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Bilhete com foguetão

Com um beijinho para a Petra


Foi no tempo da terceira classe.
Quando a Petra entrou na sala já deviam ser umas três da tarde. Lembro-me
disso porque nós sabíamos mais ou menos as horas pelo modo como as sombras
invadiam a sala de aulas.
A Petra tinha o tom de pele escuro, bem bronzeado, e vinha com umas roupas
bem bonitas que se fosse a minha mãe não me deixava vestir assim num dia normal de
aulas. Uma mochila toda colorida como quase ninguém tinha naquela época. Então eu
acho que tudo aconteceu em poucos minutos, assim muito de repente.
Já não consegui prestar atenção à aula e a Marisa, que sentava na carteira ao
lado, reparou que eu estava toda a hora a olhar. A delegada de turma também viu. E a
Petra também. (…)
Fiquei todo intervalo na sala, na minha carteira, a rasgar as folhas onde eu
tentava escrever um bilhete para a Petra.
Depois do intervalo todos regressaram com respiração depressada e o suor do
corpo a molhar as roupas, alegres também porque a camarada professora Berta disse
que ainda ia demorar. Deu ordens à delegada para sentar todo mundo e apontar numa
lista o nome dos indisciplinados.(…)
O meu bilhete estava pronto, dobrado, mas eu não sabia na minha cabeça se
devia ou não dar o bilhete à Petra.
A Marisa olhava para mim como quem perguntava alguma coisa. E essa resposta
que ela queria com palavras ou um olhar, eu também não tinha para mim. Mesmo sem
ter ido jogar futebol, eu suava na testa e nas mãos.
Fiz sinal à delegada que queria falar com ela, mas ela disse que não. A Marisa
disse-me então que ela podia ir.
– Entrego a quem?
– À Petra.
A Marisa nem esperou eu ter acabado bem de decidir, tirou-me o bilhete da mão
e foi a correr. O meu olhar acompanhou a Marisa na corrida em direção à Petra e de
repente me deu uma tristeza enorme quando a vi passar além da Petra e entregar o
papel já meio aberto à delegada de turma.
A delegada mandou todos fazerem um silêncio que eu não conseguia engolir na
minha garganta dura. Era o meu fim. Como é que eu ia enfrentar os rapazes depois
daquele bilhete para a Petra a dizer que ela tinha «um estojo bonito com cores de

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Carnaval da Vitória e a mochila também, pelo tipo mousse de chocolate e uns olhos
que, de longe, pareciam duas borboletas quietas e brilhantes»?
Cruzei os braços na carteira, escondi a cabeça, fechei os olhos, e pelos risos eu ia
entendendo o que se passava ali. Quando ela acabou de ler, houve um silêncio e eu
sabia que a delegada devia estar a olhar para o desenho. Como eu não sabia desenhar
quase nada, tinha feito um pequeno foguetão desajeitado porque achei que fazer flores
também já era de mais. A delegada riu uma gargalhada só dela, bem alto. A Marisa
quis saber o que era. Ela amarrotou o bilhete e guardou no estojo.
– Ele desenhou um «fojetão».
– Um «fojetão»?!
Aí eu confirmei na minha cabeça que aquela menina não podia ser nossa
delegada porque ela não sabia ler o «gue», e eu tinha a certeza absoluta de ter escrito
«foguetão». A camarada professora Berta entrou e eu estremeci, pensei que fossem me
queixar do bilhete, mas nada, todos estavam parados, como borboletas!, isso mesmo,
borboletas quietas.
No fim da tarde, a Petra foi logo embora sem falar com ninguém. (…) Cheguei a
casa muito confuso e um pouco triste, mas já não queria falar mais do bilhete.
– Correu bem o dia? – a minha mãe me deu um beijinho.
– Sim foi bom – tirei a mochila das costas. – Mãe, foguetão não é com «gue»,
como na palavra guerra?
– Claro que sim, filho.
Olhei devagar para ela. Fiquei a sorrir. A minha mãe também tem uns olhos
assim enormes bem bonitos de olhar.

Ondjaki, Os da Minha Rua – estórias, Lisboa, Editorial Caminho, 2007.

Questão 1

Assinala como verdadeira ou falsa cada uma das seguintes afirmações.

O narrador do texto sente-se atraído por uma colega de turma.

Pelo menos uma das personagens do texto é descrita fisicamente.

Apenas Marisa reparou que o narrador estava sempre a olhar para Petra.

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O narrador ficou muito inquieto quando a Marisa entregou o bilhete à delegada
de turma.

O narrador concluiu que a delegada de turma desempenhava bem o seu


papel.

O texto termina com o narrador a sorrir porque a Petra respondeu ao seu


bilhete.

Questão 2

Os alunos sabiam que eram três da tarde, por causa …

da existência de um relógio na sala de aula.

da Petra já estar há algum tempo na sala de aula.

da posição do sol.

de estarem na segunda classe e só terem aulas de tarde.

Questão 3

Ao descrever Petra, o narrador diz que esta tem um “tom de pele escuro, bem
bronzeado”. Seleciona a expressão do texto que transmite a mesma ideia.

“Cores de Carnaval da Vitória”.

“Duas borboletas quietas e brilhantes”.

“Pelo tipo mousse de chocolate”

“Respiração depressada”.

Questão 4

No intervalo, o narrador não saiu da sala de aula porque ficou a escrever um bilhete
para Petra. Pode concluir-se que o processo de criação deste bilhete foi…

rápido e fácil.

demorado, mas muito simples.

repetitivo, mas rápido.

demorado e difícil.  

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Questão 5

A expressão "Mesmo sem ter ido jogar futebol, eu suava na testa e nas mãos.", sugere
que…

estava muito calor na sala de aula.

o narrador estava muito nervoso.

a presença da professora Berta na sala assustava o narrador.

o narrador sentia muito medo dos olhares da delegada de turma.

Questão 6

Ao longo do texto, o narrador refere-se a borboletas para caracterizar dois elementos.


Identifica esses elementos.

Os olhos da delegada e o bilhete que ele criou.

Os olhos da Petra e os colegas da turma.

A professora Berta e a mochila da Petra.

As flores desenhadas no bilhete os colegas da turma.

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Questão 7

“A minha mãe também tem uns olhos assim enormes bem bonitos de olhar."
Identifica a outra pessoa a que se refere a palavra "também" na frase.

Marisa.

A delegada de turma.

A professora Berta.

Petra.

Questão 8

O autor deste texto, Ondjaki, é angolano e, por isso, há ao longo do texto traços
linguísticos característicos da variedade africana e diferentes do português europeu.

Estabelece a correspondência correta entre as expressões textuais e as diferenças


linguísticas da variedade africana.

a) "Fiquei todo intervalo na sala…" 1) Colocação do pronome antes do verbo

b) "... de repente me deu uma tristeza 2) Omissão de palavras nas frases


enorme..."

c) "Ela amarrotou o bilhete e guardou 3) Utilização de estruturas frásicas


no estojo…" diferentes

d) "…a minha mãe me deu um


beijinho…"

Questão 9

O autor deste texto quis tornar claro ao leitor que este texto foi escrito por uma criança.
Para tal, recorreu à utilização de…

vocabulário rebuscado.

estruturas frásicas complexas.

vocabulário próximo do oral e estruturas sintáticas simples.

recursos expressivos e uma estrutura textual complexa.

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Soluções

Questão 1
V
V
F
V
F
F

Questão 2
da posição do sol.

Questão 3
“Pelo tipo mousse de chocolate”

Questão 4
demorado e difícil.  

Questão 5
o narrador estava muito nervoso.

Questão 6
Os olhos da Petra e os colegas da turma.

Questão 7
Petra.

Questão 8
a) – 3); b) – 1); c) – 2); d) – 1.

Questão 9
vocabulário próximo do oral e estruturas sintáticas simples.

6/6

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