha, foi eleito
conferências particulares, se tornaram inú­ rei da Bohemia, mas sobreviveu sómente
teis, porque os hussitas não se desamarra- dous annos á sua eleição. Morto Alberto,
os bohemios escolheram dous governado­
parte, sem embargo de ser seu animo demo­ res até que chegasse á maioridade Ladis-
r a s s e aquelle dia em Craslau, e retirando- lau, filho d’x\lberto, a quem Pogcbrac suc-
se, dizia: esta fera maligna, morta como cedeu.
está ha cem annos, ainda fa z medo aos vi­ Pogebrac extinguiu o partido dos thabo­
ventes. (Veja-se La Guerre des Hussites, t. ritas, porém manteve o uso da communhão
i, pag. 207). cm ambas as especies, que veio a ser or-
33
314 HUS

dinaria na maior parte das igrejas da Bo- do Occidente, da mesma sorte que a do
hcmia, sem que houvesse^ a precaução de Oriente, por mais de mil annos administrou
advertir os povos que não era de neces­ a communhão aos mesmos leigos em am­
sidade esta observância. bas as cspecies; » esta práctica porém não
Sem embargo de Pogebrac haver arrui­ era lao geral, que cm muitas occasiòes se
nado o partido dos thaboritas, comtudo fi­ não conferisse a communhão cm uma só*
caram muitas pessoas eivadas: estas se se­ a communhão do velho Scrapião, a dos en­
pararam dos calixtinos, c formaram uma fermos, as domesticas, a missa de sexta fei­
nova seita, conhecida debaixo da denomi­ ra sancta dão uma inoontrastavel prova
nação de Irmãos de Dohemia. Ycja-se o seu d’esta verdade: não se reservava (como
artigo.1 ainda agora se practíca) senão o corpo sa­
Taes foram os cíTcitos c o fim da guerra grado de Jesus Christo; porém é certo, se­
dos hussitas: acccndeu-se na fogueira, cm gundo todos os authores, que o celebrante,
que João Hus foi consumido, exaccrbou-sc o clero c o povo commuugavam n’csses
com o sangue derramado pelo rigor dos le­ sanctos dias, c que por consequência só­
gados, e pelos exercitos que Segismundo mente commun^avam debaixo d*uma espe-
mandou contra clles; attrahiu sobre a Bo- cie: a origem d esta práctica, geral no oi­
hemia todos os flagellos da cólera divina, tavo século, não se encontra.
tornou este reino e parte da Allemanha em Até é sem dúvida, que no ofiicio ordiná­
um deserto coberto de cinzas e de ruinas, rio da Igreja tinham os fieis a liberdade de
inundado de sangue humano, c por fim commungar debaixo d’uma só, ou bam ­
não corrigiu os abusos, contra os quaes se bas as cspecies: o decreto do papa Gelasio
haviam empunhado as armas, e pregado as para a communhão debaixo d’ambas as es-
cruzadas. pecies faz d’isto uma boa prova. «Chegou á
E se porventura o imperador, depois da nossa noticia, que alguns recebendo só­
condcmnação dc João Hus, c da sua dou­ mente o corpo sagrado, se absleem do sa­
trina, cm vez de mandar exercitos contra grado calix, os quaes na verdade, pois que
os hussitas, que se ajuntavam para com- se vêem afierrados a não sei que supersti­
mungarem em ambas as espccics, tivesse ção, ou devem receber as duas partes d’estc
feito passar á Bohemia theologos bem en­ sacramento, ou serem privados d’uma e de
tendidos e moderados, que houvessem ins­ outra.» 2
truído os povos, e impugnado com as ar­ Por quanto o papa Gelasio não ordena
mas da religião, da caridade e da razão os que se tome a communhão debaixo das duas
erros dos hussitas, teriam causado maiores espccics, senão para oppôr-se ao progresso
damnos á Bohemia e á Igreja? de ?ião sei qual superstição: o que suppõe
evidcntemenle a liberdacle de comuiunga-
rem debaixo d’uma só, antes do nascimen­
DOS ERROS DE JOÃO IIüS E DOS HUSSITAS to d’csta superstição, e quando cila fòr ex-
tincta. Eis-aqui uma consequência, que to­
das as subtilezas de MM. de Ja Roque, e dc
Os capitaes erros de João Hus c dos hus­ Bordieu não poderam illu d ir.3
sitas respeitam ao papa, cujo primado im­ A práctica de dar a communhão aos fieis
pugnam, á Igreja, que elles compoem uni­ cm uma só cspecie se estabeleceu, e veio a
camente de escolhidos e predestinados, e á ser geral no Occidente sem contradicção al-
communhão debaixo das duas cspecies, que uma; portanto é certo que em nenhuma
os mesmos tem como necessaria para a sal­ as igrejas occidentaes se cria que fosse
vação. No artigo Gi'egos refutamos o erro necessaria a communhão em ambas as cs­
concernente ap primado do papa. O que pecies, quando Jacobcl emprehendeu que
segue sobre a natureza da Igreja fôra já assim se conferisse. E seria permittido a
suscitado pelos donatistas, e albigenses, val- um simples parocho mudar a disciplina ge-
denses e wiclefs, e seguido depois pelos
protestantes; porque este é o asylo dc to­ 1 Mabillon, Prcef. in 3. scec. Bencdict.
das as sociedades separadas da romana. No Observ. 10. pag. 138. Bossuct, de la Com-
artigo Donatistas o refutamos. Resta-nos mun. sous les deux espéces. Perp. de la Foi,
tão sómente tractàr da eommunhãó em am­ 1, 5, /. 2. BoileaUj Hist. de la Cotnmunion.
bas as cspecies. Traité de VEucharistic, à la fin.
Reconhecem os catholicos que a igreja 2 Dccrct. Grat. de Consecr. dist. 2. Ep. a i
Major, et Joan.
1 Sobre a historia dos hussitas vejam-se 3 La Roque Hist. de VEuch. 1 p. c. 12,
os authores citados Flcury e Dupin. pag. 244. Du Bordieu Rep. c. 13.
ICO 51o
Talmente oslabelccida? Podería fazcl-o con­ eucharistico, porque este nos faz lembrar
tra a prohibiçâo do concilio de Conslança? da morte do Salvador igualmcntc que a
Sem dúvida que só teria authoridadc pára communhão em ambas as espeeies; c se se
esta alteração, quando fosse evidente que ha de conservar o uso do calix para nos
a communhão cm ambas as espeeies era recordar melhor a paixão de Jesus Christo,
necessaria á salvação: aliás deveria ani- haverá também de dar-se a communhão
qui!ar-sc todo o principio de obediência á depois da ceia, porque esta circumstanda
Igreja. Mas poderão dizer que 6 evidente nos recorda ainda melhor a sua inorte.
ser necessaria para a salvação a commu- Os lutheranos renovaram a communhão
nhão cm ambas as espeeies, c que d’outra em ambas as espeeies, e o concilio de Trcn-
maneira se não recebe o sacramento da Eu­ to condemnou esta innovação, que é um
charistia. dos maiores obstáculos para a reunião das
Na administração dos sacramentos somos igrejas lutheranas. Sobre este objecto ha­
obrigados a fazer não tudo o que Jesus via uma cspecie de negociação entre MM.
Christo fez*(d’outra sorte se deveria dar a liossuct c Lcibnitz, cuja individual relação
Eucharistia depois da ceia), mas somente o se acha nas obras posthumas do mesmo M.
que pertence á substancia do sacramento: Bossuet.1
ora não poderá encontrar-se na Eucharis­ É pois sem dúvida, que tendo sido usual
tia algum cITeito do corpo distincto do san­ a communhão em ambas as espeeies, e não
gue; portanto a graça d’um c do outro no sendo contraria nem á natureza do sacra­
fundo e na substancia não poderia ser se­ mento, nem á instituição de Jesus Christo,
não a mesma. póde a Igreja conceder o uso do calix aos
Com elleito Jesus Christo, instituindo o simples líeis: mas como este foi prohibido
sacramento^ da Eucharistia, disse a seus por inconvenientes que resultavam da com-
discipulos: «Tomai e comei; este ó o meu munhão em ambas as espeeies, só á Igreja
corpo»: ora o corpo, sangue,alma e divin­ pertence restabelecer este uso, c somente
dade de Jesus Christo são inseparáveis, cila tem o direito de julgar se os inconve­
porque o mesmo Senhor diz a S. João. que nientes que nascem da prohibiçâo do calix
deu seu corpo vivo na Eucharistia: não são maiores do que os que procedem da
póde ser vivo sem que estejam unidos com actual disciplina, e se esta se deve relaxar
o sangue a alma e a divindade debaixo de a este respeito.
•cada cspeciq; portanto os catholicos dando HYDRQI*inK T ^ -X n m n que se <JeU aOS
.a communhão debaixo dTima só, não va­ encraíítas, que não oflereciam senão agua
riam a substancia do sacramento. no sacrificio.
Esta variação no administrar da Eucha­ içqxoclastas. isto ó, destruidores d ima-
ristia não fere mais na substancia d’aquel- gens.—CeãoT-sauriano fui o chefe da sei­
flc sacramento, do que fere na do baptismo ta, cuja origem e progressos vamos expôr,
:a que se faz pa administração d’cstc; c to­ c que refutaremos em seguida.
davia os protestantes a adoptaram. A tu­
do pois quanto clles disserem para justi­
ficar a variação, que abraçaram na admi­ DA. ORIGEM DOS ICONOCLASTAS
nistração do baptismo, podem responder os
catholicos cm defesa da sua variação no
modo de administrarem a Eucharistia. Em- . Desde Constantino, o grande, quasi to­
fim o não uso ’do calix fere tão pouco na dos os imperadores tomavam parle nas
substancia do sacramento, que os protes­ controversias que se levantavam entre os
tantes fizeram um decreto para se adminis­ christãos: uns pela politica, outros ganhos
trar a Eucharistia debaixo da unica espe- pelos seus ofliciacs e pelos seus eunuchos:
cie de pão aos que tivessem ao uso do vi­ haviam-nos quasi sempre visto decididos
nho uma repugnância invencível.1 por seus ministros ou por seus favoritos,
Dcbalde pois se assevera, que sendo des­ sustentar a verdade, ou proteger o erro.
tinada a Eucharistia a excitar cm nós a A parte que tomavam nas disputas da
memória da morte c paixão de Jesus Chris­ religião, os elogios que recebiam do parti­
to, não se recebe este sacramento senão do que favoreciam, lhes inspiravam o gos­
imperfeitamente, quando só se toma o pão to por esta sorte de occupações. Os cor-
tezãos, que os queriam determinar em fa­
1 ' Bossuet. Traité de 1a Communion sons vor d'um partido, representavam-lhes que
les deux espcces. Bellarmino, Nat. Alex, tra­ era bello interpor sua authoridadc nas
ctaram a fundo esta questão, e todos os theo­
logos que lhes succcderanu i T. 1, pag. 264.
516 ICO
contendas da religião, e tracta'vam as ques­
põz-sc á sua execução; porém Leão tez
tões dos theologos como ncgocios da maior carregar o povo, as imagens foram des­
importanda, c proprios a cternisar a glo­ truídas, c o patriarcha Germano deposto.
ria dos imperadores; de sorte que era bom Leão enviou seu edito a Roma para o
para um imperador ter duranto o seu rei­ fazer executar: Gregorio ii escreveu-lho-
nado alguma heresia ou disputa theologi­ com mais firmeza, c lhe assegurou que os
ca que íizesse motim. povos não rendiam ás imagens um culto-
D’est’artc, depois da condcmnação d’Eu-idolatra: advertiu-lhe que competia aos
tychcs, o quando tudo começava a estar bispos c não aos imperadores julgar os do­
tranquillo, Justiniano vendo cm Constanti- gmas ecclesiasticos; que como os bispos
nopla, vindos dc Jerusalém, monges que não se intromcttiain nos negocios secula­
tinham extrahido algumas proposições das res, era mister lambem que os impera­
obras d'Qrigeucs, c que as queriam fazer dores se abslivesscm dos negocios eccle­
condcmnar, o imperador aproveitou esta siasticos. 1
occasiào para julgar materias ecclesiasti­ Leão, irritado da resistência de Gregorio,
cas, c deu um edito que condcmnava Ori- mandou assassinos a Roma para o mata­
genes, Theodoro c Ibas, c fez reunir um rem, mas o povo descobriu-os e os matou.
concilio para approvar seu edito. 1 Toda a Italia se sublevou então contra Leão,
cujo governo duro e tyrannico, tinha dis­
Philippico apenas elevado ao solio impe­
posto os espíritos á revolta.
rial, tomou o partido dos monolhelitas, dei­
xou devastar as terras do imperio pelos Estas perturbações, por uma práctica que
búlgaros, c foi deposto. não pertencia a Leão condcmnar, ainda
Anastaeio, que era mui douto, c que o quando ella fosse reprehensivcl, não des­
povo collocou no logar de Philippico, não viaram, comtudo, este imperador do proje­
tomou menor parte nos negocios ecclesias­ cto de abolir as imagens: occupou-se todo
ticos, e foi expulso por Theodosio. o resto da sua vida cm fazer executar seu
Leão Isauriuno, que Anastaeio fizera ge­edito, c não pòde vingal-o na Italia.
neral das tropas do império, recusou reco­ Constantino Copronymo, filho de Leão,
nhecer Theodosio, deu-lhe a morte, c fez- seguiu o projecto dc seu pae, e para me­
se proclamar imperador. lhor estabelecer a disciplina, que queria
Leão era oriundo dTsauria, d’uma fami­ introduzir, fez reunir um concilio em Con-
lia obscura, fora simples soldado; coroado stanlinopla, ao qual assistiram mais de tre­
a 2 de março dc 710, jurou nas mãos do zentos bispos.2
patriarcha Germano, manter c proteger a Os bispos d’estc concilio reconhecem os
religião catholica. seis primeiros concilios, c pretendem que
Por sua educação, Leão era incapaz de os que authorisam o culto das imagens,
tomar parte cm questões theologicas, c destroem pela raiz a authoridade d’òstes
queria comtudo, como seus prcdccessorcs, concilios; pretendem mais, que as imagens
que se dissesse que tinha protegido a Igre­não são de tradição dc Jesus Christo, dos
ja, feito regulamentos sobre a religião, c apostolos, ou dos gregos: que não ha crea-
conservado a fé. ção na igreja para as sanctificar, e que
Tivera grandes ligações com os judeus cáquelles que as honram, recahem no pa­
com os serraccnos: estas duas seitas eram ganismo.
inimigas das imagens, e Leão ouvira-lheç De razões, passam a authoridadcs, o al­
legam as passagens da Escriptura, nas
falhar do uso d’ellas, como d’uma idolatria:
quaes se diz que Deus é um espirito, c
elle tinha podido tomar parte dc suas idéias,
mais fáceis de penetrar por um soldado, que os que o adoram devem adoral-o em
do que as subtilezas theologicas. Julgou espirito c em verdade; que Deus jamais
assignalar-se abolindo as imagens; e no foi visto d’alguem, e que prohibiu ao seu
decimo anno dc seu reinado, publicou um povo de fazer idolos talhados.
edito, no qual ordenou se derrubassem as Emfun, apoia-sc este concilio sobro o
imagens. - suffragio dos padres; mas as passagens que
Á publicação do edito, o povo dc Con- se citam, nada concluem contra o uso das
stantinopla s*o revoltou, e o patriarcha op-imagens, tal como os catholicos o admit-
tem, ou são falsificadas e troncadas.
t É a disputa conhecida sob o nome de Segundo estas razões c authoridadcs, o>
disputa dos trcS capítulos, que foi termi­
nada pelo quinto concilio geral. 1 Greg. 2. Ep. 1. Cone. t. 7. Baron, a d
2 Cedre nus, Zoríare, Constantino Ma­an. 726, n. 28.
nasses. 2 Cone. t. 7. Cone. Const. 2, act. 6.
ICO 517
•concilio do Constantinopla prohibe a todo o consentimento dos patriarchas, c que dei­
o mando de adorar e collocar nas igrejas xavam inteira liberdade «aos bispos uc dizer
ou nas casas particulares imagem alguma, seu sentimento.
sob pena de deposição, se fòr uin sacerdo­ Muitos dos bispos, que tinham eonde-
te ou um diacono,* c d^xcommunhão, se mnado o culto das imagens, reconheceram
1 for um monge ou um leigo. 0 concilio quer sua falta, c foram admiltidos ao concilio.'
\ que ollcs sejam tractados conforme o rigor Fez-se vêr n’esto concilio que o uso das
das leis imperiaes, como adversarios das imagens nào ê contrario á religiào, como
leis de Deus, c inimigos dos dogmas de o de Constantinopla pretendera, c que po­
seus antepassados. dia ser util: provou-se pelo exemplo dos
concilio do Constantinopla foi rojeila- chcrubins da Arca, pelas passagens de S.
f .do pelos romanos: mas a authoridade do Gregorio. de S. Basilio, c de S. CyrilIo,quc
i imperador o fez receber c executar em suppoem que as imagens cstào em uso na
\ urna grande parte das igrejas do Oriente: Igreja do tempo d’estes padres; que por
\ baniu-sc, cxilou-sc, condemnou-se do mor- conseguinte os padres do concilio do Con­
' te aquellcs que se oppozeram ao concilio stantinopla tinham raciocinado mal sobre
e ao odito do imperador contra as ima­ as passagens da Escriptura, que prohibem
gens. fazer idolos, quando concluiram que era
Como os monges eram os mais ardentes um crime as imagens.
■defensores das imagens, olle fez um edito O concilio nào linha necessidade de pro­
prohibindo a quem quer que fosse de abra­ var outra cousa, e as considerações de MM.
çar a vida monastica; a maior parte das Dupin c Basnagc, sobre a insufliciencia
casas religiosas foram confiscadas na capi­ dos argumentos dos padres do concilio,
tal, c os monges obrigados a casarem-se, e nào sào justas. 1
mesmo a conduzirem suas noivas pelas O concilio, depois de ter provado que o
ruas. 1 uso das imagens nào c criminoso, prova
Constantino morreu em 773, c Leào iv, N<[ue a tradicào as authorisa desde tempo
seu filho, lhe succcdcu. O novo imperador immemorial,* e que os ehristàos nào adora­
occupou-sc desde logo com as guerras dos vam as imagens como adoram a Deus; mas
scrraccnos c das conspirações; mas apenas que as abraçam, as saudam, e lhes ren­
houve paz, renovou todos bs editos de seu dem um culto para testimunhar a venera-
pae c de seu avô contra as imagens, o fez çào que teem pelos sanctos que cilas re
punir com a ultima severidade os trans­ presentam.
gressores d’esles editos. Os padres do concilio fazem vêr em se
Era mais um furor que odio o d'este im­ guida que as passagens de que o concilie
perador contra os que louvavam as ima­ de Constantinopla se authorisa, nào atacam
gens: nào quiz mais ter commercio com a senào o culto idolatra, c nào o que a igre­
imperatriz, porque havia achado imagens ja christà tributa ás imagens: e também
em seu gabinete: quiz saber de quem as mostram que os bispos do concilio de Con­
tinha recebido, c fez perecer essas pessoas stantinopla falsificaram muitas vezes as pas­
cm tormentos. 2 sagens dos padres que citam.
Leào morreu pouco tempo depois, e Con­ Ò concilio declarou, pois, que se podiam
stantino Porphyriogencte lhe succcdou; collocar cruzes e imagens na Igreja e nas
mas como nào tinha mais que dez annos, habitações, c até nos caminhos, a saber:
sua màc Ircna empunhou as rodeas do as imiígcns de Jesus Christo c da Virgem,
império. Ircna, que conservara sempre de­ as dos anjos e dos sanctos; que cilas ser­
voção pelas imagens, quiz restabelecer seu vem para renovar sua memoria e para fa­
cuíto; escreveu ao papa Adriano para re­ zer nascer o desejo de os imitar; que se
unir um concilio cm Nicea: o concilio se pódc heijal-as c rcspeital-as, mas nào ado­
realisou no anno de 787, sendo composto rai-as com a adoraçào verdadeira; que só
de mais de duzentos c cincocnta bispos ou a Deus é devido o poder de as ombellezar,
arcebispos. porque a honra que se lhes dá, passa ao
Alli se leram logo no principio as car­ objecto, e que aquclles que as respeitam,
tas do imperador e da imperatriz, em que respeitam o que cilas representam.2
declaravam que reuniam este concilio com O concilio dc Niçca nào foi bem rccebi-

1 ThcophanOj Cedren., ad an. Const. 1 Dupin, Controversias do 8.° secUlo.


d9, 23. Basnafie, Ujst. Ecclcs.
2 Theophano, ad an. 4. Lconis, Cedren. 2 Cone., t. 7
518 ICO
do em toda a parte. Examinaremos scpara- DO QUE SE PENSAVA NO OCCIDENTE
, damcnle como o acceitou o Occidente. SOBRE O CULTO DAS IMAGENS
Constantino, que nào perdoava a sua mãe DURANTE AS PERTURBAÇÕES DO ORIENTE
o casamento que ella lhe fizera com uma
donzella sem nascimento, a despojou de
toda a authoridade, c prohibiu a obediên­ O uso das imagens tinha-se estabeleci­
cia ao concilio de Nicea. do também no Occidente como no Oriente
Nicephoro, que succedeu a Constantino, mas não se lhes rendia culto.
c a Irena, estava embuido nos erros do 0 padre Mabillon conjectura que a diíTc-
manicheismo; demais occupava-se em de- rença dos orientacs c dos francezcs a este
fender-se contra os inimigos que atacavam respeito, provinha da maneira diíTerente
o imperio, e despresou a disputa das ima­ como honravam os imperadores e os sobe­
gens. ranos no Oriente e no Occidente. 1
O imperador Leão v, que subiu ao thro­ No Oriente, e communiente no imperio
no depois de Nicephoro e de Miguel, ape­ romano, celebravam-se festas em honra dos
nas terminou a guerra com os búlgaros imperadores que tinham bem merecido do
c serracenos, se dedicou a abolir as ima­ povo: a lembrança das virtudes c dos be­
gens, e publicou um edito para as fazer ti­ nefícios dos imperadores animavam os po­
rar das igrejas, c prohibiu o render-se-lhes vos; o reconhecimento enfeitou as estatuas,,
culto. dirigiu-lhes agradecimentos e elogios, cer­
Miguel, o gago, que o desthronou, era cou-as d’illuminaçõcs: laes eram as honras
natural d’Armorium, cidade da Phrygia, ha­ ciuc se rendiam todos os annos á estatua,
bitada principalmentc por ju d eu s’e chris- de Constantino, o grande, e que Juliano
tàos expulsos de seu paiz por causa d’he- arguia aos chrislãos como actos de idola­
resias: elle acceitava muitas das suas opi­ tria. 2
niões, observava o sabbado dos judeus, ne­ Logo pois que o uso das imagens se es­
gava a resurreição dos mortos, e admittia tabeleceu na igreja do Oriente, era natu­
muitos outros erros condemnados pela Igre­ ral que os fieis passassem da contempla­
ja: quiz fazer examinar de novo a questão ção das imagens a sentimentos de respeito«
das imagens, mas as perturbações que se pelos objectos que ellas representavam, e
levantaram no imperio o impediram ^ ex e­ a demonstrações exteriores d’cstes senti­
cutar seu desígnio. 1 mentos.
Theophilo, seu filho, perseguiu os defen­ No Occidente, onde as artes estavam ain­
sores do culto das imagens; mas a impera­ da na iufancia, onde os principes eram
triz Thcodora, que governou o imperio de­ conquistadores barbaros c quasi iguaes a.
pois da morte d’estc imperador, chamou seus soldados,, não se tributavam, comtu-
todos os defensores do culto das imagens do, as mesmas honras aos chefes: não ha­
e baniu os iconoclastas: expulsou de sua via estatuas para seus principes ou com-
sede João, patriarcha de Constantinopla, e mandantes, nao se lhes rendiam as mesmas
collocou em seu logar Mcthodius, monge honras que no Oriente, estas homenagens
mui zeloso pelo*culto das imagens: o se­ eram absolutamente-desconhecidas nas Gal­
gundo concilio de Nicea, que linha appro- has, e as imagens não eram alli destinadas
vado o culto das imagens, teve força de senão para ensinar ao povo os pontos im­
lei em toda a extensão do império. O" par­ portantes da religião; não se rendia culto
tido dòs iconoclastas foi inteiramente des­ senão á cru z.3
truído sob o dominio da imperatriz Theo-
dora, depois de ter subsistido cento e vin- 1 Mabillon, pnef. in-4.°, sccc. fíened.
lè annos.2 2 Theodorei, Hist., I. 2, cap. 34, Philos- ■
A imperatriz, depois de haver aniquilado t o r g I . 2, cap. 18.
este partido, atacou os manicheus, que se 3 Assim, quando o papa Adriano enviou
tinham extreraamenlo multiplicado. Achar- os dewetos do segundo concilio de Nicea a
se-ha no artigo Manicheus que meios Theo- França, os bispos ficaramresentidosdashon­
dora empregou contra elles, e que cífeitos ras que se rendiam no Oriente ás estatuas
estes meios produziram. ' dos imperadores: elles acharam mau que
Constantino e Irena, em suas cartas para a
1 Cedren, in Michael. convocação do concilio de Nicea, tivessem
2 Cedren, Zonard, Glgcas. tomado titulos tão faustuosos como os que -
se davam; tomaram esta expressão da car­
ta de Constantino e Irena por aquellc que
reina comnosco; acharam que era uma te-
ICO 519

Os bispos das Gallias acharam muito mau der-se-lhes alguma cspecie de culto, c ou­
que os padres do concilio de Nicea autho- tros eram de parecer que se lhes rendesse
risassem um similhante culto para as ima­ tfm.1
gens. Os padres do concilio de Francfort ti­
Estavam sobre tudo offendidos da pala­ nham aliás razões particulares para se op-
vra adoração que os padres do concilio de pôrem ao culto das imagens, que lhes pare­
Nicea empregaram para designar o culto cia novo: os allcmãcs, cujos bispos assistiram
que se rendia ás imagens: esta palavra cm grande numero a este concilio, eram
empregada no Oriente para significar um novamente convertidos á fó pelo ministro
testimunho de submissão e.respeito, não de S. Bonifácio, arcebispo de Mayença, sob
estava em uso nas Gallias senão para ex­ o reinado de Pepino^pac de Carlos ílagno.
primir a homenagem rendida ao Sêr Su­ Os bispos allemães temiam que estes neo­
premo. phytos tornassem a cahir na idolatria á
Não julgaram, pois, que a palavra ado­ vista das imagens, ás quaes se rendia um
ração fosse susceptível d’um bom sentido culto: foi por isto que elles se contentaram
logo que se tractasse das imagens, e o con­com cxhortal-os a não profanar as ima­
cilio de Francfort não condemnou o de Ni­ gens, sem os exhortar a que as honras­
cea, senão porque se acreditava ho Occi­ sem.
dente que os padres do concilio de Nicea É certo pois que o comportamento dos pa­
entendiam por adorar as imagens, tributar- dres do concilio de Francfort, nada tem de
lhes um culto tal como o que se tributa a contrario ao espirito do de Nicca, c que não
Deus, como sç vê do segundo canon d’estc condemnavam como um acto de idolatria
concilio, concebido n’cstes termos: «Pro- o culto que a Igreja dá ás imagens.
pôz-se a questão do novo concilio dos gre­ O concilio de Francfort foi no anno de
gos, havido em Constantinopla, sobre a ado­794.
ração das imagens, no qual se escrevera No principio do nono século, em 824,
que todo aquello que não quizesse render reuniu-se em França, na cidade de Paris,
as imagens dos sanctos o serviço ou a ado­ uma assembléia de bispos, os mais hábeis
ração como á divina Trindade; seria repu­ do estado, e ahi decidiram que não era
tado como excommungado. Nossos sanctis­ preciso prohibir o uso das imagens, mas
simos padres do concilio, não querendo de que também não era mister honral-as.
nenhum modo a adoração ou servidão, con­ Esta decisão do concilio de Paris não é
demnaram este concilio de commum ac- uma condemnação absoluta do culto das
cordo.» 1 imagens, como se pôde vér dos regulamen­
Não se encontra nas actas do concilio detos do concilio: os padres combatem o jul­
Nicea que elle ordenasse a adoração das gamento do concilio de Niceá, que ordem
imagens dos sanctos como a Trindade; es­ o culto das imagens, c não dizem em parti
alguma que este culto seja uma idolatria,
tas palavras, pois, parecem tei^sido accres-
centadas em fôrma d’explicação, pelo con­ como se vê das cartas que os deputados
cilio de Francfort, para fazer vér que elleforam encarregados de levar ao papa.
não condemnava o culto das imagens, ap- 0 concilio de Paris não era, pois, favo­
provado pelo concilio de Nicca, com tanta rável aos iconoclastas; elle os condemnou
que os padres d’este concilio entendessem mesmo, e não recusou admitlir o culto das
pela palavra adoração um culto de latriaj imagens senão como se rejeita um ponto
tal como se rende a Deus. do disciplina, pois que elles não se separa­
ram da communhão das igrejas que lhes
0 concilio de Francfort não olhava, pois,
como uma idolatria, o render ás imagens prestavam culto.
um culto differente do culto de latria: vê- Os bispos de França e d’Allcmanha con­
tinuaram ainda por algum tempo n’este
se, pois, que os bispos das Gallias não con­
sideravam como idolatras os de Italia e do uso; mas a final, sendo o culto das imagens
Oriente que honravam as imagens. bastante derramado por toda a parte, e não
Com cffeito, quando a questão das ima­ havendo já que receiar da idolatria, elle se
estabeleceu geralmente, e em pouco tem­
gens foi transportada ás Gallias, dividiu-se;
uns pretenderam que não era preciso ren- po; porque vêmos, no começo do nono sé­
culo, Claudio, bispo de Turin, condemnado
meridade insupportavel a jírincipes, que pelos bispos, por ter destruido as imagens,
compai'assem seu reino ao de Deus. Lib. e escripto contra o seu culto, que se esta­
Carolinij Prefacio. Dupin, Bibliot., t. 7, beleceu geralmente nas Gallias antes do de-
pag. 472.
1 Sigismond, Concil. Gallia:, t. 2. 1 Mabillon, Prcef. in-4.* sccc. Benedict.
ICO
cimo século. Veja-se o artigo Claudio de aos pés dos idolos; elles não olhavam Deus
Turin. como seu ultimo fim, mas sim collocavam-
Os valdenses, que quizeram reformar a no nos prazeres dos sentidos.
Igreja no principio do decimo segundo sé­ A idolatria impedia, pois, o homem de
culo, os albigenscs e essa multidão de fa­ render a Deus o culto que se devia e que
naticos, que inundaram a França, renova­ elle exige; cila corrompia, além d’isso, a
ram os erros dos iconoclastas, c depois moral, porque attribuia todos os vicios e
d’clles, Wiclef, Calvino c outros reforma­ crimes a- esses séres sobrenaturaes, que
dos, atacaram o culto das imagens, e accu­ apresentava á homenagem e ao respeito
saram a igreja romana d’idolatria. Todos dos homens.
os seus escriptos polêmicos estão cheios Vejamos a origem e a natureza do culto
d’estas arguições, e os homens mais distin­ das imagens na igreja catholica.
ctos da pretendida communhão reformada
forçam-se em o provar.1
Para collocar o leitor em estado de jul­ DA ORIGEM E NATUREZA DO CULTO
gar se esta accusação ó fundada, basta QUE A IGREJA ROMANA RENDE ÁS IMAGENS
comparar o que temos dito da origem e
natureza da idolatria, com a natureza e
origem do culto que a igreja romana ren­ No meio da corrupção, que reinava so­
de ás imagens. bre a terra, Deus escolheu um povo, que
Pelo que já havemos exposto acerca da lhe rendeu um culto legitimo. Emquanto
origem da idolatria, tudo era na terra que as nações estavam sepultas nas trevas
objecto d’adoração, excepto o verdadeiro da idolatria, os judeus conheciam que o
Deus. Os homens, prostrados aos pés dos universo tinha por-causa uma intelligen-
idolos, não esperavam sua felicidade senão cia omnipolente c soberanamente sabia:
das potências chimericas, que elles consi­ elles não adoravam senão esta intelligen-
deravam ligadas a isso, e que olhavam co­ cia, e o culto dos idolos era entre elles o
mo as verdadeiras causas do bem e do maior dos crimes.
mal; o Sêr Supremo, foco de todos os bens, A religião chrislã elevava muito o espi­
não se offerecia a seus espíritos. rito humano, ensinou uma moral sublime,
Eis o crime da idolatria; cila aniquilava mudou todas as idéias e todas as vistas dos
a Providencia, e impedia o homem de se homens, ensinou-lhes com muitíssima cla­
elevar até Deus: os homens, infectados da reza e amplidão que uma intclligencia in­
idolatria, não imputavam a Deus, como á finitamente sabia e omnipotente tinha crea-
jua verdadeira causa, os bens de que clle do o mundo, e que ella destinava o homem
is accumulava; e as desgraças destinadas a uma felicidade eterna; que tudo succe-
a chamar o homem a Deus, o conduziam dia pela vontade d’esta intelllgencia; que
um cabello não cahia da cabeça sem sua
1 Dallams, l. 4. Be imaginibus, Spa- ordem, e que ella dirigia a um unico fim
nheim, exercitationes historicce, de origi­ todos os acontecimentos. Ella demonstrou
ne et progressu controversice Ichonomachüe a inutilidade, extravagancia e impiedade
sceculo 8.°, opposita Maimburgio et Natal. da idolatria; ensinou a toda a terra que
Alexandro, 1685*, in-4.° Forbesius, instit., era preciso adorar Deus cm espirito e em
Tverdade; foi a razão porque os pagãos tra-
t. 2, /. 7. Basnage, Hist. Eccles., t. 1 , l . 12,
23. Preservativo contra a reunião da igre­ ctavam os primeiros christãos como ho­
j a romana,, por V E nfant, t. 2, pag. 3. Car­ mens sem religião e como atheus.
ta l.a Da idotalria da igreja romana, in- Todavia, é certo, que desde o tempo dos
12. Rival, Dissert. Historicas, Dissert. 4. apostolos, os christãos tinham um culto vi­
Este assumpto, que para todos os protes­ sível, e logares onde se reuniam para orar
tantes motivou um scisma, M. de Beauso- e para offerecer a Eucharistia. 1 .
bre pretendia que era mister tractal-o a rir, Os padres dos tres primeiros séculos fal-
sendo o ridiculo, segundo elle, mais proprio lam-nos dos logares onde os christãos se
para decidir esta questão do que o serio. juntavam, de seus bispos, de seus diaconos
Foi d1este principio que elle partiu para nos e de suas igrejas.2
d ar essas longas e nauseantes chocarrices
sobre as falsas imagens de Jesus Christo e 1 Act., cap. 2, v. 24, 26, cap. 20, v. 7.
sobre a Virgèm Rainha da Polonia: o nojo 2 lgnat. Epist. ad Magnes, ad Pkila-
que ellas causarem a quem as. emprehender delph. Ciem. Alex. Tert. de Id o l, cap. 7.
ter, dispensa uma resposta. Veja-se a Bi­ Adversus. Valent., cap. 2. De Coron. Milit
bliotheca Germanica. . cap. 3. Cypr. de Oper. et Eleemostjn., pag.
ICO 52!

De maneira que, quando Origcnes, La- truir os simples; estas imagens eram como
ctancio, Minucio Felix, e Arnobio disseram livros em que os christãos podiam lêr a
que os christãos não tinham aliares, que­ historia do Christianismo- e cilas eflcctiva-
riam dizer que os christãos não tinham mcnlc não tiveram ao principio outro uso
altares ornados dc idolos como os pagãos, nas igrejas.
nem altares sobre os quaes oíTerccesscm Os fieis, tocados dos objectos que as ima­
sacrifícios sangrentos como os gentios, e á gens representavam, testimunharam, por
maneira dos judeus. signaes exteriores, a estima que consagra­
A antiga Igreja não tinha imagens nem vam áqucllcs que eram representados nas
reliquias sobre os altares na instituição do imagens.
Christianismo; pelo menos não ternos^ pro­ Estes signaes de respeito não foram ge­
vas authenticas, e o silencio dos pagãos c ralmente approvados: houve bispos que
dos judeus, quando os christãos lhes ar- olharam as imagens como germen de su­
guiram o absurdo dos idolos, authorisa a perstições; outros, julgaram-nas uteis para
crér que eflectivamentc os primeiros chris­ intrusão dos fieis, c houve quem conside­
tãos não possuíam imagens. rasse as homenagens rendidas ás imagens,
Elias não são, na verdade, cssenciaes á como eíTcitos d’uma piedade louvável, quan­
religião, e n’um tempo cm que tudo estava do cilas dissessem respeito aos originacs c
repleto d’idolos, os primeiros pastores não aos sanctos.
queriam expôr a fé dos novos convertidos, O uso das imagens não se estabeleceu,
expondo a seus olhos imagens, e renden­ pois, desde o principio cm todas as igre­
do-lhes um culto; talvez temessem que os jas; foi permittido ou vedado, segundo os
defensores do paganismo publicassem que bispos, por motivos particulares; julgaram-
o Christianismo não era mais que uma ido­ no util ou perigoso, pela relação ás dispo­
latria di (Terente, c o persuadissem ao povo sições d’aqucllcs que honravam as ima­
ignorante, o que era facil em um tempo gens.
que a religião chrislã não era ainda assaz Vê-sc no nono Hymno dc Prudência, c
conhecida, para que as calumnias dos pa­ nos Sermões de S. Grcgorio de Nysa, por
gãos a este respeito deixassem de ser re­ S. Basilio e por todos os padres citados no
cebidas favoravelmente, se os christãos ti­ segundo concilio dc Nicea, que as imagens
vessem imagens nos logares em que se estavam em uso no Oriente desde o quarto
juntavam para orar e oíTerecer a Eucha­ século. 1
ristia. É, pois, certo que o uso das imagens e
Era, pois, um comportamento cheio de seu culto era assaz geral na Igreja no
prudência não admittir as imagens nos tem­ quarto século, c que nao era olhado como
plos do Christianismo durante os primeiros uma. idolatria; que aquellcs que o defen­
séculos. diam, não corídemuavam todavia os que o
A religião christã fez grandes progres­ authorisavam.
sos, seus dogmas foram annunciados e co­ Este culto, além d’isso, não era contra­
nhecidos; os padres e os pastores pregavam rio á lei que prohibe adorar outra cousa
aos christãos e a toda a terra que tudo es­ que não seja Deus, porque não é contrario
tava sujeito aos decretos do Sér Supremo; á razão ou á piedade honrar a representa­
que os homens não são nada per si mes­ ção d’um homem virtuoso c respeitável, c
mos, que nada possuem que não tenham não se temia que os christãos, a quem era
recebido c dc que possam glorificar-sc. permittido honrar as imagens, lhes rendes­
Não se temeu só então que os christãos sem um culto idolatra; fazia-se-lhes vêr
cahissem na idolatria, .que podessem acre­ que estes sanctos nada eram per si mes­
ditar que os genios governavam o mundo, mos, que ellcs tinham sido virtuosos só- ,
e pensar que esses genios estavam ligados mente pela graça de Deus, c que era em
á tela sobre qiie se traçaram as figuras. Deus que terminava a honra que se lhes
Então admittiram-so nas igrejas imagens rendia.
destinadas a representar os combates dos A Igreja não ensinava que os espíritos
martyres e as historias sagradas, para ihs- beatificados estivessem identificados com
as imagens, como os pagãos criam dos ge­
203. Ep. 54. A d CorneiArnoib., I. 4, pag. nios: ella mostrava que os sanctos, repre­
152. sentados nas imagens, deviam a Deus suas
Vejam-se as provas dc tudo mais circum- virtudes e méritos, que Deus era a causa
stanciadas em Bingham, Antiguidades Ec­
clesiasticas, l. 8. Em Tillemont, Hist. dos
Imperadores, t. 3, art. 0, i Bingham, Antiqui., Eccles., I. 8, cap. 8
322 IGR
o o principio das virtudes que honramos bins collocados sobre a Arca, o a serpento
nos sanctos. de bronze, provam que todo o uso das ima­
O culto quo os fieis instruídos prestavam gens não é interdicto por esta lei. Para fa­
'ás imagens, nào era pois um culto idola­ zer á igreja catholica um crime do culto
tra, e as igrejas que prohibiam o mesmo que ella da ás imagens, é preciso fazer vôr
culto, nunca arguiram as que as honra­ que elle é contrario á religião, á piedade,
vam de ter cahido em idolatria. ou á fé; e é isto o que se não póde provar:
A permissão do culto das imagens de­ é por esta razão que a Igreja anglicana, os
pendia do grau de luz que os pastores lulheranos, e ealvinistas celebres, não con­
viam nos fieis, c do conhecimento que es­ demnant o uso das imagens, senão como
tes pastores tinham de suas disposições perigoso para os sim ples.1
particulares. Mas, diz M. Rival, quando uma cousa
Assim, Sereno, hispo de Marselha, des­ não é necessaria, nem de preceito divino,
truiu as imagens da sua igreja, porque no­ nem de natureza, e que é aliás sujeita a
tara que o povo as adorava, c o papa S. abusos nocivos, como o uso c o culto das
Gregorio louva seu zelo, mas censura sua imagens, não quer o bom senso que se sup-
acção, porque ella escandalisára o povo, e prima?2
era para os simples um meio d’instrucçao Eu respondo:—!.0 Que não compete a
muito util e muito antigo. Fallava d’csta um particular emprehender esta suppres-
sorte S. Gregorio, no fim do sexto século. são, quando mesmo ella fosse rasoavel,
Logo, pois, que os povos se instruiram mas sim á igreja; ou que é preciso abolir
sufllcicntemente sobre a natureza do culto na igreja toda a noção de hicrarchia e de
que a Igreja authorisava, relalivamente ás subordinação; que por conseguinte os vai- \
Imagens, elle se espalhou e se estendeu denses e os calvinistas são incxcusaveis por
em toda a Igreja, depois do segundo con­ se terem separado da igreja, por causa do
cilio de Nicea. culto das imagens.
O culto que a igreja catholica consagra 2. ° Que o abuso do culto das imagens é
ás imagens, não ó pois um culto idolatra. facil de prevenir; e que nào é difficil fazer
A decisão do concilio de Trento, e o cui­ sciente aos simples fieis, de qual é a natu­
dado que elle teve cm corrigir os abusos reza do culto que a Igreja aulhorisa rcla-
que teriam podido introduzir-se n’este cul­ tivamente ás imagens.
to, o provam cvidenlementc: para se con­ 3. ° Que a suppressão do dito culto não
vencer d’isto basta lançar os olhos sobre a reconduziría os protestantes á Igreja, como
propria Historia do Concilio de T)'ento, por M. Rival o persuade: os ministros bem sa­
Fra-Paolo, c sobre as notas do padre Cou- bem que os abusos em que se cahe, com
rayer.1 relação ás imagens, são fáceis de prevenir,
Uma vez estabelecido este culto, é gran­ e não é isto o que impede a reunião.
de temeridade que um particular, ou Com efleito os protestantes estão tão ins­
mesmo algumas igrejas particulares, não truídos a respeito dos abusos do culto dado
queiram seguir tal uso, e condemnem os ás imagens, que não ha a temet que elles
que honram as imagens. Os pretendidos caiam; além de que, a Igreja condemna,
reformados não estavam pois authorisados tanto como elles, estes abusos: o culto das
a separar-sc da igreja romana, porque ella imagens não deve pois servir de obstáculo
approvava o referido culto, pois que não á sua reunião com a igreja romana.
approvava um culto idolatra: é por este Póde-se vér sobre o culto das imagens,
motivo que os theologos de Saumur não Peresius, de traditionibus, parte 3. Linda-
rejeitam o culto das imagens, admittido nus Panopl. I. 3, c. 23. Alanus Copus con­
pelos catholicos, senão porque Deus pro­ tra Magdeburgenses, dial. 4 et 5. Bellann.
hibe fazer alguma imagem talhada, e que Natal. Alex. in sxc. 8, dissert. 6. Hist. dos
elles pretendem que este preceito se effei- Cone. Geraes.
tua tanto para os christãos como para os igreja daJ —Vamos entrar n’uma
judeus. matéria, quê a razao e a boa fé já decidi­
Porém é claro que estes theologos dão ram, mas que os séculos teem tornado bas-
muita amplidão á prohibiçãò que Deus fez
aos judeus: é evidente que esta prohibição
diz respeito ao culto idolatra, e não abso­ 1 Hist. do Velho e Novo Testamento, por
lutamente ao culto das imagens; os cheru- Al. Basnage: Amsterdam, in-fol. Disserta­
ções Historicas, por Pedro Rival, dissert. 4,
t Edição de Londres, t. 2, pag. 633, pag. 277.
646 e 647, nota 2. 2 R ival, Ibid. pag. 237.
IGR 523

tante espinhosa. Envergonha, que no anno Será só exacta a ideia que do papa fize­
do 1865, dezenove séculos depois da Tun- ram Calmet, Febronio, Eybcl,Gmeiner, Ric-
daçãó do Christianismo, d’essa grandiosa ci, c será falsa a que fizeram Bolgeni, Zac-
revelação de Deus c da humanidade, ainda carias, Ballcrini, Duval, Milante, Troila, e
se escrevam artigos com a epigraphe que tantos outros?
apresentamos. Sc a crença d’estes ultimos é ultramon-
Quem sabe que Pio ix é o successor de tanismo, então S. Thomaz, Sancto Antonio,
S. Pedro, e enche o cathalogo desses du­ S. Francisco de Salles, Sancto AÍTonso de
zentos cincoenta e sete ponlilices, que fo­ Ligorio, todos os sanctos o doutores da Igre­
ram sublimados á cadeira apostólica, quem ja são ullramontanos. Mas eis-aqui o que
tiver lido os livros do Novo Testamento, fo­ se não póde dizer de quem viveu na Hes-
lheado as actas dos concilios, aberto as panha, na mesma França, em Portugal, na
obras dos sanctos padres c doutores eccle­ Allemanha, na Europa inteira, na Asia, na
siasticos, quem attender ao costume sem­ África, na America, e em todo o mundo,
pre invariável c nunca contradicto no go­ porque em todo o mundo ha defensores do
verno c economia da Igreja, saberá o lo- papado, uma vez que ha christãos.
gar que o papa n’ella occupa. Assim mesmo, nunca aquellcs, aliás esti-
Porém o orgulho humano não é assim. maveis gallicanos, apesar de se illudirem,
Torceu os textos da Escriptura Sancta, pretenderam tirar de suas theorias a illac-
chamou os sanctos padres a uma questão ção, que depois o jansenismo tirou tão im-
que elles nunca tractaram cx professo, pòz prudentemente.
na sua bôeca pensamentos e até palavras Foram os parlamentos de França que os
alheias d’elles, violentou as actas dos con­ violentaram.
cilios, abusou da disciplina da Igreja, c de­ Mas a verdade fica no mesmo ponto, e
pois, apresentando-so ás turbas, sob a mas­ os factos são o que eram. Pio ix gosa do
cara da virtude c da sinceridade, bradou- mesmo poder que gosava S. Pedro, e S. Pe­
lhes:— «Eis-aqui a verdadeira ideia da san­ dro gosou do poder que lhe couferiu Jesus
cta sé. Que é o papa? Segui a nossa dou­ Christo.
trina, porque o contrario é nltramontanis- Vamos, pois, tractar das prorogativas
mo. Estamos em ajuste de contas com a pontificias. A verdade costuma ser simples
côrte de Roma. Só fanaticos, hypocritas, e sincera, e não usa de rodeios nem d<
papistas, servis aduladores da curia roma­ meias palavras. Diremos portanto a verda
na, é que podem defender a sua tyrannia de sem rodeios e com clareza.
c despotismo espiritual.» Depois que Bcllarmino, Orsi, Duval, i
Ahí estão dezenove séculos a protestar outros, tractaram a questão do papa em
contra os adversarios do papado. O janse- relação á Igreja, pouco mais liaveria que
nismo já hoje não illude ninguem. Cahiu- accrescentar aos argumentos irrespondí­
lhe das faces a mascara coin que encobria veis d”estes aulhores; comtudo De Maistrc
o systema mais pestifero c hediondo, que e Moreno pozeram á luz da evidencia esta
havia surgido dos abysmos. Foram os sé­ matéria, nada mais havendo a desejar.
culos que se encarregaram de nos patçn- Ousamos ainda dizer mais: quem hoje
tear esta verdade. O século xix deu-lhe o tiver d’encetar esta questão, não o fará
ultimo golpe, ainda que muito antes o mes­ melhor do que elles, por mais erudição e
mo Bcrcastel trouxesse á luz pública o pro­ eloquência que possua, e terá de reprodu­
jecto de Bourg-Fontaine, traçado por Jan- zir a maior parte dos seus argumentos.
senio e seus partidários, e o incorporasse Todas estas razoes talvez façam com que
na sua historia. alguém se admire de tractarmos tão deba­
E que tem que Bercastel bebesse depois tida c ardente questão. Mas deve notar-se:
o mesmo veneno? quem escreve sobre materias religiosas não
Não se póde attribuir senão á cegueira inventa, nem adduz cousa nova, porque na
do entendimento. religião não ha novidade no dogma e na
Que importa que Bossuot, Fleury, Cal- moral. Hoje é preciso escrever-se o que os
met, e Bergier, desconhecessem o plano de homens sábios e livres de paixões disso-
Jesus Christo na sua Igreja? ram sobre o que toca á religião, porque
Por ventura será unicamente a escóla hoje escreve-se para o povo, c o povo pre­
gallicana a que ha de dictar a lei do mun­ cisa da verdade reproduzida e recopilada
do? Havemos crôr o que diz o grande Bos- em materias religiosas. O povo não lé a pe­
suet, e não o quo diz o venerável Bellar- sada c profunda obra de Bellarmino, nem
mino? Havemos jurar nas palavras de Fleu- as longas sessões dos concilios, nem as de-
Ty, e não nas do illustre e verdadeiro Orsi? cretaes dos pontifices. Não estranhem pois
os sábios, que não é para esses que escre­ Sempre sc recorreu ao papa como ultimo
vemos artigos sobre o papa. tribunal da Igreja. Sempre a clle eram de­
O papa é boje o que era ha dezenove sé­ volvidas todas as questões que tinham do
culos, c ha dezenove séculos era clle o che­ decidir-se: somente os horeges, os impios,
fe da Igreja, o mestre c pac commum dos os scismaticos, os apostatas, c os maus ca­
christàos, o monarcha supremo da religião. tholicos ó que negavam ao papa a supre­
macia do poder, persuadindo-sc que o thro­
no pontificio era uma instituição humana.
II Mas ainda algumas vezes appcllavam dos
bispos, que os condemnavam, para o pon­
tifico; e quando este também os condemna-
*0 papa o a Igreja tudo é um.» va, então ó que dirigiam seus tiros contra
Eis-aqui as formacs palavras d’um gran­ a pedra, sobro que Jesus Christo fundou a
de sabio, d’um grande prelado da Igreja, sua Igreja.
d’um grande sancto, emfim, de S. Francis­
co de Salles. III
E na verdade, para que tivéssemos como
verdadeira aquella asserção, não era ne­
cessário que a proferisse 5 esclarecido bis­ Quem é o papa?...
po de Genebra. Sc lançarmos os olhos ao 0 papa é a pedra cm que Jesus Christo
Evangelho, aos testimunhos de todos os sé­ fundou a sua Igreja, pedra firnio c inaba-
culos, se altendermos ao plano d’esta socie­ Iavcl, que tem resistido, resiste, e resistirá
dade chamada christã, á economia divina ás concussões dos poderes do inferno c do
da instituição da Igreja, se lermos a histo­ mundo inteiro, contra ella armadas.
ria, havemos de confessar que a authori- É o pastor unico do universal rebanho
dade do papa na Igreja é tudo: havemos de Jesus Christo, com suprema authorida-
de dizer com Bcllarmino, que a questão do dc de o apascentar, reger c governar.
papa é a questão do Christianismo; have­ É o centro de todos os poderes, c a fon­
mos finalmente concluir, que não ha ver­ te unica d'onde dimana tudo o que é po­
dadeira Igreja sem Christianismo; não ha der, authoridade e jurisdicoão na Igreja.
verdadeiro Christianismo .sem catholicis- É o legitimo successor de S..Pedro, e é
mo; não ha calholicismo sem papa, c por mesmo um outro Pedro, pois que c a incs-
conseguinte .o papa e a Isreja tudo é um. ma pedra.
Não póde existir edifício sem base ou É o vigário de Jesus Christo, seu logar-
fundamento. Ora a Igreja é um ediGcio ma­ tenente, que faz as suas mesmas vezes; por­
ravilhoso, cuja base é o papa, porque as­ que o Senhor devendo fazer o que elle faz,
sim se colhe das promessas de Jesus Chris­ e como não convinha á sua providencia es­
to. E sendo a base e a parte essencial e tar entre nós cm fôrma visivel, pôz em seu
necessaria no edifício, segue-se mui nalu- logar este homem, constituindo-o um outro
ralmcnte que a pessoa do papa na Igreja Elle mesmo, para fazer o que clle faria.
é tudo, que quando se ataca o papa, ata­ Eis-aqui o que é o papa. Eis-aqui. a res­
ca-se a Igreja, a religião e o Christianismo. posta que se deve dar a quem perguntar
Eis-aqui porque os impios de todas as com todo o orgulho, como fez o jausenista
cores fazem mil esforços para derribarem Eybcl, quando o immortal Pio vi partiu
aquelle vulto magostoso, aquella sentinella a visitar o imperador José n, cujo palacio
vigilante collocada sobre a Igreja; EUes estava inundado de jansenistas.
bem sabem, que ferindo as prerogativas E se exigir provas e argumentos, nós
ontificias, ferem o Christianismo. Elles então lhe diremos: por onde quer que o
em sabem, que faltando o papa, falta a prove?
Igreja: e por uma contradicção com os seus Pelas Escripturas Sagradas, c cm espe­
princípios, mas contradicção- que reverte a cial pelo Evangelho?
nosso favor, confundem o*papa com a igre­ Pelo plano que Jesus Christo seguiu,
ja , e atacam aquelle para fazerem cahir quando cimentou o divino edifício da Igre­
esla. ja?
Mas são insensatos, porque a Igreja ha Pela condição e natureza d’esta socie­
de permanecer firme ató o fim das gera­ dade? Pela tradição sempre constante?
ções, c por isso a sua base, que é o papa. Pela crença geral de todo o Christianis­
A supremacia do papa sempre foi pro­ mo? Pelos conciiios ecumênicos, provin-
clamada cm todos os tempos, apesar dos ciaes e nacionacs? Pelos sanctos padres c
inimigos declarados c solapados da religião. doutores da Igreja? Pela historia ecclesias-
IGR 325

tica c profana? Pelos authorcs protestantes nós o rejeitamos. O que vós dizeis é falso,
e inimigos do supremo papado?... e nós o refutamos.»
O campo ó .vasto. Mas em qualquer ter­ Com eíTeito Jesus Christo escolheu doze
reno quo se travar o combale, a victoria apostolos a quem constituiu bases da soa
a nosso favor é infallivel. O papa fica su­ Igreja, c pedras fundarnentacs d’este edifí­
perior a todos os tiros, e os seus defenso­ cio. Mas a pedra primeira em que todas
res não temem entrar na lucta, porque sa­ as outras assentavam foi uma só, com ex­
bem que a verdade tem sempre argumen- clusão das outras.
* tos a seu favor. Foi Pedro, c nenhum outro. Os bispos
Para um christão que acredita na di­ são successores dos apostolos, quanto ao
vindade dos livros sanctos, nào era preciso cpiscopado, o nào quanto ao apostolado, e
mais nada para saber qual devia ser a sua c o papa é successor dc S. Pedro em todas
fé a respeito do papa, do que abrir estes as suas prorogativas. Eis-aqui uma verda­
livros e responder a quem lhe negasse as de que o jansenismo tem procurado em­
prorogativas da sancta sé: acreditas 11’es- brulhar c confundir, para seus sinistros c
tes livros? Crês que sào a palavra dc Deus? malevolos fins.
Pois- lé. Eis-ahi o que diz Jesus Christo a
S. Pedro, c na pessoa d’ellc aos papas seus
successores: aqui estào os direitos do papa. IV
D’aqui dimanam os seus poderes. Negas
estes poderes? Negas por conseguinte a
palavra dc Deus. Negas as promessas de Certamentc todos os apostolos gosaram
Jesus Christo. Nào pertences á Igreja, por­ dc grandes dons e privilégios. Certamentc
que contradizes a doutrina do seu chefe c todos elles foram pedras lirmes c inabala-
pastor. veis do edifício da Igreja.
Abramos o Evangelho dc S. Matheus (16, Comtudo este nome do pedra é só pri­
18 e 19). e ahi encontraremos: Tu cs Pe­ vativo de Pedro. A nenhum outro chamoi
dro, e sobre esta pedra edificarei a minha Jesus Christo pedra sobre que edificaria I
Igreja... /£ en te darei as chaves do reino sua Igreja.
dos céos, e tudo o que ligares na terra será Uma singularidade bem notável, de qu
ligado no céo, e tudo o que desatares na todos os theologos deviam lançar mão para
terra será desatado no céo. fazerem emmudecer os inimigos da reli­
A que outro disse Jesus Christo estas gião, é este nome dc pedra dado a S. Pedro
palavras? A nenhum. exclusivamente.
Abramos o Evangelho de S. João (21, 15 Jesus Christo fallou na lingua hebraica,
c 17), e ahi veremos que fora dito só a S. c usou da palavra Cephas.— Tu es Cephas,
Pedro: Apascenta os meus cordeiros, apas­ et super hanc Cepham cedificabo ecclesiam
centa as minhas ovelhas. meam. Segundo Calmet, a palavra Cephas
Sophismai, usai dc todas as cavillaçõos ó d’origem ealdaica, que significa pedra ou
c chicanas, mas nunca podereis convencer rocha.—Cepha vox Caldaica est, petram,
ninguém dc que estes textos siguifiquem sen rupem sonans.
outra cousa além do supremo poder o au- No grego foi vertida em petron, que tam­
thoridade, dados por Jesus Christo a S. Pe­ bém' quer dizer pedra. Ultimamente S. Je-
dro c aos seus successores ng pontificado. ronymo masculinisou este nome, traduzin-
E se quizerdes esbulhar d’estas proroga­ do-ò em Petrus, perdendo já muito a sua
tivas do papa, dizendo que é á Igreja que força primitiva.
pertence esse poder, ou ã cadeira apostó­ Jesus Christo disso pois a S. Pedro: Tu
lica, fazendo distineção entre a Igreja e o és Pedra, e não Tu cs Pedro, constituindo
, papa, entro a cadeira c o que n’ella se as­ fundamento, base e alicerce da igreja ca­
senta, como Bossuet, nós, n’csse caso, vos tholica— E sobre esta pedra edificarei a mi­
responderemos com o immortal Fénelon: nha Igreja.
«Vossa opiniào é claramcntc opposta ás Á vista d’isto que se deverá pensar da
promessas dc Jesus Christo, feitas á sua interpretação que Natal Alexandre e outros
Igreja c ao seu chefe e cabeça. EUa é in- dão a este logar de S. Matheus?’ Dizem el­
teiramente desconhecida á tradição; cila 6 les que essa pedra é a Igreja.
nova. Póde-se dizer d’csta chimera o que Mas isto não se entende, c até tornaria
Sancto Agostinho dizia a Juliano: o que vós o sentido vão.
dizeis é novo> o que vós dizeis é falso. O «Tu és Pedro, e sobre esta Igrgja edifi­
que vós dizeis é estranho, c nós o ouvimos carei a minha Igreja.» .
com surpreza. O que vós dizeis é novo, e Quererá dizer isto alguma cousa? Fará
526 IGR
isto sentido? Será grammatical, ou mesmo Sc o papa é o maior dos bispos, se tem
logica esta oração? É ncccessario referir o primado c a plenitude de poder na Igre­
estas misérias, porque cilas mostram uma ja, e se a elle compete decidir as questões
má causa, que escogita e inventa quantos de fé, segue-se que o papa é a pedra fun­
disparates ha. damental da Igreja, que sem elle não ha
Pedro entre os apostolos era sempre o Igreja, c que elle é infallivcl no dogma c
primeiro em tudo; o primeiro na ordem, o na moral, porque aliás a Igreja cahiria em
primeiro nas decisões. erro. Mas isto é impossível, sendo cila a
Escutemos a S. Bernardo, que assim falia columna c o firmamento da verdade, como
ao papa Eugênio m, e na pessoa d’elle a expressamente declara o Espirito Sancto
todos os papas: «Tu quem és, grande sa­ pela bôcca de S. Paulo.
cerdote, summo pontifice? Tu cs o princi­ O papa faz na Igreja a mesma figura que
pe dos bispos, tu o lierdeiro dos apostolos, faz um rei no seu reino. Jesus Christo
no principado, Abel; no governo, Noé; no quiz que o chefe da Igreja tivesse o mesmo
patriarchado, Abrahão; na ordem, Melchi- poder e authoridade no religioso, que um
sedech; na dignidade, Aarão; na authori- rei no civil (servatis servandis). Um rei
dade, Moysés; no julgamento, Samuel; no manda governar esta ou aquelfa provin­
poder, Pedro; na unção, Christo. Tu és cia pelos seus magistrados; porém a fonte
aquelle a quem foram entregues as chaves c a origem do poder reside no rei, que
do céo, c confiadas as ovelhas. Ila ccm ef- tem a chave do governo. Da mesma sorte
feito outros porteiros do céo, e pastores do o papa constitue os bispos n’esta ou Saquei-
rebanhos; mas tu herdaste uní nome, tanto la parte do catholicismo. Comtudo, a fonte
mais glorioso quanto se distingue dos ou­ do cpiscopado está no romano pontifice.
tros. Elles teem rebanhos destinados em Não é pensamento meu, é do referido S.
particular; a ti foram confiados todos, a um Thomaz.
só pastor um unico e universal rebanho. E A supremacia do papa não é oxageração
não és só pastor das ovelhas, mas o unico ultramontana, como dirá alguém. É a cren­
pastor de todos os pastores. Perguntaes-me ça d.c todos os séculos: são verdades defen­
d’onde eu prove isto? Da palavra divina. didas por todos os theologos dignos d’este
A que outro, já não digo bispo, mas mes­ nome, e até pelos mesmos citramontanos,
mo apostolo, assim absolutamente, e sem como Gerson, Pilau, Natal Alexandre, Pe­
reserva, foram commettidas todas as ove­ dro de Ailloy, Almain, e outros. Nada mais
lhas?» expresso n’e’stes authores do que o regi­
Não se póde fallar melhor. Estas pala­ men monarchico do papa.
vras de S. Bernardo dizem tudo. Por ellas
se prova que'o papa succede a Pedro em
todas as prerogativas inherentes ao supre­ Y
mo pontificado, e isto cm virtude das pro­
messas de Jesus Christo. Por ellas se prtf-
va que o papa tem o primado de jurisdic- Lécm-se n’uma obra intitulada—Appello
ção e poder na Igreja, que elle é a origem aos parochos daldeia, por Lcdru-Rollin—
é centro de todo o poder d’clla, e que por as seguintes palavras: «Hoje os verdadei­
conseguinte sem elle nada se póde fazer ros christâos já não estão da parte da Igre­
na Igreja. ja.» Sem dúvida queria dizer, como se co­
Ouvi agora a S. Thomaz d’Aquino, um lhe pelo contexto de toda a obra, que o ver­
dos maiores sanctos e theologos, que assim dadeiro Christianismo não existia na igreja
escreveu seis theses contra os erros dos gre­ romana, que tem por cabeça e chefe o sum­
gos: «O romano pontifice, successor de S. mo pontifice: e como elle de papa nada
Pedro c vigário de Jesus Christo, é o pri­ queria, para ser coherente também não de­
meiro c o maior de todos os bispos.—O via querer que a igreja romana fosse a ver­
summo pontifice tem o primado universal dadeira christã. Tomou por conseguinte a
sobre toda a Igreja.—O romano pontifice palavra Igreja no seu genuino sentido, que
tem a plenitude de poder na Igreja.—S. Pe­ é tendo por cabeça o papa.
dro é vigário de Jesus Christo, e o romano Disse porém o*maior absurdo e a maior
pontifice é successor de S. Pedro no mes­ impiedade, porque os que querem ser verda­
m o poder que lhe deu Jesus Christo.—Ao deiros christâos estão hoje, assim como es­
summo pontifice pertence determinar o que tiveram sempre, com a Igreja e com o papa.
c de fé..—É de necessidade da salvação a Outros, não sabemos se mais impios se
obediericia ao romano pontífice.» mais pedantes, chamam aos catholicos emis­
Exccllentemente. sarios do papa, e papistas. Mas devem sa-
IGR 827
ber que nós honramo-nos com similhantes d’outra cidade? Tantos respeitos pelos bis­
nomes, pois conhecemos que por ellcs en­ pos de Roma, e nenhuns pelos outros bis­
tendem os verdadeiros catholicos os que pos?]
obedecem ao papa, successor de S. Pedro, Não será porque Pedro foi constituído
e que faz as vezes de Jesus Christo. pedra da Igreja, só e exclusivamente, c os
Sim, somos emissarios do papa, e verda­ seus successores gosam de todas as suas
deiros papistas, assim como o teem sido to­ prerogativas?!
dos os sanctos do Christianismo, todos os Não mostrará isto a superioridade do
theologos c doutores da Igreja, e todos os papa aos outros bispos do orbe catholico?
christàos. E não estaria isto no plano divino?
Leia-se a historia ecclesiastica, c se verá Mas talvez se dirá que os concilios ge-
que o papa é a alma d’esse corpo, que em raes teem authoridade sobre os papas, que
toda a parte ha lançado raizes. Tirai ao em taes concilios é que reside o dom da
corpo a sua cabeça, e elle apenas ficará infallíbilidade, e que por conseguinte o pana
um cadaver, sem vida, sem espirito, sem não é mais que um bispo com o primado
animação. de honra.
Porém, se ainda restam algumas dúvi­ Futil evasiva é esta.
das a respeito da suprema authoridade Os inimigos disfarçados da Igreja (c al­
pontifícia na Igreja, observe-se a serie nun­ guns illudidos por ellcs) faliam em conci­
ca interrompida de papas desde S. Pedro lios geracs, em igreja e em papa, baralham
até Pio ix, sempre dirigindo a Igreja, legis­ tudo, e por fim nada provam. Separam o
lando, mandando, e emfim usando de todos papa da Igreja, como se podesse haver cor­
os poderes, sem contradicção alguma senão po sem cabeça, editicio sem base. Chamam
da parle dos hereges e scismaticos. Igreja ao que não tem tal nome, e negam
Dezenove séculos tem d’existência a san­ ao seu chefe o que lhe pertence por direito
cta sé, e nem uma única vez se apartou do divino e positivo.
dogma c da moral christã. Roma tem sido Ora supponhamos um concilio geral, a
o centro do catholicismo. Alli está o depo­ quem os adversarios fazem dotado dos
sito da fé e da religião. Alli está a fonte do maiores poderes, decretando c discutindo
poder ecclesiastico. Todos alli recorrem como papa; c ponhamos d’oulro lado o pa­
para serem decididas as questões que se pa em opposição a este concilio, decidindo
suscitarem sobre a fé e costumes. Eis-aqui o contrario com os seus cardeaes. Aonde
o-que nós observamos em todos os tempos estará n’eslc caso a Igreja?- Quem gosarà
e em todos os séculos. aqui do supremo poder: o concilio ou o
As outras sés episcopaes, fundadas pelos papa? Desenganem-sc todos. Ou n’este caso
apostolos acabaram, os seus prelados cahi- não existe papa, ou tal concilio não é ver­
ram em erro, e apartaram-se da verdadei­ dadeiro concilio. O papa não póde estar em
ra crença; só a cadeira de S. Pedro e do opposição com a Igreja.
pontifico romano tem atravessado todas as Um concilio ecumcnico sem papa é nada;
gerações, sempre pura, c sem macula na e se nós em dezenove séculos não temos
fé. visto similhante phenomeno na Igreja, po­
Creta, Epheso, Smyrna, Pergamo, Tyati- demos afoutamente dizer que nunca se ve­
ra, Jerusalém, Antiochia c Alexandria, ci­ rá até ao fim dos séculos.
dades com sés episcopaes, fundadas pelos Mas se se désse o caso de estar o papa
apostolos, já não existem. Unicamente exis­ em opposição com todos os bispos do mun­
te a successão romana. do catholico, estivesse cm seu juizo per­
Este facto não quererá dizer alguma cou- feito, c fallasse como papa, mandando co­
sa? Não está mostrando que Roma é a mãe mo pastor da igreja, e dizendo: eis-aqui
de todas as igrejas da terra, que a cadeira a verdadeira fé, eis-aqui a fé de Pedro:
de S. Pedro e a mestra de todas as mais n’cste caso (apenas imaginario) devia-se
cadeiras do mundo, e que o papa, que obedecer ao papa, c não ao concilio. Mas
n’ella se senta, é o pac de todos os chris- eis o que nunca se viu, nem verá. Nun­
tãos, a alma, o coração e a cabeça da Igre­ ca ninçucm contrariou o papa fallando
ja, e que sem elle hão haverá verdadeira como doutor da igreja universal, ou se­
Igreja? gundo dizem os theologos, fallando ex-ca-
Mostrem-nos na Igreja uma authoridade thedra. Aonde está Pedro, ahi está a Igreja,
superior á do papa. diz formalmente Sancto Ambrozio (sobre o
Qual é a razão porque nas questões de psalm. 40).
fé se não recorre ao patriarcha de Alexan­ Desejaria eu muito que os adversários do
dria, de Constantinopla, de Jerusalem, ou summo papado, e defensores da siípreraa
528 IGR
authoridade dos concilios sem papa, me rería com estas palavras S. Basilio adular
dissessem quantos bispos são necessários a còrlc romana e o seu monarcha? Seria a
para que o concilio seja verdadeiramente maior injuria a tão grande sabio c sancto.
ecumcnico. Dizem geralmentc que se não S. Boavenlura na Summa Theologica (q.
requer a maior parte dos bispos do mun­ 1 a. D. 3.) diz: «O papa nao póde errar,
do, mas que representem a maior parte. suppostas duas cousas: 1.* que determine
Comtudo na Africa e no Oriente reuni­ como papa; 2.a que intente fazer dogma
ram-se numerosos bispos em concilio, c de fé.»
por mais de que uma vez erraram, c os Sancto Antonino sobre a appcllacuo do
papas condemnaram os seus decretos. E o papa (p. 1, tit. 23, cap. 3, v. 3) não* duvi­
que mais é, aquelles bispos tinham por si dou dizer ou escrever o seguinte: «Do papa
S. Cypriano, S. Firmiliano, e apesar d’isso para o concilio geral não se póde appellar,
erraram, porque lhes faltava a pedra c o porque o papa é superior a todo o conci­
conductor, que lá estava cm Roma, falhan­ lio; nem tem vigor o que faz o concilio, se
do como papa, e anathcmatisando quem não for confirmado pela authoridade do
seguisse opinião contraria á da sancta sé: romano pontifice. Logo, sentir que do papa
e por fim S. Cypriano c os outros bispos se póde appellar para o concilio, é uma he­
viram-so obrigados a ceder, c a sujeitar-se resia.
á decisào dogmatica do papa Sancto Este­ Chamai ultramontano c papista a Saneio
vão i. Antonino, por declarar o mesmo que Bcl-
larmino não disse.
S. João do Capistrano diz: «O papa tem
VI cm tudo jurisdicção plenaria sobre o con­
cilio, e não o concilio sobre o papa. E o
concilio, ainda o ecumenico, é obrigado a
Quando Carlos Magno reuniu um conci­ obedecer ao papa, do qual, depois de Chris­
lio particular de bispos cm França, a pro­ to, depende a salvação dos fieis.»
nunciar seu juizo sobre Leão iii, ouviu a Agora perguntaremos se estes doutores
seguinte resposta: «Nós não nos atrevemos fallaram assim por mero capricho, e por
a julgar a sé apostólica, que é a cabeça de lisongearem os pontifices romanos. Desco-
todas as igrejas; porque nós todos somos nhcccriam elles o verdadeiro plano da Igre­
julgados pela mesma, e pelo seu vigário. ja? Vale mais o que dizem estes doutores
Mas ella por ninguem é julgada, como é do que todos os gallicanos aííerrados ás
antigo costume; antes obedeceremos cano- suas phantasticas liberdades.
nicamente, assim como o determinar o Os adversarios do papado esforçam-se
summo pontifice.* por mostrar todos os sanctos padres a
O concilio de Limoges, celebrado no anno favor da sua opinião. Suam debalde, tor­
de 1034, diz expressamente: «A fé romana cendo textos e mutilando phrases. Porém
pertence á igreja universal.» todos os sanctos e doutores da Igreja, des­
Que responderam a isto os que nos ci­ de o século xiv por diante, unanimemento
tam a França, como adversaria em todos e cm termos os mais claros faliam do su­
os tempos do supremo papado? Que dirão premo poder e authoridade do papa na
os defensores das liberdades gallicanas? Igreja; e o que é mais notável é que não
Porém vamos entretanto vendo o que nos houvesse um unico sancto que não obede­
diz a historia. cesse cegamente ao pontifice romano, como
No concilio de Calcedonia (Act. l.°) fal- se fosse o mesmo Jesus Christo. E até ao
lando-se de Dioscoro, se diz: «Atreveu-se século xiv nunca ninguem contestou a in-
a convocar um concilio sem authoridade fallibilidade do papa, nem tal questão se
da sé apostólica, o que nunca se fez,- nem havia sequer ventilado, mas sempre se creu
é licito fazer-se.» o tribunal do pontifice como o ultimo e su­
S. Basilio (Liv. Thesaur), assim se ex­ perior na Igreja; e logo que se começou a
prime: «Só ao romano pontifice pertence ferir o throno apostolico, foi então que os
reprehendor, corrigir, determinar, dispor, theologos pozeram as cousas na devida or­
ligar c desligar, em logar d’aquelle que o dem, tractando expressamente do poder pa­
edificou, e a nenhum outro, mas só a elle pal. Comtudo não se mostrará um só pa­
deu o que é plenamente seu; e todos por dre da Igreja que conteste a suprema au­
direito divino lhe curvam a cabeça, e os thoridade do papa, e mesmo a sua infalli-
prelados do mundo lhe obedecem cumo ao bilidade.
mesmo Jesus Christo.»
Será isto também ultram ontanim o? Que­
IGR m
Y Il todo o systema dos cismontanos, cuja maior
escoria tem sido a declaração do clero gal­
licano em 1682.
Barruel, escriptor franccz, c que nin­ Principalmcnlc Bossuet esfalfou-sc cm
guem dirá ser exaltado papista, na sua demonstrar que o papa podia errar, mas
obra intitulada—Do papa e dos seus direi­ vendo-se apertado de todas as partes, disse
tos—põe na maior clareza quaes são os que a promessa da infallibiíidade fora feita
direitos do pontifico romano. á universalidade dos papas, e não a cada
Barruel declara que se não mette na um de per si. Isto só merece o riso, c per­
questão da infallibiíidade, mas assevera doe-nos o grande Bossuet. Se assim fosse,
que não ha um só exemplo dc reclamação também poderiamos dizer que a infallibili-
contra as decisões do papa, lallando como dade não fura permittida a cada um dos pa­
chefe supremo da Igreja, ou cx-cathedra triarchas dc Lisboa, ou d’outra qualquer ci­
(tom. d.°, part. !.*, cap. 5.°, nota.) dade, mas sim á universalidade dos pa­
Muito bem. Estamos d’algum modo dc triarchas dc Lisboa, etc., porque não ó pos­
accordo. Não digamos que o papa é infal- sível que todos errem.
livel; mas obedeçamos-lhe, e respeitemos os Como estes poderiamos citar uma im-
seus decretos, quando fallar .como pastor e mensidade dc authores francczes, que por
chefe da Igreja. um lado admitliam a suprema authoridade
Barruel cerlamentc queria dizer: não e infallibiíidade do papa, e por outro a mi­
dêmos a infallibiíidade ao papa, porque of- navam.
fendemos as nossas liberdades galli canas; Os jansenistas mais aíferrados ao seu sys­
mas observemos as suas decisões, tanto cm tema, primeiramente negavam os privilé­
dogma como em moral; porque é o sum­ gios da cadeira de Roma, e depois passa­
mo pastor da Igreja, porque ó o seu che­ ram a negar ate as prerogativas da Igreja.
fe, e em tempo nenhum se reclamou con­ Elles dizem sim que a Igreja ó infallivel.
tra as suas decisões. Mas entendamo-nos. Essa Igreja não é a
Ora aqui temos um escriptor gallicano, catholica romana, visto que elles minam o
aliás estimavel, por um lado affirmando primado de seu chefe; essa Igreja é a jan-
que não quer fallar ,na infallibiíidade, para senista. É o seu Pantheon. Se quizessemos
não bútír nas suas tão caras liberdades, se apontar factos, poderiamos citar o concilia
bem que suppostas; e por outro lado asse­ bulo de Pisloia, e o que alli fizeram o:
verando, sem querer, que o papa é infalli- jansenistas.
vel. Eis-aqui porque todos os catholicos de­
É elle mesmo que em outra parte diz: vem defender os privilégios dos papas, por­
(cap. 4) «Sem Pedro ensinando, como che­ que minados e destruídos estes, nào fica da
fe dos apostolos, não ha igreja infallivel. Igreja mais que um cadaver inerte e sem
Isto diz tudo. A Igreja é infallivel, é vida.
a mestra, a columna c o firmamento da
verdade. Mas d’onde lhe vem este dom?
Vem-lhe de Pedro, porque sem Pedro não V III
ha Igreja.
Tournely, outro theologo franccz, na sua
obra o Tràctado da Igreja (part. 2.*, quest. Já que tocamos na infallibiíidade do papa,
5.a, art. 3.°) não duvidou dizer ou escrever: não será fóra de proposito demorarmos-nos
«Não se deve dissimular, que em tanto pêso mais alguma cousa sobre esta questão. Dis­
de testimunhos, que Bellarmino e outros semos no artigo ív, <jne até o século xiv
reuniram, nós reconhecemos a authorida- não se encontra um só escriptor que negne
de certa, e infallivel da só apostólica, ou da a infallibiíidade dos successores de S. Pe­
igreja romana; mas ainda ó mais diííicil dro; então é que começaram alguns a ata­
conciliar estes testimunhos com a declara­ car esta prorogativa, e a questionar a este res­
ção do clero gallicano, d a q u a l n à o n o s é peito; e os theologos catholicos, examinan­
PERMITTIDO APARTAR.'» do minuciosamente os direitos pontificios,
Que prova isto? Prova que Tournely deram à suprema authoridade do papa na
acreditava tanto como nós na infallibilida- Igreja o nome de infallibiíidade. E não po­
de do papa, mas que as leis civis dc Fran­ dia deixar de ser assim.
ça lh’o nao permittiam. Um poder infallivel na Igreja é absolu-
Grande cegueira! conhecer a verdade, e taipente necessario, como a mesma razão.
não a abraçar, porque lhe não é permitti* manda. Ora sendo o papa uma authorida­
dol... Bastava Tournely para desacreditar de suprema, segue-se muitíssimo logica e na-
530 IG R

tu ralm n te que cllc é que tem esse poder homem probo, mas dignos dà má causa, que
infallivel. sustentam.
D’aqui não se pódc fugir. Nós do boa Sc nos citarem Victor i, Marccllino, Li-
vontade concordaremos, que a Igreja anão berio, Zozimo, Vigilio, Honorio, Grcgorio
o papa é infallivel (deixem passar o absur­ n, como cahidos em erros, nós lhes objccta-
do), sc nos provarem que um corpo sem remos a aulhoridade de S. Leão ix, que go­
cabeça obra. falia, auda, pensa e sc go­ vernou no século xi, depois dos criminados
verna. pontifices. Diz pois clle na sua 5.* carta a
Logo que não fazem isso, digam (porque Pedro de Antiochia: «O Scuhor rogou a
nào lica mal a ninguém, nem alguém 110I-0 Deus que não faltasse a fé sómente de Pe­
prohibe), digam que o papa ó infallivel. dro. Esta oração foi tão eflicaz, que ainda
Os cscriptores gallicanos, c alguns leva­ até hoje não faltou, nem ha de faltar a fé
dos da sua aulhoridade, sào os que mais de Pedro no seu throno até o fim do mun­
teein contestado no papa a infallibilidadc nas do.»
suas decisões dogmaticas: levaram esta E sc esta aulhoridade não c suflicicntc,
qucstào a um ponto muito alto, c fizeram ouçam o que diz S. Grcgorio vii (liv. 8.
com ella grande bulha. ep. l.° ao arceb. Simand): «Na igreja ro­
Sc analysarmos com reflexão os argu­ mana, fundada cm S. Pedro, não se conhece
mentos. d'elles, veremos que o que mais haver governado nenhum herege, nem ja­
lhes custava a deixarem passar, era este mais ha de governar, porque o’ Senhor as­
nome de infallibilidade na pessoa do papa. sim o prometteu, quando disse a S. Pedro:
Aqui fazemos cxcepção dos jansenistas, —Eu roguci por ti, ó Pedro, que não falte
porque esses negam a infallibilidade, c por a tua fc.»•
fim a da Igreja, como se viu na bulla Uni­ Grcgorio v i i governou no mesmo século
genitus, approvada por toda a Igreja. xi, depois de S. Leão ix.
Yél-os-hemos mostrar que a igreja roma­ Talvez dirão que estas authoridades são
na é a. mãe de todas as igrejas da terra. suspeitas, porque julgam em causa propria;
Vél-os-hemos provar com argumentos irres­ mas nós responderemos, que sendo estes
pondíveis a supremacia do papa em toda a dous pontifices varões sanctissimos, não po­
Igreja. Vél-os-hemos dizer final mente que as diam querer illudir, negando a verdade da
decisões dogmaticas do papa sempre foram historia.
leis na Igreja; mas dizerem que o papa é Prescindindo porém do seu testimunho,
infallivel nunca. os mesmos protestantes e adversários da
Guardam-se muito bera de. tal palavra. infallibilidade defendem os ditos papas.
Sobretudo Opstract é capcioso n’este pon­ Libcrio é formalmcnte absolvido pelos
to. Depois de referir as diversas opiniões, Centuriadores de Magdcburgo, e por Natal
que ba sobre esta questão, diz que ainda Alexandre. Gazzaniga prova que elle não
que cilas sc diflcrcnccm na realidade, não cahiu em erro, e que não são suppostosos
se di/Tcrençam nos termos; porque todas seus cscriptos. Honorio é defendido por
afflrmam qtíe o pontifice é infallivel, quan­ Bossuet e por Natal Alexandre, e sobre os
do define cx-cathedra, e entende ellc por outros papas, o mais que ha é ohicanas e
definir cx-cathedra, definir com o consen­ caviIlações, mais ou menos ridiculas.
timento do concilio geral, ou de toda a Nós ‘dizemos, que o papa é infallivel,
Igreja. quando define ex-cathedra, ou como sum­
De sorte que assim qualquer bispo é in­ mo pontifice pastor da Igreja, tomando a
fallivel. plenitude do poder. E por ventura esses
Mas nós perguntaríamos a Opstract, se pontifices, que se dizem ter errado, falla-
por ventura a Igreja póde deixar de estar ram sem contradicção cx-cathedra? Por
com o papa, quando clle define como seu ventura a sua decisão tem sido dada livre­
pastor, tomando a plenitude do poder. Se­ mente por todos, e como obrigatória a toda
ria ufn phenomenc que se não tem visto a Igreja? Se os concilios, ainda ecumênicos,
em dezenove séculos. podem errar em cousas dogmaticas, c ató
Nós aqui não tractamos de averiguar se nas dogmaticas quando não obrem livre­
os romanos pontifices teem sido infallivcis mente, como confessam os adversarios, para
de factd; porque isto está provado mais que se ha de elevar a infallibilidade do pa­
claro que a luz do dia. pa a um ponto, que está fóra da'sua pro­
Os adversarios cansam-se em provar que vincia?
alguns teem com effeito cahido em errp; Repetimos: a infallibilidadc de facto esta
mas para o fazerem teem chicanado, cavil- tão provada como a luz do sol.
lado e usado de todos os meios, indignos do O direito não se póde negar, sem destruir
IGR 531
■a Igreja c o seu plano, sem riscar os tcsli- Porém nào é verdade que toda a França
immlios dos concilios o dos sanctos padres, siga a opinião contraria.
e som contradizer a mesma verdade e razão. O clero francez, no concilio de Paris do
O concilio i i de Lalrào, c xi geral, diz anno de 1G2G, diz formalmcnte: «O papa é
expressamente: «Na igreja de Roma lia al­ successor de S. Pedro, sobre quem Jesus
guma cousa de singular, porque nào póde Christo fundou a Igreja, quando lhe deixou
haver recurso a superior.» as chaves do reino dos céos, c o dom da in-
Ora o poder superior na Igreja deve ne­ fallibilidadc nas cousas de fé, que se tem
cessariamente ser infallivel. visto durar immulavcl cm seus successo­
Origenes diz: «Se o inferno prevalecesse res até os nossos dias.»
contra Pedro, também .prevalecería contra O rnais exaltado nUramonlano não diria
a Igreja, porque cila está fundada sobre mais do que cs-e concilio de França, cele­
Pedro.» Mas o inferno nào prevalece con­ brado só 50 annos antes daquelle cm que
tra a Igreja, porque S. Paulo expressamen- a França adopíou opinião contraria. Tão
tc lhe chama columna da verdade; logo depressa se esqueceu da doutrina dos seus
também nào prevalecerá contra Pedro, e maiores!...
por isso contra o papa, seu successor nos Adverte Raynaldo, cscriptor francez (de
privilégios. Rom. Pontif.),’que todos os theologos fran-
S. Thomaz diz: «Que a igreja universal cezes, anteriores ao concilio de Constanea
nào pode errar, porque S. Pedro também c de Bazilca, unanimemente ensinavam que
mão pode errar, segundo a promessa de Je­ as definições pontificias, ainda fóra do con­
sus Christo. , cilio, faziam dogma de fé.
O concilio de Nicea (canon 18), diz: «To­ Nauclero aflirma que a faculdade de Pa­
dos os bispos devem nas coutas mais gra­ ris, no anno de 1320, condemnára como he­
ves appellar para a sé apostólica, a cuja dis­ réticos os artigos de Marsilco de Padua, que
posição a antiga authoridadc dos apostolos dizia: «Que o romano pontifice era fallivel.»
reservou todas as cousas maiores.» Duval, também francez, diz que a mes­
S. Leão ix, na sua carta a Leão Acridano, ma faculdade condemnára como herege
cap. 31, diz: «Pedro e os seus successores Marco Antonio de Dominis, porque ensina­
leem juizo livre de toda a Igreja.» va que a authoridadc do papa era fallivel.
S. thom az diz: «O concilio só póde ser Finalmentc Barruel, que escreveu em
•congregado pelo papa, e lhe confirma a sua 1801, diz que quando os bispos estão reu
decisão, c do concilio 'se appella para o pa­ nidos, c ahi nào está Pedro, ahi nào está
pa.» Diz cm outra parle contra os impu- Igreja. Que se deverá pois dizer da doi
gnadores da religião: «Os sanctos padres, trina gallicana do anno de 1682?
Congregados cm concilios, nada podem de­ Uma unica cousa: que é uma doutrin
terminar sem intervir a authoridadc do nova, inaudita, e desconhecida a todaaan
pontifice romano.» tiguidade.
Nicolau (epist. 7), assim escreveu: «Nos Que se deverá dizer de Bossuct, Fleury,
concilios geraes que cousa se tem por vá­ Dupin c Vigor, que com todas as veras a
lida senão o que a sé de Pedro approvou? defendem? Que estes escriptores, apesar de
E assim pelo contrario só o que elle repro­ recommendaveis, se illudiram redondamen­
vou, só isto mesmo consta que até aqui é te em materia tão importante.
reprovado.» Que se deverá pensar das liberdades da
Por todos estes testimunhos se prova a igreja gallicana? Que são phantasticas e fal­
crença geral e antiga de que o papa é in- sas, e que merecem antes o nome de es-
faliivcl como authoridado suprema na Igre­ eravidòes, como se vô pelo que diz Tour-
ja. Que o papa tem a supremacia do poder nely.
c que o seu governo é monarchico, confes­ Assentemos, pois, que os decretos do pa­
sa-o o mésmo Gerson, ainda que adversario pa foram sempre leis na Igreja (o que o
da infallibilidade, porque nào duvidou es­ mesmo Bossuct confessa): que nunca nin­
crever: «Que era herege quem cresse o guem reclamou contra a sua decisão ex­
contrario, pois Christo não instituiu na eathedra (como diz o mesmo Bossuet), e que
Igreja outra politica além da monarchica.» por conseguinte o papa é infallivel.
Opstract também diz que a doutrina da
infallibilidade no seu tempo era commum
fóra de França cm todas as academias, or­ IX
dens religiosas c escriptores ecclesiasticos.
•|Dc Loc. Thcol. Dissert. 5.a, quest. 4.», G. Sancto Agostinho define a Igreja. «É o
in, n. 5.) povo fiel espalhado por todo o inundo (De
532 IGR
Cathcch. and. cap. 3.*)» Argumentava com Jesus Christo, depois de nos mandar rc-
os donatistas. Eslcs 1)eroges do quarto prehender o irmão que pecca, manda que
século circumscrcviatn a Igreja no circu­ avisemos a Igreja (Dic Ecclesia;); e so clle
lo da Africa, e por isso o sancto doutor, a nao ouvir, seja tido como um pagão- nós
omittindo outras propriedades da igreja, vos responderemos, com S. João Chrysos-
.quiz-lhcs mostrar que a Igreja unica ver­ tomo (Uomil. 61, a S. Matheus), que a pa­
dadeira nào sc incluia só na Africa, mas lavra igreja, ifestc Jogar, nào designa o
que sc devia encontrar em todos os Joga­ concilio geral ou outro poder separado do
res do universo. papa, mas sim o mesmo que preside na
Dizia a verdade Sancto Agostinho. Igreja.
Mas esta Igreja será a columna e o fir­ Sejamos claros. Sobre este ponto não
mamento da verdade, dc quo falia S. Paulo? devem haver meias palavras. Quando o
Terá o poder dc legislar, dc ensinar o do­ papa falia, é necessário ouvir o seu orá­
gma c a moral, e de governar esse povo culo; porque o papa, mesmo como pessoa
fiel espalhado por todo o mundo? Seria o particular, merece mais altenção que ou­
maior 'absurdo e conlra-sènso. Entào a tro qualquer cscriptor, por minto erudita
fôrma do governo da Igreja seria repu­ que seja, segundo diz o mesmo S. Thomaz
blicana ou democrática, c nós já provamos (Quod. I. 10, ar. C.) Mas quando cllc falia
que era monarchica com Gerson. como summo pontifice, querendo obrigar
A palavra igreja, na sua aceepção ety­ toda a Igreja, a unica resposta dos chris­
mologica, quer dizer multidão, sociedade, tàos é esta: Pedro faltou— eis-aqui a voz
ou ajuntamento para um fim, que. no sen­ de Pedro—anathema a quem sentir o con-
tido em que falíamos, c um fim religioso. traijo.
Ê pois a Igreja uma sociedade de homens Sobre esta materia é digno de mcncio- '
ligados para um fim religioso ou espiritual. nar-se o facto de Fénélon. Este grande ho­
Dai a esta sociedade todos os poderes. mem havia defendido o quietismo, ou falso
Confiai a todos os seus membros a supre- mysticismo, na sua obra intitulada Lcs Ma-
nacia da jurisdiceao. Concedei-lhe o dom ximes des Saintes. Bossuet, prelado sabio e
a infallibilidade. * das melhores intenções, tocou a rebate cou-
Mas tornai-me a dizer: será esta socie- tra tão pestifera doutrina, c levou a causa
ade a igreja que S. Paulo .chama firma­ á decisão do summo pastor da Igreja. In-
mento da verdade? Gosaram todos os fieis noecncio xw, examinando minucíosamente
christàos da authoridadc monarchica que o livro do Fénélon, condemnou-o, pondo-o
S. Thomaz e Gerson dizem residir na Igre­ no indico dos livros prohibidos. E que fa­
ja? Seria uma contradicção nos termos ria ueste caso o grande arcebispo dc Cam-
porque se nào compadece com a fôrma bray, o immortal author do Telemaco? So-
monarchica. phismaria defendendo a sua causa? Ouvi a
Ouvi agora a S. Cypriano (Epist. 69 a resposta da bôcca do proprio Fénélon: «O
Florenc. Papian.): summo pontifico fallou; a discussão é pro-
«A Igreja, diz cllc, é o povo unido ao sa­ hibida aos bispos, que devem reconhecer e
cerdote. e o rebanho obediente cm tudo acceitar o decreto pura e simplesmente.»
ao seu pastor.» , Porém clle ainda fez mais. Subiu ao pul­
Paliava com um scismatico, e por isso pito da igreja, leu. a bulla do pontifice, e
lhe disse que sc ellc queria estar na Igreja, revogou publicamcntc os seus erros, sub­
devia obedecer ao pastor, porque sem ellc screvendo em tudo c por tudo ao decreto
nào ha igreja. pontificio. Grande e raro exemplo de hu­
Deve pois a igreja ter uma só cabeça, e mildade e obediência!
um só pastor. Reunindo agora estas duas Oxalá quellossuet o imitasse quando In-
definições, concluiremos que a supremacia nocencio xr proscreveu os quatro artigos
o a infallibilidade do poder residem no do clero gallicano, lavrados cm 1682! «Mas-
summo pontifice, como cabeça da Igreja, tão longe esteve d’isso, que antes trabalhou
porque sem clle nào ha verdadeira igreja. de noite c de dia em defender essas sup-
. Separai um individuo, uma provincia, postas liberdades.»
ou uma naçào, da obediência ao papa, te­ Sempre em todos os tempos se reconhe­
reis o que se chama scisma; c os scismati- ceu a authoridadc do papa como necessa­
v cos (corho lambem confessam os adversa- ria para as decisões do fc, e ainda de dis­
riòé) sãò excluídos do gremio da Igreja, ciplina. Qual foi a razão porque Jansenio-
E 9ò vós querendo fazer alguma distinc- sujeitou o livro Augustinus ao juizo do
câo bníré o papa e a Igreja nos objectar summo pontifice?
des aquelle texto dc S. Matheus, cm que I*íão podemos saber o que faria Jansenior
IGR m
se fosse vivo, no caso de ser condcmnada Pertence o posto avançado aos hereges,
a sua obra; mas o que é verdade é que os muitos dos quacs negaram toda a sorte de
seus sectários chicanaram e sophismaram authoridade.
para defender o seu partido. Não só negaram o sacramento da or­
Sancto Anselmo sujeitou o seu livro de dem, e o poder que cllc confere aos ungi­
fidr. Trinitatis ao juizo de Urbano u. San­ dos do Senhor para contituil-os chefes do
cto Agostinho sujeitou as suas obras con­ povo chrislào, mas teem de mais d’isso af-
tra os pclagianos a S. Bonifácio i. Phocio, iinnado que o proprio poder secular, além
até o herege c scismatico Phocio,' submet- de não porvir de Deus, até é mau, de sua
teu os seus escriptos á censura de S. Ni- natureza.
colau i. S. Juliào, bispo de Toledo, sujeitou Apparcccram depois os politicos, como
a sua apologia contra os detractores do sex­ Biclfed. Watcl, de Real, Bentbam, Richer,
to concilio geral, ao exame de S. Bento 11. e outros muitos, a varios dos quacs. pare­
Mas o que dá um córle na questão, são as ceu melhor que o principe reunisse na sua
proprias palavras que deixou cscriptas o pessoa os poderes espiritual e temporal, ou
abbade Joaquim, que depois foi condemna­ ecclesiastico e civil; julgando perigosissima
bo com as suas obras, por Innoconcio 11. cousa que o governo laical admittisse os
Eil-as aqui: «Rogo da parle de Deus, a to­ canones ou leis do poder ecclesiastico; para
dos os meus eo-abbadcs c priores, e man­ não fazer assim nascer um imperio dentro
do, pela authoridade que tenho, que apre­ d’outro imperio, e opinando ainda outros
sentem este escripto ao exame apostolieo, que o principe, que não reprimisse corajo­
c recebam da mesma sé a rcprchensào, samente a distineção dos dous poderes,
condemnando o que cila condcmnar, e jamais teria seguro o dominio dos seus po­
abraçando o que eíla abraçar. vos.
Perguntaremos ainda. Qual a razão por­ Vieram ernfim os regalisias, que osten­
que olTercciam as suas obras ao juizo do tando grande zelo de suster a gloria c a
papa, e não ao d’outro qualquer bispo? estabilidade dos thronos, insinuaram aos
ISTão seria porque reputavam o papa principes a reivindicação dos direitos d
como superior nas decisões de fé c de ino- soberania, usurpados pelo sacerdócio: pr
ral?... curaram restringir a authoridade da Jgrc
Concluamos, pois, que o papa gosa da sómente ao espiritual, interno, e invisiví
supremacia na Igreja, porque os fastos da e estabeleceram, por principio indubitav»
mesma Igreja, os sanctos padres, c os ca­ que as constituições dogmaticas, e rnuit
nones,- assim o mostram; e nós devemos mais as disciplinares, deviam ser submet-
julgar do que c o papa, pelas accies da tidas ao exame dos juizes seculares; idéias
Igreja, pelos padres, c pelos canones, como estas de que estão cheios os livros do Sar-
testifica o jansenista Pascal. pé. a pessima obra de Febronio, a Historia
Concluamos que o tribunal do papa é o Civil de Giannove, c os diversos escriptos
ultimo tribunal da Igreja, e d’ellc não se de seus condiscipulos c sectarios.
póde appellar sem se destruir a unidade Mas não é assim: nenhuus d’esscs dis­
da Igreja, como prova o protestante Mo- correram accrtadamentc: perderam-se no
sheim. labyrintho dos desvarios a que a sua indi­
Concluamos, finalmcnte, que o papa e a vidual razão os conduzira sem o providen­
Igreja é todo um, como disse o grande. S. te fio' da verdadeira crença, que d’alli os
Francisco de Salles. salvasse: não levantaram" os olhos á luz
clara do céo,quc os esclarecesse: guiaram-
se por lumes latuos da terra, que os illu-
ii * diram.
Entrando, pois, no assumpto, farei con­
A Igreja e o.império ó livre e independente? siderar a meus leitores que assim como no
principio crcouüeus o homem, c para este
céos c terra, os animaes c as plantas, as­
Entre todas as controvérsias de que sim também crcou, em utilidade do mes­
mais depende immediatainentc a felicidade mo homem, dous poderes essenciahnente
da Igreja e do estado, tem um dos primei­ distinctos, mas conducentes um c outro á
ros legares essa que na epigraphc se dei­ felicidade do genero humano; limitando-se
xa indicada. porém um aos actos necessarios para o
Trcs classes d,e adversarios teem comba­ bem-estar d’esta vida passageira o breve,
tido n’c$tc campo, do lado da opposicào e emquanto que o outro se esforça por asse­
do erro. ' gurar, pelo modo dc eonduzir-*se cá n’este
334 IGR
mundo, a felicidade da vida futura e eterna. entre si, livres c independentes um do ou­
E não sc duvida que foi Deus que crcou tro, como se vò da sua privativa natureza,
esses dous poderes; porque se Deus é o e dos encargos de que são investidos.
author das mil necessidades a que o ho­ Por quanto, já que o poder politico deve
mem é sujeito; sc Deus é o author das in­ presidir soberanamente á ordem civil, com­
clinações naturaes do coração humano; se prehendendo por isso todas as authorida-
elle é o author dos meios que tem o ho­ des, que são essenciaes á boa administra­
mem de fazer entender-sc pelos outros, e ção pública, o direito de organisar leis e
de entendel-os também; sc é elle o author fazel-as observar, de nomear os seus em­
de todas essas irresistíveis tendências do pregados públicos, decidir da paz c da
mesmo homem para sc reunir cm corpo guerra, impor penas ou dispensal-as e dar
social, que não pôde existir e conservar-se as recompensas, lançai tributos, fiscalisar
sem cabeça d’onde provenha o systema e as rendas públicas, bater moeda, e fazer
direcção do movimento, c sem ministros outras cousas analogas; assim também o
que appliqucm os priucipios estabelecidos poder ecclesiastico, sendo emanado immc-
pára a existência e commodo da sociedade, diatamente de Deus, como o politico, e ten­
porque onde não ha quem governe, cahirá do a presidir á ordem espiritual ou reli­
o povo em ruina (Proverb. 11 e Vi)] sc é o giosa, deve por isso regular-sc pelos mes­
author d’essas intimas aspirações do ho­ mos princípios que constituem os direitos-
mem ao guso do summo bem, com que da soberania, pertencendo-lhe portanto a
fundamento sc dirá que só não é Deus o publicação da doutrina e sua interpretação,
author do remedio a tantas necessidades e a administração dos sacramentos, a organi-
objecto a tantas inclinações (o corpo so­ saçào dos canones ou Icis ecclesiasticas so­
cial), c dos meios aptos (os dous poderes) bre tudo o que diz respeito á disciplina da
para obter os desejados e justos fins? Igreja, distribuição de graças, impor pe­
Estes dous poderes são tão indispensá­ nas, constituir ministros; etc.; bem como c
veis na sociedade humana, por necessidade ponto inconcusso entre christãos orthodo­
e natureza, que não podem portanto dei- xos, que nas materias mixtas devem con­
ar de ser formados pelo proprio author correr igualmente os dous poderes sobera­
Ja mesma natureza. nos, a fim de que, diz, cm 1736, M. Beau-
E com efTeito se é elle quem diz no men­ mont, arcebispo de Paris, na sua pastoral
cionado livro dos provérbios que por elle sobre a authoridade da Igreja, os inte­
reinam os imperantes, e os principes go­ resses internos do homem não sejam por
vernam (8,13); affirmando pela bõcca de modo algum espesinhados pelos interesses
Daniel que é elle quem dá o reino e o im­ (Tuma vida passageira e fugaz.
perio (2, 37), c que o dá a quem muito lhe Dada, pois, tanta distancia entre os en­
parece (4, 22); e accrescentando, por ex­ cargos que Deus impozera ás authoridades
pressão de S. Paulo, que nào ha poder que seculares, c os que elle mesmo tem con­
d’elle não provenha, de modo que todo fiado aos ministros da. sua igreja, bem se
aquellc que resiste ao poder, resiste á sua discerne a sua essencial diversidade, que-
ordenação, porque os principes são seus Schmidt, nas instituições de direi,to eccle­
ministros (a Rom. 13.°, 1 e seg.): é elle siastico germânico, classifica do indubita-
mesmo também, que na pessoa de Jesus vel entre todos os catholicos: c n’cssa con­
Christo, disse aos apostolos, encarregan­ formidade, dizia um grande jurisconsulto,,
do-os da sua missão, que assim como seu o publicista Domat, que todos os estados
Eterno Pae o tinha mandado, assim elle em que se professa a verdadeira religião,
os mandara também (S. João, 11, 21); rc- são governados por duas sortes de pode­
commendando mais adiante aos bispos, por res, o espiritual e o temporal, os quaes
lingua igualmentc do apostolo das gentes, tem Deus estabelecido para regular-lhes a
a guarda do rebanho, sobre o qual foram ordem pública, e cujas attribufeoes, de um
constituídos pelo Espirito Sancto para go­ c outro, accrescenta o arcebispo de Bour-
vernarem a sua igreja (Act. 20, 28). gesno seu discurso, pronunciado em nome
Corntudo estes dous poderes, ecclesias­ do clero, na assembléia de 1763, estão bein
tico e secular ou civil, posto que prove­ separadas e distinctas.
nham da mesma origem, qual é o Crca- Deverá porém advertir-se que não é por­
dor, e se destinem ao mesmo fim, isto é, á que os objectos ,sejam interiores ou exte­
Telicidade da creatura temporal ou eterna, riores, nein pela iníluoncia indirecta que
o ambos sejam exercidos pelos proprios elles possam ler sobre um ou outro do*
homens, para cuja utilidade foram crea- dous governos, que se determinará a na­
dos, são todavia esscncialmcnte distinctos tureza das materias temporãos e espin-
IGR 535

tuaes, c fixará a competência dos dous po­ d’ellcs, como pelos seus meios, e pelos es-
deres: ambos elics teem espiritualidades e pcciaes fins a que um e outro sc propoem.
exterioridades, c ambos teem reciproca in­ Não é nova esta distineção: a maior par­
fluencia na boa ordem um do outro, mas te das naçòes, desde remotissimos tempos,
não sc segue por isso que um deva ser tem acordado n’ella; sendo notável o res­
absorvido pelo outro. peito c consideração que não só os egy-
Mais claro. pcios, mas também os antigos romanos
Todo o culto público da religião é exte­ professavam para com o poder sacerdotal:
rior; todas as funeções do sacerdócio, diz nem se ignora que na mesma lei antiga
um sabio cscriptor, todos os objectos que entre os hebreus houvera uma tribu pri­
mais irrefragavelmente estão na ordem das vativamente separada por Deus para o
cousas espirituaes, como o ensino da dou­ exercício das funeções do sacerdócio com
trina e os sacramentos, são exteriores: além um summo pontifice c syncdrio, investidos
d’isto toda a religião, o parlicularmontc a de grandissimo poder.
confissão auricular, a pregação do Evange­ Na lei da graça, que é mais perfeita que
lho, e a ordenação dos pontifices, interes­ a lei antiga, mais perfeitamente também
sam e influem iia civil sociedade. E dir- sc acha estabelecida c regulada esta dis­
se-lia, por isso, que todas estas cousas, tineção entre os dous poderes, ainda que
pela sua influencia c pela sua exterio- soplíismada muitas vezes pela força: e o
ridade, entram na competência do poder Christianismo considerou sempre com hor­
civil? ror a temeridade d^quellcs imperantes que
Por outra parte, a obediência e a justi­ se tornaram invasores do poder ecclesias­
ça, emquanto dizem respeito á consciência, tico; nem a Igreja deixou jámais de os re­
são cousas espirituaes, que todavia entram bater e fulminar, sem consentir ou tolerar
nos direitos do poder secular, o qual sc se nunca sirnilhanle irregularidade, posto que
limitasse sómente ás exteriores matcriali- forçadamente se visse algumas vezes obri­
dades, não teria dominio algum nas con­ gada a sofirer as insolências de extravia­
sciências, e as suas leis ou mandados, ain­ dos ou rebeldes filhos.
da os mais justos, poderíam licitamente ser O enotico de Zcuão, o ectesi de Ileraclà
transgredidos contra o que rccommcndou o o typo de Constante, o inierim de Carlos
apostolo, mandando obedecer não só por reprovados pelos pontifices e pelos conc
evitar o castigo, mas propter conscientiam; lios, são exemplos, além de outros muite
não sendo menos certo que a boa ordem que podiam adduzir-se, de como a Igreji
na administração c governo temporal do tem sido solicita e invariável na repulsa
estado influe grandemente sobre os costu­ das invasões contra o seu poder.
mes dos povos, e até sobre o mesmo go­ Nos nossos dias mesmo temos visto com
verno ecclesiastico. quanta amargura o summo pontifice. Grc- '
E com tudo poderá crér-se que essa es­ gorio xvi lamentára diversas vezes era con­
piritualidade, e essa influencia décm á sistorio dos seus cardeaes, com todos os ca­
Igreja o direito sobre a temporal adminis­ racteres da mais solcmne reprovação, os
tração pública dos reinos e dos impérios? excessos do governo do imperador D. Pedro,
Certamente não, em um c outro caso. e mais alguns, practicados íVcstc nosso
São bem diversos e distinctos entre si os Portugal contra o poder ecclesiastico, e
dous poderes da Igreja c do estado, tendo liberdade e independencia da Igreja, lem­
cada um direitos que lhe são proprios e brando-lhes as censuras e penas em que
privativos, independentemente um do ou­ estavam incursos os invasores.
tro. E não eram sómente os pontifices e os
A confusão dos dous poderés foi positiva concilios, que levantavam a voz contra o
c expressamente banida por Jesus Christo, poder civil a reprovar o seu anti-religioso
uando mandou dar a Ccsar o que era de e usurpador procedimento; entre os mes­
S esar, e a.Deus o que era de Deus. mos bispos apparcceram varões intrepidos,
que longe de chamarem sobre si a igno­
miniosa expressão canes m uti do Evange­
§ II lho, não receavam fazer ouvir também as
suas vozes na defesa da soberania, inde­
pendencia e liberdade ecclesiastica.
São bem distinctos um do outro, como Eis ahi como ao imperador Constancio,
na primeira parte seNmostrou, os dous fautor do arianismo, fallava Osio, bispo de
poderes ecclesiastico, e civil, assim pela Cordova, que bem poderia servir de mo-
natureza ou indole propria de cada um dello a muitos d’hoje:
«Não te intromcltas, dizia o illustre bis­ Sc aquelle que não póde fazer 0 mesmo,
po, nas cousas ecclesiasticas, nem queiras não póde fazer 0 mais, como pretenderá
dar-nos regras sobre este assumpto, por­ regular 0 culto c 0 poder espiritual 0 sobe­
que de nós 6 que tu deves aprendel-as. A rano que não é habil para exerccl-o?
ti te entregou Deus o imçerio, a nós con­ Como c que sendo a fé immutavcl, c
fiou-nos o que pertence á Igreja; e assim eterno 0 Evangelho, poderão estas cousas
como aquelles que desobedecem ao teu ser sujeitas á volubilidade dos governos
mando, contradizem a ordenação divina, temporãos, c ás intrigas das suas cortes?
assim tu, acautela-te de arrogar-tc o que é Então c que os subditos, advertindo 0
da competência da Igreja, para que te não governo que não se regula pelos solidos
tornes culpado de um grande crime...» princípios da religião, facilmente se per­
Se Iodos os bispos fossem Osios, não se suadem que clle não tem religião alguma,
atreveríam os governos seculares a tantos posto que muito falle n’ella; e é n’esse ca­
excessos como, animados pelo silencio c so, c nao no imaginado petos, regalistas e
até connivencia talvez de alguns d’aquclles, revolucionários, que poderíam sobrevir ao
estão continuamente practicando contra a estado aquelles perigos, c os que costu­
independência do poder ecclesiastico. mam ser consequência ordinaria de tal
Não temam, porém, os soberanos tem- persuasão.
poraes que a distineção dos dous poderes Nem seria menor ainda 0 perigo de ou­
lhes torne vacillantes os seus thronos: é tra estratégia, que alguns governos leem
esse um terror panico, ó um dos muitos feito pôr cm execução para obterem os
prejuízos que os regalistas e todos os re­ seus fins, isto é, formarem um clero com­
volucionários teem procurado metter na ca­ posto da gente privativamente sua no modo
beça aos imperantes, para melhor comba­ de pensar e na dependenda; c ahi ficaria
terem por este modo a Igreja, destruírem 0 poder ecclesiastico á disposição do go­
a religião, c cavarem a sepultura dos mes­ verno para fazer tudo ú que este quizesse.
mos imperantes, que tiverem a sancta sim­ Mas 0 prestigio da authoridade espiritual
plicidade, ou a ambiciosa malicia de at- teria então acabado, e aconteceria como
f.endel-os, comò por desgraça houve e ha no tempo de Philippe de Macedonia, que
linda. propondo-sc corromper os oráculos para
A distineção e a independência dos dous que vaticinassem a seu geito, ninguém
poderes, ao contrario do que dizem aquel­ mais 0 acreditou, porque philippisdvam,
les aduladores ou falsos amigos dos impe­ dizia 0 povo idolatra: c 0 mesmo poderia
rantes, ajuda a consolidar o throno secu­ 0 povo christão dizer agora d’aquelles bis­
lar; sustenta admiravelmente a sua estabi­ pos que, antepondo a condição dos subditos
lidade e o seu florescimento, como aconte­ do governo á preclara qualidade de prin­
ce n’aquellcs reinos em que se observa, cipes da Igreja, annuissem aos ambiciosos
por inviolável principio de direito, uma tal excessos, e irreligiosidades do poder secu­
distineção. lar «pedrisam, v. gr., rainhisam, govenii-
Se o poder da Igreja dimana de Deus (9 sam, não crémos n elles, porque não evan-
que nenhum bom christão duvida), poderá gelisam.»
clle deixar de produzir bens a quem 0 re­ E eis ahi, na invasão e confusão dos po­
conhece, e se lhe submelte, sendo, como c, deres ecclesiastico e civil, um dos maiores
certo que infallivelmente merecerá as bên­ males contra a religião; e não menos gra­
çãos do Altíssimo todo aquello que procu­ ve contra a boa ordem e tranquillidade da
ra cumprir a sua divina vontade? Igreja, que talvez contra a do proprio es­
Se 0 soberano deseja experimentar as tado.
vantagens da religião, não deverá ser 0
primeiro a crér n’ella, c a honral-a? Ou
terá a simplicidade de pcrsuadir-sejle que § III
vendo os subditos que clle a não_ res­
peita como instituição divina, deixarão de
seguir 0 seii exemplo, e continuarão a fa­ Placuit nobis: assim nos agradou. (Act.,
zer caso d’aquellas doutrinas da mesma cap. 15, v. 25.) Tal é a magestade da sobe­
religião, que os obrigam a obedecer ás rania com que a Igreja na pessoa do prin­
authoridades constituídas? cipe dos apostolos, S. Pedro, e de seus com­
Quando 0 soberano temporal acredita na panheiros no sagrado ministerio, reunidos
religião d’uma authoridade divina, como em assembléia, profere 0 seu juizo sobre
pdderá elle pretender que .ella seja sujeita as sublevações que faziam 0 objecto da re­
á sua humana? união.
IGR 537
A Igreja não vai supplicante pedir a remos, sim, dous estados, mas de differen­
aulhorisação do poder secular, nem mes­ te genero; cada um dos quaes tem seus li­
m o consultar o seu voto sobre os assum­ mites, que não póde ultrapassar sem offen­
ptos religiosos que alli se discutiam: cila sa do Creador, c sem transgressão dos mais
lirma-sc na propria authoridade, robuste- sagrados direitos da religião e da humani­
cida com o inlluxo do divino espirito que dade: estados estes ou poderes, que longe
lhe dieta os conceitos—porque, diz cila, as­ de sc hostilisarem c destruírem, antes ad­
sim pareceu ao Espirito Sancto, c a nós: miravelmente se coadjuvam e sustentam.
visum est enim Spiritui Sancto, cl nobis Além de que, tão longe está a Igreja de
<v. 28.) poder ser comprchendida no referido sys­
E tractava-se de objectos muito visiveis tema collcgial dos protestantes c seus se-
c corporeos, como eram cousas de que se­ quazes, quanto que , cila tc universal, não
ria ou não seria licito alimentar os corpos; reconhecendo n’estc munclo outros limites
pois que a Igreja é visivel, c visivel, como territoriaes que os do orbe terráqueo, de­
já foi notado, é também necessariamente o pois que Jesus Christo dissera a seus apos­
seu governo e administração; não podendo tolos:
dar-se maior absurdo que aqucllc dos que «Foi-me dado todo o poder no céo e na
suppozeram que á Igreja só pertencia o terra: ide portanto, instrui todas as gentes,
regimen dos espíritos; bem como não ha­ baplisando-as em nome do Padre, do Filho
vería cousa mais estulta do que dizer-se e do Espirito Sancto, ensinando-lhes a ob­
que só nos corpos imperam as leis civis. servar tudo aquillo que vos ordenei.»
Mas não é só que o governo da Igreja Demais, o collegio no sentido dos pro­
verse também sobre cousas visiveis, abran­ testantes, em que aqui é tomada a palavra,
gendo assim os corpos c os espíritos, é da limitar-se-ia a uma cidade ou provincia, c
mesma sorte evidente que o seu governo, quando muito a um reino ou império, para
tanto sobre os objectos corporacs como es- poder dar-se a protestantes sujeição ao so­
pirituaes, não. está na razão de collegio, berano: mas a indole da Igreja não soffre
porém sim na razão de republica, ou me­ a eslreiteza dos logarcs c dos territórios;
lhor annunciado, de monarchia, distincta ella abrange no seu direito todos os povos
da civil, com poder governativo, jury pro­ e todos os paizes do universo.
prio et summo. O collegio não póde constituir-se c jun­
O systema collcgial ou de sociedade igual, tar-se sem authorisação do poder civil;
de que alguns protestantes quizeram ulti­ mas a Igreja é constituída e confirmada,
mamente derivar os chamados por elles di­ apesar mesmo e contra a vontade dos so­
reitos collegiaes e os magestaticos, atlri- beranos ou governos temporaes, devendo
buindo aquclles á Igreja como a collegio primeiro obedccer-sc a Deus que aos ho­
igual, c estes, aos principes como a patro­ mens.
nos dos collcgios c associações que estão O collegio dissolvc-sc quando occorram
em seus territórios, é outro não menor ab­ circumstandas pelas quaes se julgue con­
surdo. veniente a dissolução: mas a Igreja cm ne­
Para sustental-o disseram os protestan­ nhumas circumstandas, nem as mais dif-
tes, que tendo a Igreja nascido depois de ficcis ou imperiosas, deve ser dissolvida ou
formadas as cidades e constituídos os go­ aniquilada.
vernos, cujo imperio é supremo, seguia-se Nem com a razão dos collegios da ideia
que d’alli devia depender a mesma Igreja, protestante sc deve confundir a razão das
e que por isso não podia ter' outra consi­ nacionalidades, em cujo sentido se diz mui­
deração mais que a do collegio, para que tas vezes: v. g. igreja lusitana, igreja hes-
não hajam na mesma sociedade dous sum­ panhola, igreja gallicana, etc., ou a dos di­
mos impérios—status in statu, d’onde re­ versos ritos cèremoniaes porque se distin­
sultaria uma grande confusão de cousas c guem algumas porções do catholico reba­
a maior perturbação no regimen público: nho, como igreja moronita, igreja cophta,
contra o que, disse Montesquieu (que não igreja armenia, etc., porque tudo isto são
m e parece ser uma authoridade suspeita) partes da inesma unica Igreja, ligadas a
no seu Espirito das leis, linh. 28, cap. 41, cila pelos vínculos de doutrina, sujeição e
que a jurisdicção ecclesiastica desnervára respectivos direitos e obrigações, que as
o poder dos senhores feudaes, e contribuira unem todas em um só corpo moral, e de­
com isto a dar força á authoridade real. baixo de um unico chefe supremo, que é
E na verdade sendo tão diversos os meios o bispo de Roma: são como provincias do
de que se servem, e os fins especiaes a que grande e indivisivel imperio da Igreja uni­
propoem estes dous summos poderes, te­ versal.
538 IGR
Aos protestantes do systema collcgial, tanto a destruir o poder civil, que está na
que procuram destruir por este modo o natureza do homem social?
independente e supremo poder espiritual Os dous poderes, diz Loyseau, proceden­
da Igreja, se aproximam aquelles que, ado­ tes do mesmo principio, que é Deus de
ptando as ideiãs de Mornay e Eybcl, con- quem vem todo o poder, e tendentes ao
demnados em Roma, o primeiro por de­ mesmo fim, que c a felicidade, devera ter
creto de 16 de março de 1621, o segundo uma mutua correspondência. Placido ac-
por decretos de 16 de fevereiro de 1784 c cresccnta que os dous poderes, por isso
28 de novembro de 1786, querem lambem que dimanam immcdiatamenle de Deus
esbulhal-a do poder temporal, que para uti­ teem cada um em si mesmo a suprema aii-
lidade da mesma Igreja c sua religião, exer­ thoridade, que convém á sua instituição e
cem os summos pontifices nos estados ro­ ao seu fim: escrevendo Domat na sua lei
manos. civil, que fôra Deus, na ordem espiritual
jNão se dá contradicção alguma com os da religião, que estabelecera o ministerio
princípios do Christianismo, ou inconve­ do poder ecclesiastico: que é ellc que na
niente contra o bem da religião em que a ordem temporal da politica faz reinar o s
mesma pessoa exerça simultaneamente um reis c dá aos soberanos tudo o que cllcs
e outro summo poder, se não lhe falta a teem de poder e d’authoridade; d’onde pro­
legitima e necessaria habilitação, antes me­ vém que a religião e a politica, não tendo
lhor c mais completa correspondência po­ outro principio mais que este commum da
de então dar-se entre os dous summos im­ divina ordenação, devem accordar-se, e
périos crcados pelo mesmo author divino, mutuamente suster-sc; que os mesmos po­
e para o mesmo fim de commum interesse deres são distinctos n o 'seu ministerio, uni­
dos homens, por quem e sobre quem são dos no seu fim commum de manter a or­
• exercidos. dem o reciprocamente soccorrer-se: por
Dedicarei um artigo especial a este as­ que, segundo também Bouchel, se estes
sumpto, visto que relativamente ao mesmo dous poderes, espiritual e temporal, conhe­
apparecem na imprensa (religiosa!) opi­ cem um mesmo principio, que é Deus, não
niões com que não posso nem devo confor- podem deixar de ter uma mesma corres­
mar-mc. pondência.
Proseguindo pois no discurso sobre a Deveremos porém ter cautela cm não
distineção e independencia dos dçus pode­ confundir de modo algum a sanclidade
res politico e religioso, como vinha dizendo das instituições divinas com a pravidade
na precedente parte d’este mesmo artigo, das acções humanas.
repetirei que similhante distineção e inde­
pendencia não só não é prejudicial ao bom
governo do estado, mas até auxilia mui­ § IV
tíssimo pela unidade de principio d’um e
outro, e pelo commum interesse dos res­
pectivos fins. Se a distineção e a independencia do»
Deus c unico, c as suas obras, posto que dous poderes, ecclesiastico e civil, não fòr
em si distinctas, tendem todas á unidade: vigorosamente repcllida, exclamarão os
e se ellc, como se lé na Escriptura, tem 'politicos e os regalistas no assombro de
creado tudo para si, e se as suas obras, suas apprehensões, vér-se-ha no estado
como igualmentc está cscripto, são perfei­ uma monstruosidade ou uma utopia, uni
tas e ordenadas, qual outro fim poderão systema impossível ou anarchico, imperio
ter os dous poderes que não seja o proprio in impetio...
Deus? Perdão, apprehensiveis senhores: parc-
Logo, como deixaria o mesmo omnipo- ce-mc que ha toda a razão para estarem a
tente Deus, quando instituiu os dous pode­ tal respeito mais tranquillos; as monstruo­
res, de dar-lhes tal perfeição e tal ordem, sidades e as anarchias não teem appare-
que longe de mutuamente se offenderem, cido na sociedade senão quando a immo-
antes mais depressa servisse cada um á ralidade e as revoluções, mais ou menos
solidez, ao esplendor, e á benefica influen­ subtis, mais ou menos brutaes, teem inva­
cia do outro? dido os thronos e transtornado a ordem pü-
Se Deus é o author da graça, e por isso blica, apoderando-se o mais.forte d’aquiIIo
também o do sacerdócio, produziría ou que lhe não pertence.
querería elle obrar sobre este objecto de Quando os governos e os governados se
uma maneira conducente a destruir a na­ conteem cada um nos seus limites e cum­
tureza de que também é o creador, e por­ prem com os respectivos deveres, quando
IGR 539
a sociedade civil se não aclia fóra do seu nham tornado facciosos, rebeldes c obsti­
estado normal, c melhor ainda se além nados, porque tudo se reduzirá a rcbejliôes
d’isso ella se adianta no progresso da mo­ c a sediciosos tramas quando a aulhorida-
ral e da justiça, do ulil e honesto, haverão dc da religião seja aniquilada.
sim dous governos distinctos c independen­ Como fizeram os hereges valdenscs, os al-
tes na mesma sociedade, composta da mes­ bigenscs, os lulheranos, os calvinistas e ou­
ma gente, porém limitados por natureza tros, assim teem feito os modernos incré­
propria, um ao regimen religioso c o ou­ dulos c todos os filiados na maronuria, que
tro ao público c civil, sem que pela sua in­ emquanto còm uma mão procuram des­
dependência c liberdade se hostilisem ou truir o altar, com a outra se esforçam por
destruam um ao outro, antes mutuamente derribar os thronos; attribuindo á ignorân­
se corresponderão, seguindo sempre uma cia, diz-nos Ilolbach no systema da natu­
marcha de paz e de concordia. reza, todo o fundamento das authoridades,
Então veremos, não um império a sub­ debaixo das quaes tem gemido, segundo
jugar ou a destruir um outro imperio, mas elles, tão longo tempo o genero humano.
pelo contrario, imperium pro imperio, um E não só é evidente que a communidade
governo auxiliando outro: pois que, se pela do principio e dos interesses obriga os dous
unidade de seu principio se propoem estes povos á mais perfeita concordia, mas a lei
dous poderes, ecclesiastico e politico, a um, mesmo divina lhes impõe o sagrado dever
penso que por ambos desejado fim, qual é d’uma reciproca protecção.
a felicidade temporal e a eterna do genero Por isso cantava o rei propheta no cen­
humano: será cousa naturalissima que os tesimo quarto de seus psalmos, como cousa
proprios interesses communs dos mesmos ordenada por Deus—que não se tocasse
dous poderes ou estados os movam e obri­ nos ungidos do Senhor, bem certo dos cas­
guem a obrar concordes, posto que entre tigos que Saul tinha merecido por haver
si distinctos. posto sacrilegas mãos sobre os sacerdotes.
Se não se duvida que a religião seja um A vontade divina c igualmente bem ex­
sustentaculo do estado, porque quando ella pressa por toda a sagrada Escriptura, onde
íloresce, floresce também a propriedade são a cada passo encontrados preceitos, que
nacional, se não é menos certo que, quan­ obrigam a não confundir-se, mas a respei­
do o estado é dirigido por sabias leis, quan­ tar-se de contínuo entre si os dous pode­
do é limpo de crimes, quando progride n% res; ordenando-sc alli particularmente no
boa ordem e gosa tranquillidade durável, livro de Zacharias—que cobrisse de gloria,
floresce então melhor a religião, será tam­ e se sentasse c dominasse sobre o seu thro­
bém uma verdade incontestável que o re­ no o principe temporal, emquanto que o
ciproco interesse dos dous- poderes deva sacerdote estava sentado igualmente so­
obrigal-os a cooperar concordcmente para bre o seu throno; que entre os dous hou­
o bem temporal e eterno dos seus subditos. vesse um conselho de paz, isto é, de per­
Além de que, existe uma lei primitiva, feita concordia e reciproca protecção: do
como discorre Pey (authoridade dos dous mesmo modo que na lei nova entendeu S.
poderes), que nos manda ohedecer áquel- Leão papa, quando escrevia ao imperador,
les que Deus tem estabelecido sobre nós também Leão: «Tu deves reflectir attenta-
etiam dyscolis, accrescenta a lei da graça; mente que o regio poder tc foi dado por
c se essa lei, que não é menos sagrada Deus não só para regular o mundo, mas
quando manda obedecer aos pastores do principalmente para defender a Igreja*: ao
que quando manda obedecer aos princi­ passo que por outro lado lá está o principe
pes, pôde ser despresada c transgredida dos apostolos ajudando a sustentar o poder
n’aquella parte, na qual submette as ove­ civil quando na sua primeira epistola en­
lhas ao pastor, com que direito deverá ser sina aos fieis a temer a Deus, a respeitar
ella respeitada e cumprida somente na o soberano e seus ministros, a honrar o
submissão ao principe? proximo, estreitando com elle os vinculos
Se ha direito para não obedecer quanto d’uma perfeita fraternidade: subjecti igitur
áquella, porque não haverá igual direito estote, diz elle... propter Deum: sive regi,
para desobedecer quanto a esta? quasi pmcellenti, sive ducibus, tanquam
Eis ahi porque as seitas hereticas. tendo abeo missis... omnes honorate: fralernita-
sacudido a authoridade da Igreja, se revol­ tem diligite, Deum timete, regum honorifi­
taram também contra a do estado: depois cate.
do que, não admira, como observa o illus­ Ora será este o imperium in imperio que
tro Bossuet, que os povos tenham perdido tanto tem aflcctado as apprehensues dos
o respeito á magestade c ás leis, e se te­ politicos, dos rcgalistas e dos revoluciona-
m IGR
rios de todos os tempos e de todos os cu­ São homens odiosos a Deus, c os so­
nhos, até ao ponto de se mostrarem per­ beranos devem ler por inimigos do estado
suadidos de que lá iam todos engolidos taes maledicos c revolucionários, que assim
pefo modesto, pacifico e paternal governo procuram calcar os direitos, c quebrar as
da Igreja? boas relações dos dous poderes; são mir-
rhadas ou séccas accendalhas, que ateiam
o fogo da discordia entre o sacerdócio e o
V império, fingindo querer sustentar com
grande zelo os interesses do throno, c de­
sejar ardcnlemente o esplendor da sobera­
Embora se diga com o erudito Grócio— nia temporal pelo abatimento da authori-
que na lei natural os paes de familia eram dade da Igreja; mas que na realidade não
ao mesmo tempo também sacerdotes; e que querem senão deprimir arnbos os poderes
havendo transferido ao soberano, que c e fazer cahir um sobre as ruinas do outro,
como pac de toda a nação, a secular au- como a experiência de todos os tempos,
thoridade, com cila lhe transferiram igual- principalmentc das épocas mais recentes,
mente o poder espiritual—que sem ques­ o tem mostrado.
tionar como isso fosse no Estado primitivo Não deixam igualmente de promover a
do genero humano, ó certo que nem assim escravidão da Igreja todos aquellcs que
foi na lei escripta em que Deus escolheu sem o consenso, ou contra vontade da m es­
para o sagrado ministerio a tribu de Levi, ma sancta igreja, chamam ao exame dos
determinando que o sacerdócio ficasse he­ tribunaos seculares as letras apostólicas,
reditario na familia de Aarào; nem foi tam­ para que possam ser dadas á execução.
bém assim na lei da graça, na qual os sa­ E aqui observarei a meus leitores quanto
cerdotes instituídos, segundo a ordem de c perigosa a leitura de maus livros como
Melchisedech, foram, conforme a própria aquellcs que mc induziram no tempo da
vocação, tomados de entre todas as gentes frequência acadêmica de Coimbra a avan­
para‘serem revestidos pelo Omnipotcnte da çar proposições, que boje desapprovo, não
mais alta dignidade. por espirito*de versatilidade, mas por inti­
Comtudo os inimigos da independcncia ma convicção a que o estudo por melho­
o soberania sacerdotal não se poupam a es­ res livros, a reflexão mais séria c a provei-
forços para derribal-a por meio da sujeição .tosa experiência do mundo me teem con­
em que pretendem que ella deva estar de­ duzido.
pendente sempre do poder temporal. Tributo á Universidade os maiores res-*
Lamentam as desordens que teem occor- peitos: bebi n’aquellc manancial perenne
rido por causa da distineção dos dous po­ das sciencias; mas rejeito as aguas amar-
deres, mas não se lembram que pela maior gosas que por entre as doces também alli
parte não sc teriam ellas realisado, se a pro­ se infiltram: porque as obras d’alguns au-
tecção do poder temporal, devida á Igreja, thores, assim nacionacs como estrangeiros,
sc não houvera muitas vezes convertido em alli adoptadas, até são prohibidas por sc
opprossão; porque a ideia de equilíbrio de acharem condemnadas pela sagrada con­
poderes não lhes agrada senão para mas­ gregação do Index expurgatorio: sem fal­
carar certas imposturas com que teem pre­ lar dos expositores, que alli tem mais voga,
tendido enganar os povos. dos quaes uma parte está experimentando
;Esqucccm-se da perenne cíTusão de­ a mesma triste sorte.
bens, que da perfeita distineção c equilíbrio Mas voltemos ao assumpto.
éos dous poderes ecclesiastico e civil, teem Se á Igreja não pertence a nomeação dos
resultado a favor da humanidade, para se empregados civis, também não compete ao
recordarem só de alguns escândalos que poder secular o provimento dos ecclesias­
das _suas dissençpes ou faltas de equilíbrio ticos de qualquer qualidade ou cathcgoria
tenham alguma vez nascido. que sejam.
Essa parcialidade accusa de menos jus­ Eóra da concessão da Igreja c concorda­
tos os sectários da confusão dos dous po­ tas em vigor, tudo ò que vai contra a re­
deres, que se prevalecem de taes argumen­ ferida regra será invasão de poder, ao que
tos; scudo mesmo o ethnico Cicero quem se aproximam não pouco certas insinua­
no livro 3.° De Legib. lhes dá uma lição, ções, que os governos fazem algumas vezes
condemnando como iniquos aquellcs ho­ aos cabidos serie vacante para que noincicm
mens que em qualquer proposto assumpto tal ou qual individuo para seu vigário ca­
enumeram só os males sem calcular os pitular. _
bens que d’ahi podem ou devem resultar. Similhantcs recommendaçõcs sao quast
IGR 841
decretos attentatorios, pelo menos indire- Querem os meus leitores, querem os so- '
ctainente, da liberdade necessaria para dar- beranos mesmo e seus governos saber o
se verdadeira-eleição: c quando por urna que são esses reyalistas, esses politico-ca-
bem entendida deferência se deva annuir noni por interessar, que fingem advogar a
ao desejo do soberano, no que eu concordo causa dos reis, para esconder debaixo da-
se a pessoa indicada é digna, igual prá- quclla mascara o odio contra a Igreja, c o
ctica deve ser permitlida aos cabidos de desejo dc engrandecer-se por meio da adu-
proporem também alguma vez aos gover­ lação? Lancem os olhos sobre as modernas
nos a nomeação de pessoa que lhes conve­ revoluções da Europa, c admirem alli a
nha para seu bispo, onde por concordatae firmeza, reclidão c elevação de caracter de
concessão pontificia competir ao poder se-’ taes publicistas: quando chegaram os tem­
cular uma tal nomeação. pos difficcis c dc prova, quando os reis fo­
Erigir ou supprimir bispados ou paro­ ram precipitados dos thronos, acharam-se
chias, limitar as ordenações dos clérigos, aquclles seus falsos amigos bem cordeal
bem como regular-lhes as suas habilitações c pronunciadamente do lado dos revolucio­
scicntificas, o que só compete aos bispos, nários, dc maneira que a justiça dos pro­
restringir ou embaraçar a liberdade dos prios imperantes, que poderam* reassumir
votos monasticos ou annullal-os, prohibir o o poder, se viu depois obrigada a conde- -
recurso á sé apostólica sem previa autho- mnar á merecida pena taesanarchistas: ao
risação laical, arrogar-se poder e jurisdic- passo que dos verdadeiramente adherentes
ção sobre as pessoas c cousas positiva c lc- á Igreja, e respeitadores da sua plena au-
galmentc constituídas debaixo do poder e thoridade, nenhum vacillou na occasião da
dominio da Igreja, pelo que diz respeito a tormenta, ficando firmes na fidelidade a
esta qualidade, são altentados contra a li­ seus respectivos soberanos.
berdade, independência e immunidade ec­ Desejo toda a imparcialidade sobre esto
clesiastica, oíTcnsivos não só dos proscri­ assumpto: a Deus o que é dcDeus, e a Cé­
ptos nos sagrados cânones, mas até mesmo sar o que é de César. Assim como é justo
no disposto por ordenação divina. que os governos façam uso de todos os
E se é proprio ao poder civil dispor co­ meios que, comprehéndidos na sua orbita,
mo lhe convier a sua. policia externa, tam­ podem conduzir os homens á paz e pros­
bém se não póde negar que a Igreja tenha peridade temporal, assim também é indis­
todo o direito de regular soberanamente a pensável que o episcopado, especialmente,
sua exterior disciplina: devendo igualmcn- e em geral todo o clero, se convençam c pos­
te rcpular-se por abusivo e contrario ás suam bem dh importância dos seus direitos
prcscripçõcs da mesma sancta igreja o re­ e obrigações, para que sem excesso nem
curso interposto sobre pendências ou cou­ diminuição, mas com animo pacifico, a quo
sas divinas c sagradas para os tribunaes não falte a coragem e a perseverança, usan­
seculares, aos quacs só compele julgar do do dc todos aquclles expedientes que lhes
que é mero, temporal, mundano e transitorio. são permittidos, cheguem a bem cumprir a
Legislar, v. g., sobre a administração dos missão dò amor e caridade dc que foram di-
sacramentos c disciplina, que nada teem vinamente encarregados, e de que, não me­
com a ordem civil, como ha pouco se viu em nos que o poder temporal na sua esphe-
Lisboa, c não muito antes na Sardenha; e ra, haverão dc dar estreitas contas perante,
lançar mão das cousas e bens da Igreja, aqucllo que é rei dos reis c senhor dos se­
como por ahi se tem desgraçadamente fei­ nhores: redde rationem villicationisJuce, di­
to, c continua fazendo, sao invasões, rabi­ rá Jesus Christo na sua volta.
nas c escândalos que todo o bom christão Por aqui terminarei hoje o capitulo pre­
abomina, e a que o céo não póde, cedo ou sente, deixando a melhores pennas e mais
tarde, ser indiíferento. Se não se teem visto felizes engenhos o muito que póde ainda
agora castigos promptos como os dc Oza, dizcr-sc no assumpto, c que cscripto em
Balthazar c Helliodoro, não fiar na tardan- variado, ou mais nobre estylo, deverá cer-
ça: acautelar a tempo, porque a providen­ tamento ser mais grato a todos os leitores.
cia de Deus 1não falha nas suas divinas e
imprescrutaveis disposições.
A expericncia é a grande mestra da vi­ VI
da; o eila nos tem ensinado quo assim co­
mo não é na prosperidade que se conhece
o amigo, assim também não deixa o inimi A esphcra da acção de qualquer autbo-
go de mostrar o que é no tempo da adver ridade, bem como as relações entre autho-
sidade. ridades diversas, que governem os mes-

i
542 IGR
mos individuos cm varias ordens, não to­ ordem moral, contida material mente na
lhem a cada authoridade a justa indepen­ ordem, pela força c pelo interesse. Temos
dência na sua propria ordem. Será op­ (Visto provas historicas, relativamcnle a
portuno fazer applicação d’este principio todas as sociedades pagãs, nas quacs ha a
âquellas duas sociedades, eutre as quacs propor que se iam esquecendo as tradi­
occorrcm com mais frequência collisões, c ções priinittivas de natural honradez, que
são mais contrastados os lctigios: quere­ ainda hoje admiramos nos Fabricios, nos
mos dizer as sociedades espiritual c civil, Curtos, nos Cincinatus, c nos Regulos, se
guiadas pelas'suas respectivas authorida- cabia iio despotismo dos Césares, c no ser­
dcs. Mas para que n’cstas applicacões bri­ vilismo dos senados, intercalados com as
lhe toda a evidencia, é necessário dar uma conjurações c os punhaes, que levavam a
ideia clara do (pio se entende por socieda­ sociedade, cansada dc um primeiro tvran-
de, authoridade. e ordem espiritual, a fim no, a submettcr-sc a outro.
de não cahir no erro dc julgar espiritual Tal seria a natural condicão da socie­
unicamente o que c espirito, bem como os dade humana, se fosse abandonada á direc­
falsos politicos attribuem á ordem tempo­ ção d’csta natureza corrompida.
ral tudo o que é materia. Estabeleçamos, Nem uma tal degradação nos deve cau­
portanto, primeiro com princípios natu- sar admiração, ou parecer-nos que d’ella
raes. a ideia de sociedade espiritual, e da resulte dosdouro ao Crcador. Tinha clle
ordem que n’cl!a se deve manter, por meio destinado o homem para uma condição
da authoridade espiritual. muito mais sublime do que aquclla a que
Se a authoridade alcança a meta, c dá se poderia ter elevado só com suas pro­
leis conformes áquella verdade c justiça, prias forças, e para isso o havia dotado, no
que são o principio de ordem para a natu­ acto de sua creaçào, com a graça sanctifi­
reza racional, então as leis achando n’essa cante, para o tornar, por meio d’cssc dom,
natureza um eceo espantoso, um estimulo capaz de subir á altura do seu destino.
de consciência, uma saneção de remorso, Mas rcpellindo o homem esta graça com
obteem ordinariamente o concurso da plu­ a culpa, todas as suas propriedades, os
ralidade dos súbditos, não sendo possível seus attributos, a sua condição, e as suas
que a pluralidade proceda em opposiçào operações sentiram a desgraça da sua de­
da natureza. Pelo contrario se as leis, sanc- gradação.
cionadas pela authoridade, não são confor­ Eclipsado o entendimento, vacillante o
mes ás relações reaes, e aos direitos que raciocínio, fraca a vontade, enfermo o cor­
d’ella derivam (no que consiste a verdade po, irritáveis as paixões, equivocas c in­
c a justiça, a que a authoridade deve con­ certas as sciencias, incautas as delibera­
formarão); então as leis, oppondo-sc a es­ ções, improvidos os conselhos, n’uma pala­
sas relações reaes, em logar de as corro­ vra, alterado tudo no homem intellectual,
borar, ou não obteem que sejam executa­ moral, e corporeo. Que admiração é que
das, ou augmenta, com sua execução, a se ache na mesma condição o homem so­
desordem da sociedade. cial? Que admiração, que, por consequên­
Desd,e que a natureza humana ficou su­ cia, a sociedade (los homens descabidos,
jeita ao estrago que n'ella introduziu a venha sempre a reduzir-se, á cxcepçào de
culpa de Adão, o entendimento enfraque­ alguns lucidos intervallos brevissimos, a
cido pelo predomínio dos sentidos, foi ou- um déspota que opprime, a escravos que
trosim hostilisado, e as mais das vezes il- se aviltam, a aviltados que se revoltam?
ludido pela tyrannia das paixões, sempre A Providencia, porém, não quiz abandonar
que teve de decidir-se sobre a orcíem prá- o genero humano; de tal modo cnvilccido,
ctica dc qualquer objecto. Emquanto se antes quiz realçal-o á graça, por meio da
tracta de especularão, ou de cousas mate- redempção, c applicar a redempção a cada
riaes, o erro ó menos seductor; mas quan­ um dos* homens, chamando cada um ü’cl*
do o entendimento deve formar um juí­ les, cm particular, a uma universal (ca­
zo, a execução do qual possa na práctica tholica) sociedade, na qual, e por meio
incommodar o proprio juiz, então a re­ da qual se perpetuasse, tradicionalmen­
pugnância do incommodo torna plausível te, aquella sublimidade dc entendimento,
qualquer sophisma contrario, c obscurece, aquclla sanctidadc dc vontade com fjue a
por essa fórma, as verdades mais eviden­ sociedade humana tornava á elevação de
tes. É porque a sociedade humana, guia­ sua primitiva dignidade, o a authoridade
da simplesmente pela authoridade, as mais fundada na verdade c na justiça com que
das vezes não nos apresenta outra cousa se deve coordenar a multidão dos sogeitos,
no paganismo, senão uma universal des­ póde prender rcctamente a seus deveres, e
IGU 543

•conformando as leis ás verdades das rela­ principe estará seguro no que commanda,
ções humanas, promover entre clles a feli­ os subditos livres na obediência, c não será
cidade exterior, que vem a ser a liberdade esta uma justa ideia da felicidade social?
de toda a honesta separação. Tal foi o de­ E comludo aquolles legistas que herda­
sígnio da Providencia, que nós, fallando ram do inundo pagão a idolatria do estado,
como catholicos, assumimos como propo­ nao se envergonham de dizer algumas ve­
sição. zes dos christãos, aos catholicos que os go­
Existe, pois, no mundo christão, uma vernam: «Senhores, tende cuidado, vigiai
sociedade destinada pelo Crcador a con­ o senado, armem-se' os deputados contra
servar e explicar as normas da verdade e as insidias da Igreja! Es*a quer dividir o
da justiça, conforme ás quacs todos os que vosso reino, e quebrar-vos o sceptro.» São
governam devem estabelecer as leis. Um malvados ou mentecaptos os que assim
povo que faça parte dlcssa sociedade, póde faliam, pcis não vôem como a mão que
esperar o ter principes illuslrados e rectos detem o sceptro do reinante, nos limites da
que o governe; e esses principes poderão justiça, dotem iguahnente os punhaes dos
esperar súbditos aíTcctuosos c obedientes; conjurados ás portas dos paços reaes? não
c cm vez de ter por seu direito a omnipo- veem que pretendendo clles sustentar a
tencia do despotismo,,c por limites d’esse omnipotcncia dos Césares, como arbilros de
direito o punhal dos conjurados, terão o toda a justiça, manteem nos subditos a in­
poder moral de tudo que é justo, limitado dependência dos spartanos c dos calilinas,
unicamente pela impossibilidade do mal, livre de todo o dever!
que é reprovada por um oraculo infallivel. Foi portanto grande beneficio, ou soja
Eis ahi a alternativa cm que se acham para os povos ou para os depositarios do
actualmcnte collocadas as sociedades e os poder, a instituição da Igreja, guarda dos
governos, qualquer que seja a fôrma do princípios supreínos da verdade c da jus­
governo. tiça. Mas esta destinada ao fim d'instillar
Querem por acaso viver sem o freio de c promover entre os homens esses mesmos
lei alguma? princípios da verdade c da justiça, que ser­
Pódem fazel-o; mas lembre-se o princi­ vem de base a toda a ordem presente, e
pe, ou quem governa, que os subditos, se abrem ao caminho a felicidade eterna. Sc
não os refrearem, serão rebeldes; lcm- é sociedade de homens livres, claro está .
brem-se os subditos que o poder se não que necessita de uma aulhoridade que o
íôr refreado, será oppressor; lcmbrc-sc governe pelas mesmas razões, pelas quaes
toda a sociedade que se não quer anar- toda e qualquer sociedade necessita de um
chia, deve tolerar a tyrannia; se não quer principio de unidade. Portanto a Igreja tem
a tyrannia, deve tolerar a anarchia, sendo uma aulhoridade que deve conduzir os as­
essa necessariamente a condição de uma sociados ao fim a que é destinada, isto é,
sociedade, na qual o poder.e bs subditos ao conhecimento da verdade e. da justiça
abandonaram a lei da verdade e da justiça, moral, base de toda a ordem presente, c
ou perderam a ideia do que ella seja. Pelo de toda a esperança futura. jNT,cste intuito
contrario, quereis que na sociedade reine deve cila empregar os meios c tomar as
a ordem e a justiça, fundada sobre a ver­ medidas necessarias; à serie das quacs, se
dade, recta e universalmente reconhecida forem adoptadas a tal fim, se chama or­
pelós que governam, c pelos que são go­ dem da sociedade espiritual.
vernados; é necessário uma aulhoridade ' E a esta ordem devem conformar-se nas
infallivel, que vol-a manifeste, c que por­ acções que a cila pertencem todos que fa­
tanto. façaes parte d’aquella sociedade que zem parte de tal sociedade, ou sejam rei­
é unica, na qual a verdade não póde falsi- nantes ou subditos. ]S’isto não tem logar
ficar-se, nem a justiça desviar-se dos prin­ dillerença de opiniões; c mesmo os inimi­
cípios univorsaes. Aclmittidos estes princí­ gos da Igreja não ousariam dizer o con­
pios, quem governa se reconhecerá obri­ trario, a não ser que neguem o dogma
gado a que as leis sejam a ellcs adoptadas, christão; aliás estariam perfeilamente d’ac-
e os subditos sentirão a obrigação de ob­ cordo cómnosco. E qual seria aquclle, mes­
servar essas leis, por isso que dictadas, mo entre os libertinos, os legistas, os adu­
não pela vontade arbitraria do principe ou ladores dos principes, os inimigos da Igre­
do poder, mas por uma verdade e justiça ja, que ousasse pronunciar esta blasphe-
que d’ellc não dependa. Assim o principe mia: «Um príncipe não deve (jovernar con­
não terá por mestre o terror das conjura­ forme a justiça?» Bem pelo contrario, nin­
ções, e o povo obedecerá por uma razão guém tem declamado tanto sobre a obriga­
melhor que a dos carcereiros e algozes: o ção de governar justamente, copio actual-
544 IGR
mente declamam esses reformadores, que gal, a Hcspanha, etc., o governar a justiça
para esse mesmo fim querem reduzir os ou a justiça o governar Portugal, Ilcspa-
reis a reinar sem governar, e os advogados nha, etc., poderia acaso lembrar a alguém
a governar sem reinar, porque em todas o submeitcr a justiça ao arbitrio d’esses
as monarchias passadas, julgam vér a jus­ ou dc quacsqucr outros governos? Será ri­
tiça menoscabada c a verdade falsificada, diculo até suspcital-o.
c cuidam que nào ha já outra esperança Ora notai bem: a justiça por si mesma
que não seja o governo dos advogados. é um ente abstracto, que nào pódc fallar*
Todos portanto estão'(Yaccordo sobre este c por isso o instituidor do Christianismu
ponto, isto ê, que toca á justiça dictar as lhe deu um orgão visivcl, e capaz de sc
leis: c a unicà discrepância entre nós e expressar, que e a Igreja; bem como a na­
ellcs, consiste em que nós dizemos que o tureza deu á authoridade humana, ente
interprete da justiça é a Igreja, e ellcs a igualmente abstracto, um orgão visivcl, o
qualificam de enganadora, ambiciosa, c ty­ capaz de se expressar, que é soberano (ou
ranna. Mas vós, leitor catholico, nào que­ chefe supremo.) De maneira que, assim
rereis por certo admittir esta blasphcmja; como para conhecer o commando da au­
e direis comnosco que a norma d’um bom thoridade civil ouvimos o soberano, assim
governo, é a justiça; a norma da justiça, é também para conhecer os dictamcs da jus­
a Igreja, e a norma da Igreja, a authori- tiça, nós catholicos, interrogamos a Igreja,
dade que a governa, isto e, a que ordina­ e a sua voz equivale por consequência aos
riamente chamamos authoridade espiritual, dictamcs da mesma justiça.
não já porque seja possuída por um puro Ora substituindo a palavra igreja aos Jo­
espirito ou porque governe espíritos puros; gares do precedente argumento, em que
mas porque é enderessada a um fim espiri­ dissemos justiça, diremos assim como toca
tual, e por isso se chama ordem espiritual á justiça governar os diversos paizes, e
aquella serie de providencias, por meio nào estes a dictarem-lhc a luz; igualmente
das quaes ellc estabelece no inundo a luz dizer que a Igreja deve ser de um tal paiz,
da vòrdade, e o commando do que é justo; não é dizer, por exemplo, que Portugal a
llni este, como é evidente, perfeitamente governa, mas sim que a Igreja governa
espiritual, ainda quando se obtem por Portugal e outros paizes. Esta consequên­
\ meios materiaes. cia fará horror a esses legistas de que aci­
Partindo da ideia que demos dã socie­ ma falíamos, que não teem outra alguma
dade e authoridade espiritual, é faeil com- ideia dc ordem c de governo fóra da ma­
prehender as suas relações com a ordem terialidade do dominio civil; mas vós, que
pública, e resolver certos problemas, que tendes comprehendido que o governar si­
sc tornam escuros por confusão d’iàeias. gnifica manter a ordem entre os homens,
Disseram os legislas: e que esta ordem não é senão uma serie
«/1 Igreja está no- estado»; responderam d’acções capazes de conseguirem o objecto
os canonistas: «o estado está na Igreja»: e para que a mesma sociedade existe, e que
d’estes enunciados formaram syllogismos, o objecto da sociedade espiritual nào é se ­
entraram em polemicas, e passaram mes­ não o reino da justiça e da verdade, en­
mo algumas vezes até ás injurias e insul­ tendereis perfeitamente que, dizendo-se que
tos de pessoas, que talvez não entendiam toca á. Igreja governar cspiritualmentc Por­
o que diziam. tugal, Hcspanha, ou outro paiz, isto não
Para esclarecer a questão, deixemos de quer dizer que a Igreja deva n’csscs pai­
parle as phrases legislas, e fallemos da lin­ zes receber os impostos, armar exercitos,
guagem vulgar. e sentenciar sobre os haveres; quer uni­
Que vos parecería mais acertado, o di­ camente dizer, que quando a Igreja define
zer: a justiça é portugueza, hespanhola, uma cousa como verdadeira o justa, será
frapeeza ou ingleza; ou dizer, o portuguez, isso verdade e justiça em Portugal, na Hes-
o hespanhol, o franccz, devem ser justos. panha, ou em outro*qualquer paiz do mun­
• Persuado-me que hão hesitareis na res- do, c que portanto deverá practicar-se
osta: seria ridiculo dizer que a justiça aquella justiça' o acreditar-se aquella ver­
S eve ser d’este ou d’aquelle paiz. E por: dade cm todos os paizes, por quantos se
que seria issoridiculo? Porque a justiça é queiram considerar filhos c subditos da
perfeição da natureza humana, a qual se Igreja, sem que os governos dos respecti­
encontra e é o primeiro principio de ac­ vos paizes, possam invalidar a força das
ção nos homens de todos os paizes do quellas definições, ou d’aquellas determi­
inundo. , ' nações.
Ç se vos perguntassem se toca a Portu­ Eis ahi o que no sentido dos canonista-
IGR 545
quer dizer o «estado (seja Portugal, IIcs- Mas os outros ensinos teem por objecto
panha, ou qualquer outro paiz) está na directo o bem moral, como são as scien­
Igreja.» das metaphysicas c moraes, e estas são es-
Pelo contrario os jurisperitos fébronia- sencialmentè sobordinadas á authoridade
nos quando dizem a Igreja está no estado, da Igreja.
teem cm vista o territorio material, por Outros objectos, finalmente, podem diri­
clles attribuido ao principe, com todas as gir-se a ambos os fins, como as sciendas
pessoas c bens dos subditos, e com relação historicas e a litteratura, e estas devem ser
á Igreja, que dá ás pessoas existentes ^ e s­ sobordinadas a ambas as authoridades, es­
se territorio determinações relativas ao seu piritual e temporal.
bem espiritual. Dizem: «a Igreja está no N’esta, porém, como em outras occasiões
estado», c querem com isto significar: a similhantcs, póde nascer o caso de conllicto,
Igreja dispõe das pessoas c das cousas, que quando uma das authoridades ordene cou-
nós entregamos ao pleno arbitrio do poder sa que seja pela outra prohibida.
civil; c se não quizer ser por nós persegui­ Em tacs conllictos, qual das duas autho­
da, deve amoldar-se a explicar a justiça a ridades deverá prevalecer? Também dei­
nosso modo de cntcndcl-a. Ora, qual d es­ xamos isto á vossa propria decisão. Que
tas duas sentenças vos parece verdadeira? cousa é mais importante, que os estudos
Que o estado deva amoldar-sc á justiça, sejam dirigidos de inodo que não oíTendam
(o estado está na Igreja) ou que a justiça a justiça e a verdade na ordem moral, ou
deva ainoldar-sc ao estado (a Igreja está que se* conformem aos systemas de des-
no estado)?... ciplina exterior, determinados n’este ou
Façamos applicação dos princípios que n’aquelle regulamento? Sede vós mesmo
defendemos, a alguns dos problemas que juiz, ó leitor, que não nos fica dúvida d
tanto teem ultimamente servido de thema qual será a vossa sentença.
aos publicistas; por exemplo, ao matrimo­ Portanto, os conflictos*relativos ao ens
nio, c ao ensino, medindo os direitos em no se reduzem ao principio universal d»
raza do fim. todos os outros conllictos entre a authori-
Qual é o fim a que é dircctamentc desti­ dadde espiritual e a politica: sempre se es­
nado o matrimonio? Será á manutenção tará na alternativa, ou de conceder aos go­
da ordem externa, ou.á propagação do rei­ vernos que fabriquem a justiça a seu mo­
no da verdade c da justiça? do, o que será erigir em dogma o despo­
Ccrtamcnte a creança quando vier a ser tismo, ou conceder á justiça que vincule
adulto tefá parte na ordem pública exter­ os que governam, isto é, entre catholicos,
na, c poderá ser d’ella o defensor ou o in- obrigar o poder temporal a não violar as
fractor; mas quem acredita que o' homem leis da Igreja.
é destinado a uma bem-aventurança no ou­ Os legistas pouco escrupulosos em ma­
tro mundo, verá que os paes, se são ra- teria orthodoxa, podem resolver o proble­
soaveis, devem ter principalmente em vis­ ma d’oulra fórnia, dizendo que a Igreja não
ta o ultimo fim para que seus filhos foram é oraculo de verdade, e de justiça, ou que
crcados, e que para esse é que o Crcador esse oraculo não é infallivel, ou que se ó
quiz que os homens se multiplicassem so­ infallivel, não reside no corpo insinuante,
bre a terra. mas na universalidade dos fieis. .
E o fim do ensino qual é? Este erro e outros similhantcs, já con-
EUe tende por si mesmo a introduzir a demnados quando foram proclamados pe­
verdade nas mentes. Mas essa verdade é los protestantes c pelos jansenistas, pode­
necessariamente ulterior, pois que o ho­ rão ser reproduzidos para fazer parecer
mem na vida presente não procura saber menos contradictoria a tyranni a dos go­
senão porque deve operar. vernos que os adoptam, e que continuan­
Ha portanto verdades que são relativas do a dizer-se catholicos, recusam todavia
á ordem material, das quacs o ensino de­ obediência á Igreja. Mas quem reconhece
penderá por consequência da authoridade n’.ella como catholico a authoridade supre­
politica, se por quaesquer combinações ac- ma governativa da ordem moral, poderá
cidcntaes não tivessem alguma ligação com hem deixar á authoridade civil a plena in­
a ordem moral, como succedeu ao ensino dependência no exercício do poder, pelo
da mocidade, que é necessariamente ligado que respeita ás medidas que por sua na­
com a educaçao. tureza conduzem a manter externamen-
A taclica, a mathematica, a chimica, e tc inviolado todo o direito; mas quando se
a medicina, pertencem portanto ao poder tractar de conhecer esse direito nos prin­
temporal. cípios moraes de que clle depende, sem-
346 IGR
prc deverá dizer que a authoridadc civil tanto ellc se gloria de ter concedido aqucl-
deve governar conforme á justiça, c que la preciosíssima liberdade, de que se faz
não é justo o que sc oppòe ao ensino da prcsentcmcnle tanto alarde.
Igreja. E isso, como dissemos, é declarar-se
_ Passemos a outro exemplo d’uma ques­ abertamente tyranno c sacrilego.
tão, que sc resolve naturalmente pelas pre­ Se não sc chega a fazer similhante de­
cedentes doutrinas. A separação da Igreja, claração, a separação do estado da Igreja
do estado ê lambem presentemente um é um enigma incomprehensivel, ou antes
problema tempestuosissimo. Ora a que se um absurdo ridiculo para quem compre­
reduz este problema, á vista das doutrinas hende que governar os homens não é o
defendidas? Que pretendem os que que­ mesmo que possuir um campo ou um re­
rem separar o estado da Igreja? banho.
Na verdade, se os interrogardes, ou não Quereis separar o estado da Igreja? Bem
saberão o que querem, ou será forçoso re­ está: mas separai também o boticário do
conhecer que querem uma impiedade. Di­ medico, deixando a liberdade ao medico
zei, pois, senhores advogados, philosophos, de prescrever uma receita, e a liberdade
deputados, publicistas, ou quem quer que ao boticário de vos dar outro medicamen­
sois: que pedis vós, n’uma palavra, para to: separai o pedreiro do architecto, dei­
separar a Igreja do estado? Pretendeis vós xando a este a liberdade de dar o risco
que as acções do cidadão a quem o estado que bem lhe pareça, ficando porém igual­
governa, nunca sejam acções moraes? Que mente livre a cada pedreiro o executar ou­
nunca tenham .relação alguma com a con­ tro qualquer desenho.
sciência c com a justiça? Se por esse modo esperaes curar os en­
Mas uma tal pretenção seria absurda; fermos e fabricar bellos edifícios, então
seria como quem pretendesse que as ac­ comprehenderet que possaes também se­
ções livres do homem nunca lhe fossem parar o estado da Igreja, c esperar a edi­
moralmente imputadas. ficação do povo catholico sem um archite­
E demais, não seria isso de vossa pro­ cto que para ella dé o risco c direcção.
pria conveniência; ai de vós se os subdi­ Mas se isto é absurdo, seja agora um
tos não obedecessem por consciência! Onde protestante quem conclua' esta ultima ap-
acharieis tantos esbirros c algozes que bas­ plicação de nossas theorias sociaes.
tassem para assegurar a execução das leis? Aquellc de quem citamos a opinião, é o
Portanto, se as acções entram muitas ve­ professor de Berlim, Frederico Stahl, na
zes no dominio da consciência, como pre­ sua Historia da philosophia do direito, o
tendeis vós separar a Igreja do estado, no qual está longe de crêr o (Tendida a inde­
regulamento d’aquellas acções entre catho­ pendência do estado pela sua união com
licos, onde todos reconhecem na Igreja a a Igreja; «pelo contçario, diz ellc, dado o
mestra c directora das consciências! Eu só significado e o valor proprio, e independen­
vejo um unico meio de separação, e é que te do estado, a sua connexào com a Igre­
a Igreja se contente em dizer: «tal acção é ja, como diz Sancto Agostinho, é uma ver­
moral mente honesta, moralmente obrigató­ dade irrefragavel, que sempre se experi­
ria»; e vós por vossa parte vos contenteis mentou entre os povos christãos, e não é
em ordenar outras acções, ou como uteis impugnada nos nossos tempos senão por­
ou como externamentê necessarias para a que os povos não são tão vivamente pene­
observância do direito que a Igreja julgou trados da fé de Christo, pois que a separa­
moralmente obrigatorio. ção da Igreja do estado, que é hoje em dia
Mas se vier occasião em que a mesma uma palavra d'ordem, é unicamente ensi­
acção, que é moralmente prohibida pela nada por aquelles que, ou participam elles
Igreja, seja por vós ordenada, como exter­ mesmos d’essa falta de fé, ou não sabem
namente util, a separação se tornará im­ imaginar um estado do cousas diverso da-
possível, e o cidadão deverá escolher entre quclle que os circunda.
o honesto e o util, entre a Igreja e o esta­ Um governo catholico não póde cm ma­
do. Em taes occasiões, a que se reduzirá téria de religião c de consciência deixar
íinalmente a pretendida separação? de ouvir a Igreja, interprete infallivcl dos
O estado, dirá o cidadão: «Sem embargo princípios universaes de justiça, c de ver­
do que possa dizer-te em contrario, a tua dade, que dirigem toda a ordem moral: e
consciência obedece-me»: o que, como bem este dever é tão evidente, que não ha moi­
se vé, não é separação do estado da Igreja, tas consciências que .ousem negal-o aber-
mas sim tyrannia do estado sobre a Igreja tamenie; mas quando a eloquência do in­
o sobre as consciências, ás quaes no en­ teresso argumenta em um. coração fraco
IGR 347

contra a evidencia dc um principio, cobre- póde também o estado abusar do seu po­
so com o véo da fragilidade humana do der? Então do julgamento do estado appel-
superior, para sc evadir á evidencia da laremos nós para o tribunal da Igreja; e
•authoridade. isto na verdade seria muito mais tolerável,
«A Igreja... oh! Deus nos livre dc lhe mesmo segundo as doutrinas dus nossos re-
querer dosobedeceri mas a Igreja não é o generadores, os quaes para deduzir a ne­
papa, c muito menos o bispo, ou a uniào cessidade de separar os tres poderes não
nacional dos bispos; se a Igreja é infallivel cessam de exagerar o argumento tão sa­
quando declara a verdade, quantas vezes bido; é: «Sc o legislador, e juiz tiver ao
se engana um-bispo na applicacão d’ella? mesmo tempo a força executiva, não póde
E cm taes casos querereis vós tolher a um deixar de vir a ser tyranno.» Por quem
governo o que se concede ao ultimo dos sois, snrs. advogados, tende alguma cohc-
subditos: o appellar de um tribunal para rencia logica. Nós não admittimos esse
«outro?» principio, porque crémos que a consciência
Será muitíssimo razoavcl a difTieuldade, póde em muitos casos servir de contrapeso
sc 11’aquillo cm que assim o é não tivesse á força; mas vós, que desterrastes esta con­
já sido providenciada pela Igreja. E quan­ sciência entre os entes da razão no mundo
do é que esta sapiendssima mãe negou esse onthologieo, sede ao inonos cohercntcs com
recurso a seus íilhos? Do sacerdote sc póde vós mesmos, c já que o estado possue a
appellar para o bispo, do bispo para o seu forca, deixai o direito na mão da Igreja.
metropolitano; do synodo diocesano, para Assim poderiamos arrazoar com elles, se­
o synodo provincial; d^slo, para o núncio, gundo os seus princípios, mas não quere­
para o legado c para o pontifice; ba, se­ mos imital-os nas suas contra dieçoes, bas-
gundo varios casos previstos pelo direito lando-nos o ler demonstrado que da Igrejr
canonico, cinco ou seis graus ordinários se póde appellar para o estado, porque á
de appellaçào, sem fallar dos casos extra­ gum prelado póde abusar, e pela mesma r
ordinarios de que se póde recorrer a um zào sc poderia appellar do estado para
synodo ecumênico. Mas estes tribu na es, igreja.
dizeis vós, são sempre em substancia a Similhante argumento, que se póde assii
Igreja: e é justamente a Igreja que póde tão facilmente retorquir, mostra sulíieien
causar aggravo ao estado; portanto a ap- temente quanto seja frivolo e insubsistente.
pcllacão nao deve ser de um tribunal da Todavia não basta ainda, e se bem rellc-
Igreja para outro também seu, mas do tri­ ctirdes achareis ii'c!le mais alguma falha.
bunal ecclesiastico para o secular. «A Igreja, dizem os oppositorès, é infalli­
Então, não é já da pessoa do papa ou do vel, mas os prelados não; portanto não sc
bispo que queria appellar, como figuravas, esteja pelo que determinam os mesmos pre­
mas sim da propria Igreja. Ora, isto é di- lados.»
rectamcnte opposto ao que dizeis na vossa Quem falia d’estc modo, mostra ignorar
objcccão, c portanto colloca-vos cm con- os primeiros elementos dc direito, isto ó,
tradieção com vós mesmos: ó ao mesmo a natureza da authoridade. Authoridade e
tempo*contrario ao bom senso, c vos pòc infallibilidade são cousas diversas: a infal­
cm flagrante absurdo. Por quanto, o que libilidade deve ser crida pela sua intrinse­
quer dizer appellar da Igreja para o poder ca veracidade; a authoridade deve ser obe­
secular? Quer dizer appellar de um tribu­ decida pela necessidade da unidade social.
nal, que ex-ofjicio é mestre dc moral, e tem A infallibilidade é propria só da Igreja no
o direito de a manter, para um tribunal, ensino; a authoridade é propria de qual­
que ex-ofjicio ó d’ella discipulo c tem mil quer sociedade na esphera da sua compe­
incentivos dc interesse proprio para vio- tência.
lal-a. É em substancia, como se um gene­ Se pois se concede que a Igreja é uma
ral d'cxercito, condemnado em conselho sociedade visivel, governada por conse­
d c guerra por transgressão de arte mili­ quenda por uma authoridade (o que é in-
tar, appellasse para a revista d’cssa sen­ negavel nem alguém nega), deve-se con­
tença á camara ecclesiastica, ou ao tribu­ ceder a essa authoridade ao menos tanto
nal dc commercio. Demais, ha outra razão quanto sc cousente por sua natureza a qual­
que resolve debaixo de outro aspecto a quer outra authoridade social.
diíliculdade, e é que cila póde ser retor- Ora a authoridade. domestica, a authori­
quida, contra os que a propoem. dade civil, a authoridade politica nas suas
Vós appellacs da Igreja para o estado, proprias e respectivas competências, teem
porque na Igreja, dizeis vós, o prelado um tribunal supremo dc que se não póde
póde abusar do poder. Mas que? acaso não appellar: logo um tribunal supremo de que
*
548 IGR
sc não possa appellar, devo tambem existir sciência; é livre a obediência do povo, o o
na ordem espiritual. Esse argumento que commando do principe é ligado. Alas esta
usam contra a Igreja, voltai-o* contra os ligação nào provém nem do terror da in­
tribunacs civis, c conhecereis a sua palpá­ surreição nem da prepotência do cloro: di­
vel insubsistcncia. mana do supremo direito da verdade e da
«A Igreja, dizem elles, c infallivel; mas justiça, nas verdades moraes, em que é
o prelado pode abusar, e portanto pódeap- grande a difficuldade de eonhoeel-as só
pellar-se da Igreja para tribunal mais alio.» pela experienda, porque as paixões oITus-
Do mesmo modo dizemos nós: «a lei ci­ cam a razão, e a experiência chegaria mui­
vilmente é infallivel, mas os juizes podem to tarde a convencer-nos: foi necessario á
abusar na applieaçãó d’ella: portanto ne­ revelação que as manifestasse, uma socie­
nhuma sentença será sem appellação, por­ dade que conservasse a revelação, c uma
tanto do tribunal civil appellarcmos para authoridade que governasse essa sociedade.
o militar, do militar para o juízo commer- Por falta de similhanto authoridade an­
cial c d’este para o tribunal ecclesiastico. daram vagando nas trevas as sociedades
D'aqui se vê que o argumento que a ty- pagãs, entregando-sc alternativamente ao
íannia usa contra a Igreja, nào soíTrc nem despotismo, para sc defenderem da anar-
sombra de discussão: é um cumulo d’igno- chia, á anarchia contra o despotismo.
rancia c de incohercncias. Se a Igreja é .Não succede isto ao christào, pois que
uma sociedade espiritual tem um fim espi­ pode dizer que a justiça se deixou vér do
ritual: para conseguir este fim são neces­ céo, a verdade nasceu na terra, a anar­
sários meios proporcionados; para coorde­ chia foi enfreada pela authoridade, e o des­
nar esses meios e o uso que os homens de­ potismo pela justiça, até que a apostasia,
rem fazer d’ellcs, é necessaria uma autho- revoltando-se contra a tradição e contra a
idade; para que essa authoridadc possa revelação, tornou a tolher ao inundo a ideia
jbter ó seu fim, as suas determinações (co­ da unica verdade c unica justiça. D’então
mo de outra qualquer authoridade) devem por diante o povo tornou a rebcllar-se con­
nào ser examinadas c censuradas pelos tra a authoridade, o principe a desvineu-
subditos, mas obedecidas. Sc dependesse lar-so da justiça: rebcllando-se o principe
do subdito a força obrigatória do comman­ contra a authoYidade do papa, o povo, por
do, cessaria a authoridade, ficaria dissolvi­ seu turno, se revoltou contra a authorida­
da a unidade, abolida a sociedade. Portan­ de dos reis. Pertence agora a quem tem
to na ordem espiritual a authoridade é in­ còmprehcndido a historia do seu século,
dependente, c quando ella tem definitiva­ c a theoria da authoridade, decidir sc é
mente fallado, ou a sua definição deve ter- mais util aos principes o dominio da Igre­
se por justa, ou não temos norma alguma ja, ou se o da praça pública é mais util aos
com que. discernir a verdade e a justiça na povos, á submissão, a authoridade, ou á for­
crJem moral. ça; mais util á sociedade a união recipro­
Esta segunda posição do dilcmma expri­ ca entre os principes c o povo, por justiça
me a condição dos protestantes; os catholi­ c obediência,,ou a contenda entre o poder
cos se ateem á primeira. Os protestantes, das bayonnetas e o direito de insurreição;
não sabendo o que é verdadeiro e o que é decidir’ ern summa, sc é mais conveniente
justo, não acham outro argumento para in­ reverenciar a Igreja com os catholicos, ou
duzir o povo á obediência senão aguilhoal-o pizal-a aos pés com os protestantes.
pelo despotismo; nem outro argumento pa­ Ainda mal que desde mais de um sé­
ra induzir o principe a governar com jus­ culo, mesmo entre os catholicos, e algu­
tiça senão aguilhoal-o pelos systemas rc- mas vezes até entre catholicos sinceros,
resentativos ou com o terror do punhal mas iIludidos, muitos espíritos prcoecupa-
os rebeldes. Entre os catholicos, pelo con­ dos costumam reputar a Igreja como po­
trario, estando certos o principe e o povo tência usurpadora, o vêem abuso c super­
que a Igreja ê infallivel cm definir os prin­ stição em tudo o que cila practica, no que
cípios e aiithorisada a determinar a appli- mostram uma certa tendencia ao protes­
cação d’elles, recebem da mesma Igreja com tantismo.
reverencia as normas do que é verdadeiro Embebidos de taes sentimentos, c não
e justo; segundo essas normas dicta o prin­ achando a Igreja docil bastante para os ac-
cipe as leis, segundo essas normas o povo ceitar por seus mestres, tiveram de procu­
reconhece a justiça d’ellas e sente a obri­ rar outro ponto de apoio, e foi esse o ap­
gação de observaí-as. pellar da Igreja para o estado, da doutrina
D’csfe modo o povo obedece por con­ da verdade para a espada da força, c in­
sciência, e o principe commanda por con­ stituiram por essa forma o despotismo jan-
IGR «49
«cnista, primeiro passo para o protestan­ subditos c superiores formam um só todo
tismo, mascarado entre os catholicos. En­ nào por equilíbrio de contrastes, mas pela
tre os protestantes, o governo tem direito harmonia de sentimentos, de a Rectos e de
de dizer: «Eu sou o legitimo mestre em cooperações.
treligiào; portanto nfio deveis ter escrupulo Se isto é o maximo dos bens sociaes, um
de executar o que vos mando.» Entre os governo conforme á justiça, c uma justiça
•catholicos o estado apóstata diz: «Eu estou conforme aos oráculos da Igreja, sào 'o
separado da Igreja, e assim como a deixo bem supremo do uma sociedade, e a har­
•cm plenissima liberdade dò fazer as suas monia entre os dous poderes, espiritual e
Jeis espirituaes, do mesmo modo tenho di­ temporal, c o estado regular de todo o
reito de ser livre cm fazer as minhas tem- povo, no qual a verdade c a justiça conser­
poraes. Portanto obedecei sem escrupulo, vam os seus direitos, guiando os subditos
■o nào deixeis o clero invadir os meus di­ e a autlioridadc.
reitos.» Bem vedes, ó leitor, que o eíTeito
•é sempre o mesmo que manda, c quer
mandar sem freio.
Já se mostrou que é impossível em theo­ ALGUMAS DUVIDAS
ria que a Igreja, dirigindo o catholico, im­ A RESPEITO DA I.NDEPKNDK.NCIA DA IGREJA
peça o estado de guiar o cidadào: nào po-
deiido o estado ordenar ao cidadào scnào
dentro dos limites da verdade e da justiça,
•nem podendo a Igreja dictar ao càtholico Tçndo mostrado nos capítulos preceden­
scnào o que é verdadeiro c justo. Se na tes que a authoridade da Igreja é indepen-
práctica algum erro das pessoas pódc al­ tc, tractarem os agora, resumidamente, do
guma vez tornar escabrosa a applicaçào poder coactivo, elemento integrante, d'essa
das theorias, isto que acontece, c occorre- authoridade, demonstrando como clle per­
rá sempre quando sào os homens que ope­ tence á sociedade ecclesiastica, á qual c
ram, nào faz que seja falso o que temos seus adversarios o querem negar, qua*
«videntemente inferido da natureza do ho­ do ó certo que o referido direito lhe pi
mem c da sociedade. tenee, como fácil é de evidenciar. Pa
Em conclusào: fica demonstrado que a isso servir-nos-hemos de algumas prov;
sociedade'e authoridado catholica sào em tiradas da authoridade, fazendo omissa
todo o rigor uma necessidade para a au- das da razão, para pouparmos espaço.
thoridade civil, e um beneficio immenso l.° Que os heterodoxos c incrédulos dos
■que Deus a esta conferiu o catholicismo. tempos antigos recusassem à Igreja (que
0 paganismo, que foi privado d'cste be­ todavia nào deixara de usar d clle livre­
neficio, e o protestantismo, que a ellc re­ mente) o poder coactivo, c cousa de que a
nunciou com sua apostasia, nào podendo historia nos faz certos, c que a indole do
ligar, na verdade c na justiça, os superio­ coração humano nos mostra naturalissima.
res aos subditos, foram obrigados a sugge­ E quando é que o ladrão e o assassino acha­
rit* a quem commanda*o absolutismo da ram justo e competente o tribunal que sa­
força, por isso que o subdito nào tem o in­ biam que os condemnaria? mas quem de
terno estimulo da consciência que o insti­ nossos dias, que blasonc á furça de suas
ga a obedecer, c a suggcrir a quem obe­ convierdes, a severidade logica "de sua ra­
dece a precaução da divisão dos poderes, zão, a independente imparcialidade de sua
e o direito de rebollião para reprimir o justiça, ouse disputar à Igreja o poder coa­
absolutismo da força. ctivo, é juntar a iucolierencia logica à in­
0 catholicismo, pelo contrario, intiman­ credulidade heretica.
do tanto aos principes como aos subditos a Com eReito. nào são cllcs que sustentam
verdade c justiça, eommuns a todos, dicta­ com toda a força que nào existe nos go­
bas por um oráculo, que d’clles nào de­ vernos poder coactivo, nem outro algum
pende, c que para obter obediência não direito de authoridade, senão pelo consen­
tem outra força senão o seu direito iner­ timento do subdito? Pois bem, se ha socie­
me; o catholicismo, digo, constitue o sub­ dade da qual os poderes recebidos imme-
dito cm tal condição, que se conhece obri­ diatamentede Deus sejam verdadeiramen­
gado nào pela força, mas pelo dever: con­ te consentidos pelos subditos, c justamente
stituo também o superior cm condição tal. a sociedade catholica. E qual é o catholico
quo sabe ser o seu poder mais fundado na mcdiocrcmcnte instruído e educado na pro­
justiça do que na forca; constitue tinal- pria religião, que não tenha reconhecido o
mento a sociedade em" tal condição, que poder coactivo da Igreja, com todos os o.u-
550 IGR
tros dogmas que cila ensina, aceitando ao morto, se condemna a si proprio ao cár­
menos, implicitamente, a fé n’ellcs, pela cere e á forca, procuremos antes nas dou­
sua pessoal adhesào, se foi baplisado adul­ trinas catholicas, c na verdadeira philoso­
to, ou se o foi sendo creanca, ratificando phia natural as bases do poder, que nos
depois as promessas do seu baptismo? propozemos defender. Mas de que serviría
Quando mesmo o descuido dos educa­ audar investigando o revestindo os archi-
dores ou a falta de desenvolvimento intcl- vos da Igreja, quando se tracta dc respon­
lectual podésso dar um pretexto a dimi­ der á gente que despresa sua authoridado!
nuir o valor d’cssas explicitas declarações Sc ellcs conservassem ao menos o pudor
feitas na idade infantil, quantas outras oc- do delicto, bastaria citar a bulla dc João
easiòcs se lerão apresentado a cada um xxii e dc Pio vi, para os obrigar a mudar
dos fieis, para reiterar a renovação de seus ao menos dc linguagem, se nào quizerem
votos baptismacs? Em França são ellcs ra­ mudar de sentença: bastaria fazer-lhes lem­
tificados quando se faz a primeira com- brar (sem fallar do que podería de algum
rnunhào; nas missões não deixam pela modo illadir-se pelos adversarios, por isso
maior parte os zelosos pregadores de con­ que prodigioso como a morte dc A-naniás e
vidar o povo a esse acto; no Piemonte, c de SolTraria, 1 c outros similhanles exem­
em outros paizes, se dá principio ao anuo plos) fazer-lhes lembrar, digo, o castigo de
com essa soleinnidade do baptismo, no l.° Marciào, dc que falia Sancto Epiphanio: a
ou a G de janeiro: um professor que toma casa tirada a Paulo Samosatense, as mul­
posse dc uma cadeira, um beneficiado da etas repetidas vezes impostas pelos, conci-
sua prebenda, costumam iniciar a nova lios, os jejuns c os Cilicios, e as cònfisca-
carreira com a profissão de fé; mas pondo ções c as privações de honras e gradua­
mesmo de parle todas essas declarações ções, tudo qualidades de penas usadas,
cspeciacs, qual ó o fiel, a não ter abando­ incsino depois do concilio Tridentino, no
nado inteiramente toda a práctica dc pie­ qual foram sanccionados, sem que hou­
dade, que de tanto cm tanto nào repita no vesse reclamação alguma contra isso, por
acto de fé a protestarão dc crèr tudo quan­ parte dos principes, que pelos seus repre­
to a Igreja ensina, c* de reconhecer n’elia. sentantes assistiam ao concilio.
por consequência, os direitos por ella mes­ 3.° Verdade é que d’esta mesma circum-
ma authentieados como decretos solcmnes? stancia os adversarios da Igreja costumam
Vós, portanto, progressistas, que nào ad­ deduzir que isso se fez por delegação da
mittis em nenhuma aulhoridade o poder authoridado civil.
coacti vo, se não é consentido pelo subdito, • Mas ainda quando isto fosse verdade, por
" dizei-me se ha alguma outra sociedade, ã ventura não entraria aqui de novo o argu­
qual um tal poder tenha sido consentido mento já indicado contra os incredulos mo­
tào solcmnemcnte, tào formalmente pelos dernos? Se tão pouco os governos civis
súbditos como por. todos os baptisados (pri­ teem aulhoridade senão pelo consentimen­
meiro implicitamente e depois ratificado to dos subditos, a Igreja que toria na sup-
como fica dito) como o foi á Igreja? posta hypothese a aulhoridade pelo con­
Portanto o direito da Igreja, que nunca senso dòs principes, tem os mesmos direi­
pôde negar-se sem erro, actualmente nào tos que o governo civil, e ainda maiores;
póde ser negado sem contradicçào pelos por quanto, pelo consentimento dos princi­
que sustentam a theso acima indicada, e é pes, com mandaria os mesmos principes.
na verdade estranho que sejam estes pre- Mas a verdade ó que os imperadores pa­
cisamentc os que o hostilisam com mais gãos nunca teriam conferido tal direito á
vehcmencia, quando, segundo as suas theo­ Igreja, e os principes chrislãos não teriam
rias, o direito da Igreja é o unico (a nào conferido á Igreja um direito eoactivo, do
ser que enumereis entre os poderes so- mesmo modo que os subditos nunca o te­
ciaes os synedrios das seitas, das quacs os riam consentido ao principe, se esse direi­
seus escravos cegamente juram, sobre o to não fosse fundado na propria iudolc e
punhal, de acceitar a morte) que póde glo­ natureza dc ambas as sociedades, como 6-
riar-se de ter esse apoio, sem o qual, pela evidente. E comtudo não só no govirno
sentença de seus adversários, todo o direi­
to vacilla. 1 Digo illudir-se, e não confutar-se, por­
Z ° Mas por isso que nós catholicos nào que o ser o facto milagroso o tornaria para.
podemos admittir a absurda theoria pela um coração recto, menos convincente, mos
•qual cada cidadão, cedendo o seu juizo e trando Deus mesmo cooperante com a Igre­
a sua vontade á sociedade, o consentindo- j a no exercido do poder, que os adversarios-
lhe, por este modo, o direito de vida e de lhe contendem. x
IGR 551

dc principes christãos, mas até quando do­ se a Igreja não tem faculdade para legislar
minaram os pagãos, a Igreja usou de di­ nos assumptos de sua competência, em ne­
reitos coactivos, dc muletas, jej uns, flagella-
nhuma parte poderemos reconhecer esta
ções, exclusão do templo c da conversão suprema faculdade legislativa, seguindo-se
dos catholicos, como é notorio pela histo­ que todos os poderes supremos do mundo
ria ecclesiastica. Comprehendo muito bem não derivam dc Deus, e só são uma usur-
que os adversarios da Igreja responderam, pacão ou expressão do direito da coacção
como já respondeu o herege Salmasio, que e da força, e cm prova d’isto examinemos:
a essas penitencias os fieis se sujeitaram que sociedade reconhece como chefes ho­
voluntariamente, e portanto que não po­ mens a quem 0 Todo-Podcroso tenha dito,
diam cilas chamar-se verdadeira coacção. fallando-íhes pessoalmente, 0 que Jesus
Mas isto seria questão de nome: quem Christo, Filho de Deus, c Deus com sou
é constrangido, por temor da excommu- Pae e 0 Espirito Sancto, disse pessoalmen­
nhão, a pagar uma muleta, e a supportar te a seus apostolos? «Com 0 mesmo poder
uma flagellação, soíTrc tanto a coacção, que meu Pae me enviou, assim eu vos en­
como aquclle* que a essas penas se sub- vio... recebei 0 Espirito Sancto... deu-sc-me
mette pelo temor do exilio, ou da infamia todo 0 poder no céo c sobre a terra. Ide
legal: prefere o menor mal ao maior, e c ensinai a todas as nações, baptisando-as
aceita o primeiro com aquclla vontade re­ cm Nome do Padre, do Filho e do Espirito
pugnante, que os escolasticos chamavam Sancto; ensinai-lhes a guardar tudo aquil-
em parle involuntaria (involuntarium se­ lo que eu vos tenho rccommendado. Sabei
cundum quid). rjue eu estarei comvosco todos os dias até
á consummação dos séculos... Na verdade
vos digo que‘tudo que vós ligardes sobre
i vn a terra, será ligado no céo; e tudo 0 que
desligardes na terra será desligado nr
céo. *»
Houve por ventura jamais alguma mc
A Igreja tem um poder legislativo, proprio narchia que recebesse uma investidura qu<
e independente de todo o poder humano, podésse comparar-se áquella que recebeu
e que é necessario e ulil a todos os pode­ 0 pescador da Galilea e seus augustos suc­
res supremos. cessores? «Eu te digo, falia Jesus Christo,
que tu és Pedro e sobre esta pedra funda­
rás a minha Igreja, e as portas do inferno
Quando propozemos esta questão, pre­ não prevalecerão contra ella. Eu te darei
tendemos examinar se a igreja catholica as chaves do reino dos céos. Tudo aquillo
recebeu dc seu divino fundador o direito que tu ligares sobre a terra, será ligado no
de fazer leis religiosas que obriguem em céo; e tudo 0 que desligares sobre a terra,
consciência tanto aos prelados e pastores, será desligado no céo... Eu pedi por ti,
como aos simples fieis; questão esta que a fim de que não faltando tua fé, sejas 0
na actualidade não se quer analysar com sustento de teus irmãos... apascenta as ove­
a imparcialidade que a ' razão reclama: lhas c os cordeiros a fim de que não haja
por uma parte pretende-se que a Igreja mais que um aprisco e um pastor.2»
soja uma escola e associarão piedosa, cuja Todo 0 poder para não ser ineíficaz, de­
authoridade legislativa efeve reduzir-se a ve ser proporcionado á commissão que
formar alguns regulamentos interiores de desempenha, e ao objecto que se propõe.
disciplina, que ainda necessitariam ser re­ A commissão e objecto do poder temporal
vistos e approvados pelo poder temporal, reduz-sc a procurar os interesses materiaes
antes dc serem obrigatorios a seus filhos; de alguns milhões dc homens, c conservar
por outra, sustenta-se que a Igreja ó uma uma vida pacifica c tranquilla 3 entre os
sociedade de ordem superior, cuja autho­ habitantes d’um estado; porém 0 da Igreja
ridade se estende sobre os mesmos pode­ estende-se sobre todos os homens, a fim
res supremos; e nós não admittimos ne­ de regular seus negocios espirituaes, ma­
nhum d’cstes dous pensamentos: dizemos teriaes, individuaes, domesticos, racionaes
sim «que a Igreja é uma sociedade d’ama
ordem superior, que deve ser regida c go­ 1 S. Joan., 20, 21. S. Math., 28, 18, 20.
vernada por leis proprias; assim como cada 2 S. ftlath., cap. 16, 18, 19. S. L u c a S j
uma das sociedades civis, se rege e gover­ 22, 32. S. Joan., 10, 16, 21, 15, 17.
na pelas suas.» 3 S. Paulo, 1.* epistola. Timotheo, capi­
Para assim fallar nos fundamos em que tulo 2 .°
552 IGR
c internacionaes, segundo a sancta lei de cousa inais á sua missão, porque, ebrio pela
Deus: diremos melhor, o poder da religião gloria e poder, rodeado d’armas numero­
catholica dirige-se a submetter a universa­ sas e invencíveis, chegando a sujeitar um
lidade de individuos c povos á lei da ver­ povò composto de reis, pretendeu fazer da
dade, da justiça e do amor, que reconci­ Igreja universal um ajudante de seu impé­
liando-os entre si como pae celestial, é a rio, como tinha feito dos reis ajudantes de
unica que os póde livrar da escravidão do seu governo militar nos exercitos, e aspi­
mal e conduzil-os pelo caminho da vida c rou a despojar o soberano espiritual do
da felicidade; n’uma palavra, a religião faz universo d’um pequeno principado tempo­
que Deus reine sobre o genero humano no ral, que pesando pouco na balança dos des­
tempo, para que este reine com Deus na tinos do mundo cm tal conceito, só serve
eternidade. para o fazer independente de qualquer so­
Perguntamos agora: que governo se po­ berano, como o deve ser aquellc que na
derá comparar a isto? que poder politico terra é o representante de Deus.
por menos limitado e mais livre que se en­ O vigário de Deus, o anjo da paz em Je­
contre em sua acção legislativa, se resol­ sus Christo, desembainhou a espada espiri­
verá, não já a olhar-se como superior, mas tual, que brilhou diante dos olhos do tyran­
a igualar-se a ura poder que regenera as no, que disse sorrindo-se: «julgará o nes­
almas, iniciando-as na sciencia da vida cio que sua excommunhão fará cahir as
presente e futura, e as colloca por sua ac- armas das mãos dos meus soldados?» Pou­
cão além dos limites do tempo c do espa­ cos dias mais aguardara o .Salvador para
ço? Assim parece que devia succedor, c castigar a mais insolente de todas as blas-
todavia essa tem sido a pretenção, ha mais phemias, e não querendo dar aos homens
de século e meio a esta parte, de muitos a missão de abater aquellc que só tinha
governos europeus que se diziam chris- elevado para exercer duas justiças, disse
taos, c que guiados por uma grandeza c ao gelo com a mesma voz omnipolente e
poder, que deviam á educação catholica, soberana com que do nada mandou no
ousaram levantar a mão contra Christo e principio formar os céos e a terra, des­
sua Igreja, c disseram-lhe: «o vosso reino arma immediatamcnte aos vencedores do
nao é d’este inundo.» Se quereis governar mundo; e vigorisado pela palavra de Deus,
as almas haveis de fazel-o com o nosso be­ o rigor da estação, o gelo c frio penetrou
neplacito e a nossa vontade. Os fruetos que até ao coração dos bravos, fez cahir as ar­
recolheram d’esta lucta insensata contra a mas, homens c cavallos; c cmquanlo que
obra da divina redempção humana, teem si­ o anjo da paz em Jesus Christo caminhava
do bem amargos em si mesmos, c bem fu­ da prisão para o throno, o Nabuco d’este
nestos cm suas consequências, porque reco­ século, o rei dos exercitos armados, o novo
lheram o desprêso de Deus e dos homens; Marte, descia do throno e caminhava para
e d’isto seguiu-se uma vertigem, que se não a prisão, que lhe preparavam seus verdu-
é incurável, 13 2ao menos c di/Gcil de reme­ gos, e que certamente não foram chris-
diar, segundo os progressos que tem feito tãos. 1
no genero humano. Esta lição, precedida de mil outras, ser­
Pela primeira vez que se ouviu esta voz viu de mui pouco aos soberanos europeus:
contra a doutrina evangélica, sob pretexto satisfeitos com dividir entre si os despojos
de liberdades da Igreja em uma. parte, de do gigante, tomaram de seu despotismo
preeminencias e direitos supremos em ou­ militar o que era desconhecido desde sécu­
tras, e em todas com a ideia de submetter los, permittindo que o scisma e a heresia
e subordinar a authoridade independente devorassem reinos e provincias catholicas,
da Igreja, contentou-se o Dominador su­ e que o principio anti-christão e anti-na­
premo 2 com o destruir alguns thronos da cional, minasse surdamente o poder reli­
Europa e humilhar o orgulho insolente dos gioso e a authoridade temporal.
mais. O homem * que a Providencia esco­ Se a Igreja denunciava as sociedades
lheu como instrumento para dar uma li­ secretas, e antes da explosão da mina re­
ção aos reis da terra, accrescentou alguma volucionaria reclamava a livração do sa­
cerdócio para inutilisar estes trabalhos sub­
1 Psàlmo .106, v. 40. Cahiu o vilipendio terraneos, ou se despresavam seus avisos
sobre os principes, e os fez andar errantes como pueris e pânicos, ou se julgava que
por desertos, onde não havia caminhos. era mais conveniente e necessario vigial-a,
2 Deus e a historia contemporanea o
provam como sua obra.
3 Napoleão. 1 Byron.
IGR 553
•considerando-a a cila mais perigosa que as gal, e anarchia, é preferível aquella que
sociedades secretas c revolucionarias. mais se aproxima da ordem, que é a vida
Registamos os factos conhecidos, que de­ de todas as sociedades.
ram resultados que se nào podem ignorar, Tal é o império da religião c o resultado
c que são uma consequência precisa da de suas leis: o fanatismo politico nào tem
primeira inaptidào. Napoleão desapparc- duvidado olhal-o como inútil, e assentar
ceu da sccna politica como se tinha apre­ como fundamento da legislação humana
sentado n’ella, isto 6, entre o estampido do princípios pouco conformes ao respeito que
canhão c o espectáculo sanguinolento das merece a lei do verdadeiro Deus; porem,
batalhas; porém deixou um futuro mágico, embora o imprudente se suma com des­
que os herdeiros do seu poderio, sem ter dém, o resultado n’csla vida será sempre
seu genio, teem degredado c viciado muito o que nos ensinou o espirito de Deus no
mais, em prejuízo seu c do genero huma­ livro da sabedoria, e que diz è tõo impossí­
no: cm prejuízo seu, porque teem ide des- vel formar uma sociedade sem o funda­
apparecendo uns apoz d’outros, submergi­ mento do poder religioso, como edificar um
dos entre as ondas espumantes do systema castello no ar.
parlamentar, que em ultimo caso lega aos Nos últimos tempos tem-se intentado ex­
povos o enfado c o desgosto. perimentar a força d’esta verdade, e a ex­
Ha trinta annos a esta parto que se ac- periência que se *faz adianta tanto, que já
•cordou entre os inimigos do catholicismo, não é necessário ser propheta nem politico
em annunciar um espectáculo maravilho­ profundo para fechar o nosso horoscopo,
so em obsequio do maior culto, que se rea- c vèr o futuro de todo o mundo europeu; é
lisouno meio das orchestras funebres, que que este, ou cahe na democracia pura que
serviram para atear de novo um fogo oc­ préga Proudhon, ou se salva pela theocra-
culto, c que só precisavam de que lhe che­ cia evangélica; nào couhecemos meio entre
gassem a mecha para incendiar a ordem c estes dous termos.
A paz do universo; porque se tornou a des­ Pretenderemos advogar em favor d’um
conhecer a authoridade religiosa e o poder despotismo clerical c tyrannico, ou por
legislativo do Christianismo. uma restauração social, no sentido dus sé­
O poder moral, que é o poder de que culos da idade media, séculos chamados
falíamos, nào existe senão na religião, a de ferro, de ignorância e de brutalida­
qual faz que o povo reconheça o direito de? Não, por certo, e aqui o consignamos
que tem o governo para mandar sobre cl- do modo mais terminante e explicito: as
le: quem duvida que, destruído este poder fôrmas d’aquella restauração c os modos
moral, desappareça necessariamente todo de explicar a supremacia papal, passaram
o poder politico? c ainda quando fosse pos­ já para nào voltar mais; porque nunca
sível duvidar cm theoria, cuja dúvida vi­ olhamos como possível que voltem ao mun­
ría a ser o extravio da razão c nada mais, do as circumstandas que então fizeram jus­
quem póde resistir á prova dos factos? esta tas, legitimas, necesssarias c uteis ás fôr­
prova é hoje oflcrccida pelo testimunho pú­ mas, que hoje seriam improcedentes, c que
blico: cada um se olha com direito de im­ por serem desconhecidas em seus fins, se
por sua vontade por lei, c reprovar tudo extravia facilmente o juizo que se fórma
aquillo que lhe desagrada; c todos aqucl- sobre cilas, por aquelles que pretendendo
les que não fazem derivar a authoridade criticar tudo, nem consultam a historia,
de uma origem divina, não veem nos su­ nem estudam a legislação, nem comparam
periores que a exercem, senão tyrannos os tempos de cujos princípios procede o
dispostos sempre a escravisal-os:* d’aqui critério justo e razoavcl. Pretendemos, sim,
procedem os aprestes christãos para o mais restaurar os princípios civilisadores que
rude combate, porque a authoridade se vô Deus estabeleceu para este fim, e que pri­
desobedecida c desacatada a cada instante, meiro acabarão os céos e a terra, que clles
e pela força de que usam os subditos para deixarem de ser o unico principio de jus­
resistir-lhe, vô-sc obrigada a usar da força tiça c de sociabilidade; estes princípios de
para se defender c fazer-se respeitar. Só tlieocracia evangélica, ensinados pela Igre­
os catholicos se apresentam no meio d’esta ja, que apresentamos cm massa, apreseuta-
lucta consequentes cm seus princípios, e mol-os também cm detalhe para evitar dú­
por mais que um poder temporal substitua vidas c intcrprctacòcs ambiguas. Yêdc aqui
a vontade cega do homem à lei da justiça, o que nós entendemos por princípios de
cites o acceitam e lhe obedecem (no que* é theocracia evangélica: «Toda a soberania,
temporal), porque todo o poder deriva de todo o poder, toda a paternidade, emanam
Deus, c porque entre uma authoridade le­ de Deus: EUc é o unico rei das almas, dos
554 IGR
corpos, c dc toda a natureza. Sua lei é a leis, teem que escolher necessariamente os
regra suprema de todas as leis, a origem homens desde Adao até a consummação-
dc todos os direitos c a expressão de todas dos séculos, porque Deus não admitte neu­
as obrigações. tralidade; o que não está com elle, é con­
Além do poder dos chefes dc familia, tra clle. i
que ó ao mesmo tempo religioso e civil, A lei divina, que é uma c invariável, ar­
Deus estabeleceu dous poderes, ou melhor, vorou sua insignia cm Bethlcm, quando os
estabeleceu dous ministros dc seu poder: espíritos celestes cantaram: «Gloria seja a
um religioso, para formar e conduzir a Dous nos céos, e paz na terra aos homens
grande familia da humanidade a seu eter­ de boa vontade.» 2
no destino; c outro civil, para manter a A lei dc Satanaz, depois dc ter esgotado
ordem c conservar a tranquillidade cm cada todas as fórmulas hypocritas do erro, apre-
familia nacional. Estes dous poderes cstào scnta-sc alfim com a fôrma mais simples
igualmente sujeitos à lei do Deus, dc quem c clara cm todos os programmas que pu­
as suas leis não devem ser mais que o des­ blicam os chefes da jovon Europa: «Abaixo
envolvimento, c como se disséssemos seus Deus c toda a religião; caia o homem mo­
artigos organicos. O poder civil ainda póde ral como todo o poder, todo o direito, toda
ter algumas outras restricçõcs, que cada a obrigação, tudo aqui 11o em fim que pode­
nacào tem posto legalmentc cm seu exer­ ría distinguir a terra da morada da desor­
cido. Estes dous poderes sào independen­ dem eterna.» Os symbolos dos poderes in­
tes um do outro, e cada um em sua pro­ termedios fazom-se cm proporção da capa­
pria csphcra, porem devem irmanar-sc sem cidade dos adeptos, que illudidos por seus.
se confundir.» chefes e sem jamais penetrarem na obscu­
D’isto segue-se que um povo christão, re­ ridade dc seus mysterios, esperam a ordem
mido com o sangue de Christo, não deve do chefe geral dos illusos para a cumprir,
despresar a sua lei, para admiltir a vonta­ sem ao menos a examinar, nem conhecer
de do homem; 1 e deve considerar-se que suas tendências e objecto; tal é o systema
0 pontifice, os principes, os sacerdotes c que admittem os inimigos da religião, que
os magistrados, sào todos ministros de Je­ repellem por obscuros os mysterios divi­
sus Christo, empregados uns na ordem re­ nos.
ligiosa, c outros na ordem civil, por cllc c As nações da Europa, amestradas pela
em serviço e utilidade de seus irmãos. experiência repetida dos factos, não sabe­
Tal é o systema na restauração social mos o que farão, porque ignoramos se se
que estabelecemos, unico que póde fazer a submetterão com franqueza, 3 se voltarão
divisa da ordem, liberdade c progresso, se­ a refugiar-se sobre a disciplina do Senhor
gundo a verdade, porque sem estes prin­ e cmprehcnderào com cila a conquista pa­
cípios, que houve, ou póde haver jamais cifica do universo, ou se, despresando os
para os homens e para os povos? a anar- esforços da misericordia divina, se entre­
chia, a escravidão e a morte. garão á discrição dos ministros do exter­
A liberdade não consiste cm fazer o que minio, até que "o céo mande aos barbaros
quer a vontade, a ignorância c a corru­ do norte asiatico c europeu que abando­
pção; consiste sim em submettennos-nos á nem seus paizes áridos c gelados, e ve­
lei da vida. unica que nos póde livrar dos nham cultivar nossas regiões cobertas de
erros, ligeireza c escravidão das paixões, e tanto sangue, para recolher os fruetos do
elevar-nos á gloriosa liberdade dc filhos de justiça que temos despresado c continua­
Deus; porque esta lei, que é a lei de Jesus mos a aborrecer. 4
Christo, é a lei perfeita de liberdade: 2 a Este é o problema do futuro da Europa,
liberdade não consisto em viver sem supe­ e por maior que deva ser a nossa reserva
rior, isso é impossível; consiste, sim, cm para marcar o tempo o os momentos em
reconhecer o dominio d’aquellc que. nos que ha dc obrar a Omnipotentia do Padre
creou e que se humilhou ato morrer na Eterno, podemos sem dúvida, e depois do
cruz, para conseguir nossa eterna liberda­ ter meditado na marcha dos espíritos, pen-
de; qualquer que rejeite este saudavel jugo
de Deus, cahc imracdiatamentc debaixo da 1 S. Math., cap. 12, v. 30.
dominação do mais cruel dos tyrannos, que 2 S. Lucas, cap. 2, v. 14.
é Satanaz; entre estes dous chefes c suas 3 Psalmo 2.°, v. 12. Abraçai a boa dou­
trina, para que alfim se não im ite o Senhor
1 S. Paulo, epist. aos corinthios, cap. 7, e pereçaes extraviados do caminho da jus­
v. 23. tiça.
1 S. Thiago, epist. can., cap. 1, v. 25. *4 S. Malheus, cap. 21, v. 43.
INF 355
sar n’uma palavra, sentença e decreto de pude vencer e contar por toda a terra os
Jesus Christo, pela qual comprehendcmos maiores triumphos sem outras armas além
que não passará esta geração sem que este ua simples palavra, e dos peitos inermes
problema seja resolvido. 1" cios proprios filhos, que oíTcrecia ás agudas
INFALUBILIDAD15 DO PAPA (INIMIGOS DA)— espadas dos seus poderosos e terríveis ini­
Tem-se, desde antigos tempos, arvorado em migos?
questão, agitada ordinariamente por parte As barbaras perseguições que a Igreja
dos hereges, que atraz de si levaram algu­ tern solTrido desde o seu principio até hoje,
ma voz engenhos não vúlgares—se o papa ou abcrlamcntc da parte dos judeus, pa-
nas suas decisões ex cathedra, cm assum­ gaos, hereges, e dos impios, ou á surdina
ptos moraes ou dogmáticos, é ou não infal- por parte dos hypocritas, não menos per­
iivel. versos o inimigos, que, ostentando-so lieis
Comtudo, por não principiarmos exjabru- christãos, a vão sempre minando para fa-
pto, abandonando o nexo que ordinaria­ zcl-a desabar em. ruinas; c o modo porque
mente se dá, ou por natureza, ou por ne­ cila, sempre passiva e pacifica, tem sabido
cessidade de comparação entre os princí­ triumphante até hoje, e triumphará até ao
pios e os fados, observaremos quasi só fim dos séculos, são irrefragavel documen­
como preâmbulo, ligeiramente, o direito to de que ha ahi mais alguma cousa que
antes de passar á historia, collocando pri­ simplesmente causas e efleitos naturaes.
meiro em frente uma de outra as duas op- Então, por um pensamento elevado, como
postas opiniões, da maneira que já tinha- é elevada a causa primaria do todo este
mos cscripto. assumpto, poderemos nós deixar de ad-
Notáramos nós, pois. que aquelles que miltir a infallibilidade do vigário de Jesus
no maravilhoso estabelecimento da sancta Christo na terra, da cabeça visível da Igre­
Igreja de Jesus Christo, na sua portentosa ja, sem outra razão mais que a deduzida
propagação e nos seus magnificos trium­ das imperfeições humanas, a que o papa,
phos nãó querem vér senão causas natu- como homem é sujeito? Mas, se a cabeça
raes, c naiuracs elicitos, muito natural- errou, querereis vós que o corpo acerte?
mente produzidos por essas causas, diziam Ou se a cabeça é morta na fé, pensaes vô:
também por uma natural consequência, que que um corpo accphalo tenha vida?
o pontifice, mero homem, não é isempto Passando agora a argumentos mais posi­
das imperfeições que a natureza dccahida tivos, Jesus Christo disse a Pedro que este
innoculára (com a competente excepção) era a pedra, sobre que cllc edificaria a sua
cm todos os mortaes: que assim é possível Igreja—/» és Petrus, et super hanc Petram
que como outro algum sabio o mais illus- aedificabo ecclesiam meam— Ora, se a pe­
trado, possa errar cm qualquer ponto que dra angular e fundamental do edifício res­
seja; que portanto rejeitam n’elle a infalli- vala e cahc, poderá este deixar de arrui­
bilidade, no sentido mesmo que acima fica nar-se?
proposta.— Que, ao contrario, que na exis­ Todos sabem, mesmo não sendo pedrei­
tência da Igreja divisamos sempre um con­ ros ou architectos, que a pedra que não
tinuo milagre, ou se considerem os seus está firme c segura, não sustenta o edifício.
princípios, ou os seus meios, ou os seus re­ Cahisse pois o mystico tabernaculo da Igre­
sultados, não tenhamos por isso mesmo a ja, c as portas do inferno prevaleceríam
menor repugnância em acreditar como contra cila, e contra a bem positiva dispo­
uma parle d'esso milagre permanente a in- sição de Jesus Christo, quando em seguida
fallibilidade do papa, supposto não ter sido accrescentou:—E t portai inferindo pm vo-
ainda formal e positivamente julgada um lebunt adversus eam.
artigo de fó. Todavia se d’aqui já deduz grande ar­
E na verdade, como é que poderam pou­ gumento de força c firmeza a infallibilida-
cos homens, pobres c ignorantes, ao lançar dc do papa, não" menos concludente c tal­
os fundamentos da Igreja, confundir "os vez mais claro ainda deve ser o que lhe
philosophos e os doutores da lei, c muitas subministra a formal declaração do mes­
vezes convencel-os c convcrlel-os? Como é mo divino mestre Jesus Christo, quando
que a morte e o sanguo derramado, signal deu a Pedro a segurança de que rogára
e principio de aniquilarão e de exterminio, a seu Eterno Pae para que a fó nunca fal­
toem sido para a Igreja, no martyrio de tasse—^ rogavi pro te, ut non deficiat fides
seus sanctos, um fecundo germen do vida tua;—juntando logo—et' tu aliquando con­
c de multiplicação? Como é que a Igreja versus confirma fratres tuos;—além da in­
cumbência que outra vez lhe fizera—pasce
1 S. Matheus, eap. 24, v. 34. agnos meos, pasce oves meas.
5o6 INF
Tal ó o fundamento, a origem c o fim do ser muito extenso, bastará por isso apon­
primado de S. Pedro e seus successores, tar os principaes factos, sem que seja n e ­
que, segundo a expressa vontade de Jesus cessário dar minuciosa c exacta relação
Christo, ha de durar illibado na fé, e in­ dos insignificantes, a que a hostil imagina­
concusso até ao fim dos tempos; porque se ção dos antagonistas quiz dar o valor o u
o dom dos milagres c o das linguas, neces­ a inlelligencia que não teem, porque cio
sarios no principio para o estabelecimento maior se póde bem julgar para o menor.
da Igreja, não passaram de pessoaes, o da Começando pois dos primeiros tempos
fé, sendo indispcnsvel para a sua conser­ diremos que não errou na fé o principe
vação, é permanente assim no primeiro dos apostolos cm Antiochia, quando foi ad­
como em todos os vigários de Jesus Chris­ moestado por S. Paulo a que não deixasse,
to, successores de S. Pedro. pelo medo de escandalisar os judeus cliris-
O contrario seria um contrasenso, seria tàos, a convivência dos gentios convertidos
um paradoxo. Chefe visivol da Igreja, pe­ —segregabat se ab ris:—era este farto de
dra fundamental, centro de unidade, pas­ mera conveniência ou dcsconveniencia
tor dos pastores com crro_ na fé. quando christã, mais ou menos imprudente, m as
falia ou obra como tal, não pôde combi­ que nada aíTcctava a fé inabalavel de Pedro.
nar-se com princípios nenhuns, nem divi­ Não póde ser argumento de fallibilidade
nos, nem humanos. N’cste ponto a philo­ no pontifice a questão entre S. Victor e o s
sophia terrestre, discorrendo diversamen- bispos contumazes da Asia-menor sobre a
tc. claudicou como cm muitos outros. celebração da Pasehoa; nem as queixas de
Mas se por uma tactica mais conforlablc alguns bispos do Occidente, acerca d’aqucl-
quizessem os adversarios levar a questão le objecto contra o sancto pontifice, se re ­
ao campo dos factos, não recusaríamos, feriam mais que ao seu rigor, diverso do
pequenas como são nossas forças, entrar exemplo de seus prcdcccssorcs.
corajosamente uo combate. No mesmo caso se acha a opposiçào dos
bispos de Africa e de alguns asiatleos na
outra também renhida questão da rebnpli-
II
sação dos hereges, mandando Sancto Este­
vão que não tornassem a ser baptisados
A experienda de quasi dezenove sécu­ todos aquelles que já uma vez o tivessem
lo s ^ um monumento indcstructivel, levan­ válidamente sido. O facto era então mera­
tado á infallibilidadc dos papas. E suppos- mente disciplinar, se havia ou não de rei-
to seja mesmo á sombra d'esse magestoso torar-sc o baptismo; nem S. Cypriano ou
monumento da experienda que os adver­ Firmiliano, ou algum outro dos’ bispos op-
sarios queiram ajudar-se dos factos para postos, assim n’esta questão, como já linha
combater uma verdade tão solemnc e fun- sido na da celebração da Pasehoa, duvida­
damentalmcnle estabelecida, nós retocare­ vam do poder que* tinha o papa de julgar
mos, o mais rapidamente que podermos, sobre assumpto de fé, porque esta foi sem­
esses mesmos fados, ou antes lhes sacudi­ pre a crença da Igreja catholica, c pre­
remos o pó com que alguns teem querido tendiam somente conservar sobre aquelles
cobril-os para oecultar as suas verdadei­ factos os costumes das suas particulares
ras feições, e enganarem assim os leitores igrejas, que julgavam não reprováveis.
incautos, c os mostraremos ao público, na Em uma e outra d’estas duas questões,
sua verdadeira luz. isto é, a da celebração da Pasehoa, c a da
Não temos á mão alguma das obras de rebaptisação dos hereges, se conformaram
qualquer antigo ou moderno escriptor, que depois, com as decisões pontificias, os vo­
ex j)rofesso ou mais largamente tractasse tos dos padres de Nicca.
este objecto. Foi-nos portanto necessário O facto do papa Marcollino, mesmo a ser
percorrer a historia para colligir os factos verdadeiro, pois ha muito boas razões para
que dizem respeito ao nosso assumpto, dis­ o não ter por tal, nem merece commemo-
persos em toda dia, valendo-nos para isso rar-se aqui, porque ninguem ignora que
principalmcntc de um curso de historia uma fraqueza, nascida do medo da morte,
ecclesiastica, recentemente publicado cm não é um erro de entendimento, e muito
Italia, e mesmo da grande obra do histo­ menos uma decisão ex cathedra.
riador Flcury, apesar de contrario, como Mais parecería coadjuvar a opinião dos
quasi todos os gallicanos de certa época, â contrários á infallibilidadc dos papas a
causa que defendemos. E como aqui nos subseripção de Libcrio á formula de fe,
não propomos compôr um tractado, mas em que se calava ou omittia a palavra—
sómente redigir um artigo, que não póde Oniousion— consubstancialidade do Filho
INF 537
com o Pac. Comtudo, ponderados os prece­ seus protestos, apesar dos quacs, averi­
dentes d'esto sancto pontifice, a repugnân­ guando depois melhor o facto, se conheceu
cia que sempre mostrara á doutrina aria­ que era realmente verdadeiro herege. Mas
na, e padccimcnlos c desterros, que por (jue pode o erro de pessoa ter de communi,
essa causa solTrera, não pôde dizer-se que para o nosso caso, com o de doutrina?
houvesse da sua parto erro de entendi­
mento cm uma cousa contra a qual tanto
havia Iuctado, mas que unicamente assigná- III
ra, vencido de tedio c languor dos padecí-
raontos—paixões estas dc animo, diz um Nada prova também contra a infallibili-
cscriptor, que explicam quando muito uma dade dos successores dc S. Pedro, a ques­
ligeireza do espirito, mas nunca uma von­ tão chamada dos tres capítulos, em tempo
tade firme, ou proposito de querer que os do papa Vigilio, pois que em todas as al­
outros assim obrem. ternativas da dita questão o pontilicc não
Além de que, por ter assiguado quasi se contradisse, e muito menos em assum­
forçadamente o papa Libcrio uma formula pto dogmatico, versando sómente em fa­
simplesmente equivoca, dizendo-se alli que ctos pessoaes as modificações que se viu
o Filho é igual ao Pac, e calando-se que obrigado a fazer, não por*inconstancia ou
lhe é também consubstanciai, nada igual- ligeireza, mas por hem ponderado juizo,
mente se pódc concluir contra a infallibi- pois que é proprio do homem sabio e pru­
lidade do papa, não só porque o que disse dente mudar conselho, se para isso tem
era em si verdadeiro, mas também porque ■razoaveis motivos, como sobre este objecto
não houve aqui alguma decisão cx cathe- explicou Pelagio n, na sua carta aos bis­
ilra pela falta assim de plena liberdade e pos dc Istria.
de clareza, como de varias outras circum­ Os padres do concilio de Calcedonia,
standas indispensáveis cm aclos de simi- condemnando os erros de Eutychcs e Ncs-
lhantc especie. torio, não quizeram, por motivos que jul­
O procedimento de S. Zozimo na questão garam razoaveis, entrar na particular dis­
j de Celestino, admittindo-o á communhão cussão das obras de alguns bispos, uns já
da Igreja, como se approvasse a depravada mortos no seio da Igreja, outros alli pre­
doutrina d’aquelle herege, é outro argu­ sentes, contentando-se que estes disses­
mento dos iinpugnadorcs da infallibilida- sem anathema contra aquelles heresiarcas,
de: analysado porém o facto, nada se acha como fizeram; pelo que foram readmittidos
dc erro contra a fé ou contra a moral no á communhão catholica.
sancto pontifice. Instigado porém o imperador pela vin­
Fura apresentar-se-lho Celestino quei- gativa emulação de alguns intriguistas c
xando-se-lhc do juizo contra si proferido encobertos fautores dos hereges, que não
pelos bispos de Africa, c protestando que podiam soíTrcr a condemnação de alguns
não se oppunha aos decretos do papa In- erros de Origcnes, condemnou também o
noccncio (sobre que versava a contenda), imperador, pelo seu edito de 54o, os cscri-
c que admittia ou reprovava aquillo que ptos de um d,aquelles bispos, Theodoro
pela sancta sé fosse, reprovado ou admitti- Mopsucsteno, já morto, e dous ainda vivos
do. Parecia portanto não haver ainda per­ e presentes ao concilio de Calcedouia,e alli
tinacia; c sem lhe recusar a communhão, retractados e admittidos á communhão da
recebeu S. Zozimo benignamente a sua Igreja—Theodoreto, bispo cinense, c lhas,
profissão dc fé, na qual comtudo calava o bispo de Edessa, o que formava o objecto
Iicresiarca o que sustentava manifestamen­ dos chamados tres capítulos.
te falso, e expunha com termos equívocos Subscreveram os bispos do Oriente, pelo
o que podia tomar-sc em varios c diver­ respeito ao imperador, ainda que ao prin­
sos sentidos: apenas porém apresentou as cipio repugnassem: Vigilio, porém, c os
suas interpretações, explicando claramente bispos do Occidente não annuiram, assim
o sentido das suas ambiguas palavras, foi por attençào ao concilio, como por outras
logo condemnado por S. Zozimo, proscri­ razões que podem vér-sc na historia, sen­
pto, o denunciado como heretico ao impe­ do este um negocio mais de prudência c
rador q toda a Igreja. politica ecclesiastica, que dc doutrina e
O mais, portanto, que n'cstc caso podería theologia; porque os erros de Eutyches c
imputar-se ao pontifice Zozimo, seria so­ de Nestorio, de que podia achar-sc alguma
mente o ter-se enganado quanto á pessoa infecção nas ditas obras, estavam prescri-
dc Celestino, julgando-o dc animo catholico, ptos nos dous conci lios de Epheso o Calce­
ou pelo menos não pertinaz, segundo os donia, no que todos concordavam.
Comtudo, considerando o pontifice que igreja universal aquclla paz de que tantas
se ellc proprio condemnasse os tres capí­ dissensões o opposieào de espíritos dividi­
tulos, talvez os bispos do Occidente o se­ dos a tinham privado.
guiríam, terminando assim as dissensões
entre as duas igrejas, grega e latina, pu­
blicou o seu Judicatum, coni que condc- IV
mnava os tres capítulos. Foi todavia illu-
dida a esperança do pontifice;' porque a Exporemos, em seguida, o celebre facto
dissensão augmentou a tal poiito no Occi­ que diz respeito ao papa Honorio, conside­
dente, não só contra os bispos da igreja rado como herege monothelita, mesmo polo
grega, mas até contra o proprio papa, que proprio Bossuet, que para sustentar a sua
ellc julgou prudente suspender o Judica­ triste ideia ou opinião dc fallibilidade nos
tu m , recolhcndo-o da mao do patriarcha papas, nào sc envergonhou dc aggregar-se,
Monna, de Constantinopla, até á convoca­ como Pottor c outros, aos accusadores as­
ção de um concilio, pedido pelo impera­ sim d’estc, pontifice, como dc outros, espo-
dor, em que as diversas opiniões se dis­ cialmcnte o já mencionado Liberio, que al­
cutissem na frente umas das outras, c se cunharam dc ariano. Mas tal é o limite c
podessem assim entender, e mais volunta­ a imperfeição dos espíritos, tidos mesmo
riamente combinar; exigindo sómente o pelos mais sublimes, que até no auge de
pontifice que para, evitar-se a preponde­ sua elevação, por nào desmentirem a fra­
rância de partidos, interviessem ao conci­ gilidade da natureza humana, sc deixam
lio tantos bispos do Occidente, como do cahir, como deixou miscramcnte o referi­
Oriente. do Bossuet, cm alguma de cujas obras se
Depois de muitas dúvidas sobre o local acha lançado o anathema do index expur-
onde se celebraria o concilio, foi este con­ gatorio dos livros prohibidos.
vocado para Constantinopla; mas como se Apesar, pois, do voto dc Bossuet, c ou­
apresentassem os bispos do Occidente em tros aliás respeitáveis gallicanos, diremos
muito menor numero que os orientaes, e como disseram os contemporaneos c visi-
se désse principio por ordem do impera­ nhos d’aquellcs tempos, segundo as leis da
dor ás deliberações, nào só não quiz o sensata hermeneulica, os dous pontifices,
pontifice assistir, mas nem delegou quem S. Martinho, no concilio Lateranense, e San­
fizesse alli as suas vezes. cto Agatào, na epistola a Constantino Po-
N'estas circumstandas, considerando Vi­ gonato, c como disse o martyr S. Maximo,
gilio que d’aquelle conciliabulo nào resul­ na sua carta a Pedro—que* nenhum dos
tariam senão cada vez maiores desordens pontifices anteriores, incluindo Honorio, ap-
na christandade, decretou então o seu Con­ provára jámais, ou deixára dc combater a
stitutum , que vinha a ser o Judicatum mais heresia monothelita.
modificado, poupando as pessoas, c impon­ E descendo mesmo á analvse da carta
do silencio sobre a carta de Ibas (que até d’aquclle accusado pontifice, dírigida a Sér­
•era supposta apocripha), para vér se podia gio, corpo do delicto, cm que os contrarios
assim contentar orientaes e occidcntaes, c buscam a aceusação, igualmente diremos
restabelecer a paz cm toda a igreja; e an­ com o seu proprio secretario, o abbade
tes da quinta sessão o enviou a Justianiano João, allegado pelo acima commcmorado
para que este o fizesse apresentar aos pa­ S. Maximo, na sua carta a Marino, com o
dres alli reunidos; mas nào o fazendo as­ papa João iv, na carta ao imperador Con­
sim o imperador, antes occultando-o e stantino, e com a opinião de excellentes
usando de outras malacias, deu-se por ter­ criticos, antigos c modernos, quo Honorio
minado o concilio á oitava sessão, e. por disse sim que reconhecia uma só vontade
•ellc foram condemnados in toto os tres cm Christo, ablato gemince operationis vo­
capítulos, o que porém não teria validade cabulo (dLaqui talvez o equivoco), mas cra
.alguma se Vigilio não confirmasse, como quanto á humanidade, c não duas vonta­
passados mczes confirmou, este concilio des contrarias (tal cra a errada crença de
com a sua decretai, dirigida ao patriarcha Sergio) uma do espirito, e outra da carne,
Eutichio, de Constantinopla, condemnando como nós temos depois do pceeado—cum
por ella, como já tinha feito no Judicatum, Sergius scripsisset quod quidam duas volun­
os ires capítulos. tates in Chrislo contrarias dicerent, rescri­
D ’cste modo, pois, usando ora dc firme­ psimus: Christum non duas voluntates con­
za, ora dc prudência, longe de errar na fé, trarias habuisse, carnes inquam et spiritus,
ou na doutrina, chegou o papa Vigilio a sicut nos habemus post peccat um, sed unum
conseguir o seu fun, qual era restituir á tantum, qua« naturaliter ejus humanitatem
559
signabat (Abbadc Joan. ut supra). Quanto que o homem, devendo reconhecer que só
porém ás duas operações ou vontades, di­ dc Deus emana todo o seu bem, em nin­
vina c humana, sem dúvida as reconhecia guém mais que n’cllc só poderá com fun­
Honorio, existentes unidamerite na pessoa damento gloriar-se.
<lc Christo, como elle mesmo dizia na re­ O modo como o sancto padre Gregorio
ferida carta a Sergio—inconfuse, indivise, v i i se houve com o herege Bercngario, que
atque inconvcrtibiliter propria operantes. negava a real presença dc Jesus Christo
Mais diíficuldade parecería cncontrar-sc no Sacramento do altar, é mais um outro
x no procedimento dos padres do sexto con­ dos argumentos com que os adversarios da
cilio geral, commemorada ainda no sctimo infallibilidade dos successores dc S. Pedro
e no oitavo, condemnando a memoria do a querem combater.
sancto pontifice Honorio, pelo que tinha cs- Em urn dos dous concilios, que, além dc
cripto a Sergio, não porque ahi se achasse outros cm diversas partes, se celebraram
qualquer erro ou heresia, que elles como em Roma no tempo d aquclle pontifice cun-
tal especificassem ou declarassem, mas por­ tra Berengario, propôz este a sua profissão
que em vez de procurar extinguir, logo no de fé muito vaga e ambigua, que não agra­
principio, com sua apostolica authoridade, dando ao concilio, foi substituída por outra,
a heresia, deixou-a tomar corpo, tendo-a dictada pelo proprio papa, subscrevcndo-a
assim por negligencia favorecido. Esta ne- Bercngario, c confirmando-a com juramen­
ligcncia na prompta fulminaeào do erro, to dc que não tornaria a seguir o erro.
cuYnolivo a tomar-sc como approvação, c Então o sancto pontifice recebeu com be­
á sua sombra apparccia, para maior apoio nevolência, qual bom pae de familia, o fi­
da heresia, a famosa Ectesi ou exposição lho arrependido e recuperado, deelaran-
de fé, do imperador Heraclio, que, por fin­ do-o por suas apostólicas letras catholico,
gida moderação, e induzido por Sergio, pro- c ordenando a todos os fieis que o não in­
hibia nomear tanto uma como duas vonta­ commodassem: voltaudo este, porém, a
des em Christo; o que pelos seus cfleitos França, rctractou-sc da abjuração de seus
tornou ainda mais grave c mais reprová­ erros* feita em Roma, c tornou de novo a
vel a negligencia de Honorio. cnsinal-os, accrescentando perfidamente ter
Assim o entenderam os proprios assis­ em favor de sua doutrina o voto «assim do
tentes no sexto concilio geral, como o im­ pontifice como do concilio romano, menti­
perador Constantino Pagonato, que no seu ra que depois também foi repetida pelos
edito, em que publicava o anathema d’aquel- poucos bispos, que juntamente com o car­
lc concilio contra os hereges monothelitas, deal scismatico Bennone, se juntaram em
nomeava Honorio, não como herege, mas Brcscia por ordem do imperador Henrique
sómente, segundo o sentido que deixamos iv, para cohonestar por este modo a depo­
dito, como o fautor da heresia. E mais cla­ sição que elle ordenava do legitimo papa,
ra e coinpetentemcnte S. Leão n, que con­ e a elevação do «anti-papa Guiberto.
firmou as actas d’aquellc concilio na sua Ora se Moshcm (com todos os da sua er­
carta aos bispos de Hespanha, diz, como já rada opinião) tivesse, diz o supra-citado
fica indicado, fallando da condemnaçào de cscriptor, mesmo ligeiramente rcflectido
Honorio—qui flammam haeretici dogmatis, que fora sempre costume dos hereges ser-
non, u t decuit apostolicam auctoritatem, virem-se do nome e da authoridade dos
incipientem extinxit, sed negligendo confo­ mesmos que os deviam proscrever c con-
v it—que desprosando* favoreceu, não ful­ demnar, para melhor poderem impor e fa­
minando logo quanto convinha. zer acreditar suas falsas doutrinas, e ti­
Eis-aqui pois a interpretação que a isto vesse lido a fórmula de fé que o sancto
deram as authoridades e cscriptorcs con­ pontifice dictára a Bercngario, c este sub­
temporaneos c proximos seguintes, cujo screveu em presença do concilio romano,
voto deve ter certamentc mais pôso que não avançaria, «querendo passar por es-
<j dos Bossuet e dos Potter, que viveram criptor probo c de verdade», a falsa e in-
séculos depois. E assim concluiremos com decorosa «asserção de que Gregorio vu fòra
a s proprias expressões d’um sabio escri- fautor do hcrégc Berengario, c que parti­
ptor moderno— que não houve no papa lhara seus erros.
Honorio algum erro declarado ^entendi­
mento, e muito menos heresia, mas sómen­ V
te defeito de bom ponderada prudência, c
dc fraqueza da parte da vontade; o que
não mostra mais que as grandes preroga- Restam ainda outros diversos tropeços,
íivás são encerradas cm vasos de barro, e com que se tem querido também embara-
çar o livre curso da infallibilidadc dos pa­ lhcs-hcmos dous mais breves, que se re­
pas. Encontram-se expostos alguns por M. ferem aos papas Clemente vi e Urbano v.
de Flcury, que não se deliberando a negar Diz, pois, Flcury que o papa Clemente
directa e positivamente aquella indispensá­ vi vendo-se doente c cm perigo do vida, fi­
vel qualidade no supremo pastor do reba­ zera uma declaração, pela qual revogava
nho universal, se contenta em applical-os, tudo aqui 11o que ou antes ou depois de-
apontando-os isoladamente nos respectivos pontifico lhe podésse ter escapado contra
periodos historicos a que pertencem. a fé c bons costumes, disputando, ensi­
É um d‘ellcs a renovação de certos anti­ nando, prégando ou d’outra qualquer ma­
gos canones feita pelo pontifice S. Symma- neira: e o cscriptor adverte os leitores ^ es­
co, posterior a S. Zo/imo, o anterior a Vi­ te ponto de sua historia, que o papa -parte
gilio, de quem já se fallou, nos quaes se même de ce qiCil a dit, ct yrêche dejniis son
diz—que as ovelhas nào devem accusar o pontificai, mas sem tirar illacçâo. j\ ' ó s con­
seu pastor senão errando clle contra a fé, cordamos, acreditando sem difiiculdade na
ou fazendo-lhes alguma particular injusti­ palavra do historiador, c deduzimos d’ahi
ça. D’aqui deduz Flcury a illacçâo— que primeiramente que o pontifico não reco­
ò papa reconhece poder errar.—Mas sup- nhece ter errado; e se depois d’isso atten-
pondo mesmo que esses canones faliam cm dermos ao estado d’angustia cm que na­
sentido tão absoluto, que não admittam a cx- turalmente se achava pelos soíTrimentos
cepção do pastor dos pastores, c sem pre­ da doença, pelo medo da morte, c pelo de­
cisarmos recorrer á favoravel intelligen- sejo de segurar o seu eterno destino, .que-
cia, que se pódc obter da combinação (Tes­ admira que por cautela fizesse o pontifico
tes canones com o cscripto de Ennodio em tal declaração, sem mesmo estar persua­
favor dos papas, approvado pouco antes dido de que tivesse errado contra a fé, ou
pelo concilio romano e pelo proprio che­ de que a isso fosse sujeito? Além de que
fe supremo da Igreja, diremos que, se o não lendo ainda sido definido este ponto
pontifico pôde cahir em erro como particu­ como artigo do fé, obrou o papa judiciosa
lar por fragilidade propria, e cm caso in­ e prudentemente por cautela, ainda mes­
dividual, como se diz ter acontecido a S. mo estando na persuasão assim de que
Marcellino, que por medo da morte incen­ não errára, como de que não podia errar
sara aos idolos, ou como succedcu a Hono­ —no sentido em que é baseada a questão,
rio, que por negligencia ou pouca activi* pois podería suppôr-se que bra sujeito ao
dade deixou medrar a heresia monothelita, erro fóra d’cste sentido; e assim nada pro­
ou ainda como Liberio, que cansado dos va o presente facto contra a infallibilidadc
tormentos, ou talvez por surpreza, assi- de que tractamos.
gnou um como equivoco, que em si nada A protestação do papa Urbano v feita á
tinha d’crronco, mas que só pela conse­ hora da sua morte, na qual clle diz, se­
quência que. d’ahi queriam tirar os herc- gundo o mesmo historiador, na presença
ges, é que isso foi causa de que d le s o ti­ do seu confessor, de seu camareiro, e d ou ­
vessem por ariano; comtudo, nada d’isto é tras pessoas—que crê firmemente tudo o
fallar c decidir ex cathedra, como fica de­ que cré c ensina a Sancta Igreja Catholica,
monstrado; c portanto, dado de barato que c que se tiver avançado em contrario al­
os pontifices podessem como individuos guma cousa de qualquer maneira que seja,
particulares e por fraqueza c medo, ou ca­ o revoga—é um argumento da mesma ou
hir em erro, ou obrar contra a fé, e serem ainda menor força que o antecedente, não
n’esse caso sujeitos ás disposições cTaquel- precisando por isso d’outra alguma res­
les canones, nunca d'ahi se podería tirar a posta.
consequência necessaria de que clles er­
rem também, ou que S. Symmaco reco­ VI
nhecera que podem errar quando faliam
ex cathedra, como pessoas públicas, reves­
tidos da sua authoridadc para serem obe­ Os dous factos que os sectarios da falli­
decidos, tornando-se por isso insignifican- bilidade nos papas leem allegado contra o
tissimo e de nenhum valor este indirecto sancto padre João xxn, como prova de er­
argumento de Fieury. ro contra a fé, referem-se o primeiro a
Deveríam agora seguir-se pela ordem celebre questão da pobreza franciscana, e
chronologica os factos que se allegam con­ o segundo á da visão beatifica.
tra o summo pontifice João xxn, como pro­ Pelo que respeita ao primeiro, e para
va da pretendida fallibilidade; mas, exigin­ lamentar a insisteneia^do proprio Bossuet
do esses mais alguma extensão, antepòr- na sua injusta accusação dos summos pon-
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tificcs, para fazer valer a tristissima opi­ Então publicou o mesmo sancto nadre a
nião da fallibilidadc, dc que tambcm cra constituirão Cum inter nullos, na qual, para
sectario, procurando achar contradicçào justificação do que tinha ordenado na sua
entre os decretos dc João xxn c o de Nico- antecedente, definiu— terem Jesus Chris­
lau m, por isso que este dissera—não terem to e os apostolos possuido em commum al­
Jesus Christo c os apostolos possuido cou- guma cousa:—c como tres dos mais notá­
sa alguma nem proprio nem em commum, veis revoltosos Cescna, Occamo c Banogra-
quando polo contrario aquelle allirmára zia reclamassem contra esta definição, di­
que não repugnava â pobreza de Jesus zendo-a opposta a quanto havia sido deter­
Christo e dos scus apostolos a posse c o minado pelos passados pontifices, princi-
uso d’algumas cousas em commum: ac­ palmcnte Nicolau nr, na sua constituição
crescendo a isto haver o pontifice João xxu Exiit qui seminat, que, interpretando a re­
publicado ainda outro decreto em que de­ gra dc S. Francisco, dissera ser cousa san­
clarava hcrctico todo aquelle que á sua pri­ cta c meritória abandonar toda a proprie­
meira decisão se oppozesse: d’ondc pare­ dade de bens, assim em particular como
ceu a Bossuet que algum dos pontifices er­ em commum, o que também Jesus Christo
rara, e sobre facto da Sagrada E scriptura, c os apostolos haviam practicado, promul­
que é ponto de fé. gou ainda João x x ii uma outra constitui­
Nós, porém, mostraremos que não hou­ ção, que principia Quia quorundam, cm
ve verdadeira contradicçào nos decretos que sc propôz defender a precedente, de­
d’aqucllcs pontifices, fazendo para melhor clarando herege todo aquelle que se lhe
intelligencia uma prévia e ligeira descri- oppozesse.
pção do facto, sem comtudo entrar em al­ Respondendo, pois, lembraremos primei­
gumas particularidades referidas por Flcu- ro, que em tudo o que não é contra a fé ou
ry sobre o assumpto, assim por nos pare­ contra a moral, podem os papas fazer a
cerem desnecessárias como para não tor­ alterações que segundo os tempos c as ci
nar longo o artigo. cumstancias parecerem necessarias e co
Disputavam entre si alguns frades fran- venientes, como o teem sido a práctica
ciscanos sobre a fórma do habito c do ca- todos os séculos da Igreja; o que é dc ta
pucho; e esta questão, que ao principio pa­ ta evidencia, que não precisamos demorai
recia insignificante, veio 'depois a mover nos íVeste incidente para mostrar que c
na ordem grave scisma, querendo uns que pontifico João podia fazer na regra de S.
o vestuário fosse restituido ás fôrmas pri­ Francisco sobre a possessão d'alguns bens
mitivas, e outros que se conservasse lar­ em commum, a modificação que nào tinha
go e dc melhor talhe, como por ultimo se feito Nicolau quando a confirmara.
usava: além do que accresccntavam aqucl- Quanto, porém, á apparente contradic-
lcs—que, segundo as intenções do funda­ ção nas asserções dos ditos dous pontifices
dor. nada dc comestível deveria conscr- sobre a pobreza dê Christo c dos apostolos,
var-se no celeiro; c se intitulavam espiri- tendo dito Nicolau que estes cousa nenhu­
tuaes. ma haviam possuido, e definindo João que
Para terminar, pois, as desordeus, em tinham possuido cm commum, accrescen-
que por estes motivos andava envolvida tando a declaração de herege a todo aquelle
toda a congregação, ordenou o pontifice que obstinadaniente ousasse negar aquella
pela sua constituição Quorundam exigit, sua proposição, diremos com os melhores
que os proprios guardiães c ministros da criticos—que Nicolau não tivera cm vista
ordem, combinassem a fórma que devia dar unia definição sobre o assumpto: disse
ter o habito, e a quantidade de pão que sómente, como" de passagem c em geral,
para as necessidades do convento se deve­ para louvar a abnegação dos religiosos
ria temporariamente conservar, impondo a franciscanos, que tambcm Jesus Christo e
todos os religiosos a obrigação dc obede­ os apostolos nada possuíam, quando pelo
cerem sem contrariedade áquillo que por contrario João xxii teve posilivamente por
seus superiores lhes fosse mandado. lim, â vista das questões suscitadas, defi­
Não agradou, porém, a alguns dos prin- nir este ponto: pelo que, sendo de diversa
cipacs coryphcus da desordem esta deter­ natureza o fim d’ambos ollos c a qualidade
minação do papa, não tanto pelo que res­ do seu dizer, muito bem podia este, sem
peitava ao habito, quanto á propriedade c injuria d’aqucllc sou prodecessor, c sem
uso das cousas, passando da disputa ao menoscabo da infallibilidadc, que defende­
scisma, e d’ahi á heresia, até chegarem a mos nos successores de S. Pedro, definir o
vomitar blasphcmias contra o proprio pon­ coutrario do que aquelle tinha, sóraente
tifice. opinando, ou como de passagem referido.
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Dcmãfc, suppondo mesmo (sem comtudo de parecer, como se via dos cscriptos de
conceder) que também Nicolau se tinha Adriano, Gerson, c Occamo.
proposto definir aquelle ponto de historia Nós, pois, deixando de parle pola mes­
sagrada como se propozcra João, ainda ma razão porque outras vezes o temos fei­
nem assim se poderíam notar de contradi­ to, varias circumstandas menos importan­
ctorias as suas definições, porqnc o sentido tes ou menos futeis, que cm cstylo hostil
da expressão de Nicolau era, diz uni illus- refere Fleury sobre este assumptò, respon­
trado interprete, que houve tempo em que deremos aos expostos fundamentos da ac-
Jesus Christo c os apostolos nada possui­ cusação, não ser verdade que o pontifice
ram em commum, sendo o sentido da de­ João xxn, ou antes de ventilada pelos theo­
finição de João xxu, que houve tempo cm logos no sou tempo a questão da visão bea­
que- ellcs possuiram também alguma cou- tifica, ou antes das suas declarações de 3
sa em commum: as quacs duas proposi­ de janeiro e 3 de dezembro de 1334, con­
ções, distinctos os tempos, podiam ser am­ formes á verdadeira doutrina, sobre este
bas verdadeiras, e na verdade o eram. ponto, tivesse dado em favor do erro algu­
Ora, não seria cousa mais decente c mais ma decisão como pontifico, nem mesmo co­
christã, que Bossuet empregasse o seu eru­ mo doutor particular o tivesse positivamen­
dito e sublime talento em defender a Igre­ te sustentado; o que se prova não só com
ja e o seu chefe visível das calumnias que a carta do mesmo Sancto Padre, dirigida ao
em todos os tempos lhes teem sido imputa­ mencionado rei Philippe de Valois, era que
das pelos impios c pelos hereges, do que lhe assegurava não ter feito sobre tal obje­
andar escabichando pontinhas por onde po- cto nos seus discursos mais que recitar so­
desse vêr cahidos os pontifices em suppos- mente diversos logares da Escriptura e dos
tos erros, ou em apparentes contradicções, padres, que pareciam favorecer aquella opi­
?omo esta de João xxii c Nicolau nr, para nião; mas igualmento com as suas declara­
Jizer depois com os inimigos da Igreja— ções, acima indicadas, dc 3 de janeiro c 3
que o vigário de Jesus Christo errou na fé de dezembro, em que por instrumento pú­
e na doutrina. blico e solcmne, e por uma sua bulla, cer­
tificou o mesmo que ao rei Philippe tinha
asseverado.
YI I Nós negamos que o pontifico mandasse
encarcerar Thomaz Valas, que pregava a
verdade contra o erro, mas diremos que o
O outro faclo, que por parte dos adver­ fez justamente, porque havendo tolerado
sarios se.allega contra o mesme pontifice que cada um seguisse a propria opinião
João xxii em prova da fallibilidade nos che­ emquanto a Igreja não tivesse definido este
fes da Igreja, é que elle aífirmava que as ponto, não podia entretanto permittir que
almas innocentes ou puramente purgadas qualquer individuo particular ousasse pre­
não eram admittidas á visão beatifica de venir imprudentemente o juizo da Igreja,
Deus, sem que primeiro tivessem no dia do taxando dc heresia a opposta opinião, como
juizo universal reassumido os seus corpos, fez aquellc dominicano; e ó essa a razão
contra o que depois fôra definido pelo seu porque justamente o fizera o papa encar­
successor Benedicto xxu no anno de 1336. cerar, e não pela simples opinião que se­
É certo que quando principiou a ser agi­ guia ou publicava.
tada esta questão, parecia que o papa se As ameaças do rei de França por occa-
inclinava aquella erronea doutrina, não só sião d’csta questão, ou os adversarios as
pelo que expressava nos seus discursos, e confundem com as que foram dirigidas
porque permittia que fosso prégada pelos contra o geral dos franciscános Geraud,
frades menores uma tal crença, tanto em que em Paris prégava publicamente e com
Paris como na propria cidade de Avinhão, geral escandalo e admiração o deferimen­
onde residia, mas ainda mais porque fez to da visão beatifica, as quacs a malicia
encarcerar Thomaz Yalas, da ordem dos ou ignorância de escriptorcs subsequentes
prégadores, que pública c ,ardentemente suppôz dirigidas ao papa, como se nota cm
sustentava a doutrina opposta, notando Adriano e Gerson (pois quanto a Occamo,
aquelfoutra de erronea; accrescentando ainda que coevo, era um frade apostata,
mais os adversarios—que tanto o pontifice scismatico e encarniçado inimigo do papa,
seguia aquella falsa opinião, ao menos co­ não admirando assim que lhe levantasse
mo particular doutor, que atq o rei de tão,injurioso descrédito), que dc falsos ra-
Franca, Philippe de Valois, o ameaçára mores do vulgo colheram essa noticia, e
com o supplicio do fogo se não mudasse não de veridicos documentos, que só depois
INF m
4 ’ellcs foram publicados, ou referidos por chcs, o que talvez deu causa ás desordens,
Oderieo Ha ina Ido; ou cnlào são inteira- suscitadas então no conciliabulo de Con-
incntc falsas, por quanto, além de que se stanlinopla, escrevendo depois ao mesmo
•deve considerar alheio do animo de Phi­ S. Flaviano em sentido um tanto diverso,
lippe de Valois o fazer uma tão insensata a segunda, que muito applaudida foi no
c insolente ameaça ao pontifico, o mesmo concilio do Calcedonia e alli examinada;
se comprova com as cartas d’cstc áquclle d’ondc Natal Alexandre. Bossuet c Fcbro-
soberano, em que se queixa das ameaças nio tiraram indirectas e fraquissimasinduc-
feitas aos religiosos, e nfio diz nem palavra çuos contra a infallibilidadc dos papas.
de alguma ameaça feita contra a sua pro­ Por igual razão passamos cm claro ou­
pria pessoa; além de que já o prudente rei tros argumentos, que os sobredilos Natal
não duvidava da intenção do pontifico, para Alexandre e Bossuet fundamentam no fa­
ousar ultrajai-o assim* pois que até á aca­ cto de haver Leão u convocado um conci­
demia de Paris lhe havia tarnhom já refe­ lio gera! para condemnar a heresia mono-
rido que o pontifico João xxu não suslcn- thelitajácondemnadapor Martinho e Aga-
tára jamais uma tal opinião, havendo so­ táo cm dous concilios celebrados cm Koma.
mente, como cllc proprio tinha feito saber Por causa idêntica omittimos, comocou-
-a Philippe, recitado alguns textos da Es- sa ociosa no presente caso, discorrer sobre
criptura e dos padres da Igreja: non asse­ o cap. de Graciano Sunt quidam 25. q. I,
rendo, seu opinando protulit, sed solummodo c. G, notado em PIcury na questão da po­
recitando. breza franciscana em tempo de João xxu,
Ora vejam os leitores a que vem a ro- onde se lé—que se o papa procurasse des­
•duzir-sc tanto apparato de argumentos for­ truir o que tem sido ensinado pelos apos­
çados, e improducentes com que os adver­ tolos, c pelos prophetas seria mais depres
sarios da infallibilidadc a tem querido im­ sa convencido de ter cahido em erro d
pugnar, procurando por todos os modos que ter dado uma decisão.
achar cahido em erro contra a fé ou con­ Por motivo similhante guardamos silen
tra a moral, qualquer dos successores de cio relati va mente á condemnação ou nãc
S. Pedro, sem que comtudo até agora o te­ condemnação do livro de Moitna, exami­
nham na realidade podido conseguir. nado pela congregação de auxiliis, ereada
para esse fim por Clemente viu, d'onde os
adversarios quizeram deduzir, que por hu­
VIII manos respeitos, por gratidão ou por te­
mor, deixaram cinco pontifices, pelo menos,
desde Paulo v até Benedicto xiu, trium-
Terminaremos omfim a nossa tarefa to­ phar o erro sobre eousas tão notáveis, de.
cando a questão sobre o facto relativo aos que dependiam os destinos do homem e o
ritos chineses, proscriptos ultimamcntc por modo de dirigir-se no comportamento da
Bento xiv, depois de terem sido permiltidos, vida espiritual, não condemnando, depois
em parte, por alguns de seus predecesso- de terem para isso sido instados pelos theo­
res, o que deu nova occasião de argumen- logos da opinião contraria, as doutrinas
■tos aos adversarios da infallibilidadc. d aquelle jesuíta: como se fòra cousa de
Antes porém de discorrermos sobre este acreditar-se que os pontifices houvessem
•objccto, lembraremos aos leitores o que já mostrado tal fraqueza diante dos submis­
no principio advertimos, que era nossa in­ sos e obedientes jesuítas, num século em
tenção fallar sómente dós factos mais con- que com o maior vigor e firmeza se oppo-
-sideVaveis (supposto que a proprio arbi­ zeram aos jansenistas. que eram apoiados
trio tocássemos ás vezes alguns mais ligei­ no poder terreno e na força do talento;
ros), com que se tem argumentado contra n'um século cm que tão energicamente
-a infallibidade, c não de todos numerica­ condemnaram as proposições gallicanas,
mente, não só porque desfeitos os argu­ que comtudo não versavam sobre pontos
mentos mais fortes cabiam por si mesmos do fé, e eram sustentadas por Bossuet e
os mais debeis, mas também por não tor­ por Luiz xiv; num século cm que com a
n ar mais longo e talvez fastidioso o nosso mais segura liberdade proscreveram o li­
artigo. vro das Maximas dos Sanctos, escripto pelo
Por essa razão deixamos de fallar, por sublimo Fénélon!...
exemplo, das duas cartas de S. Leão Ma­ Deixadas, pois, essas e outras muitas fu­
gno ao patriarcha Flaviano, na primeira tilidade* com que os adversarios da infal-
das quacs favorecia o pontifico por falsas libilidade nos successores de S. Pedro tecní
.informações a pessoa do heresiareha Euty- procurado combatel-a, passemos finalmen-
&
tc ú questão dos ritos chinezes, cm que rias outras dúvidas foi confirmado também
também parece fazerem os contrarios qual­ por Benedicto xiv na sua constituição E x
quer força de vela para demonstração da •juo singulari, impondo a todos os missio­
sua desejada fallibilidade. nários a obrigação de prestarem juramen­
Em memoria e para honra de Confucio, to de plena observância da constituição
costumavam alguns povos orientacs, prin­ Clementina, c não praclicarcm as exce-
cipalmente os da China, practicar certas pções ífella introduzidas pelo vigário apos­
ceremonias religiosas, e celebrar sacrifí­ to! ico, patriarcha de Alexandria, Carlos
cios, assim na lua cheia como aos nove da Mediobarbo.
lua, e em outros diversos dias do anno; Ora, nós persuadimos-nos que da singela
usando também offerecer oblaçòcs a seus narração aqui apresentada a nossos leito­
antepassados nos templos e cm casas para res se poderá bem conhecer quanto valha
isso destinadas, c mesmo em outra qual­ a contradicção entre Alexandre e Innocen-
quer parte, diante de taboletas, com as ima­ cio, e outra vez entre Clemente e Alexan­
gens d'aquelles alli pintadas: á vista do dre, dizendo um ser licito aquillo que o ou­
que, alguns missionários dos que trabalha­ tro declara prolubido. Mas assim como não
vam n’aquellcs sitios, zelosos da pureza, co­ é considerada injusta a sentença do juiz
meçaram a olhar logo como cousa super­ que como erro de facto julgou ‘secundum
sticiosa, e que não devia permittir-se aos allegata et probata, uma vez que fizesse as
convertidos á religião christã o presidir, o diligencias devidas na legalidade das pro­
ministrar, c mesmo o assistir a similhanlcs vas, assim também não pôde dizer-se que
sacrifícios, assim como fazer taes oITertas; a decisão de qualquer d aquellcs pontifices,
10 passo que outros, na esperança de mais fundada nas informações, remeitidas por
icilmcníc converterem aquellcs povos e pessoas de cujo caracter se duvidava, c
mscrval-os mais firmes, sustentavam po- examinadas por congregações de-escolhi­
3r-se-lhcs permittir aquclles ritos, consi- dos litteratos c theologos, fosse contra di­
erando-os meramenlc civis c não religio­ reito. A contradicção dava-sc nas informa­
sos. ções, que não obstante serem examinadas
Foi a dúvida apresentada em Roma, no com a prudência, humanamente possível,
tempo de Innocencio x, que por consulta deram alguma vez um resultado contrario
da congregação da Propaganda declarou á intenção do pontifico, salva todavia sem­
em 1645—não serem pcrmitlidos os mencio­ pre sobre materias de facto, no si ita csl,
nados ritos como infectos de superstição c fíat.
idolatria, accrescentando a excommunhão Temos, pois, concluído o presente, já lon­
tatee sententia?, reservada á saneia sé, aos go artigo sobre a infallibilidade do papa, de­
missionários que obrassem em contrario. monstrada pela experienda de mais de de­
Novas informações, comtudo, mais espe­ zoito séculos, em cujo largo periodo nem
cificadas e distinctas, apresentadas no pon­ um só facto se encontra com que possa
tificado de Alexandre v i i pelos missiona- provar-sc ter errado algum dos summos
narios da opinião contraria, suppondo ain­ pontifices, definindo ex cathedra, para ser
da civis aquellas ceremonias, deram moti­ obedecido como vigário de Jesus Christo-
vo a que este pontifico, por consulta da em assumpto de fé ou de doutrina, como
congregação da inquisição, em 1656, per- era o nosso proposto objecto.
inittissc d’aquel!as ditas ceremonias as que, Procuramos resumir os factos quanto era
segundo o exposto, eram inleiramcnte ci­ possível em harmonia com a clareza e ne­
vis. cessaria noticia de circumstandas que os
Cresceram então ainda mais as dúvidas, acompanhavam, omittindo outros, como já
porque além de allcgar-se contradicção en­ dissemos, que nenhuma força accrescenta-
tre as decisões de Innocencio x c Alexan­ vam aos referidos, e só podiam servir para
dre vn, cada uma das partes opposlas, cm tornar o artigo, pela sua prolixidade, im­
que figuravàhi consideráveis theologos co­ proprio do fim a (jue era destinado, porque-
mo Navarrelte e Varo, dominicanos, Bar- não foi o nosso scopo fazer um traclado-
toJi e Tellier, jesuítas, defendiam por es- completo sobre esta matéria, mas sómente
. cripto as suas opiniões, passando uns a ne­ nos propozemos dar uma indicação, que
gar mesmo a verdade dos factos expostos sirva a oHentar a opinião pública religio­
pelos outros, até que o papa Clemente xi, sa; podendo aquclles que desejarem pro­
examinadas todas as razões por um e ou­ fundar mais o assumpto consultar, v. g., a
tro lado produzidas, confirmou a decisão historia ecclesiastica do cardeal Orsi, con­
de Innocencio, prohibindo inteiramento o tinuada por Becchetti, c o seu tractado da
uso dos ritos chinezes, o que depois de va­ infallibilidade do papa, ou outras obras, de
INF 56o
que melhores informações possam ter; ao A infallibilidade do chefe supremo da
mesmo tempo que devem fugir sempre de Igreja catholica christã, não é uma crença
lêrsem a indispensável prevenção aquellas nova, ou urna invenção de partido para
historias que como a de Fleury ou de Raci- exaltar suppostas ou* exaggcradas supre­
nc fossem escriptas com infidelidade histó­ macias: é uma realidade; é uma das mais
rica, parcialidade criminosa, c animo hostil sublimes prorogativas inherentes ao pri­
contra a Igreja c authoridado ecclesiastica, mado de honra c jurisdicção, que por di­
desfigurando por isso tacs cscriptores mui­ reito divino compete ao summo pontifice,
tas vezes os factos, para fazei-os valer a como successor de S. Redro, vigário de Je­
seus fins: pois é certo que da má esco­ sus Christo na terra.
lha de livros e da falta de critica no uso e Jamais a Igreja duvidou d’csta verdade;
intelligcncia d’ellcs, tem sido muitos leito­c o recurso que no espaço de tantos sécu­
res, incautos, levados na sua boa fé a gran­ los houve sempre de todo o orbe catholico
des erros. á sancta sé de Roma, sobre as dúvidas ou
Não pertencemos a parcialidadcs ultra questões de dogma c de moral, ou mesmo
ou cismontanas: o nosso partido é o catho­ de pontos capitaes de disciplina geral, cor­
lico rebanho, estreitamento unido em fé, respondido indefcctivelrncnte pelas respe­
obediência e boa vontade ao seu unico prin­ ctivas decisões pontificias, tem prestado
cipal c universal pastor o summo pontifice, áquella mesma verdade o mais irrefraga-
bispo de Roma: e se contra elle ou a san­ vel tcstiinunho.
cta Igreja temos errado no que fica escri- Comtudo se, por um lado, a Igreja é fir­
pto, confessamos ser ex abundantia e não memente estabelecida sobre aquella pedra
ex defectu amoris, sujeitando-nos, n’essa hy-—Cephas—que não póde resvalar sem que
pothcse, com a mais prompta obediência"c sobre a sua ruina prevaleçam as porta­
rendida, submissão ao seu sapientissimo do inferno, por outra parte é assimilad.*
juizo. também, a uma barca de pescadores e
procelloso mar, que vai navegando, coi
batida sempre de contrarios e furiosos ve.
REFLEXÕES CAXONICO-IIISTORICAS tos por entre syrtes perigosas até chega
ao desejado porto: e fóra da qual, como nt
diluvio fóra da arca de Noé, não póde ha­
I
ver esperança de salvação.
E quem não vê que a violência c os ata­
Propondo-mc discorrer sobre uma das ques dos impios, as doutrinas heréticas e
mais necessarias c mais apreciáveis quali­ os sophismas dos innovadores são aqucl-
dades de que é revestido o primado de S. les tempestuosos ventos, aquellas syrtes pe­
Pedro e seus successores, não entendo nem rigosas, que ameaçam de continuo fazer sos-
é proprio d’cstc logar descer á explicação sobrar a barca de* S. Redro, a Igreja de Je­
de princípios elementares, que se suppoém sus Christo?
aprendidos nas aulas das respectivas disci­ Mas seria tão imprevidente o Divino Mes­
plinas: indicarei sómente quando venha a tre que fosse confiar o leme da barca, o
proposito alguns bons livros, que a tal res­ governo da Igreja, a um piloto a quem não
peito podem ser consultados, assim como désse a exacta noticia práctica do rumo
outros que devem evitar-se. que invariavelmente deveria seguir por en­
Supposto que o assumpto de que vou tre aquelles perigos para não fazer naufra­
tractar ainda se não acha positiva c for- gio?
malmcnte julgado pela Igreja ou por seu Ora d'isto é que ninguém da eommu-
supremo chefe, porque então não seria ne­ nhão catholica duvidou até ao decimo quin­
cessário mais do que referir o decreto ou to século, em que, segundo o historiador
bulla pontificia cm que se contivesse o seu Fleurv, começou a discorrer-se nas esco­
definitivo juizo, ha cointudo tantas razões, las sobre a infallibilidade, contrariada sem­
que direi secundarias, em favor dá verda­ pre pelos hereges e demais inimigos da
de porque pugno, que bem manifestam até Igreja, que apoz si levaram como em ou­
á evidencia qual seja sobre o mesmo obje­ tra parte disse, sobre este objecto espíritos
cto não só o sentir da igreja de Roma, que não vulgares, gênios sublimes, alguns dos
ó a mãe e mestra das igrejas do orbe ca­ quaes, por outro modo, fizeram á Igreja pre-
tholico, mas também a geral crença da elaros serviços, que mais brilhantes seriam
christandade orthodoxa, que se não tem sem aquella* mancha.
deixado illaquear do espirito de contradic- Rara não irmos, pois, com os hereges,
çào. como desgraçadamente foram, n’esta par-
566 INF
tc, grandes capacidades, é quo devemos II
procurar, na expressão do doutor maximo
S. Jeronymo, adherir e cstrcitar-nos quan­
to possível á cadeira de S. Pedro; não para Sem remontar aos tempos c des va rios
ir, fugindo de uni extremo, cahir n’outro, de Phocio, que por vingança dc lhe nao ser
que embora se supponha nào menos vicio­ approvada pela sancta igreja de Horna a
so, mas por seguir o espirito primitivo e usurpação da cadeira patriarehal de Con-
permanente sempre da Igreja, c o seu sen­ staniinopla e expulsão dc Sancto Ignacio,
tir sobre um ponto, do desprêso do qual levou a sua audacia contra a authoridade’
teem resultado para a religião o para o ge­ pontificia, a ponto dc fulminar cllo mosmo
nero humano, consequências as mais de­ excommunhão contra o papa Nicolau i, de­
sastrosas, como demonstrarei por uma de- clarando, n’uma sua cncyclica dirigida aos
dueçao (pie passo a fazer, c que nào é, ain­ bispos do Oriente, que'tanto o pontifice
da q*uc ã primeira vista o pareça, desvio, como toda a Igreja, se achavam em erro,
mas sim illucidação do assumpto. e dando assim occasião c origem ao gran­
Depois de ter feito notar cm outro arti­ de scisma, que depois de tantos seculos,
go pelos principacs factos consignados na ainda o Christianismo hoje solTrc e deplo­
historia, que costumam ser allegados para ra, começarei dc outro periodo posterior,
prova da infallibilidade, que os pontiiices mas não menos fecundo ,cm pessimas con­
nunca erraram fallando ex cathedra sobre sequências, que o desprêso da authoridade
objectos moraes ou dogmáticos, procurarei suprema do vigario de Christo na terra
mostrar agora n’cstas reflexões não só a veio lançar em todos os paizes da christan-
origem ou causa, e motivos da opposição dade.
á infallibilidade do pontifice, principalmen­ 'Fallo da quarta época da Igreja, a época
te n’cstes ultimos séculos, ein que maior da pseudo-refonna do Occidente, princi­
morra lhe tem sido feita, mas lambem as piada pelos vãos esforços de Wiclef c João
onsequencias d’ahi produzidas, indicando Ilus, e levada a eíTòito por Martinho Luthe-
as épocas respectivas os signaes de rc- ro; bastando que a prégação das indulgên­
.rovação que a sancta sé apostólica tem cias concedidas por Leão x, a lim de se ob­
.'Cmpre manifestado contra essa opinião de terem as esmolas necessarias para a fabri­
infallibilidade, tão prejudicial ao bem da ca do grandioso templo dc S. Pedro do
religião c á boa ordem e tranquillidade. Vaticano, fosse commcttida em Moguncia,
Serei longo, e talvez fastidioso aos indif­ não aos frades agostinianos, a que ellc per­
ferentes ou desafiectos a similhantes assum­ tencia, mas sim aos dominicanos, para que
ptos; mas dos leitores verdadeiramcnlc ca­ clle começasse por vingança, como por vin­
tholicos, e que apreciam, e desejam os gança tinha n’outro tempo procedido Pho-
triumphos da religião e da Igreja, espero cio, a declamar contra o abuso das indul­
e até estou certo de obter a benevola at- gências: passou d’ahi não só a combater o
tençào; hão pelo merito do cslvlo e da for­ seu uso, mas também a divulgar outros
ma do discurso, cuja mediocridade sou o muitos erros contra a fé: negou a authori­
primeiro a reconhecer, mas pelo valor in­ dade da Igreja e a infallibilidade do papa,
trinseco do seu objecto. chegando até a queimar publicamente na
Antes, porém, de tomar o fio do propos­ praça dc Wurtcmberg a condemnatoria bul-
to e indicado plano, deverei prevenir os la do mesmo Sancto Padre Leão x, c todas
meus leitores, de qualquer opinião que se­ as deerefaes dos summos pontiiices: rejei­
jam, que longe dc ser frivolo ou de pouca tou de igual modo a tradição dos padres;
entidade o principal objecto das presentes e só admittiu a Escriptura* mas interpre­
rellexòcs canonico-historicas, isto c, a pro- tada unicamente pela razão individual, pa­
pugnação pela infallibilidade do papa na ra onde transportou a infallibilidade que
decisão das questões de fé; pelo contrario, negara ao papa.
é clJe dc tanta gravidade e -importanda, Deslocada, portanto, e vulgarisada assim
quanto que a asserção opposta se acha re­ a infallibilidade, cada um se persuadiu go-
provada por Alexandre viu na vigesima sal-a em maior grau que os outros; e é por
nona das proposições por ellc condemna- isso que já os seus discipulos Melaneton,
das, que é a seguinte:— Futilis et toties Carlostadio, Zuinglio c Ecolampadio presu­
convulsa est assertio de pontificis romani miram exceder o mestre c haver subido a
supra concilium (ccumenicum auctoritate; maior auge de infallibilidade da razão in­
atque in fide qucestionibvs decernen/Iis in- dividual na interpretação da Escriptura,
fullibilUate. Tom. 9. B ultarii, pag. 96. como demonstraram nos seus juizos rela­
tivamente ao proprio sagrado corpo de Je-
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sus Christo sacramentado, negando não só de: dissolve os seus votos claustra es, c os da
a transubstanciação, como seu mestre Lu- freira Catharina de Bore, com quem se
thero, que só admittia a consubstanciarão casa em 1525: dispensa depois o Jandgra-
á maneira da união do fogo com o ferro vc de Esse, para receber uma segunda mu­
cm braza, mas accrcsccntando com igual lher, sendo viva a primeira: proclama" a
direito de inerranda que nem isso alli ha­ poligamia, c declara demais d’isso abolida
via, porém sómente uma simples figura, a missa privada, por suggestão do diabo,
um signal, um symbolo do Salvador. como ellc proprio dizia.
Ainda uma terceira infallibilidade appare- Pouco etíicazes se tornam para suster a
cc infundida na pessoa de Calvino, que pro­ devastadora torrente, assim as censuras da
fessando os mesmos erros d'aquclles con­ Igreja como as providencias do imperador,
tra a suprema authoridado da Igreja, ac- contra as quacs protestam os lutheranos
cresccntou, seguindo a já referida infalli­ (e d\ahi o nome de—protestantes—) na die­
bilidade da razão individual na interpreta­ ta de Spira, em 1529, ligando-se logo de­
ção da Escriptura—que Jesus Christo nem pois em Smalkalda, para se oppôrem por
estava no sacramento do altar por consub­ todos os meios em defensa commum con­
stanciarão, como ensinava o mestre Luthc- tra aquelle soberano, a quem apresentam
ro, nem só por figura, como diziam aquel- cm Augsburg, em 1530. pelas mãos do
lcs outros sacramentarios, mas sim estava proprio Luthero e de Melanclon a sua pro­
com a sua virtude, que mandava do céo fissão de fé, chamada a confissão de Au­
para unir, vivificar e nutrir os homens gusta.
como o sol, que permanecendo na celeste Inutilmente se succedcm as dietas sobre
região, se communica benigno á terra, este objecto em Francfort, em Ratisbona,
mandando-lhe os seus raios. Hagnenau, Spira, etc., a que faziam cara
E asssim progredindo, fortes das suas diversas reuniões Iutheranas em Sníalkalda
infallibilidades, chegaram os lutheranos das e outras partes; c o protestantismo tomr
differentes fracções"a dar mais de trezen­ tal corpo, que o imperador, julgando j:
tas interpretações diversas áqucllas sacro­ ineíficazcs todas as suas diligencias, re
sanctas e mysleriosas palavras de Jesus corre ao meio d'um concilio" geral, que
Christo na instituição do eucharistico sacra­ com effeito é, cm ultima e definitiva deli­
mento—este é o meu corpo—sem que de beração, convocado por Paulo iii, cm 1545,
tantas interpretações se podessem achar ao para* Trento: mas recusando os hereges
menos duas que inteiramenle se confor­ debaixo de varios pretextos concorrer a
massem uma com a outra na intelligcncia ellc, e passando dos argumentos seientifi-
d’aquellas palavras. cos aos das armas, seis principes allemãcs
O alarme causado por similhantes dou­ e quatorze cidades impcriacs unem suas
trinas levou forçadamente Luthero á dieta forças não só contra a igreja catholica e
de Worms, cm 1521, d’onde confundido se suas doutrinas, mas também contra a au­
retirou ao castello de Wctburg, chamado thoridade do imperador.
por ello—a sua Palhmos—e alli assistido O sangue derramado no campo da bata­
d’aquella sua infallibilidade da razão indi­ lha, em que diversas vezes foram vencidos
vidual na interpretação da Escriptura, tra- os hereges, não bastou para conter a sua
ctou de ordenar a doutrina que mais ar­ audacia; c temendo aquelle soberano os
dentemente se propunha pregar aos povos, novos esforços que ellcs eontiuuamcnte fa­
e que bem depressa- propagou por aquellcs ziam, manda publicar na dieta de Augs­
paizes, porque as suas theorias fomenta­ burg, em 1548, o sen interin, isto é, uma
vam as paixões de todos—a ambição dos profissão de fé, toda catholica, excepto dous
soberanos com a usurparão da authorida- artigos que diziam respeito ao matrimonio
de e bens da Igreja, que lhes mottia por casa dos padres, e á communhão nas duas es-
—a liberdade dòs povos com o desenfrea- pecies, para que fosse observada, cmquan-
mento ou emancipação de todo o jugo de to o concilio não produzisse as suas deci­
authoridade, principalmcntc religiosa. sões: o que foi altamente reprovado pelo
Passado aquelle pequeno revez, clle summo pontifice.
marcha de successo em successo; c já a Mas nem o interin tal qual era, nem o
dieta de Nurcmberg, que logo adiante se concilio poderam conter os extravios e as
seguiu, declara não poder dar á execução sempre progressivas exigências dos pro­
o decreto de Carlos y contra os luthera­ testantes. e novas guerras ensanguentam
nos, e o núncio do papa retira-se. ainda a Europa, combatendo-se ao mesmo
Luthero cresce ao poder fundado, já se tempo por motivo politico e religioso, até
sabe, na base elastica da sua infallibilida­ que cansados todos da guerra, vem por
«68 INF
fim a paz c o tractado dc Wcstphalia, em Calvino c Zuinglio, com a similhança da
1648, sc bem que reprovado por lnnoccn- gerarchia, culto c ceremonias da igreja
cio x, constituir o codigo politico c a pri­ catholica, c que fórma a seita anglo-calvi-
meira lei fundamental do imperio germâ­ nista reformada.
nico; c foram então legalmente reconheci­ E alli sc viu um outro exemplo, como
das, e definitivamente fundadas c estabele­ em Allemanha, do quanto póde n’esta nos­
cidas alli as igrejas protestantes pseudo-re- sa miserável natureza humana, o desen-
formadas. freameuto das paixões abandonadas a si
Os luthcranos porém tinham perdido as­ mesmas.
sim a religião verdadeira como o cnthu- Largando também agora este vigoroso
siasmo herético, c os negoeios do tempo, ramo da arvore Iutherana, convém acom­
unicamente, passaram a formar o centro panhar outro na direcção que seguira,
dos seus principaes cuidados, contagio que, igualmentc desde o principio, para Fran­
como era de suppôr, passou depois, cm pre­ ca, onde os sectarios foram conhecidos pelo
juízo da Igreja, a diversos governos catho­ nome dc hnguenotes (corredores nocturnos,
licos, como adiante sc verá. lobis-homens).
Hem depressa sc tornaram estes alli, ape­
sar da fugida dc Calvino, dc Paris para a
III Suissa, numerosos e cada vez mais auda­
zes, mesmo depois da mal succedida con­
juração de Amboise, c do geral massacre
Deixado alli o tronco da arvore luthcra- de S. Bartholomcu, attrahindo á sua falsa
na, seguirei um dc seus principaes ramos doutrina e ao seu partido, personagens da
na direção que logo no principio tomara primeira ordem, incluindo até,além de ou­
para Inglaterra c Escossia, onde os dis­ tros, um principe, que depois de ter sido
cipulos dc Calvino formaram a seita cha­ seu chefe (dos huguenotes) veio a empu­
mada dos puritanos, isto é, rigidos calvi- nhar o sceptro dc França: da razão theolo­
nistas ou presbyterianos, que acompanha­ gica passou ã razão da ‘espada, como a Al­
dos d’aquella infallibilidade da razão indi­ lemanha, c batidos muitas vezes aquelles
vidual na interpretação da Escriptura, em hereges, c muitas vezes tolerados, conse­
que Luthero convertera a infallibilidade guiram emfim que Henrique iv, seu antigo
do papa, igualaram aos bispos os simples chefe, lhes désse, pelo edito de Nantes, a
sacerdotes. liberdade de culto público.
Mas a infallibilidade de Luthero por meio Estabelecidos por este modo em França
da Escriptura, interpretada pela razão indi­ os calvinistas, é bem de suppôr o progresso
vidual, ainda não pareceu perfeita a Hc- que teriam alli as suas doutrinas, que
hert, que juntando uma nova seita de puro ainda que rejeitadas sempre pela grande
racionalismo ás trinta c nove em que alli maioria d’aquella nação, não póde calcu-
se dividiram em breve os calvinistas, ex­ Iar-se a intensidade do estrago que a sua
cluiu inteiramente a mesma Escriptura de proximidade e livre contacto causaram nos
qualquer modo interpretada; rejeitou toda espíritos, relativamente aos verdadeiros
a fé, toda ã crença, admittindo sómente a princípios da religião catholica.
razão, c esta cm sentido obvio e accommo- Luiz xiv quiz evitar esto grande mal, re­
dado. Comtudo faltava ainda a ultima per­ vogando em 1686 o edito de Nantes, e pro-
feição ao systema; c os quaclcers ou tremu- hibindo n’aquelle reino o culto público pro­
lantes, calvinistas que se diziam assistidos testante ou calvinista; mas as sementes es­
do Espirito Sancto, proclamaram, com á tavam lançadas, o contagio tinha-se com-
mesma, ou superior inerranda, a perfeita muuicado,‘ e ainda de algum modo conti­
e absoluta igualdade entre todos os ho­ nuava pela proximidade da Suissa, que se
mens. tornara o centro do calvinismo; c posto
Com taes elementos já .existentes na In­ que cm França se rejeitassem as heréticas
glaterra, foi facil a Henrique viu (o inimi­ theorias, adop*taram-se comtudo suas pés­
go do lutheranismo, o defensor da Igreja) e simas consequências.
a sua filha Izabel, deixarem-se levar da tor­ Foi o jansenismo a primeira consequên­
rente na consolidação da pseudo-reforma, cia do protestantismo applicado em Fran­
abolindo alli, nos excessos da sua vingan­ ça, jansenistas formaram uma terrível
ça, a Igreja revelada, para ser por uma seita, que usando de nova e fina tactica,
iiiais completa infallibilidade substituída nunca até alli practicada, atacou nos seus
pela legal, que não é outra cousa senão fundamentos as decisões da Igreja, dispôz
uma mistura das doutrinas dc Luthero, os espíritos, e abriu os caminhos á incre-
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dulidade do scculo decimo oitavo, que se obrigou o papa Alexandre vn não só a con-
seguiu. denmar de novo, em 1664, as proposições
Nem por janscnismo se deve entender de Jansenio, tomadas no sentido do author
somente o contheudo nas cinco proposi­ (diziam que no livro de Jansenio se não
ções de Jansenio, bispo de Yprcs, conde* continha o que a Igreja rectamcntc condc-
demnadas a primeirii vez por Innocen- mnava), mas também ordenar um formu­
cio x, e a doutrina de Qucsncll, de que lario que todo o clero devesse subscrever
fallarci adiante, mas todo o espirito que contra as indicadas distineções jansenistas:
animou esta perigosissima scita, a que disposição cstaVjuc por autíioridadc dc Luiz
adheriram insignes bispos, famosos theolo­ xiv se tornou em lei do estado, com penas
gos, magistrados, c até pessoas claustraes, aos refractarios.
de um c de outro sexo, de piedade edifi­ Não sendo isto bastante para que alguns
cante na apparenda, mas a quem faltava a bispos c varios doutores da Sarbona, con­
humildade, que é o fundamento de toda a tra quem se procedeu segundo a lei, não
virtude. continuassem ainda a multiplicar as dis­
Consistiu a principal íinura dos jansc- tineções c os subterfúgios como o obsequio­
nistas em não se separarem claramentc da so silencio, c a reslricrão mental, ele., Cle­
Igreja, depondo a divisa dos catholicos, mente ix procurou reduzir ã obediência
como tinham feito os lutheranos com as os bispos refractarios; c como depois da
suas cento e tantas di (Terentes scitas, mas promessa d’estes o pontifice não procedesse
antes mostrando querer chamar a religião contra alguns que tornaram ao vomito, a
chrislã á sua pureza primitiva; accrescen­ esta tolerante prudência chamaram p a i
do «que a Igreja apresentava a ultima Clementina, asseverando mais adiante no
phase da sua mortal carreira, que tinha conciliabulo de Pistoia, que aquellc summo
chegado á época da sua velhice, que falta­ pontifice approvára a distineção (jansenis-
va bem e rectamcntc, mas que nem sem­ tica) dc direito e dc facto, asserção que foi
pre comprchendia bem as suas mesmas de­ condemnada por Pio vi na bullá Auctorem
cisões (novo modo de negar a infallibilida- fidei, como falsa, temeraria, e injuriosa a
de), que convinha que outros as interpre­ Clemente ix.
tassem, illuminando-a sobre as suas mes­
mas palavras.»
D’aqui um grande aviltamento ao poder IV
ecclesiastico pelas contínuas dcclamaçõcs
contra os pontifices, pelas opposições per-
inanontes do poder laical c seus ministros Continuando na ligeira dcscripção do
contra os bispos, chegando-se até a expul- janscnismo, como primeira conseqiiencia
sal-os das suas dioceses, assim como aos do protestantismo applicado em França,
parochos das suas parochias, e a usar-sc de direi que cmquanto a sancta sé procurava
outros varios procedimentos, só proprios por todos os meios dcbellar as doutrinas
dos impios inimigos da Igreja. janscnisticas, mais audaz parecia tornar-se,
Nào se duvidou mesmo fingir milagres e mais estragos causar o espirito da seita,
para justificar, com a mais refalsada hypo- de que pela morte de Arnaldo se tornara
crisia, os seus excessos, enganando assim chefe Quesncll; e o quesnellismo inteira-
os simples, e dando por tal modo occasiào mente infesto dos erros já condemnados
aos incrédulos para desacreditarem os mi­ cm Baio c Jansenio, achou ardentes defen­
lagres verdadeiros. sores em França, onde fez fanatismo de­
Argumentou-se finalmente com a dis- baixo da capa dc piedade, chegando mes­
tineçao de facto c de direito, confessando- mo a passar por moda, e ató muitas damas
se já a infallibilidadc de direito, mas negan­ se tornaram qucsnellistas.
do-se a de facto, como se não houvessem Entãc, Clemente xr, querendo dar reme­
factos tão estreitamente unidos com o do­ dio a tanto mal, condemnou, debaixo de
gma, e por isso chamados dogmaticos, que graves censuras, a doutrina dc Quesncll,
se a Igreja ou o seu chefe podessem errar por decreto dc 13 de julho de 1708: mas
n’ellcs, igualmente no dogma seriam falli- parecendo a Luiz xiv pouco efilcaz este
veis. meio, pediu ao pontifico que, discutido o
E aqui principalmentc naufragaram o negocio, fizesse, por meio de solcmnc con­
elevado engenho de Pascal, a vasta erudi­ stituição, terminar toda a disputa; o'foi en­
ção de Arnaldo, as proprias virtudes, e sa­ tão que o mesmo pontifice, ouvida uma
ber de Nicolau c de Launoio, assim como congregação de cardeacs c theologos, pu­
de outros muitos que os seguiram, o que blicou cm 1713 a constituição unigenitus,
570 INF
condemnando n’clla cento c urna proposi­ Aqui deverei advertir que quando no-
ções cxtrahidas do livro das Reflexões mo­ meu artigo da infallibilidadc, prcccdcnto-
raes do referido Quesnell, com diversas mento publicado, eu disse, fallando da de*
qualificações de censuras, comprehcndidas cia ração gallicana sobre os limites do po­
a de heresia. der pontificio, que os seus objectos não
Comtudo como os espíritos se achavam versavam sobre pontos dc fé, deve enten-
prevenidos para este lance, pela mesma dcr-sc que não estavam ainda decididos-
doutrina d’aquellc chefe jansenista, despre- como taes por um modo formal e positivo;
saram-se as cxcommunhões e os interdictos porque, ou o sejam ou o não sejam, cm-
com o pretexto de ser necessario cumprir quanto á sua natureza c esscncia, é cila
com o proprio dever; continuou-sc a do- sempre a mesma, assim antes como depois
gmalisar em sentido erroneo, a. pregar, a de uma decisão; o que varia são os cfTei-
dizer missa, a administrar os sacramentos tos, como aconteceria, v. g., na questão da
(como n’estc reino de Portugal fizeram os visão beatifica, em que pouco antes eu ha­
intrusos e seus sectarios), e se viram bis­ via tocado, a qual tanto era ponto de fé an­
pos, corpos ecclesiasticos, c escolas de tes da decisão formal dc Benedicto xu, como
theologia, appellar ab abusu do pontifice o ficou sendo depois, com a differença po­
para o braço secular, c para o futuro con­ rém de não estar ainda até alli definida
cilio, que é inveterado costume dos hcrc- como tal.
ges; até que, cedendo o cardeal dc Noail- Tornando á declaração do clero gallica-
les, arcebispo do Paris, da difiiculdadc que no, isto c, dos poucos- bispos que, alli so
clle mesmo tinha, antes de uma nova expli­ acharam reunidos por ordem do rei, foi
cação, acccitou definitivamente a bulla em cila altamente reprovada pelo summo pon­
1718; e assim terminaram as controversias tifice Innocencio xi; recusando além d’isso
janscnisticas e quesnellianas, supposto con­ as bullas dc bispos ou abbadcs* a todos
tinuasse o seu espirito, que depois se intro­ aquclles, d’entre os sacerdotes, que, ha­
duziu grandomente na politica. vendo alli assistido, foram depois nomea­
Mas fazendo pó atraz, buscarei, não lon­ dos, pelo mesmo soberano, para làes em­
ge da primeira, a segunda consequência pregos.
do protestantismo applicado em França. E para que os inexperientes c pouco
Luiz xiv tinha-se tornado benemerito da aprofundadores de assumptos d’esta natu­
Igreja por haver protegido nos seus esta­ reza possam fazer uma ideia das taes liber­
dos a religião catholica, prohibindo aos cal- dades da chamada igreja gallicana, lem-
vinistas, pela revogação do edito dc Nan­ brar-lhes-hei o que dos seus fuudamcntos,
tes, o exercício público da sua commu- que são os quatro artigos, pensava certa
nhyo, c mais tarde o continuou a ser, pro­ notabilidade, cujo voto, posto não ser de
movendo por mais de uma vez a condc- theologo, deverá em certo modo ter bas­
mnação do jansenismo; mas com quanto tante péso para muita gente, como de ho­
b em - inclinado parecesse ser á religião mem, pelo menos, despreoccupado.
aquelle principe, comtudo indignado por­ Dizia, modo m ilitari, Napoleão Bonaparte,
que o papa Innoccncioxi não annuia a v a ­ supponho que em algum de seus interval-
rias exigências suas, entre as quaes se con­ los ou momentos dc moderação religiosa,
tava uma certa regalia ou isempção na pes­ que quando houvesse querido perseguir a
soa do seu embaixador cm Pioma, apossou- Igreja teria montado a cavallo nos quatro
se da cidade d’Avinhão, e mandou rcupir artigos.
em Paris, no anno de 1C82, uma congre­ Era um d’ellc?, como acima fica dito, a
gação dc bispos, de que fez parte o pro­ negação da infallibilidadc do papa.
prio Bossuet, para decidirem sobre os limi­
tes do poder pontificio.
Foram então redigidos alli os celebres V
quatro artigos, que constituem as chamadas
liberdades gallicanas; e o gallicanismo fi­
cou sendo a segunda triste consequência Depois de ter escripto as duas primei­
do protestantismo, applicado em França. ras 'consequências do protestantismo rece­
N ’estes artigos se aífirniava, entre outras bido em França, isto é, o jansenismo c o
cousas, que o summo pontifice não era in- gallicanismo, ambas as quaes atacaram o
fallivel nas suas decisões, que era inferior poder e a infallibilidadc dos summos pon;
aos concilios geraes, e que não podia dis­ tifices, passarei a fallar da terceira, que e
pensar, só por seu arbitrio, nos canones da a incredulidade.
Igreja. .' Apoiada esta na sua. derivação do pro-
INF . 571

testantismo. d’nm lado n'essa escola dc mnm hoje o pestilente corpo da moderna
alheus, do que faziam parto Vanini com os philosophia.
seus dialogos sobre a natureza, Hobbcs Assim, pois, progrediu a incredulidade
com os Mementos philosophicos e eorn o na sua devastadora marcha, c a Voltaire se
Leviathun, em quo hostilisou nào monos a uniu João Jaques Rousseau—os dous maio­
existência do Deus que os fundamentos da res corypheus da incredulidade, como Lu-
sua moral c do toda a sociedade; Locke thero e Calvino o tinham sido do protes­
polo seu systema do sensações a quo tudo tantismo.
reduziu, ato a propria moral, c sobretudo Foi Rousseau o horoc destinado a com­
Spinosa, que foi o primeiro a lançar os fun­ pletar o desenvolvimento dos princípios
damentos do moderno panthcisíno com o religiosos de Calvino, e da doutrina politi­
seu Tradado theologico-politicoe com a ca do protestante Juricu, tomando d’eslc o
obra posthuma em que mostrou que tudo anarchico systema da soberania do povo,
era Meus, e que Deus eslava em tudo (a em que fundou o seu contracto social, e
seu modo), o que tudo existia por necessi­ d aquelle a já mencionada infallibilidade
dade da natureza, etc., etc.; eis que appa- da razào individual na interpretação da
rcco Bayle com o seu diccionario a estabe- Escriplura, por cujo meio veio a descobrir
cel-a fuiidamcntalmcntc (a incredulidade), lá na sua mente o puro deismo.
desenrolando assim a bandeira da comple­ Por esse meio, pois, avançou Rousseau,
ta revolta contra a divina religião catho­ passando muito além dc Calvino, o qual
lica. negou o mysterio da transubstanciacào,
Proclamou este os direitos da razào in­ porque não pòde comprehendel-o; Rous­
dividual, negando portanto a authoridade seau negou todos os mysterios, porque to­
da Igreja, e a infallibilidade do seu chefe, dos achou incomprehensiveis á sua razão
como tinham feito os protestantes, rejei­ individual.
tando todas as crenças, duvidando de todas Assim, caminhando sempre na variada
as verdades, introduzindo aqueíla liberda­ estrada da progressiva incredulidade, se
de de pensar, que tào commoda se torna a passou do sceplicismo de Bayle ao despre-
todas as paixões humanas; c viram-sc logo so de Voltaire, e d’este ao deismo de Rous-
cnfiloirados a seu lado os chamados espí­ scau.
ritos fortes. Mas a um outro ainda mais insondavel
Mas a abstrusào dos princípios de Bav- abysmo se dirigia aquella batida yia de
le, e a longa e incommoda leitura dos seus progressos, e por ella correram direitos ao
grossos volumes, nào estavam ao alcance atheismo llelvecio, Diderot, d’Argens, Mi-
de todos: Voltaire, o poeta energumeno, o rabeau, c outros taes philosophos, que ata­
primeiro que deshonrou o nome de philo­ cando todas as verdades, querendo tudo ex­
sopho, substituindo-o pelo de espirito forte, plicar no systema da natureza, não acha­
veio desfazer c aplanar este embaraço, re­ ram no homem senão matéria, na socieda­
correndo, por meio de pequenos opusculos, de nada mais descobriram que a força phy­
ás armas da ironia contra os objectos mais sica, c no mundo só admittiram o acaso.
sagrados da nossa crença e do-nosso culto. Ao systema d estes philosophos dou com­
Cobrindo-so com todas as mascaras, fez plemento d’Alembert com a sua Encyclo-
quanto era possível por diíTundir os ger- pedia, que em todos os ramos da scieucia
inens da corrupção religiosa e moral: phra­ humana encheu dVaquellc atheismo, que
ses sontimentacs, falsas citações, pomposa pretendia arraigar no coração dos povos:
erudição, sophismas, grande impostura de e d’esta maneira se estabeleceu em Fran­
bencííceneia c humanidade, descripçòcs c ca, e ramificou por toda a parte aquella
pinturas voluptuosas, nada omitliu pára le­ seita de modernos philosophos, que des­
var ao fim o seu plano, coroado aos sons truindo as crenças religiosas e as anti­
dos ekeeraveis gritos—massacrai o infa­ gas instituições, leem sido os mais arden­
me... tes apostolos da incredulidade...
Ora, assim como a doutrina de Bayle ti­ Todavia sitnilhantes doutrinas eram re­
nha produzido os chamados espíritos fortes, batidas pelo clero, c refreadas pelo poder
assirn do progresso de Voltaire, na mesma civil, que na generalidade ainda procurava
carreira, nascoram outros cavalhc irosin- conservar intacta a fé, e illibados os costu­
titulados bellos espíritos, que muito á von­ mes: n’cstas circumstandas, para melhor
tade c com absoluto dominio reinaram, poderem difTundir-se taes doutrinas, recor­
principalmcnto no tempo e na corte de reu-se ao meio das sociedades secretas,
Luiz xv: e esses espíritos fortes c espíritos cujo duplicado fim é destruir o altar e o
bellos, são os que animaram e ainda ani- throno, libertando-se de toda a sorte d’au-
572 INF
thoridadc, ou procurando dominal-a, por chtc, c do escocez Rcid, admittiram a dou­
quacsqucr mcios^quo sejam, ainda os niais trina do panthcismo, negaram o peccado
infames. original, c teem proclamado a theoria do
Alliados os philosophos coni os illumina- progresso continuo, ou uma indefinida c
dos das sociedades secretas, que depois se illimitada pcrfectibilidadc da natureza hu­
chamaram principalmente franc-maçues ou mana, tanto no conhecimento da verdade,
pedreiros liores, não houve dique'a op- como na civilisação, na industria, e até ná
pôr-sc á devastadora torrente. propria religião, que tendo sido no princi­
A mais horrorosa consequência das dou­ pio, dizem elles, formada pelo homem im­
trinas religiosas e politicas d’estcs moder­ perfeita, é sempre capaz de maior perfei­
nos philosophos, publicos c secretos, depois ção; c este tão decantado systema progres­
da cxtincçfio dos jesuítas, como disposição sista vem a ser considerado debaixo de
preparatória, foi a grande revolução de tres relações, isto é, como industrial, poli­
França, que fez gemor a humanidade, tico, c religioso.
inundando de sangue c de desgraças to­ Comtudo, jã depois d’cstas se teem visto
dos os paizes da Europa, começando a pôr outras mais recentes evoluções da incre­
em execução os votos de Didcrot c de Mes- dulidade: c deixando de parle o magnetis­
licr, que desejavam fosse enforcado o ul­ mo ou mesmerismo, que do seu inventor
timo rei com as tripas do ultimo sacerdo­ Mcsmcr, allemão, derivou este nome, por
te: c a religião c a Igreja soíTrcram males cujo systema se tem querido provar que
tão graves, que não é possível calcular os prophetas não foram senão uns magne-
nem descrever. tisadores, que os milagres de Jesus Christo
Apparecèu logo o seu fruclo religioso só foram elfeitos do magnetismo animal, c
na constituição civil do clero, cm que se que os sacramentos, de nenhuma parte se­
transtornava*grandemente a ordem eccle­ não dalli, tiravam os seus eíTeilos, con­
siastica, desconhecia-sc de todo a authori- cluirei com duas palavras sobre os novos
dade do summo pontifice; c passando mais racionalistas, uns racionalistas mais alam-
adiante, abandonada totalmentc á fé chris- bicados e não menos impios, porém mais
tà, proclamou-se a deusa da razão, substi- perigosos que os da antiga escola do cal-
tuiu-se ao Christianismo a idolatria. Nem vinista Hcrbert.
(Taquellcs impios c anarchicos princípios Estes novos racionalistas teem querido
e meios podiam esperar-se quaesquer ou­ que a philosophia c a razão humana de­
tros melhores resultados: comtudo devia vam prevalecer em tudo: os seus princí­
também chegar um feliz revés depois de pios, que foram aprendidos de Kant, de
tão infaustos triumphos: a abominação li­ Schelling, do Hcgel, de Jacobi c d’outros,
nha subido ao seu mais alto ponto d’asccn- applicaram-os também â scicncia da reli­
são; era forçoso descer, c então começou a gião, c d’esta fusão philosophica e amalga-
rcacção religiosa, despertada por Chatcau- mica com os antigos princípios da theolo­
briand, robustecida c fortificada por Ilo.- gia nasceu o novo racionalismo, que para
nald, le Maistre, Ia Monnais (cmquanto não melhor ser explicado se recorreu ao syste­
aberrou), e Haller; mas como este objecto ma dos mythos, pretendendo assim provar-
parece d\algum modo conduzir a outro fim, se que a religião christà tendo principiado
proseguirei ainda a mostrar as novissimas mythica ou fabulosa em parte, precisa ser
e ultimas evoluções da incredulidade até depurada pela philosophia para se tornar
aos nossos dias e" meado d’este século xix. completamcntc verdadeira.
Vieram pois os san-simonistas ou san- Por ultimo apparcceram os communis-
•simonianos (progressistas), assim chama­ tas e socialistas, abortos tão informes, que
dos do nome do seu chefe Henrique de não merecem uma séria definição.
Saint-Simon, que sem abjurar o Christia­ E eis-aqui teem os meus leitores a ligei­
nismo, expôz somente nos seus escriptos, ra dcscripção da terceira consequência do
em que todavia publicou alçuns uteis co­ protestantismo recebido cm França, isto é,
nhecimentos industriaes, ò. desejo que ti­ a incredulidade apresentada cm todas as
nha d’uma nova explicação da doutrina suas fôrmas, c cm todas cilas contraria
de Jesus Christo, como se os pontifices c sempre á inlãlibillidadc dos summos pon­
os padres da Igreja não tivessem ainda tifices c sã doutrina da igreja catholica
.acertado com o seu verdadeiro sentido! christà.
Fallecido este no anno de 1825, intenta­ VI
ram os sectários desenvolver e reduzir a
•systema os seus princípios; c tomando al­ Ao espantoso quadro dos desvarios da
gum as idéias philosophicas do allemão Fi- razão humana abandonada a si mesma, ex-
INF 573

posto nas quatro precedentes partos d'cs- novembro de 1778, annunciada por Pio vi
tas reflexões, darei agora mais um retoque no consistorio de G de dezembro do mesmo
! para ficar, senão completo, porque isso exi­ anuo: sendo conUudo para lamentar que 0
giría rnelhor pincel, ao menos cm estado perjuro voltasse depois ao vomito.
tal, que bem claro apresente aos olhos do Do mesmo grêmio sahiu um Eybcl, pro­
observador 0 assumpto a que fora dedi­ fessor de direito canonico em Vienna, que
cado. sendo já bem conhecido pelo seu livro con­
Voltarei ao meado do século xvm, em tra a confissão auricular, condemnado por
que os libertinos de França, os pseudo- Pio vi no breve Mediator, apparcccu de
philosophos, assim d’aquellc* pai/, como da novo a público na occasião mesmo cm que
Allemanha c de quasi toda a Europa, co­ elle, summo pontifice, determinava passar
meçavam a vomitar 0 veneno, que desde á Allemanha, dando á luz um opusculo
muito tempo haviam engendrado ern seus intitulado Qnid est papa? com 0 depravado
apertados ccrebros. fim de fazer suíTocar os sentimentos de ve­
Não tardaram os soberanos a deixarem- neração c respeito d,aquelles povos para
sc fascinar de certas apparendas, que com a saneia sé dc Roma e 0 seu bispo,
aquelles philosophos lhes representavam vigário de Jesus Christo.
como uteis c necessarias ao engrandeei- E é de notar que 0 cscriptor procurava
mcnlo do seu poder 0 prosperidade de seus authorisar-se com a doutrina gallieana dos
estados, e cahiram no laço, que não soube­ quatro artigos; não obstaute isso foi 0 Quid
ram ou não quizeram evitar. est Papa do professor Eybcl, condemnado
A Igreja, contra quem principalmentc se pelo mesmo sancto nadre* Pio vi no Rrcvc
encaminhavam os seus desígnios, solíreu Super soliditate de 28 de novembro de 178G:
muito; mas os proprios soberanos não teetn 0 author foi desterrado, c 0 seu livro pro­
soflrido menos por essas suas criminosis­ scripto igualmente pela authoridade civil.
simas leviandades, nem menos soíírcram As pessimas idéias tinham-sc divulgado,
os povos que a Providencia Divina con­ e 0 clíeito devia esperar-se mais ou menos
fiara a seus cuidados, e de que haverão de proximo. Não tardou muito, apparccendo
dar estreitas contas aquelles principes dian­ bem depressa um plano de reforma, que
te do supremo juiz dos reis c dos povos nada menos trazia comsigo do que a dis­
' da terra. posição para um scisma.
Progrediram em Allemanha. também Tomou-se pretexto da jurisdicção, que 0
| como cm França, as consequências do pro- summo pontifice mandava exercer alli pe­
! testantismo, applicando-sc as falsas idéias los seus delegados, prinçipalmente quanto
I philosophicas á policia ecclesiastica; c 0 ás dispensas matrimoniaes, como creio que
; peior é que introduzidos os reformadores se fez já aqui, 0 que além dc tornar-se
' no grêmio do clero, d’alli sahiu em 1764 mais commodo para os próprios recorren­
! um Febronio, isto é, um João Nicolau Hon- tes, foi 0 que livrou aquelles paizes de se­
j theim, bispo de Miriofita, com 0 livro in- rem de todo absorvidos pelo protestantis­
I titulado Justini Febronii de statu prwsenti mo.
_ Ecdesice liber, obra fcita.no gosto c espi- 0 proprio imperador José 11 foi 0 pri­
: rito dos novos canonistas-philosopl)os, que meiro a supprimir por seu decreto 0 exer­
Jtodos se esforçavam por desnaturar 0 go- cício de tal jurisdicção, e logo tres arcebis­
1 verno da Igreja e destruir a authoridade pos eleitores, 0 de Colmnia, 0 de Mogun-
_ legitima do seu chefe supremo, renovando cia e o dc Treveri, unidos ao arcebispo dc
l todas as maximas dos protestantes contra Salzburg, formaram a chamada confedera­
~~as authoridadcs ecclesiasticas. ção religiosa de Ems, approvaram os vin­
Similhantc livro, confulado logo por mui- te c tres artigos scisinaticos alli redigidos
j tos theologos, espccialmenle pelo jesuíta pelos seus deputados, e começaram a dar
Francisco Antonio Zacharias, que lhe op- á execução 0 seu plano dc usurpação e re­
■ poz 0 seu Anti-Fcbronio, 0 ainda depois 0 beldia contra a suprema authoridade pon­
B Anti-Febronius vindicatus, em que, defen- tificia.
“ dendo os direitos e prorogativas da sancta Não cessava 0 núncio cm Colonia, de­
Bsé de Roma, lançava por terra os anarchi- pois cardeal Pacca, de advertir aos naro-
cos princípios cVâquellc corypheu dos pseu- chos do eleitorado os inconvenientes ue tal
do-eanonistas, foi por fim condemnado por procedimento: nem Pio vi omittiu meio al­
Clemente xm, no breve dirigido ao princi­ gum de fazer tornar ás antigas maximas
pe Clemente da Saxonia, bispo de Rapbtis- aquelles bispos extraviados, até mesmo di­
bona, perante quem 0 aulhor d’aquclla pro­ rigindo breves a cada um d’elles, c mos­
xim a obra fez a sua retractação no l.° dc trando-lhes que as suas prctcnçòes não só
374 INF
eram sem fundamento, mas até sc torna­ mittiam-se os systemas de Raio c de Qucs-
vam perniciosissimas pelos terríveis effei- ncl, c uma parte da doutrina de Jansenio
tos que produziram na Igreja. propondo-se por ultimo a convocação d ê
Entào os dous arcebispos de Treveri e um concilio nacional (que com eíTeito s c
de Moguncia se arrependeram de ter en­ convocou para Florcnça, porém «cm rosul-
trado na revoltosa liga, voltaram aos seus tado, porque os bispos alli reunidos não a n -
deveres, e se congrassaram com o papa: nuiram ás cxtravagancias de Ricci c d ese­
acontecendo que os outros dous, o de Co­ jos do gran-duque.)
lonia, e o de Salzburg, no desterro a que Então Pio vi, pela sua bulla Auctorem fi­
depois as guerras da geral revolução eu­ dei, dc 28 dc agosto dc 1794, condenmou de­
ropéia os 'condemnaram, desejassem bas­ baixo dc diversos respeitos ou qualificações
tantes ^quellas nunciaturas que primeiro oitenta c cinco proposições extrahidas*das
tanto tinham aborrecido. artas e dos decretos d’aquellc synodo, e e n ­
Assim acabou a tal confederarão de Ems: tre estas sete como heréticas, sendo u m a
c o mesmo imperador José n, que varias d’ellas a seguinte (completa negação da in -
leis tinha feito promulgar contrarias á li­ fallibilidade do papa): «que nVstes ultim os
berdade c authoridadc da Igreja, sc doeu tempos se tinha espalhado uma obscurida­
do.seu pcccado, c oito dias antes da sua de geral sobre muitas verdades importan­
morte mandou que fossem revogadas, que tes da religião, que são a base da fé e da
se o não foram logo como elle ordenara,- moral de Jesus Christo.»
houve comtudo grande moderação no seu E entre varias outras cousas, reprova es-
uso, e hoje ainda mais pelas optimas dis­ pecialmentc o mesmo sancto padre Pio v i
posições do actual imperador para com a que os padres d,aqucllc synodo houvessem
sancta Igreja. inserido nos seus decretos dc fé os quatro
Estas politicas anti-religiosas communi- artigos da declaração gallicana, reprova­
cavam-sc rapidamente de paizes a paizes e dos também já não* só por Innoccncio x i,
de nações a nações; e já os governos de como n’outro logar se disse, mas de novo
Portugal, de Nápoles, de Parma e outros, proscriptos por Alexandre viu na bulla In­
tinham mostrado disposições hostis contra ter multiplices. E d’estc modo tiveram fim
a religião c a saneia sé de Roma: porém a aquellcs desvarios de Pistoia, a que se se­
Toscana, onde reinava o grande duque Leo­ guiu a rctractação do seu principal author,
poldo, irmão do imperador José, de quem o bispo Ricci, que arrependido dc seus er­
aquellc principe recebera ordem de defen­ ros c humilhado diante de Pio vu, pediu e
der alli as novas doutrinas recebidas cm obteve o perdão e a paz da Igreja, a quem
Allemanha, sobresahiu mais n’estas evolu­ tanto havia oiTendido.
ções contra a igreja catholica. Ora, se no sentir dos jansenistas de Pis­
E na verdade foi escandaloso em sum­ toia sc tem te s te s ultimos tempos espalha­
mo grau o celebre cònciliabulo de Pistoia, do uma obscuridade geral sobre muitas
reunido n’aquella conformidade por ordem verdades importantes da religião, que sàu
do bispo da mesma cidade do Pistoia e de a base da fé e da moral dc Jesus Christo,
Prado, Scipião Ricci, um dos mais arden­ segue-se que a luz da fé faltou ao vigário
tes contradictores das prorogativas c autho­ dc Jesus Christo, pastor dos pastores, bis­
ridadc do chefe supremo da Igreja. po da igreja dc Roma, que é a mãe e mes­
Depois de ter procurado dispor os ani- tra de todas as igrejas da christandadc ca­
nios por todos os meios, que a sua malícia, tholica, o qual está julgando continuamen­
protegida pelo gran-duque lhe põdc sugge­ te pontos de fé e dc doutrina, assim nas
ri r para elevar a eíTeito o seu revolucioná­ consultas que dc toda a parte sc lhe fazem,
rio plano, e despresadas as letras pontifi­ como na condemnação dos livros prohibi-
cias que lhe dirigira Pio vi para dcmovcl-o dos sobre toda a sorte dc matérias religio­
do seu mau proposito, elle ao contrario sas, c sc lhe faltou a luz da fé indispensá­
mais orgulhoso c cnsoberbecido convocou vel para esclarecer as trevas do erro, c
um synodo dos seus padres diocesanos com consequência neccssaria'quc elle seja falli-
o fim de sc proporem alli determinações vel. Mas como entre os princípios c as suas
aptas,a reformar a Igreja. necessarias consequências se dá uma gran­
Com eíTeito, a 18 de setembro de 1786 de similhança, sc não identidade de natu­
se fez a abertura do synodo, começando- reza, c aquellc principio estabelecido no
se por dizer que a Igreja podia estar su­ conciliabulo do Pistoia é herético, avaliem
jeita a alguns dias de obscuridade c de os leitores como deva ser reputada a natu­
trevas: adoptavam-se depois os quatro ar­ reza da consequenda.
tigos da declaração gallicana de 1682: ad-
INF 575
VII que só tende á dissolução c esvaimento do
corpo mystico de Christo, que é a sua
Igreja.
Concluindo estas reflexões, que lenho of- Pelo contrario o dom da infaliibilidade é
fcrecido á consideração de meus leitores, aquella mão poderosa, que o Salvador es­
para avaliarem os efíeilos da opinião con­ tendeu a Pedro sobre as aguas, para não se
traria á infaliibilidade do papa, c pondera­ submergir.
rem a reprovação que da parte da sancta O dom da infaliibilidade é o aço que tem­
sé de Roma, que é mãe e mestra de todas pera e fortifica os elos da grande cadeia da
as igrejas do orbo catholico, tantas vezes aulhoridade com que o primeiro pastor li­
tem merecido a sobredila opinião opposta ga c une a si e cm roda de si as ovelhas
á infaliibilidade, recordarei em poucas pa­ e cordeiros do rebanho, que Jesus Christo
lavras o que mais diíTusamcnte fura cscri- lhe confiara.
pto pelo decurso d’estas mesmas reflexões. Sem a crença da infaliibilidade tudo se­
Mostrou-se como do despréso da autho- riam dúvidas,*tudo embaraçoso contradic-
ridade e negação da infaliibilidade pontifi­ ções, tudo escrúpulos, tudo* opiniões, tudo
cia nascera o íutheranisino ou o protestan­ incertezas.
tismo com todas as suas varias c multipli­ Sem o dom da infaliibilidade correría al­
cadas fracções, por confiar-sc mais na au- guma vez fóra do rumo a barca de S. Pe­
thoridade da razão individual do que na dro, em direcção ás ignoradas syrtcs, onde
do vigário de Jesus Christo na terra; sem remedio naufragaria.
Viu-se que do protestantismo, publica­ Negar este dom ao vigário de Jesus
mente estabelecido, sobretudo cm França, Christo, seria blasphcmar da Providencia
resultaram como immediatas consequên­ divina, que prevê e dispõe sempre as cou-
cias, c todas oppostas á infaliibilidade do sas com uma sabedoria infinitameute su­
papa, o jansenismo, gallicanismo e a incre­ perior á limitada intelligencia humana.
dulidade nas suas variadissimas fôrmas, que Este é o sentir da primeira cadeira, a
por toda a parte foram grassando; sancta sé apostólica romana, mãe e mestra
Não deixou de notar-se como em Allc- de todas as igrejas da christandadc.
manha, o mesmo na propria Italia, se pro­ Esta é a doutrina que alli se ensina nas
curou também fazer prevalecer o jansenis­ escolas, e se defende nas academias; nem
mo c gallicanismo, sempre, porém, acossa­ outra seguiram os authorcs alli adoptados
dos pelas bullas pontificias, que os conde- para o ensino elementar, como Devoti para
mnavam, c algumas vezes pelas mesmas 0 direito canonico (podem vêr-sc os cscri-
leis civis, que os puniam como a Eybcl, ou­ ptores por clle indicados sobre o presente
tras polo remorso da consciência, que os assumpto, isto é, Bcllármino. Melchior Ca­
forçava á rctràctação como ao bispo de Mi- no, Serry, Orsi, Rallcrine, Veith, Machio,
riolita, author do* Febronio, ou ao bispo ceteriquc).
Ricci, principal instrumento do reprovado Este é o pensar de todo o clero orthodo­
*synodo de Pistoia. xo, e não faccioso contra a authoridade e
Dcscobrc-sc, portanto, cxcellentcmcnte prorogativas do summo pontifice: e tal fi­
por todo o decurso das mencionadas refle­ cou sendo a crença do clero de França
xões, que existe de continuo dentro do uni- mesmo depois da surpreza que lhe fez Luiz
■ • versai rebanho, que junto com o seu supre- xiv, induzindo alguns do mesmo clero a as­
I mo pastor fôrma a igreja de Jesus Christo, signarem a declaração galUcana dos qua­
existe, digo, uma. facção opposicionista, que tro artigos, que tanto ainda querem abra­
longe de procurar estreitar sempre cada çar hoje os pscudo-lhcologos e canonistas
I vez mais, como deve fazer todo o bom fiel, modernos.
os laços de união c unidade, que é indis­ Eis-ahi, pois, como quarenta c oito annos
pensável na igreja catholica entre os mem­ adiante pensava sem adulaçucs o verda­
bros, que são os fieis, c a cabeça, que é o deiro clero de França, que reunido no dia
papa, para que possa vcrificar-sc o unum 11 de setembro de 1730, assim escrevia e
ovile, unus pastor, una fides, ao contrario expunha a Luiz xv:— «Senhor, procura-se
forceja sempre por debilitar c abater a pon­ apagar no coração de vossos subditos a
tificia aulhoridade, procurando csbulhal-a adhcsão á cadeira de S. Pedro, que distin­
d’aquellas prorogativas, que a tornam mais gue a Igreja de todas as seitas que d’ella
respeitável, mais digna de ser obedecida, se teem separado; procuram-se todos os
! mais apta para consolidar a união c a uni­ meios para expôr ao despréso a pessoa c
dade, sem a qual não pôde existir a Igreja. as decisões do pac communi dos fieis. Se­
Essa opposição é uma força centrifuga, nhor, que desordens não vemos c não tc-
576 INF
mos nós a temer? Nós o dizemos com dór, das sobre o modo de escapar á cumplicida­
a subordinação cada dia sc enfraqueço, a de do mesmo scisma, dignou-sc sua san-
fó se perde, a heresia triumpha, c a incre­ etidade louvar muito, na sua resposta o
dulidade, mais tcrrivcl que a heresia, apro­ zelo dos recorrentes na defensa da sã dou­
veita estas desordens. Fazei parar, ó Se­ trina sobre os direitos pontificios, liberda­
nhor, com a vossa protecção o progresso de da Igreja, etc.
d’estes males. Yós nao reinareis sobre vos­ Ora um dos artigos da referida exposi­
sos subditos com maior segurança do que ção, ó o seguinte: «Por essa razão dizem
quando fizerdes que a religião reine sobre e ensinam que o dom da inerranda ou in-
clles. Na submissão á Igreja elles aprende­ fallibilidadc que Jesus Christo pedira ao
rão a obediência e a fidelidade que se vos Eterno Pae, c d’cllc continuamente obtive­
deve; e respeitando a sua apostólica au- ra cm favor de Pedro, como a pastor convi­
thoridade, clles respeitarão mórmenlc a nha, para que houvesse na Igreja quem na
vossa.» fó confirmasse aos romanos pontifices, fòra-
Nào se attendeu ao clero de França: os llies transferido cm perpetua permanência,
tristissimos tempos chegaram, c as calami­ por bòcca dos quacs ó Pedro que falia e ex­
dades presagiadas: e como se portou clle põe a verdade da fó aos que a procuram. *
com poucas cxccpções? O sangue derra­ 0 contheudo n’cste artigo, como cm to­
mado, as perseguições, c os desterros, at- dos os outros da exposição do doutrina,
tcstain a sua fé e á sua adhcsào á cadeira que é uma protestação dé fó, foi approva-
de S. Pedro. do pelo summo pontifico, do seguinte modo:
O mesmo concilio, convocado por Napo- Dia 29 de abril de 1840. Ouvido o sanctis­
leão, e aberto em Paris a 17 de junho de simo padre. A sagrada congregação dos
1811, posto que debaixo do terror c das negocios extraordinarios, a que o sanctis­
bayonnetas, respeitou de tal modo a au- simo padre, nosso senhor, por Divina Pro­
thoridade c prerogativas pontificias, que videncia papa Gregorio xvr, cominettcu o
nào annuindo o sancto padre Pio vii, ape­ conhecimento da representação feita a sua
sar de preso cm Savona, ao que Napoleào
alli queria julgado pelos bispos, estes vol­ 1 Quamobrcm dicunt ac doccnt inerran­
taram para as suas dioceses, o concilio na­ tia;, seu infallibilitatis dotem pro Petro, u ti­
cional, presidido pelo cardeal Fcschi, bispo que vclul pastore, a Jcsu Christo rogatam
de Lcào, primaz das Gallias, ficou cm nada, et certissime obtentam, ut nempe semper
c o imperador calou-se, procurando outros adesset in Ecclesia qui fratres confirmaret
meios de obter o seu intento, porque ain­ in fide, ad romanos pontifices, per quorum
da nào julgou que este fosse na sua gene­ os loquitur Petrus et praestat quwrcntibus fi­
\ ralidade o adulador e condescendente cle­ dei veritatem, ut perpetuo permaneret, com­
ro das liberdades gallicanas dos seus qua­ measse...
tro cavallos, segundo a expressão acima. Die 29 Aprilis 1840. E x audientia san­
E quanto n’estcs ultimos tempos sc te­ ctissima Sacra Congregatio negotiis eccle­
nha mostrado verdadeirameute orthodoxo, siasticis extraordinariis preeposita, cui SS.
defensor das boas doutrinas, c adherente e Dominus Noster Gregorius divina providen­
submisso á sé apostólica o clero de França, tia P. P. X V I cognoscendas tradidit litteras
se se exceptuarcm alguns pouquíssimos a plurimis ecclesiasticis viris [Regni Lusi­
aduladores ambiciosos, que nunca deixam tania; ad sanctitatem suam datas 23 Julii
d’apparccer n’uma ou n’outra parte, 6 cou- 1839, omnibus, qua; in illis exposita sunt,
sa tào notoria, que não precisa illucidação. sedulo graviter que perpensis, primum qui­
Mas eu tenho um outro motivo especial e dem debito laudum preeeonio prosequiliir
pessoal que me confirma na crença da in- oratorum studium insana doctrina super
fallibilidadc nos romanos pontifices, com o juribus Summi Pontificis, Ecclcsiwque liber­
qual terminarei as presentes reflexões. tate, et sacris immunitatibus propugnanda:
Quando eu tive a honra d e ' ser esco­ deinde vero ad dubia ab Oratoribus ipsis
lhido, ainda que sem merecimento meu, proposita respondet... etc. Quibus SS. Domi­
por diversos ecclesiasticos respeitáveis, em no Nostro relatis per me infra scriptum en-
1839, para ir juntamenlc com o doutor nunciaUe Congregationis S am e Secreta­
Manoel dos'Santos Lcça, apresentar ao rium , sanctitas sua hujtismodi Respontio-
sancto padre uma exposição da fó que pro­ nem benigne in omnibus approbavit, cam
fessava, e disciplina que'seguia, uma par­ que Oratoribus dari praecepit. Datum Ro-
te grande do clero de Portugal, que procu­ mce e Secretaria ejusdem Congregationis,
rava evitar o scisma, e pedir uma decisão die, mense, et anno praedictis.— Joannes
apostólica sobre as dúvidas então suscita­ Brunclli, Secretorius.
INF 577
sanctidade, com data de 23 de julho de que se desvanece, attendcndo-sc a que o
1839, por muitos ecclesiasticos de Portu­ sancto pontifice Gelasio. i se referia, como
gal, depois de examinar attentamentc e póde vér-se na Glossa, ao cscandalo, por
com madurcza quanto n’ella se .contém, ser então ura vchcmente indicio de here­
elogia, primeiro de tudo, com a devida ac- sia, que davam aquelles catholicos, que á
clamação de louvores, o zelo dos recorren­ imitação dos manicheus, se abstinham do
tes na" defesa da sà doutrina sobre os di­ calix "na communhão, recebendo sómente
reitos do summo pontificado, e da liberda­ a especic do pão, quando lhes era livre
de e sagradas immunidades da Igreja: de­ receber também a do vinho, como gcral-
pois d’isso, respondendo ás dúvidas que os mente se practicava naquellctempo.
mesmos oradores propocm... ctc. Segue-se o facto attribuido a Vigilio,
O que tudo sendo proposto ao sanctissi­ que dizem condemnára ii’urna sua episto­
mo padre, nosso senhor, por mim, abaixo la a crença de duas naturezas em Christo:
assignado, secretario da referida congrega­ mas tal epistola, como diz Baronio, ad an.
ção, sua sanctidade houve por bem appro- 538, § 15, ou é apocripha, ou então foi es-
var benignamente esta resposta cm todas cripta antes do legitimo papa, ern tempo
as suas partes, c determinar que assim de seu antecessor Silverio; porque depois
fosse dada aos recorrentes. Dada em Roma dc papa—nullus, affirma Bellarmino, in­
pela secretaria da mesma Congregação, no ventus est in eo aut error aut erroris si­
dia, mcz, e anuo supra.—João Brunclli, se­ mulatio, sed summa constantia in fide us­
cretario. que ad mortem, ect., nem aliás deixariam
Depois d’isto nào comprehendo como o os summos pontifices e os padres dos sub­
fiel christão possa deixar de crér o que tão sequentes concilios de fazer nisso reparo,
explicilamente crê c confirma o summo como fizeram relativamente ao papa Hono­
pontifice, cabeça da Igreja, vigário de Je­ rio em objecto assimilado, qual eram as
sus Christo na terra. heresias dos monothelitas.
Quem preferir no assumpto proposto a Vem depois o nubat magis da resposta
sua individual razão, ou a dos seus com- attribuida a S. Gregorio ni, de quem o car­
partidarios, â razão divinamente illustrada deal Baronio, ad an. 731, § 1, faz um juizo
d’aquellc que, por legitimo direito, occupa tão vantajoso, que o compara a S. Grego­
a cadeira de S. Pedro, acautele-se do abys- rio Magno; tornando-se bem notável a sim­
mo, que a sua mortal luzerna lhe não po­ plicidade de Graciano (ainda que ninguem
derá fazer descobrir senão depois do tom­ ignora a sua falta de critica na collecção
bo fatal. que fez, todavia cstimavcl n’aquelle tempo
Da minha parte procurarei sempre mar­ pela novidade) em suppor que aquellc pon­
char á luz clara da doutrina, que, partindo tifice fosse capaz d’um tal absurdo, que ne­
da suprema cadeira de Pedro, esparge por nhum fundamento póde ter nos seus pre­
todo o mundo os seus vivos esplendores. cedentes, nem póde combinar-sc com a sua
reconhecida illustração, nem com a sabe­
doria c prudência cóm que plenamente sa­
ALGUNS FACTOS OMITTIDOS NO ARTIGO tisfez ás diversas consultas feitas pelo apos­
DA INFALLIDILIDADE DO PAPA tolo ^Allomanha S. Bonifácio, nem com a
firmeza de fé c constanda intrepida que
mostrou contra os hereges inimigos da re­
Por uma circumstaneia especial, c sem ligião e da Igreja.
exemplo para o diante, porque não tem "D^ondc deve eoncluir-se que ou o texto
aqui logar compôr tractados, mas somen­ é mutilado c não deixa comprehender o
te encaminhar opiniões pelas sendas que verdadeiro sentido do author, ou é apocri-
devem seguir no labyrinto de mais ou me­ pho, e deve ser por isso rejeitado in limi-
nos rasoaveis ou complicadas questões, ne, sendo fóra d'isto inuteis quaesquer
volto a esclarecer o mais rapidamente que combinações a que queiram esforçar-se os
mè seja possível, alguns factos omittiaos interpretes; pelo que não póde tal passa­
no artigo— Da infallibilidadc da napa— gem, como se apresenta, ser adduzida para
com que, mal interpretados ou mal appli- fundamento d’accusação contra a infallibi-
cados, também se poderia querer comba­ lidade dos summos pontifices.
ter. a dita infallibilidade. Quanto á resposta de Nicolau i aos búl­
Terá primeiro logar o cap. comperimus garos, que é- a ante-penultima das cento e
•12, de consewat. dist. 2, cm que se consi­ seis que por aquelle papa lhes foram da­
dera çrande sacrilegio a communhão em das, em que declara que se os individuos
uma só cspecie: diíliculdade, porém, é esta, dc que que fallava a consulta—m nomine
37
578 INF
sanctce Trinitatis, vel tantum in nomine dre Nicolau i, antes cm seu favor se ob­
Christi, sicut in Actis Apostolorum legimus, serva muita sabedoria, e a maior confor­
baptisati sunt (unum quippe idemque est, ut midade com a Sagrada Escriptura.
sanctus exponit Ambrosius) constat eos non Polo .que diz respeito aos aclos do papa
esse denuo baptisandos, cet.—deve adver­ Formoso, reprovados por Estevão vi e Sér­
ti r-sc que tal resposta se compòe na sua gio m, e approvados por Theodoro u e
integra de tres partes, a primeira das João ix, sobre o que observaram os mag-
quaes diz respeito á fé de quem recebia o deburgenscs, que cm procedimentos tão
baptismo, pois que se tractava principal- oppostos alguns dastes papas erraram, eu
mente de adultos, e nào á forma com que direi com Bellarmino, de Hom. Pout. lib.
era feito: a segunda refere-se á fé de quem 4, c. 12—que erraram Estevão c Sergio,
ministrava o mesmo baptismo, mandando- mas cm questão de facto, não de direito
se indagar se era christão ou pagão o ba- (esta não é a distineção jansenista), por
ptisante, porque lia via razões de suspeitar mau exemplo, c não pór falsa doutrina.
que não se désse verdadeiro sacramento, Nem Estevão tornou á ordenar ou con­
sabendo-se que os pagãos faziam supersti- sagrar os ordenados por Formoso, sómen­
ciosamentc diante de scus idolos certo ba­ te os destituiu, sendo depois restituidos por
ptismo com que pareciam querer sujeitar- Joqo ix, como afiirma Ségibcrto na sua
se a um unico Deus, que por palavra invo­ Chronica, citado por Du Mesnil, tom. 3,
cavam, ficando os baptisados pagãos como Doctr. et Discipl. E c c l c s lib. 42, § 1; e
d antes: e a terceira é relativa á fôrma, di­ como conta João Marin disputaram Gas­
zendo o papa que os baptisados verbis euan- par Jucn, de Sacram., Francisco Ilallior
gelicis não precisavam novo baptismo, ain­ de sacr. clection. et ordinat ion, c Honorato
da que assim o tal baptisante como os ba­ Tourncly de Sacram, ordin.
ptisados estivessem cm erro parcial contra E é sobre o irregular procedimento in­
a fé sobre as pessoas da Trindade, segun­ dividual d’Estevão e de Sérgio, quanto a
do a explicação de Sancto Agostinho, a que factos e não quanto a doutrina, queBaro-
o mesmo sancto padre Nicolau se refere, nio, ad au. 897, § 4, faz mui sensatas re­
uma vez que se tivesse feito applicação da flexões dizendo—que por seus altos juizos
fôrma devida—verbis euangelicis. permittiu Deus que algumas vezes occu­
A ddvida, portauto, está nas palavras do passem a cadeira pontifícia individuos pou­
pontifice, naquella primeira parte—tan­ co dignos, como aquelles dous papas ele­
tum in nomine Christi—que deve inteira­ vados ao fastigio sacerdotal pela violência
mente desvanecer-se depois que se sabe das facções, principalmcnle do marquez
que aquclla expressão se não refere á fôr­ de Toscãna, então poderosíssimo, para mos­
ma do sacramento, porém sim á fé dos ba­ trar que a sua igreja não é obra que possa
ptisandos, pois que é applicada pelo papa ser trahida pelos homens, como acontece
no mesmo sentido em que se lé nos actos áquellas que são d’invcnção humana, mas
dos apostolos, c. 2, v. 38 —baptizetur unus­ que é uma instituição divina, que deverá
quisque vestrum in nomine Jesu Christi:— sem pre' conservar-se firme na fé, ou seja
o que Harduino na sua questão do baptis­ dirigida por maus ou por bons conducto­
mo em nome de Christo muilo bem expli­ res supremos.
ca, mostrando que aquellas palavras in Por ultimo farei uma breve rellexão so­
nomini Christi se não referem, como acima bre o argumento que contra a mesma in-
foi dito, á fôrma do baptismo, mas á fé em fallibilidade se querería tirar das reformas
Christo dos que eram baptisados, isto é— do martyrologio romano, e canonisação dos
se sendo perguntados no acto do baptismo sanctos.
se criam na Trindade, ou tão sómente, se É bem sabido como a canonisação ou a .
criam em Christo, como se lé nos actos veneração aos servos de Deus era"ordena­
dos apostolos, c. 8, v. 12, e no v. 37, rcla- da ou introduzida pelos bispos nas suas
tivamente ao eunuco da rainha Candaces, dioceses, e alguma vez por uma mera tra­
diziam que sim; claramentc constava en­ dição popular, que passava depois a gcnc-
tão que não deviam tornar a ser baptisa­ raíisar-se; e sem o rigoroso exame que
dos. posteriormente foi adoptado, se criam pia*
E este é também o sentido cm que o mente bemaventurados taes ou taes indi­
papa se servira d’aquellas palavras, se­ viduos, d’onde se vé bem que uma refor­
gundo a doutrina dos Sanctos Ambrosio e ma, que n’algum d’esses factos tivesse to­
Agostinho, a que elle mesmo declara refe- gar, não prejudicaria a infallibilidade dos
rir-se: á vista do que nada de erro aqui ap- pontifices no sentido que logo no principio
parece que vá cm descrédito do sancto pa­ declarei.
INF o79
Porém, se depois do scculo x, ou mais dado o poder sem Pedro, para que se en­
verdadeiramente do scculo xiv, em «pie tenda que os outros nàç podem sem elle,
principiou a realisar-sc a solemnc canonisa- e que elle, por privilegio, recebeu a ple­
•ciio dus sanctos, na (juaT o papa pronuncia nitude do poder, para ligar os outros, c
fornialmcntc o seu jui/.o, houvesse qual­ nunca os outros a elle. A razão ó, por­
quer facto por onde se provasse que nào que a origem do episcopado, pelo que res­
-era sancto algum individuo que o summo peita ao poder mystico dc apascentar pela
pontifice por aquclla maneira tivesse de­ doutrina, c reger pelas leis, e juizos, foi na
clarado tal, poderia então esse tacto scr sua origem um,e a um só dado inteiramen­
adduzido para prova da fallibilidadc sobre te, c cin um só firmado sem reserva—Tu
este objecto, no supremo chefe da Igreja. és Petrus et super hanc petram edificaho,
' Fóra d’csse caso não mc parece real- et. Tibi dabo claves regni Catiorum;— de­
inentc haver causa para que seja aqui ve pois scr procurado em Pedro o funda­
chamada a oanonisaçào dos sanctos, não mento para que, como origem e raiz, por
obstante as indirectas inducçócs a que direito divino, a unidade seja firmada não
d’ahi se qucrcria recorrer. só ontre os apostolos, mas também entre
os bispos, a fim de se conservar a carida­
PRIMEIRA 0HJECÇÂ0 de e communhão; isto mesmo confessou
S. Cypriano, quando disse:—Petro primum
Dominus, super quem edificavit Ecclesiam,
«Sc o pontifice é infallivel, para que se et unde unitates originem—de sorte que o
celebram concilios geracs?» poder dc Pedro, é em lodo o rebanho de
A infallibilidadc do papa já anteriormen- Christo; e o mesmo que aos bispos foi
tc foi discutida; agora limitar-mc-hei só­ dado, lhe pertence por ser o centro d’on-
mente a responder á pergunta. dc sahe todo o summo poder: de maneira
Em primeiro logar, é certo que o sum­ que ninguem póde entregar-se de parte al­
mo pontifice, por isso que é successor de guma d’elle contra sua vontade, pois que
S. Pedro, e vigário como elle de Jesus n’ellc está lodo o fundamento c u termo,
Christo, nào pôde deixar de. ter por legiti­ como fica dito.
ma successão o dom da infallibilidadc cm Quando Jesus Christo deu a todos jun­
matérias de fé e bons costumes; porque tos com Pedro o pleno poder, dizendo-lhes:
lhe foi dado na pessoa de S. Pedro, quan­ —quatqnnque ligaverites et— onde está a
do Jesus Christo lhe disse:— Ego rogavi pro diversidade do poder, que já sómente ti­
te, ut non defcciat fides tua, et tu aliquan- nha dado e entregue a Pedro? Ou onde
do confirma fratres tuos. Lue., cap. 22, estará mais pleno poder? É, pois, evidente
31, e 32. que cm Pedro está a raiz, e o termo do
Segundo S. Leão temos aqui tres cousas poder, assim como igualmente cm todos os
a distinguir: primeira, que os demonios outros, mas sempre com Pedro: de sorte
tiveram a permissão de tentar os apostolos; que cm Pedro está a raiz c o termo, c em
segunda, que Jesus Christo rogou unica­ todos, sempre com elle o termo; e em to­
mente cm particular por Pedro, para que dos sempre por direito divino, emquanto
a fé d’ellc e de cada um em particular, são ministros de Christo, ou sejam aposto­
em similhantes circumstandas, nunca ti­ los, prophetas ou evangelistas, pastores ou
vesse quebra. doutores, sempre para a edificação do cor­
Deu igualmente aos mais apostolos, e po de Christo.
■aos bispos, seus successores, por lei ordi­ Portanto, estendendo-me a pouco mais
naria o dom da inerranda, tão sómente do que á resposta que devo dar á pergun­
unidos áquclle que devia confirmal-os. É ta, tenham mais um pouco de paciência, se
sem .dúvida que Jesus Christo deu a S. lhes a prouver.
Pedro, nào só o poder de apascentar todos Os concilios geracs, quando são legíti­
os lieis— Pasce Agnos meos—mas também mos, são tão infàlliveis como a Igreja dis­
os apostolos, os bispos, c outros superio­ persa quando falia; porque a Igreja tan­
res—Pasce Oves meas;—a elle independen- to ò— Unum Ovile—a uniea esposa de Je­
temonte de todos os mais, lhe foi intimado sus Christo, estando junta, como dispersa;
— Tibi dabo claves regni Cattorum, quod- porém como o dom da inerranda foi dado
qunque ligaveris super terram erit ligatum só a Pedro, c aos mais unicamente unidos
in Cailis. a elle, segue-se que as definições do sum­
De maneira que, diz um grande sabio, mo pontifice, fallando ex catíicdra, são tão
Alvaro Pelagio: «A .Pedro foi dado o po­ livres d’erro, como as da mesma igreja;
der sem os outros, mas aos outros nào foi porque Pedro por si só tem o dom da in­
it
580 INF
fallibilidade ou inerranda, em materias de condemnado por outro concilio, fez o mes­
fé, c a Igreja só o, terá unida a este, como mo perante Zozimo c Celestino, papas; Eu-
consultor principal, o definidor ultimo c tyches, condemnado pelo synodo hvpolitc-
supremo, com inteira liberdade, c como no, appcllou para S. Leão; S. Jcronymo,
cabeça de todo o corpo, c corpo que cons­ na questão se em Deus se dava uma ou
te de membros e cabeça: som dúvida é tres hypostases, respondeu, que as confes­
ideia abstracta gastar-se tempo cm hostili- saria se Damasio assim o mandasse; Cv-
sar a cabeça contra o corpo, ou o corpo rillo Alexandrino, escrevendo na questão
contra a cabeça, porque n’cste caso já não do Ncstorio, diz: «um longo c antigo cos­
temos corpo; isto só acontecerá na sua tume foi levar sempre tacs causas de to­
eleição, para o que ha providencias nos das as igrejas ao romano pontifice, e obe­
sagrados cânones; satisfeito o que, ahi te­ decer»: quasi nas mesmas palavras c sen­
mos outra vez Pedro nos seus direitos, c tido escreveram os bispos francezcs ao pa­
que emanaram d’ellc, junta mente com a pa S. Leão contra Eulyehcs: veja-sc uma
Igreja, ou da Igreja só n’clle, c por ellc carta que se acha entre as.de S. Leão.
representada. Era tão commurn o sentimento da infal-
Não negamos que os bispos teem voto libilidade do papa, que ninguem repclliu es­
definitivo, e que sao columnas da verdade, ta verdade antes do século ix, nem scquei\
por direito divino: porém ellcs nunca le­ ao menos a pôz cm dúvida. Só Phocio,
rão o dom da inerranda senão unidos a, pela sua desmarcada ambição, se arrojou
quem ello se deu por direito divino ordi­ a negar a infallibilidade do papa, além de
nario, com o privilegio de confirmar em outros erros, aonde principiou o scisma gre­
quem lhe foi mandado, isto é, por quem go, bem ignorante, do que affirma uma
manda c mandará no céo e na terra: isto carta de Dionisio a Thimoteo, narrando
mesmo está confirmado por ioda a anti­ o martyrio de S. Pedro c S. Paulo, expres-
guidade, principalmenle nas appellaçõcs sando-s’c este para com aqucllc—P ax le­
que sempre se fizeram á sancta sé apostó­ ram Petre fundamentum ecclesiarum, pas­
lica, como supremo e infallivèl tribunal. tor ovium, el agnorum Christi! — D'ondc
No* primeiro século, cm tempo que S. lambem Sancto Ambrosio, sohrc a visita
João Evangelista vivia, ou que linha falta­ de S. Paulo a S. Pedro, na primeira carta
do de sobre a terra, talvez menos de tres que dirigiu aos galalhas, diz: «Era justo
dias, ou quatro annos, suscitando-se em que S. Paulo desejasse vêr c visitar, a
Corintho grandes dúvidas c questões, a quem era o primeiro entre os apostolos, c
ninguem se recorreu senão a S. Clemen­ a quem o Salvador delegou o cuidado das
te, successor de S. Pedro. igrejas, dos pastores e dás ovelhas.»
No segundo século, Marciào, cxcommun- Em igual sentido escreveu o papa Inno-
gado c condemnado, recorreu á sancta sé cencio ao concilio de Carthago, denomina­
apostólica, sendo successor de S. Pedro do Augustiano: «não por humana senten­
Pio i. Epiph. heres. XLIL ça, mas por divino direito, sem que os
No terceiro, Fortunato c Felix appella­ bispos decidam primeiro, se recorre á sé
ram contra S. Cypriano para o papa Cor­ de S. Pedro—cujus auctoritate ju sta , aui
nelio; Brazilidcs, em JJespanha, para San­ fecerit pronuncialio form aretur»; — póde
cto Estevão (S. Cypriano, lib. l.°, epist. também vér-sc S..Bernardo ao papa Eugê­
3.*); Dionisio Alexandrino, accusado por nio em tempos distantes; emfim, como a
um concilio, appcllou para o summo pon­ resposta sabe mais longa do que tenciona­
tifice Dionisio Romano, com as suas cartas va, acabarei referindo "o que é frisante, c
apologeticas (S Athanazio, lib. de sentonc. sem réplica.’ Lucio, papa, e martyr do sé­
Dionis.) culo ui, cm uma carta aos bispos de Fran­
No quarto século, Ciciliano julgado por ça, e Hespanha, diz: «A igreja romana é
sete bispos, foi a final julgado pelo supre­ ãpostolica, é mãe de todas as igrejas, e cor­
mo c ultimo tribunal, isto é, pelo papa rendo pelos caminhos da tradição, nunca
Melchiadcs; Athanasio Alexandrino, c Mar­ se provara que errára—Nunquam errasse
cello, depostos pelos oriontaes, recorreram probatur.*
ao supremo tribunal romano; Cuthadio, Em 318 o primeiro concilio de Nicea
contra os arianos, Paulino Antiocheno, con­ explica-se d’esta sorte: «Veneramos, se­
tra os orientaes, todos recorreram ao suc­ gundo as Sanctas Escripturas e definições
cessor de S. Pedro. dos canones ao sanctissimo bispo da anti­
No quinto século, Pelagio, condemnado ga Roma, como o primeiro e maior de to­
solcmnemcntc pelos bispos africanos, ap- dos os bispos, e como Pedro, desde o prin­
pellou para o romano pontifice; Apiario, cipio é vigário de Jesus Christo, c presi-
INF o81
dente da religião, perfeito ern todas as cou- fica dito, cm matérias de fé, e por isso clle
sas pertencentes ás igrejas, assim como a é illustrado, c como tal deve saber, c sabe
tudo que pertence a Christo, é senhor, rei­ até que ponto per si só póde decidir qual­
tor de todos os principes chrislâos, de to­ quer verdade: sabe quanta disquisição se
das as provincias, de todas as gentes, é, fi­ faz precisa para as maiores ou menores
nalmente, aquclle cujo principado é lloma, importâncias; pelo mesmo dom da sua in­
é similhante a Pedro, igual na aulhorida- errantia, em materias proprias, deve ollo
de, c tem de per si a dominação, e princi­ saber se é preciso consultar todos, ou
pado sobre os patriarchas. Ca*n. .'19.». parte de seus irmãos: sabe que os votos de­
0 concilio latcrancnsc, no tempo de In- finitivos, assim como o seu deve ser tirado
nocencio in, cap. o.°, diz: «A igreja roma­ da Escriptura ou tradições sanctas, sabe
na. dispondo-o assim o Senhor, tem sobre que clle deve ser o quê confirma, e que
todas as igrejas o principado do poder or­ esta confirmação deve ser sem defeito, co­
dinario, e é a mãe, c mestra de todos os mo lhe prouíetteu o Salvador; por isso
fieis de Christo.» aqui devemos ver n’elle todos os conheci­
O concilio ecumênico de Klorença, nas mentos que lhe forem necessários para sa-
letras do união, diz: «Definimos *quc a hir triumphante do erro em todo o tempo,
sancta sé romana, c o romano pontifico, c cm todas as necessidades, porque o fim
teem o principado em todo o mundo, é requer os meios, e do contrario podíamos
successor de S. Pedro, verdadeiro vigário dizer que Jesus Christo fundou sobre areia,
de Christo, cabeça de toda a Igreja, como o que só pcnsal-o é injuria insultante.
pae, e doutor de todos os christàos, de tal Não sc diga que muitos pontifices teem
sorte tem unido a si o poder na pessoa de errado ern matérias de fé, e direito divinc
Pedro, por expressa vontade do mesmo Je­ porque quantos factos sc mencionam,
sus Christo, que clle tcin um poder pleno; maior parte são desfigurados, c outros ai
c concluindo, diz:—E t ipsi., in beato Petro, da que verdadeiros, não estão na razão
pascendi, et regendi, et gubernandi univer­ materias de fé, mas em matérias de fact
salem Ecclesiam á Domino Jcsu Christo, não revelados, onde podem errar, e de
Plenariam Potestatem Traditam esse.* cto erraram não só os pontifices, mas o:
Não despresarei de todo a unanimidade mesmos concilios geraes, de que podia aqui
dos padres do Tridentino na mesma defesa fazer menção, não menos de tres ou qua­
d’esta verdade, que ha muitos annos li no tro concilios: assim como de tres pontifi­
padre Pereira, que para bem dilTercnlc ces, uns em maiorias de factos, e outros
prova nòs acarretou, dizendo que sómente por falta de liberdade, c outros por serem
poucos impugnaram, e que Pio tv não sub­ intrusos, ou anti-papas: porém, fiquemos
screveu; linalmente, chamarei a Sancto aqui, para não enfadarmos o nosso curio­
Agostidho para que venha responder ao so, que nos pergunta.
nosso discipulo que nos faz a pergunta (lib. Concluiremos com tres verdades: pri­
70, ad B onif, cap. ult.) Supposto alguns meira, que o summo pontifice, sendo legi­
concilios se juntaram para condcmnaçào de timo, estando em liberdade e fallando cx
heresias, foram incomparavelmente mui­ cathedra em materias de fé e bons costu­
tas, c muitas mais, as que foram condc- mes, é infallivel; segunda, nunca o summo
mnadas sem concilio: sobretudo reporto- pontifice é obrigado a consultar todos os
me a Vicente Livincngc; este pergunta, c bispos senão quando clle o julgar necessá­
responde. Para que são os concilios ge- rio para a discussão, feita a qual, com to­
raes, senão para aquillo que antes se acredi­ dos ou com alguns, ao seu arbitrio, verifi-
tava com uma simples sinceridade, se acre­ car-se-ha então n’ellc o—Aon deficiet futes
dite em tempo com maior attenção, dili­ tua; terceira, haver ou não haver, celebra-
gencia e firmeza? rem-sc ou não, concilios geraes, nada faz,
O que antes lentamcnte sc ensinava, no nem dispòc contra a infallibilidadc do pa­
futuro seja com maior cfiicacia pregado; o pa; por quanto a promessa da inerranda.
que com segurança se venerava antes, de­ foi dada por Jesus Christo tanto a clle, co­
pois seja com o maior cuidado venerado c mo a Pedro; como aflirma o mesmo con­
respeitado. Pódo vér-so in conímonit. cilio primeiro de Nicea, canon 39, que
Aqui temos a razão porque ha ou póde quasi se póde chamar o quarto concilio
haver concilios geraes, sem que por isso geral.—....Ita ille cujus principatus Romce
sc possa negar a infallibilidadc da cabcca est, Petro similis, et auctoritate par... huic
da Igreja. sanctioni, sirjuis contradixint, seu repn-
Além do que já dissemos, é certo que o averit: anathemati subjiciatur.
papa é assistido do Espirito Sancto, como
582 INF
SEGUNDA. 013JEÇCÂ0 bor se um concilio convocado, presidido, e-
confirmado pelo papa, é ou não superior
ao papa. Questão bem frivola, pois que
«0 papa é superior ao condio geral?» será o mesmo que perguntar se o papa é
^ Os padres congregados no concilio do ou não superior a si mesmo; ou também,
Constança, nas sessOes 4.* e 5.a, decidiram se assim o quizerem, se o papa só póde
ser o concilio geral superior ao ponti (ice rctractar, revogar, ou rescindir as deci­
romano. Decisfvo esta, (pie, nascida na des­ sões c decretos feitos pelo papa, assistido
ordem e lumulto do grande scisma d’Avi- do corpo episcopal; então distinguiromos
nháu, e fabricada na cabeça fogosa d'um que estas decisões e decretos são em mate­
Gerson, d’um Pedro d’Aly^ d’um Almain, ria de fé e costumes, ou em pontos mera-
etc., foi muito promptamente abraçada, com mente disciplinares. Se se tracta de deci­
a maior avidez, por todos os hereges, se­ sões relativas á fé c costumes, nem o papa
ctarios, e novadores rebeldes aos decretos nem o concilio teem uma tal aulhoridade, e
da sé apostólica; pois que n’clla divisaram consequentemente, cm tal hypothese, nem
logo o mais especioso pretexto para zom­ o papa é superior ao concilio» nem o con­
bar dos raios do Vaticano, defender e pro­ cilio superior ao papa, e a questão torna-
pagar seus erros ao abrigo de multiplica­ se ridicula. Se os pontos são de mera dis­
das appellações para o futuro concilio, para ciplina, a questão vem a parar prccisa-
desterrarem da igreja catholica um juiz mcnlc em saber se o papa só, nos longos
supremo, permanente, de fácil recurso, c intervallos que separam os concilios gc-
inappellavel, e substituirem-lhe um tribu­ racs, póde dispensar, alterar, ou derogar
nal futuro, rarissimo, extremamente difíi- os decretos disciplinares, que de sua natu­
eil, c summamente complicado nas condi­ reza não são immutavcis, quando circum­
rdes que devem contestar a sua legitimi­ standas imperiosas assim o exigem. Ora,
dade, a fim de que, cm uliiino resultado, qual será o catholico que negue ao papa
viesse a parar o supremo juiz das contro­ esta aulhoridade? «0 papa, diz Bossuel (e
versias, na igreja catholica, ao puro e mero não é aulhor suspeito), tudo póde, quanto
juizo, óu espirito privado, e ficarem, por pedir a necessidade c grande utilidade da
este meio, justificadas todas as seitas, todos Igreja.»
os erros, todas as heresias, e a unidade da No segundo caso,* para que a questão te­
igreja de Jesus Christo rasgada e despeda­ nha algum sentido, é necessário propôl-a
çada cm tantas crenças, quantas forem as n’estes termos: 0 corpo episcopal, reunido
cabeças dos novadores. sem papa, é ou não superior ao pápa? Mas
A questão, se o concilio é ou não supe­ então o concilio, por mais numeroso que-
rior ao papa, não é uma questão simples, seja, não é ecumenico, porque lhe falta um
como estes maus theologos suppoem, mas elemento essencial, qual é a sua cabeça, o
é complexa; tem duas partes: í . a Qual é a seu maioral, o seu principe, nem represen­
natureza d’um concilio ecumenico, e quaes ta a igreja de Jesus Christo, a qual não é
os caracteres, cuja menor alteração des- um corpo decapitado c acephalo, mas um
troc a sua essencia. 2.a Sc o concilio, assim corpo perfeito, c composto de cabeça e de
constituído, é ou não superior ao papa. membros; não se verifica ivclle o emblema
Tractar a segunda questão, desentenden- de Jesus Christo: E t erit unum ovile, et
do-sc da primeira, como costumam fazer, umis Pastor; não póde significar o editicio
não é sómente um erro de dialectica, mas fundado sobre Pedro, nem se acha no Evan-
sim obrar de má fé, e, como diz o conde ellio (o que é muito para notar, o ácerca
de Maistre, um peccado contra a probida­ o que estes sophistas se fazem desenten­
de. Este é comludo o constante methodo didos) que Jesus Christo fizesse promessa
d’estes sophistas: limitam-se sempre a pro­ alguma da sua assistência ao collegio apos-
clamar a superioridade do concilio, sem tolico, separadamente de Pedro, pois que
nunca descerem ao exame analylico d’uma quando lhes disse: Ecce ego vobiscum sum,
tal asserção. Tractemos de supprir este de­ estava Pedro na assembléia; quando lhes
feito. promettou que o Espirito Sancto lhes en­
Qual é pois este concilio superior ao sinaria todas as cousas, Pedro achava-se
papa? Não é o diocesano, nem o nacional; ahi; quando lhes mandou ensinar todas as
elles o confessam: será então o concilio gentes, Pedro recebeu, juntamente com os­
universal ou ecumenico? esta é a sua as­ seus collegas, a mesma ordem. Em uma
serção. Muito bem. Mas este concilio ecu­ palavra, todas as promessas, feitas no Evan­
mênico é concilio com papa ou sem papa? gelho, ao collegio apostolico, são igualmen-
No primeiro caso a questão se reduz a sa­ tc communs a Pedro, que sempre se acha-
INF 58)1
va presente; isto é, sào sempre feitas ao nhecimento d’um só, corn exclusão do to­
collegio apostolico, emquanto unido a Pe­ dos os outros. Em circumstandas tão ca­
dro, o por Pedro presidido, a quem o mes­ lamitosas, o imperador Scgismundo reu­
mo Jesus Christo tinha nomeado por ca­ niu cm Constança os bispos que pôde, e
beça, pastor, e principe do mesmo. Volte­ todos, sómente dá obediência de João xxui,
mos agora a medalha. que os havia convocado; mas logo no prin­
Sc no Evangelho não achamos promes­ cipio, c nas primeiras sessões, separou-se
sas, feitas ao collegio apostolico, separado d’elles, para evadir-sc aos attentados que
de Pedro, achamos muitas, mais decisivas contra cllc viu se inachinavam. Os bispos
c mais terminantes, feitas a Pedro só, c cm das duas obedienciaS", dc Grcgorio xir, c
separado de seus collegas, ainda estando Bento xiii, não só quizeram não concorrer
ellcs presentes. A Pedro só disse Jesus ao concilio, mas. procuraram, com todo o
Christo: E l tibi dabo claves regni coelorum. esforço, impedil-o, protestando contra ellc.
A Pedro só disse Jesus Christo: Pasce oves A primeira cousa que fizeram os prelados
meas. A Pedro só disse Jesus Christo: Ego que correram a Constança, foi determinar
rogavi pro te, Petre, ut non deficiat fules que os votos se tomassem por nações, e
tua. A Pedro $d disse Jesus Christo: Con­ não por individuos; methodo inaudito, e
firma fratres tuos. A conclusão que natu- nunca d’antcs nem depois practicado nos
ralmcnic resulta d’esla simples observa­ concilios geraes, e que de algum modo li­
ção, não póde ser outra, senão que toda a gava e restringia a liberdade de cada um
ãuthoridadc do corpo episcopal depende dá dos bispos.
sua união com a sua cabeça, e seu princi­ Divididos assim os prelados, opposios cm
pe: separado este, desapparecc o sugeito interesses, separados dc João xxm, e dos
das promessas de Jesus Christo, feitas não cardeaes que o acompanharam, impacien­
separadamente aos membros do corpo pas­ tes e irritados pela contnidicção dos papas
toral, mas aos membros, cmquauto unidos renitentes, dominados pelas influencias de
á sua cabeça; e pelo contrario, que a au- soberanos discordantes: e, emfim, estimula­
thoridade dc Pedro e de seus successores dos pelo ardente desejo de pôr termo ao
subsiste por si mesma sem depcndencia do scisma mais deplorável, que jamais aííli-
resto dos pastores, pois que Jesus Christo giu a Igreja, disseram entre si: «Nós nãc
as fez em particular a Pedro, separadamen­ pedemos dar paz â Igreja, c reformal-a na
te dos mais apostolos. Que pretendem pois cabeça c membros, sem que o papa nos
estes-sophistas, airoando-nos sempre os ou­ obedeça, c se sujeite ás nossas determina­
vidos com a sua superioridade do concilio ções: bom remedio, pois! decretemos que
ao papa? Sc ellcs nos querem dizer que o ó papa é obrigado a obedeecr-nos. Mas o
corpo episcopal, separado do papa, c em p.apa, revestido por Jesus Christo do pri­
opposição com o papa, é superior ao papa, mado de honra e jurisdieção na Igreja, não
além de se oppôrcm abertamente aos tex­ póde ser obrigado por um concilio que
tos referidos do Evangelho, atacam não não seja ecumênico. Decretemos pois que
menos o senso cornmuin; pois é o mesmo o nosso concilio é ecumenico, apesar da
que dizer que as ovelhas são superiores ao opposição que lhe fazem os bispos das
pastor, os filhos aos paes, c os subditos ao duas obediências, que o não querem reco­
seu principe; paradoxo que só póde sahir nhecer por legitimo, c canonicamentc con­
de cabeças mentecaptas, c que por isso stituído, c apesar *de carecer dc cabeça, e
neni merece attençào. centro dc unidade que o constitua um cor­
Mas o sancto concilio de Constança?! po regular. Declaremos que nos havemos
Mas o sancto concilio de Basilea?!! Ah! constituído a nós mesmos em concilio ge­
dissimuladores perigosos! vós, com a maior ral e ccumenico, que representamos a
astúcia c má fé, fingis e mostraes não en­ igreja catholica, que recebemos immcdia-
tender que o primeiro, nas sessões 4.a e tamente dc Jesus Christo todo o poder e
5.a, era uma mera assembléia, que nada authoridade, e que somos assistidos do Es­
tinha de concilio ecumênico, c que o se­ pirito Saneio; c, postos estes principios, fica
gundo degenerou cm um conciliabulo de a proposição demonstrada; isto é,‘ que toda
scismaticos, levando a sua louca pretenção a pessoa de qualquer dignidade, ainda pa­
até pronunciarem sentença dc deposição pal, é obrigada a obedecer-nos em tudo o
contra o papa Eugênio ív. Expliquemos que diz respeito á extirpação do scisma, e
isto. Havia muitos annos que a Igreja se reforma da Igreja.»
via dividida em tres partidos, cada um dos Eis-aqui como na sessão 4 / c õ.a do con­
quacs reconhecia um papa differente, c cilio ou assembléia de Constança, foi deci­
não era possível reunir-se toda no reco­ dida a superioridade do concilio ao papa.
584 INF
Sc a decisão fosse pelo contrario, isto é, se rioridade do concilio ao papa nas conse­
aquelles bispos decretassem que o papa quências que d’clla devem necessariamen­
era superior ao concilio, quanto se não ri­ te resultar. E certo que nenhuma socie­
riam os jansenistas de nós! Pois sofTram dade, republica, ou reino, pódc subsistir,
também nossas risadas, quando com de­ se iTclles não houver uma authoridade su­
cretos de taes sessões nos quizerem pro­ prema que julgue d’uma maneira perem­
var que o papa é inferior ao concilio. ptória e inappcllavel todas as controver­
É, além do referido, muito digno de ob- sias, disputas ou contestações que n’elle
scrvar-sc que depois, nas ultimas sessões se excitarem c poderem perverter e per­
do concilio, se reuniram as tres obediên­ turbar a paz, harmonia c concordia entre
cias, e se elegeu, na sessão de 30 de outu­ os membros d’cssa sociedade, republica,
bro de 1417, Marlinho v, e foi unanime­ ou reino. Este principio, que cm politica
mente reconhecido pelo unico, verdadeiro, é um axioma, na religião catholica é um
e legitimo papa, isto é, depois que a assem­ dogma; pois que tendo a igreja de Jesus
bléia de Constança se tinha convertido em Christo por caracter essencial a unidade
verdadeiro concilio ecumênico, jamais se na doutrina, na moral, nos sacramentos,
attribuiu independente do papa o direito no governo, etc., ut sin t anum, dizia Jesus
de reformar a Igreja na sua cabeça c mem­ Christo a seu Eterno Pac, sicut nos unum
bros, nem de tal assumpto quizeram mais sumus, e como dizia o mesmo Senhor cm
tractar, resolvendo que o papa o fizesse outra occasião: Ut sint unum ovile, et unus
por si mesmo com a justiça e equidade Pastor, c pelo orgão do seu apostolo:JJnus
que a sua sabedoria lhe dictasse. Dominus, una fales, unum baptisma, como
No que os padres instaram muito, foi era poderia esta unidade manter-se, conservar-
obter de Martinho v a confirmação do que* se, e promover-se sem um juiz supremo
no concilio se havia tractado; isto é, o con­ das controversias que na Igreja se excita­
cilio de Constança, quando era ecumenico, rem cm maneira de dogma, de moral, ou
reconheceu prácticamentc por seu superior disciplina? A sizania que o orgulho huma­
aquelle que no tempo em que era apenas as­ no não cessa de semear no campo da Igre­
sembléia de alguns bispos, havia declarado ja, os erros que o amor da singularidade
por seu inferior. Eis-aqui o que são os de­ forccja por introduzir, as dúvidas, as con­
cretos da 4.a e 5.“ sessão de Constança— tendas e diçputas suscitadas entre os mes­
ura vão espantalho com que os jansenistas mos fieis, e, cmfim, as doutrinas perigo­
pretendem pôr medo, e enganar os igno­ sas, falsas, e anti-catholicas, que um espi­
rantes e pouco instruídos na historia d’este rito de innovação e de independência, se
concilio. empenha em sustentar, tudo isto reclama
Com efleito Martinho v deu a bulla de uma authoridade soberana que córte, dis­
confirmação. Mas que confirmou elle? To­ sipe, c faça desapparecer toda a divisão,
dos os decretos decididos conciliarmenle discordia e contenda, condemnando o erro,
cm matéria de fé, o que duas vezes repete; e estabelecendo a verdade d’um modo cla­
isto é, os decretos contra os erros de Wi- ro, preciso e terminante.
clef e João Hus, e os que foram estabeleci­ - Esta authoridade, este juiz supremo, deve
dos depois da reunião das tres obediências, indispensavelmente ter as seguintes quali­
presididas por elle mesmo, já eleito e re­ dades:
conhecido por verdadeiro e legitimo papa. 1* Deve ser universal; isto é, deve po­
Mas que o corpo episcopal, separado do der estender-se a todo o corpo mystico de
papa, e em opposição com elle, possa fazer Jesus Christo, e de todos ser obedecido.
leis que obriguem o vigário de Jesus Chris­ 2. a Deve ser peremptória, que termine,
to, e pronunciar sobre o dogma de uma exlinga as contendas, e dissipe toda a dú­
maneira divinamente infallivel, isso nem vida.
ainda por sonho veio jamais, ao pensamen­ 3. a Deve por isso ser inappcllavel; pois
to de Martinho v; diga-o a bulla do 10 de que onde ha logar para appellação, ha sem­
março do mesmo anno, que este papa pro­ pre meios de illudir a sentença c sustar a
mulgou, em que reprova e condemna as decisão.
appellações dos decretos da sancta sé para 4. a Deve finalmonte ser infallivel, que
o futuro concilio, declarando ser a sé apos­ obrigue o entendimento, e subjugue o as-
tólica o tribunal supremo,, e o soberano senso do espirito; que se não limite a uma
juiz das controversias na igreja catholica. profissão externa da verdade, mas que exi­
Eis-aqui como Martinho v confirmou as ja o sacrificio do mesmo juizo, em obsé­
sessões 4> e 5." de Constança. quio da authoridade que falta.
Consideremos agora a opinião da supe­ Isto supposto, pergunto: qual ó na Igre-
ja cstc juiz supremo, universal, inappclla- arrogar esta authoridade, c ouviram o cla­
vd , e infallivel? É a Igreja, responde toda mor unanime dos padres: Super/luos foras
a multidão jansenistica, e com ella o nosso mittite; Synodus Episcoporum est, non Cle­
Pereira, o qual é a columna e firmamento ricorum.
da verdade: c o mesmo Jesus Christo o Restam ultimamente os bispos: estes po­
disse nas palavras do presente texto: «Si dem considerar-se dispersos, ou reunidos
tibi non audierit dic Ecclesia:.* Analysemos em synodo ecumcnico. Considerados do
com algum vagar essa resposta, c dissipe­ primeiro modo, como podem constituir um
mos o equivoco, involtorio ordinario em tribunal que possa decidir promptamente
que estes theologos costumam dc ordina­ tantas dúvidas, e tão frequentes contesta­
rio embrulhar as suas doutrinas. A Igreja ções, que todos os dias se estão excitando
é sem dúvida columna c firmamento da na Igreja? Seria necessário que a causa
verdade. Mas que Igreja é esta? A univer­ fosso levada ao tribunal de cada um dos
sal a todos os tempos, a todos os logarcs, a bispos, que cada um examinasse a maté­
todas as pessoas, pastores, e ovelhas. N’csta ria, consultasse a Escriptura e,a tradição,
ó certo, c verdadeiro, é infallivel.— Quod ponderasse as razões pró e contra, c últi­
semper, quod ubique, quod ab omnibus cre­ mamente désse a sua sentença. Ora,achan-
ditum est.—A sua voz é a voz da verdade, do-sc a Igreja dilTundida por toda a face
a voz de seu Esposo, a voz do Divino Es­ da terra, c havendo bispos em todas as
pirito. Eis-aqui o sentido em que a Igreja quatro partes do orbe, que tempo ou sé­
é a columna da verdade. Tudo quanto se culos não seriam necessarios para se rea-
oppozer á sua voz, c ao seu universal en­ lisar esta progressiva discussão?
sino, é falso, é erroneo, é herético. Mas ^Entretanto a verdade seria opprimida, e
se nesta igreja se excitar alguma dúvida, o erro triumphante. Supponhamos porém
ou alguma controversia cm matérias de fé que a matéria chega emíim a estar por to­
c de costumes, qual é o juiz que as ha de dos discutida, c cada um dos bispos tem
terminar e decidir? Não se deve confundir dado a sua decisão; é necessario examinar
(aqui vai o equivoco) a igreja universal se os votos são ou não concordes, se a de­
com o juiz das controversias na Igreja, as­ cisão é unanime; pois sem esta unanimi­
sim como se nào confunde o juiz ou tri­ dade, dizem os jansenistas que não ha de­
bunal supremo de justiça do reino, com o cisão dogmatica. Para se conhecer esta
mesmo reino: assim conio as controversias unanimidade, é necessario recolher os vo­
civis, excitadas no. reino, não podem rcsol- tos, comparal-os e examinar escrupulosa-
ver-se pelo mesmo reino, mas por um tri­ mente se estão ou não conformes. Quem
bunal distincto c investido d’esta authori- ha de fazer este exame? Se deixamos isso
dade, assim as controvérsias religiosas, ex­ ao cuidado dc cada um, ahi paramos no
citadas na Igreja, é forçoso que sejam de­ juizo privado. Supponhamos que alguns
cididas por um juiz supremo, instituído na bispos se encarregam d’esta commissão, c
Igreja, e distincto da mesma Igreja, c não que depois das competentes averiguações,
pela mesma Igreja. accordam em que os votos se acham con­
Com cffeito, a Igreja não se distingue da formes, c que a sentença c uniforme. Mui­
universalidade dos ficis catholicos: ora es­ to bem: mas quem nos assegura que os
tes podem dividir-se em duas grandes clas­ bispos commissarios sc não enganaram no
ses: pastores e ovelhas. O officio d’estas e seu juizo? '
ouvir, aprender, c obedecer, e por isso se Ás promessas do Salvador, dizem os mes­
chama igreja discente, e hão pódc ter as­ mos jansenistas, não foram feitas a dous ou
sento no tribunal judiciario. A classe dos tres bispos, nem á menor nem ainda á
pastores pódc também dividir-sc em dous maior parte d’cllcs, mas a todos collectiva-
ramos: pastores da primeira ordem, os bis­ mente: Ecce ego vobiscum sum. Logo— non
pos; pastores da segunda ordem, os paro­ ad majorem partem, verum ad Pastorum
chos ou presbyteros; estes (nunca tiveram universitatem spectant. Conseguintemente,
voto decisivo na matéria èm que versas­ depois dc tantos rodeios, cireumloquios, c
sem as controversias, apesar de todas as ambages, achamos-nos como no principio:
cavillações dos jansenistas, cujo orgulho a questão indecisa, c o erro triumphando.
lhes metteu em cabeça que também eram Que diriamos nós do governo dc uma
constituídos juizes com os bispos, cm mate­ grande nação, na qual o juiz supremo das
rias de fé; o foram setnprc excluídos d’esta coutroversías fosse a universalidade dos
prerogativa, e nunca lhes foi reconhecida: magistrados dispersos por todas as provin-
testimunha o concilio universal cphesino,, cias do imperior Diriamos que seria este o
cm que alguns presbyteros se quizeram mais absurdo dc todos os governos. E se­
5*86 INF
ria digno da sabedoria divina dar á sua possam sahir de seus estados, para compa­
Igreja um similhante governo? recerem no logar destinado para a ccume-
Consideremos agora os bispos reunidos nifca assembléia. Ora, sendo estos sobera­
em concilio. Nenhum concilio particular nos tantos e tão differentes nas idéias, nos
decide sem appellação. As suas decisões interesses, na politica, e na religião; uns
não fazem regra de fé, nem são infalliveis. catholicos, outros protestantes, outros scis-
E portanto indispensável um concilio ecu­ maticos, outros pagãos, etc., quem nos po­
mênico. No tempo dos imperadores um derá assegurar da sua condescendência e
concilio geral não era muito diíficil. A docilidade cm tão delicado negocio?
Igreja era mais circumscripta: todas as mi- Supponhamos, emfim, vencidas todas es­
tráspodiam ser movidas por um só sceptro. tas difiiculdadcs, e que os bispos chegam
Pórém hoje, que depois dos grandes des­ a reunir-se em concilio; mas onde está o
cobrimentos, o Catholicismo se acha diíTun- papa? Concilio sem papa, é, como já pon­
dido pelas quatro partes da terra, e o po­ deramos, corpo som cabeça, que não re­
der temporal dividido cm tantas sobera- presenta nem pódc representar a Igreja
nias independentes, um concilio ecumêni­ de Jesus Christo.
co parece uma chimera. As promessas do Salvador não foram
Ao papa, em razão do seu primado, é feitas aos bispos separados do papa, assim
que pertence convocar o concilio geral; e como não foram feitas aos apostolos, sepa­
com elleito um concilio ecumênico só pódc rados de Pedro. Eis-nos aqui ainda sem
ser convocado por um poder ecumênico, concilio, depois do tantos tempos, diligen­
como sensatamente adverte o conde dê cias e trabalhos.
Maistre, no seu tractado Du Pope. Mas prescindamos de todas estas diífí-
Supponhamos, pois, que o papa, tendo culdadcs.
examinado a questão, e decidido solemne- Supponlíamos que o papa quer o conci­
mente, como vigário de Jesus Christo, o lio, convoca os bispos que as circumstan­
que se deve crér, e proposto a toda a Igre­ d a s permittem, e que, reunidos ao cabe­
ja, como regra de fé, a sua bulla dogma­ ça, discutem os pontos controversos, e de­
tica, julga desnecessário e impertinente o terminam o que se deve crér, proscrevem
concilio geral, c não o quer convocar. c condemnam os erros, etc.: teremos con­
Quid juris? responde como orgão de todos cluído o negocio?...
o grande jansenista Eybel. Em tal caso Devagar, nos diz, cm nome de todos os
convoqucm-sc os bispos uns aos outros. seus confrades, o jubilado jansenista Lvgd-
Bcllo expediente!... Quando é que um con­ nensc, nos seus lògares theologicos. Para
cilio foi por tal modo convocado? E como serem valiosas as decisões d’um concilio,
será possível uma tal convocação verificar- ainda ecumênico, é necessario que n’elle
se? Se os bispos da Europa convocarem os se verifiquem as seguintes condições:
da America, c estes os da Asia, etc., quan­ 1. " Que a maioria seja diligéntemente
tas vezes os convocantes ouviríam da bôe- discutida;
ca dos convocados aquella resposta de S. 2. a Que seja consultada a Escriptura e
Jeronymo a Pammachio: Ad Alexandrinum tradição;
Episcopum Palestina quid pertinet? Eis- 3. "*Que sejam ouvidas as partes litigan­
aqui temos o primeiro obstaculo. E quan­ tes;
tos annos serão necessarios para que ,esta 4. ® Que haja a plena liberdade de votos;
convocação se verifique de um mpdo au­ 5. a Que o juizo seja unanime, etc.
thentico "e canonico, e nos possa constar Muito bem!... Mas como poderemos nós
que todos nec discrepante-a nec excepto, re­ saber se todos estes requisitos foram plc-
ceberam as letras convocatorias? Digo ncc namente preenchidos?... Não ha remedio;
excepto, porque tanto aireilo teem os bis­ é necessario que consultemos a historia,
pos de Quebec, de Baltimora, do México, do que examinemos as actas do concilio, que
Monte Libano, de Goa, de Pekim, etc., para interroguemos, as pessoas .que a eUe assis­
serem convocados, como os de Lisboa, Pa­ tiram.
ris, Na poles,, etc. Consegüintemente eis-aqui sempre em
Supponhamos, porém, que depois de dez ultima analyse, segundo estes theologos,
ou vinte annos se consegue que todós os em que vem a parar o juiz ultimo, c su­
bispos do orbe sejam convocados; teremos premo das controversias—no exame par­
já concilio? Nada menos. Os bispos estão ticular de cada um, na razão individual, e,
dispersos por paizes, dominados por diffe­ emfim, no espirito privado. E que outra
rentes soberanos; é necessario que estes cousa pretenderam jamais quantos here-
concorram para permittir que os prelados ges houve no mundo?
INF 387
Por outra parto': esta unanimidade de rão sempre os refractarios para pôr cm
votos, pretendida pelos jansenistas, ha de dúvida, e ainda negarem que o concliio se
ser physica ou moral? Sc physica, em uma ache unanimemente recebido, e sem dis­
assembléia deliberante c numerosa, é um crepância acceite por todas as igrejas, dis­
phenomeno nunca acontecido. Em todos persas pola face da terra? Se basta um
os concilios, principalmente geracs, sem­ consentimento c approvacão tacita, nada
pre houve dissidentes, e portanto rara vez, adiantamos.
ou nunca, as questões sorào decididas c Como nos será possível assegurarmos-nos
terminadas. Bastará, dizem, a unanimidade <Funi tal consentimento? Como poderemos
moral... saber se as actas do concilio chegaram ao
Mas esta expressão é muito vaga; é ne­ conhecimento de todas as igrejas, se todas,
cessário que se determine precisamente o c cada uma d’ellas está bem informada do
numero de votos dissidentes que haja de motivo da convocação, do numero dos con­
destruir • esta unanimidade. Uns diríam correntes, da liberdade que tiveram cm
mais, outros diríam menos, c íicará sem­ seus votos, se as matérias foram bem dis­
pre ao arbitrio do juizo privado determi­ cutidas, se houve concordia nos juizos? E,
nar, se houve, ou não, unanimidade moral como também é necessario que haja una­
precisa, para que a decisão seja canonica. nimidade n’cstc consenso das igrejas, como
Eis-nos aqui sempre com o pé no atoleiro. se provará esta unanimidade de consensos
Para evitar tantos inconvenientes, re­ tacitos ou de silêncios? Como distinguire-
correm os jansenistas ao unanime consen­ mos o silencio de approvacão, do silencio
so, e approvacão das igrejas particulares. de ignorância? Como se mostrará que não
Utrum concilium aliquod ait vere cecomcni- existo opposição, c, se alguma existe, como
cvm (diz o citado Lugdn, tom. l.°, pag. determinar o numero das igrejas dissiden­
237) non posse certo nobis constare, nisi tes, que basta ou não, para destruir esta
ex 'unanimi Ecclesiarum consensu, et ap­ unanimidade moral?
probatione. Mas, para que tantas averiguações? nos
Que tal! Sc até aqui esta vamos mal, dizem os jansenistas; pois ainda*que não
agora estamos ainda peior. Por quanto: possam explanar-se exnctamente todas estas
l.°, por esta regra as igrejas de Utreche, e difficuldades, «nihilominus certum esse po­
de Pistoia, poderão impedir que um conci­ test pro variis rerum circumstantiis (o mes­
lio geral soja tido por vcrdadeirainente mo Lugdn., loc. cit.) quandonam adsit, vel
ecumênico; e pela mesma razão as igrejas absit unanimitas illa moralis. Generatim
lutheranas e calvinistas, de Aliomanha, as autem respondere licii eam tunc esse, cum
arianas e nestorianas, do Oriente, que dis- vere dici, potest omnes fere Ecclesias in ad­
scnliram, c se oppozeram, as primeiras ao mittendam quandam doctrinam, (seu con­
concilio de Trento, c as segundas ao de cilium) conspirare bene concordes. » Sem­
Nicea, e Epheso, bastarão para porem em pre enigmas! Sempre obscuridades!
dúvida, se os-ditos concilios são ou não Mas quaes são essas venturosas circum-
ecumênicos. stancias que nos possam dar essa tão sus­
Nem nos digam que o consenso c appro- pirada certeza? Que critério seguro c in-
vação que se exige, é das igrejas que não fallivel nos poderá guiar no reconheci­
forem hereticas; pois que estas igrejas mento de que existem estas taes circum­
por dissentirem, e se oppôrcm áquellcs standas, c que podemos com toda a segu­
concilios, ó que são hereticas. É logo ne­ rança e verdade dizer que existe sem a'
cessario suppòl-os legitimos, e verdadeira- menor dúvida essa moral unanimidade?
mente ecumênicos, independentemento do ld precise definire (idem, loc. cit.) non po­
consenso e approvacão das igrejas, e de­ test.
duzir d’outro principio esta sua qualidade, Muito bem! deixemos pois esse feliz des­
sob pena do laborar a réplica em um so- cobrimento ao tino particular, ao talento c
lcnine petitio principii. sagacidade de cada um. Eis-nos aqui sem­
Mas eu vou mais adiante, c em segundo pre com o negro caput mortuum—o espi­
logar pergunto:—esle consenso ha de ser rito privado, o juizo individual,' o entendi­
expresso, ou basta que seja tacito? Sc ex­ mento de cada particular, abandonado ás
presso, será necessario interrogar todas e suas proprias idéias, caprichos e paixões,
cada uma das igrejas do orbo. Quem ha ultimo residuo de nossas analyses, quando,
de encarregar-sc d’esta commissão? Que seguindo os princípios destes sophistas, exa­
tempo será necessário para ouvil-as? Co­ minamos qual é na Igreja de Jesus Chris­
mo nos podemos assegurar da authoridade to o supremo, e-in fallivel juiz das contro­
das suas respostas? Que pretextos não te­ vérsias.
388 INF
Concluamos emfiin quo no systema jan- possa fazel-a vèr na Escriptura c tradi­
scnistico, isto 6, quo o papa ó inferior ao ção. que é uma regra infallivcl, e que ellc
concilio, dohalde se buscará na Igreja uma expõe com caracteres visíveis. De manei­
authoridade soberana, um tribunal perem­ ra que, procurando nós um juiz supremo,
ptorio, acccssivel e permanente que resol­ um tribunal infallivcl, mostram-nos uma
va as dúvidas, que termine as controver­ regra infallivcl, a Escriptura, e tradição.
sias, ponha fim a todas as disputas, casti­ Nào se duvida da infallibilidade da Escri­
gue todos os discolos e rebeldes, e, emtim, ptura c da tradição; duvida-se da sua in-
que julgue e condemno, em ultima instan- tolligcncia; quer-se saber a sua verdadei­
cia, todos os erros que nasçam no seio da ra interpretação: estaé a que se busca.
Igreja. Porém sào tão astutos estes pertur­ Como poderá constar que esse pequeno
badores, que nào será facil encontrar com numero do seguidores da sã doutrina leve
um só de seus livros, nos quaes não sus­ a ventura de achar e descobrir na Escri­
tentem com o mais ostentoso apparato de ptura e tradição a verdadeira doutrina
provas que «necesse est in Ecclesia supre- da Igreja? Como poderão mostrar que a
mus aliquis, et infallibilis judex vivens, verdade está da sua parte, e que elles sào
spirans, semper vivens et subsistens, qui os verdadeiros interpretes da doutrina re­
exortas in Ecclesia controversias infallibi- velada? E se esses caracteres, com que a
liter dirimat.» pretendem mostrar, forem obscuros e im­
Passando porém a determinar qual seja perceptíveis para todos os mais, como po­
este tribunal supremo, taes circumstan­ derão fazer que sejam para todos claros,
das requer, c tacs condições exige, que palpaveis e visíveis? Continuemos, pois, na
na práctica se torna absoldtamcnte iíluso- busca d’esto importante c necessário juiz
rio, c somente in nomine ac in abstracto; supremo, e d’csta authoridade infallivcl,
pois que, se perguntamos a estes sophistas, que se possa fazer por todos respeitar.
qual é esse juiz? esse jtribunal supremo? Será este juiz supremo o concilio ecu­
será o papa? Nào, respondem logo; por­ mênico? Ah! esse sim, respondem cm uni­
que o papa nào é mais infallivcl do que sono todos os do partido! Alas (aqui vai a
qualquer outro bispo. Será o papa coin a contramina) os concilios geraes, supposto
maior parte dos bispos? Também nào; por­ representem a Igreja, a qual é a columna
que a infallibilidade nào foi promettida á da verdade, e sejam por isso infalliveisnas
maior ou menor parte dos pastores, mas á suas decisões dogmaticas, comtudo, para
universalidade: Ecce ego vobiscum sum; c terem esta qualificação, é necessario que
pódc ser que o papa, ainda acompanhado sejam concilios legitima, e canonieamcntc
da maior parte dos bispos, erre nas suas ecumênicos; porém, esta legitimidade—
decisões, e que a verdade esteja da parte «non potest nobis certo constare, nisi ex
do menor numero. Será, pois, este menor unanimi Ecclesiarum consensu.» Lugdn.,
numero, quando da sua parte se achar a loc. cit.
verdade? Nào: porque, supposto esteja da E como nos poderá constar com certeza
parte d’esse menor numero, c que cllc en­ este unanime consenso e approvação de
sine a doutrina da Igreja, comtudo nào todas as igrejas particulares, dispersas pe­
tem a authoridade. da Igreja. Atem-se á las quatro parles do orbe? Quantos pre­
verdade da Escriptura c tradição, mas não textos terão sempre os sectários para pôr
tem a authoridade de tribunal* em dúvida, e ainda negarem que exista
Assim, o juizo d’cssc menor numero de real mente esse unanime consenso e appro­
fieis seguidores da verdade, não é um juizo vação de todas as igrejas? Além d*isto os
infallivcl; porém, apoiado na doutrina an­ concilios ecumcuicos (por confissão dos
tiga da Igreja, tem a seu favor uma regra mesmos jansenistas) rarissime congregan­
infallivcl. Não tem authoridade para fazer tur. Logo, para serem o juiz supremo das
que seja seguido o seu juizo; mas pódc fa­ controversias, carecem ainda os concilios
zer que .seja acreditada a tradição, que geraes d’uma condição necessaria c essen­
ellc expõe com caracteres visíveis. Assim cial, como elles mesmos confessam, isto é,
falia Tamborini na sua Vera-ideia, etc. de serem um tribunal prompto, acccssivel
Depois de uma tal verbiagem, em que e permanente:—Semper vivens, et subsis­
ficamos? O maior numero de pastores uni­ tens.—E realmcntc assim o pede o boiu
dos ao papa, não é esse juiz supremo, por­ senso, e a legislação de um bom governo.
que pódc errar. Nào é o menor numero, . Que se diria dò governo d’uma grande
ainda que deferida a verdade, porque não nação, cm que o tribunal supremo das dú­
tem authoridade de tribunal, com quanto vidas, contendas e demandas, fosseui as
1
in f m

còrtcs, ou estados geraes da monarchia, rio; pois que Jesus Christo manda que sem
(|ue só se podessem congregar e reunir dc recurso seja logo reputado por um pagão,
secutos a secutos? separado e expulso da sociedade christã, o
Parece incrível que homens, os quaes se criminoso contumaz: Sit tibi sicut ethni­
prezam de grandes talentos, tenham a cs- cus et publicanus.
tulticia dc vomitar taes absurdos. Temos demonstrado que este tribunal
Façamos tudo isto sensi vel com uni não póde ser o corpo dos pastores, disper­
exempto. Gondeinnado um herege peto seu sos pela face da terra, sem que fiquem im­
bispo, appella para o papa; se este confir­ punes todos os crimes; igualmente fica de­
ma a sentença, appella para o concilio ge­ monstrado que não póde ser o concilio ge­
rat; congregado este depois dc grandes de­ ral, pela extrema ditliculdadc que hoje ha
moras e diíliculdades, é tambem concle- de ser convocado, e cuja convocação seria
mnado o herege; mas este, bem instruido necessário repeti r-sc todas as vezes que
nos principies do jansenisnio, e obstinado fosse necessário punir o refractario incor­
em seus erros, defende-se com a falta do rigível; o que não só seria summamcnte
consenso unanime da Igreja dispersa, que dilTicil, mas absolutamente impracticavel.
julga o unico critério certo e seguro de Resta, portanto, que pela palavra—Ec-
ter sido o concilio legitima mente ccumeni- cleske—se entenda como necessariamente
co; ora, como esta unanimidade só pode­ se deve entender, aquella authoridadc so­
rá ser com certeza conhecida depois de berana que Jesus Christo estabeleceu na
séculos, segue-se que, entretanto que es­ sua Igreja, isto é, o pontifice romano, suc­
ta approvaçào se nào verifica, nem as de­ cessor de S. Pedro, a quem n’ella instituiu
cisões do concilio leem força, nem haverá por seu vigário, encarregando-lhe o gover­
obrigação d^bcdccer-lhe—ac proinde con­ no c administração de tão vasta sociedade,
sequens est, quod quasiionnes incertes et subordinando-lhe todas as authoridades
sine judice semper m aneant—As contro­ particulares, que a boa ordem exigia fos­
versias se tornarão intermináveis, os here- sem propostas ás suas differentes divisões;
ges sem freio c sem corrccçào, a authori­ a quem revestido dc todo o ppder necessá­
dadc da Igreja insultada, e seus filhos flu­ rio para ligar c manter em unidade todos
ctuando, continuamente agitados por todos osjncmbros d’cstc corpo mystico; a quem
os ventos de doutrinas. o mesmo Jesus Christo esiabeleecu tam­
Eis-aqui como esta infernal seita tracta bem por pedra fundamental, e visivcl do
sempre de destruir com uma das mãos, o edifício sagrado—Super hanc petram edifi-
que, para inculcar calholicismo, parece cabo—n quem cspcciaímente entregou as
ter construído com a outra. Entretanto, chaves do reino dos céos— Et libi dabo
com a mais pharisaica hvpocrisia, alla­ claves liegni Ceelorum—a quem confiou to­
mente protestam que são os filhos mais be­ do o seu rebanho—Pasce agnos meos, oves
neméritos da Igreja, os firmes sustcntacu- meas—no que se deve entender não só os
los da mais sã doutrina da veneranda an­ simples fieis, mas os pastores subalternos;
tiguidade, c os mais licis c legitimos disci­ pois, supposlo sejam pastores a respeito de
pulos dc sancto Agostinho; ao mesmo tem­ seus diocesanos, são comtudo ovelhas a
po que, por palavra, por escripto c por respeito do primario c soberano pastor,
obra, ha dous séculos, estão, apesar de como judiciosamcnte notou Bossuct, depois
repelidos anathemas, resistindo á voz de dc S. Bernardo, a quem constituiu cabeça
seus primeiros pastores.- da sociedade catholica, para n’ella manter
Para destruir a disciplina presente, re- a unidade, c destruir toda a divisão— Ut
tiram-sc aos tempos passados; para resis­ capite constiluto scismatis tollatur occasio,
tir ás decisões dogmaticas, appellam ao et sit unum ovile, et unus Pastor;—a a
tempo luturo; c quando a voz da Igreja quem finalmente a infallibilidade em suas
lhes falia, e os ex horta para retraclar seus decisões dogmaticas, sem a qual jamais
erros, respondem que não a conhecem. poderia desempenhar tão altas funcções?
Da longa discussão que deixamos expen- foi assegurada pela poderosa oração do
dida, é facil concluir, quanto seja falsa a Filho de Deus—Pro te rogavi, Petre, ut
interpretação, que ás palavras—dic Eccle- non deficiat fides tua.
sitv—deram, segundo diz Pereira, referin­ É, pois, no tribunal pontificio que sc
do o testimunhq de Eneas Silvio, os padres acham reunidos c verificados todos os ca­
dc Constância, entendendo-as do corpo dos racteres essenciács, que constituem o su­
pastores, ou do concilio geral. A palavra premo juiz das controvérsias na Igreja de
— Ecclesia—n’cstc logar, não póde enten- Jesus Christo. A sua authoridadc ê sobera­
der-se, senão do supremo tribunal judicia­ na! Jesus Christo não instituiu outra que
590 INF
lhe seja superior. E universal; estende-se pa Libcrio como um prevaricador escan­
a toda*a igreja catholica. È permanente e daloso. Sancto Hilário exclamava então—
sempre viva—Scmpcr vivens et subsistens. Anathema lib iá m c dictum, Liberi, et sociis
— E' de facil accesso. É peremptória; pois tuis. Iturum tibi anathema et tertio, prava-
que todo o refractario (pie lhe resistir, fica ricalor Uberi.— Firmiliano deCapadociaes­
logo, por sentença de Jesus Christo, corta­ crevia no papa Estevão:— Te ipsum' excc-
do, e expulso da sociedade christã. E in- disti noli, te fallere. Dum enim putas omnes
appellavcl; Jesus Christo não lhe permitte a te abstineri jwssc, solum te ab omnibus
mais recurso—Sit tibi sicut Ethnicus, etc. abstinuisti.»
Emfim, é infaUivel nas suas decisões do­ Aqui os erros historicos vão pari passu
gmaticas— Non deficiat fales lu a — apesar com os erros de doutrina. A defesa con-
dos gritos, sophismas e caviltações do hu­ verlou-sc cm aceusaçào: desde que foi ne­
mano orgulho. cessario amontoar erros sobre erros para
Sahir (Festa doutrina, é favorecer os er­ desculpar o asseverado, estava provado
ros, fomentar as seitas, promover divisões que a justificação era impossível.
e destruir a unidade da igreja catholica. Provaram que existia o faclo eondemnado
Eis os fruetos ordinarios da doutrina con­ pelo sanctissimo padre Pio ix? Nào. Pro­
traria, como a expericncia nos tem infeliz­ varam que a admoestarão fora hypotheti­
mente demonstrado. ca, o nào se verificava a hypothosc? Nào.
Pelo contrario. Confessaram o faclo, c
gloriaram-sc d’elle. Depois constituem-se
TERCEIRA 0DJECÇÀ0 juizes da suprema aulhoridade espiritual,
equiparam-sc a Paulo, que resistiu a S.
Pedro, julgam-se, tão infalliveis como o
Não é de hoje que os inimigos da Igreja concilio de Piza c o de Constança, contra
falsificam a historia para nggredirem o Grcgorio xu c Joào xxm, poem-sc á par de
oapa; não é de hoje que imputam aos ou­ Sancto Athanasio c Sancto Hilário, invo­
ros o seu crime. Falsificam, e dizem que cam a authoridadc de Firmiliano de Capa­
é a curia quem falsifica; juntam o cvnis- docia, arguem-nos de nào achar bom o di­
mo á calumnia, a traição ao falso testimu- reito senào nas falsas decreta cs, c susten­
nho,,e depois triumpham! tam por fim que se confirmara a doutrina
«É esta a doutrina que confirmou a dc nossos soberanos desde o principio da
dos nossos soberanos desde os princípios monarchia.
de monarchia até hoje. Não se podia Qual era a doutrina de nossos soberanos
reconhecer, sem se deshonrar, a doutri­ desde o principio da monarchia, havemos
na de que um breve apostolico nào póde de mostral-o muitas vezes. Mostraremos co­
ser objectado. Os asinistas nào achando mo D. Sancho n promettia inteira obediên­
bom direito senào nas falsas decrctacs de cia nas cousas ecclesiasticas ao bispo de
Jzidoro Mercador, podem ser logicos con­ Roma;.mostraremos qual era o direito por-
cedendo todo o poder temporal ao papa; tuguòz a respeito do placei no tempo de el-
mas o antiquissimo direito portuguez nào rei D. Diniz, D. João u c D. Joào iv; mos­
admitte essas imposturas, c repelle as ar­ traremos que mesmo nos reinados de D.
rogantias d'uma curia onzoneira e devas­ Pedro i e D. João i, nunca se reconheceu
sa, como escreveram c provaram os nos­ nos governos temporãos o direito de resis­
sos bons portuguezes d’outras eras. tir aos rescriptos dc Roma, e nem sequer
«Tem o papa razão? Nào: logo fizemos fazer-lhes rcllexõcs a nào serem dos impe­
bem em lhe resistir. S. Paulo resistiu a trados; mostraremos emfim que nem a legis­
Pedro— in faciem resisti quia reprehen­ lação do tempo d’el-rei D. José tolerava as
sibilis erat. absurdas pretenções dos nossos jansenistas
«Os papistas ignoram tudo, ou fingem de hoje. " *
ignoral-o. Que importa uma excommunhào As falsas dccretaes de que nos temos
do papa quando é iniqua? O papa Grcgo- servido, são decretos dos concilios, bullas
rio xii foi declarado scismatico no concilio apostólicas dc authoridadc incontestável, c
geral de Piza, c Joào xxm foi declarado concordatas entre a Igreja e o Esladò.
fautor do scisma no concilio geral de Cons- A consequência que d’aqui immediata-
tança. O papa Liborio cxcommungou San­ mente dimana, é obvia. A verdade não ca­
cto A lhanasio, c comtudo Sancto Athanasio rece de sophismas; desdo que um acto nào
é que sustentava a- verdadeira doutrina póde justi ficar-se senão pela falsificação;
apostólica. A Igreja venerou o Sancto, con- desde que se faz derivar esse acto‘de um
siderou-o no seu gremio, e reputava o pa­ errado principio, dc uma doutrina univer-
salmentc condemnada, condcmnado fica o reira dú ao caso as proporções dc um gran­
acto pclo proprio tjuc se constituira scu de altentado, c não duvida chamar escan­
■defensor. dalosa praxe ao que S. Paulo apenas cha­
Os erros de doutrina lemol-os mostrado, mou- reprchcnsivel, c sobre que um dos
■c continuaremos ainda. maiores homens da christandade o do mun­
Onde estava algum S. Paulo, inspirado do não ousou emittir a sua opinião.
por Deus, que podésse resistir a Pedro? Fosse, porém, reprehensivel ou não o
•Qual foi a Damasco, ante cujos muros vis­ proceder de Pedro, em todo o caso a re­
tes o clarão do céo, c depois dc callidos em sistência de Paulo não foi mais do que
terra pedistes perdão a Deus. e de sua uma desapprovação d’essc proceder, que
bòcca ouvistes— *cxurgi et sla super pedes lhe parecia uma fraqueza de animo: para
tuos: ad hoc enim apparui tibi et consti- isso tinha Paulo o podei* que também hoje
lu a m te ministrum testem eorum qiuu vi­ assiste ao confessor do papa.
distif» Mas temos ainda muitos mais factos his­
Saulos, perseguidores dos christãos, di- toricos; temos as condcmnaçõcs de papas
zei-nos: qual foi o dia da vossa conversão, por concilios, as reprchcnsões dc Athana-
quando foi que vos disse o Divino Mestre: sio, etc. Veremos que papas, c concilios
— ingredimini civitatem? eram esses; veremos se os papas eram
«Fizemos bem em lhe resistir (a sua universalmentc reconhecidos na Igreja.
sanctidadc), dizeis vós! S. Paulo resistiu a É bem que se desenganem os poucos
Pedro—E i in faciem resisliti quia repre­ que ainda creem na boa fé dos falsificado­
hensibilis erat:» res.
Mas que resistência foi essa? Desobede­ Poderá demonstrar-nos o sapientissimo
ceu por ventura Paulo, ou negou a supre­ doutor, que o concilio de Piza é uni ver­
macia de Pcdro? Assim o pensaria quem sai mente adoptado como concilio ecumêni­
não conhecesse como costumam fallar ver­ co? Foi ellc convocado pelo papa c appro-
dade estes oráculos. vado por elle? Quem era o papa no tempo
Essa resistência de Paulo não foi mais em que se reuniu o concilio? Seria Pedro
que uma desapprovação de proceder; Pe­ de Luna, ou Angelo Corrado?
dro recéando ollender os judeus vindos de Discutiremos ainda mais largamentc este
Jerusalém a Antiochia, fugia dc que o vis­ ponto, c veremos com que boa fé foi dado
sem comer com os gentios, para não os cs- o nome de papa a um que nem o proprio
candalisar. Paulo achava isto rcprchcnsiycl, concilio declarou tal.
queria que Pedro afirontasse os prejuí­ ■ Começamos a analyse da amostra janse­
zos dos judeus convertidos, c desapprovuu nista acima transcripta.
aquella condescendência. Vejamos quem era Gregorio xn, e o que
Pedro era por ventura impcccavel? A foi o concilio geral de Fiza: veremos de­
infallibilidadc não póde existir senão junta pois quem era João xxm.
com a impcccabilidade? Quereis que os Transferida para Aviuhão a séde ponti­
concilios ecumênicos sejam compostos só­ ficia pclo papa Clemente v, o restituida a
mente dc séres impeccaveis, para que se Roma cm 1377 por Gregorio xi, que fallc-
reputem infalliveis nas decisões dogmati­ ceu no seguinte anno, seguiu-se o grande
cas? scisma do Occidente, scisma que provavel­
Abonaes-vos com o padre Pereira, que mente nem houvera nascido, e dc certo
d’este acto de S. Paulo, dizia: «foi q mes­ não teria. tão deploráveis consequências,
mo que delatar á Igreja a falsa doutrina nem adquiriría tamanhas proporções, se a
ou escandalosa praxe dc Pedro.» má politica ou ambição, dividindo os po­
Qual era a falsa doutrina? Que dogma vos da christandade, não viera complicar
cra posto em dúvida? mais a questão, se o poder temporal não
Se a praxe era ^escandalosa, não o devia se julgasse chamado a decidir pela espada,
escrever a escandalosa penna dc um orgu­ o que só á Igreja competia decidir pela pa­
lhoso jansenista vendido ao poder. O que lavra.
Sancto Agostinho não ousou decidir, viuha Obedeciam uns ao papa eleito cm Roma,
decidil-o entre catholicos o author da Ten­ outros ao eleito em Avinhão: uns reinos
tativa. sustentavam este coutra aquclle, e chama­
Sancto Agostinho na sua Ep. 82, louva vam scismaticos a seus adversarios; sus­
tanto a justa inteireza de Paulo, como a tentavam outros aquelle contra este, e scis­
sancta humildade dc Pedro; não se atre­ maticos chamavam igualmentc os primei­
veu a censurar nenhum, c deixa a Deus o ros.
juizo entre estes seus servos: o padre Pe­ Todos protestavam que eram catholicos,
392 INF
que obedeciam ao verdadeiro pontifice, ao ellc, porque é a sua cabeça. Não ha conci­
successor de Pedro, em quem reconheciam lio ecumenico separado dá cabeça da Igre­
o chefe e cabeça visível da Igreja. Mas nào ja, nem a cabeça póde nunca reputar-se
havia papa universalmente reconhecido no viva,e ao mesmo tempo separada do corpo.
orbe catholico. Não ha pois concilio separado do papa
Em 1406 fora eleito em Roma, pelos car- nem papa separado do concilio.
deacs que alli se achavam, Angelo Corra* O concilio separado do verdadeiro e le­
rio, que tomou o nome de Gregorio xn. gitimo papa, e em opposição com ellc, não
Era Avinhão havia sido eleito, por outra e concilio, é conciliabulo.* O papa, separa­
fracção do sacro-collegio, Pedro de Luna, do do verdadeiro concilio, e em opposieão
que tomou o nome de Benedicto xni. com clle, não é papa, é anti-papa.
Esta eleição fòra feita com a condição Esta verdade, que todos, c por conse­
de Pedro de Luua resignar, se o eleito em quência os dous contendorcs, rceonhepiam,
Roma fizesse o mesmo; e Pedro de Luna levava estes por uma rigorosa dcduceão lo­
promettera com juramento de cumprir es­ gica, a não reconhecerem a legitimidade
sa condição. Quando depois em Roma se do concilio, nem obedecerem a suas inti­
fez a eleição de Angelo Corrario, lambem mações. - .
se lhe impôz a mesma condição, c clle ac- Rep.utava-sc cada um d’clles legitimo
ceitou-a com juramento. papa, fosse isto embora, um erro; entre­
Esperava-se assim, que cedendo um c tanto, uma vez admittido como verdade,
outro—pro bom pacis—sem desdouro para partindo-se d’elle, como de facto incontes­
nenhum dos lados, acabaria o scisma, c tável, a consequência era o procedimento
um papa, universalmeirte reconhecido, e que tiveram.
cuja eleição canônica fosse incontestável, Desde o momento em que qualquer d’cl-
extirparia o scisma. les obedecesse á intimação do concilio; re­
Entretanto por cada lado havia reinos e conhecia que não era legitimo papa, c isso
povos, cujo interesse era sustentar o papa era o que não queria confessar nem um
que haviam reconhecido. Quacs sustenta­ nem outro.
vam o verdadeiro c legitimo pastor? De Mas por sua parte o concilio reputari-■
Portugal sabemos, que sempre reconheceu do-os a ambos destituídos de legitimo ti­
como verdadeiro pastor o papa eleito em tulo para o papado, julgava-se com direito
Roma. de os fazer citar e chamar perante si. .
Mas faltando Ângelo Corrario á promes­ Não citava o papa, mas os contendorcs
sa e condição jurada na sua eleição, podia do papado. A estes, pois, foi que o concilio
continuar a ser considerado como verda­ condcmnou e julgou inhabeis para se as­
deiro e legitimo pastor? Julgaram que não, sentarem legitimamente na cadeira de Pe­
tanto os cardeaes de Roma, como os de dro, desde o momento em que faltaram a
Avinhão; julgaram o mesmo a respeito de seus juramentos, e não satisfizeram á con­
Pedro de Luna; e a verdade é, que faltan­ dição de sua eleição.
do o pastor, ninguem, senão elles, podia Ora, eis-ahi quem era esse Gregorio xir.
convocar um concilio para decidir tão gra­ É o papa que nos citam os jansenistas
ve questão. como exemplo para provar a superiorida­
Eis-ahi porque resolveram convocar o de do concilio, c a fallibilidadc do papal
concilio de Piza. E o concilio, vistas as Convidavam os .povos para virem admi­
condições da eleição de Angelo Corrario, rar como elles jogavam acertados botes
com ove Pedro de Luna, julgou que ne­ contra o catholicismo; queriam mostrar os
nhum d’elles podia ser papa, porque^ am­ milagres da sua espada desembainhada em
bos faltavam á condição de sua eleição. prol das doutrinas de Luthcro; inlrinchei-
Ambos foram citados para comparece­ ravam-se atraz dos padres do concilio de
rem perante o concilio: ambos recusaram, Piza; e por fim enterraram-se elles mesmos
porque ambos julgaram dever sustentar na sua propria espada, e os padres do con­
as prorogativas de verdadeiros pontifices. cilio sacodem-os para fóra d’aquelle res­
Os jansenistas apresentam o exemplo peitável recinto, onde não eram admitlidos
d’esta citação, e a deposição dos dous pon- os inimigos da Jgi;eja.
tendores sobre o papado: mas não vôcm, Depois d’isto uma pergunta: o sapientis-
que mesmo na recusa e contumacia d’estes simo padre mestre quererá comparar Pio
está uma prova de qual era a doutrina ix a Angelo Corrario, e a camara electiva
corrente c a tradição na Igreja. ao concilio de Piza? Se nem a camara ó
O papa legitimo e verdadeiro não póde concilio, e só por muito favor poderia me­
ser citado pelo concilio, nem deposto por recer o nome de conciliabulo, nem-Pio ix
TNG 393

•solver o seu matrimonio com Catharina de vn dava sempre signaes de estar disposto
Aragão. a favorecer o divorcio do rei, e ao mesmo
. O melhor expediente que se achou foi le­ tempo collocava-se em estado de poder to­
var o negocio a Roma. Lisongeavam-se de mar medidas contrarias. Elle nomeou o
que o papa seria favoravel, c nào se atre- cardeal Compage, que estava cm Roma,
. veria a recusar cousa alguma a um prin­ bispo de Salisbury, e o associou ao cardeal
cipe tão poderoso como o rei de Inglater­ Wolsey para julgar este negocio. Compage
ra. Encarregaram-se canonistas c thcolo- passava por muito sabio cm jurisprudên­
os de procurar na Bulla de dispensa, que cia ecclesiastica, c tinha a reputação de ser
ulio u tinha concedido para o matrimonio virtuoso! Elle fez tudo para se recusar de
de Henrique com Catharina, nullidade so­ uma commissão tão delicada, mas final­
bre quesepodesse insistir. Recommendou- mente cedeu ás instâncias do cardeal Wol­
se-lhes também mostrar que o papa tinha sey.
ssido surprendido, que a Bulla tinha sido Comtudo a rainha Catharina não despre-
obtida sobre uma falsa exposição, c que sou cousa alguma para conduzir o impera­
. por conseguinte era revogaveK dor e o archiduquc Fernando, seu sobri­
Como o imperador tinha n’essa occasião nho, a protegerem-na, e os advertiu de to­
. recluso o> papa Clemente viii, começaram das as difllculdades que se formavam contra
•as solicitações, esperando quo este papa o seu matrimonio.
• na situação em que sc achava usaria de Elles lhe aconselharam que não consen­
condescendência. Kniglh, secretario de es­ tisse de modo algum em entrar n’um con­
tado, partiu de Inglaterra no mez de julho vento, nem deixasse perder os seus di­
de 1527. Nào pôde fallar ao papa, que es­ reitos, assegurando-a de que tinham bas­
lava guardado no castello dcS. Angclopor tante poder cm Roma para lhe fazer dar
um capitão hespanhol; mas fez-lhe entregar justiça.
um memorial, pelo qual lhe pedia uma com- A rainha, contando com a protecção de
missão para o cardeal Wolsey, a fim de seus sobrinhos, recusou constantemente o
que julgasse este negocio em Inglaterra, as- divorcio, e não quiz escutar as proposições
. sociando a si alguns bispos. Outro artigo que lhe fizeram os bispos, comprados pelo
do memorial era para que o papa declarasse rei. O cardeal Compage, que tinha ido a
.nullo por uma Bulla o matrimonio do rei Inglaterra, não cessava de exhortar este
: com Catharina, porque o da mesma prin- príncipe da parte do papa de nào deixar
ceza com Arthur, irmão do rei, tinha sido a rainha, c de considerar na injuria que fa­
consummado; e que o papa concedesse ao zia á sua reputação, e as guerras que te-
rei uma dispensa para casar com outra ria a sustentar contra o imperador.
i.mulher. Clemente vn respondeu favoravel- Mas vendo que o rei se não rendia ás ra­
• mente a este memorial, e fez vôr que satis­ zões, juntou-se como o papa lhe tinha or­
fa r ia aos:desejos de Henrique. denado áquclles que aconselhavam a Catha­
Quando sc soube em Roma que o papa rina de se separar voluntariamente do rei
-se tinha evadido de noite, disfarçado em c de se recolher a um convento. A rainha
..mercador, e se tinha retirado para Orvie- não escutou Compage, mas mesmo ella
; te, o embaixador de. Inglaterra foi o pri­ apresentou a cópia de um Breve, quo con­
meiro que se apresentou a felicital-o pelo tinha uma dispensa mais ampla que a da
í recobramento da sua liberdade. Bulla, sobre que os legados queriam jul­
Apresentou-lhe.as razões as mais plausí­ gar este negocio, e que reparava todos os
v e i s para o induzir a conceder o que o rei defeitos d'ella.
.pedia. O papa pareceu tocado, c prometteu O rei, irado de vér adiantar tão pouco o
í fazer tudo o.que podesse favorecer a Hen- negocio que tinha tanto no coração, enviou
írique, mas achou pretextos apropriados pa- a Roma novos agentes para se juntarem
• rà demorar o negocio. aos embaixadores que ahi tinha. Estes
. O cardeal Wolsey escreveu uma carta agentes passaram por Paris, aonde Fran­
de muita instancia, em que.lhe dizia entre cisco i lhes deu cartas, nas quaes ordenava
-outras cousas, que se elle recusava esta aos embaixadores, que também tinha em
-graça era de temer que o rei fosse procu­ Roma, que se juntassem áquclles que so­
rrar remedio a outra parte, è formasse al- licitavam o favor de Henrique. Os envia­
.gum a. empreza muito mais prejudicial á dos tendo .chegado à presença do papa, lhe
sancta sé, e que seu exemplo poderia ser fizeram as mais bellas promessâs para o
. seguido por outros. .Mas esta carta nào pro­ ganhar. E como Clemente vn era natural­
duziu mai a eflfeito que as vi vas solicitações mente timido, elles fizeram entrever que se
-dos embaixadores de Inglaterra. Clemente elle não fosse favoravel a Henrique, podia

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594 ING
contar que a Inglaterra estava perdida pa­ Como não restava outra cousa a fazer se­
ra elle, e que os inglezes estavam ià todos não pronunciar a sentença, cada um se
dispostos a subtrahir-se á sancta se. O pa­ persuadia que seria tudo áhi terminado, c
pa respondeu gemendo, que se achava que os legados iam a dar um juizo defini­
n’uma posição diíficil; que para qual­ tivo.
quer parte que se voltasse, não via senão A assembléia foi muito numerosa: o rei
precipícios, mas que punha a sua confian­ foi-se collocar n’uma camara Visinlia, para
ça em Deus, que não abandonaria a sua saber tudo o que sc passava. Mas ficaram
igreja: que finalmente tinha mostrado quan­ bem espantados quando se ouviu o cardeal
to favorecia o rei de Inglaterra, commel- Compage remetter a decisão do negocio
tendo o juizo da sua causa a dous legados, para o i.° d’outubro, dando como razão que
que lho eram afTeiçoados, que era pedir- era o tempo das grandes vocações cm Ro­
lhe muito, exigir que violasse as leis da ma c que não podia recusar-s*e de seguir
Igreja, e sacrificar o imperador, a rainha este uso. Accresccntou que a raiuha não
Catharina, a honra c a dignidade da sancta queria consentir que o negocio fosse jul­
sé. Esta resposta deu bem a conhecer as gado cm Inglaterra, c que cila recusava
verdadeiras disposições do papa. Depois reconhccel-os por juizes a elle e a Wolsey,
que tinha visto os negocios da França in­ que a final elle não ignorava o perigo a
teiramente arruinados na Italia, temia mais que se expunha, mas que devia menos at­
que nunca ferir o imperador, e não o dis­ tendor ao perigo de perder a sua vida do
simulava. que a perda da salvação da sua alma.
O rei soube logo a verdadeira causa
d’estas demoras, porque soube que o papa
IV tinha avocado o negocio a Roma, para on­
de elle estava citado, c a rainha. Prohibiu
qué se lhe significasse a avocação, foi para
Em 1528 o cardeal Wolsey trabalhou Grapton com Anna Bolena, e deu ordem á
cm fundar alguns collegios, è sobretudo rainha para se retirar. Anna Bolena seap-
em tornar celebre o d’Oxford. Com desí­ plicou a azedar o espirito do rei contra
gnio de agradar ao rei, supprimiu muitos Wolsey, e lhe disse com valor que se al­
conventos, erigiu novos bispados e conver­ gum senhor tivesse feito tanto como este
teu abbadias cm cathcdraes. cardeal, não se lhe teria deixado muito
Estas emprezas foram approvadas no col­ tempo a cabeça sobre os hombros.
legio dos cardeaes. Clemente vii lhe per- Wolsey tendo*sc apresentado para fallar
mittiu também de fazer a visita de todos ao rei, Henrique mandou-lhe dizer que não
os conventos de Inglaterra. Este irou-se de queria vêl-o, c que poderia voltar com
mortificar os monges, mas sabendo que Compage. Isto foi o principio das suas des­
; causava bastante tristeza ao rei pelas suas graças. Tirou-se-lhe o grande salario, que
' demoras, tractava de o consolar por outra lhe tinha sido dado por toda a vida, deu-se
parte, concedendo a seu favorito tudo o a Thomaz Morus, homem gcralmento esti­
que elle lhe. pedia em favor das suas fun­ mado por causa da sua sciencia e da sua
dações. Mas Henrique desejava com muito inteireza. Apresentaram-se diversos artigos
araor casar com Anna Bolena, por soffrer de accusação contra Wolsey, e houve or­
demora de muitos tempos; resolveu então dem de sáhir do seu palacio de York, o de
seguir o seu negocio diante dos legados. A se retirar a uma casa de campo, que lhe
rainha, tendo sido citada, recusou appare- pertencia, como bispo de Vinchestcr. Apos­
cer perante elles, e foi condemnada por saram-se logo d’este palacio e dos bellos
contumaz. moveis com que estava ornado, c se fez um
Emquanto se procedia a informaç-Ões, o inventario de todos os seus bens, que eram
imperador quiz que o papa avocasse este numerosos. A sua sentença foi pronuncia­
negocio do divorcio a Roma: o papa decla­ da: declarou-se decahido da protecção do
rou a sua resolução aos embaixadores de rei: os seus bens foram confiscados; e o
Inglaterra, e por mais esforços que elles juizo da sua pessoa entregue ao parlamen­
fizessem para o dissuadir, representando- to. Foi accusado de ter abusado dos car­
lhe que a sancta sé ia perder a Inglaterra gos de legado,' de chancellcr, do primeiro
sem esperanças de voltar, tudo isso foi inú­ ministro, e do favor de que o rei o tinha
til, e assignou a advocatoria a 15 de julho honrado.
de 1529. Ignorava a Inglaterra esta advo­ Estava-sc prestes a condemnal-o como
catoria; assim os legados continuaram as culpado de alta traição; mas Thomaz Cron-
suas sessões. A ultima foi a 23 de julho. suel, domestico do cardeal, um dos mem-
bros do parlamento, sustentou os interes­ ram regulados, c probibiu-sc aos capcllãcs
ses de seu amo com tanta sagacidade e fir­ dos grandes senhores o terem dous bene­
meza que o tirou do perigo por esta vez. fícios com cura d’almas. No mesmo tempo
Mas no principio do anno seguinte de o rei enviou a Roma,um novo embaixador
1530 Wolsey caliiu enfermo de tristeza cm com muitos doutores, entre os quaes ia
Asther, logar do seu desterro. O rei toca­ Tliomaz Cranrner, que depois se tornou
do do seu estado lhe deu as suas boas gra­ inuito illustre. Este ultimo teve ordem de
ças. Os inimigos do cardeal se irritaram, escrever em favor do divorcio, e de apoiar
azedaram de novo o espirito do rei contra seus sentimentos, e sua decisão com todas
eíle, e o obrigaram a destcrral-o para o as provas e todos os testimunhos que po-
seu arccbispado de York. Wolsey prepa- desse achar nos canonistas, e nos theolo­
rou-se para esta viagem por um retiro que gos. O livro de Thomaz Cranrner foi apre­
fez cm Chatreux de Richemont. Pòz-se de­ sentado ao papa, que o remctleu com ou­
pois em marcha acompanhado de 100 do­ tras memorias do cardeal Caetano para lhe
mesticos. Os seus inimigos lhe fizeram um fazer sua relação.
crim e diante do rei, e determinaram este Francisco i tinha encarregado o bispo dc
principe a fazel-o perder como culpado de Tarbcs, seu embaixador em Roma, para
alta traição. Vinte guardas tiveram ordem auxiliar o rei Henrique em tudo o que po-
de o conduzir a Londres, apesar dos pri­ desse.
vilégios da dignidade de cardeal, que clle Mas o imperador não quiz somente es­
não deixou de allegar. Foi necessario dc- cutar os ofTerecimentos que lhe fez para
morar-sc em Leichcstcr por causa de uma ganhar o embaixador de Inglaterra. Este
febre violenta de que foi atacado, e que o principe empenhou mesmo a Clemente vii,
conduziu á sepultura em um dos ultimos para enviar a Henrique vm um Breve que
dias de novembro do mesmo anno dc 1530, lhe prohibia contrahir segundo matrimo­
aos 61 annos de idade. Algumas horas an­ nio, antes que se tivesse julgado em Roma
tes de expirar, o logar-tencnte da torre deo negocio do divorcio. Foi necessario en­
Londres, que o conduzia, quiz consolal-o, tão reduzir-se ás aberturas que tinha dado
dizendo-lhe que o rei nào ó tractava com ri­Cranrner de consultar os homens mais sá­
gor; mas Wolsey replicou que se clle tinha bios, e as mais celebres universidades da
alguma cousa a reprehender-se era de ter Europa, sem perder muito tempo com in­
despresado os interesses de Deus pelos do úteis negociações na presença do papa.
rei, e que Deus, abandonando-o na velhice, Suppunha que se estas universidades de­
o castigava d’esta injusta prcfercncia. Ah! clarassem conforme ao desejo do rei, que
— gritou elle—Deus nào me abandonaria se nào tinha podido conceder-lhe dispensa
se eu o tivesse servido tào (ielmentc como para o seu matrimonio com Catharina de
tenho servido o rei; mas Deus é justo, e Aragào, o papa se acharia forçado a julgar
castiga-me por lhe ter sido menos fiel do em seu favor. Este parecer cie Cranrner
que ao meu principe. deu tanto prazer ao rei, que clle gritou em
Estas palavras de um cardeal-ministro, transportes de alegria, que pelo golpe que
que se tinha elevado por sua ambição, e tinha dado, a poria pela orelha. Esta ex­
que tinha sacrificado tudo á sua fortuna, pressão, ainda que grosseira, mostrava
fazem julgar que era ainda ordinario então quanto elle gostava d este expediente. En­
testimunhar na morte sentimentos de re­ viou então homens babeis á Allcmanha, á
ligião, e que se tinha também apartado França c á ltalia para consultar as univer­
<Tessa estupidez e d’essa extineção da fé, sidades.
que se lho notaram depois! Começou pelas d’Oxford, c de Cambri-
dge, a fim de saber o que os seus proprios
doutores pensavam do seu negocio. Mas
V apesar das promessas, ameaças, presentes
c violências, nào sc pôde ganhar senão um
pequeno numero de doutores, que decidi­
O rei, sempre occupado do negocio do ram que o matrimonio do rei com Catha-
seu divorcio, e prevendo a divisão que ia rina, viuva de seu irmão, era contrario ao
rebentar entre elle e o papa, começou a direito divino. Escreveu de seu proprio
perseguir o clero do seu reino. punho á faculdade de theologia de Paris.
Limitoü-se, por então, a corrigir alguns O marechal de Montmorency solicitou vo­
abusos, e seria louvado se fosse isto por tos de todas as partes, e conítudo a assem­
motivo de religião. Os direitos que perten­ bléia que houve a este respeito, separou-
ciam aò clero protestante, c enterros, fo­ sc sem ter concluído cousa alguma. Hen-
396
riquc viu obteve outra que se celebrou nos um grande, poder em Inglaterra. O cardeal
Malhurins a 22 (le julho de 1530, e na qual Wolsev tinha sido accusado de ter violado
a força de intrigas teve a seu favor 33 vo­ esto regulamento, o estava-se em estado dc-
tos contra 43. Este exemplo, junto ao di­ reprehendor a mesma falta a todos os mem­
nheiro que nào se poupava, attrahiu mui­ bros do clero, e assim nào se deixou de o-
tas outras universidades de França e de lazer. O rei propunha-se a isto com dous-
Italia. fins: o primeiro era tirar muito dinheiro,
. Algumas em Allemanha, em Flandrcs, ao seu clero; o segundo era humilhar, e
e em Hespanha, nào quizeram dar o seu diminuir o credito que cllc tinha entre o
parecer, e os proprios protestantes recusa­ povo. Este principe nào ignorava que os
ram approvar o divorcio do rei Henrique. ecclesiasticos eram os mais oppostos ao-
Os maiores senhores da Inglaterra, tanto seu divorcio: cllc queria pol-os fora do
seculares, como ecclesiasticos, escreveram estado do lhe fazer mal, opprimindo-os, e
ao inesmo tempo uma carta muito forte a obrigando-os a morrer á sua clemencia. O
Clemente vii, para lhe apresentar as razoes clero vendo esta conjuração formada, creu
politicas que deviam conduzil-o a satisfa­ que era mais vantajoso snbmetter-se, que
zer as pretenções do rei. Elles diziam que resistir.
a este principe, nào tendo herdeiro da sua A provincia de Cantorbery se juntou, e-
coroa, e nào podendo mais esperar ter fi­ se conveio em óíTcrcecr ao rei cem mil li­
lhos de Catharina, se lhe devia permittir bras sterlinas. Comoaquellcs que dirigiam
contrahir segundo matrimonio, para que o a acta d’este donativo, estavam de intelli-
reino nào ficasse depois exposto a guerras gencia com . a carta, deram então ahi ao
civis. A carta acaba por ameaças. rei o titulo de—Chèfe soberano da igreja da
O papa respondeu com força; mas me­ Inglaterra.
dindo do tal sorte seus termos, que nào A maior parte dos deputados se indigna­
havia algum que podesse oITender o rei. ram de vér que se inseriam estas palavras
Comtudo, este principe temendo que elie em uma acta em que nào se tractava se­
enviasse á Inglaterra alguma Bulla favorá­ não dc dar dinheiro ao rei, e queriam que
vel a Catharina, prohibiu a seus vassailos, se riscassem.
sob penas rigorosas, receber nada da corte Mas Thomaz Cromwcll tendo ido á as­
de Roma. Resolveu ao inesmo tempo levar, sembléia com alguns senhores, declarou
o negocio do divorcio ao seu parlamento e que o titulo que se dava ao rei'lhe era
á assembléia do clero, e fazel-o em Ingla­ muito agradavel, e que sem este recusaria
terra sem lhe importar do que o papa po­ absolutamente as suas ofTertas.
dería fazer. Emfim, depois de prevenir o Nenhuma pessoa se atreveu a responder,
povo cm seu favor, fez imprimir e publi­ e a acta passou como se tinha redigido.
car um resumo das razoes que êllc tinha Alguns propozeram que se juntasse ahi es­
de pedir o divorcio com a rainha. ta rcstricção: quanto a lei de Deus o pôde
permittir; mas rcspcitou-se esta proposi­
ção. O rei testimunhou não estar menos
VI satisfeito do titulo que se lhe tinhd dado
na acta, do que do presente que o acompa­
nhava. O clero da provincia dc York se
Este principe pensou depois seriamente juntou ao mesmo tempo, e resolveu dar
nos meios de mortificar o clero. Reprehen- também ao rei uma somma inuito conside­
deu-o de ter violado a lei que tinha sido rável. Mas como a acta que se redigiu
promulgada em 1377, e que prolubia aos d’esta doação nào falia va da qualidade do
inglezes de obter na curte de Roma algur chefe supremo da igreja anglicana, se lhe
ma ex'pediçào contraria aos direitos do fez saber que o seu donativo não seria ac-
reino. ceitc se não désse ao rei o mesmo titulo
Tinha-se estabelecido uma lei para emba­ que o clero de Cantorbery, e cllc o conce­
raçar os abusos que os papas faziam, do seu deu depois de algumas contestações.
poder, dando a maior parte dos bispados js, Quando o papa soube o que se passava
cardeacs que nào residiam n’elles, e tiravam em Inglaterra, fez expedir um Breve pelo
muito dinlieiro á Inglaterra. Muitos papas qual prõhibia a todos os prelados, e a todos
tinham tentado em vão fazel-a revogar; os. juizes de tomar conhecimento do nego­
eJIa foi muitas vezes confirmada; mas com­ cio do divorcio, e de o julgar.
tudo isso nào tinha sido exacta mente ob­ Despresou-se este Breve em Inglaterra,
servada até ao tenipo do divorcio, e ós pa­ é as pessoas prudentes, que previam. as
pas tinham sempre continuado a exercer consequências que podiam resultar do com-
IN G 5 97

portamenlo do papa,o exhortavam a usar dc dava vivas rcprchcnsòes sobre o cscandalo


.uma extrema circumspceçào, cnào apagar que elle dava a seus vassallos. Exhorta-
a mccha que ainda fumava. No mesmo va-o no segundo, datado em 15 dc novem­
tempo o rei procurava toda a sorte de bro, a apartar-se de Anna, e tornar a rece­
meios para fazer consentir no divorcio a ber sua legitima mulher, intimando-o, em
rainha Catharina; o quando viu que cila caso de desobediencia, para comparecer
estava inabalavcl, separou-se d’ella para em Roma com Anna Bolena, para ahi res­
sempre, c a desterrou para uma das casas ponder sobre a vida escandalosa que am­
reaos. Era noincz de Julho de 1531. bos passavam.
0 rei respondeu ao papa que se viam no
seu Breve muitos erros, que era indescul­
V II pável de seguir os perigosos conselhos do
conselheiros ignorantes e atordoados. Jun­
tava que da sua parte tinha consultado os
Pouco tempo depois o rei quiz terminar mais sábios homens da Europa, que todos
por si mesmo este grande processo, casan­ tinham julgado nullo o seu primeiro ma­
do com Anna Bolena. JJm sacerdote a quem trimonio, e acabava a carta, dizendo a Cle­
elle disse que o papa lhe tinha permiltido mente vii, que tendo já trabalhado em en­
casar com outra mulher, além de Catha­ cerrar a authoridadc do papa nos seus jus­
rina, fez :r ceremonia em presença de al­ tos limites, elle nào iria mais adiante sem
gumas testimunhas. que o obrigasse a isso, mas quando o ex-
Depois d’c$te matrimonio, Henrique nào hortava a fazer os seus deveres.
guardou medida alguma com o papa, que 0 papa estimulado d’esta resposta, teria
da sua parte continuou os procedimentos talvez pronunciado uma sentença contra o
contra elle. rei, se os cardeaes, os mais moderados,
Como o clero de Inglaterra nào entrava nào o tivessem conduzido a guardar ainda
nas vistas de Henrique vm quanto este medidas contra elle.
principe desejava, nào pensou senào cm Houve ahi uma nova negociação, que nào
' humilhar c diminuir o sou credito. Depois produziu mais effeito que as precedentes.
as duas camaras do parlamento, por agra* A igreja de Inglaterra perdeu entào um
. darem ao rei, se declararam contra a cortedos seus maiores ornamentos na pessoa de
dc Roma, fazendo de concerto uma lei pa­ Guilherme Yarhâo, arcebispo de Cantor-
ra tirar aos papas as annatas, e se passa­bery.
ram os pallios e as hullas dos bispados. Morreu na idade de 83 annos, penetrad
0Havia n’esle mesmo regulamento uma clau­ de dòr de vér a fé prompta a extinguir-s
sula que annullava todas as censuras que na sua patria. Tinha zelo pela religião,
a..corte dc Roma lançasse contra o rei e protegia as gentes de letras. Os cortezàoi
que nào pensavam senào em lisongear c
contra seus vassallos, c prohibia aos eccle­
rei nas suas paixões, se regosijaràm com
siasticos o publical-as. O rei querendo ain­
da salvar as apparcncias, e temendo muito a morte de um prelado tao respeitável.
irritar os espíritos, e sobre tudo o papa,Alguns tinham mesmo já jurado a sua
■nào quiz por entào permittir qüe se publi­ perda, e se tivesse ainda vivido mais dous
casse. annos, julga-se que teria padecido a sorte
No. principio do anno dc 1532, o parla-de Fischcr, e de Mooro.
• mento tentou abolir os juramentos dos bis­ Cromwel, dizia que Varhào merecia ser
pendurado como o seu Christo, mas que
pos ao papa, substituindo-os por outros. Mas
a peste que accommctteu Londres, o obri­ elle devia ter uma forca mais alta, na qua­
gou a separar-se antes de terminado este lidade de arcebispo. Uma tào horrível blas-
negocio. ThomazMooro, grande chanceller, phemia é digna de um homem que nào era
e homem de um raro merecimento, vendo menos impio que scelcrado. *
o andamento que tomavam os negocios da
Igreja em Inglaterra, se demittiu do seu
emprego, entregando ao rei o grande sèllo. VIII
Era muito aborrecido do pao.de Anna Bo-
Jena, a qual procurava um pretexto para
.o perder, mas o comportamento d’este No principio do anno de 1533, o parla­
.grande homem foi sempre üreprehemivel. mento apresentou um regulamento que
No mesmo anno o papa informado de prolubia'toda a appellaçào para Roma.
tudo o que se passava em Inglaterra, es­ Ao mesmo tempo o rei collocou na sé de
creveu ao rei dous Breves, pelos quaes lhe Cantorbery o doutor Cranmer, que é im-
ING
portante conhecer, porque este c o heroe um homem que era ao mesmo tempo lu­
de M. Brunet, habil defensor da reforma thcrano, casado em segredo, sagrado arce­
anglicana, e cuja historia é muito estimada bispo, segundo o ritual romano, sujeito ao
na Inglaterra. Considera Cranmcr como o papa, cujo poder elle detestava, dizendo
verdadeiro author d’csta reforma, c não missa cm que nào cria, e dando poder de
duvida comparal-o com Sancto Athanasio, a dizer.
e com os maiores bispos dos séculos' da Que cegueira dar-nos um similhante
Igreja. monstro por um Athanasio c um Cyrillo!
Mas este historiador nos fornece factos Brunet, pretende que Cranmcr fez o que
que dão uma estranha ideia de Cranmcr, pôde para nào acccitar esta eminente di­
, e que, por conseguinte, nào previne - cm gnidade, c admira a sua modéstia.
favor de uma reforma que se gloria d’um Mas de que modo um homem de espi­
tal instituidor. rito não via que um doutor que tinha fa­
Nasceu em Nottingham cm 1489, nào se vorecido tanto o divorcio, se tinha tornado
sabe de que familia. Foi professor na uni­ tão necessário ao rei? Cranmer que o sa­
versidade de Cambri.dgc, de que foi expulso bia bem, nào ignorava que recusando o
por haver casado. Foi um dos primeiros arccbispado, elle não lhe acceitaria a recu­
que escreveu cm favor do divorcio do rei sa, c que lhe era facil juntar á honra de
com a rainha Catharina, e este zelo lhe deu uma grande prelazia, a da moderação.
merecimento para com um principe, a quem
favorecia a paixão dominante. Começou-se
desde então a consideral-o na corte como IX
uma especie de favorito, que parecia dever
succedor ao credito do cardeal Wolscy. Es­
tava iniciado, diz Brunet, nos sentimentos Com edeito desde que Cranmcr foi ele­
de M. Luthero, e o mesmo author accres- vado á dignidade de arcebispo, começou a
centa que Anna Bolena tinha também re­ trabalhar n’um negocio que interessava
cebido alguma tintura d’esta doutrina. O muito ao rei.
infeliz principe, que não sabia d’cstas liga­ Anna Bolena estava gravida de quatro
ções, dava confiança aos inimigos da fé, mezes, c nào era possível occultar seu ma­
que elle até então tinha também defendido, trimonio com Henrique. O arcebispo, que
e servia, sem pensar, ao desígnio de a des­ não ignorava este segredo, o assignalou
truir. Cranmcr foi enviado á Italia c a Ko- n’esta occasiào. Escreveu uma carta séria
ma para tractar do divorcio, e levou muito ao rei sobre seu matrimonio incestuoso
longe a dissimulação de seus erros, que o com Catharina, e lhe declarava que na
papa o fez seu penitenciário. Acccitou este qualidade de pastor, não podia mais sof-
cargo ássim luthcrano como era. De Roma frer um tão grande cscaivlalo.
passou á Allémanha para se ligar cada vez Mandou citar o rei e a rainha para com­
mais com os protestantes, e foi então que parecerem cm sua presença cm Dunstal,
elle casou com a irmã de Osiandro. Co­ no dia 20 de maio de 1533. Cranmer, no
mo Henrique vm detestava os sacerdo­ dia marcado, foi alli com os bispos de Lon­
tes que se casavam, Cranmcr teve cm se­ dres, de Winchester, de Bath, c de Lincoln,
gredo este segundo matrimonio; mas este c muitos theologos e canonistas. O rei
facto serve para dar a conhecer este gran­ compareceu por procurador, mas a rainha
de reformador. não compareceu. Foi declarada contumaz,
Quando foi nomeado para o arccbispado depois de tres citações. Depois se tronca-
de Cantorbery, o papa deu-lhe as suas ram todas as peças d’este grande processo,
bullas. Antes da sua sagração prestou o e havidas muitas sessões, Cranmer cassou
juramento de fidelidade que se costuma o matrimonio de Henrique c de Catharina,
dar ao papa. Mas ao mesmo tempo protes­ c o declarou nullo desde o principio, como
tou que não pretendia de modo algum dis- contrario â lei de Deus. Nào esqueceu na
pensar-sc por este juramento do que devia sua sentença dé arrogar a si a qual idade
ao rei c á sua conscioncia. Esta protesta­ de legado da sancta-sé, segundo o costume
rão era inútil, porque quem de nós, diz dos arcebispos de Cantorbery.
fL de Bossuet, pretende obrigar-se a cou- Assim, este arcebispo que no seu cora­
sa que seja contraria á sua consciência ou ção não reconhecia nern o papa, nem a
ao rei? Finalmente Cranmer reconhecia o sancta sé, queria por causa do rei tomar
poder espiritual do papa, cm que não cria a qualidade mais própria para authorisar
Brunet, seu grande admirador. Esta é a a sua paixão. Cinco dias depois, revalidou
menor reprehensão que se póde fazer a o matrimonio secreto de Henrique com
ING 599

Anna Bolena, que, passados poucos dias, é cer era muito sabio, mas o papa, obrigado
•coroada rainha dc Inglaterra. pelas instâncias dos imperiaes expediu uma
A ceremonia foi magnifica. Dous dias Bulla, que cassava a sentença do arcebispo
antes a nova rainha veio buscar-se a Lon­ de Cantorbery, e declarava que o rei seria
dres n’uma barca ornada de bandeirolas c excommungado, se por todo o mez dc se­
seguida dc outras igualmcntc ornadas, on­ tembro nào collocasse o negocio no estado
d e se achavam todas as pessoas mais dis­ em que se achava, e nào despedisse Anna
tinctas do reino. Foi com este numeroso Bolena.
cortejo desembarcar á torre dc Londres, Henrique atacou a Bulla do papa, e man­
aonde foi recebida com o estrondo de toda dou retirar os agentes que tinha em Roma.
a artilheria. No dia seguinte descansou, e O rei de França, Francisco i, tendo conhe­
no immediato foi ao palacio dc Wittahal cimento d’estas tristes noticias, enviou Joào
vestida como rainha, c n’um apparato tão du Bellay, bispo dc Paris, á Inglaterra,
pomposo, que ainda se nào tinha visto si- para negociar um accommodo. Este prela­
milhantc. do, depois de ter escutado as queixas de
No primeiro dc junho, Anna Bolena Henrique viu, pediu-lhe que suspendesse
marchou a pé sobre tapetes muito ricos, a rcsoluçào que havia tomado de se sub­
de que estavam cobertas as ruas até á trahi r inteiramente á authoridadc do papa.
igreja, onde foi coroada com uma magni­ O rei consentiu n’isso, c du Bellay partiu
ficência extraordinaria. Depois da ceremo­ logo para conferenciar com o papa, c tra-
nia, houve um banquete soberbo, c Anna ctar de lhe apresentar as razoes que de­
foi tractada como rainha. Alguns mczes viam embaraçal-o d’obrar com precipita­
depois deu á luz uma filha, que recebeu ção. Mas logo depois da sua partida d’In-
o nome dc Izabcl. glatcrra, se começou a diyulgar, sem que
Depois que a sentença do divorcio se o rei se oppozcssc, que o poder do ponti­
publicou, Henrique fel-o saber a Cathari- fice romano não era fundado sobre algum
na, que recusou submetter-se a ella. O rei direito, e nào era senão uma pura tyran-
mandou-lhe dizer que nào queria que ella nia; que todos os reinos, e sobre tudo o da
tomasse d’ahi por diante o nome de rainha, Inglaterra, gemiam debaixo d’este jugo in-
o que desherdava sua filha Maria, se nàó supportavel, que se tinha em vão tractado
satisfizesse a isto. de o sacudir depois dc trezentos annos; que
Mas nada foi capaz dc a mudar, ella sus­este jugo, não podendo mais ser encerrad
tentou até á morte a validade do scu ma­ nos justos limites, era necessário aboli l-
trimonio com toda a dignidade d’uma rainha.inteiramente, que d’este modo a author
O rei que nào ameaçava cm vào, suffocan­ dade do papa não se estendería mais ei
do todos os sentimentos, depois maltractou relação ã Inglaterra, além dos limites d
inuito a princeza Maria, sua filha, e a de­sua diocese.
clarou incapaz de succeder no reino. Pou­ O bispo de Paris, tendo chegado a Ro­
co tempo depois, fez noticiar seu divorcio ma, teve com o papa uma conferência, cujo
e seu novo casamento a todos os sobera­ resultado foi, que Henrique assignasse as
nos, c particularmente ao imperador. . proposições que o prelado apresentava da
sua parle; Clemente vii, da sua parte, de­
putaria juizes para instruir o processo na
X cidade de Cambray, e depois pronuncia­
ria o s.eu juizo. Tudo parecia favoravel,
como se julgou, que o rei obteria o pro­
Quando em Roma se soube o que se ha­ cesso qtie desejava. Joào du Bellay enviou
via passado em Inglaterra, o papa resolveu á França c â Inglaterra uma lista dos car­
proceder contra Henrique viii e contra o deaes qufe ellc se lisougeava de ter ganha­
arcebispo de Cantorbory. Os cardeaes do do. Mas o papa viu-se de tal sorte aperta­
partido do imperador,'desejando aprovei- do pelos ministros do imperador, que se
tár-se da disposição em que viam Clemente viu constrangido a declarar-lhes a palavra
vii, o apertaram muito para dar uma sen­ que tinha dado. Então elles redobraram
tença definitiva a favor de Catharina, c de suas instandas com tanto ardor, que elle
nào soffrer um insulto que se tinha feito á lhes prometteu de não mais se considerar
authoridadc da sancta sé. Mas outros mais como obrigado, se o correio não trouxesse
moderados, rcprcsentaram-Ihe que se nào a resposta dc Henrique no dia marcado.
devia precipitar em um negocio de tanta Tendo chegado este dia sem apparecer
responsabilidade, porque exporia um reino o correio, os imperiaes renovaram suas
inteiro a- separar-se aa Igreja. Este pare­ solicitações para determiuar o papa a pro-
nunciar a sentença d’excoinmunhão. 0 bis­ convencidos juridicamente. Nos outros ar­
po de Paris peaiu uma demora dc seis tigos se approvava 0 estatuto que- tinha
dias, representando, que 11’uma estação tão abolido as annatas em que se ordenava
horrorosa (era no mez de março de 1534) que a eleição dos bispos fosse feita pelos
mil accidentes podiam retardar um correio, cabidos, e sagrados pelo arcebispo, sem re­
principalmente quando era preciso atra­ correr a Roma; aboliu-sc 0 dinheiro de S.
vessar 0 mar. Accrescentou que 0 papa Pedro, todas as expedições de bullas, e as
depois d’esperar seis annos para julgar es­ dispensas que se enviariam ao arcebispo de
te negocio, poderia muito bem demorar Cantorbery. Praza a Deus que se limitas­
ainda seis dias; mas nada pode obter. sem a isto. O matrimonio do rei com Ca­
O papa, intimidado pelos cardaes do par­ tharina, viuva do principe Arthur, seu ir­
tido do imperador, ajuntou a 23 dc marco mão, foi declarado nullo, e aquellc que elle
0 seu consistorio, onde 0 negocio foi jul­ havia contrahido com Anna Bolena, julga­
gado. do legitimo, e a successão â coroa estabe­
De vinte e dous cardeacs, houve deze­ lecida nos filhos que d’ella nascessem.
nove que condemnaram 0 rei d’Inglaterra. Ordenou-sc que todos os vassallos do
O papa declarou na sentença, que de rei, sem distineção, fossem obrigados a
harmonia com os cardeaes, cassava os pro­ dar juramento d’obedccerem a estes regu­
cedimentos de Henrique, e que lhe orde­ lamentos. O parlamento declarou ao mes­
nava de tornar a receber Catharina sua mo tempo que nem 0 rei nem seus vassal­
esposa, eondemnando-o para com cila a to­ los pretenderíam apartar-se da verdadeira
das as despezas, cuja lenção reservava Igreja de Jesus Christo, nem dos artigos de
para si. fé recebidos pela igreja catholica.
Dous dias depois que esta sentença foi O rei nomeou trinta e duas pessoas, de-
promulgada, chegou 0 correio, que vinha zcscis da camara alta, 0 dezeseis da dos
declarar que 0 rei satisfaria 0 contracto communs, para examinarem as leis eccle­
jue 0 bispo de Paris tinha feito em seu siasticas, 0 confirmarem ou annullarem
aome. Então muitos cardeacs propozeram aquèllas que julgassem conformes ou con­
ao papa revogar a sentença, e 0 bispo, de trarias ás leis do reino.
Paris fez ao papa vivas arguições. Mas os
partidários do imperador embaraçaram
que 0 papa se desdissesse. Diz-se que elle XI
mostrou muita tristeza de 0 terem obriga­
do a pronunciar a sentença com tanta pre­
cipitação, c que examinou 0 que poderia Henrique viu, sabendo que uma parte
■fazer melhor n’uma tão horrorosa conjun­ de seus vassallos tinha tanto apego e res­
ctura; mas não se mudou nada do que es­ peito a Catharina e á princcza Maria, sua
tava feito, e subsistiu a sentença. filha, como odio e horror a Anna Bolena e
Henrique vm teve conhecimento dos a toda a sua familia, enviou coinmissarios
procedimentos feitos contra elle em Roma. por todas as partes para receberem 0 jura­
A ’ triste noticia do mau successo de todas mento d’obediencia a todos os novos regu­
as suas negociações, não guardou mais lamentos. Reconhecia-se por este juramen­
medidas no seu resentimento, e executou to a validade do segundo matrimonio; da-
a resolução que linha tomado de não ter va-se ao rei 0 titulo de chefe supremo da
mais correspondência alguma com Roma. igreja d’Inglaterra. João Fischer, bispo de
O parlamento, que não estava menos indi­ Rochester, e Thomaz Mooro, chanceller, fo­
gnado do que 0 rei pelo procedimento do ram os unicos que recusaram dar este ju­
papa, apresentou um regulamento que con­ ramento, e spa constância foi considerada
tinha diversos artigos tendentes todos a abo­ como uma revolta.- Como se representava
lirem 0 poder que elle exercia ha muitos a Mooro que não devia ser d’outra opinião
séculos, sobre tudo na Inglaterra. Com- diversa do grande- conselho d’Inglaterra:
tudo 0 parlamento n’estes artigos parecia «se eu fosse só contra todo 0 parlamento,
querer sempre conservar a doutrina catho­ respondeu este grailde homem, desconfia­
lica, porque revogando a lei feita no rei­ ria dc mim mesmo, mas tenho a meu fa­
nado de Henrique iv, pela qual era per- vor toda a Igreja, jque é 0 grando conselho
mittido aos bispos fazerem prender todas as dos christãos.» Metteram-no na torre dc
pessoas, que suppozessem ser herccticas, Londres com 0 bispo de Rochester, que foi
se confirmou ao mesmo tempo aquèllas privado de todos os seus bens; c posto na
que tinham sido feitas no tempo dé Ricar­ prisão quasi nu, tendo então d’idadc oiten­
do 11 c de Henrique v contra os hereges, ta annosi O papá Clemente vn morreu n’es-
ING 601
le mesmo lenipo (no fim de 1534) e suecc- condemnavam seus novos regulamentos,
dou-lhc Paulo ui. foram as primeiras victimas do seu furor.
Esta morte não mudou nada nas medi­ Mas temendo que fosse accusado de não
das que o rei tinha tomado para romper ser addido á nova reforma, alTectou usar
inteiramente com a corte de Roma. do mesmo rigor para com aquelles que
O parlamento confirmou n’estc principe eram convencidos de a ter abraçado, e os
.a qualidade de chefe soberano ila igreja de fez morrer com os outros. Foi então que o
Inglaterra, c lhe adjudicou-os dízimos c as universo lamentou o supplicio dos dous
annatas. grandes homens que tinha a Inglaterra:’—
0 clero ficou ferido, porque julava que, Mooro, que tinha sido chanccller, 1 e Juão
tirando-se ao papa, se não exigiríam mais. Fischcr, bispo de Rochcstcr. Emquanto
Mas cointudo o rei não ficou ainda satis­ Fischcr estava na prisão, o seu zelo e va­
feito, e lhe altribuiu mais a decima das lor apostolico foram premiados com a pur­
rendas dos benefícios. pura pela sanclidadc de Clemente vm; mas
No principio de 153o appareccu uma isso mesmo concorreu para mais depressa
declaração do rei que prohibia dar o no­ obter a palma do martyrio.
me de papa ao bispo do Roma, c ordenava 0 rei, tendo-o sabido, ficou indignado, c
que se riscasse este nome de todos os li­ mandou pelos juizes perguntar ao prelado,
vros em que apparccessc. Esta ordem foi sc tinha procurado este favor do papa.
executada com extremo rigor. Pozeram-sc Fischer respondeu, que pela misericor­
nas ladainhas estas palavras: «Da tyrannia dia de Deus, não tinha jamais sido ambi­
do bispo de Roma e de seus detestáveis cioso; mas que quando mesmo se suppo-
excessos, livrai-nos Senhor.» zesse n’outro tempo de o ser, o estado em
Por mais zelo que parecesse ter o rei que sc achava, sua avançada iuade, a mor
por não conservar a doutrina catholica no te de que estava ameaçado a todos os in<
seu reino, as heresias de Lulhero não dei­ mentos, sua prisão e suas cadeias o just
xavam de fazer progresso. Suas obras es­ ficavam bem sobre este artigo.
tavam muito espalhadas, apesar das prohi- Uma resposta tão sabia não apaziguou c
bições severas que Henrique tinha feito de rei, que disse, mofando do papa: «Que en­
as‘lêr c de conserval-as. vie o chapéo de cardeal quando quizer; eu
Viam-se cada dia novos libellos contra farei de sorte, que quando elle chegar, a
as desordens do clero, contra a invocação cabeça para quem fòr destinado não sub­
dos -sanctos, contra as reliquias, contra o sista mais.»
merecimento das boas obras, e contra o Com efleito, Henrique determinou pro­
culto das imagens. 0 rei, a quem se tinha cessar este venerável velho, que teve a ca­
insinuado que, para justificar o resto do beça cortada a 21 de junho de 1535. Tinha
sou comportamento, devia parecer mais governado a igreja de Rochcster trinta
unido que nunca á religião catholica, fez annos, e tinha estabelecido ahi mui san­
prender e queimar muifos hereges. 0 par­ ctos regulamentos. Passava por um dos
tido que tinha horror ao luthcranismo era melhores escriptorcs que toem -atacado Lu-
muito poderoso; mas o que o favorecia não thero e os outros novos hereges. Colligi-
era menos. Anna Bolcna declarou-se alta­ ram-sc todas as suas obras em um volume
mente por elle. Cranmer favorecia-o com in-folio, á testa das quaes se collocou o
todo o seu poder, contemporisando comtu- Tractado de Henrique VIII contra Lulhero,
do com o rei, por quem tinha exteriormen­ dedicado a Leão X; c julga-se que foi Fis­
te uma cega complacência. Cromwell pa­ cher que ajudou este principe a compOl-o.
recia também mais inclinado ao lulhera- Além de muitos e excellentes tractados de
nismo que á fé catholica, ainda que se te­ controversia contra Luthero e*OEcolampa-
nha- mais fortes razoes para crêr que no de, escreveu muitas obras de piedade, que
fundo não tinha religião alguma. são muito estimadas. Era muito bom theo­
Henrique vm não pensou mais que cm logo, e tinha estudado muito a Sagrada Es-
castigar todos aquelles que sc oppunham críptura e os Sanctos Padres.
aos seus designios. Muitos religiosos, que Mooro, companheiro da prisão de Fis­
chcr, não tardou em o seguir no seu sup­
1 A fam ilia Mooro era ama das Patri­ plicio. Quando soube da morte d'este pre­
cias de Veneza, e entre outros grandes ho­ lado, elle disso a Deus que sc reconhecia
mens produziu o doge Christocão Mooro: indigno da gloria do martyrio, pois que era
ramificou-se em Inglaterra, e um de seus il­ muito inferior ao sancto bispo, que acaba­
lustres netos foi João Morro, pae do vene­ va de o soíTrcr: comtudo lhe pedia por sua
rável Tliomaz Mooro. bondade de lhe dar parte do seu calix.
602
Muitas pessoas de distincçâo o vieram ex­ cisarei d’ella para descer.» Depois de ter
hortar a submetter-se; mas como nào po- acabado a sua oração e cantado o psalma
deram abater a sua coragem, sua mulher —Miserere, tomou o povo por testimunha
veio depois dos outros, c lhe pediu que a de que morria na profissão da fé catholica,
nào abandonasse logo nem a seus lilhos apostólica, romana. Pôz depois a sua ca­
nem à sua patria. beça no cepo para receber o golpe da mor­
Como ella repetia muitas vezes a mesma te. SolTreu-a com a alegria e com a cou-
cousa, perguntou-lhe quanto podería ainda stancia dos martyres.
viver, segundo o curso da natureza: vinte As pessoas de bem gemeram á vista d’es-
annos, respondeu sua mulher. Nào ha pro­ te espectáculo, c adoraram os juizos do
vas, replicou Mooro, de que eu prefira vin­ Deus sobre os authores d'uma tão horrível
te annos á eternidade. Quando se viu que injustiça. Deu-se o seu corpo a sua filha,
elle perserverava na sua resolução, tira- que o fez sepultar honrosamente. Erasma
ram-se-lhe todos os seus livros. deixou-nos n'uma de suas cartas o retrato
Então teve todas as suas janellas fecha­ de Mooro, que é ahi representado coma
das, e não pensou mais do que entreter-se um homem completo.
com Deus. Seu carcereiro tendo-lhe per­ Era muito sabio, e sua piedade igualava
guntado que prazer achava n’e$tas trevas, a scicncia. A mais considerável das obras
elle respondeu alegremente:— «E preciso que nós temos d’elle é a Utupia, que con­
fechar a loja quando toda a fazenda está tém em dous livros o plano d’uma republi­
tirada;» é o nome que elle dava aos seus ca perfeita, á imitação de Platão.
livros. Perguntou-sc-lhc sobre os seus sen­ O agradavel e ulil acham-se igualmcnte
timentos a «espeito do estatuto que abolia n'esta obra.
cm Inglaterra a authoridade do papa. Res­ Tinha também escripto uma resposta ao
pondeu: «que esta authoridade era Icgiti- livro de M. Luthero contra o rei dTngla-
la, necessaria, e de direito divino, c que terra. Parece melhor escripta que a de
pm a graça de Deus, conservaria estes sen- Fischer, mas é menos profunda e menos
mentos até á morte.» Gritou-se que elle solida.
íanifestava por isso odio contra o rei. Compuz na sua prisão uma explicação
Protestou «que tinha sempre sido inviola- da Paixão de Jesus Christo, mas esta obra
velmente unido ao seu soberano.» Seu suc­ não está acabada.
cessor no cargo de chanceller perguntou- Finalmente tem-se d’clle uma bclla ora­
lhe se era mais virtuoso c mais esclarecido ção tirada dos psalmos, para implorar o
ue tantos bispos e abbadcs, que pensavam soccorro de Deus na tentação.
'outra sorte. «A um bispo do vosso par­ A sua Vida de Ricardo 111 não está con­
tido, replicou este grande homem, eu posso cluída. Escreveu também a de Eduardo V,
oppôr cem, que gosam da gloria celeste. O e Cartas. Ha d’elle os Commentarios a
numero dos martyres c dos confessores, Sancto Agostinho.
cujo sentimento eu sigo, vale bem o da no­ As suas obras foram impressas em Lo-
breza de hoje, e o poder de todos os con- vainc no anno de 1566. 1
cilios geraes equivalem bem ao do parla-
mento^Inglaterra.»
Este illustre captivo passou no sancto XII
exercício da oraçao o intervallo entre «à
condemnação e a morte. Na vespera escre­
veu a uma de suas filhas com carvão so­ Fischer e Mooro não foram as unicas
bre um papel, que tinha apanhado, para victimas da crueldade de Henrique vm.
lhe dizer quC ardia no desejo de possuir o Antes dc serem decapitados, tinham sida
seu Deus, c de morrer no dia seguinte, arrastados pela lama um doutor em theo­
que era a oitava do principe dos apostolos, logia, da abbadia dc Sion, tres chartreus,
e a festa da trasladação de S. Thomaz de e um sacerdote, pela mesma razão. Ti-
Cantorbery, dia infinitamente feliz para elle. nham-se dependurado, depois aberto, e por
Faliava assim, porque estava encantado de ultimo tinham-se-lhes arrancado os corações
morrer por seu apego á cadeira de S. Pe­ e as entranhas, e postos seus corpos em
dro, c porque tinha sempre tido uma de­ quartos. Durante este tempo, não houve
voção particular a S. Thomaz. Deus ouviu
seus votos, e a 6 de julho foi conduzido ao i Domingos Regi— Delia Vita di Toma-
cadafalso. Como a escada não era com­ so Moro— Biographic Universelle .-R o h r-
moda, disse a um dos criados do algoz: bacher— ülsloira Universelle de 1’Eglise Ca-
«Dai-me a mão para subir, e eu nãò pre­ tholiquc.
ING 603
homem algum do hem, que não recciasse relação sobre as rendas, fundações, e modo
a sua vida. ReiuaIdo Poolo, que depois foi como se conduziam na eleição dos supe­
creado cardeal, e que se achava homisia- riores, a idade necessaria para fazer os vo­
do, porque o rei tinha puxado muitas ve­ tos, c a fidelidade em os cumprir. Mostra­
zes pela espada para o matar, dirigiu a va-se grande zelo c cuidado contra todas
este principe, do logar do exilio, um Tra- as desordens que se diziam então practica-
ciado da união da Igreja. Henrique vm das no seio das communidades, e enco-
muito mais se enfureceu contra ellc, e pro- briam-sc os verdadeiros desígnios que se
metteu cincoenta mil escudos áquelle que haviam tomado debaixo do bello nome de
lhe apresentasse a sua caheça. reformarão!...
O arcebispo de Cantorbery começou a O elfeito d’estas visitas foi dar ao mo­
visita de sua provincia no mez de mâio do narcha o-pretexto que já de ha muito pro­
mesmo anno (1535), mas sómente depois curava. Assim foram seguidas da suppres-
de ter obtido a permissão dó rei. Faziam-se são dos mosteiros, de cujas rendas este
assim todos os actos da jurisdicçào eccle­ principe se apropriou. Gritou-se entre os
siastica pela authoridade real, e não se lulheranos como entre os catholicos, diz o
trabalhava senão em confirmar bem ao grande Bossuet, contra esta sacrilega' de­
rei a sua qualidade de chefe supremo da predação dos bens consagrados ao culto
igreja anglicana. Este principe revestiu divino; mas ao caracter de vingança que a
Cromwell da qualidade de seu vigário ge­ reforma anglicana tinha já no seu princi­
ral no espiritual, e a de visitador de todos pio, foi necessario accrcscentar a d'uma
os mosteiros d’Inglalerra. Cromwell era de tão deshonrosa avareza; c este foi um dos
baixo nascimento. Depois de ter sido sol­ primeiros fruetos da primazia, de Henri­
dado, puz-sc ao serviço do cardeal Wolsey, que, porque se arvorou em chefe da Igreja
de quem soube ganhar a confiança e fami­ para a roubar com este mesmo titulo. Os
liaridade. Passou-se pouco depois á corte, visitadores, que tinham ordem d’assustar*
c applicou-sc a estudar as inclinações do os religiosos, davam-lhes a entender todas
rei para o lisongoar em tudo. as crueldades que os esperavam. Insi-
Anna Bolena contribuiu muito para a nuavam-lbcs que para evitar estes tormen­
elevação d’elle, e o sublimou, como por de­ tos, c ao mesmo tempo para encobrir as
graus, á dignidade de primeiro ministro. suas desordens, o melhor meio era resi­
Alcm d’isso tendo-o o rei encarregado dc gnar a sua casa e os seus bens ao monar­
todos os negocios ecclesiasticos, resultou cha, que tomaria a seu cuidado a subsis­
d’ahi todo o mal que se veio a experimentar tência dc cada um d ellcs em particular.
pelo decurso do tempo, c um dos primeiros Esta cxhortação dos commissarios foi efíi-
conselhos que Cromwell deu ao monarcha, caz para com um grande numero de reli­
foi o dc supprimit* todos os mosteiros. Hen­ giosos. Sua relação foi dopois posta cm pú­
rique, agradando-se d’estc projecto, apre- blico, o se expunham então as desordens
sentou-o em conselho dc ministros, mas practicadas nos mosteiros. Tudo isto era
muitos se oppozcram c fizeram sentir que ficticio. Immediatamentc o rei na qualida­
uina tal empreza podia ter então terríveis de dc chefe supremo da igreja d'Inglaterra,
consequências; o rei resolveu então traba­ expediu uma ordenança pela qual desliga­
lhar n’isto pouco a pouco, c começou por va dos seus votos todus os monges que os
ordenar uma visita geral aos mosfeiros, a tivessem feito antes da idade de vinte e
fim de conhecer os titulos, a vida dos re­ quatro annos, e permittia a todos os outros
ligiosos e religiosas, c o modo como as re­ viverem como seculares, se o julgassem a
gras dc cada um eram observadas. Ellc proposito.
não duvidava que se descobrisso n’esta vi­
sita muitos abusos, que serviriam.de pre­ X III
texto para executar o seu desígnio. Os
grandes desejos que se davam para se des­
truírem os conventos, eram os seus bens. Paulo m tendo conhecimento de todos
A escolha que o monarcha havia feito de os excessos‘a que se entregava Henrique
Cromwell para esta visita, dava bem a co­ vm, julgou que não devia mais da sua
nhecer quaes eram as suas vistas. parte contemporisar cm cousa alguma
No mez d’outubro, Cromwell começou a com este principe. Não sómente o excom-
visita geral dos mosteiros, e nomeou*para mungou por uma Bulla solcmne, mas mes­
este trabalho muitas pessoas, a quem deu mo declarou que desligava todos os seus
instrucçòes comprehendidas em oitenta c vassallos do seu juramento de fidelidade,
seis artigos, que entravam n’uma grande c que dava o seu reino ao primeiro que
604 ING
d’ello sc apossasse, determinava a todos os as grandezas c a todos os prazeres da ter­
ecclesiasticos rctirarem-se-do seu dominio: ra. Ella recommcndava aos seus cuidados
ordenou á nobreza tomar armas contra elle, Maria, sua filha commum, pedindo-lhe quo
pôz o reiuo interdicto, prohibiu a todos os tivesse por cila entranhas de pac. Pedia-
christàos ter commercio algum com os in- jlie mais de dar accommodaçào a suas ires
glczcs, cassou todos os tractados que os damas de honra, e de dar a seus outros
soberanos tinham feito com este principe, domesticos um anno dos seus salarios aci­
julgou infames os filhos que nascessem do ma do que lhe cra devido. Pinahieute,
segundo matrimonio, e exbortou os grandes ella lhe protestava que a unica cousa que
a fazerem-lhe guerra. Nada cra mais pro­ a allligia, deixando a vida, era nào ter a
prio do que uma tal Bulla para pôr o cú­ consolação de o vôr.
mulo aos males d’esta infeliz nação, e a Fez tirar duas cópias d’csta carta: en­
tornal-os incuráveis. D’este modo*fez cila viou uma ao rei, e outra ao embaixador de
gemer todos aquelles que amavam since- Carlos v, na Inglaterra.
ramente a Igreja, e que estavam animados Henrique viu nào pòdc conter as lagri­
do seu espirito. Henrique viu nào estava mas ao lòr a carta dYsta princcza mori­
irado do poder encobrir os seus excessos bunda. Pareceu muito tocado, e pediu ao
debaixo a’àquclla que cllc podia rcprchen- embaixador de Carlos v que fosse imme-
der ao papa com tanto fundamento. Esta diatamente ter com ella c saudal-a da sua
Bulla, que é datada de 27 de novembro de parte. Mas o embaixador nào chegou a
153o, nào foi publicada sen^o depois de Kinbalton, onde ella estava, senão depois
passados tres annos. da sua morte. Esta princcza morreu no
principio de janeiro de 1530, o foi sepul­
tada honrosamente na abbadia de Pelcrs-
X IV burgo, que Henrique vm converteu depois
em bispado. Este principe mandou que
toda a sua casa tomasse lucto. Anna Bo­
Emquanto a igreja de Inglaterra estava lena fez, pelo contrario, brilhar a sua ale­
n’este deplorável estado, a rainha Cathari- gria, e quando alguém a felicitava da mor­
na tractava de fazer no seu desterro um te da sua rival, «eu nào me tenho entris­
sancto uso da humilhação a que Henrique tecido, dizia ella, mas sempre lhe teria de­
viu a tinha exposto. Ella procurava toda sejado uma morte menos gloriosa.»
a sua consolação no sancto exercício da
oração e na meditação das verdades eter­
nas* Pareceu sempre muito submissa ás XV
ordens da Providencia, e ás terríveis pro­
vas, pelas quacs era do agrado de Deus
soflrer. Mas a cólera de Deus não tardou a per­
Anna Bolena não deixava escapar oc- seguir esta infeliz. 0 rei havia lido, pouco
casião alguma de a contristar. Chegou depois, uma violenta paixão por Joanna
mesmo a fazer prender um cordilheiro, Sevmour, uma das damas de honra de
seu confessor, que lhe procurava alguma Atina Bolena. Os inimigos d’esta entraram
consolação. Catharina escreveu a este reli­ nos sentimentos do rei, julgando causar
gioso uína carta muito edificante para o lhe prazer, e a accusaram de infiel. 0 rei
sustentar no seu eaptiveiro. c recebeu de­ a fez encerrar em Londres com outras cin­
pois uma resposta que lhe foi muito agra- co pessoas, que passavam por suas cúm­
davcl. plices. Quando ella soube que sua desgra­
' Déus querendo terminar os males d’esta ça cra certa, .derramou abundantes lagri­
piedosa princcza, permittiu que ella ca- mas; c de repente passou dt\ sua tristeza,
hisse n’uma debilidade que a conduziu, c das suas lagrimas, a grandes gargalha­
pouco depois, á sepultura. das de riso como uma pessoa insensata.
Desde que o rei soube que ella estava As palavras que pronunciava no seu trans­
nos seus ultimos instantes, fez-lhe testimu- porte contra seus favoritos, que a tinham
nhar a parte que tomava na sua doença. trahido, mostravam sensivelmente a tur-
Catharina dictou logo uma carta muito bação da sua consciência. Quando sc qui-
terna a este príncipe, a quem ella chama­ zcs*se justificaí-a das infamias de que a cai^
va seu muito caro rei, senhor, e esposo; regaram, seus proprios apologistas confes­
ella lhe dizia que o amor que sempre lhe sam que seu agrado cra immodesto, suas
tinha tido, a obrigava a pedir que pensas­ liberdades indiscretas, seu comportamcnU)
se na sua salvação, c de a preferir a todas irregular, c liccncioso.
ING ÔOü

Não pódc deixar, diz M. Bossuct, de se tivesse voltado no instante da morte. Seja
reconhecer «a mão de Deus sobre esta prin- o que for, parece que Deus pretendia (pie
<-cza. Não gosou senão tres annos de glo­ o fim d'esta princeza, por mais horroroso
ria, em (pie tantos crimes a tinham esta­ que fosse, tivesse tanto de ridiculo, como
belecido. Uma nova paixão a arruinou, e de tragico. Seu irmão, e aquelles que fo­
como a paixão que se teve por dia a ti­ ram accusados dc ter sido seus cúmplices,
nha elevado a Henrique, que lhe tinha sa­ tiveram também a cabeça cortada ires dias
crificado Calha ri na, a sacrificou a cila depois.
jnesmo a Joanna de Scymour. Passou-so todo este acontecimento no
Calha ri na, perdendo as boas graças do mcz de maio de 1536.
rei, conservou ao menos sua estima* até ao
fim, ao mesmo tempo que fez morrer Anna
Dolcna sobre um cadafalso como uma in­ X VI
fame. Mas a mão de Deus apparcceu sobre
tudo, em que o rei, sempre escravo das
suas paixões, fez cassar o seu matrimonio Depois que Henrique vnr, immolou ao
com Anna Dolcna em favor de Joanna de seu odio e ao seu furor aquella por quem
Scymour, como em favor de Anna tinha tinha antes excitado tantas e tão grandes
feiio a respeito do matrimonio de Cathari- perturbações no seu reino, casou no dia
na de Aragão. Dor um justo juizo de Deus, seguinte com Joanna de Scymour, sem lhe
Anna Bolona cahiu n’um abvsmo similhau- importar dos boatos que o’ público podia
to àquellc que linha cavado para a sua ri­ formar acerca de um comportamento tão
val innocentc. Mas Catharina sustentou até extraordinario. A princeza Maria, filha dc
á morte, com a dignidade dc rainha, a ver­ Catharina, accommodando-se ás circum­
dade do seu matrimonio, c a honra do nas­ sta ncias daquclla época, procurou entrar
cimento de Maria: pelo contrario, por uma nas boas graças do rei, seu pac, e pediu-
deshonrosa complacência, Anna Rolena, re­ IITas por uma carta muito respeitosa. Hen­
conheceu o que não era, que tinha casado rique, seu pac, annuiu ao pedido dc Maria
com Henrique durante a vida de milord sob condição d'assignar os tres seguintes
Perci, com o qual tinha antes contractado, artigos: 1° a invalidade do matrimônio de
e confessando contra sua consciência que Catharina, sua mãe: I o a renuncia ã au­
seu matrimonio com o rei era nullo, en­ thoridade do papa; 3.° a primazia do rei,
volveu na sua deshonra sua (ilha Izabel. como chefe da igreja dc Inglaterra.
A fim de qu« se visse a justiça de Deus de Este passo da princeza Maria fez perder
um modo ainda mais manifesto iVesle me­ ao papa Paulo m a esperança que tinha
morável acontecimento, Cranmcr, esto mes­ concebido dc fazer revogar tudo o que se
mo Cranmcr que tinha cassado o matrimo­ havia feito em Inglaterra contra a sua au­
nio de Catharina, cassou tamhcm o de An­ thoridade. Reconheceu logo que nada era
na, a quemella devia tudo. «Deus, contimia capaz de obrigar a Henrique viu a renun­
M. Rossuct, feriu dc cegueira tudo o que ciar o poder que tinha usurpado sobre o
tinha contribuído para a ruptura de uní clero, isto é o que provava sobre tudo a
matrimonio lào solemnc como o de Catha­ suppressão que já tinha feilo da maior
rina.» A indigna fraqueza de Cranmcr, c parte dos mosteiros.
sua extrema ingratidão para com Anna, Final mente, o rei que queria dispôr dos
foram o horror de todas as pessoas dc seus bens, representou ao parlamento que
bem, e sua deshonrosa complacência em o grande numero de conventos no seu rei­
cassar todos os matrimônios â vontade dc no, estava a cargo do estado, e pediu-lhe
Henrique, tiraram ã sua primeira sentença remedio para este mal pelos meios mais
toda a apparcncia de authoridade que o convenientes. Por consequência o parla­
nome de um arcebispo lhe podia dar. mento suppriuiiu todos os mosteiros pe­
A infeliz prinecza esperpu debalde do­ quenos, cuja renda era menor de 200 li­
brar o rei, confessando tudo o que elle bras sterlinas, isto é, de 830 escudos. Allc-
queria: esta confissão não lhe salvou senão gou-sc por pretexto que estes mosteiros
o fogo, e Henrique lhe fez cortar a cabe­ sendo pobres tinham poucos religiosos, e
ça. No dia da execução consolou-se sobro que a disciplina cra mal observada.
6 que tinha ouvido dizer— que o executor O parlamento por outra lei deu ao rei
era mui habil, c além d’isto, accrcscentou todos estes conventos cm numero dc 3C6,
ella, eu tenho o pescoço assaz pequeno. com as igrejas, terras, e os bens que de­
Ao mesmo tempo levou a mão ao pescoço, pois dependiam dos conventos, além das
e pòz-sc a rir. Talvez que a cabeça se lhe pratas, moveis, e ornamentos das igrejas.
39
60C IN G

Para recolher estas rendas se erigiu um 2. ° O Baptismo é um sacramento neces­


novo tribunal de justiça, sob o nome de— sario aos meninos para obterem a remissão-
Tribunal de augmentarão das rendas do do peccado original, e a vida eterna. Os
rei. adultos que recebem este sacramento, de­
No mesmo tempo o parlamento confir­ vem arrepender-se dos seus pcccados.
mou as duas sentenças de divorcio, dadas 3. ° A Penitencia, instituída por Jesus
uma contra Catharina, c outra contra Anna Christo, é necessaria para obter a remis­
Bolena. Elle declarou illegitimos os filhos são dos pcccados. Ella compõe-se de tres-
dos dous leitos, confirmou a condemnaçào de partes—a contrição, a confissão e a satis­
Anna Bolena e de seus cúmplices, c segu­ fação. A confissão ao sacerdote é necessa­
rou a succcssào aos filhos que o rei po- ria; e a satisfação de Jesus Christo não em­
dcssc ter de Joanna de Scymour, ou de baraça os fruetos da penitencia, ou as
outra qualquer mulher que casasse depois obras satisfactorias, o jejum, a esmola, a
com o rei. Redigiu também outras leis, oração, etc.
que condcmnavam tào sómcnte com muito 4. ° No Sacramento da Eucharistia se
rigor aquelles que fizessem alguma tenta­ recebe verdadeiramente debaixo da figura
tiva para restabelecer cm Inglaterra a au- de pão o mesmo corpo de Jesus Christo,
thoridade do papa. concebido da Virgem.
õ.° Para ser justificado é necessário fer
a contrição, a fé, c a caridade.
XYII ü.° E necessário ensinar aos fieis que o
uso das imagens é fundado sobre a Escri­
O clero da sua parte fazia todos os es­ ptura Sancta, que cilas servem para exci­
forços para se tornar agradavel ao rei ap- tar a devoção dos fieis, que assim se de­
provando todas as suas acções. Mas se elle vem conservar, dar-lhes respeito como
eslava reunido n este ponto, estava muito uma honra relativa que se refere a Deus,
dividido sobre a religião. c não á imagem.
Uma parlo dos bispos queria conservar 7. ° É bom honrar os sanctos, c pedir-
todos os dogmas antigos, e testimunhava lhes que intercedam pelos fieis sem querer
uma grande opposição pela nova reforma. comtudo que clles tenham por si mesmo
Outros, á testa dos quaes estavam Cran- virtude de conceder as cousas que Deus
mer, c Cromwell, a favoreciam, ralhando só póde dar.
em todas as occasiões contra o uso da 8. ° Devem-se cortar todos os abusos que
confissão, invocação dos sanctos, agua ben­ se poderíam introduzir na invocação dos
ta, e muitas outras ceremonias das igrejas. sanctos, c devem-se observar as suas es­
Ellcs fallavam da incerteza da tradição, tas.
dos pretendidos erros introduzidos pelos 9. ° Devem-se conservar as ceremonias
monges e se exhortavam a não serem mais usadas na Igreja, como os ornamentos dos
enganados por aquejles que tinham intro­ sacerdotes, a agua benta, o pão bento, os
duzido tantas falsidades. Os bem intencio­ ramos, as luzes accésas, a benção da fonte
nados se affligi ram quando viram que o baptismal, os exorcismos no baptismo, a
rei creava um homem como Cromwell, seu ceremonia das cinzas no principio da qua­
vice-gerente cm todos os ncgocios eccle­ resma, a dc se prostrar diante da cruz e
siasticos. Mas suas lagrimas diminuiram de a beijar.
quando viram os dez artigos que o rei ti­ 10. ° Finalmente a respeito do Purgato­
nha feito como chefe soberano da igreja rio, se ensinará aos fieis que é uma boa
anglicana. A assembléia do clero teve or­ obra pedir pelos mortos, e fazer celebrar
dem de os examinar, e depois de muitas missas para o livramento das almas dos
contestações entre aquelles que favoreciam defunctos. Esta oração tendo um funda­
as novas heresias, e aquelles que as detes­ mento certo no livro dos Machabcus, c
tavam, os dez artigos foram recebidos, c sendo recebida desde o principio da igreja,
approvados. Julgamos dever referfr a sub­ devo ser attendida por todos. Este mesmo
stancia: artigo cortava alguns abusos.
l.° A Escriptura Sancta é o fundamento Os erros dos luthoranos e dos sacramen­
da fé, com os tres symbolos dos apostolos, tados são magistraImcnte condemnados
de Nicea, de Sancto Athanasio, c os qua­ n’estes artigos. Foram assignadosporCrom-
tro primeiros concilios geraes. Todos os w ell, o arcebispo Cranmor, os bispos, 40
bispos e os prégadores devem instruir os abbades ou priores, e 40 deputados da ca­
povos conforme a esta escriptura, e a es­ mara baixa do clero.
tes symbolos. ' Logo que este acto foi assignado, apre-
ING 607

scntou-se ao rei, que o confirmou e deu perador e o rei de França andavam em


ordem que se publicasse, e se fizesse um guerra; que se a paz estivesse restabeleci­
prefacio dos artigos, que cllc ordenava aos da, clle consentiría com satisfação que se
bispos de os annunciarem aos povos,, cujo congregasse um verdadeiro concilio geral;
comportamento lhe estava confiado, lin­ que no entanto clle conservaria a verda­
guagem inaudita até cntfio na Igreja! deira fé no seu reino com perigo mesmo
Ainda que nâo se tenha fallado n’estes da sua vida c da sua coroa, e que com esta
artigos dos Sacramentos da Confirmação, resolução protestava contra todo o concilio
da Extrema-Unção, da,Ordem c do Matri­ geral congregado por authoridade do papa,
monio, nâo importa, porque Henrique viu e não se submetteria jamais ás suas deci­
nada mudou na doutrina da igreja catholi­ sões.
ca, seja a respeito d’estes sacramentos, Ainda que Henrique vhi determinasse
seja a respeito dos outros artigos da fé. debaixo de juramento que queria conser­
N Jestc mesmo tempo, o rei, por conselho var no seu reino todos os artigos da fé, elle
de Croçnwcll, querendo atlrahir a si cada se conduzia comtudo como um principe,
vez mais a nobreza do reino, vendeu aos que não pensava senão em destruir a re­
gentis-homens de cada provincia as terras ligião, apossãndo-sc dos bens da Igreja, e
dos conventos que tinham sido supprimi- supprimindo tantos mosteiros, que deviam
dos, e cedeu-llfas por um preço muito serasylospara aquelles que quizessem fugir
baixo. da corrupção do século. Dcmoliam-se as ca­
O mesmo Cromwell publicou também sas e as igriyas d’estes mosteiros, e ven-
um novo regulamento ecclesiastico, cujo diam-se os materiaes em utilidade do rei.
fundamento era a doutrina dos dez artigos, Mas esta suppressão trouxe muitos des­
que temos referido, o que prova quanto contentes. Os pobres diziam que se acha­
este vice-gerente era capaz de dissimula­ vam privados de muitas esmolas que rece­
ções as mais criminosas, pois que, sendo biam dos mosteiros, e os ricos e os nobre
protestante no coração, ou talvez impio, queixavam-se que se lhes havia tirado
ellc não cria nada de tudo o que não pu­ meio de accommodar seus filhos. O rei tra
nha diíficuldadc em assignar. ctou de remediar estas queixas dando pu
blicidade ás desordens que se diziam pra-
cticadas no seio dos mesmos mosteiros.
X V III Mas dizia-se que era necessário contentar-
se com reformar os mosteiros, e não des-
truil-os. O rei azedou ainda mais os espíri­
Emquanto a assembléia do clero se con­ tos, publicando novos regulamentos para
servava ainda, Henrique vm quiz dar o seu õs ecclesiasticos.
parecer sobre o procedimento do papa, que As suas murmurações excitaram uma
o havia citado para o concilio, indicado pa­ revolta, que não tardou a pôr-se em prà-
ra Mantua, e que depois foi celebrado em ctica. Ella appareceu immediatamente na
Trento. O parecer dos prelados foi que provincia de Lincoln, aonde um doutor em
nem o papa, nem algum principe do mun­ theologia, prior d’um mosteiro, fez tomar
do tinha direito de convocar um concilio as armas a perto de vinte mil homens, de
geral sem approvação c consentimento de que elle se fez chefe, debaixo do nome de
todos os soberanos da christandade. Se­ capitão Santier. Os rebeldes enviaram ao
gundo este parecer, Henrique publicou um rei os seus aggravos, de que os principaes
protesto contra o concilio indicado em Man­ eram a suppressão de um grande numero
tua, no qual diz que o bispo de Roma não de conventos, e a renuncia á antiga disci­
tendo authoridade alguma no reino ^Ingla­ plina da Igreja.
terra, não tinha direito de chamar os seus O rei respondeu logo com muita altivez;
vassallos a este concilio, e que o logar não mas sabendo que a provincia de York co­
era livro, nem commodo; que além cTisto meçava a revoltar-se, tractou de ganliar pe­
nada de util se faria em um concilio, aon­ la doçura aquelles que tinham sido muito
de o papa presidisse, pois que o principal perigosos de azedar pela violência.
fim do concilio geral era reduzir o poder Com efleito, a sublevação da provincia
dos pontifices romanos aos antigos limites; de York era de consequências muito fu­
que da sua parte desejava muito um con­ nestas, por isso que muitas pessoas nobres
cilio livre, mas que o de Mantua o não podia haviam entrado na revolta. Os revoltados
ser; que de resto era empregar mal o tem­ juntaram-se em numero de quarenta mil
po em querer ajuntar a Igreja, quando to­ homens debaixo do pretexto de conservar
da a christandade estava em fogo, e o im­ a fé, de restabelecer a Igreja e de reprimir
608 ING
a heresia. Eilcs davam á sua marcha o ti­ negocio do divorcio, quer na ruptura com
tulo bizarro de peregrinação da graça. Os Roma.
sacerdotes iam adiante com a cruz na mão, Henrique, que desejava muito ganhal-o,
e via-sc sobre as suas bandeiras um cruci­ enviou-lhe um cscripto que continha a sua
fixo com as cinco chagas dc Nosso Senhor apologia. Poolo respondeu a cila com um
Jesus Christo e um calix. Cada um d’clles Tractado da união ecclesiastica, que diri­
levava sobre a manga um distincti vo com giu mesmo ao rei, c que fez depois impri­
a representação d’cstas cinco chagas, no mir.
meio das quacs estava o nome do Jesus Não poupou n’cllc este principe; c des­
Christo. envolveu toda a torpeza do seu comporta­
Quando o rei soube que os revoltados mento.
faziam cada dia novos progressos, seguiu Henrique, resent ido d’esta liberdade, usou
os conselhos que se lhe deram de conceder da dissimulação. Pediu-lhe que viesse a
uma amnistia geral sem condições. Londres para o esclarecer sobre alguns Io-
A segurança do perdão fez entrar todos gares do seu livro, que estimava muito (di­
no seu dever; Henrique,,querendo remon­ zia elle), e sobre o qual tinha algumas dif-
tar até â origem da sedição, tractou de fa­ ficuldades, em que desejava ouvir a solu­
zer a apologia do seu comportamento, so­ ção da sua própria bôea. Poolo não cahiu
bretudo cm relação á supprcssao dos mos­ no laço, c o rei reconhecendo que os seus
teiros c ao seu o*dio contra os papas, mas artifícios não tinham successo algum, o des­
não empregou senão péssimas razões, que pojou de seus benefícios, promettendo mil
manifestavam cada vez mais o seu apego escudos áquelle que lhe trouxesse a sua
ao scisma, e a sua irreligião. cabeça.
Henrique ao mesmo tempo encarregou
X IX os bispos dc refutarem o Tractado da união
ecclesiastica, e muitos escreveram livros
para justificar tudo o que se havia practi-
Este principe não foi indulgente a res­ cado em Inglaterra. No anno seguinte (1537)
peito de Rcinaldo Poolo, porque o perse­ verificou-se uma nova revolta, que causou
guiu vivamente: não se importou de ser muita inquietação ao rei: mas empregou
elle filho de sangue real. Henrique vm ti­ todos os meios para abafal-a, c consegui ü-o.
nha. começado a indispôr-se com elle desde Os chefes foram punidos com um extremo
a sua estada em Paris para se aperfeiçoar rigor. Henrique imaginando que os mon­
nas sciencias, artes c letras. Por este tem­ ges eram os que concorriam mais para su-
po o rei tendo-lhe pedido que conduzisse blevar os povos contra elle, resolveu sup-
as universidades de França a declararem primir todos os mosteiros que restavam.
nullo o seu matrimonio com Catharina de Muitos abbades preveniram as ordens, dan­
Aragão, Reinaldo Poolo escusou-se, não do-lhe as suas abbadias, a fim de terem
querendo concorrer para uma acção tão uma pensão honesta durante o resto da
injusta. vida.
Reinaldo Poolo não deixou de voltar de­ No mez de outubro do mesmo anno, Joan-
pois á Inglaterra: c assistiu como deão dc na Seymour deu á luz um priucipc, que re­
Excctei' na assembléia do clero, que deu cebeu no baptismo ò nome dc Eduardo.
ao rei o titulo de chefe supremo da igreja Mas o seu nascimento custou a vida a sua
anglicana. Reinaldo Poolo fez depois a via- mãe, que morreu no dia seguinte da ope­
em da Italia, e habitou algum tempo em ração que foi necessario fazer-se para e.\-
adua, onde travou amizade com Bembo, trahir o menino.
Sadolet, e alguns outros bellos espíritos.
Estes homens de letras cediam a Poolo a
vantagem da eloquenda, e o consideravam XX
como um dos mais illustres oradores do
seu século. A reputação que havia adqui­
rido, fez nascer no rei a inveja de o cha­ Nos fins de 1538, o papa, na esperança
mar segunda vez para o empregar nos de livrar Henrique vm dos seus des vários,
seus negocios. Mas Reinaldo Poolo procu­ enviou a Flandres, em qualidade de lega­
rou sempre pretextos para não obedecer ás do, Poolo, que já então tinha sido elevado
ordens do rei. Vendo que as. suas descul­ á dignidade de cardeal; mas apenas foi in­
pas não eram acceites, escre.vou finalmen- formado que o rei tinha posto a preço a sua
te ao rei, dizendo-lhe que não approvou o cabeça, e lhe armava continuamente cila­
que se havia feito em Inglaterra, quer no das, o tornou a chamar para Roma, e lhe
ING 609
deu guarda para segurança dc sua pessoa. sagrado ás imagens; recebeu os tumulos
Henrique viu não podendo satisfazer o dos martyres e profanou as reliquias. Mas
odio que tinha a Poolo, atacou seus paren­ o furor dos inglezes scismaticos appareccu
tes e seus amigos; mandou prender a mui­ mais no modo como elles deshonravam as
tos, c alguns d’cstcs foram mortos. A inàe cinzas preciosas de S. Thomaz de Cantor-
de Poolo não foi poupada. Imputou-sc-lhe bery.
o crime de ter recebido cartas de seu fi­ Henrique viu tinha concebido uma gran­
lho, c ainda que cila estivesse já em avan­ de aversão a este sancto arcebispo, e empre­
çada idade, e que a sanctidade de sua vida hendeu fazer o processo á sua memoria o
lhe altrahisse a veneração dos povos, não condemnar ao fogo o que lhe restasse do
foi sufficiente para que não fosse presa, e corpo. Mandou roubar logo todos os the-
se Ihé não cortasse a cabeça. Esta cruel­ souros da cathcdral e o seu tumulo, c se
dade foi acompanhada da pilhagem c da lcvanlaram vinte e seis carros de todas as
destruição das igrejas c mosteiros, da pro­ riquezas consagradas ao culto d’este sancto
fanação das imagens e reliquias, do roubo prelado. O rei por uma especie dc frene­
das caixas c ornatos, da prisão c morte dos si, que tem prodigio, fez emprazar S. Tho­
sacerdotes e monges, que se oppozeram a maz diante do seu tribunal, condcmnou-o
estas desordens, mandadas pôr cm práctica como criminoso dc lesa-magestade, ordenou
por Henrique viii. Muitos religiosos de S. que fosse riscado do cathalogo dos sanctos
Francisco, que padeciam ha muito tempo da igreja anglicana, fez queimar o que res­
nas prisões, foram mortos. Tiraram-se trin­ tava das suas reliquias, e mandou lançar
ta e dous da sua prisão, e carregados de ao vento as cinzas.
ferros se enviaram a Jogares remotos para
os matarem com menor estrondo. João Fo-
rester, religioso da mesma ordem, que ti­ XXI
nha sido confessor da rainha Catharina,.foi
exposto em uma praça em Londres, e clc-
varam-no ao ar, depois de o terem amarra­ O papa Paulo m, indignado dc todos es­
do pelos braços a duas forcas, queimando-o tes excessos, resolveu dar á execução a
em seguida â fogo lento. O general de ca- sentença que havia pronunciado em 153o,
vallcfia e o vice-rei de Irlanda tiveram a e de que tinha demorado a sua publicação.
cabeça cortada. Nós temos visto quanto esta sentença era
Henrique attendia a tudo o que se lhe intempestiva!...
dizia contra os ecclesiasticos e monges, e 0 papa publicou uma segunda para fa­
assim a perseguição continuava cada dia zer executar a primeira. Mas nem uma
mais violenta. Elle emprehendeu abolir as nem outra causaram muita impressão cm
casas religiosas, que havia poupado até en­ Inglaterra. As circumstandas d’então, pa­
tão. Os bispos favorcciam-lhe todos os ex­ ra so revoltarem contra o rei, não eram
cessos a que se entregou. Por seu conse­ favoráveis. A sentença do. papa era injus­
lho o principe ordenou uma nova visita aos ta, porque nenhuma potência da terra póde
mosteiros, e aquellcs que foram incumbi­ desligar os vassallos da fidelidade que de­
dos d’este exame lhe apresentaram uma vem a seus soberanos. Não é permitti-
longa memoria dos abusos e das desordens do obedecer-lhes quando mandam alguma
verdadeiras ou falsas que elles diziam ter cousa injusta, e devem então lembrar-se
encontrado n’cstas casas. Ter-se-ia podido que vale mais obedecerem a Deus que aos
facilmente descobrir a calumnia se se ti­ homens, mas em tudo o mais é necessario
vessem enviado a esta syndicancia pessoas ser-lhes sujeito, c servil-os com um apego
desinteressadas e judiciosas; mas não se ti­ inviolável. As bullas de Paulo m não tive­
nha desígnio dc vêr tão claro, e não se ram outro effeito senão o que se devia es­
rocurava senão um pretexto para tirar to- perar, que foi irritar cada vez mais o rei
o o apoio á religião catholica em Inglater­ contra a côrte de Roma: também concor­
ra, c para satisfazer ao odio d’esle princi­ reram para nue quasi todos os bispos in­
pe c á avareza insaciável dos seus minis­ glezes se declarassem contra a sancta sé.
tros. 0 rei reuniu um grande numero de bis­
Apressou-se então a desejada pretenção pos, a que ajuiitou também alguns abbades;
do monarcha. Cromwell fez despedaçar‘to­ e todos estes prelados redigiram ura escri-
das as imagens de Nossa Senhora, *c dos pto, no qual declaravam que os papas ti­
sanctos, que eram reverenciados em mui­ nham usurpado a authoridade, que se at-
tos logares; apossou-sc de todas as rique­ tribuiam (estes prelados tinham razão se
zas que a piedade dos catholicos tinha con­ fallassem da authoridade sobre o temporal
610 ING
dos reis), que se devia ensinar aos povos duzir o principe a casar com Anna, Ir­
que Jesus Christo tinha expressamente pro- mã do duque de Clcves c da duqueza de
hibido a seus apostolos e a seus successo­ Saxe. Crornwell disse ao rei que cila tinha
res o attribuircm a si o poder ou authori- todas as qualidades que podiam fazcr-Jlfa
dade dos reis, e que se o bispo de Roma ou amavel. Desde que a pintou ao rei como jul­
algum outro se attribuia o poder da espa­ gou a proposito, notou-sc a impaciência em
da era um usurpador, que destruía o rei­ que este principe apaixonado estava para
no de Jesus Christo. Dezenove bispos e vin­ casar com cila. Encarregou Cromwcll de
te e cinco doutores assignaram esta decla­ arranjar este negocio, c este ministro ap-
ração. plicou-sc a cllc com todo o ardor c zelo de
Por este mesmo tempo Cromwcll apre­ que era capaz. A princeza chegou-a Ingla­
sentou ao rei uma traducçào da Bíblia cm terra nos fins do anno de 1539. Henrique,
impaciente de a vér, foi até Rochestor sem
inglez, affirmando que se iiào acharia n’el-
la cousa que podesse favorecer o poder ar­ ser conhecido, mas ficou extremamente
zangado, achando-a tão differente do retra­
bitrario, que o papa se attribuia sobre todo
o mundo christao. to que sc lhe tinha feito. Desde então con-
servou-lhe uma aversão, que nunca mais
O rei gostou de que se fizesse imprimir
uma tal traducçào, e se enviou a Paris pes­pôde desvanecer, c no mesmo instante te-
soa competente a fim de que a impressão ria rompido o matrimonio, se o estado dos
fosse o mais exacta possível. O embaixa­ seus negocios lhe permitisse fazer uma tal
dor de Inglaterra, na corte de França, aflronta ao duque de Saxe c de Clevcs. Re­
mandou começar a edição, mas queixan- solveu então sacrificar suas repugnandas,
e casar com aquella que elle não podia
do-sc o clero de França, a maior parte dos
exemplares foram apanhados, e queimados soíTrcr. O matrimonio foi celebrado a 6 de
mblicamente: isto deu causa a que se im- janeiro de 1640.
wimisse em Londres, c estando a impres- No mesmo tempo este principe para fa­
ào concluída, Cromwcll, como vigário ge­ zer vér que, abolindo a authoridadc do
ral da igreja anglicana, publicou um man­ papaedestruindo os mosteiros do seu reino,
damento por ordem do rei, que determina­ não linha mudado o fundo da religião,
va que todos os ecclesiasticos tivessem um propôz ao parlamento seis questões sobre
pontos importantes da doutrina da Igreja.
exemplar d’esta Biblia nas suas igrejas, que
permiltissem a leitura a todos os seus pa- Elles foram examinados e discutidos com
rochianos, e que ellcs os exhortassem a pe­bastante calor.
dir ás possoas esclarecidas e judiciosas o Cranmer os combateu logo, porque fa­
sentido das passagens mais difficultosas. vorecia secrctamentc o lutheranismo; mas
Por outro mandamento, Crornwell orde­ vendo que todo o mundo os approvava,
nou que sc ensinasse aos fieis a oração do­elle concordou com o maior numero, como
minical, a confissão da fé, o symbolo dos sempre costumava fazer. Convcio-sc nos
apostolos e os dez mandamentos em inglez. seis artigos que o rei confirmou por uma
lei, que solcmnemcnte mandou publicar:
No anno seguinte (1339) Henrique viu te­
mendo ser atacado pelo imperador e pelo rei 1. ° Depois da consagração, a substancia
de França, que acabavam de concluir en­ do pão e do vinho não fica no sacramento;
tre si uma tregoa de dez annos, quiz nego­ mas sim o corpo e sangue de Jesus Chris­
ciar teclad os de paz com os principes da to, debaixo das apparencias de pão c de
Allemanha; mas estas negociações foram vinho.
sem successo algum, porque Henrique não 2. ® A Escriptura não estabelece a neces­
podia gostar da doutrina de Luthero. O sidade absoluta da communhão debaixo
partido dos pretendidos reformados não ti­ das duas especies. e não é necessaria para
nha jamais sido tão fraco em Inglaterra a salvação, pois que o corpo e o sangue
como até então. de Jesus Christo existem juntos debaixo
O arcebispo Cranmer, que o favorecia, de cada uma das especies.
vendo que não tinha com quem contar se­ 3. ® A lei de Deus não permitte que se
guramente senão com Crornwell, julgou que receba depois de ter subido ao sacerdócio.
era necessario casar o rei com.alguma 4. ® Segundo esta mesma lei é necessa­
princeza, que protegesse o lutheranismo. rio guardar o voto de castidade quando se
tem feito.
5. ® Deve-se continuar o uso das missas
XXII particulares, o que tem fundamento na Es­
criptura.
N ’cstas vistas resolveu com Crornwell in­ C.® A confissão auricular é util, c mes-
ING 611
m o necessaria, e dcvc-sc conservar a prá- ção. Esta ordem foi abolida em Inglaterra
ctica da Igreja. e na Irlanda; o rei apossou-se dos seus
bens, c Cromwell se accommodou com as
commendas visinhas das suas terras. Este
XXIII ministro usava da sua authoridade com
muita altivez. Para tirar para o futuro
todo o obstaculo ás suas crueldades, fez
Eslcs artigos foram publicados, como passar no parlamento uma lei pela qual se
.acabamos do vêr, sol) a authoridade do rei declarou que as sentenças dadas contra os
o do parlamento, e se denominaram Esta­ criminosos de lesa-magestade, ainda que
tutos de Siniyuc por causa das penas reli­ ausentes c nào ouvidos, teriam a mesma
giosas com que se deviam castigar aquol- força que as dos doze juizes, que formam
les que se oppozessem a isto. o mais severo tribunal ü Inglaterra.
O parlamento, na mesma ordenança, an-
nullou todos os matrimônios dos sacerdo­
tes, e condemnou ;i morte todos os eccle­ XXIV
siasticos que continuassem a viver com
suas mulheres.
Os arcebispos e bispos foram encarrega­ A vingança divina não tardou a brilhar
dos de celebrar, para este fim, seus syno­ contra Cromwell. O rei nào tinha jamais
dos, ao menos quatro vezes no anno, e pro­ podido soíTrer Anna de Clcves, com quem
ceder contra os culpados por accusaçào pú­ este indigno ministro o linha feito casar;
blica. Outro negocio importante occupou c sua aversão para com cila augmenta va
lambem as duas camaras do parlamento, todos os dias.
■c foi o de supprimir as grandes abbadias. Tendo concebido uma violenta paixão
Deram também para sempre ao rei c seus pela filha de milord fídinont lloward, to­
successores todos os mosteiros, que tinham mou logo a resolução de fazer annullar <
já sido supprimidos, c lixou-se uma deter­ seu matrimonio, e o*duque de Norfolk, se
minada sotnma para a subsistência dos tio, aproveitou esta feliz oceasiào para s
abbades, religiosos e religiosas. elevar sobre a ruina de Cromwell. Ü r<
Como este principe tinha insinuado que julgou achar duplicada vantagem na pei
queria empregar uma parte de todos estes da d’cste ministro. DTima parte satisfazia
bens em algutn estabelecimento utiI á reli­ o resentimento que tinha contra ello por
gião, o parlamento fez outro estatuto para causa do seu matrimonio com Anna de
lhe conceder a liberdade de fundar alguns Clevcs; c da outra esperava apaziguar to­
novos bispados, a fim, dizia clle, de que se das as murmuraçòes do povo a respeito
ensinasse exactamentc a palavra de Deus, da religião, de que Cromwell era inimigo.
que se formasse a mocidade nas scicncias, Este infeliz achou então a sua ruina
e que se fundassem novos hospitaes. Era aonde tinha julgado achar o seu apoio.
necessário, pois, colorir por toda a sorte Soube-se que elle protegia secretamente
de pretextos especiosos, a deshonrosa ava­ os novos pregadores, inimigos dos seis ar­
reza que linha feito conseguir, d’um modo tigos. e cm particular da presença real,
tão escandaloso, os bens ecclesiasticos. que Henrique sustentava com ardor: con­
Cromwell, vendo o parlamento assim dis­ taram-se a este principe algumas palavras
posto a conceder tudo o que se lhe pedia, que Cromwell tinha proferido por esta oc­
resolveu executar um desígnio, que .tinha easiào contra elle. Em consequência d’isto
formado havia algum tempo. Õs cavallci- o parlamento condemnou-o por ordem do
ros de S. Joào de Jerusalém, que se cha­ rei, como heregc e inimigo do estado. No­
mam hoje cavallciros de Malta, nào eram te-se que elle foi condenmado sem ser ou­
menos ricos em Inglaterra que nos outros vido, e que também supportàra a pena do
reinos da christandade, e tinham aprovei- detestável conselho que elle mesmo tinha
lado por toda a parte, além do que já ti­ dado de condemnar os accusados sem se­
nham, uma parte dos despojos dos templos. rem ouvidos. Cromwell teve a cabeça cor­
Como elles eram affoiçoados d’um modo tada na praça que está defronte dâ torre,
particular á sancta s é / e reconheciam o no fim de julho do anno de 1540.
papa por seu primeiro successor, nào fo­ Ello tinha prostituído mais que todos os
ram isentos da perseguição. Mas como a outros a sua consciência á lisonja, porque
sua ordem era composta da primeira no­ na’ qualidade de vicc-gerente da igreja de
breza, e era poderosa no reino, Henrique Inglaterra, authorisava em público todos
viu tinha demorado até cntào a sua extinc- |o s artigos de fc, aos quaes o rei ficava
612 IXG
unido, cmquanto que cm segredo fazia to­ Cranmer, que presidia a assembléia, e
dos os esforços para os destruir. que levou o resultado ao parlamento, foi o
Henrique vm não cuidou mais cntào se­ mais laxo de todos. Brunet, que procu­
não cm se desfazer de Anna de Cleves, sua ra dcsculpal-o, afiirmou que foi uma ein-
esposa, a fim de poder contrahir um novo preza formada para o perder: seguiu o
matrimonio conforme os seus desejos cri­ sentimento commum. Tal foi a coragem de
minosos. O pretexto era grosseiro. um arcebispo, que este famoso author nos
Allegou-se por causa cie nullidade, que dá por outro Ailianasio. Por esta iniqua
Anna de Cleves tinha sido desposada com sentença, o rei casou em segredo com Ca-
o marquez de Lorena, ainda que estes cs- tharina lloward, que não foi declarada rai­
ponsaes tivessem sido feitos emquanlo ain­ nha senão a 8 de agosto. Mas dous dias
da eram menores, e que os não ratifica­ depois que a sentença do divorcio foi dada,
ram na sua maioridade. Foi impossível o chanceller, o bispo de Yinchcster, e al­
achar algum outro pretexto mais especioso. guns senhores, foram deputados pelo rei
Um senhor, em consequência d‘isto, pediu para notificar á rainha. Ella ficou resen-
ao parlamento que apresentasse um reque­ tida c deu o seu consentimento. Conccdeu-
rimento ao rei para lhe pedir que se exa­ sc-lhe uma pensão honesta, c ella escreveu
minasse a validade do seu matrimonio com ao duque de Cleves, seu irmão, que tudo
Anna de Cleves. Conliceeu-sc bem quanto se tinha feito com seu agrado. Ella não
a proposição devia ser agradavel. O rei. a devia ter muita aíTeieão a Henrique, a
quem o requerimento foi apresentado, res­ quem sabia muito bem que tinha sido
pondeu que não procurava senão a gloria sempre odiosa. Depois d’eslc negocio, o
de Deus, c a vantagem do seu povo, e que parlamento continuou suas sessões, e com-
queria bem que este negocio fosse concluí­ mutou a pena de morte na de confiscarão
do pelo clero. Eis-aqui como se vé um de bens contra os ecclesiasticos que vio­
principe bem moderado. lassem o voto de castidade. O clero da pro­
Mas no fundo podia ellc dar uma prova vincia de Cantorbery ollereceu ao rei a
mais evidente da sua dissimulação. As tes- quinta parte das suas rendas, para reco­
timunhas foram ouvidas. Henrique foi in­ nhecer, dizia elle, o cuidado que este prin­
terrogado, o resultou que era importante cipe tinha tomado de livrar a igreja angli­
annullar o seu matrimonio. Era necessá­ cana da tyrannia do papa. Henrique accci-
rio que o rei tivesse essa opinião do seu tou este presente: o parlamento approvou
clero, do parlamento, e do público, para isto, e o rei exigiu ao mesmo tempo da
allegar cousas tão frivolas do seu divorcio. camara dos cominuns um subsidio tão
Mas na falta de boas razoes ellc tinha um grande como se tivesse sido embrulhado
Cranmer, arcebispo de Cantorberv, que, numa guerra perigosa.
por uma laxa e indigna complacência es­ Logo depois da morte de Cromwcll se
tava prompto a fazer tudo o que se qui- perceberam algumas mudanças na reli­
zesse. Por meio d’este prelado o matrimo­ gião; e os dogmas da igreja catholica fo­
nio foi annullado, e o clero deu uma sen­ ram pregados com mais liberdade. Os coin-
tença de divorcio, que foi pronunciada a missarios nomeados pelo rei, tinham redi­
9 de julho, assiguada por todos os eccle­ gido uma exposição da doutrina ehristã,
siasticos das duas camaras, o sellada com que era conforme" á fé da Igreja, excepto
o sêllo dos dous arcebispos de Cantorbery sobre a primazia do papa, que se não que­
e de York. O parlamento teve a fraqueza ria reconhecer. Henrique vm tendo visto
de se prestar á paixão do rei, e de confir­ esta exposição, ordenou que ella fosso pu­
mar esta sentença. blicada.
Outros commissarios encarregados de
XXV reformar os missaes e os breviarios, fize­
ram ahi poucas mudanças. Elles se conten­
Os bispos, quo.cram os principacs mem­ taram de tirar algumas* collectas, aonde se
bros da assembléia do clero, aonde a senten­ pedia pelo papa, e o officio de S. Tliomaz
ça foi dirigida, e que; segundo Brunet, re­ de Cantorbery. Mas conservou-se todo o
presentava o concilio universal, não tiveram resto, talvez, com o receio de indispor o
vergonha de dizer quo o rei não lhe pe­ povo, que toria considerado como um at-
dia senão o que era conforme á verdade, tentado contra a religião, uma mudança
á justiça, á honestidade, e mesmo á sancti- geral no officio publico. Assim as ceremo­
dade. nias e os ritos ficaram conformes o antigo
Eis-aqui como fallavam estes bispos cor­ uso.
rompidos. O rei juntou ao livro da Exposição da fe
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uma ordenança, pela qual declarava I k t c - teve logo o titulo de duque de Sermontc, e
gos aquellcs qne se desviassem d\*sta dou­ depois o de protector do rei, e do reino.
trina. Fundou pelo mesmo tempo seis no­ Foi feito grande thesoureiro e grande ma­
vos bispados, para mostrar que queria em­ rechal do reino, e reuniu em sua pessoa
pregar em boas obras, e em estabeleci­ as mais eminentes dignidades, de sorte que
mentos úteis os bens do clero, que tinha nào lhe faltava senào o nome de rei.
usurpado. Quando este infeliz principe pa­ Cranmcr era intimo amigo do protector,
recia mais contente da sua nova esposa, e assim, elle cessou entào de dissimular, e
foi informado da vida irregular que cila manifestou todo o veneno que linha no co­
passava. Foi eondemnada a perder a cabe­ ração contra a igreja catholica. O prote­
ça sobre um cadafalso, no mcz de feverei­ ctor, de combinação com o arcebispo, for­
ro de 1542. Assim a casa de Henrique foi mou desígnio de destruir inteiramente a
sempre cheia de sangue e de infamia. antiga religião no reino, e estabelecer n’cl-
Depois de ler ficado viuvo 18 mezos, ca­ Ic a pretendida reforma.
sou com a sexta mulher, que foi Catharina Para preparar o caminho a esta mudan­
Parr, viuva de milord Nevil Latimer. Ella ça, que se meditava debaixo do nome do
pendia muito para a parte do luthcranis- rei, por o reconhecer como se tinha feito
mo, mas dissimulou-o o mais que lhe foi a Henrique por chefe soberano da igreja
possível, para nào resentir um principe, anglicana, tinha-se estabelecido por maxi­
que, julgando-se chefe da Igreja, queria ma desde o tempo de Henrique vm, que o
que cada um cresse o que ellc cria. Ella rei tinha o logar do papa em Inglaterra,
também nào so atreveu no principio do mas davam-sc a este novo papado proroga­
seu matrimonio a pedir-lhe por muitos tivas que. ao papa mesmo se nào tinham at-
protestantes, que foram queimados por te­ tribuido.
rem failado contra a missa. Os bispos pediram ao rei novas commis-
sões revogaveis á sua vontade. Como Hcn
rique tinha tido o desígnio de o ordenai
XXVI creu-se que para adiantar a reforma, er
necessario ter os bispos debaixo do jug
de um poder arbitrario.
Xo anno de 1545, o rei pediu ás cama­ O arcebispo de Cantorbcry, primaz da
ras o poder de dispor, como clle julgasse Inglaterra, íbi o primeiro em abaixar a
a proposito, dos bens de lodosos hospita cs, cabeça a um jugo tào deshonroso. Não nos
seminarios, collegios, chantrarias, confra­ admiremos, pois que este 6 o que inspira­
rias, abluçòes sagradas, e fundações de mis­ va este bello plano, c que os outros prela­
sas. dos nào faziam senào seguir seu pernicio­
O parlamento concedeu-lhe tudo, e além so exemplo. Relaxou-se um pouco depois,
d’isto uma somma considerável de dinhei­ e os bispos receberam como uma graça a
ro, que este principe pedia; c logo que ob­ declaração que se lhe fez, que o rei que­
teve tudo o que queria, fez um discurso ria dar os bispados aos mais dignos.
em que disse cm substancia—que jamais Explicavâ-se bem tirmemente na sua
rei algum tinha tido tnais aííeiçào aos seus cominissào que o poder episcopal, bem
vassallos, nem tinha sido mais amado por como o dos magistrados seculares, ema­
elles. Ainda que nada fosse mais contrario nava da realidade como da sua origem, e
á verdade, comtudo o seu discurso foi re­ que elles deviam abandonal-o á vontade do
cebido com grandes applausos. rei, que lh’o communicava. O rei dava-lhe
Esta nova violência foi a ultima de Hen­ poder de ordenar, do depor os ministros,
rique viu. Morreu a 29 de janeiro de 1547, de empregar as censuras ecclesiasticas con­
do idade do 56 annos, depois de ter reina­ tra as pessoas escandalosas, e, em uma pa­
do 37 annos e 9 mczes. Sua morte foi con­ lavra, de exercer todas as funeções do cor­
servada em segredo tres dias. No mesmo po pastoral debaixo da authoridadc do rei.
tempo cm que o chanceller a annunciou, Reconhccia-sc ao mesmo tempo que este
o moço Eduardo, de idade de 9 annos, foi cargo pastoral era estabelecido pela pala­
proclamado rei. vra de Deus, porque era necessário no*
Seguiu-se n’isto a vontade do rei, seu mear esta palavra de que se queria fazer
pae, que o tinha ordenado assim em seu honra. Mas ainda que ahi se nào achasse
testamento. Elle lhe tinha também nomea­ nada para este poder real senão o que diz
do seis tutores, entre os quaes era Eduar­ respeito á ordem dos negocios do século,
do Herford Huenglien, irtnào de Joanna de não se deixava de o estender ao que ha de
Seymour, tio materno do novo rei. Ellc mais sagrado nos pastores. Expedia-se uma
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commissão do rei a quem se queria para O parlamento fez no fim de 1Õ17 uma
sagrar um novo bispo. Também, segundo ordenança severa contra aquellcs (jue fal-
a nova gerarchia, como o bispo nào era sa­ lassem mal do sacramento do altar. Ellc
grado senào por authoridade real, nào era prescreveu ahi a communhão debaixo das
cllc que celebrava «as ordenações. A fôrma duas cspecics, e permittiu aos clérigos o
mesmo, e as orações da ordenação tanto casarem.
dos bispos, como dos sacerdotes, foram re- Xo anuo seguinte o conselho do rei de­
guhadas no parlamento. Fez-se outro tanto clarou que os matrimônios poderiam ser
da liturgia, ou do serviço público, e de dissolvidos por causa do «adultério. Tacs
toda a administração dos sacramentos. sao os fruetos que os pretendidos reforma­
Em uma palavra, tudo estava sujeito ao dores produziram em Inglaterra.
real poder, e abolido o antigo direito. O Elles chegaram ao ponto, diz M. Bos-
parlamento foi também encarregado de re­ suet, dc fazer destruir pelo real poderá fé,
digir o novo corpo de direito canonico. que o mesmo poder tinha estabelecido. Os
Todos estes attentados eram fundados so­ seis artigos que Henrique viu tinha publi­
bre esta maxima—de que o parlamento de cado com toda a sua authoridade espiri­
Inglaterra se linha feito um artigo de fé, tual e temporal, foram abolidos c apesar
de que não havia jurisdicção quer secular, dc todas as precauções que elle tinha dado
quer ecclesiastica, que nào deve ser refe­ por seu testamento para conservar estes
rida á authoridade real, como á sua ori­ preciosos restos , da religião catholica, a
gem. doutrina zuingliana, tão detestada por este
principe, se fez dominante.
X X V II Pedro, martyr, Florentino, c Bernardim
Ochin, que depois foi o inimigo declarado
da divindade dc Jesus Christo, foram cha­
Desde que o povo soube que o novo go­ mados para começar esta reforma. Ambos
verno queria mudar a religião, bem longe tinham deixado, como os outros reforma­
de se oppôr, entrou nas suas vistas, e o dores, a vida monastica, para abraçarem o
favoreceu com todo o seu poder. estado do matrimonio. Redigiram elles uma
Viram-se logo as imagens abatidas em fórmula, onde se dizia— que o corpo de Je­
muitos logares, as igrejas roubadíis e pro­ sus Christo não estava senão no céo, que
fanadas, as cadeiras occupadas por orado­ não podia estar realmcntc presente em
res que ensinavam a doutrina de Luthero diversos logares, e que assim se não de­
ou a de Zuinglio, e o público inundado via reconhecer alguma presença real ou
do escriptos, que atacavam os antigos do- corporal do seu sangue na Eucharistia.—
gm«as e as ceremonias da religião. Apesar d’esta definição, digna dos discipu­
Muitos bispos, á testa dos quaes estava los de Zuinglio, como a fé não estava ain­
Cranmer, favoreciam abertamente a apos­ da no seu ultimo estado, este artigo foi re­
tasia, c os outros não tinham a coragem formado depois. '
dc se oppôrem. Os dous mestres do nosso Na mudança que se tinha feito da litur­
rei eram zelosos partidários da pretendida gia, pela authoridade do parlamento,, ti-
feforma, e não deixavam de inspirar o nha-se ousado dizer que os commissarios
amor a este principe. Finalmente, muitos nomeados pelo rei para a corrigir, a tinham
'ministros suissos e allcmães, refugiados em feito pela assistência do Espirito Sancto.
Inglíiterra, trabalhavam infatigavelmente, Admirou-se esta expressão, mas os no­
em estabelecer ahi a sua doutrina. Os nc- vos apostolos disseram que não era neces­
gocios da religião, na Inglaterra, achavam- sário entender dc unia inspiração sobrena-
se n’este estado. tural; porque então nào seria mais permit-
O rei enviou então visitadores a todas tido mudar ahi cousa alguma. Mas elles
as provincias, para levarem ahi regula­ queriam fazer ahi também mudanças con­
mentos ecclesiasticos e artigos da fé. Ao sideráveis, que tinham por íim tirar todos
mesmo tempo foi prohibido aos bispos in­ os vestígios da antiguidade, que se tinham
struírem fóra das suas igrejas, durante todo conservado.
tempo da visita. Teve-se cuidado de asso­ Corrigiu-se tudo o que podia favorecer
ciar aos visitadores, partidistas zelosos da a doutrina da tramubstanciarão, e trazer
pretendida reforma, que a pregavam de­ á lembrança a ideia do sacrificio.
baixo da sua authoridade. Os visitadores A igreja anglicana não quiz mais ouvir
tinham ordem de fazer abater as imagens, as sanctas orações que se recitavam pela
de prohibir as procissões, e de mudar a primeira vez ao sahir das agu«ts do baptis­
fórmula da oração pelos mortos. mo. Era isto o pão da vida. Nào se quiz
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mais pedir para os mortos a remissão dos deu também o seu credito pelas intrigas
peccados, porque esta oração resentia mui­ do conde de Varvick.
to o purgatorio. Conservou-se alguma cou- E bom considerar aqui os juízos de Deus,
sa da antiguidade, mas foram-se fazendo que brilhavam sobre este principe.
ahi estranhas alterações. No meio de tantas reformas que se fa­
Reduziu-se a confirmação a um simples ziam em Inglaterra, a unica que não adian­
cathecismo para fazer renovar os votos do tava, diz M. de Mcaux, era a dos costumes.
baptismo: tirou o sancto chrisma que os Nós já vimos qual foi a vida de Henrique
padres antigos tinham chamado o instru­ viu, o primeiro reformador da Igreja,
mento do Espirito Sancto. Depois a Extre­ O ambicioso duque de Sommerset, que
ma-Unção foi reduzida a unção da cabe­ foi o segundo, não viveu do um modo
ça, c cio estomago. Conscrvafam-sc corn- mais edificante. Igualava-se aos soberanos,
íudo muitas ceremonias, as festas dos san­ aquelle que não era senão vassallo, c to­
ctos, as abstinencias, e quaresma. Muitos mava o titulo de duque de Sommerset pela
pretendem que a abstinência foi conserva­ graça de Deus.
da menos para morti ficar c fazer peniten­ No meio das desordens do reino, c dos
cia, que para sustentar o commercio da estragos espantosos que a peste fazia em
pesca, e conservar os gados. Londres, não cuidava senão em cdificaros
O que espanta mais, diz M. Bossuct, c mais magnificos palacios, que jamais se
que o rei e o parlamento se tenham reser­ teem visto, e para cumulo á sua iniquida­
vado o direito de conceder as dispensas de edificava-os com as ruinas das igrejas,
dos jejuns, das abstinencias, e que em ma­ das casas episcopaes e das rendas, que lhe
teria de religião lodo um povo tinha esti­ cediam os bispos c os cabidos. Estava-se
mado mais ler mandamentos do rei, que obrigado a abandonar-lhe tudo o que elle
os mandamentos da Igreja. Regulou-se que queria. Fazia-sc dar tudo pelo rei, mas era
os oílicios seriam por toda a parte celebra­ crime abusar também da authoridadc de
dos cm lingua vulgar. Conservou-se na li­ um rei infante, eacostumar o pupillo a estas
turgia o uso dos vestidos sacerdotaes, o si- doações sacrilegas. O duque foi condemnado
gnal da cruz, c os exorcismos. por*dccreto do parlamento, primeiramente
No tempo d’cstas revoluções sobre a re­ a perder a authoridade que tinha usurpa
ligião, o almirante Seymour, e irmão do do sobre o conselho, e depois a ter a cab<
protector, concebeu o desígnio de casar ça cortada. Esta notável execução se f<
com a princeza Izabel. O protector saben­ á 22 de janeiro de 1552. No 4i*a seguin
do d’isto resolveu oppôr-se, temendo que o o parlamento fez outro decreto que autht
almirante chegasse depois á coroa, c que risava a nova liturgia, na qual se tinhan
d’este modo o seu cargo seria proscripto. também feito diversas mudanças conside­
Para este fim obrigou cllc o parlamento a ráveis.
fazer uma lei que declarava que todo A assembléia do clero approvou no mes­
aquellc que ousasse casar com uma irmã mo tempo uma ampla profissão de fé, que
do rei sem sua permissão seria culpado de tinha sido redigida no anno precedente, c,
alta traição. que encerrava 42 artigos. Enviaram-sc ec­
O almirante vendo suas esperanças traus- clesiasticos ás provincias para fazer rece­
tornadas, formou o projecto de elevar o ber este novo symbolo, que foi ainda cor­
rei, e obrigal-o a casar com Izabel, e de rigido depois.
tirar a seu irmão o cargo de protector. Todas estas mudanças tão frequentes, e
Ellc tinha já ganhado muitos ‘senhores e estas variações continuas não poderíam ser
posto dez mil homens promptos, mas toda assaz notadas. Queria-se fazer um regula­
a conspiração foi descoberta. O almiraute mento sobre a jurisdicção ecclesiastica, e
foi preso, conduzido á torre, e condemna- tinham-se nomeado commissarios para o
do a ter a cabeça cortada. redigir, mas a morte de Eduardo embara­
O protector assignou o decreto, e o ar­ çou a execução d’este projecto.
cebispo Cranmer não pôz difficuldadc em
concorrer para esta sentença de morte.
O cargo de grande almirante foi dado ao XXVIII
conde de Varvick, que trabalhou logo na
perda do duque de Sommerset. Este pro­
tector, que tinha sido sempre poderoso, foi O moço rei foi atacado desde o principio
desgraçado na prisão, e privado da sua di­ de janeiro de 1553 de uma íluxão de pei­
gnidade. Elle tornou pouco depois a favor, to, que os remedios uào fizeram senão irri­
mas emílm foi accusado de novo, e per­ tar. Isto foi o fundamento do boato que se
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espalhou de que ellc tinha sido envenena­ zão, que tinha sempre prostituído a sua con­
do. Esla supposiçào cahiu sobre o duque sciência á sua fortuna. Elle tinha assigna-
de Northumbeland, que desejava fazer pas­ do o acto, pelo qual Eduardo mudava a or­
sar a corôa a Joanna Gray, sua nora, a dem da successão; e depois da morte d’este
mais próxima herdeira de Henrique viu, principe, o conselho, de que Cranmer era
depois de Maria c Isabel. Eduardo antes chefe, tinha dado ordens para armar o po­
de morrer mudou a ordem da successão, vo contra a rainha Maria, c para sustentar
estabelecida pelo testamento dc Henrique a usurpadora Joanna de Gray, quando es­
vui, que tinha chamado ao throno a prin- ta fosse sem esperança.
ceza Maria, sua filha mais velha, depois Cranmer com todo*s os outros confessou
d’ella Isabeí, c na sua falta a duqueza dc o seu crime, e recorreu á clemência da
Sufolk. rainha Maria. Mas metteu-se na torro de
O duque de Northumbeland induziu-o a Londres por crime de estado, c pelo do he­
nomear por herdeira da coroa, em prejuízo resia. Elle mesmo foi deposto depois c de­
de Maria e de Isabel, Joanna Gray, filha clarado herege, c mesmo confessou que
mais velha do duque dc Sufolk, a quem o era por ter negado a presença corporal
sua màc remetteu todos os seus direitos, e de Jesus Christo na Eucharistia* o que pro­
que clle tinha feito casar com um dos seus va que era n’estc ponto que se fazia con­
filhos. O rei morreu a 6 de julho de idade sistir então a principal parte da reforma,
de 16 annos. que se fez no tempo de Eduardo. É bom
Desde que a prinecza Maria soube da notal-o porque tudo isto será mudado no
morte do rei, fez-se proclamar rainha no tempo de Isabel!...
ducado de Norfolk; levantou tropas c avan­ O parlamento condenmou Cranmer por
çou para Londres. O duque de Northum- sua doutrina e seus matrimônios escanda­
ficland e o conde de Navick, um dos seus losos. Este infeliz prelado, querendo pro­
filhos, empregaram todo o seu credito para longar a execução do seu juizo, declarou
fazer reconhecer Joanna dc Gray, mas des­ que estava prompto a ir sustentar a sua
de que Maria se aproximou a Londres, foi doutrina diante do papa, ainda que ante-
acclainada rainha de Inglaterra c chefe da riormento não reconhecesse a smrauthori-
igreja anglicana com um applauso geral. dade. E quando se viu condcmnado em no­
Foi á igreja de S. Paulo para se cantar ahi me do papa, appellou para o concilio geral.
o Ce-Dmm Laudamus. Repicaram todos os Como não ganhava cousa alguma, abjurou
sinos, fizeram-se fogos de alegria, e toda a os erros de Luthero c de Zuinglio, e reco­
cidade retiniu com gritos de regosijo. Joan­ nheceu distinctamente com a presença real
na de Gray foi présa com Dulley, seu ma­ todos os outros pontos da fé catholica. Elle
rido, e Northumbeland, seu sogro. teslimunhou mesmo na abjuraçâo que as-
No primeiro de outubro Maria foi coroa­ signou uma grande dôr de se ter deixado
da rainha, e fez a sua entrada solcmnc em seduzir. Vendo depois, que apesar d’esta
Londres. abjuraçâo se lhe não queria perdoar, vol­
El Ia fez conhecer logo bem que o seu de­ tou aos seus primeiros erros. Mas se re-
sígnio era restabelecer a religião catholica tractou de novo na esperança de obter al­
em Inglaterra. Poz em liberdade Gardiner, guma indulgência. Esta nova retractação
bispo dc Yinchester, que não tinha outro lhe foi também inútil, e foi condemnado a
crime senão o de ter sustentado a doutrina ser queimado vivo. Conduziu-so á praça
da presença real de Jesus Christo, e lhe da igreja dc Sancta Maria, onde se tinha le­
deu o grande séllo. vantado uni cadafalso. Como se lhe per­
O duque de Northumbeland e o conde de guntou se persistia na sua abjuraçâo,
Yarvick, seu filho, tiveram a cabeça corta­ respondeu que a tinha feito contra a sua
da. A rainha publicou uma declaração cm consciência, e que quando estivesse sobre
que testimunhava desejos de que os seus a fogueira queimaria logo a nião que a ti­
vassallos estivessem unidos á mesma fé em nha assignado. Crànmer começava a decla­
um espirito de caridade. Esperando que rar o seu apego ao lutheranismo quando se
tudo fosse regulado por um commum ac- conduziu á fogueira, .aonde morreu mise­
cordo, ella ordenava a seus vassallos vive­ ravelmente aos 67 annos dc idade, a 21 de
rem em paz, e não se darem o nome de março do 16»6.
hereges.
Restabcleceutambemosbisposquetinham XXIX
sido injustamente depostos no reinado pre­
cedente. Emílm a vingança divina brilhou
sobre o famoso Cranmer, este laxo corte- O parlamento tinha declarado legitimo o
ING 617
matrimonio de Calharina de Aragão com quanto a penitencia é agradavel a Deus, c
Henrique vm c a sua repudiarão injusta. quanto esta conversão do reino dTnglaterra
Depois cassou e annullou todas* as leis fei­ regosijava os anjos, implorou a misericór­
tas por Eduardo contra a igreja catholica, dia de Deus, c deu a absolvição a todos
e ordenou que se seguisse a religião que os assistentes, que a receberam de joe­
reinava em Inglaterra á morte de Henri­ lhos, c depois foram dar graças a Deus na
que vm. Promulgou ordenanças muito se­ igreja.
veras contra aquellcs que se atrevessem a O papa sendo informado d’csta feliz mu­
maltractar os sacerdotes. dança, ordenou procissões publicas cm Ro­
Obrigou a rainha Maria, então de idade ma c por toda a Italia, para agradecer a
de 40 annos, a casar-se. E casou com Phi­ Deus este beneficio. Na vespera do natal
lippe, segundo principe da Hespanha, filho publicou o jubileu, cuja bulla traiia, que
do imperador Carlos v, que tinha tão so­ como pae de familias do Evangelho, tendo
mente 26 annos. A rainha tinha feito pu­ recobrado seu filho, que estava perdido,
blicar pouco tempo antes um edito, pelo não se tinha contentado de seregosijar em
qual ordenava que as orações publicas se casa, mas tinha também convidado para o
fizessem na lingua latina, e prohibia âquel- festim os seus visinhos c seus amigos, clle
les que fossem casados fazer funeção algu­ queria da mesma sorte dar parto da sua
ma ecclesiastica, e aos bispos exigir da- alegria a todos os christãos. As sessões do
quelles que entrassem na vida ecclesiastica parlamento de Inglaterra continuaram até
o juramento, pelo qual se reconhecia o rei 15 de janeiro do anno seguinte, e estabele­
por chefe supremo da igreja anglicana. ceram-se ahi os antigos editos, dados contra
Tinha feito eliminar também dos rituacs os hereges e para a manutenção da juris-
uma nova oração, aonde se pedia a Deus dicção episcopal.
livrar a Inglaterra da tyrannia do papa. Todos os decretos feitos contra a autho-
A noticia d’esta revolução foi muito ridade do papa no tempo de Henriqne vm
agradavel na côrtc de Roma* c o papa Ju­ c de Eduardo vi foram observados muito
lio ui, para tirar todas as vantagens que po­ rigorosamente. O cardeal Poolo, nomeade
dia esperar, nomeou logo o cardeal Poolo para o arcebispado de Cantorbery, foi sa
seu legado em Inglaterra. grado no mesmo dia em que Cranmer fo
Esta legação foi demorada pelo impera­ queimado, c tomou posse alguns dias de
dor até que concluísse o matrimonio da rai­ pois.
nha com Philippe seu filho. A rainha restabeleceu depois alguns an­
Poolo chegou a Londres a 23 de novem­ tigos mosteiros que tinham sido destruídos,
bro de 1554, depois de ter sido restabeleci­ e fundou novos. Ella fez tirar dos registros
do antes cm todos os direitos c cm todas as publicos tudo o que sc tinha feito no reina­
honras, de que injustamente tinha sido des­ do de seu pae contra o papa e contra os re­
pojado. ligiosos, e partieularmente as relações das
No dia seguinte ao da sua chegada, a reu­ visitas dos mosteiros, aonde sc tinham exa­
nião com a igreja romana foi concluída no gerado tanto os abusos que sc tinham in­
parlamento, que ordenou que se redigisse troduzido. Fez também condeinnar um
um memorial cm nome dos inglezes, pelo grande numero de hereges.
qual testimunhassem o seu arrependimen­ Apenas a religião catholica começava a
to de terem recusado obedecer á se apostóli­ firmar-se na Inglaterra, que Deus por um
ca, e a sua resolução de abolirem tudo o que juizo terrível sobro esta infeliz nação, lhe
tinha sido feito contra o papa. No ultimo levou a rainha Maria, As suas antigas des­
de novembro o rei e a rainha tendo ido ao graças tinham alterado muito o seu tempe­
parlamento com Poolo, o chanceller per­ ramento, c a indifferença que o rei seu espo­
guntou á assembléia se lhe agradava que so tinha por ella, lhe causou uma tristeza
se pedisse perdão ao legado, que se reu­ que acabou de lhe arruinar a saude.
nisse ao corpo da igreja catholica, c que se Morreu a 17 de novembro de 1558, aos
sujeitasse ao papa como chefe. 43 annos de idade, c no sexto anno do
A maior parte ficou em silencio; mas seu reinado. O cardeal Poolo não lhe so­
não se deixou de apresentar o memorial breviveu senão 6 horas. Diz-se que saben­
do parlamento a Suas Magcstades, que de­ do da morte da rainha, de que se lhe veio
pois de o terem feito lér publicamente, se le­ dar noticia quando clle estava com febre,
vantaram para pedir ao legado de conceder ficou tão vivamente commovido, que pe­
a,graça pedida, no que clle consentiu de mui­ diu o seu Sancto Christo, abraeou-o ter­
ta vontade. Elle fez lér os seus poderes, e namente e gritou: «Senhor salvaí-nos: nós
tendo mostrado om um pequeno discurso, perecemos: Salvador do mundo salvai a
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vossa Igreja.» Apenas pronunciou estas pa­ que não podia sofrer que se désso algum
lavras cahiu cm agonia, e expirou quasi ataque á authoridade do vigário de Jesus
aos 60 annos. Christo, ao qual pertence regular os direi­
Todos os authores, mesmo os protestan­ tos d’aqucllcs que pretendem as cordas.
tes, tecm louvado muito o seu espirito, a Aqui as reflexões se apresentam por si
sua sciencia, a sua moderação, a sua sabe­ mesmo, c nós julgamos dever deixal-as fa­
doria, o seu desinteresse c a sua caridade. zer ao leitor. Nós nos contentamos de di­
Ellc desejava que se empregasse a doçura zer que o comportamento do papa cm uma
para conduzir os inglezcs, c se cada um ti­ occasião tão decisiva para a salvação de
vesse pensado como ellc, e tivesse sido tào todo um reino parece incomprehensivel.
inimigo das vias de facto e de violência, ter- Que julguem depois d’isto se as pretenções
se-ia talvez adiantado muito esta importan­ dos papas a respeito do temporal dos reis
te obra. Mas Deus, cujos conselhos sào sào de uma leve consequência para a reli­
sempre adoraveis, nào o permiltiu c quiz gião.
abandonar um povo, cujas necessidades ti­ A rainha informada da resposta do papa
nham, havia muitos tempos, acccndido a enviou logo um correio ao seu embaixador
sua cólera. para lhe ordenar a sahida de Roma. Ella
gritou, lendo a carta de Karne, que segun­
do as apparencias, o papa queria perder
XXX tudo a fim de fazer que ella ganhasse mui­
to. Depois fez juntar o parlamento cm
Wcstminstcr, aonde ordenou uma disputa
Desde que o parlamento soube da mor­ entre os catholicos e os protestantes.
te de Maria, deliberou sobre o direito das Esta disputa durou um mcz inteiro, c foi
pessoas que podiam succedor. Como Hen­ seguida de um decreto do parlamento, que
rique viu tinha posto no seu testamento aboliu todos os editos publicados pela rai­
Isabel depois da sua irmã Maria, julgou-se nha Maria em favor da religião catholica,
que o seu direito nào podia ser contesta­ e restabeleceu os de Eduardo. Conferiu a
do; sobretudo tendo o parlamento dado ao Isabel o titulo de chefe da igreja anglica­
rei pleno poder de regular o grau dos seus na, confiscou as rendas dos mosteiros que
successores. Maria tinha fundado, assignou uma parte
Isabel foi logo proclamada rainha, tendo á corôa e a outra á nobreza, c prohibiu
de idade 2o annos. Ella fez a sua entrada que se tivesse commercio algum com o
cm Londres com muita pompa e magnifi­ papa e a côrte de Roma. Como a qualida­
cência. A Sua doçura e a sua aíTabilidadc de de chefe da Igreja que os reis Henrique
ganharam logo a afleição de todos os seus viu e Eduardo vi tinham usurpado, tinha
vassallos. Como ella tinha mais espirito e resentido não só os catholicos, mas também
juizo, sabia quanto o apego do seu povo lhe muitos theologos protestantes, Isabel teve
era necessario, e nào se esqueceu cousa al­ algum cscrupulo de se aproveitar d'este ti­
guma para o merecer cada vez mais. tulo. Ella mudou-o então para o de—Go­
Karne, que estava em lloma depois da vernadora soberana do reino, tanto no espi­
morte de Eduardo vi, na qualidade de em­ ritual como no temporal; c fez declarar que
baixador de Inglaterra, teve ordem de no­ nenhuma pessoa de qualquer qualidade ou
ticiar ao papa Paulo iv a morte de Maria, condição qub fosse, tivesse em Inglaterra
e de lhe dar parte da chegada de Isabel á jurisdícção quer secular, quer ecclesiasti­
corôa. 0 embaixador tendo obtido audiên­ ca, senão aquella que fosse dada pela rai­
cia e feito ao papa os cumprimentos da no­ nha.
va rainha, Paulo iv disse-lhe que Isabel Obrigou-se todos a reconhecerem com ju­
nào tinha direito á corôa de Inglaterra, ramento esta authoridade soberana de Isa­
porque ella era illegitima; que nào podia re­ bel no espiritual e no temporal. Os prela­
vogar as bullas de Clemente vii e de Pau­ dos e os outros ecclesiasticos, que recusa­
lo ui, seus predecessorcs; que além d’islo ram prestar este juramento foram logo pri­
o reino de Inglaterra era um feudo da san­ vados dos seus benefícios, e se persistiam
cta sé, e que assim Isabel não devia ter su­ n’esta recusa, eram condcmnados a uma
bido ao throno sem seu consentimento. 0 prisão perpetua.
papa accrescentcu que ainda que ella nào Em consequência d’esta declaração se
m erecesse ser escutada, se comtudo qui- uniu á corôa toda a jurisdícção espiritual
zesse renunciar ás suas pretenções, e re- para a visita c reforma do clero. Deu-se
metter-lhc a dccisào d’estc negocio, elle po­ poder á rainha e a seus successores de no­
dería dar-lhe signacs de sua .afleição; mas mear vigários para exercer esta jurisdic-
ING 6i9
rão, para corrigir os abusos c condcmnaros Esta Bulla em que Pio v fazia um retrato
êrros. Prohibiu-se celebrar alguin synodo horroroso da rainha, foi impressa em Ito-
ou saliir do reino por causa da religião semma, e affixada ein Londres por um João
permissão da rainha. Isabel apossou-se lo­ Fellon. Este individuo foi preso, e confes­
go da renda das igrejas, estabeleceu vigá­ sou atrovidamente que era o que linha fei­
rios c commissarios para os negocios ec­ to tal acçao. Arrancou-se-lhe o coração c
clesiasticos, revogou as leis passadas con­ as entranhas, cortou-sc-Ihc a cabeça, e o
tra os hereges, attribuiu ao parlamento o seu corpo foi dividido cm quatro "partes
conhecimento do que pertence á doutrina, para servir d’espectaculo em diversos lo-
aboliu a celebração da missa, que estava em gares. Muitos tinham já sido punidos de
uso na igreja catholica, c introduziu uma morte, sómente por terem fallado em favor
nova liturgia em lingua vulgar, segundo a das cxcommunhõcs do papa. Isabel, que
práctica dos luthcranos. Conservou com- tinha zombado da Pulla dc Pio v, reconhe­
tudo muitos usos da Igreja, como os habi­ ceu depois que ella linha feito impressão
tos saccrdolaes, as dignidades e as prola­ sobre o espirito d’alguns senhores, c que
turas, o costume de receber a Eucharistia os catholicos das provincias remotas come­
de joelhos, as ordenações dos bispos e dos çavam a agitar-se. Para remediar isto fez
sacerdotes, os jejuns, a celebração das fes­ publicar por toda a parte prohibiçòcs de
tas, os altares, o uso das cruzes c muitas discursar contrariamcnlc á sua autiiorida-
ceremonias. Queria também conservar as de, debaixo de pretexto dc religião e de ter
imagens, mas não pôde resistir ás instan­ communicação alguma com Roma, debaixo
d a s dos protestantes, que eram furiosos so­das penas as mais rigorosas. O parlamen­
bre o artigo. to pediu a Isabel que não casasse com prin­
Ainda que o calvinismo prevalecesse en­ cipe algum estrangeiro. Ella lh’o proniet-
tão na Inglaterra, a rainha não permiltiu teu e o observou, mas sem se casar com
que se explicasse claramente sobre a Eu­ algum dos seus vassallos. Zombou de mui­
charistia; estimou melhor deixar a cousa tos principes, que a tinham pedido em ca­
indecisa; o não condemnar a presença real, samento, e não escutava as proposições que
qqc sustentavam os luthcranos. Rejeitou se lhe faziam muitas vezes dc se casar com
alguns dos erros que elles ensinavam, e por os duques dc Anjou, c de Moncou, ou o
fim cila estava pelo que tinha sido reguladoarchiduquc d’Áustria, ou com o rei da
no reinado de Eduardo vi. Os bispos, que Suécia, senão emquanto as esperanças que
não quizeram feceber estes regulamentos, ella dava podessem servir á sua poíitica.
foram depostos, c os ecclesiasticos expul­ Os estados dos Paizes-Baixos tendo-sc
sos do reino. revoltado contra o rei de Hcspauha em
Deram-se os benefícios a luthcranos c a 1081, procuraram a allianca d’Isabel, e
caívinistas, e se aboliu inteiramente o exer­ quizeram reconhecel-a por soberana. Com
cício da religião catholica. o soccorro quo ella lhes enviou, resistiram
elles ás armadas dc Philippe ii. Este prin­
cipe, por conselho do papa Xisto v, pôz no
XXXI mar em 1388 uma poderosa armada, que
elle chamava a invencível, para ir conquis­
Parece que a rainha não estava ainda tar a Inglaterra, mas os ventos e os roche­
disposta a perseguir abertamente aquelles dos tornaram inúteis todos os seus esfor­
que continuavam a fazer profissão. Mas o ços. A armada dos hespanhoes pereceu
papa Pio v, tendo cxcommungado esta prin- quasi toda pela tempestade, ou foi presa
ccza no principio do anuo de 1580, tendo-a dos inglezes. Quando se soube em Lon-
declarado, por uma Pulla, privada do seu dçes a noticia, decretaram-se à rainha as
reino, e tendo prohibido a seus vassallos de honras do triumpho á maneira dos antigos
lhe obedecerem c de a reconhecerem, ella romanos.
promulgou novas leis contra os catholicos, Xisto v tinha feito publicar no mesmo
confiscou os bens d\aquellcs que tinham anno uma Bulla, pela qual punha a Ingla­
sahido da Inglaterra por conservar a sua terra cm interdicto, c declarava que este
religião, c declarou os sacerdotes, que ti­ reino era um feudo da sancta sé, que Isa­
nham vindo ao reino para sustentar os ca­ bel lhe não tinha jamais prestado homena­
tholicos, criminosos de losa-magestade. gem; ordenava aos inglezes de se unirem
Este é o frueto que se devia esperar á armada hespanhola; e promettia grandes
d’esta Pulla. Era bem prudento irritar ca­ recompensas aquelles que favorecessem es­
da vez mais esta princeza, e altrahir aos ta expedição.
catholicos uma mais violenta perseguição? Póde-sé julgar que impressão fez esta

v
620 IJíG
Bulla sobre Isabel, c de que modo ella tra- seu zelo pelo scisma c heresia, mostrou
ctou os catholicos, sobre tudo depois do sempre um desejo ardente e apaixonado
seu triumpho. Nada igualou seu odio con­ de dominar, uma duplicidade sem exení-
tra Roma, que tinha lançado sobre cila plQ, uma politica que lhe fez violar as
tantos anathemas, e que de tempos cm tem­ leis divinas e humanas, sobro tudo.no seu
pos exhortava seus vassallos a revoltarem- procedimento a respeito de Maria, rainha
se. Ella tornava-so ao mesmo tempo for­ da Escossia, c finalmenle uma dissimula­
midável a todas as potências da Europa, e ção tão profunda, que a maior parte dos
fazia conquistas na America. passos d esta priticeza são enigmas, que
Depois da morte de Henrique m, rei de nào teem podido ainda ser explicados. An­
França, em 1589, enviou spccorros a Hen­ tes de morrer, nomeou para seu successor
rique’ iv, e fez alliança com clle. Tinha Jacques vi, rei da Escossia, c filho de Ma­
enviado antes aos protestantes da Franca ria Stuart, a quem ella tinha mandado cor­
soccorros; que nào lhes tinham sido pouco tar a cabeça.
uteis em differentes occasiòes.
XXXIII
XXXII
Este monarcha summamentc aíTeiçoado
religião catholica não pôde, apesar de
grandes esforços, restabelecei-a no seu rei­
tempo que a heresia fizesse progressos en­ no, porque a lutherana, como todos os seus
tre elles. Testimunhavam muito horror a ramos, oíTerccc ao coração humano mais
tudo o que Isabel fazia cm favor da pre­ altraclivos, c d’aqui a facilidade de se ar­
tendida reforma, c projcctaram o desígnio raigar no corrompido espirito humano.
de se retirar da sua obediência. A rainha Até aqui as igrejas de Inglaterra eram
enviou tropas á Irlanda para subjugar os pastoreadas por sacerdotes pertencentes ás
rebeldes, e ao mesmo tempo ministros da communhõcs reformadas, e desejando o rei
reforma, que ella fez bispos, para ahi esta­ que ollas o fossem por ecclesiasticos ver­
belecerem a mesma religião que em In­ dadeiramente catholicos, e chegando a con­
glaterra. Este dobrado desígnio sahiu bem seguir isto que pretendia, acarretou contra
em algumas provincias, e a heresia fez ahi si o odio do conde Gaurico e dos seus so­
progressos. A de ültonia foi a. mais con­ cios, sectarios acerrimos da reforma, que
stante em manter a sua liberdade, c em tramaram contra a sua vida, de cujo trama
conservar a religião catholica. escapou por um acaso.
O conde de Essex, favorito da rainha, Não eram passados muitos dias depois
que tinha tido sempre muito credito na da sua entrada real cm.Inglaterra, (pie se
côrle para com ella, tendo sido accusado patenteou um grande e horroroso attenta-
de ter conspirado contra a sua pessoa, se do, que os reformados haviam planeado
tornou o objecto de sua cólera, como tinha contra a sua real pessoa, familia, ministros
sido do seu criminoso apego, c perdeu a e parlamento, descobrindo-se então em
cabeça n’um cadafalso. Esta execução cau­ uma mina por baixo do salão da camara
sou logo depois tanta pena a IsabGl, que trinta c seis barris de polvora, constando que
morreu de tristeza no principio de abril, os conspiradores já haviam elegido para
no terceiro anno do século x v i i , aos seten­ rainha, de Inglaterra a Arbella, descenden­
ta annos d’idadc, c quarenta e cinco do te de sangue real. Taes attenlados foram
seu reinado. imputados pelos reformados aos catholicos,
O odio que ella tinha sempre testimu- c estes os imputavam ápuelles. Estando as
nhado contra a igreja catholica, lhe tem cousas no concernente á religião ifoste es­
procurado os maiores elogios da parte dos tado, a imprensa apresentava escriptos sub­
. cscriptores protestantes. versivos da paz, da obediência e do res­
E preciso convir que ella tinha um espi­ peito que se devia tributar ao soberano, in­
rito fino e penetrante, que era muito tiabil sinuando, inclinando e como que arrastan­
na arte de reinar, e que se fazia muitas do os animos a motins, á anarchia c ao odio
vezes admirar dos seus inimigos. Conser­ não só contra os catholicos, que prestavam
vou sempre gosto pelas bellas-artcs, que culto a Jesus Christo c imagens, mas tam­
tinha cultivado na sua mocidade. Fatia­ bém declamavam contra o poder real. D'is-
va cinco ou seis linguas, e tinha traduzi­ to dão prova bem clara os detestáveis es­
do diversos tractados do grego e do fran- criptos de J. Buchanam c de Estevão Juho
ccz na sua lingua natural. Mas além do Bruto.
ING G?l
Para mais facilmente se chegar ao co­ ou Puritanos. Esta seguia á risca as dou­
nhecimento dos que poderíam ter commct- trinas de João Calvino, que nào reconhece
t ido similhantes attentados, inventou-se uma ritos alguns ecclesiasticos, nem jurisdicçào
nova fórmula de juramento, chamado ju­ alguma ecclesiastica superior; c aqueila
ramento ad legem, que todos deviam pres­ ainda conservava alguns ritos da igreja ro­
tar sob pena de se lhes attribuir a conju­ mana: e é esta a religião que hoje se pro­
ração, e que. consistia no seguinte:— 'O fessa na Inglaterra. A dos episcopacs é
papa nào tem direito algum tlc do.pòr os chamada dos protestantes moderados, a ou­
principes, nem estes perdem alguns de tra dos exaltados.
seus direitos, ainda que sejam excominun- Estas duas facçòcs cxacerhnndo-se, che­
gados por ellc; a ninguem é permittido at- garam a pegar.cm armas, occasionando-sc
ientar contra a vida do rei; a doutrina que uma sanguinolenta guerra, que primeira­
ensina o contrario é impia. » mente se manifestou na Escócia, quando
Immcdiatamente esta doutrina f<ji con- el-rei lhes enviou a liturgia da igreja an­
demnada pelo pontifico, assim como o ju­ glicana com prohiüição de seguir outra, c
ramento chamado ad legem. Os catholicos, por isso os Puritanos ofiendidos se levan­
que já nào eram muitos, estavam divididos taram.
em virtude de similhante juramento, o os Para pacificar esta sublevação na Escó­
reformados aproveitando-se d'csta oecasiào cia foi mandado o marechal Hamiltonio,
levaram o rei, que na realidade era catho­ mas nào pòde, apesar de todos os meios
lico. c tinha além d’isto ás qualidades de empregados, conseguir o restabelecimento
ser brando, humano c caritativo, a perse­ dos animos, que se achavam bastante exal­
guir aquclles poucos catholicos que se re­ tados. O rei marchou em pessoa, mas pri­
cusaram a prestar tal juramento. N’estc vado dos auxjlios pelo parlamento inglez,
tempo, isto é, cm IG2o morre Jacob ou Jac- porque pertencia ao partido exaltado, c por
ques i e succede-lhe seu filho Carlos i. isso teve de tractar a paz com os escocc-
zes. Voltando á. Inglaterra foi pelo senado
despojado da maior parte das prorogativas
X X X IV rea es.
Teve a infelicidade dc vèr que aquclles
que lhe oram verdadeiramente aíTeiçoados
O filho de Jacob i nunca pôde estar cm foram condenihados á morte. Apparéce pa­
harmonia com os seus subditos. El-rei ti­ ra cumulo de todas as desgraças uma sei­
nha em muita consideração as relevantes ta ainda mais infernal, chamada a dos inde­
qualidades de Gregorio “Villor, duque de pendentes, a qual nào reconhece nem aau-
Bukingam, e por isso os parlamenta rios, le­ thoridade dos bispos, nem d’el-rei, ou dc
vados dc sua soberba, ambição c inveja leis algumas .ecclesiasticas ou civis: c na
nào podiam tolerar esta predilecção do rei lrcnte d’um exercito, a occultas formado e
para com o duque. Foi este o pômo da sej- posto cm campo, apparecc o impio, cruel c
sào que immcdiatamente sc manifestou: o barbaro Oliveirò Cromwell, como legado
parlamento repugnou sempre prestar obe­ supremo.
diência e soccorros a el-rei, emquanto o O rei tendo-se refugiado na Escócia, e
duq*uc dc Bukingam nào se apresentasse nào se considerando ahi sufíici entemente
em pessoa perante os tribunacs para se de­ seguro, retirou-sc para ,a ilha de Wigt, e
fender dos crimes que lhe eram imputados ahi foi preso pelo governador, c conduzido
pelos parlamentados. a Londres, oude subiu ao cadafalso em
Carlos não prestando, como devia, aqucl- im .
la attenção que sempre sc exige em simi­
lhantes accusacòcs, antes enviando o dito
duque com soccorros aos hereges da Ro- XXXV
chella, sitiados pelo rei de França, de cuja
expedição obteve potjica ou nenhuma glo­
ria, motivou ainda maior aversão contra A realeza inglcza terminou em 1649,
•ellc. Foi seu author Oliveirò Cromwell. Era
Já por este tempo os reformados estavam membro do parlamento inglez, depois foi
divididos cm duas diflerentes seitas, que elevado a commandante do exercito, e pela
reciprocamente sc odiavam inveclivando- sua authoridade sempre arrojada pôde con­
se çontinuamente. seguir a dissolução do mesmo parlamento,
Èstas duas seitas tomaram os nomes dc compondo-o dc individuos da sua facção e
Anglicanos episcopacs e de Presbyterianos que partilhavam as suas idéias. Consegui-
40
do isto, conseguiu-se também a morte de sagacidade, que seu pac muito bem sabia,
Carlos i, e elle foi acclamado protector do manejar, foi julgado indigno e deposto no
reino dc Inglaterra, Hibernia e Escócia. anno seguinte.
Decretou logo a extincçào da realeza, e
posto que lançasse os fundamentos a uma
republica, transferindo o seu poder para o XXXVI
senado, teve a sagacidade de manobrar, dis­
por, transtornar c barulhar o systema re­
publicano, que sendo cllc simplesmente Torna apparecer a realeza na Inglaterra
protector do reino, tinha mais poder do com a acclamaeãodc Carlos n, quesóhe ao
que um rei absoluto. throno depois do filho do regicida. Traba­
Os escocezes arrependeram-se de haver lha para generalisar em todo o reino a li­
concorrido para a morte do infeliz Carlos, turgia anglicana. Os puritanos querem an­
c com os successos dc Inglaterra subleva- tes ceder dc seus benefícios do que accei-
ram-sc c acclamaram por seu rei ao filho tal-a.
do assassinado, com o nome de Carlos n. El-rei, rccciando movimentos bellicosos,
Era já muito tardo o seu arrependimento. declara por um edito a liberdado de con­
Olivòiro Croimvell mctte-sc de posso da Hi­ sciência: julgam os do partido exaltado que
bernia, c travando peleja com o exercito isto é a favor dos catholicos, pelo que se
cscocez, em que se achava Carlos n, o des­ viu obrigado a revogar o edito que havia
troça de tal maneira, que o principe viu-se feito publicar.
en/circumslancias de retirar-se para Fran­ Da sua parte o parlamento renova o ju­
ca em habitos particulares. D’este modo, ramento ad legem, e determina que todos-
livre do seu rival, mudou de caracter: su­ recebam os sacramentos nas suas paro­
biu ao throno por meio da impostura, das chias, renunciando por escripto á real pre­
intrigas, da ambição c do assassínio. Por- sença dc Jesus Christo na Eucharistia.
tou-sc depois no governo com muita pru­ «Tal era, diz um moderno historiador, a
dência, rectidào, constância e valentia. discordia c o deplorável estado da Ingla­
Fez a Inglaterra poderosa, dc maneira terra, outr’ora tão religiosa, tão rica c"tào
que as maiores potências da Europa a res­ florescente; tal era a furiosa tormenta que-
peitaram e temeram, e reconheceram en­ ia crivaudo dc rombos, c submergindo nas
tão cada uma de per si que a Inglaterra aguas britânicas a Nau do Pescador, quan­
lhe era superior, reputando-a como a pri­ do de repente ella se vé boiar cm mar pa­
meira potência da Europa. Até aqui nada cifico c bonançoso; mas esta subita bonan­
se deve admirar, mas o que deve causar ça foi similhante a um dia, que, depois de
mais espanto ó o silencio que as testas co­ um tormentoso c carrancudo inverno, ama­
roadas guardaram pelos actos de Oliveiro nhece claro, lindo e risonho, mas é precur­
Croimvell,em olfensa da realeza, que tão vi­ sor dc nova c maior tormenta. Assim acon­
lipendiada estava sendo pelo protector. teceu. *
Fizeram mais: reconheceram o poder do Carlos ir protegia occullamente os catho­
assassínio; e o rei satisfez aos seus desejos licos, publicou um decreto a seu favor, c
mandando por fóra de França o persegui­ fez isto no momento em que declarava
do Carlos n, c d’este modo negava hospita­ guerra á Hollanda: o heretico parlamento-
lidade e asylo a um principe legitimo, e re­ desapprovou formalmente similhantcdecre-
conhecia como soberano um impio regici- to, c negou-lhe os subsídios emquanto elle-
da, satisfazendo aos seus desejos. Oliveiro o não revogasse. El-rei fez a vontade ao
era prosbyteriano cxaltadissimo, era o no­ parlamento revogando o decreto, c isto mais
vo ramo que tinha brotado do1lutheranis- azedou os luthcranos e republicanos, por­
ino, que não reconhecia authoridade algu­ que não cessaram de tramar contra a vida
ma ecclesiastica superior. do monarcha è da sua familia.
Viveu sempre inquieto, a sua consciên­
cia quasi nunca estava tranquilla— descon­
fiava dc si proprio— por si julgava que to­ X X X V II
dos os homens eram maus, c que eram ca­
pazes de o assassinarem—por isso viveu
quasi sempre encerrado no seu paJacio, Subiu ao throno dTnglaterra Jacob ou
onde terminou a existência cm 1GÒ8, quasi Jacques ir, irmão legitimo dc Carlos ii. Es­
ao concluir 60 annos de idade. Seu filho te teve um filho por nome Montmucio, que-
Ricardo foi acclamado rei de Inglaterra, tendo sido educado na religião luthcrana.
porém destituído da astúcia, impostura c tramou contra seu tio uma forte conspira-
ING 623
ção, imputando-lho como grando crime o XXXVIII
ser catholico; mas descoberta a tempo esta
conspiração, tanto cllc como os chefes do
seu partido foram mortos. Este monarcha A Guilherme m succcdcu sua filha An­
renunciou a heresia c o scisma, pediu ao na; a educação d’esta princeza era toda lu-
papa um núncio, o qual veio logo publica- therana, c por isso o estado da religião ca­
mente residir cm Londres; sagrou quatro tholica nada melhorou. Esta rainha auxi­
bispos, pelos quaes dividiu o reino, e co­ liou o imperador d^Vllemanha contra a
meçou logo a dar outras providencias mui­ França, e alcançou algumas victorias so­
to favoráveis á Igreja, nao sem contradic- bre os hespanhoes, e também interveio na
ção do prudente pontifice, que não appro- paz que se assignou cm Utrecht.
vava procedimento tão repentino e peri­ Depois da sua morte subiu ao throno de
goso. Inglaterra Jorge Luiz, eleitor do Hanover,
Todos estes actos em favor do catholi- por acclamação do partido whig; o partido
cismo irritaram muito os hereges, c inci­ lory ou realista, dccahiu muito por esta
taram-nos a conspirar contra a vida do occasião, mas unindo-se aos principes
monarcha, c muito mais se azedaram de­ Stuarts, accenderam uma guerra civil, que
pois que souberam que o principe real era durou dous annos. Jorge triumphou sem­
educado na mesma religião que seu pac pre. As suas grandes armadas embaraça­
professava e protegia, como já dissemos, c ram o desembarque dos hespanhoes nas
por isso receavam que quando cllc tomas­ Américas c o dos russos no mar Baltico. A
se as redeas do governo desterrasse os lu- morte d’cste monarcha succedeu em 1727,
theranos dTnglaterra. Todos os sectarios e por este facto reinou em Inglaterra Jor­
da reforma, que se haviam revoltado em ge ii.
consequência das garantias concedidas aos ‘ Junto d’este monarcha esteve por muito
catholicos, conspiraram unanimes contra o tempo o celebre e experimentado diploma­
catholicismo' romano, seu inimigo com­ ta \Valpole, que fez prosperar a Inglater­
muni. O principe de Orange, que era gen­ ra por espaço de doze annos.
ro de Jacob, apresenta-se nas costas d’In- Depois de"demiltir este celebre ministro
glaterra com uma armada de cincoenta a fortuna correu-lhe bastante adversa. To
naus de guerra, é acclamado rei, e irnme- mando parle na guerra da succcssão ac
dialamente se decreta que nenhum princi­ throno austríaco, na batalha de Dettingem
pe que professasse a religião romana rei­ ficou dò melhor condição, mas teve a infe­
nasse em Inglaterra. licidade de ser vencido em Fontnoy, Lawe-
O legitimo monarcha, vendo-se ate mes­ fer, e na Arcadia. A batalha alcançada na
mo abandonado d’aquellcs cm quem mais Escócia sobre o pretendente Carlos* Eduar­
confiava, rctirou-sc a França, onde foi aco­ do, e a famosa conquista das índias, fizeram
lhido com aquella grandeza c honra que esquecer todas as outras quebras. Falleceu
se costuma tributar ás cabeças coroadas, em 1760, e o seu successor foi Jorge m.
ainda mesmo no exilio. Nas guerras que se eíTeituaram desde
No desterro ainda mantinha esperanças 17o6 a 1763 contra a França c Áustria,
de recuperar o throno de que tinha sido ganhou muitas batalhas. As còlonias ingle-
despojado, para o que obteve auxílios, c zas da America revoltaram-se no seu rei­
com este desígnio partiu para a Hibernia, nado, c proclamaram a sua independencia.
que ainda era catholica; mas sendo derro­ Esta foi a semente, que apenas lançada,
tado pelo principe, que jà então governa­ fez levantar uma guerra universal em to­
va a Inglaterra, com o nome de Guilherme da a Europa, e fez correr rios de sangue
nr, recolheu-se pela segunda vez á França. em todas as nações. Apoiando a França
Ainda fez segunda tentativa, mas os seus esta guerra, a Inglaterra declarou-se im-
projectos foram baldados, e por ultimo mediatamente contra ella. Jorge, que desde
quem triumphou foi a morte, que o arre­ 1810 se achava demente, terminou os seus
batou cm 1701. No reinado de Guilherme dias em 1820, deixaudo para seu succes­
m, ainda que curto, o catholicismo nao tor­ sor Jorge iv. A politica d’este monarcha,
nou a respirar em Inglaterra. Os quatro ainda hoje muito conhecida de nós, foi sem­
bispos ou vigários apostolicos, que o nún­ pre varia c inconstante, e por isso deu cau­
cio havia creado no reinado anterior, ainda sa a muitas revoluções, de que o nosso Por­
se conservaram, assim como os seus suc­ tugal também partilhou por este tempo. Es­
cessores, que os papas iam nomeando, mas teve primeiro no gromío do partido whig,
sem representação alguma. e pouco depois passou-se para o tory. Por
este tempo os vicariatos apostolicos conse­
624 JA C

guiram mais algum respeito, c já se mos­ jam-se no artigo Anabaptislas suas diffe­
travam com alguma forma exterior de go­ rentes seitas.
verno ecclesiastico; o rei nomeava o suc­ j tNPiFFEpiKTEs-^-Ramo d anabaptistas. Ve-
cessor do bispo fallecido, e o papa confir­ ja-se ò scií artigo.
mava-o. ir m ã o s p a. v id a p o b r e — ó o nome que to-
maram òs diseipüíõs\Te Duleino; assim se
XXXIX intitulavam ellcs mesmos debaixo do pre­
texto de haverem renunciado tudo para
não terem senão uma vida apostólica.
É risonha c bella a pliase da religião ir m ã o s po la c o s — ó um nome que toma-
cliristã na Inglaterra n’estes ultimos tem­ ram bs sòcfniâhos para mostrarem que rei­
pos. Em Windsor, pelos annos de 1845, nava entre elles a caridade, e que a sua
íundou-se uma capella para as pessoas ca­ confratcrnidadc era inviolável. Veja-se o
tholicas ahi poderem exercer os officios seu artigo.
religiosos. . JACOBEL—Vide Hussilas.
O representante d’Allemanha na capital IÍja c o b it a s —Eutychianos, ou monophysitas
dlnglaterra recebeu por esposa uma jo- da S^Titrrissim chamados do nome d’um
ven ingleza, educada no rito romano, e a famoso cutychiano chamado Baradée ou
esta solcmnidade assistiu o mui bem co­ Zcnzalo, que rcsuscitou, por assim dizer,
nhecido lord Wellington, assim como mui­ o cutychianismo, quasi extincto pelo con­
tos personagens das mais elevadas gerar- cilio dc Calccdonia, em virtude das leis dos
chias, e isto fez com que a religião catho­ imperadores e da divisão dos eutychianos.
lica em Londres recebesse um novo realce. A eleição dos bispos e suas disputas so­
Em Haynooth havia um seminario ca­ bre a religião, tinham dividido os eutychia­
tholico, más algum tanto dcscahido, porém- nos n’uma infinidade de pequenas seitas,
no reinado da rainha Victoria é restabele­ que se guerrearam; além d’isso estavam
cido, e foi-lhe dada uma dotação por pro­ sem curas c sem bispos, c os chefes de
posta do ministro sir Robert Peel, que ob­ partido, encerrados nas prisões, proviam o
teve approvação por cento e dezeseis votos que aconteceria ao cutychianismo, se não
contra cento e quatorze; tudo isto prova ordenassem um patriarcha, que se reunisse
que os catholicos teem niaioria no seio do os eutychianos, e sustentasse sua coragem
parlamento. no meio das desgraças que os acabrunba-
Este seminario, já muito antes da sua vam.
dotação, recebia do estado nove mil libras Severo, patriarcha d’Antiochia, e os bis­
sterhnas, mas esta somma não era suffi­ pos oppostos como clle ao concilio de Cal-
ciente para sustentar quinhentos semina­ cedonia,'escolheram para isso Jacques Ba-
ristas, que então contava, e por isso vo- radéc ou Zenzalo; ordeuaram-uo bispo de
tou-se-lhe a quantia permanente de vinte c Edessa, e lhe confirmaram a dignidade de
seis mil libras. Isto deu causa a que um metropolitano ecumênico.
celebre orador protestante, sir Robert In-, Jacques era um monge simples c igno­
glis, desesperado de vêr a bandeira catho­ rante, mas ardente em zelo, e que julgou
lica levantar-se cada vez mais do abati­ poder compensar pela sua actividade e
mento em que por tantos annos tinha per­ pela austeridade de seus costumes, tudo o
manecido, prorompesse da tribuna n’cstes que lhe faltava pelo lado do talento. Anda­
termos: «A brilhante bandeira do protes­ va coberto d’andrajos, e sob este exterior
tantismo, que por tanto tempo contempla­ humilde percorreu todo o Oriente, reuniu
mos cheios d’admiraçâo, está hoje despe­ todas as seitas dos eutychianos, rcaccen-
daçada, mas as cores protestantes existem deu o fanatismo em todos os espíritos, or­
ainda no cimo da haste, e emquanto exis­ denou sacerdotes e bispos, e foi o restau­
tir um fragmento d’esta bandeira, eu com­ rador do cutychianismo em todo o Oriente.
baterei sempre por c i l a ............. » Final­ É por esta razão que se deu o nome de ja-
mente a Inglaterra é de todos os paizes cobitas a todos os eutychianos ou mono­
da Europa, aquelle em que o catholicismo physitas do ‘Oriente.A
tem feito mais progressos; consentem-se Depois da morte de Severo, Jacques Zen­
alli os prelados nomeados pelo papa, e tal­ zalo ordenou Paulo, bispo d’Antiochia, a
vez brevemente se aproxime esse feliz dia,
em que ella abrace a fé romana, porque i Asseman. Bibliot. Orienta t. 2. Dis-
as innumeraveis conversões que ahi se sert. de M o n o p liy sp a g . 326. Renaudot,
teem feito assim o attestam Hist. Patriarch. Aley. Perpel. de la Foij t.
impeccaveis— Ramo d’anabaptistas. Ve­ 4, l. 2, o. 8.
JAC m
quem outros succcdcram até ao nosso sé­ e passou á Abyssinia, como se pôde vér
culo. nas palavras Cophtas c Abyssinios.
Os bispos ordenados por Jacques não re­ Os jacobitas não gosaram todavia d’um
sidiram n’csta cidade, mas em Am ida, cm- favor constante sob o dominio dos persas
quanto os imperadores romanos foram os c dos serracenos: elles foram perseguidos
senhores da Syria: entretanto o numero como todos os christãos pelos reis da Per­
dos cutychianos no patriarchado d’Antio- sia e pelos califas avaros ou fanaticos; c
cliia era muito superior ao dos catholicos, muitos jacobitas c eatholicos espalhados
c o patriarchado d’Antiochia conservava as nas provincias, renunciaram a religião
duas Syrias, as duas Sicilias, à Mesopota­ christà, c abraçaram o mahometismo: to­
mia, a Isauria, a Euphratisiana, c a Osroe- das as familias christãs que estavam na
na; todas estas dependências estão designa­ Nubia seguem hoje a religião de Maho-
das na excellente carta do patriarchado de met. 1
Antiochia de M. Danvillc, /. 2 do Oriente Taes foram as consequências dos rigo­
ChristãOj pag. 670. res dos imperadores romanos contra os
A fé do concilio de Calcedonia não se heréticos, para a religião, para o estado,
sustentava cm todas estas provincias senão e para a salvação das almas.
pela authoridade dos imperadores, e pela Durante as conquistas dos principes do
severidade das leis, que cllcs haviam decre­ Occidente na Syria e no Oriente, os jaco-
tado contra todos quantos se oppunham ao bitas pareceram' querer reunir-se á igreja
concilio de Calcedonia. romana, porém nao o eíTeituaram.
Para se subtrahir á severidade das leis, Quando os principes do Oriente se tor­
um grande numero d’cutyehianos passou naram senhores da Syria, o papa nomeou
á Persia e á Arabia, onde todas as sei­ um patriarcha para Antiochia, o qual ahi
tas proscriptas pelos imperadores romanos residiu até* ao anno de 1267, em que os
eram toleradas e viviam em paz entre si, musulmanos a retomaram.
mas todas inimigas da potência que as ti­ D’este modo ha dous patriarchas em
nha proscripto. 1 Antiochia, um romano e outro monophy
Entre os individuos que tinham recebi­ sista; cada um d’estes patriarchas tem so
do o concilio de Calcedonia, muitos perse­ si os bispos da sua communhão.
veraram em seus sentimentos, não se reu­ Os jacobitas possuem também igrejas cr
niam exteriormente na Igreja, e formavam todos os logares onde os nestorianos se teen
no proprio seio do império uma multidão estabelecido; c estas duas seitas, que du­
dMnimigos occultos, que para se vingarem rante uma tão longa sequcncia d’amios en­
da oppressão que soflnam, não aguarda­ cheram o imperio de turbaçòes e sedições,
vam senão uma occasião favoravel. vivem hoje em paz e communicam junta­
Os persas souberam aproveitar-se d’estas mente. Quando Abulpharagc, patriarcha
disposições: fizeram a guerra áos romanos, dos jacobitas, morreu, o patriarcha nesto-
assolaram o imperio, e se apossaram de riano, que permanecia na mesma cidade,
muitas provincias. ordenou a todos os christãos que não tra­
Os jacobitas tornaram a entrar cm todas balhassem, e que se reunissem na igreja.
as suas igrejas, porque os persas favore­ Todos os jacobitas gregos, e armemos se
ciam sempre as seitas proscriptas pelos im­ reuniram para fazerem o officio, e celebrar
peradores romanos; os serracenos usaram as exéquias d’este illustro jacobita.2
do mesmo meio para com os jacobitas, Os jacobitas não reconheciam senão uma
quando conquistaram o imperio dos per­ natureza em Jesus Christo, rejeitando o con­
sas. D’cst’arte os catholicos foram oppri- cilio de Calcedonia, condemnando a carta
midos pelo jugo d’estes novos senhores, e de S. Leão, e olhando como defensores da
os jacobitas foram o partido triumphante. fé IMoscoro Barsumas, c os cutychianos
O patriarcha d’Antiochia rcentrou cm to­ condcmnadòs pelo concilio de Calcedonia.
dos os seus direitos, creou uma especie de Todos os inimigos do ontychianismo são,
coadjutor para enviar os missionários ao pelo contrario, a seus olhos, outros tantos
Oriente,eahi estabeleceu o monophysitismo. hereticos; não reconhecem senão uma na­
O monophysitismo espalhou-se com eflei- tureza e uma pessoa em Jesus .Christo; po-
to no Oriente, e ao mesmo tempo e pelos
mesmos motivos se estendeu pelo Egypto 1 Asseman, loc. cit.
2 Asseman, loc. cit. t. 2, pag. 266.11 ré-
fute par-lá Pokoque, qui, d'après tm au~
i Asseman. ibid., t. % t. 3, part. 2. De teur mahométan, dit qxCAbulpharage atoit
S yrii Nestorianis, c. 4, 5. embrassé la religion inahométane.
626 JAG
róm não créem por isso que a natureza hu­ unido pcssoalmenle; porém, tornando-se o
mana e a natureza divina se confundam; corpo de Jesus Christo no que clle tinha
de modo que elles não estão, propriamente prodito, c que as palavras da consagração
fallando, alistados no erro d’Eutychcs, mas oíTerecem, o que nao é contrario ao dogma
no dos accphalos, que rejeitavam o conci- da transubstanciaçào, nada obrigava os ja­
' lio de Calcedonia. cobitas a separarem-se do sentido dos ca­
Elles teem todos os sacramentos da igre­ tholicos, c de recorrerem ao dogma da im­
ja romana, e não differem senão sobre al­ pa nação.
gumas prácticas na administração d’ellcs, Além d’isso digo, que quando os jacobi­
teem por exemplo conservado a circum- tas creram nos princípios da impanacão,
cisão, c marcam com um ferro cm braza a nao se poderia dizer que fossem elles os
creança logo que é baptisada; além d’isso primeiros authorcs do dogma da transub-
conservam a prece pelos finados. slanoiação, e que passassem da crenca da
Imputavam-lbcs falsamente alguns erros impanaçào á da transubstanciaçào.
sobre a Trindade, sobre a origem das al­ A impanaçào conduzia mais naturalmcn-
mas, e sobre os sacramentos. 1 te ao sentido figurado de Calvino, c a ne­
M. de Ia Crozc accusa-os de crerem na gar a presença real, do que a reconhecer
impanaçào, c M. Asseman não parece afas­ a transubstanciaçào, que é uma consequên­
tar-se muito d?este sentimento. M. de la cia da presença real. Não foi pois na cren­
Croze vai mais longe, e pretende que o ça dos monopbysitas que o dogma da tran­
dogma da transubstanciaçào nasceu no substanciaçào teve origem, como pretende
•Egypto, e que foi uma consequência, tira­ M. de la Croze.
da da opinião dos monophysistas: «Ella pa­ Os jacobitas elegem o sou patriarcha, o
rece á primeira vista, diz ellc, como uma qual depois da sua eleição, obtem dos prin­
assumpção do pão c do vinho em uma união cipes em cujo império se acha, um diplo­
hypostatica com o corpo e o sangue de Nos­ ma que o confirma no exercício da sua di­
so Senhor, e não fazendo por esta união gnidade, c que obriga todos os jacobitas a
mais que uma natureza com clle.» M. de obedecerem-lhe. 1
la Croze prova o que diz por meio d’uma Levantam-se de tempos a tempos scis-
homília, na qual demonstra que Jesus mas eiUre os jacobitas: umas vezes sobre
Christo se uniu pessoalmente ao pão e ao a eleição dos patriarchas, outras sobre a
vinho. 2 lituYgia; o mais considerável foi o que di­
Parece-me que se imputa com muita le­ vidiu o palriarchado d’Alexandria do dc
veza a impanacão aos jacobitas; os primei­ Antiochia. A causa d’este scisma foi que
ros monophysitas, que criam que a natu­ na igreja d’Anliochia se misturava oleo c
reza divina se tinha unido pessoalmente á sal no pão da Eucharistia. Acham-se nas
natureza humana, porque ella a tinha ab­ liturgias orientaes de M. Ucnaudot e de M.
sorvido, c que tendo-sc confundido em uma Asseman os ritos dos jacobitas.
só substancia, deviam naturaJmentc sup­ Ha eutro estes muitos monges; uns vi­
por que este principio d’união se eITect.ua- vem reunidos, outros separados cm cellas
va pela relação do pão e do vinho na Eu­ e nos desertos, ou collocados sobre colu­
charistia, deviam explicar estas, palavras mnas, pelo que são chamados sivliias; os
da consagração: este r o meu corpo, como superiores de todos estes mosteiros são* su­
explicavam ãs de S. João: o Verbo se fez jeitos aos bispos.
carne, o Verbo se fez homem; ora este scu- Os governadores das provincias não dão
tido é bem differente da impanacão, pois gratuitamente o diploma dos patriarchas,
que na impanacão se suppõe que o pão c a sua avareza torna as deposições dos pa-
fica, depois da consagração, tal qual esta­ .triarchas mui frequentes. 2
va antes. Os jacobitas teem muitos jejuns, e estes
Quando os monopbysitas ou jacobitas co­ entre elles são muito rigorosos: a qiiarcs-
nheceram que eflectivamente a natureza ma, o jejum da Virgem, o dos apostolos, o
divina e a natureza humana não estavam do natal, e o dos nivitas, duram cada um
confundidas, mas que eram distinctas, pos­ muitas semanas. Além d’isso jejuam todo o
to que unidas, não pensavam que o pão anno ás quartas e sextas feiras.
fosse confundido com a pessoa de Jesus Durante toda a quaresma nenhum jaco-
Christo, mas sim que elle lhe tinha sido bita póde beber vinho, comer peixe, nem

1 Ibid. 1 Asseman, Bibl. Or. t. 2. Dissei't. de


2 La Croze, Christ. (TEthiopie. pag. 365. Monophysit, art. 8.
Europe Savante, aout 1717. 2 Asseman, ibid.
JAX 627
servir-se d’azeitc. A infràcção d’cstas Icis
de Lovania, c de Paris. >Testa ultima ci­
i\ punida com a cxcoimiiunliào; não é per- dade travou relaçòes com o famoso João
inittido beber leite nem comer ovos ás sex­do Hauranus, abbadc de S. Cyran, que o
tas o quartas feiras. levou a Bavonna, onde esteve doze annos
Fazem consistir quasi ioda a perfeição superior d um collegio. Aqui esboçou a
do Evangelho na austeridade d’estes ‘je­ obra de que falíamos, que foi feita com o
juns, que levam a excessos incríveis; viu- intento de lazer reviver a doutrina de
sc durante muitos annos nào comerem du- Baio, condeinnada pela sancta sé em 1567
ranlo toda a quaresma senào folhas d’oli- c 1579. Bebeu estas idéias nas lições de
veira. 1 Tliiago Jansen, discipulo c successor de
Os homens que assim se volam a cstas Baio, que tinha abraçado em muitos pon­
austeridades, e que tecm costumes tão pu­ tos as opiniões de Luthero e Calvino. O
ros, preferem antes morrer do que rece­ abbadc de S. Cyran compartilhava as mes­
ber o concilio de Calccdonia, c nào tecm mas opiniões. ISa sua vinda a Lovania, on­
eomtudo uma fé differente da que o conci­ de tomou o grau de doutor, obteve a ca­
lio propoz. deira de professor de Kscriptura Sagrada,
Os jacobitas teem dado grandes homens, e foi nomeado pelo rei de llespanha, bis­
historiadores, philosophos, e theologos. Os po dTprés, onde pouco se demorou, por­
mais esclarecidos teem sido os mais dispos­ que morreu da peste em 1G:I8, alguns an­
tos á reunião com a igreja romana; com­ nos depois da sua nomeação. Trabalhou
muniente tractam menos de se esclarecer durante vinte annos na súa obra. a que
do que d’inventarem praeficas de devo­ deu ainda em vida a ultima demão, con­
ção, e acharem n’estas prácticas allusòes fiando a alguns amigos o cuidado da sua
pias ou sentidos occultos, como se ve publicação. Encontram-se ifclla diversas
pelo que M. Asseman nos diz nas suas protestardes de submissão ã sancta sé, mas
obras. - o aulhor não podia ignorar que a doutri­
A scita dos jacobitas nào foi tão florente
na que estabelecia tinha sido já condcmna-
c tão espalhada como a dos nestorianos: da cm Baio.
houve um rei nestoriano, mas não houve 0 Augustinus de Jansenio foi dado à luz
rei algum jacobita; julga-se que esta scitapela primeira vez em Lovania em 1640, c
não conta hoje mais que cincoenta fami­ o papa Urbano vm condenuiou-o em 1642,'
lias. 3 por ler vindo renovar os erros do baianis-
Alguns authores, laes como Jacqucs de mo. Cornct, syndico da faculdade de theo­
Vitry c Willebrand, chamam jaeobinos ás logia de Paris, apresentou á Sorbona al­
pessoas da seita, que acabamos de descre­ gumas proposições d’esta obra, que foram
ver. 1 condemnadas pela. faculdade. 0 doutor
Além d’cstes authores, que citamos, pó- Saint-Àmour e mais uns setenta, appella­
•de-se consultar M. Si mão, c os que citamos ram dV-sta censura para o parlamento, e
no artigo Cophtas. 5 a faculdade levou esta questão perante o
j.yNSKiXisMo—Systema erroneo pelo que clero. Os prelados, diz Godeau, vendo os
■diz re^peiuTít graça, ao livre arbitrio, aoespíritos muito irritados, recearam pronun­
mérito das boas obras, aos beneíicios da ciar-se, e confiaram a decisão ao papa ln-
redempção, o que se òncontra n’uma obra nocencio x. Cinco cardeacs c treze consul­
de Cornelio Jansenio, bispo d’Yprés, inti­ tores tiveram trinta e seis sessões no espa­
tulada Augustinus, em que pretendo expli­ ço de dotis annos e alguns meze's; o papa
car as doutrinas de Saneio Agostinho so­ presidiu ás dez ultimas pessoalmeute. Aqui
bre os differentes assumptos cio que aca­ foram discutidas as proposições tiradas do
bamos de fallar. livro de Jansenio, sendo ouvidos o doutor
Este theologo, filho de paes catholicos, Saint-Amour, o abbadc do Bourzeys, e al­
nasceu junto de Laerdam, na Hollanda, no guns outros que. defendiam a causa d’cste
nnno de 158o. Cursou as aulas de Utrctch, author, c em 1639 foi [tubi içada a sentença
de Roma, que censura e qualifica as cinco
proposições seguintes:
1 La Croze, Christ. d' Ethiopie. l.a «Alguns mandamentos de Deus são*
2 Asseman, Bibl. Orient. t. 2. impossíveis a homens justos, que querem \
3 M d. cumpril-os, e que para este fim fazem e s - 1
\ Jacques de Vitry, Hist. de Jerusalein. forços segundo as forças presentes que j
Wilebrand, Uenerario da Terra Saneia. tecm, por lhes faltar a graça que os torna- *
5 A Crença e os Costumes das Nações ria possíveis.» Esta proposição, que se
<lo Levante por Moni. acha em Jauscnio, palavra por palavra, foi
623 JAX
declarada temeraria, impia, blasphema, por Innocencio x. Bossuet na sua carta ás
anatliomatisada c heretica. EiTectivamcn- religiosas de Port Koval, diz que niuguem
te já linha sido proscripta polo concilio dc duvida de que seja canonica a condemna-
ÍTrenlo, ses. 6, c. H , e can. 18.
2.* «No estado da natureza decahida,
ção d’estas proposições. Pode mesmo ae-
erescentar-se que basta ouvil-as um ehris-
não se resiste á graça interior.» Esta pro­ tão que não esteja prevenido, para as ter­
posição nào se encontra por estas mesmas em horror.
palavras na obra de Jansenio, mas a dou­ •A segunda d'estas proposições é o prin­
trina que n’ella se contém vem cm vinte cipio donde se derivam todas as outras
ens. Foi apodada dc heretica, c vai como consequências inevitáveis. Se é ver­
S ntro a muitos textos formacs do Xo- dade que no estado de natureza decahida
vo Testamento. nunca se resiste á graça interior, segue-se
3.* «Xo estado da natureza decahida, que um justo que violou um mandamento
para merecer ou desmerecer, não ha ne­ da lei de Deus não teve a graça no mo­
cessidade d’uma liberdade isempta de ne­ mento em que o violou por necessidade
cessidade: basta ter uma liberdade isem­ ou por impotência dc o cumprir. Todavia,
pta de coacçào ou sujeição.» Os termos se peccou c desmereceu por então, seguc-
textuacs empregados por Jansenio, são: sc que para pcccar não é preciso ter uma
r «Uma obra ó ou deixa de ser meritoria, liberdade isempta de necessidade. Por ou­
r quando é feita sem constrangimento, ainda tra parle, se a graça falta muitas vezes aos
^ que se não practique sem necessidade.» justos porque peccâm, com mais forte ra-
L. 6, de Grat. Clirist.
Esta proposição foi declarada heretica, e
lfectivamcnte o é, porque o concilio de quas habent vires, sunt impossibilia, deest
f 'rento decidiu que o movimento da graça, quoque illis gratia qua possibilia fiant: te­
fnesmo da eííieaz, não iinpòe necessidade merariam, impiam, blasphemant, anathe­
á vontade humana. mate damnatam et Inercticam declaramus
4.a «Os semipelagianos admittiam a ne­ çt uti talem damnamus.
cessidade d’uma graça proveniente para Secundum: interiori gratia•, in statu na-
todas as boas obras, mesmo para o come­ tune lapse, numquam resistitur: hereticam
ço da fé, mas eram hereticos, porque pen­ declaramus, et uti talem damnamus.
savam que a vontade do homem podia Tertiam: ad merendum, et demerendum,
submelter-se a cila sem resistir-lhe.» A in statu nat une lapsa, non requiritur in
primeira parte d’esta proposição está con- homiue libertas a necessitate, sed sufficit li­
demnada por falsa, e a segunda por here­ bertas a coactione: haereticam declaramus
tica. É uma consequência da segunda pro­ et uti talem damnamus.
posição. Quartam: Semipelugiani admittebantpree-
5.a «E’ um erro semipelagiano dizer que venientis gratia; interioris necessitatem v d
Jesus Christo morreu c derramou o seu singulos actus, etiam ad enitium fidei, et
sangue por todos os homens.» Jansenio, de in hoc erant h(cretici, quod vellent eim gra­
tiam talem esse, cui posset humana volun­
Gratia Christi, 1. 3, e. 2, diz que bs sanctos
padres, bem longe de pensarem que Jesus tas resistere vel ablemperare: falsam et lue-
Christo morreu pela salvação dc todos os reticam declaramus et uti talem damna­
homens, teem olhado esta opinião como um mus.
erro contrario á fé catholica; que o sentir Quintam: Semipelagianum est dicere,
de Sancto Agostinho é que Jesus Christo só Christum pro omnibus omnino hominibus
morreu para os predestinados, o que a seu mortuum esse aut ' sanguinem fudisse: fal­
Pae tanto pediu pela salvação dos repro­ sam, temerariam scandalosam: et intelle­
bos como pela dos demoniòs. Esta propo­ ctam eo sensu, ut Christus pro salute dun-
sição foi condemnada por impia, blasphe­ taxat prajdestinatorum morluus sit. im­
ma e heretica. 1 pium, blasmepham, contumeliosam, divi­
Não é preciso ser profundo theologo para na) pietati derogantem et haereticam de­
conhecer a justiça da censura proforida claramus, et ute talem damnamus.
Mandamus igitur omnibus Christi fide­
libus utriusquo sexus, n e de dictis propo­
1 Eis-aqui os termos (Testa condcmna-sitionibus sentire, docere, prcdicare aliter
râo: praesumant, quam in hac praesenti nostra
Primam: prcedictarum propositianum: declaratione et definitione continetur, sub
aliqua deipreeeepta hominibus ju stis volen­ censuris et pejiis contra haereticos et eo­
tibus et conantibvs, secundum praesentes rum fautores in jure expressis.
JAN 629
zão falia d ia aos pcccadores ou aos que Bulla do papa quanto ao direito, isto é, que
cslào no habito do péccar: não sc pôde so não podia deixar do crér quo eram con-
pois dizer que Jesus Christo morreu para demnaveis as proposições taes quacs se
merecer e obter para todos os homens a achavam na Bulla, mas que não ora obri­
graça do que precisam para so salvarem. gação acquiescor a ella quanto ao facto, isto
N’este caso erravam os semipclagianos, e, crér que estavam no livro de Jansenio es­
que acreditavam que se resisto â graça, tas proposições c que ello as. sustentara no
e que Jesus Christo a obteve para todos os sentido cm"quc tinham sido condomnadas
homens. polo papa.
Sc a segunda proposição de Janscnio ó E claro que sc esta distineção fosse ad­
falsa o horetica, todo o seu systema eahe missível, debaldc condemnaria a Igreja os
por terra. livros, e querería tiral-os das maos dos
EIToctivamcntc todo o systema de Jansc­ lieis que se obstinariam em lôl-os, com o
nio se reduz a este ponto capital, a sabor: pretexto de não conterem os errçs attrihui-
que desde a culpa d’Adão o prazer ó o dos, c de ter sido mal entendido o author.
unico movei que determina o coração do Mas qucria-sc um subterfugio, e foi este o
homem; que este prazer é inevitável'quan­ adoptado.
do vem, e invencível depois de vindo. Este Dcbalde se provou aos sectários de Jan­
prazer sc provém do eéo ou da graça leva senio que a Igreja é infallivel quando sc
o homem a virtude, se provém da nature­ pronuncia sobre um facto dogmatico. Con­
za ou da concupiscenda, arrasta o homem tinuaram a sustentar a sua absurda dis-
ao vicio, e a vontade é necessariamente at- frncçào, foram prodigos de erudição, com
trahida por o que é mais forte naoccasião. fundiram todos os factos da historia eccle­
Estas duas deleitaçòes, diz Jansenio, as- siastica e renovaram todos os sophismas
similham-se ás duas\:uias d’uma balança; dos hereges antigos e modernos para fazer
uma não póde subir sem que a outra des­ valer a sua opinião.
ça. Assim o homem practica invencivel­ Arnoldo fez mais. Ensinou formalmente
mente ainda que movido pela vontade o a primeira proposição condemnada, o quiz
bem ou o mal conforme é dominado ou sustentar «que a graça falta ao justo nas
pela graça ou pela cubiça: o não póde occasiões cm que se não póde dizer que
resistir nem a uma, nem a outra. pecca, que faltou a S. Pedro em igual caso,
Este systema nem c philosophico, nem e que esta doutrina ó a da Escriptura, c
. consolador: faz do homem uma maquina, da tradição.»
e de Deus um tyranno: vai d’encontro aos A faculdade de theologia de Paris cen­
sentimentos interiores de todos os homens, surou em 1656 estas duas proposições, c
e é apenas fundado n’um sentido impro­ como Arnoldo recusasse submetter-se a
prio dado á palavra deleitarão, c n’um esta censura, foi excluído do numero dos
axioma de Sancto Agostinho mal interpre­ doutores.
tado, que já tinha sido anathematisado pe­ Todavia continuava a questão: para lhe
lo concilio de Trcnto, scs. 6 de jul., can. pôr termo os bispos dc França dirigiram-
5 c 6. se a Roma. Em 166o Alexandre v i i pre­
Mas o desejo do formar um partido c screveu a assignatura d um fonnulario cm
destruir o outro, o desassocogo proprio de que se protesta a eondcmnação das cinco
certos espíritos, e a ambição de brilhar pela proposições tiradas do livro dc Jansenio
controversia, crearam defensores a Janse­ vo sentido do author, como a saneia sé as
nio contra as censuras de Roma. condemnou. 1 Luiz xiv publicou n este
O doutor Amoldo, c outros que tinham
’ abraçado as opiniões d’este theologo, c fei­
to os maiores elogios ao seu livro antes 1 Era assim concebido:
d’olle ter sido condemnado, sustentaram Eqo N. constitutioni apostólica! Innocen-
que as proposições censuradas não se en­ tii X datee die 31 de m aii 1653 et constitu­
contravam no Augustinus, que não esta­ tioni Alexandri VIl datee 16 octobris 1636,
vam condomnadas no sentido que lhes deu summorum pontificum, me subjicie et quin­
Jansenio, mas n’um sentido falso em que que propositiones ex Cornelii Jansenii libro^
impropriamente. tinham sido tomadas as cui nomen Augustinus, excerptas, et in sen­
suas palavras, que neste ponto o . summo su ab eodem auctore intento, prout illas per
pontifice podia ter-se enganado. É o que dictas constitutiones sedes apostolica da-
elles denominaram distincçào de direito e de mnarit, sincero animo 7'ejicio ac damno,
facto. Os qnc sc valiam d’esta distincçào di­ et ita juro: sic me Deus adjuvet, et hac
ziam que era forçoso prestar submissão á sancta Dei Evangelia.
630 JAN
mesmo anno uma lei que. foi registrada demna as proposiçoes de Janscnio no sen­
nò parlamento, cm que se ordenava a as­ tido que 0 author tinha cm vista, c em que
signatura do formulario, impondo graves 0 proprio papa as condcinnou? Se isto nào
penas aos que se recusassem a fazcl-o. é perjurio, como sc lhe ba dc chamar?
Este ficou (Veste modo convertido 11’uma Se uma tal decisão ainda nào tinha sido
lei da Igreja e do Estado, c foram castiga­ censurada pela Igreja, é porque ainda nào
das muitas pessoas que se recusaram a linha apparecido um herege tão astuto que
assignal-o. imaginasse este subterfugio. Este docu­
Apesar da lei, Pavillon, bispo d’Alelh, mento veio avivar 0 incendio. O caso dc
Choarl de Buzcnval, bispo (1’Amiens, Cau- consciência deu logar a muitas pastoraes
let, bispo de Pamicrs, e Arnoldo, bispo dos bispos: 0 cardeal Xoaillcs, arcebispo
d’Angers, nas pastoraes que faziam nas de Paris, exigiu e obteve uma rclraetaçào
suas dioceses, continuaram 11a distincçào dos doutores que a assignaram. Um unlco
do facto c do direito, authorisando d’esta que sc nào desdisse foi excluído da Sor-
fôrma os refractarios. O papa irritado quiz bona.
processal-os e chegou a nomear connnis- Como estes debates nào tivessem fim,
sarios, mas suscitou-se um debate sobre 0 Clemente xi, que então o.ccupàva a sédc
numero dos juizes. No pontificado de Cle­ pontificai, depois de muitos Breves, publi­
mente ix tres prelados propozoram uma cou a lu de julho de 170o a Bulla Vineam
transaoçào cujos termos consistiam cm que Domini Saboath, em que declarou que 0
os quatío bispos assignariam e mandariam silencio respeitoso sobre 0 faclo de .lansc-
assignar na sua diocese 0 formulário em nio não é suílícicnto para dar á Igreja a
que se condemna vam as proposições de plena c completa obediência dos fieis, a
Janscnio, sem nenhuma restrieção, consi­ que tem jus. 1
derando-se como insulliciente a primeira 0 bispo de Montpellier, que no principio
assignatura. Os quatro bispos accederam, a acccitou, retraelou-se depois. Foi en­
mas nào cumpriram a sua palavra, conti­ tão que se realisou a distincçào do duplo
nuando a conservar a distincçào de faclo
e de direito. Fechou-se os olhos a esta 1 Eis 0 contexto d'csta Baila:
falta de lealdade, e é 0 que se denominou «Primo quidem pm insertas Innovent ii X
a paz de Clemente ix. et Alexandri VII prcedccessorum constitu­
Em 1701 apparcceu 0 famoso caso de tiones, omniaque et singula in eis contentu,
consciência. Vamos a ver no que elle con­ auctoritate apostólica, tenore pnvsentium,
sistia. Supponhamos uni ecclesiastico que confirmamus, approbamus et innovamus.
condemnasse as cinco proposições em to­ aAc insuper, ut qiuuvis in posterium er­
dos os sentidos em qúe a Igreja as conde­ roris occasio penitus prwcidatur, atque ca­
mna, mesmo no sentido dc Janscnio, do tholica: Ecclesia: filii Ecclesiam ipsam au­
modo que Innoccncio xu 0 tinha entendi­ dire, non tacendo solum (nam et impii in
do nos Breves dirigidos aos bispos de Flan- tenebris conticescunt), sed et interius obse­
dres; supponhamos, digo, que se recusasse quendo, quo: vera est orthodoxi hominis
a esse ecclesiastico a absolvição porque obedienlia, condiscant hac nostra perpetuo
acreditava que era suíficiente um silencio valitura constitutione: obedienlia:, queepne-
respeitoso quanto á questào do tacto, isto insertis apostolicis constitutionibus debetur,
é, 0 tercm-sc attribuido estas proposições obsequioso illo silentio minime satisfieri: sed
ao livro de Janscnio. damnatum in quinque preefatis propositioni­
t A Sorboua, que foi consultada sobre es­ bus Janseniani libri sensum, quem illarum
ta recusa d’absolvição, deu uma decisão verba prae se ferunt, ut p r tefertur, ab omni­
assignada por quarenta doutores, em que bus Christi fidelibus ut haereticum, non ore
se dizia que nào eram novos nem singula­ solum, sed et corde rejici ac damnari debe­
res os sentimentos do ecclesiastico: que a re: nec alia mente, animo, aut credulitate
Igreja nunca as condcmnâra, e por este supradictie formula: subscribi licite posse:
motivo se lhe não podia recusar a absolvi­ ita ut qui secus, aut contra quocut Inec
ção. omnia et singula, senserint, tenuerint. prae­
Esta decisão vinha evidentemente justi­ dicaverint, verbo vel scripto docuerint aut
ficar uma fraude, porque quando uma asseruerint, tanquam pnvfatarum apostoli-
pessoa está persuadida que 0 papa e a carum constitutionum transgressores, omni­
Igreja se podiam enganar, suppondo que bus et singulis illarum censuris et pienis
Janscnio ensinou verdadeiramenle uma tal omnino subjaceant, eodem auctoritate apos­
doutrina no seu livro, como pôde essa pes­ tólica decernimus, declaramus statuimus et
soa protestar com um juramento que con­ ordinamus.»
JAN 631

sentido das proposições de Janscnio: um dos as faltas que se não podem evitar sem
•que é o sentido verdadeiro, natural e o pro­ a graça, que confiança podemos ter nos
prio de Janscnio: o outro que é um senti­ meritos do nosso Redemptor, nas promes­
do falso, putativo, e impropriamente attri- sas de Deus, na sua misericordia infinita?
buido a este author. Dizem que eram he­ Sc para decidir da sorte eterna das suas
réticas as proposições tomadas n’cste ul­ creaturas, Deus prefere exercer a sua jus­
timo sentido imaginado pelo summo pon­ tiça e o seu poder absoluto antes que a sua
tifico, mas não no sentido verdadeiro, pro­ bondade, se obra como Senhor irritado, e
prio c natural: o que importa accordar no não como Pae misericordioso, devemos tc-
primeiro subterfugio imaginado pelo dou­ mel-o sem dúvida, mas poderemos nós
tor Amoldo c seus adherentes. ama l-o?
Estava n’oste ponto a questão do jansc- Os jansenistas condemnam o temor de
nismo, c da sua condemnação, quando Ques- Deus como um sentimento servil, e é o uni- ^
ncl, padre do Oratorio, publicou as suas— co que nos inspiram; affectam pregar o \
Reflexões moraes sobre o Novo Testamento, amor de Deus, e empregam todas as suas |
em que diluiu todo o veneno da doutrina forças para o reprimirem. Tomam o titulo j
•de Janscnio. Viu-se então com mais evi­ faustuoso de defensores da graça, e de fa- f
dencia do que nunca, que os seus sectarios cto são os seus destruidores:* declamam
nunca tinham deixado de lhe estarem su­ contra os pelagianos, c ensinam uma dou­
jeitos, e de a sustentarem, ainda no senti­ trina mais odiosa. Deus, dizem os pelagia­
do eondemnado pela Igreja, apesar de to­ nos, não dá a graça porque não ó precisa
dos os protestos que faziam em contrario, para a práctica dás boas obras: as forças
e de impôl-a, seduzindo as consciências do homem bastam de per si.
simples e honestas. A condemnação do li­ No dizer dos semi-pclagianos a graça é
vro de Quesnel, imposta em 1715 pela necessaria para fazer o bem, mas Deus só
Bulla Unigenitus, de Clemente xi, deu lo- a dá aos que a merecem pelos seus bon
gar a novos excessos da parte dos secta­ desejos. Janscnio diz que a graça é abs(
rios obstinados d’csta doutrina. lutamente necessaria, mas Deus não a co|
/ , De todas as heresias nascidas do seio da cede muitas vezes porque nós a não mer
5 Igreja, não houve nenhuma que tivesse dc- ccmos. Erracs todos, responde-lhes um ci
"fensores mais subtis e mais hábeis. Para tholi co, a graça é absolulamentc nccessa
sustentarem as suas doutrinas emprega­ ria. Deus dá-ã a todos, não porque a me­
ram mais esforços, erudição c persistência reçamos, mas porque Jesus Christo a me­
do que para nenhuma outra.'Apesar das receu, c a obteve para todos, dá-a porque
vinte condemnaçõcs pronunciadas contra é justo, porque é bom e porque o seu amor
ellas ha mais d’um século, ha ainda um se estende até deixar morrer seu Filho pa­
grande numèro de pessoas instruídas, que ra a redempção de todos. Tal é a lingua­
as adoptam quer nos princípios, quer nas gem da Sagrada Escriptura, dos padres de
consequências, na supposição de que é a todos os séculos, da Igreja em todas as suas
doutrina de Sancto Agostinho. Muitos theo­ orações, de lodo o christão que crè sincc-
logos, sem cahir nos mesmos excessos, ramente em Jesus Christo, Salvador do
teem-se aproximado das opiniões rigorosas mundo. Qual d’estes diversos sentimentos
dos jansenistas, para não dar logar às ac- é mais conducente a inspirar-nos o reco­
cusações que estes lhes fazem de pclagia- nhecimento, a confiança, o amor de Deus,
nismo, de relaxação, c de falsa moral. a coragem de renunciar ao peccado c de
Este phcnomeiio não seria de admirar perseverar na virtude?
se o systema de Janscnio fosse judicioso, Debaldc citam os jansenistas a cada pas­
consolador e capaz de encaminhar os fieis so a authoridade de Sancto Agostinho: ou­
á práctica da virtude e das boas obras; tro tanto faz Calviuo para sustentar os seus
mas tal não é porque não ha doutrina mais erros. Mas é falso que Sancto Agostinho ti­
adequada para desconsolar uma consciên­ vesse os sentimentos que lhe atlribuem Cal­
cia christã, para reprimir a confiança, o vino, Jansenio e os seus sectarios. Nunca
amor de D.eus e a coragem na práctica da ninguem apresentou com mais energia do
virtude, e para diminuir o nosso reconhe­ que ellc a misericórdia infinita de Deus, a
cimento para com Jesus Christo. Se apesar sua bondade para todos os homens, a cari­
da redempção do mundo operada pelo Sal­ dade universal de Jesus Christo, a sua com­
vador Diviuo, Deus ainda está irritado pe­ paixão pelos peccadores, a im mensi dade
la falta do primeiro homem, se ainda recu­ dos thesouros da graça divina, e a libera­
sa a sua graça não só aos peccadores, mas lidade com que'Deus não cessa de os en­
até aos justos, se lança á conta de pecca- cher.
632 JAN
Apenas Innocencio x condemnou o sys­ licitas quando se tracta de estabelecer uma
tema de Janscnio, foi esta doutrina victo- doutrina que se reputa verdadeira. Isto C-
riosamente refutada, cspccialmcntc pelo je­ mais que sufficiente para justificar o rigor
suíta Dcschamps n’uma obra intitulada De com que foram tractados alguns dos mais
Heresi Janseniana ab Apostólica sede méri­ fogosos jansenistas. Mosheim dcbalde quer
to proscripta, que foi publicada em 1654 persuadir que se exerceu contra clles uma
c que teve muitas edições. Esta obra está perseguição cruel c sanguinaria, todavia é
dividida em tres livros. certo que todas as penas que lhes foram
No primeiro mostra o author que Jan­ impostas se limitaram ao exilio, e alguns
scnio copiou dos hereges, cspccialmcntc de annos de prisão, sendo punidos não pelas
Luthcro e Calvino, tudo o que ensinou con­ suas opiniões, mas pelo seu comportamen­
cernente ao livre arbitrio, á graça efficaz, to insolente c sedicioso.
à necessidade de peccar, á ignoraucia in­ Além das consequências perniciosas que
vencível, á impossibilidade do cumprir os se podem tirar da doutrina de Jansenio, o
mandamentos de Deus, á morte de Jesus modo porque foi defendida produziu os mais
Christo, á vontade que Deus tem de salvar pcrniciosôs resultados, porque gerou nas
todos os homens, e á distribuição da graça consciências um abalo, que se estendeu á
sufficiente. base da religião c abriu o caminho á in­
No segundo livro prova que os erros de credulidade. As dcclamações c as satyras
Janscnio"sobre todos estes assumptos foram dos jansenistas contra os summos pontifi­
já eondemnados pela Igreja, especialiuente ces, bispos e toda a hicrarchia aviltaram o-
pelo concilio de Trcnto. poder ecclesiastico. O seu desprêso pelos-
No terceiro mostra que Janscnio á imi­ padres que precederam a Sancto Agosti­
tação de todos os chefes de seita, attribue nho, confirma as prevenções dos protestan­
falsamenle a Sancto Agostinho opiniões que tes c dos socinianos contra a tradição dos
elle nunca leve, c formalmente opposlas primeiros séculos. Pelo que dizeu/parcce
ás ensinadas por este sancto doutor. Ne­ que Sancto Agostinho alterou absolutamen­
nhum dos sectarios de Janscnio ousou re­ te esta tradição no quinto século, e que os
futar esta obra, c nem d’ella fallaram nun­ padres até esta época eram pelo menos sc-
ca, porqus é inalacavel. mipelagianos.
Os protestantes, bem convencidos da si- Os milagres falsos que forjaram.para il-
milhança que se dá entre o systema de ludir a gente simples, e que sustentaram
Janscnio sobre a graça, o entre o dos fun­ de fronte erguida, tornaram suspeitos aos
dadores da reforma, teem sustentado que deistas todos os testimunhos prestados so­
é esta realmente a opinião de Sancto Agos­ bre milagres. A audacia com que muitos
tinho, mas por muitas vezes se lhes tem fanaticos arrostaram as leis, com as amea­
demonstrado o contrario. ças, o com os castigos, e se apresentaram
Foi com muita satisfação que viram o ba­ â solfrer a morte antes do que desdizer-sc,
rulho que fez no seio dá igreja catholica o empanou a coragem dos antigos martyres.
livro de Janscnio, as disputas e a especic A arte com que os escriptores d’esla "seita
de scisma que causou, e a persistência com souberam encobrir os factos ou invental-os
que os seus defensores resistiram ás ccn- á medida dos seus desejos, authorisou o
. suras de Roma. pyrrhonismo historico dos litteratos moder­
Fazem pomposos elogios ao talento, sa­ nos. Finalmente a mascara de piedade sob
ber, piedade c coragem d’estes'pretendidos que occultaram mil imposturas e até cri­
discipulos de Sancto Agostinho, mas não mes, fez considerar os devotos em geral
ousam justificar os meios de que se servi­ como hypocritas e homens perigosos.
ram para sustentar o que chamavam a boa Seria pois para desejar que se podessem
causa. Mosheim, que reconhece a confor­ riscar as recordações ainda as mais leves
midade da doutrina dos jansenistas com a dos erros de Jansenio e das scenas escan­
de Luthero De auctont. Concilii Dordrac. dalosas a que deram logar. Foi um exem­
§ 7, confessa na sua Hist. Eccles. século 17, plo que deve ensinar aos theologos a con­
sec. 2, parí. l.°, c. d, § 40, que cllcs em­ servarem-se em guarda contra o rigorismo
pregaram explicações capciosas, distineções em materiás de opinião e de moral, a limi­
subtis, sophismas similhantes, c invectivas tarem-se aos dogmas da fé, e a desprende­
idênticas, ás que censuravam aos seus ad­ rem-se de qualquer systema particular. Se
versarios; que recorreram á superstição, á a tractar rjuestões uteis se tivesse empre­
impostura, e aos falsos milagres para dar gado tódo o tempo e trabalho que se con­
força ao seu partido, o que sem dúvida sum iu a escrever a favor c contra ojan-
consideravam estas fraudes piedosas como senismo, em vez de tantas obras já esque-
JOA 633

•cidas teriamos outras que seriam dignas O erro do abbade Joaquim não teve de­
•de se trausmittirem á posteridade. 1 fensores,- mas foi renovado pelo dr. Shcr-
jeroni>mp d e piiAGA—discipulo de João Hus.lok.
JQAQU1&-—afôbado de Flora na Calabria, Tinham-sc levantado, desde algum tem­
ImãTluíquirido uma grande celebridade po, disputas cm Inglaterra sobre a Trinda­
no fim do século 12.°, sob o pontificado de, c o socianismo havia feito progressos.
de Urbano m* c sob o de seus successores. M. Sherlok tomou a defesa da fé contra os
O livro das sentenças de Pedro Lom- socianos, e tractou de fazer vér que não
bardo tinha uma grande reputação; mas havia contradiccão no mysterio da Trin­
posto que ellc houvesse servido de modello dade; c como todas as difficuldadcs dos so­
a todos os theologos que o teem seguido, cianos são apoiadas, sobre o que este mys­
não era todavia approvado geralmentc. O terio suppòo que muitas pessoas subsis­
.abbade Joaquim escreveu contra o livro tem cm uma essencia numericamente uma;
•das sentenças, c atacou, entre outras, a M. Sherlok procura o que faz a essencia
proposição "cm que Pedro Lombardo diz e a unidade numérica da substancia. Go­
que ha uma cousa immensa, infinita, e so­ mo ellc distingue duas sortes <Je substan­
beranamente perfeita, que c o Pae, o Filho, cias, reconhece duas sortes .íFunida des.
e o Espirito Sancto. A substancia material é uma, pela união
O abbade Joaquim pretendia que esta ou pela justa posição de suas partes; mas
cousa soberana, na qual Pedro Lombardo a substancia espiritual, não tendo partes,
reunia as tres pessoas da Trindade, era tem um outro principio d'unidade.
I um sér soberano e distincto das tres pes­ A unidade, nos princípios creados, isto
soas, segundo Pedro Lombardo; e que as­ é, a unidade numérica, que faz que um es­
sim era preciso, segundo os princípios d’cs- pirito seja distincto de todos os outros, nãc
te theologo, admittir quatro Deuses. é, segundo ellc, senão a percepção, o cc
Para evitar este erro, o abbade Joaquim nhecimcnto que cada espirito tem de
í reconhecia que o Pae, o Filho, c o Espirito mesmo, de seus pensamentos, de suas r
\ Sancto faziam um só sér, não porque elles zoes, ou de suas atíccçòes (ou a consciência
* existissem em uma substancia commum, Um espirito que tem só conhecimento d
\ mas porque estavam de tal sorte unidos de tudo o que se passa cm si mesmo, é exte
/ consentimento e vontade, que o eram tão riormente distincto do todos os outros es­
/ estreitamente, como se fossem sómente um píritos, c os outros, que similhantemente
• sér; é assim que se diz que muitos homens conhecem só os seus pensamentos, são dis­
fazem um só povo. tinctos d’cste primeiro espirito.
O abbade Joaquim provava a sua opi­ Suppunhamos, por exemplo, diz M. Slicr-
nião com as passagens em que Jesus Chris- lok, que tres espíritos crcados estão de tal
í to diz: «que quer que os seus discipulos sorte unidos, que cada um d’elles conhece
j não façam senao um, como seu pae e elle tão claramcnte as afiecções dos outros dous
$ não fazem mais que um;» pela, passagem como as suas proprias: é certo, continua
* <le S. João, que reduziu a unidade das pes­ M. Sherlok, que estas tres pessoas serão
soas á unidade do testimunho. uma cousa numericamente uuica, porque
O abbade Joaquim era pois tritheista, c ellas teem entre si o mesmo principio dc
não reconhecia senão de viva Voz "5üò o unidade, que se acha em cada uma, toma­
Padre, o Filho, e o Espirito Sancto, não da separadamente, c antes da união.
faziam mais de que uma essencia c uma É assim, segundo este theólogo, que se
substancia. deve explicar a Trindade; porque Deus (ou
O erro do abbade Joaquim foi conde- o espirito infinito, e não um corpo infini-
mnado no J^atijo, mas não se tamente extenso) não tem uma unidade de
fez ahi menção da sua pessoa, porque ha­ partes, porque elle não tcni partes.
via submcitiao as suas obras á sancta sé . 2 D’esl’arte as tres pessoas da Trindade
conhecem-se reciprocamente todas tres tan­
1 Extrahido do Dictionnaire theologique to como cada uma se conhece; ellas não
de Berqier. fazem senão uma só cousa numericamen­
- S. Th. Opuscul. 24. Malhieu, Paris, te, ou antes a unidade numérica; é assim
ad an. 1479. Natal. Alex. in srec. 13. D'Ar- que as faculdades da nossa alma formam
gentrê, Collect. t. 1, pag. I. 19. È fora de uma substancia numericamente uma.
toda a verosimüiiança pretendei' com o apo­ É por este meio <|_ue a unidade que nos
logista do abbade Joaquim, que esta doutri- espíritos creados nao é senão moral, se
trina è falsamente imputatla: o apologista torna essencial nas tres pessoas, que são
não dá nenhuma prova. tão estreitamento unidas entre si, como o
634 JO A

homem o é a si proprio, c não como o ho­ 4.° A unidade de substancia é tal na di­
mem o c a outro homem. vindade, que ella se allia todavia corn a
M. Shcrlok confirma a sua conjectura distineção das pessoas; ora na hypothcse
pelas palavras de Jesus Christo em S. João: de M. Shcrlok, não haveria eíTectivamcnte
«Estou em meu pae, c meu pae está cm distineção alguma entre as pessoas divinas;
mim;r, porque, diz elle, é preciso tomar as elle cahc no sabclianisnio, e não admitte
palavras de Jesus Christo cm seu sentido mais que uma distineção de nome; outra
proprio e natural, ou cm um sentido me- qualquer destruiría esta unidade numéri­
thaphorico; ora não sc pódc tomal-as n’cs- ca, que é o seu objecto.
te ultimo sentido, porque a metaphora sup- / joaquim itas — é o nome que sc dá aos
pòc cssencialmentc a similhança que sc fque seguiram a doutrina do abbadc Joa­
acha entre as cousas naturaes reaimente quim, nào sobre a Trindade, mas sobre a
existentes ou possiveis, e nào sc pódc di­ piorai.
zer que uma expressão seja uma metapho­ * 0 abbadc Joaquim visava a uma perfei­
ra, sc não ha nem póde haver na nature­ ção extraordinaria; tinha-se pronunciado
za nada siinilhantc áquillo de que a ex­ fortemente contra a corrupção do século,
pressão dá a ideia. estava excessivamcnte prevenido pela vida
Ora, nào ha na natureza cousa que es­ eremitica, e pelo que sc chama vida inte­
teja í/outra, de maneira que essa outra es­ rior e retirada; não queria que sc limitas­
teja cm si; porque se um sòr estivesse n’ou- se a práctica dos preceitos do Evangelho.
tro, elle seria contido por esse outro, c por Algumas pessoas tomaram por isso pre­
conseguinte era mais pequeno: e seria texto para dizerem que a lei do Evange­
maior, sc contivesse o outro, o. que é con­ lho era imperfeita, c que precisava ser se­
tradictorio. guida por outra mais perfeita: que esta
Ê preciso, pois, tomar as palavras de lei era a lei do espirito, a qual devia ser
resus Christo num sentido proprio; ora, eterna.
lão ha senão uma cspecic d’uniüo mutua- Esta lei do espirito não era mais que a
hente comprehensiva, a saber: o conheci­ collecçáo de maximas d’cssa falsa espiri­
mento que cada sêr tem d’outro. Se o F i­ tualidade de que os joaquimitas faziam pro­
lho, diz M. Sherlok, tem conhecimento de fissão, e que encerravam n’um livro ao
tudo o que existe-no Pae, da sua vontade, qual davam o nome d’Evangelho eterno.
de seu amor, etc., como elle o tem da sua . Os joaquimitas suppunham na religião
propria vontade, de seu amor, então elle tres épocas; a primeira começava no tem­
conterá o Pae; o Pae está inteiramente po do Velho Testamento, a segunda no do
11’elle, porque conhece o que ha no Pae. É Novo Testamento; mas o Novo Testamento
forçoso dizer tanto de cada pessoa da Trin­ nào era uma lei perfeita; elle devia aca­
dade como a respeito das outras?. 1 bar e dar logar a uma lei mas perfeita,
Olha-sc esta hypothcse como um verda­ que fosse eterna. Esta lei é a moral do ab­
deiro tritheismo,' e foi atacada pelos theo­ badc Joaquim, que se dá no Evangelho
logos inglezes. eterno: ora ahi ensina-se, que, para pre­
É facíl de ver: i.° Que esta hypothcse é gar o Evangelho eterno, é preciso andar
um verdadeiro tritheismo, c que ella sup- descalço, que nem Jesus Christo nem os
põe com eíTcito tres substancias necessa­ apostolos attingiram á perfeição da vida
rias, eternas, increadas, o que é absurdo. contemplativa; que desde Jesus Christo ató
2. ° É falso que o conhecimento perfeitoao abbadc Joaquim a vida activa linha sido
que uma substancia espiritual tom d outra util; mas depois que este abbadc appare-
não faça d*estas duas Substancias senão cera sobre a terra, a vida activa tinha-se
uma só substancia numérica, porque en­ tornado inútil, e a vida contemplativa, de
tão Deus não seria com effeito distincto que este abbadc havia dado o exemplo, era
dás almas humanas, o que é absurdo. bem mais util.*
3. ° M. Sherlok suppOc que duas substan­Tacs são os princípios do Evangelho
cias espirituaes podem ter a mesma con­ eterno; era elle cheio d’extravàgancias,
sciência; mas é uma contradicção formal o fundadas ordinariamente sobre qualquer
suppôr a mesma consciência numérica em interpretação mystica d’alguma passagem
mais substancias, e sc o Pae, o Filho, e o da Escriptura Sancta. 1
Espirito Sancto não teem senão uma con­ 0 Evangelho eterno foi attribuido a João-
sciência numérica, são tres pessoas n’uma de Roma, septimo geral dos irmãos meno-
só e mesma substancia.
1 Natat. Alex, in scec. 23, c. 3, art. 4-
i Justificação da d o u trin a da T iindadc. D'Argentrc, Collect. Jud. t. d, pag. 163.
LOL 635
ros; oniros attribuem-no a Amauri ou a riaco, c por uma assembléia de bisiios cm
alguns de seu* discipulos; quem qucr que Milão *
fosse, é certo que muitos religiosos appro- S. Jeronymo escreveu contra Joviniano,
varain esta obra, e alguns d’entre cllcs c sustentou os direitos da virgindade, do
quizeram ensinar esta doutrina na univer­ maneira a fazer cròr que condernnava o
sidade de Paris, no anno de I255.1 o matrimonio; houve queixas, e cllc fez
O Evangelho eterno foi condcmnado por vèr que o interpretavam mal: é pois, in-
/ Alexandre vi c pelo concilio d’Arles cm justamcnlc, que M. Barbeyrac o argue, de
\J 2 6 0 . * se ter contradicto.
jg\;ixj^xfí— havia passado os seus pri- k a b a l e — vide Cabala.
melros ániíos nas austeridades da vida mo­ tó)T;AHKREs—vide Quaquers.
( nastica, vivendo de pào c agua, caminhan­ L^ # S ^ o s —Seita danabaptistas; vide
do descalço, trajando habito negro, e tra­ este artigo.
balhando com suas màos para viver. i.KÃQ is y ;g i A - \ n — vide Iconoclastas.
Sahiu do seu mosteiro, que era cm Mi­ l i b e r t i n o s —Ramo d’anabaptistas.
lão, e se transportou a Roma; fatigado dos L()rXXiu)s—fíanio de frerotes ou beguards,
combates que havia dado a suas paixões. quintTVTíror chefe Gautier Lollard.
• ou seduzido pelas delicias de Roma, não Apesar das cruzadas, que tinham exter­
tardou a entregar-se aos prazeres. minado tantos hereticos, c dos inquisido­
Para justificar aos olhos do público, c res, que fizeram queimar uma infinidade,
quiçá aos seus proprios a sua mudança, d elles; apesar das fogueiras accésas em
Joviniano -sustentava que o bom passadio toda a Eyropa contra os sectarios, viam-sc
Í c a abstinência não eram em si nem bons a cada instante nascer novas seitas, que
nem maus, e que se podia usar indilTc- depressa se dividiam em outras muitas, e
"rcntcmcntc de todas as comidas, com tanto que renovavam todos os erros dos mani
que se usasse d’ellas em accãojlo graças. chcus, dos catharos, dos albigenses, etc.
Como Joviniano nao se limitava aos pra­ Foi assim que Gaultier Lollard formou
zeres da boa mesa, pretendeu que a vir­ sua seita. Ensinoii que Lucifer e os deme
gindade nào ora um*estado mais perfeito nios tinham sido expulsos do céo injusta
que o casamento; qqo eya falso ter a Mãe mente, c que nelle seriam restabelecidos
dft ^ s n Senhor ficado virgem flepois do um dia. Que S. Miguel e os outros anjos\
pa rto. ou quc fosse preciso. como os jna- culpados (Testa injustiça seriam conde-í
niefious, Har.^a, Tçsu.s *’Cbrjsto...um corpo ninados eternaniente com todos os homens/
pUpEbSiro; que tíb resto, aque.lles qõe fo­ que não fossem dos seus sentimentos. l)e s-\
ram regenerados pelo baptismo, nao po­ prosava as ceremonias da igreja, não r e -|
diam ser vencidos pelo demonio. que a conhecia a intèrccssào dos sanctos, e cria/
graça do baptismo igualava iodos os ho­ que os sacramentos eram inúteis. Se o ba­
mens, e que como cíles não mereciam sc- ptismo é um sacramento, diz Lollard, todo
nào por ella, os que a conservavam gosa- banho o é também, c todo o banheiro
riam no céo uma recompensa igual. San­ Deus. Pretendia que a hostia consagrada^
cto Agostinho diz que Joviniano ajunlou a era um Deus imaginario; mofava da mis­
a todos estes erros a opinião dos stoicos sa, dos padres c dos bispos, cujas ordena­
sobre a igualdade dos pcccados. 3 ções dizia serem nullas:.o matrimonio, se­
Joviniano teve muitos sectarios em Ro­ gundo clle, não é mais que uma prostitui­
ma: viu-so uma multidão d’individuos, que ção jurada.
haviam vivido na continência e na morti­ Gaultier Lollard fez um grande numero
ficação, renunciarem a uma austeridade dc discipulos na Áustria, Bohemia, etc.
que” cllcs não acreditavam boa para cou- Estabeleceu dous homens escolhidos en­
sa alguma, casarem-se, c levarem uma vi­ tre os seus discipulos, que chamou seus
da mortal e voluptuosa, que não fazia per­ apostolos, os quaes percorriam todos os an­
der, segundo olles, nenhuma das vantagens nos a Allemanha para fortalecerem aquel-
que a religião nos proinettc. les que tinham adoptado os seus senti­
Joviniano foi condem nado pelo papa Sy- mentos; entre estes doze discipulos havia
dous anciãos, que se chamavam os minis­
1 Matai. Alcx. in saec. 23, c. 3, art. 4. tros da seita: estes dous ministros fingiam
D'Argentrè, Collcct. Jud. t. 1. pag. 163. entrar todos bs annos no Paraizo, onde re­
" 2 lbiil. et fíist. Uuivers. Paris. t. 3. m g. cebiam d’Enoch e d’Elias o poder de remir
302.
3 Amb. Ep. 41. Aug. in Sub. c. 2. De 1 Ep. Siric.j l. 2. Cone. />00.1024. Amb.
Harcs. c. 82. llycron contr. Jovin. Ep. 52.
«36 LUT
todos os pcccados aos da sua scita, com­ tinham recebido â penitencia os bispos
municando este poder a muitos outros cm cabidos no arianismo.
cada cidade ou aldeia. Lucifer tinha-se tornado illustre na Igre­
Os inquisidores mandaram prender Lol- ja pelo seu dcspriiso do mundo, pur seu
lard, e nao podendo vencer sua obstinação, amor ás letras saneias, pela pureza de sua
0 condemnaram: foi ao fogo sem medo e vida, c pela constância da siía fé: elle
sem arrependimento, descobrindo-se por coinmettc uma imprudência, nào o applau­
esta occasiào um bom numero de seus dis­ dent, odeia todo o inundo; busca um pre­
cipulos, dos quaes se fez, segundo Tritlie- texto para se separar de todos os bispos *,
!ÍJC, uma grande fogueira. e crê achar uma justa razão do se separar
O fogo reduziu Lollard a cinzas, mas da lei que elles tinham feito para receber
nào destruiu a sua seita; os lollards perpe­ na penitencia os que caliiram no aria­
tuaram-se na Allemaníia, e passaram a nismo.
Flandres e a Inglaterra. Eis como o caracter decide muitas ve­
A contenda d’cste reino com a curte de zes um homem para o scisma e para a
Roma conciliou para com os lollards a heresia.
aíTeicão de muitos inglezes, e a sua seita Lucifer teve sectarios, mas em pequeno
ahi fez progressos; o clero, porém, Ievan- 1numero; estavam espalhados na Sardcnha
tou contra elles as leis mais severas, e o e em Hespanha: estes sectarios apresenta­
credito dos communs nào pôde impedir ([ue ram um requerimento aos imperadores
queimassem os lollards: com tudo isto Theodosio, Yalentiano e Arcadio, no qual
nào os destruiram ainda, reunindo-se elles fazem profissão de nào communicar nào
ao wielefilas, preparam a ruina *do clero somente com aquelles que tinham consen­
de Inglaterra, c o scisma de Henrique viu, tido na heresia, mas também com aquelles,
entretanto que outros lollards preparavam mesmos que communieavam com as pes­
na Bohemia o.s espirites para os erros de soas caludas iTella: é por isso que sào
Joào IIus, o para a guerra dos bussitas. 1 cm pequeno numero, dizem elles, c que
LiciFERiANos—Scismaticos que se sepa* evitam quasi todo o mundo: asseguram
raráTiTtfaTgreja catholica, porque o conci­ que o papa Damasio, Sancto Hilário, San­
lio d’Alexandria tinha recebido á peniten­ cto Anastacio e outros confessores, rece­
cia os bispos do concilio de Rimini. Eis o bendo os arianos á penitencia, tinham
motivo d’este scisma. traiu do a verdade.
Depois da morte de Constancio, Juliano Lucifer morreu cm seu scisma.
restituiu a todos os exilados a liberdade; c l u t h e r o —Aulhor da reforma conhecida
os bispos catholicos trabalhavam no resta­ sob o nome de religião lulherana. Vamos
belecimento da paz na Igreja. Sancto Anas­ examinar a origem e o progresso d'esta
tácio o Sancto Eusebio de Yerccil rcuni- reforma; exporemos em seguida o syste­
ram um concilio cm Alexandria, no anno ma theologico de Luthero, c o refutare­
\ d e 362, no qual se lavrou urn decreto ge­ mos.
ral para receber á communhào da Igreja
Iodos os bispos que haviam seguido o aria- DA ORIGEM DO LUTHERAXISMO
nismo. Como a igreja d’Antiochia estava
•dividida, enviaram Eusebio com ínstruc- Luthero nasceu em Islebc, cidade de Sa-
ções para pacificar esta igreja. xonia, no fim do lõ.° século»-(1483.)
Lucifer, cm logar de se transportar á Depois de ter acabado seuiTcsTudos de
Alexandria com Eusebio, passou direcla- grammatica cm Magdebourg e em Eisenacli,
mente á Antiochia, e ahi ordenou bispo a completou seu curso de philosophia cm
Paulino. Esta escolha, nào fez scnào au- Erford, e foi recebido mestre cm artes na
gmentar a perturbação, e ella tomou maio­ universidade d’csta cidade: entregou-se
res proporções do*que quando chegou cm seguida ao estudo de direito, destinan-
Eusebio: este ficou penetrado de dôr por do-se á advocacia. Um trovão que ma­
vér que Lucifer, pela sua precipitação, tou a seu lado um de seus amigos, mudou
tornava o mal quasi incurável; todavia hão seu destino, o o determinou a entrar na
censurou Lucifer abertamente. ordem dos religiosos Agostinhos.
Lucifer oflcndeu-sc do Eusebio não ap- Estudou theologia cm Wirtcmberg. ad­
provar o que tinha feito, separou-sc da sua quiriu o grau de doutor, foi feito profes-
communhào e da de todos os bispos que
1 Snlpic. Sever. 2. Am/), in Oral. de ahi
1 Dupin, 14.° século, pag. 436. D'Argen- tu S atyri Aug: JSp. 30. líycron, in Dial,
tr é , Collect. Judicior, t. 1. adversus Lucifer.
LUT «37
«or, e tornou-se celebre no principio do TetzeI, e lançaram mão da penna para de­
16.° século. fender as indulgências; a disputa inflam-
A Europa estava tranquilla e todos os mou-sc: Luthero, que era d’urn caracter
•christãos viviam na communhào e sob a violento, enfureceu-se, c ultrapassou os li­
/ obediência da igreja romana. Leào x oc- mites da moderação, da caridade e da su­
j cupava a cadeira de S. Pedro: este papa bordinação; foi chamado a Roma, e Leão x
I .levara ao pontificado grandes qualidades, concedeu uma Bulla na qual declarava a
conhecia as bellas letras, amava c favore­ validade das indulgências, c pronunciava
c ia o merito; tinha humanidade, bondade, que em qualidade de successor de S. Pe­
uma extrema liberalidade, e uma tamanha dro e de vigário de Christo, tinha o di-
aíTabilidade, que se via alguma cousa mais direito de as conceder; que esta era a dou­
que de humano em suas maneiras; porém trina da igreja romana, senhora de todas
sua liberalidade e facilidade em dar, esgo­ as igrejas, e que era preciso receber esta
taram bem depressa os thesouros de Julio doutrina para viver na communhào: con­
h, a quem tinha succedido, e absorveram cedeu em seguida uma Bulla, na qual con­
suas rendas. 1 dem nava a doutrina de Luthero, ordenava
Entretanto Leão x formou o projecto de que se queimassem seus livros e o decla­
acabar a magnifica igreja de S. Pedro, e rava a ellc mesmo heretico, se não se re­
•concedeu indulgências áquclles que con­ tractasse no tempo que elle lhe marcava.
tribuissem para as despezas d’este edifício; Luthero appella d’esta Bulla para o con­
a bulla das indulgências foi expedida, e cilio, e como o eleitor da Saxonia tinha
Leào x deu uma parte do rendimento d’es- gostado dos sentimentos de Luthero, este
ta indulgência a diflefentes pessoas, assi- doutor teve bastante iníluencia para fazer
gnando-lhcts a renda de qualquer provin­ queimar em Wirtemberg a Bulla de Leào x
cia. Esta audacia, que cm Luthero era uir
-i N’esta distribuição, doou tudo o que eíTeito do seu caracter, se olhou pelo suc­
•recebia da Saxonia c ÍTuma parte d’Alle- cesso como um golpe de politica. O povo
manha a sua irmã, que encarregou Ar- que viu queimar por Luthero a Bulla de
chambaud d’esta cobrança de dinheiros. um papa, perdeu ma quinai mente esse te­
Archambaud fez uma herdade, e os cobra­ mor religioso que lhe inspiravam os de­
dores ou rendeiros confiavam a predica cretos do soberano pontifice, e a confiança
•das indulgências aos dominicanos. que tinha nas indulgências: d’alli a pouco
Os cobradores e prégadores das indul­ Luthero atacou em suas prédicas as indul­
gências attribuiram-lhes uma efficacia ex­ gências, a authoridade do papa, e os ex­
traordinaria, e prégando a indulgência, le­ cessos dos prégadores das indulgências;
vavam uma vida escandalosa: muitos das­ elle os-tornou odiosos, e creou um grande
tes negociantes espirituacs, diz Guichar­ numero de partidários.
din, chegaram até a conceder por vil pre­ As prédicas de Luthero começaram a
ço, e a jogar nas bodegas o poder de tirar fazer muito estrepito; quando hotive uma
ás almas do Purgatorio. 2 dieta em Worms (em 1521), Luthero ahi
Luthero levantou-se contra os excessos foi chamado, e se lavrou um decreto con­
;v dos cobradores e dos prégadores das indul­ tra elle: n’cste decreto, Carlos v, depois de
gências, e contra as desordens d,aquclles ter narrado como Luthero tractava de es­
•que as prégavam: é o assumpto d’uma de palhar seus erros na Alleraanha, declara
suas cartas ao arcebispo de Mayença. Es­ que, querendo seguir os traços dos impe­
tudou a materia das indulgências, e pu­ radores romanos, seus predecessores, para
blicou theses, nas quaes censurava amar- satisfazer ao que deve á honra de Deus,
gamente os abusos das indulgências, e re­ ao respeito que tem ao papa, e ao que é
duzia seu cffcito quasi a zero. devido á dignidade imperial, de que elle é
Tctzcl, dominicano, que estava á testa revestido;-do conselho e do consentimento
dos prégadores das indulgências, fez pu­ dos eleitores, principes e estados do impe­
blicar e sustentar theses contrarias na ci­ rio, e em execução da sentença do papa,
dade de Francfort em Brandcbourg. elle declara, que tem Martinho Luthero por
Estas theses foram uma como declaração notoriamente heretico, e ordena que seja
de guerra: muitos theologos se juntaram a tido por tal em todo o mundo, prohibindo a
todos de o receberem ou proteger, de qual­
1 Guichardin, l. 2,1 4 . quer maneira que seja; mandando a todos
2 Guichardin, l. 18, n. 14. RainaJd, ad os principes c estados do imperio, sob as
<in. 1508. 99. Mciinbourg, Hist. du Lu th., penas ditas, de o prenderem c aprisionar
4. 1., Sess. 6. Seckendorf, s u r ,Maimb. depois do termo de 21 dias expirados, e de
638 LUT
perseguir seus cúmplices, adherentes e de­ que procuravam fazer proselytos, e que-
fensores, de os despojar de seus bens, mo­ espalhavam princípios contrarios á fé c á
veis e immoveis, etc. authoridade da Igreja: os livros de W iclcf
Logo que este edito se passou, Frederico c de João IIus, multiplicavam-se alii, c
de Saxonia fez partir secrctamentc' Luthc- liam-sc.
ro, c o fez conduzir a logar seguro; não se Os sectarios occultos, c uma parte das
executou o decreto da dieta contra os par­ obras de Wiclcf c de João IIus, atacavam
tidários de Luthero. alguns excessos manifestos, o uma autho­
D’estc modo, a igreja de Roma, á qual ridade cujo abuso incommodava quasi todo'
tudo estava sujeito, que tinha armado a 0 inundo: por conseguinte a igreja do Ro­
Europa inteira, feito tremer os sultões, de­ ma e o clero tinham muitos inimigos se­
posto os reis, dado reinos; Roma, a quem cretos.
tudo obedecia, viu o seu poder e o do im­ Estes inimigos não eram todavia fanati­
perio, quebrar-se contra Luthero e seus cos, ignorantes, ridiculos ou devassos, eram
discipulos. homens que raciocinavam, que pretendiam
Esta cspecie de phenomeno estava pre­ não atacar a Igreja, mas sim os abusos de
parado d.esdc longo tempo: as guerras que que os fieis estavam escandalisados, e que
cxtiiiguiram as artes o as sciendas no Oc­ destruíam a disciplina. Viu-se nos conci-
cidente, produziram grandes abusos no iios de Constança c de Basiléia homens ce­
clero: tinham-se erguido n’estes séculos lebres pelas suas luzes e virtudes, pedir,
barbaros, sectarios que authorisavam estes mas inutilmente, a reforma dos abusos;
abusos, c a pretexto de os reformar haviam sabia-se que não se podia csperal-a c ob-
tornado sequazes aos henriquianos, petro- tel-a, senão reformando os abusos a des­
brusianos, albigenses, vaudenses, etc. peito do clero e da corte de Roma, mas-
Os raios da Igreja, as armadas das cru­ a sua authoridade sempre temível, con­
zadas, as fogueiras da inquisição tinham tinha todo o mundo, e havia cm uma in­
destruído todas estas seitas, e no Occiden­ finidade de espíritos uma cspecie d’equi-
te tudo estava submetlido ao papa, c uni­ librio entre o desejo da reforma e o receio
do á igreja romana. da authoridade do clero. 1
Os papas e o clero, acostumados desde Luthero, atacando a authoridade do papa,
o Il.° século a subjugar tudo com o ana­ as indulgências, e o clero, rompeu esse
thema e as indulgências, quasi que não equilíbrio que produzia uin socego perigo­
conheciam outro meio para combater a so, que se toma por tranquillidade; com-
heresia, senão a força; elles empregavam municou a uma infinidade de pessoas o
os raios da Igreja contha tudo o que se espirito de revolta contra a Igreja, e achou-
oppunha a seus desígnios ou a seus inte­ se de repente á testa d’um partido tão con­
resses, que confundiam muitas vezes com siderável, que os principes d’AHemanha
os da Igreja e da religião; assim, depois julgaram não poder executar o decreto da
das guerras das cruzadas, tinha-se visto os dieta contra Luthero, sem excitar uma sc-
papas deporem os soberanos que não lhes dição.
obedeciam; os anti-papas excommungar os Demais, muitos d’estes principes não ti­
reis que reconheciam seus competidores no nham consentido n’este decreto senão com
soberano pontificado; desligar do juramen­ repugnância: elles viam com muito pesar
to de fidelidade subditos d’estes soberános, sahir de seus estados sommas immensas,
conceder indulgências áquelles que os com­ que os directores das indulgências leva­
batiam, dar seu reino aos que os conquis­ vam; não se affiigiam que atacassem c es­
tavam; tinha-se visto os povos abandona­ treitassem o poder do clero, que elles te­
rem seus soberanos, sacrificar sua fortuna, miam, c cujo abatimento pensavam acon­
para obedecer aos decretos dos papas, e tecesse um dia. Emfim, as armas do tur­
para ganhar as indulgências. co, que ameaçavam o imperio, fizeram re­
A profunda ignorância pôde dar longa ceia r que fosse perigoso atear n’Al lema-
duração a um similhante poder; podia até nha uma guerra de religião, similhante á
ser immiitavel entre povos que não racio­ que tinha desolado a Bohemia um século-
cinavam; porém era preciso que o espirito antes.
dos povos d’Allemanha estivesse n’estc es­
tado de immobilidade e quielação: todas 1 Vede sobre iodos estes factos as HisL
as seitas reformadoras que se tinham le­ e as Aut. Eccles. d'estes differentes tempos;
vantado desde os henriquianos, albigenses o Gonc. de Const.y o Cont. de Fleury. Bos-
c vaudenses, refugiaram-se na Allema- suet, Ilist. de F r e dos Var. Guicíi. HisL
nha; cilas tinham ahi partidários occultos, da Igreja Gall.
LUT 639-
D’cstc modo, o tempo, esse novador tão elle os ameaçava de gritar contra clles, se
formidável, havia insensivelmente prepa­ recusassem submetter-se. «Minhas preces,
rado tudo para fazer naufragar contra disse elle a um principe da casa deSaxo-
um religioso Agostinho a authoridade da nia, não serão um raio de Salmonée, nem
Igreja c o poder de Carlos v, e de uma um vão murmurio no ar; não se suspende
grande parte dos principes d’AHcóianha. assim a voz de Luthero, e eu desejo que
vossa alteza não a experimente em seu
prejuízo; minha prece é um baluarte in­
DO PROGRESSO DE LUTHERO, DESDE SUA VOLTA vencível, mais poderosa que o proprio dia­
A WIRTEMBERG ATÉ Á DIETA DE NUREMBERG bo; sem cila, ha muito tempo que não se.
fallaria mais de Luthero, e não se espanta­
rão d’um tão grande milagre! »»
Luthero voltou a Wirtemberg; a uni­ Quando ameaçava alguém com os juizos
versidade adoptou suas opiniões: aboliu-se de Deus, vós dirieis que elle lia nos decre­
a missa, atacou-se a authoridade dos bis­ tos eternos: á sua voz, tinham como certo
pos, c a propria ordem do episcopado: Lu­ os seus, que haviam dous anti-christos cla­
thero tomou o titulo d'ecclesiastico, ou de ramente manifestos na Escriptura, o papa
pregador de Wirtemberg, com o fim, diz e o turco, dos quaes Luthero annunciava
elle, escrevendo aos bispos: «de que não a proxima ruina. Não era sómente o povo
pretendam ser causa d’ignorancia, que é a que tinha Luthero por propheta; os sábios,,
nova qualidade que se dá a si mesmo, com os theologos, os litteratos da sua commu-
um completo despréso d’elles e de Satanaz, nhão, o consideravam e o davam por tal,
que elle podia também com bom titulo cha­ tanto o império da imaginação e do enthu­
mar-se evangelista, pela graça de Deus, e siasmo é extenso. 2
que ccrtamente Jesus Christo o chamava O ecclesiastico de Wirtemberg não go-
assim, e 0 tinha por ecclesiastico. sava todavia tranquillamente do seu trium­
Em virtude d’esta celeste missão, Luthe­ pho: sua revolta contra a Igreja occasio-
ro fazia tudo na Igreja; pregava, visitava, nou uma multidão de seitas fanaticas e
corrigia, restringia as ceremonias, estabe­ sediciosas, que assolavam uma parte d’Al
lecia outras, instituia e destituía; estabele­
lemanha. Carlostadio quiz levantar em Wir
ceu até um bispo em Nuremberg: sua temberg uma seita nova: Luthero foi ata
imaginação vehemente inflammava os es­ cado em uma infinidade d’escriptos: res­
píritos, communicava seu enthusiasmo, e pondeu a tudo, atacou o clero, prégou
tornava-se o apostolo e o oraculo da Saxo- contra a corrupção dos costumes, e tradu­
nia e d’uma grande parte d’Allemanha. ziu a Biblia em lingua vulgar: todos lêram
Espantado da rapidez dos seus progressos, a sua versão, e todo aquelle que a leu to­
elle se julgou com effeito um homem ex­ mou parte nas disputas da religião.
traordinario: «Não puz ainda a mão na A Escriptura só era, segundo Luthero,.
menor pedra para a destruir, dizia elle; a regra da fé, e cada um estava no direito
não fiz chegar o fogo a nenhum mosteiro, de a interpretar; este principio seduziu um.
mas quasi todos os mosteiros estão arrui­ numero infinito de pessoas na Allemanha,
nados por uma penna e por uma bôea, e na Bohemia e na Hungria; mas era sobre
publica-se que, sem violência, eu só tenho tudo na Saxonia e na baixa Allemanha que
feito mais mal ao papa, do qu^.teria podi­ os sectários de Luthero se tinham multipli­
do fazer algum rei com todas ás^forças do cado, e que eram animados d’um zelo ar­
seu reino, 2»
1 dente e capaz de tudo emprehender.
Luthero pretendia que estes successos
eram o effeito de uma força sobrenatural gue
Deus dava a seus escriptos e a suas prédi- DO LU THERA NISMO, DESDE A DIETA
cas: elle o publicava e o povo o cria: at­ DE NUREMBERG A TÉ Á DIETA D’a UGSBOURG
tento ao progresso do seu imperio sobre
os espíritos, tomou o tom dos prophetas
contra os que se oppunham á sua doutri­ Tal era a extensão do lutheranismo,
na. Depois dè os ter exhortado a abraçal-a, quando os estados d’Allemanha se congre­
garam em Nuremberg. Leão x era morto,
1 Ep. ad falso nominat. Ordin. Episco­ e Adriano vi tinha-lhe succedido: este no-
porum, Operum Lutherí, t. 2, foi. 30o.
Hist. das Variat., t. 1, pag. 30. 1 Ep. ad Georg. Dux. Sax., t. 2, foi.
2 T. 7, foi. 507, m } Hist. das Variat., 491.
t. i, pag. 30. 2 Sleidam, l. 3. Melanct., I. 3. Ep. 65.
*
vo pontifice enviou â dieta um núncio, tros príncipes, a approvação de seu decre­
ara se queixar da liberdade que conce- to de reforma. A publicação d’esto regula­
S iam a Luthero, e de não terem procedido mento oíTendcu todos os principes e bispos
á execução do edito de Worms. que n’ella não tinham querido consentir
Os estados responderam que os partidá­ na dieta: 0 descontentamento augmentou
rios de Luthero eram tão numerosos, que com as cartas imperiosas que Carlos v di­
a execução do edito de Worms atearia rigiu á dicta; e os estados do imperio, ten­
uma guerra civil. Os principes leigos for­ do-se reunido cm Spira, nos fins do mez
maram cm seguida um longo memorial dos do junho de 1525, deliberou-se, por ordem
seus motivos de queixa e de suas p reten­ do imperador, á vista das cartas d’este
ções contra a côrte de Roma e contra os principe, por meio das quaes ellc lhes de­
ecclesiasticos; reduziram este memorial a clarava que ia passar á Italia para ahi se
cem artigos, aos quaes deram para isso o fazer coroar, c tomar com 0 papa as me­
nome de centum gravamina: enviaram-no didas para a convocação d’um concilio.
ao papa, com protestação que não queriam N’este meio tempo, queria elle que se ob­
nem podiam mais tolerar essas aíirontas, servasse 0 edito de Worms, e prohibia que
e que estavam resolvidos a empregar os se tractasse por mais tempo de matérias
meios mais proprios a reprimil-as. de religião na dieta.
Os principes queixavam-se das taxas que A maior parte das cidades responderam
se pagavam para as dispensas e absolvi­ que se no passado se não poderá observar
ções, do dinheiro que se tirava das indul­ 0 decreto de Worms, era agora ainda mais
gências, da evocação dos processos a Roma, perigoso tental-o, pois que as controversias
da isempção dos ecclesiasticos nas causas estavam mais animadas que nunca: pro­
criminaes, etc. mulgou-se então um decreto, cuja substan­
Todas estas queixas se reduziam a tres cia dizia que, como era necessário, para
principaes, a saber: que os ecclesiasticos pôr a ordem nas cousas da religião, e man­
reduziam os povos á servidão; que os des­ ter a liberdade, haver um concilio legiti­
pojavam dos seus bens, e que se apropria­ mo na Allemanha, ou procurar um que
vam da jurisdicção dos magistrados secula­ fosse universal, e reunil-o antes do termo
res. 1 de um anno, enviar-se-iam embaixadores
A dieta fez também um regulamento ao imperador, para supplicar-lhc olhasse
para acalmar os espíritos e defender a com compaixão para 0 estado tumultuoso
impressão ou o ensino d’alguma doutrina e miserável do imperio e voltasse quanto
nova. antes á Allemanha, para fazer reunir 0
Os lutheranos e os catholicos interpreta­ concilio: que emquanto senão reuniam .um
vam este decreto cada qual em seu provei­ e outro concilio, os principes c os estados
to, e pretenderam não ensinar mais que a das suas provincias tractariam de condu­
doutrina dos padres e j l a Igreja: assim, zir-se em seus governos, a respeito do fa-
este decreto não fez senão atear o fogo da cto da religião, de modo que clles podes-
discordia. 2 sem dar boa conta a Deus e ao imperador.
Adriano vi reconhecia a necessidade de O imperador e 0 papa, depois de se te­
reformar muitos abusos, e parecia deter­ rem desavindo e accommodado muitas ve­
minado a trabalhar para essa reforma; po­ zes, restabeleceram emfim a paz, que os
rém morreu antes que tivesse podido exe- interesses temporaes tinham perturbado.
cutal-a. Um dos àrtigos do tractado, feito entre
Xulio de Médicis lhe succedeu, sob 9 0 imperador e 0 papa, foi que, se os lu­
nome de Clemente vu: este papa enviou á theranos persistissem na sua revolta, 0 pa­
dieta de Nuremberg um núncio que for­ pa empregaria para os exterminar as ar­
mou uma especie de reforma para a Alle- mas espintuaes, e Carlos V, com Fernan­
manha; mas achou-se que ella deixava sub­ do, as armas temporaes; que de resto, 0
sistir os abusos mais perigosos, e que não papa obrigaria os principes christãos a
preenchia perfeitamente os desejos da die­ juntarem-se com 0 imperador.
ta precedente. 3 Carlos v convocou os estados d’Allema­
Entretanto, 0 legado conseguiu de Fer­ nha em Spira, no anno 1529. Depois de
nando, irmão do imperador, e muitos ou­ muitas contestações, fez-se um decreto,
que dizia* que aquelíes que tinham obser­
1 F asciculos re ru m expetendarum , t. 1, vado 0 edito, de Worms deveríam conti­
pag. 352. nuar a fazel-o, e tivessem 0 poder dc_a
2 Jbid. Sleidan., I. 1, pag. 50. elle obrigar seus povos, até á convocação
3 A n . 1524. ‘ d’um concilio; que a respeito dos que ti-
LUT flU
nham mudado de doutrina, c que nào po­ roar cm Bolonha, em 1530, passou á Al­
diam abandonal-o sem temer alguma sedi- lemanha, e convocou uma dieta em Augs-
ção, se conservassem no que estava feito, bourg.
sem nada innovar mais, até ao mesmo 0 eleitor de Saxe, apresentou á dieta a
tempo; que a missa nào seria abolida, e profissão de fé dos protestantes; cila con­
que nos proprios logares em que a nova sistia em duas partes: uma continha o do­
reforma se havia estabelecido, nào se im­ gma—era em grande parte conforme á fé
pediría de a celebrar; que os pregadores catholica, mas negava a necessidade da
se abstcriam de propor novos dogmas, ou confissão; estabelecia que a Igreja era só
dogmas que fossem pouco fundados na composta de eleitos; attribuia sómente ás
Escriptura; porém que prégariarn o Evan­ disposições dos fieis os efTeitos dos sacra­
gelho, segundo a interpretação approvada mentos, e negava a necessidade d’obras
pela Igreja, sem tocar nas cousas que es­ pias para a salvação.
tavam em disputa, até á determinação do A segunda parte era muito mais contra­
concilio. ria á doutrina da Igreja: exigia a abolição
O eleitor de Saxe, o de Brandebourg, das missas resadas, e os votos monásticos;
os duques de Lunebourg, o landgravc de o restabelecimento da communhão sob as
Hesse, c o principe d’Anhalt, com quator­ duas especies; declarava que a tradição
ze das principaes cidades d’Allemanha, nào era uma regra de fé, c que todo o
declararam que nào podiam derogar o de­ poder ecclesiastico não consistia senão em
creto da dieta precedente, que tinha con­ prégar e administrar os sacramentos.
cedido a cada um a liberdade de religião Os theologos catholicos, e os theologos
ate â duração d’um concilio, c pretende­ protestantes, não poderam convir n’estes
ram que este decreto tendo sido feito com artigos, e a dieta se separou.
o consenso de todos, nào podia também Depois da partida dos protestantes, o im­
ser mudado senão com o consentimento perador publicou um edito, por meio do qual
geral; que por conseguinte elles protesta­ prohibia se mudasse cousa alguma na mis
vam contra o decreto d’esta dieta. Torna­ sa e na administração dos sacramentos,
vam pública sua protestação, e o appêllo se destruíssem as imagens.
que fizeram' d’cssc decreto ao imperador Os protestantes entenderam que o imj
e a um concilio geral futuro, ou a um rador tinha resolvido submettel-os pi
concilio nacional; e foi d\aqui que o nome forca das armas, c por isso tomaram su
de protestantes foi dado a todos aquelles medidas para lhe resistir; o landgravc c
que faziam profissão da religião luthe- Hesse convocou os principes protestantes
rana. em Smalcade, onde fizeram uma liga con­
No meio d’estes successos, Luthero não tra o imperador: escreveram em seguida
vivia sem pesares: Garlostadio, expulso da a todos os christãos, para lhes fazer co­
Aliem anha por Luthero, retirára-se à Suis- nhecer os motivos que os tinham determi­
sa, onde Zuinglio e OEcolampadio tomaram nado a abraçar a reforma, esperando que
sua defesa: sua doutrina tinha-se estabe­ um concilio pronunciasse sobre as maté­
lecido na Suissa, e passado á Allemanha, rias de religião, que perturbavam a Alle­
onde fazia progressos mui rapidos. Esta manha.
doutrina era absólutamonte contraria aos Luthero, que até então pensara que a
dogmas de Luthero; elle a combateu com reforma não devia estabelecer-se senão
transporte, e viu os partidários da reforma pela persuasão, e que ella devia sómente
repartil-a entre elle e os sacramentarios. defender-se pela paciência, authorisou a
Tractou-se, mas inutilmente, de reconci­ liga de Smalcade. 1
liar estes reformadores; nào houve nunca «Elle comparava o papa a um lobo en-
entre elles mais que uma união politica: raivado, contra o qual todos se armam ao
os sacramentarios e os lutheranos aggre- primeiro signal, sem esperar a ordem do
diam-se; e estes reformadores, que se jul­ magistrado: que se, encerrado cm um re­
gavam os juizes absolutos das controvér­ cinto qualquer, o magistrado o solta, pó-
sias, achavam na Escriptura Sancta do­ de-sc continuar a perseguir esta fera, e
gmas diametralmente oppostos: cis-ahi o atacar impunemento aquelles que tives­
que M. Basnage chama uma obra de luz. sem impedido que se provocasse: se O'
matassem n’este ataque, em logar de se
DO LUTHERANISMOj DEPOIS DA DIETA arrependerem d’isso, arrepender-se-iam,
DE ÀUGSBOURG: A TÉ A MORTE DE LUTHERO
1 N aim b ., I. 3. Seckem dorf, /. 3, sect. 2,
O. imperador, depois de se ter feito co­ § 3. H ist. des Variat., I. 6.
643 LUT
pelo contrario, de lhe nâo ter enterrado Foi neste tempo que o landgrave de
bem o cutello no seio. Eis como é preciso Hesse, aproveitando-se do seu credito no
tractar o papa: todos os que o defendem, partido protestante, obteve a permissão de
devem tombem ser tractados como os sol­ ter duas mulheres ao mesmo tempo: esto
dados d’uni chefe de ladrões, sejam clles acto de condescendência da parle dos theo­
reis e Cesares. logos protestantes, o ligou irrevogalmente
Os protestantes tractaram, pois, o decre­ a seus interesses, e o tornou inimigo irre-
to do imperador com despréso, e esteve-se conciliavcl da igreja catholica, que não
proximo d’uma guerra igualmente perigo­ teria nunca tolerado a sua polvgamia.
sa aos dous partidos, e funesta á Allcmanha. Por mais importantes que fossem os nc-
O imperador, ameaçado d’uma guerra gocios da religião, clles não occupavam só
proxima com os turcos, fez com os prin­ o papa e os principes catholicos.
cipes protestantes um tractado: este tra- O imperador e o rei de França tinham
ctado era que haveria uma paz geral* en­ seus desígnios sobre a Italia, c o papa, ou
tre o imperador e todos os estados do im­ os protestantes não eram inúteis para estes
pério, tanto ecclesiasticos como seculares, projectos. Francisco i enviou embaixado­
até á convocação d’um concilio geral, li­ res á assembléia de Smalcade, para ini­
vre e christão; que ninguem por causa de ciar os protestantes a obrarem de concerto
religião poderia fazer a guerra a um ou­ com elle, relativamente ao logar onde o
tro: que haveria entre todos uma amizade concilio se devia reunir.
sincera, c uma concordia christã; que se Além d’isso, Carlos v, que via que o
durante um anno o concilio não se re­ papa não queria cmpenhal-o na guerra
unisse, os estados d’Allcmanha se reuni­ contra os protestantes, senão para o impe­
ríam para regular as cousas da religião, e dir de se apoderar de Milão, dizia que
que o imperador suspendería todos os pro­ para justificar esta guerra era preciso
cessos intentados por motivos de religião, convocar um concilio, para fazer vòr que
por seu fiscal, ou por outros, contra o elle não tinha tomado as armas senão de­
eleitor de Saxe e contra os alliados, até á pois de haver tentado todos os outros meios.
convocação d’um concilio, ou a assembléia O papa convocava, portanto, o concilio
dos estados. em Mantua, mas o duque 'de Mantua,
Logo que Carlos v expelliu os turcos da recusou a cidade, c o concilio foi crafim
Áustria, passou á Italia, para pedir ao papa indicado cm Trento, com o voto de Carlos v,
a reunião d’um concilio que podesse re­ e do Francisco i.
mediar os males d’Allemanha. O papa O império estava ameaçado d’uma guer­
consentiu em indicar um; mas queria que ra eminente da parte dos*turcos, e o impe­
os protestantes promettessem de se sub- rador pedia soccorro aos principes protes­
metter a elle, e que os principes catholi­ tantes, que recusavam constantemente dar-
cos se obrigassem a tomar a defesa da lh’o, a menos que não lhes dessem certe­
Igreja, contra aquelles que se recusassem za cTentreter a paz da religião, c de que
submetter. não seriam obrigados a obedecer ao con­
Os principes protestantes recusaram es­ cilio de Trento. Nada foi capaz de os fazer
tas condições. Clemente v i i morreu, e Pau­ mudar de resolução, e o imperador reno­
lo ui, que lhe succcdeu, resolveu reunir vou todos os tractados feitos com os pro­
um concilio em Mantua, mas os protestan­ testantes até á dicta proxima, que elle in­
tes declararam que não se submettiam dicou para o mez de janeiro seguinte, em
nunca a um concilio tido na Italia; elles Ratisbonna, em 1549.
queriam além cTisso que os seus doutores Emquanto o concilio se reunia, o eleitor
tivessem voz deliberativa no concilio. palatino introduziu nos seus estados a
0 concilio, que tinha sido olhado como communhão de calice, as preces publicas
o unico meio de reunir os protestantes á em lingua vulgar, o casamento dos sacer­
Igreja, tornava-se, pois, impracticavel. dotes, e outros pontos da reforma.
O landgrave de Hesse nada esquecia Foi n’este mesmo anno qúe Luthero
para reconciliar os lutherauos com os morreu em Isleb, aonde tinha ido para
zuinglianos, que, apesar da necessidade de terminar as contestações que se haviam
se unirem para se sustentar contra as ar­ erguido entre os condes de Manfeld.
mas dos principes catholicos, não’ cessa­
vam de se atacar.1 DO LUTHERANISMO, DEPOIS DA MORTE
DE LUTHERO A TÉ Á PAZ RELIGIOSA
1 Luthero, t. i. Sleidan, I 16. Hist. des
Variat., I. 8 . O imperador convocára em ,Ratisbon-
LUT 643
na uma conferência, a fim do terminar lio em Trcnto, c vendo que seria difiicil
as disputas religiosas, q u e. perturbavam obtel-o, procurou outros meios de pacificar
a Allcmanha por via das consciências. a Allemanha.
Quando chegou a Uatisbonna, a conferên­ Confiou-se ao imperador o cuidado d’es-
cia estava já interrompida: ellc se lasti­ colher as pessoas mais proprias para com­
mou amargamente, c quiz que cada um por um formulário, que podesse convir a
propozesse o que sabia de mais proprio Iodos os partidos: estes theologos eompo-
para pacificar a Allcmanha: os protestan­ zoram um formulário dc religião, que foi
tes requereram um concilio nacional, mas em seguida examinado, e corrigido succes-
os embaixadores de Mavença c de Troves sivamente por protestantes c por catholi­
approvaram o concilio de Trcnto, e suppli­ cos, aos quaes Fernando o cominunicava
caram ao imperador que o protegesse. para ter a sua approvação.
O imperador aprovcitou-sc d’csta dispo­ Este formulario continha os objectos que
sição, c se preparou para fazer a guerra se deviam crèr, attendendo que o concilio
ao'$ protestantes. Ligou-se coin o papa, que geral o tivesse inteiramente decidido: este
lhe forneceu dinheiro, c promclteu levar a formulario foi chamado o Ínterim.
metade das rendas da igreja dTIcspanha. O interim de Carlos v desagradou aos
€arlos v tractava, portanto, de publicar protestantes c aos catholicos; os protestan­
que não fazia a guerra por motivos de re­ tes recusaram, pela maior parte, recebel-o,
ligião: porém o eleitor de Saxe, e o land- ou o receberam com tantas rcstricções,
grave dTIcsse publicaram um manifesto que o aniquilaram.
para fazer vér que esta guerra era uma O imperador encontrou muito mais dif-
guerra de religião, e que o imperador não ficuldadc na baixa Allemanha; a maior
tinha que queixar-se d’elles, nem alguma parle das cidades de Saxe recusaram re-
pretenção justa contra elles. cebel-o, e a cidade de Magdebourg o rejei­
Os protestantes se prepararam com prom- tou com tanto despréso, que foi exautora-
plidão para a guerra, c levantaram um da, c sustentou longa guerra, que ali­
exercito, que não impediu Carlos v de sub- mentou na baixa Allemanha um fogo, que,
mclter a alta Allcmanha. No anuo seguinte tres annos depois, consumiu os trophéos
os protestantes foram derrotados, e o elei­ dc Carlos v.
tor de Saxe foi prisioneiro. O landgravc Apesar do risco que se corria escreven­
d’Hesse pensou então em fazer a paz: veio do contra o interim, viu-se appareccr uma
procurar o imperador, c foi retido con­ multidão d’obras contra este formulario,
tra a palavra expressa que o imperador da parte dos catholicos e dos protestantes.
lhe havia dado. Entretanto, Carlos v não abandonava o
O imperador levantou então grossas som- projecto de fazer receber o interim: para.
jnas sobre toda a Allcmanha, para a inde- ter bom exito, empregou as ameaças, c as
mnisaçào, dizia clle, dos gastos da guerra, carícias: forçou muitas cidades e* estados
que não havia emprehendido senão para a recebei-o, mas revoltou todos os espíri­
bem d’ella mesma. tos.
O partido protestante parecia abatido; O concilio estava restabelecido cm Tron-
todavia ainda havia cidades que resistiam to, c Carlos v creu que ellc poderia restabe­
ao imperador, c os povos conservavam to­ lecer o socego; empregou tudo para obter
do o seu aíTerro á reforma: o proprio Car­ que os protestantes podessem ser executa­
los v tinha concedido a algumas cidades a dos no concilio, porém os protestantes e os
liberdade de conservar a religião luthera- bispos catholicos não poderam nunca con­
na, e Maurício, duque dc Saxe, tractára vir sobre o modo porque os protestantes
com bondade Mélancton e os theologos de seriam admittidos na assembléia, e sobre
Wirtemberg; ellc até os cxhorlava a con­ o caracter que tomariam.
tinuarem seus trabalhos. Emquanto que a politica de Carlos v
O imperador manifestava um grande julgava fazer servir alternativamente o
desejo de terminar as contestações da reli- papa e os protestantes a suas vistas c in­
* gião, que perturbavam a Allcmanha; teve teresses, todos os espíritos se sublevaram
uma dieta em 1574, na qual exigiu sub­ contra ellc. Henrique u aproveitou-se das
missão ao concilio de Trcnto; mas o papa suas disposições, e fez um tractado cora
havia transferido o concilio para Dolonha, Maurício dc Saxe e com os protestantes:
e esta trasladarão, que não fora approvada entrou era Lorraine, tomou Toul, Metz, e
pelos padres, tinha feito parar todas as Ycrdun, emquanto que Maurício de Saxe, á
operações do concilio. O imperador exigiu, testa dos protestantes, deu a liberdade ao
pois, que o papa fizesse continuar, o conci­ duque.
€44 LUT
Carlos v sentia que não podia resistir a gressos occultos da religião protestante, o
todos estes inimigos; fez a paz com os pro­ o estabelecimento da inquisição, subleva­
testantes; deu a liberdade ao duque de ram os Paizes-Baixos contra Philippe, e fi­
Saxe e ao landgravc d’Hesse. Por este zeram dos seus estados o theatro de uma
tractado de paz, concluído em Passaw, con­ guerra longa e cruel, que desmembrou pa­
vieram que nem o imperador, nem algum ra sempre a Hollanda da monarchia hespa-
outro principe, poderia forçar a consciên­ nliola, e ahi estabeleceu o ealvinismo.
cia nem a vontade de qualquer sobre a A paz religiosa não sulfocou as dissen-
religião, de qualquer modo que fosse. En­ çòes da Allemanha: esta paz não esta ví
tão viram-sc todas as cidades protestantes ainda concluída, quando se arguiram de
chamar de novo os doutores da confissão uma parte c d’outra de diversas fracções,e
d’Augsbourg; entregaram-se-lhes as suas se aceusava o partido contrario de as ter
igrejas, as suas escolas, e o exercício livre praclicado; não havia juiz que podesse pro­
da sua religião, até que a proxima dieta nunciar sobre estas infracçòcs; os dous par­
achasse um meio d’cxtinguir para sempre tidos recusavam-se reciprocamente.
o principio d’eslas divisões. Os protestantes não estavam mais uni­
Finalmente, tres annos depois fez-se em dos entre si, tinham-se dividido entre Zain-
Augsbourg a paz, que se chamou a paz glio e Luthero: a principal diíTerénça que
religiosa, e se inscreveram os artigos en­ os dividia logo, consistia na presença rcalr
tre as leis perpetuas do império. que Luthero reconhecia e que Zuinglio ne­
Os principaes artigos são: Que os pro­ gava: o landgravc de Hesse fizera inutil­
testantes gosarão da liberdade da con­ mente tudo o que podia para conciliar es­
sciência, c que nem um nem outro partido tas duvidas; muitos dos lulheranos junta­
poderá usar d’alguma violência, sob pre­ vam á confissão d^ugsbourg um escripto
texto de religião; que os bens ecclesiasti­ chamado Formulario de Concordia, por
cos, de que os protestantes se tinham apo­ meio do qual condemnavam a doutrina dos
derado, permanecerão seus, sem que se zuinglianos; sustentavam até que estes ulti­
possa tiral-os em processo para isso peran­ mos não tinham direito algum á liberdade
te a camara de Spira; que os bispos não de consciência concedida aos da confissão
terão jurisdicção alguma sebre os da reli­ d’Augsbourg, porque tinham abandonado
gião protestante, mas que elles proprios se esta confissão.
governarão como o acharem conveniente: Os principes lutheranos obravam, na
que nenhum principe poderá attrahir á verdade, com mais moderação, mas não
sua religião os subditos d’outro, mas que recebiam os principes zuinglianos em suas
será permiltido aos subditos d’um princi­ assembléias senão como por favor, queren­
pe que não seja da mesma religião que el­ do muito que elles gosassem os privilégios,
les, vender seus bens, e sahir das terras que, fallando a verdade, não lhes perten­
da sua dominação; que estes artigos sub­ ciam: chegavam finalmente a expulsar, de
sistirão até que *se tenha decidido ácerca uma parte e d’outra, os theologos que não
da religião por meios legitimos. eram do sentimento dos principes.
Apesar d’estas divisões, a religião protes­
tante progrediu na Allemanha: os bispos do
DO LUTHERANISMO; DEPOIS DA PAZ RELIGIOSA Alberstad e de Magdbourg, abraçando-a, ti­
A TÉ Á PAZ DE W ESTPHALIA nham conservado os seus bispados na oc-
casião cm que o eleitor da Colonia, quo
quizera fazer a mesma cousa, havia perdi­
A ultima liga dos protestantes tinha sido do o seu logar e a dignidade de eleitor que
•o escolho do poder de Carlos v; o rei de o imperador lhe tirara de sua unica von­
França, que se havia reunido aos protes­ tade, sem consultar os outros eleitores: fez-
tantes, havia tomado os tres bispados. O se então uma união entre os principes cal-
imperador, depois de ter feito a sua paz vinistas e alguns dos lutheranos para se
com os protestantes, levantou um exercito oppôr aos catholicos que queriam oppri-
numeroso, e assediou Metz: esta empreza mil-os; mas esta união não produziu eífei-
foi o termo das suas prosperidades; elle to algum, porque o eleitor de Saxe, des­
foi obrigado a levantar o cerco, e resolveu contente do seu comportamento, e irritado
acabar os seus dias no retiro. Resignou o por seus theologos, tanto como pelos catho­
imperio a Fernando, seu irmão, e collocou licos, se persuadiu que os ealvinistas pro­
Philippe, seu filho, no throno de Hcspanha. curavam sómcnto opprimir não só os lu­
. O governo duro d’este prinçipe, a fereza theranos, mas também os catholicos.
o imprudência de seus ministros, os pro­ Os catholicos da sua parte fizeram uma
LUT 643

liga em Wirtzbourg, que elles chamaram creu poder apoderar-se do mar Baltico:
a Liga Catholica, cm opposição ã dos pro­ Walstcin entrou em Pomcrania, e declarou a
testantes, que se chamava a* União Evan­ guerra ao duque sob pretexto de que ha­
gélica. Maximiliano de Baviera, antigo ini­ via bebido á saude do imperador com cer­
migo do eleitor palatino, foi o seu chefe. veja.
O imperadores Fernando i, Maximiliano Gustavo Adolpho, rei da Suécia, Viu
ii e Bodolfo ii toleravam os protestantes, quanio era necessario oppôr-se ao projecto
em virtude de grandes sommas que lhes do imperador, e depois d’algumas negocia­
tinham extorquido; concederam-lhes privi­ ções, tentadas inutilmente e rejeitadas pelo
légios, que Mathias quiz em vão tirar: de­ imperador com despròso, este principe de­
pois de os ter obrigado a revoltar-se, e de­ clarou guerra ao imperador, e entrou em
pois de ter sido vencido, fura violentado a Pomcrania.
confirmar de novo os privilégios que Bo­ A França, os Estados-Unidos, a Inglater­
dolfo ii tinha concedido aos bohcmios, e a ra, a Ilespanha, n’uma palavra toda a Eu­
deixar-lhes a academia de Praga, um tri­ ropa tomou parte n’esta guerra, que durou
bunal de indicatura n’esta cidade, c a liber­ 30 annos, e acabou por uma paz geral, com
dade de cdificar templos, com juizes e de­ a qual os principes e os estados, tanto lu-
legados para a conservaçào de seus privi­ theranos como zuinglianos ou calvinistas
légios. obtiveram o livre exercício da sua religião
O numero de protestantes augmentava do consenso unanime do imperador, dos
todos os dias: a casa d’Austria c seus al- eleitores principes c estados das duas reli­
liados resolveram oppòr-se ao seu adian­ giões. Foi além d’isso ordenado que nas as­
tamento, e para o conseguir fizeram eleger sembléias ordinarias e na camara imperial
rei da Bohemia Fernando 11. Este princípc o numefo de chefes d’uma e d’outra reli­
tinha muito zelo pela religião catholica; to­ gião seria igual.
davia prometteu solemnemente que nunca Toda a Europa garantiu a execução d’es-
tocaria nos privilégios outhorgados pelos te tractado entre os principes protestantes
seus predecessores aos bohemios, c que e os principes catholicos da Allemanha.
não se embaraçaria com a administração O núncio Fabiano Chigi oppôz-se a iste
do reino durante a vida de Mathias. com todo o seu poder, e o papa Innocencio
Pouco tempo depois os protestantes qui- x, por uma Bulla, declarou estes tractados
zeram fundar templos nas terras dos catho­ nullos, vãos, reprovados, frivolos, inváli­
licos; estes oppozeram-se. Os protestantes dos, iniquos, injustos, condemnados, sem
tomaram as armas, excitaram uma sedi- força, e que ninguem era obrigado a obser-
çào, lançaram pelas jancllas tres magistra­ val-os, ainda que fossem fortificados por
dos de Praga: no campo toda a Bohemia um juramento.
se armou, e os protestantes pediram soc- Não guardaram mais respeito á Bulla
corro a seus irmãos. de Innocencio do que á protestação do seu
Tendo fallecido Mathias, Fernando quiz núncio. Vede a historia da Suécia, por Puf-
inutilmente tomar a administração da Bo­ fendorf, e a historia do tractado de West-
hemia; os bohcmios recusaram reconhe- phalia, pelo P. Bougeant.
cel-o por seu rei: elles declararam-no exau-
torado de todos os direitos que podería ter
sobre a Bohemia, pois que a cila havia envia­ DO LÜTHERANISMO NA SUÉCIA
do tropas durante a vida de Mathias. Ele-
geu-se em seu logar o eleitor palatino, que
acceitou a corôa, mas que depressa a aban­ A Suécia era catholica quando Luthero-
donou, não podendo mesmo conservar seus apparcceu; dous suecos, que tinham estu­
antigos estados. dado com elle em Wirtemberg, levaram a
As tropas de Fernando não foram me­ sua doutrina para a Suécia; estava-se en­
nos felizes contra o duque de Brunswick, tão na força da revolução, que roubou a
chefe do mesmo partido. Suécia ao rei da Dinamarca, e que collo-
Tudo se curvava pois debaixo da autho- cou no throno Gustavo Vasa: não se per­
ridade imperial, e o imperador publicou um cebeu o progresso do lutheranismo.
edito em 1629, onde declarava que todos Gustavo, collocado no throno da Suécia,
os bens ecclesiasticos, de que os protestan­ d’onde acabava de expulsar o cunhado do
tes se tinham apoderado depois do tracta- imperador, tinha a receiar a authoridade
do de Passaw, seriam restituidos aos catho­ do papa consagrado a Carlos v, e o credi­
licos. to do clero, sempre favoravel a Chris­
Apoiado n’cstes successos, o imperador ti em o ,a pesar de sua tyrannia; alémd’isso
m LUT
Gustavo queria mudar o governo da Sué­ fazia succeder dcxtramenlc estas declara­
cia, e reinar como monarcha absoluto em ções umas ás outras, e cilas não appare-
um paiz onde o clero era mantido om seus ciam senão a proporção do progresso que
direitos, no meio do despotismo e da ty- fazia o lutheranismo.
rannia de Christierno, e que formava, para O clero preveu os projectos de Gustavo
assim dizer, um monumento sempre sub­ sem poder suspcndel-os; a habilidade d’cs-
sistente da liberdade dos povos c dos limi­ te prineipe prevenia todas as suas tentati­
tes impostos á authoridade real. vas, c tornava todos os seus esforços inú­
Gustavo resolveu, pois, aniquilar na Sué­ teis. Despojou successivamente os bispos
cia o poder do papa e a authoridade do cle­ de seu poder e de seus bens. Ellc protes­
ro; Luthero havia produzido este duplo ef- tava comtudo que era muito affoiçoado á
feito n’uma parte da Allemanha por suas religião catholica; porém quando viu que
declamações contra o clero; Gustavo favo­ a maior parte dos suecos tinha mudado de
receu o lutheranismo, e deu secretamente religião, declarou-se cmfim a si proprio lu-
ordem ao cavalheiro Anderson de proteger therano, c nomeou para o arcebispado de
Pétri e os outros lutheranos, c de lhes at- Upsal Lourenço Pétri, ao qual fez desposar
trahir as universidades da Allemanha. uma filha de seus parentes.
Eis a verdadeira causa da mudança de O rei fez-se cm seguida coroar por este
religião na Suécia: ó faltar á equidade e prelado, e depressa a Suécia se tornou
ao discernimento, attribuil-a às indulgên­ quasi toda luthcrana. O rei, os senadores,
cias publicadas na Suécia pelos olíiciaes de os bispos e toda a nobreza fizeram profis­
Leão x, como diz o author d’um tractado são pública d’esta doutrina; mas como a
de historia ecclesiastica. 1 maior parte dos ecclesiasticos de segunda
Olaus e outros lutheranos, confiados na ordem c os curas do campo não tinham to­
protecção do chanccller, trabalharam ar­ mado este partido senão por constrangi­
dentemente para o estabelecimento do lu­ mento o fraqueza, via-se em muitas igre­
theranismo: expunham-no todos os dias jas do reino uma mistura extravagante de
com o zelo e transporte proprio para su- ceremonias catholicas e de orações luthc-
blevar os povos contra a Igreja. ranas; sacerdotes c curas casados diziam
A maior parte d’estes doutores tinham a ainda a missa em muitas passagens, segun­
superioridade da sciencia e da eloquência do o ritual e a liturgia romana; adininis-
sobre o clero, e mesmo certo ar de regu­ trava-se o sacramento do baptismo com as
laridade que dão os primeiros favores de orações e os exorcismos como na igreja ca­
uma religião nova: eram escutados com tholica; enterravam-se os mortos" com as
•prazer pelo povo sempre ávido de novida­ mesmas preces que se empregam para sup-
des. e que as adopta sem exame, logo que plicar a Deus a consolação das almas dos
nãó exijam sacrificio, c que não tendam fieis, posto que a doutrina do Purgatorio
senão a abaixar os superiores. Uma appa­ fosse condemnada pelos lutheranos.
renda de favor que se espalhava impercc- O rei quiz estabelecer um culto unifor­
■ptivelmente sobre os pregadores luthera­ me no seu reino; convocou uma assem­
nos, lhes attrahia a attcnçào da côrte c da bléia geral de todo o clero da Suécia, em
primeira nobreza, que não via ainda senão forma de concilio.
os prelados atacados. O chanceller presidiu á assembléia em
Emquanto que estes doutores prégavam nome do rei; os bispos, os doutores c os
publicamente o lutheranismo, Gustavo pela pastores das principaes igrejas compozc-
sua parte procurava com aíTectação diffe­ ram este concilio lutherano. Pediram a
rentes protestos para destruir o poder tem­ confissão d’Augsbourg para regra de fé:
poral dos bispos e do clero; atacou, afórà renunciaram solemnemente á obediência
isso, os ecclesiasticos da segunda ordem, e que votavam ao chefe da Igreja; ordena­
apoz clles os bispos. Exhibiu successiva- ram que se abolisse inteiramente o culto
mente muitas declarações contra os curas da igreja romana; defenderam a oração
•e bispos cm favor do povoe sobre objectos dos finados; receberam das igrejas lnlhe-
puramente temporaes, taes como a decla­ ranas da Aílemanha a maneira de adminis­
ração que prohibe aos‘ bispos de se apro­ trar o baptismo e a ceia; declararam os ca­
priarem dos bens e da successão dos ec­ samentos dos sacerdotes legitimos; pro­
clesiasticos das suas dioceses: este príncipe screveram o celibato; approvaram de novo
a ordenação que os havia despojado de
t Tractado da Historia Ecclesiastica, seus privilégios e da maior parte de seus
com reflexões, em treze volumes, t. 9 , 1 3 3 bens: e os ecclesiasticos que fizeram estes
* 134. regulamentos eram quasi os mesmos quo
LUT 647

um anno anles tinham apparcntado tanto tou-se a Dantzich para ahi estabelecer o Iu-
zelo pela defesa da religião. theranismo: não exerceu immcdiatamente
Tiveram, todavia, grande diíficuldade cm o seu apostolado sem precaução, ensinan­
•abolir a práctica e a disciplina da igreja do-o apenas nas casas particulares. No an­
romana na administração dos sacramentos: no seguinte um religioso da ordem de S.
ouviam-se a este respeito queixumes em Francisco pregou muito mais abertamente
todo o reino, de sorte que Gustavo temeu contra a igreja romana, e persuadiu mui­
os eíTeitos do descontentamento dos povos, tas pessoas. Estes novos proselytos lança­
u ordenou aos pastores e aos ministros lu- ram os catholicos fóra dos cargos c dos lo-
theranos, que usassem de coudescendencia gares que occupavam, e encheram a cida­
para com aquclles que roçavam com obsti­ de de perturbações.
nação as antigas ceremonias, e que não es­ Os catholicos*, despojados dos seus em­
tabelecessem as novas senão quando achas­ pregos, levaram as suas queixas aos pés de
sem disposições favoráveis nos povos. 1 Segismundo i, que veio a Dantzick, despe­
diu os magistrados intrusos, puniu severa­
mente os sediciosos, e tirou aos evangéli­
DO LUTHERANISMO NA DINAMARCA
cos ou lutheranos a liberdade de se reu­
nirem.
Os dinamarquezes, depois de terem ex­ Entretanto os lutheranos espalhavam se­
pulsado Christierno ii, elegeram para rei cretamente a sua doutrina na Polonia; fa­
Frederico, duque de Holstein. Christierno ziam proselytos, e não aguardavam senão
voltou á Dinamarca, onde foi preso por uma occasião opportuna para manifestar-
Frederico, c encerrado em Callembourg. se com arruido.
Frederico teve por successor seu filho Esta occasião chegou no reinado do Se­
Ghristierno m, que encontrou grandes op- gismundo Augusto, filho de Segismundo í:
posições no começo do seu reinado; a cau­ este principe, aliás com qualidades brilhan­
sa era porque Christovão, conde d’Odem- tes, era fraco, voluptuoso, sem caracter, e
bourg, c a cidade de Lubeck queriam res­ tornou-se Ioucamenle apaixonado de Rad-
tabelecer Christierno n em seu reinado; zevil; quiz desposal-a e declaral-a rainha;
mas, posto que muitas provincias se tives­ necessitou do consentimento dos palatinos
sem já entregado, elle venceu todos estes e do senado, e teve respeitos e condescen­
obstáculos com o auxilio de Gustavo, rei dendas para com a nobreza.
da Suécia, e se tornou senhor de Copenha- Entre os senhores e os palatinos muitos
gue em 1536; c porque os bispos lhe ti­ tinham adoptado as opiniões de Luthero, fi­
nham sido.mui contrarios, foram excluídos zeram profissão publica da reforma, cila se
do convenio geral e depostos dos seus car­ estabeleceu em Dantzick, na Livonia e nos
gos. dominios de muitos palatinos.
0 rei fez-se coroar por um ministro pro­ Depressa a Polonia se tornou um asylo
testante, que Luthero lhe havia iniciado. para todos aquelles que professavam os
Este novo apostolo quiz fazer de papa sentimentos dos pretendidos reformadores.
na Dinamarca: em logar de sete bispos Blandrat, Lelie Socin, Okin, Gentilis e mui­
que havia no reino, ordenou sete intenden­ tos outros, que tinham renovado o arianis-
tes parapreeucherem para o futuro as func- mo, refugiaram-se na Polonia. Estes re-
ções dos bispos, e fazer executar os regu­ cem-vindos attrahi ram logo a attenção e
lamentos que diziam respeito á ordem ec­ formaram um partido, que assustou igual­
clesiastica. Practicou-se a mesma cousa no mente os catholicos e os protestantes.
reino da Noruega. A Polonia estava repleta de todas as sei­
Tal foi o estabelecimento do lutheranis- tas, que despedaçaram o christianismo, que
mo na Dinamarca. 2 se faziam todas uma guerra cruel, mas que
se reuniam contra os catholicos, e que for­
DO LUTHERANISMO NA POLONIA, NA HUNGRIA mavam um partido assaz poderoso para
E NA TRÀNSYLVANIA forçarem os catholicos a conceder a todos a
liberdade de consciência* c sob o reinado
No anno 1520 um lutherano transpor- de varios reis, em virtude dos Pacta con­
venta, era permittido aos polacos ser hus-
1 Pujjfcndorf. Hist. Suec. Bazius, Hist. sitas, lutheranos, sacramentarios, calvinis-
Eccles. Suec. Revolução da Suécia, de Ver- tas, anabaptistas, arianos, pinezonianos, uni­
totjt.l. tários,- trideistas, socinianos e antitrinita-
1 Puffendorf, Introd. á Hist. Universal, rios: tal foi o efTeito que a reforma produ­
t. 3, c. 2. ziu na Polonia.
648 LÜT
Os socinianos foram banidos; os outros processo, c foi queimado como um sacri­
sectarios gosam da tolerância. 1 lego.
O lutheranismo introduziu-se também na Os theologos, que haviam instruído Le-
Hungria na occasião das guerras de Fer­ Clerc, sahiram de Meaux; c alguns torna-
nando c de João de Sepus, que disputa­ ram-se ministros entre os reformados.
vam este reino; estabeleceu-se principal­ Um nobre d’Artois tomou uma via m ais
mente quando Lazaro Simenda, tendo che­ segura para espalhar os erros de Luthero:
gado ahi com as suas tropas tomou muitas traduziu as suas obras. Os erros luthera-
cidades, nas quacs collocou ministros lu- nos espalharam-se pois principalmente en­
theranos, e d’onde expulsou os catholicos; tre os que sabiam lêr, c os lutheranos fo­
elles uniram-se algumas vezes aos turcos, ram tractados desde logo com mais atten-
que os sustentaram contra os imperadores, ções no reinado de Francisco i. Este prin­
e obtiveram o livre exercício da confissão cipe, amigo das letras c protector das pes­
d’Augsbourg. soas lidas, usou logo de muita indulgência
Na Transylvania o lutheranismo e a re­ para com aquellcs que seguiam as opiniões
ligião catholica foram alternativamente a de Luthero; mas alfim o clero, espantado
religião dominante: a segunda foi quasi do progresso destas opiniões em França,
abolida no reinado de Gabriel Battori, e obteve do rei editos mui severos contra
não principiou a estabelecer-se senào de­ aquellcs que fossem convencidos de luthe­
pois qne o imperador Leopoldo se tornou ranismo; e emquanto que Francisco i de­
senbor d’ella. fendia os protestantes da Allemanha con­
O kuheranismo estabeleceu-se também tra Carlos v, fazia queimar em França os
em Courlande, onde se tem conservado, e sectarios de Luthero.
tornado a religião nacional. O rigor dos castigos nào evitava o pro­
gresso do erro, e os discipulos de Luthero
e de Zuinglio se espalharam em França: Cal­
DO LUTHERANISMO F.M TRANÇA E EM OUTROS vino adoptou os seus princípios e formou
ESTADOS DA EUROPA uma seita nova, que suíTocou o lutheranis­
mo em França. Vede o artigo Calvinistno.
O lutheranismo feç progressos mais ra­
A faculdade de theologia condemnou os pidos c mais extensos nos Paizes-Baixos,
erros de Luthero quasi no seu nascimento. onde havia uma inquisição, mais abusos e
Esta censura solida, imparcial e sabia não muito menos illustraçãó que em França:
suspendeu a curiosidade: quizeram-se co­ fizeram lá morrer um grande numero de
nhecer as opiniões de um homem que ti­ lutheranos: estes rigores e a inquisição
nha dividido a Allemanha em duas facções, causaram a revolução, que arrebatou as
e que luetava contra os papas e contra o Provincias-Unidas a Hcspanha.
poder imperial. Os sectários de Zuinglio e de Calvino pe­
Léram-se as suas obras, e teve approva- netraram nos Paizes-Baixos, como os lu­
ções; porque ó impossível que um homem theranos, e tornaram-se a seita dominante.
que ataca abusos nào encontre approvado- Védc o artigo Ilollanda.
res. Na Inglaterra, Henrique vtu escreveu
Alguns ecclesiasticos, aíTciçoados ao bis­ •contra Luthero, e tractou rigorosamente os
po de Mcaux, adoptaram algumas das opi­ que adoptavam os ei'ros d’este reformador
niões de Luthero; communicaram-no a al­ c os dos sacramentados: disputava contra
gumas pessoas simples c ignorantes, mas elles, e os fazia queimar quando não os po­
capazes de se inflammarem e de transmit- dia converter.
tirem o seu enthusiasmo; tal foi João Le Eduardo vi tolerou-os, c mesmo os favo­
Clerc, cardador de lã, em Meaux, que foi receu: a rainha Maria, • que succedeu a
nomeado ministro do conventiculo que ti­ Eduardo, os fez queimar: Elisabeth, que
nha adoptado as opiniões lutheranas. succedeu a Maria, perseguiu os catholicos,
Este homem, d’um caracter violento, pre­ e estabeleceu om seu reino a religião pro­
gou logo publicamente, e declarou que o testante, que tinha já ganho toda a Escó­
papa era o Anti-Christo: foi préso, marea­ cia. Védc o artigo Inglaterra.
do e banido do reino; rétirou-se a Metz, on­ A Italia, a Hespanha e Portugal não es­
de, tornando-se furioso, entrou nas igrejas caparam aos erros de Luthero; comtudo os
c despedaçou as imagens: fez-se-lhe um, •lutheranos não poderam formar ahi um
partido considerável.

i Hist. do Socinianismo, i . 1 •parte.


LUT 649
DO SYSTEMA TREOLOGICO DE LUTIIERO do qual cada fiel diz:—cu creio que Jesus
Christo morreu por mim.
Eis o principio fundamental, ou antes to­
É o nome que se dá á collecoão dos er- da a doutrina de Luthero sobre a justifica­
tos de Lulhero. ção.
Este theologo atacou primeiro os abusos Como só a satisfação de Jesus Christo é
<las indulgências c cm seguida as proprias o principio justificante, c que elle nos é ap-
indulgências. Para as combater examinou plicado pelo acto de fé, no qual o fiel diz:
a natureza c a extensão do poder que a —eu creio que Jesus Christo morreu por
Igreja tem, rclativamcntc á remissão dos mim; é claro que as acções c as obras de
pcccados, pretendeu que o poder de desli­ caridade, de penitencia, etc., são inúteis
ga r não era differente do de ligar, fundado para a justificação dos christãos. Luthero
nas palavras do proprio Jesus Christo, o cria, portanto, que quando por este acto de
que vós desligardes será desligado. Poder fé o fiel se applicou realmente aos mereci­
que, segundo Luthero, não podia estender- mentos de Jesus Christo, faz boas obras; po­
se senão a impôr aos fieis laços por meio rém não é menos evidente que no seu sys­
dos canones, a absolvcl-os dás penas em tema estas boas obras são absolutamente
que incorreram, violando-as, ou a dispen- inúteis para nos tornar agradaveis a Deus,
sar-lh’as; c não a absolvcl-os de todos os c para merecer a seus olhos, posto que se­
peccados que commettcram: porque quan­ jam feitas com a graça.
do um homem pecca nuo é a Igreja que o Eu digo: eis o verdadeiro systema de
liga ou que o torna culpavel, é sim a jus­ Luthero, tal qual elle o ensina’expressa­
tiça divina. mente. 1
D’ahi Luthero concluiu que só Deus per­ D’ahi Luthero concluía que cada fiel de­
doa os peccados, e que os ministros dos sa­ via crêr firmemente que eslava salvo, c que
cramentos não faziam mais que declarar o homem não podia fazer más acções, logo
que estavam perdoados. que se tivesse justificado pela fé. Estas con­
Luthero não concluiu com isto que a sequências arrastaram Luthero a mil absur­
absolvição e a confissão fossem inúteis; elle dos e a mil contradicções, que M. Bossuet
queria conservar a confissão como um meio fez sentir admiravelmente. 2
proprio a excitar cm nós as disposições a Eis o verdadeiro systema, a verdadeira
que a remissão dos peccados está ligada. 1 doutrina de Luthero; cm suas disputas e
Se a absolvição sacramental não justifi­ cm seus commentarios elle adoçou os seus
ca, qual é pois o principio da nossa justifi­ princípios sobre a inutilidade das boas
cação? obras; é uma contradicção; e tudo o que M.
Elle ve na Escriptura que era por Jesus Basnage disse a este respeito não prova
Christo que todos os homens tinham sido nada de mais. 3
resgatados, e além d’isso que era pela fé D’estcs princípios Luthero deduziu que
em Jesus Christo que éramos salvos; con- os sacramentos não produziam nem a gra­
clue d’ahi que era pela fé que os meritos ça, nem a justificação; e que elles não eram
de Jesus Christo nos eram applicados. senão symbolos destinados a excitar a nos­
Mas qual é esta fé, pela qual os meritos sa fé, e ’a fazer-nos produzir este acto em
de Jesus Christo nos são applicados? Não que o fiel diz:—Eu creio que Jesus Christo
é sómente a persuasão ou crença dos me­ morreu por mim.
ritos da religião, ou como elle mesmo diz, Foi ainda por uma consequência d’cstcs
a fé infusa, porque ella póde subsistir com princípios que Luthero tirou do numero
o pecoado mortal. dos sacramentos todos os que não julgou
A fc que nos justifica é um acto pelo proprios para excitar a fé; não conservou
qual crémos que Jesus Christo morreu por senão o baptismo e a Eucharistia.
n ó s. Estes princípios de Luthero sobre a jus­
Luthero concebia, pois, a satisfação e os tificação não eram contrários aos seus sen­
merecimentos da morte de Jesus Christo timentos sobre as forças moraes do ho­
como um thesouro immenso de graça c mem, que elle julgava necessitado em
justiça, preparado para todos os homens todas as suas acções. Luthero fundava esta
em geral, e cuja applicação os fieis deter­ impotência do homem sobre a corrupção
minam, formando um acto de fé, por meio
1 Luth. Opt. t. i , disp. de Fide, de Justi-
fic. de Operibus.
1 Op. Luth. t. 2. Cone. de Indulgentiis, 2 Hist. das Variat. I. 1.
foi. 30, 31. 3 Hist. das Igrejas Reformadas.
650 LUT
da sua natureza, c sobre a certeza da pre- peccados não só são dissimulados, mas até
sciencia divina, que se aniquilaria se o ho­ inteiramente destruídos pelo sangue do Je­
mem fosse livre. sus Christo, c pela graça que nos regene­
D’csta impotência do homem, Luthero ra: o que longe de obscurecer ou diminuir
conclue que Deus fazia tudo no homem, a ideia que se deve ter do merecimento-
que o peccado era obra sua, assim como a d’cste sangue; a augmenta pelo contrario c
virtude; que os preceitos de Deus eram im­ a eleva.
possíveis aos justos logo que nào os cum­ «Portanto a justiça dc Jesus Christo é
prissem, c que só os predestinados obti­ não sómente imputada, mas actuahnente
nham a graça. communicada aos seus fieis por obra do
Luthero atacou, além d’isso, tudo o que Espirito Sancto; de sorte que ellcs são re­
pôde atacar no dogma c na disciplina da putados e tornados justos por sua graça.
igreja catholica; combatia o dogma da «Se a justiça que existe em nós não fos­
transubstanciaçào, a infallibilidade da igre­ se justiça senão aos olhos dos homens, não
ja, a authoridado do papa, renovou os er­ seria nunca obra do Espirito Sancto: ella
ros de W iclef c dc João Hus sobre a natu­ é pois justiça mesmo diante de Deus, pois
reza da Igreja, sobre os votos c sobre a ora­ ue foi Deus que a fez cm nós, cspalhan-
ção dos finados. o a caridade cm nossos corações.
Todos estes erros estão expostos na Bul­ «Todavia é demasiado certo*que a carne
la de Leão x o nos artigos condemnados combate contra o espirito e este contra a
pela Sorbona. carne, e que nós claudicamos todos cm
Refutamos os erros dc Luthero sobre a muitas cousas; por conseguinte ainda que
hierarchia no artigo A no; sobre os vo­ a nossa justiça seja verdadeira pela infusão
tos e o celibato no artigo Vigilando; seus da caridade, nào é com tudo perfeita por
erros sobre a Igreja no artigo Donatistas; causa da lucta da concupiscencia: de sorte
sobre a transubstanciaçào no artigo Beren- que o gemido continuo dc uma alma arre­
geriOj o uso da communhão debaixo das pendida das suas faltas, praclica o dever
duas especies no artigo Hussitas, e sobre o mais necessário da justiça christã, o que
papa no artigo Gregos. Resta-nos fallar do nos obriga a confessar húmildemente com
seu sentir sobre a justificação, sobre as in­ Sancto Agostinho, que a nossa justiça n’es­
dulgências e sobre os sacramentos. ta vida consiste antes na remissão dos pec­
cados que na perfeição das virtudes.
«A respeito do merecimento das obras,
DA JUSTIFICAÇÃO a igreja catholica ensina que a vida eterna
deve ser proposta aos filhos de Deus, não
só como uma graça que lhes é misericor­
Não ha talvez materia em que mais se diosamente promettida por nosso Senhor
tenha escripto desde Luthero até hoje. Ex- Jesus Christo, nias também como uma re­
pozemos como Luthero formou a sua opi­ compensa que é fielmente concedida ás
nião sobre a justificação; contentar-nos-he- suas boas obras e aos seus merecimentos,
mos com referir aqui o que M. Bossuet em virtude d’cssa promessa. Eis as pro­
disse na sua exposição da doutrina da igre­ prias palavras do concilio dc Trcnto. (Scs.
ja catholica: 6, c. 6.)
«Crémos primeiramente que os nossos «Porém, rcceiando que o orgulho huma­
peccados nos são remidos gratuitamente no se lisongeasse com a opinião do mere­
pela misericórdia divina; são os proprios cimento presumido, este mesmo concilio
termos do concilio de Trcnto, o nual ajun- ensina que todo o prêmio e valor das obras
ta que somos chamados justificados gratui­ christãs provém da graça sanctificante que
tamente, porque nenhuma crestas cousas nos é dada gratuitamente em nome de Je­
que prendem a justificação, taes como a fé sus Christo, e que é um cíTeito da continua
ou as obras, podem merecer esta graça. inlluencia d’este divino chefe sobre os seus
(Cone. Trid. Sus. 6, c. 9, v. 2.) membros.
«Como a Escriptura nos explica a re­ «Na verdade os preceitos, as promessas,
missão dos peccados, ora dizendo que Deus as ameaças e as exprobrações do Evange­
os dissimula, ora que os tira e que os apa­ lho fazem assaz vér que é preciso que ope­
ga, pela graça do Espirito Sancto, que nos remos a nossa salvação pelo movimento
faz novas creaturas, nós crémos que é pre­ das nossas vontades com a graça dc Deus,
ciso reunir estas expressões para formar a que nos ajuda; mas é um primeiro princi­
perfeita ideia da justificação do pcccador; pio, que o livre arbitrio nada póde fazer
c por isso que acreditamos que os nossos que conduza á felicidade eterna senão tan­
LUT 651
to quanto é movido e elevado pelo Espirito tisfazer na outra vida. É este um ponto
Sancto. que não é possível contestar: encontra-se a
«Por conseguinte, a Igreja sabendo que prova na pena que S. Paulo remiu ao in­
é este divino Espirito que produz em nós, cestuoso de Coryntho; no uso da antiga
por sua graça, todo o bem que fazemos; Igreja, na qual se supplicava aos fieis que
deve crer que as boas obras dos fieis sào concedessem aos christãos indulgências que
mui agradaveis a Deus, c de grande consi­ podessem ajuda 1-os junto a Deus.
deração para ello; c é justamente porque o.° Toda a questão das indulgências se
cila *sc serve da palavra—merecimento— reduz, pois, a saber se a Igreja tem o po­
com toda a antiguidade e.hristà, principal- der de applicar estes merecimentos para
mente para significar o valor, o preço e a isemptar os fieis das penas cm que leem
dignidade d’cssas obras que fazemo*s pela incorrido, e que serão obrigados a solTrer
graça. Mas como toda a sua sanctidade no Purgatorio.
vem de Deus, que as faz em nós, a mesma G.° A Igreja tem o poder de absolver o
igreja recebeu no concilio de Trento, como peccador; tudo o que cila desliga na terra
doutrina de fé catholica, estas palavras de é desligado no céo: tem pois o poder de
Sancto Agostinho—que Deus coròa os seus empregar tudo o que póde desligar das pe­
dons coroando o merecimento dos seus ser­ nas da outra vida; e como a applicaçào dos
vidores. merecimentos de Jesus Christo e dos jus­
«Rogamos aos que amam a verdade quei­ tos c um meio de remir as penas do Pur­
ram lèr um pouco devagar as palavras d’esse gatorio, é claro que a Igreja tem o poder
concilip, para que se despreoccupem uma de conceder indulgências.
vez das más impressões que lhes teem da­ Póde vèr-sc, em todos os authores que
do da nossa doutrina: tractavam das indulgências, que a Igreja
<Apesar de vermos, dizem os padres d’cs- as concedeu em todos os tempos. O conci­
te concilio, que as sanctas Escripturas es­ lio de Trento não propôz outra cousa a
timam tanto as boas obras; que Jesus Chris­ crèr sobre as indulgências senão que o po­
to nos promette por sua bôea que um copo der de as conceder foi dado ã Igreja por
d'agua dado a um pobre não será privado Jesus Christo, e que o uso d’ellas é salutar;
da sua recompensa; e que o apostolo attesta ao que este concilio ajunta que clle disse,
que um momento de pena ligeira 7i'este mun­ todavia, ser ministrado com moderação,
do produzirá um pèso eterno de gloria: to­ com receio de que a disciplina ecclesiasti­
davia não agrada a Deus que o cliristão se ca não seja ennervada por uma excessiva
fie e se glorífique de si mesmo, e não de Nos­ facilidade. (Cone. Trid. contin. Ses. 25, de
so Senhor, cuja bondade é tão grande para Indulg.)
com todos os homens, que cite quer que os
dons que lhes faz sejam os seus merecimen­
tos. (Ses. 6, c. 16. Ses. 14,'c. 8.)» DOS SACRAMENTOS

DAS INDULGÊNCIAS Os erros de Luthero sobre os sacramen­


tos teem, em geral, tres objectos: a nature­
za dos sacramentos, seu numero c seus
É certo: l.° Que ha penas que os justos ministros.
expiam depois d’esta vida.
2. ° Que os fieis pedem que estas penas
sejam remidas, e que Deus escuta suas DA NATUREZA DOS SACRAMENTOS
siípplicas; que as esmolas, as mortificações
dos viventes sào uteis á salvação das almas
do Purgatorio. Sobre a natureza dos sacramentos Lu­
3. thero c os que seguem a confissão d’Augs- \
° Que os justos de todos os séculos são,
com a Igreja visivcl, uma sociedade unida bourg pretendem que a sua efficacia de-
pelos laços d’uma caridade perfeita, e da pende da fé do que os recebe; que não fo- j
qual Jesus Christo é o chefe: que ha n’es- ram instituídos senão para nutrir a fé, e í
ta sociedade um thesouro infinito de me­ que não dão a graça aos que não lhes poein }
recimentos capazes de satisfazer a justiça obstaculo. i
divina. Este erro de Luthero é uma consequên­
4. ° Estes merecimentos podem obter pa­ cia d’esses princípios sobre a justificação;
ra aquelles a quem são applicados a mo­ porque se o homem não se justifica senão
deração das penas que são obrigados a sa­ porque crê que os merecimentos de Jesus
Christo lhe são applicados, os sacramentos duvida a existência de um phenomeno re­
não sào mais que symbolos destinados a ex­ conhecido por todo o mundo, porque os
citar a nossa fé, e não produzem por si physicos não concordam na maneira de o
mesmo nem a graça, nem a justificação. explicar. Este methodo, diga-se dc passa­
Sendo um dom do Espirito Sancto*o que gem, é quasi empregado por Fr. Paolo,
sanctifica o homem, não é possível que Deus nao que ellc não sentisse sua fraqueza e
tivesse feito uma lei para não conceder es­ injustiça, mas sabia que agradaria a iodos
ta graça, este dom do Espirito Sancto, se­ os leitores supcrficiaes.
não àquelles sobre quem se operassem os
symbolos que se chamam sacramentos,
com tanto que àquelles a quem se applicas­ » 0 NUMERO DOS SACRAMENTOS
sem não estivessem em certas disposições
contrarias ao dom do Espirito Sancto: esta
opposição nada tem que derogue ao poder A confissão d’Augsbourg não reconhece
ou â sabedoria de Deus. mais que tres sacramentos: o baptismo, a
N’esta liypothesc é certo que seria à ap- ceia e a penitencia.
plicação dó symbolo que a graça sanctifi­ A igreja catholica reconhecia sete quando
cante'* estaria ligada, e que por conseguin­ Luthero appareceu; todas as igrejas scis-
te este symbolo produziría per si mesmo maticas separadas da igreja romana des­
essa graça. Deixemos ás escolas o exami­ de os arianos até nossos dias conservaram
nar se clles a produzem physica ou moral­ o mesmo numero de sacramentos; nós o fi­
mente: é certo que na hvpothese que apre­ zemos vér nos artigos:— Eutychianos, Nes-
sentamos a graça seria concedida todas as torianos, Gregos, Armemos, Jacobilas, Co-
vezes que o symbolo fosse applicado, que phtas e Abyssinios. A doutrina da igreja
por conseguinte a graça sanctificante esta­ catholica relativamente aos sacramentos,
ria ligada a este symbòlo, como o eíTeito á não foi pois introduzida pelos papas, como
causa, pelo menos*occasional. os inimigos da Igreja pretendem.
Não se deve julgar por isso que a Igreja
considera como inúteis as disposições na
recepção dos sacramentos: cila pretende DO MINISTRO DOS SACRAMENTOS
somente que as disposições são condições
necessarias para receber a graça, e que
ella não está ligada a estas condições, assim Luthero e os mais reformadores pretende­
como para vér, ter olhos é uma condição ne­ ram que todos os fieis fossem ministros dos
cessaria; porém, posto que se tenha olhos, sacramentos. Não entraremos no exame dc
não se vô nas-trevas; é precisa a luz, que é todos os sophismas que elles formam para
a verdadeira causa da vista. estabelecer esta opinião; perguntaremos
Não se póde entender d’outra fôrma, sómente se é possível que Deus tenha uni­
quando se diz que os sacramentos produ­ do a graça aos symbolos que fazem a par­
zem a graça ex opere operato, e não ex te visível do sacramento, com tanto que es­
opere operantis. tes symbolos sejam applicados por uma
Esta é a doutrina da antiguidade cliris- certa ordem de homens, e em certas cir­
tã, que attribuiu sempre aos sacramentos cumstandas; se isto não é impossível, não
uma verdadeira efficacia, uma virtude pro­ é um absurdo na doutrina da igreja catho­
ductiva da sanctificação; seria preciso não lica que todos os fieis não sejam ministros
ter lido nunca os padres para a contestar. dos sacramentos: a igreja catholica apoia
Os catholicos créem que dous dos sacra­ a sua opinião, rclativamente aos ministros
mentos produzem na alma um signal inde- dos sacramentos sobre toda a antiguidade
level, que se chama caracter: é possível ecclesiastica.
que Deus tivesse estabelecido uma lei, por Luthero quiz não sómente que todo o
meio da qual um sacramento conferido a fiel fosse ministro legitimo de todos os sa­
um homem produzisse na alma d’este ho­ cramentos, mas ainda que os sacramentos
mem uma certa disposição fixa e perma­ administrados por choearricc ou por irrisão
nente? é o que toda a antiguidade suppõe não eram menos verdadeiros que os que
que o baptismo, a confirmação e a ordem se administram seriamente nos templos: é
produzem. ainda uma consequência nativa do princi­
A s disputas dos theologos sobre a natu­ pio dc Luthero sobre a justificação, o que
reza d’cste caracter não tornam a sua exis­ é.um absurdo.
tência duvidosa,-como Fr. Paolo pretende 0 symbolo, ou a parte sensível do sacra­
insinuar. Eu estimaria que se pozesse cm mento, não produz a graça senão porque
LUT 653
Deus estabeleceu uma lei para a ligar a «Não se pódc duvidar que esta acção, co­
esse symbolo instituído por Jesus Christo; mo distincta da eommunhão, seja do si
-clle nao causa pois a graça a menos que mesma agradavcl a Deus, c o obrigue a
não seja o symbolo instituído por Jesus olhar-nos d’um modo mais propicio, por­
'Christo para a produzir na igreja clirislà; que ella lhe apresenta ante os olhos seu
convém por isso que este sacramento sejá Filho sob os signaes d’essa morte, pela
com elTeito administrado em certas circum­ qual se apaziguou a sua cólera.
standas cm que se repute um rito ou um «Todos os chrislàos hão dc confessar que
■sacramento da igreja christã. a só presença de Jesus Christo é uma ma­
neira de interessar poderosamente perante
Deus todo o genero humano, segundo diz
do s a c r if íc io d a m issa o apostolo—quo Jesus Christo se apresenta
c apparece para nós perante a face de
Deus: assim como crémos que Jesus Chris­
A abolição da missa foi um dos alvos de to presente na sagrada mesa ífcsse aspe­
fLullicro: nao fallarcmos aqui das mudan­ cto de morte intercede por nós, e repre­
ç a s que clle fez na missa; fallareinos tào senta continuamente a seu Pae a morte
sómente da abolição das missas privadas que soffrou pela sua Igreja.
que condemnou,-sruppondo que os catholi­ «É n este sentido que dizemos que Je­
cos lhes attribuiam a virtude de remir os sus Christo se olTerece a Deus por nós na
peccados sem que fosse necessario ter a fé Eucharistia: é d’este modo que pensamos
■ou outro movimento bom. Crémos não po­ que esta oblação faz que Deus se nos tor­
der refutar melhor este erro, do que ex­ ne-mais propicio, e eis porque o chama­
pondo a fé da igreja catholica relativamen­ mos propicialorio.
te a este assumpto: copiaremos aqui esta «Quando consideramos o que opéra Je­
exposição de M. Bòssuct: sus Christo n’este mysterio, e que o vémos
«Estando convencidos de que as palavras pela fé presente cíTectivamenle sobre a sa­
omnipotentes do Filho de Deus operam tu­ grada mesa, com esses signaes de morte
do o que enunciam, crémos com razão que nós nos unimos a elle n’essc estado: apre-
tiveram seu cffeito na ceia, apenas foram senlamol-o a Deus como nossa unica victi­
pronunciadas; e por uma cousequencia ne­ ma e nosso unico propiciador pelo seu san
cessaria reconhecemos a presença real do gue, protestando que nada temos a olTerc
corpo antes da eommunhão. ccr a Deus senão Jesus Christo e o mero
«Supposto isto, o sacrificio que reconhe­ cimento infinito da sua morte. Consagra
cemos na Eucharistia nào tem difficuldade mos todas as nossas súpplicas por essa di­
alguma particular. vina offerenda; apresentando-o a Deus nós
«Notamos duas acções n’cste mysterio, nos dispomos ao mesmo tempo a oíTereccr-
que não deixam de "ser distinctas, posto nos á Magestade Divina, n’ellc e por clle,
que uma se refira á outra: a primeira é a como hostias viventes.
consagração, por meio da qual o pão c o «Tal é o sacrificio dos chrislãos, infinita-
vinho se convertem em corpo e sangue; e mente dilTerente do que se practicava na
a segunda é a eommunhão, por meio da lei antiga: sacrificio espiritual digno da qos-
qual se participa. sa alliança, em que a victima presente nao é
«Na consagração o corpo e o sangue são apercebida senão pela fé, em que o gladio
•mysticamente separados, porque Deus disse é a palavra que separa mysticamente o cor­
separadamente—este é o meu corpo, este è po e o sangue, em que" estò sangue por
o meu sangue; o que encerra uma viva c consequência nào é espargido senão em
efíicaz representação da morte violenta que mysterio, e em que a morte não intervem
sotíreu. senão por representação: sacrifício todavia
«Portanto, o Filho de Deus é collocado mui verdadeiro, no qual Jesus Christo é
sobre a sagrada mesa, em virtude d’essas verdadeiramente contido e apresentado a
ipalavras, revestido do signaes que repre­ Deus sob este aspecto de morte; mas ao
sentam a sua morte; é o que opera a con­ mesmo tempo sacrificio de commcmoração,
sagração,^ esta acção religiosa tràz coin- que, bem longe de nos desprender como
sigo o reconhecimento da soberania de nol-o objectam do sacrificio da cruz, nos
Deus, emquanto quo Jesus Christo presente liga a elle por todas as circumstandas, pois
•ahi renova e pcrpétúa, d’algum modo, <v que não sómente ellè se lhe refere inteira­
memoria da suá obediência até á morte na mente, mas com elTeito não existe nem sub­
cruz: também que nada lhe falta para ser siste senão por esta relação, e dà qual ex­
um verdadeiro sacrifício. trahe a sua virtude.
6o4 LUT
«É esta a doutrina expressa da igreja ca­ vezes foram provocados os protestantes
tholica no concilio do Trento, que diz que para citar um dogma ou um ponto de dis­
este sacrificio nào foi instituido senão com o ciplina contrario as verdades ensinadas nos
fim de representar aqucllc que foi uma vez primeiros séculos, ou opposto á pureza da
executado na cruz; de fazer durar a sua moral evangélica.
memoria ate ao fim dos séculos, c de nos Podia-se, pois, garantir dos abusos e
applicar a sua virtude salutar para a re­ distinguir a moral do Evangelho, da cor­
missão dos peccados que conmettemos todos rupção do século, a qual, é forçoso confcs-
os dias. Portanto, longe de crér que falta sal-o, tinha cxtranhamcnlc infectado todas
alguma cousa ao sacrificio da cruz, a igre­ as ordens da Igreja, que todavia nào foi
ja pelo contrario o julga tào perfeito e tão nunca destituída d’excmplos refulgentes dc
plenamente sufficiente, que quanto se faz pureza e de sanctidade.
em seguida nào c mais que para celebrar Uma infinidade de pessoas, mais sabias
a sua memoria, e applicar a sua virtude. que Luthero, e d’uma piedade eminente,
«Por isso esta mesma Igreja reconhece pensavam na reforma dos abusos, e a pe­
que todo o merecimento da rcdempçào do diam; mas criam ollas que era á Igreja
genero humano está ligado á morte do Fi­ que competia procurar esta reforma, e quo
lho do Deus; c deve-se ter comprehendido, a propria corrupção do maior numero dc
por todas as cousas que se tem exposto, membros da Igreja mesmo, não authorisa-
que quando nós dizemos a Deus na cele­ va nenhum particular a fazer esta refor­
bração dos divinos mvsterios:—iwsros apre­ ma.
sentamos esta hostia 'sancta—nào pretende­ Não havia, pois, razão alguma dc se se­
mos por esta oblaçào fazer ou apresentar a parar da Igreja, quando Luthero se sepa­
Deus um novo pagamento do preço da nos­ rou. A reforma que elle estabeleceu con­
sa salvação, mas sim empregar junto d’elle sistia em destruir toda a hicrarchia eccle­
os merecimentos de Jesus Christo presen­ siastica; em abrir os claustros, e cm licen­
te, e o preço infinito que ellc pagou uma ciar os monges. Ensinou dogmas que, se­
vez por nós na cruz. gundo o parecer dos seus mesmos secta­
«Os senhores da pretendida religião re­ rios, destruíam os princípios da moral, c
formada nào julgam oíTender Jesus Chris­ destruíam todos os fundamentos da reli­
to oíTerecendo-o a Deus como presente á gião natural c revelada. Ta cs são suas dou­
sua fé; c se elles entendiam que elle fosse trinas a respeito da liberdade do homem c-
com cíTcito presente, que repugnância te- da predestinação.
riara cm otTcreccl-o como sendo na ver­ O direito que ellc oulhorgava a cada
dade presente? portanto toda a disputa de­ christão dMntcrprctar a Escriptura, c dc
veria de boa fé ser reduzida á sua presen­ julgar a Igreja, foram, senão a causa,
ça tào sómente.» (Bossuct. Exposição da pelo menos a occasião d’essa alluvião de
Doutrina Catholica, art. 14.J scitas fanaticas c insensatas, que desola­
Esta presença real é reconhecida pelos ram a Allemanha, e que renovaram os
lutheranos, e provamol-a já contra os sa- princípios dc Wiclef, tão contrarios á reli­
cramcntarios no artigo Berenger. gião e à tranquillidade dos estados. (Vide-
Luthero, abolindo as missas privadas o artigo Ânahaptistas.)
conservou a missa, e não lhe fez senão Lutliero cmprchcndeu esta reforma sem
uma pequena mudança: a abolição da authoridade, sem missão, quer ordinaria,
missa foi o frueto d’uína conferência de quer extraordinaria; ellc não linha mais
Luthero com o diabo, que o convenceu da direito do que os anabaptistas que refuta­
necessidade dc a abolir: esta conferência va, perguntando-lhes d’onde tinham rece­
acha-se na obra de Lutliero, sobre a missa bido sua missão. Nào havia introduzido na
privada. sua reforma nem a caridade, nem a do­
çura, nem mcstno a firmeza, que caracte-
risam um homem enviado por Deus para
REFLEXÕES GERAES SOBRE A REFORMA reformar a Igreja: seu arrebatamento, sua
ESTABELECIDA POR LUTHERO dureza, sua presumpção, revoltavam todos
os seus discipulos; violara os votòs, e ti­
Quando Luthero atacou as indulgências, nha-se casado cscandalosamente; aúthori-
tinham-se introduzido grandes abusos na sava a polygamia ao landgrave dc Ilcsse:
Igreja, c era,m ister reforrnal-os;. é uma seus cscriptos nào teem nem dignidade,
verdade reconhecida pelos ,mais zelosos nem dccencia, nem respiram a caridade,
catholicos. Mas a igreja catholica não dou­ nem o amor da virtude; ellc se abandona
trinava erros, e a sua moral era pura: cem com gosto aos mais indecentes gracejos.
LUT 655
Isto não sâo declamaçõcs; aquclles que Em França, no principio, aconteceu o
tiverem lido as obras de Luthcro e a his­ mesmo aos primeiros lutheranos, posto que
toria da sua reforma, mesmo nos protes­ elles atacassem a religião catholica com
tantes, não me desdirão; c tomo por tesli- furor.
raunhas os protestantes moderados, as car­ 2. ° Os synergistas diziam que o homem
tas de Luthero, seus sermões, suas obras, podia contribuir em alguma cousa para a
Mélanchton c Erasmo. conversão: Mélanchton põde ainda passar
Ergueram-se entre os lutheranos muitas por author d’osta doutrina contraria aos
disputas no tempo de Luthero; e depois da princípios de Luthero. 1
sua morte, os theologos lutheranos fizeram 3. ° O flavianismo; erro em que Mathias
muitas fórmulas para tractarem de se re­ Flavio, cognominado Illyrico, cahiu in-con-
unir, mas inutilmente. tinente por precipitação c sem má inten­
ção, e no qual perseverou por pertinacia.
índependentemente d’cstas divisões, clcva-
ram-se chefes de seitas, que ajuntaram ou Elle dizia que o peccado original era a
supprimiram alguma cousa aos princípios propria substancia do homem. Esta dou­
de Luthero, ou que os modificaram; tacs trina, toda insustentável corno é, achou se­
foram os crypto-calvinistas, os synergislas,ctários; foi ella sustentada pelos condes de
Mansfeld. 2
os flavianistàs, os oriandistas, os indilTeren-
tistas, os stancaristas, os majoristas, os an- 4. ° Os osiandristas, discipulos de An­
dré Osiander; assignalou-se entre os lu­
tinomianos, os syncretistas, os millenarios,
os origenistas, os fanaticos e os pietistas.theranos por uma opinião nova sobre a
Vamos dizer alguma cousa a este- respeito. justificação: não queria, como os outros
protestantes, que ella se fizesse pela impu
tação da justiça de Jesus Christo, mas sir
DAS SEITAS QUE SE FORMARAM
pela intima união da justiça substancial d|
EN TRE OS LUTHERANOS
Deus com nossas almas; elle fundava-s
n’estas palavras muitas vezes repetidas et
i.° O cryplo-calvinismo ou o calvinismo Isaias c em Jeremias: O Senhor é a vosse
disfarçado. A sua primeira fonte foi Mé­ justiça.
lanchton, inconstante, timido, aliás muito Segundo Osiander, do mesmo modo que
philosopho, diz um author lutherano, e fa­ nós vivemos por meio da vida substancial
zendo muito caso das sciencias humanas. de Deus, e que amamos por meio do amor
A correspondência que clle entreteve com essencial que clle tem aw si mesmo, tam­
Bucer c Bullinger o dispôz muito vantajo­ bém somos justos por a justiça essencial
samente a seu favor: seus discipulos, de que nos é eommunicada, á qual é mister
que teve grande numero, adoptaram suas ajuntar a substancia do Verbo Incarnado,
opiniões, e a cidade de Wirtcmberg en­ que está em nós pela fé, pela palavra, e
cheu-se d’individuos, que, sem quererem pelos sacramentos.
tomar o nome de discipulos de Calvino, Desde 0 tempo que se formulou a con­
professavam e ensinavam abertamente a fissão d’Augsbourg, clle fez os ultimos es­
sua doutrina. forços para que fosse abraçada esta dou­
0 mesmo se verificou em Leipsick e em trina por todo 0 partido, c a sustentou com
todo o eleitorado de Saxc, emquanto que uma audacia extrema á face de Luthero.
os estados do ramo Erncslino ou primoge­ Na assembléia de Smalcadè ficaram es­
nito conservaram a doutrina de Luthero. pantados da sua temeridade; mas como te­
Em fim, Augusto, o eleitor de Saxe, per­ miam fazer rebentar novas divisões no
suadido, por muitos discipulos de Mélan­ partido, onde elle tinha um credito consi­
chton, que achavam que seus companheiros derável por seu saber, tolerou-se. .
iam muito longe, puz em práctica meios ef- Tinha elle um talento todo particular
íicaoissimospara destruir o calvinismo; es­ para divertir Luthero, fazia de bobo á
tes meios foram o prender c depôr aquel- mesa, e dizia cousas chistosas, muitas ve­
les que o ensinavam c favoreciam: alguns zes profanas. Calvino disse que todas as
estiveram por muito tempo cm prisão, ou­ vezes que elle achava 0 vinho bom, 0 elo­
tros ahi morreram; mas o maior numero giava, applicando-lhc estas palavras do
sahiu da prisão, c do paiz. mesmo Deus: Eu sou 0 que sou—Ego sum
É M. Walch, doutor lutherano, que nos qui sum; ou est’outras: Eis-aqui 0 Filho do
diz como os primeiros reformadores tra- Deus vivo.
ctavam os que não pensavam como elles . 1
1 Ibid. Hoffman. Lexicon hceresium.
1 Bibl. Germ., t. 26, art. 6. 2 Ibid.
*
«56 LUT
Não foi só na Prússia que clle incen­ scmi-pclagianos, c pretendia que as boas
diou a universidade de Koenigsberg, por obras eram necessarias para a salvação, o
causa da sua nova doutrina sobre a justi­ que c contrario á doutrina de Luthero,
ficação; a provincia inteira o partilhou que convem que as boas obras são neces­
também . 1 sarias como provas, ou antes como efleito
5. ° Os indifferentes, isto é, os lutheranos
da conversão, mas não como meios. 1
que queriam que se conservassem as prá- 8. ° Os antinomianos, isto é, oppostos à
cticas da igreja romana. lei. (Vide o artigo Agricola.)
A disputa sobre estas prácticas foi exci­ 9. ° Os syncretistas, isto é, pacificadores,
tada com grande acrimonia: Mélanchton, cuja origem ó a seguinte:
apoiado pelas academias de Leipsick e de Havia-se levantado uma multidão de sei­
Wirtemberg, onde era poderosíssimo, não tas entre os novos reformadores: ora para
queria que se supprimissem as ceremo­ homens que pretendiam ser dirigidos por
nias da igreja romana; não julgava que luzes extraordinarias, esta divisão era o
' por causa d’uma sobrepeliz, por quaesquer maior dos embaraços, e uma difiiculdade
festas, ou pela ordem das lições, fosse pre­ forte que os catholicos lhes oppunham.
ciso separar-se da communhão. Tractou-se, pois, de reunir todos estes ra­
Fizeram-lhc um crime d’esta disposição mos da reforma, mas inutilmente; cada
para a paz, e decidiu-se no partido lüthe- seita olhou os pacificadores como homens
rano, que as cousas ábsolutamente indif­ que trahiam a verdade, e que a sacri­
ferentes, seriam absolutamente supprimi- ficavam covardemente ao amor da tran-
das, porque o uso que d’ellas se fazia era quillidade. Todas as seitas reformadas se
contrario á liberdade da Igreja, e encerra­ detestavam, e se condcmnavam umas ás
va, dizia-se, uma especie de profissão do outras, como ellas detestavam c conde-
)apismo. 2 mnavam os catholicos.
6. ° Os stancaristas, discipulos de Fran­Jorge Calixto foi um dos mais zelosos
cisco Stancar,- nascido em Mantua, e pro­ promotores do syncretismo, c foi atacado
fessor Jutherano na academia de Roya- por seus inimigos com um furor extremo. 2
mort, na Prússia, no anno de 1551. 10. ° O huberianismo, ou a doutrina de
Osiander sustentara que o homem era Huber.
justificado pela justiça essencial de Deus: Huber era oriundo de Berne, e profes­
Stancar, combatendo Osiander, sustentou, sor de theologia em Wirtemberg, pelo an­
pelo contrario, que Jesus Christo não era no de 1532.
nosso mediador senão tanto como o ho­ Luthero havia dito que Deus determina­
mem. 3 va os homens aó bem e ao mal; assim,
7. ° Os majoristas, discipulos de Jorge Deus só predestinava o homem para a sal­
Major, professor na academia de Wirtem­ vação ou para a condem nação, e em quan­
berg em 1556. to que elle produzia a justiça em um pe­
Mélanchton abandona os princípios de queno numero de fieis, determinava os ou­
Luthero sobre o livre arbitrio; concedeu tros ao crime e á impenitcncia.
alguma força á natureza humana, e ensi­ Huber não pôde accommodar-sc com
nou que ella concorria para a obra da estes princípios, e os achou contrários à
conversão, mesmo no infiel. ideia da justiça, da bondade, e da miseri­
Major levara este principio mais longe cordia divina. Via na Escriptura que Deus
que Mélanchton, e explicara como o homein quer a salvação de todos os homens; que
infiel concorria para a sua conversão. E como todos os homens foram mortos em
mister, para que o infiel se converta, que Adão, todos foram vivificados cm Jesus
preste ouvidos á palavra de Deus: é preci; Christo.
so que a comprehènda e que a receba: até Huber toma estas passagens na maior
lá tudo é obra da vontade, mas quando o amplidão que se podia dar-lhes, e doutri­
homem tem reconhecido a verdade da re­ nou não sómente que Deus queria à sal­
ligião, elle pede as luzes do Espirito San­ vação de todos os homens, mas ainda que
cto, e obtem-nas. Jesus Christo os havia totalmente resgata­
Major renovára em parto os erros dos do, e que não havia algum pelo qual Je­
sus Christo não estivesse satisfeito real­
i Hist. des Variat., I. 8, arL 14. Se- mente e de facto, de sorte que os honlens
c k e n d o r fH is t. du Luth. Stockman, Bibl. não eram condemnados, senão porque ca-
Getm an., loc. cit.
2' Hist. da* Variações, ibid: 1 Stockman Lexic,
3 Ibid. 2 Bibl. Stockman, loc. cit.
LUT 657
hiam d’essc estado de justiça no peccado pietistas; fallou-sc nas cadeiras, a faculda­
por sua propria vontade, e abusando da de de theologia desapprovou estas assem­
sua liberdade. bléias, e cilas cessaram.
Huber foi expulso da universidade por M. Chajus, professor de theologia cm
haver ensinado esta doutrina. 1 Giessen, formou assembléias á imitação de
11. ° Os origenistas, que appareccram M. Spener.
pelos fins do derradeiro século. M. Peter- Em 1690 M. Maycr, homem vivo c cheio
sen, c sua mulher, publicaram que Deus de zelo, propòz um formulario d’união con­
lhès havia revelado que os condcmnados, tra os anti-scripturarios, os falsos philoso­
c os proprios dernonios seriam um dia le­ phos, c os theologos corruptos, etc.
vados, pela grandeza e longa duraçào de M. Horbius c muitos outros, recusaram
suas penas, a reentrar no dever, e a arre­ subscrever este formulario, sobre tudo,
pender-se sinceramente, a pedir e a rece­ porque era proposto sem authorisação do
ber a graça de Deus, tudo isto cm virtude magistrado; n’este comenos, recommendou
da morte *e satisfação de Jesus Christo: o o livro de M. Poiret, relativo ã educação
que distingue o sentimento dos origenistas das creaneas, intitulado a Prudência dos
luthcranos do dos socinianos a respeito justos, no*qual se pretendia que haviam
d’este objecto. 2 princípios muito perigosos. 0 povo sublc-
12. ° Os millenarios, que renovaram vou-sc
os contra Horbius e contra os pietistas,
erros dos antigos millenarios. (Vide este e aquelle foi obrigado a sahir de Hamburgo.
artigo.) Entretanto o pielismo cspalhava-sc na
13. Allemanha, e á medida que se estendia, os
° Os pietistas, seita de devotos lulhe-
ranos, que pretendiam que o lutheranismo pontos de contestação se multiplicavam;
necessita d’uma nova reforma: julgavam- porém parecia que havia reserva cm todas
se illuminados; c renovaram os erros dos estas controversias.
millenarios c de muitos outros. Parece certo que o fanatismo se intro­
M. Spener, pastor em Francfort, ó o au- duziu nas assembléias dos pietistas, que sc
thor d’esla seita. No tempo cm que esta­ compunham de homens e mulheres de to­
va em Francfort-sur-le-Mein, cm 1670, es­ dos os estados e idades, entre os quaes ha­
tabeleceu ahi um collegio de piedade cm via temperamentos biliosos e melancholicos,
sua casa, que transportou para uma igreja. que produziram fanaticos e visionários.
Toda a cspecie de pessoas, homens e Os pietistas em geral toleravam nas suas
mulheres, eram admittidas a esta assem­ assembléias todos os differentes partidos,
bléia: M. Spener fazia um discurso edifi­ com tanto que tivessem caridade e fosseir
cante sobre qualquer passagem da Escri- berafazejos; estimavam muito mais os fru
ptura, depois do que permittia aos homens ctos da fé (segundo a doutrina de Luthe
que estavam presentes dizer seu parecer ro), taes como a justiça, a temperança, í
sobre o assumpto em questão. beneficcncia, do que a mesma fé.
Alguns annos depois (167o) M. Spener Os pontos fundamentaes do pietismo
fez imprimir um prefacio no frontespício eram: l.° Que a palavra de Deus não po­
da collccção dos sermões de João Arnold: dia ser bem entendida sem a illuminação
n’cste prefacio fallou fortemente da deca­ do Espirito Sancto, e que não habitando
dência da piedade na igreja lutherana; pre­ este na alma do homem mau, seguia-se
tendeu mesmo que se não podia ser bom que nenhum mau ou impio era capaz de
theologo, sem se ser isempto do peccado. perceber a luz divina, ainda mesmo que
M. Spener passou cm 1686 a Lcipsick, e elle possuisse todas as linguas c todas as
então se formou o collegio dos amadores sciencias.
da Biblia, que estabeleceram assembléias 2. ° Que não sc deviam considerar como
particulares, destinadas a explicar certos indifferentes certas cousas que o mundo
livros da Escriptura Sagrada, da maneira considera sobre este pé, taes como a dan­
mais propria a inspirar a piedade a seus ça, os jogos de cartas, as conversações gra­
auditores. A faculdade de theologia appro- ciosas, etc.
vou logo estas assembléias, mas depressa Escreveu-se muito na Allemanha pró e
se espalhou o boato de que aquelles cjue contra esta seita. (Véde a Bibliotheca Ger­
fallavam n’estas assembléias se serviam manica, t. 26, art. 6, c Stockman Lexicon-
d’expressões suspeitas, e os designaram, Haresium, nã palavra Pietistas.)
como aos seus partidários, pelo nome de 3. # Os ubiquitas ou ubiquitarios, luthe-
ranos, que acreditavam que em conse-
1 Bibl. Stockman, loc. cit. uencia da união hypostatica, a humani-
2 Bibl. G em an., t. 35, art. 1. ade mystificava com a divindade.
658 LUT
Os sacramentariòs c os luthcranos não go esbraveja do seu leito, sóbc ao pulpito
concordavam com a presença de Jçsus o frade apostata, esse Martinho Luthero
Christo na Eucharistia. Os sacramentariòs para declamar contra a cruzada da civili-
negavam a presença real de Jesus Christo saçào, que em nome? da religião se intenta­
na Eucharistia, porque era impossível que va armar contra as trevas da iguorancia.
um mesmo corpo estivesse nos mesmos lo- Ouçamol-o:
gares do mesmo tempo. «Nao, nào (exclama o frade saxonio), não
Chvtré c alguns outros lutheranos res­ ouçaes a voz de Leão x . . . Eu, Martinho
ponderam que a humanidade de Jesus Luthero, me dirijo a vós, meus caros ir­
Christo, sendo unida ao verbo, o seu cor­ mãos em Christo; eu vos conjuro para
po estava por toda a parte com a divin­ orar pelos nossos pobres principes alle-
dade. màes; não nos alistemos por caso algum
Mélanchton oppunha aos ubiquitas duas n’csta cruzada contra o turco, e não dêmos
difficuldades insolúveis: uma era que esta a mais pequena moeda ao papa. Antes mil
doutrina confundia as duas naturezas de vezes o turco ou tartaro do que a missa!
Jesus Christo, fazendo-o immenso, nào só­ Sim, digo-vol-o cm voz bem alta e intelligi-
mente segundo a divindade, mas ainda se- vel: nào sei que diíTercnça existe cm fazer
undo sua humanidade, e mesmo segun- a guerra a um turco ou a um chrislào.. .
o o seu corpo; a outra era que ella des­
truía o mysterio da Eucharistia, ao qual se «De maneira alguma a guerra contra o
tiraria o ’que elle tinha de particular se turco, meus caros amigos. O turco povoou
Jesus Christo como homem nào estivesse o céo de bemaventurados, e o papa o in­
ahi presente senão do mesmo modo como ferno de christãos. Os claustros, as univer­
elle o está no pau e nas pedras. sidades do reino do papa, são mil vezes
Passamos em silencio outras seitas ob­ peiores que o turco! Quereis fazer guerra
scuras: póde-se yér em uma obra de M. ao turco? embora, mas começai pelo pa­
Walch a historia mais perfeita d’estas di­ pado; sim, aqui vol-o juro, se o turco se
versas seitas formadas no seio do luthera- lembrasse de tomar a estrada de Roma, as-
iiismo, e todas produzidas por um qual­ seguro-vos que não chorava.
quer dos princípios d’este reformador. E’
preciso nào esquecer que independente­
mente d’estas pequenas seitas, a reforma . «Fazer guerra aos turcos c fazer guerra
de Luthero produziu o arianismo e o ana- a Deus.
baptismo, como se póde vér n’esses arti­ «Nunca olhei Mahomet como o Anti-
gos. Christo; não direi o mesmo do papa; é elle,
é elle que c o Anti-Christo.
c on clu são «Quem tem ouvidos ouça-mc: de ma­
neira alguma, se aliste contra os turcos
emquanto existir um papa debaixo da abó­
Luthero e os seus sectários, como já dis­ bada celeste!»
semos, com o nome de protestantes, oppo- Assim trovejava do pulpito, d’onde n e u ­
zeram-se com a maior vehemencia á guer­ tro tempo mais d’uraa vez havia invocado
ra contra os turcos; emquanto o papa Lcào o Espirito Sancto, agora inspirado do es­
x, seguindo o exemplo de seus antecesso­ pirito satanico, o frade renegado; persuai
res, adverte a Europa do perigo que a dimo-nos que a mudança de dominio lhe
ameaça, do abysmo em que póde ser se­ seria indifferente, e talvez com a mesma
pultada a civilisação com as victorias do facilidade com que havia deixado o habito
mahometismo, dous inimigos tentam con­ de frade enfiaria o barrete turco. Comtudo
trariar por todos os modos as vistas politi­ os desejos que proclamava iam-se cumprin­
cas do pontifice. O primeiro, poeta e sol­ do* poucos annos depois a Hungria é inva­
dado libertino, Hulric Hulten, senta-se no dida, Rhodes cahe, Vienna é cercada, as
leito da dôr onde jazia, pede uma penna, e costas da Italia são invadidas e saqueadas;
á oração do legado do pápa, recitada na lá estão em caminho para Roma, eil-os na
dieta do imperio, responde com uma dia­ foz do Tibre, mas antes o turco do que a
tribe contra á pessoa de Leão x e familia missa, antes a barbaridade e a ignoranda
dos Medieis, concitando o povo a recusar do que a civilisação. Terrível cegueira, ou
seu obulo para a sancta cruzada, istó quan­ antes implacável invéja, que se explica cm
do os proprios judeus concorriam com a vér o successor de S. Pedro completar a
vintena. empreza a mais sublime, e com o seu com­
Emqoanto o poeta com um» cstylo do fo­ plemento roubar á reforma a sua impor-
MAG 650
tancia, que se devia despedaçar na pre­ se logo de todas as igrejas, e perseguiu
sença d’um facto, quo dava ao pontifice cruel mente os novacianos e os catholicos.
tanto credito, quanto era o interesse poli­ A perseguição uniu de tal sorte os no­
tico que d’ahi resultava á communidadc vacianos c os* catholicos, que se dispoze-
dos povos c ao progresso da civilisação. ram a morrer uns pelos outros: a perse­
r Macedonio — bispo d e Constantinopla, nc- guição esteve quasi a harmonisar os parti­

Í
gou^dTvTncTade do Espirito Sancto. dos ^"mais inimigos com o partido particular.
Os novacianos tornaram-se o objecto do
zelo de Macedonio: soube que na Paphla­
gonia existia um grande numero d’elles, e
por isso obteve do imperador quatro regi­
mentos, que ahi enviou para os obrigar a
abraçarem o arianismo. Os novacianos, in­
formados do projecto de Macedonio, toma­
Depois da morte d'Alexandre, bispo de ram as armas, vieram ao encontro dos sol­
Constantinopla, os defensores da consub- dados, bateram-sc com furor, aniquilaram
stancialidade do verbo elegeram para seu os quatro regimentos, e mataram quasi to­
successor Paulo, c os arianos Macedonio. dos os soldados.
Constancio expulsou os dous candidatos, Algum tempo depois d’esta calamidade,
o collocou na Sé de Constantinopla a Euse- Macedonio quiz transportar o corpo de
bio de Nicomedia. Constantino para fóra da igreja dos Apos­
Morrendo Euscbio, foram chamados Pau­ tolos, porque esta se achava em ruinas:
lo c‘Macedonio, cada um pelos seus parti­ uma parte do povo approvou esta traslada-
dários, e desde então começaram em Con­ ção, e outra sustentou que era uma impie­
stantinopla as intrigas, a perturbação c as dade, e olhou esta trasladação como ultra
sedições. ge feito á memoria de Constantino. A esf
Constancio enviou Hermogenes a Con­ partido se uniram os catholicos, tornai
stantinopla para expulsar Paulo; o povo do-se elle considerável
oppôz-se-lhe, pegou em armas, incendiou Macedonio sabia d’estas opposições, nn.
o palacio, arrastou Hermogenes pelas ruas não julgava que um bispo devesse atten
c o espancou. O imperador voltou a Con­ del-as, e por isso fez transportar o corpo
stantinopla, expulsou Paulo, e privou a ci­ de Constantino para a igreja de Sancta
dade de metade do trigo que se distribuía Acacia; todo o povo alli eonlluiu; a con­
aos habitantes; ninguem morreu, porque corrência dos dous partidos produziu nos
o povo apresentou-se-lhe chorando e pe­ espíritos uma cspecie de choque; irrita-
dindo perdão. ram-sc, vieram ás mãos, e a nave da igre­
O imperador, que attribuia parte dos tu­ ja e a galeria ficaram repletas de sangue
multos a Macedonio, não quiz confirmar a e de carnificina.
sua eleição, e tão sómcntc lhe pcrmiltiu Constaucio, que então se achava no Oc­
celebrar assembléias em sua própria igreja. cidente, sentindo quanto um homem do ca­
As outras igrejas continuaram apparente- racter de Macedonio era perigoso na sé de
mente sob a direcção dos sacerdotes da Constantinopla, fel-o depor, posto que Ma­
facção de Paulo, o qual voltou a Constan­ cedonio perseguisse os catholicos, que Con­
tinopla pouco tempo depois da partida de stancio queria destruir.
Constancio, que ordenou ao perfeito do Macedonio, deposto por Constancio, con­
pretorio de o expulsar, collocando Mace­ cebeu um odio violento contra os arianos,
donio cm seu logar. que Constancio protegia, c contra os ca­
Philippe, prefeito do pretorio, fez pren­ tholicos, que tinham tomado partido contra
der Paulo, e apparccçu.em seu carro, ten­ elle; para se vingar, reconheceu a divin­
do a seu lado Macedonio, que conduzia â dade do Verbo, que os arianos negavam,
sua igreja. e negou a divindade do Espirito Sancto,
Este mesmo povo que pedira perdão a que os catholicos reconheciam também
Constancio, correu á igreja para d’ella se como a divindade do Verbo.
Apoderar â força: os arianos e os catholi­ D’est’arte, com costumes irreprehensi-
cos quizeram expulsar-se reciprocamente; yeis, Macedonio era um ambicioso, um ty­
a desordem c a confusão tornaram-se ex­ ranno, que tudo queria subjugar, um or­
tremas; os soldados, julgando quo o povo gulhoso, que, para sustentar uma prirncira
se sublevava, carregáram sobre ellc, bate­ tentativa nas menores cousas, teria sacri­
ram-se, c mais de tres mil pessoas foram ficado o imperio; um barbaro, çjue perse­
mortas a cutiladas ou esganadas. 1 guia a sangue frio tudo o que não pensava
Depois d’esta horrível carnificina, Mace­
donio subiu â cadeira episcopal, apoderou-

1 Sozom, l. 4, c. 21. Socrat., /. 2, c. 38.


660 MAC
como elle, ou ousava resistir-lhe; emfim, Tal é a doutrina de Macedonio a respeito-
um présunipçosó, que, para satisfazer sua do Espirito Sancto; elle publicou-a somente
vingança e paixão pela celebridade, levan­ quando foi deposto, e pouco tempo antes
tou unia heresia e negou a divindade do de morrer.
Espirito Sancto. Houve sectarios que so denominaram
Eis os fundamentos da sua opinião. macedonianos ou pncumatomacos, isto é,
Os princípios dos arianos combatiam inimigos do Espirito Sancto: chamavam-se-
igualmente a divindade do Verbo e a do algumas vezes também rnaralhonianos, de
Espirito Sancto; mas não consta que com­ Marathonio, bispo de Nicomedia, sem o
batessem formalmente a divindade do Es­ qual, dizem, que esta seita seria depressa
pirito Sancto. extincta cm Constanlinopla. Marathonio a
Pelo contrario, Macedonio achou os prin­ sustentava pelos seus cuidados, pelo seu
cípios dos arianos sent força contra a di­ dinheiro, pelos seus discursos patheticos c
vindade de Jesus Christo, c ‘(Vellos se ser­ bastante polidos, e pelo seu exterior ho­
viu para provar que o Espirito Saucto era nesto, proprio a attrahir a estima do povo. 1
apenas uma creatura. Estas duas ultimas qualidades também
A Igreja tinha condemnado formalmente se encontravam em muitos dos principacs
os hereges que atacavam a divindade de d’esta seita, taes como Eluse, Eustachio,
Jesus Christo. A Escriptura dã-lhe tão cla­ etc. Os seus costumes eram regrados, seu
ramente.os titulos e attributos de verda­ aspecto grave, sua vida austera, seus exer­
deiro Deus, que as diflieuldades apresen­ cícios mui similhantes aos dos monges, e
tadas pelos arianos para provar que Jesus notava-se que o partido dos macedonianos
Christo era uma creatura, pareceram a Ma­ era seguido por uma parte considerável
cedonio sem força, rejeitando elle por isso do povo de Constantinopla c cercanias, por
termo de consubstanciai, mas reconlic­ diversos mosteiros, c pelas pessoas mais
endo sempre a divindade de Jesus Christo. irreprehensiveis em costumes; tinham par­
Elle não julgou vér a divindade do Es- tidários em muitas cidades, e formaram
jirito Sanctò exprimida tão rnanifestamen­ muitos mosteiros cheios d’um grande nu­
te na Escriptura, mas sim que ella lhe da­ mero de homens c de donzcllas. 2
va os caracteres que constituíam a crea­ Os macedonianos tinham-se espalhado
tura. principalmente na Thracia, Hellesponto, e-
O Espirito Sancto, dizia Macedonio, em na Bythinia. 3
nenhuma parte da Escriptura é chamado Depois da morte de Juliano, Joviano,
Deus; cila não obriga nem a crér n’elle que lhe succcdeu, e que abraçava a fé de
nem a orar-lhe; o Padre e o Filho são os de Nicea, quiz restabelecel-a, c chamou os
unicos objectos do nosso culto c da nossa exilados; entretanto, como gostava d’obrar
esperança; quando Jesus Christo ensina antes por doçura que por authoridade, con­
aos homens em que consiste a vida eterna, cedeu a todos uma grande liberdade em
e quaes são os meios de a alcançar, diz pontos de religião; todos os chefes d’csta
sómente que sc deve conhecer o Padre, e seita se julgaram aptos para seTiliarem na
Jesus Christo seu Filho. mesmo partido.
Quando a Escriptura falia do-Espirito Os macedonianos foram os primeiros que
Sancto, ella nol-o representa como subordi­ formaram este projecto, e apresentaram
nado ao Pae e ao Filho; é por elles que um memorial para obter que todas as igre­
existe e instrue, e é por sua authoridade e jas lhes fossem dadas; porém Joviano re-
inspiração que falia. 1 jeitou-lhes o requerimento.
E’ o ‘consolador dos christãos; roga por Em seguida os macedonianos reuniram-
elles; 2 estas funcçòes convirão por ventu­ se aos catholicos, porque tinham sido per­
ra á divindade?. seguidos pelos arianos, e subscreveram a
Finalmente, não se conhece o que seria symbolo de Nicea; separaram-sc depois, e
esta terceira pessoa na substancia divina, foram condcmnados pelo concilio do Con­
porque, ou o Espirito Sancto foi gerado, stantinopla.
ou não; sc o não foi, em que differo do Theodosio tinha convocado para este con­
Pae? e a sêl-o, em que differe do Filho? cilio os bispos macedonianos, com espe­
dir-se-ha que foi gerado sómente pelo Fi­ rança do os reunir á Igreja; mas elles per-
lho? pois então admitte-se um-Dcus Avô c
um Deus Filho. 1 Sozom, l. 4, c. 27.
2 Greg. Naz. Orat. 44. Sozom. I. 4. Ilu-
t Joan. i 6 . Paul. ad Cor. i , c. 2. . fin, l. 1, c. 25.
2 Àil fíotn. 8. 3 Socrat. I. 2, c. i3 , l. 5, c. 8.
MAC
66!
sevcrarain no erro, posto que fosse possí­ t«ir. 1.® Que o mesmo apostolo se serviu
vel ílescnganal-os. O imperador empregou, . mesm.a palavra para designar o conhe­
mas inutilmente, todos os meios proprios cimento immediato que Deus tem dos pen­
para obrigal-os a reunirem-se aos catholi­ samentos dos homens, c que S. Paulo desi-
cos, e os expulsou de Constantinopla; pro- gna todavia por conhecimento perfeito. 1
hibiu-lhes formarem assembléias, e confis­ 2.° S. Paulo prova que o Espirito San­
cou-lhes as casas onde se reuniam. cto sonda as cousas profundas de Deus,
Os erros dos macedonianos sobre o Es­ porque as conhece como um homem co­
pirito Sancto foram renovados pelos soci- nhece os seus proprios pensamentos, isto
nianos, e adoptados por Clarkc, Wisthon, e, imincdiatamento e por si mesmo: de mo­
etc. Vamos provar contra elles a divinda­ do que se pôde dizer que o espirito de
de do Espirito Sancto. Deus é um sér distincto de Deus, porque
sonda as cousas profundas de Deus: po-
dcr-sc-ha pois dizer que o espirito do ho­
DA DIVINDXDE DO ESPIRITO SANCTO CONTRA mem é distincto do mesmo homem, porque
OS MACEDONIANOS, SOCINIANOS, CLARKE, conhece seus proprios pensamentos.
WISTHON E ANTI-TIUNITARIOS Finalmente, a concepção do Salvador no
seio da Sancta Virgem é uma prova incon­
testável da divindade do Espirito Sancto.
Suppômos aqui o que c reconhecido pe­ O anjo disse à Virgem que seu filho se­
los macedonianos, socinianos, Clarke, Wis­ ria chamado o Filho do Altíssimo c Filho
thon e anti-trinitarios, e vem a ser:' que a de Deus, isto é, o Filho do Sèr, que existe
Escriptura nos ensina que ha um Pae, um por si mesmo; c o anjo deu esta razão: «O
Filho, e um Espirito Saneio; provemos pois Espirito Sancto, disse elle, descerá sobre
que o Espirito Sancto é uma pessoa divina. vós, e o poder do Senhor Supremo vos co­
S. Paulo diz que o Espirito Sancto lhebrirá com a sua sombra: é por isso que a
communicou o conhecimento dos mysle- Filho-Sanctificado que de vós ha de nascer,
rios: accrescenta nuo este Espirito os co­ será chamado o Filho de Deus.» 2
nhece, porque sonua todas as cousas, mes­ Pareço por 'estas palavras que Jesus
mo as profundezas de Deus, isto é, conhe­ é o Filho de Deus, porquo foi gerado por
ce as cousas mais occultas que existem em obra do Espirito Sancto.
Deus. Mas se este não é o Deus Supremo, se é
Para provar que o Espirito Sancto tem um sèr distincto do Sér Supremo, segue-se
estes conhecimentos, S. Paulo cmpregji este que Jesus Christo não é o Filho de Deus,
raciocínio: « .. .porque, qual é esse dos ho­ senão como os outros homens, pois que o-
mens que sabe das cousas dos homens, se­ proprio Deus não foi gerado immediata-
não o espirito do homem, que existe n’cllc? ínente; c o filho d*um anjo de primeira
Da mesma sorte ninguem conhece as cou­ ordem, se houvesse um, não seria mais Fi­
sas de Deus senão o espirito de Deus.» 1 lho de Deus do que o filho d’um artista ou
Isto é, como não ha senão o espirito do d’um homem estúpido.
homem que possa conhecer seus pensa­ Deus ó o Pae de Jesus Christo d’uni3
mentos, da mesma maneira não ha senão maneira toda particular: é por isso que
o espirito de Deus ou o mesmo Deus, que Jesus Christo foi chamado o Filho unico de
possa conhecer os segredos de Deus. Deus.
Este raciocjnio de S. Paulo prova que o Deus é seu Pae, porque o gerou imme-
espirito de Deus é o mesmo Deus, como o diatamente por si mesmo sem intervençãa
espirito do homem é o mesmo homem: por de sér algum distincto d’ello; mas Jesus
consequência, assim como a palavra Deus Christo é o Filho de Deus porque foi ge­
significa aqui Ente Supremo, assim o es­ rado pelo Espirito Sancto, d’onde se segue
pirito de Deus é também o Ente Supremo. que o Espirito Sancto não é um sèr dis­
Objecta-se que S. Paulo diz que o espi­ tincto de Deus, mas sim o proprio Deus
rito sonda, que busca «ãs cousas profundas ou o sér que existe por si mesmo.
de Deus, e que este modo de conhecer pô­ A Escriptura, em mais de cem logares,
de só convir a um sér que conheça os se­ falla-nos do Espirito Sancto como do ver­
gredos de Dqus, porque elles lhe sao com- dadeiro Deus: achamos em Isaias, que é
municados, o que não pôde convir senão Dcns que inspira os prophetas, e S. Paulo
a uma creatura.
Para responder a esta objécção basta no-
1 A d Rom. 1, v. 35.
* Primas Cor. c. 2, v. 10, l i . 2 Lite. 1, t\ 35.
662 MAC
diz-nos que foi o Espirito Sancto que inspi­ Vè-sc por isto, que quando o Espirito
rou os prophetas. 1 Sancto ó comparado a um mensageiro que
Quando Ananias enganou os apostolos, Deus ou Jesus Christo envia, quer dizer
S. Pedro arguiu-o de mentir ao Espirito simplesmente que Jesus Christo espalha os
Saneio; e para lhe fazer sentir a gravidade dons do Espirito Sancto.
do seu peccado, disse-lhe que não mentiu Quando a Escriptura falia da descida do
aos homens, mas sim a Deus. 2 Espirito Sancto sobre a pessoa de Jesus
Se S. Paulo falia dos dons do Espirito Christo debaixo d’uma fórma corporea, isto
Sancto, diz que ellc tem diíTcrentes graças, quer dizer, que quando se viu esta appa-
mas que é o proprio Deus que opera cm rição, os dons c as graças do Espirito San­
todos, e que as distribue. 3 cto foram actualmente communicados a
E’ pois, sem razão, que M. Clarkc asse­ Jesus Christo.
vera que a Escriptura não dá o nome de Quando o Espirito Sancto desceu sobre
Deus ao Espirito Sancto. os apostolos sob a figura d’uma lingua de
Mas quando fosse verdade não dar a Es­ fogo, quer isto dizer que clles receberam
criptura o nome de Deus ao Espirito San­ os dons do Espirito Saneio á medida que
cto, um theologo tal como M. Clarke po­ essas linguas se pousaram cm suas cabe­
dería fazer d’esta ommissão um motivo ças; é assim que as metaphoras se tornam
para duvidar da divindade do Espirito San­ laceis; c não ha alguma que prove que o
cto, cmquanto que é evidente, é que clle Espirito Sancto é inferior a Deus.
proprio reconhece que a Escriptura attri­ Quando fosse verdade que houvessem
bue ao Espirito Sancto obras que só per­ sido difiiccis de explicar algumas passa­
tencem a Deus? gens obscuras, poderia formar-se n’um es­
Mas, diz M. Clarke, o Espirito Sancto é pirito razoavel uma difficuldade contra as
representado na Escriptura como subordi­ passagens da Escriptura, que dão ao Es­
nado ao Pae c ao Filho como seu enviado. pirito Sancto o nome c os attributos de
Respondo, que as passagens em que o Deus?
Espirito Sancto é representado como en­ Como é possível que homens que tim­
viado do Pae c do Filho não provam que bram de só obedecer á sua razão se deci­
clle seja inferior a estes: são passagens dam sempre a favor de difficuldades que
destinadas a fazer-nos conhecer as opera­ nascem da nossa ignorância sobre o modo
ções do Espirito Sancto. como uma cousa é, contra uma prova evi­
Assim, por exemplo, querendo Deus es­ dente que o estabelece?
clarecer os apostolos, espargindo sobre cl- Que se nos não censure de darmoS um
les no dia do Pentecostes os dons do Espi­ sentido arbitrario ás passagens da Escri­
rito Sancto, a. Escriptura representa este ptura, que temos citado; M. Clarke não
Espirito d’um modo allegorico, sob a ideia pôde combater esse sentido, e os padres
d’um mensageiro que Deus envia para a antes ou depois de Macedonio deram-lhes
inslrucção dos homens; e como a c/Tusão o sentido que nós também lhes demos.
•dos dons do Espirito Sancto devia só ser A Escriptura não explica a maneira co­
feita depois da ascenção de Jesus Christo, mo o Espirito Sancto procede do Pae c do
a, Escriptura nos diz que Jesus Christo de­ Filho; mas sabemos que ellc não procede
via subir ao Céo para enviar este mensa­ do Pac do mesmo modo como procede o
geiro. Filho.
Tudo isto não é mais que uma simples Ninguém está authorisado para dizer que
metaphora familiar aos orientaes, para di­ a geração do Filho seja a unica maneira
zer que Deus derramava actualmente so­ como o* Pae c o Filho possam produzir; e
bre os homens os dons e as graças que por consequência a ignoranda em que es­
procedem do Espirito Sancto, ou que elle tamos sobre a diíTerença que ha entre a
•communica por meio do seu espirito. geração do Filho c a proccssào do Espirito
Acha-se na Escriptura quantidade de fi­ Sancto, não é uma difficuldade que se pos­
guras não menos temerarias que esta; ella sa oppôr-nos.
diz que o Ente Supremo desceu para vér Nao é possível descer a todas as chica­
que tinha succedido, e que desceu sobre nas que os socinianos formaram sobre as
o 9

monte Sinai para livrar o seu povo. 4 passagens que havemos citado, c os racio­
cínios que temos junto são sufficientes para
1 Isaias, 6 . Act. ultim. v. 25. os refutar. Os que desejarem entrar nes­
2 Act. 5, v. 3. sas particularidades achai-às-hão nos theo­
3 P rim a Cor. 2 2 , v. 4 . logos catholicos e protestantes.
4 Genes. 1 8 , v. 2 1 . Exod. 18, 19, etc. Nós diremos sóinente que M. Clarkc re-
MAN 663
conhece que estas passagens nào se podem Os remédios c os dcsvelos de Manés fo­
explicar senão mui diíficilmentc, segundo ram inúteis; o filho do rei morreu, e fize­
a hypothcsc sociniana, e que clíe não co­ ram prender Manés. 1
nhece resposta, porque não oppõe nenhu­ Achava-sc ainda préso, quando os seus
ma ás consequências que os catholicos ti­ dous discipulos Thomaz c Buddas vieram
ram, e é o que elle nào carece de fazer, dar-lhe conta da sua missão. Atcmorisados
quando se tracta de defender os socinianos. pelo estado em que acharam seu mestre,
Não pretendo por isto tornar M. Clarkc pediram-lhe para pensar no perigo em que
odioso; queria sómente inspirar áquellcs se achava. Manés escutou-os sem agitação,
que atacam os mysterios uma pouca.chi- calmou a sua inquietação, fez-lhes encarar
nha de modestia c de reserva, pondo ante o seu receio como uma fraqueza, reani­
seus olhos um clero embaraçado c sem dar mou a sua coragem, inflammou a sua ima­
réplica sobre matérias em que clles deci­ ginação, levantou-se, póz-se em oração, in­
dem como mestres. spirou-lhes uma submissão cega ás suas
Não examinaremos aqui as difficuldadcs ordens, e uma coragem á prova de perigos.
pelas quaes se pretende provar que repu­ Thomaz e Buddas, dando conta da sua
gna haver cm Deus uma pessoa divina dis­ missão a Manés, lhe fizeram vôr que não
tincta do Padre; examina 1-as-hemos no ar­ tinham encontrado inimigos mais territeis
tigo A n ti-trin ita rio s. do que os christàos. Manés sentiu a neces­
e manes—chamava-se originar iamente Cu- sidade de os conciliar, e formou o proje­
/ bricus,liascido na Persia em 240: uma mu- cto de ligar seus princípios com os do
- lher de Ctesiphonte, muito rica, comprou-o Christianismo: enviou os seus discipulos a
| quando elle nào tinha ainda mais que sete comprar os livros dos christàos, e durante
' annos d’idadc; fel-o instruir com muito des­ a sua prisão accrescentou aos livros sagra­
I velo, e deixou-lhe por sua morte todos os dos, ou supprimiu tudo o que era favorá­
seus bens. vel ou contrario a seus princípios.2
Cubricus, possuidor d’um a grande for­ 1 Exlractamos originalmentc a historia
tu n a , foi residir perto de Palais, e tomou o de Manicheu ou de Manés d'uma peca an­
• nome de Manés. tiga, que tem por titulo Acta Disputationi?
Manes achou entre os bens da sua bem- Archelai, episcopi mesopotamue et Mane
feitora livros d’um tal Scythiano; leu-os, c tis «haeresiarcha}.
viu que o espectáculo dos bens c dos ma­ Esta peça foi publicada debaixo d'este ti­
les, cujo theatro é a terra, havia levado tulo por M. Zacagni, bibliothecario do V(t-
Scythiano a suppôr que o mundo é obra ticano. Vide Monumenta ecclesia} graecac
de dous princípios oppostos. dos quaes um et latinaí. Roma), 1698.
é cssencialmente bom, e o outro essencial­ ãf. de Valois inseriu quasi toda esta dis­
mente mau; mas que sào ambos eternos e puta nas suas notas relativamente a Socra­
independentes. Manés adoptou os princi- tes; acha-se cila no terceiro torno de l)om
pios de Scythiauo, traduziu os seus livros, Cellier, sobre os authores ecclesiasticos, em
I fez-lhes algumas mudanças, e deu o syste­ Fabricius, t. 2.
ma de Scythiano como obra sua. Não ex­ Foi sobre esta conferenda de Archelaus
poremos aqui esse systema, porque o ex­ que Sancto Estevão trabalhou em 371, Só­
pomos no artigo Mamcheismo; diremos so­ crates em 430, e Heraclio no fim do. 16.*
mente que o bom e mau principio são a século; acha-se citada ríuma antiga cadeia
luz e as trevas. Manés teve ao principio grega a respeito de S. João. (Vêde Zacagni,
poucos discipulos. Pracf. pag. 11. Fabr. ibid.)
Tres dos seus discipulos chamados Tho- M. Beausobre reconhece que essas aclas
maz, Buddas, e Hermas, foram prégar a são antigas, mas julga que esta antiguida­
sua doutrina nas cidades c burgos da pro­ de não prova a sua authenticidade, e não
vincia para onde Manés se tinha retirado levanta as difficuldades que fa z contra essa
depois de ter deixado a capital; c forman­ obra.
do logo maiores desígnios, enviou Thomaz Depois de ter lido mui attentamente as
e Buddas ao Egypto e á India, e reteve razões de M. Beausobre, não fui da sua
junto d’cllc Hermàs. opinião, e segui as actas da disputa de Cas­
Durante a missão de Thomaz e de Bud­ car; darei n u m a nota algumas provas da
das, o filho de Sapor, rei da Persia, cahiu insufficiencia das razões sobre, que M. de
perigosamente enfermo. Beausobre rejeita como supposta a historia
Manés, que era douto em medicina, foi da disputa de Cascar.
chamado, ou elle mesmo se foi olTereccr * Este artigo é um dos grandes meios
para tractar este principe: coníiaram-llfo.
m MAN
Manes leu nos livros sagrados, que uma cios, nem uma má arvore bons fruetos, &
boa arvore uào póde produzir maus fru­ julgou poder sobre esta passagem estabe-

de Bcausobre para provar a falsidade das nifestou na conferenda dc Cascar, c que os


actas da disputa de Cascar: vamos exa­ tivesse adquirido antes seis mezes ou me­
minar as suas razões: . nos, que durou a sua prisão, segundo M. de
1. ° M. de Beausobre diz que Sancto Epi-
Beausobre? Finalmente se na conferenda,
phanio assevera que Manés possuira os li­ de Cascar Manés se apresentou muito in­
vros dos christãos antes de ser prêso, o que struído por não ter estudado senão seis me­
prova a falsidade da historia da conferen­ zes ps livros dos christãos, de que modo
d a de Cascar. pretende M. dc Beausobre n'uma outra pas­
M. de Beausobre engana-se; Sancto Epi- sagem que as actas da conferenda de Cas­
phanio não è contrario ás actas da disputa car são falsas porque Manés ahi é represen­
de Cascar; este padre assevera positivamen­ tado como convencido pelas razões drArche­
te que os discipulos de Manés foram com­ laus sem dar resposta alguma, o que lhe era
prar os livros dos christãos, e que voltaram bem fácil fazer, e que segundo M. de Beau­
para seu mestre, que acharam prêso; que sobre ê impossível que um homem como Ma­
remetteram os ditos livros, e que foi na nés não respondesse em toda esta disputa
prisão que este heresiarclta harmonisou os como narram as actas da conferenda de
livros dos christãos com o seu systema. Cascar?
M. de Beausobre cila, pois, Sunclo Epl- Aquellcs que pretendem affirmar de per
phanio, ao menos pouco cxactamentc, pois si a veracidade do que affirmo, não teem
que lhes faz dizer expressamente, palavra mais do que cotejar o capitulo 7.° do I.»
por palavra, o contrario do gue elle disse. livro, paginas 76, com o capitulo 9.° dò
Vede a pagina 622, n. o, de Sancto Epipha- mesmo livro, paginas 108, tomo l.° da His­
nio, da edição do Padre Petau. toria do Manicheismo, onde estas contra-
2. dicções se encontram palavra por palavra.
° 3/. (íe Beausobre ataca a authentici-
dade das artus da disputa de Cascar, pelo 4.° 3/. de Beausobre para provar que Ma­
testimunho de Sancto Èpiplianio. nés tinha conhecimento dos livros dos chris-
M. de Beausobre havia, pois, olvidado lãos antes da sua prisão, cita áflcrbelot,
.que olhava Sancto Epiphanio como um au- que affirma ser Manés ecclesiastico entre os
thor crédulo, sem critica e sem discerni­ christãos da provincia d'Ahuas.
mento: c com similhanles authoridades que A critica de M. de Beausobre n esta parte
se ataca a authenticidade d'um escripto? parece-me ter ainda algum defeito: podemos
ou o mesmo homem ê um author grave, ou preferir os antliorcs orientaes, sobre a au­
um testimunho sem authoridadc, conforme thoridade dos quaes d'Hcrbelot assenta a
é favoravrl ou contrario ás opiniões de M. narração d’este facto, a um monumento
Beausobre? tão antigo como as actas da disputa de
3.° 3/., d* Beausobre prova que com effei- Cascar?
to Manés havia lido os livros dos christãos D'Hcrbelol, antes d'affirmar que Manés
antes da sua prisão, porque esta foi muito ei'a sacerdote entre os christãos da provin­
curta para que elle podésse instruir-se nos cia d'Ahuaz, diz que este impostor ouvindo
livros dos christãos bastantemente para es­ dizer aos chi'istãos que Jesus Christo pro-
crever as cartas que csci'eveu. e para se metlera enviar-lhes depois d'elle o seu pa­
defender tão sábiamente como fez, mesmo racleto, pretendeu persuadir ao povo igno­
na disputa de Cascar. rante da Persia que era elle esse paracleto:
Mas, primeiro, M. de Beausobre não pôde ora com fundamento não se podería dizer
determinar precisamente a duração da. pri­ isto de Manés, se este heresiarcha tivesse
são de Manés; segundo, os progressos que sido padre entre os christãos antes de fazer
Manés fez na scienda dos livros sagiados publica a sua heresia.
dependiam do seu grau de penetrarão e da Ê claro, pois, que áHerbelot n'este artigo
sagacidade de seu espirito, assim como do não fez mais do que amontoar differentes
seu ardor pela instrucção: mas M. de Beau­ citações de authores orientaes, que haviam
sobre prova que Manés possuía muitos co­ fatiado de Manés. O mesmo iVHerbelot; na
nhecimentos adquiridos, muito espirito na­ artigo Manés, suppõe que elle não era eccle­
tu ral, e uma grande porpenção p a ra o rfi- siastico antes de tornar .pública a sua he­
ciocinio ou dialectica, muito genio, e um resia.
prodigioso ardor pela celebridade: com es­ Sob este objecto as nossas reflexões não
tas disposições c impossível que Manés ti­ podem ter maior extensão: comtudo julga­
vesse adquirido os conhedmentos que m a­ mos ter dito que a Historia do Manicheis-
MAN 665
ilecer a necessidade dc reconhecer no mun- escapou-se, e passou ás terras do império
■do um bom c um mau principio, para pro­ romano.-
duzir os bens c os males. 1 Manés annunciou-sc como um novo apos­
Achou na Escriptura que Satanaz era o tolo enviado para reformar a religião, c
principe das trevas, o inimigo de Deus, e para purgar a terra de seus erros.
julgou poder fazer de Satanaz um princi­ Escreveu assim a Marcello, homem dis­
pio malfazejo. tincto por sua piedade, e considerável por
Emfim Manes viu no Evangelho que Je­ seu credito c por sua fortuna.
sus Christo promeltia a seus apostolos en­ Marcello communicou a carta dc Manés
viar-lhes o paracleto, que lhes ensinaria a Archelaus, bispo de Cascar, e d’accordo
todas as vcraaues" via que este paracleto com elle rogou a Manés que se dirigisse a
nào era ainda chegado no tempo de S. Cascar a casa de Marcello, que lhe propõz
Paulo, pois que este mesmo apostolo diz: uma conferência com Archelaus. Tomaram-
tnós nào conhecemos senão imperfeita­ se para juizes da questão os homens mais
mente; mas quando a perfeição vier, tudo esclarecidos, c os menos susceptíveis de
o que é imperfeito será abolido.» parcialidades no seu julgamento: estes jui­
Manes juigou que os christãos esperavam zes foram Manipe, illustre grammatico e
ainda o paracleto, e não duvidou que to­ habil orador, Egialée, mui habii medico,
mando esta qualidade, lhes fizesse acredi­ Claudio e Cleobulo, irmãos, e ambos rhe­
tar a sua doutrina. toricos hábeis.
Tal foi em globo o projecto que Manés A casa dc Marcello foi aberta a todo o
formou para o estabelecimento da sua sei­ mundo, e Maoicbfíu começou a questão.
ta. 2 Eu sou, disse elle, discipulo do Christo,]
Emquanto que Manés dispunha assim o apostolo dc Jesus, o paracleto promeltidqj
seu projecto, soube que Sapor resolvera fa- por elle; os apostolos não conheceram se­
zel-o morrer; corrompeu os seus guardas, não imperfeitamente a verdade, e S. Paulo
assegura que quando a perfeição tiver che­
mo, por M. de Beausobre, apesar de ter sido gado, tudo o que é imperfeito será aboli­
escripla por um homem dc muito saber e do: d’aqui Manés concluía que os christãos
espirito e de ser util em alguns pontos, en­ esperavam ainda um pçopheta para aper­
cerra 7io entretanto inexaclidõcs nas cita­ feiçoar a sua religião, e elle pretendia ser
ções, na critica, e na logica: os padres são esse propheta.
ahi muitas vezes censurados com orgulho e Os judeus, continuava elle, dizem que o
quasi sempre injustamente. É necessário bem ’e o mal vem da sua causa, não ad-
que M. de Beausobre não tenha sentido o mittem senão um unico principio de todas
quC'todo o leitor imparcial deve, segundo as cousas, não estabelecem differenea al­
eu, sentir lendo o seu livi'o; o author foi guma entre a luz e as trevas, confundem o
arrastado pelo amor do paradoxo c desejo Deus soberanamente bom com o principio
da celebridade, dons inimigos inconciliáveis do mal; não ha erro mais despropositado,
da rectidão t da lógica. nem mais injurioso para Deus.
1 Matth. 7, v. 18. Epist. Manet, ad Mar- Jesus Christo fez conhecer aos homens
cell. que o Deus supremo e bemfeitor não rei­
2 Mr. de Beausobre esforçou-se em pro­ nava só no mundo, que o principe das tre­
var a falsidade das actas de Cascar, por­ vas exercia sobre os homens um imperio
que era impossível que Manés houvesse to­ tyrannico, que elle os impellia incessante-
mado o titulo de paracleto, e prova esta im­ mente para o mal, que lhes accendia mil
possibilidade, porque Manés não se póde di­ paixões perigosas, lhes sugeria todos os cri­
zer ao mesmo tempo paracleto c apostolo. mes. Jesus Christo revelou aos homens as
(Hist. de Manich., /. 1, c. 9, pag. 103.) recompensas destinadas áquelles que vivem
Mas primeiro é certo que os inanicheus sob o imperio do Deus supremo e bemfei­
criam que Manés era paracleto, c Mr. Bas- tor, e os supplicios reservados aos maus,
nage serve-se d'este faclo para provar con­ que vivem sob o imperio do demonio; fi­
tr a Mr. de Meanx que os inanicheus são dif­ nalmente elle lhes fez conhecer toda a ex­
ferentes dos albigcnscs. (Basnage, Hist. des tensão da bondade do Ente Supremo.
ógl. réformces.) Entretanto os christãos conservam ainda
2 / Como Jesus Christo devia enviar o erros perigosos sobre a bondade do Ente
paracleto, não se entende que o titulo d'apos­ Supremo: elles créernque é o principio dc
tolo seja incompatível com o do paracleto, tudo, que creára Satanaz, c que póde fazer
porque Manichcu não o considera senão em mal aos homens: estas falsas idéias sobre
relação á sua missão. a bondade do Ente Supremo o oíTendem,
MAN
ervortem a moral, e impedem os homens no ao Deus supremo, vós não achareis ne­
e seguir os preceitos e os conselhos do nhum que nào tenha qualquer qualidade
Evangelho. benefica, qualquer propriedade util.
Para dissipar estes erros c mister escla­ O domonio, que se quer fazer olhar co­
recer os homens sobre a origem do mun­ mo um principio coetcrno ao Ente Supre­
do, e sobre a natureza dos dous princípios mo, é na sua origem uma creatura inno-
que concorreram para a sua producçào; é ccnte que se depravou pelo abuso quo fez
mister ensinar-lhes que o bem c o mál não de sua liberdade.
podendo ter uma causa commum, se deve Taes são cm geral os princípios que Ar­
necessariamente suppôr no mundo um bom chelaus oppôz a Manés. Todos sentiram a
c um mau principio. força de suas razões, e ninguem ficou aba­
Não era sómente sobre a razão que Ma- lado, nem fascinado pelos sophismas de
nés apoiava o seu sentimento sobre o bom seu adversario.
e o mau principio; elle pretendia achar a Archelaus garantiu o povo da solução,
prova na própria Escriptura; encontrava a esclarecendo-o.
sua ideia no que S. João disse fallando do Que estragos um homem tal como Ma­
diabo, que: «Como a verdade não existe nés não teria produzido na diocese de Cas­
ricllc, todas as vezes que mente, falta de car, se Archelaus não fosse senão um ho­
seu proprio fundo, porque è tão mentiroso mem honesto, sem talento, ou um grande
como seu pae.» 1 senhor, mas sem luz?
Quem c o pae do diabo, dizia Manés, não Manés, desesperando de fazer proselytos \
é Deus, porque elle nào é mentiroso; quem na provincia de Cascar, tornou a passar á \
é pois? Persia, onde os soldados de Sapor o pren- 1
Nào ha senão dous meios de ser pae de deram e o mataram, pelos fins do terceiro. J
alguém, a via da geração, ou a crcaçào. século.
Se Deus é pae do diabo pela via da ge­ Tal foi o fim de Manés, onde tres secu\
ração, o diabo será consubstanciai a Deus: los depois Mahomet, fanatico, ignorante,\
esta consequência ó impia. sem luz e sem intelligencia, se fez respei- j
Se Deus é pae do diabo pela via da crea- tar como um propheta, e receber á ameta-7
ção, Deus é mentiroso, o que é outra blas- de da Asia, como uma doutrina inspirada,
phomia. um mixto absurdo de judaísmo e dc Chris­
É forçoso pois que o diabo seja filho op tianismo.
creatura de qualquer creador, sem ser Manés, alijando a doutrina dos Magos
Deus. co m o . ip s ríTO,^esagrati‘áva igüal-
Archelaus atacou a qualidade d’apostolo nierité aos persas, abs christãos e aos ro­
de Jesus Christo que tomava Manés: per­ manos: todas as sociedades religiosas de
guntou em que provas fundava a sua mis­ que eslava cercado se sublevaram contra
são, que milagres ou que prodígios havia elle, e foi opprimido.
feito, e Manés não podia citar algum. Mas, quando Mahomet alliou o Christia­
Por este meio Archelaus despojava Ma­ nismo c o‘judaísmo, a Arabia e as provin­
nés da sua authoridade, c reduzia a sua cias do Oriente estavam cheias de judeus,
doutrina a um systema ordinario, cujos de nestorianos e d’eutychianos, de mono-
fundamentos destruía: provou contra Ma- thelitas e d’outros horeticos exilados ou ba­
nés, que era impossível suppôr dous séres nidos, que viviam pacificamente sob a pro­
eternos e necessarios, dos quacs um é bom tecção dos arabes, mas que conservavam
e o outro mau, pois que dous entes que contra os imperadores romanos, contra os
existem pela necessidade de sua natureza, catholicos, um odio implacavcl, e que para
não podem ter attributos diferentes, nem se vingarem favoreceram o fanatismo dc
formar dous séres diferentes; ou se são Mahomet, secundaram sèus esforços, c lhe
dous séres diferentes, são limitados; e não suggeriram talvez o projecto dc ser pro­
existindo já por sua natureza, não são já pheta c conquistador; todo o império lhes
eternos e independentes. parecia preferi vel ao dos catholicos.
Sc os objectos que se olham como maus Além de que Manés era um philosopho
são óbra d’um principio’ essoncialmente que queria estabelecer os Seus dogmas pe­
malfazejo; porque não se encontra na na­ la via do raciocínio e da persuasão: Maho­
tureza inal puro, sem mistura do bem? met, pelo coutrario, era um fanaticó igno­
Escolhei nos objectos que nos teem feito rante, e o fanatico sem luzes recorre ao
imaginar um principio malfazejo e eocter- supplicio e ás armas.
Os discipulos de Manés fizeram, todavia,
1 João 8, v. 44. y alguns proselytos; foram procurados e tra-
MAN 667

ctados com muito rigor: ellcs se multipli­ c o mau principio as trevas, c esta luz es­
caram comtudo; c seis séculos depois de palhada na matéria tenebrosa, animava tu­
Manes, nos tempos de trevas c de ignorân­ do que vivia.
cia, nós vemos os manichcus muíliplica- Vé-sc facilmente que os princípios do
rem-sc prodigiosamente, c fundarem um manicheismo sobre a natureza c origem da
estado, que fez tremer o imperio de Con- alma podiam conduzira maximas austeras,
stantinopla. É interessante conhecer as dif­ e a uma pureza de costumes que se podia
ferentes fôrmas que tomou esta seita, seus olhar como a perfeição da moral christà,
progressos e cíTeitos no Oriente c no Occi­ ou levar a um quictismo que deixava ope­
dente. rar todas as paixões cm liberdade.
MANiCHBü^—Discipulos de Manés, ou se- Assim os espíritos simples ou superfi-
ctariosíua sua doutrina: os principacs dis­ ciaes, que não se ligam senão ás palavras,
cipulos de Manés foram Ita n a s, Uuddas e e que julgam só sobre as primeiras appa-
TUoma?, que foram ao Egypfó, á Syrui, ao rencias; os christàos teimosos da philoso-*
Oriente c á índia levar a doutrina de seu phia pythagorica, platônica c stoica; os..bo-|
mestre; elles supportaram ao principio bas­ mens d’um caracter duro, austeco, rigidoi
tantes desgraças, c fizeram poucos prosely­ c melancfiólTcó' ou d um temperamento vo­
tos. Iremos primeiro expôr os seus princí­ luptuoso,, achavam no manicheismo princí­
pios c a sua origem, e depois exporemos pios satisfactoriòs.
os seus progressos. Os primeiros discipulos de Manés não
tardaram pois em fazer proselytos, c estes
oram bastante numerosos na Africa pelos
§ I fins do terceiro século.
Como começaram os manichcus, os seus Como os imperadores romanos odiavam
princípios c a sua moral os persas, e olhavam os manicheus como
uma religião vinda da Persia, perseguiram
com rancor nacional os manicheus, antes
Os primeiros sectarios de Manés compo- que o Christianismo fosse a religião dos
zeram diversas obras para defender as suas imperadores, e por zelo pela religião; as­
idéias, c como Manés tomara a qualidade sim os manichcus foram perseguidos qua­
de apostolo de Jesus Christo, aproximaram si sem descanso; elles não podiam formar
tanto quanto lhes foi possível os princípios em todos estes tempos senão uma seita, de
philosophicos dc Manés aos dogmas do Chris­ alguma sôÜê-^CfUCta, que devesse cahir
tianismo: moderaram, pois, müito o syste­ nofiffltrfismo, c dos princípios geraes do
ma dc Manés, e fizeram a varios respeitos manicheismo tirar mil dogmas particula­
dcsapparecer pelo menos na apparencia a res, absurdos, c uma alluviao dc prácticas
opposiçào do manicheismo e do Christia­ c dc fabulas insensatas.
nismo. Do modo que os manicheus eram perse­
Outros discipulos dc Manés, taes como guidos, elles tomavam muitas precauções
Aristocritc, pretendiam que no fundo todas para não admittir no seu grêmio senão h o -,
as religiões, paga, judaica, christà, etc., mens seguros: assim tinham um certo tem- \
convinham no principio c nos dogmas, c po de provas, e havia entre elles cathccu- ]
que hão diíferiam senão em algumas cere­ menos, auditores e eleitos.
monias: cm ioda a parte, dizia elle, um Os ovintes ou auditores viviam quasi
"Deus supremo e deuses subalternos; aqui como os outros homens; para os eleitos ha­
sob o nome do Deus, acolá sob o nome de via um genero dc vida totalmcnte differen­
anjos; em toda a parte templos, sacrifícios, te, c uma moral mui singular formada so­
orações, offerendas, recompensas e penas bre os princípios fundamentacs do mani-
na outra vida; envtoda a parte demoniosc chcismo.
um chefe, principal author dos crimes, e De modo que, como n’cste systema o
entarregado de os p u n ir.1 mundo era o efleito da irrupção que o mau
0 systema philosophico dc Manés e o seu principio fizera no imperio da luz, e acre­
/sentimento sobre a origem da alma, tinha ditavam que o principio benefico não era
/idemais muita rekioão com a philosophia mais que a luz celeste; diziam que a parte
Jde Pythagoras c de Platão, c mesmo com d,e.Deus abandonada ás trevas cstava^és-
3/os princípios dos stoicos: elle acreditava páíhida gnOódos, os corpos .do.. cjSFjpla
que o bom principio não era senão a luz, terra, o que éíía.ahi se achava escravisada
c manchada: que aIguma^cTcstas.pareelías
1 Formula receptionis Manichworum, dò luz íião se libertariam nunca d>sta es-
apud Cottelerium in Patribus Apostolicis. crávldãòr'c permaneceríam ligadas por

\
608 MAN
.uma eternidade a um globo, de trevas, e.se colhidos dos nianichcus a estas consequên­
•c^nservariain eleriiamente com os espíri­ cias que pareceram extraordinarias, c mes­
tos tenebrosos. mo impossíveis n’um tal homem, (pie tem
5 Estás porções de luz celeste, ou do bom talvez mais de uma cousa d’esta especie a
'principio, espalhadas em toda a natureza, censurar.
o encerradas nos diversos orgàos, jornia- Entre os chefes dos nianichcus havia
. vam os animaes, as plantas, as arvores, e quem olhasse a necessidade de sc alimen­
'gQraJnijcntc tudo o que tinha vida. tar debaixo d’um aspecto mais consolador;
Logo que unia das porções (ia luz cclcs- elles acreditavam que um eleito, comendo*
. te, e que era uma porção da divindade, lo- libertava as mais pequenas parles da di­
<go, digo eu, que esta porção de luz estava vindade unidas ã materia que comia, c que
unida a um corpo pela via da geração, cila do seu eslomago cilas voavam ao céo, c sc \
. se achava ligada á matéria muito mais es- reuniam á sua origem: assim, era um acto \
itreitamente que d’antes; assim o casamen­ de religião, e uma obra do piedade subli­
to não fazia senão perpetuar o capliveiro me, quando um eleito comia com excesso; j
idas almas, e cllcs couçhüiua.iIue_(i._çasa- elle se olhava, não como o salvador de u m /
‘imcnto ora jujn..cstad.o, imperfeito ,ç,.çrjjni- homem, mas de Deus. 1
E’ facil vér que os princípios fundanien-
(" Havia nianichcus que acreditavam que taos conduziam a consequências absoluta-
Ias arvores e as plantas tinham, assim co­ incntc dilTerentcs, c mesmo oppostas, se­
mo os animaes, percepções; que viam, que gundo os caracteres e as circumstandas:
ouviam, e que eram capazes de sentir pra­ parece que imputavam aos nianichcus mui­
zer c dõr: de sorte que .sc não podia co- tas d’cstas consequências, que elles mes­
illier um frueto, cortar um legume, dccepar mos não tinham tirado; imputavam-lhes ^
juma arvore, sem que a arvore oú a plan­ lambem o commetter horrores e infamias)
ta se resentissem de dõr; e pretendiam que em suas assembléias secretas.
* o leite que sahe como uma lagrima da ü-
! gueira que sc arranca, era d’isto uma pro­ § ii
va sensível: c por esta razão que não que-
; riam que se arrancasse a menor herva, Do progresso c da extincrão dos maniçheus
í mesmo os espinhos, e posto que a agricul­
tura seja a arte mais innocente, elles a con- Desde Dioclcciano até Anastacio, os im­
f. demnavam, todavia, porque se nào podia peradores romanos fizeram todos grandes
í exercer, sem commetter uma infinidade de esforços pajra destruir os maniçheus: elles
morticidios. foram banidos, exilados, despojados de seus
| Parece que com taes. princípios os mani- bens; condemnados a perecer por meio de
! clicus deviam morrer de fome: elles acha­ dilTerentcs supplicios: renovaram-sç fre­
ram o meio de evitar esta ' consequência. quentes vezes estas leis, c sc executaram
Persuadiram-se que homens tão sanctos rigorosamente perto de dous séculos (des­
(ver
como cllcs deviam ter o privilegio de vi­
do crime dos outros, protestando, to-
de 285' até 491).
No rqjnado de Anastacio houve mais in­
i davia, pela sua innocencia: assim quando dulgência para com elles, em razão de sua
| se levava pão a um mauichcu eleito, elle mãe ser manicheia: c cllcs prégavam a sua
sc retirava um pouco á parte, fazia as mais doutrina com mais liberdade; porém foram
í terríveis imprecaçpes contra os que lh’o privados d’ella sob o dominio de Justino c
f traziam, depois, e dirigindo-se ao pão, dizia de seus successores.
7 suspirando: «Não fui ouquevos colhi, que Reinando Constancio, neto de Ilcraclio,
I vos moí; não vos amassei, não vos deitei ao uma mulher chamada Callinice, e mani­
forno; assim, sou innocente de todos os ma­ cheia zelosa, tinha dous filhos, a quem cila
lles que tendes soíTrido: eu desejo ardente- nutriu nos mesmos princípios: estes jovens
| inente que aquelles que vol-os fizeram os chamavam-se Paulo e João; logo que esti­
experimentem também.» veram em estado de prégnr o manicheis-
i Depois d’esta piedosa preparação, o es- mo, cila os enviou á Armenia, onde fize­
?colhido comia com prazer, digeria sem es­ ram discipulos, que olhavam Paulo como o
crúpulo, e sc consolava com a esperança apostolo que lhes havia feito conhecer a
t que linha de que aquelles que lhe procu- verdade: tomaram o nome d’este apostolo,
I ravam do comer seriam pánidos rigorosa-
■ mente. * Disp. Archelai.' Epiph. Hccrcs 6. Ai"J-
Um mixto de extravagante sensualidade, de Moribus Manichceorum, de limr.es. op.
de superstição e de dureza conduzia os es­ imperfect. I. c. 6.

/
MAN 669

o sc chamaram paulinos (pelo meio do 7.° Um armênio, por nome Paulo, escapou-
século.) se, e levou comsigo dous filhos, instruiu-os,
Paulo teve por successor Constantino, pòz um à frente dos manicheus, e lhe deu
<]uo se chamava Sylvano. o nome de Timotheo: depois da morte d’cs-
Este Sylvano cinprehendeu reformar o ma* tc ultimo, Zacharias e José se disputaram
itichcisino e harmonisar o systema dos dons a qualidade de chefes dos manicheus, c
princípios com a Escriptura Sagrada; de sor­ formaram dous partidos: bateram-se; e os
to que a doutrina de Sylvano parecia toda serraccnos tendo feito uma irrupção n1es­
exlrahida da Escriptura, tal como os ca­ tas regiões, degolaram quasi todo'o parti­
tholicos a recebiam, e não queria reconhe­ do de Zacharias; José mais astuto, achou
cer outra regra de fé. AÍTectava servir-sc meio de agradar aos serraccnos, e de se re­
dos termos da Escriptura, fallava como os tirar a Episparis, onde a sua chegada cau­
orthodoxos, quando se referia ao corpo, c sou grande alegria. Um magistrado zeloso
ao sangue de Jesus Christo, á sua morte, pola religião, forçou José a saliir de Epispa­
ao seu haptismo, á sua sepultura, c á re- ris, e elle se retirou a Antiochia, onde fez
surreição dos mortos; elle suppunha, como uma grande quantidade de proselytos. De­
os orthodoxos, um Deus Supremo, mas di­ pois da morte de José, os paulinos se divi­
zia que elle não linha no mundo imperio diram ainda cm dous partidos: um tinha
algum, pois (juc tudo ia mal: attribuia o por chefe Sergio, homem sagaz, e nascido
seu governo a um outro principio, cujo com todos os talentos ‘proprios para seduzir.
imperio nào sc estendia além d’cste mun­ 0 outro partido estava ligado a Daanes:
do, c acabaria com o mesmo. Tinha uma depois de muitas contestações, os dous par­
nversão singular ás imagens e á cruz: era tidos vieram ás mãos, e se destruiríam, se
uma consequência do seu erro sobre a en­ Theodoto nào os reconciliasse, recordando-
carnação, sobre a morte e a rcsurrciçào lhes que eram irmàos, c fazendo-lhes sen­
dc Jesus Christo, que nào reputava, reacs. tir que suas divisões os perderíam.
Condcmnava os catholicos como incursos A imperatriz Theodora, tendo tomado
nos erros do paganismo, honrando os san­ as redeas do governo durante a menorida-
ctos como divindades, o que cra contrario de de Miguel, cm 8 4 1, restabeleceu o cul­
á Escriptura. Pretendia que era para oc- to das imagens, e julgou dever empregar
cultar aos leigos esta contradicçào entre o toda a sua authoridade para destruir os
culto da igreja catholica e a Escriptura, manicheus; enviou a todo o imperio ordem
que os sacerdotes prohibiam a leitura desta. de dcscobril-os, c de matar todos os que
Por meio d’cstas calumnias os inauichcus nào se convertessem. Mais de cem mil ho­
seduziam muita gente, c^a sua seita nào se mens pereceram por ineio de diíTerentes
oITereeia aos espíritos simples senàocomo cspecies de supplicios.
urna sociedade de christàos, que fazia pro- Um tal Cerbeas, ligado a esla seita, sa­
fissào d'uma perfeição extraordinaria. bendo que seu pac fòra crucificado, por
Sylvano ensinou à sua doutrina durante nào ler querido renunciar assuas crenças,
quasi vinte e sete annos, e fez muitos sectá­ se salvou com quatro mil homeus entre os
rios. O imperador Constantino, successor serraccnos, uniu-se a elles, e assolou as
dc Constaucio, informado dos progressos terras do imperio.
de Sylvano, encarregou um ofiflcial, chama­ .Os paulinos fundaram cm seguida mui­
do Simào, dc ir prendel-o e de o fazer tas praças fortes, onde os manicheus, que
morrer. o terror dos supplicios tinha conserva­
Tres annos depois da morte de Sylvano, do escondidos, se refugiaram c formaram
Simào que o havia feito apedrejar, deixou uma potência formidável pelo seu nume­
secretam ente Constantinopla, foi procurar ro c pelo seu odio implacável contra os
os discipulos dc Sylvano. reuniu-os e tor- imperadores e contra os catholicos: viram-
nou-se seu chefe; tomou o nome de Ti to, se muitas vezes, unidos aos serraeenos, ou
c perverteu muita gente, pelo fim do 7.° sós, assolar as terras do imperio, e destruir
século. exercitos romanos. Uma batalha desgraça­
Simào, c um tal Justino, tiveram contes­ da, na qual Chrisochir, seu chefe, foi mòr-
tação sobre o -sentido d’umá passagem da to, aniquilou esta nova potência, que os
Escriptura: Justino consultou o bispo de supplicios tinham creado, c que havia fei­
Colonia; Justiniano n, successor dc Con­ to tremer o império de Constantinopla.1
stantino, informado pelo bispo de Colonia
de que havia manicheus, enviou ordens 1 Photius, de Manichceis repullulantibus,
para que fossem mortos todos aquclles que Bibliot. Croitsiana, pag. 349. Petrus Sicu­
nào quizessem convcrtcr-se. lus, de Manichwis. Cedremis.
670 MAN
Que me seja permittido fixar um mo­ o author dos males quo a illigem o impé­
mento a attenção do meu leitor sobro os rio.
acontecimentos que vcnlio de desenrolar Em seguida á derrota do exercito do
ante seus olhos. Chrisochir, os restos da seita dos manichcus
Manés ensina livremente sua doutrina se dispersaram do lado do Oriente, fizeram
em Cascar e em Didoride; Archelaus o alguns estabelecimentos na Bulgaria, c cer­
combate com as armas da razão c da reli­ ca do 10.° século, se espalharam na Italia:
gião: dissipa seus sophismas; faz vér a tiveram estabelecimentos consideráveis na
verdade do Christianismo em toda a ple­ Lombardia, d’onde enviaram pregadores,,
nitude; e Manés é olhado por toda a pro­ que perverteram muita gente.
vincia como um impostor: ninguem caba­ Os novos manicheus tinham feito altera­
lado pelas suas razoes, nem inllammado ções na sua doutrina; o systema dos dous-
por seu fanatismo. principios não estava bein desenvolvido;
Manés, desesperado, passou á Persia; mas haviam conservado todas as conse­
Sapor o faz perecer, c seus discipulos al­ quências sobre a Incarnação, sobre a Eu­
cançam proselytos. charistia, sobre a Virgem Sancta e sobre
Dioclcciano é informado do que ha no os Sacramentos.
império romano discipulos de Manés, con- Muitos dos que abraçaram estes eram
demnou ao fogo os chefes d’esta seita, e os enlhusjastas, que a pretendida sublimida­
manichcus se^nultiplicam. de da moral manicheia havia seduzido;
Durante mais de 600 annos os exílios, taes foram alguns conegos d'Orleans, que-
os desterros e os supplicios são emprega­ tinham grande reputação de piedade.
dos, inutilmente, contra esta seita; na ine- O rei Roberto, sendo d’isto informado,,
noridade de Miguel, os manicheus espa- fez reunir um concilio, examinaram-so os
ham-so em todo o império: a piedade de erros dos novos manicheus, os bispos fize­
Hicodora quer destruir esta seita; ella a ram inúteis esforços para os desenganar:
ére, seu zelo immola mais de cem mil «Pregai, responderam elles aos bispos,
manichcus obstinados, e do sangue xTestes pregai vossa doutrina aos homens grossei­
infelizes vé sahir uma potência inimiga da ros e viciosos; quanto a nós, não abando­
religião c do imperio, que foi longo tempo naremos as crenças que o Espirito Sancto
funesta a uma e a outro, e que apressou gravou em nossos corações; tarda-nos que
as conquistas dos serraccnos, o engrande- vós nos envieis ao supplicio, vémos nos
cimento do mahometismo, e a ruina do im­ ccos Jesus Christo que nos estende os bra­
pério. ços, para nos conduzir cm triumpho á cor­
Se Marcello, em cuja casa se eíTectuou a te celeste.»
conferência entre Manés c Archelaus, ti­ O rei Roberto os condemnou ao fogo, c-
vesse dito a Diocleciano: «Opponde aos elles se precipitaram nas chammas com
manicheus homens taes como Archelaus, grandes transportes d’alegria (anno 10â2.)
elles suspenderíam os progressos domani- Os manicheus fizeram muito mais pro­
cheismo, como esse bispo abafou na sua gressos no Langucdoc e na Provença. Rc-
provincia esta seita nascente: o fogo da uniram-se muitos concilios contra elles, e
perseguição que vós ateaes contra elles, queimaram-sc muitos sectários, mas sem
fará sahir das cinzas d’esses sectarios uma extinguir a seita; elles penetraram mesmo
potência formidável para vossos successo­ na Allemanha, c passaram á Inglaterra;
res.» Diocleciano teria olhado Manés co­ em toda a parte fizeram proselytos, mas-
mo um insensato, e seus cortezãos teriam em toda a parte os combateram e os refu­
sustentado que elle queria aviltar a autho- taram.
ridade soberana. O manicheismo perpetuado através de-
Se, quando Theodora dava suas ordens todos estes obstáculos, degenerou insensi­
para exterminar de morte todos os mani­ velmente, o produziu no 12.° século e no-
cheus, um sabio, lendo no futuro, tivesse •I3.° essa multidão de seitas que faziam
dito á imperatriz: «Princeza, o principio profissão de reformar a religião c a Igre­
do zelo que vos anima é louvável, mas os ja; taes foram os albigenses, os petrobru--
m eios que empregacs serão funestos á sianos, os hcnriquenscs, os discipulos de
Igreja e ao imperio»; este sabio teria sido Tanchelin, os popelicanos; é os catharos.1
olhado como um mau homem, e como um
inimigo da religião; depois da revolta de • Vide relativamente aos manicheus de
Carbéas não ha ninguem a quem não o te­ Italia e das Galias Acta concit., Aurelia-
nham imputado, o que não fosse eonde- nensis, Spicilrg, t. 2. Laba, conc., t. 9.
mnado como um manicheu, e punido como Virgnier, Bibliot. llist. 2, part., an. 102?,

b
MAN 671
MANiciiEiSMO— Systema dc Manés, que bens c dc males: os homens que experi­
consistia cm conciliar, com os dogmas do mentavam successivamente estes bens e
Christianismo a opinião que suppõo que o estes males, haviam ellcs mesmos feito o
mundo o os phcnomenos da natureza tccm bern c o mal; algumas vezes partilhavam
por causa dous princípios eternos e neces­ seus fruetos e seus rebanhos, com seus al-
sários, dos quaes um é ossencialmentc liados; outras vezes assolavam as messes
bom, e o outro esscncialmento mau. dc seus inimigos, roubavam seus reba­
Vamos desenvolver os princípios d’este nhos, c matavam animaes para se nutrir;
systema, e fazer vér seu absurdo, e como julgaram que séres insensíveis e similhan-
M. Bayle, por occasiào do combate do sys­ tes aos homens tornavam seus campos es-
tema do Manés apresentou uma multidão tereis, assolavam suas searas, e faziam pe­
de dilficuldades contra a providencia c recer seus rebanhos.
contra a bondade de Deus. Exporemos as Como os homens não roubavam os fru­
dilficuldades de M. Bayle cm favor do ma- etos c as messes dos outros, não matavam
nicheismo, c faremos vér que estas diífi- osanimaes senão para se nutrirem, julga­
culdades que se repetem com tanta con­ ram que os séres invisíveis ou os espíritos,
fiança, são sophismas. não prejudicavam as searas, ou não faziam
morrer os animaes senão para seu susten­
§ I to; créram impedil-os de fazer mal aos re­
banhos e ás searas, ou mesmo aos homens,
Dos princípios do manichcismo dando-lhes de comer, c ofTerecendo-lhcs
antes de Manés uma parte dos legumes e da carne dos
animaes que matavam.
Esta partilha que os homens faziam dos
. Para descobrir os primeiros passos do seus alimentos com os séres invisíveis, aos
espirito humano no manichcismo, é mister quaes attribuiam a esterilidade dos seus
collocarmos-nos n’esses séculos barbaros, campos, ou a morte dos seus rebanhos, foi
em que as guerras, as paixões, c ,a igno­ entre estas nações barbaras o primeiro sa­
rância, tinham desfigurado a ideia do Ente crificio.
Supremo, espalhado espessas trevas sobre Attribuiu-sc successivamente a estes es­
o dogma da Providencia, e feito de uma píritos todns os gostos, todas as paixões
parte do genero humano nações selva­ humanas; renderam-lhes todas as especics
gens. de culto que podiam lisongear estas pai­
Engolfados no esquecimento da sua ori­ xões ou estes gostos: tal é a origem d’esses
gem e do seu destino, os homens não se cultos religiosos tão insensatos, tão extra­
viram mais se não como séres sensíveis, vagantes e tão obscenos, dos quaes a his­
que experimentavam successivamente dif­ toria nos tem conservado os traços, e que
ferentes necessidades, taes como a fome, se encontram hoje todos entre os povos do
a sédc, etc., etc., e que eram affectados de novo mundo, á proporção do grau de luz
sensações agradaveis ou dolorosas, taes a que cada nação se ha elevado.
como o frio, o calor, etc. Esgotados inutilmente estes recursos pa­
Guiados só pelo instincto, ellcs procura­ ra suster a corrente dos males, julgou-se
ram os fractos ou os legumes proprios a que havia genios insensíveis ás homena­
nutri 1-os, aprenderam a cultival-os, crea­ gens dos homens, geniòs que tinham para
ram rebanhos, cobriram-se dc suas pelles, o mal uma determinação inflexível, e que
c formaram povos pastores e cultivado­ não procuravam na desgraça dos homens
res. mais do que um espectáculo.
A fertilidade, da terra não é constante: O imperio da natureza foi, pois, partilha­
as tempestades, o rigor das estações, as in­ do entre duas cspecies de potências con­
temperies do ar, fizeram perecer os fru- trarias, entre genios bons e genios malfa­
ctos, os legumes e as messes; alimentos zejos: d’aqui vem essa religião barbara,
insalubres, ventos perniciosos, fizeram mor­ que, para se tornar propicia aos genios
rer os rebanhos; as doenças desolaram as malfazejos, offerecia victimas humanas, e
familias reunidas. votava á morte os povos vencidos.
Os homens viram-se então, cercados de Reflectindo sobre estes genios, que olha­
vam como os senhores da natureza, viram
pag. 671. Regnier, contr. Valdenses, c.6, t. 4. nos eíTeitos que se lhes attribuiam grandes
Bibliot. PP.j part. 2, pag. 7õ9. Cone. Tu- diffcrençás,' c imaginaram desigualdades
ron. 3, c. 3. Cone. Tolos., an. 1119. Can. 3. nas forças e no poder d’estes genios; esta­
Bossuet. Hostoire des Variations, 1. 2 .° beleceu-se, pois, uma especie de gradua­
672 MAN
ção ou de hierarchia nas potências que ideia mais distincta, e uma noção mais
governavam a natureza; e como a imagi­ precisa d’estes dous princípios, d’onde nas­
nação nào pôde sustentar o progresso ao cem primilivamente todos os bens e todos
infinito, concordou-se, emfim, em dous ge­ os males.
nios mais poderosos que todos os outros, A luz é o primeiro dos bens; ella cmbcl-
que partilhavam o imperio do mundo, e Icza a natureza, faz medrar as searas, e
que distribuíam os bens e os males, por amadurece os fruetos; sem ella, o homem
meio d’uma multidão innumeravcl de gê­ nào poderia nem distinguir as fruetos que
nios subalternos. o nutrem, nem evitar os precipícios de que
O espirito humano, elevado á ideia de a terra está semeada.
dous gênios, senhores absolutos da nature­ Nào se sabia então que o raio de luz
za, fixou toda a sua curiosidade sobre es­ que fecunda as campinas, elevava naatmos-
tes dous princípios, e sobre a averiguação phera saes c enxofres, e produzia os ven­
dos meios proprios a iuteressal-os. tos que formam as borrascas e as tempes­
O bom c o mau principio, sendo .deter­ tades; julgou-se que a luz era um princi­
minados por sua natureza a produzir, um pio benefico, c a fonte de todos os bens.
todo o bem, e outro todo o mal possível, é Eram ao contrario as trevas que tra­
certo que nào haveria senão o bem e o mal ziam eomsigo as tempestades, os furacões,
no mundo, se estes dous princípios não e a desolação: era dos abysmos profun­
fossem independentes um do outro; c co­ dos e obscuros da terra que’ sahiam os va­
mo estes dous princípios eram duas cau­ pores rnortaes, as torrentes d’enxofrc e do
sas primitivas e essenciaes de tudo o que fogo que assolavam as campinas: era no
se via no mundo, julgaram-nos eternos, centro da terra que residiam essas potên­
necessarios e infinitos. cias formidáveis, que abalavam os seus
A especie de base, pela qual o espirito fundamentos: não duvidaram que as tre­
humano se tinha elevado até dous princí­ vas ou a materia tenebrosa e obscura, fos­
pios geraes, desappareceu então, e a hypo- sem o principio malefico c o foco de todos
thesc de dous princípios começou a gene- os males.
ralisar-se e a apresentar-se "ao espirito Concebiarii então a alma sómenlc como
como uma fôrma systematica. um principio de movimento do corpo hu­
No mundo existe o bem e o mal; estes mano, c o espirito como uma fonte mo­
dous eíTeitos suppoem duas causas, uma triz: como a luz era essencialmente activa,
boa e outra má: estas duas causas, ou olhou-sc a luz como um espirito; e como a
princípios eternos, necessarios e infinitos,materia tenebrosa estava também cm mo­
produzem todo o bem e todo o mal que po­ vimento, suppôz-sc que ella era sensível è
dem produzir. intelligente, e que os demonios tenebrosos
Como aquclles que imaginaram estes eram espíritos materiaes.
dous princípios não haviam contemplado Como o céo é a fonte da luz, concebe­
na natureza senão os phenomenos que ti­ ram o principio benefico como uma luz
nham relação com a falsidade dos homens, eterna, pura, espiritual e feliz, que, para
acharam na hypothese dos;dous princípios communicar sua felicidade, tinha produzi­
um systema completo da natureza: a ima­ do outras intelligcncias, e formado nos
ginação representou estes dous princípios céos uma côrte de sêres venturosos e be­
como dous monarchas, que se disputavam neficos como clle.
o império da natureza para fazer reinar a Quanto ao principio maléfico, ellc habi­
felicidade e os prazeres, ou para tornal-o tava no centro da terra, e não era senão
em morada de perturbação e de horror: um espirito tenebroso o material. Agitado
imaginaram-se phalanges de genios inces­ sem cessar e sem regra, tinha produzido
santemente em guerra, e julgou-se ter espíritos tenebrosos como elle, inquietos,
achado a causa de todos os phenomenos: c turbulentos, sobre os quaes reinava.
tal era a philosophia d’uma parte do Orien­ Mas, porque estavam estes espíritos cm
te e da Persia, (Tonde sc espalhou em se­ guerra? porque se tinham confundido?
guida por differentes povos, onde tomou Sendo sua natureza essencialmente diffe­
mil fôrmas diversas.1 rente, não deviam permanecer eternamen­
Em muitas nações o espirito não foi te separados?
m ais longe; a curiosidade, mais activa en­ É uma questão que a curiosidade hu­
tre outros homens, procurou formar uma mana não podia deixar de fajfcr; e eis co­
mo foi resolvida.
i Wolf.j Manicheisin. anteManich. As- O bom c o mau principio, sendo inde­
seman, Bibliot. O r i e n t t . 1, pag. U 2 . pendentes um do outro, occupavam a ini-
MAN 673
mcnsidade do espaço sem se conhecerem, í II
c por consequência sem fazerem esforços
um para com o outro: cada um estava no
espaço que occupava, como se existisse só Da união que Manés fez do systema
na natureza, fazendo o que sua essência dos dous princípios com o Christianismo
lhe determinava fazer, e não desejando
nada mais.
A habitação do principio tenebroso esta­ Manes tomara dos escriptos de Scvthieno
va cheia .d’espiritos, que se moviam essen-
o systema dos dous princípios; ensinára-o,
cialmente, porque só a felicidade ó tran­ e fizera discipulos. Os discipulos que en­
quilla; e os movimentos dos espíritos tene­
viou para espalhar sua doutrina, lhe parti­
brosos, similhantes ã agitação dos homens ciparam que haviam achado nos christãos
infelizes, não tinham nem desígnio, nem inimigos formidáveis; Manés julgou que era
regra: a confusão, a perturbação, a desor­mister corrompel-os, e conciliar o Chris­
dem e a discórdia, reinavam, pois, no seutianismo com o systema dos dous princí­
imperio; os espíritos tenebrosos estiverampios: pretendeu achar na Escriptura os
em guerra, c deram-se batalhas; os venci­ dous princípios, aos quacs, segundo ollc, a
dos fugiam aos vencedores, c como o im­ razão conduzira os philosophos.
pério da luz c das trevas se locavam, os A Escriptura, dizia elíe, falla-nos da
vencidos, fugindo dos vencedores, atraves­creação do homem, c nunca da dos demô­
saram os limites do imperio das trevas, e nios/
passaram ao espaço luminoso, onde reina­ Apenas o homem é collocado no paraizo,
va o bom principio.1 Satanaz apparecc em scena, vem tentar o
A produccão do mundo era o elTeito homem, e o seduz.
d’esta irrupção do principio tenebroso na Este espirito malefico faz sem cessar
morada da luz; c para explicar como esta guerra ao Deus Supremo, e a Escriptura
dá aos demonios o titulo de potências, de
irrupção tinha produzido os differentes se­
res que o mundo encerra, a imaginação soberanias, c de imperadores do mundo;
forjou hypothcscs, c systemas. assim, a Escriptura suppòe um principio
• tem -se contado mais do setenta seitas maléfico, opposto sem cessar ao principio
de manicheus, que, reunidas na crença de benefico; elle é no mal o que Deus é nc
dous princípios, um o bom, e outro o mau, bem.
se dividiam c se contradiziam sobre a na­ Sendo o diabo mau por sua natureza,
tureza d’estes seres, e sobre a maneira impossível,-dizia Manés, que Deus o tenhi
como o mundo tinha sahido do condido creado.
d’estes dous princípios. - Debaldc se respondia que o demonio fo­
Uns pretendiam que o bom princi­ ra creado innoccnlc, justo e bom, e que se
pio, não tendo nem raios para suster o tinha tornado mau, abusando da sua li­
mau principio, nem aguas para o inundar, berdade.
nem ferro para forjar armas, havia lança­ Manés replicava que o demonio era re­
do alguns raios de luz aos genios tenebro­presentado na Escriptura como um mal­
sos, que se tinham occupado em arreba- vado, incorrigível, e esscnciaImente malfa­
zejo: pretendia que se Deus havia creado
tal.-os, em fixal-os, e que por este meio não
haviam penetrado antes no seu imperio.3 o demonio bom e livre, elle não teria per­
Outros pensavam que o principio bene­ dido sua liberdade por seu pcccado, e que
sua inclinação natural o conduziría ao bem,
fico, depois da irrupção do principio mate­
rial, julgou que podia collocar a ordem na caso elle fosse bom na sua origem; julga­
materia, e que havia tirado todos os cor­ va que repugnava á perfeição de Deus
pos organisados d’cste principio material: crear um espirito que devia ser a causa
era o systema de Pythagoras, que o achara do todos os males do universo, perder o
no Oriente, d’onde Manés também o to­ genero humano, e apoderar-se do imperio
mou. do mundo.
Manés não suppunha que o mau princi­
pio ou o demonio fosse igual ao Deus bem-
1 Theodoret, Hceret. Fab., l. 1, c. 26. fazejo: suppunha, pelo contrario, que Deus
Fragment. Basilid. apude Grabe, Spicileg. tendo apercebido a irrupção do mau prin­
PP. scbc. 2, pag. 39. cipio no seu imperio, havia enviado o es­
2 Theodoret, ibid. pirito vivo, que tinha domado os demonios
3 lbid. e os captivàra nos ares, ou desterrara na
terra, onde não lhes tinha concedido poder
674 MAN
c liberdade senão tanto quanto julgava a 'ellas suas preciosas influencias: o sol, que
proposito para seus desígnios. é composto d’um fogo puro e purificante
Foi com o uso d’cste poder que os de­ facilita sua ascensão «ao céo, e desembar.a-
mônios formaram o homem e a mulher. ça-lhes as partes materiaes que «as sobre­
Não entraremos nos detalhes das explica­ carregam.
ções que os manicheus dão dos phenome- Quando tod«as «as almas e todas as partes
nos, c da historia dos judeus, e da dos da substancia celeste forem sep «aradas da
christãos; essas explicações são absoluta­ materia, então chegará a consumm,aç«ão dos
mente arbitrarias, e quasi sempre absur­ séculos, o fogo maléfico sahirá das caver­
das e ridiculas. nas onde o Creador o encerrou; o «anjo que
Todos convinham que a alma de Adão c sustem a terra na sua situação e no seu
as de todos os homens eram porções de equilíbrio, deixal-a-ha cahir nas chamm,as
luz celeste, que, unindo-se ao corpo, cs-, e lançará em seguida essa massa inutií
qucciam sua origem, c erravam de corpo fóra do recinto do mundo, n’essc logar
em corpo. que a Escriptura chama «as trevas exterio­
Para as libertar, a Divina Providencia res: é ahi que os demonios serão dcstcrr.a-
serviu-se ao principio do ministerio dos dos p«ara sempre.
anjos bons, c que ensinaram aos patriar­ As almas mais desmazeladas, isto é, as
chas verdades salutares: estes as ensina­ que não tiverem acabado sua purificação,
ram a seus descendentes; e pará impedir quando esta eatastrophc chegar, terão para
que esta luz não se extinguisse inteira- castigo de sua negligencia o encargo de
mente, Deus não cessou de suscitar em conservar os demonios encerrados em suas
todos os tempos, c entre todas as nações, prisões, «a fim de impedir que não atten­
sábios e prophetas, até que enviou á terra tem de fórma alguma contra o reino de
seu Filho. Deus.
Jesus Christo fez conhecer aos homens Os manicheus rejeitavam o antigo Tes­
sua verdadeira origem, as causas do ca- tamento, porque clle suppõe que o Deus
ptiveiro da alma, e os meios de lhe resti­ Supremo produziu os bens e os males que
tuir sua primeira dignidade. se véem no m undo.1
Depois de ter operado uma infinidade de
milagres para confirmar sua doutrina, mos­ § III
trou-lhes na crucificação mystica, como el-
les devem morti ficar sem cessar sua carne
c suas paixões: fez-lhes vêr ainda pela re- Os princípios do manicheistno sào absurdos
surreiçao mystica, e por sua ascensão, que
a morte não destroe o homem, que ella não Os manicheus, c depois d’elles M. Bayle,
destroe senão sua prisão, que restitue às pretendem que partindo dos phenomenos
almas pacificas a liberdade de voltar á sua que nos olTerece a natureza, a razão chega
patria celeste. Eis o fundamento de todas a dous princípios eternos e necessários,
as austeridades, e da moral dos manicheus. dos quaes um é essencialmente bom, e o
Como não é possível que todas as almas outro essencialmente mau.
«adquiram uma perfeita pureza no decurso Para julgar se a sua opinião é uma hy-
d’uma vida mortal, os manicheus admit- pothese philosophica, supponhamos por um
tiam a transmigração das almas, mas elles momento que ignoramos nossa origem e a
diziam que as que não são justificadas por do mundo, e não «admitíamos como certo
um certo numero de revoluções, são entre­ senão nossa existência: «apoiados sobre este
gues aos demonios do ár para serem ali­ phenomeno, o mais incontestável para nós,'
mentadas c domíidas; que depois d’csta procuremos elevar-nos até á causa primi­
rude penitencia, ellas são reenviadas para tiva que nos deu o sér.
outro corpo, como para uma nova escola, Por pouco que eu reflicta sobre mim
até que tendo adquirido o grau de purifi­ mesmo, comprehendo que não me dei a
cação sufficiente, atravessam a região da existência, c que a recebi.
ma*teria, e passam á lua: logo que esta é Mas qual é a causa a que devo a exis­
cheia, o que acontece quando toda a su­ tência? recebeu-a ella mesma, de sorto
perficie é illuminada, entrega-as nas mãos que não ha na natureza senão uma lon­
do sol, que as remette por seu turno ao lo- ga cadeia de causas e cíTeitos, de sorte que
gar que os manicheus chamam a columna nada ha que não tenha sido produzido?
da gloria.
O Espirito Sancto, que está no ar, assis­ 1 Aug. cont. Manich. Theodorei, Hcercl.
te continuamente ás almas, e espalha sobre Fab. 1. 1.* Conferenda d'Archelaus.
MAN 675
Esta supposição c impossível, porque en­ acho que os males são consequências ou
tão seria mister reconhecer que a cullec- effcitos das leis estabelecidas na natureza
çào das causas saliiu do nada sem razão pelo bem geral: é assim que o raio que
.alguma, o que 6 absurdo. Minha existên­ mata um animal, é o cffeito do vento que
cia c a de todos os seres que vejo, suppòe accumula os enxofres dispersos por tudo o
pois necessariamente um sèr eterno, in- que respira: nào é evidente que um sér
•crcado, que existe necessariamente, e per malfazejo nào teria estabelecido na natu­
si mesmo. reza leis que, tendendo ao bem geral, ar­
Eu reflecti sobre este sér, a fonte da rastam perigos inconvenientes? 1
existência de todos os seres, c acho que Entre os séres que habitam a terra, o
cllc é eterno, infinitamente intelligenle, c homem parece ser o objecto particular
todo-poderoso: n’uma palavra, que ellc tem das complacendas do author da natureza:
por sua natureza todas as perfciçòes. creatura alguma sobre a lerra não tem
Pois que este sêr, em virtude da neces­ mais recursos que elle para a felicidade;
sidade de sua existência, tem todas as per- experimenta todavia desgraças, mas veem
feiçòes, concluo que um sèr necessario, c quasi todas do abuso que fa*z das faculda­
cssencialmcnlo mau é um absurdo, porque des que recebeu da natureza, e que esta­
c impossível que dous seres que leem a vam destinadas a tornal-o feliz. Uma dis­
mesma razão d’existir, sejam todavia de posição natural conduz todos os homens a
uma natureza, differente, pois que esta dif- amarem-se, a spccorrerem-se. c nào é se­
ferença não teria razão sufficiente: não ha não suffocando' este germen de benevolên­
pois senão um sér eterno, necessario, c cia que um homem faz a desgraça de ou­
independente, que é a causa primitiva de tro. O homem nào é, pois, a obra de dous
todos os seres distinctos d’elle. princípios opposlos, e a intclligencia que o
Percorro os céos, e acho que elles foram crcou, é uma intelligencia benefica.
formados com intelligcnciac com desígnio, Assim, M. Bavle nào fez mais que um
pela mesma potência que os faz existir: sophisma despresivel, quando pretendeu
vejo que a potência infinita que lhes deu a que o manichcismo explicava mais feliz-
existência, pôde só formal-os, regularisar meiilc os phenomenos da natureza do que
os movimentos, e fazer reinar este equilí­ o theismo, pois que estes phenomenos sào
brio, sem o qual a natureza inteira não tidos como impossíveis na supposição dos
seria scnào um cáhos medonho: concluo dous princípios dos numicheus.
ainda que o mundo é obra da intclligencia 0 manichcismo.nào póde, pois, ser olha­
creadora, e que é o cumulo dos absurdos do como uma hypothese, e os males que se
suppôr que clle é o cffeito do conllicto de vècm no mundo, nào podem justificar este
dous princípios inimigos que teem um po­ erro.
der igual, c dos quaes um quer a ordem, As difficuldades de Manés contra o Ve­
e o outro a desordem. lho Testamento, tinham sido propostas por
Desço á torra, e'vejo que desde o inse­ Cerdon, por Marcion, e por Saturnino; te­
cto até ao homem tudo lbi formado com mos respondido a ellas iTesles artigos. 0
designio pela potência creadora, e que to­ silencio e a Escriptura relativamente á
dos os phenomenos estào ahi ligados: nfio creaçào do demonio, não podem authori-
posso pois impcdir-mc de ciliar a terra sar á olhal-o como increado; nào era ne­
como obra do Creador do universo, c o cessario que a Escriptura nos dissesse que
manichcismo,' que attribue a producçào a um espirito impotente c mau, que Deus
dous princípios inimigos, como um ab­ desterrou nos infernos, é uma creatura. 0
surdo. resto da doutrina de Manés foi refutado
Sobre esta lerra, onde acho tão eviden­ pelos princípios que se estabeleceram no
temente o designio c a razào da intelligcn- artigo Materialistas, onde se prova a espi­
eia creadora, vejo seres sensíveis; elles ritualidade da alma. (Véde a este respeito o
tendem todos para a felicidade, e a nature­ .Exame, do Fatalismo, t. 2, onde se prova
za collocou estas creaturas no meio de tu­ que a alma é immaterial, que é uma sub­
do o que é necessário para as tornar feli­ stancia, e nào uma porção da alma uni­
zes. Estas creaturas sensíveis são pois tan­ versal.)
to como a terra: a obra de um ente bene­
fico, e nào de dous princípios opposlos. dos 1 1'ide Derham, Thcologia physica. Nieu-
quaes um é bom c outro mau. icenlitj Demonstração de Deus pelas m ara­
Os animaes, que a natureza parece des­ vilhas da natureza, Exame du Fatalismo,
tinar para a felicidade, experimentam to­ t. 3, art. 3, onde estas difjiculdades são tra-
davia o mal: procuro a origem d'isto, e ctadas minuciosamente.
676 MAN
§ IV gos; vedes aqui os restos de uma cidade
llorcscente, n outra parte vós nào podeis
Dificuldades de M. Bayle. em favor mesmo achar as ruinas: a historia nào é
fallando com propriedade, senào a compi­
do manicheismo e contra a bondade de Deus
lação das ruínas e dos infortúnios do ge­
nero humano.
Nada seria trio fastidioso e mais inútil, Mas notemos que estes dous males, um
que copiar aqui as difliculdadcs que se re­ mortal, outro physico, nào occupatu toda
duzem a princípios simples. a historia nem ioda a experienda dos par­
ticulares; encontra-se em toda a parte o
bem moral e o bem physico, alguns exem­
DIFFICULDADES DI! M. BAYLE
plos dc virtude, alguns exemplos de felici­
TIRADAS DA PERMISSÃO DO MAL
dade, c é o que faz a dilíiculdadc a favor
dos tnanicheus, que só dào razão dos bens
As idéias mais seguras c mais esclare­ c dos males.
cidas da ordem, ensinam-nos que um sèr Sc o homem é a obra de um só princi­
que existe per si mesmo, que e necessário pio soberanamente bom, soberanamente po­
e eterno, deve ser unico, infinito, omnipo- tente, póde ser clle exposto ás doenças, ao
tente, e dotado de toda a sorte dc per- frio, ao calor, á fome, á sédc, á dOr, e ao
feições; assim, consultando estas idéias, pesar? póde elle ter tão más inclinações?
nada se encontra de mais absurdo que a pode commetter tantos crimes? a sobera­
ivpothese dos dous princípios eternos, ne- na sanctidade póde produzir unia creatu­
èssarios e independentes um do outro: ra criminosa? a soberana bondade póde
is o que se chama razoes à priori, cilas produzir uma creatura desgraçada? a so­
,os couduzem necessariamente a rejeitar berana bondade, junta a urna potência in­
esta hypolhese, e a nào admiltir senào um finita, nào accumula de bens a sua obra,
principio unico de todas as cousas. c nào desvia tudo o que poderia oíTendcl-á
Se nào era mister mais que isto para a ou morti íical-a?
bondado d’um systema, o processo termi­ Debalde se responderá que as desgraças
naria na confusão de Zoroaslro c dc todos do homem são consequências do abuso
os seus sectários. Mas nào ha systema que, que elle faz de sua liberdade: toda a scien-
para ser bom, nào tenha necessidade d’es- cia de Deus deve ter «previsto este abuso,
tas duas cousas: uma que as idéias sejam e sua bondade devia impedil-o; e quando
distinctas; a outra, que ós phenomenos da Deus nào tivesse previsto este abuso que o
natureza se podem explicar pela hypothc- homem faz de sua liberdade, devia julgar
sc d’um principio só. que pelo menos elle era possível: pois
Se lançamos os olhos sobre a terra, acha­que, caso acontecesse, elle se julgava obri­
mos que ella nào póde sahir das màos de gado a renunciar á sua bondade pater­
um sèr bom e intelligente; as montanhas, nal para tornar todos os seus filhos mui­
e os rochedos a desfiguram; o mar e os to miseráveis; teria determinado o homem
lagos cobrem-lhe a maior parte; ella ó in- ao bem moral, como o determinou ao bem
babitavel na zona torrida e nas zonas gla- physico; o não teria deixado na alma do
çiaes; os trovóes, as tempestades c os vul­ homem força alguma para se apartar das
cões a destroem. leis ás quacs a felicidade está ligada.
Os animaes estào sem cessar em guerra Se uma bondade tào limitada como a
c se destroem: sua vida nào c senào uma dos paes exige necessariamente que prove­
longa cadeia de males e de dores, que ter­ jam, tanto quanto lhes é possível, o mau
minam apenas pela morte. uso que seus filhos poderíam fazer dos
O homem é mau e desditoso, c cada um o bens que lhes dào, com mais forte razão
conhece pelo que se passa no exterior d’el- uma bondade infinita e omnipotente pre­
le, e pelo commercio que é obrigado a ter veniría os maus eíTeitos de seus dons; em
com o seu proximo: basta viver cinco ou logar de dar o franco arbitrio, ella velará
scis annos para licar convencido d’estes sempre etTicazmentc para impedir o mau
dous artigos; os que vivem muito, conhe­ abuso d’elles.
cem isto ainda mais claramente; as via­
gens sào as lições perpetuas sobre este AS DIFFICULDADES DE M. BAYLE
ponto: cilas fazem vér por toda a parte os SÃO SOPHISMAS
monumentos da desgraça e da malvadcz
do homem, por toda a parte prisões e hos- As difliculdadcs dc M. Bayle, contra a
pitaes, por toda a parte patibulos e mendi­ bondade de Deus, encerram quatro espe-
MAN 077
cies de males incompatíveis, segundo esta que sc tracta, o axioma de direito:— Inci­
critica, com a bondade, a sabedoria, a san- vile est nisi lota leye hispeclâ judicare.—
ctidade c o poder infinito de Deus: estes Dizia que devíamos julgar as obras de
males sào ãs pretendidas desordens que se Deus tão sabiamente, como Sócrates jul­
veem nos phenomenos da natureza, o es­ gava as d*Heraclito, dizendo:— O que com­
tado dos animaes, os males physicos, aos prehendi me agrada, creio que o resto não
quaes o homem está sujeito, tacs corno a mc agradaria menos, se eu o comprehen-
forne, a sede, e, finalmentc, os crimes dos desse.
homens. 2." É mister não ter lançado sobre a
M. Bayle pretende, pois, qucellesoacha terra uma vista philosophica, para olhar
na terra' dos lagos, e das montanhas, pois os lagos, os vulcões, etc., como desordens
que na atmosphcra se formam tempesta­ contrarias á bondade de Deus: porque é
des, c que o mundo não c obra d'um prin­ bom claro para todo o physico, que estas
cipio benefico. pretendidas desordens produzem grandes
Não vejo n’esta difileuldade mais que vantagens aos animaes que habitam a ter­
um sophisma, indigno do inais mediocre ra, e que poucos males trazem comsigo.
philosopho. O furacão e o trovão, por exemplo, tornam
l.° t) movimento e a disposição da ma­ o ar salutar a tudo o que respira; sem o
téria, não é em si nem bom nem mau; não movimento que estes furacões produzem
haveria desordem na produccào das mon­ na atmosphcra, o ar que os animaes res­
tanhas, dos furacões, das tempestades, etc., piram seria mortal para regiões inteiras,
senão tanto quanto estos phenomenos fos­ e o furacão não faz perecer senão um nu­
sem contrários ao fim que Deus se propòz mero inlinitamentc pequeno d'animaes. 1
na creação do mundo physico. As difiiculdades que M. Bayle tira do
M. Bayle conhece este fim, ha percorri­ estado dos animaes, é mais especiosa, e
do à inímensidade da natureza, dividido não é mais solida: o estado dos animaes
todas as suas partes, distinguido sua liga­ é-nos muito desconhecido para se fazer
ção, suas relações, e decifrado o resultado d’cllo um principio contra uma verdade
das leis que arrastam comsigo essas des­ demonstrada, tal como a unidade e a bou-
ordens, que se olham como contrarias á dade de Deus. Além d’isso exageram-sc seus
vontade de Deus? males, c quando se examina sua condição,
Não considerando o mundo senão do la­ vê-se que elles tecin mais bens que inales,
do physico, pois que tudo está ligado no lintre elles a liberdade depende unicamen­
physico, é mister consideral-o como uma te dos sentimentos que experimentam, e
maquina; ora, a perfeição d’uma maqui­ são felizes se teem mais sensações agrada-
na consiste naquillo que se quer derivar veis que dolorosas; e parece que tal é sua
d’uma razão generica, a saber: o fim para condição, como se vê em todos os authorcs
que foi feita, as razões que demonstram que teem escripto sobre a historia dos ani­
porque cada uma de suas partes é preci­ maes.
samente tal qual é, e não d’outra fôrma, e O mal physico que o homem experimen­
porque estas partes foram dispostas c li­ ta, escande.ee (Voutra sorte M. Bayle: se o
gadas precisamente d’esta maneira, e não hornem, diz ellc, é obra d’um principio so­
íToulra. beranamente bom e omnipotente, póde elle
É certo que a maquina será perfeita, se ser exposto ás doenças, a dòr, ao frio, ao
todas as suas partes, sem exeepção, c sua calor, á fome, á sêdc* e ao pesar?
ordem, ou sua disposição, são taes como Que, pois? porque o homem tem frio,
devem ser para quo .a maquina seja per­ porque tem calor, porque tem sêdc, estar-
feita e cxactamenlo propria ao fim que se-ha authorisado a negar a bondade do
propôz fabricando-a. Ente Supremo! desconhecer-se-ha sua sa­
M. Bayle nào conhecendo ó fim que bedoria, atacar-se-ha sua existência, mas
Deus se propòz na creação do mundo, reconheccl-as-hão todavia como uma ver­
ignorando o destino d’esta grande maqui­ dade fundada sobre os princípios mais cla­
na, achando-lhe leis geraes que tendem ao ros e mais incontestáveis da razão.
bem c á ordem, e que o produzem, póde E c acaso verdade, além cTisso, que a
acaso combater a bondade e a sabedoria
de Deus, por meio d’algumas desordens i Não podemos entrar em todos os porme-
particulares que sào ordem no todo, e que nores que estabelecem esta verdade; póde ver­
não ollendom senão porque se não vò toda se a este. respeito Nieuwentit, Derham, o
a natureza. Exame do Fatalismo, t. 3, e outras muitas
M. Leibnitz applicava ao assümpto de obras.
678 MAN
sorte do liomera seja tào afllictiva como se mesmo, para ser feliz é preciso que possa
pretende? approvar-sc; c nunca o homem sente mais
A necessidade dc comer c a mais instan­ vivamente o prazer que procura a appro-
te das necessidades do homem, mas é fá­ vação dc si mesmo, que quando merece a
cil satisfazcl-a. Tudo o que pódc digerir- approvação dos outros homens, quando'
se nutre o homem; e a necessidade que procurou a felicidade dos outros, quando
aduba a refeição mais frugal, torna-a tào preencheu seus deveres, c quando não tor­
deliciosa como os manjares mais procura­ nou pessoa alguma desgraçada. Eis os re­
dos. cursos que a natureza ha posto no homem
O homem póde facilmente garantir-se do contra as desgraças ligadas á sua condicão;
rigor das estações. estão no coração dc todos os homens, c
Quando está sem dôr necessita, para ser não são ignorados senão dos barbaros, que
feliz, de varias percepções, c o espectáculo suíTocaram a voz da natureza.
da natureza olTerccc á sua necessidade um Que se julgue presentemente se o ho­
fundo inesgotável dc divertimento e dc mem é obra d’um sór malclico, e se nào c
prazer. com razão que um antigo disse que c in­
Ha, pois, na natureza um fundo dc feli­ justamente que o homem se queixa de sua
cidade sufficiente para todos os homens, sorte.
aberto a todos, facil a todos, quando se en­ Passemos ao mal moral, que faz a grande
cerram nos limites da natureza. difiiculdade dc M. Baylc, quero dizer, os ví­
É verdade que, apesar d’cstas precau­ cios e crimes dos homens.
ções, os homens serão sujeitos ás doenças Sem dúvida, os homens são maus, c não
e aos accidentes da velhice; mas estas en­ se pódc pintar coin cores muito fortes seus
fermidades nào sào insupportaveis, c não pcccados c suas desordens, porque o mal
impedem que a vida seja um estado feliz, não é nunca ou quasi nunca necessário á
mesmo para o ancião enfermo, pois que clle sua felicidade; mas guarderno-nos d’impu-
não a deixa senão com pesar. tar estas desordens ao Ente Supremo, ou
No que vimos de dizer para justificar a de pensar que devem tornar sua felicida­
bondade de Deus, nào temos considerado de duvidosa.
o homem senão como um sér capaz de Estas desordens, c estes crimes, são o
sensações agradaveis ou dolorosas, e espe- effeito do abuso que o homem faz dc sua
randosua felicidade ou 'sua desgraça dos liberdade; e nào é contrario á bondade do
objectos que actuam sobre seus orgãos; Ente Supremo crear um homem livre, que
mas clle tem para ser feliz outros rcciirsos possa conduzir-sc ao bem pela escolha, e
mais. que tem todavia o poder dc se dirigir ao
A natureza não faz crescer os homens mal. O sentimento da nossa liberdade, que
sobre a terra, como os cogumelos ou como nào póde existir senão nos seres livres,
as arvores; une os paes c os filhos pelos este sentimento, digo, faz-nos achar um
laços d’uma ternura mutua; os dcsvclos grande prazer na práctica da virtude, e
que o pac emprega na educação dc seu fi­ produz os remorsos que nos chamam ao
lho, procuram prazeres infinitamente mais dever: a liberdade não é pois um dom con­
satisfatórios que as sensações. A ternura cedido ao homem por utn ente malfazejo,
e o reconhecimento tornam os paes caros pois que cila tende a tornar-nos melhores
a seus filhos, clles são dóceis â sua vonta­ c mais felizes.
de, alliviam seus males, susteem sua velhi­ Não é mister, de resto, olhar a terra co­
ce, ofierccein um espectáculo satisfatório, mo uma morada dc crime c sem virtude:
consolam-nos das desgraças da velhice. faremos vêr mais abaixo quanto M. Bayle
Uma inclinação natural leva todos os ho­ é exagerado a este respeito; e muitos au-
mens a amarem-se, c a soccorrerem-sc; um thores teem provado que o bem, tanto na­
desgraçado que se consola, procura um tural, conto moral, prevalece no mundo
prazer delicioso, e os cuidados que se dão sobre o mal: o leitor pódc consultar sobre
na consolação d’um infeliz fazem-lhe ex­ isto Shcrlok, Tractado da Providencia, ch.
perimentar* um sentimento de reconheci­ 7. Loibnitz, Ensaio sobre a Thcodida, etc.
mento e um agradecimento para com o Acabamos de expôr a natureza, c a ori­
seu bemfeitor, que derrama em sua obra gem dos males que nos offcrcce o espectá­
um prazer que adoça seus males. culo da natureza: vimos que nenhuma das
Finalmente, o homem ama-se, e o amor causas que produzem estes males, é a obra
que tem por clle mesmo não se limita a d’um principio eterno e maléfico; que na
procurar-se sensações vivas e agradaveis, instituição primitiva c na intenção do au-
é preciso que o homem seja contente de si thor da natureza, tudo tende ao bem, que
MAN 679
por consequenda o systema dos dous prin­ de lhes fazer bem: sua benevolência a res­
cípios não explica os phenomcuos da na­ peito das creaturas e, pois, infinita, qual­
tureza, e que tudo o que M. Baylc diz so­ quer que seja o bem que lhes faz: eis em
bre os males que nos afliigem, são mais as que sentido a bondade de Deus é infinita,
declarações d’um sophista, do que as du­ e não é n’esle sentido que cila deve fazer a
vidas d’um philosopho. esta creatura todo o bem possível: porque
a bondade infinita iTesto sentido, é impos­
EXAME D’UMA INSTÂNCIA DE M. DAYLE
sível, pois que então seria preciso que o
Ente Supremo désse a todas as creaturas
todos os graus de perfeição possíveis, o que
M. Bayle pretende que o soberano poder é absurdo, porque não ha ultimo grau de
junto a uma bondade infinita, deve accu1 perfeição na creatura.
mular de bens a sua obra, c afastar d’clla A ideia da soberana bondade não exige,
tudo o que poderia oíTendcl-a ou aflligil-a; pois, que Deus faça ás suas creaturas todo
que a soberana bondade devia tirar ao ho­ o bem possível. Para que conserve absolu-
mem o poder de abusar de. suas faculda­ tamcnlc a qualidade d^nte soberanameute
des, e que Deus deixando ao homem este bernfazejo, basta pôr suas creaturas n’um
poder, não ama as suas creaturas mais do estado em que cilas preferem sua existên­
que um pae que deixasse entre as mãos de cia ao nada, e no qual seja melhor ser,
seu filho uma espada com a qual soubesse que não ser absolufamenlc; não é necessá­
que clle se mataria. O estado dos sanctos, rio que este estado seja o mais feliz possí­
que estão irrevogavelmentc ligados á vir­ vel.
tude, não é um estado digno da sabedoria Crcar o homem com. o desejo da felici­
c da sanctidade de Deus? dade, pôl-o no meio de todos os recursos
Demais, é certo que Deus podia, sem of- proprios para procurar a felicidade, dar-
fender a liberdade do homem, fazcl-o per- lhe todas as faculdades necessarias par?
severar infallivclmenlc na inriocencia e na fazer um bom uso d'estes recursos, é cci
virtude; nada impedia, pois, que Deus pre­ tamente fazer-lhe um grande bem.
venisse o abuso que o homem faz das suas Fazer depender a ventura de certas le
faculdades e que fizesse reinar em toda a que o homem póde observar, mas de qu
natureza a ordem e a felicidade; no en­ se pôde afastar, e fóra das quaes encontra c
tanto ha desordens, males, maus, c pccea- prazer e a dor, não impede que a existên­
dores: é forçoso, pois, qué uma causa dif­ cia seja ainda um grande beneficio, digno
ferente do Ente Supremo, tinha tido parte da soberana bondade, e do reconhecimento
na producção do mundo e que esta causa do homem.
seja maléfica. A qualidade de ser soberanamente bom,
Todas as difficuldades que M. Baylc ha não exigia, pois, que Deus prevenisse o
repetido de mil maneiras no seu Dicciona- abuso que o homem podia fazer das suas
rio, c nas suas Respostas ás questões d'um faculdades; a soberana bondade torna Deus
pr.ovinciai, reduzem-se a éstes princípios, impotente para fazer o mal, e deixa-o ab-
qúç vamos examinar. solulamcnte livre sobre a existência de
É claro que toda a força d’esta instanda suas creaturas, sobre os graus de perfei­
está n’isto: que é impossível que um ente ção c de felicidade que lhes concede.
soberanamente bom, soberanamente sancto A ideia da soberana bondade não exige,
e soberanamcnle poderoso, permitta que pois, que Deus previna todos os males que
haja o mal no mundo, porque é da essên­ estão sujeitos á imperfeição da creatura,
cia da soberana bondade impedir toda a ou ao abuso que cila faz d*as suas faculda­
ospecic de mal. des: porque então Deus teria sido obrigado
Para sentir a falsidade d’estc raciocínio,' a dar-lhe um certo grau de perfeição antes
rocuremos formar uma ideia justa da so- do que outro, o que não está todavia eneçr-
erana bondade. rado na ideia da soberana bondade.
A bondade do Ente Supremo, de que fal­ Se Deus não se tinha proposto na crea-
íamos aqui, ó a sua benevolência. ção do mundo senão tornar os homens fe-
A benevolência d’um ente é tanto maior íizes por qualquer preço e por qualquer
quanto ellc tem menos necessidade de fa­ modo que fosse, teria sem dúvida afastado
zer o bem que faz: d’este modo,' como o d’ello todas as desgraças, e tel-o-ia despo­
Ente Supremo é inteiramente sufficiente a jado do poder d’abusar dc suas faculdades.
si mesmo, está, se mc é licito exprimir as­ Mas, é contrario á bondade de Deus que­
sim, infinitamente longe do necessitar, pa­ rer que o homem fosse feliz, mas que só­
ra sua felicidade, de crcar.outros séres, e mente o fosse em certas condições, e se-
680 MAN
{ruindo certas leis, que estava em seu po­ Deus, dizem, não é acaso infinitamento
der observar ou violar. saneio? Sua sanctidade não lhe dá uma sobe­
Deus via na sua omnipotência uma infi­ rana aversão para o mal? Não é necessario'
nidade de mundos possíveis; entre estes que lhe tenha faltado poder para o impedir*
mundos, não podia haver um onde a felici­ ou sabedoria para escolher os meios pro­
dade das creaturas não fosse o fim princi­ prios a prevcnil-o?
pal, c no qual cila não entrasse senão sc- Para responder a esta difllculdadc, nãoé-
cundariamcnle? Não é possível que unia preciso mais que formarem-se ideiasjustas
das leis d*este mundo fosse, que Deus não da sanctidade de Deus, da sua sabedoria c
conccduria a felicidade senão ao bom uso do seu poder.
que o homem fizesse das suas faculdades, A sanctidade de Deus não é senão uma
e que Deus não prevenisse este mesmo vontade constante de nada fazer que seja
abuso? Não podia elle, sem violar as leis indigno d’clle; ora, não é indigno de Deus
da sua bondade, escolher este inundo, e crear os homens que podem abusar da sua
teria a creatura direito de se queixar? liberdade, porque esto poder está na essên­
Concedendo a M. Bayle o que tem mui­ cia da propria creatura, o não é indigno de
tas vozes repetido, c que nunca tem prova­ Deus crear o homem com sua essência, ou
do, concedendo-lhe, dizia eu, que Deus nao então, a ser assim, é mister dizer que c in­
podosse detenninar-se a crear o mundo, digno de Deus crear seres limitados.
senão para fazer creaturas felizes, está elle Debalde pretendiam com M. Bayle, que
bem certo de que sua sabedoria e sanctida- a sanctidade de Deus devia ao menos pre­
dc não lhe proscrevessem leis na distribui­ venir o abuso que o homem faz da sua li­
ção da felicidade? a bondade de Deus será berdade; porque a sanctidade não sendo em
apenas uma especic d’inslincto que o leva Deus senão a vontade constante de nada
a fazer o'bem sem regra e ccgamcnle? fazer que seja indigno d’ellc, é preciso que
O comportamento de Deus, se posso ex- fosse indigno de Deus não prevenir a que­
primir-me assim, não deve ter o caracter da do homem, e é o que se não póde dizer:
dos attributos do Ente Supremo? o cara­ nãò é indigno de Deus permanecer immo-
cter da sua sabedoria c da sua intelügen- vcl quando a creatura pecca; exprime por
cia? Ora, uni mundo no qual Deus não tor­ sua immobilidadc que elle não tem neces­
nasse felizes senão authomatos, ou no qual sidade das homenagens do homem: expri­
tivesse obedecida a todos os caprichos e a me por este meio o juizo que faz d’elle
todas as extravagancias da sua creatura, é mesmo, isto é, que é independente da sua
acaso conforme á ideia da sua sabedoria c creatura.
á grandeza do Ente Supremo? A bondade A permissão do mal não e pois contraria
de Deus não deve obrar conforme ás leis á sanctidade de Deus, c todas as compara­
da sabedoria, c tornar cada ente feliz, se­ ções de M. Bayle, taes como a d’uma mãe
gundo que elle é mais ou menos perfeito? ue leva sua filha ao baile, e a deixa se-
não era preciso para isto que a creatura
3 uzir, podendo garantil-a da seducção, são
fosse livre? Estcplano do mundo c contra­ scphismas, que tiram toda a sua força d’um
rio á ideia da soberana bondade! falso estado de questão que M. Bayle oíTc-
Final mente, pergunto a M. Bayle se co­ rece sem cessar aos seus leitores sobre a
nhece assaz a natureza do homem para origem do mal. A mãe não tem razão al­
provar que Deus não o creou no estado guma para não impedir a seducção de sua
mais proprio a tomal-o feliz? Pergunto-lhe filha; não se dá o mesmo com Deus, em re­
se conhece bem os desígnios de Deus para lação ao peccado do homem.
pronunciar que o mundo não tem um fim, A ideia da bondade humana não 6 a ideia
e não terá um desfecho que nos fará ver a d’uma bondade pura, é sempre ligada á
bondade ,dc Deus, mesmo nos males que ideia da justiça: o dever entra sempre um
occasionam nossos murmurios? A çermis- pouco na sua’composição, se c licito expri-
sãb do mal é então um mysterio, e não uma mir-me assim; é uma especie de commer­
contradicção com a bondade soberana de cio, c uma observação d’osta lei geral, que
Deus; e nao se póde dizer que em virtude quer que façamos aos outros o que quería­
da sua soberana bondade, Deus devia pre­ mos que nos fizessem a nós, sc estivésse­
venir todos os males, c estabelecer uma mos nas mesmas circumstandas em que os
ordem de cousas na qual o homem não outros estão. A ventura da sociedade de­
poderia tornar-se desgraçado. pende da observância d’csta lei: a socicda-
A sanctidade é, tanto como a bondade, de é mais ou menos feliz, segundo esta let
uma fonte do difliculdades a favor do ma- ó mais despresada, ou menos observada;
nicheismo. cada membro da sociedade é pois obriga-
M 681
do, por justiça, a não fazer aos outros o que meios destinados a elevar o homem á per­
não queria que lhe fizessem se estivesse feição e a uma felicidade eterna. 1
collocado nas mesmas circumstandas. M. Bayle reconheceu que o origenista
Esta ideia da bondade humana não é ap- fazendo succeder uma eterna bernaventu-
plicavel á bondade de Deus, que para ser rança aos tormentos que hão de soíTrcr os
feliz não precisa nem da existência, nem condcmnadqs, havia levantado a mais gra-
da homenagem da sua creatura. vosa das diííiculdades do manichcismo; mas
Estes princípios fazem vér, que pelas leis que não havia comtudo refutado os inani-
da sua bondade, Deus não era constrangi­ chcus, que replicavam que era contrario á
do a crcar o homem no estado de felicidade, sua bondade conduzir suas creaturas á fe­
ou a dar-lhe graças cíüeazes para o fazer licidade pelos soffriincntos c pelas penas.
perseverar infallivelmentc na virtude. Vê-se Eis a que se reduziu a disputa de AI. Bay­
mesmo por estes princípios, que Deus pódc, le e de Al. le Clerc quanto ao essencial,
sem violar as leis da sua bondade, punir o que se achou abysmado n’uma multidão
homem que viola as leis que Deus estabe­ d’incidentes, c mesmo de personalidades,
leceu, e conceder-lhe um tempo de prova, que fizeram absolutarnente dcsapparccer o
durante o qual pcrdôa ao peccador peni­ estado da questão. 2
tente, e apoz o qual o homem se torna in­
corrigível, c Deus juiz severo e inflexível. III
Resposta de D. Gaudin, cartaxo,
DOS D IFFERENTES ÀUTIIORES ás difjiculdades de AI. Baylc
QUE RESPONDERAM ÁS DIFFICULDADES
DE M. DAYLE Em 1704, um carluxo, de Paris, chama­
do D. Alexandre Gaudin, deu á luz uma
obra intitulada—A distincrão e a natureza
M. Baylc preparava-se para estabelecer do bem c do mal, onde sê combate o erro
um pvrrhonismo universal; pretendeu que dos maniclicus, os sentimentos de Montagnc
.os sentimentos mais absurdos eram apoia­ c de Charron, e os de AL Bayle.
dos sobre princípios capazes dMmpòr-se á AI. Baylc pretendeu que este author ha
razão mais esclarecida, e que os dogmas via mui bem provado que o systema do
mais certos estavam expostos a difficulda­ dous princípios era falso c absurdo cm $
des invencíveis, c conduziam a consequên­ mesmo e sobre tudo nos pormenores a qiu
cias absurdas: conseguintemente a este pro­ os manicheus desciam; mas que isso não era
jecto, pretendeu que uma seita tão ridicula refutal-o a elle AI. Bayle, pois que reconhe­
como a dos maniehcus, poderia fazer dif- cia essas verdades, c pretendia sómente que
ficuldadcs que nenhum philosopho ou theo­ a hypothcse manicheia, posto que fosse
logo, de qualquer seita que fosse, não po­ absurda, atacava o dogma da unidade de
deria resolver. Deus, por meio d'objecçòes que a razão não
O diccionario de M. Baylc teve tanta podia resolver: não deu outra resposta à
voga, suas diííiculdades contra a bondade obra do cartuxo, e a disputa não foi mais
dc'Deus fizeram tanto ruido, que os homens
celebres ou zelosos pela verdade se apres­
saram a responder: não é talvez inútil fazer
conhecer os princípios que ellcs oppozeram Princípios de Al. King sobre a origem
a M. Bayle. do mal.

II AI. King pretendeu que Deus não havia


ereado o mundo para sua gloria, mas para
Princípios de AL le Clerc exercer seu poder, e para communicar sua
contra as difjiculdades de AL Baylc bondade: que sendo soberanamcnle bom,
nada poderia ser para clle um motivo de
Como M. Bayle, nas suas difficuldades crear o mundo; que nenhum objecto exte-
contra a bondade de Deus, insistia muito
sobre a longa duração do mal moral, c phy­ 1 Parrhasiana, 1.1, p. 109.
sico iVesta vida, e sobre sua eternidade na 2 Bayle, art Origencs, Resp. ás quest.
outra, AI. le Xlere, dr$fairada.sQh,o, .nome d'um Provincial, t. 5, c. 172. Le Clerc, Bibl.
de Thoiiüoro Tairhase, fez apparecer em Ch. l* 6, etc.
scWdr^^drT^eiilftãTquo pretendeu (pie os 3 Ilist. das Obras dos Sábios, agosto,
bens c os males d’esta vida não eram senão 1705, art. 7.
682 MAN
rior não sendo bom em relação a elle, era Deus podia, é verdade, prevenir o abuso
sua escolha que o tinha tornado bom: re­ que o homem faz de sua liberdade, mas
jeita a opinião dos que pretendem que Deus não o preveniría senão fazendo intervir sua
escolheu certas cousas, porque são boas, c omnipotencia, para determinar infallivel-
sustentou que a bondade das cousas de­ mente o homem ao bem; mas então ler-se-ia
pende pelo contrario unicamente da esco­ afastado do plano que formara, de não con­
lha que Deus fez d’ellas: crê que se Deus duzir ii virtude as creaturas livres se não
fòra determinado a operar pela bondade pela via das penas e das recompensas.
das proprias cousas, Deus seria um agente M. King reconhece que o abuso constante
inteiramente necessitado das suas acções. e obstinado que o homem fizer de sua li­
Deus não estava pois sujeito por motivo berdade, conduzirá os peccadoros, incorri­
algum a escolher um mundo, antes do que gíveis a penas eternas, e para as conciliar
um outro: e este que escolheu é bom, por­ com a bondade de Deus, elle as diminue
que foi escolhido. tanto quanto é possível, e as põe á conta da
Esta indifferenea de Deus, relativamenle creatura: crê que ellas serão consequên­
aos objectos distinctos d’elle, não tem lo- cias naluraes da obstinação dos peccadores:
gar senão nas suas primeiras escolhas, cre que os condcmnados existirão até que
porque supposto uma vez que Deus quer sintam vivamente a sua miseria, mas que
qualquer cousa, não pode querer a mesma todavia se lisongearão com o seu procedi­
cousa. mento, c_cstimarão mais existirem assim
Demais, como Deus é bom, querendo a do que não existirem absolutamcnle: ama­
existência do mundo, também quiz por isso rão seu estado por muito desgraçado que
mesmo o beneficio de cada particular; mas seja, como as pessoas coléricas, os namo­
anto quanto se pôde accordar com o desi- rados, os ambiciosos, os curiosos se com-
nio e os meios que Deus havia escolhido prazem com as proprias cousas, que só ser­
ara exercer seu poder. vem para augmcntar-Ihes a miséria.
Não era pois contrario á bondade de Deus Este estado será uma consequência da
;rear um mundo onde houvesse o mal, se perversidade dos peccadores; os impios te­
este mal estava essencialmente ligado com rão de tal sorte acostumado o seu espirito
o meio que escolheu para exercer seu po­ a falsos juizos, que não farão d’ora ávante
der: ora, M. King pretende que todos os outros, passando perpetuamente d’um erro
inales physicos estão ligados ás leis que a outro; não poderão impedir-se de dese­
Deus estabeleceu para exercer seu poder; jar perpeluamente cousas de que não po­
e a: creatura não tem de que lastimar-se, derão gosar, e cuja privação os lançará
porque Deus não era obrigado a crcar um em desesperos inconcebíveis, sem que a
inundo sem desgraças, pois que .este mun­ experienda os torne nunca mais sábios
do não era melhor *em relação a Deus, do para o futuro, porque por sua propria falta
que um mundo tal como o nosso. terão inteiramente corrompido seu entendi­
O mal moral é uma consequência da li­ mento, e tel-o-hão tornado incapaz de jul­
berdade do homem, mal que Deus não era gar sómente. 1
obrigado a prevenir, pois que em relação M. Bayle, para refutar M. King, empre­
a Deus, não é melhor prevenir este abuso ga os seus proprios princípios: reconhece
que permittil-o. com elle que Deus, achando no interior de
Além d’isso Deus não poderia prevenir si mesmo uma gloria e uma felicidade in­
este abuso senão despojando o liomem da finita, não pude crcar o mundo para sua
sua liberdade, o que teria feito do mundo gloria; cTalii conduc M. Bayle que Deus,
inteiro uma pura maquina; e M. King pre­ sendo bom, deveria na creâção do mundo
tende que um mundo onde tudo fosse ne­ dar tudo á bondade, c impedir, por qual­
cessario e maquinai, não teria sido proprio quer fórma que fosse, de se introduzir no
para Deus exercer seu poder c seus attri­ mundo toda a espccio de mal.
butos, como um mundo onde o homem é Sendo tudo igúalmcnte bom relatiyamcn-
livre. te a Deus, elle não foi levado pelo amor de
Finalmente, Deus, tendo escolhido para si mesmo ou de sua gloria a escolher para
exercer seu poder um mundo onde havia governar este mundo mais do que outro,
creaturas livres, entendeu não dever mu­ uma lei mais do que outra; sendo todas
dar seu plano) porque ellas deviam abusar igualmente boas a respeito d’ellc, devia es-
de sua liberdade, assim como entendeu não
dever mudar as leis que estabeleceu para i De Origine Mali, Autor e] Guillchno
a physica, porque ellas arrastam desordens King, Lond. 1703, m-8.°, c. 1, scct. 3. Ap-
apoz si. pend de Leg. Divin.
MAN 683
colher aqucllas que oram as mais proprias quem estão cm relações; se o fizessem, pou­
a procurar os bens das creaturas, c mudar cas pessoas quereríam reconhccel-os. Ob­
mesmo todas essas leis á medida que o bem servai alguns dos que declamam tão forte-
da creatura o pedisse, porque nào era me­ mento contra as traições, as injustiças, os
lhor, em relação a Deus, seguir o plano embustes, c a crueldade dos homens, e vós
que tivesse escolhido do que outro. 1 os vereis cultivar cuidadosamente as ami­
M. Baylc está aqui sempre no mesmo zades, c_ desempenhar differentes deveres
sophisma; pretende que o mundo, não sen­ a que são obrigados para com seus ami­
do necessario á gloria de Deus, este nào gos, suas familias, e seus paizes, trabalhar,
consultou senão a sua bondade; mas Deus soíTrer, arriscar mesmo a sua vida para
não tem pois mais attributos do que a sua serem fieis, quando não ha motivo algum
bondade? não é elle sabio c iminulavcl, c de receio que os possa impellir, e que po­
estes attributos serão sem influencia nos deríam menospresar seus deveres sem pe­
decretos c no procedimento de Deus, em- rigo nem inconvenientes para elles pro­
quanto que só a sua bondade opera? a prios.
bondade de Deus é acaso uma beneficên­ Isso depende, direis vós, do costume e
cia d’instincto, cega, sem luz, sem sabedo­ da educação: supponhamos que seja assim:
ria, que tende ao bem da creatura, sem al­ é mister, pois, que o genero humano tenha
gum respeito aos outros attributos do Ente de tal modo degenerado e renunciado ao
Supremo? eis o que M. Bayle suppõe na bem, que a maior parte dos homens desco­
sua resposta a M. King. nheçam a bcnclicencia; c a virtude nào
Eu nào fallo das questões que entraram está banida de maneira que nào seja apoia­
incidentemente íVesta contestação, que são da c sustentada, louvada c practicada por
todas interessantes, c que se encontram na um consenso geral, c pelos sufiragios do
obra de M. King, na resposta ás Questões público, c o vicio é ainda vergonhoso.
d'um Provincial, c nas notas que M. Ber­ EfTcctivamente, será difiicil pneontrar
nardo fez sobre a resposta de M. B ayle.2 um só homem, a menos que não seja com-
Entre estas questões occasionacs ha uma pellido pela necessidade ou provocado por
que tem por objecto o mal moral. M. King injuria,'que seja bastante barbaro, c que
pretende que ha mais bem moral no mun­ tenha o coração bastante duro, para ser
do que mal, e mesmo sobre a terra: nunca inaccessivcl á*piedade, e que nào sinta pra­
pôde acreditar na doutrina de Hobbes, a zer em fazer o bem aos outros, que não es­
qual diz que todos os homens sào ursos, teja disposto a testimunhar a benevolencia
lobos, e tigres uns para os outros, que nas­ e a aííeição aos seus amigos, aos seus visi-
ceram inimigos d’outros, c que cst’outros nhos, aos seus parentes, e que não seja di­
nasceram seus inimigos, que são nalural- ligente cm desempenhar os deveres civis
mente falsos e perfidos, c que todo o bem para com todos; que nào faça profissão de
que fazem é sómente por medo e não por respeitar a virtude, e que não considere
virtude. Aquellc que faz um similhante re­ como uma aíTronla o taxal-o de vicioso. Se
trato. dos homens, continua M. King, for­ querem dar-se ao trabalho d’oxaminar du­
nece assaz uma justa razão de suppôr-se rante um dia as suas acções e as dos ou­
que c elle proprio tal como os outros que tros, talvez acharão uma*ou duas vitupe­
descreve; porém, se se examinassem os ho­ ra veis, emquanto que todas as outras são
mens um a um, talvez se não achasse um innocentes c boas.
só em cem mil, que podésse reconhecer-se Convém notar em segundo logar, que
n’esto retrato. faliam d’um só grande crime, como um as­
Aquellcs mesmos, que avançam esta ca­ sinalo, um roubo, etc., que o publicam
lumnia, se se chegasse a tricar no seu ca­ muito mais, e que o conservam na memo­
racter, dar-se-iam ao trabalho d’afastar de ria muito mais tempo do que mil boas e
cima d’elles as suspeitas, c diriam que fal- generosas acções, que não fazem ruido no
lavam do povo e da maior parte do genero mundo, e não chegam ao conhecimento do
humano, mas não d’elles proprios; e ó cer­ público, mas que ficam sepultadas no si­
to que não se conduzem assim para com lencio é no olvido; isto mesmo prova que
seus parentes e para com aquellcs com as primeiras ção muito mais raras que as
ultimas, as quaes sem isso não excitariam
tanta surpreza, horror c espanto.
1 Respostas ás questões d'um provincial, É necessario observar em terceiro logar,
t. 2, c. 74. que muitas cousas, qiic são innocentes,
2 Republ. das letras, 1706, janeiro, pag. parecem criminosas aos que ignoram as
57. vistas d’aquellc que opera, e as circum-
m MAN
stancias em que se acha: é certo que não tracta dc casos criminosos, sabem perfeila-
podemos julgar do que ha de bom ou de mente quão pouca verdade ha nos boatos
mau 11’uma acção sobre simples apparen­ ordinarios, e quão pouca attcncão sc lhes
d a s, mas pelas intenções da alma, e pelo deve prestar.
ponto de vista pelo qual o (pie obra encara Em sexto logar devemos distinguir, e a
as co usas. lei mesmo o faz, entre as acções que veem
Em quarto logar, muitas acções se com- dhnna malícia premeditada,- o aquellas ás
mettem por ignorância, c os que as com- que qualquer violenta paixão ou desordem
mettem não sabem que são viciosas; mui­ no espirito nos levam.
tas vezes passam cilas mesmo por virtudes; Quando o oITensor é provocado, e que
foi assim que S. Paulo perseguiu a Igreja, um transporte subito da paixão o põe fóra
e elle proprio confessa que o fizera por de si, é certo que isto diminue bem a fal­
ignorância, e que. fOra por isso que obti­ ta. São cousas perfoitarnente conhecidas do
vera misericordia: quantas cousas cVcsta nosso muito recto juiz, qüe nos julgará mi-
natureza se fazem todos os dias por aquel- scricordiosissiuiamentc, e. não coín rigor,
les que professam religiões differentes! são, c foi sem dúvida por estas razões que'nos
confosso-o, peccados, mas peecados d’igno- privou de julgar antes dc tempo: nós não
rancia, que devem apenas ser contados en­ vemos senão a superficie das cousas, c ó
tre os males moraes, porque não procedem muito possível que o que olhamos como o
d’uma mã disposição e d’uma vontade cor­ maior crime, nos parecesse dever ser posto
rompida. no numero dos menores, sc estivéssemos
Todo o homem que usa de violência con­ instruídos de quanto teve relações com
tra outro por amor pela virtude, por odio elle, e se tudo considerássemos.
contra o vicio, ou por zelo pela gloria de Muitas virtudes c muitos vicios residem
Deus, faz mal sem contradicção; mas a igno­ na alma, c são incríveis aos olhos do ho­
rância e um coração honesto e bom o es­ mem; d’este modo é fallar ao acaso o pro-
cusam muito. Só esta consideração é suf­ nunciar-se sobre o numero d'uinas e d ou ­
ficiente para diminuir o numero dos maus, tras, c pretender inferir d’ahi a necessida­
e esta escusa não se limita ao que diz res­ de d’um mau principio; é merecer ser olha­
peito á religião; os prejuízos de partido de­ do como um juiz temerario, e culpado dc
vem ser pesados, esses prejuízos que obri­ precipitação, e ó usurpar os direitos do
gam muitas vezes os homens a empregar juiz supremo.
o ferro e o fogo contra aquellcs que olham Finahnentc, a conservação o o augmento
como inimigos públicos e como traidores do genero humano ó unia prov« bem se­
á patria; não ha erro mais fatal ao genero gura dc que. ha o bem e o mal no mundo,
humano, e que tenha creado mais c maio­ porque uma ou duas acções podem ter
res crimes; e todavia vem d’uma alma re­ uma inllucncia funesta sobre muitas pes­
pleta de inteireza. (3 engano consiste em soas: ainda mais, todas as acções viciosas
que se esquecem què se deve defender o tendem á destruição do gcncro humano,
estado por vias justas e legitimas, c não a pelo menos ao seu detrimento c á sua di­
dispensas da humanidade. minuição no logar em que é mister neces­
Em quinto Jogar, os prejuízos e as sus­ sariamente o concurso d’uin grande nu­
peitas fazem olhar como más muitas pes­ mero, c mesmo d'um numero infinito de
soas, que realmente não-o são. O commer­ boas acções para a conservação de cada
cio mais innocente entre um homem e uma individuo; se, pois, o numero cias más ac­
mulher, fornece ao maligno um assumpto ções excedesse o das boas, o genero hu­
para os suspeitar e calumniar: sobre uma mano deveria findar. E d’isto sc vê uma
unica circumstanda, que acompanha ordi­ prova bem sensível nos páizes onde os vi­
nariamente uma acção criminosa, decla­ cios sc multiplicam; o numero dos homens
ra-se culpada do proprio facto a pessoa sus­ diminue ahi todos os dias, e elles se des­
peita; uma só má occasião basta para des- povoam, pouco a pouco; sc alli a virtude se
honrar toda a vida d’um homem, para com- restabelece, os habitantes voltam por sua
prehender todas as suas acções n’uma mes­ ordem: é esta uma prova de que o genero
ma sentença. Se um só membro cVumá so­ humano não poderia subsistir-se o vicio
ciedade cahe em qualquer falta, presume- fosse sempre dominante, pois que ó mister
se logo que os outros não valem mais. Pa­ o concurso dc muitas boas acções para.re­
r e c e 'quasi incrível como ha pessoas que parar os prejuízos causados por uma.so
passam sobre iguaes titulos por muito más, má acção. Não é preciso mais que um cri­
as quaes são mui differentes do que se jul­ me para tirar a vida a um homem ou n
ga. Os confessores c os juizes, quando se muitos; mas quantos actos de bondade «
MAN m-
•de humanidade devem concorrer para ele­ não fosse livre c intclligcntc, não seria
var e conservar cada um em particular! mais que uma maquina, que obraria por
De tudo o que vimos de dizer, eu me li- meio de molas, e que por conseguinte
songeio. diz M. King, de haver entre os ho­ não poderia contribuir para a gloria do
mens mais hem do que mal, e que o mun­ Deus. Deve-se conceber, diz ellc, que Deus
do possa ser a obra d’um Deus bom, ape­ tendo querido fazer-se conhecer por meio
sar do argumento que se funda sobre a d’obras, ha permanecido occulto por de-
supposiçào de que o mal prevalece sobre traz d’estas mesmas obras, quasi como esse
o hem; c tudo isto, no entanto, não 6 ne­ pintor que se conservava escondido atraz
cessario, pois que póde haver dez. mil vo­ de seus quadros para ouvir o juizo que se
zes mais bem que mal em todo o univer­ fazia d’cllcs: assim, os homens foram crea-
so, quando mesmo nào houvesse absoluta- dos livres n’este intento, a fim de julgarem
mcnle bem algum sobre esta terra que ha­ da grandeza de Deus pela magnificência
bitamos. Esta ó uma cousa bem pequena de suas obras.
para ter proporção com o systema inteiro, Não se póde accusar Deus de ser o au-
c só podemos formar um juizo imperfeito thor do mal por ter creado um sér livre,
sobre esta parte. Póde ser um hospital ou que abusou do beneficio de Deus, e que se
a prisão do universo, e é possivcl julgar arrastou ao mal pelo effcito da sua liber­
da bondade e da pureza do ar d’um clíma dade: esta liberdade do homem torna o
sobre o aspecto d’um hospital onde só ha mundo digno deD eu s, c faltaria alguma
<loentes, ou da sabedoria d’um governo á cousa á perfeição*do universo, se o Omni-
vista d’uma casa destinada para alienados, potente não o houvesse feito assim: eis, se­
e onde existem só tolos, ou da virtude de gundo M. Jaquelot, a arma do que deve­
uma nação á vista d’uma prisão onde só mos servir-nos para repellir os ataques dos
ha malfeitores? não que eu creia que a ter­ inimigos da Providencia.
ra seja effectivamente assim, mas digo que l-m ente intelligente e livre é o mais ex­
o podemos suppor, c toda a supposição que cellente e o mais perfeito dos entes que o
mostra como a cousa póde ser, déstróe o poder de Deus, todo infinito como é, podia
argumento dos manicheus, fundado sobre formar.
.a impossibilidade que ha de lhe dar razão. Estabelecida uma vez a liberdade do ho­
No entanto eu considero a terra como mem, a permissão do mal nada mais tem
uma morada repleta de doçuras, onde se de contrario á bondade de Deus; os incon­
póde viver com prazer e alegria, e ser fe­ venientes que nascem d’esta liberdade não
liz. Confesso, com o mais vivo reconheci­ podem contrabalançar as razões tiradas da
mento para com Deus, que tenho passado sabedoria, da potência, e da gloria de Deus.
a minha vida d’esta maneira, e estou con­ O exemplo dos bemaventurados não é
vencido que meus parentes, meus amigos, uma dillieuldadc, como M. Bayle pensa: os
e'meus domesticos teem feito outro tanto, bemaventurados estão n’um estado de re­
c não creio que haja mal na vida que não compensa, e os homens na terra estão em
seja muito supportavel, sobre tudo para um estado de prova. 1
aquelles que teem esperanças d’uma feli­ M. Bayle respondeu a M. Jaquelot que o
cidade futura. 1 estado dos bemaventurados, sendo um es­
tado de recompensa, era mais perfeito, e
§ IV por conseguinte mais digno da sabedoria
de Deus que o estado de prova no qual ha­
Disputa d e M. Jaquelot e de M. Bayle via creado o homem.
sobre a origem do mal Em fim, M. Bayle oppôz-lhe o seu grande
argumento—que Deus podia conservar in-
M. Jaquelot, para responder ás diffioul- fallivel e livremente o homem no b ein .2
dades de M. Bayle, estabelece para princi­ M. Jaquelot replicou, e M. Bayle dupli­
pio fundamentai, que Deus teve ò desígnio cou, mas ambos se aflerraram a uma mul­
de formar uma creatura intelligenlc e li­ tidão de pequenos incidentes, que obscure-
vre, para ser conhecido e adorado; se cila ccram o primeiro csta.do da questão, e se
lançaram a reprehensões pessoaes, que não
• 1 Este pedaço de M. King c extrahido interessam a ninguém .3
das notas de M. Law sobre M. King, na tra-
ducção ingleza da obra d'este arcebispo: pos­ 1 Conformidade da fê e da razão.
to que um pouco longo, julguei a proposito 2 Besp. ás Questões d'um Provincial, t. 3.
nada supprimir. Vide o Continuadorde Bay- 3 Exame da Theologia de M. Bayle. En­
ie ya rt.K in g . tretenimentos d'Ar isto e de Themista.
44
686 MAN
A morte de M. Bayle terminou a rixa, M. Bayle, e em fazer ver que as consequên­
' mas[ncnhum d’elles se julgou vencido. cias que tirava da permissão do mal con­
tra a bondade de Deus, eram apoiadas
§ v sobre princípios que não estavam prova­
dos; nada mais faltava para cumprir o ob­
Resposta de M. de ta Placettc ás dificuldades jecto a que se tinha proposto, a saber: fa­
de M. Bayle zer vèr que M. Bayle não oppunha á reli­
gião difiiculdades insolúveis.
M. Bayle em toda esta disputa cstribá-
ra*se ifeste principio:— que Deus nào pôde § VI
crear o mundo para sua gloria, e que ello
nào se determinara a creal-o scnào por Uypothcse de M. Leibnitz para explicar
sua bondade— Deus, animado por este uni­ a origem do mal
co motivo, devia, segundo M. Bayle, ter só
em vista a felicidade das creaturas, e por JDLeibnitz julgou que para dissipar to­
conseguinte nào produzir scnào o bem no das" as Tfíquféfíiçoerdo espirito humano so­
mundo: nada devia desvial-o d’este proje­ bre as difiiculdades de M. Bayle, era ne­
cto. Mi Bayle, fechado n’este estado de cessario conciliar mais positivamente a
questão conio n’um forte impenetrável, ar­ permissão do mal com a bondade de Deus.
rostava todos os seus inimigos, e fazia re- Todos os methodos que se tinham segui­
cahir sobre elles todas as settas que lhe do para preencher este objecto lhe parece­
lançavam. ram insufficientes, e de modo a conduzirem,
M. de la Placette percebeu o sophisma a consequências desagradaveis: tomou uma
de M. Bayle, e abandonou todos os inci­ outra via para justificar a Providencia.
dentes coni que se tinha embaraçado a Julgou que tudo o que acontece no mun­
questào: atacou o principio de M. Bayle, do, sendo uma sequencià da escolha que
fez vèr que este critico nào tinha provado Deus fez do rnundo actual, era necessário
e nem podia provar que Deus nào creára elevar-se a este primeiro instante em que
o mundo senào para tornar suas creaturas Deus decretou produzir o mundo.
felizes. Uma infinidade dc mundos possíveis
Se ha, diz elle, alguma cousa d’impene- eram presentes á intclligencia de Deus, e o
travcl, sào os desígnios de Deus; a razào séu poder podia igualmente produzil-os to­
diz-nos que estes desígnios dependem prin­ dos; portanto, creando o mundo actual, ó
cipalmente dá sua livre e absoluta vonta­ forçoso que tenha escolhido.
de: elle faz o que quer, e por consequên­ Deus nào creou, pois, o mundo presente,
cia toma a resolução que lhe agrada, e com sem o preferir a todos os outros; ora, é
o intento que lhe parece; como, pois, po­ contradictorio que Deus, tendo dado o sér
deriamos nós adivinhal-o? quem poderia, a um d’esses mundos, não tenha preferida
por exemplo, suppôr o da incarnaçào, se o mais conforme a seus attributos, o mais
nunca fosse explicado? digno d’elle, o melhor; um inundo cuja
Se é possível não se propor unicamente creação tenha o maior e o mais excellente
Deus ao fim de tornar as suas creaturas fim a que este sér todo perfeito houvesse
felizes, todas as difficuldades de M. Bayle podido propôr-se.
se desvanecem; não é contrario á sabedo­ Não podemos decidir absolutamente qual
ria nem á bondade o ter permittido o mal. foi este fim do Creador, porque somos mui
M. de la Placette não foi mais longe, e não limitados para conhecer à sua natureza;
imitou os que emprehenderam determinar todavia, como sabemos que a sua bondade
o fim a que. Deus se tinha proposto na o levou a dar a existência ás creaturas, e
creação do mundo. Todos os adversarios que o objecto da sua bondade nào pódoser
de M. Bayle, ousando fazel-o, tinham-se senão crear creaturas intelligentes, nós po­
lançado cm abysmos, onde este critico os demos dizer, raciocinando sobre as luzes
havia combatido com grandes vantagens. 1 que nos deu para o conheper, que elle se
M. Bayle morreu no tempo em que M. propôz crear o maior numero de creaturas
de la Placette começava a fazer imprimir intelligentes, e dar-lhes o maximo de conhe­
a sua obra. cimentos, o maximo de felicidade, o m axi-,
M. de Ia Placette tinha-se contentado em mo de belleza, que o universo podia admit-
arruinar os fundamentos das objecções de tir, couduzindo-as a este feliz estado da ma­
neira mais conveniente á sua natureza, a
, 1 Resposta a duas objecções de M. B ay­ mais conforme á ordem; porque a bondade
le, part. de M. de ia Placette, in -12.1707. de Deus não póde nunca ir contra as leis de
MAN 687
ordem, que formam as regras invariáveis mas o mundo mais perfeito é aquelle onde
do seu proceder, e a bondade acha-se reu­ o peccado se eííectua: por consequência
nida n’isto com a sabedoria; 6 que, consis­ Deus não quiz o mal cm si mesmo, nem
tindo a maior felicidade das creaturas in- predestinou alguém ao peccado e á des­
tclligcntcs no conhecimento c no amor de graça. Quiz um mundo onde o peccado se
Deus, este Ente Supremo, para melhor se achasse. Taes são us princípios que M. Lei-
fazer conhecer, c para as levar a adoral-o, bnilz estabeleceu na sua Theodissêa.
se propôz manifestar-lhes seus divinos at­ A ordem, a harmonia, c as virtudes, nas­
tributos, c por conseguinte escolheu um cem de desordens de que se serve para ob-
mundo onde tivesse mais caracteres d’uma scurecer o dogma da Providencia. Louren-
soberana sabedoria, c d’um poder infinito ço Valia fez um dialogo, no qual finge que
em toda a sua administra<;ào, c em parti­ Sexto, filho de Tarquino, o soberbo, vai con­
cular nas cousas materiaes, mais varieda­ sultar Apollo a Delphos sobre o seu desti­
de com a maior ordem, o terreno, o tem­ no. Apollo lhe prediz que elle violará Lu-
po, os logares mais bem dispostos, mais crecia: Sexto lastima-sc da prcdicçào, Apol­
efieitos produzidos pelas leis mais simples. lo responde que a falta não é sua* que não
O mundo actual, para ser o melhor dos é mais que um adivinho, que Júpiter ha
mundos possíveis, deve ser o que corres­ dirigido tudo, e que é a este que precisa
ponde mais exactamento a esse fim magni­ queixar-se.
fico do Creador; de sorte que todas as suas Aqui finda o dialogo, onde se v<5 que
partes, sem cxcepção, com todas as suas Valia salva a presciencia de Deus á vista
mudanças c disposições, conspiram com a da sua bondade; mas nào é assim como M.
maior cxactidào á vista geral. Leibnitz o entende: elle continua, segundo
Pois que este mundo é um todo, as suas o seu systema, a ficção de Valia.
partes estão de tal modo ligadas, que uma Sexto vai a Dodona queixar-se a Júpiter
parte nào poderia ser arrancada sem que do crime a que está destinado; Júpiter res­
todo o resto se mudasse também. ponde-lhe que para o evitar não vá a Ro­
O melhor mundo encerrava pois as leis ma; mas Sexto declara abertamente que
actuaes do movimento; as leis da uniào da não póde renunciar á esperança de ser
alma e do corpo estabelecidas pelo author rei, e vai.
da natureza, a imperfeição das creaturas Depois da sua partida, o gran-sacerdote
actuaes, c as leis segundo as quaes Deus Theodoro pergunta a Júpiter porque não
lhes reparte as graças que lhes concede, o deu uma outra vontade a Sexto. Júpiter
mal metaphysico, o mal physico, e o mal envia Theodoro a Athenas para consultar
moral, entravam pois no plano do melhor Minerva; esta mostra-lhe os palacios dos
mundo. Destinos, onde estão os quadros de todos
No entanto não .se poderá dizer que Deus os universos possíveis, desde o peor ate
uiz o peccado, mas sim que quiz o mun- ao melhor. Theodoro vé no melhor o cri­
o onde o peccado encontra logar. me de Sexto, d’onde nasce a liberdade de
Assim, Deus ha sómente permittido o Roma, um governo fecundo em virtudes,
peccado; a sua vontade a este respeito não e um imperio util a uma grande parte do
é senão permissiva, para assim dizer, por- genero humano.
ue uma permissão não é outra cousa mais Estas vantagens, que nascem do crime
o que uma suspensão ou uma negação de do Sexto, livremente vicioso, nada são em
um poder que, posto em obra, impediría a comparação do total d’este mundo, se o po-
.acção de que se tracta; e permittir, é ad- dessemos* conhecer em toda a sua exten­
mittir uma cousa que está ligada a outra, são. *
sem a propor dircctamente, posto que es­ I VII
teja em vosso poder o impedil-a.
Não se deve concluir d’isto que o pec­ Resposta do padre Mallebranche
cado é o que torna este mundo mais per­ ás difficulaades de M. Bayle
feito que todos os outros mundos: porque
não são os poccados, mas sim todas as suas 0 padre Bouhours, na sua vida de S.
perfeições innumeraveis d’e'ste mundo, ás Francisco Xavier, conta que um bonzo (sa-
quaes o peccado so acha ligado, e que sem
elle não teriam esse alto grau de perfeição; 1 Ensaios da Theodissêa, part. 3, n. 403
são, repito, estas perfeições que elevam e seg.; acham-se estes mesmos princípios em
este mundo acima do todos os mundos pos­ um pequeno escrijjto, que está no fim dos
síveis: este mundo não é pois o mais per­ Ensaios da Theodtssêaj sob o titulo: Causa
feito, porque o peccado tem n’ellc logdr; Dei asserta per justitiam.
688 MAN
cerdotc do Japão), apresentara ao sancto D’est’arte a fé dissolve a difilculdade, c
diíficuldades sobre a origem do mal. O pa­ n objccção se transforma cm prova da ver­
dre Bouhours expõe estas diiTiculdadcs, e dade da religião; porque a religião christã
diz que o sancto reduzira o bonzo ao silen­ suppõe a incarnação do Verbo, e etisina-
cio por meio ^excellentes razões, das quaes nos que Jesus Christo c a sua Igreja ó o
nâo refero nenhuma. primeiro c o principal designio dê Deus.
Um dos amigos do padre Mallcbranche, Como Deus é infinitamente sabio, c como
embaraçado pela objecçào do bonzo, para a sabedoria quer que cada sêr opere con-
a qual não achava resposta, rogou ao pa­ formemente ã sua natureza, Deus deve ex­
dre Mallcbranche que o tirasse d’aquello primir no seu procedimento o juizo qúc
embaraço, e este deu a objecçào c a res­ faz d’elle mesmo; não deve pois operar
posta nas suas Conversações Cliristãs. 1 por vontades particulares, mas por vonta­
Como o padre Mallcbranche notou que des geracs, porque Deus operando por von­
estas diíTiculdades tinham feito assaz im­ tades particulares, operaria como se não
pressão cm muitos espíritos, emprehendeu tivesse previsto as consequências da sua
justificar a Providencia, e fazer vêr que acção, c como se a sua felicidade c a sua
Deus é infiniiamentc sabio, infinitamente gloria dependessem d'um pequeno aconte­
justo, infinitamente bom, c que faz aos ho­ cimento particular.
mens todo o bem que lhes pódc fazer.2 A bondade de Deus não exigia, pois, que
Quando o diccionario de M. Bayle appa- elle prevenisse todas as desgraças das crea­
receu, as diflieuldades contra a bondade de turas, pois que estas dergraças são conse­
Deus fizeram muito ruido, c o padre Mal- quências de leis geraes, que a sua sabedo­
lebranche não fez senão applicar a estas ria estabeleceu, e que a bondade de Deus
diíficuldades os princípios que estabelecera nada exigia que fosse contrario a sua sa­
nas suas Conversações Cliristãs, e no seu bedoria.
Traclado da Natureza e da Graça. Deus não estabeleceu somente leis ge­
Deus, sendo uin ente soberanamente per­ raes para a distribuição dos movimentos:
feito, ama a ordem, ama as cousas á pro­ elle quiz seguir leis geraes na distribuição
porção que são amaveis: ama-se por con­ das graças e dos soccorros que destinava
seguinte a elle mesmo, e ama-se d’um amor aos homens. A sabedoria e a bondade de
infinito. Deus, pois, não pódc na creação Deus não exigiam pois que prevenisse to­
do mundo propor para fim principal senão das as desordens do homem e todas as con­
a sua gloria. sequências do seu peccado, quer n’esta vi­
Tendo o mundo e todas as creaturas ter- da quer na outra.
niinado, nào haveria entre todas as creatu­ Para tornar todos os homens innocentes
ras possíveis e a gloria de Deus relação al­ e virtuosos, seria mister que Deus, na dis­
guma; elle nunca se determinaria pois a tribuição das graças, interrompesse as leis
crear o mundo se não tivesse um meio de geraes, c seguisse leis particulares; seria
dar d’alguma sorte a este mundo um me­ mister que obrasse d’uma maneira indigna
rito infinito; este meio é a incarnação do d’clle, e contraria a seus attributos.
Verbo, que dá ás homenagens da creatura O padre Mallcbranche conclue d’estcs
um preço infinito. princípios que Deus faz ás suas creaturas
A incarnação é pois o objecto a que todo o bem que lhes pódc fazer, não abso-
Deus se propôz na creação do mundo. lutaraente, mas obrando segundo o que elle
Não sendo o peccado do homem contra­ é, segundo a verdadeira e invariável justi­
rio á incarnação, a sabedoria de Deus não ça; q u e. quer sinccramente a salvação de
exigia que se fizesse uma lei particular tòdos os homens, c até do menino que está
para o prevenir, e tudo o que se póde, mas no seio de sua mãe. 1
também se deve necessariamente concluir 0 principio do padre Mallebranche so­
da permissão do peccado d’Adão, é que o bre as leis geraes da natureza e da graça
primeiro e o principal desígnio de Deus foi atacado por M. Arnaldo e pelo author
não era a sua obra tal como fôra na sua do Premoção Physica. 2
primeira instituição, mas que elle tinha
cm vista uma outra mais perfeita e digna 1 Conversações Cluistãs. Tractado da
da sua sabedoria e dos seus attributos. Natureza e da Graça. Reflexões sobre a pre­
moção physica. Compendio do Tractado da
N atureza e da Graça, t. 4. Respostas a M.
} Reflexion su r l a . premot. . physique, Arnaldo.
pag. 225. 2 Reflex. Philos. e Theolog. sobre o Tra­
2 Tractado da Natureza e da Graça, ctado da Natureza e da Graça, 3 vol. in-
MAR 689
—cra discipulo de Valcntim; puz imaginara. Julgou que o Ente Supremo,
y m o sysícma de seu mestre algumas mudan- sendo só, não havia produzido outros en­
rf ças pouco consideráveis o pouco importan- tes senão pela expressão da sua vontade:
5 tes. é assim que o Genesis nos representa Deus
; O que Sancto Ircnco nos diz d’estas mu- creando o mundo: ellc diz que sc faça a
/ danças não combina com o que Philastrius luz, e a luz sc faz. Era pois pela sua pala­
\ e Theodorcto nos deixaram: talvez estes ul- vra, c pronunciando, por assim dizer, cer­
l timos nos dessem o sentimento de qual- tos termos, que o Ente Supremo tinha pro­
\ quer discipulo de Marcos, pelo sentimento duzido entes distinctos d’cjle.
\ do proprio Marcos? Estos termos não eram sons vagos, e
/ O sentimento que Saneio Ircnco attribue cuja significação fosse arbitraria, porque
| a Marcos parece fundado sobre os princi- então não teria ello produzido mais um
l piosjd«xJ^atólC'Í6o suppòe vfMítfrTTTga- ente do que outro; os termos que o Sér
dasT as palavras; e segundo Philastrius c Supremo pronunciou para crcar séres fóra
I Thcocloreto, a doutrina de Marcos parecia d’clle, exprimiam pois estes entes, e a pro­
| fundada sobre esta especie de theologia nunciarão d’cstas palavras tinham a força
; ariiluflfilifia. de que se esíãVa fortcmentc de os produzir.
5 prcoccupado no segundo e no terceiro se- Assim, o Ente Supremo, tendo querido
I culo: é pelo menos certo que havia valen- produzir um ente sirnilhanto a elle, havia
5 tinianos, que, segundo os princípios da ca- pronunciado a palavra que exprime a es- <
• bala, suppuuham trinta Eons, c outros que seneia d’este ente, e essa palavra é qrçhc, j
• só suppuuham vi£tc..,c3£íítro, c (lue fun- isto ó, principio.
; davam o seu parecer sobre que havia nos Como as palavras tinham uma fórma
J numeros uma virtude particular, que diri- productura, c como cilas eram compostas
J gia a fecundidade dos Eons. de letras, as letras do alphabeto encorrr
\ A exposição dos princípios d’estas duas vam também uma força essencialmen
j sortes de valentinianos, póde servir á his­ produetora; cmfim, como todas as palavr
toria dos desvarios do espirito humano. eram sómente formadas pelas combinaçò
• Yalentim suppunha no mundo um espi­ das letras do alphabeto, Marcos c-onclu.
rito eterno c invisivcl, que .havia produzido que as vinte c quatro letras do alphabct
. o pensam ento, tendo este produzido um os- encerravam todas as forças, todas as qua­
I i^tpreTilão T) OTpirito e o pcnsãmêntÓ’ha- lidades, e todas as virtudes possíveis, c era
\i viam produzido outros seres, de sorte que, por isto que Jesus Christo dissera que ellc
para a producção dos seus Eons, Valentini era o alpha e o omega.
v fazia sempre concorrer muitos d'e!lcs, c Pois que cada letra tinha uma força pro­
y este concurso era o que sc chamava o ca- duetora, o Sêr Supremo havia produzido
; samcjnto d o s ^ n s . immediatamentc tantos sòres quantas le­
considerando que o primeiro tras tinha pronunciado. Marcos pretendia
principio não era nem macho nem femea, que, segundo o Genesis, Deus tinha pro­
c que só antes era a producção dos Eons, nunciado quatro palavras, que encerravam
julgou ser capaz de produzir por si mes­ trinta letras, depois do que tinha, para as­
mo todos os entes, e abandonou a longa se­ sim dizer, reentrado no repouso d’onde ti­
rie de casamentos dos Eons, que. Yalentim nha sahido, sómente para produzir séres»
distinctos d’cllc. D’ahi Marcos concluía que %
12.° Da acrão de Deus sobre as creaturas, havia trinta Eons produzidos immediata-1
etc., rô-4.°, ou 6 vol. tn-12.° mente pelo Sér Supremo, c aos quaes este
A questão da origem do mal foi tractada sér havia abandonado o cuidado do mundo.
n'uma infinidade d’obras, nas quaes somen­ Eis, segundo Sancto Ircnco, qual cra o
te se fa z applicar os differentes princípios parecer do valentiniano Marcos.
que acabainos d'expôr. Vede a Recopilação Segundo Philastrius c Theodorcto, Mar-
de Sermões para a base de M. Cayle. Cos- cos fazia também riãSccr todos1os"Eons im­
mologia Sagrada por jlf. Greiv, l. 6. Este mediatamentc do Ente Supremo, mas sup­
sexto livro contém excellentes cousas sobre punha que elle não tinha produzido senão
os fins da Providencia, sobre a lei natural, vinte e quatro, porque este numero era o
etc., mas seria mui longo expôr seus prin­ mais perfeito; eis, me parece, como Mar­
cípios h'uma obra onde mc proponho prin- cos ou algum dos seus discipulos foi con­
cipalmcnte fazer conhecer as boas obras duzido a este parecer.
que se devem consultar: deve-se collocar Yalentim imaginara os Eons para e x p li-\
n'esta classe a obra de. M o visconde de car os phenomenos, e multiplicàra-os se ]
A lais, sobre a origem do mal. gundo elles o exigiam; seus* discipulos usa­
690 MAR
ram da mesma liberdade, admiltindo uns todos os prodígiost possíveis; não era pre­
fctrinta Eons, outros oito, e outros um nu- ciso para isto mais’do que descobrir os nu­
fm ero infinito. meros, á virtude dos quacs os Eons não po-
Mas emfim, como o numero d*estes phe- dessern resistir. Encaminhou todos os es­
nomenos era com cITeito finito, era neces­forços do seu espirito para este objecto, c
sário parar n’um certo numero de Eons, e nào podendo achar nos numeros as virtu­
ninguém sabia porque não sendo o poder des que lhes suppozera, teve a arte d’ope-
dos Eons esgotado pela producção dos phe- rar alguns phenomenos singulares, os quaes
nomenos, a sua fecundidade se suspendera fez passar por milagres.
de repente, e se encerrara, por assim di­ Achou, por exemplo, o segredo dc trans­
zer, nos limites do mundo. formar aos olhos dos espectadores o vi­
Marcos julgou que este numero agrada­ nho que serve ao sacrificio da missa cm
va aos Eons, que era mais proprio a pro­ sangue; tinha dous vasos, um maior c ou­
duzir na natureza a ordem e a harmonia, tro mais pequeno: deitava o vinho destina­
ou emfim que os Eons estavam determina­ do á celebração do sacrificio no vaso pe­
dos por sua natureza a este numero dc queno, e fazia uma oração; um instante de­
producçòcs, crendo que havia nos núme­ pois o licor fervia no vaso grande, e via-se
ros uma perfeição que determinava e re­ sangue em logar de vinho.
gulava a fecundidade dos Eons, ou que li­ Este vaso nào era apparentemente senão
mitava o seu poder. o que se chama communiente a fonte dc
Segundo estas idéias, julgou-se que era
núpcias dc Cana; é um vaso no qual se
necessário determinar o numero dos Eons, derrama agua, fazendo esta agua subir o
nào pela necessidade que havia de se ex­ vinho que se deitou anteriormente no vaso,
plicarem os phenomenos, mas por essa e de que elle se enche.
ideia de virtude ou de perfeição que se Como Marcos não fazia conhecer o me­
imaginara unida aos números, c imagina­ chanismo do seu vaso grande, acreditava-se
ram mais ou menos Eons, segundo haviam que com cITeito o vinho sc mudava cm san­
acreditado que um numero era mais per­ gue, c olhou-sc esta mudança como um mi­
feito que outro. lagre.
Ve-sc pelos fragmentos dc Hcraclcon, Marcos, lendo encontrado o segredo dc
que M. Grabe extrahiu d’Origenes, que es­ persuadir que transformava o vinho em

Í ta especie de theologia arithmetica havia sangue, pretendia que linha a plenitude do


sido adoptada pelos valentinianos; e fei se­
gundo estes princípios que Marcos limitou
sacerdote, e que só elle possuia o seu ca­
racter.
o numero dos Eons a vinte e quatro. Eis As mulheres mais illustres, as mais ricas-
como elle foi determinado a nao admittir e as mais bellas, admiravam o poder dc
senão este numero. Marcos: elle lhes diz que tinha o poder de
Entre os gregos eram às letras do alpha­
lhes communicar o dom dos milagres; ellas
beto que exprimiam os numeros; assim a querem experimentar, Marcos lhes faz ver­
expressão de todos os números possíveis ter vinho do pequeno vaso no grande, e
estava comprehendida nas letras do alpha­pronunciava durante esta transfusão a ora­
beto grego. Marcos concluiu que este nu­ ção seguinte: que a graça de Deus} que está
mero era o mais perfeito, e que era por ante todas as cousas, e que sc não pode con­
ceber, nem explicar, aperfeiçoe em nós o
isto que Jesus Christo dissera que elle era
o alpha e o omega, fazendo-o suppôr que homem interior, que augmente seu conheci­
este numero encerrava todas as perfeições mento lançando o grão de semente sobre a
e todas as virtudes possíveis. Marcos não boa terra. *
duvidou pois mais que elle não tivesse de­ Apenas Marcos tinha pronunciado estas
monstrado que o numero dos Eons, que palavras, que o licor contido no calice bor­
produziam tudo no mundo, era de vinte e bulhava, c o sangue corria e enchia o vaso.
quatro.1 A proselyta admirada cria ter feito um mi­
lagre, transportava-se d’alegria, agitava-se,-
Marcos não julgára só descobrir que lia-
via vinte e quatro Eons, que governavam suffocava-se até ao furor, julgava-sc cheia
o mundo, mas também crêra descobrir nos do Espirito Sancto, c prophetisava então.
numeros uma força capaz de determinar o Marcos, aproveitando estas ultimas im­
numero dós Eons, e d’operar por seus meios pressões, dizia á sua proselyta que a força
da graça era n’elle, c que a communicava
em toda a sua plenitude áquella a quem
i Philastr. de Hwr. c. 42. Theodoret,queria communical-a: não se duvidava do
Haeret. Fab. /. i, c. 9. poder de Marcos, e dava-se-lhe a liberdade
MAR 691
<Vescolher os meios que elle julgava pro­ nha a seita dos priscilianistas: S. Jcronymo
prios pará communieal-a.1 os confundiu. 1
Todas as mulheres ricas, bellas c illus­ yêde o systema que Marcos imaginou: os
tres, se ligaram a Marcos, c sua seita fez artigos Cabala, Dasilidcs, Pcreanos.
progressos espantosos na Asia e ao longo MA&Ç.0SJM9S—Discipulos de Marcos.
do Rhôno, onde era ainda mui considerá­ __ marcion — foi primeiro um zeloso chris-
vel no tempo de S. Ireneo e de S. Epipha- tão: uma fraqueza em que cahiu, o fez excom-
nio; é apparentemente por isto que S. Ire- mungar. Marcion expulso da Igreja, uniu-
neo ha tractado da heresia dos valcntinia- se a Ccrdon, aprendeu d’cllc o systema dos
nos com tanta extensão.2 dous princípios, que alliou com alguns do­
Para preparar as mulheres á recepção gmas do Christianismo, c com as idéias da
do Espirito Sancto, Marcos lhes fazia tomar philosophia pythagorica, platônica c stoi-
porções proprias a inspirar-lhes disposições c a .2
favoráveis ás suas paixões.3 Pythagoras, Platão e os stoicos haviam re­
Os dicipulos de Marcos perpetuaram sua conhecido no homem um mixto de força c
doutrina por meio de prestígios e pela li­ de fraqueza, de grandeza c. de baixeza, dc
cença de sua moral c de seus costumes: en­ miseria c dc felicidade, que os determinara
sinavam que tudo lhes era permiltido, e a suppôr que a alma humana tirava sua
.persuadiram que com certas invocações po­ origem d’uma intelligencia sabia e benefica;
diam tornar-se invisíveis e impalpavéis. Este mas que esta alma degradada de sua di­
ultimo prestigio parece ter sido ensinado gnidade natural, ou arrastada pela lei do
para calmar os receios d’algumas mulhe­ destino, se unia á materia e ficava encadea­
res, que um resto de pudor impedia de se da aos orgãos grosseiros c terrestres.
entregarem sem discrição aos marcosianos. Era difTicil conceber como estas almas,
S. Ireneo conservou-nos uma oração que haviam podido degradar-se ou o que podia!
elles faziam ao silencio, antes de se aban­ ser este destino queas unia á materia: não*
donarem á impudencia, e estavam persua­ se imaginava facilmente como uma simples
didos que depois d’esta oração, o silencio e força motriz poderá produzir orgãos quf
a sabedoria estendiam sobre elles um vco envolviam as almas, como ensinavam c
impenetrável.4 stoicos, nem como se podia suppôr que
Marcos não era sacerdote, e querendo Intelligencia Suprema, conhecendo a dign
ingerir-se nas funeções de sacerdócio, in­ dade da alma, poderá formar os orgãos cr
ventou o meio de fazer crér que muda­ que cila estava envolta.
va o vinho cm sangue. O dogma da tran- Os christàos, que suppunham que a In-
substanciaçào estava então estabelecido cm tclligencia Suprema ereara o homem feliz e \
toda a Igreja, c fazia parte da sua doutri­ innoecnte, e que o homem se tinha tornado
na e do seu culto: porque se se não hou­ culpado e aviltado pela sua propria falta, \
vesse acreditado que pelas ordens da con­ não satisfaziam a razão sobre estas diíTicul- ?'
sagração, o vinho se tornava o sangue dc dades, porque: J.° não viam como a Intel- r
Jesus Christo, o valentiniano Marcos, para ligencia Suprema tinha podido unir uma {■
provar que tinha a excellencia do sacerdó­ substancia espiritual a um corpo terrestre. './
cio, não buscaria o meio de mudar o vinho 2.° Parecia absurdo dizer que sendo esta ;
em sangue. intelligencia infinitamente sabia e omnipo- v
Se se tivesse acreditado que a Eucha­ tente, não tivesse previsto e impedido a que- >
ristia não era senão um symbolo, Marcos da do homem, e não o tivesse conservado .!
não tentaria fazer crêr que* era sacerdote, no estado d’innoccncia, no qual o creâra, e 1
porque mudava estes svmbolos cm outros no qual queria que elle perseverasse.
corpos: servir-se-ia d’este segredo, para pro­ Marcion julgou queCerdon fornecia res- $
var que possui a o dom dos milagres, e não* postas muito mais satisfactorias a estas dif- •’
para provar que tinha a excellencia do sa­ ficuldades.
cerdócio. \ Cerdon suppunha que a Intelligencia Su-,
Marcos o Valentiniano é di (Terentede Mar­ prema, á qual a alma devia sua existência,
cos, cujos erros occasionaram cm Hcspa- era differente do Deus creador, que havia
formado o mundo c o corpo do homem:
julgou poder conciliar com este systema osl

1 .Epiph. Hwr. 39 1 Comment. ad Isamm, 44. Pagi} ad an.


2 Epip. ibid. Irccn . ibid. 381.
3 Jran. ibid. 2 Tert. contr. Marcion lrcen. 1.1, c. 27.
A lra n . ibid. Massuetj Disscrt. Pnev. ad Iram.
.692 ' MAK
princípios de Pythagoras e os dogmas fun- Queria fazer vêr uma opposição essencial
jdamcntaes do Christianismo. entre o Antigo e o Novo Testamento, e pro­
Suppôr que o homem era a obra de dous var que estas diíTeronças suppunham que
princípios opposlos, que sua alma era uma com eíTeito o Antigo e o Novo Testamento
emanação do ente benefico, e seu corpo a possuíam dous princípios differentes, dos
obra d’um principio malefico: eis como se­ quaes um era ésscncialmcnte mau. 1
gundo estas idéias, elle formou o seu sys­ Esta doutrina era a unica verdadeira,
tema. segundo Marcion: c augmentou, supprimiu,
v Ma dous princípios eternos c necessários: mudou no Novo Tcstanmnto tudo o que pa­
■um essencialménic bom, e o outro essencial- recia combater sua hypolhese dos dous prin­
f mente mau: o principio essencialmente bom, cípios. 2 ’f
| para communicar sua felicidade, fez sair de Marcion ensinava sua doutrina com mui­
" seu seio uma multidão d’ospirilos ou d’intel- to calor e vchemencia; creou muitos disci­
ligencias esclarecidas c felizes; o mau prin­ pulos:, esta opposição que Marcion preten­
cipio, para perturbar sua felicidade, crcou dia achar entre o Deus do Antigo Testamen­
a materia, produziu os elementos, c fez os to, e o do Novo, seduziu muita gente. Go-
orgàos, nos quacs encadeou as almas que sava d’uma grande consideração, seus dis­
sabiam do seio da intelligencia benefica: su­ cipulos julgavam que só elle conhecia a
jeitou-as por este meio a mil males: mas verdade, c não mostravam senão desprêso
como não pôde destruir a actividade que as para todos aquelles que não admiravam
almas receberam da intelligencia benefica, Marcion, e que não pensavam como elle:
nem formar-lhe orgàos e corpos inalteráveis, parece que levou e estabeleceu sua dou­
procurou fixal-as sob o seu imperio, dan­ trina na P ersia.3
do-lhes leis; propôz-lhes recompensas, amea­ Os discipulos de Marcion tinham um
çou-as dos maiores males, a fim de as con­ grande desprêso pela vida, uma grande
servar ligadas á terra, e de as impedir de aversão para com o Deus Creador." Tlico-
se reunirem á intelligencia benefica.1 dorcto conheceu um marcionila d’idade de
A mesma historia de Moysés não permit­ 90 annos, que era penetrado da mais viva
te duvidar a este respeito; todas as leis dos dôr todas as vezes que a necessidade o
'udcus, os castigos que receiam, as recom­ obrigava a usar das producções do Deus
! pensas que esperam, tendem a ligal-os á Creador: a necessidade de comer fruetos,
erra, e a fazer olvidar aos homens sua ori­ que este Creador fazia nascer, era uma hu­
gem e seu destino. milhação á qual o marcion ita nonagenario
Para dissipar a illusão em que o princi­ não se tinha podido acostumar.
pio creador do mundo tinha os homens, a in­ Os marcionitas estavam de tal sorte pe­
telligencia benefica havia-o revestido d’ap- netrados da dignidade de sua alma, que
parencias d’humanidade, e o tinha enviado corriam ao martyrio e procuravam a mor­
á terra pára ensinar aos homens que sua te como o fim do seu aviltamento, e o prin­
alma vem do céo, e que ella não póde ser cipio da sua gloria e da sua liberdade.4
feliz senão reunindo-sc ao seu principio. Os catholicos que atacavam os marcioni­
Como o ente creador não tinha podido des­ tas mesmo nos seus princípios, e que como
pojar a alma da actividade que ella recebe­
ra da intelligencia benefica, todos os ho­ 1 As razões de Marcion eram deduzidas
mens deviam e podiam occupar-sc em com­ longamentc n'um livro intitulado as Contra-
bater todas as inclinações que o prendem dicções.
á terra. Marcion conclemnom pois, todos 2 Tert. Ircen. Epiph. ibid. Aurelius, not.
os prazeres que não eram puramente espi- in. Tert.
rituaes: fez da continência um dever essen­ 3 Justiniano. Apol. Epiph. ibid.
cial c indispensável: o casamento era um 4 Theodoreto, liceret. Fab. I. 2, c. 24. Eu-
crime, e dava muitas vezes o baptismo.2 scb. I. 5, c. lõ, /. 4 ,1 6 . Eusebio cita o exem­
Marcion pretendia provar a verdade do plo d'um marcionila, que tinha sido prega­
seu systema pelos princípios do Christia­ do a um poste e queimado vivo. Jurieu con­
nismo, e fazer vêr que o Creador tinha to­ testou este facto sem razão alguma: julgou
dos os caracteres do mau principio. segundo o seu costume,; substituiu as provas
pelo furor e pelas intrigas. Mainbourg e Bay-
1 Ircen. ibid. Massuet, ibid. Tert. contr.le, reprehenderam asperamente seus desacer­
Marcion. Origeman. I. 2, p. 92. tos: vede Mainbourg, Ilist. de Calvin. I. 1,
2 Tert. adversus Marcion, c. 29. Epiph. p. 33. Ilist. do Pontificado de S. Greg. I. 4.
Hcur. 42. Vossius, Diss. de Baptismo, Thesi Feirand, Rep. á Apologia de Jurieu. Bayle,
a rt. Marcion, nota E. '
MAR 693
sc vó cm Tertulliano lhes provavam que no O mesmo Antigo Testamento, que os
seu proprio systema o mal c o hem eram marcionitas olhavam como a obra d’um
impossíveis; os catholicos, digo eu, comba­ mau principio, estava cheio d’estes signaes
tendo os marcionitas, os obrigaram a variar de bondade. Eu nào quero a morte do pcc-
e admittir ora um, ora dous, ora tres prin­ cador, diz Deus, mas penso em que elle mor­
cípios. Appelle nào admittia mais do que ra; nào penso eu em que viva e se conver­
um só. Potitus c Basiliscus admittiam Ires, ta? o principio bemfàzejo nào rejeita elle
o bom, o justo e o mau. proprio os impios no Novo Testamento?
Mareion havia conciliado o seu systema Porque razào este principio ha tardado tan­
com os princípios dos valentinianos sobre to em soccorrer o genero humano, sc é ver­
a produoçào dos espíritos ou dos Eons, e dade o ser elle bom e omnipotente, c que
havia adoptado alguns princípios da magia; um principio essencialmente bom e omnipo­
pelo menos seu systema nào sc lhes op- tente produza necessariamente lodo o bem
punha. 1 que póde produzir?
i Houve muitos discipulos, entre os quaes Assim, nos proprios princípios dos mar-
[alguns foram celebres: tacs foram Appelle, cionistas, o Deus bom nào faz todo o bem
I Potitus, Basiliscus, Prépon, Pithon, Blastus que póde fazer, e pune algumas vezes os
| c Thcodotion.2 crimes: ora, todos os males que o Deus
Crcador faz no Antigo Testamento, sào cas­
tigos d’esta especie.
REFUTAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DE MARCION E DAS Mas, se o principio bemfàzejo é omnipo­
DIFFICULDADES DE M. BAYLE CONTRA AS tente e senhor absoluto da natureza, porque
RESPOSTAS DE TERTULLIANO A MARCION. razào, diz Mareion, permilliu clle que o ho­
mem peccasse? Nào é ignorante, se o nào
previu, ou mau, se prevendo-o, o nào im­
As diíliculdades dos marcionislas redu­ pediu?
zem-se a ires artigos: i.° a impossibilidade O ente bemfàzejo, responde Tertulliano,
que ha do mal sob um só principio: 2.° cl- quiz que o homem lhe rendesse uma ho­
les pretendiam que o Deus do Antigo Tes­ menagem livre, c que merecesse livremen­
tamento era mau, sustentavam que Jesus te as recompensas que destinava à virtude.
Christo tinha vindo para destruir a obra do Creou o homem iVuma perfeita liberdade:
Deus do Antigo Testamento, o que suppu- este plano era todo conforme à bondade de
nha necessariamente que o Antigo e o Novo Deus, c uma vez decretado, Deus previu a
Testamento eram a obra de dous princí­ queda do homem, e nào o quiz despojar da
pios oppostos. M. Bayle foz vêr perfeita- sua liberdade para prevenir sua queda.
mente a primeira diíTÍculdade de Mareion, M. Bavlc pretendeu que os marcionitas
c nào temeu dizer que os padres a resol­ nào souberam fazer jogar a principal ma­
veram mal. quina do seu systema.
É necessario que M. Bayle nào tenha lido «Nào sc vê, diz, que elles levassem as
Tertulliano: porque este Padre dcslroe ab­ diíliculdades sobre a origem do mal: por­
solutamente o principio fundamental de que parece que desde que sc lhes respon­
Mareion. desse que o mal viera do mau uso do fran­
Yós reconheceis com todos, diz clle, a co arbitrio do homem, elles nào teriam mais
Mareion, e é mister necessariamente reco­ que replicar, ou que se fizessem alguma
nhecer um ente eterno, sem principio e resistência sobre a permissào d’este uso
sem limites na sua duraçào, no seu poder pernicioso, sc pagariam da primeira res­
e nas suas perfeiçòes; é pois uma contra- posta, fraca que fosse.
•dicçào suppor dous que se contradigam som «Era todavia bem facil refutar esta res­
cessar, c que destruam sem cessar a sua posta; bastava perguntar a Origenes se os
obra. bemaventurados do Paraizo sào iguaes a
0 mundo, que se attribue ao*mau prin- Deus na immutabilidadc c immortalidade:
. cipio, encerra signacs do bondade, tào in­ teria respondido sem dúvida que nào; por
compatíveis com a natureza do mau prin­ conseguinte, ter-sc-lhc-ia replicado que uma
cipio. quanto os inales que sc observam sào creatura nào sc torna Deus, desde que
contrarios á natureza do bom principio. é determinada ao bem e privada do que
chamaes franco arbitrio: nào satisfareis pois
1 Greff. Nas. Or. 4. tn. Pentecoste. Itti- á objeeçào, porque pergunta-sc-vos por­
.gius, úi Iier. c. 7. Tert. loc. cit. que razào Deus, lendo previsto que a crea­
2 Enseb. I. 5, 13. Theodorei, Hicret. Fab. tura peccaria se fosso abandonada á boa
1 .1, c. 23. Epiph.Iler. 44. Àug. c. 23. fé, nào a voltou para o lado do bem, como
€94 MAR
volta todos os dias as almas dos bemaven­ mas não que elle as não póde fazer capazes
turados para o Paraizo. de peccar, o que era toda a questão.
«Vós respondeis d’uma maneira que faz A resposta de S. Bazilio não é menos
• conhecer que pretendeis que se vos per­ atacada por M. Bayle. S. Bazilio sustenta
gunte porque razão Deus nào deu á crea­ que não c indigno de Deus querer que os
tura um ser tão immutavcl, tão indepen­ homens se dirijam livremente a elle, nem
dente como elle mesmo? Nunca se preten­ por conseguinte estabelecer uma ordem de
deu fazer-vos esta pergunta. cousas na qual o homem fosse livre, c em
«S. Bazilio deu uma outra resposta, que que Deus previsse que o homem peccaria;
tem o mesmo defeito; Deus, diz elle, nào o exemplo dos bemaventurados prova quan­
quiz que nós o amassemos por força, e nós do muito, como disse, que Deus poderia
mesmos não julgamos que nossos criados produzir creaturas determinadas invaria­
sejam alteiçoados ao nosso serviço, duran­ velmente á virtude, e nào que elle não póde
te que os conservamos no jugo, mas sómen­ crcal-as livres.
te quando obedecem de bom grado. «Mas, diz M. Bayle, é por um effeito da
«Para convencer S. Bazilio que este pen­ graça, que os filhos de Deus no estado de
samento é falsissimo, basta fazer-lhe lembrar viajantes, quero dizer n’este mundo, amam
0 estado do Paraizo; Deus é alli amado, seu pae celeste, e pruduzem boas obras. A
servido perfeitamente bem, e todavia os graça de Deus reduz os fieis á condição
beinaventurados nào gosam do.franco ar­ d’um escravo, que não obedece senão pela
bitrio, não teem o funesto previlegio de força? Impede ella que não amem Deus vo­
de poder peccar.» 1 luntariamente, e que não lhe obedeçam com
Para sentir a injustiça e, ouso dizer, a franca c sincera vontade? Se se fizesse esta
fraqueza das difliculdades de M. Bayle, basta questão a S. Bazilio e aos outros padres que
' reílectir sobre o estado da questão que di­ refutavam os marcionistas, não teriam sido
vidia os catholicos c os marcionitas. obrigados a responder negativamente? Mas
Os' marcionitas diziam que repugnava â qualé a consequência natural e immediata
natureza de Deus produzir tíma creatura d’uma tal resposta? Não e dizer que sem
capaz de commetter o mal. Origenes respon­ offender a liberdade da creatura, Deus póde
de que o homem não era essencial mente voltal-a infallivelmcnle para o lado do bem:
immutavel, pois que não era Deus; que por o peccado não é pois resultado do Creador
conseguinte nào repugnava nem a sua na­ não ter podido prevenil-o sem aniquilar a
tureza o ser capaz de peccar, nem á bou- liberdade da creatura; é mister pois tocar
dade de Deus o creal-o, sabendo que elle uma outra causa.
abusaria da sua liberdade. «Nào se póde comprehender, nem como
Eis o fundo da questão: o marcionista os padres da Igreja não viram a fraqueza
nos dialogos d’Origenes, dirige-sc tão bem do que respondiam, nem como seus adver­
corno M. Bayle; e Adamance resolve a dif- sarios não os advertissem.* Bem sei que es­
íiculdade: porque se o homem não é immu­ tas materias não tinham.ainda passado por
tavel por sua natureza, Deus pôde sem in­ todas as discussões que se viram no 16.° e
justiça e sem maldade, creal-o capaz de no 17.° século; mas é certo que a primiti­
peccar, e sabendo mesmo que elle pecca- va Igreja conheceu distincta mente a har­
ria, a justiça e a bondade não exigiam que monia da liberdade humana com a graça
se dessem â um ente todas as perfeiçòes pos­ do Espirito Sancto. As seitas christãs mais
síveis, nem mesmo todas aqucllas de que rigidas reconhecem hoje que os decretos
elle é susceptível, ou que o garantissem de de Deus não impozeram ao primeiro homem
•todas as desgraças; mas que nào soffresse a necessidade de peccar, c que a graça mais
as que não fossem ou consequências da sua efflcaz não priva a liberdade do homem;
natureza, ou eíTcitos da sua propria depra- confessa-se pois que o decreto de conservar
vaçào. • o genero humano constanstc e invariavel­
Debalde o marcionita teria replicado a mente na* innocencia, absoluto que fosse,
Adamance, que para ser im pecca vel não é teria permittido a todos os homeqs preen­
necessario ser ímmutavcl por sua natureza, cher livremente todos os seus deveres.» 1
pois que os bemaventurados são impecca- Reina sempre o mesmo vicio nas diflicul­
veis, e não são' immutaveis. dades de M. Bayle: prova muito bem que
Adamance lhe respondería, que o exem­ Deus podia conservar o homem livremente
plo dos bemaventurados prova assaz que e infallivelmentc na innocencia; mas não
Deus não póde fazer creaturas impeccavcis, prova que repugna á bondade de Deus cs-

1 Bayle, art. Marcion, nota P. i Bayle, ibid. nota G.


MAT 695

tabeleccr uma ordem de cousas na qual O habito cm que estão quasi todos os ho­
nào concedesse ao homem esses soccorros, mens, de não admitlir senão o que clles
quo o fazem perseverar infallivelmente no podem imaginar, dispõe a favor d’estc erro:
bem, e era isto o que fazia a questão entre prctendc-sc até apoial-o nos suffragios de
os marcionitas e os catholicos: estas diffi- homens respeitáveis pelas suas luzes, c
culdadcs tão formidáveis, que M. Baylc tej pelo seu amor á religião, os quaes temen­
ria fornecido aos marcionitas, nào são pois do pôr limites ao poder divino, julgaram
senão sophismas que não embaraçariam os que se não devia asseverar que Deus não
padres. podia elevar a matéria até á faculdade de
Os marcionitas pretendiam que o Velho pensar: taes são Lokc, Fabricio, etc. 1
Testamento nos representa o Creador como Nào foi preciso mais para erigir o mate­
um ente malfazejo, porque pune os israe­ rialismo em opinião, c é debaixo d’esta
litas, porque lhes ordena a guerra ás na­ mascara de scepticismo, que se oíTorcce
ções visinhas c a destruição das nações in­ commumenlc hoje.
teiras. Digo commumcnte, porque ha materia­
Mas na supposição de que Deus tinha que­ listas que teem ido mais longe que Loke c
rido que o homem fosse livre, era acaso Fabricio, e que teem pretendido que a dou­
contrario á sua bondade punir o crime? trina1da immaterialidade, da simplicidade
Não é possível que tudo o que aconteceu e da indivisibilidade da substancia que pen­
ao povo judaico, c as guerras que ellc fez, sa, é um verdadeiro atheismo, unicamente
entrassem no plano que a Intelligencia Su­ proprio para fornecer apoios ao spinosis-
prema formou? Quem póde saber se as mo. 2
guerras dos judeus não tendem ao lim que Nós ousamos oppôr a estes materialistas
D cus4se propuz? duas cousas: i.° que o materialismo não é
Finalmcnte,' digo que não ha opposição uma opiqião provável: 2.° que a immate­
entre o Velho e o Novo Testamento: as leis rialidade da alma é uma verdade demons­
do Velho Testamento são accommodadas ao trada.
caracter dos judeus, e ás circumstandas
em que a terra se achava então. §I
A lei judaica não era mais que a sombra
e a figura da religião christã; não é uma O materialismo não é uma opinião provavt
contradicção aniquilar á lei figurativa,quan­
do os tempos marcados pela Providencia Quando apercebemos uma cousa immc-
para o nascimento do Christianismo são diatamente, ou vêmos um objecto que está
chegados. A natureza d’csta obra nào per­ ligado necessariamente com esta cousa, te­
mitte entrar nos pormenores das contrarie­ mos certeza de que cila existe: assim eu
dades que os marcionitas pretendiam achar vejo immediatamcntc a relação que ha en­
entre o Antigo c o Novo Testamento. Notarei tre duas vezes dous c quatro, c tenho a
sómente que a maior parte das difiiculdadcs certeza de que duas vezes dous são quatro.
dispersas nas obras modernas contra a re­ Da mesma sorte, vejo um homem deita­
ligião, não são senão repetições d’essas dif- do, com os olhos fechados c sem movimento,
íiculdadcs que teem sido plenamentc resol­ mas vejo que respira e estou certo que vi­
vidas pelos padres, c que não são mui bèm ve, porque a respiração está ligada neces­
explicadas nos commentarios antigos e mo­ sariamente á vida.
dernos; e entre outros no Tertulliano con­ Se eu visse este homem deitado, sem
tra Marcion, 1. 4 e 5. movimento e sem respiração, eom o rosto
NASiBQXHEUJ— discipulo de Simão, foi um pallido e desfigurado, seria levado a crer
dos sele herelicos que primeiramente cor­ que estava morto, mas não teria a certeza,
romperam a pureza da fé; clle negava a porque a respiração d’este homem poderia
Providencia e a ressurreição dos mortos. ser insensível, e todavia sufficiente para o
(Theod. liceret. Fab. 1.I, c. L Conslit. Apost. fazer viver, e porque a pallidcz e a magre­
I. 6, c. 6. Euseb. Hist. Eccles. I. 4, c. 22J za não estão ligadas necessariamente com a
é o nome
que Tertulliano dava aquélles que criam 1 Fabricius, Delectus argumentorum quee
que a alma sahia do seio da materia. veritatem religionis asserunt, c. 18. Loke,
Hermogenes tinha-se lançado a este erro Ensaio sobre o entendimento humano.
para conciliar com a bondade de Deus as 2 Tractado da natureza humana, no qual
desgraças e os vicios dos homens tão bem se procura in tn idu zir o methodo de racio­
como as desordens physicas. Véde este ar­ cinar por experiendas em objectos de moral,
tigo. l. 2, part. 4, secç. 5.
.696 MAT
morte. Seria pois levado a crer que este a figura nada muda nas aíTeiçõcs interiores
homem está morto, mas nào terei a certe­ da matéria; assim, não se vé entre o movi­
za, e meujuizo sobre a morte d’estc homem mento da materia c do pensamento analogia
nào seria mais do que provável, isto é, eu alguma.
veria alguma cousa que poderia ser o eíTei- Sinceramente: que analogia se vé entre
to da morte, mas que poderia tanvbcm vir a figura quadrada ou redonda que se dá a
d’uma outra causa, c que, por conseguinte, um pedaço de marmore, c o sentimento in­
nào mo tornando certo da sua morte, nào terior de prazer ou de dòr de que a alma
é scnào provável. é alíectada?
Assim, a probabilidade tem o meio entre O juizo por meio do qual eu digo que
a certeza, no, qual nào temos logar algum um globo dTirn pé é dilTerente d’um de
de duvidar, c a ignorância absoluta na qual dous pés, é acaso um quadrado, um cubo,
nào temos razào alguma de a acreditar. um movimento prompto ou lento?
Uma cousa é pois deslituida de toda a E pois certo que não vémos na materia
probabilidade, quando nào temos razão al­ propriedade alguma, attributo algum, que
guma para crér n’clla. tenha alguma analogia ou alguma relação
As razões de crer n’uma cousa, tiram-se com o pensamento; do mesmo modo não
, da propria natureza d’esta cousa, das nos­ vémos na natureza, ou na essencia da ma­
sas experiências, das nossas observações, teria, razão alguma que nos authorise a crér
ou finalmente da opinião c do testimunho que ella pôde pensar.
dos outros homens, c estes homens, são na Mas, diz-se, a descoberta da atlracção não
questão presente, os philosophos ou os pa­ pôde fazer suppòr que é possível haver na
dres da Igreja, dos quaes os materialistas materia qualquer propriedade desconheci­
se fazem um apoio, e pelos quaes preten­ da, tal como a faculdade de sentir? -
dem provar que antes do 4.° século, não se Eu respondo a esses que fazem esta ob-
tinha na Igreja ideia clara sobre a espiri­ jecção:
tualidade da alma. 1. ü Que Ncwton játnais considerou a at-
traceào como uma propriedade da materia,
i.° Nada se encontra na natureza ou na es­ mas Vomo uma lei geral da natureza, pela
sencia da materia que authorise a julgar qual Deus havia estabelecido que um cor­
que ella póde pensar. po se aproximasse d’outro corpo.
2. ° Os newtonianos, que consideravam a
d.° Não vémos na essencia da materia atlracção como uma propriedade da ma­
que cila deva pensar, nem na natureza do téria, não poderam até aqui dar-lhe ideia
pensamento, que deva ser material; porque alguma.
seria tão evidente que a materia pensa, 3. ° Philosophos que fazem profissão de
como é evidente que dous mais dons são não crér senão no que vôcm claramente, e
quatro; seria tão evidente que um tronco que pretendem não admittir como verda­
d’arvorc, um fragmento de marmore pen­ deiro, senão o que é fundado sobre factos
sam, como c evidente que elle é extenso e certos, cahem n’uma contradicção manisfes-
solido; absurdo que materialista algum não ta quando admiltem na materia uma pro­
ousou até hoje avançar. priedade de que não teera ideia alguma; e
2.° Não vémos na natureza da matéria, que, segundo o mesmo Ncwton, nao é ne­
que ella possa pensar; porque, para isso, cessario para explicar os phenomenos.
seria mister que conhecéssemos na mate­ 4. ° Digo qüc a atlracção considerada co­
ria algum attributo, oti alguma proprieda­ mo uma propriedade essencial da materia,
de que tivesse analogia com o pensamento, c um absurdo: porque esta atlracção é uma
o que não existe. força motriz inherente e essencial á ma­
Tudo o que conhecemos claramente na téria, de sorte que ella se encontraria em
materia, se reduz ao movimento e á figu­ uma massa da matéria que estivesse só no
ra; ora, nào vémos no movimento ou na fi- universo; ou é uma força motriz que se pro­
' gura analogia alguma com o pensamento: duz, ou que nasce na materia pela presença
porque a figura e o movimento não mu­ d’um outro corpo.
dam a natureza ou a essencia da materia, A attracção não é uma força motriz es­
e como nào vémos analogia-entre o pensa­ sencial á matéria, de maneira que se ache
mento e a natureza da. materia, não pode­ necessariamente n’um corpo que fosse só
mos vél-a entre o pensamento e a matéria no universo: porque, tendendo toda a for­
em movimento, ou figurada d’uma certa ça motriz para um logar determinado, esse
maneira. O pensamento é um a affeição in­ -corpo no meio do vacuo newtoniano, de­
terior do ente pensante, o movimento ou veria tender para um logar, primeiro do
MAT 697
que para um outro: o que é absurdo, pois ções da alma, quando supponho que a alma
que a attracçào considerada como uma pro­ fôrma ella propria suas idéias por meio,
priedade essencial da materia, nào tende ou por occasião das impressões que recebe.
antes para um logar do que para outro; Mas as mudanças que a alma experimen­
é pois dizer um absurdo o avançar que a ta são impossíveis, se o pensamento é uma
attracçào c uma propriedade essencial da propriedade essencial da matéria: porque
matéria. então, todos os meus pensamentos devem
Nào se pódc dizer que a attracçào seja nascer do fundo da mesma materia, c as
uma.força motriz que nasça na matéria em mudanças que cercam a porção de materia,
presença d’um outro corpo; porque dous que é minha alma, nào mudando essa por­
corpos que se poem em presença e que nào ção de matéria, a ordem das suas idéias
se tocam, nào experimentam mudança al­ não deve mudar.
guma, c nào podem por conscqucncfa ad­ De qualquer modo que eu disponha as
quirir por sua presença uma força motriz porções de materia que cercam a molécula
que ellcs nào tinham. que* pensa no meu cerebro, ella será sem­
pre intrinsecamente o que era, e suas affei-
A attracçào nào é pois, nem um attributo
essencial da matéria, nem mesmo uma pro­ ções interiores, seus pensamentos, nào de­
priedade que ella possa adquirir: é, como vem experimentar mudança, se ella pensa
pensava Newton, uma lei geral, pela qual csscncialmente.
Deus eslabeleceu que dous corpos tendes- Os materialistas dirão talvez que a maio­
1 sem um para o outro; a attracçào não é ria nào pensa csscncialmente, mas que ad­
pois senào o movimento d’um corpo, ou a quire essa faculdade pela organisação do
sua tendencia para um logar, e esta tendên­
genero humano. Mas então essa organisa-
cia não tem mais analogia com o pensamen­ ção é necessaria para que a materia se tor­
to, do que outro qualquer movimento. ne pensante, senão porque ella transmitte
á sede da alma as impressões dos corpos
Que se julgue presentemente se a attrac­
çào que Newton descobriu, era para fazer extranhos, ou os golpes que nossos orgàos
suppôr que a materia poderia tornar-se ca­ recebem (Tclles, e n este caso ó mister ne­
paz de sentir, e se aquellcs que o preten­ cessariamente suppor que o pensamento
diam não formaram esta asserção sobre não é senào um golpe que a materia rece­
umap alavra que não entendiam, c sobre be; isto é, que a materia se torna pensan­
uma propriedade chimcrica da materia? te quando recebe um golpe; por conseguinte
Por conseguinte, não achamos na natu­ o ferreiro que bale o ferro* faz a cada golpe
reza ou na essência da materia, razão al­ uma infinidade de seres pensantes; isto nao
guma de julgar que ella pensa. é uma consequência tirada para tornar o
materialismo ridiculo, é o proprio Tundo
2.° Nenhuma experienda nos authorisa a do systema, tal como Hobbcs o concebeu e
acreditar que a matéria pôde pensar. defendeu.
Mas póde suppôr-se que um golpe dado
As observações e as experiências sobre n’uma porção de materia, faça um ente
que se apoia a opiniào que suppôo que a pensante?
matéria pódc pensar, reduzem-se a duas Um golpe dado na matéria, não faz senão
cousas: 1 / as prodigiosas differenças que leval-a para um certo lado: ora, a materia
produzem no homem os differentes estados não póde tornar-se pensante, porque ten­
do corpo: 2.* as observações que teem mos­ de, ou porque é impellida para um certo
trado que as fibras da carne conteem um lado, ao menos os materialistas não negaram
principio de movimento, que não é distin­ que o não podem conceber; além d*isso per­
cto da mesma fibra. , gunto-lhes qual é esse lado para o qual é
Mas, as dilfercnças que produzem nas preciso impcllir a matéria para pensar? se
operações da alma os differentes estados ella cessará de pensar, quaudo fòr movida
do corpo, provam sim que. a alma está uni­ cm sentido contrario? Nào é em absurdo
da ao corpo e não que ella seja corporea, que a materia movida, ou impellida para
pois que cstns mudanças da alma aconte­ um certo lado, se torne pensante?
cidas pelas mudanças* que experimenta o Qual ó o philosopho, ou o materialista que
corpo, se explicam na opinião que suppõe admitte na materia uma qualidade que elle
a immaterialidade da alma, c que o matc- não póde conceber, e que não póde suppôr
rialismo está ainda sobre este objécto me­ sem .ser conduzido a absurdos? Ou qual é
nos satisfactorio que a opinião que suppõe o defensor da immaterialidade da alma, que
a.alma immaterial. recuse reconhecer na matéria esta mesma
Eu concebo estas mudanças^ nas opera­ propriedade?
698 MAT
2.* A irritabilidade que se descobriu nas to quanto podiam da immaterialidade da
fibras dos animaes, é uni principio pura- alma, quando examinavam só o pensamon-
mentc mechanico, uma disposição organica, to, e quando olhavam a alma como um
que produz nas fibras vibrações: ora esta corpo d’cxtrema subtileza; d’cste modo a
disposição mechanica de fibra, não tem ana­ razão elevava-os á immaterialidade da al­
logia alguma com o pensamento, um pen­ ma, e a imaginação os retinha no materia-
samento não é uma vibração: se o fosse, lismo: sem suííragio não se faz, pois, de
uma rebocada, ou a mão que dedilha a cor­ modo algum uma probabilidade a favor do
da do alaúde, produziríam uma infinidade materialismo. Ouso asseverar que não se­
de pensamentos nas cordas, ou antes uma rei contradicto sobre este ponto por ne­
infinidade de seres pensantes. nhum d’aquelles, que na leitura dos anti­
Que os materialistas se vangloriem de gos se toem applicado a seguir a marcha
ter que arguir similhantes consequências do espirito humano na indagação da ver­
aos defensores da immaterialidade da almal dade.
A materialidade da alma é pois destituí­ M. Loke, mais circumspecto que os an­
da de toda a probabilidade do lado da ex­ tigos, pretendeu que a extensão e o pensa­
perientia e da observação. mento, sendo dous attributos da substancia,
Deus podia communicar a faculdade dó
pensar á própria substancia, â qual havia
A OPINIÃO DOS PHILOSOPHOS QUE JULGARAM communicado e extensão.
QUE A ALMA CORPOREA NÃO FÓRMA SENÃO Mas l.°, este raciocínio de M. Loke não
UMA PROI3ABILIDADE A FAVOR DO MATERIÀ- vale mais que o seguinte: póde-se n’um
LISMO. pedaço de mármore formar um cubo ou
um globo; por consequência o mesmo pe­
daço de marmore póde ser ao mesmo tem­
Quando se tracta de factos que não po­ po redondo enquadrado. Sophisma miserá­
demos vér, o testimunho dos outros ho­ vel, c que não póde tornar intelligivcl a
mens é a fonte da probabilidade, c mesmo possibfiidade da união do pensamento e da
la certeza. Quando se tracta de simples extensão n’uma mesma substancia.
jpiniões, o seu parecer produz uma sorte 2.° E certo que os princípios de M. Loke
de probabilidade, porque não existindo sobro a possibilidade da união do pensa­
nada sem razão,' se elles não ouviram o mento antes da materia, são absolutamente
que diziam, foram determinados ao seu pa­ contradictorios com seus princípios sobre
recer por qualquer razão apparente. a espiritualidade de Deus. Ora um homem
Mas não é menos certo que a probabili­ que se contradiz nada prova a favor dos
dade que nasce do seu parecer depende da sentimentos contradictorios que abraça: o
força da razão que determinou o seu jul­ sentimento de M. Loke não faz pois uma
gamento; examinaremos pois as razões so­ probabilidade a favor do matrimonio.
bre que os philosophos materialistas apoia­ Finalmcnte, se a materialidade da alma
vam as suas opiniões. teve seus partidários; a sua immaterialida­
Muitos philosophos disseram que a alma de teve defensores, cujo suffragio fôrma
era material ou corporal, mas não foram uma probabilidade opposta áquella que
impcllidos a esta opinião senão porque não produz em favor do matrimonio, a autlio-
podiam imaginar nem uma substancia in­ ridade dos philosophos materialistas.
corporea e immaterial, nem como cila po­ N ’cste conflicto do probabilidade convém
dería obrar sobre o corpo; ora, a impossi­ comparar as authoridades oppostas, c se
bilidade d’imaginar uma cousa não ó uma ellas são iguaes, a probabilidade que se
razão de a crér impossível, pois que no pretende tirar d’estas authoridades ó ne- .
seu parecer não se póde imaginar nem nhuma; se são desiguaes, subtrahe-se a
conceber como a materia póde pensar, e é mais pequena da maior, e é o excesso da
por isto que uns olhavam o corpo em que maior sobre a mais pequena que determi­
residia a faculdade de pensar, como um na a probabilidade.
pequeno corpo extremamente delicado, ou- Comparemos poiâ a authoridade dos'phi­
’ tros julgavam que era o sangue, outros o losophos partidários da immaterialidade da
coração, e t c .1 alma com a authoridade dos philosophos
Estes philosophos aproximavam-se tan- materialistas.
Eu vejo entre os antigos, Platão, Aristo­
i Vide as differentes opiniões dos philo­ teles, Parménides, etc. Entro os modernos
sophos antigos sobre a alma, em Cicero, de Bacon, Gassendi, Descartes, Leibnitz, Wolf,
Legibus; no Exam e do Fatal. t. i. Clark, Euler, etc., que todos créram na
MAT 699
imniatcrialidadc da alma, c que só a ensi­ mente intcllectuacs, descobriram que ellas
naram depois de meditarem muito n’essa suppunham um princípio simples o imma-
verdade, e de bem pesar todas as difficul- terial, e fizeram da alma um corpo o mais
dades que a combatem. Que se comparem subtil que poderam e o que mais se apro­
com estes sulfragios os dos philosophos ximava da simplicidade. O mesmo Demo­
materialistas, e que se pronuncie em favor crito não pôde impedir-se de dizer que a
de quaes a probabilidade deve ficar. faculdade de pensar residia n’um átomo,
Abandonemos este calculo á equidade do e que este átomo era indisivel e simples.
leitor, e façamos sómente duas reflexões Os pythagoricos, pelo contrario, que re­
sobre este conflicto d’opiniões dos materia­ conheciam na natureza *ma intelligencia
listas e dos partidários da immaterialidade: suprema e immatcrial, tinham encarado a
l.° Os philosophos que julgaram a alma alma em suas opiniões puramente intellc-
material, nào fizeram senào ceder á pro­ ctuaes, e pensavam que era por suas ope­
pensão que teem os homens d’imaginar rações que convinha julgar da natureza da
tudo, c à negligencia que impede a razão alma, e como estas operações suppoem
do se elevar acima dos sentidos; elles não evidentemente um principio* simples, en­
tinham necessidade de razão para suppôr tenderam que a alma era uma substancia
a alma material, nem precisavam d’exa- simples e immaterial.
minal-a. Mas como esta substancia era unida a
Pelo contrario, os philosophos que jul­ um corpo, e como se não podia reconhecer
garam a alma immatcrial, venceram estes a sua influencia nos differentes movimen­
obstáculos para elevarem seu espirito até tos do corpo humano, deram-lhe um pe­
á ideia d’uma substancia simples e imma­ queno corpo, o mais subtil que poderam,
tcrial. c o mais aproximado da simplicidade da
Parece, pois, que elles tiverani fortes ra­ alma: este pequeno corpo, que á imagina­
zões para adoptar esta opinião, e que só ção se representava distinctamcnte, era o
a isso foram forçados pela evidencia: por­ corpo essencial da alma, o qual era indivi-
que, quaudo a evidencia não é completa, a sivel, e de que ella jamais se poderia se­
imaginação c a preguiça triumpham dos parar.
esforços da razão; ao menos não se póde Este pequeno corpo unido á alma, era
contestar que os philosophos que ensina­ para a imaginação uma especie de ponto
ram a immaterialidade da alma, não ne­ d’apoio, que a impedia de cahir no matc-
cessitaram, no exame d’essa ihateria, de rialismo, e de se revoltar contra a simpli­
fazer muito mais esforços d’espirito, c mais cidade da alma, que a pura razão admittia.
uso de sua razão do.*que os philosophos Mas como este pequeno corpo era inse­
materialistas. A presumpção é pois a favor parável da alma, e como não se concebia
dos primeiros: e um homem que, sobre como um corpo tão subtil podia iiroduzir
esta questão se conduzisse pela via da au- o movimento do corpo humano, envolveram
thoridade, não poderia mais, sem absurdo, este corpo essencial da alma n’uma espe-
determinar-se a favor do matrimonio. cic de corpo aerio, mais subtil que os cor­
pos grosseiros, e que servia de meio de
coiumunicação entre o corpo essencial da
OS PADRES COMBATERAM O MATERIALISMO alma, e os órgãos grosseiros do corpo hu­
mano.
Eis a cspecie d’escada pela qual os pla­
Os philosophos que tinham indagado a tônicos faziam descer a alma até ao corpo:
natureza da alma, encerraram-na sob rela­ acha-se a prova no commentario de Hiero­
ções totalmente differentes; uns, como Ana­ cles sobre os versos d'ouro, c no que diz
ximandro, Anaximenes, Leucippe, dirigi­ Yirgilio sobre o estado das almas crimino­
ram sua attenção sobre os efleitos da al­ sas no inferno: «Algumas d’eslas almas,
ma no corpo bumano, e estas observações diz cllc, são suspensas c expostas aos ven­
\ foram a base do seu systema sobre a*na- tos, c os crimes das outras são polidos sob
tureza da alma, julgando-a apenas uma es- uma vasta caverna, ou purgados pelo fogo,
pecie de força motriz, e acreditando que até que o tempo tenha lavado todas as no-
ella era um corpo, i doas que lhes tinham lançado, e que só fi­
Quando das operações da alma sobre o que o puro sentimento aerio, c o simples
seu corpo passaram às operações pura- sentimento espiritual.» 1
Os padres, vendo que esta doutrina não
1 Vide o exame do Fatal. t. 1, segunda
época. 1 Eneida, l. 6, v. 735, etc.
700 MAT
cra contraria á immaterialidado da alma, traria ao espirito de Sancto Ireneo; este-
nem aos dogmas do Christianismo, adopta- padre, no logar citado, combato a metem-
ram-na por condescendência para com psycose, e pretende provar pela palavra
aquellos que queriam converter, e esta de S. Lazaro, que as almas depois da mor­
opinião restabeleceu-se entre alguns chris- te nao precisam d'unir-sc aos corpos para
tàos. Julgaram que as almas depois da subsistir, porque teem uma figura huma­
morte tinham corpos, mas suppunham que na, e nào é incorporea senão comparativa­
ellas eram substancias immateriaes collo- mente com os corpos grosseiros, i
cadas n’estes corpos, c unidas indissolú­ Os partidários da metempsycose diziam
vel mente a clles. que a alma humana nào podia subsistir
Como os anjos teem muitas vezes appa- sein ser unida a um corpo, porque era um
rccido aos homens cm um corpo humano, sopro que se dissipava se nào fosse retido
houve padres que, consequentemente aos nos orgàos.
princípios da philosophia pythagorica, cre­ Sancto Ireneo responde a esta diflicul-
ram que eram também corpos aerios. 1 dade, que a alma 'depois da morte tem uma
Os padres pois chegaram a dizer que a existência real e solida, se assim mc posso
alma cra corporea, e não eram materialis­ expressar, porque tem uma figura humana,
tas! e que depois da morto é incorporea so­
Demais, clles disputavam algumas vezes mente em relação aos corpos grosseiros, o
contra os philosophos que criam que a al­ que só faz suppor que Sancto" Ireneo cria
ma humana era uma porção da alma uni­ que as almas estavam unidas a um corpo
versal, uma sombra, uma certa virtude ou subtil, de que não se separavam senão de­
ualidade occulta, e nào uma substancia. pois da morte; resposta esta que é inteira-
S s padres, para exprimirem que a alma mcnle desfavorável ao materialismo. *
cra uma substancia c nào uma porçào da A passagem mesmo de Saneio Ireneo
alma universal, diziam que a alma huma­ faz vér que este padre reconhecia substan­
na era um corpo, isto é, uma substancia cias immateriaes, e diz que a alma não é
distincta, que tinha uma existência que lhe incorporea senão rclativamente aos cor­
era propria, e separada d’outro qualquer pos grosseiros, o que suppõe que é corpo­
ente como um corpo o é d’um outro corpo.2 rea relativamcnte a outras substancias, que
Finalmente, é certo que os padres deram não são unidas a corpos. Saneio Ireneo não
o nome de corpo a tudo o que julgavam é a favor do materialismo.
composto, ainda que fosse immaterial, e
que admiraram na alma differentes facul­
dades, que olhavam como partes. d'ella; ORIGENES NÀO DUVIDOU DA IMMORTALIDADE
.avançaram, pois, a dizer, que a alma era DA ALMA
ura corpo, c que só Deus, que era isempto
de toda a composição, era incorporeo: dis­
seram todas estas* cousas sem quererem Origcnes refuta expressamente aquelles
dizer por isso que a alma fosse com cffeito que acreditavam que Deus era corporeo:
um corpo m aterial.3 diz cllc que Deus não é nem um corpo
Appliquemos estes princípios aos padres que seja uma substancia simples, infelli-
cujo suffragio os materialistas reclamam. gente, isempta de toda a composição, que,
sob qualquer relação que se encare, ó uma
substancia simples; não é senão uma alma,
SANCTO IRENEO NÃO É FAVORAVEL Á OPINIÃO e fonte de todas as intelligencias.
QUE SUPPÕE QUE A MÀTKRIA PÓDE PENSAR . «Se Deus, diz elle, era um corpo, e como
o corpo é composto de materia, seria mister
também dizer que Deus é material, e sen­
Diz-se que Sancto Ireneo julgou que a do a materia essencialmente corruptível,
alma era corporea, porque disse que cila seria necessario ainda dizer que Deus é
cra um sopro, que não era incorporea se­ corruptível.» 2
não comparativamente com os corpos gros­ Póde-sc crór que um homem como Ori-
s e ir o s , o que similava um corpo humano. genes, que conduz o materialismo ató estas
Esta consequência ó absolutamente con­ consequências, possa estar incerto sobre a
immaterialidado do Ente Supremo?
i Codworth, Syst. JnteUectuai, sess. 3 e 5.
> 2 Aug. de Hceres., c. 86. * Irren., I. 5. c. 7.
3 Gregor. Moral., I 2, c. 3. Damascen., 2 L. 1 , de Principiis, c. i ; l. 1, pog. 5 1 ,
I. 2, c. 3. edit. Benedict.
MAT 70L
EIlc apoia sobre estes princípios a im- teriaes: como dizia que a alma é corporea
tnatcrial idade da alma: «alguns asseveram ou material, ellc, que não reconhecia por
que o nosso homem interior, que foi feito substancias immateriaes, senão as que nào
á similhança de Deus, é corporeo; devem podem ser dissolvidas ou queimadas, e que
consequentemente a esta idéia fazer do assevera que a alma dos homens não pódc
mesmo Deus um ente corporeo, e. dar-lhe ser reduzida a cinzas da mesma fórma que
uma figura humana, o que se nào pódc fa­ as substancias dos anjos e dos thronos? 1
zer som impiedade. 1 Para terminar o que diz respeito a Ori­
«Se ha homens que crécm que a alma é genes, advertiremos que o author da philo­
um corpo, diz ellc n’outra parte, eu queria sophia do bom senso trabalhou á face d’al-
que mc mostrassem d’onde vi ria a esse gum citador infiel; porque Origcnes, no
corpo a faculdade de pensar, de se recor­ mesmo logar que ellc cita, sustenta preci-
dar, e a de contemplar as cousas invisí­ samente o contrario da opiniào que attri­
veis.» 2 bue a este aulhor; 6 o que teria sido evi­
Estar-se-ha acaso incerto da espirituali­ dente para todos os leitores, se M. d*Ar-
dade da alma e da sua immaterialidade gens citasse a passagem por inteiro.2
•quando se estabelecem similhantes priuci-
pios?
Que tem a oppòr M. líuet a estas passa­ TERTULLIANO NÀO K FAVORAVEL
gens para provar que Origcncs mão tinha AO MATEUIALIS.MO
opiniào fixa sobre a immaterialidade de
Deus, e sobre a da alma?
N’uma passagem do prefacio do seu livro Tertulliano provara contra Hermogenes,
do> Princípios, diz Origcnes que convém que a matéria não era increada; fez em se­
examinar se Deus é corporeo, ou se tem guida uma obra para provar que a alma
alguma fórma, ou se é d’uma natureza dif­ nào é tirada da materia, como pretendia
ferente da dos outros corpos; se é da mes­ Hermogenes, mas que vinha immediata-
ma natureza do Espirito Sancto, e de to­ meute dc Deus, pois que a Escriptura nos
das as naturezas razoaveis.34 diz expressamente que era Deus que linha
No mesmo logar, Origcnes diz que vai inspirado ao.homem um sopro de vid a.3
tractar todos estes assumptos d’uma ma­ Finalmcnte, Tertulliano, para plcnamen-
neira differente da de que falia nas suas tc refutar aquelles que pretendiam que a
outras obras, nas quacs nào tractou esta alma sahia do seio da materia, e que esta
matéria a fundo nem expressamente. Esta nào era mais do que uma porção d’ella, em-
passagem nào quer dizer que elle muda prehendeu examinar as differentes opiniões
•d’opinião sobre estes objectos, pois que no dos philosophos, que .eram contrarios ao
mesmo livro dos Princípios estabeleceu que a religião nos ensina a respeito da al­
formalmcnte a immaterialidade de Deus e ma: é este o objecto do seu livro da alma.
•da alma. Diz elle que muitos philosophos julga­
Corno pôde M. ííuet concluir d'esla pas­ ram que a alma erà corporea, que uns a
sagem, que a Igreja nada havia definido fizeram sahir do corpo visível, outros do
sobre a immaterialidade da alma no século fogo, do sangue, etc.; que os sloicos se
d'Origenes? * aproximam mais da opinião dos christàos
Origenes, é. verdade, diz no seu livro n'aquillo em que consideram a alma como
dos Princípios, que só a natureza de Deus, ura espirito, porque este é uma especie de
isto é, do Padre, do Filbo, c do Espirito sopro.
Sancto tem isto de particular: «que c sem Tertulliano diz que os stoicos criam que
substancia alguma material, e sem socieda­ este sopro era um corpo, c que os platôni­
de com outro corpo, que lhe seja unido.» 5 cos, pelo contrario, acreditavam que a al­
Mas, ao menos, Origenes suppõe que as ma era incorporea: l.° porque lodo o corpo
.almas são unidas a um corpo, do qual sào era animado ou inanimado, e que nào se
- todavia distinctas, c não diz que sejam míi- podia dizer que a alma fosse um corpo ani­
mado ou inanimado; e eis, segundo Tertul­
1 Origen. Hom. 1, in pag. 420, Genes, liano, a prova que os platônicos davam.
•c. 1. «Sc a alma fosse um corpo animado, re­
2 L. de Pnncip.j ibid. cebería o seu movimento d’um corpo cs-
3 Pr cem. lib. de Princip., pag. 420.
4 Origenian. I. 2, quevst. dc Anima, n. t L. cont. Celsum.
13, pag. '99! 2 In Jolmn. t. 2, pag. 214, èdit. Huetii.
5 L . de Princip. c. 6. 3 De Censu ammce: este liiro perdeu-se.
702 MAT
tranlio, e não seria já uma alma: se fosse pedocles, etc., nem do fogo, como Heracli­
um corpo inanimado, seria movido por um to, nem mesmo o cther, como os stoicos: a
principio interior, o que não pódc convir alma não era, pois, segundo Tertulliano,
á alma, pois que então não seria cila que um corpo material, pois que o cther era o
movería o corpo, mas ella mesma que se­ ultimo grau de subtileza possível na mate­
ria movida d’um lugar para outro como o ria.
corpo.» 1 2. ° Tertulliano sustenta que a divisão
Eis, segundo Tertulliano, o raciocínio dos cornos cm corpos animados e inani­
dos platônicos para provar que a alma não mados é defeituosa, e que não se póde di­
é um corpo. zer da alma que ella seja um corpo ani­
Este author. que provara contra Hermo­ mado nem inanimado, o que seria um ab­
genes que a alma vinha de Deus, porque surdo, se elle houvesse dito que a alma
0 Genesis nos dizia que Deus a havia pro­ eia um corpo ou urna porção de materia:
duzido soprando no homem, acreditava que porque, se a alma é uma porção de mate­
a opinião dos platônicos não concordava ria ou um corpo, é mister necessariamente
com a explicação que havia dado da ori­ que ella seja um corpo animado ou inani­
gem da alma. Ataca o raciocínio dos pla­ mado: porque a materia ou é bruta c in­
tônicos, c pretende que não se póde dizer animada, ou vivente, organisada e ani­
que a alma é um corpo animado, pois que mada.
ó a presença da alma que faz um corpo 3. ° Tertulliano sustenta positivamente
animado, ou é a sua ausência que o faz in­ que ha um meio entre o corpo animado c
animado, e que a alma não pódc ser o cf- o corpo inanimado, isto é, a causa que
feito que ella produz, que assim não se pó­ anima o corpo, a qual não é nem um cor­
de dizer nem que a alma seja um corpo po animado, nem um corpo inanimado, c
animado ou inanimado, que o nome da al­ esta causa é a alma; assim, segundo Ter­
ma imprime a sua substancia e a natureza tulliano, a alma c um principio, cuja pro­
da sua substancia, e que não póde ter re­ priedade é animar um corpo, não sendo
lação nem coin a classe dos corpos anima­ ella um corpo: a alma, segundo Tertulliano,
dos, nem com a dos corpos inanimados, é pois distincta da matéria.
e que assim, o dilema dos platônicos con­ 4. ° Tertulliano diz que a alma é assim
duz absolutamente á falsidade. chamada por causa da sua substancia, e
Relativamcnte ao que os platônicos dizem nega todavia que a alma seja o fogo ou o
que a alma não póde ser movida, nem ex­ cther; suppõe, pois, que ella é uma sub­
terior nem interiormente, Tertulliano pre­ stancia immaterial.
tende que a alma póde ser movida interior­ ò\° Tertulliano combate aqui a opinião
mente, como acontece na inspiração; que dos platônicos, que diziam que a alma era
a alma é movida interiormente, pois que uma certa virtude, uma especie d’abstrac-
produz os movimentos do corpo; que as­ ção de que se não podia fazer ideia algu­
sim, se a mobilidade era a essencia do cor­ ma, c que não ora nada, segundo Tertul­
po, os platônicos não poderíam negar que liano; não diz, pois, que a alma é um cor­
a alma não fosse um corpo. po, senão para exprimir que é uma sub­
Eis, segundo Tertulliano, o que a razão stancia, e é por isso que diz que a alma c
póde aconselhar aos platônicos; mas a Es- um corpo, mas um corpo dò seu genero.
criptura, segundo este aulhor, dá-nos a É assim que quando raciocina contra Her-
respeito das almas muitas mais luzes: diz- mogenes, que pretendia que a materia não
nos que as almas separadas dos corpos, são era nem corporea nem incorporea, porque
encerradas em prisões, e que soíTrcm; o era dotada de movimento, e que este era
que é impossível, diz Tertulliano, se ellas incorporeo, Tertulliano lhe diz que o movi­
nada são, com Platão o pretende, porque, mento não é senão uma relação exterior
diz elle, a alma nada é, se não é corpo, do corpo, e que nada tem de substancial,
porque o que é incorporeo não é susceptí­ porque não c corporeo.1
vel d'algumas aíTeições, ás quaes a Escri- 6.° Tertulliano diz que é verdade que a
ptura nos diz que as almas sao sujeitas. alma é um corpo, e que é n’este sentido
É, pois, certo, que Tertulliano julgou que ella tem as dimensões que os philoso­
que a alma tinha ou era um corpo; mas phos attribuem aos corpos, e que é figura­
d.° elle não disse que fosse nem um corpo da; mas c certo que se póde crôr a alma
tirado da materia bruta, como Thales, Em- inimaterial, e suppôl-a extensa; esta opi-

t
1 Lib. de Anima. 1 Adversus Hermogen. c. 36.
MAT 703
nião é sustentada pelos theologos e por immutavel na sua natureza e na sua sub­
philosophos muito orthodoxos. stancia.» *
7. ° Tertulliano, no livro da alma, refutaSe Tertulliano não foi considerado como
a opinião que distingue o espirito da alma, heretico, porque disse que Deus ou a al­
e sustenta que ó absurdo suppor na alma ma eram um corpo, não é porque a Igreja
duas substancias, que o nome de espirito estivesse incerta sobre a immaterial ida­
não ó senão um nome dado a uma funeção de de Deus, ou sobre a da alma; é porque
da alma, c não um sêr que se junta a cila, se julgava que Tertulliano dizendo que
pois que cila é simples c indivisível. Deus era um corpo, não tinha querido di­
A alma é só, diz ellc, mas tem funeções zer que ellc fosso formado da materia, mas
, variadas c multiplicadas; assim, quando sómentc que era uma substancia ou um
Tertulliano diz que a alma é um corpo, é sêr existente em si mesmo.
visivel que não entende absolutamente ou­ Como, pois, tem o author da philosophia
tra cousa senão que a alma c uma sub­ do bom senso podido concluir da passa­
stancia espiritual c immaterial, mas ex­ gem de Saneio Agostinho, que não se era
tensa. 1 heretico no tempo de Tertulliano, por sus­
8. ° Tertulliano iTeste mesmo livro da tentar
al­ que Deus era material? Que ideia
ma. diz que ha demonstrado contra Her- deveremos formar do seu espirito, a não
mogcucs, que a alma vinha de Deus e não tomarmos isso por uma faltâ de logica?
da materia, e que provou que cila é livre, Para que, citando a passagem d*í Sancto
iinmortal, corporea, figurada e sim ples.2 Agostinho, este author supprimiu a razão
É pois certo que Tertulliano não deu á que este Sancto dá, pela qual Tertulliano
alma um corpo material, mas um corpo não foi considerado como heretico, quando
espiritual, isto é, uma extensão espiritual, fez Deus corporeo? Se o author é de boa
tal como muitos philosophos e theologos a fé, a sua philosophia não é a philosophia
atlribucm a Deus; estes não são taxados do bom senso.
de malcrialismo por pessoa alguma.
Tertulliano, que tinha muita imaginação,
olhava os seres inextensos dos platônicos SANCTO HILÁRIO CRIA NA 1MMATERIALIDADE
1 como chimeras, c cria que tudo o que exis­ DA ALMA
tia era extenso e corporeo, porque havia
extensão, e que nós conhecíamos os corpos
pela extensão; mas não acreditava que tudo Ninguem ensinou mais clara e mais for­
o que era extenso fosse material, pois que malmente a immaterialidade da alma do
admitte substancias simples e indivisíveis. ,que Sancto Hilário; n’elle não é isto uma
Tertulliano não era pois materialista, e opinião, é um principio a que se refere to­
eu não concebo como os seus commcnta- das as vezes que falia da alma.
dores e sábios distinctos não hesitaram em Quando explica estas palavras do psal­
eollocar este author na fileira dos materia­ mo 118: são vossas mãos, Senhor, que mc
listas. hão formado, descreve a formação do ho­
A ideia que vimos de dar da opinião de mem, e diz que os alimentos de todos os
Tertulliano sobre a natureza da alma, ar­ outros séres foram produzidos taes como
ranca, me parece, as difiiculdades que se eram no mesmo instante cm que Deus
tiram dos logares onde este padre diz que quiz que existissem; que não se vê na sua
Deus é um corpo: nós não fazemos aqui formação nem priucipio, nem progresso,
mais do que seguir a explicação de Sancto nem aperfeiçoamento; que um só acto da
Agostinho: «Tertulliano, diz este padre, sus- sua vontade" divina os fez como elles são,
• tenta que a alma ó um corpo figurado, e mas que não acontece assim com o ho­
- que Deus é um corpo, mas não figurado. mem. Era necessario, segundo Sancto Hi­
Tertulliano não tom sido todavia olhado lário, para os formar, que Deus unisse
por isso como um heretico: por quanto duas naturezas oppostas, e esta união de­
acreditaram que dizia que Deus era um mandava duas operações differentes.
corpo, porque òllc não é o nada, porque Deus disse ao principio: «formemos o
não é o vacuo nem alguma qualidade do homem á nossa imagem e similhança»; de­
corpo ou do alma, mas porque está intei­ pois tomou o pó, o formou o homem.
ramente em toda a parte, occupa todos os Na primeira operação, Deus produziu a
logares sem estar dividido, e permanece natureza interior do homem, isto é, a sua
alma, e ella não foi produzida ornando
1 De anima, c. 12,13, 14.
2 Ibid.c. 23. 1 Aug. Hcer. c. 36.
*
704 MAT
um a natureza estranha. Tudo o que a re­ Se M. Huet c aquellcs que o teem copia­
solução da divindade produziu n’este in­ do leram com altenção toda a passagem
stante fura incorporeo, pois que produzira de Saneio Hilário, leríam visto que a pala­
um ente á imagem de Deus: é na substan­ vra corporeo nào tem aqui um sentido fa ­
cia racional c incorporea, que resido nossa vorável ao materialismo.
similhança com a divindade. Sancto Hilário examina n’esta passagem
Que dilTerença entre esta primeira pro- as diííiculdadcs d’alguns homens grossei­
ducção da divindade, e a segunda! Deus ros que pareciam duvidar da resurreioão,
toma o pó, e fôrma assim o homem; polin­ porque não concebiam como se poderíam
do a producção, cria-o: para o corpo, não alimentar no céo.
succede assim; cllo não o faz, nào o cria, Sancto Hilário diz-lhes primeiro que a s
fórina-o, e toma sua matéria da massa da promessas de Deus devem dissipar todas,
te r r a .1 as suas inquietações a este respeito. P ro­
Quando este padre falia da immensidade cura em seguida"fazer-lhes comprehcmier
divina, e da presença de Deus em todos os como poderíam viver no céo: para is to ,
logares, diz que o Ente Supremo está in­ diz-lhes que não ha nada que nào s e ja
teiramente em toda a parte, como a alma corporeo na sua substancia e na sua c rea -
unida a um corpo está em todas as partes ção; o que quer dizer que Deus nào creo u
d’elle. A alma ainda que espalhada em to­ nada sem dar-lhe uma existência solida, c
das as partes do corpo humano, c presente iodas as qualidades necessarias para q u e
a todas as suas partes, nào é por isso divi­ tudo tenha a duração que lhe tiver pro-
sível como o corpo: os membros corrompi­ mettido.
dos, cortados, ou paralyticos, não alteram Esta explicação é conforme ao fim q u e
a integridade da alma. 2 Sancto Hilário se propunha, e a palavra
Deus nào é, segundo este padre, nem corporeo, corporeum, que tem algum as
corporeo, nem está unido a um corpo; e vezes este sentido no mesmo Sancto H ilá­
não é formando o corpo do homem que rio, que diz que tudo o que é composto
Deus o fez á sua similhança; mas dando- teve um principio, pelo qual é corporifica-
lhe uma alma. É por isso que o Genesis do, a fim de que subsista; e é n’estc senti­
não descreve a formação do corpo humano do que é mister entender o que este padre
senão muito tempo depois de nos ter dito diz na mesma passagem sobre as almas
que Deus havia feito o homem á sua ima­ que, separadas do corpo, teem no entre­
gem: é por esta similhança da alma com tanto uma substancia corporea conforme â
a natureza divina, que ellá é racional, que sua natureza.
é incorporea e eterna. Nada tem de terres­ Se Saucto Hilário quizera dizer n’esta
tre, e de corporea. É sempre sobre estes passagem que nào ha nada que seja mate­
princípios que Sancto Hilário falia da alma.3 rial, eis ao que se reduziría sua resposta:
Um padre que se explica tão expressa e inquíetaes-vos por não saber como vivereis
claramente sobre a immaterialidade da al­ depois da r e s u r r e i ç ã O j . c obraes uial; por­
ma, não podia ser collocado no numero que nào ha nada que não seja material.
dos materialistas, senão oppondo-se a estas Para que Sancto Hilário abandonasse
passagens, outras d’este padre, contrarias n’esta occasião seus priucipios sobre a im­
á immaterialidade da alma; era mister tirar materialidade da alma, era mister que o
das obras d’este padre, dúvidas razoaveis, materialismo respondesse ás difliculdades
ou difficuldades. consideráveis contra a im­ que elle se propunha esclarecer, e que
materialidade da alma. não fosse possível responder de outra fôr­
Todavia M. Huet, para provar que San­ ma. Ora, é certo que o materialismo da
cto Hilário julgava a alma material, não alma não resolve estas difficuldades, e que
nos cila senão uma passagem d’este padre, pelo contrario as fortifica. Se a alma é ma­
na qual elle diz que nada ha que não seja terial, deve-se estar muito mais embaraça­
corporeo na sua substancia e na sua crea- do de viver no céo do que sendo ella im -
ção, e que as almas unidas aos seus cor­ material como os anjos.
pos, ou desprendidas d’este corpo, teem
uma substancia corporea conforme á sua SANCTO AMBROSIO JULGAVA A ALMA IMMATE-
natureza.4 RIA L, E NADA SE ENCONTRA N.ESTE PADRE
QUE FAVOREÇA O MATERIALISMO. '
1 Hilar. in Ps. 118. L itter. 10, n. 6, etc.
2 lbid. Litter. 19, n. 8. Sancto Ambrosio explica a creação do
3 In Psal. 129. homem como Sancto Hilário.
4 In Mathceum, pag. 632, 263. A vida do homem começou, diz elle,
MAT 705
quando Doas soprou sobro clle: osla vida funeçoos: porque a alma, segundo este pa­
linda pela separação da alma c do corpo, dre, é indivisível; mais ligeira que as aves,
" mas o sòpro quo* recebo de Deus, não ó suas virtudes a elevam acima dos céos,
destruído quando se separa do corpo; com­ e Deus não a dividiu em partes como nos
prehendemus por isto quanto o quo Deus oniros seres, porque ella está unida á Trin­
fez immcdiatamcntc no homem c differente dade, que só indivisível, ha dividido tudo.
do que formou c figurou, e é por isso que E por isto que os philosophos julgaram
a Escriptura diz que Deus fez o homem á quo a substancia superior do mundo, que
sua imagem, e que conta cm seguida que chamam o ethcr, não é composta dos ele­
clle tomou o pó c formou o homem. mentos que formam os outros corpos; mas
0 que não foi formado do pó, não é nem que é uma luz pura, que nada tem da im-
terra, nem materia: c uma substancia in­ mundicie da terra, da humidade da agua,
corporea, admiravel, e immaterial; não é, do nebuloso do ar, ou do esplendor do fo­
nem no corpo, nem na materia, mas na go; ó, segundo elles, uma quinta natureza
alma racional que é mister procurar a si- que, infinitamente mais rapida e mais le­
mjlhança do homem com Deus; a alma não ve que as outras partes da natureza, e co­
ó pois uma vil materia, cila nada tem cor­ mo a alma do mundo; porque as outras
poreo. 1*3 partes são misturadas com corpos estra­
É pelo dogma da immaterialidade da al­ nhos c grosseiros.
ma que ellc eleva o homem, que o consola Mas, quanto a nós, continua Sancto Am­
das desgraças da vida, que o sustem con­ brosio, crémos que nada ha isempto de
tra os horrores da morto: toda a moral composição material, senão a substancia
d’cste padre assenta sobre a immateriali­ da Trindade, queé dTima natureza simples
dade da alma. - c sem mistura, posto que alguns julguem
Com que fundamento se suppòc este pa­ que esta quinta essencia ó essa luz que
dre materialista? David chama o vestido do Senhor.
Com uma passagem cm que clle diz que E evidente que Sancto Ambrosio confirma
não ha nada que seja isempto de composi­ aqui a immaterialidade da alma, pois que
ção material, senão a Trindade. diz, que cila é indivisível c unida á San­
Tomando esta passagem assim destaca­ ctissima Trindade, que é simples: que d’es-
da de tudo o que a precede, c do que a te modo, este padre não póde, duas linhas
segue, resultaria quando muito que Sancto acima, dizer que a alma é material, a me­
Ambrosio julgava que todos os espíritos nos que o não supponham estulto ou in­
creados estão unidos a um pequeno corpo sensato.
do qual jamais se separam. Sancto Ambro­ Não é menos claro que, íVcstn texto,
sio explica-se mui clara mente sobre a im­ Sancto Ambrosio não tem por objecto se­
material idade da alma, para dar um outro não combater o systema da alma uni­
sentido a esta passagem. versal, que os philosophos suppunham dis­
Mas Sancto Ambrosio ifesta passagem persa no mundo, como um quinto elemen­
não diz nada do que se lhe faz dizer. to; por conseguinte, não se tractava n’csse
Este padre, fallando dos sacrifícios, dizlogar da alma humana, mas d’uma das
que elles servem a revocar o homem a partes do inundo, que os philosophos olha­
Deus, e a fazer-lhe conhecer que Deus, vam como um espirito, e Sancto Ambrosio
posto que no cimo do mundo, dispôz toda­ diz-lhes que não conhece para governar o
via as suas partes. . mundo, outra natureza simples senão Deus,
Do espectáculo da natureza, onde depara e que todos os elementos que servem a
com os traços ou antes com o caracter da manter a harmonia da natureza, são cor­
Providencia, elle passa ás differentes par­ poreos, o que não tem relação alguma
tes do mundo e da terra: passa em segui­ com a alma.
da ao corpo humano, e diz que ó Deus que Eis-aqui o sentido natural da passagem
estabeleceu em todos os seus membros a de Sancto Ambrosio, a qual, vcrosimilmen-
harmonia que se admira. tc não foi lida ao todo por aquclles que
Quanto á alma, tem também suas divi­ julgaram que este padre era materialista.
sões, e estas divisões são suas differentes Os séculos posteriores aos padres, cuja
opinião vimos dc examinar, não fornecem
1 Ps. Ü 8 . S em . 10, n. 15, p. 1051, n. cousa alguma do que os materialistas pre­
16, 18. Hexameron, l. 6, c. 7, n. 10,40. tendem authorisar-se; são apenas passagens
- De Noé et arca, c. 2o, p. 265. De Bo­ destacadas que podem explicar-se pelo que
no Mortis, c. 9, n. 38. temos dito sobre os differentes sentidos que
3 De Abrahâo, l. 2, c. 8, n. 58, p. 333. se ligaram ás palavras corpo, corporeo.
706 MEL
§ II rialismo é portanto um absurdo, c a imnia-
terialidado, da alma está demonstrada.
.1 immaterialidadc da alma é uma verdade A impossibilidade dc conceber como um
demonstrada principio simples obre sobre o corpo, c lhe
esteja unido, não é mais uma diíTiculdade
Os philosophos que dizem que a matéria contra a ímmalerialidadc da alma do que
pôde adquirir a faculdade dc pensar, sup- a impossibilidade dc conceber como nós
pocm, como Loke, que Deus pôde com- pensamos; c uma razao de duvidar da
municar á matéria a aetividade que pro­ existência do nosso pensamento.
duz o pensamento, ou como Ilobbcs, que a O materialista não tem, pois, razão algu­
faculdade de pensar não é senão uma cer­ ma de duvidar da immaterialidadeda alma:
ta faculdade passiva dc receber as sensa­ assim esse sccpticismo de que os pretendi­
ções. dos discipulos dc Loke blasonam, não ten­
Em uma e outra supposição. a materia de senão a conservar o espirito incerto,
será necessariamente o sujeito do pensa­ entre um absurdo e uma verdade demon­
mento; assim, para refutar estas duas hy- strada, c sc se construíssem taboas de pro­
pothescs, basta fazer vér que a matéria nao babilidade para ahi dispor nossos conheci­
pôde ser o sujeito do pensamento. mentos, o materialismo não acharia logar,
Quando reflectimos em nós mesmos, vi­ c não correspondería ate ao mais fraco
mos que todas as impressões dos objectos grau de probabilidade, e a immalerialida-
exteriores sobre nossos orgãos, se aproxi­ de da alma seria collocada ao lado das ver­
mam do cerebro, e se reunem no principio dades mais certas. Não se entende, pois,
pensante: de sorte que é este principio que o estado da questão, quando se diz que
apercebe as côres, os soris, as figuras, e a a materialidade ou a immatcrialidade da
dureza dos corpos; porque o principio pen­ alma é uma opinião, cuja probabilidade
sante compara essas impressões, e não po­ maior ou menor dependerá das descober­
dería comparal-as, se não fosse o mesmo tas que se fizerem no conhecimento das
principio que apercebe as côres e os sons. propriedades da matéria: porque, não so­
Se este principio fosse composto de par­ mente não conhecemos nada que possa au-
tes, as percepções que reccberia seriara thorisar esta conjectura, o que ó sufficien­
distribuídas as* suas parles, e nenhuma te para tornar a dúvida do materialista
d’ellas veria todas as impressões que fazem desarrazoada, mas ainda vômos que de fei­
os corpos exteriores sobre os orgãos: ne­ to a materia não póde ser o sujeito do pen­
nhuma das partes do principio pensante samento, o que faz do materialismo um
podería pois comparal-as. A faculdade que sentimento absurdo.
a alma tem de julgar, suppõe pois que não M e l c h i s e d e c i a n o s — Deu-se este nome aos
tem partes c que ó simples. hcOT^iãhõ^queTiegavam a divindade dc
Colloquemos, por exemplo, sobre um cor­ Jesus Christo, e que pretendiam que clle
po composto de quatro partes, a ideia dc 1 ra inferior aMelchisedec: Theodoto o ban-
um circulo; como este corpo não existe ueiro, é o aulhor d’esta heresia.
senão por meio de suas partes, não pódc Theodoto de Bysanço tinha renegado Je­
também aperceber senão por ellas; o cor­ sus Christo, e para diminuir a enormidade
po composto de quatro partes não poderia de sua apostasia, pretendera que não bavia_
pois aperceber um quarto de circulo, se­ renegado senão um homem, porque J esu s
não porque cada uma de suas partes aper­ Christo não era senão um homem.
cebería um quarto de circulo; ora um cor­ Theodoto o banqueiro adoptou seu pare
po que tem quatro partes cada uma das cer, e pretendeu que Mclchiscdec era d «
quaes apercebería um quarto de circulo, uma natureza mais excellente que Jcsu—
não-póde aperceber um circulo, pois que a Christo.
ideia do circulo encerra quatro quartos Os erros são ordinariamente ao nasce
de circulo, e que no corpo composto de muito simples, e apoiados cm poucos a r g »
quatro partes, não ha alguma que aperce­ mcnlos: quando um erro se torna a op—
ba os quatro quartos de circulo. nião d’uma seita, seus partidários fazei
A simplicidade da alma é pois apoiada esforços para. o defender, os espíritos e n z
sobre suas próprias operações, e estas ope­ caram tudo sob a face quo favorece s e =
rações são impossíveis, sc a alma fôr com­ parecer, e aproveitando este lado, f a z e *
posta de partes e material. d’elle novas provas, e as mais leves v e r «
Os philosophos, que altribuem á materia similhanças se mudam cm princípios.
a faculdade de pensar, suppoem pois que D’est’arte, Theodoto o banqueiro, v en cB
a alma é composta, e cila não o é : o mate- que se applicavam a Jesus Christo estas p =
MEL 707
lavras (Tum. psalmo:—vós sois sacerdote, tes. e que estes tres homens eram Melchi­
segundo a ordem de Mclchisedec— julgou sedec, Enoch e Elias. *
vér n’osto texlo uma razão peremptória Finalmentc, no nono século, sábios dis­
contra a divindade de Jesus Christo, e todo tinctos pretenderam que Mclchisedec era
o esforço de seu espirito se voltou para o o proprio Jesus Christo.2
lado das provas que podiam estabelecer que A heresia dos antigos mclchisedccianos
Mclchisedec era superior a Jesus Christo. é absolutamente contraria á Escriptura, e
Este ponto torna-se o principio funda­ mesmo ao texto de S. Paulo, sobre que se
mental da opinião de Thcodolo o banqueiro apoiavam.
e de seus discípulos. Procurou-se todos os 1. ° Moysés não nos diz nada de Melchi­
logares da Escriptura que fallavam de Mel- sedec que nos dè uma outra ideiaqueadn
chisedec. Viu-se que Moysés o representa­ rei visinho, que toma parle na victoria
va como o sacerdote do Altíssimo, que ha­ que se vinha de ganhar, c que d’ella se
via abençoado Abrahão; que S. Paulo as­ regosija, porque lhe era vantajosa.
severava que Mclchisedec não tinha pae, Se S. Paulo não houvesse tirado da ac­
nem mãe, nem genealogia, nem principio do ção de Mclchisedec consequências mysti­
dias, e nem fim de vida, sacrilicador para cas, c que não visse iTestc rei um typò do
sempre. Messias, não se leria visto cm Mclchisedec
Theodoto c seus, discipulos'concluiram mais que um soberano que reunião sacer­
dhaqui que Melchiscdeç não era um homem dócio e a realeza como era então muito
como os outros homens, c que era supe­ usado; c por este motivo que os judeus, que
rior a Jesus Christo que linha começado c não recebem a Epistola aos hebreus, con­
que morrera; finalmentc que Mclchisedec cordam quasi todos em reconhecer Melchi­
era o primeiro pontifice do sacordocio eter­ sedec por um rei dc Chanaan, e alguns
no, por meio do qual conseguimos chegar até sustentaram que cllc era bastardo, em-
junto a Deus, e que devia ser o objecto do quanto que outros teimaram q u eera S em .3
culto dos homens. 2. ° A passagem do psalmo 110, que diz
Os discipulos dc Theodoto fizeram, pois, que Jesus Christo c sacerdote, segundo a
suas oblações c suas súpplicas cm nome de ordem de Mclchisedec, prova que o sacer­
Mclchisedec, que olhavam como verdadeiro dócio de Jesus Christo era d’uma ordem
mediador entre Deus c os homens, c que differente do sacerdócio dos judeus, c que
devia abençoar-nos, como abençoou Abra­ o sacerdócio dc Mclchisedec era a figura
hão. 1 t ou symbolo de Jesus Christo; é assim que
Hicrax, pelos fins do 3.° século, adoptou o explica S. Paulo.
cm parte o erro de Theodoto, e pretendeu S. Paulo propue-se destacar os judeus dc
que Melchisedec era o Espirito Sancto. sacordocio da lei, dos que estavam excessi
S. Jcronynío refutou uma obra compostavamente preoccupados; para este etTeito, dii
no seu tenipo para provar que Mclchisedec que ha um sacordocio superior ao dos ju­
era um anjo. deus, e elle o prova, porque Mclchisedec,
Pelos fins do derradeiro século, um ano- que o exercia, abençoou Abrahão, e co­
nymo fez reviver em parte o erro de Theo­ brou os despojos que havia ganhado aos
doto a respeito de-Mclchisedec. reis vencidos, e havia exercido sobro toda
S. Paulo diz, que o primeiro homem era a sua posteridade uma verdadeira superio­
terrestre, c nascido da terra; e que o se­ ridade, d’onde concluc, que sendo Jesus
gundo homem era celeste, e nascido, do Christo chamado por Pavid sacerdote, se­
c éo .2 gundo a ordem do Mclchisedec, o sacerdó­
IVcsta passagem, concluc este author que cio de Jesus Christo era inferior ao sacer­
ha homens terrestres e homens celestes, c dócio da lei.
que. como S. Paulo diz que Mclchisedec foi É visível que é este o unico fim que S.
similhante a Jesus Christo, é forçoso que Paulo se propunha, e que para estabelecer
«1.1© seja também um homem celeste, o que esta opinião, não era necessário fazer de
explica felizmeníe, segundo este author, Melchisedec um ente superior a Jesus
•aquillo que a Escriptura nos ensina que Christo.
tres Magos vieram adorar Jesus Christo: É assim que c mister explicar estas pa-
como a Escriptura não nos diz nada sobre
estes Magos, o author anonymo julgou que 1 Petavius, Dogm. Thcol., i 3, de Opif.
«stes tres Magos eram tres* homens celes­ sex dientm.
2 Cuneus, Rpeub. dos Hebreus, t. l.c, /.
1 Epiph. Ilar. í>ò\ 3, c. 3.
2 Prima: Cor. 2o, v. 44. 3 Josephus de Bello Judaico, I. 7, c. 18.
708 MEN
lavras de S. Paulo, que são toda a diílicul- Quando S. Paulo diz que Melchiscdec
dade do sentimento dos mclehiscdécianos, sendo similhante ao Filho do Deus, ficou
c d’aquclles que julgaram que Melchiscdec sacrificador para sempre, quer dizer que
era o Espirito Sancto, um anjo, ou o mesmo como o Filho de Deus não teve nem pre­
Jesus Christo, decessores, nem successores no seu sacer­
S. Paulo diz— l.° que Melchiscdec nào dócio, aconteceu o mesmo com Melchisc­
tinha pae, nem mãe, e nem genealogia. dec, que foi sacrificador também muito-
Este apostolo tendo desígnio de mostrar tempo, quanto o seu estado o permittiu:
que o sacerdócio de Jesus Christo é mais porque as palavras pcrpetuamcnle, sempre,
excellente que o d’Aarão, prova-o pelo ver­ tomam-se muitas vezes n’esse sentido pe­
siculo do psalmo 110, onde diz que o Mes­ los cscriptores sagrados.1
sias seria sacrificador, segundo a ordem menand no— era samaritano d’um a al­
de Melchiscdec. EUe faz ver que se pedia, deia chamada Capartaije: foi discipulo de
em nome da lei, que o sacrificador fosse Simão o Magico, fez grandes progressos na
nào só da tribu de Lcvi, mas ainda da fa­ magia, c formou uma seita nova depois da
milia d’Aarão; além d'isto, era preciso que morte de seu mestre.
fosse nascido d’um!i mulher israelita, que Simão havia pregado que elle era a gran­
casando-sc com um sacrificador, se toruava de virtude de Deus, que era o Todo-Pode-
da familia d’Aarào. roso: Menandro tomou um titulo mais mo­
Nào era preciso que ella tivesse sido ca­ desto, e menos espinhoso,'-disse que era o
sada, mas sim que fosse virgem; porque enviado de Deus.
se fosse viuva, ou de má vida, nào era per- Reconhecia como Simão um ente eterno
mittido ao sacrificador csposal-a; é porque e necessario, que era a fonte da existência,
os sacrificadores guardavam cuidadosa­ mas ensinava que a magcstade do Ente Su­
mente suas genealogias, sem o que eram premo era occulta e desconhecida a todo o
excluídos do sacerdócio. mundo, e que não se sabia d’este sér outra
S. Paulo diz que Melchiscdec não teve pae eousa mais, senão que era a fonte da exis­
sacrificador, nem mãe que tivesse as qua­ tência, e a força por meio da qual tudo
lidades exigidas pela lei na mulher d’um existia.
sacrificador, e nem genealogia sacerdotal. Uma multidão de genios sabidos do Ente
Como Nosso Senhor não era de raça sa­ Supremo, tinham, segundo Menandro, for­
cerdotal, e como os judeus podiam dizer mado o mundo e os homens.
que por essa causa não podia ser sacrifi­ Os anjos creadores do mundo, por impo­
cador, S. Paulo faz vêr que clle o era to­ tência, ou por malvadez, encerravam a al­
davia, conforme a predicção do psalmo 110, ma humana em orgãos onde experimenta­
segundo a ordem de Melchisedec, no qual va uma alternativa continua de bens e de
nào havia similhante lei. males; todos os males tinham sua fonte na
Mas, diz-se, a Escriptura assevera que fragilidade dos orgãos, e nào findavam se­
Melchiscdec não teve nem começo de dias, não pelo maior dos males, pela morte.
nem fim de vida. Genios bemfazojos, tocados da desgraça
Isso não exprime ainda senão difleren- dos homens, haviam collocado sobre a ter­
cas entre o sacerdócio da lei, c o de Mel­ ra recursos contra esses males; mas os ho­
chisedec. Os levitas serviam o templo des­ mens ignoravam estes recursos, e Menan­
de trinta annos até sessenta; póde-se dizer dro asseverava que era enviado pelos ge­
que esta gente tinha um fim e um princi­ nios bemfazejos, para descobrir aos homens
pio de vida ministerial, se é permittido esses recursos, e ensinar-lhes o meio de
fallar assim. Além d’isto os soberanos sa- triumphar dos anjos creadores.
crificadores tinham um principio e um fim Este meio era o segredo de tornar os
do vida, em relação às funeções do sacer­ orgãos do homem inalteráveis, e consistia
dócio supremo, que não começavam a exer­ n’uma especie de banho magico que Me­
cer senão depois da morte de seus prode­ nandro fazia tomar a seus discipulus, que
cessores, e que cessavam também d’exer- se chamava a verdadeira resurreição, por­
cer morrendo. que aquelles que o recebiam nào envelhe­
Não havia succedido o mesmo com Mel­ ciam nunca.
chisedec/ que não tivera limites marcados Menandro teve discipulos na Antiochia;
nas funeções de seu sacerdócio, e que não havia alli, ainda no tempo de S. Justino,
tivera nem predecessores, nem successo­ menandrianos que não duvidavam de que
res; de sorte que se podia dizer que elle fossem immortaes. Os homens amam tão
não havia tido nem principio, nem fim de
sua vida sacerdotal. i Exod. 21, v. 6. Jerem. 5, v. 22.
MES 70$

apaixonadamcnto a vida, vécm tâo pouco Escriptura, sempre tomadas á letra, Sabas
o grau preciso da sua decadência, que nào havia julgado que nós estavamos cercados
é, nem muito diílicil eonvcncel-os dc que de dernonios, e que Iodos os nossos pecca-
se pódc tornal-os imniortaes sobre a ter­ dos provinham de suggcstões d’esses espí­
ra, nem mesmo impossível persuadir-lhes ritos perversos; acreditava que ao nascer
até ao momento da morte, de que recebe­ cada homem, um demonio se apoderava
ram o privilegio da immortalidade. 1 d’cllc, o arrastava aos vicios, e lhe fazia
D’est’artc, todos*os séculos teem lido, sob oommciter todos os pcccados em que ca-
outros nomes, menandrianos, que preten­ hia.
diam garantir-se da morte, umas vezes por Emquanto ao primeiro aclo dc renunciar
meio da religião, outras vezes pelos segre­ a si mesmo, que Sabas practicou, parece
dos da alchimia, ou pelas chimcras da ca­ que clle era sujeito a fortes tentações de
bala. No começo do nono século, um in- carne, e a Escriptura ensina-nos que o de­
glez pretendeu que se o homem morria, monio da impureza se expelle por meio da
nào era scnào por costume; que poderia, oraçào. Sabas julgou que era esse o meio
se quizesse, viver n’este mundo sem temer de triumphar das tentações, e dc se con­
a morte, e ser transferido para o céo, co­ servar sem peccado. Os sacramentos apa­
mo outv’ora Enoch c Elias. gavam perfeitamente os peccados, segundo
O Sabas, mas nào destruiarn sua causa, e Sa­
homem, diz M. Afgil, foi feito para vi­
ver; Deus nào fez a morte senào depois bas considerava-os como prácticas indi (Te­
qu o homem a attrahiu pelo peccado. Je­ rentes; um sacramento era, segundo elle,
sus Christo veio reparar os males que o como uma navalha de barba, que corta a
peccado causou no mundo, e procurar aos barba c deixa a raiz.
homens a immortalidade espiritual e cor­ Quando pela oraçào o homem se livrava
poral: ellcs recebem o penhor da immor­ do demonio que o cercava, elle nào conti­
talidade corporal recebendo o baptismo, c nha já a causa do peccado, o Espirito San­
se os christàos morrem, é porque perdem cto descia á alma purificada.
a f é .2 A Escriptura representa-nos o demonio
Seita de fanaticos: eis- como um leào esfaimado, que gira sem
aqui a origein dc seus erros c de suas ex­ cessar em volta de nós; Sabas se julgava
tra vagan cias. sem cessar investido por estes espiritos:
0 Evangelho diz que, para ser perfeito, era visto ás vezes no meio da oraçào agi
é mister renunciar a si mesmo, vender tar-sc violcntamente, arremessar-so ao a?
seus bens, dal-os aos pobres, e desligar-se c crer saltar por cima d'uma legiào de di
de tudo. monios: viam-no bater-se contra ellcs, fc
Um tal Sabas, animado d’um desejo ar­ zer os movimentos d’um homem que atir.
dente de chegar á perfeiçào evangélica, á setta; julgava despedir flechas contra os
tomou todas as suas passagens á letra, fez- dernonios.
se eunucho, vendeu seus bens, c distri­ A imaginaçào dc Sabas uào era tranquil­
buiu-os pelos pobres. la durante o somno; elle julgava vér real-
Jesus Christo disse a seus discipulos— mente todos os phantasmas que ella lhe
nào trabalheis para o nutrimento que aca­ offerecia, e nào duvidava que seus visinhos
ba, mas para o que permanece na vida fossem revelações: creu-se propheta, attra­
eterna.3 hiu a attençáo da multidào, cscandeceu as
Sabas concluiu d’esta passagem que o imaginações fracas, inspirou seus senti­
trabalho era um crime, c formou uma lei mentos, e viu-se uma.chusma dc homens
de permanecer no mais rigoroso ocio: deu e dc mulheres vender seus bens, levar
seus bens- aos pobres, porque o Evangelho uma vida ociosa c vagabunda, orar sem
ordena renunciar ás riquezas; e nào tra­ cessar, e dormir promiscuamente nas ruas.
balhava para se nutrir, porque o Evange­ Estes desgraçados criam a atmosphcra
lho prohibe trabalhar para um nutrimento repleta de demônios, e nào duvidavam que
que acaba. os respirassem com o ar; para se desem­
Apoiado em muitas outras passagens da baraçarem d’clles, assoavam-se e escarra­
vam incessantemente: umas vezes viam-
1 Ivan., I. 2, c. 21. Tert. de Prcescript., nos luctar contra os dernonios, e despedir-
c. 5. liuseb., /. 3, c. 26. Jvstin. Apol. 2. lhes fiechas, outras vezes cahiam em exta-
Avg. de H tn\, c. 2. si; faziam prophecias, e julgavam vér a
2 Rcpubl. das Letivas 1700, novembro, Trindade.
j i r t . 5, png. 547. Nào se separaram da communhão dos
3 Jouo/Q, v. 27. catholicos, que olhavam como pobres crea-
710 MIL
turas ignorantes c grosseiras, que busca­ Ezechicl nao faz promessas menos ma­
vam estupidamente nos sacramentos forças gnificas. Eu vou abrir vossos tumulos, diz
contra os ataques do demonio. Deus, c farei sahir o meu povo dos scpul-
Os messallianos tinham feito progressos chros, reslituir-lhes-hei a vida, c vos resta­
cm Edessa, foram d’alli expulsos por Fla­ belecerei no vosso paiz: então conhecereis
viano, bispo dTAntiochia, e se retiraram á que eu sou o Senhor. Ajuntarei os israeli­
Pamphilia; aqui foram condemnados por tas tirando-os de todas as nações, por onde
um concilio, c passaram á Armenia, onde toem sido dispersos, serei sanctificado en­
infectaram de seus erros muitos mostei­ tre elles á vista de todas as nações, habi­
ros. tarão na terra que dei ao meu servo Ja-
Letorius, bispo de Melilenc, os fez quei­ cob: habital-a-hão sem medo, edificarào
mar iVostes mosteiros: os que escaparam casas, plantarão vinhas, c permanecerão
ás chammas, retiraram-se para a diocese em segurança, quando eu exercer meus
d’um outro bispo d’Armenia, que teve pie­ julgamentos, contra os que os rodeavam, c
dade d’elles c os tractou com doçura. que os teem maltractado, c então se co­
MijLLENjvnios—Deu-se este nome aos que nhecerá que sou eu o Senhor c o Deus de
julgaram*que 'Jesus Christo reinaria sobre seu pae. 1
a terra com seus sanctos, n’uma nova Je­ Os judeus, que reconheciam que Jesus
rusalém, durante mil annos antes do dia Christo era o Messias, não perderam de
do juizo: cis-aqui o fundamento d’csla opi­ vista estas magnificas promessas, e houve
nião. alguns que acreditaram que teriam seu cf-
Os prophetas tinham promellido aos ju­ feito na segunda vinda de Jesus Christo.
deus que Deus os reuniría d’entrc todas Estes homens, metade judeus, c metade
as nações, e quando tivesse exercido seus christãos, acreditaram que depois de vinda
julgamentos, sobre todos os seus inimigos, do Anti-Chrislo c da ruina de todas as na­
elles gosariam sobre a terra d’uma felici­ ções que se seguirem, se fará uma primei­
dade perfeita: Deus annunciou por Isaias ra rosurreição, que não será senão para
que crearia novos céos, e uma terra nova. os justos, mas que os que se acharem en­
Tudo o que existiu anteriormente, disse tão sobre a terra, bons e maus, serão con­
Deus, pela bôea de Isaias, se apagará da servados em vida; os bons para obedecer
memoria sem que torne ao espirito, vós aos justos resuscitados, como a seus prin­
vos reunireis, c sereis eternamente pene­ cipes; os maus para serem vencidos pelos
trados de alegria nas cousas que vou crcar, justos e lhes serem sujeitos; que Jesus Chris­
porque vou tornar Jerusalem uma cidade to descerá então do ceo na sua gloria; que
cTalcgria, e seu povo um povo alegre. To­ em seguida a cidade de Jerusalem será rc-
marei minhas delicias em Jerusalem, acha­ cdificada de novo, augmentada e emhellc-
rei minha alegria no meu povo: nào se zada, e que se reedificará o templo. Os
ouvirão mais vozes lamentosas, nem tristes millenarios, marcavam até o logar onde
gritos: elles edificarão casas, e habital-as- um c outro seriam recdificados, e a exten­
hão, plantarão vinhas e comcr-ihos-hào seus são que se lhes daria; diziam que as mu­
fructos: não lhes succederá.edificar casas, ralhas da sua Jerusalem seriam feitas pe­
e outrem habital-as, nem plantar vinhas, e las nações estrangeiras e conduzidas pelos
outrem comer-lhes os fruetos: porque a seus reis; que tudo o que era deserto, e
vida do meu povo igualará a das grandes principalmcnte o templo, seria revestido
arvores, e as obras de suas casas serão de de cyprestes, de pinheiros c de cedros; que
grande duração. as portas da cidade estariam sempre aber­
Meus eleitos não trabalharão debalde, e tas, que levariam alii de dia e de noite to­
não crearão filhos que lhes causem pesares, da a sorte de riquezas: applica vam a esta
porque serão a raça bemdita do Senhor, e Jerusalem o que se diz no capitulo 21 do
seus pequenos filhos sel-o-hão como elles. Apocalypse, e ao templo tudo o que se es­
O lobo c o cordeiro irão pastarjuntamente; creveu em Ezechicl: c alli onde diziam
o leão e o boi comerão a palha, e o pó se­ que Jesus Christo reinaria mil annos so­
rá o alimento da serpente; elles não noci- bre a terra, d’um reinado corporal, c que
varão nem matarão em toda a minha mon­ durante estes mil annos, os sanctos, os pa­
tanha sancta, diz n Senhor.2 triarchas e os prophetas viveríam com elle
em um contentamento perfeito: é alli que
esperavam que Jesus Christo restituiria
1 Epiph. Hcer. 80. Theod. Hist. Eccles.,aos seus sanctos o centuplo do que tinham
I. 4, c. II. Auff. de H(erestJ c. 57. Photius,
Bibliot. Co d. 52. Isaice, c. 55, v. 47. 1 Ezcchielj c. 37, v. 2, 25, 26.
MON 711
deixado por ellc; alguns pretendiam que justos reinarão durante mil annos sobre a
os sanctos passariam este tempo cm fes­ terra com Jesus Christo. Julgou-se que es­
tins; c que mesmo na bebida c na comida te apostolo não havia feito mais do que ex­
liriam muito além dos limites d’uma justa plicar o que Ezcchicl tinha prcdicto; mui­
moderação, c se entregariam a excessos tos christãos supprimiram d’este reino tem­
incríveis: diziam que seria n’e5te reino poral a voluptuosidade que os christãos
que Jesus Christo beberia o vinho novo de grosseiros faziam entrar na felicidade dos
que fallára na ceia: pretendiam ainda que sanctos: é assim que Papias explicava o
haveria casamentos, ao menos para aqucl- capitulo 21 do Apocalypse.
les que vivessem aiuda na vinda de Jesus Esta opinião, despojada das idéias gros­
Christo; que nasceríam meninos; que to­ seiras com que os christãos carnacs a ti­
das as naçòes obedeceríam a Israel; que nham sobrecarregado, foi adoptada por
todas as creaturas serviríam os justos com muitos padres, tacs foram S. Justino, S.
uma inteira' promptidão; que haveria com- Ireneo, etc.
tudo guerras, triumphos, victoriosos c ven­ 0 grande numero dos authores eccle­
cidos, a quem se faria soíTrcr a morte; pro- siasticos c dos martyres, que seguiram a
mettia-se n’esta nova Jerusalem uma abun­ opinião dos millenarios, fez com que S. Je-
danda- inesgotável d’ouro, .do prata, d’ani- ronymo não a condemnasse absolutamente;
macs, de toda a sorte de bens, c gcralmen- clle*antcs quer reservar todas essas cousas
tc de tudo o que os christãos, similhantes para o juizo de Deus, e pcrmitlir a cada
aos judeus, c que nào buscam senão a vo- um seguir seu parecer; o que não impede
luptuosidade do corpo, podem imaginar c d’elle a rejeitar como uma falsidade con­
desejar; accrescentavam a isto que seriam traria á Escriptura, como um conto tão
circumcidados; que haveria um sabbado perigoso quanto ridiculo, c que se torna
perpetuo; que se immolariam victimas, e um principio para aquelles que lhe ajun-
que todos os homens viríam adorar a Deus tam fé. S. Philastro qualifica-a até de he­
em Jerusalém, uns todos os sabbados, ou­ resia. Os orientaes, escrevendo contra S.
tros todos os mezes, e os mais afastados Cyrillo, tractam de fabulas c de tolices os
uma vez no anno; que se observaria toda mil annos d’Apollinario; e S. Cyrillo res
a lei, e que em vez de se transformarem os pondendo-lhes, declara que ellc não segu
judeus em christãos, estes se transforma­ de modo algum a crença d’Apollinario;
riam em judous.-É por este motivo que S. maior parte dos padres combateram cs
Jcronymo chama frequentemente á opinião erro, que não tinha já partidários conhec
dos millenarios, uma tradição c uma taboa dos no tempo de S. Jcronymo e de Sanei
judaica, c aos christãos que a crêem, chris­ Agostinho.1
tãos ajudiados, ou meio judeus. Esta opinião .renovou-sc entre os pietis-
Contavam maravilhas da fertilidade da tas d’Allemanha.2
terra, a qual, segundo elles, produziría to­ f MOXgxjiEij^vs—Ilereticos que não reco­
das as cousas em todos os paizes, e que nheciam senaoum a só vontade e uma só
por conseguinte não haveria necessidade operação cm Jesus Christo.
de traficar; que depois que passasse o rei­ Este erro foi uma consequência do nes-
no de mil annos, o diabo reuniría os povos torianismo e do eutychianismo: vamos exa­
da Scythia notados na Escriptura, sob o minar sua origem *c seus princípios, seus
nome de Gog c de Magog, os quacs com progressos e seu fim.
outras naçòes infiéis, retidas até então nas
extremidades da terra, viriam, solicitados DA ORIGEM E DOS PRIXCIPIOS
pelo demonio, atacar os sanctos na Judeia, DO MOXOTHELISMO
mas que Deus os suspendería e os mataria
por meio d’uma chuva de fogo, depois do
que os maus resuscitariam; que portanto Nestorio, para não confundir cm Jesus
este reino de mil annos, seria seguido*da Christo a natureza divina e a natureza hu­
resurreição geral c eterna, e do juizo, e mana, havia sustentado que eram de tal
que então se cumpriría a palavra do Sal­ sorte distinctas, que formavam duas pes­
vador, que não- haverá matrimonio, mas soas.
que seremos iguacs aos anjos, porque se­ Eutychcs, pelo contrario, para defender
remos os filhos da resurreição. a unid*ade da pessoa em Jesus Christo, ha-
Parece que Corintho fez vogar esta opi­
nião, que lisongeia muito a imaginação, 1 Vid. Tillemont, t. 2, art. Millenarios,
para não ter partidários: creram vêl-a no pag. 300.
Apocalypse de S. João, que diz—que os 2 Stolcman Ixxicon.
712 MON

via dc tal sorte unido a natureza divina e O monolhelismo tem, pois, por base a
a natureza humana, que as confundira. dogma da unidade pessoal de Jesus Chris­
A Igreja tinha decidido contra Nestorio to, que a Igreja definira contra Nestorio,.
que havia uma só pessoa cm Jesus Chris­ c a impossibilidade de conceber muitas ac­
to, c contra Eutyches que havia duas na­ ções ou muitos agentes, onde não ha senão
turezas: todavia havia ainda nestorianos uma pessoa: este erro reduz-se a esto ra­
c eulychianos: os eutychianos pretendiam ciocínio.
que não se podia condcmnar Eutyches Não pódc haver n’uma só pessoa senão
sem renovar o nestorianismo, c sem admit­ um só principio que quer, que se deter­
ti r duas pessoas em Jesus Christo. Os nes­ mina; porque sendo a pessoa um individuo
torianos, pelo contrario, sustentaram que que existe em si mesmo, que contém um
não se podia condemnar Nestorio sem principio d’aceão, que tem uma vontade,
cahir no sabellianismo, c sem confundir, uma intelligencia distincta da vontade e
como Eutyches, a natureza divina c a na­ da intelligencia d outro qualquer principio/
tureza humana, e sem fazer d’cilas uma só é claro, dizem os monothelitas, que se não
substancia. podem suppôr muitas intelligencias e muitas
Toda a actividado do espirito se dirige a vontades distinctas, sem suppôr muitas pes­
este ponto capital, cuja decisào parecia de­ soas: ora a Igreja estatuo que não ha cm
ver reunir todos os partidos: procurou-se Jesus Christo senão uma só pessoa; não-
os meios d'explicar como com efleito estas ha, pois, uma só vontade, uma só intelli­
duas naturezas compunham uma só pes­ gencia: a natureza divina e a natureza hu­
soa, posto que fossem mui distinctas. mana são, pois, de tal sorte unidas em Je­
Julgou-se resolver esta difficuldade sup- sus Christo, que elle não tem duas' acções,
pondo que a natureza humana era rcal- duas vontades; porque então teria dous
mente distincta da divina; porque lhe era princípios activos e duas pessoas.
de tal modo unida, que não tinha acçào Os catholicos respondiam aos monothe-
iropria; quèoverho era o unico principio litas: l.°, que havia em Deus tres pessoas
clivo cm Jesus Christo; que a vontade o uma só vontade, porque elle não tinha
umana éra absolutamenlò passiva, como senão uma só natureza, que por consequên­
.m instrumento nas mãos do artista. cia era da unidade da natureza que era
Eis em que consiste o monotholismo, mister concluir a unidade da vontade, e
que, como se vê, é tanto em sua origem não da unidade da pessoa.
um ramo do eutychianismo, como um ra­
mo do nestorianismo: mas que no entan­ em Jesus Christo, porque não havia senão
to harmonisa melhor com o eutychianis­ a natureza divina, que, como senhora, que­
mo: é por isto que foi adoptado pelos eu^ ria e obrava, mas que a natureza c vonta­
tychianos, porém é mister não confuudil-o de humana não obravam propriamente, e
com o eutychianismo. 1 não eram consideradas senão como pura-
mente passivas, dc sorte que não queriam
1 per si mesmas, c que não queriam senão o
E/fectivamente os moiiolhelitas rejeita­
vam o erro dos eulychianos; não negavam que a vontade divina lhes fizesse querei'; c
que houvesse duas naturezas em Jesus Chris­ por isso que elles diziam que havia uma sd
to e d'alguma sorte duas vontades, a saber: energia em Jesus Christo. (Vid. as cartas
a vontade divina e a vontade humana; mas de Cyro, de Sergio e de Honorio nas actas do
diziam que a vontade humana de Jesus sexto concilio geral, act. 12 e 13. Collo­
Christo não era senão como um orgão, ou quium Pyrrhi cum. Maximo, apud. JBaron.,
como um instrumento de que a vontade di­ t. 8, pag. 691.) E assim que Suarez de
vina se servia, de sorte que a vontade hu­ Lugo, e muitos outros theologos receberam
m ana de Jesus Christo não queria, nem fa- o monothelismo, e esta opinião me pareceu
z a nada per si mesma, e não obrava senão muito melhor fundada que a dos theologos
como a vontade divina a movia e a impel- que’olJiam o monothelismo como um ramo
lia, como quando um homem tem n a sua do eutychianismo. {Vid. sobre esta ultima
mão um martello e bate com elle; nao se opinião.Petau, Dogmat. Theol., t. 5, l. 8,
attribue propriamente o golpe ao martello, c. k.)
mas á mão que o fez mover e obrar. Provam sufficientemente que o monothe­
Ha todavia esta differença, que o homem lismo conduz ao eutychianismo, e que é por
e o martello que ferem não são menos que estas consequendas que o combateram; po­
um a só e mesma pessoa. rém os monothelitas negavam estas conse­
Os monothelitas diziam também que havia quendas, e não julgavam que sua opinião
só uma vontade pessoal e uma só operação conduzisse a ellas.
MON 713
Dc feito, se a unidade da pessoa trazia bém se devem sempre conceber todas as
•comsigo a unidade da vontade, a multipli­ operações da divindade, c não fazendo por
cidade das pessoas traria pelo contrario a meio d’esta união mais do que um só e o
multiplicidade dc vontades, e seria preciso mesmo operante, se me é licito fallar as­
reconhecer em Deus Ires vontades, o que sim.
c falso. Por conseguinte estas operações são ado­
2.° É essencial á natureza humana ser ráveis do modo como a humanidade de
capaz de querer, d’obrar, de sentir, de co­ Jesus Christo o é; isto é, que assim como
nhecer, de ter conhecimento de sua exis­ se adora pela mesma adoração o Verbo
tência; se não houvesse cm Jesus Christo feito carne, assim também se* adora pela
senão uni só principio que sentisse, que mesma adoração o Verbo operante, por
conhecesse, que quizesse, e que tivesse co­ sua dupla natureza, divina c humana. 1
nhecimento dc sua existência e dc suas
acções, a alma humana seria aniquilada c
confundida na natureza divina, com a qual DO PROGRESSO DO MOXOTIIEL1SMO
ella nào seria senão uma substancia, ou se­
ria mister então que a natureza lmmana
fosse só, c que por conseguinte o Verbo Vimos que o monothelismo se apoiava
não se tivesse incarnado. O monothelismo n'este principio especial—que não se podem
que suppõe apenas uma só vontade em Je­ suppôr duas operações onde não ha senão
sus Christo, rccahe, pois, no cutychianis- um principio activo: que por consequência
mo, ou nega a incarnação. 1 não ha mais que uma operação cm Jesus
Portanto, ainda que não houvesse em Je­ Christo, pois que elle só tem uma pessoa.
sus Christo senão uma só pessoa que ope­ Refuta va-se solidamente este principio, c
rasse, clle todavia possuo muitas opera­ refutava-se sobretudo pelas consequências
ções; c as duas naturezas que compoem falsas a que conduzia. Mas os monotheli-
sua pessoa, e que concorrem a uma ac­ tas negando estas consequências, e preten­
ção, teem cada uma suas operações, c é dendo que se lhe reconhecessem duas von­
por isso que se chamam thcandricas, ou tades, devor-se-iam suppôr dous principio?
divinamente humanas. d’acção e duas pessoas, como Nestorio
As acções thcandricas não são, pois. uma ensinara.
só operação, são duas operações, uma di­ 0 monothelismo e a opinião dos catht
vina, e outra humana, que concorrem a licos olTereceram-se, pois, primeiro com
um mesmo cffeito; por conseguinte, quando duas opiniões theologicas: n’estc estado dc
Jesus Christo fazia milagres por meio do disputa cada um fazia valer sua opinião
seu contacto, a humanidade tocava o cor­ pelas consequências vantajosas que d'ella
po, e a divindade curava-o. se tiravam; e os mouothelitas pretendiam,
Eis a verdadeira noção das acções thean- d’uma maneira bastante especiosa, que sua
dricas: póde-sc todavia dizer, n’um sentido opinião era própria a procurar a reunião
mais generico, que todas as acções c todos dos nestorianos c dos eutychianos na Igreja.
os movimentos da humanidade de Jesus De feito, o monothelismo, que suppunha
€hristo eram thcandricos, isto é, acções di­ que a natureza humana era de tal modo
vinamente humanas, não só porque eram unida â natureza divina, que lhe era su­
acções d’um Deus que recebera uma di­ bordinada em todas as acções, e que não
gnidade infinita da pessoa do Verbo, que obrava per si mesma, mas pela vontade di­
a s operava por sua humanidade, mas ain­ vina, parecia levantar as difficuldadcs dos
da porque a humanidade de Jesus Christo nestorianos e dos eutychianos, pois que
nada operava, só separadamente; ella era suppunha em Jesus Christo duas naturezas
sempre governada c regida pela impressão mui distinctas, e um só principio d’acção,
do Verbo a quem servia d’instrumento. ou um só ente activo. N’uma palavra os
Se a humanidade de Jesus Christo que­ nestoriauos não podiam arguir aos mo-
ria qualquer cousa, o Verbo queria que nothelitas o confundir as duas naturezas,
ella a quizesse, e a impellia a querer, con­ pois que as suppunham distinctas e subor­
forme o decreto dc sua sabedoria: da mes­ dinadas: por outro lado, os eutychianos
ma sorte, pois, que se deve conceber sem­
pre a humanidade de Jesus Christo como 1 Nicole, sobre o symbolo, terceira tn-
junta sua divindade, e como fazendo só strucção. Vid. Damascm. de duabus in
compelia uma mesma pessoa, assim tam­ Chrish voluntatibus. Vasquès Vol. 5, t. I.
Disp. 73, c. 1. Combesis, Hist. Hcrres. Mo-
not., Petau, Dogm. Theol, t. 5, l. 8.
714 MON
não podiam arguir ao monothelismo o sup- Oriente, mas foi constantemente rejeitada
pôr com Nestorio duas pessoas em Jesus c condemnada pelos papas c pelos bispos
Christo, pois que nào suppunha n’elle se­ dc Bysanço, da Numydia, da Mauritania c
não um só principio activo, ou uma só ac­ dc toda a Africa, que se reuniram e ana-
ção. thematisaram o monothelismo.
Eis, me parece, o lado favoravel sob o Heraclius não havia previsto esta rebel-
qual os monothelitas offereciam seu pare­ lião, temeu-lho as consequências, retirou a
cer, c foi sob esta apparcncia que Hera- sua ectese, e declarou que esse edito era
clius o encarou: como este principe cuida­ obra de S ergio.1
va em reunir as partes que haviam despe­ Cyro, dc Jerusalém, e Sergio, de Con-
daçado a Igreja, e cm terminar as conten­ stantinopla, tinham morrido, mas haviam
das que tinham despovoado o império, ma­ sido substituídos por Pedro c Pyrrho, dous
nifestou grande gosto pelo monothelismo, monothelitas zelosos; c assim se sustenta­
e quiz que lh’o ensinassem. 1 va o monothelismo no Oriente.
Cyro, patriarcha d’Alexandria, reuniu Heraclius não sobreviveu muito tempo á
um 'concilio, no qual fez determinar que sua ectese, e teve por successor Constan­
não havia senão uma vontade cm Jesus tino seu filho, que não reinou senão quatro
Christo. 2 mezes; foi envenenado pela imperatriz Mar-
Sophrone, bispo de Damasco, e depois tine, sua sogra: o senado descobriu o cri­
de Jerusalem, nào encarou o monothelismo’ me da imperatriz, c lhe fez cortar a lin­
or este lado, viu só n’esta nova decisão gua; cortaram o nariz a seu filho, e o se­
e Cyro um cutychianismo disfarçado; es­ nado elegeu Conslancio, filho dc Coustan-
creveu a Cyro, condemnou o decreto do tino, e neto dTIeraclius.
concilio d’Alexandria, e sustentou que ha­ Pyrrho foi suspeitado dc ter'participado
via duas operações e duas vontades em Je­ da conjuração dc Martine, fugiu para a
sus Christo, segundo as duas naturezas que Africa, c eíegcram cm seu logar Paulo,
existem n’elle; que não se podia sustentar que ainda era um monothelita, mas doce
que a natureza humana nao tinha acção, e moderado.
sem a .despojar de sua essência, sem a ani­ Constancio quiz sustentar a ectese ou a
quilar, e sem a confundir com a natureza exposição dc fó de seu avô; mas recebeu
divina. os deputados dos concilios d’Africa, que o
Cyro, c Sophrone escreveram para inte­ supphcavam quo não permittisso alguma
ressar cada um em favor da sua opinião, inlroducção nova na Igreja.2
a maior parte de pessoas quo elles podes- Os bispos d’Africa não estavam/pois, sob
sem, e se formaram dous novos partidos na o dominio do imperador, os serracenos
Igreja. tinham-se apoderado d’esta provincia, c
Sergio, patriarcha de Constanti nopla, re­ ameaçavam sem cessar o imperio de no­
uniu um concilio, em que se decidiu que vas invasões.
havia em Jesus Christo duas naturezas, e 0 patriarcha sentiu quanto seria perigo­
uma só vontade.3 so para o imperador alienar o espirito de
Cyro e Sérgio escreveram ao papa Ho­ seus vassallos, e perturbar o imperio, obri­
norio, que, prevendo as consequências d’es- gando-os a subscrever para a ectese; obri­
ta contestação, lhes aconselhou que não se gou Constancio a publicar uma fórmula de
servissem cios termos d’uma só vontade, fé, que podésse manter a paz na Igreja:
ou d’uma só operação, assim como tam­ esta fórmula foi celebrada sob o nome de
bém não dissessem que havia duas vonta­ o.
des. 4 imperador declarava n’este typo, gue
0 imperador Heraclius, authorisado pelo para conservar na Igreja a paz e *a uniuo,
concilio que Cyro e Sergio haviam reuni­ ordenava a todos os bispos, sacerdotes,
do, fez lavrar uma acta da decisão d’estes e doutores, que guardassem silencio sobre
concilios, na qual elle expunha a doutrina a vontade de Jesus Christo, e que não dis­
dos monothelitas, e que fosse por esta cau­ putassem, nem pró nem contra, para sa­
sa chamada Ectese. 3 ber se cm Jesus Çhristo havia uma, ou
A ectese foi recebida por muita gente no duas vontades.2
Logo que o typo foi conhecido no Occi­
1 T h eo p h a n a n . 20. Frideijj c. 65. dente, Martinho i fez reunir um concilio
2 Cone. 6. Act. II. Baron, ad an. 634.
3 Cone. 6. A ct. II. Baron, ad an. 634. 1 Theopano, c. 30.
^ Ibid. 2 Cedron, Theoph. Baron, ad an. 616.
5 A palavra ectesis significa exposição. 3 Anast. Baron, ad an. 648.
MON 715
do conto c cinco bispos, que, depois de te­ rcccbem-sc as definições dos cinco primei­
rem examinado e discutido a qucstào do ros concilios gcraes,*declara-sc que ha cm
monolhelismo, condemnaram este erro, a Jesus Christo duas vontades e duas opera­
cclcse d’IIeraclius, c o typo de Conslan- ções, e que estas vontades se acham em
c io .1 uma só pessoa, sem divisão, sem mistura,
O decreto do concilio reunido pelo papa c sem mudança; estas duas vontades nào
Martinho i, irritou Conslancio; este impe­ são contrarias,* mas que a vontade huma­
rador olhou-o como um altentado á sua na foge da vontade divina, e que lhe é sub-
autlioridade, exilou Martinho para Cherso­ mettida: prohibe-se ensinar o contrario,
neso, c fez eleger em seu logar Eugênio, sob pena de deposição para os bispos e
que aberta mente nào consentiu no erro para os clérigos, e d'cxcommunhào para
dos monolhelitas, que mudaram de lingua­ os leigos. A definição do concilio foi una­
gem, c disseram que havia cm Jesus Chris­ nime, e só Macario se oppôz. 1
to uma c duas naturezas. 0 imperador, logo apoz o concilio, pu­
Emquanto que Constando luctava assim blicou um edito contra os monothelitas,
contra a inílexivcl firmeza dos papas cdos estabeleceu a pena de deposição, ou antes
bispos, os scrraccnos penetravam de todas de deportação contra os clérigos c contra
as partes no imperio; e o imperador, que os monges;* a de proseripção e de privação
nào tinha forças capazes de resistirem, era d’pmpregos, contra as pessoas constituídas
obrigado a pedir e a comprar a paz: mor­ em cargos ou dignidades, c a de expulsão
reu deixando a Igreja dividida, o imperio de todas as cidades, contra os particula­
repartido em facções, e atacado por um res.
numero infinito de inimigos. Justiniano, que succcdeu a Constantino,
confirmou as leis de seu pac contra os
monothelitas: tendo sido expulso por Leon-
DA EXTIXCÇÃO DO MONOTI1ELISMO ce, e restabelecido por Trebellius, quiz vin­
gar-se dos habitantes de Chersoneso, que
o haviam maltractado durante o seu exilio
Constantino, filho de Conslancio, repri­ entre elles: fez passar a maior parle a fio
miu os inimigos do imperio, e trabalhou d’espada; mas alguns dos ofíiciaes tendo-se
em restabelecer a paz e a união na Igreja. refugiado no paiz dos Chazari, obrigaram
j\7ão havia já communhão alguma entre a estes povos a vingal-os, uniram-se a elles,
igreja de Constantinopla e a de Roma: pa­ formaram um exercito, atacaram as tropas
ra fazer cessar este scisma, Constantino de Justiniano, derrotaram-nas, e proclama­
fez convocar o sexto concilio geral, que é ram Philipicus imperador.
o terceiro de Constantinopla: principiou a Philipicus marchou sobre Constantino-
funccionar no terceiro anno do imperio de
• Constantino, anno 680. 1 O concilio condemnoú Sergio, Pyrrho,
Os monolhelitas defenderam vivamente raulo e o papa Honorio, como monotheli­
sua opinião, e foram refutados solidamen­ tas, ou como fautores do monolhelismo: es­
te; Ma cario, bispo d’Antiochia, defendeu o te ultimo ponto foi muito disputado pelos
monolhelismo com todos os recursos do es­ defensores da infallibilidadc do papa. Esta
pirito e da erudição; mas sempre com boa discussão não pertence ao meu assumpto;
fé: protestou que antes se deixaria fazer achal-a-hão tractada pelo papa Alexandre,
em pedaços, do que reconhecer duas von­ Dissert. 2, in scecuhun 7, em Cambresis,
tades oirduas operações naturaes em Je­ Historia monothelita; cm Bellarmin, de
sus Christo: justificava sua resistência por summo pontifice, l. 4, c. 11, em Gretsen,
uma só das passagens dos padres, que se de summo pontifice, l. 4, c. 13, em Onuphre,
examinaram, c que se acharam pela maior in Honor, em Schotus, in Cod. 20, Bibliot.
'parte troncadas c alteradas: portanto a fir­ Photii; em Baron, em Binius, notis in vi­
meza, ou antes a obstinação, não é sempre tam et Epist. Honorii Paper., in sextum con­
o efTeito da convicção, e uma prova de boa cilium cecumenicum; in vitam Agathonis,
fé e de sinceridade nos hcreticos. Paper; in vitam Leonis; cni Pctau, Dogm.
0 concilio, depois de ter esclarecido to­ Theol. t. 5, /. 1, c. 19, 213; em Dupin, Bi­
das as difficuldades dos monothelitas, pro- bliot., t. 5, em uma Dissertação sobre o
pôz uma definição de fé, que foi lida e ap- monothelismo, por M. o abbade de Corgne.
provada por todo o mundo. Os protestantes tractaram o mesmo objecto;
N’csta definição do sexto concilio geral, Chamier, t. 1. Forbesius, t. 2, l. 5. Spa-
nhein, introd. ad Hist. Sacram., t. 2. Bas-
1 Anast. Baron, ad an 648. nage, Hist. da Igreja.
716 MON
pia, onde nâo achou resistência alguma: recompensas temporaes; parece que Deus
d’alli ordenou que lhe enviassem a cabeça tractaria então o genero humano como se
de Justiniano, prisioneiro. 1 tracta uma crcança, que se faz obedecer
Philipicusnão tomou logo posse do thro­ ameaçando-a com a palmatória, ou promet-
no, senão esposando abertamente a causa tendo-lhe confcitos: elle enviou cm seguida
dos monolheiitas; convocou um concilio de prophetas, que elevaram o espirito dos is­
bispos, todos monothclitas de coração, e raelitas.
por consequência mui dispostos a revogar Quando os prophetas fortificaram, por
o decreto do sexto concilio geral. assim dizer, a infaneia dos israelitas, e co­
O imperador determinou-se a esto parti­ mo que os elevaram até á juventude, Jesus
do por causa de um monge monothelila. Christo descobriu aos homens os princípios
que, a acreditar o que diz Cedrenus. lhe da religião, mas por graduações, o sempre
havia predicto outr’ora que elle chegaria com uma especie d’economia, da qual a
ao imperio, c que lhe promettia ainda um Providencia parece ter-se feito uma loi na
r.cino longo c feliz se quizesse abolir a au- dispensarão das verdades reveladas: Jesus
thoridade e o decreto do sexto concilio, c Çhristo dizia muitas vezes a seus discipu­
estabelecer o monotheiismo: o imperador, los que tinha ainda cousas importantes a
crédulo, excitou, pois, novas perturbações dizer-lhes, mas que ellcs não estavam ain­
na Igreja e no imperio, para abolir o sex­ da em estado de as entender.
to concilio. Depois de se haver assim preparado,
A predicçào do monge não foi justifica­ prometteu enviar-lhes o-Espirito Sancto, c
da pela execução. subir ao céo.
Philipicus deixou assolar as terras do Os apostolos e seus successores espalha­
imperio, durante o tempo que se occupa va ram a doutrina de Jesus Christo, e até a
das contendas da religião; tornou-se odio­ desenvolveram; conduziram por este meio
so aos povos, rebentaram-lhe os olhos,^e a Igreja ao grau de luz que devia esclare­
deram o império a Anastácio, que o não cer os homens bastante para que Jesus
desfruetou muito tempò; foi desthronado Christo enviasse o paracleto, e para que o
poi\ Theodosio, que por seu turno o foi Espirito Sancto enviasse aos homens as
por Leão, a quem Anastacio tinha feito ge­ grandes verdades, que eram reservadas pa­
neral de todas as tropas do imperio. ra a maturidade da Igreja,
Este Leão, é Leão Isauriano, que quiz Eu annunciarei que esta época é che­
abolir as imagens, e foi chefe dos icono­ gada, se dizia Montan, c direi que sou o
clastas: véde este artigo. A questão do cul­ propheta escolhido pelo Espirito Sancto
to das imagens foi olvidar o monotheiismo, para annunciar aos homens essas verda­
que comtudo ainda teve alguns partidários, des fortes que elles não estavam em esta­
que se reuniram ou confundiram com os do d’ouvir na juventude da Igreja: fingirei
eutychianos. extasis, annunciarei uma moral mais aus-«
jiQNTAN— era da aldeia d’Ardaban, na tera que a que se practica, direi que sou
Phr^grãTpouco tempo depois de sua con­ entre as mãos de Deus como um instru­
versão. formou o projecto de tornar-se o mento de que elle tira sons quando quer,'
chefe do Christianismo. e como quer: por este meio minha quali­
Notou que Jesus Christo na Escriplura dade de propheta revoltará menos o amor
tinha promcltido aos christàos enviar-lhes proprio dos outros, não serei obrigado a
o Espirito Sancto; fundou sobre esta pro­ justificar a minha doutrina pelo raciocínio e
messa o systema de sua elevação, e pre­ pela discussão, não serei mesmo constran­
tendeu ser o propheta promettido por Je­ gido a practicar a moral quo ensinar, tudo.
sus, Christo.2 obedecerá aos meus oráculos, e terei na
E facil, dizia Montan, fazer-se vér que Igreja uma authoridade suprema. 1
Deus não quiz manifestar logo ao mesmo Tal é o plano do comportamento que o
tempo todos os desígnios da sua Projiden- ambicioso Montan formou, e que empre-
cia sobre o genero humano; elle não dis­ hendeu executar. Elle pareceu agitado por
pensa, senão por graduações, e com uma movimentos extraordinarios: muitos dos
especie d’eeonornia, as verdades e os pre­ que o escutavam o tomaram por um pos­
ceitos que devem cleval-o á perfeição: deu sesso ou por um insensato; outros o julga­
ao principio leis simples aos israelitas, fa- ram verdadeiramente inspirado: uns o ex-.
zia-lh’as observar por meio de penas c de citavam a proplietisar, emquanto que ou­
tros lhe prohibiam a falia.
1 Anno 711.
2 Euseb., I 5, c. 16. i Epiph. Hwr. 98.
MON 717
Os primeiros pretendiam que o enthu- pias,condemnaram-nas, e privaram da com-
siasmo de Montan nào era senão um furor munhão os que eram seus authores.
que lhe tirava a liberdade da razão, o que Os montanistas, assim separados da com-
não se encontrava em propheta algum ver­ niunhão da Igreja, formaram uma nova
dadeiro do Antigo ou do Novo Testamento; sociedade, que era principalmentc gover­
pelo menos este parecer era conforme a nada por aqucllcs que se diziam prophe­
crença dos padres: outros, pelo contrario, tas: Montan foi o seu chefe, e sc associa­
sustentavam que a prophccia vinha d’uma ram a este cargo Priscilla c Maximilla.
violência espiritual, que chamavam uma Os montanistas perverteram inteiramen­
loucura ou uma demcncia; era esta a opi­ te a igreja de Thiatira; a religião catholica
nião de Tertulliano. 1 foi alli extincta durante cerca de doze an­
Montan dizia que não estava inspira­ nos. Os montanistas encheram quasi toda
do senão para ensinar uma moral mais a Phrygia, espalharam-se na Galaria, esta-
pura c mais perfeita que a que se ensina­ bel.eceram-se em Constantinopla, penetra­
va e so pracíicava. Não se recusava na ram até á Africa, e seduziram Tertulliano,
igreja o perdão aos grandes crimes, e aos que se separou todavia d’cllcs no fim, mas
peccadores publicos, quando tinham feito ao que parece, sem condcmnar seus erros.
penitencia; Montan pregou que era preci­ Os montanistas concordavam todos em
so ^recusar-lhes para sempre a commu- reconhecer que o Espirito Sancto havia
nhão. e que a Igreja não tinha o poder de inspirado os apostolos, mas distinguiam o
os absolver. Obscrvava-sc a quaresma, dif­ Espirito Sancto do paracleto, e diziam que
ferentes jejuns na igreja; Montan prescre­ este havia inspirado Montan, e dito por
veu tres quaresmas, jejuns extraordinarios sua bôea cousas muito mais excellentes
c duas semanas de xerophagia, durante as que as que Jesus Christo tinha ensinado
quaes era mister não só abster-se de vian­ no*Evangelho.
das, mas também de tudo o que tinha cho­ Esta distineção do paracleto e do Espi­
rume. A Igreja nunca havia condcmnado rito Saneio conduziu um discipulo de Mon­
as segundas núpcias; Montan considerou-as tan, chamado Echines, a rellectir sobre as
como adultérios: a Igreja nunca tinha olha­ pessoas da Trindade, e a procurar sua dif-
do como um crime o fugir á perseguição; ferença; e Echines cahiu no sabellianismo.
Montan prohibiu fugir, ou tomar medidas Estes dous ramos dividiram-se em segui­
para se furtar ás investigações dos perse­ da cm differentes pequenas sociedades, que
guidores. 2 só differiam em algumas prácticas ridicu­
Os homens albergam no fundo de seu las, que cada um dos prophetas pretendia te­
coração um certo sentimento de respeito rem-lhe sido reveladas: estas seitas tiveram
para* com a austeridade dos costumes; el- a sorte de todas as sociedades fundadas
les sentem não sei que prazer em obedecer sobre o cnthusiasmo, c separadas sobre a
a um propheta; o maravilhoso da prophe- unidade da Igreja: sua impostura foi des­
cia agrada á imaginação, e a imaginação coberta, tornaram-se odiosas, ridiculas, e
nos ignorantes toma facilmente convulsões extinguiram-se. Taes foram as seitas dos
ou contorsões por extasis sobrenaturaes; tascordurgitas,dosascadurpitas, dos passa-
por conseguinte nào é d’admirar que se lorinchitas, e dos artotyritas. Os montanis­
adoptassem as idéias de Montan, e que elle tas foram condemnados n’um concilio de
tivesse ao principio sectarios d’ellas. Hiéraples, com Theodoro, o surrador. 1
Duas mulheres, conhecidas sob o nome Montan deixou um livro de prophecias;
de Priscilla e de Maximilla, deixaram seus Priscilla e Maximilla também deixaram al­
maridos para seguirem Montan; bem de­ gumas sentenças por escripto.
pressa ellas prophctisaram como elle, e Miltiades e Apollonio escreveram contra
viu-se dentro em pouco tempo uma multi­ os montanistas; só nos resta de suas obras
dão de prophetas montanistas de um e ou­ alguns fragmentos.2
tro sexo. 3 Éra facil destruir toda a doutrina de
Depois de muitas considerações e de um Montan.
longo exame, os bispos d’Asia declararam l.° Nada se via em Montan que fosse
as novas prophecias falsas, profanas e im- acima dos estratagemas ordinários dos im­
postores; as convulsões e os extasis não de­
í Euseb.y l. Si c. 17. Athan. Or. 4. Tcrl. mandavam senão exercício e destreza; são
de Monogamia.
2 Teri, de Pudicia, de Monogam. de Je­ 1 Itligus, Dissert. de Hceres., $wc. 2,
junio. c. 23.
3 Euseb.j l. 5, c. 3. 2 Euscb., Hist. Eccles., I. õ, c. 18.
46
718 MOS
algumas vezes o efieito do temperamento; ma para prescrever jejuns extraordinarios-
com imaginação viva e espirito fraco, pó- não pertence senão aos primeiros pastores
de-sc acreditar inspirado, c persuadil-o fazerem similhantes leis: foi este o motivo
aos outros; a historia fornece mil exem­ porque se condcmnou Montan a esto res­
plos d’estas imposturas. peito, e não porque a Igreja juigasse que
2. ° E falso o dever sempre haver pro­ cila nao podia impedir a lei do jejum: é
phetas na Igreja, ou que clles sejam neces­ certo que seria aniquilar toda a authori­
sarios para o desenvolvimento das verda­ dade legislativa entre os christãos recusar
des do Christianismo, pois quò Jesus Chris­ á Igreja esta authoridade.
to prometteu á sua Igreja de a favorecer Demais, a práctica do jejum e da qua­
sempre no seu espirito. resma remontam aos primitivos tempos da
3. ° Os prophetas annandam os oráculos Igreja: nada ha, pois, mais injusto do que
divinos d'esta sorte: o Senhor disse. Em a arguição que os protestantes fazem aos
Montan, pelo contrario, c Deus que falia catholicos por renovarem a doutrina dos
immcdiatanicnle, de modo que parece que montanistas, fazendo uma lei da observân­
Montan é o mesmo Deus. cia da quaresma.
4. *° Montan c seus primeiros discipulosA propria doutrina de Montan prova
levavam uma vida absolulamente contraria que a quaresma estava estabelecida no
á sua doutrina. tempo d’cste heresiarcha: Montan não te­
5. ° Elles pretendiam provar a verdade ri a prescripto tres quaresmas, como uma
de suas prophecias pela authoridade dos maior perfeição, se não achasse a quares­
martyres, c os catholicos lhes provavam ma estabelecida; assim como não conde-
que Themison, olhado por elles como um mnaria as segundas núpcias, se não achas­
martyr, sozinha escapado da prisào dando se alguns authores ecclesiasticos, que, com­
dinheiro: que um outro, chamado Alexan­ batendo os gnosticos, pareciam desappro-
dre, não foi condemnado como christào, var as segundas núpcias; da mesma sorte,,
mas sim por causa de seus roubos, e que não faria uma lei de recusar a absolvição
nenhum d’elles foi perseguido pelos pa­ aos grandes peccados, se não tivesse visto
gãos, ou pelos judeus por causa da reli­ na historia alguns factos, pelos quacs pa­
gião. 1 recia que se havia recusado, em algumas
6. ° Montan tirava á Igreja o podercircumstandas,
de reconciliar áquelles que ti­
remir todos os peccados, o que era con­ nham cahido na idolatria: o espirito hu­
trario ás promessas de Jesus Christo, e mano jamais conunetleu faltas na serie de
á crença universal d’ella; porque quan­ seus erros, nem na descoberta de verda­
do fosse verdade que se tivesse algumas des, quer prácticas, quer especulativas.
vezes recusado a absolvição áquelles que Mo s c o v i t a s , r u s s o s ou r o x o l a n s — eram
haviam cahido na idolatria, ou aos’homici- sem' a F tes^ tn scienciasre'subrliersos no
das, não era porque se duvidasse do po­ paganismo mais grosseiro no reinado do
der da Igreja; era por um principio de se­ Rurich, que começou no anno 762. As
veridade de que a Igreja promettia usar, e guerras c as ligações d’estes povos com os
que não estava mesmo em uso em toda a imperadores gregos fizeram-lhes conhecer
parte.2 a religião christã, c pelos fins do 10.° sé­
7. ° Montan condemnava as segundas nú­ culo, Wolodomir, gran-duque dos mosco­
pcias, e as olhava como adultérios, o que vitas, se fez baptisar, o esposou a irmã dos
era contrario á doutrina expressa de S. imperadores Bazilio e Constantino.
• Paulo, e ao uso da Igreja. Os annaes da Rússia contam que Wolo­
8. domir, antes da sua conversão, era zeloso
° É um absurdo prohibir indistiricta-
nieDte a todos os christãos o fugir á perse­ adorador dos idolos, o principal dos quaes
guição; muitos sanctos tinham fugido para se chamava Perum. Depois do seu baptis­
não cahirem nas mãos dos perseguidores. mo, mandou-o lançar ao rio.
9. ° Montan não tinha authoridade algu- O patriarcha de Constantinopla enviou
á Rússia um metropolita, que baptisou os
1 Euseb., Hist. Eccles., /. 5, c. 18. doze filhos de Wolodomir, c n'um só dia
2 Sirmond. Hist. Pomit., c. Í. Albaspi- vinte mil russos. '
neuSt l- 2. Observ., c. 11, 15, 17. Morin, Wolodomir fundou igrejas e escolas; per­
L 9, de Pamif.j c. 20, sustentam que nunca correu cm seguida os seus estados com o
se tem recusado a absolvição aos grandes metropolita, para obrigar os povos a abra­
crimes, mesmo públicos, quando os culpa­ çarem o Christianismo: muitas provincias
dos se submettiam á penitencia nas grandes se converteram, e outras persistiram obsti­
igrejas. nadamente na idolatfia.
MOS 719
Desde esse tempo, a Moscovia conservou bispos e dos bispos, c fundou quatro gran­
sempre, sem interrupção, a religião chris- des conventos, para os quaes teve a habi­
tã-grega. Os gran-duques teem muitas ve­ lidade de accumular bens immensos, e que
zes tentado reunir-se á igreja romana: es­ lhe serviram para sustentar os seus quatro
te projecto renovou-se cm 1717, quando o metropolitanos, doze arcebispos, doze bis­
czar Pedro, o grande, viu a França, mas pos, e uma grande quantidade d’outrcs ec­
ficou sem eíTeilo. A occasiào d’csto proje­ clesiasticos que creou.
cto, a memoria dos doutores de Sorbona, e Nicon, depois d’estes estabelecimentos,
a resposta dos bispos de Moscovia, se acham mudou as leis ecclesiasticas, voltando-as cm
no tomo 3.° da Analysc das obras de M. seu proveito, sob pretexto de que as anti­
Boursicr, impressa cm 1753, c no tomo 2.° gas traducções estavam cheias de defeitos,
da Descriprão do imperio da Rússia, im­ o que occas*ionou as discussões c os scismas
pressa em 1757. na igreja da Rússia.
Tendo o Christianismo feito grandes pro­ Depois de ter reformado as leis da Igre­
gressos depois de Wolodomir, o numero ja, Nicon quiz ter assento com o czar no
dos arcebispos se augmentou ate sete. senado, e emittir seu voto na administração
Posto que os moscovitas recebessem a do Estado, sobre tudo nos negocios de jus­
religião dos gregos, clles fizeram algumas tiça, quando se tractasse de fazer novas leis,
mudanças no governo ecclesiastico e mes- sob pretexto de que o patriarcha Philaret
ino em sua doutrina. havia gosado d’estes mesmos direitos, e ha­
via tido uma especie d’inspecção geral so­
bre o estado.
DO GOVERXO ECCLESIASTICO Representou cm seguida ao czar que nem
DOS MOSCOVITAS lhe era conveniente declarar a guerra aos
seus visinhos, nemfazera paz com elles,sem
consultaro seu patriarcha, cujo dever era ter
Os moscovitas receberam dos gregos a cuidado na salvação do principe e de toda
religião christã: o patriarcha de Constan- a nação; que devia dar contas a Deus de
tinopla estabeleceu um metropolitano em todas as almas do estado, e que era até ca­
Novogorod, e n’outras cidades bispos, e sa­ paz d’auxiliar o czar por meio dos seus san­
cerdotes. 1 ctos conselhos; porém descobriu-se ao de­
0 metropolitano de moscovia foi declara­ pois que o verdadeiro motivo d’esta ultima
do patriarcha de toda a Rússia em 1588 representação, era que elle tinha tirado som-
pelo patriarcha de Constantinopla; e desde mas consideráveis ao rei da Polonia, para
este tempo houve patriarchas na Rússia procurar perturbar o estado por meio de sua
que foram reconhecidos pelos ^Alexan­ authoridade, c por outro lado para satisfa­
dria, d’Antiochia e de Jerusalem, e que go- zer á sua ambição e ao seu orgulho.
saram das mesmas honras que elles; mas O czar e os* senadores responderam a
era preciso que tivessem o suffragio das­ Nicon que se o patriarcha Philaret tinha
tes patriarchas, e que fossem confirmados sido consultado sobre os negocios tempo­
pelo de Constantinopla. rãos, não era por causa de sua dignidade
Um patriarcha da Rússia, chamado Ni­ ecclesiastica, mas porque era pac e tutor do
con, representou ao czar Alexis Michaelc- czar; que antes havia sido senador, empre­
witz que era inútil eleger d’alli por diante gado na embaixada da Polonia, e melhor
um metropolitano com os suffragios dos pa­ versado que os outros senadores nos nego­
triarchas orientaes, e fazer-lhesyér a confir­ cios estrangeiros; que depois de Philaret
mação; o czarapprovou o desígnio de Nicon, jamais se haviam consultado os patriarchas
que* escreveu ao patriarcha de Constantino­ sobre os negocios temporaes; que nenhum
pla que tinha sido elevado ã sua digni­ dos seus predecessores o havia exigido, e
dade pelo Espirito Sancto, e que não con­ que uma similhante innovaçào não podia
vinha que um patriarcha dependesse d ou ­ tender senão á ruina do estado.
tro: mudou ao mesmo tempo de titulo, e Nicon não quiz affrouxar nada em suas
cm logar. de se chamar mui sanctificado, pretenções; excommungou muitos senado­
como faziam seus predecessores, elle tomou res, forjou mil intrigas, e excitou o povo á
o nome de muito sancto. revolta. A carestia, tornando-se geral na
Nicon augmentou o numero dos arce­ Rússia, favoreceu seus disignios; o povo
mal contente depois d’algum tempo, e op­
1 Despcrição do imperio da Rússia, pelo rimido da miseria, se sublevou, e o fogo
barão de Slralemberg, t. 2, c. 9. Religião dos a rebellião não foi extincto. senão com o
Moscovitas, c .L sangue dos moscovitas.

720 MOS
O povo havia reentrado no dever, mas confirma
o aquella que lhe agrada. Ila lam­
patriarcha nào estava ainda domado, nào bem n’este synodo alguns membros tempo-
queria renunciar a nenhuma das suas pre- raes, como um procurador geral, um pri­
tenções, e não ousavam empregar contra meiro secretario, c alguns secretários em
ello* a violência e a força; o povo estava já segundo logar.
disposto á revolta, e o faccioso Nicon sou­ Quando se tracta de negocios d’impor-
bera conquistar para seus interesses um tancia, é preciso lcval-os perante o czar,
grande numero de senadores descontentes, no senado, onde em casos tacs o synodo
e podia re-submergir o estado em novas se dirige em corpo, e toma assento abaixo
desordens. do senador. O synodo tem também sob sua
O czar Alexis resolveu terminar esta direcção, sua secretaria de justiça, sua ca­
controvérsia por um synodo geral: fizeram- mara das finanças, e uma secretaria d’in-
se vir da Grécia, a dispensas do estado, tres strucção sobre as escolas c sobre a im­
patriarchas, vinte e sete arcebispos, e dez prensa.
prelados, aos quaes se juntaram cento e cin- O clero da Rússia mantem eiii cada go­
coenta ecclesiasticos da Rússia, em 1667. verno um arcebispo e alguns bispos.
O synodo tendo recebido c examinado as
queixas do czar, ordenou:
1. ° Que Nicon seria desauthorisado da D.ys SEITAS QUE SI3 FORMARAM
sua dignidade, e encerrado n’um convento, ENTRE OS MOSCOVITAS
onde vivería a pão e agua até o resto de
seus dias.
2. ° Que o patriarcha da Rússia seria elei­Separou-se da igreja da Rússia uma cer­
to, não separadamente pelos arcebispos, ta seita chamada steraiucrsi, ou os antigos
bispos e clero, mas conjuntamcntc com elles fieis, e que dá aos outros russos o nome
pelo czar e pelo senado; e que no caso que de roscolchiki, isto é, herético: esta seita
faltasse ao seu dever, quer tornando-se cul­ não se separou inleiramente senão no 16.°
pado de qualquer vicio grosseiro, quer d*ou- século, sob o patriarchado de Nicon, mas
tra cousa, seria julgado e punido pelo czar existiu muito tempo antes.
e pelo senado, segundo tivesse merecido. A maior parte d’estes sectarios não sa­
3. ° Que o patriarcha de Constantinoplá bem lêr nem escrever,'e são quasi todos
não seria considerado como o unico chefe burguezes e paizanos d’uma grande simpli­
da igreja grega; que não se lhe daria conta cidade: não teem igrejas públicas, e formam
dos redditos das decimas da Rússia, e que as suas assembléias em casas particulares.
competiría ao czar conceder-lhe a parte que A diííerença entre elles e os outros rus­
julgasse a proposito. sos, quanto a crença, consiste nos artigos
4. seguintes:
° Que d’alli por diante não seria permit-
tido a ninguem vender, dar, nem legar seus l.° Pretendem que ó uma grande falta
bens aos conventos ou a outros ecclesias­ dizer tres vezes Allcluia, e não o dizer se­
ticos. não duas vezes.
5. ° Que o patriarcha não crearia novosI o Que é preciso empregar sete pães na
bispos, nem fundariacousa alguma de novo, missa em logai* de cinco.
sem o consenso do czar e do senado. 3 . ' Que a cruz que se imprime sobre o
Os decretos do synodo não suspenderam pão da missa deve ser octogona e não qua­
os projectos ambiciosos dos patriarchas, e drada, porque a travessa que sustentou
o czar Pedro, o grande, extinguiu está di­ Nosso Senbor na cruz é d’esta figura.
gnidade; substituiu o patriarchado para o 4. ° Que fazendo-se o signal da cruz não
. governo ecclesiastico por um synodo sempre se devem juntar os tres primeiros dedos
subsistente, fundado sobre bons regulamen­ como fazem os outros russos, mas sim
tos, e munido d’instrucções sufficientes para juntar o dedo annular e o dedo articular
todos os casos que podessem acontecer. ao pollegar pelas extremidades, sem cur­
Este synodo ou collegio ecclesiastico é var o dédo index nem o do meio: os tres
■composto d’um presidente, dignidade que o rimeiros representando a Trindade, c os
czar se reservou para elle proprio, a um ous ultimos Jesus Christo, segundo as
vice-presidente, que é um arcebispo, de dez suas duas naturezas, como Deus e homem.
conselheiros bispos ede seis archimandritas, 5. ° Que os livros impressos depois do
n a qualidade d’assessores. patriarcha Nicon não devem ser recebi­
Quando vaga algum logar de presidente; dos, mas que convém seguir os antigos, e
o u de conselheiro, o synodo e o senado no-, considerar Nicon como o Anti-Cbristo.'So­
meiam duas pessoas, e o czar escolhe e bre o que convém notar, que os livros
MUL 721
compostos depois do patriarcha Nicon nada A religião lutherana, é, depois da grega,
mudam na doutrina, mas explicam somen­ a mais extensa; porque, sem fallar das pro­
te algumas palavras obscuras. vincias conquistadas, como a Livonia, a Es-
6. ® Como os sacerdotes russos bebem thonia, c uma parte da Finlândia ou a Ca­
aguardente, clles os julgam incapazes de rdia, ha duas igrejas lutheranas em Peters-
baptisar, de confessar, e de commungar. burg, duas em Moscow, c uma cm Bello-
7. ° Nào consideram o governo temporalgorod, sem contar as assembléias particu­
como urn instituto christiio, e pretendem lares, de que ha uma cm casa de cada ge­
que tudo deve ser repartido como entre neral estrangeiro, os quaes todos teem mi­
irmãos. nistros adjuntos a seus palacios.
8. ° Sustentam que é permittido tirar aOs prisioneiros suecos tinham sua igreja
vida pelo amor de Jesus Christo, c que se pública na cidade de Tobolosk, c um exer- -
chega por isso a um grau mais eminente cicio livro da sua religião, tanto para elles
de beatitudé. como para a educação de seus filhos. A
Julgam todos estes artigos mui necessa­ direcção das igrejas c cscólas lutheranas
rios para a salvaçào, e quando são procu­ da Rússia é confiada a um superintenden­
rados por sua crença, ou que se quer for- te geral, que habita em Moscow, e a-dous
çal-os a seguir a religião russa, acontece outros superintendentes estabelecidos um
muitas vezes reunirem-se por familias de na Livonia e outro na Esthonia. *
quatrocentos ou quinhentos em suas casas Os calvinistas e os catholicos romanos
ou cm granjas, onde se queimam vivos, teem também igrejas públicas cm Peters-
como sueccdeu no tempo em que M. o ba­ bong c em Moscow, mas é prolubido a es­
rão de Stralemfierg estava na Syberia, onde tes ultimos attrahirem no paiz indilTerente-
muitas centeuas de steraicersi se queima­ mente todas as sortes de religiosos.
ram voluntariamente. Os armênios teem uma igreja pública e
Os stcrmuwsi consideram os outros rus­ um bispo em Astracan.
sos, e geralmente todos os que nào são do Os maliomelanos são a trigésima parte
seu parecer, como impuros e como pagãos; da Rússia; teem por toda a parte, nas ci­
fogem da sua conversação, e não comem dades e no campo onde permanecem, suas
nem bebem com ellcs nas mesmas taças. assembléias e suas cscólas públicas: vão
Quando algum estrangeiro entra em sua com toda a liberdade aos logares consa­
casa, lavam o logar onde ello se assentou, grados á sua devoção, como fariam cm
e os mais zelosos' varrem até o aposento Meca, em Mcdina, êtc.; permitte-se-lhes a
quando clle sahe. .Pretendem authorisar polygamia e todo e qualquer uso da sua
todas as suas prácticas por livros de S. religião.
Cyrillo, que são manifestamente suppostos, Os pagãos são tres vezes mais nume­
mas dos quaes é impossível separar estes rosos na Rússia que os mahometanos,
sectarios supersticiosos, tanto mais quanto mas difTerem consideravelmente entre elles
elles são mais ignorantes ainda do que os quanto ao culto c às ceremonias da reli­
russos. gião.
Pedro, o grande, julgou que, esclarecen- Estes pagãos, apesar de sua ignorância,
do-os, os converteria mais seguramente do são naturalmente bons. Não se vê entre
que pelos rigores, que tinham já custado elles alguma libertinagem, nem roubo, nem
áo estado muitos milhares de vassallos: or­ perjurio, nem vicio algum grosseiro; é mui
denou que os tolerassem, com tanto que raro achar entre elles homem algum que
não emprchendessem communicar as suas se possa arguir. Vêem-se n’elles acções de
idéias, e encarregou os bispos c os sacer­ probidade, de desinteresse, c de humani­
dotes de procurarem conduzil-os á verda­ dade, como nós admiraríamos nos philoso­
deira doutrina por meio de sermões edifi­ phos antigos: ha equivoco, pois, quando
cantes e d’uma vida exemplar. se diz que os homens sahem das mãos da
natureza, cruéis e avaros.1
....31ULTIPLIANS—Nome que se deu a certos
DAS RELIGIÕES TOLERADAS NA MOSCOVIA hercticòs safíidos dos novos adamitas; são
assim chamados porque pretendem que a

Pedro, o grande, estabeleceu uma plena 1 Descripçâo do império russo, t. 2, c.


liberdade de consciência nos seus estados: 9. Vide também a Religião antiga e moder­
d’este modo todas as religiões christãs, o na dos moscovitas, petit in-12.° com gravu­
mahometismo, e mesmo o paganismo são ras de Picard: a Relação das tres embaixa­
tolerados. das, e a Viagem de Olearius.
722 NAZ
multiplicação dos homens é necessaria c faz deJNoe um homem embriagado, de
ordenada; teem-se confundido com os ana- Abrahão c de Jacob impudicos e concubi-
baptistas. narios?!
■9H;.yFST^l> (thomaz) — Sacer­ Além do que, diziam os nazarenos, os li­
dote nascido em Zuikur, cidade de Misnia, vros attribuidos a Moysés teem caracteres
provincia d’Àllemanha, na Saxonia. Vide evidentes de suppositicios, que nào deixam
0 artigo Anabaptislas, dos quaes foi o chefe. duvidar de serem escriptos depois da sua
tyuscums ( a n d r é )— Era lutherano e pro­ morte, porque lendo-sc n’elles que Moysés
fessor de tííeologia em Francfort sur VOder; morrera e fóra sepultado junto de Phogor,
pretendeu que Jesus Christo nào tinha sido e que ninguem até agora descobrira a sua
* mediador senão na qualidade de homem, sepultura, é evidente que Moysés nào ha­
e que a natureza divina estava morta como via de escrever esta historia.
a natureza humana no tempo da crucifi­ A lei foi meltida no templo quinhentos
cação de Jesus Christo. Prégára que Jesus annos depois de Moysés, e n’elle esteve ou­
Christo não tinha effcctivamente subido ao tros tantos até que pereceu nas chammas,
céo, mas que havia deixado o seu corpo quando Nabucodonosor o destruiu, e então
na nuvem que o cercava; ate hoje ainda se escreveu de novo: devemos, pois, quan­
se não viu que clle formasse seita. to á sua doutrina, estar somente pelo que
Havia imaginado estes erros para com­ verificam os factos, isto é, que fez milagres,
bater Staular, que pretendia que Jesus que deu uma lei, e que por consequência
Christo nào fora mediador senão na quali­ não é má esta lei, como asseveram os chris­
dade de homem, e não na qualidade de ho­ tãos. 1
mem Deus. Musculos, para o contradizer, O conhecimento que temos da doutrina
disse que a divindade havia soíTrido, e que de Jesus Christo não é mais authentico, di­
tinha sido m orta.1 ziam os nazarenos, porque ella nos veio
^ zarenos—Este nome, que a principio pelos apostolos, aos quaes o mesmo Jesus
deram aoT^hristãos, veio a ser depois o Christo lauçou muitas vezes em rosto que
de certa seita de judeus, que queriam se não a entendiam. Que rumo, pois, have­
observasse a lei de Moysés, honrando com- mos de seguir, quando não podemos des-
tudo a Jesus Christo como homem justo e curtinar a verdade, quer seja nas explica­
sancto, segundo alguns nascido d’uma vir­ ções dos judeus, quer nas dos christãos?
gem, e segundo outros filho de Joscph. 0 de não admittirmos senão o que é ir-
Como a lei que Moysés deu aos judeus rcfragavel e igualmentc recebido por um
foi provada por milagres, e á missão de e outro partido, a saber: que Moysés foi
Jesus Christo, que annunciou uma lei nova, enviado por Deus, que a sua lei é boa, que
não faltaram também estas provas, con­ Jesus Christo é filho de Deus, que devemos
cluiram d’aqui os nazarenos que se devia crer n’elle, fazermos-nos baptisar, obscr-
obedecer a Moysés, observar a lei, e crér
em Jesus Christo; mas succedeu-lhes como 1 Para fazermos palpavel a fraqueza
d’ordinario-acontece aos conciliadores, sen­ dos argumentos com que impugnam a au-
do excommungados assim pelos christãos thoridade e authenticidade do pentateucof
como pelos judens, que todos queriam que advertimos que ríelle se incluem Ires sortes
fosse a sua religião exclusivamcnte a ver­ de factos relativos a tres diversos tempos:
dadeira. uns acontecidos antes de Moysés, outros cm
Os nazarenos, pelo contrario, persuadi­ sua vida, e outros finalmentc depois da sua
dos de que a verdade não podia contradi- morte.
zer-se, affirmavain que os judeus e os chris­ Os da primeira c segunda ordem está bem
tãos igualmente alteravam a doutrina de provado que foram escriptos por Moysés: e
Moysés e a dos judeus, porque, quanto á quanto aos ultimos não podia clle escrevemos
de Moysés, diziam elles, é claro que foi proplieticamentc, da mesma sorte que pro-
corrompida, e que os escriptos que se nos phelisou aos judeus outras muitas cousas?
offerecem como de Moysés não podiam ser E quando verdade fosse que ajuntassem ao
seus. E como seria crivei que Adão sahin- pentateuco a historia da morte de Moysés,
do das mãos de Deus se deixasse enganar não è igualmente injusto e destituído de ra­
por uma falsidade tão grosseira como nos zão o concluir-se d'aqui terem corrompido
refere o Genesis? aquelle livro? Acaso julgar-sc-ha não ser
Deveremos nós acreditar n’um livro, que de Homero a Illiada por se haverem n'ella
ingerido alguns versos d'outra mão? Todos
1 Hospin. Hist. Sacram., part. 28, pag. os commentadores da Escriptura deslinda-
492, est. 1511. Prateol. tit. Musculos. ram muito bem esta difficulaade.
NAZ 723
var seus preceitos moraes, c sermos jus­ cm Tertulliano, nem em Origenes, nem
tos, beneficos, sobrios c castos. 1 cm Paulo, nem em Euscbio. 1 Porém M.
Os nazarenos foram repellidos, c conde- de Dcausobre respondeu: I.° que faltava
ninados por todos os christàos, d’onde se grande quantidade das obras (Testes pa­
prova que n’esse tempo nào somente cria dres, o que era sufficiente para nào poder
a Igreja na divindade de Jesus Christo, affirmar-se que deixassem ellcs de fallar
mas que olhava este dogma como um ar­ nos nazarenos; que Ilcgcsippo, coin o si­
tigo fundamental da religião, no que con­ lencio do qual se authorisa Mosheim, nào
vém M. Le Clcrc;2 c por estes actos de se­ falia nem dos ebionitas nem dos corinlhia-
paração que se deve julgar se ella tinha nos, e que todavia d’aqui nào deve con­
um dogma por fundamental, e não por al­ cluir-se que ellcs deixassem d’existir no
gumas expressões, que fugiram aos padres, seu tempo.
cujo abuso cllos não premeditaram. 2.° Para se saber se os padres, que pre-
Nenhum fundamento, pois, assiste a To- cederant a Sancto Epiphanio e a S. Jero­
lando, antes bem lhe repugna toda a vero- nymo, fallaram dos nazarenos, nào se ha
similhança, quando elle se serve do exem­ dê examinar sómente se os nomearam,
plo dos nazarenos para provar que a dou­ mas se referiram a sua doutrina, c se tra­
trina christà na sua origem era diversa da ctaram d’alguma seita que tivesse seus do­
que se professa actualmcnte, affirmando gmas, o que não póde entrar em dúvida,
que os judeus que tinham ouvido o Evan­ porque S.Justino refere que ainda no seu
gelho da propria bôea do Senhor, nào ha­ tempo havia duas sortes de christàos ju­
viam reconhecido n’elle senão um mero deus, entre os quacs nota grande diversi­
homem, ou quando muito um homem di­ dade, 2 c Origenes diz: «Quando vos de­
vino, o maior de todos os prophetas.3 morardes a considerar qual é a lei dos ju­
M. Mosheim impugna os nazarenos de deus ácerca do Salvador, e reflectirdes,
Tolando, e para os refutar mais segura­ que crendo-o uns filho de Joscph e de Ma­
mente arruina a base fundamental do seu ria, outros, na verdade, o crèem filho de
argumento, sustentando que os nazarenos Maria e do Espirito Sancto, nào tendo sen
foram uma seita do quarto século. timentos orthodoxos ácerca da sua divis
Os judeus, segundo Mosheim, vendo a dade: quando sobre isto fizerdes reflexãl
prosperidade dos. christàos depois da con­ digo eu, então comprchendereis como diss
versão dos imperadores, principiaram a um cego a Jesus Christo: Compadecei-vo
crôr que Jesus Christo era o Messias: elle de mim, filho de David.» 3
tinha libertado da opprcssão dos pagãos os Não nos parece, pois, que Mosheim ti­
que abraçaram o Evangelho, abatia em to­ vesse fundamento para se desviar do sen­
da a parte os idolos, e estes successos jun­ tir de Sancto Epiphanio e de S. Jeronymo
tos ao vilipendio em que se via a nação ju­ ácerca da antiguidade dos nazarenos, nem
daica, persuadiram a alguns judeus que para refutar a Tolando era isso necessario,
Jesus era clTectivamcnte o Christo: mas como já mostramos: os theologos inglezps
estes sectários não receberam o Christia­ escreveram contra Tolaudo, e o refutaram
nismo senão de meias, perseverando na ob­ optimamente.4
servância das suas ceremonias, e nào re­ Ninguém duvida que os nazarenos tinham
conhecendo nem a preexistencia, nem a o seu Evangelho cscripto em hebreu vul­
divindade do Senhor;'tal é no sentir de gar, que é chamado umas vezes o Evange­
Mosheim a origem dos nazarenos. lho dos doze apostolos, outras o dos he-
0 principal fundamento em que se es­ breus, e outras o Evangelho segundo S.
triba Mosheim para se afastar do sentir Matheus. Tem-se debatido muito n’estes
de Sancto Epiphanio e de S. Jeronymo últimos tempos para saber se este Evange­
ácerca da antiguidade dos nazarenos, é não lho foi original de S. Matheus, e se o nosso
os encontrar nem em Sancto Ireneo, nem não é mais que uma cópia do m esm o.3

1 E x Homil. Clement. 2 e 3. Epiph. Aug. 1 Mosheim, Indiciai antiqua) Christiano­


Hieron. in Isatam, c. 1. Theodorei, Heeret. rum disciplina), scct. 1, c. 6.
Fab. I. 2, c. 1, art. 2. 2 Justin. Dialog.
2 Iiist. Ecclcs. 3 Beausobre, Dissert. sur les Naza-
3 Tolando no livro intitulado Le Naza- reens, na continuação dos supplcmentos á
réen ou Le Christianisme Judaique, Payen guerra dos hussitas.
et Mahométan, etc., no qual se explica o 4 Thomaz Maugel, Remarques sur le
plano original do Christianismo pela histo­ Nazarèen. Petcrson, Antinazarenus.
ria dos nazarenos. 3 Dup. Dissert. Prelim. I. 2, art. 3, pag.
724 NES
—Heresia de Nestorio, que uma alma humana, c ser este o unico prin­
negava a uniao hypostatica do Verbo coni cipio das mesmas acções e affectos, quaes
a natureza humana, e suppunha em Jesus são entre outros o nascimento c as penali­
Christo duas pessoas, quando a religião dades de Jesus Christo, concluindo d’aqui
chrislã tem por base a divindade de Jesus Theodoro não só que elie tinha uma alma
Christo ou a uiiiào do Verbo com a natu­ humana, mas que esta era distincta c se­
reza humana. parada do Verbo, o qual a instruía c diri­
É um mysterio esta união; o a curiosi­ gia de tal sorte, que o Verbo habitava no
dade humana precipitou-sc em mil erros homem como n’um templo, o de nenhuma
sempre que pretendeu sondar a sua pro­ outra maneira estava unido á alma huma­
fundidade. na; comtudo reconhecia que esta união era
Assim, vemos Paulo de Samosata susten- indissolúvel, que o Verbo unido á natu­
. tar que o Verbo unido á natureza huma­ reza humana não fazia mais que um todo,
na nao era uma pessoa: os manicheus ima­ tanto assim que não devia dizer-so que
ginarem. que o Verbo não tomara corpo houvesse dous Filhos de Deus, ou dous Je­
humano; Appelles crér que Jesus Christo sus Christos. Como o zelo que em todos se
trouxera o corpo do céo; os arianos asse­ ateara contra a heresia d’Apollinario, e os
verarem que o Verbo unido á natureza hu­ creditos que Theodoro de Mopsuestia ad­
mana não era consubstanciai a seu Pae; quirira no Oriente em trinta annos d’epis-
e finalmente Apollinario, que não negava copado, illustre pelos combates que teve
esta consubstancialidade, ensinar que o com os hereges, não permiltiram que por
Verbo somente havia tomado um corpo então se examinassem attentamente os prin­
humano, de sorte que a pessoa de Jesus cípios d’cste prelado ou se prevenissem suas
Christo não era mais que o Verbo unido consequências, seus discipulos abraçaram o
com o mesmo corpo. que elle escreveu contra Apollinario como
Tinha triurnphado a Igreja .de todos es­ uma doutrina pura e isempta de qualquer
tes erros, c ensinava que o Verbo era uma erro.
Pessoa divina, consubstanciai ao Pae, que Havia, pois, Theodoro semeado na Igreja
não somente havia assumido um corpo princípios diametralmcnto oppostos ao do­
humano, mas também uma alma humana. gma da união hypostatica do Verbo com
De tal sorte, pois, estavam unidas em Je­ a natureza, que, para formarem uma nova
sus Christo as duas naturezas divina e hu­ heresia não esperavam, por assim dizer­
mana, que elíe tomava todos os attributos de mos, senão por algum seu discipulo que
divino, e se attribuia todas as proprieda­ os desenvolvesse e d’elles extrahisse conse­
des de humano, sendo assim o Verbo uni­ quências oppostas ás que a Igreja tirava da
do á humanidade em Jesus Christo de tal união hypostatica; porque são d’ordinario
maneira, que o homem e o Verbo não fa­ estas consequências as que fazem confron­
ziam mais que uma só e a mesma pessoa. tar uns princípios com outros, e que avi-
Era igual mente recebido este dogma em sinhando-os, patenteiam'as contradicções
toda a Igreja; porém alguns authores, com­ que ha entre elles. Nestorio foi o discípu­
batendo Apollinario, haviam assentado prin­ lo, e conduziu-se a estas consequências
cípios contrarios a esta união. Asseverava que arruinam o dogma da união hyposta­
Apollinario, como já nolamos, que o Verbo tica da maneira que vamos expor.
sómcnle estava unido a um corpo humano, Ensinava a Igreja estar a natureza divi­
e que Jesus Christo não tinha alma huma­ na de tal sorte unida á bumaua, que o ho­
na, porque o Verbo fazia na sua pessoa as mem e o Verbo não faziam mais que uma
vezes e todas as funeções da mesma'alma. só pessoa, em consequência da qual união
Theodoro de Mopsiíestia, para impugnar podia dizer-se não só que Jesus Christo
a opinião ^Apollinario, investigara na Es- era homem Deus, mas também que era
criptura quanto podia estabelecer que Je­ Deus homem c homem Deus; estas expres­
sus Christo tinha uma alma humana dis­ sões, muito adequadas para mostrarem a
tincta do Verbo; e unindo todas as acções união hypostatica do Verbo com a nature­
e affectos que a Escriptüra attribuia a Je^ za humana, eram uma linguagem estabe­
sus Christo, crera haver encontrado algu­ lecida geralmento em toda a Igreja, e na
mas, que suppunham no mesmo Senhor conformidade d’este uso se dizia também
que a Virgem Sanctissima era Mãe de Deus.
23. Simon, Hist. Crit. du Nouvcau Testa- Este modo de fallar em nada discordava
m en t.,' c. 7, pag. 71. Be.ausobi'e, loc. cil. da fé da Igreja acerca da Encarnação, e
Le ClerCj Hist. Ê ccles, an. 72,103. Ittigius, até é uma consequência natural e neces­
de Hccres. saria da união hypostatica da natureza hu-
NES 725
mana com o Verbo divino: mas uma vez A união ou associação da natureza di­
que alguein considere estas expressões pres­ vina com a humana, não mudou a divina;
cindindo do dogma da união hypostatica, e esta uniu-se á humana, como um homem
não estando bem convencido da verdade que, querendo realçar outro, se une a elle:
do mesmo dogma, cilas são repugnantes: a natureza divina ficou sendo o que era, e
padecer c morrer um Deus, c doutrina que sem mais attributo algum diverso dos que
parece absurda, sempre que se abstraia tinha antes da sua união: e portanto não
da dita união, porque ha o temor de cahir ll)e convém alguma nova denominação,
nas mesmas censuras que fazem os chris- ainda depois de unida com a natureza hu­
tãos aos pagãos e aos idolatras. mana, e é absurdo attribuir-se ao Verbo o
Deveu pois cila d’oflbrecer-sc por esta que é proprio d’esta natureza. Portanto o
face a um discipulo de Theodoro de Mo- homem a que o Verbo se uniu ó um tem­
psueslia, e assim, com eíTcito, a encarou plo no qual este habita: o Verbo o dirigo,
Neslorio, crendo que similhantes expres­ o conduz, o anima, e não faz com elle mais
sões'continham erros perigosos; portanto, que um só; eis-aqui a unica união posSi-
elevado que foi ã cadeira de Constantino- vel entre a natureza divina e a natureza
pia, entrou a combater esta linguagem c a humana.
união hypostatica cm que cila se fundava. Negava, pois, Nestorio, a união hypos­
A sua doutrina é tão sómente uma expli­ tatica, c suppunha com effeito em Jesus
cação dos princípios de Theodoro de Mo- Christo duas pessoas; razão porque não ó
psuestia, reduzidos por elle a um corpo o neslorianismo uma logomachia, isto é,
dogmatico, o qual sem se entender bem uma questão de nome, como o julgaram
não se poderá refutar solidamente. alguns sábios, verosimilmente, por esta­
rem prcoccupados contra S. Cyrillo, ou por­
que se ativeram a juizos alheios, e não
PRINCÍPIOS DO NESTOniANISMO
examinaram elles mesmos com attenção o s ,
princípios d*este bispo. 1
Não é de admiltir, dizia Nestorio, entre Parece-nos claro, segundo os sermões
a natureza humana e a divina, união al­ de Nestorio c suas respostas aos anathe­
guma que faça. a Divindade sujeita ás pai­ mas de S. Cyrillo, que elle não admittia
xões e fraquezas da humanidade, se o Ver­ mais que uma união moral entre o Verbo
bo estivesse unido á natureza humana, de e a natureza humana: porém, instar-nos-
sorte que em Jesus Christo não houvesse hão: acaso não reconhecia Neslorio não
mais que uma só pessoa, deveriamos re­ haver mais que um Christo, um Filho? O
conhecer um Deus, um Deus de tres me- nome, de Christo indicaria uma pessoa, se
zcs, um Deus que vai crescendo e instruin­ elle tivesse admiltido duas em uma só, o
do-se. que é impossível.
Confesso, dizia Nestorio, que não se ha Respondemos que as palavras Christo ou
de separár o Verbo do Christo, o Filho do Salvador no sentir de Nestorio não eram
Homem da Pessoa divina; não temos dous mais que nomes, que denotavam uma só
Christos, dòus Filhos, um primeiro o outro e a mesma obra, isto é, a salvação c rc-
segundo; mas as duas naturezas que for­ dempçào do genero humano; obra para
mam este Filho são distinctissimas, e jamais que haviam concorrido duas pessoas, se­
podem confundir-sOi A Escriptura distin­ gundo Nestorio, uma como agente princi­
gue expressamente o que convém ao Filho pal, que é a pessoa do Filho de Deus, do
do que convém ao Verbo. Quando S. Paulo Verbo Eterno, c outra como agenle subor­
falia de Jesus Christo, diz: «Deus enviou dinado, e como instrumento, a saber: a
seu Filho, feito d’uma mulher»; mas quando
repara que fomos reconciliados com Deus 1 Ludolf. Hist. / Ethiop. Grotius. Basna-
pela morte de seu Filho, não diz pela mor­ ge, A m ai. t. 3. La Croze, Hist. des Indes.
te do Verbo. Enlretiens sur divers sujets, etc., part 2.
É pois alheio da Escriptura, dizer que Salig. Eutychianimvs ante Eutychem. Du-
Maria ó Mãe de Deus, além de ser esta pin, Bibliol. des Autheurs du quatriémc sié-
linguagem um obstaculo para conversão cle.
dos pagãos: como impugnaremos pois os É de notar que M. Dupin se retractou
seus Deuses, se admittimos um que nas­ sobre este artigo, ácerca do qual, com effei­
ceu, padeceu c morreu? e conservando a to se enganára: e M. Bayle não tinha estu­
mesma linguagem, como poderemos tam­ dado esta materia quanto bastava para que
bém refutar os arianos, que sustentam ser podèsse julgar se M. Dupin se tinha porta­
o Verbo uma creatura? do primeiramente como historiador fiel.

%
726 NES
pessoa humana, Jesus, Filho de Maria: cllc REFUTAÇÃO DO NESTORIÀNISMO
dizia que estas duas pessoas haviam sido
unidas por uma só c a mesma acção, de
sorte que ambas juntas não faziam mais E sem dúvida que o Verbo se uniu com
que um Jesus Christo, sem que suppozcsse a natureza humana: l.° A união do Verbo
entre as duas pessoas divina e humana se­ com a natureza humana não é o simples
não a mesma união e a mesma associação concurso da divindade c da humanidade
que vêmos entre o homem que faz uma para a salvação do genoro humano, tal
obra, e o instrumento de que este se ser­ qual é o de duas cousas absolulamenlc se­
ve para fazel-a, de maneira que, juntos o paradas, e cujo cITeito tende ao mesmo
homem c o seu instrumento, podem ambos fim, porque a Escriptura nos diz que o
ter um nome communi. Verbo se fez carne, e que o Filho de Ma­
Por exemplo, póde dar-se ao homem que ria é Deus, o que seria absurdo, se a união
mata e á espada com que mata, o nome do Verbo e da humanidade não fosse mais
de matadorj porque entre o homem c a que o simples concurso das duas nature­
sua espada ba tal subordinação, união, e zas, como o é dizer-se que o homem que
associação, qual deve haver entre um agen­ se serve d'uma alavanca para levantar
te principal e o seu instrumento, e por vir­ qualquer péso se torna cm alavanca.
tude da sua associação póde dar-se o no­ 2. ° Esta união não é uma união simples
me de matador ao homem, á espada, e a de consenso de pensamentos, desejos, c in­
ambos tomados juntamente, porque ambos clinações, porque assim como não póde di­
concorrem para a mesma obra. zer-se que eu produzo as acções d’um ho­
Porém, se considerarmos o homem e a mem, porque ellas são conformes com as
sua espada fóra d’esta associação e do con­ minhas inclinações, da mesma sorte não
curso para a mesma obra, cada um tem poderiamos dizer que Deus produziu as
seus attributos á parte; de sorte que nem acções de Jesus Christo, c que derramou o
podemos dizer que o homem é de ferro seu sangue, se em Jesus Christo não esti­
nem ponteagudo, que são os attributos da vesse Deus unido com a humanidade se­
espada, nem também que esta é vivente e não pela conformidade das acções do ho­
racional, que são os do homem: porque mem com a natureza de Deus. *
seja qual fòr a associação que houver en­ 3. ° A união do Verbo com. a natureza
tre o homem e a espada, o homem e a es­ humana não é uma simples habitação da
pada não são todavia uma só pessoa. divindade na humanidade, nem também
Isto é o que se devia pensar acerca de uma simples influencia para governal-a.
Jesus Christo no parecer de Neslorio; e O piloto está unido d’esta maneira com o
assim mesmo diziam do Verbo e do ho­ seu navio, e d?esta mesma sorte habita
mem, a que estava unido, pelo que respei­ Deus nos seus sanctos; e comludo não ha­
ta á obra para a qual elles concorriam, vemos de dizer que o piloto é o navio,
isto c, a salvação dos homens: mas consi­ nem Deus o' Sancto. O evangelista, pois,
derados fóra d'este objecto, e prescindindo não poderia dizer que o Verbo se fizera
do seu concurso para a salvação do gene­ carne, se a união do Verbo com a nature­
ro humano, já não tinham cousa que os za humana não fosse mais que a simples,
unisse: não podia dizer-sc do Verbo o que habitação da divindade na humanidade, ou
pertencia ao homem, nem do homem o que uma mera influencia do Verbo para diri-
pertencia ao Verbo; e por isso mesmo, se­ gil-a.
gundo Nestorio, não podia dizer-se que .4.° A união do Verbo com a humanida­
Maria era Mãe de Deus, o que suppõe com de não é.uma união d’informação, tal qual
evidencia que Nestorio considerava então é a união da alma e do corpo, porque a
o Verbo e o homem como duas pessoas: divindade não é a fórma da humanidade,
porque se não tivesse supposlo em Jesus e a humanidade não se torna materia dh
Christo mais que uma só, corre de plano divindade.
que haveria attribuido a esta pessoa tudo 5.° Pela união do Verbo com a humani­
o que convém a cada uma das duas natu­ dade,-o Verbo se fez carne, o que não. póde
rezas, da mesma sorte que nós, que consi­ entender-se senão em qualquer d’estes tres
deramos o homem composto de um corpo sentidos; ou que o Verbo rcalmentc se con­
e d’uma alma, dizemos que anda, que tem verteu em carne, ao que a razão repugna;
um corpo, ura espirito,, etc. Portanto, ne­ ou n’um sentido de similhança, isto é, que
gara com eíleito Nestorio a união hyposta­ o Verbo a certos respeitos tomou alguma
tica do Verbo com á natureza humana, e conformidade com a carae, o que também
suppunha em Jesus Christo duas pessoas. é absurdo; pois em que se fez a ella simi*
NES 727
Hiante o Verbo? ou finalmente, que o Ver­ cem d’um modo tão particular, que não
bo uniu a. si pcssoalmcnte a carne, o que podem pertencer a nenhum outro. D’esta
se confirma pela mesma passagem em que mesma sorte um anjo é uma pessoa, por
se diz que o Verbo depois de feito carne ser uma natureza intelligente completa,
habitou entre os homens, e que estes con­ que se termina em si mesmo, distincta de
templaram a sua gloria. qualquer outra, e incapaz de se commu-
É tal esta união, que as propriedades, nicár.
direitos, acções, soffrimentos, e outras cou- Diversamente deveriamos nós pensar do
sas similhantcs, que só podem assentar em corpo c da alma do homem, se estes antes
uma das naturezas, sâo attribuldas á pes­ da união existissem separados, porque fei­
soa denominada pela outra, o que de ne­ tos para se unirem a fim de que da sua
nhuma sorte ou maneira tem logar, sem união resultasse isto a que chamamos ho­
que ambas pertençam a uma só e á mes­ mem, nem o corpo humano sem alma po­
ma pessoa: taes sao as passagens cm que dería desempenhar todas as funeções do
se diz: «que um Deus resgatou a sua Igre­ destino, nem a alma sem corpo fazer to­
ja por seu sangue, c que Deus nào per­ das as operações para que foi crcada; por­
doou a seu proprio Filho, mas o entregou tanto, a alma humana, separada do corpo,
á morte.» 1 não seria uma pessoa, pois que é forçoso
Se em Jesus Christo ha doas pessoas que seja, unida a ellc para que esta união
juutamcntc associadas pela mesma unçào, produza a pessoa. Podem, pois, duas natu­
e subordinadas uma á outra para remirem rezas ou duas substancias nào fazer mais
o genero humano, nào póde dizer-se que que uma só pessoa, quando é tal a sua
uma seja a outra, como S. Joào affirma qualidade, que não é possivel satisfazerem
quando diz que o Verbo se fez carne, nem aos officios a que são destinadas, senão uni­
attribuir-se a uma o que sómente pertence das, porque sóincntc assim formam uma
á outra, logo que se considerem fóra do natureza individual, intelligente, perfeita,
homem, e sem dcpeudencia do fim a que incommuuicavel e distincta de qualquer
ambas cooperam. outra.
Nào poderi a, pois, dizer-se, no sentir de Segundo estas noções, facilmente se at­
Ncstorio, que o Filho de Deus tinha sido tinge como a nature*za humana e a divina
gerado d’uma mulher, que fóra apalpado não são em Jesus Christo mais que uma
com as mãos, visto com os olhos, que nas­ pessoa; porque não tendo sido formada a
cera e que morrera; assim como quando natureza humana de Jesus Christo em vir­
Pedro matasse a Paulo com a sua espada, tude das leis ordinarias, mas por um prin­
ainda que na verdade se podésse dizer que cipio sobrenatural, o seu primeiro c origi­
a espada o matara, bem como que Pedro nario destino foi ser unida a outra, dc que
o matara; comtudo, abstraliindo d’este fim resulta não se terminar ella em si mesma,
commum, seria absurdo proferir-se que o c não ser completa como o são as outras
homem se tornara em espada, c que fóra creaturas humanas, que vem seguudo as
forjado pelo ferreiro,, porque taes expres­ leis ordinarias da natureza, porque estas
sões só quadram na união de muitas natu­ não tem o destino que acabamos dc notar
rezas cm unidades de pessoas, isto é, quan­ na de Jesus Christo. Como a natureza hu­
do uma natureza de tal sorte esteja unida mana de Jesus Christo não póde por si
a outra, que ambas nào formem mais que mesma cumprir as funeções a que foi des­
uma individual, ou um supposto dotado de tinada sem a sua união com o Verbo, é
intelligcncia, diverso de qualquer outro, e claro que .antes da união não é uma pes­
incommunicavel. soa, e que- depois dc unida, o Verbo e a
Porém unindo Jesus Christo as duas na­ natureza humana não constituem mais que
turezas, como é possivel que não haja n’clle uma só, porque não são mais que uma só
mais que uma pessoa? Para resolvermos natureza individual, ou um supposto dota­
a dúvida havemos de recordar-nos do que do d’intelligencia, completo, diálincto de
é orna pessoa. Uma pessoa é uma indivi­ qualquer outro, e incommunicavel.
dualidade ou um supposto dotado de intel- O erro de Nestorio, que não suppõe
ligencia, completo, distincto, e incommuni­ mais que uma união moral entre a natu­
cavel a qualquer outro; assim, qualquer reza divina e humana, transtorna toda a
homem em particular é uma pessoa, que ordem da religião christã; porque então
tem acções, direitos, qualidades, soffrimen- Jesus Christo, nosso mediador c redem­
tos, movimentos e aíTectos, que lhe perten- ptor, não passa de simples homem, o que
arruina o fundamento da mesma religião,
1 Act. 2. Ép. ad Rom. 6. conio já fizemos vér no artigo Arianos,
728 NES
provando sor a divindade do Verbo dogma Theodoro de Mopsucstia, c de dar uma no­
fundamental. Nào ó pois o da união hy­ va fôrma ao Christianismo.
postatica, como alguns querem, uma mera Já notamos no artigo antecedente que o
e inútil especulação, porque serve para dogma da união hypostatica era igualmen­
nos dar o exemplo de todas as virtudes, te recebido em Ioda a Igreja; na conformi­
para nos instruir com authoridades, c para dade d’esta união podia dizer-se nào so­
prevenir infinitos abusos em que os ho­ que Jesus Christo era homem c Deus, mas
mens teriam cabido, se por modello e por também que era homem Deus c um Deus
medeador entre Deus e elles nào tivessem homem, e assim se falia va universalmente.
mais que outro simples homem. Assim Como cm consequência d’este uso se di­
olharam todos os padres para o dogma da zia que a Virgem Sanctissima era mãe de-
encarnação ou da união hypostatica: mas Christo e mãe de Deus, Nestorio atacou
é alheia d’cstc logar esta materia. 1 logo estas expressões, e pregou que o Ver­
KESTonio — bispo de Constantinopla, c bo encarnara, mas que não sahfra do sa­
author da heresia que d’elle tomou o no­ rado ventre da Virgem, porque já existia
me, foi condemnado e deposto no concilio esde a eternidade.
de Epheso. Nasceu na Syria, aonde se des­ Escandalisou-se o povo d’csta doutrina,
tinou á predica, que era a carreira ordi­ c ouvindo-a com indignação, interrompeu
naria das dignidades, e para a qual pos- o discurso do patriarcha: entrou logo a
suia todos os talentos que bem o podiam murmurar, a queixar-se, a cscandecer-se,
abalisar: tinha um exterior modesto, o ros­ e finalmenlc se amotinou contra Nestorio,.
to pallido e magro, foi geralmente applau- o qual por seu notorio valimento fez sen-
dido, e fez-se adorar do povo. tencear, prender, e açoutar os principacs
Depois da morte de Sisinnio dividiu-se a dcscou tentes. 1
igreja de Constantinopla sobre quem lhe A innovação de Npstorio deu grande
havia de succeder, e Theodosio, o moço, brado cm todo o Oriente; enviados os seus
para prevenir as discordias, chamou Nes- escriptos para o Egypto, os monges move­
torio a occupar aquella cadeira episcopal. ram a questão enfre si, e consultaram a
A alta dignidade a que foi levado aíTer- S. Cyrillo, patriarcha d*Alexandria, o qual
vorou o seu zelo, e pretendendo inspiral-o lhes respondeu, pesaroso de que entre el­
a Theodosio, no seu primeiro sermão lhe les se tivessem agitado taes questões, mas
disse: «Dai-me a terra purgada de here- que todavia julgava a Nestorio cahido em
ges, que eu vos darei o céo; auxiliai-me erro. 2
cm exterminal-cfc, que cu vos promotto um Nestorio induziu Phocio a responder a
soccorro eflicaz contra os persas.» 2 esta carta, c fez correr boato de que S.
Apenas Ncstorio se tinha assentado so­ Cyrillo governava mal a sua igreja, e que
bre a cadeira da capital, logo expulsou afiectava uma dominação tyrannica.3
d’esla os arianos, armou o povo contra cl- S. Cyrillo respondeu a Nestorio que não
les, demoliu as suas igrejas, e obteve do ora a sua carta a que turbara o socego da
imperador editos rigorosos para ultimar o Igreja, mas os quadernos que corriam de­
seu exterm inio.3 baixo de nome de Nestorio, os quaes. ti­
0 zelo de Nestorio e seus talentos lhe nham motivado tal escandalo, que jà al­
conciliaram o favor do principe, o respeito guns não queriam dar a Jesus Christo o
dos cortezàos, e o amor do povo; tanto as­ nome de Deus, mas o de orgão e instru­
sim, que até soube restaurar no espirito mento da divindaae; que todo o Oriente
de todos a boa memoria de S. João Chry- estava alborotado sobre este assumpto, e
soslomo, que Theophilo Antiocheno, tio de que Nestorio podia socegar os animos, ex­
S. Cyrilío d’AIexandria, tornara odioso, e plicando e riscando o que lhe attribuiam,
fizera exterminar. Tendo, pois, assim es­ que não devia recusar á Sanctissima Vir­
tabelecido .seu credito, e ganhando a con­ gem a qualidade de Mãe de Deus, e que
fiança por um zelo sobejo, que o povo sem­ por este meio restabelecería a paz na
pre ‘ applaude, Nestorio creu-se em situa­ Igreja.
ção de ensinar a doutrina que bebera de Respondeu Nestorio a S. Cyrillo, .que
sem embargo de que este havia faltado á
caridade fraternal a seu respeito, comtudo
1 Aug. de Doctrin. Chríst., I. d, c. 11,
13. Greg. Moral., L. 6, c. 8, 1 .7 , c. 6. Ni- 1 Act. Cone. Ephes.
cqje, Symbole, Instruet. 3. 2 Cyrilliits, Epist. ad Ceelestin.
2 Socrat., I. 7, c. 29. 3 Cone. Ephes. prima part. c. 12. Cyril.
3 . lbid. Ep. ad Nestoi'. secunda.
NES m
•desejava muito dar-lhe todos os signacs de todas as demais catholicas, seria deposto c
paz c dhinião: porém nào explicou a sua excommungado: o mesmo concilio decla­
doutrina nem respondeu aos meios que S. rou também que os que se haviam sepa­
Cyrillo lhe propunha para restaurar a paz. rado de Nestorio depois que ellc entrou a
S. Cyrillo em outra carta expôz a sua dou­ espargir esta doutrina, estavam no gremio
trina acerca da união hypostatica, preve­ da Igreja. 1
niu todos os abusos (pie d’ella se podiam S. Cyrillo congregou outro concilio no
fazer, mostrou que esta doutrina era fun­ Egypto, no qual resolveram se executasse
dada no concilio de Nicea, c acabou a car­ a sentença pronunciada pelos occidentaes
ta exhortando á paz a Neslorio. Este ar- contra Nestorio, e se deputaram quatro
guiu a S. Cyrillo (Tentendcr mal o concilio bispos para lh’a intimarem. A isto aecres-
de Nicea, e dc haver cahido cm varios er­ ceiitou S. Cyrillo uma profissão de fé, que
ros, e insistiu cm que nào havendo ne­ ellc queria que Nestorio subscrevese, como
nhum concilio usado dos termos dc Mãe também doze anathemas, nos quacs era *
de Deus, se podiam supprimir. condemnada a doutrina de Nestorio por to­
Receando S. Cyrillo que estes sophismas das as faces pelas quacs podia ser pro­
allucinasscm os fieis de Constantinopla, posta..
escreveu-lhes, mostrando que Nestorio e Nestorio não respondeu aos deputados
seus sequazes dividiam Jesus Christo em dc Alexandria senão com outros doze ana­
duas pessoas, e insinuando-lhes que res­ themas contrarios aos de S. Cyrillo: e como
pondessem aos que os vituperavam dc per­ antes de todos estes procedimentos alcan­
turbarem a paz da Igreja, e de nào obede­ çara de Theodosio a convocação d um con­
cerem ao seu bispo, que nào eram ellcs, cilio geral cm Epheso, este se elfectuou
mas o mesmo bispo, quem motivava os em 431, e a elle concorreram S. Cyrillo
distúrbios e o cscandalo, pois ensinara cou- com cincoenta bispos africanos, c Nestori»
sas inauditas. com d ez.3
Estaopposição dos dous patriarchas ateou João de Antiochia não se apressou tai
o fogo da discordia, dc sorte que na mes­ to, ou porque os caminhos o embaraça
ma Constantinopla se formaram dous par­ sem, ou porque d’isto esperasse algur.
tidos, que de nada se esqueciam para faze­ bom etTcito, porém mandou dous deputa
rem odiosa a doutrina dos respectivos ad­ dos para assegurarem da sua prompta
versarios. chegada os bispos congregados em Ephe­
Os inimigos de Nestorio accusavam-no de so, declarando que nem os que o acompa-
negar indircctamcnte a divindade dc Jesus vam nem elle estranhariam que sem elles
Christo, a quem só dava o nome de Porta se désse principio á celebração do concilio.1
Deus, e reduzia á condição de moro ho­ Portanto, S. Cyrillo, eos bispos do Egypto, e
mem: os seus sequazes censuravam a S. da Asia se juntaram cm vinte e dous dc
Cyrillo de vilipendiar a Divindade, abaten- junho do dito anno sem embargo de nào te­
do-a a todas as enfermidades humanas, e rem chegado os legados da sancta sé. 3
lhe applicavam as zombarias com que os Chamado Nestorio ao concilio recusou
pagãos insultavam os fieis acerca do seu apresentar-se n’elle com o fundamento de
Deus crucificado. que não devia começar-se antes da chega­
Em breve tempo os dous patriarchas in­ da dos orientacs; más os bispos, desatten-
formaram toda a Igreja das suas contro­ didas estas razões, entraram a examinar
versias. Acacio de Boercc e João de Antio­ seus erros, c como S. Cyrillo os fizera já
chia approvaram a doutrina de S. Cyrillo, mui patentes, de commum accordo foram
e condemnaram a Nestorio; mas sendo dc condemnados, e Nestorio deposto.
parecer que não deviam realçar-se com Passados vinte dias chegou a Epheso
tanto calor expressões pouco exâctas, pedi­ João de Antiochia, e formou com os seus
ram a S. Cyrillo quizesse apaziguar a Igre­ bispos um novo concilio, no qual accusa-
ja com seu silencio.
O papa Celestino, a quem S. Cyrillo e 1 Este concilio foi celebrado em agosto
Nestorio tinham escripto, convocou um de 430.
concilio em que foi approvada a doutrina 2 Este concilio celebrou-sc em novembro
de S. Cyrillo, c condemnada a dc Nestorio, de 430.
e no qual se determinou, que se Nestorio 3 Socrates, l. 7, c. 33. Relat. ad Irnpcr.
dez dias depois da intimação da sentença 2, part. Cone. Ephes. Act. 1.
do concilio, não condemna*sse a nova dou­ * Socrat.j ibid. c. 36. Evagr., l. 1, c. 3.
trina que introduzira, e não approvassc a Nicephor., I. 4, c. 34. Concil. Ephes.
das igrejas de Roma, d’Alcxandria, e de 5 Act. Cone. Ephes. Collect. de Lupus.
730 NES
ram Mcnnon de haver fechado as portas Os bispos do Egypto c os do Oriente de­
da igreja aos bispos, c S. Cyrillo de ter pois de haverem alternado muitas cxcom-
renovado nos seus doze anathemas o erro munhões, mandaram cada um da sua par­
de Apollinario: sobre esta accusação pro­ te deputados ao imperador. Tomaram par­
nunciaram sentença de deposição contra te ifeste negocio os cortezãos, estes por Cy­
Mcnnon, e contra S. Cyrillo. rillo, aquellcs por Nestorio: uns eram de
Emquanto isto se passou, chegaram os parecer que o imperador declarasse por
legados do papa, que na conformidade de legitimo quanto se fizera duma c d’outra
suas instrucções se uniram a S. Cyrillo, e parte; outros que se desse tudo por nullo, o
informados do que se tinha feito contra se mandassem vir bispos desinteressados pa­
Nestorio, o. approvaram. Logo o concjlio ra examinarem o que se passara cm Ephb-
participou ao imperador que os legados so. Theodosio íluctuou por algum tempo
da igreja de Roma tinham assegurado que entro estes dous partidos, e tomou final-
todo o Occidente concordava com elles na mente o de approvar a deposição de Nes­
sua doutrina, e que os mesmos legados torio e de Cyrillo, persuadido dc que, quan­
condemnaram tambem a dc Nestorio e sua to a fé, estavam todos conformes, pois que
pessoa: passaram a cassar a deposição pro­ ambos recebiam o concilio de Nicea.
ferida contra S. Cyrillo, e Mennon, e cita­ Comtudo a sentença dc Theodosio não
ram a João de Antiochia, e a seus adhe­ restabeleceu a paz, porque os seqOazcs de
rentes. Nestorio, c os defensores do concilio pas­
No mesmo dia affixou-se um edital em saram das disputas aos insultos, dos insul­
que Cyrillo, e Mennon eram declarados tos ás armas, c d’improviso se viu proxi­
depostos como hercges, e os outros bispos ma a romper uma guerra sanguinolenta
como seus fautores. entre os dous partidos. Então Theodosio,
No dia seguinte os padres do concilio de sem embargo de ter um caracter doce,
Epheso terceira vez fizeram citar a João fraco, e pacifico, igualmente se irritou con­
de Antiochia: condemnaram os erros de tra Nestorio, e contra Cyrillo; c conhecen­
Ario, Apollinario, Pelagio, 'e Celestino: c do que o que linha tomado em Nestorio
depois declararam fóra da communhão da
Igreja a João de Antiochia e a seus sequa- ninou por erros de que elle era isempto;
zes. 1 porque o■mesmo patriarcha havia condc-
mnado com todo o concilio os d'Apollina­
1 Basnage, Le Clerc, La Croze e outros rio, de Ario, etc.
censuraram o procedimento do concilio dc 5.® Sc em todo este negocio houve dema­
Epheso, mas sem razão: siada vivacidade, impute-se ao mesmo Nes­
1. ° João de Antiochia não era seguido de torio, que foi^o primeiro que traclou com
mais que de quarenta bispos, e o concilio rigor os seus adversarios, que usou de pa­
procedia regularmente começando a exami­ lavras injuriosas c ultrajantes, como bem
nar o negocio de Nestorio antes da sua che­ se vê da carta que dictou a Phocio; que em­
gada. pregou meios violentos, e que fez intervir
n'isto a authoridade imperial: portanto, foi
2. ® João de Antiochia, depois iVella., podia
fazer que lhe dessem conta do que se pas- elle a verdadeira causa d'algum excesso, no
sára no concilio, e aequieseei' ou desap- caso que o houvesse.
provar. Os legados do papa Celestino, sem Não falíamos assim porque deixemos de
embargo de haverem chegado depois da sen­ persuadir-nos que o soffrimento e a indul­
tença proferida contra Nestorio, não se se­ gência não sejam preferíveis ao rigor: o es­
pararam de S. Cyrillo; communicaram-lhes pirito da Igreja é sempre o da doçura e da
o que se fizera contra Nestorio, e elles se caridade; nem se deve jam ais empregar a
uniram ao concilio. severidade se não depois de exhauridos to­
3. * João de Antiochia não pôde censurar dos os meios dè brandura, e da indulgente
de erro algum o concilio de Epheso, e por caridade; mas, comtudo, a Jgreja vê-se em
consequenda o seu scisma não tinha mais certas occasiões necessitada a aimar-se da
fundamento que a omissão d'uma mera for­ severidade; e não se ha de crêr de leve que
m al dade; portanto, c claro não ter ju sta os primeiros pastores deixassem dc passar
razão para romper a unidade, e que o con­ por todos ós caminhos da doçura, antes que
cilio de Epheso não podia dispensar-se de o chegassem aos do rigor. E por ventura te­
condemnar. mos nós toda a certeza de que os censura­
4. ® João de Antiochia estava destituídoríamos, se conhecéssemos miudamente quan­
de todo o direito para citar S. Cyrillo ao to fizeram, a fim de não serem obrigados a
seu concilio, e è sem dúvida que o conde- usarem d1esta severidade?
NES 731
por constância, c por zelo, nào era mais lemoncio, quo Theodosio ainda estava menos
que. os cfleitos de um humor violento e al­ satisfeito dos bispos do concilio, que dos
tivo, passou da estimação c do respeito á orientaes; que não vendo por todos os lados
aversão c ao desprésó. «Não mc fallem senão trevas, não queria decidir, mas que
mais cm Nestorio, dizia clle, basta que uma comtudo preferia os do concilio como ten­
vez sc désse a conhecer.» 1 do por si os signaes da communhão catho­
Tornou-se, pois, Nestorio odioso a toda lica. Tal foi o lim do concilio de Epheso,
a côrte, o seu nome per si só excitava a que a Igreja sempre recebeu sem difilcul-
indignação dos corlezãos, e eram lidos por dade como ecumenico, apesar da opposi-
scdiciosos os que ousavam tomar a sua çào que lhe fizeram os orientaes por algum
causa: informado elle d’isto pediu a per­ tempo, c sem fundamento algum.
missão de se recolher ao mosteiro, aonde Não podendo estes vér sem uma dòr ex­
estava antes de passar á cadeira de Con- trema que o imperador restituisse á sua
stantinopla, e obtida que foi, partiu imme- igreja a S. Cyrillo, por elles deposto, João
diatamente com uma ufania estoica, que de Antiochia convocou uin conciliò forma­
nunca o abandonou. do dos bispos que o acompanharam a Ephe­
S. Cyrillo foi prêso, c posto cm boaso, c dos do Oriente, no qual foi confirma­
guarda; e como na mente do imperador da a sentença de deposição proferida con­
tinha sido deposto por todo o concilio, es­ tra S. Cyrillo. Este concilio escreveu logo
tando a ponto de o banir, os padres lhe a Theodosio, que os bispos, ecclesiasticos,
escreveram, mostrando que Cyrillo e Men- e povos do condado do Oriente se tinham
non só haviam sido condcmnados por trin­ unido para sustentarem a fc de Nicea até
ta bispos, que os julgaram sem fôrma de á morte, e que portanto aborreciam todos
processo, sem provas, e unicamente pelo os anathemas de S. Cyrillo, que elles im­
desejo de vingarem a Nestorio: e estas cartas pugnavam como contrarios ao mesmo con­
apadrinhadas com as instantes solicitações cilio; ràzão porque rogava ao imperador o
do abbade Dalmacio, que tudo conseguia com fizesse condemnar por todos. 1
a imperatriz, suspenderam a execução das Assim continuava na Igreja o scisma co­
ordens passadas contra o sancto. D*c Nes­ meçado cm Epheso, não tendo communhão
torio nada mais quiz ouvir o imperador, e os do concilio do Oriente com aquelles que
fez ordenar para o substituir a Maximino. a conservaram com S. Cyrillo. 2
Os bispos do Egypto e do Oriente exis­ Não podia fazer-se, e ’conservar-se esta
tiam todavia em Epheso congregados e des­ ruptura sem muitos estímulos de parte a
unidos. Theodosio lhes escreveu que ten­ parte, c os povos a tomavam no rancor dos
tara, quanto lhe foi possível, assim por si, seus bispos: por todos os lados não se ou­
como por seus ministros, a fim de reconci­ viam senão queixas, incitamentos c excom-
liar os animos, tendo que seria uma impie­ munhões, sem que os povos, nem ainda os
dade vér perturbada a paz da Igreja, e não mesmos bispos, podessem muitas vezes di­
empregar todos os meios para socegal-a; zer do*que se traetava, e porque motivo se
que nào o podendo conseguir, resolvera ter­ dilaceravam os christãos uns aos outros
minar o concilio, mas que se com effeilo tão cruelmente; as pessoas mais chegadas
os bispos desejavam a paz sinceramente, se achavam as mais inimigas; cada qual
estava prompto a receber os novos expe­ satisfazia aos seus interesses particulares
dientes que clles quizessem propõ'r-lhe, que com o pretexto de ser zeloso pela Igreja, e
aliás não tinham mais que fazer, que rcti- tal era a desordem, que ninguém ousava
rarem-se com brevidade ás suas dioceses, sahir dTima cidade para outra, o que ex­
que esta mesma permissão accordava aos punha a sanctidade da Igreja aos dicterios
orientaes, e que emquanto elle vivesse e insultos dos pagãos, dos judeus, e dos
nunca os condemnaria, por não serem con­ hereges. 3
vencidos de cousa nenhuma diante d’elle, Bem que Theodosio testimunhasse mui­
não tendo havido pessoa que com elles qui- ta igualdade entro os- orientaes, e os seus
zesse entrar em conferência sobre os pon­ adversarios, com todo os defensores do con­
tos controvertidos; e acabava protestando cilio ephesino eram sem comparação os
não ser elle o causador do scisma, c que mais fortes, já pela sua união com todo o
só Deus na verdade conhecia quem o era.2 Occidente, já porque o mesmo imperador
Do theor d’esta carta se póde julgar, dizTil- e a côrte estavam na sua communhão, de

1 Cone., t. 4, pag. 663. 1 Appendix. Cone. Balus., pag. 741.


2 Cotteliei', pag. 41. Tillemont, t. 15, 2 Cone., t. 4, pag. 663.
pag. 485. 3 Ibid.
cujas circumstandas sc serviram osoricn- dor, sciente das suas maquinações, o des­
taes para os arguirem de que abusavam terrou para a Thebaida, aonde morreu
d’este poder, c de que sc haviam aprovei­ Com igual rigor tractou Theodosio* os
tado d’ello para toda ã sorte dc violências; defensores dc Nestorio, confiscando os bens
mas todas estas accusações vagas c gcracs, dos principaes, e degradando-os para Petra
nào devem fazer impressão; e talvez que na Arabia: depois do que promulgou leis
os catholicos se queixassem igual mente dos cm que condemnava ao fogo os seus es-
orientaes, pois nào ha pensamento mais vc- criptos, c obrigava os que tinham exem­
rosimil que o de Ibas de Edessa a este res­ plares dos mesmos a que os queimassem:
peito: «que cada um n’esta controversia prohibiu as assembléias dos nestorianos, e
seguia o seu caminho e os, impulsos do seu confiscou os bens dos que os consentiam
coração.» 1 E portanto é uma falta d’cqui- cm suas casas, ou que abraçavam aquellc
dade julgarem os catholicos pelo unico tes­ partido.
ti munho dos nestorianos, como faz M. de A authoridade dc Theodosio não e,\tin-
La C roze.2 guiu os nestorianos; dobraram á força, nào
Theodosio, que attribuiu ás divisões da a convicção: quantidade d’elles passaram
Igreja os revezes que soíTrcu em África, á Persia, e á Arabia; muitos cederam ao
de nada se esqueceu para o fim de conse­ tempo, e conservaram, por assim dizer, o
guir a paz; e julgando que dependia da fogo da divisão escondido debaixo das cin­
reconciliação de João de Antiochia com S. zas do nestorianismo sem tomarem o no­
Cyrillo, estancou todos os desvelos e a sua me de nestorianos, nem se atreverem a
authoridade mesmo para alcançal-a, che­ resuscitar uma seita, cujos sequazes só
gando a escrever aos que a tinham sobre existiam dispersos pelo imperio, e pelas
o espirito dos desavindos, principalmente leis do mesmo tinham, além da proscripção,
a S. Simão Eslelita, e a A cacio.3 E com o Jabéo d’infamia. Porém esta seita passou
elicito, depois de mil difficuldades, mil de­ do império romano á Persia, na qual fez
licadezas, e mil precauções pela religião, progressos rapidos: d’alli se derramou pe­
pela honra, e pela vaidade, foi concluída a las extremidades da Asia, aonde é profes­
paz entre João de Antiochia, e S. Cyrillo: sada ainda hoje pelos caldeus, ou nestoria­
mas bem que a maior parle dos orientaes nos da Syria. Veja-se o artigo Caldeus.
imitasse a João de Antiochia, Nestorio con­ NipçLAiTAS—Eram hereges que susten­
servou sempre adherentes acerrimos, que tavam que deviam comer ,carnes olíereci-
não só não quizeram ser comprehendidos das aos idolos^ e entregar-se á prostitui­
na paz de João de Antiochia, e S. Cyrillo, ção. 1
mas que até sc separaram da sua commu- Sancto Jreneo, Sancto Epiphanio, Ter­
nhào, porque elle communicava com S. tulliano, e S. Jeronymo criam que Nicolau,
Cyrillo. diacono, com effeito ensinara estes errus; 2
Viu-se, pois, no Oriento mesmo uma no­ porém S. Clemente Alexandrino e outros
va divisão; os bispos da Cilicia, c da Eu- tinham que os nieolaitas haviam abusado
phratesianna se separaram de João, e que­ d’um discurso e d’uma acção de Nicolau.
rendo este patriarcha empunhar sua au­ Dizem elles que tendo este diacono uma
thoridade para os reduzir, não fez mais mulher formosa, e havendo sido reprehen-
que peiorar o mal. O imperador prohibiu dido pelos apostolos de ser d’ella zeloso, a
aos bispos a vinda á corte, e decretou que Tez vir aô meio da assembléia, e lhe per-
fossem expulsos os que não se quizessem mittiu que se casasse; e accrescenta S.
unir a João de Antiochia. Clemente, que Nicolau proferira que se
Lá do centro do seu mosteiro excitava devia usar da carne, e que esta maxima
Nestorio todas estas opposições, e regulava déra logar para sc crôr que permiltiatoda
os movimentos da sua parcialidade, sem a qualidade de prazeres, porém que elle
que a deserção de uns, o desterro de ou­ nada mais queria dizer senão que se de­
tros, e a sua deposição approvada por to­ via mortificar a carn e.3
das as igrejas patriarchaes; o abalassem; , O sentimento que faz o diacono Nicolau,
e, por assim dizer, soçobrado debaixo das author dos erros dos nieolaitas, é menos
ruinas do seu partido,*ainda sustentava a
sua intrepidez e firmeza. Então o impera­ 1 Apocalyps., c. 2. S. Iroen. e S. Ciem.
não lhe atlribuem outros erros. Vide S.
Iroen., I. 1, c. 27. Ciem. Alex. Strom., I 3.
1 Cone., pag. 666. 2 Iroen., ibid. Epiph. H(er. 23. Hicron.
2 Reflexions sur le Mahometisme, pag. 9.. a i Reliodor. Ep. 2. Tert. de Vroescript.
3 Append. Cone., i. 3, pag. 1086.. 3 Ciem. Alex., ibid. Theodorei.
NOV 733
hem fundado que o de S. Clemente: com opinião; e tendo achado o meio de os fazer
effcito Nicolau nasceu gentio, abraçou o adoptar por uma duzia de pessoas, os pro­
judaísmo, e depois a fé de Jesus Christo; fessou sem rebuço, c se erigiu cabeça de
sendo um christào dos mais sanctos c fer­ seita, tomando o nome de Moysés, c dando
vorosos, foi escolhido pela igreja de Jerus­ o de Aarào a seu irmão. Chamaram-se no-
além entre os que o julgaram cheios do Es­ vacianos os seus sequazes, c seguiam os
pirito Sancto, para ser um dos sete pri­ mesmos erros quePraxcas c Sabellio.1
meiros diaconos: c será de crêr que com —antes de ser christào, tinha
tacs qualidades cahisse Nicolau no erro sido philosopho: foi ordenado presbytero
dos nicolaitas? de Poma, c era de grande engenho b sa­
É muito mais verosimil o parecer da- ber. N’esse tempo também estava presby­
quellcs criticos, que assentavam serem os tero da mesma igreja Cornellio, que, por
nicolaitas, como outros muitos hereges. dos sua piedade e talentos, foi eleito bispo del-
que presumiam trazerem sua origem de la por morte de Fabião.
um homem apostolico, e fundarem estes o A perseguição que a Igreja soffrera
seu sentimento sobre certa expressão de governando Decio, produziu muitos mar­
Nicolau, que dizia dcver-sc abusar da car­ tyres, mas também fez alguns apostatas.
ne, expressão que no original é equivoca, Muitos christãos não tinham o valor de
e significa despresar, e usar de um modo resistir aos supplicios: uns sacrificavam
vituperavcl: 1 e algum voluptuoso se apro­ aos idolos, ou comiam no templo cousas
veitou do equivoco para se entregar aos sacrificadas, aos quaes deram ò nome de
prazeres sem cscrupulo, afTectando seguir sacrificantes; outros não sacrificavam, mas
n’isto a doutrina de Nicolau offereciam incenso publicamente, e lhes
Sendo, pois, os nicolaitas voluptuosos, e chamaram incemantes; finalmente, havia
de espirito fraco c supersticioso, coaduna­ alguns, que por seus amigos, ou por ou­
vam a crença dos demonios com os do­ tros meios, obtinham do magistrado uma
gmas do Christianismo, e para nào esti­ certidão ou bilhete que os dispensava de
mularem os demonios, comiam as carnes sacrificarem, sem que por isso podessem
offcrccidas aos idolos. Eram contempora­ ser olhados como christãos; c porque Oi
neos dos apostolos: correndo o tempo, e certificados em latim se diziam libelli, a
depois de Saturnino, c de Carpocras, esta estes christãos denominavam libellaticos.
seita adoptou os erros dos gnosticos sobre Dada que foi a paz â Igreja no governo
a origem do mundo. Veja-se o artigo Gnos­ do imperador Gallo, a maior parte d’estes
ticos. 2 christãos frouxos, requereram para ser ad-
Alguns authores ha que assentam nào mittidos á paz e á communhão; porém só
ter existido tal seita, mas é contraria a to­ se lhes concedia depois de haverem passa­
da a antiguidade, e mal fundada esta opi­ do por diversos graus de penitencia, esta­
nião; porque os commentadorcs do Apoca­ belecidos na Igreja. O papa Cornellio con-
lypse tractaram dos nicolaitas, e nos annacs forraou-se n’esta parte com a disciplina da
de Pithou se vé que pelo meio do sétimo mesma; porém Novaciano, ou por odio que
século os havia, bem que não se digã quaes lhe tivesse, ou pela crueza do seu caracter,
eram precisamente os seus erros: mas na pois era estoico e de má disposição, insis­
verdade poderíam ter dado este nome aos tiu em que se não devia conceder jamais
clérigos que conservavam suas mulliores, a communhão aos que tinham idolatrado,
como era muito usual n’esle sécu lo.3 e por isto se separou de Cornellio.2
nqe£ $ —nasceu em Epheso ou em Smir- Muitos christãos que haviam padecido
nar^ensmava que Jesus Christo não era valorosamente pela fé de Jesus Christo,
'differente do Pae, que em Deus só havia abraçaram o sentimento de Novaciano, que
uma pessoa, a qual tomava ora o nome de formou um partido. A este se aggregou
Pae, ora o de Filho; que tinha encarnado, Novato, presbytero de Carthago, o (jual ti­
nascido da Virgem, e padecitjo sobre a nha passado á Roma, a fomentar intrigas
cruz (anno 240.) contra S. Cypriano, e o aconselhou que se
Citado perante os sacerdotes, logo desap- fizesse ordenar bispo da mesma cidade.
provou os seus erros, mas não dobrou de Novaciano, abraçando o conselho, enviou
dous homens da sua mesma laia a tres
1 Ciem. Alex. ibid. Le ClerCj Hist. Ec- bispos simples c grosseiros que viviam cm
cles. Ittigius, de Hcer. sect. 1.*, c. 9.
2 Jrameo, l. 1, c. 27. Avg. de Hcer. Phi- 1 Epiph. Hcer. 57. Aug. Hcer. 41.
iastr. de Hares., c. 53. Epiph. Hcer. 25. 2 Euseb. Hist., I. 6, c. 35. Socrat., I. 4,
3 Cone. Gallice, t. 1, pag. 330. c. 13. Epiph. Hcer. 59,
47
734 OPII
um pequeno cantào da Italia, e os fez vir lampadio casou-se, bem que fosse sacerdo­
a Roma sob color de abalar os distúrbios te, com uma rapariga de cuja bclleza se
que n’ella se tinham levantado; e chegados linha enamorado: e eis-aqui como Erasmo-
que foram os encerrou em um aposento, o ridiculis;» acerca d’este casamento: «Occo-
embriagou-os, c se fez ordenar bispo. lampadio casou-se agora, diz elle, com uma
O papa, cm um concilio de sessenta bis­ moça muito formosa; é verosimil que as­
pos, condemuou a Novaciano, c o expulsou sim queira mortificar a sua carne. Ora,
da Igreja. 1 Elle então se fez chefe do uma por mais que digam que o lutheranismo c’
seita que tomou seu nome, c que asseve­ cousa tragica, quanto a mim, estou bem
rava não se dever admittir á communhão persuadido que não ha cousa mais comica,
os que tinham incorrido em crime de ido­ porque sempre o desenredo da peça é al­
latria. Nem Novaciano, nem seus primei­ gum casamento, e cm se casando, tudo
ros discipulos, adiantaram a severidade da acaba, como nas comédias.» 1
disciplina; mas depois excluiram para sem­ Erasmo tinha amado muito a Oecolam-
pre os que haviam commettido peccados, padio, antes que elle abraçasse a reforma;
pelos quaes tinham sido postos em peni­ mas queixou-se que depois que adoptou
tencia— como o adulterio, c os prazeres aquelles sentimentos, já não o conhecia, c
sensuaes, e ilnalmente condemnaram tam­ que em vez da candura, de que fazia pro­
bém as segundas núpcias. 2 fissão emquanto obrava segundo elle mes­
A severidade de Novaciano a respeito mo, não via mais que dissimulação c arti­
d’aquelles que tinham cahido em idolatria, ficio, depois que entrou nos interesses do
esteve em uso; portanto não é de admirar partido.2
que achasse sequazes, ainda entre os bis­ ChauíTepicd, e os panegiristas d’Oeco-
pos; porém quasi todos o desampararam. lampadio não fallaram d’este juizo ^Eras­
Ainda no tempo de S. Leão havia nova- mo: nós porém consideramos devel-o no­
ciauos em Africa, e no Occidente os houve tar, a fim de que se apreciem os elogios
até o oitavo sécu lo .3 que elle dá á maior parte dos reformado­
Os novacianos tomaram o nome de ca- res, cuja vida privada é muito pouco inte­
tharos, que quer dizer puros: vilipendia­ ressante para encher volumes. Oecolampa-
vam muito os catholicos, e quando algum dio leve grande parto na reforma da Suis-
d’estes abraçava os seus sentimentos, o re- sa: morreu cm Basiléia no anno de 1531.3
baptisavam/4 oeií££A^—Ramo de gnosticos que criam
Este herege não fez mais que renovar que á saBedoria se manifestara aos homens
os erros dos montanistas. Veja-se o artigo na figura (Tuma sem ente, e que por isso
Montano. davamcuTíõ a este animal.
QBCOLAMPADio^-nasceu em Wissember- Os gnosticos admittiam multidão de ge­
ga/W ^T rancõnia, em o annô de 1482, nios que produziam tudo no mundo, e hon­
aprendeu muito bem o grego e o hebreu, ravam entre estes os que elles presumiam
entrou monge de Sancta Brisida, no mos­ haverem feito mais importantes serviços
teiro de S. Lourenço, junto de Ausburgo, ao genero humano: é bem claro que um
mas não perseveroú muito tempo na sua tal principio havia de produzir divisões
vocação, e deixando o mosteiro, partiu pa­ entre os gnosticos, e este mesmo originou
ra Basiléia, onde o fizeram parocho. En­ os ophitas.
tão começava a dár nos olhos a presumi­ No Genesis se lé que uma serpente fi­
da reforma, e elle preferiu a opinião de zera conhecer ao homem a arvore da scien­
Zuinglio ã de Luthero, acerca da Eucha­ d a do bem, e do mal, e que depois que
ristia. . Adão e Eva d’ella comeram, abriram os
Publicou um Iractado da exposição natu­ olhos, e tiveram este conhecimento. Por­
ra l d’estas pulavras do Senhor: «Este é o tanto, os gnosticos, que por suas luzes se
meu corpo.» Os lutheranos lhe responde­ criam superiores aos demais homens, olha­
ram em um livro que tinha por titulo Syn- vam o gcr*io, ou a potência que ensinara
gram m a, isto é, escripto commum. Occo- a comer do frueto u’aquella arvoro como

1 Euseb. Ibid. 1 Ep. E rasm ., I. 8, Ep. 41.


2 Epiph. ibid. Theodorct. Haeret. Fab. 3, 2 Ep. Erasm ., I. 18. Ep. 22, l. 19. Ep-
cap. 3. 123, l. 30. E p r tf .
3 Cypr. Ep. 73, ad Jubaianum Ambr., l. 3 Spond. Annal., an. 1526, n. 16. Capite
2, de Poenit., c. 6. üyon.A lex. Ep. ad Dyon. de v ila QEcolampad. Bossuet, Hist. des Va­
Rom. apud. Euseb., I. 7, c. 7. ria t., I. 2. Hist. de la Reforme de Suisse,
4 Photius. Cod. 182. t. l.°
PAN 735
a que havia feito ao genero humano o ser­ orbe sem terem morada certa: parecem
viço mais notável, c a honravam debaixo sahidos dos valdenses. Esta seita foi pro­
da figura que ella tomara para instruil-o. scripta, e excommungada por Innoccn-
Por esta consideração tinham urna ser­ cio III.
pente engaiolada, e chegando aquellc tem­ ORiDiTAS1—Ramo de hussitas, que depois
po que destinaram para celebrar a memo­ da mòrte de Zisca se pozeram debaixo da
ria do serviço feito ao genero humano pela direcção de Bedrico, Bohemio. Chamaram-
potência que em figura da mesma fez co­ se oribitas por se haverem retirado a uma
nhecer a arvore da sciencia, abriam a por­ montanha á qual deram o nome de Oreb.
ta da gaiola, chamavam a serpente, ella vi­ Yeja-se o artigo Hussitas.
nha, subia sobre a mesa em que estavam ORiGffiE?—ditO-Q-impuro. cgypcio de na­
os pães, e se enroscava n’ellcs. Eis-aqui o ção, pelo annõ 290 ensinou que o casa­
que os gnosticos tomavam pela sua Eucha­ mento era invenção do demonio, que se
ristia, e por um sacrificio perfeito. Depois devia de usar tudò o que a paixão sugge-
da adoração da serpente oiTereciam por risse mais infame a fim de estorvar a"ge­
ella (diziam elles) um hymno de louvor ao ração por quantos meios se podessem ex-
Pae Celestial, e assim concluíam os seus cogitar, ainda os mais execráveis. Orige­
m ysterios.1 nes, o impuro, teve sectários que foram re-
Origenes nos conservou a sua oração, pellidos de todas as igrejas com horror;
que é uma algaravia inintclligivcl pouco mas todavia se perpetuaram até o quinto
mais ou menos como os discursos dos al- século. 1
chimistas: mas por esta oração se vé que .psiANDRiSMO—Doutrina de Osiandro, dis­
suppunham o mundo sujeito a diversas cipulo uè Luthero. Vejam-se as seitas sa-
potências; que estas haviam separado o seu hidas do lutheranismo.
mundo dos outros; que elle, por assim di­ Q53ÍA ( p e d r o ) — Veja-se Pedro d'Osma.
zer, se tinha entranhado, e que a alma pa­ p a c i f i c a d o r e s — Nome que deram aos
ra haver de tornar ao céo necessitava de adherentes do Ilenoticon de Zenão. Veja-
dobrar estas potências, ou enganal-as, e se o artigo Monothelitas. Também os ana-
passar incognita de um mundo a outro. 2 baptistas tomavam este nome, tendo para
Esta especie de gnosticos, que honravam si que a sua doutrina estabeleceria sobre
a serpente como o symbolo da potência o orbe uma paz eterna.
que illustrára os homens, era inimiga de p a l a m i t a s —Os mesmos que os hesychas-
Jesus Christo, o qual viera ao mundo para tesrTéjíf£é?este artigo.
esmagar a cabeça da serpente, destruir seu CANTiiEjSMO—Os sectarios d’esta doutri­
imperio, c tornar ã submergir os homens na admiltem em seus escriptos uma só
na ignorância. Em consequência do que substancia que a si mesmo se modifica.
não recebiam por discipulo quem não ti­ Não escrevemos aqui a historia da philo­
vesse renegado de Jesus Christo. Tinham sophia; traçamos apenas ou descrevemos
um chefe por nome Euphrates. as phases porque tem passado este mon­
opm A CM 0§—Seita Que negava o mys­ struoso erro desde os tempos de Xenopha­
terio da Trindade, a resurreição, o juizo nes, Parmenides e Zenão, até nossos dias. 2
universal, e os sacramentos: criam que Je­ Basta considerarmos que esta doutrina,
sus Christo não era mais que um puro ho­ olhada sob todas as fôrmas possíveis, tem
mem, e que não tinha padecido.3 Apparece- sido sempre encarada como uma abstrac-
ram pelo anno 1198; eram vagabundos, aos ção destituída de toda a base fundamental,
quaes, segundo as apparencias, deram o e demais tida como contraria à experien­
nome de orbibarianos, tirado da palavra d a de todos os séculos, e bem assim a to­
latina orbis, porque divagavam por todo o das as bases da sciencia.
Os philosophos defensores d’esla doulri-
1 Origen., I. 6. contr. Cels. 291 e 294, l.
7, pag. 158. Philastr., c. 1. Epiph. Hcer. 1 Epiph., Hcer. 63. Baron., ad an. 256.
29. Damascen., c. 37 de Hair. 2 Os tres philosophos que se podem con­
2 Os gnosticos tinham para si que as siderar como chefes do pantheismo, viviam
almas vinham todas do céo. Veja-se o arti­ pelo meado do século Vlj antes da nossa era.
go Gnosticos. Leucippo e Demociito, que a este erro de­
( n o t a d o t r a d u c t o r .) ram uma nova fóim a, não appareceram se­
não no século V, antes da nossa era; e Epi­
3 D'Argentrêj Collect. Jud., t. l.° Eu- curo, que appareceu pelo anno de 330, no
meric, Directo1)', part. 2.°, quest. 14. Spond, tem w em que Alexandre Magno imperava,
ann. 1192. Dup. n.° 26. moaificou os systemas antecedentes.
736 PAN
na dividcm-sc em duas classes principaes: qual deva ser o fundamento scienlifico da
a primeira é a dos autigos, que explica­ moderna abstracção pantheista.
vam a formação dos corpos pelo movimen­ A observação directa não pódc funda­
to dos at mos; a segunda é a dos modernos, mentar-se sobre a individualidade: quando
de quem vamos já expôr as idéias. convenientemente a estudarmos, faremos
i.° Depois que o nosso planeta foi con­ então abstracção da sua individualidade c
siderado como habitavel, e como nunca das particularidades que lhe são cxclmd-
poderia deixar de ser observado d'este vameiite proprias, para não attendor senão
modo, foi sempre constituído cm sua par­ as qualidades que são communs com ou­
te solida de corpos mais ou menos distin­ tras. Formamos assim grupos tanto mais
ctos, e não d’atmos sem cohesão e homo­ geraes que n’elles observamos menos qua­
gêneos, como o queriam os antigos pan- lidades, e é n’csle sentido que sc diz em
theistas; d’outra sorte estaria ainda no es­ historia natural como em logica, que o ge­
tado de cahos, e não abrangería sêres do­ nero tem menos compreliensão que a espe-
tados de propriedades tão diversas, e que cie, porém mais extensão, assim como tam­
fossem necessarias umas ás outras para bém quando se falia da ordem em relação
conservação da vida. ao genero, 'da classe em relação d ordem,
D’este ‘mesmo modo, se todos os astros e l e íinalmenle a compreliensão está sem­
do nosso systema planetario não tivessem pre na razão inversa da extensão. Isto quer
sido primitivamente senão elementos iso­ dizer que quanto mais subirmos na cadeia
lados e errantes, não se teriam formado da abstracção para a generalisação, mais
em massas compactas, nem distribuído em nos afastamos da realidade. D’c$te modo,
diversos centros de acção. Os antigos pan- se de abstracção em abstracção chegarmos
theislas, sectarios do materialismo, não com o pantheista até á concepção pura da
chegaram pois á concepção do seu syste­ substancia, que nada tem de real, não en­
ma atmistico, senão abstrahindo-se já da contramos nada digno de ser observado.
natureza intima de todos os corpos, já da Sahimos do dominio da sciencia, porque
cohesão, já das aíDnidades electivas, já da abandonamos a região dos factos. Sem dú­
gravitação universal, e já principalmente vida é impossivel estabelecer uma qual­
da inércia da materia e da acçao indis­ quer theoria scicntifica sem o auxilio da
pensável d’uma potência intelligente para generalisação, e por consequência sem ab­
a orgauisaçào e conservação da harmonia stracção, que é o seu instrumento: mas
no universo. Em uma palavra, na theoria quatido mesmo não sc sahisse da ordem
dos atmos primitivos não se tem prestado das cousas observáveis como fazem os pan­
attenção nem aos phenomenos naturaes, theistas, não se devia *olvidar a operação
que sao do dominio da observação, nem ás generalisadora do espirito, aniquilando-se
suas causas, que nos levam ao conheci­ uma realidade para superar um abysmo.
mento do seu supremo architecto. Tem-se Quem não comprehende que o animal, o
partido d’uma hypothese, que não tem fun­ vegetal, considerados em geral, só existem
damento senão na imaginação, e que não como a substancia unica dos pantheistas?
ó. mais que o resultado d’uma abstracção Os realistas da meia idade, cahiram pois,
que nada pôde legitimar. no mesmo erro que combatemos. Final­
2.° Tem havido em diversas épocas e mente o que ha do mais inconsequente e
em differentes paizes seitas de pantheistas, erroneo no systema pantheistico, é a que­
ue não negam precisamente a existência da repentina d’um ponto culminante do
e Deus, mas pretendem affirmar que tu­ mundo ideal no real: da unidade da sub­
do é Deus, como o indica o nome que lhes stancia, que não póde ser senão o resulta­
dão, e que em toda a extensão do univer­ do da abstracção elevada ao seu maior
so apenas existe uma só substancia: os de grau, pretende-se deduzir a transformação
hoje confundem tudo no que elles denomi­ de todos os individuos uns nos outros; quer
nam infinito, absoluto, e proclamam que o vôr-se o todo no todo.
todo está em tudo. Uns e outros, sem leva­ É claro que, depois dos desenvolvimen­
rem a abstracção tão longe como os parti­ tos precedentes, se póde affirmar que o
dários dos atmos primitivos, alçam-se pelos pantheismo não tem fundamento scientifi-
sós esforços da imaginação até á conce­ co, e que o defeito capital d’este systema
pção d’uma substancia unica. É certo que consiste na realisaçào da abstracção, e no
a s faculdades do' entendimento humano, aniquilamento pela abstracção de ttutoo
não baseadas sobre dados positivos da que póde ser conhecido pela observação.
sciencia, não nos podem levar senão a Poderiamos ficar por aqui, e considerar
resultados chimericos; examinemos, pois, este systema como derribado pela destrui-
PAN 737
çâo da sua base. Mas para melhor paten­ rogeneos. A sua existência nào depende
tear nào só a sua opposioão formal com os do concurso de sêres similhantes ou diffe­
factos os mais contestados da scicncia, mas rentes. As partes d’cstes corpos não são
também as graves inconscquencias cm que mais importantes umas que as outras: não
se precipitaram, exporemos os profundos podem indislinctamentc ser desaggregadas
caracteres que distinguem os grandes gru­ e alteradas sobre todos os pontos, sem que
pos dos seres que observamos sobre o pla­ d’ahi se siga mudança alguma nas partes
neta habilavel, e isto segundo as melhores que nào obram; o s‘elementos ofTereccm
explicações que sobre esta materia nos for­ por toda a parte as mesmas disposições em
necem os grandes materialistas. corpos idênticos, considerados nas mesmas
O systema pantheistico, olhado em suas circumstandas; a sua fórma geral e di­
consequências, caminha dircctamentc para mensões são indeterminadas; finalmente o
a destruição da personalidade, quer divina, modo d’existência é muito pouco constante
quer humana, c para o aniquilamento da nas mesmas circumstandas: os sêres inor­
individualidade nos seres physicos. Pelo ganicos nào necessitam d’auxilio, e perma­
que diz respeito á personalidade divina, já necem no mesmo estado, quer d’isolamento,
refutamos as diíTerentcs objecções em diver­ quer de combinação, a menos que uma for­
ça estranha não obre sobre ellcs. Collocados
sos artigos, e desfizemos n’elles as differen­
tes dúvidas que os pantheistas, sectarios do no seu estado normal são indestruetiveis.
espiritualismo, costumam oppôr contra a D’aqui se vê, c melhor se comprehende
personalidade humana: 1 agora fallaremos a distancia que vai dos corpos inorganicos
das dúvidas que os pantheistas, sectarios do aos organicos. Mas quão differente não é
materialismo, costumam oppôr á individua­ a sua natureza, se a considerarmos em
lidade dos sêres physicos. seus elementos chimicos? Reconhecemos
0 celebre e grande Linneo, no principio hoje cincoenta c cinco elementos, que são
da sua Philosophia botanica, distingue tres como os germens de todas as substancias
especies de seres, qúe outr’ora se dividiam mineraes, e que podem ser isolados uns
em tres reinos, a saber: animal, vegetal, e dos outros pela analyse chimica, em qual­
mineral. Segundo elle, os mineraes cres­ quer estado de combinação que se encon­
cem, os vegetacs crescem e vivem, e os trem na natureza. Os corpos simples, que
animaes crescem, vivem, c sentem. Pode­ resultam de sua aggregaçào, são caracteri-
riamos accrescentar um quarto reino para sados por propriedades muito distinctas, e
o homem, que cresce, vive, sente, e pensa ás vezes antagonistas. Sabemos que os al-
com liberdade. Mas passado algum tempo, chimistas, apesar das suas innumeraveis
os naturalistas, para estabelecerem uma misturas, jámais podem transformar uma
divisão mais scientifica, reduziram os rei­ substancia n’outra. Desde o nascimento da
nos da natureza a dous, a saber: reino in­ chimica, os homens da seiencia deixaram
organico, que abrange todas as substan­ aos pantheistas o cuidado de procurar a pe­
cias destituídas d’organisação ou conside­ dra philosophal. Os elementos chimicos são
radas fóra da influencia vital; e reino or- pois inalteráveis, indestruetiveis, e consti­
anico, constituído de innumeraveis sêres, tuem no estado actual da seiencia, verda­
otados d’uma potência d’absorpção e assi­ des individuaes. Mais ainda: como os cor­
milação, e que se denominam vegetaes e pos simples não se combinam entre si se­
animaes. Faremos um terceiro reino dos não em proporções bem definidas, dão nas­
sêres activos, cuja existência contestamos cimento a substancias mineraes, que não
no paragrapho precedente, e chamar-lhe- são outra cousa mais que aggregados d’in-
hemos reino de espontaneidade. Os quatro dividuos, tendo constantemente, nas mes­
grandes grupos que compoem estes tres mas circumstandas, fôrmas e propriedades
reinos são essencialmcnte distinctos uns idênticas.
dos outros, e estão separados por uma dis­ Acontece muitas vezes que os mineraes
tancia intransitável. Os mineraes crescem, nas suas respectivas fôrmas não apresen­
formando aggregados por simples justa-po- tam a mesma regularidade, e nem se en­
sição de partes, em virtude da força de co- contram no estado cristallisado; isto é pro­
hesão, se os elementos são homogêneos, e veniente de circumstandas physicas per­
turbadoras, que neutralisaram as leis rigo­
pelo eíTeito da aíflnidade electiva, se os ele­
mentos que estão em presença são fiete- rosas da cristallisação; porém logo que es­
tejam em circumstandas favoráveis tor­
1 Podem vêr-se a tal respeito rieste dic- nam a tomar a fórma característica. Ê pois
cionario os artigos Ario e Immaterialidade, evidente que nunca ha confusão substan­
onde d'isso se tracta. cial no reino animal, e que a sua indivi­
738 PAN
dualidade distincta em tudo apparece. N’es- cas. Crescem por iniusccpção no ineio de
te reino, onde não se tem podido reconhe­ absorpção c ^assimilação, o por conse­
cer ordem, nem estabelecer especies pro­ quência não podem transpôr os séres que
priamente ditas, nem sequer existe gra­ os cercam. Apropriam-sò d’elles por meio
dação. O principio proclamado por Lin- dos instrumentos de que são dotados, que
neo, que a natureza procede sempre gra­ se chamam orgãos. Tecm partes privile­
dualmente e d’uma maneira continua, c só giadas, cuja alteração exerce uma influen­
appücavei aos corpos organisados: «porém, cia universal, e mesmo traz comsigo a per­
como diz M. Margerin (Cours sur la gcolo- da da vida, isto é, a destruição do sér cm-
gie, 4.* lição), este principio, longe de se quanlo organisado; as disposições dos ele­
estender aos corpos brutos, é, pelo contra­ mentos constituitivos sào differentes nas
rio, o que os governa. Alli tudo ó fixo, de­ diversas partes do mesmo corpo; as fôr­
terminado, e firme. Duas substancias da mas são invariáveis, e as dimensões limi­
mesma ordem combinam-se em proporções tadas em cada especie; finalmente, em to­
definidas, constantes por um mesmo mixto; dos os séres d’esta duplicada classe orga­
e todo o mixto igualmentc submettido á nica ha o nascimento d’um pae similhante,
analyse, reproduz invariavelmente as pro­ crescimento, reproducção c morte. Veja­
porções.» Este ponto capital indicado pelos mos se o pantheismo, sem negar todos os
trabalhos de Wenzcl e Richtcr, acolhido e factos e aniquilar toda a sciencia da ob­
debatido por Proust e Berthollet, foi posto servação, póde vencer a distancia que se­
em evidencia pelos numerosos trabalhos para os séres organisados dos corpos bru­
dos chimicos modernos. «A mesma harmo­ tos, para confundir uns e outros em um
nia que reina nos céos, é a mesma que se terrível cahos!
reconhece no corpo mais abjecto.» O pantheismo é contrario a todos os da­
Em mineralogia, a unidade das substan­ dos fornecidos pela observação, e uão dei­
cias é caracterisada: l.° pela natureza dos xa de ser menos opposto á razão.
elementos susceptíveis de se combinarem; «Finalmente, dizem as conferências de
2.° pelas propriedades em que se podem Bayem: l.° é evidentemente falso em seu
combinar; 3.° pela ordem em que se acham principio. Se procurarmos o que ha de
combinados.—Todas as substancias sào in­ commum entre os diversos syslemas do
variáveis, qualquer que seja o aspecto em pantheismo, encontramos sempre em todos
que se apresentarem. «Através d’estas di­ os sectarios de tal systema, debaixo d’uma
versas formas, diz M. Margerin (loc. cit.), linguagem differente, o mesmo principio.
a unidade da substancia faz conhecer por Este principio fundamental é a identidade
isto que é impossível, no meio d’um regi­ da substancia. Existe uma só substaucia, e
men chimico conveniente, passar d’uma são seus attributos o mundo e o homem.
fórma a outra sem alterar no sugeito os Hegel chama-lhe ideia ou sêr; Schelling de-
caracteres acima mencionados. Tudo de­ nomina-a absoluto; e se compulsarmos as
pende da determinação d’estes caracteres. obras de Fichte encontramos o eu, em-
A natureza e o numero dos elementos sào quanto que Spinosa lhe dá o nome de infi%
fornecidos pelos processos ordinarios da nito. Em todos estes aulhores achamos
analyse chiraica. Quanto ao modo porque sempre o mesmo principio, e differem só
estes elementos se combinam entre si, po­ uns dos outros nas palavras que empre­
demos conhecel-o pela lei das substitui­ gam. Se estudarmos os neoplatonicos, os
ções.» A substancia mineral propriamente gregos e orientaes, deparamos com o mes­
dita, permanece indefinidamente no mesmo mo resultado, a saber: uma só substancia
estado; e a acção mechanica nada póde so­ (Essai sur le pantheisme, pag. 175.) Mas o
bre a sua natureza: mesmo que a reduza­ sentimento é a razão, refutam e condc-
mos a pó impaipavel, cada grão encerra ranam este principio. Diz Bergier: «eu sin­
os mesmos elementos que o todo. A acção to, e esse sentimento dá-se em mim e não
das causas physicas e chimicas póde trans­ em outro; sou uma substancia separada de
formar o mineral- em outro, sem que a uma outra; sou um individuo real e não
substancia mude de natureza, e n’este caso uma modificação; os pensamentos, affei-
temos o polymorphismo verificado n’estes ções, vontades, e sensações existentes em
ultimos tempos; comtudo o individuo sem­ mim não são as mesmas que se dão n’um
pre conserva a sua identidade substancial. outro, e-q u e por isso devem ser diversas.
Exporemos agora os caracteres dos cor­ Que um outro tenha um sêr, uma substan­
pos organicos. São todos dotados de vida, cia, uma natureza como a rainha, esta si-
isto é, d’uma força que combate a acção milhança não passa d’uma ideia abstracta,
destruidora das causas physicas e chimi­ d’um modo d’encararmos um e outro, mas
PAU 739
que não estabelece identidade ou unidade pois, esta razão humana que se nos apre­
real entre nós.» Se os pantheistas interro­ senta como a manifestação e o ultimo des­
garem todos os homens, encontrarão n’cl- envolvimento do sér infinito? Existe tal ra­
Tes este sentimento indestructivel da dis- zão humana? Abri os livros dos philoso­
tincçào dos seres. Diremos que isto não phos allemàes, c elles vos ensinarão que o
passa d’uma iltusão; notemos os progressos mundo não c mais que uma apparcncia,
da sciencia humana, e não destruiremos o uma illusão vã, uma fôrma sem realidade
imperio d’estas crenças. objcctiva; que n’ellc não ha individualida­
«2.° O pantheismo, considerado em si de alguma, nem personalidade, nem causa,
mesmo, repugna manifestàmente com a ra­ nem eífeito. O eu sér, ideia abstracta de
zão. Que é isto senão um Deus composto Deus, é tudo. Mas porque attribuircmos
de todos os seres que existem no mundo, mais realidade a esta ideia que ás outras?
c que não passam talvez de simples phe- O scepticismo está em manifesta contradic-
nomenos o apparencias medonhas? Conce­ ção com a razão c com a logica, que lh»e
beremos urna substancia unica e notável, destróe todos os princípios, com a persona­
reunindo cm si attributos contradictorios lidade humana, que o não póde destruir
como a- extensão c o pensamento? Que ó nem explicar, com a realidade do mundo
isto senão uma existência vaga c indeter­ sensível, que o nega, som nos fazer com­
minada de que nada se póde aílirmar, que prehendor como este phenomeno existe, c
não é nem sér, nem modo, e que no entre­ como nos dá o sentimento da realidade.
tanto constitue o mundo espiritual e mate­ Está também em contradicção com a noção
rial? Um homem póde talvez crer de boa do sér absoluto, porque como lhe rejeita a
fé que isto e o sér universal, infinito, ne­ personalidade, e nada lhe dá de real, sub-
cessario, e de que todos os outros não se­ stitue-lhe o sér pela existência, e desappa-
jam mais que desenvolvimentos e modifi­ rcce no meio da abstracção (Essais sur Ic
cações suas? Este homem, que não respei­ pantheisme, pag. 199.) 1
ta nem os deveres da religião, nem as leis passàloulnch it a s — Assim se chamavam
sagradas da natureza, que professa clara­ certos hcrcges^3esccndentes dos montanis-
mente a impiedade c mesmo o athcismo, tas, que criam que para se salvarem tinham
será também Deus, ou um attributo, ou necessidade de guardar perpetuo silencio
nina modificação de Deus? Na verdade, po­ Tinham continuamente o dedo sobre ;
deremos persuadir-nos que os philosophos, bôea.
recusando curvar sua intelligencia á au- PASSAGiANOS—Esta palavra significa in
thoridade da fé, rejeitem c combatam os teifamenle sancto, e foi tomada por diver­
mysterios do Christianismo para adopta­ sos fanaticos, que aspiravam a uma sancti-
rem similhantes desvarios? dade singular.
«3.° O pantheismo não é menos funesto i,\vssipjsis:rAS—Nome que davam aos que
em suas consequências, que absurdo em tinham para si que Deus Padre padecera.
si mesmo e cm seus princípios. Sc não Veja-se Praxeas.
existe mais que uma substancia, se tudo é pa33U£assianos—O mesmo que os passio-
idêntico, se o homem é Deus, desappare- nistas. ~ '
cem d’enlre si as.relações de authoridade paulo de_ samosatha—Assim appellida-
c de dependencia; a religião, que não se do^por serTiàlurãT cfii cidade de Samosa­
funda sobre estas relações, não passa de tha, sobre o Euphrates, na Syria Euphra-
uma chimcra, não existe pois para o ho­ lesiana, junto de Mesopotamia, foi bispo de
mem, nem leis obrigatórias, nem moral, Antiochia, pelo anno 262.
nem vicio, nem v;rtude, nem bem, nem Reinava então na Syria, Zenobia, c a sua
mal. Além d’isso, que é Deus no systema corte ajuntava todos’ os homens celebres
dos philosophos pantheistas? Uma abstrac- por suas luzes, e talentos: cila chamou
çào metaphysica, uma simples ideia do in­ Paulo de Samosatha, admirou a sua elo­
finito, do absoluto, uma existência vaga e quência, c quiz entreter-se com elle acer­
indeterminada, que não se conhece senão ca da religião christá.
pela razão humana, a mais perfeita em seus Sabia esta princeza as linguas, e a his­
desenvolvimentos. Mas recusando a Deus toria, preferia a religião judaica a todas
intelligencia, liberdade, e mesmo a perso­ as outras, e não podia crêr os mysterios
nalidade e individualidade, não é mais que da christã. Paulo para vencer esta repu-
aniquilal-o? O pantheismo, é pois, na reali­
dade, um systema d’atheismo occulto sob o 1 Extrahido do Dictionnaire deTheolo-
véo d’uma linguagem inteiramente obscu­ gie Dogmatiquc, par Bergkr, publii par M.
ra, é d’uma phraseologia barbara. Que é, L'Abbè Migne.
740 PED
gnancia esmerou-se a reduzil-os a noções lhe desagrada, e que não observa as suas
simplices c intelligiveis; e disse a Zenobia leis: porém, nào puniu Paulo de Samosa­
que as tres pessoas da Trindade nào eram tha, deixando-o gosar tranquillamente das
tres deuses, mas tres atfributos, debaixo vantagens da sociedade civil, c os catholi­
dos quaes a divindade se havia manifesta­ cos também não requereram que d’ellas
do aos homens; c que Jesus Christo nào fosse privado. Paulo de Samosatha nào foi
era um Deus, mas um homem, ao quaLa mais que o chefe de uma seita obscura, da
sabedoria se eommunicára extraordinara\ qual já se nào encontravam as mais peque­
mente, e a quem ella jamais desampa* nas reliquias, no meio do quinto século, e
rára. 1 que pela maior parte nem ainda de nome
Paulo de Samosatha nào olhou esta mu­ era conhecida; ao mesmo passo que o aria-
dança na doutrina da Igreja senào como nismo, de que se fez um negocio d’ostado,
uma condescendência apta para desvane­ enchia o imperio de distúrbios c de desor­
cer as preoccupações de Zenobia contra a dens no século seguiute.
religião christà, e creu poder com esta ex- S. Luciano, tão famoso no Oriente por
plicaçào conciliar a linguagem e a s expres­ sua sanctidade, erudição e martyrio, ficou
sões cia Igreja acerca cio mysterio da Trin­ adherente por muito tempo a Paulo de Sa-
dade c da divindade de Jesus Christo: li- mosatha, e até se separou de tres succes­
vrava-sc, porém, em que esta sua condes­ sores do mesmo. Tellcmoncio, que cria não
cendência ficaria occulta, mas foi conheci­ dever-se justificar esta adhcsào, diz, com-
da, e os fieis se queixaram d’ella. Entào o ludo, que se póde desculpar.
bispo de Antiochia nào cuidou cm mais «S. Luciano, diz elle, era do mesmo paiz
que em justificar a variaçào que fizera na de Paulo de Samosatha, e demais teria com
doutrina da Igreja; e com efieito creu que elle outras correlações, c até a de ser ele­
Jesus Christo nào era Deus, e que em Deus vado por elle ao sacerdócio: assim não é
iavia sótnente uma pessoa. de maravilhar que não se convencesse fa­
Os erros de Paulo alvoroçaram o zelo cilmente das faltas c dos erros de um ho- /
3os bispos, e estes se congregaram em Au- mem que elle honrava como a seu pao c a
tiochia. Paulo lhes protestou nào haver en­ seu bispo, e que coloreava também os seus
sinado taes erros: crêram-o, e s e retiraram. erros, que custou a convencer; que se al­
Porém Paulo perseverou n’elles effectiva- guns ha que censurem com demasiado ri­
menle, divulgou-se a sua doutrina, e os gor as culpas que nascem do respeito e da
bispos tornaram a ajuntar-se em Antiochia;, amizade, em vez de se condoerem d’ellas,
Paulo foi convencido de negar a divindade talvez incorram em outra maior, esquecen­
dc Jesus Christo, e o concilio immediata- do-se de que são homens, e capazes de ca-
mente o depôz, e de uuanime consenso o hirem como os demais.» *
excommungou. 0 concilio de Antiochia depois de haver
Comtudo Paulo de Samosatha, apadrinha­ condemnado a Paulo de Samosatha, deu
do por Zenobia, nào largou a sua igreja; parte a todas as igrejas para as informar,
porém, tendo destruído Aureliano o poder e foi geralincnte approvado. Professava-se
d’esta princeza, os catholicos se queixaram pois então muito distinctamente a divinda­
a elle da violência de Paulo, e o imperador de de Jesus Christo, c nào se cria que n’es­
ordenou que a casa episcopal pertencería te dogma *se podésse fazer alguma varia­
áqujelle a quem os bispos de Roma dirigis­ ção. 0 sentimento d’este heresiarcha era
sem as suas cartas, julgando que aquelle alheio do de Theodoto: elle o provava com
que nào se submettia á sentença dos que as mesmas razões, e era refutado conv os
eram da sua religião, não deveria ter nada mesmos princípios.
de commum com elles. 2 p^ boupjs^ jÚij .s— era um simples secu­
Aureliano não tomou mais parte na dispu­ lar"que ensinava: !.° não dever conferir-
ta de Paulo e dos catholicos; a estes con­ se o baptismo aos meninos, o ser inútil a
cedeu a protecção que as leis devem a to­ todos os que nào podiam fazer um acto de
do o cidadão para expulsar de sua casa fé quando o recebiam: 2.° condemnava o
um homem que a occupa contra sua von­ uso das igrejas, templos, e altares, e os fa­
tade; e a toda a assembléia, ou a toda a zia demolir: 3.° rejeitava o culto das cru­
sociedade para expellir um homem que zes, e as mandava quebrar: 4.° cria que a
missa era inútil, e prohibia a sua celebra­
ção: 6.° ensinava que as orações c esmo-
1 Epiph. Hares. 6o. Hilar. de Synod.,
pag. 136. 1 Tillemont.j t. 4. not. 1.» sur S. D«-
2 Theodorei. Haeret. Fab. I 2, C: 8. c ie n , pag. 720.
PED 741
Ias nào satisfaziam pelos mortos, e prohi- Pedro de Bruys um sancto reformador, e
bia so cantassem os louvores de Deus. um dos seus patriarchas, de que Deus sc
A França, um século antes, fura infectada servira para perpetuar a verdade; 1 este
dos erros* dos manicheus, muitos dos quaes sentimento não se funda em monumento
haviam sido queimados cm differentes pro­ algum d’aquclles tempos: e como 6 possí­
vincias: o extremo rigor com que os ha­ vel que os protestantes que condemnam
viam tractado os tornara mais circumspe­ os anabaptistas, tanto realcem a authorida-
ctos, mas inimigos mais irreconciliaveis do de eje Pedro de Bruys, que cm verdade
clero, que excitara contra elles o zelo dos não foi mais que um anabaptista? Porém
príncipes. a que extremidade se não véem elles re­
Sendo pois o principal objecto d’estcs duzidos, quando são obrigados a procurar
fanaticos o vingarem-se, propenderam pa­ n’esta laia dliomcns o fio da tradição das
ra atacar tudo o que lhes podia conciliar suas igrejas?
consideração, aulhoridade c respeito; e as­ Hefutamos os erros d’estc heresiarca
sim atacaram cffectivamcnle a cíficaciá dos ácerca das orações pelos mortos no artigo
sacramentos, as ceremonias da Igreja, a dif- Vigilando; sobre o culto da cruz nos Ico­
ferença que a ordem põe entre os simples noclastas; sobre a necessidade de ser san­
leig o/ e o clero, e, finalmente, a authorida- cto o ministro dos sacramentos no artigo
de dos primeiros pastores. Intciramente Rebnptisantes; e ácerca da presença real,
applicados a estes objectos, pouco a pouco em Berengario.
foram largando os dogmas do manicheis- Pedro de Bruys teve entre os seus disci­
mo, que não podiam defender sem grande pulos um mais notável, por nome Henri­
risco, e atacaram os sacramentos, o clero, que de Bruys,'que damos em artigo sepa­
e as ceremonias. rado; inas Basnage é destituído de funda­
Estavam então no maior auge as desor­ mento para asseverar que os discipulos de
dens c a ignorância do clero, de sorte que Pedro fizeram uma seita extensa. 2
tudo era venal na maior parte das igrejas, p e d r o d e o s m a — professor de theologia
os mesmos sacramentos eram de ordinario em Salamanca, em um tractado da confis­
administrados por simoniacos, e por ho­ são, ensinou:
mens publicamente concubinarios; e o po­ 1. ° Que os peccados mortaes quanto â
vo, governado por taes pastores, estava sub­ culpa e á pena da outra vida, são apaga­
mergido n’uma ignorância profunda, e dis­ dos pela contrição do coração, sem ordem
posto para se rebellar contra elles: portan­ ás chaves da Igreja.
to, qualquer homem que fosse dotado de 2. ° Que a confissão dos peccados em
uma imaginação viva, poderia erigir-se particular, e quanto á especie, não é de
chefe de seita, prégando contra o clero, direito divino, mas sómente fundada n’um
contra as ceremonias da Igreja, e contra estatuto da Igreja universal.
os sacramentos. 3. ° Que não devemos confessar-nos dos
Como pelo Languedoc e Delfinado esta­ maus pensamentos, que estão apagados
vam espalhados muitos sectarios, alli_pro­ pela aversão que d’elles ha, sem respeito á
duziram no duodecimo século multidão de confissão.
pequenas seitas, que se derramaram por 4. ° Que a confissão deve fazer-se dos
diíTerentcs provincias da França, e que to­ peccados occultos, e não dos que são co­
maram diversas formas, segundo o cara­ nhecidos.
cter de quem as dirigia, c d’esta maneira 5. ° Que não se ha de conferir a absolvi­
se levantaram chefes de seita Pedro de ção aos penitentes, antes que elles tenham
Bruys, Tancnelmo, Henrique, e Arnaldo cumprido a penitencia que lhes foi im­
de IBrexa. posta.
Pedro de Bruys correu pelas provincias, 6. ° Que o papa não podia remittir as pe­
saqueando as igrejas, lançando por terra nas do purgatorio.
as cruzes, e destruindo os altares: na Pro- 7. ° Que a igreja da cidade de Roma po­
vença não se viam senão christãos reba- dia errar nas suas decisões.
ptisâdos e igrejas profanadas: comtudo, Pe­ 8. ° Que o papa não podia dispensar nos
dro foi logo expulso d’aquella provincia, e, decretos da Igreja universal.
passando ao Languedoc, alli o prenderam, 9. ° Que d sacramento da penitencia, quan­
e o queimaram v iv o .1 to á graça que elle produz, é um sacra-
Os protestantes fazem ordinariamente de
1 Basnage. Hist. des Egl. Ref., 1 . 1.°, 4.°
1 D'Argentrê Collecl. Jud., t. 1, pag. 13. Periodo, c. 6, pag. 134.
Dupin., X II siccl., t. 6. 2 lbid. pag. 146.
742 PEL
mento da lei natural, nullamente estabele­ mente o penitente, emquanto o sacerdote
cido no Antigo e Novo Testamento. exerce o ministério exterior.
AíTonso Carillo, arcebispo de Toledo, que «Sendo este freio tão necessario para
havia feito ajuntar os theologos mais cons­ reprimir a licença, uma tão fecunda ori­
picuos da sua diocese, condemnou estas gem de prudentes conselhos, e uma tão
proposições como hereticas, errôneas, es­ sensível consolação para as almas attribu-
candalosas, malsoantes, e o livro do au- ladas com as suas culpas, quando não so­
thor foi queimado com a sua cadeira. Xis­ mente se lhes declara cm termos geraes a
to iv confirmou esta decisào em 1479. Não sua absolvição, como o practicam os minis­
se encontra que Pedro d’Osma formasse tros, mas com cíTeito as absolvem pela au­
se ita .1 thoridade de Jesus Christo, depois de um
Nós refutamos estes erros quanto ao po­ exame particular, c com conhecimento de
der do papa nos artigos Gregos, e Luthero. causa: não podemos crêr que os nossos ad­
O erro que respeita a penitencia, é refuta­ versarios possam olhar para tantos bens
do pelo mesmo Jesus Christo, que diz que sem se aOligirem de os haverem perdido,
os peccados que a Igreja nào perdoa, nào e sem se envergonharem de uma reforma
sào perdoados. O seu erro acerca da con­ que lançou fóra uma práctica tão saudavel
fissão, foi renovado pelos calvinistas, que e tão sancta.»
nào fazem remontar a instituição da neces­ pelagio — Monge inglez, ensinou no prin­
sidade d’este sacramento, senão ao conci­ cipio do quinto século o erro, que d’elle
lio lateranense cm 1215, pontificando Inno- teve o nome de pclagianismo.
cencio ni. Catholicos muito sábios teem
provado que a confissão sacramental c dos CAUSAS QUE DERAM OCCASIÃO AO ERRO
peccados não somente em geral e em par­ DE PELAGIO
ticular, mas ainda occultos e publicos, se
practicára todos os séculos desde o nasci­ A Igreja quasi no seu nascimento fòra
mento do'Christianismo; que era de insti­ perturbada por multidão de fanaticos, que
tuição divina, e que obrigava de direito fizeram uma mistura monstruosa dos do­
divino. Como não poderiamos fazer mais gmas do Christianismo, dos princípios da
que repetir o que estes authores disseram, caballa, e dos delírios dos gnosticos. Al­
nos contentaremos com indicar algu n s,2 guns scismaticos, como os inontanistas, e
e em transcrever aqui o que disse M. de os novacianos, a tinham dilacerado, Ilerc-
Meaux a este respeito, na sua exposição da ges como Noecio, Sabellio, Paulo de Samo-
fé da Igreja catholica: salha e Ario, haviam combatido a Trinda­
«Crémos ter sido do agrado de Jesus de e a divindade de Jesus Christo. Outros,
Christo, que aquelles que se submetteram como Marcion, Cerdon e Manes, tinham
á authoridade da Igreja pelo baptismo, e atacado a bondade e unidade de Deus, sup-
que depois violaram as leis do Evangelho, posto no mundo entes maleficos e indepen­
venham sujeitar-se ao juizo da mesma dentes do Sér Supremo, e asseverado ser
Igreja, no tribunal da penitencia, aonde o homem por sua natureza mau c pecca-
ella exercita o poder que lhe foi conferido dor, ou conduzido ao mal por potências,
de perdoar ou reter os peccados. ás quaes não podia resistir.
«Os termos da commissão, que foi dada Pelo mesmo tempo as diflerenles seitas
aos ministros da Igreja para absolverem dos philosophos tinham atacado o Chris­
os peccados, são tão geraes, que sem teme­ tianismo nos seus dogmas e na sua moral;
ridade não se podem reduzir aos peccados oppunham aos christàos os princípios so­
publicos; e como quando elles pronunciam bre que todas as escolas haviam estabele­
a absolvição em nome de Jesus Christo na­ cido o dogma de um destino inevitável, e
da mais fazem que seguir os termos ex­ de uma encadeação eterna, e immutável
pressos d’esta commissão, a sentença se das causas que produziam assim os phe-
julga proferida pelo mesmo Jesus Christo, nomenos da natureza, como também todas
porque são estabelecidos juizes: este pon­ as determinações dos homens.
tifice invisível é quem absolve interjor- O mesmo povo estava possuído da ideia
de uma fortuna cega, que dirigia tudo. Os
1 Dannes, in secundam, secundce queest. gregos pintavam a Timotheo adormecido, c
m im a , art. 10, pag. 121. Collect. conc. cercado d’uma rede, em que as cidades, e
H ard., t. 9, 1498. D'Argentré, Collect. Jud., os exercitos vinham a cahir durante o seu
t. l.° somno. A imagem da fortuna andava nos
2 N at. Alex., cont. Dallium. Saint Mar­ estandartes militares: todas as nações lhe
tes. Traitè de la Confession, etc. levantavam templos, e a honravam como a
PEL 743

deidade quo decidia da sorte de todas, c da brenatural; portanto, deixavam o homem


felicidade dos homens. n’uma impotência absoluta quanto á sal­
Tacs eram os erros que os padres tive­ vação, c ficavam sendo de nenhuma im­
ram de combater durante os quatro pri­ portância; e os padres, sem se contradize­
meiros séculos, c de que a Igreja tinha rem, representavam então o homem como
triumphado: até então não se disputara uma creatura entregue ao crime desde o
nem acerca do peccado original, nem da seu nascimento, c aferrada por um peso
necessidade da graça; e os escriptores, que invencível á desordem, c n’uma imbecili­
haviam defendido o dogma da liberdade dade absoluta para o bem.
contra os marcionitas, manicheus, estoicos Se o tempo não nos tivesse conservado
e outros, não cuidaram cm mais que com­ das obras dos padres mais que as passa­
bater os systemas philosophicos, que he- gens que estabelecem a liberdade do ho­
reges adoptavam, e cm provarem a liber­ mem, não teriamos razão para julgar que
dade do homem por princípios admitli- houvessem crido carecer o homem da gra­
dos pelos seus mesmos adversarios, e in­ ça, a fim de ser justo, virtuoso c christão:
dependentes da revelação; c, n’uma pala­ e se tivessem perecido todas as obras dos
vra, quasi todos tinham tractado da ques­ padres, á excepção d’aquelles logares em
tão da liberdade, como hoje se tractaria que faliam da necessidade da mesma graça,
contra Hobbes, c contra Collins. não teriamos julgado que elles tivessem
A necessidade da graça, e a maneira crido ser o homem livre, antes pelo con­
com que cila obra, não tinha sido de ne­ trario, seriamos authorisados para pensar
nhuma consideração em todas estas con­ que olhavam o homem como um escravo
troversias, c os christãos, que defendiam a do peccado.
liberdade contra taes inimigos, pretendiam Os diversos modos com que os padres
e deviam achar no mesmo homem recur­ tinham fallado da graça c da liberdade,
sos para resistir ao vicio e á culpa, para a deviam, pois, fazer negar a liberdade, ou a
qual queriam seus adversarios que clle necessidade da graça, por pouco interesse
fosse arrastado necessariamente. O mesmo que houvesse cm exaggerar as forças do
Sancto Agostinho diz que não se deve fal­ homem, ou diminuil-as; porque o interesse
lar da graça aos que não são christãos. > ou o desejo que temos de estabelecer um-
Os padres que em seus discursos e homí­ cousa, aniquila, por assim dizer, aos nosse
lias haviam tractado da liberdade para des­ olhos tudo o que lhe c contrario, c n?
truir a ideia da fortuna e do destino, deixa subsistir para nós o que lhe é favi
que divagava no povo, ou para combate­ ravel, porque fixa a nossa attenção sobr
rem os marcionitas, manicheus, etc., não estes objectos. Assim, pois, foi conduzidi
fallaram da graça; tiraram suas provas da Pelagio ao erro. que d’clle tirou o nome.
historia, do espectáculo da natureza, da Como pelos fins do quarto século e princí­
mesma razão e da experienda: mas quan­ pios do quinto iam muitas pessoas visitar
do tinham de fazer sensível aos christãos os logares sanctos, as peregrinações fize­
tudo o que devem á bondade e misericor­ ram conhecer ao Occidente as obras dos
dia de Deus, quando se propunham repri­ padres gregos. Estes haviam impugnado
mir o orgulho ou a vaidade, quando que­ os manicheus, a fatalidade dos philosophos,
riam fazer sentir ao homem a sua depen­ o destino e a fortuna do povo: e Rufino,
denda e todo o poder de Deus, ou, final­ que assistira por largo tempo no Oricute, ti­
mente, quando tinham de provar aos in­ nha muitas, e traduziu grande parte d’el-
fiéis as vantagens da religião christã, e a las; e por meio d’estas traducções, por seus
necessidade de abraçal-a, então ensinavam conhecimentos, e por seu porte, adquiriu
que o homem nascia* cm culpa, e que não grande estima. Por este mesmo tempo sa-
podia por si mesmo reconciliar-se com hiu Pelagio de Inglaterra a visitar os loga­
Deus, nem merecer a felicidade que clle res sanctos; foi a Roma, e travou amizade
destinava aos fieis. com Rufino: leu muitos dos padres gregos,
Então consideravam o homem destinado e principalmente a Origenes.
a um fim sobrenatural, a que não podia Pelagio, que nascera com um espirito
chegar, senão por acções de um mereci­ ardente c impetuoso, não divisava meio
mento da mesma ordem. A liberdade do entre o excesso e o defeito, e cria que sem­
homem, suas forças e seus recursos, por pre ficava em divida quem não tocava nos
meio das faculdades naturaes, nunca po­ apices da perfeição: tinha dado todos os
diam elevar-se ás acções de uma ordem so- seus bens aos pobres, e fazia profissão de
grande austeridade de costumes. Em su-
1 Aug. De nat. et grat., c. 68. geitos d'esta tempera o zelo da salvação do
744 PEL
proximo de ordinario anda a par do dese­ o mais habil dos seus sectarios; » porém,
jo de trazer a todos aos seus sentimentos, não fazendo alli grande demora, partiu
e ao seu modo de viver c de pensar: e as­ para o Oriente, deixando cm Africa a Ce­
sim fazia Pelagio vivas e urgentes cxhor- lestio, que assentou sua residência em Car­
taçõcs a todosj para que se dessem á alta thago, onde ensinou as opiniões do seu
perfeição que elle professava.1 mestre.
Como lhe respondiam muitas vezes que Paulino, diacono de Carthago, citou Ce­
nào era concedida a todos a graça de o lestio para comparecer n’um concilio con­
imitarem, c se escusavam muitos com a gregado em Carthago, e o accusou de sus­
corrupção e fraqueza da natureza humana, tentar: l.° Que Adão fôra creado mortal,
Pelagio investigou na Escriptura, e nos e que morrería ou tivesse peccado ou nào.
padres quanto podia frustrar estas descul­ 2. ° Que o peccado de Adão só a elle fôra
pas ao peccador; a sua attenção se fixou damnoso, e nào a todo o genero humano.
naturalmcnte n’aquellas passagens cm que 3. ° Que a lei conduzia ao reino celestial,
os padres defendem a liberdade do homem assim como o Evangelho. 4.° Que antes
contra os sequazes do fatalismo, ou repre­ da vinda de Jesus Christo os homens esti­
hendent os christàos da sua adhcsâo ao vi­ veram sem peccado. o.° Que os meninos
cio, ou da sua tibieza no caminho da vir­ recemnascidos estão como Adão antes da
tude. Dcsappareceu de diante dos seus sua queda. G.° Que todo o genero humano
olhos tudo o que provava a corrupção hu­ não morreu pela morte e prevaricação de
mana, ou a necessidade da graça; c por­ Adão, da mesma sorte que não rcsuscitou
tanto, creu que sómente se seguia a dou­ pela resurreição de Jesus Christo. 7.° Que
trina dos padres, ensinando-se que o ho­ o homem nasce sem peccado, e que, se
mem por suas proprias forças podia ele­ quizer, póde com facilidade obedecer aos
var-se ao mais alto grau da perfeição, e mandamentos de Deus.
ue não se desculpava com a corrupção 0 concilio de Carthago condemnou a
a natureza o seu apego aos bens do mun­ doutrina de Celestio, o qual obrigado a dei­
do, e sua indifferença para a virtude.2 xar a Africa, passou outra vez á Cicilia,
onde se occupou em defender os seus er­
ros. 2
DE PELAGIO E SEUS DISCIPULOS, DESDE O NAS­ Pelagio, que então estava em Jerusa­
CIMENTO DO SEU ERRO ATÉ AO TEMPO EM lém, publicou varios escriptos em que pro-
QUE JULIANO SE FEZ CHEFE DOS PELAGIA- pugnava os seus sentim entos,3 mas con­
NOS. fessava que bem que nenhum homem, ex­
cepto Jesus Christo, tivesse existido sem
culpa, nào se seguia d’aqui que isso fosse
Acabamos de vér o primeiro passo que impossível. Protestava não disputar do fa-
Pelagio deu para o seu erro: como em Ro­ cto, mas da possibilidade, e reconhecer que
ma havia muitas pessoas que Rufino im­ só pela graça ou com os auxílios de Deus
buira nos mesmos sentimentos, e como podia o homem estar sem peccado. •
Pelagio era sobremaneira sagaz e versado Desagradou esta doutrina a muita gente
nas argucias da arte da disputa, fez alli em Jerusalcm. João, bispo da mesma cida­
muitos discipulos.3 de, convocou uma assembléia, á qual cha­
Comtudo, varias pessoas se escandalisa- mou tres sacerdotes latinos, Avito, Vital, e
ram da sua doutrina, tendo que Pelagio Osorio, achando-se então este ultimo cm
lisongeava em extremo o orgulho humano, Belem com S. Jeronymo; e como se tinha
e que a Escriptura nos fallava mui diver- achado em Africa no tempo da condemna-
samenle do homem, a qual nos ensinava ção de Celestio, referiu á assembléia o que
não haver um só que fosse justo; que a na­ contra elle se passára em Carthago, c leu
tureza humana estava corrompida, que de­ também uma carta de Sancto Agostinho
pois do peccado de Adão não podíamos fa­ contra os erros do mesmo Celestio.
zer nenhuma obra sem o auxilio da graça, Pelagio declarou que cria que o homem
e que d’esta maneira é que os padres es­ sem graça não podia existir sem culpa, mas
creviam.
Tomada Roma pelos godos, Pelagio sa- 1 An. 410.
hiu d’ella, e foi para África com Celestio, 2 Aug. de Peccat. Ovigin. c. 2, 3, 4. Ep.
89. Cone. Carth. Ep. ad. Jun. Ep. 88, inter
1 Aug. de Peccat, mèrít. I. 2, c. 16. Aug. de Gestis Palestin Prosp. contr. Tert.
2 Aug. de Nat. et Grat. de lib. Arbítr. 3 Aug. de Grat. Christ. c. 37. Oros.
3 Aug. Ep. t. 2, edit. Benedict. Âpol. pag. 662.
PEL 745
que isso lhe não era impossível com o soc- a natureza c assaz forte por si mesma para
corro da graça. O concilio tornou a enviar vencer os peccados e observar as leis de
o jnizo de Pelagio ao papa Innoccncio, c Deus; e que negasse que o menino era ti­
lhe impôz silencio.1 rado da perdição pelo baptismo de Jesus
No mesmo anno houve outro concilio Christo.»
na Palestina, onde se acharam quatorze Escreveram os bispos ao papa Innocen-
bispos.2 Horos c Lazaro deram a Eulogo, cio para o informarem do que haviam feito
arcebispo do Cesarea, uma denuncia por contra Pelagio e Celestio, a fim de que se
escripto contra Pelagio, a qual continha unisse a elles na condemnação do erro de
varias proposições, cm que elle parecia ne­ Pelagio. 1 O concilio provincial de Numi­
gar a necessidíide da graça, dizer que um dia, celebrado cm Milevo, e composto de
menino podia salvar-so sem o baptismo, e sessenta c um bispos, condemnou também
sustentar que o homem podia viver sem o erro de Pelagio, e escreveu ao papa
peccado. como o de Carthago; Innocencio approvou
Compareceu Pelagio no concilio, reco­ o juizo dos bispos d’Africa, condemnando
nheceu a necessidade da graça, disse ha­ Pelagio e Celestio.2 Considerando-se estes
ver sustentado que o homem podia, estar com cficilo perdidos se a condemnação
sem culpa, mas affirmou que dissera sél-o subsistisse, Pelagio escreveu ao papa. e Cc-
tão sómente pela graça, e negou jamais ha­ lestio partiu para Roma, a fim de fazer le­
ver proferido que os meninos se podiam vantar a excommunhão fulminada contra
salvar sem baptismo. O concilio approvou ambos.
-as respostas de Pelagio, e o declarou di­ Era morto Innocencio quando Celestio
gno da communhão da igreja catholica.3 chegou a Roma. e Zozimo occupava então
E antes de publicadas as actas d’cste con­ a cadeira pontificai. A este offereceu Ce­
cilio, escreveu Pelagio a um dos seus ami­ lestio uma representação, a qual continha
gos, dizendo-lhe que os seus sentimentos a exposição da sua fé, em que elle se es­
tinham sido approvados, fazendo este pu­ tendia muito sobre todos os artigos do
blicar a sua carta; comtudo não se duvi­ symbolo, desde a Trindade e unidade de
dou que elle houvesse negado interiormen­ Deus até á resurreição dos mortos, acerca
te a necessidade da graça. do que por ninguem era accusado, c de­
Pelagio, para se justificar, compôz uma pois, vindo aos artigos da disputa, que elle
obra sobre o livro arbitrio, na qual reco­ tractava por questões problemáticas e não
nhecia differentes sortes de graças neces­ por artigos de fé, protestava não abraçar
sarias ao homem para obrar bem; mas da­ senão o que bebera nas fontes dos aposto­
va o nome de graça ou a isto a que cha­ los e dos prophetas, más declarando toda­
mamos dons naturaes, como a exislencia, via que se submettia ao juizo do papa, e
o livre arbitrio, e a intelligcncia, ou aos que queria corrigir os pontos em que Zo­
soccorros exteriores, quaes são a lei, que zimo o julgasse enganado. Ignoramos como
nos dirige, a revelação, que nos instrue, e elle se exprimia acerca da graça c do pec­
o exemplo, que nos anima c nos sustenta. cado original. Confessou ser necessario ba-
Também reconhecia haver graças interio­ ptisar os meninos para a remissão dos pec­
res, mas cria que estas não eram mais que cados, e comtudo sustentava que a heran­
as luzes, que esclarecem o entendimento, ça da culpa pelo nascimento, era contraria
e que nem necessarias eram para practi- a fé, e injuriosa ao Creador.3
car o Evangelho com mais facilidade.4 O papa Zozimo reuniu uma assembléia
Os bispos d’Africa, juntos em Carthago, de bispos c de sacerdotes, examinou o que
foram informados pelas cartas de Heros e se havia feito contra Celestio, e condemnou
<le Lazaro, da doutrina de Pelagio, e do os seus sentimentos, approvando a resolu­
progresso que ella fazia no Oriente: o con­ ção em que elle estava de se emendar, por­
cilio fez lér o que se determinara contra que, diz Tillemoncio, «bem pôde estar o
Celestio, quasi cinco annos antes; conde- coração catholico, c haver sentimentos con­
mnou de novo Pelagio e o mesmo Celestio, trarios ã verdade, uma vez que estes não
e pronunciou anathema contra «todo o ho­ sejam defendidos como cousas seguras, e
mem que combatesse a graça assignalada que haja a disposição de os condemnar,
pelas orações dos sanctos, asseverando que

1 Oros. Apol. 1 Aug. Ep. 90, 94, 95.


* An. 115. 2 Ep. 91, 93.
3 De Gestis Palestinis. 3 Aug. de Grat. Christ. c. 30, 33. De
4• Aug. Ep. 186. Peccat. merit. c. 5, 23.
746 PEL
quando se conheça a sua falsidade»;1 ma­ Os padres africanos informaram o papa
xim a esta cheia de justiça, prudência, e c o imperador do que se passara no con­
caridade, e cuja observância teria atalhado cilio universal d’Africa. Zozimo approvou
muitos males, mas que a ignorância e a os seus decretos; reconhecendo que Pela­
paixão de dominar e de fazer fortuna cui­ gio e Celestio o haviam illudido, cxcom-
daram sempre em fazer vôr como o clTeito mungou-os, condemnou a sua doutrina, c
d’uma indilTerença peccaminosa. dirigiu esta condemnação a todos os bis­
A indulgência‘prudente c christã de Zo- pos do universo, que a approvaram. »
zimo não embaraçou que clle examinasse O imperador Honorio, sabendo que os
com esmero os sentimentos de Celestio; bispos africanos tinham condemnado o pe-
este fez-lhe todas as perguntas que podiam lagianismo, ordenou que os pelagianos fos­
illustral-o acerca da sua sinceridade, e fi­ sem tractados como hereges, e que Pelagio
nalmente lhe perguntou se condemnava c Celestio fossem expulsos de Roma por en­
os erros de que o público o criminava: sinarem erros condemnados pela Igreja, c
Zozimo respondeu que os condemnava, se­ que perturbavam a tranquillidado pública,
gundo o sentimento do papa Innocencio. determinando além d’isto que se publicasse
A submissão apparente de Celestio, o em todo o imperio que os magistrados re­
fracto que a Igreja podia tirar dos seus cebessem a denuncia de qualquer pessoa,
talentos, e a compaixão que merece o er­ que diante d’elles accusasse a alguém de
ro, conduziram Zozimo a não o condemnar, seguir a mesma doutrina, e que os con­
porem não levantou a excommunhão pro­ vencidos fossem exterminados. Pelagio foi
ferida contra elle. Escreveu o papa aos expulso de Jerusalem, e não se sabe nem
bispos d’Africa, não, dizia elle, porque não quando nem onde morreu.
soubesse na verdade o que deveria obrar,
mas por fazer a todos os seus irmãos a
honra de deliberar com elle acerca do DOS PELAGIANOS, DESDE QUE JULIANO, BISPO
modo como se devia tractar um homem, ECLANENSE, SE ERIGIU SEU CIIEFE, ATÉ Á
que primeiro fôra accusado diante d’elles: SUA EXTINCÇÃO.
arguia-os de haverem obrado n’este as­
sumpto com demasiada precipitação, c de­
clarava que, se no termo de doús mezes 0 imperador tinha publicado uma lei
não viessem a Roma accusar Celestio, elle em que obrigava a todos os bispos a assi­
o teria por catholico, á vista das declara­ gnarem a condemnação de Pelagio; foi esta
ções tão acertadas e tão manifestas, que o a primeira vez que se viu pedirem os im­
mesmo Celestio havia feito. 2 peradores uma assignatura geral dos bis­
Pelagio, na sua carta ao papa Zozimo, pos, e é verosimil que Zozimo não esperas-
reconhecia o peccado original e a necessi­
dade da graça ipais clara mente que Celes­ ajuda em mais que em nos fazer conhecer
tio, e o papa também d’isto informou os nossos deveres, c não em nos dar poder para
bispos africanos. Então Aurélio, bispo de cumprir os mandamentos pelas forças do
Carthago, recebidas que foram as letras livre arbitrio sem soccorro da graça.
de Zozimo, convocou os bispos das provin­ 4. ® Os que dissessem que a graça nos era
cias circumvisinhas; escreveu a Zozimo concedida sómente para fazei' o bem com
para que suspendesse a sua decisão, e no mais facilidade, porque absolulamente se
seguinte anno se congregaram os bispos podem cumprir os mandamentos pelas'for­
em numero, de duzentos e quatorze, c fize­ ças do livre arbitrio, e sem os soccorros da
ram. sete canones contra os pelagianos.3 graça.
5. ® Os que dissessem que só por humilda­
1 Tillemontj liist. Eccles., t. 13, pag. de eram obrigados a chamar-nos peccado-
720. res.
2 Mercator, Commonit. c. 1. 6. ®-Os que dissessem que ninguem era
3 Condemnaram por estes sete canones: obrigado a dizer—perdoai-nos nossos pec-
1. ° Quem dissesse que Adão fôra creadocados—por si mesmo, mas sómente pelos
m ortal, e que a sua morte não fôra a pena que são peccadorcs.
do peccado, mas uma lei da natureza. 7. ® Que os sanctos não devem dizer as
2. ° Os que negassem deverem-se bapti-mesmas palavras senão por humildade. (Aug.
sa r os meninos, ou que convindo em que Ep. 47. Cone. t. 2, pag. 1021.)
devem baptisar-se, sustentassem comtudo 1 Aug. de Peccat. Origin. c. 3. Aug. aa
que nasciam sem culpa original. Bonif. c. 4. Ep. 47. Marins Mei'calor. Com­
3. monit.
® Os que dissessem que a graça não nos c. 1.
PEL 747
sc a lei para os obrigar a esta subscripção. so, retirou-se ao mosteiro de Lcrins; de­
Dezoito bispos dTtalia, á testa dos quaes pois passou á Cicilia, aonde morreu na ob­
sc póz Juliano, bispo de Eclana, na Cam­ scuridade e na miséria. 1
pania, recusaram a assignatura da carta Outros discipulos de Pelagio tinham pas­
de Zozimo, tendo que não podiam cm con­ sado a Inglaterra, aonde tiveram sequito
sciência ser condemnadas pessoas ausen­ os seus erros. Os bispos das Gallias man­
tes,, cujas razoes elles não tinham ouvido, daram lá S. Germano, bispo de Auxerre,
e que por seus cscriptos haviam conde- c S. Lopo de Troye, os quaes desimagina-
mnado os erros que lhes imputavam, c as­ ram das suas erroneas opiniões aquellcs
sim declararam que ficariam cm perfeita que os pelagianos haviam allucinado.2
neutralidade acerca da condemnaçào de
Pelacio.
Juliano com os seus adherentes foi de­ DA RAZÃO PORQUE
posto, c então se declarou este bispo ca­ SE EXTINGUIU O PELAGÍANISMO
beça dos pelagianos; pediu ao imperador SEM PERTURBAR O ESTADO
juizes ecclesiasticos, escreveu ás igrejas
do Oriente, c defendeu por seus escriptos
os sentimentos de Pelagio: 1 e debaixo da Tal foi o fim do pelagíanismo, um erro
direcção do novo chefe mudou de láce o dos mais especiosos, e ensinado por ho­
pelagíanismo. mens da primeira ordem, ao passo que
Haviam asseverado estes sectários que dous velhos avarentos, dous clérigos am­
o dogma do peccado original era contra­ biciosos, e uma mulher vingativa e rica ti­
rio á justiça e á sanctidade de Deus, e que nham formado em Carthago o scisma dos
se a concupiscencia era um mal e um ef- donatistas, que se extinguiu sómente de­
feito do peccado, c cm summa, que sc os pois d’um" século, e que assolou a Africa
meninos nasciam todos em culpa, como inteira. Sc a principal utilidade da,histo­
ucriam os adversarios, forçosamente se ria consiste em nos patentear as causa
everia dizer que o casamento, que é o ef- dos acontecimentos, talvez não seja inul
1 feito, e que vem a ser a origem d’estc pec­ confrontar os affectos e a duração do sei
cado, é um mal e uma desordem. ma dos donatistas com a extineção subii
Saneio Agostinho havia respondido a dos pelagianos.
esta objecção no primeiro Livro do casa­ Quando Lucila formou a cilada, que deu
mento e da concupiscenda: Juliano leu-o, principio ao scisma dos donatistas, o Chris­
e insistiu em que os princípios de Sancto tianismo principiava então a gosar- da paz
Agostinho conduziam ao manicheismo; pas­ e do socego, os christãos estavam cheios
sou a querer provar que nos catholicos, de zelo e tranquillos, e portanto, dispostos
não menos que no systema dos manicheus, todos os animos para se entregarem ao
era mau o casamento: que o homem no primeiro que os quizesse interessar; assim
systema do peccado original, assim como havia d’engrossar-se subitamente um par­
no de Manes, nascia determinado ao mal: tido que nascia, escandecer-se, e tornar-se
que se o menino nascia em peccado, e di­ fanatico; e por isso foram bastantes para
gno do inferno por uma culpa, que não po- produzir em África um scisma perigoso, a
'âia haver evitado, era necessário que o fortuna e a vingança de Lucila.
1 Deus dos catholicos fosse tão mau como o Em muitas outras circumstandas veio á
mau principio dos manicheus. 2 luz o pelagíanismo. Quando Pelagio ensi­
Estas objecções manejadas por um ho­ nou os seus erros, a Italia estava assolada
mem como Juliano, deslumbraram a mui­ pelos godos: Roma, muitas vezes posta eni
tos, mas os sábios escriptos d’um Sancto sitio por Alarico, sómente á força de gran­
Agostinho, a vigilância c o zelo do papa des contribuições se salvára do saque, e o
I Celestino e de S. Leão, rebateram o pro­ poder de Alarico, sempre maior que o do
gresso dos erros de Juliano. Este chefe da imperador na Italia, fazia recear a Roma
seita discorreu por todo o Oriente sem po­ novas calamidades; as pessoas de maior
der desapegar a ninguem das decisões e respeito haviam sahido d’ella, e os ânimos
sentimentos dos concilios africanos, e con- estavam consternados e abatidos.
demnado assim como Nestorio no de Ephe- 0 scisma dos donatistas, de que ainda

I

1 Aug. in Iuliant Í..1 , c. 4. Mercator,
commonit. c. d. Aug. op. imperfect. I. 1, c.
18.
existiam restos, consumira d'alguma sorte

1 Norisj Hist. Pelag. I. 2, pag. 17.


2 Prosper, Chronie. Tillemont, l. 15.
2 Aug. in Julian. Hist. Litter. de France, t. 2, pag. 250, 259.
748 PEL
o fanatismo; a lembrança cTaquellcs furio­ 0 pelagianismo, tal qual Pelagio o oíTe-
sos sectarios inspirava temor e precaução recia, e nas circumstantias cm que appa-
contra tudo o que podia suscitar um novo receu, não podia, pois, formar um partido
scisma: e portanto, íião achou Celestio o ou unia seita, e nao devia passar d’uma
calor e o gosto da novidade, que dispõem opinião ou d’um systema, c entre as pes­
os animos, e que até são necessarios para soas que raciocinavam, havia de ser dis­
fazer abraçar com ardor e sustentar com cutido e contrastado com o dogma da Igre­
efficacia uma opinião nova e trazida por ja acerca da necessidade da graça, e dar
algum estrangeiro. occasião ao nascimento do semi-pclagia-
Pelagio, que passára ao Oriente, não po­ nismo.
dia explicar-se senão por meio d’intcrpre- pelagianism o — Heresia de Pelagio; este,
tres, o por consequência cra-lhc difficil es­ por meio de suas exhortações, tinha condu­
pargir os seus erros, e dar nome e luzi- zido muitas pessoas a abandonarem as es­
mento ao seu partido: e Sancto Agostinho, peranças do século, c a consagrarem-se a
que já de muito tempo e ra ta gloria c o Deus: ardia em zelo pela salvação do pro­
oraculo da Africa impugnava o pclagianis- ximo, e tracta va com muita dureza c des-
mo com um zelo, superioridade e força, a prêso os que não fazendo pela sua mais
que a habilidade e destreza de Pelagio, de que debeis esforços, queriam escusar-se
Celestio, c de Juliano não podiam resistir. com a fraqueza humana: encolcrisava-se
O pelagianismo foi Condemnado pelos contra elles, e para os deixar sem escusa,
concilios d’Africa, e a decisão d’estes ap- entrou a exagerar as forças da natureza,
provada pelo papa Zozimo e por toda a sustentando que o homem* podia praclicar
Igreja. O cabimento que tinha Sancto Agos­ a virtude, e subir ao inais alto grau da
tinho com o imperador, e o receio de que perfeição.
o império tornasse a soíTrer novas divi­ Não* havemos d’imputar á corrupção da
sões, fizeram tractar os pelagianos como natureza, dizia elle, as nossas culpas c ne­
os outros hereges, e abafaram esta seita gligencias: ella sahiu pura e isempta de
no Occidente. corrupção das mãos do Creador: nós é que
Quando Juliano e os outros bispos adhe­ tomamos por corrupção inherenle á natu­
rentes ao pelagianismo passaram ao Orien­ reza os habitos viciosos que contrahimos,
te, acharam os entendimentos quasi todos e incorremos n’uma injustiça.que os mes­
divididos entre os catholicos e os arianos, mos pagãos evitaram; sem razão, dizia um
e cheios de rancor uns contra os outros; o d’elles dos mais illuminados, se queixa o
nestorianismo começava também então a genero humano da sua natureza. 1
fazer estrondo, e portanto achou Juliano Escandalisou esta doutrina, achando-se
todos os espíritos occupados e entregues a que Pelagio lisongeava nimiamente o or­
um partido, c cheios de tal interesse, que gulho humano; que a Escriptura nos fal-
não lhes permittia tomarem. quanto era lava mui diversamente do homem, que nos
.necessario para sustentar o pelagianismo ensinava não haver nem um que justo
contra a igreja latina e contra as leis im- fosse, estar corrompida a natureza, não
periaes. podermos fazer acção boa sem a graça de­
Demais d’isto, qualquer partido sómente pois da primeira culpa, e que esta ora a
vem a ser sedicioso quando o povo o toma doutrina dos padres que tractaram do ho­
com calor, e a doutrina de Pelagio não era mem. 2
propria para o fermentar; elle realçava a Portanto, reduzida a disputa a tres pon­
liberdade do homem, é negava a sua cor­ tos, impugnava-se contra Pelagio: i.° que
rupção original, mas para obrigal-o a uma fosse possível viver o homem sem culpa;
rande austeridade; fazia depender só do 2.° que a natureza não estivesse corrom­
f omem a sua virtude e a sua salvação, pida depois de Adão; 3.° que o homem po-
mas só para lhe lançar em rosto mais des- désse fazer boas acções sem a graça.
abridamente os seus defeitos e peccados, Assim, Pelagio, para defender seus sen­
e tirar-lhe toda a escusa se não se corri­ timentos, viu-se necessitado a provar que
gisse: ora o povo prefere um dogma que o homem podia estar sem culpa, que a sua
o humilha, mas que desculpa os seus vícios natureza não se corrompera, e que a gra­
e defeitos, a um systema que lisongeia a ça não era necessaria para evitar o pec-
sua vaidade; Pelagio, para fazer entrar o cado, ou para practicar a virtude.
povo nos seus intéresses, havia de dimi­ Emfim, Pelagio, forçado a reconhecer a
nuir as suas obrigações, exaggerando as
forças do homem, e o seu systema propu­ 1 A uq. loc. cit. de pec. inerit.
nha inteiramente o contrario. 2 Jbid.
PEL 749
necessidade da graça, asseverou não ser o homem não deve estar sem peccado, ha
cila mais que a nossa exislcncia, o livre de ser peccador, e não será por sua culpa,
arbitrio, a pregação do Evangelho, os mi­ uma vez que o supponhamos necessaria­
lagres, c os bons exemplos. mente tal.
Eis-aqui os quatro princípios que for­ 3.° Se o homem não póde estar sem pec­
maram o pelagianismo, o quo conduziram cado, ou pccca por necessidade da sua na­
o entendimento a muitas outras questões tureza ou por uma escolha livre da sua
accessorias, as quaes, porém, não foram vontade: se é pela necessidade da sua na­
da essência do pelagianismo, nem sobre tureza, já não é culpado, c portanto não
cilas decidiu a Igreja. Vejamos pois estes pecca; se é por uma livre escolha da sua
pontos defendidos pelos seus sequazes, c vontade, póde, logo, durante a sua vida,
impugnados pelos catholicos. evitar a culpa. 1
Os catholicos combatiam este erro com
PRIMEIRO ERRO DE PELAGIO a authoridade da Escriptura, que em mil
logares nos ensina que não ha homem sem
PRINCIPIO FUNDAMENTAL DO PELAGIANISMO peccado, e que todo o que ousar dizer que
está sem elle se engana e se allucina a si
O homem pôde viver sem peccado mesmo; 2 e á authoridade da Escriptura
ajuntavam o sentimento unanime dos pa­
Os que presumem escusar seus pccca- dres, que todos reconheciam não poder vi­
dos com a imbecilidade da natureza, são ver o homem sem commetter algum pec­
injustos: não ha cousa neni mais clara cado. 3
nem mais repetidamente prescripta aos ho­ Não é isto porque haja algum peccado,
mens na Escriptura, como a obrigação de ao qual esteja determinado o homem por
serem perfeitos: «Sede perfeitos, diz" Jesus sua natureza ou por um poder invencível,
Christo, como é vosso pae celestial.—Qual pois que nenhum ha que elle não possa
é, Senhor, diz David, o que ha de habitar evitar cm particular; mas porque, para
nos vossos tabernaculos?—Aquelle que an­ evital-os todos sem excepção, se necessita
da sem mancha, c segue o caminho da jus­ d’uma vigilância contínua," de que o ho­
tiça.—Obrai tudo sem murmurar c sem mem não é capaz.
hesitar, diz S. Paulo, a fim de serdes irre- 0 homem, obrigado a tender a uma per
prehensiveis e simples, como filhos de Deus feição, que não póde esperar, faz por ell
puros e sem culpa.» esforços, que aliás não faria, adquire vir
Em mil outros logares da Escriptura tudes, que não teria adquirido, c evita pec-
está prescripta esta obrigação, c se nós cados, que não teria evitado, e portanto ó
não podemos cumpril-a, ou aquelle que a cheia de sabedoria a lei que obriga o ho­
prescreveu não conhece a fraqueza huma­ mem á perfeição; as faltas que escapam á
na, ou se a conhece é injusto c barbaro vigilância humana não são irremissiveis, e
em nos castigar, Deus n’esta opinião não por isso os catholicos que sustentam não
nos teria dado leis para nos salvar, mas poder o homem viver sem culpa, não fa­
sim para ter criminosos que punir; 1 e zem a Deus um ente injusto c barbaro,
para reduzirmos a questão a mais breves que obrigue o homem a cousas impossíveis
termos, diziam os pelagianos: é necessario para ter criminosos que punir.
que esses que presumem não poder viver A doutrina dos catholicos contra Pelagio
o homem sem culpa, nos respondam: ácerca da impossibilidade que o homem
•l.° Que cousa é peccado em geral, e se lem d’evitar todos os peccados durante a
este se póde evitar ou não? Se não póde evi- sua vida, era a de toda a Igreja; c o sen­
tar-se não ha mal em o commetter, e nem timento de Pelagio sobre a possibilidade
a razão nem a justiça permittem se chame foi condemnado nos concilios celebrados
peccado o que do nenhuma maneira se no Oriente, por mais bem dispostos que se
póde evitar; e se o homem póde evital-o, achassem os animos n’aquellas assembléias
póde portauto estar toda a sua vida isem- para com a pessoa do mesmo Pelagio. Este
pto d’elle.
2.° Havemos também de porguntar-lhes 1 Definitiones Celestii, Gamicr, Appen-
se o homem deve estar sem culpa: ao que dic. 6. De Scriptis pro Hcuresi Pelag. c. 3,
elles por certo responderão que sim: mas pag. 384.
se deve, póde; e senão póde, não deve. Se 2 Proverb. 24. Joan. I, v. I.
3 Origen. in Ep. ad Bom. Cyprian.j etc.
1 Pelag. Ep. ad Demetriad. apud Hie- Vide Vossius, Hist. Pelagian. NoriSj Gar-
ron, t. 4, pag. 19. nicr.
48
7 50 PEL
mesmo se viu obrigado a condemnata, e As ceremonias da Igreja, o baptismo, c
depois foi também proscripta no concilio os exorcismos, provavam ser a crença do
milevetano, e esta condemnação approvada peccado original tão antiga como a mesma
pelo papa e por todas as igrejas. Igreja; e n’ella era tão explicita, que Ju­
liano lançava em rosto a Sancto Agostinho
SEGUNDO ERRO DE PELAGIO servir-se contra clle até do assenso dos ar­
tifices e do povo. i E finalmente ainda hoje
NÃO HA PECCADO ORIGINAL todas as communhões separadas ha mil
mil e cem, c mil duzentos annos, reconhe­
Provavam os catholicos o peccado origi­ cem o dogma do peccado original. -
nal pela Escriptura, pela tradição, e final­
mente pela experienda; e Pelagio, para
sustentar o seu sentimento contra elles, as­
severou que interpretavam mal a Escri­ REFUTAÇÃO DAS RESPOSTAS DOS PELAGIANOS
ptura; apoiou-se com a authoridade da tra­ E SOCINIANOS
dição, e atacando o dogma do peccado ori­ ÁS PROVAS QUE ACABAMOS D’OFFERECER
ginal, insistiu em que cllc era absurdo c
injurioso a Deus.
Os socinianos renovaram os erros de Pe­ d.° Tiveram os pelagianos c socinianos
lagio a este respeito; c os inimigos da reli­ que todas as passagens que afiirmam ter­
gião voltaram contra ella mesma todas as mos peccado cm Adão, somente significam
objecções dos pelagianos e dos socinianos. haver ellc dado a todo o genero humano o
Portanto importa muito elucidar esta ques­ exemplo do peccado; que todos os homens
tão. o imitaram, e que n’este sentido é que to­
PROVAS QÜE ESTABELECEM
dos peccaram cm Adão.
O DOGMA DO PECCADO ORIGINAL Mas não padece ddvida, pela passagem
extrahida de S. Paulo: l.° Que todos os
homens morrem em Adão, e que esta mor­
Moysés ensina-nos que Adão peccou, e te é uma consequência do peccado do pri­
que foi expulso do Paraizo. David reconhe­ meiro homem. 2.° Que todos são culpaveis
ce que fôra formado na iniquidade, e que d’este peccado, e que elle é tão extenso
sua mãe o concebera na culpa. Job decla­ como o imperio da morte, bem que os ho­
ra que ninguem é isempto da impureza, mens não hajam feito acção alguma, e que
nem ainda nascido d’um dia. 1 ' S. Paulo conseguintemente o peccado original não
ensina que o peccado entrou no mundo é uma imitação do peccado de Adão. 3.° É
por um homem, e a morte pelo peccado, e claro pela Escriptura que nascemos filhos
que assim gé transcendente e morte em to­ da ira, odiosos aos olhos de Deus, c que
dos os homens, havendo peccado todos em por consequência o peccado de origem não
um só; e repete que pela culpa d’um só é uma simples privação das vantagens
homem cahiram todos na coudemnação, e adherentes ao estado da innocencia, taes
que todos nascemos filhos da ira. 2 qual' é a immortalidade, o imperio sobre
Em nós mesmos temos provas da cor­ nossos sentidos, etc., como querem os so­
rupção original da natureza humana. Deus cinianos; mas que o peccado original é um
formou o homem immortal, esclareceu o peccado que prejudica a alma do homem,
seu entendimerito, e deu-lhe um coração e que o torna odioso a Deus.
recto; e nós, pelo contrario, nascemos sub­ 2.° Oppoem a estas provas os pelagianos
mergidos nas trevas, propensos para o e socinianos uma passagem do Deuterono­
mal, e sujeitos a mil enfermidades, que mio. que diz que os filhoà não morrerão
nos afíligem e nos conduzem finalmente á por seus pacs, nem os paes por seus filhos;
morte: temos, pois, provas de facto de ser­ porém aqui tracta-se de uma lei que olha
mos culpados e punidos por causa do pec­ parat filhos nascidos; é uma lei que Deus
cado de Adão. prescreve a homens, que hão de julgar a
Desde Sancto ígnacio até S. Jeronymo, outros homens, e que relação tem uma lei
ue disputava contra Pelagio, todos os pa­ similhante, com as passagens que provara
â res ensinaram este dogm a.3 o peccado original?

i Genes. Psalm. 50, v. 7. Job. c. 14, v. 4.


2 Ad. Rom. 5. Ad Ephes. 2. 1 Aug. I. 2. Op. im p e r f e c tc. 181, l 5,
3 Acham-se todas estas passagens emc. 131.
Vossius, Hist. do Pelagian. p. 1. lhes. 6. 2 Perpet. de la Foi, t. 3, ?to fim.
:L 751
3. ° Juliano objectava a Sancto Agostinho
dres tinham testimunhado alguma propen­
•uma passagem, em que diz S. Paulo que são para a doutrina de Pelagio. 1
todos havemos de comparecer diante do
tribunal de Jesus Christo, para sermos jul­
gados segundo o bem ou mal que cada OBJECÇÕF.S DOS PELAGIANOS E SOCINIANOS
qual tiver obrado, d’onde concluía, que os CONTRA O DOGMA DO PECCADO ORIGINAL
meninos que nào tivessem feito nem bem,
nem mal, nào compareceríam, e que por
consequência nem eram culpaveis, nem Pelagio c Cclestio impugnando o senti­
seriam punidos. D’aqui nasceram todas as mento dos catholicos, disseram quanto se
questões sobre o destino dos meninos, e podia dizer contra o peccado original; c
genero de pena que elíes haviam de sof- tudo se reduz ao que se segue:
frer, questões inúteis (quanto ao essencial Uma creatura que nào exista, nào póde
das controversias, que dividiam os calho- ser cúmplice d’uma acção má, e é uma cou­
Jicos c pelagianos) sobre as qüaes nem sa injusta punil-a por esta acção. O meni­
Sancto Agostinho ousara aílirinar cousa no que nasce seis mil annos depois do pri­
alguma, nem a Igreja decidiu. meiro homem, não póde nem consentir no
Porém nada provava Juliano por esta seu peccado, nem reclamar contra a sua
passagem de S. Paulo, pois é certo que o prevaricação; e como é possível que Deus
Sancto nào exclue os meninos, c quando justo, bom"e tão misericordioso, que perdóa
os excluísse, o mais que d’aqui se segui­ aos que o imploram os peccados que com-
ría, é nào serem elles culpa veis de algum melteram livremente, lhe impute um, que
.peccado actual, e nào que o nào sejam de elle nào póde evitar, e cm que não teve al­
original. guma parte? 2
4. ° Os pelagianos e socinianos teem pa­Não se ha de crér que a resposta que
ra si que o baptismo nào é conferido para dão a estas objecções, dizendo que o pecca­
remiítir um peccado, mas para associar o do original foi transcendente a toda a pos­
homem á Igreja christã, e dar-lhe o direito teridade de Adão, possa evadir a sua for­
.á felicidade, que Deus destina aos que vi­ ça, porque nós nào recebemos dos paes se­
vem na Igreja de Jesus Christo. Ao que não o corpo, e este não 6 capaz du pecca­
respondem os catholicos que a Escriptura do: o peccado reside na alma, e esta sahe
e a tradição nos ensinam que o baptismo das mãos de Deus pura e innocente. 3
se confere para perdoar peccados, c rege­ Mas quando verdade fosse que a alma
nerar o homem. viesse a contaminar-se pela sua união com
o.° Os pelagianos e socinianos instam o corpo que recebemos de nossos paes, es­
contra esta resposta com a authoridade te ferrete, ou esta corrupção do corpo, e a
dos padres, mas: I.° É certo que Pelàgio união da alma com o mesíno corpo, seriam
c Juliano jamais oppozeram a Sancto Agos­ produzidos por causas independentes do
tinho senão algumas passagens de S. Chrv- menino, c que precederam á sua existên­
sostomo, de S. Bazilio e de Theodoro de cia.
Mopsuestia; e que Saneio Agostinho fez
vêr que d’ellas nada podiam tirar em fa­ RESPOSTA
vor do seu sentimento.1 Demais d’isto, o
que dissemos acerca da origem do erro de
Pelagio, relativamente aos differentes me­ É sem dúvida que o que não existe se­
thodos de que os padres se serviam, se­ não do dia de boje, não póde deterininar-
gundo os diversos objectos de que tracta- sc nem consentir n’um crime commettido
vam, póde servir de resposta ás passagens ha mil annòs: mas os catholicos querem
cm que elles pareciam atacar o peccado que o menino commetlesse a culpa do
•original, e a tudo o que M. Witby mos­ Adão, ou que n’ella consentisse: dizem que
trou que antes de Sancto Agostinho os pa-
1 Witby. De Imputatione divina Peccati
1 Sobre esla maleria podem vêr-se Re­ Adami posteris ejus universis, in 8.° Lon-
marques sur Ia biblioth. de Dupin, in 8.° don, 1711.
a Paiis, 1692, t. i.°, aonde se prova que S. 2 Pelag. apud. Aug. de Nat. et grat., c.
Justino, S. Ireneo, Tertulliano e Origenes, 9, 30, l 3. De Peccat, inerit., c. 2, in Ep.
■s e explicaram clarissimamente ácerca do ad Rom. inler opera, Hieron. e no Appen­
peccado original. Veja-se também a Tradi- dix que le Clerc ajuntou á edição de S.
ction de le Eglise sur le Pecchc Original, Aug. pelos padres benedictinos.
■ aParis, 1692, in 12.. 3 Apudl Aug. de Nat. et Grat., c. 54.
* * •
752 PEL
desde o peccado de Adão nascem iodos os to dc toda a sua posteridade? Responde­
homens privados da graça, decahidos dos mos: l.° Que a ignorância cm que Deus
privilégios do estado da innocencia, que a nos deixou acerca d’isto, nào nos authori-
sua alma é cercada de trevas, a sua von­ sa para negarmos uin dogma ensinado na
tade desordenada, e que o estado do ho­ Escriptura, na tradiçao c na Igreja univer­
mem, é a consequência do peccado de Adào. sal; antes bem devemos confessar com Lci-
Os catholicos nào dizem que Deus abor­ bnilz que não temos cabal conhecimento
rece o menino, e o castiga por haver nem do fruclo prolubido, nem da sua ac­
commettido o peccado de Adào, ou por ser ção, nem dos seus efleitos, para que possa­
culpavel d’alguma desordem, na qual ca- mos julgar individualmente sobre este as­
hisse livremente; dizem que o peccado de sumpto. 1
Adào causou nas suas faculdades uma des­ 2.° Sc víssemos ao todo o plano da Pro­
ordem, que se communicou a seus filhos, videncia relativamente ao genero humano,
da mesma sorte que o peccado, c que se estas queixas, estas questões temerarias
transfundiu a todos os homens nascidos nos pareceríam desarrazoadas, ingratas c
por via de'geração, e nào preservados por injuriosas ao Redemptor, que fez uma com­
uma graça especial: assentam, pois, cm fal­ pensação superabundante por todos os da-
so todas as objecçoes dos pelagianos, e dos mnos que resultaram da primeira culpar
socinianos, as quães nào atacam o dogma satisfazendo não só pela original, mas pe­
do peccado original, tal qual a Igreja nol-o las actuaes de todo o mundo.
ensina. Se nós nos queixamos do nosso estado
Mas instar-nos-hão, talvez, e como podem presente, é porque sentimos todos os seus
haver passado á posteridade assim o pec­ inconvenientes, sem conhecermos as suas
cado de Adào, como a desordem que ellc vantagens. Os anjos apóstatas cahiram sem
causou em suas faculdades? A Escriptura, recurso, mas nossos primeiros paes foram
que tào claramente nos ensina o peccado levantados da sua queda: bem que não
do primeiro homem, e que este se commu­ fosse por nossa culpa, nós nos achamos no
nicou á sua posteridade, nào nos explica o fundo do precipício, mas temos um Re­
modo como esta desordem e este peccado demptor que nos tirou d’clle por sua mor­
passaram a seus filhos, e depois a todos os te e por sua graça.
seus vindouros. A doutrina do‘peccado original, como a
.Não podemos, pois, explicar claramentc Igreja catholica a ensina, nào faz, pois, a
como foi esta propagação do peccado ori­ Deus nem author do peccado, nem injus­
ginal, porém também não vèmos que ella to; e todos os argumentos dos pelagianos,
seja impossível, e por consequência o pe- socinianos, armenianos e de Witby, nào
lagiano e o sociniano sem absurdo não po­ teem força senão contra a imputação, no
dem negar o peccado original, porque é sentido de Luthero e de Calvino. As objec-
absurdo negar uma cousa ensinada clara- ções acerca da permissão do peccado de
rnenle na Escriptura, na tradição e na Adão, pertencem ao manicheismq. Yeja-se
Igreja universal, uma vez que não se de­ este artigo e o de M. Marcion.
monstre que esta cousa é impossível.
Porém, replicam os socinianos, não é
evidente que Deus não póde punir senão o DOS D IFFERENTES MODOS DE EXPLICAR
que é volunlario? Deus aborrece essencial- O PECCADO ORIGINAL
menle a desordem, e o peccado original
não deixa de o ser, bem que seja o efleito
de um peccado que o menino nem póde 0 dogma do peccado original é tão im­
uerer, nem prevenir. O peccado original portante na religião por uma parte, e por
esagrada, pois, a Deus, posto que seja ne­ outra tão difficil de comprchender e -de
cessário, e a creatura cm que clle se acha, persuadir, que em todos os tempos se fi­
lhe é odiosa: e porém, nem a aborrece, zeram grandes esforços para explicar a sua
nem a castiga, como uma creatura que vo- natureza, e o modo como ellc se communi-
luntariameute cahiu na desordem: e por cava.
ventura os monstros, na ordem physica, l.° Suppozcram que ás .almas tinham
não desagradam a Deus? peccado em uma vida. anterior á sua união
Mas emGm que razão ha para que toda com o Corpo humano:’ esta opinião imagi­
a raça do primeiro homem ficasse compre- nada pelos platônicos, attribuida a Origc-
hendida na sua queda? Como permittiu nes, c adoptada pelos cabalistas, foi scgui-
Deus esta fatal catastrophe? Como entre­
gou ao arbitrio do primeiro homem a sor­ 1 Essais de Théodicée, prim . part., § H7
PEL 753
da por alguns moderno?, laes como Rust, mas por via de emanação, creem uns que
Glanvillc, e Henrique Moro. 1 Este senti­ todas foram creadas e unidas a corpos en­
mento, que tomado como opiniào philoso­ cerrados no de Adão; e pensam outros, con-
phica não é mais que uma vã imaginação, formando-so com a Igreja, serem creadas
foi condcmnado pela Igreja, e não explica as almas dos homens, logo que se fôrma o
o dogma do peccado original, pois que es­ corpo humano no scio da mac.
te pecca do por Adão passou a todos os ho­ O systema da geração dos animaes por
mens. animalejos formados "no primeiro animal,
2. ° Suppczeram que todas as almas es­e que nao fazem mais que dcsenvolverem-
tavam encerradas em Adão, e que por con­ se, não podia deixar de fazer adoptar o
sequência haviam participado do seu pec- primeiro sentimento. Leibnitz creu poder
cado. Este sentimento, do qual Sancto Agos­ explicar por clle a propagação do pecca­
tinho parece não estar muito alheio, foi do original, e foi seguido por M. Rasielo,
adoptado por grande numero de theologos que passou a mais individuações que Lei­
da confissão do Ausburgo; c no principio bnitz. 1
do nosso século, M. Wolllin fez um funda­ Suppõc este que os corpos de todos os
mento para explicar a propagação do pec­ homens que haviam de existir, foram for- *
cado original: por imputarão, "diz clle, é rnados em Adão, e que Deus unira almas
que todos os homens participam do pceca- humanas a estes corpúsculos por nào ha­
do; mas a depravação lhes é communicada ver razão para se diííerir por mais tempo
pela propagação, e" esta suppfic que todas a união da alma e do corpo; e que viven­
as almas veem umas das outras. do este corpusculo assim nó primeiro ins­
Nicolai, antes de Wolfiin, ensinara que, tante da sua formação, como depois do seu
admittindo a creação immediata das almas, nascimento, nào podia suppòr-se privado
não era impossível explicar o peccado ori­ d uma alma.
ginal: 2 mas este sentimento, que a Igreja Admitte, pois, almas humanas nos pe­
condemnou, ó um absurdo; porque sendo quenos corpos formados em Adão: os pe­
a alma uma substancia simples, indivisível quenos corpos unidos a estas almas, esta­
e immaterial, é impossível que alguma al­ vam unidos aos corpos dos paes, dos quaes
ma saiba de outra por via de emanação. tiravam seu sustento, pois d’oulra sorte se
Além de que, este sentimento não explica dissecariam. Portanto havia uma commu-
o peccado original, quanto as almas encer­ nicação entre Adão e o numero infinito de
radas na de Adão, não haveríam tido o pessoas que clle em si continha, pouco
exercício das suas faculdades, c linalmen- mais ou menos como o que o menino tem
te, porque havendo ellc obtido o perdão do com sua mãe, tanto que cila o recebe no
seu peccado, seus filhos o deveriam tam­ seu seio; e assim como os movimentos da
bém haver alcançado, se almas humanas mãe se communicaram aos lilhos, os de
houvessem sido encerradas na do primeiro Adão se communicaram a todos os que
homem, de sorte que participassem das d’elle haviam de nascer.
suas determinações. Na conformidade d este systema, quando
3. * Está reconhecido que as obras nãoDeus prohibiu a Adão comer o frueto da
existiram antes d’esta vida, que foram arvore da sciencia do bem e do mal, as
creadas immediatamenle por Deus, e que impressões do seu cerebro se communica­
não são emanações da alma de Adão: mas ram aos de seus filhos, que por consequên­
entro os que reconhecem existirem as al- cia tiveram as mesmas idéias; e quando
elle foi tentado para infringir o preceito, e
1 Rust, Discours sur la Verite, Glan­ consentiu na tentação, seus filhos consen­
villc, L ux Orientalis. Henri Morus, t. 2. tiram também n’ella com tanta maior feli­
Oper. Phil., pag. 365, in Mercavic Cabbalis- cidade, quanto elles pela moleza das suas
ticic expositione Psychosoria de vita ani­ fibras, eram menos capazes de conservar
m a, de anim a immortalitate. Antopsycho- a lembrança do preceito, e quanto o íluxo
machia, contra eós, qui animas post disces­ dos seus espíritos animaes era favorecido
sum á corpore dormire somniarunt, cum pelo fluxo dos espíritos animaes do mes­
appendice de anim a praxistentia. Todus mo Adão.
estas obras se encontram na colleceão dos 0 peccado d’cstes foi similhante, com
Poemas Philosophicos de Moro, em 8.°, cm pouca diíTerença, ao de uma pessoa que
Cambridge. Algumas foram traduzidas em
francez. 1 Essais de Thêodicèe, pri7iieira parte,
2 Christôphori Wolflini, Dissert. in 4.°, § 90. T)'aitc de I'Esprit-Uumain, par M.
em Tubinge. I Rassiels du Vigicr, chez Jumbert, 1714, in- 12.
754 PEL
desperta sobresaltada, ou ao dos meninos 4.° E, pois, certo que as almas dos filhos
de peito: por esta razào, diz M. Kassiclo, de Adao nào foram ereadas senão quando
bem que elles sejam na verdade filhos da no seio de Eva se formou um corpo huma­
ira, uão sào objecto de uma tào grande có­ no; e para explicar a transmissão do pecca-
lera, porque L)eus se satisfaz privando-os do original, é necessario explicar como o
da sua gloria, sem os condemnar aos cas­ peccado do Adào se communica ás almas,,
tigos dos peccadores. que Deus cria, para as unir a corpos hu­
Esta hypolhcse, porém, é destituída de manos por via de geração.
fundamento, absolutamente da parte da ra­ Os theologos se teern dividido lambem
zào; c o systema da geração dos animaes acerca d’esta explicação: l.° Presumiram
por animalejos preexistentes e formados muitos que o peccado original não era
desde a creaçào do mundo, que lhe serve mais que o mesmo peccado de Adào, im­
de base, nào tem mais verosimilhança, nem putado a todos os seus descendentes; sup-
mais sequito. Além de que, ellc nào faz pondo que assim como Deus quando esta­
vêr a communicação do peccado de Adào beleceu Abrahào, pae dos crentes, fez um
a seus descendentes, porque estas almas pacto com a sua posteridade, da mesma
nào tinham uso de razão quando Adào pcc- sorte quando deu a justiça original a Adão
cou, e não podiam dar um consentimento e ao genero humano, se obrigou nosso pri­
livre: a explicação dos mahometanos, ridi­ meiro pae em seu nome, c no de seus des­
cula como é, parecería ainda mais racio- cendentes a conserval-a por si, e por elles,
n a v el.1 Finalmente, este sentimento é con­ observando o preceito (juc recebera, e que
trario ás decisões da Igreja. no caso de transgredil-o, a perdería tanto
por si como por elles, c os faria sujeitos ás
1 Ebu Abas diz, que houve um contra­ mesmas penas, vindo a ser a transgressão
cto entre Deus, c os homens, pelo qual todo de Adão a de cada um, n'elle como causas,
o genero humano se obrigou a reconhecer a e nos outros como consequências do pa­
Deus por seu soberano Senhor; c que d'este cto contractado por elles; que d’csta ma­
pacto é que se fatia no Alcorão, no capitu­ neira a mesma transgressão que n’elle era
lo intitulado Aaraf: eis-aqui o que n'elle se um peccado actual, fazia nos outros o pec­
diz ácerca do peccado original: cado original pela imputaçào que se lhes
«Quando Deus tirou dos rins de Adão a fizera do mesmo peccado, e que assim pec­
sua posteridade, dirigiu a todos os homens caram todos quando Adào peccou.
estas palavras: Não sou eu o vosso Deus? Este sentimento loi sustentado com mui­
Elles responderam: Sim. Quer este author, ta força no concilio de Trento por Catha-
que todos os homens dotados de intelligencia rino. c o abraçaram quasi todos os protes­
se ajuntassem com effeito em figura de for­ tantes; mas parece contrario a quanto a
migas no valle de Dahier, nas índias, e de­ Escriptura e a tradição nos ensinam do
pois d'esta convocação geral, diz Deus, no peccado original, e allíeio da justiça e bon­
mesmo capitulo: Nos tomamos teslimunhas, dade de Deus: porque para se imputar a
para que os homens não allegucm no dia de alguém qualquer delicto é necessário o seu
ju ízo a ignoranda d'este contracto, e não consentimento formal, não basta o presu­
digam para escusarem a sua impiedade: mido, e os theologos que adoptaram o sen­
Nossos paes idolatraram primeiro que nós, timento da imputaçào, não reconhecem nos
que fomos seus imitadores, assim, como seus filhos do primeiro pae, senão o presumido.
descendentes; e perder-nos-heis vós, Senhor, Este pacto póde efleituar-se quando se tra­
pelo que fizeram contra vós uns loucos e cta de fazer bem, mas não de punir posi­
ignorantes? (0'Herbelot, na palavra Adão, tivamente; é a supposiçào do mesmo que
Biblioth. OrienU, pag. 44.J serve de base a tal sentimento. E destituí­
«Além d'isto crêem os mahometanos que do de provas da parte de Catharino.
recebemos de nosso prim eiro pae um princi­ 2.° Ha theologos, que creem, que depois
pio de corrupção, a que elles chamam o grau do peccado de Adão, seu corpo se corrom-
do coração, o amor proprio e a concupis­
cenda que nos levam ao peccado: este ê o «Segundo outros mahometanos o peccado
peccado de origem, que os mahometanos re­ original vem de que o diabo maneia os me­
conhecem ter vindo de Adão, nosso prim ei­ ninos até os haver feito crear. Todos elles
ro pae, e que dizem ser o principio de todos assentam que Jesus Christo e a Virgem San­
os outros peccados. Mafoma se ja cta va de ctissima foram preservados do toque do
haver sido livre d'ellc pelo anjo Gabriel, diabo, e não tiveram peccado original.
que lhe arrancou do coracão esta semente (D'Herbelot. Biblioth. Orient., na palavra
negra, e.que por ta l meio ficara impeccavel. Mariam, p a g .583.)
:L 753
pera, c que sahindo a alma pura das mãos ram tal sentimento, jamais poderam per­
de Deus, c unindo-se a um corpo corrom­ suadir.
pido participa da sua corrupção, bcm co­ O padre Mallcbranche, e M. Nicolc se
mo se corrompe um licor puro no vaso esforçaram a cxplical-o. Segundo o pri­
iuficcionado: este sentimento, que Sancto meiro, foi Adão creado na ordem, e como
Agostinho indicou, foi seguido por Grego- esta pede que Deus não obre senão por si
rio do Rimini, Gabriel, c outros- Grcgorio, mesmo, Adão recebeu, logo que existiu,
para cxplical-o, suppõe que a serpente con­ uma propensão que o levava para Deus, e
versando com Eva dirigiu seu halito con­ uma tal luz, que lhe fazia conhecer que só
tra ella, e que este contagioso assopro con­ Deus o podia fazer ditoso. Porém como
taminara o corpo de Eva. Esta communi- Adão linha um corpo, que sendo alteravel,
cou o contagio a seu marido, c ambos, aos se havia de nutrir, era necessário que
filhos que tiveram, ficando a molestia he­ fosse advertido da necessidade de comer,
reditaria, da mesma sorte que se vécm e que podésse distinguir os alimentos pro­
muitas em certos paizes, e familias. prios para se sustentar: portanto os que
Mas quando verdade fosse que o halito eram adequados para manter a harmo­
da serpente houvesse introduzido no corpo nia no corpo de Adão, haviam de produ­
d’Eva um principio de corrupção, que pa­ zir em sua alma sensações agradaveis, e
rentesco tem esta com o peccado, que é os que lhe eram nocivos, tristes: mas es­
uma alTciçào da alma? Acaso podem cor­ tes prazeres e movimentos, não podiam
romper-se" a substancia immaterial, contra- tornal-o escravo, nem infeliz como nós,
liindo a corrupção do corpo, como o licor porque sendo elle innocente, senhoreava
puro se corrompe no vaso iuficcionado? os movimentos que se excitavam em seu
3.° Outros theologos ha, que para expli­ corpo.
carem a herança do peccado original, sup- A ordem pede que o corpo seja submet-
poem que Deus formara o projecto de fa­ tido á alma; por isso Adão suspendia a seu
zer nascer todos os homens de um só, por arbitrio os movimentos que se excitavam
via de geração, e estabelecera por lei se em seu corpo, de sorte que as impressões
unisse uma "alma a um corpo humano, sensiveis não lhe estorvavam que amasse
sempre que por via de geração se formas­ unicamente a Deus, nem o conduziam a
se algum. Deus, no sentir d’éstes theologos, olhar o corpo como a causa, ou como o
se impozera a lei de unir ao corpo huma­ objecto de que elle devia esperar a feli­
no nascido do Adão, uma alma similhante cidade. Porém, logo que Adão pcccou
á do primeiro homem; e este, por seu pec­ perdeu d’uma parte o imperio que tinha
cado, perdera a graça original; e assim sobre seus sentidos, e da outra a justiça
quando gerou um filho, Deus uniu a seu original: as impressões dos objectos exte­
corpo uma alma privada da justiça origi­ riores produziram n’elle outras, que não
nal, e dos dons do estado da innocencia. foi senhor de atalhar, e que apesar de si
Nota Estio que este sentimento, indica­ mesmo o conduziram a objectos, que lhe
do por S. Cyrillo, c seguido por Sancto excitavam aíTcctos agradaveis.
Anselmo, não explica a commuuicação do Tinha Deus resolvido fazer nascer todos
primeiro peccado, pois que sómente o faz os homens de Adão, e unir uma alma hu­
consistir na privação da justiça original, mana ao corpo humano que Adão gerasse;
o que não satisfaz; pois que elle além d’is- mas Deus, segundo o padre Mallebranchc,
to é uma desordem, e segundo o mesmo não devia conceder a esta alma a justiça
Estio, bem podia uma alma ser privada original senão tanto quanto Adão perseve­
da justiça original, e todavia não ficar sen­ rasse na innocencia. Por isso Adão e Eva
do culpavel e desregrada.1 depois de sua culpa— 1.° perderam o im­
Cré, pois, Estio dever suppôr-se que a perio que tinham sobre os seus sentidos, e
alma pçivada da justiça eterna, é unida a os corpos excitavam n’elles prazeres, que
um corpo corrompido, o qual lhe commu­ os levavam a objectos sensiveis: 2.° Deus
nica o peccado: mas por ventura o corpo unia aos corpos que clles geravam, uma
c capaz de peccar? póde elle contaminar alma privada da justiça original.
a alma? Eis-aqui o que nem Escoto, nem Deus, segundo o mesmo Mallcbranche,
Estio, nem os outros theologos, que segui- estabelecera uma lei, pela qual devia ha­
ver um commercio continuo entre o ce­
rebro da mãe c o do filho formado no seu
1 Cijrill. de Incam at. Ansehn. de Con- seio; de sorte que todos os affectos que se
cept. Virginis, c. 9. De Lib. Arbit., c. 22. excitam na mãe, deviam excitar-se no fi­
Estins in L. 2. Sent. Distinet. 3 i, § i-° lho.
m PEL
A alma humana, que Deus uniu ao corpo aquellas que fazem os peccados que os ho­
formado no seio de Eva, depois do seu pcc- mens commcttem presentemente.
cado, experimentava, pois, iodas as impres­ «Assim, pois, se tornou Adão incapaz de
sões que Eva recebia dos objectos sensí­ gerar filhos que tivessem um corpo dispos­
veis, c como cila estava privada da justiça to diversamente do seu: de sorte que as
original, era levada para os corpos, c os almas juntas com os seus corpos corrom­
amava como a origem da sua felicidade. pidos no momento em que são creadas,
Ella. pois, estava em desordem, ou para conlrahem inclinações conformes aos ras­
melhor dizer, a sua vontade estava desor­ tos ou vestígios impressos em seus corpos;
denada: a desordem da sua vontade não e assim vem a contradar uma paixão do­
era livre, porem não deixava de ser uma minante pelas creaturas que as torna ini­
desordem que desagradava a D eu s.1 migas do Creador.
Esta explicação na verdade traz impres­ «Mas como podem as almas, que são
so o genio de Mallebranche; mas assenta substancias espirituaes, contrahir certas
sobre uma base tão debil, qual é a com­ inclinações por causa de certas disposições
muni cação entre o cerebro da mãe e o do da materia?
filho, que todavia não está provada: as «Para explicar a difíiculdade póde sup-
marcas que os filhos teem de suas mães, pôr-se que não formando Deus o homem
e que Mallebranche tornou por imagens senão pela união d’uma alma espiritual
dos objectos que cilas desejaram com ar­ com uma materia corporea, e querendo
dor, durante a sua prenhez, não são mais que os homens tirassem a sua origem de
que os eíTeitos do sangue extravasado por um só, estabeleceu estas duas leis, que jul­
um movimento violento occasionado pela gou necessarias para um tal ente: 1.» que
viva impressão que um objecto sensível o c.orpo dos meninos fosse similhante ao
faz sobre os orgãos, a qual se communica dos paes, e tivesse com pouca dilíorença
ao sangue do menino, porque cffectiva- as mesmas^ impressões, se alguma cousa
mente lia communicação entre os vasos estranha não as alterasse: 2.a que a alma
sanguineos da mãe e os do filho; mas este unida ao corpo tivesse certas inclinações,
sangue extravasado não suppõe que o ce- quando seu corpo tivesse certas impressões.
•ebro do menino haja recebido as mesmas «Eram necessarias estas duas leis para
impressões que o da mãe: nada nos pódc a propagação do genero humano, c não
conduzir a tal supposição. 2 teriam sido prcjudiciaes aos homens, se
Nicole se explica assim; «A experiencia Adão conservando a innocencia, conser­
faz vêr que as inclinações dos paes se vasse seu corpo no estado cm que Deus o
communicam aos filhos,*que vindo a unir-: formara; mas havendo-o alterado c cor­
se a alma d’estes com a materia que tiram rompido pela sua culpa, a justiça divina,
dos paes, concebe afieições similhantes ás infinitamente superior á natureza, não jul­
da alma d’aquelles de que trazem a origem: gou dever por isso mudar as leis estabele­
o jju e não poderia acontecer, se o corpo cidas antes do peccado, e subsistindo estas,
não tivesse certas disposições e a alma dos Adão communicou a seus filhos um corpo
filhos não participasse dellas, concebendo corrompido.
inclinações similhantes ás de seus paes e «Porém como poderemos nós compre-
mães, que tinham as mesmas disposições hender este amor dominante, que a alma
do corpo. contrahe para com a creatura, quando ella
«Supposto isto, havemos de convir que, se une a corpos que vem de Adão? Póde.
Adão peccando, se precipitou com tal im­ conceber-se como se concebe a graça jus­
peto no amor das creaturas, que não só­ tificante nos meninos baptisados, isto é, que
mente mudou a sua alma, mas que tam­ as almas dos meninos pela graça que rece-
bém perturbou a economia do seu corpo; bèm, são habitualracnte prop*cnsas para
que n’este imprimiu os vestígios das suas Deus, e o amam da mesma sorte que os
paixões, e que esta impressão foi indivisi­ justos o amam durante o somno, assim
velmente mais forte e mais profunda que também a alma dos meninos, por esta in­
clinação que contrahe, se torna habitual-
mente propensa para a creatura, como o
1 Mallebrance. Rech. de la véritê, l. 1, seu ultimo fim, e a ama, bem como os
c. 5, l. 2, part. l.% c. 7. É clair 8. Cone. maus amam o mundo emquanto dormem;
Chr. E ntr. 4. porque não se ha de pensar que as nossas
2 D issert. Physiq su r la force de lim a - inclinações morram pelo somno, pois que
gination des femmes enceintes, 1737, in-8. só mudam de estado, e estas inclinações
Lettres su r 1'imagination des Visiomires. bastam para tornar uns justos,.quando el-
i
PEL 757
las são boas, outros maus, quando cilas são indispcnsavelmente a concorrência de to­
más.» 1 M. Nicole não leni esta explicação das as cousas, c condições necessarias pa­
senão como o que lhe parece mais prová­ ra fazcl-a, e não ha liberdade acerca de
vel. qualquer cíToito, toda a vez que falte algu­
0 que acabamos de referir áccrca das ma das cousas, ou condições requeridas
diversas explicações do pcccado original, para produzil-o. Assim, para se dar a li­
é d’alguma sorte a historia do entendi­ berdade de vêr os objectos, não só ha de
mento humano relativamente a este obje­ haver esta faculdade sã e inteira, mas
cto, d’onde podemos concluir: l.° que a também é necessário que ellcs estejam il-
doutrina da Igreja sobre o peccado origi­ luminados, e em certa distancia: por me­
nal, não é obra do entendimento humano, lhores que os olhos sejam, não lhes será
pois que os diíTerenles estados, pelos quaes livre o vêl-os se estiverem ás escuras, ou
elle passou, nada mais teem feito que va­ em distancia desproporcionada; e como o
riar as explicações d’este dogma, sem im­ homem nasce com liberdade para obrar
pugnarem a sua existência, ou se a impu­ bem ou mal, portanto recebe da natureza,
gnaram, foi só pela diííiculdade de o ex­ e une em si todas as condições e cousas,
plicarem, o que parece suppôr necessaria­ que naturalmcnte se requerem c são pre­
mente não ser elle excogitado pela imagi­ cisas para uma ou outra cousa. A graça
nação humana: 2.° esta historia póde con­ não é, pois, necessaria, ou se o homem
tribuir para nos fazer conhecer pouco precisa d’um soccorro extraordinario e dif­
mais ou menos os progressos da razão hu­ ferente das qualidades que recebe da na­
mana desde Origenes até Mallebrauche, e tureza, então nasce sujeito a uma fatalida­
Nicole. de inevitável, c não é livre.
Levantaram-se contra este sentimento de
TERCEIRO ERRO DE PELAGIO Pelagio, e lhe contrapozeram a authorida
de da Escriptura, a qual nos ensina que
SOBRE A NECESSIDADE DA GRAÇA ninguem póde encaminhar-se para Deus,
se não attrahido por Jesus Christo, que na­
Pelagio para deixar sem escusa os pec- da temos, que nada recebemos, e que de
cadores- que não obedeciam ao seu zelo nada podemos vangloriar-nos, pois que não
vehemente, asseverava que o homem tinha ha cousa que não tenhamos recebido; quo
em si todos os meios necessarios para ele­ a graça é a que nos salva pela fé; que isto
var-se ao mais alto grau de perfeição, e não vem de nós, pois é um dom de Deus;
combalia os dogmas que parecia estabele­ que nós mesmos não somos capazes nem
cerem a corrupção original do homem, de formar um bom pensamento, mas que
ou pôr limites *ás suas forças naturaes é Deus quem d'elle nos faz capazes.1
para; o bem, e não deixarem Inteiramente Os catlrolicos juntavam á authoridadc da
d’clle dependentes a sua salvação c a sua Escriptura o lestimunho dos sanctos pa­
virtude: portanto não só negou o peccado dres, pois não c de crêr que os que pre­
original, mas também a necessidade da cederam a Pelagio fossem pelagianos; San­
graça, e a liberdade do homem era a ba­ cto Agostinho fez vêr que a doutrina da
se sobre que estabelecia este ultimo senti­ Igreja acerca da necessidade da graça,
mento. fòra sem dúvida ensinada pelos padres dos
Deus, diziam os pelagianos, não quiz que quatro primeiros séculos, c que estes san­
o homem propendesse necessariamente para ctos doutores nada uiais fizeram que pas­
o vicio ou para a virtude; creou-o com a sar a seus vindouros o que clles tinham
liberdade de se inclinar para esta ou para aprendido, e ensinar a seus filhos o que
aquelle; verdade geralmente reconhecida, receberam de seus paes. 2
e que a Igreja sempre ensinou contra os A’ vista dTisto, diz M. Bossuet, que nos
marcionitas, manicheus e philosophos pa­ alleguem variações sobre taes materias.
gãos. Portanto é certo que o homem nasce «Porém quando não quizessem assentir a
com a liberdade de ser virtuoso, ou vicio­ esta authoridade de Sancto Agostinho, tes-
so, e que por escolha se torna um ou ou­ timunha tão inteira n’esta occasião, ainda
tro; por isso tem o homem um indubita- sem necessitarmos de discutir as passa­
vel poder para obrar bem ou mal, c é livre gens particulares que elle produziu, não
a estes dous respeitos.
A liberdade de fazer uma cousa, suppõe 1 Joan. 6, v. 44. Ad Ephes. 2, v. 8. Se-
cundw ad'Cor. c. % v. 5.
1 Nicole, Inst. sur le symbole, seconde 2 L. i e 2, cont. Jul. I. 4, ad Bonif. c,
in str. sect. 4, c. 3. 8. Dc bono Persev. c. 4, 5, 19.
7 58 PEL
haverá pessoa que negue este facto publi­ guir tres cousas: o poder, o querer, e a
co, que os pelagianos acharam toda a igre- acção. A acção c o clTcito da propria von­
em posse de pedir a graça de Deus em to­ tade: a nossa determinação a produz.
das as suas orações, como um soccorro ne­ Porém sómente de Deus c que nos vem
cessario não só para bem crôr, mas para o poder; sómente de Deus temos a existên­
bem orar, o que se suppunha como cons­ cia, a vontade, c todas as nossas faculda­
tante e incontrastavel; c não haveria cousa des; d’ellc recebemos o poder de pensar e
mais injusta que sustentar depois d’isto do querer o bem. Deus não nos deve a
que a fó da Igreja nào fosse perfeita acer­ existência nem estas faculdades; quo por
ca da graça.» 1 tanto são uma graça, c Deus a causa prin­
A necessidade d’esta era crida tào ge­ cipal das nossas acções e merecimentos. 1
ralmente, qiic atacando-a Pelagio, sc le­ A graça de que â Escriptura nos ensina
vantaram os fieis, sendo clle obrigado a re- a necessidade, é a graça do Redemptor,
conheccl-a no concilio da Palestina. Final­ aquella que nos faz ir a Jesus Christo, e
mente os que se congregaram contra este sem a qual o não podemos fazer; e esta
heresiarcha, e os soberanos pontifices con­ graça nem é a existência nem a conserva­
stantemente reconheceram a necessidade ção.
da graça para todas as obras de salvação.2 Foi pois obrigado Pelagio a reconhecer
A necessidade da graça não era contra­ uma graça differente do livre arbitrio e
ria á liberdade: quando diziam que a gra­ da existência; e como esta nos fazia conhe­
ça era necessaria, nào se negava que o ho­ cer a Jesus Christo e nos conduzia a elle,
mem não tivesse naturalmento o poder de asseverou que a graça necessaria para a
obrar bem ou mal, mas queriam que com salvação era a pregação do Evangelho, os
este poder jamais podessemos ir a Jesus milagres que Jesus Christo obrara, e os
Christo; que com elle podíamos fazer o exemplos que nos dera, etc.
mal, mas que nunca podíamos ir a Jesus Provaram os catholicos contra Pelagio,
Christo sem a graça; este dogma da neces­ que esta graça era uma acção de Deus so­
sidade da graça para as obras da salvação bre o entendimento, e sobre a vontade;
não era contrario á liberdade do homem que Deus fazia em nós o querer e o obrar;
para as cousas da ordem natural; e por que a graça de Jesus Christo se diíTunde
isso a necessidade da graça nào se oppu- cm nossos corações, e tc .2 Pelagio, aperta­
nha á liberdade, que se defendera contra do com estas razões, foi obrigado a reco­
os manicheus. Distinguindo-se com cuida­ nhecer a necessidade d’uma graça interior,
do estes dous objectos, explicam-se todas bem que queria não fosse, necessaria senãu
as passagens em que parecia não suppo- para obrar mais facilmente; mas as Rassa-
rem os padres a necessidade da graça, e gens que dizem não podermos fazer nada
se faz vêr que ellas não eram favoráveis sem Jesus Christo, o deixaram sem réplica.
ao pelagianismo. Os pelagianos, pois, que haviam negado
o peccado original e a necessidade da gra­
QUARTO ERRO DE PELAGIO ça para tornarem dependente do homem a
sua salvação, não podendo desconhecer
SOBRE A NATUREZA DA GRAÇA, nem o peccado original nem a necessidade
DA QUAL EL LE RECONHECEU A NECESSIDADE d’uma graça interior, que illumina o en­
tendimento' e move a vontade para have­
Vendo Pelagio que seus sentimentos al­ rem de fazer dependente do mesmo ho­
voroçavam os fieis, e quo nãò podia impu­ mem a sua salvação, affirmaram que esta
gnaria authoridade das passagens produ­ graça interior era concedida aos seus me­
zidas pelos catholicos, esmerando-se em recimentos, e por este meio conservaram
explical-as, insistiu em que não negára a o ponto fundamenta] do seu system a.3
necessidade da graça tal qual a Escriptura Este erro ácerca da graça gratuita foi
a ensinara. Com cffeito, dizia Pelagio, em condernnado pelo concilio da Palestina, u
todo o homem que obra se devem distin- pelo mesmo Pelagio, bem que menos sin-

1 Bossuet, premier avertissement su r les 1 ' Pelag. I. 3. De lib. Ar bit r. citado por
lettr. de Jur. art. 34. S. Avg. de Grat. Christ. c. 4. de Gestis. P a-
2 Cone. Carth. 1. Cone. 52. Cone. Mi- Icestin. Ep. ad Sixt. c. 10.
lev. in E p. ad Innoc. Cone. Carth. 3. Veja- 2 Avg. de Grat. Chr.
se ácerca d’estas individuanões o artigo Pe­ 3 Aug. cont. Jnt. I. 4, c. 3 c 8. Ep. ad
lagio. Vossio, Noris, Garnier, Hist. Pela- Vital, de Grat. Chr. 3, 22, 23. Ep. 106, c.
giance Haresis. 18.

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PHO 7o9
ccramqnte, como o prova Sancto Agosti­ sahir ^Alexandria. O papa Julio recebeu-o
nho. 1 A fé da Igreja sobre este particular na sua communhào, e em favor do mesmo
nunca variou, posto que nos conci lios de pronunciou sentença d’absolvição no con­
Africa jamais foi defendida expressamente cilio do Roma.
a gratuidade da graça, ou porque nào qui- Photino, discipulo de Marcello, e que se
zesscin os padres éstender-se sobre esta persuadira encontrar nas suas obras os
questão, cm que algumas pessoas notavam sentimentos dc Sabellio, adoptou-os, c pro­
seu embaraço, ou porque d'ella se passava fessou-os, sustentando que o Verbo não era
ao dogma da predestinação, que nào era mais (juc um attributo, e negando a sua
util locar. 2 união hypostatica com a natureza huma­
Acerca d’este objecto nada mais foi de­ na: 1 mas apenas se principiou a desco­
finido nos concilios celebrados contra os brir o seu erro, logo os bispos do Oriente
pelagianos, nem achamos que n’elles se o condemnaram n’um concilio celebrado
tractasse nem do modo como opera esta cm Antiochia em 3io, e os do Occidente
graça gratuita, nem da sua efficacia: todas em 346. Estes se congregaram dous an­
estas questões foram necessarias conse­ nos depois para depurem a Photino, o que
quências das reflexões, que se fizeram so­ todavia não poderam acabar pela opposi-
bre os esoriptos de Sancto Agostinho con­ ção que tiveram da parte do povo: então
tra os pelagianos e acerca da predestina­ Marcello d’Ancyra recorreu ao imperador,
ção: 3 e para cada um se convencer d’isto pedindo-lhe uma conferência, c foi nomea­
mesmo basta que reflexione na origem do do Basilio d’Antiochia para disputar com
pelagianismo, e como elle se foi desenno- Photino, o qual ficou confundido na dispu­
vellando no principio de que partiu Pela­ ta, sendo logo desterra'do. Este havia es­
gio, e nas questões que entravam por ne­ pargido seus erros no Illyrio, mas teve
cessidade no theor da sua defesa, d’onde poucos adherentes, porque' o partido de
se vè que o modo como a graça obra, era Ariano suffocou a sua heresia.
d’elle absolutamente alheio; e em substan­ p h o c io — Patriarcha da Igreja de Con-
cia, os concilios que condemnaram os pe­ stautinopla, foi o aulhor d’um scisina en
lagianos não proferiram decisão alguma Ire esta e a romana.
sobre este objecto. Miguel m havia-se entregado todo ao
A historia do pelagianismo e seus dogmas passatempos, largando a seu tio Bardas a
foi bem traetada por Yossio, pelo padre redeas do governo do imperio. Este mais
Garnicr, pelo cardeal Norio, e por Usscrio, poderoso e não menos dissoluto que Mi­
nas suas antiguidades da igreja britannica. guel, casou-se com sua sobrinha,2 c o pa­
p e u e a n o s ou p e r a t i c o s — Veja-se E vfra­ triarcha Ignacio, que condemnou altamen­
tes. te o proceder dc Bardas, não o quiz ad­
p e r f e i t o s — Nome que tomava a maior mitti r á sagrada communhão no dia da
parle dos hereges, que pretendiam refor­ Epiphania. Bardas, para se vingar d’Igna-
mar a Igreja ou practicar algumas virtudes cio, comprou testimunhas, que o accusa­
extraordinarias. ram de haver feito morrer Methodio, seu
p h o t i n o — Originario da Galacia, foi a prodecessor, e congregando um concilio o
principio discipulo de Marcello, bispo de fez depôr, e collocou sobre a cadeira de
Ancyra. Marcello tinha assistido ao conci­ Constantinopla a Phocio.
lio de Nicea, aonde combateu os erros dos Era Phocio um homem rico e d’illustre
arianos, e depois escreveu contra Asturo e nascimento, que tendo cultivado as artes,
os outros bispos do partido d’Ario um li­ e abraçado todas as sciencias, se fizera
vro intitulado Da submissão de Jesus Chris­ apreciável por seu saber c prudência, e
to. Pondo n’esto livro algumas proposições por mui adestrado em manejar negocios;
favoráveis ao sabelliauismo, foi accusado mas sem embargo d’isso nem todos appro-
d’esta heresia pelos eusebianos, e condc- varam a deposição de Ignacio e a eleição
mnado pelo concilio de Constantinopla, que dc Phocio; o povo dividiu-se entre um c
os arianos celebraram no anno de 336, c outro, c logo rompeu a sedição.3
depois desterrado e constrangido a refu­ Para abafal-a, pediu ao papa Nicolau i
giar-se no Occidente, no mesmo tempo em mandasse a Constantinopla legados, que
que Sancto Athanasio se viu obrigado a
1 Epiph. ílcer. 71. Vincent. Lyrin. Com-
1 Ibid. Garnier, Hist. Pelag. Dissert. 2, monit. c. 16. Socrat. I. 2, c. 29. Sos. I. 4-
pag. 171. c. 6.
2 Gamier, ibid. Dissert. 7. 2 Cedren. Anast. an. 848.
3 Ibid. pag. 302. 3 N icetaSj Ign a t. tía ro n , a d a n . 860.
760 PHO
decidissem a contenda, e chegados que fo­ n alguns pontos de disciplina, tacs como
ram, o mesmo imperador com Phocio de na romana o uso de jejuar no sabbado, o
tal maneira os souberam deslumbrar, que de pcrmiltir leite e queijo na quaresma, o
viciaram as letras do papa, e convocaram d’obrigar todos os sacerdotes ao celibato,
um concilio. Mais de setenta testimunhas e outros; creu Phocio, arrodelado com es­
falsas depozeram que Iguacio nào estava tes dilTcrenles objectos, poder atacar a
canoüicamentc ordenado, que fora intruso igreja romana, como empenhada em erros
pelo poder secular na igreja de Constanti­ e desordens intoleráveis; e portanto escre­
nopla, e que n’clla governava com tyran- veu cartas a todas as igrejas do Oriente,
nia. Um só bispo requereu se examinasse as quaes fez passar também ao Occidente,
a verdade das testimunhas, parecendo du­ e convocou um concilio, que se separou
vidar d’ellas: e sendo tractado aspera c da commúnhão do papa e da sua igreja. 1
ignominiosamente, e expulso da assem­ Parecia concorrer tudo a fazer prosperar
bléia, ninguem mais ousou fallar cm favor os desígnios de Phocio; elle fazia quanto
de Ignacio, que foi deposto pelo concilio. queria na presença do imperador; era sá­
E como quer á vista d’isto Mr. Basnage bio, eloquente, e as revoluções a que o Occi­
que nào se deva declamar tanto contra a dente estava sujeito, havia muitos séculos,
deposição dlgnacio, e que fosse justa a sepultavam o clero na ignorância, tão fa­
sentença dos bispos! 1 vorável e tão necessaria ao progresso das
Chegada ao conhecimento do papa a pre­ novidades e dos erros. Demais d’isto o
varicação dos seus legados e as falsida­ papa tinha no mesmo Occidente inimigos
des de Phocio, convocou um concilio cm poderosíssimos, taes como Luiz, imperador,
que o condemnou, 2 à volta do que Phocio Luiz, rei de França, Lothario, rei da Lorc-
congregando também outro, no qual algu­ na, alguns arcebispos e bispos; 2 porém
mas testimunhas falsas accusaram a Nico- Phocio allucinou-se, porque os bispos e os
lau de diversos crimes, foram expulsos do theologos da igreja latina refutaram as
concilio todos os que quizeram averiguar suas accusações, e no Occidente ninguem
\ verdade das testimunhas, e excommun- se separou do papa.
jado o papa Nicolau. E a que ponto não No Oriente, o imperador Miguel tinha
levia ter chegado a corrupção da corte de mandado assassinar a Bardas, c elle mes­
Constantinopla, quando Phocio se abalan­ mo também foi morto por Basilio, o mace-
çou a similhantes imposturas! donio, que Miguel crcara eezar, e que se
Era muito desmedida a ambição de Pho­ havia senhoreado do império.’ O patriarcha
cio, e o seu caracter muito altivo, para teve o valor de lhe censurar o seu crime,
que elle se aquietasse com a excommu- e negou-lhe a commúnhão; Basilio man­
nhào fulminada contra o papa: portanto dou-o prender n’um mosteiro, chamou
passou a formar o projecto de se fazer re­ Ignacio, escreveu ao papa, fez convocar
conhecer patriarcha universal, e de sepa­ um concilio, o qual depôz a Phocio, e res­
rar toda a sua igreja da commúnhão da tabeleceu ignacio sobre a cadeira de Con­
de Roma, cujo patriarcha era um obstá­ stantinopla. 3 Este é o oitavo concilio ge­
culo invencível para suas pretenções, e ti­ ral, que restituiu a paz á Igreja, e restabe­
nha até então gosado incontrastavelmcntc leceu a commúnhão entre os gregos e os
da primazia universal. latinos. Nicolau i já então era morto; foi
Nenhuma diversidade se encontrava en­ celebrado, governando Adriano u . 4
tre a fé da igreja de Constantinopla, e a Porém Phocio nào tirou a mira da ca­
de Roma; mas bem que a grega reconhe­ deira de Constantinopla: lá do fundo do
cesse corno a latina, que o Espirito Sancto seu mosteiro armou laços á vaidade de Ba­
-procede do Pae e do Filho, aquella conser­ silio, lisongeou-o, e insensivelmente foi re­
vara o symbolo de Constantinopla, em que cobrando seu valimento, e as adherencias
não está expresso que o Espirito Sancto da côrte, de tal sorte, que obteve um quar-
procede do Filho. Esta addição nào se fize­
ra com authoridade d*algum concilio; mas 1 Anast. in vit. Nicol. i. Nicet. apud
introduzida insensivelmente, fôra adoptadai Baron.
por todas as igrejas do rito romano. 2 fíeginald. Annal. Bertin. Hincmar, dc
Como as duas igrejas diíTeriam também Divorthio Lotharii et Thieberg. Baron, ad
an. 862. Avcntin, Annàl. I. 4.
1 Basnage. ü ist. de lÊ gl. I. 6, c. 6, pag. 3 Baron, ad an. 847. Cone. 8. Dupin,
328 t \ Hist. du neuviéme siócle, c. 9. Natal. Alex.
2 E pist. Nicol. I. 4,, 7, 10, 13. Ánastas. sec. 9. Dissert. 4.
in Nicol. 1. 4 Epist. Joan. 199.
PRA 761
lo cm palacio, c depois que Ignacio mor­ munhão entre a igreja romana e a dc Con­
reu, tornou a subir á cadeira de que fôra stantinopla. 1
deposto. O mesmo imperador manejou a Alguns authores teem querido abonar a
sua reconciliação com a igreja de Roma, Phocio, mas sem razão, pois que não pódc
representando "ao papa que o restabeleci­ justificar-se a perfidia e insigne impostura
mento de Phocio era necessario para o bem d’ostc grande homem no que respeita ao
da paz e para a conciliação dos animos, patriarchado.2
accrcsccntando que até o patriarcha Igna- p e t r o b iu . sia x o s — Discipulos de Pedro dc
cio o desejara, em prova do que referia Bruys.
um escripto, no qual o mesmo o suppliea- p i e t i s t a s —Veja-se o artigo das seitas
va ao papa; além d’isto, Rasilio, cujas for­ formadas entre os lutheranos.
ças em ltalia começavam a recuperar-se, p r a x e a s — Era dc Phrygia, c tinha sido
deixava vér ao papa que cllc reebassaria monfanista, assim como Theodoto de By-
os serraccnos, que infestavam as costas da sancio; veio da Asia a Roma, e deixou*a
Campania, c que restitui ria á igreja dc Ro­ scita de Montano. Havendo soffrido os car­
ma a Bulgaria, que o mesmo patriarcha ceres por amor da fó no pontificado dc Vi­
Ignacio recusava ao papa. ctor, adquiriu reputação na Igreja.
Joào viu respondeu ao imperador que Theodoto de Bvsancio, que n’essc mes­
sendo morto o patriarcha Ignacio, de feliz mo tempo cedera á perseguição para des­
memoria, consentia que Phocio fosse reco­ culpar a sua fraqueza, proferiu que arre-
nhecido patriarcha de Constantinopla, ce­ negaudo de Jesus Christo, não arrenegàra
dendo á necessidade presente, e ao bem mais que d’um homem. Artemon e os he-
da paz; mas que antes d’isto Phocio daria reges conhecidos debaixo do nome de alo-
satisfação, e pediría perdão diante d’um sy­ ges, tinham adoptado o mesmo sentimento
nodo. 1 e sustentavam que Jesus Christo não e»
Quando as letras apostólicas e os lega­ Deus.
dos do papa chegaram a Constantinopla, A Igreja havia condemnado esta doul
Phocio fez congregar um concilio, em que na: ella ensinava, pois, contra Marci!
as cartas de Joào vm ao imperador c a Cedron, Corintho, e outros, que não ha
Phocio foram lidas, porém já falsiGcadas, mais que um só principio de tudo o q
porque n’ellas se supprimia o que dizia existe, e contra Theodoto, que Jesus Chru
respeito a Ignacio, o perdão que se dava to não era distincto do padre, pois que en­
a Phocio, e a condcmnaçào do concilio que tão seria necessário reconhecer dous prin­
elle congregara, c a que chamava o oitavo. cípios, e conceder a Theodoto que Jesus *
O que então eslava congregado pelo mes­ Christo não era Deus; a isto accrescentai
mo Phocio, o reconheceu por legitimo pa­ dizer o mesmo Deus: «Eu sou Deus, e fóra
triarcha, e condemnou o oitavo concilio, de mim não ha outros; o padre e eu somos
que tinha condemnado a Phocio.2 um; o que me vé, ve também a meu Pae;
Sabendo o papa que a paz estava resta­ eu estou no Pae, c o Pae está em mim.*
belecida, d’ella deu os parabéns ao impe­ Eis aqui, segundo nos parece, d’ondc
rador e a Phocio; mas quando conheceu veio o erro de Praxeas, e não das disputas
as condições com que fôra feita, conde­ sobre a distineção das pessoas, que por
mnou tudo o que os legados tinham obra­ entãu não tinham cabimento, e de que não
do. Martinho e Ariano, seus successores, se encontra vestigio algum em Tertulliano,
confirmaram sua sentença contra Phocio.3 diga o que disser M. Le Clerc.3
Por esse tempo morreu Rasilio, e Leão Cria Praxeas ser o seu sentimento o
vi, seu filho, lhe succedeu. Tinha este um
sobrinho: presumiu-se que Phocio desti­ 1 Zomav, Baron, ad an. 886. Curopa-
nava elcval-o ao imperio: disse-se a Leão, lat. Dup. ibid.
este creu-o, e logo expulsou Phocio da ca­ 2 Tudo o que respeita a Phocio se le nas
deira dc Constantinopla, sobre a qual col- cartas de Nicolau 1 c d'Ariano II. Vecus, l.
locou a seu irmão. Phocio retirou-se a um 3, de Processione Spirit, S. Nicetas, Vita
mosteiro, aonde acabou em paz os seus Ignatii. Schoms pref. sur la Biblioth. de
dias, e a sua retirada restabeleceu a com- Photius; Leo Allarius, dc Stjnodo Photiana;
Fleuru; Revolutions de Constantinople, par
1 Epist. Joan. 199. M. de Burigny, t. 3. Phocio fez grande nu­
2 Baron, ad an. 879. Natal Alex. in sxc. mero, d-obras excellentes áceixa das quaes
9. Dissert. 4. Panopl. çonlr. Schism. Grccc. sc deve consultar a Bibliotheca dc Fabricio,
scec. 9, c. 2, pag. 16o. t. 9, c. 38, pag. 369.
2 Le Clerc, Hist. Eccles. ad an. 186.
3 Baron, Panopl. loc. cit.
762 PRA
meio unico d’evadir os systemas, que ad­ a unidade da substancia e a distineção das
mitti am muitos princípios', e Restabelecer pessoas: se Tertulliano houvesse ensinado
a unidade de Deus; portanto os seus dis­ que as tres pessoas da Trindade oram tres
cipulos foram chamados monarchicos; e substancias, não poderia dizer que não ha­
como de não haver mais que uma só pes­ via divisão entre cilas, porque muitas sub­
soa na divindade se seguia ser o padre o stancias são divididas, existindo necessa­
que encarnara, padecera, etc., d’aqui veio riamente uma fóra da outra.
serem também denominados patripassianos. Se Tertulliano tivesse crido que tres pes­
Tertulliano refutou o erro de Praxeas soas fossem tres substancias diversas, en­
com muita força e solidez, oppondo-lhe a tre estas tres pessoas teria havido não so­
doutrina da igreja universal, segundo a mente ordem e distineção, mas também di­
qual, diz elle, de tal sorte crémos um só versidade; seria falso que o Pae e o Filho
Deus, que reconhecemos ao mesmo tempo fossem a mesma substancia, como elle o
ter este Deus um Filho, que é o seu Verbo, susteuta contra Praxeas, c uma eonlradic-
que d’elle sahiu, pelo qual foram crcadas çao èm que Tertulliano não podia cahir,
todas as cousas, e sem o qual nada foi fei­ não porque não possam os homens contra­
to; que este Verbo foi enviado pelo Pae ao dizer-se, mas isto é sómente em conse­
seio da Virgem, que d’ella nasceu homeni quências remotas, e não quando o sim e o
e Deus juntamente, Filho do homem e Fi­ não se tocam, por assim dizer, como acon­
lho de Deus: que foi chamado Jesus Chris­ teceria se Tertulliano tivesse fallado, como
to, que padeceu, morreu, e foi sepultado: Le Clerc o faz fallar.
eis-aqui, accrescenta elle, qual é a regra da Quer Le Clerc que estas distineções que
Igreja e da fé, desde o priucipio do Chris­ Tertulliano põe entre as pessoas da Trin­
tianismo. 1 dade não possam convir se não a tres sub­
Le Clerc parece duvidar que Praxeas stancias, porque se ellas não suppoem que
confundisse as pessoas da Trindade; per­ as pessoas são tres substancias, sómente
suade-se que elle não negara ser o Pae dis­ estabelecem que as tres pessoas não são
tincto do Filho, e que tivera que esta dis- mais que tres modos ou tres relações di­
ineção não fazia d elle duas substancias, e versas, o que Praxqas não negava."
|ue esta ultima distincçào ó a que Tertul- 1. ° Diga-nos M. Le Clerc em que se fun­
iano sustentára contra Praxeas; mas é um da, para querer que Praxeas reconhecesse
aleive assacado a Tertulliano, o qual em uma distineção ainda modal entre as pes­
toda a sua obra igualmenle sustenta, as­ soas da Trindade? toda a obra de Tertul­
sim a unidade da substancia divina, como liano suppõe que Praxeas negara qualquer
a distineção das divinas pessoas. distineção entre as mesmas pessoas.
Nos capitulos terceiro e quarto diz Ter­ 2. ° Tertulliano no mesmo logar sobre
tulliano, que a Trindade das Pessoas em que M. Le Clerc faz esta reflexão, diz que
nada prejudica a unidade da natureza e a demonstrara como o Pae, o Filho, e o Es­
monarchia que Praxeas presumia defen­ pirito Sancto fazem numero sem divisão,
der: seria destruil-a, diz elle, admittir ou­ o que seria absurdo, se elle tivesse crjdo
tro Deus mais que o Creador; quanto a que estas tres pessoas são tres substancias.
mim, que reconheço que o Filho é da mes­ 3. ° Não vêmos em Tertulliano que sup-
ma substancia do Pae, que elle nada obra ponha poder ser vista como uma distineção
sem a sua vontade, e que d’elle recebeu modal, o que elle suppõe entre as pessoas
toda a sua omnipotencia, que mais faço eu da Trindade; os modos não obram: care­
que defender no Filho a monarchia que o cem d’acção propria, e não enviam outra
Pae lhe deu? e o mesmo digo do Espirito modificação, o que Tertulliano comludo
Sancto. reconhece nas pessoas da Trindade. M. Le
No capitulo sétimo diz Tertulliano a Clerc não podia concluir que a distineção
Praxeas: «Lembrai-vos sempre da regra admittida por Tertulliano fosse uma dis­
que assenta que o Pae, o Filho, e o Espi­ tineção que suppozesse serem as tres pes­
rito Sancto são inseparáveis. Quando digo soas tres substancias, senão na conformi­
que o Pae é outro que o Filho e o Espirito dade Restar certo de não poder haver n’el-
Sancto, digo-o por necessidade; não é por las mais que duas sortes de distineções, a
assignalar diversidade, mas ordem; não modal, isto é, aquella que se acha nas mo­
divisão, mas distineção; é outro em pessoa, dificações Ruma substancia, e a substancial,
não em substancia.» isto é* aquella que se acha entre as sub­
Não póde exprimir-se ccm mais clareza stancias; isto é o que elle não prova. •
O resto das objecçòes de M. Le Clerc
1 Tert. Cont. Praxean, c. 2. contra Tertulliano nao é mais que um
PRE 763
abuso das comparações de que este se ser­ tal maneira, que não houvesse n’isto nem
ve para explicar o modo como as tres pes­ preferencia nem escolha, destruía todas as
soas da Trindade subsistem na divina sub­ idéias que a Escriptura nos oíTerece da Pro­
stancia; comparações que Tertulliano offe- videncia acerca da salvação; que nada
rece trio sómente como imagens adequa­ acontecia que não fosse p*ela vontade do
das para fazerem comprehcnder o seu pen­ Deus, que tinha previsto c determinado
samento, e cujo abuso ellc previne, lem­ tudo; que a vontade de salvar os homens
brando de continuo ao seu leitor a unida­ não havia d’cntender-se acerca de todos
de da substancia. elles sem exccpção, e que devíamos cingir-
Seria também abusar das palavras que­ nos fielmente a omnipotencia divina, á sua
rer que Tertulliano sustentasse contra Pra- independencia, e crer finalmento que a sua
xeas serem as tres pessoas tres substan­ vontade não é determinada pelo homem. 1
cias, por se servir elle algumas vezes da O sancto confirmou e roborou todos estes
palavra substancia para designar a pessoa princípios no seu livro da Correcrão e da
subsistente, o que é ordinario entre os an­ Graça, da Predestinação e do Bom da Per­
tigos, antes do concilio de Nicea, e ainda severança.
depois d’elle. M. Le Clerc não teria julga­ Em qualquer disputa, os argumentos fa­
do assim Tertulliano, se tivesse seguido zem perder de vista os princípios, e elles
aquellas mesmas maximas que elle estabe­ se tornam em princípios, porque sobre os
lece para se fazer juizo do sentido d’um mesmos argumentos é que versa a disputa.
author. Veja-se o artigo Critica. D!esta sorte, a independencia de Deus nas
' p r e d e s t i n a c i a n i s m o — Este erro encer­ suas determinações, a sua omnipotencia, e
rava muitos capítulos: l.° que nào era ne­ o seu imperio absoluto sobre todas as crea­
cessario ajuntar á graça de Deus o traba­ turas, foram os principaes objectos cm que
lho que o homem tem em obedecer; 2.° se occupou o entendimento. Créram encon­
que desde o peccado do primeiro homem, trar n’estes princípios fundamentaes uma
o livre arbitrio está inteiramente cxtincto; como pedra de toque, por meio da qual se
3.° que Jesus Christo nào morreu por to­ podiam discernir todas as controversias
dos: 4.° que a presciencia divina força os relativas á graça, ao livre arbitrio, e á sal­
homens, e violentamenle os condemna; c vação dos homens; e rejeitaram como er­
que os condemnados o são por vontade de ros tudo o que não parecia conforme aos
Deus; que desde a eternidade, uns são pre­ mesmos princípios:
destinados á morte, e outros à vida. Olhando-se como ura dogma fundamen­
Obrigados os pelagiauos a confessar o tal, e tomando-se á letra a corrupção do
peccado original e a necessidade da graça homem, ponderando-se que não ha cousa
interior, que esclarecia o entendimento, e que elle não tenha recebido e de que possa
movia a vontade do homem a que podésse loriar-se, e que cm tudo está dependente
fazer uma acção boa para a salvação, as­ c Deus, como nol-o diz a Escriptura, a li­
severaram que esta graça dependia d’clle, berdade parece um erro.
e era concedida aos seus merecimentos: Suppondo-se que nada acontece senão o
affirmavam elles que Deus seria injusto se que Deus quer, é facil concluir que não
preferisse um homem a outro sem que quer a salvação dos condemnados, e que
houvesse diversidade nos seus sentimentos, quer a sua condemnação.
e insistiam em que esta diíTerença não se Reconhecendo-se que Deus tudo prevê c
compadecia com a bondade e sabedoria de tudo ordena, como se ha de suppôr liber­
Deus, nem com o que nos ensina a Escri- dade no homem? Não seria ella um verda­
ptura da vontade geral, que tem de salvar deiro poder para desconcertar os decretos
a todos os homens. da Providencia, e portanto contraria ao
Sancto Agostinho combateu estes princí­ dogma da omnipotencia e da providencia?
pios por todas as passagens da Escriptura, Sancto Agostinho sustentara igualmente
que provam que o homem não póde dis­ assim a omnipotencia como a liberdade;
cernir-se a si mesmo, que Deus não é in­ ensinara que as passagens que faliam da
justo negando a sua graça aos homens, pois vontade de salvar a todos os homens, po­
que estão na massa da perdição; que não diam explicar-se acerca de todos sem ex-
tendo necessidade alguma aelles, como cepção, e que elle não se oppunha a estas
todo poderoso e independente que é, fazia explicações uma vez que ellas não impli­
graça a quem queria, sem que aquelle a cassem nem com a omnipotencia de Deus,
quem a negasse tivesse direito de se quei­ nem com a gratuidade da graça; porém
xar; que esta vontade vaga de conceder a
graça geralraente a todos os homens em 1 Epist. ad Sixt. ad Vitalem.
764 PRE
não tinha explicado como se conciliavam calco foi condemnado, deposto, c mandado
estes dogmas, e exclamava com S. Paulo: para uma prisão.
O altitudo! Gotescalco insistiu em defender-se, e
Estão, pois, os dogmas da liberdade e da Hincmar escreveu contra elle. Persuadin-
predestinação entre dous princípios, c por do-se alguns que nos escriptos do Hincmar
pouco que se discrepe do meio na defesa havia cousas roprehensiveis, Ratramno,
d’um ou d’outro, corre-se o risco d’escor- monge de Corbia, e Prudcncio, bispo de
regar em algum d’elles: portanto não é de Troya, os impugnaram; Hincmar oppôz-
maravilhar que houvesse prcdestiuacianos lhcs Amauri, diacono de Trevos, c João
desde o quinto século, hem que fossem em Escoto Erigeno.
pequeno número para formar seita. Não Prudencio persuadiu-se achar o pelagia-
examinaremos precisamente quando esta nismo nos oscriptos de Escoto, e a igreja
heresia começou: limitar-nos-hemos em de Lyão encarregou ao diacono FIoYo o
mostrar que não é imaginaria, e que foi impugnal-os. Amolon, pelo mesmo tempo,
condemnada nos concilios d’Arles e de escreveu uma carta a Gotescalco, pela
Leão pelos íins do quinto século. 1 qual parece julgal-o criminoso; refuta-lhe-
Gotescalco, monge d’Orbais, no bispado muitas proposições que elle havia proferi­
de Soissons, renovou esta heresia: era do, e vitupera q seu proceder, não suppor­
muito versado nos escriptos de Sancto tando ensinar-se que um certo numero de
Agostinho, e uma propensão occulta o ar­ pessoas fosse predestinado desde a eterni­
rastava para todas as questões abstractas; dade ás pessoas eternas, de sorto que ja­
examinou segundo os princípios do sancto, mais podesse nem arrepender-se, nem sal­
de que estava mui possuído, o mysterio da var-se. Tal é sem dúvida a doutrina de
predestinação e da graça, e occupa do uni­ Amolon; e M. Basnage não fez mais que
camente da omnipotcncia de Deus sobre sophismas para provar que este arcebispo
as suas creaturas, renovou o predestina- em substancia pensava como Gotescalco. 1
cianismo. As divisões que este monge occasionou
Ensinava: l.° que Deus antes de crcar na França, não provam, pois, que a igreja
■) mundo, e desde a eternidade, tinha pre- gallicana se dividisse ácerca. da sua dou­
lestinado á vida eterna os que lhe pare- trina: defendia-se a sua pessoa, e conde-
;era, e os outros á morte eterna; esto de­ mnavam-se os seus erros. 2
creto fazia duas predestinações: uma á vi­ Tem-se debatido muito sobre a realida­
da, outra á morte. 2.° Assim como os pre­ de da heresia dos predestinacianos, e so­
destinados á morte não podem salvar-se, bre os sentimentos de Gotescalco;3 porém
da mesma sorte os que o são ã vida não importa pouco saber se com eíTeito havia
podem perder-se. 3.° Deus não quer que predestinacianos, ou se se deu este nome
todos os homens se salvem, mas sómente aos -discipulos de Sancto Agostinho; e é
os escolhidos. 4.° Jesus Christo não mor­ sem dúvida ter condernnado a Igreja os
reu por todos, mas sómente pelos que se erros que se attribuem aos predestinacia­
hão de salvar. 5.° Depois da quçda do pri­ nos, e dever-se crêr que o livre arbitrio
meiro homem já não somos livres para não ficou extincto no homem pelo pecca-
obrar o bem, mas sómente para fazer o do, que Jesus Christo não morreu só pelos
mal.
Prégando Gotescalco aos povos esta dou­ 1 Noris, loc. cit. Vossius, Hist. Pelag.,
trina, que a muitos tinha posto em deses- I. 1, part. L jE p ist. 166, 168,169, 174, 186.
peração, foi condemnado no concilio de 2 Natal. Alex. in scec. 5.
Moguncia, em que- presidiu Raban, e logo 3 N oiis, Vossius, Pagi, loc. cit. Sirmond.
remeitido para a diocese de Rheims, em Praidestinatus. De novitio opere qui inscri­
que.fora ordenado; 2 a remessa de Gotes­ bitur Pr cedestinatus, Autore Fr. Picincirdo
calco a Hincmar acompanhou uma carta Patavini, «i-4.°, pensam que houvera pre­
de Raban, que lhe dava noticia dos seus destinacianos. TJsseiio quer o contrario. B ri­
erros, e da decisão do concilio.; Hincmar tannicorum Eccles. Antiquit. Jansenius, de
convocou outro em Carisi, em que Gotes- Hcer. Pelag. I. 8. Forbesius, l. 8, c. 19, se­
guem a Usserio; mas as suas razões parece
i Noi'is, Hist. Pelag., I. 2, c. 35. Pagi, que não contrapesam as do sentimento op-
ad an. 409. Le Prédestinatianisme, par Ic posto: o mais que poderíam provar é que os
P. Duchesne, m-4.°, 1724. . predestinacianos não foram assaz numero­
~ Raban Ep. Synod. ad Hincmar, t. 8. sos p a ra fonnar uma seita. Vide a Hist.
Cone. Mobil. A m a i Benedict. t. 2, ad an. L itt. de Lyon. Dupin, N a ta l Alex. VHist.
de.rE gl. Gallicane, t. 6..
829.
PRE 765
predestinados, quo a presciencia de Dens seitas que a reforma n’ella produziu. No
não necessita a ninguem e que os que são de Vigilando refutamos os erros dos pres­
condemnados, não o são pela vontade de byteranos.
Deus. Os presbyteranos ou puritanos haviam-
Sancto Agostinho ensinou estas verda­ se separado da igreja anglicana, porque
des, e não quiz que jamais se separassem ella ainda conservava parte das ceremo­
dos dogmas da omnipotência de Deus so­ nias da romana, que tinham por supersti­
bre o coração do homem, da gratuidade', e ciosas e contrarias á pureza do culto que
da necessidade da graça, da corrupção da Jesus Christo viera estabelecer, que é todo
natureza humana, e da certeza da predes­ espiritual. Tendo pois simplificado o culto
tinação. exterior, mas conservando todavia um e
Portanto devemos condcmnar igualmen,- algumas ceremonias, Roberto Browum,
te o pclagianismo, o semipelagianismo, e o ministro dTnglaterra, foi de parecer que
predcstinacianismo. A concordância de to­ ainda tinham demasiada parte os sentidos
das estas verdades é um mysterio: sendo no culto, que os puritanos davam a Deus,
como são constantes cada uma d’ellas, é e que para honral-o verdadeiramente em
impossível que entre si haja opposição, e espirito, se deviam abolir todas as orações
por isso, sem dúvida, se compadecem, bem de bôcca, e até a mesma dominical, e com
que ignoremos o como. Axerca d’estas este motivo se retirou de todas as igrejas
verdades, cuja concordância não attingi- em que se recitavam orações. Fez discipu­
mos, devemos ter nào menos certeza que los que formaram seita; olhou-a como a
sobre a verdade da nossa creação, que é verdadeira igreja, e n’esse tempo os bru-
evidente, bem que não comprehendamos nistas se ajuntavam c prégavam nas suas
o como qualquer cousa é gerada. assembléias, em que todos tinham authori­
p r e s b y t e r a n o s —Assim se chamam os re­ dade para prégar, sem que se exigisse vo­
formados, que não quizeram conformar-se cação, como entre os calvinistas e puritanos.
com a lithurgia da igreja anglicana. Rece­ Os anglicanos, presbyteranos, e catholi­
bendo esta a reforma, não adoptou senão cos, eram todos igualmente aversos aos
certas mudanças nos dogmas, e conservou brunistas, sendo punidos com rigor; des­
a hierarchia com parte das ceremonias afogavam em vituperios contra a igreja in­
que estavam em uso no reinado de I-Ienri- gleza, e imputavam-lhe quanto os protes­
• que viu, c verdadeiramente só no de Isa­ tantes e calvinistas haviam dito contra a
bel se estabeleceu a reforma em Inglater­ romana: emfim tiveram martyres, e forma­
ra; então foi que por divèrsas constituições ram seita; Browum foi o seu chefe, que to
* synodaes, confirmadas pelo parlamento, se mou o titulo de patriarcha da igreja cathd
ordenou o serviço divino e público, bem lic a .1
como ainda hoje se practica na igreja in- A variação que os presumidos reforma
gleza. dos fizeram no culto, e que os puritanos
Porém voltando para Inglaterra muitos adoptaram, não tinha outro principio mais
inglezes que haviam fugido no reinado de que o seu odio contra o clero, e o amor da
Maria, e que tinham abraçado a reforma novidade: parte dos reformadores conser­
de Zuinglío e de Calvino/tiveram que a varam muitas ceremonias da igreja roma­
reforma da igreja ingleza estava imperfei­ na, e os calvinistas foram reunidos em
ta, e ainda inficcionada d’alguns restos do communhão com estes reformados; por­
pelagianismo. Não podiam tolerar que os tanto não davam estas ceremonias um mo­
sacerdotes cantassem o officio com sobre- tivo racionavel para se dividirem da igreja
peliz, e mais que tudo combatiam a hie­ romana, e os reformadores não eram assis­
rarchia e authoridade dos bispos, queren­ tidos da authoridade necessaria para em-
do que todos os sacerdotes ou ministros prehenderem as mudanças que fizeram.
tivessem igual authoridade, e que a Igreja No artigo Vigilando, cujos erros su sci­
fosse governada por consistorios ou pres­ taram, os refutaremos: em Bruys póde-se
byteros compostos de ministros e d’alguns vêr a defesa do culto exterior. Os theolo­
leigos anciães. Assim, chamavam a estes gos da igreja ingleza combateram os prin-1
presbyteranos e aos que seguiam a lithur­ eipios dos puritanos desde a sua separa­
gia anglicana e que reconheciam a hierar­ ção até agora.2
chia, episcopaes.
Os presbyteranos soffreram uma opposi­ 1 Ross, des Religions du Monde, la pro­
ção mui dilatada: foram tractados como fane séparation des Broucistes.
scismaticos, e ainda hoje o são pelos epis­ 2 Veja-se a Hist. Eccles. da GranrBre-,
copaes. Veja-se o artigo Inglaterra, e as tanha por Collier, da qual se acha um mui
766 PRI
PRESUMIDOS REFORMADOS — Vcja-SO R e- sem conseguir vér o papa Damaso, nem
forma. Sancto Ambrosio.
p r i s c i l i a n o — Chefe d’uma seita que se Dcsattendidos, pois, dos dous bispos, que
formou em Hespauha pelos fins do quarto tinham a maior authoridade na Igreja, vol­
século, que alliava os erros dos gnosticos taram todos os seus esforços para Gracia­
com os erros dos manicheus. Estes erros no, e por via de adherencias e de presen­
foram trazidos á Hespanha por um certo tes, compraram Macedonio, mestre dos of-
Marcos, e adoptados por Prisciliano. ficios, e obtiveram um rescripto que annul-
Era este um homem d’importancia por lava o que Itacio alcançara contra elícs, e
seus cabedaes e nascimento, por sua natu­ os mandava restabelecer nas suas igrejas, i
ral eloquência, e por um genio bom, ca­ Voltaram os priscilianos a Hespanha, e ca­
paz d’aturar fomes e vigilias, parco e des­ ptada a benevolencia do proconsul Volven­
interessado, porém fogoso, inquieto, e pos­ d o, tornaram a entrar nas suas cathcdraes
suído d’uma curiosidade muito viva. Com sem opposição: e nimiamente exasperados
taes disposições, não é de maravilhar que contra os seus inimigos, nào se contentan­
elle cahisse nos erros de Marcos, c viesse do com o seu restabelecimento, passaram
a parar chefe de seita. O seu exterior hu­ a perseguir Itacio como perturbador das
milde, a sua compostura e eloquência, des­ igrejas, e o fizeram condemnar rigorosa­
lumbraram muita gente: deu o nome a mente.
seus discipulos, que rapidamente se espa­ Itacio fugiu para as Galhas, obteve o fa­
lharam por grande parte da Hespanha, e vor do prefeito Gregorio, o qual ordenou
foram apadrinhados por muitos bispos. lhes trouxessem os cabeças de motim, e
Formando, pois, os priscilianos, conside­ d’isto informou o imperador para prevenir
rável partido, Hygino, bispo de Cordova, e os empenhos; porém tudo na côrte era ve­
Idacio, de Mcriáa, oppozeram-se aos seus nal, e os priscilianos por meio d’uma gran­
progressos, perseguiram-nos com muita vi­ de somma que deram a Macedonio, obtive­
vacidade, irritaram-nos, e os multiplica­ ram que o imperador tirasse o conheci­
ram: porém Hygino, que fôra quem pri­ mento d’estc negocio ao prefeito das Gal­
meiro lhes declarára a guerra, perfilhou has, e que o passasse para o vigário de
por fim seus sentimentos, e os recebeu na Hespanha.2
sua communhão. Macedonio despachou officiaes para pren­
Depois de varios debates, os bispos de derem Itacio, que estava em Treves, e o
Hespanha e d’Aquitania, tiveram um con­ conduzirem a Hespanha, mas elle evitou a
cilio em Saragoça; os priscilianos nào ou­ prisào, e ficou escondido na mesma cidade
saram expôr-se*à decisào do concilio, no até â revolta de Maximo. Chegado este
qual foram condemnados; porém Instancio usurpador a Treves, Itacio lhe apresentou
e Salviano, bispos priscilianos, longe de se um memorial contra os priscilianos, que
submetterem ao juizo do concilio, ordena­ naturalmente haviam de seguir as partes
ram Prisciliano bispo de Labila. Dous bis­ d’um principe, que os protegia, e inimigo
pos, oppostos aos priscilianos, seguindo do usurpador, ao menos emquanto o não ti­
um mau conselho, diz Sulpicio Severo, re­ vessem grangeado.
correram aos juizes seculares para faze­ Maximo, pois, fez conduzir a Bordeus to­
rem expellir das cidades os priscilianos, e dos os que se presumiram infectados dos
por mil vergonhosas solicitações obtive­ erros de Prisciliano; fizeram fallar Instan­
ram do imperador Graciano um rescripto, cio primeiro, e como se defendeu mal, foi
que ordenava fossem expulsos os hereges declarado indigno do episcopado.
não só das igrejas e das cidades, mas de Prisciliano recusou responder diante dos
toda a parte. 1 bispos, e appellando para o imperador,
Espavoridos os priscilianos com este edi­ houve a fraqueza de o soíTrerem, quando
to, nao ousaram defender-se em juizo; os deviam, como diz Sulpicio Seve«o, conde­
que se haviam arrogado o titulo de bispos, mnabo por contumaz, ou, se elles por al­
cederam por si mesmos; os demais espa­ gum motivo lhe eram suspeitos, reservar
lharam-se. Instancio, Salviano e Prisciliano esta sentença para outros bispos, e não
foram a Roma e a Milão, sem que podes- para o imperador; eis-aqui quanto sabe­
mos do concilio de Bordeus. Foram pois
levados a Treves, diante de Maximo, todos
bom extracto na Bibliotheca Ingleza, t. i,
pag. 181. A Hist. dos Puritanos, p o r Daniel
N éal, 1736, 3 vol. em inglez, in-ès~ 1 Sulpic. Severo, l 2.
i Sulpic. Severo, l. 2. 2 lbid.
PRI 767
os que estavam embrulhados n’csta aceu­ manifesta-sc muito beni a impressão que
sação. sobre os animos causou o seu modo de
Os bispos Itacio e Idacio seguiram-nos proceder, no panegyrico dc Theodosio, re­
como accusadorcs, e com desdouro da re­ citado cm Roma pôr Pacato, estando pre­
ligião, que elles faziam odiosa aos pagãos, sente o mesmo imperador, em 389, e n’ou-
pois que não se duvidava que estes bispos tro depois da morte de Maximo. «Viu-se,
obrassem mais por paixão que por zelo da diz este orador, sim, viu-se esta nova espe-
justiça. cie de delatores, bispos no nome, soldados
Por esse tempo achàva-sc S. Marlinho c algozes no eíTeito, que não contentes de
cm Troves para solicitar o perdão d'al- haverem despojado estes pobres infelizes
guns infelizes; empregou toda a sua cari­ dos bens de seus maiores, ainda cxcogita­
dade, prudência e eloquência, cm persuadir vam pretextos para derramarem seu san­
a Itacio que se deixasse dTmia aceusação, gue, tirando a vida áquelles que faziam
que desaulhorisava o episcopado; suppli- criminosos, como já os tinham feito neces­
cou a Maximo que poupasse o sangue dos sitados: más o- que ainda horrorisa muito
culpados, representaudo-lhe que era bas­ mais, é que depois de haverem assistido a
iante serem declarados hereges pela sen­ estas criminaes sentenças, depois de sacia­
tença dos bispos; que se expulsassem das rem os olhos com os seus tormentos, os
igrejas, c que não havia exemplo de que ouvidos com os seus gritos, depois de ha­
uma causa ecclesiastica fosse sujeita a verem manejado as armas dos lictores, e
um juiz secular. Então Itacio, para preve­ ensopado as mãos no sangue dos executa­
nir os effeitos do zelo de S. Marlinho, ac- dos, com ellas mesmas ainda ensanguenta­
cusou-o dc heresia; mas este meio, que das, iam oíTereccr os sacrifícios.*
lhe tinha sortido elTcilo contra muitos ini­ A authoridade da justiça, a apparencia
migos, foi frustrado contra o sancto; so- do bem público, e a protecção do impera­
brestevo-se na causa dos priscilianos cm- dor, estorvaram que por então se tractas­
quanto S. Martinho se demorou em Treves, sem os que haviam perseguido os prisci­
e na sua despedida Maximo lhe prometteu lianos com a severidade que mereciam
que não derramaria o sangue dos accusa- uns bispos que procuraram a morte a
dos, porém durante a ausência do sancto, tantas pessoas, bem que fossem culpadas;
Maximo acquicsceu finalmente aos conse­ porém Sancto Ambrosio e muitos outro;
lhos e solicitações dos bispos Magno e Ru­ prelados se separaram da sua communhão
fo. Este ultimo foi depois accusado e de­ S. Martinho também' a principio fez o mes
posto por causa de heresia. mo, mas depois communicou com elles, í
O imperador deixou, pois, os sentimen­ fim de salvar a vida a alguns priscilianos.
tos de doçura que S. Martinho lhe havia Depois da morte de Maximo, Itacio, e
inspirado, e submeltcu a causa dos prisci­ Idacio foram privados da communhão da
lianos a Evodio, prefeito do pretorio. Evo- Igreja, e o primeiro excommungado e re-
dio era justo, nias ardente e severo: por mettido para um desterro em que morreu..
duas vezes interrogou a Prisciliano, e por Era elle destituído da sanctidade e gra­
sua própria confissão o convenceu de ha­ vidade d’um bispo, atrevido até ao descara­
ver estudado doutrinas vergonhosas, tido mento, grande fallador, fanfarrão, e tracta-
assembléias nocturnas com mulheres cor­ va de priscilianos todos os que via jejuar,
ruptas, e de se ter posto a pregar nu. Evo­ e applicarem-se á leitura; mas sem embar­
dio deu a sua informação a Maximo, o qual go d’isso teve partidários em França, aon-
condemnou á morte a Prisciliano e seus àe a sua condemnação fez eslrepito, e for­
cúmplices: então Itacio retirou-se, e o im­ mou-se em seu favor um partido conside­
perador nomeou em seu logar um advoga­ rável.
do do.fisco para continuar a aceusação; e Os priscilianos, da sua parte, tornando-se
á sua instancia foram executados de morte com a perseguição mais fanaticos, honra­
Prisciliano, dous clérigos, e dous leigos. ram como martyres a todos os que haviam
Continuaram os processos, e ainda mor­ sido executados, e o seu erro grassou prin-
reram mais alguns priscilianos. cipalmonte na Galliza, aonde quasi todo o
A morte de Prisciliano não fez mais que povo estava contaminado d’esta heresia, e
estender a heresia, e emperrar os seus se­ até um bispo prisciliano chamado Sympo-
ctários, que tendo-o já por sancto, lhe de­ so, ordenou muitos bispos.
ram o culto de martyr, e por elle faziam o Sancto Ambrosio escreveu aos de Hispa-
maior dos seus juramentos. nha, pedindo-lhes que admittissem á paz
O supplicio dc Prisciliano c de seus se- os priscilianos, uma vez que estes conde­
quazes tornou odiosos Itacio e Idacio, e mnassem seus maus procedimentos. *
Ceie-
768 PRO
braram um concilio em Toledo, no qual No meio, porém, d’esta prodigiosa acti­
por um decreto foram admittidos; 1 nfio vidade, e d’estes esforços gigantescos, no­
bastaram, porém, para suíTocar inteira­ ta-se uma cuusa, que não deixará de cha­
mente esta heresia, a indulgência, e pru­ mar a altenção do qualquer homem pen­
dência d’este concilio, celebrado em 400; sador:—o profundo silencio que guardam
alguns annos depois d’elle, Osorio lamcn- sobro seus princípios religiosos e sobre suas
tava-se a Saucto Agostinho, que os barba­ profissões do fé. Nada d’isto dizem aos po­
ros que entraram na llespanha faziam vos a quem tractam de seduzir, contentan­
n’ella menos estragos que estes falsos dou­ do-se sómente em seus escriptos de vili­
tores: c tal era a confusão, que muitas pendiar a religião catholica, com o que, ao
pessoas largavam o paiz por causa d’ella .2 seu modo de vér, conseguem a propagação
Passados alguns annos, em 407, o impe­ do protestantismo. Este silencio é por cer­
rador Honorio ordenou que os manicheus, to mui significativo, e diz por si só mais
os cataphrygos, c os priscilianos fossem do que cousa alguma. Tão más são as
privados, de todos os direitos civis, e seus suas theorias religiosas, que não se atre­
bens adjudicados aos seus parentes mais vem a manifestal-as? Temem por ventura
proximos; que elles nada podessem rece­ que os povos horrorisados ao ouvil-as es-
ber dos outros, dar, nem acceitar, e que planar se afastem d’elles, como poderíam
até seus proprios escravos podessem de- fazel-o dos maiores inimigos do genero hu-
nuncial-os, e doixal-os, para se darem á
Igreja, renovando Theodosio, o moço, esta tes empregando a calumnia e a falsidade
le i ; 3 mas sem embargo de todos estes es­ para combater a religião catholica. Calvi­
forços, ainda se encontravam muitos pris­ no recommendava já em seu tempo simi-
cilianos no sexto século, e em Praga se ce­ Ihante systema, julgando-o summamente ef-
lebrou um concilio contra e lle s.45 ficaz. Pelo que respeita aos jesuilas, dizia
p r o c l ia n o s —Ramo dos montanistas adhe­ elle, é necessário matal-os, ou ao menos es-
rentes a Proclo, os quaes nada alteraram magal-os debaixo do peso das mentiras e
da doutrina de Montano. Proclo quiz espa­ das calumnias: aut certe mendacies et ca­
lhar a sua em Roma, e foi convencido de lumniis opprimendi sunt. (Ct. Maur. Se-
erro. 3 chenkl Jnstit. ju ris ecclesi. Landvih. t. 1, pag.
PRODIANITAS, ALIÁS IÍERMIOTITAS—DÍSCÍ- 500.) Os protestantes em todas as épocas teem
pulos de Hermias; veja-se este artigo. sempre participado das mesmas idéias,
p r o t e s t a n t i s m o — Ninguem ignora hoje como o demonstra a historia da papisa
os grandes esforços que o protestantismo Joanna, ridicula invenção de que elles mes­
está fazendo para penetrar em todas as na­ mos se envergonham hoje, e outras fabulas
ções catholicas, e com especialidade na similhantcs. *
nossa patria;6 sabida é de todo o mundo a Em nosso tempo continuam ainda ado­
assombrosa actividade de que os emissa­ ptando o mesmo systema. No folheto publi­
rios das diversas communhões reforma­ cado em Edimburgo, no anno de 1856, cujo
das, e sobre tudo os da anglicana, desen­ titulo e Preservativo contra Roma, se diz que
volvem para conseguir seus fins, fazendo na Hespanha se lêpublicamente nas igrejas to­
circular com profusão traducções da Bí­ dos os annos urna bulla do papa, na qual se
blia, feitas em harmonia com o canon de manda que os paes accusem seus filhos, e
suas respectivas igrejas, c uma multidão os filhos a seus paes, os maridos suas mu-N
de folhetos em que se discutem as prácti- Iheres, etc., se houverem dito uma palavra,
cas do catholieismo, e em que se pretende ou commettido uma acção contra a religião
provar, valendo-se para isto da falsidade catholica (pag. 4). Qual de nós, creados na
c da calumnia, que o poder espiritual que Hespanha, tem ouvido similhante cousaf
o papa exerce na Inglaterra, é um poder Com que descaramento mentem alguns ho­
tyrannico, contrario ao espirito do Evange­ mens! O mais singular de tudo, é o escre­
lho, e origem d’infmitos .m a les.7 ver-se isto èm Inglaterra, onde existe uma
lei (Àcta primeira do reinado dTsabel, clau-'
1 Amb. Ep. 52. sulas 17, 18 e 19), em virtude da qual o
2 Sulp, Severo, loc. cit. tribunal ecclesiastico, creado pela mesma,
3 Cod. Theod. 16. lit. 5, Z. 40, parj. 160, pôde fazer prestar a qualquer individuo,
l. 48, pag. 168. sobre quem recaiam suspeitas, um ju ra ­
4 Collect. Cone. mento pelo qual se obrigue a accusar-se a
5 Euseb. liist. Eccles. I. 6, c. 1 4 .. si mesmo, a seus amigos, irmãos e paes, de­
6 Hespmha. baixo da pena de morte? Que dirá a isto o
7 Desde muito tempo estão os protestan- author do Preservativo contra Roma?
PRO 769

mano? Ah! porém vós, sabios ministros, ]julgue depois d’um modo imparcial. É isto
sem dúvida não tereis lido o que diz Ta-1 o que somente exigimos,
cito dos maus livros: «Nos funcraes d’estcs
se deixam vér as partes dcbcis, pelo mero
facto de havcl-os supprimido.» Jà vêdcs I
aonde iriamos parar, se applicasscmos esta
regra de Tacito ao vosso systema da pro­
paganda. Muito más devem ser as vossas Que cousa é o protestantismo? É esta
doutrinas, quando com tanta destreza as naturahnentc a primeira pergunta que nos
occultaes. Porque não dizeis alguma cousa dirigirão nossos leitores, pergunta a que
sobro o vosso absurdo systema do livre ar­ vamos responder, copiando a definição que
bitrio, e sobre-os não menos exoticos da ne­ do protestantismo traz o Cathecismò angli­
cessidade da graça e da inefficacia das boas cano. Segundo este, a religião reformada
obras? Porém em vão vos exigimos nada não é outra cousa mais do que o odio ao
d’isto; vós nunca o fareis, porque sabeis catholicismo, e a exclusão de todos os ca­
quão triste papel representaria aquelle que tholicos para qualquer cargo ecclesiastico
no meado do século dezenove ensinasse, ou c iv il.1 Estranha é por certo a definição,
como crédes e publicamente ensinaram os não o sendo menos as consequências lógi­
coryphcus d’essa seita, que o homem ca­ cas que d’ella derivam. Em primeiro logar
rece de liberdade para seguir o bem, sen­ notamos que, segundo o citado catholicis-
do impellido ao crime por uma força cega; mo, o protestantismo não consiste cm crêr
que as boas obras são não só inúteis, mas ou negar certos e determinados dogmas,
até prcjudiciaes; e que a intclligencia hu­ ou em admittir esta ou aquella profissão
mana íicou completamente destruída pelo de fé. Nada d’isto; odiando o catholicismo,
peccado d’Adão. Ide pregar essa doutrina já qualquer póde crêr que é bom o zeloso
entre os cafres, e elies vos arrojarão d’alli protestante, importando muito pouco que
como barbaros e inimigos da civilisação. seus princípios religiosos sejam diametral
Desde o sabio Erasmo, contemporâneo mente oppostos aos que ensina o Evang-
dos primeiros reformadores, até ao illus­ lho. O sectario do Corão, os que professa
tre Balmes, que viven em nossos dias, tem- a religião de Budha ou de Confucio, os pa
se escripto e dito muito acerca do protes­ ti da ri os do polylheisino, todos, todos podei
tantismo, pulverisando completamente, e ser bons protestantes, c na realidade o são
demonstrando até á evidencia, que suas pois clles todos—odeiam o catholicismo, e
doutrinas são absurdas, e que o estabeleci­ excluem os catholicos de qualquer officio
mento da chamada reforma, ha produzido ecclesiastico ou civil,—e é aqui, que, por
infinitos males, tanto nos paizes que tive­ uma rara coincidência, sua magestade ce­
ram a infelicidade de a admittir, como nas leste, o imperador da China, e o sultão, o
demais nações que teern conservado inta­ eleito do Senhor, para exterminar os chm -
cta a fé de* Jesus Christo. As Variardes das tãos, pertencem a mesma conunnnhão que
igrejas protestantes de Bossuet, a Sumbofi­ o rei dTnglaterra, defensor da fé, e todos
ca de Moelher, o Protestantismo de Bal­ os mais principes c reis protestantes. Se
mes, a Historia da Reforma de Cobbelt, e estas comparações ferirem algumas susce­
as Conferendas de Wiseman, foram outros ptibilidades, toruc-se a culpa á logica, e
tantos aríetes que descarregaram golpes não a nós.
terríveis sobre o debil edifício levantado Pelo que respeita á tolerância protes­
por Luthero e Henrique viu; porém des- tante, as palavras já citadas do bom bispo
graçadamente estas obras notáveis são de Saint-David nada deixam que desejar.
pouco ou nada conhecidas pelo povo, que Segundo o que se indica por ellas, os ca­
é quem hoje necessita mais que ninguém tholicos são uma especie de párias, cuja
saber o que é a pretendida reforma, toda visinhança contamina, e a quem grande
a vez que a elle se dirigem os laços dos favor se faz hoje em não os assassiuar...
sectarios do protestantismo. As classes me- juridicamente, como se fazia uos bons tem­
diocremente illustradas, sabem a que ater- pos do Sancto Henrique viu c da rainha
se sobre este particular; ao povo, pois, a donzella.
esse povo que lé os folhetos que contra o Posto que seja certo que a cilada defini­
catholicismo publicam os reformadores in- ção do cathecismò protestante indica d’um
glezes e norte-americanos, e que não sabe modo ckiro c preciso qual o espirito e ten-
ainda o que seja o protestantismo, é a
uem se dirige o presente escripto. Medite 1 'The Protestants. Catecliism, by the
etidaménte sobre o que n’elle dizemos, e' Bishop of Saint David, pag. 12.
7 70 PRO
dencias da reforma (a intolerância e o Apresentaram-se, pois, Com o caracter
odio implacavel ao catholicismo), lambem de reformadores, tractando de melhorar o
o é que n’ella nada se nos diz sobre prin­ estado moral da sociedade, e d’estabcleccr
cípios religiosos que admiltem e reconhe­ em toda a sua pureza o Christianismo pri­
cem como verdadeiros os protestantes, que mitivo. Para desempenhar dignamente um
era do que, a nosso modo de vêr, devia papel tào importante, e levar a cabo um
exclusivamente tractar-se n’aquclic logar. proveito tào transcendente, era necessario
0 reverendo bispo de Saint-David, sem em­ que esses homens se houvessem distingui-
bargo, não julgou assim conveniente, como do por sua pureza de costumes, e pelo de­
o não julgaram os outros ministros protes­ sejo de fazer virtuosos a todos os outros,
tantes, que d’este assumpto se tcem occu- inculcando-lhes os princípios mais sãos da
pado, pelo receio, sem dúvida alguma, de moral, caracteres pelos quaes sempre se
que o povo, se chegar a conhecer a verda­ teem distinguido os verdadeiros reforma­
de, se aparte de tào detestáveis doutrinas, dores.
o que arrastaria comsigo, c falíamos só da Licurgo, o reformador das leis c costu­
Inglaterra, a perda d’uma renda de mais de mes em Laccdemonia, era um homem sim­
setecentos milhões de reales ao anno, que ples, virtuoso, e austero, amante enthusias-
desfrueta o clero anglicano. Ah! então os ta de sua patria, e tolerante e aíTavel até
ministros protestantes não poderíam, como ao extremo de chegar a mostrar carinho
fjz o bispo que havia em Winchester, pelos aos que com bastante descommedimento
annos de 1820 a 1824, repartir entre nove censuravam suas innovações e se oppu-
ou dez de seus parentes, trinta e dous be­ nham a cilas. * Condoído do estado dc pros­
nefícios ecclesiasticos, deixar um cabedal tração c aviltamento em que se achava o seu
de vinte e nove milhões e meio de reales, paiz, realisou n’elle uma saudavel revolu­
nem vender cerveja commum no paço epis­ ção socia! e politica, á qual deveu Lacede-
copal de Farnahan, ou cm qualquer outra monia o chegar a ser um dos estados mais
parte; 1 então o reitor ou cura da parochia poderosos e temidos da Grécia, conseguin­
de Alderthon, na líampshire, que tem qui­ do ao mesmo tempo transformar em cida­
nhentos freguezes, não desfruetaria uma dãos virtuosos homens submersos em toda
renda de quasi setenta mil reales (só de a casta de v icio s.2
dizimos),"nem o de Botley, povoação com Thales de Crcta, precursor de Licurgo,
quatrocentas almas, situada a leste de Kam- que preparou cm Lacedemonia os ânimos
shire, d’uma de mais d’oitenta mil reales;2 para a revolução, distinguiu-se também
e então não se repartiríam mil e quatro­ por suas virtudes, e pela pureza dos do­
centas parochias entre trezentos e trinta e gmas que professava.3
dous individuos, como succedeu em Ingla­ Solon, reformador atheniense, deveu as
terra. Qual d’elles se ha do atrever, por­ suas virtudes á sua temperança e ao seu
tanto, a apresentar a verdade nua? Exigir amor pela justiça, «essa mãe das boas ac­
isto seria exigir o impossível. Nós, todavia, ções, dizia elle, que põe freio á violência»/
que não lemos essas poderosas razões para a alta consideração de que gosou entre
calar, vamos supprir seu silencio, segun­ seus concidadãos. Foi quasi impossível o
do indicamos no principio d’este escripto. divorcio em A thenas,5 estabeleceu leis ri­
A ideia dos fundadores do protestantis­ gorosíssimas contra os magistrados de cos­
mo, ao separarem-se da communhão ca­ tumes depravados,6 melhorou a condição
tholica, não foi outra, segundo elles, do moral, social e politica dos athenienses, e
que a de reformar a religião christã, pur­ por ultimo desterrou-se voluntariamente,
gando-a da multidão de crenças falsas, julgando que a sua presença prejudicava
abusos innumeraveis, e prácticas pernicio­ a tranquillidade da sua patria.
sas, que os pontifices e o clero haviam in­ Deixando porém de parte os exemplos
troduzido na Igreja desde o tempo dos apos­ que nos oflerece a historia profana, e que
tolos. 3*
no século X V I o Christo allemâo. Sem elle
1 W . Cobbettj Refar. t. 1, pag. 157. o mundo estaria sempre no eiTO.
2 Id. Nueuv. Cart. pag. 164 e 167. 1 Plut. In. Lyc.
3 ' Varios escriptores protestantes, entre 2 Chat. E nsay sob as revol. part. I, c.
elles o bispo anglicano Newton (Disserta- XIII.
tions on the prophecies, t. 5, c. 10), dizem 3 Id. Id. c. XIX.
que os governos do papismo datam da idade * Poet. Minor. Grec. pag. 427.
apostólica. O Christianismo, segundo este, s Plut. In Solon, pag. 90, 91.
morreu no seu berço, havendo-o resuscitado 6 jEsch: In Tim. Laert. In Solon.
PRO 774

corroboram a verdade da nossa asserção, mais intimos. Quem que não fosse Luthe­
basta notar que Deus escolheu para chefe ro haveria fallado dos dialogos que tinha
e reformador do seu povo, a um homem com o diabo, das lições dc theologia que
sumraamente justo c virtuoso, a quem a lhe dava este singular doutor, 12e das tres
Biblia, com essa sublime simplicidade que palavras de que se servia para afugental-o
a distingue, qualifica, dizendo que era ho­ quando o incommodava de mais, palavras
mem dc Deus: Moyses homo Dei. indecorosas, que não póde ouvil-as sem
E podia ser outra cousa? Ilavia Deus córar, a pessoa menos pudica, as quaes
por ventura dc encommendar a reforma podem vèr-se nas Memorias dc Luthero,
do seu povo a homens immoracs? Havia publicadas por Michelet? 2
de fazer depositários da verdade aos parti­ Parece impossível que o homem possa
dários do erro? Nào, mil vezes não. Quan­ chegar a tal estado d’insensatcz ou do de-
do o povo d’Isracl se apartava do caminho pravação.
da salvação, para fazel-o voltar a elle, não E que diremos das virtudes civicas, do
lhe enviava por certo homens corrompidos amor patrio do reformador allcmão, ven­
c impios, tacs como Achab, Jorão, e Ocho- do-o assegurar que a Allcmanha, resistin­
sias, enviava-lhe, sim, os prophetas Elias, do aos turcos, que ameaçavam sua inde­
Eliseu, e Nathan, varões justos, que ar­ pendência, «resistia á vontade de D eus.»3
diam em zelo pela gloria do Senhor, e que Procedimento tão iniquio e infame é di­
não temiam arrostar toda a qualidade dc gno do anathema e da execração univer­
perigos, inclusivamcnte a mesma morte, sal. Abandonar cobardemcnte a patria,
em defesa da verdade. quando ella se acha em perigo! Os filhos
Em vista de tudo isto não podemos re­ da nobre nação allemã, felizmente, pensa­
solver-nos a crér que Deus confiasse a ram sempre ‘de differente modo que o dou­
missão de regenerar a igreja christà aos tor de Witemberg. O heroísmo de Koeruer
corypheus do protestantismo, homens em e de muitos outros, indica que não teen
quem não se encontrava nenhum dos ca­ olvidado aquelle dito d’um de seus melhe
racteres distinctivos dos verdadeiros refor­ res poetas: «A patria! Se nos faltarem ai
madores, e que, por sua corrupção, orgu­ mas para defendel-a, arranquemos as cruze
lho, ambição desmedida, sede insaciável de de ferro dos sepulchros dc nossos paes!»
riquezas, e carência absoluta de princípios Pelo que respeita aos princípios religio­
religiosos, eram mais proprios para sub­ sos, póde dizer-se que Luthero carecia
verterem a sociedade, do que para reeon- d’elles, ou pelo menos que esteve toda a
struil-a c organisal-a. sua vida em uma dúvida perpetua acerca
' Começando por Luthero, que foi o pri­ d’este ponto. Para nos convencermos d’isto
meiro em proclamar a pretendida.reforma, não ha mais do que abrir ao acaso qual­
sabemos d’elle que se separou da igreja quer de suas obras, ou* consultar o que
catholica, sómente por ter sido humilhado d’elle teem dito os biographos. O caracter
seu orgulho com a publicação da bulla em franco do chefe da reforma, e esta era tal­
que se condemnavam seus ‘erros. Esta pai­ vez a unica boa qualidade que n’elle se en­
xão era tão dominante n’elle, que chegou contrava, o atraiçoava a cada passo, obri­
a dizer que não cedia em orgulho ao mesmo gando-o a manifestar-se tal qual era. «Ce­
Salanaz.1 D’isto deu elle. por desgraça, re­ lebrando minha primeira missa, dizia elle
pelidas provas. Não podia soffrer a menor (Mem. de Luth. por Michel.), eu não tinhà
contradicção, encolerisando-se sobremodo f é . . . Logo vieram as tentações c as dúvi­
com todos aquelles que dissentiam da sua das.» Em uma de suas obras, escreve elle:
opinião, insultando-os grosseiramente, como «Muitas vezes penso só comigo que quasi
fazia com o sabio Erasmo, ao qual forçou não sei onde estou, nem se ensino a verda­
a dizer, que em sua velhice tinha de com­ de ou ?ião.» 4
bater com um javali furioso, e qualifican- Estas dúvidas, esta pouca certeza que ti­
do-o com os epithetos mais infames e bai­ nha Luthero da verdade da doutrina que
xos. «Aquelle que crêr cousa differente do ensinava, o atormentaram até ao ultimo
que eu creio, dizia elle, está destinado ao momento. Pouco antes de morrer, excla­
inferno.»2 Seu cynismo e aviltamento eram mou, luctando comsigo mesmo: «Minha
taes, que não se envergonhava de consi­
gnar em seus escriptos factos que outro 1 De miss. prív. abr. t. 7, 226.
não referiría nem ainda a seus amigos 2 Tom. 3.°, pag. 186, l. 4.
3 Luth. Prop. 15, 17, 98, pag. 112. As-
1 Sleid. Uh. VI, pag. 494. sert. art. per Bull. dramnat. prop. 33.
2 Luth. Op. t. 2, 28. 4 Coloq. Isleb. de Christo.
772 POR
razão ncga-se agora a querer o que me eram em outro tempo debaixo do papis-
diz o Christo.» 1 mo.» 1
Calvino, o segundo chefe da reforma, Isto não necessita de commentarios. 0
era ainda mais immoral e indigno do que inimigo mais encarniçado da reforma não
Luthero. A uma arrogancia sem limites, e poderia jamais condeiimal-a tão fortemen­
a uma intolerância nunca vista, reunia os te como o fez o proprio fundador.
vicios mais vergonhosos e execráveis, ten­ As palavras jã citadas de Luthero, não
do-os dado a esses actos nefandos, que at- são o unico testimunho que temos d’esta
trahiram a cólera divina sobre as cidades triste verdade. Melanchthon, occuppando-
de Pentapolis. 2 Que se podia esperar de se de todos aquelles que tinham era sua
um homem que ensinava terminantemente seita algum valimento, escreveu a Came­
que «Deus é o author de todos os cri­ rario estas notáveis palavras: «São os que
mes?» 3 me rodeiam gente ignorante, que não co­
Pelo que respeita á moralidade do fa­ nhece piedade nem disciplina.. . encontro-
moso Zuinglio, basta dizer que o mesmo, me como Daniel na cova dos leões.» -
fallando de si e de seus sequazes, escrevia Calvino já antes havia dito que o diabo
ao bispo de Constança n’estes tempos: se havia apoderado de todos e lle s.3
«Vossa grandeza conhece a vida vergo­ Na igreja de Strasburgo a corrupção de
nhosa que até agora temos tido com as costumes era tal, que Bucero, um dos che­
mulheres.» 4 Luthero chegou a accusal-o fes do protestantismo, manifesta que alli
de pagão, dizendo que desesperava de sua ninguem buscava outra cousa senão satis­
salvação,5 e que Satanaz reinava n’elle e fazer os seus appeltites.4 Calvino, fallando
em tòdos os seus sectarios. 6 dos evangélicos, dizia que «entre cem d a s­
Carlostadio, outro dos chefes da refor­ tes, apenas se encontraria um que hou­
ma, era, se havemos de dar credito a Me- vesse mudado de religião por outro motivo
lanchthon, um homem brutal, ignorante, do que para poder abandonar-se a toda a
que não conhecia a piedade nem a huma­ casta de deleites.» 5 Brentzen, discipulo de
nidade. 7 Este testimunho é de muita for­ Luthero, referindo-se, não a esta ou a ou­
ça, tendo-se presente que Melanchthon era tra communhão reformada, mas a todas
b homem mais moderado e tolerante de em geral, dizia «que a vida impurissima
todos os reformadores. que passavam a maior parte dos protes­
E não se creia que esta depravação de tantes, indicava que não acreditavam que
costumes se limitava aos reformadores; houvesse outra vida.» G Esta corrupção de
por desgraça exercia também seu funesto costumes, tão profunda c universal, faria
império sobre os reformados, sendo geral que Capiton, collega de Bucero, exclamas­
entre todos os individuos das diversas sei- se horrorisado: «este edifício arruina-se;
tos protestantes.0 Pregando Luthero em tudo se vai a perder.» 7
certa occasião em Wittemberg, viu-se obri­ E que diremos da reforma em Inglater­
gado a confessar esta verdade em termos, ra? que de Henrique viii, «o tyranno mais
por certo não ambiguos: «Desde que ha­ injusto, mais cruel, mais vil e mais sam
vemos ensinado nossa doutrina, disse elle, guinario que houve jamais no mundo?» 8
o mundo faz-se de dia para dia peor e mais Que do seu a latere Crammer, o qual mu­
im pio. . . os homens são mais ambiciosos, dou tres ou quatro vezes de religião, e que
mais impudicos, e mais detestáveis do que finalmente da boa Beth «a peor de quantas
rainhas tem existido, incluindo a propria
1 Alzog. Unie. Guchichte der Christo Isabel?» 9
Kirche, t. 1, pag. 80. Meuzel, Nueve Hist. Sabidas são de todo o mundo as causas
de los Aleman. t. 2, pag. 427. que fizeram com que o protestantismo en-
2 Lessio. Qua fides, et religio sit capes­
senda Consulatio. App. Utrum Calvinus 1 Lulh. Serm. 1557.
convictus fuerit sodomia?. 2 Mel. lih. 4, pag. 225.
3 Calv. ln stit. liv. 3, c. 27. Lessio op. 3 Dilue, expos. 839.
cit. App. Utrum Calvinus docurit Deum 4 Int. ep. Calv. pag. 500.
esse auctorem omnium scederum. 3 Comment. in 2.* epist. Petr. H 0, 2,
4 Alzog. Univ. geschichte der Christ. pag. 60.
Kirche t. 1, 3, pag. 400. e Homil. 35, in cap. 20. Luc.
5 P aro. Conf. Lulh. pag. 187. 7 Epist. ad Faret int epist. Calv. pag. 5.
e E pist. ad Jac. Prcefect. pag. 2. s W. Cobbett, Nov. Cart. pag. 22.
7' Mei. De vera et falsa religione, 2, pag. 9 W. Cobbett, R efo m . Protest. t. %
132. cart. 11.
PRO 773
■trasse em Inglaterra. Se Henrique viu não Christianismo, como é que cm vez de le-
houvesse querido divorciar-se de Cathari- val-a ao cabo, não conseguiram outra cou-
na d’Aragao, não se ha veria eíTeituado a sa mais do que perverter a sociedade, se­
mudança de religião que se realisou no rei­ meando n’ella o germen da perdição, cujos
nado d este principe. «Eu desejaria, diz a fruetos amargos recolhemos hoje?
este proposito um escriptor inglez, Fitz Póde conceber-se similhante cousa? «Por
William, eu desejaria, pelo respeito aos seus fruetos, diz no Evangelho o divino
couselhos do meu paiz, não fallar do debil Mestre, devem ser conhecidos os falsos
motivo que produziu a revolução religiosa prophetas, que sendo lobos rapaces, veem
na Inglaterra. Quizera também, se fosse vestidos com pelles d’ovelha. Não se co­
possível, oblitcrar de nossos annaes a lar­ lhem, cm verdade, dos espinhos uvas, nem
ga serie d’iniquidadcs, que acompanharam dos abrolhos figos.
a reforma na nossa uaçao.» 1 «Toda a arvore boa dá bons fruetos; to­
Cornprehendemos em qualquer homem da a arvore má dá fruetos maus. Não póde
honrado, e que ame apaixonadamente a a boa arvore dar fruetos maus, nem a má
sua patria, estes sentimentos manifestados dal-os bons.» 1
ppr Fitz William. Elle se envergonharia, O protestantismo é uma d’essas más ar­
e com razão, de recordar-se que houve em vores de que falia o Evangelho, que só­
Inglaterra nm parlamento vil, que se pros­ mente produz fruetos amargos e estereis.
tituía até ao extremo de declarar que um D’esta verdade nos convenceremos comple­
simples mandato do tyranno Henrique vm tamente quando fallarmos da ineííicacia
tinha tanta força como uma acla emanada das missões protestantes, assumpto de que
do mesmo parlamento;23que aquelle, no vamos occupar-nos na seguinte capitulo.
tempo do seu reinado, enviou ao patibulo
por questões de religião, cerca de setenta
e duas mil pessoas;3 divorciou-se com tres II
de suas mulheres por motivos futeis, des-
a Igreja de seus bens, e privou, da
S lade todos os seus súbditos; que a rai­ Póde dizer-se que o protestantismo, con­
nha Isabel, aquclla fera que se deleitava siderado debaixo do ponto de vista religio­
em assassinar seus vassallos, publicou as so, morreu ainda antes que seus mesmos
leis mais iniquas e tyrannicas que se co­ fundadores. Havendo satisfeito as vis pai­
nhecem, e estabeleceu, em virtude das xões dos reformadores, e saciado a sêde
clausulas 17, 18, e 19 da acta primeira do de riquezas dos principes do norte, que ao
seu reinado, aquelle terrível tribunal ec­ poder temporal que exerciam quizeram
clesiastico, que estava isempto de proceder unir também o espiritual contra o que de­
legalraonte, e d’obter testimunhas contra sejava o unico protestante de boa fé, Me-
as partes accusadas;4 e íinalmente que o lanchthon,2 parou seu vflo audaz.
anglicanismo, a religião estabelecida pela Não tinha por fundamento uma idéia
lei, deva a sua existência a Crammer, o grande e fecunda, capaz de regenerar a
homem mais hypocrita que tem havido em humanidade, e terminou sem progressos,
Inglaterra, o qual effectivamente a creou cumprida sua missão mesquinha. Passou o
no seu Cathecismo, e no seu livro de Ora­ século xvi e a primeira metade do xvu, e
ções. as gerações então existentes, alheias às
Quem, pois, em vista do que havemos paixões dos primeiros reformadores, repel-
dito, poderá assegurar que os fundadores liram o protestantismo, ou pelo menos o
do protestantismo verificaram na Igreja olharam com indifTerença, A igreja catho­
uma reforma salutar, e que n’ella se en­ lica possuia já por ventura valiosos bens
contram os caracteres de verdadeiros re­ em Inglaterra, Allemanha, e outros paizes
formadores? Havia Deus de confiar tão ele­ do Norte, dos quaes poderia ser espoliada?
vada missão a uns homens perversos c im- De que servia, pois, então o protestantis­
moraes, cujas obras e doutrina são dignas mo? Este não era já senão uma arma gas­
da execração pública? E se Deus, eíTecti- ta, e rejeitaram-no por inútil. Os povos
vamente, lhes encommendou. a reforma do
1 Evang. de S. Matheus. cap. 7, v. 15,
i Cart. de Atic, pag. 113,114. 16, 17 e 19.
2 W. Cobbett., Reform. Protest., t. 1, 2 «Os principes e magistrados não de­
pag. 141. vem estabelecer dogmas na Igreja, nem in­
3 Chat. Ensay. sobre la litt. ingl. pag. 34. stituir o culto.* Melanchthon, lixam. o rd i\
4 W. Cobbett, Novas cartas, 2 / nandorum.
<

774 PRO

dissidentes é certo que não voltaram ao canismo e outras seitas reformadas na


scio do catholicismo; porém lambem o é Asia, África, America e Oceania? Dcscon-
que não permaneceram fieis á reforma; fi­ solador deve ser para os individuos de to­
zeram-se indifferentislas, e a isto ficou re­ das as communhões protestantes o vêrem
duzida a obra de Luthoro e demais inno- o pouco ou nenhum frueto que leem con­
vadores. seguido os seus ministros n’essas remotas
Esta cspecie de frieza com que quasi to­ regiões, apesar dos avultados gastos e im­
das as nacòes teem olhado desde cntào o mensos sacrifícios, que para semear nul­
protestantismo, tem augmentado de dia cm las o germen da fé, teem feito e continuam
dia até ao extremo de que, como é sabido, fazendo ainda.
hoje nào se sustenta mais do que pelo Que pensará do protestantismo qualquer
apoio que lhe prestam os governos d’al- inglez sensato, depois de saber que as so­
guns paizes, interessados em que se con­ ciedades para as missões, estabelecidas na
serve essa ordem de cousas. Para julgar sua patria, necessitam para seus gastos
do estado actual da reforma em Inglater­ annuaes d’uns 3,800:000 escudos roma­
ra, basta saber que de mil pessoas, apenas nos 1 (para cima de 3,800:000^000 reis),,
ha uma que commungue unia vez em toda se lêr as cartas que o bispo anglicano de
a sua vida, 1 o que é muito significativo, Calcutá, Ilcber, dirigiu a MM. Horton 2 e
tendo-se presente, como observa Cobbett, Donglas, 3 nas quaes se diz que «os exem­
que a communhão constitue a verdadeira plos de conversão ao Christianismo eram
pedra de toque para poder distinguir os até então bastante raros?» E para conse-
que pertencem á igreja estabelecida por seguir um resultado tão mesquinho se em­
lei dos dissidentes. O citado escriptor, que pregaram sommas tào consideráveis, e tra­
pertenceu quinze annos á parochia de Bo- balharam com tanta actividade as seitas
they, diz que em todo esse tempo nào co­ protestantes?
nheceu mais que duas pessoas que rece­ Esta esterilidade da reforma, de que fal­
bessem a* communhào. Estas duas ovelhas ia o bispo Heber, restringindo-se a Calcu­
onslituiram, pelo que fica dito, todo o re- tá, é extensiva a todas as outras missões
anlio do reverendo ministro lord Walsin- anglicanas, se havemos de dar credito ao
gham, prebendado de Winchester, capel- orgão ofiicial das mesmas, o qual referin­
lào do rei, arcediago de Surrey, reitor de do-se aos resultados obtidos até então pelas
Farvlei, vigário de Exburgo, reitor de Mer- sociedades para a propagação do Evange­
ton, e.não sabemos o que de Bolley, cujos lho, dizia em 1820: «Nenhum resultado fe­
dízimos, que montam a 45:000^000 reis! liz, patente e visivel, tem provado ainda
iam para seu poder.2 que nossos trabalhos sejam agradaveis ao
A situação do protestantismo em Alle- Senhor. Em todo o caso não temos prova
manha é muito mais precaria ainda. O re­ alguma que possamos apresentar, pois até
verendo M. Hungh James Rose, na sua agora é pouco o que se tem adiantado na
obra intitulada Estado da Reforma na Con­ conversão actual dos pagãos.»4 Razão de
federarão Germanica, queixa-se amarga- sobejo tinha o citado periodico para fallar
mente*da cspecie d’indiflerentismo religio­ assim, e não podéra fazel-o d’outro modo,
so que aili reina entre os individuos das sem faltar á verdade, e á imparcialidade
diversas seitas protestantes, predizendo ao historica. Um simples lançar d’olhos sobre
mesmo tempo a completa ruina da religião o estado das missões protestantes, nos con­
reformada, se um remedio prompto e effi- vencerá d’isto.
caz lhe nào é applicado. Do Indostão em geral, d’onde, segundo
Na Hungria, se havemos de dar credito o doutor Buchanan «se tem apresentado á
á Correspondência Ecclesiastica, periodico Inglaterra o mais dilatado campo para a
que se publicava em Wuzburg ha vinte propagação do Evangelho, como nunca te­
annos, a reforma vai decahindo também ve nação alguma christã»,5 podemos dizer
notavelmente até ao ponto de não fazer ao
anno mais do que uns trinta proselytos, v Joum. asiatiq. 12, pag. 32.
emquanto que o catholicismo consegue no 2 N arr ative o fjo u rn a y throngh lhe up->
mesmo periodo que abracem suas crenças per provinces o f índia. B y the late Riginal
m ais de quinhentos protestantes.3. Heber, v. 1, pag. 46.
E que diremos dos progressos do angli- 3 Id. v. 3, pag. 253.
4 Churc. Miss., pag. 250.
1 Cobbett, Novas cart., pag. d24. 5 Memoir. on the expedieney, o f an ec­
2 Cobbett, Novas cart., pag. 156, 167. clesias tical estabelishment in Rritish, pag.
3 N.° corresp. a 28 de fevereiro de 1834. 48.
s

PRO 775
com a Revista Mensal Inglcza, que alli o Na America Meridional, c mesmo na Se-
Christianismo tem leito poucos ou ncnhuns ptcntrional, as missões protestantes não
progressos.1 Em Madras, a missão angli­ teem igualmente progredido cousa alguma,
cana tem conseguido tào sómento que re­ sendo impotentes os esforços que fazem os
cebesse o baptismo um manccbo, 2 o que sextarios da reforma para attrahir prosely­
nào deixa de ser um progresso. Igual re­ tos. 1 Idêntico resultado hão tido as mis­
sultado hão tido as estabelecidas em Dina- sões da Australia - e as das ilhas da Ocea­
porc 3 c Cawnporc,4 ambas a cargo do ce­ nia, nas quaes os protestantes não teem
lebre Martyn. fe.ito outra cousa mais do que perverter os
Em Banghulpore o missionário christão indigenas, peorando sua condição.3
pôde baptisar, depois de grandes trabalhos, Isto é o que tem conseguido o protestan­
a dous meninos, um de seis e outro de do­ tismo depois de tantos sacrifícios e de tan­
ze annos.5 Hough, outro missionário pro­ tos esforços. Deus não tem remunerado seus
testante, entôa uma espccie de hosanna cm trabalhos, castigando-os ao contrario com
acção de graças por um caso de bom êxito uma esterilidade vergonhosa. Que indica
que pode obter em todo o tempo da sua isto? Não outra cousa senão que o protes­
missão. 6 Os independentes estabelecidos tantismo está mui longe de ser a verda­
em Calcutá c Serampur triumpharam de­ deira igreja de Jesus Christo, á qual con­
pois de sete annos de trabalhos, da rebel­ tinuará esto a missão dc pregar o Evange­
dia de um d’aquelles indigenas.7 Ao zelo lho (com exito, entende-se), a todas as
apostolico de D. Iludson, missionário nos creaturas; não outra cousa senão que a
reinos de A va e dc Pegu, se deve tal re­ reforma c um ramo separado do tronco,,
sultado, porque depois dc seis annos con­ por onde não corre já a seiva vivificante,
seguiu que um birman abraçasse o Chris­ que dá louçania c força, e faz produzir
tianismo. 8 Nem todos os missionários são optimos fruetos.
tào felizes que possam jactar-se de haver «Assim como o ramo da vide, diz Jesus
obtido os resultados salisfactorios que MM. Christo a seus apostolos, não pódc produ­
Hongh e Chrislian tiveram. O de JaíTna es­ zir fruetos se não está unido á cepa, da
teve tão longe d’isto, que dizia descansa­ mesma sorte vós não podeis tão pouco pro-
ria em paz se conseguisse finalmenle con­ duzil-os, se não persistis em mim.» 4 O
verter um ou dous indigenas, do que du­ protestantismo não produz frueto algum;
vidava muito, pois as cousas, segundo elle, logo, não permanece em Christo; logo, não
apresentavam-se cm sua missão «debaixo é a verdadeira religião. Seja, pois, arranca­
d’um ponto de vista tenebroso.» 9 da essa arvore esteril e lançada ao fogo;
As missões protestantes estabelecidas cm para que ha de occupar inutilmente a
Africa nào tcom dado melhor resultado. terra? 3
Para não sermos diffusos, limitar-nos-hc-
mos a dizer que as de Soosoo e Bulton tive­ III
ram de ser supprimidas em vista do pouco
adiantamento que se notava n’ellas. O es­
tado de Kissey, Carlotte, Toun e Kent, não A esterilidade do protestantismo, de que
pôde ser mais triste, principalmente d’esta havemos fallado no capitulo anterior, não
ultima, cujo director, M. Randle, em vista deve, na verdade, maravilhar-nos em vista
do nenhum frueto que conseguia, se acha­ do singular systema, que, segundo indi-
va em uma grande npprehensào de sua
propria salvação espiritual.10 1 Nacional de Bruxelas, num. corresp.
a 10 de dezembro de 1829. — Traveis in
1 Month. Revieio, 1822, pag. 223. North America in the yearas 1827 and 1828,
2 Miss. Reg. tieth. report., pag. 153. by cap. Basil. Hall. v. 1. pag. 260.
3 Memoir. o f the Rev. Henry Martyn, 2 Rapport, of P. C., K. Soc. Lond. pag.
pag. 223. 34.
4 Jd. pag. 314. 3 Quarterly Revieio, pag. 440. Peirone,
5 Rapport o f the society for the propag., Prcelection. Theolog., t. 1, prop. 10. De
pag. 149. Steriht. Protest. Àcerca d’estes dados pôde
6 B) itish Critiò., 1825. vêr-se d erudita obra de Wiseman sobre a
7 IV. journal asiat. t. 2, pag. 38. esterilidade do protestantismo, da qual ha­
8 Quarterly Review, 1822, pag. 223. vemos extrahido quasi tudo o que dizemos
1 9 Miss. Reg., pag. 205, 261. sobre as missões protestantes.
10 Rapport o f the society for the propag. 4 Evangcl. de S. João, c. 15, v. 4.
o f the Gospcl, pag. 68, 80, 83. 5 Evang. de S. Lucas, c. 13, v. 7.
776 PRO
camos no principio d’este cscripto, tccm humana nega-se a crér que haja homens
adoptado os protestantes para propagar que so apartem tanto, não já dos princí­
suas idéias, c o silencio mais absoluto so­ pios moraes c religiosos, mas do bom sen­
bre suas crenças e princípios religiosos. so c da boa logica.
Um parodoxo, uma cousa impossível, pare­ A fim de que ninguem possa taxar-nos
cerá este procedimento dos reformadores, e d’exaggerados no que dizemos, c de que o
sem embargo o é na realidade. A que pro­ povo hespanhol saiba a que fixar-se sobre
testante se ouviu jamais explicar o credo este particular, fallando-so tanto, como se
da reforma, manifestar os seus princípios falia, do protestantismo, vamos fazer vér o
religiosos, e provar que sua doutrina é a que este é, dogmaticamente considerado,
verdadeira doutrina de Jesus Christo? E com o que preencheremos o objecto prin­
sendo isto assim, perguntarão alguns, para cipal do nosso trabalho.
que é tanto empenho da parte dos propa- Se as seitas protestantes convcem entre
gandistas protestantes, a fim de attrahirem si em algum ponto, é em admittir como
proselytos? Não é este um trabalho inútil? fundamento principal da religião o espiri­
Como hão de conseguir seu intento, occul- to privado, ou a livre interpretação dos li­
tando-se nas trevas, abstendo-se de pregar vros sanctos. Segundo este systema, cada
suas doutrinas, cousa que deveríam fazer, um é juiz competente em materias de re­
a fim de que os povos conhecessem a supe­ ligião, podendo admittir ou rejeitar á sua
rioridade da reforma sobre todas as outras phantasia, esta ou aquella verdade de fé,'
religiões? Mui justas e opportunas são to- inventar, se lhe aprouver, novos dogmas,
■flas estas observações, e não sabemos o que estabelecer lambem preceitos novos, de­
poderão responder a ellas os sectarios do clarar prejudiciaes os já existentes, e crear
protestantismo, a não ser que digam que finalmente uma religião a seu capricho,
se contentam cm semear a discordia no dizendo sómente que assim lhe é diclado
campo inimigo, sem tractarem de conse­ pelo seu espirito privado. Esto systema,
guir outro resultado, importando-lhes pou­ que na apparencia favorece a liberdade e
co que os individuos das outras religiões a razão humana, acha-se em contradicção
não sigam as doutrinas protestantes, com com a mesma doutrina protestante, segun­
tanto que abjurem as suas proprias. Trium- do a qual a inlelligencia humana ficou
ho mesquinho é este; porém com elle se completamente aniquilada pelo peccado de
á por satisfeita a reforma, pois aspirar a Adão. Os primeiros reformadores o reco­
mais, era vêr-se obrigada a patentear suas nheceram assim, e para evitar esta diffi-
crenças; c estas são taes, que, se assim o culdade appellaram para o recurso de de­
fizera, em vez de conseguir bons resulta­ clarar que o Espirito Sancto era o que
dos, não faria outra cousa senão attrahir operava no homem, inspirando-lhe o que
sobre si o odio e o anathema universal.— havia de crér, e por conseguinte que este
«Com tudo isso, porém, dirão muitos, não não era mais do que um instrumento; e é
podemos levar-nos a crér que as doutrinas aqui que aquelles que accusavam o catho-
protestantes sejam tão absurdas como sup- licismo, porque admittia a infallibilidade
pondes. Não negaremos que alguns dos do papa e dos concilios, se viram obriga­
seus dogmas sejam erroneos, que hajam dos a admittir a infallibilidade universal,
adulterado em parte a verdade, e que se toda a vez que o Espirito Sancto, que fal­
separem bastante do espirito do Evange­ ia va pela bôcca dos fieis, não podia equi­
lho; porém d’aqui a affirmar que suas vocar-se nem ensinar portanto o erro em
crenças são tão desconsoladoras e anti- vez da verdade. Os protestantes, sem em­
christas, que se chegassem a manifestal-as bargo, dissentiam todos uns dos outros,
publicamente, todo o homem sensato se não podendo pôr-se d’accordo, nem ainda
apartaria horrorisado d’um systema tão emquanlo aos livros da Sagrada Escriptu-
monstruoso, ha uma grande distancia. EI- ra, que deviam admittir-se como canonicos.
les, pelo que respeita á reforma, se have­ Luthero, a darmos credito a Agzol, não
rão apartado de tudo quanto se queira da quiz receber como taes os cinco do Penta-
religião do Salvador, porém no fundo teem theuco. «Nós, dizia elle, não queremos vér
permanecido christãos.» nem -escutar a Moysés; 1 fóra a epistola de
Assim racioGionaram todas aquellas pes­ S. Thiago, essa epistola de paia, accrescen-
soas que não sabiam o que era o protes­ tava, que ensina que a fé sem boas obras
tantismo, cousa que não estranhamos, pois
o absurdo d*essa religião não póde conce­
ber-se nem ainda depois d’estar bem orien­ i Univer. Geschichte der Christ. Kirche,
tado em seus dogmas e crenças; a razão t. 3j pay. 368. .
PRO 777
de nada serve; 1 abaixo também com a mais illustres, Grocio, cansado das luctas
epistola de S. Judas, com a de S. Paulo intestinas que havia entre seus correligio­
aos hcbreus, com a segunda de S. Pedro, nários, não teve reparo em dizer: «que era
com a segunda c terceira de S. Joào, e necessario admittir o primado do papaj se
com o Apocalypse.» Calvino e seus secta­ queriam dar fim ás disputas.» 1
rios nào estavam conformes com osta opi­ Quasi do mesmo modo se expressa Puf-
nião de Luthero. «Rejeitemos embora, di­ fendorf.o inimigo mais encarniçado do ca­
ziam, como apocryphos, o livro de Tobias, tholicismo: «A suspensão, disse élle, da au-
e todos os deutcro-canonicos do Antigo thoridade do romano pontifice, ha semeado
Testamento; porém admitíamos os do No- no mundo infinitos germens de discór­
vo em todas as suas partes, como faz a dias.» 2 Calvino, a quem já havemos cita­
igreja catholica. Porque razào hão de ser do, convencido como o estavam Beza 3 c
excluídas as epistolas de S. Thiago e todas Brcstchneider, 1 dous celebres protestan­
as outras, cuja canonicidade negaes?» tes, do impossível que era estabelecer a
0 Espirito Sancto, pelo que fica dito, en­ unidade, a não ser refugiando-se para o
sinava aos lutheranos cousas dilTercntes catholicismo, disse: «que Deus collocou no
das que manifestara aos sectarios de Cal­ mundo um pontifice unico, para o qual
vino. olhassem todos, a fim de melhor se conser­
Systema tào absurdo como o da livre in­ varem na unidade.» 5
terpretação, nào pode deixar de produzir Assim julgavam a reforma os mesmos
entre os protestantes a desordem e anar- corypheus d’ella, arrependidos, e com ra­
chia mais espantosas. Um negava o que zão, por haverem ensinado a absurda dou­
outro admittia como dogma de fé; cada trina do livre exame, que destruía em sua
um interpretava á sua phantasia a Sagrada base a unidade do dogma. Horrorisados
Èscriptura, não havendo duas pessoas que de sua propria obra, quizeram retroceder,
pensassem da mesma maneira em pontos porém já era tarde. Em vão o neo-ponti-
coucernentes á religião; Muncer, Herman, fice Luthero, levantado em sua cadeira de
Sweedemborg, Fox, Hacket, Nicolas, Har- Wartbourg, lançava o anathema contra os
lem, e outros muitos, criam, porque assim que haviam suscitado as turbulências de
lh’o ditava seu espirito privado, que a Bí­ Suavia, de Francfort, da Alsacia, do Pala-
blia sanccionava todas as suas maldades e tinado, do paiz de Bade, de Hcsse e da Ba-
extravagancias; em uma palavra, todos es­ viera. Elles mofavam da cólera do refor
tavam desorientados, sem saberem em que mador, por seu turno o amaldiçoavam,
fixar-se, nem ainda os mesmos corypheus declaravam que preferiam o papa a L
da reforma. Estes, ainda que tarde,'conhe­ thero.6
ceram o mal que haviam feito, prégando Este procedimento dos paizanos da All
tão absurda doutrina. «Se durar muito o manha, não podia, ao nosso modo de vêi
mundo, escrevia Luthero a Zuinglio, será criticar-se. Com que direito se atrevia Lu­
de novo necessario, por causa das varias thero a condemnal-os? Não havia elle pro­
interpretações da Èscriptura, que agora clamado o principio do livre exame? Não
circulam, para conservar a unidade da fé, havia por conseguinte destruído toda a au-
receber os decretos dos concilios e refu- thoridade, e deixado a cada individuo a li­
giar-nos n’elles.» Melanchthon, em vista berdade para crôr o que melhor lhe pare­
d’esta confusão espantosa, que reinava en­ cesse? Tão competente era Luthero, se­
tre os protestantes, viu-se obrigado a dizer: gundo o principio protestante, para enten­
«que o poder do papa serviría de muito der em assumptos religiosos, como o ulti­
para conservar a unidade das doutrinas.»2 mo anabaptista. O Espirito Sancto illumi-
Calvino, homem sagaz, e que conhecia o nava-os igualmente a todos. **
damno que havia de fazer ao protestantis­ Luthero, espantado em vista d’este cata­
mo a diversidade d’opiniòes, que existia clismo horroroso, teve tentações de voltar-
entre elles, escrevendo a Melanchthon, ex­ se de novo para o catholicismo, o que não
pressava-se nos seguintes termos: «Impor­ realisou por se oppôr a isto seu desmedido
ta muito que se não transmitia aos séculos
vindouros nenhuma suspeita das divisões 1 Votum pro pace Ecclesia.
quo ha entro nós.» 3 Um dos protestantes 2 De Monarch. Rom. Pontif.
3 Epist. ad Andr. Rudie.
1 \V. Cobbett, Rcform. Protest., t. 2, 4 De proselytis ecclesia Rom. et eccles.
pag. 101. evang.
2 Vide Balmes, Protest. t. 2, pag. 199* 3 lnst. 6, part. H .
3 Epist. Calv. all Nelanch., pag. 145. 6 Chat. Eus. sob. a litter. ingl. pag. 31.
778 PRO
orgulho. «Creio, escrevia ellc n’um d’esses Taes manifestações por parte dos pro­
momentos lucidos, em que a verdade so- prios chefes da reforma, indicam quão des-
bresahia às paixões do sectário, creio que gostosos cllcs estavam de sua. propria
a igreja catholica é a verdadeira igreja, o obra, a qual destruiríam de bom grado, a
fundamento e a columna da verdade, e o nào se ter opposto a isto, cm uns seu des­
logar sanctissim o.. . N’ella conserva Deus medido orgulho, como acontecia a Luthe­
milagrosamente o baptismo, a remissão ro., segundo anteriormente dissemos; e nos
dos_ peccados, a absolvição, tanto na con­ outros sua excessiva timidez, como cm Me­
fissão como no público, e*a imagem do cru­ lanchthon, e outros, finaltnonte, como em
cificado; i n’ella sem dúvida, tem eslado e Henrique vm o desejo de conservar os
está ainda a verdadeira igreja de Jesus bens que haviam roubado á Igreja.
Christo, e n’ella finalmente o Espirito San­
cto conserva a verdadeira fó. 2 Que.con­
fissão tão assombrosa! Que apologia tão IV
completa do catholicismo!
«Pôz o Senhor a palavra na bôcca do ho­
mem que estava cego: na bôcca de Balaam A reforma com seu incomprchensivel
veio a maldizer a Israel, e o bemdisse pelo systema sobre o peccado original, o livre
contrario.» (Num. c. 23.) arbitrio, c necessidade das boas obras, ten­
Pelo que respeita a Melanchthon, o dis­ deu a destruir á moral e a fazer do ho-
cipulo querido de Lulhcro, sabido é que meu um authomato, sem liberdade, sem
ultimamente ensinou que o papa «tinha o intelligencia, e portanto sem aptidão para
direito de convocar o concilio.» 3 c que obrar o bem.
«se lhe podia conceder a supremacia so­ Impossível parece que a razão humana
bre os outros bispos.» 4 se extravie até ao extremo d’inventar theo­
rias tão absurdas c desconsoladoras, como
1 Eis-aqui Luthero defendendo indire- as propostas pelos corypheus do protestan­
ctamente a absolvição na confissão, e o cul­ tismo, e acceites pelos outros individuos
to das imagens, essa bebida que envenena, c da communhão reformada.
essa práclica idolatrica, que fa z que dege­ Segundo o dogma protestante, a nature­
nere a religião, segundo dizem os protes­ za humana, mero instrumento da graça
tantes. No livro De Captivitate Babilonca divina, a qual o obriga a obrar necessaria­
(276), e no que escreveu contra os prophe­ mente, Jicou quasi destruída pelo peccado
tas celestes, se expressa o chefe da refor­ de Adão, tanto na parte moral como na
ma d'uma outra maneira, faltando dos pon­ intellectual, nào havendo relido alguma,
tos já mencionados. No primeiro d'elles diz nem ainda o livre arbitrio. 1
que entre os sacramentos verdadeiros se de­ Calvino assegura terminantemente que
ve contar a absolvição, que é o sacramen­ o homem mão é responsável pelos crimes
to da penitencia, e no segundo, que os pro­ que commcttc, e que estes devem impu­
testantes de Alfemanha haviam feito muito tar-se sómente a Deus. «Satanaz, mesmo,
m al em derribar as imagens dos sanctos. diz elle, quando nos impelle para o mal,
Seu discipulo Melanchthon professava a nào é outra, cousa mais que o ministro de
mesma doutrina acerca do sacramento da Deus. Absalão commette um crime detes­
penitencia, c o mesmo succedia com Henri­ tável, e sem embargo, Deus fa z sua esta
que VIU, o qual, se havemos de dar credito accão.» 2
ao historiador protestante Burnet, admittia festa mesma ideia a emitte, porém com
a absolvição do sacerdote como uma cousa maior clareza, no seu livro das institui­
instituída por Jesus Christo, o mesmo que o ções, 3 onde se atreve a sustentar que
culto das imagens c existência do purgato­ «Deus é o author de todos os males,» e que
rio. Estes tres Christos da refonna admit- a graça impõe ao homem necessidade.
tiam , pois, a doutrina catholica sobre a pe­ A Calvino segue Theodoro de Beza, o
nitencia e o culto dos sanctos, objecto das qual em sua Exposição da fè en sin a:4
ira s dos modernos protestantes. E m que «que Deus faz todas as cousas segundo o
havemos de fixar-nos finalmcnte? No que
ensinaram estes, ou no que ensinaram Lu­ 1 Hirt. t. 1, 40, 3, pag. 292.
thero, Melanchthon, e Henrique VIII? 2 Ib. Ib. pag. 296.
2 Tract. de Abrog. Miss. Priv. 26. 3 Peron. Prcelect. Theolog. Tract. de
3 Melanchthon lio. IV, ep. 196. Grat. 391. Moelhes, A Symbolyque, pag. ò’2,
4 Concil. pag. 338. Apot. V, 167. VII, 73.
200. ' 4 Com. sob. a epist. aas Roman. IX, 18.
PRO 779
seu conselho, até aquellas que sào más e dez e monotonia em troca de que ninguem
•execráveis.» Luthero havia, antes de Beza, possa taxar-nos de exagerados nem de in-
assegurado o mesmo: «Deus, diz ellc em exactos em cousa alguma. Deixemos pois
seu livro de Livre arbitrio, i obra cm nós fallar os proprios reformadores. A concu-
o bcm c o mal.» «A vontade humana, ac- iscencia, dizem Melanchton, i Quenstedt,2
crescenta ellc na citada obra, é á similhan- rctschcneidcr;3 as confissões augustiana 4
ça de um jumento; se Deus chega e o obri­ e gallicana 5 e o cathccismo heidclbergen-
ga a ir por onde ellc quer, vai por alii, e s e , Gé um verdadeiro peccado, e por con­
se chega Satanaz, vai por onde quer Sata- sequência todas as acções que o homem
n az.»i2 executa naluralmcnlc, e sem o auxilio da
Zuinglio é tào explicito como Luthero: graça divina, são peccados. As virtudes de
«O homem, diz elle, commellc todos os cri­ todos aquelles que professam religiões dif­
mes por uma necessidade divina.» 3 Pelo ferentes da christà, accrcscentam clles, são
que respeita ás profissões de fé protestan­ crimes. «Se as acções do homem (citare­
tes, basta saber que a Confissão Augustiana mos textualmente* as palavras de Molan-
ensina «que pelo peccado original perdeu chthon) podem alguma vez ser virtuosas, é
o homem completamcntc o livre arbitrio.* 4 quando elle as obra no Espirito Sancto,
Tal é o absurdo systema protestante so­ pois as que se fazem só pelo homem são
bre a liberdade humana. As consequências impuras... Nossas obras, nossos desejos,
terríveis que d’elle dimanam estão ao al­ não são mais que peccados.» N’isto não
cance de qualquer pessoa que raciocine fazia Melanchthon outrq cousa senão seguir
mediocrem ente. Nem o homem virtuoso é no todo a doutrina de seu mestre Luthero,
digno de prêmio, nem o criminoso de cas­ o qual havia ensinado «que as obras feitas
tigo; a justiça, tanto divina, como humana, pelos justos, são outros tantos crimes.» 7
quando condemna o delinquente obra de Eis-aqui o homem segundo o dogma
um modo iniquo e arbitrario, pois o ente protestante. Sua importância excede toda
privado de liberdade nào é responsável por a ponderação. Ultimo sér da creação, sua
suas acções. intelligencia destruída pelo peccado. nada
Como se ha de castigar o punhal de que póde pensar que verdadeiro seja, nem sua
se serviu um assassino para dar a morte a vontade impellida por uma força cega, se
qualquer homem? Podia elle por ventura guir outro caminho senão o da perdiçãi
deixar de obrar necessariamente não se- 0 Deus do protestantismo é injusto e crut
uindo o impulso da mão que o dirigiu? cm summo grau; é o Ahriman dos persa*
S uem exigiría similhante cousa? Applican­ A consequência immediata que se dedu;
do systema tão absurdo, a sociedade se de admittir a doutrina protestante sobre a
destruiría completamcnte; as noções do liberdade humana, é negar a necessidade
bem e do mal, do justo c do injusto, seriam das boas obras, c declarar que o crime em
eliminadas como inúteis; eu, é verdade, nada prejudica o homem. Assim o fizeram
roubo e mato; porém faço-o impellido por os primeiros reformadores, assegurando
uma necessidade divina, como dizia Zuin­ •que a práctica das virtudes e o cumpri­
glio. Anathema a similhantes doutrinas, mento dos preceitos divinos são cousas in­
que sanccionam o crime, rebaixam a vir­ úteis, e que os peccados, não sómente não
tude como uma cousa desprezível, e ten­ impedem a consecução da vida eterua, mas
dem a fazer do homem um sér mais des­ que cm certo modo servem para obtel-a,
graçado e miserável do que as mesmas toda a vez que Deus concede maior graça
ferasl Anathema a essas protestações con­ ao que é mais peccador. «Para com Deus,
tra a moral e contra a sanctidade dos cos­ disse Luthero, não necessitamos mais do que
tumes! Porém deixemo-nos de declama- da fé; devemos deixar a um lado as boas
ções, e voltemos á nossa ingrata tarefa de obras. Quanto mais criminoso é qualquer,
adduzir testimunhos; preferimos esta ari­
1 Loc. Theolog. De pec. orig., pag. 168,
i Lib. 3, cap. 27. Lib. 2, cap. 3. Lessio, 158,360.
Quce fides et relig. sit copiscenaa consutat. 2 Theolog. did. pol. II, 135.
App. Utrum Calvinus docuerit Deum esse 3 Entwíkt der d o g m a tB erg ., § 94.
auctorem omnium scelerum. 4 Árt. 2.
2 Exposit. fidei, cap. 2, t. 2, fol. 444, s Art. 11.
op. Luth. 8 Qucest. 5.
3 Id., Id. 177. 7 Luth. Assert. omn. opp., tom. 2, pag.
4 Hahan. Estudos e critica, 1837, entre­ 670. Vid. Confut. Luth. rationum. Latons.
ga 4.* Doutrina de Zuinglio. doct. Lovan.
780 PRO
com tanta mais abundancia lhe infunde o Estas desconsoladoras theorias encheram
Senhor suas graças.»1 Os authorcs da Con­ de indignação a todos aqucllcs homens que
fissão Masfeláense participavam das mes­ respeitavam a virtude e aborreciam o cri­
mas idéias que Luthero. «Sempre que me. Entre elles deve contar-se o protes­
creias, se lê na citada confissão, que na tante Grocio, o qual levantou a voz, aiuda
igreja o homem deve ser bom, justo c cas­ que em vão, para anathematisar similhan­
to, apartas-tc do Evangelho.» tes crimes. «Os peitos christãos, escrevia
Não contentes os protestantes com asse­ este celebre reformado, devem horrorisar-
gurar que as boas obras são inúteis, pas­ sc do dogma que ensina que os peccados
saram a dizer que eram prejudiciaes c que não podem prejudicar ao homem.» i
impediam a consecução da vida eterna. Admittidas idéias tão absurdas, tinham
Luthero assim o ensinou, segundo indi­ necessariamente de produzir seus resulta­
ca Moelher, 2 fundando-se sem dúvida al­ dos; a cilas e não a outra cousa se deve­
guma n’esta c similhantes passagens do ram os excessos e maldades dos anabaptis-
chefe da reforma: «A fé, diz clle em uma tas paizanos da Allemanha, que semearam
das suas obras, não justifica a não ser que a desolação em todo este paiz; dos autono-
esteja separada das boas obras.» 3 Amsdorf, mianos, que ensinavam que o prazer sen­
um dos seus amigos mais intimos, confir­ sual, a embriaguez e a blasphemia são cou-
ma a mesma doutrina, dizendo: «que o as­ sas licitas;2 dos moggletonianos e labba-
segurar que as boas obras impedem a con­ tistas, ramificações da seita methodista,
secução da vida eterna, é uma cousa justa, que se entregavam aos vi cios mais vergo­
verdadeiramente christã, conforme em tu­ nhosos, 3 e finalmente de todos aquelles
do com o que ensinaram S. Paulo e S. que criam que não ha obrigação alguma
Luthero.» 4 Em certa reunião, que se veri­ de observar os preceitos divinos,1 e que o
ficou em Altemburgo, varios protestantes adultério, o incesto e o homicidio nos hão
mais rigidos sustentaram também este prin­ de tornar mais sanctos sobre a terra e mais
cipio: «Os christãos que fazem boas obras gloriosos no c é o .5
ou créem na necessidade d’ellas, disseram Luthero e os outros coryphcus da seita,
elles, pertencem a Satanaz... As boas obras proclamados já similhantes princípios, não
são perniciosas e impedem a consecução tiveram reparo em admittir outras doutri­
da vida eterna.»5 nas tão absurdas, taes como a não existên­
Vejamos agora qual é a doutrina protes­ cia dos castigos na outra v id a ,6 a polyga-
tante sobre os cffeitos do peccado actual. m ia ,7 e a inefficacia do baptismo para la­
«O christão, diz Luthero, não póde, ainda var os peccados,8 chegando alguns, como
que queira, ser privado por nenhuma clas­ os unitários, até ao extremo de negar a di­
se de peccados, da beraavcnturança, pois vindade de Jesus Christo,9 e outros, como
estes não o prejudicam.» 6 «Se com a fé, o protestante Edelmann a sustentar que
accrcsccnta clle em outro logar, se póde não ha Deus, nem demonio, nem gloria,
comraetter um adultério não é peccado.» 7
«Sê peccador e pecca grandemente, escre­ 1 Discuss. Apolog. Riveti.
via elle a Auri fabro, porém mais grande­ 2 Chat. Cuat. Estuard., pag. 23.
mente tem fé em Jesus Christo. Por elle, 3 Ricard. H ill, vol. 3, pag. 10.
o peccado não poderá perder-nos, ainda 4 Assim o ensinaram Amsdorfio e Agrip-
quando mil e mil vezes cada dia nos entre­ ■oa, discipulos de Luthero. Veja-se Moore
guemos aos prazeres sensuaes e ao homi­ Voy. d'un jcun. Irland. á la recherche d'une
cidio.» 8 Melanchthon, seu discipulo, ensi­ reíigion, cap. 60.
nava o mesmo. «A homem fiel, dizia este, 5 Fretcher Duybeny Guid to the Cliurch,
não póde condemnal-o.»9 pag. 28.
6 *Na mansão dos finados não ha tor­
1 De Piscatura Petri, Senn. mentos.*' Luther. oper., t. 4, pag. 109.
2 Symbol, t. 1, pag. 222. 7 Luthero, escrevendo em 13 de janeiro
3 Opp., t. 1, pag. 523. de 1523 a Jorge Bruck, chanceller do du­
4 Werke Niktas von Amsdorf. que de Saxonia, dizia: *É-me impossível
5 Belarm. de justificat. Lib. IV, cap. i.° em virtude das Escripturas Sanctas o pro-
Vid. pract. Solid. D edar. IV , § 15, pag. 672. hibir a qualquer tom ar muitas mulheres
« De captivit Babylon., cop. de Bapt. ao mesmo tempo.* Igual ideia emitte em
^ Disput., t. l.°, 523. seus Commentarios sobre o Genesis.
8 Lutli., epist. ad joh. Aurifab., pag. 8 Zuing. Declarat, de peccat, orig.
3 August. Nicol. O Protestantismo c o
545.
9 Loc. Theolog., pag. 93. Socialismo, pag. 115.
nem inferno. * Cumpriu-se a predicção do paizes protestantes, onde com raras exce-
padre de Montaignc 2 de que o protestan­ pções eram desconhecidas as fôrmas repre­
tismo havia de conduzir a um execrável sentativas, os principes, por temor á autho-
alheismo. ridade de Roma, não se atreviam a tvran-
Sc os estreitos limites d’um folheto nol-o nisar os povos, depois, uma vez romp’ido o
permittissem, nos espraiaríamos muito mais dique que impedia podessem exercer um
sobre este ponto, posto que cremos que o dominio completamcntc absoluto sobre seus
que fica dito c sufficiente para que o pú­ subditos, e imperando nas consciências
blico conheça o que ó o protestantismo, d’estes, nada foi sufficiente a retel-os de
considerado debaixo do ponto de vista do- seus projectos ambiciosos e tyrannicos.
matico. O absurdo da dita religião fica Isto casualmcntc era o que temia o refor­
emonstrado evidentcmenle, sem que para mador Melanchthon, c por isso se oppòz á
isso tivéssemos que fazer outra cousã mais suppressão da gcrarchia da Igreja: «Se
do que deixar fallar os mesmos corypheus transtornamos o governo ecclesiastico, di­
da reforma. Não se dirá pois que exagge- zia elle, a tyrannia será mais insupporta-
ramos os factos. Passemos agora a occu- vel do que nunca.» 12«Sinto, accrescentava
par-nos do protestantismo considerado em elle no prefacio de suas obras, que o jugo
suas irelações com a liberdade, assumpto de pau do pontifice (ligneum) seja substi­
importante que merece um exame detido tuído pelo jugo de ferro dos principes.»
e maduro. Estas idéias de Melanchthon não eram por
desgraça as que dominavam nos outros
reformadores, e por isso os increpa forte­
V mente o historiador protestante Bensen, nos
seguintes termos: «Emquanto que a igreja
catholica jamais authorisou, ao menos em
Foi por muitos acreditado, ainda que theoria, a oppressào por parte dos sacer­
equivocamente, que o protestantismo favo­ dotes c dos principes, e que defendeu sem­
receu a liberdade, servindo, e não pouco, pre com rigor os direitos dos individuos e
para que os povos se emancipassem, pois dos povos, os reformadores evangélicos,
destruiu a antiga sociedade cimentada so­ pelo contrario, foram os primeiros que pre­
bre o despotismo e barbaridade, c conce­ garam e ensinaram entre os allemães a
deu ao homem os direitos de^ algumas cou- doutrina da escravidão.»2 Se um catholico
sas que se lhe negavam antes da reforma. assim fallassc, diriam que o cegava o es­
Esta ideia absolutamènte falsa, necessita pirito de partido.
de ser refutada, por isso que uma parte Posto seja certo que Melanchthon temia
do povo lhe dá hoje assentimento, por ha­ ao principio essa tyrannia por parte dos
ver dado ouvidos a quatro declamadores principes, e que teria desejado que a au-
ue, ignorando completamente a historia thoridade d’estes principes se limitasse o
a reforma, e o que seus chefes pensavam mais possivel, também o é que mais adian­
sobre as liberdades públicas, se poem a te variou completamente de idéias, exci­
fallar dos immènsos benefícios que n’este tando-os a commetterem actos despóticos e
sentido trouxe á humanidade o movimen­ sanguinarios. Escrevendo ao margrave pa­
to religioso, iniciado por Luthcro no século latino do Rheno, o qual queria estabelecer
xvi. A reforma, bem alto o dizemos, só­ a ordem nos seus estados por um modo
mente favoreceu o despotismo, afagando o benigno, poupando effusão de sangue, di­
orgulho de alguns principes absolutos, e zia elle: «Um povo, tão grosseiro e tão
querendo fazer dos povos um rebanho de ignorante como o povo allemão, deveria ter
escravos, que estivesse sujeito ao poder ty­ muito menos liberdade ainda do que se llie
rannico d’aquelles. Muito brevemente de­ concede... Se a authoridade civil impõe tri­
monstraremos a verdade da nossa asser­ butos sobre os bosques e bens communaes,
ção. njnguem póde oppôr-se a isto; se toma o
0 protestantismo, negando a authorida- dizimo das igrejas e o applica a outras,
de espiritual que o papa exerce sobre to­ forçoso é que os allemães o approvera e se
dos os fieis, declarou que pertencia de di­ accommodem a isto.»3 Não parece senão
reito aos principes, os quaes deviam re­ que o ministro dos cultos do rei da Prús­
unir o poder ecclesiastico ao civil. Se an­ sia em 1844, M. Eichhorn, tinha presentes
tes, quando o catholicismo reinava nos
t Mel. Lib. IV, epist. 104.
1 Dic. GcettlichJceit der Vernunft. 2 Hist. da guerra dos camponezes, § 19.
2 Montaig. Ensay., I. % cap. 12. 3 jfracf. cont. qp doc. art. dos camp.
50
a
782 PRO
estas palavras de Melanchthon, quando dis­ quando Gustavo Wasa tractou de abolir o
se que em materia de religião, o mesmo culto catholico, temendo, e com razão, que
que em outra qualquer materia, os subdi­ tractasse, ajudado pelos hithcranos, de con­
tos estão obrigados de direito divino a pres­ verter em uma tyrannia hereditaria a mo­
tar (ao rei) a mais estricta obediencia. narchia, até então electiva, i Na França
Quando se expressou assim nenhum ca­ sómente uma parte da aristocracia favore­
tholico? ceu as novas doutrinas; a classe media ne-
Luthero, exagerado cm tudo, pregou o gou-se a ãdmiltil-as, declarando-lhes uma
exterminio do povo d’um modo que tcria guerra de morte. A repugnância do povo
horrorisado o proprio Nero. «Creio, dizia inglez pela supposta reforma, era bem
elle na contestação qne deu aos doze arti­ manifesta. William Cobbett, occupando-se
gos dos aldeãos de Suabia, creio que todos d’cste assumpto, observa muito judiciosa-
cs aldeãos devem perecer antes do que os mente: «que quando a religião catholica foi
principes e magistrados... nenhuma mise­ restabelecida no Reino Unido, não foi ne­
ricordia, nenhuma tolerância deve haver cessario infligir penas algumas para que o
com elles... Póde-se tractal-os como cães povo a abraçasse, ao passo que quando so
dam nados.»- «Não se deve perdoar, costu­ quiz fazer o mesmo com o culto protestam:
mava elle dizer, segundo refere Sleider, te, em tempo da rainha Isabel, se viram
aos que se mctlcm em qualquer sedição.»1 obrigados (os individuos do parlamento) a
Que contrastei Quasi ao mesmo tempo impôr toda a especie de castigos, excepto
que Luthero patenteava estes instinctos a morte no mesmo acto, para obter a sub­
sanguinarios contra o povo, o jesuita Ma­ missão do povo.» 2 Na Suissa a reforma
riana e o religioso descalço, fr. João de não obteve bom exito senão nos cantòes^
Sancta Maria, ensinavam com permissão aristocráticos, e isto á custa de muito san­
de Philippe m: o primeiro «que o rei deve gue, aniquilando-se completamente nos de
governar seus subditos como homens li- Schwitz, Uri, e Underwald, berço da liber­
iires*, 2 e o segundo «que a monarchia, dade helvetica;3 as republicasse Veneza,
para que não degenere, não ha de ir solta e Gênova e a monarchia electiva da Polo-
e absoluta, e que o rei, seja quem for, se nia, tão pouco aadm ittiram .4 Em uma pa­
resolva sem recorrer a seu conselho, saia lavra, o povo, em quasi todos os paizes da
dos termos da monarchia, e entre nos da Europa, se manifestou hostil ao principio
tyrannia.»3 protestante. E teria succedido isto se as
* Não é de estranhar, pois, que a reforma doutrinas de Luthero e outros reformado­
encontrasse seu principal apoio nos prin­ res fossem tendentes a melhorar a condi­
cipes absolutos, por isso que favorecia o ção das classes intimas da sociedade, e a
poder illimitado d’estes. Elles foram os impedir que os poderes absolutos gover­
ue com mais calor patrocinaram a ideia nassem d’uma maneira cruel e tyrannica?
e Luthero,4 introduzindo a nova religião Crémos que não.
em oeus estados a sangue e a fogo, e a des­ Sc, já que o protestantismo nada faz em
peito de seus subditos, que em geral não favor da liberdade dos povos, ligando-se
se mostravam propícios a admittil-a como ao contrario com os principes para tyran-
fizeram Christian ji, Gustavo Wasa, e Al­ nisar aquelles, houvesse respeitado aó me­
berto da Prússia.5 nos as idéias religiosas dos que pensavam
Os povos que conheciam que a reforma d’um modo differente que os seus adeptos,
prejudicava seus interesses, se oppozeram mostrando-se tolerante com elles, e sem
a ella tenazmente. Os dinamarquezes e no- tractar de obrigal-os pela .força a abjurar
rueguezes protestaram contra a determi­ sua fé, não haveria tantos motivos.para
nação de introduzir o protestantismo em condemnal-o, pois dir-se-ia que ao menos
seu paiz, adoptada p or Christian ii, em favoreceu a liberdade da consciência, ain­
1520. Os suecos imitaram este exemplo, da que por outra parte houvesse ajudado
a supprimir todas as outras liberdades.
. i Sleider, lib. V. Porém mui longe d’isto, os reformadores
2 De rege et regis institutione. Lib. 1, do xvi século levaram sua intoleranda re­
cap. 4. ligiosa até ao fanatismo, commettendo es-
3 Tractado da republica e politica chris-
tã para reis e principes, cap. l.° 1 Âug. Nicol. Idem, id.
4 Jureu. Vid. Alzog. Univ. geschichte, 2 W- Cobbett, Nova Cart. l . a
etc., tom. IV, pag. 76. 3 Chat. Ens. sob. a litt. ingl., pag. 36.
s August. Nicolas,. o Protestant. e o So­ Estudos hist., pag. 34. - /
cial., pag. 324, 326. • 4 Idem, id.
PRO 783
ses actos dc crueldade, do que a historia çuo, impondo pena de morte aos contra-
offeroco raros exemplos. ventores, o dar o menor auxilio a qualquer
0 chefe do protestantismo, o qual ensi­ sacerdote catholico, ou confessar-se com
nava que o Evangelho devia estabelecer-se elle, obrigando-se debaixo da mesma pena
por meio de sangue, 1 se podésse, teria' co­ os individuos da communhão romana a
meçado gostoso cm sua prégaçào fazendo frequentarem as igrejas protestantes. 1 Os
(são suas proprias palavras) urn pacote do generos de tormentos que empregava con­
papa e dos cardeaes, e arrojando-o ao mar tra os criminosos cm materia de religião,
da Toscana. 2 eram os mais horrorosos que imaginar-se
Verdade é que, se não pôde conseguir podem. Lingard na nota 2 / do tomo 5.°
isto, teve ao menos a dita de vér queima­ de sua historia, fez d’elles uma dcscripção
dos seus collegas no apostolado, Mullcr, circumstanciada.
Krant e Peisker, por instigações do seu dis­ Fácil nos seria adduzir outra multidão
cipulo Melanchlhon. de factos que confirmassem mais e mais o
Isto era já uma consolação. Na Suissa que deixamos dito, taes como o dos pro­
pereceram da mesma maneira, entre ou­ testantes da França, os quaes se atreveram
tros muitos, Servet c Gentilis, por sc have­ até a desprezar as cinzas dos mortos cm
rem opposto á doutrinado Calvino. Não se odio á religião catholica que ellcs haviam
indignaria este muito cm vista dcsimilhan- professado; 2 porém o até aqui exposto é
tes attcslados, mui pelo contrario os elo­ mais que sufficiente para se poder formar
giaria, por isso que estavam em harmonia uma ideia exacta de tão decantada tole­
com sua doutrina sobro a tolerância reli­ rância protestante. /
giosa. «Aos hereges, havia elle dito, se deve Venham, pois, agora os sectarios da re­
•obrigar com o direito da espada.» 3 Estas forma fallar-nos de liberdade e direitos, da
maximas caritativas e christãs foram de­ emancipação dos povos, da livre emissão
fendidas pelos protestantes até em nosso do pensamento, da ominosa tyrannia de
século, como vimos que o fizeram o doutor Roma, e de todas as mais cousas de que
Espe, 4 K rug,3 e Brenncr. 0 fazem menção para illudir a quatro ho­
Ao fallar da tolerância religiosa dos re­ mens simples, que estão sempre promptos
formadores inglezes, a penna cahe de nos­ a dar ouvidos a qualquer charlatão que
sas mãos, negando-se a escrever os horro­ lhes falle em tom dogmático.
res de que as. desventuradas ilhas brilan- Em vez de caluinniarem grosseiramente
jiicas foram victimas na época de Henri­ o catholicismo, e de fatigar seus pulmões
que viu, Eduardo vi_e Isabel; n’essa época declamando contra^ o poder espiritual do
-em que, como diz um celebre escriptor in- romano pontifice, emancipem a desgraçada
glez, «a injustiça, a oppressão, a rapina, o Irlanda, modifiquem as iniquas leis eccle­
-assassinato e o sacrilegio dominaram em siasticas que existem em Inglaterra,3 pré-
Inglaterra.» 7
Sabidas são de todo o mundo as cruel- 1 W. Cobbett, Reform. Protest., tom. 2,
•dades exercidas por Henrique viu desde pag. 22, 121, 122, 123.
<jue iniciou o movimento religioso em seu 2 Arquentil, Éspirit. de la Lig., tom. 1,
paiz, taes como o assassinato dos anaba- pag. 127.
iplistas hollandezes, a sentença de morte 3 Uma d'estas leis, e por ventura a
pronunciada contra o cadaver de S. Tho- mais irritante de todas, è aquella pela qual
maz de Cantorbcry, acto de barbaridade se obriga a pagar o dizimo, não só aos dis­
naudita, e todos os outros, de que já deixa­ sidentes, mas ate áquclles que vicem do
mos feita menção nos capitulos anteriores. seu trabalho pessoal. (Actas 2.* e 3.a de
Enviar ao patibulo por questões puramen- Eduard. VI, cap. XIII.) O que se nega a
fe religiosas setenta e duas mil pessoasl isto, se não tem bens alguns que lhe pos­
Nero por certo não chegou a tanto! sam embargar, é encarcerado em virtude
Pelo que respeita á rainha Isabel, basta da acta quinta do reinado de Jorge IV,
-dizer que declarou ser delicto d'alta trai- cap. XVIIL
Os ministros anglicanos são tão religio­
1 Lu th. de Serv. Arbit., pag. 862. sos n'cste ponto, e tão escravos da lei, que
2 Adv. Pap., t. VII, pag. 940. nem ainda aos pobres jornaleiros dispen­
3 Exposit. eiror. Serveti. sam o nagamento do dizimo que lhes cor-
4 Die Hoffnung des Siegés, etc. respomle (uns 2 por 100 aproximadamen­
5 Die Kirchenverbesserung. te.) O revnendo M. Lundey, reitor de Lo-
0 Lichtblicki von protestanten, etc. katon, se queixou em 1833 dc que seu fre-
1 . Fitz-W illiam. Cart. de Atico. p. 114. guez Dodsioorth, jornaleiro, não havia pa-
*
784 PRO
guem a liberdade e não a tyrannia, como uteis e infructuosos. Correrás frenetica
por desgraça o está fazendo o clero protes­ apoz d’ella, e cada vez se arredará mais
tante nos Estados-Unidos, 1 cnvergonhcm- de ti, como o illusorio mar que o viajante»
se dos crimes commeltidos pelos corypheus victima da miragem, crê descobrir nos
da sua seita, obrem com relaçfio aos prin­ abrazados areacs do Egypto, ou como es­
cípios evangélicos, sendo humildes e cari- ses fogos fatuos que fogem á medida que
tativos, c talvez a humanidade esqueça en­ alguém se vai aproximando a elles. Cre­
tão o que tem sido o protestantismo até o ras, infeliz Tantalo, que vacs saciar tua se­
presente. de devoradora no manancial sagrado da
sciencia, c suas aguas, quando quasi toca­
rem teus lábios, se afastarão de ti rapidas,
VI

Julgamos opportuno, depois de haver te seu enigma. Em vão procuras deci­


considerado o protestantismo debaixo do fra l-o, não o conseguirás.»
ponto de vista politico, occupanno-nos ago­ Tal é a linguagem dcsconsoladora do
ra d’elle em suas relações com o desenvol­ protestantismo^ Segundo ellc, a intelligen-
vimento das artes e sciencias, questào cia humana não é mais que a pária da
muito importante, c que nào deve passar creação.
desapercebida. Estas idéias tiveram naturalmente de
A reforma ensinando, segundo vimos produzir seus resultados, quaes foram a
em um dos capitulos antecedentes, que a abstenção do estudo das sciencias, e o es­
intelligcncia humana ficou completamente pirito de vandalismo (“p ie precedeu todos
destruída pelo peccado de Adào, sendo-lhe os actos dos reformadores, que tinham re­
portanto impossível chegar ao conheci­ lação com o progresso das mesmas. «É
mento de verdade alguma, nem mesmo certo, diz a este proposito um escriptor
d’aquellas que pertencem á ordem natural, protestante, Carlos Willers, que a reforma
cortou as azas ao genio, privando-o de tem momentaneamente feito retrogradar
suas mais nobres inspirações. Ella disse á as luzes e cultura das sciencias...»
razão: «Em vão te cansas cm buscar a Desde a invasão dos povos do norte, ne­
verdade; todos os sacrifícios, todos os es­ nhum acontecimento havia ainda provoca­
forços que faças para conseguil-a, são in- do na Europa estragos tão grandes c tão
universaes como a guerra accêsa pelo fa­
gado o dizimo pessoaK M. Blanchar, mi­ cho da reforma, e debaixo d’esta face ó
nistro anglicano e magistrado, fez compa­ mais verdade que ella retardou a cultura
recer perante si o citado Dodsworth, e ten­ geral.1
do-se este negado a pagar o dizimo, foi Esta confissão de Willers. diz muito,
conduzido á casa da cofrecção de Beverley, sem embargo de todas as suas reticenciãs.
onde permaneceu tres mezes. (W . Cobbett, O escriptor protestante conhece, como todo
Nova Cart.j pag. I35.J Que desapego e que o homem medianamente inteirado da re­
caridade a dos ministros protestantes! Mo­ forma, que o estabelecimento d’esta fez re­
lestar um pobre homem por se haver ne­ trogradar a cultura das sciencias; porém
gado a pagar a grande somma de... q m lro não se atreve a confessar que o mal de­
shelins e quatro pennesül... (Regulará 900 pendia da mesma indole do protestantismo,
reis.) e o attribue ás guerras que por causa da reli­
1 Emquanto que o papa Gregorio X VI gião se sustentaram n’aquella época; razão,
expedia, a 3 de dezembro de 1839, uma bul­ segundo nosso modo de vér, pouco satisfa-
la condemnando o trafico deçhumano dos ctoria, pois n’este caso se deveria dizer
escravos, e prohibindo que p a ra o futuro que a humanidade não havia jámais pro­
se reduzissem á escravidão os negros e Ín­ gredido, por isso que as guerras teem
dios, os ministros protestantes nos estados sido sempre muito frequentes. As luctas
dá Uniào Americana, declaravam que a in i­ de nação com nação, causam, é verdade,
qua lei áccrca dos escravos fugitivos, fugi­ consideráveis mafes; pbrém não são de
tive slave bill, segundo a qual todo o cida­ consequências tão funestas, como as que,
dão está obrigado a prender os escravos no sentir de Willers, acarretaram as guer­
que fogem da casa de seus senhores, ligava ras religiosas do seculo'xvi. As nações ca-
a cousciencia de todos, é d é v ia se r obede­
cida. (Nota á pag. iSO do to m : i.° da Cá- i Ens. sob. o espinto e re fo m . de Lu-
vana do Pae Thomdzí) 'Que contrastei therOj pag. 22o.
PRO 785
tholicas as tem sustentado tambem e seni te mathematicos, seis naturalistas, vinte e
embargo. Nào ha estado algum na Europa, um historiadores, dezenove aulhores dra­
como diz o inglcz Fitz William, que esteja máticos e sete grammaticos, ao passo que
tào povoado, cultivado c cheio de nobres em França, na mesma época, se conhece­
edifícios, como ellas o cstào. 1 Por outra ram cincoenta e um dos primeiros, cento
parte nào concebemos que o retrocesso e cincoenta e dous dos segundos, trinta e
que experimentaram as luzes com a appa- tres dos terceiros, cento e trinta e nove
riçào da reforma fosse momentâneo, como dos quartos, sessenta e seis dos quintos, e
diz Willcrs, por isso que este retrocesso quarenta c doas dos sextos; 1 cifras que
era, segundo elle, um dos largos estragos indicam quanto adiantados estavam ospai-
<]ue produziu a guerra accêsa pelo foco da zes catholicos e com quanto ardor se cul­
reforma. Como conciliaria Willers este re­ tivavam iVelles as sciencias, ao passo que
trocesso momentaneo, c estes largos eslra- nas nações protestantes os progressos d'es-
gos? tas eram quasi nullos.
Vejamos agora quacs foram esses males Nào nos sào occultas as objecções que
originados pela reforma, no terreno scien- poderào fazer a isto os partidários das
tifico. Como seria impossível cnumeral-os idéias reformadas. Se o espirito do protes­
todos, nos limitaremos a indicar alguns, tantismo, dirào, favorece tanto a ignorân­
os quaes poderào servir de regra para jul­ cia, porque nào se assenhoreou esta com­
gar dos outros. pletamente das pações que acccitaram as
Tal era o fanatismo dos reformadores, e novas doutrinas? Sè é tào inimigo do pro­
tal sua repugnância cm acceitar qualquer gresso, como é que alguns dos paizes pro­
innovaçào util, que se oppozcram por mui­ testantes se acham hoje tào adiantados no
to tempo a admittir as importantes varia­ caminho da civilisaçào?
ções do calendario de Grcgorio xm, decla­ Estes argumentos, que á primeira vista
rando que tudo isto nào era mais do que parecem de diílícil soluçào, ficam comple
um estratagema do Anti-Chrislo (o papa) lamente destruídos, se para rcsolvel-os, s
para ir-se ingerindo nas igrejas reforma­ teeni presentes duas cousas: primeira,
das, razào porque deviam refutar-se em influencia salutar que o eatholicismo exei
consciência similhantes innovações. ceu sobre os povos da Europa, durante .
Persistiram n’este erro até meado do idade media; segunda, o pouco ou nenhum
século xvni, em que por fim determinaram ascendente que tem hoje o protestantismo
acceitar o dom de Anli-Chmto. 2 O escri- nos paizes onde existe ainda.
ptor protestante, Menzel, diz a este propo­ Quando a hydra da heresia levantou a
sito que os reformados preferiam antes sua cabeça no século xvi, estava- para ter­
equivocar-se em seus calculos, do que re­ minar o largo trabalho da recomposição so­
ceber alguma cousa do papa.3 cial, que a igreja catholica tinha verificado
' Este espirito de obscurantismo que se desde que os barbaros destruiram o mun­
havia apossado da reforma, fez que os do antigo, e a humanidade começava a
theologos protestantes da Hollanda perse­ desfruetar os melhoramentos, que, graças
guissem o celebre philosopho Descartes, o ao espirito eminentemente civilisador do
qual estava pensionado pelo cardeal Maza- Christianismo, se haviam introduzido na
rin o .4 Má recommendação era esta por ordem social como na politica.
certo para aquelles bons interpretes do As fôrmas representativas eram já co­
Evangelho. Em Inglaterra foi tal a in­ nhecidas em nossa patria como o demons­
fluencia funesta que exerceram as novas tram a existência dos estados geraes de
doutrinas, que, de trezentos collegios e es­ Aragão, e o fado de haverem assistido ás
colas particulares que havia antes da re­ cortes, desde tempos mui remotos, deputa­
form a,na cidade de Oxford, só restavam dos das cidades e villas do reino; 2 succe­
oito em meio do século xvm. 5 Desde dendo o mesmo em Inglaterra, onde exis­
1600 a 1787, na mesma naçào, sómente tia a monarchia representativa muito antes
houve seis publicistas notáveis, dezese- da 'reforma. Na ltalia os governos livres
datavam desde tempo muito antigo, sendo
1 Cart. de Attico, pag. 16. favorecidos pelo papa, os quaes patroci­
1 Aug. Nicol. O Protcst. e o Social., nota nando os guelfos, se haviam posto da parto
á pag. 91.
3 Vid. Nicol. Idem, idem. 1 Idem, id e m , p a g . 43.
4 Chat. Èns. sob. a lilt. ingl., pag. 36. 2 Á s C07'tes c e le b r a d a s e m Lião e m 1188
. 5 ' }V. Cobbetl. Reform. Protcst., tom. 1, a s s is tir a m j á d e p u ta d o s d a s c id a d e s e v i l ­
pag. 38. la s .
786 PRO
do povo, defendendo-o das arbitraridades Fique, pois, decidido que, sc os povos não
e tyrannias d’aquellcs principes da idade voltaram quando appareccu o protestan­
media, que nào conheciam outro direito tismo, ao estado de barbaridade cm que os
scnào o da espada. Finalmente o munici­ havia submergido a irrupção das hordas
pio existia em muitos paizes catholicos, do norte, deveu-se só aos grandes progres­
principalmente na Hespanha c Hollanda, e sos que havia já feito a civilisação no século
o escravo, convertido em servo, mudança xvi. Não pódc portanto tirar-se d’nqui con­
que havia melhorado consideravelmente sequência alguma favoravel á reforma, ou
sua condição, estava quasi emancipado, que, ao menos desvirtue as imputações que
graças aos exforços da igreja catholica. com tanta justiça se lhe fazem. A humani­
E que diremos do progresso em relação dade nada tem que agradecer-lhe porque
ás artes e scjcncias, progresso que a nin­ não produzisse todo o mal de que era sus­
guém se deveu mais do que ao calholicis- ceptível; se assim o não fez, foi porque lh’o
mo, pois que no largo periodo que transcor­ impediu a civilisação. Aquclla mesma so­
reu desde os princípios do século v até mea­ ciedade que havia admiltido as doutrinas
do do xvi, a Europa nào teve outro guia dos reformadores, educada no grêmio do
■ nem outro mestre senão o clero catholico. catholicismo, não teve força sufficiente para
A noite tenebrosa da ignorância e bar­ levar ao fim o plano de destruição adopta-
baridade, foi desapparocondocompletamcn- do pelo protestantismo. Desgraçado do mun­
te. Os monges que salvaram os restos da do se todos os protestantes tivessem sido
antiga civilisação no tempo da irrupção tão logicos como Muncer e João de Lci-
dos barbaros, instruiram o povo, civiliza­ denl...
ram aquellas raças ferozes, que se haviam Deixamos já contestado o primeiro ar­
precipitado sobre as diversas provincias do gumento que nos propozemos; pelo que
imperio romano, e fizeram dos adoradores toca ao segundo, que consistia em dizer
das sanguinolentas divindades do norte, que se casa muito mal o progresso que no­
cidadãos humanos e illustrados. Estabele­ tamos hoje em alguns paizes, onde existe
ceu-se uma multidão de universidades e ainda o protestantismo, como a Allemanha
collegios, onde aflluiam, ávidas de instruc- e Inglaterra, com o espirito de obscuran­
çào, pessoas de todas as idades e condi­ tismo que lançavamos em rosto á reforma ,
ções; as sciencias tomaram um incremen­ nos limitaremos a fazer patente que esses
to notável, Sendo cultivadas por homens paizes são hoje muito menos protestantes,
eminentes, taes como S. Thomaz, o monge não podendo portanto influir alli a refor­
Bacon, os famosos beneditinos,Erasmo,Luiz ma nem pró nem contra o desenvolvimen­
Vives, e tantos outros, que fizeram desco­ to da civilisação. Sabido é que n’elles,
brimentos assombrosos, contando-se entre metade da população, pelo menos, pertence
elles o da bússola e da imprensa, e final- á communhão catholica, e que os que se
mente levaram-se a eíTeilo viagens tão fe­ appellidam ainda reformados mofam de
cundas em resultados como as de Colombo suas proprias doutrinas, correndo n’ellas
e Vasco da Gama. tanto como no Alcorão, Se, portanto, se
Os povos, pois, haviam chegado, ao ap- nota grande adiantamento nas nações,
parecer da reforma, a um grau superior cuja religião official c a reforma, deve-se
de cultura. Não era tão fácil portanto fa- ao ascendente que entre ellas tem hoje o
zel-os retrogradar completamente, destruin­ catholicismo, e á pouca influencia que exer­
do a obra .de dez séculos; e esta é a razão ce já o protestantismo, religião que no sécu­
porque quando Luthero se levantou na lo x ix se tornou, segundo o dizer do bispo
Allemanha, prégando suas absurdas dou­ protestante deSalisbury, «uma religião no­
trinas, as quaes tendiam a destruir todo o minal, morta quanto á práctiea.» i
germen de civilisação, as raças germana, Resolvidas já «estas difficuldades, resta
anglo-saxonia e escandinava não voltaram tão sómente» para terminar o presente ca­
á noite tenebrosa de que as havia tirado pitulo, que façamos Yér a influencia do
a religião catholica séculos antes. Se a re­ rotestantismo em relação ao progresso das
forma tivesseapparecido no fim do século v, ellas artes. Para isso nos limitaremos a
por exemplo, época em que a civilisação citar algumas passagens do illustre Cha-
nào havia feito progresso algum, o mundo teaubriaiid, nas quaes este eminente es-
gemeria todavia debaixo do jugo dos Atilas criptor julga muito atiladamente (são pala­
e A lariços. vras de Balmes) os eífeitos da reforma no
Que teria sido da Europa, se, ao mes­
mo tempo que a invadiam os hunos, tives­ i Discurs. pron. diante do bispo de Lond-
sem apparecido os anabaptistas? e do princ. de JngL
PRO 787
tocante ás letras e ás artes. «A reforma, trar-vos-ha as ruinas que tem amontoado,
diz o citado escí iptor francez, penetrada do e entre as quaes julgou conveniente plan­
espirito de seu fundador, se declarou ini­ tar vários jardins, ou estabelecer algumas
miga das artes, saqueou os tumulos das manufacturas.
Igrejas, c os monumentos, c cm França e
Inglaterra amontoou ruinas sobre ruinas.
Separando a imaginação das faculdades do Se o ardor religioso dos séculos que ele­
homem, cortou as azas ao genio e o con- varam os monumentos golhicos existisse
demnou a rastejar. A reforma rompeu corn nos tempos de Miguel Angelo c de Raphael,
o pretexto de algumas esmolas dadas para de quantas obras primas Roma, já rica, es­
erigir ao mundo christfio a basilica de S. taria adornada?
Pedro. Haveríam os gregos recusado dar Por desgraça o renascimento das artes
o que se pedisse á sua piedade para erigir cessou quasi no momento da apparição da
um templo a Minerva? Se a reforma hou­ reforma, cuja rigidez as proscrevia. *
vesse obtido em sua origem plenos resul­
tados, havería estabelecido, ao menos du­
rante algum tempo, uma outra especie de O século protestante negou desde seu
barbarismo; tractando de superstição a pom­ primeiro dia todo o parentesco com o sécu­
pa dos altares, de idolatra as obras primas lo d’aquelle Leão protector do mundo civi-
de esculptura, da architectura c da pintu­ lisado contra Atila, e com o século d’aquel-
ra, propendia a deteriorar o gosto pela re­ le outro Leão, que pondo fim' ao mundo do
jeição dos modellos, a introduzir um ar frio, barbarismo, embellezou a sociedade, quan­
árido, doutrinário e exagerado no espirito, do já não era necessario defendel-a.» 1 Eis-
a substituir com uma sociedade aflectada aqui,cm resumo, tudo o que o protestantis­
e inteiramente material outra cheia de na­ mo tem feito contra o progresso do espiri­
turalidade e intclligencia, e a pôr as ma­ to humano.
quinas e o movimento d’uma roda em lo- Ninguem poderá, pois, negar que a pre­
gar das mãos, c das operações mentaes tendida reforma, começada por Luthero,
Acabaram do confirmar-se estas verdades em vez de trazer beneficio algum á socie­
pela observação de um facto. dade, não fez outra cousa senão patrocina»
«Nas diversas ramificações da religião o barbarismo e dqclarar*sc inimiga da c:
reformada póde dizer-se que esta commu- vilisação e do progresso.
nhão se avisinba mais ou menos ao bello, á
proporção que mais se avisinba ou afasta
do catnolicismo. Nos pontos onde, como
em Inglaterra, se tem conservado a gerar-
chia ecclesiastica, póde affirmar-se que as VII
letras teem também tido seu século classico.
O lulheranismo conserva centelhas de en­
genho, que o calvinismo procura apagar, e Havendo já considerado o protestantismo
assim vai succcssivamente descendo até ao tanto debaixo do aspecto religioso e politi­
quker, que desejaria reduzir á vida social co, como em suas relações com o desen­
á grosseria das maneiras, c á práctica dos of- volvimento das scienciás, resta sómente,
ficios mècanicos. para rematar nosso trabalho, que façamos
vêr o estado actual da reforma.
Sensível será para todos aqúelles protes­
Em Roma é onde os pintores, os archi­ tantes, que especulam com a ideia religio­
tectos, e esculptores, dos cultos dissidentes, sa, vér como se desmorona ess.e edifício
vão na actualidadc buscar inspirações, que da supposta reforma, abjurando-a seus
a tolerância universal lhes permitte reco­ membros, mais illustres, cansando-se os
lher. A Europa (que digo?) o mundo intei­ povos da dominação tyrannica, que por es­
ro está coberto de monumentos da religião paço de tanto tempo tem pesado sobro el-
catholica, e a esta é a quem se deve essa les; por causa do excessivo poder que o
architectura gothica, que rivalisa em seus protestantismo conferiu aos principes, mul-
pormenores, e eclypsa em sua grandeza os liplicando-sc as seitas ao infinito, vindo
monumentos da Grécia. Trcs séculos ha muitas d’estas a refundir-se na religião ca-
que nasceu o protestantismo; é poderoso
em Inglaterra, emjMlemanha, na America, 1 Chat. E m . sob. a litt. ingl. pag. 35.—
e conta em seu gremio muitos milhões Analys. raz. delah ist.de F ra n ^ p a g . 103.
d’almas; mas que tem elle erigido? Mos- —Estud. histor. pag. 34.
788 PRO
thòlica, e desertando outras do Christianis­ lhe chamam seus adeptos, que tanto da­
mo para ir parar no pantheismo ou em mno tem feito.á reforma na Gran-Brctanha,
um grosseiro materialismo. Deus tem de­ teem já desertado das fileiras da heresia,
cretado já sua ruina, e a heresia moderna, nas quaes militaram por tanto tempo. As
que não pôde vongloriar-se d’uma existên­ conversões de Newmau, Ward, Vakley c
cia tão larga como a do antigo arianismo, outros muitos.principalmente ad o primei­
está proxima a succumbir, apesar dos es­ ro. que tem dito que a Igreja de Inglaterra
forços que, para impedil-o, fazem os seus passa por uma crise perigosissima, segun­
adeptos. Um século mais, e talvez haja des- do o dizer de Pusey, 1 põe* patente o espi­
àpparecido completamente. rito de que se acham animados os protes­
Estas sào as idéias que os mesmos protes­ tantes, que pensam d'um modo sensato. A
tantes leem emittido; nós nada dizemos de maior parte d'elles vão tendendo para o ca-
novo. Ouçamos sómente a Pusey, um dos tholicismo, pois conhecem como o bispo de
mais celebres reformadores modernos: «A Salisbury (discurs. cit.) «que a unidade é
vida do protestantismo, tem elle dito, se cx- a que deve dar vida a toda a Igreja de
tinguiu quasi subitamente.» Christo.» O periodico mais zeloso defensor
O lutheranismo e o calvinismo desappa- do lutheranismo na confederação germani-
receram; um cahiu no racionalismo, e ou­ ca,o Correspondente do Norte da Allemanha,
tro no socianismo. Restringindo-se á Alle- publicou ha alguns annos um artigo pro­
manha, accresccnta depois: «N’estepaiz se­ vando que o lutheranismo, que tanto havia
ria diílicil achar um homem que ensinasse defendido, estava morto, e que se queriam
o protestantismo, e que fosse exacto nos ar­ salvar o christianismo, era necessario unir-
tigos essenciaes da fé.» 1 Trcmblay, outro se a Roma: Wohl auf ou Roml concluía
protestante, disse fallando da mesma nação, dizendo: Avante até Roma! O Dritish Cri-
que alli muitos prégadores, posto que não lic, periodico inglez e orgão d’uma das
negam a verdade da existência de Deus e communhões reformadas, teve força suffi­
da vida futura, ensinam que nada póde sa- ciente para fazer uma confissão tão expli­
ber-se com certeza acerca d’estas verdades cita como o diario allemão: «Nossas pro-
fundamentaes. 2 O ministro protestante pensões naluracs, disse elle, nos levariam
Starch confirma o mesmo, dizendo que na desde logo a Roma: ella é nossa irmã pri­
Allemanha não ha um só ponto de fé chris- mogenita na fé, e ainda nossa mãe; a ella
tã, que não se veja atacado abertamente pe­ pela graça de Deus, devemos o ser o que
los mesmos pastores protestantes.» 3 hoje sonios. Em nossa infancia espiritual,
Pelo que respeita á Inglaterra basta di­ Roma foi quem velou por nós; ella é a
zer que alli os mesmos chefes do anglica- Igreja de que fomos separados tão violen­
nismo condemnaram a reforma como te­ tamente. Se podessemos regular as cousas
mos visto que o fizeram em 1840 varios á medida de nosso desejo, quereriamos ris­
bispos protestantes, os quaes declararam car da memória a nossa ingratidão para
na camara dos lords que ninguem podia com ella, a fim de entender-nos depois
crér nos trinta e nove artigos, fundamento ácerca das cousas de nossa desavença. En­
da igreja estabelecida por lei. tão renovaríamos os tão queridos vínculos,
0 desalento vai-se estendendo hoje entre que a ella nos uniram n’aquelles remotos
todos os individuos das diversas cornmu- tempos em que os missionários do .muito
nhões reformadas, que procuram de boa sancto e primeiro de seus Gregorios admi­
fé a verdade, os quaes teem necessariamen­ nistravam os sagrados a nossos antepassa­
te de conhecer a reforma está muito longe dos os saxonios. Epara que cansar-nos em
de ser a verdadeira religião de Jesus Chris­ citar testimunhos particulares de alguns
to, por isso que sua doutrina dista muito protestantes, quando no mesmo ritual para
da doutrina ensinada por nosso divino Re­ a Igreja Evangélica da Prússia se estabe­
demptor. Os homens mais illustres do pu- lece a crença em uma sancta e universal
seysmo, d’esse catholocismo inglez, como igreja christà? 2 Por certo não se referirá
o citado ritual á igreja evangélica, a qual
1 Vid. LUnivers: num. conesp. a 25 de
novembro de 1845. i Carta 2.* a um amigo.
2 Consid. ácerca do est. act. do christ. ' 2 Ichglaubeeinc heiligeallgemeine chrís-
pag. 62. tliche Kirches—Agende fu r die evangelische
3 O ministro Heyer disse aue se. devem hirche in den Koniglich—Pseussischen Lan-
rejeitar todas as profissões aè fé. ( Ojead den, nuibesondesen Bcstimmungend undZu-
sob. as prot. de fé.) Vid. Balmcs Prótest. t. satzen su r die Provinz Wertphalen tínd die
i.°, pag. 89. Rhein—Provinz.
PRO 789
«lista muito de ser a sancta e universal Igre­
siva dos tempos presentes. Nossos paes
ja christã. combatiam para abolir ou para conservar
Tal é o estado actual do protestantismo, a missa. Apage! com a simplicidade, igno­
d’essa religião que, vendo que o poder lhe rância, c trevas da idade media. O pro­
escapa das mãos em paizes onde tem domi­ gresso das luzes subtrahiu-nos á humilia-
nado por tanto tempo, tracta de introdu- çao d estas 'luctas infantis. Não consenti­
zir-se em nossa patria, c em todas as outras mos mais em nos armar senão para pen­
nações catholicas, para obter uma compen­ sar livremente, e assegurar o bem estar
sação de suas perdas. material. De sorte que nossas revoluções
Estejamos, pois, alerta,'c não deixemos se assimilam todas, no seu fim, a motins
penetrar entre nós o homem inimigo que de collegio, excitados d’ordinario por se
quer semear a sizania no campo do pae ter querido embaraçar a leitura da Guerra
de familias. Não demos ouvidos ás suges­ dos deuses: cil-a pela liberdade de pensar,
tões dos propagandistas protestantes, e evi­e para ter um prato do mais ao jantar;
temos assim as calamidades que sobrevi­ cil-a pelo bem estar material.
ríam, se a reforma penetrasse cm o nosso De todas as vãs pretenções da razão cn-
paiz. 1 fatuada dos sábios de nossos dias, esta é
talvez a mais radicalmentc vã. O homem
PROTESTANTISMO E TODAS AS HERESIAS moderno pódc divagar a seu gosto por esse
EM SUAS GERAÇÕES COM O SOCIALISMO grande circulo de verdades em que o tem
encerrado a igreja catholica, e não lha é
A revolução é uma mulher: dizia ainda permittido sahir d’elle. O cerebro abunda­
ha pouco uni de seus corypheus, no meio rá quanto se quizer em imaginações absur­
da procella da ultima assembléia franccza. das. Elias apenas mudarão as* vistas do
Nós concordamos de bom grado, c accrcs- theatro: os actores representarão n’elle
centareinos mesmo que cila é uma verda­ sem saberem, o drama sempiterno das rui­
deira heroina de romance, mui destra cm nas, o retrocesso do livre arbitrio huma­
desapparecer opportunamentc diante dos no. Se a verdade é uma, póde dizer-se er
passos robustos da policia. Mas d’onde vem certo sentido, que não ha também sen?
ella? Qual é o seu caracter proprio? Que um erro, que é como a sombra d’aquell
pretende? Toma todas as denominações e que a segue por toda a parle. Sómcnt
como todos os disfarces, chamam-na alter­ cmquanto que a verdade guarda sempre
nativamente grandes princípios, liberalis­ aspecto de sua belleza immutavel, o erro.
mo, republicanismo, socialismo. Seus pro­ similhante aos magicos d’Ariosto, reveste
prios confidentes dão-lhe um nome peque­ todas as apparencias, e multiplica-se em
no: chamam-na com ternura a Ideia. . phantasmas illusorios. A lei de Christo
Este luxo d’appellidos não embaraça que fornece-lhes o motivo, hoje que se tracta
qualquer não lique muito duvidoso sobre da ordem c da propriedade contra o socia­
sua origem, e sobro os meios de sua exis­ lismo, como quando se tractava da fé jus­
tência. Para uns é a filha de Voltaire e a tificativa, c do sacramento do altar.
viuva de Mirabeau, brilhante, conquista- A missão e a authoridade da Igreja não
dora, eternamente joven e bella. Para ou- entram menos cm questão nas nossas dispu­
, tros é apenas a concubina desdentada de tas politicas, que nos conventiculos d’Au-
Danton, de Marat, e de Robespierre, entra­ gsburgo. Os que protestam contra a ordem
da na velhice no serviço de Proudhon, que social, são os filhos legitimos dos que pro­
a obriga a caminhar por debaixo do bas­ testavam contra o papa, assim como elles
tão e das injurias. proprios eram os filhos em linha recta de
Poucas pessoas reflectem que, avalian­ todos os hereges do velho mundo christão.
do-a d’estc modo, a remoçam sóraente com Nossos combates são os mesmos que no
tres séculos. Seu verdadeiro nome é pro­ século dezeseis: não ha maior diíTerença
testantismo; Luthero seu verdadeiro pae. A que a d’uma espingarda Lefancheux a um
mania da nossa época é acreditar que não arcabuz de roda.
podem surgir mais heresias nem guerras Um excellente livro acaba de ser escri-
de religião. Ella julga estar bem libertada pto para desenvolver esta theso tão neces­
do jugo de Deus, e tel-o completamente saria á intclligencia da historia, tão accorn-
banido dos negocios d’este mundo. E um modada a reunir em volta do pharol im-
provérbio muito repetido dizer-se que a movel da .verdade, todos aquelles a quem
economia politica é a prcoccupação oxclu* tem desencaminhado o fatuo fogo da men­
tira. O excellente author dos Estudos phi­
1 E . Macsso Campos. losophicos sobre o Christianismo, narra com
790 PRO
aqnella serenidade de conceito, e com gue a todos os ventos de doutrina, priva­
aquella perfeição de logica, que formam o do nas materias religiosas d’csta verdade
caracter de seu talento, os annaes da igre­ fixa c inabalavel, verum fixum et inconcus­
ja do erro. Mostra-nos as relações do pro­ sum, que parecia a Descartes d’absoluta
testantismo e de todas as heresias com o necessidade, mesmo para basear um syste­
socialismo, que é somente a fôrma actual ma philosophico, como poderia proteger a
da antiga negação. Vamos procurar seguir verdade politica, que assenta na verdade
a M. Kicolau na luminosa discussão, que da fé?
dirige com tanto saber e bom exito, e fa­ O racionalismo é uma cspecie de debi­
zer vêr a nossos leitores a sua connexão. lidade do cerebro, que não deixa compre­
Todos se lembram d’um discurso pro­ hendor fortemente este caracter d’unidade,
nunciado por M. Guisot, ha dous annos, de que a verdade traz gravado o sinete.
n’uma reunião da sociedade bibliea. Foi Para uma multidão de pensadores, o pro­
um acontecimento. Os homens d'estado testantismo é uma fórma de Christianismo
ouviram uma voz grave, illustre, habitua­ particular, mais liberal que o catholicis-
da a dominar as luctas politicas, procla­ mo, melhor apropriada do que este ás ne­
mar a necessidade da crença na ordem so­ cessidades d’independencia do homem mo­
brenatural, para o bom regulamento dos derno. Supposto que nunca podésse inspi­
negocios terrestres. A mesma voz, conse­ rar a um observador attento uma tão fal­
quência d’csta necessidade, convocava to­ sa ideia de suas tendências, seria necessa­
dos os christãos a uma commum alliança, rio que nunca tivesse sido considerado no
e os incitava, nào a esquecerem suas divi­ seu todo. Sem dúvida, em cada uma das
sões, mas a nào fazerem caso d’ellas, para mil seitas protestantes se acham mais ou
correrem ao mais urgente, isto é, ao as­ menos algumas parccllas d’este diamante
salto do socialismo. catholico, que ellas teem reduzido a pó:
Portanto, certeza da ordem sobrenatu­ mas o protestantismo integral não é tal ou
ral, necessidade da fé em Jesus Christo. tal interpretação do Evangelho: é sómente
As sociedades nào se salvarão sem reco­ revolta e negação. «Acabou-se coin o prin­
nhecerem este principio. M. Guisot decla­ cipio da authoíidade, diz.Luiz Blanc na sua
ra a este respeito sua profunda convicção. Historia da revolução franceza, visto que
Mas ao mesmo tempo inutilidade de definir se derruba em sua fórma a mais respeita­
a ordem sobrenatural, de precisar a fé em da, e n f seu representante o mais augusto,
Jesus Christo, de se entender sobre a dou­ e todo o Luthero religioso chama invenci­
trina do Salvador, isto é, scepticismo e in- velmente por um Luthero politico.»
diílerenca sobre os pontos fundamentaes Que os espíritos serios meditem n’estas
da salvação social, eis o que resulta clara­ palavras do socialismo, formulando sua ar­
mente dá liga proposta pelo eloquente ora­ vore genealógica, que as aproximem d e s­
dor entre os protestantes e os catholicos. ses testimunhos d’odio surdo ou furioso de
Era uma recordação d’cstas ligas parla­ que os revolucionários de todas as cores
mentares, em que os pardaes politicos das estão animados contra a Igreja, e dos ata­
differentes cores se reuniam para caçarem ques de mão armada a que a soberania da
o gavião ministerial. sancta sé tem estado exposta, e compre-
A eminente agudeza d’espirito de M. henderão que nossas guerras sociaes são
Kicolau não pôde combinar taes ligações guerras de religião, que a revolução é ape­
com a logica. Seria pois permittido a to­ nas uma excrescenda do protestantismo, e
dos defenderem a verdade? A primeira que se tracta hoje mais que nunca de sa­
condição para ser admittido na phalange ber se a Europa quer rejeitar ou servir o
encarregada da sua guarda, não é conhc- reino de Jesus Christo.
cel-a e amal-a, e não amar e conhecer M. Nicolau estabeleceu a filiação, que
uma verdade qualquer, nem mesmo mui­ uniu á grande heresia do século dezeseis
tas verdades, mas a verdade em si mesma, as seitas politicas actuaes, por uma apre­
que só importa á vida da humanidade e a ciação bem provada d’estes diversos erros.
seu desenvolvimento social? Ora o protes­ Mostra-nos na guerra dos paizanos a vio­
tantismo não pôde produzir uma certeza. lenta peroração das prégações de Luthero.
Por mais soberba confiança que a razão Ora, a guerra dos paizanos é o socialis­
tenha em si propria, ella nao admitte suas mo cm acção. Assim, a Providencia per-
concepições senão com uma reserva de dú­ mitlia que no proprio berço da pretendida
vida. É* agradavel a rebellião: a razão do reforma se produzisse a fiel imagem do
homem só crê na razão de Deus ou não que devia ser seu ultimo desenvolvimento.
crê. Como, pois, o protestantismo, entre­ A dizer a verdade, o socialismo não ó uma
PRO 791
doutrina nem um systema; é o resumo Bolingbroke, terminar immediatamentc no
brutal de todos os erros metaphvsicos sa- panthcismo com a philosophia ailemà, e
liindo do pedantismo (Tescóla, para acren- por esta aniquilaçào da personalidade di­
der, nutrir e armar todas as ambições de vina, por esta adoração cTuma especie de
que se fazem agentes as más paixões. polypo infinito de que o homem e a natu­
E curioso seguir a degradação das idéias reza sómenlc são focinho dMnsecto gigan­
clirislãs no seio das seitas protestantes. El­ tesco, preparar a invasão do socialismo.
ias apagam, uma a uma, como nas ceremo­ Em vão o naturalismo conservador, de que
nias symbolicas da Igreja durante as tre­ Voltaire é a expressão mais poderosa, afia
vas da semana sancta, todas as luzes da c limpa as armas do senso cemmum con­
fé. A liberdade de religião tão invocada, tra as pretenções dos pobres ao dcsfruclo;
não aproveita senão á irreligião. Desde o a scicncia cconomica dos physiocratas,
século dezesete, os pastores da Ilollanda, Qucsnay e Mercier da Ribeira, dirige os
pelo orgão de Jurieu, se lamentam da tor­ communistas Morelly e Mably. Rousseau,
rente d’incredulos que a revogação do edi­ manejando corn esplendor os sophismas
to de Nantes faz abordar ao scú paiz. As­ do Evangelho, reivindica eloquentemente
sim, estes martyres da sua fé não tinham os direitos dos desherdados. A proprieda­
f é ; ‘estes interessantes sustentaculos do de é negada, o governo é negado, como o
Evangelho puro, consideravam-no como tem sido o vigário de Deus sobre a terra.
um puro nada. A Inglaterra, no começo Obliterada a lei da caridade christã, os
do século dezoito, é um foco ardente de reinos d’estc mundo convertem-se n’uma
scepticismo, cm que Yoltaire tem enco­ arena em que os homens se disputam no
berto esta chamma d’impiedade que brilha sangue, em nome de não sei que lei da na­
em todos os seus escriptos: «Christo é tureza, as mil proezas da luxuria e da am­
n’ellcs escarnecido», escrevia ellc a d^lcm - bição. Só o .catholicismo, posto que ataca­
bert em uma carta de 28 de setembro de do de todos os lados, em pé, sustenta o céo
1763. O philosophismo encyclopedico é cm seus hombros, e o impede de precipi­
uma estaca protestante plantada no nosso tar-se sobre a terra.
solo francez; e se a revolução prctenco ao Nós esquecemos que os perigos que nos
philosophismo, como o cacho á vinha, é ameaçam despontaram na noite de 23 de
exacto dizer que esta era de terror é ape­ fevereiro de 1848, como uma planta ephe-
nas uma consequência excessiva, mas ri­ mera. Desde 1787, um abbade Brizard, no
gorosamente deduzida dos princípios fun­ elogio historico de Mably, premiado pela
dados por Luthero. A devolução franccza academia das inscripções e bellas-artes.
é ao mesmo tempo o lulheranismo dos gi- proclamava o communismo: «um dircitc
rondinos, o calvinismo de Robespierre, o sagrado da natureza.» A loucura humant
anabaptismo de Marat e de Baboeuf. tem precisamente a mesma idade que s
Seria ir muito longe acompanhar M. humanidade, mas é rapidamente contagio­
Nicolau em suas incansáveis excursões sa nos séculos que não são preservados
através do embrulhado labyrintho dos sys- pelo sal da fé, e não ha absurdo tão bur­
temas. Contentar-nos-heinos em assignalar lesco que não possa fazer tremer, até nos
a sagacidade com que denuncia as trans­ fundamentos, os maiores impérios, uma
formações successivas da liberdade de pen­ vez que tenham renegado as doutrinas di­
sar. vinas.
Consagra cento e trinta paginas do seu É um logar commum philosophico, que
segundo livro a uma-rapida exposição do a reforma tem sido a mais poderosa ala­
Christianismo até á reforma. Talvez'se de­ vanca da civilisação moderna. Ella é a
sejasse, no que respeita aos hereges da an­ fonte do nossas riquezas, o elemento de
tiguidade, e meia idade, um conhecimento nossa grande intellectualidade, o cadinho
mais directo das fontes; mas o author des­ em que se teem purificado nossos costu­
cobre com assaz clareza, na obscuridade mes barbaros.
de suas loucuras, o panthcismo e o com- É a ella que devemos a tolerância, esse
munismo, que são os cíTeilos de sua fami­ immenso beneficio, nossas luzes que des­
lia. Apresenta o protestantismo como re­ lumbram, talvez ao menos inspirando-nos
mato d’este edifício secular da heresia, de­ o orgulho, emfim essa aureola de candura
pois de se haver divertido por algum tem­ moral e de pureza angelica, de que o pre-
po com a dúvida scienti fica de B aylc;1 e de
anglicano, lutheranOj ou calvinista: *en sou
1 Bayle dizia de si jm prio ao cardeal protestante, porque protesto contra todas
de PolifjnaCj que lhe perguntava se elle era as religiões.»
792 PRO
sente está tão manifestamente coroado. Sa­ combater. Seus meios curativos serão di­
be-se com que elevação dÜdcias, erudição versos como os tempos e os costumes, mas
verdadeira e apurada*, vigor de genio e de sempre os applicará com a aulhoridade que
razão, Balmes refutou esta these da men­ lhe vem da cruz a que ella não poderia
tira, alimento banal da sciencia officiat, c renunciar sem se renunciar a si própria.
da ignorância vulgar. Entrava no plano de Mas foi esta tolerância philosophica, fi­
M. Nicolau responder-lhe por seu turno. lha do desdem incredulo e da necessidade
Calvino escrevia dos jesuítas que era ne­ recebida pelo protestantismo? Acceita-a elle
cessario «assassinal-os, ou se isto não po- mesmo cm nossos dias? Não, e nós não
désse fazer-se commodamente, desterral-os, lhe faríamos d’isso um crime se não fosse
ou pelo menos opprimil-os de calumnias.»- extremamente inconsequente em a rejeitar
Traçou n’e$las criminosas palavras as dis­ depois de ter admitlido o direito absoluto
posições estratégicas dos inimigos da Igre­ do exame pessoal, que éscu principio. Não
ja. Por isso, sempre vencidos e nunca sub- eram os primeiros reformadores, não eram
mettidos, c necessário fustigal-os sem des- as populações ainda animadas da generosa
coroçoar. Que importa que Balmes tenha seiva do catholicismo, que podiam conce­
victoriosamentc respondido ás asserções ber esta silenciosa paz da indifierença, es­
rancorosas e erroneas? Não se faz caso ta renunciífçào estúpida a toda a certeza
d’esta brilhante e franca linguagem, e os da verdadeira lei de Deus, bem supremo
calumniadores continuam a murmurar, da intelligencia, cuja perda é o ultimo tra­
ate que volte o tempo de bradar. A histo­ ço pelo qual o pincel de Dante acaba de
ria da Igreja, é, ha trezentos annos, como pintar o supplicio dos réprobos.
as planicies da Hollanda, que o mar amea- O scepticismo, elevado ao estado do do­
' ça continuamente innundar; constantemen­ gma social, não é mais que um disparate
te a onda da mentira tenta submergil-a. da segunda infancia das nações. Nós te­
É-nos necessário- trabalhar sem interru­ mos tanto direito a nos vangloriarmos dc
pção a fortificar os diqueS, e devemos gra- nossa tolcrancia como os eunuchos a se
tular-nos d’esses infatigáveis obreiros, que, jactarem de sua castidade. Luthero servia-
taes como M. Nicolau, se collocam sobre se do nome da liberdade como d’uma ma­
as brechas, e sosteem. a vaga, reparando-as quina de guerra.
com mão vigorosa e ousada. Sua viva intelligencia conheceu depres­
Que é tolerar? No verdadeiro sentido da sa a impotência d’um igual instrumento
mlavra, é supportar um mal que se não para edificar e conservar. D’ellc appellou
j)óde impedir. Não se tolera a virtude, não então para a authoridade, mas como tinha
se tolera a verdade; só se tolera o vicio e rejeitado sua verdadeira noção, foi impelli-
o erro. Salvo o erro, é esta a accepção de do á intolerância a mais grosseira, e não
tolerância, segundo o diccionario. E’ este o lhe pertenceu menos que ao mellifluo Me-
sentido que lhe damos na nossa linguagem lanchthon, que um papado lutherano esta­
actual? É assim que a entendem e practi- belecesse o imperio d’outra tiara cm o san­
cam a maior parte dos homens de nossos gue dos catholicos, e sobre as ruinas de seus
dias? Certamente é ella a applicação da estados.
maxima insensata: todas as opiniões são Eis-aqui, na verdade, o ponto capital da
dignas de respeito. Axioma verdadeira­ discussão travada sobre a tolcrancia entre
mente de igualdade, inventado pelos sim­ a igreja, e seus adversarios. Tanto esla es­
plices em proveito exclusivo dos perversos. forçada e sancta mãe aflirma com vigor
Em these, é a negação da verdade e da seu direito de ensinar e corrigir, reformar
aulhoridade religiosas, por isso que isto e punir, tanto ella está resolvida a defen­
não é tal ou qual igreja que, em virtude de der, mesmo invocando, se tanto fór neces­
seu titulo de depositaria da verdade divi­ sario, o braço armado de seus filhos, este
na, tolera as que a não possuem, mas uma dominio da verdade, ganhando a todos os
sociedade incompetente que admitte com homens pelo sacrificio de seu esposo, tanto
a mesma protecção e com o mesmo respei­ lhe é facil applicar a maior tolerância.
to todas as maneiras de crêr ou de não crêr. Como é a caridade que a guia na re­
Esta tolerância ás avessas nunca foi, pressão, é ainda a caridade que* a inspira
nem é, nem ha de ser a da igreja catholi­ na concessão e sempre com a mira na sal­
ca. Esta é o medico das almas., Tem por vação das almas, seu unico movei neste
missão as suas doenças. Um medico não tole­ mundo. .Assim vó-se o catholicismo viver e
ra a peste senão procurando por todos os desenvolver-se com a mais completa liber­
modos expulsal-a. A heresia e a. peste das dade de cultos, nos paizes em quò esta
inteUÍgencias; jamais a Igreja cessará de a liberdade se tornou uma necessidade.
PRO 79&
O protestantismo, ao contrario, em ne­ seria necessario abolir a justiça na Euro­
nhuma parte na Europa, tem concedido pa, porque empregava oulFora a tortura.
completa igualdade entre suas communhões Tracta-se «de saber se uma sociedade tem
e a fé romana. Quasi por toda a parte, ain­ o direito de proteger. Ila pouco, a reunião
da hoje, a repelle e cxduc pelas prohibi- das verdades consideradas como essenciacs
ções as mais crucis. á ordem social, era infinitamente mais ri­
Se alguem considera no seu passado, fica ca, mais completa, mais extensa que cm
pasmado d’essa zombaria historica, que o nossos dias.
obriga desde seu nascimento a fazer o pa­ D’ahi uma repressão mais vigilante e al­
pel d’um tenro cordeiro conduzido ao açou- cançando um maior numero de pontos da
guc pelos sacerdotes sanguinarios. circumferenda politica. Graças a Deqsl
E’ um conto d’Anna RadclilTe, substituí­ Ha ainda verdades que a sociedade mo­
do pela realidade dos factos. E’ só em 1535 derna está prompta a segurar a ferro e
ue Francisco i, persuadido que os innova- fogo: o direito de familia e propriedade,por
ores «se dirigiam cm tudo á destruição exemplo. Não calumnicmos, pois, nossos
da monarchia divina e humana», se enfu­ paes, porque ellcs criam mais energica­
rece contra os protestantes com supplicius- mente que nós n’um maior numero de
'uridicos. Mas desde 1821, Clíristiern n, o verdades superiores á propria vida, e este­
Í leroe do norte, tinha suíTocado o calholi- jamos persuadidos que no dia em que a so­
cismo debaixo das perseguições as mais ciedade não tiver mais nada que julgue di­
barbaras, na Dinamarca, PsoYwega, e Ir­ gno de garantir até á morte e pela myste-
landa. Gustavo Wasa, cm 1527, se cons­ riosa moralidade do supplicio, sua dissolu­
tituía, na Suécia, o fiel copista deste model- ção será consummada nos opprobrios da
lo sanguinolento. decadência e a paralysia do aviltamento.
Em 1334 uma devastação deshumana O protestantismo só porque identifica o
estabelecia na Suissa a dominação dos re­ principado ao pontificado, não se estabele­
formados. Por toda a parte, n uma pala- ceu senão á custa das inquisições politi­
yra, o reino do livre exame foi inaugurado cas. A Inglaterra, a Suécia a Állemanha,
por um holocausto dè victimas humanas, c Gênova foram dizimadas com furor por
como entre nós o devia ser mais tarde o esses exercícios de preboste da liberdac7
reino da fraternidade e da igualdade. Quan­ de consequência, que não se assimilava
do ouvimos invocar contra a Igreja, cm mais aos tribunaes da inquisição ecclesi;
nome dos protestantes, o principio da tole­ tica que os faccinorosos de Fouquier-Tr
rância, um ecco nos torna a enviar os cla­ velle se assimilavam a juizes regulares.
mores dos nossos convencionaes, gritando Estes testimunhos irrecusáveis da tolt
contra a tyrannia, com os pés sobre o ca­ rancia reformada, tinham assombrado a
daver de Luiz xvi degolado. Europa, quando a lucta começou em Fran­
A Igreja, grande sociedade espiritual, ça como acabamos de indicar*
centro e fundamento da antiga sociedade Apesar da fraqueza de seus princípios
européia, tinha creado tribunaes encarre­ em o nosso paiz, os calvinistas, apoiando-sc
gados de velar pela integridade da doutri­ no successo do despotismo protestante no
na o conservação do suas leis moraes. Te­ estrangeiro, sc mostraram o que tinham
ve o nome de inquisição ecclesiastica. Cer­ sido por toda a parte, os violadores arma­
tos principes, a seu exemplo, tinham fun­ dos das mais sanctas leis.
dado juriscficções politicas, a cuja alçada Estes, dizendo-se victimas, não marcha­
pertenciam ao mesmo tempo as questões vam senão com a injuria na bôcca,e o archo­
religiosas, e de estado, então intimamente te, e o ferro cm punho, inquinando as hos­
ligadas. tias consagradas, saqueando as igrejas, in­
Deu-se-lhe o nome de inquisição real, de sultando descaradamente a fé de dezeseis
que a Hespanha forneceu o argumento o séculos, ao mesmo tempo que conspiravam
mais poderoso, o mais violento c o mais contra o estado, não com menor perigo da
rápido contra o catholicismo. Não se tracta sociedade temporal que da espiritual, por
de saber se estas magistraturas julgaram suas allianças notorias, com os inimigos
sempre bem, se não commetteram exces­ do povo franccz: nós deploramos os crimes
sos de poder, reprimidos de mais na maior particulares e as represálias horríveis que
arte pela indulgência tutelar e a benigni- foram provocadas por tão abomináveis ex-
ade proverbial do soberano’ pontificado. cesâos; mas louvamos grandemente estes
N ’isso só ha o transporte de rancor, que heroes taes como os juizes, por exemplo,
concluo d’um erro d’applicação para o vi­ aos quaes devemos a conservação da fé em
cio radical da principio. Por este modo, a nação de S. Luiz e de Carlos Magno, EI-
794 PRO
lcs repelliram, venceram a preço de seu d ignorância, e posto que os protestantes
sangue, os socialistas contemporaneos, an­ tenham bem realmcnle perseguido Kcppler,
tepassados d’aquelles que tem feito estre­ o protestantismo ficará dc posse do honro­
mecer de horror a sociedade moderna. IVahi so privilegio dc luzeiro da razão huinana.
o envenenado opprobrio com que os parti­ Devemos pensar o mesmo d’esta atlestacào
dários procuram cobrir seu nome, dignos de superioridade moral sobre a grande
herdeirosd’aquclleTheodoro de Beza, «que prostituta de Babylonia, que lhe dão os
fez o panegyrico do assassinato do duque seus companheiros jansenistas c philoso­
de Guise, depois de ter sido d elle o mo­ phos com admiravel seriedade. Poem-se
tor.» de parte as theorias de Lulhcro sobre os
Mr. Nicolau restabeleceu mui engenho­ encargos supplcmentares das criadas nas
samente, por uma escolha de factos con­ familias pouco unidas, c as confissões de
cludentes, a verdadeira situação dos dissi­ todos os reformadores sobre a inundação
dentes no século decimo sexto. Elles foram dos maus costumes,que seguiu immcdiata-
os aggressores, e com tal impeto que es­ mente suas pregações. Não se dá ouvidos
cusavam anticipadamente os excessos da a essas revelações da estatísticaaclual sobre
defesa. A liberdade de consciência era ape­ o estado brutal das populações reformadas
nas uma d’estas palavras d’ordem destina­ em Londres, a fingida Jerusalem do mo­
das a mascarar o verdadeiro plano, como desto Shokinç e do Evangelho puro. fís-
tantas vezes temos ouvido em nossos dias. quece-sc, emlirn, que a sanctidade, que é
O protestantismo queria aniquilar a fé o heroísmo de todas as virtudes, a sublime
romana: extinguiu-aem toda a parte onde loucura da dedicação e do sacrifício de to­
pôde. Conhece-se a tactica antiga c inimi­ das as horas até á* morte, nunca penetrou
ga, que descaradamente tem enganado so­ o mundo dc seu fogo vivido senão no seio
bre a figura respectiva dos combates. Mas da igreja catholica.
que devemos dizer da cegueira dos escri- Terminaremos submettendo a Mr. Nico­
ptores catholicos que, ainda hoje, córam da lau algumas observações criticas que lhe
admiravel energia dos confessores arma­ servirão dc garantia" da sinceridade d e-
dos dc nossa religião, eesbofeteiam muitas nosssos elogios. Escreveu, no capitulo quin­
vezes com a mão que nunca trouxe senão to da sua introducçào: «todo o homem,
luvas amarellas, as imagens heroicas d e s ­ «mesmo quando praclica o mal, quer e só
ses homens de ferro, cuja espada nos sal­ «quer o bem.» Esta proposição é tão evi-
vou outr’ora. dentemente falsa nos termos, que oauthor
Devem Iér-se os dous capítulos que o au- não póde dar-lhe o sentido que cila real­
thor consagrou a mostrar o protestantismo mente exprime; clhv com um traço risca
em sua relação com as luzes, o com os cos­ todos os desvios da vontade huinana, que
tumes. Taes discussões se analysam com seria d’este modo subtrahidá ao anathema
muita facilidade. N’elles se encontra um do pecca do original.
resumo muito bem feito de tudo o que se Como a direcção e o grau de vontade re­
tem dito sobre o processo de Gallileu. Des­ gulam o grau da responsabilidade moral,
de 1784, Mallet du Pan mofava das narra­ seguir-se-ia, segundo a maxima—que o
ções patheticas, inventadas sobre este ob­ homem quer sempre o bem; que elle só­
jecto, e justificava os inquisidores romanos mente commclteria faltas involuntarias.
de terem querido sepultar em um cárcere Náo attribuimos ao author uma heresia
a verdade astronômica. tantas vezes condemnada: mas é permitti-
«Esta opinião é um romance, dizia elle. do notar-lhe os defeitos da expressão de
«Gallileu não foi perseguido corno bom as- sua phrase, e sentir que envolvesse seu ver­
«tronomo, mas como mau theologo. Elle dadeiro pensamento de nuvens de que não
«seria deixado tranquiIIamente fazer andar é facil desembaraçal-o. 1
«a terra, se não se inlromettesse a expli- Chamamos também sua attenção, na se­
«car a Biblia.» gunda edição de sua obra, sobre a passa­
Tem-se reproduzido cem vezes umacarta gem do penúltimo capitulo, onde des­
de Gallileu a um de seus discipulos, que envolve o velho rifào de nossos chronis-
assevera que sua perseguição se limitava a tas: Gesta Dei per Francos.
■affagos do papa e a algum tempo de reten­ Ninguem está mais persuadido do que
ção «em o delicioso palacio da Trindade nós da acção providencial da França sobre
ao Monte.» o nmndo, mas convém não violentar a voz
Isto não tem embaraçado a historia e a
pintura de mentirem á porfia. Será sempre i A difficuldade se cortaria se dissesse:
averiguado que catholicismo é synonimo —só quer o bem real ou apparente.
PTO 795
sobre este objecto delicado, sob pena do c a fé é analogo ao das duas naturezas em
-cahir em cxageracões perigosas. A vaida­ nosso Senhor. Jámais, pois, se operará a con­
de nacional nào nos arrasta a isso. Ila po­ ciliação plcnamcnte no mundo, mas os es­
vos reflcctidos que meditam c elaboram tados teem interesse da primeira ordem
muito tempo antes de obrar. Mas nós, si- em que esta união mystica da intelligenciá
milhantes á gallinha choca, apenas acaba­ com as verdades reveladas seja a regra ge­
mos de pôr o mais pequeno ovo, logo o ral, e o divorcio a excepção.
annuneiamos eslrondosamente ao universo Tudo está a nivel na ordem politica. A
com o cantico de victoria. Nem sempre se graduação de classes só existe no nome. O
verifica o nascimento e bastantes vezes te­ rico e o pobre se communicant sem me­
mos feito tão grande barulho por uma cas­ dianeiros. Só o Christianismo tem a missão
ca. Nào ha, pois, inconveniente em repre­ de o fazer, visto possuir só a authoridade
sentar nosso paiz «como o leme com que c os meios para isso.
Deus dirige o andamento do navio» c em Tem-se procurado, c se procura ainda
um accesso de transporte poetico «como o rcalisar esta obra difficil por nteios pura­
Sinay da Providencia?» Ninguem aprecia mente humanos.
melhor que Mr. Nicolau os- funestos erros Ha pessoas que crêem na caridade legal
do gallicanismo, e o mal que teem feito á para a erigirem em bem.
monarchia ainda mais que á Igreja. Ob­ Julgou-so que o regintem parlamentario
serve-se que uma das principaesraizes d e s­ faria prodígios, mas acabou ha pouco, sem
tas falsas theorias, nos espíritos de boa fé, nada fazer.
tem sido precisamente esta fatuidade de A republica devia cortar a questão, ris­
amor proprio patriotico. Parecia que a igre­ cando a palavra—miseria—da grammatica
ja de França tinha a direcção da christan- das nações.
dadç c que podia portanto impor suas Ámanhã será enterrada, coberta dos des-
opiniões c nào se importar das outras igre­ prezos e maldições de seus numerosos cre­
jas. Se a França é o leme do navio, o mon­ dores. Nào ha até mesmo na academia das
te sagrado em que falia Deus por entre re­ sciencias moraes e politicas, quem não
lâmpagos, nào se póde conhecer bem que julgasse que ella fbrminaria o terrivel pro­
parte resta em Roma, mãe e senhora, á sé cesso pela publicação de pequenas brochu­
infallivel do papado. ras azues. Este medicamento homeopathi-
Os raios da gloria em que nos encerra­ co não foi adoptado pelos doentes, e nà
mos eclipsam por tal modo o que nos ro­ fez mal ás pessoas de saude. Só a infant
deia, que parece que em torno de nós só ria foi eloquente, mas para fazer a polic
ha gelos e trevas. da sala e lançar fóra os mal procedidos,
Sem dúvida uma grande e poderosa na­ proporção, que a paz se consolidar, á soi.
ção como a França, é um dos principaes bra d’uma authoridade forte, se conheccn
instrumentos dos desígnios do Senhor, mas cada vez mais que é preciso deixar obrar
outras partilham com ella esta honra peri­ o sacerdote. Elle é o grande obreiro poli­
gosa. Sem dúvida ella é a filha mais velha tico d’esta época, como de todos os tem­
da igreja, mas convém que se recorde, por pos em que, travando-se as luctas sobre os
honra sua e boa nomeada, que não ha mesmos fundamentos da verdade e da cer­
recipuo para ella na herança de Jesus teza, é o principal negocio curar osvespíri­
hristo. tos e purificar os corações. 1
Tal é, em summa, e nos pontos princi­ ptolomeu — discipulo e contemporaneo
paes, a exposição sincera dás origens da de Valentim, reconhecia como seu mestre
revolução, de que temos procurado dar um ente soberanamente perfeito, pelo qual
uina ideia. Convém verificar estas origens, tudo existia, mas não adoptou o seu sen­
porque nunca se chegará a combater effi- timento áccrca da origem do mundo, e da
1 cazmenle o mal de que morre a sociedade religião judaica.
moderna sem se conhecer bem seu cara­ Valentim para explicar a origem do
cter e complicações. mal, e descobrir no systema, que suppõe
Mr. Nicolau assignalou-as com a dupli­ por principio de todas’ as cousas, um ente
cada authoridade do talento e da fé. soberanamente perfeito, uma razão suffi­
Demonstrou o que póde chamar-se a ne­ ciente da existência do mundo, e do mal,
cessidade temporal de Jesus Christo. ue n’elle se encontra, fazia sahir do Ente
Haverá sempre heresias, segundo a ex­ upremo intelligencias menos perfeitas, e
pressão do apostolo. Suarez diz em alguma cujas producções, que successivamente iam
parte, com uma profundidade maravilhosa,
que o mysterio das relações entre'a razão 4 L'Univers—E. A. Segretain.
796

diminuindo, tinham produzido por fim processo infinito que Valentim suppunha
entes maléficos, que formaram o mundo, no mundo. Porém como podia existir este
moveram as guerras, e causaram todos os principio malefico, que Ptolomeu suppunha
males, que nos attribulam. e que não existia por si mesmo, se todos
Jesus Christo affirmava, que tudo fôra os entes tiravam sua origem de um sobe-
feito por clle, e portanto era falso o senti­ ranamente perfeito?
mento que attribuia a creação do mundo a . Era uma difíiculdade, que Ptolomeu que­
princípios oppostos ao mesmo Senhor: a ria evadir por certa tradição, que não ex­
posição, que queriam achar entre o Anti­ plicava 1
go, e Novo Testamento, e que servia de base p u c c ia n is t a s — Sectarios do sentimento dn
ao seu sentimento, desapparecia logo que Puccio, que asseveravam ter Jesus Christo
se ponderasse attentamente sobre a lei de satisfeito com sua morte por todos os ho­
Moysés, e sobre as mudanças, que Jesus mens em tal maneira, que todos aquellos
Christo n’ella fizera. que tivessem de Deus um conhecimento
l.° O Decalogo, que c a base da lei ju­ natural, seriam salvos, bem que o não ti­
daica, tem com evidencia o caracter d’nm vessem de Jesus Christo.
ente sabio, e benefico, e encerra a moral Puccio sustentou este sentimento em um
mais pura, c mais bem accommodada á fe­ livro, que dedicou ao Papa Clemente vnr,
licidade dos homens. A lei do Evangelho no anno de 1592, cujo titulo é o seguinte:
aperfeiçoou esta lei. De Christi Salvatoris efficacitate in omni-
As particulares, que parecem contravir bus, et singulis hominibus, quatenus ho­
a bondade do legislador, assim como a de mines sunt, assertio Catholica cequitali di­
Talião, e a que authorisa a vingança, são vin a, et humanai consentanea, universa
leis, que eram necessarias no tempo, e Je­ scriptura S. et PP. consensu spiritu dis­
sus Christo, abolindo-as, nenhuma estabele­ cretionis probata, adversús scholas asseren­
ceu contraria aos desígnios do Creador, tes quidem sufficientiam Servatoris Chris­
pois que elle no Decalogo prohibe o homi­ ti, sed negantes ejus salutarem efficaciam in
cidio: e se aboliu a leie do divorcio, esta singulis, ad S. Pontificem Clementem VIII.
não era do Creador, mas um simples re­ Gonduc, 1592, in 8.° 2
gulamento de policia, estabelecido por Rethorio, no quarto século, pensou quasi
Moysés, como o mesmo Jesus Christo o af­ como elle, e Zuinglio no decimo quinto.
firma. Este erro póde ser um erro de coração;
Quanto ás leis ceremoniacs, e figurativas, é contrario ás palavras do mesmo Jesus
Jesus Christo falando com propriedade,não Christo o qual diz que ninguem vai a seu
as aboliu, porque elle conservou o espirito Pae senão por elle, e que, aquelle que não
: das mesmas, e não rejeitou, por assim di­ crêr, será condemnado 3
zer, mais que a casca. Puccio foi refutado por Osiandro, por
Jesus Christo destruindo os. sacrifícios Lysero, e por outros theologos alleraães,
da antiga lei, não disse que não deviam of- citados por Stockman.4
ferecer-se a Deus sacrifícios; disse que em p u r it a n o s —Veja-se Presbyteranos.
logar de animaes, ou deincenso, se lhe de­ p y r r o — Veja-se Monothclitas.
viam ofierecer afiectos, e sacrifícios-espi- QUADRISACRAMENTAES— Discipulos de Me-
rituaes; e assim se ha de dizer das outras Ianchthon, assim appellidádos por não ad-
leis. D’aqui concluía Ptolomeu, que a ju­ mittirem senão quatro sacramentos, o ba­
daica, e a evangélica tinham por principio ptismo, a ceia ou communhão, a peniten­
um Deus benefico, e não dous deuses op­ cia, e a ordem.
postos, e que o mundo não era obra do q u a k e r s — Esta palavra em inglez quer
Ente Supremo; porque, segundo Ptolomeu, dizer Tremedor: é o nome d’uma seita de
n’elle não havería mal. Portanto era o enthusiàstas, que tremem com todos os
Creador um Deus benefico, collocado no membros do seu corpo quando créem sen­
centro do mundo, que creára, e no tir a inspiração divina. A origem, progres-
qual produzia todo o bem possível; mas
n’este mesmo mundo havia um principio 1 Philastro de Har. c. 39. Aug. de Har.
injusto, e mau que estava unido á mate­ c. 13. Tert. advers. Valent, c. 4. Epiph.
ria, e que produzia o mal: e para rebater Hcer. 33. Ircen. I. 1, c. 1, 6. GraL Spicileg.
os eííeitos da sua malignidade, é que ó Scec. 2. p. '68.
Deus Creador tinha enviado seu filho ao 2 Stockman Lexicon in nov. Punccia-
mundo. nistee.
Assim, pois, admittia Ptolomeu só quatro 3 Joan. 14. t\ 6. Marc. 16., v.. 16.
princípios, ou Eons' em logar d’aquelle 4 Loc. ci(.
QUA 79 7

so, costumes e dogmas d’esta scita singu­ mortificação, c que Jesus Christo nos ensi­
lar merecem contemplação na Historia dos nou a honrar a Deus.
desvarios do entendimento humano. É, pois, sómente verdadeiro christãoaquel-
le que doma as suas paixões, que se ne­
ga a toda a maledicência, e a qualquer in­
DA ORIGEM DOS QUAKERS justiça, que não vé sem dôr o infeliz, que
reparte os seus bens com a pobreza, que
perdoa as injurias, que ama todos os ho­
Pelo meio do século passado, Jorge Fox, mens como seus irmãos, que está sempre
sapateiro no condado de Leicester, empre­ prompto a dar a sua vida, antes queofien-
gava em lér a Escriptura Sancta todo o tem­ der a Deus: confrontai com estes princí­
po em que não trabalhava, e bem que pios, dizia Fox, todas estas sociedades que
apenas sabia lêr, como tinha grande me­ se dizem christãs, e véde se ha alguma
mória, a aprendeu de cór quasi toda; se­ que mereça este nome. Estes presumidos
rio o melancholico desadorava de que os christãos teem por toda a parte um culto
companheiros se alliviassem de seus tra­ exterior. Sacramentos, ceremoniaes, litur­
balhos com divertimentos, de que elle não gias e ritos, por meio dos quaes pretendem
podia gostar, e que condemnava com as­ agradar a Deus, c conseguir a sua salva­
pereza. Veio, pois, a ser-lhes odioso, expul­ ção. Lançam fóra de todas as sociedades
saram-no de sua sociedade, e elle se entre­ christãs os que não observam estes ritos,
gou ao retiro, e ã meditação. e nellas recebem até muitas vezes com
Os vícios, e a dissipacao dos homens, a acatamento os maldizentes, voluptuosos,
conta que hão de dara l)eus dos dias pas­ vingativos e malvados.
sados na desordem, e no esquecimento de Os christãos mais observantes do culto
seus deveres, e o apparato do juizo ultimo, exterior enchem a sociedade civil e a Igre­
eram o objecto das suas meditações; as­ ja de scisraas, extorsões e partidos, que se
sombrado com estas imagens terríveis, sup- aborrecem, e entre si disputam com furor
plicou a Deus o meio de se preservar da sobre uma dignidade, um grau, uma ho­
geral corrupção, e presumiu ouvir uma menagem, e uma preferencia: nenhuma
voz, que lhe ordenava fugisse dos homens das sociedades christãs tributa, pois, a Deus
e vivesse no retiro. o culto puro e legitimo; todas, sem cxce-
Fox, desde este momento, rompeu toda a pluarmos ainda as igrejas reformadas, reca-
communicação humana; requintou a sua hiram no judaísmo: não será effectivamen-
melancholia, e viu-se logo cercado de de­ te ser judeu, não será d’alguma maneira res­
mônios, que o tinham agarrado: orou, tabelecer a circumcisão, fazendo dependen­
meditou, jejuou, e creu ouvir outra voz do te a justiça e a salvação do baptismo e dos
céo, e sentir uma luz, que dissipára os sacramentos? Pois os mesmos ministros da
seus temores, e alentara a sua alma. Igreja estão n’estes erros, e n’elles se man-
Não hesitou mais em que o céo velasse teem para se conservarem suas rendas e
sobre elle d’um modo particular; teve vi­ dignidades: de tal sorte, pois, se tem intro­
sões, arrebatamentos, e extasis, e se per­ duzido a corrupção nas sociedades chris­
suadiu que o céo lhe patenteava quanto tãs, que ha menos inconveniente em sof-
elle queria descortinar, pediu o conheci­ frer n’ellas todos os vicios e desordens,
mento do verdadeiro espirito do Christia­ que na empreza de reformal-as. Que resta,
nismo, e teve para si que Deus lhe reve­ pois, fazer aos que desejam salvar-se, dizia
lava tudo o que era necessario crér, e obrar Fox, senão o separarem-se de todas as
para a salvação, e lhe ordenara o ensinas­ igrejas christãs, honrarem a Deus com a
se aos mais homens. Fox largou, pois, práctica das virtudes, de que Jesus Christo
mão do seu officio, fez-se apostolo, e pro­ veio dar-nos o exemplo, e formarem uma
pheta, e publicou a reforma, que asseve­ sociedade religiosa, que sómente admitta
rava ser-lhe inspirada por Deus ácerca homens sobrios, pacientes, mortificados,
dos dogmas, e do culto dos christãos, cuja indulgentes, modestos, caritativos, e prom­
pureza, dizia elle, estava alterada em todas ptos a sacrificarem socego, fortuna e vida,
as igrejas. Jesus Christo, accrescentava Fox, antes que a contaminarem-se na corrupção
aboliu a religião judaica; substituiu ao geral? Tal é a verdadeira igreja que Jesus
culto exterior e ceremonial dos judeus um Christo veio fundar, e fóra da qual não ha
culto espiritual, e externo, aos sacrifícios salvação. Prégava Fox esta doutrina nas.
dos touros, e dos bodes o sacrifício das tabernas, nas casas particulares, nas pra­
paixões, e a práctica das virtudes; pela pe­ ças publicas e nos templos, gemendo e la­
nitencia, caridade, justiça, bcneficencia, e mentando a cegueira dos homens; moveu,
5i
798 QUA
tocou e persuadiu; fez discipulos. Alentado um christão não deve oppôr a força á for­
com tão bons successos, quiz fazer mila­ ça, ou pleitear por assumptos tempora es.
gres; asseverou havel-os feito: seus disci­ Os quakers olhavam todas as suas idéias
pulos os publicaram c oflcrcceram como como operações do Espirito Sancto, tinham
provas da verdade da sua doutrina; mas a como essência todas as maximas da sua
poucos passos prescindiram d’estas provas, scita, e mais facil lhes seria sacrificarem
asseverando que como Fox não annuncia- bens, liberdade e vida, que saudarem um
va uma nova religião, mas sómente vinha homem, darem um juramento, ou paga­
recordar aos homens a práctica do Evan­ rem os dizimos. Como todos os quakers se
gelho, era desnecessário que ellê obrasse criam inspirados, nenhum houve que não
prodígios. Augmentou-se insensivelmente se tivesse por apostolo, destinado pela
o npmero de seus discipulos, c cllc formou Providencia para esclarecer alguma parte
uma sociedade religiosa, qúe nem tinha do mundo: a Inglaterra se viu logo coberta
culto exterior, nem liturgias, nem minis­ de uma multidão incrível de prcdicantcs,
tros, nem orações vocaes. Como Fox, por que por toda a parte encontravam imagi­
meio da meditação, fora illuminado com nações vivas, e espíritos fracos, os quaes
as luzes do céo, *e tivera visões', e extasis, allucinaram: por toda a parte se viram
este foi o modelo sobro que formou as as­ magistrados, theologos, lavradores, solda­
sembléias religiosas da sua seita. dos, pessoas de qualidade, mulheres casa­
Quando os quakers estavam juntos, cada das e solteiras aggregarem-sc aos quakers,
um se entranhava em si mesmo, observan­ irem ás praças publicas e aos templos tre­
do attentamente as operações do Espirito mer, prophetisar, e pregar contra a igre­
Sancto, sobre sua alma: o que era de ima­ ja anglicana, perturbar o serviço divino
ginação mais viva, sentia primeiro a inspi­ nas igrejas, insultar seus ministros, e de­
ração; logo quebrava o silencio, exhortava clamar com furor contra a corrupção de
toda a assembléia que attendesse ao que o todos os estados.
Espirito Sancto lhe inspirava, e discorria Todo o clero, e a maior parte do povo
acerca da abnegação de si mesmo, da ne­ se amotinou contra esta scita.nova, e os
cessidade de ser penitente, sobrio, justo, e magistrados se serviram de toda a sua au-
benefico: n’um instante a assembléia toda se thoridade para reprimir a audacia dos qua­
sentia abalada, inflammava-se: corheçavam kers: investiram-nos, prenderam-nos, des-
todos a tremer, a inspiração se fazia geral; e pojaram-nos de seus bens; mas não fizeram’
então erà a qual mais alto, e por mais tempo mais que dar novo lustre á seita, e multi­
fallava. Não hesitavam, pois, os quakers de plicar os sectarios. Bem que cada um d’el-
que fossem instruídos extraordinariamen­ ies se crêssc inspirado, Fox comtudo era
te pelo Espirito Sancto: tinham-se como o respeitado como seu chefe, e restaurador
seu templo, .criam sentir a sua presença, do Christianismo: este enviou cartas pas-
sabiam das assembléias graves, recolhidos, toraes, não só a todos os logarcs, onde os
silenciosos, e desdenhavam o fasto, as hon­ quakers tinham feito proselytos, mas a
ras e as riquezas. O quaker não via no qua- todos os soberanos do mundo, ao impera­
ker mais do que um templo do Espirito dor, ao sultão, a el-rei de França, etc., pa­
Sancto: todas as distineções da sociedade ra lhes intimar, da parte de Deus, que abra-
civil desappareciam a seus olhos, e elles çássem a sua doutrina: passaram a todos
se reputavam como uma familia que o Es­ ôs paizes homens, mulheres casadas, e sol­
pirito Sancto illustrava e dirigia. Persua­ teiras a levarem estas cartas, e prégarem
didos os quakers de que só Deus merece a doutrina dos quakers, mas com mau suc­
as nossas homenagens, nossa admiração, e cesso.
respeito, tractavam todos por tu, a nin­ Cromwell, que então reinava em Ingla­
guem saudavam, e recusavam não só aos terra, quiz ver Fox, formou d’elle uma
magistrados, mas ainda aos reiá, toda a es- alta ideia, e concebeu estimação pela sua
pecie de homenagem; porém se preciso seita; porém passou um edito em que pro-
fosse partiríam seus bens, e sacrificariam hibia aos quakers que fizessem ajunta­
seu descanso por aquelles mesmos, aos mentos publicos, e recommendava aos ma­
<juaes nem davam salvação, nem tracta- gistrados que os acoutassem dos insultos;
mento. Nunca juravam, porque Jesus Chris­ mas Crorriwellnão foi obedecido nem pelos
to o prohibira: não queriam pagar dízimos, qpakers, nem pelos seus inimigos; aquel­
porque tinham por um crime contribuir les continuaram a fazer assembléias, e es­
para a conservação de ministros de uma tes a tractal-os com rigor, que todavia nao
igreja corrompida, bem que não estorva­ desalentou o seu zelo, nem suspendeu seus
vam que lh’os levassem, tendo para si que progressos, de tal sorte que passados dez
QUA 799

annos depois das primeiras producçõcs de da sua seita, mas as suas obras estavam
Fox (cm 1659), os quakcrs tiveram uma coalhad«as de furor, c de amargura, cheias
assembléia ou synodo geral no condado de de injurias, e até de blasphemias: cllcs
Bedfort, em que se acharam deputados de queriam que tudo dobrasse ao seu senti­
todas as partes de Inglaterra. mento. Penn c Barclay nào pretendiam su­
Os quakcrs foram traclados muito rigo­ jeitar ninguem, e unicamente recobrar os
rosamente depois da morte de Cromwell, direitos da consciência c da liberdade, di­
quando os inglezes tornaram a chamar reitos a seu parecer, invioláveis em Ingla­
Carlos ii, com quem os malquislaram, pin­ terra 1
tando-os como inimigos da Igreja, do Es­ Heprcsentaram os quakcrs como uma
tado. e d’el-rei. Prohihiram-so as suas as­ sociedade que só aspirava a restabelecer o
sembléias, c o parlamento determinou que Christianismo primitivo, c a formar de to­
prestassem juramento de fidelidade a el- dos os homens uma familia religiosa, c que.
rei, sob pena dc serem banidos: porém nào nào queria nem dominar no estado, nem
se abstiveram d’aquellas, c constantcmonlc violentar ninguém a que pensasse como
repugnaram satisfazer a este. elles. Barclay publicou um CathecLvno, ou
Os" inimigos dos quakcrs, authorisados ConfissCio da fé, que tinha por base os prin­
pelas leis, exercitaram sobre elles rigo­ cipies fuudamentaes do protestantismo: 2
res incríveis; os quakcrs nào oppozeram a final mente compuz theses theologicas, c o
seus inimigos mais que a paciência, c uma quakcrismo, que na sua origem nào fòra
pertinacia indomável, sem que nbnea os mais que um amontoado de visões e de
podessem dobrar á homenagem requerida, extravagancias, veio a ser um systema de
nem evitar suas assembléias. religião e de theologia, capaz de allucinar
Era Fox ura fanatico, melancholico e igno­ as mesmas pessoas esclarecidas e muito
rante, que a principio sómente seduzira a complicado para os theologos e protestan­
baixa plebe, mais ignorante que ellc; mas tes.
coino no coração da maior parte dos ho­ Penn e Barclay não serviam ao qu«a-
mens existe a origem do fanatismo, Fox kerismo unicamente com seus cscriptos;
teve discipulos em diíTercntes estados, c o passaram a Hollanda e a Allemanha parí
quakcrismo insensivelmente se achou apa­ alli fazerem proselytos. Por esse tenqu
drinhado pelo entendimento e até pela eru­ (em 1681J deu Carlos n a Penn, e a seus
dição. O porte dos quakers foi cnlào mais herdeiros de propriedade, a provincia da
circumspecto: já nào ensinavam nas pra­ America, que esta «ao oeste do rio Warc,
ças publicas, nào pregavam nas tabernas, chamada, emqnanto era dos hollandezes,
nem entravam nos templos como loucos, a Novos Paizcs Baixos: esta concessão foi
insultarem os ministros, c perturbarem os feita cm prêmio dos serviços que fizera o
divinos officios. Finalmente, homens sábios, vice-almirante Penn, e de muitas sommas
taes como Guilherme Penn, Jorge Kcit, e que a coroa lhe devia ainda quando clle
Roberto Barclay entraram na sua seita, e morreu. El-rei mudou o nome d’este paiz
cila tomou entào nova fórma. em Pcnsylvania para honrar M. Penn c
Fox se afadigou muito com estas novida­ seus herdeiros, que declarou unicos pro­
des, mas Penn e Barclay vieram a ser com prietarios e governadores da mesma.
cíTeito os cabeças da seita. Penn passou à America para dar leis ao
seu novo estado, cujas constituições funda-
mentaes estão em vinte c quatro artigos,
DO QUAKERISMO DEPOIS QUE PENN E BARCLAY dos quaes é este o primeiro: «Em nome
O ABRAÇARAM 1 dc Deus, pae d«as luzes e dos espíritos, au-
thor dos objectos de todo o conhecimento
divino, de toda a fé, c de todo o culto: De­
Achavam-se em Penn, c Barclay com o claro e estabeleço por mim c pelos meus,
fanatismo, proprio para fazer «abraçar esta como primeira lei fundamental do governo
seita, grande erudiçào, entendimento, me­ d’este paiz, que toda a pessoa que nelle
thodo, e idéias elevadas: empregadas, pois, vivo, ou quizer estabelecer-se, gosará de
todas estas vantagens em favor do quake-
rismo, tomou clle outra figura. 1 Defesas das antigas, e ju stas liberda­
Os quakers tinham cscripto em defesa des do povo, etc. Em ingleé.
5 Cathecismo, ou Confissão do Fé, orde­
i Jorge Keit, excellente philosopho, e bom nado, e approvado na assembléia geral dos
theologo, largou a seita dos qualcers: por­ pitriarchas, c apostolos, debaixo do poder
tanto nâo faltaremos mais d'elle. do w sm o Jesus Christo. Em inglez.
*
800

plena liberdade para servir a Deus da ma­ SYSTEMA THEOLOGICO DOS QUAKERS
neira que em sua consciência julgar lhe é
mais agradavel, e emquanto aquella pessoa
nào mudar em licença esta liberdade chris- A soberana felicidade do homem consis­
tã, e d’ella nào abusar em prejuízo d’ou- te no verdadeiro conhecimento de Deus, c
trem, fazendo, por exemplo, discursos inde­ de Jesus Christo, i
centes e profanos, faltando com desprõso Ninguem conhece o Pae, senão o Filho,
de Deus, de Jesus Christo, da Escriptura c aquellc a quem o Filho o revelou. A re­
Sagrada, e da religião, ou commetiendo velação do Filho é no Espirito, c pelo Es­
algum mal moral, ou fazendo injuria aos pirito. 2
demais, será protegida pelo magistrado ci­ Portanto o testimunho do Espirito é o
vil, e conservada na posse da sobredila li­ unico meio de adquirir o verdadeiro co­
berdade christã.» nhecimento de Deus, que por ello se fez
Grande numero do quakers passaram a conhecer aos patriarchas, aos prophetas, c
Pcnsylvania para escapar aos rigores que aos apostolos.
sobre elles sc exerciam cm Inglaterra até Estas revelações de Deus pelo Espirito,
á morte de Carlos u. ou se façain por vozes externas, por appa-
O duque de York, que lhe succcdcu, rições, ou sonhos, ou por manifestações, e
tomando o nome de Jacobo n, era affeiçoa- illuminações interiores, são o objecto for­
do á igreja romana, e formou o projecto mal da possa fé.
de recuperar a religião catholica em In­ Estas revelações internas nunca podem
glaterra, para cujo eíTeito promettia o li­ ser oppostas ao testimunho externo da Es­
vre exercício de todas as religiões; e até criptura, nem á sà c recta razão; porque
assignalou uma estimação particular para esta revelação divina, ou illuminação in­
com os quakers. Penn, que era o seu terna, é evidente e clara por si miesma, e-
mais intimo valido, se aproveitou de seu o entendimento a cila se accommoda tão
valimento, principalmente em favor dos necessariamente como aos primeiros prin­
quakers, c para lhes dar entrada nos car­ cípios da razão: portanto, pois, não deve­
gos e dignidades, obteve um edito que an- mos submetter ao exame da razão as reve­
nullava outro em que sc mandava prestar lações interiores do Espirito Sancto.
o juramento aos que á elles aspiravam. D’estas sanctas revelações do espirito de
Nào dissimulava el-rei sua aíTeição pela Deus aos homens sanctos, procederam as
religião catholica, e não se duvidou que a Escripturas veridicas que contcem em pri­
dispensa do juramento de fidelidade tives­ meiro logar uma relação fiel das acções do
se o alvo em restabelecer os catholicos nos povo de Deus em muitos séculos, como
cargos c dignidades. Os bispos queixaram- tambem muitas economias particulares da
se; el-rei so lhes respondia depondo-os, e Providencia, que as acompanhavam; em
aprisionando-os; o povo não hesitou mais segundo, uma relação prophetica de mui­
sobre seus desígnios: alvoroçaram-se todas tas cousas, das quáes umas já passaram, c
as seitas com este projecto, sem exceptuar outras ainda hão de acontecer; em tercei­
os mesmos quakers, que ainda receavam ro, uma ampla e completa relação dos.prin-
inais os catholicos do que os anglicanos: cipaes dogmas da doutrina de Christo, pré-
tudo se amotinou contra Jacobo n. Gui­ gada e representada em muitas e excellen­
lherme, principe de Orange, subiu ao thro­ tes declarações, exhortações e sentenças,
no, que aquellc desamparou na chegada que foram ditas e escriptas por impulso
d’este a Inglaterra. No governo de Gui­ do Espirito Sancto em differentes tempos
lherme in fez o parlamento uma lei, pela a algumas igrejas e a seus pastores, se­
qual concedeu o exercício de todas as re­ gundo as occasiões o pediam. Mas com
ligiões, excepto a catholica, e a sociniana. tudo isso não sendo as Escripturas mais
Desde este tempo gosam os quakers da que a declaração da origem, e não a ori­
tolerância em Inglaterra, e vivem prote­ gem mesma, não devem em tudo ser esti­
gidos pelas leis, e pelo estado; mas co­ madas como o fundamento principal de to­
mo não foi abolida a- lei do juramento, e da a verdade e de todo o bonhccimento,
os quakers constantemente recusam pres- nem como a primeira regra da fé e dos
tal-o, sempre estão expostos a inquietações, costumes: bem que podem olhar-se como
c aos maus tractamentos dos magistrados uma segunda regra, subordinada ao Espi­
ou tambem dos collectores dos dízimos, rito, do qual tiram a excellenda e a ccrte-
cujas concussões quasi sempre ficam im-
punidas. t Joan. 17, 3.
2 Math. 18, v. 27:
801

za que teem; pois que cilas dão verdadeiro seja no intimo do coração, é cada unt dos
c fiel lestiraunho da sua primeira origem. verdadeiros ministros do Evangelho, orde­
Porque como nós só conhecemos a cer­ nado, disposto c assistido na obra. do mi­
teza das mesmas pelo testiinunho inte­ nisterio; o por sua direcção, impulso e at-
rior do Espirito, e cilas testimunham tam­ tracçào, deve,cada um dos evangelistas e
bém ser o Espirito o guia por quem os pastores ehristàos, ser conduzido e com-
sanctos são conduzidos cm toda a verdade; mandado nas suas fadigas e ministérios
razão porque, segundo as Escripturas, o evangélicos, quanto aos lugares onde, quan­
Espirito é o primeiro e principal condu­ to ás pessoas a quem, e quanto ao tempo
ctor: e com oção recebemos nem crémos em que deve servir: demais, aquclles que
nas Escripturas senão porque ellas proce­ receberam esta authoridade, podem e de­
dem do Espirito, também por consequência vem pregar o Evangelho, bem que não te­
é o Espirito mais originario, e principal­ nham cominissão humana, nem litteratura;
mente a regra. Toda a posteridade de Adão da mesma sorte que os destituídos da au­
cahiu, e foi privada d’esla luz interior do thoridade d'cstc divino dom, posto que se­
Espirito Saneio. Deus por sua infinita ca­ jam sábios, c aulhorisados pelas conunis-
ridade nos deu seu unico Filho, para que sões das igrejas e dos homens, só devem
fosse salvo qualquer que n’elle cresse: este reputar-se impostores e enganadores, e não
Filho illumina a todo o homem que vem a verdadeiros ministros do Evangelho. Todo
este mundo, ensina toda a justiça, tempe­ o verdadeiro culto e todo o serviço agra-
rança. c piedade; e esta luz aclara o cami­ davel a Deus, ó oíTerecido pelo seu Espiri­
nho a todos, porque a redempção não é to, que move interiormente, que não se li­
menos universal, que o peccaup original: mita, nem aos logarc*. nem aos tempos,,
portanto ha cm todos os homens uma luz nem ás pessoas; porquê bem que devamos
evangélica, e uma graça saudavel: e pela scrvil-o de continuo em estarmos sempre
mesma razão nós não* somos justificados penetrados de respeito na sua presença,
nem pelas proprias obras, produzidas por comtudo, quanto á significação exterior cn
nossa vontade, nem ainda pelas obras boas nossas súpplichs, louvores e pregações, nà
consideradas em si mesmas, mas sómente o havemos de fazer onde, c quando qu
por Jesus Christo. zermos, mas onde, e quando formos coi
O corpo do peecado c da morte foi tira­
duzidos pelo impulso e inspirações occui
do iTaquelles em que foi inteiramente pro­ tas de seu Espirito cm nossos corações, as
duzida esta sancta e immaculada conce­ quacs ouve e acccita Deus, que nunca dei­
pção, e seus corações de tal maneira vie­ xa de incitar-nos a ellas, quando convém,
ram a unir-se e*a sujeitar-se ã verdade, do que sómente elle c o juiz proprio.
que não obedecem a suggestões, nem tenta­ Qualquer outro culto, pois, ou sejam
ções algumas do demonio, c são livres do louvores, orações, ou pregações que o ho­
peccado actual, da transgressão da lei de mem lhe ronde de propria vontade, e a
Deus, e quanto a isto são perfeitos; mas seu commodo, c que póde começar e aca­
comtudo esta perfeição sempre ãdmitte um bar á sua descripçuo, ou seja por fôrmas
'augmento, e a possibilidade de pcccar exis­ determinadas como as liturgias, ou im­
te de algum modo, quando o entendimento pensadamente concebidas pela força c fa­
não está attento a Deus com grande des­ culdade natural do entendimento, não são
velo. mais que superstições, uma devoção vo­
Bem que este dom de Deus, e graça in­ luntaria, c uma idolatria abominável dian­
terior baste para operar a salvaçao, com­ te de Deus; deve, pois, rejeitar-se, rene­
tudo póde tornar-se, e se torna cm conde- gar-se, e d’clla nos devemos separar.
mnação n’aquelles que lhe resistem; além Como não ba mais que um Deus e uma
de qúe, depois que ella obrou alguma cou- fé, tainbcm não ba mais que um baptismo,
sa em seus corações para os purificar, e não aquelle que nos lava as impurezas do
fazer sanctos, elles todavia podem descahir corpo* mas o lestimunho d’uma boa con­
d’cste estado por desobediência; porém pó­ sciência diante de Deus pela resurreição
de adquirir-se iTesta vida tal grau de au­ de Jesus Christo; e esse baptismo tem al-
gmento, e tal firmeza na verdade, quo não uma cousa de puro e ^espiritual, a sa-
seja possível descahir de todo pola aposta­ er: o baptismo do espirito e de fogo, pelo
sia. qual somos, sepultados com elle, a fim de
Como por este dom, e luz de Deus rece­ que lavados e púrificados de nossas culpas,
bemos e nos foi revelado todo o conheci­ caminhemos em nova vida, de cujo baptis­
mento nas cousas espirituaes, por elle da mo foi a figura de S. João, que se realisou
mesma sorte, manifestado e reçehidp que por algum tempo, c não foi ordenado para
802 QUA
sempre. Quanto ao dos meninos é uma rupção, para entreter a sua vaidade c o
pura tradição humana, de que não se en­ seu orgulho, e a pompa vã d’este século,
contra nem preceito nem praclica em toda da mesma sorte que os jogos inúteis, as
a Escriptura. recreações frivolas, os divertimentos, os
A cominunhào do corpo e do sangue de jogos de cartas, que sómentc servem para
Christo é interior e espiritual, c n’isto con­ cuusuinir inutilmente o precioso tempo, e
siste a participação da carne c do sangue afastar a alma da presença de Deus em
do mesmo Senhor, pelos quaes o homem in­ seu coração, de seu sancto temor, c do es­
terior se nutre quotidianamente nos cora­ pirito evangélico, que deve ter os christàos
ções d’aquellcs cm que ellc habita, de que em fervor, e que os conduz á sociedade, e
é figura a repartição que elle fez do pão ao sincero temor de Deus.
com seus discipulos, do qual se serviam D’este principio conclue Barclay:
algumas vezes na igreja os que tinham t.° Que não é permiltido dar* aos ho­
recebido a substancia, por conlemporisar mens titulos lisongeiros, como sanctidade,
com os fracos; da mesma sorte, absterem- magestade, eminência, cxcellencia, gran­
se do sangue e das carnes suflocadas, la­ deza, senhoria, etc., nem servirem-se dos
varem os pés uns aos outros, e ungirem discursos communiente chamados cumpri-
com oleo os enfermos, são cousas ordena­ mentos. Os titulos não fazem parte algu­
das com igual authoridade e solemnidade ma da obediência devida aos magistrados
que as primeiras; mas como não eram ou aos imperadores; na Escriptura não
mais que sombras d’outros melhores, ces­ achamos que similhantes titulos se dessem
sam para com aquelles que d’ellas obtive- aos reis, aos principes e aos nobres; aquel­
. ram a substancia. les aos quaes se conferem, d’ordinario não
Por quanto Deus se apropriou o dominio leem sobre que elles assentem, e nenhu­
e o poder sobre as consciências como o ma authoridade póde obrigar o christão a
unico que as pôde instruir e governar bem, que minta.
assim não é permiltido a ninguem seja 2. ° Que não é permiltido a um christão,
qual fòr sua authoridade no governo d’cs- pôr-se de joelhos, prostrar-se diante d’al-
te mundo, violentar as consciências alheias, gum homem, dobrar o corpo, ou descobrir
e portanto as mortes, desterros, proscri- a cabeça diante d’ellc.
pções, prisões, e quaesquer outras cousas 3. ° Que o christão não deve usar de su-
de similhante natureza, com que os ho­ perfluidades em seus vestidos, como intro­
mens são attribulados só pelo exercício de duzidas tão sómente pela ostentação e pela
suas consciências, ou pela diversidade de vaidade.
seus cultos, procedem do espirito do mata­ 4. ° Que nãq deve servir-se de jogos, pas­
dor Caim; e são contrarias ã verdade toda satempos, divertimentos, ou comédias, a
a vez que não se fizer mal nem ã vida, nem titulo de recreações, como cousas alheias
á fazenda do proximo, com pretexto de do silencio, compostura, e sobriedade chris-
consciência, c que nada se commetta per­ tã, porque os risos, divertimentos, jogds, c
nicioso á sociedade, e compatível com ella zombarias, facccias e vaniloquios, não são.
e com o commercio; no qual caso ha uma nem alegrias innocentes, nem liberdades
lei para castigar o delinquente, c a justiça christãs.
deve fazer-sc a todos sem excepção de pes­ 5. ° Que o christão não deve absoluta-
soa. mente jurar aos Sanctos Evangelhos, não
Como toda a religião tende principal­ só por alguma utilidade, e nos discursos
mente a retirar o homem do espirito e da ordinarios, o que também era prohibido na
vã conservação d’estc século, a introduzil-o lei de Moysés, mas nem ainda cm juizo,
na coramunbão interior com Deus, diante diante dos magistrados.
de quem, se sempre estivermos penetrados 6. ° Que não é permiltido aos christãos
de respeito, seremos julgados felizes; por­ resistirem ao mal, fazerem guerra, ou com­
tanto, aquelles que se avisinham a este baterem em nenhum caso: primeiramente,
sancto temor, devem rejeitar e desistir de porque Jesus Christo nos manda amar os
todos esses habitos e costumes vãos, quer inimigos.
consistam em palavras, quer em acções, Em segundo losar, porque S. Paulo nos
taes como o de tirar o chapéo a um ho­ diz que as armas aa nossa guerra nào são
mem, ou descobrir a cabeça, dobrar.o joe­ carnaes, mas espirituaes. i
lho, e outras inílexões de corpo nas sauda­ Em terceiro logar, porque S. Thiago af­
ções com essas loucas e supersticiosas for­ firma que os combates e dissensões pro-
malidades que as acompanham, cousas que
o homem excogitou no seu estado de cor­ i 2 Cor. 10, 4.
QUA 803
veem dos appetitos: e como os que são de Pedro c o conselho do anjo, nos incli­
verdadeiramente cliristàos teem sacrifica­ narmos sómente diante de Deus, e não
do a carne com seus aíTectos c appetites, diante de nossos con-servos; e de não dar
conseguintemente não pedem entregar-se a ninguem o titulo de Senhor e de mestre
a ellcs, fazendo a guerra. fúra d’algumas relações particulares, se­
Em quarto, porque os prophetas Isaias gundo o preceito de Jesus Christo; se e s - "
e Micheas prophetisaram em termos ex­ tas cousas, digo eu, nào sào vituperaveis,
pressos que, na montanha da casa do Eter­ logo nào o somos nós em obrar assim.
no, Christo havia de julgar as nações, c Se ser vão c extravagante em vestir,
que das espadas se forjariam as rellías dos usar de posturas na cara, encrespar e fri­
arados. zar os cabellos, estar coberto (Touro, pra­
Em quinto, porque o níesmo Senhor diz ta, pedras preciosas, fitas e rendas; se an­
não ser o seu reino d’este mundo, e que dar com vestidos immodestos, se isto são
portanto não guerreem os seus servos: em os ornamentos proprios dos christàos, e
consequência do que, os que combatem se isto é ser humilde, docil, e mortificado,
nào sao nem seus discipulos, nem seus então na verdade são os nossos adversa­
servos. 1 rios bons christàos, e nós uns orgulhosos,
Em sexto, porque o apostolo exorta aos singulares, e phantasticos, cm nos conten­
cliristãos para que nào se defendam, nem tarmos com o que pede a necessidade e o
sequer se vinguem, tomando mal por mal; commodo, e em condemnarmos o que passa
mas que deponham a ira, porque a vin­ d’isto, como supérfluo, mas não d’outra
gança pertence ao Senhor: «não vos dei­ sorte.
xeis* vencer do mal, mas antes vencei o Se practicar os jogos, os passatempos e
mal pelo bem; se o vosso inimigo tiver comédias; se jogar cartas e dados; se can­
fome, dai-lhe de comer; se tiver séde, dai- tar, dançar, e usar d’inslrumentos musi­
lhe de beber.» 2 cos; se frequentar as platéias dos theatros
' Em sétimo e ultimo logar, porque Je­ e comédias; se mentir, contrafazer, ou sup­
sus Christo convida seus filhos a levarem por c dissimular, é estar sempre cm te­
a sua cruz, c nào a crucificarem e mata­ mor; se isto é obrar tudo em honra c glo­
rem os outros; ensina-lhes a paciência e ria de Deus, passar nossos dias em temor
não a vingança, a lhaneza c não os fraudu­ e usar d’estc mundo como se d’elle nã
lentos estratagemas da guerra. usássemos; se isto não é conformarmos-nd
Tal é a ideia que Barclay nos dá da theo­ com os nossos appetites, então os noss<
logia c moral dos quakers, na sua Apolo­ adversarios sào bons christàos, modesto;
gia, a qual termina fazendo um parallelo mortificados, que se renunciam a si pro
cTestes com os demais christàos. prios, e nós justamente vituperaveis em os
Se dar e receber titulos de lisonja, de condemnar; mas não d’outra sorte.
que não se servem por causa das virtudes Se profanar o sancto nome de Deus, exi­
inherentes ás pessoas, mas que pela maior gir o juramento por qualquer motivo, to­
parte são usados por homens impios para mar a Deus por testimunha em cousas de
com outros que com elles se parecejn; se tal natureza, em que nenhum rei da ter­
inclinar, arrastar o.p é com reverencia, e ra se creria honrado em ser chamado a
abater-se até ao chão um homem diante testimunho, sào deveres d'um homem chris-
d’outro; se dizerem um ao outro sou seu tão, confesso que nossos adversarios são
humilde criado, e isto o mais frequente­ excellentes christàos, e que nós faltamos
mente, sem desígnio algum real de serviço; ao que devemos; mas se o contrario é ver­
se tal c a honra que vem de Deus, e não dade, a nossa obediência a Deus n’isso
a que vem do mundo, então com verdade mesmo necessariamente nos ha de mere­
poderá dizer-se de nossos adversarios que cer o seu agrado.
sào ficis, e de nós que somos condemna­ Se o vingarmos-nos nós mesmos, ou tor­
to s como orgulhosos e pertinazes em re­ nar injuria por injuria; se o combater por
cusarmos tudo isto. causas caducas; ir à guerra contra quem
Mas se recusarmos como Mardochée fazer nunca vimos, e com quem nunca tivemos
reverencias ao orgulhoso Aman, e como desavença nem contracto, estando demais
Eliseu dar titulos lisongeiros aos homens d’isto inteiramente ignorantes da causa da
cora receio do que por isto nos re^relienda uerra, e sómente porque os magistrados
o nosso Creador, e se, seguindo o exemplo as nações fomentam queixas uns contra
os outros, cujos motivos pela maior parte
1 Joan. 18, 36. ignoram os soldados que combalem, como
2 Rom. 12, 19. também por qual das partes está a razão
804 QUA
ou a injustiça; e sem embargo de tudo isto, ella seguia esta práctica com algumas igre­
entrarem em furor até o ponto de destruir jas que lhe eram contiguas; todo o resto
e saquear tudo para que este ou aquellc da Igreja, diz Eusebio, tinha fixado no do­
culto seja recebido ou abolido; se fazer mingo a soleinnidade da resurreição.
tacs cousas e muitas outras d’esta nature­ Houve diversos conci lios sobre este as­
za é cumprir a lei de Christo, então, sem sumpto, e se o havemos de julgar pelo de
dúvida, os nossos adversarios são verda­ Epheso, o mesmo Victor foi o que escre­
deiros christâos, e nós não mais que mise­ veu aos principaes bispos, pedindo-lhes
ráveis hereges, que até soffremos ser sa­ que congregassem os das suas provincias;
queados, présos, exterminados, batidos, e todos estes concilios concordaram em não
mal tractados sem resistência alguma, pon­ celebrar a resurreição fóra do domingo.
do nossa confiança unicamente cm Deus, Impugnou esta resolução universal Po­
a fim de que elle nos defenda c nos condu­ lycrates, bispo d’Epheso,*que era um dos
za ao seu reino pelo caminho da cruz. mais consideráveis que então havia na
A apologia de Barclay, que sem contra- Igreja, e chefe de todos os da Asia. Escre­
dicção é a melhor obra que se fez a favor veu-lhe Victor, rogando-lhe que juntasse
dos quakers, foi impugnada {por diversos os bispos da sua provincia, ameaçaudo-o
escriptos: l.° por Joào Browin, theologo até de o separar da sua communhão, se
presbyterano da Escócia, em uma obra in­ elle não accedesse ao sentimento dos mais,
titulada o Quaker ismo, e o verdadeiro ca­ e com effcito Polycrates congregou seus
minho do Paganismo; 2.° por Nicolau Ar­ irmãos em grande numero, na cidade de
naldo, professor em theologia em Franker, Epheso; mas todos seguiram o seu parecer,
na Frisa, Exercitation conive les theses e concluiram por não dever mudar-se a
theologiques de Barclay; 4.° por João Jorge tradição que haviam recebido de seus san­
Bajer, theologo lutherano, doutor e profes­ ctos predecessores.
sor em Iene, n’uma obra intitulada: L o ri­ Victor condemnnu a opposição que os
gine de la veritable et salulaire connaissan- asiaticos fizeram ao restante da Igreja,
ce de Dieu; 4.° por Loltusio, no seu Anti- passando a communicar-lhes a excommu-
Barclay Allemand; 5.° por L. Ant. Reiser, nhão, e segundo muitos authores, a ex-
o seu Anti-Barcliuyus, etc. commungal-os com effeito; mas sem em­
QUARTODECIMA.NOS, OU QUÀTUERDECIMANOS bargo d’isso os asiaticos insistiram na sua
-Assim foram appellidados os que insis- práctica, que todavia largaram, mas que foi
am em que se devia celebrar a Paschoa seguida pelas igrejas da Syria e da Meso­
.os i4 da lua de março. potamia.
Parte dos fieis cria que se devia aca­ Feito Constantino senhor de todo o Orien­
bar o jejum da Paschoa aos 14 da lua, fosse te era 323, ouviu com desprazer esta di­
qual fosse o dia da semana em que elle versidade de usos sobre a festa da Paschoa,
cahisse, e se fizesse n’elle a festa da re- que verdadeiramente não rompia a com­
surreição do Salvador; isto é o que haviam munhão, mas comtudo turbava a alegria
practicado S. Joào e S. Philippe, apostolos, d’esta grande solemu idade, e era como uma
S. Policarpo, S. Meliton, e outros grandes nódoa na belleza da Igreja, e por esta razão
homens da Asia menor; e portanto estava encarregou ao grande Osio do cuidado de
particularmente aferrada á mesma prácti- pacificar a Syria.
ca toda esta provincia. Outros fieis susten­ Osio não o pôde terminar, como lambem
tavam nào dever finalisar-se o jejum nem a heresia de Ario; portanto foi necessario
solemnisar a resurreição, senão no do­ congregar o concilio de Nicea para pôr
mingo; e esta práctica, que alíim prevale­ fim a um a e outra disputa, como effecti va-
ceu, era também fundada na tradição dos raente succedeu, porque o concilio orde­
apostolos S. Pedro e S. Paulo, não porque nou que toda a igreja celebrasse a festa
fizessem alguma lei acerca d’isto, aiz So­ da Paschoa no mesmo dia, segundo o cos­
crates, nem porque se possa d’elles referir tume de Roma, do Egypto, e da maior par­
algum escripto; mas o seu exemplo era te dos outros paizes. Toda^ a Igreja se uni-
uma lei poderosíssima para seus discipu­ formisou com esta definição, porque os sy­
los. A differente práctica que se seguia em ri os a elía acquiesceram, e o concilio de
tal materia, durou muito tempo sem des- Antiochia, confirmando o de Nicea, pelo
socegar a Igreja; occupando Victor a ca­ seu primeiro canón, depôz os ecclesiasti­
deira de S. Pedro, foi agitado este negocio cos, e excommungou os seculares que ce-.
com muito mais calor do que antes tinha lébrassem a Paschoa em particular com os
sido. A Asia menor, coipo ja disse, obser­ judeus.
vava o décimo quarto dia da lua, mas só Reunida, pois, toda a Igreja na.practica
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<le celebrar a Paschoa ao domingo, os par­ ma d’uma geral reputação de sanctidade,
ticulares que recusaram submelter-se a teve apologistas, clle e o quietismo. Ma­
esta authoridade süprema, foram tidos por dame Guyon, igualmente celebre, foi de­
hereges, e denominados quartodecimanos, fendida por M. de Fcnélon. Sobre o quie­
isto é, observantes do quarto decimo dia tismo podem vér-se— Rclation du quietis-
de lua, no qual queriam se fizosse a Pas­ me. Recueil de differentes piéces concernant
choa. Por esta razào Sancto Epiphanio e le quietisme. Instruction de M. Bossuet sur
Thcodorcto poem no numero de hereges les états d'oraison. LHisloirc abrègé du
os quartodecimanos, c o sétimo canon do quietisme, que está no principio do sexto
primeiro concilio de Constantinopla os con­ volume das obras do mesmo author.
ta entre aquelles que eram recebidos pela Toda esta controvérsia foi terminada por
abjuraçào e pela unção.,1 uma decisão da saneia sé, á qual M. Féné­
QüiETisMo—Esta palavra exprime o es­ lon se submetteu com uma simplicidade,
tado de repouso ou de impossibilidade a rjue provava igualmcnte a pureza das suas
que presumem chegar uma especie de mys­ intenções, a candura do seu coração, e a
ticos contemplativos, unindo-se a Deus pela elevação da sua alma.
meditação ou pela oração mental. raciona l ism o — Desde o dia cm que, ávi­
Nós d’alguma sorte nos unimos aos obje­ do de conhecimentos, o homem comeu do
ctos pelo pensamento, e um objecto que frueto da arvore da sciencia do bem e do
leva todas as nossas attenções, parece iden­ mal, quiz julgar tudo pela razão. Quiz me­
tificar-se comnosco. dir pela sua intelligencia as cousas divi­
Olharam pois a meditação ou a contem­ nas. D’ahi a desordem das idéias religio­
plação das perfeições divinas como um sas de certos povos, tanto no antigo tempo
meio de se unirem a Deus; forcejaram como na nossa época. A historia de todos
para se despegar de todos os objectos a os erros humanos é a historia da razão,
fim de se entregarem todos sem distracção que quiz insurgir-se contra a verdade re­
á contemplação das perfeições divinas. Ex­ velada. Entretanto o nome de racionalis-
cogitaram methodos, e créram que a al­ mo foi reservado a estas escolas, que teem
ma podia contemplar sem distracção a di­ systematica e exclusivamente posto a ra-
vina essencia, e unir-se a ella iníimamen- zao por base de todas as crenças.
te; que uma vida tão perfeita da essencia Poderiamos distinguir tres épocas prin
divina era junta a um amor o mais arden­ cipaes, em que o racionalismo assim cora
te, que as faculdades da alma eram absor­ prehendido, dominou: 1.‘ Durante o reina
vidas pela sua união com Deus, e que ella do da philosophia grejia, Pythagoras pode­
já não recebia mais alguma impressão dos ría servir de ponto de partida. O estudo
objectos terrestres: este estado da alma ó dos diversos systemas da philosophia ^ es­
o que elles chamavam quietaçào ou quic- ta época pertence ao Diccionario da philo- '
tismo. sophia, que deverá expôr o que estes phi­
São fáceis de colligir todôs os excessos losophos tinham da tradição c da sua sup-
a que o espirito humano póde chegar par­ posta razão.
tindo d’estes princípios, e que o quietismo A segunda época comprehende a escola
ha de tomar mil fôrmas diversas segundo d’Alexandria, que misturava o platonicis-
o caracter e as idéias d’aquelles que o ado- mo com o Christianismo. Foi esta escola
ptam; os gnosticos, carpocracianos, valen- que deu nascimento á multidão de seitas
tinianos, hesycastas, beguardos, illumina- gnosticas, que fizemos conhecer n’estc dic­
dos, Molinos, Malabal, Guillot, madame cionario. 1
Guyon, M. de Fénélon são quietistas, mas A terceira época, a que póde tomar o
o seu quietismo é mui diverso. nome de racionalismo propriamente dito,
Molinos, que é um dos mais famigera­ é a do nosso tempo. No ultimo século ma-
dos, foi sacerdote hespanhol estabelecido nifestou-sc clle. debaixo do nome de philo-
em Roma pelo fim do decimo sétimo sécu­ suphismo; tinha por objecto atacar directa-
lo. Ensinou o quietismo no seu livro in­ mente o Christianismo, e destruil-o. Já fi­
titulado a Direcção Espiritual, do qual se zemos conhecer esta especie de racionalis­
condemnaram sessenta c oito proposições mo n’um grande numero d’artigos d’este
como hereticas e escandalosas. Molinos re- diccionario. Bergicr parece não ter tido
tractou-se, e foi condemnado a prisão per- por tarefa senão combatel-o. Ha mui pou-
• petua; como porém havia gosado em Ro-
i Vide Gnosticos, Valentiniano?, etc.. Vi­
1 Veja-se Tcllemont, c. 3, pag. 102 e se­ de também Dic. de Théol. mor., t. % His­
guintes. toria da Theologia.
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cos artigos do seu diccionario cm que o mente indicar um excesso. A expericncia,
racionalismo philosophico do xvm scculo pois, a expericncia sensível e a ideia pura,
não esteja como causa. O racionalismo do tnes são, segundo creio, as duas bandeiras
nosso tempo fez-se christào para melhor distinctas, sob as quaes se póde collocar a
absorver o Christianismo. É sobretudo na maior parte das theorias laboriosamente
Allemanha que ellc nasceu e trasbordou engendradas para exprimir o principio dos
para todos os outros paizes. Já lhe consa­ nossos conhecimentos, a propria natureza
gramos grande numero d’artigos. da alma e os direitos da razão.
A causa do racionalismo procede d'esta Uns parecem ter attribuido tudo á expe­
maxima orgulhosa, que o homem não deve rienda, outros á ideia. É preciso prestar
adm ittir senão o rjuc comprehende; maxima muita attençào a estas disposições exclusi­
desmentida pela práctica quotidiana, por­ vas e contrarias dos homens que foram
que o homem tem o sentimento da sua chamados sábios no seio da humanidade.
existência e da sua vida, sem poder com- «Espíritos exclusivos e muito descon­
prehendel-as. Ravignan deu uma conferên­ fiados, talvez, a respeito das puras e altas
cia, que combate o principio fundamental especulações do pensamento, apoderaram-
do racionalismo, c nós vamos extrahir se da materia e dos sentidos, e ahi se esta­
d’ella as principaes passagens. beleceram como na sede da propria reali­
«Pergunta cada um a si com admiração, dade, creram poder ahi beber todos os
diz este author, como tem podido ser que conhecimentos, e as idéias de todas as
em todo o curso dos séculos viesse tanta cousas. Adoptaram o cmpyrismo, do qual
incerteza c incoherencia travar c obseure- se seguiram immensos abusos.»
ccr as investigações'laboriosas em que a Ravignan traça a historia do empyrismo
alma se estudava a si mesma. A historia ou da philosophia experimental no Orien­
da philosophia c em grande parte a histo­ te, na Grécia, na Inglaterra e na França.
ria dos trabalhos emprehendidos pelo es­ Expõe tanibcm a historia do idealismo, e
pirito humano para chegar a conhecer-se. recorda que os mais illustres representan­
São também os archivos não somente os tes n’esta philosophia foram, com os con-
mais curiosos d'csludar, mas tambem os tcmplatjvos da India, Pythagoras, os meta-
mais instruetivos para quem os souber physicos d’Elba, e Platão, e desde o Chris­
aproveitar. Quando se querem lèr com tianismo, Sancto Agostinho, Sancto Ansel­
maduroza, e resumir attentamente os da­ mo, Descartes, Mallebranche, Bossuet, Fé-
dos philosophicos sobre a natureza da al­ nélon, Leibnitz. A escola ailemã veio de­
ma, sobre o poder e os direitos da razão, pois, e o orador mostra que ella se preci­
ve-sc então que estão em presença um do pitou em todos os abusos do idealismo
outro dous systemas principaes. mais exaggerado.
«Uns, feridos das impressões exteriores «Homens, diz elle,.a quem não faltavam
e sensíveis que acolhem o homem no ber­ certamente nem força, nem grande intelli-
ço, que o cercam e o acompanham em to­ gencia, separaram-se um dia de toda a li-
das as phases da sua existência mortal; fe­ ào da tradição. Despresaram os trabalhos
ridos d’estas relações sustentadas sem ces­ os verdadeiros sábios e todos os dados do
sar, exteriormente, pela acção dos orgãos senso commum: embriagaram-sc com os
e dos sentidos; uns, digo, teem crido que seus proprios pensamentos. O orgulho do
o fundamento dos nossos conhecimentos, espirito e as suas iIlusões, que elles dissi­
o poder real da alma, e os direitos da ra­ mulavam a si mesmos, arrastaram-os mui­
zão devem ser sobretudo baseados na ex­ to longe, muito longe do seu alvo. Então
periência. É a isto que se chama empyris- tudo vâcillou ás suas vistas, tudo pareceu
mo; e por esta palavra não quero sómente movediço diante de seus olhos; a sua vista
exprimir aqui o abuso, mas tambem o uso obscureceu-se. Não viram nada de estável,
da observação c da sensibilidade, conside­ nem de fixo: Não reconheceram bases,
radas, segundo alguns, como o proprio nem encontraram apoios. A fé era a terra
principio dos nossos conhecimentos. de refugio e de salvação. Estes homens já
«O outro systema, d’um espiritualismo não tinham fé. A pedra angular, o Christo
mais nobre e mais elevado, colloca a na­ permanente na Igreja* tinha-se transfor­
tureza, da alma, os seus direitos e o seu mado para elles em vago phenomeno, em
poder primario na própria ideia puramen­ vã evolução da ideia, nada mais. Mas en­
te intcllectual. Assim, por rnieio da ideia tão a vida verdadeira fugju d’estas almas,
pura, a alma concebe e desenvolve a ver­ que não tiveram por derradeira consola­
dade pela sua propria energia e ^alor. E o ção e por ultima esperança senão um me­
idealismo. N ’este ponto não quero tão so­ donho desespero em uma negação univer-
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sal c absoluta. É preciso, pois, que o ho­ zer, por outros termos c cin termos muito
mem lique com coragem no seu bom sen­ simples, a ideia e a experiencia; e porque?
so, e evite com coragem os extremos, res­ porque ha simultaneamente no homem es­
peite as bases estabelecidas e rellexionc tas duas cousas, estas duas faculdades, es­
muito tempo antes de se decidir. É preci­ tes dous princípios: a ideia e a experiên­
so que reconheça os limites com os direi­ cia. E é o que eu quiz significar associan­
tos e a verdadeira acçào da razão huma­ do assim estas duas palavras: penso c exis­
na.» to: expressão, uma do mundo logico ou do
Ha, segundo o grande orador, tres fon­ pensamento, c outra do mundo experimen­
tes de conhecimento: a ideia, a experiên­ tal e sensível. Eis-ahi, pois, sc nós quere­
cia c a fé. mos concebel-o, o duplo elemento que con­
Se não quizermos acceitar senão os di­ stituo primeiro, á nossa vista, a natureza
reitos da ideia pura, arriscamos-nos a ca- intellectual do homem e a força primaria
hir n’um golpho de abstracçõcs; quem qui- da razão; a ideia, a vista intellectual c pu­
zer acceitar sómente a. experienda dos ra do verdadeiro, e a experiencia, ou o
sentidos, curva a dignidade da intelligcncia conhecimento que os sentidos nos dão dos
e do espirito sob o jugo dos sentidos e dos objectos exteriores e sensíveis. Á primeira
orgãos; quem quizer em todas as cousas das faculdades, á ideia, correspondem to­
sómente a authoridade c a fé, direi com das estas noções geraes, espirituaes, que
franqueza, torna a authoridade e a fé im­ não podem vir-nos pelos sentidos, taes cu-
possíveis a razão. Geralmcnte os philoso­ mo as noções do sêr, do verdadeiro, do
phos suppriment o homem e o dividem bom, do justo, ás quaes se deve juntar o
violentamente. Sc se acceitassc o homem amor necessário da beatitude, da precisão
tal como elle é, com as suas faculdades; de proceder para um fim, para um alvo,
sc se acceitassc o homem com a sua vista para um fim que seja completo e ultimo.
intellectual e pura, com a sua força expe­ E ahi tendes o fundo natural da nossa in­
rimental e sensível, com a sua intima e telligcncia, e o que se póde chamar os pri­
invencível precisão do verdades divinas meiros direitos constituídos da razão...
e reveladas, então sc teria o homem todo, «Que succede, pois, e que tenho eu a
a verdadeira natureza da alma, as condi­ dizer ainda? Ah! a razão impaciente agi­
ções e os verdadeiros direitos da razão. ta-se, procura c procura, caminha e cami­
Mas não é isto o que sc faz: toma-se uma nha sempre. De repente a sua vista st
faculdade, uma parte, uma forca do ho­ obseurecc, o seu vigor pára. Vacilla como
mem, c ahi se colloca toda a razao e toda um homem embriagado. Debate-se em vão
a philosophia. no seio das espessas trevas. Que sc pas­
«Um exemplo famoso vai esclarecer o sou? É isto o que, longe d'alcance, longe
que eu acabo de enunciar. Quando Des­ da vista intclligente do homem, além dos
cartes appareceu, quiz peneirar todas as limites naturaes da experiencia c da ideia,
profundezas da alma, sondar a natureza além de todas ãs leis da evidencia, além,
intima da razão, c j-ecomeçar methodica- muito além, se estendem ainda as immen­
mente toda a cadeia dos nossos conheci­ sas regiões da verdade. Sim, além ha ain­
mentos. Foi então que elle pronunciou o da o invisível, o incomprchensivel, o infi­
dito, que depois se tornou tão celebre: Pen­ nito! e não podeis duvidar d’isso, porque,
so, por cànsequnicia existo. Quanto a mim, sabeis que Deus habita na luz inaccessi vel.
parece-me que Descartes teria podido tam­ E mesmo na ordem humana ha ainda, lon­
bém dizer: Penso e existo, ou existo e pen­ ge de nós, fóra do alcance da nossa vista,
so, porque nós temos igualmente a con­ da nossa intelligeneia, tempos, logarcs, to­
sciência do nosso pensamento e da nossa dos os factos do passado. Mas para nos
exislencia. Haveis de convir, seguudocrcio: prendermos ao conhecimento de Deus, pa­
estas verdades são simultâneas; e eviden­ ra chegarmos a esse caracter ultimo que
tes em igual grau para a razão. É por uma eu vos assignalava no principio, depois das
só percepção da alma que conhecemos a primeiras noções tradicionaes sobre a di­
nossa existência lambem como o nosso vindade, confessemol-o, nem a ideia, nem
pensamento. a experiencia, nem a intuição, nem o ra­
«Por onde, e ó.ahi que eu quero chegar, ciocínio podem aqui servir-nos de nada,,
por onde podeis bem comprehender que,pa­ porque se tracta de sondar as profundezas
ra ter a noção verdadeira da alma, ás condi­ do infinito, do medir a eternidade? Qual ú
ções constitutivas da razão, é preciso unir o homem que então não deve tremer? Se­
judiciosamente um com outro o elemento nhor! quem virá, pois, em nosso auxilio!
cmpyrico e o elemento idealista, quer di­ «Temos fé. A fé caminha sempre, não
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teme nad?, nào teme lançar-se nas regiões nar a subir aos princípios primarios, á pro­
do infinito e do incomprehensivcl. Entcn- pria essência das cousas; ou dirigindo as
dei-o assim, eu vol-o peço. A fé^ gloriosa suas vistas sobre estes mundos visíveis, que
extensão da razão, traz-lhe o que cila não ella lhe descubra os phenomenos, o lhe pe­
tem, dá-lhe o que não pódc perceber nem netre as leis; marca, no meio da torrente
altingir. E um dom do Senhor, um benefi­ dos factos, a alta economia do governo do
cio da graça divina. inundo, então sempre ao abrigo tutelar da
«Oh! sim, vós não comprehendestes a fé, o homem inlelligente é livre e verda-
dignidade d’esta fé, vós que pretendeis que deiramenlc grande, mede toda a extensão
cila quer sujeitar, suíTocar, restringir a ra­ da terra e dos céos, não conhece obstácu­
zão. Nào crédes, talvez, vós que me cscu- los nem barreiras, certo como está do ca­
taes n’estè momento; talvez, em uma das minhar atraz da palavra e da aulhoridade
vossas horas motejadoras, julgueis dignos divina. É assim, c c assim sómente que a
de lastima os que crêem. Mas, tende cui­ razão se eleva e engrandece, protegida con­
dado; não acceitamos a vossa compaixão tra os seus proprios desvairamcnlos; é as­
nem a vossa piedade. Crentes, c crentes sim que ella se eleva até ao mais alto grau
sinceros, temos a razão como vós; como da sciencia verdadeira: sim, ella conquis­
vós, c com cila, caminhamos; c mais que tou toda a sua. dignidade pela obediência
vós talvez, imos até aos seus limites; ad- que presta a esta lei, e torna-se o mais no­
mittimos quanto ella admitte, tudo o que bre e o ultimo esforço do genio do homem,
vós admittis, c mais ainda, permitti-mc que assim que, dando ás suas forças todo o seu
vol-o diga. Mas no ponto em que vos de­ desenvolvimento, respeita os íimites da sua
tendes, nós avançamos ainda; onde vos des- natureza, c mereceu unir-se á luz e á glo­
alentaes em vão, nós proseguimos, vence­ ria divina.
dores pacificos; onde balbuciaes, nós afllr- «Eu disse tudo o que queria dizer. Pa­
mamos; onde duvidaes, nós crémos; onde rece-me que nós temos, posto que mui re­
enlanguideceis incertos e desgraçados, nós sumidamente, fixado certas noções suffi­
triumphamos e reinamos felizes. Tal é a cientes sobre a nossa natureza inlelligente
fé, e eis-ahi como ella vem levantar a di­ e sobre os direitos da razão. Resumo-as
gnidade do homem pelos mysterios divinos cm poucas palavras. Tres estados, ou Ires
que revela. É verdade, a fé submette-vos especies de conhecimento e d’aífirmação:
a uma aulhoridade, á authoridade da pala­ a evidencia óu intuição, o raciocínio ou de-
vra divina, que se dignou um dia demons­ ducção, a fé. São estes tres aclos ou func-
trar-se á razão do homem, porque a razão ções*da alma, que correspondem a outras
tinha, em virtude dos dons do Senhor, o tantas vias ou meios' de chegar a uma af-
direito de exigir esta demoustração e esta firmação certa: a ideia, a experiencia, a
prova. Um dia, sobre esta terra abençoa­ authoridade. Fóra d’isto. não receio dizel-o,
da da Judeia, pelos milagres e lições do Ho­ não ha verdadeira philosophia, não ha ver­
mem Deus, esta manifestação da authori­ dadeira noção do homem, não ha justiça
dade divina completou-se. Entendeu-a a feita á natureza intelligentc. Para'acabar,
razão, concebeu-a, c estabeleceu-se a fé: fé se é possível, de afastar injustas repulsõcs,
eminentemente razoavcl, pois que nós a collocaremos directamente cm presença a
ensinamos, c repetimos continuamente; a philosophia e a authoridade catholica ou a
razão, para crér, não pódc, não deve sub- Igreja. Pediremos francamenteá philosophia
metter-se senão a uma authoridade razoa­ e á razão tudo o que ellas reclamam e exi­
velmente acceitavel e perta... gem da authoridade e da fé catholica; c
«Não, a fé não vem, a authoridade divi­ reconheceremos que a philosophia obtem
na não vem deter o vôo da razão. Ao con­ com o catholicismo tudo o que tem direito
trario, a fé vem arrancar o espirito vacil­ de reclamar, c que o que naò obtem, não
lante do homem ao império das trevas e tom direito de o reclamar...
das incertezas insuperáveis a todos os seus «A razão reclama com justiça para o ho­
esforços. E quando a fé tem estabelecido mem quatro cousas: o direito das idéias e
assim o seu tranquillo imperio, quando das verdades primarias; o direito da expe­
reina no fundo dos nossos corações, então riencia e dos factos; soluções ftxas sobre as
a razão póde com segurança percorrer, grandes questões religiosas', final mento, um
medir, penetrar, sondar este universo im­ principio fecundo de sciencia, de civilisação
menso, tão generosamente deixado ás suas c de prosperidade. Pela fé, e só pela fé ca­
livres investigações. Quer, recolhida em tholica, a razão obtem âqui quanto tem
si mesma, descer profundamente á alma direito dç exigir. ,
para estudar a sua natureza intima, e tor­ «l.° A sã philosophia, d’accordo neste
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ponto com a theologia mais communiente os martyres, os padres, os primeiros chris-


approvada, tcnt pedido cm todo o tempo tãos, são testimunhas dc factos contempo­
que, na analyse da certeza, se viessem re­ râneos ou pouco afastados. As suas virtu­
pousar em ultimo logar sobre os primeiros des, a sua eminente sanctidade, a sua con­
princípios e sobre as primeiras verdades, stância, os seus sacrifícios, o seu numero,
que nos sào evidentemente conhecidas e o seu caracter e a alta sciencia dc muitos,
cjuc constituem d’alguma sorte o fundo da afastam para sempre do testimunho dado
alma. A estes primeiros anneis deve ne­ por ellcs aos factos divinos mesmo a possi­
cessariamente ligar-se a cadeia das verda­ bilidade do erro e da mentira.
des admiltidas, quacsquer que cilas sejam, <E que quereis vós? que exigis para fa­
sem o que seriam como estranhos que ha­ ctos? Sinccramentc uma tradição historica
bitam fóra, que não leem logar no lar do­ pôde ser mais grave, mais imponente, mais
mestico, e nào sào unidos por nenhum la­ seguida, mais sagrada que esta tradição
ço á familia. Por isso a igreja catholica catholica sobre os proprios factos que fun­
tem sempre entendido ser acceite razoa­ daram a Igreja c a sua indestructivel au­
velmente, ter sempre um laço na intima thoridade? O que ha verdadeiramente ra­
razào do homem. A Igreja nunca preten­ zoável c philosophico, diante dos factos im-
deu fazer admiltir a sua authoridade, mes­ moveis e certos como uma rocha? Final­
mo infallivel e divina, sem que se ligasse mente, nós crémos sobre um testimunho
com a graça, a um principio interior de positivo c irrevogável. Que mais pódc exi­
convicção pessoal. Eis-ahi o que é preciso gir uma philosophia sã e esclarecida? Ella
'saber. * cessa de o ser quando cessa de crêr. Por­
«Pois beml no fundo da alma vive tanto, se nós crémos, é tanto para servir
e habita uma intima precisão de autho­ os direitos da razão como para cumprir os
ridade: é impossível nao concordar n’is- seus deveres. Só a fé póde conservar aqui
to; cila fôrma quasi a consciência univer­ a verdade das idéias e a força da experiên­
sal do genero humano; precisão de autho­ cia, consagrando os primeiros princípios
ridade para as turbas, mesmo em cousas da intelligencia e a certeza dos factos. Ora,
accessiveis á intclligencia, mas que exigi­ todos os factos do Christianismo estão liga­
ríam esforços superiores á intclligencia da dos â instituição da Igreja e á sua autho­
multidão; precisão de authoridade para o ridade: um mesmo apostolado, um mesmo
proprio genio, em presença do invisível, testimunho, uma mesma origem, uma mes­
do incomprehensivel, do infinito, que se ma fé reproduzem uns c estabelecera a ou­
encontra continuamente na frente dos pen­ tra. Possuímos assim uma logica invencí­
samentos de todos os homens. Vede lam­ vel; vivemos pela força do syllogismo di­
bem por toda a parte a admiravel propen­ vino, typo supremo da verdadeira philoso­
são em crêr no maravilhoso e no desco­ phia. Comprehendci-o! O que o proprio
nhecido, propensão que existe na natureza Deus garante e affirma, é incontestável c
e que não tem cm si um instincto de cre­ certo. Ora, Deus, pelos factos averiguados
dulidade cega, mas sim a consciência de da sua omnipotencia, garante c prova a
um grande dever e de uma precisão, da instituição da authoridade catholica annun-
precisão do infinito, que falta ao homem, ciada, estabelecida o exercida cm seu no­
que elle procura c deve encontrar. A au­ me. Portanto esta authoridade ê divina­
thoridade da Igreja, ensinando e definindo mente certa.
as cousas divinas e desconhecidas, está, «Bem o védes: a philosophia podia legi­
n’este ponto,' em perfeita harmonia com a timamente reclamar os direitos das idéias
precisão immensa e universal da razão ou das verdades primarias, os direitos da
humana, com a precisão da authoridade, experiência ou dos factos; a authoridade
com a precisão do maravilhoso e do mys­ catholica salva-os a todos c os consagra
terio. E nào é isto ligar-se elía a um prin­ pela sua própria demonstração.
cipio interior? «Deus fecunda-se a si mesmo, e encon­
« I o Além d’isto,os fundamentos da cer­ tra na sua essencia intima os termos reaes
teza moral ou historica pertonccm aos pri­ e distinctos da sua actividade infinita, sem
meiros princípios e ás primeiras verdades que jamais lhe fosse necessaria uma crea-
da intelligencia'. Quanto á acceitação certa ção: o dogma da Trindade nol-o mostra. A
dos factos, não ha nada na alma que se sabedoria increadá encarna-se para nos
exija, a não ser um teslimunho que se não servir de modello e nos instruir, mas so­
possa desconfiar que é illusorio, ou impos­ bretudo para o resgate do genero humano
tor. Mas, na verdade, tomam-nos por in­ pelo sangue d’unt sacrificio divino: a pre­
sensatos? e como crémos nós? os apostolos, cisão de reparação c do resgate c o grito
da humanidade... Ide dizer a Sancto Agos­ dc pensar; porque cila lhe evita a loucura,
tinho, a S. Thomaz c a Bossuet que os mys- no que lhe presta um grande serviço. É,
terios da fé cliristã poem e embaraçam pois. a propria razão que acceita a aulho-
tanto a aspiração da razão como do genio, ridade catholica, que a acceita. e abraça
que elles vos responderão que não teem lu­ estreitamente, porque a vê evidentemente
zes senão pelos mysterios, que não conhe­ acceitavel o certa... Não vé no mundo se­
ceram senão por clles o mundo, o homem não a Igreja cumprindo realmente as con­
e Deus; e nas suas maravilhosas elevações dições d’esta authoridade necessaria. A
sobre a fé, eiicantar-vos-hào de admiração igreja antiga, pura, sancta, tem a sua fron­
e vos inundarão de luzes divinas. Portan­ te cingida das glorias dos martyres e do
to, a razão quer e deve querer soluções genio, tem continuado até nós a sua mar­
sobre as maiores questões, sobre os maio­ cha magestosa e tranquilla, no meio das
res interesses, mas não as encontra senão osciIlações e das tempestades. Tem desen­
na authoridade catholica. roladas na sua mão as sagradas tradições
«3.° Finalmonte, a philosophia e a razão do Evangelho c da historia, que imprimi­
reclamam com justiça um principio fecun­ ram o sêllo da instituição divina na sua
do de scienda, de civilisação, mas também origem e na sua duração. A Igreja falia
d’ordem. Emquanto á scienda, que é pre­ aos olhos, á consciência* ao bom senso, ao
ciso? Pontos de partida e dados lixos. Sem coração, á experienda; falia a linguagem
este soccorro, não ha nenhum meio de dos factos e das verdades definidas, que en­
avançar, pois que as descobertas são raras contram sempre nas almas sinceras, com
e a intuição poderosa do genio não appa- o soccorro divino, assentimento generoso
rcce senão com largos intervallos e em pe­ e pacifico. A razão, sustentada pela graça,
queno numero. E estes pontos dc partida, prende então com segurança á columna
estes dados fixos, é a authoridade catholica da authoridade os primeiros anneis da
que os fornece-definindo, d’uma maneira cadeia; as suas convicções mais intimas
certa, Deus, a creação da alma humana, a unem-se em Deus á fé ensinada. O homem,
sua immortal idade, *a sua liberdade, o seu esclarecido do alto, habita então n’uma
ultimo termo, a desordem moral e a pre­ grande luz, longe da dúvida, longe das in­
cisão de reparação. Vai n’isto do mesmo vestigações c das anciedades penosas... E
modo o principio da civilisação. é assim que á sombra da authoridade ca­
«A authoridade catholica é um principio tholica e da doutrina, a sociedade progride
civilisador, precisamente porque fixa e de­ pelas vias regulares da sciencia o da civi­
fine. Assenta dogmas e barreiras; é a uni­ lisação, da força c da prosperidade verda­
ca que estabelece na sociedade humana deira.»
doutrinas determinadas e fundamentaes. r j i u i ?t isa .j ít jís — É o nome que se dava
E quando não ha fé definida nas intelli- aos'que asseveravam deverem rebaptisar-sc
gencias, quando não ha authoridade que os hereges; este erro, no seu principio, foi
ensine soberanamente os espíritos sobre as sustentado por Agrippino, depois por S.
verdades religiosas, então a razão e o pen­ Cypriano, e no quarto século o adoptaram
samento retrocedem ao estado selvagem. os donatistas.
Não quero dizer nada de offensivo para No anno de 25o principiou a disputar-se
ninguem; exprimo um facto: a logica do em África acerca do baptismo dos hereges.
livre exame e da independencia absoluta Como os novacianos rebaptisavam todos
da ideia humana, tem-se plenamente pro­ os que passavam ao seu partido, um certo
duzido e desenvolvido em nossos dias na Magno, crendo que nada de commum ha­
philosophia de Hégel e nas philosophias vería com os hereges, ou receando que
analogas.. Mas o que são estas philosophias? não parecesse seguir a Novaciano em re-
A completa subversão dc toda a realidade, baptisar como elle, perguntou a S. Cypria­
e, por consequência, de toda a moral, de no se se haviam de rebaptisar os que dei­
toda a religião, de toda a ordem social. E xavam o partido de Novaciano, e torna­
os povos agitados até aos seus fundamen­ vam a entrar na Igreja, i
tos, todas as bases intellectuaes e politicas S. Cypriano respondeu que, como se de­
abaladas, não assignalam senão numerosos viam rebaptisar todos aquellcs que foram
efFeitos do funesto abandono em que se baptisados pelos hereges ou scismaticos,
tem pretendido deixar o poder regular das os novacianos não haviam de ser exceptua-
.crenças c das doutrinas religiosas... dos, e fundava-sc nos princípios seguintes:
«É preciso dizer com ousadia que a au­ l.° Os que sahem da Igreja devem ser
thoridade catholica é o verdadeiro palladio
e o guarda salvadora da propria liberdade i Cypr. 69, edição dc Dodvd.
REB . 811

tidos como pagãos, c por consequência vantara entre o papa e a igreja dWfrica,
como totalmente incapazes para fazerem e Firmiliano approvou os sentimentos de
as funeções de ministros de Jesus Christo. S. Cypriano. D’uma c outra parlo se ateou
2. ° Como a Igreja é unica e se encerraa disputa com grande capricho; Sancto
em uma só communhào, forçosamente ha Estevão ameaçou os rebaptisantes com a cx-
de estar ou da parte de Novaciano ou da communhão, mas nào chegou a proferir-se,
de Corricllio. ou ao menos nenhum dos que o asseve­
3. ° Novaciano nào podia dar o nome ram de produziram até agora prova convin­
igreja ao seu partido, por lhe faltar a suc- cente do seu sentimento, porque entre a
cessào dos bispos, sendo ordenado fóra excommunhão c a repugnância que teve o
d’ella. papa Sancto Estevão em communiear com
4. ° Sendo os hereges c scismaticos des­
os deputados d’Africa, ou uma ameaça de
tituídos do Espirito Sancto, nào podiam se separar de S. Cypriano, ha grande dif-
conferil-o aos que clles baptisavarn, da fercnca, e estas sãò as unicas provas cm
mesma sorte que o perdão dos peccados, que fundam que Sancto Estevão cxcom-
que nào podiam conceder sem que tives­ mungára a S. Cypriano. 1
sem o Espirito Sancto; que assim como Sancto Estevão morreu, e S. Xisto, seu
fóra da Igreja não póde haver salvação, successor, não controverteu mais sobre a
assim por consequência fóra d’ella não ha validade do baptismo dos hereges, que foi
verdadeiro baptismo, e que Novaciano não estabelecida n’um concilio pleno, segundo
devia olhar o seu partido como a verda­ a decisão do papa Sancto Estevão.
deira Igreja, ou que d’outra sorte se diría Não deslindaremos se elle. foi o de Ni­
que Cornellio, o unico e legitimo succes­ cea ou de Aries, o que importa pouco, vis­
sor de Fabião; Cornellio. que leveára a co­ to que por. ambos se mostra ser válido o
roa do martyrio, estava fóra da Igreja; em- dito baptismo.
íim prova pelo exemplo das tribus scisma- S. Cypriano nào se fundava mais que
ticas d’Israel, que Deus aborrece os scis­ em paralogismos: queria que o herege
maticos, c que portanto nem elles nem os que não tinha nem o Espirito Sancto nem
hereges leem o Espirito Sancto. a graça, nào podia conferil-a: mas é certo
5. Cypriano n’csta carta diz quanto po­ que tirando o baptismo a sua efficacia uni
dia dizer-se em favor do seu sentimento; camente da instituição de Jesus Christo,
mas esta não cortou todas as difficuldades fé do ministro, conio também o estado d
dos bispos de Numidia. Dezoito d’cstas culpa cm que este se achasse ao, tempo d
provincias escreveram novamente a S. Cy­ confcril-o, nào pôde estorvar o seu cíTeito
priano, o qual convocou um concilio em Dizer o mesmo sancto, que assim como
que se declarou que ninguem podia ser ninguem podia salvar-se fóra da verdadei­
baptisado fóra da Igreja. Sem embargo da ra Igreja, assim nào podia haver verdadei­
decisão do concilio d’Africa, muitos bispos ro baptismo entre os hereges, é outro pa-
preferiram o costume antigo ao sentimen­ ralogismo; porque como só pela heresia,
to de S. Cypriano, o qual convocou novo isto é, pela rcbelliào contra a authoridade
concilio, em que se acharam os bispos de da verdadeira Igreja é que se sahe d’ella,
Numidia e d’Africa; este segundo confir­ e entre as sociedades christãs só são havi­
mou a decisão do primeiro de Carthago dos como hereges os que participam u’esta
sobre a nullidadc do baptismo dos hereges. rebellião, os que não teem parte n’clla per­
O concilio informou ao papa Estevão do tencem â verdadeira Igreja; e tacs são os
ue havia decidido, mas o summo ponti- meninos e os adultos que estão n’uma igno­
ce condemnou o juizo dos padres de Car­ rância invencível da rebellião da socieda­
thago. A carta de Sancto Estevão perdeu- de em que elles vivem. Emfim, o papa San­
se, mas das de S. Cypriano se collige in­ cto Estevão objectava a S. Cypriano uma
sistir muito o papa sobre a tradição e so­ tradição universal e immemoravcl; e S. Cy­
bre a práctica universal da Igreja, na qual priano na sua carta a Quinto, reconhece a
nada se deve innovar. verdade da mesma, ao passo que pelo que
S. Cypriano, para sustentar-se contra a
authoridade da sé de Roma, convocou um
terceiro concilio composto (Toitcnta o sete i Vide Valois, o P. Alexandre Sçhelstra-
bispos africanos, numidios, c mauritanos; to. Os protestantes, assim como os catholi­
n’elle foi confirmada a decisão dos dous cos, dividiram-se ácerca d'este ponto; mas
precedeutes sobre a nullidade do baptismo o nosso parecer foi mais por uma razão de
dos hereges. S. Cypriano escreveu a Fir- partido, que por fundamentos cxlrahidos
miliano ácerca da controvérsia que se le­ da historia.
813 REF
respeita ao seu sentimento, não sobe de parte; perturbaram os Paizcs-Baixos, de­
Agrippino seu successor. ram occasiào a formar-se a republica das
Talvez, porém, nos perguntem como se provincias unidas, em que a religião de
introduziu o uso de rebaptisar os heroges? Calvino ficou dominante; penetraram pela
Eil-o aqui. Levantaram-se da Igreja alguns França, oude se multiplicaram, obtiveram
heregcs, que alteravam a fôrma do ba­ templos, e o livre exercido da sua religião
ptismo como os valentinianos, basilidia- por mais d’um século. Vejam-se os artigos
nos c outros. O baptismo d’estes era nullo, Ingleza (igreja), Hollanda, c Calvinistas.
e portanto baptisavam os que se conver­ Do seio da reforma de Luthero, de Zuin­
tiam, quando haviam sido baptisados por glio, e de Calvino, nasceram mil dificren-
elles, o que de nenhuma sorte suffraga ao tes seitas, tão oppostas entre si, como ini­
sentimento de S. Cypriano. 1 Os donatistas migas da igreja romana: laes foram os
adoptaram este sentimento, que Sancto anabaptistas, divididos em treze ou qua­
Agostinho refutou egregiamente no seu li­ torze (veja-se este artigo); os sacram enta-
vro do Baptismo. rios cm nove; os confissionistas em vinte
r e f o r m a — É o nome que deram ao seu e quatro; os extravagantes, jjue tinham
sci§ffia todas as seitas que se separaram sentimentos opposlos á confissão d’Ausbur-
da igreja romana no principio do xvi sé­ go, em seis (vejam-se os artigos Luthero
culo. A historia ecclesiastica nào nos offe- e Lutlieranos)-, os calvinistas, que se divi­
rece acontecimento mais estupendo. Esta­ diram em gomaristas, arminianos, supra-
va toda a Europa em socego: a mesma fé lapsarios, infra-Iapsarios, puritanos, c an­
e os mesmos sacramentos uniam todas as glicanos (vejam-se todos estes artigos); e
igrejas; todas viviam sujeitas ao summo íinalmente Serveto, Okin, os socinianos, e
pontifice, e respeitavam-no como chefe da os novos arianos.
Igreja. Lcào x, que então occupava a ca­ A historia de todas estas seitas, é, fal-
leira de Roma, mandou á Allemanha c á lando com propriedade, a historia da re­
uissa indulgências, de que o sordido in- forma, e quasi a de todo o entendimento
eresse fez abuso. Luthero levantou-se con- humano durante estes séculos.
ra este abuso, e passou logo a atacar as Em cada um dos artigos a ellas respe­
mesmas indulgências, o papa, e a Igreja. ctivos, expozemos c refutamos seus princí­
Metade da Allemanha armou-se em favor pios, reservando sómente para este o exa­
de Luthero, e separou-se da igreja roma­ me dos que são communs a todos, porque
na, e o mesmo scisma arrastou comsigo a as sociedades christãs, que tomaram o ti­
Dinamarca, a Suécia, parte da Hungria e tulo d’igrejas reformadas, separaram-se to­
da Polonia. Yeja-se o artigo Luthero. das da romana com os seguintes pretex­
Pelo mesmo tempo Zuinglio, parocho na tos: l.° que esta havia cahido em erros
Suissa, prégou contra as indulgências, ata­ que não permittiam existir na sua.com-
cou quasi todos os dogmas da igreja roma­ munhão; 2.° que a Escriptura era a uuica
na, aboliu todas as ceremonias, c desuniu regra da nossa fé; 3.° que qualquer fiel
da igreja catholica a maior parte da Suissa. era juiz do sentido da Escriptura, e tinha
Yeja-se o artigo Zuinglio. direito para julgar do que respeita á fé, e
Luthero e Zuinglio deram o nome de para sc separar da sociedade, que cahiu
reforma á mudança que fizeram no dogma no erro, unindo-se a outra, ou formando
e no culto, o tomaram a qualidade de re­ uma nova, em que restabeleça a fé c o
formadores- inspiraram o seu fanatismo, e culto á sua pureza.
formaram discipulos, que foram levar seus Vamos fazer patente: i.° que os erros
erros por toda a Europa; ensinaram-nos de que os presumidos reformadores cen­
em Inglaterra, cuja igreja os perfilhou em' suram a igreja romana, não podiam autho-
risar a sua separação; 2.° que a Escriptu­
i Vejam-se em Sancto Irencu, l. 1, c. ra não é a unica regra da fé; 3.° que não
18, as diferentes fo m o s de que usavam es­ toca aos simples fieis, mas aos bispos, suc­
tes hei'eges: uns baptisavam em nome do cessores dos apostolos, julgar sobre as con­
pae de todas as cousas, que era desconheci­ troversias da religião.
do; da verdade, que era a mae de tudo; de
Jesus, descido para resgatar as virtudes: ou­
tros serviam-se de nomes extravagantes e
proprios para aturdir a imaginação, bapti-
sando em nome de Basyma, Cacaoase, Diar-
bada, etc. Os marcionitas em nome do Jus­
to , do Bom, e do Mau.
REF 813
§I empregar todos os meios cxcogitaveis para
exterminal-os, sem dúvida proferiría uma
Os erros que os presumidos reformados lan­ proposição impia e herética, porque os
çam em roslo á igreja romana, nâo po­ crimes dos outros nunca dão direito para
diam authorisar a sua separarão. que cada qual os possa commetter, c as­
sim ainda que uma igreja fosse heretica,
Os reformados pretendem justificar o seu por isso não seria justo calumnial-a, e em­
scisma por este raciocínio: Ninguem póde pregar a traição para fazer morrer os seus
permanecer unido a uma seita, que obriga pastores.
a fazer profissão de diversos erros funda­ Portanto, ainda quando a igreja romana
men tacs. c a practicar um culto sacrilego fosse heretica e idolatra, que ó suppor um
c idolatra, como é a adoração da hóstia, impossível, os reformados nunca leriam
etc.; ora a igreja romana obriga a profes­ direito para estabelecer novo ministério,
sar diversos erros fundamcntacs, e a pra­ nem para usurpar o que estava estabele­
cticar um culto sacrilego e idolatra: logo, cido, porque estas acções são prohibidas
ninguem deve persistir na sua commu- por ellas mesmas, sc*ndo sempre cousa
nltào, o todos os que estilo persuadidos da criminosa usurpar sem missão o poder
falsidade de seus dogmas c da impiedade temporal, o que não póde desculpar-se por
do seu culto, são obrigados a separar-se alguma circumstanda estranha. Porque
d’ella. sempre é usurpação criminosa attribuir-se
Nos artigos Lvlhero, Calvino, Zuinglio, um qualquer dom de Deus, que só d'ellc
etc., fazemos vér que a igreja romana não se póde receber, qual é o poder pastoral,
havia cabido em erro algum, e os protes­ menos que não esteja seguro de o haver
tantes mais esclarecidos teem sido força­ recebido, e que não possa proval-o aos
dos a reconhecer que ella não ensinava mais.
erro algum fundamental; 1 mas prescin­ Ora, Deus não revelou que no tempo da
dindo da discussão d’esle ponto, vamos nova lei, depois do primeiro estabeleci­
examinar o sophisma dos protestantes. mento da Igreja, ainda havia de communi­
Ha uma separação simples c negativa, car n’alguns casos extraordinarios o seu
q u e. mais consiste na negação de certos poder pastoral por caminho alheio de sue
actos dc communhao, que em acções posi­ cessão; por consequência ninguem pó<?
tivas contra a sociedade de que alguém se dar-se por seguro dc o haver recebido fói
separa: ha outra que póde chamar-se po­ d’esta successãq legitima; c todos os qi
sitiva, a qual encerra a creação d’uma so­ a si o attribuem, são notoriamente usu
ciedade separada, o estabelecimento d’um padores.1
novo ministerio, e a condcmnação positiva Para plena convicção d’csta verdade,
da primeira sociedade, a que alguém esta­ basta lembrar o estado em que estiveram
va unido. Os presumidos reformados não os reformados, segundo as mesmas hypo-
se contentavam com a primeira separação, theses dos seus ministros, porque não po­
que consiste em não communicar com a dem representar-se d’outra sorte senão
igreja romana, no que elles asseveravam como hereges convertidos; elles tinham
ser mau e prolubido pela lei de Deus; for­ adorado a hóstia, invocado os sanctos, e
maram nova sociedade, nova Igreja, esta­ reverenciado às reliquias; cessaram depois
beleceram novos pastores, usurparam o de practicar este culto, e portanto no seu
ministerio ecclesiastico, pronunciaram cx- sentir haviam-se feito orthodoxos pela mu­
communhão contra a igreja romana, de­ dança de sentimentos; é a isto que se dá
gradaram e lançaram fóra os seus pasto­ o nome de hereges convertidos.
res. É, pois, a separação dos protestantes, Todo o herege, pela heresia de que faz
um scisma indesculpável, porque a usurpa- profissão, perde o direito d’exercer legiti­
ção do ministerio por si mesma é crimino­ mamente as funeçoes das ordens recebi­
sa, c não póde justificar-se com a aíTectada das, bem que conserve o d’exercel-as váli­
idolatria da igreja de que se separam. damente; e para haver de recobrar o exer­
Se alguém, por exemplo, dissesse scr cício legitimo da sua authoridade, neces­
permittido calumniar toda a sociedade, sita reconciliar-se com a Igreja. Ora com
quo obriga á heresia e a um culto idola­ que igreja se reconciliaram os presumi­
tra, matar á traição os seus pastores, e dos reformados? O seu proceder foi mui­
to alheio d’isto; começaram, congregando
1 Tillotson, Senn. t. 2. Serm. dl, pag. igrejas, sem authoridade, sem dependen-
17. Chilingvort, na obra intitulada La Re-
ligion Protestante est une voie súre. 1 Préjugés legitimes, pag. 135, etc.
8i4 REF
cia de ninguem, e sem lhes importar se que os evangelistas c os apostolos escre­
havia ou nào uma igreja verdadeira a que veram? Acaso Jesus Christo assignalou a
se devessem u n ir .1 época em que havería de acabar o minis­
Os reformados, pois, nào podem ter tido terio apostolico? Ou csqucoer-sc-iam os
mais que uma missão extraordinaria, e successores dos apóstolos da doutrina que
isto querem Beza, Calvino, c outros, mas lhes fora confiada? Mas se já nào existe
uma vocação extraordinaria carece ser um corpo encarregado d*estc sagrado de­
provada pór milagres, c clles nào os fize­ posito, porque via sabemos nós que nào
ram.' Todos os catholicos que tractaram ha mais de quatro evangelhos, o que o
controversias, teem mostrado estes pontos Evangelho contéin a doutrina do Jesus
com a maior evidencia.2 Christo? Como se desliudaram os verda­
Portanto os presumidos reformados eri­ deiros evangelhos d’essa multidão d'clles
giram uma igreja sem authoridade, e por falsos, que os heregos forjaram nos pri­
consequência sào scismaticos, pois que se meiros séculos? Como se conheceram as
separaram da sociedade que estava em alterações feitas na Escriptura, sc nào ha­
posse do ministerio, e da qual nào recebe­ via um corpo subsistente e duulrinante,
ram missão. que por tradição recebera c conservara o
que Jesus Christo e os apostolos haviam
§ II ensinado? S. Paulo ordena aos de Thessa­
lonica que permaneçam firmes, e conser­
A tradição é, não menos que a Escriptura, vem as tradições que aprenderam, ou das
a regra da nossa fé suas palavras ou dos seus cscriptos. 1
0 mesnio apostolo ordena a Timotheo
Os theologos dão o nome de tradição á que. evito as novidades profanas das pala­
doutrina que vai passando de viva yoz, ou vras, c de toda a doutrina que traz falsa-
que está depositada nos cscriptos d’aquel- mente o nome de sciencia: quer que tome
les, aos quaes pertence o transfundil-a. Je­ por modelos da mesma doutrina as san­
sus Christo a ensinou assim, c da mesma ctas instruceões que elle ouvira da sua
sorte a publicaram seus apostolos. O mes­ bôcca, e louva os corinthios por haverem
mo Senhor não lhes ordenou que a escre­ conservado as tradições e as regras que
vessem, mas que fossem prégal-a, c onsi- d’elle tinham recebido.2 Olha, pois, S. Pau­
nal-a ás nações. Só depois de muito tempo, lo como um deposito c como uma regra a
e por circumstancias particulares, é que doutrina que elle ensinara aos corinthios:
os apostolos escreveram, e’ nem foram to­ ora, o sancto não sómcntc havia ensinado
dos, nem escreveram a todas as igrejas. a Timotheo por escripto, más também de
Os escriptos dos apostolos, dirigidos ás viva voz; portanto, ha uma tradição ou
igrejas particulares, nem conteem quanto uma doutrina que, de viva voz, se trans­
elles poderíam ler escripto, nem quanto funde, c que deve conservar-se como a
Jesus Christo lhes ensinou, ou o Espirito doutrina conhecida na Sagrada Escriptura.
Sancto lhes havia inspirado: portanto, não A Igreja confundiu os hereges dos pri­
póde duvidar-se que muitas das jgrejas meiros séculos, valentinianos, gnosticos, e
particulares, por espaço de annos, nào esti­ marcionitas, por meio da tradição.3 To­
vessem sem escripto algum dos apostolos, dos os concilios combateram os erros pelo
e sem Escriptura Sancta. mesmo meio, ninguem duvida d’estes fa­
Havia, pois, desde a instituição do Chris­ ctos; podem ser ignorados, mas não po­
tianismo um corpo, ao qual Jesus Christo dem ser controvertidos por qualquer que
confiára o deposito da sua doutrina, e en­ tenha alguns vislumbres da historia eccle­
carregara de ensinal-a. Este corpo a rece­ siastica.
beu, e transfundiu por via de tradição, e Do que acabamos de dizer se collige,
em virtude da mesma instituição de Jesus pois, claramente, que Daille só combateu
Christo estava incumbido de ensinar a a doutrina da igreja catholica sobre a tra­
doutrina que recebera. Ora, acaso perdería dição, partindo d’um falso principio, pois
este corpo o direito de ensinal-a, depois que suppõe não se conhecer a mesma tra­
dição senão pelas obras dos padres.4
1 Vejam-se as profissões de fé dos syno­
dos de Gap, de la Rochelle, M. de Vallen- 1 Secunda ad Thessal., c. 2, v. 15’.
burgo no seu Tractado da Missão dos Pro­ 2 Prim a ad Corinth., c. 11, v. 2.
testantes. 3 lren. adversus Gnost., I. 3, c. 2.
2 Prétendus Reformes convamcus du 4 Rivet. Tractatus du PP. auctoritate.
Genevie, 1660. Traité de Vemploi des Pcres
schisme, l. 3, c. õ.
REF 815
D;v mesma sorte se deve pensar ácerca A doutrina da igreja romana sobre a
de tiulo o que os protestantes proferiram infallibilidadc das decisões dos primeiros
para provarem que a tradição é obscura pastores, é a doutrina de toda a antiguida­
e incerta. A tradição, tomada como a in- de; toda a historia ecclesiastica prova esta
strucção do corpo Visível, a cujo cargo es­ verdade, reconhecida pelos protestantes em
tá o deposito da fé, nunca pôde ser incer­ quasi todas as profissões de fé que temos
ta, a sua incerteza levaria comsigo a do citado. Portanto, nào é do simples fiel o
Christianismo. julgar das controversias da fé. Se o fosse
só seria por via de inspiração ou de exa­
i ui me. O primeiro meio até os mesmos pro­
testantes o abandonaram; nào carece de
Se aos ‘p rimeiros pastores, successores dos refutação: é o principio que produziu os
apostolos, pertence julgar das controver­ anabaptistas, os quakers, os prophetas dos
sias da fc, c não aos simples fieis. Cevennos, etc.
O segundo, isto é, a via de exame, posto
Jesus Christo confiou aos seus apostolos que repugna menos, nào é mais segura.
a pregação da sua doutrina, c lhes pro- As sociedades christàs, separadas da igre­
melteu estar com elles ate á consummaçào ja romana, affirmam que a Escriptura en­
dos séculos: a elles é que disse: «ensinai cerra quanto sc deve crêr para a salvação,
ás nações; aquelle que vosouve, me ouve.» e é clara sobro todos ostes assumptos; do
É claro que estas promessas nào só res­ que concluem ser sufficiente para con­
peitam aos apostolos, mas também a seus servar o deposito da fé. Porém pergunta­
successores, que sào estabelecidos deposi­ mos, a quem pertence determinar, que ar­
tários da doutrina de Jesus Christo, o en- tigos é necessário crêr para nos salvarmos?
cagregados de ensinal-a até á consumma­ Nào c isto sómente proprio d’aquelles, aos
çào dos séculos. Assim entendeu sempre quacs Jesus Christo encarregou que an­
toda a Igreja as promessas feitas aos apos­ nuntiassem a sua doutrina, e aos quaes
tolos; e os protestantes teem sido obriga­ disse: «quem vos ouve, me ouve»? Em se­
dos a.reconhecer n'esla promessa a per- gundo logar quereriamos saber, se quandi
petuidade c iufajlihilidade da Igreja.1 se suscita alguma controvérsia ácerca d
Rolo mesmo estabelecimento da Igreja, sentido da Escriptura, pertence a sua de
c natureza do ministerio que Jesus Christo cisão essencialmente aquelle corpo que Je­
confiou aos apostolos e a seus successores, sus Christo encarregou de ensinar, e com
se vê claramenle serem elles os unicos jui­ quem prometteu estar até á consummaçào
zes da doutrina. O ministerio da instruc- dos séculos?
çào nào é diverso do ministerio que deci­ Julgar do sentido da Escriptura é deter­
de sobre as diíTerenças da religião: como minar que idéias uniu Jesus Christo às
teriam estes authorídadc sufficiente para palavras que exprimem a sua doutrina.
ensinarem a doutrina de Jesus Christo até Sómente aquelles, aos quaes ordenou que
á consummaçào dos séculos, se lhes fal­ a ensinassem, c prometteu a sua assistên­
tasse a de decidirem, e se pudessem enga­ cia, podem determinar infallivclmente que
nar-se em suas decisões? As profissões de idoias unia olle a estas palavras; sómente
fé, citadas na nota antecedente, suppoemo elles, pois, sào juizes infalliveis do sentido
que afflrmamos aqui. da Escriptura. Portanto, ainda sem exami­
narmos se a Escriptura é clara nas cousas
pour te jugrment des differens en la Reli- necessarias para a salvação, diremos que,
fjion, par Jean Daillê, Genêvc, 1632. pela mesma natureza da Igreja, e pela in­
1 Confessio Augustana, art. o, 7, 8, 21. stituição de Jesus Christo, os primeiros
Confessio Saxonica, De Ecclesia. Sijnlagma pastores são os juizes do sentido da Escri­
Confessionum Fidei, qua; in diversis regnis ptura c das controversias que se levantam
et nationibus fuerunt edita. Geneva1. 1654, sobre a intelligcncia da mesma.
in-4.°, pag. 68, 69. 70. Confessio Wittem- Em terceiro logar, sem que disputemos
berg. De Ordine, ibid, pag. 119. De Eccle­ ácerca da clareza da Escriptura, nem exa­
sia, pag. 132. Confessio liohemica, art. 8, minemos se ella contém quanto se deve
ibid, pag. 187, art. 9, pag. 188, 189, art. crór para sermos salvos, dizemos que quan­
14, pag. 196. Confessio Argent in ensis, c. do o corpo dos pastores declara que um
13. De Officio, et Dignit Minislr., pag. 188. dogma pertence á fé, deve crér-se com a
Confessio Helvet, c. 17, pag. 31, 35. Cow- mesma certeza, com que crémos que o
fess. Gallic., pag. 3, art. 24. Confessio An­ Novo Testamento encerra a doutrina de
glicana, pag. 90. Jesus Christo. Quanto poderia dizer-se pa­
816 REF
ra atacar a decisão d’este corpo a respeito § IV
de qualquer dogma, atacaria igualmente a
verdade e a aullienticidade da Escriptura, Resposta ás objeceõcs que se poem a favor
que nós conhecemos por meio d’este mes­ da via du exame
mo corpo, como já fizemos vòr pouco aci­
ma no § 2.* «Ou os catholicos romanos, dizem o

<p
Em quarto togar, a via de exame que protestantes, suppoem infallivel a Igrej

p
querem substituir á authoridade da Igreja, em que nasceram, c o suppoem sem ex a ­
é perigosa para os homens mais esclareci­ me, ou examinaram com desvelo os fun­
dos, c impracticavel para os simples; nào damentos da authoridade que lhes attri-
pódc, pois, ser a via que Deus escolheu buetn sem saberem porquê: pois cm simi-
para preservar os chrislàos do erro: por­ Ihante supposto deveria lambem approvar-
que Jesus Christo, que veio para todos os sc a adhesào que tem o mahomelano ao
homens, quer que todos conheçam a ver­ seu Alcorão; é pois forçoso examinar.
dade, e que se salvem. «Porém este exame é tào difiicil como o
Em quinto logar, attribuir aos simples methodo dos protestantes: se d’isto se du­
fieis o direito dejulgarem as controversias vida, pondere-se o que é necessário para
que se levantam acerca da fé, é abrir a elle, advertindo que aqucllcs que o fazem,
• porta a todos os erros, destruir a unidade hão de considerar-se como desapegados de
da Igreja, c arruinar toda a disciplina. todas as sociedades chrislàs, e isemptos de
Para se convencerem d’isto, basta lançar qualquer prevenção, para lhes suppôrmos
uma vista de olhos sobre a reforma no seu sómente as luzes do bom senso.
nascimento: alli se vê uma infinidade de «A primeira cousa que ellos devem exa­
seitas que se dilaceram, e que ensinam os minar ífesta proposição, a Igreja c in falli-
dogmas mais absurdos, c os chefes da mes­ vel, que querem se receba como verdadei­
ma reforma lastimarem-se da licença dos ra, é se se sabe que cousa seja esta Igre­
seus proselytos: escutemos os seus desaba­ ja, em que so diz residirainfallibilidade, c
fos. se por isto so entendem todos os chrislàos
Capiton, ministro de Strasburgo, escre­ que formaram os diíTerentcs corpos das
via em confidencia a Farei, que olles ti­ igrejas christàs de tal manpira, que quan­
nham feito grande damno ás almas pela do estes christãos dizem de eommum ac-
precipitação com que sé separaram du pa­ cordo que uma cousa é verdadeira, se
pa: «a multidão, diz ellc, sacudiu o jugo devam render á sua authoridade? Se bas­
inteiramente... arrojam-se a dizer-vos; es­ ta que o maior numero declare um senti­
tou assaz instruído do Evangelho, sei lér mento por verdadeiro para se abraçar, e
por mim mesmo, não tenho necessidade de se isto assim fòr, se um pequeno numero
vós.» 1 de votos de mais ou de menos, é sufficien­
«Os nossos, diz Beza, se deixam arreba­ te para authorisar, ou declarar por falsa
tar por qualquer vento de doutrina, já pa­ uma opinião? Se nào é preciso senão con­
ra este lado, já para aquelle; e se agora sultar os sentimentos do tempo presente,
podemos saber qual é a sua crença ácerca ou desde o dos apostolos para conhecer
da religião, nào poderiamos ser fiadores a verdade d’estc sentimento? Quaes são
da que hão de ter áinanhã.» Em que con­ aquelles em que reside-a infallibilidade?
cordam sobre este ponto as igrejas que Se um pequeno numero de bispos juntos,
declaram a guerra ao papa? Se tomardes e com commissão de outros, são infalli-
o trabalho de correr por todos os artigos veis?
desde o primeiro até o ultimo, nenhum «Em segundo logar, se ha de saber cm
encontrareis, que não seja reconhecido por que consiste propriamente esta infallibili­
alguns como de fé, e rejeitado por outros, dade da Igreja, se em ser sempre inspira­
coino impios. 2 da, ou em sómente nos dizer cousas, sobre
as quaes nào póde enganar-se? E deverá
1 Cap. Ep. ad Farei, inter Ep. Calvin., também saber-se se esta infallibilidade so
paq. 4. edil. de Genêve. Préjugés legitimes, estende a tudo?
pag. 67. • «Em terceiro logar, se ha de esquadri­
2 Beza. Ep. prim. Préjugés legitimes, nhar d’onde tirou a sua infallibilidade es­
pag. 70. ta igreja christã? Os doutores que a affir-
mam, não devem crêr-se, sem que de suas
asserções dêcm outra prova mais que a
doutrina eommum, porque se tracta de
averiguar se esta doutrina ó a verdadeira,
nos 817
o sobre isto é que se questiona: igualmcn- não carece da discussão c do exame; crê,
le nào pódo dizer-se que devem concorrer sem receio de se enganar, quanto lhe pro­
a Gscriplura c a Igreja, pois que todas as põe um corpo de pastores, encarregados
difíiculdades que acabamos de propôr, nào por Jesus Christo para ensinar, cuja mis­
deixarn por isso de subsistir, sendo neces­ são c authoridade é atlestada por factos
sário que vamos comparando a crença que excluem toda a dúvida.
<Testa Igreja de século cm século com*o Subministra, pois, a igreja catholica aos
que diz a Escriptura, e vôr se se acçor- simples fieis um meio fácil, seguro e infal-
dam estes dons princípios, porque n’csle livel, para nào cahircm em erro algum
ponto a ninguém se pódo crér.»1 contrario á fé, ou á pureza do culto. E po­
Respondemos que o catholico nào crê a derá dizer-se o mesmo da via de exame?
Igreja infallivcl por via de exame, nem de Os protestantes por mil fôrmas diversas
razão, mas por via de instrucçào. Por este leem objectado as dúvidas que acabamos
meio conheceu o simples fiel ser divino o de examinar: todas podem resolver-se pe­
•Christianismo; soube quo Jesus Christo los princípios geracs que vimos de estabe­
confiou a seus apostolos c successores a lecer, ao menos as que merecem mais at-
pregação da sua doutrina, que prometteu tcnçào. Temos excellentes obras úc contro­
a uns*e outros a sua assistência ate á con- vérsia, que entraram u'estas miudezas: taes
summaeào dos séculos; c sabe por conse­ sào a Historia das Variações, 1. io; a Con­
quência* que os successores dos apostolos ferenda de M. Dossuet com M. Claudio, e
liào de ensinar a verdade ate o fim do Prejuízos Legitimos, cap. 14, lo, 16, 17, e
mundo, e que o que ensinarem como ar­ 18; Presumidos Reformados convencidos do
tigo de fé, com efieito pertence á fé. scisma, 1. l.°; Reflexões sobre as differenças
Para estar seguro o simples fiel de que de Religião, por M. Pelisson; Chimeras de
<lcvc assim pensar sobre os dogmas defi­ Jurieu, pelo mesmo, e as suas respostas *
nidos pela Igreja, nào tem necessidade de M. Leibnitz; As duas vias oppostas em mi
discutir todas as questões que propõe M. ter ia de Religião, por M. Papin. 1
Le Clero; acha a soluçào de todas na in- rrgo sijad os— Seita de ana baptistas, qi
strucçào que recebe: que portanto é um riam sempre: vejam-se as diversas sciti
equivalente da via de exame, pois que o que houve d’clles.
põe em estado de responder ás objecções, rem on tra ntes— Vejam-se as difTercnlcs
com que pretendem fazer vacillante a sua seitas que se formaram em Hollanda, de­
crença. pois que ifella se fez dominante o calvi-
Nào se submette o simples fiel á autho- nismo.
ridade dos primeiros pastores, fundado me­ ruetorio—Refere Philastrio ensinar Rhe-
ramente na palavra dos mesmos, mas nas torio que os homens nunca se enganavam,
razões que ellcs dào da sua doutrina, nas e que todos tinham razão; que nunca se­
provas do facto de que qualquer se pódc riam condenmados por seus sentimentos,
segurar, em factos que qualquer juizo al­ porque todos haviam pensado o que deviam
cança, attestados por todos os monumen­ pensar. -
tos,*e tào certos como os primeiros princí­ ROsr.ELiNO—clérigo de Compicgne, ensi­
pios da razào; n’uma palavra, nas mesmas nava philosophia pelos (ins do século onze
provas de qne se serviam para convencer (1095). Propòz que as ires Pessoas divinas
o herege, o infiel, o ignorante, e o sabio; eram tres cousas como tres anjos, porque
em factos de que o homem que não é es­ d’outra maneira poderia dizer-se que ha­
túpido, nem insensato, se pódo certificar, viam encarnado o Pae c o Espirito Sancto;
como qualquer philosopho, e acerca dos comtudo, no seu sentir, o Pae, o Filho e o
quaes pôde, haver uma certeza, que excluc Espirito Sancto, não faziam mais que um
todo o temor do erro; e para deixarmos Deus, porque tinham o mesmo poder e a
n’este ponto uma réplica a M. Le Clerc, mesma vontade; porém cria que se pode­
basta-nos o seu mesmo Tractado sobre a ríam denominar tres deuses, sè o uso nào
incredulidade. fosse contrario a este modo de exprimir.
Portanto, não conduz a Igreja os fieis É o erro dos tritheistas, c foi condomnado
por uma obediência cega, o de instincto, cm um concilio havido cm Compiegne, no
mas pelo meio da instrucçào e da luz, pelos anno de 1Õ92.
quaes o leva até á authoridade infallivcl da Roscelino abjurou o seu erro, mas pou-
Igreja. O fiel elevado a esta verdade, já
1 Todas estas obras se acham escriptas
1 Defense des sentimens des théologiens na lingua franccza.
de Hollande, pag. 3o. 2 Philastr. Aug. de I l n r e s c . 72.
818 SAB
co depois disse que sómente o havia abju­ Formou partido, que subsistiu por algum
ra do por temer que o povo ignorante o tempo, e Sancto Epiphanio refere que os sa-
matasse a pancadas. Sancto Anselmo o bellianosse dilTundiram em grande numero
refutou em um Tractado da fé, da Trinda­ pela Mesopotamia, e circumvisinhanras de
de,.e da Encarnarão. Toda a refutação do Roma. O concilio de Conslantinopla,*rejci-
sancto versa sobre este principio tãó sim­ lando seu baptismo, faz vér que^ tinham
ples e tào verdadeiro; isto é, que nào deve um corpo de communhào em 381. Sancto
raciocinar-se contra o que a fé nos ensina, Agostinho creu que esta seita estava ani­
contra o que a Igreja cré, e que nào ha de quilada inleiramcnle no principio do quin­
rejeitar-se o que nào se pódc comprehcn- to século. 1 Correndo o quarto, Photino, o
der, mas que devemos confessar que ha os anti-trinitarios, renovaram este erro.
muitas cousas superiores ã nossa intclli- No presente artigo tractaremos dos prin­
gencia. 1 cípios do sabellianismo.
nuNCAiuos—Seita que tinha adoptado os Diniz de Alexandria impugnou com gran­
erros dos patarinos, e que sustentava nào de zelo e luzimento o erro deSabellio; inas
se commetior peceado algum'mortal pela refiectiu-se que para fazer uma distineção
parte inferior do corpo: eslribados n’este mais sensível entre as Pessoas da Trinda­
principio se entregavam a toda a sorte de de, punha dilTerença entre a natureza do
dissoluções.2 Pae e do Filho, pela que ha entre a vinha
RUiMTANOS—Nome que se deu aos dona- e o vinhateiro, entre o navio, c o carpin­
tistãCponjue a fim de fazerem grassar sua teiro.
doutrina, atravessaram os rochedos, que Tanto que chegaram á noticia dc Diniz
cm latim se exprimem rapes. as consequeucias que tiravam d’estas com­
küSSIA&os—Veja-se Moscovitas. parações, logo elle se explicou acerca da
H üSTicofeQu camponios—Nome que teve divindade de Jesus Christo, declarando ser
uma sei ia' ’<íe a na baptistas formada de pes­ da mesma natureza que seu Pae: também
soas rusticas e de vadios sabidos do cam­ sustentou nào ter jamais dito que houves­
po, que debaixo do pretexto da religião, se tempo em que Deus nào fosse Pae: que
excitavam sediçôes nas cidades. o Filho recebera o sêr do Pae; mas que
sabelli,o— abraçou o erro de Praxeas, assim como nào é possível que deixe de
e de Noerio, nào pondo outra dilTerença haver resplandor quando ha luz, da mes­
entre as Pessoas da Trindade, mais c|ue a ma sorte é impossível que o Filho, que é o
que ha entre as diversas operações d uma resplandor do Pae, nào seja eterno; einfim,
mesma cousa. Quando considerava a Deus, Diniz de Alexandria queixava-se de que
como fazendo decretos no seu conselho eter­ seus inimigos nào houvessem consultado
no, e resolvendo chamar os homens à sal­ um grande numero das suas cartas, aonde
vação, olhava-o como Pae; quando este mes­ se explicara com clareza, e que só se ape­
mo Deus deseia á terra, e ao seio da Vir­ gassem áquellas em que refutava a Sabel-
gem, padecia c morria sobre a cruz, rha- lio, e que elles tinham mutilado em varias
mava-lhe Filho; e linalmentc, quando o parles.
considerava como empregando a sua eíli- Nào examinaremos aqui se Diniz dou
cacia na alma dos peccadores, dava-lho o azo ás accusações formadas contra elle;
nome de Espirito Sancto.3 tào sómente faremos algumas rellexões so­
Na conformidade d?esla liypothese, nào bre o boato que correu a este respeito.
havia distineção alguma entre as Pessoas l.° Sabellio negava que o Pae e o Filho
divinas; os titulos do Pae, Filho c Espirito fossem distinctos, e os catholicos sustenta­
Sancto, eram sómente uns nomes tomados vam o contrario; estes, pois, pela natureza
das diversas acções que Deus produzira da questão estavam propensos a admittir
para salvar os homens. entre as Pessoas divinas a maior distine­
Sabellio não fez mais que revocar a he- ção possível: visto, pois, que as compara­
t esia de Praxeas e de Noecio, apoiando-se ções de Diniz, que tomadas ã letra sup-
as mesmas razões: vejam-se setis artigos. poom ser Jesus Christo de diíTcrente natu­
reza que o Pae, foram olhadas como erros
1 S. Anselm., I. 1. Ep. 35’. Ybo Carno- por serem contrarias á consubslancialidaT
tensis, Ep. 27. Abwlurd. Ep, 21, ad Epis- de do Verbo, era forçoso que este dogma
cop. Paris. D'Argentrc. Colfect. Jud., t. 3, nào só fosso ensinado distinctamente na
pag. 1. N atal. Àlex., scec. 11 et 12. Igreja, mas também que fosse olhado co-
2 Dnpin, 13 siècle, pag. 190.
3 Theodor. Hceret. Fab., I. 2, c. 9. Eu*
scb., I. 6, c. 7. Epiph. Hceret. 62. i Aug. de Hcer., c. 4.
SAT 819
mo um dogma fundamental da religião da mesma sorte que os judeus, observam
christà. o sabbado.
2. ° É claro que os catholicos sustenta­ SACCOPHOROS, ISTOREVESTIDOS DE SACCO—
vam quo o Pae, o Filho c o Espirito Sancto Haniõ dc tacianistas,'qúe se vestiam dTim
não eram nem nomes diflerenics dados á sacco, para melhor assignalarcm que re­
natureza divina por causa dos diversos ef- nunciavam os bens do mundo. 1
íeitos que ella produzia, nem tres substan­ s a c r a m e n t a rios— Assim chamaram aos
cias, nem tres entes de uma natureza dif­ calvinistas”e'zíilnglianos, que negavam a
ferente. A crença da Igreja acerca da presença real.
Trindade era, pois, n’esse tempo tal qual SAnARRL.0—Veja-se Segarelo.
é hoje, e em Jurieu é ignorância crassa sanguinarios—Seita de anabaptistas, que
accusar a igreja catholica de haver varia­ só^Miidavám ern derramar o sangue da-
do sobre este dogma. qucllos que não pensavam como clles.
3. ° O exemplo de Diniz de Alexandria saturnino—era de Antiochia, c discipu­
mostra ser desnecessário julgar que um lo dc‘Menandro, cujos sentimentos perfi­
Padre não creu a consubstancialidade do lhou, dos quaes parece haver feito um sys­
Verbo, por se acharem n’elle algumas com­ tema para explicar a producção do mun­
parações, que exprimidas c tomadas rigo­ do, a dos homens, e os grandes aconteci­
rosamente, conduzem a consequências op- mentos que haviam passado sobre a terra,
postas a este dogma. referidos nos livros de Moysés. Estes eram
Sandio, que quer provar o arianismo os objectos qne cntào se queriam, e são
em todos os padres que precederam ao com elTeito os que mais incitavam a curio­
concilio dc Nicea, assevera que Diniz de sidade humana. -
Alexandria nunca fizera a apologia da sua Saturnino, para explicar estes factos
doutrina contra Sabellio, nem dera expli­ suppunha, como Menandro, um ente des­
cações, nas quaes reconhecesse a c.onsub- conhecido aos homens, o qual tinha forma­
stancialidade do Verbo, porque nada a es­ do os anjos, os arehanjos, e as outras na­
te respeito disseram nem Eusebio. nem S. turezas espirituacs e celestes. Sete d'cste
Jeronymo, e porque Diniz de Alexandria anjos se tinham subtrahido do poder d
era morto, antes que o outro Diniz, a quem Pae de todas as cousas, creado o munde
elle se dirigiu, fosse elevado â cadeira dc e quanto n’ellc se encerra, sem que o Deu.
R om a:1 porém Sandio se engana; liq u a n ­ Pae houvesse tido d’islo conhecimento al-
do se apoia com o silencio de Eusebio e gurn.
de S. Jeronymo, porque um c outro faliam Deus desceu para vér o que ellcs fize­
dos quatro iivros que Diniz compòz sobre ram, e como apparcceu em fôrma visivel,
o sabellianismo: e ainda que não tivessem quizeram os anjos agarral-a, mas ella se
fallado, a collecção que Sancto Athanasio desvaneceu; então fizeram conselho, e ac-
faz das suas respostas basta para conven­ eordaram em formar entes, segundo o mo­
cer lodo o homem racionavcl, de que áquel- delo da figura de Deus; c com elTeito or-
le respeito havia uma apologia.2 ganisaram um corpo similhante á imagem
2.° É certo que Diniz era bispo de Roma em que a divindade se llies havia oíTere-
quando Diniz de Alexandria fez a sua apo­ cido.
logia; o erro de Sandio vem dc que elle Porém o homem formado pelos anjos,
seguiu a Eusebio, que dá onze annos ao não podia andar senão de rojo sobre a
episcopado de Xisto, predecessor de Diniz, terra como os bichos. Deus, movido de
quando Xisto não foi mais que dous annos compaixão pela sua imagerm o animou
bispo de Roma, e por consequência Diniz com uma faisca de vida, então o homem
subiu á cadeira romana nove annos antes se levantou sobre os pés, fallou, racioci­
do computo de Eusebio. Fóra {Visto o mes­ nou, e os anjos formaram mais homens.
mo Eusebio affirma que Diniz de Alexan­ É bem claro que, segundo este sentimento,
dria dedicara seus livros sobre o sabellia­ a alma dependia dos orgãos em que ella
nismo a Diniz, bispo de Roma.3 se introduzia, e que as suas funeções, qua­
s a b b a t a r i o s — Seita de anabaptistas, que lidades, vicios e virtudes eram consequên­
cias da conformação dos orgãos a que ella
1 Sandivs, de Scr.ipt. Eccles., pag. 42. estava unida. Por este meio explicava Sa-
Nucleus, Hist., 7 .4 , pag. 121.
2 Evseb. Hist. Eccles., I. 7, c. 26. Hie- 1 Cod. Thèod., I. 7, 9, et 11, Dasil. Ep.
ron., de Script. Eccles., pag. 69, pag. 23. ad Amphilochum. Canon. 47.
Athan. de Synod., pag. 918. 2 Iram., I. 1, c. 30, n. 5, /.‘2, c. 17, 10.
3 Ibid. Massuet, Dissert. 1, iiv h em., c. 48.
820 SEG
turnino felizmente, segundo o seu sentir, ção dos homens, mas negava que tivesse
as desordens physicas e moraes, sem pre­ encarnado c padecido.
juízo da sanctidade e omnipotencia do Deus Vendo, porém, sem embargo da mudan­
Supremo. ça que Saturnino fez, um systema de Me­
Estes anjos, creadores do mundo, haviam nandro, notamos: I.» que ellc estava aíTer-
dividido entre si o imperio do mesmo, c rado a este systema, consorvando-o quanto
estabelecido n'clle leis. Um dos sete anjos lhe foi possível, e que por consequência
creadores declarara guerra aos outros seis, nao fez mais mudanças que as que não
e o mundo ou Satanaz tinham também da­ podia deixar de fazer,*e que assim se viu
do leis, e feito appareccr prophetas. necessitado a reconhecer a Jesus Christo
Para livrar da tyrannia dos anjos e dos por Filho de Deus, c enviado por seu Pae
demonios as almas humanas, o Ente Su­ para salvar os homens.
premo enviara seu filho, cujo poder havia 2. ° Vêmos que Saturnino para conciliar
de destruir o imperio do Deus dos judeus, com a divindade de Jesus Christo o estado
e salvar os homens. Este Filho porém nào possível em que se achava sobre a terra,
fôra sujeito ao imperio dos anjos, nem não lhe deu mais que um eorpo phantasti­
aprisionado em orgàos materiaes; nào ti­ co, que por consequência tinha repugnân­
vera corpo, nào nascera, nào padecera, cia em o reconhecer como Filho de Deus,
nào morrera senào em apparcncia. Satur­ e não fez d’isto um dogma do seu systema,
nino cria evadir por este meio a diflicul- senào por lhe ser impossível ncgal-o.
dade que ha em conciliar os padccimcntos 3. ° As provas que davam os christãos da
de Jesus Christo com a sua divindade. divindade de Jesus Christo, eram factos que
Na conformidade de similhantes princí­ Saturnino podia muito bem averiguar, pois
pios, era o homem um ente desgraçado, que estava no tempo e nos logares em que
escravo dos anjos, por cllcs entregue ao elles tinham acontecido: para "não duvidar­
peceado, e abysmado na desdita: era, pois, mos de que Saturnino os averiguaria, bas­
a vida um dom funesto, e o prazer que ta que façamos conta com o amor proprio;
conduzia os homens a fazerem nascer ou­ sendo certo que um homem pertinaz no seu
tro homem, prazer barbaro, que ellcs de­ systema, como vêmos a Saturnino, nada ad­
viam prohibir: portanto, foi esta lei da mitte que seja estranho ao mesmo systema,’
continência um dos pontos fuudamentaes senào o que não pôde negar, sem cahir em
da heresia de Saturnino; e seus discipulos, manifesto absurdo.
para a observarem mais segura mente, se Temos, pois, em Saturnino um testimu-
abstinham de comer carne e de tudo o que nho irrefragavel da verdade dos factos, que
podia excitar ao amor. provam a divindade de Jesus Christo; e as
Saturnino teve escolas e discipulos em suspeições que de. ordinario se oíTerecem
Syria: a morte, no seu sentir, era o retor­ contra os defensores da religião por não
no da alma para Deus, d’ondc cila tinha chamarem cm seu abono senão a chris­
vindo. 1 tãos, não se realisam em Saturnino.
Abulpharage, na sua Historia das Dy- secundino—Philosopho d’Africa, que ap-
nastids, falia de Saturnino, a quem chama pareceu pelo anno de 40o, e defendeu os
Saturino. c a elle attribue haver dito que erros de Manes.
fôra o diabo que fizera a difierença dos secundo —discipulo de Valcntim, fez al­
sexos, e que^por isso os homens olhavam gumas mudanças no numero e no sys­
a desnudez como vergonhosa. tema da geraçao dos Eons; mas as mu­
Menandro só conhecia um ente eterno e danças em similhantes systemas são tão ar­
infinito, e dava a potências invisíveis o bitrarias, e se atoem a conjecturas tão in­
imperio do mundo; tinha presumido de ser significantes e a razões tão frivolas, que é
o mundo d’estas potências, e de conceder cousa inútil seguir taes individuações.1
a immortalidade por uma especie de ba­ se g a r e lo , ou sagarelo ( jo r g e )— era um
ptismo magico. Saturnino, seu discipulo, homem da infima plebe, sem conhecimen­
conservou o capital do seu systema, esfor­ tos c sem letras, que, não podendo conse­
çou-se a concilial-o com a religião christã, e guir entrar na ordem franciscana, se ves­
reconheceu que Jesus Christo era o Filho tiu como se costumam pintar os apostolos,
de Deus, enviado por seu Pae para salva- e vendendo uma pequena casa, que eram
todos os seus haveres, distribuiu o dinhei­
ro não pelos pobres, mas por um bando de
i Ircen., I 1, c. 22. Tert. de anima, vadios, e d’ociosos. Propôz-so viver como
c. 23. Philastr. de H ar., c. 31. E pw h., 24.
Theod., I. 1, c. 3. Aug. de Hccr^, c. 3. 1 Epiph. Hcer. 32. Philastr. Hair. 40.
SEM 821
S. Francisco, e imitar a Jesus Christo; e fosse porque Sancto Agostinho, que tinha
para lançar a barra ainda além do saneio sido alma do concilio, achasse qne a ma­
na sua similhança com o mesmo Senhor, téria não estava ainda assaz elucidada, e
fez-se circumcidar, enfaixar, metter em um temesse dar azo a novas diíTiculdades, que
berço, e quiz ser aleitado por uma mulher. retardassem a condeinnação dos pclagia-
A baixa plebe, que se apinhava cm torno nos, e subministrar novo incidente, sobre
d’csto chefe, digno d’ella, formou uma so­ que ainda houvesse que disputar, o que
ciedade de homens, que se denominaram na verdade c cercado de trevas; ou final-
Apostolicos. Estes mendigos vagabundos, mente porque os mesmos pelagianos hou­
pretendiam fosse tudo commum, sem ex- vessem reconhecido uma graça indepen­
ceptuar as mesmas mulheres; diziam que dente dos nossos merecimentos* e não di­
Deus Pae linha governado o inundo com versificassem n’estc ponto dos catholicos,
severidade e justiça; que a graça e a sabe­ mais que em crérem que esta graça con­
doria haviam caractcrisado o reino de Je­ sistia nos dons naturaes.
sus Christo, mas que este passara, c fora Esta espccie demissão, fosse qual fosse
seguido do do Espirito Sancto, que é um a causa d’ella, deu occasião a crer que a
reino d’amor e de caridade, em que esta é Igreja só definira contra os pelagianos o
a unica lei, mas lei que não admittia dis­ peccado original, a impossibilidade de vi­
pensa, nem exccpçào. ver sem culpa, e a necessidade d’uma gra­
[$$D'esta maneira, segundo Segarelo, nada ça interior; e que deixara indecisa a ques­
do que se pedia por caridade se podia re­ tão da gratuidade da graça, assim como
cusar, bastava esta palavra para que os outras muitas que se tinham levantado en­
seus sectários entregassem tudo, até as tre os pelagianos e os catholicos, no decur­
proprias mulheres. Segarelo fez muitos sc- so de suas disputas: portanto se olhou este
o quazes:' por ordem da inquisição foi prèso ponto como questão problemática.
e queimado: e Dulcino, seu discipulo, se Comtudo, Sancto Agostinho nos seus li­
pôz á testa dos apostolicos, como se póde vros sobre a graça c o livre arbitrio, sobre
vér no seu artigo.1 * a correcção c a graça, e na sua carta ao
seleuco — Philosopho da Galacia, que ado- papa Xisto, já havia*tractado esta questão,
' ptou os erros de Hermogenes; cria que a provando a gratuidade pelas passagens da
materia era eterna, e increada como Deus, Escriptura, que aílirmam não termos nada
e que os anjos formavam a alma de fogo, que não rccebessemos, e não sermos nós
e d’espirito; isto é, em summa, o systema de os que discernimos; servindo-se do exemplo
Pythagoras: nós havemos refutado estes de Jacob e de Esau, como base do seu
dous erros nos artigos Hermogenes e Mate­ sentimento: c para responder ás objccçôes
rialistas. 2 com que os pelagianos impugnavam estes
se m i - ariànos —É o nome que deram aos princípios, c salvar a justiça de Deus, se
que diziam que Jesus Christo não era con­ valera da comparação do oleiro, que da
substanciai; mas que todavia o reconhe­ mesma massa faz vasos de honra, e vasos
ciam d’uma natureza similhante. de ignominia.
SEMi-PELAGiANisiio— Sómente a palavra Emfim, tinha para si o sancto que, se se
basta para se entender que era o pelagia- créssc ser o homem arbitrio da propria
nismo adoçado: exporemos a origem d’este salvação, era oífendido o dogma da omni-
çrro. poteucia de Deus sobre o coração do ho­
Obrigados os pelagianos a reconhecerem mem. Se Deus foz quanto quiz no céo c na
successivamcnte o peccado original c a ne­ terra, como faria dependente do homem a
cessidade d’umà graça interior, mas que­ sua salvação? Era, pois, necessario reco­
rendo sempre fazer dependente do homem nhecer uma predestinação independente
a sua salvação e a sua virtude, tinham in­ do homem, sem que aquelle que não é
sistido cm q*ue esta graça devia conceder- predestinado tivesse direito para queixar-
se aos merecimentos. se. Deus, segundo Sancto Agostinho, co­
Já Sancto Agostinho nas suas obras ha- roando os nossos merecimentos, coroa os
vi a deixado os pelagianos sem este ultimo seus dons; aquelles que forem condemna-
recurso; mas o concilio d’Africa nada de- dos, o serão, ou pelo peccado original, ou
ci dira expressamente sobre tal objecto, ou pelos seus proprios peccados. Sc forem va­
sos de perdição, nao devem queixar-se,
1 Natai. Alex. in sac. 13, 14. D'Argen- porque são tirados da massa da perdição
trr, Collect. Jud., t. 1, pag. 272. Rainald, como aquelles que, tirados da mesma mas­
ad an. 1308, n. 9. sa, se tornam vasos de misericórdia, não
9 Phylastr. Har. 54. devom por isso pavoncar-se.
822 SEM
Mas porque razão salva Deus a este, as suas obras; porém muitas pessoas de-
com preferência áqueile? A esta diflicul- consideração, por suas luzes c piedade, se
dado responde Sancto Agostinho que isto offenderam da doutrina do sancto, tendo
é um mysterio, que nào ha em Deus injus­ que elle fazia depender a sorte dos homens,
tiça, que os seus juizos sào impenetráveis, depois d’esta vida, de um decreto absoluta
mas sahios e justos. Na verdade, diz o san­ dc Deus, proferido desde a eternidade. Es­
cto, se Deus salva por graça, nada deve ta doutrina pareceu dura e contraria, prin-
áquelles que nào salva, e sàó condemnados cipahncntc á dos padres gregos, que, obri­
por justiça. gados a disputar contra os manieheus,
Digam-nos os que presumem que Deus marcionitas e philosophos fatalistas, pare­
por esta escolha é acceitador de pessoas, ciam mais oppostos a este decreto de sal­
qual ó o merecimento do tilho do infiel, ou var os homens antes de toda a previsão de
do homem mau que é baptisado, ao passo seus merecimentos.
que o filho de um pac christào c de uma Cassiano, que passara seus dias no Orien­
mãe virtuosa, morre antes que se lhe pos­ te, onde se tinha applicado muito aos pa­
sa administrar o baptismo? Devemos, pois. dres gregos, e com prefercncia a S. João
exclamar com o apostolo: «Oh profundidade Chrysostomo, inquietou-se com este decre­
dos juizos de Deus!» etc. to absoluto; communicou as suas dúvidas,
Que poderão dizer os defensores do me­ examinou-se este decreto, e assentou-se
recimento do homem ao exemplo dc Jacob que Sancto Agostinho, nos seus últimos es-
e de Esau, que Deus escolhera antes que criptos contra os peíagianos, passara muito
fizessem cousa alguma dc bem ou de mal? além do que a igreja decidira, pois que
dirão qn« é o bem ou o mal que Deus ha­ cila nào decidira a gratuidade da graça; e
via previsto que fariam? Mas então nào licou o sentimento de Saneio Agostinho na
havería fatiado S. Paulo com acerto cm di­ classe das opiniões problemáticas.
zer sobro este mesmo exemplo que a difTc- Reconheciam, pois, contra os peíagianos
reuça da sorte dos dous irmãos nào era o pcccado original, e a necessidade d’uma
»bra nem dos seus esforços, nem da sua graça interior, mas olhavam como questão
/onlade, mas da misericordia do D eu s.1 problemática a causa porque esta graça
Sancto Agostinho estabelece os mesmos era concedida a uns, e negada a outros.*
princípios na sua carta a Vital: parece Portanto, lançando os olhos sobre este
principiar aniquilando o livre arbitrio, que formidável mysterio, viam a humanidade
elle compara com o dos.demonios, ensina submergida nas trevas e culpavel, e en­
que nào deve crêr-se que Deus queira sal­ traram a indagar porque razão entre ho­
var todos os homens, e dá differentes ex­ mens uns logravam a graça, ao passo que
plicações para mostrar que esta vontade infinidade de outros careciam d’ella. San­
de Deus nào os comprehende a todos: en­ cto Agostinho unicamente oceupado em
sina ser o que prepara a vontade, e a faz estabelecer a gratuidade da graça, em hu­
querer, o que a muda pela sua omnipo- milhar o livre arbitrio, que e orgulhoso, e
tente vontade: se assim não fosse. que razão em ter o homem dependente de Deus, cria
havería para dar graças a Deus? não poder encontrar esta razão no homem,
Corno as obras de Sancto Agostinho pa­ e a suppunha na vontade de Deus.
reciam destruir a liberdade, e metter os Mas, vista por um lado esta decisão, ain­
homens na desesperação, n*ellas funda­ da ficava obscura: pois que razão ha para
dos alguns monges do monte Andrumet, que Deus queira dar a graça a um antes
concluiram que riào eram reprehensiveis que a outro? Querer é escolher, é prefe­
os infractores das leis. O sancto, para des- rir: entre objectos absolutamente iguaes
enganal-os. lhes escreveu o livro da Correc- é impossível qualquer prefercncia: os ho­
ção e da Gi'aca, aonde confirma estes prin­ mens abysmados na massa da perdição, e
cípios sobre a predestinação, sobre a ne­ antes de haverem feito alguma acção pes­
cessidade da graça proveniente e gratuita, e soal, são absolutamente iguaes. Depois nào
sobre a fraqueza*do homem: diz que Deus póde preferir um d’clles a outro por um
desde a eternidade predestinou os homens decreto anterior ao merecimento pessoal
á salvação, sem alguma previsão das suas de cada um, pois tal preferencia equivoca-
boas obras, e sem motivo algum mais que se com a cega fatalidade, ou com o acaso.
a sua graça e a sua misericordia. Deus quer que todos os homens se sal­
0 nome* que Sancto Agostinho alcançára vem: e como se póde verificar isto, se por
na controvérsia dos peíagianos,- espafhou um decreto eterno o absoluto, tem esco­
lhido alguns para serem salvos sem res­
1 Epist. ad Xist. peito a seus mereeifticntos, e-deixado to-
SEM 823
dos os demais na massa da perdição? Lo­ ti ficou o seu sentimento acorra da gratui­
go, é necessario reconhecer que a* predes­ dade da graça e da predestinação: mostrou
tinação, e a vocação á graça, se fazem cm que era claramente ensinada na Escriptu­
contemplação dos merecimentos do homem. ra, que não era injusta, pois que Deus nem
A Escriptura diz-nos que Jesus Christo devia a graça de vocação, nem o dom da
morreu por todos os homens: assim como perseverança; que, nascendo os homens
todos morrem em Adão, da mesma sorte pcccadores e privados da graça, nunca po­
sào todos vivifieados em Jesus Christo. dia haver proporção entre as suas acções
Não pódc dizer-se que por isto haja en­ e a graça, que é um dom sobrenatural; que
tendido S. Paulo que uma parte do genero a graça e a vida eterna muitas vezes eram
humano podéssc receber a salvação por Je­ concedidas a meninos que não tinham ne­
sus Christo; porque, para haver do ser nhum merecimento, que outros eram por
acertada esta contraposição que elle faz de Deus tirados d’esta vida emquanlo justos,
Jesus Christo com Adão, é indispensável- para prevenir a sua queda; que, por con­
mente necessário que, assim como todos sequência, nem eram os merecimentos dos
os homens receberam de Adão um princi­ homens, nem a presciencia do uso que el­
pio de corrupção e de morte, achem ein les haviam de fazer da graça, os que de­
Jesus Christo um principio de resurreição terminavam ;l Deus o coneedel-a a uns #
e de vida, para o qual se podem habilitar: com preferencia a outros; que a razão da
porque, não estando extincto no homem o prefercncia que Deus dava a um homem
livre arbitrio, clle pódc ao menos conhecer sobre outro, era mysterio; que se buscas­
a verdade da religião, desejar a sabedoria, sem embora as razões d’isto, e que elle as
e dispòr-so para rocebel-a por esle ultimo perfilharia, dado que, nem derogassem a
movimento, que todavia seria esteril e in- gratuidade da graça, nem a omnipotoncia.
sufllcionte sem a concomitância da graça. Não queria, pois, Sancto Agostinho que,
Quando apertavam os semi-pelagianos para defender a gratuidade da graça e da
com a epistola de S. Paulo aos romanos, predestinação, fosse indispensável suppôr
confessavam elles não acharem cousa que que Deus por um decreto absoluto, e sem
os satisfizesse acerca de varias passagens razão alguma, lá desde a eternidade tives­
aa mesma epistola; porém, tinham para si se assentado condemnar uns, e salvar ou­
que o mais prudente era guardarem silen­ tros: a predestinação, segundo Sancto Agos­
cio sobre estes objectos, que o entendimen­ tinho, podia, pois, hão ter por principio nem.
to humano não podia descortinar; e sus­ um decreto absoluto de Deus, nem os me­
tentavam que u sentimento de Sancto Agos­ recimentos dos homens, mas uma razão in-
tinho fazia frustradas as exhortaoões dos teirámonte diversa: pois quem pódc affir-
pregadores, e a edificação publica; que, mar que conhece todos os desígnios de
ainda sendo verdadeiro, deveria orcultar- Deus?
sc, pois era perigoso publicar uma doutri­ Entre o decreto absoluto que alvorotára
na que o povo não alcançava, c que não os semi-pelagianos, e o sentimento que at-
havia inconveniente algum em lhe escon­ tribuia a predestinação aos merecimentos
der. 1 dos homens, na verdade havia um meio;
Como não se definira contra os pelagia- mas os homens de partido nunca o encon­
nos a gratuidade da graça, o sentimento tram entre o seu sentimento, e o de seus
dos semi-pelagianos ficou sendo, pois, um adversarios: pòrtanto. prosperava ainda o
problema, sobre o qual se dividiam sem semi-pelagianismo. Fizeram-se acerrimas,
romperem a união; e o semi-pelagianismo e porfiadas disputas entre os semi-pelagia­
foi adoptado por homens, que as suas lu­ nos e os discipulos de Sancto Agostinho,
zes, assim como a sua piedade, tinham fei­ ao qual defenderam os papas Celestio, Gc-
to celebres; taes foram Fausto, Gcnuado, lazio e. Ilormidas; porém o semi-pelagia­
Cassiano, e outros; e havia além d’isto pes­ nismo todavia dominava nas Gallias, aonde
soas que, sem tomarem partido acerca da a doutrina do Sancto Agostinho era mui
ratuidade da graça, não levavam a hem o impugnada. Vendo, pois, Cesario ainda tal
écrcto absoluto que Sancto Agostinho pa­ o partido que us discipulos do sancto o não
recia adm ittir.2 podiam dobrar, recorreu ao papa Felix ív,
O sancto doutor, nos seus livros a Pre­ o qual lhe mandou extractos das obfas do
destinarão, e o Dom da Perseverança, jus- mesmo sancto, que Cesario sem demora
pôz cm uso.
i 1 Prosper. Ep. ad Aug. Hitar. Ep. ad * Por esse tempo fazia Patricio Liberio em
7 Auq. Orange a dedicação do uma igreja. Cesa­
2 lbid. rio, quo era seu amigo, e que valia muito
24 SET
com elle depois que o curara de certa en­ / skthianos—Era urna scita de gjM jcos
fermidade, partiu para a mesma ceremo­ assTrTTclfainados, porque honra vani parti-
nia, e achou doze bispos que lambem con­ cularmentc a Selh, que criam ser o mes­
correram para o mesmo lim. Practicararn mo Jesus Christo. Reconheciam, como to­
todos sobre as matérias da graça, congre­ dos os gnosticos, um Ente Supremo, im-
garam-se, c approvaram os artigos que ha­ mortal, bemaventurado; porém, persuadi­
viam sido remeltidos a Cesario pelo papa dos de que no mundo havia irrcgularida-
Felix. A esta assembléia ó que se dà o des e imperfeições que nào podiam, no
nome de segundo concilio de Orange, que sentir d’elles, ter por principio um só ente
era composto de doze bispos, c a ella assis­ sabio e todo-poderoso, altribuiram a genios
tiram também oito leigos. a producçào do mundo.
O concilio publicou"vintc e cinco cano­ Tudo o que nos diz a historia dos diver­
nes, que formaram uma das mais bellas sos estados porque tem passado o mundo
decisões que tem dado a Igreja. N’elles se e o genero humano, lhes pareceu suppòr
decidiu o dogma do peccado original, a ne­ que estas potências disputavam entre si o
cessidade, e a gratuidade da graça preve- imperio do mesnio mundo, querendo umas
niente para a salvação; condemnam-se as subordinar os homens, e outras libertal-os;
argucias e torcicollos dos semi-pelagianos, e como estes combates, lhes eram arduos
% e responde-se aos impropeiios que estes de explicar no supposto de ser o mundo
faziam aos catholicos de destruírem o li­ regido por um ente todo-poderoso, e lhes
vre arbitrio, e introduzirem o destino. De­ parecia que as potências que o governa­
clara o concilio que todos os que sào ba- vam o faziam o melhor que era possível,
ptisados devem c podem, se quizerem, tra­ batcndo-sc já com ardil, já com força des­
balhar pela sua salvaçào; que Deus nào coberta: para darem a razão de todos es­
predestinou ninguem á condemnação, c tes phenomenos, imaginaram multidão de
sào excommungados os que levam a affir­ potências aptas para produzirem taes clfei-
mativa, sem que este sentimento possa pre­ tos. Eis-aqui, pois, como isto se passára,
judicar a doutrina d’aquelles que ensinam segundo as suas idéias.
ser Deus quem nos inspira por sua graça Concebiam clles o Ente Supremo como
o principio da fé c do amor, e o author da uma luz infinita: este era o pac de tudo, a
nossa conversão. que chamavam o primeiro homem.
Concluído o concilio, S. Cesario remet- O primeiro homem produzira um filho,
teu o resultado do mesmo ao papa Fclix iv, que era o segundo homem, o o filho do ho­
mas sendo já morto antes que recebesse as mem. O Espirito Sancto, que passeava so­
cartas, Bonifácio n, que lhe succedeii, ap- bre as aguas, sobre o càhos, sobre o abys-
provou estes canones: açha-se a sua carta mo, era, no seu sentir, a primeira mulher,
depois do concilio, ou no principio do Va­ da qual o primeiro homem e seu filho, ti­
rios manuscriptos. nham tido um outro filho, a quem davam
Cesario morreu pelo fim do decimo sé­ o nome de Christo. Este filho sahira de sua
culo, e o semi-pelagianisnio diminuiu in­ mãe pelo lado direito, e se havia elevado,
sensivelmente. Elle se havia feito mais mas outra potência sahira do lado esquer­
possante principalmente por haver affci- do, c tinha descido; esta era a sabedoria,
çoado a si grande numero de pessoas que que se abaixara sobre as aguas, aonde to-
não approvaram o direito absoluto: conde- mára corpo; mas voltando, por assim dizer,
mnado que foi pela Igreja este sentimento, a' si mesmo, sc tornara a levantar, e su­
todas cilas abandonaram o partido do semi- bindo á sua morada eterna, formara o céo,
pelagianismo, que somente olhavam como c finalmenlo largara o corpo, logo que che­
opposto ao decreto absoluto, e que defen­ gou á habitação do Ente Supremo.
dia o livre arbitrio contra os que propu- A sabedoria era fecunda, tinha produzi­
gnavam a fatalidade. 1 do um filho, c este produzira outras seis
potências, ás quacs attribuiam os sethianos
1 Ácerca da historia do semi-pelagianis- as propriedades necessarias para causarem
mo devem têr-se as Ep. 225, ct 226 de S. os offeitos que no mundo se observavam.
Attg.j S. Prosper, contr. Collat.jCarment. de Entre estas potências suppunham desaven­
ingrat. As obras de Fausto. As Conferên­ ças e guerras; c por este incio queriam ex­
cias de Cassiano, Gennade, Tillem ont,}iis t. planar quanto se contava dos estados, por­
Eccles., t. 13, 14, 16. Noris, Hist. Pclag., que o mundo havia passado; teudo que o
I. 2, c. 14 et 'seg. Vossius, Hist. Pelag., I. 6, Deus dos exercitos, a quem davam o tio-
pag. 338. Usserius A nti quit, e. 14. Hist. me de Jaldabaoth. cusoberbecido coin o
L ilt. de France, t. 2 et 3. seu poder, havia dito: «Eu sou o Deus Su-
SEY 825
premo, nenhum ente é mais do que eu.» pulos ignoravam a principio quo Christo
Sua màe, estranhando o seu orgulho, houvesse descido a Jesus. Este fez mila­
lhe disso que o primeiro homem e o filho gres, pregou ser o filho do primeiro ho­
do homem, lhe eram superiores. Irritado mem: os judeus o crucificaram, e eutào
Jaldabnoth cm vingança, chamou os ho­ Christo largou a Jesus, começado que foi
mens, o lhes disse: «façamos o homem á o supplicio.
nossa similhança», e logo formou o homem, O Christo resuscilou a Jesus, que, depois
e lhe inspirou um sopro de vida; immc- da sua resurreição, tomou um corpo glo­
diatamente lhe formaram uma mulher, rioso, e nao foi mais reconhecido por seus
com a qual tiveram tracto os anjos, e d’cs- discipulos: depois subiu ao céo, ao qual
tc commercio nasceram outros anjos. attrahiu as almas bema ventu radas, sem
Jaldabaoth deu leis aos homens, e lhes que d’isto saiba o Creador.
vedou certo frueto. A màe de Jaldabaoth, Quando o espirito de luz que existe en­
para sopear o orgulho de seu filho, desceu, tre os homens se reunir no céo, e formar
produziu uma serpente, a qual persuadiu uma Eon immorlal, será o fim do mundo.
a Eva que comesse do fruclo vedado. Se­ Alguns dos sethianos criam que a sabe­
duzida Eva, persuadiu a Adão; e o Crea- doria se havia manifestado aos homens na
dor dos homens, oITondido pela sua desobe­ figura de serpente; portanto é verosimil
diência, os lançou fóra do Paraizo. que lhes chamassem ophitas por irrisào,
Adão c Eva, opprimidos da maldição do como se elles adorassem uma serpente.
Creador, não tiveram filhos: a serpente Houve ophitas differentes dos sethianos, os
desceu do céo á terra, submetteu os anjos, quaes renegavam de Jesus Christo: veja-se
c produziu outros seis, que foram inimi­ o artigo Ophitas. 1
gos dos homens, porque estes a haviam SEVEgp—viveu pouco depois de Taciano,
obrigado a deixar o céo. A serpente para c foi cnefe da scita dos severi anos. A ori­
suavisar a sorte dos homens, os havia es­ gem do bem e do mal era por esse tempo
clarecido com uma luz sobrenatural, por a grande questão que todos se esforçavam
meio da qual acharam o seu sustento, e ti­ por elucidar. Creu Severo que o bem e o mal,
veram dous filhos, Caim c Abel. Caim, se­ que se viam no mundo, suppunham este
duzido pela serpente, matou Abel; mas, submettido a princípios oppostos, dos quaes
emfim, Adão c Eva, favorecidos pela sabe­ uns eram bons, outros maus; porém todos
doria, tiveram Seth e .Norca, d’onde veem subordinados a um Ente Supremo, que re­
todos os homens. sidia no mais alto dos céos.
A serpente conduzia os homens a toda a Como o bem e o mal quasi por toda a
sorte do crimes, ao passo que a sabedoria parte andavam de mistura, Severo teve pa­
impedia se extinguisse a luz entre elles. ra si que entre os bons e maus princípios
Irritado o Creador cada vez mais contra os houvera uma especie de contracto, ou
homens, inundou a terra com um diluvio, transacção, pelo qual tinham posto sobre
que aniquilaria a raça humana, se a sabe­ a terra igual quantidade de bens e de ma­
doria não houvesse preservado na arca a les: e que para a formação do homem, que
Noc. que tornou a povoar a terra. é um connexo de qualidades estimaveis, e
Não podendo, pois, o Creador cxtinpuir viciosas, de razão e de paixòes, haviam co­
os homens, quiz fazer com elles um pacto, operado igualmente os bons e os maus es­
para o que escolheu Abrahào. Moysés, píritos.
descendente do Abrahào, em virtude do Segundo os princípios geraes d'este sys­
mesmo pacto, tirou os hebreus do capti- tema, nada podia importar taulo ao homem
veiro do Egyplo, e lhes deu uma lei: de­ como conhecer distincta mente o que rece­
pois escolheu Sete prophetas; mas a sabe­ bera das potências beneficas, c a parte que
doria lhes fez annunciar a Jesus Christo: n’ellc tiveram as maléficas.
e por este artificio se houve de tal manei­ 0 homem, no sentir de Severo, tinha
ra, que o Deus Creador, sem saber o que duas propriedades principaes e essenciacs,
obrava, fez nascer dous homens, um de que, d’alguma sorte, faziam o seu todo; a
Izabcl, e outro da Yirgem Maria. racional e a sensível: a sensibilidade era o
Fatigada a sabedoria dos desvelos que ti­ principio de todas as suas paixòes, c estas
nha com os homens, se queixou a sua màe, a origem do todas as suas desgraças, âo
a qual fez descer o Christo a Jesus para passo que a razão sempre lhe procurava
que o soccorresse. Descido que foi, nasceu
Jesus da Virgem por obra de Deus, e foi 1 Iram., l. i, c. 34. Epiph. Hcer. 34. Tert.
o mais sabio, o mais puro, o o mais iusto de Pvmscript., c. 47. Phitastr. de H m \, c. 3,
de todos os homens. Muitos de seus disci- de H c e r c . 79. Damasc. Han\ 39.
826 SIM
prazeros tranquillos e puros: Severo creu, ou destrezas, é sem dúvida que allucina-
pois, quo das potências beneficas recebera vam_ quasi todo o povo de Samaria, que
a razão, c das maleficas a sensibilidade. Simão levou as suas attenções, fez entrar
D’estes principio» geraes concluiu Seve­ Dositheo na classe dos homens ordinarios,
ro que, o assento da razão era obra.dos e foi appcllidado a grande virtude de Deus.
entes beneficos, e o das paixões, das potên­ Estando porém Simão no maior auge da
cias maleficas; portanto, os corpos huma­ sua gloria, pregou S. Philippe na Samaria,
nos, desde a cabeça até o umbigo, eram aonde fez milagres, quo desenganaram os
producçào do bom" principio, c o resto do samaritanos. Hcconheceram os prestígios
mau. do impostor, que foi abandonado de mui­
Depois de assim formado o homem de tos; c elle mesmo se maravilhou do poder
duas partes tào contrarias pelo bom e mau que tinham os pregadores do Evangelho;
principio, estes pozcrain sobre a terra quan­porém não os olhando senão como magi­
to podia conservar-lhe a vida: o ente bene­ cos de ordem superior, c o baptismo, ora­
fico o rodeou de alimentos proprios para ções e jejuns, como iniciação para os mys-
entreterem cã organisaçfio do corpo, sem terios do Christianismo, que, no seu pare­
excitarem as paixões; c o malefico, de cer, nada mais eram quo uma espocie do
quanto podia accendel-as, e extinguir n’el- magia, fez-se baptisar, orava, jejuava, e
le a razão. era inseparável de S. Philippe, na esperan­
N ’osta mesma conformidíide, como as ça de lhe apanhar o seu segredo.
desgraças quo afiligem os homens quasi Quando os apóstolos souberam que o '
sempre se vé provirem da embriaguez e Evangelho fôra recebido na Samaria, man­
do amor, d’aqui concluiu Severo que o vi­ daram a ella S. João, e S. Pedro para con­
nho c as mulheres haviam sido producções firmarem os fieis: impozeram-lhos as mãos,
do mau principio; c que, pelo-contrario, a e o Espirito Sancto desceu sobre elles vi­
agua que conservava o homem em socego, sivelmente, o que bem se manifestava pelo
era producçào do bem. dom de prophecia, pelo das linguas, etc.
Os cncratistas ou facionistas, que acha­ Simão, cada vez mais assombrado do po­
ram os princípios de Severo favoráveis ao der dos apostolos, quiz comprar a S. Pe­
seu sentimento, se uniram com elle, e to­ dro o seu segredo, porque não formava
maram o nome de severianos.1 outra ideia do dom dos milagres: S. Pedro
sev er ia n o s — Discipulos de Severo, d e q u e
se horrorisou de tal proposição, e llfa es­
acabamos de fallar. tranhou muito; e Simão, que*temia o poder
Ha lambem severianos assim chamados do Sancto, lhe ppdiu que orasse por elle. 1
por estarem ligados a Severo, chefe dos Com o dinheiro recusado por S. Pedro,
acephalos. comprou Simão uma merotriz por nome
sir.ENCiosos— E a s sim que se d e n o m in a m
Helena, que é verosimil servisse ás suas
o s que n ã o rendem c u lto s e n ã o em s ile n ­
operações magicas, e igualmentc aos seus
cio, passatempos.2 Com esta companhia se re­
simão, por sobrenome o mago— ora da tirou para aquellas provincias, aonde não
villa de Gilton, na Samaria: foi discipulo estava ainda annunciado o Evangelho, e
do magico Dositheo, que se inculcou o Mes­ combateu a doutrina dos apostolos áccrea
sias, annunciado pelos prophetas: fez ex­ da origem do mundo c da Providencia.
traordinarios esforços para sobresahir a Poderá suppôr-se, dizia Simão, que o En­
seu mestre na arte*dos prestígios, e o con­ te Supremo produzisse immediatamentc o
seguiu; pois, segundo affirmam, passava mundo? Se houvesse formado o homem,
illeso por entre as chammas, atravessava prescrcvcr-lhe-ia leis que elle sabia não
os ares como as aves, transformava-se, e havia de observar? Ou se quiz que Adão
apparecia em mil fôrmas diversas; a sna observasse os seus preceitos, qual é então
palavra abria as portas, fazia das pedras o poder d’cstc Creauor, que não preveniu
pão, e produzia arvores. 2 a queda do homem? Não, o Creador não é
Ou estes prestígios fossem eífeitos do um sér todo-poderoso, soberanamente per­
pacto que Simão tinha com os domonios, feito e bom: é um ente inimigo dos ho­
mens, que só lhes deu leis para ter crimi­
1 Euséb. Hist. Eccles.j l. 4, c. 29. Epiph. nosos que punir. Tal é o systema, que Si-
Hcer. 44. mào subrogava á doutrina dos aposlolos,
2 NicephorCj /. 2. Hist. Eccles., c. 27.
Ciem. Recognit, I 2. Al. Basnage nega estes
factos, mas não dá razão alguma da sua 1 Ari. Apost., c. 8 ,v . tO.
opinião. 2 Tert. de Anima, c. 34.
SIM 827
<i pelo qual creu prevenir as dilllculdades tencias para ostentarem seu poder, produ­
que Ilie podessem objeetar. 1 ziram o mundo, e para que os tivessem
Valia por então muito a philosophia pla­ por deuses supremos e incn»ados, retive­
tônica no Oriente, ou, faltando com proprie­ ram sua mãe entre ellos, fazendo-lhe mil
dade, nào era o systema de Platão, que tal­ ultrages, e para que não voltasse a seu
vez não teve nenhum, mas em substancia pae, a encerraram no corpo d’uma mulher;
o sentimento, (pie reconhecia no mundo de sorte que de século em século se tinha
um espirito eterno, e infinito, pelo qual transfundido nos corpos de varias mulhe­
tudo existe. Os platônicos não criam que res, como de um vaso em outro. Esta era
este espirito houvesse produzido immedia- a formosa Helena, que motivou a guerra
tamente o mundo que habitamos; mas ima­ de Troya, c transmigrando de corpo em
ginavam entre o Ente Supremo e as pro- corpo, se achava reduzida á infamia de es­
ducções da terra uma cadeia dilatada de tar exposta cm um logar de devassidão.
espíritos ou de genios, por intervenção dos Eu quiz tirar Helena (festa situação ser­
quaes explicavam todos os phcnoraénos: e vil e desprezível: procurei-a como"o pas­
como estes genios não tinham poder iufi- tor procura a ovelha desgarrada, rorri os
nito, presumiram poder-se resistir a seus mundos, cncontrei-a, c quero reslituil-a ao
esforços por segredos ou encantos; por is­ seu primeiro esplendor.
so se achava incorporada a magia com es­ Assim pretendia Simão justificar o des-
te systema, o qual, segundo se mostra, era còco de associar-se na sua missão com
absolutam ente arbitrario nas suas indivi­ uma merctriz. Beausobre quer que a his­
dualidades: tal foi o que Simão adoptou, e toria de Helena seja uma allegoria que
do qual pretendia capacitar o povo. designa a alma; mas esta opinião e muitas
Suppunha ellc uma intelligcncia supre­ outras mc pareceram mal fundadas, e so­
ma, cuja feoundidade produzira outra in­ mente próprias para mostrar um homem
finidade de potências com propriedades di­ de engeuho, que impugna lestimuuhos po­
versas até o infinito; entre estas potências sitivos por meio de conjecturas especiosas.
tomou para si o logar mais distincto; c so­ Correndo os mundos formados pelos an­
bre esta base estabeleceu todo o seu sys­ jos, dizia Simão, vi que cada um ei a go­
tema theologico, destinado a explicar ao vernado por uma potência principal; que
povo a origem do peccado no mundo, e a estas potências, emulas e ambiciosas, dispu­
do mal, o restabelecimento da ordem,1 e tavam entre si o imperio do universo; que
redempção dos homens. Não. negava, pois, alternadamente exercitavam um poder ty­
Simão estes dogmas, porém asseverava que rannico sobre o homem, prcscrevondo-lhe
os apostolos os explicavam mal: eis-áqui mil prácticas fatigantes e insensatas: con-
qual era o seu systema, cm substancia, que doendo-mc do genero humano, resolvi qyc-
servia de desenho a muitos hereges dos brar-lhe os grilhões, e pòl-o na sua liber­
primeiros séculos; do que bem se collige dade, esclarecendo-o; para este fim tomei
que então se cria o peccado original, e se fôrma humana, c som o ser apparcci ho­
esperava um redemptor. mem entre os homens.
Venho ensinar-lhes serem as differentes
religiões obra dos anjos, que, para terem
DO SYSTEMA DE SIMÃO
os homens debaixo do seu império, inspi­
ravam os prophetas, c persuadiram que
Eu sou, dizia Simão, a palavra, a formo­ havia acções boas c más, que seriam puni­
sura de Deus, o Paracleto, o Omnipotente; das ou recompensadas. Os homens alemo-
sou tudo o que ha cm Deus. Por minha risados com as ameaças, ou seduzidos com
omnipotencia produzi intelligencias dota­ as promessas, se negavam aos prazeres, ou
das do diversas propriedades, e lhes dei entregavam á mortificação: venho despre-
differentes graus de poder. Quando me occupal-os; não ha acção boa ou uiá por si
propuz a fazer o mundo, a primeira d es­ mesma; a minha graça, c não os seus me­
tas intelligencias penetrou o meu desígnio, recimentos, é quem os salva; para isto bas­
c quiz prevenir a minha vontade: desceu, ta crérem em mim* e cm Helena: portan­
produziu os anjos e as outras potências c$- to, não folgo que meus discipulos dei‘ra-
pirituaes, ás quaes não deu conhecimento mem o seu sangue para sustentarem a mi­
algum do sêr omnipotente, a quem devia nha doutrina. Acabado que for o tempo
a sua existência. Estes anjos e estas po- destinado pela minha misericórdia nara
iUustrar os homens, destruirei o mundo, c
i Fragmento das obras de Simão, repro­ não haverá salvação mais que para os
duzidas por Grabe. Spicileg. PP., pag. 308. meus discipulos: as almas d'estes, soltas

i
828 SIM
das prisões do corpo, gosarào da liberdade Simão, mas não se ajustam sobre o tempo.
dos espíritos puros, c ficarão debaixo da Sancto Irenco o S. Cyrillo de Jerusalem
tyrannia dos anjos, todas as que houverem dizem que por ordem do imperador Clau­
rejeitado a minha doutrina.1 dio, e por consequência depois de morto
Tal era a doutrina de Simão: um pres­ Simão: e Sancto Agostinho, pelo contrario,
tigio, que lhe servia de prova, subjugava diz que esta estatua fôra erigida por per­
a imaginação dos seus ouvintes; querem suasões do mesmo Simão: 1 porém alguns
ser seus discipulos; pedem o baptismo, o criticos celebres presumiram que se havia
fogo descia sobre as aguas, c Simão os ba- tomado a estatua do Deus Semon Sangas,
ptisava: 2 por tacs artifícios seduziu in- por uma de Simão, c eis-aqui o fundamen­
numoraveis pessoas, e se fez adorar como to da sua conjectura.
0 verdadeiro Deus. Como conhecia a ex­ Sabe-se que os romanos, á imitação dos
tensão da credulidade, não ignorava que sabinos, adoravam um Semo Sanciis, que
as mais claras contradicções desappare- diziam ser o seu Hercules: e n’cslcs ulti­
cem aos olhos deslumbrados com o mara­ mos tempos foi achada uma estatua na ilha
vilhoso, e que emquanto dura o encanto, do Tibre, aonde S. Justino diz fôra colloca-
a imaginação concilia as idéias entre si da a de Simão, a qual tem esta inscripção,
mais estranhas. Assim sustentava ser onrai- que se avisinha muito á que refere S. Jus­
potente, bem. que fosse sujeito a todas as tino: Semoni Sanco (ou Sango) Deo fidio
enfermidades da natureza humana; dizia- sacrum. Sex. Pompeius Sp. L. Coi. Mnssia-
se a grande virtude de Deus, bem que ar­ nus quinquennalis. Decurio Bidentalis do­
ruinasse toda a moral, e não podesse li­ num dedit. Esta estatua achada no pontifi­
vrar os seus adoradores d’algum dos ma­ cado de Gregorio xra, em 1574, no mes­
les que padeciam. mo logar em que S. Justino diz se levan­
Os discipulos d’este embusteiro perpe­ tara a de Simão Mago, deu occasião a crér-se
tuaram a illusão por meio dos prestígios que S. Justino havia confundido Semon com
que a haviam produzido; e o povo, que Simão, principalmente porque os abrido­
nunca se cansa cm examinar uma doutri­ res muitas vezes punham um 1 por um E,
na que não o violenta, adorava a Simão, e e também se encontra muitas vezes Semon
cria nos seus sacerdotes. Nota S. .Justino Sanctus, assim como Sancus, de sorte que
que pelo anno 15*0 quasi todos os samari- a inscripção* podia ser tal qual a refere S.
tanos e ainda alguns outros, em. diversos Justino, e nada ter de commum com Si­
paizes, reconheciam a Simão pelo maior mão Mago. Entre os authores pagãos não
dos deuses; e no meio do terceiro século se achara rastos d’êste acontecimento, o
tinha adoradores, como se deixa vèr de que apenas seria possível, se fosse verda­
certo author antigo, que impugnava a S. deiro; demais que os judeus eram o odio
Cypriano. de Claudio, e o senado perseguia os ma­
Simão compôz muitos discursos contra gicos, e os exterminava de Roma. Final-
a fé de Jesus Christo, que tinham por ti­ mente, é sem dúvida que a apotheose só
tulo—/15 contradicções—dos quaes Grabe era concedida aos imperadores, e ainda
nos deu alguns fragmentos.3 Alguns dos a esses depois da morte: e como fariam de
discipulos de Simão quizeram fazer seita Simão um Deus durante a sua vida?
separada: um (Testes foi Menandro, que Tillemont sustenta que havendo S. Jus­
variou em parte a doutrina de seu mestre, tino citado este facto na sua Apologia,
e seus sequazes se denominaram menan- dirigida ao senado, e se não fosse verda­
drinos. Veja-se o artigo Menandro. deiro, o leriam logo convencido de falsi­
dade: demais o sancto, continua Tillemont,
cita igualmente na segunda Apologia, e
DA ESTATUA LEVANTADA A SIMÃO
também no dialogo contra Triphon, co­
E A SUA DISPUTA COM S. PEDRO
mo um facto que não carecia de ser pro­
vado; por consequência, continua Tille­
Aflirmam S. Justino e outros padres, mont, os pagãos que podiam convencel-o
que em Roma se levantou uma estatua a de falso, não duvidaram que se houvesse
levantado uma estatua a Simão, e em abo­
1 Iram.j l 1, c. 20. Grab, edit. Mas- no d’estc sentimento cita a M. FIcury, etc.
su et, c. 23. Porém póde responder-se a Tillemont:
Ct/pr. de Baptism. l.° Que as apologias de S. Justino não
3 Dionis, de Divin. nominibus, c. 6,eram obras que o senado emprehendesse
pag. 594. Constit. Apost., I. 6, c. 8, 16.
Grab., Spicileg. PP-, pag. 305. i Justin., Apolog. 1, c. 34.
soe 829
refutar, e portanto nada prova o silencio ^ es­ respeitarem mais do que estes o Sacra­
te em favor do sancto. 2.° Este facto era de mento da Eucharistia. 1
mui pouca importância para ser objecto socialismo—-Todo o homem que ama a
de controversia. 3.° Sendo notorio, como o verdade, deve ter a certeza de a não encon­
inculcam, que razão ha para variarem trar n’aquelles que fogem d’ella, e que não
tanto os padres acerca do tempo em que se distinguem entre si senão na fórma de
a estatua se erigiu, dizendo uns que fòra aborrecel-a e combatcl-a.
vivendo Simão, e outro depois de morto? Em vão se busca a philosophia onde não
Se fosse tào conhecido o acto pelo qual o existe a verdade; c discorrendo os refor­
imperador, e o senado haviam levantado a madores do mundo europeu a tão grandes
estatua a Simão, não se veria n’elle exacta- distancias uns dos outros, em vão se bus­
mente se governava Nero ou Claudio? 1 cará também em suas theorias a philoso­
Também nos parece que Tillemont não phia dos governos, capazes de proporcio-,
tinha os melhores fundamentos para se narem o bem, o bem de todos os bens, que
apoiar com a authoridade de M. Fleury: é a paz e a virtude em todas as classes da
este refere o facto da estatua, analysan- sociedade.
do a apologia de S. Justino; porém não Ninguem desconhece as difíerenças es-
o abona, nem o examina: finalmente, o pa­ senciaes que separam os muitos e diver­
dre Petau, Ciaconio, M. de Valois, Rigault, sos partidos desde o momento 2 em que
Blondel, etc., reconhecem que S. Justino Satanaz parece ter rompido’a triplicada
se enganara.2 cadeia que o retinha no inferno, para inau­
Muitos authores do quinto século refe­ gurar o seu reinado sobre a terra. Em
rem que Simão, havendo-se feito elevar França, em Hespanha, cm Portugal, na
sobre os ares por dous demonios em um Italia* na Allemanha, appareceu uma mul­
carro de fogo, fôra precipitado pelas ora­ tidão de apostolos da civilisaçào, que ado­
ções de S. Pedro e de S. Paulo, e morre­ ptando um novo projecto, e prégando uma
ra da sua queda: porém este facto é apo­ doutrina particular, cada um arrogou a
crypho; porque ainda prescindindo da dif- si o direito de evangelisar a seu inodq a
ficuldade que ha em o conciliar com a renovação de todas as cousas.
chronologia, é certo que a queda de Si­ A historia dos sessenta ou setenta ulti
mão pelas orações de S. Pedro era de mos annos, é onde o espirito observado
grande momento para que houvesse de encontra resolvidos os problemas do egoi
ser ignorada dos christãos, e não se ser­ mo e da ambição, acobertados com o noo
vissem d’ella os apologistas dos primeiros de philosophia.
séculos: e comtudo S. Justino, S. lreneo, Jâ abalisados escriptores vingaram a vei
e Tertulliano, que fallaram da estatua, na­ dadeira philosophia da nódoa feia e as
da dizem d’este acontecimento.3 querosa com que a tem procurado man­
siscidenses —Tinham os mesmos senti­ char essa multidão de seitas immoraes e
mentos que os valdenses, excepto o de irreflectidas; e se hoje nos lembramos de
suas luctas e contendas, é só porque esta
1 Tacit. Anal., I. 2, cap. 7. opposição entre os reformadores é o ca­
2 Petavins, in Epiph. Henr. Valesius, racter mais decisivo da falsidade de suas
ad Euseb., l. 2, c. 13. Desid. Heraldus, in maximas, e a prova mais concludente da
Arnob. et Tert. Rigalt. in Tert. Blondel de nuljidade de seus systeraas de reformas.
Sybilla, c. 2. Vandaie, Dissert, de Orac. É certo que a experientia já tem prova­
Ittigius, Dissert. de D ar., $ect.,i, c. 1. do muito em defesa da humanidade, sedu­
3 Os authores que referem a queda de zida e enganada pelos partidários da refor­
Simão, attribuiram talvez a este impostor ma politica e religiosa: é verdade que com
o que Suetonio diz d’um tal que, em tm po difíiculdade se acha um homem do fino
de 'Nero, se elevou sobre os ares, e cahindo, juizo em toda a Europa; que se não ria de
se despedaçou. Esta conjectura dlttigio não despréso quando os farçantes das escolas
c destituida de verosimilhanr.a: corria tra­
dição antiga que Simão voava; achou-se 1ileus.—Pessoas houve-que julgaram serem
um homem, governando Nero, que presu­ batidas por occasião da victoria que S. Pe­
m ia tei' o segredo de voar, e julgava-se dro alcançara de Simão: mas m o é neces­
que era Simão. Não ha cousa mais ordi­ sario que passemos a fazer reflexões sobre
naria que umas taes combinações. esta pí'ova. Veja-se David de La Roque,
A Paulo IV apresentavam medalhas que, Dissert. de Legione fulminant, pag.Siõ.
du m lado traziam a Nero, e do outro a 1 D upin, X I I I século .
S. Pedro, com esta inscripção—*Petrus Ga- 2 Falíamos do annb 1790.
53
830 SOC
reformistas, cujos ensaios nào teem tido cter de verdade, de que a mesma mentira
outros resultados senão miserias e desgra­ tem querido tirar partido em todos os tem­
ças, pedem para occupar os governos e fa­ pos, como unica segurança da impostura.
zerem aquillo que só d’ellcs se póde espe­ Cubra-os dignominia a s’ua indiscrição e
rar por virtude e graça de suas palavras malignidade; quando todos aborreceram e
e promessas: é indubitavel que Voltaire, desacreditaram a religião, nenhum se pôz
Rousscau, Didcrot, Marat e Uobespierre, em dcsintelligencia com seus camaradas
nào se podem citar sem que sejam maldi­ para resolverem o que dariam aos povos
tos de todos e em todas as partes; assim em troco do Evangelho.
como os seus discipulos occultam çuidado- Unanimes todos os reformistas philoso­
samente a sua origem, dissimulam seus phicos nas operaçóes para derribar a fé,
princípios, e se envergonham hoje dos ab­ dividiram-se puerilmente quando tracta­
surdos da impiedade que os allucinou em ram de fazer fallar essa razão, que procu­
outro tempo, sem poderem explicar a cau­ ravam restabelecer em seus direitos, dis­
sa que serviu de pretexto para não senti­ persando-se em pequenas fracçôes, a fim
rem logo tanto delirio c impostura; mas, de que cada um fosse poi* sua parte fabri­
de que serve tudo isto? Para variar o ca­ car systemas superficiaes, sem nexo, sem
minho, porém com o mesmo objecto, com consistência, e que se destroem por sua
o mesmo fim e com resultados mais fataes, mesma contrariedade, assim como se ridi-
que os já experimentados até hoje. cularisam por falta de intelligencia genui­
Setenta annos de ensaios systematicos na e recta.
de governo, deram tempo para observar É esta a origem do socialismo, que é
as novas creaçoes da ambição e do espiri­ hoje o novo caracter que tomou a reforma
to orgulhoso, material e corrompido. Se­ politica, para continuar a obra da regene­
tenta annos de predicas rcformadoras con­ ração europeia.
tra Christo, contra a sua Igreja e seus mi­ Consumidos os elementos encyclopedi-
nistros, produziram esses monstros de ir- cos sem resultado do utilidade alguma pa­
eligião e de incredulidade contra quem se ra os povos; descridos estes em religião, e
ivanta a imprensa orthodoxa de todo o desvanecidas as illusões creadas pelos phi­
undo, e pede que a religião, tão despre- losophos modernos; multiplicados os males
.da antes e expulsa ignominiosamente dos immensos, prostradas as massas por falta
ovos, fórme uma parte principalissima, de alimento *e força, ha homens que conhe­
lalvez exclusiva na moralisação dos gover­ cem esta situação, e procuram aproveilal-a.
nos e dos governados; e eis-aqui conde- É verdade, e falíamos assim com a fran­
mnada a philosophia impia pelos factos e queza que devemos e que nos é própria
opinião pública, e nào só condemnada por quando escrevemos em defesa da fam ilia
suas consequências, mas também por seus catholica. Os Proudhons, em França, os
princípios e fundamento de seus systemas, Mazzinis, na Italia, e os seus discipulos,
sem exceptuar um só de quantos se teem em Portugal, conheceram que o povo esta­
representado na Europa. va desenganado, farto e enfastiado das fal­
Tomem nota d’is to o s homens sensatos, sas promessas que lhes fizeram; conhece­
e para não serem mais enganados para o ram também que renasce no coração so­
futiiro, nunca esqueçam que a marcha da cial um sentimento religioso que faz sus­
verdadeira philosophia deve ser nobre, pirar pela religião da igreja catholica; lem­
franca, harmoniosa, cheia de vigor e ma- braram-se que todos os povos da Europa
gestade, porque tem por base a mesma uma vez já se levantaram em massa para
verdade, que é eterna, e fallando segundo pedir o impeFio da religião evangélica, e
o nosso pensamento, porque o seu fundo que se não o teem feito muitas vezes, é por­
é a realidade da intelligencia infinita. que o receio do que succedeu então os
Escapou esta consideração tão simples contém e amedronta, porque ainda parece
aos philosophos reformistas, cuja prudên­ a alguns que o imperio do Christianismo
cia e saber tanto se applaudiu em seus não é possível sem a inquisição, porque
melhores dias; 1 e em seu desígnio de sub­ ainda dura a impressão que receberam
stituir ao Christianismo princípios alheios dos philosophos, pela qual olham os paro­
á sua doutrina, nem sequer souberam imi­ chos e os frades como barbaros e cruéis;
tar a unidade, a concordia e aquelle cara- conheceram, finalmente, que no dia em
que se realisasse essa especie de receio
í . is to é, h a tres o u quatro annos que se que inspira, e que sem motivo nem fun­
levantou co n tra elles o sy ste m a co m m u n ista damento algum se diz despotismo sacerdo­
tal, era o ultimo de suas representações
e socialista.
soc 831

philosophicas; por esta causa se adianta-' por uma vestidura séria c se inculcam
ram para adular os povos, segundo o sen­ mestres d’urna doutrina verdadeiramente
tido religioso que fôrma seus desejos, e social c civilisadora, e favorecidos pelas
lhes disseram: «Tendes razão; todos os circumstandas que sustentam um desgos­
reformistas foram uns miseráveis ímpios, to e um tedio quasi geral, promettem com
que vos enganaram para vos tornar cada emphase propria dos charlatães sanar to­
vez mais infelizes; por isso nos encarrega­ das as doenças, e servindo-sc da hypocrisia
mos da vossa defesa; nossa unica divisa de Janscnio, systematisar um governo pa­
será a fé christà, com ella vos daremos o ternal, segundo o modo que ensina e dis­
réinado da justiça, segundo Christo, por­ põe o Evangelho: esta farça diabolica póde
que o socialismo que vos ensinamos, é o produzir consequências de uma natureza
mesmo que ensina o Evangelho.» tão particular, que obscurcça o fogo des­
Infeliz Europa! se teus males tc obrigam truidor da impiedade e o egoismo a quem
a solTrer estes novos medicos, tua agonia ella substitue.
nâo será longa, é verdade, porque morre- Principiaremos por mostrar que ainda
rás ou serás a escrava do mais vil dos ty­ não ha um século que pompeu na Europa
rannos. Só ha um caminho para remediar a grande revolução, que banhou toda a sua
os males presentes e futuros, é a religião terra em sangue*, e cscandalisou o mundo
catholica ensinada por seus legitimos pas­ com seus delidos; tudo isto cm nome da
tores e ministros, practicada com inteira humanidade e da fraternidade que se acha­
liberdade e independcncia, segundo o mo- va vilipendiada, escravisada ou desconhe­
<lo disposto por Jesus Christo. Então se cida por o ascendente c ensino dos princí­
verá que o socialismo de hoje é uma im­ pios catholicos; de sorte, que então, e mui­
postura, como o vamos demonstrar no se­ to mais depois, a religião christà foi olha­
guinte capitulo. - da como o unico inconveniente que encon­
trava a humanidade para reconstruir-se
felizmente pela fraternidade natural, e o
O SOCIALISMO D ^O JE É UMA IMPOSTURA
Evangelho o inimigo da civilisação, do
EM SUA ORIGEM E EM SUAS CONSEQUÊNCIAS
adiantamento c do progresso. Assim era-
prchenderam os reformadores da rccon-
A ambição c o orgulho, que foram o strucção das nações europeias, começando
mananciardas desgraças do genero huma­ por atacar a religião, despojar a Igreja
no, continuam destruindo o germen da fe­ perseguir seus ministros, escarnecer d-
licidade, preparada por Deus para a espo­ doutrina evangélica, corrompendo as mas
l i e e para o individuo, ou para o homem, sas c os povos. Poréin agora que os pove
para as familias, para as nações e para to­ descobriram os seus embustes e artifícios
do o inundo. e estão dispostos a condemnar todos os de
Analysando-se cuidadosamente todas as li rios c farças ridiculas com que teem sido
theorias e systemas que desde a mais remo­ enganados, se apresentam os novissimos
ta antiguidade se apresentaram succossi- farçantes cm scena politica, e, acobertados
vamente para fortificar os direitos, acções com a hypocrisia a mais refinada, se col-
e interesses, com despréso dos princípios locam apparentcmcnte do lado das victi­
indefectíveis da verdade eterna, achar-sc- mas; maldizem os seus verdugos, e que­
hà sempre uma identidade palpavel, por rendo aproveitar-se do sentimeuto religio­
mais que as palavras se alterem em sua so que renasce como nnieo recurso c alli-
essencia, em seu objecto e na injustiça de vio da humanidade afflicta, annunciam o
•suas pretenções. Seriamos, demasiado ex­ seu systema social como filho da religião
tensos se pretendessemos reproduzir quan­ do Evangelho, e proprio dos que professam
to a historia nos apresenta em confirmação e estimam o Christianismo.
(Testa verdade, e tardaríamos muito em Tal ó a sagacidade com que o socialis­
chegar ao ponto principal, que hoje nos mo pretende substituir a philosophia im­
interessa analysar para descobrir o ab­ pia, e enganar novamente os incautos ser­
surdo do socialismo, que nada menos pre­ vindo-se da doçura e caridade que a Igre­
tende que inculcar-se ensinado c robuste- ja aprendeu do Homem Divino, como se
cido com a doutrina do Evangelho. suas loucuras se podessem irmanar com
É esta uma scena que observando-se so a fraternidade e amor que o Evangelho
no espaço indefinido das idéias, move à recommenda aos christãos. Entremos ^ e s­
compaixao e ao riso dos homens sábios e te denodado labyrintho de novissimas idéias
de coração recto: mas quando se vô que e descubramos o artificio cora que se acha
os actores trocam a vestidura theátral disposto o seu systema.
832 soe
Nenhum methodo nos parece mais pro­ e que já nao basta para satisfazer as suas
prio para descobrir o sophisma, que apre­ torpes e corrompidas paixões; ideia bem
sentar com claridade a doutrina sà da Igre­ distincta por certo do que encerra a dou­
ja, segundo o Evangelho; foi a isto que trina de Jesus Christo, quando pela cari­
nos propozemos, escrevendo o presente ar­ dade pretende formar uma familia de ir­
tigo. mãos; porém, sem ameaçar a distineção ci­
vil e social dos povos, pelo contrario, for­
tifica da mesma maneira que a alma con­
AMARÁS A DEUS E AO PROXIMO serva os diversos membros do organismo
COMO A TI MESMO 1 em sua actividade própria para obrar seni
confusão.
Pouca reflexão basta para conhecer a
Instituindo Jesus Christo uma sociedade grande diflerença que existe entre a poli­
religiosa encarregada de ensinar a todos tica da mancommunidade social, syslema-
os homens estes preceitos, fundou uma so­ tisada por Proudhon e Mazzini, e Na que
ciedade universal, que de maneira alguma procede da caridade sancta e evangélica.
tem o menor ponto de contacto com as pre- Aquella representa o espirito de familia,
tenções ridiculas do socialismo moderno. E de corporação e de provincia, como op-
verdade que niíiguem póde crêr na fé da posto ao espirito nacional, e por consequên­
Igreja sem a fazer extensiva á sociedade cia pretende desenvolver um estado entre
catholica, e ainda dizemos mais, porque a a extensão dos sentimentos mais naluraes
caridade, que é a pleniludeda lei, - faz pal­ e legitimos, e tornal-o livre com cidadãos
pitar o coração, aonde se asyla pelo bem escravos, forte com membros debeis, e
de toda a humanidade. Esta'palavra 3 in­ cheio de vigor e vida povoaudo-o de cadá­
dica com bastante claridade o dogma ca­ veres. Esta, pelo contrario, nada destroe
tholico, e lembra aos homens que são uma de quanto naturalmente existe; o que faz
mesma carne e membros de um mesmo é trabalhar para que cada cousa occupe o
?orpo, cuja vida jamais se completará em- seu logar e concorra para a obra de Deus.
manto a divisão reinar entre elles. Assim Este quiz que os homens fossem mem­
? que para. os corações verdadeiramente bros de uma familia, e o bom senso chris-
;atholicos existe um amor e interesse pre- tão começa por consagrar estes direitos,
Jominante, que é o da humanidade, a quem determinando que cada familia goze de
se subordinam todos os eflcitos e interes­ toda a liberdade d’acção que seja compatí­
ses pessoaes. vel com a liberdade e direitos das mais
Por isso se lhes perguntarmos qual é o familias: a ordem natural exige imperio­
partido politico a que pertencem, devem samente a associação de umas familias
responder com Tertulliano: Nós somos es­ com outras, formando grupos distinctos; o
tranhos a vossas facções e contendas... por­ bom senso christão quer que cada grupo
que nossa primeira divisa é a republica do ou communidade tenha toda a liberdade
genero humano. d’acçãoque seja compatível com a das ou­
D’este cosmopolitanismo creado pelo Evan­ tras communidades. O bem d’estas exige
gelho, resulta um novo direito social, cujo que se circumscrevam a um logar deter­
primeiro caracter consiste em regular os minado, chamemos-lhe provincia ou depar­
deveres não só de homem a homem, mas tamento; o bom senso christão ensina que
também de familia a familia, de nação a cada um gosará de tanta liberdade quanta
nação, de cada individuo com todos, e de seja compatível com a das outras provin­
todos com cada individuo, de sorte que re­ cias ou departamentos. O bem das provin­
sulta uma verdadeira fraternidade, sem cias exige que debaixo da influencia de
que por ella se extinga a nacionalidade, certas affinidades se reuna e forme um
ou sem que a unidade social venha a ser corpo moral que se chama nação ou povo,
o mesmo que a unidade religiosa. cuja circumscripção está determinada por
Êis a pretenção estúpida do pantheismo condições geographicas ou historicas, e 0'
socialista, que pretende hóje sacrificar a bom senso christão consagra e defende o
ihdependencia como sacrificou antes os principio de sua independencia, com tanto
direitos das familias e communidades ao ue seja compatível com a liberdade e vida
ídolo de sua ambição, que chamou estado os mais povos e nações, e condemna essa
politica impia e homicida, que pretende ti­
1 S. Matheus, c. 22, v. 39 e 40. / rar aos. povos e nações a sua liberdade e \
2 S. Paulo aos romanos, c .1 3 , v, 10. vida propria.
3 A caridade. Se a existência e prosperidade das na-
v
soc 833

ções pequenas exige que se unam pelo la­ pomposas c bem soantes pronunciadas pe­
ço federal nos limites marcados pela natu­ los inimigos da religião, se as palavras hu­
reza,’ o bom senso christào respeita os es­ manidade e fraternidade entre os indivi­
tados confederados o maldiz os verdugos duos da nossa especie, que teem servido
que os pretendem destruir pela divisão, de pretexto aos reformadores até hoje, não
ou por uma absorpçào suffocante, que au­ tiveram outro sentido senão fazer que to­
gmento o espaço de seus infinitos praze­ dos concorressem a satisfazer o egoismo
res. d’uns tantos hypocritas viciados c corrom­
Ainda mais: se o interesse manifesto pidos: é bem certo que só variam os ad o­
dos povos d’um mesmo continente consis­ res quando hoje se appella para a humani­
te na boa harmonia d’uns para com ps ou­ dade e fraternidade dos povos, a fim de
tros, concorrendo a melhorar sua condição apresentar em sccna outros novos patriar­
moral c material por uma troca fraternal chas, tão cheios de hypocrisia c maldade
de suas luzes e de seus productos agrico­ como os primeiros, c os que depois lhes
las e industriaes, a razào christà não vê succederam.
iVestcs grupos continentaes uns aggrega- Não ha mais que um systema de orga-
dos fortuitos c fatacs, mas sim que são dis­ .nisaçào social, justa, bcnciica c universal,
postos pela Providencia para formar a cujos princípios appareceram no. Evange­
unidade religiosa, fazendo que os homens lho o cujas fôrmas se apresentam na Igre­
se assimilem ao seu divino lypo pela sub­ ja, parochia, diocese c christandade; eis-
missão á lei de Jesus Christo, e satisfaçam aqui uma organisarâo trina da sociedade
as suas necessidades por um tributo pro­ religiosa: familia, nacionalidade e humani­
gressivo c mais intelligente, para que vão dade; eis-aqui um socialismo evangélico,
accommodando os progressos da natureza conforme cm tudo ao modello da socieda­
material ás necessidades da especie. de religiosa que fundou o Verbo divino.
E assim pelo estudo comparado do di­ A verdade sancta do Christianismo e a
reito divino, provado por factos sobrenatu- pureza da moral do Evangelho, não neces­
raes, e manifestado pelo eneadeamento dos sitam de novas provas para se apresenta­
naturaes, a razão se eleva até conservar o rem ao mundo como a unica taboa de sal
sysfema humanitário pelo qual se conser­ vação que a misericórdia de Deus olferec
vam todas as existências, e se. aperfeiçoam, aos mortaes desterrados pela culpa, e
conformando-sc á primeira lei fundamen­ unica lei reguladora de suas acções e di
tal, que se resume ifestas palavras—obe­ reitos. Apesar d’isso, a impiedade que a
diência e amor, obediência e caridade. tem combatido nos ultimo» séculos, vem
Quem pôde duvidar que estas duas vir­ hoje a dar um testimunho público que a
tudes civilisam os povos, assim como o or­ confirma mais e mais no meio do furor
gulho e o egoismo os einbrutecem, levan­ dos excessos e vicios.
do-os a um estado similhante ás hordas Que quer dizer esse empenho de recon­
mais barbaras e selvagens? Os factos con­ struir novamente os povos da Europa, sys-
firmam o que annunciava o espirito de tematisando toda a politica debaixo de
Deus quando disse que a familia dos ju s­ idéias que se querem attribuir ás maxi­
tos vive da obediência e do a m o r.1 mas e princípios evangélicos? Não ha mui­
Obedecer é o mesmo que escutar a um to que em nome da humanidade, da liber­
mestre capaz de nos guiar pelo caminho dade e do progresso se condemnava esta
da verdade; estè mestre é Deus, e a sua religião sançta, se proscrevia o seu culto,
igreja a quem dirige o mesmo Deus: amar se perseguiam os sacerdotes c demoliam
é desejar a todos os homens o bem e a fe­ os templos. Tanto no norte como no meio
licidade: eis-aqui as grandes virtudes theo- dia da Europa se arvorou uma bandeira
Jogaes, a fé e a caridade, pelas quaes se infernal, em que se liam estas palavras fa-
fôrma o plano da sociedade universal, se­ taes: «Em nome da civilisaçào fica ana-
gundo o Evangelho, cujo plano é digno do thematisado o culto catholico.» A reforma
nosso pae, que está nos céos, c bem diffe­ social não é possível emquanto senão acabar
rente do que se pretende deduzir d’elle, e com o Christianismo; «guerra de morte aos
se fixa na ruina de toda a religião, de toda principies e homens apostolicos.» E hoje
a patria e de toda afám ilia. Tal é a theo- quer-se fundar uma republica confedera­
. ria do novo socialismo europeu. da de todos os homens c povos, e organi-
A experienda de tres sedulos ensina á sal-os a Mazzini, com estes mesmos prin-
geração presente o que valem as palavras cipios da religião que elles teem conde-
mnado, e depois qup as massas teem sido
1 Ecclesiastico, c. 3, v. i . enfraqüecidas na fé, e viciadas até o pon-
834 SOC
to de familiarisarem-se com os excessos vincias c aos estados a liberdade da acção
que nào admittem as tribus, ainila as mais para procurar o bem-estar e a felicidade.
selvagens, dos homens mais barbarus c in- Eis-aqui o socialismo do Evangelho, que
civis. condemna esse furor politico e que será
Pouco rellexiona quem nào descobre em uma verdade no momento em que se per­
tudo isto um successo providencial, que mitia obrar com independencia aos homens
dará resultados favoráveis á humanidade, a quem disse Jesus Christo—Ide e prègat
depois que o fogo revolucionário consumir o meu Evangelho por lodo o mundo.— 1
os miasmas fetidos da escola reformadora, so c in ia n ism o — Doutrina dos socinianos,
que começou ha mais de tres séculos a da qual são olhados como authores Lelior
abalar os alicerces sociaes, c os agitou até e Fausto Socino, e que tem a sua origem
que appareceram os patriarchas do socia­ nos princípios da reforma.
lismo.
Ê certo, sim, é certo que a religião de
Jesus Christo recebeu e conserva a vida DA ORIGEM DO SOCINIANISMO
de todas as sociedades do mundo; é certo E DO SEU PROGRESSO
que ao atacal-a, a impiedade philosophica ATÉ Á MORTE DE LELIO SOCINO
tornou impossivcl a ordem e a paz de todo
o bom governo; é assim mesmo certo que
a agonia pesada e aíDictiva da Europa in­ Luthero havia atacado a authoridade da
teira nào se concluirá cmquanto que a re­ Igreja, da tradição, e dos sanctos padres;
ligião lhe nào applique os seus medica­ a Escriptura, no sentir d’este theologo, era
mentos e com elles restitua a força de que a unica regra da fé, e cada particular o
carecem suas cabeças, e seus membros, juiz da Escriptura. Entregue o christào a
isto é, os governos e os governados; porém si mesmo na interpretação da Escriptura,
isto nunca se conseguirá pelo caminho que nào teve mais guia quê os seus conheci­
pmprehenderam Proudhon, Mazzini, e com­ mentos, e cada um dos presumidos refor­
panheiros; o seu systema é immoral e im­ mados sómente achou n’ella o que era
pio, os seus passos anti-sociaes e anti-ca- conforme ás opiniões e idéias que linha
tholicos, as suas lendencias se dirigem ao recebido, ou aos princípios que elle mes­
interesse pessoal, ao egoismo: adornando mo havia para si formado; e como quasi
este com bellezas apparentes, que debaixo todas as heresias não foram outra cousa
de diversas condições originaram a pobre­ mais que falsas interpretações da Escri­
za, a miseria e oscrim es, que pesam hoje ptura, quasi todas se reproduziram n’u m '
sobre todas as classes da sociedade, e mais século em que o fanatismo e a licença ti­
particularmente sobre a dos trabalhadores nham derramado pela maior parte da* Eu­
e proletarios, não é possível que dê resul­ ropa os princípios da reforma. Viram-se,
tados diversos. pois, sahir do seio d’esta seita homens que
A sociedade universal é possível, já foi accommetteram até os dogmas que Luthe­
conhecida de facto, seu principio consti­ ro respeitára; como a Trindade, a divinda­
tutivo existe, elle é a alma e a vida do de de Jesus Christo, a eflicacia dos sacra­
Christianismo, com elle os homens se unem mentos, e a necessidade do baptismo. (Ve­
e amam como irmãos, porque a isso os jam-se os artigos Luthero, e as seitas que
obriga este preceito—Amarás o teu 'proxi­ sahiram do lutheranismo—Anabaptistas, e
mo,— que quer dizer amarás a todos os Arianos modernos.)
homens—como a ti mesmo;— com elle se Porém estas seitas, que eram pela maior
estabelece e consolida a ordem e a paz, parte nascidas do-fanatismo e da ignorân­
porqpe vivifica todas? as existências, res­ cia, divididas entre si, enchiam a Allema-
peita todos os direitos, e consagra todos nha de divisões e turbulências.
os deveres; condemna a cada individuo de Emquanto estas dilaceravam a Allema-
fazer o que é util, e prohibe de fazer o que nha, os princípios da reforma, levados a
prejudica a outro individuo de sua espe- paizes em que o fogo do fanatismo não
cie; permitte ás familias melhorar a sua accíendia os animos, vecejavam, por as­
condição, e aos estados augmentar a sua sim dizer, e arraigavam-se n’aquellas so­
riqueza e bem-estar toda a vez que não ciedades, que presumiam de raciocinar.
offendam os outros estados è familias em Quatro pessoas das mais distinctas por
seus interesses respectivos, e nunca autho- sangue, titulos e empregos, fundaram em
risa o individuo, familia, nem o estado a Viceucia, cidade do estado veneziano, em
obrar em prejuizo dos-outros, d o u tr a sor­
te concede ao homem, á família, ás- pro­ » AG
soc 83 5
1546, uma como academia, para n’cl!a se dou prender alguns socios, como Lelio So-
conferir sobre os pontos da religião, par- cino, Bernardo Okin, Pazuta, Gentilis, etc.,
ticularmcnle aquellcs que então faziam os quaes se refugiaram na Turquia, Suis-
mais ruido. A nuvem dc confusão que co­ sa, e Allcmanha.
bria quasi toda a Europa, abusos grossei­ Os chefes da presumida reforma não
ros e oíTensivos, que sc tinham concentra­ eram menos adversos que os christãos aos
do em todos os estados, e as superstições novos arianos, e Calvino havia feito quei­
e crenças ridiculas ou perigosas que en­ mar Serveto: portanto não podendo os des­
tão grassavam, fizeram persuadir a esta terrados de Vicencia ensinar livremente
sociedade que a religião carecia de refor­ os seus sentimentos n’aquelles logares, em
ma, c que o meio mais seguro para des- que o magistrado obedecia aos reformado­
embaraçal-a das falsas opiniões, era não res, sc acoutaram emfim na Polonla, aon­
admittir mais que o que ensina a Escri- de os novos arianos os professavam publi-
ptura, visto que esta por confissão do todos camcnte, apadrinhados por varios senho­
encerrava a palavra ae Deus. res polacos, por clles seduzidos.
Como esta sociedade blasonava de eru­ Tinham igrejas e escolas; e congrega­
dição e de philosophia, explicou a doutri­ ram synodos, nos quaes formaram decre­
na* da Escriptura, segundo as regras da tos contra os que defendiam o dogma da
critica, que a seu modo tinha formado, e Trindade.
não admittiu como revelado senão o que Lelio Socino deixou a Suissa, e refugian­
n’ella se via expressamente, isto é, o que do-se entre os novos arianos, lhes commu-
a razão alcançava; segundo o qual metho­ nicou o gosto da erudição e das linguas, os
do, reduziram o Christianismo aos artigos princípios da critica, e a arte de disputar:
seguintes: escreveu contra Calvino, fez commentarios
Da um Deus Altíssimo, que creou todas sobre a Escriptura, e ensinou aos anli-tri-
as cousas pelo poder do seu Verbo, e que nitarios a explicarem n’um sentido figura­
pelo mesmo as governa. do e allcgorico as passagens que os refor­
O Verbo é seu Filho, e este é Jesus de
mados lhes oppunham, para os obrigaren
Nazareth, Filho de Maria, verdadeiramen­ a reconhecer a Trindade e a divindade d
te homem, porem superior aos outros ho­ Jesus Christo. Elle teria feito mais ava
mens, e gorado dc uma Virgem por obra tajados serviços ao novo arianismo se
do Espirito Sancto. morte não o surprendera em 16 do mart
Este Filho é o promettido por Deus aos de 1562, em Zuric. Seu sobrinho Faust.
antigos patriarchas, e por ellc dado aos Socino ficou herdeiro dos seus bens e dos
homens; é o que lhes annuirciou o Evan- seus escriptos.
elho, e mostrou o caminho do céo morti-
cando a sua carne, e vivendo piedosa-
mente: morreu por ordem de seu Pae pa­ DO SOCINIANISMO
ra nos alcançar a remissão dos peccados; DEPOIS QUE FAUSTO FICOU SENDO O SEU CHEFE
resuscitou pelo poder do mesmo, ê está
glorioso no céo.
Aquelles que estão submettidos a Jesus O nome de Lelio Socino, e as cartas que
de Nazareth são justificados da parte de escrevia á sua familia, fizeram nascer mui
Deus, e os que n’elle tem piedade, recebem temporã em Fausto Socino a paixão da
o dom da immortalidade, que perderam controversia, e o desejo de se distinguir
em Adão. Só Jesus Christo e o Senhor, é n’ella: applicou-se com grande ardor á
o chefe do povo que lhe está sujeito, e o theologia, e na idade de vinte annos se
juiz dos vivos e dos mortos; e tomará a creu em estado de erigir-se mestre, e de
apparecer entre os homens no fim dos sé­ formar um novo systema de religião. O
culos. seu zelo, ainda mal sazonado, o levou tão
Eis-aqui os pontos aos quaes foi reduzi­ longe que, não contento de dogma tisar com
da a religião christã pela sociedade de Vi- os seus parentes e amigos, o quiz fazer
cencia; a Trindade, a consubstancialidade nas assembléias, xem que lhe davam entra­
do Verbo, a divindade de Jesus Christo, etc., da o seu entendimento o qualidade. Infor­
não eram no sentir da mesma sociedade mada porém d’isto a inquisição, quiz pren­
mais que opiniões tomadas da philosophia der toda a familia de Socino: apanhou al­
dos gregos, e não dogmas revelados. guns, q outros salvaram-se como poderam.
Os conciliabulos de Vicencia não pode- Fausto foi um d’estes, o qual tendo cerca
ram ser tão occultos, que deixassem de de vinte e tres annos, partiu para Lyon,
chegar á noticia do ministerio; este man­ d’onde, havida a noticia dà morte do tio,
836 SOC
e quo lhe deixara os seus escripios, foi lo­ lhe concedeu; que elle não passa d’um ho­
go para Zuric a buscar a herança, princi- mem, o qual, pelos dons com que o céo o
palmente os papéis, e com este funesto preveniu, é nosso Mediador, nosso Pontifice,
thesouro voltou para a Italia. O seu no­ nosso Sacerdote; que não devemos adorar
me, nobreza e inlclligencia o fizeram lo­ mais que um Deus sem distincoào de pes­
go mui acceitc na corte de Francisco, gran- soas, nem nos embaraçarmos em explicar
duque de Florcnça, aonde a galantcria, os quem é o Verbo, de que modo procede do
passatempos e a ambição o occuparam in­ Pae antes de todos os séculos, e como se
teiramente por espaço de doze annos; mas fez homem; que a presença real da divin­
passados estes a paixão da controversia dade e da humanidade de Jesus Christo na
insensivelmente foi avassallando as outras, Eucharistia, assim como a efficacia do ba­
de sorte que Fausto renunciou os empre­ ptismo para apagar o peccado original, de­
gos, e formou o projecto de correr a Eu­ viam olhar-se como fabulas forjadas na
ropa a fim de ensinar a doutrina de seu imaginação humana, etc.
tio, e a sua. Agradou summaihcnte este desenho de
Depois de varias peregrinações, chegou religião a homens que só se haviam sepa­
•em 1574 a Bazileia, aonde se demorou rado da crença das igrejas reformadas por
tres annos empregado unicamente nas ma­ não quererem reconhecer como ensinado
terias de religião e controversia, que estu­ na Escriptura senão o que elles compre-
dava com preferencia nos escriptos de seu hendiam. Os unitários, que faziam o par­
•tio, cujos sentimentos adoptâra: querendo tido dominante entre os inimigos da divin­
porém cnsinal-òs, veio a ser odioso aoslu- dade de Jesus Christo, o aggregaram ás
theranos, catholicos e protestantes, e en­ suas igrejas, e seguiram suas opiniões;
fastiado das contradicções que soíTria, pas­ muitas outras os imitaram, de sorte que
sou á Transylvania, e por ultimo á Polo- Socino veio «a ser o chefe de todas estas
uia, pèlo anno de 1579. igrejas.
N’esta haviam feito grandes progressos Por meio das instrucções e disputas
s anti-trinitarios, ou os novos arianos, que d’este novo chefe, entraram a luzir todas,
Ui tinham fundado muitas igrejas e escó- e os protestantes e calvinistas se alvorota-
ils, e gosavam de inteira liberdade: porém ram. Cincoenta ministros protestantes, con­
ioda* estas igrejas variavam na sua cren­ gregados, chamaram os ministros princ-
ça, e quando Fausto chegou á Polonia, zowinos, para com elles pactuarem a re­
formavam em certo modo sociedades diffe­ união; mas aquellcs que já haviam tomado
rentes, contando-se até trinta e duas, que partido por Fausto, os conduziram ao sy­
sómente concordavam em não olharem a nodo, e os presumidos reformados não se
Jesus Christo como verdadeiro Deus. animando a fazer cara a um adversario
Fausto Socino quiz aggregar-se'a uma como Socino, quasi todos largaram o syno­
d’ellas, porém os ministros que a regiam, do, sob color de que lhes não era perrnittido
.inteirados de que tinha muitos sentimentos lerem conferendas, nem sociedade algu­
alheios dos que elles professavam, o repel- ma com pessoas que seguiam os erros dos
liram. Então afiectou não querer associar- ebionistas, samosatianos, arianos, e de quan­
se em nenhuma, testimunhando porém ser tos n’outro tempo haviam sido excommiín-
amigo de todos, para melhor os trazer ás gados pela Igreja.
suas idéias: dizia-lhes que, na verdade, Volano, Nemojonio, Paíeologo, e alguns
Luthero e Calvino haviam feito notáveis outros menos escrupulosos, ou mais arro­
serviços á religião, que se tinham dirigido jados. quizeram questionar com Socino pes-
com muito acerto para abaterem o templo soalniente: publicaram theses, que foram
do Anti-Christo de Roma, e dissiparem os defendidas no collegio de Posnania, aonde
erros que elle ensinava, mas que devia se achou Fausto Socino. Alli pretenderam
assentar-se em que nem elles, nem os que os presumidos reformados sustentar a di­
se limitavam ao seu systema, haviam ainda vindade de Jesus Christo; mas valendo-se
•obrado cousa alguma para reedificarem da tradição, dos antigos padres e dos con-
o verdadeiro templo de Deus sobre as rui­ cilios, Fausto Sociuo oppôz a estas provas
nas d o d e Roma, e para renderem.ao gran­ quanto os protestantes tinham objectado
de Deus o coito que lhe é devido. aos catholicos sobre a tradição e sobre a
Para se ultimar isto, dizia Socino, se ba Igreja, para justificarem o seu scisma. «Os
.de estabelecer como a base da verdadeira padres e concilios podem enganar-se, di­
religião que não ha mais que um só Deus; zia Soqino, e com eflfeito se teem enganado
que Jesus Christo sómente é seu Filho por algumas vezes;* entre os- homens não- ha
adopfão, e pelàs prerogatiyaS’ que Deus: juiz que tenha aiithoridadè infallivel e so-
soc 837
berana para decidir cm materias de fé: Parte dos socinianos entrou na igreja
somente á Escriptura pertence designar os catholica, muitos uniram-se aos protes­
objectos da nossa crença: em vão, pois, mc tantes, mas o maior numero retirou-se
citaes a aulhoridadedós homens para me a Transylvania, Hungria, Prússia Ducal,
assegurar do ponto mais importante da re­ Moravia, Silesia, Marcha dc Brandcburgo,
ligião, qual é a divindade de Jesus. Christo.» Inglaterra c Hollanda: assim se livrou a
Conheceram os reformados que, para Polonia d’esta seita, depois dc a ter sup-
rebater Socino, careciam de outros meios, portado por mais dc ccm annos.
e assim o accusaram de haver ingerido nos Em todos os estados em que se refugia­
seus escriptos maximas sediciosas. A pa­ ram, tiveram os socinianos poderosos ini­
ciência, coragem, c manha de Socino, o migos, de sorte que não só nao fizeram es­
fizeram triumphar de seus adversarios: tabelecimentos, mas unidos contra ellcs o
sem embargo dos revezes que soffreu, ti­ poder ecclesiastico e o civil, por toda a
nha grande numero de discipulos entre as parle foram condcmnados pelas leis eccle­
pessoas de qualidade, e por fim obteve a siasticas e do Estado. Comtudo, como as
infeliz satisfação, que tanto havia appete- leis que os proscreviam não refutavam os
cido. Todas as igrejas da Polonia e Lituâ­ seus princípios, estes sc foram conservan­
nia, tão differentes em prácticas, em mo­ do em segredo nos estados que baniram
ral e em dogmas, e que unicamente se o socinianismo, c muitos dos reformados
accordaram em não crerem que Jesus em Inglaterra, e pripcipalmente em Hollan
Christo fosse ò grande Deus consubstan­ da, passaram dos princípios da reforma
ciai ao Pae Eterno, se reuniram,, e não aos do socinianismo. (Vejam-se os artigos
formaram mais que uma só igreja, que Arianos modernos e Arminianos.)
tomou, e conserva ainda hoje o nome de
sociniana.
Com tudo não gosou Socino em paz da SYSTEMA THEOLOGICO DOS SOCINIANOS
gloria a que anhelára com tanta ancia: os
catholicos e protestantes lhe deram que
sentir, e morreu na aldeia de Luclavia, A Escriptura Sagrada, e principalmcnte
aonde se retirara para se acoutar de seus o Testamento Novo, é um livro divino, se­
inimigos no anno de 1604, de idade de 65 gundo Socino, pará todo o homem razoá­
annos. Sobre seu sepulchro pozeram este vel: este livro nos ensina que Deus, depois
epitaphio: de haver creado o homem, lhe deu leis,
que este as transgrediu, que o pcccado
Tota licet Babylon destruxit tecta Lulherus, grassou, e a religião se corrompeu; que os
Muros Calvinus, sed fundamenta Socinus. homens sc fizeram inimigos de Deus, e que
este Senhor enviou Jesus Christo para os
Como se dissessem: reconciliar com Ille, e lhes ensinar o quç
deviam obrar, e crèr para se salvarem. É
Tectos Luthero alue, muros Calvino, indubitavel ser Jesus Christo o enviado de
As bases de Babel Fausto Socino. Deus para concluir a obra da reconciliação
e da instrucção dos homens.
A seita sociniana, muito longe de esmo­ Não é menos certo. que o Novo Testa­
recer com a morte do seu chefe, sc au- mento contém a doutrina dc Jesus Christo:
gmentou sobremaneira, e veio a fazer-se n’este livro divino havemos, pois, de inves­
de consideração pelo grande numero dc tigar o que se deve crér e practicar para
sábios e pessoas de qualidade que perfi­ conseguir a salvação. Como não ha juiz,
lharam os seus princípios, chegando a tal ou interprete inCallivel do sentido da Es­
auge, que alcançou nás dietas a liberdade criptura, havemos de cuidar em o descobrir
de consciência. pelas leis da .critica, e pelas luzes da razão.
Os catholicos, concedendo-a aos secta­ Socino, e seus discipulos se esmeravam,
rios, se haviam acurvado á exigencia dos pois, em indagar na Escriptura o systema
tempos; mas, serenados estes, resolveram de religião que Jesus Christo viera ensi­
expellir os socinianos, contra os quaes se nar aos homens, e este estado produziu
uniram os protestantes, e a dieta ordenou esses commentarios sobre a Escriptura,
a sua extineção, determinando que, ou ab­ que formam quasi toda a bibliotheca dos
jurassem as heresias, ou tomassem partido Irmãos Polacos.
entre as communhões toleradas no reino, Socino e seus discipulos asseverando
cujo-decreto foi executado cora todo o ri­ não seguirem na interpretação dò Novo
gor. Tèstãráento mais que as íegrãs da critica
838 STA
o os princípios da razão, o explicaram de teem por causa geral o fundamento quo
um modo inintclligivel á mesma razão, e Socino tirou em parte da reforma; isto é,
tomaram em sentido metaphorico tudo o que o Novo Testamento contém por si só
que ella não alcançava: por este meio se­ a doutrina de Jesus Christo, mas que aos
pararam do Christianismo todos os myste- homens pertence interprctal-a, segundo os
rios, reduzindo a simples metaphoras as princípios da razão e as regras da critica.
verdades sublimes que excedem a órbita Já mostramos a falsidade d’este princi­
da razão. pio, fazendo vér contra Lulhero, e contra
Segundo estes princípios, ensinaram não os reformados que ha um corpo de pasto­
haver mais que um Deus creador do mun­ res encarregado de ensinar as verdades
do: o Padre, Filho e Espirito Sancto não que Jesus Christo ensinou aos homens.
são pessoas divinas, mas attributos de Veja-se no artigo Reforma o que se diz
Deus. D’esta maneira vieram renovar os para provar a authoridadc da tradição, na
erros de Sabellio e de Praxeas, que refu­ qual sómente a Igreja é juiz infallivcl das
tamos nos seus artigos, e no dos A nti-tri- controvérsias da fé, e que é absurdo attri-
nitarios. buir este direito ao simples fiel. Bem fun­
Deus creou Adão, e lhe deu leis, Adão damentado este principio, o socinianismo
as violou, e feito pcccador, cahiu na igno­ se desvanece, e não é mais que um syste­
rância e na desordem; a sua posteridade o ma imaginario, pois que se estriba sobre
imitou, e a terra foi coberta de trevas e um supposto absolutamente falso.
de peccadores. Os socinianos, pois, não s t a d h in g o s — Fanaticos da diocese d e
conheciam o peccado original, cujo erro Breina, que professavam os erros dos ma-
é refutado no artigo Pelagianos. nicheus. Eis-aqui o principio, augmento, e
Deus, compadecido da desgraça dos ho­ fim d’esta seita:
mens, enviou seu Filho ao mundo: este Fi­ Certa senhora de qualidade, mulher de
lho é um homem assim chamado, porque um militar, deu ao parocho a sua ofierta
Deus sobre elle derramou enchentes de em dia de Paschoa; achou este ser modica,
graças: d’esta sorte renovaram os socinia­ estranhou-a, e resolveu vingar-se. Acaba­
nos o erro de Theodoto de Bizancio, que do o officio apresentou-se a senhora a m e­
nós refutamos no seu artigo, e no dos sa da communhão, e o parocho, em Iogar
Arianos e Nestorio. da sagrada fórma, lhe metteu na bôcca a
Jesus Christo inspirado pelo mesmo Deus moeda que ella lhe oíTerccera. O recolhi­
ensinou aos homens o que deviam crer e mento e pavor em que estava esta senho­
praclicar para honrar a Deus, instruiu-os ra, não lhe deixaram attingir que cm lo-
de que havia outra vida, aonde a sua fide­ gar da hostia lhe pozeram na bôcca uma
lidade em practicar a sua doutrina seria peça metallica, e ella a guardou por al­
recompensada, e a sua resistência punida. gum tempo sem o perceber; mas querendo
Tinha agradado a Deus que estas penas engulil-a, entrou no mais cruel tormento,
e recompensas fossem prêmio da virtude, quando achou a sagrada hostia subrogada
ou castigo da jlesordem: elle não escolhe­ em moeda: creu que se havia apresentado
ra entre os homens um certo numero pa­ indignamente á sagrada mesa, e que a
ra serem felizes, nem entregara o resto a transformação da hostia era castigo da sua
uma propensão viciosa, que havia de con- indignidade; penetrada da mais viva dôr,
duzil-os a condemnação; todos são livres: a agitação de sua alma appareceu no r o s­
Jesus Christo deu a todos exemplos de vir­ to, e lhe mudou a physionomia; seu m ari­
tude, todos receberam de Deus a luz da do o percebeu; averiguou a causa, e reque­
razão; nenhum nasce corrompido, todos reu castigo; não se lhe deu satisfação; e lle
podem practicar a virtude: não ha pre­ desabafou, e inteirados seus amigos, lh e
destinação, nèm mais graça que estas in- aconselharam matasse o sacerdote, q u e
strucçòes e dons naturaes que o homem não queriam punir; assim o fez: foi logo
recebe de Deus. exeommungado, mas nem por isso esm o­
Renovaram, pois, estes sectarios o erro receu. 1
dos pelagianos acerca do peccado original As cruzadas e os rigores da inquisição,
da natureza, da necessidade da graça e da não tinham exlincto os manicheus e albt-
predestinação. Tudo isto refutamos no Pe- genses, que, espalhados pela Allemanha,
lagianismo. Não entraremos em . maiores semeavam os seus erros: estes, aprovei­
individuações sobre outros erros dos soci­ tando-se das disposições em que se acha­
nianos, que são consequências dos que vam o militar exeommungado e seus am i-
acabamos de expôr, e que se refutam pe­ os, os persuadiram de que os ministros
los mesmos principiós: todos estes erros a Igreja não tinham poder para excom -
STE 839
mungar. Ouvidos favoravelmente, passa­ to a digestão e suas consequências, como
ram a ensinar-lhes que elles não só eram os demais alimentos.
maus ministros, mas ministros dc uma re­ Belo meio do nono século fez Paschasio
ligião má, que tinha por principio um en­ um tractado do corpo e do sangue de Nos­
te inimigo dos homens, o qual nein mere­ so Senhor para os povos da Saxonia, ainda
cia as suas homenagens, nem o seu amor, pouco instruídos na religião christà, no
que só se deviam ao ente que fizera o ho­ qual estabelecia o dogma da presença real,
mem sensível ao prazer, e lhe permillia o e dizia que recebíamos na Eucharistia a
gosal-o. mesma carne e o mesmo corpo que nas­
Adoptaram, pois, os stadhingos o dogma cera da Virgem.
dos dous princípios dos manicheus, e de­ Bem que Paschasio não seguisse n’este
ram cultü a Lucifer, e aos demonios em livro senão a doutrina da Igreja, e que an­
assembléias, cm que a mais infame soltu­ tes d’elle cróssem todos os catholicos que
ra se voltou em exercício de piedade. A o corpo e sangue de Jesus Christo estavam
seita engrossou insensivelmente: manda- verdadeiramente presentes na Eucharistia,
•ram a cila missionários, que os stadhingos e que o pão e o vinho se mudavam no cor­
insultaram, c fizeram morrer. D’estes cri­ po c sangue de Jesus Christo, não havia
mes passaram a persuadir-se que fariam costume de dizer formalmente que o corpo
gratos serviços a Lucifer em tirar a vida e sangue de Jesus Christo, era o mesmo
a todos os ministros do Christianismo: as­ que havia nascido da Virgem, i Portanto
sim * talaram os campos, saquearam as desagradaram estas expressões de Pascha­
igrejas e mataram cruelmente os sacerdo­ sio: impugnaram-nas, elle as defendeu; a
tes. Os manicheus tinham sido queimados disputa fez ruido, os homens mais celebres
por se crér que se deviam queimar os he- tomaram n’ella parte, e se dividiram entre
reges; os manicheus ou stadhingos assas­ Paschasio e seus adversarios.
sinavam os sacerdotes, porque tinham pa­ Estes reconheciam da mesma sorte que
ra si que se deviam destruir os inimigos elle a presença real de Jesus Christo na
do Deus benefico. Eucharistia; sómente censuravam o modo
Como os seus rapidos progressos poze- de se exprimir: e portanto estavam todos
ram em cuidado os catholicos, o papa Gre- conformes no essencial d’este dogma. Po­
gorio íx fez pregar uma cruzada contra os rém como em todos os homens que ra­
stadhingos, concedendo a mesma indulgên­ ciocinam ha um principio de curiosidade
cia que tinham as cruzadas da Terra San­ sempre activo, que as contendas dos sá­
cta. Logo appareceram em Friza multidão bios inclinam para os objectos em que se
d’elles, que vinham de Gueldria, llollanda, occupam, todos os entendimentos se volta­
e Flandres, e á testa dos quaes se pozeram ram para o dogma da presença real na
o bispo de Brema, o duque de Brabante e Eucharistia: d’onde nasceram‘infinidade
o conde de Hollanda. de questões sobre as consequenicas do
, Os stadhingos, instruídos na disciplina mesmo dogma, entre as quaes se pergun­
militar por um homem de guerra, que de­ tava se alguma parte da Eucharistia esta­
ra principio á sua seita, marcharam con­ va sujeita a ser repellida como os outros-
tra o exercito dos cruzados, ofíereceram alimentos.
batalha, bateram-se com brio, mas foram Pensaram alguns que as especics do pào
totalmente desbaratados, de sorte que mais e do vinho que existem ainda depois da
de seis mil ficaram no campo, e a seita cx- consagração, estavam sujeitas ás differen­
tin cta.1 Assim se encontra em todos os tes alterações porque passam os alimentos;
povos ignorantes uma disposição próxima outros, pelo contrario, créram ser indeco-
para o fanatismo, que só espera occasiào roso suppôr que qualquer cousa do que
para se manifestar, e esta se acha quasi pertence á Eucharistia passasse pelos di­
sempre nos paizes em que o clero ó igno­ versos estados a que estão sujeitos os ali­
rante. mentos ordinarios, e deram áquellcs que
s t a n c a r is t a s — Seita de lutheranos: ve­ levavam a opinião contraria o odioso no­
jam-se as que sahiram do lutheranismo. me de stercoranistas; mas sem razão, pois-
s Ve u c o r a n t is t a s — É o que cré estar o ue ninguem cria que o corpo dc Jesus
corpo eucharistico de Jesus Christo sujei­ S hristo fosse digerido: não se citará author
algum que tal sustentasse, e os monumen-

1 DWrgentrc, Collect. Jud., í. 1, an.


1230, pag. 139. Natal Alcx. in scec, 13. 1 Mabillon, Prcef. in 4.° scec. Benedict.,
Dupin, 13 siécle, c. 19. part. 2, c. 1, 5 4.
840 TAC
tos da Historia Ecclesiastica todos suppoem s y x c r e t is t a s — Seita de Iulhcranos: v e ja -
o contrario.1 se este artigo.
Também os gregos foram traetados co­ SYXEKGISTAS—Seita de lutheranos: veja-
mo stercoranistas por alguns latinos: cis- se este artigo.
aqui o que occasionou este improperio. t a c ia n o —era natural da Syria: depois
Pretendiam cllcs não dever celebrar-se a de instruído nas sciendas dos gregos c na
missa na quaresma, excepto nos sabbados religião dos pagãos, fez muitas viagens:
e domingos, dias em que nunca jejuam, e por toda a parte achou absurda esta reli­
nos quaes até aíDrmam ser contra a tradi­ gião, c fluctuantes os philosophos em infi­
ção dos apostolos celebrar-se a missa. nidade de opiniões e de systemas, entre si
O cardeal Humberto, persuadido que contradictorios. Posto n’esta perplexidade,
elles condemnavam o costume de celebrar lhe vieram á mão os livros dos christàos, c
m issa nos dias de jejum, porque a Eucha­ lhe fez impressão a sua bclleza: «A leitura
ristia o quebrava, exprobou-lhes pensarem d’estes livros, diz elle, mc tem persuadido,
que o nosso corpo se nutrisse com o de porque as suas palavras são simples, c
Jesus Christo, e os denominou com o odio­ seus authores parecem afastados de toda a
so nome de stercoranistas: porém engana­ aíTectação; o que dizem comprehende-se
va-se, pois que os. gregos prohibiam a ce­ facilmente, véem-se cumpridas muitas pro-
lebração da missa nos dias de jejum pelos phccias, são admiráveis os preceitos que
olharem como dias de dor e de tristeza, dão, estabelecem um monarcha unico de
durante os quaes não devia celebrar-se todas as cousas... c esta doutrina isempta-
um mysterio de alegria. 2 Portanto é pro­ nos do grande numero de senhores e ty­
vável ser o stercoranismo um erro imagi­ rannos, a que estavamos sujeitos.» i
nario, como o reconheceu M. Basnage, Mais por laxidão que por intima convic­
mas não uma heresia, e que esta falsamen­ ção, abraçava pois Taciano o Christianis­
te foi imputada aos que negaram a presen­ mo; porém ainda restavam no intimo do
ça real, como elle assevera.3 seu espirito algumas idéias platônicas; e
Os authoresdo nono século, que injusta­ para descompor a sua orthodoxia bastaria
mente foram notados de stercoranistas, encontrar n’elle obscuridades como eíTecti-
assim como os gregos, reconheciam a pre­ vamente lhe succedeu, e se vé do seu li­
sença real, e quando, seus escriptos não vro dos problemas, ou das questões, por
subministrassem d’islo mesmo provas in- elle composto para mostrar a escuridade
contrastaveis, é certo que sem absurdo da Escriptura, e quanto era difficil de en­
não poderia refutar-se um homem'que ne­ tender.
gasse a presença real, lançando-lhe em Então Taciano, tão pouco satisfeito da
rosto o suppòr que o corpo de Jesus Chris­ doutrina dos christãos, como da dos philo­
to se digeria, e o que d’aqui é conse­ sophos, escolheu entre os dogmas de di­
quente. versas seitas tudo o que lhe pareceu pro­
Quanto á questão sobre em que veem a prio para esclarecer a razão acerca da na­
parar as especies eucharisticas depois que tureza do Ente Supremo, da origem do
entram no estomago, imaginaram uns ani­ mundo, da historia dos judeus e do Chris­
quilarem-se, outros converterem-se em sub­ tianismo. imaginava como Yalentim potên­
stancia de carne, que algum dia ha de re- cias invisíveis, principados, e outras fabu­
suscitar: este sentimento foi o mais segui­ las similhantes; e como Marciào dous dif­
do no século nono e nos seguintes: mas ferentes deuses, dos quaes o Creador era
desde esse tempo não hesitaram os theolo­ o segundo; e assim presumia que quando
gos que as especies eucharisticas podessem o Creador dissera faça-se a luz, era merios
corromper-se. Similhantes questões seria um preceito que fazia; do. que uma oração
melhor resolverem-se por estas palavras que dirigia ao Deus Supremo, que lhe era
de certa obra anonyma, publicada por superior. Attribuia o Antigo e Novo Tes­
d\Acheri: «Só Deus sabe o que acontece tamento a dous deuses diversos, e rejeita­
a Eucharistia, depois que a recebemos.» va algumas das epistolas de S.-Paulo.
( Spicileg. 1. 12, q. 41.) Condemna va o uso do matrimonio da
mesma sorte que o adulterio, estribado
1 Allix, PrcBf. (Te la trad. de Ratramne, n’uma passagem aos ealatas, que diz: o que
BoileaUj Prcef. sur le meme auteur. Mabil- semeia na carne colherá a corrupção da
lon , loc. cit., part. 2, c. 1, § 5. ca rn e.2
2 Mabillon, ibid.
3 Basnage, Hist. de CEgl,, t. 2, L 6, i Tat. Oràt. ad Grcecos> c. 64.
pag. 926. *• E p ist. ad Gaiata c. 6, 8.
TAS 841

Tinha grande aversão aos que comiam não trazia utilidade alguma á salvação,
carne de animaes, c que bebiarn vinho, que a virtude dos sacramentos dependia
fundado em que a fé prohibe o bebel-o aos da sanclidadc dos ministros, e finalmente
nazarenos, e em que o propheta Amos im­ se não deviam pagar dizimos.
putava aos judeus como um crime o have­ O povo ignorante e mal morigerado re­
rem obrigado os nazarenos consagrados a cebeu ávidamente a doutrina de Tancheli-
Deus a heberem vinho. Assim chamaram no, e entrou a olhal-o como um apostolo
encratistas e hidroparastas aos sectarios enviado do céo para reformar a Igreja:
de Taciano, porque sómente oITereciam seus discipulos tomaram as armas, e o es­
agua na celebração da Eucharistia. 1 coltavam quando ia prégar; diante d’elle
Taciano formou a sua seila no tempo arvoravam um estandarte, c uma espada:
de Marco Aurelio, pelo anno 172, a qual com este apparato prégava, e o povo o ou­
grassou particularmentc em Antiochia, Ci­ via como um oráculo. Depois de o ter le­
licia, Psidia, cm inuitas provincias da Asia vado a este ponto de illusão, entrou a pré­
até Roma, nas Galhas, em Equilania, e gar que era Deus, e igual a Jesus Christo;
Hcspanha. Coinpôz muitas obras, das quaes dizendo que este Senhor nada tinha de di­
não nos resta quasi nada. Os seus discipu­ vino senão o haver recebido o Espirito
los denominaram-se tacianistas, encratis­ Sancto, e como Tanchelino asseverava ha­
tas, continentes, severianos, apotacticos e ver recebido como Jesus Christo a plenitu­
saccophoros. de do Espirito Sancto, por consequência
taciturnos — Seita de anabaptistas: veja- não era inferior a elle. O povo assim o
se este artigo, e também o dos Silenciosos. creu, e portanto o honrou como a um ho­
TANCHELINO OU TANCIIELMO— e r a lim SC- mem divino.
c u l a r q u e , e r ig in d o - s e p r e d ic a n te n o p r i n ­ Este heresiarcha voluptuoso se aprovei­
c ip io d o s é c u lo d u o d e c im o , p u b l i c o u d iííe - tou da illusão de seus discipulos para go-
r e n te s e r r o s . sar das mulheres mais formosas da sua
As invasões dos barbaros e as guerras seita, e os maridos e os paes, que, com o
tinham aniquilado as sciencias e corrom­ publico, oram testimunhas das suas devas­
pido os costumes no Occidente, de sorte sidões, davam graças ao céo dos favores
que nos séculos undecimo c duodecimo que o homem divino concedia a suas mu­
ainda reinavam a desordem e a ignorân­ lheres e tilhos.
cia: entre os seculares só se viam mortes, Tanchelino tinha principiado a sua mis­
roubos, rapinas e violências; no clero sen- são, prégando contra a desordem dos cos­
tiam-sc os resabios do mesmo contagio; tumes: a austeridade da sua moral, o ex­
os bispos, abbades e clérigos iam á guer­ terior morliíicado, a aversão que mostrava
ra; a usura e simonia eram communs; a ter a prazeres, e o seu zelo contra os des­
absolvição venal, o concubinato dos cléri­ comedimentos do clero, lhe haviam ganha­
gos publico, e passava já por costume; os do a benevolencia dos povos; mas acabou
benefícios tinham-se tornado hereditarios: fazendo-lhes canonisar desordens ainda
algumas vezes se vendiam os bispados, vi­ mais monstruosas que aquellas contra as
vendo ainda os bispos; outras os senhores quaes se havia levantado, e sem que os
os deixavam em testamento a suas mulhe­ mesmos povos attentassem n’esta contra-
res, e muitos bispos diziam que não care­ dicção.
ciam nem de bens. ecclesiasticos, nem de Tanchelino, á frente dos seus sectarios,
canones, porque tudo tinham na sua bolsa. levava a perturbação e a morte por onde
Em Flandres, mais que em outra parte, quer que não fosse recebida a sua doutri­
haviam chegado estas desordens ao maior na. Um sacerdote lhe quebrou a cabeça ao
ex cesso.2 embarcar-se, e seus discipulos então se es­
N’esta provincia publicou, pois, Tanche- palharam pela Colonia e Utrechet: uns fo­
lino os erros que entravam a grassar em ram queimados pelo povo, c outros parece
França, havia.perto de um século, contra haverem-se confundido com as catervas
o' papa, sacramentos e bispos, pregando de hereges que atacavam os sacramentos,
que o papa, os bispos, e todo o mais clero as ceremonias da Igreja e o cle r o .1
não se deviam ter em conta alguma, que tascadrugistas— Eram um ramo dos
as igrejas eram logares de prostituição, e montanistas, que, para denotarem tristeza,
os sacramentos profanações, que o do altar .punham o dedo no nariz emquanto ora­
vam; isto significa a palavra tascadrügis-
; 1 Epiph, Avg. Han\t c. 25. C ypf.E ji.fi3, tas: também punham o dedo, na bôcca pa-
l. 8, edic. de Erasmo.
2 ü ist. Litter. de France, t. 7, p. 5, etc. • 1 D'Argentrc, Collect. Jud., t . 1, pag: i l ;
842 THE
ra récommendarem silencio. Esla seita,foi ou porque era impossível ofTuscar a evi­
pouco numerosa: alguus (Telia apparcce- dencia dos factos sobre que d ia se funda­
ram na Galacia. 1 Também lhes chama­ mentava, ou porque o poder temporal ti­
ram passalorinchitas, patalorinchitas, asco-nha uma vigilância continua em tapar a
drupitas, etc. bòcea a todos os que se separaram da igre­
' TERUio—é um dos presumidos apostoli- ja dos apostolos, para que não revelassem
còs, que se levantaram em França no sé­ as suas falsidades: mas quem duvidará
culo doze: conservou-se por muito tempo que este poder empregava contra os chris­
escondido n’unia gruta em Corbigny, na tãos todos os seus cuidados, e todas as suas
diocese de Nevers, aonde finalmente foi forças?
préso e queimado: duas velhas, suas disci­ Portanto, se a religião christã foSso fal­
pulas, soíTrcram o mesmo supplicio. Ter- sa, os seus progressos, c a extineção da
rio tinha dado a uma o nome de Igreja, e seita de Theobuto e de muitas outras, que
a outra o de Sancta Maria, para que, sen­ a impugnavam na sua origem, seria não
do perguntados os seus sectarios, podes- sómente um cfTeito sem causa, mas um fa-
som jurar por Sancta Maria, que-não ti­ eto acontecido contra o concurso de todas
nham outra fé que a da Sancta Igreja.2 as causas, que necessariamente haviam dc
THEOBUT.O, OU .THJ5.BUTO—MortO S. Jacol),
estorval-o.
por sobrenome o justo, foi eleito bispo de t h e o d o t o —Hcregc quo os authorcs ec­
Jòrusalem Simeào, filho de Clcophas: Theo- clesiasticos associam a Cleobulo, e chefe
buto, que aspirava a esta dignidade, sepa­ de seita no tempo dos apostolos. Vejam-se
rou-se da igreja christã, ajuntou os senti­no artigo Cleobulo as consequências que
mentos de differentes seitas dos judeus pa­se podem tirar em favor do Christianismo
ra formar uma: é quanto sabemos dos da extineção d’eslas seitas. Sem razão con­
seus erros. fundiam este com Theodoto dc Bizan-
Aqui temos, pois, um discipulo dos mes­cio. 1*
mos apostolos, plcnamente instruído na re­ THEODOTO 0 V.VLENTINIANO —SÓ é COIlhC-
ligião christã, que, ancioso de vingar-se cido pelas suas eclogas, que o padre Cam-
d’ellcs, esquadrinha quanto pôde, e que besis deu á luz no Manuscripto da Biblio­
assoalhando* a sua impostura, se llTa po- theca dus Dominicanos, da ru5a de St. Ho­
désse provar, triumpharia com luzimenfo nore. Estas notas nada mais contecm que
dos primeiros christãos, que lhe haviam uma applieaçào da Escriptura ao systema
negado o bispado, e teria formado uma de Valentim. Theodoto quer iTclIas provar
seita capaz de aniquilar a religião: mas os differentes pontos da doutrina de Valen­
sem embargo d’isso, esta se estabelece em tim por algumas passagens da Escriptura:
Jerusalem, e se derrama por toda a terra; esta obra foi commentada pelo padre Cam-
ao passo que de Theobuto apenas nos res­ besis, e se acha na Bibliotheca Grega de
tam os vestígios da sua ambição e aposta­ Fabricio, t. 5’, pag. 135.
sia, que nos subministram um monumento t h e o d o t o d e w zA N C io —chamado o sur-
incontrastavel da verdade do Christianis­ rador, do nome da sua profissão, affinnou
mo, c dos milagres que servem de base cá que Jesus Christo não era mais que um
divindade da sua religião. homem, e fez discipulos que se appellida-
ram theodocianos. Não foi isto em Theo­
Se a religião christã houvesse sido falsa,
não se poderia sustentar contra taes inimi­ doto um erro de entendimento, mas uma
gos, salvo que o poder temporal lhes iinpo- heresia, em que o seu amor proprio so
zesse silencio, ordenando-lhes não desco­ quiz abrigar dos impropérios que elle cha­
brissem as imposturas dos christãos: mas mara sobre si por sua apostasia.
bem pelo contrario esta authoridade tem­ Na perseguição que se levantou, impe­
poral que os perseguia, apadrinhava e rando Marco Aurelio, foi préso Theodoto
alentava o rancor de seus inimigos. com.muitos christãos, que confessaram a
Jesus Christo, e obtiveram a corôa do mar­
0 progresso da religião christã, e a ex-
tineçao das seitas que d’ella se separaram, tyrio. Theodoto renunciou a Jesus Chris­
e que atacaram no seu nascimento, só por to: os fieis o improperavam, como merecia
algum d’estes dous meios póde explicasse, o seu delicto, e o zelo lhes inspirava no
fervor d’aquelles séculos; e para evitar a
1 Damascen. de Hcer., Hyeron. Com- indignação dos fieis de Bizancio, se reti-
ment. in E p. ad Galat. Philaslr. de Hcer.,
t Theodorei. Hxret. Fab., I. 2. Prcef.
c. 76. , , .
* Dupin. Hist. des Cone. du douzieme Euseb. Hist. Eccles., I. 4, c. 22. Notes d'Us-
set, su r VEp. de S. Ignace aux Trassiens.
s iè c le c . 6.
THE 843
tou a Roma, aonde, porém, sendo conheci­ versidade as primeiras das ultimas. Não é
do, foi olhado com horror. crivei que elles mesmos deixem de attin-
Theodoto a principio representava que gir quanto seja escandalosa esta temerida­
o mesmo Jesus Christo se houvera com de; pois que, viciando assim as Escriptu­
menos rigor com os que o offcndiam, pois ras, fazem vér ou que nào teem fé, se não
declarara que perdoava o que dissessem créem que o Espirito Sancto as dictou, ou
contra cllc; c íinalmcnte que o seu delicto que se teem por mais entendidos que o
não era tào grande como o faziam, porque mesmo Espirito Sancto: c não podem ne­
renegando de Jesus Christo, nào renegara gar que venham d’elles taes mudanças,
senão de um homem, na verdade filho de pois que os exemplares em que se véê.m,
■uma Virgem por obra do Espirito Sancto, são cscriptos de seus punhos, e nào se po­
mas sem outra prerogativa, que a de ter deríam mostrar em outros mais antigos
vida mais sancta, e virtude mais emi­ do que elles, para se dizer que as heberam
nente. 1 dos que os instruiram nos primeiros rudi­
Alvorotaram-se todos com esta doutrina, mentos do Christianismo. Alguns d’clles
c o papa Victor excommungou a Theodo­ nem se cansaram cm corromper as Escri­
to, o qual todavia achou discipulos que af- pturas, cortando de um golpe a lei e os
firmavam ser esta doutrina de seu mestre prophetas, com o pretexto de que lhes era
a que os apostolos ensinaram até o ponti­ sufficiente a graça do Evangelho.»1
ficado do Zepherino, o qual corrompera a A estas infidelidades ajuntaram os theo­
da Igreja, fazendo um dogma da divindade docianos todas as subtilezas de uma logica
de Jesus Christo. frivola e teimosa. «Não conhecem a Jesus
Os catholicos refutavam isto com os tes- Christo, diz o author que acabo de citar,
timunhos da Escriptura, com os hymnos e tanto assim que não lhes importa o que se
canticos que os christàos tinham composto lé na palavra de Deus. mas curiosamente
desde o principio da Igreja, e com as obras estudam em vér por qual figura do syllo­
dos authores ecclesiasticos que precede­ gismo sustentarão a sua heresia, e quando
ram a Victor, taes como S. Justino, Mil­ se lhes oflerece algum logar da Escriptu­
tiades, Sancto Ireneo, Clemente Alexan­ ra, olham se faz argumento conjunctivo
drino, e Meliton, os quaes tinham ensi­ ou disjunctivo.» 2
nado e defendido a divindade de Jesus Os theodocianos fundavam o seu senti­
Christo; e em fim pela mesma excommu- mento nas passagens da Escriptura em
nhào que Victor pronunciara contra Theo­ que Jesus Christo falia como homem,
doto. 2 supprimiam todas as que estabelecem
Os theodocianos porém para se defende­ sua divindade. Um dos principaes discipi
rem da evidencia d’estas razões, cortaram los de Theodoto de Bizancio, foi Theodot
da Escriptura tudo o que era coiitrario á o banqueiro, o qual para estabelecer mai
sua doutrina. «Elles sem pejo corrompe­ seguramente que Jesus Christo não er;
ram as Sagradas Escripturas, diz certo com effeito mais que um homem, asseve­
author que os impugnava, aboliram a re- rou ser inferior a Melchisedec, e formou a
ra da antiga fé... e facilmente verão se seita dos melchisedecianos. Asclepiades, e
igo a verdade os que quizerem entregar- os mais de que falíamos no fragmento que
se a essa averiguação; sendo bastante o acabamos de referir, não fizeram seita.
■conferirem os exemplares, para lhes dar Já se vê do que temos dito, que pelos
nos olhos a differença: porque os ^Ascle­ fins do segundo século houve um Theo­
piades não concordam com os de Theodo­ doto que, renegando de Jesus Christo, in-
to, e é facilimo encontrar cópias dos mes­ fcorreu na indignação de todos os ficis, e
mos pelo grande desvelo que teem seus foi excommungado por asseverar que não
discipulos em transcreverem as correcções, renegara mais que de um homem, nasci­
ou melhor, as corrupções de seus mestres; do de uma virgem, e dotado de virtude e
a s cópias de Hermophilo também differem sanctidade eminente.
das mais, e as de Apollonio nem ainda l.° Do motivo que levou a Theodoto a
são coherentes entre si, tendo grande di­ negar a divindade de Jesus Christo, se vê
com evidencia que este herege só conce­
dia ao mesmo Senhor aquellas qualidades
1 Autor. Àppend. ad Tert. de Prcescript.,
c. ultimo. Epiph. Hcer. 5 i. Theodoret, Hceret.
Fab., I. 2, c. ò'. 1 Catus, apud Euseb. H ist Eccles., I. 4,
. 2 Theodoret, i b i d c. 2. Euseb. Hist. c. 28.
Eccles., I. 4, c. 28. 2 Caius, ibid.
8Í4 UBI
quo não podia recusar-lhe: era, pois, in- para julgarem o sentido dos padres, do
contraslavel ser Jesus Christo nascido de que o author do Platonismo Descoberto,
um a Virgem, por obra do Espirito Sancto, Sandio, Jurieu, Wisthon, etc.
e dotado de uma virtude eminente; porque 6. ° Yê-se que os theodocianos apertados
Theodoto tinha grande interesse em recu­ com as prophecias, negam a sua authori-
sar-lhe estas prerogativas, muito engenho, dade; eram portanto claras, e facilmente
bastantes luzes, e pouco escrupulo em pro­ applicavois a Jesus Christo as que annun-
curar meios para defender os seus senti­ ciam o Messias, e que estabelecem a sua
mentos, pois que chegava a viciar as Es- divindade, pois que as corrompem, ou as
cripturas a fim de combater com mais ve- negam para haverem de impugnal-a. N’es-
rosimilhança a divindade de Jesus Chris­ te tempo todos os judeus c inlieis tinham
to. Eram logo sem controversia os factos luz sufficiente para conhecer a verdade da
e milagres que provavam ser elle nascido religião chrislã.
d’um& Virgem por operação do Espirito 7. ° Como Theodoto ensinava esta doutri­
Sancto; a confissão de Theodoto a este res­ na em tempo de perseguição, não admira
peito é muito mais altcndivel que o testi- que, sem embargo de ser evidente a da
munho dos authores pagãos; e nos anima­ Igreja acerca da divindade de Jesus Chris­
mos a aflirmar que o pyrrhonismo mais es­ to, fizesse discipulos: o que é de admirar
crupuloso não se lembraria de exigir ne­ é que não attrahisse.a si todos os*christãos,
nhum mais seguro. se a divindade de Jesus Christo não era
2.° A excommunhão de Theodoto prova um dogma sem contradicção na Igreja:
incontrastavelmente que a divindade de dez .christãos que houvessem impugnado
Jesus Christo era um dogma fundamental a Theodoto em favor dos factos que esta­
ensinado na Igreja sem ambiguidade, e belecem a divindade de Jesus Christo, pre-
que formav^ a base da religião chrislã, ponderariàm incomparavelmente ao testi-
porque entrava nos canticos e hymnos munho de dez mil theologos contra este
compostos no berço do Christianismo, e facto. Ora, é sem dúvida que Theodoto não
havia sido ensinado pelos apostolos: por­ perverteu mais que um pequeno numero
que é impossivel que pessoas ignorantes c de discipulos, e que a.su a seita se extim
grosseiras, quaes eram os primeiros pré- guiu, ao passo que os christãos se multi­
gadorès do Christianismo, em continente plicaram até o infinito, ainda no meio das
se elevassem a crêr a divindade do .Verbo, perseguições: qual é pois a philosophia, a
conduzidos pela mera luz da razão, verda­ critica, a equidade dos que asseveram que,
de que não impugnará na marcha do en­ a divindade de Jesus Christo não era ensi­
tendimento humano, e dos que conhecem, nada claramentc durante os primeiros tres
por pouco que sega, a historia do mesmo. séculos da Igreja?
Que arrojo, pois, não é o d’aquelles que TURLUPiNOs— Fanaticos do xiv século, de
sustentam ser a divindade do Verbo um costumes estragados, os quaes ajuntavam
dogma platonico introduzido no Christia­ aos erros dos beguardos as infamias dos
nismo? As epistolas de S. Paulo em que a cynicos: foram excommungados por Gre-
divindade do Verbo é tão claramcnte en­ gorio Os principes christãos os puniram
sinada, serão acaso a obra d’algum pla­ severamente; foi queimado grande numero
tonico? d’elles, e .a severidade com o horror que
3. ° Os theodocianos tinham corrompido,excitava a sua infamia, aniquilaram logo
a Escriptura: era logo tão clara acerca da esta seita .1
divindade do Verbo, que as. subtilezas da u b i q u i s t a s ou u b i q u i t a r i o s —Lutlieranos
logica não podiam obscurecel-a. que tinham que o corpo de Jesus Christo,
4. em consequência da união hypostatica, se
° Não é difflcil descobrir a impostura
dos theodocianos cotejando os seus exem­ acha onde quer .que está á divindade. Os
plares da Escriptura com o canon da Igre­ sacramentados e os lutlieranos não podiam
ja; portanto haviam os catholicos conser­ ajustar:se ácerca da presença real de Je­
vado a Escriptura sem vicio e sem mu­ sus Christo na Eucharistia:' negando-a os
dança. primeiros por lhes parecer impossivel que.
õ.° Oppoem-se aos theodocianos todos os o mesmo corpo estivesse em diversos lo-
authores ecclesiasticos que precederam ao gares ao mesmo tempq, Clustre e outros
papa Victor: portanto nao' duvidavam en­ lhes responderam què estando a humani­
tão que estes padres houvessem ensinado dade de JesusEhristo unida ao Verbp, seu
a divindade dè Jesus Christo, e bem se
deixa vér que os contemporaneos de,Theo- i Prateole, Elenchus heeresium. Ber-
doto estavam em melhores-circumstanciás nard de Lutzenbourg Guguin, H i s t l . 9.
VAL 845
corpo so achava por Ioda a parte unido rio sómente oppunha contra os valdenses
com elle. a sua aulhoridade. Assim fizeram estes
Melanchlhon oppunha aos ubiquistas que mui rápidos progressos, e depois de todos
esta doutrina confundia as duas naturezas os comedimcntos possíveis, o papa os ex-
dc Jesus Crhisto, fazendo-o immenso, se­ commungou c condemnou com os mais
gundo a sua humanidade, e até segundo o monges, que então inundavam a França.
seu corpo; e que destruía o mysterio da Estimulados os valdenses com os raios
Eucharistia, ao qual sc tirava tudo o que da Igreja, atacaram a aulhoridade que os
tinha de particular, se Jesus Christo em- condemnára; e como Valdo e seus discipu­
quanto homem só estava n’clle presente los tinham por base da sua doutrina a ne­
como está no pau e na pedra. cessidade de sc renunciarem todos os bens
valdenses — Discipulos do Pedro Yaldo, para ser christào, declamaram contra a
negociante rico de Leão. A morte subita igreja romana, asseverando que ella cessa­
d’um amigo, que cahiu quasi a seus pés, o va de ser a verdadeira Igreja depois que
obrigou a fazer profundas reflexões sobre possuía bens temporaes, que nem o papa,
a fragilidade da vida humana, e sobre o nem os bispos, nem os abbades, nem os
nada dos bens da terra; querendo renun­ clérigos podiam possuir bens de raiz, di-
ciar tudo isto para cuidar sómente na sua gnidades temporaes, feudos, nem direitos
salvação, distribuiu seus bens pelos pobres: reaes; e que os papas que haviam appro-
e desejando inspirar aos outros o desape­ vado ou excitado os principes para faze­
go do mundo e o despojo das riquezas, rem a guerra, eram verdadeiros homici­
cxhortou, pregou, e á força de pregar o das, e por consequência não tinham au-
desinteresse, se persuadiu" que a pobreza thoridade na Igreja. D’onde concluiram os
evangélica, sem a qual ninguem pódc ser valdenses que só n’elles estava a verdadei­
christào, não permittia possuir cousa al­ ra igreja, porque clles só practicavam e
guma. ensinavam a pobreza evangélica.
Muitas pessoas seguiram o exemplo de Depois de assim estabelecidos, como sendo
Pedro Valdo, e pelo anno 1136 formaram ellcs a unica verdadeira igreja, affirma­
uma seita, que se appellidou dos pobres de ram serem oS fieis todos iguaes, todos os
1 Lyão, pela pobreza que professavam. Val- sacerdotes terem direito para instruir, e
dò lhes explicava o Novo Testamento na que os sacerdotes c bispos eram destituí­
lingua vulgar. dos de authoridade para UTo estorvar. Es
Accendeu-sc logo o zelo dos seus disci­ tas pretenções provavam com algumas pas­
pulos, que nfio satisfeitos de practicarem a sagens da" Escriptura, taes como a de S.
pobreza, a pregaram, e sc erigiram aposto­ Mathens, em que Jesus Christo diz a seus
los, bem que nao fossem mais que simples discipulos «que todos são irmãos», a dc S.
seculares sem missão. Quiz a igreja de Lyon Pedro que diz aos fieis: «servi-vos mutua­
' reduzil-os a justos limites, sem condcmnar mente, cada um segundo o dom que tiver
' os seus motivos, nem o seu zelo; porém recebido, como dispenseiros fieis das diffe­
Valdo e seus discipulos, tinham de si mui rentes graças de Deus»; aquella de S.
altas idéias para que houvessem de acquies­ Marcos, em" que Jesus Christo prohibe a
cor aos conselhos da igreja de Lyon. Le­ -seus discipulos embaraçarem que um ho­
vantaram-se insistindo cm que todos os mem lance fóra os demonios em seu no­
christãos deviam saber a Escriptura, que me, bem que este homem não seguisse os
todos, eram sacerdotes, e obrigados a in­ apostolos.1
struir o proximo; e fundados sobre estes Quizeram, pois, os valdenses formar uma
princípios, que transtornavam o governo igreja nova, que affectavam ser a verda­
de toda a Igreja, os valdenses continuaram deira igreja de Jesus Christo, a qual por
a prégar e a invectivar contra o clero. Se consequência tinha unicamente o poder de
a igreja lhes impunha silencio, respondiam excommungar e condemnar: e por este
o que os apostolos haviam respondido ao meio socegaram as consciências, inquietas
Synedrim dos judeus, quando^ estes lhes com os raios da Igreja. Para mais eíficaz-
prohibiam prégar a resurreição de Jesus mente separarem d’ellaos fieis? condemna­
Christo: Devemos obedecei' a DenSj ou aos ram todas as suas ceremonias, a lei do je­
homens? Os valdenses sabiam a Escriptura, jum, a necessidade da confissão, as ora­
tinham o exterior mortificado e costumes ções pelos defunctos, o culto dos sanctos,
austeros, c cada proselyto vinha a ser um n’uma palavra, tudo o que podia conciliar
doutor. aos legitimos pastores o respeito e a affei-
J Além d’isto, a maior parte do clero mal
í morigerado e pouco instruído, de ordina­ 1 Math. 23. Prim . Petri, c. 4, v. 20.
54

i
846 VAL

cão dos povos: c finalmenlc para entreter os unicos hereges que perturbavam a re­
estes na ignoranda, condemnaram os es­ ligião e o estado: os albigenscs ou mani-
tudos e academias, como escolas de vai­ cheus, os publicanos ou popelicanos, os
dade. henriquanos e outros, tinham formado na
Tal foi o desenho da religião que os val- França grandes partidos.
denses imaginaram para se defenderem Luiz vii fez empregar missionários na
dos anathemas da Igreja, e fazerem prose­ sua conversão; mas dcbaldc pregaram con­
lytos. Não fundavam esta presumida re­ tra os valdenses. Philippe Augusto, seu fi­
forma nem sobre a tradição, nem sobre a lho, recorreu ã aulhoridade, mandou ar-
aulhoridade dos conciliós, nem sobre os razar mais de trezentas casas de fidalgos,
cscriptos dos padres; mas sómente em al­ em que clles se congregavam; e entrou
gumas passagens da Escriptura, mal inter­ depois em Berry, aonde estes hereges com-
pretadas: portanto não formaram uma se­ mettiam horríveis crueldades: mais de sete
rie de tradição, que remontasse até Clau­ mil foram passados á espada, e dos que
dio de Turim. poderam fugir— uns, que depois foram cha­
Os valdenses renovaram: i.° os erros de mados turlupinos, partiram para os Paizes-
Vigilando acerca das ceremonias da Igre­ Vallons e outros para a Bohcmia: os se­
ja, do culto dos sanctos, das reliquias e da ctários de Valdo derramaram-sc pelo Lan-
hycrarchia da Igreja: 2.° os dos doualistas guedoe e pelo Delphinado.
sobre a nullidade dos sacramentos confe­ Os valdenses, que se tinham retirado ao
ridos por maus ministros, c sobre a natu­ Languedoc e á Provença, foram exlinctos
reza da Igreja: 3.° os dos iconoclastas: pelas terríveis cruzadas que se armaram
4.° a estes erros accrcscentaram que a contra os albigenses c contra os hereges,
Igreja não podia possuir bens. Temos re­ que tão espantosamente se haviam multi­
futado estes erros nos artigos dos differen­ plicado nas provincias meredionaes da'
tes hereges que os levantaram, e o que é França. Os que se salvaram no Delphina­
particular aos valdenses, não merece refu­ do, vendo-se inquietos pelo arcebispo d’Em-
tação séria. brun, retiraram-se a Val-Luiz e aos outros
Os valdenses não fundamentavam seus valles, aonde os inquisidores os seguiram.
desvarios senão cm algumas passagens da Porém não obtiveram estes esforços senão
Escriptura tomadas á letra. Muitos here­ o fazerem os valdenses mais dissimulados,
ges antes d’elles haviam já seguido este até que, fatigados das pesquizas da inqui­
methodo, mas fizeram pouco progresso nos sição, se colligaram com os restos dos al­
primeiros séculos da Igreja, porque então bigenses, c se retiraram á Gallia Cisalpina
os fieis e ministros d’ella eram esclareci­ e para entre os Alpes, aonde acharam asylo
dos: porém no principio do duodecimo sé­ nos povos infectos das heresias do nono c
culo, os povos e os ecclesiasticos eram duodecimo século.
ignorantes, e o sophisma mais grosseiro Como Affonso, rei d’Aragão, filho de Be-
para a maior parte dos ecclesiasticos era rengario iv, conde de Barccllona c mar-
uma difficuldade indissolúvel, e para o po­ quez de Provença, havia exterminado dos
vo uma razão evidente. seus estados todos os sectarios que não
Comtudo havia homens respeitáveis por quizeram converter-se, os provençaes se
suas luzes e pela regularidade de seus cos­ retiraram também aos valles. Nãó eram
tumes, mas, sendo raros, não podiam impe­ erseguidds com menos vivacidade em Bo­
dir que os valdenses allucinassem muita êmia e Allemanha, d’ondc se recolheram
gente. Demais que a doutrina d’estes li- aos valles, aos quaes quotidianamente es­
songeava as prelenções dos senhores, e tavam correndo outros hereges, expulsos
tendia a pôr em suas mãos as possessões da Lombardia e da Italia: assim, pois, es­
das igrejas; portanto foram protegidos por tes differentes extermínios vieram a for­
aquefíes, a cujos domínios se refugiaram mar nos valles do Piemonle uma povoação
expulsos de Lyon: e estes senhores, bem de hereges, que adoptaram a religião dos
que não adoptassem seus erros, estimavam valdenses.
oppôr os valdenses contra o clero, que O papa exhorlava el-rei de França, o
condemnava os mesmos senhores por ha­ duque de Saboya, o governo do delphina­
verem despojado as igrejas. Assim, pois, do e o conselho delphinal a que se empe­
acharam protectores e fizeram proselytos. nhassem na conversão d’estes hereges, e
Valdo, com alguns discipulos, retirou- até a obrigal-os a renunciar a heresia. As
se aos Paizes-Baixos fezendo grassar a sei­ exhortações do papa sortiram effeito, man­
ta pela Picardia, e por outras provincias dando-se tropas aos valles.
da França. Porém os valdenses não eram Depois d’alguns annos, passando Luiz xu
VAL 847
á Italia, se achou pouco distante d’um dos fi.° Quem não tem o dom da continência,
retiros (Testes heregos, chamado Valputc, deve casar-se.
mandou-os atacar, houve grande mortan­ 10. ° Os ministros da palavra de Deus
dade, e persuadido el-rei que tinha aniqui­ podem possuir alguma cousa em particu­
lado a heresia, pôz seu nome áqucllc reti­ lar para sustentarem suas familias.
ro, em que fizera morrer um lào prodigio­ 11. ° Sóincnte ha dous signaes sacramen-
so numero de horeges: chama-se hoje Val- tacs, o Baptismo e a Eucharistia.
Luiz. Recebidos estes artigos com alguns ou­
Os valdenses se entranharam nos valles, tros de menos momento, c crendo-sc os
aonde insultaram a politica dos legados, o valdenses. mais fortes por esta união com
zelo dos missionários, os rigores da inqui­ os protestantes de Allemanha c os refor­
sição e o poder dos principes catholicos: mados de França, resolveram professar a
exercitos inteiros foram consumidos na- nova crença: expulsaram dos valles, de
quelles espantosos retiros, e a final não que estavam senhores, os parochos e os
houve remédio senão conccdcr-se-lhes o outros sacerdotes, apoderando-se das igre­
livre exercício da sua religião nos mesmos jas, das quaes se serviram para as suas
valles, reinando Philippe vu, duque dc Sa- pregações.
bovn, pelos fins do decimo quinto século A guerra de Francisco i contra o duque
(1488). de Saboya era favoravel ás suas emprezas; •
Então os valdenses, crcndo-sc insuperá­ mas tanto que estes principes se reconci­
veis, c não contentes já com o livre exer­ liaram, Paulo m mandou insinuar ao du­
cício da sua religião, mandaram predican- que de Saboya c ao parlamento dc Turim
tes aos cantõcs catholicos. O duque dc Sa- que os inimigos que tinham nos valles
boya, para reprimir a sua temeridade, en­ eram mais de temer do que os francezes;
viou um ofíicial com quinhentos homens, que, para bem da Igreja e do estado, de­
que, entrando subitamente nos valles, tudo viam empenhar-se cm os exterminar. Pouco
levaram a ferro e fogo; mas os valdenses tempo depois mandou o mesmo sancto pa­
tomaram as armas, e atacando de impro­ dre uma bulla cm que ordenava aos juizes
viso os piemontezes, os mataram quasi to­ do dito parlamento punissem com rigor as
dos, e então ficaram cm paz. pessoas que lhes fossem entregues pelos
Pelo meio do século décimo sexto Occo- inquisidores: executaram a bulla, seguindo
lampadio e Bucero escreveram aos valden­ o exemplo dos mais parlamentos de Frar
ses para que se unissem ás igrejas refor­ ça; mas viram-se queimar tantos valdens<
madas, e sem embargo de ser a sua cren­ em Turim, que parecia querer o seu pa
ça tão diversa, se eficctuou a união. lamento distinguir-se dos outros por esi
O formulario da fé continha os seguin­ modo de proceder. Porém, conservando-s.
tes artigos: ainda os valdenses nos valles, e não tendo
l.° O serviço de Deus não póde ser feito o duque de Saboya bastantes forças para
senão em espírito e verdade. dcsfrnil-os, recorreu a Francisco i; este
I o Os que são, e. hão de ser salvos, fo­ fez partir para o Piemonto um corpo de
ram escolhidos por Deus antes da creação tropas, que prendeu innumcravcis valden­
do mundo.' ses, os quães foram queimados.
3. ° Todo o que estabelece o livre arbi­ Por este tempo morreu Francisco i. Hen­
trio, nega a predestinação e a graça de rique u deixou em paz os valdensas, e d’el-
Deus. la gosaram ate que terminou*a guerra dc
4. ° Não podem chamar-se boas obras se­Hospanha e França, e que restabeleceu o
não as mandadas por Deus; nem más se­ duque de Sabova^nos seus estados.
não as que Deus prohibe. O papa mandou estranhar ao duque de
ò'.° Póde jurar-se pelo nome de Deus, Saboya o pouco zelo que mostrava contra
uma vez que não o tome em vão aquelle os valdenses, c este principe os fez atacar
que jura. pelas suas tropas; mas resistiram-lhe tão
6. ° A confissão auricular não é ordenadadenodadamente, que o duque se viu preci­
por Deus, e quando algum pecca cm pú­ sado a conceder-lhes outra vez a paz, da
blico, deve confessar a culpa também pu- qual gosaram ate o anno de 1570, em que
blicamente. o duque Manoel fez uma liga olTensiva com.
7. ° Não ha dias determinados para o je­ varios principes da Europa contra os pro­
jum do christào. testantes. Assignada que foi a liga, lhes
8. ° O casamento é permittido a toda aprohiWu as assembléias que não tivessem
sorte de pessoas de qualquer qualidade e a assistência do governo.
condição que sejam. Em Franca eram tractados os valdenses
»
848 VAL
com tanta mais severidade, que os obrigou absurdos palpaveis c contradicções mani­
a fugirem para as terras novas, d’onde po­ festas. O entendimento repugna a similhan-
rém foram logo expulsos pelo zelo dos mis­ tes contradicções, não havendo homem que
sionários, favorecidos e apadrinhados pelos acredite que dous e dous são cinco, por­
governadores d’aquellas provincias. As re­ que ninguém póde crer que uma cousa é,
feridas expedições e as guerras do duque e não é ao mesmo tempo: não eram, pois,
de Saboya, quê haviam despovoado os seus os erros dos valenlinianos senão erros es-
estados, o impossibilitavam para reduzir os tribados em princípios falsos, bem que es­
barbetos ou valdenses; razão porque tomou peciosos, ou consequências mal deduzidas
o partido de os tolerar, com a condição de de princípios verdadeiros.
que não teriam templos, nem poderíam fa­ A extensão da seita de Valentini e o des­
zer vir ministros estrangeiros. velo com que os padres refutaram seus
Cromwell se interessou a lim de que se erros, suppoem princípios que tinham afli-
lhes concedesse uma tolerância mais ex­ nidade com as idéias d’aquelle século: por­
tensa, e provendo-os de dinheiro, se arma­ tanto consideramos que o exame do seu
ram, e se ateou de novo a guerra entre o systema podia contribuir para conhecer
duque de Saboya e os valdenses; mas, fi- qual era então o estado do entendimento,
nalmcnte, por medeação dos cantões da os princípios philosophicos que então vigo­
Suissa, ainda tornaram a obter a tolerância ravam, a arte com que Valentini os conci­
civil. liou com o Christianismo, e qual era a
Não se aquietaram os valdenses com es­ philosophia dos padres, da qual hoje em
ta tolerância; lançaram fóra os missioná­ dia se falia tão inconsideradamente, e de
rios, c, descobrindo-se que tinham corre­ ordinario a desproposito: e ainda, sem de-
lações com os inimigos do duque de Sa­ pendencia d'cstas considerações, o syste­
boya, Amadeu determinou rechacal-os dos ma de Valenlim póde fazer um objecto in­
seus estados. Luiz xiv, favorecendo os seus teressante para aquelles que prezam a his­
projectos,' mandou tropas ao Piemonte, c toria do entendimento humano.
então o duque de Saboya publicou um de­ Do que deixamos dito, já se vê que a
creto, no qual prohibiu a todos os seus vas- systema de Valentini era um systema phi­
sallos, hereges dos valles, continuarem no losophico e theologico; ou o sou systema
• exerci.cio da sua religião. Desobedeceram philosophico applicado á religião christa:
os valdenses, tornou a accender-se a guer­ examinemos estes dous objectos.
ra com mais vivacidade, até que finalmen-
to, depois de grandes fadigas e de muito
DOS PRINCÍPIOS PHILOSOPHICOS DE VALENT1M
sangue, os valdenses ou barbetos se sosti-
veram e os francezes se retiraram.
Alguns annos depois, unindo-se o duque Reconheciam os^çaldçus um Ente Su­
de Saboya com a liga de Au^burgo, revo­ premo, como principio de todas as cousas;
gou os seus editos contra os barbetos, cha­ segundo elles pensavam este ente produ-
mou os fugitivos, concedendo-lhes o livre ziu genios, os quaes haviam produzido ou-
exercício de sua religião: desde esse tem­ Jtros menos perfeitos; e estes genios, cujo
po teem-se restabelecido, e teem sido uti­ •poder ia sempre a diminuir, formavam fi-
lissimos ao duque de Saboya contra os jnalmentc o mundo e o governavam. A phi­
francezes.1* losophia caldaica tintía-se espalhado por
-'4 v a l e n d i — I-Ierege que appareceu pelo jquasi todos os povos, que cultivavam as
f m eíotfo segundo século: formou uma sei­ •sciencias; Pythagoras adoptou muitas de­
ta notável, e os padres escreveram*muito suas idéias; Platão expôl-as com os encan-'
/ contra elle e contra os seus erros. Alguns tos da imaginação, e animou, por assim
§ criticos tiveram por tãoobscuro o que nos dizer, e persònalisou todos os attributos.
f resta do seu systema, que não hesitavam '• DiíTundidas por todo o Oriente a philo­
em olhar Valentini e seus discipulos como sophia de Pythagoras, a de Platão e o sys­
insensatos, e seus erros como um aggre- tema dajjjjmanações, os seus princípios
gado de extravagancias, indignas d'exame. .passaram"ãõ’Tlíristianismo, como bem se
Não suppômos que estes críticos quei­ vê do grande numero de heresias do pri­
ram que os erros dos valenlinianos fossem meiro e segundo século: n’aquella região
não se conhecia outra philosophia, e parti­
i Hist. des Albigeois et des Vaudóis, par cularmente em Alexandria, aonde Valen­
le P. Benoit. D'Argentré, Collect. Jud., I. 1. tini estudára.1 Este, pois, enamorado dos-
Regina ld, D vpin, Fleury, de Thou, Hist. de
France. i Ircen., 1 .1, c. 10, l. 1, c. 13.
VAL 849

seus princípios, quiz transportal-os para o que este os considerava como quadros col-j
Christianismo, «seguindo todavia um me­ locados fóra de si; c por este meio expli-;
thodo inteirameíile alheio do que haviam cavam como o Ente Supremo havia pro­
seguido os gnosticos c outros muitos he- duzido espíritos.
r e g e s.1 Como nós nào sómente temos idéias,
0 espectáculo das desgraças que attri­ mas sentimos paixões que nos arrebatam,
butam o genero humano, os seus vicios, e desejos violentos que nos agitam, estes
os seus crimes, a deshumanidade dos po­ desejos e paixões que nào nos illustram, e
derosos a respeito dos fracos, fizeram em nada representam, sào, pois, propriamente
Valcnlim impressões tào vivas, que não fallando, umas forças moventes que sahem
podia acreditar que homens tào perversos do fundo da nossa alma; c como a alma
fossem obra de um Deus justo, sancto e depois d’estas agitações torna a entrar cm
benefico. Creu que. os crimes traziam a socego, persuadiram que d’ella sabiam es­
sua origem das paixões, e estas da maté­ tes desejos ou forças moventes: c assim
ria; suppôz que na matéria havia pactos presumiam haver atiingido o modo como
de diflerenlès espccies, e partes irregula­ o espirito podia produzir forças moventes,
res, que nào podiam ajustar-sc com as ou- ou espíritos motores, e agita*dos continua­
■ tras. Creu que Deus unira as partes regu- mente.
lares; mas ficando misturadas as irregula- Porém como as paixões nem sempre
í res, que Deus despres«ára, com as produc- nos alteram, mas antes gosando de uma
ji-ções organisadas e regulares, cilas causa- paz serena experimentamos estados delan-
!vam as desordens: e assim se persuadiu guidez c de tristeza, aíTectos de odio ou
Valentim poder conciliar a Providencia de temor, que oíTuscam as nossas idéias, e
' com as desordens que reinam sobre a como que nos deixam sem acção, pareceu
terra. 2 que estas aíTeições, que tambeín sahem do
Porém, existindo tudo pelo Ente Supre­ fundo de nossa alma, tinham uma analogia
mo, como podia elle produzir uma mato- completa com a matéria bruta c insensível;
. ria indócil ás suas leis, e ser esta materia portanto se persuadiram poderem sahir
- producçào de um espirito infinitamente d’um principio espiritual espíritos c a mes­
; bom? Esta objecção determinou Valentim ma matéria.
| a largar o seu primeiro sentimento, ou a Todavia como a Intelligencia Suprema não
■juntar ás suas primeiras idéias os princi- estava sujeita ás paixões humanas, era im­
{ pios do systema dos platônicos,.no-quaLse possível fazer, sahir o mundo immediata-
suppuoha to e r /sa ín d o tudo fio. seio ,.do mente d’csta intelligencia; razão porque
Ente SupceihO, Ror .via. .dZema.oacàp, «bem imaginaram uma dilatada cadeia d’espíritos,
como a luz sabe do sol para so derramar cujo numero, conforme se deixa vér, era
por toda a natureza, ou,, ser viudo.-nos.-do arbitrario. Eis-aqui, segundo nos parece, a
outra-comparação dosJndiqs, .como os,fios serie de idéias que conduziram o enten-
f da aranha sahem do.corpo íta;mesma. dimento dos philosophos ao systema das \
Uma das maiores difficuldades deste emanações, adoptado por Valentim: vamos /
» systema é a producçào do mundo corpo- agora vér como este applicou os seus prin­
j reo, porque vindo tudo da intelligencia cípios para o Christianismo.
l suprema por via d’emanaeão, como podia
$ sahir d’elia outra, cousa que não fossem
; espíritos, e existir a materia? Para expli- APPLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DE VALENTIM
carem, pois, iTesie systema a producçào PARA A RELIGIÃO CHR1STÂ
v < ' do mundo corporeo, esquadrinharam quan­
to um espirito podia produzir, e sobre o
mesmo homem fizeram todas as observa­ Ensina a religião christã que a primeira
ções que podiam dar a conhecer as pro- producçào do Ente Supremo é seu Filho,
fiucções de que o espirito era capaz. q u e' por este fóra tudo creado, e que ha
/''"Notaram que o nosso espirito conhecia, um Espirito Sancto, uma sabedoria e infi­
/formava idéias, ou imagens dos objectos: nidade d’espiritos de differentes ordens.
( estas jmagens oram entes reaes,produzj- Este foi o principal objecto que Valentim
\d o s pelo espirito, é d’elle .distinctos, pois encarou na religião christã, e portanto não
principiou pela explicação da origem do
1 Tert. de Pm scripL, c. 7. Epiph. Han\ mundo, como descreveu Moysés, mas pela
v31. Person. in Vindiciis Ignat. producçào do Verbo, da sabedoria e dos
2 Valent. Dissert. apud Grab. Dissert. espíritos inferiores; depois fez sahir das
PP. scec. 2, pag. 35. primeiras producções o mundo corporeo,
850 VAL
c as almas humanas; e íinalmcnte explicou viu que deviam ser viventes e aptos para
como estas almas estão submergidas nas pensar: o que também Valentini expressa­
trevas, como se unem aos corpos, c como va por figura, dizendo que o casamento do-
entre todos os espíritos puros se formou -espirito e da verdade haviam produzido a
1 um Salvador, que livrou, illuminou os ho- Wida e a razão.
\ mens, e os fez capazes de se elevarem até Produzidas a vida e a razão, conheceu o
to s espíritos puros, e de gosarem da sua Espirito creador que podia formar homens,
' felicidade; cis-aqui as suas explicações. e com os homens formar uma sociedade
O Sér Supremo é um espirito "infinito,de entes pensantes, capazes de darem glo­
omnipotente, que existe por si mesmo, e ria ao Ente Supremo, o que Valentim ex-
que por consequência é o unico eterno, nrimia, dizendo que, do casamento da ra-
porque tudo o que não existe por si mes-j 7.ão c da Yida, tinham sahido o homem e a.
1110 tem uma causa e um principio. Antcs^ igreja,
da época em que tudo o teve, o Ente Su- f Eons, ou os oito pri­
premo existia só, e se contemplava no si­ meiros prmcíjfíoini(TIudo, segundo Valen­
lencio c no descanso, existindo só com o tim, o qual os queria encontrar no princi­
seu pensamento: conforme os platônicos, pio do Evangelho de S. João. Todos estes
nenhuma outra lousa era essencial a um Eons conheciam a Deus, mas o conhe­
espirito, e pensavam que quando nós mes­ cimento que d’elle tinham era muito infe­
mos nos examinamos, nada mais encon­ rior ao que tinha o Espirito, ou o Filho
tramos em nós que a nossa substancia e o unico.
nosso pensamento. Vendo a sabedoriaT«ultimo dos Eons,
Depois de infinidade de séculos, o Ente com desgoslo a prerõgativa do Filho unico
Supremo sahiu, por assim dizer, do seu ou do Espirito, esfurçou-se a formar unia
repouso, e quiz communicar a existência ideia que representasse o Ente Supremo;
a outros entes: mas este desejo vago de mas a que d’elle formou, não era mais
, commnnicar a sua existência nada have-J que uma imagem coiífusa; e portanto, sen­
ria produzido, se o pensamento não o di-" do as producções dos outros Eons sub­
rigisse, se não lhe tivesse fixado, por as­ stancias espirítuaes e inlelligentes, o es­
sim dizer, um objecto, e traçado um pla­ forço que fez a Sabedoria para formar a
no: portanto foi necessário que o Ente Su­ iideia do Ente Supremo, só produziu uma
premo confiasse ao seu pensamento este substancia espiritual, informe, e de natu­
desejo, para que elle podésse dirigir a sua reza absolutamente diversa das outras es-
execução, o que Valentim exprimia d’utii Species.
, modo figurado, dizendo que o Sér Supre- Assombrada a sabedoria das trevas em
; mo ou o Ifojlos deixara caliir este desejo que sò havia submergido, atlentou no seu
no seio do pensamento. 0 pensamento, pois, erro e temeridade; quiz dissipar a noite
formou o plano do mundo, que é aquelle que a cercava, fez esforços, e estes produ­
mundo intelligivcl que os platônicos ima­ ziram forças na substancia informe: co-
ginavam em Deus. folieccu ser-lhe impossível dissipar as suas
0 Ente Supremo nimjaniente grande pa­ [trevas, e que só de Deus podia esperar a
ra execõtar por si mesmo este desígnio, virtude necessaria para recuperar a luz.
produziu um espirito, e o produziu unica­ Moveu-se o Ente Supremo pelo arre­
mente pelo seu pensamento; porque o es-j pendimento da sabedoria: para tornal-a ao
pirito que pensa, produz unia imagem dis­ seu'primeiro esplendor, e prevenir esta
tincta meile mesmo, a qual imagem é umaj desordem nos mais Eons, oJEspirUo, ,_.o,u
substancia no systema dos valcntinianos, o . Filho unico^ p/oduz.i«..a..Çhr>to,Jsto.jé,
como parecia também ser no sentimento uma 1i^ líg e n ç x a ^ oa.Epns ,
dr». fllírnhs platônicos.
de alguns nlíífrmirtnc TfclA
Este A rn rin - quç. JlVçsTféz v é r . quemiío. podiam conhe­
cninfn nprodu
espirito
zidò pelo pensamento era uma intelligeri| cer’o Ente Supremo,, e un; Éspiiãto,,San-
cia capaz de comprehendor o seu designioS cto;"ò : qual 1he s . ni os trou quaes eram as
• e dotada de um juizo infállivcl para a sua^ exc'cllTríciíis.‘'dÒ çeíi; estado, e o .que. de­
execução; e portanto, conforme Valentim viam ao Ente Supremo, e os ensinou a
0 'espirito e a verdade haviam sahido d- loivarem-sé e á serem-lhe agradecidos.
seiò do pensamepto e era como o fruch Por este meio se firmaram os Eons no
do casamento do Ente Supremo com seu estado, .e formaram uma sociedade de
pensamento. espíritos, que existiam em perfeita brdeni..
0 Espírito, ou ó Filho unico, conheceu Conheceram estes espíritos as s.uas per-
estar destinado para produzir entes capa­ feições, e como o conhecimento de um es­
zes do glorificarem o Ente Supremo, e pirito produz uma imagem distincta d’es-
VAL 851

te mesmo espirito, os Eons, conhcceudo tinha dotado dc sensibilidade e da facul­


suas perfeições reciprocas, produziram um dade do reconhecer: a primeira aíTeição
espirito, que era a imagem das suas per­ d’esta alma foi o sentimento da sua exis­
feições, c que as unia todas. Este era, pois, tência, que teve antes de haver conhecido
o chefe natural dos Eons, os quaes co­ outra cousa; e como todas as aíTeiçõos da
nheceram que, sendo ello tal, carecia de alma produzem fóra d’clla entes similhan-
ministros para sustentarem as suas or­ tes ás mesmas aífeições, a alma, que habi­
dens, razão porque os crearam e são os tava na região da lúz, produzia uma alma
anjos. que não era mais que sensível. Achamot
Todavia o espirito que a sabedoria pro­ unia a esta alma sensível uma alma espi­
duzira, existia submergido nas trevas; o ritual, c d’csta união se formava um ente
Filho unico, ou a intelligencia, depois dc sensível e intelligenlc.
haver esclarecido os Eons, deu a este Conforme os princípios de Valontim, os
espirito informe a faculdade de conhecer, sentimentos de alegria, tristeza, etc., nada
o qual immediatamentc reconheceu o seu mais são que esforços ou forças moventes;
beinfeitor; mas o Filho unico, ou a intelli- razão porque uma*alma sensível é dotada
genGia se retirou, deixando este espirito, d’uma força movente: portanto, a alma
ou a filha da sabedoria, com ancioso de­ sensível c a alma espiritual unidas, for­
sejo de o conhecer; porém como a sua es­ mam um ente não só capaz de conhecer /
sência não lh’o perrniltia, fez quantos es­ e de sentir, mas também de pôr em movi- J
forços pôde para representar o Ente Su­ mento a materia, de obrar sobre ella c dc j
premo, e vendo-os frustrados, ficou oppri- receber as suas impressões.
mida de tristeza. Conheceu este ente os diversos modos
Nenhum espirito faz esforços sem pro­ como clle podia obrar sobre a materia, e
duzir alguma cousa fóra d’elle; portanto, como a matéria podia ler reacção sobre
da agitação d’este espirito (ou da Entyma) ella; portanto, formou corpos organisados,
nasceu a tristeza: conhecendo depois que nos quaes collocou almas sensíveis e espi- \
seus esforços a haviam enfraquecido, te­ rituacs, e produziu sobre a terra plantas,
meu a morte; d’aqui nasceram o temor, a animaes c homens. Este espirito é o crea­
, inquietação e a agonia: algumas vezes se dor, segundo Valentirn,'7e_não um. ,'Ent»
'recordava da formosura da intelligencia, o qual sendo puro espirito, Isenq
que a dotara da faculdade de conhecer; pto de toda a paixão, não póde obrar sobr
esta imagem a regosijava, a sua alegria a materia e dar-lhe fórma.
produzia a luz, mas a final recahia na O espirito que habitava na região lumi
tristeza. Todas estas producçõcs são sub­ nosa, c o creador que occupava a região
stancias espirituaes, mas destituídas da fa­ da terra, eram compostos d’uma parte ani­
culdade de conhecer; são movimentos, ou mal e d’outra espiritual; não conheciam o
forças moventes, que se comprimem ou se Ente Supremo, nom viam cousa alguma
dilatam. superior a elles: portanto o Dimiurgo quiz j
Para fazer cessar os esforços c as an­ ser olhado nos céos como o unico Deus, e
gustias da filha da sabedoria, a intelligen­ o Creador pretendia o mesmo sobre a j
cia mandou o Salvador a Achamot, o Sal­ terra.
vador o illuminou e o livrou das suas pai­ Viviam, pois, os homens sobre a terra
xões; então começou Achamot a. rir,, e o n’uma ignorância profunda ácerca do Ente
seu l iso foi áluz.*No~mesmo instante em Supremo; o Salvador desceu a ella para os
que~VchámoT ficou livre das suas paixões, illumjnar: quando os homens espirituaes se
cila produziu um ente espiritual, que foi houverem aperfeiçoado por meio da doutri­
o frueto da luz que a illuminára, e daalc- na que elle ensinou, então, diziam os valen-
; gria que d’aqui lhe proviera. tinianos, tudo acabará; então, havendo re­
Foi, pois, a alma que produziu uma al- cebido todos os espíritos a sua perfeição,
. ma sensível e intclligentc. Achamot, sua mãe, passará da região me­
As paixões produzidas por Achamot, dia ao Pleromo, e se casará com o Salva­
ainda confundidas, formavam o cáhos: o dor, foThTífdÕ pelos Eons, e pelo chefe dos
Christo as uniu, formou a matéria, sepa­ mesmos: estes são o esposo e a esposa de­
rou das outras paixões a luz, e_então ap- cantados na Escriptura.
pareceu a terra. Ós homens espirituaes, despojados das
Foi, pois,' este novo mundo composto de suas almas e tornando-se em espíritos pu­
duàs partes, uma das quaes continha a luz ros, também entrarão no Pleromo, e serão
c a outra a terra. Na região da luz estava as esposas dos anjos que rodeiam o Salva­
a alma que Achamot produzira, e a . qual dor.
852 VIG
0 author do mundo passará á regiãogrande força.de raciocínio. 2.° Provam que
media, em que estava sua mãe, aonde se­ toda a igreja christà professava a fé que
rá seguido das almas dos justos, que não elles propugnam, e que é a mesma do dia
fossem elevadas á classe dos puros espíri­ de hoje. 3.° E evidente que todos estes pa­
tos por^conservarem a sua sensibilidade: dres não eram platônicos, e que os chris-
estas não passarão d’alli, porque nada de tãos não tinham recebido os seus dogmas
animal entrará no PIcromo. Então apparc- d’cstcs philosophos, porque, se assim pode­
cerá o fogo escondido no mundo, e atean­ mos explicar-nos, nós o repetimos, pela
do-se na materia, a consumirá até se ex- massa da doutrina da Igreja é que deve­
tinguir e aniquilar com ella. mos julgar qual era a dos padres, e não
No systema de Valentini o Ente Sapre- por algumas passagens d’estes, deslocadas
mo era um puro espirito que se conietn- c despidas das explicações que elles mes­
| piava, e achava a sua felicidade no conhc- mos nos deixaram dos seus sentimentos. 1
! cimento das suas perfeições: este era o Iguora-se qual fosse a origem de Valen-
• modello que todos os espíritos deviam imi- tim^c o tempo em que divulgou o seu ér-
; tar; todos haviam de tender á sua perfei- ro7 n iã s' pãrecé que se fez celebre pelo
; çào sem a pretenderem; mas avisinhavam- nfètò do segundo século:2 tcye muitos dis­
se a ella, quanto pôde uma creatura, logo cipulos; dastes adquiriram nomé Ptolo-
que se haviam libertado de todas as pai­ meu, Secundo, íleraçlião, Marcos, CoTar-
xões. basso, Basso, Flufíno é BJastoTqüe fizeram
As paixões, no mesmo systema, eram grassar a sua doutrina, c foTmaram seitas,
potências cegas, e substancias estranhas á algumas das quaes foram extensas, parti-
alma; o homem devia com uma continua cularmente nas Galhas, em tempo de San­
vigilância expulsal-as do seu coração: por cto Ircneo, que foi quem nos illustrou
este meio se tornava em puro espirito, isto mais ácerca d’c sta .3 Vejam-se no artigo
é, n’uma inielligencia isempta de idéias e Marcos as mudanças que houve n’cste sys­
de affectos, e então é que a alma se fazia tema.
uma habitação digna do Pae celestial, i valesiaxos— Veja-sc Eunucos.
Valentini baptisava em nome do Pae de yiGtLANCio—sacerdote e parocho- d’uma
idas as cousas, que era desconhecido da freguem ^de Barcelona, no principio do
erdade, mãe de tudo, e de Jesus Christo, quinto século, ou pelos fins do quarto, como
ue linha descido para resgatar as virtu- pensaram os sábios authores da Historia
es. Estes modos de administrar o baptis- Litteraria de Franca, ensinou diversos er­
; mo talvez dessem occasião ao costume de ros. As obras cm que os ensinou não che­
rebaptisar, c ao erro dos rebaptisantes. garam ao nosso tempo, e sómente as co­
É escusado demorarmos-nos em refutar nhecemos por S. Jeronymo, que a seu
estes erros, que teem por base uma falsa respeito diz assim:
ideia da omnipotcncia do Ente Supremo. «Tem-se visto no mundo monstros de
Todos se desvanecem logo que se attenta, diversas especi.es: Isaias falia dos centau­
que existindo o Ente Supremo por si mes­ ros, das sereias, c d’outros similhantes;
mo, deve ter um poder infinito, que por Job faz uma dcscripção mysteriosa do le-
um só acto da sua vontade faz existir es­ vialhan e de behemoth; os poetas contam
píritos e corpos, e imprime na matéria as fabulas do cerbero, do javali, do bosque
quantos movimentos são possíveis. de Erimantlio, da chimera, e da hydra de
Os padres refutaram solidamente os seus muitas cabeças; Virgílio refere a historia
erros, e demonstraram palpavel o abuso de Caio; a Hespanha produziu Gerião, que
que os valentinianos faziam das Escriptu- tinha tres corpos; sómente a França era
ras em favor do seu sentimento. Copiar­ isempta d’estes monstros, e produzira ho­
mos aqui tudo o que elles disseram, não é mens de valor e eloquentes, quando de re-
possível, porém não podemos dispensar-
nos de fazer algumas reflexões sobre as i Tert. Iram. Ciem. Alex. Epiph., ibid.
suas obras contra os valentinianos. l.° Dei­ ' 2 Sobre esta m ateria pôde vêr-se Pcar-
xam vér uma metap hyj ica ^j?rofun da, e son, Virid.; Ignat., part. 2, c. 7, Dodtvel.
Ittig. de Hrnes. Grabbe, Spicileg.
1 Ircen., I. 1, c. 2. Tert. adversus Va­ 3 Quis Thomazio que a seita dos valen­
lent. Epiph. Massuet., edicç. de S. Ircen. tinianos tivesse sido tao numerosa que qua­
D issert.j a r t i . Ciem. Alex. Stroni., I. 12, si equilibrasse com a igreja catholica; po­
409. Philisty Theodôret., l. I. Hoeret. Fab., rém o seu sentimento e destituído de pro­
c. 7. Auff. de Heer., c. 31.” Damascen. de vas, e tem contra si todos os monumentos
Hcer., c. 37. da Historia Ecclesiastica.
YIG 853
pente appareccu Vigilancio, ou para me­ tres capítulos: I.® o culto dos sanctos; 2.®
lhor dizer Dormitando, combatendo com o das reliquias; 3.®o celibato. 1 Os protes­
um espirito impuro contra o espirito de tantes perfilharam-nos todos; vamos exa-
Deus. Quer elle que não se devam honrar minal-os.
os sepulchros dos martyres, nem cantar
allcluias; condemna as vigilias antes da § I
Paschoa, chama ao celibato heresia, c' á
virgindade origem da impureza.» 1 Do culto dos Sanctos
Vigilancio presumido de talento supe­
rior, picava com agudeza, mas sem racio­ 0 culto dos sanctos tem duas partes: a
cínios, preferindo um bom dito a uma boa honra que se lhes dá e a invocação. Quan­
razão, e bem que não mostrasse paixão do Vigilancio ridiculisou com âpodos in­
por se tornar celebre, quando escrevia, só juriosos, e censurou d’idolatra o culto dos
atacava os objectos que por alguma face sanctos, estava este geral mente estabele­
lhe subministravam matéria para a zom­ cido em toda a Igreja. Os protestantes per­
baria. filharam as suas razões, querendo que fosse
«Dever-se-hão respeitar, dizia elle, ou desconhecido nos primeiros séculos.
ainda adorar não sei quê, que trazeis cm Para deixarmos, pois, o leitor em estado
um pequeno vaso? Que razão ha para dar de pronunciar sobre os seus sophismas,
cultos ao pó, a uma vil cinza, envolta em nem podemos entrar individualmente em
linho, que impura, mancha os que a cila cada uma das objccções, que ellcs amon­
se chegam, similhante aos sepulchros deal- toaram contra o culto dos sanctos, nem o
bados dos phariseus, que por dentro não julgamos necessário; bastará sómente que
eram mais que pó e corrupção? É pois demos uma breve ideia da doutrina da
necessario que as almas dos martyres es­ Igreja acerca d’este objecto.
timem ainda as suas cinzas, e residam 1.® A igreja catholica suppõe que os san­
junto d’ellas coin receio de que não pos­ ctos conhecem as nossas necessidades, c
sam ouvir as supplicas dos peccadores, se que podem interceder por nós; é ponto de
estiverem ausentes. doutrina fundado no Antigo e Novo Testa­
«Sob pretextos de religião vómos intro­ mento. Jacob roga ao anjo que o protegeu,
duzidos na Igreja costumes idolatras. Ac- que proteja seus filhos: invoca Abrahão c
cendem-se grandes cyrios sendo alto dia, Isaac.2 O mesmo Deus diz pela bôcca de
beija-se e adora-se um pouco de pó: gran­ Jeremias, que quando Moysés e Samuel
de serviço para os martyres querer iIlu­ intercedessem pelo povo, hão os cscuta-
minar com maus cyrios aquelles’ que o nia.3 S. Pedro promeltc aos fieis que ro­
cordeiro, assentado sobre o throno, illu­ gará por elles depois da sua morte. < Em
mina com todo o resplandor da sua ma- uma palavra o Antigo e Novo Testamento
gestade! Emquanto vivemos podemos ro­ suppoem evidentemente que os sanctos co­
gar uns pelos outros, mas depois da nossa nhecem as nossas necessidades, c se inte­
morte as orações que se fazem por nós não ressam por nós. Kemnicio e a confissão
são ouvidas; os mesmos martyres pedem de Wirtcmberg reconhecem quo os san­
e não alcançam que Jesus Christo vingue ctos oram pela Igreja.
o seu sangue*. Diz Vigilancio que durante a nossa vida
«Como é de crêr que um pouco de pó
produza todos os prodígios que se contam, 1 M. le Clerc, na Bibliot. U n iv a n . 1689,
pag. 169, accusa S. Jeronymo de má fè con­
e qual seria o objecto d’esses milagres que
tra Vigilancio, que elle vê como um homem
se fazem entre os fieis? os milagres só po­
dem servir para esclarecer os infleis; pe-habil, mas não se encontra o ponto sobre
ço-vos me digaes como é possível que um que funda esta opinião. M. Basnage, na
pouco de pó tenha tantas virtudes? Hist. Eccles., t. 2 , l. 17, c. 9, pretende o
«Se toda a gente se recolhe aos claus­mesmo, mas sem o provar.
tros, quem ha de servir as igrejas?* ilf. Barbeyrac, que não foi senão o ccco
de M. le Clerc contra os padres, renovou
Vigilancio depois d’isto impugnava o ce­
libato e os votos como origem de desor­ estas accusaçocs, e quiz proval-as pelas pas­
dem. 2 sagens que estabelecem o contrario. Bar­
Podem pois reduzir-se os seus erros a beyrac, Prces. de Pussend. Rep. à D. Cel-
lier.
1 Hyeron. contr. Vigilant. Lettre à Ri- 2 Genes. 48.
paire. 3 Jerem. c. 15.
2 Hicron. ibid. 4 Ep. 2, c. I.
8oi YIG
podíamos rogar uns pelos outros. S. Jero- igreja grega n’este particular concorda
nymo respondeu quo sc os apostolos e os perfeitamente com a latina. 1
martyres ainda revestidos de carne mor­ 2. * Os catholicos invocam os sanctos, não
tal, e necessitados do cuidarem da propria os adoram; ó cabeça desasisjtda, diz S. Je­
salvação podem pedir pelos homens, com ronymo, quem te disse que se adoram os
mais justa razào o podem fazer depois de martyres?
haverem alcançado a corda do martyrio. 3. ° Os catholicos não deprecam aos san­
Acaso Moysés, que só por só impetrou de ctos, como suppondo-Ihcs um poder inde­
Deus o perdào para seiscentos mil comba­ pendente de Deus, mas como intercessores
tentes, e Sancto Estevào, o primeiro dos e mediadores poderosos diante d’elle; re­
martyres, que tão perfeitamente imitou Je­ conhecem que os merecimentos dos san­
sus Christo, pedindo perdào para os seus ctos são méritos adquiridos pela divina
algozes, seriam menos poderosos na pre­ graça: e portanto o culto que lhes dão não
sença do Sal vadar do que eram n’este é idolatra, é de natureza diversa, c muito
mundo? S. Paulo, que nos affirma haver alheio do que rendem a Deus, e não da
Deus concedido a vida a duzentas setenta mesma especie, c que só diflere do mais
e seis pessoas, que com elle navegavam, ou menos, como querem os theologos he­
fechará a bôcca quando estiver no céo, nào terodoxos. 2
ousando proferir uma só palavra por aquel- Não deve, pois, ter-se por crime o culto
les que tiverem abraçado o Evangelho em que os catholicos dão aos sanctos, e os
toda a terra? 1 mesmos theologos de Saumur reconhecem
S. Jcronymo responde n’esta passagemque não seria de condemnar se diíTerisse
ao que Vigilancio dissera áccrca da invo­ essencialmente d’àquelle que se dá a Deus.
cação dos sanctos, isto é, ser desnecessá­ Estes dous cultos diversos se vêem evi­
rio invocai-os, porque as suas orações não dentemente assignalados em toda a anti­
são ouvjdas, mostrando o sancto* por va­ guidade, diga o que disser M. Basnage; ou
rios exemplos o contrario. elle deverá fazer de todos os christãos dos
Como é. crivei, pois, que. M. Basnage ti­ tres primeiros séculos outros tantos idola­
vesse o desapego de asseverar que S. Je- tras, pois que estes sem dúvida renderam
ronymo não olhava como legitima a invo- um culto aos m artyres.3
açào dos Sauctos? 2 Se S. Jeronymo sup­ Sem razão, pois, asseveram os apologis­
õe unanime e constante a tradição da tas da Confissão de Ausburgo, que os pa­
Igreja acerca do culto dos sanctos, e Vigi­ dres antigos, antes de S. Gregorio Magno,
lancio não se funda n’ella para refutal-o, não fallaram da invocação dos sanctos. Em
que melhor prova de que a tradição lhe S. Gregorio Nazianzenò se lê uma oração
nào era favoravel, como aílecta Basnage, sobre S. Cypriano, que manifesta estabele­
fundando-se em conjecturas não rnenos cido o culto dos sanctos antes do quarto
contrarias a toda a authoridade ecclesias­ século.
tica, que aos princípios da logica e da cri­ Calvino não estava longe ou distante de
tica? admittir a invocação dos sanctos, senão
E com efleito no principio do terceiro por não poder comprehender como as ora­
século Origenes falia expressamente da in­ ções lhes podiam ser conhecidas; e esta é
vocação dos sanctos.3 Eusebio de Cesarea, também a repugnância que tem Vossio para
que passou parte da sua vida no mesmo nào a adm ittir.4 GrociO responde que to­
século, e que sem dúvida nem erá igno­ davia é mui facil de comprehender: «Os
rante nem supersticioso, assevera serem prophetas emquanto estavam n’este mun­
visitados os sepulchros dos martyres, e di- do, diz elle, conheceram o que se passava
rigirem-Ihes os fieis as suas orações.4 Os longe d’elles. Eliseu vê tudo o que faz
Sanctos Hilário, Ambrozio, Ephrem, Bazi- Giesi, bem que ausente. Ezechiel, no meio
lio, Gregorio Nissenó, e outros, estão todos da Caldea, está descortinando quanto so
unanimes acerca do culto dos sanctos; e a passá em Jerusalem; os anjos estão presen­
tes nas nossas assembléias, e se esmeram
1 Hyeron. ibid. por tornarem as nossas orações agradaveis
2 Basnage, Hist. Eccles., i. 2, l . 19, c.,7. ao Senhor; d’isto sc persuadjram em todosr.
- 3 Exhort. ad. M artyr. Hom. in Ezech. os tempos não só os christãos, mas os ju-
4 Hil. c. 18, in Matth. Ambr. t. 2, pag.
200. Ephrem. de Mensa et Serm. in Sanct. 1 Hyeron. ibid.
qui def. B asil. orai. 28 de 40 M artyr. Greg. 2 fhes. âe Culte et Invoc.
Nyss. or. in TJieod. Perpet. de la Foi, t. ò', 3 Basnag. Hist. Eccles. t. 2, l. 19, c. 10.
pag. 491. •* 4 Grotius annot. ad cônsul. Cassand.
VIG 85S

deus. A’ vista, pois, de taes exemplos, ha Este respeito via-se gcralmente estabele­
de crér qualquer leitor desprcoccupado ser cido quando Vigilaneio ousou combatel-o;
muito mais racionavcl admittir que os mar­ é facto provado por S. Jeronymo. «Então
tyres tenham conhecimento das orações commettemos sacrilégio, diz cllc a Vigi­
que lhes dirigimos, do que nogar-llTas.» 1 lando, quando entramos nas igrejas dos
Do que acabamos de dizer pôde qual­ apostolos? Constantino o commetteu trasla­
quer capacitar-se se eram assistidos d’al- dando as sanctas reliquias d’André, de Lu­
gum fundamento Calvino, Chamier, Hos- cas, c de Timotheo para Constantinopla,
iniano, Bailleu, Vossio, Basnage, L’enfant, aonde os demonios bramem junto d’ellas,
arbeyrac e outros, para censurarem o e onde estes espíritos, de que Vigilaneio
culto dos sanctos de desarrazoado, furioso, está possuído, confessam sentir os oITeitos
blasphemo e idolatra.2 Se o culto dos san­ da sua presença; o imperador Arcadio é
ctos é idolatria, então os pagãos, Juliano um impio, que "transferiu para a Thracia
apostata, e Vigilaneio, conheceram melhor os ossos do bemaventurado Samuel, muito
este culto que os padres do quarto e quin­ depois da sua morto; todos os bispos, que
to século, que o defenderam; e ao passo teem trazido em vasos d’ouro e em sédas
que estes padres combatiam com tanto zelo cousas tão abjectas, não somente são im­
e tão gloriosamente os novacianos, aria­ pios, mas insensatos; c tem sido uma lou­
nos, manichcus, donalistas, c pelagianos, cura dos povos de todas_ as igrejas virem
estavam sendo os promotores e pregadores diante d’estas reliquias com tanto regosijo
da idolatria, e cooperando com todas as como se houvessem visto um propheta, e
suas forças para oxtinguirem a religião e em cardumes, que chegam desde a Pales­
a piedade. s tina até Macedonia, cantando a uma voz
os louvores de Deus.» 1 É portanto uma
§ II ignorância grosseira da historia ecclesias­
tica asseverar que o culto das reliquias
Do culto das relíquias começava a estabelecer-se no tempo de S.
Jeronymo.
' O culto das reliquias é um sentimento O respeito dos fieis para com ellas fo
natural que a religião authorisa. Moysés geral depois dc Vigilaneio, cujo erro nã
trasladou os ossos de Joseph quando sahiu fez progressos; e o culto das mesmas desd
do Egypto. O respeito que Osias tinha aos esse tempo sómente foi impugnado pelo
corpos* dos prophetas, os milagres obrados petrobrussianos c valdenscs, e pelos presu
pelos ossos de Eliseu e pelos vestidos de midos reformados, que d’aqui tomaram um
S. Paulo, justificam a veneração dqs chris- dos fundamentos para o scisma, asseve­
tãos para com as reliquias dos sànctos.3 rando que a igreja catholica dava ás reli­
Os que acompanharam Sancto Ignacio ao quias um culto idolatra. Porém é certo
logar do martyrio, recolheram com grande que nunca lhe deu um culto, que termi­
desvelo os restos dos seus ossos, guarda­ nasse iTelIas, e 'que tivesse alguma rela­
ram-os n’uma caixa, eslimando-os como ção com a idolatria, como o fez vôr M. de
um precioso thesouro, e em todos os an­ Meaux, na sua Exposição da Fé.
nos se ajuníavam no dia do seu martyrio Não subministrava, pois, este culto suffi­
para. se alegrarem no Senhor da gloria ciente motivo para que os reformados se
d’este sancto. * separassem da igreja catholica; e M. Til-
Os fieis de Smirna recolheram com toda lotson' viu-se forçado a confessar que não
a diligencia as reliquias de S. Polycarpo.5 deveram de separar-sc d’ella porque esta
A igreja de Lyon teve sempre em grande fosse idolatra, mas sim porque era difficil
veneração as réliquias dos sanctos.6 deixar de o ser na sua communhão.2
Não deixa de haver abuso no culto que-
1 Grot. votum pro pace. se dá ás reliquias, e talvez houvesse mais
2 Calvin. Instit. I. 2, c. 20. Chamier, l. antes da reforma; mas a Igreja não ap-
20, c. 4. Hospin, Hist. Sacr., 2 parL Daillé, provava, antes bem condemnava estes abu­
adversus Latiu, de Reliq. cultu Vossius} de sos. E por yentura alguns abusos introdu­
ldol. U enfavt, Prêservalif. Basnag. ibid. zidos entre os fieis dao motivo sufficiente
Barbeyrac, fíep. au P. Gellier. para se romper a unidade? Toca aos par-
3 Reg. I. 4, c. 13. Ecclesiast. c. 48, act.
,
19 1 H y e r o n . c o n t r . V ig il.
2 Tillotson, semíão sobi'e estas palavras
* R ninart, A cta Martyrum.
3 lbid. pag. 33. de S. Paulo: *Elles serão salvos, mas pelo.
6 Ruinart, Acta Martyrum, pag. 67.
856 VIG
ticulares separarem-se da Igreja por nào na igreja primitiva; lei que havia causado
impedir esta esses abusos? Em que se tor­ infinitas desordens, e que para remcdial-as
naria a politica da Igreja, se homens sem é que os reformadores a haviam impugna­
authoridade se créssem com direito Resta­ do; taes são os princípios de Chamicr, de
belecer n’ella a reforma? Kemnicio, dos theologos de Sedam e de
As objecções que M. Basnage põe con­ Saumur, de Jurieu, Basnage, c L’enfant.
tra o culto das reliquias, sempre se fun­ Barbeyrac, que no prefacio da sua tra-
dam no falso supposto de que os catholicos ducção de Pufiendoríio, c na sua resposta
honram os sanctos e suas reliquias com a D. Ccllicr copiou quanto pôde esquadri­
um culto similhante ao que dào a Deus. nhar cm Lc Clerc contra os sanctos pa­
Sobre esta matéria podem vêr-sc os sábios dres, renovou todas estas diíficuldades, e
e judiciosos authorcs que citam os.1 até quiz provar ser o celibato nocivo ao
bem da sociedade humana cm geral, c a
§ III ^ cada uma das sociedades cm particular;
por este lado principal mente é que a lei
Do celibato do celibato ha sido tão accommettida no
nosso século. Para julgarmos sobre estas
Alguns heregcs antigos olhavam todos objecções, examinaremos: i.° o que a igreja
os objectos que levam ao prazer como primitiva pensou acerca do celibato ou da
benefícios do Ente Supremo, e a lei que continência; 2.° se a Igreja podia obrigar
. prohibia usar d’elles, como obra d’um ente os seus ministros a observal-a; 3.° se o ce­
malefico, que queria contrariar a Deus, c libato da igreja romana c prejudicial á so­
tornar os homens infelizes; razão porque ciedade civil.
tinham d’a!guma sorte por um dever de
religião o procurarem os prazeres prohi- PRIMEIRA QUESTÃO
toidos: entre ellcs a copula carnal era um
acto ■virtuoso, e a continência uma fraque­ DO QUE A IGREJA PRIMITIVA PENSOU ACERCA
ja ou impiedade.2 Vigilancio, pelo contra­ DO CELIBATO E DA CONTINÊNCIA
io, olhava a copula como crime, e o ce-
bato como um estado que o fazia inevi­ A Escriptura representa-nos a continên­
vei. cia voluntaria como estado de sanctidade
Luthcro no principio da reforma pregou particular: e para nos convencermos d’isto
m sermão, no qual se exprimia assim: bastará sopiente que lancemos os olhos
•Da mesma sorte que não está em meu sobre o cap. 7.° da primeira epistola de S.
poder o nào ser homem, assim também Paulo aos corinthios. Para se provar se­
não posso viver sem mulher, c isto mc c ria inútil citarmos os theologos catholicos,
mais preciso que o comer, beber, e satis­ re.conhocendo esta verdade os mesmos pro­
fazer as outras necessidades do corpo... testantes, como Grocio e Forbezio, os quaes
Se as mulheres se recusarem, será a pro­ nào negam que o Evangelho e S. Paulo
posito que os maridos lhes digam: se vós preferem a continência ao casamento. 1
não quereis, outra quererá; se a dama se Basta abrir os padres dos tres primeiros
negar, viva a criada.» 3 Zuinglio, Beza, e séculos para convencer-se qualquer de que
outros, seguiram o exemplo de Luthcro, o o celibato c a virgindade foram muito co­
que fez dizer a Erasmo que a reforma nào nhecidos nos tres primeiros séculos do
era mais que uma comedia continuada, Christianismo. M. Dodxyel reconhece que
cujo desenredo era sempre o casamento. depois dos couselhos de S. Paulo, a esti­
Os novos reformadores não poderam jus­ mação que se fazia da virgindade era ge­
tificar as expressões de Luthero, Basnage, ral, c que desde o tempo dé S. Clemente
e outros protestantes; concordam em que havia muitas virgens; 2 pouco depois se
são indignas d’um patriarcha, porém não obrigaram a guardar continência por vo­
deixaram í e defender-os seus princípios tos, os quaes são quasi tão antigos como o
acerca do celibato, asseverando ser lei in­ mesmo Christianismo:(assim se vê em S.
justa, impossível d’obscrvar, desconhecida
1 Grotius in c. 7, primis ad ‘Corinth.
1 Papebroc, Acta Sanct. t. 5. Mobillon, Forbesitts, l. i. Theol. Moral. I. 1, c. 12,
Pref. Act. SS. Fleury, D iscotas 3, su r le pag. 19.
Hist. Eccles. 2 Dodwel, Dissert. 2 sur la Chronolo-
2 Os antitaclos. gie des Papes, nas obras posthumas de Pcar-
3 Serm. Luther. son. .
VIG 857
Justino, Athenagoras, S. Clcmentc d’Allc- Sancto Epiphanio falia do celibato dos
xandria, Tertulliano e Origenes. » sacerdotes como geralmcnte estabelecido
E escusado examinarmos como se pen­ e observado cm todos os logarcs em que
sou acerca da continência nos scculos se­ estavam em vigor os canones da Igreja; e
guintes; ninguem ignora que no tempo de bem que reconheça que em alguns outros
Sancio Anifio estavam cheios de religiosos, se practicava o co*ntrario, diz que esta ex-
que a professavam, os desertos do Egypto cepção não era authorisada pelos canones,
c da Syria; desde cntfio se tom conservado e que só era tolerada por condescendor
no Oriente.12 Portanto não é a vida monas­ com a fraqueza, e introduzida pela negli­
tica um abuso introduzido pela igreja ro­ gencia.
mana, pois que quasi é lào antigo como o Os canones dos apostolos determinam o
Christianismo.3 celibato, c não se ignora quo a disciplina
que n’elles se contém era observada pelos
SEGUNDA QUESTÃO' orientacs nos tres primeiros séculos da
Igreja. 1 Esta práctica não é menos geral
SE A IGREJA IMPOZ AOS SEUS MINISTROS entre os latinos, como se manifesta do ca­
A LEI DO CELIBATO non 33 do concilio de Elvira, o qual pro­
E SE ESTA LEI É INJUSTA hibe aos sacerdotes e aos diaconos, debaixo
de pena de deposição, o viverem com suas
O celibato não 6 uma'condição necessa­ mulheres; c pelos "fins do quarto século foi
ria por direito divino para receber o sa­ estabelecida a mesma lei no concilio de
cerdócio: porém entre os apostolos só al­ Carthago.2
cançamos que S. Pedro tivesse mulher, e Verdade é que a igreja latina durante a
se os mais as tiveram é necessario que perseguição não fez leis para castigar os
renunciassem o uso do matrimonio, pois clérigos que não observavam a da conti­
ue na historia nào se faz menção alguma nência, c que havia alguns casados, ou
c seus filhos. que ordenados depois de o serem, conti­
No tempo de Tertulliano e de S. Jero- nuavam no uso do matrimonio, uns porque
nymo pensava-se que sómente S. Pedro ti­ o suppunham permittido, outros porque
nha sido casado. 1 queriam que o fosse aos sacordotés dr
Verdade ó que os authores parecem di­ Christianismo, da mesma sorte que o er
vididos acerca do casamento de S. Paulo, aos da antiga lei.
mas todos conveem em que quando este Informado porém o papa Siricio d’cs
apostolo escreveu aos corinthios, fazia pro­ desordens, quando a perseguição cess
fissão de viver na continência, pois que deu perdão aos primeiros com a condk
elle mesmo assim o d iz .3 do que não receberíam mais ordens, nt
0 concilio de Nicea suppõe o celibato exerceríam as que tinham se nào obse*
um uso estabelecido na Igreja, pois pro­ vassem o celibato; depôz os segundos, e
hibe aos sacerdotes o lerem em suas casas prohibiu se ordenassem os casados, c se
mulheres que possam induzir suspeita, casassem os que já eram ordenados: no
permittirido-lhes sóniente viverem com suas que é evidente que o papa nào fazia mais
mães ou irmãs, o que deixa vér que não que restituir ao seu vigor uma lei já esta­
tinham mulheres, porque debaixo do nome belecida e reconhecida na Igreja.
de irmã não podemos dizer que fosse com- No principio do quinto século Innocen-
prehendida a m ulher.6 cio i confirmou este direito de Siricio: 3 e
no meio do sexto fez Justiuo uma lei para
1 Jústin. Apol. Anthenagore Legat, pro confirmar, diz elle, os sanctos canones, que
Christ. Ciem. Alex. I. 3. Strom. Tert. Apol. prohibem o casamento dos sacerdotes.45
c. 9. Origen. cont. Cels. Pelo que acabamos de dizer fica eviden­
2 Peipet. de la Foi, t. 5, pag. 299. te: I.° Que houve sempre na Igreja singu­
2 *Mabillon, Praes, in primum saeculum lar veneração á virtude da continência.
Benedici, n. 5, etc. 2.° Que esta virtude não excede as forças
4 Tert. de Monogam. Hieron. contr. Jo- do homem, ajudado com os soccorros da
vinian.
5 Tert. ibid. c. 3. Epiph. lia r. 58. Hie­
ron. Ep. 22. Avg. de Grat. et lib. arb. c. 4. 1 Can. 27.
Tlieodòret in Paul., diz que S. Paulo foi 2 Can. 2.
casado. Ciem. in Alex. I. 3. Strom. c. 30. 3 Innocent. Ep. 3.
Eusebe et S. Mèthode le nient. 4 L. 5, c. de Episcopis et clericis, col
6 Cone. Nic. Com. 4. lect. 4, t. 1.
858 VIG
graça. 3.° Que a igreja antiga a prescre­ Nem o uso da igreja grega authorisava
veu a seus ministros. a liberdade dos reformadores; esta, sim,
A lei do celibato, imposta aos sacerdotes permitte o casamento dos sacerdotes, mas
e diaconos pelo papa Siricio, c depois aos quando se tracta d’um ponto de disciplina
subdiaconos por Leão, nào é, pois, injusta, póde e deve cada qual seguir as leis da.
menos que nao se queira negar á Igreja o Igreja cm que se acha.
direito da legislação, c de pedir a seus mi­
nistros certas virtudes ou qualidades, que TERCEIRA QUESTÃO
cila julgar necessarias, segundo o tempo c
as circumstandas: .portanto, é uma rebel- SE A -LEI 1)0 CELIBATO K CONTRARIA
liào inescusavel dos primeiros reformado­ À FELICIDADE DOS ESTADOS
res violarem os votos de continência que
baviam feito, c condemnarem a práctica A povoaçào, dizem alguns, anda tão,en­
da Igreja assim estabelecida. leada com a felicidade dos estados, que os
Se Paphnucio reclamou contra a lei do legisladores mais sábios olhavam sempre
celibato no concilio niccno, é facto nimia- o celibato como um crime: ninguem igno­
mente duvidoso, para authorisar um sim­ ra como elle era castigado em Sparta.
ples fiel a revoltar-se contra uma lei ge­ N’este principio se estribam para assal­
ralmente observada na Igreja: Sómente tarem a doutrina da Igreja acerca do celi­
Socrates e Sozomeno o referem. Eusobio bato: «0 casamento, dizein elles, é decoro­
' nào fallà n’elle, M. Baylc o suppòe falso, e so, e necessário em todas as sociedades
a linal, assim este facto, como muitos ou­ civis: ó notorio que todos os legisladores
tros, provam que a lei do celibato nào sábios empregaram os expedientes mais
obrigou sempre na Igreja, mas nào que adequados a fim de obrigarem os cidadãos
esta carecesse de autlioridade para a pre­ ao casamento: isto supposto em um povo
screver. composto de christàos, persuadidos todos
Nas desordens do clero fazem o seu de que na continência ha uma grande san-
maior lincapé os reformadores para a in- ctidade, que faz os homens mais gratos a
fracçào da mesma lei: eram grandes, sem Deus do que o são no estado do matrimo­
liivfda, bem que excessivamente exaggera- nio, não haveria casamento, porque todas
as exhortações dos escriptores sagrados
las pelos protestantes, e principalmcnte por
tendem a impôr como obrigação indispen­
uricu, que, em defesa da reforma, amontoa,
sem escolba, sem discrição, sem critica c sável o aspirar â perfeição' e tornar-se-
sem pejo, infinidade de fabulas c de calu­ cada um mais agradavel a D e u s.1
mnias absurdas: mas estas desordens do Esta objecção mesmo em substancia tem-
clero provinham do geral transtorno em se transformado em mil diversos modos,
uepozeram a Europa inteira as invasões chegando ao ponto de fazer-se d'ella o fun­
os barbaros. damento para presagiar que os protestan­
0 clero, abysmado na mais profunda tes hão de vir a subjugar os estados ca­
ignorância, incapaz de occupar-se nos seus tholicos: portanto vamos avaliar a sua for­
devereà e estudos, ia como arrastado pela ça por meio d’algumas reflexões.
torrente da desordem geral, por effeitodas l.° A igreja catholica ensina ser a conti- *
mesmas causas que tornaram todos os po­ nencia um estado mais perfeito que o do
vos da Europa viciosos, ignorantes e des- casamento, mas ensina tamhem que é um
humanos; porém só á Igreja, que gemia dom particular, que nem todos são chama­
debaixo d’estas desordens, assistia o direis dos a este estado, e que este mesmo torna
to de prescrever leis proprias para repri- a salvação mui perigosa, quando para elle
m il-a s.1*3 não ha vocação verdadeira: e é tanto as­
sim que ordena provas para os que a elle
1 Veja-se sobre esta questão Sylvio, t. 4. pretendem consagrar-se. Ensina a igreja
Suppl. quest. 53. Juenin, de Impedim. Ma-
trim . Ferrand, réponse á iApologie de Ju- o celibato. D. Gêrvasio tractou também es­
rieu. Leltres snr differens sujets de contro­ ta m ateria n'uma disséidàc.ão aue pôz no
verse, par M. VAbbè de Cordemoy, U ttr e s fim da vida de S. C ypriam . Ha também
3 et 4. Histoire des Concites Gcnéraux, no theologos que pretendem que o celibato é do
fim da qual se vê um excellente tractado direito divino. Veja-se Sylvio, loc. cit.; isto,
do celibato. Celliei', Apologie pour la Mora­ porém, não é mais que uma opinião sem
le des PP. Histoire du divorce de Hcnri fundamento.
VIU, 3 vol. in-12, 1688,- chez Boudot; no i Barbeyrac, Trailé de la Morale des
fim d'eüa se acham bellas dissertações sobre Percs, c. 8, pag. 113, etc.
WIC 839

catholica ser sancto o estado do casamen­ wiCLEF, ou joão wíclif— nasceu cm Wi-
to, c que a clle é chamado o maior nume­ clif, na provincia de York, peloanno 1329:
ro de homens, e portanto a sua doutrina estudou no collegio da Rainha, cm Oxford,
não leva todos os christãos ao celibato, c fez grandes progressos na philosophia e
nem a persuasão á continência será de es­ na theologia.
torvo para o casamento dos estados ca­ Em 1301 estabeleceu o arcebispo de Can-
tholicos. tuaria, cm Oxford, uma fundação para o es­
2.° Um homem que se casa produz mui­ tado da logica c do direito, nâ qual havia
tos, e assim, segundo a carreira ordinaria de haver um guardião c onze collegiacs,
da natureza, os homens se hão de multi­ tres monges da igreja de Christo em Can-
plicar quanto baste para não poderem sub­ tuaria, e oito do clero secular. O mesmo
sistir no mesmo Iogar, e se vêrem obriga­ fundador deu o logar de guardião a corto
dos a'formar ‘novos estabelecimentos. As monge, do qual pouco tempo depois o ex­
transmigracões que proveem da dema- pulsou para 11’elle pôr a Wiclef.
zia de vassállos, não se oppoem á felicida­ Morto 0 fundador, Simão Lengham, que
de dos estados, antes bem lhes são neces­ lhe succedeu, restituiu aos monges os loga-
sarias; porém a respeito dos mesmos esta­ res que tinham perdido. Wclef appcllou: 0
dos veem a ser perdidas. papa confirmou a sua expulsão, e quanto
Portanto, pois, não é opposta à felicida­ havia feito Lengham. Dous annos depois
de pública uma lei que absorve a süper- Wiclef obteve uma cadeira de theologia,
abundancia; quando se attribua ao celibato cujas funeções desempenhou com luzimeu-
este effeito: nem deve ter-se por nociva to, porém durante 0 curso theologico fez
em um estado no qual se cuide cm alen­ continuas deelamações contra os monges,
tar e favorecer a população; antes se pôde chegando até 0 ponto de os accusar de er­
atfirmaf que, absorve a superfluidade de ros capitaes.
vassallos, que sempre se vê n’um estado Não eram menos desfavoráveis as dispo­
bem governado, muito mais util, do que sições de Wiclef para com a côrte de Ro
o uso de destacar colonias; porque estas mâ, de sorte que, ou fosse por haver pei
são perdidas a respeito do estado d’onde dido 0 seu processo, ou pelas dissensõc
sahem, e o celibato da igreja catholica que havia entre os papas e a Inglaterrí
conserva os cidadãos, que aliás perdería. ou finalmente pela leitura de numerosa
Não é, pois, o celibato da igreja romana obras que tinham succcssivamente accom-
a quem devia imputar-se a despovoação meltido a igreja de Roma, taes como os
dos estados catholicos; se a houvesse, ou­ escriptos de Marsilo de Padua, e de João
tras seriam as causas. 0 amigo dos ho­ de Oliva, Wiclef investiu a côrte de Ro­
mens, que está mui longe de merecer a ma nas suas lições de theologia, nos seus
suspeita de pouco zeloso a respeito da feli­ sermões e nos seus escriptos, e. não só
cidade dos estados, provou esta verdade juntou quanto se escrevera contra 0 seu
para qualquer que leia sem prevenção. poder e riquezas, mas impugnou a sua
0 celibato, que primeiramente foi prohi- authoridadc nas cousas puramente espi-
bido em Sparta e em Roma, foi depois to­ rituaes, e até quiz imputar-lhe erros no
lerado n’aquellas republicas. Além do que âmago da sua doutrina. Como 0 clero de
os gymnophoristas, entre os indios, os hy- Inglaterra, tomando sempre 0 partido dos
rophantes, entre os athenienses, e parte dos papas contra el-rei e contra 0 parlamento,
discipulos de Pythagoras viviam em 'celi­ tinha mantido 0 povo fiel á sancta sé, cm-
bato. 1 Portanto não é este contrario nem prehendeu Wiclef arruinar 0 credito do
ao poder dos estados, nem á felicidade dos clero, impugnando as suas pretonções, e
particulares. . ' quanto podia conciliar-lhe a confiança e
w a l f r e d o — Homem obscuro e ignoran­ respeito dos povos. Concorria também*que
te, o qual sustentava que a alma acabava as vivas e frequentes desavenças entre a
com o corpo. Appareceu pelos fins do sé­ côrte de Roma e Inglaterra desde João,
culo decimo. Durando, abbade de Castres, dito Sem Terra, tinham mal dispostos os
o refutou sem réplica, e o seu erro não te­ animos contra a mesma côrte, causando
ve consequências. 2 sempre um grande estimulo a lembrança
da excommunhão e deposição de aquelle
1 Hist. Critiq. du Celibat.j Acad. des principe, cuja corôa fôra lançada aos pés
Inscript., 1713. do legado, e tornada a pôr pelo mesmo
2 D'Acheri, Spicileg., t. 7, pag. 341. ministro sobre a cabeça do rei, a cessão
Mabillon, Prcef. in scec. 5. Benedict., § 3. de Inglaterra ao papa ô 0 tributo que este
Hist. Litter. de France, t. 5, pag. 11, 12. pôz sobre aquelle reino, e não menos dis-
860 W IG

sabor verem os inglezes providos os bene- paz, de misericordia c dc caridade, sirva


íicios do seu reino nos estrangeiros. Em de signal e de estandarte a todos os chris-
todas estas disputas o clero de ordinario tàos, em favor dc dous falsos sacerdotes,
tomava o partido da côrtc de Roma, e que manifestamente são Anti-Christos, que
portanto attrahiu o odio de uma parte do pretendem conservar-se na grandeza mun­
povo, que por outra invejava as suas ri­ dana, opprimindo a christandade, mais do
quezas. que os judeus opprimiram ao mesmo Je­
Achando, pois, W iclef estas disposições sus Christo e a seus apostolos. Porque ra­
favoráveis para a cmpreza que meditava zão o orgulhoso padre de Roma não con­
de rebellar a Inglaterra contra a igreja de cederá indulgência plenaria a todos os ho­
Roma, c auxiliado também pelos lollardos mens, com a condição de que vivam em
que n’aquclle reino haviam feito partido, paz e em caridade, áo passo que lh’a está
entrou a fazer discipulos e a inquietar o concedendo para que se batam c se des­
clero. truam?» 1
Levaram-se á presença de Gregorio xi Urbano vi mandou publicar cm Ingla­
muitas proposições de Wiclef, que renova­ terra uma monitoria para citar W iclef a
vam os erros,*do Marsillo de Padua, de Roma; porém este heresiarca foi atacado
João de Gandc e de outros, c õ papa orde­ d'uma paralysia,. e morreu pouco tempo
nou ao arcebispo de Cantuaria, e ao bispo depois, a 24 dc dezembro de 1384.
de Londres que o fizesserii encarcerar,
sendo certo que elle ensinava doutrinas
tão detestáveis.1 N’este mesmo tempo mor­ DOUTRINA DE WICLEF
reu'Duarte, e Ricardo n lhe succedcu.
O arcebispo de Cantuaria e o bispo de
Londres, a fim dc executarem a sua com- W iclef tinha muitos sectarios: o clero
missão, citaram perante elles a Wiclef, o para se oppôr ao progresso dos seus erros
qual compareceu, porém acompanhado do renovou as condemnações da sua doutri­
duque de Lencastre e de lord Piercy. Qui- na, e a universidade de Oxford, depois de
zeram estes que elle respondesse assentado; examinar os livros d’este theologo, extra-
os bispos que estivesse de pé: 'de uma e hiu d'ellcs 278 proposições, que julgou di­
outra parte hoiive palavras'assaz picantes, gnas de censura, e remetteu-as ao arcebis­
de sorte que se separaram sem se ultimar po de Cantuaria. 2
cousa alguma na causa de Wiclef, que, Estas conclusões conteem toda a doutri­
apadrinhado d’uma tào poderosa protecção, na de Wiclef, c o desenho de reforma que
continuou a ensinar a sua doutrina, e fez elle tinha meditado; é verdade que teve
proselytos, que a divulgaram: comtudo o um plano, porque das suas proposições se
clero o condemnou e obrigou a deixar a descobre que. o seu fim era tornar'odiosa
corte. Como a desgraça de W iclef nada a igreja romana c o clero, excitar contra
mais fez que augmentar o seu rancor elles a indignação pública, e aniquilar a
contra o papa, e contra o clero, elle com- sua authoridade; mas n’isto não encontra­
pôz diversas obras a fim de ensinar seus mos systema, nem corpo de doutrina se­
sentimentos c de os communicar em todo guido,’ncm algum governo que elle qui-
o reino. zesse substituir ao governo da igreja ro­
Por este mesmo tempo Urbano vi e Cle­ mana.
mente v ii contendiam sobre a cadeira dc A anarchia, a desordem e o fanatismo
Roma: dividida a Europa entre estes dous dos anabaplistas, nos parecem as conse­
pontifices, o primeiro era reconhecido pela quências mais obvias da doutrina de. W i­
Inglaterra, o segundo pela França. Urba­ clef. Vamos referil-a tal qual .se póde en­
no fez prégar em Inglaterra uma cruzada contrar no extracto que fez’a universidade
contra a França, concedendo aos cruzados de Oxford das suas diversas obras, das
as mesmas indulgências da Terra Sancta. quaes a maior parte é desconhecida.
W iclef não perdeu esta occásião para Elle nos seus dialogos accommetto o pa­
incitar os animos contra a authoridade do pa, as ordens religiosas, as riquezas do cle­
papa, e compôz contra esta cruzada uma ro, os sacramentos e as orações pelos mor­
•obra cheia de furor e de vehemencia. «E tos. Diz que o papa é simoniaco c herege:
vergonhosa cousa, diz elle, que a cruz de
Jesus Christo, que é um monumento de 1 No livro intitulado a—Explicação da
grande sentença de maldição.
1 Cone. Britannice, . t. 3, pag. 124 et 2 Na Collecção dos concilios de Ingla-
passin. terra.
WIC 861

que não tem ordem na igreja de Deus, de seus passados, recobram todos os seus
inas na sociedade dos demonios; que de­ direitos com um titulo mais legitimo que
pois da dotação da Igreja todos os papas o da conquista.
são precursores do Anti-Ghristo e vigários Todos os donativos que se fazem ao cle­
do demonio; que assim ellcs como os car- ro deveríam ser esmolas livres, não im­
dcaes sào instituídos, não por Jesus Chris­ postos forçados. O povo, cm consciência,
to, inas pelo demonio; que deve aconsclhar- deve negar o dizimo aos maus ministros,
sc aos Fieis que não peçam indulgências ao sem que lhe importem as censuras que se
papa, porque a bondade de Deus não se en­ incorrem por haver desempenhado esta
cerra nos muros de Roma ou de Avinhão; obrigação.
que nem o jTapa nem alguma outra potên­ Pretende Wiclef que para serem legiti­
cia da terra tem poder para estorvar-nos mas as nomeações para benefícios, se deve
os meios da salvação que Jesus Christo restabelecer o*uso das eleições por sorte:
estabeleceu; que o papa e seus collegas é Jesus Christo só o que ordena, quando,
são phariseus c escribas, presumindo ter e como elle quer: um homem a quem a
o direito de fechar a porta do céo, aonde sua consciência dá o testimunho dc que
elles não hão de entrar, c não querem que satisfaz á lei de Jesus Christo, está certo
os mais entrem. de que é ordenado sacerdote pelo mes­
O poder dos bispos não ó mais que ima­ mo Senhor.
ginario; qualquer simples sacerdote, cujos O livro da simonia nada mais é que a
costumes sejam regrados, tem mais poder repetição de quanto tinha dito contra os
espiritual que os prelados eleitos pelos religiosos. No da perfeição dos estados
cardeacs c nomeados pelo papa. quer que na Igreja não devam haver mais
Wiclef dá ás ordens religiosas o nome que duas ordens, o diaconato c o sacerdó­
odioso de seitas, e particularmente se en­ cio; as outras são instituições monstruc
furece contra as quatro mendicantes, as sas.
quaes, segundo elle, são fundadas sobre a No livro intitulado da Ordem cliristã at;
hypocrisia. Os serracenos, que negavam o ca o dogma da presença real, c renova
Evangelho, são menos culpaveis diante de erro dos berengarios. Affirma que se sai
Deus do que estas seitas. O mahometismo vam os meninos mortos sem baptismo: re­
e a vida dos cardeaes, conduzem por diffe­ pete o que tinha dito acerca dos monges
rentes derrotas, mas igualmente seguras e das ordens: tem por concubinato o casa­
para o inferno. Sc os fieis são obrigados a mento de pessoas que não podem ter fi­
honrar o corpo da Igreja, sua sancta mãe, lhos: nega que a Extrema-unção seja sa­
•> nenhum ha que não deva trabalhar cm cramento: diz que o homem mais sancto
", puriíical-a d’estas seitas, que são quatro é o que tem mais poder na Igreja, c o uni­
■> humores mortaes de que o seu corpo está co que possue a authoridade legitima, e
inficcionado. demais affirma que, para possuir com bom
A confissão é uma práclica instituida direito qualquer cousa sobre a terra, é
por lnnocencio nr, e não ha cousa mais necessario ser justo, e que este direito se
inútil; basta que nos arrependamos. Con­ perde logo que se commette qualquer pec-
demna o uso do chrisma no baptismo. cado mortal.
Ataca o dogma da transubstanciação. É bem de admirar vér que Wiclef arro-
O livro do sermão do Senhor sobre o jando-se a proferir esta maxima unicamente
monte, contém quatro livros, nos quaes com' o intuito de authorisar os fieis a des­
quer elle provar que os apostolos tinham pojarem o clero de suas riquezas, nãò di­
trabalhado por suas proprias mãos para visasse que por cila o estabelecia senhor
adquirir o sustento, e que não tornavam absoluto de todos os bens temporaes, pois
das esmolas mais que o simples necessa­ que na verdade só á Igreja pertence o jul­
rio, concluindo d’aqui serem simoniacos gar se qualquer homem tem commcttido
i os clérigos que entram no estado eccle­ um peccado mortal: porque seria abrir
siastico com uma intenção differente. uma porta franca a todos os roubos e a
Os senhores temporaes teem direito pa­ todas as guerras entregar esta decisão aos
ra despojarem todos os ecclesiasticos das particulares, como queria Wiclef. Os fu­
suas possessões, sem que necessitem da rores dos hussitas e dos anabaptistas, que
í intervenção do papa: é favorecer a here­ depois d'elle desolaram a Ailemanha, são
sia não se levantarem contra as possessões provas d’esta doutrina. Na mesma obra
da Igreja; bem que os antepassados dos sustenta que tudo acontece por necessi­
fieis se desapropriassem d’estes bens, os dade.
1 descendentes d’estes, corrigindo os erros O Trialogue contém quatro livros, os a
. 55
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quaes não são outra cousa mais que a re­ Deus, torna-se em peccado mortal. Depois
petição de tudo o1que tinha dito contra as ataca as orações pelos defunctos. O livro
possessões temporaes do clero; alii conde­ do Dominio civil contém tres livros: d’cl-
mna a consagração das igrejas, as ceremo­ lcs sómente extrahiram os doutores dc
nias, e insiste sobre a nullidade das cen­ Oxford algurnas proposições contra os mon­
suras e das cxcommunhòes da Igreja. ges, cujo sentido se não* alcança.
A obra intitulada Dialogos versa toda in­ Tudo o que acabamos d’cxpôr dos prin­
teira sobre metaphysica abstracta, e se cípios de Wiclef, repete elle no seu iracta-
destina a combater a crença da presença do do Diabo, c nos seus livros de Doutri­
real, por difilculdades que tira da mesma na do império do céo, e da Confissão. Tal
natureza da extensão, tendo por impossí­ é a sua doutrina, segundo se vê exposta
vel que os accidentes eucharisticos subsis­ na collecção dos conci lios d’Inglaterra, da­
tam sem sujeito; que dous corpos existam da á luz pelos inglezes alguns annos de­
no mesmo espaço, e que Deus possa pro­ pois: nada se encontra nos monumentos
duzir em o mesmo tempo um corpo em recolhidos pelos editores dos mesmos con-
differentes logares. Renova os erros d’Abae- cilios, que dê logar a crêr-sc que a Wi­
lardo sobre os limites do poder divino, não clef imputassem sentimentos alheios, ou
querendo que Deus possa fazer mais do que o extracto dc seus livros fosse infiel.
que aquillo que já fez. Sem fundamento, pois, diz o doutor Burnet
No tractado da arte do sophista torna a que não se sabe realmentc se os sentimen­
assanhar-se contra as possessões tempo- tos que se lhe attribuem são na verdade
raes da Igreja, e se remonta até â ideia seus, «pois que nada sabemos, diz elle, se­
primitiva do direito dos homens sobre a não pelos seus inimigos, os quaes escreve­
terra: pertencendo tudo a Deus, só elle ram com uma paixão propria para deixa­
oóde dar ao homem um direito exclusivo rem em dúvida tudo o que proferiram.»1
obre qualquer cousa, e Deus não dá se- Os sectarios dc Wiclef, que eram mui
ão aos justos, e áquelles que teem a sua numerosos, c tão inimigos do clero como
raça. A qualidade de herdeiro, os titulos, este o era de Wiclef, não teriam deixado
s concessões c doações não estabelecem de dar todo o realce ás infelicidades dos
ámais um direito legitimo em favor do que extractos, e o seu silencio é uma approva-
pecca; tanto que este é privado da justiça ção formal da genuidade dos mesmos.
habitual e da graça, é usurpador.
O pae que morre no estado de justiça
não dá a seu filho o direito de lhe succe- DOS EFFEITOS DA DOUTRINA DE WICLEF
<ler, se não lhe merece a graça necessaria
para viver sanctamente, "e portanto, não
teem os homens sobre a terra mais direi­ As obras de Wiclef conleem, pois, prin­
tos, nem mais lei que a caridade. Assim, cípios que quadram com differentes cara­
pois, o amo que não tracta seu domestico cteres, adequados a diversos juízos, e fa­
como quereria ser tractado se estivesse no voráveis á indisposição assaz geral em In­
seu logar, pecca contra a caridade, perde glaterra contra o papa, contra o clero, e
a graça, descahe de seus direitos, e é des­ contra os monges; portanto, havia de ter
pojado de toda a authoridade legitima so­ discipulos.
bre o seu servo. O mesmo se deve dizer De nada se es'queceu o clero para suffo-
dos reis, dos papas e bispos, conforme Wi- car esta seita nascente, anathematisou os
clef, uma vez que elles commettara um wiclefitas e lollardos, que de alguma sorte
peccado mortal. se confundiam, obteve contra elles editos
Sendo a pobreza a primeira lei do Chris­ rigorosos, e com effeito foram queimados
tianismo, ninguem deve pôr demandas por alguns d’uma e outra seita. 2
bens temporaes, nem occupar-se senão das Mas, sem embargo d’isto, a doutrina de
cousas do céo; portanto, ninguem, sem pec­ W iclef dava tão grandes passos, que a ca­
cado, póde occupar-se em julgar os negó­ mara dos communs, em 1404, offereceu a
cios profanos, e pela mesma razão se os el-rei uma representação em que lhe pe­
barbaros assolarem um paiz, é mais con­ dia se apoderasse das rendas do clero, no
forme com o Evangelho supportar estas
desgraças, que rebater a forca com a força. 1 Burnet, Hisloire de la Reforme d'Angl.,
Deus não approva, segundo Wiclef, que l. 1, pag. 59.
os catholicos tenham dominação civil ou 2 Collecção dos Actos de Reymer, na
religiosa. A cólera, por mais leve que seja, continuação da H istoria de M. de Rapin
quando não tem por objecto a gloria de ThoiraSj t. 2, pag. 60. Cone. B rit.} t. 3.
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que elle não consentiu: em 1410 repetiu a dos em Roma, Vienna e Basiléia, aonde
mcsina representação: porém el-rei não so­ tomou o capello em artes; e lendo estu­
mente a rejeitou, mas prohibiu á camara dado a theologia, foi parocho cm Glaris,
dos communs de intromctter-sc nos negó­ em 1006, c depois n’uma villa por nome
cios do clero: depois d’isto requereu a mes­ Nossa Senhora das Ermidas, famosa pela
ma camara para que se revogasse ou miti­ grande devoção com que muitos peregri­
gasse o edito que condemnava os lollardos nos iam fazer alii suas oITertas. N’csta vil­
ou wiclefilas, e este mesmo requerimento la descobriu muitos abusos, e vendo que o
foi indeferido, c durante a sessão el-rei fez povo estava possuído d’erros grosseiros,
queimar um lollardo. por meio de instrueçoes e de discursos,
Henrique v não tractou com menos ri­ entrou a esclarecel-o.
gor os lollardos, porém nem extinguiu esta Emquanto Zuinglio se applicava a cor­
seita, nem a dos wiclefitas, que fez pro­ rigir estes abusos, Leão x mandou pregar
gressos occultos, mas consideráveis na indulgências na Allemanha pelos domini­
camara dos communs, e preparou tudo canos, e na Suissa pelo franciscano Ber-
para o scisma de Henrique vm. Os livros nardino Samson. Levantou-se Zuinglio con­
de Wiclef apparcceram em Allcmanha, tra o abuso que o franciscano fazia das in­
aonde João Hus adoplou parte dos seus er­ dulgências, c o bispo de Constança lhe ap-
ros, e d’ellcs se serviu para amotinar os provou a resolução, porque também estava
povos contra o clero. resentido de quê elle entrasse na sua dio­
Sopeada a seita dos hussitas não se ani­ cese sem permissão sua, e sem haver mos­
quilou nos espíritos a doutrina de Wiclef, trado em Constança a genuidade das suas
que na Allemanha produziu essas differen­ bullas.
tes seitas de anabaptistas, que a desolaram Por esse tempo foi nomeado Zuinglio
logo que Luthero levantou o estandarte da pregador de Zurich, e pintou tão vivamente
rebelliào contra a Igreja. Veja-se o artigo os abusos, c até os excessos do francisca
Anabaptistas. no, que o consul de Zurich mandou fech?
Já refutamos os erros dos wiclefilas acer­ as portas ao conductor das indulgência
ca da presença real no artigo Berengario, Como todos estes abusos se fundavam e
e Berengarios, acerca das orações pelos tradições incertas, c ainda mesmo cm f.
mortos, das ceremonias da Igreja, do Sa­ bulas, Zuinglio para erradicar os abuso,
cramento, da ordem, o da superioridade atacou todas as tradições, querendo que se
dos bispos nos artigos Ano e Vigilando; se admittisse como verdadeiro o pertencen­
ácerca da omnipotencia de Deus, em Abae- te á religião christà, o que é ensinado for­
lardo; o seu sentimento sobre as indulgên­ malmente na Escriptura, e que se rejei­
cias, cm Luthero, e sobre a confissão, em tasse como invenção humana tudo o que
Osma. por cila não podia provar-se.
Quanto á sua opinião sobre as posses­ O magistrado de Lausanne creu encon­
sões temporaes do clero, é que não se trar na doutrina de Zuinglio um expe­
funda senão no abuso que elle possa fazer diente seguro para derribar todos os abu­
dos bens que possue; eu ma dissertação que sos, c para determinar os pontos em que
provasse poder o clero possuir legitima­ se devia obedecer ao papa e ao poder ec­
mente esses bens, a ninguem persuadiría clesiastico. Portanto, foi dirigido aos paro­
que o mesmo clero fazia mau uso d’elles, se chos, prégadores, beneficiados c curas Cal­
estivéssemos no caso de se lhe poder cen­ mas nm edito do conselho, no qual se lhes
surar esse mau uso. ordenava que não prégassêm senão o que
Os albigenses, que ensinavam deverem- podésso provar-se pela palavra de Deus, e
se despojar os ecclesiasticos das suas pos­ que deixassem em silencio as doutrinas e
sessões, não tiveram sequazes mais zelo­ leis humanas.
sos, á excepçào de alguns usurarios, c de Tinham passado á Suissa os livros de
alguns senhores avarentos e tyrannos de Luthero contra as indulgências c contra a
seus vassallos. A cada passo se vôom re­ igreja de Roma, aonde eram lidos soíTre-
novar estas antigas deciamacões contra o gamente: Zuinglio da sua parte havia com-
clero, mas é muito raro acharem-se na ínunicado a muitos os seus sentimentos;
.bôcca dTmi homem que em si una as qua­ viu-se, pois, de improviso, uma chusma de
lidades de entendido, desinteressado, eari- prégadores, que não só atacavam os abu­
tativo c modesto. sos, mas as mesmas indulgência^ o culto
z i s c a — Veja-se Hussitas. dos sanctos, os votos monasticos, o celiba­
z u i n g l i o u l r i c — nasceu em Tackembur- to dos sacerdotes, a quaresma, a missa, etc.
go, em 1484, fez a carreira de seus estu­ O bispo de Constança, que approvára-^
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a Zuinglio quando cllc impugnava somen­ seus erros acerca da Eucharistia; e n s i n a i»
te os abusos, sahiu com uma pastoral con­ do que o corpo de Jesus Christo não e ste z r
tra os innovadores, c mandou deputados va alli realmenlc. Zuinglio não deixou f i =
aos outros cantoes, queixando-se da licença gir esta occasião tão favoravel ao designi
dos mesmos innovadores. Os mesmos can- que formara de abolir a missa.
tòes, congregados em Lucerna, lavraram Carlostadio cstribãra sua opinião en
um decreto, em 27 de mareo de 1522, prohi- ser impossível que um corpo estivesse cri
bindo aos ecclesiasticos a* pregação da no­ muitos logarcs ao mesmo tempo. L ulhercn
va doutrina: Zuinglio não obedeceu ao de­ lhe oppozera a authoridade da E scriptura--
creto, c continuou nas suas declamações: que expressamente diz serem os s y m b o lo s
os catholicos de Zurich combateram os re­ eucharisticos o corpo de Jesus Christo: ora—
formadores, e o povo se dividiu entre Zuin­ peremptória esta razão contra Zuinglio, que
glio e os ministros catholicos. estabelecia a sua reforma sobre o princi­
Segundo o principio fundamental da re­ pio fundamental de que nada se deve en­
forma do Zuinglio, todas as disputas da re­ sinar senão o que contém a Escriptura.
ligião deviam ser decididas unicamente Este argumento o atormentava de dia e de
pela Escriptura, e d’esta sorte se tornavam noite, seni poder atinar com a solução.
simples factos, não sendo preciso para sua Todavia pregava com a sua vehemencia
decisão mais que abrir a Escriptura, e ver ordinaria contra a igreja romana; o seu
de duas proposições oppostas qual se en­ partido se fazia dominante, accendéram-se
contrava no Antigo ou Novo Testamento. os animos, quebraram as imagens, c como
Vesta maneira era o magistrado o juiz crescia a turbulência na cidade, os magis­
ompetente das disputas da religião, e o trados determinaram conferências sobre
onselho de Zuric ordenou aos ministros das as materias controvertidas. Depois dc mui­
Igrejas da.sua jurisdicçào que se achassem tas, aboliram a missa, e successivamente
na capital, c supplicou áo bispo de Constan- todas as ceremonias da igreja romana;
ça que viesse ou mandasse os seus theolo­ abriram-se os claustros, quebraram-se os
gos. votos, casaram-se os parochos, e o mesmo
Os ministros obedeceram ao conselho, e Zuinglio também casou com uma viuva
o bispo enviou João Faber, seu vigário ge­ rica. Eis-aqui o primeiro eíTeito que a sua
ral, com os seus theologos. Apresentou reforma produziu no cantão de Zurich.
Zuinglio a sua doutrina em 67 artigos; A difllculdado dc conciliar o sentimento
porém Faber, que attenlou querer o con­ de Carlostadio sobre a Eucharistia com as
selho constituir-se juiz da doutrina, recu­ palavras dc Jesus Christo, que diz expres­
sou entrar em conferência diante d’elle, samente— este é o meu corpo—lhe fazia dar
insistindo em que sómente á Igreja per­ volta ao miollo. Teve um sonho, no qual
tencia o julgar das controvérsias da reli­ se achava disputando com o secretario dc
gião, e se oíTereceu a responder por csçri- Zurich, que o baqueava sobre as palavras
pto aos artigos de Zuinglio, c que final­ da instituição, e d’improviso ,vé apparecer
mente ainda sem dependencia da sua res­ um phantasma branco e negro, que lhe
posta se devia esperar a resolução de um diz,estas palavras: «Cobarde, porque não
concilio, que era forçoso congregar-se. lhe respondes com o que está cscripto no
Sobre a escusa de Faber, o conselho fez Exodo, o cordeiro c a Paschoa, para dizer
publicar um edito em que prohibia ensi- que é o symbolo.»
nar-se outra cousa mais que o que se con­ Esta resposta do phantasma foi um
tinha na Escriptura, em consequência do triumpho para Zuinglio, e lhe varreu to­
qual Gregorio Luti entrou a pregar con­ das as dúvidas sobre a Eucharistia. Por­
tra as ceremonias da igreja romana, e con­ tanto ensinou ser cila a figura do corpo e
tra o fasto do clero. Queixou-se d’isto o do sangue de Jesus Christo, para o que
administrador das terras de S. João de Je­ achou na Escriptura outros exemplos, em
rusalém, e o magistrado condemnou Luti que o verbo é era tomado em logar de si­
á prisão e a desterro. gnifica: então lhe parecca mui natural o
Zuinglio censurou na cadeira, e com sentimento de Carlostadio.
acrimonia, o procedimento do senado; o A explicação de Zuinglio, favoravel aos
conselho supremo annullou esta sentença, seus sentimentos e 'á imaginação, foi ado-
e ordenou que d’alli por diante corressem ptada por muitos reformados: todos que­
perante^lle q§ negocios de religião: Luti riam abolir a missa, e como o dogma da
foi logo promovido para outra parochia: presença real formava um embaraço sobre
Carlostadio, expulso de Saxonia por Lu- este artigo, a explicação de Zuinglio cor­
thero, retirou-se á Suissa, aonde levou os tava esse nó; Oecolampadio, Capiton e Bu-
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cer, o adoptaram; diíTundiu-sc pela Allc- cos os zuricos, c os desbarataram no com­


manha, Polonia, Suissa, França c Paizes- bate, cm que foi morto Zuinglio.
Baixos, c formou a seita dos sacramcnta- Depois d’esta guerra, os catholicos e os
rios. zuricos fizeram pazes com a condição de
Luthcro, que da mesma sorte que Zuin- que cada um havia de conservar a sua re­
glio estabelecera a Escriptura pela unica ligião.
regra de fé, tractou os sacramentarios co­ Já refutamos no artigo Vigilando a dou­
mo hereges, c entre estes e os lulheranos trina de Zuinglio a respeito do celibato; no
se viu a mesma opposiçào que reinava en­ artigo Berengario, o seu sentimento ácer-
tre todas as seitas e a igreja romana: não ca da Eucharistia; no Lutheranismo, seu
houve interesse que podésse reconcilial-os, erro no tocante á missa; cm Vigilando,
e os lutheranos perseguiam aos sacramen­ seu parecer a respeito do culto dos san­
tarios com igual furor que aos catholicos. ctos; e no Lulheranismo, acerca das'indul-
A reforma introduzida na Suissa por gcncias.
Zuinglio, se divulgou; varios reformado­ Deve-se applicar á reforma que Zuin­
res alentaram seus esforços cm Berne, Ba­ glio estabeleceu na Suissa, o que temos
siléia, Constança, etc.; porém muitos can- dito de Luthero, c da reforma cm geral.
tões ficaram constantemente aílorrados á Emquanto aos talentos e obras de Zuin­
religião catholica, c condemnaram a pre­ glio, pouco ha que dizer; nem era sabio,
sumida reforma dos outros, aos quacs es­ nem grande theplogo, nem bom philoso­
creveram, representando-lhes que ella não pho, nem muito erudito: era ^entendi­
pertencia nem ao povo, nem a um paiz mento justo, mas limitado, e expunha seus
particular, mas á Igreja e a um concilio pensamentos com bastante ordem, mas pre
geral. fundava pouco, se o julgarmos nelas su:
Os presumidos reformados não fizeram obras.
caso algum da representação dos catholi­ Toda a doutrina de Zuinglio. como
cos; d’uma e d’outra parte-*houve expres­ dissemos, se contém em sessenta e se.
sões jduras, efa guerra esteve a ponto de artigos: cornpôz também uma obra par.
romper mais d’uma vez entre os dous par­ justificar e provar estes mesmos artigos, e
tidos. Por fim os cantões de Zurich c de toda cila nada mais contém que as razões
Berne probibiram o transporte de viveres de que se servem todos os reformadores.
para os cinco cantões catholicos, e uns e Zuinglio, pouco antes da sua morte, fez
outros se pozeram em armas. 1 uma confissão de fé, que mandou a Fran­
Zuinglio empregou todas as suas forças cisco i; e explicando n’ella o artigo da vi­
para apagar d’uma vez o fogo que clle da eterna, diz a este principe que deve es­
mesmo havia pegado; não era para cm- perar vêr a assembléia de todos os homens
prezas militares; mas como principal pas­ sanctos, esforçados e virtuosos que houve
tor de Zurich devia apresentar-se no cam­ no mundo. «Lá vereis, diz ellc, os dous
po; via ser isto indispensável, c não duvi­ Adãos, o Resgatado c o Redemptor, Abel,
dava que lá morrería. Confirmou-o n’esta c flcnoch, vereis um Hercules, um The­
persuasão um cometa que então appare- seo, Socrates, Aristides, Antigono, etc.»
ceu; razão porque fazia lamentáveis quei­ Todas as obras de Zuinglio existem re­
xas, publicando que o cometa annunciava colhidas em 5 volumes in-folio.1
a sua morte, e grandes infelicidades a Zu­
rich: mas, sem embargo d’isso, determi­ 1 Com estas obras pôde ver-se M. Bos-
nou-se a guerra, c Zuinglio acompanhou o suetj Hist. des Var.; Spond, ad an. 1517.
exercito. N’uma sexta feira, 11 d’outubro Hist. de la Reforme, par Duchat. Supple-
de 1571, em Cappel, atacaram os catholi- ment de Bayle, art. Zuingle.

FIM

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