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AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DE PORTELA E MOSCAVIDE Escola Secundária da Portela

Escola EB 2,3 Gaspar Correia


Ano letivo de 2019/20 Escola EB1 Catela Gomes
Ficha de gramática – 10º ano Escola EB1/JI Quinta da Alegria
Janeiro 2020 Prof. Paula Ângelo Escola EB1/JI Portela
Leia atentamente o texto que se segue
PARADOXO DO COMEDIANTE
"Ilusão (ou o que quiserem)" traz a seguinte indicação: "romance (ou o que quiserem)". Este "o que quiserem"
representa a fluidez do romance como género já pouco codificado e a propensão lúdica, duas características que
conhecemos dos romances de Luísa Costa Gomes. Lembremos que a escritora alternava a narrativa de "Olhos Verdes"
(1994) com um ensaio sobre o filósofo Berkeley, e que o mais recente "A Pirata" (2006) é um pastiche dos romances de
aventuras, em reescrita vagamente feminista. Nunca devemos esperar dos romances de Luísa Costa Gomes senão uma
total liberdade de irem por onde quiserem.
É evidente que a ficção é uma ilusão, uma forma de imitação da realidade, mas em "Ilusão" a própria
realidade é uma imitação, e imitação barata. O romance é uma sucessão de episódios mais ou menos pícaros, e
progressivamente descosidos e implausíveis, cenas da vida de Jorge Cochonilha, actor quarentão que vive de biscates,
locuções, anúncios. Jorge coordena um grupo de teatro, constituído por comediantes igualmente falhados e patuscos, e
o verdadeiro teatro é a série de "projectos" infrutíferos da companhia, entre "coisa beckettianas" e a dança dos
subsídios: "Queríamos algo experimental, mas que não afastasse o público; queríamos continuar o nosso trabalho de
pesquisa ao nível da palavra, da elocução, mas não podíamos deixar para trás o trabalho de corpo; queríamos
conteúdos contemporâneos, mas não elitistas; queríamos, enfim, uma peça séria, grave, profunda, reflexiva, mas
também divertida, mesmo cómica, que pudesse entreter e educar" (págs. 19-20). Tudo em vão. Jorge tenta escrever
uma peça e frequenta aulas de escrita criativa, mas estas mais parecem sessões de terapia para suburbanos.
É na sua vida, porém, que Jorge vive o maior teatro. O casamento caiu na rotina e no desinteresse, e por isso o
protagonista combina com a esposa uma espécie de "guião". Cozinham estratagemas que os mantenham casados. É
preciso motivação psicológica, um bom desenho da personalidade, verdade emocional e frases oportunas, como numa
peça credível. Não é uma fantasia sexual, mas um contrato de entediados, enquanto ela não se entretém com o reiki e
a macrobiótica. De resto, a mulher de Jorge, Teresa, vive também o seu teatro do quotidiano, porque é professora de
uma turma liceal problemática (passe a redundância) e tem de aprender a "operacionalizar transversalmente [uma]
estratégia interdisciplinar construtiva de inserção no ambiente da aula". Teatro, teatro, tudo é teatro. Enquanto isso,
Jorge vai tendo amantes, paixões inconclusivas, e mesmo uma família virtual no Second Life. A tecnologia, aliás, já
tornou tudo uma representação, toda a gente manda "e-mails" e mensagens de telemóvel a toda a hora, anda pelo
Youtube, tem avatares. Portugal, na escrita de Luísa Costa Gomes, é um país de futebolistas iletrados, actores de novela
ineptos, manequins sem expressão, participantes alarves de concursos televisivos. Se o comunismo era os sovietes mais
a electricidade, o capitalismo é a massificação mais a Internet. E todos falam uma novilíngua feita de "valências" e
"''outputs'' criativos". Como diz a professora de Jorge: "Você tem queda para o grotesco. Isso é bom, é
contemporâneo."
O alvo é justo, mesmo se fácil, e as peripécias divertidas. Luísa Costa Gomes conhece o meio que satiriza, e
domina os diferentes registos cómicos, sobretudo o jogo com as falas misturadas, as discussões estapafúrdias e as
tiradas insólitas. Eis uma família da alta burguesia a discutir que peça que querem ver: "O filho mais velho voltou ao
ataque: ''"Alcestis", segundo prémio; "Medeia", terceiro prémio; "As Troianas", segundo prémio; eis o palmarés de
Eurípides.'' ''Mas "Hipólito", primeiro prémio; "Bacantes", primeiro prémio; "Ifigénia em Áulis", primeiro prémio'' disse
o pai. ''Compare com "Édipo em Colono", que Sófocles escreveu aos noventa anos. Também primeiro prémio. Também
produção póstuma'' disse o filho. ''Compare com "Ifigénia em Áulis", escrita por Eurípides aos oitenta'' contrapôs o pai.
Falavam baixo, deixado espaço entre as falas" (págs. 177-178). E no fim disto, eis que os burgueses dispensam os
actores e interpretam eles mesmos a peça escolhida.
"Ilusão" abdica à partida da continuidade dramática, mas no último terço exagera, com capítulos
anarquicamente construídos, às vezes pensamos que Luísa Costa Gomes escreveu este romance enquanto fez a sua
(notável) tradução de Jarry. Chegamos ao fim e todos os teatros fracassaram, incluindo um "centro cultural
multimédia" numa terreola duriense e uma empresa de teatro ao domicílio. O paradoxo do comediante é que vendeu a
alma para chegar ao topo e não chegou ao topo nem recuperou a alma. Entre tantos teatros, Jorge, o actor, nunca
conseguiu interpretar bem a sua própria vida: "Tive uma pausa imperfeita. Eu não faço bem a pausa. Não tenho o
sentido da oportunidade. Ou é longa demais e lança a perplexidade entre os presentes, ou é curta demais e não chega a
ser reflexiva. No palco tenho esse mesmíssimo problema, em virtude do que nunca serei um grande actor - não domino
a ansiedade que o silêncio me causa. Mal acabo uma frase, já me está a sair outra, não consigo representar uma pausa.
Ou paraliso e faço pausas que se parecem com brancas. No palco, estou só a tentar manter o texto presente, mas por
mais prazer que ele me dê, o que eu quero sobretudo é vê-lo pelas costas. O texto faz-me medo. Provavelmente é tudo
assim na minha vida" (págs. 153-154).
Pedro Mexia, Ipsilon, Público.

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